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Reflexões Pandêmicas no Brasil

1. O livro apresenta reflexões sobre como a população brasileira vem enfrentando a crise sanitária causada pela pandemia de COVID-19. 2. As emoções de medo, ansiedade, tristeza e desesperança são analisadas no contexto do isolamento social imposto pela pandemia. 3. Os autores refletem sobre como determinadas emoções e moralidades são potencializadas em situações de crise, e sobre como o individualismo moderno contribui para o sofrimento social em tempos de isolamento.

Enviado por

Williane Pontes
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Reflexões Pandêmicas no Brasil

1. O livro apresenta reflexões sobre como a população brasileira vem enfrentando a crise sanitária causada pela pandemia de COVID-19. 2. As emoções de medo, ansiedade, tristeza e desesperança são analisadas no contexto do isolamento social imposto pela pandemia. 3. Os autores refletem sobre como determinadas emoções e moralidades são potencializadas em situações de crise, e sobre como o individualismo moderno contribui para o sofrimento social em tempos de isolamento.

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MAURO GUILHERME PINHEIRO KOURY

(Organizador)

TEMPOS DE

PANDEMIA
Reflexões sobre o caso Brasil
MAURO GUILHERME PINHEIRO KOURY
(Organizador)

TEMPOS DE

PANDEMIA
Reflexões sobre o caso Brasil

Autores
Fanny Longa Romero
Idayane Gonçalves Soares
Jesus Marmanillo Pereira
Lysie dos Reis Oliveira
Maria Laura Faria Afonso de Melo
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
Mônica Lizardo de Moraes
Rafael de Oliveira Cruz
Selma Gomes da Silva
Wellington da Silva Conceição
Williane Juvêncio Pontes

Florianópolis, 2020
Publicação do Grem-Grei
Grupos de Estudo e Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções,
e Interdisciplinar em Imagens

Linhas de Pesquisa:
Emoções e Sociabilidade Urbana
Estudos em Sofrimento Social e Sociabilidade
Imagem, culturas emotivas e moralidades em contextos urbanos (GREI)

Coedição:
Editora Tribo da Ilha — [email protected]
Editora Grem-Grei — [email protected]

CONSELHO EDITORIAL
Editor
Mauro Guilherme Pinheiro Koury – UFPB
Membros
Adrian Scribano CONICET-IIGG-UBA/CIES-Ar;
Angélica De Sena – CONICET-UNLaM/UBA/CIES-Ar;
Bela Feldman-Bianco – UNICAMP;
Antônio Cristian Saraiva Paiva – UFC;
Jesus Marmanillo Pereira – UFMA;
Juan António Roche Cárcel – Univ. Alicante-Es;
Manuela Vieira Blanc – UFES;
Patrícia Goldfarb – UFPB;
Renato Athias – UFPE;
Vera da Silva Telles – USP;
Wellington da Silva Conceição – UFT

Projeto Gráfico, Diagramação e Capa:


Rita Motta

Foto da capa: Deslocamento para casa


Fotógrafo: Jesus Marmanillo Pereira - 03 de julho de 2020 – Doutor em
Sociologia, trabalha com sociologia urbana e visual.

T288 Tempos de pandemia [recurso eletrônico]: reflexões sobre o caso Brasil /


Mauro Guilherme Pinheiro Koury (organizador). – 1. ed. –
João Pessoa: Grem-Grei; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020.
243 p.

Formato: PDF
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: https://grem-grei.org/editora-grem-grei/
ISBN: 978-65-86602-14-2 (e-book)
Inclui referências

1. Antropologia das emoções. 2. Pandemia – Aspectos psicológicos.


3. Sofrimento social. 4. Brasil – Condições sociais. 5. Morte – Aspectos
sociais – Aspectos antropológicos. 6. Desigualdade social. 7. Incerteza.
8. Individualismo. 9. Antropologia visual. I. Koury, Mauro Guilherme
Pinheiro.
CDU: 316

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................... 6
Mauro Guilherme Pinheiro Koury

CA P Í TU LO 1
AS EMOÇÕES EM TEMPO DE ISOLAMENTO SOCIAL......................... 13
Mauro Guilherme Pinheiro Koury

CA P Í TU LO 2
ALÉM DA CULPA E DA EXPIAÇÃO: COVID-19 E AS FISSURAS
DE GRAMÁTICAS EMOCIONAIS...................................................... 39
Fanny Longa Romero

CA P Í TU LO 3
INDIVIDUALISMO MODERNO E SOFRIMENTO SOCIAL EM TEMPOS
DE COVID-19: QUESTIONAMENTOS PARA REFLEXÃO................62
Idayane Gonçalves Soares

CA P Í TU LO 4
CENÁRIOS DE MEDO E AS SOCIABILIDADES PANDÊMICAS
NO MARANHÃO.................................................................................85
Jesus Marmanillo Pereira

CA P Í TU LO 5
PANDEMIA E AFETAÇÕES DAS EMOÇÕES: REFLEXÕES SOBRE
A REALIDADE DA COVID-19 NO ESTADO DO AMAPÁ............... 120
Selma Gomes da Silva
CA P Í TU LO 6
“QUANTO MAIS PERTO, MAIS REAL FICA”: EMOÇÕES FRENTE
À PANDEMIA DO CORONAVÍRUS EM UMA PEQUENA CIDADE
DO TOCANTINS................................................................................ 142
Wellington da Silva Conceição
Rafael de Oliveira Cruz

CA P Í TU LO 7
REFLEXÕES SOBRE O ENFRENTAMENTO À COVID-19 EM UMA
COMUNIDADE DE JOÃO PESSOA-PB............................................ 165
Williane Juvêncio Pontes

CA P Í TU LO 8
CONVIVENDO COM A PANDEMIA................................................ 188
Maria Laura Faria Afonso de Melo

CA P Í TU LO 9
APONTAMENTOS DAS ARTES SOBRE EPIDEMIA E CIDADE..... 213
Lysie dos Reis Oliveira

CA P Í TU LO 1 0
O QUE VOCÊ CALA – OLHARES SOBRE UM TEMPO DE
PANDEMIA.........................................................................................225
Mônica Lizardo de Moraes

SOBRE OS AUTORES.........................................................................239

SOBRE O GREM-GREI............................................................................242
INTRODUÇÃO

O Brasil vive duas crises associadas, de um lado, a crise polí-


tico-institucional diante das mazelas do governo Jair Bolsonaro e
sua equipe de ministros e apoiadores. De outro lado, a crise da ex-
pansão da pandemia em termos mundiais do covid-19, e sua rápida
entrada e extensão pelo Brasil afora, com um crescendo de pessoas
contaminadas pelo vírus e de casos fatais. Os grupos de pesquisa
GREM Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emo-
ções, e o GREI Grupo Interdisciplinar de Estudos em Imagem, am-
bos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal da Paraíba, não podiam se furtar em tentar
contribuir para a reflexão crítica da Situação Limite por que passam
o mundo, e com especificidade o país.
O Grem-Grei juntos, então, convidaram pesquisadores das re-
giões Norte e Nordeste do país para se manifestarem com artigos
e ensaios – textuais ou visuais – sobre a pandemia, com reflexões a
partir dos seus estados ou municípios; ou para pensá-la em termos
mais amplos. Nos dois casos, todavia, sempre vinculando a reflexão
às teorias social e da cultura no interior da relação emoções, socie-
dade e cultura.
A pronta resposta dos autores convidados, que responderam
ao chamado do Grem-Grei, em um primeiro momento, compoz o

6
Suplemento Especial da RBSE Revista Brasileira de Sociologia das
Emoções, sob o tema Pensar a Pandemia à luz da Antropologia
e da Sociologia das Emoções. Um mote comum, com a liberdade
dos recortes, de acordo com os interesses e olhares de cada autor.
No Suplemento estiveram presentes 15 autores de vários estados
da federação, Amapá, Pará, Tocantins, Maranhão, Paraíba, Per-
nambuco, Rio Grande do Norte e Bahia.
O grande interesse despertado pelo Suplemento Especial e a
importância de substanciar a discussão crítica sobre a pandemia
no país, sob o olhar de pesquisadores das regiões Norte e Nordeste,
fez com que o Grem-Grei caminhasse para uma nova rodada de con-
vites no sentido de transformar os textos presentes no Suplemento
Especial em uma coletânea de ensaios.
Os dez autores presentes neste livro, assim, refletem sobre a
crise político-institucional e a crise sanitária vividas pelo país, e so-
bre o cotidiano do isolamento social produzido pela situação pan-
dêmica do coronavírus, e as formas de adaptação comportamental
à nova situação causada pelas mudanças de hábitos e costumes que
provocam ansiedades, medos, tristeza, depressão, na população.
Além de reflexões sobre os movimentos de conformidade e resis-
tência de homens e mulheres em seu cotidiano, em um período de
incerteza e desilusão por que passam o mundo e o Brasil, aqui, de
modo particular.
Este livro, com enfoque centrado na antropologia e na socio-
logia das emoções, trás o título, Tempos de Pandemia: Reflexões
sobre o caso Brasil e esta organizado em nove capítulos mais uma
introdução. O primeiro capítulo traz o ensaio de Mauro Guilherme
Pinheiro Koury, intitulado: As emoções em tempo de isolamento so-
cial. O ensaio de Koury reflete sobre como a população brasileira

7
IN TRODUÇ ÃO
vem enfrentando a crise sanitária ocasionada pela expansão do co-
vid-19, em um momento nacional de grave crise político-institucio-
nal e anticivilizatória.
A análise recai sobre as emoções suscitadas por este cenário
delicado da vida nacional, que colocou os brasileiros em isolamento
social. Debruça-se, a seguir, sobre a construção insegura de novas
rotinas diárias de segurança pessoal e familiar, em que o medo, a
ansiedade, a tristeza, e a desesperança são tematizadas na ambiva-
lência de um sentimento de culpa pessoal de não se ter certeza da
saída da crise, associado a uma tentativa de “pensar positivamente”
para não agravar a insegurança familiar.
O segundo capítulo, de Fanny Longa Romero, titulado Além da
culpa e da expiação: covid-19 e as fissuras de gramáticas emocionais
problematiza e compreende de que modo determinadas emoções,
moralidades e dispositivos de poder, enquanto construtos culturais
são potencializados em situações de acentuada crise humanitária.
A sua análise, de enfoque qualitativo, está centrada nos conceitos
de vergonha-culpa e sofrimento social, como chaves para o entendi-
mento das experiências vividas na pandemia do coronavírus.
Baseada em dados coletados pela imprensa e páginas de in-
ternet, suas reflexões envolvem inquietações sobre as incertezas
atreladas a eventos críticos. Chama, por fim, a atenção para o com-
promisso antropológico de reavaliar, processualmente, o social.
O terceiro capítulo traz o ensaio de Idayane Gonçalves Soares,
sob o título Individualismo moderno e sofrimento social em tem-
pos do covid-19. Neste ensaio a autora procura estabelecer algu-
mas aproximações entre o cenário social anterior à pandemia de
covid-19 e sua relação com sofrimentos emocionais no contexto de
isolamento social.

8
IN TRODUÇ ÃO
Busca apreender este cenário a partir da contribuição de teo-
rias sociológicas e antropológicas que abordam o individualismo
moderno e apontam o processo de crescente isolamento do indiví-
duo na Modernidade – em relação ao social, e seus desdobramen-
tos no processo de sofrimento psíquico destes. O ensaio objetiva
contribuir para uma melhor compreensão das configurações das
relações sociais e os seus efeitos na subjetividade dos indivíduos
durante a pandemia.
O quarto capítulo, de autoria de Jesus Marmanillo Pereira, tem
como título: Cenários de medo e as sociabilidades pandêmicas no Ma-
ranhão. O artigo reflete sobre a chegada e desenvolvimento do co-
vid-19 no estado do Maranhão. Para tal, analisa como o sentimento
de medo foi operacionalizado e expressado nos comportamentos
individuais e coletivos na cidade de Imperatriz-MA.
O autor tem como guia analítico as contribuições de Georg
Simmel, materializados na categoria de forma social e nos estudos
sobre morte; Mauro Guilherme Pinheiro Koury, Claudia Barcel-
los Rezende e Maria Claudia Coelho, Yi-Fu Tuan, David Le Breton,
Norbert Elias, Erving Goffman, entre outros, que analisam as rela-
ções entre emoções e comportamentos. Com este aporte teórico-
-metodológico analisa um conjunto de boletins epidemiológicos,
fotografias, reportagens e relatos, para refletir sobre a relação entre
o medo e os processos de sociabilidade.
O quinto capítulo, de autoria de Selma Gomes da Silva, deno-
minado Pandemia e afetações das emoções: reflexões sobre a reali-
dade da covid-19 no estado do Amapá trás uma reflexão sobre as
afetações das emoções no cenário de infecção e evolução do novo
coronavírus no estado do Amapá. Neste ensaio, apoiada em teóri-
cos da sociologia e da antropologia das emoções, a autora explora

9
IN TRODUÇ ÃO
analiticamente questões sobre como as pessoas são afetadas frente
à ameaçadora realidade experimentada; sobre como manifestam
suas emoções, e sobre quais são as principais emoções e sentimen-
tos por elas mobilizados. Conclui afirmando que as emoções e sen-
timentos mais recorrentes nesses tempos de pandemia são a incer-
teza, o medo de contaminação e o medo da morte.
O sexto capítulo nos traz as reflexões de Williane Juvêncio Pon-
tes no artigo intitulado: Pessoalidade, redes de apoio e solidariedade
no contexto da pandemia: reflexões sobre o enfrentamento à covid-19
em uma comunidade de João Pessoa-PB. O seu artigo tem como uni-
verso a Comunidade do Timbó, na cidade de João Pessoa, Paraíba.
A autora parte da análise sobre a desigualdade social no país, para
demonstrar que os efeitos da pandemia do novo Coronavírus não são
sentidos de modo uniforme por toda a população, e que os grupos so-
ciais vulneráveis sofrem de forma mais intensa situação pandêmica
no país, que tem como consequência direta o agravamento de suas
condições socioeconômicas. Argumenta que a Comunidade do Tim-
bó é um exemplo desses grupos sociais em situação de vulnerabilida-
de acentuada com a pandemia, que sente de forma intensa os efeitos
do novo Coronavírus.
O artigo busca assim refletir sobre como a Comunidade do
Timbó vem enfrentando o novo coronavírus. A sua análise se pauta
no modo como a Comunidade do Timbó, de sociabilidade baseada
na intensa pessoalidade, de um lado, vem lidando com a situação de
isolamento social. E, de outro lado, sobre como as redes de apoio e
solidariedade se constituem e agem no sentido de auxílio ao outro
comunitário.
O sétimo capítulo desta coletânea, de autoria de Wellington da
Silva Conceição e Rafael de Oliveira Cruz, sob o título “Quanto mais

10
IN TRODUÇ ÃO
perto, mais real fica”: as emoções frente à pandemia do coronavírus
em uma pequena cidade do Tocantins, traz uma reflexão sobre as
emoções em torno da situação pandêmica vivida e suas consequên-
cias na cidade de Tocantinópolis – no norte do estado do Tocantins.
Analiza as reações da população local – especialmente no campo
das emoções – à contaminação de covid-19.
O oitavo capítulo de Maria Laura Faria Afonso de Melo intitula-
do Convivendo com a pandemia, analisa o crescimento da pandemia
do covid-19 em Pernambuco, e o seu reflexo entre os habitantes
da cidade de Recife, que oscila entre o temor da nova doença e a
banalização das medidas de prevenção. Apresenta um quadro de
angústia e estresse entre os moradores, causados pelas mudanças
de rotina, medo, falta de vida ativa, além da impossibilidade de des-
frutar de uma vida social, junto à constatação de dificuldade para
dormir, relaxar e se concentrar, aqui registrada, apontam para um
cenário bastante preocupante no que diz respeito à saúde mental
da população. Conlui o ensaio afirmando que o medo e o estresse
tem se tornado, do mesmo modo, uma outra pandemia.
O nono capítulo, sob o título Apontamentos das artes sobre epi-
demia e cidade, de autoria de Lysie dos Reis Oliveira, faz uma breve
análise sobre as representações imagéticas produzidas por três ar-
tistas europeus, entre o século XIV e XIX que retrataram a peste e o
cenário de horror citadino. Discute a relação entre arte e cidade e
situações limites, como os cenários epidêmicos e pandêmicos, para
concluir que o medo sobre a finitude persegue imaginários sociais
sobre a cidade, e sua ambivalência entre ser um lócus do coletivo,
mas, ao mesmo tempo, de intensa segregação.
O décimo e último capítulo, que encerra este livro, de autoria
de Mônica Lizardo, intitulado O que você cala – olhares sobre um

11
IN TRODUÇ ÃO
tempo de pandemia faz um passeio fotoetnográfico sensível sobre o
cotidiano de uma cidade brasileira da região norte do país, a cidade
de Belém do Pará nos tempos da pandemia pelo coronavírus e em
estado de lockdown. Tem um recorte documental, registrado atra-
vés de alguns retratos, percepções e sentimentos de pessoas duran-
te a quarentena imposta pela pandemia do covid-19, em Belém do
Pará, no coração da Amazônia. O ensaio parte de um personagem
entre os profissionais de saúde, o Enfermeiro, que sintetiza a luta
pela vida e ao mesmo tempo o receio de uma população exposta e
tentando sobreviver à pandemia. No segundo bloco do ensaio, há
o registro de feirantes em um dia de feira. Registro que repassa a
idéia da luta pela sobrevivência e de pessoas que tentam por um rit-
mo de normalidade em um contexto de situação crítica pelo clima
de medo ocasionado pelo alastramento do coronavírus.
O leitor, desse modo, é convidado a adentrar no conjunto de
reflexões presentes neste livro sobre o Brasil, específicamente em
suas regiões Norte e Nordeste, em tempos de pandemia do coro-
navírus. Tempos de pandemia que alterou o cotidiano do brasilei-
ro comum, causando emoções diversas, – individuais e coletivas,
– como ansiedade, medo, tristeza, depressão, estresse, angústia,
entre outras. O leitor, ao mesmo tempo, é convocado a adentrar nas
formas de adaptação, acomodação e resistência dos indivíduos em
isolamento social, em um país que vive ao lado da crise santitária,
uma crise político-institucional, que gera incerteza sobre o presen-
te, e danos psíquicos e sociais motivadas pela insegurança e dúvi-
das em relação ao destino pessoal e do país como um todo.

Mauro Guilherme Pinheiro Koury


(Organizador)

VOLTA AO SUMÁRIO

12
IN TRODUÇ ÃO
CAPÍTULO 1

AS EMOÇÕES EM TEMPO
DE ISOLAMENTO SOCIAL

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

...dor e tristeza em todas as faces... Como víamos a peste se


aproximando, cada um cuidava de si e de sua família como se
corressem o maior perigo. Se fosse possível representar exata-
mente aqueles tempos para aqueles que não os viram, dando
ao leitor a devida idéia do horror que se apresentava em toda
parte, seria preciso criar imagens em suas mentes e enchê-las
de pavor... (Daniel Defoe. Um diário de um ano de peste, 1722.
– Romance sobre a peste bubônica, no ano de 1665, na cidade
de Londres, Inglaterra).

Neste ensaio busco refletir sobre as emoções e a situação ex-


traordinária vivida pelo país, e mundo, com a pandemia propor-
cionada pelo coronavírus, o covid-191. Busco refletir sobre como a
população brasileira vem enfrentando a crise sanitária ocasionada
pela expansão do covid-19, em um momento nacional de grave cri-
se político-institucional e anticivilizatória.

1
 Este ensaio é parte integrante das no interior do projeto “Sofrimento social, socia-
bilidades e emoções em situações críticas: O caso da crise pandêmica do covid-19
no Brasil” que desenvolvo no GREM-GREI – Grupos de Pesquisa em Antropologia e
Sociologia das Emoções e Interdisciplinar de Estudo em Imagem, e no PPGA/UFPB.

13
A reflexão tem como ponto de partida as emoções suscitadas
por este cenário delicado da vida nacional, que coloca os brasileiros
em isolamento social, e busca perceber, de um lado, a construção
insegura de novos arranjos e rotinas cotidianas de segurança pes-
soal e familiar. Organização precária de rotinas em que o medo, a
ansiedade, a tristeza, e a desesperança permeiam o esforço de ade-
quação à situação de quarentena e ao cenário que se desenrola in-
ternamente, a nível doméstico e externamente, em relação às crises
sanitárias e político institucional no país. De outro lado, como esses
novos arranjos são montados tendo em vista a cruel desigualdade
social do país.
Abro o computador e antes de me acomodar para a escrita, eu
passo a vista nas páginas da imprensa e do facebook, do instagram,
das redes de whatsapp e outras. São páginas que focam quase que
unicamente as duas crises vividas na atual conjuntura brasileira.
As páginas visitadas, desde o início do golpe branco que der-
rubou a então presidenta do país Dilma Rousseff até a eleição de
Bolsonaro, estão tomadas por denúncias sistemáticas de arbitrarie-
dades políticas e de prejuízos sociais. Após a ascensão de Bolsonaro
ao poder, as acusações e revelações se ampliaram e, no estado atual
do país, respondem aos discursos de um presidente e sua equipe
ministerial que, ensandecidos, ao se verem intimados a propor so-
luções viáveis, e ao não terem propostas e respostas para a socie-
dade, utilizam frequentemente a retórica do desespero (BOURDIEU,
2012; BOURDIEU; PASSERON, 1992).
Esta noção se refere a uma espécie de falência moral daque-
les e de instituições que tentam escapulir de situações críticas que
não sabem ou não querem enfrentar e dão respostas evasivas ou
agressivas quando inquiridos sobre essas situações. Assim, tentam

14
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
banalizar, tornar risíveis ou ainda acusar a situação ou o outro qual-
quer de formas levianas e muitas vezes agressivas, quando pergun-
tados ou pressionados para tal.
No caso brasileiro, esse tipo de resposta preservativa – vinda
da presidência da república e sua equipe ministerial, – são lançadas
frente a inquietações sociais e ao sofrimento social por que pas-
sa a nação brasileira no momento. Respostas que evitam enfrentar
os desmandos políticos de frente e assume o deboche, o desprezo
pela sacralidade da pessoa humana (JOAS, 2012), a insensibilida-
de para com a dor do outro (SONTAG 2003; KOURY 1998, 2004), o
desrespeito ao brasileiro comum e às mortes que se acumulam em
um país despreparado para enfrentar a situação de pandemia que
experimenta.
A retórica do desespero serve, portanto, como uma tentativa
de encobrir, através de uma desfaçatez ou de um simulacro funcio-
nal, a derrota do caminho político assumido de ampliação e insti-
tucionalização do neoliberalismo no país, proposto pelo Governo
Bolsonaro. Há um ano e meio o Brasil sofre assaltos constantes
contra a Constituição Federal e contrárias aos direitos sociais de
categorias profissionais, de gênero e étnica.
A crise sanitária2, assim, acontece e se agrava em meio ao esface-
lamento institucional, social, cultural, e emotiva e moral, promovido

2
 Em termos globais, a pandemia tem início na segunda metade do mês de janeiro de
2020, com a indicação de 313 casos confirmados e zero caso fatal. O crescimento ver-
tiginoso do vírus se espalha pelo mundo com números assustadores de contaminação
e mortes. No Brasil, os dados computados sobre a expansão do covid-19 indicam que
o coronavírus aparece no país no final do mês de fevereiro de 2020, com um caso con-
firmado, e sem casos fatais. Desde então mostram uma vasta e contínua expansão do
vírus, que colocou em poucos meses o Brasil no segundo lugar de um ranking mundial
mórbido de países que vivem a pandemia, ultrapassado apenas pelos Estados Unidos
que detém a liderança mundial (SHUKMAN, 2020).

15
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
pelo governo Bolsonaro, que sobrevive utilizando-se de ilegalismos
e má-fé, em atitude clara de desesperação (RBA Rede Brasil Atual,
2020), com forte matiz de indiferença e desprezo com a vida huma-
na3 e a coisa pública. Além do apoio incondicional ao capital finan-
ceiro e o incentivo a grupos ilegais que espalham pânico e morte
pelo país afora, principalmente junto a aldeias indígenas e a popu-
lação quilombola.
Entre outras medidas inconstitucionais assumidas pela presi-
dência e sua equipe está a da retirada dos direitos trabalhistas, o
esfacelamento do Sistema Único de Saúde, o corte de verba para
a saúde pública, o combate à universidade e ao ensino público,
gratuito e de qualidade no país, o corte de verbas para a ciência e
tecnologia, prejudicando pesquisas e formação profissional. Além

3
 Em diversos depoimentos públicos, presentes em todos os jornais impressos e vir-
tuais e em todas as redes sociais, Bolsonaro vai de encontro à política de isolamento
social proposta e em prática mundialmente, e seguida pelos Estados brasileiros atra-
vés da ação conjunta da maioria dos seus governadores. Para tal, faz campanha públi-
ca, organizando aglomerações de seguidores incautos, ou perversos, contra o isola-
mento social e pelo retorno imediato das atividades econômicas, com o argumento de
que infelizmente muitos vão morrer, é coisa de quem está vivo, fazer o que, mas que a
economia tem que continuar a produzir para que o país “possa continuar a crescer”
e os empregos não sejam perdidos. Reforça manifestações públicas contrárias a go-
vernadores que adotam uma política de prevenção à vida, nega o caos sanitário que
chegaram alguns estados da federação, sem falta de leitos em Unidades de Terapia
intensiva e sem equipamento adequado para acolher pessoas acometidas pelo vírus;
diz desconhecer a calamidade pública da falta de locais para enterro dos mortos pelo
covid-19 e faz piadas sobre a dor da perda dos que ficam e tiveram parentes mortos
na pandemia. Estimula que insensatos seguidores façam aglomerações públicas em
portas de hospitais, impeçam ambulâncias de levarem pacientes aos hospitais, tenta
“premiar” escolas e universidades públicas que retornem as atividades presenciais,
ao mesmo tempo em que suspende bolsas e impede continuidade de pesquisas cien-
tíficas básicas no país. Do mesmo modo que estimula a invasão de reservas indígenas
por pistoleiros armados, quebrando o isolamento e aumentando o índice de contágio
entre indígenas; o mesmo acontecendo com quilombolas, que tem seus quilombos
assaltados pela pistolagem e são ameaçados de despejo e mortes. Sem falar da des-
truição de reservas ambientais, e na grilagem de terras, e no aumento de garimpos
clandestinos, estimulados direta ou indiretamente pelo governo federal.

16
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
de tentar combater à ciência em favor de cínicas e oportunisticas
atitudes mágico-pseudoreligiosas (VALFRÉ, 2020), como mostra a
narrativa tragicômica de uma ministra bolsonarista e pastora neo-
pentecostal, de ter tido uma mensagem divina “trepada num pé de
goiabeira” (CATRACALIVRE, 12.12.2018) e da adoção governamen-
tal do criacionismo. Além da tentativa de partidarizar o ensino no
país (revestido na fórmula “escola sem partido”) e de implantar o
militarismo na sala de aula4.
Com uma política de destruição civilizatória e sem competên-
cia para comandar um país que avançava por caminhos democrá-
ticos, o governo Bolsonaro vive em permanente crise política e na
procura de promover no país um governo totalitário. Cada dia no-
vos processos de impeachment são abertos (e engavetados) junto
ao Supremo Tribunal Federal que ainda tenta abafar e empurrar
com a barriga os esforços sociais da nação para o impedimento de
continuidade de um governo nefasto, como o atual, no país (BLOG
CONVERSA AFIADA, 2020).
Em um ano e meio de desgoverno, o país e sua população en-
frentam a Situação Limite5 da experiência de duas graves crises:

4
 Como se não bastasse o cenário dramático do país, o Brasil possui um presidente
que, após ser apresentado por grupos evangélicos e católicos tradicionais como o
“novo messias”, assumiu para si o papel e se autorrepresenta como o “novo messias”
e enviado de deus para salvar o país (PINEZI; CHESNUT, 2018). Autorrepresentação
expandida oportuna e cinicamente pelos pastores neopentecostais e sacerdotes ca-
rismáticos aos seus devotos, apresentando “argumentos teológicos” em defesa do
abominável.
5
 As situações-limites de um social são situações de quebra do sistema de expecta-
tivas no interior do jogo simbólico-interativo social, o que produzem e aprofundam
cenários de crise. Cenários em que os agentes vulnerabilizados necessitam confirmar
a realidade de um modo mais explícito e intenso. As situações-limites provocam cho-
ques de realidade pela sensação de destruição do universo simbólico e moral cons-
truído e vivido. As emoções de vergonha e de medo avançam causando uma sensação
ansiosa do não saber o que fazer e como agir. O que promove nos agentes em cena

17
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
uma sanitária, a pandemia do coronavírus, e a outra institucional e
política. Crises essas que mostram a face pública mais violenta de
um governo através de ações continuadas de quebras da garantia
de direitos institucionais sociais e culturais básicos, que ampliam a
desigualdade social6 e destroem a já frágil cidadania do brasileiro7.
Nesse cenário, além dos enfrentamentos cotidianos da popula-
ção, – como os panelaços, a denúncia do desgoverno e da insensi-
bilidade política e humana do governo nas redes sociais, nas notas
de repúdio que se acumulam contra os desandos governamentais,
no aumento de abaixo-assinados e processos de impeachment do
presidente, entre outras ações, – sentimentos de depressão e de de-
sespero tomam conta do pensamento e ação do brasileiro, ao lado
da enorme onda de pessimismo que envolve a sociedade nesta crise
política e sanitária8.

sofrimentos psíquico e social, que levam à desesperança, ou a um estado de latência


ou espera, de um lado. Ou, de outro lado, a uma rejeição da situação de desordem e
a possibilidade de descoberta do engodo em que se encontram perante os elementos
dispostos e de que não têm controle (KOURY, 2018).
6
 A pandemia do coronavírus também nos mostra o Brasil como um país de profunda
desigualdade social, e de que o coronavírus é também um vírus que atinge diferente-
mente a população por classe social. Quanto mais pobre, mais vulnerável econômica e
socialmente, mais vulnerável nos direitos de cidadania, mais vulnerável nos benefícios
de serviços públicos quaisquer, – habitação, escolaridade, emprego, saneamento e saú-
de, – e, assim, mais vulnerável também frente ao vírus, que tem se mostrado mais letal e
com maior taxa de crescimento. Ver sobre o assunto, entre outros, o interessante artigo
de Andrade (2020) sobre o peso das desigualdades na vivência da pandemia no país.
7
 Para a questão da cidadania no Brasil ver, entre outros, Carvalho (1984, 2001), Oli-
veira (1994), Koury (2019), Brito (2020).
8
 Sem falar na transmissão de informações falsas, a maior parte das vezes denuncia-
das pelas redes sociais como fabricadas nos gabinetes próximos à presidência ou dire-
tamente dela advindas, e de aliados do governo, que induzem sentimentos e compor-
tamentos sociais agressivos, como a raiva e o ódio-ira (RIBEIRO, 2020). O que induz
e incentiva, de um lado, a grupos de incautos, que servem como massa de manobras
à marcha incivilizatória do governo federal e seus aliados, a se organizarem publica-
mente na procura de quebrar o isolamento, ou frear medidas de prevenção sanitária
no país, ou mesmo, de tentar impedir o serviço profissional de equipes sanitárias no

18
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
Em uma enquete por meios de redes virtuais (Whatsapp e
E-Mails), aplicada entre os dias 27/3 a 21/4/2020, pelo Centro de
Investigaciones y Estudios Sociológicos (Cies) em toda a América
Latina, com um total de 2475 depoimentos, os sentimentos de tris-
teza, ansiedade e medo predominam. Destes quase 2500 casos, o
Brasil está representado com 707 respondentes. Para o caso brasi-
leiro destacam-se as emoções Ansiedade, Medo e Tristeza que, jun-
tas, somam quase 90% das respostas9. Não cabe aqui tratar de ana-
lisar o conjunto das respostas da enquete, isso será feito em outro
lugar, mas, de apresentar a fragilidade que está vivendo a sociedade
brasileira e a insegurança social frente ao presente e ao futuro.
Não é só o receio da morte, de fato ela está presente e as pes-
soas se sentem no meio de um cerco cada vez mais apertado à sua
volta10. Mas também diz respeito à quebra da normalidade nor-
mativa do cotidiano a que se acostumara a viver. O confinamento
forçado pela quarentena desestrutura rotinas, faz com que várias
pessoas coabitem 24 horas por dia fechados em um mesmo espaço.

transporte de pacientes acometidos pela virose, ou invasão de urgências hospitalares


para retirar os aparelhos de respiração de pessoas internadas e quebrarem equipa-
mentos médicos. De outro lado, contudo, tais fake news [como passou a serem co-
nhecidas e banalizadas as notícias falsas no país] buscam produzir (e o fazem, sem
dúvida) o sentimento de insegurança da população, com o aumento do sofrimento
social, em uma nação já atormentada pela pandemia.
9
 Os um pouco mais de 10% restantes apontam as emoções Ódio/Ira e a de Tranqui-
lidade frente à situação experimentada. O autor se ocupa, no momento, da análise do
banco de respostas para o Brasil para o Dossiê sobre o coronavírus e as emoções na
América Latina, a pedido do Cies.
10
 Os Estados do Amazonas e Pará decretaram calamidade pública já no início deste
mês de abril. Ao solicitarem ações para minorarem a Situação Limite a que chegaram,
recebeu do governo federal uma completa recusa de envio de quaisquer reforços, ten-
do o presidente da república chegado ao cúmulo de impedir o transporte de caixões
funerários para os dois Estados (MARQUES, 2020). Hoje, com o sistema hospitalar e
sanitário esgotado, as cenas de corpos mortos, em macas ou no chão dos hospitais e
unidades de saúde, ou de pessoas morrendo nos carros, em casa, ou na rua se trans-
formaram em um cenário trágico que vem chocando o país (SUDRÉ, 2020; BOECHAT;
BASSO, 2020; DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 2020).

19
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
Essa nova forma de coabitar, principalmente nas classes mé-
dias, ocasiona um embate aberto ou dissimulado entre os morado-
res do lugar, quase sempre pais e filhos. Episódios que acontecem,
principalmente, quando cada um dos membros é solicitado para
executar tarefas que, “em tempos normais” não seriam chamados,
seja por se encontrarem fora de casa, nas escolas, na universidade,
ou no trabalho, causando óbices na exigência de uma nova forma de
convivência entre eles.
Do mesmo modo que, apesar dos membros de uma família es-
tar forçados ao isolamento em casa, com tarefas domésticas adi-
cionais, a insegurança familiar se prolonga também sobre a manu-
tenção do emprego, junto com as exigências de continuidade do
trabalho por meios virtuais, sem o aparato técnico necessário, tem
criado um ambiente tenso que amplia o nível de ansiedade. Ansie-
dade esta associada ao medo de perda de garantias constitucionais
que levem a família à diminuição de renda, e ao desemprego.
A emoção medo é sentida e se refere a situações claras e
definidas em relação a algo imediato e determinado. O sentimento
de ansiedade, por sua vez, é experimentado em situações de
apreensão e tensão como uma sensação desagradável, mas ainda
não completamente definida. A ansiedade e o medo, assim, são
emoções e sensações que andam juntas, de mãos dadas e em rela-
cionamento intensivo na vida de cada um e do conjunto dos mora-
dores de cada unidade de isolamento.
Há pouco tempo atrás, no início da segunda quinzena do mês
de abril (18.4.2020), uma interlocutora de uma comunidade que
venho trabalhando a mais de 20 anos na cidade de João Pessoa,
Paraíba, hoje moradora de uma cidade da baixada fluminense, me
passa uma mensagem por whatsapp me informando da morte do

20
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
seu companheiro pela ação do coronavírus e da demissão sumária
do emprego de atendente de um consultório odontológico em que
trabalhava há um ano. Conta-me da dificuldade que está tendo em
dar entrada nos papéis para receber a pensão do marido aposenta-
do e da situação do seu filho e de sua neta de cinco anos com sus-
peita de contaminação.
Fala também do medo cotidiano de não saber como lidar com
a nova situação e do sentimento de solidão que “me toma”, desde
que as pessoas próximas dela passaram a evitá-la e até passar perto
da casa onde mora desde o momento em que a notícia correu pela
comunidade de que o seu companheiro tinha ficado enfermo e foi
diagnosticado como contaminado pelo covid-19. Relata a dor pelo
falecimento do esposo, o velório que não houve e o enterro em que
só ela compareceu, já que o filho e a neta estavam doentes com sus-
peita de terem contraído a virose.
Desabafa também, sobre as dificuldades da vida desde que re-
solveram se mudar para o Rio de Janeiro. Mas, afirma que, até um
pouco antes do marido “aparecer doente” tudo ia “nos trinques” e
a gente se bastava; revela ainda que “a gente tinha uma rede de co-
nhecidos por lá” (a comunidade onde reside em Duque de Caxias)
que “dava prá nós ir vivendo, quase do jeito lá de nossa rua, que nós
morava lá, na Torre11, que você conhece muito bem...”.
Com o adoecimento do marido, logo veio a suspeita de conta-
minação pelo coronavírus, a confirmação da suspeita e, a seguir, a
morte. No mesmo processo se deu o adoecimento do seu filho e de
sua neta; os dois se encontram em casa sob suspeita de estarem

11
 Refere-se ao bairro da Torre, na cidade de João Pessoa, Paraíba, onde residia. A rua
em que moravam foi estudada por mim durante mais de duas décadas, ver, Koury
(2018a).

21
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
contaminados pelo vírus corona, mas sem resultados definitivos
dos exames12.
O marido morreu em casa. Segundo ela, ele foi liberado do hos-
pital por ter “ficado melhor”, e sob a alegação de que era melhor prá
ele se tratar em casa, pois no hospital podia piorar e voltar a ser
contaminado. Logo depois, na mesma semana em que foi liberado,
veio a falecer.
A morte do companheiro e o filho e neta sob suspeita de con-
traírem o vírus, colocou a sua casa e ela própria sob suspeição da
comunidade. Todos passaram a evitar passar por perto de sua resi-
dência. De acordo com o seu relato:

a minha vida desde então desandou... Já não tenho mais


ninguém prá conversar... parece que virei uma leprosa, todo
mundo corre de mim, me atalha13 prá não ser contaminada.
Eu acho, eu virei o vírus mesmo prá essa gente...
Desde que eu fui despedida, eu num arranjo mais emprego...
minha vida ficou de cabeça prá baixo... contando assim pra
você, dá até vontade de rir, mas só faço chorar...
Como não bastasse tudo isso, a mulher do meu filho abando-
nou ele e a filha desde que [o marido da interlocutora] ficou
doente... e, tudo então só complicou: logo depois eles adoe-
ceram também, e eu sozinha a cuidar de tudo, e tenho ainda
que cuidar deles dois (do filho e da neta), e de correr atrás da
papelada para dar entrada na pensão (do companheiro)... ...e
fazer tudo em casa, sozinha...

12
 Sou informado por “zap” no dia 14.05.2020, pela manhã, do falecimento do filho
no sábado (9.5.2020) e mais um enterro rápido, sem velório e sem amigos presentes.
Informa na mesma mensagem via Whatzap que a neta “parece” se encontrar melhor e
já “saiu da cama e brinca pela casa...”. Em conversa por telefone em 30.6.2020, informa
que a sua neta “está curada” e, apesar disso continua morando com ela. A mãe “desa-
pareceu no mundo e deixou a pobrezinha sozinha comigo...”.
13
 O termo atalhar, tem o sentido êmico de evitar.

22
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
Eu acho que to endoidecendo, ficando desbirutada com tudo
isso! Vez por outra tenho umas ideias na cabeça de desapare-
cer prá sempre, mas aí tem o menino e a netinha e eu abafo
em meu peito essas ideias, e tento fingir que tudo vai se re-
solver!... Mas o que incomoda mesmo é num ter míngüem pra
conversar, pra eu desabafar!...

As emoções ansiedade, medo e tristeza, quase depressão, como


bem precisas na narrativa acima, provocam sofrimento individual
e social, moldam o humor cotidiano, afetam as relações pessoais, e
ampliam as crises individuais no enfrentamento do novo momento
situacional vivenciado. São emoções que estão presentes também
nas conversas que tenho tido com diversos interlocutores, homens
e mulheres, em conversas informais por meio do whatsapp, por
e-mail ou por celular.
Em todas elas a mudança de humor no decorrer de um dia e no
passar dos dias são expressas de forma quase gritante. A disposição
flutua e facilmente pode dominar a vontade e provocar sentimentos
de tristeza no que concerne ao presente e à falta de esperança e
perspectivas quanto ao futuro.
Em diversos casos a mim narrados, a vida em quarentena a an-
siedade e o medo pessoal e coletivo são revestidos por uma sensação
de tristeza14. Tristeza “sufocada”, “abafada” para não envergonhar a si

14
 Também tenho recebido demonstrações de tranquilidade frente à nova situação
enfrentada com a pandemia e com o isolamento social provocado, como a que recebo
nesse instante em que escrevo de uma ex-aluna, que informa que “aqui em casa tudo
tranquilo, adoramos estar juntos, tenho medo é de sair à rua e pegar esse vírus”, en-
tre outros próximos. Uma tranquilidade assustada, portanto, pelo vírus e sua ameaça.
Essa tranquilidade nas entre linhas da mensagem é sobressaltada a cada minuto pela
dificuldade e falta de controle de saber até onde, mesmo em casa, se está de fato pro-
tegido. O até onde os arranjos domésticos para a desinfecção são satisfatórios para
a evitação do contágio no plano pessoal e familiar, preenche a tranquilidade de uma
fantasmagoria inquietante.

23
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
mesmo, nem preocupar ou constranger os outros com que convive.
Essa tristeza contida tem levado muitos interlocutores a narrarem
à dor reprimida como insuportável, beirando, em muitos casos, à
depressão, e à vontade de “desaparecer”, de “deixar o barco seguir
pelas águas que quiser”.
O abafar a tristeza, amplia a sensação de angústia associada à
culpa de querer escapar da situação em que se encontram subsumi-
dos15. A culpa, de um lado, por ter querido deixar de lado os outros
relacionais e de ter se obrigado a seguir junto a eles e cuidando de-
les. De outro lado, contudo, a tristeza contida também compromete
as redes de apoio com que se sustentavam coletivamente: em casa,
na narrativa nostálgica da “rua”, de poder sair, de poder se divertir,
de poder ir ao trabalho ou a escola, entre outros “alvedrios16”, no
encontro com vizinhos e amigos, ou mesmo de colegas de trabalho.
O termo alvedrio foi usado pelo interlocutor para contextualizar o
sentimento pessoal de reclusão e solidão que vem sentido no con-
texto do isolamento social. O uso da palavra teve o sentido preci-
so de uma visão nostálgica de quando “eu podia ser dono de mim
mesmo”, de administrar de novo a sua vida, de poder caminhar, sair
para ir à padaria, ao banco, “... aonde eu quisesse ir...”.
De um lado, a palavra alvedrio usada e explicada por ele na
conversa representava os dois aspectos significativos de suas sen-
sações nesse “já longo” isolamento. O primeiro aspecto remete para
a ideia de solidão, do não poder sair de casa, do não poder ver a

15
 Ver para a questão da sensação de angústia associada ao sentimento de culpa, as
reflexões existencialistas de Kierkegaard (2011) e de Sartre (1987; 1960).
 A palavra alvedrios é sinônima de liberdade. O termo foi usado por um interlocutor,
16

em uma conversa informal, através do Messenger, no dia 24.4.2020, para contextuali-


zar o sentimento pessoal de reclusão e solidão que ele vem sentido nesses um pouco
mais de quarenta dias de isolamento social.

24
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
família e os amigos, de não mais ir a praça jogar dominó. Essa ideia
de solidão, porém, é moderada por ele, racionalmente, como uma
necessidade de não só evitar a doença para si, mas de “ajudar no
controle dessa peste que ameaça o mundo”.
A solidão assim se torna um termo ambíguo, na sua fala. Ape-
sar de “necessária”, cria um vazio de ação e uma quebra de perspec-
tivas quanto ao futuro imediato e o faz seguidamente ter crises de
humor, que o faz sentir-se “impotente” e “sem esperança”, o levando
a encarar o envelhecimento pessoal, “que antes eu não sentia assim”,
como um fardo para si, e para o social.
O segundo aspecto já anunciado na última frase acima, fala de
uma solidão como dolo. De um lado, concebe este sentimento atra-
vés de uma crescente e dramática culpabilidade “frente a mim mes-
mo” por estar vivo, e por querer uma autonomia que já não possui e
que a quarentena demonstra a ele todo “santo dia!”. O que provoca
nele uma tristeza e sentimentos nostálgicos de quando era “mais
moço” e da rua, como representação de liberdade. Liberdade esta
que, de forma ambivalente, ele sabe “que é fictícia”, e trazida e am-
pliada pelo isolamento.
De outro lado, o sentimento de solidão fala do estigma de ser
velho em uma cultura “de juventude eterna”. Relata episódios em
que precisou sair de casa para comprar pão e coisas para casa, para
ir ao posto tomar a vacina de gripe, e para resolver problemas es-
pecíficos, e a sensação pessoal era de envergonhamento, de estar
fazendo “coisa errada”, apesar de “eu estar de máscara, e com um
álcool gel no bolso, e de cinco e cinco minutos esfregar em mim”. Uma
sensação de “estar cometendo um crime contra a humanidade, o
que me incomodou muito todas às vezes que precisei sair”.
O sentimento de solidão, ao ser rompido em sua ida à rua, tor-
nou-se para ele em uma impressão de

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AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
“ser um sujeito ‘perigoso’, ao ver as pessoas se afastando de
mim, me evitando e, em algumas vezes... a ser agredido ver-
balmente por pessoas que também trafegavam na calçada ou
estavam nas lojas, no banco, na farmácia e nos cantos todos,
até menos ‘protegidos’ que eu, mas resguardados na sua ju-
ventude, e no seu horror pela ameaça que eu representava ali
frente a eles, com a minha velhice... Usavam frases agressivas
e gritos de ‘vai prá casa, velho!’, ‘...tá fazendo o que na rua!’, ‘...
lugar de velho é em casa ou no asilo...’, me fazendo sentir re-
ceio de ser agredido fisicamente, e também, provocando em
mim o mesmo horror de saber que causava tamanho despre-
zo em pessoas que eu nunca vi...”17.

Processo narrado com medo, como falência moral e sentimen-


to de culpa por ser um indivíduo “velho” que causa aversão, asco e
receio de contaminação nos outros, que aumenta a sua solidão.
A sensação de ansiedade individual de formas e motivos va-
riados se encontra presente também em vários depoimentos de
interlocutores das classes médias, sobretudo, associado à tensão
familiar e coletiva. O que tem suscitado estranho sentimento de
torpor associado ao medo de que “isso não acabe nunca!”, alimen-
tando a tristeza. Muitas vezes, também revela o aparecimento de
atitudes e ações repressivas, como também, de efusões agressivas
para consigo próprio ou em relação aos outros relacionais ou aos
outros abstratos18.

17
 O interlocutor é aposentado, tem 78 anos e reside na cidade de Fortaleza, Ceará.
Mora só desde o divórcio com a segunda esposa, “isso tem mais de vinte e tanto anos”.
Tem, com a segunda esposa, dois filhos adultos: – “um mora na Bahia, e o outro em
Minas Gerais, eu sempre eu os via, eles vinham ou eu ia passar um dia ou dois prá vê-los
e ver os netos... mas, desde então, com a quarentena, nunca mais os vi e fui aconselhado
por eles a não vir até essa coisa toda passar!”.
18
 Tais como os idosos, os membros de familiares infectados, as pessoas que retornam
de viagens “ao estrangeiro”, os estrangeiros no país, e as pessoas residentes em áreas
de alta incidência e contaminação intituladas pelos interlocutores de os “miseráveis do
país”, isto é, os sem-teto e a pobreza em geral.

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AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
Episódios de raiva e de ira se tornam corriqueiros nas narrati-
vas, e ampliam a tensão pessoal e familiar, no isolamento. A ambiva-
lência dos cuidados pessoais e domésticos muitas vezes tem provo-
cado exclusões sociais, em uma lógica da segregação inconsciente
de pessoas consideradas como grupos de risco. Em muitos casos, as
evitando e, mesmo, segundo relatos, chegando a atitudes agressivas
para com elas.
Esta ambivalência, muitas vezes inconsciente, de interlocutores
que pendem – inseguras e na incerteza, – entre o que é agir certo e
o que é agir errado na busca pessoal de garantia de imunizar-se e
proteger os seus. Processo que vem aumentado o sofrimento social,
e também expandindo o sofrimento individual de promoção da evi-
tação, pelo “remorso e culpa”. Processo que oscila, ao mesmo tempo,
pela dor pessoal do evitar “como cuidado do outro”, quanto pela ra-
cionalização de que, “infelizmente, fiz o que tinha que ser feito”.
Narrativas oscilantes de raiva e ira são construídas como pro-
cessos vividos pelos interlocutores quando descrevem a “roda viva”
em que se encontram submetidos e expostos. Roda viva que anun-
cia um ciclo crescente e contínuo de um aumento cada vez mais an-
gustiado do sentimento de culpa, que pontua um acrescer na triste-
za, e expande a ansiedade e o medo, causando desespero, e o receio
de até onde é possível o autocontrole, ao lado de um “eu acho que to
endoidecendo, ficando desbirutada com tudo isso!”.
Este cenário, ao mesmo tempo, é continuamente forçado pelo
quadro político e institucional em que se move o país nesses tem-
pos de Bolsonaro, equipe e parceiros. O ambiente armado expan-
de a sensação de insegurança pessoal e coletiva do brasileiro co-
mum, sobretudo os das classes médias. De um lado, constrangidos e

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AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
tentando acertar, buscam moldar o seu cotidiano a uma construção
insegura, – movida pela incerteza sobre o certo e o errado, – de se
ajustar às regras de controle19 sobre a pandemia em novas rotinas
diárias de segurança pessoal e familiar: como a de seguir as normas
de desinfecção pessoal e doméstica, e da evitação de grupos consi-
derados de risco, “para protegê-los”. Ambas lidas como propostas
pelos canais sanitários da Organização Mundial de Saúde e de ór-
gão de saúde pública locais.
De outro lado, contudo, se sentem “boicotados” e ameaçados
em relação à insistência do Governo Federal, através de ações pú-
blicas, de voltar às costas à pandemia, em um momento de cres-
cimento vertiginoso de casos diagnosticados de contaminação no
país. E caminhar ao contrário às recomendações das unidades sani-
tárias, forçando a população a romper o isolamento, e ameaças ve-
ladas ou efetivas para efeito demonstrativo de demissão em massa,
ou de retorno imediato às atividades presenciais de trabalho, afora
o uso de termos como frouxos, covardes, para aqueles e aquelas que
se deixam “trancar em casa”, em vez de sair para as ruas “em busca
de garantia de seus empregos” e de “por comida na mesa” da família.
O que ocasiona mais ansiedade e medo do presente instável, e a
incerteza do futuro. E a crises de agressividade e raiva frente à im-
potência em que se encontram.



19
 Ver a interessante discussão trazida por Coelho (2020) em relação às práticas de
desinfecção em uma situação de pandemia, como a vivida mundialmente, em um cená-
rio onde informações técnicas médicas-científicas, são repassadas em profusão para a
sociedade, em uma linguagem para leigos, pela mídia e redes sociais, e como a popula-
ção que opta seguir às regras de desinfecção se situa nesse emaranhado.

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AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
Para os mais pobres20, falando aqui principalmente dos desem-
pregados, subempregados e do grande número de trabalhadores de
serviços e de profissões diversas, no trabalho informal, a crise vivi-
da escancara mais o seu status de deserdados sociais21. Formam um
imenso contingente de pessoas que se sente à margem da socie-
dade, em uma sociedade desigual como a brasileira. Pessoas que,
a cada dia, torcem para que não aconteça nada com eles e com os
seus. O sentimento é de indiferença em relação à dramaticidade da
crise, e encaram a pandemia, muitas vezes, como um momento em
que os bicos acontecem; ou em muitos casos, se atemorizam, mas
respondem ao temor com um

20
 A partir de 17.03.2020 praticamente dobram o número de casos de contaminação
no país, levando-se em conta apenas os dados oficiais dos diagnosticados com a en-
fermidade, em números brutos, tem-se em 17.3 291 casos confirmados pelo corona-
vírus no país. Número que não para de crescer e que coloca o país do mês de julho de
2020 em diante no segundo lugar de um ranking de contaminação e mortes pelo co-
ronavírus no mundo. O índice de contaminados pelo covid-19 praticamente dobra no
país a cada semana. Com a expansão do processo epidêmico do coronavírus no país,
a tragédia da desigualdade social mostra a sua face mais cruel. São os moradores de
bairros e comunidades pobres e periféricas do país que despontam entre os mais atin-
gidos e mais desprotegidos. Dependentes de um sistema público de saúde solapado a
cada dia por desmandos do governo federal e seus aliados, muitos morrem em casa,
sem sequer ter conseguido ver um profissional de saúde, e com o déficit de leitos nos
hospitais e clínicas do país. Por sinal, uma petição popular solicitava que os leitos de
hospitais privados tivessem alas cedidas para o sistema público de saúde. O Governo
Federal foi contra, e o Supremo Tribunal Federal seguiu a orientação do governo re-
cusando a petição popular. O que revela, assim, por um lado o descaso com a pobreza
no país e, por outro lado, escancarando a face cruel da desigualdade e de uma nação
dividida entre os que possuem e são cidadãos e os que só têm a força de trabalho, sub-
cidadãos, e são marginalizados e tratados como descartáveis.
21
 Sem esperança, essas pessoas lotam as igrejas evangélicas ou movimentos caris-
máticos em busca de um consolo e, muitas vezes, se tornam massa de manobra para
o movimento neopentecostal associado ao poder bolsonarista. Do mesmo modo que,
iludidos por um pedaço de “pão com mortadela e um copo frio de café” participam de
manifestações contrárias a carta constituinte, e, inclusive, contra si mesmos; quando
não são acoplados a grupos marginais ligados a milícias clandestinas, e quem sabe
mais o que... A grande maioria, contudo, busca apenas sair vivos dessa pandemia, e
continuar na busca incerteza da sobrevivência cotidiana.

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AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
não tenho muito o que fazer, tenho que enfrentar e orar para
que não me botem prá fora do trabalho, como está aconte-
cendo muito em muitos cantos. Tenho várias conhecidas e
vários conhecidos que dão na rua da amargura, pois foram
eliminados dos cantos que trabalhavam como faxineiros,
como entregador, como atendente de loja, que tão na rua... Eu
saio de casa e oro prá voltar viva e meus filhos estarem bem...
Tenho dois filhos pequenos e não tenho de onde buscar ajuda
para criá-los. Sou eu e só...

É uma população marginalizada, de homens e mulheres jovens


e velhos que passa o dia em busca de atividades fora de casa. Que
se deslocam muitas vezes a pé, em grupos, por não terem dinheiro
para o transporte, ou não poderem usá-lo, pois “fará falta”, ou en-
frentam transportes coletivos lotados, em um intenso contato com
outros desconhecidos ou não que seguem para “ganhar o dia”. São
pessoas desprotegidas, e que se sentem à mercê do que vier acon-
tecer com eles no decorrer do dia, ou da vida. Como me falou um se-
nhor de “meia-idade”, como se definiu, “... moço, gente como a gente
só tem um caminho, é batalhar e batalhar de novo, todo santo dia,
chova ou faça sol... o coração aperta vez por outra, quando a gente
chega em casa sem uma comida nas mãos e sem um trocado no bol-
so! ...mas, chega de madrugada e ta a gente de novo em pé, encara o
fato, não tem outra alternativa... então, a gente diz não ao coração,
endurece os olhos e, seja lá o que for, a gente enfrenta...”.
Em conversa com um rapaz desempregado, que ganha a vida
como motoboy, e faz bicos como entregador de encomendas pelas
ruas da cidade do Recife, Pernambuco, diz que teve “a sorte de ter
arranjado com uns comparsas um dinheirinho que deu prá pegar
essa moto velha que dirijo”. Falando do seu dia a dia, narra que

... a gente sai de casa de manhã e não sabe a hora que volta, e
se volta... Eu tenho minha mãe velhinha pra cuidar e a gente

30
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
sobrevive com a pensão dela que é menos do que um salário.
Então eu é que tenho que abastecer a casa...
Tenho na vida a sorte de ter essa moto, de ter a minha mãe
e uma saudação diária de ‘vai com fé filho, que deus dará... ’.
Meu futuro é esse, chegando aos trinta, sem estudo, só com
a mulher que me botou no mundo e o medo diário de pensar
que posso voltar prá casa sem nada no bolso e nas mãos...
...esse tal de corona eu sei que é perigoso, mas... até que ele
trouxe mais dinheiro no bolso, pois tem crescido os pedidos
para eu levar e as gorjetas tem pingado mais...
...no mais, espero sair dessa doideira com vida. Sou jovem e
tenho saúde... acho que esse corona não me pega, mas se pe-
gar... eu não quero pensar nisso não, ta?”

Esta população pobre, como o senhor de meia-idade, ou o ra-


paz do relato acima, é composta por uma massa anônima de pessoas
que sobrevivem com uma renda mínima adquirida a cada dia de es-
forço pessoal e “da sorte do que aparecer”. São pessoas que depende
de sair à rua diariamente para o seu sustento e de sua família.
São pessoas que acordam de madrugada e seguem toda ma-
nhã para o trabalho como diaristas ou autônomos, e que se colocam
em filas para ver se conseguem trabalho para aquele dia. São indi-
víduos que vivem a insegurança do dia de hoje, que vivem o hoje,
porque o amanhã, se houver, será um novo hoje a ser conquistado
e batalhado.
São pessoas que vivenciam o cotidiano da precariedade, da in-
certeza, e do medo de não ter o que levar para casa no final do dia.
Que vivem o cotidiano na busca e apreensão de “ganhar um troca-
do” e “batalhar pelo pão de cada dia”.
É uma população que vive em periferias com alta densidade
demográfica e residem em moradias precárias com grande número

31
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
de pessoas. É uma população que, mesmo quando “em casa” fica
nas portas e nas calçadas, para “esfriar um pouco, antes de a gente ir
prá cama... pois o calor é danado lá dentro...”, ou para “conversar com
gente prá se inteirar das novidades e dos pontos em que a gente deve
seguir prá pegar uns bicos...”.
São pessoas que se arriscam dia a dia, em tempos normais e
em tempos extraordinários, como o da pandemia que se vive atual-
mente no mundo e no país. A eles sobram a sorte ou a sina.
Sorte de ter aumentado os bicos e o “dinheirinho escasso no
bolso”. Sina por sua vez, por ter contraído a doença ou por ter mais
trabalho “do que já tenho” para cuidar dos seus doentes em casa ou
hospitalizados, ou de ser despedido de trabalhos “certos” ou de “car-
teira assinada” e não ter encontrado outro e de não mais encontrar
trabalho. No resto, nessa condição de incerteza cotidiana, só resta
orar ou rezar e ver se “num passe milagroso eu e os meus sai dessa
sem morrer...”. Como, levantando as mãos para cima, me falou uma
senhora que encontrei na escadaria do prédio onde moro e que

graças ao meu divino senhor, eu ainda tenho esse fixo sema-


nal de faxina, pois não me botaram pra fora ainda, como nas
outras casas e apartamentos que trabalhava.
Eu aqui faço faxina, aqui no prédio, há uns quatro anos. Faço
faxina em apartamentos de umas gente que moram no inte-
rior e passam os fins de semana na capital. Venho uma vez
por semana e faço o serviço geral neles... sou boa nisso....

Essa senhora sai de sua casa, diariamente, às quatro da manhã,


depois de fazer a arrumação na sua casa e deixar “os preparados do
dia já encaminhados” que os filhos de 12, 10, 9, 7 e 5 anos de idade
terminam de preparar. Volta, às vezes, muito tarde, “caminhando
a pé junto com umas gente que mora perto”, até a sua casa. De tão

32
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
“cansada que eu chego... só dou uns xero nas crianças e uma olhada
na casa e caio dura na cama, que reparto com os meus [três] filhos
menor”. As duas da manhã “eu já tô de pé nos preparos da casa e às
quatro já na rua, e seguindo com as gente que também tão indo prá
mais um dia...”.
Como esta senhora, – que se diz “sem homem no momento”, –
muitas outras mulheres e homens vivem situações semelhantes.
Passam um dia extenuante na rua e um retorno à noite para um am-
biente doméstico pequeno, precário e dividido com um companhei-
ro ou companheira, (quando há) e vários filhos; quando não com
vários casais, de marido e mulher de filhos grandes que coabitam
nas casas dos pais em puxadinhos, ou “se atropelando pelo chão da
casa, com uns panos feitos cortina pra separar os casais”, como me
relata uma senhora de 65 anos que mora com quatro filhos adultos
e seus respectivos companheiros e companheiras, e netos, em sua
residência de dois cômodos, na cidade de João Pessoa, Paraíba.
Para Adorno (2020), “a pandemia ressalta, de maneira dramá-
tica, toda a escandalosa desigualdade social do país...”. A desigualda-
de gritante dificulta o controle epidêmico nas áreas periféricas de
elevada densidade demográfica em que reside a população pobre
do país. Lugares de habitações precárias, com alta densidade ocu-
pacional por local de moradia, onde não há esgotamento sanitário
e nem ao menos, muitas vezes, água enganada22.



22
 É importante frisar, aqui, que o governo federal, desde que Bolsonaro assumiu a
presidência, vem dilapidando os esforços de garantia de uma conta social para água
e luz nas periferias, feitas durantes os regimes democráticos posteriores ao golpe mi-
litar de 1964, complicando a vida dos seus moradores, e dramatizando ainda mais a
situação desses agrupamentos em um período de crise sanitária como a que se vive
hoje com a pandemia do covid-19.

33
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
Este ensaio refletiu sobre como a população brasileira vem en-
frentando a crise sanitária ocasionada pela expansão do covid-19,
em um momento nacional de grave crise político-institucional e
anticivilizatória. A análise recaiu sobre as emoções suscitadas por
este cenário delicado da vida nacional, que coloca os brasileiros em
isolamento social. Debruçou-se sobre a construção insegura de no-
vas rotinas diárias de segurança pessoal e familiar, em que o medo,
a ansiedade, a tristeza, e a desesperança são tematizadas na ambi-
valência de um sentimento de culpa pessoal de não se ter certeza da
saída da crise, associado a uma tentativa de “pensar positivamente”
para não agravar a insegurança familiar.
Pensar a pandemia e as emoções em um país de terceiro mun-
do como o Brasil, assim, é pensar a dramaticidade da crise sanitária
que vive o país, principalmente quando a presidência da república,
seus ministros e aliados oportunistas viram às costas para a nação,
afirmam que não existe surto epidêmico, e acusam o coronavírus de
ser coisa de comunista que quer acabar com ele e o país. É refletir
sobre um governo “eleito” que solapa os já frágeis direitos cívicos
dos cidadãos e retira os direitos sociais da população, ao mesmo
tempo em que convoca esta mesma “população” para não respeitar
as regras básicas de controle epidêmico e sair às ruas para ir de
encontro à “virose comunista inventada para atrapalhar a economia
do país”.
Enfim, pensar as emoções na pandemia, no caso brasileiro, é
ter o coração em suspenso e apertado pela tragédia nacional vivida
pela nação. É também de dizer #fora bolsonaro para, quem sabe,
haja uma possibilidade, ao menos, de um novo governo que se vol-
te para o social e assuma caminhos responsáveis para a ampliação
democrática do país, e pelo retorno de um estado laico, com a sepa-
ração do estado da religião, agora confundida e perigosa.

34
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
É importante frisar aqui, no momento de finalização deste ar-
tigo, que o país não vive só o medo, mas também vem produzindo
processos de resistência contra a ação governamental da presidên-
cia e sua equipe ministerial em suas atitudes totalitárias e antici-
vilizatória. O pode ser sentido e visto nas ações das redes sociais
e nos abaixo-assinados promovidos pela população contra os des-
mandos do governo. Tanto quanto nas solicitações públicas de im-
peachment e de pressões junto a deputados e senadores e aos mi-
nistros do Supremo Tribunal Federal para uma ação civilizatória e
de frear o ilegalismo das ações federais que assolam o país.
Do mesmo modo são vistas e ampliadas ações de solidariedade
no país. Ações estas que começam a ocorrer na procura de socorrer
populações vulneráveis, como pobres, indígenas, quilombolas, reli-
giões afro-brasileiras, de gênero e sexualidades, etc. descriminadas
e em constante ameaça de grileiros, de mineradoras, do agronegó-
cio, do capital financeiro, e de falsos moralistas com o aval e incen-
tivo do governo federal, de um lado; e ações solidárias de tentar
minorar a situações da população em estado agravante de pobreza,
com campanhas de agasalho e alimentação, entre outras.
Outra forma de resistência da população, junto ao #forabolso-
naro ou #forabozo, é a de seguir às medidas de isolamento social e
denunciar as iniciativas presidenciais e de seus aliados contrárias
à quarentena, com campanhas como #fiqueemcasa, espalhando e
reforçando uma medida preventiva e situacional de controle da epi-
demia. Outra forma de manifestação da população é a de criação
de espaços para mementos em que as pessoas podem escrever so-
bre as mudanças que vêem ocorrendo na sua vida cotidiana e dos
seus nesse momento grave de pandemia e de isolamento social. Es-
paços de registro público sobre as perdas privadas e anônimas de
familiares, de amigos, de conhecidos, de pessoas que admira, entre
outras, na forma de um memorial às vítimas do coronavírus.

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AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
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In: O Estado de São Paulo, 19.07.2020, p. A4.

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de-bolsonaro/ (Consultado em 15.6.2020).
DIÁRIO DE PERNAMBUCO. “Corpo de idoso que morreu com sintomas da
covid-19 é deixado em carro de mão na Presidente Kennedy”, em 24.4.2020.
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2020/04/
corpo-de-idoso-que-morreu-com-sintomas-da-covid-19-e-deixado-em-
carro.html (Consultado em6.5.2020).
CATRACALIVRE. https://catracalivre.com.br/entretenimento/declaracao-
de-damares-alves-sobre-jesus-na-goiabeira-vira-meme/ de 12.12.2020.
(Consultado em 06.08.2020).
RBA Rede Brasil Atual, em 24 de abril de 2020. “Em ruínas: Bolsonaro aposta na
‘velha política’ e nos militares para se salvar do impeachment”. https://www.
redebrasilatual.com.br/politica/2020/04/bolsonaro-aposta-na-velha-politica-
e-nos-militares-para-se-salvar-do-impeachment/ (Consultado em 25.4.2020).
INUMERÁVEIS – Memorial dedicado à história de cada uma das vítimas do
coronavírus no Brasil. https://inumeraveis.com.br/

Rastreadores do covid-19 consultados

MINISTÉRIO DA SAÚDE, https://www.covid.saude.gov.br/


BING – Rastreador em mapa dinâmico do coronavírus, https://www.bing.
com/covid/
VOLTA AO SUMÁRIO

38
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
CAPÍTULO 2

ALÉM DA CULPA E DA EXPIAÇÃO:


COVID-19 E AS FISSURAS DE
GRAMÁTICAS EMOCIONAIS

Fanny Longa Romero

Introdução

O título deste ensaio foi inspirado na obra de Jean Améry


(2004). “De quem é a culpa? Pandemia reacende hostilidades entre
EUA e China, que se acusam pela origem do novo coronavírus e es-
palham teorias infundadas”1.
Essa é a manchete de um dos principais jornais de circulação
nacional no Brasil. Ela inicia com um questionamento De quem é a
culpa? que podemos decifrar como uma discursividade relacionada
ao campo (BOURDIEU, 1996) das moralidades e da economia emo-
cional para a compreensão das tensas e indeterminadas relações
entre individuo e sociedade (SIMMEL, 2005, 2006, 2011; ELIAS,
1994; KOURY, 2009). Em notícias da imprensa, virtual e escrita,
como essa tem rondando a ideia geradas no âmbito da pandemia
da covid-19, a ideia de que existe um culpado, ou de que a culpa,

1
 https://g1.globo.com/mundo/blog/sandra-cohen/post/2020/03/19/de-quem-e-
-a-culpa.ghtml

39
pela emergência letal da doença tem como contexto a China. A par-
tir disso, supostos culpados e acusadores fazem sua entrada na
cena pública com desabafos que contribuem tanto para o reconhe-
cimento de uma culpa, e o posterior arrependimento pela omissão
de dados e informações sobre a doença2. Como fenômeno social, e
na esfera do senso comum (GEERTZ, 1997), a culpa então aparenta
mostrar-se a emoção que orientaria o rompimento de vínculos so-
ciais. Contudo, algumas reflexões analíticas, a partir de um debate
no campo da sociologia das emoções nos ajudam a entender me-
lhor esses fenômenos próprios das sociedades modernas.
O objetivo deste ensaio é problematizar e compreender de que
modo determinadas emoções, moralidades e dispositivos de poder,
enquanto construtos culturais, são potencializadas em situações de
acentuada crise humanitária, como é o caso da pandemia covid-19,
cuja capacidade de infecção, contágio e letalidade parece colocar
em xeque a dialética relação do homem com a natureza, e as inter-
dependências de aspectos da interação social em uma ampla diver-
sidade de sociabilidades.
As reflexões têm como pano fundo duas hipótese gerais: a pri-
meira é que fenômenos sociais como pandemias são um fato social
total (MAUSS, 2003) e influenciam, de forma interconectada e ten-
sionada, todas as dimensões da vida social. A segunda, as pande-
mias atendem a processos de continuidades e descontinuidades na
relação natureza e cultura.
Neste ensaio, se destacarão algumas inquietações analíticas
com relação à primeira dessas formulações. Daremos certa centra-

2
 Disponível em: https://g1.globo.com/google/amp/ciencia-e-saude/noti-
cia/2020/01/27/prefeito-de-wuhan-admite-ter-demorado-para-responder-a-surto-
-de-coronavirus-e-diz-que-deixara-cargo.ghtml. (Consultado em 07 de maio de 2020.

40
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
lidade à vergonha como categoria de análise (SCHEFF, 2013), em
interconexão com a culpa e problematizamos, de forma sucinta, no-
ções como sofrimento social, corpo e morte, a partir da ênfase ana-
lítica de uma cultura emotiva em perspectiva processual (KOURY,
2009, 2011, 2014a, 2014b) e, mas amplamente sobre a temática
indivíduo e sociedade (ELIAS, 1994; SIMMEL 2005, 2006, 2010,
2011). O enfoque metodológico é de caráter qualitativo e como da-
dos de análise usamos algumas fontes da imprensa, via Internet,
que tratam a questão da pandemia covid-19, no contexto do Brasil
e de outras regiões do mundo.
A aposta da nossa análise não é pretensiosa, mas busca evitar
o lugar-comum que envolve certo pensamento maniqueísta de evi-
denciar o lado ruim e bom dos efeitos da pandemia covid-19 como
experiência vivida. Distanciamos-nos de um tipo de esquematismo
que se debruce entre as causas e consequências da fatalidade da
pandemia e suas formas de superação. Pressupomos que, mesmo
com as expectativas e os imaginários sociais associados a um mun-
do pós-pandemia, as transformações radicais, ou não, para o mun-
do moderno não devem ser pensadas de modo lineal e rígido, e sim
atendendo a uma dinâmica processual do social.
Trata-se, no decorrer do recorte deste ensaio mostrar, de for-
ma sucinta, e com base em algumas formulações de Elias (1994)
e Scheff (2013) porque devemos trazer a emoção da vergonha no
centro do debate para problematizar algumas reflexões relacio-
nadas com a pandemia covid-19. Mais amplamente, interessa en-
tender de que maneira o conceito de vergonha pode levar-nos às
interdependências dos jogos interacionais do individual e o social,
a situar o conceito de corpo como dispositivo de poder nesse con-
texto, assim como alguns entendimentos sobre as noções de dor,
morte luto e violência Talvez desse modo, o título deste ensaio faça
maior sentido nos termos de ir além da culpa e da expiação.

41
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
Vergonha, culpa e o vírus interconectado

No debate teórico-metodológico da sociologia das emoções no


Brasil, e em outros âmbitos, uma questão relevante tem sido a pro-
blemática da vergonha como emoção central e articulada a uma so-
ciabilidade determinada. Mesmo não sendo um fenômeno univer-
sal para o entendimento do social, é possível afirmar com base na
proposta de Elias (1994) que ela tem papel fundamental na consti-
tuição das sociedades modernas e civilização.
Em um ensaio intitulado Vergonha no Self e na sociedade, Scheff
(2013) realiza um esforço reflexivo importante sobre o mapeamento
conceitual e histórico do conceito de vergonha em distintos domí-
nios e campos disciplinares. Entre seus objetivos está problematizar,
em zigue-zague, diversos autores, problemáticas, orientações teóri-
cas, limites ou descobertas relacionadas com a noção de vergonha.
Esse conceito é entendido por ele e outros autores como a
emoção social central na elaboração de relações sociais e vínculos
entre os indivíduos; em síntese, a vergonha parece ser um elemento
fundamental na interação social. Scheff (op. cit.) nos oferece diver-
sos argumentos que buscam comprovar a tese de que a vergonha,
de fato, não pode ser explicada em termos essencialistas e muito
menos como um fenômeno associal.
Elias (1994) chega a essa conclusão por meio de uma exaustiva
análise e acompanhamento de processos sociais, de longa duração,
e em atenção ao estudo das “boas maneiras”, costumes, compor-
tamentos, regras de etiqueta focando, por exemplo, as maneiras à
mesa, posições e movimentos do corpo, expressões de raiva, a par-
tir do estudo de manuais periodizados desde a Idade Média até o
século XIX. Segundo Scheff (2013, p. 668), Elias mostra, de fato, a

42
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
centralidade da vergonha sem chegar a defini-la. Reconhece, no en-
tanto, que o autor investe nessa emoção como fenômeno central
dos processos interacionais e aponta para o lugar de clandestinida-
de que ocupa nas sociedades modernas. Eis a contradição.
A compreensão eliasiana é relevante para entender, por exem-
plo, a diminuição dos limiares da vergonha e, ao mesmo tempo, a
diminuição do seu reconhecimento em relação ao autocontrole de
outras emoções. Raiva, culpa, medo, e o entendimento da repres-
são da sexualidade como vergonha não reconhecida (SCHEFF, 2013,
p. 669) entram nesses processos de interação de vergonha. É im-
portante chamar a atenção para o fato de que a proposta de Elias
almeja uma construção teórica de natureza processual do social na
constituição da civilização moderna. Ou seja, um entendimento das
interdependências do indivíduo relacional e coletivo, em uma esca-
la temporal de longo prazo.
A centralidade da vergonha como categoria de entendimento
do social consiste na inter-relação da sua negação com a ameaça
do rompimento dos vínculos sociais. A relevância do conceito para
os efeitos deste ensaio se fundamenta no fato de que, mesmo su-
pondo a partir de um senso comum (GEERTZ, 1997) que a culpa
como emoção entra em cena na contingência específica da pande-
mia covid-19; ela, de fato, é um construto cultural cujo conteúdo se
vincula estreitamente à vergonha como emoção central dessa nova
experiência de sociabilidade.
Devemos considerar aqui também outros processos sociais e
simbólicos que se articulam, também com a vergonha e a culpa. A
perspectiva mitológica, em especial, uma mítica concreta (RICOEUR,
2011) judaico-cristã, poderia influenciar o acionamento do disposi-
tivo vergonha-culpa e situa-las como inseparáveis de determinadas

43
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
ações, práticas e sensibilidades individuais e coletivas, específicas.
Com base em uma metáfora inspirada no interacionismo social
de Goffman (2003, p. 137) poderíamos pensar na vergonha-culpa
como o “farol” do teatro. Nessa posição, elas poderiam ser outros
membros da plateia, que não se encontram apenas em espetáculos
pouco respeitáveis. A vergonha- culpa, assim, é um elemento chave
e maleável da vida social.
Os processos emocionais são relacionais e suas ligações envol-
vem correlações com a estrutura do social. Nesse sentido, usamos
a proposição de Scheff para situar a vergonha um componente cha-
ve da consciência moral. Ela nos remete a questões de transgressão
moral; em síntese, e para os objetivos deste trabalho, queremos re-
ter a formulação de pensá-la como o giroscópio moral nas socieda-
des modernas (SCHEFF, 2013, p. 677).
Essas argumentações ajudam a entender, no contexto da pan-
demia covid-19, a aparição de termos como vírus chinês, corona-
vírus Wuhan3 e a reedição de locuções como “vírus estrangeiro”,
veiculados por atores como chefes de estado, ministros, políticos, e
incorporados como discursos do senso comum. Há aqui uma esfera
de classificações de estigmas e constrangimentos morais (GOFF-
MAN, 2011).
Tais classificações contêm em si mesmas a formulação de uma
alteridade radical (PEIRANO, 1999) e, principalmente, são alimen-
tadas por jogos de poder que aquecem ou esfriam velhos dilemas
políticos e conflitos entre moralidades em jogo. Atualmente, esta-
mos diante de uma série de discursos políticos, religiosos, midiá-
ticos, entre outros, que, de fato, atravessam os mesmos problemas,

3
 Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/blog/sandra-cohen/post/2020/03/19/
de-quem-e-a-culpa.ghtml-1/, (Consultado em 07 de maio de 2020.

44
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
disputam a reificação de dicotomias e binarismos paralisantes.
Alguns desses discursos são do campo médico, na fala do ex-
-ministro Luiz Henrique Mandetta4:

Hoje é um dia marcado por sentimentos muito distintos: o


sentimento especial de dia das mães e o sentimento que refle-
te o sofrimento e a triste das mais de 10 mil mortes causadas
pela covid-19.
Aqui vai a minha solidariedade, o meu carinho, àquelas mães
que perderam seus filhos ou filhas; àquelas mães que estão
com seus filhos na linha de frente, que têm angústia, com
medo do que pode acontecer com eles; aos filhos que per-
deram suas mães, porque algumas mães certamente foram
perdidas neste caminho.

Sentimento, sentimento especial, sofrimento, angústia, perdida


são elementos acionados nessas narrativas que nos levam a pensar
em problemáticas sobre os sentidos que estão sendo construídos
socialmente no contexto da pandemia covid-19. Uma determina-
da gramática de emoções e moralidades está sendo situada como
teia de significados (GEERTZ, 2008) em um contexto de emergência
desse componente chamado medo global que, talvez, não seja uma
categoria tão nova como se pensa.
Outras correlações como a perda do ser querido com a per-
da de si mesmo, pelo “caminho” da letalidade da pandemia da co-
vid-19, são percebidas nesses discursos, assim como a noção do
significante – luto- na arena dos rituais sociais da política brasileira.
A mesma matéria citada acima, assim o refere5:

4
 Disponível em: http://brazukanews.org/11-mil-mortos-por-coronavirus-bolsona-
ro-silencia-ministro-da-saude-lamenta/. (Consultado em 14 de maio 2020.
5
 Disponível em: http://brazukanews.org/11-mil-mortos-por-coronavirus-bolsona-
ro-silencia-ministro-da-saude-lamenta/. (Consultado em 14 de maio 2020.

45
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
De outro lado, os presidentes da Câmara e do Senado, respec-
tivamente o deputado Rodrigo Maia (DEM) e o senador Davi
Alcolumbre (DEM), decretaram luto oficial de três dias em
homenagem aos 10 mil mortos no país.

Há nessa narrativa uma alusão a luto oficial que, de certa for-


ma, nos sinaliza a diversidade polissêmica do significante luto e,
por conseguinte, os usos do conceito conforme ideologias, morali-
dades e sentidos culturais e jogos de poder que permeia esse fenô-
meno social.
Para efeitos de uma reflexividade antropológica, o que essas
discursividades nos informam é o jogo simbólico presente, nas suas
interdependências com o sagrado e o profano (DURKHEIM, 2000),
ou naquelas que dizem respeito à relação entre moral e política
(DUARTE, 2017), cujo alicerce se sustenta com frequência na ver-
gonha como emoção. Percebe-se também uma espécie de “lingua-
gem bíblica de exaltação do semelhante” (VELHO, 1997, p. 139) e
dos embates entre solidariedade e conflito (KOURY, 2014) que nes-
te tempo de pandemia covid-19 parece emergir com maior força.
De fato, essa linguagem moral e, não exclusivamente religiosa,
de exaltação do semelhante, fica, concordando com Velho, “a meio
caminho do diferente e do igual” (VELHO, 1997, p. 139). Temos aqui
a questão de moralidades e emoções como a vergonha que são mais
ou menos acentuadas, conforme as contingências dos jogos sociais
e simbólicos do momento atual e que abre um campo de possibili-
dades (VELHO, 2003) em um patamar além da culpa e da expiação.
Isso tem relevância para poder mapear alguns caminhos teórico-
-metodológicos para a compreensão de um panorama mais amplo
como são as relações entre indivíduo e sociedade, natureza e cultu-
ra, entre outros.

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AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
Não deveria, assim, surpreender-nos, neste tempo de pande-
mia, a aparição de uma enxurrada de prescrições morais presen-
tes nas discursividades do campo político, religioso, midiático, do
senso comum, entre outras, que se reportam a uma solidariedade
para com o semelhante, a exemplo: devemos mostrar solidariedade,
respeito a nosso semelhante usando a máscara; ajudar-nos uns aos
outros lavando as mãos, lições de solidariedade, lições de vida, e as
lições da pandemia, entre tantos outros conteúdos da cultura emo-
tiva que assumem relevância para a reflexão antropológica sobre a
questão da alteridade e o sofrimento social

Sofrimento social

Como compreender, simbólica, política e na concretude do


dia-a-dia, o sofrimento social? (KOURY, 1999, 2011, 2014b)
Essa interrogação analítica contém em si mesma a afirmativa
de que o sofrimento, como fenômeno cultural, é parte da vida social,
produto das interações humanas sendo uma dimensão do intra-
-espaço da política, isto é, do estabelecimento de relações (ARENDT,
2002). O que pensar quando esse fenômeno torna-se contingente
e global, produto de processos sociais e conjunturas históricas, in-
fluenciando e transformando-os? Como o sofrimento incita a pen-
sar em os usos dos corpos, as formas de viver (AGAMBEN, 2017), os
dilemas dos códigos de moralidade e produção de éticas, seja no
âmbito de uma biopolítica ou para além dela?
Tal como outros aspectos produzidos por redes de interdepen-
dência que envolve um jogo social indeterminado (ELIAS, 1994), o
sofrimento social será pensando aqui como uma aposta teórico-me-
todológica com o intuito de implodir, de certa forma, o pensamento
de que ele “é imposto aos indivíduos como um preço por pertencer”
ao espaço societal (DAS 1996, cit. em HERZFELD, 2014, p. 271).

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AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
Nesse sentido, é possível dizer que eventos críticos, pandemias
e crises humanitárias diversas têm suas correspondências. Isso me-
rece atenção não apenas pela produção simbólica que produz uma
espectacularidade midiática e política, mas pela qualidade polifôni-
ca dos significados envolvidos, fundamentalmente, pelos processos
de interação social criados e os entendimentos construídos sobre a
dor (KOURY, 1999).

Morte, violência e o ser afetado

No mês de abril desse ano, assistimos perplexos, com horror e


espanto, a uma grande espetacularização de sofrimento social. Na
cidade de Guayaquil, Equador, centenas de corpos empilhados com
evidentes sinais de putrefação foram achados, ao bel-prazer, no
meio de espaço urbano, em ruas, calçadas ou caminhões abandona-
dos. Tratava-se de pessoas de carne e osso, anônimas, e vítimas da
letalidade da covid-196.
Essas imagens percorreram o mundo através de imprensa vir-
tual e escrita. E as problematizações de uma necropolítica (MBEM-
BE, 2016) como aqueles que dizem respeito da espacialidade do
capitalismo tardio (HARVEY, 2005), não se fizeram esperar. Essas
compreensões, no entanto, se tornam limitadas e enrijecidas se afu-
nilamos nelas os mecanismos de uma escuta antropológica atenta e
crítica das emoções, sempre conflitivas e em tensão, e que ecoam com
intensidade no devir de sensibilidades individuais e coletivas marca-
das por experiências de intenso abandono social (BIEHL, 2008).

6
 Disponível em: https://www.google.com/amp/s/www.biobiochile.cl/noticias/in-
ternacional/america-latina/2020/04/01/amp/cadaveres-en-las-calles-y-servicios-
-colapsados-las-imagenes-de-drama-en-ecuador-ante-el-coronavirus.shtml . (Consul-
tado em 7 de maio de 2020.

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AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
Uma alternativa para pensar na contingência da morte e nas
situações de extremo sofrimento social como o referido na cidade
de Guayaquil, Equador, é que as sociabilidades que enfrentam essas
mazelas buscam também expandir seus próprios limites. Disposi-
tivos biopolíticos não são onipotentes nem universais, eles contém
brechas que podem ser operacionalizadas para a entrada em cena
de táticas invisíveis e subterfugias (DE CERTEAU, 2014). Nessa es-
fera, as práticas cotidianas de pessoas comuns possibilitem novas
formas de viver, inclusive em aquelas situações em que “o verbo
matar” é passível de ser conjugado no devir (BIEHL, 2008, p. 418).
Em contextos como o Brasil, imagens e alertas denunciando o
sofrimento social causado pela pandemia da covid-19, e as mazelas
da desigualdade social e racial, tem chamado a atenção da impren-
sa e da sociedade como um todo. Em 21 de abril desse ano de 2020,
por exemplo, a fala do prefeito Arthur Virgílio, da cidade Manaus,
estado do Amazonas na região norte do país, veio a público como
um desabafo dramático de pedido de ajuda para conter a gravidade
da crise da doença que, nessa região, tem tido efeitos graves7.
Manaus é uma das cidades brasileiras que em abril já ultra-
passava centenas de pessoas mortas vítimas da covid-19. Os nú-
meros alarmantes de pessoas infectadas em hospitais e o aumento
dos óbitos congestionaram hospitais e cemitérios, ocasionando um
importante colapso no sistema de saúde pública e nas territoriali-
dades em que os corpos dos defuntos repousam8.

7
 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/04/prefeito-
-de-manaus-chora-pede-ajuda-e-diz-que-bolsonaro-tem-de-ser-presidente-de-ver-
dade-e-respeitar-coveiros.shtml . Acesso abril 2020.
8
 Cf. https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/04/22/manaus-registra-136-
-enterros-em-um-so-dia-e-bate-recorde-desde-inicio-de-pandemia-numeros-sao-de-
-mortes-em-geral-diz-prefeitura.ghtml; https://amazonasatual.com.br/com-subnotifi-

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AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
De acordo com o prefeito Arthur Virgílio: “Estamos chegando
no ponto muito doloroso, ao qual não precisaríamos ter chegado,
no qual o médico terá que se fazer a pergunta: salvo o jovem ou o
velho?” E conclui: “Estamos em ponto de barbárie”. Essa fala nos
informa sobre a noção de Barbárie, categoria revisitada por Lévi-
-Strauss (1980, p. 53), e que no momento atual refere à instauração
de regimes de verdade, de viver e deixar morrer propõe dilemas
éticos para as diferentes instituições sociais, e o pensamento cien-
tífico como ato social e moral (GEERTZ, 2001).
Questões políticas, éticas, econômicas, culturais, morais e he-
gemonias diferentes orientam esses dispositivos como discursi-
vidades, saberes e tecnologias de poder (FOUCAULT, 1988). Isso
obriga a interrogar-nos até que ponto podemos estar isentos das
classificações maniqueístas dos sistemas de verdade ou das duali-
dades que esses dispositivos organizam e promovem na multipli-
cidade das experiências sociais (HERZFELD, 2014). Uma questão
interessante é compreender de que modo os mecanismos de mo-
delação e controle de moralidades, desejos e subjetividades são as-
pectos eclipsados, ou não, em sociabilidades marcadas pela impes-
soalidade, e o anonimato do individualismo (VELHO, 2003)
Em Manaus, centenas de cadáveres infectados, sentimentos
interditados, expectativas interrompidas e afetos suspensos foram
hermeticamente fechados em caixões, e transportados aos cemi-
térios congestionados, sem que parentes, familiares e amigos ti-
vessem a possibilidade de experienciar a liminaridade (TURNER,
1974) que a morte e o trabalho de luto comportam como rituais
sociais. Algumas fontes internacionais, com base nas informações

cacao-mortos-por-covid-19-no-amazonas-se-tornam-jogo-de-numeros/. (Consultado
em 02 de maio de 2020.

50
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
da imprensa brasileira chamaram a atenção de que nos cemitérios
se instalaram até contendores refrigerados para poder guardar a
grande quantidade de caixões com cadáveres que esperavam por
enterros. Chegou-se a especular que os próprios habitantes ou pa-
rentes das pessoas tiveram que colaborar na abertura de fossas co-
muns para depositar os corpos mortos das vítimas da população
socialmente mais vulnerável.
Koury (2014) nos ajuda a compreender que os rituais sociais
de morte, perda e luto atendem a uma dinâmica de permanências
e transformações no espaço das inter-relações individuais e coleti-
vas das sociedades modernas. Sua análise informa continuidades e
descontinuidades, nos processos de uma cultura emotiva específica
no Brasil, desde o final do século XIX, e nessa seara, chama a aten-
ção para as figurações de diminuição ativa de sentimentos (KOURY
2014, p. 597), seja no que ele entende como o trespasse do morto
em comunhão com as experiências sociais de sofrimento de paren-
tes, familiares e amigos.
Os efeitos modernos de impessoalidade social que se tradu-
zem na “discrição” de demonstrações de afeto e de sentimentos
(KOURY, 2011) se reinventam em um tempo de pandemia em que
uma doença covid-19, eficazmente infecciosa e mortal, parece criar
uma impossibilidade existencial que emerge, paradoxalmente,
como forma de vida. Na perspectiva de Koury (2014), e a partir de
uma escuta foucaultiana, em finais do século XIX e avanço do século
XX, a correlação da morte e do morrer nas sociedades modernas
se fundamentam a partir de uma nova discursividade, instaurada
como regime de verdade por dispositivos de poder relacionados
com o saber da medicina, da burocratização de políticas públicas
sanitárias e de higienização do corpo e do espaço urbano. Ou seja,

51
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
de um gerenciamento biopolítico da vida, saúde, morte, subjetivi-
dades e práticas que adquirem novos contornos e significados em
conglomerados sociais urbanos.
O autor chama a atenção sobre como essa nova discursivida-
de influenciou as transformações do social nas cidades brasileiras,
desde finais do século XIX, relacionando os sentidos produzidos so-
bre insalubridade, medo, rituais e morte a doenças, contágios e epi-
demias. Impõe-se uma nova lógica de formas de vida (AGAMBEN,
2017), mas também dos processos vitais que envolvem a morte em
que “Os enterros, os cortejos e os velórios tornaram-se progressiva-
mente mais rápidos, com o morto e a morte identificados como po-
luidores e, pior, transmissores de doenças” (KOURY, 2014, p. 597).
Hanna Arendt (2002) nos lembra que quando pensamos nos
preconceitos, uma das causas que garantem sua eficiência, e tam-
bém, sua periculosidade, é que neles se oculta um rastro do passa-
do. Se, como afirma Koury, a partir de certa retrospectiva históri-
ca, as continuidades e transformações de formações sociais como
a brasileira são significativas com relação aos sentidos produzidos
sobre economias morais em sociabilidades historicamente situa-
das, podemos pensar que reacomodar afetos, reencontrar senti-
mentos, emoções e o “objeto de desejo” (FREUD, 2011) perdido são
aspectos em tenso equilibro na trama das interações sociais.
Uma questão interessante, nesse sentido, seria perguntar-nos
de que modo a vergonha como emoção se insere nas relações entre
o público e o privado, e como ela influencia os processos intera-
cionais da pandemia covid-19, a partir dos mecanismos de impes-
soalização e individualização. Como esses aspectos multifacetados
emergem, com nuances específicas, em essas situações de crise
acentuada que desestabilizam determinados processos do social.

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AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
Essas questões envolvem o ser afetado (FAVRET-SAADA, 2005)
pelos processos de produção de dor, morte, perda e luto. Se, segun-
do Freud (2011) o luto, à diferença da melancolia, é uma emoção
“normal”, lenta e gradualmente superável, o que ele implicaria nos
processos de mortandade por pandemia? Como resolver os dilemas
de deixar-se afetar pelo outro em tempos de pandemia? Essas ques-
tões que não pretendemos responder no escopo deste ensaio po-
dem, no entanto, ser problematizadas a partir de noções como fa-
chada, perda da fachada, desfiguração, estigma (GOFFMAN, 2011)
como um dos caminhos analíticos possíveis.
Pensar nas encruzilhadas da vida social que o vírus interco-
nectado9 nos aproxima à discussão da globalização e os localismos
em interdependência. De outro lado, a pandemia nos aponta que as
interações sociais estão sendo, sistematicamente, modificadas por
uma nova figuração social de individualização do mundo moderno,
em que seus efeitos e consequências profundas somente serão re-
conhecidas e entendidas a longo prazo (ELIAS, 1994).
Outras ontologias e sociocosmologias de mundo de sociabili-
dades relacionadas com povos indígenas também são colocadas em
cena com sérios questionamentos para a vida moderna (KRENAK,
2019). De outro lado, o corpo como espaço de inscrição cultural
tem sido um ponto alto na cojuntura da pandemia, sendo visibiliza-
do como dispositivo tecnocrático de poluição e perigo (DOUGLAS,
1976), contaminação, contágio.

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 Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/blog/sandra-cohen/post/2020/03/19/
de-quem-e-a-culpa.ghtml. (Consultado em 07 de maio de 2020.

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AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
Corpo, dispositivos e vergonha

Tal como nos informa Elias seria imprudente chegar a conclu-


sões de tendências ou transformações gerais sobre as interdepen-
dências das figurações sociais determinadas, em um contexto his-
tórico específico, sem considerar os processos de longa duração da
civilização. Por tal motivo, é muito prematuro situar os efeitos sim-
bólicos e tecnocráticos do corpo, como categoria de entendimento
social, no marco da pandemia covid-19.
Se bem é certo que a discussão dessa categoria de entendimen-
to, no campo da antropologia, entra em cena no século XX com o se-
minal artigo Técnicas corporais, de Marcel Mauss (em que em busca
de elaborar uma teoria da técnica do corpo parte do concreto para
o abstrato e se pergunta de que modo os homens, em diferentes so-
ciedades, sabem servi-se de seus corpos (MAUSS, 2003, p. 401). Em
tempo de pandemia covid-19 a formulação não poderia ser melhor
oportuno.
O corpo emergiu no século XIX como uma preocupação das
ciências naturais e do campo da medicina (FOUCAULT, 1988). Ele
sofre, no entanto, um importante investimento epistemológico e
analítico com o pensamento de Foucault que não apenas o proble-
matiza como objeto de conhecimento da história das mentalidades,
mas que desvenda dispositivos de poder que exercem disciplina-
mento sobre o corpo que derivam da subjetivação do sujeito e os
regimes de verdade instaurados.
Meu propósito aqui não é aprofundar a teorização sobre o
corpo, mas situar o corpo na esfera dos processos interativos da
vergonha como emoção que parecem se expressar como uma nova
emergência no contexto da pandemia da covid-19. A discussão

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AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
sobre a medicalização da vida (BIEHL, 2008; 2011) e os diferentes
mecanismos biológicos e tecnológicos de fabricar a vida com im-
plicações morais, éticas, culturais e sociais altamente tensas e con-
flituosas (ALLEBRANDT; MACEDO, 2007) estão imbricadas nessa
esfera, de forma intensa e crítica.
Com a pandemia entra em cena um “novo” indivíduo relacio-
nal como um dispositivo de propagação, contágio e disseminação
caracterizado, ora por super poderes de infecção, ora pelo silen-
ciamento e escamoteamento dos seus sintomas. Trata-se dos indi-
víduos classificados como super disseminadores e assintomáticos10.
Eles se encontram em pontas extremas, e no imaginário social e
médico são considerados muito perigosos, mesmo se comportem
de forma diferenciada. Entre essas classificações há outras catego-
rias presentes com graus e níveis diferentes de intensidade quanto
a sua periculosidade.
O que interessa destacar é que esse indivíduo relacional que
emerge nesse imaginário perpassa a esfera da tecnologia de fabri-
cação de vida/morte e é instrumentalizado a partir de uma bioética
(DINIZ; GUILHEM, 2002) que faz um novo cálculo na racionalidade
e no individualismo. Tudo se passa como se o sofrimento social e
os ditames da covid-19 nos conduzissem a uma situação paradoxal:
a imposição de um isolamento social que coloca em tensão a pró-
pria ordem social estabelecida e, ao mesmo tempo, uma espécie de
re(ligamento) dos indivíduos. É possível afirmar, nesse sentido, um
rearranjo de possibilidades indeterminadas do biossocial, e da vergo-
nha não reconhecida e dessa racionalidade moderna (ELIAS, 1994).

10
 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51472729; ht-
tps://pebmed.com.br/coronavirus-assintomaticos-sao-responsaveis-por-dois-ter-
cos-das-infeccoes/ . (Consultado em 13 de maio de 2020.

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Essa vergonha não reconhecida nos permite entender os senti-
dos da produção de uma culpa que nasce com as acusações e estig-
mas do chamado vírus chinês e perpassa a discussão dos seus alcan-
ces e limites (SCHEFF, 2013), em distintos planos da interação social.

Considerações finais

O ensaio buscou pensar problemáticas heterogêneas cujo en-


redo analítico perpassa as fissuras de uma gramática emocional e
moral, centrada nos sentidos de culpa, vergonha, sofrimento social
e regimes de verdade, no contexto da pandemia da covid-19. Uma
reflexão final, no entanto, precisa ser colocada para sintetizar o
pano de fundo deste ensaio.
A noção de barbárie é muitas vezes usada em situações consi-
deradas de violência extrema em que um evento histórico e social
produz uma alteração radical da vida em comum, uma espécie de
subversão da alteridade. Nesses casos, tal noção adquire uma cono-
tação moral, grosseira e grotesca, relacionada com as características
e processos da violência produzida, vivida e sentida pelas pessoas
que a sofreram. A partir dessa reflexão a barbárie consiste em uma
anulação da comunicabilidade social, da construção de processos
de confiança e de confiabilidade (KOURY; BARBOSA, 2018, 2019).
Cremos que a experiência vivida da pandemia da covid-19, a partir
dos casos da performatividade da morte em Guayaquil- Equador e
na cidade de Manaus, Brasil, que referimos neste ensaio, se aproxi-
mam dessa esfera de incomunicabilidade da interação social e de
barbárie.
Em um tempo de pandemia em que as incertezas se eviden-
ciam com maior força, gostaríamos de chamar a atenção para o
compromisso antropológico de reavaliar, de forma crítica, o social,

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AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
as experiências vividas de pessoas e os liames do sofrimento social,
abandono e violência no plano das relações sociais (KOURY, 1999,
2013; HERZFELD, 2014; BIELH, 2008, 2011). Esse compromisso
perpassa a esfera do envolvimento, como refere Herzfeld, tanto da
ação pessoal como social e, por conseguinte, a construção de uma
ética nas superposições nas dimensões individual e coletiva.
Para além das repercussões da crueza política da vida nua
(AGAMBEN, 2017), outras possibilidades também estão em jogo
para a compreensão de gramáticas morais e emocionais em um
tempo de pandemia. Uma delas seria a escuta, em um equilibro ten-
so, do que João Bielh entende como uma literalidade do vir a ser
(BIELH, 2008), ou seja, uma aposta interpretativa na escuta, refle-
xiva e crítica, do outro relacional, nas suas maneiras de fazer (DE
CERTEAU, 2014), nas contingencias e encruzilhadas da vida social
na qual esse outro se insere. A escuta para o vir a ser, na sua plena
literalidade vivida, pode permitir compreender os sentidos do devir
de pessoas que perante situações de sofrimento social reinventam
suas subjetividades e dão novos contornos às situações limites da
sua existência social.
Isso implica em aceitar o argumento de que tanto a capacidade
de agência dos sujeitos como os conflitos e os dilemas sociais em si-
tuações de intensa crise não são qualidades imanentes do socius, e
sim aspectos de formações socioculturais, historicamente situadas,
que envolvem relações de hierarquização e poder. A suspensão das
emoções e as fissuras das gramáticas morais advindas do indivi-
dualismo nos alerta sobre as diversas situações de abandono social,
desigualdades de classe, raça, gênero, origem e geracional, entre
outras formas de opressão revitalizadas no contexto da pande-
mia. Lembremos que a primeira vítima letal no Brasil afetada pela

57
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
covid-19 foi a Dona Cleonice, uma mulher negra, de 63 anos, que
morava em uma favela do Rio de Janeiro e trabalhava como diarista
no Leblon, área nobre da cidade. Pelo que foi informado na impren-
sa ela foi infectada na casa dos seus patrões que estavam em qua-
rentena, após eles voltarem de uma viagem da Itália.11
Apostar em uma escuta crítica e reflexiva sobre as fissuras e
os desafios da interdependência das emoções, na produção e com-
preensão dos seus significados em um tempo de pandemia, permite
que as opressões derivadas de marcadores sociais de diferença se-
jam consideradas em toda sua potencialidade nas relações de inte-
ração social que, de fato, nos obrigaria a ir da culpa e da expiação.

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11
 V. https://www.almapreta.com/editorias/o-quilombo/coronavirus-quando-estar-
-no-mesmo-mar-nao-e-estar-no-mesmo-barco. (Consultado em 12 de maio de 2020.

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VOLTA AO SUMÁRIO

61
AL É M DA C UL PA E DA E X PI AÇÃ O
CAPÍTULO 3

INDIVIDUALISMO MODERNO E
SOFRIMENTO SOCIAL EM TEMPOS
DE COVID-19: QUESTIONAMENTOS
PARA REFLEXÃO

Idayane Gonçalves Soares

Individualismo moderno: o cenário social da pandemia


Suponhamos que o grande império da China, com suas miría-
des de habitantes, fosse subitamente engolido por um terre-
moto, e imaginemos como um humanitário na Europa, sem
qualquer ligação com aquela parte do mundo, seria afetado
ao receber a notícia dessa terrível calamidade. Imagino que,
antes de tudo, expressaria intensamente sua tristeza pela
desgraça de todos esses infelizes, faria muitas reflexões me-
lancólicas sobre a precariedade da vida humana e a vacuida-
de de todos os labores humanos, que num instante puderam
ser aniquilados... E quando toda essa bela filosofia tivesse
acabado, quando todos esses sentimentos humanos tivessem
encontrado sua expressão definitiva, continuaria seus negó-
cios ou seu prazer, teria seu repouso ou sua diversão, com o
mesmo relaxamento e tranquilidade que teria se tal acidente
não tivesse ocorrido. O mais frívolo desastre que se abatesse
sobre ele causaria uma perturbação mais real. Se perdesse o
dedo mínimo de manhã, não dormiria de noite; mas, desde
que nunca os visse, roncaria na mais profunda serenidade

62
ante a ruína de centenas de milhares de seus irmãos (SMITH,
Adam, 1999, p. 165-6).

Suponhamos que a China, com suas miríades de habitantes,


fosse subitamente engolida por uma doença infecciosa severa cau-
sada por um vírus, e imaginemos como um humanitário na Europa,
sem qualquer ligação com aquela parte do mundo, seria afetado ao
receber essa notícia1. Expressaria sua tristeza, faria reflexões sobre
a precariedade da vida e voltaria a preocupação para com sua vida
cotidiana..., mas, e se tão logo a sua vida cotidiana tivesse inteira co-
nexão com o ocorrido, se ela fosse modelada por eventos ocorrendo
a muitas milhas de distância e vice-versa, seu senso de responsabi-
lidade moral para com aquele distante, mudaria e se alargaria? To-
maria dimensões bastante diferenciadas “diante da dor dos outros”
se ela estivesse batendo à sua porta?2 E, por que, para aludir a um
alargamento de responsabilidade moral, parece necessário trazer a
possibilidade da doença para dentro da casa dos indivíduos?
Em 2020, o cenário global foi tomado por uma preocupação
comum: o surto de uma doença respiratória causada pelo novo co-
ronavírus (covid-19). Com foco inicial em Wuhan3, a doença deixou
várias pessoas hospitalizadas e levou outras à óbito, percorreu o
mundo e tomou a dimensão de uma pandemia, devido a dissemina-
ção geográfica rápida que tem apresentado. Medidas de higiene e
isolamento social foram recomendados pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) para reduzir o contágio da doença. Inicialmente,

1
 Gostaria de agradecer a Edmilson Gomes da Silva Junior e a Mauro Guilherme Pi-
nheiro Koury pelas contribuições.
2
 Para entender alguns aspectos do debate sobre globalização, responsabilidade e a
dor do outro distante, antes da pandemia, ler o artigo de Gabriel Peters (2013).
3
 Identificado em dezembro de 2019, na região.

63
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
alguns países foram bastante hesitantes em adotar a medida de iso-
lamento social para não prejudicar suas economias, o que resultou
em maior número de mortes nesses lugares4. No nível social, indiví-
duos desobedeceram à medida e apenas quando a doença invadiu
seu núcleo mais próximo, houve uma mudança no comportamen-
to. O sofrimento, mesmo de indivíduos de sua própria sociedade,
não teria alargado o senso de responsabilidade moral para com os
concidadãos, mas sim a possibilidade de invasão do vírus na esfera
individual, privada. Estes apontamentos iniciais visam, assim, apre-
sentar o cenário social anterior à pandemia de covid-19, a partir da
contribuição de teorias sociológicas e antropológicas que abordam
o individualismo moderno e apontam o processo de crescente iso-
lamento do indivíduo na Modernidade – em relação ao social, para
contribuir no entendimento das configurações das relações sociais
e os seus efeitos na subjetividade dos indivíduos e no processo de
sofrimento psíquico destes durante a pandemia.
Em um estudo recente, realizado na Alemanha, chamado “Even
pro socially oriented individuals save themselves first”, alguns
pesquisadores5 investigaram se a decisão dos indivíduos em usar
medidas protetivas (em relação ao covid-19) diferem em relação
a sua finalidade, dependendo se protegem a si mesmo ou ao pú-
blico e se essa diferença está ligada à orientação de valor social do
indivíduo (social value orientation– SVO). Segundo o estudo, essa
orientação diz respeito a três motivos sociais que orientariam de-
cisões com consequências sociais e pessoais: cooperação, competi-
ção e individualismo. O social value orientation é alto quando está
positivamente relacionado a escolhas que maximizam resultados

4
 Ver a respeito no nexojornal
5
 Johannes LEDER, Alexander PASTUKHOV and Astrid SCHÜTZ (2020).

64
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
conjuntos, em relação ao coletivo, enquanto o baixo SVO está
associado a escolham que maximizam pagamentos pessoais6. Con-
cluiu-se, no estudo, que mesmo pessoas pró-sociais (com alto SVO),
buscam medidas de autoproteção primeiro, sendo a proteção pú-
blica apenas um motivo secundário. Desse modo, os pesquisadores
sugerem que ao comunicar a importância de um comportamento
de proteção pública, a ênfase deve estar em como ela,em longo pra-
zo, afetará os próprios indivíduos e suas relações próximas7.
O uso da máscara pode ser um exemplo ilustrativo. As másca-
ras diminuem a propagação do vírus por pessoas que estão con-
taminadas (com infecções assintomáticas ou pré-sintomáticas)8.
Ela protege, principalmente, o outro, – como explicam cientistas da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), “atualmente, usar másca-
ras é um gesto de coletividade e solidariedade, pois, mesmo que
para quem está usando máscara a proteção seja baixa, barra parte
das gotículas produzidas ao falar, ao tossir e ao espirrar, protegendo
os outros”9. Ao mesmo tempo, usando a lógica acima, poderíamos
propagar que o melhor jeito de se proteger é usando uma máscara
porque, assim, outros também usarão e você estará protegido de-
les. Simples, diz Dunker (2020, p. 100), a respeito dessa questão,

6
 “High SVO (i.e., a stronger prosocial orientation) is positively related to choices that
maximize joint outcomes, whereas low SVO is associated with choices that maximize
personal payoffs.” (p. 4)
7
 “We reported that even prosocially oriented individuals seek self-protective mea-
sures first and foremost with public protection being only a secondary motive. Thus,
when communicating the importance of a public protective behavior the emphasis
should be on how public prevention, in the long run, will affect individuals themselves
and their close relations” (LEDER; PASTUKHOV; SCHÜTZ, 2020, p. 13).
8
 https://www.sciencemag.org/news/2020/03/not-wearing-masks-protect-
against-coronavirus-big-mistake-top-chinese-scientist-says
9
 https://www.ufpr.br/portalufpr/noticias/e-um-gesto-de-coletividade-cientistas-da-
ufpr-reforcam-uso-de-mascara-em-novas-respostas-para-perguntas-da-sociedade/

65
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
“mas insuficiente para que ficássemos por décadas discutindo... a
glorificação do indivíduo e o caráter acessório de ideias como de-
mocracia ou comunidade”.
Cientistas chineses da revista Science explicam que o grande
erro nos Estados Unidos e na Europa, está relacionado a pouca
adesão ao uso de máscaras, em relação a outras medidas. Em algu-
mas partes da Ásia, o uso de máscaras já era padrão, na Coréia, por
exemplo, “quem não a usa é repreendido” por seus semelhantes.
Byung-Chul Han, sobre essa diferença, explica que na Ásia impera o
coletivismo, já na Europa impera um individualismo que traz atrela-
do o costume de andar com o rosto descoberto10.
Norbert Elias (1994) explica que no caso de algumas socieda-
des asiáticas, a primazia do indivíduo11 ainda é menos pronunciada
do que nos países ocidentais. A pergunta, desse modo, que o estu-
do realizado na Alemanha suscita, poderia ser, por que, os meios
de comunicação, deveriam expor, com maior ênfase, não os efeitos
de um determinado comportamento – leia-se atualmente, o uso de
máscaras, o isolamento social, entre outros – na salvaguarda do so-
cial, mas sim, o efeito nos próprios indivíduos e em suas relações
próximas? Levando-se a cabo, a assertiva de que não existe uma so-
ciedade sem indivíduos como não existe indivíduo sem sociedade
(ELIAS, 1994), por que acentuar o indivíduo e não o social?
A relação aparece, assim, nebulosa, para alguns, ou uma ob-
viedade sem maior interesse de aprofundamento, para outros.
A ênfase e a maneira acrítica com que o termo “indivíduo” é utilizado

10
 https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-
de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html
11
 O autor chama de identidade-eu, a configuração particular que alguém atinge atra-
vés do processo social de moldagem, enquanto a identidade-nós seria aquilo que to-
dos em uma determinada sociedade, Estado-Nação possuem em comum.

66
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
hodiernamente para expressar a primazia da identidade-eu parece
algo dado e que existiu em todos os estágios históricos, em con-
ceitos equivalentes (ELIAS, 1994). Porém, Norbert Elias (1994) ex-
plica que esse termo é bastante recente. O que o torna imemorial
e preponderante no pensamento, relaciona-se a um desequilíbrio
na balança entre indivíduo e sociedade. Como se hodiernamente,
só existissem os indivíduos e as famílias, como disse Margareth
Thatcher.12 Discurso que traz à tona o sintoma da autoconsciência
do indivíduo moderno que, com o crescente processo de individua-
lização, se percebeu cada vez mais isolado, apartado do contexto
mais amplo, com o apagamento progressivo da presença do “Nós”
(no sentido da sociedade, do Estado) em sua própria configuração
individual, tratado em termos de choque (ELIAS, 1994).13
Ele explica que o processo de individualização crescente teria
levado a encapsulação das relações entre os indivíduos e ao isola-
mento, processo por ele chamado de homo clausus. Nesse processo,
o Eu desprovido do Nós fruto da autoconsciência moderna, se apre-
senta a si mesmo e para o outro como um indivíduo fechado em si
mesmo, sem relação com os outros, independente. Esse aumento
exagerado do si mesmo vistos como universo e motivos para a ação,
torna obscuro o fato de que os seres humanos são sempre interde-
pendentes (ELIAS, 1994).
Émile Durkheim (1999), um dos pais fundadores da Sociolo-
gia, ao procurar compreender como a sociedade se mantém apesar

12
 Em entrevista para Woman’s Own, Margaret Thatcher (1987) explicita “...who is
society? There is no such thing! There are individual men and women and there are
families...” https://www.margaretthatcher.org/document/106689
13
 Sobre isso ver artigo: A configuração do(s) individualismo(s) na sociedade moder-
na e sua relação com a autopercepção dos indivíduos: algumas notas para reflexão;

67
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
do individualismo, ou seja, do ocaso da consciência coletiva14, expli-
ca que a sociedade moderna deve sua coesão à interdependência
funcional na divisão do trabalho, pois na modernidade, com a es-
pecialização do trabalho, cada indivíduo depende de vários outros
para levar a cabo sua própria atividade e a sua manutenção. Assim,
segundo Durkheim, essa interdependência funcional é o que man-
tém a sociedade moderna coesa e faz com que ela não desintegre (o
sociólogo chama de solidariedade orgânica). As sociedades antigas,
por sua vez, deviam a sua coesão ao compartilhamento de uma tota-
lidade mais ou menos organizada de crenças e sentimentos comuns
a todos os membros do grupo, o coletivo (solidariedade mecânica).
No mundo antigo, a ideia de um indivíduo sem grupo, tribo,
Estado – sem o nós – estava abaixo da linha do horizonte na práxis
social (ELIAS, 1994, p. 130). A liberdade dos antigos estava atrela-
da ao exercício coletivo da soberania nas questões públicas, porém,
em contrapartida, o poder social, como afirma Benjamin Constant15,
feria em todos os sentidos a independência individual, a liberda-
de política era uma contínua renúncia de si mesmo. Entre os mo-
dernos, ao contrário, a liberdade assume consistência inversa, o
indivíduo encontra-se cada vez mais independente e soberano em
seus assuntos privados, mas cada vez mais distante da liberdade
política.O pensador atenta, assim, para o fato de que as duas liber-
dades precisam ser combinadas para evitar perigos como a apatia
política e a renúncia do direito de participar do poder político.16

14
 A consciência coletiva para Durkheim constitui a unidade do conjunto de crenças,
valores em uma sociedade.
 Em seu discurso pronunciado no Athénée Royal de Paris, 1819, sobre A liberdade
15

dos antigos comparada à dos modernos.


16
 Constant explica que o sistema representativo, invenção dos modernos, possi-
bilitou que o indivíduo pudesse imergir em sua vida privada. Concretizou, assim, a

68
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
Richard Sennett (1998, p. 156) afirma que nas sociedades
ocidentais houve uma erosão da vida pública e uma insuflação da
vida privada – mudança que deve ser pensada juntamente com a
forma econômica, principalmente após a Segunda Guerra – onde
de um lado, tem-se o progressivo aumento da preocupação com as
questões relativas ao eu e, de outro, o apagamento da participação
com estranhos para finalidades sociais. Em suas palavras, “a visão
intimista é impulsionada na proporção em que o domínio público
é abandonado, por estar esvaziado” (p. 321). Agora, multidões de
pessoas estão apenas preocupadas com as histórias de suas pró-
prias vidas, sendo esta preocupação mais uma armadilha, do que
uma libertação (SENNETT, 1998).
Segundo o autor, atualmente, as relações na vida pública são
travadas em termos de sentimentos e preocupações individuais,
desprovidas da impessoalidade característica dessa esfera, que se-
ria constituída por vínculos de associação e compromisso mútuo
entre pessoas sem laços íntimos. Sennett (1998) pensa nessa rela-
ção em termos de máscaras que deveriam ser criadas e mantidas
para o eu pelos rituais de polidez, seriam máscaras rituais da so-
ciabilidade. Hodiernamente, a metáfora criada por Sennett adquire
literalidade no sentido de que, o que usamos de forma material na
face são máscaras para a sociabilidade (estritamente necessária)

liberdade moderna, transformando a liberdade política (a dos antigos) em garantia da


fruição dessa independência privada. Dessa forma, podemos questionar, se o sistema
representativo proporciona ao indivíduo moderno a possibilidade de se recolher à
vida individual e privada mediante uma “procuração dada” para um número limitado
de pessoas que irão fazer o que este “não pode ou não quer fazer”, sendo, então, a liber-
dade política, a garantia dessa liberdade individual, quais as perspectivas da liberdade
moderna descrita por Constant, principalmente em tempos de crise de representativi-
dade? (leia-se no contexto atual brasileiro). Tendo-se em vista que como afirmou Da-
hrendorf (1979) “as liberdades mudam”, quais as perspectivas da liberdade moderna
descrita por Constant?

69
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
que deveriam indicar uma preocupação com o coletivo. Mas, por
outro, tem se visto que essa máscara, no duplo sentido (político e
material), parece estar em falta entre a principal liderança política
do país e em uma parcela significativa da população que não tem
aderido ao isolamento social e que insiste em minimizar a gravida-
de da pandemia de covid-19.
Em tempos de imprescindível isolamento social, as fronteiras
entre as esferas (privada e pública) aparecem borradas, etéreas. En-
tre lives, home office, aulas virtuais, mobilizações políticas no sofá,
com apenas alguns cliques, precisaremos de novas teorizações para
o momento atual. Entretanto, o que se quer tornar compreensível
é o padrão da relação Eu-Nós e a ponderação nos termos da balan-
ça entre o indivíduo e a sociedade (ELIAS, 1994) nesses tempos.
O homo clausus de Elias, conceito criado no século passado dizia
respeito ao isolamento dos indivíduos na modernidade, a sua en-
capsulação e a incompreensão que possuía em torno de sua relação
com a sociedade – vista como antagônica.
Hoje, o conceito além de adquirir ares de literalidade, perma-
nece profícuo para se compreender os sofrimentos que permeiam
as vidas dos enclausurados devido à pandemia, em duplo sentido,
pois a transformação que Elias se refere, o individualismo moderno,
trata-se de uma mudança fundamental e profunda nas sociedades –
ocidentais. O individualismo apesar de apresentar uma dupla face
– libertar os indivíduos das relações tradicionais, foi combinado de
maneira perversa na forma econômica, produzindo, prejuízos nas
relações travadas e em degenerações nas formas de afirmação da
personalidade e no valor da existência (SIMMEL, 1998).
O individualismo na contemporaneidade estaria associado a
uma balança pesada sobre o “Eu” em detrimento do “Nós” como

70
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
ponderou Elias (1994) e a uma crise de gratificação ou autoestima
(HAN. 2017) que seria resultado da falta de relacionamentos do
indivíduo moderno com o/s outro/s e a uma perturbação narci-
sista, posto que mergulhar no si mesmo não cria autoestima, mas
sim produz isolamento e sofrimento, pois seria no encontro entre
subjetividades abertas ao caráter criador das interações que se po-
deria compartilhar mundos, criar confiança e alteridade e trocas
simbólicas (SOARES, 2020).
O chamado para imersão no Eu, aprofunda sentimentos de
depressão e ansiedade, além de criar sentimentos de dissociação,
solidão crônica e desapego da realidade (CABANAS, ILLOUZ, 2019,
p. 71). E esse chamado tornou-se mais contundente, especialmente
com o neoliberalismo, que pode ser compreendido de acordo com
David Harvey (2011, p. 15) como projeto de classe que surgiu na
crise dos anos 1970, “mascarado por muita retórica sobre liberda-
de individual, autonomia, responsabilidade pessoal e as virtudes da
privatização, livre-mercado e livre comércio...” cuja política era ba-
sicamente: privatizar lucros e socializar os riscos.
O individualismo moderno em conjunção com outros proces-
sos e o capitalismo neoliberal, fizeram com que os indivíduos vol-
tassem suas lentes unicamente para dentro de si, afim de encontrar
a força de vontade necessária parar remar, sozinho, o barco furado
diante de marés tempestuosas do declínio econômico, o que impli-
ca não apenas o esvaziamento do eu de seu conteúdo comunitário
e político, em prol de uma preocupação narcísica, como apontam
Cabanas e Illouz (2019), mas também a limitação das possibilida-
des de construção coletiva de mudanças sociopolíticas (CABANAS,
ILOUZ, 2019, p. 68), respaldado por uma ideologia perversa que

71
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
coloca no indivíduo, sozinho, por sua conta e risco,17 o peso dos pro-
blemas endêmicos das sociedades contemporâneas.
Como afirmou Soares (2020), a vivência em um mundo calca-
do em códigos mais individualistas de intersubjetividade e auto-
percepção – produto de três movimentos interconectados: o capi-
talismo, o individualismo moderno e a urbanização – tem íntima
relação com os sofrimentos psíquicos, enquanto sofrimento social,
que perpassam os depoimentos desse grupo em específico no Bra-
sil e é corroborado por outros resultados de estudos sociológicos
que relacionam o aumento do individualismo a taxas mais altas de
depressão e até suicídio nos países desenvolvidos e nos países em de-
senvolvimento (CABANAS, ILLOUZ, 2019, p. 73).
Este é o cenário social antes da pandemia de covid-19: alto
grau de isolamento dos indivíduos, mesmo sem distanciamento,
volta para si e apagamento dos laços sociais e de sua importância
na constituição da própria individualidade e da noção de interde-
pendência, basilar na sociedade contemporânea, esvaziamento da
esfera pública e imersão no eu como único espaço de investimen-
to e ação e, assim, limitação das possibilidades de construção co-
letiva de mudanças sociopolíticas (CABANAS, ILOUZ, 2019). Todo
esse quadro, como foi discutido, está relacionado com sofrimentos

17
 Dentro do contexto da pandemia de covid-19, a retórica não é diferente, o impe-
rativo de que a economia não pode parar e que os indivíduos precisam trabalhar, ou
seja, precisam remar sozinhos o barco furado do capitalismo neoliberal, permanece
o mesmo. Enquanto se socializa os riscos de morte para a parcela mais vulnerável da
população, privatiza-se, de outro, os lucros para outra bem estrita, diante de uma gra-
ve crise de saúde pública. No Brasil, podemos citar como exemplo a recente visita do
presidente ao Supremo Tribunal Federal (STF), rodeado de empresários, para clamar
pela reabertura do comércio em um momento bastante crítico da pandemia e com a
comunidade científica afirmando que a única forma de salvar vidas seria através do
isolamento social. Notícia no G1

72
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
psíquicos18, os mais diversos, como depressão, ansiedade, pâni-
co, além de criar sentimentos de dissociação e de solidão crônica.
Desse modo, compreender o cenário pré-pandemia é fundamental
para se entender a configuração das relações sociais durante ela e
os seus efeitos na subjetividade dos indivíduos.

Sofrimento Social durante a pandemia

Imagine um cenário onde de repente os seres humanos se


vêem privados de apertar as mãos, trocar abraços e beijos e preci-
sam se manter afastados pelo menos um metro de todas as pessoas
a sua volta... Portas fechadas, ruas e praças completamente vazias,
essas pessoas precisam agora se encerrar em suas casas, longe do
ambiente de trabalho, escola, universidade, museu, biblioteca, cine-
ma, teatro... sem poder interagir com qualquer outra. Com os mo-
vimentos limitados, elas precisam agora aguardar, enclausuradas,
sozinhas, sem tempo determinado, até que possam voltar a sua rea-
lidade cotidiana de convívio social. Diante desse claustrofóbico ce-
nário, alguns cantam de suas janelas, tocam instrumentos, dançam,
na esperança de aplacar suas angústias e a de seus vizinhos, em um
ato de solidariedade e comunicação. Fazendo-nos questionar, será
que a conexão social tem tanta importância na vida do ser humano?
E se sim, por quê pesquisas recentes têm demonstrado que a socie-
dade moderna é a mais solitária?
Todo esse thriller psicológico poderia acontecer na Alphaville19
godardiana ou em alguma outra distopia, mas é a realidade de mui-
tos indivíduos em todo o globo diante da pandemia de Coronavírus

18
 Entendidos neste artigo como uma forma de Sofrimento Social.
19
 Filme francês de 1965, dirigido por Jean-Luc Godard.

73
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
(covid-19) no ano de 2020. A recomendação das autoridades é o
isolamento social, para minimizar a velocidade de transmissão do
vírus que causa a doença covid-19 e evitar que os serviços de saúde
fiquem sobrecarregados.
Estudos recentes como o de John T. Cacioppo e William Patrick
(2008), no campo interdisciplinar da neurociência social, demons-
tram através de uma pesquisa densa que a necessidade de conexão
social e a dor que sentimos sem ela, são características definido-
ras de nossa espécie, o que pode ser resumido na sentença de que:
Os seres humanos são, afinal, seres inerentemente sociais20. Sem
adentrar no complexo ponto de partida, a questão bastante rele-
vante que o estudo aborda é a importância de conexões sociais sig-
nificativas para nossa saúde, bem-estar, segurança... como afirmam
os pesquisadores:

A saúde e o bem-estar de um membro de nossa espécie re-


querem, entre outras coisas, a satisfação e a segurança de
nossos laços com outras pessoas, uma condição de “não es-
tarmos sozinhos” que, por falta de uma palavra melhor, cha-
mamos de conexão social21.

Em tempos de pandemia torna-se ainda mais necessário dis-


tinguir a solidão do sentir-se fisicamente sozinho/a que atualmen-
te é a regra geral22. A solidão pode ser a sós, mas também a dois

20
 Tradução do original: “Humans are, after all, inherently social beings.”
21
 Tradução livre do original: “Health and well-being for a member of our species re-
quire, among other things, being satisfied and secure in our bonds with other people, a
condition of “not being lonely” that, for want of a better word, we call social connection.”
22
 Para os cidadãos que cumprem o isolamento social e permanecem em suas casas
apenas com seu núcleo doméstico ou sozinho/as. Entretanto, no Brasil, a taxa de iso-
lamento permanece baixa até o momento de escrita desse artigo, o que remete nova-
mente a tese do isolamento do indivíduo moderno, dessa vez, às avessas, ou seja, a fal-

74
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ou na multidão, como diz o protagonista de Táxi Driver23, ela pode
perseguir você nos bares, carros, calçadas, em todo lugar. Por quê?
Segundo Johann Hari (2018), a solidão não significa ausência
física de outras pessoas, mas a sensação de não ter alguém ou al-
gum grupo, com o qual, possa compartilhar algo mutuamente sig-
nificativo. Ele dá o seguinte exemplo: quando você está na Times
Square em sua primeira tarde em Nova York – imagine algum lugar
bastante movimentado em sua cidade – você não está “sozinho”,
mas se sente “solitário” porque está permeado de códigos indivi-
dualistas de intersubjetividade e autopercepção, provavelmente
não há uma interação mútua com algum objetivo comum, são ape-
nas uma multidão solitária, que perambula irrequieta atrás de seus
próprios interesses. Mesmo a dois, ou em um ambiente de trabalho
movimentado, se não há um compartilhamento de uma sensação
de “ajuda e proteção mútuas”, você continua solitário.24
Assim, a falta de vínculos significativos, característico das
sociedades modernas, constitui motivo de sofrimento, posto que
apesar da balança moderna pender para o lado do “Eu”, este é in-
dissociável do “Nós” presente em sua constituição, no sentido de
que os seres humanos são sempre interdependentes (ELIAS, 1994).

ta de isolamento social, hoje, indicaria a ausência de vínculos de compromisso social


e de relações significativas com os outros. Porém, também tem relação, nas camadas
populares, com a falta de suporte financeiro que tarda, mas não chega a milhões de
pessoas em situação de vulnerabilidade, bem como a falta de instrução a respeito do
assunto e com o choque sobre dinâmica local, baseada em uma intensa pessoalidade.
Sobre isso ver o artigo de Williane Pontes neste mesmo Suplemento Especial.
23
 Longa-metragem lançado em 1976, dirigido por Martin Scorsese.
24
 Loneliness isn’t the physical absence of other people, it’s the sense that you’re not
sharing anything that matters with anyone else. If you have lots of people around
you—perhaps even a husband or wife, or a family, or a busy workplace—but you don’t
share anything that matters with them, then you’ll still be lonely. To end loneliness,
you need to have a sense of “mutual aid and protection”.

75
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
A solidão crônica traz problemas no âmbito da saúde mental e afe-
ta também o organismo dos indivíduos, indica Cacioppo (2008). O
que nos prova que a sociedade importa, os laços e conexões sociais
importam e sua pouca ou excessiva presença exercem influências
massivas em todo nosso ser.
Precisamos, desse modo, questionar como o cenário social an-
terior e o isolamento da pandemia têm impactado na sensação de
solidão dos indivíduos e em outros sofrimentos psíquicos relaciona-
dos aos processos supracitados. Como vimos a distância física não é
sinônimo de solidão e nem a proximidade per si é antídoto contra ela.
Uma pesquisa realizada entre residentes da província de Liao-
ning, China, por Zhang e Feei Ma, sobre o impacto da pandemia de
covid-19 na saúde mental e na qualidade de vida, relata, por exem-
plo, o aumento do apoio social e familiar, bem como mudanças posi-
tivas no estilo de vida relacionadas à saúde mental e indicam como
uma das possíveis razões a de, durante a pandemia, o ritmo de toda
a sociedade ter diminuído25, o que poderia ter criado mais oportu-
nidades e tempo entre os membros da comunidade para apoiar e
cuidar um do outro.
Por outro lado, outras pesquisas recentes26, realizadas princi-
palmente na China e em outros países asiáticos, têm salientado a
intensificação de quadros de depressão, ansiedade, pânico, estres-
se27 e também o surgimento desses quadros em pessoas que não os

25
 Esse ritmo pode ser lido pelas lentes de Simmel (1998, p. 35) que indica que o ho-
mem moderno é continuamente motivado para a ação desenfreada, inquieta, ausente
de pausas, possuindo na Modernidade uma existência “propulsionada pelo motor de-
senfreado do dinheiro que torna a máquina da vida um perpetuum mobile”.
26
 Ver referências bibliográficas.
27
 De acordo com pesquisadores (HO, Cyrus; CHEE, Cornelia; HO, Roger): 53,8% dos
entrevistados avaliaram o impacto psicológico do surto como moderado ou grave;

76
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
possuíam antes da pandemia. Esses sofrimentos psíquicos se agra-
vam em pessoas com a infecção ou com possibilidade de ter se con-
taminado e particularmente entre os profissionais da saúde. Entre
esses últimos, uma recente revisão sistemática sobre o impacto do
desastre em sua saúde mental explica que o risco comum identifi-
cado no desenvolvimento de morbidades psicológicas inclui falta
de apoio social e comunicação28.
Durante o surto do covid-19, comunidades psiquiátricas par-
ceiras em Singapura, como as Agências de Serviço Social (SSA)
formaram uma primeira linha importante para fornecer aconse-
lhamento, servindo para reduzir a possibilidade de desenvolver
morbidades psiquiátricas na mentalidade da comunidade. Por
exemplo, Silver Ribbon (Singapore) e Fei Yue Community Servi-
ces fornecem on-line suporte de aconselhamento emocional para
questões relacionadas ao COVID.29 No Brasil, iniciativas já exis-
tentes como o Centro de Valorização da Vida (CVV)30 organização

16,5% relataram sintomas depressivos moderados a graves; 28,8% relataram mode-


rados a graves sintomas de ansiedade e 8,1% relataram níveis de estresse moderado
a grave.
28
 Cyrus SH Ho, Cornelia YI Chee, Roger CM Ho. Mental Health Strategies to Combat
the Psychological Impact of covid-19 Beyond Paranoia and Panic.
29
 “During this outbreak, community psychiatric partners in Singapore such as the
Social Service Agencies (SSA) form an important first line to provide counselling in
the heart land. This serves to strengthen the community’s mental health resilience
and reduce the possibility of developing psychiatric morbidities. For instance, Silver
Ribbon (Singapore) and Fei Yue Community Services provide online emotional coun-
seling support for COVID-related issues. A group of psychologists from the Singapore
Psychological Society is also providing their services pro bono or at reduced rates for
those distressed by the outbreak”.
30
 O CVV é um serviço totalmente gratuito de apoio emocional a pessoa humana em
estado de sofrimento, constituído por voluntários que se dispõem a conversar seja
através de telefone, pessoalmente, e-mail, carta, virtual, chat, entre outros. Atualmen-
te, ele permanece atuante através dos serviços de atendimento por telefone 24 horas
através do 188 e no CVV Web, com voluntários que realizam apoios por chat online,
em sala virtual privativa do CVV, além de atender via e-mail.

77
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
humanitária voluntária que oferece apoio emocional, 24 horas por
dia, para pessoas em estado de sofrimento, angústia, relata aumen-
to da procura de ajuda nesse período.
Alguns pesquisadores31 indicam que no Brasil, país com muitas
desigualdades sociais, baixos níveis de educação formal e de cultu-
ra humanitária-cooperativa, não existem parâmetros para estimar o
impacto desse fenômeno na saúde mental ou no comportamento da
população. E questionam: será possível implementar ações preven-
tivas e emergenciais eficazes, voltadas para as implicações emocio-
nais, psíquicas, dessa pandemia, em amplas esferas da sociedade?
Como foi salientado no ponto anterior, o isolamento – em rela-
ção ao social, constituí uma característica do indivíduo moderno e
como indicou pesquisas realizadas no GREM Grupo de Antropolo-
gia e Sociologia das Emoções32, no Brasil, a sociabilidade no urbano
tem se constituído desde décadas anteriores em compasso com o
processo de individualidade crescente e de afirmação do privado
já mencionado, voltada para o distanciamento e estranhamento do
outro e, por extensão do social, fragmentação dos sentimentos co-
letivos e para a indiferença e banalidade no trato público de sofri-
mentos (KOURY, 2018).
Mauro Koury (2018, p. 123) explica que a perda e a morte
também são sentidos no Brasil urbano, a partir desse processo de
interiorização e desencontros sociais no sentido de uma angústia
“de não ter respostas socialmente adequadas à questão, a não ser
quando traduzidas em termos subjetivos e individuais, e não so-

31
 ORNELL, Felipe; SCHUCH, Jaqueline; Anne, SORDI et al. “Pandemic fear” and co-
vid-19: mental health burden and strategies.
32
 Ver os projetos do GREM: Luto e Sociedade e Medos Corriqueiros indicados nas
referências.

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ciais, e, assim, como ambivalente ao cotidiano dos indivíduos em
relação, em um processo social ou comunitário mais amplo”. Ele ex-
plica também que “a tristeza, a solidão, e o encarar a morte como
uma impotência do ser individual na sociedade contemporânea,
marcam também a emergência contraditória de uma nova busca de
amparo em religiões ou em ideologias.” (2018, p. 62)
Diariamente, a sociedade tem se deparado com um número
crescente de mortes pelo covid-19, tornando-se necessário com-
preender como esse sofrimento social tem sido abordado pela po-
pulação, em geral, e particularmente pelos indivíduos envolvidos
e quais estão sendo as suas fontes de amparo. Nesse sentido, pes-
quisas precisarão ser realizadas, o que levará tempo. Entretanto,
hoje podemos nos apoiar em pesquisas anteriores e relembrar a
frase do poeta inglês John Donne, “Any man’s death diminishes me,
because I am involved in mankind.”33
A ausência de compromissos e acordos sociais, políticos, ho-
rizontais, a falta da colaboração mútua, senso cívico e até mesmo
confiança entre os cidadãos, derivados de processos como o indi-
vidualismo moderno, o capitalismo neoliberal e outros, trouxe um
cenário bastante lúgubre de interações travadas como uma batalha
de interesses individuais durante a pandemia, com corridas para
estocar alimentos e materiais específicos. Além de que, o outro
torna-se, no contexto da pandemia, não apenas invisível como peri-
goso, já que é um hospedeiro em potencial, o que pode acirrar uma
sociedade ainda mais individualista, encoberta pelo manto da au-
toproteção. A pandemia também advoga em prol da desconfiança
do próximo o que também pode corroer as relações interpessoais.
Como disse Han (2020):

33
 Tradução livre: a morte de qualquer ser humano me diminui, porque estou envol-
vido na humanidade.

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O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimen-
to coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa
somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que
consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidarie-
dade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais
pacífica, mais justa.34

Todavia, no outro lado do espectro, nas partes mais vulnerá-


veis do país, muitas comunidades têm se organizado e se ajudado
mutuamente.35 Encontram-se iniciativas organizadas de moradores
de bairros populares para arrecadar alimentos, materiais de higie-
nização, entre outras iniciativas, que não exime de forma alguma o
Estado brasileiro, mais fortalece o capital social. Este seria consti-
tuído de confiança como componente básico, cadeias de relações
sociais e que teria como característica específica constituir um bem
público (PUTNAM, 1996) e facilitar a cooperação espontânea, o que
pode ser um elemento basilar para atravessar pandemias como
essa e de outros patógenos vindouros. Decorre que o associativis-
mo voluntário, um dos elementos principais da comunidade cívica,
bem como elemento central no conceito de capital social, atua for-
temente no estabelecimento de laços de solidariedade, reciprocida-
de, responsabilidade pública, ajudando, assim, a superar os dilemas
de ação coletiva e gerar efeitos benéficos nas instituições políticas e
contribuem também para a prosperidade econômica ao passo que
são também reforçados por essa prosperidade (PUTNAM, 1996).
Santos (2020, p. 54-7), na mesma esteira, propõe “imaginar so-
luções democráticas assentes na democracia participativa no nível
dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para

34
 https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-
-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html
35
 https://www.vozdascomunidades.com.br/

80
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a solidariedade e a cooperação, não para o empreendedorismo e a
competitividade a todo custo”. Harari (2020) também indica que
um método eficaz, seria uma solidariedade global, pois, a confian-
ça e cooperação internacional mais estreita possibilitaria o triunfo
sobre essa pandemia e sobre todos os patógenos futuros também,
com informação aberta, ajuda e confiança mútua. Ao contrário de
açambarcar equipamentos altamente necessários para enfrentar
a pandemia de coronavírus ou de esconder informações de outros
países, em uma guerra de todos contra todos.

Conclusão

Este ensaio procurou apresentar o cenário social anterior à


pandemia de covid-19, a partir da contribuição de teorias socioló-
gicas e antropológicas que abordam o individualismo moderno e
apontam o processo de crescente isolamento do indivíduo na Mo-
dernidade – em relação ao social. Foi discutido o alto grau de isola-
mento dos indivíduos modernos, mesmo sem distanciamento físi-
co, o processo de interiorização e apagamento dos laços sociais que
constituem a própria individualidade, bem como o esvaziamento
da esfera pública e imersão no eu como único espaço de investi-
mento e ação e, assim, limitação das possibilidades de construção
coletiva de mudanças sociopolíticas.
Todo esse quadro está relacionado com sofrimentos psíquicos,
os mais diversos, como depressão, ansiedade, pânico, solidão crôni-
ca, tornando a compreensão do cenário pré-pandemia fundamental
para se entender a configuração das relações sociais durante ela e os
seus efeitos na subjetividade dos indivíduos. Concluiu-se, por fim,
que a ausência de compromissos e acordos sociais, políticos, a falta
da colaboração mútua, senso cívico e até mesmo confiança entre os

81
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cidadãos, derivados de processos como o individualismo moderno,
o capitalismo neoliberal e outros, trouxe, um cenário bastante lúgu-
bre de competição e corrida para salvaguarda dos próprios interes-
ses. Todavia, no outro lado do espectro, nas classes mais populares,
se verifica um movimento de colaboração mútua nas comunidades,
de cadeias de solidariedade e cooperação espontânea que pode ser
um elemento basilar para atravessar pandemias como essa e de ou-
tros patógenos vindouros. Sendo importante, a formação crescente
do associativismo voluntário e da solidariedade e cooperação tanto
em nível social quanto global.

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VOLTA AO SUMÁRIO

84
I N D I V I DUAL I SMO MODE RN O E SOFRIM E N TO SOC IAL EM T EMP OS DE COVID-19
CAPÍTULO 4

CENÁRIOS DE MEDO E AS
SOCIABILIDADES PANDÊMICAS
NO MARANHÃO

Jesus Marmanillo Pereira

Introdução

Partindo da hipótese de que o medo é socialmente construído


na relação entre a objetividade das instituições e a forma como os
indivíduos o assimilam e o dialogam com seus próprios repertó-
rios afetivos e culturais, o presente artigo buscar refletir sobre a
chegada e desenvolvimento do covid-19 no estado do Maranhão,
e analisar como o sentimento de medo pode ser considerado um
importante fator nas sociabilidades urbanas. Para tanto, utilizamos
a cidade de Imperatriz-MA como um recorte prioritário para narrar
sobre o cenário de medo, e suas influências nas interações, sociabi-
lidades e formas sociais.
É importante enfatizar baseamo-nos na idéia de compreen-
são defendida por Simmel (2011), ou seja, aquela construída por
meio de processos empáticos entre “eu” e o “outro”. Dessa forma,
buscamos captar o máximo da escassa experiência urbana em
uma imersão profunda dos sentidos. Teoricamente, nos guiamos

85
pelas contribuições de Simmel (1988; 2016) presentes no aporte
conceitual da sociologia das formas sociais e sobre morte. Foram
estudadas também as pesquisas de Koury (2007; 2009), Rezende
e Coelho (2010), Tuan (2005), Le Breton (2019) entre outros que
nos possibilitaram compreender, grosso modo, como a sociologia
simmeliana pode ser um importante ponto de partida para os estu-
dos sobre emoções e sociabilidade, e como as emoções podem ser
compreendidas como uma construção coletiva e relacionada com
as paisagens e experiências.
Para efetivar essas referências teóricas e compreender a pro-
dução social do medo em Imperatriz-MA, orientamos a pesquisa
para o estudo estatístico sobre os boletins epidemiológicos das se-
cretárias de municipal e estadual de saúde, e para um questionário
aplicados 241 pessoas36 – dos quais extraímos 111 para analisar a
emoção medo, suas justificativas e algumas características sociais
dos entrevistados.Foi realizada pesquisa documental com análise
de decretos e petições, com recortes jornalísticos, imagens de ví-
deos e outras fontes da imprensa local que reforçavam a opinião
pública sobre a chegada do vírus e o sentimento de medo. Foram
feitasdez saídas de campo, entre os dias 15 de março e 7 de maio de
2020, por meio das quais buscamos captar imagens e a experiência
o ato de “flanar” no contexto pandêmico. Seguindo esse modelo, o
artigo está organizado em duas partes: na 1) buscamos situar o lei-
tor sobre alguns aspectos urbanos, das duas principais metrópoles

36
 Segundo IBGE a cidade de Imperatriz-MA possui uma população de 234.547 habi-
tantes, significando que nossa amostra de 241 possui uma margem de erro de 1.19%.
A amostra especifica referente ao medo, possui uma margem de erro de 7.83%. Utili-
zamos uma técnica conhecida como snowball (bola de neve) na qual solicitamos para
os entrevistados que convidassem novos participantes a partir de sua rede de amigos,
resultando em uma população estratificada em diferentes categorias: bairros, faixa
etária e sentimentos.

86
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
maranhenses, e a construção do sentimento do medo da morte com
bases nas instituições públicas e meios de comunicação; na 2) são
apresentados alguns aspectos da relação entre medo da morte e
a construção de sociabilidades na cidade de Imperatriz-MA, tendo
como foco as percepções dos atores urbanos e seus relatos.

A chegada do Coronavírus – COVID19 – nas metrópoles


maranhenses: Imperatriz e São Luís

Segundo o site Universo online (UOL) no dia 25 de fevereiro de


2020, um empresário de 61 anos que havia retornado do norte da
Itália foi diagnosticado, no Hospital Albert Einstein em São Paulo,
como portador do covid-19. Em pouco menos de 1 mês, no dia 20
de março o governador do Maranhão, Flávio Dino, anunciou a con-
firmação do primeiro caso na capital maranhense – de um idoso
que chegará de viagem de São Paulo no referido mês. Na cidade de
Imperatriz-MA, o primeiro caso publicizado circulou primeiramen-
te, na noite do dia 22 de março, nos grupos de whatsapp e nas redes
sociais vinculadas a um jovem médico que teria contraído o vírus
de um amigo, em São Paulo. No dia seguinte, também pude obser-
var o caso no jornal da TV local e em sites da região. Para quem
acreditou que se travava de uma realidade distante, os primeiros
casos em solo maranhense e Imperatrizense simbolizaram a chega-
da do covid-19 e o processo de construção de uma nova realidade
social que foi sendo desenhada nas ruas da cidade.
Quanto ao trânsito do vírus e das pessoas em escala mundial,
e nacional, é importante considerar que os estudos de sociologia
urbana clássica realizados por Pereira (2017; 2018;2018 e 2019)
demonstram que Marx, Weber, Simmel e Durkheim já observavam
que a especialização e a complexificação da divisão do trabalho se

87
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
transpunha desde as organizações sociais mais “simples” até a orga-
nização social materializada nas cidades e, entre cidades. Atentando
sobre a circulação do dinheiro, a expansão das relações comerciais,
ampliação da divisão do trabalho e condições da implementação do
capitalismo, tais autores apontam, grosso modo, que ao contrário
do isolamento e auto-suficiência das grandes propriedades rurais,
a divisão do trabalho e a circulação foram requisitos fundamentais
para o modelo de cidade moderna e industrial. Em seu texto sobre
a exposição mundial em Berlim, Simmel (2013) chegou a utilizar o
termo cidade mundial para caracterizar o processo de integração
econômica daquela capital ao continente europeu.
As metrópoles maranhenses, São Luís e Imperatriz, são justa-
mente os lugares mais conectados e nível regional quanto nacional.
São as únicas que possuem aeroportos com linhas comerciais entre
si, para Brasília e São Paulo. A integração dessas cidades não pode
ser dissociada dos processos econômicos que as conectam com ou-
tros processos de caráter nacional e internacional, já que,

Na década de 1980 ocorreu implantação do Projeto Grande


Carajás associado a outros projetos de infraestrutura, como a
Estrada de Ferro Carajás, conectando a província mineral de
Carajás (sudeste do Pará) ao litoral maranhense, o Complexo
Portuário de São Luís, formado pelos Portos do Itaqui, da Pon-
ta da Madeira e da Alumar, alimentando também oito usinas
de processamento de ferro gusa às margens dessa estrada
de ferro; uma grande indústria de alumina e alumínio (ALU-
MAR) e bases para estocagem e processamento industrial de
minério de ferro (Vale) na Ilha do Maranhão(PANTOJA; PE-
REIRA, 2016, p.331)

Esses autores explicam que na década seguinte a Empresa de


Celulose do Maranhão (CELMAR) já fazia as primeiras experiências

88
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
em Imperatriz, e que em 2013 a Empresa Suzano Papel Celulose se
implantou na cidade, impulsionada pelas características logísticas
da região. Pereira e Carvalho (2018) ao analisar os trabalhadores
no corte de eucalipto, enfatizam que tal produção de eucalipto es-
tava vinculada a existência de empresas especializadas no corte da
madeira, e de carvoarias na cidade de Açailândia (localizada a 70
km de Imperatriz) que se valia daquela madeira para produzir o
carvão utilizado nos fornos de fundição do minério de ferro, bauxi-
ta e manganês extraídos de Carajás. Já em Imperatriz, a implemen-
tação da Suzano, estimulou a fixação da indústria Peróxido do Brasil
LTDA que produz insumos químicos utilizados no branqueamento da
pasta de celulose. Dessa forma, essas duas cidades, são caracterizadas
pela alta circulação de fluxo de pessoas e capitais, e não por acaso, ve-
remos que são os locais de maior concentração de casos.
No Maranhão foram registrados 7.599, entre os dias 25 de fe-
vereiro e 9 de maio de 2020. Desses, 4.274 casos concentram-se na
capital, e 457 casos na cidade de Imperatriz – representando res-
pectivamente 56% e 6% do total. Já os 38%(2.868 casos) restante
se distribuíram entre 156 municípios maranhenses, até o momen-
to dessa pesquisa. Embora esse levantamento de dado sirva para
transmitir uma noção da concentração de casos nas duas únicas
metrópoles do estado, por conta do aumento constante do contagio
e dos óbitos e por receio da rápida desatualização37 do quadro aqui
desenhado, trabalharemos em termos de tendências de crescimen-
to para demonstrar um breve histórico e as perspectivas.
Nesse sentido, ao analisar os 5.040 casos em relação aos
boletins epidemiológicos da prefeitura de São Luís, foi possível

37
 Para se ter noção no dia seguinte, subiu para 8144, depois para 8526 e no dia 15 de
maio já eram totalizados 11.592 casos confirmados. Os dados podem ser acompanha-
dos no site da secretaria estadual de saúde.

89
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
receio da rápida desatualização 71 do quadro aqui desenhado, trabalharemos em termos de
tendências de crescimento para demonstrar um breve histórico e as perspectivas.
Nesse sentido, ao analisar os 5.040 casos em relação aos boletins epidemiológicos da
prefeitura
perceber de São
duasLuís, foi possível
séries, perceber
crescentes, queduas séries, crescentes,
representam que representam as
as contamina-
contaminações
ções (azul)(azul)
e ose óbitos
os óbitos(vermelha)
(vermelha) diários ocorridos
diários naquelenaquele
ocorridos município.mu-
A partir do
histórico de contaminações
nicípio. foi possível de
A partir do histórico traçar uma tendência (linha
contaminações tracejada) que
foi possível sinaliza um
traçar
crescimento gradativo(linha
uma tendência dos contágios.
tracejada) que sinaliza um crescimento gra-
dativo dos contágios.
Gráfico 1 - Contaminações e óbitos diários em São Luís-MA
400

300

200

100

0
02/mar 09/mar 16/mar 23/mar 30/mar 06/abr 13/abr 20/abr 27/abr 04/mai 11/mai
-100

Série1 Série2 Polinomial (Série1)

Fonte: O autor, 2020Gráfico 1 – Contaminações e óbitos diários em São Luís-MA.


Fonte: O autor, 2020.
A partir do gráfico 1 é possível observar que o primeiro óbito ocorreu em 29 de
março, e que as mortes têm seguido de forma crescente na capital. Já os contágios tiveram
A partir do gráfico 1 é possível observar que o primeiro óbito
algumas variações no mês de abril, sinalizando uma instabilidade no controle já que a cada
ocorreu em 29 de março, e que as mortes têm seguido de forma cres-
queda o número de contágios voltava maior. Nesse contexto, o Juiz Douglas Martins, da Vara
cente na capital. Já os contágios tiveram algumas variações no mês de
de Interesses Difusos e Coletivos da Comarca da Ilha de São Luís, determinou o lockdown 72
abril, sinalizando uma instabilidade no controle já que a cada queda
nos municípios da ilha de São Luís, no dia 30 de abril de 2020, orientando o governo do
o número de contágios voltava maior. Nesse contexto, o Juiz Douglas
Estado a agir disciplinarmente para garantir o isolamento social.
Martins, da Vara de Interesses Difusos e Coletivos da Comarca da Ilha
Na cidade de Imperatriz-MA os números de casos seguem crescendo de forma
de São Luís, determinou o lockdown38 nos municípios da ilha de São
assustadora, pois se entre 15 de março (1º caso local) até 30 de abril tinha sido contado 6
Luís, no dia 30 de abril de 2020, orientando o governo do Estado a
mortes, nos quatorze primeiros dias de maio o número subiu para 35 óbitos. Os gráficos 2 e 3,
agir disciplinarmente para garantir o isolamento social.
elaborados a partir de dados dos boletins epidemiológicos da secretaria municipal de saúde
Nademonstram
(SEMUS), cidade de Imperatriz-MA
o aumento os números
no mês de março, de casos
e um tendência seguem
crescente no número de
crescendo de forma assustadora, pois se entre 15 de março (1º caso
óbitos.
local) até 30 de abril tinha sido contado 6 mortes, nos quatorze
71
Para se ter noção no dia seguinte, subiu para 8144, depois para 8526 e no dia 15 de maio já eram totalizados
11.592
38 casos confirmados. Os dados podem ser acompanhados no site da secretaria estadual de saúde.
 Por meio da Ação Civil Pública referente ao processo n. 0813507-41.2020.8.10.0001
72
Por meio da Ação Civil Pública referente ao processo n. 0813507-41.2020.8.10.0001

68
90
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
primeiros dias de maio o número subiu para 35 óbitos. Os gráficos
2 e 3, elaborados a partir de dados dos boletins epidemiológicos da
secretaria municipal de saúde (SEMUS), demonstram o aumento no
mês de março, e um tendência crescente no número de óbitos.

200 Gráfico 2- Contaminações e óbitos diários em


Imperatriz-MA
0
26/mar200 02/abr 09/abr
Gráfico 16/abr 23/abr
2- Contaminações 30/abr
e óbitos 07/mai
diários em
Imperatriz-MA
-200
0 p/dia óbitos Linear (óbitos)
26/mar 02/abr 09/abr 16/abr 23/abr 30/abr 07/mai

Fonte: O autor,Gráfico 2 – Contaminações e óbitos diários em Imperatriz-MA.


2020 -200
Fonte: O autor,
p/dia óbitos
2020. Linear (óbitos)
No Gráfico 2, a 2ª linha tracejada (vermelha) representa a tendência de óbitos no
Fonte: O autor, 2020
unicípio, confirmando a ideia 2,
No Gráfico deaque o picotracejada
2ª linha da doença ainda não representa
(vermelha) tinha chegado, até o mês
a ten-
No Gráfico 2, a 2ª linha tracejada (vermelha) representa a tendência de óbitos no
abril. Com odência
aumento
deno mês no
óbitos de município,
maio (29 casos de óbitos na
confirmando primeira
a ideia quinzena)
de que inferimos
o pico da
município, confirmando a ideia de que o pico da doença ainda não tinha chegado, até o mês
e seria o mês de início
doença aindadonão pico da chegado,
tinha doença naatécidade,
o mês deinformação
abril. Com foio aumento
confirmada pela
de abril. Com o aumento no mês de maio (29 casos de óbitos na primeira quinzena) inferimos
cretária que no mês de
municipal maio (29 casos dequeóbitos na primeira quinzena) inferi-
seria o demêssaúde, Mariana
de início Jales,
do pico da doença afirmou que informação
na cidade, o pica já estava ocorrendo
foi confirmada em
pela
mos que seria o mês de início do pico da doença na cidade, infor-
peratrizsecretária
e tendiamunicipal
a aumentar ainda
de saúde, mais Jales,
Mariana (Jornal
que Nacional
afirmou que14/05/ 2020).
o pica já estava No Gráfico
ocorrendo em 3
mação foi confirmada pela secretária municipal de saúde, Mariana
mbém é Imperatriz
possível observar,
e tendia a com mais ainda
aumentar detalhes,
mais a(Jornal
linha tracejada da tendência
Nacional 14/05/ 2020). No crescente
Gráfico e3 o
Jales, que afirmou que o pica já estava ocorrendo em Imperatriz e
também
tórico de óbitos é na
possível observar, com mais detalhes, a linha tracejada da tendência crescente e o
cidade.
tendia a aumentar ainda mais (Jornal Nacional 14/05/ 2020). No
histórico de óbitos na cidade.
Gráfico 3 também é possível observar, com mais detalhes, a linha
Gráficoda
tracejada 3 -tendência
Tendênciacrescente
dos óbitose por dia em Imperatriz-
o histórico
Gráfico 3 - TendênciaMAdos óbitos por dia emde óbitos na cidade.
Imperatriz-
MA
50 30 35
4 4 44 54 54 56 56 68 6118111114 16 16 17 19192020222222
22 30
35
1 2 50
2 3 32 3
1
3
2 3 3 3 3 11 14 16 16 17
0 0
-50 -50

Série1 Série1 Linear


Linear (Série1)
(Série1)

Fonte: O autor, 2020 Gráfico 3 – Tendência dos óbitos por dia Imperatriz-MA.
te: O autor, 2020 Fonte: O autor, 2020.
O número de óbitos pode ser pensado em relação a número crescente de contágios e o
O número de óbitos pode ser pensado em relação a número crescente de contágios e o
número de leitos disponíveis, pois se a população contaminada cresceu progressivamente nas
mero de leitos disponíveis, pois se a população 91contaminada cresceu progressivamente nas
duas cidades (Gráfico 4), a estrutura hospitalar apresentou-se insuficiente para a demanda por
as cidades (GráficoO 4),
tratamento. a estrutura
C E N ÁRI OS DE hospitalar
resultado apresentou-se
M E DO E AS SOC IABIL
disso é que, segundo insuficiente
IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O para a demanda por
o Núcleo de Defensoria Pública do Maranhão73
73
tamento.localizado
O resultado disso é que,
em Imperatriz, segundo
os 35 óbitos o Núcleo deatéDefensoria
(registrados o dia 14 dePública
maio dedo2020)
Maranhão
teriam
O número de óbitos pode ser pensado em relação a número
crescente de contágios e o número de leitos disponíveis, pois se a
população contaminada cresceu progressivamente nas duas cida-
des (Gráfico 4), a estrutura hospitalar apresentou-se insuficiente
para a demanda por tratamento. O resultado disso é que, segundo o
Núcleo de Defensoria Pública do Maranhão39 localizado em Impera-
triz, os 35 óbitos (registrados até o dia 14 de maio de 2020) teriam
ocorridos em situação de falta de leitos.
No final do mês de abril já foi possível observar na cidade de
São Luís, relatos dramáticos de pacientes que passaram o dia em
busca de leitos e que não resistiram a espera. Em Imperatriz-MA,
no dia 13 de maio de 2020, todos os leitos do hospital macrorre-
gional estavam ocupados, o hospital de campanha apresentava
80% dos leitos de UTI ocupados e 45% leitos clínicos ocupados.
Mesmo os particulares estavam em situação crítica: o Santa Mônica
estava com 95% dos leitos clínicos ocupados e sem vagas na UTI,
o hospital da UNIMED também não possuía mais vagas nas UTIs e
possuía, aproximadamente, 69% de ocupação em seus postos de
atendimento.
A velocidade da expansão e desenvolvimento do covid-19 ge-
rou uma situação limite no estado, que apesar das dolorosas baixas,
tem sido combatida pelo governador Flávio Dino que montou uma
verdadeira operação de guerra, com a comprar de equipamentos,
construção de hospitais de campanha em São Luís, em Açailândia e
reforço do hospital Macrorregional em Imperatriz-MA.
Com a expansão assustadora do covid-19 no Maranhão, o go-
vernador Flávio Dino estabeleceu em 21 de março um decreto que

39
 Informação contido na Ação Civil Pública, referente ao processo n. 0806099-
76.2020.8.10.0040.

92
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
de hospitais de campanha em São Luís, em Açailândia e reforço do hospital Macrorregional
em Imperatriz-MA.
Com a expansão assustadora do Covid-19 no Maranhão, o governador Flávio Dino
estabeleceu em 21
defendia de marçode
medidas umsuspensão
decreto que defendia medidas
por 15 dias dede suspensão por
atividades 15 dias de
e servi-
atividades e serviços
ços não não essenciais.
essenciais. Mas, conforme
Mas, conforme o número
o número de óbitos
de óbitos aumentava, os
aumentava,
decretos foram sendoforam
os decretos prorrogados,
sendoaté chegar o Juiz Douglas
prorrogados, de Melo
até chegar Martins
o Juiz e determinar
Douglas de o
MelonaMartins
lockdown ilha de São
e Luís, medida que
determinar entrou em vigor
o lockdown no diade
na ilha 3 de
Sãomaio de 2020.
Luís, medida
que entrou em vigor no dia 3 de maio de 2020.
Gráfico 4 - Casos confirmados nas duas cidades
6000

4000

2000

0
20/mar 30/mar 09/abr 19/abr 29/abr 09/mai 19/mai
-2000

Série1 Série2 Linear (Série1) Linear (Série2)

Fonte: O autor, 2020 Gráfico 4 – Casos confirmados nas duas cidades.


Fonte: O autor, 2020.
Na cidade de Imperatriz-MA observamos um processo similar, pois entre os dias 17
de março e 9 de maio de 2020, uma série de decretos municipais foram sendo realizados pelo
Na cidade de Imperatriz-MA observamos um processo simi-
prefeito Francisco de Assis Andrade Ramos. Contudo vale destacar que a partir do decreto nº
lar, pois entre os dias 17 de março e 9 de maio de 2020, uma série
23 de 21 de março de 2020, a cidade inseriu-se em “estado de calamidade pública em virtude
de decretos municipais foram sendo realizados pelo prefeito Fran-
da situação anormal de propagação e contagio do covid-19. Por meio do documento, ficaram
cisco de Assis Andrade Ramos. Contudo vale destacar que a partir
proibidos o funcionamento dos shoppings a partir de domingo (22/03/2020) por 15 dias,
do decreto nº 23 de 21 de março de 2020, a cidade inseriu-se em
bares, cinemas, eventos e qualquer tipo de serviço que exigisse aglomerações, suspensão das
“estado de calamidade pública em virtude da situação anormal de
atividades não essenciais, capacitação de todos os profissionais de saúde. Embora houvesse
propagação e contagio do covid-19. Por meio do documento, fica-
pressão de alguns empresários e suas associações para o retorno do comércio, ao final de cada
ram proibidos o funcionamento dos shoppings a partir de domingo
(22/03/2020) por 15 dias, bares, cinemas, eventos e qualquer tipo
70
de serviço que exigisse aglomerações, suspensão das atividades
não essenciais, capacitação de todos os profissionais de saúde. Em-
bora houvesse pressão de alguns empresários e suas associações
para o retorno do comércio, ao final de cada prazo dos decretos
municipais, os números do covid-19 aumentavam e justificavam as
prorrogações do decreto.

93
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
Mesmo com essas medidas municipais, parte da população
permaneceu tentando seguir no cotidiano normal- seja por fatores
culturais ou econômicos. Tal fato fez com que a Defensoria Pública
do estado do Maranhão (núcleo de Imperatriz) entrasse com uma
ação civil pública sugerindo o lockdown no município de Impera-
triz-MA, no dia 14 de maio de 2020. Segundo o documento existem
indícios suficientes como a formação de filas de espera que já re-
sultaram na morte de 35 pessoas até 13 de maio de 2020. O docu-
mento (Processo nº 0806099-76.2020.8.10.0040) cita que “apenas
entre os dias 11 e 13 de maio de 2020, em 48 horas, 13 pessoas vie-
ram a óbito pela doença” e cita vários casos de pessoas que morre-
ram aguardando disponibilização de vagas. No entanto, na manhã
dia seguinte (15/05/2020), o prefeito da cidade declarou em suas
redes sociais40, que na próxima segunda feira (18/05/2020) seria
iniciada a abertura do comercio, conforme a Imagem 1 abaixo.
Tal declaração gerou uma resposta do Ministério Público Fede-
ral, por meio do oficio nº 378/2020-GAB/PRM3-AIM que exigia que
a medida de flexibilização fosse tomada após a exposição de uma
fundamentação baseada em critérios científicos que demonstras-
sem a superação da fase de contágio, de acordo com os dados de
contaminação, internações e óbitos. Eles ressaltaram os números
crescentes nos boletins epidemiológicos e requisitaram a presença
do prefeito até as 12 horas do dia 16 de maio de 2020 para a apre-
sentação dos fundamentos médicos e epidemiológicos que funda-
mentam a pretendida flexibilização41.

40
 A declaração repercutiu nos principais jornais do estado. No site do jornal O Im-
parcial, do mesmo dia, o leitor poderia ler a manchete “Prefeito anuncia retomada do
comércio em Imperatriz após Defensoria pedir lockdown”.
41
 A ação da Defensoria Pública gerou uma resposta dos empresários que produziram,
no mesmo dia, uma petição da FAEM – Federação das Associações Empresariais

94
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
Imagem 1 – Declaração do Prefeito de Imperatriz-MA.
Fonte: https://www.instagram.com/prefeitoassisramos/

Apesar do e conflito de interesses entre a flexibilização e o iso-


lamento social, dos números crescentes e dos atores sociais envol-
vidos, observamos que não cessaram notícias sobre o aumento do
número de mortos. Como exemplo podemos citar algumas que for-
necem uma noção da situação: “ Em 24 horas, Maranhão registra 854
novos casos e 24 mortes por covid-19” (G1, Globo, 09/05/2020),
“Novo Coronavírus já chegou em 25 bairros de Imperatriz: Bole-
tim da SEMUS aponta 47 casos positivos e três óbitos” (IMIRANTE,
22/04/2020), “IMPERATRIZ: Casos de coronavírus crescem 51%.
Centro, Bacuri e Nova Imperatriz são os mais atingidos” (Folha do
Bico, 25/04/2020), “Prefeitura realiza reunião com representantes

do Maranhão, cujo representante local foi o professor Hélio Rodrigues Araújo da


Universidade Federal do Maranhão. Para eles, o documento da Defensoria era pautado
em informações desconexas para induzir um juízo inadequado. Segundo eles: “Não há
dúvida de que a situação atual produz sensações de pânico e de temor na população. Esses
sentimentos não podem, no entanto, ser explorados para autorizar medidas repressivas
e abusivas que fragilizem direitos e garantias constitucionais. A resposta esperada do
Estado não deve ser a ampliação de seu arsenal repressivo, mas sim a expansão de sua
capacidade de assistência e de proteção social dos cidadãos, principalmente os mais
vulneráveis”. (PROCESSO Nº 0806099-76.2020.8.10.0040, p.13)

95
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
funerários para orientar sobre manejo de óbitos Cemitério Munici-
pal Bom Jesus já está preparado para demanda seguindo protocolos
de segurança do Ministério da Saúde” (IMPERATRIZ, 29/04/2020).
No dia 14 de maio de 2020, a cidade de Imperatriz apareceu,
no Jornal Nacional (GLOBOPLAY, 2020), como a cidade do interior
para onde o covid-19 tem avançado. A reportagem traz a fala da
secretária de saúde, Mariana Jales, afirmando que o pico da doença
já está em Imperatriz e que é necessário manter o isolamento so-
cial. Falava ainda que cinco pessoas diagnosticadas com coronaví-
rus morreram na última noite, e citava a existência de apenas dois
leitos livres em toda a cidade, naquela data.
Entre março e maio de 2020, as palavras “óbitos”, “mortes”,
“contágio”, “prevenção”, “medo” pareciam compor uma linguagem
comum que ganhou expressão na mudança de comportamen-
to na cidade, e no esvaziamento gradativo das ruas do centro da
cidade. Tratam-se não apenas de verbalizações orais que passa-
ram a compor a comunicação cotidiana nos raros momentos, nos
jornais, televisão e declarações oficiais, mas de emoções e senti-
mentos diretamente vinculados a determinadas práticas sociais e
modos de perceber a urbe. No final de março, o trabalho coletivo
dos órgãos da administração pública, dos meios de comunicação
e das experiências de pessoas sinalizava que as ruas e o espaço
público já não eram mais exclusivos dos cidadãos, mas que havia
a presença de um “inimigo invisível” – forma como passou a ser
nominado por muitos.
Na figura 1, abaixo, produzida na manhã do dia 21 de março
registra minhas primeiras observações de usos de mascaras, em
lugares públicos da cidade. Considerando os escritos de Goffman
(1988) podemos inferir que tal adereço pode ser compreendido

96
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
como uma importante informação social cujo sentido estava pauta-
do em uma representação de medo associado às ruas e locais onde
possam ter pessoas. Tal cenário de medo, pode ser melhor com-
preendido, quando observamos a construção de uma etiqueta pre-
ventiva que passou a exigir uso de mascaras em locais fora de casa,
sinalizando uma relação direta entre as sensações de segurança,
perigo em relação aos lugares público e privado.

Figura 1 – Novos comportamentos urbanos.


Fonte: Pesquisa direta, março 2020.

O medo dos transeuntes e as ações (e orientações) da adminis-


tração pública nos remete a ideia de medicina social, discorrida por
Foucault (2007, p. 87) quando enfatiza que no século XVII existia
“um medo urbano, um medo da cidade e angústia diante da cidade”
que também se relacionava com as epidemias urbanas e os pânicos
vinculados a proliferação de doenças. Tratou-se de uma situação

97
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
em que o saber médico passou a se institucionalizar na França, com
uma preocupação especial sobre a circulação do ar e dos tratamen-
tos da água.
De modo similar, as orientações do saber médico foram difun-
didas em exemplos como o da Imagem 2 que demonstra uma es-
pécie de mapeamento de lugares urbanos em relação ao risco de
contágio. Tais orientações e o medo do contágio sugerem tipos de
comportamentos e lugares que compõem uma nova conduta cons-
truída e defendida a partir dos tempos do covid-19. O medo e o
constrangimento social passaram a compor formas elementos que
representam uma fachada de responsabilidade social, bem como o
ato voluntário de isolar-se em casa. Embora não seja, um problema
especifico desse artigo, é importante refletir sobre os processos de
manutenção das fachadas, pelos processos de evitação (GOFFMAN,
2012) de contatos diretos que simbolizam a construção de uma
nova moral defendida pelos entrevistados.
Por essa lógica, o ato de espirrar em público sem respeitar as
etiquetas de usar máscaras ou levantar o braço tornou-se uma ati-
tude rechaçada e geradora de medo de contágio, e medo da propa-
gação do vírus. O medo e as formas de interagir e se sociabilizar
adquirem uma perspectiva especifica no cenário de pandemia. So-
bre a forma como o medo e as epidemias alteram os comportamen-
tos, Tuan (2005) percebeu, em seu texto “Medo de doença”, que no
apogeu da peste negra a ideia de que a doença era transmitida pela
respiração que contaminava o ar transformava todos, ao mesmo
tempo, em desconfiados e suspeitos. Ele explica que “o medo da
infecção era tanto que os que tinham que andar pelas ruas zigueza-
gueavam, cruzando de um lado para outro a fim de evitar contato
com os outros pedestres” (TUAN,2005, p. 158).

98
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
Imagem 2 – Locais de risco: contágio –covid-19.
Fonte: SUS, 2020.

O medo fazia com que as pessoas abandonassem as cidades


gerando uma paisagem de casas abandonadas e vazias, bem maior
que de vítimas da peste. Decorrente do medo relacionado a preser-
vação da própria vida (Racionalidade biológica) teríamos um medo
social, orientando por uma representação social construída em tor-
no da situação pandêmica, do aumento dos números, das alterações
na rotina e indefinição das coisas. Enfim, a partir dessas primeiras
observações buscaremos compreender que as variáveis medo, luga-
res públicos e interações podem constituir um caminho interessante
para uma sociologia urbana e das emoções, nos tempos pandêmicos.

O medo e as sociabilidades pandêmicas em Imperatriz-MA

Para o clássico da Sociologia, George Simmel, a morte pode ser


avaliada de forma relacional, ou seja, tendo como referência a vida.

99
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
Para ele a vida é orquestrada com a morte em movimentos ascen-
dentes e de “descida” que demonstram aproximação e distancia-
mento entre esses dois estágios do homem. Simmel (1998) explica
que essa relação pode ser facilmente contextualizada na formula-
ção hegeliana de que toda coisa atrai o seu contrário, e explica:

A vida em si atrai a morte enquanto contrário, enquanto o


“outro” em que se transforma em coisa e sem o qual essa coi-
sa não possuiria absolutamente o seu sentido e a sua forma
específica. Consequentemente a vida e a morte se encontram
no mesmo degrau do ser como a tese e antítese (SIMMEL,
1998, p. 180).

Dessa forma, percebe que ao olhar na direção oposta, a morte


parece delinear a vida, atribuindo-lhe formas e conteúdo. Nota que
a adaptação é um recurso necessário para que os organismos se
mantenham vivos, e que a morte significaria justamente o fracasso
dessa adaptação. Essa significação pode ser pensada de forma dire-
ta nesse contexto de “adaptações” cotidianas para se manter seguro
do risco de contágio.
O medo da morte tem orientado pessoas para novas formas
de interações no ato de consumir produtos em supermercados, nas
maneiras de se relacionar com trabalhadores que realizam entre-
gas de produtos e com vizinhos. Grupos de solidariedade surgem
para oferecer cestas básicas para populações carentes, indivíduos
oferecem mascaras aos mais prevaricados. Seguindo um viés Sim-
meliano, Koury (2009) explica que essas situações se constituem
porque, para o clássico da sociologia, os conteúdos possuem base
psicológica e biológica que não são sociais em si. Contudo, elas fun-
cionariam como disposições corpóreas individuais no encontro
com o outro, ou seja, o medo da morte geraria a necessidade de

100
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
proteção, conforto e, portanto, pode ser compreendido como um
fator de sociação.
Seguindo essa orientação, e partindo de uma amostra de 246
indivíduos para a questão “Qual desses sentimentos e emoções você
tem sentido, com maior impacto, quando sai às Ruas ou Avenidas?”
Verificamos que o medo (45%) e angustia (30%) foramàs emoções
preponderantes, representando mais da metade da população ana-
lisada (185), enquanto ¼ se dividiu entre pessoas que afirmavam
não sentir nenhuma (3%) emoção, saudosismo (12%), liberdade
(6%) e mais de uma emoção (4%).
dividiu entre
Parapessoas que afirmavam
o presente nãonos
estudo, sentir nenhuma (3%)
deteremos emoção,
sobre saudosismo
a emoção medo,(12%),
liberdade (6%) e mais de uma emoção (4%).
que segundo Rezende e Coelho (2010) é uma emoção diretamente
Para o presente estudo, nos deteremos sobre a emoção medo, que segundo Rezende e
presente em todos os momentos de mudanças ocorridos na socie-
Coelho (2010) é uma emoção diretamente presente em todos os momentos de mudanças
dade ocidental moderna. Para tanto se valem dos estudos de ELIAS
ocorridos na sociedade ocidental moderna. Para tanto se valem dos estudos de ELIAS (1994)
(1994) para explicar como o medo foi internalizado como uma for-
para explicar como o medo foi internalizado como uma forma de disciplinar uma conduta que
ma de disciplinar uma conduta que fosse considerada correta, so-
fosse considerada correta, socialmente. Como prevenção contra transgressões a
cialmente. Como prevenção contra transgressões a comportamen-
comportamentos aceitáveis, a estrutura social dispunha de determinadas sanções simbólicas
tos aceitáveis, a estrutura social dispunha de determinadas sanções
como ameaças, punições negação que estigmatizavam os indivíduos.
simbólicas como ameaças, punições negação que estigmatizavam
os indivíduos.
Gráfico 5 - Emoções na Pandemia em Imperatriz-MA

OUTROS 61

ANGÚSTIA 74

MEDO 111

0 20 40 60 80 100 120

Fonte: O autor, 2020 5 – Emoções na Pandemia em Imperatriz-MA.


Gráfico
Fonte: O autor, 2020.
Só acrescentaríamos que outra referência importante na relação entre emoções e
morte é o livro Solidão dos Moribundos (ELIAS, 2001) que nota que os ritos e crenças
produzidos sobre a morte possuem um poder101
de socialização, na medida em que afastam ou
unem pessoas. EsseC Eautor
N ÁRI OSexplica
DE M E DO como
E AS SOCaIABIL
segurança
IDADE S PANeD ÊMICAS
os conhecimentos
NO MA R A NHÃ O médico resultaram

em um tipo de relação com a morte marcada pelo distanciamento e esquecimento, após a


Só acrescentaríamos que outra referência importante na rela-
ção entre emoções e morte é o livro Solidão dos Moribundos (ELIAS,
2001) que nota que os ritos e crenças produzidos sobre a morte
possuem um poder de socialização, na medida em que afastam ou
unem pessoas. Esse autor explica como a segurança e os conhe-
cimentos médico resultaram em um tipo de relação com a morte
marcada pelo distanciamento e esquecimento, após a formação dos
estados nação. Assim, ele enfatiza que a relação com a morte de-
penderia da expectativa de vida de cada sociedade, uma vez que tal
variável pode significar afastamento ou presença maior com a ideia
de ruptura da vida. Quando analisa a relação indivíduo – sociedade,
demonstra que nas épocas antigas morrer era uma atitude muito
mais pública que nos dias atuais.
Nesse âmbito é que ressalta o aspecto de negação e exclusão
social da morte, em relação aos jovens que parecem ser preserva-
dos do tema, e também, em relação aos moribundos. Tal fato estaria
relacionado ao alto grau de individualização e ao fato da lembran-
ça da morte “do outro” ser a lembrança de nossa própria morte.
Uma morte que religiosamente pode ser associada a uma mitologia
da punição divina que exclui os pecadores da eternidade, ou uma
morte que é inconcebível para os mais jovens nos tempos de tantos
avanços científicos.
A solidão dos moribundos resulta desse processo de exclusão
e embaraço diante da morte do outro, ou seja, trata dos componen-
tes emocionais relacionados a morte e suas representações sociais.
Elias (2001) explicar que a ela pode ser compreendida, também,
como a diminuição dos laços sociais ao longo da velhice, ou seja,
não se limitaria ao ato de morrer, mas seria um processo gradati-
vo que desemboca com um processo extremamente solitário que
reflete muito aspectos da sociedade contemporânea. Como por

102
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
exemplo, cita a invisibilização dos idosos e vulneráveis que pos-
suem uma situação mais próxima da morte. Nessa linha de pensar
as representações sociais entende-se que,

A morte, como conceito e expressão, encontra-se interdita


na sociedade ocidental contemporânea. O modo de vida
atual impede a vivência da morte sob um discurso de juven-
tude eterna e dominação da natureza; a morte acontece e
é entendida como uma forma de fracasso tecnológico.
Como não pode ainda ser evitada, é aventada como a morte
do outro e, como tal, as formas rituais e as expressões de dor
são minimizadas e tratadas de modo higiênico. Estudos so-
bre o Brasil urbano do final do século passado constatou
as formas interditas no trato da morte e do luto, o des-
conforto advindo, a diminuição e o esfacelamento das
relações sociais, ampliando a esfera da solidão do homem
comum (KOURY, 2004, p. 130)

A ideia de fracasso tecnológico, de fracasso frente às normas


civilizatórias (ELIAS,1994) ou de fracasso adaptativos (SIMMEL,
1988) rondam o imaginário social em torno da emoção medo nos
processos de mudanças, em suas diferentes escalas. A juventude
eterna, a dominação da natureza e a luta contra a morte ancora-
das nas bases da racionalidade urbana parecem ter sido colocadas
a prova, como um importante elemento de reflexão sobre a vida e a
morte, nesses contextos pandêmicos.
Como delineado na hipótese desse estudo, essas emoções de-
vem ser compreendidas dentro do contexto explicado no tópico an-
terior, pois, os sentimentos de medo e angustia foram relacionados,
tanto a questões individuais de autopreservação medo de ser con-
tagiado pelo vírus e morrer, quanto pelo risco de perder pessoas
amadas, de não poder abraçar ou tocar pessoas, pelo risco da irres-
ponsabilidade dos outros que não respeitam o isolamento social ou
pelos vazios da cidade.

103
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
As duas emoções demonstram aspectos de solidariedade e de
sofrimento social (KOURY, 2007) já exigem outras formas de relação
com o outro, no sentido de superação dos medos; e sinaliza um qua-
dro de rebaixamento e limitação da liberdade para interagir social-
mente em determinados espaços, ou às vezes um contexto de preca-
rização da vida que impede o isolamento nos bairros e lugares mais
frágeis e desestruturados. Para esse autor, o sofrimento social se ma-
nifesta em situações de injustiça, imersos em contextos de violência
simbólica e de humilhação das populações que sofrem. Trata-se de
um sofrimento relacionado a organização da vida, a estratégias de
afastamento e hierarquização de posições e normas, sustentadas em
processos de medo construídos para preservar determinados status.
Quando observamos, de modo geral, os efeitos sociais da pan-
demia sobre a população local é possível inferir que mesmo que
ocorra uma narrativa de homogeneidade de “todos” contra o vírus,
ou um negacionismo há um processo de invisibilização das desi-
gualdades estruturais que não é citado na explicação do avanço dos
números. Por exemplo, o fato dos maiores números em Imperatriz
se concentrarem no centro da cidade, e de bairros como Coroadi-
nho, Anjo da guarda Cidade Operaria e Bairro de Fátima serem os
que oferecem mais dificuldade ao isolamento social, em São Luís,
não pode ser dissociado das características sociais das populações
que lá habitam, nem da oferta de serviços públicos e de manifesta-
ções de cidadania em tais locais. É importante considerar o desem-
prego, e as características deles – as casas geminadas e sem venti-
lação tornam, em muitos desses lugares, a rua como uma extensão
necessária da casa: portas e janelas abertas para rua como fonte
de luz e ventilação. Mesmo que não tenhamos condições (agora)
de nos aprofundarmos sobre as condições sociais do isolamento, é

104
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
importante enfatizar que, o conceito de Sofrimento social (KOURY,
2007) nos possibilita refletir sobre o papel das emoções, nesse ce-
nário de invisibilização da violência simbólica (BOURDIEU, 1989)
que é alimentanda pelos próprios excluídos da cidadania.
Quando analisamos as justificativas das 111 respostas (Gráfico
6) que apontavam o medo como principal emoção relacionada ao
ato de sair para a rua, nesse contexto pandêmico, verificamos que
71% das justificativas giram em torno do medo de contágio: seja
de contrair e transmitir o vírus para outras pessoas. 8,1% também
possuem medo de contágio e ao mesmo tempo preocupação pela
falta de cuidados das pessoas que não respeitam as normas de pro-
teção. Outros 8,1% temem pela demora e velocidade da pandemia
e 4,1% afirmaram o medo de contágio e da situação financeira para
manutenção da própria vida.
Gráfico 6 - situações vinculadas ao medo

Contágio e situação finânceira


5
Agravemento e demora do
9
covid
9
Contágio e falta de cuidados
79

Medo de contágio

0 20 40 60 80 100

Gráfico 6 – Situações vinculadas ao medo.


Fonte: O Autor, 2020 Fonte: O Autor, 2020.
Considerando esse contexto de crescimento das mortes, de mudança e sofrimento
social, discorreremos sobre algumas
Considerando justificativas
esse contexto dadas para os das
de crescimento sentimentos
mortes, dedemedo e
angústiamudança e sofrimento
(mais expressivos social,Para
nas respostas). discorreremos sobre algumas
justificar tais sentimentos, no atojusti-
de sair para
ficativas
a rua, eles dadas para os sentimentos de medo e angústia (mais ex-
explicaram:
pressivos nas por
Angústia respostas). Para
perceber nas justificar
Ruas tais sentimentos,
ou Avenidas no ato
que as pessoas estão de sem
à deriva,
sair para a rua, pública
assistência eles explicaram:
e possibilidade de vida digna diante de um desgoverno que
minimiza a situação e os empurra à morte. Digo a eles, porque tenho condições de
manter cuidados e quarentena, mas 105 as pessoas que vejo nas Ruas ou Avenidas,
muitas vezes
C E N ÁRI não
OS DEtem.
M E DO(Informante M - Angústia)
E AS SOC IABIL IDADE 76
S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O

Sinto um misto de preocupação com uma certa raiva de quem não respeita as medidas
Angústia por perceber nas Ruas ou Avenidas que as pes-
soas estão à deriva, sem assistência pública e possibilidade
de vida digna diante de um desgoverno que minimiza a si-
tuação e os empurra à morte. Digo a eles, porque tenho con-
dições de manter cuidados e quarentena, mas as pessoas
que vejo nas Ruas ou Avenidas, muitas vezes não tem. (In-
formante M – Angústia)42
Sinto um misto de preocupação com uma certa raiva de quem
não respeita as medidas sanitárias, como o uso de máscara e
a distância. (Informante N)

Mesmo que o primeiro e o penúltimo informante apresentem


conteúdos mais psicobiológicos, representando uma certa parcela
do total, as outras justificativas sinalizam o sentido para processos
interativos, pois não são auto focadas no próprio informante e sina-
lizam um sentimento de solidariedade voltado para o “outro”. Sobre
esse processo que implica na relação entre emoções, indivíduo e
sociedade Le Breton (2019) explica que:

As emoções que nos acometem e a maneira como elas reper-


cutem sobre nós têm origem em normas coletivas implícitas,
ou, no mais das vezes têm orientações de comportamento
que cada um exprime de acordo com seu estilo, de acor-
do com a sua apropriação pessoal da cultura e dos va-
lores circundantes. São formas organizadas de existência,
identificáveis no seio de um mesmo grupo, porque elas
provêm de uma simbólica social, embora elas se traduzam
de acordo com as circunstâncias e com as singularidades
individuais (LE BRETON, 2019, p.145)

Assim, tanto as emoções quanto as falas dos informantes de-


vem ser compreendidas dentro do contexto sociocultural com o qual

42
 Por opção própria, todos os informantes preferiram não se identificar

106
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
eles constituíram o próprio habitus (BOURDIEU, 1989) emocional.
Para ele, as emoções não possuem proveniência totalmente indivi-
dual, mas se constitui também por meio de um aprendizado social
e na identificação com o outro. Esses dois aspectos estruturados
e estruturantes é que alimentariam e orientariam os sujeitos nos
processos sociais. Buscando uma aproximação com Simmel (2006)
ela estaria presente como conteúdo, motivando os indivíduos, mas
também como forma autônoma, pois, determinadas emoções são
valorizadas em certos grupos e possuem, também, uma função de
caracterizá-los.
Já a segunda justificativa deve ser contextualizada com algu-
mas características sociais da informante M, que é graduada em
jornalismo social, possui entre 20 e 30 anos e reside no bairro do
Bacuri. Ela gosta de bares e festivais onde é possível se distrair e
dialogar com os amigos. Com a pandemia teve que deixar de fre-
quentar a casa de amigos e parentes, e tem saído de casa a cada
quinze dias, por medida de segurança. Costuma participar de mo-
bilizações de reivindicação de direitos sociais e agiu ativamente em
trabalhos coletivos de conscientização da opinião pública a respei-
to dos perigos do covid-19 e a importância do isolamento social.
O que chama atenção é que a trajetória de vida dela, próxima a
uma militância de esquerda simboliza o ambiente ideal para o de-
senvolvimento da emoção indignação. Como notou Castells (2013)
a indignação e a esperança são sentimentos presentes dentro dos
movimentos sociais. Constituídas como valores circundantes tais
emoções possuem um aspecto que auxiliam na autonomia da for-
ma, pois independente das posições pessoais ou necessidades dos
militantes, o ato indignar-se com as injustiças é uma espécie de
princípio – bastante presente na justificativa dada.

107
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
A informante N é professora de História e também possui boa
inserção nas mobilizações de direitos e atividades de conscientiza-
ção cidadão. Ela tem 40 anos e reside no bairro do Bacuri. Ela disse
que costuma lembrar-se de encontros em calçadas da casa de ami-
gos, onde conversa, bebia, dançava e preparava jantares. Gostava de
frequentar bares, nas horas vagas, porque os considera um lugar de
sociabilidade onde é possível encontrar os amigos e amigas, e com-
partilhar a cultura musical da cidade. Contudo com a pandemia, ela
sai de casa 1 vez por mês, deixando de frequentar casa de pessoas
amadas. Possui características sociais similares as da informante M
e transitam pelos mesmos lugares sociais.
O respeito às máscaras e a distância utilizada durante os traje-
tos nas ruas são os elementos que marcam uma nova forma “civili-
zatória” de ocupar o espaço público. A distância e o medo marcam
uma parte dessa narrativa sobre a pandemia, no entanto ocorrem
também os processos de formações sociais em prol da solidarieda-
de e outras formas de organização.
Durante a pandemia no estado, o governo comprou 300 mil,
o mascaras feitas por costureiras da ilha de São Luís e da região
onde se localiza Imperatriz-MA (GOV-MA, 2020), Associação dos
Professores da Universidade Federal do Maranhão (APRUMA) fez
a doação de 100 protetores faciais para os profissionais da saúde
da Secretária Municipal de Saúde de Imperatriz-MA. Em uma pers-
pectiva Simmeliana (2006) poderíamos dizer que os impulsos re-
ligiosos, e toda uma perspectiva de solidariedade ramificada em
alguns espaços sociais funcionam como uma espécie de elemento
mediador das relações reforça a identidade das associações e re-
forçam as interações internas que garantem as formas. Mesmo nas
escalas mais individuais (psicossociais e biológicas) as emoções se

108
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
desenvolvem não apenas por conta dos atributos do ator social,
mas também na identificação com o outro. Nessa perspectiva vale
observar o seguinte relato:

Sinto medo por estar vulnerável a uma doença desconhecida


que pode levar a morte. E também sinto angústia, pois não
sabemos até quando, viveremos nessa.
Nesse período minha mãe começou a fazer umas mas-
caras aqui em casa. A gente não estava encontrando, no
começo então ela fazia em casa. Minha mãe já é idosa então
eu saio para resolver as coisas de casa. O percurso que eu
faço tem muitas “flanelinhas” e eu notei, numa dessas vezes
que eu fui, essas pessoas que não tem um lar, havia alguns
venezuelanos lá também. Quando eu passei, vi que essas
pessoas estavam desprotegidas e isso me deu uma an-
gústia de ver que aquelas pessoas estavam tão expostas
a um vírus que mata. Eu me lembrei das máscaras sobrando
em casa, então fui pegá-las e as entreguei em uma sacolinha
para eles. Eu acho que a gente tem que ser humana o tempo
inteiro. (PML)

Para nossa informante o medo também é um ponto marcante


nesse contexto, mas apesar disso houve uma angústia que fez com
que ela não fosse indiferente a condição frágil do outro. Por mais
que não possa ser considerado um fator de sociação, já que seria
necessário gerar muito mais identidade e formas que ultrapassas-
sem a esfera das necessidades individuais, se tem na situação um
princípio importante de observação da construção das formas. Para
explicar melhor o processo é importante considerar que:

A forma social caracteriza um método mensurador pelo qual


Georg Simmel mapeia os processos de formação de agru-
pamentos humanos. Trata-se de um processo de abstração
com o qual é possível delinear e decompor os agrupamentos

109
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
buscando explicar seus processos de formação (PEREIRA,
2012, p. 156).

Essas “formas” necessitam de determinados conteúdos que são


os impulsos que engendram os indivíduos no processo de integra-
ção. Nesse sentido, no período pandêmico, as emoções de angústia
pela dor do outro, medo e tantas outras funcionaram como moti-
vadores que aproximam pessoas em torno de interesses comuns
– estimulam entidades coletivas e indivíduos sobre outros indiví-
duos. Quando isso reforça um tipo de unidade, coesão, colaboração
e cooperação adquirindo um status mais coletivo em detrimento
dos primeiros conteúdos, daí tem-se os processos de sociabilidade
– quando as formas iniciam processos de autonomia que garantem
suas permanências.
Considerando essa relação entre conteúdo e forma, ou forma
e conteúdo, é importante pensar o aspecto emocional enquanto re-
produção social nesses dois campos. Por isso a importância do co-
nhecimento sobre os atores sociais em seus contextos de produção
social das emoções. Nesse viés é necessário destacar que a pessoa
de nosso último relato possui fortes sinais de engajamento em ins-
tituições e posições que defendem a solidariedade com o próximo:
expressado em frases bíblicas compartilhadas em seus perfis, na
prática do Santo Rosário católico, mais conhecida como a reza do
terço; e demonstrado, também, na preferência política por parti-
dos que defendem a distribuição de renda e luta contra a desigual-
dade. Determinadas formas expressadas nos movimentos sociais,
nas igrejas, sindicatos e outras, também se manifestam por meio de
seus indivíduos no sentido de ampliar e reforçar a reprodução das
instituições. Favorecendo processos de sociabilidade que não estão
apartados das emoções que mobilizam esses coletivos.

110
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
Refletindo sobre as restrições e as novas condutas, no contex-
to da pandemia, é importante ressaltar que, de modo geral, emo-
ções coletivas e outras associadas as manifestações culturais do
estado também sofreram impacto. Já que as cidades de São Luís
e Imperatriz possuem um São João marcado pela apresentação
de bois e quadrilhas juninas – festas populares que remetem ao
sentimento de alegria e pertencimento as comunidades locais.
A reportagem “Vai ter São João no Maranhão? Surtos de Corona-
vírus e H1N1 colocam em xeque a maior festa popular do Esta-
do do Maranhão” (IMPARCIAL, 23/04/2020) já demonstra uma
preocupação coletiva já no início da Pandemia- no mês de março,
observamos o seguinte trecho:

Adeus! Até para o ano, quando eu aqui voltar”. O trecho de No-


vilho Brasileiro, toada mais famosa do Maranhão e mais co-
nhecida como “Urrou do Boi”, sempre deu significado para o
término dos períodos juninos, já projetando os próximos.
A letra de Bartolomeu dos Santos, “o Coxinho”, dava a esperan-
ça aos saudosos pelo som inconfundível dos grupos de bum-
ba-meu-boi de que, ao fim de 365 dias, toda a alegria colorida
do período junino estaria de volta (O IMPARCIAL, 2020).

O trecho expõe toda uma cultura emocional em torno da rea-


lização do boi, e como o covid-19 pode ser pensado de modo sime-
tricamente oposto aos sentimentos sinestésicos que envolvem as
cores da indumentária dos brincantes populares e a ruptura de um
ciclo de festas que seria realizado em junho de 2020. Em Impera-
triz-MA, a situação é similar, segundo o pesquisador Antônio Mar-
cos Dias o “Boi bem Querer” e “Boi Vitória” já estavam ensaiando,
produzindo suas coreografias, confeccionando suas fantasias para
as apresentações em festivais como o Arraiá da Mira e Arraiá no

111
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
nosso Sítio, maiores festivais do ramo do Sul do Maranhão e Norte
do Estado do Tocantins respectivamente. Contudo, os componentes
dos grupos relatam a saudade que sentem, em estar dançando, e o
contato com os colegas de grupos.
Sobre o Tambor de Mina que também é uma representação
forte da cultura popular, a antropóloga Maria do Socorro Rodrigues
de Souza Aires, que pesquisa o tambor de Mina, há 16 anos, expli-
cou que o Terreiro Fé em Deus (Localizado no bairro do Sacavém
– São Luís) teve que suspender atividade tradicional de aniversário
da entidade espiritual da casa.
Sobre esses impactos na cidade de Imperatriz-MA, a pesquisa-
dora de iniciação cientifica do Laboratório de Estudos e Pesquisas
sobre Cidades e Imagens (LAEPCI), Larissa Aryane Lima Araújo ob-
servou que por conta do contexto pandêmico, o pai de Santo Deus-
dete afastou-se do terreiro “Tenda Espírita de São Jeronimo” para
ficar isolado em segurança na “roça”. Isso gerou o cancelamento do
aniversário do terreiro prevista para o mês de maio. Segundo a pes-
quisadora, Deusdete, ao observar o número de casos aumentando
na cidade, afirmou que muitas pessoas estão buscando as cháca-
ras no interior das cidades para se manterem saudáveis e seguros.
Como uma maneira de tentar manter a forma social dos terreiros,
verificamos com Araújo (2020) que:

Diversos outros terreiros na região do grande Santa Rita tam-


bém se encontram com atividades paradas, como é o caso da
Tenda Espírita de Nossa Senhora de Santana, do Pai de San-
to Rafael. Na Tenda Espírita Oxum Obaluaê, em um dos dias
de comemorações foi realizada uma transmissão ao vivo via
rede social, para que a festividade não deixasse de ser cele-
brada, pois como relataram alguns membros, a data é impor-
tante e está muito ligada a fé dos adeptos. (ARAUJO, Larissa
Aryane Lima, depoimento coletado em 13 de maio de 2020).

112
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
Considerando que os terreiros e “tendas” de religião afro re-
presentam parte importante da cultura popular, esses casos de-
monstram como a pandemia alterou as formas de organização das
religiões de matriz africana no estado: exigindo a suspensão das
reuniões ou a transmissão online das manifestações. Compreende-
mos que isso alterou substancialmente as formas e gerou um tipo
de sociabilidade diferenciada daquelas gestadas nas referidas for-
mas sociais (SIMMEL, 2006), em contextos anteriores a pandemia.
A precarização e as características dos brincantes, cuja maioria teve
que deixar de trabalhar, traz um sofrimento social (KOURY, 2007)
que toca nas emoções relacionadas a impossibilidade das aglome-
rações para ensaios, e ao mesmo tempo, sobre as próprias condi-
ções materiais de existência.
Nesse sentido, buscamos discorrer que as formas e as inte-
rações, nas mais diferentes escalas, são orientadas por emoções.
O medo do contágio em massa gerou uma política de isolamento so-
cial, os indivíduos reagiram a isso de acordo com seus repertórios
emocionais construídos em seus próprios contextos socioculturais
de origem, e as emoções que expressam o caráter coletivo das for-
mas e possuem papel fundamental na análise focada na relação en-
tre sentimentos e sociabilidades.
O medo e o isolamento social limitaram o a experiência das
“sociabilidades seguras” aos contatos visuais nas distancias das ja-
nelas dos apartamentos, ou nas distancias das ruas. A experiência
de festejar na cidade, de caminhar na cidade de sentar na rua em-
bora seja praticada ainda por pessoas que burlam as medidas de
proteção, são hoje associadas ao medo do contágio e exige de os
indivíduos repensarem as próprias relações sociais antes de qual-
quer risco. Mesmo que solidarias, motivadas pela identificação com
o outro, o medo tem caminhado lado a lado com as outras emoções.

113
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
Como verificado antes, as justificativas do medo se ramifi-
cam para outro conjunto de emoções gerando combinações como
“medo do contágio e preocupação financeira”, “medo do contágio
e a irresponsabilidade daqueles que não se cuidam e colocam os
outros em risco”, “medo do contágio e o agravamento da situação
ao longo do tempo”. Fazendo-nos inferir que o medo pode ser a ma-
triz estruturante de todas as ações e sentimentos vividos durante o
contexto pandêmico no Maranhão. O sentimento de medo quebrou
a reta que poderia aproximar as interações, as colocando no zigue-
zague comentado por Tuan (2005) quando falava das estratégias
para evitar aproximação entre as pessoas. Os espaços públicos, as
academias, igrejas, os manicômios e prisões já não são os cenários
clássicos, e, portanto, as sociabilidades e interações necessitam de
análises pormenorizadas nesse novo contexto pandêmico, ao qual
adentramos cada vez mais.

Figura 3 – Isolamento social a solidão e o medo.


Fonte: Pesquisa direta, março 2020.

Conclusão

O caminho mais rápido que poderia aproximar pessoas em


uma rua é uma reta. No contexto do covid-19, a única reta de

114
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
comunicação segura é a do fluxo de informações que correm entre
cabos de fibra ótica e as ondas que alimentam a comunicação re-
mota pela rede mundial de computadores. Por ironia do destino, é
muito provável que nunca estivemos tão conectados com o mundo
e desconectados com as nossas ruas e praças. Ao espaço público
restou o medo, a evitação de pessoas e a distância, e no lar, espaço
privado, o sentimento de insegurança e solidão, a imaginação e a
lembrança das ruas.
A pandemia trouxe uma onda de medo influenciado as sociabi-
lidades para seguirem as orientações dos sentimentos de medo e da
sensação de segurança. Contudo, em espaços e cenários que já não
são prioritariamente a rua, a praça, a academia de ginástica, igreja,
universidade ou qualquer outro lugar, considerando que o cenário
e a situação são elementos importantíssimos, principalmente para
as análises interacionistas. O medo da morte gerou uma nova confi-
guração dos cenários de sociabilidade, e consequentemente outras
normas e condutas ajustadas com compreensões que hierarquizam
lugares em relação ao nível de segurança.
O medo da morte é um conteúdo estruturado sobre aspectos
biológicos e psicossociais que impulsionou os indivíduos para o
afastamento ou para a aproximação, seguindo alguns sentidos dos
condicionantes culturais e sociais nos quais estavam inscritos. Há
assim, uma relação entre indivíduo e sociedade, no âmbito emocio-
nal que é presente na forma como os entrevistados narravam suas
ações e emoções: ora trazendo referências de instituições e asso-
ciações pelas quais transitaram, ora tentando agregar socialmente
com outros em situação de vulnerabilidade, ora interagindo com
outros que compartilham da mesma mentalidade solidaria.
Por outro lado, o cenário pandêmico e as sociabilidades orienta-
das pela hierarquia dos lugares seguros, e pelo medo do contágio, no

115
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sentido mais amplo, geraram um sofrimento e angústia nos indiví-
duos e nas formas coletivas que se manifestam na cultura popular,
nas associações, estado e outras. Influenciou, também, na constru-
ção de um tipo de sociabilidade diferenciada fortemente caracteri-
zada no contexto do covid-19, uma sociabilidade pandêmica, pois
não é plena na utilização de todos os sentidos humanos, uma so-
ciabilidade fortemente visual com cheiro de álcool e textura de gel.
A aproximação física, no espaço e tempo, é uma variável fun-
damental na construção de unidades formais. Ela é que garante o
aprendizado das “formas de estar com o outro e ser para o outro”, e
estar na base das principais instituições sociais. O medo da morte
tem agido diretamente sobre as formas de aproximação presencial,
mas por outro lado ainda é um recurso utilizado pelas estruturas
sociais para o disciplinamento de condutas em tempos de mudan-
ça, portanto cabe pontuar que se trata de uma emoção que é indi-
vidual pontuada nas experiências vividas, e também coletiva como
assume essa maneira coletiva instrumentalizada pelas instituições,
assim como as demais emoções.
Enfim, longe de exaurir o debate sobre a relação entre o medo
e as sociabilidades, o presente artigo buscou apontar alguns aspec-
tos e problematizar, de forma breve e parcial, o cenário pandêmico
no Maranhão.

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ja-chegou-em-25-bairros-de-imperatriz.shtml

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crescem-51-centro-bacuri-e-nova-imperatriz-sao-os-mais-atingidos/

VOLTA AO SUMÁRIO

119
C E N ÁRI OS DE M E DO E AS SOC IABIL IDADE S PAN D ÊMICAS NO MA R A NHÃ O
CAPÍTULO 5

PANDEMIA E AFETAÇÕES DAS


EMOÇÕES: REFLEXÕES SOBRE
A REALIDADE DA COVID-19 NO
ESTADO DO AMAPÁ

Selma Gomes da Silva

Introdução

Percorrer a cidade de Macapá no domingo à tarde do primeiro


final de semana após a publicação dos decretos municipal n. 1692,
de 18 de março de 2020, e estadual n. 1.413, de 19 de março de
2020, que declararam situação de emergência no estado do Ama-
pá e definiram outras medidas para o enfrentamento da pandemia
decorrente da contaminação com o novo coronavírus, vários pen-
samentos surgiram diante do cenário da cidade deserta, silenciosa,
sem a dinâmica social usual do vai e vem de pessoas, com a qual
estávamos habituados.
Naquele final de tarde de domingo, a cidade estava recoberta
com um manto de emoções e sentimentos que envolviam: espan-
to, medo, tristeza, perplexidade e muitas incertezas. Sem falar do
silêncio devido à reclusão social decretada que pairava sobre as
ruas e avenidas. Talvez, não acreditar no cenário diante dos nossos

120
próprios olhos seria a melhor opção, devido o sentimento de incre-
dulidade e de negação frente à ameaça da presença do novo corona-
vírus em Macapá, porém, estávamos cientes que aquele momento
prenunciava uma inevitável mudança de realidade, não somente
local, mas também global.
As imagens da cidade vazia, silenciosa, quieta, sem o movi-
mento costumeiro, típico das tardes de domingo, nos induziam a
imaginar por quanto tempo permaneceríamos em quarentena, pois
já havia o entendimento de que não seria uma situação fácil e pas-
sageira. Já podíamos antever a possibilidade de um caos na saúde
pública no Estado, das inevitáveis mortes, do sofrimento e da dor.
Os primeiros casos de pessoas com sintomas semelhantes ao
quadro clínico da suspeita de infecção com o coronavírus começa-
vam a surgir, e com este o pavor e o medo da população diante da
nova e desconhecida enfermidade, a covid-19. Os primeiros sen-
timentos revelados pelos habitantes de Macapá foram o medo do
contágio, a angústia e a tristeza em relação ao vírus que já se mani-
festava em outros estados brasileiros, principalmente em São Paulo
e Rio de Janeiro, onde já havia casos comprovados. As pessoas tam-
bém manifestavam surpresa e pânico de algo completamente novo,
atípico e diferente, que ameaçava assinalar uma profunda mudança
na vida de todos.
Os primeiros casos de covid-19, doença causada pelo vírus
SARS-CoV-2, surgiram no final de 2019, em Wuhan, cidade com
11 milhões de habitantes, capital da província de Hubei, na China. Em
pouco tempo espalhou-se por diversos países, sendo considerada
uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No dia 23
de janeiro de 2020 foi decretada a quarentena de Wuhan, no entanto,
a doença não ficou restrita àquela localidade e espalhou-se, inicial-
mente, pela China, em seguida, Ásia e, assim, para outros países.

121
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
Em relação à situação epidemiológica no mundo, até 27 de ja-
neiro de 2020, segundo boletins da OMS (2020), foram confirma-
dos 2.798 casos de pessoas contaminadas. Destes, 2.761 (98,7%)
foram notificados pela China, incluindo as regiões administrativas
especiais de Hong Kong (oito casos confirmados), Macau (cinco
casos confirmados) e Taipei (quatro casos confirmados). Fora do
território Chinês foi confirmado 37 casos (BRASIL/MS, 2020, p. 1).
A OMS declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da
doença causada pelo novo coronavírus constituía uma emergência
de saúde pública de importância internacional – o mais alto nível
de alerta da OMS, conforme previsto no Regulamento Sanitário In-
ternacional. Em 11 de março de 2020, a covid-19 foi caracterizada
pela OMS como uma pandemia (BRASIL, OPAS, 2020, p. 01). Nes-
sa data, já havia mais de 118 mil casos da doença registrados em
mais de 100 países e 4.291 mortes (BRASIL/MS, 2020). A covid-19
espalhou-se rapidamente pelo planeta, atingindo os países da Ásia,
Oriente Médio, Europa, e, inicialmente, a Itália e depois a Espanha-
que padeceram pelo alto índice de mortes.
No Brasil, as primeiras ações ligadas à pandemia do covid-19
começaram em fevereiro, com a repatriação dos brasileiros que
viviam em Wuhan, cidade chinesa epicentro da infecção. Quando a
China divulgou a incidência do vírus em Wuhan, o governo brasilei-
ro repatriou, diante de pressões sociais e políticas, no dia 09 de fe-
vereiro, trinta e quatro brasileiros que vivam na cidade chinesa de
Wuhan, epicentro do Novo Coronavírus. Duas aeronaves da Força
Aérea Brasileira aterrissaram no Brasil com o grupo. Eles ficaram
de quarentena por 14 dias na Base Aérea de Anápolis, em Goiás.
Após a quarentena foram testados e todos acusaram negativo para
a covid-19.

122
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
No dia 20 de fevereiro, Ministério da Saúde (MS) monitorava
apenas dois casos suspeitos de infecção pelo novo coronavírus no
Brasil. A suspeita de sua presença no Rio Grande do Sul foi descar-
tada; apenas um de São Paulo erainvestigado. No dia 26 de feverei-
ro foi confirmado o primeiro caso de covid-19 no Brasil. O paciente
era um homem de 61 anos que havia viajado à Itália, e dera entrada
no Hospital Albert Einstein no dia anterior.
No dia 28 de fevereiro, o Ministério da Saúde lançou campanha
publicitária de prevenção ao novo coronavírus, transmitida em TV
aberta, rádio e internet, orientando a população a prevenir-se da
covid-19, adotando hábitos como lavar as mãos com água e sabão,
usar álcool em gel a 70% e não compartilhar objetos pessoais. No
dia 29 de fevereiro, o Brasil confirmou o segundo caso importado
de covid-19. O paciente eraum homem de 32 anos, residente em
São Paulo, atendido no Hospital Israelita Albert Einstein, na vés-
pera, depois de chegar da região da Lombardia, na Itália. Em 02
de março, dados registrados pelo MS indicavam a confirmação de
doiscasos de contaminação pelo novo coronavírus e o monitora-
mento de 433 casos suspeitos.
A partir desse momento, o número de casos suspeitos, confir-
mados e mortes de pessoas infectadas pelo novo coronavírus foram
crescendo diariamente, primeiro em São Paulo e Rio de Janeiro e,
posteriormente, em outros estados brasileiros.Boletins epidemio-
lógicos do MS informavam a evolução diária da pandemia da co-
vid-19 no Brasil. Hoje, 15 de maio de 2020, os dados na Platafor-
ma Coronavírus do MS constam de: 218.223 casos confirmados e
14.817 registros de mortos (BRASIL/MS, 2020).

123
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
Um destaque para a região Norte do Brasil

A região Norte, em 15 de maio/2020, segundo oPainel do MS,


aparece, na Tabela 1, com os seguintes registros:

Tabela 1 – Distribuição de casos de covid-19 na região Norte.

Casos Incidência/ Mortalidade/


Estados Óbitos
confirmados 100 hab. 100 hab.
Amazonas 18.392 1.331 443.8 32.1
Pará 12.109 1.145 140.8 13.3
Amapá 3.630 103 429.2 12.2
Acre 1.785 57 202.4 6.5
Rondônia 1.789 62 100.7 3.5
Roraima 1.589 40 262.3 6.6
Tocantins 1.279 27 81.3 1,7

Fonte: Painel do Ministério da Saúde (MS), em 15. 5.2020.

Os estados do Amazonas, Pará e Amapá sobressaem porque


apresentam maior número de casos de covid-19 confirmados.
O Amazonas tem 18.392, o Pará 12.109 e o Amapá têm 3.630 ca-
sos confirmados. O índice de incidência de 429,2 por 100 mil ha-
bitantes docomo o segundo mais elevado da região Norte, supe-
rior ao do Pará.
Devido ao elevado número de covid-19 no estado do Amazo-
nas e a insuficiência de aparelhamento na saúde para o enfrenta-
mento da pandemia, em 03 de maio, o Ministro da Saúde, Nelson
Teich, visitou Manaus e se reuniu com o governador do estado,
Wilson Lima, e outras autoridades locais. O sistema de saúde em
Manaus encontrava-se em colapso por causa da falta de mão de
obra e leitos. Na ocasião, o estado recebeu 267 profissionais de
saúde – entre médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem,

124
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
fisioterapeutas, farmacêuticos e biomédicos. Naquela mesma data,
o estado do Pará decretou lockdown por causa do novo coronavírus.
Imagens impactantes (Imagens 01 e 02) divulgadas em redes
nacionais e internacionais revelavam a realidade em Manaus relati-
va ao número de mortes e condições de sepultamento dos mortos.
As pessoas mortas por covid-19 eramsepultadas em valas coletivas,
em Manaus, e seus familiares não tinham o direito de realizar os
ritos fúnebres e de velar seus mortos, devido ao alto risco de contá-
gio do vírus. As pessoas mortaseramdispensadas por poucas horas
para que seus familiares fizessemas últimas preces e se despedis-
sem sem a permissão de ver suas faces pela última vez. Restavam as
lágrimas, a dore as memórias de seus entes queridos.
O elevado número de mortes também colapsou o sistema fune-
rário em Manaus. Imagens chocantes de cemitério em Manaus, com
dezenas de covas e valas coletivas, foram veiculadas nos diversos
meios de comunicação (Imagens 01 e 02).

Imagem 01 – Vista aérea do Imagem 02 – Enterro coletivo


sepultamento em massa de vítimas de vítimas de covid-19 realizado
de covid-19 no cemitério do no cemitério de Nossa Senhora
Parque Tarumã, em Manaus. Aparecida em Manaus.
Fonte: Foto de Michael Dantas/ Fonte: Foto de Michael Dantas/
AFP, em 21 de abril, 2020 AFP, 22 de abril, 2020

Essas imagens mostram a atipicidade dos cerimoniais fúnebres


aos quais estamos habituados culturalmente em nossos dias e nos

125
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
faz refletir sobre a finitude humana. Elias (2001, p. 9-10) defende
que “o problema social da morte é especialmente difícil de resolver
porque os vivos acham difícil identificar-se com os moribundos...
A morte só constitui um problema para os seres humanos”. Esse au-
tor nos adverte que deveríamos apresentar uma atitude diferente
frente à duração limitada da vida e encarar a morte como um fato
de nossa existência – um fenômeno inevitável para ajustar nossas
vidas, e, particularmente, nosso comportamento em relação às ou-
tras pessoas. Poderíamos considerá-la parte de nossa tarefa fazer
com que a despedida dos seres humanos amados fosse agradável
para os outros e para nós mesmos.
As mortes em consequência da pandemia por covid-19 são,
em parte, mortes sem acompanhamento e sem despedida, princi-
palmente nos casos de pessoas internadas em instituições hospi-
talares. E devido ao risco de contágio, familiares e amigos não são
autorizados a permanecer ao lado dos enfermos, como ocorre em
outras doenças. Essa condição de morte tem provocado intenso so-
frimento. Com frequência, escutamos depoimentos de parentes e
amigos de vítimas de morte pelo covid-19 com expressões de pro-
funda dor e tristeza pela interrupção de histórias de vida devido
às artimanhas dessa enfermidade que desafia, cotidianamente, os
profissionais da saúde e a comunidade cientifica.

O Amapá no cenário da pandemia do novo coronavírus

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-


ca (IBGE, 2020), o estado do Amapá tem 669.526 pessoas (censo de
2010). Entre os seus 16 municípios, os mais populosos são a capi-
tal, Macapá com 398.204 e Santana com 101.262 pessoas. O estado
do Amapá teve seu primeiro caso confirmado de pessoa infectada

126
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
pelo coronavírus em 24.3.2020. Entretanto, nessa mesma data, já
havia 122 casos suspeitos e 70 casos descartados. Entre os casos
suspeitos, os pacientes seguiam sendo monitorados em vários mu-
nicípios: 77 pacientes em Macapá; 26 em Santana; 6 em Laranjal
do Jari; 3 em Pedra Branca do Amapari; 3 em Porto Grande; 2 em
Mazagão; 3 em Tartarugalzinho; 1 em Serra do Navio; e 1 em Cutias.
Ressaltamos a publicação do Decreto n. 1.413, de 19.3.2020,
o qual declara estado de calamidade pública, para os fins do art.65
da Lei Complementar nº 101, de 4.5.2020, em razão da grave crise
de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19 e suas re-
percussões nas finanças públicas do estado do Amapá, e dá outras
providências. O estado do Amapá hoje apresenta 3.834 casos con-
firmados; 6.358 casos suspeitos; 1.078 casos recuperados e 108
óbitos (BOLETIM AMAPÁ, 15.05.2020).
A rede pública de saúde do Amapá apresenta muitas dificulda-
des para atender as pessoas com sintomas e complicações graves
ocasionadas pela covid-19. É importante ressaltar que o estado do
Amapá, já se encontrava bastante precário antes da pandemia, em
número de leitos, UTIs e outros recursos, os quais eram bem infe-
riores aos padrões previstos pelos protocolos sanitários. No mo-
mento (maio/2020), a capacidade de leitos clínicos está com 97,
65% de ocupação e a taxa de 91.54% de ocupação de UTIs. Segundo
depoimentos, as pessoas estão morrendo por falta de assistência,
remédios e outros recursos necessários. Entre as vítimas, os pro-
fissionaismédicos e enfermeiros também compõem as estatísticas.
Parentes e amigos depõem sobre a ausência de medicamento ea
carência da assistência. Depoimentos que revelam consternação,
desalento e muita tristeza.
O momento sensível e dramático que estamos vivendo tema-
cionado pela ação nefasta do covid-19 uma pluralidade de emoções

127
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
e sentimentos visíveis nas falas das pessoas de variados grupos
sociais, veiculadas pelos canais televisivos e redes sociais.A qua-
rentena, o afastamento e o distanciamento social obrigatórios têm
despertado a angústia, a incerteza, o medo, a tristeza, o “desapare-
cimento de si”, mas também mudança de sentidos e sentimentos
que já não eram tão habituais na sociedade atual, como a solidarie-
dade, a empatia, a aproximação afetiva, a reconstrução de vínculos,
a sensibilidade, o estar juntos, sentimentos vivíveis nesses tempos
de pandemia.
O recolhimento em casa nos dias iniciais da quarentena e o dis-
tanciamento social, únicos “remédios” declarados “seguros” contra
a covid-19, nos remeteu à noção de ‘desaparecimento de si’, con-
forme Le Breton (2019), porém, um ‘desaparecimento de si’ meio
obrigatório, diferente daquele apresentado por esse autor. Le Bre-
ton discute esse conceito em suas variadas formas, como uma atitu-
de típica do ser humano do mundo moderno, dizendo que,

às vezes, nossa existência nos pesa. Mesmo que por algum


tempo tenhamos vontade de nos livrar das necessidades
ligadas a ela, de tirarmos férias de nós mesmos para tomar
um fôlego, descansar... Mesmo quando nenhuma dificuldade
pesa, pode emergir a tentação de desligar-se de si mesmo
– nem que seja por um tempo – parra fugir das rotinas e
preocupações. Qualquer desobrigação é bem-vinda, ela
permite desapegar-se por um instante... O desaparecimento
de si pode ser um desgaste das significações que conservam
o indivíduo no mundo, uma breve experiência de
desresponsabilização (LE BRETON, 2019, pp. 9, 10 e 16).

Le Breton discute o desaparecimento de si, no mundo mo-


derno caracterizado pelo frenesi, pela flexibilidade, pela urgên-
cia, agilidade, concorrência, eficácia que exigem do homem uma

128
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
adaptação de si às circunstâncias constate, onde é preciso cons-
truir-se permanentemente. Esse mundo, do qual nos fala Le Breton,
com a chegada inesperada da pandemia, é forçado a recolher-se, a
parar, “a ficar em casa”. De repente, grandes centros do mundo, fa-
mosos pelo poder econômico, comercial, turístico e cultural, como
Roma, Paris, Nova York, Madri e tantos outros, fecharam suas lojas,
museus, passeios públicos, espaços turísticos e comerciais em ge-
ral. Suas praças, avenidas, ruas e espaços gerais se tornaramam-
bientes desertos e silenciosos, um cenário surreal. Nesse sentido, o
desaparecimento de si analisado por Le Breton, nesse novo contex-
to se tornou obrigatório, talvez não como uma fuga de si, frente às
circunstâncias, mas como uma experiência necessária para novas
adaptações, reflexões e reinvenções do sujeito frente à nova reali-
dade, durante e pós-pandemia.
Em Le Breton (2019), o homem com necessidade de autor-
recolhimento para conceder a si um tempo e aliviar a pressão das
exigências sociais, porque não tinha tempo objetivo para tal atitu-
de, porque se encontrava sob a pressão desse mundo moderno que
parecia não poder parar jamais, com a pandemia, o estilo de vida
mudou. Assim, ficar com a família, fortalecer vínculos, dedicar-se
aos filhos, ao cônjuge, explorar emoções,refletir, reconstruir-se, se
reinventar para novas adaptações a realidade devido a presença do
vírus, tornou-se obrigatório.
Outro aspecto que gera reflexão é o conceito de leveza apre-
sentado por Lipovetsky (2016). Este autor reflete sobre e analisaa
leveza em tempos atuais, e destaca que a modernidade cultuou o
novo, a arte... Segundo esse autor, vivemos a era do triunfo da le-
veza tanto no sentido próprio quanto figurado do termo, vivemos
a utopia da leveza, e enfatiza que “o homem pós-moderno quer ser

129
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
leve, mas não se livra dos tantos pesos da existência”. A leveza, para
o autor, “é antes de tudo, um ideal de vida que cada vez mais, se
enraíza no imaginário e nas práticas sociais” (LIPOVETSKY, 2016,
p. 18, 21). Com o culto do bem-estar, da diversão, da felicidade aqui
e agora, o que predomina, segundo o autor, “é um ideal de vida leve,
hedonística, lúdica. O leve aparece do emblemático ou a tonalidade
dominante do mundo das economias de consumos” (LIPOVETSKY,
2016, p. 34). A partir dessas considerações, perguntamos: como
exercer a leveza emocional em tempos de pandemia?
As emoções são objeto de estudo de várias áreas de conheci-
mento e muitos autores se dedicaram à compreensão dessa dimen-
são do humano, porém, de acordo com Koury e Barbosa (2016, p.
203), “o estudo sério das emoções é um campo de pesquisa relati-
vamente novo, que parece ter iniciado há menos de cem anos”.
Para lembrar alguns estudiosos dessa cativantecategoria ana-
lítica, podemos citar: Darwin ([1874], 2000), que publicoua expres-
são das emoções no homem e nos animais. Essa obra analisa a ori-
gem e as funções das expressões faciais e corporais nos homens e
nos animais, sob uma perspectiva naturalista; Durkheim ([1912],
2003), em As formas elementares da vida religiosa, deu destaque às
emoções coletivas; Elias ([1939], 1996), no Processo Civilizador I,
a vergonha é o fio condutor de toda a obra; Thomas Scheff, consi-
derado um dos pioneiros na sociologia das emoções, em um artigo
publicado em 1977,vinculou os ritos sociais a uma teoria da catarse
de emoções reprimidas: Le Breton (2019), que se ocupa da antro-
pologia das emoções; Koury (2003; 2005; 2009; 2016), estudioso
dedicado ao estudo das emoções no Brasil.
Refletir sobre emoções nestes tempos de pandemia parece
ser uma tarefa fácil, devido ao fluxo misto de sentimentos que se

130
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
manifestam e envolvem as pessoas no contexto atual, caracterizado
por muitas incertezas, medo e incógnitas diante de um agente ain-
da pouco conhecido em suas ações patogênicas, como o novo coro-
navírus. Nesse sentido, para entender as emoções e como elas se
manifestam é necessário percebê-las no contexto em que se apre-
sentam, afirma Bericart (2012, p. 12): compreender a vida social
das emoções, assim como estabelecer adequadas definições socio-
lógicas das mesmas é fundamental para conhecer não só o comple-
to mundo das emoções, mas também os seres humanos no contexto
de seu contexto de seus processos e estruturas de interação social.
Sobre o entendimento da manifestação das emoções em um
contexto social, Marcel Mauss ([1921], 1981) abre, em seu tempo,
um vasto domínio de análise emostra como as sociedades induzem
a uma “expressão obrigatória dos sentimentos” que invade o indiví-
duo, independente da vontade dele e o faz comportar-se de acordo
com as expectativas e a compreensão de seu grupo social. O autor
mostra a rigorosa progressão social, usando, como exemplo, um
rito funerário australiano no qual a afetividade é regida por regras
que os atores não cessam de jogar de acordo com os costumes. As
manifestações dos sentimentos, como a dor intensa expressa pelos
gritos, as lamentações, os cantos, os choros não são pouco since-
ros. Essas manifestações de dor diferem de acordo com a posição
dos atores no sistema de parentesco, e não são parecidas; uma dose
lícita de sofrimento é apresentada de acordo com o vínculo de pa-
rentesco com o defunto, conforme o enlutado, seja este um homem
ou uma mulher. A esse propósito, o autor considerou:

todas essas expressões coletivas, simultâneas, de valor moral


e de força obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do gru-
po são mais do que simples manifestações, são sinais de ex-

131
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
pressões compreendidas, em suma, uma linguagem. Esses
gritos são como frases e palavras. É preciso dizê-las, mas
se é preciso dizê-las é porque todo o grupo as compreende.
A pessoa faz então mais do que manifestar os seus senti-
mentos, os manifesta aos outros, porque é preciso mani-
festá-los. Ela os manifesta a si própria expressando-os aos
outros e por conta dos outros. É essencialmente simbólico
(MAUSS, 1981, p. 88).

Dessa forma, Mauss mostrou que as manifestações das emo-


ções ocorrem conforme o contexto social, suas exigências e confor-
midades do grupo social.
Le Breton (2019, p.138) defende que “existe uma inteligibili-
dade da emoção, uma lógica que a ela se impõe; da mesma forma,
uma afetividade no mais rigoroso dos pensamentos, uma emoção
que o condiciona”. Esse autor entende que as emoções não são uma
substância, um estado solidificado e imutável a encontrar sob uma
mesma forma e as mesmas circunstâncias na unidade da espécie
humana. Para esse autor, as emoções assumem uma dimensão di-
nâmica, “uma tonalidade afetiva que se espalha sobre o conjunto do
comportamento, e não cessa de se modificar a todo instante cada
vez que a relação com o mundo se transforma, que os interlocuto-
res mudam”. E acrescenta:

os sentimentos e as emoções não são substâncias transferí-


veis de um indivíduo e de um grupo a outro, não são, ou so-
mente são, processos fisiológicos dos quais o corpo deteria o
segredo. São relações. Se o conjunto dos homens do planeta
dispõe do mesmo aparelho fonador, eles não falam a mesma
língua; da mesma forma, se a estrutura muscular e nervo-
sa é idêntica, isso não prefigura em nada os usos culturais
aos quais ela dá lugar. De uma sociedade humana a outra,
os homens sentem afetivamente os acontecimentos através

132
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
dos repertórios culturais diferenciados que se parecem, por
vezes, mas não são idênticos. A emoção é ao mesmo tempo
interpretação, expressão, significação, relação, regulação
de uma troca, ela se modifica de acordo com os públicos, o
contexto, difere em sua intensidade, e mesmo em suas ma-
nifestações, de acordo com a singularidade pessoal. Escorre
na simbólica social e nas ritualidades em vigor. Não é uma
natureza descritível fora do contexto e independentemente
do ator (LE BRETON, 2019, p.9-10).

O estudioso citado considera as emoções como resultado de


reações diretas do sujeito a terminados eventos; relações media-
das pelo sentido e interpretação dada pelo sujeito aos eventos, e
acrescenta: “a emoção é a definição sensível do acontecimento tal
como vive o indivíduo, a tradução existencial imediata e íntima de
um valor confrontado com o mundo” (LE BRETON, 2019, p. 146).
Por isso, as reações emotivas diferem de pessoa a pessoa, de acordo
com a singularidade de cada um.
Nesse sentido, o homem está ligado ao mundo por um perma-
nente tecido de emoções e de sentimentos. “Ele é permanentemen-
te afetado, tocado pelos acontecimentos. A afetividade mobiliza as
modificações viscerais e musculares, filtra a tonalidade de sua re-
lação com o mundo” (LE BRETON, 2019, p. 139). O autor acredita
que a vida afetiva se impõe fora de toda intenção, não se comanda e,
às vezes, vai ao encontro da vontade, mesmo que ela não responda
sempre a uma atividade de conhecimento ligada a uma interpreta-
ção do indivíduo na situação onde ele está mergulhado.
Bericart (2012, p. 2) parece estar de acordo com essa ideia
quando afirma que “as emoções constituem a manifestação corpo-
ral de relevância para que o sujeito tenha alguma ação no mundo
natural e social”. Assim, para esse autor, a emoção é uma consciên-

133
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
cia corporal que sinaliza e marca essa relevância, regulando as rela-
ções que um sujeito concreto mantém com o mundo.
A covid-19 tem alterado de forma ampla e profunda os va-
riados aspectos que envolvem as nossas vidas, os comportamen-
tos pessoais e sociais, as famílias, a dinâmica econômica e tantos
outros setores do mundo objetivo e subjetivo. Esse vírus versátil
e ainda desconhecido, em suas maneiras de agir, tem deixado suas
marcas profundas na sociedade em geral, mas principalmente na
alma humana. Diante desse cenário, perguntamos: como as pessoas
são afetadas emocionalmente? Quais são as principais emoções e
sentimentos acionados?
Nesse tempo de pandemia, somos afetados diariamente. E isso
ocorre por meio de conversas, dos canais de comunicação televisi-
vos e virtuais que evocam e exploram uma pluralidade de emoções
e sentimentos na população, veiculando relatos que sensibilizam e
incitam as pessoas ao medo do contágio, da morte pela covid-19, da
crise econômica gerada e tantas outras possíveis crises. Associados
ao medo e à incerteza estão os sentimentos de espanto, dor, angús-
tia, incerteza, insegurança, solidão, tristeza e tantos outros.
Com a evolução da pandemia, esses sentimentos se tornaram
mais intensos e difusos, e, atualmente, é comum ouvirmos‘gritos
de socorro’ de pessoas com familiares doentes ou com perdas mo-
tivadas pelo coronavírus; chamadas por liberação de leitos hospi-
talares para familiares; pedidos de alimento; de solidariedade, de
atenção para a necessidade de equipamentos de proteção e tantos
outros. Esses chamamentos sociais acionam em nós os mais varia-
dos estados afetivos e emocionais, a angústia, a preocupação, mas
também a empatia e a solidariedade.
Com o aparecimento da covid-19, uma ‘nova realidade’ se apre-
senta, e com ela múltiplas mudanças são inegáveis e tornam-se reais.

134
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
E mais uma vez perguntamos: como as pessoas irão se movimentar
em função das novasexigências e adaptações do mundo durante e
pós-pandemia? Temos a intuição de que a realidade social mudará
de forma ampla e profunda, e exigirá de todos nós novos compor-
tamentos e maneiras de enxergar a vida e de se posicionar nas re-
lações com esse “novo mundo”. Entendemos que serão necessários:
aprendizado coletivo, mudanças de hábitos, de estilos de vida, de
novas formas de condutas pessoais e coletivas. Consideramos que
não será fácil conviver com o medo obsessivo de ser infectado, com
o uso permanente de máscaras, com o distanciamento social nos lu-
gares públicos, nas escolas, com a ausência do contato físico, como
aperto de mãos, de abraços e trocas de afeto. Mas pode-se pensar
como Dostoievski: “o ser humano é umser que a tudo se habitua”.
O que podemos apreender com essa desastrosa pandemia?
Viktor Frankl (2017), psiquiatra judeu, pai da logoterapia nos ensi-
na algo importante através de experiênciaspessoaisde sofrimento
e vivências no campo de concentração de Auschwitz, onde esteve
como prisioneiro durante a Segunda Guerra Mundial. Ele nos relata
que, no campo de concentração, todas as circunstâncias conspiram
para fazer o prisioneiro perder o controle. “Todos os objetivos da
vida estão desfeitos. A única coisa que sobrou é ‘a última liberdade
humana’ – a capacidade de escolher a atitude pessoal que se assume
diante de um determinado conjunto de circunstâncias” (FRANKL,
2017, p. 7). Essa liberdade última, reconhecida pelos antigos filó-
sofos estóicos e pelos modernos existencialistas, assume um valor
importante na história desse médico psiquiatra.
Viktor Frankl observou que, apesar de todo o primitivismo que
tomava conta da pessoa no campo de concentração (ações voltadas
principalmente para a sobrevivência), algumas delas, dependendo

135
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
de sua sensibilidade emocional, permaneciam abertas para a possi-
bilidade de se retirarem daquele ambiente terrível e se refugiarem
num domínio de liberdade espiritual e riqueza interior, como úni-
ca opção para aliviar o sofrimento, uma forma de fuga para dentro
de si. O autor explica que “essa tendência para interiorização faz
esquecer por completo o mundo que o cerca e todo o horror da si-
tuação”... “Essa liberdade interior última do ser humano, a qual não
se pode perder” (FRANKL, 2017, p. 57, 89). Diante do exposto, vol-
tamos a perguntar: qual a nossa liberdade frente à realidade dessa
pandemia e de que modo podemos administrar as nossas emoções?
Equal o sentido dessas experiências de perdas, de dor e do sofri-
mento vivido?
Frankl afirma que jamais poderemos excluir a inevitabilidade
do sofrimento na vida humana. Entretanto, diante de qualquer si-
tuação, por mais difícil que seja, temos liberdade pessoal para nos
posicionar peranteas circunstâncias na vida, visando dar sentido
tanto a elas quanto à própria dor e ao sofrimento. “Se é que a vida
tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá... São
as situações exteriores extremamente difíceis que dão à pessoa a
oportunidade de crescer e se fortalecer interiormente para além de
si” (FRANKL, 2017, p. 90, 98). Para tanto, é necessária uma ressig-
nificação do sofrimento, ou da experiência dolorosa, que está sen-
do vivenciado pelo sujeito. É preciso viver o sofrimento de maneira
pedagógica, aprender com ele, ter coragem para explorar, viver e
procurar dar sentido a experiência vivida. É necessário descobrir,
principalmente, o “como” a circunstância de dor pode nos ajudar a
ser mais fortes.
O autor lembra que “ao aceitar esse desafio de sofrer com bra-
vura, a vida recebe um sentido literalmente até o fim” (FRANKL,

136
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
2017, p. 138). Para isso, é importante também ter clareza do que se
está vivendo. O filosofo Espinosa diz, em sua ética: “emoção que é sen-
timento deixa der ser sofrimento no momento em que dela formar-
mos uma ideia clara e nítida” (ESPINOSA apud FRANKL, 2017, p. 98).
Friedrich Nietzsche também traz contribuições nesse sentido de
aprender a suportar a dor, aoafirmar: “quem tem por que viver
aguenta quase todo como”(NIETZSCHE apud FRANKL, 2017, p. 101).
No entendimento desses pensadores, a pessoa que percebeu
seu aprendizado com a experiência difícil, que entendeu o objeti-
vo instrutivo do sofrimento, também vai compreender com mais
clareza o objetivo da vida, o porquê de sua existência e terá maior
responsabilidade consigo mesmo e com as pessoas. Para Frankl
(2017, p. 104), “essa pessoa jamais conseguirá jogar sua vida fora.
Ela sabe do “porque” de sua existência – e por isso também con-
seguirá suportar quase todo “como”. Dessa forma, depreende-se, a
partir dessas ideias, que os momentos difíceis podem ser de grande
valia tanto para a vida pessoal quanto coletiva.
Nesses tempos de pandemia, de alta tensão psicológica, guerra
de nervos, estresse, perdas, mortes e luto, o sofrimento psicológico
gerado por todo o contexto atual é inegável. O sofrimento psico-
lógico vivido poderá se traduzir em possíveis emoções negativas
ou até mesmo em transtornos psicológicos, portanto, entender o
sofrimento psíquico vivido pelas pessoas com a chegada do novo
coronavírus merece um destaque. Sobre a compreensão do vivido
psíquico doloroso Dantas (2012, p. 75) esclarece:

compreender o vivido do sofrimento psíquico, do ponto de


vista do sujeito, supõe a adoção de uma perspectiva que con-
temple a identificação de certos componentes de sua expe-
riência singular, bem como da forma com que traduz seus
afetos, suas emoções e seu sofrimento.

137
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
A autora alerta sobre as manifestações do sofrimento psico-
lógico no corpo e nas prováveis maneiras com que o corpo pode
sofrer; maneiras estas de conferir ao sujeito a real consciência de
sua realidade na condição de pessoa, e nessa relação o sujeito se
apropria da qualidade da dor.

O sofrimento psíquico induz ao trabalho de apropriação sub-


jetiva de um evento ainda desconhecido pelo sujeito, cujo
sentido é uma maneira de reconhecimento da existência de
sua vida psíquica, isto é, uma forma de não se reduzir a pes-
soa à dimensão de um corpo que sofre, lhe conferindo o es-
tatuto de sujeito. Nesse sentido, o afeto é o que confere uma
coloração sensível à vida psíquica, manifestando sua ligação
com o corpo. O reconhecimento da íntima relação entre o so-
mático e o psiquismo indica a qualidade da experiência da
dor e do vivido do sofrimento (DANTAS, 2012, p. 75).

Provavelmente, todas as mudanças ocorridas com a presença


do coronavírus no nosso meio mobilizaram emoções e sentimen-
tos de ausências que poderão afetar a saúde emocional de grande
parte da população. Precisamos desenvolver uma nova cultura para
lidar e nos adaptarmos a essas mudanças. Essa nova cultura deverá
envolver tanto os aspectos objetivos da vida social quanto das re-
lações intersubjetivas e intrassubjetivas. Saber suprir as ausências
da vida, a partir de novas descobertas com sentidos que possam
preencher as lacunas do espírito humano, e assim se prevenir con-
tra as doenças da alma, será um dos nossos desafios, neste contexto
de pandemia e pós-pandemia.

Considerações finais

O ano de 2020 chegou e com ele formos surpreendidos com


a catastrófica pandemia provocada pelo novo coronavírus que

138
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
espanta e abala o planeta. Fica o questionamento: como o mundo,
em pleno século XXI, destacado pelo desenvolvimento científico,
pelas altas tecnologias, pela grande facilidade de comunicação vir-
tual, e com seu capitalismo exuberante e globalizado, se revela tão
despreparado, sem recursos científicos para enfrentar as artima-
nhas do desse vírus cruel?
Alguns países, em outros continentes, já se preparam para
sair da quarentena e do isolamento social. Aqui, no Amapá, frente à
atual conjuntura, entendemos que ainda não atingimos a curva des-
cendente do vírus para sair do isolamento. Não sabemos quantas
pessoas perderão a vida. O medo do contágio é presença continua.
Somos alertados diariamente para seguir as recomendações pre-
ventivas de higienização das mãos, da casa, das compras, do uso de
álcool em gel, do uso de máscaras em ambientes externos, de evitar
aglomerações, do distanciamento social e tantas outras.
Polêmicas no mundo das ciências médicas continuam sobre
o uso de determinados medicamentos, devido à conotação políti-
ca atribuída aos medicamentos logo no início; a crise econômica é
lembrada todos os dias; o pavor do contágio e da morte nos acom-
panha nesses tempos difíceis e não sabemos quanto tempo iremos
permanecer assim. Esperamos que essa pandemia possa nos aju-
dar, tornando-nos melhores, mais sensíveis e humanos.
Para finalizar essas modestas reflexões, citamos, novamente,
Victor Frankl: “o amor é a única maneira de captar outro ser hu-
mano no íntimo da sua personalidade. Ninguém consegue ter cons-
ciência plena da essência última de outro ser humano sem amá-la”
(FRANKL, 2017, p. 136).

139
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
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VOLTA AO SUMÁRIO

141
PAN DE M I A E AFE TAÇ ÕE S DAS E MO ÇÕ ES
CAPÍTULO 6

“QUANTO MAIS PERTO, MAIS REAL


FICA”: EMOÇÕES FRENTE À PANDEMIA
DO CORONAVÍRUS EM UMA PEQUENA
CIDADE DO TOCANTINS

Wellington da Silva Conceição


Rafael de Oliveira Cruz

Introdução

No contexto da pandemia de covid-19 no Brasil, o Tocantins ga-


nhou destaque em um primeiro momento por ser o estado brasileiro
que apresentou o menor número de casos confirmados. Até o dia 13
de abril de 2020, o estado apresentava somente 26 casos – em ape-
nas 4 cidades – e nenhuma morte1, fato que era utilizado como fonte
de capital político2. Em 15 de maio do mesmo ano, apresentava 1.179
casos confirmados (com 24 óbitos), divididos em 56 municípios.
A primeira testagem positiva nessa unidade da federação data do dia
18 de março e foi localizada na cidade de Palmas, a capital.

1
 A primeira morte registrada se deu em 14 de abril, na cidade de Palmas, capital do
estado.
2
 Nos boletins do estado, vinha o seguinte destaque: “Somos o único estado do Brasil
sem óbitos” (Cf. https://saude.to.gov.br/noticia/2020/4/13/acompanhe-o-30-bole-
tim-epidemiologico-da-covid-19-no-tocantins-1304/)

142
A proliferação dos casos confirmados nesse estado – mesmo
com um crescimento inicial mais lento e menos numeroso que em
outras unidades da federação – não foi indiferente aos seus habi-
tantes. Como um fato social total (MAUSS, 1974), as percepções e
informações em torno do covid-19 e seu espraiamento atingem a
todos da sociedade, gerando e realçando uma série de sentimentos,
sejam aqueles que diminuem a potência do vírus (ressaltando o ar-
gumento de que “é só uma gripezinha”) ou os que revelam temor de
contágio e morte (de si e/ou dos próximos).
Nesse texto, queremos explorar a dimensão sociológica dessas
emoções com base nas reações em torno do covid-19 e suas possi-
bilidades de contágio em Tocantinópolis – uma cidade de pequeno
porte do norte do Tocantins. A metodologia utilizada para a pesqui-
sa aqui exposta foi a de observação e análise dessas reações – es-
pecialmente no campo das emoções – à contaminação de covid-19
e suas consequências a partir das respostas a um questionário que
aplicamos com 50 moradores da cidade3. Para melhor interpreta-
ção de algumas respostas, aprofundamos o questionário com seis
participantes, solicitando que pudessem desdobrar alguns dos te-
mas tratados. Analisamos ainda os decretos emitidos pela prefei-
tura e como esses representam um processo de externalização dos
sentimentos locais.
Vale lembrar, no entanto, que reconhecemos o limite dos da-
dos, assim como de suas análises. Trata-se de um relato em torno
de um trabalho inicial de pesquisa, de um processo ainda em cons-
trução e cujas conclusões mais assertivas e efetivas certamente se
darão depois de um tempo maior, quando será possível desvelar um
quadro mais claro e sólido de informações.

3
 Os questionários foram preenchidos ente os dias 04 e 10 de maio de 2020 e foram
aplicados por meio de um formulário virtual. O modelo do questionário está em anexo.

143
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
Sobre a cidade de Tocantinópolis

Cidade do norte do Tocantins, Tocantinópolisé o locus do traba-


lho de pesquisa que apresentamos. Tem uma população de aproxi-
madamente 23.000 habitantes e mais de um século de emancipação.
Em seu território encontramos uma marcante presença indígena,
onde os membros da etnia Apinajé constituem quase 10% da sua
população, habitando nos territórios de reserva demarcados.
Chamada de “Boa Vista do Tocantins”, recebeu o nome de To-
cantinópolis no ano de 1943, diante de uma redistribuição admi-
nistrativa do estado de Goiás (HALUM, 2008; PARENTE, 2007).
O município passou a fazer parte – em 1988 – do recém-criado es-
tado do Tocantins. Tal cidade se encontra em uma posição central
dentro da microrregião conhecida como “Bico do papagaio”, com-
posta por 25 cidades e 198 mil habitantes. Tocantinópolis tem uma
posição destacada nessa região, principalmente, pela presença de
alguns equipamentos públicos como: Defensoria Pública, Juizados,
Fórum, hospital, cartórios e universidade.A cidade também tem im-
portância turística (SOUSA, 2007), relacionada principalmente ao
Rio Tocantins, cujo curso passa pela cidade. Tem como principais
atividades econômicas a agropecuária, os comércios, as indústrias
presentes na cidade e a exploração do coco babaçu.
Outra questão destacada, e que estará presente em nossa pos-
terior análise dos dados, é que Tocantinópolis, como a maioria das
cidades pequenas, tem sua sociabilidade marcada pelo que chama-
mos de pessoalidade (PRADO, 1998), onde “todo mundo conhece
todo mundo”, o que permite constante consciência e vigilância dos
atos alheios. Além disso, os valores tradicionais desta cidade – as-
sim como da região em que está inserida – são ligados à uma moral

144
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
conservadora de natureza religiosa. Esses valores também estão
presentes na esfera pública, fazendo parte do projeto de governo, o
que constatamos nas inscrições no portal de entrada da cidade em
que se lê o verso bíblico: “Tudo posso Naquele que me fortalece”.
Esse é o slogan da prefeitura, espalhado pelos prédios públicos e
em peças publicitarias do município.
O anúncio do primeiro caso confirmado de um infectado pelo
covid-19 em Tocantinópolis se deu no dia 13 de abril de 2020, qua-
se um mês depois do primeiro caso registrado no estado. O segun-
do caso confirmado veio com um intervalo de quase três semanas,
no dia 05 de maio, e os casos foram crescendo progressivamente.
No dia 15 de maio, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde
e da Secretaria de Saúde de Tocantinópolis, haviam 13 casos confir-
mados na cidade e 1 óbito4.
As percepções em torno do Coronavírus nesse município cer-
tamente não resultam somente dos casos confirmadosa nível local.
Além de todas as informações midiáticas, dois municipios que fun-
cionam como centros regionais para Tocantinópolis (com os quais
seus moradores estabelecem fluxos para atividades de lazer, com-
pras, atendimento médico especializado, educação e outros mais)
são focos de contágio com destaque no seus estados: Imperatriz5
– no sul do Maranhão, a cidade com mais casos nesse estado fora da
Região Metropolitana de São Luís; Araguaína6 – no norte do Tocan-

4
 O primeiro óbito por covid-19 na em Tocantinópolis aconteceu no dia 12 de maio de
2020. Tratava-se de um ex-vereador da cidade.
5
 Fica distante aproximadamente 100 km de Tocantinópolis. Em 15/05/2020 apre-
sentava 653 casos confirmados, com 36 óbitos (Dados encontrados na página da Se-
cretaria de Saúde do Estado do Maranhão).
6
 Fica distante aproximadamente 200 km de Tocantinópolis. Em 15/05/2020 apre-
sentava 496 casos confirmados, com6 óbitos (Dados encontrados na página da Secre-
taria de Saúde do Estado do Tocantins).

145
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
tins, que em 15/05/2020 era a cidade com mais casos nesta unida-
de da federação, utrapassando até a capital, com mais do dobro de
casos7. Aprofundando algumas respostas com os participantes dos
questionários, os quadros dessas cidades eram apresentados para
justificar os receios com uma futura propagação intensa do vírus
em Tocantinópolis.

A aplicação do questionário

Um formulário virtual com 15 perguntas sobre as percepções


em torno do covid-19 e suas consequências foi respondido por 50
moradores de Tocantinópolis. A escolha dos participantes foi alea-
tória, a partir da divulgação do questionários em grupos de redes
sociais da/e sobre a cidade. Sabemos que esse formato de coleta e
distribuição das amostas não é o ideal, mas consideramos que seus
resultados auxiliam no objetivo deste trabalho, que é a construção
de uma análise preliminar para uma pesquisa em fase inicial.
As perguntas foram divididas em três blocos: No primeiro, as
questões procuram traçar parte do perfil socioeconomico dos par-
ticipantes. No segundo, as perguntas versam sobre a proximida-
de ou não do contágio (se tem casos de parentes ou amigos com

7
 Sobre o Coronavírus e seu espraiamento no estado do Tocantins, Blanc e Conceição
(2020), destacam que “esses casos se concentram principalmente nos dois municípios
mais populosos (a capital, Palmas, e a cidade de Araguaína), que podem ser definidos,
juntamente com Gurupi, como os lugares centrais do estado. As duas primeiras cida-
des são aquelas em que se localizam os únicos aeroportos do estado. Segundo Oliveira
e Piffer (2018), elas, juntamente com Gurupi, compõem o ‘corredor de progresso’, pois
em torno delas orbitam localidades cujas economias progridem e se reforçam, fazendo
a região crescer mais rapidamente. E essa centralidade não se dá apenas pela densi-
dade populacional, mas principalmente por serem os principais pólos econômicos do
Tocantins e concentrarem uma oferta de serviços públicos e privados não disponíveis
na maioria das cidades do entorno” (p.3).

146
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
confirmação ou suspeita) e as práticas de isolamento. No último
bloco, as perguntas giram em torno dos sentimentos e opiniões so-
bre o espraimento do covid-19 e suas consequências.

Quem são os entrevistados e qual sua proximidade com


o contágio? Traçando um perfil

A partir das respostas do primeiro bloco, encontramos o perfil


social dos participantes. Na sua maioria, têm entre 20 e 40 anos
(66%), moram na cidade desde o nascimento (48%) ou há mais de
10 anos (32%). 64% concluiram o ensino médio (sendo que um
terço desses estão no ensino superior). As mulheres formam 70%
dos respondentes, contra 30% dos homens. Apesar das diferenças
em gênero, faixa etária, bairro de moradia, escolaridade e tempo de
moradia na cidade, não observamos – na maioria das vezes – opi-
niões que destoassem a partir dessas diferenças.
No segundo bloco, sobre o vírus e sua proximidade e as práti-
cas de isolamento, encontramos os seguintes dados: 76% dos par-
ticipantes não conhecem pessoas próximas(parentes, amigos) que
contem como casos confirmados de covid-19. Já 14% conhecem ao
menos uma pessoa e 10% de 2 a 5 pessoas. A mesma pergunta, mas
agora relacionada aos casos confirmados de óbitos por covid-19,
demonstrou que 96% desconhecem alguém próximo que tenha
sido vitima fatal do vírus. A última questão do bloco perguntava se
o participante conhecia alguém próximo que apresentou os sinto-
mas de infecção pelo coronavírus e não testou para confirmar, ao
que78% afirmaram não conhecer ninguém com tal característica.
Vale ressaltar que, no período em que o questionário foi rsspondi-
do, a cidade de Tocantinópolis tinha entre 2 e 3 casos confirmados.

147
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
Ainda nesse bloco, quando perguntados sobre as práticas de
isolamento, obtivemos as seguintes respostas, apresentadas no
gráfico a seguir:

Total

Estou seguindo à risca

Não posso me isolar por trabalhar em


serviços essenciais

Não sigo à risca, mas estou me prevenindo.

Não acho o isolamento necessário, mas faço

Não acho o isolamento necessário e não


estou fazendo

0 5 10 15 20 25 30 35 40

Na sua grande maioria, os participantes optaram por seguir as orientações de


isolamento, peloNamenos
sua grande
os que maioria, os participantes
podem segui-la. Somente optaram
dois delespormanifestaram
seguir
discordânciaassobre
orientações de mas
sua eficácia, isolamento, pelo
apenas um menos
afirmou nãoos queseguindo
estar podem as
segui-la.
orientações
Somente dois deles manifestaram discordância sobre sua eficácia,
propositalmente. Coaduna com essa postura pró-isolamento da maioria a manifestação
mas apenas um afirmou não estar seguindo as orientações propo-
contrária a reabertura dos comércios por parte de 76% dos participantes 84, questão presente no
sitalmente. Coaduna com essa postura pró-isolamento da maioria
terceiro bloco.
a manifestação contrária a reabertura dos comércios por parte de
A partir das questões desse segundo bloco, podemos dizer que, mesmo que a maioria
76% dos participantes8, questão presente no terceiro bloco.
dos participantes não encontre casos confirmados e até suspeitas de Covid-19 em pessoas
A partir das questões desse segundo bloco, podemos dizer que,
próximas, ainda assim reconhecem a importância do isolamento. Como dito anteriormente, a
mesmo que a maioria dos participantes não encontre casos con-
situação nas principais cidades da proximidade (e do país) certamente provoca a atitude de
firmados e até suspeitas de covid-19 em pessoas próximas, ainda
precaução. Duas das participantes, que se voluntariaram para aprofundar algumas questões,
citaram a saturação dos leitos na cidade de Araguaína 85 como um dos principais motivos da
8
sua preocupação
 Umacom o contágio.
observação metodológica sobre essa questão. O participante encontrava três
opções quando perguntado se era a favor da reabertura dos comércios: sim, não e ou-
Taistros
afirmações e posturas
(esta última, dialogam
com possibilidade ainda com umadaquestão
de complementação doSomente
resposta). bloco 10%
3, onde
se colocaram favoráveis e outros 14% marcaram a opção outros,
perguntamosdosaosentrevistados
participantes se acreditam que os equipamentos públicos de saúde da
mas sem oferecer qualquer complemento na resposta. Ainda assim, a grande maioria
cidade em que moram estão
se manifestou preparados
contrária para dos
a reabertura um comércios.
possível aumentos dos casos de infectados
pelo Coronavírus. A maioria (96%) disse não acreditar na capacidade do sistema de saúde
local para atender tal demanda. 148
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
assim reconhecem a importância do isolamento. Como dito ante-
riormente, a situação nas principais cidades da proximidade (e do
país) certamente provoca a atitude de precaução. Duas das partici-
pantes, que se voluntariaram para aprofundar algumas questões,
citaram a saturação dos leitos na cidade de Araguaína9 como um
dos principais motivos da sua preocupação com o contágio.
Tais afirmações e posturas dialogam ainda com uma questão
do bloco 3, onde perguntamos aos participantes se acreditam que
os equipamentos públicos de saúde da cidade em que moram es-
tão preparados para um possível aumentos dos casos de infectados
pelo Coronavírus. A maioria (96%) disse não acreditar na capacida-
de do sistema de saúde local para atender tal demanda.

O vírus e os sentimentos – representações do contágio

O bloco três começa com uma pergunta sobre a credibilidade


dos dados e informações apresentados pelos noticiários. É impor-
tante ressaltar que no Brasil dois grupos travam uma batalha moral
em torno das politicas de isolamento. Um primeiro, com respaldo
da comunidade científica, líderes mundiais e da Organização Mun-
dial da Saúde, defende as práticas de distanciamento social para
diminuir a proliferação do covid-19 e consequente colapso dos sis-
temas de saúde.
O outro lado dessa batalha moral no Brasil é capitaneado pelo
presidente da república e por empresários, e defende – em favor
da economia – a reabertura das atividades definidas como não

9
 Apesar de Tocantinópolis possuir um hospital, os casos de internação que exigem
uma estrutura mais complexa são sempre enviados para os hospitais de Araguaína,
que possuem mais profissionais e recursos de tratamento.

149
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
práticas de distanciamento social para diminuir a proliferação do Covid-19 e consequente
colapso dos sistemas de saúde.
O outro lado dessa batalha moral no Brasil é capitaneado pelo presidente da república
e por empresários, e defende – em favor da economia - a reabertura das atividades definidas
essenciais. Para muito dos adeptos dessa postura, as notícias são
como não essenciais.
tomadas Para
comomuito dos adeptos
mentiras dessa postura,
ou exageros. as notícias
Se cientistas são tomadas
apontam que como
mentiras ou exageros. Se cientistas apontam
há uma subnotificação, adeptosque do fimhá uma subnotificação,
do isolamento adeptos
apostam em do fim do
uma supernotificação
solamento apostam e no uso dee informações
em uma supernotificação falsas parafalsas
no uso de informações inibirpara
a inibir a
reabertura dos comércios e serviços . Esses grupos e seus embates
10
eabertura dos comércios e serviços 86. Esses grupos e seus embates foram definidos por
foram definidos por jornalistas como o novo epicentro da polariza-
ornalistas como o novo epicentro da polarização política. Foram apelidados, a partir de suas
ção política. Foram apelidados, a partir de suas convicções, de “qua-
87
convicções, de “quarenteners”
renteners” e “Cloroquiners”
e “Cloroquiners” 11
. .
Sobre as informações relacionadas
Sobre as informações ao Covid-19aoe covid-19
relacionadas suas consequências, que aparecem
e suas conse-
nos noticiários, perguntamos
quências, aos participantes
que aparecem se acreditam
nos noticiários, que as mesmas
perguntamos aos são verdadeiras ou
partici-
se considerampantes
que háseum exagero. que
acreditam Obtivemos as seguintes
as mesmas respostas:ou se conside-
são verdadeiras
ram que há um exagero. Obtivemos as seguintes respostas:

Que elas são


verdadeiras
18%

Que há um
82% exagero. O
quadro não é
tão grave assim

A grande maioria disse confiar nas notícias. Ao esclarecerem sua opção, dois dos
A grande maioria disse confiar nas notícias. Ao esclarecerem
entrevistadossua
demonstraram
opção, doisque,
dosapesar de acreditarem
entrevistados na veracidade
demonstraram que,dos fatos de
apesar apresentados
na mídia, suspeitam de uma subnotificação das informações para não amedrontar tanto a
10
 Como exemplo, citamos um episódio peculiar. A deputada federal Carla Zambelli
– do grupo parlamentar que apoia o presidente – denunciou cidades com elevados
6
Como exemplo, citamos
registros deum episódio
óbitos peculiar. (como
por covid-19 A deputada federal
Manaus Carla Zambelli
e Fortaleza), – doque
afirmando grupo parlamentar que
enter-
apoia o presidente
ravam - caixões
denunciou cidades
vazios com elevadososregistros
para impressionar cidadãos.dePosteriormente,
óbitos por Covid-19 (como Manaus e
sua denúncia
Fortaleza), afirmando que eenterravam
foi apurada desmentida,caixões vazios
e a própria para impressionar
deputada se retratou daosinformação
cidadãos. errônea.
Posteriormente, sua
denúncia foi apurada e desmentida,
No entanto, e a própria
grupos radicais deputada
chegaram se retratou edaabrir
a desenterrar informação
caixões errônea. No entanto,
para conferir a grupos
adicais chegaram a desenterrar
veracidade e abrirCf: https://epoca.globo.com/brasil/a-farsa-dos-caixoes-
das informações. caixões para conferir a veracidade das informações. Cf:
https://epoca.globo.com/brasil/a-farsa-dos-caixoes-vazios-usados-para-minimizar-mortes-por-covid-19-1-
vazios-usados-para-minimizar-mortes-por-covid-19-1-24416852
24416852 11
 Confira: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/guerra-entre-cloroquiners-
7
Confira: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/guerra-entre-cloroquiners-e-quarenteners-reinventa-
-e-quarenteners-reinventa-polarizacao-na-pandemia.shtml
polarizacao-na-pandemia.shtml
111
150
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
acreditarem na veracidade dos fatos apresentados na mídia, sus-
peitam de uma subnotificação das informações para não amedron-
pulação, e tar
nãotanto
umaa população, e não uma
supernotificação, supernotificação,
como defendem oscomo defendem
favoráveis a retomada d
os favoráveis a retomada das atividades não essenciais.
vidades não essenciais.
Em outra questão, de resposta aberta, os participantes foram
Em outra questão, de resposta aberta, os participantes foram convidados
convidados a manifestarem o sentimento que experimentam com
anifestarem mais
o sentimento que experimentam
intensidadediante com mais vivido.
do contexto pandêmico intensidadediante
As princi- do conte
ndêmico vivido. As principais
pais categorias categoriaseapresentadas
apresentadas e suas
suas respectivas respectivas
quantidades quantidades es
estão
expressas
pressas no quadro no quadro a seguir:
a seguir:

18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
Gratidão por…
Tristeza

Choque
Preocupação
Cuidado

Ansiedade

Insegurança

amor

Esperança

Impotência

Incerteza

Valorizar a vida

Pânico
medo

Fragilidade
Angústia
Empatia

Indignação

Melancolia

Perplexidade
Solidariedade
Estresse

Diante do quadro apresentado, percebemos que os sentimen-


Diantetos
dosequadro
dividem apresentado, percebemos
em dois grupos: que os sentimentos
os sentimentos se dividem em d
de preocupação/
insatisfação
upos: os sentimentos de epreocupação/insatisfação
os sentimentos de esperança.
e os sentimentos de esperança.

Sentimentos de preocupação/insatisfação Sentimentos de esperança


Medo Fé
Tristeza Amor
Preocupação Empatia
Cuidado Esperança
Angústia Valorizar a vida
151
Estresse Gratidão por poder ficar em casa
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”

Fragilidade Solidariedade
Sentimentos de
Sentimentos de esperança
preocupação/insatisfação
Medo Fé
Tristeza Amor
Preocupação Empatia
Cuidado Esperança
Angústia Valorizar a vida
Estresse Gratidão por poder ficar em casa
Fragilidade Solidariedade
Impotência -
Ansiedade -
Incerteza -
Indignação -
Insegurança -
Melancolia -
Pânico -
Perplexidade -
Choque -

Das 50 manifestações, 42 estão relacionadas aos agrupados


em “Sentimentos de preocupação/insatisfação” e 8 entre os “sen-
timentos de esperança”. Tiveram três categorias que se destacaram
no geral: Medo (17 manifestações), tristeza (7) e preocupação (4).
Nas conversas aprofundadas perguntamos aos participantes sobre
a escolha do sentimento e suas razões. Os mesmos apresentavam
correspondência nas respostas, pois sempre manifestavam uma
atitude de preocupação e tensão diante do risco da pandemia atin-
gir a si, a outra pessoa próxima ou o futuro de todos. Nos relatos
apresentados a seguir, podemos observar como e em que sentido
tais sentimentos são expressos:

Tristeza por tudo, por estarmos separados das famílias, por


ver que alguns doentes agora têm nome, por saber que muitos

152
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
estão sendo enterrados sem a despedida da família. Tristeza
por termos um governo que não tem um pingo de preparo
pra isso (participante 1)
Tenho medo, pois meus pais são grupo de risco e a gente não
tem plano de saúde. Meu medo é ir ao mercado, topar com al-
guém contaminado, mesmo que seja assintomático, e trazer
esse vírus pra eles. E como não tem cura e nem tratamento
eficiente... Também não há leitos suficientes, nem aqui e nem
em Araguaína. Meu medo é essa insegurança (participante 2)
Eu tenho medo por que na minha família tem muitas pessoas
que são do grupo de risco relacionado ao covid-19, como hi-
pertensos, diabéticos, idosos... Então, eu tenho medo, prin-
cipalmente dessas pessoas contraírem essa doença e serem
levadas pra um estado grave. Tenho medo de perdê-las, que
elas venham a óbito. E tenho medo também de contrair a
doença, pois apesar de ser jovem e não estar no grupo de
risco, eu tenho medo de contrair a doença e acabar em um
estado grave. Esse medo é um sentimento que me causa um
pouco de ansiedade, angústia, aflição (participante 3)
Eu respondi medo pelas pessoas, pois percebo que é uma
doença perigosa, sou técnica de enfermagem, e ver uma
pessoa morrendo é muito difícil. E as pessoas não estão se
preocupando e se cuidando. Medo pra mim é algo ruim, que
me incomoda. Algo desagradável, triste. Eu tenho medo do
medo... rsrs. Isso é bem confuso (participante 4).
Preocupação pela situação da cidade. A gente não sabe até
quando isso vai durar, daí está me deixando meio ansioso,
inquieto. (Participante 5).
O medo parece aumentar cada dia. Acho que, quanto mais
perto, quando são pessoas próximas de você, mais real fica
(Participante 6).

A categoria medo aparece sempre em destaque nos depoimen-


tos. E mesmo quando ela não aparece, os outros termos acabam se
aproximando do seu sentido. Assim se deu com o uso das palavras
tristeza e preocupação. Outros termos – como fé e esperança –, por

153
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
mais que estejam no outro grupo de categorias talvez não demons-
tre uma oposição tão radical ao sentimento medo. São, na verdade,
os seus opostos (pelo menos no campo dos significados), mas se
afirmam exatamente em um contexto onde o medo é a palavra de
ordem. Segundo Koury (2009), partindo de uma pesquisa sobre o
imaginário do medo com moradores de João Pessoa (PB), tal senti-
mento pode ser representado para alguns (principalmente os que
são ligados a algum tipo de religiosidade) como a falta de fé12. Por
isso, mesmo em contextos difíceis, o medo não é afirmado, pois é
percebido como ausência de confiança na proteção divina.
Voltando ao medo, não nos parece que esse sentimento seja
utilizado pelos participantes da pesquisa como sinônimo de covar-
dia – o contrário da coragem – como faziam nas sociedades aristo-
cráticas (CHAUÍ, 1995). Ganha um aspecto de legitimidade, como
uma atitude de precaução13, em favor do próprio bem estar e de
outros. Na verdade, entre as respostas presentes em nossa pesqui-
sa, identificamos que o medo se encaixaria em duas possibilidades
dentro das representações com as quais lidamos: como falta de con-
fiança e temor do risco inesperado.

12
 “A categoria Falta de fé conceitua o medo como falta de crença ou pouca crença
em deus, levando as pessoas a se sentirem fracas e temerosas. Quem possui fé tem
uma solidez e uma confiança que desfaz qualquer temor. A categoria Falta de fé indi-
ca, assim, uma atitude relacional entre os homens e deus como sugestiva de uma paz
interior, fazendo-os encarar o mundo e as relações com os outros sem receio algum”
(KOURY, 2009, p. 402).
13
 Segundo Tavares e Barbosa (2014), “desde os primórdios, dependemos do medo
para a sobrevivência. Ele era, provavelmente, a característica mais preventiva de que
os ancestrais humanos dispunham. Assim, riscos e perigos iminentes eram muitas
vezes evitados através das defesas naturais disponíveis, nas quais o medo estava di-
retamente envolvido. Esta é uma emoção que está presente em nossa vida cotidiana
de cada ser vivente e sua definição, segundo Hollanda (2009), ‘um sentimento de viva
inquietação ante a noção de perigo real ou imaginário, de ameaça; pavor, temor’ está
condizente com a angústia vivenciada, que não pode ser negligenciada” (p. 20).

154
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
Em outra análise desenvolvida por Koury em sua já citada pes-
quisa, o medo aparece como falta de confiança ou receio de errar.
Segundo o autor, nessas circunstâncias, os medos “modulam aspec-
tos de racionalizações e angústias sobre o amanhã, causando es-
tresse, depressão, estranhamento pessoal e com os outros, vistos
como concorrentes” (2009, p. 406). No contexto da pandemia de
covid-19, há uma manifestação geral entre os brasileiros em torno
da incerteza do que virá, do medo de desemprego (ou de perder es-
paço no mercado informal), da diminuição do salário ou da pobreza
generalizada. Trata-se de temer problemas futuros que envolvam
a vida familiar, pessoal e profissional. Ao expressarem temor com
o “despreparo do governo”, com o prazo de fim da quarentena e o
futuro da cidade, o medo manifestado pelos nossos participantes se
enquadra dentro de tal perspectiva.
O medo como temor do risco inesperado é uma categoria que
desenvolvemos a partir das considerações de Tavares e Barbosa
(2014) sobre o medo em situações de risco nas ações da defesa
civil. Assim como as grandes tragédias naturais, repentinas e não
previstas14, a atual pandemia impacta as vidas cotidianas trazendo
uma outra rotina e uma série de novos perigos que não sabemos ou
não estamos acostumados a lidar15. Segundo os autores, “estamos
profundamente conectados aos eventos que se desdobram a partir

14
 Podemos relativizar a imprevisibilidade do covid-19 e suas consequências. Segun-
do Davis (2020) e Harvey (2020), era possível prever uma pandemia global a partir
de experiências anteriores, mas os interesses do mercado capitalista não permitiram
investimentos em práticas de prevenção e possíveis vacinas, o que ocasionou a explo-
são de um vírus repetindo globalmente casos que já tinham acontecidos em contextos
locais nas últimas décadas, como a SARS e o Ebola.
15
 Para Bauman (2008), a ideia de risco deve ser entendida como “os obstáculos que
ficaram próximos demais para a nossa tranquilidade e não podem mais ser negligen-
ciados” (p.18)

155
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
de acontecimentos inesperados. E estes, por sua vez, se desdobram
em emoções: quase sempre fortes, densas e intensas. E entre elas,
a emoção associada ao medo é uma das mais recorrentes” (p. 20).
O medo enquanto temor do risco inesperado foi a forma do-
minante de manifestação desse sentimento em nossas entrevistas
aprofundadas. Entre os temas que expressam isso, podemos desta-
car a distância dos familiares, os receios com o isolamento, a mortes
sem despedidas rituais, o receio pelos leitos ocupados, a preocupa-
ção pelos que estão em grupo de risco, o medo do contágio e das
mortes e sua materialização em pessoas conhecidas e/ou próximas.
Em outra questão do último bloco, perguntamos qual costuma
ser a postura do entrevistado – diante de um caso confirmado na
cidade – sobre a identidade do infectado pelo Coronavírus: se não
procura saber quem foi, se procura saber quem foi para evitar con-
tato com a pessoa e outras próximas dela ou se procura saber quem
foi com o intuito de prestar solidariedade à família. No quadro abai-
xo, vemos graficamente a adesão às respostas.

16%

24%
60%

Procura saber quem foi, pra evitar contato com a pessoa e outras
próximas dela
Não procura saber quem foi

Procura saber quem foi, para prestar solidariedade à família

Em umEm um primeiro
primeiro momento, momento,
vale ressaltarvale ressaltar
o seguinte o seguinte
dado: dado: 84%
84% dos entrevistados
dosinteresse
manifestam entrevistados manifestam
em descobrir quem são os interesse emCovid-19
portadores de descobrir quem
em sua sãoTalos
cidade.
concepção nos permite explorar um ponto importante da sociabilidade das pequenas cidades,
que é a pessoalidade nas relações (PRADO, 1998), 156 que inclui entre seus princípios uma
relativização das privacidades (quando as TO
“ QUAN pessoas
M AI S PEnão
RTO, só
M AIse conhecem,
S RE A L F ICA” mas sabem a biografia
e as redes de relação umas das outras). Evidentemente, essa forma de sociabilidade não é algo
portadores de covid-19 em sua cidade. Tal concepção nos permite
explorar um ponto importante da sociabilidade das pequenas cida-
des, que é a pessoalidade nas relações (PRADO, 1998), que inclui
entre seus princípios uma relativização das privacidades (quando
as pessoas não só se conhecem, mas sabem a biografia e as redes
de relação umas das outras). Evidentemente, essa forma de socia-
bilidade não é algo exclusivo das pequenas cidades (assim como a
forma de vida urbana também não é algo restrito às metrópoles16),
mas nas grandes povoações urbanas elas acontecem geralmente
em agrupamentos menores como ruas, bairros, vilas ou em entre
pessoas que participam de outras formas de congregação, como
grupos de amigos, igrejas etc. Porém, nos municípios de pequeno
porte, a pessoalidade costuma ser uma realidade que dá forma à
vida social dessas localidades. Não é somente a quantidade de pes-
soas envolvidas que permitem essa forma particular de interação,
mas principalmente a crença na relação de pessoalidade como um
valor importante e que não pode ser desprezado.
Saber quem está infectado na cidade e conhecer a sua identi-
dade e algo que não é possível em uma escala municipal nas gran-
des e médias cidades – pelo menos para o cidadão comum, – mas
parece totalmente plausível nas pequenas cidades, tanto pelas suas
dimensões quanto por seus valores. Fizemos um cruzamento de
dados, avaliando o interesse na identidade do caso confirmado a

16
 Blanc (2016) identifica nas pequenas cidades o que define como “modo de vida pe-
queno urbano”. Segundo a autora, “a cidade (mais precisamente o urbanismo – como
modo de vida) exerce seus efeitos para além das suas fronteiras (WIRTH, 1979). Se por
um lado tal ponto de partida nos reenvia a uma apreensão do urbano como microcosmo
da vida social na atualidade, ou do modo de vida urbano como ícone do modo de vida
contemporâneo, inspira a refletir sobre a diversidade de efeitos possíveis, ou suas grada-
ções. Mais do que pensar sociologicamente a partir de outras posições (ou “tamanhos”),
é interessante analisar seus diferentes horizontes de possibilidades” (p. 79).

157
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
partir do grau de inserção na cidade. Para isso, comparamos dois
grupos: aqueles que moram na cidade a menos de 10 anos e os que
moram nela desde o seu nascimento. No primeiro grupo, 55% ma-
nifestaram que não procura saber quem são os casos confirmados.
Já no outro grupo, 87% dos participantes desejam descobrir a iden-
tidade dos infectados por corona vírus na cidade. Parece-nos que,
quanto mais arraigado à sociabilidade local, mais o participante
está envolvido no sistema de pessoalidade.
É preciso ressaltar ainda que 60% dos entrevistados afirma-
ram procurar a identidade do caso confirmado para evitar contato
com a pessoa e outras próximas dela. Essa informação levanta ou-
tra questão relevante: um estigma se instala sobre os casos con-
firmados de covid-19 e aqueles que estiveram/estão próximos ao
infectado.
O estigma (e aqui utilizamos essa categoria a partir da teoria
de Goffman17), aliás, é uma discussão presente em todo o processo
da pandemia. Por conta da origem do vírus na cidade chinesa de
Wuhan, aumentou o processo de estigmatização – por meio de uma
xenofobia – dos habitantes desse país. Segundo Perrota (2020),
“desde o início da pandemia, diferentes meios de comunicação re-
portaram o aumento de discriminação aos chineses, associando
seus hábitos à culpa pelo surto de covid-19” (p. 4), pois “os chine-
ses, de uma maneira generalizada, personificam práticas e valores
entendidos como culpados pela situação causada pelo novo corona-
vírus” (Ibid., p. 4).

17
 Segundo o próprio Goffman, “o termo estigma, portanto, será usado em referência
a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma
linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode
confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso
nem desonroso” (Goffman 1980, p. 6).

158
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
Assim como acontece com várias outras doenças, há uma ati-
tude discriminatória aos infectados pelo Coronavírus por meio de
uma prática de evitação que vai além dos cuidados recomendados
pela organização mundial de saúde. Esse estigma acaba se esten-
dendo aqueles que se aproximam dos doentes por covid-19, inclu-
sive os profissionais da saúde18. Os casos já curados, também rela-
tam sentir o peso de uma prática discriminatória19.
Assim, em Tocantinópolis, os participantes da pesquisa evitam
(assim como em muitos outros lugares) não só aqueles que testaram
positivo para o covid-19 mas também aqueles que lhe são próximos,
como parentes, vizinhos20, todos facilmente identificáveis a partir do
sistema de pessoalidade presente na sociabilidade local. Aliás, é essa
pessoalidade que não permite a esses indivíduos gozarem da con-
dição de desacreditável – o que poderia acontecer em uma grande
cidade – e passam diretamente à situação de desacreditado21.
Por fim, perguntamos aos participantes se sua percepção sobre
o covid-19 mudou depois que apareceu o primeiro caso na cidade.

18
 Cf. https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2020/04/medi-
cos-relatam-preconceito-por-lidarem-com-covid-19.html
19
 https://radios.ebc.com.br/tarde-nacional/2020/04/pacientes-curados-da-covid-
19-relatam-preconceito
20
 Goffman compreende a possibilidade uma “contaminação” por meio do estigma
para pessoas próximas ao estigmatizado: “A questão é que, em certas circunstâncias, a
identidade social daqueles com quem o indivíduo está acompanhado pode ser usada
como fonte de informação sobre a sua própria identidade social, supondo-se que ele é
o que os outros são. O caso extremo, talvez, seja a situação em círculos de criminosos:
uma pessoa com ordem de prisão pode contaminar legalmente qualquer um que seja
visto em sua companhia, expondo-o à prisão como suspeito” (1980, p. 57-58).
21
 De acordo com Goffman (1980, p. 51-52), existem dois tipos de portadores de
estigma: o desacreditado e o desacreditável. O primeiro tipo se apresenta quando
o estigmatizado assume características distintivas já conhecidas ou imediatamen-
te evidentes. Já o segundo, é aquele cujas razões do estigma não são conhecidas ou
imediatamente percebidas, sendo necessário acesso a informações prévias.

159
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
A maioria – 60 % do total – afirmou que sim. No aprofundamento do
questionário, nossos informantes disseram que passaram a ter mais
receio do contágio, que a ameaça se tornou mais real. É interessante
pensar essa mudança. Em um primeiro momento, a ameaça é somen-
te potencial: ela está presente nas maiores cidades da região, mas
ainda não toma uma forma humana conhecida por todos, algo que a
pessoalidade das relações permite. No segundo momento, por cau-
sa do primeiro contágio, as pessoas passam a assumir uma postura
mais pautada pelo medo, evitando situações de risco.
Por meio dos decretos municipais publicados a partir de 16 de
março de 2020 podemos traçar esses dois momentos: o da ameaça
potencial e real. Parece haver uma mudança na postura do poder
executivo municipal a partir de quando o primeiro caso confirmado
de covid-19 em Tocantinópolis é revelado.
O primeiro decreto relacionado à atual pandemia é o de n. 006,
de 16 de março de 2020, o qual determina trabalho de meio período
nas áreas administrativas do serviço público municipal. Além disso,
suspende as atividades da rede municipal de ensino, seguindo de-
terminações do Governo Estadual. Nessa mesma semana, governos
estaduais de vários estados – a partir dos muitos casos identificados
nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo – aplicaram políticas de
distanciamento social. Seguem essa mesma linha os dois decretos
seguintes: o de 19 de março (007/2020), que suspende as ativida-
des das feiras livres, eventos esportivos e eventos festivos; e o de 23
de março (o decreto 008/2020), que declara estado de calamidade
pública, ficando proibidas aglomerações humanas de qualquer es-
pécie, restringindo atividades comerciais e ofícios religiosos.
Diante da inexistência de casos, aparece uma medida de relaxa-
mento. O Decreto Municipal 012/2020, de 03 de abril, flexibilizava

160
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
as medidas de circulação de pessoas, permitindo o atendimento de
clientes em bares, restaurantes, academias e outros pontos comer-
ciais, desde que seguidas as orientações de distanciamento social
e higienização recomendadas pelas organizações de saúde pública
competentes. No entanto, após divulgação dessa medida pela mí-
dia, o Ministério Público Estadual determinou que a prefeitura re-
vogasse tal decreto, e o prefeito veio a público, através de nota de
esclarecimento publicada no site da Prefeitura, trazer explicações e
anunciar seu cancelamento.
O primeiro caso confirmado da cidade é de 13 de Abril, e des-
de então, não foram divulgadas novas políticas de relaxamento.
A partir do crescimento progressivo de casos em Palmas e Araguaí-
na, temos um novo decreto em 27 de abril, o 018/2020, que dispõe
sobre a circulação de veículos na zona rural, principalmente vedan-
do acesso às aldeias da etnia Apinajé, e o transporte de passageiros
vindos de outros municípios, sendo proibida tal atividade, sob pena
de multa e perda do alvará. De maior impacto no cotidiano dos ha-
bitantes da cidade foi a determinação – do mesmo decreto – que
torna obrigatório o uso de máscaras cirúrgicas em ambiente públi-
co, sendo indispensável seu uso em estabelecimentos comerciais,
podendo os proprietários exigir esse EPI dos seus clientes.
No dia 05 de maio é confirmado o segundo caso na cidade. No
dia 10 de maio, pula para 4 casos e no dia 12 de maio a primeira
suspeita de morte, confirmada no dia seguinte. No próprio dia 12,
um novo decreto, também relacionado à questão da circulação de
veículos, o 020/2020, que versa sobre o transporte fluvial realiza-
do pelas balsas e barcos que atravessam rotineiramente o Rio To-
cantins em direção à cidade de Porto Franco-MA. Tendo em vista
o agravamento da situação na margem maranhense, foi proibida a

161
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
travessia durante o horário entre 19h e 5h, quando não há barreira
sanitária no lado tocantinense. Com essa nova determinação, todas
as entradas da cidade ficam controladas e vigiadas, inibindo o in-
gresso de possíveis infectados na cidade.

Conclusão

Nesse momento de crise global com a pandemia do Coronaví-


rus, em que problemas de ordem sanitária impactam as formas de
sociabilidade e demais situações da vida social, as emoções, especial-
mente o medo e sentimentos correlatos, tornam-se presentes como
forma de lidar com o inesperado, tanto aquele que se experimenta no
presente como o que se prevê para o futuro. O medo acaba gerando
reações adversas à razão: enquanto alguns negam o que acontece e
diminuem o seu potencial, outros se envolvem em práticas para além
das recomendações das autoridades de saúde e passam a estigmati-
zar o infectado e as pessoas que lhe são próximas.
Neste artigo, que retrata as primeiras impressões colhidas de
uma pesquisa em desenvolvimento, analisamos algumas reações
emocionais demonstradas pelos participantes, tanto os que respon-
deram ao questionário como aqueles com quem realizamos uma
conversa aprofundada sobre os temas tratados. O lócus é uma cida-
de pequena do norte tocantinense, mas ao mesmo tempo em que as
emoções manifestadas expressam posturas baseadas no ethos lo-
cal, tais concepções do covid-19 e suas consequências também po-
dem representar um quadro mais geral, compartilhado por outros
brasileiros e até em escala global, guardadas as devidas diferenças.
No dia 15 de maio, no final da tarde, o governado do estado do
Tocantins decretou lockdown em 33 cidades do norte tocantinense,

162
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
entre elas, Tocantinópolis e Araguaína22. Como umas das primei-
ras regiões do país a implantar o lockdown, o norte do Tocantins
assume um lugar importante no histórico de combate à pandemia
no Brasil. São novos dados que se apresentam à pesquisa que em-
preendemos e que podem impactar nas emoções dos moradores de
Tocantinópolis e região, o que pretendemos analisar futuramente.

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22
 Cf. https://www.jornaldotocantins.com.br/editorias/vida-urbana/governo-estad-
ual-decreta-lockdown-em-33-cidades-tocantinenses-1.2053573

163
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. v. 2. São Paulo: EPU/EDUSP,
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VOLTA AO SUMÁRIO

164
“ QUAN TO M AI S PE RTO, M AI S RE A L F ICA”
CAPÍTULO 7

REFLEXÕES SOBRE O ENFRENTAMENTO


À COVID-19 EM UMA COMUNIDADE DE
JOÃO PESSOA-PB

Williane Juvêncio Pontes

Introdução

A expansão dos casos de covid-19 – doença causada pelo novo


Coronavírus – em diversos países do mundo resultou na classifica-
ção da doença, pela Organização Mundial da Saúde – OMS, como
pandemia, devido ao ritmo crescente de disseminação do vírus.
Classificação que busca alertar os países sobre a necessidade de re-
forçar medidas de prevenção e combate à transmissão da doença.
Para frear a disseminação do novo Coronavírus a OMS recomen-
da medidas de prevenção e enfrentamento ao surto da doença, que
são adaptadas pelos gestores às condições sociais, econômicas e po-
líticas de cada país. São medidas de cuidados cotidianos de higiene
– como lavar as mãos com água e sabão –, de utilização de álcool gel
e de máscara ao sair de casa e de exercício de isolamento e de distan-
ciamento social, evitando aglomerações. A adoção dessas recomen-
dações visa reduzir o contágio do covid-19, ocasionando, consequen-
temente, uma mudança no cotidiano de milhões de pessoas.

165
Essas medidas de prevenção, por outro lado, não possuem
efeitos uniformes sobre toda a população (PIRES, 2020), com a re-
corrência de segmentos sociais vulneráveis que absorvem de forma
diferenciada os impactos das medidas de enfrentamento à pande-
mia. Ao refletir sobre os efeitos da crise ocasionada pela covid-19
sobre grupos sociais e territórios vulnerabilizados, Roberto Pires
(2020. p. 7,) salienta que os grupos sociais historicamente subme-
tidos aos processos de vulnerabilização são os mais expostos aos
efeitos adversos do novo Coronavírus, pois há uma agravamentos
das condições socioeconômicas desses grupos marcados pelas de-
sigualdades sociais que configuram um frágil acesso ao mercado
formal de trabalho, à habitação digna, à saúde e a educação.
Os moradores da Comunidade do Timbó são um exemplo das
populações em condições de vulnerabilidade agravada pelo novo
coronavírus. O Timbó é uma comunidade localizada na zona sul
da cidade de João Pessoa – Paraíba, composta por cerca de 10 mil
pessoas (ACMVT, 2016), que atuam na construção civil, no trabalho
doméstico, como porteiros de prédios, vendedores em lojas, moto-
ristas de ônibus, flanelinhas, catadores de materiais recicláveis, ca-
belereiras, borracheiros, mecânicos, lojistas, entre outros trabalhos
autônomos, formais e informais.
As medidas de prevenção e enfrentamento à covid-19 afe-
ta de forma intensa os moradores da comunidade, que sentem as
consequências de maneira imediata, como a perda do rendimento
mensal, que acentua questões de alimentação familiar, obtenção de
itens básicos de higiene e custeio de contas mensais – como água e
energia elétrica. Assim, os efeitos da pandemia acabam por agravar
as condições socioeconômicas dos moradores. Além da mudança
no cotidiano doméstico, há também o incentivo à uma reconfiguração

166
R E F L E X Õ E S S O BRE O E N FRE N TAM E N TO À COVID-19 E M UM A COMUNIDA DE DE JO Ã O P ESS OA-P B
temporária na sociabilidade local, onde o encontro com o outro é
característico da intensa pessoalidade1 que permeia as relações na
Comunidade do Timbó.
Neste sentido, este trabalho busca desenvolver uma reflexão
sobre como os moradores da Comunidade do Timbó estão enfren-
tando o novo Coronavírus. A discussão se debruça sobre o exercício
do isolamento social em uma sociabilidade pessoalizada e as inicia-
tivas solidárias que conformam as redes de apoio e solidariedade
para suprir necessidades básicas que não são atendidas pelas po-
líticas públicas e emergenciais do Estado. O isolamento social e as
iniciativas solidárias são elementos vistos como importantes para
entender como as medidas preventivas são absorvidas pelos mora-
dores e como ajuda mútua e as redes de apoio se configuram nesse
momento de pandemia.

O isolamento social em uma sociabilidade de intensa


pessoalidade

O isolamento social é uma das medidas preventivas considera-


da mais eficaz para combater a progressão do vírus, que se proces-
sa pela transmissão entre pessoas. Evitar o contato social ao ficar
em casa é, deste modo, uma forma de colocar a si e aos outros – fa-
miliares, amigos, conhecidos – em segurança, evitando o contágio

1
 A pessoalidade fomenta relações estreitas e interpessoais, onde o conhecimento
mútuo é o elemento característico basilar. Na Comunidade do Timbó os moradores
vivenciam uma intensa pessoalidade configurada pelo espaço compartilhado e pelo
tempo de vivência que proporciona relações duradouras e vínculos afetivos estreitos
entre os moradores. Assim, a intensa pessoalidade que configura o viver no Timbó
promove o exercício cotidiano das relações pessoais, do encontro ao outro promovido
pelas visitascorriqueiras, pelo uso da rua, das calçadas e do comércio como local de
exercício da sociabilidade.

167
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imediato. Em concordância com a recomendação da OMS, o gover-
nador do Estado da Paraíba – João Azevedo – e o prefeito da cidade
de João Pessoa – Luciano Cartaxo – adotaram a medida de isola-
mento social por meio de decreto2, ordenando o fechamento das
escolas, do comércio não essencial – mantendo apenas mercados e
farmácias em funcionamento – e orientando evitar atividades que
promovam aglomerações.
Com a adoção do isolamento social a maioria da população
passa a possuir tempo integral para permanecer em casa, com a
recomendação da saída apenas quando essencial, como para a com-
pra de comida, medicação ou a utilização dos serviços de saúde.
O isolamento social, no entanto, não é um recurso que se realiza
de modo uniforme para todos. Há espaços urbanos com dinâmicas
que tornam esta medida preventiva problemática devido, princi-
palmente, à alta densidade populacional, as habitações precárias
(MACEDO; ORNELLAS e BOMFIM, 2020) e as formas de sociabilida-
de específicas que configuram a vivencia dos moradores.
Na Comunidade do Timbó o isolamento social se choca com
as ocupações que os moradores exercem, principalmente aqueles
que trabalham no setor informal, ficando mais expostos ao contá-
gio da covid-19. Além da dificuldade de isolamento ocasionada por
habitações superlotadas, esta medida de enfrentamento ao novo
Coronavírus não é suficiente por contrastar com a dinâmica local,
baseada em uma intensa pessoalidade que dificulta a implementa-
ção desta medida preventiva.

2
 Foi publicado no último dia 02 de maio de 2020 o decreto 40.217, onde o gover-
nador do Estado da Paraíba prorroga até o dia 18 de maio as medidas restritivas por
todo o estado. Já o decreto municipal de 04 de maio de 2020 determina a restrição da
circulação de pessoas por parques e orlas para aumentar o índicede isolamento social
na cidade de João Pessoa.

168
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A Comunidade do Timbó é um lugar3 onde se exerce uma so-
ciabilidade baseada na intensa pessoalidade, com o conhecimento
mútuo entre os moradores, as corriqueiras visitas às casas de pa-
rentes, amigos e vizinhos ea utilização das calçadas e das ruas como
forma de exercício da sociabilidade local. Cominterações marcadas
pela pessoalidade enquanto conhecimento mútuo e como proximi-
dade física e social, os moradores da comunidade estabelecem rela-
ções pessoais que configuram modos e estilos de vida.
O decreto municipal e estadual que ordenou o fechamento do
comércio não essencial e possibilitou que diversos moradores per-
manecessem em casa,devido a suspenção temporária na jornada de
trabalho, proporcionou uma maior ocupação, pelos moradores, das
ruas, calçadas e da quadra esportiva da comunidade. O maior tem-
po livre ocasionado pela medida de isolamento social foi entendido
por alguns moradores como disponibilidade paraexercitar a socia-
bilidade local do encontro ao próximo, outros moradores fazem uso
da calçada e da rua como forma de aliviar a quantidade de pessoas
dentro de uma mesma casa. De uma forma ou de outra, há um baixo
estímulo à lógica do isolamento social em uma sociabilidade que
proporciona a proximidade física e social entre os moradores.

3
 Lugar é conceituado neste trabalho como um elemento intrínseco do processo de
formação da pertença (KOURY, 2001; 2003; 2017), o que configura o sentido das rela-
ções sociais que se estabelecem no Timbó e que podem ser compreendidas a partir da
experiência do morador, que funda e é fundado pela cultura emotiva. O lugar é produto
das relações sociais e se relaciona com a dimensão do vivido, surge como resultado de
experiências e do pertencimento a uma localidade, processo que se configura através
do cotidiano (TUAN, 1983), de modo que o lugar agrega o convívio, as experiências
afetivas, a memória e a construção identitária do indivíduo e do coletivo que ali se
forma. Assim, a noção de lugar remete a um tipo de envolvimento com o mundo, que
está baseado na necessidade de raízes e de segurança (RELPH 1979 apud LEITE 1998,
p. 10), é um envolvimento configurado pelo sentimento de pertença (KOURY, 2017),
responsável por transformar o espaço em um ambiente inteiramente familiar, isto é,
em um lugar.

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A atuação de uma parcela dos moradores para a prevenção e o
enfrentamento do novo coronavírus na Comunidade do Timbó ganha
o espaço virtual das redes sociais, além das ações organizadas na co-
munidade. O perfil Meu Timbó, que funciona na rede social Instagram,
vem realizando um trabalho de alertar e apoiar a população para os
efeitos da covid-19. O perfil, administrado por três jovens moradores
da comunidade, teve sua primeira publicação sobre o enfrentamento
à pandemia no dia 27 de março de 2020, quando discute a repercus-
são da veiculação da Comunidade do Timbó na imprensa local em
uma reportagem sobre a adoção da medida de isolamento social nas
comunidades da cidade de João Pessoa.
A reportagem foi veiculada no dia 26 de março de 2020 no
programa Correio Verdade, da TV Correio, que é transmitido diaria-
mente a partir das 12 horas e possui alta audiência na Comunidade
do Timbó4. Na ocasião, a reportagens mostra as ruas movimenta-
das, com a presença de homens, mulheres e crianças, e chama aten-
ção para a necessidade de adoção da medida de isolamento social
para a segurança familiar e para frear a contaminação pelo novo
coronavírus. A orientação de isolamento social é reforçada pelo de-
poimento dos moradores que adotaram tal medida e pela fala do
líder comunitário da Associação de Moradores.
A síntese concedida pelo repórter, no início da reportagem,
reforça a dificuldade do isolamento social em uma sociabilidade
de intensa pessoalidade, acentuando a necessidade de pensar em
alternativas para a conscientização e prevenção dos moradores à
covid-19. Nesta síntese, o reporte afirma:

Olha quanta gente na rua! Mulheres, crianças, homens...


Todo mundo junto e despreocupado, a sensação é de que o

4
 Esta gravação do programa Correio Verdade pode ser acessada pelo link: https://
www.youtube.com/watch?v=ZLQNSCRTOOQ, com início da reportagem no tempo de
35min14seg.

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coronavírus não chegou por aqui! Esse cenário nós encon-
tramos na Comunidade do Timbó, que fica no bairro dos
Bancários, zona sul de João Pessoa. As ruas são estreitas e
cheias de ladeiras. Segundo o presidente da Associação dos
Moradores, aqui mora aproximadamente 11 mil moradores
que já sofrem com os problemas comuns das pessoas de bai-
xa renda e agora tem que aprender a lidar com o isolamento
social... Nem todo mundo está seguindo as recomendações
de ficar em casa! O líder comunitário tem feito apelos diários,
no entanto, o pedido nem sempre é atendido (Reportagem
do Correio Verdade, 26 de março de 2020).

“Aprender a lidar com o isolamento social” significa uma re-


configuração no cotidiano da comunidade, onde o encontro ao ou-
tro, as conversas no comércio, as rodas de dominó, o jogo de bola
na quadra e até na rua, no caso das crianças, se faz presente diaria-
mente, principalmente no período de final da tarde e nos finais de
semana. A mudança no cotidiano, no entanto, é algo preciso para o
momento de pandemia, de modo a evitar que a propagação do vírus
na comunidade, como indica o líder comunitário na reportagem.
Há moradores que realizam ações de prevenção à covid-19,
incentivando o isolamento social – para quem pode ficar em casa
– como uma mudança no cotidiano para que, no futuro próximo,
a normalidade se reestabeleça, com a abertura do comércio, o re-
torno ao trabalho – para aqueles que possuem –, a volta às aulas
e a circulação das linhas de transporte coletivo pela cidade. O per-
fil Meu Timbó é um exemplo desse grupo de moradores que busca
conscientizar a população local sobre a covid-19 e a importância do
isolamento e distanciamento social. Chamar a atenção dos morado-
res para os efeitos da pandemia na comunidade foi se constituindo
como a via de diálogo que fundamenta a ação de prevenção para
evitar que o novo coronavírus circule pela Comunidade do Timbó.

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A Figura 1, abaixo, ilustra uma das ações realizadas nas redes
sociais para o enfrentamento ao novo coronavírus, com a discussão
sobre a repercussão da reportagem supracitada que veicula a situa-
ção da Comunidade do Timbó no contexto da pandemia. A preocu-
pação dos administradores do perfil é alertar sobre como situações
corriqueiras da sociabilidade local se choca com as recomendações
de isolamento e distanciamento social, a proximidade entre os mo-
radores é um elemento constitutivo da pessoalidade que configura
o lugar Timbó, sendo um dos elementos basilares da cultura emoti-
va5 da Comunidade do Timbó.

Figura 1 – Moradores utilizam reportagem transmitida no


programa televisivo Correio Verdade para alertar sobre o
enfretamento ao coronavírus na Comunidade do Timbó
Fonte: Instagram Meu Timbó, postado em 27 de março de 2020.

5
 Koury (2017, p. 10) define cultura emotiva como o processo de trocas emocionais en-
tre os indivíduos que contribui para a criação de práticas comuns no jogo relacional e
proporciona formas de continuidade, de elaboração de alianças e de estabelecimento de
um saber comum. A cultura emotiva permite que indivíduos vivenciem e partilhem um
lugar comum, uma vez que seu conteúdo possui sentidos morais e se apresenta como
recheada de elementos de predisposição ao outro relacional. Neste sentido, a cultura
emotiva é produzida através das trocas recíprocas – tanto materiais quanto simbólicas
– entre indivíduos localmente situados (BARBOSA, 2015, p. 13) que, ao produzirem e
se inserirem em uma dada cultura emotiva, conformam o self, estabelecem relações e
desenvolve um sentimento de pertença a comunidade, ao bairro ou ao grupo.

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O recorte dos 30 segundos iniciais da reportagem é postado
pela página com um apelo aos moradores para o cumprimento da
medida de isolamento social, indicada como a ação que pode salvar
a vida. A não adesão ao isolamento e a possibilidade de contami-
nação pelo covid-19 contribui para a proliferação do vírus nessa
parcela da população devido ao alto número de pessoas reunidas
no mesmo local (MACEDO; ORNELLAS e BOMFIM, 2020). A legenda
da postagem chama atenção, entre outros, para a necessidade de
mudança temporária nas relações cotidianas, que promovem a pro-
ximidade física entre os moradores. A transcrição, abaixo, ilustra o
apelo do perfil Meu Timbó para que os moradores fiquem em casa.

Boa tarde!Olhem bem esse vídeo e reflitam sobre como es-


tamos lidando com a covid-19 na comunidade em que mo-
ramos. Muitos dos nossos avós e avôs estão aqui desde a
juventude, cresceram aqui, criaram seus filhos e filhas aqui,
deram duro para construir suas casas.Por que será que tanta
gente ainda vê esse vírus como algo tão simples? Uma doen-
ça que é contaminada pelo AR, que consegue atingir alguém
em até 12 metros de distância.Só essa semana morreram
inúmeras pessoas fora da área de risco da doença. Então,
não se enganem de que só quem corre perigo são os idosos!
Vá só em apenas lugares necessário, como o mercadinho da
comunidade. Saiba que aquele aperto de mão com familiar
que você confia, aquela visita do seu amigo que mora do lado,
aquele tempinho que tu passa sentada na calçada pra ver o
movimento, a criança brincando com os/as amiguinhos/as...
Todas essas coisas que você acha que não tem problema em
fazer, é justamente o que você poderia evitar por 40 dias, pra
poupar a tua vida e a vida de todxs! Façamos nosso apelo
para que vocês fiquem em casa. Obrigado pela atenção! (Pos-
tagem do perfil Meu Timbó, 27 de março de 2020).

A postagem ressalta o alerta para o perigo de entrada e a rá-


pida disseminação do vírus na comunidade devido a proximidade

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física entre os moradores, que não aderem a campanha do “fique
em casa” ao continuar exercitando relações corriqueiras que cons-
tituem a sociabilidade local: as visitações aos amigos, o sentar nas
calçadas, as brincadeiras das crianças e demais situações que pro-
movem o contato físico entre pessoas de famílias diferentes. O per-
fil Meu Timbó defende o isolamento não apenas para os idosos, mas
para todos os moradores, com saída à rua apenas quando necessá-
rio, como para realizar compras de alimentos.
O isolamento e distanciamento social vêm sendo orientado e
buscado por meio do confinamento domiciliar da população (PIRES,
2020), mas aderir a esta medida não significa lidar com condições
diferenciadas entre os moradores para enfrentarem um período re-
lativamente longo de isolamento e confinamento. Na Comunidade
do Timbó há uma média de 06 pessoas compartilhando uma resi-
dência, seja na mesma casa, seja em uma casa com puxadinho, o que
indica um número significativo de pessoas reunidas em uma habi-
tação. Neste sentido, as condições de habitação de determinadas
parcelas da população brasileira – como aqueles que residem em
periferias, favelas e comunidade – impõem limitações às medidas
de isolamento e distanciamento social (PIRES, 2020).
A baixa adesão ao isolamento social também foi discutida nos
comentários da postagem por alguns moradores da comunidade,
que levantavam a questão do acesso à informação sobre a situa-
ção e os efeitos da pandemia. Neste sentido, uma das moradoras
escreve: “É que a questão é as informações que estão chegando
para a população e de que maneira percebem. Quais meios de in-
formações esse público mais utilizam, para se atualizar dos proble-
mas...”, fazendo ênfase a necessidade de ações de conscientização
para a prevenção à covid-19 na comunidade. Assim, a condição de

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habitação superlotada e do trabalho informal se soma à baixa infor-
mação sobre os efeitos do novo Coronavírus.
A informação chega? Qual é o tipo de informação? Como che-
ga essa informação ao morador? São alguns dos questionamentos
feitos para pensar sobre como a Comunidade do Timbó vem en-
frentando a covid-19. Com tais preocupações, um grupo de mora-
dores se reuniu para realizar atividades de conscientização e pre-
venção ao vírus, em parceria com organizações políticas, na busca
de alertar aos moradores da comunidade sobre a importância do
isolamento social para frear a progressão da doença e evitar que
a covid-19 chegue ao Timbó. Circunstância que alerta para a inefi-
ciência das ações do Governo Municipal e Estadual na comunidade,
de modo que as medidas de enfrentamento da pandemia recomen-
dadas pelas autoridades não se mostram suficientes, sendo neces-
sária a atuação dos moradores para suprir a falta de ações informa-
tivas e preventivas nesta parcela da população.
Os administradores do perfil Meu Timbó, em conjunto com a
Associação Jovens em Ação – AJA, com os Jovens Solidários – JS, com
o Projeto de Extensão Metuia UFPB e o Levante Popular da Juven-
tude Paraíba se organizaram para a realização de ações de apoio
aos moradores na informação para enfrentar a covid-19. A primeira
ação de prevenção ao novo Coronavírus foi realizada no dia 05 de
abril e tinha a “missão de conscientizar sobre os cuidados e preven-
ções contra a contaminação pelo novo covid-19 e também sobre
o Auxílio Emergencial”, como indicou a postagem feita pelo perfil
Meu Timbó.
Além do incentivo ao isolamento social, evitando aglomera-
ções na comunidade, outras medidas foram ressaltadas duran-
te esta ação de prevenção, como a adoção de medidas de higiene

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básica. Lavar constantemente as mãos com água e sabão,quando
possível utilizar álcool gel 70% para higienizar objetos, limpar as
superfícies com água sanitária e usar máscara ao sair na rua são
outras medidas importantes que foram ressaltadas paradiminuir a
possibilidade de contágio do covid-19. O repasse de tais informa-
ções foi realizada por meio da colagem de panfletos informativos
no comércio local, nos templos religiosos e na quadra de esportes,
bem como da caminhada por ruas da comunidade com um carro de
som informando verbalmente essas medidas preventivas.
As ações de prevenção são realizadas de formas eventuais
para resguardar a segurança de todos os evolvidos, moradores e
não moradores, buscando não promover aglomerações. A avaliação
da eficácia de tais ações são indicadas no perfil Meu Timbó, que co-
memora a maior adoção do isolamento social com fotos do esvazia-
mento das ruas da comunidade. Para conseguir uma maior adesão
às recomendações da OMS e dos Governos Municipal e Estadual foi
necessária a iniciativa de um grupo de moradores para a orienta-
ção dos demais moradores da Comunidade do Timbó sobre as con-
sequências da covid-19, alertando para o cuidado e a proteção de
todos os moradores, não somente daqueles que se enquadram nos
grupos de risco.
Essas ações tem ampla divulgação nas redes sociais, principal-
mente no Instagram, com panfletagem online por meio de posta-
gens e a realização de lives para conscientizar no enfrentamento
aos efeitos da covid-19, tanto no que se refere ao contágio do vírus
como a busca de amenizar o agravamento da condição de vulnera-
bilidade social dos moradores.O que ressalta a importância de con-
siderar meios de informar e conscientizar grupos sociais que são
atingidos de forma mais intensa pela pandemia devido a condição

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de vulnerabilidade socioeconômica a que estão submetidos, fican-
do mais expostos ao contágio do vírus.
Assim, as recomendações de isolamento social, apesar de ne-
cessárias, não se encaixam na realidade de uma parcela da popula-
ção e não são suficientes para enfrentar a covid-19 nas comunida-
des. A medida do isolamento e distanciamento social se expressa,
ainda, como uma ameaça imediata para a manutenção da família
e a sustentação financeira, atingindo diretamente os moradores
desempregados e aqueles que são trabalhadores informais e autô-
nomos. Há um comprometimento do ganho mensal devido a sus-
pensão temporária das atividades de trabalho, acentuando a difi-
culdade de manutenção familiar.
A questão da sobrevivência familiar é realçada com a sus-
penção das atividades escolares, cuja merenda e almoço escolar
se constitui como uma segurança alimentar. Com a paralização do
comércio e a suspenção das aulas se acentua o comprometimen-
to do acesso à alimentação para diversas famílias na Comunidade
do Timbó. A circunstância de ameaça à manutenção da família se
processa devido à falta de políticas públicas e ações que amparem
esses grupos mais vulneráveis, que tem a preocupação da sobrevi-
vência intensificada.
Quando o Estado não é presente nas comunidades e favelas da
cidade, não prestando assistência social para amenizar e atender
as situações de vulnerabilidade desta parcela da população, são
os moradores, as igrejas e as Organizações Não Governamentais –
ONGs que dão apoio aqueles que mais necessitam. Essa assistência
é prestada por meio da formação e reafirmação de redes de apoio e
solidariedade que contam com a colaboração não somente de ami-
gos e vizinhos da Comunidade do Timbó, mas com o apoio de todos

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que podem e querem ajudar os grupos em situação de vulnerabili-
dade acentuada.
É sobre essas redes de apoio e solidariedade que a discussão
se debruça no tópico seguinte, que busca refletir sobre a atuação
de moradores, das igrejas e de ONGs para auxiliar os moradores
da Comunidade do Timbó no enfrentamento à covid-19. Redes que
configuram um fortalecimento das ações comunitárias e de solida-
riedade e constroem espaços de participação social.

Redes de apoio e solidariedade

As redes de apoio e reciprocidade são estabelecidas, principal-


mente, entre vizinhos que possuem um vínculo estreito, mas tam-
bém podem ser ampliadas para toda a vizinhança, entre aqueles
com quem o morador mantém uma relação cordial e que passam
por uma situação que requer a ajuda. Na Comunidade do Timbó
são estabelecidas redes de apoio para indicação de empregos, entre
outras variedades de apoio recíproco entre os moradores, que é in-
tensificado entre aqueles que mentem uma relação afetiva estreita.
Essas redes de apoio são importantes no cotidiano da comu-
nidade e na manutenção de famílias, mas com a situação da pan-
demia a importância dessas redes são evidenciadas, se apresen-
tando como a assistência imediata – e muitas vezes única – para a
sobrevivência familiar. Redes que buscam amenizar a falta de apoio
e políticas públicas que preserve as pessoas em situações vulnerá-
veis, exacerbadas pelo novo Coronavírus. Nesta direção, ao refletir
sobre os direitos para as favelas e as periferias no Brasil durante o
período da quarentena ocasionada pela pandemia, Jorge Barbosa
(2020) chama atenção para os atores que atuam por uma agenda
de proteção e assistência aos grupos sociais expostos à covid-19 e
seus efeitos.

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As organizações da sociedade civil, profissionais de saúde e
movimentos sociais populares precisam ser reconhecidos e
afirmados como atores fundamentais para criação de uma
ampla agenda de proteção e cuidados às populações e terri-
tórios mais vulneráveis aos danos (im)previsíveis da propa-
gação do coronavírus. Essa agenda é urgente, assim como é a
mobilização da solidariedade não só entre familiares e ami-
gos, mas entre vizinhos, entre colegas de trabalho, entre pes-
soas que estão próximas e/ou distantes. São solidariedades
horizontais que sempre se fizeram presentes no cotidiano
das favelas e periferias e, agora, serão por demais decisivas
para superar a tragédia que se avizinha. Vale lembrar, afinal,
que em situações limites como a qual estamos lidando a De-
mocracia ganha o sentido explícito de garantia do Direito à
Vida (BARBOSA, 2020, p. 3).

As solidariedades horizontais que Barbosa aponta como pre-


sentes no cotidiano das favelas e periferias é compreendida na Co-
munidade do Timbó por meio das redes homofílicas (MARQUES e
BICHIR, 2011) estabelecidas entre parentes e amigos. Estas redes,
no entanto, não conseguem suprir a urgência de amparo às diver-
sas famílias que estão com a manutenção familiar ameada pela pan-
demia, responsável por agravar as situações de vulnerabilidade. De
modo que as solidariedades horizontais, constituídas na dimensão
das relações pessoais baseada no conhecimento e no vínculo afeti-
vo entre as pessoas, são complementadas pelas solidariedades ver-
ticais, que se configuram a partir de redes de apoio impessoais ou
que não necessariamente se pautam no conhecimento mútuo entre
as pessoas.
A solidariedade vertical, refletindo a termologia acionada por
Barbosa, ilustra a importância das iniciativas solidárias que cons-
troem redes de apoio necessárias pela ausência da atuação do Es-
tado nas comunidades, favelas e periferias. Nessas iniciativas são

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sistematizadas a atuação de grupos de moradores, de líderes co-
munitários, de igrejas e de Ongs na buscar de prestar assistência
aos moradores através de campanhas de arrecadação monetária,
de alimentos e materiais de higiene.
A consideração da necessidade de prestar assistência aos mais
vulneráveis foi um dos motivos para a criação do projeto Jovens So-
lidários – JS, por jovens moradores da comunidade que estudam na
Escola Cidadão Integral Francisca Ascensão Cunha – ECI FAC. Pro-
jeto que atua em parceria com a AJA, a ECI FAC, o Meu Timbó e o
Levante Popular da Juventude Paraíba para arrecadar alimentos a
serem destinados às famílias da Comunidade do Timbó que estão
sendo atingidas pela pandemia da covid-19. A doação monetária é
realizada por meio de uma vaquinha online e a doação de alimentos
é coletada na ECI FAC, onde também são montadas as cestas básicas
para distribuição da comunidade.
Esta campanha de arrecadação e distribuição de cestas básicas
para as famílias afetadas pela covid-19 é empreendida em parce-
ria, no mesmo dia de distribuição é realizada ações de panfletagem
para a prevenção ao vírus.A campanha iniciada pelos JS já benefi-
ciou mais de 100 famílias da Comunidade do Timbó e continua com
os pedidos de incentivo à solidariedade no apoio aos mais necessi-
tados, com acréscimo de doações de livros infantis para as crianças.
A lógica da solidariedade é o elemento que surge como central
na busca pela cooperação aos grupos vulneráveis – quilombolas, ci-
ganos, pessoas em condição de rua, moradores de comunidades e
periferias urbanas, entre outros. É o compromisso que envolve uma
assistência social e moral de apoio a grupos ou causas em deter-
minadas circunstâncias, se fazendo mais acentuada em situações
limites como a atual pandemia do novo Coronavírus.

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Nessa lógica também se desenvolve a campanha do Instituto
Vem Cuidar de Mim, que busca prestar assistência as famílias da
Comunidade do Timbó. O Instituto funciona dentro da comunidade
e atende crianças e adolescentes, realizando um trabalho de educa-
ção infanto juvenil e incentivo a atividades lúdicas. Empreende uma
campanha de arrecadação de alimentos, de material de higiene e de
dinheiro para a compra e distribuição de cestas básicas quinzenais
para as famílias atendidas pelo Instituto, com o objetivo de auxiliar
na manutenção familiar desses moradores em área e condição de
vulnerabilidade social.
Há, também, as campanhas de assistencialismo prestadas pe-
las igrejas situadas na Comunidade do Timbó, que já realizava essa
ação mensalmente para alguns moradores considerados em situa-
ção vulnerável. A Capela Santo Antônio, por exemplo, é uma capela
que possui uma campanha de arrecadação de alimentos para as fa-
mílias mais carentes do Timbó, distribuindo em média 100 cestas
básicas. A Capela arrecada alimentos em dias específicos da sema-
na, contando com a contribuição, principalmente, dos moradores da
comunidade e dos frequentadores da igreja Menino Jesus de Praga,
localizada no bairro dos Bancários, para obtenção dos alimentos.
A Figura 02, abaixo, sistematiza o cartaz das três campanhas.
As três campanhas supracitadas, algumas motivadas para o
enfrentamento aos efeitos da pandemia – como a iniciativa dos JS e
a campanha do Instituto – e outras já realizadas corriqueiramente
na comunidade – como as cestas básicas distribuídas pela Capela –,
contribuem para auxiliar um número maior de moradores da Co-
munidade do Timbó, apesar da assistência prestada não conseguir
beneficiar a todos em situação de vulnerabilidade acentuada pela
covid-19.

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Neste sentido, é um conjunto de atores e organizações que
atuam com iniciativas solidárias de atendimento as famílias mais
vulnerabilizadas na pandemia do covid-19. Estimulando o iso-
lamento social para aqueles que podem ficar em casa e manter o
distanciamento, estes atores e organizações buscam construir me-
didas de apoio aos moradores carentes da comunidade através de
uma rede de solidariedade que pretende auxiliar a manutenção
familiar daqueles que estão mais expostos aos riscos – sanitários,
econômicos e sociais – da pandemia do novo Coronavírus.

Figura 2 – Campanhas divulgadas no Instagram para arrecadação e


distribuição de cestas básicas para famílias da Comunidade do Timbó.
Fonte: Figuras retiradas do perfil Jovens Solidários, Instituto Vem
Cuidar de Mim e Capela Santo Antônio, respectivamente.

A principal medida é a distribuição de cestas básicas com ali-


mentos e produtos para a higiene pessoal e familiar, que recebe
o apoio de organizações e de uma parcela da sociedade civil. Mas
também realiza a distribuição de máscaras doadas para que as

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famílias da comunidade possam se proteger ao sair de casa, apesar
de encontrar situações em que é preciso compartilhar uma másca-
ra para toda a família.
A estratégia baseada em redes de apoio e solidariedade objeti-
va circular informações e fornecer recursos complementares para
o enfrentamento dos efeitos da covid-19 na Comunidade do Timbó,
que é um em espaço urbano na cidade de João Pessoa que expe-
riencia uma condição de vulnerabilidade socioeconômica desde o
início desse aglomerado subnormal, no final dos anos de 1970. No
entanto, vale ressaltar que tais estratégias visam amenizar o agra-
vamento das condições de vulnerabilidades dos moradores da co-
munidade, mas não são suficientes e necessitam de uma ação efeti-
va e eficiente do Estado para garantir a sobrevivência e a proteção
desses grupos sociais historicamente vulneráveis.

Considerações finais

A crise ocasionada pela pandemia ressalta a desigualdade so-


cial, com grupos historicamente submetidos à processos de vulne-
rabilização e de segregação socioespacial, estando mais expostos
as adversidades resultadas pelo novo Coronavírus por não possuir
acesso à moradia adequada, ao saneamento básico, a políticas pú-
blicas que atendam as situações de vulnerabilidade, como a manu-
tenção de uma renda básica para a subsistência. Na cidade, esses
grupos geralmente ocupam as periferias, as comunidades, as ocu-
pações urbanas ou estão em situação de rua, de modo que certas
medidas básicas para a prevenção à covid-19 são inviáveis à esses
grupos, seja pela alta densidade populacional, pelo não acesso a
água encanada, pela falta de saneamento ou por não possuir uma
renda básica para a sobrevivência pessoal e familiar.

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Nesta circunstância as recomendações e medidas de prevenção
são insuficientes, não garantindo a proteção da população vulnerá-
vel, como os moradores da Comunidade do Timbó, que constroem
alternativas que se adequam a condição local para enfrentar a co-
vid-19. Uma dessas alternativas foi a ação de informação e cons-
cientização dos moradores sobre os efeitos do novo Coronavírus,
com o objetivo de estimular a adoção da medida de isolamento so-
cial, suspendendo temporariamente relações corriqueiras que ca-
racterizam a sociabilidade local, baseada na intensa pessoalidade.
A identificação de baixa adesão a medida de isolamento social
foi associada ao pouco acesso à informação, por parte dos morado-
res, sobre as consequências que o vírus acarreta para esta parcela
da população. De modo que um grupo de moradores se organizou
para atuar na frente de prevenção e enfrentamento a covid-19 de-
senvolvendo ações informativas nas redes sociais para alertar aos
moradores sobre a importância de praticar o isolamento, por aque-
les que podem ficar em casa, para proteger a si e aos outros, frean-
do a disseminação do vírus.
A baixa adesão ao isolamento social também é indicada pelo
contraste que esta medida ocasiona no cotidiano da comunidade,
onde impera as relações pessoais exercitadas no uso das calçadas,
da rua, do comércio, dos locais de lazer e das visitas aos amigos.
O encontro ao outro é corriqueiro na sociabilidade da Comunidade
do Timbó, que fomenta a proximidade física e social entre os mora-
dores, dificultando a suspensão temporária dessas relações para a
adoção do isolamento.
Esta medida, no entanto, tem baixa adesão não apenas por se
chocar com a forma de sociabilidade local, mas principalmente pela
condição de vulnerabilidade ao qual os moradores estão sujeitos,

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com habitações com grande número de pessoas, condições precá-
rias de trabalho, desemprego e desenvolver um trabalho informal.
A falta de assistência social do Estado para preservar esses grupos
sociais vulneráveis e diminuir o agravamento de suas condições
contribui para a acentuação da exposição dessa parcela da popula-
ção ao vírus e suas adversidades.
Onde o Estado não chega de forma efetiva, é preciso estraté-
gias complementares para a preservação desses grupos, como a
criação de iniciativas solidárias para formar redes de apoio para a
sobrevivência pessoal e familiar daqueles mais necessitados, que
sentem de forma intensa os efeitos da covid-19. As campanhas de
arrecadação e distribuição de cestas básicas para as famílias vul-
neráveis da Comunidade do Timbó se torna a única iniciativa de
assistência para complementar e, na maioria dos casos, fornecer o
material básico de subsistência, a alimentação.
As iniciativas solidárias que movimentam as redes de apoio,
apesar de importantes, não são suficientes para garantir a manu-
tenção familiar dos moradores. É preciso que o Estado desempe-
nhe seu papel de garantir o direito à uma moradia adequada, a uma
renda básica para a subsistência dos cidadãos, a saúde e a educação
pública de qualidade e a informação.No contexto de crise intensifi-
cada pela pandemia do novo Coronavírus, para prevenir e enfrentar
a covid-19 o Estado deve fornecer recursos necessários de acesso a
serviços e equipamentos de alimentação e higienização e de auxílio
financeiro à população de baixa renda. As recomendações e medi-
das tomadas pela Administração Pública – nas esferas municipal,
estadual e federal – precisam ser acompanhadas de recursos com-
plementares para o enfrentamento da pandemia entre os grupos
sociais vulneráveis, de modo a considerar as diversas realidades –
desiguais – que existem no país.

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URIARTE, Urpi Montoya. O que é fazer etnografia para os antropólogos.


Ponto Urbe, n. 11, 2012.

VOLTA AO SUMÁRIO

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CAPÍTULO 8

CONVIVENDO
COM A PANDEMIA

Maria Laura Faria Afonso de Melo

Diante da tela iluminada e envolta no silêncio que a quarente-


na nos proporciona, me concentro no presente, única âncora pos-
sível, pois o futuro se desmancha à nossa frente. Exercícios simples
como imaginar o dia seguinte, o encontro com os entes queridos,
uma simples e corriqueira ida à feira, tornam-se infrutíferos diante
do caos que nos cerca. Só existe o aqui e o agora. Talvez essa incapa-
cidade de sonhar os sonhos mais simples impeça-me de desfrutar
um sono profundo. Vivo de cochilos. Deito-me quando a exaustão
me vence e durmo por algumas horas.
Ao falar em pandemia, me vem à mente narrativas de minhas
avós descrevendo o que viveram no final de 1918. Os cuidados, o
desespero, as mortes, o sofrimento de ver famílias e parentes dis-
tantes adoecendo e não ter a quem pedir ajuda.
No presente ensaio gostaria de esclarecer que não tratarei em
profundidade da situação política que acomete o país, no momento
de tanto obscurantismo e de uma crise de saúde pública de contor-
nos monumentais. Também me permito não tratar aqui das estatís-
ticas da pandemia no Brasil, em Pernambuco e em Recife, devido ao

188
grau de incertezas que circundam as tarefas de testagens, notifica-
ções e registros dos dados em questão.

1918 – A gripe espanhola, relatos das zonas rurais e


urbanas

A pandemia de 1918, que graçou pelo mundo a partir do início


daquele ano, se estendeu até o final de 1920 e matou mais que a
Primeira Guerra.
Ela aporta em Recife, em setembro de 1918, trazida pela tri-
pulação adoecida do Vapor Piauhy. Rapidamente se espalha pela
capital do Estado, mudando hábitos sociais e trazendo medo à po-
pulação. Minha avó paterna, moradora de um subúrbio recifense,
contava que em sua casa, ninguém se infectou, mas falava do medo,
da mudança de hábitos, de não visitar nem receber visitas, do chei-
ro da creolina nas ruas e do quase deserto em que elas se tornaram.
Não lembro em suas narrativas de abordar o efeito da pande-
mia nos setores populares.
Quando penso em pandemia, lembro mais de minha avó mater-
na descrevendo o que viveu no final de 1918, no Engenho Impren-
sa, área rural do município de Palmares. Os cuidados, o desespero, a
morte dos empregados, o sofrimento de ver toda a família adoecer
e não ter como socorrer e sem contar com auxílio médico. Esse era
o ponto de vista da casa grande. Imagino como se desenrolava a
situação nas pequenas e frágeis casas dos moradores – trabalha-
dores do campo e doméstico, que enterravam seus entes queridos
em redes à falta de caixões, em cemitério na longe Palmares ou em
alguma cova rasa mais próxima.
Dando uma busca no Google, chamou-me atenção, na época,
a situação de esgotamento do cemitério de Santo Amaro, o maior

189
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
cemitério de Recife. A aglomeração de populares em suas portas
para enterrar seus entes queridos.
O medo era o sentimento constante em todas as narrativas.

A covid-19 em Pernambuco – como reage a sociedade


em Recife

Voltemos ao presente, ao aqui e agora, ao que a realidade nos


apresenta. Desde o final de 2019 que nos chegam notícias alarman-
tes de uma nova doença. Desde a H1N1 que os centros de pesquisas
e vigilância sanitária de organismos internacionais alertam para a
chegada de uma pandemia. Os que governam o mundo, entretanto,
desprezaram esses avisos e preferem alocar recursos em equipa-
mentos bélicos.
Em 12 de março deste ano, a Secretaria de Saúde do Governo
de Pernambuco noticia o registro dos dois primeiros casos da co-
vid-19 em Recife. Um casal vindo da Itália, ela com 66 e ele com 71
anos, moradores de Boa Viagem, internados em hospital particular.
Surge logo em seguida, um terceiro caso: a empregada domés-
tica do casal, 47 anos, moradora do Bairro do Pina.
A imprensa oferece uma série de informações sobre o casal en-
quanto, que para a empregada doméstica, sabe-se apenas que foi
atendida em unidade de saúde e encaminhada para o domicílio.
No dia 16 do mesmo mês já se registram 4 casos de transmis-
são local.
Em 22 de março entra em vigor o isolamento social em Per-
nambuco. Estabelecimentos de ensino suspendem funcionamento,
comércio e serviços não essenciais paralisam atividades.
Recife parece uma cidade fantasma. O medo é palpável e se es-
praia por toda a Região Metropolitana.

190
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
A pandemia se alastra a passos largos e ruma para o interior
do Estado, seguindo a via da BR 232, contaminando rapidamente
Agreste e Sertão.
A população oscila entre o temor da nova doença e a banali-
zação das informações, ora tomando medidas sanitárias por vezes
desproporcionais, ora sem considerar as informações mais simples
de higiene.
As pessoas se informam tanto pela televisão como pela inter-
net, muitas vezes sem identificar o que é falso e o que é verdadeiro.
Em parte, a desinformação se dá por ser um assunto novo e os vá-
rios protocolos mudam, como por exemplo, usar ou não usar más-
caras, fazer ou não uso de luvas, guardar distância entre as pessoas.
Muitas dessas informações demoraram mais de um mês para se
obter um mínimo de consistência. Agreguem-se a isso, as gestões
desencontradas do poder central.
Com o avanço da pandemia e as medidas de distanciamento
social impostas, iniciam-se entre a população ações solidárias, tan-
to entre os grupos de classe média como em comunidades pobres.
Também há iniciativas empresariais:
• Corona nas Periferias, pede, recolhe e distribui alimentos e
materiais de limpeza e higiene pessoal;
• Estoque Solidário, analisa estoques de empresas e separa mer-
cadorias para doação.

Há também grupos que se organizaram para produzir mate-


riais para o setor de saúde, que enfrentam a carência de equipa-
mentos de segurança, notadamente enfermagem e auxiliares, linha
de frente no atendimento aos infectados:
• Jaleco Solidário;

191
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
• Máscaras Solidárias;
• Doe Máscaras;
• Face Shield (máscaras de acrílico), confecção e distribuição
dessas máscaras; dentre tantos outros.

Há iniciativas mais pontuais, que exigem menos organização


coletiva, tais como disponibilizar garrafas PET, contendo água e sa-
bão, para moradores de rua, catadores de materiais recicláveis e
garis. Doações de alimentos, materiais de higiene pessoal e de lim-
peza, iniciativa de moradores de condomínio, que colocam caixas
coletoras para recebimento das doações.
Enquanto tudo isso ocorre em meio à quarentena, a classe
média e setores da classe trabalhadora que ascendeu socialmente
durante os governos Lula/Dilma, iniciam protestos sem aglomera-
ções, quase sempre espontâneos uns, engrossados pela articulação
nas redes sociais, outros, sob a forma de “panelaços”, como válvula
de escape para a situação de falência institucional, caos social.
Entre a classe trabalhadora há o dilema entre morrer de fome
ou morrer de covid-19. Na impossibilidade de colocar em prática
o distanciamento social, por conta da precariedade habitacional e
diante do dilema em exercer sua atividade profissional, por conta
da informalidade do mercado de trabalho, as pessoas perambulam
nas áreas de periferia.
Se de um lado, no início da quarentena, as ruas ficaram vazias,
tanto no centro como nos bairros de predomínio da classe média,
na periferia a vida transcorria como antes da pandemia.
Quando a covid-19 se alastra e começa a se a aproximar dos
círculos sociais, atingindo parentes e amigos, as pessoas começam
a tomar consciência da gravidade.

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CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
Aqui vale registrar a aprovação pelo Congresso Nacional do
Auxílio Emergencial para Trabalhadores Informais, no valor de
R$600,00.
Para ter acesso ao benefício é necessário que o solicitante não
tenha vínculo empregatício formal há pelo menos um ano. O proble-
ma é como se habilitar. Para tanto é preciso ter um celular, baixar o
aplicativo ou ir direto à uma agência da Caixa Econômica Federal.
Com a informalidade crescente promovida pela reforma tra-
balhista do Governo Federal, o número de pessoas habilitadas a
receber o benefício é muito superior ao esperado. Muitas pessoas
formam filas enormes às portas dos bancos, principalmente nas
agências da Caixa Econômica, algumas por não ter familiaridade
com o uso das ferramentas de acesso à rede bancária de forma re-
mota, outras por necessitar de orientação para usar o aplicativo
de acesso ao recurso. A acorrida e aglomeração de pessoas vão de
encontro a tudo que é recomendado pela Organização Mundial de
Saúde e pelo bom senso. Ruas e agências cheias, sem o distancia-
mento social recomendado, pessoas esperando em filas do lado de
fora das agências, sob sol ou chuva, expõe ainda mais os mais neces-
sitados que, para chegar ao banco precisou se deslocar a partir de
casa, usando transporte público, muitas vezes lotado.
Enquanto a quarentena segue, até certo ponto, tranquila entre
as pessoas com algum poder aquisitivo, as populações mais pobres
e periféricas seguem mais vulneráveis ainda, até mesmo quando
buscam um auxílio para fazer frente a toda a precariedade.

Redes sociais – uso pelas instituições e pelo público

As redes sociais têm prestado valioso auxílio no enfrentamen-


to do isolamento social, principalmente para classe média, tanto

193
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
no que se refere à solicitação de serviços como à comunicação e
informação. As operadoras de internet vêm enfrentado dificulda-
des para atender à demanda crescente. São serviços bancários,
compras de supermercado, farmácias e educação a distância. Esse
último promete a intensificação do uso. Os estabelecimentos de en-
sino privado que haviam antecipado as férias, começam a atuar de
maneira remota, com o fim do recesso.
A rede estadual de escolas públicas não deu férias nem inter-
rompeu as aulas, que seguiram oferecendo ensino remoto em di-
ferentes plataformas – INSTAGRAM, GOOGLE, CLASSROOM, dentre
outros.
É importante salientar que o abismo social tende a se alastrar
ainda mais. As crianças da rede pública, notadamente alunos do
fundamental, já prejudicadas pela supressão da vida escolar, en-
frentam a perda do ano letivo, sem perspectiva de compensação
para superação.
Um fato que me chamou atenção é o uso dos meios virtuais
por parte dos jovens – final da adolescência e início da vida adul-
ta – para aprofundar relações de amizade e buscar o autoconhe-
cimento, até mesmo iniciar relações amorosas. Não ao acaso, mas
buscada, como forma de minimizar a falta dos contatos sociais que
ocorriam nas festas, shows e baladas.
É também através da internet que a Região Nordeste vem ins-
trumentalizando, de forma conjunta, reação prática de oposição ao
governo central.
Abro aqui um parêntese para deixar claro que não irei me de-
ter em analisar mais profundamente a questão política pela qual
passa o país. O tema é por demais complexo e precisaria de tempo
e espaço para explorá-lo devidamente.

194
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
Situemos apenas as dificuldades que os governos estaduais
dos nove estados que compõem a Região Nordeste enfrentam des-
de a posse do presidente eleito em 2018.
É nessa perspectiva que em março de 2019 os entes federativos
dessa região criaram o CONSÓRCIO NORDESTE. A figura do
consórcio público está prevista na Constituição de 1988 e já vem
sendo largamente utilizada no âmbito dos municípios.
Criado como ferramenta para atrair investimentos e alavan-
car projetos de forma integrada para a região, se propõe a ser uma
instância de articulação de interesses comuns, incluindo o diálogo
com o Planalto e com o Congresso Nacional. Constitui-se, pois um
instrumento jurídico de integração.
Dentre as primeiras ações destacam-se a criação de Central de
Compras e início programa de formação de médicos, com a finalida-
de de suprir necessidades deixadas pela extinção do MAIS MÉDICOS.
Com a pandemia aportando na região, em março de 2020, o
Consórcio Nordeste cria o Comitê Científico, coordenado pelo cien-
tista Miguel Nicolelis e pelo físico e ex-ministro Sérgio Rezende e
integrado por médicos, cientistas, físicos e pesquisadores.
Já em abril o Comitê cria a Brigada Emergencial de Saúde do
Nordeste – Brigada SUS/NE. Ela agrega estudantes de graduação,
médicos brasileiros formados no exterior e voluntários para atuar
na promoção, prevenção e assistência à saúde da população afetada
pela pandemia.
Passo importante no monitoramento da pandemia é o aplica-
tivo MONITORA covid-19, instrumento do Consórcio Nordeste/Co-
mitê Científico. Criado para agilizar, qualificar e monitorar os casos
confirmados, suspeitos e em isolamento domiciliar de coronavirus,
esse instrumento e a plataforma web de atendimento constituem

195
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
uma sala de situação com a função de apoiar a gestão municipal no
monitoramento de forma mais eficaz e dinâmica.
O aplicativo ainda possibilita ao paciente acessar a localização
das unidades de urgência mais próxima de sua residência. Além dis-
so, disponibiliza informações sobre medidas preventivas e orienta-
ções sobre cuidados no isolamento domiciliar.
Há ainda na web vários outros aplicativos, alguns de prefeitu-
ras, como é o caso da Prefeitura do Recife, em parceria com o Go-
verno do Estado de Pernambuco. É o “Atende em casa – covid-19”. A
plataforma pode ser acessada por meio de aplicativo, que atende a
aparelhos celulares com IOS e Android.
Por ele também é possível uma classificação de risco do pa-
ciente e, se possível, realizar vídeo chamada.
É flagrante a diferença do avanço da informação como instru-
mento de contenção da doença, se comparamos o momento atual
da pandemia no mundo com o ocorrido com a epidemia da H1N1.
O que é desolador é que os governos no mundo inteiro não exerce-
ram uma governança apoiada nessa ferramenta tão importante. No
caso brasileiro o cenário se agrava ainda mais por não se ter uma
centralidade nas medidas sanitárias adequadas.

Tentando entender o comportamento da sociedade

É interessante observar as reações das pessoas diante da


quarentena prolongada e sem uma perspectiva palpável do tempo
que ainda resta até a suspensão desse distanciamento social. Como
também estou confinada, a minha observação fica comprometida,
uma vez que, limito-me a partilhar o que se desenrola nas redes
sociais. É um caleidoscópio interessante, mas bastante limitante,

196
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
uma vez que restringe o olhar a um prisma do que as pessoas
resolvem demonstrar espontaneamente, apresentando uma face
apenas do que presumimos ser a vida real. Para superar essa
limitação procurei entrevistar via celular algumas pessoas, fora do
meu ciclo mais próximo. São porteiros, enfermeiras, cuidadoras, co-
zinheiros e empregadas domésticas aqui ouvidos.

O comportamento aparente da classe média

Ao me debruçar sobre tais manifestações de pessoas de classe


média nas redes sociais, o que mais chama a atenção é o cansaço e
o tédio, de homens e mulheres, frente as tarefas domésticas. Em al-
guns casos, essas pessoas estão sem trabalhar ou estão trabalhando
remotamente. Para muitos, é a primeira vez que se vêm às voltas
com o mundo doméstico, não apenas relativo às tarefas corriquei-
ras – cozinhar, limpar, cuidar da roupa e das crianças – mas também
outros encargos (como se relacionar com entregador de água mine-
ral e gás, relação com funcionários do condomínio e outros presta-
dores de serviço). Ficou clara a importância dos serviços executa-
dos pelas empregadas domésticas à maioria das famílias de classe
média, mesmo àqueles prestados por diaristas. Algumas pessoas já
admitem a importância desses servidores no quotidiano familiar.
Outros não. Estas últimas são as que mais reclamam.
É importante registrar a tendência entre muitas famílias de
continuarem a pagar às pessoas que prestavam serviços domésti-
cos, liberando-as para o recolhimento a suas casas durante a qua-
rentena, inclusive àquelas, cujos serviços eram executados com fre-
quência semanal.
Com relação às pessoas que têm filhos pequenos, esse sen-
timento de cansaço e tédio se amplia, pois precisam dedicar um

197
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
tempo extra aos pequenos que requerem dose extra de paciência.
Saliente-se que o medo da contaminação é uma constante também
nas relações familiares.
Ao tratar com os idosos não fica claro como esses cuidados es-
tão acontecendo, a não ser àqueles com mais de 60 anos que con-
tinuam ativos, tanto no mercado de trabalho, executando trabalho
remoto, como na relação afetiva, política e de amizade nas redes
sociais. Muitos desses, que moram sós, parecem estar suportan-
do melhor a quarentena. Em alguns casos criaram suas próprias
redes de proteção, estreitando e intensificando as comunicações
diárias entre si, sobretudo com a troca de mensagens diárias para
obter informações sobre a saúde física e mental dos integrantes
desses grupos.
Os rituais para as saídas necessárias e para o retorno ao lar são
um outro motivo de estresse, provocado, na maioria das vezes, pela
insegurança relativa ao possível contágio e pela pouca importância
que uma parte da população dedica ao assunto, com as quais, ao
sair estão sujeitas a manter algum contato.
Com o hábito adquirido no isolamento social, aos poucos, as
mudanças viram rotina e algumas pessoas relaxam a quarentena. É
preciso levar em conta o comportamento do Presidente da Repúbli-
ca, frontalmente contrário às medidas do isolamento, estimulando
uma parcela da população a repetir suas ações.
Registre-se aqui as tentativas infrutíferas de grupos que
apóiam o governo federal de realizarem manifestações em apoio
ao presidente. Em Pernambuco, o Governo do Estado coibiu com
firmeza essas iniciativas. É interessante notar que eram “carreatas”,
com “buzinaços”, cujos ocupantes dos automóveis usavam más-
caras e não desciam dos veículos. Com megafones convocavam a

198
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
população a voltar ao trabalho. De imediato a polícia dispersou a mo-
vimentação, com ameaça de prisão e de recolhimento dos veículos.
A falta de empatia dessas pessoas com seus semelhantes é cho-
cante. Não consideram que aqueles a quem convocam para voltar
aos postos de trabalho estarão ainda mais sujeitos à contaminação
do novo Corona vírus.

Como se comportam os trabalhadores

Em conversa telefônica mantida com Walter, zelador de um


condomínio, ele me relata o que mudou em sua vida após a pande-
mia. Sai de casa às 5:30 da manhã, leva consigo, quatro máscaras e
álcool gel, além da marmita, preparada por Rosa, sua companheira.
Toma um ônibus, pega o metrô e mais um outro ônibus. Como o
percurso é longo, ele precisa das quatro máscaras, duas para ir e
duas para voltar para casa. O medo da contaminação é constante
em sua narrativa. Ao chegar ao trabalho precisa tomar banho para
começar sua jornada. Na hora de retornar para o domicílio, além
dos dois ônibus e do metrô, como mora num alto e já está muito
cansado, pega um moto taxi. Não pode usar capacete, pois a polícia
do município onde mora, na Região Metropolitana do Recife, não
permite, por motivo dos constantes assaltos.
Com relação ao trabalho em si, Walter me informa que o chefe
dele resolveu estabelecer um sistema de rodízio, em dias alterna-
dos, mas com uma pequena extensão do horário. Provavelmente
para diminuir o número de deslocamentos dos funcionários.
Ao chegar em casa, deixa os sapatos do lado de fora, depois
de buscar água para tomar banho, pois o local não possui rede de
abastecimento.

199
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
Sua companheira, Rosa, que fazia várias faxinas no condomí-
nio onde Walter trabalha, foi dispensada por alguns contratantes
embora outros continuem a pagá-la mesmo sem ter que trabalhar.
Indagado sobre como fazem para se abastecer, ele reclama dos
preços e diz que a feira onde comprava foi suspensa. No sábado tem
que caminhar para fazer compras um pouco mais longe. Perguntei
se ele tem conhecimento de casos da doença na vizinhança de sua
casa, não soube dizer. Informou-me apenas que o município regis-
trou 8 casos até agora. Procurei a informação no site da prefeitura
local e a informação confere com a oferecida por ele. Em parte, isso
se deve a proximidade de Recife, para onde os casos suspeitos são,
em sua maioria, removidos e a estatística é contabilizada no local
onde a pessoa foi atendida. A questão da sub notificação é um pro-
blema para os gestores da saúde.
Quando se compara as dificuldades enfrentadas por trabalha-
dores e trabalhadoras como Walter e Rosa, aos que estão enfren-
tando a pandemia em suas casas, com geladeira e dispensa abaste-
cidas, carro na garagem, salário, conta em banco, planos de saúde,
filhos em escola, percebe-se o abismo social que os separam.
Também em conversa telefônica com Regina, cuidadora de ido-
sos, com curso de auxiliar de enfermagem, pergunto o que mudou
em sua vida desde o início da quarentena. Medo! É a primeira pala-
vra que ela pronuncia. Morando em Casa Amarela, populoso bairro
da Zona Norte do Recife, que agrega áreas de classe média, outras
ocupadas por trabalhadores “remediados” e trechos nas encostas
dos morros, cuja ocupação desordenada oferece riscos de desaba-
mento, ela atualmente trabalha em uma casa de repouso para ido-
sos situada em Campo Grande, também na Zona Norte. Para ir ao
trabalho precisa tomar dois ônibus ou caminhar até uma área mais

200
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
central e usar apenas uma passagem. Em tempos de pandemia está
usando o aplicativo UBER, para não enfrentar coletivos lotados du-
rante seus deslocamentos.
Sai de casa levando uma máscara de proteção, álcool gel e sua
marmita. Como o trabalho é um ambiente constantemente fisca-
lizado pela Vigilância Sanitária, o estabelecimento adotou regras
rígidas para seus funcionários e para outros prestadores de servi-
ço. Também ficaram proibidas visitas de familiares aos internos na
casa de repouso. Logo ao chegar, os funcionários cumprem um novo
e rigoroso ritual: passam os calçados em uma solução de água sani-
tária, retiram dos pés e, imediatamente seguem para tomar banho
e trocar a roupa e se paramentar para iniciar suas jornadas. O uso
de máscaras e luvas é obrigatório. Com a chegada da covid-19, os
pacientes estão ficando isolados em seus aposentos durante todo
o dia, sem poder fazer uso das áreas comuns. Até o final da última
semana de abril ainda não havia nenhum idoso contaminado. Nos
primeiros dias de maio uma paciente foi internada com suspeita da
doença. Foi direto para UTI e veio a falecer.
Regina relata os cuidados adotados ao chegar em casa, como
deixar sapatos do lado de fora do pequeno apartamento, situado na
subida do Morro da Conceição, seguir direto para o banho e colocar
as roupas na máquina de lavar.
Sua mãe, também é cuidadora de idosos, mas, por já passar
dos 60 anos, está em isolamento social, em sua casa, conservando
o salário intacto. Perguntada como ela estava reagindo e se estava
cumprindo com rigor a quarentena, informou-me que está queren-
do voltar a trabalhar, embora esteja seguindo todas as orientações.
Com relação ao abastecimento, Regina informou que deixa para ela
a feira na porta, para que não precisa sair.

201
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
Regina, que está na faixa etária entre os 30 e 35 anos, segue
falando de seus medos e já demonstra claramente sinais visíveis
de estresse, relatando dificuldade para dormir e se sente assustada
quando está na rua.
Procurei saber se tem informações de casos da covid-19 nas
proximidades de sua residência, informou-me que ainda não soube
de nenhum, entretanto relatou que está havendo um surto de den-
gue na vizinhança.
Através de Regina, conversei também por telefone, com Hele-
na, que também trabalha como cuidadora, embora de outra forma.
Após cuidar durante alguns anos de um idoso que veio a falecer,
atualmente trabalha como folguista de cuidadora e presta outros
serviços no mesmo estabelecimento em que Regina trabalha e onde
estava internado o idoso já referido.
Helena tem uma peculiaridade na vida: tinha sob sua respon-
sabilidade duas irmãs interditas. A primeira, com graves problemas
mentais e neurológicos, veio a falecer há cerca de um ano e meio. A
outra, com problema motor, encontra-se atualmente acamada. Para
Helena trabalhar, precisa contratar uma pessoa que ajude nos cui-
dados com sua irmã. Morando no Alto da Conquista, na periferia
de Olinda, precisa utilizar dois transportes para chegar ao traba-
lho. Perguntada sobre quais as mudanças em sua vida acarretadas
com a pandemia, iniciou seu relato explicando que os idosos que
estão sob seus cuidados só necessitam de sua presença em dias
alternados. Esse trabalho é contratado pela família do cliente e é
um suporte, pois a casa já presta os cuidados mais gerais com os
internados. Com isso sua renda caiu, o que a obriga a buscar outras
fontes de renda. Sua rotina é semelhante às descritas por Regina,
divergindo apenas na frequência de deslocamentos.

202
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
Para driblar os ônibus lotados ela aguarda por outro que venha
em seguida. Também fala do temor em se expor em vias públicas.
Narra ainda que já precisou enfrentar as filas da Caixa Econômica
para receber o auxílio dado pelo governo. Segue uma rotina rigo-
rosa relativa à higiene por conta da covid-19, reforça ainda os cui-
dados especiais com alimentação de toda a família, especialmente
no que se refere a essa irmã acamada. Busca constantemente na
internet receitas caseiras para aumentar a imunidade.
Seu maior temor é o contágio e a possibilidade mais próxima
de óbito pelo vírus. Sente-se ansiosa e estressada com o filho ado-
lescente que sai e encontra os amigos quando ela não está em casa.
Helena se sente dividida diante do paradoxo entre os cuidados
oferecidos à sua irmã e os dispensados aos internados na casa de re-
pouso, embora, no caso de sua irmã haja uma vantagem, está rodea-
da pela família, enquanto que, os internados encontram-se privados
de visitas de seus entes queridos e do afeto por eles dispensado.
Alguns idosos e idosas, que ainda estão com sua capacidade
mental preservadas, conectam-se com as famílias através de vídeo
chamada, o que proporciona algum conforto afetivo aos mesmos.
De todos os trabalhadores, assalariados ou autônomos, com
que conversei, a situação das empregadas domésticas, talvez seja
o grupo que mais enfrenta modificações de suas rotinas. Muitas fo-
ram dispensadas informalmente e continuam a receber os salários,
podendo cumprir a quarentena em suas residências. Outras, que
tinham registro em carteira de trabalho, os patrões deram baixa
nesse documento, fazendo com que tenham acesso ao benefício do
governo. Esse grupo também está cumprindo o isolamento social.
Há ainda um outro grupo que, a despeito das orientações dos
serviços de saúde, continuam trabalhando. Algumas em regime

203
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
diferente do anterior, limitando-se a ir aos locais de trabalho alguns
dias da semana ou concentrando suas tarefas em dois ou três dias,
fazendo com que se desliguem de suas famílias nesse período, pois
pernoitam nas residências do contratante. Para esses casos, os des-
locamentos se dão em frotas de aplicativos, bancados pelos patrões.
Em conversa mantida com uma profissional do serviço do-
méstico, Maria de Jesus, que mora em Condado, município da Mata
Norte, situado nas bordas da Região Metropolitana do Recife, ela
registra como principal sentimento sobre a pandemia, o medo. So-
bre sua rotina, comparada a vida normal que levava anteriormente,
a maior modificação é o tempo que leva em casa, sem ter muito que
fazer. Com filhos criados, em casa, só com o marido, o ócio forçado,
aliado aos temores de contaminação, eleva o estresse e prejudicam
o sono. Frequentemente acorda por volta das três horas da manhã
e não consegue ficar deitada. Arma a rede no quintal e se deixa ficar
ali, até o dia raiar, quando se levanta e faz uma caminhada.
Com relação aos cuidados para manter a covid-19 afastada, ela
revela que toma todas as recomendações exceto quanto ao uso de
máscaras. Ao colocá-la, entra em pânico, sente falta de ar e ânsia de
vômito. Já tentou diversas vezes e estes sintomas sempre voltam.
Resolveu não mais fazer uso, até mesmo quando precisa ir à Lotéri-
ca para fazer pagamentos ou fazer outras operações bancárias.
Ao perguntar como a pandemia caminha no município, infor-
mou-me que já ocorreram várias mortes de pessoas conhecidas.
Em sua família, sua cunhada que trabalha no IMIP, em Recife, foi
diagnosticada e está cumprindo isolamento rigoroso em casa.
Sua angústia e estresse causados pelas mudanças de rotina,
medo, falta vida mais ativa, além da impossibilidade desfrutar de
uma vida social como levava anteriormente, levaram a elevação
de peso e por isso continua a fazer suas caminhadas.

204
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
O comportamento dos jovens adultos

Em conversa com grupo de jovens adultos de classe média, em


início de vida profissional, podemos verificar que o nível de ansie-
dade e medo é constante, tal qual entre as demais pessoas com que
tive contato e registrei aqui anteriormente, independente de classe
social. O que difere e se agudiza é ansiedade provocada pelo isola-
mento da quarentena. Acostumados a levar uma vida de liberdade,
circular entre trabalho, vida social agitada, festas, encontros em ba-
res e shows, se vêm tolhidos e estão sem conseguir vislumbrar o
fim da pandemia. Sentem-se angustiados em viver o aqui e o agora.
Quase todos trabalhando em casa, usando a internet. Alguns acham
que a geração anterior se estressa menos pois estão acostumados a
ficar em casa, saindo pouco à noite.
De forma geral, todos se queixam de dificuldade em conciliar
o sono e ter um repouso regular, tanto em horas dormidas como
em relação à qualidade, dificuldade de concentração para leitura ou
para acompanhar uma narrativa no cinema ou na TV.
Em conversa com Carina, 26 anos, comunicadora social, sem
emprego formal, que atuava profissionalmente no ramo do entre-
tenimento, expressa o seu temor pela Covid19 – contaminação sua
e de seus entes queridos e a possibilidade da morte. Com relação
à rotina, que já era pouco comum por não ter horário fixo de tra-
balho, no momento tenta estabelecer algum roteiro diário, guiada,
não pelo relógio, mas pelo sol. Acorda às 8 horas da manhã, quan-
do o dia clareia seu quarto. Relata dificuldade em conciliar o sono,
mas vem lutando para se deitar ao final da noite e não entrar pela
madrugada. Faz contatos via redes sociais com seus grupos de ami-
zade, vê filmes e busca informações recentes sobre suas áreas de
interesse profissional.

205
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
Um relato interessante é a percepção do quanto de supérfluo
que tinha em sua volta e que se mostram perfeitamente dispensá-
veis. Quase todos esses jovens foram movidos intensamente pela
necessidade de consumir: roupas, bolsas, sapatos, eletrônicos, via-
gens, shows etc.
Ela relata que se sente como um pássaro engaiolado, sem liber-
dade de escolha, sem perspectiva, sem antever um final para além
da pandemia.
Através de Carina, conversei com Ilca, jovem publicitária, que
atualmente desenvolve seu trabalho a partir de casa, mantendo o
vínculo empregatício, embora com sensível redução do salário. Fala
da dificuldade em desenvolver e estabelecer rotina para trabalhar
em casa, sem a obrigatoriedade do horário imposto no sistema an-
terior, antes da pandemia. Com relação aos perigos de contamina-
ção, revela ansiedade consigo e com familiares mais próximos, o
pavor da perda de entes queridos e o distanciamento de pessoas
de sua relação. Revela ainda, traço comum entre as pessoas de sua
geração, dificuldade de dormir profundamente, assim como de se
concentrar, a impossibilidade de sair e encontrar pessoas de suas
relações. Revela que está fazendo uso de medicação para dormir.
A falta de vida social é outra queixa. Tem um relacionamen-
to estável com uma pessoa, mas não moram juntos. Isso é motivo
do distanciamento entre ambos, causando sofrimento afetivo, am-
pliando o sentimento de solidão. Por causa da quarentena estão
isolados na casa dos respectivos pais. Com relação ao lazer, tenta
substituir a falta de shows e festas, buscando por lives e espetácu-
los disponíveis em redes sociais.
Ainda nessa faixa etária, conversei com José Manoel, profis-
sional da área de gastronomia, que já vinha com dificuldade em se

206
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
inserir no mercado formal. Para driblar a situação, oferecia seu tra-
balho para eventos particulares e vinha formando uma clientela en-
tre pessoas de classe média alta, que habitualmente recebiam seus
pares para jantares e festas de aniversário. Com a pandemia e o dis-
tanciamento social, a clientela recuou. Atualmente está tentando
se colocar no mercado, oferecendo seus serviços via internet, com
produtos sob encomenda. Recebe também o auxílio de R$ 600,00,
oferecido pelo governo.
Com uma formação religiosa que remonta a sua infância, ele
fala da tristeza que sente ao pensar nas pessoas sem teto e naquelas
cujas condições de habitação dificultam o isolamento social. O medo
também está presente em sua fala. O temor da contaminação quando
precisa ir à rua, ao cruzar com outras pessoas, ou ao se dirigir a um
supermercado. Não descuida da higiene ao sair e ao chegar em casa,
assim como na rua. Sem antever uma perspectiva futura, no momen-
to cogita voltar a morar com a família, no interior do estado.

A fala de um jovem professor de história da rede pública

Para Cássio, o jovem professor de História da rede estadual de


educação, a pandemia, do ponto de vista pessoal, mudou drastica-
mente sua vida, seja na forma de se relacionar, seja na forma de tra-
balhar ou de gerir seu tempo. “O livre arbítrio não parece ser uma
dádiva se lembrarmos que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso
pelo fato de terem exercido sua própria vontade perante Deus. O
fardo do ter tempo livre é mais duro do que pensava. Mistura-se a
isso uma estranha culpa por não funcionar como nos tempos pré
covid-19”, diz.
Segue trabalhando à distância e salientando a dificuldade que
sua profissão de professor de escola pública encontra ao trabalhar

207
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
com ferramentas de ensino à distância, seja pela falta familiaridade
com essa modalidade e pela falta de formação que lhe foi oferecida
na academia, seja pelo perfil dos seus alunos que, em sua maioria
não tem acesso fácil à internet ou computadores, comprometendo
ainda mais o ano letivo e aumentando mais, a já abissal defasagem
de ensino público em comparação com rede de escolas particula-
res. Diante de tudo isso defende com veemência o adiamento do
ENEM 2020.
Ainda sobre o trabalho, pela primeira vez Cássio relata que, de
fato, tem tempo para estudar, pesquisar, preparar aulas e repensar
suas estratégias didáticas, o que na vida dos docentes brasileiros,
em situação normal, é algo bastante raro. Sua nova rotina agora ba-
seia-se em estudar um pouco todo dia, mas também dedicar tempo
ao ócio produtivo. “Conversar um pouco com meu violão, ver todos
os filmes que nunca tive tempo de fazê-lo, colocar as séries exibidas
na TV em dia, ler meus livros que há tempos estavam me esperan-
do na estante, tentar fazer aquela receita que sempre postergava
por não ter tempo. Nunca tive tanto empenho em cozinhar mais e
comer mais saudável e, comer pizza congelada não está sendo mais
uma desculpa por conta do relógio. Porém não nego que em alguns
momentos o peso da culpa de não estar produzindo ‘algo de fato’
me consome”.
Para aliviar a ansiedade que assola cada vez mais a sua gera-
ção, acostumada a querer resultados imediatos, tenta manter uma
rotina de fazer exercícios físicos em casa. A minha sala praticamen-
te virou uma academia de ginástica.
Confessa sentir falta de várias rotinas, como a liberdade de fi-
car em casa por escolha e não por obrigação, dos passeios de bici-
cleta pelas noites do Recife, dos bares cheios, de comer como um rei

208
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
e celebrar as festas populares, de ver o seu Santa Cruz, do bairro do
Arruda, perdendo ou ganhando, e o mais querido me fazendo sofrer
pro bem e o pro mal, dos amores que teve e dos que nunca teve a
chance de ter. “Quando lembro que pessoas estão morrendo e famí-
lias sofrendo, ponho na minha cabeça que isso algum dia irá passar
e mais rápido ainda se eu fizer a minha parte estando em casa.”

Quebrando a cultural: o sopro que aliviava a sociedade

Dentre os setores econômicos mais afetados, gostaria de me


deter nos grupos que atuam nas áreas de eventos, produção cultu-
ral e artes, de uma forma geral. Esse grupo já vinha sofrendo com
frequentes cortes no orçamento do governo federal, desde a derru-
bada da gestão Dilma Roussef.
Essas áreas atingem também, por tabela, todo o setor de Tu-
rismo, que impulsiona parte da economia nordestina. Cultura, arte,
eventos, manifestações culturais, que têm um calendário anual, são
destroçados pela covid-19 e não estão no foco dos órgãos federais e
estaduais para receber o auxílio necessário. Provavelmente o setor
hoteleiro poderá vir a receber alguma ajuda do Governo Federal,
como estão pleiteando. Por ser mais organizado e de poder econô-
mico maior tem mais chance.
Quando nos deparamos com o grupo de pequenos empresá-
rios que vivem de promoção de eventos, como festas, agenciamento
de shows, participação em eventos maiores, constatamos a falta to-
tal de qualquer apoio por parte das administrações estaduais e mu-
nicipais. Tomemos como exemplo o calendário de festas dirigidas
ao público jovem, cuja frequência varia entre quinzenal e mensal.
São eventos já consolidados ao longo do tempo, alguns com mais
de 10 anos. Trabalham nessas ocasiões DJs, seguranças, bilheteiros,

209
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
sites de venda de ingressos, bartender, técnicos de som, eletricistas
dentre outros profissionais, além de movimentarem empresas de
bebidas e entregadores.
Alguns desses promotores de festas trabalham de forma asso-
ciada e estão ligados em várias promoções durante todo o ano, liga-
dos ao calendário de eventos culturais como carnaval, ciclo junino,
final de ano etc.
Para esses, a perspectiva de volta a normalidade inexiste. Em
conversa com um representante do setor, o normal como conhece-
mos até antes da pandemia, não existirá mais. Aglomerações serão
banidas.
Algumas pessoas do setor estão migrando para o mundo vir-
tual, através de lives em diversas plataformas. Eles precisam se
capacitar para vislumbrar uma saída. No tocante aos demais pro-
fissionais que trabalhavam nessas festas, estes, meio perdidos e
muitos se habilitaram para receber a ajuda oferecida pelo governo.
Quando tentamos observar o que ocorre com o setor do audiovi-
sual, a situação é de agravamento ainda maior. Muitas produções que
estavam já sendo executadas foram abruptamente interrompidas.
É bom salientar que o setor já vinha enfrentado muitas dificuldades.
Uma equipe pernambucana que estava filmando em Belém do
Pará, recebeu ordens do governo daquele estado, pela manhã, para
suspender imediatamente as filmagens. Técnicos e diretores reco-
lheram em algumas horas todos os equipamentos e embarcaram
no final da tarde para Recife. A forma como tudo ocorreu deixou
todos sem garantia alguma de recebimento do dinheiro pelo tra-
balho. Para quem já estava trabalhando e teve as atividades inter-
rompidas, a NETFLIX (envolvida na produção de algumas dessas
iniciativas) está oferecendo uma pequena compensação financeira.

210
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
As demais pessoas envolvidas em outras produções precisaram re-
correr ao auxílio governamental.
Estamos também vivenciando o esgotamento das diversas pla-
taformas de entretenimento, uma vez que novas produções estão
descartadas e o uso intenso dos produtos oferecidos vem aumen-
tando vertiginosamente. A própria NETFLIX já está postando um
aviso em seus novos produtos que, devido à pandemia, algumas
obras não contarão com forma dublada para não expor seus dubla-
dores à covid-19.
Aos artistas – atores, músicos, cantores, humoristas – restou a
internet e seu variado leque de plataformas, para veicularem seus
trabalhos. Para ajudar em seu sustento, poetas, técnicos, estão re-
correndo à prática de solicitação de ajuda financeira, o poderíamos
definir como “Passando o Chapéu”.
Alguns espetáculos tradicionais em Pernambuco como é o caso
das várias encenações da Paixão de Cristo, pela primeira vez em cer-
ca pelo menos 60 anos, foram suspensas. Todo esforço dos artistas e
cenotécnicos e recursos financeiros já alocados foram desperdiçados.
Nas artes plásticas há artistas promovendo exposições com
vernissages virtuais, com direito a trilha sonora e tabela de preços
das obras. Há um ambiente de colaboração entre vários artistas
para o enfrentamento dessa crise sem precedentes.
O sentimento de desalento e tristeza atinge todos nós que nos
amparamos nas artes em geral para suportar a tristeza que envolve
a sociedade como um todo. Fico imaginando como estão sobrevi-
vendo os inúmeros grupos de artistas populares que perdem nesse
momento a perspectiva de levar sua cultura adiante e que se já não
recebiam incentivos adequados para sua sobrevivência, agora é que
estarão jogados e abandonados à sua própria sorte.

211
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
Acima de todos paira o medo

O medo tem a função de preservação da vida e da espécie. Em


casos como diante de um perigo extremo e prolongado como em
conflitos armados e guerras, deixam sequelas mesmo após o fim
desses eventos. É o caso também de pandemias.
O prolongamento desse sentimento pode causar estresse e ou-
tros males de ordem emocional e comprometimento físico. Quando
ele é intenso pode afetar o sistema imunológico.
No caso da pandemia, do isolamento social e da quarentena,
temos de um lado o medo da contaminação e morte, tanto do indi-
víduo como de seus entes queridos e, do outro, o isolamento pro-
longado causando estresse. A falta de perspectiva do final desta si-
tuação de isolamento causa uma situação a mais de estresse, pela
frustração, insegurança financeira com perdas econômicas, tédio e
ampliação das áreas de conflito doméstico.
A constatação das dificuldades para dormir, relaxar, e se con-
centrar, relatadas pelas pessoas dos segmentos da sociedade, aqui
registrada, aponta para um cenário bastante preocupante no que
diz respeito à saúde mental da população.
O medo e o estresse tornam-se assim uma outra pandemia.

VOLTA AO SUMÁRIO

212
CON VIVE N DO COM A PAN DE MIA
CAPÍTULO 9

APONTAMENTOS DAS ARTES


SOBRE EPIDEMIA E CIDADE

Lysie dos Reis Oliveira

Ao longo da história das cidades, as epidemias preencheram


páginas bem como, telas e outros artefatos, foram expressos por
artistas de referência, autorizados pelas sociedades em que se in-
seriam a captar a realidade possível por seus olhos, janela de suas
almas. Pelo menos três obras nos chamam a atenção: Cidadãos de
Tournai Enterrando os Mortos Durante a Peste Negra- Miniatura de
Pierart dou Tielt ilustrando a memória do Abade Gilles de Muisit,
A praga em Florença de 1348 de Luigi Sabatelli e Praga em uma ci-
dade antiga de Michael Sweerts.
Optamos por usar aqui a cronologia das obras produzidas, que
remontam aos anos de 1347, 1652-54 e 1802. Tal opção não tem a
intencionalidade de criar um continuummas, validar nossa intuição
de que a epidemia invadindo a cidade, em cenários imagéticos de
suporte distintos, é um tema que merece ser investigado quando
discutimos, na contemporaneidade, o medo do porvir da cidade,
que apesar de ser o lócus do coletivo, também é o da segregação.
Na Primeira obra, o mote advinha da proliferação da Pes-
te Negra (1343 -1353), também conhecida como Peste Bubônica.

213
Observam-se figuras humanas abatidas, caveiras e fisionomias en-
lutadas que, em sequência, carregam caixões e abrem covas. Origi-
nalmente, essa iluminura1 de 1347 de Pierart dou Tielt, foi usada
para acompanhar um texto em prosa, o Abbatum memoria de Gilles
le Muisit, um abade e também cronista, nascido em Tournai – cida-
de da França que compõe o título da arte -falecido em 1353 após
escrever uma série de crônicas sobre o período da Peste Negra.

Figura 3 – Cidadãos de Tournai enterrando os mortos durante a peste negra.


Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/55/Doutielt3.jpg
(Consultado em 18.5.2020).

Essa obra é classificada como uma das primeiras manifesta-


ções da arte européia na representação do caos citadino impulsio-
nado pela Peste. Seu autor, Pierart dou Tielt, era um mestre dos ofí-
cios mecânicos, sua arte era a cópia, a miniatura e a encadernação,
o que não lhe impediu de expressar seu olhar particular sobre o
fenômeno. Atuava em Tournai, mas não para todos. Estava a serviço

1
 Imagem decorativa aplicada junto à letras capitulares dos códices medievais.

214
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
do universo cristão fato é, que tal iluminura está contida em um tex-
to do Abade Muisit, que ficou cego pouco antes de sua morte. Como
trabalhava com a inserção de iluminuras em textos, coube a Tielt
agrupar, copiar e expô-lo, conferindo-lhes o que hoje chamamos de
formatação e diagramação. Isso lhe elevou o status, manteve-o jun-
to ao clero, que chegou a nomeá-lo como mantenedor dos livros da
biblioteca da Abadia.
Esse breve contexto de sua vida nos auxilia na leitura desta Ilu-
minura em seu aspecto funcional. Há uma onipresença do terror da
peste sobre a cidade, ao passo em que existe a certeza de que Deus
a protegerá visto que, no texto que acompanha a imagem, o Abade
relata os milagres que teriam ocorrido em Tournai. Diante disso,
podemos dizer que a obra está atrelada basicamente a uma litera-
tura monástica relacionada à meditação sobre a proteção que Deus
concederá aos convertidos.
A segunda obra a qual faremos referência é a Praga em uma
cidade antiga, pintada por Michael Sweerts entre 1652-54. Seu au-
tor, nascido em Bruxelas em 1618, era um artista conhecido, pintor
e gravador do período barroco, chegando a ser agregado à Accade-
mia di San Luca, em 1647, uma prestigiada associação de artistas
renomados em Roma. Tinha outras conexões importantes com os
membros da Congregação Artística dos Virtuosos ao Panteão, uma
corporação de artistas que organizava exposições anuais de suas
próprias pinturas nas grades de metal em frente ao Panteão. Tinha
um patrono, o príncipe Camillo Pamphilj, que conseguiu que o papa
lhe concedesse o título papal de Cavaleiro de Cristo, uma honra res-
trita a artistas renomados. Algumas das obras de Sweerts eram tão
populares em seu tempo que cópias contemporâneas foram feitas,
algumas pelo próprio Sweerts outras, por alunos ou seguidores.

215
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
A imagem acima é estimada como a expressão mais ambiciosa
de Sweerts, pois tem uma complexa composição e muita técnica,
algo que posteriormente os críticos de arte convencionaram cha-
mar de erudição histórica e arqueológica. A composição apresenta
um cenário assustador, catastrófico e dramático de uma praga no
meio urbano, que acaba se tornando um tema clássico nas artes.
É uma cena de uma história aberta à interpretações visto que, não se
encontra inserida em um texto, numa iluminura, não existe sequer
um memorial sobre o quadro deixado pelo autor, o que nos permite
colocar nossa sugestão de análise: a representação do evento da
Praga na cidade serve como narrativa do mal temido, daquilo que
está para além de uma guerra com armas e munições, mas que é
perene, como um devir.

Figura 2 – Praga em uma cidade antiga.


Fonte: https://fotos.estadao.com.br/fotos/alias,atenas,1088563.
(Consultado em 18.mai.2020).

O estudioso da arte Franco Mormando nos diz que o quadro


Praga em uma Cidade, retrata uma praga específica que, segundo
fontes cristãs, deve ter se passado em Roma no período entre 361
e 363 D.C, durante o reinado do imperador Juliano. A praga, diante

216
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
desse contexto não vem do acaso visto que, o mesmo imperador
havia incitado um regresso ao paganismo romano e o abandono ao
marco cristão logo, a praga surge como uma espécie de resposta
divina, mas claramente, uma punição.
Sugere-se também que Sweerts estaria retratando a peleja en-
tre catolicismo e protestantismo e seu perigo. Sua obra, considera-
da arte erudita, não circulou apenas entre as classes mais abasta-
das, mas, ficou também conhecida entre as mais pobres, por meio
da circularidade cultural. O resultado é o convívio com a vigília de
que a praga retorna a qualquer momento, que sustenta os embates
entre as duas vertentes da fé cristã.
Na terceira obra citada, A praga em Florença de 1348, história
da arte e história da literatura novamente se entrecuzam contri-
buindo à compreensão sobre o período abalado pela Peste Negra.
A cidade, Florença, considerada uma das cidades mais populosas
da Europa do século IV, havia perdido parte considerável dos seus
habitantes, que não escaparam da propagação da epidemia naquele
início de século.
O ano de 1348 foi o ápice, o que influenciou Giovanni Boccac-
cio , poeta e crítico literário italiano, para compor o cenário do livro
2

Decameron3. Logo na introdução, ele explana sobre a devastação da


cidade e explica o motivo pelo qual, em sua “novela” institui uma
“brigada”, composta por sete mulheres e três homens. Esse grupo
abandona o meio urbano e avança em seus arredores, onde se de-
leitam num devir prazeroso, mas condicionado a limites e padrões
de sociabilidade.

2
 Não encontra-se uma definição de sua origem, mas aponta-se como opção Florença
ou Certaldo.
3
 O livro é estruturado em 100 contos escritos entre 1348 e 1353.

217
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
A cidade ficou para trás. As personagens narram os contos se-
quenciais, nos quais a sociedade florentina, atacada pela Peste, ti-
nha se tornado caótica, não pela doença em si, mas sobretudo por
conta da revelação de características humanas vergonhosas ante
ao paradoxo cristão do medievo. Havia, sobretudo, um sentido de
abandono, seja sob a forma de ruptura de laços de amizade ou fami-
liares, incluindo o mais doloroso, pais que abdicavam dos próprios
filhos. Vejamos um trecho:

Alguns faziam alarde de sentimento mais cruel (como se,


porventura, tal sentimento fosse o mais seguro), e diziam que
não havia remédio melhor, nem tão eficaz, contra as pestilên-
cias, do que abandonar o lugar onde se encontravam, antes
que essas pestilências ali surgissem. Induzidos por essa for-
ma de pensar, não se importando fosse com o que fosse, a não
ser com eles mesmos, inúmeros homens e mulheres deixa-
ram a própria cidade, as próprias moradias, os seus lugares,
seus parentes e suas coisas, e foram em busca daquilo que a
outrem pertencia, ou, pelo menos, que era de seu condado.
Para eles, era como se a cólera de Deus estivesse destinada
não a castigar a iniqüidade dos homens com aquela peste,
onde eles estivessem, e sim a oprimir, comovido, somente os
que teimassem em ficar dentro dos muros de sua cidade. Ou
como se essa cólera fosse apenas um aviso para que ninguém
permanecesse em determinada cidade, por ter chegado a
hora derradeira dessa mesma cidade. Como, de tais opina-
dores, nem todos morriam, e que, assim sendo, nem todos
continuavam a viver, muitos sujeitos, de cada cidade, e em
toda parte, caíam enfermos e, quase abandonados à própria
sorte, definhavam inteiramente. Êles mesmos, quando esta-
vam sãos, deram exemplo aos que continuavam sadios, para
que fugissem daqueles que tombavam sob as garras do mal.
Vamos pôr de lado a circunstância de um cidadão ter repug-
nância de outro; de quase nenhum vizinho socorrer o outro;
de os parentes, juntos, pouquíssimas vezes ou jamais se visi-
tarem, e, quando faziam visita um ao outro, ainda assim só o

218
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
fazerem de longe. Tal inquietação entrara, com tanto estar-
dalhaço, no peito dos homens e das mulheres, que um irmão
deixava o outro; o tio deixava o sobrinho; a irmã, a irmã; e,
freqüentemente, a esposa abandonava o marido. Pais e mães
sentiam-se enojados em visitar e prestar ajuda aos filhos,
como se o não foram (e esta é a coisa pior, difícil de se crer”
(BOCCACCIO apud LIMA ALMEIDA, 2013, p.125).

Boccaccio se utiliza dos contos para fazer uma crítica social,


e afirma que os laços foram corrompidos pela voracidade de dois
grupos em prol de seus lucros: mercadores e banqueiros Floren-
tinos. Como castigo, a Peste consuma uma sentença divina, uma
resposta à imoralidade dos avarentos e egoístas. Após a descrição
dessa situação terrível, Boccaccio fez surgir a tal “brigada”, um con-
traponto fictício aquela sociedade.
Esta é a metáfora: as personagens do Decameron propõem uma
modificação do comportamento dos florentinos na sociedade urba-
na. Os dez jovens que formaram a “brigada” saíram da cidade onde
não tinham laços de responsabilidade com outros, e conseguiram,
no meio de tanta desumanidade e egoísmo, conservar e acreditar
no afeto, no dever com o próximo, na amabilidade e nas leis mo-
rais e civis. Viviam para alegrarem-se mutuamente, mas dentro dos
limites da razão: instituíram chefes para dias diferentes, definiam
atividades e horários, determinavam como e quando as refeições
seriam feitas, e o tema das histórias a serem contadas pelo grupo.

219
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
Figura 3 – A praga em Florença de 1348.
Fonte: http://alchemipedia.blogspot.com/2009/09/plague-of-florence-1348-etching.html
(Consultado em 18.5.2020

Viviam na natureza e, ao longo dos quinze dias em que perma-


neceram longe de Florença, constituíram uma microssociedade vir-
tuosa e harmônica. Os contos recorrem a temáticas diversas, uns,
inclusive, eróticos, outros trágicos, mas há contos sobre sagacidade,
além de piadas. O livro Decameron é considerado uma obra-prima
da prosa clássica italiana e nos mostra o quanto a epidemia desen-
cadeou, da nobreza ao povo, para além da atmosfera de cataclismo,
de fim de mundo, a exarcebação da condição humana.
A imagem acima traz a seguinte descrição: “Inventada, dese-
nhada e talhada em cobre por Luigi Sabatelli” 4 (tradução nossa).

4
 Há o título e a dedicação ao Marquês Píer Roberto Capponi (patrono do Sabatelli)
no centro inferior. Essa gravura, uma das obras-primas de Sabatelli, está muito bem
documentada pelas cartas do próprio autor e de seu filho Gaetano, que lembra que
o cobre foi entregue à gráfica de Giuseppe Angiolo Volpini em 5 de janeiro de 1802.

220
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
Trata-se de uma Água-forte5, em italiano chamada de Acquaforte,
um tipo de impressão antiga. Sabatelli era um artista diplomado
pela Academia de Belas Artes de Florença, e alcançou a posição de
pintor da corte da rainha da Etrúria e duquesa de Lucca, Maria Luí-
sa de Bourbon-Espanha. Pintava afrescos, telas, e foi também um
gravador e, como tal, em A praga de Florença de 1384, expressou-se
através de traços minuciosamente posicionados a fim de conferir
matizes, sombras e um leve escurecimento difuso em detalhes que,
na completude da obra em preto e branco, pode nos levar ao cená-
rio dramático de então. A execução exigiu um ano de trabalho. Para
terminá-la por volta de 1802, o autor estudou cuidadosamente a
composição, o que é comprovado pela existência de alguns dese-
nhos preparatórios, principalmente estudos de nudez, que foram

5
 É uma técnica calcográfica (grava-se no cobre ou em outro metal). Consiste em cor-
roer uma placa de metal (geralmente zinco; cobre para grandes tiragens, como no
passado) com um ácido a fim de obter imagens a serem transpostas para um suporte
(papel normalmente) por meio de cores. A base de espessura necessária, disponível
no mercado, é limpa e chanfrada nas bordas com papel de esmeril e depois desengor-
durada na parte brilhante com carbonato de cálcio dissolvido em água. Essa solução
é aspergida uniformemente com uma cobertura para proteger do ácido (cera, asfalto,
borracha...), é esfumaçado com velas. Em seguida, o desenho é gravado no material de
proteção com uma ponta fina (à mão livre ou passando por cima de um rascunho em
papel transparente para descalcificação), para expor o metal em correspondência com
as marcas que aparecerão no papel graças à tinta. A chapa ácida é imersa (depois de
coberta a face traseira) iniciando as gravações, o que pode ser feito várias vezes, des-
cobrindo gradualmente as peças a serem gravadas, para obter diferentes escavações
profundas. O ácido afeta apenas o metal onde não está protegido. Depois de concluída,
a folha é lavada com gasolina ou aguarrás, seca e mantida como a matriz do desenho a
ser replicado. A impressão é feita com a prensa calcográfica em papéis levemente co-
lados e umedecidos antes, polvilhando a placa com tinta graxa com uma almofada de
couro e aquecendo-a um pouco para facilitar a penetração do corante nas ranhuras e
sua transferência para o papel, após a limpeza das peças aparecer branco na folha im-
pressa. A base pode ser retocada, mesmo várias vezes com um ponto seco ou com mais
batidas, após um primeiro teste (teste de status) até atingir os efeitos de claro-escuro
desejados ou, como no passado, adicionar textos. Fonte: https://it.wikipedia.org/
wiki/Acquaforte (Consultado em 18. maio de 2020. (Tradução e adaptação da autora)

221
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
lançados no mercado e outros, que estão hoje na Galeria de Arte
Moderna de Roma6.
Observem. A imagem foi feita para ser reproduzida. Apesar de
pintor famoso, Sabatelli não se prende a uma técnica, a escolha pela
Acquaforte no século XIX indica a desejosa divulgação da imagem.
As artes sempre circularam, ora restritamente, ora para todos, vide
o caso das igrejas com painéis que ajudavam na catequese cristã,
visto o interesse da igreja católica em abarcar os não letrados.
A imagem já funcionava bem. Esta tendência na produção e cir-
culação das artes ocorre pelo seu caráter doutrinário. O artista das
pinturas em edificações aristocráticas e religiosas, dos manuscritos
e iluminuras próprios do clero e da nobreza, opta pela gravura para
divulgar tal obra que, no caso, tinha, sobretudo, o intento de lembrar
à sociedade que a praga estivera entre eles, e poderia estar no porvir.

Considerações preliminares

Houve e haverá um contexto cultural. Enquanto a praga não


nos exterminar, realidades serão substituídas pela dimensão visual
e, essencialmente após o século XIX, quando a imagem ampliou seu
alcance, seu potencial poder essencial da transmissão, como um ví-
rus, tende a se multiplicar em uma velocidade estonteante.
Ao nos voltarmos às três obras aqui arroladas, compreende-
mos que a tradução visual colaborou, de forma efetiva, para que o
medo do fim penetrasse nos imaginários sociais. Dito isso, questio-
na-se: em que medida uma bela feição do feio (e do assombroso)
não a torna fascinante? Essa questão não responderemos aqui, mas,

6
 https://www.gonnelli.it/it/asta-0014/sabatelli-luigi-la-peste-di-firenze-dal-boc-
cac.asp. (Consultado em 18.5.2020).

222
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
recorremos a um estudioso do medievo, onde as imagens tiveram
papel fulcral. Segundo Eco (2007), para o homem da Idade Média, o
universo criado é um todo que deve ser apreciado em seu conjunto,
onde as sombras contribuem para o resplandecer das luzes, “e mes-
mo aquilo que pode ser considerado feio por si mesmo mostra-se
belo no quadro da ordem geral” (ECO, 2007, p. 103).
Por este viés, os monstros, servem ao amor e o temor. Aqui
comparamos os monstros à praga, a epidemia, suas imagens, suas
contradições na cidade, conjunto e fragmento, o todo e as partes.
Observamos o quanto nos acostumamos com a praga nas cidades,
mantida sob vigilância (sanitária, social, ideológica, policial), mas
aceita nas mazelas permanentes das segregações, em que uns po-
dem correr para fora do urbano, livremente, e penetrar no fascí-
nio do horrendo de longe, na literatura, na pintura e, mais recen-
temente, pelas telas, de cinema, televisão e internet. A praga ainda
está presente.

Referências
CERTEAU, Michel de. A História cultural: entre práticas e representações.
Lisboa: DIFEL, 1990.

ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval [1987]. Rio de Janeiro:


Ed. Record, 2010.

ECO, Umberto. História da feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007.

FERREIRA, E; SOUZA, A. W; SANTANA, M; ZORZO, F. A; PACHECO, L. M. B;


ROSSI, M. H. W; PATEL, B; FREITAS, E; MEDEIROS, L. S; REIS, L; TRINCHÃO,
G. Produção visual: criatividade, expressão gráfica e cultura vernacular, v. 1.
Feira de Santana: UEFS Editora, 2010.

LIMA ALMEIDA, Ana Carolina. A recriação de Florença por Giovanni


Boccaccio através do Decameron (1349-1351). Revista diálogos
mediterrânicos, n. 5, p. 118-131, 2013.

223
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
MORMANDO, Franco. Piety and plague: from byzantium to the baroque
(sixteenth century essays & studies). United State: Truman State University
Press, 2008.

REIS, Lysie. A liberdade que veio do ofício: práticas sociais e cultura dos
artífices na Bahia do século XIX. Salvador: EDUFBA, 2013.

REIS, Lysie. Os Homens rudes e muito honrados mesteres. Salvador:


EDUNEB, 2019.

VOLTA AO SUMÁRIO

224
AS E MOÇ ÕE S E M TE M PO DE I SOL AM ENTO S O CIA L
CAPÍTULO 10

O QUE VOCÊ CALA – OLHARES


SOBRE UM TEMPO DE PANDEMIA

Mônica Lizardo de Moraes

A sensação é de apreensão, de parada brusca. Um violento e


invisível desconhecido nos escancara a fragilidade. De repente nos
encontramos confinados em nós, ainda que mobilizados por uma
dor e medo partilhados coletivamente, deixar o ritmo alucinado da
vida tem nos oportunizado encontros catárticos. Quem poderá se
dirigir ao outro, travar uma autêntica relação, em qualquer nível de
alteridade, sem antes encontrar a si mesmo? Um profundo olhar so-
bre Si,um desnudar-se sem julgamentos pode nos devolver a leveza
da criança, ou nos mergulhar em tormentas – quantos encontros,
portanto, possíveis entre o inferno e o céu. Como carrasco invisível
o vírus nos leva os entes mais queridos, nos impede o último abra-
ço, nos nega qualquer abraço, e grita violentamente à alma, feito às
sirenes das ambulâncias quese revezam momento a momento ante
a solidão de minha janela: o que temos calado? o que você cala?
O que tenho eu calado todos os dias?
Hoje, mediante um melancólico cortejo de pessoas com suas
máscaras, um sentimento instiga: algo que chama a reflexão, que
nos leva a pensar como tão cuidadosamente cingimos nossas

225
mordaças, que nos calam mediante a sistemática devastação da na-
tureza, sagrada; que nos emudece ante os abismos sociais assime-
tricamente arquitetados, fundados em um não olhar para o outro,
em uma lógica instrumental de busca voraz por lucro e poder, na
negação do diálogo, em rupturas profundas entre nós e os outros,
entre nós e a natureza, entre Eu e o Tu Eterno, conforme nos sinali-
zaria Martin Buber (2001), em sua obra seminal – Eu e Tu.
Vivemos um momento único, em que pese avassalador; tempos
que distancia as pessoas fisicamente, que nos confina, e paradoxal-
mente nos aproxima, mediante o mistério insolúvel da morte emi-
nente, e de certa desorganização imposta ao nosso lugar no mundo,
visto que, repentinamente, “tudo parou”. A necessidade mais ele-
mentar que temos, o simples ato de respirar, a qualquer momento
pode ser suspenso decretando nosso fim.
E dá o que pensar, como seria se o mal que nos ameaça com
o risco de morrermos com fome de ar, nos impulsionasse à fome
de viver, com dignidade! Uma vida boa, com os outros, em institui-
ções justas, em um planeta preservado, respeitado por nós. Penso
que as situações de quase morte, a morte, o “isolamento social”, a
rotina caótica, a solidão e também a solidariedade e a partilha em
tempos de quarentena, nos suscita um desafiante encontro conos-
co, um mergulho nos meandros de nosso mistério de ser, de busca
pela verdade, pela sacralidade em nós, na natureza – e no outro que
não eu. Encarar nossa fragilidade pode despertar nossa potência de
vida? Uma vida digna para todos.
Este período parece também marcado pelo signo da contradi-
ção, conforme palavras de uma jovem mulher que trabalha na feira
do bairro da Pedreira: as pessoas estão presas em casa, e quem tem
dinheiro muitas vezes não tem como comprar a própria saúde. Uma

226
O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
situação que exige que fiquemos trancados em casa como forma
de proteger a nós e aos outros, de forma alguma nivela as pessoas
perante o vírus que não distingue ricos de pobres. O medo, con-
finado em casas confortáveis, rodeadas de toda forma de aparato
tecnológico, com acesso a alimentação de qualidade, não é o mesmo
que acompanha o desespero de quem não tem onde morar e o que
comer: água potável e sabão então, nem se fala.
Outro paradoxo diz respeito às condições do planeta, que com
seu principal predador sob contenção parece respirar aliviado, com
o céu menos poluído, as águas mais claras. E nos perguntamos o que
há de ficar após tudo isto? Esse turbilhão de sentimentos que hoje
nos move nos indicará uma saída? Ou por outro lado, nos permitirá
iniciar um processo reflexivo que revele a nós a face do Outro.
O ensaio O que você cala, tem um recorte documental, registra-
do através de alguns retratos, percepções e sentimentos de pessoas
durante a quarentena imposta pela pandemia do covid-19, em Belém
do Pará, no coração da Amazônia. Apresenta nuances de diferenças
abismais que uma situação de lockdown, numa sociedade rica em
cultura e diversidade, mas também marcada por enorme desigual-
dade social, evidencia. Fala de encontro e esperança, de empatia e
solidariedade, de medo e impotência, fala também de missão, e de Fé.
A narrativa se distribui em três eixos: um encontro em um hos-
pital, entre duas pessoas em uma situação limite; algumas percep-
ções acerca dos sentimentos de pessoas que atuam em uma grande
feira pública – e que não podem se confinar em casa; um encontro
da autora consigo mesma.

227
O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
No Hospital – O enfermeiro que me levou para ver Deus1

Do encontro entre o profissional de saúde Cledson Silva, e o


jornalista Pascoal Gema, que retornou das trevas na luta contra
a covid-19, surgiu um instante único descrito na crônica O enfer-
meiro que me levou para ver Deus. Crônica escrita pelo jornalista
quando internado no Hospital de Campanha do Hangar montado
na capital paraense, para atender a enorme demanda gerada pela
pandemia da covid-19. A intensidade e a delicadeza do texto, pos-
sivelmente, se ancoram na experiência vivenciada por ambos: um
desses momentos em que palavras são limitadas para dar conta do
imponderável. Dias depois, atendendo gentilmente a meu pedido,
fui recebida por Cledson na saída de seu plantão (era 12 de maio,
dia internacional dos enfermeiros) e escutei algo que prefiro deixar
aqui de forma literal,

Foi um momento tão profundo que só eu e ele sabemos des-


crever, foi um mistério, e entre dois desconhecidos, e parecia
que a gente já se conhecia há muito tempo... ele viveu assim
aquele momento de intimidade com Deus, ele pode perce-
ber Deus no extraordinário, porque aí dentro (no Hospital
de Campanha) as pessoas se tornam mais humanas porque
já estão acometidas daquele sofrimento, não sabem se vão
sair dali, ou sair dali dentro de um caixão, as pessoas lutam
por oxigênio aí dentro, é um momento de fé também, em que
as pessoas precisam só de um empurrãozinho para ter este
contato entre o humano e o Divino. Essa experiência que eu e
o Pascoal vivemos dinheiro nenhum paga, e outras situações
que eu vivi também com outras pessoas aí dentro, dinheiro
nenhum paga.

1
 Ler a crônica O enfermeiro que me levou para ver Deus, em: https://ver-o-fato.com.
br/o-enfermeiro-que-me-levou-pra-ver-deus/

228
O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
Eu acho que não há expressão maior de amor do que se co-
locar no lugar do outro. A gente está ali, e ver a outra pessoa
querendo respirar, ver a pessoa querendo sair dali, e poder
contribuir com isto, e poder ajudar, poder fazer o melhor. Por-
que vir para cá só por vir, porque está cumprindo um horário
de trabalho, só pelo dinheiro? E eu faço isto é por vocação ou
pelo dinheiro? Eu faço por vocação! E no fundo a palavra que
resume tudo isto é missão... Sim, e eu tenho medo, meu medo
maior é levar minha mãe a adoecer, minha mãe é idosa.

Escutei também Pascoal Gema que,

Você tem que acreditar que há realmente algo superior e acre-


ditar também nas pessoas que estão aqui... esses anjos que a
gente insisti em procurar estão aí. Nosso egoísmo é o grande
mal... porque eu tenho que andar em linha reta? E as pessoas
têm que sair da minha frente... a gente tem que aprender a
compartilhar, vamos prestar atenção na nossa vida, no que a
gente está fazendo com ela.

Nos dias atuais somos bombardeados por imagens reprodu-


zidas tecnicamente. Katia Mendonça, em seu livro A imagem uma
janela para o invisível (2018) chama atenção para as imagens que
hoje se incorporam como próteses ao corpo humano mergulhados nos
celulares e destaca nossa dificuldade em compreendermos o porquê
da violência crescente nos comportamentos sociais que se espalham
através das redes sociais2. Não cabe nos limites deste texto adentrar
à refinada análise acerca da energia contida na imagem, discutida
pela autora. No entanto, tal perspectiva, num contexto pandêmico

2
 “Há um mundo invisível por trás das imagens. Estas abrem portais para compor-
tamentos que não são meras réplicas psicológicas, meras imitações ou reações emo-
cionais, mas que são provenientes do envolvimento sinérgico do espectador com as
energias liberadas por tais imagens, sejam elas agregadoras e de harmonia, sejam elas
destruidoras, caóticas e violentas” (MENDONÇA, 2018, p.76).

229
O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
que exigiu uma pausa a humanidade, nos remete a experiência de
Cledson e Pascoal que, a meu ver, chama atenção para a necessida-
de urgente de um voltar-se para si, uma condição para oportunizar
os verdadeiros encontros, precisamos fazer as pazes com o tempo,
nos desconectar, para nos conectar com o mais importante.
Um homem olha para o céu, se permite contemplar, mergu-
lhar na aura por um segundo eterno, e percebe que pode partilhar
com outro homem aquele instante tão simples em sua profundi-
dade, e escolhe compartilhar – tão somente se permitir olhar e
sentir o céu, o brilho, as cores do firmamento, que cada um deles
percebeu à sua maneira. Não tenho ideia do que aqueles homens
viram; quem presenciasse a cena viria tão somente dois homens
contemplando o céu.

230
O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
Na Feira – percepções em tempos de covid-19

A Feira Livre da Pedreira fica no bairro de mesmo nome, na


cidade de Belém. A primeira edificação do Mercado, que hoje abriga
inúmeros boxes nos quais é possível encontrar uma incrível varie-
dade de mercadorias data de 1940. A Feira tem sempre grande mo-
vimentação de pessoas ao longo de todo o dia. Ali se estabelecem
relações de sociabilidade entre trabalhadores/ras da feira, seus
clientes, os moradores do bairro e do entorno, fornecedores e pes-
soas que se deslocam das cidades do interior do Pará para distribuí-
rem sua produção. O peixe, as aves, legumes e frutas, a imprescin-
dível farinha como toda a tradição alimentar paraense se encontra
na feira. Utensílios domésticos, alimentos prontos, aromas, ervas,
objetos para práticas religiosas, é como dizem os moradores do
bairro: o que você pensar tem na feira.
Um número muito grande de famílias dependem economica-
mente deste fluxo de pessoas e trabalho, são muitas mulheres, ho-
mens e, inclusive,um número expressivo de idosos que lá desenvol-
vem suas atividades desde as primeiras horas da madrugada.
Neste ambiente de intensa circulação de pessoas, a covid-19
transformou a rotina. O Bairro da Pedreira atingiu um índice muito
alto de contaminação; muitos feirantes contraíram o vírus. Escu-
tei alguns trabalhadores e trabalhadoras da feira, estava ali como
cliente, mas falei sobre meu proposito de tentar compreender um
pouco o significado da pandemia na vida deles, e a ocasião meper-
mitiu a realização de breves entrevistas – que tiveram o caráter de
conversas informais – bem como a produção de algumas imagens,
todas autorizadas.
Jefferson trabalha a 10 anos na feira:

231
O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
eu venho trabalhar por necessidade mesmo, tenho muito
medo de passar a doença pra minha filha, ela é asmática, e
não sai mais de casa, só vejo ela de longe... eu venho trabalhar
mesmo por necessidade, se não trabalhar eu não tenho de
onde tirar. Eu sinto muito medo mesmo, eu se pudesse não
vinha mais trabalhar, só voltava depois que acabasse tudo
isto, eu ia ficar em casa se pudesse, só que você liga a tele-
visão e é o que passa: ‘morreu mais trezentos, morreu mais
quinhentos, isto é horrível.

Cris trabalha no setor da farinha:

a gente tem que trabalhar porque a gente é autônoma,


mas tomando todo cuidado, não deixoaglomerar na banca.
O maior sentimento é de não poder fazer nada né, de impo-
tência, as pessoas estão sós, quem está doente a gente não
pode ir visitar. Olha, os meus pais moram no interior, em
Colares, desde fevereiro eles não vem me visitar, eles ligam,
choram dizendo que vem me visitar, e eu digo, não vem! Pelo
bem deles, já são de idade né. Então é impotência que eu
sinto, você não pode fazer nada: quem tinha dinheiro está
igual quem não tem, quem tá livre agora está igual quem está
preso, então é uma questão de se colocar no lugar do outro,
quem tem dinheiro não tá podendo comprar saúde.”

Márcia sente medo e, mediante a crise encontra lugar para so-


lidariedade:

os empresários dizem que a gente tem que ficar em casa, mas


eles são ricos... tem o vírus sim, mas só Deus mesmo, por-
que a gente tem que vir pra trabalhar, toda hora a gente fica
passando álcool em gel na mão, a gente fica com medo, eu já
perdi um amigo idoso que também vendia na feira e achava
que este vírus não existia, um dia dei vinte reais pra ele po-
der ir pra casa, no outro dia ele não apareceu, ele pegou o
Covid, uns dias depois a gente soube que ele morreu. A gente
trabalha com medo.

232
O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
Através das percepções expressas pelas pessoas foi possível
perceber que as relações sociais partilhadas no espaço público, no
contexto da pandemia, estabelecem de forma direta uma ligação com
o espaço privado, expresso na preocupação com os familiares e entes
queridos. Em mais de uma ocasião escutei que o medo de contrair o
vírus nos espaço da feira e levar para dentro de casa é muito grande.
A sensação é de que é preciso cuidar e proteger o outro.
Uma preocupação enorme surge também com relação à neces-
sidade de prover as despesas da família, se por um lado eles enfati-
zam o medo que sentem durante a pandemia, por outro a responsa-
bilidade com as despesas e necessidades da família ficaram muito
evidentes. Em Belém, poucos dias após o primeiro caso identificado
de Covid19, o sistema de saúde entrou em colapso, todos sabem do
risco de contrair a doença e não encontrar atendimento, os feirantes
todos os dias saem de casa para trabalhar, se encontram expostos.

Feirantes da Feira Livre da Pedreira

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O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
O final de um dia de feira – garis

234
O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
Em casa – sobre um autorretrato, ou o que nós calamos?

Pouco mais de um ano atrás, em roda de apresentação em


uma reunião de trabalho na cidade de Altamira, me apresentei
como uma amiga do rio. Depois vieram aquelas formalidades, sua
pós-graduação, de que lugar você fala e por ai adiante, mas ali no
coração do Médio Xingu, me ocorreu naquele instante falar sobre
o que mais me mobilizou desde minha chegada à região, em mea-
dos de 2013. Atuei na Volta Grande do Xingu, na área de maior im-
pacto da UHE de Belo Monte. Em trabalho de pesquisa escutei e
convivi com pessoas que se referem ao rio como nosso pai, e nossa
mãe, –muito além de recurso hídrico pensado instrumentalmente
pelos técnicos, o rio parece correr também nas veias de seu povo,
que não se percebe apartado do rio.Tenho escutado e fotografadoos
ribeirinhos, seu cotidiano e suas lutas perante todo um desmonte
em seus modos de vida imposto pela hidrelétrica. Venho também
registrando em imagens o rio, as matas, a paisagem, e também as
transformações e todo o processo devastador, como o cemitério de
impressionantes e fantasmagóricas árvores mortas que restaram
na área de inundação, no chamado Reservatório do Xingu, que Belo
Monte inventou.
Quando a pandemia chegou a nós, no Brasil e na Amazônia, já
vinha causando um sentimento sombrio, trazido pelas imagens da
Ásia e Europa com seus milhares de mortos. Os dias passaram rá-
pidos e pesados, logo estaríamos aqui também trancados em casa,
nos reinventando. Quando precisei providenciar uma máscara para
me proteger de algo que poderia estar presente em qualquer lu-
gar, encontrei minhas fotografias impressas em tecido, imagens de
fragmentos de uma cadeia de vida interrompida num rio chamado,

235
O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
inclusive, de Morada dos Deuses, tamanha a beleza e imponência do
Xingu, que o homem ousou barrar.
Aquela fotografia, costurada e transformada em máscara, me pa-
receu gritar pregada ao rosto: o que estamos a fazer conosco? O que
calamos nós, todos os dias, que nos rouba a própria dignidade de viver
uma vida digna? Como chegamos a predar de tal forma, florestas intei-
ras, rios gigantescos, seres que coabitam conosco neste planeta, sem
perceber que estamos a nos matar. A natureza tão sistematicamente
massacrada, de um momento para outro começou dar mostras em si
mesma de que nosso confinamento a permitia respirar, um sopro.
Usar a minha máscara com a imagem de uma árvore morta co-
lada ao rosto me fez pensar o que poderia eu ter feito, o que pode-
mos nós fazer; transportou-me para tarde em que vi gigantescas
máquinas colocarem abaixo árvores centenárias na ilha do Arapujá,
à frente da orla da cidade de Altamira – enquanto os olhos registra-
vam com a câmera as cenas mais tristes que já vi, os ouvidos escuta-
vam um passarinho, bem próximo. Foi uma tarde de cinzas e morte.
E o que uma quarentena tem a ver com isto? A meu ver, pa-
rar para refletir acerca dos caminhos da violência, da desigualda-
de, dos desencontros, da indiferença ante o sofrimento do outro,
seja lá quem for este outro: gente, rio, florestas, povos diferentes do
meu grupo – que meu etnocentrismo voraz insiste em inviabilizar
– torna-se imperioso. Daí a analogia entre a máscara e a mordaça,
costurada por nós próprios caprichosamente, uma que protege e a
outra que emudece; que faz calar
Meu autorretrato é também a imagem da árvore morta, e não
sou mais eu ali, somos nós. Porque afinal somos todos feitos da
mesma essência, homens e árvores. E, se conforme Ailton Krenak, o
amanhã não está à venda, penso que cabe refletir -
Sobre o que nós calamos.

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O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
Autorretratos

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O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
Referências
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001.

MENDONÇA, Kátia, A imagem – uma janela para o invisível, Belém: Marques


Editora, 2018.

VOLTA AO SUMÁRIO

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O QUE VOC Ê C AL A – OL HARE S SOBRE UM TEMP O DE PA NDEMIA
SOBRE OS AUTORES

Fanny Longa Romero. Docente da Unilab, Campus dos Malês-Bahia.


Doutora em Antropologia Social pelo PPGAS da Universidade Fede-
ral de Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou pós-doutoramento em
Ciências Sociais no PPGCS da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS) e no PPGCS da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE). E-Mail: [email protected]

Idayane Gonçalves Soares. Mestranda em Sociologia pelo Progra-


ma de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Fede-
ral da Paraíba (UFPB). E-Mail: [email protected]

Jesus Marmanillo Pereira. Doutor pelo Programa de Pós-Gra-


duação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGS-
-UFPB); Coordena o Programa de Pós-Graduação em Sociologia
(PPGS-UFMA) e o Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Cida-
des e Imagens (LAEPCI). E-Mail: [email protected]

Lysie dos Reis Oliveira. Professora Titular da Universidade do Es-


tado do Bahia, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Estu-
dos Territoriais (PROET). E-Mail: [email protected]

239
Maria Laura Faria Afonso de Melo. Graduada em Sociologia pela
Universidade Católica de Pernambuco, em 1969; Entre 1975 e 2002
foi Funcionária do INCRA/PROTERRA/FUNTERRA; Servidora pú-
blica da FIDEM, Secretaria de Planejamento de Pernambuco; Dire-
tora de Planejamento da Secretaria de Trabalho e Ação Social; Di-
retora de Planejamento da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes;
Assessora de Planejamento da Agência do Trabalho e da Secretaria
de Emprego e Renda do Governo de Pernambuco; Gestora para im-
plantação de Projeto para Catadores de Materiais Recicláveis; As-
sessora do PRO RURAL. E-Mail: [email protected]

Mauro Guilherme Pinheiro Koury. Professor voluntário do PPGA


Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Fe-
deral da Paraíba. Coordenador do GREM-GREI – Grupos de Estudo
e Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções, e Interdisci-
plinar em Imagens. E-Mail: [email protected]

Monica Lizardo de Moraes. Antropóloga, pesquisadora, membro


do Grupo de Pesquisa Imagem, Arte, Ética e Sociedade, do PPGAS/
UFPA. E-Mail: [email protected]

Rafael de Oliveira Cruz. Discente do último período do curso de Li-


cenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal do Tocantins
(UFT) – Campus Tocantinópolis. E-Mail: [email protected]

Selma Gomes da Silva. Professora adjunta da Universidade Fede-


ral do Amapá (UNIFAP). Doutora em Sociologia – Programa de Pós-
-Graduação em Sociologia – Universidade Federal do Ceará (2017);
Doutorado Sanduíche em Sociologia – Università Degli Studi di
Trento (2015). E-Mail: [email protected]

240
SOBRE OS AUTORE S
Wellington da Silva Conceição. Doutor em Ciências Sociais (UERJ).
Professor Adjunto da Universidade Federal do Tocantins (UFT) –
Campus Tocantinópolis. Professor permanente do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Mara-
nhão (UFMA). E-Mail: [email protected]

Williane Juvêncio Pontes. Doutoranda em Antropologia pelo Pro-


grama de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal
da Paraíba (PPGA-UFPB). E-Mail: [email protected]

VOLTA AO SUMÁRIO

241
SOBRE OS AUTORE S
SOBRE O GREM-GREI

O Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções –


GREM surgiu em 1994, logo seguido pelo Grupo Interdisciplinar de
estudos em Imagem, criado em 1995. Os dois grupos GREM e GREI
participaram ativamente na consolidação das áreas de pesquisa so-
bre Emoções e sobre Imagem nas ciências sociais no Brasil, desde os
anos de 1990. Grupos irmãos, com larga convivência de pesquisas e
estudos em comum e agora juntos em um único portal como GREM-
-GREI. Os dois grupos têm por objetivo o estudo crítico das imagens
e das emoções na sociedade urbana contemporânea. O GREM-GREI
podem ser consultados no endereço: https://grem-grei.org/

VOLTA AO SUMÁRIO
Este livro, com enfoque centrado na antropologia e
na sociologia das emoções, trás o título, Tempos de
Pandemia: Reflexões sobre o caso Brasil e está
organizado em dez capítulos mais uma introdução.
Os autores presentes refletem sobre a crise político-
institucional e a crise sanitária vividas pelo país, e
sobre o cotidiano do isolamento social produzido
pela situação pandêmica do coronavírus, e as formas
de adaptação comportamental à nova situação
causada pelas mudanças de hábitos e costumes que
provocam ansiedades, medos, tristeza, depressão,
na população. Além de reflexões sobre os movimen-
tos de conformidade e resistência de homens e
mulheres em seu cotidiano, em um período de incer-
teza e desilusão por que passam o mundo e o Brasil,
aqui, de modo particular.

ISBN: 978-65-86602-14-2

243
9 7 8 6 5 8 6 6 0 2 1 4 2
ARTIGO

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