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Currículo e Educação no Brasil

O documento discute um livro sobre currículo na contemporaneidade que aborda incertezas e desafios. O livro está em sua 4a edição e reúne autores renomados que discutem questões curriculares.

Enviado por

Luana Oliveira
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Currículo e Educação no Brasil

O documento discute um livro sobre currículo na contemporaneidade que aborda incertezas e desafios. O livro está em sua 4a edição e reúne autores renomados que discutem questões curriculares.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Currículo na contemporaneidade : incertezas e desafios / Regina


Leite Garcia, Antonio Flavio Barbosa Moreira (organizadores) ;
traduzido por Silvana Cobucci Leite, Beth Honorato, Dinah de
Abreu Azevedo. -- 4. ed. -- São Paulo,: Cortez, 2012.

Vários autores.
ISBN 978-85-249-1917-6

1. Currículos 2. Educação - Brasil - Currículos I. Garcia, Regina


Leite. II. Moreira, Antonio Flavio Barbosa.

12-05196 CDD-375.001

índices para catálogo sistem ático:


1. Currículos : Construção e planejamento : Educação 375.001
Regina Leite Garcia
Antonio Flavio Barbosa Moreira
(Organizadores)

Antonio Flavio Barbosa Moreira • Beatriz Sarlo • Gunther Kress


• James G. Ladwig • Johan Muller • John W illinsky •
José Gimeno Sacristán • José Gregorio Rodriguez
• Juan Carlos Garzón • Luiza Cortesão •
Nicholas Burbules • Regina Leite Garcia
• Stephen R. Stoer « William F. Pinar

Currículo na
contemporaneidade:
incertezas e desafios

4â edição

Ä C O RT€Z
^ €D IT O R Q
Conforme pesquisa nossa, o livro vem sendo adotado em
Cursos de Formação de Professores, Cursos de Mestrado e
mesmo de Doutorado em Educação, e por professores e pro­
fessoras que atuam nas escolas de ensino fundamental; uns
que teorizam sobre Currículo, outros e outras que vivem o
currículo em ação e buscam, em nosso livro, subsídios para
realizar o diálogo prática-teoria-prática de forma crítica e
criativa.
E esta resposta que nos enche de alegria por confir­
mar nossas escolhas na organização do livro. Além da gran­
de amizade que nos une, desde o curso de Doutorado em
Educação, nas primeiras turma da UFRJ, lá nos idos de 1980,
mantêm-se as afinidades eletivas, pois confirmamos nossas
escolhas dentre os melhores, aqueles teóricos de currículo
que continuamos a admirar.

Regina Leite Garcia


Antonio Flavio Barbosa Moreira
/»corcrez
< & € D IT O R O

Com eçando uma conversa


sobre currículo

Antonio Flavio: Podíamos começar nosso diálogo refle­


tindo sobre as teorizações que vêm sendo elaboradas sobre
questões de currículo e sobre como muitas dessas teorizações
estão se afastando do que considero o tema central do campo
do currículo — o conhecimento escolar. Penso que a discussão
sobre o que precisamos ensinar a quem, na escola, sempre
demanda novas análises, novos ângulos, novas perspectivas.
E uma discussão que precisa sempre se renovar, ainda mais
que nossa escola tem tido dificuldade de decidir o quê e como
ensinar aos alunos de grupos sociais oprimidos. Fracasso e
exclusão continuam a marcar nossa escola. As teorizações que
temos produzido por meio de nossas pesquisas não têm con­
tribuído, como gostaríamos, para enriquecer a prática curri­
cular em nossas salas de aula e promover mais aprendizagem.
Ou seja, a teoria e a prática não se encontram tanto como seria
de desejar.

Regina: Mas as pesquisas, as discussões e as teorizações


que vêm sendo feitas hoje nos dão dados para que entenda­
mos como é que aconteceu a separação entre teoria e prática,
como é que os saberes da prática foram desqualificados e
como é que isso tem servido ao exercício do poder. Porque,
quando eu desqualifico aquele que me ameaça, tiro dele, ou
pelo menos diminuo, a possibilidade dele me ameaçar. Então,
o que foi acontecendo e que chegou à escola, sem dúvida, é
que os saberes e fazeres da prática foram sendo desqualifi­
cados, os falares foram desqualificados e todo um processo
de produção de conhecimento foi sendo como que silenciado.
Vamos tomar como exemplo o Brasil. Dizia-se, por exem­
plo, que os indígenas não tinham condição sequer de votar,
de serem considerados cidadãos. No entanto, sempre produ­
ziram tecnologias importantíssimas ligadas à agricultura;
durante séculos os indígenas já tinham conhecimentos sobre
as qualidades das ervas, sobre como conter a natalidade, as
m ulheres indígenas sempre souberam como evitar filho. O
que vem acontecendo, nos últimos anos, e desde muito tem­
po, é que vêm os europeus, os norte-americanos, e agora
também os japoneses, por exemplo, para a Amazônia, pro­
curam as populações indígenas, propõem trocas daquilo que
os indígenas sabem por aquilo que eles trazem.... migalhas
para tapear os índios, que eles veem como ignorantes, em­
bora queiram se apropriar de suas riquezas. Levam, então,
esse conhecimento para a Europa, para os Estados Unidos,
ou para o Japão, para os grandes centros, patenteiam, trans­
formam em remédios, em cremes de beleza, em perfumes, e
as multinacionais nos devolvem tudo isso, nos fazendo pagar
alto por alguma coisa que saiu daqui.
Ora, isso e tantas outras coisas foram fazendo as pessoas
pensarem: afinal de contas, quem sabe, é o técnico ou é a
população indígena? E o técnico ou é o homem do campo
que diz ser capaz de prever quando é que vai chover e quan­
do haverá seca? Quem sabe, é o engenheiro da obra ou o
mestre de obra? Será que uma criança das classes populares,
quando entra na escola, é tabula rasa, como alguns querem
crer? Será que só sabe quem passou pela escola? Será que só
existe um saber e um único caminho para se construir/ad­
quirir saberes?
Vamos pensar também na questão específica da língua,
naquilo que nós dizemos ser o "falar errado" das populações
mais pobres. Estudos de linguística hoje vêm nos mostrando
que, muitas vezes, o que nos parecem erros, são vestígios de
9- /

um português arcaico. E erro, ou, quem sabe, o que Proust


denominava memória involuntária? Nós vamos encontrar
nos clássicos esse mesmo português. E quando se trata de
clássicos, cultuados e ensinados na escola, eles são impostos
aos alunos e alunas e devem ser aprendidos. Que explica essa
dupla mensagem, a aceitação quando escrito pelos "grandes"
e a discriminação quando falado pelos "pequenos"? Isso tudo
nos faz pensar sobre o que é o conhecimento certo e o qué a
escola considera errado, e nos faz concluir que a escola seria
um espaço bem mais rico se acolhesse o conhecimento que
os alunos das classes populares trazem e que são resultado
das lutas pela sobrevivência que as classes populares vivem
e nas quais, sem dúvida, produzem conhecimentos.
E quanto ao conhecimento dito científico, que se diz ser
função da escola transmitir? Ora, se nós acolhermos, proble­
ma tizarmos e pusermos em confronto esses dois conhecimen­
tos, o popular e o erudito, a escola, além de transmitir, irá
redefinir, ressignificar, produzir conhecimentos melhores,
resultado da reaproximação da prática e da teoria e, quem
sabe, chegar à circularidade dos saberes, como nos ensinaram
Bakhtin, Ginzburg e tantos outros.
Isto porque, se eu ponho em confronto a variedade lin­
guística que nós falamos e a que o menino da favela fala,
alguma coisa nova surge, que não é nem a imposição da
linguagem que falamos, nem a imposição ou a supervalori-
zação da linguagem que o menino fala. Nem a supervalori-
zação da cultura que trazemos, nem a supervalorização da
cultura popular, mas a possibilidade de se ter a sala de aula
como um espaço de ressignificação de conhecimentos, de
produção de novos conhecimentos, de problematização dos
diferentes conhecimentos, tal como eles estão postos na so­
ciedade. A língua portuguesa, na modalidade brasileira, em
permanente movimento, mostra-se de forma diferente: dife­
rentes linguagens, de acordo com o grupo que fala e de seu
status na sociedade.
Ainda estou falando de relações mais democráticas e
de uma riqueza maior. Por quê? Porque aprende quem en­
sina e ensina quem aprende, num rico processo de hibridi-
zação, em que a cada dia em que saem da sala de aula, a
professora ou professor e cada aluno e aluna, saem diferen­
tes. Por quê? Porque aprenderam alguma coisa que, ao en­
trarem, não sabiam.

Antonio Flavio: Gostaria de acrescentar algo. Creio que


cabe pensarmos também no processo de transformação de
conhecimento científico em conhecimento escolar. Alguns
estudos têm procurado entendê-lo e têm mostrado que ele
inclui, entre outras, algumas estratégias que talvez um bom
professor conheça, mas tome como dadas, não pare muito
para refletir sobre elas. Que estratégias são essas? Apresentar
de modo diferente um conhecimento que não foi bem enten­
dido pelos alunos, estabelecer uma comparação que ilumine
aspectos antes não vislumbrados, trazer uma metáfora que
ajude o aluno a perceber do que se está falando, estabelecer
elos com o saber popular, estabelecer elos com os conheci­
mentos sistematizados, científicos. Enfim, elaborar uma série
de relações, propor exemplos etc. A meu ver, só faz tudo isso
bem, quem domine muito bem o conhecimento científico. Só
faz isso tudo bem quem conheça com profundidade o que
está ensinando. Só faz isso tudo bem quem procura refletir
sobre o que está fazendo, como está fazendo e com que re­
sultados. E, além disso, quem procura aperfeiçoar toda a
forma com que costuma trabalhar, sem se acomodar à rotina,
sem repetir invariavelmente o que costuma dar certo, o que
costuma dar bons resultados.

Regina: Acho que falamos da mesma coisa.

Antonio Flavio: Penso o seguinte: o professor não está


sendo valorizado nos dias de hoje. Amaneira como o discur­
so oficial tem visto o professor não corresponde ao que que­
ro valorizar. Certamente o professor não precisa dominar
apenas o conteúdo que ensina. Precisa de conhecimentos
didáticos, de conhecimentos mais amplos sobre o processo
educativo e o papel da escola no mundo de hoje, precisa
entender as relações entre o processo educativo, a escola e a
cultura. Precisa pensar em como se deve responder à situação
de desigualdade e à diversidade cultural que encontramos
em nossa sociedade. Precisa compreender como se processa
a aprendizagem, principalmente no caso do aluno concreto,
real, com que lida todo dia e que difere do modelo que gos­
taria de encontrar na sala de aula. Precisa compreender como
as novas tecnologias podem constituir um importante ins­
trumento para democratizar o acesso aos conhecimentos e às
distintas manifestações culturais e como, em muitos casos,
essas novas tecnologias são apresentadas como uma varinha
de condão capaz de resolver todos os problemas que o pro­
fessor e a professora enfrentam em suas práticas. Precisa
refletir sobre as mudanças que essas novas tecnologias têm
provocado no ensinar, no aprender, no conviver. Precisa re­
fletir sobre que valores têm sido difundidos pela escola e que
valores precisariam ser difundidos. Precisa refletir sobre as
identidades sociais que a escola tem ajudado a construir e
que outras identidades poderiam ser pensadas.
Tudo isso já é muito e tudo isso é muito importante. Mas, x
quero destacar, o bom professor tem que conhecer muito bem
sua disciplina, a disciplina que ensina.

Regina: Mas, eu estou de acordo. Penso que o bom pro­


fessor é aquele que tem uma cultura geral ampla e um pro­
fundo conhecimento do que lhe é específico, o campo de
conhecimento do qual ele diz: "sou professor disso". Então,
só posso concordar com você. E aí eu não poderia deixar de
trazer o Gramsci para nos ajudar. Quando ele afirma que a
escola deveria, num primeiro momento, ampliar ao máximo
a cultura de seus alunos, valorizando a cultura geral ampla
e só no final da escolaridade ir especificando, afunilando e
aprofundando as escolhas. Eu concordo plenamente com ele.
Porque esse professor, ao qual você se refere e que eu também
defendo, só pode fazer tudo isso se tiver uma cultura geral
ampla. Tendo essa cultura geral ampla, ele terá muitos curin-
gas, para puxar sempre que um tema novo surgir a partir de
uma pergunta ou de uma situação desafiadora. Como foi a
partir da cultura geral ampla que ele chegou ao específico da
Matemática, da História, da Geografia, de Ciências ou do que
seja, ele pode fazer essa tradução permanente entre o que
tem a ensinar e o que os alunos já trazem como seus saberes.
Esse é o professor com que eu sonho.

Antonio Flavio: Há uma pergunta muito comum, por


parte de professores, e que pode parecer, muitas vezes, como
um pedido de socorro, até, de receita. Que é que eu faço?
Alguns professores dizem: eu tenho um aluno diferente, um
aluno não conhece as coisas que a escola quer ensinar, um
aluno que não se importa com o que a escola quer ensinar, um
aluno que não se porta como a escola gostaria que ele se por­
tasse, um aluno que não produz o que a escola gostaria que
ele produzisse. Como trabalhar com esse tipo de aluno? É uma
pergunta que toda a literatura pedagógica tem abordado há
tanto tempo, tem há fanto tempo discutido, que até surpreen­
de que essa pergunta ainda esteja tão presente e se repita
tanto quando nos reunimos com professores para discutir,
para trocar ideias, para dialogar. Você não sente isso?

Regina: Sinto. Creio que o problema para professores e


professoras, lamentavelmente, é-que no seu curso de formação,
em nosso curso de formação, já que não estamos falando de.
alguma coisa fora de nós, nós somos parte disso, em nossa
formação nós aprendemos sobre uma escola que se pauta pela
homogeneização e que trata o que foge à norma como anormal,
como precisando ser tratado para ser reintegrado ao harmo­
nioso mundo da "normalidade". Quem foi feito com essa
cabeça tem muita dificuldade em lidar exatamente com a ri­
queza da diferença, porque na verdade o que caracteriza a
sala de aula é a diferença, não é a semelhança. Alguns alunos
nos mostram claramente a sua diferença, outros não. Mas a
diferença está sempre presente no cotidiano da sala de aula.
Fomos todos formados nessa ótica da homogeneização.
E mais fácil controlar o aparentemente homogêneo, porque
quem foge à norma é identificado e punido, mandado para
o SOE para ser "tratado", mandado para um psicólogo para
ser tratado, porque todo mundo tem de estar dentro na nor­
ma. De repente, aparece um louco lá nos Estados Unidos e
mata dezessete na escola. E aí? Como é que se explica? Uma
sociedade tão harmoniosa [...] Mas na verdade não existe essa
harmonia idealizada. Assim é na sala de aula, onde também
não existe essa harmonia idealizada. Então, que acontece?
Fomos todos formados para colocar todo mundo seguindo
o rebanho, seguindo o mesmo caminho, aprendendo as mes­
mas coisas, no mesmo tempo. Por isso temos os programas,
os parâmetros, ou que nome se dê. No entanto, a sala de aula
deveria ser um riquíssimo espaço de diferentes saberes que
se cruzam, entrecruzam, entram em conflito, produzindo
novas possibilidades de compreensão do mundo e aumen­
tando a compreensão que cada um pode ter de si mesmo.
Para isso, precisamos desse professor ao qual você se referiu.

Antonio Flavio: Temos um professorado com muitos


profissionais experientes, competentes, fazendo coisas ina­
creditáveis em condições adversas. Mas temos também pro­
fissionais que enfrentam com dificuldade os problemas que
surgem que não receberam uma formação que de fato os
ajude e que gostariam que as Secretarias de Educação os
apoiassem no processo de aperfeiçoarem a forma como atuam
na prática da sala de aula.

Regina: Mas é que temos de repensar o curso de forma­


ção de professores...

Antonio Flavio: Assim como temos de repensar a ima­


gem do professor na sociedade, os salários, as condições de
trabalho, o processo de formação continuada.

Regina: Sem dúvida.

Antonio Flavio: Queria compartilhar com você uma


preocupação minha. Quando estamos falando em diferença,
em lidar com a diferença, em tratar cada um segundo suas
peculiaridades, penso que há um risco envolvido nessa
postura. Foi Thomas Popkewitz quem de fato me alertou
para ele. Ao analisar um programa de formação continuada
de professores nos Estados Unidos — Teacher for America
— Popkewitz procurou entender os discursos pedagógicos
que informavam as atividades. O programa treinava profes­
sores durante 8 semanas, em um curso de verão, para uma
ação multicultural em escolas norte-americanas, rurais e
urbanas, que tinham em comum o fato de receberem alunos
das camadas populares.
O estudo foi uma etnografia. Popkewitz observou que,
na verdade, os conhecimentos pedagógicos, os sistemas de
raciocínio, as categorias com .que se pensava a educação
acabavam construindo qualidades e capacidades da criança,
constituindo um tipo de espaço,social, um espaço discursivo
em que o aluno seria sempre diferente do outro, seria sempre
diferente do padrão, do normal, da média. A criança termi­
nava confinada nesse espaço. E ao ficar confinada ela jamais
seria como "a outra, a normal", para a qual uma série de
categorias não se aplica nunca. Por exemplo, o aluno que tem
dificuldade de aprender, fala-se assim dele: mas ele tem a
inteligência das ruas, mas ele é rápido para fazer contas, ele
é muito esperto em muitas situações práticas. Do "normal",
não se diz nada. Quer dizer, Popkewitz nos diz que os siste­
mas de raciocínio e os discursos pedagógicos conferem certa
seletividade no modo como os professores veem as crianças,
refletem sobre elas, falam sobre elas. Ao agirem dessa forma,
situam as crianças em um conjunto de distinções, diferencia­
ções e categorias que dividem as crianças em diferentes es­
paços. E aí alguris ficam confinados nesses espaços.
E aí trabalhamos com o "diferente", de modo diferente.
Por ser diferente, ele não tem aquela inteligência mais abs­
trata, então vamos tentar trabalhar com situações mais con­
cretas, mais ligadas ao cotidiano do aluno, vamos aproximar
a escola da vida real. É o que se diz e o que se faz com esse
diferente, não?. A minha preocupação é se, quando tentamos
de fato estabelecer relações pedagógicas diferentes, desen­
volver experiências pedagógicas diferentes com esse aluno
diferente, não estamos correndo o risco de confiná-lo? Não
estaríamos fazendo com que o tiro saia pela culatra?

Regina: Se pensarmos a partir dessa lógica, estaremos


correndo o risco, sim. Mas, quero trazer uma outra lógica.
Em primeiro lugar, me parece uma simplificação quando se
afirma que "o aluno não aprende", que "ele tem dificuldade
para aprender". Porque a minha hipótese, a partir de minha
própria experiência e das pesquisas que' meu grupo vem
desenvolvendo, é de que, frequentemente, não é dificuldade
de aprender, mas sim, dificuldade de ensinar. Nós não fomos
preparados, nenhum de nós, em nossos cursos de formação,
a lidar com alunos de classes populares, com alunos de fave­
la, com alunos afrodescendentes, com alunos indígenas, que
pensam segundo outras lógicas. Nós aprendemos que existe
uma lógica e não lógicas. Isso é uma primeira questão que
eu queria discutir.
A outra qiíestão é a seguinte: temos sempre um sonho
de escola, apesar de todas as críticas às utopias, nós temos.
Quando educamos, sempre somos direcionados por uma
utopia, um sonho a ser realizado. Não se trata de um sonho
que nos satisfaz pelo sonho e nos paralisa. E um sonho, uma
utopia que nos move para a ação, como quer o Bloch — oti­
mismo da ação, como ele diz. Então [...] se nós sonhamos
com uma sociedade mais democrática, mais justa, mais res­
peitosa, mais rica, mais plural, em que as diferenças possam
se expressar...
Muita coisa já aconteceu. Quando é que podíamos abrir
um jornal conservador na primeira página e ver dois homens
se beijando, por terem se casado [...] de acordo com. a lei,
como acaba de acontecer? Há 50 anos isso era impensável.
Aliás, a Igreja Católica continua a afirmar ser pecado. Então,
muita coisa já foi conquistada. Quando, no Brasil, podíamos
pensar que a ação afirmativa fosse mobilizar toda a socie­
dade a se pensar e a pensar as suas relações desde a escra­
vidão, desde a chamada "abolição da escravidão"? Então,
muita coisa já mudou. Mas, e a escola, que é o que estamos
discutindo aqui e que é o nosso mister? Afinal de contas, a
nossa militância está sobretudo, na escola, está no esforço
por fazer uma escola melhor. Penso que o problema é essa
nossa formação complicada, que nos encheu de preconceitos
que nos impedem de ver, de nos abrirmos para o novo e de
tentarmos compreender o novo. E essa formação que nos
faz ver o menino e a menina, que na escola parecem estar
desajustados, que parecem ser diferentes do que se conven­
cionou como normalidade, tornando-se problemas para o
professor ou a professora.
Penso, antes de tudo, ser absurdo se afirmar: ele é bom
em fazer contas fora da escola e na escola não sabe fazer contas, não
consegue fazer contas porque não tem o pensamento abstrato. Ele
tem pensamento abstrato que se revela no seu cotidiano.
Saberes da vida? Quando ele sabe fazer as contas de cabeça,
o que a escola tem que fazer? De meu ponto de vista, em
primeiro lugar, reconhecer que ele sabe fazer contas. Mas
também, tem de fazê-lo compreender que é importante para
ele aprender uma outra forma de fazer contas, porque isso
tem a ver com a sua melhor inserção na sociedade, no mun­
do do trabalho. Não é que esteja errado ele fazer contas de
cabeça, é que, aprendendo a fazer contas no papel, ele pode
conseguir um melhor emprego, pode interagir com mais
autoconfiança, com gente que o desqualifica, como se ele não
soubesse nada. Logo, é uma questão política da maior im­
portância: ele precisa se apropriar do conhecimento que a
escola pode lhe ensinar. Enquanto a escola não mostrar isso
para ele, ele não vai aprender, porque não compreenderá
como esta aprendizagem pode lhe ser útil.
A sociolinguística já provou e comprovou e repetiu que
não é que as classes populares falem errado, elas simples­
mente usam uma variedade da língua que não é a hegemô­
nica e, portanto, é considerada errada porque os que detêm
o poder chamam a sua própria linguagem de a única fala
correta. Isso posto, poderíamos pensar: bom, então, não va­
mos ensinar ao menino as regras da gramática, não vamos
ensinar o menino a escrever melhor, não vamos ensinar nada
para ele, vamos deixar ele falando como quiser. Não, nós
vamos dizer para ele que para a sua sobrevivência, é da maior
importância que ele aprenda a linguagem dos poderosos. Por
quê? Porque ele-vai arranjar um melhor emprego, porque
falando como ele fala, ninguém vai lhe dar emprego, porque
para fazer um concurso ele vai precisar escrever e, não co­
nhecendo as regras da língua, não será aprovado.

Antonio Flavio: Mas, veja bem, o que o Popkewitz ar­


gumenta é que existe uma lógica na escola, na formação de
professor, na Pedagogia, com a qual trabalhamos e é essa
lógica em geral que é usada para entender os fatos que acon­
tecem na sala de aula, para entender o aluno que está ali
presente, o que obviamente afeta a forma como o professor
trabalha com esse aluno. Segundo ele, essa é a lógica inter­
nalizada na formação de professores. Essa lógica acaba crian­
do um espaço social em que a criança "diferente" é situada,
essa lógica acaba funcionando para desqualificar a criança
"diferente". E aí o professor vai sempre vê-lo como alguém
que é diferente, que é inferior ao aluno "padrão", ao aluno
normal.

Regina: Essa é a lógica na qual nós fomos formados. Mas


o Popkewitz está fazendo uma generalização e toda genera­
lização é perigosa. Porque lá na escola mesmo, essé professor
ou professora, formado segundo essa lógica, começa a se
questionar. Aí é que ervtra o professor reflexivo, o professor
pesquisador. Por quê? Porque ele ou ela começa a observar
alguma coisa que antes não percebia, já que via apenas o
"diferente" no sentido de "anormal", que não aprende, que
é desinteressado ou indisciplinado. Só via o lado negativo
desse menino. De repente, alguma coisa acontece quando a
escola se reúne, por exemplo, nas reuniões pedagógicas e
quando essas reuniões pedagógicas se transformam efetiva­
mente no que devem ser — reflexões sobre a prática pedagó­
gica coletiva. Em algumas escolas existe um clima aberto,
generoso, receptivo, o que convida o professor ou professora
a ter coragem de colocar os impasses que vive na sala de aula,
de dizer o que não está conseguindo compreender, o que fez
e não deu certo, da mesma forma que traz o que fez e deu
certo. Dessa discussão coletiva sobre a prática pedagógica,
inevitavelmente, vão surgindo descobertas. O grupo começa
a se fazer perguntas. E só descobre alguma coisa quem se faz
perguntas, só descobre alguma coisa quem começa a ter dú­
vidas. Esta é a grande riqueza do espaço das reuniões peda­
gógicas, quando são efetivamente reuniões pedagógicas. E é
de lá, de dentro da escola, que vem surgindo um movimen­
to coletivo e crescente, que percebe que a lógica da escola, na
qual fomos todos formados, não é a única.
Outras lógicas estão presentes na escola. E aí que surge
a possibilidade de aprender alguma coisa que o nosso curso
de formação não nos ensinou, ou seja, que há diferentes ló­
gicas presentes na sala de aula e que há caminhos diferentes
de chegarmos ao mesmo lugar. Não nos ensinaram que cada
aluno cria o seu próprio método de aprender. Se aprendemos
isso, e muitos professores vêm aprendendo em sua própria
prática, podemos construir coletivamente alternativas peda­
gógicas que põem em questão essa lógica como a única da
escola. E é por isso que aparecem tantos trabalhos, pelo Bra­
sil e pelo mundo, que nós tanto admiramos. Que são esses
trabalhos que tanto admiramos? São trabalhos que fugiram
a essa lógica da escola e que se abriram para outras lógicas,
conseguindo realizar o que deveria ser a função da escola,
desde Comenius: ensinar tudo a todos. Que é ensinar tudo a
todos? É dar a todos a possibilidade de se colocarem nesse
"tudo", e deste tudo oferecido poderem melhor escolher. E
compreender e expressar o mundo por meio da linguagem
musical, ou da linguagem matemática, ou da linguagem
pictórica, ou de outras linguagens como a fotográfica, a tele­
visiva, a cinematográfica, e tantas outras. Não é que tenhamos
uma expectativa de que da escola saiam cientistas, artistas,
músicos etc. Queremos que saiam sujeitos capazes de ler e se
expressar por meio de uma linguagem com a qual tenham
mais afinidade, o que só podem fazer se conhecerem as dife­
rentes linguagens postas no mundo hoje. Mais uma vez es­
tamos a falar de formação geral ampla que a escola pode e
deve oferecer.
Ou seja, porque eu compreendo o mundo por meio de
sons, de ritmos, de melodias, de harmonias, isso não quer
dizer que eu vou desprezar a linguagem escrita. O Egberto
Gismonti disse uma vez numa entrevista: olha aqui, quando eu
vou num avião e vejo alguém lendo um livro e eu estou lendo uma
partitura, penso que eu tenho um handicap positivo em relação a
ele porque ele só sabe ler a linguagem do livro e eu posso ler a lin­
guagem do livro e a á a partitura. Quem vive uma situação mais
favorável? Sem dúvida, quem tem acesso a duas linguagens.
Se a escola compreende isso, ela assume como responsabili­
dade sua, ampliar ao máximo o conhecimento que o aluno
já traz, seja em que campo do conhecimento for, para que ele
possa ter possibilidade de melhor escolher em qualquer si­
tuação de sua vida. Mas, escolher não significa abdicar de
outra coisa, porque, por exemplo, eu conheci um médico
cardiologista que escolhia seus assistentes pela cultura geral
que eles revelassem ter. Por quê? Porque, dizia o médico, o
específico, ser cardiologista, eu vou■ensinar, mas se ele não tiver
uma cultura geral, não posso ensinar nada, porque ele não vai en­
tender, como deve ser entendido, o necessário para se tornar um
bom cardiologista. E, enquanto operava, cantava áreas de ópe­
ras e isso era uma forma de estar testando o. universo cultu­
ral dos seus assistentes.
Não concordo com o Popkewitz quando diz que só
ocorre o confinamento do aluno e que nada pode ser feito.

Antonio Flavio: Mas ele não diz isso. Pelo contrário. O


que ele diz é que primeira devemos problematizar nosso
conhecimento e nossa razão. Trata-se de apontar os erros, de
desestabilizar o sistema de raciocínio que confina os alunos.
Essa já é uma forma de intervenção política. Isso abre a pos­
sibilidade de pensarmos de modo diferente, de buscarmos
outras lógicas, outras linguagens, outras categorias, outras
maneiras de pensar. Abre a possibilidade do novo. O que ele
não nos diz, mas nos estimula a buscar, é como é esse novo
que pode tornar a escola mais democrática e mais justa.

Regina: Ah, aí está certo. Então, concordamos que é


possível mudar.
Antonio Flavio: É que a escola tem procurado, por meio
de uma série de estratégias, arranjar um lugar especial para
o menino que supostamente não aprende, que não tem cul­
tura, que não tem background cultural, que não tem potencial
e, por isso, "não vai ser ninguém". E aí surgem a educação
compensatória e algumas versões do multiculturalismo.
Algumas versões do multiculturalismo acabam sendo estra­
tégias para homogeneizar, para construir um horizonte cul­
tural comum no qual todos acabem se encaixando. Mas na
verdade nem todos se encaixarão, porque alguns serão sem­
pre confinados a espaços socialmente inferiores, ainda que
aparentemente integrados. O problema é que essa inferiori­
dade será aceita e, muitas vezes, a subordinação e a opressão
terminarão sendo aceitas pelo subordinado, pelo oprimido,
que então acaba ajudando a preservar a situação que o pena­
liza. Termina aceitando o que o separa, que o desqualifica.
Essas estratégias podem acabar criando um espaço limitado
para esse aluno, apesar das boas intenções de quem as pensa
e as executa.

Regina: Aí eu estou de acordo. Mas eu temo um pouco


certas críticas foucaultianas que, do meu ponto de vista, são
uma leitura simplificada do pensamento do Foucault. Essas
críticas veem apenas o aspecto da denúncia, esquecem que
Foucault era um militante, que ia para as ruas, que fazia
coisas, que propunha coisas, ele não ficava apenas na denún­
cia do que acontece nos diferentes espaços. Eu compreendo,
aceito e incorporo as críticas foucaultianas, fundamentais
para, se compreendendo melhor a escola, podermos melhor
atuar para mudá-la. Mas também quero olhar para a escola
e pensar assim: ah, sim, mas o Foucault também falava em
resistência. E aí, então, eu fico muito mais interessada em
identificar as formas de resistência que identifico, que capto
nas escolas desse país. Está certo, a escola é isso, mas ela é
aquilo também. E é o aquilo também que me faz defender a
escola como um espaço possível e importante, porque se eu
achasse que a escola era só isso que é denunciado, eu diria:
vamos acabar com a escola.

Antonio Flavio: E vamos para a rua fazer outra coisa,


criar outro espaço.

Regina: É isso, é isso.

Antonio Flavio: Recentemente eu li um estudo em que


essa discussão surgiu. Um estudo foucaultiano em que, em­
bora o autor tivesse trabalhado a questão da resistência teo ­
ricamente, na hora da análise o que apareceu foi apenas a
relação do poder, foi o poder produtivo. E muito apareceu em
relação a outros rumos possíveis. Assim, fica de fato muito
difícil para o professor. Já se disse em relação à teoria crítica
e eu penso que a pós-crítica apresenta o mesmo problema:
fazemos a denúncia, em análises extremamente inteligentes,
interessantes, que nos ensinam muito, mas continuamos pro­
fundamente sovinas no que se refere a dar ao professor um
pouco mais de estímulo para pensar sua realidade de forma
diferente. Ou seja, ajudamos o professor a entender as relações
de poder e de opressão, mas não o ajudamos tanto a pensar
como é possível lutar contra essas relações, como transfor­
má-las e como criar espaços outros, em que outras, pelos
menos outras, relações de poder estejam presentes.

Regina: Essa crítica que alguns fazem é desmobilizadora.

Antonio Flavio: O professor fica de pés e mãos amarrados.

Regina: Essa crítica, do meu ponto de vista, é absoluta­


mente desmobilizadora, e portanto, serve aos inimigos da
escola. Na verdade, ela não ajuda em nada ao professor. E eu
não estou falando de caridade, não é nada disso que eu estou
falando...

Antonio Flavio: Nem de receita.

Regina: Nem de receita. Estou falando da realidade


concreta com a qual nos deparamos fia escola, nós que pas­
samos pela escola, não só como alunos, mas como profes­
sores. Professora da escola fundamental eu, professor do
ensino médio você. Nós temos uma boa vivência da escola,
conhecemos o que é a escola real, e também, o que é a esco­
la potencial. Sabemos que na escola real estão aqueles que
de fato fazem tudo o que é denunciado, mas também estão
aqueles que, contra tudo e todos, fazem um trabalho muito
bom e importante. Então, é nesse trabalho bom e impor­
tante que nós dois nos inspiramos para discutir escola e
currículo.

António Flavio: Pois é, currículo tem sido nossa paixão.


Há quase vinte e cinco anos que venho trabalhando com
questões de currículo. Mas tenho hoje uma preocupação,
sinto hoje uma dificuldade, sobre a qual tenho falado muito.
A ideia de cürrículo se ampliou tanto que não sei mais o que
ela significa. Aliás, você faz uma distinção entre currículo
stricto sensu e currículo lato sensu que seria interessante
discutirmos.

Regina: Eu julgo que os teóricos que tratam de currículo


num sentido estrito acabam não tratando, não dando conta
da questão mais ampla do currículo, da escola, da educação.
Ao mesmo tempo, os que foram abrindo, abrindo e cada vez
mais abrindo a noção de currículo, de tanto abrir, se perde­
ram e deixaram lá atrás a própria concepção de currículo.
Antonio Flavio: Mas o que é para você essa visão estri­
ta de currículo? E a aberta?

Regina: A visão estrita de currículo para mim é-a visão


perigosa de um especialista. Eu pessoalmente tenho proble­
mas com os especialistas e os especialismos, porque entendo
que o especialista perde a visão mais ampla, limitando-se a
querer entender o seu específico sem um quadro mais geral.
Então, essa discussãcwie um currículo stricto sensu me parece
limitada.

Antonio Flavio: Mas, você não disse ainda. Que é cur­


rículo stricto sensu?

Regina: É isso que eu estou falando. E uma visão limi­


tada de currículo, restrita apenas à escola ou até à sala de
aula, aos conhecimentos que são transmitidos ou criados ou
recriados na escola, ao processo ensino-aprendizagem. E
disso não sai. Fica-se preso à escola. Mas os que abrem demais,
caem no perigo de irem abrindo tanto, saindo da escola para
o entorno da escola, para o shopping center, para a cidade,
para a sociedade onde a escola está, para a cultura da qual a
escola é parte, para o mundo no qual a escola está e aí surge
o perigo de se perder da questão central que seria a questão
do currículo na escola. Quando se trata de currículo, é claro
que tudo importa .... para que melhor se compreenda e se
atue no currículo.

Antonio Flavio: E, eu acho muito perigosa essa visão.


Tão ampla que abrange tudo. Recentemente eu li uma con­
cepção de um especialista americano que diz: currículo é tudo
aquilo que eu resolvo fazer com os meus alunos. Ainda pen­
sei assim: coitados dos alunos e dos professores que vão
entender currículo dessa forma. Agora, acho que o entorno
pode estar presente no currículo, o shopping center pode
estar presente no currículo, a televisão pode estar presente
no currículo quando a escola, que tem fins diferentes de todos
os outros espaços, traz para dentro de si, interage, dialoga
com esses espaços, critica esses espaços. Isso é uma coisa. A
televisão pode ter o seu currículo, já que ela se organiza como
espaço que pretende influenciar, formar. Mas é diferente do
currículo da escola. É claro que a escola não pode ficar fecha­
da nos seus muros, mas ampliar a palavra para significar todo
e qualquer espaço em que ocorra a educação acaba com a
especificidade que caracteriza a escola.
De qualquer modo, vamos falar em currículo escolar,
que é o que me interessa. O currículo escolar que está intera­
gindo, que está recebendo impulsos, que está dialogando,
que está buscando informações, está buscando enriquecimen­
to, que está levando o aluno a entender melhor as relações,
a criticar, a se situar. Mas, de fato eu não aceito que se diga
"tudo é currículo". Porque aí eu fico sem saber o que é cur­
rículo, eu não sei. onde agir. Quando você fala também em
especialismos e generalismos, eu penso que no caso do cur­
rículo há algo paradoxal: o especialista em currículo sempre
foi visto como um generalista, porque exatamente ele não é
o especialista em disciplina nenhuma. Ele não vai analisar
particularmente como é que se deve pensar conhecimento
escolar, ensino e aprendizagem em Física. Isso ele não faz.
Ele vai dialogar com os especialistas nas disciplinas. Portan­
to, penso que ele tem, ou deveria ter, uma visão ampla da
escola e do processo curricular.
Esse processo, a meu ver, tem como centro o conhecimen­
to escolar. Politicamente, é importante que o conhecimento
escolar esteja no centro das discussões sobre currículo. A es­
cola está sendo acusada de não conseguir ensinar, de não
promover a aprendizagem do aluno, de estar formando pes­
soas sem os conhecimentos indispensáveis à luta por uma vida
mais digna. O conhecimento é hoje cada vez mais importante
para toda e qualquer criança, todo e qualquer adulto. Logo,
eu vejo o processo curricular na escola girando em tomo de
conhecimento. Obviamente não é qualquer conhecimento,
desprovido de qualquer sentido, mas um conhecimento que,
depois de uma série de perguntas que se façam e de respostas
que se deem, e com baserem um posicionamento claro e cons­
ciente, tenhamos considerado importante de estar sendo tra­
balhado por alunos e professores.

Regina: Bom, nesse ponto estamos de acordo, então


vamos seguir essa linha. Eu, como você, tenho um compro­
misso com a escola. Eu, como você, ainda acredito que a es­
cola é uma instituição importante na sociedade, seja qual for.
Especialmente rvuma sociedade como a nossa, cuja maioria
da população teve negado historicamente até o direito de na
escola entrar. Então, eu estou de acordo com você.

Antonio Flavio: E ainda, até hoje, de nela ficar e de nela


aprender.

Regina: Eu estou falando ainda de entrar, eu estou fa­


lando ainda de ter acesso à escola. A maioria da população
brasileira, por muito tempo, sequer entrou na escola. A esco­
la era um espaço das elites e das classes médias, que sempre
tiveram como modelo as elites. Agora, como você, eu defen­
do a escola. Eu defendo a escola, mas, quando falo de escola,
estou falando da escola que me interessa politicamente, que
é a escola pública, que é o único espaço possível para as
classes populares de se educar, no sentido que a escola dá à
educação e que ainda é considerado valor na sociedade. A
educação hoje é uma questão estratégica no mundo, porque
conhecimento hoje é uma questão estratégica no mundo,
todas as sociedades pretendem educar a sua população. Por
quê? Porque é uma possibilidade de romper essa distância
entre os países mais ricos, ditos desenvolvidos, e os países
mais pobres, ditos subdesenvolvidos ou não desenvolvidos.
Se tomarmos como exemplo a Irlanda ou a Coreia, veremos
o que pode uma sociedade que investe efetivamente em
educação. Sociedades que até um tempo estavam lá atrás nos
índices de Desenvolvimento Humano, muito atrás do Brasil
e que hoje estão lá na frente.
Logo, educação ainda é uma questão estratégica no mun­
do, talvez hoje mais do que nunca. E, como você, eu defendo
a escola. Defendo uma escola de qualidade, mas que ponha em
questão o que é qualidade. Qualidade para uns é algo ligado
a resultados, a demandas do mercado. Qualidade para outros
tem a ver com a melhoria da condição de vida da população
global. Qualidade social, pelo que lutamos, é absolutamente
diferente de qualidade total, o que interessa ao mercado.

Antonio Flavio: Penso que a ideia de qualidade inclui


o que é necessário para essa sobrevivência, para essa luta,
para conseguir dar conta de chegar às condições mínimas de
sobrevivência. Tudo isso vai envolver diferentes conhecimen­
tos, comportamentos, habilidades e técnicas. Alguns da
cultura dominante, porque o adolescente precisa de elemen­
tos da cultura dominante para seguir em frente, para conse­
guir um emprego, para melhorar de vida. Há elementos que
são indispensáveis para isso. Não concordo quando se des­
valoriza esse aspecto.

Regina: Também eu, pois os que assim o fazem, para


mim, fazem gol contra. Para usar um termo da moda, acho
politicamente incorreto.
Antonio Flavio: Com certeza. Mas eu queria completar
a ideia de qualidade, completá-la com a ideia de superação.
Com a ideia de ir além de tudo isso. Com a busca de alguma
coisa melhor, de um múndo melhor, de uma humanidade
melhor, de um ser humano melhor. Aí, nesse terreno, chega­
mos a valores, se não universais, mas valores a respeito dos
quais se discuta, valores que se considerem como os mais
adequados para a ocasião. Chegamos também a conhecimen­
tos não tão pragmáticos' não tão imediatistas. Certamente
todas essas decisões são difíceis, não temos respostas prontas,
pré-definidas, que nos ajudem.

Regina: O que você traz nos leva inevitavelmente à


discussão que me parece central na escola hoje — a discussão
de currículo: que conhecimento cabfe à escola transmitir? Será
que apenas transmitir conhecimentos é suficiente? Qual seria,
efetivamente, na escola, o papel do conhecimento?.
Porque veja, até um tempo atrás era aceito que o papel
da escola era apenas transmitir às novas gerações o que as
gerações que as antecederam produziram. Era passar para
as novas gerações tudo aquilo que foi criado, construído,
produzido pelas gerações anteriores, para não se cair no
perigo de cada geração estar sempre redescobrindo a roda.
Mas, é evidente que, nessa ideia de transmissão de conheci­
mento estava embutido algo que hoje é muito contestado e
que vem lá dos Iluministas. Haveria um "conhecimento ela­
borado", denominado universal, verdadeiro, entendido como
absoluto, que negava o próprio movimento da história. Ou
seja, o que é verdade num determinado momento histórico
e contestado num momento imediato ou posterior. É contes­
tado na sua validade exatamente porque a ciência não é o
que foi dito por alguns e repetido por outros, a verdade.
O que Heisenberg disse um dia, que hoje é aceito, é ser
a ciência apenas a busca da verdade, não a verdade. O cien­
tista está permanentemente em busca da verdade, que ele
pensa ter encontrado quando a sua verdade se transforma
em paradigma. Mas, um paradigma é aceito como verdade
enquanto é hegemônico, enquanto é aceito pela comunidade
científica, que tem poder de decidir o que é o certo e o que é
o errado. De repente alguém contesta essa verdade e, dentro
dos cânones científicos, comprova uma outra verdade. Se
aceita a nova verdade comprovada, aquela verdade anterior
não é mais considerada a verdade, sendo superada por uma
nova verdade.
Mas a escola, até pouco tempo, aceitava como seu papel,
transmitir a verdade, a verdade da época, apresentada como
a verdade de todos os tempos. Mas, hoje, com o movimen­
to de grupos que contestaram a ordem estabelecida, com o
movimento daqueles que foram subalternizados historica­
mente, com o movimento daqueles que foram colonizados,
que foram oprimidos, que foram explorados e que se sen­
tiram como tal, constrói-se uma outra versão da própria
história. Chega-se ao ponto de vista daqueles que foram
vencidos e que se apresentam, não como os definitivamen­
te vencidos/mas como os que por um momento foram
vencidos e que armazenaram forças para novas lutas. Isso
muda a própria ideia do que seria conhecimento e denuncia
que o que era apresentado como único conhecimento, não
era outra coisa senão o conhecimento que servia aos que
detinham o poder e nele desejavam se manter. Então, essa
questão hoje é uma questão da maior importância e seria
lamentável que alguém não levasse em consideração que o
ponto de vista não é outra coisa senão a vista de um ponto.
Dependendo do lugar em que me situo, eu vejo alguma
coisa, se estou do outro lado, vejo outra coisa. Não é por
acaso que na índia tem um grupo que desenvolve Subaltern
Stuãies, pretendendo reescrever a História da índia. Por quê?
Porque entende que a história oficial da índia foi a história
dos ingleses, escrita do ponto de vista dos ingleses ou de
seus prepostos, que dominaram por tanto tempo a índia. O
grupo dos Subaltern Studies está reescrevendo essa história,
e esse movimento de reescrita da história vem se espalhado
pelo mundo. Não é possível que a escola não se mostre pelo
menos sensível a esse movimento.

Antonio Flavio: Sim. Penso que seu argumento é bem


aceito, ou mais aceito, quando se pensa em disciplinas como
História, Geografia, Sociologia, Filosofia, Artes, Literatura.

Regina: Eu digo que vale para qualquer uma.

Antonio Flavio: Mas em História se torna mais eviden­


te, não é? Um livro de História pode apresentar a voz do
vencedor ou a do vencido ou ambas.

Regina: O que seria o melhor. Porque ele estaria proble-


matizando, ele estaria dando condições para o aluno desen­
volver o seu pensamento crítico. Ele veria e analisaria duas
versões sobre o mesmo fato.

Antonio Flavio: Agora, quando se chega ao nível de


ciência exata, para algumas pessoas se torna mais complica­
do de entender. Será que a Física apresentaria tanto quanto
a Geografia e a História, os "vestígios" do espaço e do tempo
em que é pensada?

Regina: Tanto quanto. Vou dar um exemplo. A Física


que você citou. A Física newtoniana foi considerada como A
Verdade por mais de um século, dela decorreu uma concepção
de mundo, hegemônica à época e por muito tempo. Newton
viu o que ele podia ver, dada a sua inserção no mundo num
determinado momento histórico, dispondo de determinados
instrumentos. As leis de Newton são válidas quando estamos
falando de tempo absoluto e quando lidamos com corpos
praticamente rígidos que têm um dado volume. Quando a
Física Quântica aparece, que é uma outra concepção da Físi­
ca, provoca uma ruptura no pensamento newtoniano. Assim
também acontecera com a teoria da relatividade. Elas apare­
cem se contrapondo a uma visão newtoniana da Física, já que
aportam estruturas conceituais novas. O que quero dizer é
que a Física, como uma ciência hegemônica, influenciava
todos os demais campos de conhecimento. Essa visão de
ciência passou para a escola e, lamentavelmente, ainda hoje
vejo vestígios de uma escola que se pensa, ainda que não o
saiba, numa perspectiva newtoniana.

Antonio Flavio: Mas isso não significa abandonar o


Newton.

Regina: De jeito nenhum, ele dá conta de muita coisa,


mas não de tudo, como no seu tempo se acreditava.

Antonio Elavio: Então, ele não foi superado no sentido


de se mostrar equivocado, errado. O que se mostrou foi a
incompletude do seu pensamento.

Regina: Não só. A teoria newtoniana dá conta de uma


série de problemas que ainda estão postos. O que não signi­
fica que a teoria newtoniana em sua totalidade se mantenha.
Não. Muito do que o Newton pensava como a verdade, foi
superado pela Física Quântica, pela Teoria da Relatividade.
Portanto, alguma coisa da Física newtoniana se mantém, eu
não diria que atual, mas ainda em uso.
Antonio Flavio: Ainda dando conta de uma série de
questões.

Regina: Tem mais, quero dar um outro exemplo. Muito


do que as Ciências Humanas defenderam durante tanto tem­
po — o princípio da neutralidade, o princípio da objetividade
— foram superados não pelas próprias Ciências Sociais e
Humanas, mas pela própria Física. Quando a Física afirma
que o observador influi no fenômeno, põe por terra não só a
objetividade como a neutralidade. Foi a Física que fez isso.
Então, o que quero dizer é que há uma relação entre os dife­
rentes campos do conhecimento que nem sempre é percebida.
Daí a minha preocupação com as visões mais estreitas, mais
específicas, melhor dizendo, que têm dificuldade em com­
preender que num determinado tnomento histórico, num
determinado contexto, há uma visão de mundo que se torna
hegemônica e que, por hegemônica, impregna todos os cam­
pos de conhecimento. Se alguém fica preso no seu específico,
não vê a complexidade deste processo.

Antonio Flavio: Impregna tanto os mais específicos


quanto os mais amplos.

Regina: Sem dúvida. Mas o perigo para mim não é al­


guém ser impregnado, é não perceber que está sendo.

Antonio Flavio: Voltando à escola. Penso que ela não


consegue de fato transmitir ao aluno, no caso da ciência, nem
mesmo a visão da ciência clássica. Ela apresenta uma noção
caricata de ciência. Se trabalhasse bem a clássica já faria
muito, na medida em que abriria espaço para que depois o
aluno fosse avançando. Faço um paralelo com o conheci­
mento que se produziu na área de educação, nos cursos de
pós-graduação, na década de 1970, que não chegou nem a
uma postura positivista, era a celebração do empirismo,
muito pouco fundamentada, muito pouco problematizada,
muito simplificada.

Regina: Eu julgo que você toca num problema funda­


mental para a escola. É o seguinte: a escola vive se afirmando
transmissora da Ciência, da Filosofia, enfim do conhecimen­
to em seu sentido mais amplo ou no seu sentido mais estrito,
mas, na verdade, ela trabalha com fragmentos. Não é a ciên­
cia que é transmitida para os alunos; são fragmentos de uma
ciência que vem em pedacinhos e que, na verdade, não dá
possibilidade ao aluno de entender a Ciência. A escola fala
de pesquisa, ela diz que faz pesquisas, experimentos, mas ela
repete experimentos que já foram testados e aprovados, ela
não permite que os alunos revivam de fato o processo dos
experimentos que chegaram a uma determinada descoberta,
não permite que os alunos entendam o processo de desco­
berta. Portanto, eles não compreendem o processo, limitan­
do-se a memorizar os resultados. A escola não permite sequer,
e isso é o pior, qúe se vá instaurando entre os alunos o espí­
rito científico. Ela entrega tudo pronto.

Antonio Flavio: E quando ela trabalha esses experimen­


tos, mesmo os^á conhecidos, ela o faz, em geral, segundo a
ótica do indutivismo ingênuo, uma tentativa bem limitada
de se entender o fenômeno científico. Então, ela não só não
leva ao desconhecido, como o próprio conhecido é apresen­
tado de uma maneira simplificada, mal interpretada. Isso se
evidencia na experiência do feijãozinho no algodão, para que
a criança observe o desenvolvimento, como se fazer ciência
correspondesse a olhar alguma coisa ir simplesmente acon­
tecendo. Parece que o ser humano não está presente no pro­
cesso de construção da ciência.
Regina: Deixando de lado a experiência, pense nos fatos
mais "corriqueiros" da vida moderna. O aluno aprende
eletricidade, mas não é capaz de entender porque é que
aqueles dois fios produzem luz, porque isso não é ensinado.
O aluno fica sem compreender o processo fascinante de
produção de conhecimentos, que é o que supostamente está
sendo ensinado.

Antonio Flavio: No caso da Física, o fóco na lei, no pro­


blema, na matematização acaba fazendo com que os aspectos
do cotidiano em que a Física se expressa sejam totalmente
ignorados na escola.

Regina: E o que se vê, hoje e sempre, é que os grandes


físicos invariavelmente se aproximam da Filosofia, se apro­
ximam da Música, se aproximam da Arte. Einstein, que to­
cava violino, é um exemplo já clássico. Agora, os que estão
na escola, ensinando para os nossos alunos, sequer são capa­
zes de dar sentido ao fenômeno da eletricidade.

Antonio Flavio: E aí voltamos à formação de professores,


seja a inicial, seja a continuada. E aí fico pensando em uma
questão que sempre se coloca em encontros de professores.
Como uma Secretaria de Educação poderia contribuir mais
para que o professor enfrentasse melhor esses problemas, se
atualizasse, tanto em termos de seu conteúdo específico como
dos conhecimentos pedagógicos. E há certamente uma outra
questão associada a essa. Como uma Secretaria de Educação
deve agir? Que grau de interferência uma secretaria deve ter
na escola? Certamente não há um ponto ótimo que possa valer
para qualquer rede. Depende da rede, do professorado, das
escolas, do momento, dos propósitos que se tenha. Creio que
nao há uma resposta precisa para isso, creio ser impossível.
Mas acho importante ressaltar que uma Secretaria pre­
cisa dizer a que veio. Ela tem que ter princípios que quer ver
implantados. Precisa defendê-los e orientar a rede para que
eles se concretizem. Além disso, se a escola sente dificuldades
e pede apoio, a Secretaria não pode se negar a apoiar.

Regina: Mas, e se a escola não pede?

Antonio Flavio: De qualquer modo, julgo que a Secre­


taria precisa ir à escola, conhecer a escola, ver o que se está
fazendo, como se está fazendo, compreender a escola e seus
interesses. A escola precisa aceitar que se trata de um dever
da Secretaria, não é só um direito. Também considero funda­
mental que a Secretaria conheça os bons trabalhos que as
escolas estão fazendo e que divulgue esses bons trabalhos.
Mas eu tenho dúvidas a respeito.
Em algumas cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo,
as redes são enormes e há escolas situadas nos mais diferentes
locais. As equipes das Secretarias por vezes são reduzidas e
há também professores por vezes altamente resistentes. Enfim,
nessas situações eu tenho dúvidas. Embora tenda sempre a
dizer que um processo de apoio ao professor e à escola, como
um processo de renovação curricular devam centrar-se na
escola, uma Secretaria tem que estabelecer certos princípios,
tem que estabelecer certo norte. Por que ela faz parte de um
governo que veio para isso, para definir um pouco como é
que vai se fazer educação no país. Ela tem que ter um projeto
de educação. Ela tem que se colocar ao dispor das escolas e
ela tem que ter, tem que ser também um elemento de contro­
le da escola. Ela tem que conhecer e saber o que a escola está
fazendo, o que a escola está conseguindo, o que a escola não
está conseguindo e em que medida pode apoiar ou não. Não
dá para deixar que a escola faça tudo que bem deseja sem
nenhum diálogo com a Secretaria ou sem nenhuma interfe­
rência da Secretaria. Mas é claro que a Secretaria não poderia,
nunca, interferir para dizer: Vocês estão fazendo tudo errado!
Essa metodologia não se usa mais! Vocês têm que seguir a
proposta curricular! Vocês têm que estudar o construtivismo!
Isso seria um absurdo. Por que a escola pode trabalhar muito
bem seguindo uma linha diferente da que a Secretaria valo­
r i z a . A Secretaria precisa ver, conhecer, aceitar, esperar. Suge­

rir: Há outras hipóteses, vocês não gostariam de se informar


sobre elas? Enfim, abrir os horizontes da escola, como a esco­
la precisa fazer com o seu aluno. Estimular a escola para ir
além, pois a escola sempre pode ir mais além. Ela não pode
achar que faz algo bem, pode parar nesse ponto e tudo está
resolvido. Ela deve ser instigada a buscar outros caminhos.
Como você vê essa questão? Porque nós não defendemos
parâmetros, diretrizes, receitas feitos em gabinetes, por melho­
res que sejam, e que sejam impostos às escolas como pacotes a
serem digeridos. Nós sempre nos posicionamos contra tais
medidas. Nós achamos que são atitudes não democráticas. Nós
achamos que essa forma de reformular o currículo e aperfeiçoar
o trabalho da escola não dá conta da diversidade que se encon­
tra na escola, das diferentes realidades que constituem as esco­
las. Elas precisam ter um espaço, sim, para trabalhar com au­
tonomia, com seus professores, seus alunos, sua cultura.
E aí volta a questão. Como uma Secretaria, nessa pers­
pectiva, mais democrática, mais de apoio, mais de fazer com
a escola, mais centrada na escola, deveria atuar? Essa respos­
ta não é simples, pois a Secretaria tem obrigações junto aos
que elegeram o governo de que ela é parte.

Regina: Olha, penso que você traz um impasse que todos


nos, que trabalhamos de fora da escola com a escola, ou pelo
menos tentamos trabalhar, vivemos. Em geral conto uma
história que defende um ponto de vista que não é exatamente
igual ao seu, mas apresenta algumas proximidades. Alguns
anos atrás esteve no Brasil uma mulher que exercia, na Ingla­
terra, o similar ao cargo de Ministra da Educação. Quem a
entrevistou foi José Carlos Azevedo, ex-reitor da UnB durante
a ditadura militar. Guardei essa entrevista porque a considero
preciosa por ser um exemplo do desencontro de concepções
de mundo e de diferentes visões do papel da universidade na
sociedade. Ele perguntou: como a senhora controla o que é feito
nas universidades com o dinheiro que o Estadofornece? O mote era
esse. Ela teve muita dificuldade em entender a pergunta. Fi­
nalmente, respondeu: não me cabe avaliar. Eu vou dizer o que me
cabe fazer: conseguir os recursos materiais e financeiros para que a
universidade realize o seu currículo. O currículo, para mim, é o
jardim privado da universidade. Eu tenho que fornecer as condições
indispensáveis para que a universidade possa realizar o seu currículo.
Mas o entrevistador insistia: Mas, quem avalia? E ela respondeu:
Quem deve avaliar é quem sofre a ação da universidade, ou seja, a
sociedade. Se ã universidade é boa, ela é aprovada pela sociedade, ela
é procurada pela sociedade. Os seus resultados transparecem porque
dão respostas às perguntas que a sociedadefaz. É essa a avaliação que
eu entendo que deva acontecer, a da sociedade, não a minha. Cabe-me
fornecer condições para que a universidade possa realizar o seu tra­
balho. Se eu não atuar nesse sentido, a universidade não pode realizar
o seu projeto. É o que eu faço.
Essa argumentação me encantou.
Então, eu diria o seguinte: Se eu tivesse algum poder,
iria usá-lo assim. As Secretarias de Educação deveriam ser
enxutas e não ampliadas, como frequentemente acontece. Eu
jamais levaria para a Secretaria os melhores professores, os
que estão realizando o que de melhor acontece nas escolas.
Os professores que se destacam costumam ser chamados para
a Secretaria de Educação com a justificativa de que lá eles
terão uma ação mais ampla. Discordo disso. Penso que se a
prioridade é a escola, én a escola que vamos colocar o que o
sistema tem de melhor. Penso que o papel da Secretaria seria
predominantemente fornecer condições físicas, humanas,
materiais, financeiras para que a escola melhor desenvolves­
se o seu currículo. Bom, como eu atuaria quando uma escola
demandasse da Secretaria um diálogo mais próximo? Nós
gostaríamos de ter Fulano de Tal vindo aqui para discutir
conosco a questão, por exemplo, do currículo ou da avaliação
ou do que seja. Entendo que a Secretaria deve propiciar isso.
Deve pôr-se à disposição da escola, porque quando dois
pensam, pensam melhor do que um sozinho.
Entendo que o diálogo pode ser fértil quando a Secreta­
ria não assume uma postura autoritária, embora muitas vezes
a relação Secretària-escola seja muito autoritária. Esse auto­
ritarismo é evidente quando se diz: agora seremos todos cons-
trutivistasl O que eu vi neste Brasil inteiro no início dos anos
noventa foi lastimável. A professora dizia: Bom, se agora é
assim, eu não preciso fazer nada. Os alunos é que vão fazer tudo
sozinhos. Essa foi uma leitura equivocada do construtivismo,
apresentada equivocadamente para as escolas. Discordo, por
isto e por tanto mais, de uma Secretaria intervencionista. Mas,
há um problema que você trouxe e que é o meu dilema. Um
governo é eleito pelo projeto que apresenta ao povo e, se ele
apresenta um projeto, ele tem de garantir que esse projeto se
materialize. Mas há aspectos complicadores. Porque, radica­
lizando-se isso, nós não vamos mais ter eleição de diretor,
vamos querer diretores afinados com o projeto vencedor, para
garantir que o projeto aconteça na escola. E como fica nossa
luta histórica pela eleição de diretores, que é necessária, em­
bora não suficiente para a escola se democratizar?
Portanto, essa é uma questão complicada, não resolvida,
para a qual nem você nem eu temos resposta, pois vivemos
o mesmo dilema. Eu só posso dizer que, possivelmente, se
eu fosse do partido que venceu a eleição, de um partido sério,
que apresentasse um projeto à discussão da sociedade e, se
esse projeto fosse vencedor, eu me sentiria na obrigação de
fazê-lo acontecer nas escolas. Mais do que isso, não sei dizer.
Sinceramente, não sei. Porque isso é perigoso, pois de repen­
te estaremos impondo às escolas algo que elas não desejam
e que irão sabotar e acabar não fazendo.

Antonio Flavio: O importante, a meu ver, é que a Secre­


taria consiga estimular a escola para se superar, para ir além,
para experimentar outros aspectos, outras perspectivas.

Regina: Ou apenas a avançar. Porque eu não sei se pre­


cisa experimentar tanto. Acho que deva estimulá-la a avançar
em busca de novos padrões de qualidade.

Antonio Flavio: Não é mesmo simples. Vejo como uma


decisão muito difícil. Mas creio que aceitamos que se não
deve haver imposição, também não pode haver omissão. Não
pode ocorrer o laissez-faire. Não se pode admitir que tudo seja
possível, tudo jseja bom. E no caso da escola que estiver fa­
zendo um bonito trabalho, a Secretaria vai precisar estar lá
apoiando e estimulando para que ela caminhe ainda melhor.

Regina: Ajudar a caminhar melhor.

Antonio Flavio: Talvez pudéssemos discutir uma outra


questão. Nos grandes centros, o problema da violência tem
cada vez mais se manifestado na escola.

Regina: Mais uma vez fica evidente que a escola não é


uma ilha no oceano da sociedade.
Antonio Flavio: Claro, como a sociedade está violenta,
a violência aparece também na escola,

Regina: Este é um problema que a escola não pode re­


solver. Porque é um problema social mais amplo. Aliás, é um
problema mundial.

Antonio Flavio: Mas algumas medidas se fazem neces­


sárias. É claro que não defendo mais violência, não é violên­
cia respondida com vidlência.

Regina: Não, aí não. Mas há escolas que tomam certas


medidas que às vezes dão certo. Há formas de canalizar a
agressividade de uma forma construtiva Na escola, o espor­
te pode cumprir esse papel. A arte cumpre esse papel. Certos
projetos que vêm da necessidade,'do desejo dos alunos e da
comunidade cumprem esse papel.

Antonio Flavio: Trabalhando com o apoio da comunidade.

Regina: O diálogo com a comunidade cumpre esse papel.


A escola tem de se abrir para ser um espaço cultural da co­
munidade, não ilhas com grades, com cadeados. O que se
observa pelo Brasil afora é que a escola aberta à comunidade
não é atacada. Isso vem acontecendo. A escola aberta à co­
munidade, a escola em que a comunidade se sente com di­
reitos e compreendeu ser um espaço cultural e educativo da
comunidade, o seu espaço é usado para encontros, reuniões,
festas, feiras, para muita coisa. É muito bom quando isso
acontece. Mas certamente não podemos deixar de saber que
esse ,é um problema para além do poder da escola resolver.
E uni problema social muito mais amplo. É um problema
global, não é um problema nacional sequer, muito menos
local. Mas penso haver uma conclusão nossa importante.
Apesar de tudo o que acontece nessa sociedade perversa,
desigual, submissa aos poderosos, apesar disso tudo, a esco­
la tem um papel importante e não podemos abdicar dela. Na
verdade, nós dois dedicamos nossa vida a isso.

Antonio Flavio: Com certeza.

Regina: Veja, isso foi um diálogo nosso. Um homem e


uma mulher, ambos professores, ambos defensores da escola,
embora extremamente críticos da escola como ela está sendo.
Brasileiros, vivendo no Rio de Janeiro. Trabalhando em uni­
versidade e vindo de larga experiência em escola. Sempre
voltados para a escola em nossas pesquisas, em nossos textos.
E aí organizamos este livro, que apresenta outros depoimen­
tos, de outros intelectuais, de outros lugares, que nos trazem
as suas preocupações com a educação, com a escola, com o
currículo, com o conhecimento escolar. Por isso resolvemos
fazer esse livro. Para mostrar que em um mundo globalizado,
a escola, afinal de contas, ainda é uma questão estratégica.

Antonio Flavio: Gostaria de acrescentar algo. Penso que


a mudança na escola certamente não ocorre nem por decreto
de uma Secretaria, nem pela pesquisa de alguém iluminado
da universidade. O processo é bem mais complexo. Porém,
eu acredito que nossas reflexões, nossas pesquisas, nossas
publicações, como este livro, embora não mudem a escola e
nem o mundo, podem ajudar o professor a entender melhor
esse mundo, sua escola, sua prática. Nesse movimento, pode
renovar suas ideias, aperfeiçoar os caminhos, buscar novos
rumos. Então, trazer estes estudos, de outros autores, de
outros países, reflete, de nossa parte, a intenção de estimular
o professor a refletir sobre o que faz e a melhorar o que faz.

Regina: Apoiado.
0 significado e a função da
educação na sociedade e
na cultura globalizadas

José Gimeno Sacristárí

1. Por ocasião de uma aberrante atualidade

A proximidade da experiência que estou vivendo en­


quanto articulo uma série de ideias sobre o título deste tra­
balho oferece-me uma oportuna e muito lamentável ocasião
para demonstrar alguns dos importantes desafios que a con­
dição da globalização apresenta para a educação. Refiro-me
ao ataque bárbaro contra as Torres Gêmeas de Nova York e
às consequências que ele vai trazer, a curto e a longo prazo,
para todo o mundo, nas esferas econômica, militar e política,
nas comunicações, nas práticas de controle dos cidadãos, nas
relações internacionais, nas interações entre as religiões e as
culturas, na vida das cidades,, nas escolas, na pesquisa, talvez
no direito, em nossos medos e em nossas fobias...

* Traduzido por Silvana Cobucci Leite.

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