Práticas Educativas e
Possibilidades de Pesquisa:
fontes, objetos e abordagens
uma análise comparativa
Azemar dos Santos Soares Júnior
Cláudia Engler Cury
Organizadores
Reitor
José Daniel Diniz
Vice-reitor
Henio Ferreira de Miranda
Diretoria Administrativa da EDUFRN
Maria da Penha Casado Alves (Diretora)
Helton Rubiano de Macedo (Diretor Adjunto)
Bruno Francisco Xavier (Secretário)
Conselho Editorial Leandro Ibiapina Bevilaqua
Maria da Penha Casado Alves (Presidente) Lucélio Dantas de Aquino
Judithe da Costa Leite Albuquerque (Secretária) Luciene da Silva Santos
Adriana Rosa Carvalho Marcelo da Silva Amorim
Anna Cecília Queiroz de Medeiros Marcelo de Sousa da Silva
Cândida de Souza Márcia Maria de Cruz Castro
Fabrício Germano Alves Marta Maria de Araújo
Francisco Dutra de Macedo Filho Martin Pablo Cammarota
Gilberto Corso Roberval Edson Pinheiro de Lima
Grinaura Medeiros de Morais Sibele Berenice Castella Pergher
José Flávio Vidal Coutinho Tercia Maria Souza de Moura Marques
Josenildo Soares Bezerra Tiago de Quadros Maia Carvalho
Kamyla Álvares Pinto
Secretária de Educação a distância Ione Rodrigues Diniz Morais – SEDIS
Maria Carmem Freire Diógenes Rego Isabel Dillmann Nunes – IMD
Secretária Adjunta de Educação a Ivan Max Freire de Lacerda – EAJ
Distância Jefferson Fernandes Alves – SEDIS
Ione Rodrigues Diniz Moraes José Querginaldo Bezerra – CCET
Lilian Giotto Zaros – CB
Coordenadora de Produção de Materiais Marcos Aurélio Felipe – SEDIS
Didáticos Maria Cristina Leandro de Paiva – CE
Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo Maria da Penha Casado Alves – SEDIS
Coordenadora de Revisão Nedja Suely Fernandes – CCET
Aline Pinho Dias Ricardo Alexsandro de Medeiros Valentim – SEDIS
Coordenadora Editorial Sulemi Fabiano Campos – CCHLA
Kaline Sampaio Wicliffe de Andrade Costa – CCHLA
Gestão do Fluxo de Revisão Revisão Linguístico-textual
Edineide Marques Fabíola Barreto
Gestão do Fluxo Editorial Revisão de ABNT
Rosilene Alves de Paiva Edineide da Silva Marques
Conselho Técnico-Científico – SEDIS Revisão Tipográfica
Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo – SEDIS Ilana Lamas Von Sohsten
(Presidente) Foto de Capa
Aline de Pinho Dias – SEDIS Gleydson Pinheiro Albano
André Morais Gurgel – CCSA Diagramação
Antônio de Pádua dos Santos – CS Lucas Almeida Mendonça
Célia Maria de Araújo – SEDIS
Eugênia Maria Dantas – CCHLA
Centro de Educação
Diretor: Jefferson Fernandes Alves
Vice-Diretora: Cynara Teixeira Ribeiro
Programa de Pós-Graduação em Educação
Coordenadora: Claudianny Amorim Noronha
Vice-coordenadora: Luciane Terra dos Santos Garcia
Comissão editorial responsável pela avaliação Laêda Bezerra Machado (ad hoc - UFPE)
dos correspondentes à Chamada nº. 03/2020 Marcilio De Souza Vieira (UFRN)
– PPGEd/UFRN Maria Aparecida de Queiroz (UFRN)
Adir Luiz Ferreira (UFRN) Maria da Paz Cavalcante (ad hoc – UERN)
André Augusto Diniz Lira (ad hoc - UFCG) Maria Ines Sucupira Stamatto (UFRN)
Carla Mary da Silva Oliveira (ad hoc - UFPb) Mariangela Momo (UFRN)
Claudianny Amorim Noronha (UFRN) Natália Conceição Silva Barros Cavalcanti (ad hoc – IFPa)
Cristiane Soares de Santana (ad hoc - UNESB) Patrícia Ignácio (ad hoc - FURG)
Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin (ad hoc - UFC) Rosa Aparecida Pinheiro (ad hoc - UFSCar)
Gessica Fabiely Fonseca (UFRN) Rossana Carla Rameh de Albuquerque (ad hoc – FPS)
Giliard da Silva Prado (ad hoc – UFU) Tatyana Mabel Nobre Barbosa (UFRN)
José Hélder Pinheiro Alves (ad hoc – UFCG)
Apoio
Esta publicação contou com o financiamento do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd)
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a partir da Chamada 03/2020 – PPGEd, con-
templada após análise pela Comissão Editorial do PPGEd. Também são apoiadores: a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a Pro-Reitoria de Pós-Graduação (PPG/UFRN) e a
Secretaria de Educação a Distância (SEDIS/UFRN).
Fundada em 1962, EDUFRN dedicada à sua
principal missão: produzir livros com qualidade
editorial, a fim de promover o conhecimento
gerado na Universidade, além de divulgar expres-
sões culturais do Rio Grande do Norte.
Publicação digital financiada com recursos do Fundo de Pós-graduação
(PPg-UFRN). A seleção da obra foi realizada pela comissão de Pós-graduação,
com decisão homologada pelo Conselho Editorial da EDUFRN, conforme
Edital n° 2/2019-PPG/EDUFRN/SEDIS, para a linha editorial Técnico-científica.
Catalogação da publicação na fonte
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Secretaria de Educação a Distância
Práticas Educativas e Possibilidades de Pesquisa: fontes, objetos e
abordagens uma análise comparativa [recurso eletrônico] / Organizado
Azemar dos Santos Soares Júnior e Cláudia Engler Cury. – 1. ed. –
Natal: EDUFRN, 2021.
6930kb.; 1 PDF.
ISBN 978-65-5569-177-1
1. Educação. 2. Educação – Prática Educativa. 3. Educação – Pesquisa.
I. Soares Júnior, Azemar dos Santos. II. Cury, Cláudia Engler.
CDU 37
P912
Elaborada por Edineide da Silva Marques CRB-15/488.
SUMÁRIO
Apresentação 10
Azemar dos Santos Soares Júnior (UFRN)
Cláudia Engler Cury (UFPB)
PARTE 1 – PRÁTICAS EDUCATIVAS, 21
IMPRESSOS E INSTITUIÇÕES
O jornal O Publicador e a formação 22
de seu público leitor (1862-1864)
Thayná Cavalcanti Peixoto
Entre a norma e a transgressão: práticas 65
disciplinares na instrução pública
secundária paraibana (1883-1886)
Cristiano Ferronato
Itacyara Viana Miranda
A inserção de meninos pobres 105
no mundo do trabalho:
práticas de ensino profissional
na escola de aprendizes artífices
de Alagoas/BR (1909-1930)
Marcondes dos Santos Lima
Mauricéia Ananias
Educando para o “bom cinema”: o jornal 139
A Imprensa e o projeto de moralização do
audiovisual da Arquidiocese da Paraíba
Cláudia Engler Cury
Luiz Araújo Ramos Neto
“Nada do que é grande começou 175
grande”: escritos e sujeitos da educação
na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte
Rita Thainá Correia da Cunha
Azemar dos Santos Soares Júnior
“Impor o jardim de infância à Paraíba”:
os escritos de Alice de Azevedo 211
Monteiro sobre e para a infância
na Revista do Ensino (1932-1940)
Maíra Lewtchuk Espindola
“Ama-a: tôda árvore é sagrada”:
comemorações ao Dia da Árvore e 245
práticas educativas durante o Estado
Novo em João Pessoa/PB (1937-1945)
Vânia Cristina da Silva
PARTE 2 - PRÁTICAS EDUCATIVAS, 281
MEMÓRIAS E ENSINO
Ver, ouvir e sentir: a história oral como 282
alternativa metodológica para o ensino
de história na educação básica
Aliny Dayany Pereira de Medeiros Pranto
Notas etnográficas: conhecimento, 314
imaginação e memórias
Mariana Amalia de Carvalho Castro e Silva
Carmen da Silva Ferreira
Sertania: vereda para a construção do 354
objeto de pesquisa e da consciência de si
Walter Pinheiro Barbosa Júnior
Luan Presley Mendonça Santiago
Arquivando a própria vida: os acervos 386
pessoais e os livros de memória como
ego-documentos no brejo paraibano
Vivian Galdino de Andrade
É uma casa muito bonita, 429
de portas abertas para a vida
Isabelle de Luna Alencar Noronha
PARTE 3 - PRÁTICAS EDUCATIVAS 469
E HISTÓRIA DA SAÚDE
Palavras que curam na movência de 470
saberes: memória e sensibilidades
educativas nas práticas das rezadeiras
Patrícia Cristina de Aragão
Robéria Nádia Araújo Nascimento
Formação médica internacional: 504
bolsistas da Fundação Rockefeller
em São Paulo e em Baltimore
Ricardo dos Santos Batista
André Mota
Apresentação
“Esconder significa: deixar ras-
tros. Porém invisíveis. Quanto
mais aéreo estiver um esconderijo,
tanto mais engenhoso. Quanto
mais livremente estiver exposto a
todos os olhares, tanto melhor”.
A epígrafe acima foi retirada de “O coelho da Páscoa desco-
berto ou pequeno guia dos esconderijos” escrito por Walter
Benjamin (1987, p. 237). Os escritos funcionam como uma espécie
de prática educativa sobre as possíveis formas de esconder o
fazer da pesquisa e, nesse caso, o fazer do universo educacional
escolar em seu sentido mais amplo. Uma brincadeira cultural-
mente/historicamente comum no domingo de Páscoa do mundo
cristão, é a de esconder ovos de chocolate para que as crianças os
encontrem. As orientações mencionadas por Walter Benjamin,
em seu texto referido anteriormente, funcionam como uma
espécie de guia para os adultos apresentando os lugares que os
ovos não deveriam ser escondidos, a exemplo de espaços como
“[...] gavetas, armários, debaixo da cama ou dentro do piano”,
pois nos ensinamentos sobre esconder e procurar deve-se ter
a consciência de que tudo aquilo que foi escondido “[...] possa
um dia [ser] descoberto”.
Na intenção de recuperar a memória acerca da prática
educativa de esconder ovos, aprendida com seus antepassados,
o autor apresenta três regras fundamentais para ensinar a arte
de brincar nos domingos de Páscoa: primeira deve-se levar em
AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
/ CLÁUDIA ENGLER CURY
consideração o princípio do grampo, que “[...] seria a instrução
sobre o aproveitamento de fendas e fissuras”, ou seja, uma
forma de ensinar às pessoas a arte de manter os ovos suspensos
entre trancas e maçanetas, entre quadros e paredes, no
buraco de uma chave ou em qualquer outro local que permita
pendurá-lo; a segunda prática educativa para a brincadeira de
esconder ovos diz respeito ao princípio do recheio, ensinando
“[...] a usar ovos como rolhas nos gargalos de garrafas, como
velas no candelabro, como estame num cálice, como lâmpada
numa luminária” (BENJAMIN, 1987, p. 238); e, por fim, a terceira
prática pautada no princípio da altura e profundidade, que se leva
em consideração observar o que se “[...] estar à altura dos olhos,
depois olham pra cima e só por último se preocupam com o que
está a seus pés” (BENJAMIN, 1987, p. 238).
As relações estabelecidas por Walter Benjamin, nos leva
a refletir sobre duas questões que consideramos nesse livro,
importantes: as práticas educativas e as formas de encontrá-
-las registradas. Sobre a primeira muito tem sido debatido
em pesquisas acadêmicas que se se utilizam das práticas
educativas para entender a história e a história da educação
de homens e mulheres num dado tempo e espaço. As práticas
estão diretamente relacionadas às formas de fazer e de levar
o “aprendiz” a efetivar uma ação. As práticas estão no campo
das atividades propriamente ditas, daquilo que é feito, que é
dito, que é realizado. Quando essas ações são associadas ao
termo “educativas”, entende-se que o fazer, ou o saber fazer foi
aprendido e ensinado. Portanto, aprende-se ao observar o outro
fazer; aprende-se com a memória narrada em palavras. Mas as
práticas educativas não estão apenas no campo do aprender,
mas também do ensinar. Elas indicam uma troca, uma permuta
11
Apresentação
de saberes. Trata-se de um processo relacional que se estabelece
entre o ensinar e o aprender: subjetividade e alteridade.
Nesse sentido, alguns registros sobre as práticas educa-
tivas ficaram a princípio presos às memórias das pessoas. Os
antigos bardos que como contadores de história sonorizavam o
que haviam visto ou ouvido. Aqueles homens e mulheres utili-
zavam dos recursos humanos da sensibilidade para aprender e
para ensinar. Eles viviam a experiência propriamente dita ou
ouviam as histórias contadas pelos mais velhos e imaginavam
determinadas situações atribuindo a elas um julgamento de
valor fazendo-as desejadas ou dignas de distanciamento. Os
sentidos e sensibilidades do corpo foram historicamente os
principais recursos para aprender e para ensinar. Aprendia-se
a desejar ou a repelir aquilo que se tocava que se fitava que
sentia o gosto pela boca, ou que recebia em seu corpo por
meio dos odores ou que se escutava com atenção os sussurros
esperançosos de interesses. Esses sentidos levaram os homens
e mulheres a desenvolverem artifícios na forma de esconder e/
ou explicitar as práticas educativas.
Recorremos mais uma vez à história para lembrar que
quando ela surge enquanto ciência, exatamente no momento
em que se buscava construir uma história oficial dos estados
nacionais no século XIX, as formas de ensinar estavam direta-
mente ligadas aos interesses de um grupo político que almejava
disciplinar os corpos para a obediência, para seu máximo
aproveitamento e para o pertencimento às nações que se confi-
guravam. As práticas educativas passavam adestrar corpos e
mentes com a função de servir aos interesses do Estado. As
formas de aprender e de ensinar ganhavam a lideranças das
grandes instituições políticas e religiosas.
12
AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
/ CLÁUDIA ENGLER CURY
As práticas educativas podem ser identificadas nas
instituições, nas festas, nas ruas, nas igrejas, nas famílias,
nas escolas, através de músicas e de leituras, nas páginas da
internet... Elas tornaram-se tão amplas que sua definição se
tornou tarefa desafiadora para os pesquisadores. Assim, essa
coletânea tem a proposta de reunir textos, frutos de pesquisas
acadêmicas, sobre práticas educativas, assim mesmo, no plural.
Queremos alertar paras as diversas possibilidades de refletir e
apreender as práticas educativas. Daí a necessidade de iniciar
essa apresentação com um texto sobre “as formas de esconder
ovos de páscoa”: uma metáfora para dizer que as práticas
educativas podem estar presentes em todos os lugares em que
algo ou alguém possa ensinar. Seja pendurada nos lustres, seja
tampando garrafas, seja escondendo por debaixo da mesa. No
fundo, todo pesquisador trabalha mesmo que de forma incons-
ciente com alguma prática educativa.
Por fim, queremos refletir um pouco sobre o segundo
ponto elencado para debate: as formas de encontrar e registrar
as práticas educativas. A pesquisa histórica nos ensinou que a
primeira tarefa daqueles que resolverem remexer as memó-
rias, é selecionar um tema e ir à busca dos registros ou fontes
históricas. Assim, as memórias analisadas nos mais diversos
textos apresentados nessa coletânea, são frutos de uma dupla
prática educativa: autores que aprenderam o exercício da lida
com os arquivos, do manuseio das fontes, das inquietações
lançadas sobre as memórias e a uma forma dita acadêmica de
escrever um discurso que chamamos de História; mas também
são práticas educativas por assumir o compromisso de ensinar,
pois os textos aqui apresentados funcionam como fontes que
ensinam que permitem ao leitor imaginar, conhecer um dado
passado e desejar quem saber produzir sua própria versão, seja
13
Apresentação
através da imaginação, seja por meio de uma nova pesquisa.
Nesse sentido, as práticas educativas continuam seguindo sua
função: ensinar e aprender.
Walter Benjamin (1987, p. 239) ainda chama atenção em
seu texto para o fato de que devemos prestar bem atenção nos
“[...] gramofones ou máquinas de escrever e hão de ver, que
em espaço reduzidíssimo, tem tantos buracos e esconderijos
como se tivessem morando numa residência de sete peças”. Essa
metáfora funciona para apresentarmos os textos aqui contidos
como um desses esconderijos existentes entre uma letra e outra.
Os autores, embora não se escondam, “não precisam tudo dizer,
mesmo que para um júri qualificado”, como respondeu certa
vez Michel Foucault (2006), pois seus textos são como esses
espaços entre uma letra e outra de uma máquina de escrever:
um interstício dentre a infinidade das práticas educativas.
Feitas as devidas ressalvas, passamos a apresentar
a organização dessa Coletânea dividida em três seções. Na
primeira delas, intitulada “Práticas Educativas, Impressos e
Instituições”, reunimos textos de pesquisadores que se dedi-
caram a pensar a pluralidade de temas relacionados ao campo
dos saberes que foram produzidos por instituições escolares ou
vinculadas pela imprensa.
Esta seção é aberta com o texto intitulado O jornal O
Publicador e a formação de seu público leitor (1862-1864), e
escrito por Thayná Cavalcanti Peixoto que buscou entender
sobre o circuito de comunicação inserido em uma rede nacional
e internacional, que enviava, recebia e transcrevia notícias,
principalmente de periódicos do Rio de Janeiro, Pernambuco,
Portugal e França, nos primeiros anos de atuação do jornal O
Publicador, entre os anos de 1862 e 1864 publicado pelo tipógrafo
José Rodrigues da Costa.
14
AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
/ CLÁUDIA ENGLER CURY
Em seguida, apresentamos o capítulo Entre a norma e
a transgressão: práticas disciplinares na instrução pública
secundária paraibana (1883-1886), escrito pela parceria entre
Cristiano Ferronato e Itacyara Viana Miranda. Trata-se de uma
análise sobre prescrições de práticas disciplinares, instituídas e
pensadas na Paraíba no período de 1883, quando da conversão
do Lyceu Parahybano em Escola Normal a 1886, ano do primeiro
Estatuto Interno da mesma Instituição.
Na sequência, o texto de Marcondes dos Santos Lima e
Mauricéia Ananias, intitulado As práticas do ensino profissional
da Escola de Aprendizes Artífices de Alagoas: a inserção de
meninos pobres no mundo do trabalho (1909-1930), que apre-
senta as práticas escolares de ofícios e de militarização que
foram prescritas à Escola de Aprendizes Artífices do estado
das Alagoas entre o período de 1909 a 1930, num momento em
que havia uma indústria e comércio em atividades e o que os
alunos da Escola de Aprendizes exerciam cargos nas profissões
da cidade indicando a inserção dos meninos pobres no universo
do trabalho por meio do aprendizado elementar de um ofício
em atendimento à economia local.
O quarto texto dessa seção foi escrito por Cláudia Engler
Cury e Luiz Araújo Ramos Neto e intitulado Educando para o
“bom cinema”: o jornal A Imprensa e o projeto de moralização do
audiovisual da Arquidiocese da Paraíba, cujo objetivo é analisar
o projeto desenvolvido pela Arquidiocese da Paraíba em relação
à moralização do cinema e as práticas de instrução escolhidas
por esta instituição para a viabilização de uma doutrinação
cinematográfica dos fiéis paraibanos. Para tanto, os autores
realizam uma meticulosa problematização do tema no jornal
católico A Imprensa.
15
Apresentação
Em seguida, Rita Thainá Correia da Cunha e Azemar dos
Santos Soares Júnior, Nada do que é grande começou grande:
escritos e sujeitos da educação na Revista do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Norte, discutiram a Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte como fonte
para as pesquisas acerca da História da Educação, devido sua
ampla possibilidade de fornecer informações sobre vários perí-
odos e momentos históricos do estado. Os autores alegam que
os sócios e colaboradores do IHGRN, também são um fator de
análise nas pesquisas, tendo em vista a produção de pesquisa em
torno do setor educacional, publicadas na Revista do Instituto,
e a participação desses membros em setores envolvidos direta
ou indiretamente com a educação.
No sexto capítulo, Maíra Lewtchuk Espindola nos apre-
senta o texto Impor o jardim de infância à Paraíba: os escritos de
Alice de Azevedo Monteiro sobre e para a infância na Revista do
Ensino (1932-1940), no qual a autora busca compreender as ideias
de Alice de Azevedo Monteiro sobre e para a infância nas Revistas
do Ensino da Paraíba. Parte-se da alegação de que Alice Monteiro
atuou na criação e na manutenção de dois jardins de infância a
partir do ano de 1932 quando foi por ela proposta a construção
de jardins de infância e final 1940, data da sua morte.
Fechando a primeira seção, chegamos ao texto, Ama-a:
tôda árvore é sagrada: comemorações ao Dia da Árvore e práticas
educativas durante o Estado Novo em João Pessoa/PB (1937-
1945), Vânia Cristina da Silva se dedica a compreender como
era comemorado o Dia da Árvore, na cidade de João Pessoa/
PB, no período do Estado Novo, levando em consideração como
as festas e comemorações sempre estiveram presentes no
ambiente escolar, especialmente, em finais do século XIX, após a
Proclamação da República. Mas foi durante o governo de Getúlio
16
AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
/ CLÁUDIA ENGLER CURY
Vargas, entre os anos de 1937 a 1945, que essas comemorações
ganharam maior fôlego pelo país. Um texto que fala sobre festas
escolares para comemorar a natureza e a vida.
A segunda seção dessa coletânea, denominada de
“Práticas Educativas, Memória e Ensino” é composta pelos
seguintes textos: Ver, ouvir e sentir: a história oral como alterna-
tiva metodológica para o ensino de história na educação básica,
de autoria de Aliny Dayany Pereira de Medeiros Pranto que
discute possíveis abordagens sobre a memórias no cotidiano
das escolas de educação básica, a partir da metodologia da
História Oral, promovendo assim a oportunidade de refletir
sobre o que ensinamos e como o fazemos, além de apresentar
algumas habilidades a serem desenvolvidas pelos estudantes a
partir do trabalho com narrativas orais.
Em seguida, chegamos ao capítulo escrito por Mariana
Amalia de Carvalho Castro e Silva e Carmen da Silva Ferreira
intitulado Notas etnográficas: conhecimento, imaginação
e memórias, sobre as experiências sociais de sujeitos que
mudaram suas trajetórias e impulsionaram aspirações sociais
em outros indivíduos através da ação pública, nos possibilita
uma reflexão insurgente, ou seja, da liderança social de Carmen
da Silva Ferreira do movimento de luta pela moradia – MSTC da
cidade de São Paulo.
O capítulo que se segue, intitulado Sertania: vereda
para a construção do objeto de pesquisa e da consciência de si,
escrito pela parceria entre Walter Pinheiro Barbosa Júnior e
Luan Presley Mendonça Santiago que buscam refletir sobre
Sertania como uma vereda para construção do objeto de estudo
e da consciência de si. Os autores assumem Sertania como
uma concepção teórica, dado que essa vereda possibilita ao
pesquisador pensar para além do aparente imediato, ao mesmo
17
Apresentação
tempo em que induz a busca pelo sentido do que se apresenta na
interioridade do mundo-sujeito durante sua jornada-pesquisa.
O quarto capítulo dessa seção, de autoria de Vivian
Galdino de Andrade foi intitulado de Arquivando a própria
vida: os acervos pessoais e os livros de memória como
ego-documentos no brejo paraibano, na qual a autora reflete
sobre a operação histórica mediada por artefatos da memória
como os livros memorialísticos e os acervos pessoais, impressos
importantes para as pesquisas e reflexões desenvolvidas em
torno das sensibilidades e da ego-história, campos de discussão
da nova história cultural.
O último texto dessa seção, intitulado É uma casa muito
bonita, de portas abertas para a vida, Isabelle de Luna Alencar
Noronha busca na saudade uma forma de reencontrar a Casa
Grande, uma instituição voltada ao desenvolvimento de práticas
educativas no Cariri Cearense. Por meio de uma etnografia
das formas de educar daquela instituição a autora se dedica a
problematizar os serviços sociais prestados a comunidade local.
A terceira seção dessa coletânea foi batizada por “Práticas
Educativas e História da Saúde” e tem início com o capítulo
intitulado Palavras que curam na movência de saberes: memória
e sensibilidades educativas nas práticas das rezadeiras, de
autoria de Patrícia Cristina de Aragão e Robéria Nádia Araújo
Nascimento. Nesse capítulo, as autoras exploram o ofício das
rezadeiras como prática educativa, a fim de sublinhar a sensibi-
lidade de um fazer cotidiano, cujos ensinamentos fazem sentido
e precisam ser valorizados no espaço escolarizado. Entre esses
saberes destacam-se o conhecimento da fitoterapia das ervas
e suas relações com o sagrado capturadas e traduzidas pela
oralidade e as páginas de vida destas mulheres que guardam
18
AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR / CLÁUDIA ENGLER CURY
práticas educativas cujas sensibilidades estão entrelaçadas com
atos de memória preservando suas ancestralidades.
Em seguida, Formação médica internacional: bolsistas
da Fundação Rockefeller em São Paulo e em Baltimore, foi
escrito por Ricardo dos Santos Batista e André Mota, e tem
por interesse analisar as conexões internacionais no processo
formativo de médicos que atuavam na saúde em São Paulo e
que foram enviados para a Universidade de Johns Hopkins, em
Baltimore, como bolsistas da Fundação Rockefeller, entre 1919
e 1924. Bem como, simultâneo a esse processo, a Faculdade de
Higiene e Cirurgia de São Paulo recebia seus primeiros bolsistas.
Essas duas instituições de ensino, as primeiras apoiadas pela
Fundação Rockefeller no mundo, foram responsáveis pela
disseminação de práticas educativas profissionais no campo
da higiene e da saúde pública, com o intuito de formar profis-
sionais que multiplicassem esses conhecimentos em seus países
de origem.
Por fim, esta é uma coletânea que aborda algumas formas
de práticas educativas, seja no campo da História da Educação,
das Sensibilidades, da Memória, das Instituições ou da Saúde.
Uma mostra, para retornar à metáfora benjaminiana, de como
pendurar ovos em pleno domingo de Páscoa, causando surpresa
e ensinando sobre práticas educativas.
Azemar dos Santos Soares Júnior
Cláudia Engler Cury
Setembro de 2020
19
Apresentação
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São
Paulo: Brasiliense, 1987. p. 237-239.
FOUCAULT, Michel. A poeira e a nuvem. In: FOUCAULT, Michel.
Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p 323-334.
20
PARTE 1 – PRÁTICAS
EDUCATIVAS, IMPRESSOS
E INSTITUIÇÕES
O JORNAL O PUBLICADOR
E A FORMAÇÃO DE SEU
PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
Thayná Cavalcanti Peixoto1
Resumo: Após editar e imprimir os mais variados gêneros
impressos, desde meados de 1848 à frente de sua tipografia, foi
apenas em 1862 que José Rodrigues da Costa lançou ao público
paraibano o primeiro jornal de publicação diária na província:
O Publicador. A folha se tornou, sob sua propriedade e posterior-
mente de seus herdeiros, uma das mais duradouras da capital
durante o período imperial, cessando sua publicação no ano de
1886. A presente pesquisa analisou e dissertou sobre o circuito
de comunicação dos primeiros anos de atuação do jornal, entre
os anos de 1862 e 1864. Até o momento, pelo levantamento
de 354 exemplares dos anos de 1862 e 1864, é possível inferir
que o periódico estava inscrito, não somente, no modelo de
imprensa diária à época, como em uma rede de comunicação,
nacional e internacional, que enviava, recebia e transcrevia
notícias, principalmente de periódicos do Rio de Janeiro,
Pernambuco, Portugal e França. Foram identificados aspectos
relativos à produção, à difusão e usos do jornal, na tentativa de
compreender como a inauguração de um jornal diário impactou
àquela sociedade, e de quais estratégias a redação do Publicador
1 Doutoranda em História Social da Cultura pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e Bolsista CAPES. Mestra e Graduada em História pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail:
[email protected] Thayná Cavalcanti Peixoto
utilizou para formar e consolidar um público que até então não
possuía um diário próprio.
Palavras-chave: Imprensa. Circuito de Comunicação.
Século XIX.
Introdução
O Publicador, primeiro jornal diário da Paraíba, inaugurou sua
circulação em setembro de 1862 e findou suas publicações
no ano de 1886, tornando-se, também, uma das folhas mais dura-
douras da Paraíba, durante o período imperial. Contudo, para a
presente pesquisa2 serão apresentados dados e questões referentes
ao ano de 1862, período de inauguração e tentativa de estabilidade,
e 1864, quando se acredita que o diário já se encontrava consoli-
dado, perante o público paraibano. Desde seu primeiro cabeçalho, o
diário trazia consigo uma fundamental informação: “O Publicador
he propriedade de José Rodrigues da Costa”.
José Rodrigues da Costa 3 foi fundador e proprietário
tanto do jornal quanto da oficina tipográfica que levava seu
nome, Typographia de José R. da Costa. Desde a instalação de
sua tipografia, na capital da província, ele foi o responsável
pela impressão de uma vasta gama de impressos, entre eles
2 Este trabalho contém dados e questões que vêm sendo realizadas na
minha pesquisa de Doutorado, intitulada: Circuito de comunicação do jornal
O Publicador (1862-1869), pelo Programa de Pós-Graduação em História pela
Universidade Federal de Minas Gerais.
3 Para maiores informações a respeito da vida e atuação de José Rodrigues
da Costa como tipógrafo, ver Peixoto (2017).
23
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
encontram-se os relatórios de presidente de província, publi-
cados pela sua oficina, sucessivamente, entre os de 1848 a 1862.
Além disso, também saíram dos prelos de sua oficina, escritos4
(livro de poesia, compêndio escolar, memórias de viagem, etc.)
de autores locais, como também uma média de 12 jornais5 que
circularam na capital, sendo O Publicador (1862-1886), de sua
propriedade, o mais importante deles, pois com ele se inau-
gurou a publicação diária de um jornal na província.
Todavia, na noite do dia 8 de novembro de 1866 um
repentino e grave mal-estar retirou os últimos suspiros de vida
do mestre da arte typographica de nossa terra6. Porém, apenas
quatro dias após sua morte, tanto no cabeçalho quanto ao
fim da última página d’O Publicador, tanto a tipografia como
o diário, já figuravam como propriedade dos Herdeiros de José
R. da Costa. Logo, seus filhos continuaram não só à frente da
publicação do então diário, como também ficaram responsáveis
pela continuação das atividades da tipografia por mais vinte
4 SILVA, Francisco Pereira da. Memorias das viagens que em cumprimento às
ordens do Governo Provincial fez o 2º Tenente de Engenheiros Francisco Pereira da
Silva pelo interior da Parahyba do Norte nos anos 1846 e 1847(1848); VELLOSO,
Manoel Caetano. Lições de Rethorica recopiladas dos originaes de L. Ferreol Perrard,
e Edme Ponelle (1849); SILVA, Francisco Pereira da. Ensaios para a estatística
da provincia da Parahyba do Norte. Parte I (1850); FRANCA, Francisco Xavier
Monteiro da. Vida e Poezias (1854); CORDEIRO, Antonio da Cruz. Instruções
Sanitarias Populares (1862); SOBRINHO, Joaquim Maria Serra. Mosaico: Poesias
traduzidas (1865) (PEIXOTO, 2017, p.101-102).
5 O Espreitador (1849), Correio Official Parahybano (1849), A Ordem (1850),
Alva- jornal litterario (1850), Governista Parahybano (1850), Jornal da Assemblea
Legislativa Provincial da Parahyba (1853), A Matraca (1854), O Parahybano (1855),
A Epocha (1856), O Imparcial (1860), Diario da Parahyba (1861), O Publicador (1866)
(PEIXOTO, 2017, p. 86-87).
6 O Publicador, n. 1440, 17 de maio de 1867, p.3.
24
Thayná Cavalcanti Peixoto
e seis anos no mercado editorial da capital, até fecharem as
portas do estabelecimento, no ano de 1892.
Dito isso, pode-se afirmar que a história do jornal O Publicador
é inseparável da história de sua tipografia, dessa maneira, a história
do diário e de sua tipografia se entrelaçam nesse texto.
Nas obras, ditas, clássicas da historiografia da imprensa
paraibana, — Imprensa na Parahyba (1922), de Alcides Bezerra;
A Imprensa na Paraíba (1962), de José Leal; e Síntese Histórica do
Jornalismo na Paraíba (1963), de Antônio Serafim Rêgo Filho —,
tanto José Rodrigues da Costa, como seus herdeiros foram
rapidamente mencionados como “proprietários do jornal O
Publicador”. E, sobre o Publicador, foram enfatizadas as datas de
criação e encerramento, a periodização de impressão, o nome da
tipografia onde era impresso. Uma vez que, os autores possuíam
o intuito de realizar uma síntese histórica dos jornais desde
seus primórdios até aqueles dias, provenientes de um tipo de
estudo da imprensa que se limitou a reportar o aparecimento
e desaparecimento de periódicos (BARBOSA, 2004).
Durante muito tempo,
a historiografia paraibana sobre o século XIX, foi elaborada
sob o domínio de uma perspectiva política, nos moldes de
uma dita história tradicional, em que se destacaram datas,
grandes feitos e homens (MARIANO; SÁ, 2003, p. 13).
Em relação à imprensa, e, principalmente ao se repor-
tarem do Publicador, não foi diferente. O destaque e prestígio
do diário recaíram na imagem do “ilustre” redator principal, o
Padre/Comendador/Deputado Geral e Provincial Lindolfo José
Correia das Neves7.
7 Para mais informações acerca de sua atuação política ver Segal (2017).
25
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
A obra mais conhecida a respeito da tipografia, e conse-
quentemente, do jornal O Publicador, é: A Tipografia do Beco
da Misericórdia: apontamentos históricos, lançada em 1978 por
Eduardo Martins, que o destacou como o primeiro diário da
província, porém tratou de maneira superficial a respeito de
seu proprietário e herdeiros. Essa abordagem é compreensível,
como bem sugeria o título, pois o objetivo da obra era destacar a
trajetória da tipografia, essa que, “após muitos anos no mercado
editorial da capital, abrigou o Jornal A União, lançado em 1893, e
que ainda circula nos dias atuais como jornal oficial do Governo
do Estado” (BARBOSA, 2009, p. 52).
Anos depois, em Paraíba: Imprensa e Vida (1986), Fátima
Araújo trouxe à tona uma pesquisa, de caráter mais descritivo,
sobre os impressos que circularam na província, contudo, em
se tratando de O Publicador, a autora praticamente repetiu os
resultados já apresentados por Martins (1978). Até que, em
2017, com a dissertação intitulada José Rodrigues da Costa: um
tipógrafo na Cidade da Parahyba (1848-1866)8, aportada na pers-
pectiva da Nova História Cultural, considerando o que Robert
Darnton (2010) caracterizou por intermediários da literatura, —
homens e mulheres responsáveis tanto pela produção quanto
pela propagação dos impressos, como trapeiros, tipógrafos,
editores, impressores, livreiros, etc., que durante muito tempo
foram negligenciados, em vista de grandes obras e autores, na
historiografia — é que se destacou a atuação de José Rodrigues
da Costa, enquanto tipógrafo, desde período de instalação da
sua oficina na capital até o seu falecimento. A partir disso, e
8 Dissertação de Mestrado em História defendida pelo Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Também
se publicou o livro: José Rodrigues da Costa: um tipógrafo na Cidade da Parahyba
(1848-1866). João Pessoa: Mídia Editora, 2017.
26
Thayná Cavalcanti Peixoto
por meio de uma extensa pesquisa documental, foi possível
não somente destacar a importância do tipógrafo como um
dos principais produtores e difusores da cultura escrita na
província, como, também, refutar importantes informações,
referentes ao tipógrafo, que estão presentes na obra de Martins
(1978) e que eram reverberadas pela historiografia, até então.
Eduardo Martins (1978) conseguiu cristalizar a imagem,
dali em diante, do “português José Rodrigues da Costa, ‘excelente’
tipógrafo, vindo do Recife’” (MARTINS, 1978, p. 21, grifo nosso), que,
na capital paraibana, “se estabeleceu em fins de 1834, na casa nº 2
da Rua Direita” (MARTINS, 1978, p. 21). Além de ter afirmado que
José Rodrigues da Costa tivera deixado cinco herdeiros, também
não mencionou o fato de ter sido companheiro de dona Joanna
Maria do Rosario.
Nesse sentido, o legado da obra de Martins (1978), é
compreendido em comum acordo com Michel de Certeau (1982),
quando afirmou que a História se escreve por meio de práticas,
as quais são frutos de diversos interesses do lugar social em
que o historiador está inserido, tendo em vista que o peso da
instituição histórica e o lugar social dos indivíduos se refletem
no discurso do próprio historiador. Com isso, sua narrativa de
cunho descritivo e, muitas vezes, despreocupada em indicar aos
leitores a localização de documentos utilizados, se torna compre-
ensível. Uma vez que, eram regras e práticas compartilhadas
pelo lugar social do autor, que foi membro do Instituto Histórico
e Geográfico Paraibano e da Associação Paraibana de Imprensa.
Com esse entendimento, utilizei as informações contidas
na obra de Martins (1978) como ponto de partida para a compre-
ender e traçar a trajetória de José Rodrigues da Costa. Logo,
parti de elementos descritos no livro do autor, realizei o cruza-
mento de informações dos próprios impressos publicados na
27
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
tipografia com documentos cartoriais e paroquiais, e consegui
chegar a dados que refutam informações primordiais acerca
do tipógrafo.
Sendo elas: a de que José Rodrigues da Costa era parai-
bano e não português; de que a oficina foi instalada na Cidade
da Parahyba em meados de 1848 e não em 1834, pois além de
o impresso mais antigo , contendo o nome da tipografia datar
de 1848, no ano de 1844, José Rodrigues da Costa possuía uma
tipografia no Rio de Janeiro localizada na Rua do Conde ,
casa n. 4 (Almanak Mercantil, n. 02, 1844, p. 325); para Eduardo
Martins (1978), José Rodrigues da Costa e dona Joanna Maria
do Rosario foram citados apenas como donos em comum de um
sítio, omitindo que ambos foram companheiros e tiveram filhos
juntos; ademais, Martins (1978) mencionou que o tipógrafo
havia deixado cinco herdeiros, sendo que o casal tivera sete
filhos, e na época do nascimento da primeira filha do casal,
Joanna possuía a condição jurídica de escravizada .
Assim, José Rodrigues da Costa, natural da província da
Parahyba do Norte, foi um dos principais editores e divulga-
dores da cultura escrita da Paraíba imperial. Pois, além dos
inúmeros gêneros impressos saídos dos prelos de sua oficina,
atingiu o ápice de sua atuação publicando o primeiro jornal
diário da província, O Publicador, de sua inteira propriedade.
Acredita-se, portanto, que José Rodrigues da Costa tivera
atingido o auge de sua carreira com a impressão d´O Publicador.
Já que, inaugurar um jornal que saía diariamente requeria, além
das “consideráveis despezas, que exige uma publicação d’esta
importancia” (O PUBLICADOR, n. 1, 1º set. 1862, p. 1), um bom
aparato tecnológico, vários compositores (MOLINA, 2015), mas,
também, tal iniciativa exigia influência política. Ainda mais
no Brasil, país que legalizou e regulou a produção e circulação
28
Thayná Cavalcanti Peixoto
da imprensa apenas em 1808, — três séculos após a criação
da imprensa no ocidente – e que, somente após a chegada da
família real ter demandado a impressão de atos e interesses do
governo, é que se autorizou a criação da Impressão Régia.
Posto isso, destaca-se, portanto, que a imprensa brasi-
leira, desde seus primórdios, se “impôs como uma força política”
(CAPELATO, 1988, p. 13), pois, nascera “sob proteção oficial, mais
do que isso: por iniciativa oficial” (SODRÉ, [1966], p. 22). Dessa
forma, é praticamente impossível dissociar a compreensão da
história da imprensa brasileira de seu completo imbricamento
com questões políticas, uma vez que boa parte dos jornais
brasileiros viveram ou ainda vivem à sombra do poder público
(MOLINA, 2015).
Nesse sentido, os esforços para tal movimento se tornam
mais perceptíveis quando se observa que o jornal O Publicador
“tivera como seu redator chefe, durante anos” (MARTINS,
1987, p. 198), o Padre Lindolfo José Correia das Neves9, esse que
segundo o Diário da Parahyba, era:
Fanático pelo jornalismo de que era um palinuro de
grande força, colocou-se à frente de diversos periódicos
políticos daquele tempo, conservando-se até a hora em que
expirou como redator chefe do antigo e bem conhecido órgão
liberal O PUBLICADOR (Diário da Parahyba, 21 de maio de
1884 apud MARTINS, 1987, p. 198, grifo nosso).
9 Este que exerceu ainda diversos cargos e comissões como o de Secretário
do Governo da Paraíba, de 1849 a meados de 1853 e de 1854 a julho de 1856;
Procurador Geral da Tesouraria da Fazenda na Paraíba (1864); Juiz de Paz
da Cidade da Paraíba; foi eleito em diversas ocasiões Provedor da Santa Casa
de Misericórdia; L lecionou de maneira intermitente, vários anos, no Liceu
Paraibano, entre outras funções (BARBOSA, 2009, p. 111).
29
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
Mais conhecido como Padre Lindolfo, caminhara pelos
mais variados segmentos sociopolíticos e culturais não só da
província paraibana, como também chegou a exercer a função
de deputado geral na Corte. Sendo assim, tornam-se patentes
as redes de sociabilidades e alianças políticas nas quais o José
Rodrigues da Costa tivera que estabelecer, não apenas para
permanecer no mercado de impressão, mas também para
publicar um formato inédito de periódico, até então, na província.
Todavia, na minha concepção, o apogeu da atuação de José
Rodrigues da Costa, e a inauguração d´O Publicador só ocorreram
devido uma convergência de fatores: seu talento de editor; a
qualidade dos impressos; o estabelecimento de redes e circulação
pelos espaços de sociabilidade da elite provincial, onde concre-
tizou amizades e contratos com figuras politicamente influentes;
o que, consequentemente, o fez angariar lucros oferecendo-lhe
possibilidades de investir em condições materiais, e profissionais,
até atingir o ápice: publicar um jornal diariamente.
No texto do prospecto10 do exemplar de inauguração11 do
jornal O Publicador. O periódico informava que estava iniciando a
empreitada de se publicar diariamente, mas também esclarecia
que outros impressos paraibanos de mesmo feitio já haviam
desistido da ideia, devido às várias impossibilidades que lhes
foram impostas. No entanto, sua redação estava empenhada em
não deixar se esvair tal iniciativa, pois na maioria das cidades
do Império já existiam publicações diárias, sendo necessária
também a implantação de uma folha com esse perfil, agora na
província paraibana.
10 Tratava-se de uma carta de intenções em que o redator afirmava seus
propósitos (MOREIRA, 2006, p. 118).
11 O Publicador, n.1, 1 de setembro de 1862, exemplar presente na obra de
Martins (1978, p. 169-172).
30
Thayná Cavalcanti Peixoto
Na continuação do prospecto a redação afirma: “o publico
parahybano já tem adquirido o hábito à leitura dos periódicos”
(O PUBLICADOR, n.1, 1º set. 1862). Com isso infere-se que a inau-
guração de um jornal diário não só instauraria novas práticas
de leitura, como também uma nova relação do público leitor
em relação aos jornais.
Dito isso, o jornal em questão será compreendido
enquanto um meio de comunicação que tanto influenciou
práticas como também sofreu intervenções da sociedade
vigente em suas páginas, uma vez que “A imprensa constitui
um instrumento de manipulação de interesses e intervenção
na vida social” (CAPELATO, 1988, p. 21), logo, seria impossível
escrever sobre a imprensa sem levar em consideração sua
intensa relação com as trajetórias econômicas, sociais e cultu-
rais do Brasil oitocentista (MARTINS; LUCA, 2013).
Pensando nisso, mobiliza-se, portanto, a concepção
da nova História Cultural de que os meios de comunicação
impressos interagem na complexidade de um contexto
(MOREL; BARROS, 2003) —, e as propostas teórico-metodoló-
gicas do campo da História do Livro ou História Social e Cultural
da Comunicação Impressa, como caracterizou Robert Darnton
(2010). Esse campo que busca “entender como as ideias eram
transmitidas por vias impressas e como o contato com a palavra
impressa afetou o pensamento e o comportamento humano”
(DARNTON, 2010, p. 122). Para tentar identificar e compreender
os diferentes impactos causados pela inauguração de um jornal
diário nessa sociedade.
Portanto, acredita-se que os materiais impressos passam,
aproximadamente, por um mesmo ciclo de vida, denominado
por Darnton (2010) de circuito de comunicação. Esse circuito
que consiste no percurso da produção do impresso até as
31
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
apropriações dos leitores, partindo do autor para o editor, em
seguida para o impressor, depois aos distribuidores e vende-
dores, sendo o leitor o destino deste circuito, pois “ele influencia
o autor tanto antes quanto depois do ato de composição”, já que
“os próprios autores são leitores” (DARNTON, 2010, p. 125).
Dessa maneira, nesse texto foram identificadas e
analisadas algumas caraterísticas do circuito de comunicação —
referentes aos ciclos de produção, difusão e recepções — que
circunscreveu o Publicador, nos anos de 1862 e 1864. Os exem-
plares referentes ao ano de inauguração da folha, 1862, foram
localizados do número 2 ao número 101, no Arquivo Privado
Maurílio de Almeida12. Até o momento, ainda não foi possível
localizar nenhum exemplar sequer do ano de 1863. Contudo,
no acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, encon-
tram-se digitalizados exemplares do número 446, referente ao
ano de 1864 até o número 2164, do ano de 1869. Porém para essa
pesquisa verticalizamos o olhar para os anos iniciais, 1862 e
1864, totalizando 351 exemplares já analisados.
Tendo em vista que os impressos são produtos forjados
a partir de representações contextualizadas da realidade
(CAPELATO, 1988), se faz fundamental apreender a noção de
representações, que para Chartier (2002), são categorias de
análise da cultura e das práticas culturais. Uma vez que, a
cultura pode ser entendida enquanto prática, à medida que
12 Nascido em Bananeiras no ano de 1926, foi médico e membro de diversas
instituições culturais, entre elas a Academia Paraibana de Letras e o Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano, faleceu em 1988. Ao longo de sua vida
constituiu uma imensa biblioteca e arquivo histórico, que atualmente se
encontra em fase de organização por Projetos de Extensões da Universidade
Federal da Paraíba.
32
Thayná Cavalcanti Peixoto
representações e apropriações, são bases de sua apreensão.
Sendo assim, compreende-se que a representação
por um lado, faz ver coisa ausente, o que supõe uma
distinção radical entre aquilo que representa e o que é
representado; por outro, é exibição de uma presença,
como a apresentação pública de uma coisa ou de uma
pessoa (CHARTIER, 2002, p. 20).
Portanto, assimilar a compreensão da noção de represen-
tação, enquanto categoria de análise para pesquisar o jornal
O Publicador, é uma forma de “compreender o funcionamento
da sua sociedade ou definir as operações intelectuais que lhes
permitem apreender o mundo” (CHARTIER, 2002, p. 23).Desta
forma, acredita-se que as representações dos contemporâneos
em relação a si mesmos e ao mundo são os componentes cons-
tituintes da realidade social, como aponta Capelato (1988),
levando em consideração que a imprensa é fruto de determi-
nadas práticas sociais de uma época. Além disso, acrescenta-se
a noção de que a construção das identidades sociais é produzida
a partir de uma relação de força exercida por aqueles que têm
poder de classificar e de nomear as representações impostas;
e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade
produz de si mesma (CHARTIER, 2002).
Tendo em vista essa perspectiva, e percebendo-se que
nas páginas dos jornais encontram-se inscritas relações de
forças impostas por quem produziu e difundiu o jornal, e
pela sociedade à qual era destinado, é que se faz necessária a
incorporação da compreensão de lutas de representações. Esse
conceito se faz essencial para compreender as motivações e
práticas e, então, questiona-se: quem produzia o periódico?
33
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
O que ele representava perante a sociedade? E como essa era
representada nas páginas do jornal? Essas indagações procuram
evidenciar que não eram apenas os leitores que mantiveram
contato com folhas periódicas, mas, também, a redação do
jornal, que recebia, lia e transmitia conteúdo dos mais variados
tipos de impressos.
Para que se analise O Publicador, é preciso ter em mente
que os jornais interagem com e na complexidade de um dado
contexto, principalmente se pensarmos que no Brasil do século
XIX, os jornais foram o seu principal meio de comunicação, mas
também um “fórum de debates do país, ágora onde se discutiam
os principais temas” (MOLINA, 2015, p. 22).
Retomando a continuação do prospecto, destaca-se a
maneira pela qual a redação explicitava sua compreensão em
relação ao papel da imprensa:
́
E mister, porém, que o publico parahybano, que já tem
adquirido o habito à leitura dos periodicos, que já sente
o afan dos povos civilisados por saber as novidades
domesticas, e extranhas, e que tem comprehendido
a necessidade de orgãos que reclamem dos poderes
competentes sua attenção aos melhoramentos da
provincia, como manifestação da opinião publica, nos
auxilie em nosso empenho, fazendo crescer a inscripção
de nossos assignantes, sem os quaes não poderemos
fazer face ás consideraveis despezas, que exige uma
́
publicação d esta importancia (O PUBLICADOR, n.1, 1
de setembro de 1862).
O prospecto ocupou quase duas colunas da primeira
página do exemplar inaugural do Publicador, e no trecho desta-
cado é possível observar a perspectiva, comum aos redatores
do período, de se suportarem em ideais de direitos privados e
34
Thayná Cavalcanti Peixoto
individuais e, também, na defesa, no campo moral, do Estado. Em
meio a tal perspectiva, os redatores tomavam para si a figura de
mediadores, isto é, de intermediários entre a sociedade e o Estado
(RIBEIRO, 2004). Esse pensamento resultava de uma compreensão,
originada desde o surgimento da imprensa no Brasil, de que
aqueles sujeitos que detinham o privilégio da escrita seriam
responsáveis por instruir, educar e “levar às Luzes” àqueles que
estavam “imersos nas trevas da ignorância” (BARBOSA, 2013).
Para a redação, a imprensa possui “fim civilizador, e por
consequência moralizador”, pois os editores acreditavam estar
“imbuídos de uma missão pedagógica, esclarecedora, civiliza-
dora” (MOREL; BARROS, 2003, p. 41). Essa visão condiz com as
características apresentadas por Maria Lúcia Pallares-Burke
(1998), para quem tal concepção de imprensa era proveniente
de um projeto alicerçado no Iluminismo, que pretendia trans-
formar as mentalidades ditas ‘arcaicas’ em ‘ilustradas’. Essa
ideia se revelou fortemente presente no jornalismo latino-a-
mericano do século XIX (PALLARES-BURKE, 1998, p. 147).
Para além disso, Socorro Barbosa (2010) ressaltou que
tipógrafos e jornalistas do século XIX possuíam comprometi-
mento com a produção e divulgação do saber, pois reconheceram
rapidamente a força da imprensa, e o seu fundamental papel na
divulgação do conhecimento.
Retomando a ideia de que a imprensa funcionava como
uma ponte entre a sociedade e o Estado, destaco o trecho do
prospecto, em que a redação escreve que “[o público] tem
comprehendido a necessidade de orgaos que reclamem dos
poderes competentes sua attenção aos melhoramentos da
provincia, como manifestação da opinião publica”. A noção de
“opinião pública” apareceu no final do século XVIII, e ganhou
força no século XIX, quando a preocupação com as “massas”
35
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
tomou proporções de destaque. Essa ideia orientou a imprensa a
partir de então, promovendo, nos jornais, uma contribuição para
a formação de uma consciência nacional e levando as pessoas a
ficarem mais atentas aos outros leitores (BRIGGS; BURKE, 2006).
De acordo com Juarez Bahia (1990), entre 1808 e 1888,
no Brasil, o que mediu a influência de um jornal, não era seu
tamanho, qualidade, nem prestígio, e sim a força da opinião.
Esta “tanto pode aparecer em uma página como em várias
páginas. Não é o título que conta. Tampouco a tradição, o peso
econômico. Prevalece a ideia. O que se imprime é o que vale”
(BAHIA, 1990, p. 84). Assim, a imprensa no Brasil colaborou
para a fomentação de uma opinião pública, facilitou e preci-
pitou algumas mudanças na sociedade brasileira oitocentista
(MOLINA, 2015). Em meados da década de 1820, no Brasil, se
deu início, ao movimento de formação de uma esfera pública
eminentemente política e que teve a imprensa como sua prin-
cipal instituição.
A partir de então, ocorreu a criação e a amplificação
de um “diversificado simbolismo da palavra impressa que foi
disseminada, pela sociedade, ao longo de todo o século XIX”
(BARBOSA, 2013, p.104). Nesse sentido, é fundamental, conforme
Marco Morel (2010), destacar a categoria de espaço público para
situar os periódicos, esses que foram inseridos na complexa
sociedade brasileira oitocentista, pois as relações formais, infor-
mais e de sociabilidades se constituíram, muitas vezes, pelos
espaços urbanos ao longo do século XIX (MOREL; BARROS, 2003).
Nesse contexto, os jornais permitiram a condução do
debate público numa escala nacional, e se tornaram a trans-
missão contínua das opiniões do público (POPKIN, 1996). Sendo
assim, entende-se que os jornais brasileiros do século XIX
trazem consigo não somente marcas do cotidiano, mas também
36
Thayná Cavalcanti Peixoto
foram “por excelência, o lugar do diálogo, do debate, da fofoca
e das polêmicas, sejam aquelas comezinhas, sejam as grandes
e célebres” (BARBOSA, 2007, p.18).
Por isso, em consonância com Marialva Barbosa (2010),
considera-se a imprensa por si só um espaço de auto referen-
ciação, pois além de ter sido um local de produção sobre as
principais questões e debates da época, deixaram pistas sobre
as relações que estabeleceram com as mais variadas instâncias
sociais e também de poder. Portanto, compreender a imprensa
é entender a sociedade brasileira oitocentista. Que, além de
proteiforme, a imprensa também é sistêmica e dinâmica, pois
“modifica, ativa, estimula e tonifica a recepção e a produção
de todos os discursos dos quais ela é a portadora” (CAPARELLI,
2012, p. 26). Tal atividade nos leva a percebê-la por um prisma
interdisciplinar, uma vez que o impresso por si só é algo que
foge dos limites fronteiriços e linguísticos que lhe são impostos
(MOLLIER, 2016; DARNTON, 2010).
Uma vez que noção de sistema, é o cerne das relações
comunicacionais, entende-se, então, a comunicação, enquanto
um processo sistêmico. Portanto, para se falar em história da
imprensa é necessário destacar os processos comunicacionais
e as intricadas relações que se desenvolvem em torno desse
sistema de comunicação (BARBOSA, 2004).
Contudo, a mídia deve ser vista como um sistema em
contínua mudança, em que os elementos componentes desempe-
nham papéis de maior ou menor destaque (BRIGGS; BURKE, 2006).
Nessa mesma perspectiva, McLuhan (1994), ao discorrer sobre o
dinamismo da mídia, propõe que se considere as consequências
psíquicas e sociais dos modelos ou padrões da imprensa. Pois,
tais implicações fazem com que a “mensagem”, veiculada em
qualquer meio ou transmitida, por qualquer tecnologia, seja uma
37
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
mudança na escala, ritmo ou padrão que essa mídia introduz nos
assuntos humanos (MCLUHAN, 1994, p. 8).
Compreendendo a comunicação e a circulação de impressos
como um processo sistêmico, o circuito de comunicação, proposto
por Darnton (2010), apresenta-se como uma profícua ferramenta
para o estudo aqui proposto. Visto que, o que se encontra inscrito
e impresso ao longo das páginas do jornal o Publicador, só se
tornam acessíveis, quando se compreende, não somente quem
eram os responsáveis pelos bastidores, mas também pela leitura
do circuito informacional que ocorria na sociedade.
A exemplo de uma matéria, do segundo exemplar de 1862,
que tomou quase, por inteiro, a primeira página, discorrendo
a respeito do Hospital da Santa Casa de Misericórdia. Vale
salientar que, nesse mesmo ano, o redator chefe d´O Publicador,
Padre Lindolfo, tinha acabado assumir a provedoria da Santa
Casa de Misericórdia, bem como o proprietário do jornal, já era
membro da Irmandade, desde o ano de 1853 (PEIXOTO, 2017).
Vê-se, então, como os bastidores de produção d´O
Publicador estão completamente imbricados com o conteúdo
impresso nas páginas. Bem como, o seu fundador, estivera
rodeado de pessoas muito influentes pertencentes à elite polí-
tica na província, pois o Padre Lindolfo, redator de seu jornal,
assumira durantes vários anos o mais alto cargo na Irmandade
da Misericórdia, bem como alguns dos autores e redatores que
imprimiram em sua oficina, como: Antonio da Cruz Cordeiro,
Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque Gervazio Victor da
Natividade e Manoel Caetano Velloso (PEIXOTO, 2017).
Assim, ao longo dos exemplares vai ficando cada vez mais
nítida a presença de discussões e debates em relação às questões
mais vigentes da sociedade àquele momento, e dos laços e rela-
ções estabelecidas por seus produtores. Desde seus primeiros
38
Thayná Cavalcanti Peixoto
números a redação do jornal fazia questão de explicitar seu
posicionamento político, como demonstrado no trecho mais
acima, era liberal. Para, além disso, no ano em que o diário veio
à tona, em 1862, a redação afirmava que “Nossa posição está
escolhida, e tomada a muito tempo. Somos conservador moderado,
e como tal aderimos à liga progressista” (O PUBLICADOR, n. 37,
14 de out. 1862, p. 4, grifo nosso). De acordo com Myraí Segal
(2017), nesse mesmo ano, severas se discutia acerca da Liga
Progressista13 nacional e localmente. E, não coincidentemente,
O Publicador, em vários de seus números, se expôs enquanto
adesista do movimento “procurando demonstrar que a união
entre parte dos liberais e dos conservadores moderados era
profícua e que juntos eles seriam capazes de conduzir a política
nacional” (SEGAL, 2017, p. 119).
Conforme José Murilo de Carvalho (2008), após a Liga,
criou-se o efêmero Partido Progressista, esse que como
explicitava seu programa14: “significava liga de liberaes e
conservadores moderados” (MELO, 1878, p. 15), tendo perdurado
de 1864 a 1868. Segundo Segal (2017), o redator chefe, o Padre
Lindolfo, possuiu a intenção de ser não somente porta-voz da
Liga, mas também do Partido Progressista, contudo, o seu líder
em âmbito provincial era o senhor Felizardo Toscano de Brito15,
“político, que antes da criação do Partido Progressista e depois
de seu fim, esteve à frente dos liberais” (SEGAL, 2017, p. 17),
13 Para maiores informações ver IGLÉSIAS (2004); CARVALHO (2008);
NEEDELL (2009); SEGAL (2017).
14 Programa do Partido Progressista, disponível em: http://www2.senado.
leg.br/bdsf/item/id/179482
15 Para maiores informações a respeito de sua atuação política, consultar
SEGAL (2017).
39
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
e, que, ao assumir a vice-presidência da província, em 1864,
encerrara o contrato do governo com o jornal conservador,
Jornal da Parahyba, e entregara as publicações dos expedientes
governamentais às mãos do Publicador, de cunho liberal.
Mas, para compreender essa ação, de cunho partidário,
é preciso primeiro compreender que tanto o redator Lindolfo
Correia quanto o recém-empossado vice-presidente, Felizardo
de Brito além de compartilharem a mesma ideologia parti-
dária, ambos foram eleitos deputados provinciais nas mesmas
legislaturas, correspondentes ao ano eleitoral de 1860-1861.
Assim, o que se encontra impresso nas páginas do jornal, só
passa a ser mais bem descortinado quando mergulhamos mais
profundamente por entre as camadas das relações políticas e
sociais, traçadas e estabelecidas por quem o produziu.
Ao longo das pesquisas realizadas foi possível loca-
lizar, além do tipógrafo proprietário e do redator principal,
alguns outros funcionários que trabalharam na tipografia
d´O Publicador. Os dois guardas nacionais: José Eduardo da
Silva Pinto, que era administrador da tipografia do diário e
da Typographia Liberal Parahybana, de propriedade de Felizardo
Toscano de Brito; e João Francisco Soares, que além de guarda
nacional, também estudava francês do Lyceu Provincial. Além
dos dois tipógrafos, que possivelmente elaboram a composição
dos textos e das páginas, por serem letrados, também foi
possível localizar um outro funcionário, o cobrador Lindolfo
Malaquias do Rosario (PEIXOTO, 2017).
Como já foi dito anteriormente, publicar um jornal diaria-
mente necessitava um bom aparato tecnológico, consideráveis
despesas e muitos funcionários, porém, existe falta de fontes
da própria tipografia, como listas de pagamentos, de pedidos,
de assinantes, para se compreender com mais profundidade e
40
Thayná Cavalcanti Peixoto
complexidade os meandros da produção. Contudo, o próprio
jornal O Publicador, nos fornece algumas pistas desses bastidores.
Em meados 1862, na província paraibana, encontrava-se
a frente da presidência de província o conservador, Francisco
de Araújo Lima, que em 1863 fechara um contrato com o Jornal
da Parahyba para impressão dos atos oficiais. Esse periódico era
“Órgão do Partido Conservador, e que havia sido fundado pelo Senador
Frederico de Almeida e Albuquerque, e que possuía como principais
redatores o Barão de Abiahy16 e o Padre Meira” (ARAÚJO, 1986, p.
37). No Brasil imperial, geralmente,
Nas províncias onde não existia órgão oficial de imprensa,
os atos do governo eram publicados pelas folhas que
circulavam. Normalmente ocorria que o partido no poder
procurasse os jornais de sua facção (MARTINS, 1978, p. 25).
A gestão de Araújo Lima durou de maio de 1861 a fevereiro
de 1864, e ainda em fevereiro, quando deixou o cargo, o vice-
-presidente que assumiu em seguida foi o líder liberal, o senhor
Felizardo Toscano de Brito. E, o mais interessante de se notar, é
que assim que assumiu cancelou o contrato do governo com o
jornal porta-voz do lado político oposto ao seu, com o conser-
vador Jornal da Parahyba. Assinando contrato para imprimir
atos oficiais no então diário, de cunho liberal O Publicador, que era
constituído por alguns de seus amigos e correligionários.
A redação publicizou os registros do contrato, recém-fe-
chado, com o governo provincial. Na primeira página, daquele
16 Barão de Abiahy fora o senhor Silvino Elvídio Carneiro da Cunha, além de
ter sido um dos líderes do Partido Conservador na província, exercera diversos
cargos políticos, como os de Deputado provincial, vice-presidente e Presidente
província (SEGAL, 2017).
41
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
momento em diante, a seção intitulada Parte Official apresen-
tava atos, despachos, expedientes provenientes do governo da
província. A seguir, é possível observar o teor completamente
político dessa decisão:
Portaria – O vice-presidente da província, tendo em
consideração as informações dadas pela secretaria da
presidência e pelo tesouro provincial acerca do modo por
que tem sido cumprido o contracto celebrado em data de
3 de outubro com João Francisco da Rocha Athayde para
publicação do expediente e mais actos officiaes no Jornal
da Parahyba, e reconhecendo que pelo dito contractante tem
sido muitas vezes infringidas as condições do mesmo contracto,
quer quanto ao numero de vezes, que devia o mesmo jornal
sahir semanalmente, [.,.]e tendo além disto em conside-
ração que o dito jornal se pozera em manifesta e desabrida
opposição, assim ao governo da província, como ao governo
imperial, aos quaes calumnia e insulta de um modo indecente,
resolve rescindir o referido contracto (O PUBLICADOR, n. 446,
26 de fevereiro de 1864, p. 1, grifo nosso).
Nesse despacho oficial é possível notar as possíveis
desavenças entre ambos os lados, nos quais os argumentos
contrários ao jornal conservador seriam o de não estarem
cumprindo corretamente com o acordo, e de que os expedientes
deveriam sair semanalmente. Entretanto, ao fim da nota,
fizeram questão de ressaltar que o Jornal da Parahyba, se opusera
não somente ao governo local como ao imperial, tendo-os
caluniado e insultado indecentemente. Na página seguinte,
em uma seção intitulada de O Publicador, assemelhando-se ao
que chamam de “editorial”: àquele que expressa à opinião dos
sujeitos que estão por trás da produção do jornal (CAPELATO,
1988, p. 34), a redação reforçou com palavras e argumentos
42
Thayná Cavalcanti Peixoto
ainda mais ácidos sua posição contra a folha rival. Como fica
nítido no extrato a seguir:
Não tendo o Jornal da Parahyba querido atender ás leis
da dignidade, que lhe aconselhavão que, antes de se pôr
em hostilidade ao governo da província, de quem recebia uma
avultada subvenção a titulo de publicação do expediente,
[...] resolveu S. Exc. o Sr. Vice presidente rescindir esse
contracto, [...] da qual se vê os justos fundamentos que
levarão S. Exc. a assim proceder. Ninguem razoavelmente
pensando, pode deixar de confessar que o acto de S. Exv.
foi por demais justo, e aconselhado mesmo por motivos
econômicos. O Jornal da Parahyba [..], nem se quer trata de
cumprir as condições a que se havia obrigado por aquelle
contrato no qual todas as vantagens estavão de sua parte
e os onus da parte do governo. [...] Bastaria a vantajem
de ser o nosso jornal diário, e que por isso a publicação do
expediente não pode deixar de ser mais regular do que
em um jornal que somente se publica duas vezes por
semana [...] Assim, pois, não pode deixar de estar na
consciência de todos a utilidade do contracto que acabamos
de firmar em relação aos cofres provinciaes. Todavia
contamos que grande será o alvoroço que elle deve causar
nos arraiaes vermelhos. Duvidamos, porem, que nos possão
contestar as differenças notadas entre os dois contractos,
e que por ellas é o nosso muito mais favorável aos interesses
da fazenda provincial (O PUBLICADOR, n. 446, 26 de
fevereiro de 1864, p. 2, grifo nosso).
Ao longo desse editorial ficaram explícitas, não apenas as
alfinetadas, do início ao fim contra o Jornal da Parahyba, quando
afirmam que o respectivo periódico recebia uma “avultada
subvenção” para não cumprir com as bases do contrato. Mas
também, a nota é marcada por um grande tom de ironia, quando
afirma que eles possuem publicação diária diferentemente
43
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
deles, que eram bissemanais, e que tal situação iria causar uma
enorme agitação nos “arraiaes vermelhos17”, como assim eram
chamados os conservadores à época.
Para que tal situação fosse melhor analisada, seria interes-
sante trazer o discurso do jornal oposto, e contrapor as falas, para
compreendermos mais claramente como se deram as lutas de
representações nesse caso em específico. Porém, não foi possível
localizar, até o momento, em arquivos locais ou digitalizados,
exemplares do Jornal da Parahayba, referentes ao ano de 1864.
Todavia, foram localizadas, na obra de Eduardo Martins (1978),
algumas transcrições, referentes ao ano de 1866, no momento
posterior à morte do proprietário d´O Publicador, em que:
Tendo falecido o sr. José Rodrigues da Costa, proprietário
e editor de O PUBLICADOR, cessou a respectiva responsa-
bilidade pelos escritos daquele jornal. Quem será, agora,
o responsável? Terão já sido feitas as declarações legais
perante a Câmara Municipal? Por quem? Vemos na
direção do mesmo jornal um interessante par de Lindolfos:
mas qual deles é o responsável legal; Lindolfo Malaquias,
ou Lindolfo José? (Jornal da Parahyba, 24 de nov. de 1866
apud MARTINS, 1978, p. 179, grifo nosso).
Quem será? – Até hoje na Câmara Municipal ainda
não está assinada a responsabilidade do jornal O
PUBLICADOR, que o estava assinado pelo finado José
Rodrigues da Costa: entretanto o jornal continua a sair
pejado de pulhas ofensivas, e desejando-se chama-lo
17 Segundo Suzana Rosas (2013): “conservadores vermelhos”, assim deno-
minados por terem resistido a Conciliação e ao Partido Progressista, estarão
apartados do poder, por não negociarem e aceitarem qualquer concessão à
pauta reformista dos seus adversários políticos (ROSAS, 2013, p. 3).
44
Thayná Cavalcanti Peixoto
à responsabilidade, quem será o responsável o Lindolfo
em brochura, isto é, o Malaquias, ou o encadernado a
chagrin, em marroquim encarnado, o Lindolfo Corréa?
( Jornal da Parahyba, 5 de dezembro de 1866 apud
MARTINS, 1978, p. 179, grifo nosso).
No primeiro trecho o jornal conservador, faz questão de
trazer à tona referências ao código criminal de 1830, no qual,
todos os estabelecimentos tipográficos deveriam ser registrados
perante as Câmaras das respectivas cidades ou vilas, senão
estariam sujeitos a multas18. Mas, mesmo assim a redação dessa
folha, acusava seu opositor de estar espalhando “pulhas ofen-
sivas” em uma situação de ilegalidade, pois, no trecho seguinte,
afirmavam que O Publicador ainda não havia registrado mais
nenhum outro responsável. Além disso, em ambos os trechos
a ironia também fica muito clara, quando a redação compara
os dois Lindolfos que trabalhavam no jornal liberal. Um era
o Lindolfo Malaquias, mais conhecido por ser o responsável
pelo recebimento tanto do pagamento das assinaturas quanto
das publicações dos anúncios dos leitores (PEIXOTO, 2017, p.
129). Diferentemente do senhor Lindolfo Correia, que, apesar
de não assinar nenhum dos artigos escritos ao longo de sua
atuação frente ao jornal, era conhecido popularmente por ser
o redator-chefe d´O Publicador.
18 Art. 303. Estabelecer officina de impressão, lithographia, ou gravura,
sem declarar perante a Camara da cidade, ou villa, o seu nome, lugar, rua, e
casa, em que pretende estabelecer, para ser escripto em livro proprio, que
para esse effeito terão as Camaras; e deixar de participar a mudança de
casa, sempre que ella aconteça. Pena - de multa de doze a sessenta mil réis
(BRASIL, 16 de dezembro de 1830).
45
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
Conforme o final do segundo trecho, Lindolfo Correia
seria encadernado de chagrin19, ou seja, possivelmente, por fora
era um couro de grão regular, mas por dentro seria encarnado
— possivelmente, nos sentidos de interiorizado também como
avermelhado — de marroquim, um couro de textura irregular.
Assim, acredita-se, que para eles, Padre Lindolfo, ainda seria
um “vermelho”, um conservador, mas de marroquim, um couro
irregular. Possivelmente, estariam se reportando ao fato de que
o senhor Lindolfo, por ter iniciado sua carreira política ao lado
dos conservadores passara para os liberais, após a Liga (MARIZ,
1980), mas a redação do jornal rival, por meios metafóricos se
reportou a esse episódio.
Além dessa frequente “guerra de palavras” na imprensa,
durante todo o século XIX, ocorreu uma intensa troca entre
províncias, de jornais reproduzindo e comentando os artigos
de outras províncias, “criando uma rede nacional de debates”
(MOLINA, 2015). O sistema comunicacional do Brasil no século
XIX, era feito primordialmente pelos correios- por mar e por
terra-, nos navios, por viajantes nas estradas, nas ferrovias, e
até mesmo por um sistema de telegrafia semafórica, e depois a
elétrica (MATHEUS, 2012). A telegrafia elétrica vai ser um dos
grandes impulsionadores da imprensa no século XIX, porém
no Brasil, apesar de o telégrafo elétrico ter começado a ser
instalado em meados da década de 1850, foi apenas na década
de 1870 que ele alcançou sua ampliação e consolidação em
território nacional.
Portanto, acompanhar o fio do destino particular d´O
Publicador significa entender a pluralidade de espaços e tempos,
e o enredo das múltiplas relações nas quais ele se inscreveu
19 Ver MÁRSICO (2008).
46
Thayná Cavalcanti Peixoto
(REVEL, 1998). Tendo em vista que o universo dos impressos
consiste em um sistema que tanto produz como distribui seu
produto (DARNTON, 2010), ajustamos e movemos, agora, as
lentes de análise para o ciclo da circulação do jornal O Publicador.
Nas páginas do Publicador encontram-se inscritas não
somente as marcas dessa rede nacional de informações e de
ideias, mas vestígios de um sistema transnacional da comuni-
cação ocidental do período, entre as províncias, com a corte
e com países estrangeiros, principalmente europeus. Nesse
sentido, a seguir, serão apresentadas algumas dessas conexões
que aparecem nas páginas do diário. Para isso, “a abordagem
transnacional e transcultural dos fenômenos é sem dúvida
a melhor garantia contra o risco de reclusão ou cegueira”
(MOLLIER, 2016, p. 56), uma vez que, essa abordagem auxilia no
escancaramento das articulações e influências de um território
para outro, das adaptações, transcrições, traduções, censuras,
falsificações, etc.
Desde a década 1970, historiadores vêm destacando o
tema da interconectividade global, não somente politicamente
e economicamente, mas também cultural e psicologicamente
(IRIYE, 2007). Com isso, assistiu-se à uma crescente conscien-
tização e preocupação em torno das interconectividades, e à
expansão da popularidade de termos como ‘globalização’ e
‘transnacional’, que ganham, cada vez, mais destaque nos mais
recentes estudos de historiadores.
Segundo Bárbara Weinstein (2013), a perspectiva
transnacional, destaca como é impossível compreender os desdo-
bramentos das esferas políticas, econômicas e sociais sem levar
em consideração, de forma cuidadosa, os intercâmbios culturais,
e o papel da cultura nos projetos internacionais. Logo, essa pers-
pectiva, nos ofereceu um novo modo de visualizar as interações
47
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
e intercâmbios no meio hemisférico ou até global (WEINSTEIN,
2013). Contudo, vale ressaltar que, a história transnacional se
difere da história global, uma vez que lida com forças e temas que
não são, necessariamente, globais, mas sim transnacionais, como:
comunidades regionais, migrações inter-regionais, doenças,
problemas ambientais, entre outros (IRIYE, 2007).
Nos impressos, e principalmente nos jornais, encon-
tram-se inscritos uma rede de comunicação, rede essa que é
“composta por artérias, veias e capilares que leva em conta
todos os estágios do processo de produção e distribuição”
(DARNTON, 1998, p. 198). Pensando nisso, realizou-se um
extenso esmiuçamento das seções do diário na tentativa de
evidenciar algumas das redes, transnacionais e nacionais, que
circunscreveram o circuito de notícias impressas no Publicador.
Pois, assim como a maioria dos jornais à sua época, o diário
paraibano publicou notícias sobre os mais variados países do
mundo, seja por folhas nacionais, ou por traduções próprias
de folhas internacionais que a redação possuiu acesso, o que
caracteriza uma lógica da cultura midiática transnacional da
modernidade (GUIMARÃES, 2019).
Com isso, foram identificadas e catalogadas todas as
referências — jornais, livros e autores — de fora da província
(nacionais e internacionais), totalizando 247 citações para o
ano de 1862 e 443 para o ano de 1864. Contudo, é importante
destacar que o jornal funcionou durante quatro meses em 1862,
pois inaugurou em setembro, diferentemente de 1864 que se
publicou o ano inteiro, porém não quer dizer que em 1864 tenha
tido poucas referências se compararmos com 1862. O fato é que,
em 1864, há muitas citações, mas sem a indicação da referência
de onde a redação estava transcrevendo ou traduzindo, pois,
ao final dos textos, tinha apenas a expressão Extr. e nada mais.
48
Thayná Cavalcanti Peixoto
Além disso, no início do ano de 1864, o jornal acrescentou uma
coluna a mais, e o proprietário havia fechado contrato com o
governo provincial, para imprimir atos e expedientes oficiais
diariamente, o que acabou tomando, quase que por inteiro, a
maioria da primeira página do Publicador, desde então.
Desde sua inauguração, o Publicador se estruturou
em quatro páginas, com seções fixas e variáveis. Conforme
foram classificadas as referências externas à província,
destacaram-se as seguintes seções: Registro Noticioso (1862),
que em 1864 se tornou Noticiario e que além de fixa, era uma
das que mais abrangia as páginas do jornal; Agricultura, A
Pedido, Correspondencia do Publicador, Exterior, Interior, Litteratura,
Transcripções, e Variedades. Algumas delas tiveram aparição
mais em um ano do que outras, apenas em um ano ou no outro,
mas as que abarcaram maior número de citações foram as de
Noticiário e Variedades.
Reuniu-se a quantidade total, localizada, de referências
internacionais e nacionais citadas pela redação do diário
no ano de 1862 e 1864. Cada país foi computado levando em
consideração o número de vezes em que uma referência dele
apareceu no corpo do jornal. Uma citação foi registrada ainda
que repetida devido a esse critério. Portanto, os números levan-
tados equivalem à quantidade de periódicos, autores ou obras,
de fora da província, que foram referenciados pela redação em
uma determinada seção.
No ano de 1862, do total de 247 citações externas à
província, além das 166 citações nacionais, que representaram
67,21% do total, outros 11 países20 aparecem referenciados pelo
jornal. Em segundo lugar total, mas o primeiro em relação às
20 Alemanha, Argentina, Austria, Chile, Espanha, Italia, França, Portugal,
Inglaterra, Bélgica e Estados Unidos.
49
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
citações internacionais encontra-se a França, com 47 referências,
totalizando 19,03%; depois Portugal com 14 citações, represen-
tando 5,67%; seguido de Inglaterra com seis citações somando
2,43%; depois Bélgica com cinco referências, representando 2,02%
e Estados Unidos com três referências somando 1,21%.
Para o ano de 1864, aparecem 13 países21, com 432
referências totais localizadas, e o Brasil lidera com 210 delas,
representando 48,61%; seguido da França com 75 citações,
somando 17,36% do total; depois Portugal com 71 referências,
totalizando 16,44%; seguido da Inglaterra com 23, represen-
tando 5,32% e Bélgica com 17 citações, somando 3,94%.
Na soma dos anos, 1862 e 1864, as citações nacionais
compõem 55,87%, em seguida a França com 17,24%, Portugal com
12,63%, seguido de Inglaterra com 4,16% e Bélgica compondo
3,27% do total de 673 referências identificadas. Observa-se que
os países com maior número de citações continuam sendo Brasil,
França e Portugal, seguidos por Inglaterra e Bélgica. No ano de
1864, França e Portugal disputaram as primeiras posições por
uma ínfima diferença. Mas, mesmo com essa disputa, nos dois
anos, considerados em conjunto, o país francês permanece à
frente, perdendo posição apenas para os impressos brasileiros.
Tal cenário corrobora com o fato de que, desde os
primórdios, do século XIX até meados do século XX, os
maiores órgãos da imprensa brasileira acompanharam, o que
as autoras chamaram de “estilo francês” (COOPER-RICHET;
GUIMARÃES, 2012). Esse estilo é caracterizado pelo papel da
França como referência fundamental para os jornais, tanto em
relação às informações contidas na folha impressa, quanto em
relação à forma (COOPER-RICHET; GUIMARÃES, 2012). Tal fato
21 Alemanha, Austria, Canadá, Dinamarca, Suíça, Espanha, Rep. Tcheca,
Italia, França, Portugal, Inglaterra, Bélgica e Estados Unidos.
50
Thayná Cavalcanti Peixoto
apresenta-se em concordância com os dados apresentados, em
que a França aparece como a principal localidade, do exterior,
de onde impressos internacionais eram citados, representando
17,24%, das citações totais dos dois anos analisados.
Entretanto, é preciso destacar a significativa variedade de
países que compuseram as referências utilizadas pela redação
do Publicador. Moine, Bouvier e Palmer (2008) destacaram a
Europa como o centro de circulação e transferências trans-
nacionais, pois, devido à sua conformação geográfica, foi um
verdadeiro caldeirão de circulações e múltiplas transferências
(MOINE; BOUVIER; PALMER, 2008).
Ao analisar os dois anos em conjunto, observou-se uma
mudança no teor das referências utilizadas pela redação do
jornal. Em 1862, o jornal baseava a maior parte de suas seções
em jornais, mas também se utilizava de muitos excertos de
obras literárias ou de autores consagrados àquela época, como
Benjamin Franklin, Hyppolyte Castille, Rochefoucault. A. Sibour,
Baily, Somet, M. Jobard e Taxile Debord. Por outro lado, em 1864,
foi quase impossível localizar citações de livros referenciados,
pois muitas vezes nas seções Variedades ou Litteratura, a redação
simplesmente indicava a extração com a abreviação Extr.
Acredito que essa mudança se deu pelo fato de que, em 1862,
o jornal estava tentando se estabelecer enquanto periódico e,
em 1864, além de já ter se consolidado, e estabelecido uma boa
rede de contatos com redações externas à província, ele veio
a ser um veículo de atos e expedientes do governo provincial.
Portanto, nesse processo de consolidação, no ano inaugural, o
jornal muitas vezes, por falta de contatos com outras redações
de fora da província, valia-se do preenchimento de suas colunas
com esses trechos retirados de obras já consagradas.
51
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
Ao agrupar as referências utilizadas nos anos de 1862 e
1864, os dados revelam a circulação de informações, em escala
internacional, como um aspecto proveniente das práticas
culturais intrínsecas à imprensa do século XIX. Todavia, essas
conexões entre os países revelam as assimetrias, a exemplo da
escassa utilização de referências de países sul-americanos.
Em relação às províncias mais citadas, na soma dos dois
anos, permanecem as mesmas, em relação ao ano de 1864. São
elas: Rio de Janeiro (32,71%), Pernambuco (22,61%), Rio Grande do
Sul (8,24%) e São Paulo (6,91%), respectivamente. Vale ressaltar
que o Rio de Janeiro e Pernambuco mantêm suas posições, mas
que há uma troca de posições entre o Rio Grande do Sul e São
Paulo. Isso se deve ao fato de que no ano de 1862, a terceira
província mais citada foi o Ceará, enquanto em 1864 esse lugar
foi ocupado por São Paulo. Como o Rio Grande do Sul se manteve
na quarta posição em ambos os anos, a soma de citações dessa
província, nos dois anos, resultou em uma frequência maior
que as províncias do Ceará e São Paulo.
Nos dois anos foram utilizadas referências provenientes
de 16 províncias, excetuando-se a Parahyba do Norte, três
províncias não foram citadas em nenhum dos dois anos: Goiás,
Santa Catarina e Piauí. Contudo, vale destacar a abrangência
nacional das fontes utilizadas pela redação do Publicador, que
usufruiu de materiais vindos de províncias de quase todas
as regiões, da conformação atual, configurando 80% das 20
províncias existentes no período. Nesse sentido, os resultados
encontrados até o momento, permitem afirmar a inserção do
Publicador na rede nacional de debates que circunscrevia a
imprensa brasileira do período.
É possível, também, inferir que muitas das citações feitas
pela redação tinham, também, caráter ideológico, uma vez que
52
Thayná Cavalcanti Peixoto
os jornais citados pela redação tinham um alinhamento político
concordante com o Publicador, a exemplo do Jornal do Recife, o
mais citado da província de Pernambuco, que era o porta voz
da liga progressista dessa província, tal qual o Publicador era
na Parahyba do Norte. Esse fenômeno foi identificado por Lise
Andries (2012, p. 43) que, ao estudar a imprensa no México, se
atentou para o fato de que “a escolha das obras é feita segundo
as opções ideológicas dos jornais”.
Dessa maneira, os fatores políticos se destacam como
elucidativos para explicar a razão pela qual províncias distantes
apresentaram um elevado número de citações pela redação
do jornal, enquanto províncias geograficamente próximas
tiveram poucas citações. Isso indica que os aspectos políticos e
econômicos prevalecem no influxo de chegada de notícias e de
periódicos e, consequentemente, das referências utilizadas pelo
Publicador para compor as seções em suas páginas. No sentido
de compreender o Publicador por uma perspectiva holística do
circuito de comunicação do jornal, desloca-se o olhar para os
usos do jornal.
No jornal O Publicador foi possível localizar seções
voltadas para seus leitores, como Correspondencias, A Pedido e
a tão importante e fixa seção de Annuncios, que era formada
pelos assinantes e pelo público que desejava publicizar os mais
variados assuntos. Também foi constatada a utilização de
alguns artifícios, narrativos, de aproximação da redação com
público paraibano. A exemplo dos trechos a seguir:
53
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
VARIEDADES
(da redacção)
Zelos Minicipaes
[...] no emquanto, se alguém tiver reclamações a fazer,
mande-as em carta fechada á redação do Publicador, que
serão atendidas prontamente (O PUBLICADOR, 4 de
setembro 1862, n. 4, p. 4, grifo nosso).
Um pedido justo- Rogamos a todas as pessoas que estiverem
bem informadas de qualquer occurrencia, que no-la commu-
niquem em carta fechada á redacção do Publicador, com ou
sem assignatura [...] Nosso desejo é fazer chegar, com
verdade, ao conhecimento publico todas as occurren-
cias, e por isso muito estimaremos canaes tão puros (O
PUBLICADOR, n. 5, 5 de setembro de 1862, grifo nossos).
Percebe-se nesses excertos, respectivos aos números
iniciais d´O Publicador, a tentativa da redação de consolidar
a publicação do jornal e a formação de um público leitor.
Estratégia perceptível desde o prospecto de inauguração,
quando os redatores pediam, ao público paraibano que já havia
adquirido o hábito de leitura dos periódicos, que “nos auxilie
em nosso empenho, fazendo crescer a inscripção de nossos
assignantes” (O PUBLICADOR, n. 1, 1 de setembro de 1862, p.1).
Esses recursos narrativos são apreendidos, aqui, como
estratégias de aproximação, noção discutida por Letícia
Matheus (2013), em seu artigo O leitor e o cotidiano na história
do jornalismo. Nele, ao analisar o impacto da telegrafia no
jornalismo do século XIX, a autora identificou como se deu
a participação e a interação do público com os jornais, uma
54
Thayná Cavalcanti Peixoto
vez que, os periódicos passaram a usar, sistematicamente, o
telégrafo, tornando a imprensa muito mais noticiosa.
Ainda que a análise da autora tenha se concentrado nas
décadas finais do século XIX, a compreensão da noção de estra-
tégia de aproximação nos auxilia a compreender as práticas
utilizadas tanto pela redação para com o público, quanto os usos
e participações da sociedade nas folhas d´O Publicador. No século
XIX, as estratégias de aproximação foram as charadas, enigmas,
palavras-cruzadas, promoções, reclamações, cartas, entre
outros. Nesse sentido, observa-se que houve e ainda existem
inúmeras formas de participação-colaboração do público no
jornalismo (MATHEUS, 2013).
Especificamente, a redação d´O Publicador utilizou meca-
nismos de aproximação e formação do público, na tentativa de
se firmar enquanto diário e, também, o público realizou suas
próprias leituras do que estava impresso, recorrendo ao jornal
para a divulgação de interesses privados. Nos trechos citados
acima, percebe-se que, no primeiro ano do jornal, a redação
convoca o público a enviar cartas com informações e reclama-
ções. Por outro lado, em 1864, o jornal já havia se consolidado,
principalmente por ter assinado contrato de publicação com o
governo provincial. Nessa direção, percebe-se uma mudança na
relação com o público, em que, ao invés de pedidos da redação,
identifica-se, com uma maior frequência, a participação e os
usos dos leitores das seções que lhes eram direcionadas.
Para isso, destaca-se a assimilação da noção de
apropriação, que “visa uma história social dos usos e das
interpretações, referidas a suas determinações fundamentais e
inscritas nas práticas específicas que as produzem” (CHARTIER,
1991, p. 180). Já que se entende que não há sujeito ou público
ativo, uma vez que “todo leitor, ouvinte, espectador, aluno etc.
55
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
reelabora os significados dos bens culturais deque se apropria,
em função de sua experiência de vida” (GOMES; HANSEN, 2016,
p. 15). No trecho a seguir tem-se uma correspondência de um
leitor publicada, em que é possível evidenciar uma das maneiras
como o público percebia e se utilizava das páginas d´O Publicador:
A redação do Jornal da Parahyba, essa facção obstinada,
guiada por uma razão desvairada e torpe em seus
excessos, e dominada das mais perigosas e ameaçadoras
ideias, não trepida em patentear ao publico seus planos
hediondos e immoraes; a mais requintada inveja e odio
contra seus adversarios simplesmente politicos, e que
nenhum outro mal lhes podem causar, como sabe faze-lo
o grande partido liberal [...] Um leitor (O PUBLICADOR, 30
de março de 1864, n. 472, p. 2-3, grifo do autor).
Tendo em vista que “a imprensa periódica seleciona,
ordena, estrutura e narra, de uma determinada forma, aquilo
que se elegeu como digno de chegar ao público” (LUCA, 2011,
p. 139), é perceptível como a redação escolheu publicar uma
correspondência que se alinhava com seu viés ideológico.
Acredita-se que, por tudo que foi exposto, O Publicador e os
leitores, à sua maneira, forjaram suas representações do mundo
social baseado em seus próprios interesses.
56
Thayná Cavalcanti Peixoto
Referências
ANDRIES, Lise. A imprensa como modelo de construção
nacional: algumas hipóteses metodológicas. In: GUIMARÃES,
Valéria (org.). Transferências culturais na França e no
Brasil. Campinas: Mercado de Letras, Edusp, 2012. p. 39-53.
ARAÚJO, Fátima. Paraíba, Imprensa e Vida.
Campina Grande: Grafset, 1986.
BARBOSA, Marialva. Como escrever uma história da imprensa?
In: ENCONTRO NACIONAL DA REDE ALFREDO DE CARVALHO,
2., 2004, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis, 2004. p.1-11.
Disponível em: http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/
encontros-nacionais/2o-encontro-2004-1. Acesso em: 20 jul. 2020.
BARBOSA, Marialva. História Cultural da imprensa:
Brasil – 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Pequeno dicionário dos
escritores / jornalistas da Paraíba do século XIX: de Antonio da
Fonseca a Assis Chateaubriand. João Pessoa, 2009. Disponível em:
http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/. Acesso em: 20 jul. 2020.
BEZERRA, Alcides. A Imprensa da Parahyba. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano, ano XIV, v. 5, p. 51-64, 1922.
BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/
LIM-16-12-1830.htm. Acesso em: 20 jul. 2020.
57
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia:
De Gutenberg à internet. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
BURBANK, Jane; COOPER, Frederick. Um mundo de
impérios. In: BOUCHERON, Patrick; DELALAND, Nicolas.
Por uma história-mundo. Tradução: Fernando Scheibe.
1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 24-32.
CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do
Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988.
CAPARELLI, André. Identidade e alteridade nacionais:
transferências culturais na imprensa brasileira do século XIX. In:
GUIMARÃES, Valéria (org.). Transferências culturais na França
e no Brasil. Campinas: Mercado de Letras; Edusp, 2012. p. 25-38.
CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do
Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite
política imperial. Teatro das sombras: a política imperial.
4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Trad. Maria de
Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos
Avançados. vol.5 no.11 São Paulo Jan./Apr. 1991. p.173 -191.
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas
e representações. Portugal: Difel, 2002.
58
Thayná Cavalcanti Peixoto
COOPER-RICHET, Diana; GUIMARÃES, Valéria. Introdução. In:
GUIMARÃES, Valéria (org.). Transferências culturais na França e
no Brasil. Campinas, SP: Mercado de Letras; Edusp, 2012. p. 17-21.
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros
episódios da história cultural francesa. Tradução
de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França
pré-revolucionária. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette Mídia,
Cultura e Revolução. Tradução de Denise Bottmann.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre
a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patrícia Santos.
Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação
política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
GUIMARAES, Valéria dos Santos. A Imprensa Francófona no Brasil:
circulação transnacional e cultura midiática nos séculos XIX
e XX. História, Assis/Franca, v. 38, e2019023, 2019. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
90742019000100203&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 20 jul. 2020.
HUNT, Lynn (org.). A Nova História Cultural. Tradução de
Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
59
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
IRYE, Akira. The Transnational turn. Diplomatic
History, v. 31, n. 3, p. 373-376, 2007.
LEAL, José. A Imprensa na Paraíba. João Pessoa: União, 1962.
LUCA, Tânia Regina de. “A história dos, nos e por meio
dos periódicos”. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes
Históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2011. p. 111-153.
MCLUHAN, Marshall. Understanding media: The
extension of man. Massachusetts: MIT Press ed, 1994.
MARIANO, S. R. C.; SÁ, Ariane Norma de Menezes (org.). História
da História da Paraíba: autores e análises sobre o século XIX.
1.ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003. v. 1.
MARIZ, Celso. Apanhados históricos da Paraíba. 2. ed. João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1980 [1922]. p. 139-173.
MÁRSICO, Maria Aparecida Vries. Um Panorama sobre a Evolução
Histórica da Encadernação. In: ENAR – ENCONTRO NACIONAL DE
ACERVO RARO, 8., 2008, Rio de Janeiro. Anais Eletrônicos [...]. Rio
de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008. Disponível em:
http://planorweb.bn.br/documentos/historia_bibliotecas/panorama_
evolucao_historica_encadernacao.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia Regina de. (org.). História
da Imprensa no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013.
MARTINS, Eduardo. A Tipografia do Beco da Misericórdia:
apontamentos históricos. João Pessoa: A União, 1978.
60
Thayná Cavalcanti Peixoto
MATHEUS, Letícia Cantarela. O leitor e o cotidiano na história do
jornalismo. Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação
em Mídia e Cotidiano, n. 1, p. 44-59, jan./abr. 2013.
MELO, Américo Brasiliense de Almeida e. Os Programas
dos Partidos e o 2º Império (Primeira Parte:
Exposição de Princípios). São Paulo: Typographia de
Jorge Seckler, 1878. Disponível em: http://www2.senado.
leg.br/bdsf/item/id/179482. Acesso em: 20 ago. 2020.
MOINE, Caroline; BOUVIER, Yves Bouvier; PALMER,
Michel. L´europe au coeur de circulations et de transferts
transnationaux. Les Temps des medias, n. 11, p. 6-9. 2008.
MOLINA, Matías M. História dos Jornais no Brasil: da era colonial
à Regência (1500-1840). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. v. 1.
MOLLIER, Jean-Yves. Para uma abordagem transnacional do
livro e da edição. In: CASTELLANOS, Samuel Luiz Velázquez;
CASTRO, Cesar Augusto. (org). Livro, leitura e leitor: perspectiva
histórica. São Luiz: Café & Lápis; EDUFMA, 2016. p. 39-56.
MOREIRA, Luciano da Silva. Imprensa e Política: Espaço
público e cultura política na província de Minas Gerais
(1828-1842). 2006. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro. Palavra,
imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil
do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
61
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
NEEDHELL, Jeffrey D. Formação dos partidos políticos no
Brasil da Regência à Conciliação, 1831-1857. Almanack
braziliense, n. 10, p. 5-22, nov. 2009. Disponível em: http://
revistas.usp.br/alb/article/view/11719. Acesso em: 25 jun. 2020.
O PUBLICADOR, n. 1, 1º set. 1862, p.1. Arquivo
Privado Maurílio de Almeida.
O PUBLICADOR, 4 de setembro 1862, n. 4, p. 4.
Arquivo Privado Maurílio de Almeida.
O PUBLICADOR, n. 5, 5 de setembro de 1862.
Arquivo Privado Maurílio de Almeida.
O PUBLICADOR, n. 37, 14 de out. 1862, p. 4.
Arquivo Privado Maurílio de Almeida.
O PUBLICADOR, 30 de março de 1864, n. 472, p. 2-3.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História
Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cultura e Representações,
uma trajetória. Anos 90. Porto Alegre, v. 13,
n. 23/24, p.45-58, jan./dez. 2006.
PEIXOTO, Thayná Cavalcanti. José Rodrigues da Costa:
um tipógrafo na Cidade da Parahyba (1848-1866). 2017.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.
62
Thayná Cavalcanti Peixoto
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: Palavras, instituições
e idéias. Lua Nova. São Paulo, v. 67, p. 15-47, 2006.
POPKIN, Jeremy D. Jornais a nova face das notícias. In:
DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (org.). Tradução de
Macos Maffei Jordan. Revolução Impressa: A imprensa na
França (1775-1800). São Paulo: EDUSP, 1996. p. 195-223.
RIBEIRO, Lavina Madeira. Imprensa e Espaço Público: a
institucionalização do jornalismo no Brasil (1808-1964).
Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais,2004.
REVEL, Jacques (org.). Jogo de escalas: a experiência
da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
ROSAS, Suzana Cavani. Um líder conservador no Império: perfil,
atuação política e redes de sociabilidade do Visconde Camaragibe,
em Pernambuco e na Corte, entre as décadas de 1850-1860. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA–ANPUH, 27., 2013. Anais
Eletrônicos [...]. Natal, 2013. p.1-10. Disponível em: http://www.
snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1391025640_ARQUIVO_
TEXTO_SUZANA_CAVANI.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
SEGAL, Myraí Araújo. Espaços da autonomia e negociação:
a atuação dos deputados provinciais paraibanos no cenário
político imperial (1855-1875). 2017. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no
Brasil. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Mauad, 1999[1966].
63
O JORNAL O PUBLICADORE A FORMAÇÃO DE SEU PÚBLICO LEITOR (1862-1864)
WEINSTEIN, Barbara. “Pensando a história fora da nação: a
historiografia da América Latina e o viés transnacional”. Revista
Eletrônica da ANPHLAC, n. 14, p. 13-29, jan./jun. 2013.
64
ENTRE A NORMA
E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES
NA INSTRUÇÃO PÚBLICA
SECUNDÁRIA PARAIBANA
(1883-1886)
Cristiano Ferronato1
Itacyara Viana Miranda2
Resumo: O século XIX pode ser apreendido via perspectiva de
corpos dóceis, atentos a moral e as regras de boa convivência
social, sendo a disciplina elemento fundamental da arquite-
tura do oitocentos que tem nas aulas e instituições de ensino
excelentes espaços de difusão dos preceitos civilizadores.
A instrução secundária se alinha a esse ideal, ao passo que
promove formação das elites letradas na Província e consequen-
temente, “homens de conduta ilibada”. Nesse sentido, o objetivo
traçado tende a identificar prescrições de práticas disciplinares,
1 Doutor em Educação (UFPB/2012). Docente vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes-Sergipe. Líder do Grupo
de Pesquisa História da Educação no Nordeste-(GPHEN/CNPq/UNIT/PPED).
2 Doutora em Educação (PPGE/UFPB). Mestrado em História (PPGH/UFPB).
Licenciatura em História (UFPB). Professora da Universidade Federal da
Paraíba (DFE/CE). Membro do Grupo de História da Educação no Nordeste
Oitocentista – GHENO e o HistedPB.
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
instituídas e pensadas na Paraíba no período de 1883, quando
da conversão do Lyceu Parahybano em Escola Normal a 1886,
ano do primeiro Estatuto Interno da mesma Instituição. Espaços
como o Arquivo do Estado – FUNESC, IHGP e o Conjunto de Leis
e Regulamentos da Paraíba Imperial (INEP, 2004) são suportes
de seleção e catalogação das fontes utilizadas: Lei nº 176 de
1883; Regulamento da Instrução de n° 30 de 1884; Resolução nº
288 de 1885; Estatuto Interno de 1886; e jornais provinciais em
circulação na época. A disciplina se apresenta como o principal
conceito empregado no estudo, evidenciando a necessidade de
normatização e controle do cotidiano de diferentes instituições,
dentre as quais a escola é uma delas.
Palavras-chave: Disciplina. Instrução Secundária. Lyceu
Parahybano.
1 Disciplina e punição
na instrução paraibana no século
XIX: primeiros apontamentos
Q uando lançamos um olhar para a disciplina e a punição
na instrução paraibana do século XIX, estamos assim o
fazendo em torno de uma ideia de prática que estava sendo
anunciada e apresentada por uma gama de documentos
prescritivos – Regulamentos, leis, decretos –, que pretendiam
normatizar as estruturas e o cotidiano das aulas, mas também
os sujeitos da educação. Para além, estabelecemos uma leitura
assentada na historicidade da disciplina no Oitocentos, não no
sentido da conformação dos conteúdos a serem ensinados, mas
65
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
enquanto controle dos corpos, estratégia de organização social
e elemento contribuinte de um ideal de civilização atento e
coeso ao projeto de Estado Nação que estava sendo gestado no
Império brasileiro.
As práticas disciplinares e punitivas, embora no campo
prescritivo, se apresentam enquanto parte fundamental da
constituição de uma cultura educacional, que ultrapassa
as barreiras físicas das estruturas das aulas, passando a ser
apontamento comum de prováveis condutas e hábitos sociais
legitimados pela perspectiva de formação de homens moral-
mente instruídos nos preceitos cristãos, formados no universo
letrado, responsáveis pela boa execução de direitos e deveres
coadunados aos signos instituídos pelo pacto social em vigor no
século XIX. Nessa direção e em diálogo com o que propõe Faria
Filho (1998), apreendemos os textos normativos da instrução
paraibana – Estatuto do Lyceu Parahybano de 1846; Estatuto
Interno de 1886 –, não apenas como ordenamento jurídico, mas
enquanto linguagem e prática social.
Para além do que já foi dito anteriormente, do universo
prescritivo ser linguagem e prática social, defendemos o fato de
que uma leitura a contrapelo3 pode nos proporcionar elementos
tangíveis a disciplina e a punição, a exemplo da promulgação
da Lei de 15 de outubro de 1827, que estabeleceu em seu texto a
abertura de aulas nas cidades, vilas e lugarejos mais populosos,
sob a égide do método mútuo/lancasteriano4. Embora tal lei
3 Expressão “a contrapelo” utilizada por Walter Benjamin (1994), metáfora para
a História de que se escovar um tapete ao contrário – “a contra pêlos” – iremos
obter outro resultado, o não dito.
4 O método Mútuo ou Lancasteriano previa tão somente castigos morais, contudo
o que se viu na Província da Paraíba foi a aplicabilidade de castigos físicos em
consonância com os castigos morais, ou seja, a sua coexistência, como bem
66
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
não se aplique ao ensino secundário, uma vez que se refere ao
nível primário, acaba sendo suporte elucidativo para pensar
a história da disciplina e punição, mesmo que de forma (in)
direta, uma vez que o lancasterianismo previa tão somente a
utilização de castigos morais e na Paraíba se tornava cada vez
mais frequente e acentuada a crítica de que nem sempre as
melhores escolas seriam as que mais castigavam.
Temos defendido a ideia de uma transição do ato punitivo
no oitocentos paraibano veiculada a proposição de sociedade
civilizada, por isso mesmo a necessidade não apenas de regular
a ação disciplinadora, mas de torná-la mais coerente a essa
proposta, em especial no que pese a questão anunciada por
Michael Foucault (2009), de que a punição não deve ser maior do
que o delito que se quer coibir, sendo esse um elemento plausível
que expressa a contradição de se perseguir a civilidade em meio
a continuidade de práticas que fustigariam o corpo físico.
Em fins do século XIX essa era uma questão latente na
Província Paraibana, sendo a escola espaço disciplinador dessa
arquitetura social que se desejava alcançar, a saber: “é dócil um
corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2009, p. 118). Contudo,
um corpo atento a uma pedagogia de poder do tipo discipli-
nador, que ademais da punição previa a prevenção como ação
educativa, ou seja, corrigia-se pelo exemplo, por meio do erro
cometido, sendo, pois, a prática de expiação objeto de controle
de corpos e mentes.
indicam os textos normativos prescritivos de 1837, Lei nº 20 e 1849, Regulamento
da Instrução Pública e Particular da Paraíba, que trazem indicativos não só de
castigos morais, mais as regras de uso de castigos físicos, desde número de
palmatoadas, até mesmo intensidade de acordo com o delito e idade do infrator.
67
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
Ainda segundo Foucault (2009) a premiação era também
uma forma de castigar, ao passo que compara, diferencia,
hierarquiza, exclui. A premiação foi um recurso utilizado e iden-
tificado nos textos reguladores da instrução na Paraíba desde
o seu primeiro Regulamento Geral em 1849 até o seu último
Regulamento Geral em 1886, sendo a docentes e discentes anun-
ciada a possibilidade de premiação pelo bom comportamento,
aplicabilidade nos estudos, regularidade nas aulas. Portanto,
enquanto instrumento disciplinador, a premiação enaltecia uns
e penalizava outros.
No que concerne ao nível da instrução pública secundária
na Paraíba, temos até o momento, o indicativo de que eram mais
comuns os castigos morais, estratégias de premiação e regulação
dos tempos de aula, como forma e instrumento de controle
disciplinar, sendo poucos os indícios para pensar a punição
física enquanto prática cotidiana. Tal proposição, ao que parece,
corrobora com o ideal perpetrado na historiografia acerca da
instrução secundária, de ter sido esse um espaço de formação
de parte das elites intelectuais, cabendo aos seus sujeitos educa-
cionais o signo de homens civilizados e não o contrário disso.
Em fins do século XIX temos em circulação na
Província, o ideário de progresso e modernidade atrelados ao
Lyceu Parahybano, que era a mais antiga Instituição pública
secundária da Paraíba, desde seu prédio às suas propostas
pedagógicas, tudo ali estava sendo associado a uma disci-
plina ou a um processo disciplinador que previa não apenas
o princípio da formação intelectual, mas também de sujeitos
(re)produtores de hábitos e costumes coerentes com o projeto
civilizador em execução na época. Nesse sentido, apresentada
a ideia de disciplina, a defesa de ter existido uma transição
das formas punitivas, no que concerne à constituição de uma
68
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
crítica que recai na aplicabilidade dos castigos físicos enquanto
instrumento de poder e de ensino, bem como das premiações
enquanto elemento dialógico da punição, voltamos a atenção,
de agora em diante e de maneira mais incisiva, para o debate
em torno das prescrições disciplinares apreendidas nos textos
normativos dos Estatutos do Lyceu de 1846 e 1886, recorte justi-
ficado por ser, respectivamente, o ano de publicação do segundo
estatuto da Instituição, ainda elaborado pelo poder provincial e
o último estatuto até o momento encontrada na documentação,
sendo este uma produção interna do Lyceu, embora referendada
pelo Presidente de Província.
2 O Estatuto do Lyceu Parahyabano
de 1846 e as tentativas
de uma normatização da disciplina
No que se refere às práticas disciplinares na instrução
secundária paraibana os jornais eram o meio pelo qual as
críticas, principalmente direcionadas aos comportamentos
“indesejados” dos alunos do Lyceu Parahybano, tornavam-se
públicas. Para esse caso indicamos que o olhar atento, vigilante
e disciplinador dos sujeitos instrucionais, professores e funcio-
nários, em relação aos discentes estava também estendido à
sociedade, ao passo que se fez recorrente esse tipo de queixa
nos periódicos.
A moral era um elemento importante para o entendi-
mento dessa questão, pois, segundo os discursos identificados
na documentação, tudo aquilo que podia diminuir a eficiência
69
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
ou mesmo tornar a ação da educação mais incerta, ameaçava
também a moralidade pública como um todo. Nesse sentido,
entende-se aqui que a moral era um importante elemento
para a manutenção da ordem naquela sociedade, de modo a
não causar violação de princípios comuns aos homens. Sendo
assim, se os discursos proferidos por jornalistas e gestores
públicos deixavam entender que o ambiente escolar era o lugar
no qual os jovens desenvolviam os seus potenciais intelectuais e
adquiriam com uma maior maturidade os elementos da moral,
então estamos convencidos de que houve, nas críticas publici-
zadas nos periódicos da época, uma relação entre horizonte
intelectual e horizonte moral, sendo um o limite do outro.
Nesse sentido que a indignação demonstrada pela socie-
dade local ao observar os alunos do Lyceu Parahybano tendo uma
má conduta, em determinados momentos era algo inaceitável,
pois, como jovens que possuíam ou estavam em contato com
conhecimentos diversos poderiam desenvolver comportamentos
imorais desafiando às regras que fixavam a conduta dos homens
nas variadas situações do cotidiano. Tal indigniação poder
ser entendida na medida em que aquela instituição de ensino
secundário desempanhava um importante papel social, cultural,
educacional e servia de exemplo a ser seguido, e mesmo sendo
criticado pelos comportamentos ditos inapropriados de alguns
dos seus estudantes. Dessa forma, defendemos ter existido na
Instituição um importante trabalho de formação moral, uma
vez que observamos na historiografia, o destaque dado a vários
dos (ex)alunos do Lyceu Parahybano, enquanto prestadores
de serviços à sociedade em suas diversas áreas, a exemplo da
política, da literatura e da educação, sendo reconhecidos dentro
da Província por suas potencialidades e sua formação.
70
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
Um elemento importante na consolidação desse
movimento de construção de uma imagem de instituição
disciplinadora foi o papel desempenhado pelo alunado. De modo
geral, a conduta daqueles indivíduos acabava refletindo positiva
ou negativamente a leitura acerca do espaço de educação que
frequentavam, ou seja, do Lyceu. Indivíduos que pelo seu perfil
era formado pelos herdeiros da aristocracia provincial, do
capital econômico, social, cultural e político. Por isso a impor-
tância das questões disciplinares naquela instituição.
No entanto, havia, também, aqueles originários dos
grupos sociais intermediários, que viam a possibilidade de
ascensão social pela escolarização secundária. Outro aspecto
que consideramos relevante aqui destacar refere-se ao fato
de que, com essa concentração de alunos em um mesmo
espaço-físico as questões disciplinares começaram a se
evidenciar, levando à necessidade da criação de normas que
regulamentassem os comportamentos. Nesse sentido, essa nova
configuração na organização do ensino secundário, a partir
da criação do Lyceu, obrigou os dirigentes da instituição a,
elaborarem instrumentos legais para a execução de possíveis
práticas disciplinadoras.
Como o Lyceu era uma Instituição pública, é possível que
os alunos se sentissem mais livres, já que o caráter intimida-
tivo que a casa do professor representava, não mais existia,
portanto, era necessário criar novos mecanismos de regulação
do comportamento. No que tange às questões disciplinares,
Frago e Escolano (1998), afirma que todo espaço é um lugar
percebido, ou seja, que em verdade não percebemos espaços,
mas lugares construídos, elaborados. Assim, os espaços (lugares)
do Lyceu Provincial eram educativos e disciplinadores, voltados
para a formação e para a transformação dos sujeitos aprendizes.
71
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
Nesse lugar, eram aplicadas estratégias disciplinares, a partir
da simples punição, passando pela recompensa e pela oferta
da possibilidade de ascenção social. Seguindo essa norma, esse
disciplinamento fazia-se presente já no instante da solenidade
de abertura das aulas, que deveriam ocorrer sempre no dia 4 de
fevereiro. As aulas eram precedidas de todo um ritual marcado
por um simbolismo, no qual os alunos eram levados a entender a
relevância social e cultural de participarem de uma instituição
como o Lyceu Parahybano.
Nos seus primeiros quarenta anos de existência, a
Instituição passou por uma série de reformas, inclusive em
relação aos aspectos disciplinares, que, entendemos, fizeram
parte do processo de configuração e de reconfiguração de
uma nova forma de organização do ensino secundário. Um
desses exemplos foi a publicação em 1846 do segundo Estatuto
da Instituição, onde a questão da disciplina aparece no seu
Capítulo 6o, sob o título “Da Economia e Política das Aulas”. Em
nossa percepção esta legislação era muito severa, uma vez que
o professor poderia castigar os seus discípulos com palmatória,
uma prática que seria abolida apenas em 1849.
Todavia, a questão disciplinar se desdobrava em outros
aspectos, tais como os relacionados à frequência dos alunos
e dos professores, colocando em evidência outro agente
importante neste processo, o bedel, responsável pela ordem na
Instituição, para quem os professores deveriam remeter o mapa
com o número de faltas de cada aluno. Ao bedel cabia, além
dessa atividade, “Advertir os estudantes que transgredirem
as disposições do art. 59, ou perturbarem a ordem do silencio
do Liceu, dando parte ao Diretor, se eles se não coibirem”
(PINHEIRO; CURY, 2004b, p. 103).
72
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
Dessa forma, percebe-se que o sistema disciplinar estava
organizado na forma de uma gradação, que partia da simples adver-
tência à expulsão, e que somente podia ser realizada pelo Presidente
da Província, obedecendo a uma hierarquia didático-administrativa,
tendo o bedel como o primeiro a repreender os alunos em assuntos
disciplinares. Essa disciplinarização do corpo discente se estendia
também às vestimentas dos sujeitos que frequentavam o Lyceu,
incluídos nesse ponto os professores. O Estatuto de 1846 não define
exatamente acerca da utilização, mas orienta no seu Art. 59 que “no
recinto do Liceu é proibida estar quem quer que seja de chapéu na
cabeça, e andar com bengala, chibata ou chapéu de sol” (PINHEIRO;
CURY, 2004b, p. 103). Verificamos, ainda, no Capítulo 6 da referida
Resolução, as seguintes normas:
Art. 52. No primeiro dia de aula o bedel em presença do
professor dará assento aos estudantes, segundo a ordem
de suas matrículas.
Art. 53. Os estudantes comparecerão nas aulas a hora
marcada e ocuparão imediatamente os seus lugares
debaixo de todo o silencio.
Art. 54. Dez minutos depois do professor havido subido
a cadeira o bedel fará a chamada dos alunos em voz alta.
Os que não estiverem presentes serão notados nas listas
do professor e do bedel.
Art. 55. Perderá o ano o estudante que houver dado
dez faltas sem causa, ou trinta ainda justificadas.
(PINHEIRO; CURY, 2004b, p. 103).
73
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
Assim, para coibir o desrespeito às normas instituídas,
ou outros atos que a direção do Lyceu Provincial julgasse
como reprováveis, aos alunos seriam aplicadas punições de
acordo com a gravidade da transgressão. A Resolução previa
os seguintes castigos:
Art. 56. O professor da primeira cadeira poderá castigar
os seus discípulos com a palmatória.
Art. 57. As faltas cometidas pelos estudantes no recinto
do Lyceu, ou nas proximidades onde eles se costumam
reunir, devem ser punidas condicionalmente pelo
Diretor, que por meio de repreensão na aula, ou parti-
cular, quer inflingindo outras punições corporais, com
estar de pé durante todo, ou parte do tempo da aula, ou
quaisquer outros que sua decisão julgar apropriadas,
tendo atenção a idade, comportamento anterior dos
alunos, e a gravidade da falta. Nos casos mais extraordi-
nários o Diretor se dirigirá ao Presidente da Província,
a cujo conhecimento levará uma exposição do fato, e
de suas circunstancias, a fim dele providenciar como
entender conveniente.
Art. 58. O estudante incorrigível será excluído do Lyceu
por ordem do Presidente da Província.
[...]
Art. 60. Os professores darão ao fim de cada mês aos seus
discípulos certificado de seu comportamento e aplicação.
Art. 61. Estes certificados depois de apresentados pelos
discípulos a seus pais, ou pessoas debaixo de cuja tutela
74
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
estejam, o que constará da assinatura deles nos mesmos
certificados, serão devolvidos aos professores que os
remeterão ao Diretor para sua informação, sendo depois
despachados e arquivados. (PINHEIRO; CURY, 2004b, p. 103)
A partir dessas formulações, percebemos que, com o
surgimento do Lyceu Provincial, deu-se início à criação de todo
um sistema disciplinar no âmbito da instrução secundária.
Devido à exígua documentação acessível sobre os aspectos do
funcionamento interno do Lyceu, ou seja, do seu dia a dia, pouco
sabemos sobre tais temas. Entretanto, temos algumas infor-
mações acerca de atos de indisciplina cometidos pelos alunos,
para além dos muros e paredes do Lyceu, que eram publicizados
pelos jornais.
Havia em frente às portas da Igreja contígua ao prédio
onde funcionava o Lyceu, uma pequena escadaria, na qual os
liceanos ficavam sentados, ou em pé, à espera do início das
aulas. Era nessa escadaria que os alunos se rebelavam contra a
ordem imposta na parte interna, ou seja, os liceanos as usavam
para as mais diversas atividades, como apresentou o jornal O
Solícito, de 27 de julho de 1867, ano em que o Lyceu Provincial
contava com 121 alunos, segundo Relatório de 28 de junho do
mesmo ano, elaborado pelo secretário da Diretoria da Instrução,
Carlos Auxencio Monteiro da Franca.
Segundo o jornal, em matéria intitulada “Desenvoltura
dos Estudantes”,
Faz-se bastante a falta de respeito e a immoderação
que apresentão os estudantes do Lyceu desta cidade,
pateando, e dirigindo impropérios a quaes quer pessoas
estranhas a esta capital, que passam defronte deste
estabelecimento scientifico ao tempo, que funcionão as
aulas De todas as partes tem surgido queixas contra essas
75
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
pateadas ostentadas por palavras indecentes, e allusões
deshonestas, no que somente, tem mostra de progresso
alguns dos moços, que aliás, sendo de boas famílias, não
encontram em seus Paes ou administradores a reprimenda
conveniente (O SOLÍCITO, 27 de julho de 1867).
Entretanto, um ano antes, isto é, em 1866, o Diretor
Interino da Instrução Pública, Fructuoso da Soledade
Sigismundo, já havia se mostrado muito preocupado com a
questão e propôs algumas mudanças, no sentido de tornar as
normas disciplinares mais rígidas. Nesse sentido, apresentamos
em sua integralidade o documento que segue:
Permitta V. Exc. que ainda uma vez mais invoque a
attenção de V. Exc. para com uma materia de grande
importancia; mas que infelizmente tem ficado em olvido,
apezar de assaz reconhecida pelos competentes. Poderes
da Provincia. Quando na primeira parte desta exposição
fallei no Lycêo da Capital, lembrar-se-ha V. Exc. que fiz
ver, que algumas pessoas reconhecidamente qualifi-
cadas recusavão mandar nelle estudar a seus filhos,
pelos muitos excessos e disturbios, que alli se praticão,
apadrinhados, ou tolerados, sobre tudo, pela deficiencia
de Leis disciplinares. Com effeito, é digna de notar-se
a nimia escascez com que se portou o Legislador nesta
parte tão precisa para a manutençaõ da ordem em um
estabelecimento de educação da mocidade.
As unicas disposições penaes do Regulamento vigente são
as contidas nos art. 20 e 29. O art. 20 diz: Os alumnos que
não forem assiduos, os insubordinados e desobedientes
á seus mestres serão expulsos do Lycêo, quando assim
o deliberar a Presidencia» e o art. 29 assim se exprime:
«Será permettido nas aulas de instrucção primaria, e da
superior da primeira cadeira (a de Latim) o castigo com
76
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
palmatoadas.» [...] Da lettra dos art. citados facilmente
se infere, que o castigo comminado no art. 20 é o unico
infligivel aos estudantes que não forem da cadeira de
Latim. Mas, Exmº Senhor, quem dirá que é previdente e
completo um codigo, cujas disposições penaes exclusiva-
mente se limitão a punir com o maior castigo os crimes
atrozes, ao passo que deixa incolumes e absoltos os de
menor entidade, mas que, se fossem logo corrigidos em
seu começo, deixarião de exigir com a reproducção ou
reincidencia a pena a mais severa?
Não seria uma lei formulada nestas condições justa-
mente reputada defeituosa, e insufficiente para garantir
a conservação e andamento de qualquer associação ou
estabelecimento, principalmente d’um Lycêo, onde os
castigos correccionaes se fazem indispensaveis para sua
manutenção e regularidade?
Concedido mesmo que os estudantes das cadeiras excep-
tuadas sejão venialmente impeçaveis, convirá sempre e
irrimissivelmente a imposição da pena de exclusão nos
casos apontados no regulamento, sem que se attenda,
como é de direito, circumstancias e occurrencias, que
podem attenuar, e até mesmo destruir em parte sua
odiosidade, ou, admittida esta ponderação, deixa-los no
todo impunes com o bem fundado e admissivel receio
de incorrer-se em rigorismo e severidade? A boa razão
e dictames da recta justiça aconselhão que nem uma,
nem outra cousa.
É nestas estreitezas e emergencias que a Directoria, em
ultimo recurso, se ha soccorido do alvitre da reprehensão;
mas este alvitre, como se sabe, é em alguns casos nimia-
mente fraco, e, quando muito, só tem efficacia para o
77
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
estudante brioso, o que não é comesinho encontrar-se
em um estabelecimento, onde teem ingresso individuos
de todas as classes, de todas as indoles, e de toda a sorte
de educação. Está, pois, cabalmente provado, que o
regulamento actual da Instrucção Publica se resente
de grande falta de disposições penaes, que abranjão os
delictos, em que não for devidamente cabido o maximo
castigo de exclusão, e por uma natural deducção que
a certeza da impunidade ha dado lugar aos excessos e
descomedimentos, que no Lycêo se praticão.
Cumprindo-me agora, porém, indicar qual o meio mais
adequado a remover taes abusos, direi francamente que
elles em grande parte, senão no todo, desapparecerão
logo que forem ampliadas as faculdades e attribuições da
Directoria. Seja o director expressa e legalmente autorisado
a penitenciar a seu arbitrio, já não digo com palmatoadas,
mas com quaesquer outros castigos, aos estudantes privile-
giados, que o merecerem, bem como mandal-os conservar
de pé durante os trabalhos da aula a que pertencerem; possa
elle igualmente, nos crimes de maior monta, reclusar em
uma sala do Lycêo os delinquentes, por espaço de horas que,
á juizo prudente, correspondão com a gravidade do delicto;
sejão, finalmente, suas ordens sustentadas e consideradas
como de ultima instancia, que logo cessaráõ esses prejudi-
ciaes e inveterados inconvenientes. Convicção tenho que,
á proporção que a indifferença, altivez e insubordinação se
forem persuadindo de sua impossibilidade na prosecução de
sua marcha costumada, livre ou coagidamente, mudaráõ de
rumo, e, por propria conveniencia e conservação, buscaráõ
congraçar-se com a boa ordem e sãos costumes (PARAHYBA
DO NORTE, RELATÓRIO, 1866, p. A- 8).
Nesse sentido, o Diretor Interino Francisco Fructuoso
da Soledade Sigismundo propõe medidas no sentido de sanar
tais problemas, uma vez que era necessário, segundo ele, a
manutenção da imagem do Lyceu Provincial como uma casa
78
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
de correção moral e do padrão de excelência de seu ensino,
uma vez que o título de “lyceano” trazia em si o simbolismo de
uma sólida e austera formação educacional, que ao que parece
estava sendo descaracterizado pela indisciplina de seus alunos.
Tenho ouvido dizer á pessoas sisudas e qualificadas
que ali nunca mandaráõ estudar a seus filhos, e, de
certo, as algazarras, disturbios e descommedimentos
que no Lycêo se praticão, apoiados sobre tudo na falta
de leis disciplinares o tornão um pouco repillente a
todos aquelles que sympathisão com a subordinação,
acatamento e uma conducta bem apurada (PARAHYBA
DO NORTE, RELATÓRIO, 1866, p. A-8).
A aplicação de uma rígida disciplina se dava também
em virtude da falta de normas quanto à idade ou à formação
anterior dos alunos para a sua matrícula no Lyceu Provincial.
Tal situação, inclusive, fez com que ocorressem alguns abusos,
como a inscrição de alunos que não sabiam ler e escrever.
Esses abusos levaram à publicação de uma portaria, em 23 de
janeiro de 1862, que definia algumas normas, como a exigência
da habilitação nas matérias do ensino primário, como se lê no
Relatório da Diretoria da Instrução Pública daquele ano.
No intuito de prevenir o abuso de matricularem-se alumnos
sem saberem as vezes nem escrever, como acontecia, resta-
beleci com approvação de V. Exc., (Portaria de 23 de Janeiro
do corrente anno) a pratica de exigirem-se previamente
provas de habilitação nas matérias do ensino primário
(PARAHYBA DO NORTE, RELATÓRIO, 1862, p. AG. 8).
O aluno do Lyceu Provincial era educado para ser súdito,
isto é, submisso, obediente e respeitador das leis e das normas
79
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
que eram emanadas pelo poder imperial, representado pelas
suas diversas instâncias, entre elas a escola, no seu sentido mais
amplo. Assim, todas as manifestações de indisciplina visavam
tão somente romper com as normas excessivas impostas pela
referida Instituição secundária. Segundo Menezes (1982, p. 236):
Os discípulos monarquistas, liberais ou republicanos
agnósticos, estariam já em plena idade eleitoral, com
as atividades partidárias ensaiadas na imprensa
provinciana. Por outro lado, temos que reconhecer
o isolamento institucional-cultural do Lyceu. A rede
escolar primária resumia-se a três centenas de escolas
e o púbere; o lyceano adolescente não possuía uma
socialização capaz de animá-lo para empreendimentos
de classe; vinha da casa patriarcal, onde era menino
sem vez, para o colégio, onde prosseguia submisso. E
uma didática aterradora, com a palmatória em uso,
estava no seu percurso estudantil, apesar das restrições
pedagógicas do Presidente Vasconcelos, em 1849.
Sobre a indisciplina nas escolas, Siqueira (2000) em seu
livro Luzes e Sombras: Modernidade e Educação Pública em Mato Grosso
(1870-1889), relata que, desde o século XIX, as escolas possuíam
mecanismos coercitivos para serem aplicados, se necessários,
a fim de manter a ordem no ambiente da sala de aula. A autora
ressalta ainda que, tradicionalmente, na escola, quando uma
regra era transgredida, poderia aparecer como fonte de conde-
nação o castigo. Para a mesma, “o castigo, de maneira genérica,
significa a aplicação de um corretivo que pressupõem a trans-
gressão de regras estabelecidas”. (SIQUEIRA, 2000, p. 238).
Dizemos, fazendo alusão à realização dos exames, que
eles eram o momento mais importante do processo de apren-
dizagem no Lyceu Provincial, mas também o era um espaço
80
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
de avaliação e vigilância das normas impostas. Existia toda
uma simbologia de força, poder e hierárquia no ritual dos
exames que contava com a presença do Diretor da Instrução
Pública, com membros da Congregação dos professores e até
com a presença do Presidente da Província, como foi o caso dos
exames ocorridos em 1848, no qual o Presidente João Antonio
de Vasconcellos descereveu a sua experiência por meio do texto
do relatório do ano seguinte.
Pelas informações que tenho do Lycêo, sei que pros-
segue ali o ensino com regularidade, é frequentado
presentemente por 80 alumnos, como no mappa n. 5.
O anno passado assisti aos exames em Novembro, nos
quaes se distinguirão alguns moços hábeis. Os exames
de Rhetorica não forão completos, por lhes faltar a
analyse de alguns exemplares clássicos, latinos, e da
nossa lingoa, onde o estudante mostrasse praticamente
a theoria da arte da oratória: mas essa falta posso crer,
que será remediada d´agora em diante, conforme insi-
nuei (PARAHYBA DO NORTE, RELATÓRIO..., 1849, p. 14).
Os exames aconteciam no fim do ano letivo, com provas
orais e escritas, sendo iniciados sempre pelas primeiras.
Os dias de sua realização eram definidos pelo Diretor e pela
Congregação, como previa o Art. 63 do Estatuto de 1846: “O
Diretor designará os dias de exame para premiar e mandará
avisar os propostos”. A ordem das cadeiras, bem como a
listagem, que era elaborada, considerando-se as matrículas
mais antigas, era afixada na porta de uma das salas do Lyceu,
informando ainda o dia e a hora do exame. Os pontos das provas
eram designados pela Congregação, composta pelos professores
do Lyceu Provincial. No dia dos exames, os pontos eram sorte-
ados e a banca realizava a arguições.
81
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
Quanto ao tempo das provas, estavam divididos da
seguinte maneira,
Art. 36 – Aos estudantes da primeira, segunda e quinta
cadeira dar-se- á meia hora para comporem os temas e
reverem as traduções, ou as proposições que lhe couberem
em sorte; devendo os professores vigiar que eles se não
afastem das suas vistas, nem conversem com pessoa alguma
durante esse tempo (PINHEIRO; CURY, 2004b, p. 101).
Os exames eram públicos e os alunos eram acompa-
nhados por dois examinadores, presididos pelo professor da
respectiva cadeira e com assistência do Diretor. O tempo para
cada prova era igualmente dividido pelos examinadores, sendo
que não podia exceder uma hora e meia para cada matéria. Para
a realização da avaliação final, as portas eram fechadas e os
examinadores votavam secretamente com as letras – A ou R,
que significava aprovado ou reprovado, e a decisão era lavrada
pelo secretário e assinada por todos.
Conseguiam a “aprovação plena” os alunos que reunissem
a seu favor a totalidade dos votos, e “simplesmente aprovado”
os que recebessem um voto contra a sua aprovação. No caso de
“reprovação” em qualquer uma das matérias, não era permi-
tido que ao aluno fosse admitido a exame sem nova frequência
naquela em que havia sido objeto da reprovação, e o mesmo
aluno só poderia ser reprovado duas vezes na mesma matéria.
Os exames eram realizados perante a Congregação e os
professores tinham o tempo que julgassem necessário, sendo
que os de Retórica e Filosofia duravam 3 horas, por serem
considerados os mais cansativos. Findo o processo, o Diretor
lia o relatório dos trabalhos desenvolvidos durante o ano, e
um professor designado pela Congregação apresentava um
82
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
discurso, terminando com a leitura dos nomes dos premiados5
e a sua distribuição, que consistia em um certificado, assinado
pela Congregação, entregue ao estudante pelo Diretor. Esse
certificado dava direito ao liceano de ocupar um lugar de honra
na sala de aula, conforme ficou determinado no artigo 68 do
capítulo 7º do Estatuto de 1846.
Art. 68 – Os prêmios consistirão em um certificado
honroso, assinado pele Congregação, que será em
presença dela, entregue ao estudante pelo Diretor, e
em assentar-se na aula, em que se matriculou em lugar
distinto, que se chamará assento de honra.
Art. 69 – Os exames começarão no dia marcado pela
Congregação que o regulará de modo que se não
estendam além do mês de novembro (PINHEIRO; CURY,
2004b, p. 104).
Entretanto, o regime de premiação tinha outros desdo-
bramentos, tais como:
Art. 70 – O estudante premiado não sofrerá os castigos
de que trata os artigos 57 e 58, a exceção das repre-
ensões particulares do Diretor: quando porém haja
ele cometido qualquer falta pela qual seja necessário
maior castigo, o Diretor comunicará ao Presidente da
Província para resolver conforme entender conveniente
(PINHEIRO; CURY, 2004b, p. 104).
5 Como sistema de recompensa, no fim dos exames, cada professor indicava
ao Diretor quais alunos deveriam ser premiados. O número não poderia
exceder a três. Feitas as indicações, ele designava os dias em que ocorreriam
as premiações. Em seguida, mandava avisar aos alunos.
83
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
Em alguns momentos, esses prêmios eram entregues
pelos próprios presidentes de Província, conforme consta
no relatório de 1853 do presidente Antonio Coêlho de Sá e
Albuquerque
No dia 7 de Janeiro do corrente anno destribui pesso-
almente na sala do Lyceo os premios determinados
no Regulamento vigente pelos estudantes que mais
apllicação e adiantamento mostrárão durante o anno
lectivo. Forão premiados os estudantes Belarmino
Acurcio Cavalcante de Albuquerque, em Latim;
José Thomaz Ferreira Neves Junior, em Francez; e
Epaminondas de Souza Gouveia, em Geographia
(PARAHYBA DO NORTE, RELATÓRIO..., 1853, p. 11).
Vale ressaltar, que nesse ínterim foi normatizada,
também, a certificação escolar secundária, como condição
necessária para uma futura inserção socioprofissional dos
egressos do Lyceu Provincial. Todavia, muito antes da sua
validação, para o acesso as faculdades do Império, os exames
do Lyceu Provincial tinham grande repercussão na Cidade
da Parahyba, por serem altamente reprovadores. Em 1852,
Gonçalves Dias, em seu Relatório, anotou que, dos 102 matricu-
lados, 94 não foram aprovados (DIAS, 1852 apud MENEZES, 1982)
Com a falta do recurso coercitivo, abolido em 1849, os
professores passaram a se utilizar dos exames como meio
disciplinador, uma vez que a premiação também era um instru-
mento de expiação daquilo que se desejava do estudante do
Lyceu. Apesar disso, os exames não foram isentos de casos de
indisciplinas, em vários jornais da época circularam as notícias
de possíveis pequenos delitos, burlas das regras dos exames
e até mesmo falta de decoro para com a banca examinadora.
84
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
Os episódios de indisciplina nos exames, ao que aparece na
documentação consultada — jornais — era mais comum do que
imaginávamos e fazem parte da história do Lyceu Parahybano,
que enfrentou momentos de transformações estruturais: sendo
1884 convertido em Escola Normal de dois graus, em 1885,
“voltou” a ser Lyceu, restaurado por meio da Resolução nº 288
e em 1886 elaborou o seu novo Estatuto.
Em relação a esse episódio, da conversão, Ferronato (2012)
expôs que foi esse um duro golpe para aquela que atravessou boa
parte do século XIX como sendo a única Instituição secundária
da Província e atribuí essa conversão à presença dos liberais ao
poder. Acompanhemos:
A instrução pública na Parahyba do Norte, chegou à
década de 1880 eivada por um desejo de grandes reformas
que deveriam afetar boa parte da administração pública.
Esse surto reformista, propalado pelos liberais, acolheu
a idéia, há muito discutida na Província, da necessidade
de criação de uma escola normal, medida já tentada em
1874, pela Lei 564, de 28 de setembro, quando foi criada
no Lyceu uma cadeira de ensino normal. Assim sendo,
podemos considerar que foi no afã reformista que o Lyceu
Provincial foi afetado e convertido em Escola Normal, em
1883 (FERRONATO, 2012, p. 203).
Tal medida de cunho político foi uma tentativa, de dar
uma nova configuração à instrução, uma vez que o resultado
dessa ação foi à criação de uma Instituição especialmente desti-
nada à formação de professores. Foi frequente nos jornais da
época a publicação de críticas frente à conversão do Lyceu. Seja
atacando ou defendendo, os escritos revelaram traços ligados a
interesses político partidários daqueles que estavam no poder.
O Jornal da Parahyba ao tratar do projeto liberal pensado para
85
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
a Instituição fez saber de um cenário de tensão entre os grupos
dissidentes – conservadores e liberais. Vejamos:
O Regulamento de 1884 creara uma anomalia. O mesmo
instituto fazia as vezes de escola secundária e de escola
profissional. Um só director superitendia os dous insti-
tutos, que compunham a demominada Escola Normal de
dous grãos, sem que nenhum dos gráos representassem
a funcção que lhes é attribuida em toda a parte. [...]
A secção normal para as senhoras chamava-se escola
do 1º gráo; a secção normal para os homens chama-
va-se escola do 2º gráo! Na escola normal de senhoras
faltavam matérias que constituem os rendimentos de
qualquer educação regular; no Lyceu faltavam cadeiras
essenciaes para o ensino; em ambas faltava direção
adequada (JORNAL DA PARAHYBA, 4 de maio de 1886).
O que se argumentou no Jornal da Parahyba foi que a
conversão não garantiu qualidade ao ensino nem em termos da
formação dos professores, nem em relação à instrução secun-
dária. É fundamental lembrar que essa foi uma queixa assentada
no pensamento de grande parte dos conservadores, partido ao
qual o jornal era ligado. A participação da imprensa na vida
política da cidade, facilitou o enfrentamento dos grupos de
oposição e situação em relação à atuação dos gestores públicos
em exercício, com especial atenção à instrução, foi motivo das
propagandas oficiais dos governos, sendo o Lyceu Parahybano
um alvo em potencial dessas disputas.
Para além das questões políticas, entendemos que a
conversão não apenas atendeu a uma demanda de formação
docente na Província, acentuada pela crítica de uma instrução
primária deficitária de professores qualificados, mas mais
que isso, colocou em cheque a imagem de um Lyceu erguida
86
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
por entre signos de força e prestígio social, ao passo que se
tornavam evidentes a falta de recursos para manutenção da
Instituição, que via decrescer o número de matrículas e povoar
nas páginas dos jornais casos de indisciplina de seu alunado,
quando o objetivo era exatamente outro, a saber: a formação
moral e intelectual da mociadade paraibana.
3 Estatuto interno
do Lyceu Parahybano de 1886:
no tom e no tema do ordenamento disciplinar
Ao tratar do Lyceu Parahybano, no período imperial,
temos que ter em mente que o seu modelo de funcionamento
esteve amparado quase sempre nos textos dos Regulamentos
Gerais da Instrução Pública e Particular da Província, sendo
comum a divisão desses documentos normativos em duas
partes – instrução primária, instrução secundária. Normas de
organização e funcionamento das aulas, indicação dos direitos e
deveres de professores, alunos e gestores, anúncio das formas e
conteúdo de ensino se tornaram imperativos desses textos que
podem ser apreendidos como uma das formas legitimadoras de
instrumentalização do poder Provincial na Paraíba.
Os Regulamentos Gerais da Instrução foram, pois, espaços
cuja escrita estava seguindo uma lógica de controle que vinha
quase sempre de cima para baixo, ou seja, havia um processo
hierárquico, no sentido de quem criava e idealizava o corpus de lei
e de outro modo, os que eram impostos e se amparavam nelas para
a conformação de possíveis práticas. De um modo ou de outro,
87
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
o que estamos tentando dizer é que de maneira genérica, até o
ano de 1886, quando da elaboração do documento do Estatuto
Interno do Lyceu, as normas estabelecidas para Instituição eram
externas a ela, uma vez que não havia uma participação efetiva
de seus sujeitos na produção desses documentos.
Nessa direção, o ano de 1886 se torna um marco temporal
na história do mais antigo espaço de instrução pública secundária
na Paraíba, uma vez que o Estatuto Interno, como o próprio nome
já diz, foi uma produção conjunta de seus sujeitos, que levaram
em consideração não apenas as bases legais para alcançar, no
futuro breve, uma possível equiparação com o Colégio Pedro
II, mas sobretudo as reais necessidades internas da Instituição,
suas carências na estrutura do prédio, a problemática da falta de
matrículas, que serviu como uma das justificativas apresentadas
para sua conversão em Escola Normal em 1883, frente ao ônus
ocasionado aos cofres públicos, ademais da crítica perpetrada ao
formato dos exames preparatórios, por ora corrupto e corrom-
pido pela prática de apadrinhamento, no qual nem sempre os
mais preparados eram os aprovados para darem prosseguimento
aos estudos no nível superior.
Ao tratar da conversão do Lyceu em Escola Normal de dois
graus, deixamos saber anteriormente que tal ação não anulou por
completo o antigo espaço de instrução secundária, muito pelo
contrário, concordamos com Menezes (1982) quando diz ter sido
a Escola Normal “montada nos costados” de uma Instituição já
sólida como o era o Lyceu Parahybano. É preciso ter em mente que
a conversão, como já referendado aqui no texto, se deu em meio a
um projeto político dos liberais, que defendiam a ideia e relação
de haver melhores resultados na instrução, quando houvesse,
também, uma maior qualificação do professorado, sendo, pois, a
88
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
conversão necessária e a estrutura do Lyceu, digo espaço e corpo
pedagógico, elementos importantes para a efetivação de tal projeto.
A conversão não dura muito tempo, um ano apenas, já
que em 1885, como evidenciamos em outro momento, o Lyceu
é restaurado. Atribuímos isso, não ao fato de a Escola Normal
não ter sido algo imprescindível para a formação de professores
na Província, muito pelo contrário, Araújo (2010) demonstra a
relevância e atuação dessa Instituição no que pese a formação de
professores no século XIX. Contudo, defendemos que o Lyceu foi
restaurado devido ao seu significado social, a saber: uma Tradição
Gloriosa, como assim o intitulou Antonio Thomaz Carneiro da
Cunha Junior, professor de inglês da Instituição no ano de 1886.
A pretensão, de mais uma vez discutir o elemento da
conversão, nada mais é do que uma estratégia traçada para
a escrita do texto, para reiterar o fato de que em 1886 o Lyceu
Parahybano estava não só restaurado, como independente, no
sentido de ter uma direção própria. O relatório do Presidente de
Província, Herculano de Souza Bandeira é elucidativo quanto a
isso: “O carater rigorosamente novo que recebeu agora o Lyceu
foi o de um instituto independente, com direção própria”
(PARAHYABA DO NORTE, RELATÓRIO..., 1886, p. 24).
O contexto dessa conquista de caráter independente atri-
buído ao Lyceu, não só é fundamental para compreendermos a
Instituição que se desenhou dali em diante, pautada em signos
modernizantes e de progresso, mas sobretudo para entender
os moldes de construção do documento do Estatuto Interno
e seus direcionamentos de poderes disciplinares e punitivos
anunciados aos seus sujeitos instrucionais. A escrita do docu-
mento em questão, ficou a cargo do Reitor Thomaz Mindello,
que apoiado pela Congregação de professores apresentaria o
texto do Estatuto para aprovação do Presidente da Província.
89
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
Após a leitura integral do documento, identificamos algo
importante de ser dito: o texto do Estatuto Interno continuou
refletindo as diretrizes anunciadas para o Colégio Pedro II
no que pese a formulação de um currículo, nesse sentido, a
dita “independência” de que estamos tratando, se apresentou
muito mais na direção de como ensinar, do que o que ensinar.
Tanto isso foi verdade que ao final do documento é posta a
necessidade de formulação do que chamaram de Histórico das
Atividades, onde ficou evidente as carências de funcionamento
da Instituição e não só em termos materiais, mas também das
normas e controle disciplinar dos corpos, de uma moral atenta
aos bons costumes e que legitimasse a imagem do homem civi-
lizado que deveria ser formado pelo Lyceu.
O Estatuto Interno foi dividido em quatro partes, a
saber: Organização do Lyceu; Dos Alunos; Do corpo docente;
Da direção e inspeção do ensino. Todas as partes trouxeram
indicativos de como deveria ser a estrutura de funcionamento
e gerenciamento do prédio e dos espaços de aulas de forma
geral, bem como de modo mais particular, dos encargos e atri-
buições dos sujeitos instrucionais – alunos, professores, reitor,
bedel e secretários. Contudo, tentando atender aos objetivos
propostos desse artigo, elegemos os discentes e as normativas
disciplinares como foco de discussão.
Antes de aprofundarmos a questão dos deveres e as puni-
ções previstas no Estatuto, vale a pena destacar o perfil desse
aluno que frequentava o Lyceu. Logo nas regras de matrícula
já podemos apreender alguns indícios que nos auxiliam nessa
reflexão e análise. Começando pela idade, ficou previsto que o
aluno deveria ter no mínimo 10 anos para poder efetuar matrí-
cula, era requisito a apresentação do atestado médico de boa
saúde, bem como certidão de moralidade expedida pelo pároco
90
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
ou subdelegado do distrito. Ademais, havia também a obrigato-
riedade de apresentar documento comprobatório de exame de
admissão ou de aprovação no nível da instrução primária.
Em relação ao atestado de moralidade, o Estatuto Interno,
foi bem específico: “A matrícula poderá ser recusada, todas
as vezes que houver más informações sobre a moralidade do
candidato, a juizo do Reitor, com recurso para Congregação”
(JORNAL DA PARAHYBA, 6 de março de 1886). A questão é que
os hábitos e costumes morais empreendidos pelos sujeitos
poderiam aferir a eles maior ou menor grau de civilidade, sendo
corriqueira a sua indicação quando falamos em apontamentos
de matrícula e permanência nas aulas. Também era bastante
comum e conforme vem evidenciando a historiografia, a relação
tênue entre instrução e saúde no século XIX legitimada por
um discurso médico atento a uma prerrogativa de educação
pela higiene, como destacou Mariano (2015), sendo esse um
elemento comum, também encontrado nos mais variados textos
normativos empregados para a instrução na Província.
Tais indicativos nos fazem pensar que o aluno do Lyceu
deveria ser saudável, seguir princípios morais e no que pese a
intelectualidade, deveria ter como comprovar o seu bom desem-
penho, caso contrário estaria inapto para frequentar aquele
estabelecimento de ensino. Somado a essa questão pontual de
exigência para matrícula, Ferronato (2012, p.175), argumentou
acerca do perfil do estudante do Lyceu “ser herdeiro da aris-
tocracia provincial, do capital econômico, social, cultural e
político”. Até o ano 1886, limite do recorte aqui estabelecido,
não encontramos indícios que pudessem respaldar um contra-
-argumento para mudar consideravelmente o perfil do alunado
do Lyceu acima evidenciado, muito pelo contrário, concordamos
91
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
que a grande maioria advinha de famílias ricas e prestígio na
Província, salvo raras exceções.
Era esperado, desses discentes, uma postura condizente
com o lugar social por eles ocupado, sendo o Lyceu um espaço
de formação dos intelectos, mas também de homens civilizados.
Conforme debateu Miranda (2017), ao trabalhar as informações
presentes em alguns dos jornais provinciais em circulação na
época, o Lyceu tinha o dever de zelar a imagem de prestígio há
tempos perseguida no seio da sociedade paraibana, sendo seus
alunos exemplo e não o contrário disso.
Do ponto de vista da disciplina, identificamos no texto do
Estatuto Interno não apenas o aspecto pautado no ato punitivo,
mas também de composição de um tempo cadenciado pelos sinos
de entrada e saída das aulas, de um tempo assentado naquilo
que Foucault (2009) chamou de infrapenalidade, a saber: uma
vertente disciplinar que qualifica e reprime um conjunto de
comportamentos que estão para além do sistema de castigo por
sua relativa indiferença. A composição de ordens de comando,
a execução de regras coadunadas a proposta de atividades em
conformidade com tempos e espaços comuns ao poder disci-
plinar, foi imperativo no Estatuto Interno ao tratar dos discentes.
Das obrigações dos alunos
Art.21. Ao alumno matriculado em qualquer das aulas
do Lyceu cumpre:
§1º Apresentar-se diariamente n’aula á hora
marcada descentemente vestido, e ahi portar-se
convenientemente.
92
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
§2º Permanecer n’aula o tempo das lições, só podendo
sahir com licença do professor.
§3º Respeitar os empregados do estabelecimento, e acatar
o Reitor e os professores do mesmo, observando seus
conselhos e advertencias; e cumprindo suas ordens.
§4º Não perturbar a bôa ordem, nem os trabalhos das
aulas com gritos, vozeiras e assuadas.
§5º Tratar bem e civilmente seus colegas, assim
como as pessoas estranhas, que tiverem entrada no
estabelecimento.
§6º retirar-se do estabelecimento, logo que terminarem
os trabalhos das aulas em que estiverem matriculados
(JORNAL DA PARAHYBA, 6 de março de 1886).
De acordo com a leitura do trecho supracitado, obser-
vamos que a ordem era o caminho esperado para o alunado
do Lyceu, do vestir-se descentemente ao retirar-se das aulas
em silêncio e sem algazarra, tudo estava sendo posto como um
indicativo da boa convivência social e de hábitos respeitosos. Ao
que parece, embora a Instituição fosse um espaço de formação
digno de respeito e ordem, ainda assim, se fazia necessário
deixar registrado em documento oficial, os deveres e os direitos
dos jovens que ali frequentavam. Entendemos que isso tenha
sido feito não por acaso, mas com o propósito de regulamentar e
frear possíveis atos de indisciplina que pudessem ser cometidos
naquele estabelecimento de ensino. Portanto, a regra, talvez,
estivesse sendo apresentada como forma de contenção de
93
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
posturas inadequadas já existentes na Instituição, sendo uma
realidade posta e combatida.
Tal hipótese pode ser legitimada, ainda que em partes,
quando identificamos casos de indisciplina noticiados em
alguns periódicos da Província, realizando uma crítica de que
não é possível e nem condizente com a imagem do Lyceu, a falta
de educação ou de regramento de alguns dos seus alunos. A
indisciplina foi uma questão inerente as vivências das aulas da
Instituição e não corresponde a uma problemática apenas do
ano de 1886 que precisou ser oficializada no Estatuto Interno,
muito pelo contrário, como temos demonstrado ao longo do
texto, essa foi uma questão que sugeriu uma reflexão, seguida
de proposições legais por parte dos dirigentes envolvidos com
a boa execução da instrução pública secundária.
No §4º do artigo 21 do texto do Estatuto de 1886, o qual
chamamos atenção anteriormente, ficou evidente a prerroga-
tiva da proibição aos alunos de tratarem com falta de respeito
qualquer que fosse a pessoa que frequentasse a Instituição,
sendo ela visitante ou não. Nesse sentido, a cordialidade
para com o outro era regra e não exceção. O Lyceu além de
ser o espaço público da instrução secundária, também era na
Província paraibana um local de sociabilidades, sendo palco de
eventos culturais, a exemplo de suas festividades, das palestras
e tantos outros momentos de interação com a sociedade, nos
fazendo pensar que era comum a visita de indivíduos externas
ao estabelecimento. O próprio documento do Estatuto fez
menção a possibilidade de o Lyceu receber visitantes, desde
que houvesse uma prévia autorização do Reitor.
Art. 19. Só aos paes, tutores ou protectores dos alunos
será facultado o ingresso nas aulas para ellas assistirem,
94
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
desde que se portarem convenientemente. Qualquer
outra pessoa precisará de autorização especial do Reitor
(JORNAL DA PARAHYBA, 6 de março de 1886).
Conforme lemos no Estatuto, temos a impressão de que
havia implícito em suas regras uma necessidade de regular o
comportamento dos seus alunos dentro e fora da Instituição,
pois como já argumentamos, o Lyceu ocupava papel significa-
tivo no projeto civilizador empreendido na Província, sendo a
ele imputada uma imagem de respeito, um templo de minerva6.
Como evidenciou Foucault (2009, p. 83) “É portanto necessário
controlar e codificar todas essas práticas ilícitas. É preciso que
as infrações sejam bem definidas e punidas com segurança”.
Temos no Estatuto Interno, pensando nessa corre-
lação – infração, punição –, o Capítulo IV intitulado, Das Penas
Disciplinares. A ideia foi deixar saber quais as punições previstas
para os alunos, fazendo referência aos delitos por eles cometidos,
a exemplo dos “gritos, vozeiras e assuadas” durante as aulas. Cabe
evidenciar que não eram permitidas punições físicas, somente
punições morais e seguindo um certo grau de intensidade, a
depender do ato de indisciplina que a caracterizaria.
Art. 22 O alumno do Lyceu, que infringir as disposi-
ções do capitulo antecedente, ficará sujeito ás penas
seguintes:
1º Admoestação particular.
2º Reprehensão n’aula.
6 Expressão utilizada no Jornal da Parahyba, 1 de março de 1887.
95
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
3º Communicação aos Paes.
4º Exclusão ate uma semana.
5º Exclusão até trez mezes.
6ºExclusão definitiva.
(JORNAL DA PARAHYBA, 6 de março de 1886).
Havia uma ordenança de poder ancorada nos sujeitos
a quem caberia aplicar essas penas, sendo os dois primeiros
indicativos, repreensão pública e particular, associados à figura
do Reitor e dos professores, não sendo permitido ao aluno
recurso. Também era de responsabilidade do Reitor as penas
que previam o comunicado aos pais e a suspensão de até uma
semana de aula. Contudo, seriam os dois últimos pontos os mais
graves, pois os alunos não só seriam expulsos temporária ou
definitivamente das aulas, como a eles passaria a ser proibida a
entrada no estabelecimento, o que nos pareceu ser uma punição
bastante pesada, pois, conforme dissemos anteriormente, o
Lyceu Parahybano era um espaço de sociabilidades na Província
e proibir o acesso as suas dependências era também ceifar, em
partes, a possibilidade de troca de conhecimentos diversos e de
convivência social desses jovens moços.
Para Schüeroff e Silva (2017), a disciplina representa
um elemento importante na composição de educação escolar,
uma vez que acaba por exercer um poder sobre os corpos, de
modo a ampliar a sua produtividade e sua utilidade. Essa é uma
questão que devemos levar em consideração, sobretudo quando
tratamos de uma Instituição no século XIX, ancorada em valores
96
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
morais e pautada em um currículo humanista, que tinha na
apropriação do conhecimento um instrumento de valor social
e na conformação dos corpos uma expressão real da conduta
civilizada. Nessa direção, o argumento disciplinar proposto no
Estatuto Interno de 1886, não apenas legitimava os objetivos do
Lyceu Parahybno de formação de parte de uma elite intelectual
na Província, mas também estava em concordância com um
ideário propagado nos oitocentos brasileiro de formação do
homem civilizado.
Os dispositivos referentes aos deveres e às penas discipli-
nares que chamamos atenção no Art. 22 do Estatuto Interno de
1886, em muito se assemelham ao que estava sendo proposto
para a instrução primária em fins do século XIX, pois, como
dissemos no início deste texto, identificamos para esse período
um movimento de transformação do ato punitivo, sendo os
castigos físicos objeto de debate e ressignificação pedagógica
nos documentos legais da instrução paraibana. Contudo, a
ordem estava atrelada à harmonia dos ambientes de aula, sendo
necessário o estabelecimento de regras que se não prevenisse
por completo o ato de indisciplina, o punia como forma de
controle dos sujeitos, seja pelo medo ou pelo exemplo.
Como diria Foucault (2009, p. 100): “A arte de punir deve
portanto repousar sobre toda uma tecnologia da representação”.
O ideal anunciado no documento do Estatuto, no que pese ao
ato punitivo, nos pareceu ter se amparado nessa “tecnologia
da representação”, ao passo que repreende, suprime e exclui
de modo particular, mas sobretudo publicamente. O castigo
tolerável não precisava machucar o corpo físico, cabia, pois,
encontrar a sua desvantagem e tornar sem atração a ideia do
delito. De certa maneira defendemos ter sido essa a estratégia
traçada pelo Estatuto Interno do Lyceu de 1886, muito embora
97
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
tenhamos a consciência de que se tem algo a ser regulamentado
é porque, talvez, haja uma necessidade real da sua oficialização,
ou seja, a uma relação tênue entre a norma e a transgressão e
na instrução pública secundária paraibana não foi diferente.
4 Considerações finais
O que nos foi possível apreender dos Estatutos do Lyceu
Parahybano de 1846 e 1886 foi que havia uma preocupação,
quando dos apontamentos disciplinares, em corrigir os sujeitos
infratores, associada a ideia de que essa era uma Instituição
que tinha como propósito a formação tanto moral, quanto
intelectual de parte da juventude paraibana. Ao que parece a
disciplina foi um elemento utilizado para organizar e regular
não apenas as estruturas do prédio e dos ambientes de aulas da
instrução secundária, mas também para projetar nos corpos o
preceito de boa educação, de sujeitos respeitadores e atentos
a execução de hábitos e costumes validados na sociedade.
Portanto, se fazia necessário normatizar e regular os preceitos
punitivos, corrigir comportamentos destoantes da proposição
de homem civilizado.
A disciplina no Lyceu Parahybano esteve associada a um
procedimento de modelação social, sendo infração, correção e
premiação elementos próprios de um ritual simbólico pautado
por uma economia calculada e regulamentada dos sujeitos e
dos espaços da instrução, que no caso do Lyceu estavam para
além da sua delimitação espacial, uma vez que a vigilância do
comportamento do seu alunado junto ao corpo social, acabava
respingando na imagem construída da e para a Instituição, de
98
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
ser ela um espaço de progresso e ambiente de socialização de
pessoas e ideias na Paraíba oitocentista.
De 1846 a 1886, ficou evidente uma mudança do ideal
punitivo, que deixou de se referenciar exclusivamente pelo
suplício da carne e passou a uma proposição coadunada ao
castigo moral como sendo o aceitável e o válido na Província
em fins do século XIX. Concluímos dizendo que, tanto a norma
quanto a transgressão fizeram parte do processo de disciplina-
rização da Instituição para com seus alunos e demais sujeitos
instrucionais a ela atrelados.
99
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
Referências
ARAÚJO, Rose Mary de Souza. Escola Normal na Parahyba do
Norte: movimento e constituição da formação de professores no
século XIX. 2010. 320f. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de
Educação, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1.
BRASIL. Estatuto Interno do Lyceu Parahybano
de 1886. Paraíba: Tipografia Parahyabana, 1886.
Jornal da Parahyba, 6 de fevereiro de 1886.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. 2.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A legislação escolar
como fonte para a História da Educação: uma tentativa
de interpretação. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de
(org.). Educação, modernidade e civilização: fontes
e perspectivas de análise para a história da educação
oitocentista. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 1998. p. 89-125.
FERRONATO, Cristiano de Jesus. Das aulas avulsas ao
Lyceu Provincial: as primeiras configurações da instrução
secundária na Província da Parahyba do Norte (1836-1884).
2012. 279f. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de Educação,
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012.
100
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
FERRONATO, Cristiano de Jesus. Das aulas avulsas
ao Lyceu Provincial: as primeiras configurações da
instrução secundária na Província da Parahyba do Norte
(1836-1884). Aracajú: Editora Oficial do Estado de Sergipe
– EDISE; Aracaju: Universidade Tiradentes, 2014.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de
Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
FRAGO, Antonio Vinão; ESCOLANO, Austín. Currículo,
espaço e subjetividade: a arquitetura como
programa. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
MARIANO, Nayana Rodrigues Cordeiro. Educação pela
higiene: a invenção de um modelo hígido de educação
escolar primária na Parahyba do Norte (1849-1886). 2015.
254f. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de Educação,
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015.
MENEZES, José Rafael de. História do Lyceu Parahybano.
João Pessoa: Editora Universitária, 1982. 272 p.
MIRANDA, Itacyara Viana. Instrução, disciplina e civilização:
uma perspectiva de leitura acerca das aulas públicas e particulares
na Parahyba do Norte (1860-1889). 2012. 149f. Dissertação
(Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras
e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012.
MIRANDA, Itacyara Viana. Tradição gloriosa: Lyceu
Parahybano, uma história de protagonismos (1886-1923). 2017.
263f. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de Educação,
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.
101
ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO:
PRÁTICAS DISCIPLINARES NA INSTRUÇÃO PÚBLICA SECUNDÁRIA PARAIBANA (1883-1886)
PARAHYBA DO NORTE. Jornal da Parahyba, 1 de
março de 1887. Disponível em: Arquivo IHGP.
PARAHYBA DO NORTE. Gazeta da Parahyba, 2 de
outubro de 1889. Disponível em: Arquivo IHGP.
PARAHYBA DO NORTE. Jornal da Parahyba, 4 de
maio de 1886. Disponível em: Arquivo IHGP.
PARAHYBA DO NORTE. O Solicito, 27 de julho de
1867. Disponível em: Biblioteca Nacional – RJ.
PARAHYBA DO NORTE. Relatório apresentado à Assembléa
Legislativa Provincial da Parahyba do Norte. Apresentado
pelo excelentíssimo presidente da Província, o bacharel João
Antonio de Vasconcellos, em o 1º de agosto de 1849. Parahyba,
Typ. de José Rodrigues da Costa, 1849. Disponível em: http://www.
crl.edu/brazil/provincial/paraíba. Acesso em: 24 nov. 2011.
PARAHYBA DO NORTE. Relatório apresentado à Assembléa
Provincial da Parahyba do Norte. Apresentado pelo
excelentíssimo Vice-Presidente da Província o Dr. Flavio
Clementino da Silva Freire na abertura da sessão ordinária
em 5 de agosto de 1853. Disponível em: http://www.crl.edu/
brazil/provincial/paraíba. Acesso em: 24 nov. 2011.
PARAHYBA DO NORTE. Relatório apresentado à Assembléa
Legislativa Provincial da Parahyba do Norte. Apresentado
pelo Presidente, Dr. Francisco Araujo Lima, no dia 31 de maio de
1862. Parahyba, Typ. de J.R. da Costa, 1862. Disponível em: http://
www.crl.edu/brazil/provincial/paraíba. Acesso em: 24 nov. 2011.
102
CRISTIANO FERRONATO / ITACYARA VIANA MIRANDA
PARAHYBA DO NORTE. Relatório apresentado à Assembléa
Legislativa Provincial da Parahyba do Norte. Apresentado
pelo 1.º Vice-Presidente, Exm. Sr. Dr. Felisardo Toscano
de Brito, em 3 de agosto de 1866. Parahyba, Typ. Liberal
Parahybana, 1866. Disponível em: http://www.crl.edu/
brazil/provincial/paraíba. Acesso em:24 nov. 2011.
PARAHYBA DO NORTE. Relatório apresentado à Assembleia
Legislativa Provincial da Parahyba do Norte. Apresentado pelo
Presidente da Província, Herculano de Souza Bandeira, em 1 de
agosto de 1886. Paraíba: Tipografia Liberal, 1886. Disponível em:
www-apps.crl.edu/brazil/provincial/Paraíba. Acesso em: 04 jun. 2014.
PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira; CURY, Cláudia
Engler (org.). Leis e Regulamentos da instrução da
Paraíba no período Imperial. Brasília/DF: MEC/|
103
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES
NO MUNDO DO TRABALHO:
PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA
DE APRENDIZES ARTÍFICES
DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
Marcondes dos Santos Lima1
Mauricéia Ananias2
Resumo: O texto apresenta as práticas escolares de ofícios e
de militarização que foram prescritas à Escola de Aprendizes
Artífices de Alagoas/BR entre o período de 1909 a 1930. O acervo
documental mobilizado compõe-se de jornais, leis, imagens e
relatórios da Escola referentes ao recorte temporal estudado.
O tratamento das fontes baseou-se no exercício de demonstrar,
pela mediação da documentação, o que estava prescrito na
1 Mestrado em Educação, com especialidade em História da Educação, pela
Universidade Federal da Paraíba (2020). Especialista em Ensino de História
pelo Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da Universidade
Federal de Alagoas (2020). Graduação em Pedagogia pelo Centro de Educação
da Universidade Federal de Alagoas (2018).
2 Professora Associada do Centro de Educação e membro do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. Doutorado em
História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Mestrado em
História da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Licenciatura
em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1994).
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
legislação federal e as práticas materializadas pela Instituição.
A análise deu a ver o contexto do universo do trabalho no
Estado alagoano da Primeira República apontando o lugar social
que os alunos possuíam pela experiência escolar que tiveram.
Detectou-se à época que havia uma indústria e comércio em
atividades e o que os alunos da Escola de Aprendizes exerciam
cargos nas profissões da cidade indicando a inserção dos
meninos pobres no universo do trabalho por meio do aprendi-
zado elementar de um ofício em atendimento à economia local.
Palavras-chave: Práticas de ensino profissional. Escola
de Aprendizes Artífices de Alagoas. Meninos pobres.
A fundação da Escola de Aprendizes
Artífices no Estado de Alagoas
A Escola foi criada em decorrência da promulgação do Decreto
nº 7. 566, de 23 de setembro de 1909, assinado pelo presidente da
República, na época, Nilo Peçanha. O regulamento estabelecia
a criação de 19 Escolas de Aprendizes Artífices nas capitais dos
Estados da federação, como registrado no artigo 1º:
Art. 1º - Em cada uma das capitaes dos Estados da República
o Governo Federal manterá, por intermedio do Ministerio
da Agricultura, Industria e Commercio, uma Escola de
Aprendizes Artifices, destinada ao ensino profissional
primario gratuito (BRASIL, 1909).
105
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
Em 21 de janeiro de 1910, quatro meses após a criação da lei,
a EAA-AL3 foi instalada. A espera foi justificada pela necessidade
de reformas para transformar um prédio com boas condições de
infraestrutura para abrigar a nova Instituição no Estado.
Apesar das grandes dificuldades que tive de vencer
para transformar e adaptar os predios acima mencio-
nados, consegui inaugurar a Escola a 21 de Janeiro
do corrente anno sem prejuizo dos trabalhos de
adaptação e funcionamento regular dos trabalhos
escolares. (NOGUEIRA, 1910, p. 2).
Nos dizeres de Verçosa (1997), a EAA-AL foi a semente
do ensino técnico-industrial no Estado. Para Santos (2016),
a criação das EAA’s converteu o pensamento industrial em
medidas educacionais. Por sua vez, Cunha (2005) concebeu-as
como sendo a experiência mais marcante desse tipo de ensino
na Primeira República.
O presidente da república defendeu a instalação das
escolas, pois o
[...] augmento constante da população das cidades
exige que se facilite ás classes proletarias os meios de
vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela
existencia: que para isso se torna necessario, não só
habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com
o indispensavel preparo téchnico e intelectual, como
faze-los adquirir habitos de trabalho proficuo, que os
afastará da ociosidade, escola do vicio e do crime; que
é um dos primeiros deveres do Governo da Republica
formar cidadãos uteis à nação (BRASIL, 1909).
3 Na narrativa tanto a sigla EAA-AL (Escola de Aprendizes Artífices de
Alagoas) como EAA’s (Escola de Aprendizes Artífices) serão utilizadas.
106
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
Cunha (2005), ao analisar a justificativa, teceu críticas ao
Decreto nº. 7.566 de 1909, como segue no fragmento abaixo, que
mesmo sendo longa a sua transcrição possibilita pensarmos as
finalidades definidas para a EAA-AL.
Difícil ser mais explícito do que isso na apresentação
dos propósitos das escolas profissionais que então
se criavam. A formação de força de trabalho qualifi-
cada para fazer frente às exigências do processo de
industrialização estava ausente, apesar de ter sido
manifestada reiteradamente, nos anos seguintes, pelo
presidente Nilo Peçanha e pela burocracia ministerial
a que essas escolas estavam afetas. Nas considerações
do decreto essa finalidade foi substituída por algo mais
amplo – ‘formar cidadãos úteis à Nação’. No entanto,
outros motivos constantemente proclamados antes e
depois da criação dessas escolas estavam presentes no
texto acima. Antes de tudo, os destinatários, apontados
como as ‘classes proletárias’ ou os ‘filhos dos desfavo-
recidos da fortuna’. Em seguida, a tendência que esses
destinatários teriam de permanecer na ociosidade,
situação definida como ‘escola do vício e do crime’.
Finalmente, a pedagogia corretiva que se atribuía às
escolas de aprendizes, de ‘fazê-los adquirir hábitos
de trabalho profícuo’, além, é claro, do ‘indispensável
preparo técnico e intelectual (CUNHA, 2005, p. 66).
A finalidade anunciada era uma formação para o trabalho
que atendesse às novas exigências da indústria nascente a partir
do ideal de “formar cidadãos úteis à nação”. O sentido que Nilo
Peçanha e sua equipe atribuíram a esse conceito aplica-se ao
entendimento de que o pobre só se tornaria um cidadão desde que
adquirisse “hábitos de trabalho profícuo” que os habilitaria para
o bom desempenho nas fábricas e bom comportamento nas ruas.
107
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
No decreto citado lê-se que a criação das escolas contri-
buiria para a resolução de dois problemas sociais. O primeiro,
residia no aumento crescente da população dos grandes centros
por efeito do processo de surto de industrialização e urbani-
zação que começava a tomar corpo em algumas regiões do país.
Esse processo, em Alagoas, viria a ser observado a
partir de meados da segunda década do século XX em diante
(TENÓRIO, 2009). No primeiro recenseamento realizado no
período republicano, em 1890, a capital de Alagoas, cidade
de Maceió, acusava nos dados estatísticos uma população
estimada em 31.498 habitantes. Tempos depois, em 1910 (ano
da fundação da EAA-AL), a população aumentou em 5 mil
habitantes, chegando a uma média de 36. 500 alagoanos. A
partir desses dados, Diegues Jr. (2001, p. 155) concluiu que “[...]
o movimento demográfico da cidade no período republicano,
cresceu de modo rápido, ampliando em proporções expressivas
os números absolutos”. Ressaltar que tais dados incidiam sobre
o perfil da população de Alagoas conduz ao segundo problema
social apontado: a criminalidade que tendia a seduzir a infância
e mocidade pobre.
Um ano antes da criação da escola, em 1908, os jornais
locais testemunhavam em suas páginas a condição social dos
filhos dos operários. Um exemplo disto foi o artigo intitulado
Meninos Vagabundos. A partir dessa nota jornalística percebe-se
que a imprensa incorporou, à época, um discurso que associava
a marginalidade às classes populares e de como isto se tornou
um problema social explicado sob a ótica da elite maceioense.
Ou seja, ser classificado como perigoso à ordem e o progresso
não residiria necessariamente no ato de infração à lei, antes
poderia estar ligado tão somente a condição socioeconômica
do indivíduo (MACIEL, 2009).
108
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
A legislação prescreveu os critérios para a admissão dos
alunos na EAA-AL baseados na condição social, faixa etária e
condição física.
Art. 6º - Serão admitidos os individuos que o reque-
rerem dentro do prazo marcado para a matricula e
que possuirem os seguintes requisitos, preferidos os
desfavorecidos da fortuna:
a) idade de 10 annos no minimo e de 13 annos no
máximo;
b) não sofrer o candidato de molestia infecto-conta-
giosa, nem ter defeitos que o impossibilitem para o
aprendizado de officio (BRASIL, 1909).
A preferência foi dada aos meninos pobres, embora a
pobreza fosse um estado em que nenhum indivíduo quisesse se
encontrar, para os candidatos foi um dos meios possíveis para a
aprendizagem de um ofício. A condenação da miséria pelo discurso
liberal como um entrave para o progresso fazia dela a porta de
ingresso para o mundo da civilização. As justificativas deram a
ver a intencionalidade em criar a EAA-AL: tornar as crianças das
classes populares trabalhadoras para atender o projeto de disci-
plinamento e enquadramento ao universo do Capital.
109
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
As práticas de ensino de ofícios:
a produção de pequenos
operários e contramestres
O modelo de formação profissional
[...] Nas Escolas de Aprendizes Artífices, custeadas pela
União, se procurará formar operarios e contra-mestres,
ministrando-se o ensino pratico e os conhecimentos
techinicos necessarios aos menores que pretenderem
aprender um officio” (BRASIL, 1909).
Conforme a legislação federal, a EAA-AL poderia instalar
em suas dependências até o número de 05 oficinas de caráter
manual e/ou mecânico. O critério utilizado para defini-las foi
o de considerar as demandas da produção local para atender a
economia dos seus respectivos estados.
Art. 2º - havendo para isso até o número de cinco
officinas de trabalho manual ou mecanico que forem
mais convenientes e necessarios no Estado em que
funccionar a escola, consultadas, quanto possivel, as
especialidades das industrias locaes (BRASIL, 1909).
Quanto à definição de quais oficinas seriam instaladas,
segundo Cunha (2005), isto representava uma liberdade de
ensino conferida às escolas. Na EAA-AL, em 1910, o diretor
Guedes Nogueira registrava: “[...] montei cinco officinas e isto
attendendo ás necessidades industriaes do Estado e seu desen-
volvimento” (NOGUEIRA, 1910, p. 6). Sapataria, Marcenaria,
110
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
Serralheria, Carpintaria e Funilaria foram escolhidas por
Alagoas que reclamava a necessidade de mão de obra para a
sua indústria manufatureira.
No Ceará, além dessas, a de Tipografia em atendimento
ao ramo de impressão de pequeno porte existente no estado
(MADEIRA, 1999).
O tempo do aprendizado foi definido pelo diretor e regis-
trado no programa de ensino:
Art. 3º – O curso de officinas durará o tempo que for marcado
no respectivo programma, approvado pelo ministro sendo
o regimen da escola o de externato, funccionando das 10
horas da manhã ás 4 horas da tarde (BRASIL, 1909).
Os alunos passavam praticamente todo o dia e parte da
noite na escola, pois além das oficinas que duravam 6 horas
de aulas, tinham que frequentar os cursos noturnos, o do
primário e desenho, das 17:00 às 20:00, somando um total de 9
horas diárias, consequentemente impedidos de ajudarem suas
famílias no sustento da casa.
Assim, foi possível compreender porque os pais e mães
não enxergaram proveitos em ter os filhos na escola, tanto pela
extensão dos cursos - 4 anos, assim como pela quantidade das
aulas - 9 horas.
O tempo institucionalizado pela EAA-AL não era neutro,
pois funcionava como uma espécie de pedagogia que viabilizava
o inculcamento de comportamentos e representações tidas
como ideais para os artífices (FRAGO, 1995). Faria Filho e Vidal
(2000, p. 21), demonstraram a importância das configurações
do tempo escolar na institucionalização do ensino primário no
país: “Daí, dentre outros aspectos, a sua força educativa e sua
111
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
centralidade no aparato escolar” nos anos e horas de formação
que os alunos eram submetidos a um programa de ensino que
preconizava a fabricação de operários e contramestres.
À medida que a escola foi ocupando um espaço especí-
fico houve uma ação daqueles que defendiam a prioridade da
educação escolar em detrimento de outros grupos de sociali-
zação como a família, por exemplo. E o tempo escolar foi um dos
elementos que definiu os limites da casa e da escola, delineando
as características de uma luta entre o governo do Estado contra
o governo da Casa (FARIA FILHO; VIDAL, 2000). “O problema é
que, ao longo de sua evolução, a escola tornou-se mais do que
uma simples instituição de apoio à família: ela posicionou-se
contra a família!” (CUNHA, 2016, p. 450).
O diretor juntamente com os professores/as dos cursos
primário e desenho e os mestres das oficinas elaboraram um
programa de ensino que, em seguida, foi submetido à avaliação
do ministro e, depois de aprovado, aplicado na instituição.
Aos meninos era ensinada a construção de móveis para
o consumo, provavelmente, das camadas médias urbana da
população. Na oficina de marcenaria confeccionaram vários
artefatos como mesas de cozinha, estantes, carteiras, bancos,
camas, armários e cômodas anunciados na imprensa, em espe-
cífico nas seções de vendas de comércio, à parte da sociedade
alagoana (ANDRADE, 1916).
CASA RAMALHO – MACEIÓ
21 e 23 Rua do Commercio
SALA DE VISITA RECLAME
6 Cadeiras...............
1 Sofá..............
2 Cadeiras de braço........... 200$000
112
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
1 porta bibelot.............
1 Columna..........
11 peças................
SALA DE JANTAR RECLAME
12 Cadeiras.......
1 Meza............
1 Guarda Louça............. 380$000
1 Guarda comida
1 Aparador..............
16 Peças.................
QUARTO RECLAME
1 Cama de Casal...........
1 Meza de Cabeceira.............
1 Guarda Roupa................... 350$000 4
1 Lavatrio...................
4 Peças.................
(Jornal de Alagoas, 5 de julho de 1917, p. 2.).
Outro anúncio publicizava um estabelecimento comercial
de móveis: “Cadeiras, sofás, cestas para papeis e roupas sujas,
somente no Armazem dos Moveis, á rua do Commercio ns. 37 e
39 – preços sem competência” (JORNAL DE ALAGOAS, 1 de julho
de 1916, p. 3). Assim, entende-se que a Capital dispunha de um
comércio de móveis de madeiras que usava a força de trabalho
dos meninos artífices. As lojas poderiam comprar diretamente
da oficina de marcenaria da EAA-AL os fabricos que ali eram
produzidos atendendo aos interesses da população média urbana.
4 Valores totais de cada conjunto.
113
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
Talvez por isso, assim que eles aprendiam precocemente as
técnicas de produção, saíam da escola sem precisar completar
os 04 anos de formação a fim de ganharem algum dinheiro para
cooperar no sustento das suas casas (NOGUEIRA, 1910).
Figura 1 - Os aprendizes artífices na oficina de Marcenaria da EAA-AL
Fonte: Fotógrafo desconhecido, 1911. Acervo: IFAL.
A fotografia revela os meninos artífices em uma aula
de marcenaria e recebendo as orientações do mestre Manoel
Cyrino de Sant’Anna. A imagem denuncia que o ensino profis-
sional da EAA-AL ocorria no chão, sem mesas adequadas para
o corte e fabricação dos móveis. No momento do registro havia
aproximadamente 19 alunos, distribuídos pelo galpão, estando
03 em pé e os demais sentados.
Segundo a legislação, os meninos cursariam a oficina
com a qual tivessem aptidão e inclinação: “Art. 7º – A cada
requerente será apenas facultada a aprendizagem de um só
offício, consultada a respectiva aptidão e inclinação” (BRASIL,
1909). Quem determinava a aptidão? Os meninos ou a direção?
114
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
Será que aos pais e mães era facultado o direito de escolherem
qual ofício os seus filhos aprenderiam? Ou, é possível supor que
sujeitos entre 10 a 13 anos tinham voz para dizer qual trabalho
gostariam de exercer no futuro? Supostamente, eles aprendiam
o que lhes eram imposto.
A defesa da aptidão como critério para as escolhas de
estudo e emprego era fundamentada nos postulados da ciência,
mais especificamente, da biologia. À época apregoava-se que a
educação dos pobres deveria ser direcionada ao trabalho, sem
dar a esses/as a liberdade de escolherem quais profissões gosta-
riam de exercer. Dessa forma, as supostas aptidão e inclinação
estiveram limitadas às artes mecânicas e/ou manuais.
O estigma em relação ao trabalho manual associado
ao sujeito negro que tinha a sua força de trabalho explorada
pelos fazendeiros, donos de terras e comerciantes manteve-se
em nossa sociedade até os dias atuais. Fez-se acreditar que o
trabalho que exigia força física deveria ser exercido pelos indi-
víduos de cor e, por isto, os pertencentes à etnia branca e aos
abastados afastavam-se das profissões braçais como forma de
reafirmarem a sua condição social de superioridade (SANTOS,
2016). Na EAA-AL, à época de sua inauguração, a maioria dos
alunos eram negros, sendo 22 de cor preta; 46, trigueiros
(mestiços e/ou pardos) e 25 brancos.
No início do século XX, na Capital, a população trabalha-
dora era maciçamente composta por negros/as e mestiços/as
que atuavam em vários bairros como Jaraguá; Poço; Trapiche da
Barra; Levada e Bebedouro. No entorno de Jaraguá, especifica-
mente próximo ao porto, era frequente suas presenças, inclusive
trabalhadores/as recém- libertados/as da escravidão (SENA, 2018).
Na oficina de sapataria havia níveis de aprendizado na
produção de sapatos, do mais modesto para o mais sofisticado.
115
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
Nas aulas práticas os meninos confeccionavam vários tipos
de calçados desde o chinelo e sandálias simples de couro para
homens e crianças até as botinas para as senhoras (ANDRADE,
1916). Disso, depreende-se que a oficina atenderia as necessi-
dades da população das camadas mais baixas e medias urbanas.
Muitos relatos apontaram que quando os meninos aprendiam
a fazer os modelos mais simples em dois anos – na metade do
curso – saiam da escola e se tornavam autônomos ou eram
empregados nas fábricas de sapatos. No centro da capital os
anúncios dos jornais apontavam a
Sapataria Paschoal
-DE-
Luiz Gazzaneo de Raph (letra ilegível) el
Grandes sortimento de Calçados para senhoras e crianças
Saltos de borrachas para homens e
senhoras, acaba de receber a Sapataria Paschoal
Rua do Commercio, 146 ---- Maceio- Alagoas
( Jornal do Commercio, 10 de setembro de 1917, anno II, nº
61, p. 2).
No início da República, o comércio local se caracterizava
como diversificado em serviços ofertados à população, assim
como era multifacetados os perfis dos sujeitos que comercia-
lizavam os produtos nos armarinhos, mercearias e lojas de
sapatos. A dimensão da estrutura física onde eram realizadas as
atividades e, sobretudo, as condições de aprendizagem a que os
alunos estavam submetidos podem ser visualizadas na fotografia
localizada entre as folhas do relatório da Escola de 1913.
116
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
Figura 2 - Os aprendizes artífices na oficina de Funilaria.
Fonte: Fotógrafo desconhecido, 1913. Acervo: IFAL.
A cena aponta que eles estavam aprendendo em pé e
distribuídos em grupos, tudo indica, de três, pois nas primeiras
mesas dos lados esquerdo e direito vê-se reunido um trio manu-
seando os equipamentos. Naquele ano o mestre da oficina era José
Vicente Tatá e que, segundo o diretor Joaquim Goulart de Andrade,
cumpria satisfatoriamente a sua função (ANDRADE, 1913).
Em nota publicada no periódico Evolucionista de 1905
houve a seguinte informação: “Nesta redação informa-se
quem precisa de um menino de bôa família para caixeiro dum
estabelecimento de importação” (O EVOLUCIONISTA, ano IV,
n. 3, 2 de janeiro de 1905). Não se sabe ao certo o significado
da expressão “bôa familia”, mas o que tudo indica era que
esses meninos procurados pelo jornal eram de origem pobre,
pois a profissão de caixeiro era uma ocupação exercida pela
classe trabalhadora no início do século XX (MACIEL, 2011). Daí
foi possível deduzir que no início da República havia casos de
meninos que trabalhavam na cidade de Maceió como caixeiro,
117
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
por exemplo. E que possivelmente eram os alunos da EAA-AL
que ocupavam esses postos de trabalho na capital alagoana.
Em 17 de janeiro de 1891 foi promulgado o Decreto nº
1.313, que regularizava o trabalho de menores nas fábricas.
Art. 4º - Os menores do sexo feminino de 12 a 15 anos e
os do sexo masculino de 12 a 14 só poderão trabalhar no
maximo sete horas por dia, não consecutivas, de modo
que nunca exceda de quatro horas o trabalho continuo,
e os do sexo maculino de 14 a 15 annos até nove horas,
nas mesmas condições (BRASIL, 1891).
A partir de então a idade mínima para se trabalhar nas
fábricas, indústrias e oficinas era a de 12 anos de idade. Embora
o decreto tenha servido como lei basilar que regularizava as
questões concernentes ao emprego da força de trabalho dos
menores no país (BARBOSA, 2015), supostamente em Alagoas
havia casos de comerciantes e industriais que não respeitavam
o prescrito. Esse problema advinha da própria legislação, pois
“[...] este Decreto deixava brechas as quais eram facilmente
burladas pelo patronato da época tanto na contratação quanto
na utilização da força de trabalho de menores de 12 anos”
(BARBOSA, 2015, p. 85).
Mesmo tendo ações legais sancionadas a fim de aplacar
a exploração de crianças, como o Código Sanitário de 1894, que
normatizou o trabalho infantil, e o regulamento do Serviço
Sanitário de 1911 determinando a proibição do trabalho de
menores de doze anos e vedando que antes de dezoito anos os
jovens atuassem no turno da noite, concluiu-se que a lei era frágil
na sua execução indicando que poucos industriais obedeciam
às regras. Assim, no período pós-abolição em Maceió, havia a
presença de uma infância pobre em postos de trabalho. Isto, por
118
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
seu turno, desmistifica a tese tradicional da historiografia social
do trabalho de que o trabalhador do início do século passado era
somente o adulto e imigrante (LARA, 1998).
Um jornalista do periódico Gutenberg publicou, em 04 de
março de 1911, um artigo em que se reportava a visita feita à
EAA-AL. Ele testemunhou a existência de um mostruário que
seria levado para a Exposição Internacional de Turim e de Roma
onde os alunos representariam Alagoas naquele ano (Gutenberg,
04 de março de 1911, p.04, 1911). As referidas exposições serviam
como “[...] síntese e exteriorização da modernidade dos ‘novos
tempos’ e como vitrine de exibição dos inventos e mercado-
rias postos à disposição do mundo pelo sistema de fábricas”
(PESAVENTO, 1997, p. 14).
A imagem indica a produção dos meninos e demonstra a
habilidade adquirida em marcenaria e as possibilidades para que,
ao saírem da escola, pudessem encontrar um trabalho remunerado.
Figura 3 - Artefato cultural produzido pelos artífices
Fonte: Fotógrafo desconhecido, 1929. Acervo: IFAL.
119
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
Tal ensino se fundamentava na ideia do “[...] aprender
fazendo trabalhos de utilidade imediata” [...] (CUNHA, 2005, p.
76). Ainda que esse modelo tenha sido incorporado na EAA-AL,
não obstante havia aqueles que o criticavam por justificarem
que era difícil conciliar a educação com a produção por ocasião
de a primeira ser subordinada à segunda (CUNHA, 2005).
Os resultados do trabalho dos artífices não foram
positivos no primeiro ano. Registrou-se que algumas oficinas
apresentaram déficits na produção como a de sapataria, por
exemplo. Foram vendidos calçados mal confeccionados pelos
aprendizes e que, consequentemente, não puderam alcançar o
preço do mercado que compensasse o valor da matéria prima
utilizada na manufatura (NOGUEIRA, 1910).
Ao buscar justificar a ocorrência, o diretor explicou ao
Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio que a causa do
problema foi decorrente da limitada idade dos meninos, assim
como por se tratar de uma Instituição que estava em fase de
organização. Além disto, ele dizia que as oficinas não renderam
como o esperado em virtude de sua preocupação ter sido fami-
liarizar os artífices com os elementos mais rudimentares das
artes das oficinas preparando-lhes o espírito para o gosto de
produzirem (NOGUEIRA, 1910).
A produção permitiu que a EAA-AL tomasse feições de
um estabelecimento do tipo mercantil e os alunos assumissem
papéis de operários e contramestres nas oficinas. Havia uma
liberalidade, admitida pelo regulamento de 1918 e ratificada nos
Dispositivos Concernentes às EAA’s, entre a aprendizagem e o
objeto de venda. Muitas vezes a formação profissional ofertada
na EAA-AL assumia ares semelhantes ao das indústrias, pois
120
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
[...] desenvolve-se mediante processos sistemáticos e
estritamente regulamentados, destinados a produzir
uma formação padronizada, de resultados previsíveis e
controláveis, em geral voltada para um grande número
de jovens (CUNHA, 2005, p. 2-3).
O trabalho nas oficinas ocorria dentro de um tempo orde-
nado e regulado pelo ritmo da indústria seguindo o escopo do
Serviço de Remodelação traduzido nos artigos da Consolidação
dos Dispositivos Concernentes às EAA’s:
Nesta ordem de idéas, procurou-se incrementar a produção
industrial das officinas escolares, facultando-lhes o
recebimento de encommendas, mediante fornecimento
da materia prima pelo interessado e pagamento directo
dos operarios extranumerarios indispensaveis ao prompto
acabamento dos trabalhos, sem descurar, entretanto, os
interesses do ensino (BRASIL, 1925, p. 505).
E, ainda a
Absoluta necessidade de dar vida industrial ás officinas
escolares constitue, actualmente, materia vencida na
opinião de technicos e dirigentes, pois a todos se afigura
imprescindivel que o alumno pratique nos officios,
executando objectos uteis, vendaveis e, como artifice,
seja remunerado (BRASIL, 1925, p. 505).
A lógica industrial influenciou na organização da EAA-AL
desde a otimização do tempo até o condicionamento dos
corpos frágeis dos meninos que estariam sendo submetidos a
um regime de produção intenso, como é possível perceber na
fotografia que segue.
121
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
Figura 4 - Alunos artífices na oficina de alfaiataria
Fonte: Fotógrafo desconhecido, 1927. Acervo: IFAL.
Observa-se que as atividades da oficina de alfaiataria
eram realizadas em uma sala não muito espaçosa e com 12
alunos. As lentes do fotógrafo conseguiram captar o momento
exato em que os meninos estavam posicionados de rosto para a
máquina produzindo conforme as orientações do mestre. Esse,
por sua vez, está à frente dos aprendizes e no canto esquerdo
superior cosendo um tecido sobre a mesa de costura. Dentre
as atribuições,
Art. 15º – Os mestres de officinas deverão ensinar a
arte ou officio a seu cargo em todos os seus detalhes,
de modo que os aprendizes fiquem habilitados a execu-
tal-os não só na officina como fora dela. 1) organizar
os projetos e orçamentos dos trabalhos escolares e
das encomendas; 2) visar os orçamentos organizados
pelos contra-mestres e alunos que trabalharem na
execução dos artefatos; 3) distribuir os serviços pelos
contra-mestres e alunos, de acordo com a capacidade
122
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
dêstes; 5) fiscalizar o ensino ministrado pelos contra-
-mestres e ministrá-lo diretamente, ficando a seu cargo,
sobretudo, a tecnologia e o desenho industrial de sua
secção; 6) escriturar, em livro especial, todos os nomes
dos alunos, com indicação dos exercícios e trabalhos
que realizarem, mencionando as respectivas datas, as
notas merecidas, além de referências aos projetos e
orçamentos por eles elaborados (BRASIL, 1918).
Embora não se possa afirmar que as normas e práticas
prescritas foram efetivamente obedecidas por aqueles/as
chamados a executá-las, é possível afirmar que o controle
institucional não era somente sobre os alunos, mas se estendia
aos mestres. Além do ensino, tinham que ocupar o posto de
vigilantes dos seus subordinados como uma das atividades
inerentes ao seu ofício.
O estado de Alagoas possuía fábricas de tecidos como
a Companhia União Mercantil, localizada na época entre
os limites das cidades de Maceió e Santa Luzia do Norte; a
Companhia Alagoana, situada no povoado da Cachoeira; a
Companhia Pilarense, no município de Pilar e a Companhia
Progresso Alagoano, fundada em Rio Largo. Embora a maioria
dos funcionários dessas fábricas fossem adultos, na Companhia
Pilarense, por exemplo, houve casos de crianças assumindo o
papel de tecelões (MACIEL, 2009).
Tais informações apontam que os artífices formados
em alfaiataria teriam local para desenvolverem o que apren-
diam com o mestre. Todavia, a existência dessas fábricas não
significava que eles atuariam nelas, visto que comumente o
Governador associava o desemprego e miséria a períodos de
crise na produção deste setor (ALAGOAS, 1930).
123
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
Os meninos recebiam as aulas de ofícios e eram preparados
para atuarem nas fábricas mesmo que elas não garantissem
nem a contratação dos homens e mulheres adultos pobres da
época. A suposta carência de mãos de obra especializadas em
produtos têxteis, carpintaria, funilaria, marcenaria, sapataria
e serralheria forneceram a base para justificar as matrículas e o
ensino de crianças e jovens na EAA-AL para atender a demanda
da sociedade alagoana nas primeiras décadas republicanas.
As práticas de militarização
da infância pobre
Em conjunto com as práticas de ofícios prescritas à
EAA-AL, outra que fazia parte da sua cultura escolar eram as
festas em comemoração ao Dia da Bandeira como foi em 1910
em que “O culto á bandeira esteve revestido de toda solenidade”
(NOGUEIRA, 1910, p. 11). As celebrações continuaram aconte-
cendo nos anos seguintes:
Fez-se, com a solemnidade do costume, a festa da
bandeira, a 19 de novembro, desenvolvendo-se assim o
culto civico entre os aprendizes e o amor pelo sagrado
pendão que é o symbolo augusto da nossa nacionali-
dade. O hymno á bandeira é entoado diariamente, neste
instituo, por todos os alumnos, em frente ao padrão que
nos conduz ao futuro e que encerra as nossas glorias e
fagueirissimas esperanças (ANDRADE, 1913, p. 25).
A fotografia que segue registrou uma das solenidades
realizadas no dia festivo.
124
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
Figura 5 - Os aprendizes da EAA-AL
em comemoração ao dia da bandeira
Fonte: Fotógrafo desconhecido, 1916. Acervo: IFAL.
A representação indica uma cena montada em que,
supostamente, os meninos tocavam o hino da Bandeira em uma
praça pública formando um batalhão infantil.
Os batalhões, simulacros de corporações militares,
recebiam treinamento fora do horário regulamentar
das aulas e utilizavam um aparato condizente com o
ritual cívico a que se prestavam: além do fardamento,
espingardas de madeira, cinturões, baionetas, tambores
e cornetas (SOUZA, 2000, p. 108).
As vestimentas usadas neste dia era o fardamento. Isto
porque, em relatório, o diretor, em cumprimento a circular
nº 4, de 27 de setembro de 1910, do Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio, recorreu ao governo estadual solicitando
uma quota para a aquisição de uniformes para os alunos. Em
sua justificativa, dizia que o governo não deveria medir esforços
no sentido de dotar a escola com este elemento de disciplina
125
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
(fardamento). Em seguida, cita os elementos que comporiam
o traje e o respectivo valor: “Um uniforme completo, sendo
modesto, inclusive bonet, botinas, calça e dolman não excederá
de 20$000 a 25$000” (NOGUEIRA, 1910, p. 12).
A moral e a educação cívica além de prescritas para serem
ensinadas no curso primário também foram incorporadas nas
práticas escolares da Instituição o que resultava numa espécie
de militarização da infância pobre (SOUZA, 2000). Ademais, o
batalhão infantil da EAA-AL foi identificado como um dos meios
de inculcamento do nacionalismo na educação, em específico, no
ensino profissional primário como prática a ser apreendida como
uma das expressões do nacionalismo brasileiro em voga na época.
À semelhança dos grupos militares, segundo Souza
(2000), os batalhões infantis ao desfilarem pelas praças da
cidade exibiam uma das finalidades da educação republicana:
o amor à pátria e a nação reverberado nas práticas escolares.A
fotografia em apreço revela aquilo que a direção pretendia
guardar como memória da instituição: os valores consagrados
pelo ideário republicano e que deveriam ser incorporados pelos
meninos artífices ao “[...] oferecerem a representação de um
corpo unido e harmônico, como deveria ser a pátria e a nova
ordem” (SOUZA, 2000, p. 108).
Em 1926, as disciplinas de Instrução Moral e Cívica e
História Pátria integravam o programa de ensino da Instituição.
A primeira era ministrada nos 2º, 3º e 4º anos, com 01 aula por
semana em cada ano e a segunda era ministrada nos 2º e 3º anos,
com 02 aulas por semana (FONSECA, 1961). Pode-se entender
que se constituía como um instrumento ideológico do Estado
republicano no sentido de desenvolver uma ação didática em
fins de inculcar no imaginário dos meninos valores, signos e
representações que nutrissem o sentimento de patriotismo.
126
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
O artigo 12º indicava as atribuições do diretor recomendando
que ele promovesse diversões e exercícios físicos, assim como
desenvolver nos alunos os sentimentos cívicos.
Não somente as instruções moral e cívica teriam esse
papel pedagógico, mas, também, estavam atreladas à finalidade
do ensino da história nacional. Os objetivos deste saber podem
ser definidos nos seguintes termos.
O passado aparece, contudo, de maneira a homoge-
neizar e a unificar as ações humanas na constituição
de uma cultura nacional. A História se apresenta, assim,
como uma das disciplinas fundamentais no processo
de formação de uma identidade comum – o cidadão
nacional – destinado a continuar a obra de organização
da nação brasileira (NADAI, 2009, p. 30).
Em 1925 registrou-se que o Governo Federal distribuiu
pelas escolas um acervo de livros, constando dentre eles exem-
plares da matéria de moral e cívica, ratificando assim a ação
pedagógica da União em cumprir o seu dever de formar “cidadãos
úteis à nação”, como consta no decreto de criação das EAA’s.
Foram, ainda adquiridos e distribuidos 250 exemplares
do livro “Instrucção Moral e Civica”, de Araujo Castro; 300
exemplares da “Historia Natural” de Waldomiro Potsch; 200
exemplares da “Geometria”, de Heitor Lyra; e “Arithmetica
Pratica”, de Ruy de Lima e Silva (BRASIL, 1925, p. 505).
Além destes exemplares, inferiu-se que a EAA-AL recebeu
outros livros que versavam sobre a História do Brasil: “Foram
distribuidos a todos os estabelecimentos compêndios de história
natural e do Brasil, no valor de 8:850$000” (BRASIL, 1924, p. 370).
127
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
Figura 6 - Alunos artífices
Fonte: Fotógrafo desconhecido, 1928. Acervo: IFAL.
Nesse episódio foram flagrados pela câmera 05 apren-
dizes artífices, em fileira, na representação de um corpo militar
em uma postura que tendeu repetidamente a reforçar o imagi-
nário de um ideal cívico e patriótico. Eles estavam posicionados
com os corpos eretos, mãos postas para baixo e olhares para a
horizontal. A corporeidade e traje dos meninos revelam que na
EAA-AL pairava um ar de disciplina que perpassava o controle
para a produção de sujeitos obedientes, bem como davam a ver
ao público a inclusão da ordem e civilidade. O discurso republi-
cano transcorria vários espaços e páginas como da imprensa
pedagógica do estado que anunciava:
Virão, fatalmente, a moralização nos costumes, o
respeito à soberania da lei, o apego a disciplina, o
decoro de si próprio, a compreensão dos deveres civicos,
a criação de uma personalidade capaz de “bastar-se a si
mesma pelo seu trabalho (REVISTA DE ENSINO. Escola
Isolada, 1927, p. 3).
128
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
Observa-se também que os meninos eram de estaturas
diferentes e entre as idades de 10 a 16 anos. Nota-se que o
terceiro deles, da esquerda para a direita, aparentava ser de
etnia negra. O que se sabe, como mostrado na seção anterior, é
que desde 1910 a EAA-AL realizava rituais fundamentados no
culto à nação. Como explica Julia (2001), as práticas que se mani-
festam no ambiente escolar estavam carregadas do contexto
social que as cercam. Assim, a EAA-AL pode ser concebida como
um instrumento que possibilitava que determinadas práticas,
prescritas e ensinadas, ainda que com conflitos de ideias,
hábitos e costumes, dessem sentido à cultura institucional.
Em Alagoas, das penas do jornalista João Craveiro Costa,
saíam críticas ao modelo de ensino de história pátria dado nas
escolas do estado. Em Ensino de História Pátria, publicado na
Revista de Ensino, ele dizia:
Nada mais fastidioso para todos os alunos dos cursos
primarios do que a sua iniciação na Historia Patria: pela
determinação dos fatos nos programas oficiais e pela
maneira por que é, processado o seu ensino (REVISTA
DE ENSINO, 1927, p. 2).
É possível afirmar que as disciplinas de instrução moral
e cívica, assim como de história pátria não se restringiram a
um ensino verbalista, mas impuseram práticas de discipli-
namento dando a ver uma cultura escolar defendida pelos
republicanos aos pobres.
129
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
À guisa de conclusão
O texto se encerra indicando os aspectos do ensino
profissional primário como um dos valores em disputa na época
ante as hierarquias sociais reelaboradas com o novo regime
político. A educação associada ao trabalho foi concebida pelas
elites como um meio de disciplinar a vida daqueles e daquelas
que integravam as classes populares do período. Por efeito, uma
fração da população pobre participou de um projeto de educação
profissional pensado para eles/as, mas não com eles/as.
Assim, a inserção de meninos pobres no aprendizado
de um ofício desenhou-se como um elemento de emergência
social para que as classes populares integrassem a nova ordem,
desde que submetidas à ética do trabalho defendida pelas elites
alagoanas. Nesse sentido, entende-se que a participação do povo
no projeto de sociedade republicano esteve circunscrita aos
ditames e interesses daqueles/as que faziam da educação um
instrumento de dominação de classes.
Os possíveis significados que esse ramo de ensino teve na
EAA-AL mostraram o que acontecia na vida dos alunos, crianças
e jovens pobres, que, mesmo com todas as dificuldades, foram
aprendizes não só de ofícios, mas de uma realidade dura e cruel
que se quis abrandada pelo ideal de criação de um novo homem.
Sujeitos que desde a tenra idade tiveram de adentrar ao mundo
do trabalho adulto, assumindo profissões da área do comércio e
da indústria na Capital Maceió. Assim resultando, uma infância
e juventude que foi produzida na experiência do trabalho e que
teve na escola um espaço que oportunizaria a eles se tornarem
operários e contramestres da cidade.
Os documentos selecionados, em especial o programa
de ensino e as fotografias permitiu-nos construir um cenário
130
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
de aproximações com as práticas escolares prescritas e mate-
rializadas no cotidiano escolar da instituição alagoana. As
condições materiais de ensino das quais os artífices tiveram de
se deparar não eram adequadas do ponto de vista de um ensino
dito moderno. Pois, as oficinas tinham uma aparência muito
próxima dos galpões das fábricas, bem como os alunos, sentados
no chão, confeccionavam os artefatos para a comercialização.
Os ofícios, o hino à Bandeira, o ensino de história pátria, a
defesa da nação, o militarismo, o nacionalismo manifestado nos
trajes e fardas, nos batalhões infantis, na disciplina e na obedi-
ência e na inculcação do trabalho como valor social impuseram
o patriotismo e o controle dos corpos aos jovens trabalhadores
brasileiros. E isto revela o quanto a cultura escolar brasileira
e, em específico, o da EAA-AL esteve permeada pela ideologia
republicana fundada em preceitos de cunho positivista. Bem
como, aponta que muitas das práticas escolares prescritas na
legislação federal foram aplicadas na instituição e tendo como
os agentes dessas práticas os alunos que dela fizeram parte.
131
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
Referências
ALAGOAS (Estado). O Evolucionista.
Maceió, anno IV, n. 3, 2 jan. 1905.
ALAGOAS (Estado). Gutenberg. Maceió, anno
XXXI, n. 46, p. 2, 04 mar. 1911.
ALAGOAS (Estado). Gutenberg. Maceió, 23 out. 1908.
ALAGOAS (Estado). Jornal de Alagoas.
Maceió, n. 143, p. 3, 1 jul. 1916.
ALAGOAS (Estado). Jornal de Alagoas. Maceió,
anno X, n. 151, p. 2, 5 jul. 1917.
ALAGOAS (Estado). Jornal do Commercio.
Maceió, anno II, n. 61, 10 set. 1917.
ALAGOAS (Estado). Revista de Ensino: Ensino de
História Pátria. Maceió, n. 2, mar./abr. 1927.
ALAGOAS (Estado). Revista de Ensino: Escola
Isolada. Maceió, ano 1. n. 6, nov./dez. 1927.
ALAGOAS (Estado). Mensagem do governador Alvaro Corrêa
Paes ao Congresso Legislativo, para a abertura da 3º sessão
ordinária da 19º legislatura. Maceió: Imprensa Oficial, 1930.
132
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
ANDRADE, Joaquim Goulart de. Escola de Aprendizes Artífices
do Estado de Alagoas. Relatorio referente ao ao anno de 1912.
Apresentado em 20 de fevereiro de 1913 ao Exmo. Snr. Dr. Pedro
de Toledo, Ministro da Agricultura, Industria e Commercio pelo
Dr. Joaquim Goulart de Andrade, director do mesmo instituto
technico-profissional. Maceió: Typ. Livraria Commercial, 1913.
ANDRADE, Joaquim Goulart de. Escola de Aprendizes
Artífices do Estado de Alagôas. Relatorio referente ao
anno de 1915. Apresentado em 17 de fevereiro de 1916, ao
Exmo. Snr. Dr. José Rufino Bezerra Cavalcante, Ministro
da Agricultura, Industria e Commercio, pelo Dr. Joaquim
Goulart de Andrade, director do mesmo instituto technico-
profissional primario. Maceió: Typ. Americana, 1916.
BARBOSA, Pedro Paulo Lima. O trabalho dos menores no Decreto
1.313 de 17 de janeiro de 1891. Revista Angelus Novus, São
Paulo, v. VI, p. 61-85, 2015. Disponível em: http://www.revistas.
usp.br/ran/article/view/124221/120528. Acesso em: 25 jan. 2020.
BRASIL. Decreto nº 1.313, de 17 de janeiro de 1891. Estabelece
providencias para regularisar o trabalho dos menores empregados
nas fabricas da Capital Federal. Disponível em: www2.camara.
leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1313-17-janeiro-1891-
498588-publicacaooriginal.html. Acesso em: 27 nov. 2019.
133
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
BRASIL. Decreto n. 7.566, de 23 de setembro de 1909.
Crêa nas capitaes dos Estados da Republica Escolas de
Aprendizes Artifices, para o ensino profissional primario e
gratuito. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/
fed/decret/1900-1909/decreto-7566-23-setembro-1909-525411-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 21 abr. 2018.
BRASIL. Decreto nº 13.064, de 12 de junho de 1918. Dá novo
regulamento às Escolas de Aprendizes Artifices. Disponível
em: www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-
13064-12-junho-1918-499074-. Acesso em: 21 abr. 2018.
BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.
Relatório das Escolas de Aprendizes Artífices. Brasília:
Ministério da agricultura, indústria e comércio, 1924.
BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.
Relatório das Escolas de Aprendizes Artífices. Brasília:
Ministério da agricultura, indústria e comércio, 1925.
CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios nos primórdios
da industrialização. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2005.
CUNHA, Marcos Vinicius da. A escola contra a família. In:
LOPES, Eliane Marta Teixeira; FILHO, Luciano Mendes de
Faria; VEIGA, Cynthia Greive (org.). 500 anos de educação no
Brasil. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p. 447-468.
DIEGUES Jr, Manoel Baltazar Pereira. Evolução urbana e
social de Maceió no período republicano. In: COSTA, Craveiro.
Maceió. Maceió: Edições Catavento, 2001. p. 153-177.
134
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VIDAL, Diana Gonçalves. Os
tempos e os espaços escolares no processo de institucionalização
da escola primária no Brasil. Revista Brasileira de Educação,
Rio de Janeiro, v. 14, n. 14, p. 19-34, 2000. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/rbedu/n14/n14a03.pdf. Acesso em: 21 jul. 2019.
FONSECA, Celso Suckow da. História do Ensino Industrial no
Brasil. Rio de Janeiro: Escola Técnica Nacional, 1961. v. 1.
FRAGO, Viñao. Historia de la educación e historia
cultural: possibilidades, problemas, cuestiones. Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, p.63-82, set/
dez. 1995. Disponível em: http://educacao.uniso.br/
pseletivo/docs/FRAGO.pdf. Acesso em: 21 jun. 2019.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico.
Tradução de Gizele de Souza. Revista Brasileira de História
da Educação, Maringá, n. 1, p. 9-43, jan./jun. 2001.
LARA, Silvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho
no Brasil. Projeto História, São Paulo, v. 16, p. 25-38, 1998.
MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. A perseverança dos caixeiros:
o mutualismo dos trabalhadores do comércio de Maceió
(1879-1917). 2011. Tese (Doutorado em História) – Centro
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2011. Disponível em: https://repositorio.
ufpe.br/bitstream/123456789/6975/1. Acesso em: 21 nov. 2019.
135
A INSERÇÃO DE MENINOS POBRES NO MUNDO DO TRABALHO: PRÁTICAS DE ENSINO
PROFISSIONAL NA ESCOLA DE APRENDIZES ARTÍFICES DE ALAGOAS/BR (1909-1930)
MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Trabalhadores,
Identidade de Classe e Socialismo: os gráficos de
Maceió (1895-1905). Maceió: Edufal, 2009.
MADEIRA, Maria das Graças de Loiola. Recompondo
memórias da educação: a Escola de Aprendizes Artífices do
Ceará (1910-1918). Fortaleza, CE: Gráfica do CEFET – Centro
Federal de Educação Tecnológica do Ceará, 1999.
NADAI, Elza. O ensino de História e a “pedagogia do
cidadão”. In: PINSKY, Jaime (org.). O ensino de História e
a criação do fato. São Paulo: Contexto, 2009. p. 19-33.
NOGUEIRA, Miguel Guedes. Relatório Aprezentado ao Ex. Snr.
Dr. Pedro de Toledo Ministro da Agricultura, Industria e
Commercio pelo Director da Escola de Aprendizes Artífices
do Estado de Alagôas. Maceió: Livraria Fonseca, 1910.
PESAVENTO, Sandra Jathay. Exposições Universais: Espetáculos
da Modernidade do século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
SANTOS, Jailson Alves dos. A trajetória da educação profissional.
In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano
Mendes de; GREIVE, Cynthia (org.). 500 anos de educação no
Brasil. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p. 205-224.
SENA, Sandra Catarina. “São quase todos pretos”:
cotidiano e experiência da classe trabalhadora em
Maceió no pós-abolição. 2018. Dissertação (Mestrado em
História) – Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e
Artes, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2018.
136
MARCONDES DOS SANTOS LIMA / MAURICÉIA ANANIAS
SOUZA, Rosa Fátima de. A militarização da infância: Expressões do
nacionalismo na cultura brasileira. Cadernos Cedes, Campinas,
ano XX, n. 52, nov. 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/
pdf/ccedes/v20n52/a08v2052.pdf. Acesso em: 03 set. 2019.
TENÓRIO, Douglas Apratto. Metamorfose das
Oligarquias. Maceió: EDUFAL, 2009.
VERÇOSA, Elcio de Gusmão. Cultura e Educação nas
Alagoas: história, histórias. 4. ed. Maceió: EDUFAL, 1997.
137
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”:
O JORNAL A IMPRENSA
E O PROJETO DE MORALIZAÇÃO
DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE
DA PARAÍBA (1897-1937)
Cláudia Engler Cury1
Luiz Araújo Ramos Neto2
Resumo: O processo de desenvolvimento e profissionalização
do cinema ocorrido ao longo das primeiras décadas do século
XX, foi acompanhado de perto pela Igreja Católica, que desde as
primeiras exibições, ostentava preocupação frente aos perigos à
moralidade e aos valores cristãos presentes de maneira frequente
no novo meio de comunicação. Uma observância que ofereceu
subsídios para o lançamento, em junho de 1936, da encíclica
Vigilanti Cura, responsável por estabelecer diretrizes para um
projeto de ação pedagógica a ser realizada pelas dioceses e
paróquias, em torno de moralizar as práticas de expectação
1 Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal
da Paraíba e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFPB).
2 Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) vinculado à linha de pesquisa
História e Regionalidades, onde desenvolve pesquisa sobre o projeto da Igreja
Católica paraibana em relação ao cinema, tendo como referência o jornal
paraibano, A Imprensa.
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
cinematográfica e guiar os católicos na direção de películas cujo
conteúdo estivesse em concordância com os princípios defen-
didos pela Igreja. No Estado da Paraíba, a busca por instruir o
público fiel em direção ao “bom cinema”, teve como centro de
atuação o jornal A Imprensa (de propriedade da Arquidiocese), a
partir de 16 de janeiro de 1937, com a sessão intitulada Cinema,
Teatro & Rádio. Desta forma, o presente texto pretende analisar
e compreender o projeto desenvolvido pela Arquidiocese da
Paraíba em relação à moralização do cinema e as práticas de
instrução escolhidas por esta instituição para a viabilização de
uma doutrinação cinematográfica dos fiéis paraibanos.
Palavras-chave: Cinema. A Imprensa. Igreja Católica.
Iniciando a conversa
N a perspectiva das discussões mais amplas sobre as práticas
educativas e o papel da imprensa, a questão que se apre-
senta para os leitores e leitoras apreende o universo da chegada
do cinema na Paraíba, mais especificamente em sua capital, por
meio de um jornal católico – A Imprensa - que pretendeu dire-
cionar e controlar o “seu” público para o consumo da sétima arte.
Nesse sentido, é preciso cartografar o processo de moder-
nização e de modernidade que se configurou para a chegada do
cinema. Uma observância objetiva do termo moderno, a partir
dos diversos significados e apropriações adquiridas no processo
histórico, clarifica tanto a historicidade de sua associação com o
novo e com o atual, como também sua oposição às várias concep-
ções de antigo que figuraram ao longo dos anos. Para Sérgio Paulo
Rezende (1993, p. 7), as raízes de tal utilização conceitual remetem
139
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
ao baixo latim, no qual o termo assumia a acepção de recente, um
sentido que se manteve presente nos períodos subsequentes, em
oposição às várias representações de antigo ou de antiguidade
que foram surgindo e ganhando popularidade.
Contudo, o advento de um modelo de sociedade ancorado
nas revoluções burguesas e na revolução industrial, trazia ao
mundo uma nova concepção para o termo moderno, que passou
a associar-se ao progresso e aos modelos de ruptura com o
atraso do antigo regime, e que pensava a formulação de um
novo homem a ser inserido em uma nova realidade marcada
pela inovação, pela transformação e pela velocidade. A vida
moderna dos séculos XIX e XX surge como um turbilhão que
transforma profundamente as relações humanas e os espaços
vividos, como atesta Marshall Berman (2007, p. 25):
O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por
muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas,
com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar
que ocupamos nele; a industrialização da produção, que
transforma conhecimento científico em tecnologia, cria
novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera
o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder
corporativo e de luta de classes; descomunal explosão
demográfica, que penaliza milhões de pessoas arran-
cadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos
caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e
muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas
de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvol-
vimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote,
os mais variados indivíduos e sociedades; Estados
nacionais cada vez mais poderosos, burocraticamente
estruturados e geridos, que lutam com obstinação para
expandir seu poder; movimentos sociais de massa e
de nações, desafiando seus governantes políticos ou
140
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
econômicos, lutando por obter algum controle sobre
suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as
pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial,
drasticamente flutuante, em permanente expansão.
No século XX, os processos sociais que dão vida a esse
turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-
-ser, vêm a chamar-se “modernização”.
Nesse sentido, Rezende (1997) pensa a modernização
dos séculos XIX e XX como um processo complexo e amplo de
transformações ocorridas nos âmbitos de atuação dos sujeitos
sociais. Para o autor, a dinamicidade de tal processo, ancorou-se
em avanços tecnológicos, mudanças econômicas, no predomínio
da ciência e da razão prática, na burocratização, na organização
nacional do trabalho, na ordem e em uma ideia de progresso;
tendo o Estado como instituição importante de gestão.
Em meio à efervescência modernizante e transformadora
que caracterizou o período, deu-se o surgimento do cinema,
cuja criação foi comumente lograda a duas invenções: o duo
quinetoscópio/quinetógrafo de Thomas Edison de 1891 (que teve
sua primeira exibição em 1894 em Nova York) e o cinematógrafo
pelos irmãos Auguste e Louis Lumière de 1895 (demonstrada
no famoso Grand Café de Paris em 28 de dezembro) (COSTA,
2012). Tais inventos, apesar de serem comumente estabelecidos
enquanto marcos fundantes do audiovisual, se situam dentro
de um processo mais amplo, que abarca o rol das inovações
tecno-científicas surgidas com o advento da modernidade,
configurando o ponto final de todo um processo de esforços
empreendidos por inúmeros artistas e cientistas em torno do
objetivo de se reproduzir a realidade através de meios artificiais,
141
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
incorporando em seus resultados, o conceito de imagem em
movimento surgido ao longo do século XIX3 (COSTA, 2012).
Assim, a invenção do cinema se encontra inserida em um
novo paradigma responsável por transformar as relações do
campo da arte, o da reprodutibilidade técnica, que consiste em
se reproduzir, por meios tecnológicos, técnicas e procedimentos
artísticos que antes eram concebidos artesanalmente. Walter
Benjamin, em seu ensaio de 1936, “A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica”, atesta como as formas artísticas
surgidas nesse contexto, são oriundas do avançar das possibi-
lidades de reprodução técnica do real:
Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível.
O que os homens faziam, sempre podia ser imitado por
outros homens. Essa imitação era praticada por discí-
pulos em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão
das obras, e finalmente por terceiros, meramente inte-
ressados no lucro. Em contraste, a reprodução técnica
da obra de arte representa um processo novo, que se
vem desenvolvendo na história intermitentemente,
através de saltos separados por longos intervalos, mas
com intensidade crescente. [...] Dessa forma, as artes
gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida coti-
diana. Graças à litografia, elas começaram a situar-se
no mesmo nível que a imprensa. Mas a litografia ainda
estava em seus primórdios, quando foi ultrapassada
pela fotografia. Pela primeira vez no processo de
reprodução da imagem, a mão foi liberada das respon-
sabilidades artísticas mais importantes, que agora
cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais
3 Segundo Flávia Cesarino Costa (2012), as origens do cinema se encontram
tanto nas práticas de representação visual pictórica, quanto nos inventos
ópticos surgidos ao longo do século XIX, como o Taumatrópio (1825), o
Fenaquistiscópio (1832) e o Zootrópio (1833).
142
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
depressa do que a mão desenha, o processo de repro-
dução das imagens experimentou tal aceleração que
começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral.
Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na
litografia, o cinema falado estava contido virtualmente
na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se
no fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica
atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente
podia transformar em seus objetos a tonalidade das
obras de arte tradicionais, submetendo-as a transfor-
mações profundas, como conquistar para si um lugar
próprio entre os procedimentos artísticos. Para estudar
esse padrão, nada é mais instrutivo que examinar como
suas duas funções – a reprodução da obra de arte e a
arte cinematográfica – repercutem uma sobre a outra
(BENJAMIN, 1987, p. 166-167).
Pode-se dizer que o audiovisual surge em meio a um
mundo transformado e acelerado pelos processos da moder-
nização e, em velocidade equiparada, adentra o âmbito das
percepções populares que passam a se apropriar de suas possi-
bilidades, para criar práticas e representações cotidianas. Da
mesma forma que o ocorrido com os demais processos oriundos
da modernidade, que circulam entre logradouros centrais e
periféricos referentes às relações do cenário mundial, o cinema
ganha o ocidente e se faz presente em vários países, chagando
ao Brasil, conforme afirmam os trabalhos de Paulo Emílio
Salles Gomes (1982), Alex Viany (1999) e José Inácio de Melo
Souza (1984), em meados de 1896, com suas primeiras exibições
ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, no
ano subsequente. Em relação às primeiras filmagens ocorridas
em território nacional, a historiografia supracitada apresenta
uma divergência que produziu duas possibilidades. A primeira,
e mais bem conhecida, seria atribuída a uma filmagem
143
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
panorâmica da baía da Guanabara realizada pelo italiano
Afonso Segreto um 19 de junho 1898 (um registro fílmico, que
infelizmente não foi preservado, tendo como registro apenas
as notícias presentes nos periódicos cariocas da época) (LEITE,
2005). A segunda possibilidade, por sua vez, possuiria centra-
va-se figura do advogado José Roberto de Cunha Salles que, no
dia 17 de novembro de 1897, supostamente teria demonstrado
um aparelho próprio para gravação e reprodução de películas
chamadas de “fotografias vivas” (LEITE, 2005, p. 21).
O cinema chega ao Brasil, durante o processo de reestru-
turação e modernização doa ambientes urbanos, ocorrido no
ocidente, que se estabeleceu no território nacional a partir do
Rio de Janeiro e chega, nos anos iniciais do século XX, em terras
parahybanas. Seguindo o rastro da modernidade, os esforços de
transformação da capital do estado, viriam acompanhados das
inovações surgidas ao longo do XIX para fazerem parte do coti-
diano de uma elite local que, residindo no litoral, desejava sentir-se
inserida no moderno cotidiano das grandes metrópoles do mundo
e do país. Desta forma, não se poderia pensar a chegada do audio-
visual no estado, senão a partir da relação de circularidade de
ideias, representações, ideologias, práticas e inventos tecnológicos
provenientes do influxo recíproco entre culturas hegemônicas e
subalternas, pensada por Carlo Ginzburg (2006).
Um influxo, que também é fundamental para se compre-
ender as práticas de realização e exibição do primeiro cinema
que era exibido na época, marcado por um caráter itinerante e
de um conteúdo que buscava, a partir da perplexidade causada
pelas imagens em movimento, maravilhar e espantar o público
expectador. Um tipo de cinema nomeado pelo historiador
Tom Gunning (1990) de “cinema de atrações”, responsável
por definir o caráter dos locais escolhidos para as primeiras
144
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
exibições ocorridas na América do Norte, na Europa e no Brasil,
que eram exposições, feiras, festejos públicos e parques de
diversões (COSTA, 2012). Tais espaços itinerantes funcionavam
como locais propícios para a demonstração de toda uma sorte
de inovações técnicas e descobertas científicas, funcionando
como verdadeiros mensageiros de um novo projeto de sociedade
ancorada nas benesses do capitalismo para os lugares em que
a reestruturação moderna ainda não tinha chegado ou que se
encontrava em pleno processo de transformação. Um formato
que se mostrou fundamental para a proliferação da sétima arte
ao redor do mundo (LEITE, 2005).
Em 1897, o cinema chega a então cidade da Parahyba
(depois chamada de João Pessoa)4, sendo importado da França
para complementar as atrações da festa de Nossa Senhora das
Neves, padroeira da cidade. Como afirma Willis Leal (2007), a
alcunha de “inaugurador” da atividade cinematográfica recaiu
sobre o também italiano Nicolau Maria Parente, que realizou
as primeiras exibições audiovisuais na capital do estado em
1897, na famosa casa nº 2 da Rua Nova (hoje conhecida como
Avenida General Osório), em um momento de reconfiguração
da programação da festa, que na época passava por transfor-
mações na organização dos festejos ocorridos fora dos ritos
religiosos (os ditos eventos chamados “profanos”), passando
a ser coordenados por militares e comerciantes (LEAL, 2007).
No caso da então cidade da Parahyba, ainda se soma
o contexto de transformação dos espaços públicos em locais
de convivência, sociabilidade e informação, o que ocasionou
a implementação de um novo projeto urbano para a cidade,
4 Até setembro de 1930, a capital do então estado da Parahyba do Norte se
chamava de Parahyba. Com a comoção decorrente da morte em 26 de julho
de João Pessoa, então presidente do estado, o nome da capital foi modificado.
145
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
em que a melhoria das praças acarretaria, por sua vez, em
um maior envolvimento na organização e participação nos
festejos públicos por parte dos moradores de uma elite local,
que tentava incorporar práticas modernas em seu cotidiano
(CHAGAS, 2004). A partir daí, as festas alusivas ao Natal, ao
Ano Novo e às quermesses, tornaram-se comuns, sobretudo a
comemoração da data relativa à padroeira da cidade, a Festa das
Neves, que se tornou o principal evento social, político, religioso
e cultural do estado (LEAL, 2007). Desta forma, o ambiente
das primeiras exibições cinematográficas na região, foram os
espaços de circulação das elites parahybanas e de exclusão da
população menos favorecida, como afirmou Leal (2007, p. 31):
Mais um evento de e para a elite, a Festa das Neves de
então colocava o povo em espaço inferior, subalterno,
no interior no templo (principalmente), como nas ruas
onde ocorria o evento. Na igreja – isso vai se repetir
nas salas cinematográficas – o povão ficava na parte
final, onde o chão era coberto com esteiras de carnaúba,
enquanto as pessoas de posse iam para próximo ao altar
(e no cinema, da tela) e se ajoelhavam em tapetes ou
cadeiras acetinadas.
As principais casas residenciais da Rua Nova, inclusive
onde houve a primeira exibição, foram construídas
a partir de 1850. Rua eminentemente residencial, ali
moravam os políticos, os senhores de engenho, os
capitalistas (empresários), militares e autoridades reli-
giosas. Morador ali era símbolo de prosperidade, pois na
rua estavam a Matriz e o Mosteiro de São Bento, tinha
iluminação especial (lampiões) e era bem arborizada.
146
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
Após o término da fase itinerante no Brasil, com o
estabelecimento dos primeiros espaços destinados à exibição
do cinema, as três primeiras décadas do século XX testemu-
nharam surgimento de vários avanços tecnológicos em relação
à exibição cinematográfica, cuja profissionalização ocasionaria
a consolidação de um mercado de salas de exibição, que passam
a surgir em várias localidades na capital e no interior do estado.
O período também protagonizaria o surgimento do primeiro
cineasta paraibano, Walfredo Rodrigues que, sendo considerado
o fundador do cinema no estado, teve importante contribuição
no gênero do cinema documentário com importantes películas
como, Carnaval de 1923, no Recife (1923), Sob o céu nordestino (1928)
e Remniscências de 30 (1931) (LEAL, 2007).
A massificação do cinema, ancorada no processo de
desenvolvimento, sedentarização e profissionalização ocorrida
ao longo das primeiras décadas do século XX, sempre esteve sob
observância próxima de setores influentes da Igreja Católica,
que desde o seu surgimento, já se mostravam interessados nas
possibilidades oferecidas pelo audiovisual para a propagação
do catolicismo, ao submetê-la aos seus parâmetros morais e
éticos (CHAVES, 2012). Preocupada com os avanços de uma
modernidade que ousava preencher as mentes do público
com imagens que se distanciavam de suas representações
tradicionais e temendo a perda de seu espaço frente a este
novo mundo que se desenhava, os católicos se colocaram como
instâncias de controle dos processos ocorridos entre a segunda
metade do século XIX e a primeira do XX. Desejava-se também,
a disciplinarização do cinema e, por consequência, o controle
dos espectadores, para que estes não fossem tentados pela
sedução oferecida através desvios pecaminosos propagados
nas fitas projetadas. Se executado corretamente, um controle
147
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
efetivo deste novo meio de comunicação de massa acabaria por
estabelecer os Católicos como guardiões de um audiovisual
purificado, e sedimentaria o lugar galgado pela organização,
como guardiões das chaves do mundo moderno, cujos portais
seriam destrancados de maneira exclusiva para os avanços que
oferecessem serventia para a incorporação e fortalecimento de
seu projeto de evangelização.
Para Claudio Aguiar Almeida (2012), o processo de
consolidação de uma vocação comercial para o cinema, ancorada
no estabelecimento de uma indústria no campo produtor e em
uma rápida profusão de espaços de exibição, foi responsável por
uma diversificação de “gêneros que iam das Paixões de Cristo à
pornografia, passando por documentários de viagens, aventuras
e “filmes de truque”, que incluíam, entre outros personagens,
o próprio demônio”; o que ocasionou uma tomada de posição
por vários setores referentes à Igreja Católica (oriundos tanto
do próprio clero, como também de organizações leigas), que
centralizaram sua atuação para a sujeição do cinema, ao redor
do argumento da moralidade, ou seja, por meio de práticas de
denúncia e de censura dos elementos fílmicos considerados como
desviantes. Fato que se observou em diferentes países do ocidente.
Na Itália, a busca pelo controle do audiovisual se fez
presente logo no início do século XX, por meio de listas reali-
zadas por comissões de padres italianos, que selecionavam,
dentre os filmes que se encontravam em circulação, aqueles
considerados próprios a serem exibidos para o grande público.
Uma prática organizada responsável por ensejar a criação do
Instituto Cinematográfico de Saint-Marc na década de 1920, que
centralizou suas atividades na difusão e promoção de filmes,
cujo conteúdo refletisse valores cristãos (CHAVES, 2018).
148
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
No Brasil, o desenvolvimento do cinema, também foi
acompanhado pelo desejo de moralizar sua exibição. Lideranças
da Igreja Católica e da Ação Nacionalista, preocupadas os
supostos ataques direcionados pelos avanços da modernidade
à moral, à família e aos bons costumes, passaram a ocupar uma
postura crítica frente às supostas “imoralidades”, “indecências”,
“comportamentos nocivos” e “valores negativos”, presentes no
audiovisual que era exibido no país e defendiam a necessidade
do estabelecimento de alguma forma de censura. Prática esta,
que, conforme afirma Inimá Simões (1999, p. 21), teve sua
primeira manifestação na cidade de São Paulo, no ano de 1908,
através da atuação de padres católicos que cortavam segmentos
tidos como “impróprios” de filmes, antes que chegassem à
exibição pública:
Foi no teatrinho do Grêmio São Paulo, mantido pela
Igreja Católica, bem no centro da capital paulista, perto
das duas principais estações ferroviárias, que se deram,
provavelmente, as primeiras manifestações do que se
poderia chamar de censura cinematográfica. Estamos
em 1908, nos tempos pioneiros do cinema, e as projeções
de filmes (ou fitas, como se dizia na época), constituem a
atração máxima de feiras, circos, parques e espetáculos
de mambembe. Um ano antes, Francisco Serrador, um
jovem e audacioso empresário do ramo, havia aberto a
primeira sala fixa de exibição, Bijou Palacace, na baixada
da Avenida São João, próximo ao Vale do Anhangabaú,
e seu tino comercial – que seria reconhecido pelo Brasil
inteiro nas décadas posteriores – indicava o caminho de
abrir novas salas. Para isso, havia alugado o galpão dos
salesianos, onde nada se projetava sem o prévio exame
de um reverendo. Quando o fiscal de batidas considerou
uma das fitas impróprias para a projeção, por conta de
algumas passagens, Serrador explicou pacientemente
149
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
que bastava cortar aquele trecho sem haver necessidade
de suspender a atração toda. O que pareceu um mero
insight, tornou-se uma ação sistemática. Ali, no largo
do coração de Jesus, os padres aprenderam o manejo
da tesoura e a maneira de emendar os cortes.
A preocupação dos religiosos em relação aos caminhos
da sétima arte também se fez presente por meio de publicações
católicas ao longo das décadas de 1910 e 1920, como as revistas
periódicas Vozes de Petrópolis (1907), o jornal União (1916), A Tela
(1919) e A ordem (1919) (CHAVES 2018).
Na mesma esteira da Itália e do Brasil, também se regis-
trou tentativas de moralização e controle do audiovisual em
outros países do ocidente, como Suíça, França e Alemanha,
no entanto, apesar de configurarem como esforços incisivos
ilustrativos desta nova postura demonstrada pelos católicos,
ocorreram de maneira difusa e descentralizada, obtendo
com pouca articulação entre si. Apenas a partir do conjunto
de experiências de controle e censura ocorridos nos Estados
Unidos da América (EUA), que, aliadas ao estabelecimento da
hegemonia cinematográfica norte-americana no ocidente, que
a moralização do cinema passa a se articular em torno de um
projeto delimitado e defendido oficialmente pelo Vaticano.
Nos EUA, as primeiras décadas do século XX testemu-
nharam uma expansão voraz da indústria cinematográfica,
ancorada no sucesso massivo de público e no controle dos
grandes estúdios de Hollywood. Um desenvolvimento, que
lançou o audiovisual no país, a um terreno de disputas de
representação, sobretudo em relação ao tipo de material
produzido que deveria ser assistido. Assim, na mesma forma
que o ocorrido em outros países em que o cinema se desen-
volveu e sedimentou uma relação com o público expectador,
150
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
as capacidades oferecidas pelo novo meio de comunicação de
produzir imagens que se contrapusessem a um arcabouço moral
pré-existente, ocasionaram nas primeiras ações organizadas
por meio de grupos religiosos, setores da sociedade civil e
membros do Estado, na tentativa de obtenção de um controle
sobre o cinema. Algo que já se fez presente no país desde os
primeiros anos de existência do audiovisual, como atesta
Geovano Moreira Chaves (CHAVES, 2018, p. 37):
Um exemplo notório desta situação pode ser exemplifi-
cado no sentido de que no seu primeiro mês de existência,
o cinema já foi submetido à atividade censora por parte
dos poderes públicos. Isto se deu, segundo Antônio Carlos
Gomes de Mattos, devido à exposição dos tornozelos da
dançarina espanhola Carmencita, pelo cinestocópio de
Thomas Edison, que foi condenada pelo senador norte-
-americano James A. Bradley.41 Três anos após, em 1897,
a película “People x Dorit”, se tornou o primeiro caso de
um filme levado a um tribunal norte-americano, onde o
juiz entendeu que a vestimenta de uma noiva em noite de
núpcias era um “ultraje à decência pública”. Já em 1907,
ainda nos Estados Unidos, o Chicago City Council se tornou
a primeira tentativa de controle local do cinema por meio
de uma lei referente à censura, onde o superintendente
geral da polícia ficou responsável pela concessão ou não
de licenças para a exibição de filmes. Alegando falta de
segurança, o prefeito de Nova Iorque, Gorge B. McCellan,
no mesmo ano, mandou fechar os nicklodeons da cidade.
As ações centralizavam os aspectos de sua denúncia
nas cenas que contivessem qualquer forma de brutalidade, de
insinuação à violência, de elementos referentes à sexualidade
ou a qualquer temática tida como imoral, perversa ou desviante,
e os resultados buscados abarcavam desde o corte e a mutilação
151
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
de filmes que tivessem em seu conteúdo qualquer um destes
elementos, até o impedimento total da exibição comercial.
Atuação que, junto à ameaça de uma maior interferência legis-
lativa no controle das ações dos estúdios no âmbito da produção
e da exibição, determinaram o surgimento das associações de
autorregulação dos estúdios de Hollywood, que passavam a
configurar uma tentativa de resolução do impasse estabelecido.
Para a indústria, o controle dos excessos denunciados nos filmes,
aparecia como uma possibilidade de refirmar sua confiabilidade
frente ao público e de manter sua autonomia. Tais organizações
se fizeram presentes ao longo das duas primeiras décadas do
século XX com uma atuação ausente tanto de qualquer coorde-
nação uníssona, como também de uma metodologia clara para
a delimitação do que deveria ser combatido e subtraído das
películas, o que se mostrou ineficiente para a função proposta e,
angariando a insatisfação dos setores sociais que demandavam
uma postura mais assertiva, não afastou ações que buscaram
uma maior presença reguladora do Estado em relação às suas
atividades (CHAVES, 2018).
Nos anos 1920, o vasto número de filmes realizados
e a padronização no modo de se contar histórias, elevaram
o cinema de Hollywood a um lugar hegemônico frente às
produções internacionais, uma posição que, aliada a crescente
pressão pela moralização do audiovisual e a ineficiência das
tentativas estabelecidas de autorregulação da indústria, favo-
receu o fortalecimento das ações de controle do audiovisual
por parte do Estado, através da criação, a partir de 1922, de
mecanismos legais de censura fílmica nos âmbitos dos estados
e municípios. Uma situação que, colocando em xeque a auto-
nomia dos grandes estúdios, tornou clara a necessidade da
criação de uma organização de autorregulação, que possuísse
152
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
uma atuação mais coordenada e consistente e eficiente para o
objetivo proposto.
Desta forma, buscando uma resolução mais eficaz para
a resolução do problema que se mantinha sobre os grandes
estúdios, foi fundada, no ano de 1922, a Motion Picture Producers
and Distributors of America (MPPDA), buscando reconquistar a
relação de respeitabilidade com o público, através do estabele-
cimento de uma metodologia funcional para a moralização do
cinema. Um desafio, cuja superação só poderia ser alcançada
mediante a aplicação de uma noção de moral que conseguisse
aglutinar em seu escopo diferentes visões e representações
da realidade oriundas dos setores sociais que defendiam um
controle moral para o audiovisual, e que pudesse se difundir
de modo a naturalizar tais práticas de moralização frente aos
agentes da indústria cinematográfica (de modo de garantir,
assim, sua aplicabilidade) e em relação ao público expectador,
que seria instruído para buscar reconhecer o tipo de cinema
que seria próprio para o seu consumo (CHAVES, 2018).
A busca por uma representação de moral que conse-
guisse unir os anseios dos diferentes setores sociais que se
encontraram em busca pela moralização do cinema, encontrou
no protagonismo de organizações pertencentes à Igreja Católica
americana na busca por um audiovisual longe de excessos, a
noção de moralidade ideal para ser adotada pelo MPPDA. Desta
forma, as representações oriundas da moral cristã, configu-
raram como pontos de partida para um projeto de purificação
da sétima arte, o que possibilitou a formulação, no dia 31 de
março de 1930, do Production Code ou Hays Code (nome dado
em homenagem à Will Hays, diretor geral da MPPDA, cuja
atuação à frente da organização foi crucial para o sucesso de um
projeto moralizador para o cinema americano), um conjunto de
153
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
diretrizes e proibições, formulado com a participação atuante
de membros da Igreja Católica americana (como Daniel Lord,
Martin Quigley e Joseph Inacio Breen), de modo a exercer
controle sobre o campo da produção cinematográfica, com
a especificação dos elementos presentes nas películas, que
deveriam ser evitados ou tratados com cautela.
O estabelecimento do discurso moral sob os parâmetros
do cristianismo como grande diretriz para o controle do
cinema nos âmbitos da produção e da expectação, configurou
o elemento diferencial em relação às experiências anteriores
e garantiu uma maior aplicabilidade de seus ditames, confi-
gurando um instrumento que se pretendia enquanto modelo
definitivo no combate às imoralidades e excessos presentes no
audiovisual americano. No entanto, apesar do Código da MPPDA
ter se estabelecido e funcionado como um modelo padrão mora-
lizador para a indústria de Hollywood, o campo da produção
cinematográfica permaneceu como um âmbito de disputas
acirradas entre os agentes oriundos do sistema de estúdios e
os agentes sociais defensores da moralização (CHAVES, 2018).
As disputas persistentes sobre o tipo de cinema a ser
produzido dificultavam uma melhor aplicação do código de
produção, passando a desagradar o clero americano, ao passo
que, na década de 1930 o cinema de Hollywood ainda perma-
necia, sob a ótica dos católicos, caminhando sob as vias da
imoralidade. Os diversos cinemas espalhados pelo país levavam
expectadores aos milhões e, embora o sistema de censura
estabelecido fosse detentor de uma maior eficácia do que as
experiências anteriores, a presença de películas, cujo conteúdo
conseguisse driblar os preceitos do Código Hays para capitalizar
em relação à curiosidade do público, não se fazia incomuns. O
que levou elementos pertencentes ao clero dos EUA a atuarem
154
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
de maneira mais efetiva e incisiva na busca pela aplicação dos
preceitos estabelecidos pela autorregulação da indústria.
Tal foi o contexto que, no ano de 1933, ensejou a fundação
da Legião da Decência, uma organização que, sob a coordenação
de bispos católicos que percebiam a necessidade de controle do
capo produtor pela Igreja, assumiu uma posição de vanguarda
frente à defesa pela moralização do audiovisual, ao centrar
sua atividade na militância por uma aplicação mais assertiva e
sistemática do código de produção (CHAVES, 2018).
Na medida em que o cinema norte-americano passa a
ocupar uma posição de hegemonia frente às outras expressões
cinematográficas presentes nos países que se encontravam
inseridos nos processos da modernidade, e que a produção
realizada em massa pelo sistema de estúdios de Hollywood
ganhava as salas de projeção ao redor do globo; as experiências
de moralização produzidas nesse processo também passaram a
circular e eram absorvidas por meio de públicos estrangeiros,
como no caso brasileiro, em que se que também observou uma
maior organização e coordenação por meio dos católicos em
torno da conquista de um cinema purificado.
Nos anos 1930, a chamada Era Vargas caracterizou-se
por um processo de maior ampliação da base institucional
do estado. Anita Simis (2015) firma que se buscava uma refor-
mulação dos parâmetros sociais do país, através da reforma
educacional e do fortalecimento do caráter centralizador e
integral do nacionalismo. Para a compleição de tal objetivo,
era necessária a construção de uma noção de identidade
nacional ancorada no desenvolvimento técnico-industrial e na
construção de um mercado consumidor amadurecido, âmbito
no qual a valorização dos instrumentos de difusão cultural se
fazia de extrema importância.
155
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
Direcionamento que acarretou a necessidade de se esta-
belecer uma nova forma de relacionamento entre o cinema e
o poder, que se materializou na presença estatal em todos os
âmbitos relativos ao fazer cinematográfico (produção, distri-
buição, importação e exibição), fazendo com que a sétima arte
deixasse de ser uma atividade regulada apenas pelas leis do
mercado e pelo julgo dos agentes pertencentes ao seu ofício.
A presença do poder público, além de responder às demandas
de um novo projeto de sociedade que se desenhava com a Era
Vargas, também respondia a uma confluência de interesses de
quatro grupos principais que demandavam uma maior regu-
lamentação da atividade relativa ao audiovisual: no primeiro,
se encontravam os realizadores, que vinham resistindo à hege-
monia do cinema americano e buscavam formas de incentivo
à feitura de filmes nacionais através do financiamento estatal.
No segundo, estavam intelectuais e educadores que, sob a
influência da experiência relativa ao regime fascista italiano,
compreenderam e defendiam o enorme potencial que a sétima
arte poderia oferecer para o campo da educação e delinearam
projetos em torno de incluí-la na relação de ensino e aprendi-
zagem. No terceiro grupo, estavam presentes o campo exibidor,
importador e distribuidor, que buscava melhores tarifas de
importação para películas estrangeiras e, por último, no quarto
grupo se encontravam associações ligadas à Igreja Católica,
que, preocupadas com a presença de supostas imoralidades e
perversões no audiovisual, defendiam a necessidade do esta-
belecimento de um sistema de censura para que se produzisse
um cinema moralizado (LEITE, 2005).
A regulamentação da atividade cinematográfica se
deu por meios legislativos, na primeira metade da década de
1930, com a emissão de dois decretos. O primeiro, de número
156
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
21.240/32 e datado de 04 de abril de 1932, compreendia a nacio-
nalização de um unificado e centralizado serviço unificado de
censura cinematográfica, a obrigatoriedade da presença de
filmes educativos nas programações dos cinemas do país e a
criação de uma taxa de filmes para a educação popular (em que
parte dos recursos foi empreendida na compra de películas para
ao estabelecimento de uma filmoteca oficial). Tais medidas, que
buscavam compreender as demandas dos diferentes grupos
sociais que estavam galgando uma maior participação estatal,
seriam incrementadas pela assinatura, no dia 10 de julho de
1934, do decreto 24.651/34, que criou estímulos para a produção
do audiovisual educacional, que teve foco na produção de
curtas-metragens (LEITE, 2005).
No entanto, apesar de demonstrar atuações de maior
consistência em alguns países como o Brasil, se tornava
flagrante a necessidade de uma maior mobilização em torno
de uma coordenação internacional sistematizada, para agrupar
e organizar as iniciativas da Igreja Católica para o controle
moral do cinema em nível internacional. Conjuntura que fez
surgir em 1928, o Office Catholique Internacionale Du Cinema (OCIC)
(CHAVES, 2018), uma organização, cuja atuação em diversos
países do ocidente, ofereceu, em conjunto com a experiência de
moralização norte-americana cristalizada na atuação da Legião
da Decência, subsídios para a formulação de um posicionamento
oficial da Igreja Católica Apostólica Romana em relação ao
cinema, que veio a se concretizar em junho de 1936, através do
lançamento da encíclica de nome Vigilanti Cura, assinada pelo
Papa Pio XI. O documento papal, ao reconhecer o papel exercido
pela sétima arte na formação de consciências, estabeleceu
diretrizes para a ação dos católicos, defendendo arduamente
a necessidade do estabelecimento de uma classificação moral
157
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
para os filmes e instruindo a criação de cineclubes nas paró-
quias, dioceses, associações pastorais, ou qualquer ambiente em
que a influência da Igreja se fizesse presente. (CHAVES, 2012).
No Brasil, a atuação em torno de controlar os aspectos da
modernidade que fossem considerados contrários aos preceitos
do catolicismo centralizou-se a partir de 1935 com a fundação
da Ação Católica Brasileira, uma organização controlada pela
Igreja que objetivava o engajamento de membros do clero e
leigos em uma missão apostólica e evangelizadora de atuação
nas dioceses e paróquias por meio de associações de fiéis
(como Juventude Universitária Católica ou Liga Feminina de
Ação Católica), baseada na criticidade aos processos modernos
de laicização que acometia a sociedade brasileira. Tal missão
perpassou, na esteira das experiências internacionais, um
controle coordenado dos meios de comunicação em massa que
surgiam e ganhavam popularidade, dentre eles o cinema, cuja
penetração nas mentalidades do público fiel, aliada às reco-
mendações do Vaticano e às preocupações pré-existentes do
clero brasileiro com as imoralidades presentes nas imagens em
movimento, ocasionaram sua centralidade nas preocupações
da organização (CHAVES, 2012).
O caráter educacional presente nas medidas assinadas
pelo Estado na primeira metade da década de 1930 e as reco-
mendações práticas da encíclica Vigilanti Cura em torno da
formulação de cotações morais para os filmes serão de grande
influência na atuação dos católicos em torno de livrar o cinema
dos excessos e imoralidades. Fato que vai se fazer presente na
maneira de como tal projeto de moralização da sétima arte vai
se materializar nas dioceses brasileiras.
A Paraíba, mesmo se encontrando na periferia de tais
processos, se insere nas discussões a respeito da moralização do
158
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
audiovisual encontrando no jornal A Imprensa (de propriedade da
Arquidiocese), um centro de difusão e de defesa, dada a atuação
da Igreja Católica no local que, em concordância com a postura
demonstrada pela instituição no ocidente cristão, buscava
também se colocar como instância de controle da modernidade.
Figura 1 – Primeira página do jornal
A Imprensa, de 05 de janeiro de 1937.
Fonte: A IMPRENSA, 05 de jan. de 1937.
159
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
Criado em 1897 pela recém-fundada Diocese da Paraíba
com o nome A Imprensa Cathólica (que seria renomeado posterior-
mente apenas para A Imprensa), o jornal teve grande circulação,
cuja cobertura abarcava todo o estado, chegando, a partir de
1912, a possuir uma tiragem de 2.000 (dois mil) exemplares.
Segundo José Pereira de Sousa Jr (2015, p. 01), o jornal:
[...] foi um ato de promover a Igreja através de seus
escritos, assim como disseminar entre seus leitores
as bases de uma conduta moral, social e religiosa. Foi
ainda, uma das estratégias de ação para a romanização,
além de ser porta-voz dos interesses confessionais
católicos. Era um jornal a serviço da Igreja e em defesa
da “verdade” pautada na religião católica.
A partir de 1930, o periódico já dedicava colunas e edito-
riais com denúncias às imoralidades presentes no audiovisual,
no entanto, sem haver um espaço exclusivo para tal discussão,
que aparecia de maneira esporádica no impresso. Uma prática
que muda em resposta às recomendações do Vaticano presentes
na bula papal de 1936, com a inclusão no ano seguinte, de uma
sessão do jornal para os assuntos de cinema e teatro (LEAL,
2007). Tal segmento, intitulado Cinema & Teatro, passou a figurar
nas edições do jornal a partir do dia 05 de janeiro, se tornando
um espaço tanto para a divulgação da programação dos
cinemas da capital paraibana, quanto para se discutir a sétima
arte dentro dos parâmetros morais defendidos pela Igreja e
estabelecidos pelo Vaticano. A proposta de educação do olhar do
público fiel se fazia presente, através de colunas que se debru-
çavam sobre diversas questões que partiam, tanto da denúncia
de supostas “imoralidades e excessos” presentes em produções
de grande repercussão, como também de questões relativas às
160
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
estéticas e narrativas cinematográficas. De modo a aparecer de
maneira intuitiva ao olhar do leitor, o segmento localizou-se,
durante todo seu primeiro ano, na última página do jornal, no
quadrante superior esquerdo. Em relação à sua diagramação, a
sessão se dividia em duas partes, sendo a primeira composta por
uma coluna discursiva, assinada pelas iniciais F.A.N., seguida
pela programação dos cinemas e teatros da capital. No mês
seguinte, em 14 de fevereiro também foi incluída a programação
das emissoras de rádio que funcionavam em território parai-
bano, passando o segmento a chamar-se Cinema – Teatro – Rádio
(A IMPRENSA, 14 de fevereiro de 1937).
Figura 2 – “Segmento Cinema – Teatro” do jornal A Imprensa
Fonte: A IMPRENSA, 18 de mar. de 1937.
161
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
Permanecendo com aparição diária no jornal até a edição
do dia 29 de outubro de 1937, a coluna assinada por F.A.N. (cuja
autoria ainda não foi identificada), mesmo com ocasional desvio
para outras mídias cobertas pelo segmento, focou seu conteúdo
nos debates sobre a sétima arte, onde se pode perceber uma
tentativa da diocese de educar e discutir com o público fiel a
respeito do projeto da Igreja Católica para a moralização do
audiovisual, no qual se destacava a importância de se combater
os chamados atentados contra a moral cristã, nos conformes
da encíclica Vigilanti Cura, como se pode ver no exemplo abaixo,
datado do dia 01 de abril de 1937:
Ainda recentemente o Santo Padre Pio XI endereçou ao
mundo católico uma encíclica sobre o cinema, em que
condena os espetáculos atentatórios contra a moral,
a tendência perversora do cinema, o desvirtuamento
de uma realização que tantos bens poderia ocasionar.
Com efeito, todo mundo de bom senso reconhece que as
películas exercem influência decisiva sobre os frequen-
tadores dos salões cinematográficos. E todos sabem que,
infelizmente, o comum dos filmes deixa muito a desejar
quanto à moral, o que vale dizer que, aquela decisiva
influência se processa num sentido mal e condenável.
É de lamentar que não disponhamos de outra arma
para combater o máu cinema, sinão do “boycot” e que
não disponhamos de organização de bons filmes da
maneira que bem ou mal dispomos de bons jornais.
Verdadeiramente, o “boycot” é um empreendimento
que ficará restrito a uma minoria e isso não convencerá
os emprezarios cinematográficos da necessidade de
melhorar, as suas produções do ponto de vista moral
(A IMPRENSA, 01 de abril de 1937, p. 08).
162
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
Uma defesa que não se fez sem as críticas ao modelo
de censura oficial unificada aprovada pelo Governo Vargas,
sobretudo em relação à eficiência da legislação estatal em se
fiscalizar tanto as questões morais referentes às produções,
quanto a presença de menores em filmes impróprios:
Evidentimente uma sessão cinematográfica em que
entrem, por exemplo, três ou quatro filmes (supo-
nhamos um jornal estrangeiro, um filme natural e um
drama ou uma comédia de longa metragem) – Só por
execepção pôde convir a qualquer classe de expecta-
dores. Há quem ria da classificação “impróprio para
menores”, mas a verdade é que zombar dessa classifi-
cação é afinal escarnecer da própria psicologia.
Dá-se com os romances a mesma coisa. Porventura
seria razoável dar a lêr a crianças ou adolescentes sem
experiência quaesquer volumes dos melhores autores
de qualquer das literaturas mais notáveis?
Ora o grande mal é que os exibidores não querem,
ou não sabem, organizar espetaculos próprios para
crianças nem pra adolescentes, ao lado de outros para
adultos de personalidade já formada.
Aqui em João Pessoa os cinemas exibem tudo, para
todos pelo menos praticamente.
As limitações impostas pela censura são, na pratica,
ineficazes e como inexistentes.
163
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
Queremos assinalar lamentando-o o fato de não haver
ainda, ao que nos consta, espetaculos para crianças
ou adolescentes, organizados com critério ao mesmo
tempo artísticos, cientificos e eticos.
Pois ainda não se afirma como coisa pacifica, que os
filmes em serie, com as aventuras de bandidos, roubos,
assassinatos, seduções, todo o Codigo Penal, emfim,
são os mais interessantes e preferíveis nas chamadas
vésperas infantis?
Onde está a nossa legislação de proteção à infância? Quais
as autoridades encarregadas de cumprir o código de
menores? – FAN (A IMPRENSA, 08 de janeiro de 1937, p. 08).
Além das críticas à ineficiência do sistema de fiscalização
estatal, tal modelo era comumente contrastado em relação
à proposta de censura moral defendida pela Igreja, que, nas
páginas do jornal, disputava junto ao Estado o que seria a
representação de um cinema livre de vícios:
A campanha por nós iniciada da defesa dos lídimos
interesses da moralidade cristã, apesar de ter por si
pessoas que teem a compreensão exata dos deveres de
gente honesta, tem igualmente, elementos que, por nada
conhecer de que seja educação de um povo, a antipatizam.
Quando fazemos a censura de um filme e o consideramos
indigno de ser visto por homens que prezam a saúde do
espírito, não é com o intuito de acabar com o cinema.
Pelo contrário. Desejamos a vitória do cinema, porém,
moralizado, do cinema honesto e consequentemente católico.
164
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
Queremos acabar, sim, com o cinema mal, o cinema que
leva a juventude ao desregramento.
Certos indivíduos que, como dissemos acima, nenhuma
noção teem de educação, interpretam o cinema católico
como unicamente de biografia de jesus e dos santos.
Reputamos estes filmes necessários. Porém, quantos e
quantos filmes fóra desta orbita teem sido aprovados
pela Censura católica?
Sinfonia Inacabada, Magnólia, Olhos Encantadores, e
seria uma infinidade citá-los.
Do mesmo modo, é quanto ao teatro. Peças a que a
Companhia de Comédia Moderna, agora em nosso meio,
estreará brevemente, “Um Rapaz Teimoso”, merece
os nossos aplausos. Porém “AMÔR” é um verdadeiro
desrespeito ao sentimento religioso de um povo essen-
cialmente católico.
E peças e filmes como os que citamos acima, aprovados
pela censura católica, não faltam – FAN (A IMPRENSA,
03 de março de 1937, p. 08).
A falta de um propósito educacional por meio do mercado
exibidor nacional e local também foi alvo de críticas por parte
do segmento que, influenciado pela presença educacional das
medidas oficiais adotadas pelo Estado em relação ao audiovisual,
defendia uma proposta educadora por parte dos locais de exibição:
165
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
A nossa capital está maios ou menos bem servida de
cinema. No entanto as nossas casas de diversões levam
tudo: do otimo ao pessimo, no ponto de vista moral.
Porque é claro o motivo: quem possui um cinema é para
ganhar dinheiro e não para a causa de educação nacional.
Agora uma pergunta: por que será que só os catolicos
ainda não se lembraram de fazer um cinema honesto? Pois
o próprio Papa já não fez ver que o problema do cinema e
do radio não pode ser posto à margem da Ação Catolica?
No Brasil ainda não existe um cinema sequer catolico.
E que melhor maneira de incentivar o cinema honesto
e combater os filmes corrutores do que fundar um
cinema no qual só se exibam filmes bons, aprovados
por uma censura de orientação cristã?
Nem se diga que não os ha em número bastante. Ha
filmes honestos em qualidade suficiente para manter
programas completos, renovaveis duas vezes por
semana. É obvio que seriam exibidos alguns filmes dos
quais vistos por aqui.
É negocio lucrativo.
Que falta então?
Só isto: iniciativa, coragem, senso pratico.
166
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
Quando permitirá a Divina Providencia que tais quali-
dades se reúnam nas mesmas pessoas, à genuino senso
catolico e desejo de fazer apologetica eficaz à altura do
século XX (A IMPRENSA, 04 de fevereiro de 1937, p. 08).
O impresso também demonstrou preocupação por meio
de elucidar o público leitor a respeito da necessidade de coorde-
nação internacional para um projeto de moralização do cinema,
demonstrando que, mesmo possuindo logradouro periférico às
discussões realizadas pelo Vaticano frente ao audiovisual, suas
iniciativas se encontravam em concordância com os ditames
pensados pela Igreja internacional:
Já sabem os nossos leitores de que é que se trata. Queremos
hoje sublinhar o desenvolvimento que está agora tomando
a obra, conforme os dados do relatório apresentado à Junta
Diretora em Bruxelas em fevereiro deste ano. Os países
oficialmente representados no OCIC eram: Alemanha,
Austria, Belgica, Espanha, França, Italia, Luxemburgo e,
logo, após, Canadá, Lituania e Mexico.
(E o Brasil, quando será?)
Além daqueles paizes que têm representantes especiais
de carater oficial, junto ao OCIC, a outros cujas orga-
nizações cinematograficas mantém relações efetivas
e regulares com o Office Catholique Internacional
de Cinema. Tais são: Inglaterra, a Holanda, a Irlanda,
Portugal, a Suíça e a Tchecoslováquia.
(E o Brasil, quando será?)
167
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
Note-se que esses ultimos paizes ainda não possuem
uma organização nacional unica e por isso pe que
ainda não podem participar oficialmente do OCIC nos
termos previstos pelos estatutos. Mas a Holanda acaba
de crear um organismo para a Ação Catolica do cinema
e Mr. Weterings, secretario geral da obra recentemente
creada, visitou ha pouco a sede do OCIC.
Prepara-se o terreno para uma propaganda na Polonia e
Hungria (e no Brasil, quando será?) – FAN (A IMPRENSA,
03 de junho de 1937, p. 08).
Preocupado com os desígnios do cinema, o segmento
também realizou discussões mais gerais, que, apesar de ainda
se situarem dentro do projeto de doutrinação moralizante,
desviava da exclusividade de tal pauta para discutir questões
relativas aos méritos artísticos das produções, aos avanços do
cinema nacional e para noticiar eventos ou acontecimentos
importantes da vida cinematográfica da capital paraibana,
antevendo o que será o foco de uma crítica especializada que
surgiria nas décadas posteriores.
Não é a primeira vez (e não será por ventura a derra-
deira, querendo Deus) que nos referimos com certa
severidade ao film nacional. Manda a justiça, exige o
jornalismo, obriga o proprio interesse pelo cinema que
reconheçamos as falhas, os erros até os ridiculos de
certas fitas brasileiras. Não ocultamos o nosso pezar,
sobretudo em confronto com o que se faz agora em
outros paizes, inclusive, Portugal.
Reconhecemos, porém, que ha certos sintomas
animadores na produção nacional. Quem observa
168
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
os complementos brasileiros de programas verifica
haver ao lado de uma ainda lamentavel maioria de film
malfeitos ou francamente idiotas, alguns promissores
de subida do nivel da produção.
Quem (passando agora a films de grande metragem e de
enredo comico ou dramatico) quem, dizemos, comparar
“Favela dos meus amores” com as outras iniciativas e
recentes, sentirá aqui e ali, apesar dos defeitos ainda
visiveis, progresso real, uma tecnica muito melhorada e
até algumas sequências francamente dignas de aplausos.
Pena é que um artista competente e esforçado como é,
inegavelmente Humberto Mauro, e que revela qualidades
de primeira ordem para dirigir um film, tenha sido obri-
gado por motivos secundarios (que aliás desconhecemos)
a transigir, em algumas sequencias, com o máo gosto das
nossas platéias, intoxicadas de nudezas provocantes, de
sambas e piadas desavergonhadas e de efeitos carnava-
lescos já insuportaveis na sua repetição enfadonha.
Quem filmou aquela sequencia da agonia morte e
enterro de nhonhô na Favela, é um genuino artista.
Esparamos um novo film, sem as descaídas deste, para
bater-lhe palmas com entusiasmo – FAN (A IMPRENSA,
11 de fevereiro de 1937, p. 08).
A partir da edição de 15 de março de 1938, o segmento
sofreu uma grande reestruturação, transferindo-se para a
segunda página do jornal, no quadrante inferior, com um espaço
maior dedicado. Em relação ao projeto de educar o público
a respeito da necessidade de moralização do audiovisual, o
impresso passa, em substituição das colunas assinadas por
F.A.N., a publicar críticas de filmes presentes em circulação na
169
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
capital paraibana (sob o nome de “censuras”), acompanhadas,
ao final de uma cotação moral, que definia se os mesmos seriam
recomendáveis ou não, de acordo com os preceitos estabelecidos
pela Igreja Católica e pela arquidiocese do estado. Uma metodo-
logia de uso de cotações morais que se alinhava aos preceitos
estabelecidos pela encíclica Vigilanti Cura.
Finalizando, pode-se afirmar que desta forma, a defesa
de um cinema moralizado e livre de vícios foi uma preocupação
constante por parte de uma Igreja Católica que, frente ao novo
paradigma modernizante que se alastrava rapidamente pelo
ocidente, precisava reestabelecer sua posição em relação ao
público fiel através do controle dos elementos oriundos de tal
modernidade. O cinema, com sua capacidade de preencher as
mentalidades e introduzir novos valores, logo foram elencados
ao protagonismo na atuação dos católicos, de modo que se fez
imprescindível a necessidade de doutrinar e instruir os expec-
tadores para que procurassem apenas as fitas que possuíssem
em seu conteúdo, os valores defendidos pelo catolicismo.Mesmo
apesar de se situar à periferia das discussões internacionais,
tanto o cinema quanto os projetos de sua moralização encon-
traram na Paraíba, um terreno fértil para seu desenvolvimento.
170
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
Referências
A IMPRENSA, 05 de janeiro de 1937.
A IMPRENSA, 08 de janeiro de 1937.
A IMPRENSA, 04 de fevereiro de 1937.
A IMPRENSA, 11 de fevereiro de 1937.
A IMPRENSA, 03 de março de 1937.
A IMPRENSA, 18 de março de 1937.
A IMPRENSA, 01 de abril de 1937.
A IMPRENSA, 03 de junho de 1937.
ALMEIDA, Cláudio Aguiar. Meios de comunicação católicos na
construção de uma ordem autoritária: 1907/1937. 2012. Tese
(Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte
e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196.
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha
no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
171
EDUCANDO PARA O “BOM CINEMA”: O JORNAL A IMPRENSA E O PROJETO
DE MORALIZAÇÃO DO AUDIOVISUAL DA ARQUIDIOCESE DA PARAÍBA (1897-1937)
CAVALCANTE NETO, Faustino Teatino. Matizes do anticomunismo
católico na Paraíba (1902-1935). In: BEZERRA, Josineide da
Silva; DOS SANTOS NETO, Martinho; NUNES, Paulo Giovani
Antonino (org.). História política: rupturas institucionais
e revoluções. João Pessoa: Editora UFPB, 2018. p. 143-177.
CHAGAS, Waldeci Ferreira. As singularidades da modernização
na Cidade da Parahyba nas décadas de 1910 a 1930. 2004. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2004.
Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/7459/1/
arquivo7777_1.pdf. Acesso em: 25 maio 2021.
CHAVES, Geovano Moreira. O cinema além do filme: o projeto
da Igreja Católica brasileira para a formação de educadores
cinematográficos via Cineclube Belo Horizonte. Revista de
História e Estudos Sociais, Belo Horizonte, ano 9, n. 2, maio/
ago. 2012. Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/PDF29/
ARTIGO_4_GEOVANO_MOREIRA_CHAVES_FENIX_
MAI_JUN_JUL_AGO_2012.pdf. Acesso em: 23 maio 2021.
CHAVES, Geovano Moreira. Sob o desígnio moral: o
cinema além do filme (1900 - 1964). 2018. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.
Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/
handle/1843/BUOS-B2ZNRT. Acesso em: 23 maio 2021.
COSTA, Flávia Cesarino. “O primeiro cinema”. In:
MASCARELLO, Fernando (org.) História do Cinema
Mundial. Campinas. Papirus, 2012. p. 18-19.
172
CLÁUDIA ENGLER CURY / LUIZ ARAÚJO RAMOS NETO
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano
e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
LEAL, Wills. Cinema na Paraíba/ Cinema da Paraíba.
Livro - álbum em dois volumes, João Pessoa: [s.n.], 2007.
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: Das origens
à retomada. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2005. (Coleção História do Povo Brasileiro).
REZENDE, Antonio Paulo. A modernidade e o
modernismo – significados. Série História do
Nordeste, Recife, v. 1, n. 14, p. 7-24, 1993.
REZENDE, Antonio Paulo. (Des)encantos modernos: história da
cidade do Recife na década de vinte. Recife: FUNDARPE, 1997.
SANTOS, Alex. Cinema e Revisionismo. João Pessoa: SEC/PB, 1982.
SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: UNESP, 2015.
SIMÕES, Inimá. Roteiro da Intolerância: a censura
cinematográfica no Brasil. São Paulo: SENAC, 1999.
SOUSA JR, José Pereira de. O Jornal “A Imprensa Cathólica”
e seus escritos de combate a maçonaria e o espiritismo na
primeira república paraibana (1890-1930). In: XXVIII SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA, 28., 2015, Florianópolis. Anais [...].
Florianópolis, 2015. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.
org/site/anaiscomplementares. Acesso em: 23 maio 2021.
173
“NADA DO QUE
É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO
NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
DO RIO GRANDE DO NORTE
Rita Thainá Correia da Cunha1
Azemar dos Santos Soares Júnior2
Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar
a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Norte como fonte para as pesquisas acerca da História da
Educação, devido sua ampla possibilidade de fornecer infor-
mações sobre vários períodos e momentos históricos do estado.
Além disso, os sócios e colaboradores do IHGRN, também,
1 Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Atualmente é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEd-UFRN), onde
desenvolve pesquisa sobre o debate da educação nas Revistas do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
2 Professor do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutor em Educação
pela Universidade Federal da Paraíba. É professor permanente do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (PPGEd/UFRN) e do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Campina Grande (PPGH/UFCG).
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
podem ser um fator de análise nas pesquisas, tendo em vista
a produção de pesquisa em torno do setor educacional, publi-
cadas na Revista do Instituto, e a participação desses membros
em setores envolvidos direta ou indiretamente com a educação.
O IHGRN é a entidade cultural mais antiga do estado do Rio
Grande do Norte e seu acervo conta com objetos, fotografias,
documentos, livros e revistas que ajudam a construir a história
do Rio Grande do Norte. É importante que os estudiosos da
educação, também, possam usufruir de seus materiais, ainda
pouco utilizados para essa área, para a produção de pesquisas
no campo da Educação. Foi utilizado o método histórico e de
análise de documentos (CERTEAU, 2006) para a catalogação
das Revistas e dos sujeitos autores dos artigos sobre educação,
publicados entre os anos de 1938 e 2016. Esse artigo é parte
integrante de uma pesquisa de mestrado desenvolvida na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Palavras-chaves: IHGRN. Educação. Autores.
Introdução
O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
(IHGRN) é uma das entidades culturais mais antigas
do estado potiguar. Foi fundado em março do ano de 1902,
inicialmente almejando reunir e organizar os arquivos e
documentos referentes a questão de limites que o Rio Grande
do Norte enfrentava na justiça com o Ceará. Essa documentação
encontrava-se desorganizada devido as péssimas condições
do arquivo público do estado no período, e, por esse motivo,
dificultava a ação do Rio Grande do Norte no âmbito judicial
175
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
frente a essa questão. A situação dos arquivos públicos do
estado foi relatada pelo poeta maranhense, e futuro sócio do
IHGRN, Gonçalves Dias, em uma das suas viagens ao estado a
pedido do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)3,
que visava o reconhecimento de documentações para compor
o acervo de fontes sobre a história nacional. A criação de um
instituto capaz de organizar essa documentação e estruturar
as provas e vestígios acerca dos limites do RN era considerada
naquele momento de grande valor, tanto para a finalização
do processo jurídico em curso, quanto para a construção da
história do estado.
Seguindo o exemplo de diversos Institutos Históricos
criados no Brasil ao longo do século XIX e início do vigésimo
século, o IHGRN organizou, através de muitas doações, um
patrimônio material exaltador da história local a qual estava
vinculado. Hoje, o IHGRN possui um acervo repleto de fotogra-
fias, objetos de vários períodos da história norte-rio-grandense,
telas, livros e documentos que ajudam a reconstruir um pouco
da história local e nacional. Além dos bustos dos ditos homens
notáveis que dedicaram suas vidas à História e ajudaram a soli-
dificar o IHGRN enquanto instituição cultural, a exemplo dos
3 Gonçalves Dias publicou no volume 17 da Revista do IHGB, no ano 1854,
um artigo intitulado Catálogo de Capitães Móres e Governadores do Rio Grande
do Norte, onde afirmou que sua pesquisa ainda oferece muitas lacunas
sobre assunto devido a precarização dos arquivos do estado mencionado.
Gonçalves Dias também fez viagens ao Maranhão, no qual alertou para o
mesmo problema de desorganização dos arquivos públicos.
176
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
sócios Manoel Gomes de Medeiros Dantas4 e Câmara Cascudo5,
o acervo conta também com a Coluna Capitolina, trazida a bordo
do navio Lanzeroto Mlocello, presente da Itália ao Rio Grande do
Norte em agradecimento pela acolhida de seus pilotos durante
a segunda metade da década de 1920. Esse monumento foi
atacado, em 1935, pelo movimento comunista de Natal, que
alegava ser um presente de um governo fascista. Entretanto,
não chegou a ser completamente destruído e hoje a Coluna
Capitolina permanece no largo Vicente de Lemos no IHGRN6.
Além dos objetos e documentos presentes no acervo do
IHGRN, podemos contar, também, com as revistas publicadas
pelo próprio Instituto, desde 1903, como fontes para pesquisas
na área da história, da geográfica e da educação – e demais
áreas que possam ser pensadas a partir de seus inscritos.
Tais revistas contém artigos valiosos sobre a geografia do RN,
documentos acerca da questão de limites em disputa com o
Ceará, bem como biografias de homens ilustres, que ajudariam
a compor o panteão de heróis nacionais, e a história indígena
no estado. Os impressos podem ser encontrados, em sua forma
digitalizada, no site do IHGRN, na sessão “repositório”.
Este artigo tem como objetivo apresentar o IHGRN
como objeto de estudo para a área de educação, visando
4 Nascido em 1867, em Caicó, foi jornalista, educador, advogado e sócio
fundador do IHGRN. Redator e diretor do jornal A República, traduziu o Manifesto
Futurista de Marinett em 1909, que inaugurava um dos mais importantes
movimentos artísticos do século XX, o futurismo. Faleceu em Natal, em 1924.
5 Nascido em 1898, foi historiador potiguar de grande reconhecimento.
Dedicou sua vida a pesquisa da cultura e do folclore. Apelidou, carinhosa-
mente, o IHGRN como “Casa da Memória”. Faleceu em Natal, em 1986.
6 Essas informações foram retiradas no site do IHGRN, como também pelas
visitas pessoais feitas ao Instituto. Conferir em: http://ihgrn.org.br/acervo.
177
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
especificamente sua Revista e os artigos encontrados sobre o
assunto nas páginas do impresso. Os sujeitos que compunham
o corpo do Instituto também são fortes elementos de análise,
tendo em vista a importância de se conhecer os autores dos
textos que circulavam e influenciavam os pensamentos de
muitos intelectuais em todo Brasil acerca do Rio Grande do
Norte. Este artigo é parte integrante de uma pesquisa de
mestrado que está sendo desenvolvida sobre o IHGRN, que
propõe analisar a concepção de educação adotada e divulgada
pelo impresso do Instituto. Ressaltamos que outras pesquisas já
foram desenvolvidas sobre o IHGRN7, mas nenhuma se propôs
a analisar a educação dentro dessa instituição.
Tons, tintas e temas na Revista
do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte
Desde de 1903 em circulação, a Revista do Instituto
sofreu poucas mudanças em sua apresentação e em seu modo
de endereçamento. Durante longos anos, esse impresso foi
pensado para atender as demandas de um público específico,
7 Destacamos os seguintes trabalhos: Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte: uma visão historiográfica entre 1914 e 1947 (AZEVEDO,
2005); Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – história
e acervo (MORAIS; OLIVEIRA, 2005); “A Casa da Memória Norte-Rio-
Grandense”: O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e a
construção do lugar do Rio Grande do Norte na memória nacional (1902-1927)
(COSTA, 2017); Visões de República: idéias e práticas políticas no Rio Grande
do Norte (1880-1895) (BUENO, 2002).
178
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
como seus sócios e demais intelectuais que tivessem interesse
pela construção da história do Rio Grande do Norte, assim como
membros de outros Institutos Históricos que estavam inseridos
nesse contexto de idealização de uma História Nacional. Para
estabelecer um melhor diálogo, vejamos a figura da capa da
edição da Revista do IHGRN de 1904:
Figura 1 – Capa da Revista do IHGRN
Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
Toda sua organização era pensada em torno desse
público: uma elite intelectual. Inicialmente, a Revista foi
179
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
dividida em três sessões que pouco se modificaram ao longo
do tempo. São elas: os artigos de sócios e colaboradores, as
atividades registradas em ata sobre a instituição, e, por fim, a
necrologia. Vale ressaltar, também, que nos primeiros anos de
publicação do impresso, muitos documentos acerca da questão
de limites foram transcritos e publicados na revista, afim de
gerar visibilidade para essa demanda enfrentada pelo RN.
Ao observar a capa da Revista do Instituto, do ano de 19048,
notamos a formalidade em que esse impresso foi apresentado ao
seu público. As bordas decoradas, com adornos em seus quatro
cantos, demonstram a delicadeza e organização de um impresso
recém-produzido, que seguia o design clássico do período em que
foi publicado. A frase escrita na margem direita, “Nada do que
é grande começou grande”, remete ao filósofo francês, Joseph
de Maistre, deixando evidente, assim como em todo o Brasil do
período, a influência do pensamento de filósofos e historiadores
franceses na escrita da História nacional. Essa frase, também,
demonstra a pretensão do Instituto Histórico com a criação de
sua revista: torná-la grande e reconhecida entre os intelectuais
brasileiros, assim como a história que ali seria produzida.
Outro detalhe importante apresentado na capa da revista
é a tipografia, área responsável pela impressão do periódico. O
IHGRN não dispunha de uma tipografia própria nos anos iniciais
de circulação da revista e, por isso, observa-se na capa o nome
da Typografia da Gazeta do Commercio. Ao longo dos anos, a Revista
do Instituto passou por diversas tipografias, sendo somente
nos anos de 1909 à 1911 impressas pela tipografia do Instituto
8 Não tivemos acesso a capa da primeira edição da Revista, de 1903, devido
a fragilidade do material que impede a digitalização. Entretanto, em nada
compromete a compreensão, tendo em vista que as capas das revistas perma-
necem quase sem nenhuma alteração, ao longo dos anos.
180
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
Histórico. O motivo pelo qual as revistas só foram impressas
pelo Instituto nesses anos ainda não foi encontrado, devido a
carência desse tipo de informação nas fontes pesquisadas para
esse trabalho. Entretanto, pode-se inferir que para se manter
uma tipografia era necessário recursos técnicos, profissionais
e financeiros, excedendo os gastos possíveis para uma entidade
que não é vinculada ao setor público e se sustenta através de
doações. A Revista do Instituto, apesar de percorrer inúmeros
caminhos tipográficos, parece garantir sua organização sem
grandes alterações ao longo dos anos, mantendo a mesma
divisão das sessões, já mencionadas anteriormente, e a forma-
lidade dos artigos apresentados.
Os artigos, em sua maioria, são referentes a história e
a geografia do Rio Grande do Norte, assim como foi expresso
em uma pequena apresentação, sem autor identificado, no
primeiro número da revista. Fica claro que as publicações
apresentaram assuntos
[...] referente á geographia e historia do nosso Estado e
em geral do Brasil pudermos obter nas pesquisas que
o Instituto fizer para o conhecimento da nossa vida,
desde o tempo da conquista, e também o que possível
fôr conseguirmos da existencia selvagem dos primeiros
povoadores — essas pobres hordas primitivas que as
armas e a astúcia dos brancos despojaram (REVISTA
DO IHGRN, 1903, p. 5-6).
Assim, esse periódico seguiu a mesma linha temática
abordada por outros Institutos Históricos e Geográficos
espalhados pelo Brasil, que visavam a realização de pesquisas
referentes a História do Brasil e seus limites, bem como a
exaltação dos povos indígenas do território brasileiro como
181
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
figuras ilustres da nossa história. Influenciados diretamente
pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e sua
missão de construir uma identidade nacional, essas institui-
ções culturais estavam inseridas na lógica proposta por essa
entidade maior, que visava em sua revista, segundo Manoel
Luís Salgado Guimarães (1988, p. 23), as
[...] publicações relativas às viagens e explorações do
território brasileiro, abordando questões de fronteiras
e limites, as riquezas naturais do país e novamente a
questão indígena. [...] trata-se de definir com precisão
os contornos físicos dessa Nação, integrando na
imagem em elaboração os elementos continentalidade
e riquezas inumeráveis, capazes de viabilizarem num
futuro não-defino a realização plena de sua identidade.
As atividades do Instituto Histórico, também, foram
registradas e expostas na Revista no final de cada publicação.
É possível ter acesso as atas do Instituto, aos estatutos e as notí-
cias mais relevantes para a entidade, como por exemplo o artigo
publicado, sem autor identificado; sobre a nova sede do IHGRN
na revista referente aos anos de 1926 e 1927. Há também uma
sessão denominada “necrologia” em cada edição do impresso.
Nessa sessão estão contidas pequenas homenagens biográficas
sobre membros ou colaboradores do IHGRN que faleceram
durante o período. Observa-se que muitos desses homens
ocupavam cargos administrativos importantes dentro do Rio
Grande do Norte e que pertenciam a elite potiguar.
Michel de Certeau (2006, p. 66-67) afirma que
[...] toda pesquisa historiográfica se articula com um
lugar de produção sócio-econômico, político e cultural.
182
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
Implica um meio de elaboração que circunscrito por
determinações próprias: uma profissão liberal, um posto
de observação ou de ensino, uma categoria de letrados,
etc. Ela está, pois, submetida a imposição, ligada a privi-
légios, enraizada em uma particularidade. É em função
deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia
uma topografia de interesses, que os documentos e as
questões, que lhe serão propostas, se organizam.
Observamos que os sócios do Instituto Histórico perten-
ciam a uma classe mais abastada, devidamente reconhecida
como a elite potiguar no período, ocupando um lugar social
e econômico privilegiado. Eram políticos, profissionais de
diversas áreas prestigiosas, como advogados, médicos e
professores, indivíduos de grande reconhecimento intelectual,
a exemplo do sócio fundador Augusto Tavares de Lyra, reconhe-
cido nacionalmente por sua vida política, como também por
seus livros publicados sobre a História do Rio Grande do Norte.
Tavares de Lyra foi sócio de diversos Institutos Históricos, entre
eles o IHGB onde recebeu a nomeação de grande-benemérito no
mês de abril de 1948. Esse é apenas um exemplo dentre tantos
outros sujeitos associados aos IHGRN onde podemos reconhecer
um lugar específico ocupado por esses indivíduos dentro da
sociedade norte-rio-grandense. Um lugar de poder.
Os Institutos Históricos em todo Brasil possuíam o obje-
tivo prático central de construir a história. Por esse motivo, as
perguntas levantas por Michel de Certeau (2006, p. 65) são tão
importantes dentro desse contexto: “[...] o que fabrica o histo-
riador quando ‘faz história’? Para quem trabalha? Que produz?”.
Tudo isso interfere no modo como a História é arquitetada e
é por esse motivo que devemos olhar com mais atenção para
183
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
esses homens que produzem a História e circulam suas ideias
através do impresso.
Ao observar a ata de criação do Instituto, exposta na
primeira publicação da revista, nota-se a presença de vários
sujeitos da elite política potiguar, entre eles o governador do
Rio Grande do Norte do período, Alberto Maranhão. Foram
citados, também, como já mencionado, Augusto Tavares de
Lyra, Francisco Pinto de Abreu e Manoel Dantas, homens que
já possuíam certo reconhecimento intelectual antes mesmo
da fundação do IHGRN. Ou seja, a “Casa da Memória”, como
apelidada carinhosamente por Câmara Cascudo, abrigava sob
seu teto um grupo seleto de indivíduos responsáveis pelos
primeiros passos da História do Rio Grande do Norte.
É de rápida intuição que para uma instituição que abriga
em seu seio sócios pesquisadores vinculados a área da história,
da política, do direito e com a finalidade primeira de recolher
documentos sobre questões de limites da própria região em
que trabalham, a produção de artigos sobre assuntos dentro
dessas áreas de interesse sejam os temas principais de suas
pesquisas e ideias expostas em seu impresso. Entretanto,
quando analisamos os artigos contidos na Revista do Instituto,
percebemos que assuntos como educação ganham espaço dentro
dessa revista de caráter histórico-científico.
Sabendo que o IHGRN era influenciado diretamente pelo
IHGB, buscamos compreender a importância de tal assunto,
também, dentro dessa entidade maior. Concluímos que, para a
realização do projeto proposto pelo IHGB, de construir a identidade
brasileira, a educação, especialmente jesuítica, era um assunto
recorrente dentro dessa instituição, vista como um elemento
fomentador de mudanças sociais, capaz de “civilizar” um povo
inteiro. Como apontam Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e
184
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
Juscelino Pereira Neto (2010), no artigo Os Jesuítas e a Educação no
Programa da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839):
A nação brasileira que se pretendia construir no século
XIX tinha como padrão o modelo europeu. Com o obje-
tivo de alcançar esse ideal, a educação foi elencada como
a forma mais eficaz na tarefa de civilizar as populações
consideradas como bárbaras ou incultas. Visava-se a
transformação dos indígenas em seres políticos e que
comportassem um pensamento racional e analítico
de modo que essas experiências lhes possibilitassem
a superação da barbárie e fossem então, incorporados
à “nação” (TOLEDO; PEREIRA NETO, 2010, p. 398-399).
Influenciado diretamente pelo IHGB, o IHGRN também
expôs nas páginas de sua revista artigos acerca da educação.
Até o ano de 2016, foram publicados cerca de 15 artigos sobre o
tema. Vejamos o quadro abaixo:
185
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
Quadro 1 – Textos sobre educação publicados na Revista do IHGRN
Ano Título do artigo Autor
1938 – 1940 A Cadeira de Gramática Latina da Villa do Príncipe José Augusto
1954 Ateneu Norte Rio-Grandense (Reminiscências. 1909 - 1916). Adauto da Câmara
1959 Tavares de Lyra e a Reforma do Ensino Público José Augusto
1960 O Ensino no Rio Grande do Norte. Antônio Fagundes
1961 O Colégio Santo Antônio (reminiscências). Antônio Fagundes
1961 Ensino Comercial de Natal. Ulisses de Gois
1961 A Música e a Escola Natalense Américo de O. Costa
1961 50 anos da Liga do Ensino. Américo de O. Costa
1962 – 1963 Instrução Pública em Martins M. Jácome de Lima
1973 – 1975 Síntese Histórica da Educação no Rio Grande do Norte Tarcísio Medeiros
1980 Aspectos da Educação no Brasil. Carlos Borges de Medeiro
1980 Há 50 anos, com os Maristas em Natal. Tarcísio Medeiros
Marta Maria de Araújo e
1997 – 1999 A escrita da história da educação do RN nas revistas do IHGRN
Marlene da Silva Mariz
2015 A educação pública no RN no governo do interventor Mario Câmara Itamar de Souza
2016 Os primórdios da educação no RN: Período Colonial Itamar de Souza
Fonte: Quadro elaborado pelos autores a partir dos dados contidos na Revista do IHGRN.
186
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
Esses artigos apresentam, de forma geral, aspectos da
educação, majoritariamente, no Rio Grande do Norte. Ao ler
esses textos, temos uma visão de como a educação era tratada
no período vigente e observamos, também, a importância de
determinadas instituições educativas para o grupo de intelec-
tuais que compunham o IHGRN, como, por exemplo, o Ateneu
Norte-Rio-Grandense que recebeu um artigo próprio escrito por
Adauto da Câmara.
Nota-se, que a grande maioria dos artigos publicados
nessa revista sobre educação, possui um caráter histórico. Em
outras palavras, os autores desses artigos tentam construir o
texto pautado numa história da educação, seja em um determi-
nado município ou período. Desse modo, é possível historicizar
o conceito de educação ao longo dos anos para o IHGRN e para
seu grupo de intelectuais quem pensam esse assunto dentro
do Instituto. Possibilita analisar a importância atribuída a
educação e ao ensino formal para o desenvolvimento da socie-
dade, através dos artigos do impresso. Assim como, também,
podemos perceber a educação como um elemento que compõe
a História que se pretendia construir dentro do Instituto. Uma
história que valorizava o nacional, a civilização, o progresso e
as consideradas “notáveis figuras” da região.
Tendo em vista essa linha ideológica, além desses textos,
são publicados, também na revista, 11 artigos referentes a
história de professores ou sujeitos que dedicaram sua vida à
educação. Observe o quadro abaixo:
187
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
Quadro 2 - Textos sobre a vida de docentes publicados na Revista do IHGRN
Ano Título do artigo Autor
1948 – 1950 Amaro Cavalcanti (traços biográficos) Nestor Lima
1960 Conde de Afonso Celso. João Vicente
1976 – 1977 Professor Luiz Antonio Raimundo Nonato
1980 Luiz Soares, Educador exemplar. Raimundo Nonato
1985 – 1986 Um professor a quem se tirar o chapéu Luiz Rabelo
1987 – 1988 Henrique Castriciano de Souza (um reformador social) José G. de Albuquerque
1992 – 1993 Faleceu Prof. Vicente de Almeida. Raimundo Nonato
1992 – 1993 Prof. Rodrigo Alves. Raimundo Nonato
1994 - 1996 Alferes Ulisses de Gois Josué de Oliveira Lima
1994 – 1996 Prof. Mesquitela nossas saudações Luís Romano
2015 Ao mestre Américo com carinho Carlos Alberto de Miranda Gomes
Fonte: Quadro elaborado pelos autores a partir dos dados contidos na Revista do IHGRN.
188
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
Esses autores, ou como o próprio Instituto se referia,
“essas notáveis figuras do estado do Rio Grande do Norte”,
eram lembrados como heróis nacionais, como destacavam os
objetivos iniciais da Revista? A resposta para essa questão ainda
não é precisa. Entretanto, observamos a figura do professor
sendo retratada em forma biográfica pela Revista do Instituto,
seja apontando atividades importantes dentro da política
estadual, como é o caso do artigo intitulado Tavares de Lira,
Governador e Político, escrito por Nestor Lima, que mostra a
figura do professor enquanto partícipe da vida pública, seja
como homenagem fúnebre após a morte de algum educador,
como é o caso do artigo intitulado Faleceu Prof. Vicente de Almeida,
escrito por Raimundo Nonato. Levando em consideração a linha
temática seguida pela revista desde sua fundação, onde apre-
sentam artigos sobre a história, geografia e homens célebres
do estado do Rio Grande do Norte, podemos inferir que tais
profissionais da instrução são sujeitos importantes dentro da
sociedade norte rio-grandense a ponto de serem homenageados
dentro da Revista do Instituto.
É importante destacar que, os artigos sobre educação
começam ocupar as páginas da Revista do Instituto a partir
da segunda metade da década de 1930. Antes disso, os artigos
publicados no impresso remetem, em sua grande maioria, ao
período colonial brasileiro, histórias dos indígenas que habi-
tavam a região e a questão de limites que envolvem o Rio Grande
do Norte e o Ceará. A linha temática abordada pela Revista do
IHGRN, nesses primeiros anos de funcionamento, é a mesma
linha abordada pelo IHGB, por exemplo, que visava de antemão
criar a identidade e os contornos da nação. A partir das revistas
publicadas nos anos de 1926 e 1927, observa-se uma mudança
nos artigos abordados pelo impresso, que oferece espaço,
189
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
também, para assuntos mais contemporâneos. Entretanto,
o primeiro artigo sobre educação publicado na Revista em
1938, ainda reflete a preferência pela história mais remota e a
importância dada as figuras notáveis que ajudaram a edificar
a educação norte-rio-grandense. Vejamos a seguir.
A educação no Seridó: a primeira
cadeira de Gramática Latina em Caicó
O primeiro artigo sobre educação publicado na Revista
do Instituto foi escrito por José Augusto9, então sócio benemé-
rito do IHGRN10, e publicado na edição referente aos anos de
1938 e 1940. Intitulado A Cadeira de Gramática Latina na Villa do
Príncipe, o artigo visou relatar, em poucas páginas, a recepção
do projeto de instalação da cadeira de Gramática Latina na Vila
do Príncipe, atualmente conhecida por Caicó, no Parlamento
Nacional nos anos de 1832. Vale ressaltar que José Augusto,
autor do artigo, é “filho” natural de Caicó, pois nasceu nessa
cidade no ano de 1884. Por essa informação, podemos julgar que
as motivações utilizadas inicialmente para a pesquisa e escrita
do artigo tenham sido de caráter pessoal.
9 José Augusto foi um renomeado político, professor e jornalista norte-rio-
-grandense. Escreveu diversas obras sobre educação, as quais podemos citar
como exemplo a Liga de ensino (1911) e Pela educação nacional (1918). Faleceu no
Rio de Janeiro em 1971. Seu nome, hoje, batiza o principal órgão de fomento a
educação e cultura do estado do Rio Grande do Norte: a Fundação José Augusto.
10 Os sócios do IHGRN se dividiam em: efetivos, correspondentes, honorários
e beneméritos. Os sócios beneméritos da Instituição, seriam aqueles dignos
de homenagem e que, com dinheiro ou serviços prestados, contribuíram
com o Instituto Histórico.
190
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
Entretanto, ao analisar a escrita do artigo e o modo como
o autor desenvolveu sua ideia, podemos observar a influência do
IHGRN na forma de produção do texto, assim como a vinculação
desse autor ao grupo seleto de intelectuais pertencentes ao insti-
tuto. A começar pelo primeiro parágrafo do artigo que afirma:
[...] um dos fatores ponderáveis no desenvolvimento inte-
lectual da sociedade seridoense foi a cadeira de gramática
latina que a iniciativa privada criou ainda no período
colonial e que os poderes públicos nacionais, a começar
de 1836, e por muitos anos, mantiveram ministrando á
mocidade sertaneja, alí localizada, rudimentos de cultura
clássica, naquela época, e (por que não dize-lo?) ainda
agora, imprescindível ás camadas da elite nas coletivi-
dades humanas progressistas (AUGUSTO, 1938, p. 37).
Inicialmente, observamos a importância dada ao passado
mais remoto, como já foi ressaltado anteriormente. A Revista
do Instituto pretendia publicar artigos sobre a história do Rio
Grande do Norte, mas uma história mais longínqua. Desse modo,
José Augusto, ao escrever o primeiro artigo sobre educação no
impresso, foi influenciado por esse modo de olhar a história do
estado, retornando assim ao século XIX para relatar a recepção
dos deputados ao projeto de lei do Padre Guerra, que visava a
implantação da Cadeira de Gramática Latina na Vila do Príncipe.
Nota-se, também, a quem a educação era direcionada, tanto no
período retratado (1832) como no período em que esse artigo
foi publicado (1938): a elite.
Ao afirmar que o ensino de latim foi importante para o
desenvolvimento intelectual da sociedade do Seridó, bem como
“[...] imprescindível para as camadas da elite”, José Augusto
afirmou, polidamente, que tal educação era direcionada para as
191
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
classes mais abastadas do estado. Esse pensamento permanece
ao longo do texto, onde o autor questiona, junto ao público, o
estranho fato de uma sociedade de “rudes fazendeiros” dar
lugar, também, aos estudos clássicos. José Augusto respondeu
a esse questionamento retórico afirmando que era
[...] preciso considerar que os povoadores iniciais do
Seridó, as primeiras famílias que ali se instalaram
e se fixaram, tinham origem mais ou menos ilustre,
descendiam de elementos distinguidos da elite social
do Pernambuco (AUGUSTO, 1938, p. 38).
Ou seja, o fato de se instalar uma cadeira de gramática
latina na cidade se dava pela necessidade dos “filhos ilustres”
do povo seridoense.
José Gonçalves Gondra e Alessandra Schueler (2008) nos
mostram que a educação no Brasil, desde a vinda da Corte ao
nosso território, estava voltada para fins e públicos específicos.
Durante o período de 1808 à 1822, o Brasil sofreu uma rápida
proliferação de instituições com fins educacionais, como por
exemplo a Academia Real da Marinha (1808), a Biblioteca Pública
(1810), a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios (1810), entre
outros, que contribuíram com a formação de diversos brasileiros
nesses anos iniciais de organização política. Essas instituições
contribuíram com as ideias monárquicas aqui instaladas e seu
acesso continuava sendo, de forma majoritária, dado aos grupos
cuja posição social era significativa. Ressaltam que
As medidas do governo joanino se notabilizaram pela
criação de instituições científicas e culturais e cursos
superiores, privilegiando a formação das elites políticas
192
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
e intelectuais, bem como de cirurgiões e médicos, de
militares para a defesa do território e de quadros buro-
cráticos para a administração e o serviço do Estado, como
engenheiros e técnicos (GONDRA; SCHUELER, 2008, p. 25).
Observamos, portanto, a utilidade da educação nos
primeiros anos da Corte no Brasil e o público a quem essa
educação era destinada. Esse público, prioritariamente abastado,
era formado para a administração pública e é notório saber que
a educação nos anos iniciais do regime imperial, contexto retra-
tado por José Augusto em seu artigo, pouco mudou com relação
ao período joanino, sendo essa atividade ainda prioridade para
um pequeno grupo de indivíduos ligados as elites da cidade. É
notório saber que a educação no período imperial era prioridades
para poucos, sendo esses indivíduos ligados as elites da cidade.
Porém, o mais interessante e que deve ser ressaltado ao analisar
esse artigo, é a própria discussão parlamentar em torno da
implantação da cadeira de gramática latina na região do Seridó.
Os argumentos que são levantados, os discursos proferidos em
torno dessa ação, são importantes para compreendermos as
ideias sobre a educação, ou sobre os professores, no período retra-
tado. A escrita de José Augusto contribuiu com essa compreensão,
por se tratar de um relato sobre as discussões no Parlamento
Nacional em torno desse assunto, mesmo que a exposição de tal
relato fosse feita sem grandes críticas.
Sem o rigor metodológico a qual estamos acostumados
hoje, José Augusto iniciou o relato das discussões ocorridas no
Parlamento Nacional no mês de julho de 1832. Relatou a urgência
do debate em torno do assunto, a pedido do deputado Costa
Ferreira, a quem não apresentou demais informações. A discussão
priorizou o ordenado oferecido ao professor que, inicialmente,
seria de 300$000 réis. Os deputados Soares da Rocha e Rebouças,
193
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
a quem também não ofereceu informações complementares,
rebateu a decisão, julgando “mesquinho” o ordenado oferecido
e afirmando que esse valor deveria estar em consonância com
a “capacidade e méritos” dos profissionais. Eis que o autor do
projeto, Brito Guerra, afirmou se contentar com o ordenado
oferecido, argumentando que “[...] o Rio Grande do Norte era uma
Província pobre, não dispondo, de muitos meios para atender ao
funcionalismo convenientemente” (AUGUSTO, 1938, p. 39).
Nesse primeiro momento da discussão, podemos inferir
a situação econômica da província do Rio Grande do Norte no
período imperial brasileiro. Não possuindo uma estabilidade
econômica para fixar-se uma cadeira de gramática latina na
região do Seridó, embora julgasse a importância de tal feito para
o desenvolvimento intelectual dos filhos da elite, a primeira
coisa a ser organizada dentro desse projeto seria o vencimento
do professor. No que se segue a discussão, alguns deputados
foram contra o aumento no ordenado, embora reconhecessem
as capacidades e méritos da profissão. Vale ressaltar a fala do
deputado Rezende, quando afirmou que os 300$00011 seriam
11 O ordenado de 300$000 réis era considerado baixo, segundo André Paulo
Castanha (2006), Professor do colegiado de Pedagogia da Unioeste, Campus
de Cascavel - Paraná. Ele apresenta em seu artigo, intitulado O Trabalhos dos
Professores no Brasil do Século XIX: uma leitura comparativa, uma tabela referente
aos ordenados dos professores a partir dos anos de 1850. No Rio de Janeiro,
por exemplo, os professores recebiam em torno de 600$000 à a1.000$000
réis. Enquanto que no Mato Grosso, estado analisado pelo André Castanha,
os professores recebiam os menores salários, em torno de 360$000 réis. Com
isso, havia desvalorização do magistério e baixa procura pela vida docente,
segundo o autor do artigo. Esse valor, acima citado, corresponde ao recebi-
mento acumulado ao longo do ano. Mensalmente os professores recebiam
uma parte desse total. Podemos inferir com isso que a situação salarial dos
professores na província do Rio Grande do Norte não era promissora, pois
seus ordenados estavam abaixo de 360$000 réis, valor já considerado baixo
na pesquisa comparativa do professor André Castanha.
194
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
suficientes, tendo em vista que a instalação de uma cadeira
de gramática latina na região da Villa do Príncipe não seria de
muita necessidade e continuou afirmando que os moradores
da região mencionada “[...] não viviam na necessidade que se
supunha, contentando-se com as pequenas coisas com que
vivem muito bem” (AUGUSTO, 1938, p. 40).
Outro deputado, de nome Holanda Cavalcanti, impugnou
o projeto afirmando que o Parlamento deveria preocupar-se
com coisas mais urgentes e com assuntos de mais necessidade
para a Nação. Brito Guerra, autor do projeto, voltou a reclamar a
importância do assunto discutido e afirma que o Rio Grande do
Norte também merece a atenção do Parlamento, assim como já
foi oferecida a outras províncias. Desse modo, a câmara resolveu
aprovar o projeto sem aceitar nenhuma emenda, fixando o
ordenado do professor em 300$000, tal qual foi proposto no
início da discussão. José Augusto, por fim, disponibilizou a
cópia do decreto, datado de 7 de agosto de 1832, que sanciona
o projeto do Parlamento e autoriza a instalação da cadeira de
Gramática Latina na Villa do Príncipe. O único documento que
podemos ter acesso por meio da Revista e do artigo de José
Augusto é esse decreto disponibilizado ao final do texto; tendo
em vista que toda a discussão do Parlamento Nacional, até
mesmo as citações utilizadas por ele, não passou de um relato,
sem apresentar o documento oficial redigido.
Após a exposição do decreto, José Augusto expôs que ele
mesmo retirou dos Anais Parlamentares o debate mencionado
anteriormente e pensou, portanto, que isso deveria bastar para
a comprovação da veracidade do documento. Como já mencio-
namos anteriormente, não existia o rigor metodológico a qual
estamos acostumados e textos históricos como esses eram bem
comuns nos periódicos nacionais. O autor voltou a redigir seu
195
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
artigo, em tom de conclusão, ressaltando o comprometimento
do deputado Brito Guerra na luta pela implantação dessa cadeira
no Seridó norte-rio-grandense. Afirmou que, graças aos esforços
do deputado, “[...] o Seridó conquistava do mesmo passo uma
instituição que lhe foi sumamente útil do ponto de vista do seu
progresso intelectual, durante vários decênios” (AUGUSTO, 1938,
p. 43), e que tal ação contribuiu, substancialmente, sendo “[...]
um dos fatores apreciáveis na determinação da evidente, real, e
muitas vezes decisiva influência que os homens do Seridó tiveram
sempre na direção da vida potiguar” (AUGUSTO, 1938, p. 44).
Concluiu o texto relatando o fato de dois jovens seri-
doenses paupérrimos, o que contradiz a exposição inicial da
cadeira de gramática latina ser direcionada aos filhos da elite
local, terem alcançado um grande grau de reconhecimento no
estado do Rio Grande do Norte. Sendo eles o Padre João Maria,
a quem destina enorme admiração, e Amaro Cavalcanti, que
segundo ele seria o “[...] maior dos intelectuais potiguares”. José
Augusto acreditou que a cadeira de gramática latina, instalada
no ano de 1832 contribuiu com o desenvolvimento intelectual
do povo de Caicó ao longo dos anos e foi importante para que,
através da formação oferecida, surgissem nomes considerados
ilustres no direito, no clero, nos grandes âmbitos intelectuais
e na vida pública regional.
Encerrou seu artigo com uma pequena nota que diz: “[...]
a cadeira de gramática latina da Villa do Príncipe, a que por fim,
e por ato legislativo, se anexou também o estudo do francês, foi
extinta com a proclamação da República” (AUGUSTO, 1938, p.
44). Podemos inferir que o autor deixa, a nível de informação e
não de crítica, tal mensagem, pois, ao nosso ver, José Augusto
presava pela democracia e pelo regime republicano. O autor
escreveu no contexto do Estado Novo, regime em que era
196
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
forte opositor, e por esse motivo sua leitura com relação ao
documento, referente ao debate ocorrido no Parlamento no
ano de 1832, tenha sido feito com um olhar de quem presa pela
educação e atribui importância ao exercício de tal atividade nas
mais longínquas regiões do país.
José Augusto12 era considerado pelo regime de Getúlio
Vargas como uma “figura da República Velha” e por diversas
vezes foi afastado de seus cargos políticos. Ele também era
contrário a centralização de poder nas mãos do chefe de
governo e escreve alguns livros ressaltando a importância
da democracia para o país, como por exemplo O Anteprojeto da
Constituição em Face da Democracia, lançado em 1934. Participou
ativamente do I Congresso Brasileiro de Escritores, organizado
pela Associação Brasileira de Escritores (ABDE), em São Paulo
no ano de 1945. Esse congresso reunia diversos intelectuais que
lutavam a favor da democracia e em oposição ao Estado Novo
e foi uma das primeiras manifestações, em grande número,
contrária ao Regime.
É importante observamos sempre o contexto de produção
e o autor que escreve o artigo, pois todo texto é direcionado
para alguém e retrata uma escolha política, metodológica e, até
mesmo, pessoal/institucional. Ao escrever esse artigo, analisado
nas últimas páginas, José Augusto demonstrou a importância da
educação para o desenvolvimento de intelectuais, legitimando,
até mesmo, a figura de Amaro Cavalcanti como um intelectual
12 As informações sobre José Augusto, contidas nesse parágrafo, foram reti-
radas do verbete Jose Augusto Bezerra de Medeiros, que se encontra disponível
no site do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil (CPDOC). O CPDOC tem o objetivo de abrigar documentações de
acervos pessoais de homens públicos do país e reunir arquivos relevantes
da história recente do Brasil. Site: https://cpdoc.fgv.br/
197
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
de grande reconhecimento oriundo do Seridó, contribuindo,
assim, com a lista de homens ilustres destacados pelo IHGRN.
Por esse motivo, é necessário compreender alguns conceitos
fundamentais que norteiam esse trabalho acerca das Revistas
do IHGRN enquanto material de pesquisa para os historiadores
da educação. É o que traremos a seguir.
Modo de endereçamento
e outros diálogos teóricos
Sabe-se que uma revista é capaz de influenciar seus
leitores, a partir de seu ponto de vista. Por esse motivo, é de
suma importância compreender as ideias expressadas em suas
páginas e qual sua relevância para a sociedade em que está
vinculada, compreendendo, assim, o lugar social que ocupa
cada intelectual responsável pela produção dos artigos dentro
do Instituto, sabendo que tal lugar influencia diretamente a
pesquisa histórica. Devemos analisar os artigos contidos na
Revista através da ótica desse grupo dominante dentro do
IHGRN, tendo em vista que os objetivos da instituição passavam
pela aprovação desses sócios criadores, que eram influenciados
pelo IHGB, outra instituição de caráter bastante elitizado.
O público a qual a Revista do Instituto também se dirigia é
parte importante no processo de análise desse impresso. Sabe-se
que todo produto é produzido para algo e para alguém, desse
modo faz-se necessário entender seus modos de endereçamento,
conceito proposto por Elizabeth Ellsworth (2001). Esse conceito
foi aplicado num primeiro momento ao cinema, mas pode ser
abordado também em trabalhos que visem mostrar o público
198
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
alvo de determinado material, nesse caso as Revistas do Instituto.
A pergunta principal que gira em torno do modo de endereça-
mento é: Quem a revista pensa que você é? Pois, ao organizar as
publicações, artigos, forma de apresentação, diagramação e toda
estrutura da Revista, leva-se consideração o público visado pelo
Instituto e o objetivo final que esse impresso pretende alcançar.
Sabe-se que as revistas produzidas pelo IHGRN eram destinadas
aos seletos grupos de intelectuais de outras instituições que
dividiam a árdua tarefa de construção da História. É importante
assinalar que a Revista do Instituto nunca teve a pretensão de
ser escrita para a massa, embora a maior parte da sociedade
consumisse suas ideias de forma indireta.
Ora, se observarmos, não é somente a escola que possibilita
uma prática educacional. Os impressos, entre outros tipos de
materiais circulantes, contribuem com o processo educativo
mesmo que de forma informal. As ideias ali expostas seguem uma
estratégia específica utilizada por essas agências de informação,
que favorecem um determinado tipo de aprendizagem através de
seus materiais. Como afirma Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
(1998, p. 145) ao escrever que os
romances, jornais e revistas [...] têm tido sempre sua
quota de participação no processo educacional e podem,
pois, ter muito a dizer sobre o modo complexo pelo qual
as culturas são produzidas, mantidas e transformadas.
Maria Lucia Pallares-Burke (1998) também nos mostra o
papel da imprensa na construção de uma História da Educação
e como esses materiais são excelentes fontes históricas para
o desenvolvimento de pesquisas nessa área. Tendo em vista
a crença iluminista de que a propagação de ideias é capaz
199
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
de mudar uma sociedade, os periódicos e demais impressos
ganham visibilidade e um status importante dentro da socie-
dade moderna. A imprensa foi vista como uma forte ferramenta
para o processo civilizatório, pois apresentava objetivos
educativos específicos e circulavam seus textos, organizados
de acordo com sua estratégia editorial mesmo entre aqueles
que não eram alfabetizados ou não tinham como ter acesso
aos impressos.
Ressaltamos aqui, a importante contribuição de Roger
Chartier (1999) para esse debate, tendo em vista que ao traba-
lhar com livros, autores e circulação de ideias também nos
oferece base para compreender os materiais impressos como
fontes para a área da História da Educação. Roger Chartier (1999)
nos lembra que mesmo as pessoas impossibilitadas do consumo
desse impresso em sua forma material, seja devido ao valor da
Revista, seja devido a sua condição social perante a sociedade
que lhe impedia acesso a esse tipo de produto, podiam vivenciar
a história que estava sendo construída dentro das paredes do
IHGRN. Esse autor afirma que
[...] o escrito está mesmo instalado no coração da cultura
dos analfabetos, presentes nos rituais, nos espaços
públicos, nos espaços de trabalho. Graças à palavra que
o decifra, graças à imagem que o desdobra, ele se torna
acessível mesmo àqueles que são incapazes de ler, ou
que dele não podem ter, por si sós, nada mais que uma
compreensão rudimentar (CHARTIER, 1999, p. 24).
Sabe-se que, ao publicar artigos referentes ao tema
educação, a Revista do Instituto pretendia apresentar uma forma
de se fazer a educação. Desde a escolha do sócio a escrever o
artigo, passando pela produção e divulgação do mesmo, o IHGRN
200
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
possuía um objetivo específico de apresentação e discussão
entre os intelectuais sobre esse tema no Rio Grande do Norte.
Mas qual seria o interesse dessa instituição, que incentivava a
pesquisa histórica, para se debruçar sobre o tema educacional?
Para responder a tal questionamento, é necessário conhecer os
sujeitos por trás das ideias divulgadas pelo IHGRN.
Na sessão da revista denominada necrologia, desde a
primeira edição do impresso, as vidas de sujeitos são expostas
em forma de homenagem após seus falecimentos. Analisando
tais sessões de todas as edições, das quais tivemos acesso, da
Revista do Instituto, foram catalogados quarenta e seis sócios do
IHGRN envolvidos direta ou indiretamente na área da educação
ao longo dos 117 anos da instituição. Isso mostra que dentro
do Instituto Histórico havia sujeitos interessados no assunto,
mas que não publicaram no impresso (salvo algumas exceções)
sobre o tema.
Quando observamos a ata de instalação do IHGRN,
apresentada na primeira edição de sua revista, nos deparamos
com os sujeitos que contribuíram com a fundação do Instituto.
Vejamos o relato abaixo:
Aos vinte nove dias do mez de março do anno de mil nove-
centos e dois, decimo quarto da Republica, nesta cidade do
Natal, Capital do Estado do Rio Grande do Norte, no salão
do Atheneu Rio Grandense em que funcciona a Bibliotheca
Estadual, reunidos os Doutores Alberto Maranhão,
Olympio Manuel dos Santos Vital, Francisco de Salles Meira e
Sá, Vicente Simões Pereira de Lemos, Francisco Carlos Pinheiro
da Camara, Francisco Pinto de Abreu, Luiz Manuel Fernandes
Sobrinho, Manuel Dantas e Thomaz Landim, os Coronéis
Pedro Soares e Joaquim Manuel Teixeira de Moura e o cidadão
Veríssimo de Toledo, tomando a palavra o Desembargador
Vicente de Lemos, disse que o fim da presente reunião
201
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
era a fundação, nesta Capital, de um Instituto Historico e
Geographico, que tomando o encargo altamente patriótico
de firmar com dados authenticos, colhidos em pacientes
e constantes investigações, a verdade histórica da vida
Potyguar (REVISTA DO IHGRN, 1903, p. 6, grifos nossos).
Os nomes grifados são para destacar os sujeitos que parti-
ciparam da fundação do IHGRN e que também são lembrados
na sessão necrológica da revista como bons homens públicos
e participativos na área da educação13. Nenhum desses sócios
fundadores, durante suas participações na instituição, escre-
veram artigos para a Revista do Instituto sobre o tema educação,
o que nos leva a inferir que tais sujeitos poderiam desenvolver
suas pesquisas sobre o assunto em questão em outras instituições
que faziam parte. Ao exemplo disso, temos o sujeito Francisco
de Salles Meira e Sá que fundou o periódico “A Escola”, onde
escrevia sobre direito, economia e instrução. Esse periódico não
é analisado nesse artigo, como já mencionamos anteriormente.
13 Francisco de Salles Meira e Sá, além de criar uma escola que leva o nome
de Colégio São Francisco de Salles, situado em Ceará Mirim, também fundou
o Popular Instituto Literário que contribuía com a manutenção de escolas
no município. Vicente Simões Pereira de Lemos, possuía a formação inicial
na área de Direito, mas exerceu a função de diretor no Colégio Ruy Barbosa,
também em Ceará Mirim, e foi presidente da banca de Física, Química e
História Natural no Ateneu Norte Rio-Grandense. Francisco Pinto de Abreu
foi diretor geral da Instrução Pública duas vezes, professor de Matemática,
Francês e diretor do Ateneu, assim como também promoveu a Reforma do
Ensino no Rio Grande do Norte. Manuel Dantas, apesar da formação inicial na
área do Direito, foi nomeado, duas vezes, Diretor Geral da Instrução Pública
do Estado, exerceu, também, o magistério secundário no Ateneu, na cadeira
de geografia, era sócio e presidente da Liga do Ensino, mantenedora da
Escola Doméstica, onde professava a cadeira de geografia. E por fim, Joaquim
Manuel Teixeira de Moura, era Capitão da Guarda Nacional, mas exerceu o
cargo de professor de geografia, também, no Ateneu.
202
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
Augusto Tavares de Lyra, embora não estivesse presente
na reunião de fundação, como consta em ata, foi representado
pelo Dr. Alberto Maranhão, assim como Henrique Castriciano
de Souza, que foi representado pelo Dr. Vicente de Lemos, e
são considerados sócios fundadores do Instituto. Esses homens,
embora não publicassem na revista artigos sobre a temática
educação, são relembrados no imaginário potiguar como
grandes intelectuais do assunto. Ambos são temas de artigos
na Revista do IHGRN, escritos por José Augusto (1959), Nestor
Lima (1954) e José G. de Albuquerque (1988). Contribuíram com a
construção da história norte-rio-grandense, na medida em que
participavam do âmbito educacional, levando as influências do
Instituto Histórico também para as salas de aulas.
Notamos que, embora houvesse sujeitos envolvidos
no âmbito educacional e participativos nas funcionalidades
do Instituto, o assunto educação ficou renegado durante os
primeiros trinta anos de funcionamento da Revista. É importante
entender esse periódico, como bem assinalou Tania Regina de
Luca (2011), como “projetos coletivos”, composto por indivíduos
que possuem um ideal comum. Incialmente, o projeto coletivo
do IHGRN era aquele, proposto pelo IHGB, que direcionava os
esforços intelectuais para construção da identidade nacional.
Desse modo, os textos publicados seguiam uma linha informa-
tiva pautada nesse projeto e os indivíduos que ali desenvolviam
suas atividades encontravam nesse projeto coletivo um ponto
comum no encontro de suas pesquisas: a construção da Nação.
Dentro do impresso a realização de um projeto coletivo é de suma
importância, pois oferece um rosto ao periódico, explicitando
informações intencionadas e guiadas por um único objetivo.
Ainda que, influenciados diretamente pelo IHGB, os sócios do
IHGRN possuíam suas próprias convicções e modos de escrever
203
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
a história, pois representavam um outro lugar social, mas encon-
travam no projeto coletivo do IHGRN um ponto em comum.
Desse modo, assim como é preciso analisar o lugar que a
Revista do Instituto ocupou dentro desse projeto mais amplo,
é preciso, também, realizar tal procedimento sem esquecer
das suas particularidades que contribuíram e influenciaram
a sociedade norte-rio-grandense ao longo dos anos. Antes
de pensar o todo, é preciso voltar os olhos para o pequeno
espaço de funcionamento e disseminação desses impressos
que carregam a história potiguar e perceber que, apesar da
pretensão de escrever sobre o passado, eles também carregam
um pouco da história de seu tempo.
Com isso, percebemos que organizar a documentação
frente a questão de limites, assim como exaltar a história colo-
nial e indígena da região do Rio Grande do Norte, eram assuntos
mais emergentes nas páginas da revista durante os primeiros
anos de funcionamento, pois representavam uma necessidade
específica do grupo de intelectuais que coordenavam as ativi-
dades do Instituto. Esses estavam diretamente influenciados
pelo projeto de construção da nação oferecido pelo IHGB nos
últimos anos e se disponibilizaram a inserir o Rio Grande do
Norte dentro desse intuito. É, portanto, especificamente após
a década de 1930 e levando em consideração as mudanças ocor-
ridas na sociedade, que o IHGRN passa a disponibilizar artigos
sobre educação nas páginas de seu impresso, contribuindo,
assim, para a acumulação de um rico material de análise para
futuros pesquisadores da educação, que se coloquem a dispo-
sição para estudar o assunto.
204
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
Considerações Finais
A Revista do IHGRN enquanto um impresso vinculado a
uma instituição de caráter histórico-científico possui caracte-
rísticas especificas, diferentes das características apresentadas
por outros periódicos de caráter mais informativo. Entretanto,
é importante observar que ao disponibilizar artigos referentes
a pesquisas históricas/geográficas e que seguiam determinada
linha ideológica, a Revista do IHGRN torna-se um excelente
material para o estudo de diversos períodos da história brasi-
leira. Bem como, ao analisar os artigos apresentados sobre
educação nas páginas do impresso, podemos compreender
tanto a historicidade do conceito educação dentro dos debates e
discussões na Revista ao longo dos anos, quanto contribuir com
a construção da História da Educação através desse material de
grande valor educacional, pois possui especificidades no modo
como ensina e reproduz a educação para determinada parcela
da população.
É importante observamos, também, que ao optar por
reproduzir as concepções de história, educação, entre outros
assuntos, pesquisados pelos sócios do IHGRN, o Instituto
pretendia circular determinada opinião ou ideia sobre os
assuntos tratados, capazes de influenciar a sociedade através
da autoridade da palavra escrita. Desse modo, mesmo aquelas
pessoas impossibilitadas da leitura do impresso, seja pelo
poder aquisitivo ou pelo seu posicionamento social, eram
influenciados pelas mudanças ocorridas na sociedade, nas
escolas, nas pesquisas que direcionavam os caminhos da nação.
É notório que o impresso é um material com grande potencial
para educar o público, seja ele formado por leitores, ouvintes
205
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
ou apenas pessoas comuns que experenciam em seu dia a dia,
através de diálogos com outros sujeitos, as novidades do mundo.
Os sujeitos que produzem esse material, também, são
importantes para a compreensão mais ampla dos periódicos
como fontes para a área da educação. Ao analisar o lugar social
dos intelectuais presentes no IHGRN, percebemos que esses
ocupavam espaços importantes dentro da sociedade norte-
-rio-grandense, desempenhando profissões como advogados,
médicos e professores das demais áreas do conhecimento. A
constituição de um grupo seleto, com um lugar social específico,
no direciona ao entendimento de um projeto coletivo, um ponto
em comum em que as pesquisas desses intelectuais se encon-
tram. Esse projeto influencia o modo de escrita e direciona as
opiniões para determinados objetivos. Ao compreender isso,
percebemos que os docentes que ali prestavam algum tipo de
trabalho, não escreviam sobre educação nas páginas da Revista
do IHGRN, o que nos leva a inferir que esses, possivelmente,
utilizavam de outros periódicos para divulgação de suas
pesquisas sobre educação e que o IHGRN estava mais interes-
sado em divulgar artigos sobre a história da educação, do que
algo mais específico, como práticas e currículos educacionais
desenvolvidos no RN, por exemplo.
A exposição da vida de alguns professores em forma de
artigo bibliográfico parece cumprir as necessidades do IHGRN
frente ao assunto, tendo em vista que apresenta os sujeitos como
homens importantes do estado, na medida em que também
apresenta práticas educacionais desses sujeitos ao longo dos
anos. É importante assinalar que a apresentação de homens
célebres para a história nacional é um ponto comum no projeto
coletivo dos Institutos Históricos em todo Brasil e nos leva a
206
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
inferir que os professores são vistos, pelo IHGRN, como homens
importantes a figurar no panteão de heróis nacionais.
Apresentamos aqui, de forma suscinta, um passeio sobre
a Revista do Instituto, apresentando-a como um material de
grande valor e ainda pouco utilizado pelos pesquisadores da
área da educação. Seus sujeitos, artigos e formas de apresentar
a educação norte-rio-grandense para os intelectuais do Brasil
ainda precisam de um olhar mais apurados dos historiadores,
para responder questões que ainda não foram preenchidas
satisfatoriamente. Esse artigo é apenas o delinear de uma
pesquisa, ainda em curso, sobre os artigos de educação presente
na Revista do Instituto e que pretende abrir novos caminhos
para outros passeios dentro dessa casa de memória.
207
“NADA DO QUE É GRANDE COMEÇOU GRANDE”:
ESCRITOS E SUJEITOS DA EDUCAÇÃO NA REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE
Referências
AUGUSTO, José. A Cadeira de Gramática Latina na Villa do
Príncipe. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Norte, Natal, v. 35-40, p. 37-44, 1938.
CASTANHA, André Paulo. O Trabalhos dos Professores no
Brasil do Século XIX: uma leitura comparativa. In: SEMINÁRIO
NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS: “HISTÓRIA, SOCIEDADE
E EDUCAÇÃO NO BRASIL”, 7., 2006, Campinas. Anais [...].
Campinas, 2006. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.
br/acer_histedbr/seminario/seminario7/TRABALHOS/A/
Andre%20Paulo%20Castanha.pdf. Acesso em: 24 ago. 2019.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: leitores, autores
e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.
COSTA, Bruno Balbino Aires da. “A Casa da Memória Norte-Rio-
Grandense”: O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte e a construção do lugar do Rio Grande do Norte na memória
nacional (1902 - 1927). 590 f. Tese (Doutorado) – Curso de História,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
ELLSWORTH, Elizabeth. Modos de endereçamento: uma
coisa de cinema; uma coisa de educação também. In: SILVA,
Tomaz Tadeu da (org.). Nunca Fomos Humanos: nos rastros
do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 7-76.
208
RITA THAINÁ CORREIA DA CUNHA / AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR
GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder
e sociedade no Império brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos:
o Instituto Histórico e Geográfico e o Projeto de uma História
Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p.5-27, 1988.
JOSÉ Augusto (José Augusto Bezerra de Medeiros). In:
DICIONÁRIO Histórico-Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil 2001; Disponível em: http://www.
fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jose-
augusto-bezerra-de-medeiros. Acesso em: 24 ago. 2019.
LUCA, Tania Regina de. Leituras, projetos e (Re)
vista(s) do Brasil. São Paulo: Unesp, 2011.
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A Imprensa Periódica
como uma empresa educativa no século XIX. Caderno
de Pesquisa, São Paulo, n. 104, p.144-161, jul. 1998.
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
DO RIO GRANDE DO NORTE. Natal, 1903-2016.
TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; PEREIRA NETO, Juscelino.
Os Jesuítas e a Educação no Programa da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (1839). Cadernos de História
da Educação, Minas Gerais, v. 9, n. 2, p.397-411, jun./dez. 2010.
209
“IMPOR O JARDIM
DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE
DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA
DO ENSINO (1932-1940)
Maíra Lewtchuk Espindola1
Resumo: O objetivo principal deste artigo é compreender as
ideias de Alice de Azevedo Monteiro sobre e para a infância
nas Revistas do Ensino da Paraíba. Monteiro atuou na criação e
na manutenção de dois jardins de infância. O recorte histórico
da pesquisa teve como início o ano de 1932 quando Monteiro
propôs a construção de jardins de infância e final 1940, data da
sua morte. Outras fontes somaram-se a pesquisa como docu-
mentos oficiais, jornais do período, fotografias, biografias e os
verbetes biográficos. Monteiro procurou mostrar resultados
positivos para a criação e manutenção dos jardins de infância.
Para tal, defendeu que a educação das crianças pequenas não
deveria ser mensurada com notas, pois ela serviria para tornar
1 Professora Adjunta do Departamento de Habilitações Pedagógicas
do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Coordenadora do Curso de Especialização em Educação Infantil/CE/UFPB.
Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas. “História, Sociedade e Educação no
Brasil” GT Paraíba (HISTEDBR/PB).
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
os indivíduos adaptados à sociedade, bons súditos ou bons
cidadãos. Nessa perspectiva, o jardim de infância teria a função
de preparar o indivíduo para o ensino primário, através do trei-
namento da capacidade de desenvolver a atenção, a observação,
dedução, etc. A professora ainda realizou uma ligação entre o
bem-estar, a saúde das crianças e a pátria. Por fim, revisitar
as reflexões sobre a educação das crianças pequenas travadas
pela intelectual estudada, constituiu-se em um movimento
de (re)interpretação e de (re)elaboração sobre o processo de
escolarização da Paraíba.
Palavras-chave: História da Infância. História dos
Jardins de infância. Intelectuais.
Introdução
A frase do título do nosso artigo foi escrita por Alice de
Azevedo Monteiro na Revista do Ensino em 1936, nesse
artigo, intitulado “Curso Modelo”, a professora defendia a
urgente necessidade de ampliação da rede de jardins de infância
na Paraíba. Com base nos conceitos de nação, de infância, de
criança e da teoria da Escola Nova, a autora escreveu diversos
textos na imprensa, procurando defender seu ponto de vista
sobre essa necessidade. Curso modelo era como as propagandas
de jornais se referiam ao jardim de infância fundado por Alice
de Azevedo Monteiro e Nayde R. Martins Ribeiro em 1932 (LIMA,
2011; SILVA, 2017; ROMÃO, 2019).
Percorrer seus escritos foi uma das maneiras que encon-
tramos para entender mais sobre a história da infância na
Paraíba. Seguindo essa linha de pensamento, compreendemos
211
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
que interpretar os escritos de uma professora pode nos ajudar
a refletirmos sobre os discursos que se debruçaram a respeito
do fenômeno da infância no Brasil, em especial, na Paraíba. Para
melhor compreender o que tratamos por história da infância,
é necessária a distinção entre as palavras: infância e criança.
Essa diferenciação mostra que a ideia de infância consiste na
“[...] concepção ou representação que os adultos fazem sobre o
período inicial da vida, ou como o próprio período vivido pela
criança, o sujeito real que vive essa fase da vida.” (FREITAS;
KUHLMANN JR., 2002, p. 02).
Nesse sentido, é possível eleger a história da infância
enquanto aquela que busca perceber as relações estabelecidas
no âmbito institucional, discursivo e científico que criaram
as representações sociais sobre essa etapa da vida. Ou seja,
A história da infância se vincula na relação da sociedade, da
cultura, dos adultos com essa classe de idade2.
Há uma intensificação de estudos na historiografia da
que relacionam professores/as como intelectuais e instrução
como eixo principal para o entendimento do papel da educação
na sociedade. Apreender as professoras como intelectuais nos
exigiu dois movimentos, o primeiro pensar o próprio conceito
de intelectual e o segundo a premência de uma retomada da
história da escolarização na Paraíba, bem como o lugar social
que essas ocuparam. Destarte, partilhamos da hipótese gestada
por Teixeira e Schueler (2006), por Boto (2003) e Espindola (2017),
a qual procura alargar o conceito de intelectual para abranger
os/as professores/as, portugueses e brasileiros nos oitocentos
e na primeira república.
2 A história da criança é a história da relação das crianças entre si, com
os adultos, com a cultura e a sociedade. Isto é, a criança protagoniza sua
condição infantil.
212
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
Os/as professores/as, como integrantes de um deter-
minado grupo de intelectuais, guardaram no processo de
formação integração da
[...] própria constituição da cultura escolar e abarcava
não apenas os saberes e as práticas de ensino, mas,
sobretudo, os gestos e as feições, as formas de agir e
de comportar-se no cotidiano da educação escolar.
(TEIXEIRA; SCHULER, 2006, p. 6123-6124).
A intelectual seria aquela que, coletivamente ou
sozinha, agia na sociedade como portadora de alguns valores
específicos, Teixeira e Schueler (2006), Boto (2003) e Espindola
(2017) verificaram em suas pesquisas que as/os professoras/
es no período estudado reconheciam o lugar de guardião/ã de
valores, específicos da docência, como envolviam a educação
dos valores, da formação de virtudes, da moral, do civismo e da
civilidade. Diante disso, as autoras percebem a possibilidade de
reconhecê-los/as como intelectuais, pois esses/as professoes/
ras ao produzirem obras, livros, artigos em jornais e revistas e
até mesmo ao assumirem cargos públicos, procuraram disse-
minar os valores da ideologia de nação.
Há ainda uma segunda questão, o espaço ocupado por
essas mulheres e sua identificação como intelectual. Soihet
(2012) mostra como as mudanças ocorridas no final do século
XIX e início do XX levaram as mulheres de várias classes a
lutarem pelo pleno acesso à educação, à profissionalização e
pelo direito de votar e de serem votadas. Essas reinvindicações
causaram conflitos na sociedade, principalmente entre os
homens que exerciam papéis de autoridade, para tal muitos
pautaram suas ideias nas teorias sobre a inferioridade feminina.
213
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
Como resultado esses indivíduos realizaram críticas ácidas as
demandas femininas por meio da imprensa, das caricaturas,
das crônicas, etc. As militantes foram ridicularizadas e seus
pedidos enfrentaram fortes entraves na sociedade. Logo, a
própria identificação dessas mulheres como intelectuais já pode
ser pensada como um espaço de enfrentamento.
Quando selecionamos Alice de Azevedo Monteiro e a
categorizamos como intelectual, passamos a apreendê-la como
atriz social e detentora de uma ação política (ALONSO, 2002). Ela,
assim como os/as outros/as intelectuais do período estariam
imersos na vida das cidades, tal como nos debates públicos
sobre a educação, formando redes de sociabilidades, nas quais
desenvolviam suas experiências intelectuais.
A compreensão das fontes foi uma grande questão
a ser trabalhada por nós, (re)construí-las e interpretá-las
tornou-se um processo contínuo, no qual fomos diversas vezes
aos arquivos e construímos diversos questionamentos. Esse
procedimento não poderia ser feito externo ao nosso conhe-
cimento dos contextos históricos dos sujeitos que produziram
tal fonte, entender o contexto histórico sobre tal momento foi
um condicionante importante para a construção desse artigo.
Para tal, tivemos que separar qual o tipo de fonte queríamos
usar na pesquisa. As fontes pesquisadas e utilizadas foram: 15
exemplares das Revistas do Ensino da Paraíba; fotografias; docu-
mentos oficiais do estado; biografias; os verbetes biográficos e
a imprensa do período.
Segundo Morel e Barros (2003, p. 08) são muitas as
pesquisas em história que trabalham com a imprensa “[...]
como fonte documental, integra-se a outros materiais que
dão suporte a pesquisas e reflexões em áreas diferentes; como
objeto, transforma-se ela mesma no foco dos trabalhos”. A
214
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
utilização da imprensa como fonte de pesquisas pode contri-
buir para o pesquisador entender a movimentação de ideias do
período, além do cotidiano dos projetos políticos e educacionais,
os quais eram alvo de disputa na sociedade.
Para interpretarmos as fotografias utilizamos como base o
texto de Sonego (2010) e de Molina (2015). Dessa forma, para que
possamos realizar uma çeitura da imagem fotográfica, devemos
questionar: Por que ela foi produzida? Qual a sua finalidade?
Qual a sua intenção? O que essa imagem quer mostrar? E ainda
o que essa imagem quer deixar registrada?, ou seja, “[...] faz-se
necessário levantar os diversos aspectos contidos na fotografia
e sua contextualização, perceber os conteúdos subjacentes e os
motivos para seu registro” (SONEGO, 2010, p. 119).
A imagem, nessa perspectiva, é entendida como uma teste-
munha de algo que ocorreu e, por conseguinte, é possível que o/a
leitor/a realize uma decodificação ou uma interpretação com
base nos sentidos apreendidos. “A fotografia, como o resultado
de um saber-fazer, de uma técnica desenvolvida em dado recorte
temporal, permite registros permeados de indagações investiga-
tivas” (MOLINA, 2015, p. 458). Em vista disso, a fotografia pode
ser pensada como mais um documento para se compreender a
história, para se conhecer uma situação passada.
Tomando essas questões como base vamos imergir na
história da infância paraibana por meio da vida e dos escritos
de Alice de Azevedo Monteiro. Inicialmente procuramos tecer
as redes de relacionamento da professora, para em seguida
tratarmos dos jardins de infância na Paraíba e compreender
seus escritos na Revista do Ensino. E, finalmente, apresen-
tamos as reflexões finais advindas deste percurso: nossas
considerações finais.
215
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
Na “vanguarda do magistério
paraibano”3: Alice de Azevedo Monteiro
Nas nossas pesquisas sobre Alice de Azevedo Monteiro
encontramos poucas informações pessoais, sabemos que ela era
filha de Norbertino Pereira de Azevedo (primeiro-tenente do 27º
Batalhão do Exército), foi casada com o Médico Dr. Alfredo da
Costa Monteiro e faleceu prematuramente em 1940. Monteiro
atuou na criação e na manutenção de dois jardins de infância,
tendo sido professora, diretora e jornalista. Monteiro escreveu
na imprensa paraibana: A União, A Imprensa, Revista do Ensino,
Revista Era Nova, entre outros impressos.
Apesar dos escassos elementos sobre a vida da professora,
sabemos da sua inserção no ciclo intelectual da Paraíba. Foi
membro do Instituto de História e Geografia da Paraíba (IHGP),
empossada no dia 19 de julho de 19364. Entre os anos de 1936
a 1940, foi diretora da Sociedade de Assistência aos Lázaros e
Defesa Contra a Lepra da Paraíba. Também atuou como vice-
-presidente da Sociedade dos Professores Primários da Paraíba.
Sua trajetória como professora teve início no ensino noturno na
Escola Elementar Noturna da Capital João Tavares, foi nomeada
pelo decreto nº 954, de 28 de junho de 1918 (LIMA, 2011) e atuou
nesta modalidade pelo menos até 1931 na mesma instituição
(BRASIL, 1931).
Sua preocupação com as crianças e a infância foi direcio-
nada não apenas para a educação das crianças pequenas, tendo
contribuído em diversas entidades como o Preventório Eunice
3 Revista do Ensino (1942, s/p).
4 Informação constante em: <http://www.ihgp.net/discurso_de_posse_
modesto.htm>.
216
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
Weaver, que realizou atendimento às crianças filhas das pessoas
com o mal de Hansen (ROMÃO, 2019). Durante o governo de
Solon de Lucena, em setembro de 1922, Alice Monteiro realizou
uma viagem pedagógica para o Rio de Janeiro e dessarte
conhecer a organização dos jardins de infância instalados na
capital do Brasil. Em mensagem oficial, o presidente de estado
Lucena (1922) descreveu a “deficiência” da Paraíba, pois o
estado não possuía instituições para a educação das crianças
pequenas, gerando, por conseguinte, danos ao ensino primário
e à formação dos futuros cidadãos.
O envio de intelectuais para o conhecimento de práticas
em outras localidades, já havia iniciado no Império. Viana
(2009) percebe esse movimento na província mineira, onde
foram mandados intelectuais para a França para apreenderem
o modelo escolar do país. Assim como Kuhlmann Jr. (2002) relata
que no final do século XIX e início do século XX, Souza Bandeira
Filho realizou viagens à França, Suíça, Áustria e Alemanha para
apreender como funcionaram os jardins de infância. Essa foi
uma prática comum entre os presidentes de estado, na Paraíba
em 1913, Castro Pinto enviou o diretor da instrução pública,
Francisco Xavier Junior, para conhecer o modelo dos grupos
escolares de alguns estados do Brasil - São Paulo, Minas Gerais
e Espírito Santo.
Na década de 1930, Monteiro também participou da
Associação Paraibana pelo Progresso Feminino (APPF), tendo sido
secretaria e oradora. A APPF tinha como objetivo a discussão
de temas variados, tais como: direitos da mulher, poesia, moda,
educação, política, etc. Nunes (2011) mostra que o tema da
educação possuía recorrência nas publicações e destaca dentre
alguns, em 10 de novembro de 1935, o artigo “Mestre de Hoje”
de Alice de Azevedo Monteiro.
217
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
A intelectual possuiu inserção nacional, na revista Vida
Doméstica5 encontramos três menções a Monteiro. Em 1933 e
1935, encontramos duas fotografias do jardim de infância diri-
gido por ela. Na primeira a intelectual estava ao centro rodeada
de crianças e na segunda foi retratada uma festa infantil por
ocasião do encerramento das atividades do Jardim de Infância.
Em 1934, há uma página destinada ao estado da Paraíba, sob
o título “Da Parahyba do Norte”, há a imagem 14 pessoas públicas
do estado e de um grupo escolar. Aqui nos interessa perceber que
Alice de Azevedo Monteiro era a única mulher do grupo, composto
por: na parte superior temos as fotografias de prefeitos paraibanos:
Tenente Manuel Arruda (São José de Piranhas), Dr. Américo Maia
(catolé do Rocha), Nominando Diniz (Princeza), Sotério Cavalcante
(Catauiras), Pedro de Oliveira (Sapé) e Antoneo Leal (Alagoa Nova).
No centro à direita temos o Grupo Escolar Alvaro Machado (Areia).
Embaixo temos a seguinte legenda sobre as fotografias:
Também partindo da esquerda: O sr. Severino Uchoa,
brilhante intelectual parahybano. Dr. Severino Patrício,
Inspetor Medico Escolar em João Pessoa. -. Exma. sra. d.
Alice de Azevedo Monteiro, distincta educadora parahybana
que também destaca atuação nas letras. – Sr. Normando
Filgueiras, intellectual parahybano. – Coronel Manoel
Pires Bezerra, commmerciante em Campina Grande.
- . sr. João Véras. - . O sr. Natanael Bello, auxiliar da
firma H. Marinho & Cia., de Campina Grande (DA
PARAHYBA..., 1934, p. 5, grifo nosso).
5 A revista Vida Doméstica foi um periódico carioca de longa duração
tendo seu número inicial publicado em março de 1920 e foi publicada até
início dos anos 1960. Possuía publicações voltadas para a mulher e para o
lar e segundo Cardoso (2009, p. 103) a revista “[...] atuou em um contexto de
expansão das relações capitalistas, de modernização das relações de gênero
e de desenvolvimento da cultura de massas, no Brasil”.
218
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
Das 175 páginas desta edição da revista Vida Doméstica,
a única destinada à Paraíba foi a relatada acima, página cinco.
E aqui podemos inferir sobre a participação de Monteiro na
sociedade, única mulher citada e retratada entre pessoas impor-
tantes do estado. Também devemos notar que a sua fotografia
é a terceira, sendo maior que as quatro últimas e do mesmo
tamanho das duas primeiras (Uchoa e Patrício). A disposição,
o tamanho da fotografia e o fato dela ter sido escolhida nos
apresenta sua relevância dentro do ciclo intelectual paraibano.
Monteiro também foi a segunda secretaria da Diretoria
Regional da Cruzada Nacional de Educação em 1934. E decor-
rente disso, em 1935, fez parte da comissão de estudos do Plano
Nacional de Educação (PNE) juntamente com dr. Matheus de
Oliveira, padre Nicodemos Neves, o professor José Mello, o
professor Coriolano de Medeiros, o dr. José Coelho, o monse-
nhor Pedro Anysio e o dr. Manuel Florentino. Essa comissão foi
nomeada pelo governador Argemiro de Figueiredo, atendendo
a pedidos do presidente da República aos governadores do País
e possuía como objetivo recolher dados e sugestões de todo o
país para elaborar o PNE.
A professora também participou do ciclo feminino intelectual
no estado, em uma seção da primeira página do jornal Diário de
Pernambuco sobre o voto feminino de 1933, a professora foi convidada
a expor sua perspectiva. Sob o título
A quem deve caber a representação da Mulher
Paraíbana na futura Constituinte? - A ‘enquête’ do
‘Diario’ junto a ilustres senhoras e senhorinhas da
sociedade do visinho Estado do Norte – O que nos disse,
a educadora paraibana, sr. Alice de Azevedo Monteiro.
219
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
Na matéria, Monteiro defendeu o voto feminino e para
tal citou outras mulheres, a saber Albertina Correia Lima,
Catarina Moura, Eudesia Vieira e Lilia Guedes. Destacamos
aqui a importância da citação a Moura e Vieira, intelectuais
atuantes no ciclo paraibano. A primeira inclusive defensora do
voto feminino em uma palestra dada no Theatro Santa Roza em
1908.6 Outra intelectual que fazia parte desse ciclo era Analice
Caldas7, que em 1923 realizou uma entrevista com Monteiro, a
qual foi publicada na Revista Era Nova (SILVA, 2017).
Esse entrelaçado de convivências é importante para
compreendemos o ciclo que a intelectual atuava e estava inse-
rida. Era de fundamental importância o estabelecimento de
redes de sociabilidades entre os/as intelectuais. Essas redes se
formaram em lugares de sociabilidade que podiam ser institu-
cionalizados — como a impressa e o IHGP — ou não — como os
cafés e as livrarias. Nesses espaços ocorriam as apresentações
de novos sujeitos, os debates de ideias e os enfrentamentos
entre eles e elas.
A questão relativa ao papel das mulheres na educação das
crianças sejam como mães sejam como jardineiras8, da mesma
maneira da sua posição na sociedade, foi uma defesa contínua de
Monteiro. Em 1937, na Revista do Ensino, escreveu que:
6 Para saber mais sobre essas duas intelectuais consultar Espindola (2017)
e Galvíncio (2019).
7 Mais informações em Silva (2017).
8 Palavra cunhada por Froebel para designar as professoras dos jardins
de infância.
220
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
Desse modo, podemos perceber que Alice de Azevedo
Monteiro possuiu inserção no ciclo intelectual paraibano, assim
como outros/as sujeitos da época defendeu a educação como
um processo central para a formação da nação. Juntou-se a essa
questão as pertinentes ao momento histórico vivido por ela, ou
seja, a imprensa, a educação/instrução da mulher, a exigência
de reformulação das práticas pedagógicas para as escolas, a
preocupação com a formação dos professores, a Escola Nova, o
voto feminino, entre outras.
A vivência da professora fez com que emergissem essas
questões de forma mais ou menos intensas. Essa foi permeada
de comunidades de experiência como a Escola Normal, o
IHGP, Associação pelo Progresso Feminino e a Sociedade dos
Professores Primarios na Parahiba. Essas instituições e socie-
dades eram criadas para a resolução de problemas sociais e
buscariam agir de forma direta na sociedade. Além disso, a
imprensa possuiu destaque. Simões Junior, Cairo e Rapucci
(2009) frisam o papel da imprensa para os grupos de intelectuais
do século XIX e início do século XX, os periódicos eram um
espaço de divulgação de ideias e de embates políticos e sociais.
No próximo tópico, apresentamos algumas questões relativas
aos jardins de infância na Paraíba.
221
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
“Em nosso jardim...” 9: os jardins
de infância na Paraíba
Na Paraíba, as ideias sobre a necessidade de implantação
de jardins de infância começam a ser disseminadas no início do
século XX, mais especificamente com a defesa de Xavier Junior
entre os anos de 1908 a 1913 (ESPINDOLA, 2012, 2017). Uma das
orientações de Xavier Junior como diretor da instrução pública
no estado foi o estabelecimento de jardins de infância, para
tal ele se embasou nos argumentos de Froebel. Sua proposta
era que um jardim de infância fosse anexado à Escola Modelo,
para tal citou as experiências europeias e norte americanas
para a construção desse espaço destinado às crianças menores
de cinco anos. Apesar de não terem sido implantados, Xavier
Junior (1913) defendeu os jardins como uma maneira dos
governos poderem incentivar o seu desenvolvimento futuro e em
conformidade com o diretor já havia sido provado resultados
nos outros países.
Espindola (2012) ainda destaca as iniciativas do presi-
dente de estado Castro Pinto como a Lei n. 388 de sete de outubro
de 1913 que visou reformar a Escola Normal e criar grupos
escolares e jardins de infância no estado. Porém, por questões
políticas nem os jardins nem os grupos escolares foram imple-
mentados nesse período.
Aos nos debruçarmos sobre as fontes para este artigo
encontramos a propaganda de um jardim em 1924 na capital
na Rua Visconde de Pelotas, vejamos:
9 Monteiro (1932, p. 48).
222
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
Figura 1 – Propaganda do Instituto Spencer
Fonte: O JORNAL (1924, p. 02).
Essa é uma informação nova para nós pesquisadoras.
Há nesse periódico paraibano, O Jornal, 36 propagandas desse
jardim no ano de 1924. Porém, nesse momento não temos como
atestar se realmente chegou a funcionar na capital paraibana.
Precisamos de mais pesquisas para confrontar a inscrita da
história da infância paraibana que os primeiros os jardins de
infância foram fundados em 1932, particular, e 1934, oficial,
com a iniciativa de Alice de Azevedo Monteiro e a Nayde Ribeiro.
Esse fato não retira a importância e a centralidade da figura
de Monteiro no processo de implantação dos jardins de infância
na capital paraibana. Em 1932, o jardim de infância particular
foi inaugurado na Paraíba, ministrado por Alice de Azevedo
Monteiro e Nayde R. Martins Ribeiro. Esse jardim funcionou na
casa da segunda professora, que era localizada próxima ao ponto
final do bonde no Tambiá centro da capital da Paraíba. Para a
divulgação do jardim de infância foram publicados anúncios nos
meses de janeiro e fevereiro, nos quais constavam as tabelas de
223
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
preços, as referências profissionais e acadêmicas das professoras,
bem como suas habilidades (SILVA, 2017).
Criado sob a luz do ideário escolanovista e das reformas
propostas no período, Monteiro dedicou-se a divulgação tanto
da sua instituição quanto da escrita em periódicos para justi-
ficar a importância dessas instituições, as práticas educativas e
os métodos utilizados na educação das crianças pequenas. Para
a professora, o jardim de infância “[...] constitue, portanto uma
das partes mais importantes do mechanismo educacional de um
povo” (MONTEIRO, 1937, p. 25). Havia uma clara ligação entre o
desenvolvimento infantil e o desenvolvimento da nação para
Alice de Azevedo Monteiro. Essa foi uma discussão frequente
no período e no ciclo intelectual, a preocupação sobre educação
permeou a obra de vários intelectuais da época, a educação e
nação permearam a reflexão política.
Eric Hobsbawm (1989, p. 13), embasado em um “olhar” mais
amplo sobre o processo de consolidação dos Estados-nação no
ocidente, argumenta que: “Do ponto de vista do Estado, a escola
tinha ainda outra vantagem essencial: poderia ensinar todas
as crianças a serem bons súditos e cidadãos”. E foi nesse caminho
que seguiu Monteiro (1937, p. 23) “Assim a instrucção será o
vehiculo de adaptação do indivíduo ao meio social [...]”, o jardim
de infância foi percebido pela professora como uma forma de
adaptação das crianças pequenas tanto para o ensino primário,
quanto para serem futuros cidadãos adaptados à sociedade.
Alguns anos depois, no Grupo Escolar Tomas Mindello, o
jardim de infância oficial foi implantado sob a direção da mesma
intelectual, coexistindo com o primeiro. Diversamente de outras
capitais, nas quais os jardins eram anexados à Escola Normal e
diferentemente ao proposto por Xavier Junior na Paraíba em 1913,
na Paraíba muitos jardins foram anexados aos grupos escolares.
224
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
A expansão inical dessas instituições na capital paraibana foi
gradual, no ano de 1939, existia oito jardins de infância, sendo
seis mantidos pelo estado e dois particulares (LIMA, 2011).
Nas décadas seguintes ocorreu a proliferação destas
instituições no estado, embasados no modelo froebeliano10, essa
difusão procurou absorver as discussões sobre a civilização e o
progresso, vindas principalmente dos centros europeus e norte-
-americanos. Em uma via de mão dupla, procurou-se a partir
das peculiaridades da região (condições culturais, econômicas,
sociais e políticas) reelaborar o modelo do kindergarten. Dessa
forma, o mobiliário, o ambiente, a formação das professoras e
os jogos foram repensados, Alice Monteiro inclusive produziu
materiais para os jardins inspirados nos materiais de Froebel.
Na Revista do Ensino número IX de 1936, encontramos
seis fotografias de diversos jardins de infância instalados na
Paraíba. Infelizmente essas imagens foram utilizadas de forma
decorativa na revista, pois não estavam relacionadas aos artigos
publicados, esse fato nos deixa lacunas sobre essas imagens,
pois apenas constavam em qual jardim de infância a fotografia
havia sido tirada, impedindo maiores interpretações. Dessa
forma, essas fotografias nos mostram os ambientes que ocor-
riam as atividades e as crianças, trazendo informações visuais
importantes, vejamos:
10 O planejamento para o estabelecimento de espaços para a prática educa-
tiva de crianças pequenas já vinha sendo colocado por diversos intelectuais
desde os oitocentos. Como por exemplo nos Pareceres de educação de 1883,
Rui Barbosa defendeu um projeto civilizatório para o país, via criação de
um sistema nacional de ensino, obrigatório, laico e gratuito, desde o jardim
de crianças até o ensino superior. No projeto apresentado por Barbosa
(1947 [1883], p. 85) “O jardim de crianças tem por finalidade desenvolver
harmonicamente as faculdades físicas, mentais e intelectuais das crianças
na primeira idade, mediante o emprego do método Froebel.”.
225
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
Figura 2 – Jardim de infância do Curso Modelo
Fonte: REVISTA DO ENSINO (1936, p. 18).
Figura 3 - Jardim de Infância do Grupo Escolar Tomas Mindello.
Fonte: REVISTA DO ENSINO (1936, p. 26).
Nestas duas fotografias, podemos ver os dois jardins
de infâncias dirigidos por Alice de Azevedo Monteiro. Na
primeira, temos duas mulheres ao fundo que provavelmente
eram Monteiro e Ribeiro, essa fotografia foi feita ao ar livre.
226
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
Nas duas imagens vemos crianças sentadas em móveis adap-
tados ao seu tamanho.
Figura 4 - Jardim de infância Santa Therezinha
Fonte: REVISTA DO ENSINO (1936, p. 35).
Figura 5 - Jardim de infância Isabel Maria das Neves.
Fonte: REVISTA DO ENSINO (1936, p. 56).
227
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
Nas imagens, há crianças sentadas dispostas em mesas
e cadeiras de tamanho próprio, ao fundo estão expostos dese-
nhos que parecem ter sido feitos por crianças e no centro há
a presença de uma planta. As fotografias foram retiradas de
ângulos muito similares (baixos) que procuram destacar as
crianças e o espaço e não temos informações sobre os fotógrafos.
Sabemos da possibilidade desses cenários terem sidos
montados para as fotografias, mas mesmo sendo encenados
revelam questões importantes sobre as ideias pedagógicas
destes jardins. Em primeiro lugar, o ambiente era claro e limpo,
os móveis eram adaptados à proporção das crianças, em clara
referência à pedagogia montessoriana e froebeliana. A presença
da planta também nos remota a Froebel, bem como a decoração
feita a partir de desenhos infantis.
Monteiro (1932) relatou a necessidade de se pensar o
ambiente para os jardins de infância. Bebendo nos escritos
de Montessori e de Froebel, a intelectual argumentou que o
ambiente austero das salas de aula projetadas para as crianças
mais velhas e para os adultos com móveis sem cor, não contri-
buíam para o bom desenvolvimento infantil. A professora
destacou, também, preocupação com a luz natural, o mobiliário
e o material que deveriam poder ser transportados e manu-
seados facilmente pelas crianças. A autora inclusive refez a
relação de Froebel sobre as crianças e as plantas: “Como uma
planta carinhosamente cuidada se desenvolva sadia e bella,
porque saude physica e moral e a melhor forma da beleza”
(MONTEIRO, 1937, p. 24). As crianças eram comparadas com
plantas que careceram de um ambiente e cuidados adequados,
já as professoras, seriam as jardineiras que se tivessem atenção
e cuidado com elas, colheriam bons frutos no futuro.
228
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
No próximo tópico, exploramos alguns artigos escritos
por Alice de Azevedo Monteiro na Revista do Ensino, neles desta-
camos as ideias escolanovistas e a prática educacional proposta
pela intelectual.
“Que tudo seja para a glória
e para o progresso da terra admirável
de João Pessoa, de Gratuliano de Brito
e de José Americo de Almeida”11:
os escritos de Monteiro
A Revista do Ensino da Paraíba circulou na Paraíba entre
os anos de 1932 e 1942, era produzida pela Imprensa Oficial e
editada pela Diretoria do Ensino Primário do Estado, conce-
dendo meios de visibilidade dos interesses educacionais do
estado na época, bem como era um espaço para se divulgar as
ideias dos intelectuais, educadores e políticos em geral. Teve
como idealizador e primeiro editor o professor José Baptista
de Mello (RODRIGUES; SILVA, 2019). A revista possuía como
objetivo ser “um veículo de propaganda governamental” e,
também, ser uma revista com cunho didático-metodológico
(RODRIGUES; SILVA, 2019). Mapeamos dez artigos escritos por
Alice de Azevedo Monteiro12.
11 Monteiro (1933, p. 32).
12 No ano de 2019, o Grupo de História da Infância e da Criança (GHEIC) do
Programa de Licenciatura (Prolicen) intitulado “Arquivos Escolares: professores
e crianças como construtores de memórias e guarda” realizou uma catalogação
e um mapeamento dos escritos sobre infância e criança nas Revistas do Ensino.
Esse projeto teve a coordenação da Professora Dra. Maíra Lewtchuk Espindola
229
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
Essa revista e José Baptista de Mello foram grandes
difusores das ideias da escola nova no estado, tendo sidos
responsáveis pela divulgação de um ideário político-peda-
gógico por meio de reformulações legislativas, formação de
professores/as e disseminação de métodos pedagógicos. Essas
propostas eram articuladas em um contexto maior no estado,
a própria Alice Monteiro percebia a necessidade de centros de
formação para as professoras das crianças pequenas:
Ali as futuras jardineiras, se especializam nos metodos de
Froebel, Montessori, Decroly e todos os que constituem
a escola nova, sem que no entanto aptas para tal ensino
as normalistas, que se não submetam a alguns anos de
pratica nos jardins da infancia. (MONTEIRO, 1933, p. 30).
Carvalho (2002) relata que nas décadas de 1920 e 1930,
a propaganda reformista evidenciou a necessidade de uma
“mudança de mentalidade” dos/as professores/as, para tal
realizou programas que visaram realizar uma formação de
professores com esse “novo” perfil adequado à instituciona-
lização da escola ativa. Em artigo anterior, Monteiro (1932, p.
48, grifo nosso) escreveu: “Tudo nos leva a esperar que a nova
geração de brasileiros, que hoje instruimos e educamos seja
digna do novo Brasil”.
Foi em um jogo de construção de memórias entre o “novo”
e o “velho”, que encontramos a construção discursiva da Escola
Nova, assim seu ideário pretendia construir “novos” métodos,
“nova” formação de professores e por consequência “novas”
(DHP/UFPB) e tem a colaboração da Professora Dra. Amanda Sousa Galvíncio
(DEBAS/UFPB). Tem como aluna bolsista Mariza Gomes da Silva e as alunas
voluntárias Aureliane Regis Romão e Maria Suênia Guedes do Ó.
230
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
crianças para seu projeto civilizador. O passado era represen-
tado como “velho” (inclusive o período anterior chamado de
República “Velha”), sinônimo de caos e de desorganização; em
contrapartida haveria a instauração da “nova” educação e do
Estado “Novo”, os quais representariam uma nova forma de se
pensar os projetos educacionais e a própria República.
Para esse novo ideário, diversos dispositivos foram utili-
zados, entre eles a imprensa. Segundo Carvalho (2002, p. 395), a
Escola Nova utilizou de dispositivos de uma estratégia editorial
com a qual pretendia formar uma “[...] nova cultura pedagógica
do professorado, condição de possibilidade de institucionali-
zação de uma nova escola”. E a Revista do Ensino cumpriu esse
papel no estado da Paraíba.
As concepções difundidas pela escola nova tinham como
base a psicologia experimental e o ensino ativo. Alice Monteiro
(1934, p. 45) escreveu sobre a importância dos jardins para a
Escola Nova: “Sem os Jardins de Infância torna-se incompleta
a adoção dos modernos preceitos de ensino, todos baseados na
psicologia experimental”. Dessa forma a intelectual concebia
essa modalidade educacional como partícipe da concepção
escolanovista e como necessário à nação.
Em uma palestra transcrita na Revista do Ensino VI de
1934, Alice Monteiro deixa clara a sua referência teórica:
Mirabeau, Talleyrand, Condorcet, Pestalozzi, Rousseau,
Froebel, Decroly e Montessori. Não é por coincidência que
Carvalho (2002) elenca esses mesmos teóricos nas citações dos
reformadores da educação, eles fizeram parte da construção da
pedagogia da educação nova e suas teorias foram divulgados em
Conferências Nacionais da Educação e também por professores/
as e seus escritos.
231
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
A prática educacional da escola moderna e ativa
perpassou os textos de Monteiro, neles ela desenhou uma escola
e uma criança ativa que utilizaram o método intuitivo, o qual
recorre ao uso dos sentidos, à formação moral e a experiência
como centro do processo educativo. “A escola moderna é a escola
oficina, escola laboratório, escola jardim”. (MONTEIRO, 1932,
p. 47). Lourenço Filho elencou a importância dessas mesmas
questões para a educação. Aliás não nos parece coincidência o
fato de que coube a Lourenço Filho propor o encaminhamento
de elaboração do PNE e a ordem dos trabalhos em 1934, e, em
1935, Monteiro ter sido designada para os estudos desse plano
na Paraíba. Havia uma convergência de bases teóricas e de
discursos entre esses dois intelectuais.
A questão da moralidade também era persente nos
escritos de Alice Monteiro (1934, p. 42):
Que uma criança é capaz de desenhar, escrever, calcular,
de fazer ginástica, todos nos sabemos. O que, porém,
deve nos saber, é o modo de cultivar-lhe os sentimentos
e o coração, de desenvolver-lhe o carater, de formar-lhe
a personalidade moral.
Instruir inculcar valores de civilidade, moral e higiene
nas crianças foi uma das bandeiras escolanovistas.
Em uns dos artigos para a Revista do Ensino, Alice Monteiro
realiza uma descrição passo a passo de uma prática educacional
voltada para os jardins de infância. O artigo foi intitulado de “Uma
contribuição para os jardins de infância” e nele há a descrição para
um trabalho de um ano destinado às crianças dos jardins.
Nesse artigo, a intelectual iniciou realizando um panorama
nacional sobre a difusão dos ideários da escola nova: “Por todos
232
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
os Estados se alastra o movimento doutrinário em pról da escola
e aqui na Parahyba, não é pequeno o numero de trabalhadores
pela adaptação das novas idéas” (MONTEIRO, 1934, p. 23, grifo
nosso). Dessarte sugeriu a necessidade de se realizar uma reforma
orgânica na instrução paraibana da mesma forma como ocorreu
nos estados de Pernambuco e Minas Gerais e para tal clamou a
participação do professorado. Antes de iniciar a descrição da sua
prática pedagógica, Monteiro (1934, p. 23) redigiu:
Não desejando afastar-me de minha especialidade de
jardineira passo a falar-vos sobre o emprego do tempo
num jardim da infancia. Reunindo o maior numero
possivel de detalhes technicos que possam tornar
praticavel esta licção a apresento em fórma de “idéa
central” seguindo o methodo froebeliano.
Assim a professora passou a relatar com riquezas de
detalhes da “lição”: “A mandioca”. Nela foram descritas as
ideias centrais para se trabalhar em um jardim de infância
dos meses de fevereiro a agosto, divididas em: I – Passeio a um
roçado; II – Arranca da mandioca; III – Preparo do terreno e da
maniva para plantio; IV – Visita a uma “casa de fazer farinha”;
V – Conservação e construcção de uma pequena “casa de fazer
farinha”; VI – Canto “A mandioca”; VII – “A arranca no roça-
dinho da escola”; III – A goma, Utilidade: mingaus, bolinhos;
IX – Recitativo; X – A crueira. A massa de mandioca.
As lições iniciavam com uma descrição do que fazer, por
exemplo: ida ao roçado. Depois Monteiro descreveu o que as
professoras deveriam fazer: mostrar para as crianças de forma
indireta o maior número de detalhes possíveis do passeio
realizado. “Admiremos o verde das folhas viçosas, levando os
meninos a compara_los com as plantas vistas no terreno da
233
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
escola” (MONTEIRO, 1934, p. 24). Em seguida, a autora escreveu
que devia-se colher alguns ramos de flores agrestes para serem
levados para a sala de atividade, sempre estimulando que as
professoras realizem as práticas de forma alegre e prazerosa:
“Ao regressar colocaremos cuidadosamente nossas flôres em
vazinhos e a sala toda terá por algumas horas um aspecto
que prolongará o prazer do passeio” (MONTEIRO, 1934, p. 24).
Ao final da lição há a descrição de um trabalho, nesse caso:
“Trabalho Manual – Para os grandes: reprodução pelo desenho
das flôres colhidas. Para os pequenos: colorir campanulas azues
e amarellas esboçadas pela mestra” (MONTEIRO, 1934, p. 24.
Grifo da autora).
Dessa mesma forma, se sucederam todas as lições com
descrição detalhada e a proposta de um trabalho ao final, é
importante ressaltar que os trabalhos variam entre pinturas,
danças, cantigas, plantio, reconto de histórias, etc. Ao final do
artigo, Monteiro escreveu sobre a importância da memória
para o aprendizado das crianças, destacando a centralidade
dos sentidos: “Tudo o que percebemos se nos apresenta de cinco
ou seis fórmas differentes: auditiva, visual, tatil, motora, intel-
lectual e sentimental” (MONTEIRO, 1934, p. 30). E justificando
suas propostas pedagógicas anteriores.
Encontramos ainda, nesse artigo, uma crítica à “escola
antiga”: “Cada vêz mais nos afastamos da escola verbalista
responsavel pelo esgotamento intellectual de mais uma
geração” (MONTEIRO, 1934, p. 30). Procurando se afastar desse
método que para ela foi um dos responsáveis pelo “atraso da
nação e da civilização”.
Nas últimas frases, Monteiro (1934, p. 30) ratificou a impor-
tância da formação dos/as professores/as, pois um método só
seria “eficaz, completo e perfeito” caso houvesse envolvimento
234
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
e estudo por parte dos mestres e das mestras: “Hoje temos o
dever de mais nos preoccupar com a neurologia e psychologia da
infância, com a anatomia do seu systema nervoso, do que com a
organização de exames complicados e difíceis”.
Nesse artigo vemos um exemplo de aplicação para os
jardins do modelo froebeliano e uma defesa à escola nova.
Dessa maneira, percebemos o desenvolvimento dessas ideias
na Paraíba, sob a égide de um pensamento liberal do período,
o qual destinou aos/às professores/as a responsabilidade da
sua formação e da aplicação de “novos” métodos, tínhamos a
educação desde a primeira infância como um dos pilares para
a formação de uma sociedade democrática. À vista disso, a
instrução centrada no indivíduo integraria o processo civi-
lizador da sociedade brasileira. Escrito em forma de manual,
Monteiro procurou ensinar as bases das suas propostas peda-
gógicas, defendendo a escola nova e suas práticas, a autora
mobiliza conceitos, teorias e doutrinas.
Carvalho (2002) diz que escola nova rescreveu represen-
tações sobre a criança e sobre a escola e que nelas procurou
fornecer roteiros e modelos para serem seguidos pelos/as
professores/as e para fundamentar suas práticas. Saberes que
eram selecionados e apresentados como inovadores contra-
pondo com os “velhos” métodos e “velhas” escolas. Foi nessa
esteira de argumentação que encontramos os escritos de Alice
Monteiro na Paraíba.
235
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
Considerações finais
Compreender como os/as intelectuais, que foram
professores/as, atuaram na imprensa brasileira é um fenômeno
pertinente para a história da educação no Brasil. A imprensa
teve um papel central para os grupos de intelectuais do século
XIX e início do século XX, os periódicos eram um espaço de
divulgação de ideias e de embates políticos e sociais. Havia,
portanto, uma consciência da importância da imprensa pelos/
as intelectuais como locus de desenvolvimento tanto da cultura
quanto da educação e, por isso, uma instituição indispensável
para a nação.
Dessa forma, a instrução das crianças não estaria ligada
apenas a instituições escolares, sua disseminação perpassou
diversos locais como os impressos. A família e principalmente
a mulher teriam um papel central na formação desses futuros
cidadãos e por isso a importância de disponibilizar educação
para elas. A instrução da criança ocorria de forma difusa na
sociedade e além dos/as seus/uas professores/as, quando
tinham ingressado nas primeiras letras, as suas mães também
possuíam um papel central nessa instrução. Formar o futuro
cidadão para disseminar os valores da nação seria a importância
central dessa instrução. Para os jardins de infância, além da
formação dos futuros cidadãos esperou-se, também, o preparo
das crianças para ingressarem no ensino primário.
Neste artigo, inicialmente procuramos entender a rede
intelectual na qual Alice de Azevedo Monteiro estivera inserida
para depois interpretar seus escritos. Nos escritos encontramos
suas bases sobre a escola nova e sobre a difusão dos jardins de
infância. Havia uma interligação entre essas instituições, com
236
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
a imprensa, e se procuraram disseminar um ideal de cidadão e
de nação, ligado à noção de civilização do “novo” homem.
A ideia de síntese é o que subjaz ao empreendimento
hermenêutico, conduzida pela imagem gadameriana de fusão
de horizontes e aqui materializada por nossa interpretação, foi
derivada dos embates entre a literatura produzida até então
sobre o objeto investigado, as fontes e os sujeitos pesquisados.
Dessa forma, na nossa interpretação da atuação e da escrita de
Alice de Azevedo Monteiro em relação à educação das crianças
pequenas na Paraíba, compreendemos que a intelectual procurou
mobilizar saberes da sua prática entrelaçados com seu conheci-
mento teórico fundamentado nas metodologias propostas para
os jardins de infância e para a escola nova. Assim, ao finalizarmos
este, não indicamos um fechamento dessas discussões e sim
abrimos novos horizontes para o diálogo com outras interpretações
dos projetos educativos para a primeira infância. Esse diálogo,
seja ele o nosso ou o travado no período em questão, está sempre
aberto a novas interpretações e é realizado com base em embates
de diversas ideias e representações.
237
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
Referências
A QUEM DEVE CABER A REPRESENTAÇÃO da Mulher Paraíbana
na futura Constituinte? - A “enquête” do “Diario” junto a
ilustres senhoras e senhorinhas da sociedade do visinho
Estado do Norte – O que nos disse, a educadora paraibana,
sr. Alice de Azevedo Monteiro. Diário de Pernambuco,
Recife, n. 56, ano 108, p. 01, 03 mar. 1933. Disponível
em: http://memoria.bn.br/. Acesso em: 24 jun. 2020.
ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na
crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições
complementares da instrução pública: Obras completas. Rio
de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947a [1883]. v. X,
tomo I. Disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/docreader.
aspx?bib =ObrasCompletasRuiBarbosa. Acesso em: 10 abr. 2012.
BOTO, Carlota. A escola primária como tema político
às vésperas da República. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 19, n. 38, p. 253-281, 1999.
___. O professor primário português como intelectual: “Eu
ensino, logo existo”. Revista da História das Idéias, Faculdade
de Letras de Coimbra, Coimbra, v. 24, p. 85-134, 2003.
BRASIL. Almanak Laemmert: Estados do Norte. v. 03, 87
ed. Rio de Janeiro: Adriano Maury & C., 1931. Disponível
em: http://memoria.bn.br/. Acesso em: 20 abr. 2020.
238
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
CARDOSO, Elizangela Barbosa. Entre o tradicional e
o moderno: os femininos na Revista Vida Doméstica:
Revista Gênero, Niterói, v. 9, n. 2, p. 103-134, 2009.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Pedagogia da
escola nova, produção da natureza infantil e controle
doutrinário da escola. In: FREITAS, Marcos Cezar de;
KUHLMANN JR., Moysés (org.). Os Intelectuais na História
da infância. São Paulo: Cortez, 2002. p. 373-408.
DA PARAHYBA do Norte. Vida doméstica, n. 195, jun. 1934.
Disponível em: http://memoria.bn.br/. Acesso em: 10 ago. 2020.
ESPINDOLA, Maíra Lewtchuk. As experiências dos
intelectuais no processo de escolarização primária na
Parahyba (1824-1922). 2017. Tese (Doutorado em Educação)
– Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.
ESPINDOLA, Maíra Lewtchuk. Primeira República, Intelectuais
e educação: entre a utopia e o (des)encantamento de Castro
Pinto (1888-1915). 2012. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012.
FREITAS, Marcos Cezar de; KUHLMANN JR., Moysés.
Apresentação. In: FREITAS, Marcos Cezar de; KUHLMANN
JR., Moysés (org.). Os Intelectuais na História da
infância. São Paulo: Cortez, 2002. p. 07-09.
239
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
GALVÍNCIO, Amanda Sousa. A trajetória intelectual de
Eudésia Vieira no século XX: educação, feminismos e história
pátria (1921-1955). 2019. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875-
1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
INSTITUTO Spencer. O Jornal: Parahyba do Norte, ed. 65, p. 02,
1924. Disponível em: http://memoria.bn.br/. Acesso em: 10 ago. 2020.
KUHLMANN JR., Moysés. O Jardim-de- Infância e a
Educação das Crianças pobres. In: MONARCHA, Carlos
(org.). Educação da Infância Brasileira (1875-1983).
Campinas: Autores Associados, 2002. p. 03-30.
LIMA, Rosângela Chrystina Fontes de. Percursos e Percalços na
Implantação dos Jardins de Infância na Cidade da Parahyba:
uma contribuição ao estudo sobre a educação infantil (1917-1939).
2011. Trabalho de Conclusão de Curso. Monografia (Licenciatura
em História) – Universidade Federal da Paraíba, 2011.
LUCENA, Solon de. Mensagem apresentada á Assembléia
Legislativa da Parahyba. 1 set. 1922. Parahyba do Norte:
Imprensa Official, 1922. Disponível em: http://www.crl.edu/
content.asp?l1=4&l2=18&l3=33. Acesso em: 02 mar. 2019.
MOLINA, Ana Heloisa. A História contada por imagens:
as escolas normais do início do século XX e o uso de
fotografias para a historiografia contemporânea.
Revista Dimensões, v. 34, p. 457-489, 2015.
240
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
MONTEIRO, Alice de Azevedo. A Educação dos Parvulos
e os Jardins de Infancia. Revista do Ensino, João Pessoa,
v. XII, n. 15, p. 23-25, dez. 1937. Disponível em: https://
issuu.com/revistadoensino. Acesso em: 26 jun. 2019.
MONTEIRO, Alice de Azevedo. Brincar e Estudar. Revista do
Ensino, João Pessoa, v. II, p. 47-48, jul. 1932. Disponível em:
https://issuu.com/revistadoensino. Acesso em: 26 jun. 2019.
MONTEIRO, Alice de Azevedo. Curso Modelo. Revista do
Ensino, João Pessoa, v. XI, n. 14, p. 15-16, dez. 1936. Disponível
em: https://issuu.com/revistadoensino. Acesso em: 26 jun. 2019.
MONTEIRO, Alice de Azevedo. Palavras da diretora do Jardim
da Infancia para a Revista do Ensino. Revista do Ensino,
João Pessoa, v. III. p. 27-32, set. 1933. Disponível em: https://
issuu.com/revistadoensino. Acesso em: 26 jun. 2019.
MONTEIRO, Alice de Azevedo. Uma Contribuição para
os Jardins de Infancia. Revista do Ensino, João Pessoa,
v. VIII, n. 11, p. 25-30, dez. 1934. Disponível em: https://
issuu.com/revistadoensino. Acesso em: 26 jun. 2019.
MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra,
imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil
do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
241
“IMPOR O JARDIM DE INFÂNCIA À PARAÍBA”:
OS ESCRITOS DE ALICE DE AZEVEDO MONTEIRO SOBRE
E PARA A INFÂNCIA NA REVISTA DO ENSINO (1932-1940)
NUNES, Maria Lúcia da Silva. Página feminina: vozes de mulheres
paraibanas na década de 1930. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: Invenções, Tradições e Escritas da
História da Educação no Brasil, 6, 2011, Vitória. Anais [...]. Vitória:
Universidade Federal do Espírito Santo, 2011. p. 1-10. (CD-ROOM).
REVISTA DO ENSINO. João Pessoa, v. XI, n. 14, dez. 1936. Disponível
em: https://issuu.com/revistadoensino. Acesso em: 26 jun. 2019.
RODRIGUES, Melânia Mendonça; SILVA, Vívia de Melo
Silva. Imprensa e educação: a Revista do Ensino da
Paraíba. In: RODRIGUES, Melânia Mendonça; SILVA,
Niédja Maria Ferreira de Lima, Vívia de Melo Silva (org.).
Leituras sobre a Revista do Ensino da Paraíba (1932-
1942). Campina Grande: EDUFCG, 2019. (e-book)
ROMÃO, Aurilane Regis. Alice de Azevedo Monteiro e a educação
das crianças pequenas na Paraíba: a criação dos primeiros
jardins de infância e os escritos sobre infância na Revista do Ensino
(1930-1942). 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em
Pedagogia) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.
SILVA, Shirley Targino. O discurso de mulheres educadoras
na imprensa paraibana: tessituras do processo histórico de
escolarização na paraíba (1930 – 1939). 2017. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.
SIMÕES JUNIOR, Alvaro Santos; CAIRO, Luiz Roberto; RAPUCCI,
Cleide Antonia (org.). Intelectuais e imprensa: aspectos
de uma complexa relação. São Paulo: Nankin, 2009.
242
MAÍRA LEWTCHUK ESPINDOLA
SOIHET, Rachel. A conquista do espaço público. In: PINSKY,
Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. (org.). Nova história das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. v. 1. p. 218-237.
SONEGO, Márcio Jesus Ferreira. A fotografia como fonte
histórica. Historiæ, Rio Grande, v. 1, n. 2, p. 113-120, 2010.
TEIXEIRA, Josele; SCHUELER, Alessandra. Experiências
profissionais e produção intelectual de professores primários na
Corte imperial (1860 – 1889). In: CONGRESSO LUSO BRASILEIRO
DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 6., 2006, Uberlândia. Anais [...].
Uberlândia: Universidade, 2006. p. 6122-6133. Disponível em: http://
www2.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/553Alessandra%20
Schueler_Josele%20Teixeira.pdf. Acesso em: 10 ago. 2012.
UM INQUÉRITO nacional. Correio da Manhã. Rio de
Janeiro, ed. 12473, p. 08, 20 jul. 1935. Disponível em:
http://memoria.bn.br/. Acesso em: 24 jun. 2020.
VIANA, Fabiana da Silva. “A passos lentos, com esforços
redobrados”: a atuação de políticos e intelectuais no
processo de escolarização da província mineira (1830-
1840). In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de; INÁCIO,
Marcilaine Soares (org.). Políticos, literatos, professoras,
intelectuais: o debate público sobre educação em Minas
Gerais. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009. p. 67-91.
XAVIER JUNIOR, Francisco. Relatório sobre a Escola
Normal e a instrucção primaria apresentado pelo
Diretor Geral do Ensino. Parahyba do Norte: [s.n.], 1913.
243
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”:
COMEMORAÇÕES AO DIA
DA ÁRVORE E PRÁTICAS EDUCATIVAS
DURANTE O ESTADO NOVO
EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)1
Vânia Cristina da Silva2
Resumo: O presente artigo tem como objetivo compreender
como era comemorado o Dia da Árvore, na cidade de João
Pessoa/PB, no período do Estado Novo. As festas e comemo-
rações sempre estiveram presentes no ambiente escolar,
especialmente, em finais do século XIX, após a Proclamação da
República. Mas, foi durante o governo de Getúlio Vargas, entre
os anos de 1937 a 1945, que essas comemorações ganharam
maior fôlego pelo país. Dentro desse recorte temporal, tomamos
como fonte de pesquisa o jornal A União, vinculado ao governo
estatal, responsável pela ampla divulgação das solenidades.
Para a discussão sobre os distanciamentos e aproximações
existentes entre os conceitos de festa e comemoração, seguimos
à luz das pesquisas realizadas por alguns autores, tais como:
1 Esse texto é um recorte da pesquisa de mestrado, desenvolvida no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba,
defendida em 2011.
2 Graduada em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Mestre
em História pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é doutoranda
pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás.
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
Ozouf (1976), Durkheim (1996), DaMatta (1997), Amaral (1998),
Cândido (2007, 2012), entre outros. Constatamos, através desse
estudo, que nesse período, as instituições escolares assumiram
um lugar considerado promissor na elaboração e difusão dos
ideais nacionalistas tão valorizados naquele momento, e isso
ocorria de diversas maneiras, desde os processos de ensino e
aprendizagem em sala de aula, aos materiais didáticos utili-
zados e, não menos importante, através das práticas educativas
comemorativas, como o Dia da Árvore, festejado anualmente,
em 21 de setembro.
Palavras-chave: Práticas educativas comemorativas. Dia
da Árvore. Estado Novo.
Introdução
N o decorrer da história, as festas e comemorações se
tornaram constantes no ambiente escolar, especialmente,
em finais do século XIX, após a Proclamação da República. No
decorrer do período estadonovista, entre os anos de 1937 a 1945,
essas comemorações ganharam maior destaque. Nesse período,
a questão da formação de uma identidade nacional tomou cores
mais vivas e fortes com o governo de Getúlio Vargas. As insti-
tuições escolares passaram a ser vistas como locais favoráveis
para o engendramento e a divulgação dos ideais nacionalistas.
Essas comemorações festivas estavam diretamente
ligadas às práticas educativas vigentes na época, pois a escola
acabou assumindo parte da responsabilidade por promover,
entre os jovens, os ideais do novo regime. Era preciso formar
o cidadão republicano para a nação brasileira que esperavam
245
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
construir, e essas tentativas de transformação da juventude em
adoradores da pátria ocorriam, inclusive, através de práticas
educativas comemorativas, com solenidades que eram levadas
a efeito no decorrer de todo o ano letivo. Nesse ritmo, as come-
morações que ocorriam com grande euforia se consolidaram e
se tornaram complementos essenciais à educação, uma vez que,
“Com a instauração do Estado Novo, em 1937, o Estado brasileiro
passou por novo período de maior centralização político-admi-
nistrativa”, o que ocasionou, “[...] particularmente na esfera da
educação pública, um recrudescimento de idéias nacionalistas”
(PINHEIRO, 2002, p. 203).
Entre tantas datas solenes, o presente texto tem como
objetivo compreender como era comemorado o Dia da Árvore, na
cidade de João Pessoa/PB, no período do Estado Novo. Festejado
no dia 21 de setembro, essa data também foi apropriada pelos
órgãos de poder e se tornou mais um mecanismo, no âmbito
educacional, a favor dos anseios do governo de Getúlio Vargas,
que fez da árvore um símbolo cívico fomentado pelo regime
republicano. Para tanto,
[...] o valor educativo da festa deveria ser despertado
nos alunos de duas formas: das instruções e preleções
dos mestres e do cunho prático garantido pelo plantio
de algumas mudas vegetais pelos alunos.
Era preciso reforçar “[...] o sentimento de amor e
respeito pela natureza e pela pátria representada nela”
(CÂNDIDO, 2007, p.135).
Para respondermos às nossas inquietações acerca da data
mencionada, tomamos como principal fonte de pesquisa o jornal
246
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
A União3, vinculado ao governo estatal, com recorte temporal
entre os anos de 1937 a 1945. Assim, estruturamos o texto em
dois tópicos, além desta introdução e das considerações finais.
Num primeiro momento, apresentamos uma breve discussão
sobre os distanciamentos e aproximações existentes entre os
conceitos de festa e comemoração. Para tal objetivo, seguimos à
luz dos estudos realizados por autores, tais como: Ozouf (1976),
Durkheim (1996), DaMatta (1997), Amaral (1998), entre outros.
No segundo tópico, nos detivemos à compreensão das comemo-
rações ao Dia da Árvore, como práticas educativas que tiveram
importante relevância no contexto educacional do período,
no Estado da Paraíba e, de forma mais específica, na cidade de
João Pessoa. Para tal propósito, foi essencial o diálogo com as
pesquisas desenvolvidas por Cândido (2007, 2012), que realizou
um estudo comparativo entre esses eventos ocorridos no Brasil
e em Portugal. Feitas essas considerações, fica aqui o convite ao
leitor, para que se deixe embalar pelo ritmo das festas, a fim
de conhecer um pouco mais sobre como essas comemorações se
tornaram importantes durante o Estado Novo.
3 Órgão vinculado ao Estado, fundado em 02 de fevereiro de 1893, criado
durante o governo de Álvaro Lopes Machado e considerado o terceiro jornal
mais antigo do Brasil. Esse periódico se tornou oficial e acabou assumindo a
função de porta-voz dos fatos políticos e administrativos. A União, além de
veículo de informação, funcionou mais como um formador de opinião e deve
ser considerado como testemunha ocular da história paraibana, pois guarda
em suas páginas os mais diversos momentos da vida desse Estado. Funcionou,
em sua edição inicial, na Rua da Cadeia, atual Visconde de Pelotas. Surgiu da
fusão de dois partidos políticos, unidos com a vitória do movimento republi-
cano. Como seu fundador era republicano, A União ficou sendo jornal oficial.
247
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
Festejar ou comemorar? Algumas
inferências conceituais
A festa sempre esteve presente na história da humani-
dade e, no decorrer da História, foi vista de diversas maneiras.
Nas sociedades primitivas, por exemplo, elas eram
[...] momentos dedicados exclusivamente à manifes-
tação da felicidade coletiva por algum acontecimento
humano (nascimentos, casamentos, mortes, aniversá-
rios) ou da natureza (plantação, colheitas, mudanças
das estações climáticas)
Ou seja, expressavam algum ritual, passagem do tempo,
homenagens aos deuses, entre outras funções (CÂNDIDO, 2007, p. 13).
Existe uma vasta quantidade de trabalhos que discutem o
conceito de festa. Em 1912, Durkheim (1996) apresentou amplas
considerações a respeito das relações existentes entre o ritual
e as festas em As formas elementares da vida religiosa. Nessa obra
clássica, o autor discute a importância do elemento recreativo
e estético na religião e mostra a inter-relação entre a cerimônia
religiosa e a ideia de festa. Segundo o autor, o rito é vital, é
uma maneira que a sociedade encontra para respirar. Isso não
significa que essa coletividade se reúne apenas pelo prazer de
estar junto, mas em meio às festas, na maioria das vezes, existe
um jogo de interesses que podem ser políticos, econômicos,
enfim, “[...] o rito é indispensável para recriar, renovar ou
refazer a identidade, a personalidade do grupo e da sociedade”
(BERGAMASCO, 2009, p. 07). As festas são momentos nos quais os
indivíduos se libertam, portanto, não deixa de ser uma rápida
fuga da monotonia cotidiana.
248
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
É por isso que a ideia mesma de uma cerimônia religiosa
de certa importância desperta naturalmente a ideia de
festa. Inversamente, toda festa, mesmo que puramente
leiga por suas origens, tem certos traços da cerimônia
religiosa, pois sempre tem por efeito aproximar os
indivíduos, pôr em movimento as massas e suscitar,
assim, um estado de efervescência, às vezes até de
delírio, que não deixa de ter parentesco com o estado
religioso. O homem é transportado fora de si, distraído
de suas ocupações e preocupações ordinárias. Por isso,
observam-se em ambos os casos as mesmas manifes-
tações: gritos, cantos, música, movimentos violentos,
danças, busca de estimulantes que elevem o nível vital,
etc. (DURKHEIM, 1996, p. 417-418).
Conforme alerta Durkheim (1996), as festas e as religiões
fortificam o espírito que se encontra, na maioria das vezes,
fatigado devido ao dia a dia e ao desgaste do trabalho cotidiano.
É ali, naquele momento, que “[...] os indivíduos têm acesso a uma
vida menos tensa, mais livre, a um mundo onde sua imaginação
está mais à vontade” (AMARAL, 1998, p. 26-27).
Durkheim (1996) aponta, ainda, que os limites que separam
os rituais das recreações coletivas são flutuantes, pois uma das
características importantes das religiões é seu elemento recre-
ativo e estético. As comemorações, tanto quanto as cerimônias
religiosas, são essenciais para que se mantenham vivos os “laços
sociais”, pois eles estão sempre correndo o risco de se desfazerem.
Através dos ritos festivos, “[...] o grupo reanima periodicamente
o sentimento que tem de si mesmo e de sua unidade; ao mesmo
tempo, os indivíduos são revigorados em sua natureza de seres
sociais” (DURKHEIM, 1996, p. 409). Por meio dos sentimentos
produzidos durante a festa, os homens podem entrar em “[...]
contato direto com a fonte de ‘energia’ social e dela absorver o
249
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
necessário para se manterem sem revolta e muita contrariedade
até a próxima festa” (AMARAL, 1998, p. 28).
Vários autores defendem a noção de festa como propi-
ciadora da ordem ou negação dela. Somente Duvignaud (1983),
conforme aponta Amaral (1998, p. 31),
[...] radicaliza a teoria da festa, vendo nela não uma
tentativa de regeneração ou um modo de reafirmação
da ordem social vigente, mas a ruptura, a anarquia total
e o poder subversivo, negador, da festa.
Duvignaud (1983) parece seguir um curso diferente da
maioria dos estudiosos sobre as festas e destaca que elas ocupam
um lugar central no curso da vida social e perpassam todas as
culturas. Para ele, a festa não passa de uma subversão criadora
do caos, um ato subversivo que desconfigura a ordem social.
Diremos que a festa, [...] permite às pessoas e coleti-
vidades sobrepujarem a ‘normalidade’ e chegarem ao
estado onde tudo se torna possível porque o indivíduo,
então, não se inscreve apenas em sua essência humana,
porém, em uma natureza, que ele completa pela sua
experiência, formulada ou não. A festa importa em
distúrbios provindos de fora do sistema, uma desco-
berta de apelos atuantes sobre o homem por vias
externas ao poder das instituições que o conservam
dentro de um conjunto estruturado. A transgressão,
por ser estranha às normas e regras e, não explicitando
a intenção de violá-las, é, por isso, mais forte. O poder
do ‘Ego’ se faz conhecer com o seu próprio teor de
indiferença (DUVIGNAUD, 1983, p. 222-223).
250
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
A festa é, então, uma forma da sociedade sair da vida
normal e evidenciar a
[...] capacidade que têm todos os grupos humanos de
liberarem-se de si mesmos e de enfrentarem uma dife-
rença radical no encontro com o universo sem leis nem
forma, que é a natureza na sua inocente simplicidade
(DUVIGNAUD, 1983, p. 212).
Pode-se dizer que esse autor entende que a festa não
deixa de ser uma forma de rebeldia e de desordem, com finali-
dade zero, em que os excessos são a regra principal.
Ao estudar os rituais nacionais em seu livro Carnavais, malan-
dros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, DaMatta
(1997, p. 46) enfatiza que, ao se realizar uma festa ou um ritual
nacional, “[...] toda a sociedade deve estar orientada para o evento
centralizador daquela ocasião, com a coletividade ‘parando’ ou
mudando radicalmente suas atividades”. Desse modo,
Um sinal típico dessa centralização e consequente
sincronia de atividades é que os rituais nacionais
implicam sempre um abandono ou “esquecimento” do
trabalho, seus dias sendo feriados nacionais”.
Para o pesquisador, no Brasil, como em outras sociedades,
“[...] há uma classificação dos eventos sociais segundo a sua ocor-
rência” (DAMATTA, 1997, p. 47), ou seja, existem aqueles eventos
que fazem parte da rotina diária, que costumamos chamar de
dia a dia ou meramente vida, como ressalta o autor, e os eventos
que estão fora desse cotidiano rotineiro, isto é, as festas.
251
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
Ao trabalhar com o Carnaval e o Dia da Pátria, DaMatta
(1997) nos lembra que essas datas constituem os dois rituais de
maior duração no Brasil, que só se comparam com a Semana
Santa, que retrata a Paixão e a Ressurreição de Cristo. Assim,
“[...] essas três semanas festivas sugerem um ‘triângulo ritual
brasileiro’ muito significativo, sobretudo nas suas implicações
políticas” (DAMATTA, 1997, p. 51). Nesse triângulo sugerido
pelo autor, temos as festas devotadas ao Estado Nacional, as
que são controladas pela Igreja e as carnavalescas, consagradas
à vertente mais desorganizada da sociedade: a massa.
O autor utiliza uma expressão de Lévi-Strauss (1970) e
caracteriza o Dia da Pátria como um rito histórico, porque
entende que é impossível compreendermos a independência
do Brasil sem falar do período colonial e do republicano. Isso
significa que a temporalidade do Dia da Pátria é marcada pelo
sentido do progresso e da evolução, como ciclo de nascimento,
crescimento e amadurecimento da Nação brasileira. Ele enfa-
tiza que o Dia da Pátria acentua o rompimento com o período
colonial e o início de uma “maioridade política”.
É, pois, um rito histórico de passagem, já que sua
performance visa não só a recriar um momento glorioso
do passado, mas muito especialmente a marcar a
passagem entre o mundo colonial e o mundo da liber-
dade (DAMATTA, 1997, p. 54).
Após destacar alguns trabalhos e discussões sobre o
conceito de festa, vale mencionar a forma como Ozouf (1976) o
enfrenta em seu texto A festa: sob a Revolução Francesa, publicado
na coletânea História: novos objetos (1976), no qual a autora indaga:
252
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
Que espetáculo, atualmente, julgamos perfeito se não
consegue tornar-se uma festa? Que futurologia não
nos promete as festas? A festa invadiu o vocabulário do
ensaio político, da crítica teatral, do comentário literário.
[...] A história, por um lado, desde há muito tempo tem
se preocupado conscientemente mais com os trabalhos
e os esforços dos homens do que com os seus diverti-
mentos ou, como se queira, com as suas diversões. Se as
festas tornam-se doravante, com pleno direito, objeto
da história, deve-se isso à dupla instigação do folclore e
da etnologia. Por frequentar um e outro campo, o histo-
riador aprendeu a levar em consideração a armadura que
a ritualização dá à existência humana, mesmo que seja
uma ritualização anônima, desprovida de regulamen-
tação explícita ou de coesão coerente. Acrescente-se que,
com a psicanálise, a história aprendeu, ao mesmo tempo,
o interesse que pode ter a colheita do aparentemente
insignificante (OZOUF, 1976, p. 216-217).
Os estudos de Ozouf (1976) são pioneiros e se referem
às festas em comemoração à Revolução Francesa. Segundo a
autora, foi a partir do momento em que o historiador da Nova
História passou a frequentar outros campos, como o folclore e
a etnologia, que foi possível uma mudança e um despertar dos
estudos sobre a festa, pois esse pesquisador aprendeu a encarar
a ritualização festiva como objeto de estudo. E mais, para
Ozouf (1976), foi com a Psicanálise que a História aprendeu que
poderia ser significativo aquilo que parecia tão imperceptível.
Ela também apresenta uma parte do cenário das produções
científicas sobre a festa e, a partir de suas colocações, aponta
os equívocos desses pesquisadores, já que, segundo a autora, ao
estudar essas comemorações, corremos dois riscos:
253
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
Primeira tentação: fazer da repetição que a festa,
com efeito, contém uma repetição consciente de si
própria, em que o passado celebrado seria reconhecido
por aquilo que é mantido à distância e analisado [...].
Entretanto, é necessário precisar ainda que a história
da festa será a história de um fenômeno em grande
parte cego para a história. A outra tentação, de sentido
inverso, encerra também um perigo: o de tomar como
tal o ensaio de futuro que, associado à repetição do
passado, a festa aconteceria (OZOUF, 1976, p. 217).
Notamos que, para a autora, a antecipação do futuro
presente na festa pertence mais ao imaginário, à projeção de
um desejo comum ou coletivo do que à verdadeira antecipação
da realidade. Não é possível pedir a determinadas festas certa
consciência do que ela prepara, pois “[...] o tempo que ela
anuncia não é o tempo da História” (OZOUF, 1976, p. 218). No
entanto, as festas da Revolução Francesa desejaram buscar um
novo tempo histórico, garantir
[...] a esperança ou a ilusão de uma sociedade não
repressiva, em que seria abolida toda a ruptura entre a
vida cotidiana e as festas, além de ensinar a Revolução
a todos aqueles que não a conheceram diretamente
(CÂNDIDO, 2007, p. 29).
Quando se refere às festas revolucionárias, Ozouf
(1976, p. 220) destaca: “A história das festas está, portanto,
na dependência estreita do acontecimento revolucionário. A
circunstância decide a festa, a improvisação a completa”.
Analisando os debates existentes acerca das “[...] funções
‘oficias’ da festa e os diferentes ‘usos’ que os indivíduos delas
254
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
fazem” (CÂNDIDO, 2007, p. 30), devemos destacar o trabalho
de Del Priore (2000), no livro Festas e utopias no Brasil colonial.
Metodologicamente, a autora se utiliza de relatos de viajantes
estrangeiros, documentação eclesiástica, registros de cronistas
e documentos das Câmaras que ficavam responsáveis por
controlar e financiar as festas. Teoricamente, Del Priore (2000)
se fundamentou, principalmente, na obra de Bakhtin (1999), A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento.
Del Priore (2000) refere que, no período que estudou, a festa
era uma forma de demonstrar quem tinha o poder nas mãos, esse
que era dividido entre a Igreja e o Estado. A principal função da
festa, naquele contexto, era afirmar a perenidade das instituições
de poder que, no período colonial brasileiro, buscaram normatizar
as festas e, através delas, a população brasileira.
A alegria da festa ajuda as populações a suportarem o
trabalho, o perigo e a exploração, mas reafirma igualmente
laços de solidariedade ou permite aos indivíduos marcar
suas especificidades e diferenças” (DEL PRIORE, 2000, p. 10).
E continua:
A despeito de o pretexto da festa ser sempre institucional
(ela estava ligada às comemorações do Estado ou da
Igreja), a necessidade de usar o espaço público, a praça,
a rua ou a igreja para tornar presente o poder da metró-
pole era uma regra. Por isso, essa função inicial acaba por
dar lugar a outra. A festa, uma vez começada, transfor-
mava-se em exutório para suportar as árduas condições
de vida das classes subalternas na Colônia. Ela transfor-
mava-se numa pausa nas inquietações cotidianas, num
derivativo provisório, numa pontual détente. A violência
do antigo sistema colonial atingindo indiretamente os
255
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
escravos ou brancos empobrecidos, a violência mesma
da escravidão, a violência das relações humanas numa
colônia de exploração e aquela, interétnica, das relações
sociais terminam por encontrar na festa um canal de
escape (DEL PRIORE, 2000, p. 90).
Após essas leituras, constatamos que a maioria dos
pesquisadores que se debruçaram nos estudos sobre a temática
percebem as festas como uma parada no cotidiano rotineiro,
uma inversão dos afazeres, na busca por uma fuga do dia a dia.
Tanto Ozouf (1976) quanto Del Priore (2000) compreendem o
ato festivo como algo supracotidiano, como um teatro em que
é possível encenar tudo aquilo que não é plausível de ser feito
na rotina diária, melhor dizendo, uma válvula de escape, uma
forma de revolta ritualizada. Del Priore (2000) enfatiza, ainda,
que as instituições tentavam dar uma única função à festa,
contudo, a sociedade se apropriava dela de forma peculiar. “A
festa, seus espaços e suas atividades vão ter outra interpretação
aos olhos da multidão, a cada momento possibilitando uma
inversão na sua utilização” (DEL PRIORE, 2000, p. 105).
Após destacar a visão de Del Priore (2000), tomamos como
referência o enfoque dado por Amaral (1998) ao conceito de
festa. Fundamentada em diversos autores que analisam o tema,
defende que a festa não é apenas um fenômeno social, mas uma
linguagem, uma forma de comunicação (AMARAL, 1998). Ela
trabalha com algumas festas tipicamente brasileiras, como a
Oktoberfest, de Blumenau, a de Nossa Senhora da Achiropita,
de São Paulo, a do Peão de Boiadeiro, de Barretos, o Maior São
João do Mundo, de Caruaru, o Boi-Bumbá, de Parintins, as festas
do Divino Espírito Santo, no Centro Oeste brasileiro, e o Círio
de Nazaré, em Belém do Pará. Amaral (1998) discorda de uma
gama de autores, que concebem o divertimento (pressuposto
256
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
da festa) como uma forma de fugir da monotonia cotidiana do
trabalho e o ato de festejar algo sem nenhuma utilidade que
não seja o mero divertimento.
A visão da pesquisadora diverge dessas colocações, posto
que ela entende que as festas têm certa importância, já que as
tradições, sejam elas cívicas ou religiosas, não se manifestam
apenas em vocábulos, mas também em gestos e ações coletivas.
A autora destaca que “[...] divertimento é coisa séria e pode ser
entendido até mesmo como a segunda finalidade do trabalho,
depois da necessidade de sobrevivência” (AMARAL, 1998, p. 50-51).
Além de discordar de alguns pesquisadores que consi-
deram o divertimento como algo sem importância, Amaral
(1998) aponta dois enfoques negativos acerca dos escritos sobre
as festas. O primeiro deles diz respeito à forma como muitos
autores direcionaram seus estudos, pois, embora se encontre
uma vasta quantidade de trabalhos sobre a temática, a maioria
dos pesquisadores deixou passar em branco as razões para que
os eventos festivos ocorressem. Um segundo aspecto negativo
trata-se da carência de reflexões teóricas sobre as festas, visto
que os estudos ficam mais na superficialidade do que num
aprimoramento do tema.
Grande parte dos pesquisadores pensam as festas como
uma inversão do social, algo supracotidiano. DaMatta (1997),
por exemplo, compreende as festas como eventos programados
e organizados que se situam fora do nosso dia a dia repetitivo e
constituem, segundo ele, o que pode ser chamado de “[...] extra-
ordinário construído pela e para a sociedade” (DAMATTA, 1997,
p. 47). Mas temos também estudiosos que consideram a festa
como uma atividade subversiva, uma transgressão das normas
já estabelecidas. E, por fim, temos o conceito defendido por
257
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
Amaral (1998), que vê na festa algo importante para a sociedade,
e o divertimento como algo sério e essencial.
Em se tratando das festas no período do Estado Novo,
tema do nosso estudo, podemos afirmar que Getúlio Vargas, ao
incrementar e tornar amplo o calendário festivo das escolas,
via a festa como algo necessário para a sociedade, contudo,
não como uma parada no cotidiano para descanso, assim como
defende Amaral (1998), mas com outros propósitos relacionados
ao seu projeto de governo, que tinha, entre outras metas, a
formação do sentimento nacionalista entre a população. E, no
caso específico do Dia da Árvore, a natureza representava a ideia
concreta de Pátria e República, que eram conceitos abstratos
demais para serem incutidos, especialmente, em se tratando de
jovens estudantes. Mas esse é um assunto que será retomado
mais adiante no texto.
Até o presente momento, discutimos aspectos relacio-
nados ao conceito de festa, a partir da visão de diferentes
autores. Contudo, observando mais atentamente nossas fontes
de pesquisa, ao serem noticiados os eventos festivos ocorridos
no período estadonovista, nos deparamos constantemente com
a utilização do termo comemoração no lugar de festa. Nesse
sentido, indagamos: Quais os distanciamentos e aproximações
existentes entre os conceitos de festa e comemoração? Sem ter
respondido ainda a essa questão, outras se fazem pertinentes, a
saber: Afinal, o que significa comemorar? Que propósitos levam
os homens a esse ritual? Por que se comemora?
O fato de passarmos uma vida inteira celebrando datas
que consideramos importantes nos leva a crer que as comemo-
rações estão ligadas ao ato de rememorar. Aprendemos que,
no decorrer da nossa existência, somos capazes de lembrar,
rememorar, comemorar e, é claro, esquecer. Temos o costume
258
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
de festejar as datas de nascimento, isto é, os aniversários. Esses,
assim como outros, são acontecimentos que não desejamos
esquecer e, de certa forma, “[...] a comemoração pretende
exorcizar o esquecimento” (OLIVEIRA, 1989, p. 173). O ato festivo
surge, então, como uma forma de mantermos vivos os episódios
que desejamos “arquivar” em nossa memória.
Nesse processo de “exorcização” do esquecimento,
estamos, na maioria das vezes, acompanhados de indivíduos
que, de certa forma, também buscam rememorar o passado.
Nessas circunstâncias,
[...] comemorar significa reviver de forma coletiva a
memória de um acontecimento considerado como ato
fundador, a sacralização dos grandes valores e ideais de
uma comunidade constituindo-se no objetivo principal
(SILVA, 2002, p. 432).
Nas festas escolares do Estado Novo, rememorar signifi-
cava exaltar o sentimento de nostalgia de momentos políticos
já ocorridos. Naquelas ocasiões de euforia, as festas se faziam
grandiosas. A sociedade deveria prestar as solenes homenagens
aos “grandes homens”, aos “grandes feitos”, com a intenção de que
aquela História nacional tão projetada fosse adotada por todos. No
caso específico das comemorações ao dia 21 de setembro, tema do
presente estudo, os vultos heroicos cediam lugar à árvore, que “[...]
acionada como mecanismo simbólico nessas solenidades, passou
a representar o ‘lugar de memória’, a recordação do passado às
gerações vindouras, o símbolo de regeneração [...]” (CÂNDIDO, 2012,
p. 233). Ainda segundo essa autora:
259
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
A árvore, assim como a bandeira, pretendiam a
formação do cidadão por meio de percepções sensíveis,
ao mesmo tempo em que simbolizavam a república e
o seu ideal de liberdade de escolha nos destinos das
nações. Sendo assim, o culto da árvore poderia ser
entendido como uma prática simbólica, chamada para
a socialização política dos cidadãos no modelo político
republicano (CÂNDIDO, 2012, p. 233).
Assim, a identidade se fundamenta na memória e na
interpretação do passado, quase sempre em função do presente
e do futuro. Nessa perspectiva, o Estado Novo buscou dominar
a memória coletiva, o que compreendemos como uma forma
de adestramento cultural, inventando novas tradições4 ou,
simplesmente, reforçando as já existentes com rituais come-
morativos e, não raras vezes, manifestações festivas. Assim, a
“[...] festa escolar cívica perpetuava uma recordação, separava o
que tinha importância e o que não era relevante para a história/
memória dos alunos e para a fundação de sua identidade social”
(BENCOSTTA, 2006, p. 310). Nesse sentido, referenda-se o que
Martins (2007, p. 18) afirma:
[...] tal qual a memória, a identidade é uma construção
social também sujeita a redefinições no tempo. Ambas
podem ser negociadas e estão expostas a rearrumações,
questionamentos e disputas. No Brasil a memória
nacional e a identidade uniformizadora tiveram seus
artífices na construção de uma história oficial que
preponderou até a primeira metade do Século XX, sem
qualquer brecha para as disputas de memória ou para
a afirmação da diversidade.
4 Para mais informações acerca das festas como invenção de tradições.
Ver: SILVA, (2017).
260
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
Corroborando com as discussões em torno da relação
memória/comemoração, o pesquisador Ribeiro (2009, p. 56)
destaca que a comemoração é um processo ativo e dirigido da
memória coletiva, “[...] partindo do presente, configurando-se
como um poder de integração de sentidos, que é social, de
uma reconstrução de uma identidade do evento, que deve ser
digna de memória”. Esse processo de reconstrução é seletivo e
parte do presente. Assim, “[...] o esquecimento, também como
processo ativo, é constitutivo da comemoração e do seu poder
de integração social de sentidos e de reconstrução da identidade
do evento” (RIBEIRO, 2009, p. 56).
Com ideias e conceitos que foram transformados em
imagens e símbolos incorporados ao imaginário e transmitidos
pelos modos de expressão de uma cultura cívica, essas festivi-
dades tinham como referência básica a comemoração, elemento
de “ordem emocional” de grande consequência na atração dos
escolares (BENCOSTTA, 2006). Assim, há uma mescla entre polí-
tica e cultura, juntamente com ideias, imagens e símbolos, que
nos dão uma impressão de homogeneidade, uma conformidade
de pensamentos e interesses que visavam inculcar noções de
consciência patriótica.
261
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
O Dia da Árvore: Comemorações
escolares e práticas educativas
no período estadonovista
A ÁRVORE
Ama-a: tôda árvore é sagrada-
Ama esta esplêndida morada
De abelhas de ouro e aves gentis!
Busca entender tanta poesia,
E faze côro à sinfonia
Da natureza que a bendiz!
Ama-a, na glória matutina,
Entre os vapores da neblina,
Que tôda a envolve, como véus,
Cheia dos prantos da alvorada,
Ou melancólica, estampada
No ouro e na púrpura dos céus...
E reza, então: “Bendita sejas
Por tuas frondes benfazejas,
Pelos teus cânticos triunfais,
Por tuas flores e perfumes,
Pelos teus pássaros implimes,
Por tuas sombras maternais!” 5
As festividades em comemoração ao Dia da Árvore
também foram comuns durante o Estado Novo. Em suas pala-
vras, Ricardo Gonçalves, autor da poesia citada anteriormente,
5 Poesia escrita por Ricardo Gonçalves e publicada no livro Palestras Cívicas,
de Helena Lopes Abranches (1943).
262
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
apela para os sentimentos de cuidado com a natureza. A árvore
aparece na poesia como símbolo sagrado e a pátria abstrata
passava a ser representada de forma concreta por ela. Essas
solenidades engendraram uma
[...] representação social da natureza ao associarem,
por exemplo, pátria e natureza. O conceito abstrato
de Pátria tornava-se concreto na realização e desen-
volvimento da festa e na participação das crianças e
sociedades nessas (CÂNDIDO, 2007, p. 142).
As comemorações ao Dia da Árvore não tiveram início
no Brasil, mas na França, e estavam associadas à Revolução
Francesa (1789). A festa da árvore foi instituída pelos revolucio-
nários franceses como símbolo da renovação social que o novo
regime político ambicionava instaurar. “A Árvore representava
a perpétua regeneração do mundo social e foi considerada pela
revolução como o símbolo da liberdade” (CÂNDIDO, 2007, p. 133).
Ainda segundo a autora,
[...] o culto da árvore só poderia ser entendido como
uma prática simbólica, chamada para a socialização
política dos cidadãos. A árvore era concebida como
“lugar de memória”, recordação às gerações vindouras,
símbolo de regeneração, representativa da capacidade
de renovação característica da natureza, do mesmo
modo que a república se pretendia apresentar como
regeneradora de uma pátria há muito decadente
(CÂNDIDO, 2007, p. 134).
Esse tipo de comemoração também foi instituído em
Portugal, pelos republicanos, nos últimos anos da monarquia.
263
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
“Várias fontes confirmam o ano de 1907 como pioneiro nas
comemorações da festa da árvore com características republi-
canas” (CÂNDIDO, 2007, p. 133). Esses festejos tinham como foco
a doutrinação política e ideológica, uma vez que se almejava,
através deles, influenciar os cidadãos a aderirem ao espírito de
República. Interessante notar que, além das festas realizadas,
havia a preocupação em dar sentido social à natureza. E, no caso
do Brasil, ao compararmos com as festas realizadas em Portugal,
percebemos que os anseios eram praticamente os mesmos.
Festejada pela primeira vez no início do mês de junho, no
ano de 1902, na cidade de Araras, Estado de São Paulo, a “Festa
das Árvores”, como foi inicialmente denominada, movimentou
essa pequena cidade. Conforme apontam os estudos de Lucio
(2014), foi “festa de dia inteiro” e contou com a presença de muitas
autoridades. Além disso, as notícias sobre esse evento foram valo-
rizadas pelas páginas da Revista de Ensino paulista e anunciadas
como Arbor Day, seguindo influência norte-americana, já que:
Aproximadamente cem anos após a Revolução Francesa,
os EUA encetaram a popularização do plantio de árvore
em cerimônias públicas, iniciada com a política de arbo-
rização do país, em 1872. Na tradição americana, assim
como na francesa e, posteriormente, na brasileira e na
portuguesa, a árvore simbolizava a liberdade que o regime
republicano permitiria instaurar (CÂNDIDO, 2012, p. 235).
Os estudos da pesquisadora apontam, também, que
a influência norte-americana pode ser percebida com mais
similaridades no caso brasileiro, se comparado ao português,
já que analisando esses eventos em Portugal, a autora notou
que são poucas as referências ao Arbor Day nos noticiários da
época. Não obstante, no contexto paulista, alguns comentários
264
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
referentes às festividades em homenagem à natureza apare-
ceram, inclusive, com o título em inglês, como nos Estados
Unidos (CÂNDIDO, 2012).
Ao observarmos o caráter dessas comemorações em
Portugal e São Paulo e compararmos com as realizadas em João
Pessoa, na Paraíba, notamos muitas semelhanças, principal-
mente, o detalhe de se plantar uma muda quando as solenidades
eram encerradas. Referente às comemorações ao Dia da Árvore,
em 1937, o jornal A União destacou a relevância do plantio da
árvore e quais eram os propósitos com esse gesto:
COMMEMORA-SE, HOJE, EM TODO O BRASIL,
“O DIA DA ARVORE”
Em todo o território da Republica é commemorado, hoje,
o Dia da Arvore, com solennidades de grande realce
civico. Neste Estado, a Directoria do Departamento
de Educação determinou, em circulares, a todos os
professores a referida celebração. Assim, em todas as
escolas publicas devem ser feitas palestras acerca do
papel importante que desempenha a arvore na nossa
vida social e economica. Por entre hymnos e canticos
devem ser plantadas pelos alumnos arvores nos pateos
das escolas para, desta maneira, ir-se installando nos
animos infantis o amôr e carinho á grande bemfeitora
de nossa região nordestina. Aos professores, sobretudo,
cumpre socorrer-se deste ensejo para, accentuar o
prejuizo que advém á economia nacional, ás artes e ás
industrias, com a devastação das mattas e das florestas
(A UNIÃO, 21 set. 1937).
O dia 21 de setembro parecia mesmo movimentar a
cidade, era o que evidenciavam as páginas do jornal A União,
que davam realce ao fato das instituições escolares terem
265
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
amanhecido enfeitadas “[...] com caprichosa ornamentação de
flôres naturais” (A UNIÃO, 22 set. 1938). Destacamos, a seguir,
parte da programação elaborada para ser levada a efeito pelo
Grupo Escolar Epitácio Pessoa, no ano de 1938:
Foi o seguinte programa levado a efeito no Grupo Escolar
“Epitacio Pessôa” em comemoração ao “Dia da Arvore”:
O Hino Nacional cantado pelo Orfeão do Grupo; “A Voz
das Arvores”, poesia declamada pela menina Maria Luiza
Costa; “Pequeninos Sômos Nós”, (duas vozes) pelos alunos
do Jardim da Infancia; “A Velha Arvore”, poesia, declamação
da menina Luizéte Mendonça; “Vem Primavera”, número
de canto pelo Jardim da Infancia; “O Jambeiro”, versos
declamados pela menina Noris Miranda; “O Sol”, canção
interpretada pelos alunos de Jardim da Infancia (A
UNIÃO, 22 set. 1938, grifo nosso).
No programa, constavam a participação dos estudantes e
um conteúdo voltado para as riquezas naturais. Temas como as
estações do ano e o sol faziam parte dos assuntos selecionados
a serem abordados nas declamações executadas pelos alunos.
Vejamos, com mais cautela, o conteúdo de uma das poesias que
encontramos com frequência nos programas elaborados para
o dia 21 de setembro:
“A velha árvore”
Uma vez um lenhador,
Homem bom, porém severo
D’olhar sombrio e austero,
Cortava com seu machado,
Bela árvore frondosa,
Que se elevava garbosa,
Não mui longe do povoado.
266
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
Passou naquele momento,
Por ali, todo alquebrado,
Um velho já bem cansado,
De viver e trabalhar!
Com seus olhos rasos d’água,
Demonstrando muita mágoa,
Começou ele a falar:
‘Por que cortaes, meu senhor,
Este tronco tão robusto,
Que aqui com tamanho custo,
Plantei com tanto amor?!’
Á sombra amena e querida,
Da ramagem verdejante,
Descansava o viandante,
Pousados nos curvos ramos,
Cantavam os gaturamos,
Da manhã ao despontar.
Perdão pela minha falta,
Respondeu o lenhador;
Avalio a vossa dor
Pelo mal que pratiquei.
No tugúrio em que me abrigo,
Falta o fogo, falta o trigo,
Aos filhos que sempre amei.
( R E V I S TA D E E N S I N O,
dezembro de 1917 apud
CÂNDIDO, 2007, p. 136).
267
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
A poesia em questão expressa a revolta de um senhor, ao
reclamar os cuidados com a velha árvore, plantada por ele há
muitos anos e que, naquele momento, era vorazmente cortada
e se desfazia em pedaços nas mãos de um homem severo. Na
cena narrada, o lenhador, caracterizado como um homem “[...]
de olhar sombrio e austero”, justifica seu ato, na intenção de
explicar que foi um mal necessário, ele precisava de lenha,
porque os filhos necessitavam se alimentar. Notemos que, de
uma forma simples, a intenção era comover a maioria e tentar
inculcar, principalmente nas crianças, que somente por uma
extrema precisão era permitido que se derrubasse uma árvore.
Apesar do seu caráter mais “discreto”, essa também era
uma festa de importância para o período em questão. Além
disso, é possível perceber que não era interessante que se come-
morasse o Dia da Árvore sem que uma muda fosse plantada ao
final das festividades. Mas, para a má sorte dos organizadores
dessa festa, no ano de 1938, “[...] devido ao tempo chuvoso, deixou
de ser executada a parte do programa, que constava do plantio
de uma arvore” (A UNIÃO, 22 set. 1938). Certamente, o clima de
insatisfação tomou conta dos organizadores, afinal, o que dava
significado maior a esse tipo de festa era sua finalização com o
plantio das mudas, o que representava a concretização da Pátria
abstrata, que ganhava vida nos galhos, nas folhas, nas flores e
nos frutos de uma futura bela árvore e, por conseguinte, de um
futuro e “belo país” — a Nação brasileira.
Outro aspecto interessante a ressaltar é que, em deter-
minados momentos, o jornal fazia referência às comemorações
ao Dia da Árvore como festa da primavera. Foi o que aconteceu
nas notícias veiculadas pelo jornal A União, referentes ao ano
de 1940. No dia 20 de setembro, a festa já era anunciada. No dia
21, o jornal novamente dedicou sua primeira página aos relatos
sobre as festividades, conforme destacamos a seguir:
268
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
FESTA DA PRIMAVERA
A concentração escolar de hoje, no parque Solon de
Lucena – Em cada educandário haverá o plantio de uma
arvore e palestras relativas á data.
Por iniciativa do Ministério da Educação, realiza-se
hoje, em todo o País, a “Festa da Primavera”, com
a participação dos estabelecimentos de ensino. Na
Paraíba, o acontecimento será assinalado com o maior
brilhantismo, dado o interesse da Secretaria do Interior,
indo ao encontro do elevado propósito do ministro
Gustavo Capanema. Assim é que, todas as providências
fôram tomadas por intermédio do Departamento de
Educação, que organizou um programa de solenidades.
Entre estas, destaca-se a grande concentração escolar,
organizada pela prof. Santinha de Sá, que terá lugar
hoje, ás 8 horas, no parque Solon de Lucêna, nesta
capital. Deverão comparecer todos os estabelecimentos
de ensino, públicos e particulares. As crianças cantarão
a Valsa da Primavera, de Schubert, o Hino ao Sol do
Brasil, de Lucila Vila-Lôbos, sob a direção da professora
Natividade Guedes, da Superintendência de Educação
Artística. Convidados especialmente, comparecerão
o sr. Interventor Federal e outras altas autoridades
estaduais e municipais. Em cada educandário, será
comemorada a “Festa da Primavêra”, com o plantio de
uma árvore e palestras relativas á significação dessas
solenidades (A UNIÃO, 21 set. 1940).
Por fim, no dia 22 de setembro, ganhou destaque como
primeira notícia os resultados alcançados com a programação
da festa, inclusive, com foto dando ênfase ao plantio de uma
muda, no Parque Sólon de Lucena. Aqui, cabe uma observação
importante, pois, diferente da maioria dos anos pesquisados,
em 1940, como é possível observar, essa comemoração saiu do
espaço escolar e tomou as ruas da capital. O impacto de uma
269
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
solenidade que ganhava as avenidas era maior, pois abrangia
não somente o segmento escolar, mas ganhava destaque entre
toda a sociedade, que passava a ter acesso à movimentação e se
tornava, consequentemente, público alvo das falas proferidas
pelas autoridades, que viam nesses momentos excelentes
oportunidades de reforçarem o projeto de nação que se empe-
nhavam em construir.
A seguir, um trecho noticiado no jornal A União, referente
às festas do Grupo Escolar Epitácio Pessoa, no ano de 1938, dá
um demonstrativo dessas participações:
Estiveram presentes á solenidade do “Dia da Arvore”, no
Grupo Escolar “Epitacio Pessôa”, as seguintes pessôas:
Interventor José Mariz, professor José Batista de Mélo,
secretário da Interventoria; dr. Matêus de Oliveira,
diretor do Departamento de Educação e professor
Severino Rocha, secretário do mesmo estabeleci-
mento; professores Alcides de Lacerda Lima e Joaquina
Santiago, respectivamente diretores do Grupo Escolar
“Izabel Maria das Neves” e “Tomás Mindêlo”; diretores
e professoras do Grupo Escolar “Epitacio Pessôa, além
de várias famílias (A UNIÃO, 22 set. 1938).
Percebam que o noticiário procurava demonstrar sempre
o sucesso das festas, as presenças ilustres, mas não deixava de
mencionar a participação das famílias, ou seja, da sociedade
fora da escola, mas que também era um público alvo essencial
em datas solenes. A seguir, na figura 1, estão representados
aspectos da festa em comemoração ao Dia da Árvore, no Parque
Sólon de Lucena, no ano de 1940.
270
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
Figura1- Festa da Primavera - Comemoração ao Dia da Árvore em 1940
Fonte: A UNIÃO, 22 set. 1940.
Através da imagem, podemos observar a aglomeração de
crianças e homens que, certamente, representavam as autori-
dades locais a observarem o plantio da muda, conforme ocorria
ao final de cada festa referente à data. Apesar do desgaste
causado pelo tempo, é possível identificarmos, à esquerda,
crianças uniformizadas, vinculadas às instituições de ensino.
Em pé, também nessa direção, uma mulher que supomos ser
uma das professoras presentes na solenidade. Dois anos depois,
já em 1942, a data seguia sendo celebrada nas instituições
escolares de João Pessoa, sempre com solenes comemorações:
NO GRUPO ESCOLAR “TOMAZ MINDÊLO”- Foi
comemorado solenemente o “Dia da Árvore” nêsse
Estabelecimento de Ensino. A’s 10 horas, reunidos
professores e alunos, teve inicio a festividade que
constou de palestras proferidas pelo Agrônomo
Apolônio Miranda e professora Maria do Morro Veiga,
271
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
sôbre o culto que se deve prestar ás Árvores. Encerrando
a solenidade, foi plantada u’a muda de Páu Brasil (A UNIÃO,
22 set. 1942, grifo nosso).
Palestras eram proferidas, mudas de pau-brasil eram
plantadas e até sorteadas entre a comunidade, uma vez que,
“[...] realizou-se o sorteio entre os presentes da árvore ‘páu
Brasil’” (A UNIÃO, 22 set. 1942). Enfim, “[...] o respeito à flora e
à fauna ligava a infância e a escola à natureza e a valores socio-
culturais considerados representativos de uma boa educação”
(SOUZA, 2009, p. 307). Vejamos, por meio da figura, como foi
comemorado esse dia na Escola de Aplicação6:
6 Com base no Relatório da Diretoria Geral da Instrução Pública de 1910,
encontramos as primeiras informações sobre o que, posteriormente, seria
chamada de “Escola de Aplicação”. Essa instituição recebeu a dupla denomi-
nação de “Escola Prática” ou “Escola Modelo”, assim denominada desde 1896.
Contudo, no ano de 1910, particularmente na Parahyba do Norte, passou a
se chamar “Grupo Escolar Modelo” e a funcionar como um anexo da Escola
Normal, com o objetivo de servir de espaço para o exercício das atividades
pedagógicas dos alunos que estavam se preparando para o Magistério.
A denominação de “Escola de Aplicação” só seria criada em 1935, com a
promulgação do novo Regulamento do Ensino Público, instituído ainda no
governo de Argemiro de Figueiredo, quando se criou o Instituto de Educação
da Paraíba, inaugurado em 1939, cujas dependências físicas compreendiam,
obrigatoriamente, uma Escola Prática, um Curso de Aperfeiçoamento de
professores e um Jardim de Infância. A Escola Prática permaneceu com as
mesmas finalidades da antiga “Escola Modelo” ou “Grupo Modelo”, isto é,
propiciar a prática pedagógica dos futuros professores.
272
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
Figura 2 - Comemoração ao Dia da Árvore (1942)
Fonte: A UNIÃO, 22 set. 1942.
Apesar do desgaste da imagem, é possível notar a atenção
com que todos os presentes observavam o ato do aluno abaixado
(quiçá, um liceano! Uma vez que se trata de um rapaz, e não,
de uma criança) a plantar uma muda de árvore. Ao lado dele,
acreditamos estar uma normalista (por conta do tipo de vesti-
menta) acompanhando o plantio. No segundo plano da foto, do
lado direito, há três pessoas mais maduras observando a reali-
zação do ritual, possivelmente, professores e/ou autoridades
convidados. Ao lado esquerdo, há, também, duas normalistas
ou alunas do Colégio Nossa Senhora das Neves, que estão
sendo “seguradas, guiadas”, por uma mulher mais madura,
possivelmente, a professora. Veja-se que uma das alunas segura
um papel que poderá ser um poema, um discurso, que foi ou
ainda seria proferido. Na parte central da foto encontram-se os
menores, os pequenos alunos que estavam organizados de tal
forma que todos pudessem ver a solenidade.
273
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
Outro detalhe comum nessas comemorações era o fato de
que deveriam começar logo pela manhã. Essa foi a ordem vinda
do Rio de Janeiro e passada para o Departamento de Educação
da Paraíba:
EDUCAÇÃO
DIA DA ÁRVORE
O diretor do Departamento de Educação, tendo em vista
o apêlo do sr. José Mariano Filho, presidente do Consêlho
Florestal Federal no Rio de Janeiro, determina que todos
os estabelecimentos de ensino do Estado promovam
festividades condignas ao 21 de Setembro, Dia da Arvore.
As solenidades devem ter inicio ás 10 horas, constando
as mesmas de conferências ou palestras, hinos e plantio
de árvores. Os estabelecimentos de ensino desta capital
poderão adquirir exemplares de Páu Brasil na Secretaria
da Agricultura (A UNIÃO, 15 set. 1942).
O documento evidencia que essa era uma determinação,
ou seja, todas as instituições escolares deveriam se organizar
com antecedência para que pudessem promover as comemora-
ções com o sucesso que elas mereciam. O horário também era
determinado e deveria ser seguido. Certamente, a intenção era
de que começassem pela manhã, para que se cumprisse toda a
programação, geralmente longa, inclusive o plantio das árvores
pelos alunos e o sorteio de algumas mudas entre os participantes.
Já dizia Olavo Bilac: “Quem planta uma árvore enriquece a terra,
e a mãe piedosa e bôa se rejubila” (A UNIÃO, 21 set. 1945).
O programa proposto era extenso, visava estimular na
infância e nos jovens escolares a proteção e a admiração que
274
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
deveriam ter pela natureza, considerada, inclusive, como uma
das riquezas do país. As poesias eram comuns e tinham o papel
de fomentar em todos os presentes nessas solenidades um
sentimento amigável de amor e de respeito pela mãe-natureza.
Cantavam-se hinos às árvores, adoravam-nas e, mais curioso
ainda, chegavam mesmo a batizá-las, como consta no programa
da Escola de Aplicação no ano de 1942:
I- Hino á Árvore;
II- Plantio da Árvore;
III- Batismo da Árvore;
IV- Amemos á Árvore - trabalho de classe pela aluna
Valdeci Pinto de Carvalho;
V- A Árvore da Serra- poesia- Olgarine Dutra;
VI- Mês de Setembro- Canto Orfeônico (A UNIÃO, 22
set. 1942).
A ênfase dada ao plantio de novas árvores e o respeito à
natureza eram disseminados por todos os lados:
“Como vêdes, a árvore é um tesouro. Plantai-a sempre que
puderdes. E o brasileiro, mais do que qualquer outro povo,
deve celebrar, exaltar o ‘Dia da Árvore’, porque a árvore é a
grande riqueza da nossa Terra” (ABRANCHES, 1943, p. 109).
275
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
Considerações finais
Festejar! Comemorar! Ao compararmos os conceitos, a
festa aparece para nós como algo mais amplo; a comemoração,
ao contrário, parece mexer mais com a emoção do indivíduo,
por isso, era tão importante inculcar na mente da sociedade que
o verdadeiro sentido da comemoração não era apenas festejar
uma data do calendário festivo, mas, sobretudo, comemorar,
celebrar, enfim, tornar solene os momentos que marcaram e
fizeram a história do país. Isso significa que era necessário
festejar para comemorar e, através dessa comemoração, relem-
brar fatos que jamais deveriam cair no esquecimento.
Em se tratando das festas referentes ao dia 21 de setembro,
no período do Estado Novo, observamos que, ao contrário das
grandiosas festividades ao Dia da Pátria, por exemplo, essa era
uma data tratada com mais modéstia, mais como uma come-
moração do que, propriamente, uma grandiosa festa, como era
comum naquele momento, marcado pelos pomposos desfiles
cívicos. Essa era uma celebração que, na maioria das vezes, ficava
restrita ao espaço escolar. Talvez, por isso, ao nos debruçarmos
sobre as fontes pesquisadas, observamos que, referente à data
em questão, os noticiários não davam ênfase ao termo festa, mas,
geralmente, comemoração/solenidade ao Dia da Árvore.
Pomposa ou modesta, o fato é que essa data teve destaque
em diferentes cidades pelo país e, de forma similar, em João
Pessoa, afinal, havia uma relação estabelecida entre o Dia da
Árvore e a questão da formação de uma identidade nacional
única. Assim, essa comemoração demonstrava mais sobre a preo-
cupação do governo com as questões políticas que, propriamente,
ambientais. Portanto, ao campo da educação recaía a responsabi-
lidade por se apropriar dessas datas e torná-las parte das práticas
educativas vigentes naquele momento.
276
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
Referências
A UNIÃO, Paraíba, 21 setembro 1937.
A UNIÃO, Paraíba, 22 setembro 1938.
A UNIÃO, Paraíba, 21 setembro 1940.
A UNIÃO, Paraíba, 22 setembro 1940.
A UNIÃO, Paraíba, 15 setembro 1942.
A UNIÃO, Paraíba, 22 setembro 1942.
ABRANCHES, Helena Lopes. Palestras
cívicas. 2. ed. Rio de Janeiro, 1943.
AMARAL, Rita de Cássia M. P. Festa à brasileira: significados do
festejar, no país que “não é sério”. 1998. 380f. Tese (Doutorado
em Antropologia) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998.
BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na
Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1999.
BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. Desfiles Patrióticos: memória
e cultura cívica dos grupos escolares de Curitiba (1903-1971).
In: VIDAL, Diana Gonçalves (org.). Grupos Escolares: cultura
escolar primária e escolarização da infância no Brasil (1893-
1971). Campinas, Mercado de Letras, 2006. p. 299-321.
277
“AMA-A: TÔDA ÁRVORE É SAGRADA”: COMEMORAÇÕES AO DIA DA ÁRVORE E PRÁTICAS
EDUCATIVAS DURANTE O ESTADO NOVO EM JOÃO PESSOA/PB (1937-1945)
BERGAMASCO, Ceci Mara Spagolla. Festas Comemorativas: a
religiosidade no calendário escolar. Revista Brasileira de
História das Religiões – Anpuh. Maringá, v. 1, n. 3, 2009.
CÂNDIDO, Renata Marcílio. Culturas da escola: as
festas nas escolas públicas paulistas (1890-1930).
2007. 154f. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
CÂNDIDO, Renata Marcílio. A máquina de festejar: seus
usos e configurações nas escolas primárias brasileiras e
portuguesas (1890-1930). 2012. 309p. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma
sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da
vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São
Paulo: Martins Fontes, 1996. (Coleção Tópicos).
DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.
LUCIO, Silvana Tarcila Maria Pettinato. João Pedro
Cardoso e a ação da Comissão Geográfica e Geológica
na apropriação e produção do território paulista,
1905-1931. 2014. 241f. Tese (Doutorado em Arquitetura e
Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
278
VÂNIA CRISTINA DA SILVA
MARTINS, Ismênia de Lima. História e Ensino de História:
memória e identidades sociais. In: MONTEIRO, Ana Maria;
GASPARETTO, Arlette Medeiros; e MAGALHÃES, Marcelo
de Souza. Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas.
Mauad X/Faperj, Rio de Janeiro, 2007. p. 13-21.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. As Festas que a República Manda Guardar.
Revista de Estudos Históricos, v. 2, n. 4, 1989. Disponível
em: http: //www.cpdoc.fgv.br. Acesso em: 5 ago. 2020.
OZOUF, Mona. A Festa: Sob a Revolução Francesa. In: LE GOFF,
Jacques; NORA, Pierre (dir.). História: Novos Objetos. Tradução
de Terezinha Marinho. Rio de Janeiro. F. Alves, 1976.
PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. Da era das cadeiras
isoladas à era dos grupos escolares na Paraíba. Campinas,
SP: Autores Associados, São Paulo: Universidade São
Francisco, 2002. (Coleção Educação Contemporânea).
PRIORE, Mary Del. Festas e utopias no Brasil
colonial. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2000.
RIBEIRO, Genes Duarte. Sacrifício, heroísmo e imortalidade:
a arquitetura da construção da imagem do presidente João
Pessoa. 2009. 151f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa/PB, 2009.
SILVA, Helenice Rodrigues da. Rememoração/
Comemoração: as utilizações sociais da Memória. Revista
Brasileira de História. v. 22, n. 44, p. 425-438, 2002.
279
PARTE 2 - PRÁTICAS EDUCATIVAS,
MEMÓRIAS E ENSINO
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO
ALTERNATIVA METODOLÓGICA
PARA O ENSINO DE HISTÓRIA
NA EDUCAÇÃO BÁSICA1
Aliny Dayany P. de M. Pranto2
Resumo: Lidar com memórias implica, necessariamente,
retomar o que é lembrado, as reminiscências de outros tempos,
os vestígios do passado, mas não somente isso. Abordar as
memórias, sejam elas percebidas enquanto individuais e/ou
coletivas (HALBWACHS, 2017), também possibilita pensar acerca
daquilo que é esquecido, do que é silenciado, e mais que isso,
o motivo de serem silenciadas e esquecidas. Sabendo disso,
discuto neste artigo, possíveis abordagens dessas memórias
no cotidiano das escolas de educação básica, a partir da meto-
dologia da História Oral, promovendo assim a oportunidade de
refletir sobre o que ensinamos e como o fazemos. Além disso,
são apresentadas algumas habilidades a serem desenvolvidas
pelos estudantes a partir do trabalho com narrativas orais. Para
tanto, são trazidos exemplos de propostas compartilhadas desde
1 Texto in memoriam de Mery Medeiros.
2 Professora do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo – DPEC/
CE/UFRN. Doutora em Educação pela UFRN. Mestra e licenciada em História
pela mesma instituição.
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
os anos 1960 na Inglaterra e divulgadas por Paul Thompson
(2002), até experiências mais recentes vividas na província de
Ontário, no Canadá (LLWELLYN, 2016), além de outras desen-
volvidas por mim durante os anos em que atuei como docente
na rede básica de educação.
Palavras-chave: Memórias. Ensino de História.
Sensibilidades.
Introdução
M ery chegou caminhando tranquilamente, cumprimentou
a turma e sentou. Os meninos e meninas o observavam e
cochichavam, eles já sabiam previamente de quem se tratava.
Meu colega, Fernando Wanderley3, professor de Geografia, com
larga experiência em escolas públicas, pediu silêncio e apre-
sentou Mery Medeiros4 à turma. Eles silenciaram e lançaram
3 Fernando Antonio Costa Wanderley é professor do município de
Parnamirim e trabalhou comigo naquele ano de 2014. Foi dele a ideia de
atuarmos juntos, já que ele também assumira algumas turmas na disciplina
de História, para completar sua carga horária. Figura muito experiente na
docência, me ensinou bastante nas ações desenvolvidas naquele período.
4 Mery Medeiros era, na ocasião, presidente da Associação Norte-rio-
grandense de anistiados políticos. No período que antecedeu a Ditadura,
ele esteve envolvido com ações para a organização e funcionamento das
Ligas Camponesas e das Ligas urbanas no estado do Rio Grande do Norte.
Com o golpe, ele passou a ser perseguido, acusado de subversão, entrou para
a clandestinidade e foi preso quatro vezes, ficando recluso em diferentes
prisões e estados. Com a redemocratização, iniciou a luta por reparação
aos danos sofridos não só por ele, mas por todos os demais presos e presas
políticos/as. Fruto dessa luta, nasceu a Associação que encabeçou o envio
de dezenas de processos reparatórios e indenizatórios à justiça. Entre os
anos de 2007 e 2011, estabelecemos contatos recorrentes, pois ele foi um
282
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
olhares curiosos. Se pudéssemos ler suas mentes, creio que
apareceriam inúmeras interrogações dentro daqueles balões
próprios dos gibis. Fernando falou, eu falei. Retomamos o
significado daquele mês. E então, Mery começou, nos trouxe
quase uma hora de narrativa sobre o seu tempo na prisão e na
clandestinidade. Em seguida, eles perguntaram por um período
de tempo semelhante. Entraram no intervalo e fomos tomados
pelos ruídos excessivos do exterior daquela sala de vídeo,
mesmo assim, eles não queriam deixar o ambiente. Estudar
sobre a Ditadura Militar por um bimestre através dos livros era
uma coisa, ouvir quem a viveu, falando com você frente a frente,
era outra coisa bem diferente. Ao final, Ricardo, estudante de
uma das turmas ali presentes, me chamou e disse: “Professora,
hoje eu vi a História viva”.
O relato acima traz o tom da minha primeira experiência
com História Oral em sala de aula. O ano era 2014, ali, eu e meu
colega de profissão tentávamos promover ações para discutir
o Golpe Militar5 de 1964 e seus desdobramentos, frente aos 50
dos principais entrevistados em minhas pesquisas de iniciação científica e
mestrado. Para além da relação estabelecida pela pesquisa, nos tornamos
parceiros em diversas atividades e ele narrou sua trajetória em duas insti-
tuições em que trabalhei. Mery foi mais que um colaborador para minhas
pesquisas e atividade docente, tornou-se mesmo um amigo. Este texto está
dedicado à sua memória.
5 Há autores que intitulam o golpe de civil-militar. Há ainda quem vá
além, como Juremir Machado da Silva (2017), e o intitule de midiático-civil-
-militar. Os argumentos, em linhas gerais, são de que, sem a presença e forte
campanha civil e midiática, o golpe talvez não se delinearia como tal. Apesar
de compreender os argumentos, ainda resisto em mantê-lo como militar,
visto que a “palavra final”, as decisões mais impactantes costumaram estar
fortemente vinculadas às figuras militares. Mesmo com a saída do Presidente
e do vice-presidente em 1964, Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos
Deputados, fica apenas poucos dias no cargo, mas quem de fato governa, edita
o Ato Institucional nº 1 e chama eleições indiretas, é uma junta governativa
283
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
anos que completavam naquela data. Entre as ações, os estu-
dantes fizeram pesquisas bibliográficas, assistiram a filmes, a
exemplo de “Zuzu Angel” (um filme de Sérgio Rezende, 2006),
organizaram debates e o encerramento das ações viria com uma
roda de conversa com o presidente da Associação de Anistiados
Políticos do Rio Grande do Norte, o senhor Mery Medeiros, já
conhecido meu há alguns anos, pois o entrevistei mais de uma
vez para desenvolver pesquisas na graduação e no mestrado.
Apesar de já conhecer Mery, de ter trabalhado a temática
da Ditadura em outros momentos e de lidar com a metodologia
da História Oral desde a graduação, a experiência do trabalho
com a narrativa oral em sala de aula foi completamente distinta.
Ao pensar na ideia, temíamos, eu e Fernando, que não houvesse
concentração de todos, que alguns não se envolvessem, que o
barulho e o calor pudessem trazer incômodos a Mery e aos
próprios estudantes, mas apostamos que o ganho certamente
seria maior, então, decidimos arriscar. No entanto, a reação
da turma e do próprio depoente nos surpreenderam, pelo
grau de envolvimento, pelos olhares trocados, pela inquie-
tação curiosa que foi provocada e pelo interesse crescente em
descobrir mais. Diante daquele cenário, o ruído e o calor, já
não nos pareciam mais tão preocupantes. Foi como expressou
Ângela de Castro Gomes (2020, p. 186) em uma “entre-vista”, um
momento daqueles “[...] era capaz de impactar o decurso de uma
investigação, não tanto por revelar novas informações (algo
então muito desejado), mas por trazer uma nova sensibilidade
[...]”. A sensação que tínhamos era essa, a forma como o relato
chegava aos estudantes parecia ter uma impressão distinta da
militar, o que demonstra que desde o início são eles a ditarem o tom do que
viria a ser a Ditadura Militar no Brasil.
284
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
que ocorria lendo o livro didático, ou assistindo a um filme.
Penso que talvez fosse o peso da autoridade circunscrita à fala
do narrador sobrevivente. As memórias narradas estavam
diante deles, sem intermediários.
Essa experiência foi pautada, quase que integralmente,
pelo que Freinet (1969) chama de tateamento experimental. Eu
e Fernando tínhamos uma ideia, muito mais dele do que minha,
inicialmente, sabíamos que poderia dar certo, mas não imagi-
návamos sua dimensão. E assim, tateando, experienciando,
arriscando, me envolvi no primeiro uso das narrativas orais
em sala de aula. Na ocasião, ainda sem leituras de como fazê-lo
e sem orientações de como poderia sistematizar tais narrativas
em situações de ensino, apenas com a experiência da pesquisa,
me aventurei, nos aventuramos e, de alguma forma, funcionou.
Hoje, passados seis anos da vivência daquele momento,
tendo experimentado outras experiências e conhecendo melhor
as discussões sobre História Oral e ensino de História, percebo
a importância do uso de estratégias e técnicas, próprias dessa
metodologia, em sala de aula. E, diante disso, meu objetivo é
apresentar o trabalho com as memórias utilizando História Oral
enquanto abordagem metodológica possível de ser desenvolvida
para mediar um ensino de História mais vivo, envolvente, preo-
cupado com a formação cidadã e com a justiça social. A História
Oral em sala de aula permite que os vestígios do passado possam
ser retomados pelos/as estudantes, a partir de fontes históricas
que eles/elas próprios/as coletam e tratam, oportunizando o
desenvolvimento de um conjunto de habilidades específicas.
A seguir, apresentarei alguns exemplos de práticas com
uso da História Oral em sala de aula e sinalizarei quais habili-
dades podem ser desenvolvidas e de que forma. Escolhi alguns
exemplos já publicados na literatura, passando por países
285
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
como Inglaterra e Canadá. Mas também trouxe o cenário da
pesquisa nessa área aqui no Brasil, juntamente com algumas
experiências que desenvolvi nos últimos anos, em escolas da
rede pública onde atuei.
Projetos de História Oral na Inglaterra
e no Canadá e a pesquisa no Brasil
Os projetos com História Oral no ensino de História
vêm sendo desenvolvidos desde os anos 1960. As primeiras
experiências com que tive contato na literatura datavam
desse período foram realizadas na Inglaterra e apresentadas
por Thompson (2002). Em seu clássico livro A voz do passado,
história oral, ele apresenta um capítulo específico para discutir
projetos de História Oral promovidos, abordando desde experi-
ências vividas na educação básica até a pós-graduação, mas me
dediquei a trazer aquelas voltadas especificamente às escolas.
Logo de início, já sinaliza como seria trabalhar com
História Oral. Para ele, projetos que utilizam tal metodologia
devem primar pelo protagonismo da criança ou adolescente
envolvido. Não cabe nesse tipo de proposta uma centralização
das atividades na figura do professor/a a ditar tudo que deverá
ser feito. Do contrário, há largo espaço para o diálogo, a troca
de experiências, os acordos e a produção conjunta. Pensando
nisso ele compara as crianças a pequenos arqueólogos e afirma
que: “Como jovens arqueólogos, recebem pás em vez de aulas
[...]” (THOMPSON, 2002, p. 219). Thompson não se colocava
contrário às aulas, mas sim ao seu formato por vezes enfadonho
e pouco motivador. Para ele, a ação das crianças na construção
286
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
da fonte oral era um dos caminhos para assegurar entusiasmo,
envolvimento e o desenvolvimento de habilidades específicas.
Os exemplos que ele utilizou são, em sua maioria, dos
anos 1970, e nos animam a fazer comparações com as distintas
realidades atuais. Certamente algumas dificuldades apresen-
tadas, como o acesso a gravadores em determinadas localidades,
já não existem ou são bem reduzidas hoje, com o advento dos
smartphones. Além disso, cabe ressaltar que as experiências por
ele abordadas ocorreram na Inglaterra e nos Estados Unidos,
portanto, em contextos culturais bem diferentes daqueles
vividos aqui no Brasil, por exemplo. Apesar disso, são válidas
pelo pioneirismo e para nos aguçar a criatividade.
O primeiro caso apresentado por ele foi desenvolvido
no condado de Cambridge e com crianças pequenas, por volta
dos sete anos de idade. O que chama atenção nesse caso é que a
professora conseguiu envolver uma turma bastante heterogênea,
formada por crianças alfabetizadas e outras ainda em processo
de alfabetização. Mesmo assim, elas conseguiram trabalhar
em conjunto e unindo diferentes áreas do conhecimento, como
artes e inglês. As crianças construíram, com o auxílio da profes-
sora, pequenos questionários para aplicarem com seus avós e
narraram os resultados obtidos. A expressão das crianças podia
ser registrada com frases, desenhos e oralmente. Em seguida, foi
promovido um momento com a presença desses avós na escola,
o que, segundo o autor, gerou maior euforia entre os pequenos,
estreitando os laços e retornando à família o resultado das suas
produções. Naquele dia, os alunos puderam apresentar maquetes,
desenhos e textos produzidos a partir daquilo que tinham ouvido
de seus familiares. Além disso, foi elaborado um livro de leitura
feito com trechos das narrativas dos familiares.
287
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Outro exemplo de trabalho com crianças pequenas
ocorreu em Notting Hill. Para essa experiência, foi escolhido
um episódio que envolveu a própria história da escola, pois
durante a II Guerra Mundial ela precisou ser evacuada rapida-
mente e as crianças que lá estavam foram levadas para a zona
rural. Buscando saber mais sobre aquele episódio particular,
os/as estudantes viajaram para Lacock, em Wiltshire, a fim de
entrevistar seus moradores e descobrir qual a sensação que
tiveram, décadas atrás, ao ver aquele grande volume de crianças
desembarcando ali repentinamente, em meio à expansão dos
conflitos provocados pela guerra.
Mas não só crianças pequenas ou com “bom” rendimento
escolar poderiam trabalhar com História Oral. Segundo o autor,
a metodologia está acessível às mais distintas realidades, depen-
dendo de como é conduzida. Thompson (2002) escolheu também
alguns exemplos com crianças de séries maiores e de escolas
chamadas à época “compensatórias”, que, pela abordagem,
pareciam ser espaços para correção de fluxo, com crianças fora
da faixa etária esperada para determinada série. E ele sinalizou
para um envolvimento muito parecido com as demais, embora
faça a ressalva da dificuldade em desenvolver tais projetos caso
não haja ações interdisciplinares e horários flexíveis, já que os
trabalhos com entrevistas de História Oral costumam ser longos
e podem ser enrijecidos se submetidos a horários reduzidos e
pouco maleáveis. Esta talvez seja uma das maiores dificuldades
a se enfrentar ainda hoje, visto que horários enquadrados em
tempos de 50 minutos, por vezes espaçados em uma semana,
não favorecem práticas coletivas e que exigem reflexão. Embora
isso não inviabilize a prática como um todo, é preciso um desdo-
bramento grande do professor/a que o conduz.
288
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
Seguindo com as crianças maiores, o autor apresentou
um projeto desenvolvido em Thurston Upper School, Suffolk,
em que estudantes da sexta série estudaram a história local no
período entre as grandes guerras e descobriram um pouco sobre
o cotidiano da cidade naquele período. Nesse projeto, houve o uso
de diferentes tipos de fontes, a começar pelas de expressão oral.
Em seguida, ele enfatizou o potencial criativo do trabalho
com História Oral, uma vez que abre espaço para a imaginação,
e citou como exemplo o teatro de reminiscências. A partir dessa
técnica, peças de teatro são montadas utilizando o resultado
das memórias coletadas em entrevistas. Após ouvir o que fora
narrado, as crianças são provocadas a criar, a imaginar os
cenários, os hábitos, as condutas das pessoas e reconstruir isso
a partir de sua imaginação, transformando o narrado em outro
gênero, extrapolando os limites do que foi dito e experimentando
impressões sobre outra época. Esse tipo de proposição parte da
expectativa de não somente aprender sobre um período histórico,
mas buscar senti-lo e, de alguma forma, experimentá-lo.
Ainda lidando com crianças maiores, ele citou outro
exemplo, desta vez nos Estados Unidos, em que os trabalhos com
entrevistas de História Oral, fotografias e desenhos resultaram
em uma revista escolar, a Foxfire. Esse material, elaborado por
pequenos grupos e com caráter interdisciplinar, foi transformado
em livros, vendidos por todo país. Mas ele ressalta que o sucesso
de Foxfire só ocorreu porque os estudantes entendiam todas as
partes do processo e atuaram ativamente em seu desenvolvi-
mento, desde o planejamento até a elaboração do produto final.
Após discutir esses vários exemplos, Thompson (2002)
orientou que alguns fatores são cruciais para o sucesso de
projetos com História Oral, destacando a possibilidade de
ter equipamentos disponíveis, a escolha acertada do tema,
289
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
considerando a faixa etária e o interesse dos estudantes, a pers-
pectiva interdisciplinar e a flexibilidade do tempo, conforme já
dito anteriormente. Por fim, Thompson (2002, p. 236) ressaltou
que o processo, o envolvimento e o domínio de cada etapa
do projeto são mais importantes do que o resultado final em
si. Para ele, “[...] o produto final não deve visar a um padrão
técnico que vá além do alcance das crianças”. E seguindo suas
considerações, imaginar seria um dos maiores ganhos ao se
trabalhar com entrevistas, pois permite romper com um ensino
monótono e pouco envolvente.
Trazendo as discussões para um período mais próximo,
temos o crescimento dos trabalhos com projetos de História
Oral. Segundo Kristina Llewellyn (2016), essas experiências
têm sido ampliadas a cada ano, o que pode ser percebido com
o crescimento de projetos desenvolvidos em redes escolares
do Canadá, por exemplo. De acordo com Llewellyn (2016), a
metodologia tem sido, inclusive, incorporada ao currículo
normativo na província de Ontário (Canadá), local em que
reside a pesquisadora. Isso ocorre buscando fazer com que as
crianças lidem, desde pequenas, com diferentes memórias,
individuais e coletivas (HALBWACHS, 2017) aprendam a conviver
com diversas representações identitárias, já que a região possui
imigrantes vindos de vários países, além da diversidade da
própria população nativa.
O uso da chamada Oral History Education no Canadá
também tem o propósito de desenvolver práticas pedagógicas
voltadas à justiça social e à cidadania crítica, como destacam
Llwellyn, Ng-A-Fook e Truongwhite (2016, p. 98), em outra
publicação: “[...] a história oral oferece o potencial para essas
290
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
inovações curriculares e pedagógicas e o compromisso com a
educação voltada para a justiça social”6.
O uso da Oral History também está associado a uma
mudança na forma de pensar o próprio ensino de História, que
sairia de uma perspectiva de reprodução das grandes narrativas
políticas, para a inclusão das histórias locais, das memórias,
para o alargamento das noções de passado e ampliação dos
sujeitos históricos, como é possível ver a seguir:
In turn, oral history enables teachers and students of history
and community to introduce historical evidence from the
underside, shift the historical focus, open new areas of
inquiry, challenge some of our assumptions and judgments of
the past, and bring recognition to substantial groups of people
who have been largely ignored (LLWELLYN; NG-A-FOOK;
TRUONGWHITE ,2016, p. 98).
O uso dessa metodologia em sala de aula também está
associado à ideia de democratização do fazer histórico e de
inclusão das comunidades nessa prática. Sobre isso Llwellyn,
Ng-A-Fook e Truongwhite (2016, p. 102-103) demonstram essa
demanda ao afirmarem que
Students are required to co-construct meaning with community
groups and create spaces for marginalized voices to be
foregrounded through oral history within the histories we
take up both inside and outside of the classroom.
6 “oral history provides the potential for such curricular and pedagogical
innovations and commitment toward social-justice oriented education”.
291
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Dessa maneira, a sala de aula é ampliada, não mais se
restringe às quatro paredes, vai além, alcança a comunidade,
dialoga com ela, a chama a fazer parte da História. A produção
de saberes não se limita aos historiadores profissionais, ao
contrário, os estudantes também o fazem, mediados pelas
memórias narradas, pelos roteiros, pela análise e pelo funda-
mental papel do/a professor/a de História.
A partir do uso da História Oral como proposta metodo-
lógica, a província de Ontário busca deixar de lado as práticas
de memorização pouco significativas e instigar os estudantes
a pensar, refletir, relacionar e tensionar narrativas. O ensino
de História passa, então, por um processo de ressignificação,
abrindo espaço para parcelas da sociedade que sempre estiveram
à margem da História ensinada. Os estudantes saem de uma
atitude passiva para uma perspectiva de autores da História. Não
apenas recebem o que foi feito, como também “[...] doing history”
(LLWELLYN; NG-A-FOOK; TRUONGWHITE, 2016, p. 100).
Essa forma de pensar o ensino de História está coerente
com uma ideia de disciplina escolar que não é mera transpo-
sição didática, mas que é capaz de produzir conhecimentos e
saberes próprios. Diante disso, cabe repensar o que ensinar e
como fazê-lo, já que, seguindo essa lógica de autonomia das
disciplinas escolares:
A seleção dos conteúdos escolares, por conseguinte,
depende essencialmente de finalidades específicas e
assim não decorre apenas dos objetivos das ciências
de referência, mas de um complexo sistema de valores
e de interesses próprios da escola e do papel por ela
desempenhado na sociedade letrada e moderna
(BITTENCOURT, 2011, p. 39).
292
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
No caso de Ontário, a nova proposta de ensino de História
está vinculada não apenas a uma ou outra escola em isolado,
mas à rede de ensino que tem proposto repensar a forma de
ensinar/aprender História da região.
Para além da Inglaterra e do Canadá, o uso da História
Oral vem sendo percebido como tendência no ensino de História
também em outros países. Llewellyn (2016, p. 16) destaca que:
“Essa tendência também está surgindo nos países da Europa,
Ásia, bem como na Austrália, na Nova Zelândia e em muitas
partes da América do Sul”. Ela enfatiza ainda a ocorrência
de um Congresso de História Oral para Estudantes do Ensino
Médio, em Buenos Aires (Argentina). No Brasil, esse crescimento
ainda parece tímido se considerarmos as publicações acadê-
micas que têm discutido propostas de uso das narrativas orais
na educação básica. Muito embora tais práticas possam acon-
tecer sem que haja registros formais, ou trabalhos acadêmicos
divulgando tais ações, uma vez que esta autora, por exemplo, já
desenvolveu algumas iniciativas e pouco as discutiu enquanto
esteve vinculada à rede básica de educação. O que me leva a crer
que essa situação pode atingir também outros/as docentes, já
que nem sempre o ofício do/a professor/a, com sua imensa carga
horária de aulas a serem mediadas, permite que ele/ela publique
suas ações, ou mesmo tenha tempo para sistematizá-las formal-
mente, o que por vezes acaba inviabilizando a perspectiva do
professor/a pesquisador/a. Realidade difícil, que precisa ser
encarada, criticada e transformada, para que tenhamos a
valorização da carreira do magistério e a compreensão social de
que o fazer docente é também um fazer intelectual, não tendo
como separar ambas as coisas.
Mas, buscando conhecer um pouco melhor as produ-
ções na área de Ensino de História utilizando estratégias da
293
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
História Oral, realizei um levantamento de publicações feitas
em alguns importantes espaços de divulgação científica, foram
eles: a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações – BDTD7, o site
de busca de artigos científicos Scielo8 e a Revista Brasileira de
História Oral. Além desses, também buscamos nos anais dos
seguintes eventos: XIV Encontro Nacional de História Oral
(organizado pela Associação Brasileira de História Oral em 2018)
e 30º Simpósio Nacional de História (da Associação Nacional de
Profissionais de História – ANPUH, em 2019). A princípio, pensei
que localizaria inúmeros trabalhos abordando a temática, mas,
para minha surpresa, não foi essa a realidade encontrada, ao
menos nesses referidos espaços.
Na BDTD utilizei seis expressões de busca, todas aspe-
adas. Foram elas: “História Oral e ensino de História”; “História
Oral e escola”; “Ensino de História e História Oral”; “Ensino
de História memórias”; “Ensino de História narrativas orais”
e “Ensino de História depoimentos orais”. Algumas expressões
não trouxeram quaisquer resultados, foram elas: “História Oral
e ensino de História”, “Ensino de História narrativas orais” e
“Ensino de História depoimentos orais”.
Já as demais expressões trouxeram resultados, mas
nem todos voltados especificamente ao uso das fontes orais
no ensino de História. Quando buscamos por “História Oral e
escola” localizamos, por conseguinte sete trabalhos na área de
História da Educação e que lidavam com a categoria memória.
Considerei apenas o título e o resumo dos trabalhos para
7 Disponível em: http://bdtd.ibict.br/vufind/ O acesso para o levantamento
foi realizado entre 21 de junho e 08 de julho de 2020.
8 Disponível em: https://scielo.org/ O acesso também ocorreu entre 21 de
junho e 08 de julho de 2020.
294
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
identificar essas informações iniciais. Ao lançarmos a expressão
“Ensino de História e História Oral”, foi encontrado um trabalho
e este lidava especificamente com a categoria memória e com
práticas voltadas ao ensino de História.
Com a expressão “Ensino de História memórias”,
chegamos ao maior volume de trabalhos de teses e dissertações.
Ao todo, somaram nove produções, mas apenas uma refletia
especificamente sobre o uso das fontes orais no ensino de
História. As demais versavam sobre outros gêneros, capazes
de evocar as memórias em sala de aula. Alguns estavam também
voltados ao patrimônio histórico e a propostas de história local.
Desse modo, de um total de dezessete obras, apenas duas refle-
tiam explicitamente sobre os usos da História Oral no ensino de
História. No site Scielo, procedemos à busca utilizando apenas
uma expressão, foi ela: História Oral e Ensino de História,
sem aspas (quando aspeada, a expressão não gerou nenhum
resultado) e com os seguintes filtros: Brasil, português, ciên-
cias humanas. Com a referida expressão e filtros, alcançamos
cinquenta e quatro trabalhos, publicados entre 2000 e 2020, mas
com crescimento no número de publicações a partir de 2012.
Apesar do considerável volume de publicações resultado
da busca, apenas quatro discutiam especificamente a História
Oral e o Ensino de História, sendo que dois deles são voltados
às memórias de professores e professoras de História. Dentre
os demais trabalhos, dezesseis estão no campo da História da
Educação e trinta e quatro versam sobre temas diversos.
Na Revista Brasileira de História Oral9, a mais prestigiada
fonte de divulgação das discussões em História Oral no Brasil,
realizei a busca por “Ensino de História”, já que todos os
9 Disponível em: http://revista.historiaoral.org.br/ Acesso em: 30 jul. 2020.
295
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
trabalhos ali publicados utilizam História Oral. Foram identi-
ficadas oito produções, dentre as quais apenas duas discutem
as entrevistas de História Oral como alternativa metodológica
às práticas de ensino na Educação Básica.
No site do XIV Encontro Nacional de História Oral, ocor-
rido em 2018, nenhum dos simpósios temáticos trazia em seu
título a expressão Ensino de História. No total, foram vinte e
nove simpósios abordando múltiplas temáticas. Um deles se
propunha a pensar História Oral e Educação Matemática. Outro
explicitava em seu resumo a possibilidade de discutir práticas
de História Oral que versassem sobre a diversidade, conside-
rando produções acadêmicas e escolares. Neste último vimos
alguns trabalhos voltados às práticas escolares, sobretudo nos
anos iniciais do Ensino Fundamental, à formação docente de
professoras dos anos iniciais e de licenciandos do PIBID e um
que refletia sobre o direito à memória e o enfrentamento ao
racismo na rede municipal de educação de Florianópolis.
No 30º Simpósio Nacional de História da ANPUH houve
cento e sessenta e dois simpósios temáticos inscritos, sendo
que alguns não realizados. Dentre todos os inscritos, quatorze
discutiam o ensino de História e nenhum trazia no título a
expressão História Oral. É possível que tenha havido trabalhos
específicos, dentro de algum dos simpósios, que abordassem
a temática, mas ela não foi objeto principal de discussão em
nenhum desses espaços.
Com esse levantamento, ainda inicial e que precisa ser
expandido, foi possível observar que, embora já exista uma
possível utilização das fontes orais como materiais didáticos
em sala de aula há algumas décadas, ainda é preciso ampliar
as reflexões e a divulgação científica dessa prática no Brasil.
296
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
Percebo que além de levar um conjunto de entrevistas
para a sala de aula, ou impulsionar os estudantes a realizarem
as coletas, transcrições e produções audiovisuais, cabe também
pensar sobre como isso é feito, que procedimentos são utilizados
e que resultados estão sendo alcançados. Não basta apenas levar
as fontes e utilizá-las, é preciso ainda provocar a reflexão sobre
a práxis cotidiana e motivar professores e professoras para
que exerçam seus papéis de professores/as pesquisadores/as
(FRANCO, 2017, p. 19).
Sei que muitas vezes são desenvolvidas inúmeras
iniciativas no cotidiano escolar, mas estas, devido às difíceis
condições de trabalho e o ao volume da carga horária de
aula, nem sempre são objeto de análise, ou até o são, mas não
compõem material escrito para publicação. O ideal seria que
os professores e professoras da rede básica tivessem parte da
carga horária disponível para pensar suas ações, para planejar
e avaliar com qualidade e suporte o que fazem em sala de aula.
Por isso, o fazer docente é sempre um fazer político, pois não
é possível desejar que haja pesquisa, análise, reflexão sobre o
cotidiano escolar, se os professores tiverem de 20 a 60 horas/
aula semanais. Nesse formato, o máximo alcançado é a repro-
dução de aulas em série, e quando é possível utilizar diferentes
recursos e fontes, isso raramente se transforma em objeto de
reflexão, muito menos em produção científica publicada.
Mas, afinal, por que insisto tanto na importância de
ensinar História utilizando História Oral? Por que os profes-
sores e professoras de História, diante de cargas de trabalho
tão extensas, ainda deveriam inserir propostas com fontes
orais em sua rotina? Muitos são os argumentos, que vão desde
o maior envolvimento dos estudantes, que imersos em um
mundo com inúmeros estímulos, tendem a se distanciar de
297
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
aulas excessivamente expositivas e pouco participativas, até o
desenvolvimento da reflexão acerca de si mesmos e dos grupos
de que fazem parte. As atividades com entrevistas possibilitam,
ainda, maior autonomia, exercida pelo/a estudante ao compor
práticas de organização, coleta e reflexão de narrativas orais.
Além disso, o trabalho crítico com as fontes orais, fruto de
entrevistas de História Oral, possibilita a democratização das
memórias coletivas e do fazer histórico. Desse modo, ele oportu-
niza ganhos sociais e viabiliza aos professores/as e estudantes a
assunção de seu protagonismo no processo de ensino-aprendi-
zagem e o desenvolvimento de conjuntos de habilidades.
Pensando nos argumentos acima, sistematizei o tópico
seguinte, que demonstra, de forma mais detalhada, as habi-
lidades potencialmente desenvolvidas a partir do uso das
fontes orais em sala de aula. Esse detalhamento foi realizado
considerando como exemplo as experiências que desenvolvi na
rede básica de educação do Rio Grande do Norte/Brasil, entre
os anos de 2018 e 2019.
História Oral e o desenvolvimento
de habilidades específicas a partir
do trabalho com projetos escolares
Além do envolvimento dos estudantes, e por vezes até
engajamento nas discussões, sentido em experiências que
vivenciei usando História Oral, pude observar que essa meto-
dologia possibilita ainda a ampliação e o desenvolvimento de
habilidades específicas. Ajudou-me na sistematização dessa
298
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
percepção inicial, a discussão lançada por Paul Thompson
(2002), quando ele apresenta as habilidades possíveis de serem
desenvolvidas em projetos escolares utilizando História Oral,
quais seriam: habilidades de pesquisa, habilidades linguísticas,
habilidades técnicas e habilidades sociais, às quais acrescento
as habilidades afetivas.
As habilidades de pesquisa dizem respeito ao próprio fazer
do historiador oralista, e em se tratando da sala de aula, são
adaptadas ao trabalho dos estudantes de acordo com a faixa
etária, com a maturidade e com a realidade das turmas e da
própria escola. Uma mesma entrevista recebe tratamento
diferente dependendo, por exemplo, da região em que está
inserida a escola, se urbana ou rural, ou ainda a depender se
os estudantes estão em processo de letramento, ou já estão
concluindo o ensino médio.
Em outros momentos de minha trajetória docente, pude
sistematizar projetos de História Oral com alunos dos anos
finais do Ensino Fundamental e também do Ensino Médio. Aqui
neste trabalho irei me deter em duas experiências específicas,
uma no Ensino Médio e outra com uma turma de 9º ano do
Ensino Fundamental. A escolha foi motivada pela maior siste-
matização que tiveram, bem como um período de execução
maior, o que permite perceber com mais clareza uma sequência
de procedimentos adotados.
Um dos projetos desenvolvidos ocorreu na Escola
Estadual Professor José Mamede, no litoral sul do Rio Grande
do Norte, município de Tibau do Sul, e foi voltado à comunidade
quilombola de Sibaúma, no ano de 2018. O outro abordava a
História das religiões e foi realizado na Escola Estadual Roberto
Krause, no município de Parnamirim, em 2019.
299
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
O primeiro projeto foi motivado pela observação de
algumas atitudes preconceituosas em relação aos estudantes
da comunidade quilombola. Percebi ainda a tentativa de não
identificação, por parte de alguns estudantes, com a localidade.
Diante disso, decidi abordar a temática, que também estava
diretamente relacionada a um dos conteúdos trabalhados na
2ª série do Ensino Médio (o sistema colonial e formação de
quilombos). Além disso, estava intimamente relacionado às
demandas da Lei nº 10.639/03 e à necessidade de democratização
da História e das memórias locais.
O segundo, por sua vez, permitia fazer uma ponte entre
duas disciplinas que eu mediava na ocasião, História e Ensino
Religioso. E foi pensado a partir da ideia de provocar nos estu-
dantes um pensamento mais crítico, promovendo um debate
aberto sobre por que determinadas religiões não tinham tanto
espaço naquela comunidade, ou eram silenciadas. A intenção
era fazê-los perceber a possibilidade e a necessidade de um
convívio pacífico e respeitoso entre aqueles que professam
diferentes credos, ou mesmo nenhum.
Embora com propostas, objetivos e motivações distintos,
os projetos tiveram pontos de aproximação. Em ambos, por
exemplo, foi preciso que antes da coleta das entrevistas, os
estudantes pensassem o que buscariam nelas, o que almejavam
descobrir. E para isso, eles precisavam entender minimamente
a temática a ser discutida e as relações entre elas e a possível
fonte que buscavam construir.
Diante disso, nosso trabalho começava muito antes de ir
a campo. Os adolescentes precisavam entender como construir
um roteiro de entrevista, quem iriam entrevistar, como iriam
gravar, o que fariam para ter direito ao uso da entrevista, como
se colocariam diante do entrevistado e o que produziriam com
300
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
aquele material. Todos esses procedimentos tiveram de ser
pensados, amadurecidos, trocados com a turma e muitas vezes,
no meio do processo, modificados. Por isso, Thompson (2002,
p. 219) afirma que as habilidades de pesquisa permitem que os
estudantes “Aprendam por meio de toda uma série de técnicas
e não só da atividade de entrevistar”.
É necessário planejar, e embora isso pareça uma atividade
simples, nem sempre é. Os estudantes foram percebendo na
prática que era preciso estabelecer prazos, organizar roteiros e
que quanto mais organizada fosse essa prévia, menos problemas
eles teriam. Além disso, notaram, alguns mais, outros menos,
que era preciso lidar também com os imprevistos e, acima de
tudo, respeitar a vontade do entrevistado, que não podia ser
forçado a falar sobre determinado tema, ou expor sua imagem.
Houve casos em que foram gravados apenas áudios, quando
eles/elas esperavam ter a imagem em movimento. Em outras
situações, o entrevistado não seguiu o roteiro e falou livremente
sobre o que queria. E houve ainda aqueles que pediram para
escrever e ler seus relatos. Todas as circunstâncias foram consi-
deradas e eles/elas foram orientados/as a trabalhar com aquilo
que conseguiram e não apenas com o que almejavam obter.
Diante disso, grupos que precisavam ouvir apenas uma
pessoa, pediram para ampliar as entrevistas. Alguns tiveram de
modificar suas hipóteses e quando isso ocorreu, eu os explicava
que isso é próprio do fazer de um/a pesquisador/a, já que não
temos verdades absolutas, pois quando iniciamos uma pesquisa
trazemos apenas um conjunto de impressões, que podem ou não
ser confirmadas em campo.
Em mais de uma ocasião, eles e elas me procuravam
preocupados/as porque a entrevista não tinha seguido como
imaginavam. Essas preocupações permearam vários momentos
301
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
de aula e fora dela também. Mensagens pelo celular, encontros
após as aulas e um maior envolvimento e cuidado foi percebido
em grupos das duas escolas. Além disso, houve um alargamento
da percepção do que era pesquisar.
Outro conjunto de habilidades desenvolvidas nesses
projetos são as linguísticas, necessárias tanto no que diz
respeito à linguagem oral, como também escrita. Isso porque:
Antes das entrevistas, as crianças têm que debater
em conjunto qual a melhor redação das perguntas que
deverão fazer. Quando ouvirem as fitas gravadas, poderão
também criticar o modo como as perguntas foram feitas.
Quando estiverem entrevistando, têm que aprender
a escutar os outros e captar exatamente o que querem
transmitir. Isso exige intensa concentração. Sem se dar
conta, estarão enfrentado os problemas de compreensão
e interpretação que os exercícios do manual de inglês
procura simular (THOMPSON, 2002, p. 219).
Na realidade que vivi aqui no Brasil, os/as estudantes
precisaram: refletir sobre como se dirigir oralmente ao sujeito
entrevistado; escrever um roteiro com questões norteadoras a
serem feitas10; ouvir o que o outro disse; por vezes, transcrever a
narrativa, integralmente ou em partes, e discutir seus possíveis
sentidos, significados e usos. Todos esses procedimentos levam
ao desenvolvimento de habilidades linguísticas e promovem
nos estudantes a reflexão sobre as formas que utilizam para
se expressar cotidianamente e que não costumam ser objeto
de investigação, além de observarem que não podiam usar o
mesmo tipo de linguagem em diferentes situações.
10 Para a revisão: Aqui estava em branco
302
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
Assim, eles/as perceberam por conta própria que a
linguagem dos mais idosos era distinta da que utilizavam no
cotidiano. E ainda que o vocabulário de um padre, por vezes,
parecia “difícil”, ou demasiadamente erudito, fazendo com que
se esforçassem para compreender o que estava sendo dito e até
repetissem perguntas já respondidas antes. Essas diferenças
ocuparam considerável tempo de discussão em sala de aula,
mas em sua maioria só foram percebidas depois da ida a campo.
Durante todo o processo, eu os motivava a falar, a
expressar não somente os resultados, as informações obtidas,
mas também as dificuldades em consegui-las ou a frustração de
não tê-las alcançado. Instigava a fazer emergir suas sensações,
o que sentiam diante de uma população historicamente explo-
rada, ou de uma comunidade que não possuía um determinado
templo religioso e o porquê disso.
A fala, como livre expressão, nem sempre foi facilmente
alcançada. No caso de Tibau do Sul, os estudantes já me
conheciam e confiavam em mim, que já era professora da
escola desde o ano anterior. No caso de Parnamirim, que eu
acabara de chegar, era preciso que se sentissem confortáveis
para se expressar, por isso, eu evitava tecer comentários em
um primeiro momento e suscitava que apenas falassem e expu-
sessem o máximo possível. Fazer falar exige de nós um processo
de encorajamento daqueles que muitas vezes se veem como
incapazes de “pronunciar o mundo”, de falar “corretamente”
(conforme a norma culta) e que por isso silenciam. É preciso
cativar a confiança dos nossos estudantes, e isso só é possível
assumindo uma postura empática e isenta de arrogância,
conforme orienta Paulo Freire:
303
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade.
A pronúncia do mundo, com que os homens o recriam
permanentemente, não pode ser um ato arrogante.
O diálogo, como encontro dos homens para a tarefa
comum de saber agir, se rompe, se seus polos (ou um
deles) perdem a humildade (FREIRE, 2013, p. 111 ).
Para além das habilidades linguísticas, tão caras a um
ensino mais significativo, há ainda as habilidades técnicas, que
são recorrentes na pesquisa com entrevistas de História Oral.
Afinal, é necessário aprender a manusear o celular ou a câmera
fotográfica, a posicionar no melhor ângulo, a buscar obter o
melhor áudio, a realizar edições com auxílio de editores de
vídeo, geralmente baixados no próprio celular. Essas habili-
dades, em minha experiência docente, têm sido as que eles e
elas dominam mais rapidamente, tanto que, por diversas vezes,
me ensinavam como o faziam e descobriam novos caminhos,
diferentes daqueles que eu lhes orientava inicialmente.
No último trabalho que mediei utilizando História
Oral em sala de aula (2019), além de coletar as entrevistas,
os estudantes tinham de transformar trechos delas em um
pequeno vídeo, apresentado como documentário, ou como
parte de um jornal, ou qualquer outro gênero, no formato que
desejassem, desde que a versão final não ultrapassasse três
minutos. Inicialmente, todos aceitaram, mas tão logo o trabalho
iniciou as dificuldades apareceram, sendo que as principais não
foram de ordem técnica (já que eles lidavam muito facilmente
os softwares de edição), mas sim voltadas à própria pesquisa.
Havia dificuldade em selecionar o que seria “digno” de compor o
curta. As dúvidas eram muito recorrentes sobre como recortar
apenas alguns minutos de falas “tão longas” e com “partes tão
importantes”. Isso fazia com que eles e elas tivessem de recorrer
304
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
à gravação várias vezes, e esta também era minha intenção.
Eu queria que precisassem não somente coletar a entrevista,
mas pensar sobre ela, discutir o que era importante naquelas
memórias e por que julgavam sê-lo. Era, de fato, um trabalho um
tanto demorado, bastante reflexivo, objeto de vários impasses,
mas bastante significativo para os envolvidos.
Ao ter de utilizar as entrevistas para produzir um outro
gênero e compor uma nova forma de escrita audiovisual, os/
as estudantes acabavam por recorrer às narrativas várias
vezes, fazendo com que uns enfatizassem uma parte, outros
consideravam outro fragmento. Assim, eles/elas precisavam
pensar juntos/as, fazer e refazer o trabalho algumas vezes, até
chegar a um denominador comum. Percebi que alguns grupos
foram bastante críticos em relação ao resultado final. Tinham
passado tanto tempo envolvidos naquela tessitura que eram
mais críticos que os demais colegas que assistiam à produção
final. Isso porque, todos os vídeos foram compartilhados com a
turma e discutidos, tanto no que diz respeito ao conteúdo, como
também em relação a aspectos técnicos e estéticos.
Nesse momento final de compartilhamento, discussão
e avaliação coletiva dos vídeos, foi preciso um trabalho muito
cuidadoso para que as críticas não fossem direcionadas às
pessoas, mas às produções. Apesar do receio inicial, percebi
que, conforme dito, os maiores críticos foram quase sempre
os próprios autores das produções. Houve momentos em que
alguns grupos resistiam às questões e sugestões, mas isso
não foi a regra. Em geral, os grupos tinham consciência dos
avanços e das limitações de seus vídeos, mesmo assim, motivei
desde o início para que todos apresentassem seus resultados.
E essa escuta do coletivo também foi um momento formativo.
305
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Para além das habilidades de pesquisa, linguísticas e técnicas,
começávamos a adentrar nas chamadas habilidades sociais.
Para Thompson (2002, p. 220), as habilidades sociais dizem
respeito ao desenvolvimento de algumas atitudes por parte das
crianças e adolescentes que lidam com entrevistas, tais como:
“[...] do tato e da paciência, da capacidade de comunicar-se, de
escutar os outros e de fazê-los sentir-se à vontade [...]”. Trata-se
da capacidade de colocar-se à disposição de uma escuta atenta e
respeitosa, mas também da capacidade de expor sua produção
publicamente e aceitar críticas sobre seu fazer, sem sentir-se
ofendido, ou considerando-a do ponto de vista pessoal.
Além disso, para Thompson (2002), a lida com as narra-
tivas orais permite pensar as diferenças, colocar-se no lugar do
outro, perceber que nem todos agem e pensam como você, e que
isso precisa ser respeitado. Essa diferença percebida no outro
possibilita ainda refletir sobre nós mesmos, sobre quem somos
e com que nos identificamos. Sobre as identidades, Guimarães
(2012, p. 245) afirma que elas
[...] são processos dinâmicos. Trata-se, portanto,
de reconhecer o contexto sócio-histórico em que
vivemos, marcado pela pluralidade territorial, étnica,
religiosa, cultural e também por profundas desigual-
dades sociais e econômicas.
As habilidades sociais, então, podem ser ampliadas e
promover outras, que eu considero como habilidades afetivas.
No momento, em que os/as estudantes são postos diante de
temas, intitulados por Verena Alberti (2016) de sensíveis, tais
como: memórias traumáticas do Holocausto, da escravidão no
Brasil ou da Ditadura militar, seus sentimentos são envolvidos
306
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
e eles/elas também são afetados/as. Eles/elas passam a tentar se
colocar no mundo a partir do olhar do outro e a buscar sentir,
através das emoções presentes naqueles relatos. Não se trata
de assumir o lugar do outro, mas de ser capaz de desenvolver
a empatia. Nesses momentos, eles e elas imaginam como foi
viver períodos de exceção e o que significa sobreviver a eles,
mesmo quando tentam lhes roubar até mesmo sua dignidade.
Retomando Llewellyn (2016, p. 25), “A História oral, como
processo comunicativo, humaniza o passado”.
Ao tratar das questões sensíveis, Alberti (2016, p. 40)
defende sua necessidade de não silenciamento. Para ela,
[...] o estudo de questões sensíveis e controversas, por mais
difícil que seja, merece ser enfrentado por nós. E porque
somos professores e professoras, nossa postura não pode
ser a do dono do dono do restaurante ou do humorista.
Tenho ciência de que minha “plateia” não é homogênea,
que alguns podem pensar parecido comigo, mas outros
não, e sei que preciso, porque sou educadora, pensar
em atividades que englobem todos os meus alunos, sem
exceção. Já o humorista, até onde sei, não é responsável
pela parcela da plateia que não ri de sua piada.
Vendo as considerações da professora Alberti, percebo
que também nós professoras e professores, aprendemos quando
desenvolvemos projetos que tocam a sensibilidade. É preciso
considerar que em uma mesma turma há múltiplas vivências e
formas de pensamento, o que pode fazer com que determinada
memória seja recebida de maneiras diversas, afetando também
de mais de um modo. O principal é deixar claro que tudo será
conduzido, discutido e trabalhado seguindo princípios éticos.
Antes de qualquer coisa, cabe refletir sobre o compromisso
307
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
com as pessoas entrevistadas, mesmo que elas pensem, se posi-
cionem ou vivam de maneiras com as quais não concordamos.
A discussão ética é oportunizada nesses projetos e leva os
estudantes ao exercício democrático do respeito à diversidade,
do diálogo e convivência pacífica com a discordância. E estes,
a meu ver, são aprendizados mais amplos, necessários não
somente a uma boa condução das aulas de História, mas à vida
em uma sociedade democrática. Nesse ponto as habilidades
sociais e afetivas caminham lado a lado no exercício do sensível,
sustentado em valores éticos.
E uma possibilidade de desenvolvimento dessas habili-
dades passa pela História Oral, não com o sentido de dar voz
aos sujeitos, mas de amplificá-las, como sinaliza Portelli (2016),
e torná-las audíveis aos nossos estudantes, promovendo, assim,
a reflexão, a crítica e a sensibilização para questões éticas,
humanitárias e de justiça social.
Considerações finais
Realizar projetos de História Oral em turmas da educação
básica permite que afetos sejam trocados, que os estudantes
aprendam a observar e ser observados, a ouvir e ser ouvidos,
considerando esse movimento como via de mão dupla, conforme
Portelli (2016) orienta. Ao final, para além dos conteúdos
conceituais próprios da História, eles, elas e nós, professoras
e professores, poderemos aprender um pouco mais sobre
considerar o outro em seu lugar de fala, em suas opiniões, seus
sentimentos, seus posicionamentos. E assim, podemos ajudar
a consolidar práticas mais democráticas e horizontais, não só
308
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
no ensino de História, mas em nossas escolas e sociedade de
um modo geral.
Desse modo, o trabalho com projetos de História Oral e
com as memórias dos sujeitos, tomadas enquanto individuais
e coletivas, oportuniza o desenvolvimento de um conjunto de
habilidades importantes ao ensino de História, quais sejam:
habilidades de pesquisa, linguísticas, técnicas, sociais e afetivas.
A professora e o professor assumem nesses trabalhos o papel
de moderadores, ou mediadores, eles orientam, explicam, sina-
lizam possíveis direções, mas são os estudantes que realizam
as ações, que escolhem quem ouvir, o que perguntar, o que
selecionar em suas falas. Isso lhes assegura maior autonomia,
mas não reduz os conflitos e os questionamentos, do contrário,
talvez mesmo os amplie, porque alarga a margem para o diálogo,
a interação e a troca de experiências.
Muitos estudantes, já acostumados com a passividade,
por vezes, presente nos ambientes de aprendizagem, se negam a
realizar tais iniciativas, alegam que não sabem, que é difícil, que
dá trabalho. Estes precisarão de uma atenção maior, a fim de
serem envolvidos/as. Eles e elas podem ser convidados/as a dar
suporte em um grupo que esteja mais envolvido, por exemplo,
ou mesmo ficar responsáveis por etapas específicas do projeto,
como a edição do material, a produção de roteiros, ou outra que
lhes interesse mais. Cabe ao professor/a um olhar particular
para cada um/uma, pois o objetivo é que todos/as participem
das ações, mas possam escolher onde e como melhor se inserem.
Ensinar para a autonomia, sob a égide do que já propunha
Paulo Freire (2006), não é tarefa das mais fáceis ou confortáveis,
mas perceber que eles/elas conseguem amadurecer habilidades
como as apresentadas acima, nos traz a motivação para insistir
em sua necessidade e urgência.
309
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
E para concluir, tomo a liberdade de dedicar este texto
à memória de Mery Medeiros, de quem comecei falando na
abertura do trabalho. Quando da escrita deste material, já
finalizando-o, soube da partida de Mery para habitar outras
moradas. Ele deixou este plano, se encantou, me marcou com
uma profunda saudade, mas também com muitas memórias
narradas gentilmente a quem quisesse ouvir. Que bom poder
tê-lo ouvido e registrado sua narrativa. Seu corpo parte, suas
ideias permanecem vivas. E eu manifesto aqui o desejo de que
outras memórias possam ser eternizadas em entrevistas de
História Oral, utilizadas em nossas salas de aula, sejam elas
universitárias, ou na educação básica, a fim de que promovam
um ensino de História pautado na reflexão, no questionamento,
no debate, no respeito mútuo e na sensibilidade.
310
ALINY DAYANY P. DE M. PRANTO
Referências
ALBERTI, V. Dois temas sensíveis no ensino de história
e as possibilidades da história oral: a questão racial e a
ditadura no Brasil. In: RODEGHERO, C. S.; GRINBERG, L.;
FROTSCHER, M. (org.). História oral e práticas educacionais.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. p. 35-60.
BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de história:
fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2011.
FRANCO, M. A. S. Professor-pesquisador: utopia ou necessidade
político-pedagógica? In: AZEVEDO, C. (org.). Docência em
história: experiências de estágio supervisionado e formação
do professor-pesquisador. Natal: EDUFRN, 2017. p. 15-26.
FREINET, C. O método natural. Tradução de Franco de
Sousa e Teresa Balté. Lisboa: Estampa, 1969. v. 2.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários
à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
GOMES, A. C. História Oral e memória da ditadura militar:
o papel dos testemunhos. In: ____ (org.). História Oral e
historiografia, questões sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2020.
GUIMARÃES, S. Didática e prática de ensino
de história. Campinas: Papirus, 2012.
311
VER, OUVIR E SENTIR:
A HISTÓRIA ORAL COMO ALTERNATIVA METODOLÓGICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2017.
LLWELLYN, K. R. De volta ao futuro: o poder político da
história oral na educação. In: RODEGHERO, C. S.; GRINBERG, L.;
FROTSCHER, M. (org.). História oral e práticas educacionais.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. p. 15-34.
LLWELLYN; K. NG-A-FOOK; TRUONGWHITE. Telling Tales in
Schools Oral history education, political engagement, and youth.
Our schools, our selves. Ontario, winter, 2016. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/299780441_Oral_History_
Education_Telling_Tales_in_Schools_Oral_History_Education_
Political_Engagement_and_Youth Acesso em: 10 maio 2020.
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte
da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
SILVA, Juremi M. Golpe midiático-civil-
militar. Porto Alegre: Sulina, 2014.
THOMPSON, Paul. A voz do passado, história
oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
312
NOTAS ETNOGRÁFICAS:
CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO
E MEMÓRIAS
Mariana Amalia de Carvalho Castro e Silva1
Carmen da Silva Ferreira2
Resumo: O processo de imaginação é um ato de sensibilidade e
afetação. Esta ação carrega vestígios da memória onde passado
e presente confluem em possibilidades de transformação.
Rememorar, através do resgate das experiências, onde a reflexão
sobre suas ações e posições históricas permitem – não apenas
o resgate ao passado – mas uma análise de outras perspectivas
divergentes de percepções anteriores. As experiências sociais de
sujeitos que mudaram suas trajetórias e impulsionaram aspira-
ções sociais em outros indivíduos através da ação pública, nos
possibilita uma reflexão insurgente. Esse resgate do discurso
é materializado em textos coloquiais, registros artísticos e
através da oralidade. A liderança social Carmen da Silva Ferreira
do movimento de luta pela moradia – Movimento Sem-Teto do
1 Cientista social pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), mestre
em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie e bacharel em Antropologia pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP).
2 Fundadora e liderança do movimento social MSTC – Movimento Sem
Teto do Centro na cidade de São Paulo, conselheira estadual de habitação
da cidade de São Paulo, ativista há mais de vinte anos pelo direito à cidade,
atriz e escritora.
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
Centro (MSTC) da cidade de São Paulo, materializa em seus
discursos um potente exercício de reflexão sobre os processos
de insurgência que atravessam sua biografia de ação política.
Buscamos elaborar reflexões sobre a formação social e política
de Carmen, através da perspectiva da memória e imaginação
como prática da razão. Tomamos como abordagem, entrevistas
reflexivas, onde Carmen é uma aliada da pesquisadora, diluin-
do-se possíveis olhares sobre o pesquisado, um diálogo conjunto
entre duas observadoras do social.
Palavras-chave: Imaginação. Movimento Sem Teto do
Centro. Memória.
Introdução
O s registros históricos sobre as grandes Revoluções e seus
sujeitos figuram estudos, narrativas de ficção e arte,
compondo vasta literatura. Quando pensamos em rupturas
geralmente é ao processo de Revolução que recorremos, porém
mudanças históricas não ocorrem apenas em ações revolucio-
narias onde a derrota de um projeto de sociedade é deposto
em substituição a um novo projeto social. As ações insurgentes
realizadas ao longo dos anos por rebeldes perdem-se, sem
registros oficiais e seu impacto, por vezes, não são mensurados.
Segundo o filósofo anarquista Hakim Bey a curta duração
do levante e sua efemeridade, instigam o contrário da solidez
revolucionária, provocar rachaduras em sistemas políticos conso-
lidados que não permitem um enfrentamento de ruptura, como o
capitalismo neoliberal que presenciamos no século XXI. Para Bey:
314
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
Ao falhar em completar esta trajetória, o levante sugere
a possibilidade de um movimento fora e além da espiral
hegeliana do “progresso”, que secretamente não passa
de um ciclo vicioso. Surgo: levante, revolta. Insurgo:
rebelar-se, levantar-se. Uma ação de independência. Um
adeus a essa miserável paródia da roda kármica, histórica
futilidade revolucionária. O slogan “Revolução!” trans-
formou-se de sinal de alerta em toxina, uma maligna e
pseudo-gnóstica armadilha do destino, um pesadelo no
qual, não importa o quanto lutamos, nunca nos livramos
do maligno ciclo infinito que incuba o Estado, um Estado
após o outro, cada “paraíso” governado por um anjo
ainda mais cruel (BEY, 2018, p. 16).
Ações insurgentes são feitos históricos realizados por
sujeitos desconhecidos: Líderes de pequenos movimentos
sociais, sindicalistas diante de impasses planejando greves e
formas de resistência. Observar a trajetória insurgente destes
sujeitos políticos é analisar um potente diagnóstico da socie-
dade em seu tempo. Em seus discursos e debates a localidade
dialoga com estruturas que compõem o social. Representados
em rostos universalizantes de temas centrais como classe,
gênero e raça.
O historiador Eric Hobsbawm em sua obra Pessoas extra-
ordinárias, resistência, rebelião e jazz (1998), destina sua pesquisa
aos sujeitos invisibilizados pela ausência ou precariedade de
registros históricos, estes não possuem ampla notoriedade:
Este livro é quase inteiramente sobre a espécie de
pessoas cujos nomes são usualmente desconhecidos de
todos exceto de sua família, seus vizinhos e, nos Estados
modernos, as repartições que registram nascimentos,
casamentos e mortes. Ocasionalmente essas pessoas
são conhecidas também pela polícia e por jornalistas
315
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
em busca de uma “história humana”. Em alguns casos,
seus nomes são inteiramente desconhecidos e impos-
síveis de conhecer, como os dos homens e mulheres
que mudaram o mundo com o cultivo de safras no
recém-descoberto Novo Mundo, importadas através da
Europa e África. Alguns desempenharam um papel em
pequenas ou regionais, cenas públicas: a rua, a aldeia,
a capela, a seção do sindicato, o conselho municipal.
Na era dos modernos media, a música e o esporte confe-
riram notoriedade pessoal a uns poucos deles que, em
épocas anteriores, teriam permanecido anônimos.
Minha questão diz respeito antes, a que, coletivamente,
se não como indivíduos, esses homens e mulheres são os
principais atores da história. O que realizam e pensam
faz a diferença. Pode mudar, e mudou, a cultura e o
perfil da história, e mais do que nunca no século XX.
Essa é a razão por que dei o título a um livro sobre essas
pessoas tradicionalmente conhecidas como “pessoas
comuns”, de Pessoas extraordinárias (HOBSBAWN, 1998,
p. 7-8, grifo do autor).
Os sujeitos que Hobsbawm nomeia como extraordinários,
possuem biografias que rompem com a ordem social a eles
destinados, suas ações de transformação são motivadas pela
necessidade ou desejo de mudança. No ano de 2019 quando
realizava minha pesquisa de mestrado conheci o movimento
social MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) na cidade de São
Paulo, ali me deparei com lideranças sociais em processos de
disputas políticas que construíam formas diversas de existência.
Os movimentos sociais são organizações que se constroem
historicamente, suas especificidades dialogam com as questões
sociais e políticas da sociedade. Esse processo é composto em
uma troca subjetiva: entre sujeito e movimento, movimento
316
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
e sociedade. Portanto estes não são grupos homogêneos com
estratégias engessadas. As reivindicações dos movimentos
sociais têm como diretriz comum a universalização dos direitos
políticos e sociais ou seriam “simplesmente criadores de comu-
nidades auto referenciadas” (GOHN, 2008, p. 14-15).
Estes atuam em grupos e suas ações estabelecem as
estratégias e estruturas de luta política. A pesquisadora de
movimento sociais Maria da Gloria Gohn (2011, p. 335) define as
ações de luta como “ações sociais coletivas de caráter sociopolí-
tico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se
organizar e expressar suas demandas”. Essas ações constituem
um conjunto de práticas que estão além da participação em
Fóruns políticos ou manifestações por reivindicações, elas não
são isoladas e reúnem táticas de ação.
Os movimentos têm como pano de fundo o contexto
histórico. Os processos de mudança histórica influenciam
em suas agendas e as reivindicações provocam mudanças
políticas e sociais, assim os movimentos sociais são fluídos e
estão diretamente ligados as características da sociedade a
que eles pertencem. No Brasil na década de 1980, a ausência
de políticas públicas de planejamento habitacional, principal-
mente nos grandes centros, tornou o direito à moradia uma
questão precária. A ausência de políticas públicas de habitação
ocasionou a formação de organizações para discutir esta
questão, segundo Gohn (2011, p. 342)
ocorreu o surgimento de outras formas de organização
popular, mais institucionalizadas – como os Fóruns
Nacionais de Luta pela Moradia, pela Reforma Urbana,
o Fórum Nacional de Participação Popular.
317
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
Essas organizações eram de atuação nacional. No âmbito
regional, na cidade de São Paulo nos anos 1990, a especulação
imobiliária e o interesse do mercado pelas áreas centrais da
cidade, resultaram em despejos de centenas de moradores.
O deslocamento da população que vivia em cortiços, impul-
sionou a demanda urgente pelo direito social de habitar. Os
movimentos sociais de luta pela moradia na cidade de São Paulo
e região assim se estabeleciam.
A relação instituída entre os processos históricos e
mudanças dos movimentos, são ampliadas quando analisamos
as reflexões biográficas de suas lideranças e componentes. O
diálogo com a inserção de cada sujeito e sua atuação no movi-
mento revelam processos de formação política e transformação
de trajetórias. As lideranças populares constroem conhecimento
através do empirismo da experiência, porém o registro deste
saber é efêmero. Presentes em pesquisas acadêmicas enquanto
interlocutores, estes sujeitos são os produtores de análises sociais
em contraponto à suas trajetórias política e particular.
Carmen da Silva Ferreira, nascida na cidade de Santo
Estêvão no Estado da Bahia, filha de militar, classe média,
quando jovem estudava em um curso técnico de petroquímica,
chegou a iniciar seu estágio de conclusão, porém se casou aos
dezessete anos e interrompe todas suas atividades escolares e
de trabalho. Por mais de dez anos Carmen é vítima de violência
doméstica. Na Bahia ela relata o machismo que sofre ao tentar
terminar seu casamento, mãe de oito filhos e uma mulher
separada não recebeu apoio de sua família. No ano de 1995,
aos trinta e cinco anos Carmen migra de Salvador para cidade
de São Paulo em busca de uma mudança de vida. Ao chegar na
cidade, logo percebe que as dificuldades seriam as mesmas de
318
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
qualquer cidade brasileira, a precariedade do morar revela para
Carmen mulheres na mesma situação que ela.
Carmen representa muitos rostos presentes nos movi-
mentos sociais brasileiros, seja no movimento de mulheres, no
Movimento Sem Terra em sua luta pela reforma agrária ou nos
movimentos de trabalhadores. Dentro de sua luta cabem todas as
agendas de reivindicações sociais. Entender parte de sua biografia
e seu processo de imaginação e reflexão, revelam o diálogo de
Carmen com o momento histórico que ela pertence, a formação
política que sua entrada na luta pela moradia a proporciona e ao
final como ela se constitui enquanto sujeito político e, como isso
impacta nas ações do movimento que ela compõe.
A princípio Carmen fica em casa de parentes e amigos,
porém em uma situação difícil vai para uma moradia social,
segundo Carmen, na Rua Butantã em Pinheiros, um abrigo
pertencente à Igreja Universal. Carmen passa a integrar um dos
movimentos de luta pela moradia, que desde a década de 1980 eram
formados por diversos braços de organizações, partidos políticos e
grupos com agentes especializados como advogados e urbanistas.
As moradias sociais negociadas com poder público
são usualmente construídas nas periferias onde o acesso à
educação, saúde, trabalho, permanecem distantes mesmo aos
membros dos movimentos que eram inseridos em programas
habitacionais. Essa é uma realidade atual no Brasil, fazendo da
mobilidade urbana uma das questões centrais da gestão pública.
O direito de “morar no centro” faz com que Carmen Silva e
outros integrantes de diversos movimentos e frentes de luta se
unam e, no ano de 2001, é fundado o Movimento Sem Teto Do
Centro. Atualmente o MSTC atua na mobilização e organização
de famílias sem teto na luta pela moradia, somando duas mil
pessoas distribuídas em aproximadamente onze ocupações. A
319
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
maior parte das lideranças do movimento é constituída por
mulheres e Carmen agora é uma das figuras centrais.
O MSTC caminha ao lado da FRENTE DE LUTA POR
MORADIA (FLM) e a CENTRAL DE MOVIMENTOS SOCIAIS
(CMP) e acredita que enquanto houver um trabalhador
sem condições de ter uma casa para viver, a luta contra
a especulação imobiliária deve continuar. Tem como
objetivo ‘melhorar a qualidade de vida, habitação saúde,
lazer e cultura para todos os associados e aqueles que
querem fazer parte do MSTC, defendendo, organizando
e desenvolvendo trabalhos sociais gratuitamente’
(BIENAL DE ARQUITETURA DE CHICAGO, 2019).
O movimento é caracterizado pelo forte envolvimento
com processos artísticos, onde entrevistas, filmes, literatura
são registros da realidade e poiesis traduzidos em linguagem
característica do MSTC. Carmen está presente atuando, tendo
seus discursos registrados e produzindo conhecimento. As
reflexões políticas e sociais dos discursos públicos de Carmen
Silva se apresentam no debate de ideias sendo constituição de
seu saber. Os discursos são resultados do exercício da razão e
da construção da retórica do convencimento, um rememorar,
em diversos momentos estes se apresentam como análises da
conjuntura política e social, não restritos aos espaços formais
ou acadêmicos.
O sociólogo Michel Pialoux, ao pesquisar a classe operária
francesa na década de 1970 estabelece uma parceria intelectual
com operário sindicalista Christian Corouge, este trabalhava
na fábrica da Peugeot, de Sochaux. A elaboração das Crônicas
Peugeot através de entrevistas entre Pialoux e Corouge, resul-
taram na escrita do livro Résistir à la chaîne: dialogue entre um
320
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
ouvrier de Peugeot et um sociologue (2011) lançado em parceria
entre o sociólogo e Corouge.
O trabalho intelectual de Pialoux em parceria com
Corouge, através de entrevistas e discursos livres do sindica-
lista, revelam reflexões da ação entre rupturas históricas e
biográfica que Corouge atravessa. Dialogar com a performance
de lideranças sociais através de entrevistas e falas públicas não
é personalizar ou unificar um grupo ou classe social apenas pela
experiência de um único sujeito, mas admitir que este grupo
pertence a uma classe social onde diferenças interseccionadas
por marcadores raciais, de gênero e sexualidade convergem na
disputa por pautas que envolvem a busca pela equidade social.
Assim, convido Carmen a compor esta reflexão sobre
atuação dos movimentos sociais, sua formação política pela
experiência e produção de saberes que compõe suas narrativas.
Trago registros da escrita de Carmen em seus cordéis: “A terra
prometida” (FERREIRA, 2019), “Cem dias de exilio” e de uma
entrevista que ela me concedeu no dia 13 de junho de 20203.
Nesta reflexão o rememorar de Carmen realiza um exercício
de imaginação e razão, onde ações passadas são reelaboradas,
aqui compomos em conjunto uma análise da atuação das lide-
ranças dos movimentos sociais que se originam da necessidade
e atravessam a insurgência de uma luta política e social ampla.
3 A entrevista de Carmen encontra-se em SILVA, M. Trajetória de luta das
mulheres do MSTC: Construção da imaginação sociológica. 2020. Dissertação
(Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020a.
321
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
A escrita de Carmen:
uma ação intelectual
A escrita é um fazer intelectual que provoca a reflexão.
Para o intelectual, o momento da escrita é um diálogo com
seu coletivo e sua razão. O ato da escrita é o rememorar de
observações e experiências em que a narrativa é permeada da
vivência do sujeito e suas relações, do que se lê, escuta e sente.
A escrita ressignifica nossa compreensão do passado e presente.
Segundo Mills:
Escrever, se nos dedicamos a isso por tempo suficiente,
é evidentemente um conjunto de hábitos e de sensibi-
lidade que moldam quase todas as nossas experiências.
Escrever é, entre outras coisas, sempre uma maneira de
compreender a nós mesmos. Só compreendemos nossos
sentimentos e nossas próprias ideias escrevendo-os
(MILLS, 2009, p. 94, grifo do autor).
A confluência das experiências artísticas, sociais e
políticas que aconteceram no MSTC e em suas Ocupações,
são inscritas nas performances de seus integrantes e afetam
os sujeitos envolvidos. Carmen experienciou a luta política e
atravessou com sensibilidade, atuação e inspiração de processos
subjetivos da arte, como descreve Silva:
O atravessamento da sensibilização artística, que estão
presentes nos espaços das Ocupações Cambridge e Nove
de Julho, são processos sutis da experiência e imagi-
nação que a arte provoca. Estes podem ser percebidos
na tessitura da biografia das mulheres integrantes do
MSTC e nas mudanças que esta sensibilização artís-
tica provoca nas ocupações. Novos atores integram
322
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
atualmente o movimento MSTC, são eles: cineastas,
produtores artísticos, artistas e escritores, estes são
de forma orgânica influenciados e influenciadores no
espaço que ocupam (SILVA, 2020b, p. 15).
Em junho de 2019, Carmen lança seu primeiro cordel A
terra prometida, observamos suas reflexões sobre o coletivo em
contraponto a sua constituição biográfica. No cordel de Carmen
encontramos sua proposta para uma sociedade livre.
O cordel é um gênero literário de origem portuguesa
que chega no Brasil colônia repercutindo principalmente no
estado da Bahia, posteriormente este tipo de produção lite-
rária torna-se típica da região Nordeste. Tem a característica
marcante de ser um longo poema narrado, com rimas e discurso
direto, apresenta críticas políticas ou anedotas regionais,
escrito por sujeitos diversos, uma literatura popular comercia-
lizada em feiras e espaços não tradicionais, este pequeno livreto
usualmente era apresentado pendurado em cordas sendo esta
prática responsável pela etimologia cordel.
O cordel de Carmen tem a característica de discurso
político aliada à sua trajetória em uma composição de reflexão
crítica sobre a sociedade. Lançado em junho de 2019 pela N-1
edições, como parte da Coleção Pandemia, o cordel é composto
por uma conversa de Carmen com o coletivo Aparelhamento4
(@coletivoaparelhamento). Subdividido nos temas: Vida e
colonização, Religião e movimento social, A terra prometida
de um movimento social, Movimento social e governo do Brasil
em 2019, Por uma nova política, Imaginação política, De portas
4 O grupo trabalha com arte e ações contra o golpe de Estado em curso no
Brasil e pela democracia.
323
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
abertas, rede, A luta comum, Luta e existência coletiva e Quem
não luta está morto!
Carmen Silva apresenta elementos que identificamos
anteriormente de sua biografia em um discurso transversal,
onde ela reflete sobre traços da origem brasileira. Esta se reco-
nhece e reivindica sua definição étnica e social, o processo de
miscigenação não retira de Carmen a reflexão de uma única
origem nacional, somos o resultado da colonização. Carmen
questiona o conceito de raça, utilizado no campo simbólico e a
interferência da religião cristã imposta a todos os sujeitos das
colônias portuguesas.
O apagamento histórico das narrativas do povo coloni-
zado é a memória esquecida dos registros oficiais. Se houve luta
e resistência, esta não figura as páginas dos livros de história
brasileira, apenas grandes feitos e rostos de colonizadores
compõe nossa história de mudança de Colônia para República.
Do fim da escravidão à ditadura militar, das Diretas Já ao resta-
belecimento democrático.
Este apagamento histórico é questionado pelo filósofo
Paul Ricoeur. Para Ricoeur a memória impedida ou manipulada
por agentes do poder, tanto em fatos históricos vexatórios como
na versão dos invisibilizados, colocam Estado e elite em debate.
Carmen narra sua origem e a colonização brasileira:
A minha origem vem desde a colonização, quando os
portugueses chegam aqui e eles encontram os índios.
Me trazem os escravos e vêm os europeus junto com
eles. Começa a fundação do Brasil. Uma miscigenação,
que isso é a realidade do Brasil, que passou por alguém
transando com índio, por um índio transando com
negro, e nascendo filhos. Não se tem uma origem pura,
é índio com índio, negro com negro, europeu com
324
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
negro, europeu com índio, e a gente vem dessa mistura.
E obviamente passando por essa mistura, de miscige-
nação de pessoas, e eu não vou dizer raça, que quem
tem raça é bicho! Sou animal, mas não sou ainda esse
tipo de animal. Quando as pessoas se juntam e criam
um relacionamento que nasce outro, obviamente que
quando chegou na minha época, eu já cheguei coloni-
zada (FERREIRA, 2019, p. 4).
Colonizada também pela parte religiosa, que foi esse
o ponto fraco que os portugueses pegaram, pois, um
líder religioso pega nas pessoas pela sua fraqueza. Eu
venho da Bahia, de um estado completamente negro.
Em um estado com a origem do candomblé, herdada
pelos negros que lá foram escravizados, e aí eu entro
no catolicismo. Passo para a minha vida adulta em
uma reflexão, começo a ter o entendimento de todos
aqueles santos que são tradicionais na igreja católica e
abandono aquilo e entro para a religião evangélica, vou
ser evangélica (FERREIRA, 2019, p. 5).
O Brasil teve em sua origem a colonização europeia e a escra-
vidão como marco de sua construção. Durante este processo ocorre
a absorção de culturas diversas e a massificação da cosmologia
indígena oposta à concepção europeia cristã. Povos originários e
africanos foram violentamente escravizados e inseridos em uma
lógica europeia de civilização. Estes grupos não são economica-
mente absorvidos e a diferenciação de raça torna-se um relevante
processo de exclusão, onde segundo o filósofo Achille Mbembe:
Tal poder se define em relação a um campo biológico
– do qual toma o controle e no qual se inscreve. Esse
controle pressupõe a distribuição da espécie humana
em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e
o estabelecimento de uma censura biológica entre uns
e outros (MBEMBE, 2018, p. 17).
325
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
Durante o Brasil colonial entre os séculos XVI e XIX,
africanos foram trazidos e escravizados para constituir força de
trabalho no país, eles sofreram o apagamento cultural de suas
crenças. Carmen durante sua escrita, específica a influência
religiosa cristã em sua origem, sua aproximação com a religião
cristã afasta seu contato com as religiões de matrizes africanas
que constituem sua origem ancestral. Carmen relaciona sua
trajetória à dos povos originários, ela descreve a relação destes
com a religiosidade e a figura do divino.
O fato dos povos originários serem considerados pagãos,
pelos colonizadores espanhóis e portugueses, legitimou a desu-
manização de seus corpos e o uso da violência dos colonizadores.
Carmen revela o desconhecimento da cultura indígena, fato que
abrange o imaginário da maior parte da população brasileira,
a invisibilidade da cultura indígena, surge nas interrogações
feitas por Carmen: “Qual é a cultura de cada povo? Que é que
eles fazem? Os nomes que eles indicam?”.
Como nasci na Bahia, sempre tive também presenta
na minha vida o candomblé, embora eu nunca tenha
levado o candomblé tão avante e conheça os rituais, os
santos. E aí, tem mais dentro de todo o meu contexto:
o que eu aprendi foi que os índios eram pagãos porque
chamavam a lua de Jaci, o sol de Tupã. E na realidade,
esses ensinamentos vêm e, como se fala, é cultura.
Qual é a cultura de cada povo? Que é que eles fazem?
Os nomes que eles indicam?
Eu passo por todo esse período e deixo de lados os
índios, deixo de lado os negros com a fase do candomblé,
e eu venho na colonização da minha família, eu venho
326
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
do catolicismo, vou para o evangélico e abandono tudo
isso que são sabedorias. Hoje, na minha maturidade,
eu tenho a compreensão que na realidade somos povos
que falamos línguas diferentes.
Quem lê o Evangelho, a Bíblia, vê que Deus, lá atrás,
passou por isso também, quando houve o momento
em que os povos todos falavam uma única língua.
(FERREIRA, 2019, p. 6).
Em outra passagem com título de Religião e movimento
social, Carmen reconhece a ressignificação da religião cristã
quando esta se funde ao fazer político, a religião é aliada das lutas
sociais. No Brasil durante o regime militar (1964 - 1985), através
da corrente política cristã da Teologia da Libertação, os laços
entre religião e política são fortalecidos, muitos grupos políticos
e movimentos sociais foram acolhidos pela Igreja Católica.
Carmen se aproxima a história bíblica do povo judeu, que
sai do Egito e vai para o deserto, em busca da terra prometida,
aqui está a analogia para o título do cordel de Carmen: “Terra
Prometida”, ela amarra o que ocorreu com os povos originários,
o apagamento religioso que o povo negro enfrenta ao ser escravi-
zado e tirado do seu continente de origem e a trajetória do povo
judeu que passa pela tentativa de resgatar seu espaço original,
mas que segundo Carmen “Esqueceram da sua origem, ao sair
do Egito em busca da terra prometida” (FERREIRA, 2019, p. 10).
A associação que Carmen realiza com povo judeu, através
do cristianismo, aparece na obra A terra prometida (1988)
do historiador Eugene Genovese, que durante sua pesquisa
observou a inserção da religião cristão na cosmologia do
povo negro no período de escravidão nos Estados Unidos. A
religião cristã, que a princípio poderia ser utilizada como um
327
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
elemento de apagamento da cultura dos negros escravizados, é
ressignificada na identificação com o povo judeu, presente nas
passagens bíblicas, assim a religião constitui uma nova cultura
de resistência na prática de canções musicais que comunicavam
força e luta política.
A terra prometida, segundo Carmen, para o movimento
social é “uma terra da igualdade justa” (FERREIRA, 2019, p.
12). Ela reivindica o cumprimento dos direitos básicos, como
moradia, educação, saúde, às políticas públicas.
A terra prometida de um movimento social é uma terra
da igualdade justa. É um aterra onde se tem direito a uma
moradia, a uma educação, a saúde, a ter direito às políticas
públicas. A terra prometida de um movimento social é as
políticas públicas de igualdade igualitárias. Não é justo
uns terem mais e outros terem menos. Não é justo se negar
a educação, não é justo se negar cultura, não é justo se
negar o direito até mesmo de ir em um templo, não é justo
se negar o direito de ter um teto. Essa é a terra prometida
dos movimentos sociais. Casa um com seu quinhão dessa
terra prometida (FERREIRA, 2019, p. 12).
Para alcançar a terra prometida, Carmen revela a neces-
sidade do diálogo dentro do movimento social, “persistência
e não negar a sua existência” (FERREIRA, 2019, p. 12). Ela diz
que resistir é uma ação diária, e sua tarefa é reexistir, quando
Carmen fala em reexistir, acredito que ela está reivindicando
uma ressignificação da sua ação, ela está em um processo de
consciência em que reconhece sua existência: “para uma mulher
negra nordestina no Brasil, existir já é um ato de resistência”.
No subtítulo Movimento social e governo do Brasil em
2019, Carmen realiza uma crítica ao processo eleitoral das elei-
ções presidenciais no Brasil em 2019: “Mas o que está havendo
328
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
no Brasil hoje é uma separação, é um clamor de ódio. De separar
os indivíduos”. Carmen compreende a sociedade como coletivo,
em que o país é diverso, e cabe ao governo agir em prol de todos
os sujeitos, garantindo seus direitos sociais:
E quando cai, nós é que não podemos cair juntos. Se fala
muito em desobediência civil também. Essa é a forma.
Mas se a gente não sair do contexto do direito e da lei,
quem vai cair não somos nós. Nós já estamos aqui, ó.
Quem se elevou, quem foi elevado à autoridade, não
fomos nós. A autoridade que ele foi elevado é a auto-
ridade sobre todos da nação brasileira, independente
de cor, independente de religião, independente de ser
de classe social, ele foi elevado à autoridade. E quanto
a autoridade não tem sabedoria, é justo que vai, ó, pá!
(FERREIRA, 2019, p. 14).
A questão da vivência coletiva, está presente nos
discursos de Carmen, ela explícita “Eu não gosto muito da
palavra indivíduo, porque se dá no individualismo, mas é
separar os divíduos, é separar as pessoas, nós somos coletivo
[...]” (FERREIRA, 2019, p. 14). O coletivo é a sua forma de existir,
seu pertencimento, análise que ela realiza entre processos
históricos e sua trajetória enquanto sujeito coletivo, conside-
ramos uma prática de imaginação e composição do discurso. Ela
concebe sua origem, que ocorre antes de sua existência física,
uma origem ancestral, sua identidade brasileira. Ao reconhecer
sua posição histórica dentro da luta de classes, Carmen se
recusa a submeter-se à “sociedade do controle”, suas ações
buscam espaços de razão e liberdade.
A luta pela moradia é a reivindicação central no discurso
de Carmen, porém seus argumentos não se unem apenas ao ato
concreto do morar:
329
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
Eu não posso discutir moradia se eu não discutir o que
está em torno de uma boa moradia e que não é simples-
mente apenas uma boa construção, não é concreto,
vigas boas, um bom piso, uma boa pia, um bom móvel,
não é nada disso... O cidadão não pode viver fechado em
um quadrado. Ele precisa de educação, saúde, cultura,
lazer (FERREIRA, 2019, p. 16-17).
Carmen estabelece um projeto político, detalhado na
passagem: De portas abertas, rede, a construção da rede de ação
do MSTC. Todos os passos que já discutimos, convergem em uma
linha do tempo de conduta, onde a soma das ações coletivas
estabelece uma cultura política, traduzida em práticas de luta
do movimento social. A existência coletiva é simbolicamente
definida por Carmen na figura de Jesus Cristo, em que seu
milagre era a partilha, os saberes é o pão que Carmen reivindica
nesta divisão:
Ali um pedaço de pão, dividir pra todo mundo, acon-
teceu. Se acontecesse de chegar num casamento e não
ter vinho, é porque alguém se equivocou e lá estava
o vinho. Ele estava mostrando que é possível. É o
milagre que ele tanto fala, que a Bíblia tanto fala, é
o milagre da coletividade. Quando eu tenho um peixe
e consigo dividir esse peixe para todo mundo comer
um pedacinho, uma espinha que seja, eu estou fazendo
um grande milagre. E ele quis dizer, com isso, que nós,
humanidade, podemos fazer um grande milagre. Se
a gente trabalhar no coletivo, a gente vai produzir
saberes. E quando produzimos saberes, estamos
dizendo que é possível fazer o bem. Não sempre, o mal
também é necessário (FERREIRA, 2019, p. 26-27).
330
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
O convite para ação política vem da frase título: Quem
não luta tá morto. Carmen associa a luta política, a necessidade
da ação na fé:
Essa frase [grito de guerra do MSTC] ela vem do
seguinte... engraçado que sempre se volta à fé. Se você
lê a bíblia, ela tem várias passagens que dizem que a fé
sem a ação é morta. Do que adianta pregar “Deus, Deus,
Deus” se eu não acredito que Deus vai me dar força para
eu levantar e trabalhar? Viver (FERREIRA, 2019, p. 27).
A metáfora de Carmen é da luta pelos direitos no campo
da ação, onde os sujeitos existem e reconhecem os movimentos
históricos, esta traduz suas percepções do fazer político
enquanto ato de movimento, em que o silêncio apaga todas
as possibilidades de transformação. A filósofa Hannah Arendt
reivindica os espaços da discussão coletiva, como o lugar do
reconhecimento da humanidade dos sujeitos:
Pois o mundo não é humano simplesmente por ser feito
por humanos, mas apenas quando se tornou objeto de
discurso. Por mais afetados que sejamos pelas coisas
do mundo, por mais profundamente que possam nos
instigar e estimular, só se tornam humanas para nós
quando podemos discuti-las com nossos companheiros.
(...) Humanizamos o que ocorre no mundo e em nós
mesmos apenas ao falar disso, e no curso da fala apren-
demos a ser humanos (ARENDT, 2003, p. 31).
331
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
Cem dias de exílio
No ano de 2019 Carmen Silva, enfrenta junto com diversos
integrantes dos movimentos sociais de moradia na cidade de
São Paulo um processo de criminalização. Para narrar sobre
sua experiência no cárcere, ela escreve em outubro de 2019, o
cordel Cem dias de exílio (N-1). Nele, ela dialoga com o exílio que
enfrentou em seu processo de desaparecimento social. Dividido
ente os títulos: O chamado, O passado presente, Não existir,
Resistência, Reencontro, A Terra Prometida vista de cima, A
volta e O mundo após cem dias.
Carmen constrói uma narrativa que dialoga com suas
concepções sobre planejamento urbano, fatos históricos, liberdade
e ação política, assim como em A terra prometida, no início do texto,
em que reivindica sua origem, um chamado que tem início com sua
irmã mais velha, esta deve retornar a sua origem quilombola, sua
irmã reside na cidade do Rio de Janeiro, lugar que semanas depois
Carmen receberia a notícia do seu pedido de prisão:
No dia 23 de junho, eu embarco para o Rio de Janeiro
de madrugada, e no dia 24 tenho um compromisso de
trabalho na UFRJ: vou falar com alguns antropólogos
dos Estados Unidos e da própria universidade sobre as
questões da precariedade da moradia. A gente discutia
muito o que estava acontecendo em Jacarepaguá, ou
seja, os milicianos dominando a questão da moradia
(FERREIRA, 2019, p. 6-7).
Durante um evento público na UERJ, Carmen recebe um
telefonema:
332
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
“Vem embora, porque seus filhos estão sendo presos,
encaminhados para o DEIC. Aqui na Ocupa, o DEIC está
aqui”. E aí eu respondo: “Olha, gente, nós sempre tivemos
a perspectiva de transparência. Abre a porta para o DEIC.
Nós já fomos lá depor, então abre a porta”. E a pessoa que
me ligou disse, “mas de qualquer forma, quando você
acabar aí, vem embora” (FERREIRA, 2019, p. 7-8).
Neste momento passa a ser procurada por veículos de
comunicação da imprensa nacional. Os integrantes do MSTC
já estavam em estado de alerta diante da queda do Edifício
Wilton5, como Carmen descreve:
No dia 1° de maio de 2018 eu estava em Curitiba quando
comecei a receber esse monte de telefonemas da grande
mídia. Eles queriam saber o que é que eu tinha a dizer
sobre o desabamento e o incêndio do Wilton Paes de
Almeida. E aí eu respondi: Eu não tenho nada a ver com
isso... eu nem sei o que está acontecendo, eu não estou
em São Paulo e nunca pus os pés ali.
E nós estávamos em um ônibus com outras lideranças
de movimentos, isso em Curitiba, no ano de 2018, e eu
disse para o pessoal: “Gente, está acontecendo uma
fatalidade em São Paulo, é muito sério, eu acho que nós
não podemos cumprir agenda aqui, eu acho que nós
devemos pegar o ônibus e ir embora mais cedo e dar
apoio aos companheiros”.
Nós então ligamos para as lideranças em São Paulo, que
disseram que nós ficássemos ali, que cumpríssemos
5 Na madrugada do dia 1º de maio de 2018, ocorreu um incêndio, seguido
de um desmoronamento no Edifício Wilton Paes de Almeida na região central
de São Paulo.
333
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
nossa agenda e que depois voltássemos. Mas naquele
momento, na caminhada que fazíamos em Curitiba,
eu lembro que eu estava em uma praça, e aí eu chamo
todas as lideranças e os amigos e aí eu digo: “Gente,
vamos prestar atenção porque é óbvio que essa conta do
Wilton Paes vai cair nas nossas costas”. Um ano depois,
foi o que aconteceu (FERREIRA, 2019, p. 9).
E aí, no dia 24 de junho de 2019, começa na minha
vida uma situação pela qual eu nunca pensei que fosse
passar: como foragida, dentro dos meus antecedentes
criminais, como foragida da lei, com pedido de prisão.
Ver meus filhos sendo presos. Também outros filhos
meus que não foram presos ficaram dentro de uma
prisão, um cárcere imaginário: O cárcere psicológico,
que é o pior. Começa o meu exílio, que eu não quero
chamar de exílio. O que eu quero dizer é que começa a
minha visão da Terra Prometida a partir de uma visão
do alto, de cima (FERREIRA, 2019, p. 10-11).
A analogia da liderança social transforma seu pedido de
prisão em um cárcere simbólico, ao desembarcar na cidade de
São Paulo ela permanece cem dias longe de sua casa, até seu
habeas corpus ser concedido. Sua narrativa constrói uma ligação
com as situações de fuga no período do regime ditatorial (1964
-1985) brasileiro. Na clandestinidade, passa a não existir, suas
ações são em busca da invisibilidade, ela perde sua liberdade,
esta que segundo Arendt é o imperativo da luta política:
A liberdade como é mostrada agora, sempre fora um
privilégio de poucos, e isso não apenas no sentido posi-
tivo do conceito, em que unicamente alguns eram aceitos
no domínio público e recebiam os direitos de cidadania,
mas também em seu caráter negativo, em que poucos
eram livres para serem livres (ARENDT, 2018, p. 185).
334
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
No exílio Carmen atravessa momentos de arrependi-
mento onde pensa em se entregar, mas seus companheiros
reivindicam sua luta. O processo que estão passando possui
brechas e as atuações do poder público passam a ser questio-
nadas nos meios de comunicação alternativas. Cresce uma
campanha pela liberdade de seus filhos encarcerados Preta e
Sidney e Ednalva e Angélica lideranças de outro movimento
social implicado no processo. Além dos dilemas da situação,
pesava sobre ela a incriminação de seus filhos:
Nesses cem dias eu passei por várias fases: fases de
anulação do meu ser, uma fase de culpa. E eu via que
as pessoas que estavam me ajudando acreditavam em
mim. Mas eu tinha uma questão de culpa, de achar
que aquilo que me acusavam, se as pessoas estavam
achando que eu era mesmo responsável. E a maior culpa
que eu tinha era quanto aos meus filhos. Eu queria saber
se os meus filhos estavam me culpando pelo que estava
acontecendo. Então, quando eu tive a primeira reunião
com os meus filhos, eles chegaram dizendo: “Não! Você
não tem culpa. Nós temos certeza que nós estamos na
luta e você não vai se entregar, nenhum de nós quer que
você se entregue”. Os advogados, quando voltavam das
visitas à Preta e ao Sidney, só vinham com um único
recado deles: “Não deixem a minha mãe se entregar”
(FERREIRA, 2019, p. 15).
Observando a cidade de cima, percebe o encarceramento
simbólico que a arquitetura urbana revela:
Porque o encarceramento não precisa simplesmente estar
numa cadeia, há o encarceramento também urbano, de
vida, pois as pessoas estão deixando de se tocar, de se
amar, em nome de um Deus falso que é o dinheiro, da
335
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
ganância, do ego. De que adianta as pessoas viverem
entre quatro paredes, por mais luxuosas que sejam, se não
tiverem convívio com outros seres? Esse encastelamento
das pessoas é uma prisão (FERREIRA, 2019, p. 24-25).
Ao final da narrativa, o exercício da liderança social é do
resgate de sua história, quando segunda ela “caiu” e como tudo
se transformou, quais foram as táticas do MSTC neste contexto
de criminalização com ações de fuga à lógica racional. O MSTC
e sua rede de ação, reverteram possíveis aprofundamentos da
violência, que a criminalização dos movimentos sociais de luta
pela moradia na cidade de São Paulo vivenciaram com as prisões
em 2019 e provocaram rachaduras nos espaços da mídia tradi-
cional, através do uso de redes sociais e espaços ocupados nas
redes alternativas de comunicação (Jornalistas Livres, Mídia
Ninja e outros). Uma linguagem artística e política é criada pelo
movimento e seus parceiros, comunicando narrativas em defesa
ao MSTC e suas lideranças.
A gente sai desse limbo, desse vácuo, dessa anulação,
desse coma, com uma certeza: temos que continuar e até
melhorar, ter autocrítica para sermos ainda melhores.
E é preciso furar a bolha. E furar a bolha é ir até onde
estão os necessitados. Isso é amor. Nesse contexto atual,
o movimento que eu coordeno cresceu, e muito. Não se
trata de simplesmente lutar pela moradia, é necessário
agregar todos: investidor, mercado, todas as classes
juntas. Essas prisões nos tornaram mais aguerridos, a
gente conseguiu ver que as pessoas estavam se vendo na
nossa causa. Uma das causas que a gente vai abraçar é a
dos cárceres, daqueles que estão em cárceres privados,
principalmente as mulheres. Então, toda vez que tem
um problema com o MSTC, surge um outro caminho
(FERREIRA, 2019, p. 33-34).
336
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
Em 1959, o sociólogo Charles Wright Mills escreve uma
carta com tema: O que significa ser intelectual? endereçada a seu
amigo imaginário Tovarich seu camarada russo. Na carta, Mills
discute o papel do intelectual diante dos dilemas políticos entre
os norte-americanos e soviéticos no início da Guerra Fria. Seu
breve texto define o que seria um intelectual político:
Não acho que é demais dizer que um intelectual político
é alguém que exige de si formulações claras de posição
política. Ele não pode ser precipitado; quando tem de fazê-
lo, isso o constrange. Ele leva a sério o que experimenta
e o que diz a respeito. Se sua tarefa é formular planos de
ação, é também lutar por uma compreensão metódica da
realidade, pois tal compreensão deve ser obtida para que
a qualidade de seus planos de ação corresponda a seus
padrões autoimpostos (MILLS, 2009, p. 90).
Os intelectuais políticos de Mills eram os que estavam
envolvidos na conjuntura histórica e em partidos políticos,
que disputavam um poder hegemônico. Atualmente existem
novos personagens políticos, estes constroem seus discursos
através da experiência coletiva. Eles escrevem textos, assim
como Carmen Silva, elaboram narrativas que promovem uma
nova cultura política que pode não estar diretamente ligada
aos partidos políticos. Os novos intelectuais políticos estão
presentes na luta social onde buscam seu espaço e o direito de
emergirem enquanto sujeitos de sua causa política.
A luta pela liberdade que observamos nos escritos de
Carmen é uma reivindicação ao acesso de todos os espaços
públicos e o direito ao diálogo igualitário. A liberdade de expressão,
categoria que observamos nos discursos de lideranças sociais,
está ligada ao livre pensamento, este é um requisito primário
337
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
para o exercício da reflexão crítica dos intelectuais políticos.
Segundo Arendt:
A liberdade de expressão significa o direito de falar
e ser ouvido em público, e na medida em que a razão
humana não é falível, tal liberdade permanecerá
um pré-requisito para a liberdade de pensamento.
Liberdade de pensamento sem liberdade de expressão é
ilusão. Ademais, a liberdade de reunião é o pré-requisito
para a liberdade para ação, porque nenhum homem
pode agir sozinho (ARENDT, 2018, p. 200).
As prisões e restrições que os membros dos movimentos
sociais de luta pela moradia enfrentaram, objetivam inviabi-
lizar seus espaços de expressão. Suas narrativas apresentam
discussões intelectuais de projetos de sociedade e reivindicam
o espaço de ação pública.
Formação intelectual: oralidade,
rememorar como prática reflexiva
A escuta da história de vida traz a subjetividade e liberdade
ao narrador em revelar significados das percepções sobre si e o
coletivo, a sociedade e o momento histórico em que sua biografia
social está inscrita. Para a antropóloga Ecléa Bosi (1987) narrar é
um ato sensível que confronta a racionalidade tecnicista.
Por que decaiu a arte de contar histórias? Talvez porque
tenha decaído a arte de trocar experiencias. A expe-
riência que passa de boca em boca e que o mundo da
338
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
técnica desorienta. A Guerra, a Burocracia, a Tecnologia,
desmentem cada dia o bom senso do cidadão: ele se
espanta com sua magia negra, mas cala-se porque lhe
é difícil explicar um Todo racional (BOSI, 1987, p. 42).
Durante a narrativa o sujeito revive a experiência, sensação
que em um universo objetivo é massificada e constantemente
reprimida. As memórias são imaginadas e relembradas não
apenas como fato ocorrido, durante a fala, revivemos emoções,
acrescentamos detalhes que podem não ter ocorrido ao certo,
passado e presente se interpõe como reveladores da imaginação.
Por que chora o narrador em certos momentos da
história de sua vida? Esses momentos não são, com
certeza, aqueles de que esperaríamos lágrimas e
nos desconcertam. O Sr. Ariosto vai contar-nos seus
primeiros anos rondados pela fome quase corporificada
na narrativa, a perda de seus parentes, a ruína. Sendo
uma pessoa gentilíssima, sua narração procura não
abalar o ouvinte em momento algum, mas ele chora
quando nos conta que seu pai sustentava a família como
mestre de caligrafia. Como seria a vida de um mestre de
caligrafia no início do século? (BOSI, 1987, p. 45).
A biografia de Carmen – anterior a sua participação nos
movimentos sociais –, situações precárias que vivenciou, seu
envolvimento no movimento social em busca de moradia, as
transformações que passou junto ao movimento e as propostas
para uma transformação social aliada às táticas do MSTC, são
reflexões chaves dos seus discursos que constroem e sistema-
tizam seu diálogo com o coletivo.
O rememorar relatados em discursos, são compostos
com elementos do presente que descrevem o passado. As
experiências não são tomadas como particulares, mas em um
339
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
movimento entre sujeito e coletivo. Carmen é a narradora da sua
história e do MSTC, das práticas nas Ocupações que ela liderou.
Quais as relações que foram estabelecidas e impactaram em
transformação coletiva?
Assim, a relação dialética entre vivenciar, recordar
e narrar significa, entre outras coisas, que vivencias
pertencentes ao passado não vêm à mente do falante,
no presente da recordação e do relato, tal como foram
vivenciadas, mas apenas no “como”, no modo específico
de sua apresentação, apenas na relação de troca entre
aquilo que vem à mente no presente do relato e aquilo
que foi intencionado ou visado (ROSENTHAL, 2014, p. 219).
Em um estilo de enunciação oral, na entrevista que
realizei com Carmen no dia 13 de junho de 2020, ela rememora
sua chegada na cidade de São Paulo. Sua história de vida é a
mesma de muitos migrantes da região nordeste. Na verdade, de
todos os imigrantes que estão em busca de condições melhores
de existência. Ela relata a formação social e política que atra-
vessa a experiência política adquirida dentro do movimento
social, o novo saber adquirido pelo trabalho é reelaborado e
transformado em conhecimento para o movimento em uma
troca de formação entre esta e o MSTC.
Quando eu cheguei em São Paulo, eu cheguei com um
objetivo claro, alcançar todos os meus objetivos: moradia,
emprego e ao chegar aqui, eu me deparei com uma cidade
totalmente de exclusão, uma cidade da qual eu não tinha
pertencimento. Então eu comecei a participar e conhecer
a cidade e a conviver também, e nessa oportunidade que
eu tive de conhecer a cidade geopoliticamente, dessa
forma eu fui agarrando todas as oportunidades que me
340
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
deram. Minha formação, é formação social, formação
política, procurei conhecer vários órgãos públicos,
conselhos municipais, o que de fato era uma associação
de bairro, porque até então quando eu vim da Bahia, a
associação de bairro era um espaço para distribuição
de cesta básica, fazer assistencialismo. Não, ela é um
instrumento né, justamente de tecnologia social, pra
trazer, é a participação popular até o poder público.
Então tudo isso eu percebi aqui em São Paulo, né! E eu
fui agarrando as oportunidades. Então quando eu entrei
no movimento de moradia, na década de 90, eu procurei
me instruir de todas as formas, saber aonde é que ele
estava, com minhas fontes fui saber onde ele estava. Eu
fui participando de tudo, da vida efetiva de São Paulo,
nos movimentos de moradia e fui compreendendo o
poder público, que as políticas públicas eram direitos
igualitários, mas que o cidadão tem deveres. O Estado
não é meramente assistencialista. Apesar do Estado
ele ter deveres com o cidadão e a gente viver em um
Estado de democracia onde preza a igualdade de todos,
não é assim que funciona na vivência. Então eu agarrei
a oportunidade de ter um endereço para procurar um
trabalho. O trabalho quando eu consegui esse trabalho,
por mais que eu não tivesse experiência em uma área
totalmente diferente do que eu sempre trabalhei. Na
Bahia eu trabalhei numa área administrativa, chegando
aqui eu não tive oportunidade de desenvolver meu
trabalho na área administrativa porque não tiveram
confiança em mim, então fui trabalhar com seguros né!
E aí eu agarrei todas as oportunidades que o trabalho
na empresa me apresentou. Tudo que eu trabalhei, tudo
que eu aprendi na questão profissional, eu tratava de
trazer para o movimento, que era a oportunidade de
desenvolvimento humano e de dizer que todos nós temos
capacidade e que a gente pode melhorar de vida, que não
necessariamente por eu não ter uma moradia, por eu
ser uma mulher preta, eu não poderia usufruir do que a
sociedade possuí (Entrevista concedida em 13 jun. 2020).
341
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
A experiência de transformação não está restrita a esta
ou aos integrantes do MSTC, os sujeitos que circulam os espaços
ocupados pelo movimento, sejam estes físicos ou virtuais,
que experienciam através da arte nos registros dos filmes e
narrativas, são afetados por suas reflexões. Os percursos de
Carmen que observei durante minhas pesquisas, pela cidade
de São Paulo, em que esta ocupava os espaços públicos com
suas reflexões em mesas de debates, palestras sobre planeja-
mento urbano, revela uma trajetória entrelaçada de suas ações
públicas e questões nacionais. As ideias, da liderança social, são
elaboradas e apresentadas de forma que envolvia seus ouvintes
estabelecendo pontos de contato em um convite a reflexão
conjunta. Essa experiência conjunta é descrita por Benjamin:
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte
a que recorreram todos os narradores. E, entre as
narrativas escritas, as melhores são as que menos se
distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros
narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos,
que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura
do narrador só se torna plenamente tangível se temos
presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que
contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como
alguém que vem de longe. Mas também escutamos com
prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem
sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições.
Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos
seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é
exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo
marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos
de vida produziram de certo modo suas respectivas
famílias de narradores (BENJAMIN, 2012, p. 214-215).
342
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
Os discursos públicos constituem saberes que rememo-
rados em uma empírica reflexiva são observações analíticas da
realidade social:
Sempre falei das minhas experiências e vivências
nessas aulas, eu nem sabia que estava dando aulas, para
mim meramente eu estava falando do meu trabalho.
É porque eu participo efetivamente da vida política
da cidade, eu participo de conferências, eu participo
de vários conselhos municipais e discussões públicas
de habitação em conjunto com poder público. Então
nessa minha participação eu tento entender dos vários
processos né, além dos movimentos, das resoluções
e regimentos que o município tem. Por exemplo, eu
não posso dizer que pra conquistar uma moradia o
governo vai construir e vai me dar... Não! Existem vários
programas habitacionais, então, por esse ponto de vista
efetivamente não dá. Como eu vou falar para o povo
a respeito de moradia, é da luta pela moradia e quais
programas habitacionais se eu não estivesse estudando
as várias é, resoluções por exemplo eu tento entender
o que é cooperação urbana, eu tenho que entender o
que é um plano de intervenção urbana, eu tenho que
compreender um plano diretor. Eu na conferência, eu
estou discutindo um plano de estado, né, um plano
maior muito macro, e ter o entendimento que a minha
necessidade não me faz absoluta. A minha necessidade
é a necessidade de todos né! Então as discussões que eu
participo são discussões no qual eu estou adquirindo
o conhecimento participando junto ao poder público,
dos órgãos que são órgãos de lei. [...] Todo brasileiro
tem aptidões né, eu leio muito, esses cordéis são o meu
pensamento das minhas ideias né, e eu tive a oportu-
nidade da N-1 para ter uma sensibilidade de descobrir
que verdadeiramente quem sou eu, que eu falo muita
coisa, eu digo pela vivência, a vivência de ser humano,
a vivência de conviver, então a vivência de olhar o
343
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
que que acontece né, de reconhecer o que tem aí fora,
então eu tive a oportunidade de transcrever os meus
pensamentos (Entrevista concedida 13 jun. 2020).
Nas eleições de 2020 Carmen lançou sua candidatura a
vereadora na cidade de São Paulo. A institucionalização política
de membros de movimentos e coletivos sociais é um fato recor-
rente que revela a busca do reconhecimento do trabalho público
desempenhado por estes sujeitos em espaços negligenciados
pelo Estado. A liderança social enfrentou processos de crimi-
nalização e sua liberdade de ação incide diretamente sobre o
momento político que presenciamos.
O termômetro democrático das manifestações políticas
e de como as ações dos movimentos sociais são recebidos, é
aquecido em conformidade aos governos e a conjuntura histó-
rica da sociedade brasileira. Ao candidatar-se para um cargo
público, tornando-se um sujeito político partidarizado, uma
liderança social é legitimada num jogo dúbio em que a atenção
que recebe pode, por vezes, protegê-lo da ilegalidade simbólica
que a sociedade determina sobre suas ações ou colocar em jogo
sua posição perante a seu grupo político.
Faço parte efetivamente da vida política da cidade.
Tanto na vida política das políticas públicas, que é
onde dialogo com poder público, participando de vários
conselhos, e das campanhas partidárias, né, porque
assim, na lei, todo cidadão tem o direito de se organizar
politicamente, e desde os meus anos de luta, quando eu
me organizei esse movimento eu sempre participei né,
até mesmo levado pela coordenação de vários movi-
mentos, a participar de discussões políticas de plano
de governo. Olha... nós vamos discutir aqui um plano
de governo. Quem será o nosso candidato pelo partido
344
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
tal, e aí, eu fui entrando também na vida da política
partidária, participando. Como eu poderia escolher um
candidato? Alguém? Você vai ter que votar tá?! Você
tem que votar nesse candidato x porque é o melhor
para mim, é o melhor para todos? Não! Eu tenho que
participar também destas discussões partidárias. Então
há 27 anos que eu lido com isso né, inclusive é dentro
de um grupo né, onde o que seria bom politicamente
bom para esse grupo, eu tinha que acatar. E aí agora eu
tenho um plano sim, é um projeto, não é um plano é
um projeto e sou uma pré candidata a vereança de São
Paulo, por quê? O que eu faço já é um trabalho de vere-
ador. Um vereador meramente ele é um gestor público,
ele traça os planos de ação e escuta seu eleitorado.
Então eu tenho um projeto, esse projeto agrega várias
redes, aonde essas redes vão, é a pretensão trabalhar
em prol da melhoria das questões públicas e direitos
sociais. É eu meramente tenho a pretensão de ser uma
representante destes vários setores que eu acompanho
(Entrevista concedida 13 jun. 2020).
O conhecimento produzido pelos movimentos sociais
vem da afetação e vivência, a experiência que Carmen atra-
vessa desde sua chegada em São Paulo, a situação de rua que ela
enfrenta, a formação de base no movimento e sua caminhada
até tornar-se uma liderança política surge na prática, em suas
reflexões e observações de trajetória e insurgência vivida.
345
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
Considerações finais
Imaginar é uma ação com elementos de razão e emoção, é
um processo de percepção do sujeito da relação entre trajetória
e reflexão. A produção oral de Carmen são elaborações sobre
questões de habitação, movimentos sociais, políticas públicas,
mulheres na política e planejamento urbano. A ideia de trabalhar
imaginação e memória em uma reflexão coletiva entre Carmen
e eu, partiu da reflexão de Carmen durante nossa entrevista.
Em minha pesquisa trabalhei com o método da Imaginação socio-
lógica de Mills (1982), para observação das ações de Carmen e do
movimento MSTC principalmente na Ocupação Nove de Julho6.
Assim, quando entrevistei Carmen para discutirmos
novas reflexões, ao final perguntei a ela o que seria a imagi-
nação em sua concepção e ela me respondeu:
Olha nós temos um contexto muito grande que é a imagi-
nação né, a gente vai vendo, vivenciando, mas a gente
tem um imaginário também, é imaginário que poderia
ser, né ou que pode ser. E essa coisa do imaginário, ele
é muito relevante, porque, o que o imaginário pode é
prever e precaver. Então essa questão do imaginário, da
imagem com a memória ela é muito perspicaz e eficaz. A
memória ela tem que ser resgatada porque sem memória
nós não podemos desenvolver o presente ou o futuro, e,
o imaginário também é aquilo que a gente pode prever
ou que a gente pode é aprender com o que foi feito no
passado (Entrevista concedida 13 jun. 2020).
6 O Edifício Nove de Julho fica localizado na Rua Álvaro de Carvalho,
número 427. Pertencente ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o
prédio público foi desocupado em 1976 e foi ocupado algumas vezes pelo
MSTC. Atualmente ele é a Ocupação mais conhecida do MSTC, a Nove de Julho.
346
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
Carmen me apresenta o conceito de imaginação como
resgate da memória para uma ação reflexiva. A memória que
esta reivindica enquanto reflexão para planejamento futuro,
em um jogo social de possíveis ações, incide diretamente com
a definição de Imaginação sociológica de Mills, em que o sujeito
que possuí a imaginação sociológica é capaz de perceber a
si enquanto parte do contexto histórico, seus semelhantes
que compõe a classe social em que está inserido e o diálogo
entre sua biografia e sociedade. Esse exercício possibilita
segundo Mills (1982) uma ação de razão e liberdade dentro
das estruturas sociais.
Exercer razão atravessa o processo de rememorar, onde
ocorre o reconhecimento de elementos passados e presentes
que podem transformar ações futuras, uma reflexão para ação.
Nos movimentos sociais, o fazer político é orgânico, é no debate
coletivo que as experiências dos sujeitos confluem entre si e
estabelecem seus objetivos e planos de ação. Compreender a
trajetória de uma liderança social, é observar uma narrativa
individual e coletiva em conjunto com as mudanças políticas e
sociais no contexto nacional. Os movimentos sociais são grupos
fluídos, assim como a biografia dos sujeitos, as mudanças histó-
ricas impactam em seu conjunto de práticas.
Assim como Pialoux e Corouge, esse diálogo entre pesqui-
sadora e observadora social, não deve traçar um caminho em
que coloque esta como mera interlocutora do trabalho acadê-
mico. O reconhecimento da autoria de seu discurso e parceria
na construção do saber intelectual, é o reposicionamento dos
sujeitos políticos enquanto agentes da história social. É a partir
de suas reflexões e análises que reconheço elementos do campo
simbólico de Carmen e do movimento MSTC.
347
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
O conhecimento presente nos diálogos de Carmen e dos
integrantes do MSTC pertence ao coletivo e aos sujeitos que o
integram, nele está presente elementos e percepções particu-
lares, em contraponto ao conjunto das ações coletivas. A escrita
oral de Carmen Silva são observações sociais, grafias biográ-
ficas, um rememorar de ações passadas e contexto presente,
do que já foi dito de Carmen, em jornais e linguagem artística.
O que Carmen elabora desta confluência é traduzido em seus
cordéis e discursos.
348
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de
Janeiro: Forense universitária, 2009.
ARENDT, Hannah. Ação e a busca da felicidade.
Organização e notas de Heloisa Starling. Tradução de
Virginia Starling. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018.
ARENDT, Hannah. Crises da República. 2.
ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.
ARENDT, Hannah. Sobre a humanidade em tempos sombrios:
reflexões sobre Lessing. Em: Homens em Tempos Sombrios. 2003.
BENJAMIN, Walter. Libro de los pasajes.
Madrid: Ediciones Akal, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaio sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas, v. I).
BEY, Hakim. TAZ: zona autônoma temporária.
1. ed. São Paulo: Veneta, 2018.
BIENAL DE ARQUITETURA DE CHICAGO, 2019. Carla Caffé, Estúdio
9 de Julho +MSTC e O grupo inteiro Org. Disponível em: http://
www.escoladacidade.org/wp/wp-content/uploads/MSTC-Moradia-
Como-Pratica-de-Cidadania-2019.pdf. Acesso em: 25 out. 2019.
349
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos.
2. ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987.
BOSI, Eclea. A pesquisa em memória social.
Psicologia USP, v. 4, n. 1-2, p. 277-284, 1993.
CHICAGO ARCHITECTURE BIENNIAL. 2019. Disponível
em: https://chicagoarchitecture biennial.org/current/
contributors/carmen_silva. Acesso em: 5 jan. 2020.
COROUGE, Christian et PIALOUX, Michel. Résister
à la chaîne. Dialogue entre un ouvrier de
Peugeot et un sociologue. Agone, 2011
ERA O HOTEL CAMBRIDGE. Direção de Eliane
Caffé. São Paulo: VITRINE FILMES,
FERREIRA, Carmen da Silva. A terra prometida (Cordel),
São Paulo, N-1 Edições, 2019. Disponível em: https://n-
1edicoes.org/a-terra-prometida. Acesso em: 5 jan. 2020.
FERREIRA, Carmen da Silva. Cem dias de exílio
(Cordel), São Paulo, N-1 Edições, 2019.
GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que
os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
GOHN, M. Movimentos sociais na contemporaneidade.
2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v16n47/
v16n47a05.pdf. Acesso em 22 de fevereiro de 2020.
350
MARIANA AMALIA DE CARVALHO CASTRO E SILVA / CARMEN DA SILVA FERREIRA
GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da
sociedade civil: movimentos sociais, ONGs e redes
solidárias. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais.
Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.
HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias.
São Paulo: Paz e Terra, 1998.
JORNALISTAS LIVRES, 31 janeiro 2019. Disponível em: https://
jornalistaslivres. org/dona-carmem-da-luta-por-moradia-e-
absolvida-de-acusacao-injusta/. Acesso em: 25 maio 2019.
MBEMBE, Achille. Necropolitica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
MILLS, Charles Wright. A imaginação
sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
MILLS, Charles Wright. Sobre o artesanato intelectual
e outros ensaios. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009.
MONTEIRO, B. (org.). Crónicas Peugeot de Michel Pialoux
e Christian Corouge. Porto: Deriva Editores, 2013.
OLIVEIRA, P. S. Vidas Compartilhadas. Cultura e Relações
Intergeracionais na Vida Cotidiana. 2. ed. São Paulo, Cortez, 2011.
PIALOUX, M.; BEAUD, S. Partir Para O Trabalho De
Campo Em Sochaux Com “Bourdieu Na Cabeça”.
Cadernos CERU, v. 24, n. 2, p. 31-51, 2011.
351
NOTAS ETNOGRÁFICAS: CONHECIMENTO, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIAS
ROSENTHAL, Gabriele. Pesquisa social
interpretativa: uma introdução. Tradução de
Tomás da Costa. Porto Alegre, Edipucrs, 2014.
SILVA, Mariana A. C. C.. Trajetória de luta das mulheres
do MSTC: Construção da imaginação sociológica. 2020.
Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura)
– Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020a.
SILVA, Mariana A. C. C.. Ocupar com Arte: Cinema
no Cambridge e a “Alma de Bronze” de Virginia
Medeiros. Revista Lindes, n. 18, p. 1-16, 2020b.
352
SERTANIA, UMA VEREDA
PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
Walter Pinheiro Barbosa Júnior1
Luan Presley Mendonça Santiago 2
Resumo: O presente artigo é fruto de uma pesquisa de mestrado
gestada no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd),
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Seu
objetivo consiste em refletir sobre Sertania como uma vereda
para construção do objeto de estudo e da consciência de si.
Para tanto, assumimos Sertania como uma concepção teórica,
dado que essa vereda possibilita ao pesquisador pensar para
além do aparente imediato, ao mesmo tempo em que induz
a busca pelo sentido do que se apresenta na interioridade do
mundo-sujeito durante sua jornada-pesquisa. No curso da
pesquisa, dialogamos com Barbosa Júnior (2017), Fanon (1968),
1 Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). Atualmente é professor da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Educação (UFRN/PPGED). E-mail:
[email protected].
2 Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN/PPGED). Atualmente
é professor da rede básica de ensino do munícipio do Natal-RN. E-mail:
[email protected].
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
Freire (2011), Marx e Engels (2000), dentre outros. As memó-
rias carregadas do lugar, da família, da formação acadêmica
e dos sentimentos experienciados na escrita do próprio texto
dissertativo constituíram as principais fontes de informação e
dos dados construídos e trabalhados. Uma das conclusões dos
nossos estudos foi que Sertania, como concepção teórica, ao
trabalhar com a reconstituição das memórias do pesquisador —
evocadas no exercício da pesquisa e da escrita acadêmica — cria
as condições para que ocorra, ao mesmo tempo, a construção do
objeto e um movimento da consciência do sujeito acerca de si
mesmo. Além disso, esse movimento lança luz sobre a conexão
entre a vida do pesquisador e a produção do conhecimento
científico que ele produz.
Palavras-chave: Sertania. Construção do objeto de
estudo. Consciência de si.
Introdução
E ste artigo trata de uma reflexão sobre Sertania como uma
vereda para construção do objeto de estudo e consciência de
si. Essa reflexão toma como referência o processo de construção
de um objeto de estudo vivenciado pelos autores deste artigo
durante a realização de uma pesquisa, em nível de mestrado,
gestada no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Durante o processo formativo e de pesquisa no mestrado,
produzimos juntos, enquanto orientador e orientando, um texto
dissertativo intitulado: “As relações políticas-pedagógicas entre os
354
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
diretores (administrativo e pedagógico) e os conselheiros escolares
da Escola Municipal Chico Santeiro/Natal-RN (2015-2017)”.
Esse trabalho foi realizado no período de 2016 a 2018,
na Linha de Pesquisa “Educação, Política e Práxis Educativas”,
do referido programa. Nesse sentido, escrevemos esse texto a
dois corações e quatro mãos, pois tanto o orientador quanto o
orientando expõem o que vivenciaram, sentiram e construíram
ao logo da produção do texto dissertativo.
Hoje, depois da pesquisa feita, podemos inferir que,
talvez, sem Sertania, não fosse possível compreendermos que
foi essa vereda quem baldeou nossas vidas e tornou possível
emergir um movimento em que, ao construirmos o objeto
de estudo, movimentamos nossas consciências no sentido de
ampliar e aprofundar a consciência da consciência, ou seja, uma
consciência de si. Desse modo, compreendemos que Sertania,
como vereda, provoca a consciência a se mover sobre si mesma,
convidando-nos, em um primeiro momento, a lembrar que
não se pesquisa aquilo que é estranho ao nosso mundo vivido
enquanto pesquisador, ou seja, o que se toma como objeto de
estudo tende a ser, em certa medida, algo que se encontra
pulsando na jornada existencial do próprio pesquisador.
Foi tomando Sertania como vereda para nossa jornada-
-pesquisa, que percebemos o sentido do ato de estudar e de
pesquisar, pois o movimento do conhecimento circunscreve-se
ao limite da pele do pesquisador. A pele de quem pesquisa é
a fronteira entre o saber e o não saber para cada pessoa que
estuda em sua singularidade. Dessa forma, o saber não pulsa
fora do corpo da pessoa que vive no mundo.
Nesse sentido, buscar saber mais é o que caracteriza
e materializa o sentido do ato de pesquisar, uma vez que
entendemos a pesquisa como a atitude de buscar saber mais
355
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
sobre algo. Podemos depreender dessa máxima que o algo que
queremos saber se constitui, ao mesmo tempo, no objeto de
estudo e naquilo que inquieta o corpo de quem quer saber
mais, ou seja, o objeto de estudo seria, em última análise, a
inquietação pulsante que habita o corpo do pesquisador.
Assim, a possibilidade de depreendermos que, no movi-
mento de construção ou de desvelamento do objeto de estudo,
resida o processo em que o pesquisador amplia e aprofunda a
consciência de si mesmo. Conforme os debates e proposições do
Grupo de Pesquisa Sertania e Educação, não há saber fora do
corpo da pessoa que se encontra vivendo no e com o mundo.
Para ampliarmos e aprofundarmos os sentidos que atribuímos a
Sertania, enquanto vereda, para construção do objeto de estudo,
e ampliarmos e aprofundarmos a consciência que o pesquisador
pode ter de si, vamos imergir nos tópicos que se seguem.
No entanto, antes de continuarmos tratando Sertania
como uma vereda, para construção do objeto e consciência
de si, é importante afirmar que não objetivamos estabelecer
regras ou condicionamentos sobre como deve ser a produção do
conhecimento cientifico, tampouco, apresentar regras e receitas
específicas, seja na definição do objeto de estudo, na construção
dos dados, nas informações ou nos tratamentos desses.
Essa perspectiva do não desejar que Sertania seja um
conceito ou paradigma para a produção do conhecimento no
âmbito educacional vem da experiência vivenciada na pesquisa
que tomou Sertania como vereda. Essa perspectiva evidenciou
que Sertania carrega consigo uma plasticidade que a faz singular
e plural. Dessa forma, é singular porque só tem existência no
pulsar da vida e da busca de cada pessoa, e plural porque está
para todos que a ela recorrem, sem nunca deixar de ser a vereda
de acesso daquele que constrói o objeto e busca a si mesmo.
356
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
Sertania como vereda não existe, a priori. Não é nem
pretende ser um farol para iluminar a navegação das pessoas que
pesquisam, mas se faz junto com o pesquisador. Assim, Sertania
consiste em uma vereda que se desfaz no fazer de cada pesqui-
sador que busca descobrir o objeto de estudo que pulsa em si.
Desse modo, pretendemos, com este texto, problematizar
e evidenciar o sentido do processo de construção de um objeto
de estudo. Assim sendo, ao construir o objeto de estudo, ou
seja, delimitá-lo e pronunciá-lo de modo escrito ou oral, o
pesquisador organizou, dentro de si, uma compreensão ampla
e profunda sobre aquilo que o inquietava e que ele desejava
saber mais, ou seja, o objeto de estudo é aquilo que, inconscien-
temente, impulsionava o pesquisador a querer fazer a pesquisa.
Para tratarmos de Sertania como vereda, para construção
do objeto de estudo e movimento em que o pesquisador busca
ampliar e aprofundar a consciência sobre si mesmo, organi-
zamos este artigo em duas seções, a saber: primeira seção,
intitulada Sertaniando, em que se busca uma aproximação da
noção de Sertania; na segunda sessão, o orientando reconstitui
memórias e histórias pessoais, nos possibilitando entender
como o objeto se faz, ao mesmo tempo em que o pesquisador
amplia sua compreensão sobre si mesmo.
Por fim, com as derradeiras palavras, sinalizamos alguns
elementos de interpenetração entra a noção de sertania e a
experiência vivenciada no processo de construção do conheci-
mento durante o Mestrado. Agora, o convidamos a vir conosco
para imergir e se aproximar de uma noção de Sertania, mas
sem esquecer que Sertania será aquilo que você quer e precisa
que seja para você.
357
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
Sertaniando
Busquei-me a mim mesmo
(Heráclito, 2012)
Heráclito é um pensador e educador potente. Ele preferiu
brincar com as crianças a governar os humanos. Ficou conhe-
cido como o obscuro, mas, em sua jornada existencial, lançou
luzes que nos possibilitaram ver e sentir que o processo de
humanização reside no movimento de buscar a si mesmo.
Essa perspectiva heraclítica manifesta-se no âmbito
da pesquisa educacional, dentro de um movimento em que o
pesquisador, ao construir o objeto de pesquisa, pouco a pouco,
vai descobrindo múltiplas dimensões de si implicadas naquilo
que ele toma para ser estudado. Dessa forma, ninguém pesquisa
algo completamente estranho a si mesmo.
Por isso, se faz necessário buscar compreender as razões
e os motivos pelos quais se escolhe, entre muitas possibilidades,
um objeto de estudo determinado. Escolher implica, necessa-
riamente, em perdas. Assim, quando temos 10 possibilidades de
algo e escolhemos uma, necessariamente, perdemos 9. Então, ao
escolhermos um determinado objeto de estudo, abrimos mão
de outros possíveis objetos.
No entanto, o objeto de estudo não se dá de modo pronto
e acabado. Ele não existe em um lugar para ser revelado. Não é
uma coisa que pode ser recebido ou ofertado por outra pessoa.
Sendo assim, não acreditamos na pesquisa que o professor dá
um objeto de estudo ao estudante.
Observamos também que um candidato a mestrado ou
doutorado apresenta um projeto que consegue ser aprovado na
358
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
seleção, mas o objeto de estudo não estava claro. É essa busca
pela clareza, pela definição daquilo que se toma como objeto
de estudo, que nos importa compreender e que a experiência
vivenciada no Mestrado nos permitiu entender. Foi tateando
e problematizando as intenções iniciais, que conseguimos,
no próprio movimento da pesquisa, circunscrever aquilo que
tomamos como nosso objeto de estudo.
Nesse sentido, essa relação entre orientador e orien-
tando foi acontecendo sem hierarquia, mas com clareza da
função que cada um possuía no movimento de construção do
conhecimento. Aqui, temos nossa primeira referência, ou seja,
para que a construção do objeto de estudo possa vir-a-ser um
movimento de construção da consciência de si, é preciso que
a relação entre orientador e orientando se constitua em uma
prática da liberdade. Isso significa que os dois possam ser e
dizer, por meio da palavra e escuta autênticas.
Na experiência de pesquisa que estamos apresentando,
o elemento fundamental da nossa jornada era a clareza do
objeto de estudo. Assim, passamos a nos ocupar de construir
e compreender o objeto de estudo que investigaríamos pelos
próximos dois anos de estudo e pesquisa.
Como orientador, fui convidando o orientando a um exer-
cício de reconstituição da memória e história do seu lugar; das
experiências vividas com a família e os amigos; do processo de
formações acadêmica e profissional. Juntos, fomos percebendo que,
na medida em que o objeto de estudo se organizava, trazia consigo
o entendimento da consciência que o pesquisador possuía.
Nesse sentido, nos dávamos conta de que o movimento de
construção e clareza do objeto de estudo organizava a pesquisa
e, posteriormente, o texto a ser apresentado, bem como
ampliava e aprofundava a consciência do pesquisador sobre si
359
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
mesmo. Assim, se dar conta dos motivos pelos quais pesquisava
o que pesquisava e não outra coisa, implicava necessariamente
em uma maior compreensão do seu sendo com o mundo.
Esse exercício do movimento da consciência sobre si
mesmo, construindo o objeto de estudo fora de si e, ao mesmo
tempo, tornando o corpo do pesquisador consciente das razões
pelas quais ele pesquisa o que pesquisa, nos permitiu compre-
ender duas coisas fundamentais: i) a consciência de si pode se
dá entre outras formas por meio da construção consciente do
objeto de estudo; e ii) esse processo instaura uma espécie de
desalienação entre o pesquisador e seu objeto de estudo.
Sobre o primeiro aspecto, pensamos que a definição do
objeto de estudo, quando se faz por meio de um movimento da
consciência do pesquisador, que movimenta sua consciência sobre
si mesmo, constrói em si e, para si, o objeto de estudo, ao mesmo
tempo em que amplia e aprofunda a consciência de si mesmo.
Quanto ao segundo aspecto, pensamos que, na medida
em que o pesquisador movimenta sua consciência construindo
o objeto de estudo, ele se apropria daquilo que vai estudar, ou
seja, sua consciência e o objeto de estudo não são estranhos,
alienados, mas se reconhecem. No entanto, além de termos
construído as condições para um processo em que foi possível
praticar a liberdade de ouvir e de falar, pensamos que Sertania,
como uma vereda, contribui para que o movimento da consci-
ência de si acontecesse na construção do objeto de pesquisa.
Essas experiências e compreensões foram possíveis
porque no curso da pesquisa assumimos Sertania, como uma
vereda, que só existe no momento em que a percorremos. Assim,
podemos dizer que Sertania apresenta-se como caminhante e
caminho a um só tempo e espaço. Por isso, a noção de Sertania
é dada por quem dela precisa.
360
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
Aprendemos com o exercício de pesquisa da dissertação
produzida, que Sertania é estar com seu corpo em um lugar e
falar com a sua palavra. Desse modo, a noção de Sertania tende
a abandonar a concepção clássica do humanismo, que se refere
ao humano como se esse existisse abstratamente, fora do tempo
e do espaço ou mesmo das noções clássicas de Platão que sugere
existir um humano derivado da geometria.
Dessa forma, assumimos que as pessoas existem e
respiram. Elas não são idealizadas ou derivadas, mas existem
com corpo, com coração e tem pernas que as possibilitam o deslo-
camento. Esses seres humanos pronunciam sua palavra a partir
das crenças de sua comunidade e daquilo que vivem e creem.
Diante disso, a noção de Sertania emergiu dos estudos
e debates de um Grupo de Pesquisa intitulado: Sertania e
Educação. Para esse grupo, algumas categorias foram, ao longo
de seus 16 anos de existência, se apresentando, tais como:
vastidão, itinerância e antropofagia. Além dessas categorias, um
movimento que hoje nutre Sertania é o movimento decolonial,
que trataremos mais à frente.
A pesquisa que realizamos no curso do Mestrado foi,
pouco a pouco, evidenciando que, na jornada-pesquisa, o
pesquisador é induzido a imergir não em uma totalidade, mas
na vastidão das fontes e possibilidades que o objeto de estudo
carrega consigo.
Pensar a totalidade, é crer na possibilidade de abarcar os
múltiplos determinantes dessa totalidade. No nosso caso, durante
a pesquisa, percebemos que não existe totalidade, mas vastidão.
Isso significa que ao assumir a vastidão, assumimos por princípio
a ignorância, como um constitutivo da pesquisa, uma vez que a
razão que opera em uma jornada-pesquisa é incapaz de dar conta
de tudo o que o objeto de estudo resguarda em si.
361
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
Por isso, o pesquisador que construiu o objeto e na cons-
trução do objeto obteve uma consciência de si. Além disso, ele
percebe que o conhecimento é vasto, sempre inacabado e que
por isso mesmo sua pesquisa não consegue responder a todos
os aspectos do objeto, visto que a vastidão constitui o objeto e
o próprio pesquisador, afirmando o inacabamento de ambos.
Sertania como vereda para construção do objeto e
consciência de si, orienta-se pela valorização da itinerância no
processo, pois os objetos e aquilo que constitui o fenômeno da
existência humana pode nos levar a novos “caminhos”, nunca
dantes “caminhados”. Como seres humanos, não temos raízes,
não somos fixos em um lugar como as árvores ou as pedras. Nós
temos pernas e a função ou aquilo que é próprio das pernas é
andar. Portanto, fomos feitos para caminhar, deslocar, mudar
de lugar sempre que necessário. Assim, podemos dizer que a
itinerância constitui nossa anatomia.
Se deslocando e sendo deslocado pela vida, sempre
encontramos, na pesquisa, novos lugares de saberes; sempre
levando consigo os saberes anteriormente conquistados, dos
lugares já caminhados. Saberes, aqui, tem o sentido de possuir
o conhecimento de, ou seja, o que foi compreendido pelo ser que
pensa a vida, mas leva o seu pensar para as decisões do seu viver
no mundo. Além da vastidão e itinerância, Sertania, enquanto
abordagem, se dá também pela prática de uma antropofagia de
saberes, de ideias, de noções, de conceitos, de teorias, ou seja,
a nossa orientação se dá por meio do Manifesto Antropófago
(ANDRADE, 1972).
Na primeira frase desse Manifesto, Oswald de Andrade
(1972), afirmou que só a Antropofagia nos une socialmente,
economicamente e filosoficamente. Essa máxima nos fez
compreender que era necessário buscar ler e devorar as obras
362
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
produzidas por diversos pesquisadores, em campos diversos do
conhecimento humano, que ajudem o pesquisador a compre-
ender, entre outras coisas, o processo de construção do seu
objeto de pesquisa.
Para quem percorre as veredas de Sertania, fica uma marca
como que tatuada no corpo, a de uma fronteira borrada entre
estudar e comer. Essas duas dimensões nutrem o corpo humano,
uma satisfazendo as necessidades e desejos das células e outra
nutrindo o processo de construção das sinapses que organizam
o modo desse corpo se relacionar e admirar o seu mundo.
Talvez, um dos maiores antropófagos que temos no
âmbito da educação, seja o educador e pensador brasileiro,
Paulo Reglus Neves Freire. Esse pensador, cuja potência das
ideias residem na sua gnosiologia, ou seja, na teoria que ele
formulou e que atravessa toda sua obra, quase sempre é acusado
de utilizar algum conhecimento sem citar a fonte. Paulo Freire
é um grande leitor e, por isso mesmo, um antropófago que
aprendeu muito cedo que o poema é de quem dele precisa.
Aqui são as três categorias básicas que nutrem Sertania:
vastidão, itinerância e antropofagia. No entanto, no curso dos
últimos anos, as pessoas que constituem o Grupo de Pesquisa
Sertania e Educação, passaram a dialogar com intelectuais que
constituem o movimento Decolonial.
A orientação decolonial provoca o conjunto de intelectuais
da América a retomar a história, a memória e as formulações
teóricas a partir do momento em que as histórias locais do
mundo foram interrompidas pela história dos europeus, na qual
se apresenta como projeto universal. Hoje, essa ideia de que a
história dos europeus é universal está em processo de descons-
trução, precisamente, porque aqueles que foram negados – e
àqueles que, no melhor dos casos, foi dada a opção de se integrar
363
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
à colonialidade – hoje dizem: “não, obrigado, mas não; minha
opção é decolonial” (MIGNOLO, 2005, p. 2016-2017).
Nos estudos do Grupo de Pesquisa Sertania e Educação foi
possível se debruçar sobre as obras de Frantz Fanon (20/07/1925
– 6/12/1961), especificamente, sobre sua obra, intitulada: Os
Condenados da Terra. A referida obra inspirou muito das formu-
lações de Paulo Freire.
Ao escrever essa obra para os próximos, Fanon nos deixou
um legado fundante sobre os processos danosos em que o coloni-
zador não só dominou fisicamente, mas instaurou um processo
de soterramento de toda a história dos que aqui habitavam antes
da chegada do colonizador. De acordo com Fanon (1968), não
são apenas as posses e o dinheiro que caracterizam as classes
dirigentes, mas a dominação de uma cultura sobre outra. Nesse
caso, para o autor, “descolonizar” é desconstruir uma verdade
hegemônica estabelecida, política, econômica e, principalmente,
culturalmente em territórios dominados pelos europeus.
Assumindo a perspectiva de Mignolo (2005) e Fanon
(1968), a proposta de Sertania como vereda para construção do
objeto e consciência de si, foi possível desconstruir uma lógica
de conhecimento cientifico enraizado na epistême do coloni-
zador europeu e construir uma nova lógica de pensamento
educacional, enraizada na brasilidade. Assim, Sertania como
vereda se constituiu em um caminho estreito, que promoveu a
dor da desaprendizagem, a dor de perceber que nossas crenças
e os processos de escolarização foram construídos negando o
modo de ser e de conviver dos nossos ancestrais.
Os estudos decoloniais, nos impulsionaram na direção
teórica de tomar a Caatinga como um bioma que nos convida a
problematizar a geografia do Ser-tão e identificar as significa-
ções educativas que ela resguarda em si:
364
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
Assim, podemos inferir que a caatinga é um lugar de
tensões. Ela educa os humanos para a convivência
com a diversidade e a mudança permanente. Trata-se
de dois elementos que não se integram à episteme do
colonizador, nem a cultura escolar. Por isso mesmo,
assumimos a caatinga como vida, metáfora e raiz de
uma educação do Brasil; pois esse bioma, como os
sertanejos que com ele convivem, nos possibilita saber
que todas as formas de vida e não vida se relacionam na
vastidão do sertão e que as transformações acontecem
no dia a dia, em um diálogo constante entre o homem
e a natureza (BARBOSA JÚNIOR, 2017, p. 422).
Para o grupo, esse lugar geográfico e metafórico, onde
a vida acontece como um milagre, porque estando seco e
sem nada se movendo com pouca chuva a vida floresce, nos
permite pensar para além do aparente verdejante e nos induz a
buscar o sentido das coisas na interioridade do mundo-sujeito.
Existem, para além do Movimento Decolonial, três autores que
também nutrem o Grupo de Pesquisa Sertania e Educação, são
eles: Guimarães Rosa (2001), Gilmar Ferreira (2013) e Euclides
da Cunha (2003). Esses estudiosos assumem o sertão como um
lugar que revela uma educação emergente do mundo vivido pelo
sertanejo, traduzindo uma concepção mais geográfica, mais
física e mais sensível do sertão.
Por fim, podemos sugerir que após essa noção apre-
sentada sobre Sertania, podemos continuar buscando uma
aproximação do modo como Sertania se articula com as
memórias e com a história do pesquisador, de modo que lhe
possibilitou a construção do objeto de estudo e, ao mesmo
tempo, ampliar e aprofundar uma consciência de si.
365
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
Memórias e histórias do mestrando:
lugares onde pulsa o objeto de estudo
Para viver em estado de poesia me
entranharia nestes sertões de você,
para deixar a vida que eu vivia,
de cigania, antes de te conhecer.
(Chico César, 2015)
Sou sertanejo e sou cigano. A política sempre se fez
presente em minha trajetória de vida pessoal e social, pois
nasci em um bairro periférico no Município de Pendências/RN,
e como estudante de escola pública, experimentei as limitações
de recursos materiais do sertão.
Foram esses limites que nutriram meu desejo de
inserir-me com consciência na política e, por isso, assumi a
militância nos sindicatos, das associações e dos grupos de
jovens. Nesses espaços institucionais, vivenciei muitos conflitos
marcados por resistências, negações, tensões e aprendizados.
O lugar de onde falamos revela nossa intimidade com
as formas das coisas, dos costumes, das crenças e do código
deontológico. Como sertanejo e cigano, carrego as marcas de
uma história de colonização, que nos tratou como incivilizados.
Talvez, tenham se estabelecido nesse conflito, entre um Brasil
do Litoral (civilizado) e um Brasil de dentro (sertanejo), os
elementos que distinguem um do outro. Ademais, o que posso
destacar como sertanejo é o fato de que minha relação com a
terra sempre foi muito forte e poderosa, difícil de ser arrancada
do meu ser, pois, como sugere a canção de Gilberto Gil: sou “Do
interior do mato, da caatinga do roçado”.
366
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
Como diz a letra da referida canção, são muitas as
práticas de opressão e de transgressão vivenciadas por cada
um de nós, sertanejos. Sou filho de trabalhador que expe-
rimentou a oscilação de ser empregado e, outras vezes, de
desempregado, como tantos brasileiros. Essa vivência do meu
pai possibilitou-me crescer observando as dificuldades da classe
trabalhadora e sentindo o gosto amargo da opressão, sofrendo
como colonizado.
Conduzidos por um processo contraditório de colo-
nização, em que a educação escolar se constituía em uma
possibilidade de mobilidade das condições socioeconômicas,
meus pais sempre apontavam para a necessidade de frequentar
a escola da alfabetização, da leitura, da escrita e da matemática.
No entanto, para além desse processo de instrumentalização do
saber, ambos me apresentavam uma educação política, orien-
tando-me para a luta e para o inconformismo com a realidade
posta. Antes de pronunciar minhas primeiras palavras, fui ensi-
nado a não baixar a cabeça para as opressões de uma “sociedade
fechada”, burguesa e colonizadora. Assim, resistência e luta
foram as palavras mais constantes e usuais em minha infância.
O esforço dos meus pais para ensinar-me a lutar e a
resistir politicamente encontra suas raízes na insatisfação que
tinham com a realidade posta em Pendências/RN. Eles temiam
que seus filhos sofressem com a violência colonial. Porém,
diferente do que Fanon (1968), em “Os condenados da terra”,
constata na relação colonizador/colonizado, nunca lançamos
um olhar de cobiça ou de inveja para as posses dos colonos. Não
tínhamos sonhos de nos sentarmos à sua mesa. Nosso objetivo
era “destroná-lo”, por sobrevivência. Isso devido ao contexto
político-partidário em que a cidade se encontrava; tratava-se
de um processo semelhante a uma monarquia absolutista.
367
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
Dessa maneira, definia-se uma linha concreta, demarca-
dora, que estabelecia as fronteiras entre os pequenos burgueses
da região (fazendeiros e comerciantes) e proletários; sendo esses
“gente” igual a meus pais, que lutavam para manter suas “crias”
vivas com sua força de trabalho, não se abstendo à exploração
e à resistência que marcam o antagonismo de classes.
O conflito gerado pelo antagonismo entre as classes
sociais sempre se encontrou presente em minha família, no
meu povo. Posiciono-me como um trabalhador pertencente ao
proletariado, que se opõe à realidade marcada pelo domínio
burguês. Com os estudos realizados, por meio da pesquisa
durante o mestrado, passei a compreender cada vez mais que:
A burguesia é incapaz de dominar porque é incapaz de
assegurar a existência de seu escravo em sua escravidão,
porque é obrigada a deixá-lo cair numa situação em que
deve alimentá-lo ao invés de ser por ele alimentada. A
sociedade não pode mais existir sob sua dominação, quer
dizer, a existência da burguesia não é mais compatível
com a sociedade (MARX; ENGELS, 2000, p. 57).
Essa situação descrita pelos autores supracitados, na qual
se apresentam o conflito e os motivos pelos quais a burguesia
não é compatível com a sociedade, remeteu-me à lembrança
da minha infância, em que percebia e relacionava vilões e
monstros narrados pela professora, na escola de educação
infantil, e em minha casa, pela minha irmã mais velha. Essas
histórias contadas criavam, em minha imaginação, um conflito
existente entre protagonistas e antagonistas. Hoje, sei que esse
embate se encontra presente na sociedade. No entanto, em vez
de protagonistas e de antagonistas, o conflito se desenvolve
entre interesses de classes sociais.
368
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
Na adolescência, recordo-me que se respiravam práticas
de opressão política em Pendências/RN. No meu caso, costu-
mava relacionar os filmes (com práticas dicotômicas) com
minha realidade. O filme Troia (2004) e 300 (2006) chamavam-me
muito a atenção: os reis, antes de partirem para guerra, pediam
a determinado grupo de pessoas a permissão para prosseguir
(ou não) com a batalha. Foi, então, que ouvi, pela primeira vez,
a palavra “conselho”, e imaginava: – “Ora, como pode o rei,
senhor de tudo e de todos, pedir permissão para fazer algo?”.
Inquietava-me com essa ação — pedir permissão ao seu
povo (ou pelo menos parte dele) para decidir algo — enquanto
os governantes locais, na vida real, em especial a figura do
prefeito, jamais se comportariam como tal. Na realidade, não
chegam até o povo para ouvi-lo, muito menos para aceitar
ou refletir sobre os seus conselhos. Que rei era esse diferente
dos reis gregos? O que há de diferente nessas nações? Quais as
diferenças entre os reis gregos e os reis da vida real?
Essa inquietação acompanhou-me por toda formação
escolar. Ainda que os professores de história lançassem suas
explicações, por meio do conteúdo programático, não estava
convencido das respostas e, por esse motivo, sentia uma extrema
necessidade de problematizar aquelas práticas autoritárias.
Talvez, esse tenha sido o motivo pelo qual sempre parti-
cipei dos grêmios estudantis; do conselho de classe e de todos
os outros colegiados existentes na educação básica. A figura do
rei (que se aconselha, mas que também não se isenta da crítica
ao regime de governo – monárquico) e dos seus conselheiros
acompanharam-me por toda vida.
No término do ensino médio, prestei vestibular para o
curso de Pedagogia, na Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN) – Campus Avançado de Assú/RN, pois a vontade
369
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
de trabalhar com gente levou-me a um curso de formação de
professores. Durante a graduação, tive o contato com as disci-
plinas da matriz curricular, dentre as quais me encantava com
as de abordagem política, especificamente, os conteúdos que
tratavam de Gestão Educacional e de Gestão Democrática.
No enlace, percebia que essas disciplinas deixavam
a figura do “rei” e dos conselheiros mais vivas e, ao mesmo
tempo, davam sentido a todo conteúdo de vida ensinado pelos
meus pais, antes mesmo do ingresso na universidade. Na UERN,
ao vivenciar todas as práticas reguladas e não reguladas, com
as disciplinas, grupos de amigos e de trabalho, dentre outros
elementos foram se desenhando no contexto da formação e no
início da atividade profissional.
Nesse contexto, destaco a pesquisa realizada em torno
das políticas de formação de professores em serviço, especial-
mente, o Programa de Formação de Professores da Educação
Básica (PARFOR), no Campus Avançado de Assú/RN. A referida
pesquisa demonstrou, com panos de fundos político e social,
compreensões compensatórias de formação acadêmica que
inibem o trabalho qualitativo pretendido nessa etapa de
formação. Além disso, revelou, entre outras questões, que esse
processo formativo tem poucos impactos positivos no sucesso
escolar das crianças da educação básica.
Nesse momento, o município onde residia, Pendências/
RN, enfrentava sérios problemas com a falta de professores,
oportunizando-me assumir a docência por meio de um contrato
provisório. O desafio proposto foi aceito pelas circunstâncias
sociais e econômicas nas quais encontrava-me. A prática
docente foi desenvolvida nos anos iniciais do ensino funda-
mental, o que provocava o desejo de saber mais acerca dos
processos de ensino e de gestão que envolviam a sala de aula.
370
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
A docência em sala de aula aflorou meu interesse por
saber como a prática docente se articulava com a gestão da
escola como um todo. Dessa forma, comecei a descobrir que
ser professor implicava em ser um gestor. Essa descoberta foi
essencial, pois incitou o desejo de compreender melhor essa
dimensão da gestão, o que me impulsionou a procurar, na UERN,
o referencial que ampliasse e aprofundasse os conhecimentos
acerca da gestão escolar.
Diante das perspectivas teóricas apreendidas na UERN e
da prática vivenciada no “chão da escola”, senti a necessidade
de aprofundar a temática, relacionando a dinâmica existente
nas instituições de ensino e as intuições que agitavam minha
imaginação. Na condição de professor e de gestor, minha luta
estava sempre voltada para o desbanque do rei, ou seja, de uma
lógica em que uma ou duas pessoas mandam, além da busca
permanente para garantir que a escola seja dirigida pelo coletivo,
organizadas em um Conselho Escolar. Enquanto gestor, via-me no
lugar do rei, com todos os desafios e as problemáticas que a ativi-
dade propunha, inclusive de recorrer aos conselhos escolares.
Essas relações produziam, incessantemente, inúmeros
questionamentos: que sentido de democracia estava implícito
nesse contexto? Uma democracia do rei ou do povo? A reflexão
perpassava minha interioridade, afinal, enquanto gestor e
professor, qual tipo de democracia fazia defesa? Ainda me sentia
um militante da luta contra a burguesia e a centralização de
poder ou o rei já me habitava?
Itinerante como sou, talvez por minha descendência
cigana, como minha mãe, muitas vezes me dizia, precisei mudar
não só pela minha necessidade andante, mas por ter conseguido
me formar e passar em alguns concursos para professor efetivo.
O primeiro deles no Município de Jucurutu/RN, em 2015; o
371
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
segundo, na cidade de São Paulo do Potengi/RN; em 2016, no
Agreste Potiguar e, por fim, no mesmo ano, a chegada em Natal,
capital do Estado do Rio Grande do Norte, também selecionado
por concurso público.
Desde quando assumi a docência no município de
Pendências/RN, em 2011, passando por todos esses muni-
cípios, fui ampliando a vontade de compreender processos
democráticos relacionados à vida e à escola – dois objetos
sociais sempre presentes em minha imaginação antropológica
e sociológica em que buscava, sobretudo, a transformação
social. Em Natal/RN, concursado no cargo de professor para
os anos iniciais, fui encaminhado para a Escola Municipal
Chico Santeiro, localizada na Zona Oeste da cidade. Lá, outras
práticas democráticas e não democráticas foram se agregando
ao repertório de minhas experiências.
Ensinar em uma escola pública significa mergulhar
profundamente no processo educativo popular, pois nela se
encontram semelhantes — meninos e meninas, professores e
professoras, que resistem aos diferentes opressores. É assim
que tenho me compreendido nessa itinerância profissional e
formativa da escola pública.
A realidade profissional em Natal ampliou as experiências
que trago da minha vivência no interior do Estado. No entanto,
permanecia uma inquietação: a figura do diretor e de outros
gestores com suas formas de conduzir o trabalho na escola. Esse
processo sempre me impactou, tanto pelas práticas de inclusão
desenvolvidas por alguns, quanto pela exclusão praticada por
outros. No último caso, observava que algumas práticas “auto-
ritárias” estavam implicadas a um perfil social e educacional
consoante a figura do diretor na escola.
372
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
As minhas observações suscitavam perguntas, como:
“por que apenas um diretor para determinar todas as ações da
escola?”, ou ainda, “por que havia os que mandavam sozinhos
e os que conversavam com o Conselho Escolar?”. Diante desses
momentos de reflexão, bem mais de indignação (FREIRE, 2011),
que de conscientização, emergiu a preocupação em entender uma
gestão com caráter e com dispositivos mais democratizantes,
pelos quais os sujeitos são menos colonizados, mais livres e autô-
nomos para pensar e agir dentro de seus espaços-lugares de uso.
Desse modo, compreendo que o processo de construção
do objeto de estudo se fez sorrateira e marginalmente em minha
jornada de vida pessoal e de vida profissional. Suas raízes se
encontram em minha infância, quando assistindo aos filmes
me perguntava: por que um rei pergunta e solicita a aprovação
de um conselho?
Quando via o envolvimento político e pedagógico dos
meus pais em suas lutas contra as famílias “poderosas” da
cidade; quando, nas aulas, os professores me provocavam a
pensar o mundo em sua historicidade. Dessa forma, as concep-
ções de Freire (2011) dizem um pouco mais sobre esse processo
de reflexão que trata de como o objeto de estudo se construiu
em mim. Vejamos:
A partir das relações do homem com a realidade,
resultante de estar com ela e de estar nela, pelos atos
de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o
seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizan-
do-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é
o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos.
Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem
com o mundo e do homem com os homens, desafiado
e respondendo ao desafio, alterando, criando, que
373
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
não permite a imobilidade, a não ser em termos de
relativa preponderância, nem das sociedades nem das
culturas. E, à medida que cria, recria e decide, vão se
conformando as épocas históricas. É, também virando,
recriando e decidindo que o homem deve participar
destas épocas (FREIRE, 2011, p. 60).
O autor compreende “relação” não como o dialógico ato
de contactar, de atritar, de colocar em interação. Não é uma
analogia a algum tipo de afinidade que existe entre pessoas. É,
antes de tudo, uma concepção antropológica, porque envolve
o aspecto cultural. Relacionar-se significa conhecer-se, perce-
ber-se, aproximar-se de si mesmo, mas em articulação com
o outro. Nessa perspectiva, o existir não é individual, mas se
realiza em relação com as outras existências, no coletivo social.
A esse respeito, Freire (1983) afirma que
[...] nas relações do homem com o mundo, existe uma
pluralidade na própria singularidade. A captação que
faz dados objetivos de sua realidade é essencialmente
crítica e não puramente reflexa, como sucede nas
esferas dos contatos. Além disso, o homem e somente o
homem é capaz de transcender, de discernir, de separar
órbitas existenciais diferentes, de “ser” do “não ser”; de
travar relações incorpóreas (FREIRE, 1983, p. 63).
Para Freire (2011), relacionar-se é transcender. E a trans-
cendência é, necessariamente, a consciência de que o ser humano
é um sujeito histórico e finito, mesmo sendo incompleto. Por isso,
precisa transcender. Então, quando é que necessariamente o ser
humano se relaciona? Quando reconhece a sua incompletude e
se lança ao desafio de saber mais, sendo essa sua condição onto-
lógica de inacabamento. Ele é, constantemente, desafiado pela
374
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
sua incompletude e pela pluralidade de relações que estabelece
material, concreta e simbolicamente.
Falar de relações numa perspectiva freiriana é, neces-
sariamente, estabelecer comunicação, pois “o mundo social e
humano não existiria como tal se não fosse um mundo de comu-
nicabilidade, fora do qual é impossível dar-se o conhecimento
humano” (FREIRE, 2015, p. 65). É, pois, pela intersubjetividade
das relações consigo mesmo e com o outro que acontece a
comunicação entre os sujeitos.
Portanto, a comunicação é diálogo, e o diálogo é comunica-
tivo. Isso significa que, na comunicação, não há sujeitos passivos,
e sim, recíprocos. O diálogo é uma condição fundamental para
criar condições de coletividade entre os seres humanos, resul-
tando no que conhecemos por relações dialógicas.
Foi assim, virando e revirando-me, criando e recrian-
do-me, ouvindo e comunicando-me, decidindo e retroagindo,
carregado de incertezas e desejos de vida, que aprendi, essen-
cialmente, que as relações humanas são, fundamentalmente,
políticas e pedagógicas. Política, pois é uma relação intencional
para a convivência social; pedagógica, devido à intencionalidade
de aprendizagem na convivência, o que as tornam indissociáveis.
Dentro dessa perspectiva, tomei consciência de que o objeto
de estudo que tomaria como meu a-se-pensar seriam: as relações
políticas-pedagógicas entre os diretores (Administrativo-Financeiro e
pedagógico) e os conselheiros escolares da Escola Municipal Chico Santeiro.
Nesse sentido, pensar as “relações políticas-pedagógicas
entre os Diretores (Administrativo e Pedagógico) e o Conselho
Escolar”, enquanto objeto de estudo, assume a dimensão
epistemológica e política crítica, porque é histórica e social,
encarnada nas relações de luta, de resistência e de transfor-
mação. A escola, vista como espaço-lugar específico dessa
375
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
relação de forças e de poder, precisa estar, constantemente,
sendo vista sob a ótica da reflexão crítica para não se perder de
vista o seu ideário de instituição pública, que serve ao público.
Dessa forma, assumimos o Materialismo Histórico e
Dialético de Karl Marx (1818-1835) como método da pesquisa
que realizamos no mestrado, visto que Sertania possibilitou
enxergar que as relações políticas-pedagógicas estão inseridas
dentro de uma estrutura social e econômica conflitadas,
historicamente, a partir das divisões de classe; ou seja, entre
burguesia e proletariado. No caso específico do Brasil, país onde
se localiza a escola estudada na referida pesquisa, podemos
inferir que existe a tensão entre colonizador e colonizado,
conforme apresentado em minha própria narrativa de vida,
nos primeiros parágrafos desta seção.
Para tanto, o filósofo Karl Marx se constitui para todos os
pesquisadores da Educação, notadamente da área de políticas,
uma referência imprescindível nas reflexões pré-operatória,
operatória e pós-operatória da pesquisa. Sua crítica ao modelo
de ordem social, mais especificamente, à estrutura socioeconô-
mica concebida pela lógica burguesa-capitalista, combatendo
o processo de alienação/objetificação do trabalho na condição
de vida do homem, impulsiona métodos de trabalho implicados
com a análise e com transformação das realidades social e
cultural de grupos marginalizados. Além disso, o pensador
alemão entendia que o proletariado era a classe conectada à
revolução e, assim sendo, capaz de romper com a supressão
da alienação estabelecida pelo modo de produção capitalista.
Gramsci (2000), conceituado marxista contemporâneo,
por sua vez, contribuiu com minha compreensão acerca do
pensamento marxista, entendendo política enquanto revolução,
situada diretamente nas lutas de classe, na tentativa de superação
376
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
da hegemonia proletária pela burguesa. Para o referido autor, a
sociedade encontra-se dividida entre “dominantes e dominados”,
como consequência de sua divisão antagônica de classes, conce-
bida numa relação histórica, portanto, não natural.
No entanto, sou consciente de que não há, na obra de Marx,
uma formulação de método definido como um conjunto de regras
acerca dos procedimentos de investigação ou sobre qualquer objeto.
Afinal, “o método não é algo que paira sobre nossas cabeças ou
possui existência fora do logos. Ele também não é um instrumento
para inspirar ou ser utilizado” (BARBOSA JÚNIOR, 2002, p. 62).
Nesse sentido, o marxismo não é uma receita de bolo, que
deve ser executada tal qual Marx ou seus posteriores conce-
beram-no, visto que entendo que “o Materialismo Histórico
e Dialético não é algo que se aplique mecanicamente a uma
realidade, mas uma estratégia de complexificação da consci-
ência” (BARBOSA JÚNIOR, 2002, p. 59). O próprio Marx não se
preocupou, a não ser em poucos grifos, em falar do seu método.
Assim sendo, é importante ressaltar que o materialismo dialé-
tico é sempre mais evidenciado pelos seus críticos.
Frigotto (1991), por sua vez, salienta que, na segunda
edição de O capital, Marx fala de seu método de forma sucinta,
através de um dos seus críticos:
Para Marx, só importa uma coisa: descobrir a lei do
fenômeno de cuja investigação ele se ocupa. E para ele,
é importante não só a lei que os rege, à medida que
eles têm outra forma definida e estão numa relação que
pode ser observada em determinado período de tempo.
Para ele, o mais importante é a lei da sua modificação,
de seu desenvolvimento, isto é, transição de uma forma
para a outra, de uma ordem de relações para a outra
(MARX, 1983 apud FRIGOTTO, 1991, p. 79).
377
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
A crítica ao Marx só comprova, senão, sua relação com
a dialética na materialidade das relações humanas. É possível
compreender seu método, buscando sua orientação teórico-me-
todológica a partir de reflexões feitas em suas obras, como “A
ideologia alemã”; “A miséria da filosofia”, “O capital e o Manifesto
comunista”. Nesse sentido, posso afirmar, em linhas gerais,
que esses escritos suscitam a ideia de que o método inicia sua
investigação pelo real e pelo concreto, que são as condições
prévias e efetivas da vida Marx (1977). Assim sendo,
O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas deter-
minações, logo, unidade da diversidade. É por isso que ele é
para o pensamento um processo de síntese, um resultado,
e não um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto
de partida e, portanto, igualmente o ponto de partida da
observação imediata e da representação (MARX, 1977, p. 248).
Sob essa perspectiva, a realidade concreta, proposta pelo
método, oportuniza minha compreensão sobre as condições
de vida, assim como os processos econômicos e políticos que
se constituem na base material dos sujeitos de produção. As
formulações de Marx sobre o método são rigorosamente histó-
ricas e apresentam extrema conexão com o real, o que me fez
compreender a relação do meu objeto de estudo com a realidade
concreta do campo empírico.
Dessa forma, é oportuno enfatizar que a dialética é um
dos pilares do método: ser social como processo, auto estrutu-
rado e dinamizado por vetores críticos de suas contradições
internas. A dialética, de acordo com Frigotto (1991, p. 75), [...]
situa-se no plano de realidade, no plano histórico, sob a forma da
trama de relações contraditórias, conflitantes, de leis de construção,
de desenvolvimento e de transformação dos fatos”.
378
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
Desse modo, o método é método porque parte das
seguintes perguntas: “Como se produz concretamente um
determinado fenômeno social? Ou seja, quais as leis sociais
históricas, quais as forças reais que o constituem enquanto
tal?” (FRIGOTTO, 1991, p. 78). Assim, percebemos o reforço do
diferencial do materialismo de Marx, em relação aos outros
métodos e às abordagens como sendo sua preocupação em
entender a realidade concreta, situada historicamente.
Assim sendo, alcancei o entendimento de que o método
me ajuda a mergulhar no fenômeno estudado, pois entende que
a escola, seus sujeitos e suas relações são históricas, concretas
e dinâmicas, e que auxiliam na formulação de estratégias e
procedimentos que materializaram a construção e a reflexão de
alguns dados que deram vida a pesquisa de mestrado. Conforme
pode se observar, o objeto de estudo e o método foram se fazendo
à medida em que eu avançava na compreensão do meu próprio
processo histórico. Eles se encontram imbricados com minha
história, uma vez quem ao recolher-me aos recônditos escuros
da minha memória, lembrei da inquietação que senti ao assistir
ao filme intitulado “Troia” (2004), e nesse filme descobri que o
rei, senhor de tudo e de todos, pedia permissão para fazer algo.
Essa descoberta se tornou uma inquietação que me acompa-
nhou por toda a vida. Quando eu era criança, perguntava-se pela
relação entre Rei e Conselho. Assim sendo, essa mesma questão
reaparece agora, no momento da pesquisa de mestrado, visto
que a busca por saber mais sobre a relação entre os Diretores e os
Conselheiros escolares, a luz a abordagem Sertania e do método
Materialismo Histórico Dialético, se constitui em certa medida, na
retomada da inquietação quando eu era criança e me perguntava –
na gênese da minha consciência de classe – por que um Rei, senhor
de tudo e de todos, pede permissão a um conselho para fazer algo.
379
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
Derradeiras palavras
Sertania, enraizada na vastidão, itinerância e antropo-
fagia, nos possibilitou um movimento de construção do objeto
de estudo, ao mesmo tempo em que ampliou e aprofundou a
consciência da nossa consciência. Esse movimento, criou, para
nós, enquanto pesquisadores, a noção de que saímos modi-
ficados, porque aprendemos que toda a jornada-pesquisa se
realizou, antes de tudo, dentro de cada um de nós. Tudo aquilo
que entregamos como texto dissertativo foi apenas um extrato
do que, de fato, se realizou em nossos corpos.
No entanto, foi preciso coragem devido ao enfrentamento
epistemológico feito a própria universidade, pois não é comum,
principalmente, no campo das políticas educacionais, conceber
o objeto de pesquisa enquanto manifestação da consciência
cultural do próprio pesquisador.
Muitas vezes, somos convidados, na pós-graduação, a
nos tornarmos reféns de um conceito ou de um autor, geral-
mente, europeu. Entretanto, frente a esse costume, Sertania
se constitui em um convite a buscar ser a si mesmo, a partir da
reconstituição da memória e da história construir o objeto e
ampliar a consciência de si.
Outro elemento necessário, durante nosso percurso,
foi a sensibilidade e porque esse exercício de garimpagem e
reconstituição de memórias de si nos evoca relações tensas
e conflituosas, vividas no corpo que deixaram cicatrizes
doloridas, mas, ao mesmo tempo, necessárias. As cicatrizes
são marcas que caracterizam nossa humanidade, uma vez que
elas redesenham nosso corpo e são memórias de momentos que
nos singularizam na relação com o outro, e nem os deuses são
capazes de ocultar as nossas cicatrizes.
380
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
Desse modo, o objeto foi construído marginalmente, ou
seja, caminhou por fora das leis e imposições do modus operandi
da produção burguesa de conhecimento da universidade, mas
por dentro do “vivendo” e do “sendo” do orientando e orien-
tador. Dessa forma, pouco a pouco, fomos visualizando o objeto
como raiz do movimento político e cultural da consciência que
os pesquisadores têm de si mesmo, inclusive quando decidem
adotar um método especifico para a pesquisa.
Por fim, este artigo se concretiza no momento em que seu
término sinaliza a existência de sua continuidade, deixando
lacunas para novas perspectivas de reflexões sobre como o
processo de construção do objeto possibilita ao pesquisador uma
maior consciência de si mesmo. No nosso caso, entendemos que
não existem verdades absolutas e, nesse sentido, Sertania não
é a única vereda possível para que o movimento de construção
do objeto de estudo e de consciência de si determine como a
pesquisa deve operar. No entanto, no nosso caso, assumimos
que foi por essa vereda que construímos nosso objeto de estudo
e saímos com nossos corpos um pouco mais conscientes do seu
sendo com o mundo vivido.
381
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
Referências
ANDRADE, Oswald de. Do pau-Brasil à antropofagia e às
utopias. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira S.A., 1972.
BARBOSA JÚNIOR, Walter Pinheiro. Sertania, veredas para
uma educação do Brasil. In: IBIAPINA, Ivana Maria Lopes de
Melo; FERREIRA, Maria Salonilde; PAIVA, Marlúcia Menezes de
(org.). Mar de histórias. Teresina: EDUFPI, 2017. p. 413-428.
BARBOSA JUNIOR, Walter Pinheiro. O ethos humano e
a práxis escolar: dimensões esquecidas em um Projeto
Político Pedagógico. 203f. Tese (Doutorado em Educação)
– Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2002.
CÉSAR, Chico. Estado de Poesia. Gravadora Urban Jungle, 2015.
CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Cultural: 2003.
FANON, Frantz. Os Condenados da terra. 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização B brasileira, 1968.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade.
14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação?
17. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
382
WALTER PINHEIRO BARBOSA JÚNIOR / LUAN PRESLEY MENDONÇA SANTIAGO
FERREIRA, Gilmar Leite. O Sertão Educa. 2013. Tese (Doutorado)
– Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
FRIGOTTO, G. O enfoque da dialética materialista histórica na
pesquisa educacional. In: FAZENDA, I. (org.). Metodologia da
pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1991. p. 60-90.
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas
sobre o Estado e a política. Edição e trad. Carlos Nelson
Coutinho. Co-edição: Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio
Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. v. 3.
HERÁCLITO, de Éfeso. Heráclito: fragmentos
contextualizados. Tradução, apresentação e comentários
de Alexandre Costa. São Paulo: Cortez, 2002.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido
Comunista. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
MARX, Karl. Método da economia política. In: MARX,
Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política.
São Paulo, Martins Fontes, 1977. p. 257-272.
MIGNOLO, Walter D. La Idea de América Latina.
La herida colonial y la opción decolonial, de Walter
D. Mignolo. Barcelona: Gedisa (2005).
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
383
SERTANIA, UMA VEREDA PARA A CONSTRUÇÃO DO OBJETO
DE ESTUDO E DA CONSCIÊNCIA DE SI
SANTIAGO, Luan Presley Mendonça. As relações políticas-
pedagógicas da Escola Municipal Chico Santeiro: os diretores
e os conselheiros escolares (2015-2017). 2018. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN.
TROIA. Direção: Wolfgang Petersen. Produção de Wolfgang
Petersen. Estados Unidos: Waner Bros, 2004. DVD.
300. Direção: Zack Snyder. Produção de Gianni Nunnar.
Estados Unidos: Lengendary Pictures, 2007. DVD.
384
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS
E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS
NO BREJO PARAIBANO
Vivian Galdino de Andrade1
Resumo: Em tempos midiáticos e digitais nos deparamos
com um desafio sobre o que devemos documentar/guardar?
Nossas memórias se encontram a cada dia mais virtualizadas e
dependentes de suportes digitais para serem acessadas, frutos
de tempos fugazes que também geram novas possibilidades
de fontes ao historiador. Em contrapartida, ainda tem sido
recorrente encontrarmos livros de memória e acervos pessoais
como ego-documentos, fontes primordiais para o acesso de um
passado que se deseja desvendar. As escritas memorialísticas
aqui trazidas, situadas no espaço das cidades paraibanas de
Bananeiras e Solânea, ecoam significativamente em muitas
vozes, despontando como ricas fontes de pesquisa. Diante disto,
pretendemos refletir neste artigo sobre a operação histórica
mediada por estes artefatos, fundamentados nas reflexões da
nova história cultural e das sensibilidades. Acreditamos que
1 Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal
da Paraíba – Campus III. Credenciada no Programa de Pós-Graduação em
História – PPGH - da Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: vivian.
[email protected].
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
apesar dos perigos que possam suscitar, esses documentos-
-monumentos estão recheados de emoções e afetividades que
trazem à tona imagens e crônicas sobre os lugares de memória
que existem/existiram nessas cidades do interior paraibano.
Palavras-chave: Livros de memória. Acervos pessoais.
Brejo Paraibano.
[...] arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é
contrapor à imagem social a imagem íntima de si
próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma
prática de construção de si mesmo e de resistência
– arquivar a própria vida é querer testemunhar, é
querer destacar a exemplaridade de sua própria vida
(ARTIÈRES, 1998, p. 11).
“Arquivar a própria vida”, título que inspirou este artigo,
é um texto de Philippe Artières (1998). Nele, o autor discute
os achados históricos existentes em um arquivo pessoal e
sua importância para a escrita da história. Cartas, tíquetes
de passagens, diários e velhas fotos amareladas, entre tantos
outros documentos pessoais, que simbolizam fontes históricas
imprescindíveis ao métier do historiador e são vestígios impor-
tantes de uma vida que se deseja lembrar.
O hábito de tudo guardar, de documentar a existência
por meio desses sinais, era até pouco tempo atrás comum
em nossa sociedade. Reconfigurado atualmente pelas redes
sociais, a guarda ganhou novas roupagens, agora revestida
pela produção de dados fluídos e voláteis, passíveis de serem
revistos em instantes. Em ambos os casos, temos traços que
constroem uma imagem de si para outro, algo que se queira
registrar e reificar como arquivos de vida. Enquanto fontes
materializadas, arquivamos para “responder a uma injunção
386
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
social”, para “manter nossas vidas bem organizadas, pôr o preto
no branco, sem mentir, sem pular páginas e sem deixar lacunas”
(ARTIÈRES, 1998, p.10-11). Ao reunirmos esses rastros carre-
gados de lembranças acabamos dando sentido ao que vivemos,
selecionando e classificando aquilo que desejamos lembrar e
associar a nossa imagem. Com isso “manipulamos a existência,
omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque
a certas passagens” (ARTIÈRES, 1998, p.11), como uma prática
de registro controlada que diz respeito a uma reminiscência
do eu, uma reinterpretação da memória de forma intencional.
Nesse desejo de tornar a vida perene também estão os
livros de memória, registros de um discurso autobiográfico
criado para falar de si mesmo. Essa modalidade de arquiva-
mento luta contra a morte e o esquecimento, como uma espécie
de versão menos moderna de refúgio do eu2, de sua história de
vida e das coisas que querem ser lembradas por alguns sujeitos/
autores. Frutos da releitura dos guardados (arquivos pessoais),
estas obras são aqui tomadas como “ego-documentos”, que
podem se referir a
[...]diversidade das formas de expressão escrita de
sentimentos e experiências pessoais. Do seu ponto
de vista, o ego-documento é um texto, de qualquer
forma ou tamanho, no qual um ego é deliberado ou
acidentalmente escondido ou descoberto (AMELANG
apud CUNHA, 2019, p.11).
Fontes perpassadas pelas experiências de vida e histó-
rias de si, estas obras lidam com vidas privadas e públicas,
trazendo relatos de memórias sociais e coletivas emaranhadas
2 Em comparativo as redes sociais e a imortalidade dos sujeitos na rede.
387
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
de sentimentos e pensamentos individuais. Comportam, em
seu substrato, arquivos pessoais, documentos reunidos e
guardados ao longo da vida que saem do silêncio do armário
quando publicizados nestes livros memorialísticos. Vontades
de verdade revestidas com a roupagem de uma história dita
absoluta e inquestionável, que se respalda em um discurso de
quem diz ter vivido ou testemunhado o acontecido narrado.
Neste artigo, lançamos mão desses livros para discutir
as histórias de fundo que neles estão inscritas, relativas à
confecção das narrativas sobre as cidades de Bananeiras e
Solânea, situadas no brejo paraibano. A primeira mãe da
segunda, marcada pela produção de café e pelos seus 140 anos
como cidade. Até a década de 1950 reunia grande extensão terri-
torial, constituída pelos distritos de Solânea, Borborema e Dona
Inês3. A segunda, filha rebelde, que nasce como Distrito de Paz,
passando pelos nomes de Vila Branca e Moreno, até ser mais
conhecida, em 1943, como Solânea, devido à grande produção
de fumo advindo da família das solanáceas. Vizinhas em fron-
teiras quase imperceptíveis, as duas trazem marcas distintas,
identidades expressas em seu casario e em suas formas de viver
e conceber a história que produzem sobre si mesmas. Digladiam
entre si representações opulentas, criadas e registradas nos
livros de memória que sobre elas tecem histórias ufanistas.
Esses escritos populares são, em grande medida, publi-
cados com recursos próprios. Não são arquitetados como uma
história acadêmica, dentro dos moldes pensados pela operação
histórica mencionada por Certeau (1988), mas são frutos de
experiências de vida e de mergulhos em acervos pessoais,
3 Em 1953 Solânea se emancipa de Bananeiras, seguida de Dona Inês e
Borborema, elevadas a município no ano de 1959.
388
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
reunidos em torno do desejo de criação de uma imagem de si e
da cidade. Geralmente atrelados a história dos grandes feitos,
ranços de uma corrente historiográfica positivista ainda muito
comum no formato de escrita desses livros, esses produtos
culturais tem se tornado fontes preciosas para se pesquisar
sobre a história de Bananeiras e Solânea, cidades carentes de
espaços institucionalizados como patrimônios documentais.
Concebidos também como “obras fronteiriças” (GLEZER;
ALBIERI apud PAIANI, 2014) por serem resultado da aproximação
entre a história e a literatura, esses livros memorialísticos lidam
com a imaginação, com o exótico, com aquilo que costuma estar
inacessível ao público em geral, uma vez que dizem respeito
ao local, a uma cultura da intimidade e do relacionamento
com as coisas da cidade, fatores que aproximam os sujeitos
leitores em torno de interesses comuns. Publicados sem um
interesse mercadológico amplo, o que tomamos como livros de
memória sobre Bananeiras e Solânea resguardam a intenção
do registro, da preservação de uma lembrança que anseia em
ser recordada e “entrar na história”. Conservam em si muitas
possibilidades, mas também muitos riscos, sendo necessária
a análise de suas intenções, de sua autoria e das estratégias
narrativas que lhes dão forma. Estas operações nos permitem
entender esses artefatos como lugares de memória, recintos de
uma fala localizável e dizível sobre as cidades. Nessas cidades
podem ser encontrados em dois formatos: 1. livros que narram
uma história individual - tema de discussão – estando a cidade
como cenário; ou, 2. Livros que trazem relatos de uma história
para a cidade, confeccionada a partir do olhar de quem produz
a narrativa – e, geralmente, testemunhou o vivido.
389
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
Quadro 1 - Tipologia dos livros de memória: alguns exemplos
Tema: Histórias Tema: Histórias
Cidade
de Vida sobre a cidade
“O Barão de Araruna e sua
“Evolução História de
Prole” (1978)
Bananeiras” (1968).
Autor: Maurílio Augusto
Autor: Humberto Nóbrega
de Almeida.
Bananeiras
“Retalhos de minh’alma”
“Bananeiras: Uma Visão
(2014)
do Passado” (2016).
Autora: Terezinha
Autor: Manoel Luiz da Silva
Coutinho Mendonça
“Um menino, uma vida” “Vila Branca – Romance”
(2003). (2003)
Autor: Eclésio de Oliveira Autor: Geraldo Nogueira
Maia de Amorim
Solânea
“Solânea. A idade da
“Felicidade Menina” (2017)
razão” (1987)
Autora: Lindalva de
Autor: Lailton de Oliveira
Oliveira Lima
Bastos
Fonte: elaborado pela autora (2020).
Condutores de uma memória coletiva, esses livros são
por nós também concebidos como “documentos/monumentos”.
Para Le Goff (2013, p. 485), “[...] os monumentos são herança
do passado, e os documentos, escolhas do historiador”. Nos
monumentos encontramos os sinais de um acontecido, as
recordações. Já o documento, apesar de seu caráter inventivo
e intencional, carrega a ideia – muitas vezes equivocada - de
“prova histórica”, sendo na verdade um testemunho escrito,
imagético e/ou sonoro do vivido. Com o alargamento de sua
concepção pela Escola dos Annales, a definição de documento
foi ainda mais ampliada, configurando-se “[...] como qualquer
390
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
coisa que fique por conta do passado, produto da sociedade
que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham
o poder”, mediante a isso “Só a análise do documento como
monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao histo-
riador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento
de causa” (LE GOFF, 2013, p.495). Nestes termos:
O documento é monumento. Resulta do esforço de
sociedades históricas para impor ao futuro – voluntaria
ou involuntariamente – determinada imagem de si
próprias. No limite, não existe documento-verdade.
Todo documento é mentira. Cabe ao historiador não
fazer o papel de ingênuo (LE GOFF, 2013, p.497).
Essa inventividade produtiva que detêm o documento se
torna vista nos livros de memória, em suas tramas/narrativas,
que trazem articulações e inclinações de seu autor ao registrar
um discurso histórico e memorialístico em detrimento de
outros acontecimentos e versões. Como ego-documentos eles
criam o cotidiano de um lugar e de seus sujeitos, sendo possível
percebê-los na
[...] desconstrução da monumentalidade nele implícita –
uma monumentalidade que nos chega da própria época
de produção do próprio documento. Boa parte dos docu-
mentos produzidos intencionalmente, com uma finalidade
(ou mesmo sem uma intencionalidade consciente) são
também “monumentos”: foram construídos para trans-
mitir uma determinada imagem social, para atender a
determinados interesses sociais ou políticos, para impor
uma certa direção ao olhar (BARROS, 2012, p.418).
391
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
Nessa trajetória acerca dos documentos, os arquivos
são, em sua maioria, os seus grandes guardiões. E, no caso dos
livros de memória, peças chaves de construção da narrativa
dita por verdadeira. Fragmentado, diverso e difuso, os fundos
documentais substanciam a história material, recolhendo e
reagrupando o que costuma estar espalhado aos quatro ventos.
Tido como “morto”, os arquivos são vulgarmente encarados
como “depósitos”, camadas que sedimentam várias tempora-
lidades e alimentam múltiplas maneiras de interpretação do
passado. Para Albuquerque Júnior (2019b, p.58),
Antes de ser um depósito de documentos, o arquivo
é um espaço arquitetônico e institucional. Antes de
entrarmos em contato com os tempos que nele se
acumulam, na forma de vestígios, de rastros, de restos,
de sinais, de signos, o arquivo já remete, ele mesmo, para
outras temporalidades que, se conhecidas, ajudariam
na leitura e na interpretação daquilo que ele guarda,
de seu acervo: a temporalidade de sua instituição e de
sua constituição.
Para o autor, o arquivo acaba se constituindo como uma
“arqueologia de nós mesmos”, local de começos, mas também
de significação e classificação. Além de representar os tempos,
sua guarda e ordenação simboliza uma historicidade que lhe
é própria. Fora também de espaços públicos e institucionais,
estão os acervos pessoais, dotados de sentidos e significados,
quando longe das operações técnicas/arquivísticas ganham
novos usos, um consumo que dota o arquivo como um “testa-
mento/testemunho” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019b).
Tal como os acervos pessoais, os livros de memória não
devem ser encarados como versões de uma realidade, mas como
392
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
representações dela (BURKE apud VIDAL: SILVA, 2020, p. 2). Nos
apropriando das reflexões de Vidal e Silva (2020) acerca dos
arquivos, ousamos pensar os livros de memória como repre-
sentações de uma ideia aproximada do que aconteceu, contos
recheados de histórias que foram vividas e relatadas sobre/no
passado, “como artes de fabricar significados para o ontem”
(VIDAL: SILVA, 2020, p. 2).
“Corpos de papel e tinta”, discursos saudosos e nostál-
gicos, “pedaços de um passado que ainda vive no presente”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019b), assim são os livros de memória
que traremos para reflexão neste artigo. Na linearidade de seus
escritos, nos depararemos com uma historicidade produzida
para os municipios de Solânea e Bananeiras, reapresentada
nas narrativas literárias que por meio dos símbolos do fumo
e do café, respectivamente, ganham vida quando contam e
registram imagens dessas cidades brejeiras.
Um desejo, uma vontade
de verdade e uma escrita:
Bananeiras nos livros de memória
Vidal e Silva (2020) ao discutir a História da Educação e o que
faz o historiador quando faz a história, aponta para a existência de
lugares de enunciação, do desafio de utilizar a palavra escrita como
um instrumento de trabalho. Segundo os pesquisadores, a narra-
tiva e seu autor, bem como as articulações desenvolvidas ao fazer
história, devem ser consideradas para pensar os desejos de verdade
que instaura aquele que faz/escreve o texto histórico e/ou literário.
393
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
Um gesto, que se inclina pela pesquisa e pelo registro,
revela a atividade de historiar um passado, inventariá-lo por
meio das memórias e suas materialidades (acervos pessoais).
Para Vidal e Silva (2020, p. 1),
conferir sentido aos tempos pretéritos não é uma tarefa
exclusiva de historiadores. É um ato constitutivo das
artes de escritores, curadores de exposições, [...] de
sujeitos que ao longo da vida colecionam registros...
Bem sabemos que os livros de memória nem sempre
são produzidos por historiadores de formação acadêmica. Em
Bananeiras, muitos livros podem ser encontrados de autoria de
pessoas que com a cidade estabelece laços de afetividade. Dois de
seus mais antigos livros de memória são a “Evolução Histórica de
Bananeiras” (1968)4, de Humberto Nóbrega e “O Barão de Araruna
e sua Prole” (1978), de Maurílio Augusto de Almeida.
O primeiro, publicado pela Editora Universitária, resulta de
um discurso de posse proferido em 19645 por Humberto Carneiro
da Cunha Nóbrega. Pessoense, nasceu no ano de 1912, vindo a
falecer em 18 de junho de 1988. Foi médico, presidente do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano, membro da Academia Paraibana
de Letras (APL) e vice-presidente da Academia Paraibana de
Medicina. Foi nomeado reitor da Universidade Federal da Paraíba
4 Uma versão desta obra também se encontra na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano, Volume 16, do ano de 1968, na qual
Humberto Nóbrega era 1º Secretário. Neste ano o autor também estava na
presidência do referido Instituto.
5 Acreditamos que tenha sido em comemoração ao ingresso do pesquisador
no Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, que aconteceu no dia 23 de
outubro de 1964
394
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
no ano de 1971. Autor de muitos livros6, Humberto Nóbrega é posto
como um pesquisador nato, tendo mergulhado nos emaranhados
da História em muitas de suas narrativas.
Fruto de uma real garimpagem de fontes, o livro destaca
o perfil investigativo de seu autor, quando ressalta o hábito que
possui com as práticas de arquivo:
Alguns amigos meus costumam apregoar, com doce malicia,
que sou detentor de um “verdadeiro” Arquivo Implacável, tal a
soma de documentos, notícias e informações, curiosidades,
retalhos históricos, que me acostumei a recolher durante a
minha vida (NÓBREGA, 1968, p. 4, grifo do autor).
O autor ainda adverte que a confecção desse livro diz
respeito a uma “atração que sempre experimentou pelas excen-
tricidades do já vivido”.
O tema do livro — a cidade de Bananeiras, foi fruto da
curiosidade em descortinar as origens mais remotas e
acompanhar a evolução daquele aprazível e dadivoso
recanto, de certo emanou da riqueza de sua faustosa
história, mas encerra também o sentido de uma home-
nagem ao outro responsável pela minha existência
(NÓBREGA, 1968, p. 5).
6 Entre eles: “História de Uma Cadeia Transformada em Palácio”, “Arte
Colonial da Paraíba”, “De convento a Palácio”, “Dois Tempos de Uma Cidade”,
“O Meio e o Homem na Paraíba”, “Cadeira nº 1 – Augusto dos Anjos”, “As
Raízes das Ciências da Saúde na Paraíba”, “Meu depoimento sobre o Padre
Zé Coutinho”, “História da Faculdade de Medicina da Paraíba” e “Augusto
dos Anjos e Sua época”.
395
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
A obra revela um ‘desejo de pesquisa’, pela ação de pers-
crutar/averiguar a trama, e um ‘desejo de memória’ por estar
atrelado às suas afetividades.
Esta prática de guardar e garimpar acervos históricos
também é descrita na orelha do livro, que apresenta o autor e
o operacionalizar de sua história da seguinte forma:
A cidade de Bananeiras, agora, possui o seu historiador,
e historiador ameno, que é Humberto Nóbrega. [...] O
material reunido por Humberto Nóbrega com relação
a Bananeiras foi obtido dos mais variados lugares,
desde os arquivos do Rio de Janeiro aos velhos de paró-
quia e antigas coleções de jornais. A tôda parte foi o
pesquisador com a mesma devoção, o mesmo senso de
reponsabilidade, a mesma predominância do sentido
de triagem, buscando o essencial e despresando o
acessório, o menos característico, Capítulo notável, é o
sôbre os jornais bananeirenses, sua ação civilizadora,
seu policiamento sôbre a sociedade, de então, bem
diferente dos jornais de hoje. Comentário honesto,
elegante e pitoresco, e que faz inveja a muita escola de
jornalismo, é o seu respeito (Virginius da Gama e Melo.
NÓBREGA, 1968. Orelha do Livro).
Sobre esta conduta de pesquisa, ainda adiciona Nóbrega
(1968, p. 6) que para escrita do livro também se pautou em
recolher o material, rebuscar velhos documentários,
entrevistar pessoas, convocar amigos. [...] As achegas
recolhidas foram tão abundantes que me vi perdido
naquela babel de provas, de estórias, de fatos pitorescos,
da variedade de noticiário, de notórios acontecimentos,
de figuras singulares sob vários prismas...
396
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
A perspectiva de tornar “estórias” em “História” é presente
na escrita do autor, reflexo da postura dos estudos realizados
pelo Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba – IHGP7.
Pinheiro (2019, p. 4), ao analisar as produções do Instituto
acerca da temática da educação na Paraíba, observa a impor-
tância desse espaço para a “elaboração ideológica de uma
possível ‘paraibanidade’ ou a algo que poderíamos chamar de
um ‘pensamento paraibano’”. Segundo o autor, o Instituto traba-
lhava com a ideia de uma Paraíba de história e escrita feita pelos
paraibanos, endossando que
[...] os fundadores do Instituto marcaram a si próprios
como um divisor de águas. Antes deles não havia
história da Paraíba, a partir daquele momento passava
a existir, começara a feitura dessa história (DIAS apud
PINHEIRO, 2019, p. 4).
A narrativa do livro “Evolução Histórica de Bananeiras”
nos leva a transitar, de forma linear e contínua, em um tempo
marcado pelas transformações e ciclos econômicos pelo qual
passou a cidade. Desde as “origens” do lugarejo (assinalada pela
escritura de doação da Vila de Monte-Mor para o patrimônio
da Capela de Nossa Senhora do Livramento, na qual morava
o capitão Gregório da Costa Soares, em 1763) à sua elevação a
Vila (10 de outubro de 1833) e à cidade (em 1879). Seus ciclos
econômicos justificam a sua ascensão, postos pelo autor como
quatro: a pecuária, a cana de açúcar, o café e o agave. O perfil de
seu povo não passa despercebido na história, quando assinala
7 O Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP) foi fundado em 1905 e
a publicação do primeiro número de sua revista foi em 1909 (PINHEIRO, 2019).
397
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
que Bananeiras é sede de “um povo diligente e empreendedor,
cordato e honesto” (NÓBREGA, 1968, p. 10). Figuras locais
surgem como heróis da cidade, homens do direito e das culturas
agrícolas são citados como personagens que respingam, na
escrita do autor, o poderio local.
Foi por meio dessa obra que mapeamos diversos lugares de
memória da cidade (como o Telegrafo e Correios de 1835), institui-
ções públicas e jornais (O ‘Lápis’, de 1902; ‘Cidade de Bananeiras’,
de 1908). Dados do cotidiano como a chegada das linhas férreas em
1922, os namoros, casamentos e demais festas de época também são
encontrados. Para Virginius da Gama e Melo8, na orelha do livro,
Humberto Nóbrega dá vida a história “ressuscitando mundos, com
a dedicada paciência dos verdadeiros realizadores que acreditam
no “devagar e sempre – que é afinal o mais árduo sacrifício” (apud
NÓBREGA, 1968. Orelha do Livro).
Já o livro de memória “O barão de Araruna e sua prole”
(1978) é de autoria de Maurílio Augusto de Almeida,
[...] natural da cidade paraibana de Bananeiras. Médico
de formação, foi professor catedrático e fundador da
Faculdade de Medicina da UFPB. Autodidata, dedicou-se
também à pesquisa e aos estudos sobre a história, publi-
cando cinco livros sobre a história da Paraíba, além
de ter acumulado uma vasta documentação datada do
século XIX e XX (CÓRDULA et al., 2020, p. 73).
8 “Virgínius da Gama e Melo nasceu no dia 19 de outubro de 1922, na então
cidade de Parahyba, atualmente denominada João Pessoa. Professor, crítico
literário, jornalista, escritor e teatrólogo, ele construiu sua base intelectual
em Pernambuco, mas veio morar em definitivo na Paraíba, onde manteve
intensa participação na cena cultural. Acadêmico, recebe o título Post
Mortem de membro da Academia Paraibana de Letra em 2017”. Citação
disponível em: https://auniao.pb.gov.br/noticias/caderno_cultura/associacao-pa-
raibana-de-letras-realiza-sessao-em-homenagem-a-virginius-da-gama-e-melo.
Acesso em: 28 ago. 2020.
398
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
A obra trata da biografia dos avôs do autor, trazendo
como tema a vida de seus familiares, e como cenário a cidade de
Bananeiras. Tanto Humberto Nóbrega quanto Maurílio Augusto
de Almeida possuíam vastíssimo acervo documental. O primeiro
foi cedido ao Núcleo de Documentação e Arquivo (NDA) do
Unipê – Centro Universitário de João Pessoa9. Já o arquivo de
Maurílio Augusto de Almeida “está localizado na sede da Editora
Abril, no centro da capital paraibana. O arquivo é mantido com
verbas privadas e seu acesso é restrito, apenas com a concessão
de familiares” (CÓRDULA et al., 2020, p. 73). Está constituído
de “amplo acervo, além da biblioteca pessoal, de documentos
referentes à história e cultura nacional, acumulados ao longo
da vida de seu titular” (CÓRDULA et al., 2020, p. 73).
Autor de diversos livros10, Maurílio Augusto também fora
membro do IHGP, e é reconhecido por Luis da Câmara Cascudo11
(apud ALMEIDA, 1978, p. 9), na apresentação da obra “O Barão
de Araruna e sua prole”, como:
O historiador [que] ressuscita avoengos e reavive
a imobilidade do mundo morto de Bananeiras,
9 “O acervo de Humberto Nóbrega é composto de livros, muitos deles raros,
miscelâneas, hemeroteca, documentos, periódicos, fotografias, álbuns, cole-
ções de selos, cartões postais, áudio, vídeo, cédulas, discos, quadros, além
de objetos pessoais do próprio colecionador e outros pertencentes ao poeta
Augusto dos Anjos”. Citação disponível em: https://old.unipe.edu.br/2012/08/14/
humberto-nobrega/. Acesso em: 27 ago. 2020.
10 Entre eles, “Eram seis as pétalas de Rosa”, “Diogo Velho em síntese”, “Por
amor e gratidão”, “Lembrando Pedro Augusto Almeida no seu centenário”,
entre outros.
11 “Luís da Câmara Cascudo foi um folclorista, historiador, professor e
jornalista brasileiro. Nasceu em Natal/ RN em dezembro de 1898, vindo a
falecer em 1986”. Disponível em: https://www.ebiografia.com/luis_da_camara_
cascudo/. Acesso em: 28 ago.2020.
399
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
movimentando as grandes figuras irradiantes,
enérgicas e serenas, criadoras das reminiscências
consagradoras da linda região paraibana. Sem que
passe a fronteira do território genealógico, conta-nos
a História, humana e simples, do trisavô Estevão
José da Rocha, Barão de Araruna, e do bisavô Felinto
Florentino da Rocha, Comendador da Imperial Ordem
da Rosa, sonho inquieto de Saquaremas e Luzias. É
a paisagem rural e verídica, valorizando Landlordes
fiéis [...]. Eles passaram na estrada existencial, mas os
rastros permanecem nas memórias como coordenadas
geógraficas no tempo (grifo nosso).
Para Câmara, a história ganha vida pela narrativa de
Almeida, “ressuscitando” personagens até antes desconhecidos
ao grande público. Fruto de uma operação genealógica, os
escritos emergiriam a história dos grandes senhores do café,
que na cidade de Bananeiras fizeram fortuna. Assim aconteceu
com Estevão José da Rocha e Felinto Florentino da Rocha, um
barão e outro comendador, pai e filho que se tornaram no livro
personagens assíduos do Ciclo do Café em Bananeiras, o tão
conhecido “ouro verde”.
Diferente da obra de Nóbrega, o livro traz um índice,
conduzindo o leitor a viajar nos meandros dos temas trazidos,
que com títulos poéticos orientam a trajetória da narrativa e
o olhar do leitor. No primeiro capítulo, intitulado “O tronco
da árvore”, o autor tece a árvore genealógica de Estevão José,
citando sua prole e as memórias de seus antepassados. A lineari-
dade dos acontecimentos e a continuidade do tempo são traços
também encontrados no texto, uma vontade de verdade que
se fundamenta na memória de quem testemunhou e ouviu de
perto falar dos feitos que escreve. São vultos heroicos, ícones
construídos para se discorrer sobre a história da cidade. Tais
400
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
memórias individuais se tornam públicas, pelas similitudes que
travam com a história local.
No último capítulo, nomeado de “A luz da história”, o
autor finaliza discorrendo sobre o “legado” que deixou os seus
familiares na cidade de Bananeiras, antes de tudo pautado no
exemplo moral e virtuoso que inscreveram na história local.
Assim cita Almeida (1978, p. 171):
Os vultos mais distinguidos da vida pública, pelos seus
feitos de repercussão intensa, são aqueles que de regra
animam as paisagens sociais da História. Lembrei-me
desta verdade no início desta memória. Mas aduzi, sem
embargo, a história circunscrita a uma região, ou até
mesmo a um simples povoado, é às vezes esclarecida em
alguns dos seus aspectos pela contribuição originária
de alguns homens singularmente bem dotados. Os
atributos e as virtudes que tenham cultivado, semeando
exemplos, explicam a razão de ser da vida cotidiana em
muitas passagens atuantes.
Para Vidal e Silva (2020, p. 1), as diferentes interpretações
do passado “são datadas e resultantes de negociações entre
representações concorrentes sobre o hoje e o ontem, constituídas
pelos grupos em competição na sociedade ao longo da história”.
Em Bananeiras, narrativas como a de Maurílio Augusto de
Almeida continuam reforçando a participação de grandes vultos
na escrita da história sobre a cidade. É preciso estarmos atentos
ao que cita Vidal e Silva (2020, p. 2), quando alertam que
[...] as representações constituídas durante a cons-
trução das coletâneas documentais e a articulação
da narrativa devem ser percebidos, para além das
inclinações do autor, como partes integrantes de uma
operação historiográfica elaborada com o objetivo de
estabelecer regimes de verdade.
401
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
Como livros de memória sobre Bananeiras, de estilo de
escrita e formato semelhantes aos de Humberto Nóbrega e
Maurílio Augusto de Almeida está outro, o “Síntese Histórica
de Bananeiras” (1996) de Antônio Montenegro. Não é nosso
objetivo, para este artigo, analisá-lo em profundidade, até por
que optamos por trazer também à tona uma reflexão a respeito
de outro escritor local profícuo, que tem tomado Bananeiras
como seu lócus de debate. No entanto, achamos interessante
citar como é apresentada a obra de Antônio Montenegro12,
que nas entrelinhas deixa-nos perceber a visão da escrita da
história que embasa o livro:
Um dos principais dons de um escritor é deixar que passe
com clareza de estilo, para o leitor comum, as impressões
de uma observação lúcida e incontestável do mundo
em sua volta. Isso pode ser confirmado à medida que
há escritores que, na ânsia de fotografar o seu interior,
ultrapassam os limites da normalidade e se perdem na
alvoragem dos sentimentos. A informação como meio de
até auxiliar na formação de opiniões das pessoas comuns
deve ser fria e desapaixonada. Tem que ser somente a
informação, o conteúdo observado e descarregado de
sentimentos pessoais de quem a oferece. Assim é com
grande prazer que apresentamo-lhes o livro “Síntese
Histórica de Bananeiras” [...] (Inaldo Soares dos Anjos.
apud MONTENEGRO, 1996, p. 6).
12 Concluiu o curso de Cooperativismo no Antigo Centro de Formação de
Tecnólogos da UFPB, atual Centro de Ciências Humanas, Sociais e Agrárias.
Até o término deste trabalho não encontramos mais informações sobre ele.
Ainda na apresentação de sua obra, Inaldo Soares dos Anjos o descreve como
“observador astuto do “cosmos”, pessoa das mais instruídas do nosso meio
literário” (apud MONTENEGRO, 1996, p. 6).
402
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
Uma narrativa fria de sentimentos e extremamente
comprometida com a informação, é o que atesta Inaldo Soares dos
Anjos13 como a escrita exemplar da história. Para ele, Montenegro
retrata vividos momentos de nossa história vivenciados
pelo escritor e por muitas pessoas de nossa sociedade,
além de trazer a baila lendas e fatos que nortearam a
nossa formação política, administrativa e cultural (apud
MONTENEGRO, 1996, p. 6).
Essa forma dita “imparcial” e “neutra” de escrever a história
é fruto de um ranço positivista, que se contrasta ao que cita
Artières (1998, p. 11), quando menciona as práticas de subjetivação
que envolve o fazer historiográfico e o arquivamento do eu:
Dessas práticas de arquivamento do eu se destaca o
que poderíamos chamar uma intenção autobiográfica.
Em outras palavras, o caráter normativo e o processo
de objetivação e de sujeição que poderiam aparecer a
princípio, cedem na verdade o lugar a um movimento
de subjetivação.
Endossa o debate Vidal e Silva (2020, p. 2), quando
convidam o historiador a “permanecer alerta para as disputas,
emoções, tensões e negociações que estiveram (e permaneceram)
envolvidas no (interminável) exercício de atribuição de sentidos
ao passado...”. O livro citado anteriormente é uma publicação da
Editora Universitária da UFPB, e aparenta ser um instrumento
de denúncia política de alguns “causos” vivenciados na história
13 Professor de Língua Portuguesa do Departamento de Ciências Básicas e
Sociais da Universidade Federal da Paraíba, Campus III. Infelizmente, até o
término deste trabalho não encontramos mais informações sobre ele.
403
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
de Bananeiras. Tendencioso em sua escrita, o autor deixa um
recado ao leitor no prefácio, quando cita:
Não há livro bom nem livro ruim. O que há é leitor bom e
leitor ruim. O leitor bom é aquele que ‘saca’ a mensagem,
quer a mensagem seja boa, quer a mensagem seja ruim.
O leitor ruim é aquele que apenas ‘ensaca’ a mensagem,
qualquer que seja ela (MONTENEGRO, 1996, p. 8).
Em Bananeiras, um outro autor tem chamado a atenção
como um intelectual local, se destacando pela intensa produ-
tividade de publicações sobre a cidade, estamos falando de
Manoel Luiz da Silva14. O autor
[...] nasceu do Estado de Alagoas, em União dos Palmares,
na Fazenda Anhumas, filho de pais assalariados. Na
adolescência foi interno da Escola Agrotécnica “Floriano
Peixoto”, em Satuba, para estudar os Cursos de Iniciação
Agrícola e Mestria Agrícola, depois transferido para
Escola Agrotécnica “Vidal de Negreiros”, em Bananeiras
- Paraíba, onde fez o Curso Colegial Agrícola, com
formação em Técnico em Zootecnia (SILVA, 2011)15.
Após sua formação técnica na Escola Agrícola, ele perma-
neceu em Bananeiras, fazendo da cidade o seu lar. Trabalhou
durante décadas no Arquivo do Centro de Ciências Humanas,
14 Sobre ele produzimos um artigo intitulado “O Guardador de memórias:
‘Seu Manoel’ e a História da Educação de Bananeiras” (ANDRADE; SOUZA,
2017). Parte desta discussão se encontra pontuado nesse texto.
15 Texto retirado da orelha do livro.
404
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
Sociais e Agrárias – CCHSA16, sendo também um dos respon-
sáveis pelo Memorial do Colégio Agrícola Vidal de Negreiros
– CAVN17. Manoel Luiz da Silva ainda foi Vice Presidente do
Conselho Municipal de Cultura e Turismo (1997), Diretor da
Divisão de Cultura (1998) e Coordenador da Biblioteca Pública
Municipal Dr. José Antônio Aragão (2010-2012). Essa biblioteca
conta com um pequeno acervo documental, além de possuir
obras raras datadas no séc. XIX.
Diante de um contexto tão árido de fontes documentais
sobre a história desta cidade18, seus livros estão sempre sendo
referenciados como indicações de leitura em pesquisas que
sobre ela se debruçam. Em sua arte escriturária, podemos
encontrar as seguintes publicações:
16 Ainda em 1976 este espaço se denominava como Centro de Formação de
Tecnólogos (CFT), recebendo o atual nome apenas em 2008. Ele se situa como
Campus III da Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
17 Atual nome do antigo Patronato Agrícola Vidal de Negreiros, escola agrícola
criada pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio em meados de 1924.
18 Desde o ano de 2015 que temos desenvolvido trabalhos de levantamento e
digitalização de fontes impressas (jornais, revistas, documentos municipais)
sobre a cidade. Elas estão situadas no repositório digital História da Educação
de Bananeiras – HEB: www.cchsa.ufpb.br/heb
405
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
Quadro 2 - Livros de memórias de Manoel Luiz da Silva
Título Ano
Colégio Agrícola no prenúncio de seu centenário 2019
Bananeiras: Uma Visão do Passado 2016
De Freguesia a Paróquia de Nossa Senhora do
2015
Livramento – 180 anos Servindo em Missão (1835-2015)
História do Patronato ao Colégio Agrícola nos seus 90
2014
anos
CAVN- Uma história para a posteridade. Fatos em Fotos 2012
Satuba: Escolas de muitos... Privilégio de Poucos 2011
Colégio agrícola “Vidal de Negreiros” sua História “em
2009
poemas”
Bananeiras. Apanhados Históricos 2007
Reminiscências: de Patronato a Colégio Agrícola. 80 anos
2004
de História
Uma volta ao passado 1999
Bananeiras em Poemas e Crônicas 1999
Bananeiras: sua história seus valores 1997
Vida e Obra de José Augusto Trindade 1996
Reminiscências: Capítulos da história do Patronato
1994
Agrícola
Luz e Sombra – Crônicas e poemas de Dona Hilda 1993
Fonte: Elaborado pela autora (2020).
Nesses livros acima listados encontramos também uma
narrativa aos moldes positivistas, preocupada em historicizar
a cidade e, mais especificamente, o Patronato Agrícola Vidal de
Negreiros, tema de 6 de seus 15 livros. Nas obras dedicadas ao
Patronato destacamos a existência de aspectos revisionistas,
isto é, conteúdos reeditados com alguns acréscimos, onde a eles
406
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
novos títulos são incorporados. O desejo de publicar os feitos da
instituição que o formou, parte não apenas da guarda destas
memórias, mas sim da divulgação de histórias que acabam se
mesclando a sua própria vida, como membro integrante deste
momento da história da cidade.
Se torna válido destacar que seus escritos são respon-
sáveis por elencar diversas informações para o estudo da
história local, desde a data de acontecimentos postos como
“mitos fundantes” da cidade ao mapeamento e inauguração
de prédios históricos, hoje tombados pelo IPHAEP pelo Decreto
31.842/2010. Em uma de suas obras ele cita:
O escritor não é só aquele que se apossa de uma
cadeira cativa nas Academias de Letras, nos Institutos
Históricos e Geográficos de cada estado, nos Tribunais
Literários, eles são de relevantes importâncias. Mas,
também, aquele curioso e interessado em publicar
seus escritos, optar sobre os fatos que se realizam
quotidianamente. Escrever e editar assuntos de uma
região, um fato que se tornou importante e possa servir
como fonte de pesquisa em tempos futuros. Eu faço
parte desse resumido público, não como um animador,
mas pela dimensão de produtor literário, que procura
teimosamente colaborar e dividir com os interessados
essa importante missão, levando aos leitores e amigos
o quão é importante difundir os fatos e feitos de sua
terra e de sua gente (SILVA, 2019a, p. 5).
Eis a função social de suas obras, a de (in)formar a história
que produz sobre o lugar, por meio de pesquisas e do desejo que
lhe move em fazer conhecer o pedaço de chão que o cativou e o
fez amar. Escavador de arquivos, assim como Humberto Nóbrega
e Maurílio Augusto Almeida, Manoel Luiz da Silva trabalha com
407
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
fontes documentais que respaldam sua escrita, uma vez que
o autor podia ser considerado, por décadas, curador de três
acervos documentais, tanto do Patronato Agrícola quanto do
Memorial do CAVN e da Biblioteca de Bananeiras. No entanto,
os documentos consultados são recorrentemente transcritos em
seus livros sem referendar as fontes ou serem problematizados.
Como homem das letras, Manoel da Silva anseia pela
guarda do passado e das memórias da cidade que escolheu para
viver, levantando para si um ‘dever de memória’ e um ‘dever
de registro’. Seu instrumento é a palavra escrita (a história)
e os arquivos sua prática cotidiana. Enquanto uma ego-nar-
rativa anunciada de sua própria vida, encontramos de forma
identificada o livro “Satuba. Escolas de muitos... Privilégio de
Poucos” (2011). Nele, Manoel da Silva relata momentos da sua
juventude enquanto estudante, especialmente entre os anos de
1958 a 1962 quando foi aluno interno da Escola Agrotécnica de
Satuba, situada no estado de Alagoas. Fruto de um
[...] passado saudoso, envolvendo as coisas boas que se
passaram e que não voltarão jamais, somente através
da literatura para fixar na memória de colegas, amigos
e contemporâneos toda uma história real em volta de
uma escola que possibilitou a muitos o ensino, bem
estar social e cultural, além do início de vida rumo ao
futuro (SILVA, 2011, p. 14).
A vinda para Bananeiras e as lembranças dos tempos
escolares tracejam o roteiro trilhado pelo autor para narrar
parte de suas memórias. “Arquivador”, Manoel da Silva é um
genealogista, que construiu para si “[...] uma arca com a carne
sangrenta das matérias que o afetam e, nela, dispondo os
modos como lida com os problemas que cria” (CORAZZA apud
408
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
AQUINO, 2019, p. 7). Foi por meio do seu vasto acervo pessoal que
conseguimos ter acesso a um significativo número de jornais
e demais fontes históricas sobre a cidade, hoje dispostas em
nosso acervo digital19.
Em Bananeiras, ele passa a ser reconhecido como um
sujeito que vive na e da História. Essa referência ao que é histó-
rico o levou a se intitular como historiador20, assinando colunas
e textos com a formação que gostaria de estar associado. Seus
livros foram todos publicados com recursos próprios, sendo
algumas vezes auxiliado por órgãos públicos.
Autores memorialísticos como os que já trouxemos aqui
são suas referências e inspirações, é o que ele denuncia na
apresentação de uma de suas obras:
Em 1997, publicamos o primeiro livro sobre o município
intitulado “Bananeiras – sua história e seus valores”,
elaborado quase em forma de crônicas, relatando suas
atividades de uma maneira superficial, com informe
de pessoas idôneas e sinceras em suas afirmações e de
outros informantes dentro do “ouvi dizer”, tendo em
vista a pouca falta de informações literárias sobre o
município, apenas registros levantados pela APL, IHGP,
na revista Era Nova e outros historiadores, no quilate
19 Além dos jornais “O Labor” (1886-1887), “A encrenca” (1957 e 1958), “o
Disco Voador” (1955), “O Renovador” (1964-1965), “A Escalada” (Ano 2, Nº5) e o
“Jornal Era Nova” (1916), o autor nos concedeu acesso a inúmeros documentos
avulsos e escolares, e hoje possui uma pasta com seu nome no repositório
digital “História da Educação do Município de Bananeiras. Para conhecê-la
acesse: http://www.cchsa.ufpb.br/heb/contents/arquivos/acervos-pessoais/
seu-manoel-1. Acesso 30/08/2020.
20 Em entrevista concedida no ano de 2017, seu Manoel cita que já foi aluno
do curso de História na Universidade Estadual da Paraíba, mas que não
chegou a concluir o curso.
409
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
de Celso Mariz, Maurilio Almeida, Humberto Nóbrega,
Iveraldo Lucena e outros (SILVA, 2019b, p. 12).
Celso Marques Mariz era jornalista e nasceu em 1885
no município paraibano de Sousa, sendo autor de diversos
livros21 que buscam construir e dar relevo a uma ideia de
história paraibana. Já Iveraldo Lucena escreveu “Nas Veredas
de um Andarilho. Bananeiras, Educação e Cultura” (2003), e
“Contos que conto e outras histórias” (2014)22. Na primeira obra
o bananeirense é apresentado como “Advogado, professor de
História, jornalista bissexto, administrador escolar, animador
cultural, mas, sobretudo, pedagogo e educador. [...] um anda-
rilho de boa cepa”. Sua história inspirou a produção de um
filme documentário intitulado “O Andarilho”, produzido pelo
diretor Cao Guimarães em 2007. Ambos os autores são vultos
intelectuais que inspiraram a leitura e a escrita de Manoel Luiz
e de outros paraibanos.
Os escritores que aqui apresentamos são, em grande
maioria, historiadores de ofício, mais que de formação, e como
Manoel Luiz devem ter sido “contaminados pelo vírus da
História”23 (SILVA, 2017). Como “tecelões dos tempos bananei-
renses”, “artesãos das temporalidades brejeiras” vividas pelas
cidades, os autores realizam um “papel pedagógico, transmi-
tindo as experiências das gerações passadas” em suas obras
21 Entre eles “Através do Sertão” (1910, “Apanhados da Paraíba” (1922),
“Evolução Econômica da Paraíba” (1939), etc.
22 A segunda “reúne artigos e minicontos, inspirados em fatos narrados por
familiares do professor de história que foi secretário de educação e pró-reitor
de extensão e assuntos comunitários da Universidade Federal da Paraíba”.
23 Citação de Manoel Luiz da Silva, em entrevista concedida a autora em 2017.
410
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2019a, p. 29). Mas, é preciso estarmos
atentos que seus escritos não reconstituem o passado e nem
ressuscitam “mortos”, sendo discursos que devem ser postos
em suspensão para se analisar e confeccionar outras versões
históricas para estas cidades.
Solânea: uma história tecida
pelos livros de memória
Moreno seria um ramalhete coroando o planalto, com
uma população de dezenas de milhares de indivíduos
encaixotando para todas as partes do mundo o mais
procurado tabaco; exportando seus charutos, muito
mais cheirosos, de fumaça muito mais azulada do que os
famosos Havana (MEDEIROS apud CARVALHO, 1975, p. 6).
Solânea é uma cidade jovem, mas que possui uma longa
história. Diferentemente de sua mãe, Bananeiras, traz ares
bem comerciais, característicos de um ciclo econômico intenso
baseado no fumo. Em 1926, foi intitulada como Distrito de Paz
e em novembro de 1938 receberia a categoria de Vila Branca
pelo Decreto-Lei Nº1.164. Mas, seria apenas nos idos de 1943 que
Moreno, como era comumente chamada, passaria a ser conhe-
cida como Solânea, devido à grande produção das solanáceas.
Distrito de Bananeiras até os primeiros anos da década de
1950, ela possui com esta última grande proximidade espacial,
sendo difícil distinguir, para aqueles que não a conhecem, as
fronteiras que demarcariam seu território. Emancipada em
26 de novembro de 1953, essa então cidade parece ainda não
411
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
perceber a importância de guardar as fontes históricas como
registros de um passado que um dia já aconteceu, foi o que cons-
tatamos nas pesquisas que já desenvolvemos sobre ela24 e na
ausência de arquivos públicos e institucionais para a consulta
de documentos históricos.
Em 04 de setembro de 2003 chegou a ser fundado na cidade
um Instituto Histórico e Geográfico sob a gestão de Wolhfagon
Costa de Araújo, que logo encerraria suas atividades. Não encon-
tramos fontes históricas a disposição e acesso da comunidade, a
maioria dos documentos se encontram em acervos pessoais, daí
a importância da prática de arquivamento do eu para a escrita
da história. Os historiadores encontram nesse hábito cobiça e
paixão, uma vez que são esses guardados pessoais “peso em ouro”
para o métier do pesquisador. Eles adquirem
[...] a custa de esperteza algumas folhas de papel cujo
branco um personagem qualquer cobriu de preto, sobre
o qual ele expôs, com uma tinta mais ou menos bela,
com caracteres mais ou menos finos, suas ideias, suas
opiniões, seus sentimentos, suas paixões, suas afeições,
suas ambições, suas cóleras (ARTIÈRES, 1998, p. 21).
A cidade conta apenas com uma pequena Biblioteca
Pública Municipal – a Padre José Fidélis, composta de livros
didáticos e paradidáticos que silenciam a busca por documentos
históricos e livros de memória que narrem sobre ela. Foi nos
24 Projeto de Iniciação Científica (2019-2020): “Rastreando o ‘registro
histórico’ das instituições escolares: a constituição do Arquivo da Secretaria
Municipal de Educação de Solânea ∕ PB”; Projeto de Iniciação Científica (2020-
2021): “Lugares de memória, sociabilidade e educação nos municípios de
Bananeiras e Solânea/PB: produzindo materiais didáticos para o debate da
história local”.
412
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
acervos pessoais de Edinaldo Pinto Júnior e Wolhfagon Costa
de Araújo que conseguimos mapear alguns jornais e livros de
memória produzidos na cidade. Sobre os livros, temos:
Quadro 3 - Livros de Memória - Solânea
ANO DE
LIVRO DE MEMÓRIA AUTOR
PRODUÇÃO
Felicidade Menina Lindalva de Oliveira Lima 2017
Crônicas e Causas: aos 58 de
Wolhfagon Costa de Araújo 2013
minha cidade e 60 de Solânea
Vila Branca - Romance Geraldo Nogueira de Amorim 2003
Um menino, uma vida Eclésio de Oliveira Maia 2003
Um olhar sobre Tancredo de
Wolhfagon Costa de Araújo 2003
Carvalho e outros solanenses
Solânea. A idade da razão Lailton de Oliveira Bastos 1987
Memórias de um Brejeiro Tancredo de Carvalho 1975
Um peregrino de fé. Vida, época
Luís Pinto 1965
e obra do padre José Pinto
Fonte: quadro elaborado pela autora (2020).
Como já fora mencionado, também os livros de memória
confeccionados sobre Solânea foram encontrados em dois
formatos: o primeiro ‘autobiográfico’, toma como tema a vida
de um sujeito e a cidade como cenário; o segundo tematiza
especificamente a cidade, trazendo as memórias como fontes
de informação. Para este artigo, tomaremos dois livros para
reflexão: “Memórias de um Brejeiro” (1975), de Tancredo de
Carvalho e “Um olhar sobre Tancredo de Carvalho e outros
solanenses” (2003) de Wolhfagon Costa de Araújo.
413
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
O primeiro é um dos livros de memória mais antigos que
encontramos sobre Solânea, foi escrito por Antônio Tancredo
de Carvalho, engenheiro agrônomo, jornalista, professor e
político, sendo um dos fundadores do Grêmio Morenense. Essa
entidade lítero-recreativa surgiu em 1924, sendo inaugurada
apenas em 24 de maio de 1927, como um espaço de sociabilidade
e cultura. Recebe este nome devido ao Distrito de Moreno, como
se chamava Solânea à época de sua criação.
Tancredo de Carvalho, foi também proprietário do
primeiro jornal confeccionado na cidade “Correio de Moreno”,
produzido na década de 1920. O jornal tinha a sua direção e a
de Leôncio Costa, tendo como redator-chefe Abdias de Oliveira.
Ainda constituía a equipe editorial do jornal os professores
Alfeu Rabêlo e Rodolfo Pontes. Possivelmente circulou até os
anos de 1930, quando a tipografia que o imprimia foi fechada
por dificuldades financeiras. Na década de 1980, sob a direção do
atual prefeito de Solânea, Arnóbio Viana, o periódico ressurge,
agora tendo como redator Geraldo Belo da Silva e editores José
Carlos Aguiar e Cleginaldo Clementino.
Primeiro prefeito interino de Solânea em 1953, Tancredo
de Carvalho foi um dos principais militantes pela emancipação
de Solânea. Enquanto Distrito, a cidade comprara uma rusga
com Bananeiras pela sua independência. Sobre essa querela,
anuncia Carvalho (1975, p. 33):
Foi o “pomo da discordia”, entre os solanenses e bana-
neirenses. Era a luta das cidades contra os distritos
que floresciam e, como grandes redutos eleitorais,
canalizavam rendas para os cofres dos Municípios. O
presidente João Suassuna, nessa altura dos aconteci-
mentos, respondendo a uma carta de Leôncio Costa,
dizia-lhe que tinha o dever de, na contenda entre
414
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
Moreno e Bananeiras, preferir ficar com os bananei-
renses. [...] Calcando leis e regulamentos, exonerou-me
do cargo de professor público da escola “Celso Cirne”,
apesar de minha nomeação efetiva para uma escola que
era em homenagem à memória do Dr. Celso Cirne, sendo
a mesma transferida para a cidade de Guarabira.
O resultado foi a exoneração de Tancredo de Carvalho
do cargo de professor, por ser amigo e companheiro de lutas
políticas de Leôncio de Costa, este último que foi conselheiro
municipal, líder político e ativista pela emancipação de Moreno,
atual Solânea. Carvalho
Teve uma atuação marcante na vida política e social
paraibana. Foi adjunto de promotor público e professor
em Bananeiras; candidato a deputado estadual e
secretário da Prefeitura Municipal de Campina Grande,
chegando a assumir aquela instituição interinamente.
Foi aceito no IHGP em 18 de fevereiro de 1968. Foi,
todavia, como funcionário público, presidente da ASPEP
e jornalista (fundador do Correio de Moreno, Brasil e
Jornal da Paraíba) que o primeiro prefeito de Solânea
se destacou (ARAÚJO, 2003, p. 34).
Assim como Humberto Nóbrega e Maurílio Augusto
de Almeida, Tancredo de Carvalho também fora membro do
IHGP, sendo — como os demais — um influenciador teórico
na construção desta “paraibanidade” (PINHEIRO, 2019). Mais
um escritor paraibano produzindo histórias sobre a Paraíba,
acreditando “reconstituir” um passado pelo seu exemplo moral.
Segundo o autor
415
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
Escrevi estas memórias aproveitando parte do meu
veraneio na minha casita, localizada na bucólica a apra-
zível Praia Ponto de Mato (Cabedelo), distante de João
Pessoa dezoito quilômetros, levado mais pelas gratas
reminiscências da minha vida, do que mesmo pelo desejo
de projeção literária. A minha única preocupação foi
sempre passar pela vida deixando alguma coisa como
marco dessa passagem, mesmo que fosse o testemunho
das minhas modéstias memórias, pois, no meu entender,
o que é necessário sobretudo é ter o homem a coragem de
enfrentar a vida, saber envelhecer e se colocar na berlinda
para a crítica dos pósteros (CARVALHO, 1975, p. 5).
Fundamentado nas fontes que ele mesmo produziu,
Tancredo de Carvalho aponta que sua escrita foi desinteres-
sada quanto ao âmbito acadêmico, e traça em seu livro desde
a “origem” da Vila até as “estórias e costumes” que nela eram
vivenciados. Um cotidiano de época é desenhado para a cidade,
desde questões políticas, às festas de São João, do padroeiro
Santo Antônio e dos tradicionais carnavais, acontecimentos que
se confundem, na trama, com as memórias de sua própria vida,
como as bodas de ouro de seu casamento com Dona Anália.
Não tenho anotações da minha vida particular, escrevi
o que me veio a memória. Da vida pública, como homem
de jornal, político, dirigente de classe servir-me, no
entanto, de transcrições dos jornais que fundei e
dirigi, como o CORREIO DE MORENO, BRASIL NOVO,
JORNAL DA PARAÍBA, editados, respectivamente, no
antigo MORENO, hoje SOLÂNEA, Campina Grande e João
Pessoa, nas primeiras décadas deste século, além de
documentos e correspondências de meu arquivo parti-
cular. Não faço ficção: tudo é verdadeiro na expressão
do que sinto (CARVALHO, 1975, p. 5, grifo do autor).
416
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
Em homenagem ao seu centenário, Wolhfagon Costa de Araújo
lança, no ano de 2003, o livro “Um olhar sobre Tancredo de
Carvalho e outros solanenses”, editado e publicado pelo próprio
autor, com apoio do Instituto Histórico e Geográfico de Solânea,
por ele coordenado à época. Apresenta o livro Manoel Batista de
Medeiros, representante da Academia Paraibana de Letras e do
IHGP. Sobre este livro relata o autor que seria uma composição
de impressões,
Impressões são visões, são olhares que subjetivamente
se imprimem, se passam aos leitores. Se forem romance-
adas podem conter fatos ou circunstâncias imaginárias,
fictícias ou exageradas; podem carregar paixões e
contradições. As vezes são frutos de elucubrações. [...]
Contudo não quero perder o compromisso e a hones-
tidade com a história, percebida esta dialeticamente.
Não estou querendo esquecer, assim, as contradições
e interesses das classes solanenses, embora não venha
aqui explorar, didaticamente e cientificamente, posto
que a esta tarefa não me dispus... (ARAÚJO, 2003, p. 17).
O livro traz uma escrita que não destoa das demais,
exceto quando aparenta historiar a partir de um lugar teórico
marxista. Apesar do autor não ser um historiador, ele esclarece
ao seu leitor que seu texto é “acadêmico”, por cumprir com os
rigores metodológicos exigidos pela ciência, e nas entrelinhas
endossa o lugar de produção de sua escrita. Diz o autor:
Nessas notas me coloco sob duas situações. Se não
antagônicas, mas complexas: de um lado, como ser
objetivo, procurando fazer uma leitura efetivamente
histórica sobre os acontecimentos e da realidade
própria de um trabalho acadêmico, de uma produção
técnico científica; de outro, como ser emocional com os
417
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
fatos, sem comprometer a sua veracidade?! Espero que
este aspecto não comprometa a intenção primária deste
trabalho, que consiste na tentativa de reconstituir um
pouco a nossa história. [...] Para problematizar o nosso
cosmos telúrico tão pequeno de Solânea e pincelar os
traços de uma fisionomia de seu passado, nessa recons-
tituição não terão lugar apenas os nomes sedutores e
nobres da imponência. Mas, também merecerão resgate
aqueles anônimos, a gente mais simples do povo, que
ajudaram a construir, com seus suores e seus sorrisos,
cada pedaço de nossa terra (ARAÚJO, 2003, p. 11).
Preocupado em trazer um relato sobre Tancredo de
Carvalho, sua infância, formação escolar e acadêmica, sua
atuação política e profissional, o autor também chama a sua
narrativa homens comuns, que apenas em Solânea seriam
reconhecidos, dedicando a eles um capítulo de seu livro. Assim
acontece com “Pedro dos Índios”, que ocupa no sumário lugar
junto a Tancredo de Carvalho e Leôncio Costa. Assim como eles,
outros personagens do cotidiano são citados em sua escrita (é
o caso de “Seu Zuca”, das professoras Aldenira Rocha e Elza
Pessoa, dentre outros moradores de Solânea).
Nos capítulos do livro, temos uma escrita em primeira
pessoa, memórias do autor que se refletem na narrativa. Assim
acontece com o tópico dedicado ao “IHGS” — Instituto Histórico
e Geográfico de Solânea, que o autor presidia. Ele capta desde as
suas próprias emoções até a reação de quem estava presente na
solenidade de reconhecimento a fundação do IHGS, proferida na
Câmara. Como o seu próprio título cita, o livro foca primordial-
mente na história de vida de Tancredo de Carvalho, mas tematiza
ainda o cotidiano e os lugares de memória de Solânea, ao citar
o cinema, a Rádio, o Grêmio Morenense, o Estádio Tancredão,
dentre outros recintos de sociabilidade na cidade.
418
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
Para fundamentar seus registros, o autor atesta que se
utilizou de poucas fontes, entre elas o próprio livro escrito por
Tancredo de Carvalho — “Memórias de um brejeiro” (1975) e a
conferência “Tancredo de Carvalho no Instituto Histórico” de Luis
Pinto. Cita ainda outras fontes ao longo do texto, como os jornais
“Correio de Moreno” (década de 1980) e “Correio da Paraíba”
(2003), além de outros livros de memória, como “Bananeiras
— Sua História e seus valores” (1997) e “Vila Branca” (2003), de
Geraldo Nogueira de Amorim, obra produzida em comemoração
ao jubileu de ouro de emancipação política de Solânea.
Muito ainda há para ser analisado nesses livros, mas
alguns traços sobressaem em comum em todos eles, como
uma escrita ufanista e prodigiosa sobre as cidades, vultos
que são ressuscitados como ícones e postos como modelos
exemplares aos municípios, por defenderem suas causas ou
ainda por se dedicarem – tal como os autores das obras, a
desvendar a história que os antecedeu. Em todas as narrativas
aqui trazidas encontramos o desejo de verdade, balizado pela
ideia de “comprovação documental” dos fatos contados, como
se estivessem reconstituindo, no imaginário do leitor, o passado
tal qual aconteceu.
419
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
Considerações Finais
Não foi nosso objetivo adentrar na problematização dos
conteúdos históricos trazidos pelos livros de memória aqui
listados, mas sim perceber como esses ego-documentos são
produzidos, sendo importantes fontes para se perscrutar o
passado das cidades de Bananeiras e Solânea. Por meio destas
memórias, individuais e coletivas, temos dados que desenham
acontecimentos passados, histórias de vida imbricadas em fatos
cotidianos que possuem sentido e significado na história local
dessas cidades.
As histórias confeccionadas no interior destes livros de
memória correspondem a crônicas, a um “arrolar de eventos e
de suas datações, um amontoado de fatos coloridos, dispersos
e dispostos aleatoriamente” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019a, p.
30). Produzidas por não historiadores (em sua grande maioria),
essas narrativas são caracterizadas pela uniformização e esta-
bilidade de um olhar mais conservador da história dos grandes
vultos, livros repletos de um conteúdo factual, definido pela
articulação entre documento, oralidade, afetividade e escrita.
Discutir esses livros de memória foi, para nós, tratar
de acervos pessoais como fontes históricas, frutos de um
arquivamento da vida e de uma “ciência de escrita ordinária”
(ARTIÈRES, 1998, p. 12), onde “para existir, é preciso inscre-
ver-se” (ARTIÈRES, 1998, p. 12). Essa prática de produção de
livros de memória (bem como da guarda de acervos pessoais),
tão peculiar nas cidades de Bananeiras e Solânea, refletem
o desejo de uma identidade reconhecida, que se reveste —
para seus autores — de um sentido de verdade por ter sido
vivenciada/documentada.
420
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
Apesar de seus riscos, mas também, suas possibilidades
como fontes de pesquisa, essas reminiscências, selecionadas e
ordenadas na narrativa, refletem experiências que são revi-
vidas pelos seus escritores a cada página. Frutos, muitas vezes,
de uma escrita colaborativa, uma vez que se baseiam em outros
livros de memória para a confecção de novas produções, são
essas fontes importantes espaços para se exercitar a imaginação
e se escrever outras histórias.
421
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. O tecelão dos tempos: o
historiador como artesão das temporalidades. In: ALBUQUERQUE
JÚNIOR, Durval Muniz. O tecelão dos tempos. Novos ensaios
de teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019a. p. 27-38.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A poética do arquivo:
as múltiplas camadas semiológicas e temporais implicadas
na prática da pesquisa histórica. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR,
Durval Muniz. O tecelão dos tempos. Novos ensaios de
teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019b. p.57-78.
ALMEIDA, Maurílio Augusto de. O Barão de Araruna
e sua Prole. João Pessoa, PB: A União, 1978.
ANDRADE, Vivian Galdino; SOUZA, Glaúcia Gomes. O Guardador
de Memórias: ‘Seu Manoel’ e a história da educação de Bananeiras.
In.: CONGRESSO NACIONAL DE PRÁTICAS EDUCATIVAS, 1., 2017.
Anais [...]. 2017. p.1-12. Disponível em: https://www.editorarealize.
com.br/index.php/artigo/visualizar/31308. Acesso em 17 ago. 2020.
ARAÚJO, Wolhfagon Costa de. Um olhar sobre
Tancredo de Carvalho e outros solanenses. 1.
ed. Solânea: Gráfica Sal da Terra, 2003.
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista
estudos históricos, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998. Disponível
em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/
article/view/2061. Acesso em: 26 ago. 2020.
422
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
BARROS, José D’Assunção. Fontes históricas: revisitando
alguns aspectos primordiais para a Pesquisa Histórica.
Mouseion, n. 12, p. 129-159, maio/ago. 2012. Disponível
em: https://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Mouseion/
article/viewFile/332/414. Acesso em: 20 ago. 2020.
CARVALHO, Tancredo de. Memórias de um Brejeiro. João
Pessoa: Iterplan-PB. Campina Grande: Gráfica Júlio Costa, 1975.
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE
GOFF, Jacques; NORA, Pierre (org.). História: novos
problemas. Rio de Janeiro: F. Alves, 1988.
CORAZZA, Sandra. Um pró(sem)logo. In: AQUINO, Julio
Groppa. Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar, escrever
com Foucault. São Paulo: Intermeios, 2019. p. 7-11.
CÓRDULA, Ana Cláudia Cruz et al. A dualidade entre o
público e privado: entrefaces dos arquivos pessoais. RACIn,
João Pessoa, v. 8, n. 1, p. 71-85, jan./jun. 2020. Disponível
em: http://racin.arquivologiauepb.com.br/edicoes/v8_n1/
racin_v8_n1_artigo05.pdf. Acesso em: 17 ago. 2020.
COUTINHO, Terezinha Mendonça Campos. Poemas que brotam
no coração. Bananeiras: Produção Independente, 2006.
COUTINHO, Terezinha Mendonça Campos. Retalhos
de Minh’alma. Bananeiras: Gráfica Editora, 2014.
COUTINHO, Terezinha Mendonça Campos. Poemas que saem
da alma. Bananeiras: Gráfica e Editora Mangabeira, 2005.
423
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
COSTA, Iveraldo Lucena. Bananeiras Centenária.
João Pessoa: Editora Universitária, 1979.
CUNHA, Maria Teresa. (Des) arquivar. Arquivos
pessoais e ego-documentos no tempo presente. São
Paulo: Florianópolis: Rafael Copetti Editor, 2019.
LACET, Rosane Coutinho Pereira. Humberto Nóbrega: um
homem entre livros. 2010. Monografia (Curso de Biblioteconomia)
– Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: LE
GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas:
Editora da Unicamp, 2013. p. 485-492.
LEITE, Ramalho. Gente do passado, fatos do
presente. João Pessoa: A união, 2016.
LIMA, Lindalva de Oliveira. Felicidade Menina.
João Pessoa: Ideia Editora, 2017.
MAIA, Edésio de Oliveira. Um menino – uma vida. Rio
de Janeiro: Maria Cristina Antunes Maia Edt., 2003
MARIZ, Celso. Cidades e Homens. Governo do
Estado da Paraíba. João Pessoa- PB. 1985
MONTENEGRO, Antônio. Síntese Histórica de
Bananeiras. João Pessoa: Editora Universitária, 1996.
424
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
NÓBREGA, Humberto. Evolução Histórica de Bananeiras.
João Pessoa, PB: Editora Universitária, 1968.
PAIANI, Flávia Renata Machado. Os livros populares de história
como fonte para a pesquisa histórica. In: ENCONTRO REGIONAL
DE HISTÓRIA DA ANPUH – RIO: Saberes e práticas científicas, 15.,
2014. Anais [...]. 2014. Disponível em: http://www.encontro2014.
rj.anpuh.org/resources/anais/28/1400189184_ARQUIVO_
Oslivrospopularesdehistoriacomofonteparaapesquisahistorica.
pdf. Acesso em: 17 ago. 2020.
PINHEIRO, Antônio Carlos. O Instituto Histórico e Geográfico
Paraibano e a história da educação da Paraíba: apontamentos
para um estudo historiográfico. In: SEMINÁRIO NACIONAL
DO HISTEDBR, 6., 2019. Anais [...]. 2019. Disponível em:
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/
seminario4/trabalhos/trab010.rtf. Acesso em: 18 ago. 2020.
PINTO, José Heráclito N. A cidade de Bananeiras. [S.1:s.n.].
SILVA, Manoel Luiz da. Satuba: escolas de muitos,
privilégios de poucos. João Pessoa: A União, 2011.
SILVA, Manoel Luiz da. Colégio Agrícola no prenúncio
de seu centenário. 3. ed. melhorada e revisada.
Bananeiras/ PB: Edição do autor, 2019a.
SILVA, Manoel Luiz da. Bananeiras: Uma visão do passado.
e atual. Bananeiras/ PB: Edição do autor, 2019b.
425
ARQUIVANDO A PRÓPRIA VIDA:
OS ACERVOS PESSOAIS E OS LIVROS DE MEMÓRIA
COMO EGO-DOCUMENTOS NO BREJO PARAIBANO
SILVA, Manoel Luiz. Bananeiras, uma visão do Passado.
2ºEd. rev. e atual. Bananeiras- PB: Edição do Autor. 2019
SILVA, Manoel Luiz. Bananeiras: Apanhados
Históricos. João Pessoa: Sal da Terra Editora. 2007
SILVA, Manoel Luiz. Uma volta ao passado”.
Bananeiras: Editora e Impressa, 1999.
SILVA, Manoel Luiz. Bananeiras, uma visão do
passado. João Pessoa. Sal da Terra, 2016.
SILVA, Manoel Luiz. Bananeiras sua história, seus valores.
Bananeiras: editora Luz e sombra editora, 1997.
SILVA, Manoel Luiz. História do Patronato ao Colégio
Agrícola nos seus 90 anos. Bananeiras, 2014
SILVA, Manoel Luiz. De Freguesia a Paróquia de Nossa
Sra. do Livramento. 180 anos servindo em missão (1835-
2015. Guarabira: Gráfica e Editora Moderna, 2015.
SILVA, Manoel Luiz. Bananeiras em Poemas e Crônicas. João
Pessoa: A União Superintendência de Imprensa e Editora, 1998.
SILVA, Manoel Luiz. CAVN: Uma história para a posteridade.
Fatos e Fotos. Bananeiras: Gráfica Moderna, 2012.
SILVA, Manoel Luiz. Reminiscências. De Patronato
Agrícola a Colégio Agrícola. 80 anos de história.
João Pessoa: Editora Universitária, 2004.
426
VIVIAN GALDINO DE ANDRADE
SILVA, Manoel Luiz. Colégio Agrícola Vidal de Negreiros. Sua
história em poemas. Bananeiras: Sal da Terra Editora, 2009.
SOARES, Valdês Borges. Memórias de Bananeiras (1954-
1960). João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora Ltda, 2017.
VIDAL, Diana; SILVA, José Claúdio Sooma. Interpretes do
passado e do presente: a arte de historiadores da educação
e arquivistas. History of Education in Latin America,
HISTELA, v. 3, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/
histela/article/view/20951/12783. Acesso em: 27 ago. 2020.
427
É UMA CASA MUITO BONITA,
DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
Isabelle de Luna Alencar Noronha
Resumo: Há uma casa no interior do Nordeste, estado do Ceará,
ela fica em uma cidade pequena chamada Nova Olinda. Ela não
é uma casa comum, é uma Casa Grande, talvez não seja tão
grande em tamanho territorial, mas é enorme para o lugar
que ocupa e para além dele, simbolicamente ela ultrapassa
continentes, e seus moradores, meninos e meninas de todas as
idades, ganham o mundo por meio dela. Em 2008 entrei nessa
casa, não como visitante comum, como eu era e ainda o sou,
entrei como pesquisadora, com o objetivo de descortinar e fazer
conhecer, no meio científico, as práticas educativas nela desen-
volvidas. Doze anos depois, retorno à mesma casa, com objetivos
semelhantes e de forma virtual, posto que o período agora
está marcado por forte isolamento social, devido a pandemia
provocada pelo novo coronavírus que causa a COVID 19. Como
estará a Casa Grande neste contexto? É o que vamos descobrir
com o artigo que ora se dá à leitura. O texto está dividido em
três sessões, uma introdução, que aborda de soslaio a história
da Casa Grande e as suas práticas educativas, revisitando o que
outrora escrevemos. Segue com uma discussão de trabalhos
acadêmicos que foram construídos posteriormente, se confi-
gurando como uma pesquisa bibliográfica. Por fim, finaliza
permitindo que outras tantas abordagens se façam sobre uma
Casa Grande que não para de se reinventar.
Palavras-Chave: Práticas educativas. Pesquisas. Vida.
Isabelle de Luna Alencar Noronha
“É a mesma história tantas
vezes lida”, contada e única
Trazemos a título introdutório um recorte da música
“fanatismo” de Raimundo Fagner, para situarmos o leitor quanto
a história da Fundação Casa Grande, que já se encontra contada
em diversos meios e veículos de comunicação pelo mundo. Eu
mesma já a contei quando em 2008, concluí a dissertação de
mestrado com o título “Fundação Casa Grande - Memorial do
Homem Kariri: Cotidiano, Saberes, Fazeres e as Interfaces com
a Educação Patrimonial”, que teve basicamente como objeto de
estudo as práticas educativas desenvolvidas nesse ambiente de
educação não-formal.
Por tudo que pesquisamos afirmamos não ser possível
contabilizar, com certeza, todos os trabalhos que abordam a
Fundação Casa Grande, sua história, seus fazeres e seus saberes,
estejam eles nos meios de comunicação de massa ou acadê-
micos. Nesse sentido, talvez o leitor pergunte o que a faz ser
tão contada, e eu já respondo, é o fato dela ser única, de instigar
a curiosidade de atores sociais nos mais diversos campos de
atuação humana: sociológico, pedagógico, arqueológico, antro-
pológico, de comunicação social, musical, cinematográfico, isso,
apenas para citar alguns. Acrescente-se o fato da Casa Grande
ser um organismo vivo que não para de crescer e se modificar
em sujeitos, projetos e ações.
Situamos a nossa escrita no campo pedagógico, e mais uma
vez, com uma nova linguagem e novos elementos, enfatizamos
que a Fundação Casa Grande, Memorial do Homem Kariri, foi
gestada por um casal de músicos, Alemberg Quindins e Rosiane
Limaverde (in memorian). É fruto de uma história de amor e cria-
tividade, imbuída de um espírito antropológico e único em meio
429
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
a um cenário político de muitas transformações. Está situada na
Região do Cariri Cearense, cidade de Nova Olinda. Trazemos a
seguir uma representação fotográfica desta casa, que mantém
desde sua reforma em 1992, as cores azul e amarela, renovadas
a cada ano, mais especificamente para os rituais de renovação,
do qual falaremos no decorrer desse artigo.
Interessante notar esta Casa, pois este texto aborda o que
foi construído nela e por meio dela.
Figura 1 - Fachada da Fundação Casa Grande
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
A Fundação Casa Grande nasceu oficialmente como
uma Organização Não-Governamental em 19 de dezembro de
1992, no entanto, a história começou bem antes, quando os
fundadores ainda nem se conheciam. Alemberg Quindins foi
levado pelo pai, ainda criança, com nove anos, da cidade de
Nova Olinda para um lugar chamado Miranorte, que hoje fica no
estado de Tocantins. O acompanhou as lembranças das histórias
430
Isabelle de Luna Alencar Noronha
que ouvira de D. Artemizia, uma índia cabocla de Nova Olinda,
que utilizando um índio esculpido em madeira, lhe contava as
lendas do povo Kariri.
O povo Kariri, dá nome a região do Cariri cearense que é
composta por 28 municípios, abriga a Chapada do Araripe com
a Floresta Nacional do Araripe1 e a Área de Proteção Ambiental
(APA, 1997). Há, nessas matas, um importante reservatório de
água que alimenta muitas fontes ao pé da Serra do Araripe, o
que torna a região qualitativamente melhor de se viver em meio
ao semiárido nordestino, com chuvas regulares e terras mais
férteis. Tal região, é rica em patrimônio natural (formações
físicas, geológicas e biológicas) com valor ambiental (fauna e
flora), científico, estético, social, e também é possuidora de um
rico patrimônio cultural (material e imaterial).
A citada região passou em 2006 a compor a Rede Global de
Geoparques2 da UNESCO, com geossítios presentes nas cidades
de Barbalha onde se encontra o Parque Ecológico Riacho do
Meio, uma reserva protegida, rica em fontes de águas que
nunca secam e habitat natural de espécies endêmicas, como o
Soldadinho do Araripe; Crato, com o parque estadual do Sitio
Fundão que também detém mananciais que fertilizam o Vale do
Cariri, é importante colocar que há ainda lugares não catalogados
como o Sítio Santa Fé, onde se encontram pedras portadoras de
pinturas rupestres, dentre outros; em Juazeiro do Norte há a
1 Primeira floresta do Brasil criada por decreto em 1956. A Área de
Proteção Ambiental da Chapada do Araripe se estabeleceu em 1997.
2 A Rede Global de Geoparques Nacionais tem hoje 56 unidades reconhe-
cidas e credenciadas, distribuídas em 17 países – Alemanha, Áustria, Irã,
Malásia, Noruega, Portugal, Reino Unido, República Checa e Romênia, França.
A única unidade nas Américas e no Hemisfério Sul é o Geoparque Araripe.
(COSTA FILHO, 2008)
431
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
Colina do Horto, uma formação natural que guarda e expõe toda
a simbologia do cenário da religiosidade popular em torno do
Padre Cícero Romão Batista3, pode se destacar ainda a experi-
ência da comunidade do Caldeirão4; Em Missão Velha encontra-se
a cachoeira do rio salgado e a floresta petrificada além do seu
patrimônio arquitetônico; Em Nova Olinda há as formações
rochosas conhecidas como a “ponte de pedra” e o “castelo
encantado”, dentre outras riquezas bem como, todo o universo
da Fundação Casa Grande que além de Casa do Patrimônio
pelo IPHAN (2009), é também sede do Instituto de Arqueologia
do Cariri Dra. Rosiane Limaverde (2015); por fim, em Santana
do Cariri encontra-se o Parque dos Pterossauros e abundante
registro fossilifico possibilitando importantes estudos geológicos
sobre a vida na Terra. O acervo de fósseis de animais e plantas
que em tempos idos habitaram no Cariri podem ser observados
e estudados no Museu de Paleontologia Professor Plácido Cidade
Nuvens da Universidade Regional do Cariri — URCA. Em Santana
do Cariri, ainda pode ser observado em espaço aberto, do alto
da Santa Cruz, o Vale do Cariri que um dia, num passado muito
3 Considerado santo popular do Nordeste, devido a um suposto milagre
ocorrido em 1889 em que a hóstia por ele consagrada se tornara sangue na
boca da beata Maria de Araújo, sua seguidora. O fenômeno do Pe. Cícero
é bastante estudado em meios científicos, periodicamente a Universidade
Regional do Cariri – URCA, realiza Simpósios Internacionais sobre ele, o
último, ocorreu em 2017. Para saber mais sugerimos: http://www.padrecicero.
net. Importante salientar que estudos mais recentes, como Forti (1999)
enfatizam a figura feminina de Maria de Araújo neste fenômeno.
4 Empreendida pelo beato José Lourenço seguidor de Padre Cícero que fundou a
comunidade do Caldeirão na década de 1930, organizado em moldes socialistas,
o fruto do trabalho era dividido para todos, o que não agradou aos grandes fazen-
deiros que perdiam trabalhadores para a citada comunidade, o que culminou com
a destruição desse projeto, mortes e expulsão dos agricultores inclusive com um
ataque aéreo em 1937 pelas forças governistas da época (ALMEIDA, 2011).
432
Isabelle de Luna Alencar Noronha
distante foi um grande lago de água salobra. Resumidamente o
Geopark Araripe tem por objetivos: proteger e conservar os sítios
de maior relevância geológica e paleontológica; fazer conhecer
os contextos científicos das várias eras geológicas, os registros
arqueológicos de povoamento ancestral da região; incentivar um
turismo de qualidade e garantir de forma segura um contínuo
desenvolvimento do território5.
Trazer ao leitor, ainda que de forma superficial, o lugar
territorial da Casa Grande é importante para melhor compre-
endê-la, e agora, voltemos a viagem do Alemberg que passou a
viver em Miranorte (hoje estado de Tocantins). Foi nesse lugar
que ele conheceu povos indígenas e em meio a um mundo novo,
com a ausência da mãe, com parcos recursos, pelo próprio
ambiente em que fora inserido, desenvolveu ainda mais a sua
imaginação e o seu espírito ávido por conhecimento, assim
como também a sua criatividade: inventava as suas próprias
aventuras e as materializava em revistas em quadrinho (que ele
mesmo desenhava), cinema (construído com a ajuda de velas),
bandas de lata, jogos de futebol, dentre outras invenções, com
um amigo ele aprendeu a tocar violão.
Aos 18 anos ele retornou ao Crato com uma tia que logo
que chegou o colocou para ser parte do coral da igreja, parte do
Movimento de Juventude da Igreja Católica, onde assumiria a
função de tocar violão, afirma, em várias entrevistas que foi a
força, mas foi justamente aí que conheceu a Rosiane Limaverde
e descobriu que dentre outras afinidades que possuíam, ambos
haviam nascidos no mesmo dia, com uma hora de diferença
entre os partos.
5 Para conhecer o Geopark Araripe sugerimos: http://geoparkararipe.urca.br
433
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
A arte os uniu, gostavam de conversar sobre muitas
coisas, se enamoraram e o amor se fez cada dia mais forte, era
outubro de 1983, eles casaram em 22 de dezembro do mesmo
ano. Casaram escondidos das famílias, continuaram o namoro
por carta, e em segredo, ao longo de um ano em que ele serviu à
marinha no estado do Rio Grande do Norte. Alemberg tinha se
alistado anteriormente com o objetivo de “conhecer o mundo”,
desejo que acalentava desde a infância mais tenra.
A década de 1980 para o país representou um momento de
grande efervescência político-social. O terreno fertilizado pelas
lutas em prol da democracia, após longos anos de ditadura-mi-
litar, possibilitava a reorganização de sindicatos e associações.
A Constituição Federal que solidificou esse processo foi promul-
gada em 1988, garantido aos cidadãos um novo recomeço, no
entanto, os grandes problemas a serem enfrentados advindos
das desigualdades sociais, tais como a fome, o analfabetismo,
a falta de moradia, os problemas ambientais, dentre outros,
continuavam a ser as bandeiras de lutas das forças progressistas
que ansiavam por equidade.
Na cultura, o país era palco de grandes festivais de Música
Popular Brasileira (MPB), o Rock Nacional reportava as suas letras
à denúncia de atos de corrupção, em defesa da democracia e da
liberdade e de outras tantas reivindicações, grandes nomes, em
âmbito nacional, foram imortalizados nessas canções, a exemplo
de Renato Russo e a banda Legião Urbana, Cazuza e o Barão
Vermelho, Paralamas do Sucesso, dentre outros. Com o campo
cultural em ebulição por todo país, no Crato, um casal sonhador,
começou a investigar os mistérios das lendas contatadas sobre
as formações rochosas e suas inscrições rupestres, e sobre as
fontes de água límpida que brotam da Chapado do Araripe. Era
uma moto e um casal aventureiro, entrando nas matas, ouvindo
434
Isabelle de Luna Alencar Noronha
pessoas, descobrindo sobre a identidade do povo Kariri. As desco-
bertas resultavam em canções e estas eram entoadas, com a ajuda
de instrumentos produzidos pelo próprio casal, e premiadas em
festivais pelo Brasil a fora.
Foram dez anos bem vividos de alegria, mas também
de aventuras e incertezas. Ser músico independente no
Brasil nunca foi fácil, ainda mais cantando em língua
Kariri e tocando instrumentos rústicos e acústicos.
Música e etnografia fizeram nossa existência, e sem
que soubéssemos como nem o quê, a arqueologia entrou
em nossas vidas como um fenômeno a ser explicado
resultante de um universo mítico. Estava surgida enfim
a necessidade de criar um lugar que pudesse devolver
ao povo Kariri do passado, presente e futuro, a sua
memória (LIMAVERDE, 2015, p. V).
A aventura os modificou, com a pesquisa6 pela Floresta
Nacional do Araripe, encontrando pinturas rupestres em suas
formações rochosas, ouvindo os moradores das florestas, eles
passaram a receber artefatos indígenas, que estavam guardados
nas casas que visitavam e também daquelas pessoas que ouviam
falar o que eles estavam fazendo. Albemberg ganhou de D.
Artemízia, o Kariuzinho, aquele índio esculpido em madeira que
fez parte de seu imaginário infantil, e de muitas outras pessoas,
conhecidas ou não, ia recebendo achados arqueológicos, como
bacias, cachimbos, urnas funerárias, utensílios domésticos, etc.,
6 Inicialmente Alemberg buscou a origem da lenda da Pedra da Batateira,
e este foi o início de um grande acervo que está registrado na Fundação Casa
Grande com fotos do dos locais mitológicos pesquisados e ilustrações descritivas
feitas por seus meninos e meninas. Também, estas essas foram registradas e
res-significadas em revistas em quadrinhos e/outros meios produzidos na
Fundação Casa Grande. Resultou ainda inúmeras canções produzidas pelo casal
e premiadas em festivais.
435
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
peças que somavam-se aos registros fotográficos do lugares
mitológicos, às gravações da tradição oral e as canções que
ele compunha junto com Rosiane, coisas e mais coisas, que
precisavam ser guardadas, expostas e dadas ao conhecimento
público, especialmente às novas pesquisas.
O lugar para fazer isso? Uma casa em ruinas na cidade
de Nova Olinda, que em sua história trazia todo o simbolismo
da antiga civilização do couro, para o Cariri, esta veio da Casa
da Torre, Bahia. Toda essa história pode ser vista atualmente7,
contada em imagens e palavras, nas paredes da Casa Grande.
Ao narrar essa história Limaverde (2015, p. 24) denuncia que
à medida que a conquista e a ocupação das terras se
intensificavam, os índios eram dizimados e os rema-
nescentes tangidos para mais longe, sendo acuados nos
ermos das caatingas e nas brenhas das serras
mas não sem processos de muitas lutas. Desse lamentável
episódio, nasceu a lenda das nascentes tapadas, pois antes de
abandonarem as suas terras os indígenas tapavam o que eles
tinham de mais precioso as suas nascentes, também faziam
isso para livrarem-se dos invasores, conta-se que muitas fontes,
posteriormente, foram descobertas nessa situação.
Ainda segundo a autora, onde hoje está a Casa Grande era
o lugar de passagem desses boiadeiros e havia um rio que passava
perto dela, uma tapera foi erguida para dar abrigo aos viajantes
do gado, era denominada de “tapera de água saída do mato”.
7 A história ciclo do couro também pode ser observada no Museu do
Couro em Nova Olinda que nasceu de uma parceria entre Expedito Seleiro,
possuidor de ferramentas e peças antigas que costuraram trajes do cangaço
e famoso no país por seu artesanato de couro e Alemberg Quindins em 2014.
436
Isabelle de Luna Alencar Noronha
Posteriormente, no mesmo lugar, foi construída a Casa Grande de
fazenda, uma igreja e um cemitério, ao redor da qual se ergueram
as primeiras moradias que formou o povoado de Tapera, de onde
se originou a cidade de Nova Olinda em abril de 1957. A Casa
Grande fora comprada pelos avôs de Alemberg em 1932. Em 1990
ela estava em ruinas, mas ainda assim, foi escolhida por ser cheia
de significado afetivo, histórico, mitológico, arqueológico.
Ela era o lugar que o casal procurava para expor o acervo
que possuíam e criar um projeto cultural direcionado à juven-
tude. Assim, depois de todo processo da doação da casa pelos
herdeiros, e após, reformada, a “casa mal-assombrada” como
era conhecida na cidade, por seu péssimo estado de conser-
vação, deu vida a um projeto que hoje, em apenas 28 anos de
atuação, tem reconhecimento internacional por suas práticas
educativas, pesquisas e ações sociais, artísticas, culturais,
turísticas, históricas e patrimoniais, apenas para citar algumas.
Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde, músicos de
formação popular, iniciaram, em 1985, uma pesquisa
etnomusical sobre os mitos e as lendas do povo da
Chapada do Araripe, vale do Cariri cearense, que
resultou, em 1992, na criação da Fundação Casa
Grande – Memorial do Homem Kariri, uma Fundação
Privada, sem fins lucrativos e não governamental (ONG),
Utilidade Pública Federal, Certificada pelo Conselho
Nacional de Assistência Social- CNAS e condecorada em
2004 com a Ordem do Mérito Cultural pela Presidência
da República do Brasil. A Fundação tem como seus
objetivos estatutários: pesquisar, preservar, coletar,
juntar em acervo, comunicar, exibir e publicar para fins
científicos, de estudo e recreação, a cultura material
e imaterial do homem Kariri e de seu ambiente. Em
2009, a Fundação Casa Grande recebeu do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN a
437
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
outorga de ‘Casa do Patrimônio da Chapada do Araripe
(LIMAVERDE, 2015, p. 4).
Essa é resumidamente, a história da Casa Grande, “um
lugar de memória”, que não era tão grande, como pode ser
observada em fotografia anterior (foto 1), mas se tornou gran-
diosa. De início era apenas uma rádio difusora e a Casa que foi
invadida por crianças que “pareciam brotar do chão”8, porque
no sertão é assim, ou era assim, as crianças brincavam livres
e iam ocupando todos os espaços disponíveis. Muitas dessas
crianças, foram observando e se interessando pelas histórias
que o casal contava sobre os objetos, os artefatos culturais, e iam
reproduzindo-as quando os visitantes chegavam. Esse interesse
infantil chamou a atenção do casal, que resolveu aproveitar
esse potencial, e o projeto que havia sido pensado para jovens,
virou uma “escola de comunicação para a meninada do sertão”.
As peças do museu, as histórias narradas pelas crianças9,
uma casa e a necessidade de mantê-la, muitos obstáculos foram
sendo superados aos longos dos anos10. A Rosiane, que tinha
licenciatura em História pela Universidade Regional do Cariri –
URCA, fez mestrado em Arqueologia e Preservação do Patrimônio
8 Uma expressão local cujo significado está atrelado a abundância.
9 Em sua Tese de doutoramento Roseane conta que ao acolher as crianças,
a Casa precisou assumir uma linguagem lúdica, desde os artefatos do museu
até a forma de contar as lendas (LIMAVERDE, 2015).
10 Ainda em sua tese faz referência ao patrimônio inicial da Casa que
contou com a ajuda de amigos, inclusive papel e lápis de cor para trabalhar
com os meninos e meninas. “Como recursos tecnológicos, inicialmente
foram doados, pelo pároco da igreja local, os megafones que deram origem
ao Projeto da nossa rádio comunitária. Pela Prefeitura local foi doada uma
pequena TV, um aparelho de vídeo, duas caixas de som amplificadas e um
microfone” (LIMAVERDE, 2015, p. 362).
438
Isabelle de Luna Alencar Noronha
pela Universidade Federal do Pernambuco em Recife (2006).
Posteriormente, em 2015, concluiu doutorado na Faculdade
de Letras, Centro de Estudos em Arqueologia e Ciências do
Patrimônio na Universidade de Coimbra em Portugal. Alemberg
foi compartilhando com os meninos e meninas as suas vivên-
cias, criou a banda de lata da Fundação Casa Grande e realizou
o primeiro festival de bandas de latas da cidade, ensinava os
meninos/meninas a confeccionar revistas em quadrinhos, enfim,
foi dando significado ao brincar e criando relação de confiança,
com o pais, a comunidade e os meninos/as.
A bandinha de lata, Os Cabinhas, uma brincadeira de
crianças, elas gravaram CD e fez/faz várias apresentações pelo país. É
importante ressaltar que com o tempo os meninos que se dedicam a
música, passam da banda de lata para a banda profissional, “Trilhas
U Som”, e continuam atuando em shows. Esses aprendizados se
renovam num ciclo de acolhimento e transformação.
Como parte das conquistas democráticas dos anos
de 1980 estavam as leis de incentivo à cultura, que foram se
efetivando logo após a criação do Ministério da Cultura (MinC)
em 1985. Assim, tanto a Lei Rouanet 8313, de 23 de dezembro
de 1991 em âmbito federal, como a Lei nº 12.464 de 29 de junho
de 1995; Lei nº 13.400, de 17 de novembro de 2003 e a Lei Nº
13.811, de 16 de agosto de 2006 em âmbito estadual, oportu-
nizaram o crescimento da Casa Grande em Espaços e Ações11.
É preciso ressaltar que as Organizações Não-Governamentais,
que tinham, segundo Montaño (2007) papel secundário aos
movimentos sociais, passam nas últimas décadas do Século XX a
ocupar centralidade atuando em várias frentes. Principalmente
no âmbito educacional, no campo da educação não-formal,
11 Para maiores detalhes ver Noronha (2008);
439
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
reconhecida na LDB 9394/1996 como a educação que acontece
“nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e
nas manifestações culturais” (Art. 1). Foram as políticas de
então que favoreceram o estabelecimento de parcerias das
ONGs com as empresas privadas e com o próprio Estado, que
passou a utilizá-las como instrumentos por meio das quais se
omitia, muitas vezes, de suas reais responsabilidades e/ou de
despolitização social.
Extensa e controversa é a literatura que trata do advento
do terceiro setor (ONGs) no final do século XX, impossível não
reconhecer o papel positivo que muitas ONGs exerceram nos
campos educacional, cultural, esportivo, dentre outros no país
redemocratizado. Também, é necessário ressaltar as muitas
fraldes ocorridas com a criação de ONGs que objetivavam desvio
de dinheiro público e/ou privado. Não traremos tal discussão
para este artigo12, nos limitaremos, a enfatizar que diferente-
mente de outras ONGs, a Fundação Casa Grande não nasceu de
um movimento social ou político, mas, de um trabalho indivi-
dual de seus fundadores que foi abraçado por uma comunidade.
Sua essência não é reivindicadora, é cientifica, antropológica,
arqueológica e cultural. Aliás, em entrevista, seu fundador
afirmou que sempre fizeram o possível para “preservá-la” de
envolvimento com práticas político-partidárias.
Como um importante veículo cultural, consideramos
que a Fundação Casa Grande exerce é um papel político
fundamental na região do Cariri cearense. Identificamos
que as políticas que favoreceram as ONGs foram primordiais
para que ela crescesse em tamanho e em ações porque foram
12 Sugerimos para aprofundamento na temática os estudos de Gonh (2005);
Montaño (2007); Gadotti (2000), Haddad (2002) dentre outras leituras.
440
Isabelle de Luna Alencar Noronha
permitindo aos habitantes da Casa concorrerem a projetos em
editais públicos em âmbito nacional e estadual. Assim, o espaço
físico foi crescendo, conforme Alemberg Quindins respeitando
a leitura antropológica do lugar (NORONHA, 2008). Isso é
importante se destacar porque a Casa Grande não foi buscar
conteúdo e aparência do lado de fora. Cada espaço, cada novo
programa, cada nova ideia nascia com o lugar, com as pessoas,
na tentativa de valorização cultural e patrimonial13 do lugar, e
seguindo os princípios da educação não-formal, tal como estão
elencados a seguir,
[...] apresentar caráter voluntário, proporcionar
elementos para a socialização e a solidariedade, visar ao
desenvolvimento social, evitar formalidades e hierar-
quias, favorecer a participação coletiva, proporcionar a
investigação e, sobretudo, proporcionar a participação
dos membros do grupo de forma descentralizada
(SIMSON; PARK; FERNANDES, 2001, p. 11).
As autoras (SIMSON; PARK; FERNANDES, 2001) ainda
acrescentam ser os desejos e anseios da população com a qual
se pretende trabalhar um dos principais elementos para a
tessitura da educação não-formal. Para haver envolvimento é
preciso ter empatia e identidade, e foi assim que perfeitamente
integrada a paisagem local a Casa conquistou o seu entorno e
se fez grandiosa.
Interessante notar que ouvimos de Alemberg em entre-
vista (realizada em 2008) que os programas da Casa Grande
13 Nesse sentido destacamos que dentre os muitos prêmios que a Fundação
Casa Grande já recebeu está a “Medalha de Honra ao Mérito Cultural” em
2004 pelo Governo Federal e MinC, maior horaria concedida por serviços
prestados à cultura e ao patrimônio brasileiro.
441
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
foram se aperfeiçoando sem se distanciar das ideias originárias,
e, encontramos em Limaverde (2015) relato semelhante, quando
reporta ao início de funcionamento da Casa,
Aos sábados, no final da tarde, era a vez do filme na
calçada em frente ao terreiro da Casa Grande. Foi assim
que conquistamos a comunidade. Colocávamos a nossa
TV 14 polegadas e vídeo cassete em cima de um birô e
amplificávamos o som. Os filmes eram bem populares,
os Trapalhões, Mazaropi, Vidas Secas, entre outros. A
rua ficava tomada de gente que vinha de toda parte.
Dos sítios, da pontas de rua, a pé, de bicicleta. Eles riam,
choravam, aplaudiam, era pura emoção!!! Alguns anos
mais à frente, seria gestada através do sonho de um
menino da Casa, o Samuel Macêdo, a TV Casa Grande.!
Logo sentimos falta de uma comunicação mais
eficaz para falar à comunidade. Foi nesse tempo que
ganhamos do Pároco da cidade os quatro megafones, e,
junto com duas vitrolas portáteis e o acervo de discos
que já possuíamos como músicos e alguns outros que
recebemos por doações, recuperamos a amplificadora
“A Voz da Liberdade” que havia sido criada na década
de 60 pelo pai de Alemberg (LIMAVERDE, 2015, p. 365).
A amplificadora “A voz da Liberdade”, hoje é a Casa
Grande FM, totalmente gerida pelas crianças, que criam
programas infantis e brincam durante as apresentações.
Também, por jovens que falam para os jovens, adultos e idosos
em seus vários programas. Uma advertência, necessária e única,
é ter conteúdo de qualidade, e, isso implica em não seguir os
meios de comunicação de massa, mas os propósitos que a Casa
preserva, um propósito “educativo”. A TV Casa Grande continua
produzindo vídeos documentários com as pessoas da cidade,
442
Isabelle de Luna Alencar Noronha
com a cultura local, estes são exibidos, dentre outros canais,
na TV Futura.
Com a construção do Teatro Violêta Arraes, Engenho de
Artes Cênicas em 2002 a comunidade passou a assistir filmes,
festivais musicais e peças teatrais nesse espaço que tem parceria
com o Centro Cultural Banco do Nordeste e com o SESC e leva
à localidade atrações culturais de nível local e nacional. Antes
de qualquer espetáculo a comunidade é convidada pela Casa
Grande FM e, por vezes, os meninos vão às escolas distribuir
ingressos e convidar pessoas.
Um grupo escolar que estava desativado foi adicionado
ao prédio da Fundação Casa Grande e com o apoio do UNICEF
dentre outras instituições nacionais e internacionais foram
criados a biblioteca, videoteca, dvdteca; laboratórios de estudo;
editora, sala de vídeo em que são apresentados a estudantes
de todas as idades inúmeros documentários produzidos pela
própria Casa Grande sobre os mais variados assuntos, tendo
o foco principal na história, cultura local com atores sociais
locais e visitantes; um parquinho de diversões todo feito em
madeira (o primeiro da cidade) lhe foi doado; A Casa Grande
Editora, transforma as lendas presentes nos estudos arqueoló-
gicos da Região do Cariri cearense em gibis educativos, enfim,
todo o espaço da ONG é de uso coletivo e comunitário e promove
ações educacionais.
As práticas educativas se organizam por meio de
programas, quando pesquisei em 2008, os programas desen-
volvidos na Casa estavam concentrados nos Núcleos: memória,
comunicação, artes e turismo. Esses continuam com uma
reorganização e ampliação, sendo identificados como: Memória
e Pesquisa; Comunicação; Artes; Turismo; Meio Ambiente;
Esporte. O fio condutor continua sendo a concepção de educação
443
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
patrimonial (IPHAN) e a educação para o trabalho, na qual
identificamos uma concepção Freinetiana (1998) que considera
o trabalho e a vida de forma indissociável,
Na pedagogia de Freinet, o lugar do indivíduo é especial.
Este é ao mesmo tempo único e participante ativo do
grupo. Ele tem seus campos de interesses próprios, suas
necessidades particulares. Seu potencial é rico, mas
depende da educação para desenvolvê-lo. Faz parte de
uma sociedade que reina com a sua lei, mas que tira a
sua riqueza dos indivíduos que a compõe e da diversidade
destes. É por isso que nem o indivíduo nem a sociedade
têm a primazia, mas são estreitamente solidários e
interdependentes (GAUTHIER; TARDIF, 2010, p. 257).
Nesse sentido, é interessante notar todo o processo de
aprendizagens dos meninos e meninas individuais e coletivos
da Fundação Casa Grande, são conhecimentos compartilhados,
baseados na comunicação, na cooperação, na organização e na
disciplina que sempre se encaminha para a materialização
de ações e/ou de produtos. Ainda é necessário salientar o
processo de iniciação ao trabalho dos meninos e meninas que
estão voltados para o empreendedorismo social com a Escola de
Gestão. Conforme afirmam Mendonça, Miranda e Ferraz (2015,
p. 106) o empreendedorismo é um “tema de difícil compreensão,
multidisciplinar e extenso”, consideramos que o mesmo ganhou
visibilidade com as políticas neoliberais e está associado com a
capacidade de se propor saídas criativas individuais e coletivas
para a superação de crises provocadas pelo sistema capitalista.
Para as ONGs, de maneira geral, o empreendedorismo
social se transformou em estratégia de sobrevivência, tal como
444
Isabelle de Luna Alencar Noronha
consideram Mendonça, Miranda e Ferraz (2015, p.108), em
pesquisa realizada sobre algumas ONGs cearenses,
Esta pesquisa permite perceber que o empreendedorismo
social desenvolvido pelas ONGs não se limita apenas ao
desenvolvimento de projetos inovadores que beneficiam
a sociedade de alguma forma, mas que também têm
sido fonte motivadora do desenvolvimento de ações que
tornam essas organizações financeiramente sustentáveis
(MENDOÇA, MIRANDA; FERRAZ, 2015, p. 108).
Nesse sentido, várias iniciativas são e foram sendo
gestadas ao longo dos anos na Fundação Casa Grande,
um primeiro e sólido passo foi a criação da COOPAGRAN -
Cooperativa de Pais e Amigos da Fundação Casa Grande (2002).
Assim, com o apoio da comunidade local e, especialmente, os
pais e mães dos meninos e meninas que a frequentam, as ativi-
dades foram sendo criadas com objetivos de geração de renda
e para além disso. Uma experiência transformadora em que os
atores sociais se apoderam da Fundação Casa Grande, ajudando
na construção dos seus projetos, e se empoderam como sujeitos
individuais e em comunidade.
Citamos, como exemplo, que por meio da COOPAGRAN a
Casa Grande mantém pousadas domiciliares alocadas nas resi-
dências dos pais dos meninos e meninas que a frequentam. O
turista ou pesquisador que chega a Nova Olinda, se hospeda nas
casas das pessoas, convive com elas, por vezes cria laços. Isso
promove um envolvimento das pessoas que interagem, conhecem
o lugar pelos olhos de quem o vive, seria uma espécie de turismo
integrador ou de base comunitária, com desenvolvimento de
capital econômico e cultural. A COOPAGRAN monitora ainda,
uma lojinha com venda de artesanato local e o restaurante.
445
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
Desde o início, a Casa possibilita uma série de oportunidades
de geração de renda aos pais das crianças que frequentam
a instituição, assim como aos jovens que cresceram dentro
da fundação, oferecendo a esses últimos a vantagem de
serem os donos do seu próprio negócio. Essa visão foi insti-
gada como o programa de Empreendedores Sociais que a
fundação promoveu em 2010 (SANTOS, 2017, p. 74).
Santos (2017) registrou nove negócios ligados diretamente
à Fundação Casa Grande, o restaurante, a lojinha de artesa-
natos, a marca de roupas Modus Cariri, a Agência de Turismo
Comunitário, a produtora cultural, a pizzaria Café Cultural
Nova Olinda, a cafeteria Violêta Arraes e mais dois escritórios
de consultoria arqueológica. O referido autor acrescenta que
todos estavam devidamente registrados. Esses dados chamam
a atenção e indicam o quanto a Casa Grande incentiva o desen-
volvimento da cidade como um todo, catalogando, divulgando
e ofertando ao visitante, no ambiente urbano e rural, a opor-
tunidade de vivenciar uma experiência turística de integração,
troca de saberes e responsabilidade social.
É preciso ressaltar, mais uma vez, que de alguma forma,
todos esses empreendimentos têm como mote principal a
cultura local. Conteúdos que os meninos, meninas, pais e mães
aprendem/ensinam e vivenciam na Fundação Casa Grande.
Utilizam o universo mitológico da região, a culinária, os geos-
sítios do Geopark Araripe, a arqueologia, a paleontologia, os
fazeres e saberes do cotidiano.
Aparentemente na narrativa aqui apresentada, pode se
julgar uma certa facilidade nestas construções empreendedoras,
mas, como pesquisadora do local que fui, posso utilizar a metá-
fora da Casa de portas abertas para a vida funcionando como
um cadinho em que porções são misturadas e transformadas,
446
Isabelle de Luna Alencar Noronha
ou seja, embora a cultura local seja o alicerce, as novidades
do mundo a ela são misturadas, e com trabalho, disciplina,
força de vontade, e por meio de suas práticas educativas, vão
se aperfeiçoando em ações.
Os fundadores colocam de forma unívoca que não
buscaram a fundamentação teórica no desenvolvimento das
práticas educativas da Fundação Casa Grande, os pesquisadores
que foram encontrando: Paulo Freire, Celestin Freinet, Ana Mae
Barbosa, e tantos outros conforme os estudos que desenvolviam.
Afirmam que isso foi/é importante porque agrega conteúdos,
os fazem mais fortes e com os pesquisadores estabelecem redes
de conhecimentos e cumprem os objetivos da Fundação Casa
Grande especificados no Estatuto que lhe deu fundamentação
legal, que, dentre eles está o de “Oferecer um ponto de apoio
para pesquisadores” (NORONHA, 2008).
No Estatuto também estão as bases da Educação Patrimonial
que desenvolvem:
Artigo2º, parágrafo III – “Pesquisar, preservar, coletar,
juntar em acervo, comunicar, exibir e publicar para fins
científicos, de estudo e recreação, a cultura material e
imaterial do homem Kariri e de seu ambiente;
Enfim, os fundadores colocam que a Casa Grande nasceu
de um sonho, que sonharam juntos e reverberou em ações. Ela
pertence a comunidade de Nova Olinda, os meninos e meninas
que são de Nova Olinda assumem/dirigem o seu funcionamento,
ocupam vários cargos de forma cíclica, desde recepcionistas
no museu até a direção da Fundação Casa Grande, é assim que
devem aprender/aprendem uns com os outros dividindo e
compartilhando responsabilidades.
447
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
“Quem sabe isso quer dizer amor,
estrada de fazer um sonho acontecer”...
e se as portas físicas se fecham,
a internet as abrem ao mundo
Concomitante ao convite para a escrita desse texto,
veio um outro, participar de um Webinário Científico da
“Fundação Casa Grande”. Tal webinário realizado em parceria
com a Universidade Regional do Cariri – URCA, Universidade de
Coimbra, GeoPark Araripe, Instituto de Arqueologia Dra. Rosiane
Limaverde, entre outros, reuniu pesquisadores durante todo o
mês de agosto/2020 para socialização de pesquisas que tiveram
como objeto de estudo a Fundação Casa Grande.
Em tempos de isolamento social por causa da pandemia
gerada pelo novo coronavírus, que causa a Covid 19, é preciso
se reinventar, para continuar se comunicando com as pessoas,
aprendendo, trabalhando e acreditando na construção de “um
outro mundo possível” mais humano e solidário.
Lidar com tecnologias digitais não seria um problema
para a Fundação Casa Grande, em 2008, quando realizamos a
nossa pesquisa, as crianças já utilizavam as redes sociais, cada
uma tinha o seu blog, e nele elas escreviam as suas experiências
diárias, compartilhavam as leituras que faziam, os filmes que
assistiam, emitiam suas opiniões. Era o conteúdo aprendido,
apreendido e compartilhado. Utilizavam/utilizam constante-
mente sem dificuldades as plataformas digitais sites, instagram,
Facebook e o youtube oficiais da Fundação Casa Grande.
Acrescente-se o fato de eles/elas comandarem uma rádio
FM, produzirem curtas cinematográficos que já foram exibidos
na TV Futura, e são constantemente mostrados nas sessões do
448
Isabelle de Luna Alencar Noronha
Teatro Violêta Arraes e no Centro Cultural Banco do Nordeste,
dentre outros espaços. Produzirem revistas em quadrinhos,
receberem os visitantes no museu e explicarem as exposições,
enfim, em todos os cantos da Casa eles/elas trabalham com as
antigas e modernas tecnologias de comunicação e informação.
As atividades descritas no parágrafo anterior estão agru-
padas em programas que os meninos/meninas da Fundação
Casa Grande participam, estes, equivalem a sequências de
aprendizagens com conteúdo específicos e inter-relacionados.
Segundo Limaverde (2015, p. 394/395), os programas estão
elencados em cinco eixos estratégicos: educação infantil;
profissionalização de jovens; empreendedor social; geração de
renda familiar e comunitária; sustentabilidade financeira. A
esses, estão acoplados, como já colocamos anteriormente, seis
áreas de conhecimento: Memória e pesquisa; Comunicação;
Artes; Turismo; Meio Ambiente; Esporte. As Tecnologias de
Comunicação e Informação estão presentes em todos esses
campos de conhecimentos e eixos, que podem ser agrupados,
como nos falou Rosiane, ainda em 2008, em dois laboratórios:
“de conteúdo (locais onde os meninos e meninas adquirem
saberes elaborados) e de produção (locais em que produzem,
desenvolvendo suas criatividades a partir do que aprenderam)”.
Para Limaverde (2015, p. 397), “ambos os laboratórios sintetizam
a base dos fazeres e saberes da instituição através de laborató-
rios de vivência em Gestão Cultural”.
Nesse sentido é importante ressaltar, como fizemos
outrora, que as práticas educativas engendradas na Fundação
Casa Grande, se articulam aos pilares do “aprender a conhecer”,
em que o menino/menina adquire conteúdo, não de forma
passiva, mas como busca individual, ativa e coletiva articulado
ao “aprender a conviver” imbricado no “aprender a fazer”
449
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
constante, que produz novos conteúdos e novas percepções, e
que os levam a “aprender a ser” mais capazes e melhores a cada
dia, nos vários campos de conhecimento e de atuação social.
Um novo detalhe, perceptível a qualquer pesquisador,
é que as crianças de ontem, são os jovens e adultos de hoje,
mais experientes, mais seguros, mais sabeis. Alguns casais se
formaram, alguns já são pais, e, colocaram os filhos na Casa
Grande, outros estão prestes a sê-lo, muitos seguiram outros
caminhos, e quase todos estão concluindo ou concluíram cursos
universitários em diversas áreas e em programas de pós-gradu-
ação. O fluxo é contínuo, em virtude de que os atores sociais se
renovam e juntos continuam protagonizando uma experiência
de educação única, e dizendo ao mundo, neste momento difícil,
que a Casa continua aberta.
Nos propomos, neste artigo, trazer a discussão trabalhos
acadêmicos que abordam a Fundação Casa Grande, que foram
construídos posteriormente a nossa pesquisa, e, focaremos
nos trabalhos selecionados para apresentação no webinário
Cientifico da Fundação Casa Grande.
Enfatizamos que não foi possível realizar uma leitura
de todos os trabalhos apresentados, a Fundação Casa Grande
desenvolveu um site14 para que estes pudessem ser acessados,
mas, nem todos foram disponibilizados pelos pesquisadores.
Tentamos, sem sucesso, encontrá-los em outras plataformas,
não tendo sido possível, até o momento de finalização desta
escrita, por isso, nem todos foram referenciados15.
14 https://blogfundacaocasagrande.wordpress.com/publicacoes/ -Vários
acessos.
15 As apresentações estão disponíveis na página do facebook da Fundação
Casa Grande. https://www.facebook.com/fcgmhk Vários acessos.
450
Isabelle de Luna Alencar Noronha
De uma forma geral foram apresentadas 10 dissertações, 3
teses, 5 monografias, e mais um artigo jornalístico que remonta ao
início da construção do projeto em tela, identifiquei três trabalhos
anteriores a minha pesquisa (2008) e, que, portanto, já conhecia a
leitura, os posteriores abrangem os anos de 2008 a 2020.
Interessante destacar a variedade de campos de conhe-
cimento, em programas de pós-graduação e interesses de
pesquisa: Administração, Turismo, Design e Moda; Economia;
Fotografia, Comunicação, Jornalismo, Arte, Educação, História,
Geografia, Psicologia, Arqueologia, Juventudes, trabalhos que
foram inspirados no “terreiro16” multi, inter e transdisciplinar
que é a Fundação Casa Grande.
Há variedade quanto as instituições em que estes traba-
lhos foram defendidos encontramos: UFC, UNIFOR, UFPI, UFPE,
UFBA, UERJ, UECE, UFCA, UNESP (Rio Claro), Universidade
Estácio de Sá (Juazeiro do Norte) e em instituições internacio-
nais em universidades Coímbra-Portugal e Suécia. Da minha
instituição URCA, tinha o meu, isto me faz perguntar se de
fato nos conhecemos, queremos nos conhecer, se valorizamos
o nosso lugar, ou apenas nos sentimos mais privilegiados que
os nossos irmãos sertanejos por morarmos em um ambiente
com melhores condições de vida. Nos últimos dois anos tenho
orientado trabalhos e pesquisado sobre o ensino de história
local em escolas públicas de ensino fundamental (anos iniciais)
e a constatação é que o ensino de História, continua sendo
preterido em relação a Português e Matemática, e a história
local aparece de forma pontual nas datas comemorativas e nos
grupos folclóricos que se apresentam nas escolas.
16 Toda Casa do Sertão, tem um terreiro sendo este o lugar do encontro
antes de entrar na Casa, ele encanta pelas possibilidades de convívio e de
aprendizado que oferece.
451
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
Voltemos as temáticas dos trabalhos apresentados, de
uma forma geral abordaram: A arte cerâmica do homem kariri;
turismo e patrimônio; empreendedorismo; o sitio de Santa Fé e as
pinturas rupestres; história de vida dos fundadores; as narrativas
mitológicas; a juventude e suas possibilidades de vida no semi-
árido nordestino; práticas educativas e educação patrimonial;
comunicação em rádio comunitária e educativa; design com
a criação de um fotolivro; moda: com uma coleção de roupas
inspirada na Fundação Casa Grande; turismo comunitário e a
hospedagem familiar. Enfatizando que cada temática traz um
emaranhado de conhecimentos, emoções e por vezes produtos
que se efetivam para além da teorização exigida em cada campo
de conhecimento. É válido salientar, como já enfatizamos ante-
riormente, esta é apenas uma amostra significativa do muito que
já foi escrito sobre a Fundação Casa Grande, passemos a seguir,
a uma observação um pouco mais detalhada.
Destaco dois dos trabalhos científicos compartilhados
no webinário, que nasceram dentro da própria Casa. Um deles
é o trabalho de Conclusão de Curso (TCC) “Agência Turismo
Comunitário — um turismo feito de gente para gente”, de um
jovem menino, já mestrando. Esta pesquisa apresenta/analisa
a forma como o autor cria a sua empresa de turismo valori-
zando a cultura local, o conhecimento do seu espaço e toda
potencialidade que ele possui. É um plano de negócios para
o turismo comunitário, uma das decorrências do empreende-
dorismo social, que trouxe/traz, mais diretamente, benefícios
à população novaolindense, estendido ao Cariri cearense. A
outra pesquisa, veio de uma jovem menina e sua dissertação
de mestrado, em que estudou o sítio arqueológico de Santa Fé.
Pode-se afirmar que em diferentes medidas, ambos os trabalhos
nasceram da vivência dos mesmos na Fundação Casa Grande, a
452
Isabelle de Luna Alencar Noronha
partir, e pelos processos de educação patrimonial, cujo enfoque
é interdisciplinar, posto que,
Todo um complexo sistema de relações e conexões está
contido em um simples objeto de uso cotidiano, uma
edificação, um conjunto de habitações, uma cidade,
uma paisagem, uma manifestação popular, festiva ou
religiosa, ou até mesmo em um pequeno fragmento de
cerâmica originário de um sitio arqueológico (HORTA,
GRUNBERG; MONTEIRO, 1999, p. 9).
Neste sentido Horta, Grunberg e Monteiro (1999) consi-
deram que é tarefa da educação patrimonial, descobrir esta
rede de relações e de sentidos dos artefatos e registros culturais
que informam sobre os modos de viver das pessoas no passado
e no presente em um “ciclo constante de continuidade, trans-
formação e reutilização” (1999, p. 9). Para tanto, não se pode
separar conteúdos por áreas de conhecimento. Foi assim que
assistimos ao Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) anterior-
mente mencionado, de posse de todo conhecimento patrimonial
adquirido, o jovem cria o projeto/plano de ação para a edifi-
cação de sua empresa uma agência de turismo comunitário,
desde então passou a gerenciá-la.
Dois trabalhos abordam a História de Vida dos funda-
dores, um deles dissertativo, foi defendido em 2010 e traz como
título “Experiências de Vida e Formação do Educador Popular
Alemberg Quindins da Fundação Casa Grande — Memorial do
Homem Kariri”, o outro trabalho é um TCC “Memória e Mito
— Diálogos com Rosiane Limaverde e Alemberg Quindins”.
Ressaltamos que os trabalhos biográficos são como janelas
antropológicas que abrem à compreensão de que,
453
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
[...] Somos continuação de um fio que nasceu a muito
tempo atrás... vindos de outros lugares... iniciado por
outras pessoas... completado, remendado, costurado e...
continuado por nós. De forma mais simples, poderíamos
dizer que temos uma ancestralidade, um passado,
uma tradição que precisa ser continuada, costurada,
brincolada, todo dia (MUNDURUKU, 2000, p. 111-112).
A Casa Grande se veste dessa ancestralidade dos
fundadores, do lugar, da comunidade. Um dos rituais mais
importantes da Casa, acontece no dia 19 de dezembro de cada
ano, data em que se comemora os aniversários de nascimento
dos fundadores, o aniversário da Fundação Casa Grande e a
Renovação do Coração de Jesus.
A renovação é um costume caririense, como já abordamos
em nosso trabalho de 2008, não se tem ao certo a origem dessa,
remonta as andanças do padre Ibiapina na região, mas está
também associada as ações do Padre Cícero Romão Batista. O
fato é que esse ritual implica, como atesta o próprio nome, em
uma “renovação”, que se materializa na pintura da Casa, na
colocação de flores e velas para os santos católicos, na entrega
das famílias à proteção divina, na presença de amigos e pessoas
queridas para se rezar junto.
O preparo desta festa começa bem antes do seu dia, cada
detalhe é importante, desde o fazeres das comidas: sequilho,
café, bolo à organização e limpeza de todos os espaços... O dia é
de festa, na Casa Grande a presença de grupos da cultura local,
como por exemplo, dos irmãos Aniceto, se apresentado com suas
músicas e danças inspiradas na natureza e nos seus trabalhos
com a agricultura, é fundamental.
454
Isabelle de Luna Alencar Noronha
A banda cabaçal dos irmãos Aniceto, um conjunto
formado por seis integrantes da mesma família.
Foi tombado (em nível municipal) como patrimônio
imaterial do município do Crato, Ceará. Descendentes
diretos dos índios Kariris, os Aniceto fabricam seus
próprios instrumentos e criam suas músicas e danças
observando a natureza. Sua arte é reconhecida nacional
e internacionalmente (NORONHA, 2008, p. 157).
Nas casas sertanejas a primeira sala é dedicada ao Sagrado
Coração de Jesus, e é nela que acontece o ritual da renovação. Na
Casa Grande, a sala do Memorial (a primeira sala) é onde a reno-
vação acontece, essa é carregada da ancestralidade Caririense,
os santos foram doados pelos antigos moradores da cidade, o
Kariuzinho no centro da sala representa o início de toda a história
desde a infância de Alemberg conforme ressaltamos anterior-
mente até a reforma da Casa que está exposta em quadros, assim
como as fotografias dos fundadores ainda crianças.
A beleza de cores e ritos que a renovação produz, com os
santuários, santos, flores e os lugares da Casa com seus simbo-
lismos culturais foram abordados em dois trabalhos apresentados
no webinário, uma monografia que gerou uma “coleção de moda
inspirada na Fundação Casa Grande”, com tecidos, cores e formas
decorrentes do olhar das autoras e dos sentimentos gerados que
foram traduzidos por: “sonho, esperança, alegria, amor, respeito,
conhecimento e expectativa de vida”. Outro, denominado “Design
de Superfície como Ferramenta para a Valorização Institucional: Um
Estudo de Caso da Fundação Casa Grande”, do qual trazemos uma
ilustração (Figura 2), em que a autora destaca a sua visão iconográfica
da Casa e alguns elementos que a constituem, o trabalho é bastante
inventivo, rico em formas e detalhes, teve como objetivo geral: criar
uma coleção de padrões inspirados na Fundação Casa Grande.
455
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
Figura 2 – Elementos iconográficos representativos da FCG
Fonte: Rosa (2017, p. 109).
Na gravura iconográfica pode ser visto representações
do santuário, flores, casa, árvores, parquinho, meninos, como
uma leitura própria de quem considerou que tanto a coleção de
roupas como o fotolivro abordam o sertão caririense de forma
positiva e bela. Outro trabalho foi “A Juventude no Semiárido e
o Desenvolvimento Regional Sustentável: O Caso da Fundação
Casa Grande”, em que a autora foca a sua análise na investigação,
sobre a construção de significados pelos jovens que parti-
cipam da FCG e suas contribuições para o desenvolvimento
dos próprios jovens e para a Região, onde se procura saber
sobre suas experiências de aprendizagens nas dimensões
do “ser”, do fazer e do conviver (ANJOS, 201317).
Interessante esse trabalho focado nas juventudes e nas
possibilidades que estas possuem de crescimento na região à
qual pertencem.
17 Retirado do resumo.
456
Isabelle de Luna Alencar Noronha
Uma das críticas ao projeto que de uma forma geral os
pesquisadores apresentaram no webinário, advém de situações
que já observávamos em 2008, a saber: a proporcionalidade desi-
gual entre meninas e meninos na Casa, em virtude das meninas
serem mais requeridas para os afazeres domésticos cotidianos
em seus lares. Isto impossibilita as mesmas a cumprirem a rigo-
rosidade do tempo exigido para o menino/menina que de fato e
direito participa da Casa, recebe fardamento e possuem funções a
serem exercidas nos programas ela promove, por meio dos quais
aprendem e ensinam. Outra, é que o número fixo dos meninos e
meninas na Fundação Casa Grande, se mantém constante, muitos
utilizam o terreiro da Casa, o parquinho, participam das ativi-
dades promovidas, mas os que vivem, organizam e administram
a Casa continuam sendo restritos.
A tese intitulada “Arqueologia Social Inclusiva - A
Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio Cultural
da Chapada do Araripe Nova Olinda, Ce, Brasil”, de Rosiane
Limaverde18 (2015), foi apresentada no webinário por sua orien-
tadora em diálogo com Alemberg Quindins. Compreendemos
que o trabalho supracitado aborda o que a autora denomina
de Arqueologia Social Inclusiva, tendo a Casa Grande como a
aglutinadora e difusora de um conhecimento antropológico e
arqueológico e assim, impulsionadora da educação patrimonial
que se faz na e a partir da sua existência. Bem como propaga-
dora de um desenvolvimento econômico e social comunitário.
Dialogamos com esta tese na construção deste artigo,
ressaltamos o rigor científico empregado na pesquisa arqueoló-
gica, mapeando, pesquisando e dando conhecimento dos rastros
18 Fez a passagem em 20 de março de 2017. É preciso ressaltar a força que
ela teve em concluir o doutorado e defender a sua tese, na universidade de
Coimbra-Portugal, mesmo com a saúde fragilizada.
457
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
deixados pelo homem Kariri nas pinturas rupestres na Chapada
do Araripe que abrange os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí,
e para além dela quando necessário. É perceptível a presença dos
meninos e meninas da Fundação Casa Grande acompanhado a
pesquisadora e participando de estudos e formações.
O texto traz de forma literal as lendas pesquisadas, as
ilustrações que delas foram feitas pelos meninos/meninas da
Fundação Casa Grande. As canções compostas pelo casal e a
leitura científica das mesmas, como o trabalho acadêmico exige.
Destacamos um recorte daquela que foi a impulsionadora
do conhecimento de tantas outras, a lenda da pedra da Batateira,
Tendo como principal veio a nascente do Rio Itaytera,
que quer dizer “águas rolando entre as pedras”, ou,
como popularmente conhecido, Rio da Batateira, a
origem do Rio Salgado vem de um manancial mitoló-
gico de três pedras que jorram as águas submersas de
uma lagoa encantada dentro da Chapada do Araripe,
guarnecida pela mãe das águas, que anuncia de um dia
seu ímpeto desaguar no vale e transformar o sertão em
mar (LIMAVERDE, 2015, p. 136).
A fala de que um dia “o sertão vai virar mar”, já foi
entoada em versos, prosas e canções, mas, por enquanto, ele
continua firme. Lendas são contos da tradição oral, instigam a
imaginação, por vezes geram temor. A Casa Grande se tornou
a morada das lendas no Cariri cearense e continuam sendo
objetos de pesquisas, abordamos em trabalho anterior, como
elas são ressignificadas pelos meninos e meninas da Fundação
Casa Grande. No webinário foi apresentado um trabalho
dissertativo com o título: “Fundação Casa Grande, narrativas
e itinerâncias: ôxi, vamos caçar histórias por aí?”. Que ao que
458
Isabelle de Luna Alencar Noronha
entendemos aborda as narrativas (incluindo as lendas) na
Fundação Casa Grande. A tese de Limaverde (2015) denuncia
o descaso/desconhecimento com o patrimônio arqueológico e
adverte que só um trabalho com a educação patrimonial pode
ajudar na preservação dessa arte pré-histórica que muito pode
nos ensinar sobre quem somos e de onde viemos.
A tese traz ainda, os recortes histórico-cultural,
ambiental e territorial da Chapada do Araripe, em narrativas
que abordam a constituição da região do Cariri cearense e o
consideramos, um relato memorialístico de como a Casa Grande
foi sendo construída, leitura obrigatória para pesquisadores que
buscam conhecer e entender a Fundação Casa Grande.
A Arqueologia Social Inclusiva gestada na Fundação
Casa Grande propõe:
- A utilização dos conhecimentos sistematizados pelo
patrimônio arqueológico unidos ao intangível da
memória do Mito, no delineamento de soluções práticas
e caminhos frente aos problemas concretos da comuni-
dade de Nova Olinda.
- O protagonismo das crianças e jovens da Casa Grande
legitimando a herança do patrimônio arqueológico,
sendo elas próprias as guardiãs da memória local, cons-
truindo a cidadania e dignificando suas próprias vidas.
- Na Casa Grande, essas heranças foram e são revividas,
recriadas e retransmitidas pelas próprias crianças para
outras crianças, a comunidade e o público, como um
processo de aprendizado contínuo de gestão do patri-
mônio cultural (LIMAVERDE, 2015, p. 48).
459
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
Desse trabalho nasceu uma parceria entre a Fundação
Casa Grande, a Universidade Regional do Cariri e o hoje
denominado, Instituto de Arqueologia do Cariri19 Dra. Rosiane
Limaverde, para, dentre outros objetivos, oferecer o curso de
especialização Lato Sensu em Arqueologia Social Inclusiva, que
está, agora, em sua segunda turma. Percebermos e defendemos
em nosso trabalho dissertativo que as práticas educativas da
Fundação Casa Grande, possuem de forma geral interfaces com a
educação patrimonial. Esta, perpassa o cotidiano de suas ações
em todos os programas e é concebida como imersão, identifi-
cação e significação de sentidos em processos de “observação,
registro, exploração e apropriação” de bens culturais materiais
e imateriais pelos habitantes da Casa.
A Educação Patrimonial constitui-se de todos os
processos educativos formais e não formais que
têm como foco o Patrimônio Cultural, apropriado
socialmente como recurso para a compreensão sócio-
-histórica das referências culturais em todas as suas
manifestações, a fim de colaborar para seu reconheci-
mento, sua valorização e preservação. Considera ainda
que os processos educativos devem primar pela cons-
trução coletiva e democrática do conhecimento, por
meio do diálogo permanente entre os agentes culturais
e sociais e pela participação efetiva das comunidades
detentoras e produtoras das referências culturais, em
que convivem diversas noções de Patrimônio Cultural
(IPHAN apud LIMAVERDE, 2015, p. 382).
19 Segundo noticiado no Site da URCA em 21/12/2015: Em 19 de dezembro
de 2015 a Universidade Regional do Cariri – URCA e a Fundação Casa Grande
criaram, por meio de portaria, o Instituto de Arqueologia do Cariri – IAC com
o objetivo de atuar sob a perspectiva de colaborar com a promoção e divul-
gação de ações conjuntas de Pesquisa, Extensão, proteção e conservação do
patrimônio arqueológico, meio ambiente, cultura, geoturismo e geoeducação.
460
Isabelle de Luna Alencar Noronha
Neste sentido, continuamos afirmando que as práticas
educativas da Fundação Casa Grande possuem interfaces com
a educação patrimonial, isto pode inclusive, ser fator prepon-
derante da identificação social com a mesma. É no processo de
se ver que a comunidade se identifica, planeja e faz acontecer.
Com isso, assegura a continuidade do projeto.
“A vida não para”, pulsa e se
reinventa, assim é na Casa Grande
A título de conclusão desse artigo, colocamos para quem
quiser e se dispuser entrar na Casa Grande aqui descrita, um
primeiro cuidado “é preciso ter paciência”, no olhar do presente,
nas leituras do passado, nas perspectivas do futuro. É uma
experiência que nos marca para a toda a vida, primeiro, pela
história de amor e de superação de seus fundadores, depois, por
perceber a força que uma ação social ganha quando é abraçada
pela comunidade na qual está inserida e terceiro pelas múltiplas
possibilidades de práticas educativas que a Casa Grande oferece
aos seus moradores (meninas/meninas, comunidade local),
visitantes e pesquisadores.
Perceber o tempo passar numa cidade pequena encra-
vada no interior do semiárido nordestino é se deparar com
“pessoas simples, com cadeiras na calçada”, apreciar uma boa
conversa, ouvir um causo, comprar uma bolsa de couro em seu
Expedito Seleiro, ou, algo artesanal na lojinha da Cooperativa
de Pais e Amigos da Fundação Casa Grande. É conversar com
um menino, uma menina ou com ambos e ouvi-los explicar as
peças do museu, e os espaços da Casa com seus projetos e ações.
461
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
Os meninos grandes evidenciam o quanto o habitar a Casa os fez
melhores. Ah! É importante parar e tomar um café com tapioca,
e apreciar a galeria de Artes Violêta Arraes.
Uma das boas lembranças que guardo do meu período de
pesquisa (2007-2008), foi quando numa tarde, em que estava em
meio a muitos papeis tentando como um garimpeiro encontrar
material para compor uma narrativa para o meu trabalho,
começou a chover forte. A chuva quando bate no semiárido
libera o que este tem de mais belo, tudo fica verde como mágica,
o agricultor logo começa a sua roça, seja ela de milho, de feijão
ou de outra plantação qualquer, mas para as crianças, e, espe-
cialmente para os meninos e meninas da Fundação Casa Grande
ela é uma festa. Foi assim, que de repente eles deixaram os
cargos que ocupavam a época, gerentes (da gibiteca, do teatro...
da editora...) guia do museu, recepcionista... largaram tudo o
que faziam, esqueceram a disciplina e caíram na chuva, rolaram
na terra molhada, brincaram com a água que caia do céu, na
“tapera de água saída do mato” de forma livre e espontânea.
Observar tal cena, me fez compreender o que significa um dos
relatos que ouvi de um jovem menino, ele me falou, que um
dos desafios diários que enfrentam é “manter a Casa Grande
aberta”. Olhando o brincar na chuva entendi que quando as
portas se abrem as oportunidades de sonhos, encontros, novos
projetos, do brincar, do trabalhar, do compartilhar, do crescer
na resolução de conflitos (porque estes também fazem parte
do cotidiano) surgem.
Na live final que encerrou o ciclo de apresentação de 23
webinários ocorridos durante todo o mês de agosto na Fundação
Casa Grande, Alemberg Quindins, o fundador, ressaltou o
quanto foi perguntado, por muitos anos, sobre qual a pedagogia
era utilizada na Fundação Casa Grande, disse que não conhecia
462
Isabelle de Luna Alencar Noronha
os pedagogos que lhes eram apresentados pelos pesquisadores.
Falou da alegria de ver os meninos/meninas que estavam lá
desde crianças formados, seguindo as suas vidas e contribuindo
ainda mais com o desenvolvimento da Fundação Casa Grande,
agradeceu aos pesquisadores afirmando que para além de
pesquisadores eles são “amigos da Fundação Casa Grande” e
que ela continua aberta às pesquisas. Agradeceu aos jovens
meninos e meninas pela competência com a qual conduziram
os webinários. Falou da sua emoção ao assisti-los e afirmou que
a Pedagogia que os moveu e move é a “Pedagogia do amor ao que
estávamos/estamos fazendo [lembrando de todo o processo de
construção desse projeto], é assim que as crianças vão apren-
dendo na Casa Grande”, concluiu. Assim, também concluímos,
enfatizando o prazer que sentimos ao revisitar os fazeres e os
saberes da Fundação Casa Grande doze anos depois.
463
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
Referências
ALMEIDA, Maria Isabel Medeiros. Memória e história:
o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto na narrativa
histórica. 2011. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.
ANJOS, Maria De Fátima Dos. A Juventude no Semiárido
e o Desenvolvimento Regional Sustentável: O Caso da
Fundação Casa Grande. 2013. 152f. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Federal do Ceará, Juazeiro do Norte, 2013.
BARBOSA, Carmen Débora Lopes. Experiências de
vida e formação do educador popular Alemberg
Quindins da Fundação Casa Grande – Memorial
do Homem Kariri. 236f. Dissertação (Mestrado)
–Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.
CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: Leitura crítico-compreensiva
artigo a artigo. 17. ed. atual. ampl. Petrópolis: Vozes, 2010.
GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação.
Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
GAUTHIER, Clermont; TARDIF Maurice (org.). A
pedagogia, teorias e práticas da antiguidade
aos nossos dias. Petrópolis: Vozes, 2010.
GOHN, Maria da Glória. Educação Não-Formal e
Cultura Política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
(Coleção Questões de Nossa Época, v. 71).
464
Isabelle de Luna Alencar Noronha
GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Educação. 4. ed.
São Paulo: Cortez, 2001. (Coleção Questões de Nossa Época, v. 5).
HADDAD, Sérgio (org.). ONGs e universidade,
desafios para a cooperação na América Latina.
São Paulo: Abong, Petrópolis, 2002.
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina;
MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação
Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
LIMAVERDE, Rosiane. Arqueologia Social Inclusiva:
A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio
Cultural da Chapada do Araripe, Nova Olinda, Ce, Brasil.
2015. 474f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, Coímbra, Portugal, 2015.
LIMAVERDE, Rosiane. Os Registros Rupestres da Chapada
do Araripe. Ceará, Brasil. 2006. 340f. Dissertação (Mestrado)
– Universidade Federal do Pernambuco, Recife, 2006.
MENDONÇA, Cristiane Maria Oliveira et al. Empreendedorismo
Social e a Geração de Recursos Próprios em ONGs
cearenses. CONTEXTUS: Revista Contemporânea de
Economia e Gestão, v. 13, n. 2, mai/ago. 2015. p. 105-132
MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social,
crítica ao padrão emergente de intervenção
social. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
465
É UMA CASA MUITO BONITA,DE PORTAS ABERTAS PARA A VIDA
MUNDURUKU, Daniel. Em busca de uma ancestralidade
brasileira. In: DAVINI, Juliana (org.). Janelas da imaginação,
experiências singulares com os contos da tradição oral e
outras histórias. São Paulo: Espaço Pedagógico, 2000. p. 109-115.
NORONHA, Isabelle de Luna Alencar. Fundação Casa
Grande - Memorial do homem Kariri: cotidiano,
saberes, fazeres e as interfaces com a educação
patrimonial.2008. 270 f. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, 2008.
ROSA, Safira Maria de Lima. Design de superfície
como ferramenta para a valorização institucional:
um estudo de caso da Fundação Casa Grande. 2017.
133f. Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia) –
Universidade Federal de Pernambuco, Caruaru, 2017.
SANTOS, Ítalo Anderson T. dos Santos. “Próxima parada,
Nova Olinda/CE”: Justiça Distributiva no Turismo de Base
Comunitária. 2017. Dissertação (Mestrado) – Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, 2017.
SIMSON, Olga Rodrigues de Morais; PARK, Margareth
Brandini, FERNANDES, Renata Sieiro (ORGs). Educação
Não-Formal, Cenários de Criação. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP/Centro de Memória, 2001
Legislação citada
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da
República Federativa do Brasil. Brasília:
466
Isabelle de Luna Alencar Noronha
Senado Federal, 1988. Brasília, D.O.U. 05 out. 1988.
BRASIL. Lei n. 9.394, de 24 de dezembro de 1996.
Estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Brasília, D.O.U. 26 dez. 1996.
BRASIL. Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Restabelece
princípios da Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986, institui
o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e dá
outras providências. Brasília, D.O.U. 24 dez. 1991.
CEARÁ. Lei n° 13.400, de 17/11/2003. Cria o
Conselho Estadual da Cultura do Ceará e dáoutras
providências. Fortaleza, D.O. 08 mar.2004
CEARÁ. Lei nº 12.464 de 29 de junho de 1995. Lei de incentivos
fiscais à cultura. Fortaleza. D.O. 29 de junho de 1995.
CEARÁ. Lei n.º 13.811 de 16 de agosto de 2006,
Institui, no âmbito da Administração
Pública Estadual, o Sistema Estadual da Cultura - SIEC, indica
suas fontes de financiamento, regula o Fundo Estadual da
Cultura e dá outras providências. Fortaleza, D.O. 22 ago. 2006.
467
PARTE 3 - PRÁTICAS EDUCATIVAS
E HISTÓRIA DA SAÚDE
PALAVRAS QUE CURAM
NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES
EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS
DAS REZADEIRAS
Patrícia Cristina de Aragão1
Robéria Nádia Araújo Nascimento2
Resumo: As rezadeiras, no espaço cultural e societário brasi-
leiros, vêm no trajeto da história desenvolvendo práticas
de cura e ensinamentos ao longo de suas experiências no
itinerário vivencial. Tais práticas agregam repertórios de
saberes oriundos de constructos intergeracionais, narrativas
da tradição e memórias compartilhadas. Entre esses saberes
destacam-se o conhecimento da fitoterapia das ervas e suas
relações com o sagrado capturadas e traduzidas pela orali-
dade. As páginas de vida destas mulheres guardam práticas
1 Doutora em Educação e Mestra em Economia pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba. Graduada em
Psicologia pela Universidade Estadual da Paraíba. Professora Titular da Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB), Curso de História, e Professora Permanente do Programa de Pós
Graduação em Formação de Professores (PPGFP/UEPB) e do Programa de Pós Graduação
em Serviço Social (PPGSS/UEPB).
2 Doutora em Educação e Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal
da Paraíba (UFPB). Professora Associada do Departamento de Comunicação Social da
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Professora Permanente do Programa de Pós
Graduação em Formação de Professores (PPGFP/UEPB).
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
educativas cujas sensibilidades estão entrelaçadas com atos de
memória preservando suas ancestralidades. Suas palavras cura-
tivas se entrelaçam com ervas do ventre da terra permitindo a
disseminação de valores sobre a natureza que se convertem em
significativas maneiras de educar. O presente artigo explora esse
contexto com o objetivo de refletir sobre o ofício das rezadeiras
como prática educativa, a fim de sublinhar a sensibilidade de um
fazer cotidiano, cujos ensinamentos fazem sentido e precisam
ser valorizados no espaço escolarizado. Para fundamentar a
discussão, tomamos como evidências analíticas os estudos de
Bondia (2002), Pesavento (2007), Gondar (2008), Pollak (1989),
Brandão (2007), entre outros autores, que iluminam a temática
nas suas intersecções com as culturas populares. Ancorados nos
pressupostos metodológicos de Ayala e Ayala (2015), as ações das
rezadeiras podem configurar práticas educativas, uma vez que
seus horizontes de conhecimentos são formadores e merecem
ser considerados relevantes na construção do saber escolar.
Palavras-chave: Rezadeiras. Práticas educativas.
Memória. Sensibilidade.
470
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
Abertura
[...]com dois te botaram,
com três eu retiro,
vai olhado para as ondas
do mar sagrado[...]
Deus pai criador do céu e
da terra [...]
A o proferir palavras como estas, as rezadeiras iniciam
o ritual de suas práticas de cura. Os ecos dos termos
proferidos agem como mantras que articulam energias vitais
para proteger, curar e bendizer a quem, por diferentes razões,
procura pela ajuda dessas mulheres. É criado, nesses rituais,
um canal de sintonia do bem, pela via das orações que elevam
o pensamento ao sagrado, invocando forças que dele emanam
para criar condições espirituais que promovam a cura do
corpo e o bem-estar físico. Inserido nas tradições culturais que
permitem a interface de saberes múltiplos, o oficio das reza-
deiras, enredado nas trilhas do tempo e nas redes de saberes
que tecem as memórias, traz na composição das práticas coti-
dianas, vivenciadas no decorrer de suas vidas, ensinamentos,
conhecimentos, ressignificações de uma compreensão do viver
no mundo, pela ação de fazer o bem através das rezas.
Assegura Negrão (2009) que o vínculo entre colonização
e cristianização ao longo da história foi absorvendo diferentes
costumes locais, agregando referências de várias culturas e
crenças que se reproduzem nas comunidades populares. Esse
vínculo rearticula, na verdade, uma nova cultura mística e
simbólica, notadamente oral, que é reapropriada pelos signos
do religioso, do mistério e do encantamento.
471
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
Nessa reapropriação, as rezadeiras, a partir de sua
relação íntima e sensível com o sagrado, desenvolvem, através
das crenças que nele possuem, suas benzeduras, permitindo que
as dores do corpo e os sentimentos que permeiam as múltiplas
necessidades da alma humana encontrem bálsamo e alento para
as questões do ser, da alma e da vida cotidiana. Suas palavras
curativas se entrelaçam com as ervas do ventre da terra, que
atravessam o corpo pela benzenção permitindo a disseminação
de valores sobre a natureza que se convertem em significa-
tivas maneiras de transmitir saberes. Uma educação tecida
no decurso do tempo, em que o texto da vida, na sabedoria
formatada pelas gerações, produz a configuração da tríade
natureza, sagrado e cura.
Ainda que centradas na oralidade, revelando nuances
intuitivas de fé, as práticas educativas destas mulheres são
escritas ao longo dos tempos guardando saberes, valores e
sensibilidades entrelaçadas com atos de memória a fim de
preservar suas ancestralidades entre as novas gerações. Em
suas trajetórias de doação cotidiana, elas partilham com as
comunidades onde atuam seus olhares sensíveis no que se
refere ao engajamento com aspectos vivenciais de pessoas, em
termos de doenças físicas ou mesmo da alma, contribuindo
para a preservação do sagrado, através de rezas, indicações
de chás ou de banhos, cujos efeitos fitoterápicos e curativos
proporcionam o alívio das dores da existência, contribuindo
para a preservação de conceitos de cunho religioso.
Argumenta Sbardelotto (2016) que o arcabouço das vivên-
cias cooperativas de transmissão de fé, inspiradas pela tradição
das ancestralidades, configuram a acolhida e o convívio que
caracterizam as rezadeiras. Com isso, suas práticas sugerem
uma irmandade comunitária que mantêm vivos diferentes
472
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
símbolos religiosos, não apenas nos espaços interioranos dos
estados brasileiros, mas também nas áreas metropolitanas das
grandes cidades.
São pessoas cuja voz tem autoridade místico-religiosa
junto às suas comunidades, locais em que, muitas vezes, são
reconhecidas e valorizadas pelos próprios sacerdotes, ao desen-
volverem, entre os demais membros locais, o fortalecimento dos
costumes de fé imbricados a “práticas que emergem de algo já
dado (tradição/doutrina) para se chegar a algo novo (invenção
ritual), híbrido, heterogêneo, que refazem os construtos cató-
licos” (SBARDELOTTO, 2016, p. 167).
Na teia contemporânea de relações religiosas híbridas,
as experiências de fé dos rezadores transmitem lições sagradas
e forjam relações subjetivas com o divino, contribuindo para
o que Camurça (2014) denomina de catolicismo de longa
duração. Significa um catolicismo reconfigurado e travestido
que se manifesta por sentimentos de valorização dos santos,
do respeito pelas imagens, do conhecimento das ervas e de
seus princípios curativos em forma de banhos e infusões, das
práticas ritualísticas de bênçãos (rezas de moradias e pessoas,
com água, plantas ou objetos, a fim de curar o “mau-olhado3”),
dos terços em família, novenas, “encomendas” de orações, bem
como práticas de jejum ou recomendação de penitências. O
conjunto desses saberes constitui a sabedoria das rezadeiras.
3 Na visão da cultura popular, o mau-olhado ou o olho-gordo traduz a
crença de que a inveja dirigida a alguém, demonstrada pelo olhar ou pelas
vibrações de sentimentos, pode ocasionar mal estar físico e espiritual. As
práticas de rezas e as indicações de banhos são consideradas pelos indivíduos
rezadores e por aqueles que os procuram como artifícios neutralizadores das
energias negativas (CAMURÇA, 2014).
473
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
Nas suas histórias de vida, as narrativas de memórias
dos aprendizados ancestrais são fundantes na construção de
seus saberes e fazeres, cujos aprendizados foram construídos
no decorrer de suas vidas, oriundos de um vasto repertório
que combina orações, conhecimento de ervas, utilização
destas ervas para empreender curas, que visam propiciar uma
combinação de ações para o bom viver. Acreditamos que seus
conhecimentos são formativos porque estão ancorados na
pedagogia da sensibilidade do sentir humano e no tatear das
marcas indeléveis de suas dores. Assim, a ação que as rezadeiras
constroem ensina a proximidade com o divino, propondo a
valorização da vida e das subjetividades humanas através
do diálogo com as tradições. Nessas ações, há o empenho de
contribuir para a melhoria do ser humano; há, portanto, uma
ética humana que permite identificar nas práticas de cura atos
formativos significativos para o campo da história cultural e
das práticas educativas.
Nesse sentido, a escola precisa reconhecer e valorizar os
saberes da tradição transmitidos por essas mulheres, enxer-
gando nas suas histórias e experiências atos solidários que
educam, que formam novos seres, mais abertos e mais sensíveis
às necessidades humanas, ensaiando novos padrões de cuidado
e de convivência no mundo contemporâneo, tão carente de
compaixão e de afeto pelo bem estar do outro. Nas práticas
empreendidas por elas, é possível depreender um novo modo
de educar, inspirado nos saberes do passado, para a compre-
ensão do respeito aos ensinamentos da natureza articulada
aos valores das orações que forjam elos que criam liames de
proximidade com o divino no despertar de um novo tempo que
valorize a alteridade.
474
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
Nessa perspectiva, este artigo explora tal contexto com
o objetivo de refletir sobre o ofício das rezadeiras como prática
educativa, a fim de sublinhar a sensibilidade de um fazer
cotidiano, cujos ensinamentos fazem sentido e precisam ter
visibilidade no espaço escolarizado. No movimento das palavras
curativas destas mulheres, também notabilizamos elementos
relevantes para a construção do saber histórico.
Este artigo se insere no campo dos estudos da história
cultural das práticas educativas, contribuindo, portanto, para
o itinerário educacional da história da educação, ao aportar
sobre memória e sensibilidades nas práticas das rezadeiras. Ao
situarmos a importância educacional e cultural destas práticas
educativas desenvolvidas a partir delas, estamos pontuando o
significado do oficio destas mulheres, em um tipo de educação
que, mesmo ocorrendo em espaços não formais de ensino, traz
condições de possibilidade no sentido de poder contribuir, no
espaço escolarizado, com o fortalecimento de ações pedagó-
gicas que visem dar visibilidades aos saberes que estão fora do
contexto da escola e que, contudo, são sumamente significativos
para a leitura de mundo e de vida na escolarização de crianças,
jovens e adolescentes.
A escola enquanto espaço partícipe de múltiplos saberes,
ao inserir no currículo este tipo de discussão, possibilita a aber-
tura de diálogos, com conhecimentos que fazem parte do viver
humano, que secularmente encontram-se na nossa sociedade e
que, no entanto, não tem seu reconhecimento no campo educa-
cional, enquanto valor humano, educativo, cultural e social.
A produção de estudos e pesquisas sobre o oficio das
rezadeiras já possui amplo alcance nos campos da história e da
educação, contudo, redirecionar este olhar para a escola, para o
fomento do potencial destas práticas no ambiente escolarizado
475
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
é fundante, visto que são saberes necessários para compor o
currículo da escola, a formação docente e as aprendizagens
acerca da relação entre memória, sensibilidades e história de
vida, temáticas que dimensionam a formatação de novas fontes
e linguagens para a educação.
Ao lançarmos olhares sobre as rezadeiras enquanto
sujeito educativos, cujas ações educam, estamos corrobo-
rando pensar numa diversificação com relação aos olhares
que se entrecruzam na escola perante um ensino articulado
à realidade social do alunado. Enfatizamos que as pesquisas
que versam sobre os saberes tradicionais, como os nas quais se
inserem as rezadeiras, enquanto guardiãs de memórias sobre
um conhecimento articulador de memória individual e social,
acreditamos que tais movimentos educativos de aprendizagem
consistem em fontes ricas para entrelaçar história e educação.
Esses estudos trazem marcas das vivências cotidianas de
mulheres que foram excluídas da escola, em que, muitas vezes,
perdurou uma visão segregadora de tais conhecimentos por não
os considerar formativos.
As práticas de cura, o conhecimento das plantas e a
fitoterapia no seu uso, a relação com o sagrado, a prática peda-
gógica alçada na escuta do outro e o respeito na sua dimensão
de alteridade consistem em fontes ricas para o conhecimento
escolar, visto que, além de guardiãs de uma memória social
de saberes intergeracionais, as rezadeiras, com sua compre-
ensão dos males do corpo e as dores da alma, desenvolvem
uma educação praticada no acolhimento social e individual de
pessoas de diferentes matizes sociais, étnicos e de gênero.
Os percursos percorridos por elas na fabricação de seus
saberes e na construção social de seu repertório congregam
uma somatória que permitem trilhar por uma prática educativa
476
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
criativa, participativa, cujas veredas pela memória permitem a
compreensão da realidade e suas representações sociais. Como
testemunha de dadas realidades e suas representações sociais e
históricas, as pesquisas que abordam a memória e o saber-fazer
das rezadeiras anunciam e oportunizam na correnteza da
história um veio fertilizador que na história do tempo presente
são substanciosas no desvelamento da prática docente e dos
aprendizados culturais, históricos e sociais.
Partimos, pois, neste texto, da tentativa de aproximar
a história e a educação, sublinhando o lugar pedagógico das
rezadeiras nas práticas culturais. Optamos por “rezadeiras
no plural”, por compreendermos que são diferenciadas as
suas pertenças religiosas, suas práticas e ações. Destacamos
a concepção de memória a fim de chamar a atenção para a
sensibilidade dessas mulheres enquanto tradutoras de valores
geracionais que alfabetizam almas, desenvolvendo os letra-
mentos do corpo e do espírito humano inscritos em devoções,
ervas e orações.
A dimensão educativa do ofício
das rezadeiras: pistas metodológicas
para o registro de saberes populares
Educar para a dimensão da alteridade, pautada no
respeito da natureza e na preservação do sagrado, constitui
os ensinamentos derivados dos fazeres das rezadeiras. Na
busca para amainar as dores decorrentes dos males do corpo
477
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
ou da alma, o ser humano procura sentido nos rituais dessas
mulheres por considerá-los valorativos à manutenção da vida.
Brandão (2007) pontua que, apesar do mundo globalizado,
para as camadas populares, a crença e a devoção funcionam
como elementos explicativos para questões individuais e
coletivas. Para o autor, embora a religião se modifique a cada
dia, ainda continua sendo um instrumento que se hibridiza
com as esperanças das mais diversas categorias de pessoas,
independentemente do segmento econômico que as classificam.
A fé popular e seus símbolos recorrentes não são expli-
cados por critérios de racionalidade, mas sempre vivenciados
pelo aspecto místico-simbólico que atua como um código legí-
timo de acesso sensível ao sagrado. Nessa dimensão, as práticas
das rezadeiras são veículos de alteridade que transmitem lições
de sabedoria e transformam os deuses oficiais da religião em
“deuses do povo”.
Acreditar que as orações e a utilização de ervas, chás
e banhos possam propiciar uma renovação interior, um
bem-estar de vida, tem sido um costume cultural ressignificado
ao longo dos séculos em diferentes localidades, mesmo diante
das inovações provocadas pela secularização que perfilam o
mundo contemporâneo e o afasta dos contatos com o divino.
Para além das mudanças de religiosidade, a dinâmica da
ação das rezadeiras subsiste como um saber de resistência. As
simbologias de acender uma vela, venerar imagens de santos,
repetir uma oração, cultivar símbolos, entoar cânticos reli-
giosos e realizar imposições de mãos para emissão de vibrações
divinas configuram experiências de aproximação do sagrado no
mundo profano que revitalizam as crenças de devoção popular,
fortalecendo, de algum modo, as identidades de fé para além
das denominações religiosas.
478
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
Contins, Penha-Lopes e Rocha (2015) consideram que o
simbólico e o ritual não são meros adereços ou táticas místicas
de religiosidade, mas pressupõem saberes que produzem
eventos de fé restaurados na vida comunitária, decorrentes de
memórias subjetivas,
compondo ambientes de reafirmação identitária e
de novas sociabilidades, aprofundando as tradições
populares onde as identidades religiosas ganham novos
contornos e maior visibilidade” (CONTINS; PENHA-
LOPES; ROCHA, 2015, p. 11).
Assim, enquanto guardiãs de uma memória ancestral,
cujos vestígios são encontrados nos conhecimentos constru-
ídos pelos antepassados, fonte criadora de suas práticas, as
rezadeiras se apropriam do universo das orações, das velas e
das ervas, para, simbolicamente, preservar as tradições de fé e
desenvolver o cuidado com o ser e o corpo humano, ensinando
ações que colaboram com o bem-estar das famílias.
Suas memórias resistem ao tempo e permitem transmutar
conhecimentos valiosos para a vida humana. Para algumas reza-
deiras, esse oficio é oriundo de um dom dado por Deus. Contudo,
para outras, tal saber é fruto de um aprendizado contínuo que,
intergeracionalmente, foi vivenciado no seio familiar e que
passou a fazer parte da cotidianidade de suas vidas, represen-
tando um compromisso de doação com o próximo.
Essas mulheres demonstram, assim, um modo de fazer
educação cujos pilares derivam do néctar da natureza, no qual
se pode buscar os valores medicinais que assumem o papel cura-
tivo do corpo. A existência do oficio de rezar para reestabelecer
energias foi transcendendo espaços-tempos de viver, trazendo
479
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
sentido e significado às famílias que buscam auxílio espiritual,
apontando, também, a construção de relações de sociabilidade
e de interação entre as rezadeiras e as pessoas que as procuram.
Nas localidades onde há uma rezadeira, seus trabalhos
passam a ser referências de alívio para os males da saúde,
criando vínculos de fé e de confiança comunitária. Vale
ressaltar que a confiabilidade nesse trabalho é um laço criado
através do tempo e que se torna fundante no fortalecimento
entre as rezadeiras e as pessoas do contexto local.
Nos termos de Ayala e Ayala (2015), as rezadeiras podem
ser consideradas “tesouros humanos vivos” de suas comuni-
dades, referências de saberes tradicionais e narráveis, na troca
de experiências e na construção da solidariedade, que é
fundada na vida comunitária, com fortes laços de afeti-
vidade, que se constrói no dia-a-dia difícil, no mutirão
cotidiano da vida, em que ‘uma mão lava a outra’ é
responsável pela força que supera as dificuldades
(AYALA; AYALA, 2015, p. 49).
Os autores evidenciam que as comunidades e seus
costumes não apenas ressignificam um passado de tradições.
Integram um contingente da população nem sempre reconhe-
cido devidamente como protagonista cultural em grupo, em
sociedade ou em suas comunidades, o que o afasta do mundo
acadêmico, em suas matrizes eruditas, como se seus saberes
fossem “secundários”. Isso costuma acontecer na educação,
porque são pessoas que têm seus modos de externar
sua fé, sua devoção, sua alegria, sua forma de conviver
com diferentes faixas etárias, que podem ser diferentes
480
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
daqueles padronizados pelas expressões culturais
dominantes e oficiais (AYALA; AYALA, 2015, p. 10).
No oficio das rezadeiras, o corpo consiste no seu espaço
de atuação. É lá que elas cartografam sentidos, pluralizando
formas e modos de buscar interação com o campo espiritual. As
ervas e as águas que utilizam são vetores sagrados que atuam
nas enfermidades do corpo porque guardam lições simbólicas
de proximidade com o divino. Suas palavras curativas equili-
bram os anseios psicoemocionais das pessoas que precisam de
cuidados. O repertório de rezas, que integra a composição do
saber-fazer das rezadeiras, torna-se campo fluídico de conexão
com o sagrado para que as benzeduras possam encontrar
espaço magnético apropriado para amenizar as enfermidades
que perturbam as mentes e os corpos.
Com isso, ensinamentos são propagados através de
práticas que, na memória social, histórica e cultural dos terri-
tórios, são de primaz importância às experiências coletivas da
comunidade. Saberes da tradição oral são criados, mas são invi-
sibilizados nos currículos escolares, nos conteúdos dos livros
didáticos, embora ensinem valores ancestrais que permitem
múltiplos aprendizados históricos, culturais e sociais atrelados
ao aprendizado da vida e do tempo vivido.
No curso do seu oficio, as rezadeiras estreitam sua
relação de alteridade comunitária, nos espaços onde costumam
ser conhecidas e respeitadas, tornando-se fundamentais no
amparo emocional das pessoas. Elas convivem com as aflições, as
sensações, os anseios e as esperanças que suas rezas despertam,
partilhando e compartilhando histórias, nas quais as orações, as
indicações de banhos e os ramos de plantas são fios condutores
481
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
para um mundo em que a escuta de palavras sábias contribui
para ensinamentos valiosos que revigoram a alma.
Do ponto de vista metodológico, pontuamos que as
pesquisas no campo da história da educação, com práticas
educativas que valorizam os saberes das rezadeiras, são
importantes para a formação humana e para compreender
um sentido de educação e outro modo de fazer educação para
além do saber escolarizado, talhados e trabalhados a partir
das práticas de vida. Esse tipo de pesquisa propicia incluir, no
ambiente da escola, experiências e vivências ancestrais a partir
do currículo, entrelaçadas com os atos de memória. Munduruku
(2009) propõe que todos os seres humanos são signos de movi-
mento e integram a grande teia da vida, da qual não somos
donos, mas apenas um de seus fios. Um fio que se constrói no
invisível. Portanto, temos um passado, uma história que precisa
ser lembrada, continuada, costurada. Nas tramas da teia da
vida, é preciso escutar e recontar as histórias do devir humano,
porque nenhuma delas é insignificante; cada narrativa tem o
seu valor educativo e merece nossas reverências:
quando a gente se percebe continuador de uma história,
nossa responsabilidade cresce e o respeito pela história
do outro também, renovando o sentido de família, de
pertencimento a um grupo, a um povo, a uma nação
(MUNDURUKU, 2009, p. 18).
As pesquisas sobre culturas e práticas orais nos espaços
comunitários devem, segundo Ayala e Ayala (2015), ser tratadas
em suas especificidades. Na trilha dessa orientação, podem ser
elencados os seguintes procedimentos para coleta de dados:
482
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
a) Seleção de rezadores conhecidos e respeitados em
suas comunidades por conhecimentos e práticas devocionais
de benzeduras, curas e apoio espiritual;
b) Estudo exploratório da cultura religiosa praticada pelas
rezadeiras para identificar seus costumes ou hibridismos religiosos;
c) Gravação das entrevistas para captura das falas e dos
registros fotográficos, quando autorizados;
d) Anotações no caderno de campo sobre as impressões,
informações complementares e circunstâncias dialógicas com
essas mulheres (observações derivadas das conversas informais
que favoreceram a captura fiel dos relatos nas circunstâncias
em que ocorreram).
Quando aliada a uma revisão de literatura apropriada aos
saberes populares, a riqueza das narrativas de memória traça
os contornos de um currículo intercultural, dialógico, parti-
cipativo, descolonizado, que traz para o aprendizado escolar
a inclusão sobre as vivências e as experiências ancestrais,
propondo, assim, ressignificar as ações educativas do espaço
escolar (OLIVEIRA, 2003; AKKARI, 2010).
Cabe ressaltar que ao repensar o sentido de educar na
escola, apontando as práticas das rezadeiras como educativas
e também culturais, estaremos produzindo novos modos de
educar e contribuir com uma proposta de educação inter-
cultural, dialógica, ancorada num currículo que desenvolve
a dialogicidade com universos culturais que não encontram
espaço na escola. Nesse sentido, a valorização dos saberes
populares nos contextos pedagógicos pode fomentar redes de
educar que aproximam a escola do contexto sociocultural.
Argumentamos que, ao enaltecer as potencialidades
destes conhecimentos, que durante tanto tempo foram
483
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
inferiorizados, ou mesmo não compreendidos enquanto
educativos, permite a integração/interação entre escola e
comunidade, trabalhando com subjetividades humanas e suas
sensibilidades culturais e sociais, tão necessárias à educação
escolar, permitindo que a produção de sentido na escola visi-
bilize a contribuição social das rezadeiras. Como construtoras
da história local, essas mulheres são testemunhos vivos na
cartografia dos diferentes episódios e transições de uma comu-
nidade. E ainda assim são invisibilizadas na produção educativa
escolar. Desse modo, os processos educacionais precisam ser
repensados, no sentido de reconhecer as produções culturais
que estão fora da escola, pois elas constituem os saberes da
tradição e trazem novas possibilidades de aprendizado que
enriquecem a vida escolar, porque contam as narrativas de
uma história cultural viva que a cada dia faz avançar os acon-
tecimentos locais.
Assim, as rezadeiras continuam sendo referência nos seus
lugares de atuação, porque desenvolvem a chamada pedagogia
da escuta sensível ou da outridade. As suas práticas de cura
são também práticas sociais importantes para integrarem um
currículo que seja referencialmente construído, contextuali-
zado e intercultural, implementando o debate necessário entre
a esfera escolar e as culturas populares que existem no entorno
social das comunidades.
Partindo do pensamento de Candau e Moreira (2014),
enfatizamos a existência da “insensibilidade docente à hete-
rogeneidade nas escolas, ao arco-íris de culturas que hoje
marca toda e qualquer sala de aula em inúmeros países, entre
os quais se encontra o Brasil” (CANDAU; MOREIRA, 2014, p. 12).
Esse arco-íris de saberes de todas as regiões marca a diversi-
dade do mundo da vida e precisa permear a educação escolar,
484
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
intercambiando as culturas e as aprendizagens históricas
na reinvenção de uma escola inclusiva e socialmente aberta
aos conhecimentos advindos de outros espaços sociais e seus
significativos representantes populares.
Nascentes de fé e cura: memórias
das mulheres e das palavras sagradas
Esta reflexão aponta o inacabamento humano, pois, na
condição de seres em construção cotidiana, frutos de aprendi-
zados múltiplos e de acervos de saberes, vamos tecendo a escrita
da vida como sujeitos de memória. No repertório da história
humana, a memória se inscreve no corpo como uma marca inde-
lével da ação que desenvolvemos no mundo. Consequentemente,
o corpo também inscreve memórias cujas tramas estão tatuadas
no movimento da vida. Nesse percurso, as rezadeiras são memó-
rias vivas de uma nascente de fé, cujos pilares de sustentação se
inserem nas diferentes experiências coletivas e religações com
o sagrado, acalentando almas, trazendo energia pulsante para o
corpo pela via de palavras-sementes, carregadas de sabedoria e
de esperança, que fazem brotar a fé.
Bondia (2002), ao se reportar ao sentido das palavras nas
experiências da vida dos sujeitos, declara que: “palavras deter-
minam nosso pensamento porque pensamos com palavras, não
pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência,
mas a partir de nossas palavras” (BONDIA, 2002, p. 21). Desse
modo, as palavras das rezadeiras nos atos da benzenção propi-
ciam calma e acolhimento para as adversidades da vida.
485
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
As palavras que transbordam das rezadeiras em forma
de rezas têm uma amplitude e efeito na mente e no corpo, nas
representações sociais, pois são multiplicadoras de significados
e exercem um papel fundamental na vida de pessoas, cujas
enfermidades do corpo e da mente foram tratadas por essas
mulheres, instrumentos do bem coletivo. Como reitera o autor,
o sentido e a força das palavras ressignificam a maneira como
percebemos essas práticas que são culturais e sociais.
O medo, a fraqueza no corpo, o mal-estar que assolavam
e assolam as pessoas sempre estiveram presentes no trajeto da
sociedade, mesmo diante dos avanços tecnológicos das ciências
médicas. As práticas de benzeduras fizeram a travessia em dife-
rentes temporalidades e espacialidades da sociedade brasileira,
procurando romper com preconceitos, estigmas sociais e discri-
minações sobrevivendo até hoje. Quando não havia médico, as
rezadeiras ocuparam um espaço fundamental no cuidado da
saúde da população. Apesar das críticas ao que faziam, mesmo
diante das opressões, continuaram agindo, colocando em voga
o que sabiam, mobilizando as rezas e a fitoterapia.
O relevo por tal saber propiciou uma ruptura com deter-
minadas normativas socialmente impostas, desenvolvendo
em torno da cosmovisão de mundo das pessoas, acolhimentos
solidários e humanitários. Na origem dessas práticas, não
se tratava apenas de curar, mas de respeitar a alteridade de
diferentes sujeitos sociais e tratar seus males sem distinção de
classe. Articulando nossa compreensão em torno da sabedoria
das rezadeiras, registramos a visão de Nascimento e Lima
(2019), que consideram o saber como estrutura cognitiva que
independe da educação formal:
486
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
O saber é composto por elementos biológicos, cerebrais,
culturais, sociais, históricos numa dinâmica perma-
nente. Sua organização parece ocorrer em função dos
paradigmas que selecionam, hierarquizam, rejeitam,
admitem ideias e informações de natureza social. É
uma expressão coprodutora da realidade que cada
sujeito percebe e concebe no seu espirito/cérebro. Desta
maneira, todos possuem algum grau de saber, mesmo
que esse não resulte do saber instituído pela educação
formal (NASCIMENTO; LIMA, 2019, p. 19).
No imaginário social e na memória das comunidades
urbanas e rurais, a ação comunitária e comunicativa das reza-
deiras criou tonalidade. Sua comunicabilidade permitiu que as
experiências em relação à fé e ao sagrado fossem entendidas
pelas pessoas como curas atribuindo sentidos as suas rezas
na complexidade do viver social. Trata-se de um saber-fazer
de resistência, marcado pelas vivências da tradição e de suas
potencialidades. Em síntese, as rezadeiras resistem através da
fé e ensinam o respeito pelo próximo e pela natureza.
Aportadas na oralidade, essas mulheres atravessam
diferentes temporalidades reinventando saberes que instru-
mentalizam os conhecimentos que delas emanam. Nascimento
e Pires (2018) destacam que:
As práticas orais são utilizadas como meio de trans-
missão de saberes e como forma de manutenção da
própria cultura. Ensinamentos que vão desde um ato
simples como dar conselhos, contar uma história,
cantar, até estruturas mais complexas que acompa-
nham instrumentos de uso e o manuseio de um objeto/
símbolo (cozinhar, costurar, plantar, rezar). Oralidade,
nesse contexto, torna-se essencial e bastante relevante
487
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
para a compreensão do sujeito e do meio do qual faz
parte. Dessa forma, o caráter oral da língua passa a
exercer importante função: favorece a manutenção de
hábitos e costumes, tornando-se um meio de incorpo-
ração e apropriação dos conhecimentos adquiridos ao
longo da vida (NASCIMENTO; PIRES, 2018, p. 47).
Nesse sentido, as rezadeiras “são detentoras de um
grande saber religioso, capazes de, por meio das rezas e dos
rituais, curar males e devolver o equilíbrio emocional e físico
àqueles que as procuram” (NASCIMENTO, 2018, p.4 7). Esses
saberes fazem parte da memória coletiva e individual, e são
fundamentais para que possamos compreender a historicidade
deste oficio popular em sua dimensão social.
Ao nos reportarmos à memória, é importante ressal-
tarmos as lembranças nelas contida (GONDAR, 2005). Como
sujeitos de conhecimentos, mas também de lembranças que nos
construíram, a memória passa a adquirir no contexto da vida,
um aspecto fundante, pois testemunha fazeres de um tempo
vivido. Somos, igualmente, testemunhas das histórias de vidas
das outras pessoas e do que perpassa uma dada territorialidade.
Partindo dessas observações, destacamos a importância
de se discutir sobre a memória das rezadeiras, enfatizando
o seu lugar social, cultural e educativo. Seus conhecimentos
foram legitimados na recriação histórica de uma prática que
transcende espaço/tempo de viver, criando liames na memória
das pessoas que buscam, em seu oficio, veredas assertivas para
as suas dores, sejam estas do corpo físico ou as que adentram a
alma. A ação das rezadeiras faz parte da memória e da história
de uma dada realidade social. Nora (1993), ao fazer a interface
reflexiva entre memória e história, mostra que:
488
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
A memória é vida, é sempre carregada por grupos vivos
e, nesse sentido, ela está em permanente evolução,
aberta à dialética da lembrança e do esquecimento
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulne-
rável a todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e repentinas revitalizações [...] A
memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido
no eterno presente, a história de uma representação
do passado; Porque é afetiva e mágica, a memória
não se acomoda aos detalhes que a confortam, ela se
alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou
flutuantes. Particulares ou simbólicas, sensível a todas
as transferências, cenas, censuras ou projeções [...] A
memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto e
na imagem, no objeto (NORA, 1993, p. 2-3).
Dessa forma, seria possível entender que a memória
é composta pelos inúmeros aspectos da vida cotidiana, do
conviver humano, em que os gestos, os cheiros, os sabores
formatam as histórias dos sujeitos. No momento das benze-
duras, os gestos das rezadeiras e seu conhecimento de cada
cartografia corporal ritualiza uma oração que possa agir direta-
mente naquela dor ou enfermidade do espírito, exemplificando
parte das suas memórias afetivas e/ou ancestrais.
Observamos que suas práticas preservam essas memórias
no enfrentamento da oficialidade, resistindo no contexto das
culturas populares para se preservar no tempo e não serem
silenciadas ou esquecidas. Manifestam em suas narrativas um
saber híbrido, oriundo de várias culturas em interação.
Esse hibridismo é fruto das diversas facetas religiosas que
as rezadeiras encaminham no envolvimento com as pessoas que
as buscam. Ao praticarem a solidariedade, a fé e a partilha dos
conceitos divinos exercem nas comunidades a educação pela
489
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
palavra curativa. Suas ações com o sagrado criam efeito positivo
nas vivências individuais e coletivas no trajeto histórico evolutivo.
Le Goff (2013) explica que a Idade Média foi um período
marcado pela difusão do cristianismo e do monopólio da Igreja.
Com isso, as religiões judaica e cristã se ancoraram na memori-
zação e na recordação das escrituras para suas sobrevivências.
Como resultado desse processo, houve a separação entre a
memória litúrgica e a memória laica, mobilizando o trânsito
dos saberes da tradição.
Assim, a história religiosa das gerações começa, então,
a ser tecida e recontada, sobretudo, pelas pelos idosos, consi-
derados os “homens-memórias” das culturas, aqueles que
reverberam os saberes familiares. O saber religioso assume,
portanto, um significado geracional, uma vez que cada geração,
a partir desse período, passava sua memória cristã para outra,
pela oralidade, preservando no presente as narrativas e ensina-
mentos dos indivíduos curadores nas suas práticas de oração.
Portanto, nas lembranças das pessoas e no imaginário das
comunidades, as rezadeiras constroem seu lugar de memória ao
longo dos séculos. Conforme Diehl (2002), “nossa capacidade de
lembrar de algo é a mesma capacidade de esquecer” (DIEHL, 2002,
p. 115). Percebemos que, durante muito tempo, o saber das reza-
deiras foi relegado à condição de “não valorativo”. Lembrar para
“não esquecer” do que fazem as rezadeiras, através dos tempos,
é a tônica deste estudo, a fim de instigar escolas e currículos
escolares inclusivos acerca dos saberes da tradição popular.
490
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
Letramentos da vida
e os sentidos do aprender:
práticas educativas das rezadeiras
Refletir como os saberes das rezadeiras possibilitam a
culminância de práticas educativas requer pensar na sutileza
de seus rituais como expressões de culturas que desempenham
papéis educativos. Se nas práticas educativas escolares há
necessidade de se intercambiar culturas, cultura escolar e
culturas que estão na escola, para a construção de conheci-
mentos da realidade social, as práticas não formais de ensino,
como as das rezadeiras, possibilitam iluminar conhecimentos
que ensinam através de transmissão de valores. No contexto
da história cultural, práticas educativas pensadas a partir das
sensibilidades apontam o que Pesavento enfatiza que:
É a partir da experiência histórica pessoal que se
resgatam emoções, sentimentos, ideias, temores ou
desejos, o que não implica abandonar a perspectiva de
que esta tradução sensível da realidade seja historici-
zada e socializada para os homens de uma determinada
época. Os homens aprendem a sentir e a pensar, ou seja,
a traduzir o mundo em razões e sentimentos através
de sua inserção no mundo social, na sua relação com o
outro (PESAVENTO, 2007, p.14).
As experiências de educar tendo em vista as sensibili-
dades apontam para o que Pesavento alude:
491
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
As sensibilidades são sutis, difíceis de capturar, pois
se inscrevem sob o signo da alteridade, traduzindo
emoções, sentimentos e valores que não são mais os
nossos. Mais do que outras questões a serem buscadas
no passado, elas evidenciam que o trabalho com a
estrangeiridade com relação ao que se passou por
fora da experiência do vivido. E esta, no caso, insere
o conceito de sensibilidades sob o signo da alteridade,
sem o que não é possível a reconfiguração do passado
(PESAVENTO, 2007, p. 15).
Uma educação que vise dar sentido à cotidianidade do
alunado prescinde de práticas que sinalizem modos de ensinar
e de aprender valorativos das experiências sociais. A aprendi-
zagem pautada nos saberes educativos das rezadeiras favorece
a construção de princípios éticos comunitários do cotidiano,
entendendo-se a ética da amorosidade e da generosidade como
princípios de alteridade em meio às diferenças.
Os ensinamentos das rezadeiras traduzem uma atitude
pedagógica que alimenta e nutre o sujeito humano em sua alma.
Suas ações expressam uma biopsicologia revestida de signifi-
cados e há, portanto, o exercício da solidariedade que traduzem
o “se importar com o outro” em atitudes de doação. Essas
práticas tradicionais de atendimento à população se sustentam
na complexidade dos pertencimentos religiosos das rezadeiras,
que se identificam, ora com os saberes afro-ameríndios, ora
com a tradição popular da religiosidade católica, ora com os
preceitos advindos das expressões de fé afro-brasileiras.
Essa fusão demarca os lugares híbridos de uma fé popular
que se alimenta da solidariedade. Assim, as formas populares
do divino, nas diferentes comunidades, manifestam o domínio
difuso de uma heterogeneidade de rituais e de fiéis, que
492
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
preservam crenças ou criam novas expressões, reinventando
a tradição de um passado católico, que hoje é ressignificado
para se manter vivo.
Mondzain (2007) observa que toda forma de subjetividade
das memórias religiosas deve ser considerada não a partir da
racionalidade que tenta defini-la, mas a partir dos afetos que
a contornam. Nessa dinâmica, a partilha do sensível pelas
rezadeiras representa os sentimentos da “partilha da palavra”.
Assim, a oralidade, como eixo da comunicação interpessoal e
transmissora de ensinamentos, constitui a experiência do
diálogo sociorreligioso que, em si mesma, é educativa.
Argumenta a autora que, somente nas experiências
subjetivas do sensível, é que o sujeito aprende valores e se
constitui no diálogo, reconhecendo-se no outro, aprendendo a
arte de uma escuta solidária que o identifica com as questões
e os dramas de seus semelhantes na empatia com suas dores
e histórias. A educação da palavra é, portanto, inseparável do
fazer e do exemplo que transformam as coletividades.
Novos saberes intergeracionais são, assim, recriados
pela oralidade, a partir de uma matriz histórica católica que
passa a ser compartilhada pelo espaço da memória coletiva,
tecendo laços afetivos entre os representantes religiosos e
os lugares onde vivem. Assim, as rezadeiras educam nesses
espaços, transmitindo os saberes da tradição aprendidos para
a continuidade de suas histórias; repassando lições para que o
legado da fé se mantenha vivo nas suas comunidades, ou seja,
as suas lembranças têm histórias e carregam saberes coletivos
que precisam se fazer contar e ouvir para promover educação.
Desse modo, constroem uma movência de saberes que busca no
terreno da ancestralidade o aporte para legitimar sua atitude
pedagógica de vida.
493
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
Esse trabalho educativo se aporta na pedagogia dos afetos
e da escuta, afetividade vista aqui, como meio de atenção gene-
rosa ao humano em suas dores e dissabores, em suas esperanças
e vicissitudes da vida, buscando delinear uma razão humani-
zadora que precisa ser reconhecida na educação escolar e nos
currículos praticados.
Nos letramentos da vida, as rezadeiras estão alfabetizando
e gerando valores a partir da gama de conhecimentos adquiridos,
desenvolvendo um olhar terno e compreensivo sobre os males
das pessoas que as procuram pelas intervenções da fé. Essas
mulheres participam da vida social e cultural das localidades
onde habitam, criando laços na convivência participativa,
atentas para o que está no seu entorno, ou seja, as pessoas, o
lugar, as demandas locais, praticando o acolhimento do outro, no
respeito à diversidade, pois são diversos os sujeitos sociais que as
procuram. As rezadeiras são educadoras de palavras curativas,
sensibilizantes, de ânimo, mas, sobremaneira, humanizantes.
Tendo o corpo como o epicentro de suas ações, trabalham
de forma tridimensional para alcançar as almas, com os saberes
das orações, utilizando objetos ou as próprias mãos como veículos
de energias transformadoras. Essa ação tridimensional observa a
dimensão espiritual, as sensações do corpo com vistas a promover
o bem-estar da alma. Práticas que respondem aos sentimentos de
dor e angústia das pessoas em suas trajetórias singulares.
Os terços, as velas, os ramos de plantas, as flores, as
imagens de santos são impregnados de valores místicos, cujos
significados produzem mediações simbólicas entre os devotos
e os santos pelas intervenções dos indivíduos rezadores, deno-
minados por Brandão (2007) de agentes populares da fé:
494
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
formam um exercício autônomo para uma prática especia-
lizada [...] são especialistas populares híbridos e a memória
mais aguda de um saber religioso complexo, mas não
secreto, porque compartilhado (BRANDÃO, 2007, p. 38).
A multiplicidade desses horizontes nos conduz a pensar
que os processos de aprendizagens do cotidiano escolar podem
se beneficiar dos saberes da tradição, uma vez que estes mobi-
lizam conhecimentos que incorporam a alteridade/diferenças.
As contribuições das rezadeiras ajudam a pensar como o espaço
educativo pode ser ressignificado se abrir espaços para saberes
que transmitem valores essenciais à vida humana.
Em contextos contemporâneos em que a exclusão social
tem sido uma marca constante nas relações interpessoais, as
rezadeiras nos propiciam ensaiar uma educação democrática
e participativa que trabalhe para o conhecimento das culturas
e dos protagonistas populares.
Práticas educativas que pensem e repensem a dignidade
social, em que os outros sejam respeitados em suas singulari-
dades e na sua dignidade de viver, de ser, de existir ou mesmo
de re (existir). Uma educação para a solidariedade em que a
dimensão da dignidade humana seja considerada para além dos
muros da escola, como propõe Basso (2006, p. 49):
Procurar compreender a existência humana individual,
do ponto de vista de sua significação e valores poten-
ciais, a opção pela dimensão existencial abre espaço
para refletir sobre a conflitualidade axiológica da
sociedade atual possibilitando, assim, uma análise do
fundamentalmente vivido. Consequentemente, o agir
conduz a uma abertura do mundo de valores que se vai
construindo com um referencial na ação, pois, quando
495
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
se trabalha com o vivido socialmente, o prático, já se
obtêm resultados observáveis. Além de os valores serem
vivenciados, podem ser internalizados segundo cada
cultura ou condição social.
Por essa razão, acreditamos que repensar o cotidiano
escolar, através de práticas educativas que trabalhem a sensibi-
lidade em relação à humanidade do outro, diante da polifonia de
vozes que habitam o interior e o exterior dos espaços escolares é
fundamental. O conhecimento e a valorização dos saberes das reza-
deiras podem se constituir em importantes passos nesse processo.
Macedo em sua assertiva sobre estes aspectos ressalta que:
A relação entre educação e cultura não está apenas nos
âmbitos dos conteúdos culturais, ou do currículo. [...]
além de configurar uma teia complexa de interpreta-
ções tecidas entre os pontos de vista dos sujeitos do
processo educacional, a relação cultura e educação nos
diz c omo do lugar cultural se edificam o próprio
lugar do aprender e as ritualidades dos encontros
das alteridades configurados em jogos de interação e
intercâmbios (MACEDO, 2007, p. 29).
Mediante este olhar na e pela vida, para as pessoas e
a sua humanidade, é que enfatizamos os aprendizados de
vida e de mundo que podem ser vistos nas práticas dessas
mulheres. Aprender com elas sobre a maneira como lidam com
as diferenças, com as dores humanas, com a solidariedade, é
o que se requer de uma educação reencantadora de preceitos
humanizantes: “Falar de educação não significa focar na escola;
o conhecimento está em todo lugar, não é monopólio da escola,
vivemos numa sociedade pedagógica, educativa” (SOUZA;
GOMES, 2013, p. 219).
496
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
Sobre caminhos e possibilidades...
Este estudo é um convite à compreensão das sensi-
bilidades formativas inscritas nas práticas das rezadeiras.
Adentrando no seu universo e refletindo sobre este, podemos
depreender diferentes aspectos que envolvem a complexidade
de suas ações. Suas memórias, suas histórias constroem a narra-
tiva de um saber-fazer que, estando no mundo, é partícipe dele
e apresenta condições para educar e transformar o humano,
disseminando valores que mantêm vivas as vozes da tradição,
porque se permitem ouvi-las.
Bondia (2016) salienta, com muita propriedade, que a
sociedade contemporânea é, lamentavelmente, marcada pela
perda de experiências preciosas, como as de sentir as histórias,
de imaginar as emoções, de sermos afetados pelo outro, de
fazermos leituras da alma e praticarmos a arte da escuta dos
sentimentos. Se considerarmos a missão das rezadeiras, nas
suas estratégias de convívio, aconselhamento e cura, somos
convocados “a aprender” com elas, de modo a
parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se
nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender o automatismo da ação, acreditar, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos para
o outro (BONDIA, 2016, p. 25).
Na teia humana da vida, os saberes que dão forma a
educação, muitas vezes, não estão no ambiente escolarizado. No
entorno desse espaço, as comunidades e as tradições possuem
concepções de mundo e de escuta/leitura do ser humano que se
mostram importantes de serem compartilhadas no espaço escolar.
497
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
A escola que tem sentido na vida do alunado requer tecer
práticas que visem as tessituras das sensibilidades, a escuta
sensível, o respeito pelo outro e suas especificidades, aspectos
importantes do fazer das rezadeiras. Em sua sabedoria cotidiana,
elas desenvolvem relações interpessoais que alimentam os
princípios do bem viver, ensinando valores e ternuras. Ao incluir
pedagogicamente estes conhecimentos no aprendizado escolar, a
escola poderá nutrir de vitalidade os saberes da tradição, ilumi-
nando as práticas educativas com a valorização da historicidade.
As rezadeiras são, portanto, portadoras de práticas de
reexistir, de configurar sentidos as vidas das pessoas que as
buscam, porque no seu oficio estão imbuídas emoções que se
mesclam às sensibilidades do existir humano, marcando lugares
para as alegrias, o contentamento e a criatividade. Ao traba-
lhar com a condição humana, estas mulheres produzem uma
educação multifacetada marcada pela conexão de sentimentos.
Porque educar também envolve trabalhar com o emocional, o
vivencial, as singularidades do ser humano, com os sentidos
e as configurações que dão sustentabilidade a esses sentidos.
Por essa ótica, a prática educativa das rezadeiras propõe
desnaturalizar currículos colonizadores e que tendem a homo-
geneizar pessoas. A escola, ao dialogar com saberes construídos
e reconstruídos nos contextos das culturas populares, ensina os
valores da vida e sobre a vida, notabilizando os sujeitos humanos
que estão fora da escola, articulando sabedorias e conhecimentos
transdisciplinares que comportam a completude em contextos
sociais inter-multiculturais. Tais pluralidades de mundo e de
sujeitos enriquecem as possibilidades e os caminhos educativos
para romper os silenciamentos e transformar os modos de
ensinar na escola em contato com os que existem e estão fora dela.
498
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
Argumentamos, pois, sobre uma educação de interfaces
de saberes com o texto da vida que permeia a escola. Nessa
perspectiva, o saber da experiência das rezadeiras, com o saber
disciplinar, aliado às histórias de fé narradas por elas, cons-
troem vivências fundantes na intersecção com o saber escolar,
porque comportam aprendizagens culturais, leituras sociais
da realidade do mundo vivido, tão importantes na formação
humana porque rompem com hierarquizações e dicotomias no
contexto escolar, através da dimensão educativa de práticas
orais e histórias sensibilizadoras que merecem ser conhecidas.
Em suma, o que se requer é uma educação com sentido:
sentido para quem aprende e para quem ensina. Em que a cons-
ciência de si e do outro, nas suas subjetividades, seja a pedra
angular para o entendimento coletivo e a estrutura de um
mundo mais fraterno e mais generoso. Pois a escola é um espaço
do coletivo, mas também requer pensar as individualidades,
valorizando os diálogos e os canais de inteligibilidade possíveis
que colaborem para o respeito à diversidade cultural.
Diversidade de saberes, de sujeitos, de práticas educa-
tivas, que sejam consoantes com os conhecimentos que estão
dentro/fora da escola, compartilhando o conteúdo de vida que
se alia à história das comunidades, à sua territorialidade e a
seus personagens preciosos, a exemplo das mulheres rezadeiras,
que lutam, a cada dia, para preservar a fé e ensinar os valores
das tradições populares, das suas crenças, das suas vozes.
499
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
Referências
AYALA, M. I. N.; AYALA, M. (org.). Metodologia
para a pesquisa das culturas populares: uma
experiência vivenciada. Crato: Martins, 2015.
AKKARI, A. Introdução às perspectivas interculturais
em educação. Salvador: EDUFBA, 2010.
BASSO, I. Uma ética para educar: valores da
formação docente. Bauru: Edusc,2006.
BRANDÃO, C. R. Os deuses do povo: um estudo sobre
a religião popular. Uberlândia: Edufu, 2007.
BONDIA, J. L. Tremores: escritos sobre experiência.
Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
BONDIA, J. L. Nota sobre a experiência e o saber da experiência.
Revista Brasileira de Educação, n. 19, jan/abr. 2002.
CAMURÇA, M. Espiritismo e nova era: interpelações ao
cristianismo histórico. Aparecida: Editora Santuário, 2014.
CANDAU, V.M.; MOREIRA, A. F. Apresentação. In: CANDAU,
V. M.; MOREIRA, A. F. Currículos, disciplinas escolares
e culturas. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 10-14.
CONTINS, M.; PENHA-LOPES, V.; ROCHA, C. S. M.
(org.). Religiosidade e performance: diálogos
contemporâneos. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015.
500
PATRÍCIA CRISTINA DE ARAGÃO / ROBÉRIA NÁDIA ARAÚJO NASCIMENTO
DIEHL, A. A. Cultura historiográfica: memória,
identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002.
GONDAR, J. Quatro proposições sobre memória social. In:
GONDAR, J.; DODEBEI, V.(org.). O que é Memória social?
Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria: 2005. p. 45-56.
LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Editora UNICAMP, 2013.
MACEDO, R. S. Currículo, diversidade e equidade: luzes
para uma educação intercrítica. Salvador:Edufba, 2007.
MONDZAIN, Marie-José. Homo Spectator. Paris: Bayard, 2007.
MUNDURUKU, D. O banquete dos deuses: conversa sobre
a origem e a cultura brasileira. São Paulo: Global, 2009.
NASCIMENTO, D. G. Além do ofício: narrativas de Dona Severina
(Gorda) e Dona Josefa (Zefinha), rezadeiras de Itabaiana PB. 2017.
Tese (Doutorado em Linguística) – UFPB, João Pessoa, 2017.
NASCIMENTO, R.N.A; PIRES, V.C. Da fé ao rito: narrativas
e sensibilidades na tradição da comunidade Matias,
PB. Revista Temática. v.14, n.4, 2018. p. 45-61.
NASCIMENTO, R.N.A.; LIMA, V.A.O. Dimensões entrelaçadas
do afeto e do saber a educação de um novo tempo. In:
LIMA, V.A.O.; NASCIMENTO, R.N.A. ESCOLA, J.J.J. (org.).
Conhecimento, sociabilidade e humanidade: prenúncios de
um novo tempo. Campina Grande: EDUEPB, 2019. p.11-31.
501
PALAVRAS QUE CURAM NA MOVÊNCIA DE SABERES:
MEMÓRIA E SENSIBILIDADES EDUCATIVAS NAS PRÁTICAS DAS REZADEIRAS
NEGRÃO, L. N. (org.). Novas tramas do sagrado: trajetórias
e multiplicidades. São Paulo: Editora FAPESP, 2009.
NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos
lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, 1993.
OLIVEIRA, I. B. Currículos praticados; entre a regulação
e a emancipação. Rio de Janeiro: DP e A, 2003.
PESAVENTO, S. J. Sensibilidades: escrita e leitura da alma.
In: PESAVENTO, S. J.; LANGUE, F. (org.). Sensibilidades
na história: memórias singulares e identidades
sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.
RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento.
Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
SBARDELOTTO, M. O “católico” em reconexão: a apropriação
sociorreligiosa das redes digitais em novos fluxos de circulação
comunicacional. In: PROULX, S.; FERREIRA, J.; ROSA, A. P. da (org.).
Midiatização e redes digitais: os usos e as apropriações entre a
dádiva e os mercados. Santa Maria: FACOS-UFSM, 2016. p. 20- 35.
SOUZA, E. A.; GOMES, E. S. Educação: um processo
de humanização na visão frankliana. Foro de
Educación, v. 11, n. 15, p. 215-228, ener./dic. 2013.
502
FORMAÇÃO MÉDICA
INTERNACIONAL: BOLSISTAS
DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER
EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
Ricardo dos Santos Batista1
André Mota2
Resumo: Este texto tem como objetivo analisar as conexões
internacionais no processo formativo de médicos que atuavam
na saúde em São Paulo e que foram enviados para a Universidade
de Johns Hopkins, em Baltimore, como bolsistas da Fundação
Rockefeller, entre 1919 e 1924. Analisa-se, também, como simul-
tâneo a esse processo, a Faculdade de Higiene e Cirurgia de São
Paulo recebia seus primeiros bolsistas. Essas duas instituições
de ensino, as primeiras apoiadas pela Fundação Rockefeller no
mundo, foram responsáveis pela promoção de práticas educa-
tivas profissionais no campo da higiene e da saúde pública,
com o intuito de formar profissionais que multiplicassem esses
conhecimentos em seus países de origem. São utilizadas como
fonte as correspondências trocadas entre membros dos escri-
tórios da agência filantrópica internacional em Nova Iorque e
1 Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do
Estado da Bahia, Alagoinhas. Pós-doutorando na Faculdade de Medicina Preventiva
da Universidade de São Paulo, Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz.
2 Professor da Faculdade de Medicina Preventiva da Universidade de São
Paulo. Diretor do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz.
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
no Brasil. Ao mesmo tempo em que promovia a educação em
saúde pública, a instituição ampliava a sua influência em uma
escala global.
Palavras-chave: Formação profissional. Práticas educa-
tivas. Saúde global.
Introdução
E ste capítulo tem como objetivo analisar conexões interna-
cionais estabelecidas na formação de médicos financiados
pela Fundação Rockefeller, em instituições-modelo de ensino
em Higiene e Saúde Pública dos Estados Unidos e do Brasil. Ao
investir em um paradigma de saúde pautado em características
coletivas, em detrimento da formação clínica predominan-
temente francesa, e em práticas educativas no laboratório,
a agência filantrópica desempenhou papel fundamental
para a educação de médicos de diferentes lugares do mundo
na primeira metade do século XX, como a América Latina e
a Europa. Foram utilizadas como fontes correspondências
trocadas entre os escritórios da Fundação Rockefeller no Brasil
e nos Estados Unidos e fichas de bolsistas coletadas no Rockefeller
Archive Center, em Tarrytown, Nova Iorque.
A Fundação Rockefeller foi criada em 1913, nos Estados
Unidos, como fruto da filantropia de John D. Rockefeller, cuja
fortuna era proveniente do domínio dos mercados mundiais de
petróleo, pelo controle de poços, refino e transporte, desde fins
do século XIX (FARLEY, 2004). Ela emergiu do agrupamento de
diferentes instituições que pertenciam à família Rockefeller:
Rockefeller Institute for Medical Research, General Education Board
504
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
e Sanitary Commission for the Eradication of Hookworm Disease
(KORNDÖRFER, 2013). Essa última comissão passou a se
chamar International Health Comission (IHC) entre 1913 e 1916;
International Health Board (IHB), de 1916 a 1927; e International
Health Division (IHD), entre 1927 e 1951, quando suas atividades
foram finalizadas.
Entre os critérios existentes nas ações da família
Rockefeller, era previsto que a filantropia não poderia ser
confundida com a caridade. Ela deveria ser encarada como um
investimento oferecido a agências governamentais e não a indi-
víduos, com duração limitada para não se tornar dependência,
destinada a organizações comprometidas com a continuidade
do trabalho quando o auxílio terminasse. Além disso, um
consenso do qual raramente se discordava era que a doença
seria o fator determinante para problemas de saúde e que a
saúde só podia ser alcançada pelo controle ou eliminação de
doenças transmissíveis (FARLEY, 2004).
A Fundação Rockefeller emergiu no cenário global
simultâneo à ascensão da saúde internacional no século XX. O
conceito de Saúde Internacional remonta à criação de cordões
sanitários e de quarentenas marítimas locais, nacionais e
internacionais usados na Europa desde a Idade Média, predo-
minantemente nos portos da Itália, engajados em um intenso
tráfego comercial com a Ásia. Contudo, foi somente no século
XIX que se pôde observar as primeiras ações dos governos
para articular esforços coletivos, a partir da intensificação das
pandemias. A segunda pandemia do cólera de 1827 (visto que
a primeira afetou somente a Ásia) foi a que mais demandou
ações coordenadas de diferentes governos e, a partir daí, desen-
cadeou uma série de acordos e contribuiu para a promoção
de conferências internacionais. Em sua atuação, a Fundação
505
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
Rockefeller desenvolveu ações para o controle de doenças como
a ancilostomíase, a febre amarela e a malária (CUETO, 2015).
A saúde pública se transformou em questão social, refle-
tindo o aprofundamento das intervenções no campo médico e
da saúde, bem como das políticas de saneamento ao colocarem
em pauta a erradicação das epidemias (CASTRO SANTOS; FARIA,
2003). Demandavam-se, nesse contexto, mudanças de um profis-
sional de conhecimento integral para um novo, mais técnico e
específico, apto a atender às demandas técnico-assistenciais
de acesso à assistência médica nos centros urbanos e rurais e
com novas formas de produção social de serviços. Tal política
requeria cada vez mais a “especialidade médica” como defla-
gradora de novas políticas em saúde:
a estrutura institucional que se almejava implantar
demandava profissionais especializados, aptos a
ocupá-la e gerenciá-la, o que, por sua vez, exigia que
se consolidasse a formação médica através de cursos
especializados (FONSECA, 2000, p. 395).
Com o apoio da agência filantrópica internacional, promo-
veu-se um perfil especializado de profissional de saúde pública.
A primeira escola de medicina apoiada pela filantropia
da Fundação Rockefeller foi a Escola de Higiene e Saúde Pública
da Universidade Johns Hopkins, localizada em Baltimore, nos
Estados Unidos, e, a segunda, a Faculdade de Medicina e
Cirurgia de São Paulo (FMCSP), por meio do Instituto de Higiene
de São Paulo (IHSP). Os diálogos estabelecidos entre médicos
de diferentes nacionalidades, que estudaram nesses locais,
contribuíram para a circulação do conhecimento científico e
para a ampliação da influência norte-americana no mundo.
506
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
Com o intuito de compreender essas relações, será dada ênfase
à trajetória de dois bolsistas que estudaram nos Estados Unidos,
Sebastião Calazans e Ernesto de Souza Campos, e também se
discutirá a admissão de bolsistas brasileiros e do exterior no
IHSP, que se tornava um centro de referência na América do Sul.
Escola de Higiene e Saúde Pública
de Johns Hopkins e Instituto de Higiene
de São Paulo: centros de saúde pública
apoiados pela Fundação Rockefeller
Alguns dos primeiros relatórios escritos por representantes
da Fundação Rockefeller, no início do século XX, mostravam que
as condições médicas na América Latina eram semelhantes às
norte-americanas no século XIX, marcadas pela precariedade no
ensino. Um novo modelo de treinamento médico emergente nos
Estados Unidos foi responsável pela consolidação de recursos em
escolas de elite que mudaram a face da formação médica no país. A
necessidade dessas transformações foi exposta em um relatório de
1910, escrito pelo médico Abraham Flexner. Em contraposição ao
antigo ensino predominantemente teórico, com um número exces-
sivo de estudantes, defendia-se a experiência clínica nos hospitais
de ensino, controlados por um corpo docente de tempo integral e a
familiaridade dos alunos com o laboratório (CUETO; PALMER, 2016)
A Escola de Higiene e Saúde Pública de Johns Hopkins se
filiou a esse novo padrão. Segundo Elizabeth Fee (2016), ela foi
crucial para a profissionalização da saúde nos Estados Unidos.
Como importante centro de pesquisa, ajudou a moldar a forma e
507
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
o conteúdo da saúde pública, desenvolveu novos conhecimentos
científicos, gerou pesquisa organizada e treinou pessoal altamente
qualificado para colocar esse conhecimento em prática.
Sobre o seu surgimento, o médico norte-americano
William Henry Welch sonhava em desenvolver um instituto
de Higiene desde sua visita ao Instituto Max von Pettenkofer, em
Munique, na década de 1880. Seu plano previa justamente a
criação de um instituto vinculado à Faculdade de Medicina de
Hopkins, mas diretamente relacionado à pesquisa sobre problemas
de saneamento e higiene (FEE, 2016). Na época da construção
da Faculdade, havia pouco dinheiro e pouco entusiasmo para o
seu projeto, mas 20 anos depois ele possuía recursos suficientes,
apoio dos líderes do movimento de saúde pública nos Estados
Unidos e da agência filantrópica internacional.
A Fundação Rockefeller divergia em muitos aspectos da
proposta de Welch, porque desejava criar um centro de treina-
mento especializado para profissionais de saúde de todo o mundo,
inclusive do seu próprio staff. Negociações foram estabelecidas
para uma conciliação entre o caráter de investigação científica
em saneamento e higiene e a propagação dos saberes já existentes
através da formação de profissionais da saúde, o que resultou no
novo perfil da instituição. É possível afirmar que:
a Escola de Higiene, em última análise, representou um
compromisso entre as visões de Welch e o International
Health Board: um compromisso elaborado em extensas
negociações no período entre 1916 e 1922” (FEE, 2016, p. 58).
As práticas educativas do novo centro de saúde pública,
em Johns Hopkins, assim como viria a ocorrer em outras insti-
tuições financiadas pela Fundação Rockefeller, eram baseadas
508
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
na medicina experimental, em laboratório, com autonomia dos
estudantes em relação aos programas de estudos que desen-
volveram. Segundo Olympio da Fonseca Filho, em sua estadia
naquela instituição, no início dos anos 1920:
Na parte de Biologia eu era uma exceção. No curso
do Johnson eu era o único. Nesse curso cada aluno
estava estudando um assunto diferente, não havia
dois estudando a mesma coisa. Apesar do curso ser
de Botânica cada um se ocupava de um determinado
problema. Além disso, o professor nunca deu uma aula
teórica. Ele distribuía o material, distribuía também
uma espécie de apostila, dizia o que cada um deveria
fazer e ia embora voltando uma ou duas horas depois
para ver o que cada um havia feito. Revia, aconselhava,
mandava à Biblioteca buscar livro ou uma revista que
tivesse um artigo especial e assim é que era feito o
ensino. Não tinha nada de aula propriamente dita. Tudo
era trabalho isolado (FONSECA FILHO, 2010, p. 19).
Ao mesmo tempo em que a Johns Hopkins aderiu ao modelo
proposto pelo relatório Flexner, a Fundação Rockefeller firmava
cooperação com a FMCSP para o ensino de Higiene no hemisfério
Sul. A autorização para uma escola de medicina em São Paulo se
deu por legislação, em 1891, mas somente em 19 de dezembro de
1912 a FMCSP foi criada, sob a direção do Dr. Arnaldo Vieira de
Carvalho, conforme apresentado por Mota (2005). Esse processo
ocorreu em meio a disputas de propostas de instituições de
ensino privado em medicina, objeto de críticas por muitos
médicos paulistas. Desde o começo, no entanto, Carvalho buscou
conferir base científica e experimental ao ensino da Faculdade
e, com amparo na legislação, contrataram-se professores de
diferentes lugares da Europa (MARINHO, 2013).
509
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
No primeiro acordo, firmado em 1917, o IHB aceitou
organizar e manter o Departamento de Higiene da FMCSP
por um período de cinco anos e se comprometeu a fornecer
o equipamento inicial, com o valor estimado de US$ 10 mil,
além de despender anualmente, uma quantia entre US$15 e
US$20 mil; cederia duas bolsas em Higiene e Saúde Pública para
Estudos nos Estados Unidos, com o financiamento de despesas
de ida, volta e estadia; e por fim, também enviaria ao Brasil
dois cientistas encarregados da Direção do Departamento de
Higiene por cinco anos, supervisionando durante esse período
o trabalho de dois assistentes, no caso, os próprios bolsistas da
Fundação Rockefeller após o seu retorno ao país. Em contra-
partida, a instituição brasileira deveria arcar com o aluguel e
reforma das instalações, tornando-as adequadas ao trabalho
acadêmico e de laboratório, além de fornecer não menos que
US$ 3 mil anuais para as despesas de operação do Departamento
de Higiene (MARINHO, 2013).
Segundo Heloísa Rocha (2003, p. 66), em janeiro de
1918, chegou ao país o Dr. Samuel Taylor Darling, investido de
autoridade de “professor de Higiene e diretor do Laboratório
de Higiene”, título escolhido pelo IHB, com o intuito de evitar
qualquer divisão de autoridades entre a cadeira de Higiene e os
Laboratórios. O Dr. Wilson G. Smillie, PhD em Saúde Pública pela
Universidade de Harvard, também foi nomeado como professor
assistente de Higiene, enquanto os brasileiros estudassem no
exterior. Os dois norte-americanos lideraram o Departamento
de Higiene da FMCSP enquanto Geraldo Horácio de Paula Souza
e Francisco Borges Vieira seguiram para os Estados Unidos e
integraram a primeira turma de Higiene e Saúde Pública da
Universidade Johns Hopkins.
510
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
Segundo Campos (2013), eles adquiriram grande expe-
riência, que marcaria as suas vidas públicas desde então e,
quando retornaram a São Paulo, replicaram esse saber não
apenas no Instituto de Higiene, mas em órgãos públicos como
o serviço sanitário. Destaca-se, no entanto, que a familiaridade
de Paula Souza com a pesquisa e o trabalho em laboratório
vinha de outra época. Essa aproximação se deu entre 1906 e
1917, quando o médico iniciou os estudos em química na Escola
Politécnica de São Paulo, com o professor Roberto Hottinger.
Além disso, cursou a Faculdade de Medicina do rio de Janeiro,
embora já possuísse formação em Farmácia.
Ao retornar do exterior, alguns dos ex-bolsistas da
agência filantrópica internacional ocuparam lugares estraté-
gicos na coordenação de ações sanitárias, inclusive no envio de
outros bolsistas para os Estados Unidos. Um desses exemplos
pode ser observado no trabalho desenvolvido por Antônio
Luis Cavalcanti de Albuquerque de Barros Barreto, médico
pernambucano, que estudou no Curso de Aplicação do Instituto
Oswaldo Cruz e que, após a experiência como bolsista, atuou na
reforma sanitária da Bahia (BATISTA, 2019a; 2019b). Ele sele-
cionou médicos que trabalhavam na Subsecretaria de Saúde e
Assistência Pública do estado para estudo no exterior e definiu
todo o programa formativo a ser cumprido por Eduardo Lins
Ferreira de Araújo e por Enoch Torres (BATISTA, 2020).
O protagonismo nas relações internacionais entre
agentes de instituições brasileiras e a Fundação Rockefeller
também esteve presente na atuação de Geraldo Horácio de Paula
Souza, em São Paulo. O médico escreveu para Wickliffe Rose,
primeiro diretor do IHB, em 24 de julho de 1922, com a intenção
de ampliar a experiencia educacional dos médicos de São Paulo
nos Estados Unidos. Segundo ele:
511
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
Existem no nosso Serviço Sanitários vários médicos,
chefes de alguns departamentos, que tem sob a sua
direção cinco ou dez outros médicos. Estes homens
são, majoritariamente, ainda jovens e apesar de terem
apenas noções antiquadas sobre serviço sanitário eles
são desejosos de aprender. Dr. Waldomiro de Oliveira é
um deles e é um bom exemplo da classe [...]. Acredito
que pode ser de grande vantagem que esses homens
vejam o que se entende por um bom departamento
de saúde e que uma curta viagem aos Estados Unidos
os ensinaria algumas coisas e assim, prepará-los para
serem chefes melhores e ajudarem os homens jovens
que serão melhores preparados do que eles são (SOUZA
para Rose, 24 jul. 1924).
Paula Souza propunha que esses médicos fossem enviados
por três a seis meses, para trabalhar em algum departamento
estadual de saúde nos Estados Unidos. Questionava se Rose
poderia garantir algumas bolsas para esse propósito, e afirmava
que os homens seriam enviados, progressivamente, em duplas.
Ele tinha em mente mandar aproximadamente cinco homens
da cidade de São Paulo, quatro do interior do Estado, além de
quatro chefes de departamentos especiais.
Na resposta de Rose, ele orientou que Paula Souza escre-
vesse a um projeto da Organização de Saúde da Liga das Nações
(OSLN), que propôs empreender um sistema de intercâmbio de
pessoal, apoiado pela Fundação Rockefeller. Considerava-se
que o propósito do ex-bolsista brasileiro poderia ser alcançado
daquela maneira. Parecia mais adequado encaminhar os
homens àquela instituição, para uma experiência de inter-
câmbio e não para formação na escola de saúde pública de Johns
Hopkins, por isso foi fornecido o endereço de Ludwik Hajchman,
da OSLN (ROSE para Souza, 8 ago. 1922, p. 1-3).
512
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
No início da política de bolsas da Fundação Rockefeller
alguns parâmetros ainda não estavam completamente deline-
ados. Contudo, era consenso que o campo de estudo selecionado
pelo candidato fosse uma área importante naquele momento e
que a posição ocupada pelo candidato no retorno ao Brasil fosse
de autoridade e influência suficientes para justificar os gastos
do IHB com sua formação. Outra questão dizia respeito à aptidão
pessoal do aspirante a bolsista e, para isso, o IHB deveria se
guiar pela opinião de norte-americanos que estavam no Brasil.
Defendia-se que as cartas de recomendação apresentadas pelos
candidatos brasileiros tivessem pouca atenção da Fundação
Rockefeller, pois mesmo as “mais altas fontes” poderiam se
utilizar de sua influência política para favorecer determinados
médicos (CASTRO SANTOS; FARIA, 2003, p. 63).
Havia uma preocupação com a utilização de critérios
universalistas na seleção de candidatos a bolsas de estudos, com
o intuito de tentar fugir da influência de favoritismos políticos.
O Brazilian Advisory Commitee on Traveling Scholarships incialmente
era composto por Carlos Chagas, Vital Brazil e Alexandrino de
Moraes Pedroso e tinha como objetivo fazer a indicação dos
candidatos brasileiros, o que não inviabilizava pedidos como o
de Paula Souza ou de qualquer representante de instituição de
saúde no país que desejasse apresentar a candidatura de um
dos seus funcionários.
Como exemplo das desconfianças em relação ao uso polí-
tico na seleção de bolsistas, em 7 de outubro de 1919, Richard
Pearce, diretor da Division of Medical Education (DME), escreveu
para Lewis Hackett, diretor regional do IHB, e relatou estar
perturbado com a “massa política” envolvendo a questão das
bolsas de viagem. Ele acreditava ter agido de boa fé e não tinha
ideia que eles estavam sendo utilizados politicamente. Aquela
513
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
era uma referência explícita a um episódio em que Vital Brazil
teria utilizado Pearce de forma tão deliberada para “embaraçar”
Arthur Neiva, chefe do serviço sanitário de São Paulo, que
ele hesitava em acreditar, especialmente porque tinha plena
confiança em Brazil.
O diretor da DME parabenizou Hackett pela forma como
ele consertou o mal entendido e indicou a necessidade de
fazer mudanças no Comitê de bolsas. Ele sugeria que o próprio
Hackett fizesse parte do grupo, para indicar os candidatos.
Também questionava se não seria interessante esperar Paula
Souza retornar da formação no exterior para incluí-lo no
Comitê. Por fim, considerava não ser sensato incluir Neiva e nem
aceitar a carta de renúncia de Vital Brazil, pois não poderiam
perder um homem com a sua habilidade científica (PEARCE para
Hackett, 7 out. 1919, p. 1-3).
Com os caminhos abertos por Paula Souza e Borges
Vieira, outros médicos de São Paulo seguiram para os Estados
Unidos, financiados pela Fundação Rockefeller, para estudar
em centros importantes de ensino, como o de Baltimore. Ao
mesmo tempo, bolsistas eram selecionados para estudar no
IHSP, o que contribuiu para série de trocas científicas, com a
expansão da Higiene nas Américas e ampliação da formação em
Saúde Pública com ênfase em práticas em laboratório.
Destaca-se, ainda, que, em 1931, período posterior ao
aqui analisado, um decreto assinado pelo interventor e coronel
João Alberto Lins e Barros apontou para mudanças até então
alicerçadas por Paula Souza e demarcou a chegada do movi-
mento getulista em São Paulo com a reorganização do Instituto
de Higiene. Considerava-se que ele não corresponderia a sua
primordial finalidade educativa, para a qual teria sido criado.
Para isso, afastou parte do projeto internacional realizado até
514
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
ali, subordinando o Instituto à Secretaria de Educação e Saúde
Pública, tendo como objetivos centrais: o ensino de Higiene e de
Saúde Pública por meio de cursos regulares e outros de emer-
gência, servindo ao aperfeiçoamento e habilitação técnica para
funções sanitárias; manter laboratórios para estudo e pesquisa
de questões científicas, relativas à higiene; organizar centros de
aprendizado, museus e outras instalações necessárias ao estudo
e ensino de higiene, organizar a carta sanitária do Estado, fazer
estudos de epidemiologia e profilaxia no interesse do ensino e
da higiene, relacionar-se com centros científicos congêneres do
país e do estrangeiro, emitir parecer sobre assuntos de higiene
e organizar comissões especiais para o seu estudo sempre que
o Governo requisitar, aceitar donativos, doações e legados
mediante autorização prévia do Governo (SÃO PAULO, 1931).
A formação de profissionais
de saúde pública nos Estados Unidos
Sebastião de Camargo Calazans e Ernesto de Souza
Campos integraram a primeira turma de medicina da FMCSP e,
assim como outros jovens médicos promissores, foram enviados
ao exterior financiados pela Fundação Rockefeller. Em 23 de
julho de 1923, Hackett escreveu para Wickliffe Rose e informou
sobre a indicação que o médico Alexandrino Pedroso fez, em
relação a um bolsista de São Paulo, para auxiliar no desenvol-
vimento do Instituto Bacteriológico:
O senhor se lembrará que o Instituto Bacteriológico
que serve como laboratório de saúde público para a
515
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
cidade e o estado de São Paulo é deficiente no aspecto
administrativo e não está intimamente coordenado
com outras atividades de saúde pública e laboratoriais.
Agora parece que através de uma sugestão do doutor
Pedroso, o Diretor deste Instituto ficaria feliz em dar
sua primeira licença para o assistente se ausentar
para os Estados Unidos e fazer um curso regular na
Escola de Saúde Pública de Johns Hopkins, depois ele
poderia fazer um estudo intensivo sobre o Serviço de
Laboratório de Saúde de Nova Iorque e retornar ao
Brasil para ocupar uma posição regular no Instituto
Bacteriológico (HACKETT para Rose, 23 jul. 1920, p. 1).
O Instituto Bacteriológico foi criado em fins do século
XIX, na cidade de São Paulo e, em abril de 1893, recebeu o doutor
Vital Brazil como diretor. Com a chegada da peste bubônica no
porto de Santos e após enviar culturas do micróbio causador
da doença para a Europa, o médico criou um laboratório
antipestoso, que daria origem ao Instituto Butantan, como
uma seção do Instituto Bacteriológico, até que as instituições
foram separadas pelo decreto 878-A de 23 de fevereiro de 1901
(BENCHIMOL; TEIXEIRA, 1993).
Alexandrino Pedroso achava que o homem sugerido para
aquela viagem era capaz de realizar um trabalho excelente no
seu retorno ao estado. Seu nome era Sebastião Calazans e ele
já falava inglês (HACKETT para Rose, 23 jul. 1920, p. 1). Caso a
ideia fosse aprovada, Hackett solicitava que lhe telegrafassem
o seguinte texto: “Bolsista do Instituto aprovado”. Em seguida,
ele solicitaria, também, a aprovação pelo Comitê Consultivo e
enviaria cartas para Nova Iorque junto com a solicitação da
bolsa. Acreditava-se que, se o médico fosse aceito, poderia
seguir para os Estados Unidos no final de outubro, quando o
curso começasse (HACKETT para Rose, 23 jul. 1920, p. 2).
516
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
Em paralelo à indicação de Calazans, outros dois nomes
eram especulados. Em 5 de agosto de 1920, Hackett escreveu
mais duas cartas para Rose e explicou a situação relativa às
bolsas de viagem para os médicos de São Paulo. Na primeira
correspondência, identificou:
(1) Dr. Sebastião Kalazans, assistente do Instituto
Bacteriológico, para um curso em saúde pública e estudar
administração moderna de laboratório de higiene.
(2) Dr. Souza Campos, assistente em Histologia e
Patologia para estudar Patologia e voltar para conti-
nuar o trabalho do professor americano de Patologia,
que será nomeado em breve.
(3) Dr. Osvaldo Portugal para receber uma suplemen-
tação à bolsa do Governo, para permitir que ele visite
os Estados Unidos e estude radioterapia (HACKETT para
Rose, 5 ago. 1920a, p. 1).
O caso de Osvaldo Portugal se diferenciava das duas
outras solicitações de bolsa. Ele já se encontrava na Europa
às custas do estado de São Paulo e solicitou, à Fundação
Rockefeller, financiamento para seguir até os Estados Unidos
e complementar seus estudos em radioterapia. Esse não era
um procedimento habitual na política de bolsas da Rockefeller,
o que promoveu uma série de discussões sobre a concessão
dessa modalidade de financiamento. Em 15 de outubro de 1920,
Clifford Wells informava que a opinião do Dr. Rose era que o
IHB não devia fornecer uma bolsa de estudos para radioterapia,
pois este assunto estava completamente fora das atividades da
517
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
instituição (WELLS para Hackett, 15 out. 1920). Hackett também
afirmou que: “Se o Conselho [IHB] pensa que isso abre um
precedente perigoso, eu sei que as autoridades de São Paulo vão
compreender a situação” (HACKETT para Sir, 19 out. 1920, p. 1).
Em uma segunda carta, ele reafirmou que gostaria de
enviar o doutor Calazans para os Estados Unidos com o intuito
de estudar saúde pública e, em particular, o trabalho do labora-
tório de saúde pública no estado de Nova Iorque, mas também
apresentou um segundo nome. Alexandrino Pedroso havia lhe
informado que se um professor americano fosse contratado para
organizar e dirigir o departamento de Patologia da Faculdade de
Medicina de São Paulo, o diretor do departamento ficaria feliz
em enviar um assistente para estudar patologia por um ou dois
anos nos Estados Unidos com uma bolsa da Fundação Rockefeller:
seu nome era Souza Campos (HACKETT para Rose, 5 ago. 1920b).
Hackett recebeu o seguinte telegrama: “Bolsa do Instituto
aprovada” (ROSE para Hackett, 20 ago. 1920). Wickliffe Rose pedia
que assim que estivesse disponível, o processo fosse enviado ao
Comitê Consultivo. Além disso, demonstrava a esperança de
que o doutor Sebastião Calazans chegasse aos Estados Unidos
para começar os estudos na Johns Hopkins University em outubro,
momento em que o ano letivo da Johns Hopkins se iniciava.
Havia uma preferência, por parte do IHB, de que os
candidatos a bolsista fossem solteiros ou viajassem sozinhos,
o que demandaria um menor investimento. Em relação aos
bolsistas de São Paulo, o presidente da Fundação Rockefeller,
George Vincent, concedeu duas bolsas para homens solteiros,
já que nenhuma outra informação contrária lhe havia sido
enviada, mas não esperava que, próximo da viagem de Ernesto
Souza Campos, fosse informado que o bolsista levaria consigo
sua esposa e quatro filhos. O montante declarado de cada bolsa
518
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
era de US$1.950, o que incluía salário, despesas de viagem e taxa
escolar (WELLS para Hackett, 15 set. 1920).
Essa questão foi resolvida apressadamente, por tele-
grama, quando da nomeação do médico. Hackett explicava que
ele possuía uma renda privada e que levaria os filhos para o
exterior sob sua própria responsabilidade financeira, pagando
aproximadamente metade das suas despesas. Considerava-se
que, mesmo assim, seria necessário pedir aumento do seu
financiamento (HACKETT para Sir, 19 out. 1920, p. 1).
O aumento no pagamento de Souza Campos demonstra
que, como a política de bolsas ainda se encontrava em processo
de estruturação, os critérios esperados para a seleção dos
médicos brasileiros podiam se adequar aos contextos das
realidades locais. O desejo do escritório de Nova Iorque, para
seleções futuras, era que houvesse informações mais consis-
tentes sobre os candidatos antes de serem enviados, assim como
um comitê local formado por pessoas que ocupassem diferentes
posições sociais:
A política relativa à concessão de bolsas de estudos no
futuro inclui uma reunião cuidadosa de todos os dados
referentes ao candidato, também várias referências e,
se possível, uma estimativa da capacidade do candidato
por um comitê local que deve incluir um represen-
tante do governo, um médico local e uma outra parte
desinteressada. O plano é que nenhuma nomeação ou
ação definitiva seja tomada até que essas informações
completas estejam disponíveis neste escritório (WELLS
para Hackett, 1 dez. 1920, p. 2).
Embora tenha feito todo o contato com o escritório de
Nova Iorque e conseguido a aprovação das bolsas, Hackett tinha
519
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
hesitado em enviar Sebastião Calazans para os Estados Unidos,
mais do que qualquer um dos outros candidatos aprovados. Ele
não explicou o motivo de suas desconfianças, mas a constante
afirmação nas correspondências enviadas aos Estados Unidos
de que essa era uma indicação de Alexandrino Pedroso, talvez
seja um indicativo de que o homem de campo da Rockefeller não
conseguia observar no médico um perfil esperado pela agência
filantrópica internacional, mas precisou fazer a indicação para
não se indispor com o membro do Comitê. Ele afirmava que:
[...] desde [que] Dr. Pedroso, com quem [Calazans]
trabalhou por anos, tem sido o principal impulsionador
nesse assunto e uma vez que é importante influenciar
o desenvolvimento do Laboratório em São Paulo, eu
gostaria de colocar a nomeação [de Calazans] (HACKETT
para Rose, 21 set. 1921, p. 1).
Calazans iria fazer o curso completo de Saúde Pública e
estudar sobre o Serviço de Laboratório de Higiene, mas Hackett
não recomendou a Rose nenhum acordo definitivo sobre o envio
do bolsista para Johns Hopkins até que eles se encontrassem,
conversassem e decidissem se não seria melhor enviá-lo para
Boston. O médico seguiu para os Estados Unidos, em 10 de
outubro de 1920, e, Souza Campos, no dia 20 do mesmo mês no
navio “Huron” (HACKETT para Sir, 19 out. 1920, p. 1).
Ao chegar nos Estados Unidos, Sebastião Calazans tinha 27
anos e, como sugerido por Hackett, foi direcionado por Clifford
Wells para estudar administração moderna de laboratório de
higiene. Ele demonstrou interesse particular em bacteriologia
e sorologia. Assim, seguiu para Boston e estudou medicina
preventiva sob a supervisão do Dr. Rosenau, engenharia sanitária
520
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
com o Dr. Whipple e sorologia e imunologia no Laboratório de
Wassermann, com o Dr. Hinton (CALAZANS, p. 1).
Uma questão inusitada ocorreu enquanto Calazans estava
nos Estados Unidos. Carlos Chagas, Diretor do Departamento
Nacional de Saúde Pública (DNSP), lhe fez um convite para atuar
no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no Rio de Janeiro, quando
retornasse ao país. Segundo Clifford Wells:
Como eu entendo o objetivo da bolsa do Dr. Calazans, era
que ele deveria retornar para o Instituto de São Paulo
para levar o trabalho no departamento de patologia. Eu
sei que Dr. Chagas sondou definitivamente o Dr. Calazans
e talvez fez uma proposta definitiva para ele vir para
o Instituto Oswaldo Cruz. Alguns dias atrás, enquanto
eu discuti o assunto com o Dr. Calazans em Boston ele
insinuou que esse era o caso; também que ele estava
muito ansioso para se associar ao staff do Instituto
Oswaldo Cruz. No entanto, ele não queria fazer nada que
pudesse militar contra o bom sentimento entre as duas
instituições (WELLS para Hackett, 27 jul. 1921).
Esse convite soava estranho entre os membros da
Rockefeller porque, provavelmente, Carlos Chagas possuía
informações sobre o destino final de Calazans, em São Paulo.
Wickliffe Rose sugeria a Hackett que corrigisse essa questão,
mas, no que dizia respeito ao IHB, não considerava absoluta-
mente essencial que o Dr. Calazans voltasse para o IHSP mesmo
que tivesse sido a intenção original da bolsa (WELLS para
Hackett, 27 jul. 1921).
Não é possível saber quais outros diálogos foram travados
na resolução dessa questão, devido à limitação das fontes.
Contudo, ao retornar ao Brasil, o bolsista seguiu para o posto
que lhe havia sido determinado desde o início da viagem.
521
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
A formação durou dois anos e, um mês após a sua chegada,
Geraldo Horácio de Paula Souza escreveu para informar sobre
os planos traçados para Calazans:
Afirma que planeja, com a ajuda de C [Calazans], trazer
solidez para duas grandes instituições. Mais tarde,
enviará C. [Calazans] para o interior para encontrar as
localidades onde organizar pequenas filiais de laboratório
(CALAZANS, p. 2).
De fato, após o seu retorno, o médico ocupou cargos
importantes como o de Assistente do Instituto Bacteriológico
de São Paulo, do qual também foi diretor interino, Assistente do
Instituto Butantan, Diretor do Instituto de Higiene do Estado
do Rio Grande do Sul, em Pelotas e, em 1932, ocupava o lugar de
Assistente-chefe do Instituto Butantan.
Em relação a Ernesto de Souza Campos, Ana Beatriz
Feltran Maia (2017), afirma que sua viagem se originou do
prêmio que recebeu, como aluno mais distinto da turma de
1918, na FMCSP. Naquele momento, também já ocupava uma
boa posição na Sociedade de Medicina e Cirurgia. O lugar de
destaque no grêmio estudantil da Politécnica e da Faculdade
de Medicina, o alinhamento à política institucional da “Casa
de Arnaldo” e os laços estreitos com Ovídio Pires de Campos
garantiram a sua preferência na indicação.
Ele chegou aos Estados Unidos, em 4 de novembro de 1920,
com 36 anos. No dia seguinte ligou para o escritório e seguiu
para Baltimore, onde desenvolveu estudos com o professor
MacCallum, nos moldes propostos pelo Relatório Flexner anos
antes. Diferente de Sebastião Calazans, Souza Campos foi aluno
522
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
da Escola de Higiene e Saúde Pública de Johns Hopkins. Em relação
ao trabalho desenvolvido no verão de 1921:
O Dr. MacCallum informou ao Dr. Wells que C. [Campos]
tem feito um trabalho muito satisfatório e se aplicado
assiduamente ao estudo; que ele está demonstrando
zelo louvável no trabalho e que ele é altamente mere-
cedor de uma extensão da bolsa.” (CAMPOS, p. 2).
Sua bolsa, de fato, foi renovada por mais um ano, no mês
de outubro e, em 8 de maio de 1922, informava-se que:
Dr. MacCallum está muito satisfeito com o trabalho de
C [Campos] e confiou a ele durante o ano passado um
ensino considerável. Essa responsabilidade ele cumpriu
com crédito. É considerado pelos alunos como qualificado
e é muito popular. É sincero e se aplica estritamente ao
trabalho. Em cooperação com outros membros da equipe
ele concluiu 1 ou 2 trabalhos de pesquisa. C. [Campos]
estará associado do Dr. Klotz, em São Paulo, nos 6 meses
seguintes à estadia aqui (CAMPOS, p. 2).
Em 25 de novembro de 1922, o médico navegou para o
Brasil no navio American Legion, com sua família. Maia (2017)
afirma que ao retornar para São Paulo, a vida profissional
de Souza Campos encontrava-se em uma encruzilhada de
possibilidades e pouca certeza, pois ao mesmo tempo em que
alcançou o status de bolsista da Fundação Rockefeller, posição
que pouquíssimos médicos brasileiros tinham adquirido,
encontrou dificuldades para seu estabelecimento profissional
definitivo, em uma instituição marcada pela rivalidade entre
523
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
médicos contra e a favor da Fundação Rockefeller e do ensino
nos moldes propagados pelos norte-americanos.
Com o desenrolar do acordo com a agência interna-
cional, o pesquisador Oskar Klotz foi indicado para a cadeira
de Anatomia e Histologia Patológicas e o ex-bolsista ocupou o
lugar de preparador da cadeira de Histologia, área diferente
do estágio que realizou no exterior. O desencaixe institucional
de Souza Campos pode ser percebido no concurso que fez para
a cadeira de substituto na seção IV Histologia, Microbiologia,
Anatomia e Histologia Patológica, vaga preenchida pelo médico
Ludgero Cunha da Mota. Sua decepção foi tão profunda que se
afastou da FMCSP e aceitou um convite de Oswaldo Cruz para
trabalhar no IOC, no Rio de Janeiro (MAIA, 2017).
Em 1925, Souza Campos decidiu retornar a São Paulo.
Ele lamentou deixar o IOC e Carlos Chagas, mas foi nomeado
professor e chefe do departamento de Bacteriologia da Faculdade
de Medicina de São Paulo (FMSP), como a instituição passou a
ser chamada naquele ano. A Fundação Rockefeller informava
que: “decidiu ir para São Paulo, pois admira o novo caminho
que a Escola de Medicina está tomando, não apenas em relação
a prédios e hospitais, mas também a métodos” (CAMPOS, p. 4).
A formação de profissionais
de Saúde Pública em São Paulo
Enquanto essas histórias se desenvolviam nos Estados
Unidos, o Instituto de Higiene, em São Paulo, também come-
çava a receber médicos estudantes. Em relação à seleção dos
bolsistas, em novembro de 1920, Hackett já havia se posicionado
524
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
em relação aos critérios que seriam estabelecidos. Ele não consi-
derava conveniente propor aos governos federal ou estadual a
participação na concessão de bolsas, porque isso poderia enfra-
quecer a política que se esperava estabelecer, com disputas por
favorecimentos. Com isso, recebeu o apoio de Rose que afirmou:
“enquanto fornecermos os fundos, teremos melhor garantia de
uma seleção sábia de pessoal. Isso é extremamente importante
no estágio inicial do desenvolvimento” (ROSE para Hackett, 18
nov. 1920, p. 1).
Em 16 de agosto do ano seguinte, Wickliffe Rose escreveu
para Hackett e afirmou que ficou muito feliz com a sugestão de
aprovar uma bolsa em conexão com o IHSP: “a atitude do jovem
graduado em medicina em relação à pós-graduação é muito
natural. A tradição terá que ser estabelecida. O encorajamento
que você sugere ajudará a estabelecê-lo” (ROSE para Hackett,
16 ago. 1921, p. 1). Rose se colocava completamente disponível
para apresentar o assunto ao IHB, já que a aprovação de bolsas
deveria ser realizada como meio de concretizar os planos para o
futuro desenvolvimento do IHSP. Esperava-se que os indivíduos
formados naquele instituto pudessem, posteriormente, assumir
o trabalho e multiplicar o conhecimento construído ao longo da
sua formação. Por fim, afirmou que George E. Vincent, seu secre-
tário Edwin Embree, e Richard Pearce estavam distantes, mas
ele recomendaria uma ação imediata do Comitê da Fundação,
para providenciar a bolsa solicitada para o IHSP. Alguns dias
depois, a secretária do IHB, em Nova Iorque, enviou um cabo
com a autorização de dois bolsistas graduados em medicina
para São Paulo, com o intuito de estudar com o Dr. Smille no
Instituto de Higiene e com salário de 400 mil-réis mensais
(READ para Hackett, 23. ago. 1921, p. 2).
525
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
A oportunidade de que médicos de outros países da
América Latina se tornassem bolsistas no IHSP também foi
considerada no IHSP, o que pôde ser observado nas negocia-
ções entre o staff da Rockefeller e o Paraguai. Embora a agência
internacional defendesse a utilização de critérios rígidos na
atribuição de financiamentos, o intuito de expandir a influ-
ência norte americana entre os vizinhos brasileiros pode ter
favorecido a escolha de um médico daquele país para conceder
uma bolsa no IHSP.
A esse respeito, Hackett afirmou que a autorização para
a seleção de um bolsista paraguaio, por parte do escritório de
Nova Iorque, chegou depois que ele já tinha partido para aquele
país. Constatou, em sua visita, que a escola médica paraguaia
ainda não havia formado turma e que todos os “velhos médicos”,
conectados com o serviço público, também dependiam da
prática privada (medicina clínica) para sua renda, o que era
reprovado pela instituição em relação ao perfil dos bolsistas. A
Fundação Rockefeller não recomendava que médicos clínicos se
tornassem bolsistas. O seu objetivo era encontrar jovens talen-
tosos que estivessem conectados com a experiência educacional
em laboratório.
Wilson Smillie organizou um curso intensivo de 6 meses,
na FMCSP, no campo da Higiene Rural e controle da ancilosto-
míase e da malária, que iniciaria em novembro de 1921 e que
Hackett pensou ser uma forma de estreitar relações com os
paraguaios. Em mensagem enviada para Rose, ele afirmou:
Eu tenho confidências, para selecionar um de seus
assistentes na campanha de ancilostomíase, para
enviar para São Paulo, não apenas para fazer este
curso, mas também para gastar um pouco de tempo
526
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
estudando em um dos nossos postos de operação
[contra ancilostomíase]. Isso deve ser de grande bene-
fício para a campanha do Paraguai. É minha esperança
que o Conselho [IHB] aceitará o convite do Governo do
Paraguai para cooperar com eles em higiene rural e
nesse caso nós deveríamos estar em uma posição
para organizar uma bolsa regular em São Paulo para
doutores paraguaios. O tipo de jovem que entra em
medicina no Paraguai me parece igual ao do Brasil
(HACKETT para Rose, 11 out. 1921, p. 1-2).
Em 2 de março de 1922, Smillie enviou a Miss Read, secre-
tária do escritório de Nova Iorque, detalhes sobre os bolsistas
do IHSP, que eram os seguintes:
Dr. Antônio Almeida: quem foi nomeado na Escola de
Higiene para o período de um ano começando 1 de
dezembro de 1921 com um salário de 416 mil-réis por mês.
Dr. Samuel Barnsley Pessôa, nomeado bolsista em
Higiene Rural em 16 de janeiro de 1922para o período
de um ano com um saláriod e 416 mil-réis por mês.
Dr. Juan Recalde, bolsista especial do Paraguai que foi
nomeado com o propósito particular de ter um curso
intensivo em Higiene Rural durante os meses de novembro
e dezembro de 1921 (SMILLIE para Read, 2 mar. 1922).
Como o médico recebeu uma carta pedindo que infor-
masse todos os bolsistas que foram implementados durante o
ano de 1921, listou todos os nomes, mas admitiu que não foi
possível encontrar uma orientação adequada para o bolsista do
527
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
Paraguai porque a Escola Médica foi fechada. Provavelmente ele
se referia às férias de fim de ano.
Em dezembro de 1922, Paula Souza propôs algumas modi-
ficações em relação às bolsas aprovadas para o IHSP. Samuel
Pessôa, bolsista em Higiene Rural na instituição naquele ano,
entraria para o serviço sanitário de São Paulo no ano seguinte.
Ele continuaria sua pesquisa no Instituto, com trabalho regular,
mas sem o status de membro do staff. O plano de Paula Souza
era organizar um posto experimental de higiene rural, no
serviço sanitário de São Paulo, e que ficaria lotado no Instituto
de Higiene, para que não só Samuel Pessôa, mas todos os outros
médicos e oficiais do Serviço Sanitário desenvolvessem pesquisa
sem que houvesse nenhum gasto extra no orçamento regular
(SOUZA para Rose, 22 dez. 1922, p. 1). Com essa modificação, ele
também solicitou autorização para que no ano de 1923, a bolsa
de higiene rural fosse transformada em uma bolsa de higiene
industrial. Afirmou que a cidade de São Paulo contava com um
desenvolvimento industrial “extraordinário” e identificava
muitos problemas a serem resolvidos nesse campo de pesquisa,
o que justificaria a bolsa na área (SOUZA para Rose, 22 dez. 1922,
p. 2). Assim, esperava-se que os trabalhos de investigação sobre
higiene rural ficassem a cargo do serviço sanitário, podendo ser
nomeado imediatamente um bolsista para iniciar as investiga-
ções sobre higiene industrial o mais rápido possível.
Até o ano de 1924, foram aprovadas oito bolsas de estudo
para o IHSP, sendo que quatro delas foram financiadas pelo IHB
e as outras quatro pela Division of Medical Education, conforme
apresentado abaixo:
528
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
Quadro 1 – Bolsas para estudo no Brasil aprovadas
International Health Board Division of Medical Education
Antônio de Almeida Carlos Alberto Pereira Leitão
Nuno Guerner Benedicto Streib Fernandez
Samuel Barnsley Pêssoa Juvenal Meyer
Juan Recaíde (Paraguay) Bonifácio de Castro Jr.
Fonte: STRODE para Wells, 23 mai. 1925.
É possível afirmar que alguns desses bolsistas desen-
volveram um trabalho de excelência no IHSP, tendo, inclusive,
solicitação para renovação da bolsa. Segundo Paula Souza, em
correspondência para Rose:
Peço permissão para renovar sua bolsa por mais um ano.
O Dr. Almeida já organizou o programa de um novo curso
de higiene, a ser ministrado no próximo ano a todos os
egressos da Escola Normal, e várias de suas investigações
não puderam ser concluídas em um único ano.
Acredito que o Dr. Almeida provou ser uma aquisição
valiosa para o Instituto de Higiene e que ele deveria
ter a oportunidade de colocar em prática os métodos
modernos de inspeção de escolas médicas com a ajuda
das jovens moças que nós temos treinado no Instituto
de Higiene para este tipo de trabalho (SOUZA para Rose,
22 dez. 1922, p. 2).
529
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
Considerações finais
Um olhar sobre as trajetórias formativas nas Escolas de
Higiene e Saúde Pública financiadas pela Fundação Rockefeller
auxilia a compreender os deslocamentos, as trocas e compar-
tilhamentos de concepções científicas em processos que
compuseram a saúde internacional e que estiveram relacio-
nados a trajetórias de vidas de médicos e profissionais de saúde
de diferentes locais do mundo.
É possível observar as expectativas dos indivíduos em
relação às suas carreiras e às diferentes realidades com as
quais precisaram lidar após o seu retorno aos países de origem.
Sebastião Calazans, por exemplo, foi convidado a integrar o
corpo do IOC enquanto estudava no exterior, mas não foi para
a instituição; já Souza Campos, após a decepção em relação à
falta de espaço profissional na FMSP, migrou para a instituição
carioca, mesmo que apenas por algum tempo.
Esses médicos se alinharam a uma perspectiva de
educação que se ampliava gradualmente em escolas de medi-
cina de todo o mundo, com ênfase nas atividades de laboratório,
marcadas por um ensino integral, com menor número de estu-
dantes e maior autonomia em relação às descobertas científicas
que poderiam realizar. Além disso, com os olhos voltados para
as questões coletivas, para os problemas de ordem social.
A Saúde Pública, em seu processo de construção,
enquanto campo do saber e enquanto prática, esteve relacio-
nada a aspectos políticos que envolveram interesses de agências
internacionais, no financiamento de projetos específicos, mas
também à formação de redes científicas. Saberes constru-
ídos por interações em Boston ou em Baltimore e que foram
compartilhados com médicos de São Paulo e do Rio de Janeiro,
530
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
ou saberes construídos em São Paulo, mas que atingiram outros
estados e até mesmo outros países como o Paraguai e de lá se
multiplicaram, em uma constante produção e movimento de
conhecimentos, que acompanharam os agentes institucionais.
531
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
Referências
BATISTA, Ricardo dos Santos. A formação inicial de Antônio Luis
Cavalcanti de Albuquerque de Barros Barreto: uma trajetória
rumo à saúde internacional. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 801-822, jul./set. 2019a.
BATISTA, Ricardo dos Santos. Educação e propaganda sanitárias:
desdobramentos da formação de um sanitarista brasileiro na
Fundação Rockefeller. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v. 26, n. 4, p. 1189-1202, out./dez. 2019b.
BATISTA, Ricardo dos Santos. De Baltimore às
“Lavras Diamantinas”: internacionalização/
interiorização da saúde na Bahia (1920-1930). Tempo,
Niterói, v. 26, n. 2, p. 430-453, maio/ago. 2020.
BENCHIMOL, Jaime; TEIXEIRA, Luiz Antônio. Cobras, lagartos
& outros bichos: uma história comparada dos institutos
Oswaldo Cruz e Butantan. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.
CALAZANS, Sebastião. Rockefeller Foundation Records,
Fellowship recorder cards, RG 10.2, FA 426, Box 8.
532
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
CAMPOS, Cristina de. A viagem de Geraldo Paula Souza para os
Estados Unidos, 1918-1920: fragmentos de uma história da relação
entre a Fundação Rockefeller e o Instituto de Higiene de São Paulo.
In: MARINHO, Maria Gabriela da Silva Martins da Cunha; MOTA,
André (org.). Caminhos e trajetos da filantropia científica
em São Paulo: a Fundação Rockefeller e suas articulações no
Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952).
São Paulo: USP, Faculdade de Medicina: UFABC, Universidade
Federal do ABC: CD.G Casa de Soluções e Editora, 2013. p. 37-56.
CAMPOS, Ernesto. Rockefeller Foundation Records,
Fellowship recorder cards, RG 10.2, FA 426, Box 8.
CASTRO SANTOS, Luiz Antônio de; FARIA, Lina
Rodrigues. A reforma sanitária no Brasil: ecos da
Primeira República. Bragança Paulista: Edusf, 2003.
CUETO, Marcos. O valor da saúde: história da
Organização Pan-Americana da Saúde. Traduzido
por Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
CUETO, Marcos. Saúde global: uma breve
história. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.
CUETO, Marcos; PALMER, Steven. Medicina e saúde pública na
América Latina: uma história. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2016.
FARLEY, John. To cast out disease: a history of the
International Health Division of the Rockefeller Foundation
(1915-1951). Oxford: Oxford University Press, 2004.
533
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
FEE, Elizabeth. Disease and Discovery: a History of the Johns
Hopkins School of Hygiene and Public Health, 1916-1939.
Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2016.
FONSECA, Cristina. “Trabalhando em saúde pública pelo interior
do Brasil: lembranças de uma geração de sanitaristas (1930-1970)”.
Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, Abrasco, v. 5, n. 2, 2000.
FONSECA FILHO, Olympio Oliveira Ribeiro da. Olympio da
Fonseca (depoimento 1977). Rio de Janeiro: CPDOC, 2010.
HACKETT para Rose, 11 out. 1921. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 113, Folder 1536.
HACKETT para Rose, 21 set. 1920. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 95, Folder 1307.
HACKETT para Rose, 23 jul. 1920. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 95, Folder 1307.
HACKETT para Rose, 5 ago. 1920. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 95, Folder 1307a.
HACKETT para Rose, 5 ago. 1920. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 95, Folder 1307b.
HACKETT para Sir, 19 out. 1920. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 95, Folder 1307.
534
RICARDO DOS SANTOS BATISTA / ANDRÉ MOTA
KORNDÖRFER, Ana Paula. “An international problem
of serious proportions”: a cooperação entre a fundação
Rockefeller e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul no
Combate à ancilostomíase e seus desdobramentos (1919-1929).
2013. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2013.
MAIA, Ana Beatriz Feltran. O apostolado de Ernesto de
Souza Campos: modelos, projetos e espaços universitários.
2017. 160 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade
de São Paulo, Faculdade de Educação, 2017.
MARINHO, Maria Gabriela Silva Martins da Cunha. Elites
em negociação: breve história dos acordos entre a Fundação
Rockefeller e a Faculdade de Medicina de São Paulo (1916-1931).
In: MARINHO, Maria Gabriela Silva Martins da Cunha; MOTA,
André (org.). Caminhos e trajetos da filantropia científica
em São Paulo: a Fundação Rockefeller e suas articulações no
Ensino, Pesquisa e Assistência para a Medicina e Saúde (1916-1952).
São Paulo: USP, Faculdade de Medicina: UFABC, Universidade
Federal do ABC: CD.G Casa de Soluções e Editora, 2013. p. 37-56.
MOTA, André. Tropeços da Medicina Bandeirante:
medicina paulista entre 1892-1920. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
PEARCE para Hackett, 7 out. 1919. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 78, Folder 1110.
READ para Hackett, 23 ago. 1921. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 113, Folder 1536.
535
FORMAÇÃO MÉDICA INTERNACIONAL:
BOLSISTAS DA FUNDAÇÃO ROCKEFELLER EM SÃO PAULO E EM BALTIMORE
ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. A higienização dos costumes:
educação escolar e saúde no projeto do Instituto de Higiene de
São Paulo (1918-1925). Campinas: Mercado das Letras, 2003.
ROSE para Hackett, 16 ago. 1921. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 113, Folder 1536.
ROSE para Hackett, 20 ago. 1920. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 95, Folder 1307.
ROSE para Souza, 8 ago. 1922. RAC, RF records, IHB,
RG5, Series 1, FA115, Box 135, Folder 1799.
SÃO PAULO (Estado). Decreto Estadual de São Paulo,
n. 4.955, de 1 de abril de 1931. Disponpível em: https://
www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1931/
decreto-4955-01.04.1931.html. Acesso em: 25 maio 2021.
SMILLIE para Read, 2 mar. 1922. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 135, Folder 1799.
SOUZA para Rose, 22 dez. 1922. RAC, RF records, IHB,
RG 5, Series 1, FA115, Box 135, Folder 1799.
SOUZA para Rose, 24 jul. 1922. RAC, RF records, IHB,
RG 5, Series 1, FA115, Box 135, Folder 1799.
STRODE para Wells, 23 maio de 1925. RAC, RF records,
IHB, RG 5, Series 1, FA115, Box 222, Folder 2834.
536
WELLS para Hackett, 1 dez. 1920. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 95, Folder 1307.
WELLS para Hackett, 15 out. 1920. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 95, Folder 1307.
WELLS para Hackett, 15 set. 1920. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 95, Folder 1307.
WELLS para Hackett, 27 jul. 1921. RAC, RF records,
IHB, RG5, Series 1, FA115, Box 113, Folder 1536.
537
SOBRE OS AUTORES
Aliny Dayany Pereira de Medeiros Pranto - Professora do
Departamento de Práticas Educacionais e Currículo da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em
Educação pelo Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestra e
licenciada em História pela mesma instituição.
André Mota - Professor da Faculdade de Medicina Preventiva da
Universidade de São Paulo. Diretor do Museu Histórico Prof.
Carlos da Silva Lacaz.
Azemar dos Santos Soares Júnior – Professor de Departamento de
Práticas Educacionais e Currículo da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN) e do Programa de Pós-Graduação
em Educação (UFRN) e História (UFCG).
Carmen da Silva Ferreira - Fundadora e liderança do movimento
social MSTC – Movimento Sem Teto do Centro na cidade de
São Paulo, conselheira estadual de habitação da cidade de São
Paulo, ativista há mais de vinte anos pelo direito à cidade, atriz
e escritora.
Cláudia Engler Cury - Professora Titular do Departamento de
História da Universidade Federal da Paraíba e do Programa
de Pós-Graduação em História (PPGH/UFPB). Editora-Chefe da
Revista Brasileira de História da Educação (biênio 2017-2019)
(biênio 2019-2021).
538
Cristiano Ferronato - Doutor em Educação pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). Docente vinculado ao Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes-
Sergipe. Líder do Grupo de Pesquisa História da Educação no
Nordeste (GPHEN/CNPq/UNIT/PPED).
Isabelle de Luna Alencar Noronha - Doutora em Educação pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora do Departamento
de Educação da Universidade Regional do Cariri (URCA).
Itacyara Viana Miranda - Professora do Departamento de
Fundamentos da Educação da Universidade Federal da Paraíba
(DFE/CE). Doutora em Educação (PPGE/UFPB). Mestrado em
História (PPGH/UFPB). Licenciatura em História (UFPB).
Membro do Grupo de História da Educação no Nordeste
Oitocentista – GHENO e o HistedPB.
Luan Presley Mendonça Santiago – Graduado em Pedagogia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre
em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Doutor em Educação pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente é professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte e vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Educação (UFRN/PPGED).
539
Luiz Araújo Ramos Neto - Graduado em História pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). Mestrando em História pelo
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB) vinculado à linha de pesquisa
História e Regionalidades, onde desenvolve pesquisa sobre,
o projeto da Igreja Católica paraibana em relação ao cinema,
tendo como referência o jornal paraibano, A Imprensa.
Maíra Lewtchuk Espindola - Professora Adjunta do Departamento
de Habilitações Pedagógicas do Centro de Educação da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Coordenadora do Curso
de Especialização em Educação Infantil/CE/UFPB. Líder do
Grupo de Estudos e Pesquisas. “História, Sociedade e Educação
no Brasil” GT Paraíba (HISTEDBR/PB).
Marcondes dos Santos Lima – Mestre em Educação pela
Universidade Federal da Paraíba (2020). Especialista em Ensino
de História pelo Instituto de Ciências Humanas, Comunicação
e Artes da Universidade Federal de Alagoas (2020). Graduação
em Pedagogia pelo Centro de Educação da Universidade Federal
de Alagoas (2018).
Mariana Amalia de Carvalho Castro e Silva - Cientista social pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM), mestre em Educação,
Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie e bacharel em Antropologia pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP).
540
Mauricéia Ananias – Professora Associada do Centro de Educação
e membro do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal da Paraíba. Doutorado em História da
Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2005).
Mestrado em História da Educação pela Universidade Estadual
de Campinas (2000). Licenciatura em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (1994).
Patrícia Cristina de Aragão - Doutora em Educação e Mestra em
Economia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Graduada
em História pela Universidade Federal da Paraíba. Graduada em
Psicologia pela Universidade Estadual da Paraíba. Professora
Titular da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Curso de
História, e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Formação de Professores (PPGFP/UEPB) e do Programa de
Pós Graduação em Serviço Social (PPGSS/UEPB).
Ricardo dos Santos Batista - Professor do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade do Estado da
Bahia, Alagoinhas. Pós-doutorando na Faculdade de Medicina
Preventiva da Universidade de São Paulo, Museu Histórico Prof.
Carlos da Silva Lacaz.
Rita Thainá Correia da Cunha - Graduada em História pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente é
mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEd-UFRN), onde
desenvolve pesquisa sobre o debate da educação nas Revistas do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
541
Robéria Nádia Araújo Nascimento – Doutora em Educação e
Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal
da Paraíba (UFPB). Professora Associada do Departamento
de Comunicação Social da Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB). Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Formação de Professores (PPGFP/UEPB).
Thayná Cavalcanti Peixoto - Doutoranda em História Social da
Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
e Bolsista CAPES. Mestra e Graduada em História pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Vânia Cristina da Silva - Graduada em História pela Universidade
Estadual de Goiás (UEG). Mestre em História pela Universidade
Federal da Paraíba. Atualmente é doutoranda pelo Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás.
Vivian Galdino de Andrade - Professora do Departamento de
Educação da Universidade Federal da Paraíba – Campus III.
Credenciada no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Campina Grande (PPGH/UFCG).
Walter Pinheiro Barbosa Júnior - Graduado em Pedagogia pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Mestre
em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN/PPGED). Atualmente é professor da rede básica de ensino
do munícipio do Natal-RN.
542