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História Geral Das Guerras Angolanas Vol. 1

Este documento é um livro de 1680 que narra a história das guerras em Angola até essa data. O livro foi anotado em 1940 para esclarecer e corrigir alguns pontos da narrativa original.

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História Geral Das Guerras Angolanas Vol. 1

Este documento é um livro de 1680 que narra a história das guerras em Angola até essa data. O livro foi anotado em 1940 para esclarecer e corrigir alguns pontos da narrativa original.

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LIBRARY
UNIVERSITY OF CALIFORNIA
DAVIS
HISTORIA GERAL
DAS

GUERRAS ANGOLANAS
POR

ANTONIO DE OLIVEIRA DE CADORNEGA

1680

Anotado e corrigido

POR

JOSE MATIAS DELGADO

TOMO 1

AGÊNCIA GERAL DAS COLONIAS / MCMXL


LIBRARY
UNIVERSITY OF CALIFORNIA
DAVIS
1233

HISTÓRIA GERAL
DAS
GUERRAS ANGOLANAS
REPÚBLICA PORTUGUESA
MINISTÉRIO DAS COLÓNIAS

HISTÓRIA GERAL
DAS

GUERRAS ANGOLANAS
POR

ANTONIO DE OLIVEIRA DE CADORNEGA


Capitão reformado e cidadão de S. Paulo da Assunção, natural de Vila Viçosa

1680
Anotado e corrigido
POR

JOSÉ MATIAS DELGADO

TOMO I

DIVISÃO DE PUBLICAÇÕES E BIBLIOTECA


AGÊNCIA GERAL DAS COLONIAS
I 9 4
Esta publicação foi determinada por
despacho de S. Ex.a o Ministro das
Colónias, de 13 de Maio de 1939
EDIÇÃO DA AGÊNCIA GERAL DAS COLÓNIAS
COMEMORATIVA DO DUPLO CENTENÁRIO
DA FUNDAÇÃO E RESTAURAÇÃO DE PORTUGAL
PRÓLOGO DO ANOTADOR

A história documentada de Angola está por es


crever. Existem muitos documentos para ela se po
der fazer, mas também se perderam outros tantos,
de modo que é impossível hoje escrever-se uma his
tória completa daquela antiga provincia.
Em 1784 foi escrito em Luanda um catálogo
anónimo dos governadores de Angola. Êsse manus
crito veio para Lisboa e está nos mss. da Biblioteca
Nacional, onde tem o número 8554 do fundo geral;
teve duas publicações.
A primeira em 1825 em Paris no livro — «Me
mórias contendo a biografia do vice-almirante Luiz
da Matta Feo Tôrres de Castello Branco» por
João Carlos Feo Cardoso de Castello Branco.
A segunda parte deste livro é o referido catá
logo, acrescentado até 1824. O Livro é um volume
de 375 págs. em 8.'.
Hoje é raro e só se encontra nas bibliotecas de
Lisboa .
A segunda publicação do referido catálogo foi
em 1826 em Lisboa e foifeita pela Academia das
Sciências na parte II do III tomo da «Colleção de
noticias para a história e geografia das nações ultra
marinas» . Mas aqui não foi acrescentada até 1824;
VI
ficou em 1784. O dito III tomo é também ra
rissimo. (' )
Em 1845 foi publicado em Lisboa o Livro III dos
«Ensaios sobre a Estatística das Possessões Portu.
guesas no Ultramar por José Joaquim Lopes de
Lima, capitão de fragata da Armada »; éste III Li
vro tratade Angola e tem a sua história em resumo.
É o melhor trabalho publicado até hoje sobre o
assunto.
Seu autor trabalhou muito, sendo a sua história
muito considerada, ainda que não isenta de muitos
érros, o que aliás não admira em virtude das poucas
fontes dignas de crédito que ele encontrou .
O catálogo não é digno de crédito em muitos
pontos, pois tem grandes erros históricos. Seu au
tor cometeu a grande falta de não dizer aonde foi
achar as afirmações que dá.
achContudo é juntamente com Lopes de Lima o me
lhor que existe publicado sôbre a história de An
gola.
Há na Sociedade de Geografia um volume ma
nuscrito intitulado: « História de Angola dedicada
é S. Alteza Serenissima o Principe Regente Nosso
Senhor — por Elias Elexandre da Silva Correia,
Cavaleiro professo na Ordem de Christo e Sargento
mór d'Infantaria de Melicias na capital do Rio de
Janeiro. 1782» .
É um volume de 803 págs. em .8°, escrito com boa
caligrafia e muito perfeito. Apesar de ter no rôsto a
data de 1782, chega até 22-6-1794 . O autor nasceu
© Nota da edição Foi feita uma reedição deste Catálogo pelos
Arquivos de Angola, vol. III , n.ºs 34 a 36, publicação oficial , Luanda,
Dezembro de 1937 (edição da R. C. de Estat. Geral ) .

VIII
no Rio, de pais europeus; esteve em Angola alguns
anos e saiu de lá em 1789 para o Rio.
Êste livro tambem merece a mesma confiança que
o catálogo, de que ele parece ser uma cópia, um
pouco modificado, para dar a impressão de que é
diferente.
É contudo útil e bom para a história da época
em que foi escrito. Mas tanto o catálogo como éste
autor não são de confiança, como já fica dito , es
pecialmente para a parte desde 1575 até 1648. (" )
Em 1861 foi acabada de escrever em Luanda a
História em três tomos das Guerras Angolanas, por
António de Oliveira de Cadornega. Esta história,
a -pesar -de ter grandes erros, desenvolve muito os
factos até 1680.
O seu primeiro tomo narra os factos até 1648,
sendo muitos deles inteiramente desconhecidos; mas
tem muitos erros nas datas, ou melhor: quasi todas
as que dá são erradas, como prova nos seus lugares;
nos factos é verdadeiro salvo em um ou outro.
Cadornega tem desculpa em não ser exacto nas
dadas ou em não dar as dos factos passados antes
da sua chegada a Angola. Na fuga de Luanda em
1641, pela tomada daquela cidade pelos holandeses,
os portugueses levaram consigo os livros da câmara .
Estes livros iam pelo rio Bengo em embarcações ,
onde também iam os doentes, que não podiam cami
nhar.
Os holandeses indo em sua perseguição mataram

( Nota da edição – Esta obra foi publicada em dois volumes,


prefaciados pelo Dr. Manuel Múrias, na Colecção dos Clássicos da
Expansão Portuguesa no Mundo, Lisboa, 1937, série E- Império
Africano .

IX
os doentes e deitaram ao rio os livros todos e assim
se perderam documentos que dariam muita luz à his
tória de Angola .
É Cadornega quem conta esta generosa acção
dos holandeses. Vēde o final do capitulo 6.º da pri
meira parte e o principio do capitulo 1.º da terceira
do primeiro tomo.
Mas Cadornega não tem desculpa alguma em
não dar as datas dos factos passados depois da to
mada de Luanda pelos holandeses. Em Massangano
e em Luanda tinha êle os meios para ser exacto nas
datas dos acontecimentos desde 1642 até ao fim da
sua história .
Assim não dá a data da chegada dos portugue
ses a Massangano, depois da tomada de Luanda
pelos holandeses; a da traição dos holandeses no
arraial do Gango; a do começo do segundo governo
de Pedro Cesar de Menezes , em Massangano; a da
morte de António de Abreu de Miranda ; as da posse
c morte do governador Francisco de Souto Maior,
ou melhor; dá-as mas erradas; não dá a do começo
do governo de Bartholomeu de Vasconcelos da
Cunha, quando tomou sosinho conta do governo em
Massangano .
No II tomo também omite muitas datas que com
grande facilidade podia dar. — Parece que tinha
horror às datas.
O primeiro e terceiro tomo nunca foram publica
dos; o segundo foi- o em 1902, mas sem nota ou recti
ficação alguma. ( ' ) .
São agora publicados os três e era de toda a con
( Nota da edição - A revista « Diogo Cão » iniciou a publicação
do I e III tomos das Guerras Angolanas de Cadornega.

X
veniência anotá-los com a documentação que fosse
possivel encontrar .
Foi o que fiz. Há mais de dez anos que, com in
termitências, trabalho na história de Angola; com
muito custo encontrei documentos importantes que
ajudam a pôr nos seus lugares muitos dos factos re
feridos por Cadornega e contados no Catálogo; em
forma de notas fiz adições ou alterações aos dois
primeiros tomos de Cadornega, dizendo sempre
onde se encontram as fontes de tais afirmações,
para assim afastar do leitor tóda a ideia de duvida;
pois não tenho autoridade para fazer afirmações
sem provas .
Dou em alguns casos verdadeiras novidades,
como acontece com a rainha Jinga, e na lista dos
governadores de Angola, que vai no fim do II tomo
em substituição da simples pauta que o autor fez,
sem datas e com muitos erros; também apresento
muitos outros factos inéditos até agora .
Ampliei no final do II tomo as muitas pautas que
o autor fez de todos os capitães móres de Angola,
Benguela e das capitanias, dando sobre eles as pe
quenas noticias que pude colher e as datas em que
viveram , foram nomeados ou tiveram a sua patente.
Sobre os Bispos rectifiquei e ampliei o pouco que
o autor diz deles.
No fim de cada um dos tomos fiz um indice dos
capitulos, indicando os governadores de que trata
cada um deles.
Finalmente fiz no fim dos três tomos listas alfa
béticas das palavras duvidosas e antiquadas empre
gadas pelo autor e também das palavras tiradas do
kimbundo ou congo, para assim facilitar a compreen
são do que o autor diz.
XI
Julgo ter contribuido com as minhas notas para
esclarecer a história de Angola até 1680, que é
até onde Cadornega chega.
O autor contudo conheceu a sua deficiência,
pois no fim do prólogo do I tomo diz < Servirá
só esta minha curiosidade e desvelo de dar as no
tícias ao mundo e curiosos na verdade, e se em al
guma cousa me equivocar não será nos sucessos se
não no tempo em que sucederam por não haver
hoje nestes Reinos noticias que os distingam» .
Foi um óptimo serviço que ele fez para a histó
ria de Angola, pelo que, a -pesardas dificiências já
apontadas, é digno de todo o louvor e merece a
nossa sincera gratidão.
Nos arquivos de Lisboa existem muitos documen
tos para o estudo da história de Angola desde 1640;
mas a documentação do tempo dos Filipes per
deu-se, existindo só um ou outro documento em Lis
boa, pois em Simancas e na Casa de la Contracta
cion de Sevilha, nada existe.
Na Biblioteca da Ajuda há dois livros do go
vêrno de Fernão de Sousa ( 1624-1630) que contém
tudo o que se passou no seu tempo; falo deles em
nota ao dito governador.
A grande força de documentos encontra -se no
Arquivo Ultramarino, na Biblioteca Nacional; mas
ainda assim tem falta de muitos, que por descuido
se perderam , não só sôbre Angola; mas também sô
bre as outras nossas possessões antigas.
O autor diz no prólogo quem era. Foi para An
gola com o governador Pedro Cesar de Menezes,
aonde chegou a 18 de Outubro de 1639 e ali seguiu
a vida militar, chegando a capitão, de que teve pa
tente em 29-1-1649, dada por Salvador Correia .

XII
Viveu 28 anos em Massangano, sendo em 1660
seu juiz ordinário e ali creou em fins desse ano a
Misericórdia , tendo sido o seu primeiro provedor.
Em 1671 vivia em Luanda e era o vereador
mais antigo da câmara desta cidade. Morreu em
1690 ( ?) .
Em 1681 completou os seus três tomos sõbre
Angola, sendo dois: A história geral das guerras
angolanas e o terceiro, que, a-pesar de ter o mesmo
titulo, não é história de Angola, mas é uma noticia
geográfica e uma narração etnográfica de tudo o
que lhe contaram e ele viu; mas geografia e etnogra
fia a seu modo; pois não localisa os lugares onde
muitos dos factos se realisaram; ele tinha muito
poucas noções de geografia, porquanto nem em
prega os nomes dos quatro pontos cardeais, excepto
o nascente e poente uma ou outra vez ;sôbre etnogra
fia conta como verdadeiros e com convicção os
factos mais absurdos e inverosimeis, revelando a
maior ignorância nêste ponto.
Basta a ingenuidade com que ele conta, no cap .
9.º da Il parte do 1.º tomo, o modo como os portu
gueses pensaram em 1641 em se verem livres dos
holandeses, para provar bem a grande credulidade
do autor .
Estavam os portugueses com o governador e o
Bispo D. Francisco do Soveral acampados em um
arraial próximo do Bengo, depois da fugida de
Luanda .
Estando em conselho o Bispo, câmara e todos
os moradores, algumas pessoas mais inteligentes
das cousas da terra disseram que havia negros en
cantadores que essas pessoas mandariam buscar
para que deitassem na cidade tigres, onças , e leões
XIII
que matassem muitos dos holandeses; que o Bispo
se opôs a isto dizendo que não era guerra limpa,
se não muito suja, pois havia de ser feita por arte
diabólica, o que não convinha.
Era dotado de um grande espirito de observa
ção e conta os factos de tal modo que se torna
agradável e de interesse a leitura da sua história ,
posto que à primeira vista nos amedronta pela
enormidade dos seus compactos capitulos.
A sua maneira de escrever é tão natural, tão
fluente e simples que nos encanta, nos deleita e so
bre tudo nos comove, fazendo-nos passar deante
dos olhos factos admiráveis de grande heroísmo e
verdadeiras epopeias.
Teve gosto pela leitura de livros históricos e
aproveitou isto com felicidade, pois nos seus dois
tomos da História Angolana menciona vários au
tores, fazendo grandes citações deles e às vezes faz
felizes comparações de história universal com factos
da de Angola .
Na ortografia não imita aqueles autores, pois os
erros que escreve são inúmeros. Entre outros es
creve os seguintes érross
Advertir e divirtir por distrair; discurso por de
curso; distingido e distingudo por extinto; distinto
por instinto ; esparcido por espargido; esplorar ou
explorar por expulsar; areios por arreios; arrimo por
arimo; corragem por coragem ; gerra por guerra; gia
por guia; mextrança por menstruo; portugez por
português; perlezia por paralisia; suchaço por chu
çado; sucho por chuco; tera por terra; Fr. Antonio
de Cerveja por Serravezza ; Graviel por Gabriel;
Fr. Jacinto de Beltrava por Vetralla; Fr. João An
tónio de Monte Caculo por Montecuccolo e muitos
XIV
e muitos outros erros e palavras que não se pode
hoje saber o que significavam .
A sua caligrafia era péssima, sendo muito di
ficil a leitura dos seu autógrafos .
Os três tomos da História das guerras angola
nas foram dedicados ao Principe regente, D. Pe
dro II.
Em principio de Dezembro de 1683 já estavam
em Lisboa, pois no fim do primeiro tomo do auto
grafo tem a seguinte licença, também autógrafa:
«Qualquer livreiro pode encadernar este tomo sem
escrúpulo. Lisboa , 13 de Dezembro de 1683. Fr.
Christovão de Foyos. Calificador do Santo Officio ».
Em 1741 estavam na livraria do Conde da Eri
ceira, D. Luis de Menezes, bem como outros mss.
do mesmo autor. Di-lo Diogo de Barbosa Machado,
no I tomo da sua Biblioteca Lusitana.
Foram depois parar à livraria do convento de
Nossa Senhora de Jesus, que é hoje pertença da
Academia das Sciências.
No catálogo ms. da dita livraria, feito em 1826
pelos religiosos do dito convento, se vê que só lá
existia o I e III tomo, tendo-se já perdido o II. Vê-se
isto nas palavras – História Geral de Angola por
Antonio de Oliveira de Cadornega e em Oliveira
de Cadornega.
Diz Barbosa Machado que ele escreveu mais:
-História de todas as cousas que sucederam em
Angola no tempo dos governadores que governaram
depois da guerra até D. João de Lencastro. Folio ;
tomos 4. ( 1)

( ) D. João de Lencastre chegou a Luanda em 8-9-1688 e nesse


dia tomou posse .

XV
- Compêndio da expugnação do Reyno de Ben
guela e das terras adjacentes. Folio.
- Descripção da muito populosa e sempre leal
villa Viçosa. Folio. Acabada em 1683. Foi dedicada
ao Conde da Ericeira, D. Luiz de Menezes.
Destes manuscritos existe só o de vila Viçosa na
Academia das Sciências. Como fica dito, o auto
grafo dos tomos I e III das Guerras angolanas está
na Academia das Sciências, tendo o frontespicio do
I e os frontespicios de cada uma das 4 partes figu
ras e ornatos a aguarela ; éste último tem também
outras pinturas de costumes, animais e frutos.
Existem duas cópias muito perfeitas dos 3 tomos
e com muito boa caligrafia .
Uma está na Biblioteca Nacional de Paris. Tem
também figuras, desenhos e ornatos a aguarela.
Veja -se: «Le Catalogue des manuscrits espagnols
et portuguais de la Bibliothèque Nationale de Paris
por M. Alfred Morel — Folio. 1881. » É desta que
foi tirada a cópia que vai agora ser publicada.
A outra cópia que existe está há muitos anos
na livraria privativa da Academia das Sciências; mas
tinha-se perdido e foi encontrada em Maio de 1930
entre os muitos manuscritos da Academia , pois não
estava no inventário e por isso não era conhe
cida.
Está em óptimo estado de conservação e sem o
mais pequeno defeito; tem contudo alguns érros nos
nomes de sobas e localidades; não tem aguarelas
nem desenhos ou ornato algum.
O Conde de Tarouca, na sua rica livraria em
Lisboa, tem uma cópia do I e II tomo, mas é imper
feita, tendo o II muitas folhas estragadas em
parte.

XVI
Na Biblioteca de Évora há também uma cópia
do I e II tomo ; mas esta não tem valor nem é cópia
fiel do autógrafo .
O autógrafo tem no I tomo muitos capitulos com
pletamente perdidos por estarem comidas as folhas
por causa da má tinta com que foram escritas.
A primeira menção que se encontra referida a
este ms. é a que o Visconde de Santarém fez em
1855 aos tomos I e II do ms. existente na Biblioteca
Imperial de Paris, da qual fez algumas citações
(Demonstração dos direitos que tem a corôa de
Portugal , etc. ) .
A segunda é a que o Dr. José de Lacerda fez no
seu livro: « Exame das viagens de Livingstone » , pu
blicado em Lisboa em 1867 .
Tem trechos de cada um dos três tomos, os quais
foram tirados da copia existente na Academia.
Afirmo isto, pois o III tomo tem muitas páginas
com traços verticais à margem a lapis, coincidindo
justamente com estas marcas os trechos do III tomo
transcritos no livro do Dr. Lacerda. Ora tendo ele
transcrito também trechos do I e II tomo é evidente
que os tirou da mesma cópia .
O Visconde de Paiva Manso, no seu livro pós
tumo: « História do Congo» , publicado em 1877
pela Academia das Sciências, transcreve desde a
pág. 265 à 287 vários trechos do I e III tomo, tira
dos do autógrafo, pois ele não conheceu a copia
existente na Academia ; mas diz na nota 1.' na pág.
272 que em 1867 viu na Biblioteca imperial de Paris
uma cópia magnifica dos três volumes. Diz que os
dois tomos que ele conheceu na Academia lhe pa
receu serem o original.
Éle previa bem que os ditos dois tomos são o
XVII
autógrafo; hoje não resta a menor dúvida que o
são e prova - o confrontando o nome do autor repe
tido no principio de todos os capitulos com a assina
tura dele em duas cartas datadas uma de 12-6-1661
e escritas de Massangano para D. Afonso VI sô
bre a Misericórdia fundada havia pouco naquela
vila .
Estas duas cartas estão no Arquivo Ultramarino
nos documentos do dito ano.
Prova - o também por o autor, no III tomo, quando
da a lista dos reis do Congo, dizer que lhe foi dada
uma por um parente do rei então reinante e que
essa lista vai na própria letra de quem lha deu.
Ora entre as págs. 264 e 265 do dito III tomo
encontra-se intercalada a tal lista escrita em letra
diferente da do autor, o que não acontece na copia
de Paris, nem na da Academia que nas págs. 264
e 265 tem a dita lista , mas com a letra igual à de
todo o tomo, tanto numa cópia como noutra.
Em 1883 a Sociedade de Geografia mandou ti
rar cópias de alguns documentos inéditos portugue
ses existentes na Biblioteca Nacional de Paris .
Na sessão de 30-10-1883, entre outra correspon
dência, foi lido um ofício da Legação de Portugal
em Paris, datado de 25 de Julho, acerca da troca
de publicações e da cópia de manuscritos mandada
fazer. O respectivo ministro e nosso consócio, sr.
Mendes Leal, diz : Existe na biblioteca nacional de
Paris um magnifico exemplar de Cadornega com o
titulo também de Guerras Angolanas, como o ma
nuscrito da biblioteca de Évora, sendo graficamente
muito mais perfeito e ornado de iluminuras, o que
faz crêr que este seria o traslado definitivo e apurado
da obra. Isto tanto mais quanto o exemplar de

XVIII
Évora termina em 1680 e éste, em volume separado
(terceiro se me não engano) inscreve a data de
1681 , e compreende a descripção geográfica e topo
gráfica da provincia; ao sr. Santos ordenei, pois,
dada a urgência, começasse por éste ... »
( Livro impresso das actas das sessões em 1883,
pág. 156) .
Por aqui se vê que o nosso ministro em Paris
naquele ano mandou tirar uma cópia dos três tomos,
o que não chegou a realisar, pois essa cópia não
existe na Sociedade de Geografia, nem há menção
alguma dela.
Deve-se ao benemérito missionário , fundador em
1881 da modelar missão da Huila, o padre José
Maria Antunes, falecido em Paris em 1929, a copia
do manuscrito de Paris.
Mandou ele em 1899 tirar a cópia dos três to
mos, e como na Academia não existia o segundo,
começou a publicação por éste, pensando que fazia
assim um bom serviço ; a publicação foi feita na re
vista « Portugal em África» , de que o dito padre
era director, tendo, depois de completada , sido feita
uma separata , que ficou concluida em 1902.
Por desviar as suas atenções para outros assuntos,
guardou o Padre Antunes a publicação do primeiro
tomo para mais tarde e tendo deixado de se publi
car a revista «Portugal em África», perdeu -se a fa
cilidade de ser publicado o primeiro e terceiro tomo.
Em 1919 tendo eu ido a casa do Padre Antunes
casualmente vi lá os mss. dos ditos dois tomos; pe
dilh'os e, tendo - os ele dado e posto à ordem do
Ex. Sr. Dr. Manuel Alves da Cunha para ele fa
zer com que fossem publicados em Luanda.
Êste Senhor com todo o gosto se encarregou

XIX
desta empreza e pediu -me para eu as anotar, visto
que aqui haveria mais elementos para isso. (' )
Foi o que fiz. Anotei não só o primeiro, mas tam
bém o segundo, que torna agora a ser publicado; o
terceiro, de poucas notas necessita, pois, como já
disse, não é história .
Fica assim a história de Angola documentada o
melhor que se pode fazer até 1680.
Satisfeito e muito contente me acho em ter con
tribuído com as minhas notas para valorisar estes
livros, que, sendo de um alto patriotismo, vêm tor
nar conhecida a história dos muito brilhantes feitos
dos homens que com enormissimos sacrificios e tra
balhos nos legaram aquele riquíssimo patrimonio de
Angola que constitui o futuro de Portugal.
JOSÉ MATHIAS DELGADO
PROFESSOR DA ESCOLA SUPERIOR COLONIAL

c ) Nota da edição - O mss . dos dois tomos referidos havia sido


pedido ao Rev. Sr. Padre Antunes pelo Rev.mo Sr. Dr. Alves da
Cunha em carta de 2 de Janeiro de 1919. Em carta de 31 de Março
do mesmo ano aquele ilustrado sacerdote e missionário ofereceu o mss. ,
para ser impresso em Luanda de conta do Sr. Dr. Cunha, que desde
há anos se interessava por esta publicação, ou para o publicar de
conta do Governo de Angola, oferecendo - o ao Governo se assim fosse
conveniente , com a condição de se destinarem alguns exemplares para
serem distribuídos pelas Missões Católicas.
Demoraram muito os trabalhos de anotação e não foi possivel, por
virtude das circunstâncias que se produziram , fazer a publicação em
Luanda , não havendo para tal verbas disponíveis, motivo por que essa
publicação ficou aguardando a sua oportunidade, a -pesar-de ser reco
nhecida a necessidade de a efectuar, para dotar a nossa história dum
dos seus mais importantes elementos.
O Sr. Cónego Delgado faleceu em Lisboa em 26 de Novembro de
1932, sem ter visto publicado o seu tão notável trabalho de anotação.

XX
AO MUITO ALTO E MUI PODEROSISSIMO PRIN
CIPE DOM PEDRO , NOSSO SENHOR , OFFERECE
A SEUS REAIS PÉS ESTA HISTORIA DAS GUER
RAS ANGOLANAS.

ANTONIO DE OLIVEIRA DE CADORNEGA, CAPI


TÃO REFORMADO E CIDADÃO DE SÃO PAULO
DA ASSUMPÇÃO , NATURAL DE VILLA VIÇOSA .

PRIMEIRO TOMO ESCRITO NO ANNO DE 1680 (1 )

(" ) Esta dedicatória e titulo está


entre a estampa do rei do Congo e a
do rei de Angola.
( É o frontespicio do I tomo).

I
veppi ( ne poraz. Key M.2?!
А

fruta
δυ I fruta
Angola . Angola
ja
t

Ao muito Alio.
l, mui Poderofosimo
Principe Sem Brdro,.N.SO
offeréco à Jus flaws pis
esta historia das quirya's Angolanas
Antonio de Oliveira de l adornega
Capuaó.Peformado,e,Cicaozó
de' SaoPaulo da Awumpção,
Natural de Villa -Vicova
primeiro tomo
Powrito, Annede
1680
31.1
0,
2%
0

24 Rochefort focit

Rey Ghiopia Acuola


de Ordinal
Congo Angola

i
REPRODUÇÃO DO FÓLIO A DO MS. DA BIBLIOTECA NACIONAL DE PARIS
( F. PORTUG . 2 )
PRINCIPE, E SENHOR NOSSO

Aos Reaes pés de Vossa Alteza offereço esta história


general das guerra Angolanas, e alguns sucessos particula
res , acontecidos em tempo dos Governadores, e Capitaens
Geraes que forão destes Reinos de Vossa Alteza , que Deos
guarde ; e como a matéria he grave, ainda que o sugeito
que a escreve lhe falte eloquencia, para a collocar como
merecia , me não pareceo haver sugeito de Principe mais di
gno de sua dedicatória, porque história de Reinos, não per
tence se não a pessoas Régias : e por esta ser a primeira
que entendo, se tem escrito destas tão remotas partes, as
primeiras primicias dos primeiros frutos são dedicados a
Deos, e como os Reis e Principes representão na terra a
mesma potestade; e a sua imitação he de pouco fazerem
muito : Confiado o Autor desta história que esta pouquidade
de seu desvello, será engrandecida, não pello sugeito indigno
de seu Autor , se não pela dedicatória ser feita a hum tão
Alto e Poderosissimo Principe nosso Senhor, que muitos
annos nos viva, com muitas prosperidades, augmentos e
felicidades em toda a Casa Real , como seus humildes Vas
sallos lhe dezejamos.

António de Oliveira de Cadornega

3
MOSTRA O AUTOR A RASÃO QUE TEVE PARA
FAZER A DEDICATÓRIA DESTA HISTÓRIA AO
PRINCIPE NOSSO SENHOR QUE DEOS GUARDE.

IZ Seneca no espelho de Bemfeitores que o ser agrade


ᎠᏃcido a beneficos, a todos he agradavel; e que a ingrati
dão, até ao mesmo Deos, he, aborrecivel, e confirma este
dizer o famoso Poeta, e insigne Escritor Dom Luiz de Gom
gora e Sandoval, quando fallando em seus bizarros, e doutos
versos, diz .

A pagar obligaciones
grandes libertades aze
el ricibir beneficios
estrechas cautividades

Presuppostas as razoens de tão dignos sugeitos, a teve


muchissima o Autor, em dedicar esta limitada obra ao Prin
cipe Nosso Senhor, a primeira por ser seu Autor da muito
sempre leal , e real Villa Viçosa , Corte dos Serenissimas
Duques dos Estados de Bragança, e Barcellos, Condesta
bles dos Reinos de Portugal ; segundariamente por ser Bis
neto de Damião Peres de Cadornega, Criado da Casa Real,
e Neto de Christovão Peres de Cadornega , Cavalleiro fi
dalgo da Casa de Sua Magestade, e Executor de proprie
dade da Commarca de Estremos, e naquella nobre Villa
morador, em cujo officio recebeu sempre da Real Casa de
Bragança, honras, e favores, assim de Sua Alteza a Sere
nissima Senhora Dona Catarina , Bisavó de sua Alteza que
Deos guarde, como do Serenissimo Senhor Duque Dom
Theodozio segundo do nome seu Avó , a respeito das tenças
que meu Avó pagava , consignadas naquella Executuria, e

4
Commarca ; e tambem pello Irmão de meu Avó o Padre Fran
cisco de Oliveira haver sido Criado, e Capellão do Senhor
Duque Dom Theodozio, estando com elle cativo em Africa
na perda del Rey Dom Sebastião; e vindo dito Padre da
quelle cativeiro, foi provido por Vigário da Igreja Matriz
da Villa de Olinda de Pernambuco , e Mão -posteiro -Mór
dos Cautivos. E entrando nos Ducados de Bragança , e Bar
cellos o Senhor Duque Dom Theodozio, por fallecimento de
seu Pay o Serenissimo Senhor Duque Dom João mandou
por Carta sua chamar ao Padre seu Capellão Tio do Autor
para lhe fazer merçê em gratificação de seus serviços o que
elle por ser já velho e não se pôr outra vez a risco de ser
Cativo não pode conseguir agradecendo a honra e lembrança
que delle tinha, lhe manifestou como em Portugal tinha So
brinhos onde podia empregar a merce que a elle lhe queria
fazer para o que foi servido de mandar passar um Alvará
de lembrança que em nossa pequena Casa havia para huma
Abbadia na Beira das muitas que aquella Real Casa tem por
aquellas partes havendo em algum de seus Sobrinhos estudo
e capacidade para isso e porque seus Sobrinhos se derão
mais ás Armas do que ás Lettras meu Pay Antonio de Ca
dornega e Oliveira tendo andado em Armadas no serviço
da Coroa de Portugal foi provido e occupado pella de Cas
tella em Officios honrosos em Buenos Ayres Rio da Prata
servindo de Official mayor da Real fazenda, e vindo daquelle
serviço foi roubado do Flamengo na Costa destes Reinos de
Angola em tempo do Governo de Fernão de Sousa com que
lhe não pareceo mais proseguir no serviço daquella Coroa
querendo o occupar com acrecentamento, e dizia que com
hum piqueno pão da sempre Real Casa de Bragança se ha
via de contentar, e vendose com filhos e atinuado de fa
zenda por haver dado, o Officio da Executuria de Estre
mos a Sua Irmãa Dona Caterina de Azevedo com que a car
zou com António Gonsalvres Ferreira , se chegou ao amparo

5
e abas (1 ) do Serenissimo Duque Dom João Nosso Rey e Se
nhor passando praça de Cavalheiro fidalgo que era o foro
que seu Pay tinha na Casa Real sendo primeiro tomado
por Escudeiro fidalgo, depois ganhado o dito acrecentamento
por seu braço ás lançadas nas guerras de Africa e Cidade
de Ceuta com mil e cem Reis de moradia por mes e hum
Alqueire de Cevada por dia, que erão cincoenta Reis o que
tudo consta de seu Alvara. A pouco tempo de sua assistencia
vagou hum Officio na Villa de Ourem de Escrivão das
notas o qual pedindo o meu Pay lhe disse o Senhor Infante
Dom Duarte que era seu mais affeiçoado que aquelle Officio
não era capaz para elle; que esperasse, que vagasse outra
cousa em que tivesse lugar ao que lhe respondeo, que elle
o não havia de servir, que o daria de serventia, e que
em quanto Comia aquelle pão lhe faria a mercé que dizia o
qual Officio foi dado a meu Pay; e elle o dava de serventia
€ tirado o terço lhe ficava para elle hum anno por outro
outenta noventa mil Reis. Com estas fatias de pão daquella
sempre esclarecida Casa de Bragança foi eu sustentado e
mais meus Irmãos; e porque eu não ficasse de fora de seus
favores vindo a Lisboa com hum Irmão meu por nome Ma
noel Correa de Cadornega que hoje vive , e he morador na
Villa da Vitoria de Masangano tendo assentado praça de
Soldado nos Almazens daquella Corte contra vontade de
nosso Pay que queria seguissemos os Estudos , vendonos sem
nenhum emparo estando o nosso Excellentissimo Senhor , na
Era de 639 da banda dalem onde tinha vindo a instancia
del Rey Dom Phelippe o quarto sendo Governador de Por
tugal a Infanta Dona Margarida Duqueza de Mantua , Tia
do dito Rey, a respeito de dizerem vinha huma poderosa
Armada do Christianissimo Rey de França contra Portugal,
viesse a preparar ou mandar preparar as Fortalezas e gente

( Abas, protecção , abrigo .

6
de guerra como Condestable que era daquelles Reinos; outros
ajuizarão fora outro o fim de que Deos o livrou para nelle
começar a renacer a Monarquia Luzitana; promettimento que
Nosso Senhor havia feito no Campo de Ourique ao nosso
primeiro Rey Dom Affonço Anrriques, que na decima setima
geração se atinuaria a Linha Real daquelles esclarecidos
Reys que assim atinuada poria seus olhos de mizericordia
em aquelle seu Reino assim que aquelle parto estava guar
dado daquelle tronco para nelle se cumprir a palavra de
Deos como tão gloriozamente se vio cumprida hindo eu e
meu Irmão a banda de alem de Almada onde estava aposen
tado o nosso invicto Senhor lhe pedimos nos quizesse favore
cer com huma carta de favor para o Governador Pedro Cezar
de Menezes com quem vinhamos embarcados para Angola a
servir nas guerras da Conquista destes Reinos e nos fez
merce de nola mandar passar, dizendo a Manoel Caldeira
de Castro Moço da Guardaroupa levasse recado ao Secre
tario Antonio Paes Veigas para a fazer, favor singular de
Suas Reaes mãos que os Serenissimos Duques de Bragança
sempre souberão dar muito e pedir pouco ; a qual Carta teve
sempre em tanta estima, o Governador que sendo aprisionado
do Flamengo onde lhe tomarão quanto possuhia teve indus
tria para a haver das mãos inimigas, e a levou comsigo
quando foi destes Reinos para Portugal fazendolhe tanta
veneração como o podera fazer a mais devota Reliquia.
Assim que meu Bisavô Damião Peres de Cadornega foi
Criado da Casa Real, meu Avô Christovão Peres de Cador
nega tomado nella por Escudeiro fidalgo e acrecentado por
seus serviços despois de armado Cavalleiro na guerra viva
de Africa a Cavalleiro fidalgo e dandolhe em dote em tempo
do Senhor Rey Dom Sebastião e da Raynha Regente a
Sr. D.- Caterina com minha Avó Violante Gomes de Aze
vedo o Officio da Executuria de Estremos de propriedade,
recebendo continuados favores da Real Casa de Bragança

7
e seu Irmão e meu Tio foi Criado e Capellão meu Pay An
tonio de Cadornega e Oliveira teve pão com que sustentar
seus filhos, Eu e meu Irmão honrras e favores com dita
Carta. Estas são as obrigaçoens que me accompanhão, para
tomar confiança de fazer a dedicatoria desta historia das
guerras Angolanas ao Principe Nosso Senhor Dom Pedro
Governador Regente dos Reinos de Portugal e de suas Con
quistas, que muitos annos nos viva e o guarde Deos.

AO LEITOR

Por ter visto e lido que de todas as Conquistas que teve


a Nação Portuguesa assim em tempo que reinarão os Se
renissimos Reys de Portugal como em o que esteve unido
ao de Castella , e assim despois da feliz acclamação do Se
nhor Rey Dom João o Quarto de saudoza memoria houve
por todas as partes do Mundo em que os Portugueses tive
rão tão grandiozas Conquistas e fizerão tão maravilhosas
presas por mandado de seus Reys e exaltação da fé Catho
lica e seu serviço : em Portugal e em Africa , conta suas em
presas o Doutor Pedro de Maris (1 ) em a recopilação das
Cronicas dos Senhores Reys de Portugal João de Barros e
Diogo de Couto e nas decadas que escreverão dos prosperos
e adversos successos que em tempo do Governadores e Vis
Reys da India houve em seus Governos naquelle Estado e
agora novamente recopilado e emendado com tanta elegancia
e erudição por Manoel de Faria e Souza , onde se dá mais
claras noticias pello que o discurso tempo mostrou. E agora
escrevendo o General das Frotas do Brasil, e Governador

() Maris na Cronica dos Reys de Portugal João de Barros e Diogo


de Couto e Manoel de Faria e Souza nas historias da India; Francisco
de Brito Freire nas Guerras Brasilicas.

8
que foi de Pernambuco Francisco de Brito Freire as guerras
Brasilicas com tanta bizarria e elegancia e verdade, só dos
Reinos de Angola e suas Conquistas onde havia tanto que
escrever, onde não houve menos successos prosperos e adver
sos, despois que foi descuberto e se começou a Conquistar
até o presente, sem haver quem tomasse esta empresa a sua
conta , e por não ficarem cousas de tanta consideração em
esquecimento, o que obrárão os Portugueses em o serviço da
Coroa de Portugal, e exaltação da Santa Fé Catholica entre
tantos barbaros idolatras inimigos de sua Santa Lei me dis
puz a fazer este compendio que assim se pode chamar pello
muito que se podia escrever; o ser com pouca elegancia nasce
de meu fraco talento; servirá para avivar a que haja quem
com milhor estilo o pondere, lime e escreva , as quaes noti
cias darei por haver quarenta annos que assisto neste Reino
de Angola vindo a elle por Soldado servindo ao Principe
Nosso Senhor na Era de seis centos e trinta e nove em Com
panhia do Governador e Capitão Geral Pedro Cezar de Me
nezes, e das noticias que tomei dos antigos com quem fallei
e conversei que assistirão nas ditas Conquistas; quando não
seja em todo será em parte conforme minha Lembrança , e
de alguns papeis que vi daquelles tempos em a Villa da Vi
toria de Masangano, onde assisti na Conquista effectiva
mente perto de trinta annos, sendo nella soldado Alferes e
Capitão, neste derei o que vi, e fiz , e occazioens de guerra
em que me achei assim nas que se fizerão no Sertão ao
Gentio, como no que se obrou no discurso de sete annos que
o Flamengo occupou estes Reinos; do habito de Soldado se
não deve esperar curiozidades, pois os que militão não tem
tempo para ellas, o que só se notou no famoso Emperador
Julio Cesar que o que obrava de dia com a espada escrevia
de noite com a penna , como se vê nos seus Commentarios,
e no insigne Poeta Luiz de Camoens que juntamente foi Sol
dado e Escritor, como o mostrão as suas tão deleitosas poe

9
sias nos seus lusiadas , servirá só esta minha curiosidade e
desvelo de dar a noticia ao Mundo e Curiosos na verdade,
e se em alguma cousa me equivocar não será nos successos
se não no tempo em que succederão por não haver hoje nes
tes Reinos noticias que os distingão porque em o tempo que
se escreve esta historia general das guerras Angolanas, he o
Autor o mais antigo que nelles hay e começando hirá dis
correndo pellos Governos antigos e modernos parte dos suc
cessos que nestes Reinos houve.

IO
CAPITULO PRIMEIRO DA PRIMEIRA PARTE DA
HISTORIA GENERAL DAS GUERRAS ANGOLANAS
ESCRITAS POR ANTONIO DE OLIVEIRA DE CA
DORNEGA CAPITAO REFORMADO E CIDADÃO
DA CIDADE DE SÃO PAULO D'ASSUNÇÃO NA
TURAL DE VILLA VIÇOZA .

ESTES Reinos de Sebaste Conquista de Ethiopia ,

N que este nome lhe derão os Antigos por haver come


çado suas Conquistas em tempo do Senhor Rey
Dom Sebastião de Lastimosa memoria , e haver sido seu des
cubrimento por Diogo Cam em tempo do Senhor Rey Dom
João o segundo, chegando ao Rio do Congo chamado o
Zaire perto de Pimda assento do Conde de Sonho, Vassallo
del Rey do Congo como o relatão as nossas Cronicas feita
sua recopilação pello Escritor Pedro de Maris , (1 ) Damião
de Gois na Cronica do Serenissimo Rey Dom Manoel, Ma
noel de Faria e Souza novamente no seu Epitome.
O porto de Pinda dista da Cidade de São Paulo
d'Assumção a sota vento em quatro graos da banda do Sul
onde se conserva ainda nestes tempos o nome de padrão
posto pello dito descubridor Diogo Cam .
Alguns Portuguezes que forão por via do porto de Pinda
e Condado de Sonho do Reino de Congo ajudarão aquelles
Reys em suas Conquistas e a defendelos de alguns exercitos
de Jagas que descerão da Serra Leoa a infestar aquelle em

( ) Pedro de Maris; Damião de Goes; Manoel de Faria e Souza no


Epitome, e na primeira parte do primeiro tomo da sua Asia Portugueza.

II
cuja defensa se mostrarão e assinalarão aquelles Portuguezes
valerozamente defendendo o dito Rey de tamanhas oppres
soens alcançando muitas victorias dos ditos Jaga's (1 ) , e mais
gentio inimigo daquella coroa, que alem de serem mais des
tros soldados e exercitados as armas erão mais timidos

a A invasão dos Jagas no Congo foi no tempo de D. Afonso I.


Este Rei deve ter começado a reinar depois de 1566, e, segundo diz
Cavazzi, nas pags. 221 e 222, morreu em 1587. Duarte Lopes, que deve
ter andado pelo Congo desde 1578 a 1588, diz como foi esta invasão e
que o Rei do Congo, tendo fugido de S. Salvador, se refugiou em uma
ilha do Zaire, que os portugueses chamavam ilha dos cavalos, por causa
da grande abundancia que ali havia de cavalos marinhos; esta ilha era
já na embocadura do rio , segundo o mesmo Duarte Lopes diz; d'ali man
dou o Rei pedir socorro a D. Sebastião; ele lhe enviou logo Francisco
de Gouveia, que tinha sido capitão de S. Thomé, com 600 soldados.
Gouveia foi ter com o Rei á ilha dos cavalos e juntamente com todos os
portugueses que ali estavam e com os indigenas foram atacar o inimigo;
depois de grandes marchas e de numerosos combates, em uma guerra
que durou ano e meio, expulsou inteiramente do Congo os Jagas, que o
estrondo da artilharia e dos arcabuzes, que eles não conheciam ainda ,
espantou mais do que o numero ou o valor dos seus adversarios, e res
tabeleceu o Rei no seu trono em S. Salvador.
O manuscrito de Domingos d’Abreu de Brito, citado na Historia do
Congo pelo visconde de Paiva Manso , a pag. 137, na parte transcrita
ali na pág. 138 , tambem diz que foi Francisco de Gouveia que restaurou
o Rei do Congo no seu Reino. Francisco de Gouveia foi capitão da
ilha de S. Thomé e teve patente datada de 23-4-1564; estava em S.
Thomé em Junho de 1565; não sei quando de lá saiu, mas Francisco de
Paiva Telles (e não de Paula Telles ), que lhe sucedeu , teve patente da
tada de 26-2-1565, mas ainda cá estava em 20-7-1567, estando para ir
nessa data para S. Thomé; teve então um alvará para levar consigo 20
homens assalariados a 20 $ 000 reis cada um.
Devendo pois estar Francisco de Gouveia já em Lisboa em 1568,
podemos dizer que a invasão dos Jagas foi nesta data ou em 1567 e
não antes e é provavel que o pedido do socorro só chegasse a Lisboa
em 1570. D. Alvaro I já estava em S. Salvador em 22-8-1575, pois
nesta data escreveu uma carta de lá ao Padre Garcia Simões; Francisco
de Gouveia também nesta data estava em S. Salvador e veio para Lis

J2
pello uzo que professavão em comerem carne humana que
era o seu mais regalado sustento, de que ainda tem por costu
me os que dahi procedem , de que he composto o quilombo
da Raynha Ginga e de Cabucu e o quilombo de Casangi,
potentado grande, que tem dominado pello Sertão dentro

boa em Outubro do dito ano . Por estas datas se conclue que a invasão
dos Jagas foi em 1567 ou 1568 e que já tinham sido expulsos em 1575.
Não sei em que documentos se firmou Luciano Cordeiro para dizer,
na nota 1.' á pag. 9 do folheto «Da Mina ao Cabo Negro segundo
Garcia Mendes Castello Branco », que a invasão foi em 1558. Este fo
lheto é o primeiro dos seis que Luciano Cordeiro publicou em 1881 com
o titulo «Memorias do Ultramar. Viagens, explorações e conquistas dos
portugueses » . Vendem - se na Sociedade de Geografia; são muito curiosos
sobre os principios da nossa ocupação de Angola.
Duarte Lopes, que andou pelo Congo em 1578, não escreveu a re
lação da sua viagem ; foi escrita por Philippo Pigafetta em italiano em
1591. Este livro foi publicado em 1883 em Bruxellas por Léon Cahun
com o titulo « Le Congo. La véridique description du royaume Africain,
appelé... le Congo, telle qu'elle a eté tirée récemment des explorations
d'Edouard Lopez, par Philippo Pigafetta ».
O manuscrito de Domingos d'Abreu de Brito foi escrito em 1592.
Existe na Biblioteca Nacional nos Manuscritos, n.º 294; é por folhas e
tem 84. O Sr. Alfredo Felner publicou em 1931 uma edição dêste ma
auscrito, «Um inquérito à vida administrativa e económica de Angola
e do Brasil», Coimbra, I. da Universidade, 1931 .
As duas patentes citadas estão na Torre do Tombo, na Chancellaria
de D. Sebastião, Livro 16, fl. 114, vol .; Livro 15, fl. 151. O alvará está
no Livro 19, fl. 312.
Que Francisco de Gouveia estava em S. Thomé em 1565, consta
da Carta de sentença dada a D. Fr. Gaspar Cão, Bispo de S. Tomé,
a fls. 64, v.; está nos mss. na Biblioteca Nacional, fundo geral, caixa
205, n .° 25.
A carta do Rei do Congo está nos Boletins da Soc. de Geografia
de 1883, na pág. 347; a data da saida do Gouveia do Congo está na
carta do P. Garcia Simões, na pag. 347, dos mesmos Boletins. - Giovan
ni Antonio Cavazzi da Montecuccolo . « Istoria descrition de tre regni
Congo, Matamba, et Angola. Milano, 1690.» Chega só até 1670. Este
livro existe na Biblioteca Nacional e na Sociedade de Geografia .

13
muitas Provincias e Nacoens de diversas linguas com quem
fazem os Portuguezes resgate de peças que servem de utili
dade ao comercio, e muito mais ao serviço de Deos, e bem
daquellas Almas; porque com estes resgates se evitão a não
haver tantos açougues de carne humana, e instruidos na fé
de nosso Senhor Jesus Christo hindo bautizados e catequi
zados se embarcão para as partes do Brasil ou para outras
que tem uzo Catholico tirados da gentilidade e redimindo
lhes as vidas com que se faz serviço a Deos e bem ao
Commercio .
O quilombo da Raynha Ginga, que agora tem esse nome
he nos tempos antigos o de Angola a Quiloamgi, he tam
bem composto como dito he parte delle dos mesmos Jagas em
costumes e ritos como os mais desta profissão; no tempo de
hoje hay nelle alguma gente bautizada como tambem no qui
lombo de Casange depois que la entrarão os Missionarios
Apostolicos Capuchinos Italianos.
E tornando ao esforço com que se houverão os Portu
guezes na defensa e emparo del Rey de Congo foi sua fama
correndo de calidade que vendose el Rey de Angola (1 )
opprimido e molestado tambem daquelles crueis e carnicei
ros Jagas que descerão tantos de suas terras que a tudo
abrangião, imitando aos Godos quando descerão de suas ter
ras e fizerão suas entradas tão potentes no Imperio Espanha
e Italia , e em outras partes; sabendo o dito Rey de Angola
o esforço e valor com que se tinhão mostrado e havido os
Portuguezes mandou os seus Embaixadores ao de Congo

C O nome de Angola foi dado por nós em vista dos reis ou sobas
daquela região terem o nome de Ngola; mas o nome da região era
Ndoango, que nós fizemos só Dongo .
Este ultimo nome foi em 1626 limitado ao novo reino do Dongo ,
pela eleição do soba Ngola Aiidi, em 12 de Outubro do dito ano , que
ficou com o titulo de rei de Dongo e foi viver para as Pedras de Ma.
pungo.

14
pedindolhe mandasse os mundeles ( ) ou parte delles para o
ajudarem a defender de seus inimigos: ouvida por aquelle
Rey sua Embaixada mandou a mayor parte dos Portuguezes
que em seu Reyno havia em favor de quem os impetrava,
os quaes chegados que forão, obrarão em sua defensa cousas
grandes e valerosas, defendendo aquelle Rey de Angola de
seus inimigos , alcançando com dita ajuda dos Portuguezes
grandes e assinaladas Victorias de todos os seus inimigos,
despois de o haverem livrados de tão grandes molestias, em
pago de beneficio tão grande, ou por enveja de seu grande
valor ou temor de ver os feitos que emprenderão em seu ser
viço, tratou de os querer mandar matar, e para conseguir
esta malvada trayção com astucia os fez dividir pellos Sovas
seus Vassallos que não tivessem lugar de se incorporarem
nem fossem sabedores huns do outros; feita esta prevenção
e divisão, a huns mandou matar , e a outros garrotar que não
podessem dar passo, nem serem Senhores de suas acçoens;
desta crueldade, não merecida a quem tinha obrado tanto
em seu serviço, que não he muito se ache neste barbaro se
melhante agradecimento, quando o imitão outros que o não
são, a piedade ou affeição de huma Infanta filha deste Rey
livrou a cinco Portuguezes de tamanha tirania , mandando os
esconder de sua fiereza em terras de hum fidalgo Sova Vas
sallo de seu Pay que tinha suas terras e Senhorio no Rio
Mucozo que dezagoa suas agoas em o famoso e Caudeloso
Rio Coamza, o Sova era o seu apellido quilonga quiabungo
que hoje conserva o mesmo nome e terras em o mesmo sitio,
dando a obediencia, como Vassallo que he do Principe nosso
Senhor, á fortaleza de Cambambe que fica perto das terras
de quilonga e Rio Mucozo como Sova daquella lotação.
A quem ordenou aquella piadosa e affeiçoada Infanta
com todo o segredo mandasse fazer huma Canoa que se faz

( ) Mundeles chamão aos Brancos.

15
de um só pao chamado mufuma carcavada pella parte mais
conveniente com officiaes que tem para isso e ferramenta a
seu modo; há ahi canoas destas que levarão quinhentos
enzeques de farinha de guerra que são mil Alqueires, e tra
zia de volta aliviada da farinha doze pipas de Vinho a cava
lete, a fora alguns barris e mais vitualhas, com ordem da dita
Infanta que feita que fosse a dita embarcação a levasse pelo
rio Mocos ao Coamza e mettesse nella aquelles Portuguezes e
sustento necessario para a viagem e lhes dessem fuga por
aquelle espaçozo rio Coamza abaixo. Entre estes Portugue
zes entrava Paulo Dias de Novaes, por cuja cauza fazia a fi
Iha daquelle Rey (1 ) estes estremos, que são os poderes do
amor! que até huma Gentia os conhece; muito pode huma
affeição!
o O Rei de Angola , Ngola Inene, mandou em 1557 embaixadores
a D. João III pedindo missionarios; quando chegaram a Lisboa tinha
morrido D. João III. A rainha D. Catharina mandou em 1559 Paulo
Dias de Novaes com dois Padres Jesuitas e dois Irmãos em uma expe
dição. Sairam de Lisboa em 22 de Dezembro de 1559 e chegaram à barra
do rio Quanza em 3 de Maio de 1560; ali esperaram recado do rzi du
rante seis meses. Morreram logo muitos portugueses e entre eles o P.:
Lacerda.
( Carta do irmão Antonio Mendes, datada de 29-10-1562; no Bole
tim de 1883 da Sociedade de Geografia, pag . 302).
Diz a Chronica dos Jesuitas, por Balthazar Teles, que o Rei que
pediu os missionarios se chamava Ngola Inene; que este tinha morrido
quando lá chegou Paulo Dias de Novaes, e que então reinava Ngola
Ndambi. (Pags. 621 e 622 ) .
Sôbre a historia de Paulo D. de Novaes ser salvo pelo amor da
filha do Rei , parece ser uma lenda. As cartas dos Jesuitas no citado Bo
letim da Sociedade de Geografia não fazem alusão alguma a isto. É
certo que o Rei os tratou mal. (Carta citada e a seguinte, datada de
1-11-1564, do P. Francisco Gouveia ).
A cronica acima citada dos Jesuitas é : Chronica da Companhia de
Jesus na Provincia de Portugal, por Padre Balthezar Telles, da mesma
pompanhia. 2 partes: a 1." em 1645; a 2. em 1647, Existe nas Bibliote
cas de Lisboa.
Entrados que forão os ditos Portugueses em a Canoa
navegando pello rio abaixo com grande fadiga como aquelles
hião fugindo a morte, e forão a dezembarcar em a barra
daquelle potente Rio chamado Coamza, bem conhecido de
todos os Mareantes, que distava do rio Mucoso , onde elles
havião sahido em a Canoa, cincoenta legoas ou mais que
tantos se fazem da Cidade de São Paulo da Loanda ao
prezidio e fortaleza de Cambabe, que fica perto da Coamza
e rio Mocos.
Sahidos que forão ao Mar os affligidos e valerosos Por
tugueses forão navegando naquella limitada embarcação em
que se arriscarão a passar aquella barra tão encapellada das
ondas do mar, e forão descahindo (1 ) Costa a Costa para
sotavento, ate o porto de Pinda rio do Congo chamado Zaire,
e como naquelle porto vinhão embarcaçoens nossas que a
piedade da Catholica Raynha (2 ) de Portugal a Serenissima
Senhora Dona Catarina Avó do Senhor Rey Dom Sebas
tião e Governadora Regente de seu Reino pella menoridade
del Rey havia feito aquelle porto franco para a passagem
do Reino do Congo onde com zelo Christão e pella propa
gação da fé daquelle poderozo Reyno havia mandado a el
Rey Dom Affonso (3 ) que era o nome do que então reinava
muitos Religiosos exemplares a cultivar aquella Seara para

( O autor diz « foram descahindo » ; devia dizer foram subindo . —


No decurso desta Historia fala sempre assim .
© He a Raynha Dona Leonor terceira Mulher do Serenissimo
Rey Dom Manuel Irmão do Emperador Carlos quinto. A Raynha Dona
Catarina he a de que fallamos que foi Mulher del Rey Dom João o
terceiro filho del Rey Dom Manuel e Avó del Rey Dom Sebastião
e a senhora Dona Catarina foi filha del Rey Dom Phelipe de Cas
tella o primeiro do nome e de sua Molher a Raynha Dona Joana
filha dos Catholicos e may do Emperador Carlos Quinto.
© A regência de D. Catarina foi de 1557 a 1562.
Neste tempo reinou D. Diogo I , que morreu em Setembro ou Ou

17
Deos, dispendendo com generosa mão muito de sua Real
fazenda, para os aprestos daquella nova Christandade, que
tantos frutos deo de sy naquelles primeiros tempos, e tan
tos prodigios obrou a mão de Deos em seu favor; neste
porto que dizemos achou o valerozo Paulo Dias de Novaes
embarcação para o nosso Reino de Portugal para onde
embarcou, com seus Companheiros, chegando a salvamento
a patria amada .
Chegado que foi deo particular informação do Reino de
Angola como quem o tinha tambem explorado , e da grande
crueldade e tirannia que aquelle barbaro e idolatra Rey ha
via uzado em satisfacção de beneficios com a Nação Por
tuguesa, relatando sua tragedia, e dos mais que havião pe
reçido ás mãos daquelles tirannos com mortes tão afrontozas .
Tendose inteirado de tudo aquelle virtuoso e Catholico
Rey, (1 ) mandou preparar Náos com todo o apresto ne

tubro de 1561; D. Afonso II , que foi morto pelo irmão (D. Bernardo )
em fim de 1561 , e D. Bernardo I que já reinava em principio de 1562
e ainda reinava em principio de 1566 ; não sei quando morreu , mas em
1570 já reinava D. Alvaro I.
Não se sabe que religiosos fossem estes de que fala o autor; é
provável que sejam os Dominicanos de que fala a carta de D. Alvaro II,
de 26 de Julho de 1610, na História do Congo, pág . 156.
Diz a carta que foram com Francisco de Gouveia; éste estava
em S. Thomé em Junho de 1565, mas, segundo a dita carta , deve ter
ido ao congo só no tempo de D. Alvaro I com os ditos Dominicanos
em 1570 ou 1571 .
Este Francisco de Gouveia não é o mesmo mencionado na His
tória do Congo na pág . 134 e 135. O primeiro era fidalgo da casa do
Rei D. Sebastião.
☺ Paulo Dias de « Navaes » teve patente de conquistador de An
gola em 19 de Setembro de 1571 ; por esta patente foram-lhe dadas
muitas atribuições e era -lhe feita doação de 35 leguas de costa a come
çar no rio Quanza para o Norte e de fundo o que ele descubrisse.
(Chancellaria de D. Sebastião, Livro 26, f1 , 295, na Torre do Tombo ).

18
cessario de Infantaria , Artilharia, e Municoens , e princi
palmente de Sugeitos que trabalhassem na vinha do Senhor,
mandando naquella Companhia filhos de outra tão assina
lados em virtudes filhos do Patriarca Santo Ignacio de
Loyola, que bem tem mostrado em muitas partes do mundo
o muito que pode sua Santa virtude e Doutrina, tambem di
zião os Antigos vierão a cultivar esta Seara para Deos Re
ligiosos do Patriarca São Domingos , o que consta tambem
da sua Cronica como tambem da Religião dos Carmelitas.
Partidos que forão do nosso Reino (1 ) vierão fazendo
sua derrota em busca desta Costa da Ethiopia que ti
veram os Antigos por não habitada chamandolhe a tor
rida Zona, até que despois de tão larga navegação e
contrastes do Mar veyo Paulo Dias de Novaes com
suas Naos e mais companhias, a tomar porto em São Paulo
de Loanda, como quem o tinha preditado quando foi em
a Canoa Costa a Costa até o porto de Pinda, e por ser ca

(" ) Paulo Dias de Novaes partiu de Lisboa em fins de Novembro


ou principios de Dezembro de 1574; foram por Cabo Verde , parando
em uma das ilhas; d'ali sahiram em 17 de Dezembro. Chegaram á
ilha de Loanda em 20 de Fevereiro de 1575. Iam P.es Jesuitas · en
tre eles o P.* Baltazar Barreira.
Estas datas constam de uma carta do P. Garcia Simões, Jesuita ,
para o Provincial; é datada de Loanda de 20-10-1575. É uma carta
muito curiosa e extensa ; está copiada nos Boletins da Sociedade de
Geografia de 1883, de pag. 339 a 346. Antes desta carta escreveu outra
de Cabo Verde, a qual devia dar a data da saida de Lisboa, mas essa
não existe; esta relata a sua viagem desde Cabo Verde a Loanda.
Nesta expedição só foram Padres Jesuitas e Irmãos da mesma com
panhia .
Os Religiosos Carmelitas foram para o Congo em 1584. Eram dois
padres e um irmão; chegaram a S. Salvador em fins deste ano . (His
toria do Congo, pag. 130 a 132 ) .
Os Dominicanos devem ter ido em 1570 ou 1571 com Francisco
de Gouveia, como já disse atraz .

19
3
pás de muitas Armadas resgoardado dos rigores e furor
do mar, e das influencias do vento , por ter em frente de
terra firme huma Ilha muy dilatada em ser cumprida, que
serve de abrigo a toda a embarcação de mayor porte seja
a respeito da muralha que tem em frente, onde as furiosas
ondas quebrantão suas furias e não se vio nunca em razão
de tempestade que se perdesse Navio nenhum dentro do
socego deste porto e enseada.
Saltando em terra (1 ) se asenhoreou de hum morro alto
sobre o braço do Mar que mette para esta parte a que
poz o nome de Morro de São Paulo, que como este Santo
Apostolo foi chamado o Doutor das gentes pella muita pro
pagação que fez em pregar a fé de Nosso Senhor Jesus
Christo, e este novo Conquistador ser do seu nome, e vir

© Paulo D. de Novaes esteve a principio na ilha de Loanda. Só


foi para o morro, a que deu o nome de S. Paulo , em meados de 1576
e ahi fez um forte de taipa no qual poz artilharia.
(Carta do P. Garcia Simões, de 7-11-1576, no Boletim citado ,
pag . 348 ) .
Como já fica dito , o rei que em 1557 mandou embaixadores a
D. João III era Ngola Inene.
Quando em Maio de 1560 chegou á Barra do Quanza Paulo Dias
de Novaes, reinava Ndambi a Ngola ou Ngola Ndambi.
Em 1575, á segunda chegada de Paulo Dias de Novaes, reinava
Mbandi a Ngola Quiluanji ou, melhor, Jinga Mbandi a Ngola Qui
luanji.
Tanto que este soube da chegada de Novaes mandou -lhe um mu
kunji (embaixador). Esta palavra era então mukunzi de que os portu
gueses fizeram macunze, macunzes. O dito embaixador chegou á ilha
de Luanda em 29-6-1575. O governador o recebeu com grande honra
e lhe deu uma oferta de peças ricas de fazenda e dentro de tres dias
o despediu .
(Carta de 24-10-1575, no Boletim citado, pag . 344. Mas isto só
quanto ao embaixador, pois quanto aos reis é tirado da Cronica dos
Jesuitas de Baltazar Telles, 2. parte , pag. 623 ).

20
instruir a Lei evangelica a esta gentilidade, lhe combinava
bem este nome por ser a primeira terra que tomou para della
tratar com os Sugeitos que em sua companhia trazia do
serviço de Deos, e bem das almas desta ambundainha em
cujo morro se fortificou como o testificão os alicerses que
neste tempo se descubrirão em dito sitio , abrindose huma
cava ( fôsso ) para defensa do forte de São Miguel que no
dito morro de São Paulo se tem feito, (1 ) e tambem ao pé
delle chamão o padrão onde tambem o devia depôr o nosso
primeiro descubridor desta Costa Diogo Cam , tambem
consta como nesta parage se fabricou casa a Deos em que
os Reverendos Padres da Companhia primeiros lavradores
desta Seara evangelica , tiverão primeiro seu Collegio, como
tambem o verificou os vestigios delle .
Tendo este esforçado Conquistador tomado este assento,
e ter feito na Marinha fortificação para a guarda de Navios
deixando em tudo guarnição de gente , e Infantaria, tratou
da Conquista deste Reino de Angola, a que vinha , sahindo
da Villa da Loanda, que este nome teve de seu principio , e
primeiro fundamento, e de Loanda pello mal que havia dado
aos desta Companhia com a corrupção das gengivas por
onde lhe foi chamado mal de Loanda, e não servio este porto
muito tempo mais que de guarda de huma feitoria por quanto
os Governadores que vierão naquelles primeiros tempus se
mettião pella terra adentro á Conquista deste Reino, até que
vierão a fazer assento em a dita Villa hindose amplificando
sendo cabeça de toda esta Ethiopia e dos Reinos Conquis
tados.

☺ Não consta em documento ou livro algum que Diogo Cão te


nha posto um padrão em Luanda.
Diogo Cão fez duas viagens á Africa Ocidental: a primeira
em 1482 até fins de 1483; e segunda depois de Abril de 1484 até Ju
nho ou Julho de 1486 .

21
Na primeira viagem pôz dois padrões e na segunda outros dois,
todos de pedra.
1. ° PADRÃO

O primeiro, a que foi dado o nome de Padrão de S. Jorge , pro


vavelmente por ter sido posto no dia de S. Jorge , (23 de Abril) foi
colocado em 1482 na ponta extrema da margem esquerda do Zaire.
Foi destruido pelos holandeses no tempo da sua ocupação de Angola
e deram á Bahia de S. Antonio o nome do seu rio Pampus em
Amsterdam .
É isto dito por Dapper a pag . 572 do seu livro — « Nauweurige
beschrijving der Afrikaansche gewvesten van Olf. Dapper. Amster
dam , 1668 ».
Este livro é uma compilação muito cuidadosa e interessante, con
tendo informações coligidas durante a ocupação holandesa de Angola
(1641-1648 ).
Esta indicação é dada por E. G. Ravenstein a pag . 125 do seu livro
« The strange adventures of Andrewe Battell» — Londres, 1901.
Quando em 25 de Maio de 1645, chegaram ao Zaire os primeiros
missionarios capuchinhos italianos, já ali acharam só os destroços dele .
Depois da restauração de Angola, os portugueses puzeram no seu lo
gar uma cruz muto alta de madeira. (Cavazzi, pag . 225, n.° 20 ) .
Quando no fim de Maio ou principio de Junho de 1683, chegou
ao Zaire o missionario capuchinho italiano, Fr, Girolamo Merolla da
Sorrento, encontrou o dito padrão reduzido a pedaços e ainda se liam
nele algumas palavras com o numero milessimo esculpidas em caracteres
goticos. (Di -lo ele na pag. 76 do seu livro , abaixo indicado.) Giovani
Antonio Cavazzi da Montecuccolo. — « Istorica Descrittione de tre regni
Congo, Matamba et Angola.» Milão 1690 ,
Breve e succinta relatione del viaggio nel regno di Congo. Napoli
1692, pelo missionario Merolla acima citado .
Hoje restam dele uns fragmentos guardados respeitosamente na so
ciedade de Geografia.

Em 13 de Setembro de 1859 foi lá posto um , que desapareceu le


vado pelas calemas em 1864. — Em fins de 1891 foi posto outro que
desapareceu em 26 de Agosto de 1911 .
Em principios de 1912 foi posta uma lapida comemorativa foi
demolida pelo mar em Maio de 1915.
Em 1917 tratou - se novamente da colocação dum novo padrão. Teve

22
o Clube Trasmontano de Angola conhecimento disso e a sua direcção
ofereceu -se para se encarregar da reconstituição do primitivo monumento ,
coordenando os estudos e investigações de Luciano Cordeiro, respei
tando - se o seu carácter primitivo. O Ex.mº Governador do distrito do
Congo convidou então as municipalidades do seu distrito a inscreverem
nos seus orçamentos os subsidios necessários para as despesas, o que
todas da melhor vontade se prontificaram a fazer, de acordo com as
indicações que foram transmitidas por aquele Governo.
O projecto foi elaborado pelas Obras Públicas de Angola em 1917,
para o que o Clube Trasmontano forneceu todos os elementos. Ao
Clube foram entregues os fundos subscritos pelas referidas municipali
dades, aos quais foi junto o subsidio complementar do mesmo Clube,
tudo no total, em moeda da época, de 1.034$50.
A Direcção do Clube, de acordo com o Governo Geral, em 1918,
entendeu -se com a Direcção da benemérita Sociedade de Geografia de
Lisboa e, em especial, com o falecido Secretário, Sr. Almirante Er
nesto de Vasconcelos, para a execução do projecto aprovado que com
o melhor empênho e interesse se incumbiu de dirigir a construção do
padrão em Lisboa e a fiscalização do trabalho.
O monumento, assim reconstituido fielmente segundo o primitivo
padrão colocado à entrada do grande rio , e com a reprodução das pri
mitivas inscrições nas faces ocidente, sul e oriente , foi colocado pela
Secção das Obras Públicas do dis do Congo e foi entregue ao Go
vêrno em 6 de Outubro de 1920, segundo o auto de entrega publicado
no Boletim Oficial de Angola n.° 13, 2. série, de 26 de Março de 1921 ,
ao qual estão apensas as contas justificativas das despesas feitas pelo
Clube Trasmontano de Angola.
Algum tempo depois teve de ser apeado, por defeitos da sua im
plantação e em virtude de o mar ameaçar destruí-lo, partindo -se a
coluna quando se procedia à desmontagem . Recolhido em Santo An
tónio do Zaire, veio a Luanda para ser consertado, por cuidados do
Governo do distrito do Zaire, coadjuvado pelo Grémio de Estudos
do Zaire, e foi novamente colocado na Ponta Padrão, com sólidas fun
dações, a razoável distância do mar, em 1926, e ali se tem conservado
dai por diante.
2.• PADRAO

Este tambem na primeira viagem de Diogo Cão, foi colocado no


Cabo de Santo Agostinho, hoje chamado de Santa Maria ( 13• 27' 15"
latitude Sul), ao sul de Benguela.

23
Foi tambem em 1482 e teve o nome de Santo Agostinho, talvez de
vido a ser posto no dia deste santo (28 de Agosto ). Foi este que em
fim de Fevereiro de 1892 chegou a Lisboa e agora está conservado,
como uma reliquia, na Sociedade de Geografia. Foi por ele que Luciano
Cordeiro viu e provou que a primeira viagem de Diogo Cão foi em
1482. Teve uma cruz de pedra, que já não tinha havia muitos anos.

3. ° PADRÃO

Este já foi na segunda viagem de Diogo Cão.


É o de Cabo Negro ( 15° 40 30 " latitude Sul). Foi posto em prin
cipios de Janeiro de 1485. Em 9 de Janeiro de 1892 foi tirado do seu
lugar e lá posto outro .
Foi trazido para Lisboa aonde chegou em Março do mesmo ano de
1892 e colocado na Sociedade de Geografia; mas este tem só dois fra
gmentos sem a inscrição e sem a cruz .

1. PADRAO

Foi colocado na segunda viagem em 1485 na Serra Parda Cabo


da Serra — (Cross Point, dos inglezes ) em 21 ° 48' latitude Sul. Em 1893
foi encontrado pelo comandante de um cruzador alemão e levado para
a Academia de Marinha de Kiel.
O imperador da Alemanha, Guilherme II , mandou levantar naquele
cabo, em Janeiro de 1894 , uma reprodução desse monumento português.

A historia dos primeiros tres padrões foi escrita por Luciano Cor
deiro no seu opusculo : Descobertas e Descobridores. Diogo Cão. Lis
boa , 1892 .
Poi publicada nos Boletins da Sociedade de Geografia, 11. série
( 1892 ) , n.° 2 ; tambem o foi em separata.
A historia do quarto foi publicada na 14." série dos mesmos Bole
tins (1895) na pag. 881 , do n.º 11 .

24
CAPITULO SEGUNDO DA PRIMEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS COMEÇANDO A CON
QUISTA DESTE REINO PAULO DIAS DE NOVAES .

Sahido que foi a campanha o nosso primeiro Con


quistador começou a ir fazendo Conquista pela terra den
tro principiando logo daquelle sitio a ir tendo grandes
encontros e peleijas (1 ) com Sovas Vassallos do Rey
de Angola que desta parage começavão os limites de seu
poderoso Reino, e para intelligencia desta historia diremos
primeiro o que comprendia este Reino, seu dominio , terras ,
e Vassallos e tocaremos alguma couza de seus costumes e
do trato de seu estado, este Rey de Angola chamado pello
antigo Ngola (2 ) aquiluamgi, dizem algumas antigoalhas ou
negros noticiosos procedera de hum ferreiro que este gentio
chama na sua lingoa gangollas, e he couza que se não pode
muito duvidar porque entre este gentio he officio muito esti
mado, e com elle se adquire muitos escravos , e fazenda , por
ser o mais necessario para as suas lavouras, fazendo encha
das, a que elles na sua lingoa chamão temos (3 ) , e são da
feição dos nossos sachos das nossas ortas de Portugal, mas
mais grandes, fazem tambem podas, que lhes servem para

© Com Casamgi da emsaca forão os primeiros recontros.


Ⓡ O autor combina aqui com o que fica dito na antepenultima nota
ao capitulo primeiro.
O Rei do Congo, D. Alvaro I, intrigou os portuguezes com o Rei
de Angola dizendo - lhe (mandando -lhe dizer) que a ida do Governador
e mais portuguezes a Angola era para lhe fazer guerra e lhe tomar o
seu reino.
(Carta de 20-10-1575 , pag. 346, do Boletim citado ).
© Ditemu, matemu.

25
as roças dos matos, e fouces roçadouras para alimpar os
Zumgais e ervagem que nascem nas terras alagadiças do que
uzão muito para semear tabaco, a que chamão macaia (- ) , e
mais prantas das couzas desta terra , de que se sustentão os
que são dados as lavoura, que outros não tratão disso mais
que viverem nos matos, como bestas feras, sustentandose da
Caça e Sevandijas delle, fazem tambem facas e machadinhas,
frexas , azagaias e pontaletes , que servem de suas armas e
defensa, com o que se adquire muito por este officio, e pella
razão de haver tido seu Rey semelhante officio , e tambem
deste gentio tido em boa opinião pello lucro que adquirem
com elle, imitando este gentio a mafoma (2 ) que dizem algu
mas historias tivera officio baixo sendo arrieiro, andando com
suas requas; e este Rey de Angola procedendo de hum fer
reiro fica um grao mais sublime, que muitos Senhores e Ca
valleiros apprendem officios semelhantes suppondo o que
The virá a succeder com o qual occultem a sua fidalguia e
nobreza.
Os limites e demarcaçoens deste Reino de Angola he
muito estendido e dilatado, porque conforme noticias come
çava da Ilha frente ao porto e Cidade de São Paulo de
Loanda em que o testifica ser assim humas arvores que
nella ainda hoje se vem chamadas ensandeiras (3 ) , em que
fallão e apontão os roteiros dos mareantes, como balizas e
sinais por onde dão aos que navegão o conhecimento deste
porto costa e terra, estas taes arvores que são mui duraveis
em sua pranta, e nascem por sy de suas estacas e sementes;
achase por tradição forão mandadas prantar pellos Reys an

(° ) Hoje makanha.
© ) Imitando tambem a Vulcano. Silva de varia lição fala nos prin
cipios do perfido Mafoma.
() Loanda chamão tambem pa lingoa da terra as partes e bacula
mento , que se pagão aos Reys e Senhores da terra,

26
tigos de Angola como sinaes certos dos limites do seu Reino
e sua demarcação, de terra firme, onde hoje está a nossa
Cidade vay correndo pello Sertão dentro, comprehendendo
muitas Provincias desta banda do famoso Rio Coanza que
chamão da Ilamba, começa a provincia que tem o mesmo
appellido da Ilamba, a provincia do lumbo confinante, a
Comarca e destrito da Villa da Vitoria de Masangano, que
he outra grande Provincia pellos fidalgos Sovas que tem,
com muitas dilatadas terras e Vassallos, os do Moseque que
he o que comprehende a fortaleza, presidio, e Capitania de
Cambambe de fidalgos Sovas de grandes terras e Vassallos
os quaes se dividem em dous appellidos do moseque e gango,
a fortaleza presidio e Capitania da Embaca de numerozo
gentio e Sovas fidalgos que comprehende sua Comarca mais
que huma grande provincia, a fortaleza das pedras que he
hum Reino onde se comprehende a provincia do Ari , a da
Umba que he onde chamão a quituxila, entrando Cabaça (1 )
que era a Corte e assento deste poderozo Rey de Angola
hindo por diante as Ilhas de quindonga e outras muitas ter
cas de cantidade de Vassallos até o Reino de Matumba com
quem confina suas terras de que despois a Raynha Ginga
se senhoreou e conquistou, tendo entrado primeiro nelle as

( ) Cabaça era então perto de Cambambe. Dizia - o o P. Balthazar


Barreira em carta ao P. Balthazar Afonso, estando o Barreira em Cam
bambe e o segundo em Loanda. Eis as palavras textuais da carta . « Che
gando os nossos perto de Cambambe tirarão dous tiros os quaes ouvindo
ElRey de Angola na sua cidade de Cabaça sem mais esperar a deixou e
fugio com os seus. >
(Carta do P. Balthazar Afonso, escrita em Loanda em 3-1-1583, no
Boletim da Sociedade de Geografia de 1883, pag. 368 ).
Lopes de Lima diz , na pag. IX, nota (4 ) , que Cabaça era em Pungo
a Ndongo. Errou como se vê. Pungo a Ndongo só foi residencia real
em fins de 1626 , como se mostra na nota sobre a rainha Jinga, no fim
do governo de Fernão de Souza, no capitulo 1.º da 2.* parte.

27
armas e conquista dos Portuguezes como ao diante se dirá
quando chegarmos com esta historia ao Governo de Luis
Mendes de Vasconcellos ; do nascente começava este grande
Reino seus limites do rio chamado a Zenza onde fazia sua
demarcação com o Reino de Congo e comprehendia até o
poente passando o rio Coanza a provincia do libolo que tudo
a este Rey de Angola era tributario reconhecendoo por seu
Rey e Senhor.
Os seus costumes de idolatras seguindo os ritos genti
licos na invocação do diabo rendendolhe adoraçoens e obse
quios , como a seu Deos, adorando idolos de sua invocação,
impetrando seus diabolicos favores para remedio de suas en
firmidades com toda a disformidavel de sua gentilidade de
que era Rey e Senhor, tendo sua Corte como dito he em o
sitio de Cabaça onde era assistido dos grandes do seu Reino,
tendo seus officios honorificos repartido pellos mais princi
paes como era o Cargo de Angola ambole que valia como
Capitão geral de toda a gente de guerra de seu Reino e mais
Capitaens e Officiaes para este minister , e seu tandala que
governava todas suas terras e o politico de seu Reino se
assim se pode chamar com muitos macotas (' ) que erão os
assistentes e Camaristas para o Conselho de paz e guerra

Tambem não parece que Cabassa fosse corrução de cabanza; sendo


assim devia ser cambanza e esta palavra não podia dar cabassa. Lopes
de Lima é que dá a opinião de que cabassa veio de cabanza, ( pag. XV,
nota (2 ) . Mbanza ia Cabassa e Mbanza ia Caculu só existiu na mente
de quem o disse a Luciano Cordeiro para ele o dizer na nota 1 , á pag. 10
do seu folheto «Da Mina ao Cabo Negro », já citado na nota a fl. 10.
Diz que Mbanza ia Caculu era capital antiga e Mbanza ia Cabassa era
a segunda capital, mas isto foi fantasia. Demais, o P. Balthazar Bar
reira, acima citado, devia saber escrever e pronunciar bem a palavra,
pois falava bem o Kimbundu. Haje Kakulu é o primeiro gémeo a nascer;
Kabasa é o segundo.
( ) Dikota, makota , o mais velho .

28
onde se rezolvião em presença do Rey as couzas de razão
de estado, tendo seu moenelumbo (1 ) por quem corria todo o
conserto de sua caza e Corte tendo cuidado de guardar o
mais precioso e couzas de mais estima do que possuhia seu
Rey e Senhor e tudo o que era concerto de casas e muros
corrião por sua conta ; outro que chamavão moenemuceto (2 )
era o que guardava as couzas de vestir do Rey em os seus
mosetos que servem de caixas feitas de cascas de palmeiras
ou de outra materia semelhante, o que fazem com concerto
que parecem vistosos e vinha isto a ser como sua guarda
roupa; muenequizoula era o que tinha conta e cuidado de
dar ordem ao comer com que havia de banquetear todos os
dias a todos os seus criados assistentes, que era couza nume
rosa o comer que havia mister para tantos convidados , que
lhes servia de sustento , o que estava posto em uzo , e esta
sua dignidade he que o repartia ou mandava repartir; tinha
outros muitos cargos que por não infastiar tanto ao Leitor
e curiozo os não relata o Autor desta historia ; todo o nume
roso gentio que este Rey de Angola possuhia os mais delles
erão de nação Ambunda, e tão confiados em serem entendi
dos que quando querião gabar algum branco de bem - enten
dido dizião que sabião tanto como hum Ambundo; (3 ) todos os
seus Vassallos se dividião em dous generos, huns a que cha
mavão filhos de murinda que erão tidos por Vassallos , e os
filhos de quigico por peças que erão os que tinhão apanhado
nas guerras e para o Rey todos erão suas peças e reputados
por esses e até os do seu proprio sangue.
Havia Rey destes que tinha trezentas concubinas, por
que se prezavão os seus fidalgos Sovas poderosos terem fi
lhas por mulheres do Rey para o que mandavão das mais

( ) Muene, senhor de; lumbu , sebe, cercado.


() Muenemusete; musete; é caixa, cofre; hoje não é usado.
p) E êrro . Isto é: sabiam tanto como ebles (ambundo ).

29
geitosas á sua Corte com grande apparato, ellas mui bem
tratadas e vestidas a seu modo em rede a cavallo com ser
ventes para as servirem e em cima com boas dadivas de pe
ças e outras couzas de valor as quaes todas mandava accomo
dar dentro de seus muros em casas separadas cada huma
com o estado de serventes e mais couzas que trazião para
seu serviço da casa de seus Pays, e todas havião de ser don
zellas e se tinha noticia que alguns dos seus Sovas tinhão
alguma filha formosa lhe mandava pedir e elles o tinhão por
honra singular, e lha mandavão logo com toda a pompa
muito bem ataviada com grande acompanhamento e muita
matinada de festejo .
E por não haver confuzão na muita filharada que tinhão
procedia em o Reinado o filho da emvala inene (* ) que era
sua Mulher principal e segundariamente o filho da segunda
mulher chamada Samba enzila ; (2 ) os mais filhos tinhão o
seu lugar como filhos do Rey e os accomodava com libatas
e terras para seu sustento , e as que erão femeas tinhão por
grande honra os seus mayores fidalgos Sovas, a quem elle
as dava por mulheres, e a que entrava dos seus muros para
dentro que tinha nome de sua Mulher ou concubina era pena
de morte para aquelle seu Vassallo que com alguma se em
baraçava e perdia a vida e ella ficava repudiada e a mandava
para Casa de seu Pay cuja filha era , perdendo o dote com
que tinha entrado, e ainda sobre isso pagava o Pay as custas
mandando peças ao Rey para apagar aquella nodoa e estar
em graça do Rey.
Succedeo mandar hum Vassallo destes seus ao ultimo
Rey dos antigos chamado Ngola aquiloangi huma filha ou
dama de sua Casa com hum presente e affeiçoarselhe o Rey
de calidade por ella ser muito fermoza que a pedio ao Sova

(" ) Mvala, concubina; inene, grande.


() Hoje samba -njila.

30
e elle teve por alvitrio pedirlha e poderia ser que por isso a
mandasse levar o presente, foi tanta a affeição e amor que
aquelle Rey lhe teve que a preferio a todas as mais concubi
nas fazendoa sua Mulher principal em a qual houve hum
filho, que lhe succedeu no Reino, chamado Ngola ambandi ,
e tres filhas nomealas-hemos pello nome verdadeiro do bau
tismo, pois todas estas tres Infantas o tomárão, a mais velha
foi seu appellido Dona Anna de Souza e pello da terra
ginga, a do meyo se chamou Dona Gracia, e pello da terra
quifungi, e a mais moça Dona Barbara , e pello nome da terra
mocambo, e porque do Rey e das Infantas suas Irmãs se há
de tratar muito nesta historia principalmente da Donna Anna
chamada ginga , fez o Autor dellas e desta successão esta
menção para intelligencia desta historia com brevidade por
não cauzar enfado o modo e costumes com que aquelles bar
baros e idolatras Reys se tratavão, e os ritos diabolicos que
seguirão estando nelles contumazes e arraigados em haver
quem por bem nem por mal os podesse trazer ao gremio da
Santa Igreja Catholica e a sua Santa fé, antes cada vez mais
obstinados em sua perfidia , até que no fim de tantas guerras
e batalhas vierão a ter algum dezengano em ordem aterem
conhecimento de Deos verdadeiro Senhor dos Ceos e da
terra, deixando muitos delles a adoração de seus idolos e
suas idolatrias. Vamos agora continuando com o nosso pri
meiro Conquistador, que temos dito para intelligencia desta
historia o que parece que basta .

31
CAPITULO TERCEIRO DA PRIMEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS PROCEGUINDO A CON
QUISTA O FAMOZO CONQUISTADOR PAULO
DIAS DE NOVAES.

Sahido o nosso valerozo Portuguez Paulo Dias de


Novaes Caudilho e Governador da gente Lusitana havendo
tido como dito he assim como sahio do primeiro sitio
em allojamento batalhas e recontros com muitos milhares
de gentios (1 ) , foi ganhando a palmos o que hia con
quistando com notavel trabalho com mortos e derrama
mento de muito sangue portuguez ficando sempre vencedor

C ) Em principio de 1580 tinha o Rei de Angola mandado matar


trinta portugueses e grande copia de escravos que eles tinham consigo;
mandou -os matar para lhes roubar as fazendas que eles tinham para o res
gate dos escravos. « Neste tempo se deu guerra ao Governador em uma
aldeia onde estava em um forte em o qual esteve alguns dias cercado
de doze mil pretos e , com os portugueses não serem mais do que sessenta
e alguns duzentos pretos cristãos, desbarataram a todos os gentios os
quais depois de fugidos vieram pedir pazes ao Governador, o qual já
estava determinado a não haver as minas por pazes porque lhe são as
pretos falsarios, assim o rei com todos os mais, e determinou de os
pôr todos á espada indo sobre eles este maio que virá de oitenta . »
(Carta do P.* Frutuoso Ribeiro, de 24-3-1580, no Boletim citado,
pag. 350 ).

Diz Lopes de Lima na pag . XIII , citando o mss. de Doiningos


d'Abreu de Brito, tambem já citado por mim, que o Cardeal D. Henri
que mandou socorrer a conquista por dois capitães com 150 soldados em
dois navios.
Este socorro saiu de Lisboa em 20 de Outubro de 1549 e chegou a
Angola em 23 de Fevereiro de 1580, tendo parado em S, Tomé só qua
tro dias. (Mesma carta aqui citada, pag. 349 ).

32
e a Campanha semeada de muitos idolatras que se lhe oppu
nham com valor peleijando em Campanha raza a peito des
cuberto em seus esquadroens a que elles chamão mozengos (- )
como gentio costumado a guerra com a qual havião domi
nado a muitos da sua côr; os nossos valerozos Portuguezes
alem da hostilidade da guerra lhe era contrario o Clima por
ser o Sertão muito doentio, com o que adoecião muitos e
outros morrião á pura miseria e dezemparo do necessario,
faltos do mesmo sustento pello não haver na campanha por
onde marchavão, mais que o que as suas costas carregavão
por falta de carruagens e não terem, ainda gentio domestico
que os accompanhassem e lhe ajudassem a levar o sustento
e muniçoens, e mais aprestos para a guerra, o que fazião os
invenciveis Portuguezes por suas pessoas e a seus hombros
contrastando tudo até os proprios elementos , e chegando com
a conquista desta parte da Ilamba (2 ) e Coanza a Cuculo
Caamgo, Sova muito poderozo que tinha onze fidalgos So
vas seus Vassallos, Senhores de terras e Vassallos e outros
que o ajudavão em nossa opposição para nos cortarem o
passo a nossos progressos e sua conquista ; nesta paragem
houve batalhas mui assinaladas e milagrozas que só a mão
de Deos e o valor da Nação Portugueza podera contrastar,
até que ao Cabo de muito tempo e continuos recontros se
veyo este poderozo Sova a avassallar e os Sovas da sua juris
dição á Real Coroa de Portugal , o que ainda hoje se con
serva o proprio Sova ou seus descendentes com o proprio
nome, não tão poderozo em gente como naquelles tempos de
sua primeira Conquista ; que huns e outros são Vassallos do
Principe nosso Senhor, desde o tempo de sua Conquista até
o presente .
Tendo o nosso Conquistador conseguido este primeiro

() Vêde as palavras kimbundo.


A Ilamba era a região entre o Lucala e o reino do Congo .

33
dominio, e porque todas estas terras Conquistadas bebem
nas agoas do rio Coanza, e lhe ficava em frente da outra
banda deste caudalozo rio a bellicoza provincia da Quis
sama ( ) quiz o nosso Conquistador provar a mão com elles,
e passando aquella banda o seu poder em algumas embar
caçoens que havia metido pella barra da Coanza rio acima ,
e em Canoas que achou de que se servirão aquelles gentios ;
passado que foi teve com aquelles valorozos quissamas mui
tas batalhas e encontros de guerra derramando algum san
gue Portuguez e muito daquelles gentios, e vendo que aquella
Conquista havia mister mais vagar pello aspero do pais e
pouco sustento, e que o seu principal intento era buscar a
cabeça e Rey daquella ambundainha, ( *) e que vencido e der

a ) A tomada de Quissama e das minas do sal foi em meiados de


1583 .
( Consta do principio da carta do P.• Balthazar Afonso, datada de
3-10_1583, no Boletim citado , pag . 369).
(º ) Em Setembro de 1580 estava o Governador quinze leguas pela
terra dentro, tendo trezentos portugueses consigo e alguns duzentos es
cravos de portugueses, e havendo falta de mantimentos os começaram de
buscar pela ponta da espingarda onde deram alguns quatro ou cinco
assaltos em que faziam grande destruição queimando e assolando toda a
terra , e trazendo infinidade de mantimentos que a todos fartou, Poz isto
tanto espanto aos seus inimigos, que todo o Angola havia medo deles.
Partiram dali no fim de Setembro , posta toda a gente em ordem com
o fato no meio e gente miúda, que por todos seriam mil e duzentas al
mas, passaram por entre os ambundo, que tudo estava cheio, que não
havia homem senão negrura , e só duas espingardas que iam diante lim
param o caminho . Chegados ao rio Quanza embarcaram e seguiram pelo
rio onde havia muitos mantimentos pelos campos, e tudo largavam os
pretos logo que os viam .
Foram ter com um fidalgo por nome Muxima Quitambonge (sic , mas
devia ser, Muxima ua ngombe ), coração de boi. Este foi o primeiro que
foi dar obediênca ao Governador e que queria ser vassalo de Elrei de
Portugal, trazendo muitos mantimentos, capados e bois, pedindo -lhe des
sem ajuda contra um seu inimigo, que ele em pessoa como todos os seus

34
rotado ficava a Conquista mais facil daquelas provincias suas
tributarias. (1 ) deixando feito e fortificado hum sitio da
quella provincia chamado Mochima que este nome lhe deo o
Sova Senhor daquellas terras beira rio Coanza o qual assim
era o seu appellido por estar no meyo o coração daquelle
pais, que Muchima no idioma ambundo quer significar cora
ção e entranhas, deixando esta porta aberta e presidiada com
guarnição de gente Portugueza bastante para sua conserva
ção , e o Sova Senhor daquellas terras a nossa devoção, para
o todo o tempo que a quizesse emprender lhe ser mais facil
a entrada, tudo posto em boa forma se passou desta outra
parte chamada a llamba, por onde havia começado aquella
Conquista.
Passado que foi com o poder de seus valerozos Portu
guezes , deixando o Sova Caculo Caamgo primeiro Conquis
tado com os Sovas seus Vassallos a obediencia daquella for
taleza de Muchima, para como Vassallos da Coroa de Por
tugal terem com a gente della communicação e lhe acudirem
com o sustento necessario , foi proseguindo sua conquista
até outro poderozo Sova chamado Angola Angolomem (a
Cundo ) conhecido de todos os deste Reino pella grandioza
alagoa que tem em suas terras, o qual estava unido como
Sova Onso e o Sova queuza , e outro chamado quiamgonga,
que tinhão suas terras e povoaçoens antes de chegar ao Se

vassalos ajudaria ao Governador contra o mesmo rei de Angola e assim


o fez, que não tiveram outro . Estiveram no porto daquele fidalgo
quinze dias.
(Carta do P.: Balthazar Afonso , de Loanda, a 4-7-1581 , na pag. 351
do Boletim citado ).
“ ) Outros noticiozos daquelle tempo que subio com a dita Conquista
da quisama ate o Sova Catala onde fez outra fortaleza que se desman
chou, e ainda se vem as ruinas della e chamão ainda hoje aquelle sitio
o presidio velho .

35
nhorio do dito Angolomem , mas como Sova mais pode :ozo
se encorporarão com elle despois de terem os nossos com o
Sova Onso grandes refregas de peleja por ter as suas terras
e povoaçoens dentro de seus matos, de onde se resistião com
com mais valor, a conquista destes Sovas custou muito san
sue portuguez pella defensa que estes gentios tinhão nos
matos até que a porfia e valor dos Portuguezes, e continuas
pelejas os fez domaveis avassalandose á Coroa de Portugal
e hoje o sam de Sua Alteza que Deos guarde, não deixando
de ter no intervallo daquelles tempos algumas revoluçoens
e alevantamentos, mas sempre por fim ficarão conhecendo
mal de seu grado a quem a primeira vez tinhão conhecido
por Senhor.
Hindo por diante a Conquista dos famosos Lusitanos
com seu esforçado Capitão o qual teve grande batalha e pe
leja com hum Sova confinante com as terras e Senhorio de
Angola Angolomem a cundo, chamado Angola quiaito fi
dalgo poderozo de muitas terras e Vassallos e alguns lhe
dão o honorifico de Sova Dembo, o qual tinha em sua ajuda
outros do seu lote, os quais fizerão grandiosíssima rezisten
cia aos nossos Portuguezes que como estavão bafejados de
seu Rey que havia muito que sabia como a Nação Portu
gueza se hia asenhoriando de seu Reino, e que o que os
Capitaniava era aquelle que de sua tirannia havia milagro
samente escapado, e conhecia mui bem o esforço que nelle
havia pois o tinha visto e experimentado quando o defende
rão de todos seus inimigos, por essa cauza mandava aos seus
Vassallos que fizessem muito pello rezistir e desbaratar por
que não conseguissem o que intentavão.
Vendo Paulo Dias de Novaes a notavel rezistencia que
aquella maquina de gentios lhe fazião por mais que nelles
matavão, mas como era tanta a multidão e o mandato ex
presso de seu Rey tendo muita da sua gente morta e ferida
e com animo cançado de tão continuas pelejas , faltas de todo

36
c necessario assim de sustento como de que se vestirem ,
e divinizando da banda onde estava com sua conquista , que
era da banda do caudolozo Rio chamado Lucala, o qual vi
nha ali offerecer suas agoas a aquelle potente Rio Coanza ,
e que onde se metia este Rio no outro fazia modo de Ilha de
Rochedos, sitio forte e eminente, se resolveo a passar a elle
como com effeito o fez e achando - o forte por natureza só
com huma entrada para a banda do Sertão e tudo o mais
cercado de hum e outro Rio, o qual sitio se chamava Ma
sangano, terras e senhorio de hum Sova fidalgo por pome
Angola quilongola ficandolhe de pé hum braço que ali di
vide a Coanza , a que chamão Samba Coamza , que quer
dizer que vay sendo ou quer ser outro Coanza , ficando huma
Ilha em meyo que divide a may do Rio , e o seu braço , e a
chamão no tempo de hoje a Ilha de Fernando, não de No
ronha, se não Rodrigues.
Em este sitio (" ) por forte e capaz se tratou de fortifi
car, e fazer ali praça de Armas e allojamento , e dar hum
pouco de descanço a sua gente; porque para chegarem com
a Conquista a Massangano onde agora se achava, que se
fazião quarenta legoas do Porto de Loanda onde havia sahido

(") Antes de Paulo D. de Novaes ir fortificar Massangano tinha


estado alojado dois anos em Mocumba. Não sei onde fosse este local;
seria o sitio de Macunde, de que fala Lopes de Lima na pág. XIV,
nota ( 1 ) ? É provável, e que haja êrro na cópia.
Em fins de 1582 saiu de Mocumba e à fôrça d'armas chegou a
Cambande, onde estavam as (decantadas) minas ( de pratas) riquezas
de Angola e escolheu um sítio que pareceu acomodado e nêle come
çaram a fazer suas moradas. (Carta de P. Balthazar Afonso , datada
de 3-1-1583 e do P. Balthazar Barreira de 20-11 do mesmo ano, no
Boletim citado, págs . 368 e 370 ).
Parece impossível que pessoas ilustradas, como eram os Jesuitas,
afirmassem o que afirmaram das minas de prata .
Dizia o P. Diogo da Costa na sua carta de 4-6-1585: — «As mi

37
se gastarão annos como assim o contarão os antigos Con
quistadores, e aos palmos com muy derramamento de san
gue , trabalhos e fomes forão ganhando o ate ali conquis
tado, que só o valor Portuguez e sua constancia podéra sup
portar tantas miserias e trabalhos por exaltarem a Santa
fé Catholica e serviço de seu Princepe. Em quanto se for
tifica o nosso Conquistador em o allojamento de Massan
gano faremos declarações dos fidalgos Sovas que himos fal
lando e Conquistando para mais intelligencia do curioso
Leytor.
Os Sovas e fidalgos de que se trata são Senhores de
terras , e Vassallos, como Condes, e Marquezes, mas tem
huma potestade superior que he, que em suas terras são
Senhores do baraço e cutello, sem dependencia de seu Rey,
sós determinão os casos acontecidos entre seus Vassalos
com os macotas (1 ) mais antigos ou officiaes da sua Casa e
banza (? ) que tem os mesmos que a pessoa do Rey, como são
Angola Ambole , tamdala , muene lumbo , muene mosete , mue
ne quinzocole, e outros oficiaes como se tem já declarado
quando se fallou no Rey, o que estes cargos erão e como o que
entendião; seguem os costumes e ritos gentilicos na adoração

nas de prata são umas serras mui compridas; eu as vi mas foi um


pouco de longe. Se tudo é prata como dizem creio que se não acaba
rão daqui a trezentos anos» . (Pág . 376 ) .
Que entre as pedras que tinham tirado das minas iam fios de prata
muitos e grossos, mais do que alfinetes dos grandes muito grassos.
( Carta do mesmo Padre, de 20-7-1585, pág. 378 ) . Que eram serras
altas e mui compridas de penedia com veias de prata com vergas
tão grossas de prata que era só marbelá -las e juntarem -nas umas às
outras para fazerem malungas (argalas) e levaram -nas ao Rei. (Carta
do mesmo Padre, de 31-5-1586, pág. 383) .
(" ) Macotas he gente principal de suas terras.
(*) Banza be a povoação e Casa dos mesmos Sovas e, libatas são
as casas e povoações dos seus principais Vassalos.

38
de seus idolos fazendolhe offrendas e sacrificios, impetrando
delles saude para seus males e enxaquetamentos, (" ) e lhes
falla como Oraculo o que hão de fazer em seus males e
doenças e os paos e ervas de que hão de uzar, e o mesmo
lhe dizem os gangas que são os seus adevinhos, que tem
mais familiaridade com o Pay das maldades, assim os en
gana levandoos a sua perdição; tem tambem muitas con
cubinas por Mulheres filhas de outros Sovas e fidalgos como
elles, e os que precedem nos Morgados e Sovados são filhos
da Mulher principal chamada envala inene, e segundaria
mente da samba imgila , como se tem dito de seu Rey, o
mesmo imitão elles, tendo o mesmo governo em suas terras,
e no mais o obedecem como seus Vassallos .
Tendo o Governador e Capitão Geral Paulo Dias de No
vaes feito a fortificação e reparo para se defender de tão
numeroso gentio, o que fez com muito trabalho e fadiga
sendo os valorosos Portuguezes os que tinhão assistido por
suas mãos a fazer as taipas de pilão sendo elles taipeiros
e os que trabalhavão em tudo o mais necessario, fazendo
Igreja e Casa a Deos e a Sua Santissima May Advogada
Nossa com a invocação da Senhora do Rozairo estando
junto com as armas nas mãos defendendose, de tanto gen
tio de que estavão cercados , não levando em paciencia o
serem dominados por gente Catholica Lusitana, e se atre
vião a tanto que das mesmas sentinellas ou goaritas os
levavão prizioneiros vingando suas rayvosas entranhas em
os que lhe cahião nas mãos, frexando continuadamente com
suas agudas frexas aos nossos, não sendo Senhores de
sahir fora das trincheiras a buscar lenha ao mato, e a ou
tros ministerios que não fossem logo aprizionados, mortos e
feitos em pedaços, o que já não fazião os nossos Portuguezes

© Xaquetar he quando chamão e invocão o diabo para lhe dar


remedio em seus males ou lhe dar distinção a suas consultas.

39
se não com muita prevenção e boa escolta, hindo gente que
os pudesse resistir, que ainda que lhe matavão muitos sem
pre persistião contra nós em sua defensa.
Chegarão neste sitio de Massangano a grande extremo
de fome que não tinhão que comer e vendo a grande ne
cessidade em que estavão se afoutarão em passar o braço que
dito he da Samba Coamza e hirem aquella Ilha que está
em frente ver se achavão alguma couza de verdura com que
fossem alimentando a vida ; permittio a Providencia Divina
de Deos, que com ella sustenta a mais minima formiga , como
nolo ensina o Douto Varão Frey Luiz de Granada (' ) no
simbolo da fé, depararlhes em tanto extremo de fome e mi
seria algumas abobaras das que chamão meninas , e virem
dellas carregados , e com a Canoa em que havião passado
bem provida que parece que alguns dos gentios que naquella
Ilha cultivavão tinhão ali deixado aquella semente que mi
lagrozamente produzio para desta sorte acudir aquelles fa
mintos Portuguezes vindo estes exploradores que, se não
trouxerão o razimo (2 ) de uvas, trouxerão mui doces abobaras,
o que vendo os que tinhão ficado no alojamento pergunta
rão se ficavão mais e elles que tinhão vindo certificarão
trazião todas as que na Ilha havia ; com todo este dizer
confiados na graça Divina, que por aquelle estilo os queria
soccorrer, forão e trouxerão dizendo tambem o mesmo que
tinhão dito os primeiros , que sem duvida a omnipotencia de
Deos as produzia de noute para as elles colherem de dia ,
e assim forão continuando muitos dias sustentando sua
fome milagrosamente de que davão muitas graças Deos
e a sua Mãy Santissima por tão assinaladas mercês, e vendo
o valeroso Paulo Dias de Novaes os seus animosos e afli
gidos Portuguezes trabalhados com tantas miserias lhe di

( Frey Luiz de Granada no Symbolo da fé que compôz.


© Cacho.

40
ria o que Canta o Princepe dos Poetas Luiz de Camoens
em o setimo dos Lusiadas na terceira Rima .

Vós Portuguezes poucos quanto fortes,


que o fraco poder vosso não pezais,
vós que a custa de vossas varias mortes :
Assi do Ceo deitadas são as sortes ,
que vós por muito poucos que sejais,
muito façais na Santa Christandade
que tanto, ó Christo exaltas a humildade. (1 )

Estando o nosso esforçado Conquistador opprimido de


tanta immencidade de gentio que de numeroso não tinha
conto impetrando a graça Divina se deliberou a sahir em
campo com a possibilidade que tinha de gente que mais
parecia temeridade do que esforço, mas confiado na pro
tecção da May de Deos Raynha dos Anjos sahio do seu
alojamento de Masangano deixando a guarnição necessaria
a defensa das trincheiras representou em campanha raza
batalha aquelle immenso gentio os quaes a não refuzarão ,
antes era o que mais dezejavão; nesta occazião fizerão os
Portuguezes feitos assinalados com seu Caudilho que com
seu valor a todos se avantajava mostrando sua disposição
e esforço o que nelle era bem conhecido e claramente , no
conflito de tão assinalada batalha ajudava Deos aos Por
tuguezes com seu poderoso braço que mal se podera con
seguir a vitoria que nesta occazião houve se isso não fora ,
pois se vio muitos daquelles gentios atravessados de suas
proprias frexas e azagaias e a Campanha toda cuberta de
milhares delles. Quiz Nosso Senhor mostrar o seu divino
poder contra estes barbaros idolatras inimigos do seu santo

© Os Lusiadas de Luis de Camoens canto setimo outava terceira.

41
nome, assim como o havia mostrado quando aquelle des
cendente dos Godos Dom Pelayo como o relata a Cro
nica (1 ) de Espanha teve daquellas Covas de que havia
sahido das Montanhas de Oviedo aquella primeira batalha
contra tanta immensidade de gente agora inimigos da fé de
Nosso Senhor Jesus Christo mostrando seu divino poder
em favor da gente Catholica achandose muitos passados das
suas proprias Armas; assim foi servido mostralo com os
Portuguezes em este tamanho e arriscado conflito sendo o
nosso poder tão dezigual que havia para cada portuguez
não hum cento se não mil que tanto era o immenso gentio
que nesta occazião se ajuntou cuidando de nos acaba
rem e cortar o passo ás nossas emprezas; e appellidando e
impetrando em tanto aperto a Senhora da Vitoria mãy de
Deos Raynha dos Anjos com o que logo se vio o seu An
gelico favor começando aquella abundainha a ir desfeita e
desbaratada, e os nossos Portuguezes em seu alcance ma
tando a muitos, e cantando tão singular vitoria attribuindo
os nossos tudo a favor do Ceo que as suas limitadas forças
não bastavão, não deixando os Portuguezes de experimen
tar alguma gente morta e muito sangue derramado na Cam
panha (2 ) de suas frexas e azagayas e para que ficasse me

☺ Crónicas de Espanha Marian e Garivas.


Ⓡ) O P. Balthazar Barreira conta esta guerra, cujos motivos foi
Paulo D. Novaes estabelecer -se em Cambambe, como foi dito na nota
à fl . 31. — «Sabido por El Rey de Angola que reside quatro jornadas
de alli ajuntou um exército em que averia perto de um conto e duzentos
mil homens. (A carta tem assim ; mas um milhão e duzentos mil parece
gente de mais !)
A fama dêste poder tão grande meteu tanto pavor aos fidalgos
que estavão na nossa parte que não houve quem quizesse acudir aonde
estava o Governador persuadidos que elle e os seus ficarião d'aquella
vez de todo extinguidos.» Tinha sido baptizado um ano antes um soba
o qual foi fiel ao governador e não o abandonou , antes foi devido

42
moria de tão grande e assinalada Vitoria tomarão dali por
diante por patrona de suas empresas a Senhora da Vitoria
dando esse nome á Igreja que lhe fabricarão dentro do
alojamento de Masangano.
Hindo proseguindo a Conquista deste Reino de Angola ,
ficando aquelles inimigos não tão afoutos em razão da
grande perda que havião tido de muito e innumeravel gen
tio, se esforçou o nosso Conquistador a ir por diante com
seu intento e empresa começada marchando com seu exer
cito do alojamento de Masangano andando huma jornada
até o rio Mucozo, terras do Sova quilonga quiabungo, bem
conhecido huma e outra couza do nosso Conquistador, pois
ali tinha escapado e estado escondido por mandado daquella
Infanta Filha do Rey de Angola , onde livrou com vida e
seus companheiros a sua compaixão amoroza , sahindo da
quelle sitio em a Canoa como dito he em o primeiro Capi
tulo desta historia e sua primeira parte ; e como era já fal
lecido o Sova a quem devia aquelle affecto e hospedagem
e juntamente a filha do Rey, que sempre uzar (" ) com hum e
outro de benevolencia em agradecimento do beneficio rece
bido; este que de presente possuhia aquelle Senhorio se
incorporou com outros fidalgos Sovas chamados os do mo
seque muitos e de grandes terras et Vassalos com os quaes
teve o nosso exercito muitas batalhas e encontros , e custou
muito sua conquista por terem suas terras e Senhorios de

a aviso e conselho dele que Paulo de Novaes venceu só com menos


de cento e cicoenta portuguezes aquele soberbo exército em um sabado
dia da Purificação de Nossa Senhora (2 de Fevereiro ) de 1583, tendo
Só a perda de sete portugueses e de dois cavalos que tinha .
Desta victoria em 2 de Fevereiro tomou Massangano o nome de
Vila da Victoria .
(Carta do P. Balthazar Barreiros, de 20-11-1583, a pág . 370 do ci
tado Boletim ).
© Parece que é— tendo o conquistador usado sempre.

43
muitos matos cubertos e grandes barrocas e não podião
obrar o nosso general com sua gente ao seu dezejo e se en
tende fez ali povoação e dizião os Antigos Conquistadores
fora tanta a matança (" ) em aquelle basto gentio que man
dára o nosso Conquistador a Portugal dous Barris de seis
Almuzes de narizes e orelhas do gentio que se havia morto
naquellas batalhas e recontros em os Sovas e fidalgos da
quelle moseque e gango onde há huma paragem ou sitio
sobre a Coanza que chamão o presidio velho que está des
baratado perto do presidio, e fortalesa que hoje temos de
Cambambe que ao diante se dirá quem a fundou , e o sitio
onde havia (2 ) estado primeiro se chamava Cambure.
Tambem dizião de que na escritura que neste mo
seque (3 ) ou mais pella terra dentro fizera o nosso Conquis
tador huma povoação ou Cidade de que não há do sitio,,
ou onde fosse, que como só Portuguezes fossem em suas con

Esta matança se chamou entre o gentio o casaxi que quer dizer


degolação de gente, e assim para affirmar este gentio alguma cousa
com juramento dizião mo casaxi.
© ) Diz Lopes de Lima que D. Filipe I mandou um socorro ao Novaes
em 1584.
Realmente assim se vê confirmado nas cartas dos P."* Diogo da
Costa e Balthazar Afonso , de 19-7-1584, 19-1-1585 e 4-6 1585 .
A Armada saiu de Belem a 25-1-1584; pararam em S. Thomé com
quasi quatro meses e meio ; iam pouco mais de duzentos soldados. Era
capitão João Castanho Vellez.
Este socorro deve ter chegado a Loanda em Setembro. (Pag . 374 e
375 do Boletim citado ).
João Castanho Vellez morreu , em uma traição feita pelos pretos
perto de Cambambe, com toda a sua gente, em 24-12-1585. (Pag. 385
do Boletim ).
© Sucedeu haver nêste sitio esta mortandade tamanha a respeito
que havia em hum sitio a que chamão Calomba huma arvore do Sova
Quilumbo onde lhe fallava o diabo e sobre ganharmo -lo morreo muito
gentio sobre elle .

44
quistas e empresas mais amigos de obrar que de ecrever
seus feitos, e proezas, muitas couzas ficarão no Livro do
esquecimento, como até agora tem ficado, o que obrão na
Conquista destes Reinos que foi a principal causa do Autor
desta historia tomar esta empresa e canceira , a sua conta
porque totalmente não ficasse tudo no esquecimento ; deste
descuido se queixão os nossos historiadores , principalmente
Manuel de Faria e Souza , sendo elle o que mais esquadri
nhou e fallou ao certo sobre a nossa Lusitayna e principios
do nosso Reino de Portugal e seus Serenissimos Reis
ainda que não fosse em tudo em parte do que lhe veyo a
noticia. Havendo chegado o nosso primeiro Conquistador
Paulo Dias de Novaes a paragem do moseque e seus So
vas como dito hé tendo avassallados muitos daquelles So
vas e fidalgos a Real Coroa de Portugal, fatigado de tra
balhos, e do muito que havia obrado nesta Conquista do
Reino de Angola pagou o tributo á parca , a que está
condenado todo o vivente ; venturoso daquelle que vive bem
e acaba melhor, ( 1 ) o que não podia faltar ao nosso primeiro
Conquistador, pois sacrificou sua vida pello serviço do seu
Rey , e exaltação da Santa fé Catholica .

) Morreu em Massangano em 9-5-1589. ( Sinopsis Aunalium


Societatis Jesu in Lusitania ab anno 1540 ad annum 1725 , pág . 151 ) .
Tambem diz que ele deixou testamento no qual nomeava Luiz Serrão
seu sucessor.

45
CAPITULO QUARTO DA PRIMEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS PROSEGUINDO A CON
QUISTA DO REINO DE ANGOLA LUIZ SERÃO
POR FALLECIMENTO DE PAULO DIAS DE
NOVAES.

Em hum Livro (" ) antigo que se conserva na Villa


da Victoria de Masangano em o Senado da Camara consta
que procedeo por fallecimento de Paulo Dias de Novaes,
Luiz Serão por Governador e Capitão mor no Reino
novo de Sebaste . Conquista da Ethiopia na era de 1591 ,
que hé o que consta do dito Livro ; de algumas assina
turas suas que no dito livro se achão , que foi de notas
onde continua o Escrivão com esta era , mas sem duvida
tanto que falleceo Paulo Dias de Novaes, tomou posse
do Governo por ser seu Capitão mor da gente de guerra ,
e elle o haver deixado nomeado por verba de seu tes

© Domingos d'Abreu de Brito, no seu mass. já citado, diz que


Paulo Dias de Novaes tinha destinado no ano de 1589 uma grande
expedição ao Dongo para ir queimar a cidade de Cabassa onde residia
o rei de Angola e have -lo ás mãos. Neste ano morreu Paulo D. de
Novaes e sucedeu -lhe no governo Luis Serrão, capitão mór, o qual foi
nomeado em testamento , por Novaes. (Conclue -se isto do dito mass.
na fl. 22 , v . ) .
Cadornega não teve conhecimento de uma derrota que os portu
gueses sofreram em 28 de Dezembro de 1590, a qual é relatada por
Domingos de A. de Brito no seu mss ., a fl . 33, e transcrita em Lopes
de Lima, na pag . XVI . Este diz na pag . XVIII, que Luis Serrão so
breviveu pouco mais de um mês a tamanho infortunio , mas não cita
a fonte. Sendo isto verdade podemos dizer que Luis Serrão morreu
em fim de Janeiro ou principios de Fevereiro de 1591 .

46
tamento (1 ) em este Governo , o qual tendo tomado posse
do Governo foi com o melhor modo que poude conser
vando a que se havia Conquistado do Reino de Angola ,
castigando alguns Sovas alevantados dos Sovas fidalgos
Conquistados, que como tinhão a cabeça em ser que era
o Rey de Angola seu Senhor sempre estavão forjando
traycoens e levantamentos, a que o Governador atendia a
seu castigo por seus Cabos, e estando de assistencia em o
alojamento de Masangano, Praça de Armas daquella Con
quista, vendo que era muito necessario acudir ao governo
politico daquelle novo Reino, e ter nelle quem o ajudasse ,
formou em Masangano em nome de Sua Magestade Senado
da Camara com Juizes e Vereadores , Escrivão e Procura
dor, como consta de suas eleiçoens no Livro antigo que na
quella Villa de Masangano se conserva como dito hé, já
desbaratado com o tempo e pouco cuidado que ha nas cou
sas que mais importão, intitulando a Masangano Villa de
nossa Senhora da Vitoria de Masangano, hindo pondo em
ordem o como se havião de haver com os Sovas conquis
tados, fazendo com o Senado da Camara para isso Regi
mento que consta do mesmo Livro, onde foi registrado; e
como muitos dos Conquistadores lhe havião dado alguns
destes Sovas que tinhão ajudado a Conquistar e dominar para
os servirem assim na fabrica de suas casas e lavouras para
ajuda do sustento de seus Patronos ajudando e acompa
nhando em as occasioes de guerra ; para isto e outras muitas
cousas dogoverno politico era necessario muito cuidado como
Reino que de novo se hia estabelecendo, e pondo em ordem
e bom governo as cousas delles .

( " ) Paulo D. de Novaes deixou testamento em que nomeava Luis


Serrão seu sucessor. O Serrão foi declarado governador pelo Jesuita
P. Balthazar Barreira.
Sinopsis, citada aqui na nota á pag . 45, pág. 151 , n.° 14.

47
Com este cuidado estava este bom Governador com o
Senado da Camara, provendo officiaes Reaes para terem
cuidado do que tocava a Real Fazenda, formando os mais
Tribunaes para administração da Justiça de Officiaes Su
periores e inferiores, dando ao Capitão Mor da guerra
e Tandala do Reino documentos de como se havião de
governar com brandura e Christandade com os novos
Conquistadores: e porque não há bem que dure, e como
este Clima he tão contrario ao nosso natural, e como o Ca
pitão mor e Governador Luis Serão havia trabalhado
annos em Conquista deste Reino em Companhia do primeiro
Conquistador, servindo de Capitão Mor de guerra adoeceo
da doença da terra que são mui violentas e apressadas com
que deo em breves dias a alma a seu Criador : Sentio - se
muito sua morte , por ser o primeiro que havia posto
as cousas do Governo assim de guerra como politico em boa
forma .
Succedeo em o Governo ao Governador e Capitão Mor
Luis Serão, André Ferreira Pereira (1 ) por Governador e
Capitão mor deste Reino de Sebaste Conquista de Ethiopia
na era de 1592 , e foi seguindo as pisadas de seu Antecessor
na direcção da guerra e governo politico conservando o
possuhido, e fazendo guerra conforme o poder que naquelle
tempo tinha aos Sovas rebeldes e a outros que ainda não
erão conquistados, de quem recebião os Portuguezes moles
tias, e os Sovas tambem os tinhão que erão Vassallos da

© Alguns destes Sovas fidalgos se repartirão pellos Conquista


dores, os quais por cousas que devia de haver lhe forão tirados e in
corporados nas Lotaçoens das fortalezas para o Real serviço de sua
Alteza . (Nota marginal do Autor ).
☺ ) Veja - se o final da nota 1, pag . 46.
“ ) André Ferreira Pereira começou o seu governo em principios de
Fevereiro de 1591. Veja-se o final da nota 1 , pag . 46 .

48
nossa Coroa, e nos accompanhavão a opposição dos inimi
gos do qual não há noticias fizesse nova conquista mais
que conservar o Conquistado, e acudir as invazoens de
tanto gentio estimulados de seu Rey que fazia quanto podia
por se nos podia acabar, e que não fosse a nossa Conquista
por diante : neste tempo succedeo conforme algumas no
ticias morrer o Rey velho Angola Aquiloangi, e succeder-lhe
no Reinado seu filho Ngola Ambandi (1 ) com suas trez Ir
mãas de Pay e May, como dito he no Capitulo segundo
desta primeira parte, o qual novamente Rey, foi tambem
seguindo os passos de seu Pay em odio da Nação Portu
gueza e em não querer admittir a fé de Nosso Senhor Je
sus Christo, se não estar contumaz em suas Idolatrias e
feitiçarias ambundas, dando a adoração á criatura não
crendo no Criador dos Ceos e da terra ; e porque não temos
que dizer mais deste Governo pellas poucas noticias que há ,
dizemos do que lhe Succedeo.
O qual foi João Furtado de Mendonça (2 ) na era de
1594 vindo despachado do Reino de Portugal por Gover

☺ ) Mmbandi a Ngola Quiluanji ou, melhor Jinga Mbandi a Ngola


Quiluanji, que reinava em 1575 , quando Paulo Dias de Novaes chegou
pela segunda vez a Angola, não morreu tão cêdo, como o autor diz.
Reinou muitos anos, não se podendo precisar a data da sua morte .
Fosse quando fôsse, isto não interessa nada à história de Angola. O
que é certo lé que seu filho, Ngola Mbandi, irmão da que foi depois a
célebre rainha Jinga, já reinava quando em 27 de Agosto de 1617 o
governador Luis Mendes de Vasconcelos chegou a Luanda. Este go
vernador fez -lhe guerra injusta .
Os catálogos dão a morte de Mbandi a Ngola em 1617; deve
colocar -se nos principios deste ano.
( ) João Furtado de Mendonça teve carta patente em 18-10-1593,
(e não em 11-10, como diz Lopes de Lima na pág. XX ).
(Chancelaria de D. Filipe I, Livro 32, fl. 51 ) .
A sua patente era enquanto o Rei o houvesse por bem e não
mandasse o contrário .

49
nador e Capitão Geral dos Reinos de Sebaste Conquista
de Ethiopia, o qual vindo com gente de Soccorro ao porto
de São Paulo da Loanda, tratou logo de subir a conquista
com seu Capitão mor da gente de guerra e campo João de
Veloria Espanhol de Nação Cavalleiro fidalgo da Caza de
Sua Magestade e Cavalleiro professo da Ordem de Christo ,
o qual havia sido dos primeiros Conquistadores, e hindo
ao Reino vinha agora despachado com ditos despachos, como
pessoa de grandes merecimentos; ambos subirão pello fa
mozo rio Coanza a conquista hindo o dito Governador com
a gente de soccorro pelejando com inimigos de huma e ou

Deve ter chegado a Luanda em Agosto de 1594. Não há docu


mento algum que confirme esta data.
Mas o autor erra na sucessão dos governadores. A André Ferreira
Pereira é certo que sucedeu D. Francisco de Almeida e a éste sucedeu
seu irmão D. Jerónimo de Almeida; depois deste é que foi João Fur
tado de Mendonça .
D. Francisco de Almeida teve carta patente em 9-1-1592 . (Chan
celaria de D. Filipe I, Livro 23, fl . 138, v. ) . A sua patente era en
quanto o Rei o houvesse por bem e não mandasse o contrário. Ainda
estava em Lisboa em 12-2-1592. Constam do alvará para o tesoureiro
da Igreja do Reino de Angola na data supra; Chancelaria de Christo ,
Livro 8, fl. 43, v.
Deve ter chegado a Luanda nos meados de 1592 , mas não há
dacumento algum que confirma esta data.
Saiu de Luanda em 1593 e sucedeu - lhe D. Jerónimo de Almeida.
(Sinopsis citada atrás na pag. 45. pag. 160, n .° 11 ) . Mas a sua saida foi
antes de 22-4-1593, pois neste dia já governava D. Jerónimo.
D. Jeronimo de Almeida. Não teve patente, pois foi eleito pelo povo .
Que governava já em 22-4-1593 prova - se pela posse que neste dia
mandou dar aos Jesuitas dos terrenos que Paulo de Novaes Ihes tinha
dado para o seu colegio. Consta isto de uma Relação dos rendimentos
que os Jesuitas tinham em Angola, a qual é datada de 29-7-1460 e está
junta ao oficio do governador Antonio de Vasconcelos datado de Luanda
em 27-8-1760 . Como já se disse, a Sinopsis dá - o governador em 1593,
(na pag . 160, n.º 11 ) .

50
tra parte, assim da nossa de llamba como da Quisama , que
tudo estava de novo alevantado contra a gente Portugueza,
pella pouca possibilidade que havia de gente para campear
e proseguir a conquista .
Chegado que foi a Villa da Vitoria de Masangano or
denou ao seu Capitão mor da gente de guerra desse ordem
a fazer hum forte e fortificação em forma para segurança
daquella Praça de Armas da Conquista, para que vissem
aquelles inimigos a conta que se fazia daquella conquista
para o que levou todo o necessario, e alguma artelharia
para a guarnecer, e vendo o Governador e Capitão geral

João Furtado de Mendonça, que sucedeu a D. Jeronimo, parece que


chegou a Luanda em Agosto de 1594, como já fica dito.
Sucedeu - lhe:
João Rodrigues Coutinho, que teve carta patente em 30-1-1601, por
nove anos. Chegou a Luanda em fim de 1601 ou principio de 1602.
Morreu em principio de 1603, nas terras do soba Cafuxi. (A patente
está na Chancelaria de D. Felipe II, Livro 7, fl. 174) .
Esta não lhe dá poderes maiores que os que os seus antecessores ti
veram , como diz Lopes de Lima na pag. 21 .

Como o autor erra, na ordem dos governadores, vai aqui rectificada


até 1617, para não se estar sempre a repetir :
1.º Paulo Dias de Novais. 1545 a 9-5-1589 .
2.° Luiz Serrão. Ainda vivia em fim de 1590.
3.º André Ferreira Pereira . 1591 a meados de 1592 .
4.° D. Francisco de Almeida. Meados de 1592 a Abril de 1593 .
5.° D. Jerónimo de Almeida. Até meados de 1594.
6.° João Furtado de Mendonça. Até fim de 1601.
7.° João Roiz Coutinho. Até principio de 1603.
8.° Manuel Cerveira Pereira. Até 1607.
9.° D. Manuel Pereira Forjaz. Até 15-4-1611.
10.º Bento Banha Cardoso . Até 1615.
11.° Manuel Cerveira Pereira Até 1-4-1617.
12.º Antonio Gonçalves Pita . Até 26-8-1617 .

51
5
a fortificação feita , bastante para ter o encontro ao ini
migo se a viesse a cometter, ordenou ao seu Capitão Mor
fosse a fazer guerra a Provincia da Ilamba, onde havia
muitos Sovas poderosos de muito grande Senhorio terras
Vassallos, o qual o fez com muito cuidado e valor, dando
batalhas aquella immensidade de gentio, sahindo de tudo
vitorioso com o muito calor que o Governador lhe dava da
quella Villa e Praça de Armas, soccorrendo - o de todo o
necessario, mas nada se faz sem trabalho e perda de gente,
que a guerra não se alimenta de outra couza , mas sempre
conhecerão os Portuguezes nestas occazioens e pelejas
obrava mais o poder divino do que as suas fracas forças ,
pella tamanha multidão de tão bastos inimigos.
Tendose guerreado naquella Provincia da llamba com o
valor e esforço que dito he, avassalandose alguns Sovas da
quella provincia a Real Coroa de Portugal, se amutinou algu
ma Infantaria por mal contentes e revoltozos , e se forão com
suas armas para a provincia que hoje chamão de Libolo da
outra banda do rio Coamza, os quaes se forão incorporar com
huns poderozos que andavão naquella Provincia fazendo
guerra aos Sovas, daquella banda, que tinhão a voz de nos
sos Vassallos, os quaes se chamavão os Gingas pello que
mandou o Governador ao seu Capitão mor João de Veloria
passasse aquella provincia em soccorro dos nossos Sovas , e
seguimento dos nossos Soldados alevantados, os quaes não
erão tão poucos que não fossem alguns trinta homens, o que
o dito Capitão mór fez com muito cuidado passando o Rio
Coamza com sua gente de guerra aquella provincia e dando
batalha aos Gingas os desbaratou junto com os Soldados
alevantados, os quaes huns e outros se recolherão á fortifica
ção que tinhão para sua defença , onde o valor do Capitão
mor e de sua gente lhe avançou as fortificaçoens e escaladas
e entradas as mandou por terra , e foi muitos dias de marcha
e seguimento dos Gingas e Soldados os quaes vierão a ren

52
derse ao valor da nossa gente , com que trouxerão prisionei
ros alguns vinte homens que os mais tinhão perecido á incle
mencia do tempo daquelle pais e das nossas armas .
Tendo sahido desta occazião gloriosamente como do seu
Valor se esperava por ficarem os nossos Sovas soccorridos,
os Gingas desbaratados com muitas mortes dos seus, sugei
tos os Soldados amutinados, ficando tudo á medida do de
zejo. E porque na provincia da Quisama estavão alguns So
vas poderozos em contendas e guerras huns com os outros
lhe mandou o Governador os fosse compor, o que fez com
presteza e brevidade , servindo de medianeiro entre elles, e
deixando aquelles Sovas em boa paz, se recolheo a seu Go
verno e alojamento de Masangano, ficando nossas armas com
muita reputação , porque não tão somente acudiamos a nos
sas couzas se não ainda as alheas.
Intentou o nosso Governador e Capitão geral ver se com
o Rey que tinha succedido no Reino de Angola Ngola Am
bandi se o podia trazer ao gremio da Santa Madre Igreja,
escrevendolhe e exortando - o com palavras imperiosas em
parte, porque este gentio não se doma a nada por afagos nem
boas razoens se não com o temor e respeito , o que visto pela
Irmãa mais velha das trez chamada Ginga que era de grande
coração , e dezejava ter parte naquelle Reino e Governo de
seu Irmão, e assim lhe disse comunicandolhe o Irmão Rey
a carta que havia tido do nosso Governador que aquella carta
se não escrevia a hum Rey como elle éra, que se ella com
ser Mulher governara as couzas que ella dera a entender ao
Governador com quem o havia , que se elle não tinha acçoens
de Rey nem de homem , que tomasse huma roca e fiasse , e a
este respeito lhe disse outras palavras injuriosas de que o
Irmão Rey tomou tal paixão em cuidar na soberba demaziada
e atrevimento de huma Mulher ainda que sua Irmãa , com
que veyo a adoecer, e vendose perto da morte , tendo hum
filho que lhe havia succeder no Reino, o não quiz fiar da

53
Irmãa , porque conhecia seu mimo danado, e que dezejava
governar, por cuja cauza encommendou a tutella do Principe
seu filho a hum Senhor de grande quilombo Jaga de Nação,
e poderozo de Vassallos por nome Caza , deixandolhe en
commendado e em seu poder, não o fiando das Irmãas para
que o tivesse em seu poder até ser de idade para entrar a
reinar .
Fallecido o Rey de Angola Ambandi (4 ) logo se oppoz a
Irmãa mais velha que tinha e tomou o nome de Ginga, imi
tando (? ) no nome aquelles poderozos de que fallamos que
tinhão aquelle nome , ao governo do Reino de Angola que
era o que tanto dezejava a qual logo seguio a sua voz o
Reino todo, obedecendo - a por Senhora, e vendo que o filho
do Irmão lhe podia servir de impedimento ao perpetuarse no
Reino de Angola que era todo o seu dezejo, austuciozamente
se amigou , ou abarregou com o Jaga Caza tutor do Principe
seu Sobrinho e estando de dentro com elle houve o pobre
innocente Principe a mão e o mandou afogar em o rio Coam
za , como huma couza e outra contarão seus mesmos paren
tes, ficando com esta maldade e tirania livre de cuidado, que
o Sobrinho filho de seu irmão legitimo herdeiro daquelle
Reino lhe podia vir a dar, e porque desta nova Raynha , se
bem cruel a seu Sangue, se ha nesta historia tratar della em
muitas partes , pella continuada guerra que nos fez no dis
curso de tanto tempo que reinou que forão muitos annos ,

( ) Tudo o que o autor diz aqui e d'aqui por diante sõbre a Ginga ,
irmã do rei Ngola Ambandi, pertence aos governos desde Luiz Mendes
de Vasconcelos ( 1617 ) allé ao de Fernão de Souza; no fim do governo
dêste, no capitulo 1.º da 2.' parte, se faz a anotação completa.
Ngola Ambandi morreu poucos meses depois de 10-8-1623, como se
verá adiante . O autor antecipa os factos.
© No exemplar do Conde de Tarouca falta desde aqui até ao fim
dêste capítulo ( fl. 51 ) .

54
que parecia immortal, (' ) de que se podéra fazer grande es
critura , a qual se podia comparar ou ainda preferir a Semi
ramis , a Pantasileja, a Cleopatra ( ) , e a outras Raynhas de
que as historias nos dão noticia , governando a seus Vassal
los a nossa opposição com valor e animo varonil ; para intel
ligencia desta historia e do que obrou contra nós esta Ray
nha se fez aqui menção deste seu principio que he atraz da
historia a que himos do Reino de Angola , sendo este seu pri
meiro fundamento .
Hindo o Governador João Furtado de Mendonça fazendo
guerra ao gentio deste Reino de Angola por sy e seu Capi
tão mor, lhe apanharão uns animaes a que chamão Zevras
do tamanho de mulas todas arayadas de branco e pardo ;
vendo que o vistozo de taes animaes erão capazes de se fa
zerem delles muita estimação por sua singularidade e formo
sura, as mandou deste Reino a Madrid a el Rey Dom Phe
lippe que assim como neste era já Rey de Portugal , lhe per
tencião as couzas de suas Conquistas , o que mandou por
hum homem nobre de sua Casa . Chegando a salvamento, foi
couza na Corte daquelle Monarca de grande estima pella di
versidade, que he o que os Principes estimão , e forão tão
bem aceitas que , a pessoa que as levou a presentar , veyo das
suas Reaes mãos mui bem despachado e premiado de sua
jornada, como ainda hoje se vem descendentes seus posshui
rem algumas mercês que de seu cuidado trouxe . Destes tão
vistozos animaes se não poderão haver outros á mão ou falta
de não haver quem os subesse caçar, ou por elles não serem
muitos os desta casta ; só está lembrado o Autor desta histo

( * ) A rainha Ginga morreu em 17-12-1663.


( ) Pero Mexia na vida dos Emperadores Othomanos falla em Cleo
patra.
O mesmo Autor em silva de varia lição conta das Raynhas das
Amazonas Pantasileja (Nota marginal do Autor) .

55
ria que mandando o Governador Pedro Cezar de Menezes ,
antes desta Cidade de Sam Paulo da Loanda ser occupada
do Flamengo, fazer diligencia para que se caçasse alguns
destes animaes, jamais foi possível haver algum à mão, e só
The trouxerão as pelles dos que matárão que elle Autor (1 ) vio.
Tendo posto as couzas de seu Governo assim de guerra
como politico como de seu talento e fidalguia se esperava
deo fim a seo Governo com muita satisfação da gente deste
Reino, Vassallos da Coroa de Portugal, assim brancos como
pretos como os Sovas fidalgos .

0 João Furtado de Mendonça governou até 1602 e sucedeu-lhe João


Rodrigues Coutinho. (Vede a nota á pag. 49 ).

56
CAPITULO QUINTO DA PRIMEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS E PRINCIPIO DO GO
VERNO DE MANOEL SERVEIRA PEREIRA.

Sucedeo em o Governo deste Reino de Sebaste Conquista


da Ethiopia Manoel Serveira Pereira (1 ) na era de 1597,
vindo despachado do Reino de Portugal por Governador e
Capitão geral deste dito Reyno, o qual veyo com soccorro
de gente de guerra, muniçoens e outras couzas necessarias ,
para proseguir a conquista do Reino de Angola , e tendo
posto as cousas do porto e Villa de Sam Paulo da Loanda
com guarnição necessaria a sua defensa marchou da Cidade
por terra até o porto de Tombo que fazem ser seis legoas, e
ali se embarcou com toda a gente de guerra pello rio Coamza
acima, tendo alguns recontros com o gentio da Provincia da
conquista e Quisama, visitando a nossa fortaleza de Mu
chima , sita na dita Provincia, socorrendo - a do que necessi
tava , alcançando por a margem daquelle espaçoso Rio gran
des Vitorias até chegar a Villa da Vitoria de Masangano
alojamento e Praça de Armas da Conquista, de onde man

(" ) Manuel Cerveira Pereira sucedeu em principio de 1603 a João


Rodrigues Coutinho, que o deixou nomeado por sua morte, por poderes
que tinha do Rei para isso. Consta isto da « Relação annual das cousas
que fizeram os Padres da Companhia nos annos de 1602 e 1603. Anno
de 1605 ». Existe na Bib. Nacional , nos Reservados, 45 , preto. É do P.•
Fernão Guerreiro, S. J.— Lopes de Lima transcreve esta noticia na
pág . XXI .
A dita Relação annual é referida aos anos de 1602 e 1603.
É certo que governava em 1603. Di- lo a Sinopsis na pág . 183,
n.° 12. Diz : «Manuel Cerveira, governador, moveu guerra contra o rei
muitas vezes perfido».

57
dou por seu Capitão mor da gente de guerra Luis Ferreira
Arco, fazer guerra aos Sovas fidalgos da Provincia da llam
ba que sempre nella havia que fazer, por se rebellarem aquel
les Sovas já conquistados a voz da Raynha, Ginga sua Se
nhora, que sempre trabalhava de os contraminar em nosso
odio fazendoos fazer movimentos e alteraçoens, contra os
quaes alcançou o dito Governador por seu Capitão more
mais cabos de guerra assinaladas vitorias, e o mesmo obrou
na mesma Provincia pello Capitão mor que então era da
gente de guerra, Baltazar de Aragão (- ) , com o Capitão mor
de Cavallos Luis Gomes Machado, tendo hum e outro gran
des batalhas e recontros com infinito gentio que obstinada
mente se defendião e offendião, passando aquelles valerozos
Portugueses muitas fomes e miserias por serviço de sua Pa
tria e extirpação daquelles idolatras, que não querião vir ao
verdadeiro conhecimento de Deos incitados como dito he da
Raynha Ginga sua Senhora que sempre trabalhava por aca

“ ) Balthazar Rebello de Aragão é um dos que foi para Angola com


D. Francisco de Almeida em 1592. Deixou escritas umas noticias que
foram publicadas em 1881 por Luciano Cordeiro; é o 2. fasciculo dos
seis já mencionados na nota á fl. 10. É « Terras e minas africanas». Pa
rece que o informante de Luciano Cordeiro , quanto ao kimbundu, foram
uns relatorios de João Vieira Carneiro, e que foi neles que Luciano Cor
deiro viu a opinão falsa do nome Cabassa, de que já se falou .
Na nota 1 , á pág. 9, deste folheto, faz Luciano Cordeiro confusão
com a palavra «Dange». Ora «Dange» é o nome do rio Dande em kim
bundu, ou melhor, té : Ndanji, (ou Ndandji, que assim era pronunciado
outrora ).

Balthazar Rebelo de Aragão não combateu contra a rainha Ginga,


pois ele morreu em Luanda em 31-10-1624 e nesta data ainda ela se não
tinha revoltado contra nós; quando ele morreu era provedor da Fazenda
real de que tinha tido patente em 22-9-1622 por 6 anos na vaga da pes
soa que estivesse servindo o logar. (Chancelaria de D. Felipe III , Livro
9.º , fl . 280 ) .

58
bar a gente Catholica e explorala fora de seu Reino e Domi
nio em que se gastou muito tempo em esta Conquista da
Provincia da llamba em que os Sovas fidalgos poderozos
como dito he de muitas terras e Vassallos não querendo estar
quietos com a vassalagem Portugueza por mais que experi
mentavão o rigor de nossas armas e esforso portuguez, o que
se não obrava da nossa parte sem muito trabalho e custa
de muito sangue Lusitano .
Tendo-se feito a guerra que havemos relatado naquella
Provincia , marchou o nosso exercito contra o sova Cam
bambe, que com muitos seus Alliados e Confederados da
Provincia do Moseque se ajuntarão a nossa opposição por
ordem da Raynha Ginga sua Senhora , hindo o Governador
e Capitão geral com todo o poder de Cabos da gente de
guerra e Conquistadores antigos em demanda daquelle ini
migo, com o qual houve terrivel batalha em que houve
muita matança na gente inimiga com o que depois, de por
fiada contenda forão rotos e desbaratados tão manha mul
tidão de gentio, e o sova Cambambe fugido de suas terras
para as do Sova Angola Calumga , fidalgo poderozo que
distavão huma jornada, em cujo seguimento foi o Capitão
mór de cavallos Luiz Gomes Machado com algum gentio ,
Vassallos que acompanhavão a nossa guerra e infantaria
ligeira de bom pé , lhe foi dando nas Costas matando e apri
zionando a muitos daquelles barbaros até se empararem das
terras do dito Sova, que como mais bastas de gentio e se
rem em sy asperas e montuozas lhe valleo este refugio para
de todo não serem destruidos; recolhido o Capitão Môr da
gente de a cavallo com grande Cavalgada ao Arraial onde
estava o Governador dando todos as devidas graças a
Deos e a sua Santissima May que naquella occazião invo
cárão sua devina graça de tão grandioza Vitoria que só
com o favor divino se podera conseguir tão felizmente. E

59
vendo o Governador que o sitio de Cambambe (" ) era capaz
e forte por natureza onde se podia fazer huma fortaleza
para freyo daquelles poderozos Sovas que por ali confinavão
e tinhão muitas terras de seus Senhorios suas Banzas de
morada e infinitas povoaçõens e libatas, e que chagava até
o pé dos rochedos a navegação do rio Coanza por onde
podia ser soccorrida tendo algum a perto de Masangano
pello rio acima, tratou de dar principio á fabrica da Forta
leza que com cuidado e deligencia que nella se trabalhou
se poz em proporção defensavel , fazendo - se Casa e Igreja
á May de Deos Advogada dos peccadores Senhora do
Rosairo, que assim como assistio com sua protecção á gente
Catholica na batalha naval de Lepanto , onde lhe ficou esta
invocação, assim assistio á nossa gente portugueza Chris
tam invocando o seu nome em o mayor conflicto desta ba
talha , alcançada contra gentios e idolatras se a outra que

( " ) A fortaleza de Cambambe foi construida no tempo do Governa


dor Manuel Cerveira Pereira (no seu primeiro governo) em 1603 ou
1604; trabalhou nela Balthaza Rebelo de Aragão, como ele mesmo o diz
no seu folheto já citado; Icarregou pedra às costas, diz ele na pág.
23 , ao cimo.
Eis o que dizem as «Relações anuaes das cousas que fizeram os
padres da Companhia de Jesus», nos annos de 1602 e 1603, pelo padre
Fernam Guerreiro. (Na pág. 127 ).
Este novo governador, (Manuel Cerveira Pereira ), entrando no
cargo, e continando a jornada do seu antecessor, em poucos dias en
trou pelas terras do negro Cafuche fazendo -lhe guerra e lhas assolou
quasi todas. Deu - lhe três batalhas e o desbaratou, escapando ele porém .
Dali foi logo à serra de Cambambe, onde estão as minas de prata.
Fez logo uma fortaleza num sitio para isso acomodatissimo. Poz
logo na fortaleza 250 soldados e começou a cavar, ainda que pouco
em alguas partes daquela serra , de que tiraram varias mostras da prata
que nella ha, que dizem os mineiros ser muita e haver tambem muitos
outros metais » .
Como se verá da nota do primeiro capitulo da segunda parte , a
mina de prata não se encontrou; a que se encontrou era de chumbo .

60
ella protegeo foi com Turcos e Mouros gente infiel , dan
dose nome á Fortaleza de Cambambe , porque as terras
em que se fez serem do Sova daquelle appellido e desde
então até o tempo de hoje, tem estado em ser, sendo Se
nhorio de Sua Alteza o Princepe nosso Senhor , que bas
tava ter tal defensora e orago para nunca ser infestada de
tantos e tão poderosos inimigos que havia em sua Comarca,
que o tempo domesticou e muita guerra que por tempos se
lhe fez com o que no dia de hoje se achão mui obedien
tes na lotação daquella fortaleza, reconhecendo o Princepe
nosso Senhor como seus Vassallos Conquistados .
E porque ficava em frente desta nova Fortaleza e bel
licoza Provincia da Quisama, quiz o nosso Conquistador,
provar tambem a mão com aquelle gentio passando ao pé
da Fortaleza o rio Coanza onde teve da outra banda mui
tas batalhas , e recontros com aquelles valorosos gentios
Quisamas para que ficassem em conhecimento do valor por
tuguez, e respeitassem a nossa Fortaleza, como couza sua ;
feita esta empreza com aquelle bellicoso gentio, passou o
Governador com o seu exercito destroutra banda do rio
Coanza se veyo a descançar de tanto trabalho e fadiga ao
allojamento da Villa da Vitoria de Masangano praça de
Armas da gente conquistadora , acudindo daquelle quartel
a todas as occasioens de guerra que continuadamente se
offerecião com o gentio que sempre buscavão modos e ma
neiras para se descomporem com a gente portugueza, in
duzidos e mandados por aquella austucioza Raynha Ginga
nossa Capital inimiga , que nunca cessava de buscar meyos
para nossa ruina . (1 )

( ) Os factos relatados são do tempo deste Governador, Manuel


Cerveira Pereira, mas não foram no tempo a que o autor se refere.
Este homem foi duas vezes governador. A primeira em 1603, por
morte de João Rodrigues Coutinho, como já se disse na nota 1 , pag 56 ;

61
Foi tambem dando ordem o Governador á boa direcção
de seu Governo, attendendo assim ao da guerra como ao
politico, como tão experimentado em todas as materias; de
terminou de fazer mayores emprezas comformes a seu animo
para o que determinou fazer a conquista do Reino de Ben
guela, ou tambem por ordem que para isso traria ou lhe
viesse do nosso Reino de Portugal, e tratou de se aviar de
tudo o que lhe era necessario para aquella nova Conquista

a segunda em 1615, como sevê na nota á pag. 49. A conquista de Ben


guela foi em 1617.
No seu primeiro governo sucedeu -lhe em 1607 D. Manuel Pe
reira Forjaz. Este Governador mandou preso para Lisboa Manuel Cer
veira Pereira.
Levava já ordem para esta prisão, pois Manuel Cerveira Pereira,
quási no final da sua carta escrita de Benguela para o Rei, datada de -6-3
e de 2-7-1618, falando dos moradores de Luanda diz : - « Dos moradores
de Luanda não trato porque costumados são a papeladas e a capitulos
por cujo respeito já fui preso por mandado de Vossa Magestade ».
Manuel Cerveira Pereira parece que em Lisboa e Madrid com
custo provou a sua inocência e convenceu o Rei da riqueza de Ben
guela e da importancia da sua conquista, pois só em 14 de Fevereiro
de 1615 lhe foi passado o alvará seguinte: «Eu El Rey faço saber
aos que este alvará virem que eu tenho cometido a conquista de Ben
guela a Manuel Cerveira Pereira por confiar delle que me servirá
nella a toda a minha satisfação, e porque para o bom efeito desta em
preza convem a meu serviço que elle se prepare em Angola das cousas
necessarias para melhor e mais facilmente se poder cometer este ne
gocio e conseguir- se o que nelle se pretende ey por bem e me apraz
que no interim que se detiver em Loanda apercebendo - se para a dita
conquista tenha os poderes de Governador daquele Reyno»
( Chancellaria de Felipe II , Livro 35, fl. 32 , v ) .
Este alvará não lhe dava poderes para ele nomear governador in
terino quando fosse de Loanda para Benguela; como se vê ele não foi
governador efectivo de Angola.
Antes dele ser nomeado, e durante o governo de Bento Banha Car
doso , foi nomeado em fins de 1611 um tal — «Francisco Correia da
Silva, irmão de Henrique da Silva, capitão de Mazagão , o qual indo

62
alistando muita gente portugueza , Conquistadores, e sol
dados versados na guerra do Sertão, e como aquelle Pais
era muito distante do que se havia conquistado no Reino
de Angola , refuzarão muitos dos alistados em accompanha
rem ao Governador com o qual motivo se auzentarão pas
sando a Funda Provincia do Libolo da outra banda do rio
Coanza , em cujo seguimento mandou o Capitão mór da
gente de guerra Balthazar Rebello com os quaes teve

beijar a mão a El Rei se afogou em Guadiana indo crescido em De


zembro passado ( 1611 ) com todos os seus creados que levava em hum
coche, cousa que causou grande lastima a todos. Perderão-se com elle
muito ricas pessoas que levava pra apresentar na Corte. Em seu logar
está nomeado D. Gonçalo Coutinho » .
Consta isto de um curioso codice manuscrito da Biblioteca Na
cional; tem por titulo — «Historia portugueza e de outras provincias
do occidente desde o anno de 1610 até o de 1640. Escrita em 31 relações
por Manuel Severim de Faria, ichantre da Sé de Evora ». É em 378 fls.
– Tem a marcação - n.° 241 .
As 31 relações são anuais e vão quasi lodas de Março a Fevereiro;
são uma especie de revista dos factos sucedidos em cada ano ; tem
acontecimentos de Angola, os quais vão copiados em notas aqui em
seu logar proprio, sendo o que aqui disse de Francisco Correia copiado
de lá , a fl. 17 v. , da relação de 1 de Março de 1611 até 12 do mesmo
de 1612. – Na relação de Abril de 1615 até Março de 1616, fl. 59, v.
tem o seguinte :
« Por alguns impedimentos que D. Gonçalo Coutinho poz á jornada
de Angola disse ElRey se queria servir nelle noutra cousa , e mandou
para capitão da conquista de Benguela Manuel Cerveira Pereira , que
naquellas pates sucedeu os annos passados a João Roiz Coutinho com
felicez successos contra os rebeldes sovas, o qual partiu de Lisboa no
fim de Abril de 1615. E agora está nomeado por Governador de todo
o Estado Luis Mendes de Vasconcelos . »
Gonçalo Coutinho teve carta de Governador em 18 de Abril de
1613. ( Chancelaria de Felipe II, Livro 32 , fl. 122 , v ) . Foi em 1623-1624
capitão para Mazagão, ( fl. 189 do dito codice ).
O mencionado Francisco Correia da Silva não chegou a ter carta
régia para Governador de Angola.

63
grande pendencia por ser a gente fugitiva muita em que
houve mortos e feridos de parte a parte até com effeito os
reduzir a devida obediencia e proseguir o Governador a sua
jornada como a tinha preditado.
Estando com tudo prestes, deixando por seu lugar te
nente em a Villa de Sam Paulo da Loanda (1 ) a João de
Veloria com todos seus poderes o qual havia sido Capitão
mór da gente de guerra como atras se disse em o Governo
de João Furtado de Mendonça, deixando o mais da Con

( ) Manuel Cerveira Pereira partiu para Benguela em 1-4-1617,


deixando em Loanda o governo entregue ao capitão mór António Gon
çalves Pitta , eleito governador pelo povo . Desembarcou na bahia da
Torre, (nome vulgar da bahia de Santo Antonio do roteiro velho ) ,
tendo deitado ferro nas partes de mais consideração; gastou 46 dias
nesta viagem. Chegou ali com 130 homens. Escreveu de Benguela ao
Rei D. Felipe II em 6-3-1618 ; esta carta tem um aditamento datado
de 2-7-1618 ; mandou com ela 94 arrateis de cobre em argolas feitas
pelos pretos e achadas nas povoações tomadas por ela. ( Esta carta
está no Archivo de Marinha e Ultramar, na Biblioteca Nacional, na
caixa 145. É grande e muito curiosa ).
Foi expulso de Benguela; em 15-1-1619, de noite, embarcaram - no
em um velho batet, que a corrente trousse a Loanda , aonde chegou
em 21 do mesmo mês. (Sua carta de 24-1-1619, de Luanda. Na dita
caixa 145 ) . Esteve em Loanda ano e meio; era Governador Luis
Mendes de Vasconcellos. Cerveira escreveu para Madrid e de la veio
ordem para continuar com a conquista de Benguela.
Patiu de novo de Loanda em 13-7-1620 e chegou a Benguela em
15 de Agosto; foi tomar Lumbe Ambela, posto do rio Cubo, saindo de
Benguela em 12 de Setembro; de Lumbe Ambela foi por terra até ao
sitio das minas de cobre com 50 e tantos homens; gastou dia e meio
e mandou cavar por uns pretos seus, que não eram muitos, e tirou á
flor da terra três quintaes de pedra de metal.
Veja -se o folheto « Benguela e seu Sertão » publicado por Luciano
Cordeiro em 1881 ; é o 3.º das Memórias do Ultramar que citei na nota
à fl . 10.
O Cerveira em fins de 1620 veio a Loanda com um carregamento
de pedra de cobre e dali foram para Lisboa 3 caixões da dita pedra,

64
quista de Angola com Cabos e guarnições bastante de In
fantaria , partio com o poder necessario para a conquista
daquelle Reino de Benguella , onde teve grandes batalhas
e recontros com Sovas muito poderosos de gentio muito
bellicoso principalmente com Ngola Amgimbo que se tinha
por Rey daquelle pais, sahindo de tudo com feliz successo,
e vendo ser necessario fazer fortaleza para conservação da
quelle novo Reino o poz por obra, fabricando Beiramar, que
ficasse servindo para guarda do porto , e para o mais que

em 21 de Janeiro de 1621. Ele gornou para Benguela em 18-3-1621.


(Carta do P. Jesuíta Matheus Cardoso para o Rei , datada de Loanda
de 16-3-1621 , nos Mass . da Biblioteca Nacional , caixa 22 , n . ° 26 ) .
Em 7-11-1621 ainda escreveu de Benguela ao Rei ; estava então
doente e não poude ir a bordo do navio em que , em 4-10, passou ali
o Governador João Correia de Sousa. (No governo dele falo nisto ) .
Em 24-6-1625 teve licença para vir a seu pedido ao Reino. (Carta
régia de Madrid nesta data para os Governadores do Reino; colecção
de S. Vicente na Torre do Tombo, vol. 19 , fl . 342 ) .
(A carta de 7-11-1621 está na dita caixa 145 ).
O codice de Manuel Severino de Faria , de que falei na nota á
fl . 56, tem na relação de Março de 1619 a fim de Fevereiro de 1620,
na fl. 163, v. , a notícia seguinte : - «Em Benguela hião as cousas pros
peramente se por hum castigo que o Governador Manoel Cerveira man
dou a executar se não levantarão contra elle alguns soldados, e o em
barcassem para Loanda prezo e maltratado. Sentio isto S. Mag.de, e
mandou que fosse tornado a seu governo, e que os culpados se cas
tigassem rigorosamente para exemplo de outros semelhantes, e para isto
se lhe manda bastante poder e soccorro » .
Na relação de Março de 1622 a Fevereiro de 1623, a fl . 183,
tem a noticia seguinte: — «As cousas de Benguela estão no mesmo es
tado esperando a resolução de S. Mag.de sobre as minas de cobre de
que mandou o Capitão Manuel Cerveira Pereira as amostras do Reino».
A prisão do Cerveira Pereira , de que fala a Relação transcrita na
frente desta folha, foi em 12-1-1619; fizeram - no embarcar em um batel
velho em 15 e em 21 chegou a Luanda. — É isto dito por ele em uma
carta para D. Felipe II, datada de 24-1-1619 de Luanda.
Esta carta está no Arquivo Ultramarino na caixa 145 .

65
se offerecesse , se acazo fosse infestado de inimigos de Mar
em fora , e servisse tambem de reparo para o Sertão, fazendo
tambem povoação e Igreja para o culto Divino, dando nome
de Cidade invocação Sam Phelipe em obsequio de ser feita
aquella Conquista em tempo del Rey de Espanha e Portu
gal Dom Phelipe segundo de Castela e primeiro de Por
tugal; e não teve este esforsado Governador mais progres
sos de guerra neste Pais e Reino de Benguela (1 ) por lho
atalharem alguns emulos e malcontentes que não levarão a
bem ir tão longe fazer aquella conquista, e assim se amuti
narão contra elle chegando o atrevimento a tanto que lhe
perderão o respeito, fugindo alguns daquelle Reino em em
barcações por már para o contorno da Villa de Loanda.
Tendo obrado o tempo do seu Governo com valor e dis
posição, lbe veyo a succeder (? ) em o Governo João Ro
drigues Coutinho, figaldo da Caza de S. Magestade .

( ) A conquista de Benguela foi em 1617, como atrás fica dito. Go


vernava em Portugal nessa época D. Felipe II de Portugal e III de
Espanha (desde 1598 a 1621 ) .
( ) A Manuel Cerveira Pereira no seu primeiro governo sucedeu
D. Manuel Pereira Forjaz, em 1607; no seu segundo governo sucedeu
Antonio Gonçalves Pitta , em 1 de Abril de 1617. Já foi dito isto atraz
em notas.

66
CAPITULO SEISTO DA PRIMEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS GOVERNANDO ESTES
REINOS JOAO RODRIGUES COUTINHO .

Na era de mil e seiscentos annos, (" ) veyo despachado


da Magestade Catholica del Rey Dom Phelipe prodente
João Rodrigues Coutinho por Governador e Capitão ge
ral do Reino de Angola e sua Conquista trazendo em
sua Companhia muita gente de guerra assim portuguesa
como alguns machegos versados em as guerras de Africa, (2 )
por cuja causa lhe chamavão Africanos , com muitas ou
tras preparaçoens afim de ir por diante com a Conquista
destes Reinos principalmente do de Angola o que trouxe
huma provisão da mão Real em que havia por calificados
os serviços feitos do Reino de Angola como se forão
feitos em Africa, e em suas Armadas, e nas partes da
India , e porque despois da tomada da terra pello Flamengo
se achou esta provisão autentica em a Villa da Vitoria de
Masangano, a mandou botar no Livro da Camara daquella
Villa o Autor desta historia, sendo Juiz ordinario , e o mesmo
fez em o da Camara desta Cidade de São Paulo da Assump
ção vindo demorado para ella, e servindo de Vereador mais
Velho em tempo que governava estes Reinos o Governador

© João Rodrigues Coutinho teve carta patente de Governador


em 30 de Janeiro de 1601. ( Chancelaria de Filippe 2. ° , Livro 7 , • . fl.
174 ) .
Diz Lopes de Lima, que ele só chegou a Loanda em 1602, não há
provas desta afirmação, mas deve ter sido em fim de 1601 ou principio
de 1602. Este Governador sucedeu a João Furtado de Mendonça.
© Refere -se às guerras no Norte de Africa, na costa do Mediter
râneo .

67
6
dor e Capitão geral Francisco de Tavora, para que a todo
o tempo constasse, e o mesmo faz em o trasladar nesta
historia para que conste ao Curioso Leitor a conta que se
fazia da Conquista destes Reinos, e como se mandavão des
pachar os serviços nella feitos, cujo teor de verbo, a verbo
he o seguinte.
Eu el Rey Faço a saber aos que este meu Alvará virem
que vendo eu o quanto importa a meu serviço e a bem de
meus Vassallos proseguir a conquista que se tem começado
do Reino de Angola e chegar -se com ella aos termos que
se dezeja para mais augmento da minha Coroa Real, e que
para isto he necessario concorrerem soldados e serem fa
vorecidos e remunerados com igual premio de seus trabalhos
e serviços e que isto se faça com mayor pontualidade em
que mando por meu governador e Capitão geral da dita
Conquista a João Rodrigues Coutinho (1 ) fidalgo de minha
Caza, pello presente hei por bem e me praz de haver como
de feito daqui em diante hey por calificados os serviços que
se me fazem na guerra da dita Conquista assim como por
costume o são os que se me fazem nos lugares de Africa, e
em minhas Armadas, e nas partes da India , para do modo
e maneira que este se costumão satisfazer e remumerar,
mandar tambem daqui em diante satisfazer e remunerar as
pessoas que na guerra da dita Conquista me servirem og
serviços que nella me fizerem conforme a calidade e impor
tancia de quem forem em que tambem mandarei considerar
e ter respeito as circunstancias delles na forma que se faz
nas outras partes; notifico assim a todos meus Ministros su
periores e inferiores, a quem o conhecimento disto perten
cer e em particular aos do despacho, e lhes mando que ás
pessoas que servirem na guerra da dita Conquista admittão

(" ) Estava nomeado já, mas não tinha ainda a carta patente, como
se vê pela data dêste Alvará e da carta Patente, na nota anterior.

68
seus papeis e os despachem e consultem na forma que nesta
se contem porque assim he minha deliberada vontade . Este
se registará nos Livros da Casa da India e Mina e de mi
nha fazenda , e os treslados autenticos delle se fixarão nos
lugares publicos na Cidade de Lisboa e se enviarão ao dito
Reino de Angola para a todos ser notorio , o qual queiro
que valha tanta força e vigor como se fosse Carta feita em
meu nome por mim assinada e passada por minha Chance
laria posto que por ella não passe sem embargo das ordena
çoens do segundo Livro titulo vinte e quarenta e nove que
o contrario dispoem Manuel Coelho o fez em Madrid a
vinte de Agosto de mil e seiscentos , e eu Luis Alvres de
Azevedo o fiz escrever .

«Rey» O Conde de Ficalho» .

Ha V. Mag.de por bem que daqui em diante sejão cali


ficados os serviços que se lhe fizerem nos lugares de Africa
e nas Armadas e partes da India os quais manda V. Mag.de
que se satisfação conforme a calidade e importancia delles
pella maneira acima declarada , e que não passe pella Chan
cellaria - do secretario Pedralves Pereira ; registrado Luís
Alves de Azevedo; pagou nada a fol - E não dizia
mais o treslado do Alvará e se reporta o Autor nos Livros
da Camara desta Cidade, e aos da Villa da Vitoria de Ma
sangano.
Com todas as preparaçoens que ditas são veyo o Go
vernador e Capitão geral para fazer guerra em a conquista
deste Reina de Angola o qual o foi pondo por obra, sahindo
da Loanda com todo o aprecebimento para a conquista e
foi tendo pello caminho e navegação do rio Coanza pelejas
e recontros com o gentio da Quisama, onde trazia a mira

( ) Este alvará não foi registado na Chancelaria de Felippe II.

69
principal , de sua Conquista , e aconselhado com os Cabos
e Conquistadores praticos nas guerras do Sertão foi passar
o seu exercito e tudo o mais aprésto que com sigo levava
o Rio Coanza ao pé da nossa Fortaleza de Cambambe, onde
Jhe veyo ter o encontro á passagem do Rio aquelle bellicoso
gentio, tendo o nosso General e exercito com elle grandis
sima peleja, porque todo o gentio numeroso daquella Pro
vincia se ajuntou em hum corpo para esse effeito a impedir
o passo ; mas a seu pezar com morte de muitos dos defen
sores e da nossa parte alguma se conseguio; passado que
foi o nosso poder com o seu novo e valeroso Conquistador
foi marchando pella Quisama dentro para as terras do Sova
Cafuchi, Cabeça e principal daquella Provincia, e como
Rey então della sem embargo de ser pello antigo tributaria
ao Rey de Angola, que esse foi o intento do Governador e
Conquistadores que assim lho aconselhavão ir buscar o
mais poderoso , que com o seu vencimento ficarião os mais
mais facil a sua conquista; tendo tido muitas vitorias e recon
tros mostrou bem o valor e fidalguia que o acompanhava
mostrando em todas as occazioens huma grande dispozição,
como quem entendia bem as cousas de guerra de que era
mestre , cauza porque foi mandado a esta Conquista pella
Catholica Magestade como dito he, e como as couzas boas
não são duradeiras, o que o inimigo Quisama não pode obrar
contra o seu bizarro animo obrou a calamidade da terra,
adoecendo da doença que ella costuma em que poucos são
os que lhe não pagão tributo e dizem os naturaes e habi
tantes que tem esta terra e Sertão de Angola mais hum
Artigo o qual he que hão de crer que hão de adoecer.
Affligido o nosso Conquistador desta doença (' ) tão

) Morreu em fins de 1602 ou principios de 1603 , segundo se


conclue de Lopes de Lima, ou melhor da « Relação annual ... » do P.:
Fernão Guerreiro , de que se fala na nota 1 , pag. 56.

70
ordinaria veyo a pagar o tributo a que todos os nascidos es
tão sugeitos, e com sua falta ficarão perdidas todas as es
peranças de que aquella principiada Conquista tivesse o fim
que se dezejava porque em faltando ou doendo a cabeça não
governão os pés e todo o mais Corpo está enfermo.
Com tudo forão obrando com aquelle esforsado gentio
os Cabos e Conquistadores antigos que havião hido em
Companhia do Governador aquella Conquista como erão
João de Veloria , Luiz Gomes Machado, Balthazar Rabello,
Bento Banha Cardozo, Lopo Soares Laço, e outros Con
quistadores, que havião governado em muitas occazioens de
guerra e sahido com muitas emprezas com felicidade, hindo
guerreando aquella tão aspera Provincia soffrendo muitos
trabalhos e fomes pella aspereza do terreno e falta de sus
tento que não se achava na Campanha com que se alimen
tarem pello gentio inimigo ter tudo retirado no intimo de
seus matos dilatados e cerrados , tirandonos a vitualha só
afim de nos impossibilitarem e até de agua tinhão falta , o
que vendo todas estas impossibilidades a irem por diante
com a Conquista , aquelles tão destros e experimentados
Conquistadores, e ser impossivel dilatarem - se mais naquella
Campanha pellas razoens ditas, despois de haverem tido
grandes batalhas e encontros com que havião feito muito
dano aquelles inimigos , que só os grandes matos e barocaes
lhes servirão de defensa e allivio, tratarão de se vir reti
rando passando o poder destoutra parte do caudalozo Rio
Coanza trazendo em sua Companhia aquelle nobre cadaver
do seu Governador e Capitão geral, imitando aos filhos de
Izrael quando em o deserto caminhavão com os seus Gover
nadores e Capitaens que tinhão largado a vida nas calami
dades da guerra e aspereza da terra ; não há noticia quem
neste tempo succedeo no Governo, e só se achão noticias
de alguns papeis antigos que na era de mil e seiscentos e
dous vierão algumas Náos flamengas a infestar o porto de

71
Loanda e vir gente da Conquista em defensa da terra ,
sendo Capitão mor da gente de guerra João de Veloria , e
os mesmos Conquistadores se embarcarão de Armada com
o Capitão João Alvres Sardinha por Cabo e tiverão peleja
no mar com as Náos flamengas botando os fóra da Costa
e sem dúvida governava então por morte do Governador
João Rodrigues Coutinho o mesmo João de Veloria. (* )
Dom Francisco de Almeida (2 ) veyo despachado com o
governo destes Reinos e suas Conquistas trazendo em sua
companhia grande soccorro de gente de guerra para pro
seguir a Conquista do Reino de Angola; não ha escritura
que diga o tempo ao certo em que veyo e foi o seu provin

( ) O autor erra aqui , pois João Veloria nunca foi governador.


Por morte de João Rodrigues Coutinho tomou conta do governo
Manuel Cerveira Pereira, a quem o Coutinho deixou nomeado em tes
tamento , por poderes que tinha do Rei , como já fica dito em nota o
Padre Fernão Guerreiro, na Relação anual, de que já falei, diz assim :
« Nomeou antes da morte successor por poderes que tinha de El-Rei ,
ve deixou a nomeação fechada no escritorio, cuja chave entregou ao pa
dre Jorge Pereyra da nossa companhia que com elle estava, e como
logo em espirando, os nossos capitães do exercito se começassem a al
terar e revolver entre si sobre a successam , a ponto de estarem para se
perderem hus com os outros no meyo de seus inimigos sessenta legoas
pola terra dentro , o padre com sua muyta prudencia, e autoridade se
houve de maneira, que nomeando -lhe o successor, que foy Manoel Ser
veyra Pereyra, os aquietou, (fl. 126, v., da dita Relação ).
Não se entende bem se a nomeação foi já em Loanda, ou o padre
Pereira sabendo da nomeação feita pelo Coutinho, o disse aos capi
tães ainda em campanha. Deve ter sido em principio de 1603.
Sobre Manoel Cerveira Pereira vêde atraz nas fls. 51 até 56 o que
o autor diz do seu primeiro governo.
D. Francisco de Almeida está aqui deslocado assim como seu
irmão D. Jeronimo de Almeida.
De D. Francisco já falei atraz na nota à fl. 44.
Governou desde Junho de 1592 até Abril de 1593 , como consta
da mencionada nota .

72
mento; só se sabe por noticias proseguira a Conquista do
Sertão , não se especificão as emprezas que fez que não
podião deixar de ser conformes a sua fidalguia e valor de
seu sangue .
Do mesmo carecem as noticias de Dom Jeronimo de Al
meida que tambem governou este Reino successivamente. O
cartorio que havia em Loanda se perdeo (1 ) todo na entrada
dos Flamengos em estes Reinos onde não podia deixar de
haver muitas antigualhas ; em o Livro, já desbaratado como
atraz tenho dito, em a Villa da Vitoria de Masangano se
achão estes dous fidalgos haverem governado estes Reinos
mas não se especifica mais. Alguns antigos Conquistadores
do tempo de Dom Francisco de Almeida, davão noticia por
mayor de emprezas suas, que havião vindo em sua Compa
nhia , e contavão de huma em que o mesmo Governador

D. Jeronimo de Almeida ficou governando interinamente pela saida


do irmão .
Cadornega não teve conhecimento das datas em que estes dois go
vernaram . Não tive meio de verificar se é certo o que Lopes de Lima
diz deles.
Sucedeu a D. Jeronimo - João Furtado de Mendonça , de quem
o autor já falou na fl . 44.
É certo que D. Jeronimo teve guerra com o soba Cafuxe; isto é
dito no folheto de Garcia Mendes Castello Branco, lo 1.º dos seis de
que falei na nota á pág . 12 ) ; na pág. 24 diz assim : «Governando D. Je
ronimo d'Almeida mandou a guerra a Cafuche, fidalgo de Quiçama,
d'onde foram cento e quarenta homens, de que ia por capitão Balthazar
de Almeida de Sousa, e somente elle escapou por ir a cavallo, e mata
ram mais de seis mil frecheiros negros... »
Lopes de Lima descreve bem esta derrota, na pág. XX.
) O autor adiante , no principio do 1.º capitulo da 3.º parte , conta
como se perderam todos os livros e mais papeis da Camara. Para melhor
se entender leia -se primeiro o final do capitulo antecedente, onde diz que
o Governador mandou embarcar em algumas lanchas os doentes que não
podiam caminhar .
É um dos muitos favores que devemos aos holandeses,

73
assistio em hum Cerco de huma pedra chamada de Bamba
Ampango , onde despois de haver dado muitas batalhas ao
gentio se recolherão nella ( 1 ) como sua fortaleza, que disso
lhe servem as taes pedras que occupavão muito circuito ; so
bre dita pedra esteve tempos , e dizião que annos, sahido
aquelle gentio a fazer suas sortidas e das mais terras cir
convisinhas até que despois de porfiada contenda a veyo a
render o valor e persistencia do Governador e o de seus por
tugueses , o que não constando de papeis e escritura se não
pode explicar mais, e sendo a nossa Nação tão inimiga dellas
que mais tratavão de obrar com as armas do que escrever
com a penna , pello que não dizemos mais destes dous Go
vernos nem de quem lhe succedeo .

☺ O sentido aqui não é claro, parece que se deve dizer: este ( o


gentio ) se recolheu nella.

74
CAPITULO SETIMO DA PRIMEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS .

Em era de mil seiscentos e quatorze veyo despa


chado por Governador e Capitão geral destes Reinos Dom
Manoel Pereira Forjaz (1 ) o qual assistindo na Loanda
que neste tempo tinha já nome de Cidade (2 ) sendo Ca
beça destes Reinos , o qual mandou fazer guerra no Sertão
por seu Capitão que então era do Reino por sua Magestade
Bento Banha Cardozo , o qual por ser Conquistador antigo e
intelligente das couzas do Sertão fez muitas emprezas e foi
ampliando a Conquista, como consta de alguns papeis anti

“) D. Manuel Pereira Forjaz teve patente em 2-8-1606, emquanto


o Rei o houvesse por bem e não mandasse o contrario . Ganhava oito
centos mil reis anuais, os quais começava a vencer desde o dia da par
tida de Lisboa. ( Chancelaria de D. Filipe II , Livro 17, fl, 159, v. ) .
É certo que a data da patente lé a do ano acima indicado e não de
1607, como Lopes de Lima diz na pág . XXII.
Deve ter chegado a Luanda nos fins de Agosto ou principio de
Setembro de 1607, pois em 10 deste ultimo mês foi registada a sua pa
tente no livro da feitoria de Luanda, onde se registavam as provisões
reais; ora este registo é de supor que fosse feito poucos dias depois da
sua chegada lá, o que prova a minha afirmação.
O traslado do dito registo da sua patente está num caderno de tras
lados de provisões de 1583 a 1610, o qual está na caixa 145 do Arquivo
Ultramarino.
Como já fica dito atraz em nota , o seu primeiro acto foi mandar
preso , por ordem do Rei o governador seu antecessor, Manuel Cerveira
Pereira .
Este governador mandou o capitão -mór Baltazar Rebelo de Aragão
descobrir caminho para Monomotapa; ele avançou pela terra dentro che
gando a 140 leguas do mar; não poude continuar por se levantar o
Rei de Angola contra a fortaleza de Cambambe, que ele retrocedendo

75
gos e como durasse pouco no Governo pessoa de tanta Cari
dade e fidalguia , de quem se esperavão muitos acertos, ata
lhou tudo a morte, sendo muito de repente causada de ser
pouco regrado, e foi sepultado em esta Cidade de Loanda
em a igreja Matris della , e como se achava Bento Banha Car
dozo Capitão mor da Reino por el Rey e ser pessoa de mui
tas partes e merecimentos, foi nesta vagante eleito Governa
dor destes Reinos, o qual tendo tomado posse se poz logo

veio socorrer. (Pág . 15 da memoria de Baltazar Rebelo de Aragão já


atraz citada ).

D. Manuel Pereira morreu repentinamente em Luanda no principio


da noite de 15 de Abril de 1611. O Bispo, D. Fr. Manuel Baptista, que
estava na ocasião em Luanda, convocou a Camara, ministros e mais ofi
ciais para deliberarem sobre o governo ; as dez horas da noite pouco
mais ou menos estavam reunidas no palácio do governo. O falecido tinha
um alvará , datado de 13 de Agosto de 1608, para poder nomear em vida
o seu sucessor, no caso de vir a falecer, contanto que não fosse seu
criado; mas não nomeou ninguem .
No dia 16 de Abril fez -se a eleição de governador na igreja matriz
e foi eleito o capitão mór Bento Banha Cardoso; o Bispo esteve pre
sente á eleição.
Lopes de Lima errou dizendo que a morte foi em 12 e a eleição em
15 ; ele não viu bem . Consta isto do « Traslado dos autos que se proces
sarão por morte do Governador do Reyno de Angola D. Manuel Pereira
e da eleição do governo em o capitão -mor Bento Banha Cardoso » .
(Corpo chronologico - Parte 2.', maço 319 documento 144 na Torre do
Tombo ).
Bento Banha Cardoso governou até fins de Setembro de 1615 , como
adeante digo em nota .
Em 1622 estando em Lisboa escreveu sobre madeiras de Angola e
sobre as minas de cobre do Bembe. Está no folheto n . ° 5 das Memorias
do Ultramar de Luciano Cordeiro, de que falei na nota á fl. 10.
Em 1624 teve nomeação de Capitão da gente de guerra . Em
19-12-1624 foi - lhe concedido, a seu pedido, o ordenado de 300 $ 000 reis
anuais. (Livro de consultas de partes de 1624 até 1625, fl. 19 , v. , no
Archivo de Marinha e Ultramar na Biblioteca Nacional).

76
em campo accompanhado de seu Capitão mor da guerra
Pero de Souza ( era de 1915 ) ( ) pessoa nobre e de valor Ca
valeiro fidalgo da Caza de Sua Magestade Conquistador dos
mais antigos. A primeira empreza em que se occupou foi em
hir contra os Sovas da Provincia do Lumbo que impedirão a
feira Real de peças que era couza naquelle tempo de mui im
portancia ao Commercio com os quaes Sovas teve muitas
batalhas e recontros, com mortos de muitos daquelles inimi
gos , não deixando de haver perda de gente portuguesa da
nossa parte, deixando tudo a obediencia da Coroa de Portu
gal , de que ainda hoje estão com a vassalagem do Principe
Nosso Senhor .
E para segurança daquella tão importante feira é que fi
cassem sofreados os Sovas daquella nova Conquista e Pro
vincia do Lumbo, deo ordem o Governador eleito a fazer
huma fortaleza um sitio conveniente, o que fez com todo o
cuidado e diligencia a que poz por nome a fortaleza de Amgo
por ser o nome do Sova Senhor daquellas terras , e a invoca
ção de São Bento, onde deixou por Capitão mor della a hum
Espanhol Nobre e Conquistador Antigo, por nome Roque de

Teve carta regia de Capitão mór da gente de guerra de Angola


em 2-4-1625 . (Chancelaria de Felipe III , Livro 30, fl. 176 ) .
Em principios de Agosto de 1625 chegou a Luanda com um so
corro , tendo saido de Lisboa em Abril ; era Governador Fernão de Sousa.
Lá se verá donde isto consta .
Morreu no Lembo, perto de Massangano, em 8-8-1628, tendo sido
levado para ali, onde foi enterrado. (Vêde a grande nota no Cap. I da
2. parte ) .
º O autor dá aqui a Luanda o titulo de cidade pela primeira vez.
Não aparece documento algum que mostre quando Luanda foi ele
vada a cidade; Lopes de Lima na pág . 93 diz que foi no primeiro go
verno de Manuel Cerveira Pereira; mas não dá a fonte de onde tirou
esta afirmação .
) Como se viu na nota antecedente esta data de 1615 é errada.
Deve ser 1611 .

77
que em tudo havia obrado com muita satisfação e valor dei
xandolhe a Infantaria necessaria para Guarnição da For
taleza .
Havendo posto o Governador aquellas couzas em boa
forma como de seu grande talento se esperava , lhe veyo
avizo como hum Sova dos Dembos, por nome Namboa
Amgomgo, alevantado del Rey de Congo que então se cha
mava seu Vassallo, e agora o he do Principe nosso Senhor,
São Miguel , que tinha já tido occupado em outros postos em
vinha descendo com quarenta ou mais mil combatentes, tudo
gente de guerra, havia dado em muitos Sovas nossos Vassal
los e os hia avassalando a sy, e impedia e cortava o sustento
que vinha á cidade de São Paulo da Loanda, de que ella se
sustentava em razão dos mantimentos para seus habitantes
€ gente forasteira, de que estava já em aperto, em razão da
opressão deste poderozo, e achando - se o Governador na
Conquista foi logo marchando com seu Capitão mor, e mais
Cabos á sua opposição, hindo dando guerra e castigando os
Sovas que voluntariamente sem opressão daquelle inimigo
tinhão sido rebeldes, com a nova que teve em como vinha
marchando o nosso Governador com seu exercito , e o que
vinha fazendo e dando castigo aquelles que elle cuidava , ti
nha já por seus Vassallos, bastavão estas noticias para se
desfazer o seu poder, e o dito Namboa Amgomgo se retirar
para suas terras mais que de passo, não querendo experi
mentar o valor do braço portugues, que havião já experimen
tado aquelles que elle tinha já por seus tributarios .
Com esta diligencia e presteza com que o Governador
acudio aquella opposição, se evitou hum notavel dano que
hia couzando aquelle poderoso Dembo e apotentado se po
dia chamar, pella soberania de seu trato, tendo insignias
Reaes, como são os pumgis de marfim que se avalia como
trombetas bastardas, e os capopos que são como atabales,
que por isso disse o Espanhol que la buena diligencia es

78
madre de la buena ventura . Fez outras emprezas o nosso
antigo Conquistador que foi dar guerra a hum Sova po
deroso chamado Dumbo Apebo, que neste tempo he da
lotação da nossa fortalesa de Cambambe, e o mesmo fez ás
pedras de Mapumgo e aos fidalgos Senhores dellas , que
para se haver de especificar cada huma occazião destas
de por sy , houvera mister huma grande escritura , pello
grande valor com que nellas se houve , dispondo tudo como
tão dextro e experimentado Soldado em que os nossos va
lerozos Portuguezes fiserão grandes proezas , pelejando tão
continuamente com tanta inmencidade de inimigos ,tão dex
tros e experimentados nas armas; compostas todas as cou
zas da Conquista deste Reino de Angola , dezasombrada a
Cidade da oppressão do Dembo, castigados e avassalados
muitos Sovas a Coroa de Portugal , e o mais que anteceden
temente obrou , como tão noticiozo das couzas de guerra ,
havendo dispostas muitas couzas necessarias ao Real ser
viço , se recolheo á Cidade este valerozo Conquistador e
Governador eleito, do qual ao diante havemos de fallar,
porque de presente cede o Governo destes Reinos a quem
lhe vem a succeder por ordem Real , que he Antonio Gon
salves Pita . (4 )

© O autor erra aqui , como aliás o tem sempre feito, na sucessão


dos governadores.
A Bento Banha Cardoso sucedeu Manuel Cerveira Pereira (go
vernador pela segunda vez ) em 1615 , tendo partido de Lisboa em fim
de Abril; não consta a data da sua chegada a Loanda, mas foi com
certeza em fins de Setembro de 1615.
António Gonçalves Pita tomou conta do governo, por eleição do
povo , em 1 de Abril de 1617, quando Manuel Cerveira Pereira foi
conquistar Benguela. (Vêde as notas ás pags. 60 e 63 ) .
A eleição do Pita para governador consta da cópia de uma carta
do governador Luis Mendes de Vasconcelos, escrita de Luanda em
28-8-1617; está no Arquivo Ultramarino.

79
Chegado que foi despachado pella Catholica Magestade
Antonio Gonsalves Pita por Governador e Capitão geral
destes Reinos na era de 1617, vindo com soccorro de gente
e muniçoens para proseguir a Conquista deste Reino de
Angola , assim como desembarcou em terra no porto da Ci
dade da Loanda, que tomou posse do Governo destes Reinos,
preparado de todo o necessario subio logo para a Conquista
pello Rio Coamza acima guarnecendo de caminho de ne
cessario a nossa Fortaleza de Muchima, sita na Provincia
da Quisama , como dito he , foi dali fazendo sua viagem a
Villa da Vitoria de Masangano Praça de Armas da Con
quista , e dahi foi provendo as mais Fortalezas de necessario
a suas defensas, e por estarem os Sovas da Provincia da
Quisama desaforados , fazendo aos Portuguezes tomadias na
passagem e navegação do Rio Coamza , recolhendo os es
cravos em suas terras esquecidos dos açoutes passados , or
dena o Governador ao Capitão mór do Reino Bento Banha
Cardoso (' ) que , se tinha cedido o bastão do Governador,
o não havia feito ao de Capitão mór, fosse com todo o poder
que havia a dar a entender aos Quisamas não faltavão ainda
mãos para castigar seus desaforos, o que o Capitão mór
poz por obra levando com sigo bons Cabos e esforçados Ca
pitaens que elle muito bem conhecia o para quanto pres
tavão pois havião militado em sua companhia de baixo de
suas ordens. Passado que teve o seu exercito o Rio Coanza
começou a fazer cruel guerra aquella bellicosa Provincia da
Quisama como quem sabia havia muito tempo aquelle Pais ,
onde começou a ter travadas pelejas e escaramuças sendo as

Ⓡ O que o autor aqui conta como feito por Bento Banha Car
doso no tempo de António Gonçalves Pita, foi feito pelo Cardoso no
tempo do seu governo ( 16 de Abril de 1611 a fins de Setembro de
1615 ) .
Veja - se a nota á pág . 74.

80
mais Conquistas havião até então tido em que se assina
larão muitos esforçados Soldados principalmente a gente de
a Cavallo tirando muitas Cabeças aos inimigos , trazendo -as
ao Capitão-mór, e elle tambem por seu braço emprendia as
mesmas façoens governando tudo com muito acordo e dis
posição, derramando muito sangue inimigo; e da parte dos
Portuguezes tambem tinhão o seu quinhão, porque o havião
com a mais bellicosa gente que há em todos estes Reinos,
e se podem mui bem comparar com as guerras Africanas
que não erão menos esforçados estes gentios do que aquelles
mouros, e houve negro Quisama tão valeroso e temerario
que passado de huma lança de hum soldado de a Cavallo
veyo assim passado pella lança acima com huma faca na
mão para offender ao Cavalleiro e o conseguia a não lhe fal
tar a vida primeiro; tendo havido muitas batalhas e recon
tros de guerra veyo aquelle numeroso e valeroso gentio a
amainar de sua furia vendo que não nos podião vencer em
Campanha se recolherão mal do seu grado ao sagrado, que
são os seus dilatados e espeços matos appellidandose alguns
por Vassallos e filhos de Maniputo , e tendose gastado nesta
empreza e Castigo muito tempo estando já o nosso exer
cito falto de todo o necessario tendo soffrido muitos tra
balhos e fomes por serviço de seu Principe deixando aquella
Provincia , na melhor forma se retirou o Capitão- mór com
seu poder com toda a boa ordem em que era bem dextro
aquelle Cabo e Capitão mór do Reino.
Foi dispondo o seu Governo (' ) Antonio Gonsalves Pita
acudindo a todas as occazioess de guerra por sy seu

Capitão mór castigando Sovas alevantados, dando a tudo


boa expediencia até que lhe veyo a Succeder no Governo

Contas o referido de papeis antigos de Conquistadores passados


pellos Governadores com quem servirão que sendo necessario mostrava
o Autor desta historia .

81
Luis Mendes de Vasconcellos fidalgo de grande experiencia
pello que havia militado em Flandes em o tempo que assistio
naquelles paizes em aquella guerra viva dos Hollandezes .

82
CAPITULO OUTAVO DA PRIMEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS EM O GOVERNO DE
LUIS MENDES DE VASCONCELLOS.

Chegado que foi a este Reino de Angola o Governador


e Capitão geral Luis Mendes de Vasconcellos ( ) em a era
de mil e seiscentos e vinte (2 ) foi pondo as couzas do Gover
no destes Reinos em boa direcção, assim em o que tocava ao
politico como ao da guerra de que tinha muita experiencia
como se vê do Livro que escreveo da arte militar; foi pro
vendo o novo Reino de Bengala e as fortalezas da Conquista
de Infantaria e muniçoens, e como o seu animo era ampliar
a Conquista e dispor algumas emprezas, que seu animo guer
reiro lhe estava dictando, determinou fazer por huma vez
a Conquista de Dongo (s ) que emprendia o Reino de An
© Estava nomeado em principio de 1616. (Consta da fl. 59, do
códice citado na nota á pág. 61 ) . Teve carta patente em 6 de Maio de
1616. enquanto o Rei o houvesse por bem e não mandasse o contrário .
(Chancellaria de Filipe II, Livro 36, fl. 115 ) .
Chegou a Benguela em 20 de Agosto de 1617 e seguiu viagem no
mesmo dia para Loanda, sem ali ter desembarcado, devendo ter chegado
a Luanda em 26 ou 27 de Agosto .
(Consta a carta de Manuel Cerveira Pereira, de 2-7-1618, citada
no princípio da nota á pág. 64 ).
Achou a terra em miserável estado por haver três anos que não chovia ,
() Esta era sepoem que he a que consta de papeis que o mesmo
Governador e seu filho João Mendes de Vasconcellos passarão. (Nota
marginal do Autor).
) Dongo se entendia o que é hoje a fortaleza da Embaca com sua
Capitania e Provincia do Airi, Pedras do Mapungo e Mauzondo e
sitio de Cabeça que tudo comprendia Sovas muito poderozos e Se
nhorios de fidalgos parentes do Rey de Angola e innumeravel gentio .
(Nota marginal do Autor).

83
7
gola em que os Governadores passados havião provado a
mão e feito aquillo que suas forsas poderão e como estava
com este proposito sabendo que na Villa da Victoria de Ma
sangano onde assistião a mayor parte dos moradores Con
quistadores antigos tinha havido hum alvoroto entre o Ca
pitão daquella Capitania e alguns moradores, e chegou a
estremo com hum morador dos mais principaes por nome
João Banha de Sâa natural de Arrayolos Villa do Estado da
Real Caza de Bragança, chegando a prizão, e como era
pessoa aparentado com genros authorisados, e bem quisto
dos mais moradores daquella Villa se forão meter na prizão
com elle avizando ao Governador á Cidade da Loanda , por
não perderem o decoro ao Capitão mór, para que elle como
superior o mandasse remediar; o Capitão se chamava Fran
cisco de Azevedo o Genges de alcunha feitura do mesmo
Governador e Capitão geral e de sua Caza.
Sabendo o Governador este desconserto teve motivo para
com mais brevidade subir a Conquista e dispondo sua par
tida deixando em a Cidade de Loanda por seu lugar tenente
a seu filho mais velho Francisco Luis de Vasconcellos, le
vando em sua Companhia a seu filho mais moço João Men
des de Vasconcellos, partio accompanhado do Capitão mór
da gente de guerra que então era Silvestre Soares, por
quanto Bento Banha Cardoso, capitão mór do Reino, se
havia neste tempo embarcado para o Reino a ir dar conta
á Catholica Magestade da Conquista e estado em que se
achavão as couzas destes Reinos, como tão noticiozo dellas,
levando tambem para aquelle intento alguas pessoas de mais
consideração moradores Conquistadores antigos que havião
exercitado postos mayores nas guerras passadas; feita sua
viagem da Cidade a Tombo, e dahi pello Rio Coanza acima
tendo alguns rencontros na viagem com os Quisamas vizi
tando o nosso presidio e fortaleza de Muchima provendo - a
do necessario a sua defensa e conservação como já o havia

S4
tambem feito da Cidade, feito este provimento navegou o
Rio acima até Masangano.
Chegado que foi aquella Villa tomou conhecimento do
procedimento dos moradores com o Capitão e vendo que
o Capitão havia andado muito demaziado em semelhante
acção o mandou prender em hum grilhão de bom tamanho
que o Capitão havia mandado forjar para nelle metter
aquelle nobre e autorizado Conquistador, (1 ) nelle o mandou
prezo para a Cidade, imitando nisto o touro inventado ou
forjado por Perrilho, que veyo elle a ser o primeiro que ex
perimentou semelhante inventiva de tormento que havia feito
para atormentar a outros; soltou o morador e tudo posto em
boa paz e amizade comunicou seu intento aquelles moradores
soldados Conquistadores , que já que havia subido a Con
quista que não havia de ser de balde, pois o elles passarem
com quietação o tinha desinquietado a elle que havia deter
minado entre sy de fazer aquella Conquista de Dongo, e
com ella trazer ao Rey de Angola (2) ao conhecimento da
razão, pois tão contumaz persistia ás nossas armas sem que
rer admitir a Lei de Deos e os Costumes da Santa Madre
Igreja, sendo tanto o seu altivez que não queria lhe chamas
sem Raynha se não Rey (3 ) e Varão e como tal se tratava.

Ⓡ O autor chama aqui conquistador ao tal morador de Masangano.


ľ ) O rei de Angola era Ngola a Mbandi, que começou a reinar
em principio de 1617. Era irmão da que foi depois rainha Jinga .
O autor anticipa aqui os factos sucedidos com ela ; ele mesmo na
nota á margem mostra a sua dúvida .
☺ ) Não faça duvida o curioso Leitor chamar agora Rey á Raynha
Ginga porque sendo mulher assim se intitulava, e não admittia outro
nome .
E lhe parece a algumas pessoas que quando se fez esta Conquista
de Dongo que ainda reinava Angola Ambandi quer fosse a elle ou a
Raynha Ginga esta guerra foi feita a el Rey de Angola cujo senhorio
era a Provincia e Reino de Dongo . ( Nota marginal do Ador ).

85
Vendo aquelles Conquistadores a proposta du Guver
nador sua deliberação e ser de utilidade ao Reino aquella
Conquista de Dongo, e como hum Sova poderozo por nome
Mobamga parente dos Reys de Angola dava porta e entrava
por suas terras para a dita Conquista se conformarão todos
com o parecer do Governador, e elle ali logo os convidou
a accompanharem -no naquella Conquista e empreza; para
assim o fazerem se forão preparando do necessario para a
jornada, e o Governador pondo em ordem o apresto neces
sario para a guerra daquella Conquista; tendo posto tudo
em boa forma sahio da Villa da Vitoria de Masangano mar
chando com seu exercito formado para a Provincia do Mo
seque onde havia mui poderozos Sovas unidos com a Raynha
de Angola Ginga (1 ) sua Senhora, tendose muitos delles
Rebellado contra nós seguindo seu antigo Senhor com os
quais houve muitas batalhas campaes e foi tanta a degolação
daquelle apinhado gentio que se não pode numerar, sahindo
as nossas armas vencedoras; quando o Governador fez
aquella marcha para aquelle Sertão formou Esquadrão com
suas mangas e batedores ou descubridores do campo ao
uzo de Flandres onde havia militado; e como o terreno tinha
barrocas e caminhos estreitos pellos matos que aquelle
gentio uzava tellos daquella sorte de industria , em a forma
tura de Esquadrão, como marchava o nosso Governador com
sua gente apinhados todos ás frexas e azagaias com que
atirava aquelle numeroso gentio quer fosse por pontaria quer
por levação todas cahindo acertavão os nossos Portuguezes
de que tinha havido muitos feridos, o que visto e experi
mentado pellos Cabos e Capitaens Conquistadores do Ser
tão advertirão ao Governador o dano que hindo em Esqua

C ) A rainha Jinga só começou a sua vida guerreira depois da morte


de seu irmão, a qual foi no ultimo quatrimestre de 1623. Veja-se a
grande nota com a sua história no 1 ,º capítulo da 2.* parte.

86
drão formado recebião os do nosso Exercito como lhe era ao
Governador bem patente, e o trabalho que havia com a
marcha hindo abrindo caminhos por matos, que hindo a
marcha a desfilada como elles costumavão nas Conquistas
que havião feito e se tinhão achado hia agente com mais
commodo marchando com mais desafogo e não tão offendi
dos das frechas e tiros de azagaias de tantos inimigos.
Vendo o Governador que tinhão razão no seu dizer
aquelles Conquistadores pois assim o tinha visto e experi
mentado veyo em que se fizesse aquella Conquista como
tinhão por costume em as mais que havião feito e que cada
terra com seu costume; que o dispozessem como melhor o
entendessem , e assim o deu por ordem a seu Capitão mór
da gente de guerra Silvestre Soares; foi esta disposição cauza
de que em muitas batalhas que com aquella Rainha e seu
inumeravel gentio de não serem os nossos Portuguezes dali
por diante tão molestados que conforme seu grande numero
milagrosamente sahimos bem e vitoriozos pois pelejavão os
nossos valerosos Portuguezes por estender o santo nome de
Deus por estas tão remotas partes da Ethiopia Occidental
dandonos vitorias contra os inimigos de sua Santa fé que
persistião em não quererem vir ao verdadeiro conhecimento
de Deos.
Tendo experimentado aquella Rainha de Angola o valor
com que se houve o Governador e a gente do seu exercito
e a perda notavel que lhe havião couzado mandou seus Em
baixadores (1 ) assentar paz com o Governador; não consta

© Há aqui confusão do autor. A verdade é o que consta da nota


seguinte , pois oferece garantia de certeza, por ser aquela relação man
dada de Luanda no ano destes acontecimentos.
Ngola Mbandi não mandou embaixada alguma a éste governador
a pedir a paz. Protestou somente contra a estada do novo presidio de
Ambaca, de que se fala na folha seguinte. Veja-se a nota sôbre a Jinga,
no capitulo 1.º da 2.* parte.

87
da capitulação, razão porque della não fazemos menção, que
então devia de haver com estes barbaros poucas escrituras;
tendo a dita paz assentada adoeceo o Governador com o
muito trabalho e lida que havia tido em aquella conquista de
Dongo com o que lhe foi necessario virse curar ao Loanda
como terra mais sadia deste Reino, deixando na conquista
por seu lugar tenente a seu filho João Mendes de Vascon
cellos que o havia accompanhado em toda aquella Conquista
com muito cuidado e valor achandose nos mais arduos con
flitos, mostrando em tudo ser filho de tão bom Pay emo
esforso e valentia com que se houve.
Hindo governando a guerra a fez aos rebeldes alevanta
dos tendo com elles muitos tranzes de batalhas havendo - se
em tudo com valor e disposição, e tendo noticia que a for
taleza de nossa Senhora da Asumção que nesta Conquista
de Dongo havião fundado a que chamão da Embaca por se
haver mudado para aquella parte a fortaleza chamada de
Ango e não ser ali onde estava muito necessaria por a Con
quista do Reino de Angola (+ ) se ir continuando para o Ser
tão e estar esta de Ango mui proxima a Masangano e Cam
bambe onde havia mais abundantes feiras de escravos a res

() As relações de Manuel Serverim de Faria, de que se fala na


nota á pág. 61 , têm as seguintes noticias sõbre éste Governador. Na re
lação de 1 de Março a fim de Fevereiro de 1620, de fl. 1620, v., a
fi . 163 , v. , diz o seguinte :
De 1 de Março de 1619 a fim de Fevereiro de 1620 fl . 162, v.,
a fl. 163 , v.
Estas datas são de quando aqui foi dada a noticia, mas em Angola
são dum ano antes.
Em Angola entrou o Governador Luiz Mendes de Vasconcelos pela
terra dentro e visitando os nossos presidios desfez o de Ango e em seu
logar levantou outro longe em terras de El Rey de Angola. Pelo que
apartando-se daquele sitio foi o novo presidio cercado estreitamente,
porém os soldados se defenderão com esfôrço sofrendo muito por ser
dificultoso de socorrer. A principal razão da guerra foi por respeito

88
peito da conquista que se hia proseguindo, sabendo o tenente
da pessoa do Governador tinha sido a cometida por vezes
de muita forsa de inimigos a mandou por estar distante a
soccorrer pello Capitão mor da gente de a cavallo Luis Go
mes Machado com gente volante de bom pé e com o Jaga
Caza com seu Quilombo de Jagas que neste tempo accompa
nhava a nossa guerra servindo elles e os seus como Soldados
de fortuna a Coroa de Portugal, e atraz deste soccorro veyo
marchando o Capitão mor tenente da pessoa João Mendes
de Vasconcellos; o Capitão que se achava na fortaleza por
nome Manuel Castanho Soldado Antigo da Conquista havia

de hum sova, chamado Gaita, ) a quem favorecia o Rey de Angola,


pelo que passou o rio Lutete e derão na Banza de El Rey, onde fizerão
grande preza. Estavão aqui os Paços Reaes, ainda que de palha sump
tuosos, porque por dentro erão levrados de penas de Pavões, e de outras
aves, com diversos lassos e lavores; depois de feita a preza abrazarão
tudo os nossos e se recolherão ao lugar de Cabaça, onde invernarão,
e pelas muitas agoas adoecerão e morrerão muitos soldados e o Go
vernador esteve ungido. Daqui contudo enviou huma embaixada a El
Rey de Angola, em que o mandava chamar para tratarem das pazes,
porem elle não quiz vir, antes lhe mandou dizer por outro embaixador
se sahisse de suas terras, e que então trataria de pazes. E com isto
so retirou o Governador para Lucala, onde fez o Presidio já dito e se
veio a curar a Loanda, deixando no exercito João Mendes de Vascon
cellos seu filho, o qual desbaratou o sova Gaita e mandou degolar ou
tros 94, com algum escandalo dos naturaes. Feito isto dividio o exer
cito em duas partes, huma foi para o Presídio novo , e com outra foi
dar em outro sova, chamado Mani cassange , o qual acolhendose para
o matto roubou depois a nossa bagagem, e assim se retirou sem outro
efeito a Loanda por então; mas voltando depois ao novo Presidio en
trou o nosso exercito nas terras de El Rey de Angola, onde houve mui
tas victorias e assaltou a cidade onde estava o mesmo Rey que escapou
fugindo, deixando sua May e mulheres em poder dos nossos, que com
muita preza e escravos as trosseram tambem cativas.
Aos malles ordinarios que a guerra traz consigo se acrecentou a

() Gaita é erro ; deve ser o Jaga Caiete ou Caita.

89
defendido com muito valor a fortaleza de que havia dado
homenagem acudindo a tudo como dextro Capitão tambem ;
tendo novas as mais fortalezas principalmente as da Villa
de Masangano o aperto em que a nossa fortaleza estava se
forão alguns moradores de sua livre vontade por serviço de
seu Princepe a hirem metterse nella com suas armas e es
cravos; com a chegada de huns e outros ficou aquella forta
leza socorrida e o inimigo roto e desbaratado . Nesta occazião
do Cerco da Fortaleza de nossa Senhora da Asumção da
Embaca accompanhou tambem ao Tenente General o Jaga
Donga com seu Quilombo o qual servia de baixo de nossas

grande fome por haver 4 annos que não chove na terra, com o que
está aquelle Estado muito trabalhado. E bem tem mostrado o tempo
como são de pouco efeito estas guerras em Angola, porque como o fim
desta conquista não seja buscarem os portuguezes terras em que vivão ,
mas somente a conversão e comercio dos naturaes, em havendo guerras,
de força parão ambas estas cousas, e assim nunca esteve tão prospero
aquelle Estado como em tempo do Governador João Furtado, o qual
deixando as guerras se pôz de paz com todos os vizinhos e correndo
as feiras e muita contractação veyo a engrossar tanto a terra, que a
elle se deve o principal de Loanda. Agora vay para Governador deste
Estado João Roiz de Sousa, (sic. mas é João Correia de Sousa ).
De Março de 1621 até todo o Fevereiro de 1622. Fol. 174 v.
(Em Luanda — Março de 1620 a Fev. de 1621 ) .
Em Angola seguio o nosso Exercito a guerra contra El Rey de
Angola e lhe cativou a sua principal mulher com outras pessoas de
sangue real , que forão tratadas do Governador com muita cortezia e
respeito , e não achando o nosso exercito resistencia em todo aquelle
Sertão, correo aquellas pronvincias deixando- as dezertas de habitantes.
Tal foi a matança que se fez nos naturaes da terra, posto que se não
veja ainda o bom efeito que hade resultar de tanta carneçaria, porque
cão he esta a via para florescer o comercio nem pregar-se o Evangelho,
que he o que naquelle Estado se requere . Em Loanda fez o Gover
nador humas insignes festas á Beatificação do Santo Padre Francisco
Xavier.
Estas festas foram em 2 e 3 de Dezembro de 1620.

90
bandeiras, como o fazia tambem como dito he o Jaga Caza,
o qual, tendo -nos assistido á Conquista de Dongo com o
Governador e Capitão geral, se rebellou o que obrigou ao
Governador estando já de convalescença de seus achaques
a tornar á Conquista a dar as ordens necessarias por ser
cauza de muita importancia o afastarse - nos este poderozo
Jaga e tambem se havia rebelado outro Jaga por nome
Caza, de que se tem nesta historia feito menção quando fi
cou por tutor do filho del Rey Gola Ambandi (1 ) que tão
boa conta deo delle; e tinha tornado segunda vez o Tenente
General João Mendes de Vasconcellos ao soccorro da for
taleza de Nossa Senhora da Assumção a respeito de se
rebellarem muitos Sovas nossos Vassalos e estes ditos Ja
gas, que havião ficado em defença a nossa fortaleza com a
gente Portugueza, e torna a ter com aquelles obstinados e
traydores gentios muitas batalhas campaes com derama
mento de muito sangue inimigo e algum nosso.
Estando a nossa fortaleza de Embaca dezafrontada de
tantas invazoens inimigas , sabendo o Tenente General como
todos os Sovas Vassallos banidos por aquella ardiloza Rai
nha com confederação para darem em toda a gente portu
gueza quando mais descuidados estivessem ; fez maca , (2 )
chamando todos aquelles Sovas fidalgos em terreiro, onde
forão os mais delles convencidos de traydores verbalmente
conforme o costume destes Reinos, que não há processo nem
papeis mais que por testemunhas a que chamão bangis, (* )
serem naquelle acto e publicamente convencidos, mandou

© Este facto foi depois da morte do rei Ngola a Mbandi, que foi
no ultimo quadrimestre de 1623 , como já fica dito em nota .
“ ) Maca he ajuntamento em terreiro público para cada hum dar a
sua razão , daqui lhe ficou tambem aos Sovas jurarem mocasaxi. ( Nota
marginal do Autor ).
) Mbangi, jimbangi, testemunha.

91
em os culpados fazer nelles ali logo huma grande degolação,
que não lhe ganhou a que fez el Rey Xico em os Abencerra
gis em a Cidade de Granada (' ) nem tão pouco a que fez o
famozo Duque de Alba em Flandes, de pretos em fóra, que
todos ficarão ali pagando com as cabeças fóra sua trayção,
o que ficou immemoravel para os vindouros, e todo o gentio
destes Reinos atonitos e temerozos, que só com rigor e temor
he que nos conservamos com este indomito gentio.

() Guerras civis de Granada causa a degolação dos Abencerragis.


É António de Herera em a historia general do tempo del Rey Dom
Phelipe prudente que relata o que obrou o Duque de Alba em os paizes
de Flandres. (Nota marginal do Autor ).

92
CAPITULO NONO DA PRIMEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS PROSEGUINDO O GO
VERNO DE LUIS MENDES DE VASCONCELLOS .

Chegado que foi aquella fortaleza de Embaca o Gover


nador e Capitão geral Luis Mendes de Vasconcellos, que
dista de Masangano quarenta Legoas e da Cidade de
Loanda outenta, despachou logo a seu filho e seu Tenente
General com a mayor parte de seu exercito em seguimento
dos Quilombos de Dongo, e Caza , até a fugentalos tendolhe
no alcance feito grande destroço.
Foi sahindo o Tenente General a alguns assaltos, como
forão nas pedras de Mauzondo, e Maupungo, onde teve
grandes conflitos de guerra , e muitos recontros com os fi
dalgos daquelles Senhorios matando muito daquelle gentio
e aprisionando outros havendose em tudo com valor e dis
posição, tendo elle com a gente de seu exercito muito tra
balho em estas jornadas em que se assinalavão muitos
daquelles Conquistadores , em as pelejas e sofrimentos de
mizerias e fomes que padecião por aquelle asperozo Sertão,
tudo em serviço de seu Principe e augmento da Santa fé
Catholica. Podemos aqui aludir huns versos do nosso in
signe poeta Luis de Camoens fallando com o Catual de
Calicu .
Cres- tu que se este nosso ajuntamento
de Soldados não fora Lusitano
que durára elle tanto obediente
por ventura a seu Rey e a seu Regente.

Tornado o Governador para a Loanda por lhe parecer


não ser mais necessario na Conquista, em que não fazia

93
falta, tendo hum seu filho seu Tenente General tão valeroso
e dextro nas couzas de guerra , ao qual deixou por ordem
fosse em demanda da Rainha Ginga que estava unida com
o Jaga Caza e Domga, e os perseguisse pois não guardava
a paz , e se opponha contra o nosso exercito , fazendo a tudo
opposição em odio da Nação portugueza, o que o Tenente
General fez com muita deligencia tendo com a Rainha e
Jagas grandes batalhas, matando e aprisionando muito
daquelle gentio com que botou ao Jaga Caza desbaratado
fora da Provincia de Domgo, e ao Jaga Domga houve as
mãos prezo e o seu Quilombo posto em rota, mortos e pri
sioneiros muita parte delle.
Havendo estas emprezas com tanta reputação das Ar
mas Portuguezas, marchou com seu Quilombo para a Pro
vincia do Ayri, dando nela batalha a hum poderoso chamado
Quijilo, onde houve grande peleja, dando rota a Quilamba
bamba a Coanza , entrando nas terras de Quiloangi Ca
Congo, e a Quitexi, Conquistando estes poderosos e avas
salando á Corôa de Portugal , fazendo entrada no Reino de
Matamba, dando batalha a Andala Amdamgi , que com
poderosos esquadroens esperava o nosso exercito em cam
panha , alcançando huma grande victoria, entrando e des
truindo a Banza e Povoação de Mulundo Acambolo Rainha
daquelle Reino (de Matamba ) , (* ) hindo da quelle sitio em
demanda da dita Rainha , deu batalha a sua gente ao Tenente
general e seu exercito acometendo-o com muito poder e
força em que se obrou em os rezistir com muito valor, que
bem lhe foi necessario em este tamanho aperto e conflito,
em que mais se assinalárão foi a gente de a Cavallo fazendo
façoens valerozas a que ajudava pessoalmente o Tenente
General com seu conhecido valor e disposição, matandose

( ) Matamba era o que hoje tem o nome de Duque de Bragança


e Jinga.

94
nesta occazião muitos inimigos que tinhão vindo com seus
esquadroens, a que elles chamão Muzengos, buscar o nosso
exercito, mandados da Rainha sua Senhora, com ordem nos
tomassem ás mãos a todo o risco, cauza porque esta batalha
foi mui renhida e sangrenta , mas a piedade e mizericordia
de Deos que pelejava em nossa ajuda foi servido dar ven
cimento aos Portuguezes pois pelejavão por exaltar o seu
santo nome contra estes barbaros idolatras, inimigos de sua
santa fé.
Hindo proseguindo com esta Conquista o nosso valeroso
Conquistador João Mendes de Vasconcelos, e para se espe
cificar successo por successo houvera mister huma grande
escritura, e por não haver no tempo que se escreve noticio
zos daquelle tempo que o relatem , cauza porque o autor
desta historia fez este compendio de seus valerosos e assina
lados feitos, o que relatão por mayor como está escrito em
alguns papeis de serviços de Conquistadores antigos que
nestas tão arduas emprezas accompanharão ao Tenente Ge
neral, de quem o autor de alguns teve fala, e com venera
ção contavão suas proezas.
Proseguindo dita Conquista do Reino de Matamba foi
marchando com seu exercito para a Bamza ou povoação dos
Reis antigos daquelle Reino, em que teve novas batalhas
e recontros sahindo de tudo vencedor, hindo tambem contra
hum poderozo daquelle Reino Quilamba Amgomdo, tendo
com elle batalha campal até ser roto e desbaratado o seu
Quilombo, ficando elle morto na peleja com muitos dos seus
e outros aprisionados; e em esta Conquista do Reino de
Angola Provincia chamada de Domgo que he tambem do
mesmo partido, e em esta dilatada entrada e conquista pella
terra dentro do Reino de Matamba gastou o Tenente Gene
ral e valeroso Conquistador (1) alguns quatro annos sempre

(") Governou 4 anos, 1 mês e 15 dias.

95
em continua guerra, tendo batalhas e recontros mui a miudo
padecendo elle e seu exercito muitos trabalhos, fomes, e mi
zerias, rezistindo a tudo como famozos e valerozos Portu
guezes Conquistadores, que se podem singularizar entre as
mais Naçoens do mundo a sua constancia a serem supor
tadores de trabalhos, Leaes em obediencia de seus Superiores,
e serviço de seu Principe, como tem mostrado em todas as
suas Conquistas.
Foi tanto o nome e opinião que ganhou o nosso Con
quistador com todo este gentio, entrando tanto com a Con
quista pella terra dentro, na Conquista e entrada que fez,
em o Reino de Matamba, que lhe chamavão a huma
voz todos o Catunda ( 1 ) que na sua lingoa interpreta o filho
do Sol; muito tempo esteve seu Pay Governador sem sa
ber novas delle nem tão pouco de seu exercito, cauzado, que
como a Rainha de Angola Ginga ficava pellas costas, im
pedia toda a communicação, e por estar tão suspenso , sem
saber do seu Tenente General e filho, lhe mandou ordem
se viesse recolhendo com seu exercito, e em cazo que o não
fizesse ordenou ao Capitão mor da gente de guerra e mais
Cabos o não consentissem fosse mais por diante, pois ti
nha já o poder muito diminuto com o rigor da guerra e
aspereza do Sertão; o que elle chegada a ordem logo
obedeceo, vindose recolhendo de tão prolongada assistencia ,
victoriozo .
Mas há , que tendo este valeroso Governador feito e

© Assim como as Naçoens deram o nome de grão Capitão a


Gonçalo Fernandes de Cordova em a Conquista do Reino de Napoles,
assim este gentio deo o de filho do Sol ao nosso Conquistador.

Antonio de Hereta ou outro Escritor em a historia del Rey Dom


Fernando o Catholico em as Ligas e emprezas de Italia falla do Gram
Capitão. (Nota marginal do Autor ).

96
Conquistado o que se há referido, em a Conquista destes
Reinos assinalandose por sy , e seu tão bem afortunado fi
lho Tenente General da Conquista, Lugar- tenente do Go
vernador seu Pay, chegando com ella aonde nenhum até
então havia chegado, lhe tinhão os emulos e mal contentes
que em nenhuma parte faltão, e não perdoão a mayor Alteza
feito a Cama, como lá dizem, ao Governador e a seus filhos,
escrevendo e formando culpas delles a Magestade Catholica ,
cauzado tudo de huma pura enveja e dezafeição, com que
os mandou Sua Magestade prender e sendicar; ( ) estas são
as pagas que o mundo dá a quem melhor o serve como o
experimentarão alguns Heroes na Conquista da India a
Oriental, como foi o grande Affonço de Albuquerque, hum
Duarte Pacheco, Lopo Vas de Sampayo e outros insignes
homens Portuguezes e de outras Nacoens; assim que se
console o nosso Governador e seus nobres e fidalgos filhos;
não forão sós os que passarão pellos rigores do tempo que
faz cauzar o odio e a enveja dos Vassallos vendo a huns
mais avante que a outros , pois se o merecerão por seu braço
e valor, porque lhe a tirar seu lustro o envejozo, que se não

( ) As relações de Manuel Severim de Faria, de que já falei, teem


a seguinte noticia :
Março de 1622 até Fevereiro de 1623. Fl . 182 a 183.
(Março de 1621 até Fevereiro de 1622 ) .
Em Angola entrou João Correa de Sousa por Governador e o sin
dicante Antonio Bezerra para tirar devassa de Luiz Mendes de Vas
concelos que deixava aquelle governo , que o mandou desterrar e de
pois confiscarlhe toda a sua fazenda , e metido em estreita prizão o
enviou para este Reino, porem elle chegando ao Brazil se soltou da
prizão e desembarcando occultamente no Reino se fez á Côrte, onde
deu hum memorial a S. Magestade dos grandes serviços que em An
gola lhe fizera e dos grandes agravos que em premio delles lhe tinha
o sindicante feito; e ainda que ao principio não foi ouvido, depois se
lhe admitirão seus requerimentos e se mandou se lhe deferisse com

97
atreve, seus merecimentos; isto he a moeda que corre desde
o principio do mundo, como se vio em os filhos do primeiro
Pay, não he muito se visse naquelle, e se veja ainda neste
entre filhos de tão diversos.

justiça. ( ) Esta boa fortuna não teve o sindicante, porque, vindo muito
rico e partindo já do Brazil na ultima frota para o Reyno, com huma
tormenta tornousse ás ilhas e, chegando depois de muitos dias de tor
menta ao Cabo de S. Vicente, foi cercado de 4 navios de inimigos,
que sem resistencia o entrarão e levarão a Argel deitando somente em
terra 4 homens doentes que contarão este miseravel sucesso .

( ) Este governador, Luis M. de Vasconcelos, foi um dos mais


perniciosos governadores de Angola pelas gravissimas consequencias
que resultaram das muitas extorsões feitas ao rei e da desmedida am
bição tanto dele como de seu filho Francisco. — É certo que teve gran
de protecção para D. Felipe III, ou melhor para os governadores do
Reino, pois conseguiu falsamente reabilitar -se dos seus crimes e la
trocinios.
D. Felipe III, em carta de 22-8-1625 para os governadores do
Reino, tratando da fortificação de Luanda, manda que seja formada
uma Junta, da qual faria parte Luis M. de Vasconcelos, para se ver
o que devia ser feito sobre a dita fortificação. — Veja -se adeante na
nota ao Bispo D. Fr. Simão Mascarenhas, no fim do capitulo 1.º da 2."
parte , a cópia da dita carta régia . - A Junta foi feita como o Rei man
dou; a cópia do auto está na fl . 214 do I tomo dos Livros de Fernão
de Sousa , de que em nota falarei no seu governo, no capítulo 12.º da
1. ' parte.

98
CAPITULO DECIMO DA PRIMEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS, E PRINCIPIO DO GO
VERNO DE JOÃO CORREYA DE SOUZA.

Succedeo em o Governo destes Reinos de Angola João


Correya de Souza, (* ) vindo despachado do Reino de Por
tugal pella Catholica Magestade por Governador e Capitão
General destes Reinos e suas Conquistas, na era de 1623 ,
o qual havendo tomado posse do Governo, tratou de prover
alguns postos e Officios que estavão vagos como tambem
as fortalezas assim da Cidade como da Conquista deixando
de caminho quando passou pella Costa do Mar soccorrido
o Reino de Bengala , (? ) aonde havia tomado o primeiro
posto desta Ethiopia Occidental, de gente e muniçoens; foi
dando ordem ao governo politico, administrando justiça, fa
zendo seu Lugar-tenente e Capitão Mor da gente de guerra

ľ ) João Correia de Sousa estava já nomeado em Janeiro de 1620;


teve patente em 7-4-1621, enquanto o Rei o houvesse por bem e não
mandasse o contrário . ( Chancelaria de D. Felipe III , Livro 9, fl. 10) .
Em fins de Junho de 1621 ainda estava em Lisboa, Passou por
Benguela em 4-10, mas não desembarcou. Estava ali Manuel Cerveira
Pereira, o qual, em carta de 7-11 do mesmo ano , se queixou ao Rei
do governador não lhe ter dado soldado algum. Esta carta está na
caixa 145 do Arquivo Ultramarino, na Biblioteca Nacional
O governador deve ter chegado a Luanda em 12-10-1621. Como
se vê não foi em 1623, como o autor diz .
) Este Governador não deixou gente nem munições em Benguela.
O Cerveira estava doente e não poude ir a bordo. Diz elle na carta
que escreveu ao Governador: « Vossa Senhoria seja muy bem chegado
e bem ido a Loanda; dalma estou sentido estar no estado em que estou
sangrado 4 vezes e com uma fonte aberla há 4 dias em hum braço que
he causa de não poder ir pessoalmente ver a V, S, e dar - lhe um grande

99
8
a Pedro de Souza Conquistador antigo, Soldado de muito
valor e experiencia, que havia occupado postos Mayores
na guerra deste Sertão, Cavalleiro fidalgo da Caza de sua
Magestade, e, como pessoa tão noticiosa das couzas de
guerra e Conquista destes Reinos, lhe encomendou a guerra
e Conquista da Emsaca, chamada de Casangi, mui pro
xima á Cidade, onde tinha as suas terras, e povoaçoens
hum Sova poderozo do mesmo appellido, com outros seus
adjuntos mettidos em matos espezos e barrocas, o que
occupava muitas legoas de terra e o nome da Emsaca se
derivava a mesma espesura dondo sahião aquelles gentios
a assaltar e roubar aos caminhos por onde vinha o sustento
para a Cidade, assim aos que vinhão dos arimos e fazen
das de Bengo, como aos das outras partes mais distantes
que tudo lhe vinha a cahir nas mãos destes ladroens de es
trada roubando cativando e matando a tudo o que olhavão,
tendo seu valhacouto na espesura e fortaleza da sua En
saca que por isso se appelidava a Ensaca de Casangi como

abraço ... Aqui estou com 55 companheiros entre velhos e meninos e


eu quasi cego do olho esquerdo e cada dia com as armas na mão pellos
inimigos verem o miseravel estado em que estamos. Se V. S. por ser
viço de S. Mag.de nos pode fazer m . de as soccorrer com alguns sol
dados, a elle faz grande serviço e a nós m ,“ m. por não perecermos em
mão inimigas ... >
O Governador Sousa respondeu -lhe: «... Confesso as novas que
acho de Angola de estar tudo revolto e baralhado mal me posso eu
resolver no negocio dos soldados, de mais de trazer muy poucos, e elles
de muy má vontade ficarem neste sitio ... >
Estas cartas são datadas de 4 de Outubro de 1621, sendo a do
Gov.am de bordo da nau em que ia . Estão as copias dentro da carta
do Cerveira para o Rei. O Gov.for Sousa além de não dar soldado algum
ao Cerveira ainda convidou o Ajudante do reino e Benguela e um sol
dado, que foram a bordo mandados pelo Cerveira, a que fossem para
Loanda, que em Benguella nada fariam nem para Deus nem a ElRei.
O Cerveira queixou-se disto ao Rei na carta já mencionada.

100
até o dia de hoje tem esse nome, e se tinhão tanto desa
forado que até á Lagoa dos Elefantes, chamada assim pello
antigo e agora as Cassimas da Maianga onde havião da
Cidade buscar agoa, vinhão estes Ladroens tomar a gente
preta escravos dos Moradores da Cidade.
Encommendou o Governador esta guerra de tanta con
sideração ao valerozo Pedro de Souza , Capitão Mór da
gente de guerra, e Lugar Tenente do Governador; sahindo
da Cidade com todo o apresto de Soldados Conquistado
res Cabos e Capitaens de experiencia, com peças de Arti
lharia de Campanha muitas muniçoens e todo o mais apare
lho necessario, para aquella empreza, pouco mais de duas
legoas andadas, começou o nosso Capitão com seu exército
a batalhar com aquelle numerozo, e esforçado gentio de
fendendo elles o seu partido e matos com muito valor, e
como pelejavão quazi cubertos delles, nos ferião muita
gente com suas agudas frechas e azagaias que atiravão á
nossa gente Portuguesa á mão tente, mas com as nossas
Armas de fogo e muitas balas dellas despedidas, e da Ar
tilharia de Campanha , lavoravão aquelles matos, em que se
fazia grande rastilhada daquelles inimigos.
Prevenio o Governador por assim lho mandar advertir
o Capitão mor da guerra mandasse pessoas de porte com
gente tomar os passos do Rio Coanza, onde hião a deman
dar as terras destes inimigos, assim por não terem soccorros
da Provincia da Quisama seus Amigos e Aliados , como
tambem por não terem por ali escapula, para o que mandou
ao Capitão mor de Veloria, com seu genro Antonio Bruto,
que ambos havião occupado postos mayores na guerra do
Sertão, como se tem dito em esta historia, fossem tomar
hum sitio eminente sobre o Rio Coanza frenteiro a Quisama
Senhoriando dali aquella passagem com alguns Soldados
para sentinellas, e guarda daquelle passo , e o mesmo man
dou ao Capitão mor Roque de São Miguel que o havia sido

IOI
da fortaleza , de Ango, fosse para outro sitio sobre o mesmo
Rio Coanza, tambem eminente a que chamão o Sambelo,
que dali fizesse opposição com alguma Infantaria á gente
daquella Provincia, não passassem em favor dos Sovas da
Ensaca, nem tão pouco deixasse passar os da Ensaca para
a banda da Quisama; de então para cá ficarão estes dous
sitios no Rio Coanza com os nomes destes Cabos, hum de
penedo do Bruto , e outro de Roque dos quaes em outra parte
se fará mais larga menção que se falle em este caudaloso
Rio Coanza e em suas monstrozidades que agora estamos
com esta guerra da Ensaca entre mãos.
Havendose feita esta prevenção em as passagens do Rio
Coanza, se foi continuando com esta intrincada guerra,
havendo todos os dias batalhas e refregas com aquelles
gentios, que com valor defendião suas terras e moradas, e
chegavão muitas vezes á mão tente a offender a nossa
gente com suas armas, e a serem offendidos das nossas;
cada palmo que hiamos ganhando custava aos Portuguezes
muito sangue; o Governador se não descuidava, como es
tava a Cidade tão perto, com mandar continuos soccorros
assim de gente como de sustento, porque naquelles matos
e barrocas não havia em que por olhos e sem embargo que
lhe chegava a nossa gente a algumas povoações, não se
achava mais que o de que erão as suas cazas compostas,
que o que era sustento e alguma cousa que possuhião o
tinhão mettido no intimo dos seus matos e funderbens, com
que se não forão tão soccorridos a miudo da Cidade pello
Governador mal se podéra ir com aquella tão difficultoza
empreza por diante.
Em esta profiada Conquista obrarão os valerosos Por
tuguezes muitas façoens de guerra assinalandose em o dis
curso de alguns mezes que assistirão a Conquista deste es
pesso pais com grandissimo esforço, tendo muitas batalhas
e recontros com aquelles obstinados gentios matandolhe e

102
aprisionando a muitos pondo a fogo suas Libatas, Banzas,
e mais Povoações (1) até que não podendo mais suportar
c rigor de nossas Armas tratavão de largar o campo
pondose em fugida para a parte do Reino de Congo onde
tinhão suas inteligencias, e reconhecido aquelle Reino como
Vassallo, o que visto pello nosso valerozo Capitão mór pu
chando por alguns Cento e trinta homens do seu arayal,
toda moça e de bom pé com o Capitão mór de Cavallos
Luis Machado, com guerra preta escravos dos Portuguezes ,
alguma de Quilambas, e Sovas Vassallos, partio em seu
seguimento, matando e apresionando muita gente dos fugi
dos passando atraz delles os Rios Zenga, Dande e o Hicua
até ás terras do Marquês de Bumbi, Vassallo del Rey de
Congo, do partido do Duque de Bamba, Capitão geral do
Reino de Congo. Para este dito Senhorio levava aquelle
numerozo gentio a sua retirada , porque sabia havia poder
formado de muita fidalguia do Reino de Congo em seu
amparo e favor, os quaes vierão a Campo razo formar sua
batalha, e a ter o encontro aos Portuguezes , vinda a sua
vanguarda guarnecida com gente de adargas com espadas

© As Relações de Manuel S. de Faria teem a seguinte noticia :


Março de 1622 até Fevereiro de 1623. (Março de 1621 a Fevereiro
de 1622 ) . fl. 182 , v. a 183.
O novo Governador João Correa de Sousa houve perfeita vitoria do
sova Casanze vizinho de Loanda. que tanto trabalho tinha dado aquelle
Estado, o qual depois de desbaratado foi prezo depois de alguns dias de
fugida, e trazido a Loanda onde o degolarão por justiça publicamente
com outras dois sovas seus alliados e ultimamente prenderão tambem
o Ginde ( ? ) irmão de Casanze, o qual do mesmo modo foi justiçado.
Aos outros Senhores ou Sovas que não tinham tanta culpa se lhe per
doarão as vidas, porem todos elles que erão 26 com sua gente forão
embarcados para o Brazil para lá lhe darem terras em que viver, e
ainda que alguns delles tenhão favorecido antes a nossa parte que a
contraria , com tudo forão tambem desterradas para tirar tão sospeitosos

103
e terçados nas mãos entrechaxadas das armas de fogo em
que entravão alguns Portuguezes, que trazião em sua ajuda
forçados.
O nosso Capitão mor e mais cabos de guerra com seu
valor conhecido formou em esquadrão a sua limitada gente
pello terreno dar lugar, e ser huma espaçosa campina e vindo
o inimigo investindo com a sua costumada arrogancia muxi
conga, cuberto tudo de suas adargas, hindo entrando a nossa
gente que, como costuma aquella Nação virem curvados
com as adargas nas mãos, todas as Cargas que a gente Por
tugueza tinhão dado, havião passado as balas por alto , e
havia sido o inimigo pouco offendido, o que vendo o experto
Capitão mór passou palavra a sua gente desparasse por
baixo, com o joelho no chão : feito assim foi cahindo muitos
dos das adargas por terra , com que se lhe quebrou parte
da furia com que vinhão; os nossos Portuguezes que vinhão
em seu favor tanto que chegarão perto se passarão para a
nossa banda, virando as Armas contra elles, e ajudando aos
de sua Nação, pois vinhão esforçados em Companhia dos
Muxicongos, contra elles, como ainda o autor desta histo

vizinhos dante as portas, de modo que doze legoas ao redor de Loanda


ficarão despejadas, e se repartirão aos soldados veteranos para as cul
tivarem o que será com grande benefício daquelle Estado.
El-Rei de Angola se tem outra vez reduzido á nossa amizade, e
correm já as feiras.
Chegarão este anno os mestres para lerem cadeiras de latim , casos
de consciencia , e outras boas artes aos naturaes da terra para os quaes
applicou bastantes rendas Gaspar Alvres antigo cidadão de Loanda,
e com o mesmo zelo da honra de Deos e do bem das almas daquella
desamparada christandade de Congo e Angola quer instituir huma Re
sidencia da Comp . em Congo e um Seminario em Loanda para nelle
se crearem os filhos dos Sovas e de outros Ethiopes nobres nos costu
mes da Igreja e letras sagradas, por o grande efeito que estes taes
farão na conversão de seus naturaes. »

104
ria alcançou alguns em que entrava hum homem nobre por
nome Jeronimo do Soveral que contava esta batalha com
particularidade muito por extenso ; no principio da batalha
foi ferido o mesmo Capitão Mór, o qual derramando san
gue animava com valor e bizarria aos seus Soldados di
zendolhe que pelejassem que tinhão a Victoria certa , que
em nenhuma occazião o ferirão que não ficasse vencedor; os
nossos Portuguezes no mayor conflicto da batalha apellida
vão Sãotiago, e os Muxicongos tambem, o que vendo aquel
les inimigos disserão se o vosso he branco o nosso he preto;
mas o nosso branco pôde mais que despois de se gastarem
horas na porfia da batalha sobre quem havia de ser o ven
cedor, despois de haverem os Muxicongos, e o gentio fugi
tivo , terem perdido muita gente em tão apertado conflito,
pôde mais Sãotiago branco, do que o preto que aquelles
inimigos appelidavão, declarandose a Victoria pella Nação
Portugueza; posto o inimigo em fugida hindose fazendo
nelles muita matança e aprisionando outros até o cauda
lozo Rio Loze, passando os que escapárão de prezos ou
mortos da outra parte em que se afogarão com a pressa da
passagem muitos inimigos não se dando por seguros desta
outra banda ; assolando e abrazando os nossos Portuguezes
vencedores todas as Povoaçoens Banzas e Libatas , daquelle
Marquês chamado Manibumbe ficando esta batalha memo
ravel para os vindouros, por ser tão renhida com gente tão
arrogante e feroz em que entrou muita fidalguia daquelle
Reino de Congo mandada por seu Rey a nossa opposição,
e o que lhe deo mais lustre ser apresentada pello nosso
famoso e bem afortunado Capitão mór em campanha raza
contra tamanho poder sendo o nosso tão limitado que não
chegava mais sua possibilidade como dito he que a cento e
trinta Portuguezes, com mais dez que se metterão com os
ROSSOS vindo obrigados do poder inimigo, por se acharem
naquelle tempo em suas terras; a Deos se darão as dividas

105
graças como Senhor dos Exercitos e das Batalhas estando
propicio em favor dos Lusitanos que trabalhavão por exaltar
seu santo nome em tão remotas partes desta audusta Ethio
pia Occidental.
Foi couza para notar que tomandose nesta occazião al
guns fidalgos Muxicongos, hum delles que era mais presu
mido, pedio ao Capitão -mor mandasse dar sepultura a tanta
gente fidalga que estava naquelle campo morta, (' ) deu-lhe
permissão para que os buscasse pois os conhecia para os
sepultarem , hindo discorrendo em sua busca topava e dizia
mui lastimado : aqui está Dom João Andurinha pasmo da
morte; aqui Dom Pedro Ponce de Leon! aqui Dom Calisto
Andurinha zelotes dos Reys Magos; e assim foi nomeando
outros muitos com nomes e sobrenomes campeiros a seu
modo, que nestes apellidos são mui vãos, e vendo este fi
dalgo Muxicongo todos os seus companheiros e conhecidos,
disse com arrougancia Muxiconga, que seja possivel que
quatro Rapazes matassem aqui a melhor fidalguia de Congo!
que parece que a nossa gente tinhão pouca barba; ao que
lhe respondeo o Capitão-mór, ahi verás o que fizerão os
filhos, que se eu cá trouxéra seus Pays que lá deixei no
meu Arrayal, não ficára em a corte de teu Rey fidalgo com
vida.
Havendo o Governador sahido com esta conquista da
Ensaca, empreza tão glorioza pello valor e boa fortuna da
quelle Capitão-mór, fazendo os mais Cabos que estavão em
guarda das passagens do Rio Coanza sua obrigação ma
tando e aprisionando muito daquelle gentio da Ensaca que

() Esta mortandade foi em 18-12-1622. Era rei do Congo, desde


fins de Maio do dito ano, D. Pedro Afonso , que foi um rei virtuoso;
morreu em 13-4-1624. É ao que o autor acabou de contar que se re
fere o que a Historia do Congo, por Paiva Manso , diz na pág. 178;
de lá foi tirada esta nota .

106
quebrou para aquella parte com intento de se passarem da
outra banda da Provincia da Quisama em que entrou hum
Sova dos da Liga que chamavão Quitamba, conforme a
lembrança do Autor, o qual pagou com sua Cabeça as la
droices que havia ajudado a fazer, sahindo com os mais
daquellas malezas da Ensaca a dar em os caminhos como
salteadores e ladroens de estradas, couza que hia pondo a
Cidade da Loanda em muito aperto; havendo obrado tão
bem em seu Governo, se malquistou tanto com a gente prin
cipal da terra , tendo com o Senado da Camara da Cidade
de Loanda, onde o dito Governador assistia, muitas descom
posicoens, chegando a prender alguns que escaparão de suas
mãos por ventura, sahindose todos fora da Cidade por não
chegar com elles a algum estremo como chegou com o Ou
vidor geral que então era André de Moraes Sarmento, ten
do - o prezo, e chegando com elle a pôlo ao pé da forca, com
alva vestida, e por lhe acudir o Prelado Dom Frey Simão
Mascarenhas, que lhe foi á mão, ( ) não teve effeito o que
pretendia, que livrando-se desta occazião e potencia tão
apertada , experimentou em Portugal outro semelhante suc
cesso , sendo Corregedor, quando foi a Evora Cidade com
comissão das fintas, mandado pella Coroa de Castella , que
se alterou aquella Cidade contra elle, e sahido della com vida
com barba rapada em trajos de Frade por lhe valerem os
Excellentissimos Senhores Marques de Ferreira , e Conde do
Vimiozo, que reparavão em parte aquelle accidente , quando
foi do Manoelinho, não podendo fazer mais, e a voz de

C ) Esta bonita acção atribuída pelo autor ao Bispo D. Fr. Simão


Mascarenhas não foi praticada por ele, pois éste Bispo não encontrou
já em 'Loanda o Governador João Correia de Sousa, de quem o autor
está falando, como adeante se verá .
O governador não cometeu tal excesso ; deduz -se isto da nota se
guinte , tirada das relações de Manuel Severim de Faria.

107
Evora seguio o mais do Alemtejo e até a Corte de Villavi
çoza chegou a voz de Manoelinho, e houve hum sucesso
funesto na Caza de hum Lettrado que tinha os Papeis das
fintas, em hum abrir e fechar de mão o povo atumultuado,
achandose doente de Cama o Serenissimo Senhor Duque de
Bragança nosso Rey que Santa gloria haja, a que acudio ao
Socego daquella populoza Villa o Senhor Dom Theodozio
Duque de Barcellos, nosso Princepe de saudoza memoria,
sendo de pouca idade se poz a Cavallo com muitos fidalgos
e criados daquella Real Caza, dando assim mostra a Villa
onde era tão amado, com que tudo socegou , e com as mui
tas varas de Justiça que mandou alevantar, para prenderem
e Castigarem os que andassem com desasocego, e não foi
esta prevenção com tanta presteza que mais não tivesse o
povo amutinado, queimando a Caza do Lettrado e toda a
sua Livraria , de Bartolos e Baldos, em fugueira publica no
meyo da rua, e elle fugido com mulher e filhos pellos te
lhados, com outras particularidades que não relata o autor
desta historia como testemunha de vista, e o haver já rela
tado Dom Francisco Manuel sogeito digno de louvor com
toda a verdade, em o Livro da sua Espanha, e por se não
divertir tanto do assumta de sua historia só o que direi,
que estando convalecente o Serenissimo Senhor, se fez pres
tes e foi em pessoa a Evora a aplacar aquella sedição, o que
fez como Condestavel do Reino, e pello respeito que todo
Portugal lhe tinha, e devia, não dando ouvidos ás boas von
tades que lhe mostravão, que não era ainda o tempo chegado.
Chegou o Governador a grande extremo com os Padres
da Companhia de Jesus chegandolhe a sua Portaria , per
dendo -lhe o respeito devido, com modo de os querer pren
der ou prendeo, fazendolhe abrir a dita Portaria por força,
tendo chegado a este extremo com estes servos de Deos de
exemplar vida e doutrina, offendido o Ouvidor geral justiça
1
mayor destes Reinos, como dito he, chegando com elle a

108
tão asperos e descompostos termos, molestado o Senado da
Camara, sendo todas pessoas de authoridade e serviços, fa
zendoos despejar a Cidade, e temendose de alguma rezolu
ção, largou o Governo, e se embarcou em huma Náo por
via de Indias de Castella , o que tambem tinha já hido pella
mesma via o Ouvidor geral o qual achando - o lá diante por
tando o Governador em o porto da Cidade de Cartagena,
onde o Ouvidor estava, conhecendo - o apellidou prendão -me
com este homem , que largou o Governo de Angola o que
logo foi feito a ambos, com assim contarão armadores de
Indias que vierão a este Reino de Angola (1 ) ao resgate das
peças.
Contão os vaticinios impressos despois da feliz acclama
ção do invicto Rey de Portugal o Serenissimo Senhor Dom
João o Quarto, que acclamandose em Espanha el Rey Dom

( ) As relações citadas de Manuel Severim de Faria têm as se


guintes noticias:
Março de 1623 até todo o Fevereiro de 1624. Fl. 189.
No estado de Angola succederão grandes perturbações com o Go
verno de João Correa de Sousa o qual mandando fazer guerra a El
Rey de Congo, sem necessidade, e sendo impedida da Camara e Minis
tros da Justiça de Loanda, o levou tão pesadamente, que a alguns
prendeo, e a outros confiscou as fazendas, e em muitos executou muy
rigorosas justiças, com que veio a pôr aquella cidade em miseravel es
tado; e não contente com isto chegou a pôr as mãos até nas pessoas
sagradas, e entrando no Collegio da Comp. prendeo o Padre Reytor
Jeronymo Vogado e ao Padre Matheus Cardoso e outro religioso, to
dos muy graves e dignos por suas pessoas e virtudes de grandissimo
respeito, e prezos os embarcou para o Reyno. Depois deste notavel
exceço accusando - o a sua própria consciencia se privou elle mesmo
do Governo, e embarcando- se a 2 de Mayo de 1623 em outro navio , le
vou consigo enfermo o ouvidor geral André de Moraes Sarmento (que
em 21 de Agosto de 1637 foi apedrejado na Praça de Evora, no le
vantamento de João Barradas e Sizinando Roiz ) e toda sua fazenda, e
se foi a Cartagena da nova Espanha, onde sabendose já de suas

109
Phelippe o Prudente por Rey de Portugal buscarão a hum
fidalgo Portuguez que levasse o Guião, para ser mais hono
rifica acclamandoo pessoa portugueza, e diz a mesma im
pressão, que pode o Curiozo ver, que chamavão aquelle
Cavalleiro Portuguez João Correa de Souza e o fazem ser
c Governador de que fallamos, o qual hindo a Cavallo com
o Guião Real das Armas de Castella e no meyo o Escudo
das Portuguezas, e que hindo com esta funcção e acclama
ção dera hum pé de vento ou redemoinho e sacudira o Es
cudo das Portuguezas, dividindoas das Castelhanas e que
fora tanta a confuzão, que o mesmo acclamador alvorotado
o Cavallo em que hia montado cahira delle abaixo, vindo
com o Estandarte e mais Armas que ficarão ao chão, mos
trando Nosso Senhor com este prodigio que havia de ser
separado o Reino de Portugal da Monarquia de Castella,

insolencias foi prezo á instancia dos mesmos do seu navio, como alevan
tado, e depois chegou ordem para o trazerem prezo a Portugal e lhe
confiscarem toda a fazenda que se lhe achasse.
Antes que partisse de Angola nomeou para seu lugar tenente e
capitão mór João de Sousa, (sic — mas é Pedro de Sousa ), o qual foi
depois confirmado neste cargo pela Camara e Povo, porquanto os tres
que hião nas vias estavão ausentes, Porem durou lhe pouco tempo o
governo , porque brevemente chegou o Bispo D. Fr. Simão Mascarenhas,
com que tudo se poz em paz. Os tres Padres da Comp.' chegarão a
Portugal e forão de S. Magestade muy bem ouvidos e por ordem sua
despachadas muitas cousas convenientes ao bem espiritual daquelle Es
tado, concedendolhe seis Residencias de novo pela terra dentro e duas
em Congo, Seminario em Loanda. Para Governador vay Fernão de
Sousa , senhor do Conselho de Gouvea, pessoa de grande reputação
e de quem se esperão grandes augmentos no bem publico daquelle Es
tado.

Março de 1624 a todo o Fevereiro de 1625. fl. 198, v.


João Correa de Sousa, que deixou o governo de Angola o anno
passado se foi para Cartagena do novo Mundo , e veyo de la prezo por
ordem de Sua Mag.co, e em Lisboa se livra das culpas de seu governo.

I10
E se havia de cumprir o promettido por Deos em o Campo
de Ourique ao nosso primeiro. Rey Dom Affonso Henri
ques, como o relatão tantos Escritores que sobre os princi
pios do Reino de Portugal tem escrito, e traz agora mais
abreviado o insigne autor Manoel de Faria e Souza em o
seu Epitome que escreveo estando em a Corte de Madrid ,
sendo ainda as Coroas Unidas; desculpe -me o Leitor em
fazer esta reflecção fóra do assumto da minha historia An
golana, que não há de ser tudo fallar em negros idolatras,
tambem havemos de metter hum pouco de branco que diz
bem misturado com o preto , e este foi o fim do Governo de
João Correa de Souza, que principiando - o tão bem o acabou
tão mal .

III
CAPITULO DECIMO PRIMO DA PRIMEIRA PARTE
DO PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL
DAS GUERRAS ANGOLANAS E PRINCIPIO DO
GOVERNO DO BISPO GOVERNADOR .

Em auzencia do Governador e Capitão Geral João


Correa de Souza (1 ) entrou a governar estes Reinos o Illus
trissimo Senhor Bispo Dom Frei Simão Mascarenhas na
Era de mil e seiscentos e vinte e quatro, o qual foi pondo em
boa ordem todas as couzas tocantes ao governo destes Rei
nos, mostrando seu grande talento, e que juntamente sabia
uzar do baculo e bastão tendo genio para tudo; elegeo logo
Cabos para a guerra da Conquista e fazerem guerra aos

o João Correia de Sousa quando, em 2-5-1623, saiu de Luanda


entregou o governo ao capitão mór Pedro de Sousa Coelho, o qual
governou até a chegada do Bispo D. Fr. Simão Mascarenhas em 10-8
do mesmo ano .
Parece que não fez a entrega de boa mente. Vê -se isto na seguinte
passagem de uma carta do governador Fernão de Sousa para D. Fe
lipe III, datada de Luanda de 6-9-1624. Diz assim : « Chegou o Bispo
e este mandou Pedro de Sousa que fosse dar guerra ao jaga Cassanji;
não o fez porque sabendo que o rei Ngola Mbandi lhe mandara dizer
que fosse ao longo do Lucala e não pelo de Dongo para não destruir
alguns poucos que se começaram a juntar naquele reino, e por paixões
do Bispo e do governo se recolheu a Ambaca, de que resultou per
der -se a ocasião que fora de grande efeito».
Não se pode hoje saber senão isto a este respeito. A dita carta
está no I tomo dos livros de Fernão de Sousa, fl. 326 de que adeante
falarei,
Todos os livros que tratam da historia de Angola erram sobre este
Bispo, assim como tambem erra o Dicionário histórico - Portugal no
4.° vol., pág. 905. Chegou a Luanda em 10-8-1623 ou poucos dias antes.
Existe no Archivo de Marinha e Ultramar, na Biblioteca Nacional,
uma carta do Bispo para o Rei D. Felipe III, datada de Loanda de i

I I2
Sovas rebeldes que persistião em sua rebeldia induzidos da
Rainha Ginga sua Senhora da qual nos passou por alto
dizer no Governo passado como viera a tomar a agoa do
Santo bautismo a Cidade da Loanda reduzida ella suas Ir
mãas e seus parentes e alguns dos principaes do seu Reino

3 de Fevereiro de 1624. Esta carta alem de muito queimada da tinta


está truncada, pois lhe falta uma ou mais folhas e tem as margens rotas;
é isto uma grande perda, pois, sendo um documento de todo o valor,
era um relatorio do estado de Angola que o Bispo fazia ao Rei; Con
tudo ainda com custo pude apurar o seguinte : - Diz o Bispo que
recebeu em 13 de Janeiro de 1624 uma carta do Rei com a provisão
da mercê do governo de Angola, na ausencia de João Correia de Sousa;
diz que em 10 de Agosto de 1623 tomou conta do governo; que o Rei
mandára uma carta a Pedro de Sousa Coelho para que largasse o
governo, mas que ele o tinha feito e que a carta ficou no mão dele
(Bispo) por o Coelho ter falecido dois dias antes da carta chegar.
Fala na guerra que no tempo do Governador João Correia de Sousa
houve com o Marquês de Bumbe e Duque de Bamba; que o mesmo
Governador fez as pazes com o Rei de Dongo com certas condições.
Que os Jagas que assistiam em uma provincia que chamavam a Funda
oprimiam com dano dos naturais e da fortaleza de Cambambe o res
gate das peças, fazendo prezas grossas em gente, matando muita e
recolhendo em si os escravos que fugiram dos portugueses. Elegeu o
capitão mór Lopo Soares Laço para os ir combater, o qual em dia de
Santo Amaro ( 15 de Janeiro ) pelejou com o Jaga Zenza e o venceu
e desbaratou, prendendo muita gente, e o inimigo fugiu indo -se -lhe
no alcance ...
Além desta vitória o mesmo Laço foi demandar outros dois cam
pos de Jagas que em poder e povo teriam a quarta parte do de Zenza
e por conseguinte os venceu em 19 de Janeiro, prendendo- se o Jaga
Bango -bango, cabeça dêste campo . Diz mais o seguinte que transcrevo
ipsis verbis : « Para a jornada do Jaga Cazanga ... e desponho chegado
marchar e ir demanda -lo » .
Nada mais se apura com clareza da citada carta ; as reticencias
que aqui puz indicam a omissão de palavras da carta.
Este Bispo estava em Loanda em 10 de Agosto de 1623, como se
vê da sua carta e deve ter chegado a Luanda nesta ou poucos dias
antes. Entregou o governo ao Governador Fernão de Sousa, que che.

113
com as pregaçoens e Santas amoestaçoens dos filhos do
Patriarca Santo Ignacio de Loiola que trabalharão muito no
Reino de Angola e Dongo por reduzir aquella gentilidade
a Lei de Deos e a seus divinos preceitos entre os quaes su
geitos foi o principal Francisco Pacconio (4 ) de Nação Ita

gou a Luanda em 22-6-1624, como adeante digo, e foi para S. Salvador


do Congo .
As relações de Manuel Severim de Faria , já citadas, dão , na re
lação de Março de 1625 até todo o Fevereiro de 1626, na fl. 212, v.,
a noticia seguinte — « O Bispo D. Fr. Simão Mascarenhas partio para
Congo no principio de Setembro; chegou á cidade do Salvador a 8 de
Outubro de 1624, já sangrado tres vezes, e aggravandose lhe a enfer
midade, faleceo aos 13 do mesmo. Foy enterrado na sua Sé, aonde não
tinha entrado ainda vivo » .
Em 21 de Junho de 1625 já se sabia em Lisboa da sua morte . Os
Governadores do Reino (de Portugal) escreveram nesta data ao Rei
para Madrid dando - lhe parte da morte do Bispo. (Consta a resposta
do Rei em carta de 25-7-1625, a qual carta está no vol, 19.º da colecção
dos mass. de S. Vicente, na Torre do Tombo, pág. 353) .
A Mesa da Consciencia e Ordem em 24-7-1625 propoz ao Rei
sujeitos da Ordem de christo para Bispo de Angola. (Livro 29, preto,
dos Registos de Consultas de 1625 a 1627, fl. 46, na Torre do Tombo ).
Houve suspeitas de que foi envenenado no Congo por dois conegos.
(Consta isto da História do Congo pelo visconde de Paiva Manso , na
pág. 179 ) .
Erra pois Lopes de Lima em tudo o que diz sobre este Bispo e
na data do seu governo, na pág. 96 e no catálogo da pág. 160. Só
é certo o que diz do Jaga de Nzenza e do soba Hafuxi.
Lopes de Lima foi enganado pelo já citado catálogo dos Gover
nadores.
Ⓡ O Padre Francisco Pacconio , Jesuita, compôs um catecismo
em kimbundo e português, mas não o imprimiu . Parece que era grande
ou extenso demais e que por isso foi reduzido, depois da morte do autor,
a um livro mais pequeno pelo P. Antonio do Couto, tambem Jesuita
e este o fez imprimir em Lisboa em 1642 com o titulo - «Gentio de
Angola sufficientemente instruido nos mysterios de nossa santa Fé.
Obra posthuma, composta pelo Padre Francisco Pacconio da compa
nhia de Jesus. Reduzida a methodo mais breve e accomodado á capa

I14
liana muito visto na lingoa ambonda do Reino de Angola
que ainda hoje as oraçoens que se rezão na lingoa Ambunda
forão ordenadas por elle, Religiozo de grande virtude que
o Autor vio e conversou , e na Era de mil e seiscentos e qua
renta se embarcou deste Reino para o de Portugal; como
tambem havia trabalhado muito na vinha do Senhor por
aquellas partes o Padre Machado Portuguez que por nome
não perca estes sogeitos e outros do seu panno e Religião
havião feito vir esta Rainha (1 ) ao verdadeiro conhecimento
com que foi mui festejado sua reducção e vinda á Cidade
de Loanda, onde o Governador lhe fez muito festejo por
se entender seria este principio para se colher o fruto de
tanto trabalho com que se tinha obrado para reduzir esta
gentilidade ao caminho da salvação, foi seu Padrinho o
mesmo Governador João Correia de Souza Madrinha huma
Senhora autorizada filha desta terra por nome Jeronima
Mendes, Mulher do Capitão mór de Cavallos Luis Gomes
Machado pello apellido da terra Gombe a Coanza, tomando
o nome do Bautismo (2 ) de Anna com que se veyo a chamar

cidade dos sugeitos, que se instruem , pelo P. Antonio do Couto da


mesma companhia » .
O P.• Pacconio era natural de Capua e andou por Angola desde
1627 a 1640; o P.• Couto era natural de S. Salvador do Congo (mas
branco ) e morreu em Loanda em 10 de Julho de 1666; o P. Pacconio
morreu em Lisboa em 13-11-1641.
Existe um exemplar do catecismo na Biblioteca Nacional, Reser
vados . N.° 227, preto. É em 8.°, de 103 folhas. — Foi o primeiro livro
impresso em kimbundo.
®) Ha alguem que diz que esta Rainha Ginga se veyo bautizar a
Loanda sendo ainda Infanta com suas Irmãas o certo he que ella se
bautizou na Cidade da Loanda no tempo do Governo de João Correia
de Souza e que foi seu Padrinho. (Nota marginal do Autor ).
( ) As duas irmãs da Jinga não foram baptisadas agora , pois só
vieram para Luanda em 1629, aonde chegaram em 20 de Julho, como
se verá, na nota sôbre a Jinga, no capitulo 1.º da 2. parte.

115
9
Dona Anna de Souza, tomando o Souza do Padrinho, e
as Irmaãs se havião bautizado pellos proprios Religiosos em
seu Reino, tomando a Irmaã do meyo o nome de Dona Gra
cia sendo o que tinha de sua natureza Quifungi e a mais
moça se chamou Dona Barbora e pello nome da terra Mo
cambo .
Neste tempo havião já naquelle Reino de Angola e
Dongo alguns parentes dos Reis antigos tomado a agoa do
Santo bautismo em que entrava hum Tio da Rainha filho
daquelle Rey chamado Angola Aquiloangi o qual vendo a
Rainha Ginga auzente por se ter vindo a bautizar, como
dito he á Cidade da Loanda, tratou de se vir da sua terra
a ampararse da gente portugueza por se arecear da Sobri
nha a qual o tinha solicitado para suas torpezas que como
gentia que era não pezava o grao de parentesco que com
elle tinha , ainda que fosse por outra linha em que o parente
não queria consentir, vindose com sua gente e familia da
quelle Reino de Angola e Dongo, (1 ) e receando - se encon
trar com ella no caminho mandou recado a alguns Con
quistadores em que entrava hum seu Compadre por nome
João Pereira Girão chamado de alcunha da terra Bolongonho
o qual era morador de Masangano e lhe havia bautizado hum
seu filho mais velho, ou sido seu Padrinho, por nome Dom
Francisco Moenga Aquiloanji; não acudirão os Amigos e
Compadre com tanta presteza a este pobre fidalgo que a 1

não puzesse mais a Rainha, sabendo, que lho havião avi


zado pellos ares, que o Tio se vinha a metter e emparar da
gente portugueza, que o não encontrasse e lhe mandasse
logo cortar a cabeça e apanhasse da sua gente toda a que

Ⓡ O que o autor conta aqui dêste tio da Jinga não deve ter sido
agora . Parece que será de Aiidi Quiluanji de quem se fala na grande
nota sõbre a Jinga, na parte das Primeiras hostildades dela em 1625.
no capítulo 1.º da 2.* parte .

116
pôde, que era muita, escapando deste successo o filho Dom
Francisco que dito he com mais alguma gente de seu par
tido, por se haver devidido o pay por outro caminho, o qual
viveo sempre entre nós vestido á portugueza emparado dos
Reverendos Padres da Companhia de Jesus de quem havia
mamado o leite da sua Doutrina , vivendo cazado com sua
Mulher e filhos observando a Lei de Deos e nella morreu
como filho da Santa Madre Igreja; esta foi a Christandade
com que esta Rainha vinha da Cidade da Loanda de se
bautizar e se era gentia antes de ser bautizada despois de
o ser obrou muito peor até já perto do fim de sua vida, des
pois de nos fazer cruel guerra, como se dirá a seu tempo,
que sempre trabalhou por tirar o nome da Nação portugueza
de Angola.
Vendo este famoso Prelado que a chave da Conquista,
que he o Rio Coanza estava impedida sua passagem e na
vegação pellos gentios da Provincia da Quisama encom
mendou della a hum Capitão antigo da conquista pessoa de
larga experiencia por nome Fernão Rodrigues, em que fal
lamos já nesta historia quando tocamos em sua Ilha de Ma
sangano que em frente á Villa onde houve a Providencia
das Abobaras , o qual havia assistido em muitos Conflictos
de guerra começando a servir a Coroa de Portugal de Sol
dado de pé e de a Cavallo como consta dos papeis de seus
serviços; a este sogeito encommendou o Bispo Governador
a defença e assistencia na guarda de couza de tanta im
portancia como era a navegação daquelle Rio e passagem
Livre para a Conquista , mandando -lhe passar Patente de
Capitão e Cabo, dando -lhe officiaes menores de gente paga
para mandar assistir aos Comboyos das embarcaçoens que
naquelle Rio navegavão a baixo e acima , trazendo lanchas
bem esquipadas com boa goarda de Soldados aquelle serviço.
Como em esta Ethiopia, que já dissemos tiverão por
inhabitada, há muitas calamidades de doenças cauzado do

117
ruim Clima, a esse respeito perecião muita gente forasteira
e Soldados á mingoa; compadecido este Illustre Prelado e
Governador de tamanhas miserias com zelo Catholico for
mou em a Cidade de Loanda Caza da Santa Mizericordia
para terem Enfermeiras onde se curassem as enfermidades
e doenças da terra e não perecessem á mingoa a gente po
bre, e dezemparada, couza que foi de muita utilidade e ser
viço de Deos com que não morrião tanta gente á mingoa
por falta do necessario , e de então para cá se foi conser
vando aquesta Santa Caza cada vez em mais augmento
com as Esmolas e Caridades dos fieis Christãos. (1 ) Estando
este bom pastor dispondo as couzas do Governo Secular
com grande acerto foi enfestado este porto de huma esqua
dra de Náos Flamengas e por Cabo dellas o Corsario cha
mado Pero Peres com tenção de botar gente em terra e ao
menos saquear a Cidade mas foi tanta a diligencia e pre
paração que o Bispo Governador mandou fazer por Pero
de Souza (2 ) Capitão -Mór da gente de guerra Tenente Ge
neral do Governador passado, e pello muito cuidado que
houve, não se atreveo a por pé em terra e com ajuda da
gente da Conquista que com muita brevidade havia acudido
á Cidade em seu soccorro da Villa da Vitoria de Masan

( ) Isto que o autor diz é certo. Fernão de Sousa na sua carta de


10-12-1624, para D. Felipe III, fala acidentalmente na Misericordia ,
e vê -se que já lá a havia. (Livros de Fernão de Sousa, tomo I, fl. 314 ) .
Hospital já o havia antes de '1616. O capitulo 27.º do regimento
dado a Luis Mendes de Vasconcelos em 3-9-1616 dizia assim :
« Posto que tenho concedido para o hospital de Loanda duzentos
mil reis em cada hum anno para a cura dos soldados doentes que nelle
ouver, ey por bem que em quanto os soldados estiverem enfermos
se lhes corra com seu soldo para effeito de sua cura, e vos mando
que assy o façais executar e cumprir por virtude deste capítulo . »
() Pedro de Sousa Coelho já tinha morrido antes destes factos.
Veja -se atraz o extracto da carta do Bispo em nota.

118
gano, e em vez da preza e saco que vinha dar e buscar, lhe
foi feito muito damno de algumas batarias que de terra lhe
fizerão com Artilharia de alcance (1 ) .
Neste tempo chegou á Costa, o Governador Fernão de
Souza (2) despachado por Governador e Capitão geral des
tes Reinos e suas Provincias e Conquistas Senhor da Villa
de Goveya e vendo que estava a barra do porto tomada pello
Flamengo, e elle não trazer Náos nem poder de gente para
se medir com aquelle inimigo e o poder contrastar acordou
em a Náo em que vinha entrar com ella pella Barra da Co
rimba, e para o poder mais facil fazer por a Barra não ser
capaz de entrar carregado mandou com presteza descarregar
em terra a Carga da Náo e assim com ella boyante entrou
pella barra dentro e pello braço do mar morto que vem

( ) As relações de Manuel Severim de Faria, já citadas, têm a no


tícia seguinte :
Março de 1624 a todo o Fevereiro de 1625; fl. 198, v.
Em Angola derão no porto de Loanda alguns Galeões de Olan
dezes, depois que tomarão a Bahia, e querendo lançar gente em terra,
forão rebatidos valerosamente pelo Bispo D, Fr. Simão Mascarnhas,
que governava em ausencia de Fernão de Sousa , que ainda não era
chegado. E vendo os inimigos que não podião fazer mayor efeito,
queimarão alguns navios sem gente e se forão ao tempo quási que
entrava o novo Governador do Reyno, que foi grande ventura escapar
deste perigo , por não levar mais companhia que o seu navio.
Fernão de Sousa na sua carta de 15-8-1624, de que adeante falo,
diz que o Bispo mandou 6 navios sairem aos holandeses, mas tão mal
aprestados e com tão grande desordem e medo que sem pelejarem de
ram á costa na mesma bahia (de Luanda ) e fugiram todos; os holan
deses queimaram 3 e o Bispo mandou queimar os outros.
O Bispo deu conta da entrada dos navios holandeses em carta
sua para o Rei, datada de 28-6-1624, dizendo que eram 1 nau, 2 pa
taxos e 1 lancha. (Carta regia para Fernão de Sousa , datada de 22-8
1625, no I tomo dos seus livros, fl. 98 .
() Pernão de Sousa chegou em um patacho em 20 de Junho de
1624 á Ponta Mofina. Não sei se este nome ainda é empregado; mas

119
por ali dentro até a Cidade entre a Ilha e terra firme;
assim que chegou tratou com mais valor da defensa da Ci
dade a que não havia faltado a nada do que importava a
sua defensa o Bispo Governador e o seu valeroso Capitão
mór Pero de Souza, o que vendo aquelle inimigo não podia
fazer o a que vinha e dezejava e sabendo havia entrado
o Governador se lhe perderão mais as esperanças, com o
que ao Cabo de muitos dias teve por seu barato dar a volta
e sahirse do porto para fora, que nem sempre sahe á von
tade o que se predita e imagina; e vendo a nossa gente da
Cidade sua determinação e hida lhe derão hua boa salva de
toda a Artilharia, ficando triumfantes e Victoriosos com tão
bom successo .

o local devia ser a ponta das Palmeirinhas. Apesar de ali chegar já


tarde, podia ter dobrado a tal ponta, mas, providencilmente e contra
o parecer de todos, não o fêz.Foi isto a sua salvação, aliás iria ter
caido nas mãos dos holandeses. Foi o patacho visto de terra, de modo
que no dia 21 , querendo seguir a viagem, veio a ele um aviso do Bispo
que entrasse pela barra da Corimba por estarem os holandeses no porto
de Luanda .
Pela barra da Corimba só podiam entrar patachos pequenos car
regados, os navios ordinarios só descarregados o podiam fazer. - Fer
não de Sousa, em vista do dito aviso , demandou com muita vigilancia
a barra da Corimba e no dia 22 passou para uma fragata em que os
Jesuitas o foram buscar e neste dia entrou em Luanda.
Estava , havia alguns anos, em Angola um flamengo chamado
Trombeta, que tinha ido degredado da Bahia para lá e que tinha es
tado em Ambaca e agora estava em Luanda. Este soube da chegada
do governador e, tendo fugido para os navios dos holandeses, avisou
estes da chegada do governador. Eles, temendo a ida de alguma esqua
dra nossa, levantaram ferro e foram para o porto da Corimba e d'ali
para a Palmeirinha; em 16 de Julho levantaram ferro e retiraram - se
das costas de Angola.
(Livros citados, I fl. 220, 296, v. e 358, v.) .

I 20
CAPITULO DECIMO SEGUNDO DA PRIMEIRA
PARTE DO PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GE
NERAL DAS GUERRAS ANGOLANAS EM O GO
VERNO DE FERNÀO DE SOUZA.

Vindo a governar estes Reinos de Angola (1 ) na Era de


mil seiscento e vinte e cinco, não trouxe em sua companhia
muita gente de guerra porque deixava aprestandose hum
grande soccorro para estes Reinos que havia de trazer o Ca
pitão -mór Bento Banha Cardozo, que ficava na Corte de
Madrid aonde havia hido, só a fim de informar a el Rey
Dom Phelipe o estado das couzas destes Reinos de Angola
como tão pratico e noticiozo dellas, onde havia tambem hido
o nosso Governador de quem himos fallando a seus reque
rimentos, despois de haver assistido ao serviço da sempre

© Fernão de Sousa foi nomeado capitão -mór e governador da


conquista do reino de Angola e mais provincias dela em 5-10-1623.
emquanto o Rei o houvesse por bem e não mandasse o contrario . Em
20-3-1624 foi-lhe dado o Regimento pelo qual ele se havia de guiar.
Teve patente em 21-10-1623. (Chancelaria de D. Felipe III, Livro
18. fl. 163 ).
Sahiu de Lisboa em companhia das naus da India, em 25-3-1624,
em um patacho, por não haver nau de guerra; foi em direitura a An
gola; em Domingo de Pascoa, dia 7-4, passou pela altura de Cabo
Verde e foi seguindo viagem, sem tocar em porto algum, até Benguela,
aonde chegou em 8-6.
Ali desembarcou e se demorou nove dias. Não estava lá o seu
governador. Manuel Cerveira Pereira, que estava em Luanda desde
Dezembro de 1623; em seu logar estava lá um tal Heitor Henriques da
Gama, que fazia o oficio de capitão mór, deixado ali pelo Cerveira ;
prendeu aquele e bem assim a André Jorge Lobo , capitão de infantaria
e ao sargento Manuel Antunes. Poz no logar de Capitão -mór a Manuel

121
Real Caza de Bragança, de Veador que valia tanto como
de Mordomo -môr em tempo de sua Alteza a Serenissima Se
nhora Infanta Dona Caterina e de seu filho o Serenissimo
Senhor Dom Theodozio segundo do nome Avó de sua Al
teza que D.' guarde o Principe Nosso Senhor, do qual ser
viço se havia escuzado por algum desconto, e como achasse
na Corte de Madrid ao Excellentissimo Senhor Dom Duarte
filho de sua Alteza a Senhora Dona Caterina , Irmão do
Senhor Duque Dom Theodozio, onde podia tudo o que que
ria, vendo aqueste fidalgo naquella Corte, e conhecendo
havia sido criado de sua Mãy e Irmão , fez com que logo
fosse despachado conforme sua fidalguia e merecimentos o
estava pedindo; esta foi a cauza conforme noticias, de vir a
tomar posse do governo, e não esperar pello soccorro que
se ficava aviando; não exagera o autor sua prozapia, pois
ha livros que relatão a antiga nobreza dos Souzas, que o
curiozo poderá ver em flores de Espanha excellencias de

da Rocha Pimentel, capitão de infantaria, que fez preito e homenagem


para entregar o cargo ao Cerveira.
Providencialmente foi dar á « Ponta Mofina», aonde chegou em
20-6 , como já fica dito na nota anterior. Desembarcou em 22 e nesse
mesmo dia tomou posse , dada pelo Bispo. (Seus livros, I fl. 220 e sua
carta para D. Felipe III, datada de 15-8-1624, fl. 296 ).
Este governador, notavel por muitos motivos, teve um grande
cuidado em arquivar as cartas regias que recebeu e em escrever tudo
o que se passou no tempo do seu governo e ainda mesmo o que se
passou depois da sua chegada a Lisboa. Estes ecritos formam dois
grossos tomos, in folio, que estão na Biblioteca de Ajuda, em Lisboa,
tendo a marcação — 51 - VIII- 30 e 31 .
São curiosissimos para a história dos seis anos do governo de Fer
não de Sousa. Já os tenho citado e citarei.
Logo no principio do I tomo tem o original da sua carta patente e
o original do seu Regimento.
Os catálogos e Lopes de Lima erram dizendo que ele chegou
Luanda em 1627.

I 22
Portugal escrito por Antonio de Souza de Macedo, em que
faz Chefes dos Souzas a Fernão de Sousa (1 ) Governador de
Angola, e no Epitome de Manoel de Faria e Souza dado
agora á impressão; traz desde seus principios esta esclare
cida familia, e diz Antonio de Souza por encarecimento que
se o nosso primeiro Pay houvesse de ter sobrenome se havia
de Chamar Adam de Souza que tão antiquissimo hé o
appellido dos Souzas, com que o Autor desta historia tem
tocado esta materia por vir a proposito .
Hindo proseguindo o seu Governo tratou de pôr tudo

( ) As relações de Manuel Severim de Faria, já citadas, teem a se


guinte noticia :

Março de 1625 até todo o Fevereiro de 1626; fl. 212 .


Em 30 de Outubro de 1624 chegarão oito velas olandezas, em que
entravão tres naos de grande porte , a Loanda e Angola e entrando na
Barra tomarão cinco navios de Sevilha que estavão sem gente com al
guma agoa e mantimentos; mas acodindo o Governador Fernão de Sousa,
fez disparar algumas pessas com damno dos inimigos, e sucedendo á
noite hir hum dos donos dos navios roubados assaltou o seu navio com
huma lancha, e lançandose os olandezes no mar com temôr lho dei
xarão. Vendo o Governador o bom efeito das nossas pessas, fez outros
cinco fortes ou plataformas com que obrigou aos contrarios a largar de
todo o porto e retirarem -se a lugar seguro.
Dia de todos os Santos quizerão lançar gente em terra em muitas
lanchas, mas a nossa artelharia os varejou de maneira, que se tornarão ,
sem ouzarem a dezembarcar. O Governador, que como capitão vigilan
tissimo tudo prevenia, não se dando por satisfeito com os fortes, fez
uma larga cava pela praya, com que fortificou a cidade , e mandando
vir alguma gente dos presidios segurou aquella Praça para mayor poder,
quanto mais para aquelles inimigos, os quaes recolhendo -se a outra
parte da Ilha repararão as naos do damno que da nossa artilharia
receberão, e enterrarão os mortos, posto que não foi isto tanto a seu
salvo, que não fossem assaltados muitas vezes de ciladas, que o Go
vernador lhe mandou armar, com morte de muitos delles, até que em
7 de Dezembro desaparecerão daquelle porto de todo. Depois disto che

123
em boa forma, dispondo as couzas da guerra com muito
acerto , e no governo politico, fazendo justiça ás partes, e
mandando aos julgadores darlhe seu devido comprimento,
provendo as fortalezas da Conquista de alguma gente e mu
niçoens e do mais que estavão faltas; o mesmo havia feito
ao passar pella Costa ao Reino de Benguela que tambem
se proseguia em sua Conquista e Commercio com a possibi
lidade que podião; e vendo este bom e prudente Governador
que o sustento destes Reinos estava dependente do Estado
do Brasil, donde vinhão muitas embarcacoens carregadas

gou a Loanda em Setembro ( ) de 625 o soccorro , que lhe levou Bento


Banha Cardoso do Reyno no Março antes.
A prégação do Evangelho tambem vay prospera nesta conquista,
porque El Rey D. Pedro Afonso do Congo, antes que falecesse levou
os Padres da Comp. para huma rezidencia, que lhes fez na sua cidade
do Salvador, e D. Garcia Afonso seu filho, que lhe sucedeu, favorece
os mesmos Religiosos com muita benevolencia.
Por morte de El-Rey de Angola succedeu huma irmãa sua chamada
D. Anna que pretende lhe mandem Padres da Companhia para conver
são daquelle Reyno, onde se espera que se abra huma grande porta a
promulgação do Evangelho.

Fernão de Sousa diz o seguinte sobre os navios holandeses.


Em 30-10-1624 apareceram na Barra da Corimba; das 3 para as 4
da tarde entraram em Luanda como se föra em sua casa . Antes deles
entrou no porto um navio de Sevilha, fugido deles.
Eram oito embarcações, sendo – tres naus grossas, uma urca fla
menga , um patacho uguês, um navio de presa e dois patachos de
alcance. Combateu -os. Sairam de lá em 21-11 e foram para a Corimba ,
tendo saido de lá em 1-12.

(Cartas de 28-11-1624 e de 10-12, no I tomo, fl. 306 ).

) Apesar de se dizer aqui que o Cardoso chegou a Luanda em Se


tembro, é certo que chegou no principio de Agosto de 1625, fl. 325,
Vê -se isto no I tomo de Fernão de Sousa.

124
de farinhas de guerra para esta Cidade, e mais Conquista,
e se faltavão em vir havia muita carestia e, vendo tambem
que as terras destes Reinos erão mui fructiferas e tinhão
grandiosas vargias onde se podia semear e fazer grandes la
vouras, e que havia muita escravaria de homens brancos e
gente forra para as poder cultivar, exortou a todos os mo
radores e cidadoens com razoens mui forçosas o mal que fa
zião em se não darem ás lavouras aquelles que descançados
não seguião a guerra e Conquista , e quererem estar depen
dentes se vinhão navios ou não do Brazil com o emprego
da farinha, quando elles podião ter isso de sobejo, que o
lavrador não perdia sua nobreza pello ser, antes em toda
a parte erão tidos por homens bons da Republica , e mais
quando elles o não havião de fazer com seu braço pois ti
nhão tantos Escravos, e serventes, que elle em nome de
Sua Magestade lhe queria repartir terras e dar-lhas de ses
maria nas terras e Senhorio dos Sovas Conquistados para
que as possuhissem como couza sua propria, com obrigação
só do Dizimo a Deos.
Fez esta falla o Governador estando os principaes ci
dadoens e moradores presentes com tanto juizo e modo que
todos conhecerão logo a muita razão que tinha , e que re
dundava tudo em bem e augmento da terra , com que lhe
agradecerão o Conselho e exhortação que lhes fizera, e o
Governador tratou logo de lhe mandar repartir as terras e
varzea junto ao Rio Bengo, Sequele, e Bembem , mais pro
ximo a Cidade, mandando por pessoas de satisfação que
elegea para isso dar a cada hum conforme a possibilidade
de familia e escravaria que possuhião, e muitos Conquista
dores forão despois por petiçoens pedindo terras para suas
lavouras, o que o Governador trazia tambem por Capitulo
do seu Regimento, em que lhe ordenava assim Sua Ma
gestade, e em todas as Provizoens de data de terras ou
chãos para fabricar cazas fazer menção do Capitulo do seu

125
Regimento; (1 ) e por dar noticia ao cérto de tudo o que tem
havido nestes Reinos de Angola o porei aqui cujo teor he
o seguinte que assim hia dizendo a dita data; As quaes ter
ras lhe dou , sendo cazo que não estejão dadas por outra
doação mais antiga, de Sesmaria perpetua para elle seus
filhos e herdeiros e descendentes até o ultimo possuidor, li
vres e izentas de todo o foro tributo e pensão, obrigados
somente ao Dizimo a Deos e as poderá dár, vender, trocar
aforar , escambar e repartir pello modo e maneira que quizer
e bem lhe estiver como couza sua propria e bens de sesma
ria que são com declaração que dentro no tempo que em
seu Regimento sua Magestade manda fará nas ditas terras
as bem feitorias conforme ao dito Regimento; e mando ao
Ouvidor Geral deste Reino lhe dê a posse com todas as
entradas e sahidas novas e velhas em que se metterão marcos
de pedra altos que bem declarem ser-lhe dado a dita posse,
e assim elle como as mais Justiças de Sua Magestade que
ora são e ao diante forem lha deixem gozar livremente sem
a isso lhe porem nenhum impedimento porque assim o hei
por bem e serviço do dito Senhor. Dada nesta Cidade de
São Paulo da Loanda sobre meu sinal e sello, e Luis Correa
Coelho Secretario deste Reino e do S.or Governador a fez

) Era o capitulo 13 do seu Regimento que lhe mandava repartir


as terras com obrigação de serem cultivadas. Este capitulo não foi no
vidade para este governador. O capitulo 12 do Regimento dado em
3-9-1616 a Luis Mendes de Vasconcelos era inteiramente egual ou,
melhor, era o mesmo; mas este governador, assim como João Correia
de Sousa, não fez caso algum desta ordem .
Fernão de Sousa, em carta de 13-8-1625, para D. Felipe III, disse,
entre outras cousas, o seguinte: — « Tenho repartido as terras pelos
moradores e procuro se apliquem a semea - las, de que resultará maior
rendimento de dizimos para a fazenda de V. Magestade».
Em carta de 4-10 do mesmo ano repetia o mesmo.
(Tomo I, fl. 330 ) .

1 26
por seu mandado em 8 de Janeiro de 625 com declaração
que antes de se lhe dar a posse se demarcará com as visi
nhos com quem de direito deva e haja de partir, por quanto
a Camara não tem duvida a se lhe haver de dar. Fernão de
Souza, Isto he o que continha a doação.
Mostrou o tempo por diante que esta disposição foi
cauza de se sustentar o Reino de Angola e suas Conquistas
quando foi occupado pello Hollandes sete annos , que mal
se podéra conservar se não houvera lavouras da propria
terra; e a mesma exhortação fez aos moradores, e habitantes
da Villa da Victoria de Masangano, e ás mais Conquistas
Fortalezas e Prezidios; e se derão despois disso tanto ás la
vouras, que pudéra hir farinha de guerra para onde ella
dantes vinha.
No fim do anno de mil e seiscentos e vinte e cinco chegou
ao porto da Cidade de São Paulo da Loanda o esperado
soccorro ; não há noticia certa da cantidade de gente que
fosse, nem há papel particular que o diga, mas dizião os
Soldados daquelle tempo que foi dos mayores que tinhão
vindo a Angola, que constava de muitas Náos; e como ti
nha hido á prezença do proprio Rey hum homem de tanta
authoridade como era Bento Banha Cardozo, ( ) que havia
occupado o posto de Capitão môr do Reino e gente de
guerra, sendo Conquistador dos mais antigos, e Governa
dor eleito destes Reinos, e vinha com ordem de ir com a
conquista por diante, era forsa trouxesse soccorro de gente

( ) Sobre Bento Banha Cardoso já atraz se fala no principio do


capitulo 7.º, em nota .
Parece que tinha vindo em 1617 a Lisboa para dar conta ao Rei
do estado em que achavão as cousas de Angola; quando o Governador
Luis Mendes de Vasconcellos chegou a Loanda já Banha Cardoso lá
não estava, ou pelo menos partiu então de lá, o autor é que diz isto
(na pág. 84 ) no capitulo 8.º.

127
em forma, com cabos e capitaens de experiencia e valor, como
o autor desta historia conheceo a hum dos Capitens que
havião vindo do Reino por nome João Juzarte de Andrada,
fidalgo nos Livros del Rey, e outra muita gente nobre, tendo
O soccorro a salvamento em a Cidade da Loanda, manifes
tando as ordens que trazia ao Governador e Capitão Geral,
tomando intelligencia pello tempo que havia faltado do es
tado das couzas da Conquista achou que a Rainha Ginga
Dona Anna de Souza tinha largado a sua Estancia ou Corte
dos Reys antigos de Angola que era onde chamavão Ca
baça por diante das Pedras do Mapungo que distava da
nossa ultima fortaleza da Embaca mais de trinta Legoas, e
se tinha feito forte com a mayor parte de sua gente em as
Ilhas de Quindonga , as quaes tinha atrincheiradas e forti
ficadas, e as fazia Ilhas o soberbo Rio Coanza entre seus
braços que as dividião humas das outras e fazião ser cinco
com terras espaçozas cada huma dellas, e conhecendo o Ca
pitão Môr não podia passar com poder em forma ás ditas
Ilhas, sem levar de cá embarcaçoens, ou forma, e materia
de que as podesse fazer, o que consultado e tomado parecer
com o Governador, e pessoas que naquillo podião ter voto,
dispozerão mandar fazer duas boas lanchas que fossem em
quarteis para se lá armarem , o que se poz por obra mandan
dose fazer com toda a brevidade.
Feitos os quarteis das ditas lanchas, forão em pataxos
entrando a barra do Coanza até Masangano pello rio acima
com muniçoens, armas de sobreselente e os mais petrechos
de guerra, com artelharia de campanha e o seu trem; tendo
mandado diante este apresto se abalou da Cidade até
Tombo seis legoas por terra da Cidade ao rio Coanza , e
ali se embarcou com a gente de seu exercito em lanchas e
canoas gente Baquiana e Conquistadores antigos accompa
nhados de sua escravaria e gente forra com boas matalo
tagens para o sustento da campanha; desta sorte chegou á

1 28
Villa da Victoria de Masangano, praça de Armas da Con
quista. Naquella villa (" ) se preparou de tudo o mais que
lhe faltava para seguir aquella empreza, ajuntando quanti
dade de carregadores para o comboyo das lanchas em quar
teis, artelharia e seu trem , armas e muniçoens e fardagem
da Infantaria , que era immenso o gentio que se ajustava
para a carroagem, afora muita guerra escoteira (2 ) para os
accidentes da guerra; acariciou (convidou ) muitos dos con
quistadores antigos para o accompanharem nesta guerra, e
alguns chamandoos por estarem auzentes por cartas benevo
las; e porque veja o curiozo o modo com que neste tempo se
obrigavão os homens ao Serviço Real, porei aqui huma carta
que veyo ao Autor á mão por ser feita a pessoa de sua obri
gação, ou , para dizer tudo, a seu sogro , cujo teor he o se
guinte :

Senhor Capitão Fernão Rodrigues.

Espantado estou de me dizerem que Vm . não vem á


guerra, e o sinto mais que se me faltavão vinte homens ; pa
rece -me que Vm . que não tem razão de lançar mão que o
Governador que lhe faz agravo porque a honra he prestar
homem para os cargos e não telos quando não presta para
elles, e o para quanto Vm . presta já está sabido, e quam
grande soldado he; o que agora resta he buscar pão para
os meninos, que honra já Vm. tem ganhado que baste nesta
terra! venhase Vm . ter comigo! e tome meu Conselho , pois
sabe que sempre fui seu Amigo, e lhe fui affeiçoado; e bem

( ) Bento Banha Cardoso saiu de Luanda em 6-2-1626; foi como


o autor diz, pelo Quanza para Massangano.
© Guerra escuteira quer dizer gente bolante. (Nota marginal do
Autor ).

129
sei que está pobre, e em tudo o que eu poder o hei de ajudar.
Nosso Senhor g.de a Vm. da Lucala 12. de Março de 1627.
annos. (* )

Servidor de Vm .
Bento Banha Cardozo.

Desta sorte acariciou a este Conquistador antigo, e assim


agenciou a outros Conquistadores, pessoas de grandes sam
zallas de gente preta, que tudo lhe era necessario para huma
guerra que emprendia tão difficultoza ; com esta preparação
marchou por terra para a fortaleza da Embaca, hindo com
boyando todo aquelle apresto de guerra com muito cuidado
e trabalho, deixando naquella fortaleza a gente pouco ver
sada no Sertão, levando da Baquiana e alguns Sovas da
quella Conquista que se tinhão por leaes e mais fieis Vas
sallos da Coroa de Portugal, como era hum poderoso Sova
chamado Mobanga parente dos Reys antigos de Angola,
o qual havia dado entrada por suas terras a Conquista de
Dongo, como atraz se disse em o Governo de Luis Mendes
de Vasconcellos, levando guerra preta daquelle districto e
lotação ; tambem nesta occazião accompanhava ao Capitão
môr dous senhores fidalgos parentes dos Reys de Angola
mui chegados e successivamente o erão da Rainha Ginga
Dona Anna de Souza, dos quaes hum delles possuhia a
Provincia do Aire ou muita parte, e o outro as Pedras do
Mapungo, ambos Irmãos, senhores de muitos Vassallos.
Deste sitio e alojamento marchou o Capitão môr em de
manda das Ilhas de Quindonga onde a Rainha Ginga es
tava fortificada, assistida de muitos Jagas, como era Caza

( ) Não se deve confundir a data desta carta com a dos factos con
tados aqui pelo autor.

130
e Caiete, que aquella austucioza Rainha com seus ardis e in
dustria se havia assenhoreado delles e de seus Quilombos;
avistado que teve o Capitão môr aquellas Ilhas fez alto,
tomando sitio conveniente em que alojou o seu exercito ,
mettendo - se o caudalozo rio Coanza de por meyo , estando
da outra banda aquellas dilatadas Ilhas que constavão de
algumas cinco, com as costas em terra firme da outra banda,
mettendo - se hum braço daquelle rio Coanza de por meyo ;
tendo nesta paragem formado o Capitão môr seu arrayal (- )
mandando correr aquella Campanha pello Capitão da gente
de cavallo que era neste tempo hum Conquistador dos
antigos por nome Gaspar Borges Madureira, fazendo pre
zas e tomadias de gente da cavallo, e da guerra preta, man
dando tambem pôr em ordem as lanchas, unindo huns quar
teis com os outros. Vendose aquella bellioza Rainha abar
bada e opprimida com a vizinhança do nosso arrayal, ordenou
huma sortida pellos mais esforçados de seus Capitaens com
o melhor de sua gente, passando aquelles braços do Coanza ,
em canoas, balsas, e jangadas com ordem da Rainha sua
Senhora que dessem de noute para com a confusão entra
rem o nosso alojamento, queimando tudo e as lanchas que
armando se estavão, de que já tinha noticia de tudo, os
quaes derão de noute seguindo a ordem que levavão, o que
não deixou de cauzar em a nossa gente confusão por ser
áquellas horas couza não esperada, tendo alguns dos inimi
gos com aquelle impeto entrado as nossas cortinas, mas
acudindo o Capitão -môr com o seu valor ao reparo , e os
Capitaens e Cabos a guarnecer seus postos e cortinas , e o
Capitão de Cavallos com seus Soldados, que todos nesta
investida tão feroz daquelle inimigo fizerão bravuras hindo
com muito valor rebatendo o inimigo fazendo nelles muita
mortandade: mas erão immensos e mandados por pessoa tão

( ) Estes factos ocorreram em Junho de 1626.

131
10
obedecido dos seus. Durou a contenda de huma e outra parte
até o amanhecer com o que a nossa gente ficou de melhor
partido vendo com quem pelejavão, empregando melhor seus
tiros naquelles inimigos, o que elles vendo a vantagem com
que pelejavamos, e que não podião obrar á medida de seu
dezejo, e erão mandados , se forão retirando e em seu alcance
a Cavallaria e guerra preta que forão degolando e aprizio
nando muitos inimigos até os braços do Coanza onde hião
buscar as suas embarcaçoens, para passarem as Ilhas; nesta
confuzão se lhe afugou muita gente em que forão bem dimi
nutos e sacudidos nesta occazião, pello acostumado valor
dos Portuguezes com que rezistirão e nella se houverão, não
ficando os nossos sem perda de alguns Portuguezes e gente
preta e muitos feridos.
Ficou este valeroso Rey que lhe chamavão e Rainha por
ser Mulher pezaroza de se lhe haver mal logrado seu intento
que entendeo daquella vez acabasse com nosco , e nos to
massem os seus ás mãos vindos mandados daquella Senhora
que elles amavão e respeitavão como a seu Deos, Amoucos
a investir o nosso poder como muitas vezes o fez o gentio
da India, tambem com a nossa gente Portugueza, e elles
o uzarão nas guerras que entre sy tinhão como o contão
as nossas historias dos successos daquella Monarquia e Es
tado da India .
Foi o nosso Capitão môr dando ordem ás Lanchas como
dito he, unindo os quarteis; tendo -as postas em ordem de
navegar as mandou por beira rio Coanza, ajuntando mais
algumas canoas, balsas e jangadas para passar ás Ilhas a
gente do nosso Arrayal com seus reparos ás suas frecharias
e mui tiros de espingardas e mosquetes, que lhe não falta
vão, que a sua industria tinha havido, e muitas muniçoens,
que o enteresse e ambição faz dar armas aos inimigos , e
agora as achávamos contra nós, e era couza para notar o
quanto estavão já vistos nas nossas couzas pella muita gente

132
nossa fugida que tinhão em seu poder, escravos de Portu
guezes os quaes estavão fazendo sentinellas nas suas es
tancias e guaritas, que tinhão na Ilha , que chamavão de Ma
polo, mais proxima a nós; que se da nossa parte as sentinellas
davão huma badalada no Sino que era o primeiro quarto de
prima , da sua banda davão outra em Sinos que tambem ti
nhão; se duas, duas; e assim hião continuando os quartos e
sentinellas de dia e de noute, fallando della (ilha) muitos
dezaforos, perguntando está ahi fulano, respondião -lhe
que sim, cuidando os procuravão para alguma couza, res
pondião pois dizeilhe que vá a Loanda, ou a Masangano,
onde o tal era cazado, ver sua Mulher, que está fazendo
estas e outras couzas com fulano; estas e outras maldades
dizião das suas arrochoadas e fortificaçoens no mais soce
gado da noute para que os entendessem , o que era bem
conhecido ser dito pellos nossos proprios escravos fugidos,
que estavão com a gente da Rainha .

133
CAPITULO DECIMO TERCEIRO DA PRIMEIRA
PARTE DO PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA
GENERAL DAS GUERRAS ANGOLANAS PROSE
GUINDO O GOVERNO DE FERNÃO DE SOUZA .
1

Estando preparado tudo lanchas, canoas, balsas e jan


gadas para tambem passar ás Ilhas a guerra preta com seu
Capitão môr della e Tandala do Reino, que era hum va
lente homem ainda que de cores pretas, chamado Antonio
Dias Musungo, em quem o nosso gentio tinha muita fé em
suas emprezas por ser valerozo. Armarão- se os que se ha
vião de embarcar nas lanchas das armas que costumavão
levar nas guerras destes Reinos que erão feitas de panos
ou beirames muito a colchoadas e descião até os joelhos,
com carapuças do mesmo, com suas vizeiras que tomavão até
o pescoço que registião ás frechas, como giboens de pannos
ou de ilhos, que alguns que podião levavão tambem deste
genero; o Capitão -môr de armas brancas e alguns dos prin
cipaes Conquistadores que tambem tinhão, que havião
occupado postos mayores na guerra , levando a vanguarda
o valerozo Caudilho, forão tabucando (1 ) ou passando aquelle
braço do Rio hospedados e recebidos daquella numeroza
gente que estava na primeira Ilha chamada de Mapolo com
muitos tiros de Espingardas e Mosquetes que ainda que
não atiravão com muito acerto nos matarão e ferirão alguma
gente; pelejando o nosso Capitão com os mais companheiros
com muito valor hindo já perto de terra para tomar posto lhe
deo na primeira lancha a grande corrente do rio, com que

( ) Tabucar chamão na lingoa Ambunda de vadear e passar; é o


verbo kutabuka . (Nota marginal do Autor ).

134
os levava a grande precipicio, em rezão de humas caxoeiras
onde aquellas agoas se despenhavão, e no mesmo perigo es
tiverão as mais embarcaçoens e o cauzou afrouxarem os re
meiros com a vouga, por estarem muitos feridos das nuvens
de frechas do inimigo e outros dos seus pilouros que nem
tudo se errava; foi necessario os mesmos Soldados que hião
nas embarcaçoens tomarem os remos nas mãos, por se não
verem em tão evidente perigo, o que ajudou muito a lancha
do Capitão - môr que estava no mayor precipicio, por ir
muito descahindo; em este comenos tomarão dous Soldados
esforçados hua corda na mão deixando a ponta amarrada
na proa da lancha e com ella saltarão a agoa perto de terra,
e forão com todo o esforço tendo mão na lancha que não
descahisse; sobre esta acção á vista do inimigo houve huma
terrivel pendencia , em defenderem o tomar a nossa gente
terra , e a quererem ofender os dous valerosos Soldados, que
The atirarão chuveiros de frechas e arremeços de páos tos
tados e azagaias, mas elles com grande animo tendo fixo
na Corda até que veyo o Capitão môr com os Companheiros
a terra, brigando todos com grande valor com aquelle nu
meroso gentio, sustentando o posto em que dezembarcarão,
até chegar a outra lancha e mais embarcaçoens; os dous
esforçados Soldados ficarão muito mal feridos e a hum delles
que chamavão Rodrigo Serrão filho desta terra de Angola
lhe derão com hum páo tostado nos peitos que lhe fez mais
mal do que os feridos das frechas , e o autor desta historia
o conheceo e botava sangue pella boca daquella cruel pan
cada, até que acabou a vida em esta penalidade. Dezem
barcado que foi todo o nosso poder avançou o Capitão môr
com os mais agentes hum baluarte de paoapique e fachina ,
onde rezistirão os inimigos com valor matando e ferindonos
alguma gente até que com a valentia dos nossos foi entrado.
com mortos de muitos inimigos, e da mesma maneira forão
entradas as trincheiras e arroxoadas com mortos tambem de

135
inimigos dandose a saco aquella primeira Ilha de Mapolo, (1 )
que esse nome tinha o Cabo que a defendia , em que se apa
nhou e canzou (?) muita gente inimiga e muito do seu mulhe
rio, fugindo muitos para as mais Ilhas Circumvizinhas, fi
cando já aquella Rainha Ginga destituida desta em que ti
nha as mayores esperanças por ser a fronteira das mais
em que tinha o melhor Capitão com gente mais escolhida
nova , que lhe deo muita pena vendo os que hião derrotados
della; nesta Ilha se acharão muitos mantimentos e gado de
toda a sorte que tudo era bem necessario á fome e miseria
que padecia a gente do nosso exercito.
Tendo o Capitão môr alcançado esta tamanha Victoria
com tanto trabalho e fadiga , deixando naquella Ilha a guar
nição necessaria em quanto a dezalojavão dos bastimentos
que em sy tinha , se passou ao Arrayal do Tabi (3 ) a curar
og feridos e tomar a gente de seu exercito hum pouco de
descanço para proseguir com aquella ardua empreza ; pas
sados poucos dias se tornou a embarcar com a sua valerosa
companhia dos seus Conquistadores, sendo elle o primeiro
em estas acções de guerra para dar exemplo aos mais, hindo
em demanda da Ilha do tandala que estava tambem forti
ficada com suas arroxoadas; sobre a entrada dellas houve
grande batalha e porfiada peleja, tendo havido o dezembar
car grande defença, em que teve aquelle gentio muita mor
tandade , e da nossa parte se derramou muito sangue com
mortes de alguns Portuguezes que o chamado Tandala he
o governo do Rey e o que governa todo o Reino, estava por
esta razão accompanhado de bons Capitaens e da melhor

(" ) Bento Banha Cardoso entrou nesta ilha em 12-6-1626 .


☺ ) Canzar he apanhar na Lingoa de Angola . Do kukanza, que
hoje significa apanhar frutos pendentes. (Nota marginal do Autor ),
☺ ) Tabi chamão de assento . (Nota marginal do Autor ).

136
gente; a seu pezar saltarão na Ilha os valerozos Portuguezes
fazendo todas as difficuldades lhanas com seu esforço hindo
logo de volta com o inimigo cometer as trincheiras que com
grande bizarria avançarão não valendo ao inimigo a sua
rezolução em as defenderem com tiros de espingardas e mos
quetes e azagayas com nuvens de frechas, até que com valor
e esforço forão entradas, pondo naquelle conflito tudo a
ferro; passado elle foi a nossa guerra preta com seu valerte
Capitão môr aprisionando muito daquelle gentio , disco :
rendo por toda aquella Ilha que era grande de muito cir .
cuito, fugindo alguns a nado e em jangadas para as outras
Ilhas que ainda estavão em ser; nesta se achou o que na
primeira de mantimentos e gados.
Havendo o Capitão mór alojado seu exercito nesta Ilha
do Tandala , para dali ficar mais visinho ás outras e 7s ir
rendendo, despois de haver tomado algum alivio a tanta
canceira, se embarcou para as mais Ilhas como forão a do
Angola Ambole onde havia muita gente de guerra assim
de Jagas como dos seus, que como esta dignidade de An
gola Ambole he entre elles como entre nós Capitão Geral da
gente de guerra, razão porque tinha muita escolhida e boa,
onde houve muita rezistencia ; e o mesmo foi na Ilha do
Muene Lumbo que era outra dignidade das principaes da
quelle Reino; e por não dar o autor enfado ao Curioso leitor
as não relata mais miudo por extenço, conforme a noticia
que teve dos mesmos Conquistadores que se acharão em
todas as occazioens que houve na guerra e empreza destas
Ilhas com quem elle autor teve muita conversação por hum
delles ser seu sogro . Veyo só a ficar por render a Ilha em
que estava a Rainha Ginga Dona Anna de Souza com sua
Corte e do melhor que possuhia; vendose ella abarbada man
dou seus Embaixadores ao Capitão môr, pedindo - lhe a não
apertasse tanto, que bastava o damno e guerra que lhe ti
nha feito nas mais Ilhas, que ella queria ser filha de Mani

137
putu , (- ) e sua Vassalla que dentro em tres dias viria em
pessoa com sua Corte ao Arrayal, que em tanto ella se pre
parava lhe desse lugar a isso, e se viesse para o seu Qui
lombo de Tabi, ( ) onde ella Rey promettia de passar e ajus
tar huma boa paz com Maniputu e seu Capitão môre Vas
salos, e como esta materia era de tanta Consideração, tomou
o Capitão môr conselho com os Cabos mayores da guerra, e
Capitaens e pessoas particulares de consideração, que na
quella guerra e em sua companhia se achavão Conquistadores
antigos, os quaes forão de parecer se lhe concedessem os
tres dias que pedia para ver se se podia tomar termo de huma
vez com aquella tão bellicoza Mulher e Rainha ou Rey como
ella se chamava, e não admettia o de femea, e que quando
nos burlasse como assim o entendião alguns dos prezentes,
que para sy fazia o mal porque nunca haveria socego nem
ella o teria , e que se mostrava com isso aquelle gentio que
nos accompanhava e seguia e tinhão sido seus Vassalos que
por amor do Rey Damgola não tinhão elles quietação nem
a gente Portugueza; com que se lhe concederão os tres dias,
e o Capitão môr se recolheo ao Arrayal de Tabi a esperar
por sua boa vinda.
Em quanto o Capitão môr esperava os tres dias conce
didos á Rainha Ginga Dona Anna de Souza, vendo o muito
que havião obrádo naquella guerra alguns Conquistadores
em que se havião singularisado com muito esforço e valor,
armou Cavalleiros aos de mayores merecimentos com todas
as Ceremonias que se costumão a fazer em taes actos, com
a authoridade que tinha de Capitão môr do Reino e gente
de guerra por Sua Magestade, e por ser Commendador da

(" ) A palavra Mani, quer dizer Senhor e Putu se deriva Portugal .


( Nota marginal do Autor ).
(*) Quilombo de Tabi chamão ao Arrayal que está d'Assento e
allojado. (Nota marginal do Autor ).

138
ordem de Nosso Senhor Jesus Christo, e fidalgo da caza
de Sua Magestade, e assim ser uzo nas guerras de Africa
o fazer - se, e de tudo o que hia obrando nesta conquista dava
parte por seus enviados ao Governador e Capitão Geral des
tes Reinos mandando -lhe suas ordens para o que havia de
ir obrando.
Havendo o nosso Conquistador esperado os tres dias
aplacados, e vendo não vinha a Rainha nem recado seu
para a mandar passar nas suas embarcaçoens , entendeo logo
fora estratagema a tregoa dos tres dias que havia pedido
e mandando reconhecer a Ilha a acharão dezerta , e a Rainha
fugida com o inumeravel gentio que com sigo tinha , o que
sabido pello Capitão môr tocou a rebate e mandou logo
sahir o Capitão da gente de a Cavallo com guerra preta
escoteira, e elle na retagoarda com parte de seu exercito
gente de bom pé, dixando parte no arraial de Tabi para sua
guarda e foi em seguimento daquella astuta Rainha, fazen 4

dolhe muita preza , despois que lhe foi dado na trilha de


muitos escravos e escravas, que huns por não poderem mar
char com os mais e outros que a Rainha e os seus hião dei
xando pellos caminhos, de industria para se occupar a nossa
gente na preza delles, e nos empachar para com isso ter
mais fuga que a não seguissem tão ligeiros; marchou o Ca
pitão mor alguns dias atraz da Rainha Ginga em seu alcance,
o que vendo era por de mais querer lhe dar alcance, ao muito
que se hia alongando pello Sertão dentro, chegando a hum
sitio que chamão a Quina (1 ) pequena mandou fazer alto a
toda a sua gente, e descançando alguns dias do grande tra
balho da marcha se recolheo ao seu Arrayal.
Vendo o Capitão môr aquella nossa inimiga tão alon

( ) Quino chamão a Cova de Suderam , a esta chamavão a piquena


porque havia outra mayor. (Nota marginal do Autor). Kina , ainda hoje
é cova , sepultura. « Suderam » , não sei o que fosse.

139
gada e destituida de quasi todo seu Reino, e porque não en
tendesse esta Ambundainha que movia só aos Portuguezes
a ambição de dominar aquelle Reino de Angola, de que toda
a gente Ambunda são naturaes, tendo elle tambem promet
tido ao Senhor da Provincia da Ayri chamado Dambi Aiidi
de o fazer Rey, por ser da estirpe Real dos Reys antigos
de Angola e Dongo, e por elle e hum Irmão seu nos haverem
accompanhado, como Vassallos da Coroa de Portugal, o
qual segundo Irmão se chamava Angola Airi , Senhor das
Pedras do Mapungo, á opposição da Rainha Ginga de quem
elles se não fiavão, e erão havidos della por traydores á
sua Coroa por se haverem abandonado com os Portuguezes,
e lhes beberia o sangue se os podesse haver as mãos o que
não era muito beberlho, quem como Jaga comia carne hu
mana seguindo seus ritos e costumes , não lhe lembrando o
nome que tinha de Christãa , chamada Dona Anna de Souza
como dito he; esta determinação teve o Capitão môr de fa
zer Rey ao Senhor do Airi e sua Provincia com parecer e
ordem do Governador e Capitão Geral a quem havia dado
parte de tudo isto neste Arrayal chamado o Quilombo dos
Corvos pelos muitos que acudirão á carniça assim da gente
morta na guerra como da muita que havia morrido das be
xigas que foi como ramo de peste; e ficou tambem memoria
assim esta notavel Conquista daquellas Ilhas como a mor
tandade que cauzarão as bexigas de Calidade, que quando
c gentio queria affirmar alguma couza com juramento dizião
Mo Quimdonga ( -) porque muitos participarão daquelle
mal contagioso, a huns morrendo -lhe Pays, a outros Irmãos,
a outros parentes , cauza porque lhes lembrava tanto ao
nosso gentio já bautizado, estando no gremio da Igreja
Catholica não tão mettidos nas suas idolatrias, em que muito
havião trabalhado como dito he os Padres da Companhia

(" ) Quindonga era o nome das ilhas. (Vede pag . 130 ) .

140
de Jesus com seu costumado espirito, pondo a muitos em o
Caminho da Salvação de que havião participado o que agora
se fazia Rey e seu Irmão e outros fidalgos seus parentes.
E porque tambem do mal contagioso das bexigas parti
ciparam estes dous Senhores da Provincia do Airi o Irmão
mais velho por nome Dambi a Airi, a Airi Aquilangi, a quem
estava feita a promessa ; outros dizião que fora primeiro Rey:
e o despois disso morrera , e o verifica hum seu testamento
em que nelle pede a seus testamenteiros , o Capitão môr An
tonio de Abreu de Miranda Conquistador Antigo e ao Ca
pitão Joseph Carrasco, que sendo de idade hum filho seu
por nome Dom Simão, e da terra Dambi a Airi, o fizessem
Rey, pois elle lhe succedia como seu filho; mas nesta occazião
se fez , com ordem do Governador, Capitão môr, e mais
Conquistadores em nome de Sua Magestade Catholica, na
Era de mil e seiscentos e vinte e sete, (º ) a Dom Phelipe
primeiro deste nome Angola Airi Senhor das Pedras de Ma
pungo e Maozondo, Rey de Domgo que comprendia o seu
Senhorio do Airi e Pedras, e outros muitos Sovas anneixos
do que tocava a Dongo que as nossas Armas havião con
quistado, como tambem antecedente ao feito agora Rey, e
a seus Irmãos, e mais parentes, que obrigados disso, e de
se arrecearem da Rainha Ginga que era tirana , pois havia
morto o seu proprio Sobrinho, que havia de ser Rey, filho
de seu Irmão Angola Ambandi Rey de Angola , e degolado
o Tio por se lhe querer afastar como dito he, vindose de
bautizar da Cidade da Loanda , e a estes seus parentes de
que fallamos fizéra o mesmo se os acolhera ás mãos, que
a todos reputava por suas peças e dizia que quem era Rey
não tinha parentes.
Este Rey novo de que himos fallando se chamava neste

( A eleição de Ngola Aiidi em rei foi em 12-10-1626.


No baptismo tomou o nome de Filipe.

143
tempo Senhor das Pedras do Mapungo, á falta de Varão
por parente mais chegado, e conheceo elle autor a huma
fidalga sua Sobrinha por nome Dona Angola que tambem
se chamava Senhora das Pedras do Mapungo por lhe per
tencerem por seu Pay que havia sido Senhor dellas e este
seu Tio Rey as possuhia como Varão , e ser sitio forte por
natureza , e nellas se assegurar da Rainha Ginga sua inimiga ;
e antes que passemos avante, diremos, pois fallando atraz
em o Sobrinho da Rainha Ginga, de quem ella foi fratecida,
em como fizerão os Governadores e Capitaens Geraes destes
Reinos muitas instancias por via de alguns Conquistadores,
como foi hum de que elle autor vio Cartas em seu poder, ou
de seu Genro, o qual se chamava o Sogro Antonio de Abreu
de Miranda de quem já fallamos, e ao diante tambem , e o
Genro Cazado com sua filha, Lopo de Carvalhal Fogaça,
em que encommendavão muito fizesse com o Jaga Caza, não
entregasse o Principe Menino á Rainha Ginga, e visse se o
podia haver a nós, porque se entendia o que delle havia de
vir a fazer; isto foi antes deste Jaga Caza vir ao serviço da
Coroa de Portugal, o que já mais pode remediarse, amigan
dose, a dita Rainha com este Jaga Caza só afim de acolher
Sobrinho ás mãos como acolheo e se tem dito o funesto
fim que teve.
Nomeou o Capitão a este Rey Vassallo da Coroa de
Portugal seu Dominio como dito temos, com Sovas nomea
dos e demarcação de seu Reino chamado Dongo pello haver
conquistado o Governador e Capitão Geral Luiz Mendes
de Vasconcellos como se disse em seu Governo , e prometteo
este Rey Dom Phelipe Angola Airi pagar da vassalagem
cem cabeças de escravos todos os annos, ao que lhe disse o
Capitão mor que visse o que promettia, no que se tornou a
ratificar, o que não lhe parecia muito pella opulencia do
Reino em que então estava , o que ao despois não pôde cum
prir, que muitas vezes para huma pessoa alcançar o que de

142
zeja promette muito, e ao despois de alcançado não cumpre
nada; prometteolhe o Capitão mor por sy e pello Governa
dor e em nome de Sua Magestade de o defenderem de seus
inimigos, e , vindo o Capitão mor para baixo , de lhe deixar
duas Companhias com seus Capitaens e mais officiaes em
sua guarda o que lhe cumprio, quando veyo de volta.
E porque se entenda a opulencia de peças e commercio
que havia neste Reino de Angola como ainda hoje ha, mas
não em tanta abundancia, que há muitos annos que se tira
agoa desta fonte , no Sertão e nos Quilombos quando havia
guerras de mais proveito do que as de hoje, hião muitos ne
gros mercadores ou commerciantes chamados Pombeiros com
muita fazenda Bamzada (1 ) de seus Senhores, afunar peças,
e erão tão dextros nisto que se prezavão de fazer aquelle
negocio ; succedeo haver neste Quilombo chamado dos Cor
vos , entre outros muitos, dous Pombeiros escravos de homens
brancos que negociavão largo, e tiverão entre sy porfias qual
delles era melhor Mercante; das porfias chegarão ás apostas,
e com effeito apostarão seis peças ou seu valor em fazendas,
tomando por juiz de sua diferença, para nella ouvidas as
partes dar sentença, ao mesmo Capitão mor a cuja prezença
forão com sua querela, e manifestando a que hião, lhe man
dou , por passar tempo, que não ha de ser tudo guerriar, que
propozessem suas razoens e fundassem (ə ) o seu Mocano ;
disse o que lhe coube primeiro fallar.
Eu vim a este Quilombo com fazendas de meu Senhor e
fiz duzentas peças, e nenhum Pombeiro de quantos ha neste
Quilombo se me igualou , nem o que está presente, com se
prezar tanto disso ; respondeo o competidor, o que fizestes a
) Bamzada era o computo que havião de dar por cada Escravo a
que chamão banzo ou banzos. Funar he comprar e mercanciar. (Nota
marginal do Autor ).
Kubanza era calcular; hoje é pensar. Kufuna ainda hoje é negociar.
☺ ) Fundar he arrezoar o que tem para dizer. Mocano he o pleito
com que vem . ( Nota maginal do Auctor ). Do verbo kufunda, litigar.

143
todas essas peças que compraste ? respondeo que lhe havião
as mais dellas morto das bexigas que havia havido naquelle
Quilombo ; disse então o outro, por essa razão eu venho a
ser melhor Pombeiro porque eu tinha comprado cento e cin
coenta peças, e tanto que vi vinhão dando as bexigas e mor
tandade na gente, me desfiz dellas com muita brevidade,
vendendoas a outros Pombeiros a troco de fazendas, e as
guardei até que passou aquelle mal, e agora que he passado
tenho feitas para levar a meu Senhor, e as tuas ainda que
fossem mais do que as minhas , o que tu te gabas, estão mor
tas e enterradas, e as minhas estão vivas, e saãs! ve -tu agora
qual de nós soube negociar melhor; a este julgou o Capitão
mor ser melhor Pombeiro, e que havia ganhado as peças da
aposta; huma historia he huma representação do que se vay
contando; não a há sem entremês; sirva esta contenda disso .
Tendo o Capitão mor com seu exercito rendido as Ilhas
de Quidonga, afugentado a Rainha Ginga com os seus fe
rozes Jagas, que muitas havião largado as vidas, e sido pri
sioneiros, criado novo Rey, feito tudo o que foi do serviço
del Rey, deixando todas as couzas da Conquista de Angola
em boa forma , deixando guarda ao Rey de Demgo Dom
Phelipe de Souza de duas Companhias de Infantaria, se veyo
recolhendo para ir para a Cidade, a dar conta de mais perto
do obrado ao Governador com a gente moradora e Conquis
tadora que o havião accompanhado; chegado que foi a Villa
da Victoria de Masangano adoeceo de tão continuado tra
balho que havia passado naquella jornada e Conquista , que
em breve largou a vida, e foi sepultado em a Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Victoria de Masangano; sua morte (" )

(") « Estando em Ambaca adoeceu e vindo a curar - se a Luanda o


acompanhou o Padre Francisco Velho da Silva; chegando ao Lembo
quiz descansar no arimo de Pero de Carvalhaes Dantas e carregando a
doença morreu em 8-8-1628 no dito arimo; foi levado a Massangano e
ali o enterraram com a decencia que convinha ».
(I tomo dos Livros de Fernão de Sousa , fl . 253 , ao alto ) .

144
foi muita sentida daquelles Conquistadores que o havião em
tantas occazioens de guerra accompanhado, havendose com
elles como Companheiro, e não como mandador, com o que
attrahịa as vontades de todos; e se pode dizer foi dos Con
quistadores que mais trabalharão, nestas Conquistas : tudo a
morte acaba , e não perdoa ao mayor Monarca.

145
SEGUNDA PARTE DO PRIMEIRO TOMO DA HIS
TORIA GENERAL DAS GUERRAS ANGOLANAS
ESCRITAS POR ANTONIO DE OLIVEIRA DE CA
DORNEGA CAPITAO REFORMADO E CIDADÃO
DA CIDADE DE SAO PAULO DA ASSUMÇAO NA
TURAL DE VILLAVIÇOZA PROSEGUINDO O GO
VERNO DE FERNAO DE SOUZA .

Foi mui sentida do Governador e Capitão Geral a morte


do Capitão mór Bento Banha Cardozo, e muito mais quando
soube que a Rainha Ginga Dona Anna de Souza havia dado
hum repentino assalto em o nosso Rey de Domgo e levado
prisioneiros alguns soldados Portuguezes por andarem der
ramados com hum dos Capitaens que havia ficado em
guarda do Rey, que seu nome era Estevão de Seixas Tigre,
soldado de experiencia que havia militado nas guerras de
Italia; os inimigos não vencem muitas vezes se não aquelles
que são descuidados, como lhe succedeo a este Capitão, (* )
que cuidando estava aquella inimiga dali mui distante,
quando se não precatou a teve sobre sy , tão aceleradamente
que não pôde uzar do seu saber e destreza , mas não o levou
tão á tripa forra que lhe não custasse muito sangue, rezis
tindo alguns poucos Portuguezes que se poderão incorporar
com a guera preta do Rey de Domgo Dom Phelipe.
Com esta nova tratou logo o Governador de eleger Ca
pitão mór do Reino e guerra , e foi nomeado para tão neces
sario posto a Paio de Araujo de Azevedo, (2 ) pessoa au

☺ Este ataque da Jinga dado ao soba Aiidi Quiluanji (e não ao


rei de Domgo) constitui as primeiras hostilidades dela foi não na data
que o autor diz, mas em meados de 1625, como adiante é anotado .
(9) Teve provisão dada pelo governador em 24-8-1628.

1:46
torizada e de serviços , Conquistador dos mais antigos , que
ainda hoje se conserva na Cidade de São Paulo da Assumção
descendencia sua autorizada; mandou logo ao novo eleito
sahir da Cidade com apresto necessario, com ordem que
buscasse aquella inimiga até a haver ás mãos e desbaratar
todo o seu poder com que sempre nos molestava .
Sahido que foi o Capitão mór da Cidade marchou por
terra até a Villa da Victoria de Masangano, e a bagagem
e muniçoens pello rio Coanza ; chegado que foi aquella Villa
se preparou com toda a brevidade que lhe era necessaria para
aquella empreza, levando com sigo alguns moradores da
quella Villa , Conquistadores com sua escravaria ; dali mar
chou para a Embaca onde se acabou de aviar de guerra preta ,
avizando a el Rey de Domgo Dom Phelipe Angola Airi es
tivesse prestes com sua guerra para hirem em busca daquella
inimiga commua que tanto dezejava destruilo , por ter o
nome de Rey, dado pella Coroa de Portugal e seus Vassallos
Portuguezes , de que havia tido grandissimo pezar, que pa
rente seu tão chegado, e seu Vassallo que havia sido , to
masse aquelle titulo em seu vituperio , sendo couza ordina
ria e costume antigo assim em os Reys desta Ethiopia , como
Sovas , e Senhores , não quererem ver diante de sy os que
lhe podem vir a succeder no Reinado Sovado ou Senhorio,
nem os que estão a cabar se dão por seguros , junto dos que
estão nos Governos que por qualquer couza ou autoio lhe
dão com a Cabeça fora , ou secretamente lhe mandão dar
couza com que lhe acabam a vida; por este respeito os que
são pretenceres, tirados os filhos , se afastão para a terra
de algum fidalgo Sova seu parente ou amigo onde se livrem
de lhe não fazerem mal , os que possuem os Senhorios ou
Sovados , e só faltando por morrerem ou outro successo, os
vão buscar os principaes Macotas da terra , e os trazem de
donde estão retirados , para o Governo, não precedendo o
filho pello não haver , ou por ser de má natureza ou ainda

147
II
moço , vão então buscar o Tio ou parente mais chegado, a
estes pretenceres chamão os Gingos na sua lingoa, que val
tanto como dizer gente que está para herdar.
Incorporado que esteve o Capitão mór com o Rey de
Domgo e sua guerra e a de outros Sovas nossos Vassallos
marchou em busca da Rainha Ginga nossa inimiga, dando
pello caminho alguns assaltos em alguns Sovas do seu par
tido, e por mais que erão enqueridos os que se apanhavam (* )
para dizerem a parte certa em que estivesse, já mais o qui
zerão descubrir, ainda que os chegavão a tormentos, guar
dando Lealdade a sua Senhora , e lhes parecer que se o des
cubrissem morrerião logo; hindo por diante marchando al
guns dias lhe sahio muita guerra ao caminho a representar
batalha ao nosso exercito; conheceo então o Capitão mór
pellas divizas das bandeiras que era gente da Rainha Ginga,
e dos Jagas que a accompanhavão, e que não podia estar
dali muito longe; formou o Capitão mór a sua gente como
valeroso Capitão e Conquistador, a que dava o terreno lu
gar , e se começou a travar huma sanguinolenta batalha, e
por mais gente que o rigor das nossas armas matava no
inimigo cada vez persistião com mais valor, até que passadas
algumas horas de Combate vierão a declinar pondose em
fugida, e os nossos em seu alcance, hindose degolando e
aprisionando muita gente, seguindo o Capitão da gente de
a Cavallo com sua Companhia e soldados de bom pé e guerra
preta escoteira ; (2 ) tendose seguido esta rota de tão famoza
e renhida batalha, vendo que não achavão o que tanto de
zejavão que era a pessoa da Rainha Ginga, se recolherão ao

( ) Este gentio tem hum juramento a que chamão tomar azeuza ,


que ainda que os matem não hão de descubrir nada do que lhe perguntão .
( Nota marginal do Autor ).
(º ) Escoteira se diz por ir dezembaraçada de Bagagem , mais que
as Armas nas mãos, que he arco, Frechas, Azagaias, e Machadinha que
tudo accomodão bem . (Nota marginal do Autor ).

148
Corpo do Exercito carregados de despojo do que forão
largando e muita gente prisioneira.
Derão todos muitas graças a Deos e a Sua May San
tissima pella Victoria alcançada, com poder da nossa parte
inferior, que evidentemente se via nascia tudo de particular
favor do Ceo, que favorecia as Armas Portuguezas contra
tão inumeravel gentio, gente pella continuação da guerra
valeroza e dextra nas armas, mas gentia e idolatra que essa
era a vantagem que da nossa parte havia serem Catholicos
filhos da Santa Madre Igreja.
De alguns Jagas que na referida batalha se aprisiona
rão se soube, em como a Rainha Ginga estava dali distancia
de Legoas, com Quilombo tumgado (1 ) ou aquartelado que
tomava legoas o que occupava por sua grandeza e multi
dão de gente e Quilombos de Jagas e que tinha as costas na
Quina grande sitio eminente, e o mais delle despenhado
pellas bandas, não tendo mais que huma entrada; com esta
certeza e informação que a derão os Jagas na verdade, por
ella não ser Sua Senhora natural , por serem outra casta de
gente como dito he com outro Senhor ou Senhores á parte,
ainda que a accompanhavão já como se forão seus vassallos ,
e o mesmo seus Senhores, como erão o Jaga Caza , e Caiete
que primeiro havião militado de baixo das nossas Bandei
ras , mas os que são Soldados de fortuna e não Vassallos
nativos vão para onde lhe vay melhor, mas não deixão por
isso de ficarem com nota de desleaes, e bandoleiros pouco
capazes para delles se fiar nada .
Tendose aquellas certas noticias ficou o Capitão mór,
e mais Exercito mui alvoroçados com a nova fazendo de
conta havião aquella inimiga que tanto buscavão com tra
balho e desvelo , para ver se de huma vez acabava de todo,
aprisionandoa, e destruindolhe seu poder, se considerava

( ) Construido; do verbo kutunga, construir.

149
tudo em paz; foi marchando o nosso poder em busca do
sitio quilombo e Povoação, hindo aqueles Jagas que havião
dado as noticias por guias ; andadas algumas jornadas por
aquelle Sertão dentro, havendo pello Caminho tido muitas
occazioens de guerra e recontros, dispostos e ordenados por
aquella valeroza Amazona, que não socegava em buscar to
dos os meyos de arruinar e desbaratar o poder Portuguez ,
e mais sabendo que a nossa fadiga era toda em buscala , e
fazer -lhe o mesmo que nos desejava fazer ; com o que foi
chegando o Capitão mór com seu exercito á vista do seu
Quilombo, onde começou a ver huma terrivel batalha ( ' )
sahindo toda a sua innumeravel gente a Campanha raza
a ter-nos o encontro , onde se batalhou de parte a parte com
grande porfia , estando aquella ardiloza Pantasileja de parte
conveniente vencio tudo e distribuindo as ordens , animando
aos seus a nos darem muitas e continuas investidas ao cabo
de muitas horas de porfiada contenda , e muita mortandade
da parte inim'ga, vendo o esforço invencivel da Nação Por
tugueza, e que contra o Ceo não valem mãos, tratou aquella
Rainha Ginga de se ir pondo em salvo com tempo , deixando
os seus ainda na lida com crdem sustentassem a batalha
até mais não poderem , o que assim fazendo os seus por
muito espaço , até que vendo sua Senhora retirada com
tempo bastante de estar alongada, forão perdendo terra ,
até que de huma vez virarão as costas , hindo em seu al
cance a gente que o Capitão mór tinha destinada para isso ,
como erão o Capitão de Cavallos com os da sua Companhia,
gente branca de bom pé e guerra preta bolante , hindo ma
tando e aprisionando no alcance muito daquelle gentio, e o
Capitão mór marchando com o mais poder na retaguarda;
vendo aquella valeroza Rainha Ginga que lhe hião dando
alcance, foi largando muita bagagem , e entre ella os nossos

( " ) Este ataque foi em 25-5-1629 .

150
Portuguezes prisioneiros que havia aprisionado com seu

Cabo, quando deo o assalto que dito he a el Rey de Dongo


Dom Phelipe Angola Airi , e isto fazia só afim de nos en
treter e sevar ou empachar com o muito que hia largando ,
é o fez até as suas proprias Irmãas Infantas Dona Gracia ,
e Dona Barbara , ( ' ) que já neste tempo havião tomado a
agua do Santo Bautismo no tempo que a Irmãa Rainha se
tinha bautizado ; não tratava mais della se por em salvo e
escapar das nossas mãos , e como tinha as costas nos des
penhadeiros daquelle sitio chamado a Quina grande , já pre
ditado della , que em algum aperto grande lhe havia de ser
vir de refugio fazendo costas para elle ; e intendendo o
Capitão mór que a tinha naquella sitio encalhada e cercada
por todas as partes de penhas, e da nossa guerra , quando
se chegou a penetrar o dito sitio achou -se havia despenhado
ella e toda a guerra bolante , e o mais que a pôde seguir por
aquellas altissimas brenhas , por cordas amarradas nas ar
vores que no mato se achão a que chamão Engunho que
vem a ser como sipó do Brazil , e he materia muito forte;
por ellas se forão pegando e descendo até o profundo da
quellas brenhas (2 ) que quando a nossa gente chegou a des
cubrilos parecia aquella gente lá em baixo como formigueiro
de formigas , que tão alta era esta eminencia e profunda
aquella concavidade chamada a Quina (3 ) grande ou na
sua lingoa Quineni (4 ) por ser a piquena em outra para

( ) As duas irmãs da Jinga foram tomadas em 25-5-1629.


Ainda não estavam baptisadas, nem tinham estado em Luanda.
O capitão-mór mandou-as para Luanda, aonde chegaram em 20-7;
foram acompanhadas por Domingos Lopes de Sequeira e foram en
tregues a D. Ana da Silva , mulher do capitão - mór, Paio de Araujo
de Azevedo.
© Esta fuga foi em 28-5-1629.
☺ Quina chamão a Cova. ( Nota marginal do Autor ).
( * ) Quineni he grande. (Nota marginal do Autor ).

151
gem que tambem lhe servio de escapula como esta agora ,
quando fugio da Ilha de Quindonga, e nos deixou burlados
como atraz se disse .
Desta sorte escapou, e por este estilo referido esta Rai
nha Ginga deixando a mayor parte da sua bagagem e mu
lherio, as duas infantas suas Irmãas, e o nosso Cabo com
os Portuguezes que tinha prisioneiros e muita fardagem de
fazendas e sedas e outras couzas de valor; tornando - se o
Capitão mór e seu exercito fatigado com tão continuas mar
chas , trazendo menos alguma gente Portugueza, e muitos
feridos, se veyo a descançar ás Povoaçoens que havia lar
gado aquella fugitiva Rainha , que já se tinha tão alongado
que era impossivel poder -lhe dar alcance não se podendo
passar por aquelles despenhadeiros a nossa gente de a Ca
vallo nem tão pouco a Infantaria , e mais da gente, de a pé,
e para se dar volta aquella serrania havia se mister muito
tempo , seguindo o Capitão mór nesta occazião aquelle di
zer do invicto Emperador Carlos Quinto quando, foi do
Cerco de Vienna de Austria pello Grão Turco Solimão, lhe
vierão dizer que hia o inimigo fugindo que era tempo de o
seguirem até Constantinopla ; respondeo num severo, AI
Inimigo que huie pontes de plata; dito al fim de hum Mo
narca e Soldado tão insigne.
Muito teve que fazer o nosso Exercito em esbulhar tanto
circuito de gente e povoaçoens quantas havia por aquella
parte, que diz a este respeito o Espanhol que duellos con pan
sou buenos, e se não havia nesta occazião pão molete, ha
via ao menos com o que elle se compra, muitas Cabeças de
Escravos e escravas que, com ser o trabalho muito, vierão
todos desta empreza muito contentes dando graças a Deos
e a sua May Santissima em dar á Nação Portugueza tão
assinaladas Victorias, ficando o Rey de Dongo mais soce
gado e seguro no seu Reino, vendo aquella inimiga Commua
destituida de todo o Reino de Angola , por sua má natu

152
reza, hindose a goarecer a Reino estranho, como era o de
Matamba governado tambem por Mulher, como ella, em que
havião entrado primeiro nossas Armas á sua Conquista em
tempo do Governador Luis Mendes de Vasconcellos; foi
aquella valerosa entrada e Conquista como se tem referido,
por seu Tenente General e filho João Mendes de Vascon
cellos.
Com o referido successo ficou o Governador e Capitão
General Fernão de Souza (1 ) muito satisfeito do obrado
pello Capitão mór Payo de Araujo de Azevedo, e passado
alguns mezes mandou a Rainha Ginga Dona Anna de
Souza, sua Embaixada ao Governador em demanda das In
fantas suas Irmãas, principalmente da mais moça Dona Bar
bora a qual lhe mandou graciosamente sem querer resgaste
por ela , só a fim de ver se podia trazer aquella Rainha ao
verdadeiro conhecimento de Deos mas sempre se achava
nella pouca affeição ás couzas de Deos, e aos Vassallos Por
tuguezes, e já neste tempo se achava com poder, e quasi
assenhoreada do Reino de Matamba aonde se tinha hido
goarecer, e por fim se veyo a Senhorear em todo daquelle
Reino o gue num certo modo ficava com a Nação Portu
gueza recompensada, porque se ella nos foi largando o
Reino de Angola de que era Senhora por seus Antepas
sados, ainda que o tinha havido tirannicamente como dito he,
sendo fratecida (assassina) de seu Sobrinho, a quem pertencia
a Coroa por el Rey seu Pay, e nunca querer vir no conheci
mento verdadeiro, este Reino de Matamba de que ela agora
se havia senhoreado, primeiro pertencia á Nação Portugueza
e Coroa de Portugal, seu Dominio, pela Conquista que nelle

O O capitão -mór chegou a Luanda em &-11-1629.


No tempo de Fernão de Sousa não mandou a Jinga pedir -lhe as
suas irmãs.
Adiante, no capítulo 2.º da 4.' parte, se fala delas em nota,

153
tinhão feito as Armas Portuguezas, e ella agora o invadia,
e uzurpava á falsa fé contra direito e razão, hindose valler
delle para sua conservação e valhocouto, havia destituido a
sua Senhora natural delle, tratando - o como seu , e a Rainha
de Matamba como sua Escrava e tributaria . Ao contrario
succedeo a esta Rainha Ginga (1 ) do que a Catholica Rai

(" ) Vai aqui a seguir a história da rainha Jinga tirada dos livros
de Fernão de Sousa.
O autor antecipa muitos dos factos relativos a Ngola Quiluanji,
Ngola Mbandi e å rainha Jinga.
Isto dá -se nos capitulos 2.°, 4.°, 8.º e 11.º desta 1.* parte.
No 12.º e 13.º desta mesma parte e no 1.º da 2.° parte fala da
Jinga; onde erra , vai rectificado .

HISTORIA DA RAINHA JINGA MBANDI , D. ANA DE SOUSA .

Tendo morrido em principios de 1617 o rei Mbandi a Ngola Qui


luanji ou , melhor, Jinga a Mbandi a Ngola Quiluanji, como já ficou
dito em nota no capitulo quarto, deixou ele um filho já homem, Ngola
Mbandi, três filhas já mulheres, e um filho ainda creança .
Era a este que pertencia reinar, mas não poude ser eleito por ser
pequeno e por isso foi eleito o mais velho .
Tratou Ngola Mbandi logo depois de ser rei, de fazer matar seu
irmão , para ele nunca lhe poder tirar o logar; matou tambem muitas
outras pessoas, que não aprovaram a sua eleição, e um seu sobrinho,
filho de sua irmã mais velha , Jinga.
As suas três irmãs eram : a mais velha Jinga Mbandi, que foi mais
tarde a famosa rainha Ana de Souza, a segunda chamava - se Funji , que
depois de baptisada teve o nome de Engracia e a terceira chamava -se
Mucambo, que depois de baptisada teve o nome de Barbara.
Ngola Mbandi reinou até aos primeiros meses do governo do
Bispo D. Fr. Simão Mascarenhas, que governou desde 10-8-1623 até
22-6-1624.
Quando em 27-8-1617, o governador Luis Mendes de Vasconcelos
chegou a Luanda , estava o rei Ngola Mbandi em paz connosco. Este
governador, pouco tempo depois da sua chegada a Luanda, tendo ali
deixado o seu filho Francisco Luis de Vasconcelos, foi visitar os pre

154
nha da Escocia que vindo a Inglaterra a valerse da Rainha
daquella Gran Bretanha Isabel fiada no parentesco e ami

sidios no interior e vendo que o de Ango, que Bento Banha Cardoso


sendo governador ( governou de 16-4-1611 até principios de outubro de
1615 ) tinha levantado, não estava em bom local, o desfez e foi levan
tar outro mais perto do Lucala , o qual éle denominou de Nossa Senhora
da Assunção de Ambaca. Não se pode hoje saber onde era o de Ango;
parece que era pelo Lucala acima 7 ou 8 léguas, desviado de Mas
sangano , na região que chamavam a llamba .
O novo presidio de Ambaca era em terras do rei Ngola Mbandi.
Foi isto a causa de ser derramado muito sangue , tanto dos nossos
como dos do rei .
Este protestou contra a fundação do dito presidio, mas o gover
nador não o atendeu .
Veja- se a nota sobre isto no capítulo oitavo, da primeira parte ,
a qual vou aqui analisando .
Logo após a retirada do Governador, foi o presidio estreitamente
cercado; porém os nossos soldados se defenderam com esforço, so
frendo muito por ser dificultoso de socorrer .
O Rei foi vencido e queimados os Paços reais ( !! ) Depois disto
invernaram ali por causa das muitas águas. Ora sendo as primeiras
chuvas em Outubro e Novembro, não podia ter sido tudo o que fica
dito em 1617 ; deve - se pois referir às chuvas de 1618 .
A guerra ao soba Cassanji deve portanto ter sido feita em Maio
ou Junho de 1618, e a seguir as muitas victórias e assalto à cidade do
Rei (Ngola Mbandi), que fugiu sendo-lhe apanhadas sua mãe , suas
mulheres e muitos escravos ,
O governador ainda em 1620 continou a guerra contra o rei e lhe
cativou a sua principal mulher com outras pessoas de sangue real, que
foram tratadas com muita cortezia e respeito ; e não achando o nosso
exército resistência em todo aquele Sertão, correu aquelas provincias dei
xando-as desertas de habitantes.
O re: retirou - se para as ilhas do Quanza e ahi ficou vivendo.
O Jaga Cassanji continuou ainda a guerrear o rei e apossou -se depois
de algumas terras dēle.
Tendo chegado em 12-10-1621 a Luanda o governador João Cor
reia de Sousa, foi ele sabedor de tudo o que se tinha passado, e que
a guerra ao rei fôra injusta e que ele estava refugiado nas ilhas do
Quanza .

155
zade que entre ambas havia, onde vinha buscar refugio e am
paro achou huma aspera prizão contra toda a urbanidade dag

Nesta altura há divirgencia na história contada por Fernão de


Sousa e o constante de outras fontes.
Fernão de Sousa diz : (na I tomo fl. 326 ao fundo e no II, fl. 30 )
que João Correia de Sousa, logo após a sua chegada a Luanda, man
dou ao rei o padre Dionisio Faria Barreto , pessoa categorisada, filho
da terra que falava bem a lingua d'ali, e com êle (um tal) Manuel
Dias para o convencerem a sair das ilhas e a oferecerem -lhe a paz da
parte do governador.
O rei aceitou a oferta com certas condições, sendo a principal que
o presidio de Ambaca fosse retirado onde estava antes ou para o rio
Luinha, porque, situado como estava em terras de Dongo, um dia de
jornada da sua povoação e morada, não se poderia o rei conservar ali
estando o presidio sôbre éle; que o governador havia de desalojar de
Dongo, o Jaga Cassanji, inimigo comum , o qual lhe fazia guerra ;
que lhe desse o governador os sobas e quizicos de sua obediência
( escravos e prisioneiros de guerra ) que lhe pertenciam e que Luiz Men
des de Vasconcelos lhe tinha tirado, pois não podia ser rei sem vassalos.
Veio a Luanda Manuel Dias a dar conta ao governador do que
o rei queria e pedia, ficando com ele o padre Barreto.
João Correia de Sousa fez junta formada do Vigário Geral, Reli
giosos, Camara e oficiais e todos foram concordes em que o presidio
de Ambaca fosse retirado de la e feito outro no Luinha.
Foi cópia do assento da Junta levada pelo capitão Bento Rebelo
ao rei para o padre Barreto lh'a lêr na sua lingua; ficou aquele muito
contente , mas a mudança não se fez . Estavam as cousas nêste pé
quando em 2-5-1623 saiu João Correia de Sousa de Luanda.
Sabendo o rei da sua saida e que no seu logar ficara o capitão -mór,
Pedro de Sousa Coelho, mandou a Luanda ao governador sua irmã mais
velha, Jinga Mbandi , com uma embaixada a pedir o mesmo que já tinha
sido pedido a João Correia de Sousa. Pedro Coelho fez nova Junta
a qual concordou em que devia ser cumprido o que fora resolvido na
primeira Junta e mais que o governador, capitão -mór, partisse a desa
lojar das terras de Dongo o Jaga Cassanji, que continuava a estar nelas.
( Livros de Fernão de Sousa, tomo I, fl. 326 e II , fl . 30 ).
Como se vê, Fernão de Sousa diz que Dona Ana veio a Luanda
no tempo do governo de Pedro de Sousa Coelho e não fala em ela ter
sido ali baptisada .

156
gentes, mas como havia de achar clemencia sendo de Lei con

Mas é certo que ela veio a Luanda em fins de 1621 ou principios


de 1622, sendo governador João Correia de Sousa, e ali foi baptisada
tendo por padrinho o próprio Governador.
Di- lo Cavazzi na pág . 496 e 497 e éste autor nêste ponto merece
fé, pois viveu junto de D. Ana de Sousa, já depois de convertida, desde
fim de Outubro de 1658 a meado de Junho de 1659 e depois desde
Janeiro de 1662 até 17-12-1663, data em que ela morreu.
Ela própria na sua muito extensa carta de 13-12-1655, dirigida ao
governador Luis Martins de Sousa Chichorro , fala acidentalmente de
João Coreia de Sousa e lhe chama seu padrinho.
Esta carta vai inteiramente copiada na grande nota sõbre esta rai
nha, na capitulo décimo da primeira parte do II tomo do autor.
Não posso explicar a omissão em Fernão de Sousa não contar que
ela foi baptisada em Luanda em 1622 e dizer que ela veio em 1623.
Viria ela duas vezes, sendo a primeira com Manuel Dias, e teria ficado
em Luanda e a resposta do governador teria ido por Bento Rebelo ,
po ela ter ficado em Luanda – e sendo a segunda ao governador Pe
dro Coelho ? Talvez esta seja a melhor interpretação a dar aos factos.
É dito por Cavazzi que ela veio a Luanda com uma embaixada e
é éle que conta o que se passou em Luanda na audiência, facto que
constitui um lindo episódio, que os catálogos sem dúvida traduziram
de lá .
Não resisto a não o transcrever aqui, pois Cadornega não o conta .
Eis o que os catálogos dizem :

GOVERNO DE JOÃO CORREA DE SOUZA


« Tomou posse João Corrêa de Souza, no anno de 1621 , e logo
no principio do seu Governo, téve huma memoravel embaixada, digna
de individual narração. Assim que Gola Bandi soube, ser chegado novo
Governador, desejando reconciliar -se com os Portuguezes; e não igno
rando o máo conceito , em que estes o tinhão, pela sua perfida conducta;
com notavel sagacidade, nomeou para embaixatriz, a sua Irmã Ginga
Bandi, em cuja viveza e desembaraço, pôz toda a esperança.
Vivia aquella Senhora , separada do Irmão, a quem tinha mortal
odio, por lhe ter morto o filho; e elle que bem o sabia, querendo traze -la
ao seu intento ; mandou significar -lhe o grande arrependimento , que lhe
causava aquelle arrebatado procedimento ; e juntando affectuozas roga

157
traria á sua ; quando esta Rainha Ginga , achando agazalhado
e acolheita naquella Rainha de Matamba, e sendo ambas gen

tivas , e largas promessas ; conseguio que ella se encarregasse da com


missão .
Ginga Bandi, occultando o rancôr que conservava no peito, até
ter opportunidade de o manifestar; preparou -se com presteza , e seguida
de huma comitiva numerosa , partio para a cidade de Loanda.
Nella foi recebida , pelos Magistrados , e Pessoas principaes ; e con
duzida, por entre alas das tropas, e com descargas de mosquetaria, ás
cazas de Rodrigo de Araujo , destinadas para seu apozento; onde foi
á custa da Fazenda Real, com a decencia e grandeza devida á sua
pessoa,
No dia da audiencia , com hum luzido acompanhamento de ambos
os sexos , se dirigio á Caza do Governador; e sendo introduzida na
sala , observando haver alli huma só cadeira , e defronte della , duas al
mofadas de veludo franjadas de ouro , sobre huma rica alcatifa; sus
tendo -se algum tempo, sem proferir palavra, voltou o rosto para uma
das suas escravas; foi esta immediatamente servir- lhe de banco e assen
tando - se sobre ella , assim esteve todo o tempo que durou a cerimonia.
Este repentino accidente enchéo de admiração a todos; mas ainda
maior foi o assombro , quando ouvirão fallar , e discorrer , huma mulher
creada entre os barbaros e féras, com tanta eloquencia, e propriedade
de termos, que parecia couza sobrenatural. 1

Todo o seu discurso se encaminhou, a desculpar as inconstancias


do Irmão; a persuadir, que Gola Bandi perseveraria na nova recon
ciliação que pretendia; e a expôr as razoens, porque se lhe devia con
ceder a paz , que pedia .
Respondêo -lhe João Corrêa, que para maior firmeza da alliança,
devia seu Irmão, reconhecer -se vassallo d'El Rey de Portugal, e pagar
um tributo annual: a isto , com prompta vivacidade , replicou a embai
xatriz; que semelhante encargo, só poderia impôr-se , a quem tivesse 1
1

sido conquistado; e nunca a huin Principe Soberano, que procurava a 1

amizade, de outro seu igual . Emfim concedida e ajustada a paz, sem 1

mais condição , que restituir o dito Rey, os escravos fugidos; e huma re


ciproca assistencia, contra os inimigos de ambas as coroas; se

concluio esta notavel função.


Ao despedir -se, hindo o Governador accompanha -la, reparou que
a negra, que lhe servira de cadeira , não se movia da extravagante pos
tura em que estava; e pedindo á embaixatriz, a mandasse levantar, res

158
tias e idolatras , se lhe apoderou de seu Reino, em paga , de
hospedagem , não há neste mundo de quem se fie .

pondéo -lhe ella rindo -se, que ficava alli a sua escrava, não por ina
dvertencia, mas porque lhe não era licito , tornar a uzar de semelhante
assento .

Adquirio Ginga Bandi, pela delicadeza e sublimidade de seu juizo,


a geral estimação ; e persuadido João Corrêa, que hum tão raro talento ,
poderia com facilidade, capacitar -se das verdades da Religião Catholica,
Ihe tocou algunas vezes nesse ponto ; e observando que ella curiosa ,
ou abalada; queria conhecer os misterios da nossa Santa Fé; a féz ins
truir nelies por habeis Eccleziasticos, e percebendo -os ella logo, com
a sua natural clareza de engenho; tocada pela Mão de Deus , pedio o
Baptismo; e aos 40 anos de idade, no anno de 1522 se lhe administrou
o referido Sacrauento, na Sé Caihedral, com grande solenidade , e
concurso da Nobreza e povo ; sendo Piurinho o Governador, e to
mando ella o nome, de D. Anna de Souza .
Querendo passar á rezidencia de seu irudo , lhe mandou João de
Souza, magnificos regalos e prezentes, e a despedio com as mesmas
honras e obsequios, com que fóra recebida: chegando a Mutamba, deo
conta a Gora Bandi , do exito da sua encixaue; wiou - se muito nas
attencoens que devia aos Portugueses; e part cipcuias que se achava
Catholica, e quanto desejava, que elie seguisse o seu exemplo.
Alegre o Rey de Angola, com o bom resultado da missão, escrevéo
logo agredecido, ao Governador , e expordo- lhe a voniade que tinha
de imitar sua Irmā; lhe pedia hum sacerdote , para o catequizar e ins
truir.
Deferio João de Souza a sua supplica, remettendo -lhe promptamente
o Padre Dionizio de Faria, homem preto, natural do mresino reino de
Matamba, de exemplar vida e costumes; mas não acertou na escolha ;
porque parecendo -lhe que agradaria a Guia Bandi, em ihe mandar
hum compatriota , acontecéo cortra.io : pois logo que o Rey
vioo Clerigo, com desprezo e ignominia o fez lançar fóra da sua pre
sença; dizendo, não podia ser Baptismo, o que adivinistrasse o filho
de huma sua escrava; e tomando por affronta, a innocente desigualdade
havida entre elle e sua Irmã ; como furioso e louco , com varios desatinos
provocou a sua ultima ruina.
Sentindo -se o Governador, mais do insulto feito ao sacerdote que
da propria desattenção, perseguio aquelle barbaro Rey, com tão dura
e viva guerra, que destruido, aborrecido, e desamparado dos mesmos

159
Vendo o nosso Governador que quando veyo a Esqua
dra Flamenga do corsario Peres a infestar este porto da Ci

vassallos, foi refugiar -se em huma pequena ilha do Coanza, onde vi


vendo em continuo susto, de ser entregue aos Portuguezes, veio a cahir
nas garras da morte, tragando - a em hum veneno , que lhe fez propinar,
sua Irmã D. Anna de Souza, em vingança de lhe ter morto o filho.
Quiz o Jaga Cassange aproveitar a occazião, em que os nossos
andavão occupados, com as revoltas de Gola Bandi; e roubando as
Pumbeiros, que estavão em seus estados, e aquelles que passavão por
elles, para outras partes do Sertão, causou consideravel prejuiso aos
nossos negociantes, mas por ultimo, custou -lhe cára a ouzadia: im
pedindo -lhe primeiro, João Corrêa, a comunicação com a Quissâma,
para não ser soccorrido, ordenou a Roque de São Miguel, fosse com
o exercito, que acabava de desbaratar ao Angolense, tomar satisfação
do atrevimento do Cassange; o qual pagou sua temeridade, com tal
derrota ; que bastárão os captivos que lhe fizérão, para resarcir em
tresdobro o damno que havia cauzado . »

Até aqui o que dizem os catálogos; mas, como bem se vê, pelo que
que fica dito nesta nota, os catálogos erram dizendo:
1.- Que o rei foi o primeiro a mandar a embaixada ao gover
nador, quando a verdade é que foi João Correia de Sousa o primeiro
a mandá -la .
2.° - Que o governador pediu ao rei um tributo anual;
3.0 — Que o rei pediu ao governador um padre para o catequizar
e instruir; e, que tendo -lhe o governador mandado o padre Dionisio de
Faria, o rei o recebeu mal e o fez lançar fóra da sua presença.
4.° - Que o governador por este motivo fez viva guerra ao rei.
Como se vê na nota , é isto tudo falso .
Mas continuamos com a história de D. Ana, extratada dos livros
de Fernão de Sousa .
Fica dito atraz que a Junta reunida por Pedro de Sousa Coelho
confirmou o que estava resolvido e deliberou mais que, o próprio go
vernador, capitão -mór, fosse desalojar de Dongo o Jága Cassanji.
Antes da partida do governador chegou a Luanda o Bispo D. Fr.
Simão Mascarenhas, que tomou conta do governo, em 10-8-1623, en
tregue pelo Coelho. Logo o rei mandou nova embaixada ao Bispo a
pedir-lhe cumprisse o que estava assente pelos seus dois antecessores
e juntamente lhe mandou os autos do que estava tratado.

160
dade de Loanda não havia em toda a praya desta Cidade
reparo nenhum de trincheira com que se cubrisse e defen

O Bispo concordou e mandou o Coelho, já agora só capitão -mor,


a fazer guerra ao jaga Cassangi.
Pedro Coelho não o fez como devia, pois tendo -lhe o rei mandado
dizer que fosse ao longo do Lucala e não pelo meio de Dongo, para
não destruir alguns poucos que se começaram a juntar naquele reino ,
ele não a quiz fazer e, por paixões com o Bispo sôbre o governo , se
recolheu a Ambaca, de que resultou perder-se a ocasião que fora de
grande efeito (tomo I , fl. 326) .

MORTE DE NGOLA MBANDI

Com este sucesso desconfiou o rei de tal modo e concebeu tais


suspeitas, que se saiu o Padre Dionisio de Faria fugido e ficou só com
éle Bento Rebelo e brevemente morreu de desgosto ; e disse - se que de
peçonha, que tomou , dada por sua irmã Ana, porque o rei queria assinar
uma carta que tinha feito em que aceitava a paz, e deixou tudo o que
possuia a sua irmã, e ao jága Caza o filho que tinha (que era pequeno )
por lhe parecer que estava mais seguro com ele.
Tanto que a Jinga se empossou do governo , pediu ao jága o so
brinho e, por dadivas que fez, aquele lh'o entregou, e, tendo -o em seu
poder, o matou , para ficar ela sempre no poder; foi opinião geral dos
seus que lhe comera o coração e lançára o seu corpo no Quanza.
O Bispo corria bem com a Jinga, mas sem feiras nem resgates.
Neste estado encontrou Fernão de Sousa esta questão quando em
22-6-1624 tomou conta do governo . .

A Jinga escreveu -lhe a pedir-lhe que cumprisse o que lhe prome


tera João Correia de Sousa, e que ela sairia logo das ilhas em que
estava e levantaria igrejas e mandaria pedir padres da Companhia (de
Jesus) para se fazerem cristãos todos os seus vassalos e que abriria
feiras correntes como d'antes.
Fernão de Sousa procurou por meio de Bento Rebelo , que estava
com ela, que abrisse as feiras e que se passasse para a terra firme onde
os reis costumavam estar, que era Avunga e Cabaça, e désse entrada
aos padres da Companhia, certificando - a que por este meio alcançaria
o que lhe convinha; que não podia mudar o presidio de Ambaca sem
ordem régia e que ia escrever a D. Filipe; assim também não podia

161
desse a marinha , a que algum inimigo em fora de mar não

entregar -ihe os sobas e quizicos que Luis Mendes de Vasconcelos tinha


tomado ao irmão .
Fernão de Sousa em carta de 28-9-1624 (tomo I , Fl. 304 , ao fundo )
relatou tudo a D. Filipe e acabara por lhe dizer — « que, posto que
estava assente por loão Correia de Sousa, pela Camara e por outras
pessoas e por Pedro de Sousa Coelho co:ro governador, e pelo
Bispo servindo de governador, por ser mais conforme ao que convem
para a Real fazendu de v . Mzik , tão resc'vi a faze ' o sem ordem de
V. Mg.de por não vir no meu regimento , polo que me fará V. Mg.de
niercê em mandar a que devo seguir nesta materia . sobre o que tenho
escrito a v . mg.le por outra via tinha sido en 15-8-1624 , tomo I , fl .
298, v. ) , porque não se mudando o presidio não haverá nunca feiras
nem se continuará no cristianismo, que é o que v. mg.de mais enco
menda » .
Comecaram então a fugir muitos escravos dos portuguezes para
ela e ela aceitava - os.
O governador mandou - h'os pedir e ela , depois de muitos recados
e respostas por Bento R bz'o , que os levou, e de mais um tai Gaspar
Teixeira e o lrgra da terra' Domingos Vaz, respondeu que entregaria
os escravos se lhe mandascom padres de Conranha e que se ela os
não entregasse lhe podiam facer guerra.
Foram os padres Jeronimo Vogado e Francisco Pacconiga até Am
baca con ordem de não passarem adeante enquanto ela não entregasse
OS escrZVOS.
Ela não entregou nem um só escravo .
Por essa razão saiu Bento Rebelo de junto de'a (das illas) e os
padres de Aubaca para Luanda .
O governador ainda ntou convence -la a que corresse Conosco
como devia, fazendo igrejas e abrindo feiras, certificando - a que só
queria dela paz e comercio e bem do reino .
Ela continuou revoltando os sobas nossos amigos e os quimbares
(pretos forros de guerra que estavam subordinados aos presidios ) contra
nós.
PRIMEIRAS HOSTILIDADES DA JINGA

Osoba Aiidi Quiluanji, parente mais chegado do Rei Ngola Mbandi ,


amigo nosso e muito confidente, quiz -se avassalar com outros sobas
nesta ocasião e por ser inimigo dela, seu vizinho e fronteiro .

162
podesse tão a seu salvo botar gente em terra, atentando isto
como bom e prudente Governador, deo ordem que com

Era o senhor do sitio das pedras de Maupungo, muito defensavel


para o que sucedesse ; Fernão de Sousa admitiu - o e mandou - o ir a Am
baca para por ele saber dos designios da Jinga e que sobas estariam
comnosco, para se prevenir contra o perigo que o ameaçava .
Pela ida de Aiidi a Ambaca declarou -se logo a Jinga inimiga dele
e dos outros que tinha levado em sua companhia. Isto deve já ter
sido em meados de 1625, A Jinga mandou o guerrear e ele pediu socorro
ao capitão de Ambaca, que lh'o mandou pelo capitão de infantaria,
Estevão de Seixas Tigre.
Por desordem deste em não ter observado o regimento que lhe
fora dado pelo capitão de Ambaca, mataram -lhe 3 soldados e cativa
ram 6, que levaram á Jinga, que ela não quiz largar.
Sabendo isto, Fernão de Sousa fez Junta em Luanda e foi assente
que se lhe devia dar guerra para castigo .
O governador mandou o capitão mór Bento Banha Cardoso (que
já em Agosto de 1625 estava em Luanda) fazer a guerra e que antes
fosse Sebastião Dias Tição fortificar Ambaca com ordem de recolher
o capitão Tigre e os soldados cativos, se a Jinga os désse.
Ela não deu os soldados. Como ela tinha guerra em campo e se
ia fazendo poderasa de gente, partiu em 7-2-1626 Bento Banha Cardoso
para a conquista em companhia do sargento -mór Antonio Bruto, de
alguma gente a cavalo e dos padres Antonio Machado e Francisco
Pacconio, para verem se a reduziam pela pregação; foram pelo Quanza
até Massangano. Dali seguio em 8 de Março o capitão-mór até as terras
do soba Quiluanji Ca Caconda. Para la mandou a Jinga os seus mu
cunjis com uma carta datada de 313-1626 , oa qual ela se mostrava
humilde e se confessava vassala nassa e pedia desculpa da tomada que
tinha feito ao Tigre, perto de Dongo. Assinava - se -- Ana, Rainha de
Dongo .
o Cardoso respondeu -lhe do mesmo local, em carta de 15-3-1626 ,
convencendo - a a que désse licença aos quimbares que viessem aos seus
senhores. ( tomo I, f ), 230-231 ).
Não acedendo ela, foi o Cardoso atacá -la ás ilhas.
Por carta de 30 de Junho avisou ele o governador que estava som
bre as ilhas, das quais tres eram de mais força; que tinha falta de
mantimentos e muitas bexigas na gente preta e que começavam a dar
1
nos brancos; que entre mortos e doentes seriam quatro mil.

163
todo o cuidado se fizessa hum recinto de trincheira que abra
çasse toda aquella praya , a qual se fez de pedra e cal da

A Jinga os atacou de noite, havendo mortes na gente preta e fré


chadas em brancos, de que morreu um deles.
Antonio Bruto e Lopo Soares Laço, que tambem para ali tinha
ido, foram cada um em sua lancha atacar a ilha de Mapolo , e, posto
que houve resistencia , foi entrada pelos nossos, havendo grande presa
de gente e de alguns mantimentos. ( tomo I , fl. 233 ).
Por carta de 15-7-1626 Bento Banha Cardoso avisou que em 12
entrou na ilha em que estava a Jinga, mas ela tinha fugido para a outra
banda da Tunda. (A. 233, v. ) .
Neste ataque ás ditas ilhas morreu de bexigas o soba Aiidi Quiluanji.

ELEIÇAO DO PRIMEIRO REI DE DONGO . OU DE PUNGO -A


-NDONGO , COMO DEPOIS FOI CONHECIDO .
Acabada esta guerra , retirou - se Bento Banha Cardoso para o soba
Quiluanji Ca Caconda, onde estava antes.
Ali, sem ordem do governador, fez o capitão -mór eleger para rei
de Dongo, em logar do rei Ngola Mbandi, o soba tambem nosso amigo,
Ngola Alidi, que era meio irmão do falecido Aiidi Quiluanji e era a
quem pertencia o reino .
A eleição foi em 12-10-1626 , estando presentes os dois padres Je
suitas, Antonio Machado e Francisco Pacconio, sabendo este bem a
lingua ali falada (o kimbundo ).
O novo rei prometeu dar cada ano á Fazenda Real cem escravos,
em sinal de vassalagem .
Fez -se auto de tudo, tendo o capitão -mór (Bento Banha Cardoso )
aprovado a eleição em nome de D. Filipe III, Aclamado o novo rei,
foi ele viver com os ditos dois padres para as Pedras de Maupungo,
que então começaram a ser a corte dele, e que por isso foi intitulada
por nós Rei de Pungo - a -Ndongo .
Para efectivar a sua vassalagem pôz o governador em Ambaca
o capitão -mór Cardoso e em Pungo-a -Ndongo o capitão Bento Rebelo
Vilas Boas para com o padre Pacconio o advertirem das suas obrigações.
O rei mandou a Luanda um seu filho fazer -se cristão e, em 31-5
(Domingo de S. Trindade) de 1627, o vigario geral, Bento Ferraz,
o baptisou na igreja matriz com o nome de Francisco, sendo o gover
nador padrinho.

164
altura de hum homem com seus fortins a trechos capazes

O rei e a rainha foram baptisados em 29-6-1627 pelo padre Pac


conio que pôz ao rei o nome de Filipe, em honra de D. Filipe III,
sendo padrinho por procuração o governador, representado pelo ca
pitão Bento Rebelo.
Com ele se baptisou uma filha e uma irmã e logo se deu o pri
meiro pregão para o seu casamento com a rainha. ( tomo I, fl. 338, ao
fundo ).

MORTE DE BENTO BANHA CARDOSO E SUA SUBSTITUIÇÃO


POR PAIO DE ARAUJO DE AZEVEDO .

A Jinga foi -se refazendo das perdas que tivera e, ligando- se ao


jága Caza, veio atacar o novo rei.
Pela obrigação que tinhamos de o defender se assentou que a essa
defeza fosse Bento Banha Cardoso, o qual estava em Ambaca e tendo
adoecido quiz vir curar - se a Luanda; saiu pois de Ambaca em compa
nhia do padre Francisco Velho da Silva; chegando ao Lembo quiz
descançar no arimo de Pero de Carvalhaes Dantas e, carregando a
doença, morreu no dito arimo em 8-8-1628; foi levado a Massangano e
ali o enterraram com a decencia que convinha. Ele tinha deixado no
seu logar o sargento -mór Antonio Bruto.
Fernão de Sousa nomeou para o dito logar Paio de Araujo de
Azevedo, de que lhe deu provisão em 23-8-1628 ( tomo I , fl. 253 ao
alto e tomo II , fl. 129 ) e saiu de Luanda em 9-9-1628, indo pelo Quanza
para Massangano. ( tomo I, fl. 253, v. ) .
Parece que houve demora em atacar a Jinga, pois só em 25-5-1629
é que Paio de Azevedo a foi atacar ao Quilombo, tendo ela fugido .
O capitão de infantaria , Diogo de Carvalho, com a sua companhia, e
Antonio Dias Muzungo, tandala , capitão preto, com a sua guerra preta,
por ordem do capitão -mór, a seguiram , sem a poderem alcançar; mas
no mesmo dia tomaram Cambo e Quifunji, suas irmãs, e todos os so
bas e os macotas que ela tinha consigo. conseguindo ela fugir tambem
desta vez .
Com esta presa se recolheu o capitão -mór e o tandala por ser já
noite . Em 26 juntou o capitão-mór a sua gente e foi em seguimento
dela. Em 27 foi sitia -la onde ela estava alojada, que era a Quina Grande
dos Ganguelas. No dia 28 foi atacada, mas ela se lançou abaixo por
cordas e paus.

165
para Artilharia para descortinar de hum ao outro aquella

Era tal a altura que debaixo ao cume não se ouvia falar ninguem ,
senão de noite .
Em 29 seguiram -na, mas não a puderam apanhar, tendo ela ido
para os Songos, que eram antropofagos, ( Tomo I , fl. 258 , e 350 n.° ao
fundo ),
O capitão -mór mandou para Luanda, entregues ao capitão da
guarda, Domingos Lopes de Sequeira, as duas irmãs da Jinga, uma sua
tia chamada Quišoji e onze pessôas entre sobas e macotas. Em Luanda,
aonde chegaram em 20-7-1629, foram recebidas com grande aparato
pelo governador, que as entregou a D. Ana da Silva, mulher do ca
pitão-mor.
Este entrou em Luanda em 8-11 do mesmo ano , (fl . 260 a 263, v.
ao fundo ).
Passado isto confederou -se a Jinga com o jága Cassangi, inimigo
nosso e muito poderoso, que trazia 80 mil arcos de guerra em campo e,
depois de estar com ele, este a mandou com guerra sua meter nas ilhas,
com que se levantaram novos movimentos e fez repreza nos nossos.
Neste tempo já D. Manuel Pereira Coutinho estava em Luanda,
tendo tomado conta do governo em 4-9-1630. O que ela agora pretendia
era ser aceite como rainha de Dongo ou então uma das suas irmãs.
(Relação de 2-3-1632, no tomo II , fl. 30 e seg .).
Das livros de Fernão de Sousa nada mais se pode saber, pois
nada relatam d'aqui para deante.
Por este extrato do muito que em varias cartas Fernão de Sousa
diz para D. Filipe III, se conclui que os culpados da rainha Jinga nos
ter hostilisado durante vinte e oito anos, cometendo e deixando ou fa
zendo cometer os maiores crimes, foi primeiramente Luis Mendes de
Vasconcelos pela guerra injusta e grandes roubos que fez a Ngala
Mbandi; os outros governadores tiveram grande culpa, mas especial
mente Fernão de Sousa a teve, por causa do seu excessivo escrupulo
em não sair fóra do seu regimento, podendo sair legalmente fóra dele,
pois os autos das Juntas o defendiam plenamente.
A Jinga assistia -lhe o direito e a justiça e tudo isto foi calcado.
A precipitação de Bento Banha Cardoso em querer eleger rei foi
a causa das primeiras hostilidades dela, que dahi por diante se lançou
abertamente no caminho da grande inimisade contra nós, que se exacer
bou no tempo da ocupação holandesa, época em que, unida com eles, se
ia perdendo Angola de todo,

166
dilatada praya , como se ve ainda hoje se bem tudo danifi

Em 19-10-1641, o Conselho Ultramarino censurou o procedimento


de Fernão de Sousa em ter tirado a realeza á Jinga. Veja -se a cota
no fim do capitulo 5.º da 2. parte deste tomo.
Pelo que fica dito se vê que Pungo -a -Ndongo , não tinha impor
tanca antes de para lá ir viver o novo rei que se chamou Filipe. A re
sidencia dos reis era Cabaça, que distava duas leguas de Pungo-a
-Ndongo, e Avunga que não se sabe onde era, Tambem se vê bem que
a rainha D. Ana de Sousa nunca lá esteve e que portanto não fugiu
d'adi, obrigada por quemquer que fosse. Ao viajante que vai a Pungo
-2 -Ndango é -lhe mostrada uma curiosa pegada que dizem , ser da ralaha
Jinga. É uma lenda sem fundamento algum .

ETIMOLOGIA DO NOME PUNGO - A - NDONGO

Pungo- a -Ndongo, antes de para lá ir morar o rei Filipe, tinha o


nome de Matadi Maupungo (Matadi ma upungu ), que quere dizer Pedras
Altas.
Fernão de Sousa chama -lhe Pedras do Maupungo; Cavazzi Pedras
de Maopungo , Upungu significava altura ; esta palavra desapareceu,
ficando só no nome de Pungo -a -Ndongo .
No Congo : Mpungu é altura.
Era portanto : Matadi ma upungo.
Pedras de altura,
Pedras Altas.
Esta maneira de formar adjectivos é ainda hoje usada .
Assim , em Ambaca . Matadi ma unene.
Pedras de grandesa, Pedras grandes.
Como se vê : o ma não fazia uma palavra com upungo ; era o geni
tivo de matadi.
Em 1680 Cadornega diz só : Pedras do Mapungo; já tinha caido o u
de upungo .
A queda do prefixo u das palavras que o têm no singular, quando
formam o seu plural, dá -se em muitas.
Assim , ainda hoje em Ambaca :
Makembu, enfeites, por maukambu ;
Mahaixi, doenças, por mahuzaci;
Mata, espingardas, por martas, e outras muitas .

167
cado, que o tempo tem consumido em parte, como consome
outros Edificios mayores (" ).

Po uma alsa analogia fez -se das duas palavras - ma upungo


uma só , ficando: maupungo , que, tendo -lhe caido o u , ficou : mapungo.
Portanto — Matadi Maupungo, deu Matadi Mapungo, de que fi
zemos : Pedras de Mapungo, como se Mapungo fosse um nome pró
prio .
Com a eleição do soba Angola Aiidi em 12-10-1626 , foi - lhe dado
por nós o titulo de rei de Dongo, acabando assim o de rei de Angola,
visto que nós já tinhamos conquistado grande parte daquele reino (ou
melhor do reino de Dongo ) e não queremos já rei com o dito titulo .
O novo rei de Dongo foi viver para as Pedras de Maupungo, sendo
então aditado a éste nome o de Dongo ou melhor o de Ndongo, fi
cando :
Matadi ma upungu wa Ndongo , que mais tarde ficou reduzido a
Matadi Mapungo a Ndongo e depois passou a:
Pungo -a -Ndongo, nome que ainda hoje tem .
Aparece por vezes em Cadornega junto a Pedras da Mapungo a
palavra Mauzondo ; não se sabe onde fosse e o que significava.

( ) D. Fr. Simão Mascarenhas e o Governador Fernão de Sousa


tinham escrito ao Rei acerca das navios que se armaram em Loanda na
ocasião em que as holandeses foram aos portos de Angola; houve per
das de navios nossos. Este assunto foi tratado em consultas, as quais os
Governadores do Reino mandaram ao Rei em 26-4-1625. O Rei, em
carta de 16-5-1625 , de Madrid , mandou que os culpados viessem aqui
em ferros. (Mss. da Colecção de S. Vicente, na Torre do Tombo , vol. 19,
pag. 335 ).
Sobre a fortificação de Loanda transcrevo a carta seguinte do Rei,
que é curiosa :

«Governadores e amigos. Eu Elrey vos envio muito saudar como


aqueles que amo. Vy as consultas dos conselhos d'estado, e de minha fa
zenda, que me enviastes, sobre o que Fernão de Sousa, governador de
Angola, e o Bispo, e Camara daquelle Reyno escreverão acerca das em
barcações, que convirá andarem em guarda daquelas costas; e se tratar
da fortificação do Porto de Loanda: e hey por bem de me conformar
com o que pareceo ao Conde Dom Diogo da Silva: e escreverei ao go
vernador que veja e tratte com toda a suavidade com os moradores de

168
Hindo o Governador dando expediencia a todos os nego
cios tocantes ao seu bom governo, acudindo ás couzas neces
sarias como foi prevenir a guarda da navegação do rio
Coanza de Cabos de experiencia de Infantaria para sua guar
da e comboyos, a respeito dos Quisamás que sempre com
tomadias e assaltos desenquietavão aquella navegação tão
necessaria para a Conquista e o mais Reino em razão do

Loanda, e armadores dos navios que ali vão comerciar, se querem vir
na imposição que se aponta na consulta, pois he em beneficio comum
de meus vassallos o efeito para que se ha de applicar, e que consentindo
elles nella lhes dou licença que a possão por sobre sy , na forma que o
assentarem com o governador. E fareis trattar logo em hua Junta em
que assistirão Luis Mendes de Vasconcellos, que foi governador d'An
gola, Leonardo Torreano ; e outras pessoas praticas na fortificação, e
engenheiros, se convirá primeiro que tudo fortificarse a cidade de Loan
da, e reduzirse a mais pequeno sircuito do que agora tem para que fique
mais defensável, ou começar a fortificação desde logo no Porto , na parte
e sitio que milhor for, e o que nisto se lhes offerecer, o vereis e me avi
sareis do que vos parecer; mandandovos de novo informar particular
mente, se P.• Massai, e Diogo Laez Archetecto , tem a suficiencia neces
saria para qualquer delles poder ser encarregado de engenheiro das for
tificações do Reyno de Angola, e o que vos parecer mais suficiente para
esta ocupação, hey por bem que o envieis logo aquelas partes, porque
do ordenado que ha de haver cada anno com ella se fica trattando, e bre
vemente se vos avisará da resolução que eu nisso tomar, ordenando que
nas premeiras embarcações se mandem a Angola as Armas e monições
que de lá se tem pedido, na maior quantidade que puder ser, para de
fensão da terra e dos presidios que nelle tenho.
Escrita em Madrid a 22 de Agosto de 1625.
Rey F.
Hel duque de vila hermosa , Conde de Ficalho. »
(Vol. citado da dita colecção, pag. 370 ).

Fernão de Sousa em carta datada de Loanda de 15-8-1624 tratou


de muitos assuntos e tambem da fortificação de Loanda e seu porto; foi

169
Commercio que em Pataxos, Lanchas e Canoas, subia a to
dos os pumbos, e vindo para a Cidade da Loanda as mes
mas embarcaçoens com seus retornos de peças e marfim , e os
mais generos e frutos da terra para o sustento , achandose o
Governador a toda a hora apto e composto para ouvir aos
querelozos, e dar despacho a todos, o que havia exercitado
na assistencia do Paço da sempre Real Caza de Bragança
com quem havia assistido aquelle serviço tantos annos, dando
expediencia ao Cargo que occupava de Veador daquella tão
numeroza e grandioza Caza e Pallacio, que a tudo attendia

carta do Rei para o Governador, datada de 14-11-1625, na qual man


dava aplicar uma certa verba á obra da fortificação pedida. Parece que
esta verba não poude ser aplicada e por isso o Governador em carta
para o Rei, datada de 28-12-1626, disse que tinha creado um imposto
sobre o vinho, sendo que cada pipa pagasse uma macuta, que (diz elle )
eram dois mil reis de panos, moeda corrente da terra, e que cada pero
leira (era um almude ) pagasse um tostão . Dizia mais : que mandasse o
Rei ordem clara e distinta para se dar a sua devida execução e que fosse
com ela o engenheiro com a traça (modo ou indicação ) e declaração de
como e por onde se havia de começar a fortificar e, porque tinha man
dado ao Rei « um painel e retrato muito natural da cidade de Loanda,
ilha e bahia, e uma planta em que se podia fazer fortaleza que defen
desse tudo, a ela se remetia . »
(A carta de 28-12-1626 para o Rei, tendo dentro a copia da do Rei
para o Governador, datada de 14-11-1625, está no Archivo de Marinha
e Ultramar, na Biblioteca Nacional, na caixa 145 ) .
Em outra carta do Governador para o Rei, na data de 26-12-1626 ,
diz ele que em principios daquele ano andaram pela costa de Angola
quatro navios holandeses e dois patachos bem artilhados com muita gente
de mar. Ele tomou as providencias que tinha ao seu dispor, as quais
eram bem poucas. (Esta carta está na dita caixa 145 ) . Ali estão outras
do mesmo Governador sobre outros assuntos ).
Vê -se por tudo o exposto nesta nota que D. Fr. Simão Mascare
nhas não fortificou a cidade nem o porto, como o afirma Lopes de Lima.
Esta carta fol posta atrás, por ser ali o seu lugar (na fl. 115 ) e não aqui.

170
em razão do cargo que occupava, que era o melhor e mais
fidalgo que naquella Real Caza havia (").
Foi hum dia hum morador dos mais autorizados da Ci
dade a vizitalo, e como vio que da vizita queria passar a
conversação lhe disse o Governador se o trazia algum negocio

(") Peroão de Sousa tentou descobrir una mina de prata e aprovei


tar outras.
Pela carta dele para o Rei, datada de 25 de Dezembro de 1626 se
prova isto . Eis a copia da dita carta :

« Snör: Mandei as terras do sova Moquilla descobrir a mina donde


vierão as pedras em que se fez o ensayo da barreta de prata que inviey
a V. Mg.co pella fragata que foi a Cadis; esteverão no serro de que se
tirarão, mas não derão com a beta , e com a occasião da guerra não se
fez a deligencia que convinha, e paresseo que os negros negarão o sitio
ou que troxerão doutro as pedras, fingindo que era deste ; agora mando
hrum homem que tem experiencia do Peru fazer nova deligencia.
Da de Cambambe mandey hua pedra grande pella caravella de
Duarte Dias da Atouguia que arribou a santo Domingo ; por ella terá
V. Mg.co sabido se hé de proveito, e por que me disserão que se apar
tava prata do chumbo, mando com esta hua barra, na forma em que se
funde das pedras da dita mina, e sem mais artificio que moer as pedras,
e lansallas em fogo de carvão, sai o chumbo na forma de barra que vay
para V. Mg.ae mandar fazer experiencia nelle. Se for de proveito está a
mina aberta e corrente na forma da sertidão que será com esta .
A de Congo de que mandei hua barreta pella mesma fragata hé a
que mais convem a V. Mg.do por ser muito rica e estar em sitio que tem
lenha e agoa e rio para hir o cobre em canoas até a fos do rio Ambris
e ahi se carregar em embarcações e vir a esta cidade. Fiz muita deli
gensia pello aver por resgate na forma que o teve o capitão Serpa, ne
goumo El Rey Dom Garcia . O que agora Reyna da melhores mostras de
correr comigo em amizade, mas intendesse que os do seu conselho o es
torvão, e que o não consederá se V. Mg. lho não pedir; e porque tem
grandes seumez destas minas, por lhes paresser que com ellas lhes toma
rão o Reyno, vou desemmaginando quanto posso a El Rey desta descon
fiansa, e se V. Mg.co lhe pedir, não seya as minas, senão a quantidade
de quintas de cobre que paresser, pella necessidade que de prezente ha
delle, e que V. Mg." manda ao seu governador que lho pague, ou como

171
que com elle tivesse , e vendo que não tinha lhe disse que
quem governava tinhão muitas occupaçoens, e não podião
fazer o que os outros homens que tinhão tempo para suas
conversaçoens, o que elles não podião fazer pello pezo do
Governo, e mais que como seu amigo lhe dava hum bom

for mais conveniente ao serviço de V. Mg.de porque, comessando a la


vrar e a pagar, a cubissa os abrigará e inda que V. Mg.de lhe não pessa
por ora grande cantidade de quintaes, sempre se hirá lavrando e nunca
se acabará de prefazer a quantia que elle conseder.
De Benguella fico com alguas esperansas, e para isso mandei lá hum
soldado que esteve já no sitio das minas, e tem conhessimento com os
sovas e jagas aos quaes mandei por elle fazendas de presente e promes
sas em nome de V. Mg.de se me entregassem as minas de cobre, porque
Manoel Serveira principiou aquella conquista por rigor e não lhe soce
deo bem , e por ventura que terá effeito por interesse e brandura e por
que dezeio assertar no serviço de V. Mg.de e não faltar nelle, tento todos
os meyos para se conseguir.
Pello Rio Zaire pretendo abrir resgate de cobre e marfim com tres
intentos, o primeiro por V. Mg.ce o ter; o segundo por impedir averemno
as olandezes no Loango e o terseiro porque o ha de sentir El Rey de
Congo e com esses seumes e dano que receberá seu Reyno consederá o
resgate das minas, porem nisto não ha serteza, somente he dezejo de
descobrir resgate tam necessario . El Rey do Congo dom Ambrosio me
inviou hua carta por tres vias muy encarregada para V, Mg.ce; vay com
esta hua dellas. Deus guarde a scatollica pessoa de V, Mg. . Loanda 25
de Xb. "° 626.» .
Esta carta tem dentro duas copias de duas certidões passadas: uma
pelo capitão mór de Cambambe; outra pelo escrivão do mesmo capitão
na qual diz que a mina era a uma legua da fortaleza e afirma que tem
chumbo .
(I tomo dos Livros de Fernão de Sousa, fl . 335 do I tomo, e Archivo
de Marinha e Ultramar, caixa 145 ).
As relações citadas de Manuel Severim de Faria teem a seguinte
noticia :
(Março de 1626 até Fevereiro de 1627 )

(Março de 1625 até Fevereiro de 1626 )


Pol. 229

172
Conselho, que não fosse a Caza de quem Governava se não
tendo algum negocio, que dos Governadores quanto menos
melhor; estas e outras couzas lhe succederão no discurso do
seu Governo, que não relato por não cauzar fastio ao Curioso
Leitor, que o quero grato para que releve as imperfeiçoens

Em Angola tiverão as cousas do Estado e Religião felice sucesso


pela justiça e boa administração do Governador Fernão de Sousa, o
qual entre outras cousas reduzio a pratica a opinião das minas de Cam
bambe, e fazendo os ensayos se achou que de huma arroba de terra se
tiravão tres partes mais de prata, que da de Potosi.
Em Congo houve duas grandes perdas: a 1." foi a morte do Padre
Matheus Cardoso, Reytor do collegio de Salvador, Religioso de incul
pavel vida e grande abreiro daquella christindade,, em cuja lingua
converteu a cartilha da doutrina christān com imcomparavel fruito dos
naturaes da terra, que depois da primeira conversão até aquelle tempo
nem as orações sabião na lingoa propria senão na latina.
A 2. foi a preza da cidade do Salvador pelo duque, de Sunde,
que mal contente do Rey se rebelou e apoderando da cidade fez matar
o Rey fugido em hum porto do mar, ainda que corou esta violencia
com não usurpar o Reyno, consentindo que se fizesse eleyção em
D. Ambrosio personagem do sangue, a quem coroarão solemnemente, e
tem dado esperanças de religioso e prudente principio.
Para o Governo de Angola está nomeado D. Antonio de Sousa
(Março de 1628 até Fevereiro de 1629 )
Fol. 248, v.

Angola está prospera com o prudente e pacifico Governo de Fer


não de Sousa .
Em Congo se tem entendido pelos Padres Miguel Affonso Reydor
do Collegio do Salvador, e seu companheiro João de Payva, o cami
nho daquelle Reyno ao dos Abexins em companhia de Rodrigo Ayres
Brandão, pessoa muy pratica naquellas provincias do Sertão, que
se ofereceo a acompanhar os Padres com sua pessoa e escravos, alguns
dos quaes são de huma provincia oriental a Congo e que dista delle
dous meses de caminho. Nesta terra dizem aquelles cafres que ha huma
alagoa de muitas leguas chea de Ilhas, povoada de gente que a nave

173
desta minha historia, e para remate do que se pudera rela
tar e escrever lhe foi dado ao nosso Governador o nome de
Governador perfeito porque em todas as suas acçoens assim
o mastrou ; tendo governado como dito he lhe veyo a suc 1

ceder no governo Dom Manoel Pereira Coutinho.

gão em embarcações grandes a quat dizem que confina com as provin


cias da Ethiopia superior; esperasse desta jornada hum ditoso successo
para aquellas christandades, porque o caminho ainda que comprido he
muy povoado daquella cega gentilidade.
Acabam aqui a noticias de Angola ou Congo, dadas no citado
Codice.
Ficam todas transcritas na sua integra ; só não foi transcrita a da
fl. 114, v., ao fundo, e relativa ao tempo de 1 de Março de 1618 até
Fevereiro de 1619, por não ter importancia; é uma pequena noticia
sobre a chegada a Loanda de Luis Mendes de Vasconcellos.
O Padre Matheus Cardoso , Jesuita, aqui nomeado foi quem pri
meiramente escreveu um catecismo em lingua do Congo. Estando em
Loanda teve de ir em serviço a S. Salvador do Congo e isto antes
de Agosto de 1620 e ali vendo a grande necessidade de um catecismo
na lingua do Congo fez traduzir o catecismo português de doutrina
christã , então usado, para a lingua do Congo pelos mestres mais insi
gnes que ali havia. Tendo vindo, preso por ordem do Gov.dor Correia
de Sousa, a Lisboa em 1623 fez aqui imprimir o dito catecismo. Deve
ter aqui chegado em Agosto de 1623; a 1. licença para o livrinho se
imprimir é de 6-11-1623. Em 9 de Março de 1624 já estava impresso,
( é a data da licença para o livrinho correr). Este livro foi o primeiro
Impresso em lingua africana. O P. M. Cardoso era natural de Lisboa,
onde nasceu em 1584. Morreu em S. Salvador do Congo em 28-10-1625 .
Existem em Lisboa tres exemplares do dito catecismo, sendo dois na
Biblioteca Nacional e um na de Ajuda.

174
CAPITULO SEGUNDO DA SEGUNDA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS E PRINCIPIO DO GO
VERNO DE DOM MANOEL PEREIRA COUTINHO .

Achase por alguns papeis de serviços de Conquistadores


e provizoens que em seu tempo passou em como foi Go
vernador e Capitão Geral destes Reinos Dom Manoel Pi
reira Coutinho na Era de mil e seiscento trinta e tres para
trinta e quatro annos; (' ) de sua fidalguia poderemos dizer
muito pois a poucos passos vem a topar conforme noticias
com a antiga nobilissima Caza do Conde da Feira, Ramo
daquelle sempre invicto Condestable Dom Nuno Alvares
Pereira, tronco da Real Caza de Bragança, como tambem o
era Dom Manoel Pereira Forjaz, de quem em a primeira
parte desta historia havemos feito menção, em o breve Go
verno que teve nestes Reinos; por Coutinho vem a topar
com a esclarecida Caza do Conde da Redondo, das che
gadag á Real Caza de Bragança; estas calidades de tão bom
sangue accompanhavão ao Governador de quem himos fal

© D. Manuel Pereira Coutinho teve patente de Governador de


Angola em 31 de Dezembro de 1629. (Chancellarla de Felipe III, Li.
vro 23, fl. 205 ). Era emquando o Rei o houvesse por bem e não man
dasse o contrario .
Chegou a Luanda em 3 de Setembro de 1630 e em 4 tomou posse.
Livras de Fernão de Sousa, I tomo fl. 273 e 502; 501, v.; 359, v.
e 363. Dezembarcou em 6. F1. 273 e 359, v.
Pernão de Sousa retirou - se logo para a ilha de Luanda, para o
seu sindicante, que foi o desembargador Fernão de Matos de Carva
Thosa, fazer livremente a sindicancia ao seu governo. Esta foi alta
mente lisongeira. Saiu de Luanda em 3-4-1631 e chegou a Lisboa ere
7-7 do mesmo ano , tendo trazido a sindicancia (devassa) consigo.
(1 tomo , fl. 401, v. ) .

17 :
lando, e para corresponder as obrigaçoens que o accompa
nhavão, começou a dispor as couzas de seu Governo, e boa
direcção delle, como de sua idade e talento se esperava, assim
em a disposição do que tocava ás couzas da guerra como
governo politico, fazendo ou mandando fazer inteiro com
primento de justiça ás partes emparando os pobres assim
brancos como pretos, o não serem avexados dos poderozos,
preparando as fortalezas da Cidade de todo o necessario á i

sua defesa e mandando bastecer as fortalezas da Conquista !

de Soldados e muniçoens para o que se offerecesse com o


gentio da terra .
E tendo noticia por disso ser avizado que os Sovas da
Provincia da Quisama se desaforavão em fazer tomadias em
a navegação do Rio Coanza, Chave da Conquista proveo
novamente por Capitão e guarda daquella navegação a Fer
não Rodrigues Soldado de experiencia Conquistador an
tigo que já havia occupado o mesmo posto pello Bispo Go
vernador Dom Frei Simão Mascarenhas para o que lhe deo
Officiaes menores com Infantaria e ordens e regimento por
escrito para que sendolhe necessario mais Infantaria do que
lhe era consignada, a pedisse e trocasse pellos que tivesse
enfermos naquelle serviço, e nas fortalezas sitas na navega
ção daquelle Rio Coanza, como são Muchima, Masangano
e Cambambe, e os Capitaens das ditas fortalezas dessem
seu divido cumprimento ao que ordenava em seu regimento
áquelle Capitão aquem encarregava o cuidado e desvelo de
negocio de tanta importancia , e que pedisse com bom modo
áquelles Sovas daquella Provincia entregassem os Escravos
fugidos dos Vassallos Portuguezes, e que mandasse por seus
Officiaes andar as Lanchas dos Comboyos Quisamas , mas
que desmandandose ou fazendo algumas tomadias, lhe fi
zesse todo o mal que podesse, não os deixando arimar, (- )

(" ) Do verbo kurima, fazer plantações, cultivar a terra .

176
ou Lavrar nas izangas (') as terras beira rio , nem passar desta
outra banda a seus negocios que era couza para elles de
grande pezar; em este modo accomodou aquella guarda na
forma dita, e para que se veja este dizer do Governador
por suas mesmas palavras, vay aqui tresladado o mesmo
regimento cujo teor he o seguinte.
Regimento para o Capitão da Coanza . Primeiramente
que o Capitão da Coanza marche pella Coanza arriba mui
bem consertado fazendo suas Vigias e adestrando a sua
gente .
Que as Embarcacoens Pataxos, e Lanchas que achar vi
zite e sayba se trazem Armas, e não consinta andar Em
barcação sem andarem os homens que nellas forem mui bem
armados pondolhe graves penas e castigos se os achar mais
sem armas , e juntamente se vão pello Rio a baixo ou Rio
acima sem terem de ver com a gente da Quisama ainda
que lhes fallem mal.
Que vizite os outavos que tem quitandas e sayba se nas
feiras fazem algumas velhacarias, e não lhas consentir pro
vendo no quizomguelo (? ) se he grande ou pequeno man
dando nisso o que for justiça conforme aos tempos.
Que o Sova que vir que faz mal fazello com muito res
guardo e segurança sua o mais que poder ser que bem se
sabe que se não faz nada sem risco .
Que o Sova Gomgo que he o mais perigozo da Coanza
e o que mais falla, a este mandará hum recado muito bem .
ensinado e que entregue a gente que tem pois Mulumba e
Embuila a vão entregando, e elle que está ao longo da
Coanza e todos os dias falla com nosco he bem que a dê, e

se a der terá todo o amparo no S.or Gior e se a não quizer

(') Izanga, plural de kizanga, lagoa, hoje, mas então parece que era
logar alagadiço ou fresco ( lameiro ).
(* ) Medida de secos.

177
dar que nem hão de semear nas izamgas nem tratar na llamba
e lhe hão de fazer todo o mal que poderem , e da resposta
que der se avizará ao S.O' G. ' e estas Lanchas continuarão
seu trabalho desde o Outavo de Songa até á Rocha de Cam
bambe, e se lhe parecer ao Capitão de ser até Cacova o po
derá fazer, acudindo a todas as occazioens que se moverem
e avizando mui miudamente a Loanda do que succeder para
o S.ºr G.ºr de cá mandar o que bem parecer; e este se cum
prirá como nelle se contem. Loanda, doze de Abril de seis
centos e trinta e quatro annos, e eu o Secretario Antonio
Rodrigues de Oliveira o escrevi.

Dom Manuel Pireira Coutinho

Este era o Regimento do Capitão da Coanza que para


tirar a gente das fortalezas ou a trocar como atraz se disse
era em ordem a parte que aqui se não traslada pello mesmo
teor por não molestar ao curioso Leitor e se ter dito a su
bstancia della: fiz aqui menção de como naquelle tempo dis
punhão as couzas os Governadores e o que zelavão o serviço
Real para que se veja no tempo de agora o que então se
obrava.
E vindo novas ao Governador e Capitão Geral em como
os Sovas chamados Dembos, que são mui poderozos fazião
muitas avexacoens e tomadias de fazendas a homens bran
cos, e a negros tratantes, e não davão os caminhos francos
ao negocio das peças, recolhendo em sy muita gente fugida
Escravos dos Portuguezes sem os quererem entregar, nem
restituirem a seus Senhores, e o que mais nisto havia crimi.
nado era hum Sova poderoso Senhor de muitos Sovas e Vas
sallos chamado Ambuila, poz o Governador em Conselho
com pessoas doutas, Senado da Camara e principaes Cida
doens da Republica se seria justo fazer guerra aquelle Sova

178
Dembo e seus Aliados, visto seu desaforo de não dar por
cartas nem ordens que elle Governador lhe tinha escrito
e mandado; o que aventilado e descutido pellos do Conse
lho semelhante negocio vierão a conferir que era justo fa
zer-lhe guerra visto sua rebeldia , e não haver outro modo
mais suave para se obrigar a vir ao que era razão.
Tomado este parecer nomeou o Governador por Capitão
mór da gente de guerra desta empreza a Antonio Bruto, (- )
Soldado de experiencia e Conquistador Antigo que se havia
achado em muitas batalhas e recontros de guerra neste
Reino de quem já havemos feito menção na primeira parte
desta historia; começou logo a pôr por obra esta campanha,
alistando gente , preparando armas e muniçoens, avizando
a Villa da Victoria de Masangano e mais Presidios, que
estivessem prestes para até tal dia se virem ajuntar em pa
ragem certa, a encorporaremse com o mais Corpo do Exer
cito que havia de sahir da Cidade por onde ficava mais di
reita a derrota para aquella paragem e Sova Dembo Am
buila .
Tendose preparado o eleito capitão mór sahio da Cidade
accompanhado dos mais Cabos mayores , Capitaens de In
fantaria , e Moradores homens de Cabedaes , de gente preta ,
Conquistadores do Sertão, que accompanhavão esta empre
za por serviço de seu Princepe fazendo este serviço á sua
custa com muito gasto de suas fazendas, hindo marchando
com ordem militar até a Camulemba sitio da Provincia da
Ilamba consignado em que se havia de ajuntar o mais po
der vindo de Masangano e dos mais Presidios da Con
quista .
Junto que esteve tudo , e muita guerra preta accompa
nhado de seu Valerozo Capitão mór Antonio Dias Musun

) Bruto he não tão bruto que não sinta quam mal a sorte lhe
pinta ; isto disse elle em certa occazião. (Nota marginal do Autor ).

179
13
go (1 ) com seu Samba Tandala Sebastião da Costa, Baxi Can
deli pelo nome da terra, homem preto de encutos (2) com
os mais Officiaes menores, o qual Capitão mór e Tandala
do Reino mandou tocar seus instrumentos bellicos como he
hum Xucalho grande de folha de ferro fechado por cima e
bandas, e por baixo aberto, a que chamão Muucu que dando
nelle com hum maço de páo soa muito longe como o poderá
fazer hum sino ás pancadas ou badaladas que dão; neste
seu instrumento bellico, que só o Capitão mór e Tandala do
Reino pode mandar tocar e em sua falta o seu Samba Tan
dala , que he a segunda pessoa do Governo da guerra preta ;
á suas tocaduras que são divagar e compacadas acode toda
a guerra preta, e he sinal para todos se ajuntarem naquelle
sitio, e por elle se dá sinal quando se ha de marchar; e ao
arranchar á tarde se dão aquellas pancadas para que toda
a gente preta que anda ao largo ali acuda e tenha enten
dido que ali se arrancha aquella noute, e vem a ser o go
verno por onde entendo se governa este nosso gentio; alem
disto tem neste instrumento muita suprestição, e muito mais
os Jagas e gentios que não tem lume de fé; tambem lhe he
dado e permittido a este Capitão mór da guerra trazer huns
tambores pequenos a que chamão capopos (3 ) que são como
atabales que se podem comparar aos que se permittem aos
nossos Generaes nas guerras, e só elle pode uzar deste ins
trumento e por elle, e o que se tem dito he conhecido de
todos; tem este Capitão mór potestade para castigar a sua
gente de guerra, que não obedece a seus bandos e or

© Antonio Dias Musungo a anga se chamava . Musungo a anga


era o appellido da terra desse esforsado Capitão mór, e Tandala do
Reino. (Nota marginal do Autor ).
☺ ) Encutas chama este gentio aos nossos Vestidos. (Nota marginal
do Autor ).
(*) Capopo não se sabe que palavra era; devia ser kapopo, tupopo.
E talvez palavra do Congo .

180
dens, e se desmanda fora do Exercito , cortandolhe Orelhas,
e ás vezes as Cabeças, conforme o crime que hão commet
tido sem appellação nem agravo; fiz aqui esta declaração
pello não ter feito em as occazioens de guerra que se hão
relatado que se não pode fallar em tudo junto, e mais sendo
o Escritor historiador moderno em estas materias de es
crituras; o mesmo que aqui se tem dito se fez em todas
as outras guerras que havemos tido neste Sertão; ao diante
se dirá da pessoa e merecimentos deste dito Capitão mór
da guerra preta e Tandala deste Reino.
Sahio o nosso Exercito deste sitio da Camulemba (1 ) ao
Som de Caixas e Trombetas com as Bandeiras de guerra
arvoradas, o Capitão de Cavallos diante com sua Compa
nhia , e a guerra preta bolante com suas Bandeiras e devizas,
levando a Quicumba ( ) no meyo da gente de guerra, com
muniçoens, artilharia de Campanha e armas de sobreselente;
com esta ordem forão marchando passando o Rio Zenda
e o Dande para as terras daquelle soberbo inimigo o qual
entrando o nosso Exercito em suas terras, e Dominio, veyo
em seus Esquadroens, a que elles chamão Mosengos, a re
ceber o nosso poder com travada escaramuça , onde tiverão
os nossos a primeira batalha em que houve da nossa parte
perda de gente de mortos e feridos pellas muitas armas de
fogo com que se achava aquelle inimigo, assistido de mui
tos daquelles Dembos que são como apotentados livres, e
no tempo de hoje subordinados como Vassallos do Principe
nosso Senhor; oppoz - se o valor dos Portuguezes a tamanha
multidão, pelejando com grande esforço e valentia, reba
tendo todas as furiozas investidas daquella numeroza gen
tilidade com bizarria portugueza, matando dos inimigos

© Camulemba he huma árvore de gran Copa que tem este nome.


(Nota marginal do Autor ).
) Quicumba chamão a bagagem . ( Nota marginal do Autor ).

181
muita cantidade, até que experimentando a sua custa o po
der das nossas armas, e da artilharia de Campanha grani
zando bala miuda prostrando a muitos por terra , com que
veyo a ceder seus impetos furiozos, e forão perdendo terra
e os nossos sobre elles matando e aprisionando a muitos,
e . vendo não tinhão sahido bem em pelejarem com o poder
portuguez a peito descuberto em campanha raza , se forão
recolhendo a suas fortificaçoens, assim de trincheiras de
páo a pique e faxina, como a muitas pedras fortes, e inex
pugnaveis, que como a terra deste Dembo Ambuila he muito
dilatada , e tem muitos Sovas seus Vassallos, tinha mui
tas fortalezas destas em que se recolhia seu inumeravel
gentio .
Foi marchando o Capitão mór com seu poder em de
manda dos Bomges (- ) do inimigo, e os foi avançando com
grande valor disparando o inimigo delles muitas armas de
fogo frecharia e tiros de azagayas com que houve muitos
feridos e alguns mortos dos nossos valerozos portuguezes,
e como a distancia das trincheiras tinhão grande circunfe
rencia , estando a nossa gente portugueza combatendo por
huma frente aquellas dilatadas trincheiras, onde havia acu
dido o mais grosso poder, foi o Capitão mór da guerra preta
Antonio Dias Musungo a anga picar e investir aquelle ini
migo por outra parte distante cometendo as trincheiras do
inimigo com muito esforço e valor, que nelle era bem conhe
cido pellas muitas occazioens de guerra em que se tinha
achado, accompanhando nossas Bandeiras com o cargo de
Capitão mór e Tandala do Reino e gente preta, e levava
sempre em sua companhia gente de seu partido grandes
Soldados discipulos da sua Escola, com o que vendo a re
zistencia e defensa daquelle esforçado gentio, a não ser en
trado em suas fortificaçoens tomou o seu bastão que trazia

☺ ) Bomges chamão as trincheiras. (Nota marginal do Autor ).

182
por ensignia e atirou com elle dentro das trincheiras di
zendo aos seus lhe fossem buscar o seu bastão e ensignia
del Rey de Portugal , ao que investirão todos com tanto
denodo e valor esforsandoos o seu Caudilho que entrarão
as trincheiras a pezar do inimigo com mortos de muitos de
fensores , resgatando o bastão do seu Capitão -mór, e apri
sionando a muitos dos inimigos; neste mesmo tempo entrou
o Capitão mór da gente branca com a gente do nosso Exer
cito pella parte que combatia com muito esforço e valentia
as trincheiras do inimigo, apanhando ao inimigo em meyo
de huma e outra parte , fizerão nelle huma grande degola
ção aprisionando a muitos e Camzando (" ) suas Povoaçoens
ali proximas aquelle Dembo, e aos mais fidalgos Sovas;
vendo - se entrados encorporados com muitos dos seus fu
rarão e se pozerão em fugida, que como vestem poucos ves
tidos são mui ligeiros no correr ou fugir; quando se vem
em aperto por qualquer parte escapão e se retirão para os
seus valhacoutos e fortalezas de suas pedras, e como o Ca
pitão mór com seu Exercito sitiou a principal, onde se re
colheo aquelle Dembo com muitos dos seus por ser a mais
inexpugnavel que em seu Senhorio havia e de mayor gran
deza onde havia recolhido muito de seu mulherio e gente
inutil por ter dentro campo espaçozo de Searas, e muitos
bastimentos juntos, para manter a sy e a sua gente em o
Cerco que já considerava sobre sy para o que se havia
prevenido como dito hé; e em quanto se occupa a nossa
guerra e Exercito nelle, hiremos discorrendo em outras ma
terias.
A primeira seja dizer antes que nos passe por alto os mui
tos merecimentos que havia emo Capitão mór da guerra
preta e Tandala do Reino Antonio Dias Musungo a anga;
comparo a este preto só em as cores, que o mais tudo tinha

) Canzar he saquear . (Nota marginal do Autor ).

183
de Branco , aquelle que houve em Flandres (1 ) em tempo do
Excellente Duque de Alva, que se intitulou el Negro val
liente em Flandes fulano de Alva; mas porque havemos de
buscar comparaçoens estranhas quando as temos no nosso
Portugal e Estado do Brazil do nosso tempo, o esforçado
e sem pavor Amrique Dias ( ) que com o seu Terço de gente
preta de Angola, como elle tambem o era, obrou maravi
lhas como as nossas historias o contão e agora novamente
o traz , o Autor de Castrioto Lusitano ( 3) o dignissimo
Abbade de São Bento da muito nobre e populoza Corte da
Cidade de Lisboa; o de que fallamos não desmerecia dos
dous apontados, assim em valentia como em apessoado e
trato de sua pessoa, lido em todas as materias, e chegou a
ter hum filho sacerdote, Paulo Dias Musungo, e filhas ca
zadas com pessoas autorizadas, de quem teve hum neto que
foi clerigo tambem , e tem ainda descendencia autorizada
em a Villa da Victoria de Masangano; foi mui respeitado
e obedecido de todo o Gentio deste Reino , de calidade que
pella muita mão que tinha com elles lhe accumularão seus
emulos, que em todo o Estado não faltão, que elle se queria
alevantar com o gentio nosso domestico, e fazer -se delle Se
nhor; formarão -lhe culpas de sorte que o achegarão a pri
zão, e com ellas o embarcarão por via das Indias de Cas
tella para Espanha a ir dar descargo de sy á Corte de
Madrid ; hindo assim embarcado foi das Indias embarcado

( ) Guerras de Flandres. ( Nota marginal, do Autor).


© O General das flotas Francisco de Brito Freire.
Castrioto Lusitano. (Nota marginal do Autor ).
“ ) O autor do Castrioto Lusitano é Fr. Raphael de Jesus; elle
denominou assim a João Fernandes Vieira, libertador de Pernambuco
das mãos dos holandeses e depois governador de Angola.
Este livro existe na Biblioteca Nacional, aos Reservados. Foi es
crito em 1679 e é um só tomo, mas não fala do Vieira como governador
de Angola; é a primeira parte; a segunda não foi impressa.

184
em hum Galião da frota , em occazião que veyo huma Ar
mada Hollandeza , ou do Pé de páo ou de outro de modo
semelhante , a buscar os Galioens da prata , de que erão mui
amigos, como o são todos, mas he por seus cabais; houve
grande peleja e principalmente foi muitas vezes abordado
e botada gente dentro em o Galião em que hia este vale
rozo Preto, o qual com huma Espada e Rodela botou por
vezes os Hollandezes fora do Galião com que o não po
derão render, couza que foi fallada em toda a Armada o
valor e esforço com que se houve o Preto de Angola , com
que se divulgou a fama, chegando a Corte de Madrid a el
Rey Dom Phelipe que mandou logo o levassem a sua pre
sença , e o honrrou mandando-lhe dar boa ajuda de Custo .
e por o mais honrrar e mandar Livrar na meza do Dezem
bargo do Paço; livre que foi o proveo novamente de sua
Real mão nos postos que occupava nestes Reinos de An
gola de Capitão mór da guerra preta e Tandala (1 ) do Reino,
que elle Autor muito bem conheceo e conversou; e morreo
no tempo do Governo do Governador e Capitão Geral des
tes Reinos e suas Provincias e Conquistas Pedro Cezar de
Menezes, antes da tomada da Cidade de Loanda pello
Hollandes; fiz este compendio deste honrado homem , que
he bem fique na lembrança das gentes os que obrão bem
no serviço do Principe e da Patria.
Hindo o Governador Dom Manoel Pereira Coutinho
proseguindo seu governo como de seu fidalgo sangue se es

♡ Tandala he o que serve de interprete , e era couza de muita au


toridade ver a hum homem destes a quem o Gentio tinha por idolo
ajoelhado aos pés do Governador em a sala do Dacel, quando vinha
algum Sova estar com elle desta sorte servindo de interprete,

Servia de Tandala que he interprete quando vinha algum Sova


a fallar ao Governador estava de joelhos aos pés do Governador, (Nota
marginal do Autor ).

185
perava, veyo pella Magestade Catholica huma finta á Ci
dade de Loanda remettida sua execução ao Ouvidor Geral
que então era Dionizio Soares de Albergaria, o qual hindo
á Camara a fallar em seu cumprimento com o Senado da
Camara, estando no Paço do Conselho, tendo noticia disso 1

a gente da Cidade, veyo o povo atumultuado appellidando


que não querião fintas, nem as aceitavão por ser isto huma
terra de conquista e não haver nella rendas certas em que
se podessem impor e pagar, que dependia o sustento desta
terra de hum trato incerto e duvidozo, isto com grandes
clamaçoens aos Officiaes da Camara e Procurador do Povo
que não viessem em tal , e que visto o Rebuliço ficou o das
fintas indeciso , hindo-se para sua Caza o dito Ouvidor Ge
ral ; o qual quiz tornar a persistir no pôr das fintas, a que
tornou a acudir o numeroso Povo , a que accompanhava
muito do Gentio assistente na Cidade, a Caza do Ouvidor
Geral com grande alvoroto, e correra muito risco se a elle
não acudira o Governador em pessoa com o virtuozo Pre
lado que então era Dom Francisco do Soveral Bispo de
Congo e Angola; a prezenca e autoridade de ambos foi
cauza de não chegarem com o Ouvidor a hum extremo ,
promettendo aquelle Povo para sua quietação que tais fintas
se não porião com o que ficou socegado aquelle alvoroto do
Povo e mais gente da Cidade.
No tempo deste Governo vierão novas a estes Reinos
de ser tomado Pernambuco (1 ) pelos Belgas Hollandezes , e
por se a cazo como estavão tão perto não viessem a invadir
esta Praça se preparou o Governador fazendo algumas for
tificaçoens como foi hum trincheirão com hum fortim na
Marinha em huma aberta que entrava para a Lagoa dos Ele

C ) Pernambuco (a vila de Olinda e o Recife) foi ocupado pelos


holandeses na dia 16 de Fevereiro de 1630. Diz -lo Fr. Raphael de
Jesus no seu Castrioto Lusitano, pág . 30 e 58, já citado.

186
phantes, neste tempo as casimas do Maianga , cuja obra
encommendou ao Capitão João Pegado da Ponte , Genro do
famozo Conquistador João de Veloria , na qual fortificação
poz muita assistencia e gasto de sua fazenda por serviço de
seu Principe .
E tendo o Governador avizo que ao porto de Pinda es
tava huma Náo Flamenga divertindo por ali o negocio do
Reino de Congo, mandou huma embarcação bem abaste
cida de muniçoens de armas e soldados praticos das guerras
da Conquista, e por Cabo ao valerozo Capitão mór Pero de
Souza ; chegou ao porto de Pinda , e achando a Náo inimiga
ser mui poçante, fiado na gente que levava foi cahindo so
bre ella, que se achava ancorada, e vendo o Flamengo a de
liberação da nossa gente sendo a nossa Náo mui inferior,
havendo recebido algumas cargas de mosqueteria , forão
largando as armas digo as amarras por mão fazendo-se ao
mar, que donde achão dentes se desvião de ser mordidos,
com que largarão o porto de Pinda contra suas vontades ,
mui bem hospedados das nossas armas.
E por dizermos algum louvor deste bom velho e Gover
nador que ainda que o era , e branco todo, era grande ho
mem de a Cavallo , e o abrazava , pondo - se em cima delle
com aquella velhice, não he grande encomio dizer que o
nosso Governador era grande Cavalleiro, pois parece que
a todo o fidalgo lhe vem por herança, o serem - no, e que
vem já ensinados das entranhas de suas fidalgas Mays; no
principio do seu Governo havia trazido hum seu neto do seu
mesmo nome, e a alcunha lhe deu o tempo, lá no nosso Reino
de Caim , do qual sabendo que andava desinquieto, e fazia
algumas traveçuras, o mandou logo para Portugal por que
rer ter tudo pacifico , e que elle não cauzasse a minima de
sinquietação ; tal era a sua bondade e fidalguia .
Até agora não hei feito menção nesta historia da virtude
e vida exemplar do dignissimo Bispo de Congo e Angola

187
Dom Francisco do Soveral (1 ) por não interromper o que vou
escrevendo, do qual se podéra fazer hum grande volume do
que obrou nestes Reinos no serviço de Deos, o que tocarei ao
diante, não conforme elle merece, se não conforme meu
curto estilo, porque o conheceo o Autor desta historia, e po
déra dizer muito do que vio e lhe foi notorio .
Veyo neste tempo successor ao nosso Governador e Ca
pitão Geral , Dom Manoel Pereira Coutinho, Francisco de
Vasconcellos da Cunha, com que deo fim ao seu Governo
com aceitação de todos os Vassallos destes Reinos.

ľ ) D. Francisco do Soveral chegou em 7-8-1628. (Livros de Fernão


de Sousa, I, FI, 346, v.) ,

188
CAPITULO TERCEIRO DA SEGUNDA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS E PRINCIPIO DO GO
VERNO DE FRANCISCO DE VASCONCELLOS DA
CUNHA.

Veyo despachado com o Governo destes Reinos de An


gola suas Provincias e Conquistas (1 ) pella Catholica Ma
gestade del Rey Dom Phelipe o Quarto na Era de trinta
e cinco annos , não se diz mez e dia porque não consta do
assento, nem ha matricula que o diga, só se colhe esta dita
Era das Provizoens e papeis e ordens , que durante o seu
Governo passou ; consta tambem por papeis autenticos, que
veyo da Cidade da Bahia ao Governo destes Reinos, des
pois de conduzir hum socorro á campanha de Pernambuco,
que a seu cargo havia trazido, como experimentado Soldado
que era ; trouxe em sua companhia dous sobrinhos seus, hum
por nome Bartolomeu de Vasconcellos da Cunha , e o outro
Francisco de Mello da Cunha ambos Irmãos, com alguma
mais gente e homens Soldados que o accompanharão em
esta occazião.
Foi dispondo as couzas de seu Governo como fidalgo
prudente e de experiencia, assim no politico como nas couzas

♡ Teve carta patente para governador de Angola em 23 de Março


de 1634.
( Chancellaria de Felipe III, Livro 32 , fl. 141 , v. ) .
A patente era por 3 anos e o mais que o Rei houvesse por bem e
não mandasse o contrario .
É certo que chegou a Luanda em 1635. Consta da patente de Bar
tolomeu de Vasconcelos da Cunha, seu sobrinho, para capitão -mór de
Angola, datada de 21-7-1651, registada no Livro 2.º dos oficios
( 1649-1653 ), fl. 254, no Arquivo Ultramarino.

189
de guerra, e tendo provido as fortalezas que havia na Ci
1
dade, vendo a pouca defensa que a Cidade tinha para se
defender de alguma invazão de inimigos do mar em fora
fundou ao pé do morro chamado de São Paulo huma forta
leza a que poz nome nossa Senhora da Guia , beira mar , bem
mettida nelle, em que fez Almazens terreos e de sobrado, os
terreos para as muniçoens, polvora, balas miudas e grossas
de artilharia , e os mais petrechos de guerra e sobresellentes, e
as sallas e cazas de por cima cheas as paredes de cabides
para armaria de toda a sorte, e morrão, com huma furna
vinda do sobrado até o centro da terra que serve de se met
ter muita parte da polvora , por estar livre de qualquer acon
tecimento; fez tambem huma Cisterna que ainda hoje veda
alguma agoa, fazendo tambem Caza e quartel aparte para
u Capitão, Alferes e mais officiais e soldados da sua guarni
ção, sendo dita fortaleza fechada com porta e cava por fora
com passadiço de ponte; a frontaria com ameyas para o
mar e almazens e mais cazas encostadas ás montanhas do
morro de São Paulo e são os Almazens Reaes que até hoje
servem de toda a munição, e mais petrechos de guerra os
quaes estão entregues ao Feitor da Fazenda Real de Sua Al
teza, feito carga de tudo sobre elle dispondo por ordem cor
rente de seus Governadores, que de outra sorte se lhe não
leva em conta o despendido, registrada pello Provedor da
Real fazenda, e Escrivão da Feitoria.
Achou o Governador a guerra em campo que o Gover
nador seu Antecessor havia mandado fazer ao Sova Dembo
Ambuila e tendo estado de cerco á Pedra e fortaleza prin
cipal daquelle Senhorio como atraz se disse, havendolhe o
nosso poder talado a campanha em que havião feito muitas
prezas em as Povoaçoens que havia por fora de suas emi
nencias, vendo-se desta sorte opprimido, pedio mizericordia
dizendo era Vassallo da Coroa de Portugal , e como tal pro 1

cederia ao diante, e mais obediente ás ordens e mandados

190
1

1
dos Governadores, e entregaria os Vassallos e Escravos fu
gidos da gente Portugueza que em suas terras houvesse ; avi
zado o Governador pello Capitão môr daquella empreza, e
tendo tambem o dito Sova mandado á Cidade da Loanda
seus Inviados a manifestar o mesmo ao Governador, o qual
vendo estar bem castigado seu desaforo passado, e haverem
vindo á Costa algumas Náos de Corsarios Hollandezes, man
dou Ordem ao Capitão mór Antonio Bruto que com seu
Exercito se retirasse á Cidade , visto o arrependimento do
Dembo Ambuila , e o que promettia cumprir, o qual foi logo
dando disso mostras , por ir entregando alguns Escravos dos
fugidos e satisfazendo as perdas e damnos das tomadias feitas
em suas terras e Senhorio, agradecendo ao Governador com
seu presente o mandar tiralo da oppresão que a nossa guerra
lhe fazia; e por andarem algumas Náos Hollandezas Corsa
rios a barlavento deste Porto esperando algumas Náos mer
cantis para as roubarem como costumavão , botou o Gover
nador armadilha fora contra estes Piratas, em que foi por
Capitão mór seu Sobrinho Bertolomeu de Vasconcellos da
Cunha e por Almirante Francisco de Brito Castelbranco,
tambem seu parente os quaes afugentarão com suas Náos as
dos Corsarios Hollandezes, hindo correndo a Costa até o
Reino de Bengala , e dahi se vierão recolhendo para este
Porto de onde havião sahido, deixando a Costa limpa para
poderem vir os nossos Navios mercantis com segurança.
Sabendo o Governador por avizos que teve em como
o Gentio da Provincia da Quisama andavão cada vez mais
desaforados, fazendo em rio Coanza e na nossa banda da
Ilamba muitas tomadias e assaltos passou nova Patente e
novas ordens a Fernão Rodrigues , Capitão da navegação do
Ria Coanza , consinando -lhe mais gente paga da que tinha
para a opposição daquelles inimigos Quisamas e guarda e
Comboyos daquella tão importante navegação, e ordem
regimento mais amplo para fazer alguma entrada naquella

191
Provincia, hindo sobre alguma sua Povoação de assalto e
entrepreza, com faculdade para das trez fortalezas e prezi
dios, Muchima, Masangano e Cambambe se prover de algu
ma gente; e vendo aquelle vigilante e esforçado Capitão que
dos Sovas daquella Provincia o que mais éra culpado, e assim
tambem em recolher em suas terras muita gente fugida, sem
a querer entregar, por mais que era pedida, hera hum cha
mado Quimbambala frente ao Rio Mucozo e arimos do Sova
Quilonga Quiabungo em que em suas terras tinhão arimos e
Searas muitos dos Vassallos Portuguezes assim de Cam
bambe como de Masangano tendo os Escravos destas fazen
das aquelle Sova da Quisama por seu Valhacouto para onde
fugião, determinou o dito Capitão da Coanza com parecer
dos Capitaens das fortalezas, e moradores Conquistadores,
de fazer huma entrada de noute que não fosse sentido, se
não quando ao romper da manhã estivesse sobre a Povoação
que o mais della constava da gente fugida , para o que man
dou destoutra parte do Rio preparar Lanchas e Canoas, hin
do - o a accompanhar nesta função muitos daquelles morado
res por serviço del Rey e pello particular da sua gente, em
barcados de noute e tomado terra da banda da Quisama,
foi marchando para a dita Povoação com toda a quietação,
por não ser sentido antes do tempo; hum dos homens que
hião na companhia impaciente dos seus Negros o não acom
panharem, como elle queria , começou a dar de pancadas em
os seus Escravos ; estas pancadas causou hum rebolico, e
como era de noute e por caminhos estreitos, por dentro de
matos, se entendeo erão sentidos, e que aquella desinquieta
ção era cauzada pello inimigo Quisama, com que tudo foi
huma confusão, vendo o Capitão desparar a sua gente e o
gentio que accompanhava vir de borbotão, e não se ver por
ser de noute e escuro com quem a havião; por não ter algum
ruim sucesso , passou palavra o Capitão e Cabo se viessem
outra vez marchando para o Rio, e fizessem da retaguarda

192
vanguarda, chegados que forão ás embarcaçoens vinha já
amanhecendo, e achandose todos juntos sem ver inimigos ,
ficou aquelle Capitão com os Companheiros admirados, que
por isto se disse que o que de noute se faz pella menhãa apa
rece; e sabendose donde havia sahido aquella desinquieta
ção se tornarão todos contra a pessoa que tinha sido causa ,
e se prezumio conforme o conhecimento que tinhão de seu
ruim natural fizera aquillo adrede porque aquelle Capitão e
Cabo não tivesse o louro de emprender e sahir á luz com
aquella Cavalgada ou faução; neste tempo forão acudindo os
Quisamas que sem embargo tinhão ouvido os tiros das nos
sas Armas; não sahirão, receando a noute, e não saberemo
poder que os infestava, e não estarem juntos, o que fizerão
já de dia incorporados, com os quaes houve junto ao Rio
huma boa refrega, em que pagavão com as vidas muitos da
quelles inimigos, porque era toda a nossa gente dextra e
grandes espingardeiros. Vingados delles em parte, se passou
a nossa gente a seu salvo para a nossa banda , dando muitas
graças a Deos e a sua Santissima May a não se matarem
todos naquella confuzão , como tem succedido em muitas
occazioens, e em nosso tempo a Ilha de Taparica; mandando
o Governador do Estado do Brazil Antonio Telles da Silva
desalojar ao General dos Hollandezes Sigismundo daquella
Ilha, matou -se a nossa gente, por ser de noute, huma á outra ,
cuidando serem inimigos , com que se perdeo aquella faução
por desordem , até que chegou a nossa armada Real com seu
famozo General o Conde de Villa -pouca Antonio Telles de
Menezes com o que o inimigo Hollandez levantou da Ilha
de Taparica; outros muitos acontecimentos houve semelhan
tes cauzados de desordens.
Tendo posto o Governador a prevenção necessária como
dito he em a navegação do Rio Coanza teve avizo da forta
leza da Enbaca em como a Rainha Ginga, dezimpedida já
da Conquista do Reino de Matamba onde até agora havia

193
estado occupada até que o avassallou de todo, mettendo
aquella Rainha, a que então estava na Matamba, como já
dissemos de baixo de sua sugeição, começou de novo afazer
assaltos nas terras consignadas a el Rey de Dongo Dom
Phelipe Angola Airi , e molestando tambem alguns Sovas da
lotação da fortaleza da Enbaca Vassallos da Coroa de Por
tugal ; para opposição do que nomeou o Governador a seu
sobrinho Bartolameu de Vasconcellos da Cunha por Capitão
mór daquella empreza , com seu Sargento mór Andre de Be
navides Homem, e duas Companhias de Infantaria a que
chamão de sobresellente, para acudirem aos intentos que
aquella nossa inimiga cauzasse.
Fez sua viagem o eleito Capitão mór pello Rio Coanza
acima até á Villa da Victoria de Massangano, onde se aca
bou de preparar de alguma Infantaria e mais couzas neces
sarias, e dali marchou para a fortaleza da Enbaça, e da outra
parte do Rio Lucala onde chamão Axila, posto bem conhe
cido dos nossos arraiaes, a respeito das muitas vezes que ali
hão alojado. Esteve ali posto em campo com agente que le
vava observando os intentos daquella desinquieta e valerosa
Rainha , que sabendo nossa prevenção, não se atreveo tanto
a desinquietar aquelle Rey de Dongo Vassallo da Coroa de
Portugal, nem os Sovas da lotação de suas fortalezas, com
que ficou aquella oppressão reparada e mais bem assom
brada, com a assistencia daquelle Capitão mór Cabos e In
fantaria; estando tudo naquelle sitio tão conhecido do Gen
tio deste Reino em que se havião alojado.
E porque soube novamente o Governador por avizo que
teve pella costa do Reino de Benguela que Corsarios Holan
dezes havião vindo á Costa a esperar os Navios Mercantis,
para nelles fazerem o que tinhão por costume, tratou o Go
vernador de botar fora a correr a Costa algumas Náos de
Armadilha em que forão embarcados alguns Capitaens com
gente da terra e alguma Infantaria e por Cabo pessoa de

194
satisfação morador da Cidade que era seu nome Diogo Go
mes Sampayo, e por seu Almirante Antonio Neves Camello,
tambem pessoa honrrada morador da Cidade, em que o vir
tuozo Bispo Dom Francisco do Soveral quiz tambem ter a
sua parte, á falta de Infantaria, mandando em rancho á parte,
e embarcação separada alguns Clerigos de Minoribus com
muitos Estudantes, Criados de sua Caza e de fóra, aquella
faução em serviço da Coroa Portugueza.
Sahidas que forão deste Porto estas Náos de Armada,
que constavão de tres embarcacoens bem artilhadas, foi
costeando para barlavento Costa á riba ( ) para o Reino de
Benguela, e tendo o nosso Cabo noticia certa da Paragem
em que aquelles Piratas estavão, mandou fazer o Cabo as
nossas embarcaçoeng na volta do mar, para virem em de
manda do inimigo a barlavento onde o Hollandes estava ,
dando -lhe a entender serem Navios Marchantes que vinhão
do mar em fora, costeando, buscando o Porto da Loanda, que
tudo o da guerra he hum ardil e estratagema, que muitas ve
zes se vence mais com ella do que com as Armas; no mesmo
modo predito lhe sahio aos ( ) nossos valerozos navegantes,
vindo por barlavento sem rumor nenhum de instrumentos bel
licos, por fazer a negaça mais dissimulada aquelle inimigo;
tanto que derão vistas das nossas embarcações com muita dili
gencia levarão ferro , hindo em busca do quanto desejavão,
aos quaes deixarão os nossos entrar; tendoos de dentro forão
conhecendo que a mercadoria que as nossas Náos trazião
era de polvora e bala, e de mui esforçados Soldados, e como
elles não vinhão buscar semelhante fazenda, lhe ficarão seus
intentos frustados, experimentando os tiros da nossa arti

(" ) Dizemos Costa a cima por ser deste porto para riba que na ver
dade he Costa a baixo para o Cabo de Boaesperança para onde corre
esta Costa. (Nota marginal do Autor ).
( ) Sic; mas deve ser assim : sahiram os.

19 :
14
Iharia e mosqueteria de que havião recebido muito damno,
com o que fizerão muito por botar e velejar para o mar, vendo
o engano que havia, em o que elles cuidavão ao que lhes
tinha sahido, o que não poderão fazer tão a seu salvo que
não tivessem as nossas Náos atracado huma das suas e des
pois de renhida pendencia, havendo mortos e muitos feri
dos de huma e outra parte, nos ficou por despojo de nosso
trabalho; as de mais vendonos embaraçados no rendimento
daquella, houverão por seu barato não perderem mais, fa
zendo - se ao mar onde, despois da primeira estar rendida , lhe
derão os nossos Caça, e por isto se diz mui corre quem corre ,
mas mais corre quem foge. Não forão as nossas Náos mais
em seu seguimento, por não desgarrarem da Costa que seria
muito trabalho tornar a ella, e mais levando as Náos do ini
migo Hollandes a fuga para Sotavento Costa a baixo para
Pinda, com o que se deu o nosso Cabo por satisfeito com a
preza, deixando a Costa livre de Piratas, e terem o passo
livre as nossas embarcaçoens mercantis que se esperavão do
nosso Reino e do Brazil, e mais partes que costumavão a vir
a mercanciar, e era tempo oportuno de virem á Costa. Aquel
les inimigos como noticiosos se vinhão para espera , mas nem
sempre se consegue aquillo que se dezeja; e ainda neste Reino
de Angola vive no tempo que se escreve esta historia hum
Flamengo dos tomados em dita Náo por nome mestre Lou
renço que se não foi mais deste Reino por nelle haver cazado
e ter filhos e Netos; Havendo o Governador e Capitão geral
Francisco de Vaconcellos da Cunha disposto as couzas de
seu Governo, como de sua calidade e experiencia militar se
esperava , lhe veyo a succeder em o Governo destes Reinos
Pedro Cezar de Menezes.

196
CAPITULO QUARTO DA SEGUNDA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS, E PRINCIPIO DO GO
VERNO DE PEDRO CEZAR DE MENEZES .

Foi despachado pella Magestade Catholica del Rey Dom


Phelipe o Quarto Pedro Cezar de Menezes por Governador
e Capitão geral dos Reinos do Congo e Angola suas Provin
cias e Conquistas, na Era de mil e seiscentos e trinta e
nove ( ) ; fidalgo de grande calidade, filho de Vasco Fer
nandes Cezar Provedor da propriedade dos Almazens da
Corte e Cidade de Lisboa fidalgo de antiga Nobreza, Des
cendente daquelle famozo Adail Africano que por terra e
por mar obrou proezas como o relata Damião de Goes (2 )
na Cronica que escrevo do tempo e Reinado do Serenissimo
Rey Dom Manoel; e por parte de May filho da Excellente
Senhora Dona Anna de Menezes filha da Illustre Caza do
Conde da Feira, o qual havendo servido desde sua primeira
juventude pella Coroa de Castella occupando os postos hon
rozos da Milicia , ja vindo por Capitão de Infantaria Espa
nhola á restauração da Bahia (3 ) , com o famozo General Dom
Fradique de Toledo, já sendo Capitão de Cavallos em Flan
des de baixo do Estandarte de Dom Phelipe da Silva Irmão

( ) Teve carta patente em 22 de Janeiro de 1639.


( Chancellaria de Felipe III, Livro 36. fl. 74 ) .
la por 3 anos e pelo mais emquanto o Rei não mandasse o contra
rio ; tinha 800 $ 00 reis anuais de ordenado.
(") Damião de Goes Cronista del Rey Dom Manuel. ( Nota margi
nal do Autor ).
(°) Nesta occazião da restauração da Bahia foi por Capitão da Náo
Santa Catarina como o traz no seu Abecedario Militar João de Brito de
Lemos. (Nota marginal do Autor ).

197
do Excellente Senhor Marques de Goveya General da Caval
laria daquelles Paizes, sendo despois Almirante da Armada
Real em Companhia do General Dom António Pereira Corte
Real, procedendo em tudo como de seu fidalgo Sangue se
esperava ; por todos estes e outros serviços foi accrecentado
em o Governo destes Reinos.
Sahio do Porto da Cidade de Lisboa em o mez de Abril
da dita Era com duas Náos de força Capitania e Almiranta;
a Capitania Náo Ingles, chamado Rey David; a Almiranta
Santa Caterina Náo Portugueza em que vinha o Senhorio
della chamado Agustinho Freire, e trazia por seu Almirante
i Francisco de Figueiroa, pessoa de serviços e merecimen
tos, tendo assistido ao Real Serviço, em a guerra viva da
campanha de Pernambuco, com tres Capitaens de Infantaria
por patentes Reaes que erão seus nomes Jacome Ferreira
o Renegado de Alcunha, porque o havia sido, João de
Souza, e João Velozo, Soldados todos de serviços e satisfa
ção; constava o soccorro da Infantaria que em sua companhia
vinha embarcada de perto de trezentos homens, que todos
havião assentado Praça voluntariamente, para virem a ser
vir a Coroa de Portugal por tempo de trez annos , e o Autor
desta historia com vir por tempo tão limitado ha quarenta
e quatro que rezide e mora neste Reino de Angola. Effecti
vamente veyo o Governador muito bem abastecido (* ) de Ar
mas Muniçoens, e de todo o necessario para o sustento da

© Este governador levou soldados em sua companhia; mas não


foi tão bem abastecido de armas e munições como diz o autor.
Levou — 2 peças de artilharia de bronze de 8 libras; 12 peças de
ferro; 14 reparos; 14 colheres de cobre para a artilharia; 1.400 balas
de ferro ; 150 masquetes aparelhados: 60 arcabuzes; 33 quintais de pe
louros de chumbo , de ancabuz e mosquete; 88 quintais de morrão; 75
quintais de polvora.
(Consta isto da consulta de 19-10-1641, no Livro das consultas de
serviço, fl . 116 ) .

198
viagem , como quem tinha sido aviado por seu Pay Provedor
daquelles Regios Almazens.
Sahido que foi pella barra fora veyo fazendo sua viagem ,
e por em a Náo Almiranta não vir bem arrumada a carga
que trazia vinha muito zurreira e não velejava bem , que obri
gou ao Governador de necessidade tomar a Ilha da Ma
deira , em que gastou na estada daquelle Porto alguns vinte
dias; concertada que esteve a Almiranta sahio daquella
Ilha huma Pulhacra tambem de guerra e artilharia, cujo Se
nhorio e Capitão chamavão o Tortel com Carga de vinhos
daquella Insula; vindo as tres embarcaçoens seguindo sua
viagem , a tomar altura de trinta e tres degráos e meyo onde
tiverão e correrão as Náos com huma tormenta desfeita, só
com o traquete sem moneta, com mares muito grossos que
fazião humas serras mui altas daquellas Suberbas agoas,
ficando logo como em huns valles profundos que parecia que
cada momento nos subvertião, e al fim erão já mares fi
lhos daquelle Cabo promontorio , em que muitos tem sido
cauzado delles alimento de peixes, direi como disse o Es
panhol, no es la burla, para dos veses, quiz Deos Lembrarse
de nós todos principalmente de alguma gente feminina
honrada que naquellas Náos hião que se a tormenta não
aplaca brevemente ficão todos sendo alimento de peixes, sem
chegar ao Cabo das correntes, que este nome e outros lhe
tem dado os Mareantes ou Navegantes, que esta conforme
os seus Roteiros em trinta e cinco graos e tantos minutos,
isto elles o lem, e o entendem , que não se estende lá
a nossa faculdade. Na nossa Náo Almiranta hião seis Pa
dres Religiosos da Companhia de Jesus, e tres da Ordem
terceira do Serafico Patriarca São Francisco; todos se poze
rão em Oração , e mediante ella abonançou o mar e não po
dia deixar de ser menos pois huma tamanha tormenta com
tão terriveis Mares se aplacasse em tão breve tempo, que
começando á meya noute não durou mais que de pella ma

199
nhâa até horas de jantar; depois de estar o mar bonança che
gou a Náo Almiranta a dar a boa viagem ao Governa
dor como he estilo, e como Agustinho Freire era tão grande
homem do mar preguntou ao Governador se queria ir á India
que estavamos abarbados com aquelle Negro e feo Trom
beta de seu Pay ( ) e seu Correyo, o pé de hum penedo,
outro penedo, como diz o nosso insigne Poeta Luiz de Car
moens; ao que respondeu o Governador que elle vinha para
Angola e não para a India. Estas Náos puderão dobrar o
Cabo de boa esperança que este nome lhe deu aquelle vale
rozo e bem afortunado Conde da Vidigueira Dom Vasco da
Gama; e o não pode fazer o Vizorey que partio diante de
nós do Rio de Lisboa, com os mais potentados Galioens que
naquelle tempo tinha botado de sua Regia fabrica a Celebre
Ribeira das Náos, e ao cabo de andar em o mar sete mezes,
tornou de arribada, a Lisboa; assim que as couzas do mar
não tem limite nem ha entendelas, releve o curiozo Leitor
em me divertir tanto do assumto desta historia que cada hum
se queixa daquillo que mais lhe doe; já tornamos ao fio
della .
Da altura dita virámos a buscar a Costa para onde nam
vegavamos por nossos peccados, ou de nossos vizinhos; ao
Cabo de muitos dias tomamos terra de Angola de quatorze
gráos do Cabo Negro para dentro que o fazem os roteiros
dos Mariantes estar em dezaseis; havendo todos os Pilotos
Cortado linha, ( ) o Maya que éra o da Capitania trezentas
legoas, o da Almiranta duzentas e o da pulhacra, a quem
chamavão Santo Onofre por ser velho, outras tantas; só
Agustinho Freire mestre e Senhorio da Náo Almiranta
Santa Caterina , por ser muito experimentado no mar , trouxe
o seu ponto certo , eu me atenho com os que se fazem tanto

( ) E Tritão, deus marinho, filho de Neptuno.


☺ ) O sentido é tomado o ponto ou a altura .

200
u mar com terra , e não com aquelles que dão com os nari
zes nella , por quererem tresler; fomos costeando descubrindo
as mezas conhecidas da gente Maritima, o Senhorio pello
conseguinte, até que chegamos ao Porto da Cidade São
Phelipe Cabeça do Reino de Benguela, salvandoa com muito
contento por ser a primeira do Senhorio da Coroa de Por
tugal e dos Reinos de Angola; de terra nos responderão
com toda a Artilharia da fortaleza, que na marinha beira
mar, há.
Foi logo batel a terra e nelle veyo logo o Governador
daquelle Reino, que então era Niculao de Lemos Landim ( 2)
natural da Villa de Estremoz, pessoa de geração nobre, des
pachado com aquelle Governo por Patente Real, o qual
despois de haver dado as boas vindas ao Governador e Ca
pitão Geral, lhe deu informação do estado em que se achava
aquelle Reino e sua Conquista, falto de gente armas e mu
nicoens a respeito da perda que tinha havido proxima no
Sertão em que havia sido roto, e desbaratado huma nossa
guerra, governada por hum Capitão mór de valor e Calidade
por nome Lopo Soares Lasso o qual havia hido com toda a
possibilidade daquelle Reino, a dar guerra a hum Sova
poderoso que se tem por Rey daquella Gentilidade , por nome
Gola Amgimbo, o qual tendo chegado a suas terras pello
Sertão dentro, mandára dizer este poderoso ao Capitão mór

ľ ) Nicolau de Lemos tinha estado em Luanda no tempo do Bispo


D. Fr. Simão Mascarenhas e no de Fernão de Sousa durante dois anos.
Saiu de Angola e fez serviços em Porto Rico na ocasião em que
se restaurou e lançou dali o inimigo e depois fez muitos outros servi
ços, fora de Angola. Por tudo isto teve carta patente da capitania de
Benguela em 22-12-1635 .
(Chancelaria de D. Felipe III , Livro 40 , fl. 70 --Em principio de
Setembro de 1636 estava ainda em Lisboa para ir para Benguela.
Não se pode saber a data certa da sua chegada a Benguela.

201
e aos Moradores daquelle Reino que o accompanhavão
que razão havia para lhe fazerem guerra ; que se o fazião
por alguns escravos fugidos que lá tinhão lhos mandaria
entregar, e se por ambição de peças que elle lhe daria tan
tas, com que a sua cobiça se satisfizesse; que não era bem
o fossem buscar as suas terras e Senhorio onde estava vi.
vendo quieto e pacifico. Esta protestação tem alguma pa
recença com a que contão nossas historias (" ) que mandou
fazer el Rey de Fez ao nosso Rey Dom Sebastião que não
foi admettida justificando sua cauza, como tambem o não
forão a deste Rey, antes os nossos com orgulho portuguez,
forão fazendolhe guerra entrando em suas terras e suas
Povoaçoens, o que elle foi rezistindo e defendendo o seu
partido com muito valor até não poderem mais, que lhe
entrarão os nossos Portuguezes com seu esforçado Capitão
mór a Povoação principal e Bamza de sua morada, pren
dendo canzando e abrazando tudo o que nella havia, em
que todos andavão engolfados e divididos; o que vendo
aquelle Poderoso , tendose refeito de novo de mayor poder,
que lhe havia acudido de suas dilatadas terras, e dos So
vas circumvizinhos, andando a nossa gente Portugueza
occupados em quem havia de apanhar mais, sem lhe parecer
que poderia haver couza que os podesse offender, dera de
emprovizo sobre os nossos, e como andavão divididos os
forão matando, e que deste disbarate e rota escapara só hum
homem que trouxera a nova desta perdição.
Lembrase ter lido o Autor desta historia (?) outro se
melhante desconcerto em as historias da India quando o

Tulando Barriga conta a perda del Rey Dom Sebastião em


Africa, onde o pode ver o Curiozo ou Especulativo; e Jeronimo de Men
donça, o traz mais Especificado.
c ) João de Barros e Manoel de Faria e Souza Decadas, e Asia
Portugueza.

202
Conde Marixal foi deste Reino de Portugal com boa Ar
mada e gente bastante a fazer a guerra a el Rey de Calicut,
achando - se na India aquelle Potente de Calentoja o grande
Alfonco de Albuquerque, Tio do mesmo Conde, o qual vindo
mui orgulhoso a fazer aquella empreza o advertio o Tio de
algumas couzas como nellas experimentado, o que lhe não
admettio; com tudo o accompanhou e tendo o dito Marixal
entrado na Cidade onde estava aquelle Emperador Samurim
lhe largou a Cidade despois de porfiada rezistencia, e an
dando tambem os Portuguezes engolfados no saco da Ci
dade , advertira o Tio ao Sobrinho mandasse recolher a sua
gente, o que não quiz fazer blazonando, até que tornado
a refazerse o Samurim deu sobre a Cidade, em que foi man
tando muita gente portugueza, e querendo o Conde Marixal
acudir com seu valor ao reparo foi tambem morto, e custou
muito esforço, e ser tão dextro guerreiro o famozo Alfonco
de Albuquerque, para salvar parte da gente que não pe
recesse ali tudo, que a não ser assim lá fica tudo; mas esta
perda do Reino de Benguela não houve outro Albuquerque;
e ainda que o houvesse se entende não pudera fazer o que
fez em a Cidade de Calicut, que as guerras de Angola não
tem comparação com as do Mundo todo; fallasse por este
estilo , razão porque a experiencia tem mostrado que não
houve guerra rota em Angola que della escapasse apenas
quem trouxesse a huns novos ; nas outras partes há huma
quebra ou desbarato de hum Exercito mas sempre escapa
ao menas as reliquias delle , como succedeo em Flandes na
batalha de Raucroi, (' ) ou encorporados huns com os ou
tros ou fazendo -se fortes em alguma parte, tendo Cidades
Villas e Fortalezas em que se valer e amparar; huma perda
ou rota destes Reinos de Angola tantas legoas pello Sertão

(") Virgilio Malvezi relata a batalha de Raucrai. (Nota marginal do


Autor ).

203
dentro onde não há emparo em que se goareça huma des
graça; o nosso gentio que accompanha as nossas guerras
he o primeiro que dezempara o pé como vento, deixando a
nossa gente sem quem lhe carregue as muniçoens e sus
tento em Cazo que alguns se incorporem naquelles acciden
tes; faltando o gentio para a Carruagem ainda que pelejem
e se defendão alguns dias com a munição com que se acha
rão, logo lhe vem a faltar juntamente com o sustento, e de
perseguidos dos inimigos vem todos a morrer ás suas mãos;
e assim todo o que em estas guerras virou as Costas se
considere perdido e degolado do Gentio .
Algumas pessoas que as não experimentarão tem em
pouca conta as guerras destes Reinos dizendo são guerras
de Coata, Coata, (- ) como tambem assim forão reputadas
as das nossas Conquistas da India daquelles que as não ha
vião experimentado, até que daquelle Estado se mandou a
Fortugal aquellas amostras daquelles tão grandes e famozos
tiros de Antilharia, que a hum chamão de Dio, e outro de
Malaca, que hoje se vê hum em São Gião Fortaleza na
boca da Barra de Lisboa, e outro na famoza fortaleza da
Ilha Terceira, para que vissem os maldizentes, o com que
naquellas Remotas partes hospedavão aos Portuguezes, que
lá hião, assim que humas e outras Conquistas só quem as
experimentou o sabe em esta historia no diante se verá as
rotas que houve nestes Reinos e os poucos que dellas esca
parão com vida ; e disse mais aquelle Governador que hindo
naquella campanha a possibilidade de gente de todo aquelle
Reino de Bengala, ali perecera toda, não escapando unica
mente mais de hum que foi o correyo da ruim nova .
Tendo informado como dito he ao Governador e Capi
tão Geral do estado em que se achava aquelle Reino lhe

ľ ) Não se sabe o que seja esta expressão : será kuata, kuata, apa
riha, apanha ? do verbo kukuata, apanhar.

204
mandou dar logo algumas armas e Mosquetes e Arcabuzes
que a Infantaria trazia preparadas com que fazião no mar
seu exercicio militar, com mais algumas muniçoens promet
tendolhe que chegando á Cidade da Loanda conforme a
possibilidade com que achasse aquelles Reinos lhe mandam
ria e soccorreria da Infantaria que podesse; hindo o Gover
nador para terra mandou hum grandiozo presente de refres
cos de novilhos sevados e carneiros que são os melhores que
pode haver, porque nas outras partes tem quatro quartos
ordinariamente, e estes que vierão daquelle Reino tem cinco,
porque tem a Cola tão grossa de tanta grossura de gordura
que com elles faz os cinco; vierão tambem muitas uvas me
lancias ricas e boas Romãas, Goiavas e outras frutas da
terra como Bananas e Micefoz tudo em abundancia, que o
nosso General mandou repartir pellas mais Náos e Infan
taria .
Sahio o Governador daquelle Porto em que havia es
tado tres dias, e forão navegando Costa abaixo, deixando
atraz aquellas tão grandiozas Salinas onde com pouco custo
e beneficio se tira tanta cantidade de sal, e em sy tão bom ,
passando por Catumbela das Ostras onde há muitas e
grandes, onde se vem ali metter o Rio a que chamão o Cubo,
logo se vê o Porto do Quicombo o Rio Longa, o Cabo Ledo ,
a Barra da Coanza, a da Curimba , com aquella dileitoza ,
Ilha chamada da Loanda em que está a Igreja de São João
da Cazanga, a do Desterro, os Coqueiros, as Ensandeiras,
Nossa Senhora do Cabo e sua Igreja , a ponta da Ilha , o
Porto da Cidade da Loanda; estando Benguela, e seu Reino
onde se sahio em doze gráos, e este Porto da Loanda em
outo onde portou o Governador com suas Náos e mais com
panhia aquelle Porto tão dezejado de toda ella , em que
dezembarcarão em dezaouto de Outubro do mesmo anno
que demos a vela do Rio da muito Nobre e Populoza Ci
dade de Lisboa em dezaouto de Abril .

205
CAPITULO QUINTO DA SEGUNDA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS NO GOVERNO DE PE
DRO CEZAR DE MENEZES .

Mandou o Governador e Capitão Geral dezembarcar as


Capitaens e Infantaria de soccorro , e elle veyo de bordo 1

accompanhado do virtuozo e Caritativo Prelado dignissimo


Bispo de Congo e Angola Dom Francisco do Soveral, e
Senado da Camara dos quaes foi recebido com muita alegria 1

1
e de toda a Nobreza da terra, tendolhe á dextra hum fa
mozo Cavallo bem ajaezado, em que montou ao subir da
Ladeira e Calçada, e os mais em suas redes de que uzão .
que são os seus cavallos ordinarios: sem embargo que alguns
dos Moradores tinhão Cavallos em que montar, mas qui
zerão naquelle honorifico recebimento, que só o Governa
dor tivesse esta preheminencia; em o topo da calçada se
apeou onde o Senado da Camara lhe havia aparelhado hum
rico Palio , em que pegarão os principaes Cidadoens, e na
quelle Lugar como he costume lhe fez huma Pratica breve
o Vereador mais velho, entregandolhe as chaves da Ci
dade como he estillo ; dali foi debaixo delle accompanhado
do Governador Francisco de Vasconcellos da Cunha até
á Matriz, onde Lida a Patente (1 ) de sua Magestade pello
Escrivão do Senado da Camara cedendo o Governador ve
lho o Bastão ficou mettido de posse, mandando o Prelado
abrir o Sacrario, ou elle o abrio mesmo, cantando a Muzica
o Te Deum Laudamus; feita esta Ceremonia assim Eccle
siastica como secular sahio da Matriz para o Collegio da

(" ) Teve patente em 22-1-1639, por três anos, como fica dito atraz
em nota . 1

206
Companhia de Jesus, hindo accompanhado de todo o Con
curso da gente da Cidade, por entre duas Alas da Infan
taria assim da sua gente, como da terra, disparando muitas
Cargas, a que respondião as Fortalezas e Fortes onde se
hospedou por em tanto que o Governador reformado de
sembaraçava o Palacio .
Havendo tomado posse do Governo, foi pondo em ordem
a boa direcção delle; e como trazia por seu Almirante a Fran
cisco de Figueiroa com promettimento de Sargento mór da
Praça achandoo provido por Patente Real em Antonio Bruto,
o proveo no Cargo de Ouvidor Geral Corregedor da Com
marca , que estava até então servindo por provimento do
Governador passado , Francisco de Veloria Pinto Cidadão
autorizado, filho do famozo Conquistador e Capitão mór
João de Veloria, o qual Cargo foi exercendo mostrando na
boa administração da justiça que igualmente sabia na guerra
menear a Espada, como em a paz, a Vara e penna; foi
assim provendo todos os postos que estavão vagos, assim
da Real fazenda como da milicia abastecendo as Fortalezas
assim da Cidade como da conquista de Infanteria e mu
nicoens por haver annos que não havia vindo soccorro em
forma desde a Era de 625 que foi o ultimo, conduzido pello
Capitão mór do Reino Bento Banha Cardozo como se tem
relatado em a primeira parte desta historia.
Dahi a pouco tempo de sua chegada veyo o Governa
dor de Berguela á Cidade, deixando naquelle Reino em seu
Lugar - Tenente a seu Irmão Duarte de Lemos Landim , em
busca da gente promettida, o qual o Governador e Capitão
Geral recebeo com toda a honrra , por ser pessoa de res
peito e Governador daquelle Reino, dando ordem nos Cor
pos de guarda se lhe tomasse arma, e se respeitasse como
a sua pessoa propria, até que ao Cabo de alguns dias de
sua estada o despachou com a gente e soldados que lhe foi
possivel com armas e muniçoens, e o mais de que neces

207
sitava, partindo para o seu Governo muito satisfeito das
honrras e bom aviamento que lhe havia dado o Governador
e Capitão Geral Pedro Cezar de Menezes.
Teve noticia o Governador em como a Caravela cha
mada dos Diamantes, que havia sahido do Rio de Lisboa
diante do Governador, era partida com o Cabedal del Rey,
havia quinze dias, na qual tinha vindo hum homem de muito
cuidado, com promettimento do Habito de Christo , e de
outras mercês, só afim de conduzir em dita Caravela seis
centos mil Cruzados em Diamantes, e alguns Boyoens de
Ambar e Almiscar, que estavão em deposito em o Collegio
da Companhia de Jesus desta cidade da Loanda, os quaes
se salvarão da perdição de huma Náo da India que deo a
Costa em a terra que chamão do Natal, e por fazer nau
fragio em huma Praya de area se aproveitarão os da per
dição de suas Madeiras, fazendo dellas duas embarcaçoens
pequenas, as quaes briarão com Beijoim , huma das quaes
fez viagem para Angola, e a outra para Moçambique; esta
se não soube mais della , e a que veyo para Angola veyo a
salvamento com o dito Cabedal, que a dita Caravela veyo
buscar, muito bem preparada de Remos e sesenta homens
para a navegarem e remarem , e foi a iLsboa a salva
mento .

Achou tambem o Governador em o Porto desta Cidade


o Galião São Bento que vindo da India havia aqui arribado
molestado dos mastros e obras mortas daquelle tormentozo
Cabo, que ise a huns foi por dita de boa Esperança, a outros
foi de boa mufina, de que era Capitão mór João Soares Bi
bas Soldado de valor e serviços, que por elles mereceu che
gar aquelle posto ; foi dando o Governador ordem pellos
officiaes Reaes ao concerto do Galeão, e veyo o Governa
dor a descompadrar com o Capitão mór, a respeito de seu
aviamento, e de outras couzas, que como prezumia de va
lente como era, e o Governador era daquella calidade, e

208
sem embargo della tambem havia chegado ao Governo que
occupava por seus punhas, não se adjectivavão as vontades,
e esteve com elle na Sala do Palacio para chegar com elle
a hum extremo se não se achára presente Dom Gonsalo da
Silveira fidalgo de muita Calidade da Nobilissima Caza de
Sarzedas que havia vindo da India no mesmo Galeão, se
metteo de permeyo ; com que o Galego Bibas vendose no
seu Galeão por se não ver em outro risco, não veyo mais a
terra , e enfadado não quiz dar clareza aos officiaes Reaes
do gasto que havião feito com o Galeão; nelle foi embar
cado o Governador Francisco de Vasconcellos da Cunha,
e o fidalgo que nelle tinha vindo Dom Gonsalo da Silveira.
Sabendo a Rainha Ginga Dona Anna de Souza que era
chegado o Governador e foi correndo a fama pella terra
dentro que trazia muita gente de guerra, e como o Gover
nador lhe havia escrito sobre entregar a gente fugida dos
Vassallos Portuguezes e sobre outras conferencias, res
pondeo por seus Embaixadores vindo com suas Cartas ao
Governador mandandolhe hum Mimo de peças , e outras para
o Bispo e Ouvidor Geral , vindo em sua Companhia o In
viado que havia mandado com as Cartas a dita Rainha por
Antonio Pinto de Vargas morador autorizado ao qual en
tregou algumas Cabeças de Escravos da gente fugida, mas
tão velha que já se lhe não sabião Senhores; e a vinda des
tes seus Embaixadores, conforme se prezumio, foi para com
mais certeza se informarem do poder da gente que o Go
vernador havia trazido, sem embargo de ter em a Cidade
sua Irmaã a Infanta Dona Gracia, que de tudo a avizava
cauza porque nunca tratou de a pedir nem resgatar como
fez a outra Irmaã Dona Barbora, que tão astucioza era como
tudo isso .
O Governador recebeo seus embaixadores com todo o
apparato bellico , mandando pôr na Praça de huma a outra
parte, toda a Infantaria em ala com seus Capitaens e Ban

209
deiras arvoradas; elles são huns maltrapilhos que os man
dava offerecidos a não tornarem ; (' ) e cada vez que a Infan
taria desparava se prostavão por terra os bons dos Embai
xadores batendo as palmas, e talvez lhe chegava alguma
buxa que os chamuscava; para este Gentio todo o apparato
e imperio he necessario , e isto he o que respeitão ; em a terra
e Senhorio de qualquer Sova destes, hum Portuguez Nobre
que não leve muitos Negros e Negras do serviço da Caza
a que chamão Mocanas, e outras do serviço de portas a
fora , como são cozinheiras, Lavandeiras, e outras que vão
buscar agoa ao Rio e Lenha ao mato, com muitos instru
mentos da terra , como Marimbas, Chucalhos, Pandeiras,
Violas da terra, se não levão esta pompa ainda que seja hum
grande fidalgo, como temos dito não fazem delle nenhum
caso , dizendo que he pobre, (? ) que a pobreza entre elles
he vituperio, e hindo qualquer homem por baixo que seja
com dito apparato e bem vestido aquelle he o que tem por
Senhor e Macota Amindele , (?) poderá dizer por isso o que
disse o outro no Banquete - Mangas come de aqui, que a
vós honrão , que não a mim.
Tendo dado sua Embaixada e Cartas que trazião da
quella Rainha, em que nellas lhe pedia lhe mandasse algum
morador dos principaes para tratar com elle algumas couzas
de importancia entre as duas Coroas, para o que determinou
o Governador mandar á Corte daquella Rainha a Gaspar
Borges Madureira Conquistador antigo e Cidadão pessoa
de merecimentos, que havia occupado postos mayores nas

ľ o sentido é : ella os mandava offerecidos ao Governador e que


não voltassem para ella .
© ) Ao pobre chamão guariama. (Nota marginal do Autor ). Hoje é :
Ngartama.
) He Senhor principal dos Brancas Macota a mindele . (Nota mar
girtal do Autor ). Devia ser : Dikota dia mindele .

210)
guerras, Genro daquelle valeroso Espanhol João de Velo
ria , de cabedal e gente ao qual mandou o Governador se
aviasse para aquella jornada. Aviado que esteve lhe deo
instrucoens necessarias do que com aquella bellicoza e es
tadista Rainha havia de tratar, o qual partio para aquella
Embaixada com grande apparato, levando dous Cavallos
que tinha seus, que como havia sido Capitão da gente de
Cavallo em a guerra da Quimdonga, e na de Andala Quir
suba, sempre se prezou de conservar alguns em ser, pois
tinha posses para o poder fazer, levando tambem alguns
homens brancos para o assistirem , e muita sua Escravaria
de que era abundozo .
Hindo pondo o Governador as couzas do seu Governo
em boa forma teve avizo , por Lanchas que trazia para bar
lavento a vigiar a Costa, em como andava huma Náa pos
sante de inimigos Hollandezes na costa á pilhagem , e que
havião já roubado huma Náo vinda do Reino, de hum
homem maritimo chamado o Potagem de Alcunha, aqual lhe
havião largado despois de lhe haverem tirado o mais pre
ciozo por não se avolumarem e a mesma Náo roubada e o
seu Mestre deo as noticias mais certas, como quem havia
passado por suas mãos, para o reparo do que mandou o
Governador preparar Armadilha a toda a pressa, huma
Náo bastante bem artilhada do contratador que então era
Rui Dias Meza, a Polhacra do Tortel que havia já na Barra
da Bahia mostrado com os Flamengos ser bom Navio de
guerra , e hum Pataxo; na Náo grande hia o Capitão Jacome
Ferreira, o Renegado, com posto de Capitão mor; na Po
lhacra por Almirante Estevão de Seixas o Tigre tambem
de Alcunha, de que já nesta historia havemos feito menção,
com Capitaens de Infantaria de Mar e guerra e guarnição;
e no Pataxo hum morador Soldado de experiencia, por nome
Manoel Maciel Vilasboas, e levava de sua guarnição muita
gente Ecclesiastica de Ordens menores e outras mais avante

21I
15
e Estudantes familiares da Caza do dignissimo Bispo, que
tambem nesta occazião quiz mostrar este bom Prelado o
quanto zelava o serviço Real.
Embarcados que forão derão á vela pella Barra fora em
demanda daquelle Pirata que estava a barlavento por cima
do Cabo ledo; assim como derão vista delle tratou o Capi
tão mór como bom Corsario que havia sido em ganhar o
barlavento ao inimigo, para ficar mais Senhor de suas
acçoens, e nisto foi entrando com elle com muito valor dan
dolhe suas cargas de Artilharia, e o inimigo não dormia, e
tinha huma Náo de muito porte, mas avolumada com as
prezas, fazia o mesmo atirando e alijando ao mar para fi
car mais habil para a peleja; e como o Capitão mór enten
dia de tudo hum pouco , parecendolhe que os Artilheiros
não fazião bem seu officio, desceu a baixo tendo o convez
de sua Náo bem guarnecido, e todo o bordo de Infantaria
com o seu Capitão de mar e guerra e de guarnição, hindo
a fazer pontaria tendo a portinhola aberta, veyo pella mesma
portinhola huma bala do inimigo e dandolhe pellas guellas
The levou com ellas a lingoa fóra , que parece quiz Deos que
pagasse nesta occazião o ter arrenegado seu Santo nome,
com que logo cahio morto, não offendendo a bala mais a
ninguem com perigo da vida mais que de alguns estilhaços;
mas outras que vierão por outras partes nos tinhão morto
mais alguns homens, assim Soldados como do mar; com a
morte do Capitão mór ficou tudo em confusão faltando a
suas obrigaçoens os Capitaens que na Náo Capitania hião;
com isto se foi o inimigo sahindo para fora; os da Pulhacra,
onde hia o Almirante Estevão de Seixas o Tigre, derão a
culpa ao Tortel (1 ) em não querer abalroar por ser Navio
velho, temendo se lhe abrisse; só o Pataxo com seu Ca
pitão e gente da valentona foi perseguindo o inimigo,
(" ) Era o dono dela .

212
dandolhe suas cargas e o inimigo desatando nelle , e o Pa
taxo preparandose e seguindo, que assim como neste pe
pequeno foi o Maciel fôra na Náo grande não se vá (* ) a ini
migo, e se o Capitão mór o não matar elle traz aquelle Pirata
para dentro porque havia sido grande corsario' e era va
lente.
Metteremos aqui hum entre parenthesis por não ficar ao
juiżo dos homens o chamar a este Capitão mór o Renegado :
he de saber que esteve este homem muito tempo em terras
de mouros pello haverem cautivado , e pella mesma conti
nuação da estada veyo a arenegar da fé de nosso Senhor
Jesus Christo; e tinhão já delle tanta openião os Mouros
рог elle
ser valente que fiavão delle Náos com que andava
a Corso, andando neste fadario , fora do Gremio da Santa
Madre Igreja, lhe acudio Deos com seus divinos auxilios,
que não dezempara nunca com elles a toda a Criatura
criada á sua imagem e semelhança ; e foi isto de calidade
que vindo elle em huma Náo como costumava a corso,
aconselhado com mais alguns Cativos que com elle vinhão
derão nos Mouros e matarão delles muita parte, e se ale
vantarão com a Náo mettendo - se com ella em a Villa da Ca
Theta e seu Porto da Ilha da Madeira , onde este Cabo era
morador e cazado e dahi se foi a Lisboa accuzar á meza e
Tribunal da Santa Inquizeção onde foi absolto da culpa
enorme que havia comettido; outras circunstancias teve seu
alevantamento com os Mouros com que vinha , mas por não
cançar em todo o Autor ao curiozo Leitor as não relata ,
que lhas ouvio contar ao proprio Jacome Ferreira mui miu
damente. Sabido pello Governador o successo que as nossas
Náos da Armadilha havião tido com aquelle Corsario Hol
landes, e como havião faltado a suas obrigaçoens o Almi
rante e Capitoens, despachou logo ao Ouvidor Geral Fran

☺ ) iria.

213
cisco de Figueiroa a que fosse a devaçar e tomar conheci
mento dos seus procedimentos, e mandou para cabo da Ar
madilha ao Capitão mór Bartolomeu de Vasconcellos da
Cunha, sobrinho, como dito he, do Governador passado,
com ordem que fosse Costa acima até a Cidade de São
Phelipe e porto do Reino de Benguela para onde havia no
ticia havia hido aquelle Pilhante a concertar da refrega
passada, e a esperar alguma preza pois do Navio que havia
roubado se havia aproveitado tão pouco que tudo na peleja
alijou ao mar, de que os nossos da Armada se aproveitarão
de algumas couzas que ficarão capazes; e com ordem aper
tada que em todo o Caso buscasse aquelle inimigo; depois
de feita a pesquiza do Ouvidor geral , melhorada a Capi
tania de outros Cabos, foi seguindo o novo Capitão mór
sua derota em busca daquelle Corsario do qual deo vista ao
mar, do Porto de Quicombo onde havia concertado; e tanto
que teve vista das nossas Náos se foi amarrando ao mar ;
o Capitão mór lhe foi dando caça com alguns tiros de arti
Iharia chamando - o a dezafio, mas a nada disso o bruto se
movia, antes largando todo o trapinho se foi embora não
querendo experimentar outra vez as armas da nossa In
fantaria e Artilharia, mas quem foge corre quanto pode,
e se foi por huma vez da Costa e as nossas Náos por não
desgarrarem de terra, que he trabalhoza tornala a tomar, o
não seguirão mais; e vindo para o Porto de Quicombo sou
berão do Sova Mani Quicombo como aquelle inimigo per
dera muita gente na peleja primeira que com nosco teve,
mostrando as Covas onde havião enterrado os mortos. Es
tando o Capitão mór com os mais Navios naquelle Porto al
guns dias, tendo chegado a Benguela seguindo a ordem que
levava , se recolheo com Náos do Reino e Navios do Brazil,
que foi de muita utilidade este serviço a respeito de sacu
direm da Costa aquelle Corsario, e não correrem risco estes
Navios Marchantes.

214
Neste tempo succedeo mandar o Governador (' ) quei
mar huma Lancha em a Praya desta Cidade, com tudo o que
dentro trazia , a qual era de hum homem chamado o Tisna,
e bem Tisnado que parecia Negro sem o ser, por este tal hir
na dita Lancha ao Reino do Loango a comprar aos Hollan

( ) Pedro Cesar de Menezes escreveu ao Rei em 30 de Março de


1640 e, não tendo resposta nem resolução aos seus pedidos, tornou a
escrever em 3 de Julho de 1641. A câmara também escreveu em 2 do
mesmo mês e ago .
Dizia o Gov.dor que estava tratando com o Rei do Congo que
botasse fóra os holandeses do porto de Pinda; que ele prometeu que
o ia fazer mas foi envenenado, porque havia muitas interessadas em
que os holandeses estivessem em Pinda, pelos presentes que davam . O
novo Rei era o Duque de Bamba, irmão do morto e genro de Mani
sonho; que é onde estava Pinda, e foi este que deu entrada aos halan
deses no tempo do Rei passado. O novo Rei não deixava passar os
portugueses pelo seu reino e era seu inimigo. Os holandeses queriam
as minas de cobre e oiro . Até aqui é tirado da dita carta.
Os dois Reis do Congo, de que esta carta fala , eram D. Alvaro IV,
que começou a reinar em 1636 e morreu (ou foi envenenado, como diz o
Gov.cor.) em 22-2-1641. Sucedeu - lhe o irmão, D. Garcia Afonso II ,
a quem Cadornega chama o Quimpaco, éste reinou até fim de 1660 ;
foi grande inimigo das portugueses. — Dizia mais o Gov.cor que tinham
chegado ao Zaire 4 navios holandeses, tomando a barra, não deixando
sair nem entrar navio algum . A costa d'Angola era frequentada pelos
inimigos. Pedia soldados e munições, mosquetes, arcabuzes, pólvora,
corda e pelouros para eles; pedia também alguma gente, que a terra
cada dia a consumia pelas enfermidades dela ; que só tinha gente para
à defesa da cidade. Dizia ao Rei que mandasse consultar com gente
prática de Angola e Religiosos se convinha dar um grande castigo ao
Rei do Congo.
Queria dar -lhe um grande castigo ajudado pelos quilombos dos Ja
gas, que ele tinha obedientes ao que ele ordenasse ; que os muxicongos
estavam soberbos com a amisade dos holandeses e a Rainha Ginga por
outra parte com grande quantidade de sobas rebelados ( contra nás ), e
pedia que se lançassem as holandeses fóra de Pinda.
Os holandeses ofereciam grandes vantagens ao Rei do Congo pelas
minas de cobre e mais achando- se nelas ouro, como a experiência o ti

215
dezes fazendas de contrabando, e tal vez das que havião rou
bado nesta Costa aos nossos Navios, e alem da queima que
tudo ardeo, mandou castigar asperamente ao bom ou máo do
Tisnado, pella culpa que havia commettido de ir contratar
com aquelles inimigos.

nha mostrado. Para isto tudo pedia, como já disse , soldados, munições
e armas. A Câmara pedia ao Rei que mandasse explorar as minas de
cobre do Congo. O conselho informou que não se deviam hostilisar os
holandeses visto estarem aqui feitas as pazes com eles, ( tinham sido fei
tas pelo tratado de 15 de Junho de 1641 ) ; não se devia fazer guerra ao
Rei do Congo por ter trato com eles; sobre as minas de cobre devia-se
fazer melhores partidos ao Rei do que os dos holandeses.
Que não se devia fazez guerra à Rainha Ginga e que se devia
restituir a ela o seu reino, que o Governador Fernão de Sousa injusta
mente lhe tinha tirado , sendo ela católica e vassala do nosso Rei, e o
deu a Angola Airi, seu vassalo , o que deu muito mau resultado.
Que o Rei devia escrever ao Rei do Congo e à Rainha Ginga parti
cipando -lhes a mercê que Deus nos tinha feito de nos tornarmos inde
pendentes da Espanha; que eles tinham obrigação de terem boa cor
respondência na amisade e fidelidade que deviam ao Rei de Portugal.
Sobre os pedidos do Governador disse o conselho que ele quando
foi tinha levado muitas munições (e fez uma lista das munições e armas
que ele tinha levado, a qual lista eu puz em nota na fl. 198 ); que agora
Só se lhe devia enviar 25 quintais de pólvora , balas e murrão respec
tivo , 100 mosquetes e arcabuzes e nos navios que fossem se lhe en
viaria dos presos das cadeias as mais que pudesse ser.
O Rei assim o mandou pelas suas resoluções de 21-10 e de 5-11-1641.
Consta isto tudo da consulta de 19-10-1641, no Livro de Consultas
de serviço, fl. 116. As cartas citadas perderam -se; a consulta tem o ex
trato das do Governador.
O Conselho procedeu muito mal em não informar o Rei a que se
tivesse atendido à primeira carta do Governador, que talvez assim se
tivesse evitado a tomada de Loanda. A informação à segunda carta ,
ainda que fosse completamente favorável, pois quando ela foi dada já
Loanda estava em poder dos holandeses, de nada valia , visto que não
iam os navios com o conhecimento do que se tinha passado em Loanda
e por isso não podiam sacorrer o Governador no Sertão nem sabiam
onde ele estava.

216

1
CAPITULO SEISTO DA SEGUNDA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS NO GOVERNO DE
PEDRO CEZAR DE MENEZES .

Havia tido o Governador despois que entrou neste Go


verno algumas differenças por Cartas com el Rey de Congo
sobre o bom tratamento dos Conegos que assistião naquella
Séde de seu Reino, e tambem sobre a jurisdição do Ouvidor,
que este Governo naquelle dita Reino provia para adminis
trar Justiça a muita gente portugueza que na Cidade de São
Salvador, Corte daquelle Rey, assistia , com a mais que
andava contratando naquelle Reino, aquem aquelle Rey que
então reinava por nome Dom Gracia o Quimpaco, (' ) fazia
más passagens em as Aduanas e passagens dos Rios, fazendo
lhes pagar muitos xicacos (?) que assim chamão aquelles seus
direitos, não dando o caminho livre ao negócio, não lhe lem
branda a obrigação que devia aquelle Rey e seus Antepas
sados aos nossos Serenissimos Reys de Portugal, e aos Vas
sallos de sua Coroa Portuguezes, que tantas vezes lha havião
sustentado na Cabeça , não querendo delle as parias que pa
gava como Vassallo tributario, que erão humas tantas peças
e huns tantos gatos de algalia, e que naquelle tempo paga
vão por via da Ilha de São Thomé, donde lhe tinhão vindo
os primeiros soccorros de Portuguezes, uzando os nossos

(" ) Quimpaco na lingua Muxicomga quer dizer feiticeiro. (Nota mar


ginal do Autor ).
© Xicacos chamão na mesma lingua de Congo ao que se paga nas
passagens das Rias e mais passagens da terra , que são direitos Reaes
como os que se pagão nas Alfandegas e Aduanas. (Nota marginal do
Autor ).

217
Principes esta liberalidade só afim de estenderem a fe Catho
lica naquelle dilatado Reino, querendo mais isto do que os
propnios interesses, em que houve naquelles tempas muita
Christandade como tudo consta de Tradiçoens dos Antigos,
eo traz a Doutor Pedro de Mariz (-) na Recupilação das
Cronicas dos Senhores Reys de Portugal; e agora se mos
trava este Rey Dom Gracia tão suberbo e arrogante como de
sua natureza o são, que a huma das Cartas que o Governa
dor em ordem ás couzas ditas para que nellas se pozesse
emenda, as pozerão na ponta de huma Lança começando a
alarde de guerra fazendo muita mutinada como quem deza
flava para a guerra ; o mesmo alvoroto havião feito em tempo
do Governo passado e foi cauza para rir que dizendo na pro
vizão do Ouvidor o Governador Commendador da Comenda
de Santa Eufemia começou aquelle Rey e seus Vassallos a
levantar grande mutinada, dizendo o Governador he femea,
e nós somos machos (?).

(" ) o Doutor Pedro de Maris nas Cronicas del Rey Dom Manuel e
del Rey Dom João a segundo: O mesmo traz Damião de Goes na Vida
del Rey Dom Manoel.
E Manoel de Paria e Souza no primeiro tomo e sua primeira parte
da Asia Portugueza falla nas couzas do Reino de Congo.
() Este Rei tinha tão má vontade contra os portugueses que em
1643, talvez depois do roubo da Barra da Bengo, mandou uns embaixa
dores a Hollanda (Haya) a pedirem ao Principe de Orange e ás Compa
nhias favor pana nos deitarem fóra de Angola; mas ali não lhes admiti.
ram a sua proposta .
Estes embaixadores chegaram a Haya entre os dias 28 de Setembro
a 3 de Outubro de 1643. Consta isto da « Correspondência diplomatica
de Francisco de Sousa Coutinho durante a sua embaixada em Holanda,
publicada por Edgar Prestage e Pedro de Azevedo. Volume I. 1643-1646 »
- Coimbra 1920 .
Isto consta da carta dele, datada de 3-10-1643, na pag. 59, sendo a
antecedente datada de 28-9-1643; na data desta ainda os embaixadores lá
não tinham chegado,

218
Tinha o Governador tambem despachado a João Juzarte
de Andrade fidalgo nos Livros del Rey, Genro do Capitão
mór Payo de Araujo de Azevedo, de quem já fizemos men
ção nesta historia o como tinha vindo a este Reino a servir
a Coroa de Portugal em Companhia do Capitão mór Bento
Banha Cardozo na Era de 625 com o soccorro para a con
quista que vinha fazer por ordem Real, como já fizemos atraz
menção; a este autorizado cidadão despachou o Governador
e Capitão Geral por Embaixador a hum Dembo poderoso
Vassalo da Coroa de Portugal, por nome Caculo Cacaenda
onde assistião muita gente Portugueza a mercanciar, e elle
tinha em sua Bamza a principal Povoação Igreja com seu
Capellão onde lhe dizião Missa, e administravão os Sacra
mentos da Santa Madre Igreja, servindose este Sova Dembo
com muita authoridade e fausto, como pessoa Regia, hindo
este Embaixador a tratar e assentar couzas competentes au
Governo onde esteve rezidindo.
Hindo o Governador dispondo as couzas de seu Governo
tendo avizo que sem embargo da Rainha Ginga Dona Anna
de Souza haver mandado seus Embaixadores como dito he,
havia apparencias de por sua parte haver novas Revoluçoens,
como sempre costumava, para o que elegeo a Rui Pegado
da Ponte por Vizitador e Superintendente das fortalezas,
pessoa de merecimentos Conquistador dos Antigos, com or
døm que havendo feito a vizita fosse assistir com as duas
Companhias de Sobresellentes no destricto da Enbaca da
outra banda do Rio Lucala, em o sitio da Axila, para o que
levou alguma Infantaria para sua Companhia e guarda, e
com os Infantes reforçar aquellas Companhias que estavão
diminutas naquelle sitio , com seu Cabo de Companhias An
tonio Teixeira de Mendonça em razão das doenças daquelle
Sertão.
Chegado que foi a Villa da Victoria de Masangano teve
suas differenças com o Capitão mór daquella Capitania e for

210
taleza, por nome Sebastião Pinheiro provido nella por Pa
tente Real, não querendo consentir em sua superintendencia,
em Vizitador sim ; sobre isso veyo o Capitão mór á Cidade
dar conta da sua repugnancia ; na fortaleza de Cambambe
foi em todo obedecido, pello Capitão mór della ser feitoria
do Governador, que seu nome era Antonio de Abreu de Lima,
passado a Enbaca de que era Capitão mór da fortaleza e
Capitania por Real Patente Francisco da Fonseca Saraiva
o Beiçorra de Alcunha, Cavalleiro do Habito de Christo, pes
soa que por seus merecimentos o havião provido com aquelle
posto , cazado com gente principal da Cidade da Loanda, com
elle forão as mayores dissençoiens não querendo admittir a
sua precedencia, com que o mandou o Governador vir á Ci
dade dar sua descarga, e em quanto vinha mandou para
aquella fortaleza Antonio de Abreu de Miranda, pessoa de
muitos serviços, Cavalleiro fidalgo da Caza de Sua Mages
tade Conquistador dos mais Antigos destes Reinos; na forta
leza de Masangano mandou em tanto que a Capitão mor vi
nha á Cidade ficar o Alferes da fortaleza Manoel Correa de
Cadornega Irmão do Autor desta historia ; despois destas
vizitas foi a exercer o posto de superintendente em Arraial
sitio de Axila, seguindo a ordem de Governador e Capitão
Geral.
E porque em o Rio Coanza havia Revolucoens em aquella
tão importante navegação cauzadas da Gentio da Quisama,
que sempre desinquietavão aquella passagem com assaltos,
roubos e tomadias, para quietação do que chamou de Masan
gano onde era morador ao Capitão Femão Rodrigues, en
commendandolhe de novo a guarda e Comboyos daquella
navegação como o havião feito os Governadores seus Ante
cessores que governarão estes Reinos, por conhecerem nelle
partes e suficiencia para o tal Cargo ; não me alargo em di
zer alabanças deste vigilante Capitão, e Antigo Conquista
dor, e o muito que servio a Sua Alteza que D.* g.de, e vay

220
ao diante servindo porque era Sogro do Autor desta historia ,
o que tudo consta de papers, e serviços autenticos e justifi
cados, e não pretende mostrarse suspeito, que alabanças na
pessoa propria não frizão bem ; outrem o diga e seus verda
deiros e continuados serviços Patentes, e Certidoens de mais
de cincoenta annos.
Em este tempo veyo do Estado do Brazil ao Porto e Cie
dade de São Paulo da Loanda Dom Phelipe de Moura Mes
tre de Campo da Praça e Cidade da Bahia fidalgo de mili
tar disciplina, muito intelligente das couzas da guerra e for
tificaçoens, filho do Bailio de Leça; o que se divulgou da sua
vinda foi o mandava o Marquez de Montalvão, Vizo -Rey
então do Estado do Brazil, Dom Jorge Mascarenhas, buscar
hum donativo de Escravos para remir os die huns barcos lon
gos chamados Bichas que fazia o dito Vizo -Rey para segu
rança da Barra da Bahia e seus Portos; outros disserão e foi
o mais certo viera ver esta terra por ordem Real para ver se
tinha algum modo de poder fortificarse para sua defensa, e
andando vendo tudo com o Governador que o hospedou em
Palacio , fazendolhe as honras que merecia; despois de tudo
visto e examinado veyo a conferir que não era capaz para
isso por ser Praça muito aberta e ter muitas paragens, onde
quem a viesse invadir poder lançar gente; que o que convi
nha ao Reino de Angola e Cidade da Loanda, era ter boa
guarnição de gente para acudir, a que se não botasse gente
em terra , que era o remedio que podia ter, e outra couza não.
E vendo o Governador que as couzas del Rey de Congo
não tomavão termo, antes estavão cada vez em peor estado.
como tambem as da Rainha Ginga, pois se tinha della vindo
o nosso Embaixador atossicado de peçonha, que escapou com
a vida pellas boas contras com que lhe acudio el Rey de
Dongo Dom Phelipe Gola Airi, e até os seus Cavallos cor
rerão a mesma fortuna, em odio de ver huma couza e outra ,
que a tinhão tanto perseguido em as guerras passadas; de

221
inimigos reconciliados ninguem se pode fiar, e mais não
tendo lei nem fé, nem ainda palavra: o que visto pello Gover
nador o estado do Reino que havia mister tratar de seu re
medio, chamou o Conselho em que se achou aquelle Caritan
tivo e virtuozo Prelado Dom Francisco do Soveral por merce 1

de Deos e da Santa Sede Apostolica Bispo de Congo e An


gola, e o Senado da Camara, os Preladas das Religioens, e
os principaes Cidadoens que tinhão na guerra occupado pos
tos mayores: estando todos juntos em Palacio propoz o Go
vemador os termos em que as couzas destes Reinos estavão;
o Rey de Congo com ruins Correspondencias; a Rainha
Ginga cada vez com mais ardiz maquinando traycoens con
tra os Portuguezes; o Rey de Dongo, e Sovas Vassallos de
Sua Magestade timidos; os Sovas Dembo fazendo muitas
avexacoens aos Portuguezes e Pombeiros de homens Brancos
que por suas terras commerciavão, que davão a entender, es
tavão todos de huma voz e hum acordo, e para remedio de
tudo vissem se convinha e era justo pôrse guerra em campo ,
por reputação de nossas armas e para castigo de quem o me
recesse, ao que dando suas razoens os doutos como erão o
Prelado, Reitor do Collegio da Companhia de Jesus, Minis
tro de São Joseph, e outros homens Letrados, em que vierão
a conferir era justo o pôrse guerra em Campo para segurança
destes Reinos, visto o estado delles, e para castigo de quem
c merecesse e reputação de nossas Armas; com este accordo
se conformou o Ouvidor geral, Senado da Camara, e gente
principal, que naquelle honorifico Conselho se achou; só hum
Vereador, que então servia na Camara por nome Antonio
Dias Pinheiro, se ergueo do seu lugar, e disse que não con
vinha nem era justo fazerse guerra a Congo, a respeito do
negocio que se fazia naquelle Reino; e como o dito era nelle
muito interessado, fallava por aquelle estilo como quem lhe
dohia ; o que pello Governador lhe foi mui estranhado por
aquelle Vereador fallar fora dos termos da proposta e

222
accordo tomado, e se enfadou contra elle dizendo que ali se
não havia fallado particularmente em a guerra que elle dizia ,
se não geralmente em os modos com que se achavão aquelles
Reinos; mas, visto elle querer por seus particulares fallar
fora dos termos, fosse prezo, e mandou ao Ouvidor Geral
fizesse auto para perguntar testemunhas, e procedesse contra
elle por querer penetrar e revelar o segredo do Conselho que
Se havia tomado,
Neste tempo corria a Era de quarenta e hum quamdo che
gou ao Porto desta Cidade da Loanda huma Caravela do
Reino; e vendose no Porto cauzou a todos novidade, e logo
se inferio vinha nella algum avizo de importancia, e estando
todas suspensos e reciozos de saber; entrando o homem que
nella vinha em Palacio sem querer dizer nada, virão - se as
janellas do Palacio fechadas, foi-se corrompendo que tinha
mos em Portugal Rey Portuguez; alguns Sebastianistas cui
davão neste intró em quanto se não divulgou que era o seu
dezejado; nisto veyo o dignissimo Bispo ao Palacio que tinha
tambem Carta e foi sempre hum fino Portuguez; avistado
com o Governador, soube então em como junto com a nova
da feliz Acclamação lhe tinha vindo ao Governador nova da
morte de seu Pay Vasco Fernandes Cezar, motivo com que
os Criados sem saberem do mais que trazião as Cartas havião
fechado as janellas por lho dizer o que tinha vindo com o
Prego, que era Criado da Caza. O nosso Governador como
bom Portuguez fazendo aquelle tão leal e fidalga considera
ção, que fez aquelle pretexto (* ) de valor e fidalguia quando
esteve Cercado em Tarifa, Dom Affonso Peres de Gusmão,
que trazendolhe o Mouro seu proprio filho ao pé da Mura
Tha ameaçando- o que lhe entregasse a Tarifa ou se não dego
laria a seus olhos o filho que elle tanto amava ; vendo de

( ) Sic. Deve ser portento, embora o texto da Academia traga pre


texto .

223
huma parte a Lealdade que devia a seu Rey e menagem que
lhe havia dado, pella outra o amor do filho, vendo que a seus
olhos lhe havião de tirar a vida, armado de sua Nobreza
acabou dizendo entre la Sangre e El-Rey, mas peza El-Rey
que la Sangre; com que lhe botou o seu Punhal com grande
constancia que na Cinta tinha , dizendolhe da muralha se
não tinhão com que lhe tirar a vida, que ali lhe botava instru
mento para o fazerem ; ao que disse el-Rey sabendo esta glo
rioza acção chamandose Dom Alonço Peres de Gusmão el
bueno disse, bueno e rebueno.
Assim se vio nesta occazião em o nosso Governador
vendo por huma parte a Lealdade que devia ao Sangue de
Portugal , e por outra o contradizia o sangue e amor pater
nal com que rompendo pello proprio se rezolveo com o valor
do de Tarifa , entre la Sangre e el-Rey mas peza el-Rey, que
la Sangre; com que logo se abrirão as janellas, e elle vestido
de Gala com huma Capa de Escarlata toda rendada mandou
chamar o Senado da Camara e dandolhe parte como se tinha
acclamado em Portugal o Serenissimo Duque de Bragança
Herdeiro e Hereditario daquella Coroa de quem tinha Carta,
e havia sido acclamado no primeiro de Dezembro de mil seis
centos e quarenta; e em quinze do dito mez jurado por Rey
de Portugal e dos Algarves, e de todos seus Reinos e Con
quistas Ultramar; assim que elles como leaes Portuguezes ao
Sangue donde elle procedia por linha direita, tratassem logo
de o acclamar por Rey e Senhor; ao que responderão que
com grande vontade farião couza que de todos era tão deze
jada havia tantos annos; e logo foi o Vereador mais velho
que então era Antonio Ribeiro Pinto Cidadão dos Princi
paes desta Cidade filho daquelle famozo e valente Espanhol
João de Veloria, buscar o Guião e Bandeira da Camara , e
pegado delles começarão logo a ouvirse pella Cidade toda
muitos Vivas, dandose todos huns aos outros muitos para
bens de chegarem a ver em seus dias o que tanto dezejavão,

224
e com isto ficarão desenganados os Sebastiánistas, que não
era o que elles esperavão mas era o predito.
Sahio do Palacio o Governador junto com o deretido por
tuguez do Bispo (1) Senado da Camara e Ouvidor como
della Prezidente e todos, e todo o Clero e Vigario Geral
de Religioens, Cidadoens e Moradores com todo Concurso
da mais gente da Cidade acclamando o dito Vereador
mais velho por toda a Cidade Real, Real por el Rey Dom
João Rey de Portugal o Quarto : foram logo á Matriz a
dar a Deos as graças, e a Sua May Santissima Senhora
da Conceição, e abrindo o mesmo Bispo o Sacrario se can
tou o Te Deum Laudamus com boa Capella de Muzica
que então havia, com toda a perfeição e era bem se es
merassem os Muzicos pois el Rey que se acclamava e fes
tejava, foi sempre tão affeiçoado a ella, vindolhe esta in
clinação já por herança como lhe vinha o Reino por seu
Progenitor, o Serenissimo Infante Dom Duarte, filho da
quelle grande e feliz Rey Dom Manoel; feita a Acclamação,
como dito he, se forão fazendo as festas conformes com
gosto e alegria que em geral havia ; o virtuozo Prelado tomou
á sua conta o que mais lhe competia, que foi hum Outavario
de Missas cantadas com o Senhor desenserrado com Ser
moens em todo elle, a que o Bispo deo principio com sua
conhecida eloquencia e saber, que era mui grande Theologo
sogeito de muitas Letras, aquem seguio o Padre Gonsalo de
Souza Reitor do Collegio da Companhia de Jesus, que alem
de ser muito Douto era grande Matematico e Astrologo, em
o qual das muito couzas boas que disse em Louvor do nosso

( ) Sic no exemplar da Academia; mas isto não se entende. No Ms.


de Evora tem assim : Cap. 17, 1.' parte ou Cap. 18. Sahio do Palacio
o Governador junto com o Prelado Bispo, e o Senado da Camara Ouvi
dor Gerał acompanhado de todos os cidadoins e moradores da cidade e
Religiosos Vigário Geral e Clerezia ...

225
Rey, e de sua Real Descendencia, veyo trazendo todos os
Imperios que tinha havido no Mundo, e disse que sobre o
nosso Reino de Portugal Antiga Luzitana dominava sobre
Lisboa a Estrella, e Conjuncção Maxima que domina os
Imperios, com outras alegaçoens e regras de Matematica
que não he do juizo do Autor capaz de as relatar; forka se
guindo as predicas os melhores sogeitos que tinha a Cidade.
€ por remate de tudo huma Solemne e devota Procissão em
acção de graças de nos haver Deos feito mercé de chegar
mos a ver a Monarquia Lusitana governada por Rey Por
tugues Hereditario do Reino de Portugal cumprindose nelle
a palavra de Deos dada em o Campo de Ourique ao nosso
primeiro Rey Dom Afonso Anriques:
Em este outavario tomou a seu cargo o Governador e
Senado da Camara as tardes e noutes em que se correrão
Touros que os há nestes Reinos tão bons e bravos como os
do Rouquão da Real Caza de Bragança (™ ) e Samusca e dos
prezados de Espanha de emxarama a que houve Toureiros
de a Cavallo e a pé, havendo custozos premios, sendo os
Juizes dellas Payo de Araujo de Azevedo e Antonio Bruto,
Cidadoens e Capitaens mores que havião sido nas guerras
do Sertão e Conquista destes Reinos, como dito he, fazen
do - se tudo o genero de festejo a Cavallo como Canas Al
canzias e Argolinhas despendendo os Juizes das sortes mui
tos ricos premios; e de noute muitas Luminarias e fogo do
ar, disparando as fortalezas e fortes sua Artilharia, e de dia
a Infantaria em Esquadrão na praça dando muitas cargas;
na forma referida se festejou em Angola a Acclamação do
nosso invicto Rey Dom João o Quarto o Restaurador de
saudoza memoria .
Na villa da Victoria de Masangano se fez grande fes

☺ Sic no Ms. da Academia . O Ms. de Evora não traz referência


aos touros da Casa de Bragança.

226 1
tejo como em as mais fortalezas e Presidios de Muchima.
Cambambe, Enbaca, e até o Gentio Vassallo da Coroa de
Portugal como tambem no Reino de Benguela, e em as mais
partes onde havia gente Portugueza, foi festejada a feliz
Acclamação.
Tendose concluidas as festas da Acclamação, o nosso
Governador e Capitão Geral tratou de fazer o que devia
a seu sangue e a seu Pay, fazendolhe as exequias com toda
a pompa funebre, como a obrigação o pedia a filho tão
honrado; passada a dita funcção, nomeou por Capitão mór
da gente de guerra que se havia assentado em Conselho
como se tem dito Antonio Bruto, que actualmente occupava
o posto de Sargento mór da Praça por el Rey, pessoa de
serviços e satisfação, que havia exercitado o posto de Ca.
pitão mór em occazioens das guerras do Sertão ; começando
a formar seu Arraial em a Emgombota sitio junto da Ermida
de Santa Maria Madalena á vista da Cidade ; se avizou
a Villa da Victoria de Masangano para que estivesse pre
parada a gente moradora daquella Villa e Soldados, e o
mesmo se fez á Fortaleza da Enbaca, descesse o Cabo de
Companhias e Capitão mór de Cavallos Antonio Teixeira
de Mendonça com as duas Companhias de sobresellentes
que estavão no sitio da Xila, e se viesse incorporar com a
gente de Masangano e mais presidios para virem assistir a
esta occazião e Campanha.

227
16
CAPITULO SETIMO DA SEGUNDA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS EM O GOVERNO DE
PEDRO CEZAR DE MENEZES.

Hindo o nosso Governador e Capitão Geral proseguindo


seu Governo avistarão o Porto desta Cidade quatro Náos
de guerra que pellas Bandeiras demostravão ser Flamengas,
por cuja cauza, se tocou a rebate e marchou o Governador
com a gente de guerra assim paga como auxiliar para o forte
do Penedo sito na marinha e Enseada da Cassondama, para
dali medir as acçoens daquelle inimigo, e estar apto a tudo
o que se offerecesse, tendo muitas rondas e vigias na mari
nha para ver se intentava de noute botar gente em terra , ali
estiverão estas Náos huns dias com ferro botado da banda
de fora da ponta da Ilha, ora bordejando ao mar, ora an
corando, como quem vinha ver ou esperar pello que lhe fal
tava e o Governador e toda a gente sempre alerta para ver
seus dizignios até que derão á vela costa acima, e por cima
da Barra da Curimba lhe veyo dar nas unhas hum Navio
nosso de hum homem chamado o Faisca de Alcunha, e o
apanharão e roubarão, vindo do Reino; determinavão levar
consigo os roubados, mas como vinhão ali algumas pessoas
que vinhão para huns Parentes seus que tinhão em esta Ci
dade da Loanda pedirão muito e rogarão aquelles Piratas
os laçassem em terra, e os não levassem com sigo ao Brazil
ou Hollanda; não havia remedio a Cabo vir nisto, até que
hum Capitão de huma das Náos, que devia ter alguma
couza de Catholico ou de compassivo, pedio ao Cabo man
dasse botar aquelles Portuguezes em terra visto terem na
quella Cidade pessoas para quem vinhão, e que elle os lan
çaria em terra , e accompanharia o batel com o da sua Náo

228
onde os roubados havião de ir; concedeu o Cabo impor
tunado daquelle Capitão o pedido, que donde há tantos máos
como naquellas Náos havia, não podia deixar de haver al
gum que parecesse bom ; com dita permissão tratou o Ca
pitão de preparar o seu batel , e o em que havião de vir os
despidos Portuguezes , e ficando - se o Mestre do Navio rou
bado com mais alguns dos seus com os Flamengos, com pre
testo de ir a Hollanda pleitear o seu Navio, que lho havião
tomado havendo Paz assentada entre os Senhores dos Es
tados de Hollanda , e o nosso Rey de Portugal ; e trazia este
Mestre a Faiscas hum como Passaporte do seu Embaixa
dor que deixarão em a Corte de Lisboa; (" ) vindo o Capitão
a botar a gente em terra se levantou tal Cancara de mar
e ondas encapeladas que escapou o Capitão por ventura
de não ser submergido e dado a Costa, que parece quiz
nosso Senhor pagar-lhe aquella boa obra , e que quiz logo
ajustar contas com elle por não ser capaz de as ter mais
prolongadas; o batel dos roubados naufragou dando á
Costa fazendose em pedaços, que estiverão muitos quasi
afogados, os quaes sahidos em terra junto com os Flamengos
remeiros, vierão com muito trabalho marchando até á
Corimba onde então havia fortaleza nossa com Artilharia ,
e Capitão com Soldados; o Capitão despachou logo toda a
gente do naufragio para a Cidade ao Governador pello
braço de mar da banda de dentro da Ilha .
Chegados que forão a presença do Governador dando
informação os roubados do successo referido, mandou por

© No Ms. de Evora tem assim : em a corte de Lisboa vindo o Ca


pitão a lançar os ditos Portuguezes em terra que tinham alguns parentes
nesta cidade, se levantarão taes ondas que por furtuna escapou o Cappi
tam de não ficar sumirgido e dando costa como naufragou o batel , dos
nossos Portugueses roubados e se fes em pedaços e quazi se viram afo
gados...

229
quem sabia a lingoa do Norte inquerir aquelles Flamengos
o designio que os trouxera a este Porto da Loanda o que
jamais quizerão dizer, se não que vinhão das feitorias da
Costa e hião fazendo sua viagem a Hollanda; visto pello
Governador virem estes Flamengos Remeiros em prol da
gente roubada os mandou por pessoas praticas que sabião
a sua lingoa a bordo das Náos em huma Lancha tambem
por ver se descubrião o intento da vinda daquellas Náos
avistar este Porto ; forão os Inviados a levar na Lancha os
naufragados a Cabo Ledo, onde as Náos estavão Surtas de
que se mostrou aquelle Cabo agredecido, hospedandoos mui
bem com muitos brindes, mas não poderão alcançar nada
do a que hião, por mais brindes que houve; recebidos os
seus companheiros deicharão o Porto, e forão para barla
vento Costa acima para Benguella; ainda tinha mandado o
Governador huma Lancha com a vizo que passou de noute
junto da Costa sem ser sentida, para que estivesse o Go
vernador daquelle Reino de acordo, em como andavão
aquellas Náos inimigas na Costa ; e por não ter Naos
sufficientes, nem Infantaria bastante, não botou Armadilha
fora contra aquellas quatro Náos de guerra.
Todas as diligencias que fez o Governador por saber o
intento destas Náos Flamengas foi em razão de dar o Gen
tio nosso contrario a entender principalmente o Rey de
Congo com ameaças, que esperava Mafulos, (* ) e havia al
guma noticia por via do mesmo Gentio nosso confidente,
que havia aquelle Rey de Congo mandado Embaixadores a
Pernambuco e dahi a Hollanda pedindo aos Estados das
Provincias Unidas, mandassem Armada contra os Portugue
zes, e Cidade da Loanda, promettendo Minas, e outras con
veniencias; (? ) e que havião levado boa data do Metal que

{" ) Mafulos chamão aos Flamengos. (Nota marginal do Autor ).


“ Deve ser certo o que o autor diz, Veja - se a nota à f. 213.

230
a fortuna a tantos nega, o que não foi dito no ar, pois se
soube que la forão, e os effeitos da sua Armada o mostrou
assim como logo diremos.
Em vinte e dous de Agosto de 641 appareceo por cima
da fortelaza da Corimba huma Armada da qual mandou logo
avizo á Cidade o Capitão que então era Antonio Monos,
e da fortaleza mandou com Artilharia fazer alguns tiros ás
embarcaçoens que vinhão mais chegadas a terra , por conhe
cer pellas Bandeiras ser Armada inimiga, e haverem dado
a salva de Artilharia com bala , como o Capitão informou,
que passado o inimigo se veyo para a Cidade. Tendo o
Governador a nova , e vindo já a Armada apparecendo,
mandou o Governador tocar Caixas , e marchou com as suas
Companhias de gente paga para o forte do Penedo, onde
havia poucos dias tinha estado em razão das quatro Naos,
as quaes Companhias se achavão mui diminutas, a respeito
de que havião morto muitos dos Soldados que trouxe da
doença da terra , outros que havia mandado a fornecer
as fortalezas da Conquista e Reino de Benguela , e alguns
que tinhão fugido no Galeão São Bento descontentes da
aspereza da terra; com o que o Governador se achava com
alguns duzentos homens pagos, cento e cincoenta da sua
gente de que erão Capitaens Antonio Gracez Palha , Joseph
Antunes da Silva e Fernão Dainis Pessoa, com mais cin
coenta da terra com que tinha feito pé de Exercito o Ca
pitão mór Antonio Bruto para a guerra do Sertão de que
erão Capitaens Diogo Gomes Morales, e Manoel Carvalho
o Martir da Conquista por Alcunha : com este pequeno po
der marchou o Governador como dito he para o sitio do
Penedo e Enseada da Casondama, e por não saber em Praça
tão aberta como esta, por onde seria acomettido, mandou
ao Sargento mór que então era João de Souza com a gente
da ordenança pellos altos da Montanha que constava de
tres Capitaens, o da gente moradora que era João Pegado

231
da Ponte, da gente Estravagante Manoel Gonsalves Cidrão,
da do mar Francisco Rodrigues Bixiga; e para dar calor a
terra, foi em sua Companhia aquelle bom e fiel Prelado Dom
Francisco do Soveral accompanhado de muita Clerezia e
Criados de sua Caza, não pondo por diante sua muita ve
lhice, levando seu Arcabuz a seu Lado, para com isso dar
bom exemplo aos mais .
O inimigo se veyo chegando em vinte e tres de Agosto
com sua Armada á ponta da Ilha que constava de dezaouto
Náos, muitas dellas tão possantes que julgarão alguns que
não tinhão tanto conhecimento que erão Galeoens de Es
panha e Armada Castelhana; e porque se entendeu que podia
entrar o inimigo o Canal donde podesse fazer danno com
sua Artilharia á Cidade , ordenou o Governador aos officiaes
da fazenda Real mandassem botar duas embarcaçoens das
de menos porte de tantas que havia neste Porto no Canal
a pique, para impedir a passagem do inimigo, e reparando
os officiaes a pouca fazenda que havia para a satisfação do
que o Governador ordenava , e outras couzas necessarias,
disse vendo aquelle reparo Antonio Ribeiro Pinto Cidadão
afazendado, de quem havemos feito menção, que se impor
tava ao serviço del Rey botarem - se aquelles Navios no Ca
nal que hia para a Cidade se fizesse, que quando não hou
vesse fazenda Real para se pagarem a seus Donos , que elle
c faria da sua fazenda; e toda quanta possuhia offerecia por
serviço de seu Rey e defenção da terra , e logo mandou vir
de sua Caza piruleiras de vinho, muito peixe salgado e fa
rinha de guerra, que deo á Infantaria , e se botarão as em
barcaçoens a pique em dito Canal .
Em vinte e quatro de Agosto que foi dia do Bemaven
turado Apostolo São Bartolomeu , que parece , que por
castigos e peccados, que tinha que purgar Angola, e seus
Habitantes, se soltou o Diabo, que tem aos pés, para cas
tigo de culpas comettidas; esteve pella manhã o inimigo á

232
capa, parece tomando conselho do que havia de fazer e logo
forão entrando e prolongandose da ponta da Ilha até de
fronte da Casomdama fichandonos o Porto, que não podesse.
sahir nenhuma embarcação nossa para fora; desta sorte de
rão fundo assim prolongados, e incontinente sahirão as suas
Lanchas e bateis, que já quando derão fundo trazião a gente
dentro; de voga arrancada aguçarão a terra , para a Casom
dama emparados de duas Galizabras com Artilharia e gente;
o Governador que vio a determinação do inimigo, e que lhe
não sahira como elle cuidava , que era entrar o Canal para
a Cidade e combater com as suas Náos de força aquelle forte
do Penedo, não capacitando nunca que naquella paragem
lhe podesse botar a gente , sem que primeiro com elle cho
casse, nem que lhe fosse buscar hum caminho tão limitado
por onde se subia a Montanha; mas o inimigo trazia a couza
bem preditada e pessoa pratica em sua Companhia que sa
bia mui bem da terra e suas veredas, porque botar fundo
entre hum forte e outro como era o da Casomdama, e do
Penedo, com tal proporção e medida , que nem de hum nem
de outro podia ser offendido, assim pella distancia como
pello pouco calibre da Artilharia dos fortes, que atirando-lhe
alguns tiros hum e outro foi sem nenhum effeito, e logo hir
buscar aquella Vereda tão limitada, não havendo outra por
onde podesse subir ao Alto, por serem tudo Barrocas in
gremes, o certo he que o trazia bem zizado.
Vendo o Governador para onde levava a Proa o inimigo,
mandou marchar a toda a pressa o Capitão com a Infantaria
e gente de Cavallo que ali se achava, e por mais diligencia
que se poz, muita mais poz o inimigo, que hindo a nossa
gente em meya trincheira, que por ali havia de borda de
terra , já o inimigo estava dezembarcado , com aquella pri
meira batelada, e gente que levou nas Galizabras jugando
sua Artilharia para a nossa gente de Cavallo, e Infantaria
que hia marchando, e a Capitania do inimigo que ficava

233
mais o porto botando muitas balas de a vinte e quatro,
dando com isso favor á sua Infantaria que a tinha em terra ,
e logo os que havião soltado em hum improvizo levantarão
huma trincheira ou borda de terra com que se cubrirão; o
que vendo o Governador que se não podia abrar já nada
pella Marinha, onde elle cuidou tivesse o encontro, e como
hia a sua gente perdida tão poucos para tantos com tantas
vantagens, mandou muito depressa ordem se recolhessem .
Não fique no esquecimento dizerse em como o Gover
nador por saber que gente era a daquella Armada que lhe
vinha a invadir a terra , lhe mandou huma Embaixada em
que lhe mandou dizer, que aquella terra e mais Reino es
tava por el Rey Dom João o Quarto , e que sabia estava em
paz, e tinha amizade com todos os Princepes de Italia e
Provincias Unidas dos Estados de Hollanda; que razão
havia para á falsa fé e entrepreza invadirem a terra de seu
Princepe e Senhor ; ao que responderão frivollos, que erão
mandados por seus mayores, que não sabião de outra couza .
As Companhias que tinhão hido pellos Altos com o
Sargento mór tiverão falta na marcha ; com que o inimigo
teve tempo como formigueiro tanto que dezembarcavão dos
bateis logo hião subir ao Alto em que se hião formando em
seu Esquadrão; e hum Morador Gaspar Gonsalves o En
sendeira com alguns Negros seus atiradores ou espingar
deiros fez retrahir 'huma manga do Esquadrão inimigo mais
que de passo, com perda de alguns Flamengos; o Capitão
do mar ou de sua gente chegou a chocar com o inimigo no
Alto, e cuidando o seguião a mais genté da sua Companhia ,
e os de mais Capitaens, foi com valor portugues fazendo
retirar algumas mangas inimigas, e empenhou -se de Calidade
que lhe matarão o seu Alferes por nome Manoel de Siqueira
natural de Villa Viçoza filho do Goldres da Rua da Cadeia
que mettendo mão a Espada, cuidando o accompanhava a
mais gente da sua Companhia , veyo huma bala do inimigo

234
que lhe tirou a vida; e o Capitão trouxe o chapeo passado
de huma Bala, o qual era natural da Cidade de Portalegre,
pessoa honrada de satisfação, e lhe havião ferido mais al
guns homens da sua Companhia que o tinhão accompanhado
naquella avançada e investida; e como os muitos tirão a
virtude aos poucos se retirou de necessidade, e não há du
vida que se naquella eminencia por onde subio o inimigo es
tiverão de mão posta a nossa pouca infantaria, ou no de
zembarcadouro, que lhe houvera de custar muito sangue o
pôr pé em terra , ou ser Senhor della; contra o Ceo não
valem mãos, ainda que as nossas erão poucas forão mais os
peccados que tinha que purgar Angola, pois desde a pri
meira Conquista destes Reinos não havião padecido seme
lhante Castigo, como daqui por diante forão experimentando
seus Moradores e os mais Habitantes destes Reinos.
Estando as couzas neste estado e que não havia forças
para rebater tamanho poder se retrahio o Governador da
quelle sitio para a fortaleza de Santa Cruz fechada por
todas as partes, a qual guarneceo com Infantaria paga com
que se achava esperando ali o que a fortuna dispozesse ; em
huma Caza pouco adiante para a Cidade se ajuntou o Pre
lado com os Cidadoens principaes, os quaes praticando sobre
€ estado em que aquellas couzas se achavão, que era ne
cessario dar -lhe o remedio que podesse haver , para estes
Reinos se poderem sustentar, e não se perdessem de todo,
emquanto Sua Magestade acudia, era de muita utilidade re
tirarem-se com aquelle piqueno poder ao Sertão, onde se
poderião sustentar em quanto não vinha, quem lançasse
aquelle inimigo fora da Cidade e Reino e que incorporados
com a gente da Conquista se podião conservar, e fazer al
guma opposição aquelle inimigo; nisto conferirão todos, e já
bem de noute forão buscar o Governador, ao qual manifes
tarão o Bispo e mais pessoas principaes as razoens ditas, a
que respondeu o Governador com rezolução que já que elle

235
tinha sido tão desgraçado em perder sua reputação por falta
de poder queria tambem perder a vida naquela fortaleza
como Soldado , e dar a entender aquelle inimigo que lhe não
faltava valor para o fazer; o que vendo o Bispo, e os mais
tal rezolução lhe protestarão pello Reino de Sua Magestade,
k que daria conta a Deos e a el Rey do mal que a elles mo
radores lhe viesse , e a todo o mais Reino, por elle não que
rer fazer o que era conservação destes Reinos e serviço de
Sua Magestade ; esta resolução com que lhe fallou o Pre
lado e mais Moradores o fez metter por dentro, com que
disse lhe fizessem hum papel assinado por todos, que aquella
retirada ao Sertão era serviço del Rey e conservação destes
seus Reinos, o que se poz logo por obra como a occazião
o pedia; feito o papel e assinado pello Bispo Cidadoens e
Moradores, Capitaens de Infantaria e Ordenança da terra,
estando já neste tempo o Governador nas Cazas de An
tonio de Abreu de Lima onde se havião congregado para
aquelle conselho , mandou dali ordem ao Capitão do forte
do Penedo, que era André Coelho de Mello, Cavalleiro do
Habito de Santiago, Cidadão da Cidade de Lisboa despa
chado por Sua Magestade com a fortaleza da Enbaca , se
retirasse com a guarnição que tinha, botando a munição ao
mar, e cravada a Artilharia ; ao Capitão da fortaleza de
Casomdama, que era hum Morador da terra e Cidade por
nome Antonio Vas da Costa não houve recado que la po
desse ir, por estar alem do inimigo mas elle se retirou antes
de ser degolado, elle e a mais guarnição por ser fortaleza
aberta pello Sertão; a mesma ordem mandou ao Capitão da
fortaleza de Santa Cruz, que era Mathias Telles Barreto
Cidadão dos principaes da Cidade o qual se achava dentro
da fortaleza com hum Tio de sua Mulher Dona Luzia
Freire, por nome Frey João de Angola Religiozo autorizado,
Frade do Carmo Calçado, que havia sido Provincial de sua
Religião em a Cidade da Bahia e o primeiro filho de An

236
gola branco , que se havia bautizado em a Cidade da Loanda;
este honrado Religiozo fez ao Sobrinho Capitão requeri
mento, não largasse a fortaleza de que havia dado home
nagem , sem expressa ordem do Governador por escrito, em
que lha havia por levantado, que se não lhe havia de custar
a Cabeça , com que replicou a ordem que lhe havia vindo
de palavra , com que foi necessario mandarlha o Governa
dor por escrito em que o havia por dezobrigado da home
nagem, com o que se veyo recolhendo com sua guarnição,
fazendo a mesma diligencia como o havia feito o do forte
do Penedo com a Artilharia e Muniçoens: o Capitão e guar
nição do forte da forca , que assim se chamava , foi trazendo
com sigo que estava em caminho , a mesma ordem mandou
ao forte de Vicente Velho da Silva e a seu Capitão que assim
se chamava , e ao da fortaleza de Nossa Senhora da Guia ,
mandando dos Almazens Reaes que nella havia tirar a mu
nição para levar em sua Companhia, mandando Capitaens
e pessoas de satisfação a fazer sahir toda a gente da Ci
dade , que não ficasse viva pessoa com o inimigo.
Era perto da meya noute quando o Governador chegou
á Praça e seu Palacio com os Capitaens e Infantaria , e al
guns Cidadoens e Moradores principaes que o accompa
nhavão, aos quaes deo alguns barris de polvora e Cunhetes
de Balas e murrão para mandarem carregar por seus Es
cravos , que se deixavamos huns inimigos pellas costas nos
ficavão muitos por diante, os quaes dezejavão beber o san
gue a toda a gente Portugueza , que os dominados pellas
Armas nunca são fixos por mais que se mostrem ou pare
ção Leaes; o bom do Prelado tambem tratou pellos Mora
dores de accomodar a Prata da Matriz que era muita : postas
as couzas em ordem, e os Moradores naquelle breve tempo
tırarão de suas Cazas o mais precioso ; e os homens de ne
gocio que tinhão armaçoens de Escravos feitas mandarão
carregar parte da fazenda com que se achavão em ser , os

237
Moradores não tinhão posto em salvo do muito que possuhião
por cauza dos rigorozos Bandos, que o Governador mandou
botar com pena de morte, só afim de se defender a terra
ao inimigo, e se não fora quando foi das quatro Náos ha
verem tirado alguma couza , que então não forão os Bandos
tão rigurozos, sem nada ou pouco mais de nada se ficarão .
Ás duas horas despois de meya noite preparado já do
necessario para nos guarecermos no Sertão, se foi sahindo o
Governador com toda a mais gente da Cidade pella parte
do Convento de São Joseph, Frades da Ordem Terceira de
São Francisco, por quanto as de mais sahidas e caminhos,
os haver tomado o inimigo, e era necessaria dar hum grande
rodeyo para pellas costas do inimigo ir buscar o caminho
que hia para o Rio Bengo e arimos, onde o Governador le
vava a sua derrota e retirada; aquella noite andou com sua
Infantaria que sempre o seguio, e alguns moradores como
perdido por aquelles matos em que começou a padecer de
trimento a gente feminina que toda seguia a mesma derrota,
e por ser escura a noite sem luar e faltos de guia, se hião
a metter nas mãos do inimigo, até que hum morador topou
com huma negra, que naquelles matos fazia carvão, e ela os
encaminhou para o sitio de Bembem , caminho para o Bengo,
e arimo que nesta paragem tinhão para suas lavouras .
Aquelle sitio chegou o Governador com a mais compa
nhia ao romper da Alva , quando se ouvirão tres grandes
cargas do inimigo, que deo assim por terror como por fes
tejo ao entrar a Cidade como se soube logo por Negros que
dos altos onde estavão com cargas de seus Senhores o
havião visto; neste dito sitio de Bembem , achamos o Bispo
que como teve os seus Estudantes filhos da terra , que fo
rão os que o carregarão e accompanharão, souberão melhor
as Veredas; por essa cauza o achamos diante; folgou muito
de ver o Governador, que como vio que tardava, cuidou lhe
havia succedido alguma couza , o que assim fora se aquella

238
Negra não tivera servido de guia , que não foi nesta occazião
Negra se não como hum Ango de Luz, e com o sentimento
da perda da terra e imaginar como hum fidalgo de sua Ca
lidade, e experiencia tivesse semelhante successo, lhe de
rão desmayos aquella noite: em que faltou pouco que não
morresse ; com este trabalho chegou aonde estava aquelle
bam Prelado mui cortado do sentimento ; ali o consolou
aquelle virtuozo Bispo, dizendo não ser elle o primeiro aquem
tinha succedido o perder Praças, e mais tendo elle feito sua
obrigação como bom Soldado, estando exposto com tão
pouco poder a ter o encontro ao inimigo, esperando - o na
Praya com o valor que se vio e ao despois na fortaleza de
Santa Cruz mettido, para dali pelejar, e ser rendido por
seus Cabais, o que isso não accomodava ao serviço del Rey
nem á conservação de seus Reinos, e que quereria Deos
que com aquella retirada se melhorassem as couzas , e não
ficar aquelle inimigo de huma vez ás mãos lavadas feito
Senhor da Cidade , e do mais destes Reinos; com estas e
outras semelhantes palavras ditas com mais audacia do que
o Autor aqui relata o consolou com aquella tristeza e
afflicção em que vinha.
Ali se deteve o nosso aflicto Governador algumas horas
incorporando a mais da gente que vinha dispersada, e era
lastima ver algumas mulheres e moças donzellas o traba
lho e discommodo com que vinhão, principalmente a gente
que não tinha Escravaria que os comboyasse e carregassem,
ainda os que os tinhão vinhão com a mesma fadiga , por
lhes carregarem alguma couza que havião tirado de suas
cazas da Cidade em aquelle repentino accidente e alguns
lhas entregarão na mão que não virão mais cargas nem Es
cravos, outros as botavão pello mato e desaparecião como
quem está na sua terra, e não querião mais sogeição de seus
Senhores; incorporado que teve o Governador a gente toda
foi marchando para os Arimos e Searas do Sequeli por hum

239
sol terrivel , que não havia quem podesse pôr os pés na
area daquelle caminho, sem haver em todo elle huma pinga
de agoa com que refrigerarem - se de tamanho calor até que
com esta molestia se chegou já de noite aquelles Arimos,
onde havia dispersadas algumas cazas de palha dos Mora
dores da Cidade; ali fez alto o Governador com sua Infan
taria e alguns Moradores da Cidade e dormio aquella noite,
todos com as barrigas vazias por não haver nada que comer ,
que são terras agrestes e só servem quando chove produzir
muito milho grosso e miudo.
Ao outro dia levantou daquelle sitio com toda agente,
marchando por aquella esteril terra , e chegou ao meyo dia
á fazenda dos Padres da Companhia de Jesus, sita junto do
Rio Bengo, com boas Cazas assobradadas e Capella de dizer
Missa , com muita frescura de Pomares e hortaliças ; ali se re
frescou a gente da retirada em abundante e Christalina agoa
daquelle Rio, e com o que aquelles piadozos Padres offere
cerão ao Governador de Boys, e farinha de guerra, que logo
mandou matar e repartir pela Infantaria e mais gente; e já
que deixamos o nosso Governador e Capitão Geral a salva
mento posto em Campo, e havemos escrito desde os princi
pios da Conquista destes Reinos, e os Governadores que os
governarão, e Conquistadores que gloriosamente trabalharão
em suas Conquistas, conforme as noticias verdadeiras e papeis
antigos, que o Autor desta historia com seu desvello pode
descubrir e capacitar, até esta entrada da terra pelos Belgas
Hollandezes , razão será dar hum pouco de descanço a esta
tosca penna, acabando este setimo capitulo da segunda
parte, tendo por diante o mais em que há muito que dizer;
e assim necessita tomar huma pouca de reflecção, para de
novo escrever até a feliz restauração desta Cidade, dando
as noticias do que se obrou com o inimigo Hollandes em o
discurso de sete annos que teve occupado estes Reinos, e
com os Gentios delles.

240
CAPITULO OITAVO DA SEGUNDA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS EM O GOVERNO DE
PEDRO CEZAR DE MENEZES.

Deixamos ao Governador e Capitão Geral Pedro Cezar


de Menezes em a fazenda dos Padres da Companhia de Je
sus, sita beira Rio Bengo, refrescando Soldados e mais gente
em as abundantes agoas daquelle Rio, se bem agazalhados
em barracas feitas das folhas das Palmeiras, e Bananeiras,
em quanto de agoa estavão de melhor partido do que na
Cidade da Loanda, porque a não havia de Rio como esta,
mas faltavalhes o regalo que lá tinhão, assim de boas Cazas
como de sustento ; vierão- se ajustando os Cidadoens, e Mo
radores que havião hido levar suas Cazas e familias a seus
Arimos e fazendas ; vendo o Governador que não estava em
sitio capaz para tratar do exercicio militar, por não ter praça ,
e ser tudo serrado de arvoredo e Bananais, se foi dali huma
legoa mais acima , fazenda de hum Morador, chamado Gre
gorio Ribeiro, por ser sitio hum pouco eminente donde se
descubria aquella Vargea toda; ali fez seu Corpo da guarda,
tendo de noite suas rondas e Vigias, com sentinellas perdi
das ao largo, assim de a pé como de a Cavallo, por se a cazo
o inimigo o intentasse buscar, arranchando -se naquelle sitio
toda a gente da retirada em suas barracas e Cazas de palha;
mandando por Negros saber á Cidade o dizignio daquelle
inimigo, que como são ligeiros no marchar entravão e sahião
com afouteza, e ainda della trazião algumas couzas que acha
vão pellas cazas da Cidade, que estavão sem gente, porque
o Flamengo se não afoutava a estar nas que estavão fora
de suas fortificaçoens e trincheiras, com que havião já neste
tempo fechadas as entradas das ruas que subião para todo

241
o cimo da Praça temendo - se como o Soldado não fosse assal
tado de noite .
A este sitio de Gregorio Ribeiro veyo, atraveçando do
Rio Coanza por entre o Gentio que já estava ou não estava
do bom titulo, que são de vive quem vence, Fernão Rodri
gues Capitão e Cabo da navegação do Rio Coanza, o qual
veyo a medida do dezejo o vir ali logo encontrarse com o
Governador, e assim lhe ordenou logo que com grande cui
dado lhe mandasse aparelhar dous Pataxos os mais possan
tes, e de cuberta dos que se achassem naquella navegação
para passarem ao Brazil com avizo a Sua Magestade do es
tado em que se achavão as couzas de Angola, e termo em
que estavão, aos quaes por serviço del Rey lhe metesse o
necessario para a Viagem , assim de Agoada, farinha e peixe
salgado como do mais que fosse necessario, e que aviados
que estivessem com a brevidade que lhe fosse possivel tor
nasse aquelle sitio para Comboyar os homens de mar que
havião de ir nos avizos , e as pessoas que havião de levar o
prego del Rey: foi o dito Capitão, e com muito cuidado e di
ligencia aviou os dous Pataxos do que lhe era necessario
tudo á sua custa por então não haver fazenda Real ; aviados
que os teve veyo dar avizo ao Governador em como estavão
aparelhados; o Governador lhe agradeceu muito o cuidado
com que em couza de tanta importancia havia obrado e lhe
deu a gente do mar, que aquelle Capitão mandou comboyar
por seus Escravos; e foi em hum dos avizos hum Padre da
Companhia de Jesus por nome João Leitão, Mestre que havia
sido na Cidade de huma das Classes em que se ensina Gra
matica, e no outro Roque Vas, Mestre e Senhorio de hum
Navio que havia ficado no Porto da Cidade da Loanda por
despojo ao inimigo.
Tomadas as cartas atraveçou aquelle Capitão aquellas
Legoas que havia do Arraial a Coanza em que se gastava
hum dia de boa marcha; chegado que foi aquelle caudalozo

242
Rio Coanza embarcou logo a gente que levou em os dous
Pataxos com as pessoas ditas que levavão a seu cargo os
avizas e lhes foi dando comboyo com suas Lanchas e Sol
dados até a barra da Coanza , e os botou pella barra fora a
paz e a salvo (" ) , sem então serem sentidos do Flamengo,
mas logo lhes foi pellos Negros a noticia, que se mostravão
com aquelles inimigos finos em nosso odio , e logo acudio o
Flamengo ao reparo, em não nos sahirem nem entrarem em
barcação nenhuma por dita barra , mandando nella fazer
huma fortaleza com Artilharia e boa guarda trazendo dous
Navios da banda de fora da barra para nos porem em cerco,

“ ) A nova da tornada de Luanda pelos holandezes veio por Antonio


da Fonseca d'Ornelas que chegou a Lisboa em 20 de Dezembro
de 1641 .
Portugal Restaurado por D. Luiz de Menezes, Conde da Ericeira ,
I tomo, pág. 298.
Na primeira consulta de 24-12-1641 aparece a primeira noticia da
dita tomada. Um doutor, Fernão de Matos de Carvalhosa, desembarga
dor dos agravos da casa da suplicação, o qual tinha ido a Luanda e lá
chegado em Agasto de 1630, informou o Conselho Ultramarino de que
conhecia um homem natural de Angola , lá criado, que sabia as linguas
de lá e que tinha militado sempre nas guerras com o gentio; este honem ,
João de Araujo de Azevedo, estava então cá e portanto podia ir lá e
tomar terra no Quanza e ir levar cartas do Rei a Pedro Cezar de Me
nezes, ou a quem governasse na sua ausencia , dizendo que sustentassem
a guerra no Sertão com o inimigo, dando - lhes boas esperanças de que
ele largaria a praça ou sie Iha ganharia com força de socorros; que a
caravela ou navio que fosse levasse o maior socorro de munições e armas
que se pudesse mandar.
O Conselho aprovou este alvitre e o Rei deu em 26-12-1641 o Des
pacho seguinte : « Aprovo o que parece ao Conselho e trate - se logo de
João de Araujo para haver de fazer a Armada e de aprestar a caravela
para que parta em dando o tempo logar ».
Em 2 de Janeiro de 1642 tinha o Rei já mandado aprestar duas cara
velas para levarem a Angola as capitulações das pazes com os Estados
da Holanda .

243
17
e a mesma prevenção pozerão na barra do Bengo para que
opprimido viesse a bons partidos para elles, e de necessidade
se pozesse tudo de baixo de seu dominio . Os primeiros ho
mens que da Conquista vierão a este sitio e Arraial de Gre
gorio Ribeiro a encorporarse com o Governador forão dous
Moradores do Presidio e fortaleza de Cambambe hum por
nome João de Mendonça de Vasconcellos parente do Go
vernador passado Francisco de Vasconcellos da Cunha, e o
outro Manoel Correa de Cadornega, pessoas ambos de Car
lidade, e que havião occupado postos hum de Capitão, e
outro de Alferes, e por se acharem aviados para a guerra do

(Consultas de 24-12-1641, Livro unico de consultas de Serviço, es


tando a 1.' na fl. 136 , v. e a 2.' na fl. 149 ).
As capitulações das pazes eram o tratado de 12 de Junho de 1641,
feito por meio do embaixador Tristão de Mendonça, em Haia .
Talvez por boa fé em que os holandezes largassem Loanda em
sabendo do tratado acima mencionado, visto que tinham tomado Loanda
estando ele já feito, se não tenha aqui ou na Bahia formado um socorro
forte que logo no principio da usurpação de Loanda pelos holandeses
The tirasse esta praça do seu poder. Creio mais que fosse tambem por
falta de dinheiro para se poder aprestar uma boa Armada. Fosse pelo
que fosse, o que é certo é que em 15 de Maio de 1642 ainda estava
para ir pela Bahia para Angola o mencionado João de Araujo de Aze
vedo; levava armas , polvora, balas e corda; ia em uma caravela em
companhia do Governador que ia para a Bahia, Antonio Telles da
Silva .

(Consulta de 15-5-1642 , no Livro citado , fl . 186 , v. ) .


Foi um enormissimo erro não se ter então feito o sacrificio de ter
ido a Loanda um forte socorro para expulsar totalmente de lá os holan
deses. Mas não só não foi agora socorro algum, como os dois que fo
ram , de que adeante falarei em notas, não tiveram força de expulsar os
holandeses de Angola. Só o de Salvador Correia teve felizmente esse
efeito e ainda assim esse socorro não foi tão grande como desejaria ser,
sendo contudo a tempo, pois, se se demorasse mais um mes só que fosse,
Angola ficava nas mãos dos holandeses, como se verá adeante .

244
Sertão sabendo da perda da Cidade, se embarcarão logo em
suas Canoas, e vindo pella Coanza abaixo, tomarão porto
dentro daquelle Rio chamado Quisequili Cambenza e dali
atravessarão por terra por entre o Gentio já pouco fiel, com
suas Armas e Escravos, até este Arrayal onde estava o Go
vernador que folgou de os ver, agradecendo a fineza , e cui
dado com que havião acudido como bons Portuguezés áo
serviço de Sua Magestade e defença da terra .
Vendo o Governador lhe ser necessario fortificarse a
oppozição daquelle inimigo, que o estava na barra do Bengo,
e não ser aquelle sitio de Gregorio Ribeiro capaz para isso,
e sabendo pellos Moradores praticos naquelle Paiz que o
sitio e oiteiro da Igreja da Quilunda era mais superior, e
apartado daquelles Arimos de Moradores que estavão po
voados, e aquella assistencia nelles com Arrayal se destrui
rião, com que nos viria a faltar o sustento, e que junto
áquelle sitio havia huma espaçosa alagoa que chamavão a
Quilumda de quem aquelle oiteiro tomava o nome, fertil de
Pescado, tratou logo o Governador de se mudar para elle
com toda a gente ; mudado que foi tratou das fortificaçoens, e
foi repartindo pellos Moradores a tantas brassas a cada hum ,
assim de trincheira de páo a pique como de cava por fora,
conforme a possibilidade de cada hum, com Baluartes, e
Travezas, tornando Circuito bastante para alojar toda a
gente dentro, o que se fez com muito cuidado em breve
tempo, dando o Governador exemplo obrando com suas
mãos junto com a Infantaria a ir intupindo as trincheiras e
Baluartes de terra e fachina ; com este trabalho e desvelo es
teve tudo feito em breve tempo; e vendo - se sem Artilharia
para sua defença mandou a gente de Cavallo com Infan
taria de escolta com Boys e Carros a hum forte da Cidade
que estava no Alto sobre o forte do Penedo, chamado o
forte dos Lobos por andarem por ali muitos, hum pouco dis
tante da Cidade; e trouxerão de noite duas peças de ferro

245
de bom calibre que ali havia , e nos havião ficado com as
mais, e as trouxerão para o Arrayal, sem serem sentidos
do Flamengo, e distava o Arrayal seis Legoas; com ditas
peças ficou a nossa gente com mais esforço e alento em ve
rem que tinhão já algum modo de defença .
A este Arrayal e fortificação do Oiteiro e Igreja da Qui
lumda havia chegado Antonio Teixeira de Mendonça Capi
tão mór de Cavallos e Cabo de Companhias que com as
duas de sobresallente que estavão no Arrayal da Xila dis
tricto da Capitania mór da Embaca, tinha baixado com muita
guerra preta até á Villa da Victoria de Masangano para
dali incorporado com mais alguns Moradores vir assistir
á guerra do Sertão; e como foi sabedor da perda da Cidade,
e que estava o Governador em campo, marchou com toda
a brevidade com mais de cento e cincoenta homens, gente
toda escolhida e Conquistadores antigos com muita guerra
preta; veyo encontrarse como Governador aquelle sitio , e
vinhão tão deliberados em quererem provar a mão com o
inimigo que pedirão licença ao Governador para darem huma
vista á Cidade, e vendo que aquelle arrojo era sobrado va
lor , os mitigou dizendo que elle posto nos termos em que
estava não tratava mais que da conservação destes Reinos
de Sua Magestade, e não estava em estado de arriscar a
pouca gente que tinha porque se tivesse huma rota de donde
ou por onde havia de ser soccorrido; pois lhe tinha o ini
migo serrado o passo a tudo o que lhe podia entrar de Mar
em fora , tendose Senhoreado das duas Barras, Coanza , e
Bemgo; que se o Flamengo o buscasse em campanha nella
o acharia, que não estava em tempo de experimentar
fortunas.
Com tudo permittio que alguns Soldados praticos com
gente Preta, fossem fazer algumas emboscadas de noite sem
serem sentidos á gente do Flamengo que vinha de madru
gada á Lagoa chamado antigamente dos Elephantes, por

246
virem a ella a beber alguns, e neste tempo tem o nome de
Maianga; tambem por tomar fala, saber com certeza o poder
com que havião vindo a occupar a Cidade, e quem os gover
nava; partidos que forão os valerozos aventureiros aquella
faução chegarão de noite àquellas barrocas que não faltão
por ali; onde sahe o Caminho da Cidade ás Casimas da
Maianga, por de traz do Convento de São Joseph; estando
nas Emboscadas vierão sahindo ao romper da Alva os Fla
mengos do serviço com suas vazilhas ás Costas a buscar
agoa, e porque os Negros que accompanhavão os nossos
Soldados fizerão rumor, sentirão os Flamengos a maranha
com que foi necessario alevantar antes que se fosse todo
peixe pella malha ; com que não ficarão de dentro mais que
dous, os mais forão correndo para a Cidade, dando gritos,
€ alaridos; com elles derão avizo, e logo se ouvirão tocar
caixas e Clarins; os nossos antes que botassem fora algu
mas tropas com quem não podessem ter partido, se vierão
retirando tocando arma ao inimigo, e á sua vista que já
era manhaã clara, ficando o Flamengo em confuzão, pello
que o depois se soube pellos que atraz vierão com outra
estratagema de guerra, que o que traz com sigo são en
ganos, e quem melhor engana , vence as vezes mais, que
com Espada.
Dous Quilambas nossos que são Capitaens de guerra
preta e os que se tem mostrado com os Portuguezes mais
fieis, e nos ajudão nas guerras do Sertão, e delles se fia a
munição, e os mandão carregar pella gente de seu partido,
por cuja cauza são mui odiados do gentio inimigo, e lhes de
sejão tanto mal como á nós outros; estes taes que hum se
chamava Bangobango, e o outro Mulumdo, ambos Negros
de muito valor, que sempre em os trabalhos accompanharão
fielmente, farão a Cidade com os Hollandezes, dizendolhes
que elles erão homens de guerra e Soldados de fortuna, e
Os querião servir, e accompanhar contra os Portuguezes, de

247
quem estavão enfadados e offendidos, pello máo trato . que
lhe davão; que elles tinhão suas Mulheres e filhos ali perto,
e porque elles pretos se receavão de encontrar algum Por
tuguez os accompanhassem alguns , que não era longe
a jornada ; crendo sem crer os Hollandezes que aquillo era
verdade, sahirão alguns com os Quilambas com ordem do
seu Major que os mandava ; sahidos que forão da Praça al
guma distancia, os encaminharão para onde havião deixado
a sua gente escondida; assim como virão os Quilambas seus
Senhores, se forão alevantando donde estavão com suas
Armas nas mãos ficando os Hollandezes assustados, tiverão
tempo os dous esforçados Capitaens de se abraçarem cada
hum com seu Flamengo ou Hollandez que tudo vem a ser
hum ; os de mais se puzerão em fugida defendendo - se, hindo
alguns delles bem empennados e feridos de algumas frechas;
bem amarrados os dous vierão com elles marchando para o
nosso Arrayal , e por não quererem andar matarão hum delles,
e lhe trouxerão a Cabeça ; á vista disto marchou o outro até
© Arrayal.
Por este prisioneiro que os nossos Quilambas trouxerão,
que era Soldado velho de Nação Ingleza , que servia com
outros mais de seu lote a Companhia de Hollanda por suas
pagas, deu noticia ao Governador de tudo o que procurava
saber, como havia aquella Armada sahido de Pernambuco ,
vindo para isso gente de refresco dos Estados de Hollanda,
e como havião feito nova bolsa para a invasão de Angola;
que o General do mar era o Pé de Páo, bem conhecido por
suas emprezas ou roubos; que trouxerão de gente de guerra
dous mil e quinhentos homens em dezoito embarcaçoens, as
mais dellas de força , e que o General que governava em
terra era o Andrezom , pessoa de muita experiencia na guerra ,
e que lhe hia morrendo muita gente , que não estavão muito
contentes do Pais , e que quando a nossa gente fora dar
na gente de Maianga, estivera a gente da Cidade com

248
grande susto , posta em Arma , temendo hia o nosso poder
sobre a Cidade e guarnecerão as trincheiras , e não ouzarão
a botar gente fora a descubrir o campo que tão timidos es
tavão; estas e outras couzas disse aquelle Soldado Inglez,
que os que se apanharão na Maianga , era gente de serviço ,
e não souberão dar razão de nada ; com estas e outras cer
tezas e intelligencias, que tinha o Governador na Cidade ,
e por hum Clerigo de grande coração , por nome Jeronimo
da Fonseca Sarayva que nella entrava e sahia , pello conhe
cimento que tinha com huma Mulher Bodegoneira que la
havia ficado, em cuja Caza tinha pratica com alguns Fran
cezes, e alguns delles que occupavão postos, por onde tinha
o Governador noticia por quanto este esforçado Padre en
trava afouto, por a caza desta Mulher que servia de Bodega,
estar desviada das trincheiras , e a ella não hirem se não os
que erão Catholicos Romanos.
E por estas e outras intelligencias que o Governador ti
nha na Cidade , e lhe darem a entender largaria o Director
Amderson a Cidade, se lhe desse alguma Somma de di
nheiro; com estas noticias mandou huma Embaixada á Ci
dade escrevendo ao dito, que se quizesse que se avistassem
em o sitio do Sequeli , meyo caminho para huma e outra
parte, vindo com huma Companhia de cincoenta homens de
sua guarda que elle levaria outra , e ali fallarião em algum
negocio que estivesse a bem de ambos; elles neste tempo
havia tambem noticia lhe tinha, como dito he , morto muita
gente de doença, e que a nossa gente tinha tambem experi
mentado bem de mortos, em aquelles sitios do Bemgo, e
haviamos tido tambem alguns encontros e quasi os mais dos
dias com o Flamengo da Barra do Bemgo em que sempre
sahimos de ganancia .
Tendose assentado as vistas como dito he em o sitio do
Sequeli, partio o Governador e Capitão Geral Pedro Cezar
de Menezes do seu Arrayal da Quilumda , com alguns prin

249
cipaes Moradores, e os cincoenta homens de sua guarda;
chegado que foi ao sitio aplacado, achou já nelle o Director
Andresom com os cincoenta homens Caravineiros em hum
Batalhão, e com sigo alguns officiaes de Milicia , e os Com
missarios da Companhia da Bolsa, ainda que não embolsarão
muito com a companhia feita em Hollanda para Angola ,
porque lhe não sahirão os interesses a medida do dezejo, e
como a trazião preditado em serem Senhores absolutos des
tes Reinos de Angola, e antes se entendeu tiverão mais per
das do que ganancias, emquanto ao que delles reinos occupa
rão na parte que puderão. Avistados que forão os dous
Generaes Hollandes, e Portugues, houve entre elles muita
saudação e Cortezia discorrendo em diversas materias publi
camente entre as pessoas que entre hum e outro accompa
nhavão , tendo sua Colação e seus Brindes, porque ainda que
o nosso Governador estava falto de todo o Regalo, com tudo
lhe quiz mostrar que lhe sobrava tudo, e que ainda que
estava em Campanha e nos tinhão aferrolhados, lhe não fal
tava o Regalo .
Despois de haverem feito seu Braquefesta ( ) tocou o
Governador na materia que ali o levou aquellas vistas em
lhe largarem a Cidade e Porto de que se havião Senhoreado,
pello que seria elle e os Senhores da Bolsa gratificados de
seu gasto e trabalho; tanto que lhe tocou nesta materia res
pondeu com soberba e altivez como quem estava de melhor
partido, ou como quem se havia demaziado nos Brindes, que
elle entendera quando viera da Cidade aquellas vistas, que
era para pedir passagem para se embarcar com a sua In
fantaria e deixar-lhe aquelles Reinos de que elle estava de

( ) Braquefesta é corrução da palavra Inglesa « breakfasts almoço,


mas que é empregada aqui como lanche, Parece que devia ser holandeza,
pois se tratava de holandeses; mas em holandês não existe esta
palavra .

250
posse , e erão dos Senhores da Companhia dos Estados de
Hollanda ; a estas palavras ditas com tanta altivez e arrogan
cia, se encendeo em colera o nosso General, e lhe disse que
elle fallava por aquelle estilo por lhe parecer estar de me
lhor partido; que se elle se retirara da Praça, lhe não fal
tava calor para a tornar a recuperar, e que onde havia forsa
direito se perdia, que o seu procedimento o tinha mostrado
em Flandes com a sua mesma Nação, e em outras partes
onde havia militado; que se elle o quizesse experimentar
Corpo a Corpo o dezafiava, e lhe daria a entender o muito
que valia, ou com partido igual em Campanha; vendo og
que accompanhavão os dous Generaes com aquellas differen
ças , porque a paixão os não fizesse chegar a algum extremo,
se metterão huns e outros de por -meyo, respondendo o Di
rector Amdersom ao dezafio, disse que elle era mandado
pellos Estados de Hollanda e Senhores da Companhia da
Bolsa a governar esta empreza e gente de guerra della, e
que lhe não permittião os seus Mayores semelhantes deza
fios , que a não ser assim lhe mostraria como para tudo havia
nelle valor; com isto se apartarão, mais dezavindos do que
dantes estavão, hindose o Director para aa Cidade e o Gover
nador para o seu Arrayal .

Assim como chegou o nosso Governador ao seu Arrayal


do Outeiro da Quilumba , alem das tropas que estavão na
fazenda dos Padres da Companhia á opposição do inimigo
fortificado na Barra do Bemgo em a fazenda de Domingos
Fernandes de Pinda sita na boca da dita Barra, onde tinhão
Caza forte e Trincheiras por fora de páo a pique com bas
tante Cava, mandou o Governador como dissemos mais tro
pas com a Capitão Antonio Dias de Macedo filho desta terra
muito bom soldado, e a Estevão de Seixas Tigre, em quem
já fallamos nesta historia , sendo o Almirante já Capitão,
com que se vierão a fazer cinco tropas com as que lá an

251
davão, com Soldados e Moradores da Conquista , e outros
gente pouco veterana, todas ellas a ordem de Gregorio Ri
beiro Morador dos Principaes , que tinha sido Soldado e
Capitão de valor, e como tal se lhe encomendava esta em
preza com ordem de que com ditas tropas andasse bolante,
que haveria nellas Cento e vinte homens , não deixando sahir
fora de suas fortificaçoens aquelle inimigo, tirandolhe a
communicação do gentio, e emparando todas aquellas fa
zendas, e Moradores, que estavão do Arrayal para baixo,
em que tinhão muitos suas Cazas e familias, e a gente preta
que possuhião de Escravos; e andava mais naquelle serviço
e cuidado, a gente que havia de Cavallo para com a guerra
preta fazerem alguma facção com mais presteza.
Disposto isto nesta conformidade foi a nossa gente tendo
muitos encontros com o inimigo Hollandes os mais dos dias,
com que não era ouzado a sahir fora da sua Caza forte e
trincheiras, a tomar naquelles Arimos e fazendas huma folha
verde perdendo em todas as pelejas muita da sua gente, che
gando a nossa de pé e de Cavallo ás suas fortificacoens, e
houve dia que entenderão entrar com elles de coalho em suas
trincheiras, ou as tiverão para melhor dizer, entradas , mas
da Caza forte sustentarão seu partido com valor , por não
serem ali todos degolados, matando e ferindo alguma gente ,
que donde se las dan se las toman . E estas vantagens ti
nhamos tido com tão veteranos Soldados, os quaes vendose
tão acurralados e impedidos da nossa gente , mandarão avizo
ao Director Amdresom , que os mandasse recolher á Cidade
ou lhes mandasse o poder que nella tivesse, para se dezem
penharem das correrias e investidas que os Portuguezes lhes
fazião, não sendo Senhores de sahirem fora de suas forti
ficaçoens, que não estivessem logo sobre elles, com o que
se deliberou o seu General em acudir por sua reputação man
dando da Cidade em Lanchas por mar , por não serem da
nossa gente sentidos, a mayor parte do poder com que se

252
achava, com os Capitaens da Praça de mais valor; chegados
que forão a suas fortificaçoens logo se sentio em o grosso
dos encontros a possibilidade de gente com que estavão, es
perando que houvesse noite escura quando a lua hia no
mayor definamento; assim como virão tempo conveniente a
seu intento, marcharão com todo o silencio pella outra banda
do Rio Bengo por entre hum mateval fechado, mandando
primeiro espiar o lugar certo onde as nossas tropas estavão
por Sova traydor morador naquella barra de Bengo, que
cuidavamos era fiel , por nome Mani-Gango, e elle jugava
a huma mão e á outra ; este entrando onde estava a nossa
gente, vendo tudo disse ao inimigo Hollandes a paragem e
modo com que a nossa gente estava, com que veyo mar
chando com pouco rumor incuberto com as sombras da noite,
e do mateval ; com tudo tinha a nossa gente huma sentinella
perdida, que bem perdida foi por culpa do Cabo mayor, na
outra banda do Rio, que levava pouca agoa por ser tempo
de seca , e se passar com agca por meya perna, veyo o Cabo
da Sentinella que era hum homem Serralheiro, natural da
Ilha de São Thomé , que em este tempo não exercitava se
não o officio de Soldado, e deu avizo ao Cabo em como sentia
rumor no mateval , que parecia ser o inimigo; mandou o
Cabo mayor ao da sentinella que se certificasse bem se era
o Flamengo ou alguma reprezentação de medo; tornou a vir
o pobre Cabo e vindo outra vez com brevidade disse que
era o inimigo que vinha marchando, em que não havia du
vida; tornou a mandar que se certificasse bem , e que quando
viesse chegando tocasse Arma; e se viesse retirando com os
mais companheiros; e tendo todos estes avizos não deu parte
de nada aos mais Cabos, para estarem prevenidos, e com
corda aceza ou se mudaram para humas Cavinas de terra
que estavão perto, e ficára aquelle inimigo frustado com a
sua empreza , e sahida dando em vão em huma parte que
buscava preditada, e achar a nossa gente em outra de mão

253
posta , com que lhe ficariam frustados seus intentos; mas o
que há de ser tem muita força; foi a sentinella ou Cabo della
terceira vez e ficou perdida por huma vez na mão do inimigo,
e logo degolado com os mais Companheiros, que deu nelles
tão de supito que não tiverão tempo de desparar e tocar
Arma, com que deu tambem na nossa gente que dormia ,
como quem não sabia de nada, e nos forão matando alguma
gente de mais valor Moradores e Soldados da Conquista,
que quizerão ter mão, que os bizonhos valerão - se dos pés;
com o que foi amanhecendo, e se forão incorporando alguns
dos Cabos Capitaens das tropas com seus Officiaes, e al
guns Moradores da Conquista Soldados velhos, hindose re
tirando em ordem com Cara ao inimigo, e como erão bons
Espingardeiros forão fazendo damno ao Flamengo, que o
não levou tão a seu salvo , não ficando do partido com me
nos perda da que os nossos; estes Cabos e pouca gente que
se ajuntou, com os homens de Cavallo foi cauza daquelle
inimigo não degolar naquella occazião toda a nossa gente
das tropas que como bizonho fugio; o accidente foi terrivel
que em parte os disculpa, e o inimigo não deixou de ficar
com os narizes mais bem quebrados .
Chegando esta nova ao Arrayal tocou o Governador logo
a Rebate, e sahio precipitado pellas trincheiras fora em huma
Mula que tinha de andadura, dizendo que quem o quizesse
accompanhar o accompanhasse; os que se prezavão de Sol
dados o seguirão, hindo pello caminho recolhendo a gente
do destroço, e foi descendo com ella, e com a que o seguio
até o sitio onde foi a Rota , e ainda deu vista do inimigo, mas
este não quiz mais molho , e se foi mais que de passo mar
chando e recolhendose a suas trincheiras e Caza forte, e por
mais que o Governador fez diligencia pellos deter mandan
dolhe tocar os instrumentos bellicos, como quem os deza
fiava não derão por isso.
Se algum Politico reparar no modo do escrever do Au

254
tor dirá a isso , ainda que pobre Soldado, o que disse o Ma
riscal de Biron .

Estos son mis disvarios


perdonad el dezenfado
que yo , como soi Soldado ,
gasto mui pocas razones .

Esta desculpa accompanha ao Autor desta historia como


tem dito po principio na primeira parte ao pio Leitor.

255
CAPITULO NONO DA SEGUNDA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS EM O GOVERNO DE
PEDRO CEZAR DE MENEZES .

Estando o Governador naquelle sitio onde foi o desba


rato da nossa gente até quasi noite sustentando o Campo,
se veyo recolhendo com sua gente para o Arrayal, onde ha
via feito muita prevenção de farinha de guerra, de que hia
danda Ração á Infantaria, e a gente pobre retirada , dando
The conduto de peixe, pescado todos os dias naquella espa
çoza e fertil Lagoa da Quilunda, em que se pescava com
tarrafas e Cazaculas ambundas , e alguma rede de arrasto
cantidade de hum peixe chamados Cacussus que são como
Bogas mais largos, e algumas chopas, pelados, e esquiloens,
e gumgues, (* ) que são peixes desta terra de Angola, e de
quando em quando dava Ração de Vaca de algumas Rezes
que davão os Moradores para isso; desta sorte e com esta
ordem hia o nosso General sustentando a sua gente ; fruta
não faltava de Bananas e misofos, Laranjas e Limas e Ana
nazes , Goaivas, e outras frutas da terra, mas este Regalo não
era tão geral , e vendo a muita gente que naquelle sitio mor
ria, que havia dia de seis e mais pessoas enterradas naquella
Igreja, e alem disso estar aquelle Arrayal mettido em hum
sacco, onde o inimigo nos podia tomar as Costas, e não estar
Senhor de suas acçoens, para tudo aquillo que podesse
succeder, e juntamente tambem ter aquelle Arrayal hum
grande padrasto, por onde podia ser offendido , e tendo in
formação que havia mais para cima hum sitio mais eminente
sem padrasto nenhum , só com huma entrada e pellas mais

☺ Ngüingui, bagre.

256
partes inexpugnavel, onde tinha sua fazenda da outra
banda do Rio, hum Morador honrado de Cabedal, que seu
nome era Antonio Vieira , e nesta banda de cá tinha suas
Cazas, tratou o Governador accompanhado de alguns Mo
radores hilo ver pessoalmente como foi, e como o achasse
conveniente determinou de passar o Arrayal para elle, em
que mandou primeiro fazer Cazas, para sy, e para o bom
do Prelado, Quarteis para a Infantaria , e huma Cova subter
ranea para se metter a Munição para estar livre de algum
incendio, que como todas as Cazas erão de Soasos e palha
eo Recinto das trincheiras não muito largo em razão do
terreno, hera necessaria toda a prevenção na polvora pois
não havia então onde nos podessemos soccorrer de outra,
a qual muita della havião dado os Moradores; mandou tam
bem o Governador passar palavra a todos os Moradores
que estavão espalhados por suas fazendas com suas familias
se recolhessem todos ao Arrayal , onde mandassem fazer suas
Cazas para se recolherem principalmente os que se achavão
do Arrayal para baixo, que não estivessem expostos as Ca
lamidades do Flamengo, repartindo por todos conforme o
Chão e familia de cada hum .
Os primeiros que derão exemplo forão os Reverendos
Padres da Companhia de Jesus, largando sua vistoza fa
zenda para se virem recolher em huma Xoupana de palha ,
mostrandose em tudo sempre mui zelozos do Real serviço
de Deos e del Rey, accompanhando em aquelles trabalhos
e Calamidades ao Governador, assistindo a tantas mortes e
doenças, juntos com aquelle virtuozo Prelado, servindo de
Consolação aos affligidos, e era tanto o amor que todos em
geral tinhão ao Bispo que quando forão os avizos para o
Reino ou Brazil intentou de ir nelles , só afim de reprezentar
a Sua Magestade o estado em que se achavão as couzas
destes Reinos; e das suas affligidas Ovelhas, para que man
dasse com brevidade livralas de tantos trabalhos e molestias

257
com que as via estar padecendo com grande magoa de seu
Coração; o que sabido pellos Moradores se lhe forão botar
aos pés pedindolhe com muitas Lagrimas os não desem
parasse em tamanhas miserias , que a sua prezenca era a
consolação que tinhão, com o que cedeo, lastimado da ten
ção que tinha porque de huns era Compadre, e de outros
amigo, e a todos amava como a filhos no amor que geral
mente tinha .
Tendose fabricado as Cazas em o novo sitio do Arrayal
de Antonio Vieira assim chamado, passou o Governador
para elle com a sua Infantaria e Moradores que sempre o
accompanharão, em companhia do Prelado, Vigario geral,
Cleresia e Religioens; chegado que foi d'esta (* ) para o dito
sitio, tratou com toda a brevidade da fortificação como o
tempo em que se achava o pedia , a qual repartio pellos Mo
radores pello mesmo estilo da que haviamos deixado, feita
toda em Cinza , por se não servir della os nossos inimigos ,
com baluartes, travezes, e Cava por fora, a qual não pode
ser tão funda por falta de ferramentas, e haver muita pe
dra que romper; fez - se como se pode, fazendo - se naquella
entrada que tinha aquelle sitio hum baluarte de mayor gran
deza e altura , todo de páo a pique e fachina , cuberto por
cima , em que assentou as duas peças de Artilharia , furtadas
em a Cidade como dito he , que não faz muito escrupulo a
conciencia furtar huma pessoa do que foi seu ; tendo feito
a fortificação, e arranchados os Moradores e Infantaria que
couberão ; alguma ficou por fora das trincheiras com suas
Cazas, e Barracas, hum pouco afastados, em que entravão
os Religiozos de São Joseph com a Igreja em que dizião
Missa e Caza em que moravão; o Bispo e Clerezia tinhão
Igreja dentro da fortificação, como tambem os Religiozas
da Companhia de Jesus .

A da Quilunda .

258
Neste novo Arrayal estando em Conselho o Prelado e
Officiaes da Camara Cidadoens e Moradores propozerão
algumas pessoas mais intelligentes das couzas desta terra ,
em como havia Negros encantadores que elles mandarião
buscar, para que em a Cidade botassem Tigres, Onças, e
Leoens, que matassem a muitos dos Hollandezes, ao que res
pondeo o virtuozo Bispo que não se podia fazer, que não
era guerra limpa, se não muito suja , pois havia de ser feita
por arte diabolica que não convinha.
Estando tudo na conformidade dita , por que não ficas
sem aquellas fazendas dali para baixo sem algum reparo,
ou emparo, que ainda tinhão gente preta dos Moradores da
Cidade, e muitas farinhas plantadas e outros mantimentos,
que erão necessarios para o sustento da gente daquelle
Arrayal , formou o Governador duas tropas com dous Ca
pitaens Soldados velhos e Conquistadores antigos, hum por
nome Leonardo Pereira, e o outro Domingos Dias da Silva,
com gente Soldados de bom pé, e antigos no serviço Real ,
e lhe ordenou andassem bolantes, dando favor aquellas fa
zendas, picando ao inimigo que andasse desmandado fora
de suas fortificaçoens, e que não tivessem paragem certa
onde o Flamengo os podesse buscar, não lhe succedesse o
que ao outro Cabo, que por exeder a ordem fora roto como
se vio .
Prevenio tambem em o sitio do Sequeli , caminho que vem
por terra da Cidade, que fossem dous Moradores possantes
de Escravos, de oito em oito dias, huns hidos, e outros vin
dos , que servissem de Atalayas assim ao inimigo da Cidade
como ao Gentio da terra, que não tivessem communicação
com o Flamengo, e tambem para que não passasse nenhuma
pessoa do Arrayal para a Cidade, tendo dita assistencia em
sitio Alto donde se descubrisse tudo .
Succedeo neste tempo que hum frances Boticario que
havia com os Portuguezes e sua botica assistido muitos annos

259
18
na Cidade da Loanda, o qual se hia passando para o Fla
menga; por estas vigias do Sequeli foi apanhado e trazido
ao Arrayal ao Governador, o qual, por este homem haver
encorrido no Bando de pena de morte aquem se mettesse
com o inimigo, mandou nelle para exemplo executar a Lei,
e lhe mandou dar garrote: estando posto no Suplicio se que
brarão algumas cordas sem o poderem afogar, até que de
sabrochado o Gibão que vestido tinha, se lhe achou hum
Bemtinho de N. Sra do Carmo, tirado fóra o afogarão com
garrote com facilidade, sem mais quebrar a corda , o que
despois de feita a execução sabido pello Governador ficou
com pezar de lhe não fazerem a saber, que talvez por aquella
maravilha que a Senhora obrava em favor daquelle seu de
voto lhe otorgara a vida.
Em a fortaleza da Enbaca estava neste tempo por Ca
pitão mór daquella Capitania Antonio de Abreu de Miranda
pessoa nobre Cavalleiro fidalgo da Caza de Sua Magestade
Conquistador dos mais antigos, e muito intelligente das cou
zas desta terra que lhe não levava nisso ventagem o mais
previsto filho della ; e como pessoa de tanta experiencia es
creveu ao Governador algumas advertencias acerca de como
se havia de haver em semelhante aperto com o Gentio destes
Reinos, dizendo que agora era o tempo em que com elles se
havia Sua Senhoria de mostrar mais severo e justiceiro com
aquelles que delinquissem e faltassem á fé e fedelidade que
devião a Vassallos del Rey Nosso Senhor, e o que fizesse
o contrario pagasse logo seu erro com a segura nos pes
coços, porque este Gentio mais que outra Nação nenhuma
era de vive quem vence, e não temião como Negros
se não o Castigo, e o açoute , como succedeo aos Roma
nos com os Libertinos que o que não poderão obrar contra
elles com as Armas obrarão os azurragues com que os Cas
tigavão e açoutavão; que só desta sorte he que se tinhão con
servado com elles os Governadores e Conquistadores antigos,

260
e com isso sustentando o ganhando pellas armas nestes Rei
nos. Tendo estes documentos de pessoa tão versada nas cou
zas de Angola lhe veyo avizo aa Governador em como hum
Sova por nome Namboa Calombe, distante do Arrayal para
o Sertão algumas seis Legoas, Confederado com outros So
vas seus Comarcõens, tinhão feito Quilombo com ajunta
mento de muito gentio , todos Vasallos da Coroa de Por
tugal, á nossa opposição já communicados com o Flamengo;
vendo o Governador ser couza forçoza acudir a semelhante
movimento porque não entendesse aquelle gentio, que por
ter a Nação aquelle barbilho de Flamengo lhes faltavão
mãos, para seu castigo, com este presuposto mandou ao Ca
pitão mór da gente de guerra Antonio Bruto sahisse com
poder bastante de Moradores e Soldados Baquianos aquella
empreza com a possibilidade que bastasse com que ficasse
no Arrayal a guarnição necessaria , pello que podia succeder,
hindo com toda a presteza castigar aquelles Sovas alevan
tados á voz do inimigo Hollandes.
O que fez aquelle experta e valente Capitão mór le
vando com sigo a gente que lhe pareceo bastante para aquella
empreza com Capitaens da Conquista, que havião vindo com
o Capitão mór de Cavallos e Cabo de companhias Antonio
Teixeira de Mendonça como dito he , hindo exercendo o
seu posto com a gente que havia de Cavallo e guerra preta,
que em sua Companhia havia vindo de Masangano, e En
baca; com esta preparação sahirão do Arrayal Rio Zenza
acima , que assim chamão ao Rio Bemgo no Sertão, em de
manda do Quilombo dos alevantados; Chegados que forão
ás terras de Namboa Calombe houve de parte a parte gran
dissima rezistencia, até que por fim vendo, e experimen
tando o que não esperavão , parecendolhe não teriamos pos
sibilidade para emprender esta faução se pozerão em fu
gida e foi a nossa gente fazendo nelles grande degolação
com palavra passada pello Capitão mór se não desse vida

261
a pessoa nenhuma; e foi tal a degolação que nelles se fez,
que mandou o Capitão mór fazer hum xalo ou gyrão alto ,
em que mandou pôr toda aquella cantidade de Cabeças,
para que ficasse ali por memoria e espelho em que se vissem
aquelles Gentios Traydores e desleaes; e esta foi huma das
couzas que em nossas mizerias nos deu muita reputação, com
que se não dezaforassem tanto em nosso odio .
No tempo que a nossa guerra marchou do nosso Arrayal
a castigar aquelles Rebeldes, tendo elles disso noticia , avi
zarão pellos ares ao Flamengo, como tinhamos o poder fora ,
e que hia em sua demanda , pedindolhe os soccorressem ;
vendo o inimigo a occazião nas mãos, quiz ver se podia go
zar della , fazendo huma entepreza no nosso Arrayal , ou ao
menos botarmos fora daquelle pais, que tanto o dezejavão
dezempedido da nossa assistencia nelle, para sua recrea
ção e se gozarem de seus frutos; com este pretexto sahirão,
com ajuda da gente da Cidade, da barra do Bemgo por não
virem pella vargea beira Rio, onde andavão as nossas Tro
pas bolantes, que lhes podião fazer em suas espessuras al
gumas emboscadas, ou ao menos darem avizo ao nosso
Arrayal; a esse respeito cortarão pellos Altos por detraz
da Lagoa da Quilumda por caminho descuberto , e vierão
a sahir por cima do nosso Arrayal , como quem nos queria
tomar as Costas, e impedir o passo da retirada ; no Arrayal
não tinha havido avizo , pellos da vigia do Sequeli estarem
distantes, os das tropas os não sentirão, por tomarem ca
minho desviado, com que o inimigo á huma vista se descu
brio do mesmo Arrayal o seu poder, que reprezentava a
formatura de seu Esquadrão muito bastante para a nossa
possibilidade; vendo o Governador aquelle inimigo á vista ,
se preparou com muito valor á defença de seu alojamento,
mandando recolher a toda a gente, que alojava ( *) por fora ,

C ) Acampava .

262
dentro; mandando dar fogo a todas as Cazas e palhoças
que podião impedir o maneo das armas, guarnecendo as
trincheiras de gente, animando a todos á defensa, mandando
recado ao C itão mór da guerra que com todo o cuidado
se recolhesse pella outra banda do Rio , por se não encon
trar com o Flamengo, e mandou tambem enramar as duas
peças que no baluarte da entrada estavão carregadas de
bala miuda , para que na avançada experimentasse seu dano;
vendo o inimigo a prevenção e preparação da queima, feita
por fora para dezafrontar as Cortinas, e que quem fazia
aquillo esperava o Combate; para se dezenganar do que
havia , sahio do Esquadrão huma manga de alguns oitenta
homens, e vierão se chegando a reconhecer o nosso Arrayal
espalhados, vendo -o, por onde lhe dava lugar o terreno;
o Governador deu ordem que nenhum bolisse com sigo , por
não espantar a Caça que o vinha a buscar; alguns quizerão
fazer seus tiros com Espingardas compridas que não quiz
dar licença para isso ; outros dizião lhe atirassem com a Ar
tilharia tão pouco , dizendo que se o inimigo o reconhecia
para ver por onde o havia de acometter, que não podia fal
tar o combate, e que nelle mostrarião seu valor e esforço;
que atirar ao ar, de que servia , que elle e elles ali estavão
a pé quedo esperando por quem os vinha demandar; que
se o seu partido não fora tão desigual, que elle tivera já
feito seu dever, em Campanha raza, com elles, que era ser
viço del Rey sustentarlhe e conservarlhe o seu Reino, e não
o pôr no tombo de hum dado; que elle aventurava mais
que o inimigo, porque elle perdendo perdia tudo, pois não
tinha por onde lhe vir para se refazer, e o Flamengo per
dendo huma e outra occazião , tinhão quem os soccorresse ,
o que a elle lhe faltava.
Vendo o inimigo naquelle reconhecimento que fez a
nossa gente tão firme e socegada, se foi recolhendo a manga
a seu Esquadrão; e entendendo o Governador viesse com

203 .
todo o poder marchando a investir, se foi retrahindo para
traz; vendo se hia retirando sahirão pellas portas das trin
cheiras alguma da nossa gente de borbotão, dizendo foge
o inimigo; sahio o Governador em a sua Mula tendo mão
na gente se não desmandasse, e se hia mettendo em huma
Emboscada que o Flamengo descubridor havia deixado
atraz, já antevendo como Soldado o que havia de fazer a
nossa gente do Arrayal ; e se não he hum homem ourives
por nome Francisco da Costa muito bom Soldado que des
cubrio a Embuscada, e com huma Espingarda que levava
nas mãos lhe atirou , com que a fez levantar e descubrir,
estava arriscado o nosso Governador a ser prezo ou morto,
que alem de ter mão, e retirar a sua gente o levava o or
gulho de Soldado a ver a ordem e forma com que o Pla
mengo marchava; dous homens de a Cavallo com alguns
Negros derão ao inimigo alguma fadiga , escaramucandolhe
na Retaguarda, despedindo os Negros algumas frechas, e
elles sem darem rumor de sy; nisto se foi fechando a noite;
e elles a huma vista bem desviados, mettendose aquella es
paçoza Lagoa da Quilumda de por meyo , onde dormirão
aquella noite; o Capitão mór da guerra havia chegado da
outra banda do Rio , e tinha mandado avizo como ali tinha
chegado victoriozo, da guerra que fez a Namboa Calombe,
e aos mais Rebeldes .
As Vigias dos dous Moradores do Sequeli chegarão
aquella noite com muito trabalho, e muito molhados, por
virem por pantanos e alagadissos, por se desviarem do
inimigo, e quasi estiverão chegados ao seu poder, disserão
então ao Governador como havia o Flamengo sahido da
barra do Bengo, e que elles mandando por seus Negros bus
car agoa ao Rio Bemgo para beberem virão a trilha do ini
migo, e souberão de outro Negro que encontrarão era o
Flamengo que tinha passado pellos Altos da Lagoa da Qui.
lumda para o Arrayal, e que da Cidade não havia sahido ,

267
salvo pello mar ; estes Moradores erão seus nomes Manoel
Correia de Cadornega e Diogo Rodrigues de Nobrega; com
a vinda e cbegada do Capitão mór da guerra se entendeo
mandasse o Governador sahir ao Caminho aquelle inimigo,
mas como elle tratava da conservação do Reino, lhe não pa
receo arriscar a pouca gente que tinha; antes de amanhecer
se poz o Flamengo em marcha, hindo aquelles dous homens
de Cavallo dandolhe algum cuidado, com alguns Negros
que levavão, e toda aquella noite estiverão dezinquietos pos
tos em Arma , e se forão retirando em ordem mas com muita
pressa , até se recolherem em suas estancias da Barra do
Bemgo; e as nossas duas tropas ao passar, embuscados nos
Bananaes , lhe forão dando suas cargas na Retaguarda, e
lhe fizerão algum damno .
Do primeiro Arrayal quando a Barra da Coanza ainda
não estava tomada do inimigo se forão delle algumas pessoas
extravagantes, cuidando não fossem sentidos, vendo o muito
que padecião assim no máo trato de passar, como de acha
ques e doenças que cauzava aquelle máo , se bem aprazivel,
sitio; caminharão aquella travecia de caminho, em busca do
Rio Coanza, onde havião comprado hum Pataxo de cuberta
para se hirem nelle para o Brazil , sahindo pella dita Barra
fora; do que foi avizado o Governador da sua sahida do
Arrayal, e da compra que havião feito, e para que não con
seguissem o que intentavão mandou o Governador logo or
dem ao Capitão e Cabo da gente da Coanza Fernando Ro
drigues, que logo descesse do sitio onde estava, e tinha seu
allojamento , ao de Calumbo e tomasse aquelle Pataxo ti
randolhe o Leme e as Vellas, porque não conseguisse
aquella gente o seu intento ; chegada dita ordem , veyo logo
aquelle Capitão com todo o cuidado aonde estava aquelle
Pataxo, e tomandolhe as Vellas e tirandolhe o leme á vista
daquella gente retirada do Arrayal, hia levando huma e
outra couza com sigo para o sitio onde rezidia com seu

265
Quilombo a oppozição do Gentio da Provincia da Quisama;
hindo já para cima chegou outra ordem com Pedro Barreiros,
que tambem assistia naquelle sitio por Capitão á ordem da
quelle Cabo, trazendo em sua Companhia alguns Soldados,
em que entrava hum chamado de Alcunha o Alma porque
tinha pouca e era grande Caçador e mui esforçado soldado :
manifestou o Capitão ao Cabo a nova ordem que trazia a
qual continha, que levassem o mesmo Pataxo Coanza acima;
disselhe aquelle Cabo que elle trazia com sigo o Leme e
Vellas com que ficava impossibilitado de poder fazer via
gem que parecia que bastava; a que replicou aquelle Capi
tão que desse cumprimento á ordem do General em levar o
Pataxo Rio acima; com isto tornou o Cabo para baixo com
os que vinhão com a nova ordem, chegados ao Porto de Ca
lumbo onde dito Pataxo estava e gente; vendo -os hir para
lá , e sabendo era para levarem a Embarcação, pegou Manoel
Gonsalves Cidrão, Capitão que era dos Extravagantes em
a Cidade , em hum Arcabuz para defender o Pataxo, que
não levassem ; a que aquelle soldado o Alma porque a
não tinha , que boa fosse, e começou a desparar as suas
Espingardas, e o Capitão Barreiros, de Calidade que logo
matarão o Capitão Cidrão, e ao Licenciado João Lopes, e
a outro homem Carpinteiro que estava mettido em huma
Cazeta de palha doente, que não era de partido dos mais :
e por mais que o Cabo Fernão Rodrigues quiz evitar aquelle
dezasocego não pode, tendo elles a culpa em se quererem
defender, e que lhe não levassem o Pataxo do Porto de Ca
lumbo em que estava; o Licenciado foi sentida a sua morte
porque era bom Medico , e muito previsto nas doenças
desta terra , com irmãos pessoas autorizadas; e feito avizo
ao Governador do succedido, o houve assim por bem , o
que se havia obrado, a respeito do máo exemplo que darião
aos mais, hindose por aquelle estilo desmantelando o Arrayal
que o Governador dezejava conservar por serviço de Sua

266
Magestade e conservação de seu Reino, sem embargo das
mizerias, e necessidades que já neste tempo padecião, com
doenças, faltos do regalo, e só tinhão huma pequena medida
de farinha de guerra por ração, e hum piqueno conduto de
Carne , ou peixe que era o mais ordinario , que naquella tão
dilatada Lagoa da Quilumda se pescava todos os dias.
Estando O Governador dispondo as couzas da conser
vação destes Reinos em boa forma, como do seu valor e
fidalguia se esperava , lhe veyo nova certa por intelligencia
que trazia sempre em a Cidade, em como havia chegado
hum grande soccorro de gente ao Flamengo, assim para
suprir a falta que tinha de gente por haverem perdido muita,
assim nos encontros de guerra com os Portuguezes, como
a que havia gastado a calamidade do Clima , com doenças
assim em a Cidade como nas duas Barras do Bemgo e
Coamza , e tambem para com poder mais grosso sahir em
campanha a renderem o nosso Arrayal; que assim ordena
vão os Senhores dos Estados de Hollanda, como os da Com
panhia da Bolsa, vendo o pouco lucro que até então tinhão
tido, e o esperavão ter assenhoreandose do Reino e seus
Moradores, com renderem o Governador em o Arrayal em
que estava fortificado, que elles havião já esplorado e vindo
delle com vergonha , sem fazerem effeito nenhum ; o que
tambem os acendia á vingança e assogeitarem -no, para fi
carem Senhores do Campo, e de tudo o mais destes Rei
nos , para o que se forão preparando, avizando a el Rey de
Congo os mandasse assistir com sua guerra , e que man
dasse ao Governador da Ilha Dom Christovão Corte Real ,
que com todos os Mixiloandas de seu partido os accompa
nhassem para de huma vez se verem livres daquelle estorvo
e Empesilho dos Portuguezes, e seu Governador que os
não deixava communicar com elle Rei do Congo como elles
dezejavão.
Tendo aquelle Rey de Congo nosso bom Amigo, cha

267
mado Irmão em Armas del Rey Nosso Senhor, avizo do
referido, vindo - lhe a medida do seu dezejo, mandou de seu
Reino a muitos de seus Vassallos em ajuda daquelle seu
novo Amigo, mas de Lei contraria inimigos da fé Catholica
e sua Religião, mandando ordem ao Governador da Ilha
da Loanda, então sua tributaria , e aprezentado por aquelle
Rey àquelle Governo, accompanhasse ao Flamengo, fa
zendo tudo o que por elles lhes fosse mandado, afim de
nossa ruina, e de acabar a Nação Portugueza, que lhe ha
via servido tantas vezes de seu refugio.
Estando o Flamengo com toda esta prevenção a ponto
de sahir da Cidade, foi avizado o Governador com certeza
de tudo , e vendo elle o estado em que se achava , communi
cou tudo com o Bispo virtuozo, e grande Portugues e ser
vidor de Sua Magestade, com os Prelados das Religioens,
que com elle se achavão, Collegio e S. Joseph , com os que
havião sido da Camara da Cidade, homens de postos mayo
res, Capitão mór da guerra Antonio Bruto, Sargento mór
Manoel de Medela, Capitão mór de Cavallos e Cabo de
Companhias Antonio Teixeira de Mendonça, e outros Ci
dadoens e Moradores principaes, manifestando em Conselho
perante todos o avizo que tinha em como o inimigo, Fla
mengo, vinha em demanda do Arrayal, com ordem de seus
Mayores, com gente superior pello soccorro que para esse
effeito lhes havião mandado com a Confederação del Rey
de Congo e Governador da Ilha da Loanda e o estado em
que se achava aquelle Arrayal com gente mui diminuta em
razão da que havia gasto o Clima e hostilidade da guerra ,
as trincheiras do Arrayal mui debeis para poderem rezistir
a muitos Combates, a Cava pouco funda por falta de apa
relho para se fundar e romper a pedra, as muniçoens poucas
para lavorar e ter mão em muitas investidas, as Cazas do
alojamento muito apinhadas de madeira e palha, que com
huma alcancia ou Granada posto fogo, de necessidade se

268
havião de largar as Cortinas, por estarem os Quarteis e Ca
zas dos Moradores chegadas a ellas, por não dar mais lu
gar o terreno, quando se aquartelou, que só aquella forti
ficação servia para hum bom ou máo quartel, se elles não
cumprissem como costumavão o capitulado, e mais sendo
isto em partes tão remotas da nossa Europa, o que não po
dia nunca ser de reputação nem proveito a Vassallos de
hum Rey tão Catholico, pois a Religião que seguia aquella
Nação era tão differente da nossa , tão abominada delles,
chamandonos Papistas, por seguirmos a Lei de Deos Ca
tholica Romana ; e que assim lhe parecia, por se não verem
em semelhantes perturbaçoens, assim aos bens da Alma como
do Corpo, se retirassem a a Villa da Victoria de Masangano.
para que assim alongados pello Sertão dentro, se podessem
conservar, na fé e lealdade de Deos e del Rey, até elle acudir
com seu braço poderozo a estes seus Reinos e Conquistas,
e a tão Leaes como fieis Vassallos.
Fez esta falla o prudente e leal Governador com tanta
força e audacia de palavras, mostrando tudo tão evidente,
que não houve quem discrepasse huma minima; vendo po
rem que por serviço de seu Rey e Conservação de seus Rei
nos se hião expôr ao rigor do Sertão, e de seus agrestes
caminhos, invazoens do Gentio inimigo, que se deixavão hum
atraz , tinbão tantos por diante, a que os esforçou aquelle
zeloso Prelado, que mais valia morrerem entre tantas as
perezas como Catholicos Romanos, de que viverem entre
Hereges chamados Catholicos Apostolicos, onde vissem ul
trajadas suas familias , e tal vez misturado o Sangue Christão
com o Hereziarco; que Deos havia de acudir em tanta afflic
ção, e el Rey nosso Senhor Dom João o Quarto, e se não
havia de esquecer da recuperação destes seus Reinos e
Vassallos tão fieis, por mais occupaçoens de guerra que
tivesse com Castella, e que disso os podia certificar; com
isto fai o Governador dando ordem á sua retirada, man

269
dando em algumas Lanchas embarcar alguns doentes que
não podia comboyar por terra , para hirem pello Bengo
acima, até onde podessem chegar, em razão das secas que
era tempo de casibo, que chamão em Angola ao Verão;
mandou cravar e enterrar as duas peças de Artilharia, visto
se não poder comboyar, por não haver carro mato , que a
penas havia carretas para estarem as duas peças cavalgadas:
carros com Boys não podião passar por terras tão agrestes
de tantas barrocas, e tão prolongadas. Repartidas as muni
çoens pellos Moradores, e pellos nossos Quilambas Capi
taens da guerra preta, com seu Capitão da guerra preta
Diogo Mendes que os governava , por ser morto Antonio
Dias Musumgo de quem fizemos menção; estando tudo já
da banda de fora a ponto de partir, mandou o Governador
dar fogo a todo o Arrayal , trincheiras e baluartes , e poz - se
em marcha ,
Tem esta nossa retirada parecença a que contão as nos
sas historias Brazilicas que despois de se Senhoriar o Fla
mengo de nosso Arrayal de Pernam -merim , se retirava o
Conde de Bañolo , que em toda a parte houve este castigo
e oppressão, por huma mesma Nação, para huma distan
cia chamada as Lagoas, por não poder sustentar a campa
nha de Pernambuco, sendo tão grande Soldado, e nem ainda
no retiro das Alagoas, hindose dellas com sua gente para as
abas da Cidade da Bahia , e Torre de Garcia da Villa, donde
ajudou a defender a Cidade da Bahia da Armada do Conde
de Nassau, governando aquelle Estado Pedro da Silva; mas
a nossa retirada foi mais sublimada, porque se sustencou
sete annos sem os inimigos Belgas nos poderem invadir, e
render, avistandonos algumas vezes , como ao diante se hirá
relatar.

270
CAPITULO PRIMEIRO DA TERCEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS, ESCRITAS POR ANTO
NIO DE OLIVEIRA DE CADORNEGA , CAPITAO
REFORMADO, E CIDADAO DA CIDADE DE SÃO
PAULO DA ASSUMPÇÃO NATURAL DE VILLA
VIÇOZA.

Posto em marcha o Governador e Capitão Geral Pedro


Cezar de Menezes, passou pello esteiro da Lagoa da Qui
lumda, e foi pella Igreja de Icolo e seu Sova do mesmo nome,
a dormir aquella noite as terras do Sova Quiomzo, levando
tudo por diante, deixando só atraz a gente da Cavallo, com
seu Capitão mór para servirem de Atalayas, porque tinha
o Governador por noticia havia chegado o inimigo Hollandez
ao sitio do nosso Arrayal, e viera ali alojar aquella noite;
nisto chegarão os de Cavallo com avizo que o inimigo vinha
marchando a toda a pressa em seu seguimento ; o que visto
pello Governador mandou alevantar ante manhãa a toda a
gente e ordenou ao Capitão mór de Cavallos viessem na
Retaguarda atalayando o dezignio daquelle inimigo, o não
encontrasse em Campanha aberta dezapercebido; e veyo
marchando com sua Infantaria na Retaguarda, levando toda
a Bagagem de Moradores com suas familias por diante ; com
muito trabalho e fadiga da gente feminina, principalmente
das que não tinhão Escravos, marchando a pé por aquelles
Matos, e xaraviscaes faltos até da Consolação de huma pe
quena de agoa para se refrescarem , hindo com os mesmos
discommodos e mais ainda do que aquelles com que havião
sahido da Cidade; mas erão peccados que havião de purgar.
Estando descançando da marcha e dos rigores do sol, em
huma Povoação ou Libata chamada de Francisco Mendes

271
de Carvalho, de gente forra , a horas do meyo dia, man
dou avizo o Capitão mór de Cavallos em como vinha o ini
migo Flamengo subindo o Outeiro de Icolo chamado Bin
dache. (' ) de onde se descubria todas aquellas Vargeas para
baixo; tambem chegarão neste sitio tres Soldados escapadas
das Lanchas que pello Rio acima vinhão, e derão noticia
em como o inimigo, com alguma da sua guerra preta, ti
nhão degolado os doentes que nas Lanchas vinhão, e rou
bado as couzas de mais valor, e havião botado ao Rio os
Cartorios des Tabellioens da Cidade, e os Livros, e mais
Papeis do Senado da Camara, e outras couzas que lhe não
tinhão serventia , em que se perderão muitas noticias das
couzas destes Reinos, e se os havião escapado ou salvado
da Cidade, em esta occazião vierão a ter seu fim, e que elles
mettidos por huns Bananaes tinhão escapado com vida , des
pois de haverem feito alguma rezistencia em defensa das
Lanchas e dos Enfermos.
Quando o Governador mandou estas Lanchas pello Rio
Bemgo acima, e o mais que nellas hia, foi com tenção de
navegarem até onde podessem chegar, e dali comboyarem
tudo por terra , não entendendo que aquelle inimigo se des
mandasse tanto, por Paiz delles não conhecido; mas como
tinhão sahido da Cidade com tenção de que huma vez se
apoderassem do nosso Arrayal , e de todo o mais destes
Reinos, e haver sido ordem expressa de seus Mayores, sahi
rão fora da regra militar, a penetrar tanto o Sertão, atraz
da Caça que se lhe havia hido das mãos.
Com ditos avizos alevantou o Governador daquelle sitio
pella mayor forsa da Calma, o que lhe custou muito traba
lho e desvelo, fazer marchar toda aquella gente mettida

© Chamão a este sitio Bindashe, por haver ali huns Sovas da


feição de Cabaças a que em Anbundo chamão Bindo o he ? he couza
de admiração. (Nota marginal do Autor) .

272
pellos Matos fiada só em seu valor, fazendo hir por diante
a muitas pessoas que já se querião antes ficar ali entregues
á morte, que lhe não podia faltar, quando não fosse pello
Flamengo, seria pello Gentio, que todo estava alerta me
ttidas pellos Matos, para em havendo descuido se aprovei
tarem da occazião, do que hirem padecendo tantos trabalhos
e miserias, arrastados por tão asperos e dilatados caminhos;
mas o vigilante Governador não temendo sol nem risco da
vida, anteposta sua autoridade, tudo fazia hir por diante ,
uzando de brandura accompanhada com rigor, com aquelles
que não obedecião de vontade, vindo a gente de a cavallo
fazendo sentinella ao Flamengo, e discorrendo por aquelles
matos, se nelles ficava alguem da Companhia, e só huma
Mulher ou de inadvertida , ou enfadada da vida , que se des
viou do caminho e da mais gente, a virão feita em pedaços,
pella fiereza do nosso Gentio , que se não fora o muito cui
dado, muito damno nos fizera.
Foi o Governador allojar aquella noite em terras do
Sova Hitombe, Vassallo del Rey nosso Senhor; ali chegou
a gente de a Cavallo com seu Cabo, e deu avizo ao Gover
nador em como o inimigo Flamengo chegára ao Outeiro do
Sova Icolo , e ali estivera formado em aquelle descampado
com toda a sua gente assim Branca como preta que o
accompanhava , e que vendo era em vão a sua diligencia ,
se tinha recolhido não se atrevendo a passar avante , por se
rem as terras dali para cima muito fragozas, cubertas de
Matos e muitas barrocas, temendo como Soldado algum
ruim successo ; com esta nova ficou aquella affligida gente,
principalmente o Mulherio com mais algum socego, porque
geralmente todos até os de mais posse, hião com muita
descommodidade, huns faltos de Redes, outros por leva
rem alguma couza hião a pé, e o mais que padecião era não
haver naquelle dilatado caminho agoa , que alguma que
carregavão para beberem logo com a muita gente se gastava ;

273
em Companhia do Governador hia o Principe Dom Fran
cisco filho do Rey de Dongo Dom Fhelipe de Souza o pri
meiro do nome Gola Airi, Senhor das Pedras de Mapungo
e Mauzondo, o qual havia mandado seu Pay daquelle Reino
com alguma gente de guerra , assistir nos Arrayaes e accom
panhar o Governador e Capitão Geral; o qual era muito
bom Soldado, ainda mancebo , vestido á portugueza, a quem
o Governador pello honrar vendo o ir a pé lhe dava a sua
Mula de andadura em que cavalgava, sem embargo delle
levar seus Negros com sua Rede.
A todos aquelles Sovas Vassallos da Coroa de Portu
gal por onde hia passando lhe fazia o nosso Governador sua
pratica, fortificando -os na Lealdade que devião como subdi
tos a el Rey de Portugal, e a seu Governador em seu lugar,
que pois os deixava em suas terras, e os não levava com
sigo, o fossem avizando dos intentos do inimigo Flamengo
e do mais que houvesse; assim o havia feito ao Sova Ma
nibemgo Aicolo, Axomzo, e agora o fazia a este em cujas
terras se achava chamado Itombe; todos prometterão serem
fieis, mas o tempo nos mostrou o contrario , que não ha
Cobra que boa seja , e estes Sovas erão das bem pessonhen
tas; dali foi ao outro dia a Quitumdili, Sova tambem como
os mais de que havemos fallado, com uma boa Vargea de
Palmar; nelle tinha humas Casimas ou poços os quaes não
tinhão já agoa se não Lodo, e assim se bebia ; e tambem era
cauza haver pouca agoa a Cantidade de Gado que naquella
retirada hia, assim Vacum como ovelhum, que havia mister
haver rios por ella abundar, hindo por aquelles caminhos
como Gado sem pastor, por ir muito sem haver quem os
pastorasse , que só de Carne abundava aquelle Caminho,
mas comia - se como deos a criou , sem huma pedra de sal;
ainda assim não era pouca mercê de Deos havela; ali se
passou por Angola Quiaito Sova poderozo da lotação da
fortaleza de Masangano, dali a Zambi a Caita , até se che

274
gar a Lucala Rio Caudalozo, como se tem dito na primeira
parte desta historia; ali se refrescou á sua vontade toda
aquella multidão de gente e de Gados, cada hum dos Mo
radores com suas familias tomando a Vareda por aquelles
arimos e fazendas, com beneplacito do General, onde tinhão
melhor agazalho, e conveniencia , e alguns dos Moradores
da Cidade da Loanda tinhão naquelle districto de Masan
gano suas terras e fazendas, outros com licença do Gover
nador forão para a fortaleza de Cambambe.
Chegado que foi o Governador aquella Villa da Victo
ria , Capitania de Masangano, tratou de por todas as couzas
em boa forma, formando o Senado da Camara, mandando
administrar Justiça ao Ouvidor Geral Francisco de Figueroa,
com todos os Escrivoens, e gente dos Auditorios, como na
Cidade se fazia, fazendo Provedor da fazenda Real o Feitor
del Rey, dando ordem a Caza da Santa Mizericordia e Hos
pital, para os muitos doentes que havia , assim os que trazia
do rigor do Caminho, como daquelle Clima não ser sadio,
sendo elle o primeiro Provedor da Santa Caza, por dar bom
exemplo na assistencia e cuidado de tantos Enfermos, man
dando ter conta com os dizimos para dali se ir soccorrendo
a Infantaria de sustento . E com esta retirada do Arrayal
tomou motivo o Capitão da fortaleza de Muchima, que era
João Pinhão, em largar sem ordem nenhuma aquelle forta
leza e Prezidio, por entender se não poderia conservar nella ,
o que lhe foi mui estranhado do Governador, mandando
fazer frente ao Cabo da Coamza Fernão Rodrigues, em si
tio conveniente assim por amor do Flamengo como do
Gentio da Quisama, estando naquelle serviço com seu aloja
mento frente ao Sova Gumgo, com seus Soldados e Officiaes,
para quietação dos roubos e assaltos que continuadamente
aquelle Sova e os mais da Provincia da Quisama estavão
fazendo, teve neste tempo avizo aquelle Cabo por Vigias
que trazia em aquelle Rio Coamza em como tinha entrado

275
por sua Barra hum Navio Flamengo Artilhado, e estava
no sitio e Porto de Calumbo fazendo e comprando os Fla
mengos que nelle vinhão bastimentos, por estarem muy
faltos delles na Cidade, e tambem a fazer negocio de peças,
e marfim.
Deste avizo fez sabedor aquelle Cabo ao Governador
o qual lhe ordenou se viesse logo a ver com elle para lhe
dar o appresto e ordens necessarias ao que havia de obrar
naquella empreza ; vindo o Capitão e Cabo a Masangano
lhe ordenou o Governador, fosse com quatro Lanchas mui
Esquipadas de Remeiros, e por Cabos das tres a Manoel da
Costa que havia sido Capitão da gente do mar , a Gaspar
Gonsalves o Ensamdeira, e a Pedro Barreiros, com titulo
de Capitaens, para o que lhe deu mais gente a fora a que
tinha, com que lhe perfez Cem homens, com officiaes e Sol
dados, dandolhe as muniçoens necessarias aquella faução,
com que os despedio de Masangano, ordenando ao Capitão
e Cabo da Coamza, e mais Lanchas buscasse aquelle Navio
e o abalroassem de calidade que lhe ficasse nas mãos, e
não se podesse sahir por onde havia entrado.
Partidas de Masangano todas as quatro Lanchas Rio
Coamza abaixo, em dous dias de navegação que correm
aquellas agoas muito, derão vista do Navio inimigo, o qual
investirão com tanta deliberação e valentia, que por mais
tiros que atirou matando e ferindo gente, em as Lanchas
nem por isso perderão a voga que levavão, mettendo - se de
dentro da sua Artilharia, matando alguns Flamengos, com
tiros de boas Espingardas até que abalroarão e subindo -lhe
pello costado ao Convez milagrosamente escaparão do tiro
de huma Roqueira carregada de bala miuda e cabeças de
pregos, a que por vezes o flamengo poz o bota fogo,
para lho dar, que se a roqueira o toma varre todo o Con
vez : pedirão vendose entrados bom quartel, havendo pri
meiro hum soldado derubado o Artilheiro do bota fogo, e

276
os mais Soldados com seus tiros matarão a outros; alguns
Flamengos estavão em terra , que por todos erão trinta , que
ficarão huns mortos e outros aprizionados; acharão no Navio
quatro peças de Artilharia de ferro de bom calibre que bem
as haviamos mister; e em outra occazião que ao diante se
dirá, servirão contra elles, com duas Roqueiras, e muniçoens
bastantes, alguma fazenda que tinhão em ser, que foi des
pojo dos Soldados, e bastimentos que havião comprado; com
este bom successo veyo aquelle Capitão e Cabo com os Ca
pitaens das mais Lanchas Victorioso , trazendo aquelle
Navio á toa pello Rio Coamza acima, até onde pode chegar
e navegar, de que o General ficou muito satisfeito de tão
bom successo , fazendo muitas honras aquelle Cabo, e aos
Capitaens, e mais Officiaes que naquella occazião obrarão
como bons Portuguezes e Leaes Vassallos.
Andava tambem naquelle Rio Coanza hum Negro nosso
alevantado feito grão Corsario por nome Lourenço Anzoanzi,
o qual mettido com a gente da Quisama fazia em sua Com
panhia como pratico no nosso Paiz muitas pilhagens e
assaltos, sem o Capitão e Cabo do Rio Coamza, com ser
tão intelligente e pratico e vigilante, lhe poder dar alcance,
até que soube por Espias que elle trazia, tinha entrado pella
Lagoa de Angolomem a assaltar huma Quitanda (' ) que na
terra daquele Sova nosso Vassallo havia; e por não espantar
aquelles Ladroens que trazião aquelle Cabo Vigia á vista ,
avizou ao Governador mandasse por terra dar sobre elles em
dita feira, e na sua lingoa Quitanda, o que o vigilante Gover
nador dispoz logo mandando a um Capitão experto por
nome Diogo Gomes Moralles, com Infantaria e alguma
guerra preta, marchasse com toda a brevidade a castigar
aquelles alevantados, o qual o fez com tanto cuidado e

c ) Quitanda chamão as feiras onde se vende tudo. (Nota marginal


do Autor ).

277
diligencia que deu de improvizo em dita feira onde aprizionou
aquelle grande pilhante, e alguns dos seus sequazes, e le
vando ordem do que havia de fazer que era fazelo em quar
tos, e polos pellos outeiros e passagens, e aos mais seus
Companheiros para emenda de outros semelhantes.
Em a Provincia da llamba andava outro Negro com mui
tos do seu banda por nome Cola Apupa (1 ) o qual era mui
esforsado, e o nome o dizia assim ; este tal fazia muitos rou
bos em alguns Sovas daquella Provincia Vassallos nossos,
dando assaltos em muitas Povoaçoens de gente forra e Ca
tiva dos Portuguezes; tendo o Governador noticia do mal
que este negro fazia despachou para lá o mesmo Diogo
Gomes Moralles com Soldados e guerra preta, e alguns
homens de Cavallo a qual dando sobre elle tiverão huma
pendencia renhida, porque era negro muito valente e temido
do Gentio por tal; al fim veyo a cahir nas mãos, despois de
grande rezistencia, e lhe fizerão o mesmo de que ao da
Coamza, feito em quartos como o Ladrão de Estradas posto
pelos Caminhos.
Vendo o Governador a falta que havia de guerra preta,
e a pouca confiança que se podia fazer dos nossos Sovas e
da sua gente, praticando isto com alguns Moradores, lhe
disserão como havia hum Jaga na Provincia da Humba, des
cendente daquelles Antigos, que vierão da terra a dentro, o
qual se chamava Cabucu Candonga e tinha seu Qui
lombo de gente de guerra; que só o Capitão mór da Enbaca
como tão intelligente na lingoa e couzas da terra Antonio

) Cola Apupa quer dizer coração forte. Cala chamão a força, e


pupa ao coração .
Cola a imperativo do verbo kulola ; pupa é ainda hoje peito, cora
ção. O verbo kulola significa ser rijo; ser forte de ...
Provavelmente o nome do soba, era Uakola pupa, (é ) rijo e forte
do coração; no imperativo seria. sê forte do coração, o que não dá sen
tida como nome.

278
de Abreu de Miranda podia com o seu bom modo acarialo
ao serviço del Rey nosso Senhor e destes seus Reinos e
Vassallos.
Aceitando o Governador este bom Conselho, ordenou ao
dito Capitão mór que com todo o cuidado tratasse de ir em
busca da Jaga Cabucu por assim importar ao serviço de Sua
Magestade e o persuadisse a vilo servir, que lhe seria grati
ficado, e lhe levasse o que lhe mandava, para o vestir a elle
e a seus Capitaens e Macotas, e trazendo - o como do seu ta
lento o esperava, o apozentasse no destricto daquella Capi
tania da Enbaca, onde estivesse á sua vontade, apto para o
serviço del Rey, para o que lhe mandou Sucessor para a
fortaleza, que foi Andre Coelho de Mello despachado por
Patente Real para ella.
Havia tambem neste tempo chegado a Masangano João
Juzarte de Andrade que estava por Embaixador em o Sova
Dembo, por nome Caculo Cacaenda, mandado pello Go
vernador da Cidade, como dissemos em a primeira parte
desta historia, o qual havia escapado com a vida por mi
lagre; o qual deu noticia que tanto que fora aquelle Dembo
sabedor e os mais do seu nome de estar a Cidade occupada
pello Flamengo, que era o que todos esperavão com pala
vra passada entre elles, e despois do Governador se haver
retirado, se havião todos rebellado, e morto todos os Por
tuguezes que por suas terras andavão ; e chegou a maldade
a tanto , deste Dembo de que fallamos, que ao Padre Pres
tes que era hum sacerdote seu Capellão, que lhe tinha dado
a Agoa do bautismo, o esfolara quasi vivo, fazendo delle
grandes Anatomias; estas noticias deu o dito Embaixador,
e elle se livrou pello avizarem da perda da Cidade, antes
que este dito Sova o soubesse.

279
CAPITULO SEGUNDO DA TERCEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS EM O GOVERNO DE
PEDRO CEZAR DE MENEZES .

Hindo dispondo as couzas de seu Governo com muito cui


dado e acerto adoeceu de huma pezada enfermidade cauzada
da muita lida que teve alguns seis mezes de assistencia dos
Arrayaes do Bemgo, do mao trato do caminho, de quarenta
legoas de marcha pello Sertão dentro que tantas se fazem
até Masangano de donde havia sahido do ultimo Arrayal do
Bemgo, e do nocivo Clima em que se achava, que não perdoa
a ninguem , estando com a mesma fadiga dispondo as couzas
das guerras, como tão vigilante General , apertando de cali
dade, que o teve ás portas da morte, tendo já feita nomeação
em aquelle tão zeloso e caritativo Prelado, pedindolhe pes
soalmente que por serviço de Deos e de Sua Magestade acei
tasse aquelle Governo em sua auzencia , atendendo a tudo
aquillo que fosse conservação daquelles Reinos, como quem
era tão Leal Vassallo del Rey nosso Senhor Dom João o
Quarto .
Mas como Deos acode nas mores pressas, não querendo
castigar as culpas e peccados destes Reinos, conforme elles
merecião, em faltar em tantas miserias hum Governador de
tanto talento e experiencia, em que consistia a conservação
destes Reinos, quando mais se desconfiou da sua vida foi
melhorando, até ter perfeita saude; sendo em parte este gosto
agoado e imperfeito, por logo adoecer tambem o dignissimo
Bispo com doença tão malina que em breves dias, como tinha
muita velhice, não tendo forças para rezistir a tamanho mal,
deu a Alma a seu Creador, em os cinco dias do mes de No
vembro de 1642, ficando todos com o sentimento de lhes fal

280
tar hum tão bom Prelado e Companheiro : foi sepultado em
a Igreja Matriz de nossa Senhora da Victoria de Masan
gano; permitta - se -me fazer alguma lembrança de sua singu
lar virtude que santidade se podia chamar, o que havia mis
ter huma douta penna para dizer parte das virtudes e exem
plar vida; mas conforme minha pouca possibilidade direi al
guma couza porque não fique ao esquecimento, como tem
ficado couzas muito boas. De todos foi chorada a morte de
tão bom Pastor, por ser a consolação de todos, Compadre de
muitos e Amigos, o qual assistia a muitos assim nos gostos
como nos pezares; não havia matrimonio que elle não cele
brasse, filhos que não bautizasse; com os pobres se mostrava
mais benigno, como aquelle que de coração os amava, vizi
tando-os em suas enfermidades, acudindolhe às necessidades
com muita caridade, conforme suas Rendas lhe davão lugar,
e vendo o que padecião os forasteiros e Soldados pobres tra
tou com muito trabalho e despeza a fabrica do Hospital da
Santa Caza da Mizericordia assistindo em sua fundação pes
soalmente todos os dias, dando com sua assistencia exemplo
a que assistissem muitos Moradores com suas pessoas e gros
sas escolas até acabar de todo, fazendo- o em Cruz com qua
tro Enfermarias para diversos males, em cada braço a sua
como se vê em esta Cidade, com Altar no meyo onde se diz
Missa aos Enfermos, tendo nelle a Imagem de Nossa Se
nhora da Saude muito milagroza, não somente para os En
fermos do Hospital, se não ainda de toda a Cidade, que
todos se valem della para suas Enfermidades (1 ) a huns hin
dolhe a sua Coroa, a outros o seu Bento Manto e Contas;
no qual Altar de todas as quatro Enfermarias se ouve Missa ,
porque de todas ellas se descobre, e sendo este Caritativo

() Os doentes da cidade pediam que lhes levassem , uns a corôa da


Senhora, etc.

281
Prelado Provedor não havia dia que elle pessoalmente não
viesse dar de comer aquelles pobres Enfermos mandandolhe
administrar por seus Pagens, consolando a todos em seus
males e miserias, e se algum dezejava alguma couza de con
solação de doce que na dispensa não havia , lho mandava de
sua Caza do que para sy tinha , deixando-o de comer só pello
dar aos pobres de Deos, repartindolho com suas proprias
mãos. Os Mezes de Mayo são mui nocivos e trabalhozos
nesta Cidade; principalmente os Annos Chuvozos cauzão
muitas doenças e enfermidades, e muito mais em a Praya
onde mora toda a mais da gente forasteira, e por ser terra
Ihana faz em sy hum grande sapal de agoa, e alagadiços, de
que se levantão muitos vapores, que reconcentrados nos Cor
pos humanos cauzão muita malignidade; pello tempo de se
melhantes Calamidades não socegava este Caritativo Pre
lado, não tendo receyo da pestilencia, de que muitos se guar
davão, exposto aos rigores della, andava pella Praya todos
os dias vizitando a todos, assistindo - lhe com os Santos Sa
cramentos, e com o de que necessitavão, incitando e admoes
tando a muitas Mulheres Caritativas e de posses, que havia
então muitas Matronas, mandassem por suas Escravas acudir
a tanto dezemparo, com os caldos de galinha, amendoadas,
e tizanas frescas, para com isso mitigarem o rigor da febre,
medecina para curar do bixo que era o de que mais necessi
tavão, porque com o Calor do Clima e quentura da febre, se
corrompião pellas partes baixas, e com outras couzas necessa
rias para a evacuação dos ruins humores; a estes Enfermos
acudia com sua virtude e Caridade este bom Pastor, a fora
a multidão dos mais pobres dezamparados que hião, por não
possuhirem com que se curarem fora, ao Hospital; com este
cuidado, e desvelo, se goarecia muita gente com o Zelo
Christão daquelle virtuozo Prelado Dom Francisco do So
veral.
A sua Caza era pouzada de Peregrinos, porque de todo

282
o Estado do Brazil vinhão Religiosos a ordenarse; a todos
agazalhava , e dava pouzada, até que ordenados de todo, se
tornavão para suas Provincias, sendo seu Pallacio Episcopal
hum Convento, nos exercicios Espirituaes, como aquelle que
havia sido Conego Regrante de Santo Agostinho em o con
vento de São Vicente de fóra da Cidade e Corte da muito
Nobre Cidade de Lisboa, sendo na dita Religião Procurador
Geral em cujo Cargo dispendeo muita somma de dinheiro
nas obras daquelle Real Convento ; e pedindolhe conta do
dispendido, disse que a Conta que podia dar era, certificar
não dezencaminhara hum real do que em sua mão tinha en
trado que não fosse para o gasto da sua Religião, e Obras,
que tratava só de trazer as suas Contas bem ajustadas para
com Deos , como em este seu Bispado havia feito, não sabendo
nunca o que era trato nem distrato, tendo só conta com sua
Igreja e Ovelhas, tratando de ser bom Pastor de seu Re
banho.
Mandava todos os dias rezar no Coro da Matriz desta
Cidade , que lhe servia de Sé as horas Canonicas, por seus
turnos, aos Clerigos Familiares de sua Caza, e a outros orde
nados a titulo da Igreja, com alguma dignidade da Sé de
Congo, ou Conegos della, que lhe assistião a respeito da dis
tancia daquelle Reino, onde tinha a sua Sé, hindo elle por
dar bom exemplo assistir em coro ás Rezas ; e com sua Mu
zica e Capella, em que muito se esmerava , mandava assistir
a todas as festividades, principalmente da Senhora May de
Deos, de quem era particularmente muito devoto; fez hum
Sinodo para o bem de sua Igreja e bons costumes do seu
Clero, em que se assentárão muitas couzas do serviço de
Deos, e extirpacoens de ruins costumes; era tão Caritativo e
esmoler com os pobres, que chorandoselhe huma Mulher, ma
nifestandolhe em como cazava huma filha, e não tinha huma
Cama para se deitar no dia do seu despozorio, lhe disse o
virtuozo e esmoler Prelado, que ás oito horas da noite quando

283
a porta estivesse fechada, que a não vissem os seus Pagens,
viesse da banda de fora, e fizesse com huma pedrinha sinal
á janella onde dormia, que o que lhe botasse levasse para
Caza e se remediasse com isso a sua necessidade; felo a boa
da pobre assim , e fazendo o sinal á janella como lhe havia
dito, chegou elle a hum postigo dizendo és ahi ? assim como
se certificou , carregou com o colchão, lençoens, colcha e tra
vesseiros, sendo hum Velho de poucas forças, e tudo envol
vido, abrindo a janella o botou por ella á pobre Mulher, di
zendo leve, leve; e tornando a fechar se deitou sobre a Es
teira que tinha sobre o Catre, e daquella sorte passou toda a
noite ; quando pella manhã vierão os Criados a darlhe de
vestir achando a Cama menos, lhe perguntarão por ella, a que
respondeu deixay, deixay, que logo vierão a conjecturar a
tinha botado pella janella áquella Mulher, com quem o virão
fallar aquella tarde; e della se soube o aqui referido, a que foi
necessario a hum dos Pagens pôr - lhe o seu Colchão, e mais
aviamento de Cama, para que com aquella velhice não dor
misse nas taboas, em quanto lhe não previnhão outra ; de
outras finezas destas que havia tido com pobres se podéra
dizer muito; mas como o Autor desta historia não escreve sua
vida, se não toca de passagem parte de sua muita virtude, se
não detem mais, seguindo o intento de sua historia .
Só que dirá de mais, que ficando seu Corpo sepultado
como dito he, em a Villa da Victoria de Masangano em a
Igreja Matriz, restaurandose a Cidade pello General Salva
dor Correya de Saa e Benavides, vindo o Clero para a Ci
dade, e estando saudozo daquelle seu e nosso Prelado aquem
todos devião o ser e Caracter de Sacerdotes por haver a
todos ordenados, pedirão ao seu Vigario Geral O Mestre
Escola Francisco Pinheiro mandasse vir seu Corpo daquella
Villa, e ser tresladado em a Matriz da Cidade que havia ser
vido de sua Diocezi, e o terem presente ainda que morto, vivo
nas suas lembranças e devoção; mandou o Vigario Geral

284
pello dito peditorio ordem ao Vigario da Matriz de Masan
gano Francisco da Cunha mandasse em hum Cofre que para
isso hia preparado, com todo o primor e decencia , para vir
o Corpo de seu Bispo e Prelado; chegada a dita ordem
áquella Villa e sabida pellos Moradores della se começarão
a alterar com Zeloza emulação dizendo não havião de con
sentir em tal tresladação, que se em a Cidade havia aquella
devoção que tambem naquella Villa havia a mesma, e não
faltava o mesmo affecto áquelle Prelado que o havia sido de
todos.
Desta repugnancia que fazião aquelles Moradores se fez
avizo á Cidade, em que insistindo o Vigario Geral com ex
communhoens aquem o contradicesse, mandando o Geral res
taurador dar ao Capitão mor daquella fortaleza ajuda de
braço secular ao Vigario, para se proseguir o intento; o que
vendo aquelles devotos Moradores que para se apellar das
Censuras do Vigario Geral não havia ainda communicação
com a Sé Vagante do Reino de Congo, de onde podia vir
o recurso, e tambem vendo o que mandava o General, se
sumetteram as ordens Ecclesiasticas e ás de seu General ,
mostrando -se filhos da Igreja e Vassallos de Sua Magestade,
cedendo de sua devota opinião.
Perdoay virtuozissimo Prelado em ser tão curto em vos
sos Louvores, e do muito que pudera escrever de vossa sin
gular vida e maravilhoza virtude, mas que se pode esperar
de hum tão fraco talento como he o meu ? outra penna mais
bem aparada e com mais elegancia o poderá fazer; a vontade
me agradecei.

285
CAPITULO TERCEIRO DA TERCEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS EM O GOVERNO DE
PEDRO CEZAR DE MENEZES.

E tornando a proseguir a nossa historia deixamos ao


nosso Governador e Capitão Geral Pedro Cezar de Menezes
convalecente de sua enfermidade tratando de ir proseguindo
a conservação destes Reinos; dissemos tambem como tinha
mandado ao Capitão mor Antonio de Abreu de Miranda em
busca do Jaga Cabucu Candonga, o qual o foi buscar á Pro
vincia onde assistia com seu Quilombo, e persuadido de pes
soa tão intelligente e previsto nas couzas desta terra de An
gola o trouxe de sua habitação , e vindo marchando com elle
e seu Quilombo, que constava de alguns seiscentos Jagas,
gente experimentada nas guerras do Sertão, com seus Capi
taens e Macotas subordinados a seu Senhor Cabucu, com
muito Mulherio e outra gente inutil; filhos nenhuns porque
os não crião, a respeito dos Ritos de Jagas que observão;
vindo passando pellos Sovas Dembos, que tem seus Senho
rios entre o Rio Dambe e Lunanha (1 ) que seus nomes são
Dambi Angonga, e Quitexi Camdambi, em Companhia como
dissemos de quem os conduzia, e por estes seus Sovas e os
mais Dembos, estarem de máo titulo, contra a gente Portu
gueza, com voz já do Flamengo, quizerão ver, ao passar este
Jaga por suas terras e matos, se o podião desbaratar, porque
não tivessemos nelles ajuda contra este Gentio, sahindolhe
com sua guerra ao caminho lhe fizerão algum damno, por
elles virem empachados e avolumados com sua Quicumba e
Bagagem ; tendo passado seus Matos com aquella molestia ,
dali a duas jornadas de distancia, fizerão alta com seu Mu

() Não sei que rio é.

286
lherio e mais Quilombo, e voltando escuteiros ou bolantes
atraz derão de assalto em as terras dos dous Dembos, e a
tudo a que acharão de Povoaçoens por fora dos Matos dego
larão e aprisionarão, recolhendose com a preza e cavalgada
ao Assento onde tinhão deixado a sua bagagem , desafron
tados do que aquelles Sovas Dembos lhes havião feito.
Tratou o Governador de sahir a campo a opposição do
Flamengo, e do Gentio seu confederado, para o que mandou
passar da outra banda do Rio Lucala ao Capitão mor da
guerra preta e Tandala do Reino que então era Diogo Dias
Mendes, o qual tocando os instrumentos bellicos de guerra ,
foi ajuntando guerra de Quilambas e gente forra e Escrava
ria dos Portuguezes; junta que esteve passou o Governador
da outra banda daquelle Rio Lucala com toda a possibilidade
de gente que este Reino tinha , de Soldados e Moradores, e
filhos da terra, e daquella banda despachou ao Capitão mor
da gente de guerra Antonio Bruto, a castigar alguns Sovas
alevantados, sitos por baixo de Caculo Ca-Ango, os quaes
sahião da Ensaca a fazer roubos e Latrocinios em fazendas
da gente Portugueza e Sovas Vassallos de Sua Magestade,
para a que lhe deu gente e guerra preta bastante para aquella
empreza, de Moradores e Soldados Sertanejos, com o Capi
tão de Cavallos Gaspar Borges Madureira pessoa de expe
riencia em aquelle exercicio, por estar doente neste tempo o
Capitão mor de Cavallos Antonio Teixeira de Mendonça; o
qual Capitão marchando com todo o cuidado chegarão ás ter
ras daquelles Sovas que estavão mui chegados á Cidade, em
parados dos Flamengos como seus parciaes, e tiverão os nos
sos Portuguezes com ditos Sovas hum grande encontro e
batalha , ficando mui destroçados, e bem castigados, não
tendo lugar de serem soccorridos dos Flamengos seus Ami
gos; com este bom successo se recolheo o Capitão mor da
gente de guerra Victoriozo .
Mandou tambem o Governador marchar para a fortaleza

287
e Capitania da Enbaca cento e trinta Soldados e Moradores
cursados nas guerras do Sertão, a se incorporarem com o
Capitão mor, Antonio de Abreu de Miranda com seu sargento
mor, Mathias Telles Barreto, de quem já fallamos na tomada
da Cidade, sendo então Capitão da Fortaleza de Santa Cruz,
com Capitaens de experiencia, e lhe encomendou e ordenou
que junto com os Quilambas Jagas e mais guerra preta da
quelle destricto , fosse descendo sobre os Sovas Dembos da
outra parte do Rio Damde fazendo nelles hum grande Cas
tigo, bem merecido ás trayçoens que contra os Vassallos por
tuguezes havião obrado em suas terras; com esta ordem do
General, que bem General era, pois estava dispondo tão di
versas emprezas, sahio o Capitão mor da Capitania da En
baca, e foi marchando na volta daquelles Sovas, passando
pellas terras de Angolomem- a Caita, e Caculo Quam
Quim, (sic ) fazendo todo o mal que pode a estes Sovas nossos
Vassallos por serem da Confederação dos Dembos e estarem
tambem da mesma voz, chegando dali com sua marcha as
terras do Sova Dembo Caculo Ca Caenda, tendo com este
poderozo, que he o que havia esfolado ao Padre Prestes seu
Capellão e Pay do bautismo, com este e com outros seus
Alliados, teve grandes Recontros, por ser Sova de muitas ter
ras , e Vassallos alcançando delle e dos mais Confederados
muitas victorias, com muita perda do seu Gentio, situando
em seu Senhorio seu Arrayal, e delle foi fazendo guerra a
Caculo Ca Cabomda, e Caculo Ca Cabaça, ao Sova Capele,
a Calumbo Camgimbo, todos Sovas Dembos Senhores de
muitas terras e Vassallos, fazendolhe grande degolação e cas
tigo, queimandolhe Banzas e Libatas moradas daquelles fi
dalgos e Povoaçoens de seus Vassallos, o que não se especi
fica mais por extenço, por não cauzar enfado ao curiozo Lei
tor que o quero ter benevolo, para que releve minhas faltas,
pois he a primeira vez que me fiz escritor, e sayo á Luz com
meus escritos , por não haver quem até agora tomasse esta

288
empreza á sua conta, como tenho dito em principio desta
historia .
Havendo dado nestes Sovas Dembos tão rigorozo e me
recido castigo ao muito que havião delinquido contra os Vas
sallos de Sua Magestade assim brancos como pretos;
Havendo o Capitão mor Antonio de Abreu de Miranda feito
aquelle estrago naquelles Sovas rebeldes lhe ordenou o Go
vernador e Capitão Geral viesse descendo para baixo com
seu Quilombo, e fosse castigar a hum Sova poderozo tambem
dos Dembos, que seu nome era Manimotemo Aquimgongo.
Neste tempo se achava o Governador em hum Sova da
Ilamba da Lotação daquella Provincia, por nome Cazuan
gongo, onde estava posto em campanha , dispondo todas as
couzas da guerra, accompanhado da Soldadesca e gente Mo
radora, observando daquella paragem todos os movimentos
do Flamengo, tendo para isso suas intelligencias; com a
ordem acima dita partio aquelle Capitão mor pella margem
do Rio Damde a baixo, e chegando fronte ás terras de Mo
temo que hia a castigar, por muitos desaforos , feitos em vi
tuperio dos Vassalos Portuguezes, assentou seu Arrayal des
toutra parte do Rio Damde, e mandou que a nossa guerra
preta passasse da outra banda, e o Jaga tambem com a sua, e
que a nossa subisse ao outeiro de Motemo, onde elle tinha o
estado da sua Banza e Morada e que o fossem tirar ao campo,
e que os Jagas com os nossos Quilombos estivessem embus
cados em huns grandes palhagais; subidos acima os nossos
acharão que aquelle Sova , fazendo pouco cazo do que tinha
diante dos olhos, estava com muita comezana com os seus
Vassallos, com banquete esplendido a que elles chamão Qui
zocola; quando derão fé da nossa guerra que lhe subia o seu
outeiro , se alevantarão todos com muita arrogancia e soberba,
embraçando suas Adargas e com seus traçados nas mãos,
seguindo todos o Sova seu Senhor, vierão sobre a nossa
guerra , menosprezandoa; os nossos fazendo pouca rezisten

289
cia a tamanho e poderozo numero, vierão quebrando de in
dustria, hindoos levando para as nossas ciladas; mettidos
elles dentro alevantarão ellas, e forão fazendo nelles huma
grande degolação, em que os Jagas são mui dextros, e os
nossos Quilambas, que á maxadinha tirão as Cabeças aos
inimigos com muita velocidade, e não perdoarão ao mesmo
fidalgo que appelidando, (1 ) o seu nome Motemo, (2 ) para
lhe darem a vida, conhecendoo; mas nada disso lhe valeo ,
defendendose com muito valor com hum traçado, cuberto de
sua Adarga, em companhia de outros seus Irmãos e Parentes,
até que hum Jaga lhe deu com a cabeça fora, e assim forão
matando e aprizionando a muitos pondo a saco a sua Banza
e muitas Libatas e Povoaçoens das terras daquelle Dembo
sem em esta tão famoza occazião haver custado sangue ne
nhum dos Portuguezes (3 ) pella boa dispozição e industria
daquelle experto como entendido Capitão mor.
Estando o Governador com seu Arrayal como dito hé,
em terras do Sova Cazuangongo, e vendo ou sabendo das
maldades e vexacoens que hum Sova poderoso dos Dembos
por nome Namboa Angongo de quem já havemos fallado
em a primeira parte, quando veyo alevantado del Rey de
Congo com grosso poder avassallando os nossos Sovas, e
posto a Cidade em aperto ; estando neste tempo confederado
com o Flamengo, havia obrado em damno e descredito da

( ) Chamava, declarava que era o motemo.


( ) Assim foi o de Cambaya que com dizer Bandur Bandur lhe não
valeu ser Rey. (Nota marginal do Autor ).
© Em uma carta do governador, escrita do arraial do Bengo, ao
Rei, em 9 de Março de 1643, se lê o seguinte: — « É com aviso que
tive que com o sova Nambuacalombe se ajuntava muita guerra de Congo,
mandei ao capitão Antonio Bruto, que pelejou em 20 de Janeiro de 1642
com o dito sova , matando -lhe oito mil pessoas, prendendo ao dito Nam
buacalombe, a quem logo mandei cortar a cabeça com parecer e votos
dos sovas vassalos de V. M.de, segundo costume do Reino. >>
A carta citada está no Arquivo Ultramarino, na caixa 145.

290
Nação Portugueza, estimulado tambem para isso del Rey
de Congo de quem havia sido feudatario; vendo o Gover
nador os seus insultos mandou marchar contra elle ao Ca
pitão mor Antonio Bruto com o poder com que havia sahido
a castigar os Sovas da Ensaca como atraz se disse, com or
dem se incorporasse com o Capitão mor Antonio de Abreu
de Miranda aquem tinha o General mandado ordem para
isso, o qual tinha com sigo melhor guerra preta e que ambos
unidos fossem em demanda daquelle Dembo e seus Confe
derados, e entrassem o seu Mato chamado o Libumzo , onde
tinha sua Banza e Morada e Povoaçoens de sua gente e
Vassallos; marchou o Capitão mor Bruto, que nunca (1 ) foi
tão bruto como o foi nesta occazião, para as terras daquelle
Dembo passando o Rio Damde por estar este inimigo da
outra parte , o qual por lhe parecer era o poder que levava
bastante para aquella faução não quiz esperar pello outro
Capitão mor, por elle tambem só ter a gloria do vencimento,
ou disserão que por ambição de apanhar mais peças, para
o que diz levava muitos Libambos e malungas , ( ) que são
prizoens de ferro em que se prendem ; com esta deliberação,
ou famice, foi pelejando com aquelles Gentios, entrando por
aquelle serrado Mato, e Medonho do Libumzo; vendo este
Sova Dembo que a nossa guerra se encaminhava para as
suas terras e fortalezas de seus Bosques, mandou com muita
brevidade recado ao Flamengo á cidade , o soccorressem com
presteza pois era seu Amigo e Alliado, que hião dous Qui
lombos dos Mundeles (* ) ou Portuguezes contra elle; vendo
o Flamengo aquella Embaixada daquelle Dembo seu Con
fidente despachou em seu soccorro Duzentos Flamengos os
quais encaminharão os Guias daquelle Sova por caminhos

© Devia dizer : que nunca foi bruto senão n'esta occasião.


) Lubambu, malubambu, corrente.
* Mundeles chama este Gentio a gente branca.

291
20
exquisitos, que não forão da nossa gente sentidos, metten
doos naquelles seus Mattos ou Bosques.
Fóra de semelhante cuidado hia a nossa gente entrando
e pelejando fortemente com aquelles Gentios que tinhão as
Costas quentes, com o soccorro do Flamengo; hindo a nossa
gente penetrando aquelles serrados com a gente de a cavallo
diante com a guerra preta, quando nisto descubrio hum
homem da Cavallo aos Flamengos, o qual virando para traz
admirado de tal acontecimento disse, Flamengos por Christo,
virando a garupa; esta voz (1 ) amendrentou e poz em dis
barato a nossa gente ; com tudo hum dos nossos Capitãens
tendo mão sem querer virar para traz accompanhado de
alguma gente da sua Companhia , vendo e descubrindo o
Esquadrão do Flamengo que estava formado em Campo
mais limpo daquelle Mato, vendo tambem que não tinha par
tido para peleja com tantos, e os seus Soldados tão poucos,
com os Arcabuzes ao Rosto pedio ao Flamengo bom quar
tel , o qual lhe concederão; esta foi a gente que melhor livrou ,
o Capitão era o seu nome Diogo Gomes de Moralles, de
que já em esta historia havemos feito menção, em algumas
partes; a mais gente foi muita della morta e ferida , e ou
tros derrotados; ao Capitão Mor Antonio Bruto lhe mata
rão a Mula em que hia, e a elle o escaparão ou salvarão os
seus Negros de não ser ali morto miseravelmente ás mãos
daquelle Gentio, como forão mortos muitos de seus Sol
dados, e se não fora vir já perto o outro Capitão mor An
tonio de Abreu de Miranda com sua gente, que foi fazendo
rosto , e dando Costas aos derrotados, tudo se ali perdeu; (2 )
e a sua gente tambem participou , mas não tanto, de alguns

© Esta voz foi como a que se conta houve na perda de Africa


de retira, retira. (Nota marginal do Autor).
© Duas Cabeças nunca fizerão boa União. (Nota marginal do
Autor).

292
mortos e feridos; nem tudo se consegue quanto se intenta,
que as couzas de guerra trazem muitos successos com sigo,
huns prosperos e outros adversos : desta Rota ficou o Go
vernador sentido pella pouca possibilidade de gente com que
se achava, o que tolerou conforme de seu grande amigo se
esperava ; neste destroço entrarão alguns Moradores de
posses que forão aprisionados do Flamengo aos quaes deu
aquelle inimigo bom trato, a respeito de seus intentos, assim
em razão do Resgate que por sy derão, como por se sa
nearem com elles, que pretendião serem Senhores destes
Reinos, e os deixarão vir para Masangano; e souberão do
Flamengo, que quando virão a nossa gente entrar aquelles
Matos, estiverão elles para pedir o bom quartel que a nossa
gente lhe pedio; mas quem ha de prevenir desgraças (- ) ou
adevinha - las ?
Ha muito que havemos passado um silencio sem fazer
mos menção daquella Ardiloza como Valeroza Rainha Ginga
Dona Anna de Souza, a qual despois de se apoderar do
Reino de Matamba, como dito temos, com a conquista que
nelle havia feito, se não descuidava em fulminar traycoens
com os Sovas Vassallos del Rey nosso Senhor, fazendoos
rebellar contra a Nação Portugueza, mandando seus Embai
xadores ao Flamengo á Cidade da Loanda com suas dadi
vas, fazendo com elles Confederação, e para ficar mais á
mão e não tão distante, mudou seu Quilombo para entre
os Sovas Dembos, e com mais confiança sabendo o disba
rato da nossa guerra em o Libumzo de Namboa Amgomgo,
fazendo seu Quilombo e alojamento no sitio das Sengas de
Cavanga, junto ao Rio Damde da outra banda delle, terras
muito ferteis de Varzeas e Palmares, regadas de muitos Ria

( ) Este triste acontecimento foi antes de Março de 1643, pois o


Gov.°F na citada carta de 9 do mesmo mês dá conta delle ao Rei; deve
ter sido no principio do dito anno .

293
chos, do qual sitio , se foi apoderando dos mais Sovas Dem
bos; huns por medo de suas Armas, outros pellas não ex
perimentarem , lhe renderão adoraçoens como a sua Rainha
e Senhora .
Só hum Sova tambem dos Dembos, por nome Quitexi
Candambi, de quem já nesta historia havemos fallado, fiado
em seus fortes Matos e Bosques, onde tinha sua Banza e
Morada, e o principal de que possuhia, se lhe não quiz so
geitar, nem reconhecer como a Senhora; e vendo ella o não
podia render com a vontade que dezejava, se valeo de seus
confederados os Flamengos, mandandolhe pedir ajuda de
gente para entrar naquelles Matos, e sogeitar aquelle pode
rozo Dembo, para o que lhe mandarão Cem Flamengos,
muito bem armados e amunicianados: chegados que forão
ao seu Quilombo, tratou logo, que distava perto, de entrar
nos Matos daquelle Sova, a Rainha Ginga pessoalmente
accompanhada de seus Amigos Flamengos, em que na sua
invazão se defendia aquelle Dembo com muito valor, expe
rimentando o Flamengo suas Armas de fogo, e o rigor de
suas agudas frechas, e arremeços e Azagayas, em que al
guns pagarão com as vidas; mas persistindo aquella belli
coza Rainha com valor contumaz, despois de haver perdido
em aquelles Matos muitos dos seus, e aquelle Sova lhe
haverem tambem morto muita gente da sua, assim das Ar
mas Flamengas, como com as muitas que a Rainha tinha em
abundancia, veyo a entrar á força de Armas naquelles for
tes e espezos Matos, chegando á Banza e Morada do Dembo
e suas Povoações entregando tudo ao Fogo e incendio ; o
Sova com a guerra que pode escapar daquella Rota , incor
porado com ella , se recolheo e foi amparar aos Matos, Bos
ques de hum Sova seu vizinho por nome Dambi Angonga,
de onde tratou de seus partidos com dita Rainha ficando
seguindo a mesma fortuna e sugeição dos mais Sovas
Dembos.

294
Ao Arrayal em que o Governador estava allojado de Ca
zuangongo chegarão alguns Flamengos Inviados pello Di
rector e Governador das Armas Flamengas, o que se teve
por grande novidade sua vinda, em quanto não foi publico
o a que vinhão, a que logo se divulgou, e foi trazerem a
nova da paz que el Rey Nosso Senhor Dom João o Quarto
tinha ajustado por seu Embaixador Tristão de Mendonça
com os Estados de Hollanda e Senhores das Provincias Uni
das, (1 ) o que foi festejado e celebrado de todos os Vassallos
Portuguezes destes Reinos por viverem com mais alguma
quietação, que assim se entendeo e ao despois se experimen
tou o contrario ; forão logo apregoadas com muito contento ,
e o mesmo se fez em a Villa da Victoria de Masangano, Cam
bambe, e Enbaca; e tratou logo o Governador (2 ) de mu
dar o Arrayal mais para baixo sitio e terras do Sova Nam
boa Aquizanzo, Vassallo da Coroa de Portugal , da Lo
tação da Provincia da Ilamba, por serem terras mais ferteis
onde se podião guarecer melhor; estando alojado no dito

ľ ) Eis as palavras textuais de uma carta do Gov.ºr ao Rei:


« Marchando eu até terras de Nambua quizanzo para que sempre
fosse senhor da campanha, e acudir de mais a algumas cousas neces
sarias, me chegou avizo do Olandes com carta de 25 de Setembro de
1642 de que ficavão as pazes apregoadas e as capitulações feitas entre
V. M. e os estados geraes . »
Carta escrita do Arrayal do Bengo em 9 de Março de 1643. (Ar
chivo de Marinha e Ultramar, Caixa 145). A paz entre nós e os holan
deses foi feita pelo tratado de 12 de Junho de 1641 .
O Menezes recebeu esta carta em 4-10-1642, estando nas terras
de Nambuaquizanzo. Dizem isto so dois religiosos Jesuitas no relato que
cito adeante, feito por elles.
© Como se vê na nota anterior, o Gov.ºf já não estava nas terras
do soba Cazuangongo quando os enviados do Director Governador
holandez lhe falaram e deram a noticia das pazes e a carta do Director
holandês. Erra portanto o autor no que aqui diz. O arrayal já estava
mudado para Nambuaquizanzo .

295
sitio com toda a gente que o accompanhava, Clerezia com
seu Vigario Geral que então era Luis Hiannes (1 ) Rolão,
Religiozos, Moradores, e Infantaria , Senado da Camara e
Ouvidor Geral , dispondo as couzas necessarias á sua con
servação , e á oppozição do Gentio , e dezejozos os Moradores
de virem para os seus arimos e fazendas do Bemgo, per
suadirão ao Governador tratasse conveniencias com o Fla
mengo , para que de baixo da paz estabelecida e apregoada,
permittisse a assistencia de seus arimos e fazendas; e tambem
se disse por couza certa havia tido Carta o Governador
de Sua Magestade por via do Flamengo em que lhe or
denava se chegasse ao Mar onde o podesse soccorrer do
necessario ; suppostas estas couzas mandou o Governador á
Cidade o Licenciado Guerreiro a tratar desta materia e da
Concordata della, assentando as couzas em boa forma, Car
pitulação feita e estabelecida por aquelle Letrado, conforme
os poderes e instrucção que por isso levava do Governador
o Capitão Geral.
E o essencial continha que o Senhor Director e Com
missarios dos Senhores da Bolsa emprestavão o sitio e
terras do Bemgo até o Sova Gulumgo que suas Armas ha
vião Senhoreado, começando da Barra do Bemgo e sito da
Igreja do Gango, ao Governador Pedro Cezar de Menezes
e a todos os Vassallos Portuguezes del Rey de Portugal
para poderem uzar das ditas terras livremente, em quanto
os Senhores dos Estados de Hollanda o houvessem assim
por bem , com outras forças e requizitos, isto é : alem de ou
tras clausulas da capitulação, que não relata o Autor desta
Historia , pello haver feito outra penna mais bem aparada e
douta do que a do Autor, que foi o Abbade de Pera (2) onde

(") Annes.
C) O abade de Pera citado pelo autor é o Doutor João Salgado
de Araujo; e a obra citada é « Successos militares das armas portugue

296
o Curiozo o pode ver no Livro que escreveo das guerras de
Portugal com Castella , despois da feliz acclamação por suas
fronteiras e Provincias, e nelle escreveo a capitulação que
fez o nosso Governador por seu Plenipotenciario, o Letrado

zas em suas fronteiras depois da real acclamação contra Castelia , Lis


boa 1644 ». 1 vol. No Livro V tem uns captitulos em que trata do
ultramar; no capitulo 3.º deste livro trata de Angola e ali tem as capi
tulações feitas entre o Director holandez e o Governador Menezes ,
assinadas na Barra do Bengo em 30 de Janeiro de 1643.
Quem negociou estas capitulações foi o 'Licenciado em Leis Antonio
Guerreiro, que o autor menciona, e o feitor da Fazenda Real em An
gola, Diogo Lopes de Faria .
Por uma carta deste ao Rei e datada de 5 de Março de 1643, do
Arrayal do Gango se vê : — Que tendo o Gov.dor recebido por via dos
holandezes as novas da publicação das pazes mandou a Loanda os
dois individuos acima citados para ali tratarem de tudo tocante ao
serviço do Rei e conveniencias para o bem da paz; que os dois assistiram
em Loanda desde 17 de Novembro de 1642 até 15 de Fevereiro de
1643. Concedeu o director holandês que o Gov.dor podesse ir com os
inoradores para proximo da Barra do Bengo e tivesse o arraial, como
na data da carta o tinha, em um outeiro meia legua pela terra dentro,
junto ao mesmo rio , que os moradores e mais pessoas podessem cul
tivar as terras e fazendas que nele havia , por tempo somente de nove
meses, que começou em fins de Janeiro de 1643, até ir resolução do Rei
e dos Estados Gerais. Que tendo chegado a Loanda um barco com
cartas do Rei , o director holandês não o deixou comunicar com o

Gov.dor, antes pôz guardas que impedissem qualquer comunicação; só


depois consentiu, a pedido do Gov.dor, que pudesse desembarcar as mu
nições que, por ordem do Rei , o Gov.dor da Bahia tinha mandado;
cousas de mercancia não tiveram licença de as desembarcar e o barco
não saiu do porto de Loanda. Que as mercadorias portuguesas haviam
de pagar 25 %. Muitas outras vexações e imposições foram postas aos
portugueses.
Nesta carta pediu o seu signatario ao Rei que socorresse Angola,
que era impossivel os portugueses viverem ali assim.
Esta carta , assim como a de Pedro Cesar de Menezes, datada de
9 de Março de 1643, de que já falei atraz, foi ao conselho Ultramarino
que as mandou com vista ao conselho da Fazenda. O Provedor da Fa

297
Guerreiro, e do que obrou o Flamengo á falsa fé de baixo
disso; tudo escrito na verdade como passou , e o certifica
assim o Autor por o ver e saber de mais perto, que logo se
especificará mais miudamente.

zenda, que já tinha estado em Angola, deu uma extensa informação


ás duas cartas. Dizia ele que o Rei devia mandar socorrer o reino de
Angola com a maior brevidade que pudesse ser e com o maior so
corro que fosse possivel e sua necessidade pedia por maneira que não
Só se conservasse , mas que dela se lançassem os holandeses que tão
injustamente ocupavam Loanda. Que deviam ir 4 a 6 navios da nossa
Armada e 4 navios de particulares. Não se lançando de Loanda as
holandeses, que se fundasse na barra do Dande uma cidade com for
tificação com que ficasse defensavel e os nossos navios seguros. Muito
melhor seria empregar os meios de conveniencia a que os holandeses
nos largassem a cidade .
O conselho ultramarino aprovou que fosse um socorro a Angola
mas formado e saído da Bahia ou do Rio. (Consulta de 19 de Setembro
de 1643, cujo original está na caixa 145, onde tambem estão os origi
nais das duas cartas citadas; a consulta está registada no Livro de
consultas de serviço , fl. 350 ).
Como nada se fez em virtude desta consulta, foi o assunto tratado
em outra, sendo esta em 14-10-1643. O conselho insistiu em que devia
ir um socorro a Angola, mas em segredo e com aparencia de que os
navios iam para o Brasil, e isto por vontade do Rei. Deviam ir 6 na
vios das que tinham vindo do Brazil, de maior porte, com 600 infantes
abastecidos e pagos por 6 meses; importava o custo de uma e outra
cousa em 13.958 $ 600 reis, não entrando nesta conta a polvora e armas
da infantaria e mais monições e reforçar os navios de artilharia , pois
todos 6 estavam faltos dela.
Devia -se mandar agregar aos 6 navios mais 4 da Armada e tri
pulados com infantaria da mesma, o que aumentava a despeza deste
socorro quasi outro tanto . O Rei resolveu dizendo : - «O conselho a
cuja ordem está o governo de toda a minha fazenda procure os effeitos
para este apresto ; e para os que houver se forem necessarias ordens
minhas as mandarei logo passar.
Em Evora a 23 de Outubro de 1643.»
(Livro de consultas de serviço, fl. 355 ) .
Este socorro não foi, ou , melhor, não houve dinheiro para ele ir.

298
CAPITULO QUARTO DA TERCEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS PROSEGUINDO SEU GO
VERNO PEDRO CEZAR DE MENEZES.

Com o Capitulado e segurança delle se abalou o Gom


vernador com a gente de seu Arrayal, e os Moradores com
os dezejos que tinhão de se verem perto da sua Cidade man
darão descer da Villa de Masangano suas Cazas e familias,
e Escravaria para as suas fazendas e arimos do Bengo até
Gulumgo que dista da Barra do Rio Bengo tudo por elle
acima algumas dezaseis Legoas ou mais; e o Governador com
toda a gente do seu Arrayal situou a Igreja do Outeiro de
Gango, (1 ) junto da dita Barra, e distante da Cidade tres
para quatro Legoas; naquelle sitio se alojou com suas Cazas
e Cortinas para a Infantaria sem reparo ainda que o inten
tasse o Governador, lhe não seria permittido por estar á
merce, em Caza ou terras alheas, que os Flamengos tinhão
por suas, como dito he; nesta paragem esteve o Governador
tendo boas Correspondencias com o Flamengo por estar
de baixo de paz , fé, e palavra estabelecida pella Magestade
de Portugal com os Estados de Hollanda, e concordata feita
entre o Governador e Director, e Commissarios da Bolsa .
Com esta singeleza vinhão os Flamengos ao nosso aloja
menta a vender suas Drogas, queijos e manteiga açucar e
outras couzas para vestir, a troco de patacas e prata La
vrada, e alguns escravos, hindo Portuguezes tambem á Ci
dade vender e comprar, estando tudo como em bella paz e

♡ Esta mudança deve ter sido em fins de Janeiro de 1643; em 9


de Março já o Governador estava na Barra do Bengo, como se vê
na carta delle nesta data, já mencionada.

299
segurança , tanto assim que mandou o Governador vir de
Cambambe, onde até então tinha cantidade de prata Lavrada
e Patacaria, que importavão só as patacas trinta mil, a prata
Lavrada pouco menos e hum Escritorio com ricas Joyas,
tudo valia huma grande fazenda; o Vigario Geral, que en
tão era por morte do Vigario da Matriz da Cidade o Padre
Bento Ferras, que havia deixado o Prelado por sua morte,
e tinha feito em seu lugar o Clero o que agora era e se cha
mava conforme lembrança do Autor, Luiz ou Hianes (1 )
Rolão, o qual parecendo lhe tambem que tudo estava com
boa segurança, mandou desenterrar a prata da Matriz da
Cidade , que era muita, que até então tinha esta enterrada
em o Outeiro do Sova Icolo , em o Campo; paragem que só
dous Sacerdotes sabião della , por não ser publico as mais,
por se não divulgar; os Reverendos Padres da Companhia
e os de São Joseph , mandarão descer para aquelle aloja
mento do Gango muitas couzas de seu Collegio; e os Mo
radores tudo o mais do bom que possuhião, que até então
havia andado fugitivo e escondido; do nosso Governador se
disse, fora o seu intento quando mandou descer a sua prata
e Joyas tivera tenção de a embarcar de mar om fora, de que
tinha permissão do Flamengo de mandar hum Pataxo, que
depois lhe não consentirão; e algumas pessoas disserão, que
seria o mais certo, que queria ver com ella se podia fazer
alguma negociação com o Flamengo para lhe largarem a
Praça ; por quanto lhe dizia Sua Magestade em huma Carta
que lhe escreveo, que visse se por conveniencia se podia
haver a Cidade, visto a occupação das guerras em que es
tava o Reino de Portugal com Castella, e que passasse Le
tras da quantia em que se ajustasse, que logo se satisfarião,
atentando á possibilidade em que estava aquelle Reino.

☺ ) Annes.
1

300
Com a lhaneza e amizade dita hião e vinhão Flamengos
ao sitio do Gango e Barra do Bengo, e vião a opulencia de
tanta prata e joyas de ouro , porque lhes era tudo patente e
franco , e entravão nas Cazas dos Moradores com suas
Mercancias; com este tanto ver e esplorar, lhes foi entrando
a cobiça, a fazerem huma enorme trayção e maldade, que
poucas vezes se tem visto : era então Director e Governador
das Armas Flamengas, conforme lembrança do Autor Cor
nelio Niblan, (- ) que já o não era o Amderson, parece que
o seu secretario governava mais que seu Amo, que assim
succede muitas vezes a quem se entrega tanto, ou por falta
de juizo, ou de outra couza ; este tal Secretario que era pouco
ou nada Catholico, informado dos Flamengos, que hião ao
nosso Arrayal e alojamento da Gango, do muito que ali
havia que elles vinhão buscar de tão longe, se accumulou
com alguns Capitaens da Praça de seu humor e Christan
dade, com o seu Sargento mor chamado o Faca, que tinha
as Costas, quentes em Hollanda, com hum Irmão em Caza
do Principe de Hollanda ou de Orange, o qual lhe avizava
conforme o que dizião os seus, que tratasse de se aprovei
tar, que com tanto se havia de ficar. Accumulados todos
a irem ver a certeza de que a fama esparcia, para o que
fingio o Secretario ao Director huma ficção que parece era
de bom natural, cauza porque o seu Secretario se atrevia
a tanto, e foi dizer que era necessario ir a castigar hum Sova
da Ensaca, que elle queria ir aquella faução com o Sar
gento mor, e taes Capitaens, que assim o houvesse por bem,
e como governava , como dissemos todas as suas potencias
lhe foi otorgada a jornada, sahindo da Cidade de noite, com
a gente mais escolhida, e antes de amanhecer esteve em
boscado ao pé do Outeiro do Gango, e como despois se

() Era Cornelio Nieulant.

301
soube levava intento que sendo sentido fingir que hia dar
no Sova, e pedir ao Governador ajuda para isso da sua
gente, mas como lhe sahio como dezejava, lhe não foi ne
cessario nada disso .
Tocou - se no nosso allojamento a alvorada, sahirão ba
tedores a descubrir campo , por parte que foi a desgraça
não os descubrir nas emboscadas em que estavão ; nas Cos
tas dos descubridores veyo o inimigo traydor marchando
á pressa , e entrando no nosso allojamento a Cavallo o He
rege Secretario, caudilho desta trayção, com outros que o
accompanhavão tambem a Cavallo com suas trombetas to
cando a degolar; e a Infantaria com seus Capitaens nas
Costas; as nossas Sentinellas tocarão Arma estando já abar
bados com o poder inimigo; ao tocar da Arma sahio o nosso
Sargento mor Manoel de Medella, que era muito bom Sol
dado e Conquistador antigo, brandindo huma Cravina que
disparou no Flamengo, e executando o tiro, mettendo huma
Companhia de Cravineiros as Cravinas á cara derão huma
carga com que matarão ao Sargento mor e aos mais que
forão acudindo e sahindo ao estrondo, a todos forão ma
tando encaminhando - se para a Caza do Governador e Corpo
da Guarda, onde as Bandeiras matarão ao Capitão Antonio
Monos, e ferirão a hum que com valor defendeo o posto das
Bandeiras; a que estava de Sentinella, lhe decão alguns
suchaços, e hum em huma perna que ainda no tempo em
que se escreve he vivo, e por tempos lhe arrebenta e bota
algumas Lascas de osso da Canella pellas feridas, cazado
e Morador em Masangano, e seu nome he João Rabello, e
tem occupado postos mayores na milicia; matarão tambem
o Capitão mor Antonio Bruto que de proposito o buscarão
para isso ; ao Capitão dos Moradores João Pegado da
Ponte pessoa autorizada, Cunhado do Capitão mor, por re
parar em o não discomporem , que era hum Capitão vivo,
querendo lhe descalçar humas meyas que calçadas tinha,

302
atirarão com huma Cravina, que logo cahio morto ; a Pe
dro de Govea Leite Cidadão e pessoa muito nobre o feri
rão de morte, ainda que logo não morreo , foi morrer á
Cidade; ao Capitão de Cavallos e Cabo de Companhias
Antonio Teixeira de Mendonça , por reparar em lhe des
pirem o Gibão por ter huns botoens de prata, o matão se
lhe não acudira o Governador, por ser junto da porta de sua
Caza, dizendo que tal trayção se não havia feito nunca
onde havia militado, que já que lhe matavão a sua gente
e descomponhão a seus Officiaes mayores, que o matassem
a elle logo, e lhe atirassem com huma Cravina, que não que
ria ver tão infame, e fementida gente; hum Ajudante então
metteu seu chuso para o Soldado ( flamengo ) que derriçava
pella manga do Gibão; com isso o fez largar, e este Ajudante
fez com o Governador se recolhesse para Caza , e passou
palavra se não matasse mais gente.
Hum Capitão nosso chamado de Alcunha o Maginhos
se havia sahido das Cortinas para fora com a sua compa
nhia em ser, e podendo retirarse ao menos com ella , se veyo
a render aquelle inimigo; com a occupação do Saque em
quanto andavão occupados nelle, se sahio alguma gente mo
radora onde entrou hum Rui Pegado, que ainda que não
era cazado havia sido Conquistador antigo, que havia
occupado postos mayores, como dito he; este Soldado e ex
perimentado com sua autoridade que éra já homem de idade,
se foi retirando com alguma gente, que a sy foi agregando.
Tendo o Flamengo esbulhado e saqueado o Arrayal e
allojamento do Gango Barra do Bengo, o qual (saque ) foi
de muita importancia e valor consideravel ; tambem se disse
que naquella perturbação hum Criado honrado do Gover
nador por nome Francisco Monos, que servia juntamente o
posto de Alferes de uma Companhia paga, aquem naquella
occazião havia morto o inimigo ao Capitão Antonio Monos
seu Irmão mais velho, de que atraz se fez menção; este fiel

303
e honrado Criado advertidamente abrira huma gaveta do
Escritorio de seu Amo em que tinha as couzas de mais valor,
e tirara huma bolça de Moedas de Ouro que metteo na al
gibeira no que não reparou aquelle inimigo, por ter muito
em que satisfazer sua cobiça ou Ladroice, a qual dera em
a Cidade ao Governador, que lhe não valeo menos do que
a vida; pello máo trato que lhe derão só afim de lhe acaba
rem a vida, que a não ter aquelle soccorro , que aquelle bom
Criado lhe prevenio com semelhante acordo, morrera á min
goa, em huma doença que teve, e não tivera com que passar
em tamanha mizeria, e afflicção com a qual o tiverão pri
sioneiro .
Feito o inimigo Hollandes (- ) o emprego a que veyo, mar

© Esta acção dos holandeses foi na manhã do dia 17 de Maio


de 1643, e não em 26, como diz Lopes de Lima enganado pelo catá
Jogo dos Governadores de Angola, publicado pela Academia na Cole
lecção de notícias para a história e geographia das nações ultramari
nas, tomo III. — A data de 17 de Maio é dada em um relato deste
roubo por dois religiosos da Companhia de Jesus, que a ele assistiram ,
o P. Gonçalo José e o irmão Antonio do Porto. Eles dizem que os
holandeses prenderam umas 200 pessoas e deportaram 170, as quais
chegaram a Pernambuco em 27 de Julho de 1643, vindo entre eles os
dois religiosos. Estes vieram para Lisboa e aqui fizeram ao Rei um
relato, cuja copia existe na Biblioteca Nacional, no Nucleo antigo dos
.mss., codice 7.162, fl. 132. A segunda consulta de 23-7-1644 tambem dá
a data de 17 de Maio e diz que prenderam o Governador e mais 160
homens e mataram 50. (Livro I de consultas mixtas, fl. 98 ) .
A obra atraz citada, na fl. 321 , do Dr. Salgado de Araujo, tem
tambem um relato desta infamia e diz que foi em um domingo dia 17
de Maio.
Depressa chegaram a Masangano os que puderam escapar á prisão
ou á morte , pois a eleição do Governador Antonio de Abreu de Miranda
foi ali em 22 de Maio , como adeante se verá em nota. Dizem os dois
religiosos mencionados que havia 3 ou 4 dias tinha chegado a Loanda
um navio ido de Pernambuco e por ele souberam os holandeses de ale

304
chou para a Cidade da Loanda com toda a gente prisioneira,
mandando em Lanchas por mar os feridos, e as couzas de
mais volume , que não pôde carregar por terra; antes de par
tirem chegou hum Flamengo por nome Daniel, que devia de
ter algumas couzas de Catholico, e disse em segredo ao Go
vernador, ahi te hão de offerecer hum Cavallo para mon
tares! não no aceites porque determinarão fazer no Caminho

guns actos praticados contra eles em Pernambuco e Maranhão; que o


ataque ao arraial do Bengo foi uma vingança e represalia dos ho
landeses.
A Companhia Ocidental holandesa desculpou-se mais tarde desta
vilania, fundando a desculpa nos testemunhos de cinco maus portu
gueses, que obrigados com umas poucas de patacas juraram que os
nossos queriam fazer aos holandeses o mesmo que eles nos fizeram ;
ajudaram tambem a isto alguns castelhanos. Estes portugueses eram
dos que tinham ido ter a Amsterdam . Consta isto da « Corresponden
cia diplomatica de Francisco de Sousa Coutinho » , já citada, pág , 111
e 128 ao fundo.
Em 17 de Outubro de 1643, não se sabendo ainda em Lisboa do
roubo do arraial do Gango, em uma consulta do conselho de guerra,
reunido em Evora, onde o Rei então estava, foi tratado : « que com
toda a brevidade se deve acudir a Angola; sem a qual praça se não
pode sustentar o Brazil , nem este Reino sem aquelle Estado, e que se
peça a Salvador Correia de Sá hum papel dos melhores meios que
sobre isto poderá aver, e que tudo se remeta a este conselho para se
tomar resolução nelle » .
O Rei resolveu que se pedisse o papel a Salvador Correia e se
notasse no conselho de Guerra sobre elle .
Salvador Correia deu em 21 de Outubro três papeis ao Conselho
de guerra , tratando no primeiro de Angola, dizendo : « que em Angola
temos amisade com os negros Jagas e que estão por S. Mag.de, três
fortalesas ainda que pela terra dentro são de efeito; e as pazes com os
holandeses não dão logar a que se obre contra eles o que merecem ;
e que lhe parece se vá tomar o porto em que está Pero Cesar por
estar junto do rio que vae ás conquistas e para este efeito se tire da
Bahia 600 homens e que se faça com elles a mesma despeza que na
Bahia se fazia ; e que de Sam Paulo vão alguns moradores com indios

305
huma briga fingida, e darem te com huma bala, porque lhes
não está a conto a trayção que fizerão, terem te ou levarem
te vivo; o que logo o Governador experimentou a offerta
do Cavallo, a que respondeo que pois seus officiais mayores,
Vigario Geral, Sacerdotes, Religiozos, e Cidadoens hião a
pé, elle os queria accompanhar da mesma sorte, que não pa
recia bem ir elle rindo, quando a sua gente hia chorando;

a quem se farão para isto mercês de abitos e foros aqueles que mais
indios levassem ; e que vão esta gente em seis embarcações e que esta
facção se pode fazer com titulo de conservar as pazes e que só se
trata do comercio dos vassalos desta Corôa e que convem que logo
se acuda áquele Reino a respeito do Brazil e da conservação dos por
tugueses d'Angola e reputação com os naturais . »
Dizia mais Salvador Correia que lhe parecia conveniente por -se
em pratica com os holandeses que largassem o Brazil e Angola, ainda
que por isto se lhe desse quantia consideravel, a qual podia sair das
mesmas praças, ficando a amisade em seu ser, de modo que se não
pudesse ocasionar a novos excessos que se podiam esperar.
O Conselho de guerra conformou - se com o papel de Salvador
Correia e que o Rei devia nomear governador sem demora para An
gola e que tivesse pratica de lá.
Não se compreende bem a razão porque este Conselho em Evora
tratava deste assunto quando em Lisboa o Conselho Ult.nº se ocupava
tambem do mesmo na Consulta de 14-10-1643, de que se falou atraz,
aquele teve resolução do Rei em 23-10 do mesmo ano . Devendo- se já
saber em Lisboa do roubo do arraial do Gango, e estando já o Rei
aqui, mandou Ele, por Decreto de 16 de Dezembro de 1643, que a con
sulta do conselho de guerra, feita em Evora, fosse agora para o Con
selho Ult.mº para ele informar. Este Conselho não teve grande pressa
em tratar de tão importante assunto , que agora tinha tomado outra fei
ção pela prisão do Gov.dor e roubo do seu arraial do Gango, pois como
já se disse devia -se saber nesta data já em Lisboa; só tratou dele na
consulta de 10 de Junho de 1644 e não teve efeito algum , apesar do
Rei por resolução de 15-6 do mesmo ano se conformar com o parecer
do conselho ,
Consta isto tudo da dita consulta, Livro I das consultas mixtas,
fl , 87, v.

306
despois disto agradeceo o Governador a este Flamengo o
avizo que lhe deo hindo elle a Masangano, como se dirá ao
diante desta história, (" ) que tambem entre máos, se achão al
guns bons; e lhe servio este Flamengo tambem de lhe haver
duas Cartas del Rey nosso Senhor, huma que teve sua ,
antes de sua feliz acclamação, de recommendação, e a
outra em que lhe ordenava se chegasse ao Mar, e que
visse se por negociação podia haver a Cidade de que já
se fez atraz menção, as quaes lhe havião tomado com o
mais .
Chegados que forão á Cidade derão ao Governador o
seu mesmo Pallacio por prisão, pondolhe mui boa guarda ,
tendo - o com aperto, deixandolhe só um Pagem que se cha
mava Francisco Faya, para o servir; os demais prisioneiros
meteram na cadeya e Caza da Camara com bastantes Vigias ,
e ali os tiverão alguns dias, dando lhes muito máo trato ,
pouco que comer, e muito que trabalhar, levandoos todos
os dias ao trabalho do forte do morro de São Paulo , que es
tavão fortificando, e á noite á prisão, dando lhe hum pequeno
de brote, (2-) e esse bem ruim , até que lhes derão hum Na
vio velho mais para se subverter e naufragar, do que para
navegar no Mar largo, com pouca agoa e com tudo ; e foi
isto tudo tanto assim que hindo no Mar tiverão huma des
compostura dous dos prizioneiros sobre huma pouca de fa
rinha , ou de agoa , e abraçados ambos se botarão ao Mar ,
onde ficarão para sempre ; hum delles se chavama Pazcoal
Farinha , homem que havia vindo a este Reino com grosso
negocio ; e o outro era o seu nome Jorge Dias Meza , So
brinho do Contratador Rui Dias Meza , que o havia sido
deste Reino; a que acudio a Providencia Divina , levandoos

© No principio do cap. 8.º da 3.º parte.


C ) De brote - é beberete, refeição simples composta de bebidas.

307
21
a salvamento, se bem famintos de tudo, a Pernambuco , (1 )
hindo sem parar dando á bomba pella muita agoa que fazia
o Navio; dizem como a experiencia nolo mostra, que o Gato
não pode nunca fazer boa companhia com o Caxorro, e
menos , e muito menos a podem fazer Catholicos Romanos,
com Lutheranos, e Calvinistas, e outros de semelhantes Sei
tas; assim que não há que estranhar o modo com que se
houverão com os nossos prisioneiros.
Disserão que o Director Cornelio Niblan , (?) ou Ans
mol tomára isto muito a mal, de calidade que lhe cauzára a
morte, por quanto havia ficado com o Governador em umas
vistas , (* ) que tiverão em a Barra do Bengo junto do nosso
allojamento do Gamgo, que vindo de Hollanda alguma or
dem em contrario ao assento do Capitulado, que elle o avi
zaria ; para se crer isto, houvera de fazer alguma demons
tração de castigo com o Sargento mor, Secretario e Capi
taens; huma vez que o não houve, he certo que todos
participarão, e os Commissarios da Bolsa muito mais, que
não havião ainda molhado a boca em couza que fosse tão
limpa, como o tinha sido o esbulho do nosso allojamento : (* )

( ) Chegaram a Pernambuco em 27 de Julho de 1643, como já disse


atraz em nota na pág . 304.
☺ ) Cornelio Nieulant, era o segundo Director holandês em Loanda
e Hans Molt foi o terceiro .
( ) Uma entrevista.
(* ) Quem aqui deu a noticia deste roubo ao Rei foram sem duvida
os dois religiosos Jesuitas de que já se falou atraz. Era então nassa
embaixador na Holanda, com residencia em Haia, Francisco de Sousa
Coutinho; este teve noticia do facto poucos dias antes de 15 de No
vembro de 1643, mas só teve ordem do Rei para tratar de Angola em
carta, que recebeu em 11 de Janeiro de 1644, e logo em 13 teve audien
cia dos Estados Gerais onde fez a reclamação devida. Não faltaram
promessas e boas palavras de nos ser dada uma satisfação, mas esta
nunca o foi nem em Holanda nem em Loanda. Os interesses tinham
grande força para obstar a uma justa reparação,

308
tambem se disse que irritados das novas que tiverão de al
gumas molestias que as nossas Armas lhe havião dado no
Maranhão, e quizerão cá em Angola desquitar; em fim todo
viene a pagadero como diz o Espanhol.
Antes que entremos em outro Governo será bom dizer
algumas antecedencias do nosso Governador prisioneiro, que
como o Autor he historiador moderno, e só nesta occazião
o tem sido, não pode levar as couzas tão bem enfiadas como
isso , e mais sendo as couzas tão diversas como em esta tão
larga historia se tem relatado, e se vay dizendo ; disto se
compadeça o benevolo Leitor.
Estando o Governador em Masangano já convalecente
da grande doença que teve, chegou hum Negro por terra do
Reino de Benguela atraveçando aquellas Provincias dos Sum
bis e Libolo, e foi o primeiro que semelhante caminho fez;
era Negro intelligente, de hum Morador daquelle Reino auto
rizado, que havia occupado postos mayores, por nome An
tonio Gomes de Govea, o qual vinha por poder aturar tão
dilatado caminho com alparcas de Couro Crû nos pés, como
outros Gabaonitas (1 ) que as trazião de tão perto para enga
nar, e este de tão longe não para isso; o qual veyo a sahir
á nossa fortaleza de Cambambe; trouxe huma Carta ao Go
vernador em que avizava o Capitão mor e Governador, que
então era, por morte de Niculao de Lemos Lamdim , Manoel

Sousa Coutinho queria que a Companhia Ocidental fosse executada


pela tomada da Barra do Bengo .
Veja-se a « Correspondencia diplomatica de Francisco de Sousa
Coutinho », já citada, pág . 67, 100 , 101 , e 293.
Sousa Coutinho deve ter recebido esta noticia em Novembro de
1643 por 15 ou 16 soldados portugueses idos para lá de Angola (dos
deportados ), e que elle tinha em sua casa , pág. 78.
© Dos Gabaonitas de que se falla que vierão com os Vestidos e
Alparcas rotas para enganar, como o relata o Autor do Governador
Cristiano. (Nota marginal do Autor ).

309
Pereira ; e a substancia, que continha, era, em como o Fla
mengo se havia apoderado da Cidade de São Phelipe, Ca
beça daquelle Reino, e de sua fortaleza, que como está si
tuada na Marinha, á borda do Mar, a começou a bater com
Artilharia das suas Náos , e por terra com gente que nella
botou; e lhe forão dados rijos combates , em que de parte a
parte tinha havido mortos e feridos, mas que com o muito
poder, despois de grande rezistencia, se havia rendido a par
tido, por não serem entrados á força de Armas, e fossem pas
sados todos ao fio da Espada; e que havião feito Capitula
ção e pacto em seu rendimento com o Governador daquelle
Reino Niculao de Lemos Landim , em que estarião os Mora
dores e Soldados na Cidade e Povoação de boa paz com seu
Governador; que passado algum tempo tinhão sido avizados
por hum Commissario da Bolsa , chamado Cornelio Noelbs.
Catholico, que havia cazado na dita Cidade com huma nossa
Portugueza, pessoa honrada assistente naquelle Reino, em
como o Flamengo os queria esbulhar do que possuhião; e
com este avizo que tiverão, passado palavra entre toda a
gente Portugueza que naquelle Reino havia, se tinhão reti
rado pella terra dentro para o Quilombo do Jaga Caconda
distante da Cidade cinco dias de Caminho, onde havia mor
rido o Governador Niculao de Lemos Landim , e todos os
mais estavão padecendo muitas mizerias faltos do necessario ,
com mortes de seus companheiros cauzadas da aspereza do
Sertão e mao passar ; o que tudo sofrião por serviço de seu
Rey, e conservação daquelle Reino, e não estarem na sogei
ção de outro Princepe e Nação, e muito menos de quem não
era Catholico, e que o Commissario catholico acima citado
que, alem do avizo que fóra parte, com o avizo que lhes deu ,
de não serem todos destituidos do pouco que possuhião, e
não estarem de baixo de sua servidão, estava retirado tam
bem com elles em Companhia de sua Mulher; esta era a
relação que dava do estado daquelle Reino de Benguela

310
seu Capitão mor e Governador, ao Governador e Capitão
mor Pedro Cezar de Menezes.
Chegou tambem neste tempo a Masangano hum Negro
crioulo fugido da Cidade e disse ao Governador em como a
Cidade da Loanda estava despejada, e se tinha embarcado o
Flamengo, por não poder suportar o ruim Clima da terra ;
cuidando o Governador não fosse , vir aquelle Crioulo com
aquella nova , alguma industria e estratagema do Flamengo,
para nos fazer por em algum precipicio , ordenou ao Capitão
e Cabo da Coamza Fernão Rodrigues se mandasse certificar
do que aquelle negro dizia , que era Escravo de hum Arma
dor das Indias de Castella, mandando polo a bom Recado; e
que se fosse certo o que dizia o havia de premiar, e se não
teria seu castigo merecido; com dita ordem mandou o Capi
tão e Cabo da Coanza a hum seu Genro por nome Agosti
nho Caldeira Pimentel homem Soldado e Reformado da
Campanha de Pernambuco, com o Alferes Fernão Alva
rez, com mais tres Soldados em suas Redes por não hirem a
pé, pello Caminho de Columbo, que fazem nove Legoas á
Cidade, accompanhados de bons Negros do dito Capitão e
Cabo, com ordem que fossem descubrir a Cidade dos Altos
della, e seu porto, e se certificassem do que havia; hidos os
ditos homens avistarão a Cidade e a exploração toda ao re
dor , em que houvirão pouco rumor, mas não despejada como
o Crioulo disse, com dous Navios sós no porto; e por não
tornarem sem fazer alguma couza , lhe tocarão Arma todos
juntos dos Altos da Cidade, com que os deixarão postos em
Arma e Confuzão; com estas noticias se tornarão; e derão
parte ao Capitão e Cabo, que os havia mandado, do que vi
rão, e havia na Cidade, e elle a mandou dar por hum dos
exploradores ao Governador que certificado do engano e
mentira do Crioulo o mandou enforcar.
Com tudo isso por saber mais ao certo o estado da Ci
dade, mandou a ella hum homem intelligente por nome

311
Manoel Froes Peixoto, pessoa nobre que sabia bem a lingoa
desta terra de Angola, e lhe ordenou fosse ter com o Di
rector e Governador das Armas Hollandezas, a pedir-lhe
alguns medicamentos que estava doente, e lhe erão neces
sarios para sua Cura, por seu dinheiro fosse servido man
dar -lhos dar; isto continha o recado, e quando chegou este
Inviado á Cidade dando avizo da banda de fora de como
hia , o vierão receber a São Joseph e dali a levarão com os
olhos vendados até entrar na Praça e no Collegio, onde o
Director morava, e em sua prezenca o destaparão; ficou
aquelle Governador das Armas estrangeiras de acordo dado
o recado, em lhe mandar dar os medicamentos e medecinas
que lhe mandavão pedir; em tanto o mandou apozentar em
humas Cazas dentro das suas trincheiras e fortificação, com
guarda á porta para que não fallasse com pessoa que o po
desse informar e dar noticia do que havia na Praça; mas
como sabia a lingoa desta terra, em que era mui dextro,
ainda que filho de Portugal, com os mesmos Negros do Fla
mengo e alguns Mixiloandas da Ilha se informou, que para
isso foi mandado, e ainda as mesmas Sentinellas, que a porta
tinha alguns Soldados Catholicos de Nação Franceza , The
derão informação do estado da Cidade, e da gente com que
de presente se achavão, e lhe disserão que para a sua en
trada haver muito rumor de gente, ainda que o levavão com
a Cara vendada , tomarão muitos Officiaes as Armas para
fazerem mais numero de Soldados; com estas noticias, e ou
tras que alcançou havidas as Medicinas e Algum Açucar ,
que cumprou por Patacas, se veyo de volta para Masangano
dar razão ao Governador do que o havia mandado saber,
e do que tem relatado o Autor.
Tinha o Governador tambem disposto huma guerra para
o Libolo e sua Provincia, a pedimento dos Sovas della que
estavão muito molestados com a guerra que lhes fazião mui
tos Quilombos de Jagas, que na dita Provincia assistem, para

312
o que havia despachado a Vicente Pegado da Ponte por Ca
pitão mor della , com gente bastante para aquella empreza ,
em que houve muitas batalhas, e encontros com diversos qui
lombos de Jagas e Sovas da dita Provincia, ficando muitos
Sovas no reconhecimento de Vassallagem del Rey Nosso
Senhor pello beneficio recebido; temos dito o que faltava por
dizer em o Governo do nosso afflicto e prisioneiro Gover
nador; vamos agora a chorar hum pouco, vendo Lastimas
dos affligidos e Lastimados Moradores.
Chegou pellos escapados da rota do alojamento do
Gango e Barra do Bemgo o avizo aos Moradores que esta
vão esparcidos ou divididos por suas fazendas e arimos com
suas Cazas e familias, e outras Mulheres principaes, que lhe
haivão morto, e aprisionados seus Maridos, tendo para
by (1 ) não serião mais molestados e desinquietos da
quelle socego: Concidere o Pio Leitor que tal ficaria esta
gente com tal successo não esperado; que lastimas e Choros
haveria , naquellas Mulheres que lhes faltavão seus Maridos,
que se consideravão todos em pior estado do que quando se
retirarão da Cidade, e estiverão nos primeiros Arrayaes do
Bengo; pois então tinhão hum Governador por seu Caudilho
tão homem e tão Soldado de quem fiavão toda a sua con
servação e defensa , e hum Prelado de tanta virtude e exem
plo, que servia a todos de consolação; faltos de Cabos, Sol
dados e gente de guerra , pois a mais da que havia a tinhão
morto e aprisionado; cada hum dividido para sua parte;
accompanhados sós de sua Escravaria, que faltandolhe o
que devião a seus Senhores, estavão em suas mãos postos,
para o que a fortuna desse de sy, ou favoravel ou adversa :
bem conhecião que o Açoute de Deus o tinhão ainda sobre
sy, pois quando se consideravão mais favorecidos do Ceo .

Estando eles confiados não serião.

313
então se vião em mayores afflicçoens; Lembrava -lhe huma
como Profecia predita por hum Religioso da Companhia
de Jesus, pessoa de grande virtude por nome o Padre João
de Payva, que havia agora sido aprisionado com os mais
Religiozos da sua ordem em a Rota presente, o qual tinha
prognosticado, fundado dizião em huma Profecia de Esdras,
em que sete annos havia de durar o castigo de Deos em os
Reinos de Angola, e que nenhum Morador dos Antigos viria
á terra restaurada nem tornarião á Cidade, seus filhos sim;
o que elles hião já vendo e experimentando pellos muitos
que já faltavão, huns mortos na calamidade do Sertão, outros
pello rigor das Armas inimigas , assim dos Belgas Hollande
zes, como do gentio, ou aprisionados. Este dito Religiozo
no tempo que se escreve esta historia está vivo já muito
velho, cada vez mais virtuozo, em o Collegio da Cidade da
Bahia .
Vendose os Cidadoens e Moradores e mais gente par
ticular esta tão urgente necessidade, se forão com toda a
brevidade aprestando para hirem a experimentar o rigor do
Sertão, e aspereza dos Matos, por serviço de seu Principe
e conservação destes seus Reinos, por se não verem sugeitos
a huma Nação tão contraria á nossa em Religião, querendo
antes padecer trabalhos, e mizerias morrendo pellos Matos,
do que perderem a fé e Lealdade devida a el Rey de Por
tugal, fineza que em poucos Vassallos como os de Angola
se tem achado, porque muitas vezes, nasce de huns Vassallos
se não metterem com inimigos, ou de temor do Castigo, ou de
respeito devido a quem governa; mas estes singulares Mo
radores e Cidadoens estando em sua liberdade para abra
çarem a parte que mais a conto lhe estivesse ; porque a te
mor do castigo não o tinhão de presente de quem o ter;
respeito, não havia pessoa a quem o devesem pois faltava
naquella occazião em que estavão quem os dominasse com
superioridade; assim que todos elles vinhão a ser iguaes em

314
vara , (* ) que assim como tomavão a derrota para os Matos
e Sertão a pudérão tomar para a Cidade, ou deixarem - se
estar em suas fazendas do Bengo como estavão , que assim
os aceitára aquelle inimigo, e folgára muito, que era o que
dezejava para de todo ser Senhor destes Reinos, e se per
petuar nelles; assim que ninguem lhe póde negar serem e
haverem sido a plús ultra da Lealdade Portugueza.
Forão - se os ditos Cidadoens e mais gente congregandose
huma a outra, com as tristes Viuvas e desemparadas com
suas familias , que a humas lhes havião morto seus Maridos
e a outras aprisionado; fazendo alguns juntos hum corpo
gesto, com suas Mulheres e familias, comboyando por seus
Escravos alguma couza , do pouco que possuhião, ajuntan
dose algumas familias para assim hirem mais accompanha
nhados ; outros tomarão outros caminhos , mas todos com a
proa para a Villa da Victoria de Masangano Valhacouto
de seus trabalhos , ainda que sitio doentio, mas tal qual hé,
se goarecião e sustentavão naquella Villa , á voz del Rey
nosso Senhor Dom João o Quarto, e conservação destes seus
Reinos.
O Morador e Conquistador Antigo Rui Pegado, que no
principio da Rota dissemos se viera retirando com alguma
gente , foi tambem recolhendo, e ajuntando a mais que pode,
com a frente a Masangano, em o que o ajudou nesta con
ducção, hum Sova por nome Angola Quiaito da lotação da
Capitania e fortaleza de Masangano, que nesta occazião se
mostrou Leal Vassallo, hindo com sua gente desde o Gango
e Barra do Bemgo, onde estava assistindo ao Governador,
amparando a nossa gente, e buscando-lhe o sustento pello
caminho, por serem alguns delles Soldados e gente pobre;
e como vião ir em sua guarda aquelle Sova tão conhecido
dog mais do seu Lote, se não atrevião os que estavão pello
į Vara, jurisdição.

315
caminho a executar nos nossos Portuguezes o que dezejavão;
até que chegarão em paz se bem com trabalhos a Masan
gano, acaudilhados daquelle bom Velho e Soldado Antigo,
Rui Pegado; os mais Moradores vierão chegando como po
derão e se forão guarecendo com suas familias em as para
gens e arimos que na outra retirada lhe havião servido de
apozentadoria e estalagens.
Com a falta do Governador começou a haver, entre tan
tos trabalhos e misérias, alteraçoens sobre quem havia de
governar; o Capitão mor, que então era da fortaleza e
Capitania de Masangano por el Rey, André da Fonseca
Gomes já despendia ordens, como quem lhe parecia presidia
a tudo, mandando ao Capitão e Cabo da Coamza lhe viesse
dar a venia , no que não foi obedecido; o Capitão mor Vi
cente Pegado da Ponte, Irmão do bom velho Rui Pegado,
como Compatriota daquella Villa, que tinha muitos da sua
parte, se fazia já investido no Governo; os mais Cidadoens
Moradores do Reino tinhão a mira posta em Antonio de
Abreu de Miranda , que se achava com bastão de Capitão
mor, que havia ficado com hum troço de gente, despois que
succedeo o desbarato do Mato chamado Libumzo, a oppozi
ção daquelle Sova Namboa Amgongo; pudera dizerse nesta
occazião o que disse hum Poeta Castelhano.

En el tiempo de los Godos,


quando no ay Rey en Castilla,
Cada qual quiere ser Rey,
aun que le coste la vida.

Ainda que a pretenção de cada hum não era para rei


nar; era ao menos para quem em seu lugar tem suas vezes
e se respeitão suas ordens, e se guardão seus Mandatos como
de superior; chegado que foi aquella Villa o Capitão mor

316
Antonio de Abreu de Miranda todos lhe derão a bem ve
nida e o applaudirão com titulo de Capitão mor com poderes
de Governador, salvo Vicente Pegado que ainda estava nos
seus treze como lá dizem; mas cedeu de sua opinião ou por
força ou de vontade, com que ficou governando o dito An
tonio de Abreu de Miranda em auzencia do Governador e
Capitão Geral Pedro Cezar de Menezes.
Começou a governar estes Reinos de Angola Antonio
de Abreu de Miranda na Era de mil seiscentos e quarenta
e tres, (1 ) em o principio do dito anno, com titulo de Capitão
mor com poderes de Governador, pessoa nobre por nasci
mento , com foro na Caza Real de Cavalleiro fidalgo, que
assim se intitulava sempre, dos principaes cidadoens da Ci
dade da Loanda; tendo servido na Republica de Juiz Ordi
nario , Conquistador dos mais Antigos do Reino, que havia

( ) Antonio de Abreu de Miranda em Fevereiro de 1643 tinha ido


por ordem do Menezes com um troço de gente a combater no Libunzo
o Dembo Namboa Angongo e seus confederados. como o autor diz
no capitulo anterior a este. Quando soube do ataque e roubo dos holan
deses ao arraial do Gango retirou - se a Massangano, por estar perto
d'ali.
Foi eleito governador por aclamação na praça de Massangano em
22-5-1643; prestou juramento na Igreja Matriz de Nossa Senhora da
Victoria em 25.
Disse - o ele em carta de 2-11 do mesmo ano e também consta dos
traslados de dois autos , sendo um da eleição e outro, do juramento .
A carta não existe, está transcrita no original da consulta de 23-7-1643,
a qual também está no Livro I das consultas mixtas , fl. 98. ( O origi
nal e os dois autos estão no Arquivo Ultramarino ) .
O Miranda foi confirmado no cargo de Governador por carta régia
de 18 de Agosto de 1644 e enquanto durasse a ausência de Pedro
Cesar de Menezes ou o Rei mandasse outro governador. Esta carta foi
resposta à do governador de 2-11-1643 .
António de Abreu de Miranda estava em Luanda havia 41 anos
e sempre em serviço militar; tinha ido para Angola muito moço . Consta
da consulta acima citada.

317
occupado as Capitanias de Angola, já Capitão mor da for
taleza de Muchima , já da Enbaca , e agora se achava ser
vindo actualmente de Capitão mor da gente de guerra, e
não haver nestes Reinos naquella urgente occazião quem
tivesse outro posto mayor, havendo ainda no Reino pessoas
de merecimentos, lhe foi dado por todos a primeira (1 )
Tratou logo, como quem entendia as couzas desta terra e
era nellas tão noticiozo, a por em ordem a direcção de seu
Governo; a primeira couza que fez foi fazer Sargento mor
a Francisco de Brito Castello Branco, pessoa nobre Parente
do Governador que havia sido de Angola Francisco de Vas
concellos da Cunha ; fez alguns Capitaens como forão Jero
nimo do Soveral, João Gutterres de Moraes, Antonio Dias
de Macedo, e Manoel Maciel Villasboas, e outros Officiaes
de Milicia; Provedor da Real fazenda a Antonio do Sove
ral da Fonseca , e Feitor del Rey a Joseph Carrasco; deo
logo ordem a huma fortificação naquella Villa conforme a
possibilidade do Reino, fazendo hum recinto, ao redor da
Igreja Matriz, de trincheiras de taipa de pilão com seus
travezes e baluartes para o que podia succeder.
Mandou alistar toda a gente que podia tomar Armas, e
a repartio pellos Capitaens que havia feito; e porque a In
fantaria estava rota e despida se valeo de alguma fazenda
de particulares que alguns se havião aprisionado em o
Arrayal do Gango, o que fez, por não haver então fazenda
Real, para a seu tempo se lhe pagar, mandando entrar e
sahir de guarda as Companhias, para que visse o Gentio,
e fosse bramo ao Flamengo que ainda na Conquista (? )
gente havia, para emprender qualquer faução.

Ⓡ O primeiro posto.
c) O Director holandês em Loanda não deixava que os navios
portugueses comunicassem com os portugueses residentes em Loanda.
Em fim de Agosto de 1643 chegaram ao porto de Loanda dois

318
Estando dispondo as couzas de seu Governo, na forma
dita, chegou avizo do Capitão e Cabo da Coamza Fernão
Rodrigues, a quem havia passado nova Patente para con
tinuar com aquelle posto e occupação, em como tinha en
trado pella Barra da Coamza huma Lancha do Flamengo, e
mandando a ella disserão vinhão de paz, e trazião Bandeira
branca que o significava; e sabido mais miudamente ao que
vinhão disserão trazião huma Embaixada ao novo Gover
nador do Senhor Director; mandando o dito Capitão avizo
ao Capitão mor Governador, lhe foi ordem a deixasse passar,
e mandasse com ella das suas Lanchas Infantaria para a
conduzirem.
Chegados a presença do Capitão mor Governador
disserão que elles erão inviados pello Senhor Director Go
vernador das Armas Hollandezas a manifestar de sua parte,
e mostrar a razão que tiverão para o damno passado, di

navios portugueses, um ido da Bahia e outro de Lisboa, tendo éste


chegado dois dias depois do primeiro .
No da Bahia ia o irmão Jesuita António Pires, o qual desembarcou
e foi ao colegio, que fora da sua Ordem , falar com o Director holan
dês, que morava no dito colegio, e lhe pediu para comunicar com os
portugueses; o Director lhe disse que não podia dar licença para isso
sem ter licença dos seus maiores, que se quizesse esperar por ella en
trasse no porto que poderia estar seguro. Os do navio ficaram satis
feitos com esta resposta e retiraram-se , sem deixarem carta nem aviso
algum. Este navio levava 70 homens de socorro e algumas munições.
O Governador soube isto por via de um Baltasar Banda que no mesmo
tempo estava em Loanda.
O navio ido de Lisboa tambem não teve licença de comunicar
com os portugueses; contudo o seu capitão, Manuel Pacheco, poude
deixar algumas cartas, das muitas que devia levar para os particulares ,
pelas quais o Governador Miranda soube do estado das coisas em Por
tugal. Este navio retirou -se para a Bahia.
Consta isto da segunda consulta de 23 de Julho de 1644, na fl. 98
do I Livro das consultas mixtas, estando esta noticia na fl . 101 .

319
zendo em como o Govenador das Armas portuguezas estando
com sua gente no sitio do Gango, e Barra do Bengo, que
elles nos tinhão prestado, havia dali contaminado a muitos
Francezes que tomavão soldo e servião a Companhia da
Bolsa e Estados de Hollanda, em que entravão Capitaens
dos Caravineiros, para se passarem ao seu partido e serviço,
e com suas ajudas os botarem fora da Cidade occupada em
boa guerra; o que dizião tinha constado mui claramente ao
Senhor Director e Commissarios da Bolsa; e que, o que lhe
querião fazer, fizerão elles primeiro; com que estava descul
pada a sua demazia e invazão do nosso Arrayal; que se qui
zesse continuar a paz assentada entre o nosso Rey e os Es
tados de Hollanda , que estavão prestes para a guardarem ,
e ter boa correspondencia com os Vassallos da Coroa de
Portugal .
A que respondeu indignado o Capitão mor Governador
que despois de haverem feito huma tamanha trayção e alevo
zia, se vinhão a santificar, e semear tamanha maldade, que
brando a paz assentada e estabelecida entre o Serenissimo
Rei de Portugal e os Estados de Hollanda; que do que
dizião e accumulavão culpa da parte do nosso Governador
pão era constante, e só era patente o que elles havião obrado
fora de toda a justiça e razão, quebrando fé e palavra, e
concordata capitulada que com elles havião feito, quando
descerão para aquelle sitio; que ainda estes Reinos de sua
Magestade tinhão possibilidade de gente para tomarem sa
tisfação pellas Armas; e nisto foi puchando meya Espada,
imitando ao grande Condestable Dom Nuno Alvres Pe
reira , (* ) quando el Rey Dom João o primeiro de Por
tugal , refuzou o tomar o pezo da defenção do Reino de

© Francisco Rodrigues Lobo em a vida que escreveo do grande


Condestable. Cronica da vida del Rey Dom João o primeiro, diz o mesmo
( Nota marginal do Autor ).

320
Portugal, dizendo mil Pedras me negarão antes que as doze
dem ; a que o invicto Condestable respondeo , puchando de
sua Espada, quando haja quem vos negue, não faltará quem
os mate Corpo a Corpo em o Campo; mostrando -se assim
irado o Capitão mor, fazendo aquella demostração de homem
Soldado ; mas fazendo Conselho sobre aquella materia e
proposta do Director, vierão nelle a concluir que, visto o
estado em que estes Reinos se achavão, se admitisse huma
Tregoa e Cessão de Armas, em quanto Sua Magestade
acudia a tanta necessidade; e querendo os Embaixadores
partir para a Cidade pedirão novamente resposta, a qual
lhe deu dizendo, dissesse ao seu Director em como de sua
parte elles hollandezes havião quebrado as pazes com
mettendo hum damno de tanta importancia rompendo a
guerra com os Vassallos da Coroa de Portugal; que elle não
podia revalidar a paz huma vez quebrada, sem disso dar
parte a seu Rey e Senhor, para elle ordenar sobre materia
o que fosse mais seu Real serviço; que para elle o poder
fazer lhe dessem passagem em seus Navios a huma pessoa
que determinava mandar ao Reino de Portugal , e por elle
avizar a sua Magestade do succedido, e que por em tanto,
teria com elle Cessão de Armas.
Disserão os Inviados que elles darião a resposta de sua
Senhoria ao seu Director Governador das Armas , e sem
duvida daria a passagem que lhe pedião, e da resolução
avizarião com brevidade : perguntou-lhes pellos prisoneiros
e pessoa do Governador, a que responderão que a todos
havião dado boa passagem para o Brazil , e que o Gover
nador não tinha hido em sua companhia , por naquella
occazião se achar doente ; e o certo foi que os embarcarão
por serem pessoas de Conta , assim Religiozos como Viga
rio Geral e mais Clerigos, e pessoas Seculares, e não que
rerem admitir o jurarem fedelidade ao Flamengo, como assim
elles querião, querendo antes verem - se desterrados, e em

321
barcados com tanto risco de suas pessoas, do que perderem
a fé e Lealdade devida ao seu Rei e Senhor.
Passados alguns dias mandou o Director recado que
aceitava a Tregoa e Cessão de Armas ; que mandasse a
pessoa que havia de ir para Portugal que lhe farião boa
passagem , com o que o Capitão mor e Governador, aviado
que teve o homem que havia de mandar, que foi o Sargento
mor, que o havia sido, Domingos Lopes de Sequeira , dan
do - lhe o Prego del Rey e instrucçoens do que havia de tra
tar, informando a Sua Magestade do estado do Reino, como
Morador Antigo, versado nas Conquistas destes Reinos; pre
parado do necessario para o gasto da viagem, partio de
Masangano para Cidada, e o Director lhe deo a passagem
para o Reino de Portugal como havia promettido. (1 )

(" ) Na verdade foi este enviado do Governador, Domingos Lopes


de Sequeira, quem trouxe a noticia da infamia dos holandeses do roubo
e traição do arraial da Barra do Bengo dada pelo Governador Miranda.
Estava já cá em Lisboa (provavelmente desde Dezembro de 1643 )
o capitão mór de cavalos e cabo de companhias, António Teixeira de
Mendonça , que ia sendo morto pelos holandeses na barra do Bengo e
que foi feito prisioneiro e embarcado com os dois Jesuitas para Per
nambuco, tendo vindo a Lisboa com eles; dos dois Jesuitas falei nas
notas às págs. 304 e 308.
O Sequeira e o Mendonça fizeram um memorial e deram -no ao
Conselho no qual pediam um socorro a Angola e se ofereciam a levá-lo
e a conduzi-lo a Masangano; pediam duzentos homens, entrando neste
número os soldados de Angola que estavam na Bahia, e que também
fosse Henrique Dias , capitão mór da gente preta , com cem pretos para
comboiarem as munições, podendo entrar nêste número os pretos de
Angola que estavam desterrados na Bahia, menos os sobas fidalgos, por
não confiarem na sua lealdade . Este Henrique Dias , de quem aqui se
falou, era preto e natural de Angola e queria lá ir servir; apesar disto
e de aqui adeante se falar nêle e até o mesmo Rei lhe dirigir uma carta ,
como adeante direi , ele não foi nêste socorro a Angola, não sei por
quê ; este homem distinguiu -se nas campanhas de Pernambuco contra
os holandeses. O autor fala dēle na pág . 184.

322
De baixo desta Tregoa que havia com o Flamengo hião
algumas pessoas á Cidade a buscar e comprar com peças e
prata o de que necessitavão; a algumas lhe permittião a fallar
com o nosso Governador; e lhe levavão alguns soccorros
de Masangano para seu passar, o que fazião pessoas suas

A ida deste socorro a Angola foi tratada em conselho na consulta


de 14 de Julho de 1644 e teve o parecer favorável, como não devia
deixar de ter. O Rei deu o Despacho: — « Cumpra -se e nesta forma
se execute com toda a brevidade» . Este Despacho foi dado no mesmo
dia da consulta. (Livro I de consultas mixtas, fl. 92, v. ) .
Em outra consulta poucos dias depois se tratou da carta que o Se
queira trouxe do Governador. Era datada do arraial de Quimbanza de
2 de Novembro de 1643. O original perdeu -se, mas o extrato está na
segunda consulta de 23 de Julho de 1644, na fl. 98, do Livro há pouco
citado. É uma carta de muita importância. Nesta carta pedia o Gov.sos
António de Abreu de Miranda ao Rei que o socorresse e fazia um
largo relato do desgraçado estado em que se encontravam os pobres por
tugueses em Masangano; dizia que tinha feitos acordos de paz com os
holandeses e que eram as mesmos que Pedro Cesar de Menezes rinha
feito com eles.
o Conselho tornou a dizer ao Rei que mandasse este primeiro so
corro a Angola e éste conforme o Sequeira e o Mendonça o tinham
pedido . O Sequeira, que devia ter chegado a Lisboa em principios de
Julho de 1644, já tinha partido para a Bahia em 16 de Agosto.
O Rei em carta de 18 de Julho de 1644 deu ordem ao Gov.dor do
Estado do Brazil (Bahia ), António Telles da Silva, para ele preparar
2 ou 3 navios para irem a Angola e que em cada um deles haviam de
ir por cabos Antonio Teixeira de Mendonça e Domingos Lopes de
Sequeira, que aqui estavam em Lisboa. Que da Bahia havia de ir o
capitão mór da guerra preta do Brazil, Henrique Dias, com a sua gente
preta; deviam ir os Angolistas que lá houvesse e os pretos que lá foram
ter desterrados, excepto os sobas fidalgos. Que fizesse embarcar até
200 homens e 100 da dita guerra preta.
Este Henrique Dias era bem conceituado pelo Rei , pois the foi
dirigida uma carta datada de 14-11-1644 em que o mandava a Angola
como capitão mór de toda a guerra preta de lá.
O Rei mandou também 4 cartas ao Gov.dor de Angola ( o Miranda ) ,

323
affeiçoadas, e que tinhão á sua ordem como seus Pro
curadores alguma fazenda de sua conta; e se se fizera
instancia por sua soltura, poderia ser o pozessem em li
berdade; mas não sei que tem to de mandar e governar
filhos alheos, que he mui doce bocado para muitos; e tanto

sendo as 3 primeiras datadas de 18-8-1644, e em resposta à do Gov.dor


datada de 2-11-1643, de que já falei.
Na primeira confirmava - o no Gov.". Na segunda censurava - o por
ele ter reatado a paz com o director holandês sem ordem sua e que só
se deviam executar os artigos de paz que Ele tinha feito com os Es
tados Gerais, os quais artigos mandava agora ao Gov.dor. (Os conse
lheiros deviam ter estado nos perigos em que os pobres portugueses es
tavam em Angola para não cahirem na ignorancia de fazerem com que
o Rei censurasse assim o Gov.dor). — Na terceira carta dizia o Rei
que tinha mandado de Lisboa pela Bahia a Antonio Teixeira de Men
donça e Dominos Lopes de Sequeira com armas e munições, de que ia
uma relação junta , para que partindo d'ali :com até 200 homens, com
os Angolistas que lá estiveram, com 100 homens da guerra preta de
Henrique Dias, e os pretos que lá tinham ido ter, passassem a Angola
e metessem este socorro por onde melhor lhes parecesse.
A quarta carta é datada de 20-10-1644; nela dizia o Rei ao Mi
randa que havia muitos dias tinha já partido o Domingos Lopes de
Sequeira e que ia partir o Antonio Teixeira de Mendonça . Em outra
carta nesta data ordenou o Rei ao Gov.dor do Brazil (Bahia ) que desse
todo o socorro aos dois já nomeados, logo que eles lá chegassem .
Este socorro sahiu da Bahia para Angola em 8 de Fevereiro de
1645, enviado pelo Gov.dor do Brazil , que em carta de 16-2-1645 o
disse ao Rei , e disse mais : «O socorro foi em dois navios de particu
lares e em um barco de V. Mag.de com 215 soldados práticos no reino
de Angola e alguns cabos que tinham servido no mesmo reino , e uma
companhia da gente preta de Henrique Dias».
O Rei em carta de 9-5-1645 agradeceu ao Gov.dor do Brazil o bem
que neste particular tinha procedido. É desta carta regia que consta a
do Gov.dor do Brazil, Antonio Telles da Silva, e o que ele fez.
Estas cartas todas do Rei (7 ) estão no Livro I Geral de cartas de
todas as Conquistas, respectivamente, por sua ordem, nas fls. 21 ; 34, v.;
26; 26; 26; 29 , v.; e 51 , v.

324
assim que aquella Imperadora Romana quando naquelle
tempo duravão pouco no Imperio os Emperadores, disse, que
visse ella huma vez a seu filho Emperador, (º ) mas que o
matassem logo; as ruins ilhargas que muitas vezes em
seus governos tem os que governão fazem muitas vezes cegar
o juizo ao que prezume de mais entendido, huma vez que
segue seus dictames, e se deixa governar por quem não de
via; isto succedia ao Capitão mor Governador que alguns
malaffectos ao Governador prisioneiro o estorvavão, ainda
que tivesse vontade de o ver livre, de que não sollicitasse
modos e meyos para se conseguir, por alguns delles ter
occupado postos que tal vez não merecião, e se queirão
ver perpetuados nelles ; o que disto rezultou ao diante se
verá .
Vendo o Capitão mor Governador postas as couzas
destes Reinos em alguma quietação e socego em razão da
Tregoa e sessão de Armas com os Hollandezes, mandou
outra vez prezidiar a fortaleza e Prezidio de Muchima in
vocação de Nossa Senhora da Conceição, com a gente de
sua guarnição Soldados e Moradores daquella lotação, e por
Capitão mor a Manoel da Nobrega , chamado de Alcunha
o saca malage, pessoa de experiencia no serviço del Rey,
e Conquistador dos Antigos destes Reinos; em que não
houve nenhuma repugnancia pello Sova Senhor daquellas
terras da Provincia da Quisama, a respeito de nos ser muito

O arraial de Quimbanza devia ser abaixo de Masangano entre


Casualala de agora e o Quanza.
O autor na pág . 326 diz onde era, mas não o localisa; fala também
nele nas págs. 330, 336 e 341 .
O autor no principio do Cap. 7.º da 3. parte relata o triste fim
da maior parte deste primeiro socorro .
No fim do mesmo cap. está em nota a historia do segundo.
© Agripina foi a deste dizer.

325
fiel, e tratar bem com os Portuguezes como quem se tinha
por Vassallo da mesma Coroa; feita esta diligencia, e dado
fim ás fortificacoens de Masangano se poz o capitão mor
em campo, com toda a gente de guerra que então havia
capaz para as Armas, em o sitio chamado de Pedro Va
gado, terras da Quimbanza ( ) e do Senhorio do Sova An
gola Quiaito da outra parte do Rio Lucala, para dali obser
var os movimentos do Gentio, principalmente da Rainha
Ginga Dona Anna de Souza que nunca cessava com seus
assaltos e acomettimentos em dezinquietar as terras e Se
nhorio del Rey de Domgo Dom Phelipe de Souza Angola
Airi, e aos Sovas da Lotação da nossa fortaleza e Capitania
mor da Enbaca, que não erão de sua voz e partido; e sentio
muito a Tregoa e Cessão de Armas feitas com o Flamengo
que entendeo que, com a perda do nosso allojamento da
Barra do Bengo e Gango e prisão do Governador, estava
perto a nossa destruição, e acabar-se de huma vez o nome
portuguez em Angola , que lhe havião dado o lume da Fé,
e agoa do Santo bautismo, o que a ella pouco lhe lembrava ,
pois uzava mais dos Ritos Gentilicos e de Jagas do que de
Catholica Christãa, e disse maravilhando - se da concordata
feita : não ha que fiar destes, que todos são brancos. Neste
tempo se havia esta Rainha Amazona Senhoreado do Du
cado de Oando Vassallo del Rey de Congo, de grande Se
nhorio de terras e Vassallos; disserão fora com consenti
mento de seu Rey , por aquelle Duque chamado Manioando
se mostrar izento de seu Dominio; e o certo he, que até o
mesmo Rey de Congo com ser tão poderozo temia muito
a mesma Rainha Ginga, e não folgava de a ver tão perto
de sy, e se não havia metter em defender aquelle Duque

© Neste local de Quimbanza formou o gov.dor o seu arraial e


foi d'aqui que datou a carta de 2 de Novembro de 1643.

326
ou Marques, que huma e outra couza lhe chamarão, ainda
que fosse seu obediente Vassallo, que tanto a temião, e a
gente que tinha em seu Quilombo; e esta guerra mandou
fazer por seu Capitão Geral Ginga Amona , (1 ) grande Ge
neral e Soldado; metteremos aqui hum entre Parentezis, que
como esta historia se intitula , as guerras Angolanas, tam
bem lhe compete as que houve entre o Gentio, para que
se veja em breve, e como sogeitou a este Duque Manioando,
e lhe talou e abrazou suas terras e Povoaçoens, e o muito
medo que tinha desta bellicoza Rainha, e de seus Jagas,
conforme a informação que o Autor teve, que foi em seu
tempo .
Marchou este Capitão Geral da Rainha Ginga em de
manda daquelle poderozo Duque de Oando com hum poder
de Jagas muito inferior ao muito que este Duque tinha; e
foi entrando e talando seu Senhorio até avistar o mesmo
Duque que estava em hum Alto assentado em huma Cadeira
de espaldas de Veludo Cramesim franjada de seda , e Ouro,
elle mui ricamente vestido, de baixo de hum grande e bom
Chapeo de Sol, e muitos seus principaes assentados no
chão sobre suas Alcatifas e Vumgas, ( ) quando nisto vio
a huma vista hum Esquadrão ou Mozengo como elles lhe
chamão com suas Bandeiras tendidas, fez muito cazo disso,
desprezando a pouquidade ; bem conheceo pellas Bandeiras,
a que o Gentio chama vellas , que era gente de Ginga , e
pellos avizos que tinhão vindo o sabia tambem ; vendo aquelle
experto Capitão Geral da Rainha o pouco cazo que o Du
que e sua gente fazião delle, sem o buscarem nem outra
couza , despedio do seu Mozengo hum batalhão do seu Em

© Ginga a mona quer dizer na lingoa Ambunda filho da Rainha,


que mona se deriva filho piqueno, que havia criado quando o apanhavão
na guerra. (Nota marginal do Autor ).
C) Devia ser mvanga; esta palavra deve ser da lingua Mbamba.

327
bululu, (' ) que he a gente mais moça do seu Exercito que
elles crião naquella disciplina, dos que apanhão em suas
Conquistas; e esses são os seus filhos mais prezados de que
fazem mais conta , como fez Alexandre Magno quando es
colheo trinta mil Macedonios todos Mancebos, com que
sugeitou muita parte do Mundo a seu Imperio ; Com ordem
hia este Embululu que fossem tirar a Campo aquelle
arrogante Duque e sua gente, e que viessem entretendoos,
retirandose de vagar para o mais corpo do Mozengo, onde
o Capitão Geral estava com a gente mais grauda e ciladas
feitas de bons Mosquiteiros e Espingardeiros.
Assim como aquelle Batalhão da gente Moça chegou a
meyo caminho, levantou do seu estado em que estava aquelle
Duque com os seus, e com arrogancia Muxiconga embra
çando suas Adargas, e empunhando suas Espadas largas
cortadeiras e seus traçados vierão investindo o Embululu ;
elles seguindo a ordem que levavão, rezistindo e fazendo
pés atraz, os vierão trazendo para o Esquadrão e Embos
cadas, as quaes alevantarão de supito, descarregando suas
Cargas com as Armas de fogo, e os mais abalando com seu
Mozengo forão fazendo naquelle Gentio á Maxadinha huma
grande degolação, que são mui velozes em tirar Cabeças ; e
foi tal o destrago que houve nas terras de Mani Oando que
durou tres dias , matando e aprizionando a gente; assim que
ninguem despreze a seu inimigo por pouco que seja, que se
tem visto muitas couzas destas, abaterem - se os suberbos, e
levantarem -se os humildes; (2) desta sorte destruiu esta
Rainha a mayor parte de Vassallos que este Duque ou Mar
ques de Oando possuhia. (3 )

© Deve ser da lingua Mbamba.


© Ainda que isto de humildes, se não entende com esta Gente.
(Nota marginal do Autor ).
© Esta guerra ao duque de Uando não foi no tempo em que o

328
Como em o Governo secular tinha havido tantos opposi
tores a elle como dito he, no Ecclesiastico houve a mesma
Competencia; já se tem dito que por fallecimento daquelle
bom Prelado, havia nomeado ao Padre Bento Ferras pessoa
autorizada, por Vigario Geral, o qual dahi a pouco tempo
morreo tambem por ser velho e de muita idade; por sua
morte elegeu o Ecclesiastico por seu Juiz da Vara ao Padre
Valentim Ferreira, o qual desapareceo huma noite em
aquella Villa de Masangano onde então rezidia com o mais
Clero ; e por mais diligencias que se fizerão nunca se pôde
saber o que fora feito delle; havendo - se posto a tormento
de potro a hum estrangeiro por suspeitas que houve que
vizitava de noite sua Caza o qual era cazado com mulher
Portugueza, assistindo aos ditos tratos o Ouvidor Geral, que
então era Domingos Luiz de Andrade com seus Officiaes
de Justiça; nada bastou para haver delle noticia; por sua
falta fizerão Vigario Geral ao Padre Annes Rolão, que havia
sido Vigario da Igreja Matriz de Masangano, o qual se
havia agora aprisionado com os mais prisioneiros no Gango
e Barra do Bengo, e embarcado, como se tem dito ; sobre se
eleger novo Vigario Geral, havia agora entre o Clero as
differenças, visto não haver communicação com a Sé Va
gante de Congo, Cabeça deste Bispado; por esta cauza se
tinha dividido o Clero em duas parcialidades; huns estavão
da parte da Matriz e querião por seu Vigario Geral o Pa
dre Henrique Moniz Barreto, Irmão de hum Cidadão No
bre e afazendado, por nome Mathias Telles Barreto , que

auctor aqui a põe; foi em fins de 1648 ou principios de 1649 , pois es


tavam junto do duque dois missionarios capuchinhos, Fr, Boaventura
de Corella e Fr. Francisco de Veas, os quais tinham chegado ao Zaire
em 6-3-1648, na segunda missão. Foram presos e levados à presença
da rainha, tendo -os ela recebido com respeito e tratado bem , quando
eles iam persuadidos que seriam mortos.

329
tambem se havia aprisionado, cuja opinião seguião Sacer
dotes de muita autoridade, que havião sido Vigarios e Ca
pellaens de Igrejas da Conquista, como erão o Padre Jero
nimo da Fonseca Saraiva chamado o Beiçorra, o Padre
Diogo Rodrigues da Silva pessoa autorizada, o Padre Bento
Alvres Cardozo, sugeito de muitas partes, o Padre João
Pedro Leitam Clerigo de Nação Castelhana, e outros Sa
cerdotes que seguião este Partido; da outra parte, que cha
mavão de São Benedito, por rezidirem naquella Igreja do
Santo Preto, e ser tambem Parrochia ou Freguezia da gente
parda e preta, o rancho contrario, que este que dizemos ti
nhão feito seu Vigario Geral ao vizitador que havia sido da
Conquista João Estevens Cabeças Clerigo Castelhano, e o
seguia hum Conigo Capitular da Sé do Congo, que havia
escapado daquelle Reino com vida por ventura, andando por
aquelle Reino a Missão fora da sua Dioceze, e era o seu
nome Estevão da Gama , o Mestre Escola Francisco Pin
nheiro, o Tizoureiro mor Manoel de Gouvea , e outro Conigo
Phelipe de Lima de Aguiar, e outros Sacerdotes deste par
tido; e por se descuidarem com o seu Vigario Geral Cas
telhano , forão os da Matriz a sua Caza de noite e o trouxe
rão prezo para a Caza do Padre Henrique Moniz Barreto,
isto valendo-se de parte a parte de Armas de fogo e suas
Espadas, para se defenderem huns dos outros; estando com
estas controversias em aquella Villa se achava o Capitão
mor Governador em o Arrayal da Quimbanza, do qual im
plorarão ajuda do braço secular o rancho da Matriz, enten
dendo tinhão elles a jurisdição ou por ser mais em numero
ou pello que fosse, para hirem prender aos de São Benedito,
que se achavão já sem Cabeça, pello Cabeça seu Vigario
Geral o ter prezo o bando contrario; deferio a seu Peditorio
o Capitão mor Governador, com mandar ao Capitão mor de
Masangano Andre da Fonseca Gomes , desse ao Padre Hen
rique Moniz toda a ajuda que lhe pedisse de braço Secular.

330
Chegada a dita ordem mandou o Capitão mor tocar
Caixa , a que acudirão á praça , onde o Capitão morava , al
guns Soldados e Moradores, entre os quaes acudiu hum que
tinha sido Capitão mor daquella Capitania por el-Rey, por
nome Diogo Fernandes Machado, homem já de idade, mas
como Soldado Velho, vinha com frascos Cingidos e Arca
buz nas mãos; chegado onde estava o Capitão com a Clere
zia a quem se havia de dar o favor e ajuda, perguntou este
dito Governador ou Capitão mor, que foi de Masangano,
que he isto Senhor ? temos algum Rebate do Flamengo ou
Gentio, que obriga a Vm.ce a tocar Caixa! respondeo o Capi
tão , não he Rebate do Flamengo nem Gentio! se não que
manda o Capitão mor Governador dar ajuda de braço Se
cular para hirem prender os Senhores Padres dos que estão
no São Benedito! a que respondeo o bom do velho, com Cle
rigos quem se há de metter ? eu que vá lá, e que me dem
alguma Caqueirada, e que esteja com as mãos quedas ? lá
se avenhão huns com outros; responderão, (os Padres ) nem
nós havemos lá mister ninguem , que bastamos nós para isso ;
respondeo ( o velho ) isso me parece muito bem ; e virou as Cos
tas , e se foi para sua Caza , e assim o fizerão os mais dos
Seculares ; despois disto se vierão a compor, prevalecendo a
parte do Padre Henrique Moniz Barreto, o que lhe durou
pouco por vir Provizão de Congo, Cidade de São Salvador,
por via do Flamengo, da Sé vagante ao Padre Mestre Es
cola Francisco Pinheiro, em que vinha provido por Provizor
e Vigario Geral , com o que cessarão todas as differenças dos
Senhores Eccleziasticos.
Quem se dispoz a escrever huma historia e de mais de
hum Reino, ou Reinos, como são estes de Angola, entende
O Autor que lhe occorre por obrigação dar razão dos
successos que nelles houve, alem do intento do Autor, que
he dar noticia ao Mundo das guerras que houve em Angola
e seus Reinos; tambem lhe combina relatar os successos par

331
ticulares que succederão no discurso dos Governos que tem
havido nestes Reinos, com que entende fica desculpado de
sua curiozidade em se metter em jurisdição alhea : habito
facultate.
Em este tempo succedeo em a Villa da Victoria de Ma
sangano huma terrivel fome e esterilidade de mantimentos,
assim por falta de chuva como por andar a gente de levante,
de huma parte para a outra por andarem occupados em
os Arrayaes, que erão Lavradores deixarão de plantar suas
Searas, permittindo Deos assim por peccados comettidos; e
por haverem já experimentado a peste com as doenças do
Sertão, a guerra pellos que nella havião perecido, assim ao
rigor do Flamengo, como do Gentio inimigo, só lhes fal
tava a fome que agora padecião, com que vierão a ter os
tres mayores Castigos que no Mundo houve, e tem havido ,
fome, peste, e guerra, levando tudo os constantes Morado
res, e mais gente Angolana com muita paciencia e sufrimento ,
que ainda que se vião castigados com o açoute divino, erão
com tudo gente Catholica filhos da Santa Madre Igreja
Romana, que pello serem tanto padecião tantos trabalhos
e miserias por se não sugeitarem a gente de contraria lei,
como erão os de quem se vião tão opprimidos.
O que vendo o Capitão mor Governador como se hia
atenuando tudo de sustento , e que se não achava por nenhum
dinheiro, tendo tirado muitos dos retiradas, muitas Alfayas
e peças de prata e Ouro, para comprarem o sustento, e ainda
assim com estes tão bons generos o não achavão, tratou de
tirar hum donativo de escravos pellos Moradores para pre
venir o sustento da Infantaria a que todos contribuhirão
como bons Vassallos; tirado que foi mandou á Provincia da
Quisama comprar Maça miuda, ( ) e davão por cada Es

C ) O que chamam Maça Miuda, he hum Milho grasso mais do


que o nosso miudo de Portugal. ( nota marginal do Autor ).

332
cravo ou Escrava dezaoito até vinte Mangas , como sacos
enlicondos, que a penas tinha cada huma Manga dous Qui
zongellos, que são no nosso vulgar dous meyos Alqueires,
porque tambem os Quisamas não estavão muito sobrados em
razão da seca , imitando nisto aos filhos de Jacob, quando
forão ao Egipto comprar o trigo para seu sustento .
Estando todos com esta afflicção que foi a mayor que
em seus trabalhos havião experimentado, A Providencia di
vina que nas mayores pressas acode a quem invoca suas
Mizericordias, permittio ella que a mudasse o Rio Lucala , e
tresbordasse fora tanta agoa com que se alagassem todas
as terras alagadissas, chamadas na lingoa de Angola Izam
gas, (1 ) e nellas se prantasse cantidade de Maça grossa , e
outros legumes, como he hum feijão preto a que chamão
encassa, ( ?) que dá em muito breve, e logo dahi a pouco
semeado, se vay comendo da sua folha, a que chamão Ma
cassa, Cassa, e o milho grosso , que em Portugal chamão
Zaburo, deo em pouco mais de cincoenta dias, com o que
houve fartura, e se lhe chamou a Massa do milagre, e assim
se vio que foi, por este estilo, milagrosamente dada: assim
que nenhum Christão desconfie da Mizericordia de Deos,
que nas mayores pressas acode, e muito mais quando he
Medianeira sua Santissima May, aquem toda aquella mi
seravel gente chamava em sua Igreja todos os dias , der
ramando muitas Lagrimas, porque se vião perecer sem ne
nhum remedio ; nem neste tempo o tinha o Flamengo para
sy mal o podia dar nem vender a outrem .
Com a communicação que havia com o Flamengo hião
como se tem dito algumas pessoas á Cidade de São Paulo
da Loanda a vender e a comprar algumas couzas para seu

O É O plural de Kizanga, izanga.


© Esta palavra já não é usada.

333
vestir; e porque não fossem algumas pessoas sem licença
ordenou o Capitão mor Governador ao Capitão e Cabo da
Coamza não deixasse passar se não aquelles que fossem com
licença por escrito; tinhão hido a este respeito algumas
pessoas á cidade como foi o Padre Henrique Moniz Barreto,
que havia sido Vigario Geral , como dito he, e o Capitão
Joseph Antunes da Silva, Cunhado daquelle famozo Capi
tão mor Payo de Araujo de Azevedo, de quem havemos
fallado por vezes em esta historia ; cuidando os ditos acharião
nos Flamengos remedio aos males que padecião, não aten
tando que as curas desta Nação, são mui violentas, e mui
diferentes do que as dos Portuguezes, porque no mais aspero
de suas Enfermidades tomão huns Letuarios, que, em vez
de refrescar os Corpos, acendem mais os achaques, e natu
rezas daquelles, que não são costumados áquellas Medicinas
e bebidas; com o que vindo os dous nomeados outra vez
para Masangano, em breves dias derão a Alma a Deos; á
cerca disto disse hum Sacerdote de bom humor, elles vão - se
a curar com Flamengos de contraria ley, e então vem-se a
enterrar na Caza das Alampadas.
Em a Cidade assistia hum homem por nome Baltazar
Van Dum , Flamengo de Nação, mas de animo Portuguez
que havia hido dos primeiros Arrayaes para a Loanda com
permissão de quem governava os Portuguezes, o qual esteve
posto em risco de o matarem os Flamengos, a respeito que
antes desta tregoa e Communicação corrente , hum Cida
dão, por ver se por sua via podiamos haver algumas intel
ligencias de que passava entre o Flamengo, para este effeito,
mandou de Masangano, dous Negros com huma Carta
direitos aos arimos e fazendas do Bengo, onde o dito Van
Dum tinha alguma gente de sua conta , seus Escravos; estes
taes levarão os Mensageiros á Cidade e entrarão com elles
na Samzala do Van Dum, o que não foi tão em segredo que
logo não fosse publico; e avizado o Director de como tinhão

334
entrado Negros dos Portuguezes na Cidade e Sanzala , (* )
de que ficou alterado, e deo logo ordem ao Major que go
vernava as Armas, o mandasse logo prender, o qual era
Amigo de Baltazar Van Dum; e por isto se diz, bom he ter
hum Amigo mesmo que seja no Inferno, mas de tais ami
zades nos livre Deos; e vendo o perigo em que estava, o
avizou secretamente, em como o hião a prender, e o porquê;
que viesse logo dar parte ao Senhor Director do que havia,
e se desencontrasse com os que o hião a prender, porque
elle os mandava pella calçada, que viesse elle por Santo
Antonio ou sua Igreja; tanto que teve este avizo veyo pellos
ares, como a quem lhe não hia nisso menos do que a vida
em sua presteza; chegado que foi ao Collegio onde o Di
rector rezidia, lhe deo parte de haverem chegado aquelles
Negros de Masangano com a carta ainda fechada; olhou
o Director para elle, dizendo - lhe ah! Van Dum, Van Dum!
a tua Cabeça, a tiveste mui arriscada; mittigou-se com lhe
ver a Carta ainda fechada, e elle lhe entregar os Negros,
que mandou pôr a bom recado, os quaes agora com a cessão
de Armas forão postos em sua liberdade.
Havia outro Flamengo em Masangano de assistencia ,
chamado Jacinto da Camara, que se Correspondia com ne
gocio com Baltazar Van Dum , sendolhe permittido de huma
e outra parte. Tambem na mesma Cidade assistia hum Mo
rador Portuguez honrado e antigo deste Reino de Angola
por nome Domingos Fernandes de Pinda, com beneplacito
do Governador, que servia sua assistencia , de se ter por sua
via intelligencia do que passava na Loanda, dando avizo
disso, e o mesmo fazia ao Reino de Portugal, conforme
noticias.

() Sanzala, são Cazas, em que cada hum tem a sua gente separada.
(Nota marginal do Autor ).

335
CAPITULO QUINTO DA TERCEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS, EM O GOVERNO DE
ANTONIO DE ABREU DE MIRANDA.

Hia o Capitão mor Governador dispondo o seu Governo,


mandando castigar alguns Sovas alevantados, mandando
tambem para a fortaleza da Enbaca gente de soccorro para
estar fornecida, a respeito da Rainha Ginga não se atre
vesse a fazer nella alguma invazão, como estava sempre
ameaçando, com seus assaltos pellos derredores daquela Ca
pitania; do Arrayal da Quimbanza sitio de Pedro Vogado
onde assistia o Capitão mor Governador, veyo o Sargento
mor aquella Villa de Masangano com o seu Ajudante An
dre Caldeira, e mais alguns Officiaes e Soldados, e levou
prezos ao Capitão João Pilarte e a Luiz Gonsalves Brabo,
procuradores do Governador prisioneiro, de quem aquelle
Cabo não era muito affecto, só afim de evitar os soccorros
que lhe mandavão á prizão, com presuposto que com elles
(soccorros ) não tivesse fuga da Cidade, e viesse Masan
gano a fazelos ceder do Governo em que estavão, que tão
gostozo lhes era ; e assim fazião muita prevenção em o Rio
Coamza , receandose verem o que não dezejavão, os ajun
tos do Governo , com ordem para lhe impedirem o passo , ou
ao menos avizarem com tempo para se prevenirem.
Em a Cidade havia dias assistia hum Irmão Religiozo
da Companhia de Jesus , por nome Sebastião Gonsalves, só
afim de ter conta lhe não destruissem os Flamengos aquelle
seu Collegio, porque tiverão noticia lho hião damnificando,
tirando-lhe muitas portas e queimandolhe algumas Offici
nas ; o que lhe custava algumas dadivas para o conservar
em ser; este dito Religiozo havia tido muita pratica com o

336
Governador Pedro Cezar de Menezes, que neste tempo ti
nha a prizão mais larga a respeito do Major Governador
das Armas Holandezas ser seu affeiçoado, por elle o saber
grangear com o que lhe hia de Masangano, que isto de re
ceber faz bom sangue, ainda que o haja contrario, que da
divas quebrantão penhas, quanto mais homens humanos.
O dito Religiozo Irmão da Companhia , veyo neste tempo da
Cidade para a Villa de Masangano; e como pessoa de idade
e muito conhecido de todos os Cidadoens e Moradores, por
haver sido Mestre da escola no Collegio da Cidade , e nella
ensinado a ler e escrever a seus filhos , fiou delle o Gover
nador em que tentasse aquelles Moradores e gente princi
pal , a ver se os achava firmes em sua devoção, que como
havia naquella Villa e Arrayal alguns, que havia lhe não
erão affectos, que isto de perder huma Praça ainda que seja
por seus Cabais, como foi a perda da Cidade, cauza em
alguns, que pouco sabem de perdas e ganancias semelhan
tes, cauza aborrecimento, e desafeição em alguns que que
rião se obrassem Milagres em sua defensa , o que só a Deos
he rezervado , e aos que são tocados de sua graça .
Achou muitos do partido do Governador este Religiozo,
e que se viesse o havião de receber e seguir como a seu
Governador, provido neste Governo pella mão Real; tendo
tomado estas noticias devia de dar parte dellas, aquem lhas
mandava solicitar .
Morava em o Rio Coamza o Capitão Gaspar Gonsalves,
o Ensandeira, em a sua Ilha da mesma Alcunha , por haver
annos que a possuhia e cultivava , e estava agora nella de
morada por consentimento do Flamengo, a qual distava
seis legoas da Cidade, junto do esteiro de Tombo, de que
já havemos feito menção em esta historia ; com este Mora
dor se communicava o Governador por via de hum Soldado
honrado que havia ficado em a Cidade dos prisioneiros da
Barra do Bemgo, e o não havião embarcado com os mais

337
por estar ainda com a ferida aberta no Hospital, do suchaço
que se lhe tinha dado, na defensa do Corpo da guarda e
Bandeiras como atraz se disse. (1 )
Por este Soldado se communicou o Governador com o
dito Gaspar Gonsalves, pedindolhe o viesse tirar da prizão
e molestias que padecia, vindo huma noite por Tombo e
seu porto por terra, preparado de Negros para o carrega
rem ; e viesse por fora da Cidade á Praya do Bispo, e que
estando ali lhe mandasse por hum Negro seu recado que
elle desceria por aquellas barrocas e ruins caminhos á dita
praya como pudesse, onde (o Gaspar Gonsalves ) estaria
prestes para o pôr em salvo; e que o sinal delle vir a res
gatalo havia de ser, em elle mandando para a sua Ilha o seu
Pagem que o servia, por sobre nome o Faia ; e ordenou
áquelle Soldado se deixasse lá ficar como o fazia algumas
vezes , e lho permittião os Flamengos ; chegado o tempo que
lhe pareceo conveniente que estivesse com menos guardas,
e fosse noite em que a lua não desse tanta claridade, e alu
miasse com seu luzeiro nocturno a terra, despachou o seu
Pagem aquem havia de ser instrumento de o redemir de seus
trabalhos e apertos; na noute que lhe pareceo chegaria ,
mandou vir daquelle licor alegre, que Baco inventou para
alegria das gentes , feita a primeira pranta despois do De
luvio Universal pello Propheta Noé Sahido daquella mara
vilhosa Arca; com esta excellente bebida que se alegra o
Coração e o fortifica, tambem cauza tristeza e modorra aos
que uzão delle, do este vinho (2 ) demaziado; nesta occazião
uzarão dele as Guardas e Sentinellas com demazia Solda
desca , com que lhes cauzou sono, e se deitarão a dormir,

Na pág. 302.
) O manuscrito da Academia tem assim : « ...aos que usão delle,
do este vinho do este vinho demaziado » ; mas o sentido é: « aos que
usão delle, bebendo demaziado .

338
não tratando mais que de cozer a fornada; neste tempo che
gou o Negro com o avizo de seu Senhor, que não foi nesta
accazião Preto, se não hum Anjo (1 ) de Luz que havia de
servir de Guia ao Governador, como succedeo por mandado
de Deos ao filho do velho Tobias. Partio o Governador do
Palacio, que em outro tempo lhe havia servido de grandeza
e ostentação , e nesta occazião lhe tinha servido de flagelo
e affliçoens, guiado de quem o conduzia; desceo o afflicto
fidalgo exposto a toda a miseria que lhe podia vir se fosse
sentido, fiado só em seu grande animo e bizarria, que essa
nunca falta por mayores apertos que haja aquem nasceo de
geração nobre e fidalga.
Com trabalho caminhou , como quem havia tempo não
havia feito exercicio , até que chegou ao posto onde o espe
rava aquelle ouzado Morador, pois se havia exposto por ser
viço de seu Rey e do seu Governador a tamanho risco se
fosse sentido; assim como chegou o abraçou, e metteo logo
em huma Rede , e com muitos Negros seus Escravos que
levava, forão bolando com elle pellos Ares, até chegar a
Tombo , (?) e á sua Ilha , onde havia deixado prevenida huma
sua Lancha muito bem esquipada; metteo logo nella ao Go
vernador hindo elle com seus Negros Escravos mandando a
via, e com outros Espingardeiros, que era homem afazendado
mettendo tambem na Lancha o Soldado e Pagem , se poz a
navegar com todo o cuidado pello Rio Coamza acima; hindo
assim navegando toparão naquelle Rio com o Padre Diogo
Rodrigues da Silva, que se hia a embarcar de Mar em fora
por via do Flamengo, de quem tinha licença para o fazer,
e a levava do Capitão mor Governador; tanto que reconheceo
ao Governador e Capitão Geral, se foi logo para elle, virando

( ) O Anjo São Raphael foi que servio de Guia ao filho de Tobias.


( Nota marginal do Autor ).
( São seis léguas da Cidade da Luanda.

339
23
a derrota que levava, attendendo mais a accompanhar o Go
vernador a Masangano, do que aos seus interesses proprios:
Lealdade de bom Sacerdote e de bom Portuguez.
Chegou o Governador ao Presidio e Fortaleza de Mu
chima em que estava por Capitão mor Governador, o qual
o recebeo com toda a honra devida, reconhecendo - o por
Governador e Capitão Geral destes Reinos de Angola; com
tudo por não faltar ao que lhe parecia tinha de obrigação,
fez aviso por terra, o qual não a tempo por intervallos que
houve; que o mesmo sucedeo ao Emperador Julio Cezar,
quando hia para o Senado, que metteo o avizo na petrina
a donde se lhe achou , despois que o matarão. Achou o nosso
Governador em o sitio e Quilombo onde assistia , frente a
Gungo, Sova da Provincia do Quisama, o Capitão e Cabo
da Coamza Fernão Rodrigues ao seu Alferes Fernão de
Alvres, pello dito haver hido a sua ilha , e os mais Officiaes
estarem esparsidos, o qual o recebeo, e veyo accompanhando
sem tratar de seguir a ordem que tinha de avizar ou impedir
a passagem , mas donde está o mayor , cessa o menor; este
Alferes seguio este dictamen.
Chegado que foi a Masangano hum dia pella manhãa ao
romper da Alva em que naquella occazião estava o Capitão
mor com poderes de Governador Antonio de Abreu de Mi
randa doente, encontrou o Governador tanto que saltou em
terra a hum Ajudante por nome André Caldeira que o era
do Sargento mor, por quem mandou dizer ao Capitão mor
Governador, que era ali chegado, que lhe pezava de o
achar doente: este Ajudante foi e não tornou, antes se ou
virão algumas pancadas em huma Caixa de guerra, como
de chamada; já neste tempo levava o Governador com sigo
muitos do seu partido, que logo correo a voz de sua chegada ,
e se lhe forão chegando; tinha já neste tempo feito seu Sar
gento mor assim como chegou a Francisco da Fonseca Sa
rayva chamado o Beiçorra , Cavalleiro do Habito de Christo,

340
que havia sido Capitão mor da Fortaleza da Enbaca por
Patente Real como se tem já dito; e estando o Governador
na Praça daquella Villa em Caza do Capitão mor daquella
Capitania André da Fonseca Gomes, com muita gente que
o applaudia , chegou avizo como o Capitão mor Governador
da sorte que estava se tinha sahido de sua Caza com os do
seu sequito, e os que o tinhão persuadido a tamanho excesso ,
e encaminhava para o Rio Lucala a passar da outra banda ,
para se ir ao seu Arrayal sito na Quimbanza onde tinha
alguns de sua facção e Officiaes suas feitorias; huns forão
de parecer o deixassem hir, outros, que melhor o discursa
rão que não convinha por não haver alguma divizão, entre
huns e outros, que seria mui prejudicial, em tempo tão ca
lamitozo, ao serviço de Sua Magestade, e conservação da
terra ; com o que mandou o Governador logo ao Sargento
mór, o fosse prender, e aos que em sua Companhia hião,
e o não deixasse passar da outra banda do Rio, e que com
todo o decoro o mandasse para sua Caza, pondolhe guardas
necessarias.
Foi o Sargento mor com alguns Soldados a dar cum
primento á ordem, e achou que hião já em meyo do Rio
passando da banda dalem; disse de cá o Sargento mor que
tornasse , e não se quizesse perder, tendo já alguns Soldados
as Armas á cara para atirarem , para as embarcaçoens; e
tornou a segundar que tornassem, e não se quizessem ali
perder; vendo esta rezolução tornarão a traz ; e o Sargento
mor se portou como Cavaleiro com o Capitão mor Gover
nador e Sargento mor, Francisco de Brito Castel Branco,
com quem estava diferente e tinha suas queixas. Nesta
occazião se virão, como se tem visto muitas vezes, o que são
as Pompas vãas deste Mundo, vendose de huma hora para
a outra as voltas que o Mundo dá, subindo huns, e abai
xando outros; este Capitão mor com poderes de Governador
estando em seu Auge, reverenciado de muitos obedecido de

341
todos, com a altiveza do mando tinha a muitos mal conten
tos, de o verem tão emdeosado, e o fazião ser os, que tinhão
parte no Governo, (' ) que por sy era muito entendido e
muito pratico em todas as materias; mas nenhum se entre
gue tanto nas mãos de lizongeiros, que quando menos o
pensar, lhe hão de fazer dar huma grande queda, e verse.
em hum grande abatimento , como se vio evidentemente
neste tão bom sugeito ser ali prezo , mandado para sua Caza
mettido em huma rede entre dous Soldados com suas Ar
mas, sem mais outra companhia , nem nenhum fausto.

( ) Mandou o Governador tambem prender ao Sargento mor, e ao


Provedor da fazenda Real. ( Nota marginal do Autor ).

342
CAPITULO SEISTO DA TERCEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS, TORNANDO A SEU GO
VERNO PEDRO CEZAR DE MENEZES.

Havendo sahido da prizão como dito hé e tomado posse


do seu Governo Pedro Cezar de Menezes, na Era de 1644, (1 )
em o principio do anno , e mez de Janeiro começou a dispor
as couzas delle; e a primeira couza que fez foi confirmar
a Tregoa e Cessão de Armas com o Flamengo, por convir
assim á conservação destes Reinos, para o que mandou pes
soas á Cidade de São Paulo da Loanda intelligentes no ne
gocio, para assentar os preços das fazendas e valor das
peças com que se havião de comprar; as fazendas vinhão
a ser Estamenhas e Cres, para vestir, panno branco para
Camizas, vinho, azeite, açucar, Londres, e palmilhas, para
com isso se comprar o necessario para o sustento; isto
assentado mandou o Governador pôr hum Capitão Refor
mado, por nome Gregorio Ribeiro, com alguns Soldados em
sitio capaz na passagem do Rio Coamza como aduana , para
não passar nenhuma pessoa para a Cidade que não fosse
com licença, o que se não concedia a muitos, e para regis
trar tudo o que da Cidade viesse por cima ; mandou tambem
pedir por seu dinheiro algumas muniçoens, que lhe forão
mandadas, não com muita largueza, com pretexto de que
erão contra o Gentio rebellado : desta sorte se foi correndo
com boa Correspondencia de parte a parte; e como o Capi
tão mor Governador que foi Antonio de Abreu de Miranda

( ) Apesar das datas que o autor dá não merecerem confiança esta


deve ser verdadeira .

3 +3
estava muito atenuado de doença, com o novo disgosto de
se ver tão abatido, deo a Alma a seu Criador; o Governa
dor lhe mandou ordenar o seu enterro com toda a pompa
e grandeza devida a quem tinha servido tão bem a Sua Mar
gestade, assim em os Cargos que havia occupado, como
sendo Governador.
Chegarão neste tempo a Masangano Embaixadores dos
Sovas da Provincia do Libolo, e hum dos Sovas em sua
Companhia, que vinha a receber a agoa do Santo bautismo;
Sova poderozo de grandes terras e Vassallos, do qual foi
seu Padrinho o Capitão mor Vicente Pegado da Ponte, e
huma Moradora honrada da Cidade por nome Maria das
Neves, promettendo ao Governador de ser fiel Vassallo.
A Embaixada dos Sovas era pedir soccorro e favor contra
os Quilombos dos Jagas que andavão fazendo guerra aquelles
Sovas, e desinquietando -os em suas terras; tomou o Gover
nador conselho sobre a materia , em que se rezolveo devião
ser socorridos e amparados, visto se appellidarem Vassallos
del Rey de Portugal, com o que o Governador mandou a
esta empreza por Cabo della o Diogo Gomes Moralles com
Capitaens praticos e Infantaria, e alguns Moradores Ser
tanejos , levando guerra preta de Quilambas e Sovas, e
Escravos dos Portuguezes com muniçoens : com dito apresto
sahio este poder de Masangano, e foi apossar o Rio Coamza
em o oitavo ou porto de Cambere a quina , por cima da nossa
Fortaleza de Cambambe ; passados da outra banda em terras
do Sova Gama Angola da obrigação e partido do Sova
Cambambe da Provincia do Libolo, se foi marchando e en
trando por dita Provincia dentro em demanda dos Quilom
bos de Jagas que a assombravão e daquelles Sovas natu
raes daquella terra , com os quaes foi havendo muitas ba
talhas e recontros aprisionando - se, e'matando muita gente
daquelle genero, que bem necessitavão della os Vassallos
Portuguezes para venderem ao Flamengo e terem com que

344
se vestirem e sustentarem , mas não se ganhão trutas , que
nos não custasse algumas mortes e derramação de muito
sangue, por pelejarem com Quilombos de Jagas mui dextros
na guerra e muito grandes Soldados, que não tem por
officio outra couza.
Quilombo de Jagas houve tão valente e ouzado que o
Senhor delle chamado Lulembe veyo com todos os seus Ja
gas a sitiar o nosso Arrayal , tungando (1 ) ao deredor delle
suas Cazas e estancias; o que vendo aquelle expesto Cabo
mandou aos seus, assim guerra branca como preta que ne
nhum bolisse com sigo e fizessem seu serviço como se ali
não houvera tal sitio , que queria ver o que aquelle Valente
Lulembe dava de sy ; com tudo que estivessem prevenidos
em cazo que accommettesse o Arrayal para o receberem com
salva de bons tiros.
Esta suspensão daquelle valerozo Cabo o metteo em
confuzão, e chegar mais gente nossa de soccorro , com hum
Cabo muito bom Soldado que o conduzia , por nome Leo
nardo Pereira ; isto, e não fazer cazo do seu Cerco o metteo
em confuzão; e tão Cercado tinha tudo com o mui poder
de Jagas que trouxe para aquella faução que foi necessario
ao nosso Cabo que conduzia o soccorro entrar peleijando;
e (o Jaga Lulembe ) como Soldado que era começou a temer,
que nascia aquelle nosso desprezo dos Portuguezes serem
melhores Soldados que elle ; com este temor e receo, come
çou a alevantar o sitio ; assim como o nosso Cabo o entendeo ,
mandou sahir a metade da Soldadesca, ficando a mais de
guarnição ao Arrayal ; e com a guerra preta sahio a elles de
emprovizo, em que houve huma grande refrega e peleja , e
ao cabo de largo combate e de haver faucoens valerozas,

( ) Tungar he fazer quartel e cazas. (Nota marginal do Autor ).


Do verbo kutunga, construir.

345
de huma e outra parte, forão largando o Campo com mortes
de muitos dos seus Jagas, ficando alguns prisioneiros; e o
Valente do Lulembe escapou com alguns dos seus Jagas de
bom pé.
Com estes ditos progressos, e outros semelhantes hia
obrando a nossa guerra naquella Provincia do Libolo contra
os Quilombos de Jagas em favor daquelles Sovas Senhores
e Naturaes de suas terras, quando chegou avizo ao Gover
nador da Fortaleza, Prezidio, e Capitania da Enbaca, Fran
cisco de Veloria Pinto, Capitão daquelle partido, que havia
succedido naquella Fortaleza por morte de Andre Coelho de
Mello, provido por el Rey, o qual dava parte em como hum
Sova poderozo por nome Angolomem a Caita fiado na for
taleza de seus Empures, que são humas Concavidades que
a natureza e o tempo tem ali obrado ao pé de huns outei
ros por dentro de Rochedos, sahião delles a fazer assaltos
e prezas aos Sovas da Lotação daquelle destricto e Capita
nia Vassallos de Sua Magestade, que distavão da Enbaca
mais de quatro jornadas; com dito avizo tratou o Gover
nador de acudir ao reparo tomando sobre isso conselhos com
as pessoas da terra que melhor entendião as couzas deste
Sertão, e nomeou para aquella empreza ao Sargento mor
Francisco da Fonseca Sarayva, chamado o Beiçorra de Al
cunha , com titulo de Capitão mor, e por Sargento mor a
Francisco de Azevedo o Genges, Capitaens Diogo Fernan
des Santos, Ambrozio Fernandes, e Manoel Alvres Casangi,
com gente os ultimos dous Capitaens, a que chamão Can
goandas, por serem compostas de Crioulos, de São Tomé
e da terra , vestidos á Portugueza que a pouca possibilidade
de Infantaria do nosso Reino fazia neste lançar mão delles,
que serião ao todo, tirados os Officiaes, Cento e trinta
homens; com esta preparação sahio a Capitão mor da Villa
da Victoria de Masangano e marchou para a Fortaleza de 1
Nossa Senhora da Assumpção da Enbaca, onde preparado

346
de guerra preta Quilambas, e o Jaga Cabucu Candonga, (h )
gente dos Sovas Vassallos e escravaria dos Portuguezes,
sahio da Enbaca, passando da banda dalem do Rio Lucala,
com ordem militar, marchando em demanda daquella Sova
Angolomem Acaita.
Chegado que foi ás suas terras e Senhorio, sahio dito
Sova com seus Mozengos ou Batalhoens, a ter o encontro
á nossa guerra , em que houve huma grande refrega e ba
talha, havendo da sua parte muita mortandade e feridos, e
outros aprizionados, e da nossa parte muito sangue der
ramado de tiros de suas frechas e arremeços de Azagais, e
tiros de Espingardas e Mosquetes; e vendo aquelle inimigo
que em Campo não tinha bom partido com nosco, se reti
rou á fortaleza dos seus Empures, onde tinha seu Mulherio
e Bagagem recolhido, e todos os bastimentos para seu sus
tento, deixando as terras desertas de Libatas e Povoaçoens
que por fora tinha , e o seu Paiz com pouco fruto , de que
o nosso Exercito se podesse manter.
Chegou o Capitão mor aos Empures cuidando de que
com o seu valor e esforço os podesse entrar a forças de Ar
mas o que vendo e experimentando ser impossivel , e se o
intentasse perderia muita gente, de que já tinha principio em
alguma, e era necessario poupala visto a possibilidade do
Reino, (? ) e que a não havia de sobra para poder perder em
avançadas , tratou de lhe por Cerco em todas as bocas que
erão sabidas daquelles seus Empures, fazendo de conta que
continuando o Cerco e o aperto os obrigaria a fome a ren
derem - se faltos de bastimentos; que agoa a tinhão de so
bejo por lhes passar hum riaxoello por dentro daquellas
Brenhas ; durando alguns dias o aperto em que a nossa gente

( ) Fala - se deste Jaga na pág . 279.


f) Isto é : visto a possibilidade de ir gente do Reino (por possibi
lidade quer dizer impossibildiade ).

347
os tinha postos, tratarão de, a todo o risco, hirem a buscar
favor de quem os podesse soccorrer em semelhante neces
sidade, que ainda que os sitios sejão apertados sempre bus
cão lugar os que podessem de entrar e sahir de baixo de
seu risco a buscar refugio e dar avizo do que padecem para
serem soccorridos; como succedeo ao Real Propheta David
que dezejando beber huma pouca de agoa daquella Cis
terna estando a Praça em defença entrarão aquelles dous
valentes Soldados a buscarlha com tanto risco de suas vidas
por fazerem aquelle serviço a seu Rey, que trazendo-lha,
vendo aquelle Santo Rey o perigo a que se havião posto
por seu serviço a não quiz beber, agradecendo-lhe a fineza
por se haverem posto em tamanho perigo.
O mesmo contão as nossas Relacoens impressas das
guerras das nossas Fronteiras do Alemtejo, que estando Dom
Luis de Haro privado e General do Monarca Castelhano
com o Cerco que tinha posto á nossa Praça e Cidade de
Elvas com ter botado as Linhas a Circumvallação daquella
forte Praça, não foi isso bastante para que Dom Sancho
Manoel Conde de Villaflor não botasse fora alguns Cem
homens onde hião Cabos de valor, a se incorporarem com
o valerozo e bem afortunado General Marquez de Marialva
Conde de Cantanhede, que vinha marchando com hum pé
de Exercito em socorro de tão importante Praça de que ficou
memoravel para os Vindouros semelhante Acção, assim do
bom successo das Linhas e batalha, que ali houve, em que
foi vencido e desbaratado Dom Luis de Haro, com tão dis
formidavel poder, e o nosso tão inferior, como do valor
com que sahirão daquella famoza Cidade de Elvas, aquelles
famozos Guerreiros, á vista de tão numerozo inimigo, com
a Espada nas mãos, menos-prezando os Cercados e Circum
vallação de tão fortes Linhas .
O mesmo nos manifestão as Relacoens impressas da mi
nha cara e deleitoza patria , que estando sitiada por aquelle

348
disformidavel poder de Castella , com general de tanta opi
nião que o governador, tendo entrado as trincheiras e forti
ficaçoens do Arrebalde, rompido as muralhas da Villa Ve
lha, combatido aquelle mimozo Castello da sempre Real
Caza de Bragança, com tantos dias de rigorozos Combates
e avançadas, não foi tudo isto bastante, nem a grande pre
venção que se tinha pellos Cercadores, para que os valerozos
Cercados com valor Portuguez, não entrassem huns e cahis
sem outros, a darem avizo ao General Marquez de Marialva
do que passava naquelle Cerco, e do aperto em que se acha
vão, e quando mais não poderão o fizerão com fogo de
noute como tinhão por ordem .
Assim que não há que estranhar que os Cercados nos
Empures, ainda que Barbaros e Gentios com uzo de razão,
sahissem de suas Estancias e Concavidades a buscar refu
gio e quem os soccorresse, cahindo a todo o risco de serem
mortos ou prezos, mandados do Sova seu Senhor a impe
tralo da Rainha Ginga Dona Anna de Souza, que como dito
hé se tinha chegado para os limites dos Vassallos Portu
guezes, para dali mais á mão tratar de ver se nos podia
destruir.
Chegados que forão os Mucunzes (1 ) ou Embaixadores
ao Quilombo da dita Rainha Ginga, sito nas Sengas de
Cavanga, lhe manifestarão o aperto em que estava seu Se
nhor, e os Vassallos Cercados em seus Empures da guerra
dos Portuguezes, que lhe pedia como sua Senhora que era
os amparasse e soccorresse com brevidade, porque estavão
postos em miseravel estado, a se renderem miseravelmente
nas mãos de seus inimigos; ouvida pella Rainha Ginga a dita
Embaixada , mandou logo tocar de guerra os instrumentos

C ) Mucunzes na lingoa Ambunda são os Inviados ou Embaixadores.


(Nota marginal do Autor ). Mukinji, mikunji, embaixador.

349
bellicas, e sahio ela ao campo a zomgar (1 ) a guerra, e no
meando os Capitaens mais expertos e Soldados daquelle seu
Quilombo, encarregado tudo ao seu Capitão Geral Ginga
Amona; com Empacaceiros ( 2) de Espingardas e Mosquetes
os despedio que serião quatro jornadas onde ella rezidia com
seu poder aquelles Empures.
Chegou aquelle seu valente Capitão Geral com sua guerra
avistar o nosso Arrayal em tempo que a nossa guerra preta
tinha hido a canzar, com hum homem de a Cavallo que ali
assistia por nome Manoel Cardozo Quitandola; Canzar he
ir a picureia (* ) buscar de comer, que estavão padecendo os
nossos Cercadores muita fome, e o hião buscar ou apanhar
mui distante, por estar toda aquella Campanha erma; tanto
que o nosso Capitão mor teve vista da guerra inimiga, como
esforçado Soldado que era, puchou por toda a gente que es
tava no Cerco dos Empures , e se formou conforme o terreno
deo lugar, em meya laranja ou meya lua , em razão dos Ou
teiros que havia pellas Costas: Começou o Combate com
muita força , e valor de huma e outra parte, quebrando os
nossos Portuguezes a guerra inimiga; mas como nos faltava
a guerra preta para lhe ir no alcance, que os não deixasse
refazer, tornavão com suas investidas; e por mais que se
matavão da parte inimiga, sempre rezistião com mais valor,
havendo já da nossa parte mortos e feridos; e como virão
o valor com que o Capitão mor com sua gente pelejava, des
pacharão avizo á sua Senhora da perda que havião tido, e
do muito valor com que os Brancos pelejavão. Com este
avizo abalou aquella Rainha Ginga com todo o seu poder,

( ) Kuzonga é hoje — medir, pesar.


(º ) Este nome de Empacaceiros lhe dá o Gentio porque cação e
atirão as Empacasas, que são como Vacas brabias, mas ferozes. ( Nota
marginal do Autor ). Naquele tempo era mpakassa; hoje é - pakassa
O É o verbo kukanza, apanhar frutos pendentes.

350
e se veyo pôr á vista da nossa gente Portugueza, e mandou
aos seus que com todo o valor investissem e levassem ás
mãos aquelles poucos Mundelles, que assim chamão aos
Brancos; com este mandato expresso , vindo de quem elles
adoravão como a seu Deos, foi o combate mui rigorozo e
apertado por todas as bandas que nos descubrirão, e com
seus tiros de Espingardas e Frecharia como nuvens nos fo
rão matando e ferindo muita gente; com tudo os nossos tendo
mão pelejando como valerozos Portuguezes, tão poucos para
tanta immensidade; a Rainha sempre de seu posto alentando
a sua gente e mandando que nos entrassem ; os nossos Por
tuguezes com tão continuas investidas, com sol que fervia,
estando muitos mortos e quasi todos feridos, e não dar o si
tio lugar a se verem huns aos outros por a formatura ser
como dissemos em meya lua, e ferirão com algumas Frechas
ao Capitão mor; e assim ferido foi pelejando com valor, o
que nelle era bem conhecido, até que foi mortalmente ferido,
cahindo morto , como tambem o Capitão da gente branca
Diogo Fernandes dos Santos, que como valente Capitão
havia defendido mui bem o seu posto, fazendo - o com grande
esforço e disposição, fazendo peleijar a gente de sua Compa
nhia, de que se achavão alguns mortos de tão continuo Com
bate, que durou de pella manhãa até horas de vesperas, em
que entrou tambem o Alferes por nome Sebastião Rodrigues
para que ficasse a Companhia de todo sem quem a gover
nasse; não podendo já aquelles esforçados e poucos Por
tuguezes ter as Armas nas mãos de esquentadas, assim do
muito disparar, como do grande rigor do sol ; matarão tam
bem naquelle conflito ao Sargento mor Francisco Rodrigues
de Azevedo o Gemges, para que de todo ficassem desti
tuhidos de Cabos mayores, que os compuzessem , e gover
nassem , e estava muito mal ferido o Capitão dos Cam
goandos Manoel Alvres Casangi, e muitos mortos da sua
Companhia; Ambrozio Fernandes tambem Capitão dos

351
Crioulos todo estava aseteado, feito hum São Sebastião,
mas ainda assim peleijando com grande valor que era Va
lente Soldado fazendo proezas com a Espada em sua de
fença, matando a muitos dos inimigos; o Jaga Cabucu Can
donga que se achava sem a sua guerra, por ir como dissemos
a canzar, com poucos dos seus Jagas e alguma gente dos
Moradores fez seu dever de Senhor e fidalgo, em defensa
dos Portuguezes com notavel rezistencia, como tão costu
mado em pelejas e occazioens de guerra; com que veyo a
nossa gente de enfraquecida da muita peleja, falta de muni
çoens e Cabos, a serem entrados daquelles Jagas inimigos
vingando nelles a perda de gente que havião tido, matando
a Cutello ou Maxadinha a mais da nossa gente , excedendo
a ordem que lhe deo aquella Rainha, que foi lhe tomassem
ás mãos ao Capitão mor e Cabos de guerra para os ter em
seu poder vivos , para sua gloria e Jactancia, e dos mais lhe
levassem alguns vivos ; e por lhe levarem entre outros pou
cos aquelle Capitão dos Crioulos tão asseteado, querendo
dar- lhe a vida lhe forão os seus á mão, manifestando - lhe o
muito damno que havia feito na sua gente, matando a muitos
com a Espada e Rodela, e vendo ella ser de Côres pardo,
a que ella a todos deste genero reputava por suas peças,
dizendo serem filhos de suas Escravas, lhe mandou acabar
a vida , que já vinha para isso esvaido de sangue das mui
tas feridas , mandando - lhe cortar a Cabeça. 1

Não se deo vida mais que ao Padre Capelão Jeronimo


de Sequeira chamado o Pato, e a dous homens Brancos hum
que era Alferes por nome Jorge de Queiroz, e o outro hum
Mancebo criado do Capitão mor, e a mais quatro homens
pardos Soldados, com que forão sete por todos ; ao Jaga
Cabucu com sua Mulher, ou Concubina chamada Coamza ,
tambem concedeu a vida por serem Senhores de Quilombo,
e haver pacto entre os Jagas darem aos fidalgos Senhores
de Quilombo boa passagem e quartel, tendo entre elles so

352
bre isso tomado juramento a seu modo, e como ella uzava
todos os ritos e Ceremonias de Jaga, e disso muito se
prezava , observava grandemente os seus costumes; nesta
occazião se tomarão tambem alguns Sovas fidalgos que
accompanhavão a nossa guerra, e se desculparão o fazião
mais por força que por vontade que tivessem , entrando nel
les Dom João Guterres Angola Canini Sova da Lotação da
Capitania da Enbaca, consignado ao serviço e fabrica da
Igreja de Nossa Senhora da Assumpção daquelle Presidio;
este fidalgo era parente mui chegado da Rainha Ginga por
sanguinidade, ao qual no principio se mostrou aspera para
elle por andar em serviço de muene puto; (' ) que he del Rey
de Portugal; mas como o Sangue não se quer rogado, logo
dahi a pouco fez muito cazo delle, dando -lhe o melhor lu
gar e Cargo de sua Corte, que foi o de muene Lumbo que
he o que tem conta da Caza Real, e guarda as couzas de
mais estima della : todos os nomeados ficarão em seu poder
prisioneiros, até que se forão resgatar com bem de damno
seu . Com esta Victoria alcançada por esta nossa inimiga,
que dezejava beber e derramar todo o sangue Portuguez,
ficou muito soberba e Ufana , tendo conseguido nesta
occazião o que nunca o seu dezejo havia alcançado, despois
que com a Nação Portugueza , havia tantos annos guerreava;
São successos que a guerra traz com sigo, que se huma vez
se perde outra se ganha , arriscando as vidas de huma e ou
tra parte.
Desta rota e disbarato escapou só aquelle homem de
Cavallo que tinhamos dito havia hido com a guerra preta

(" ) Muene puto que dizer na lingoa Ambunda de Angola o Senhor


de Portugal.
E na lingoa Muxiconga Mani , quer dizer Senhor, e a el Rey de
Congo lhe chamão Mani Congo, ou Mueni Congo. (Nota marginal do
Autor ).

353
do nosso Arrayal a buscar sustento , o qual tendo noticia do
nosso destroço se poz em salvo com a mais guerra preta
com que havia hido, trazendo as novas ao Governador da
perda que tinha havido, que foi para elle de grande senti
mento, pello estado em que estes Reinos se achavão; e sa
bendo que aquella inimiga Rainha Victorioza ameaçava a
nossa Fortaleza da Enbaca, e ao Rey de Domgo e seus con
tornos, mandou logo soccorrer aquella Fortaleza, mandando
para ella novo Capitão, pessoa de muitos merecimentos; e
para assistir em Campo na outra banda do Lucala sitio da
Xilla a Alvaro Rodrigues de Souza Cidadão da Cidade de
São Paulo da Assumpção, (1 ) que havia occupado postos
honrozos já, vindo por Capitão do Reino por el Rey
occupando a Capitania mor de Cambambe e na Republica
da Cidade Vereador e Juiz Ordinario, ao qual deo alguma
gente que levasse com sigo a aquella occupação; e houve
alguns Moradores que por serviço del Rey Zelozos de seu
Real serviço e conservação da terra , de sua vontade o
accompanharão com suas Armas e Escravos por verem a
necessidade preciza .
Tendo o Governador mandado retirar da Provincia do
Libolo o Cabo e Capitaens e gente que naquella Conquista
e serviço andavão, despois de haverem favorecido os Sovas
Vassallos e botarem fora daquella Provincia os Quilombos
de Jagas que os molestavão; retirados que forão tratou o
Governador de ir conservando o Reino no melhor modo que
lhe era possivel; o Quilombo do nosso Jaga Cabucu , que
estava sito da outra banda da Enbaca e Rio Lucala, elegeo
logo Senhor que os governasse, visto estar seu Senhor Ca
bucu prisioneiro, os quaes elegerão o Quilamba e Capitão
de mais fama e experiencia que entre elles havia, chamado

© Da Loanda se chamava ainda.

354
Fungi Amusungo, e o trouxerão com muita festa olando de
guerra ao Capitão mor do Quilombo, para que o undasse
e puzesse o pezo de Muene Puto; (1 ) feita esta Ceremonia
tratou de mudar o sitio do seu Quilombo e allojamento , assim
por estar mais chegado aos brancos, e armas Portuguezas
como tambem ser estilo e costume daquelles Jagas que em
lhe faltando o Senhor que tem não morarem mais no mesmo
sitio, em razão de suas erronias , e tambem de sentimento.

♡ Por o pezo de Muene puto, que he o Senhor de Portugal, he


por pellos hombros, e peitos huma pouca de fuba que he de farinha de
milho ou de greda a que chamão pezo. (Nota marginal do Autor ).

355
24
CAPITULO SETIMO DA TERCEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS PROSEGUINDO SEU GO
VERNO PEDRO CEZAR DE MENEZES .

E como Deos acode com sua Divina Providencia á me


nor formiga da terra como nolo ensina aquelle sogeito tão
douto Frey Luis de Granada (" ) em seu Symbolo da Fé que
escreveo e compoz com tanta eloquencia e doutrina; vendo
a Omnipotencia Divina a afflicção em que estavão os Por
tuguezes Angolanos, que ainda que peccadores filhos do
Gremio da sua Igreja, quando mais descuidados estavão de
poderem ser soccorridos da mão Real del Rey nosso Se
nhor por verem as impossibilidades que para isso havia, sem
haver porto que nosso fosse, por onde nos podesse entrar
soccorro , nas mayores pressas acudio com suas Misericor
dias, vindo hum homem a Masangano por nome Phelipe
Lopes Morador de Benguela e seu Reino, o qual trazia huma
carta mettida na sola do Sapato por não ser vista do Fla
mengo , a qual éra do Governador Francisco de Souto
Mayor, (* ) escrita desta Costa do porto do Quicombo, em

☺ douto Varão Frey Luiz de Granada veyo a Portugal em com


panhia da S. ” Dona Maria, D. Leonor, Irmãa do Emperador Carlos
Quinto , terceira Mulher del Rey Dom Manoel, e sendo seu confessor,
lhe pedio a Rainha D. Leonor hum sugeito para ser Arcebispo de
Braga, e elle lhe apontou em frey Bartolomeu dos Martyres Prior do
Convento de São Domingos de Bemfica, o qual se escuzou , e veyo a
aceitar por dar gosto a Rainha, e não conta de que tivesse o qual foi
hum Santo varão como o conta a sua vida.
( ) O Gov.dor Souto Mayor chegou a Quicambo em 23 de Julho de
1645, como adeante se dirá em nota .
O homem enviado por Souto Mayor tinha saido de Quicombo em
16 de Agosto. É isto dito na pág . 21 da Revista de Historia, mencio
nada na pota seguinte.

356
que avizava ser ali chegado com hum soccorro consideravel
por mandado del Rey nosso Senhor Dom João o quarto a
acudir a estes Reinos; e por achar aquelle homem que se
offereceo a metter aquelle avizo nas suas mãos, de quem
havia tido as noticias do estado destes Reinos fazia dito
avizo por aquelle mesmo Portador ter resposta, e lhe avizar
Sua Senhoria o meyo que seria melhor por conseguir o
soccorro que trazia , que constava, alem da gente, de Arti
Iharia, Armas e muniçoens, e mais apresto de guerra. Con
sidere o pio Leitor que tal seria o contento que teria o Go
vernador com nova tão gostoza, e aquella gente Portugueza
que tão affligida se achava. Deu este homem então mais por
extenço particular noticia em como elle andava em huma
Lancha na Costa com permissão do Flamengo, navegando
nella de Benguella para a Cidade, e que passando ao Mar
vira aquelles Navios ancorados que no porto de Maniqui
combo estavão, e que capeandolhe deles, chegara elle á
falla; e como vira erão Náos e gente Portugueza tomara
terra naquelle porto, em o qual achara ao Governador com
a gente que trazia de soccorro em terra com Igreja e alloja
mento de Cazas feitas , e terras repartidas pellos Moradores
que com elle vinhão, para ali assistirem a fazerem Forta
leza para sua defensa; e que dava ordem o Padre Matheus
Dias Religiozo de autoridade da Companhia de Jesus a fa
zer ali Caza e Igreja, o que fazia o Governador, e mais
Companhia por não achar meyo nem modo para metter o
soccorro que trazia na Conquista para o que havia tomado
aquelle porto e sitio do Quicombo para nelle rezidir forti
ficado por se não oppor ao rigor da passagem do Sertão;
que tinha experimentado a sua ruina nella o que tinha vindo
primeiro a cargo do Cabo e Capitão mor Antonio Teixeira
de Mendonça (' ) que com o Governador estava tambem na

() Sobre este socorro vede a nola da pag. 360 no cap. 4.° desta parte.

357
quelle sitio do porto do Quicombo com o resto do soccorro
que lhe havia ficado; contou então este dito homem Phelipe
Lopes o successo do dito Antonio Teixeira de Mendonça,
e foi. Que tendo aquelle primeiro soccorro tomado aquelle
mesmo porto e sitio com Náos e gente de sua Companhia
intentara atraveçar o Sertão, ainda que fosse com muito
trabalho pella Provincia dos Sumbis e Provincia do Libolo,
cortando até á nossa Fortaleza de Cambambe, mandara o
seu Sargento mor Domingos Lopes de Sequeira com a mayor
parte da gente a tomar sitio em a Provincia dos Sumbis em
terras de hum Sova poderoso por nome Gumza a Quisama,
para que tomado elle com seu avizo marchar o mais resto
da gente com o Comboyo que havia mandar de Negros
Carregadores o dito Sargento mor , para as muniçoens, Ar
tilharia de Campanha e mais Fardagem .
E que tendo tomado o dito sitio se fiara daquelles Gen
tios com tanta confiança de tal sorte que vendo elles o des
cuido com que a nossa gente estava derão sobre elles e os
degolarão a todos, não escapando mais desta rota e desba

Os soldados escapados com o capitão Antonio T. de Mendonça


eram só 90 .
Adeante, quando falar do Souto Mayor, direi a parte donte consta
isto .
Este infeliz sucessa foi em 19-6-1645, entre o rio Cubo e o rio
Longa; foram mortos 103 brancos; salvaram -se 4, que deram a noticia .
É contado no ms. que foi publicado em 1923 a págs. 13 do volume
da Revista de Historia por Fidelino de Figueiredo. É um documento
comovedor. As cartas (originais) de Souto Mayor, datadas de 13 e
17 de Setembro de 1645 relatam tudo com todos os pormenores. Estas
cartas estão no Arquivo Ultramarino .
Como fica dita na nota á pag . 360 , estes tinham saido da Bahia em
8-2-1645 e chegado ás vistas da costa de Angola em 4 de Abril, mas
não desembarcaram e foram navegando perto de terra até Quicombo,
aonde chegaram em 12 de Abril (4.“ feira de trevas ).
(Consta do volume acima citado ).

358
rato que dous homens Soldados, hum por nome André Soa
res, e o outro chamado o Toar, que trouxerão as novas da
perda da Marinha , terras, e porto de Maniquicombo, onde
o Capitão mor e Cabo com o restante daquelle soccorro mal
afortunado havia ficado; e que havião perecido os mais dos
Moradores e Soldados, prisioneiros na rota do nosso Arrayal
da Barra do Bemgo, que constavão de mais de duzentos
homens, que valião por muitos centos, por serem Sertanejos
da Conquista destes Reinos; e só ficarão o Padre Francisco
da Cunha despachado por Vigario da Igreja Matriz de
Masangano, Mathias Telles Barreto provido na Fortaleza
da Enbaca por seis annos, Sebastião Pinheiro do Habito de
Santiago com a mesma na vagante dos providos, Francisco
Rodrigues Bexiga com a Fortaleza de Cambambe, e o Ca
pitão mor e Cabo com merces de Sua Magestade do foro
de fidalgo, Habito de Aviz Capitão mor de Cavallos e Cabo
de Companhias que erão os postos que servia quando o
aprisionou o Flamengo na dita Barra do Bemgo, e Capitão
mor de Masangano por seis annos, que tudo ao despois
gozou ; todas estas merces e accrecentamentos deo a Mages
tade del Rey Dom João o Quarto nosso Senhor a estes Mo
radores e assistentes do Reino de Angola, só afim de metter
este soccorro em Masangano; e muitos que perecerão naquelle
disbarato, trazião outros despachos de sua Liberal e gran
dioza mão, Domingos Lopes de Sequeira com o posto de
Sargento mor á Fortaleza de Masangano por seis annos para
quem cazasse com sua filha , e a Provedoria dos defuntos e
auzentes para outra filha, que ambas gozarão estas mercês
com os Maridos com quem cazarão; outros com Patentes de
Capitaens; de modo que nenhum Morador foi de nome ao
Reino de Portugal dos prisioneiros na dita Barra do Bemgo,
que não viesse premiado, e acrecentado em posto da sua
Real mão.
Deu tambem por novas este homem que veyo com o

359
avizo do Governador Francisco de Souto Mayor, em como
hindo incorporada com sigo a gente Moradora do Reino de
Benguela que teve modo com que mandou recado ao Sertão
de Benguela onde estavão retirados, e havião vindo com
muito trabalho a ter com o Governador, que erão os princi
paes o Capitão mor Governador Manoel Pereira , o Irmão
do Governador defunto Duarte de Lemos Landim , Christo
vão Rodrigues, Antonio Gomes Goveya, João Antunes, Di
niz da Mota , e o Capitão Cornelio, (* ) Comissario dos Fla
mengos, que nos tinha sido fiel por ser cazado com huma
Portugueza honrada assistente naquelle Reino, como se tem
já dito, quando se fallou no avizo que veyo por terra da
quelle Reino ao Governador e Capitão Geral a Masangano;
todos os referidos, e outros que por nome não percão tinhão
occupados postos mayores naquelle Reino de Benguella , e
outros officiaes e Soldados de Conta .
Tanto que o Governador Francisco de Souto Mayor
teve informação por este homem Phelipe Lopes do estado
em que estavão as couzas destes Reinos de Angola, fez logo
conta de metter o soccorro em Masangano e Conquista a
todo o risco, tendo primeiro avizo do Governador Pedro
Cezar de Menezes, a que este homem se offerecia a fazelo ,
como com effeito fez, de baixo da simulação da Tregoa e
Cessão de Armas em que estavam com os flamengos; tam
bém avizava na carta o soccorressem por alguma via com
farinha de guerra para a gente que trazia , e para tambem
acudir á gente de Benguela que com elle estava, de que to
dos estavão muito faltos ; e sem mais esperar resposta, em

© Cornelio Noelbs foi feito capitão da gente de Benguela e a


seu pedido pelo Governador Souto Mayor no porto de Quicombo .
(Consta da carta do Gov.dor de 13-9-1645, na consulta de 17-1-646 .
Livro I das mixtas, fl. 283, v. - Existe o original desta carta no Ar
quivo Ultramarino ).

360
barcado tudo nas Náos levou ferro do porto de Quicombo,
e veyo ancorar costa a baixo em huma Enseada a quem deu
o nome do Suto por elle se chamar Souto Mayor.
Preparou logo o nosso Governador com este avizo tres
Lanchas carregadag de farinhas de guerra as quaes sahirão
pela barra da Coamza fora com pretexto de que hião para
a Cidade, para as deixarem passar os Flamengos, que esta
vão á Fortaleza daquella barra, hindo nelles hum Sacerdote
de grande coração por nome Jeronimo da Fonseca Sarayva,
Irmão do Capitão mor da guerra, que atraz dissemos mor
rera no Cerco dos Empures, o qual sahido a barra com
aquelle engano navegou para barlavento Costa a cima , e
encontrando o Governador na Enseada, e porto do Suto,
foi mui festejado de toda a gente daquelle soccorro , o terem
noticias certas das couzas de Masangano, por pessoa tão
conhecida de todos, estimando muito tambem o soccorro das
farinhas de que tinhão muita falta, (* )

( ) Eis a historia deste segundo socorro .


Em principios de Outubro de 1644 o procurador da Fazenda Real,
Dr. Fernão de Mattos de Carvalhosa, tinha dado ao Rei um papel
tratando de Angola. O Rei por Decreto de 14-10-1644 mandou o dito
papel para o Conselho Ultramarino .
Dizia o dito Doutor no tal papel: «Que se tem por cousa certa
que, do poder dos holandezes em Angola onde estava preso , fugiu
Pedro Cezar de Menezes, levando consigo cousa de 150 soldados dos
do inimigo de diversas nações e que com elles foi para Masangano ».
o Conselho foi de parecer que o Menezes devia ser socorrido com
tudo o que fosse possivel ou para poder vencer os holandeses e ficar
Loanda livre deles, recuperando -se o perdido, ou ao menos conser
vando - se o que o não estava .
Estava para ir para o Brazil Salvador Correia de Sá Benevides,
como general da frota do Brazil; o Conselho foi de parecer que este
socorro devia ir a cargo de Salvador Correla, o qual em chegando ao
Rio de Janeiro devia mandar a Angola um ou dois navios dos que es
tavam no Rio (Consulta de 20-10-1644, a qual é enorme, no Livro I
de consultas mixtas, fl. 127 ) .

361
Daquelle sitio e porto do Suto como estava mais che
gado ao Rio Coamza metteo alguns avizos mais em Masan
gano por via de Negros dizendo nelles o poder que trazia
muito mayor do que era, porque se algum fosse á mão do
inimigo, ou amigo que então era pella Tregoa e Cessão de

O Rei em Decreto á mesma consulta e datado de 21-10 - disse


« Como parece e assim o mando dispor» .
Salvador Correia partiu para o Brazil em fim de Dezembro de
1644 e levou de cá a nomeação de Francisco de Souto Mayor para
Gov.dor de Angola, o qual estava governando o Rio de Janeiro desde
10 de Junho de 1644. Salvador Correia escreveu do Rio ao Rei em
14 de Maio de 1645 e diz que deu o socorro de navios ao Souto Mayor
para ir a Angola. (Consultas de 13-1 , e de 11-8-1645, no Livro aqui
citado, fls. 154 e 226, v ) .
A noticia que cá constou , de que Pedro Cezar tinha, na sua fuga de
Loanda, levado consigo 150 soldados dos holandeses, era falsa, corno
se viu atraz na pag. 339 deste primeiro tomo.
Antes do roubo do arraial da Barra do Bengo podia Pedro Cezar
ter tomado soldados dos holandeses. O nosso embaixador em Holanda ,
Sousa Coutinho, disse em carta de 23-11-1643 ao Conde da Vidigueira,
nosso embaixador em Paris, que os 15 ou 16 soldados portugueses que
lá foram ter, idos deportados de Angola, lhe disseram que os holan
deses não tinham mais do que 350 soldados, a maior parte deles fran
ceses; estes se ofereceram a Pedro Cezar que, se lhes pagasse 5 anos
de soldo, que os holandeses lhes deviam , lhe entregariam as praças de
Loanda e Benguela. Pedro Cezar não quiz aceitar isto ,
(Livro citado, na minha nota á pág . 304, pàg . 78; veja -se o mesmo
na pág . 73 ) .
Mas este facto não se deu na ocasião da fuga de Pedro Cezar
de Loanda, mas sim antes do ataque e roubo na Barra do Bengo, como
já se disse.

Francisco de Souto Mayor escreveu do porto de Quicombo uma


carta ao Rei, datada de 13 de Setembro de 1645. O original desta
existe no arquivo Ultramarino e está extratada na consulta de 17-1-1646 .
Do Livro I de consultas mixtas, aqui citado fl. 283, v. Dizia Souto
Mayor que saiu do Rio em 8 de Maio de 1645; em 16 de Julho avista

362
Armas, ficasse temerozo e não se atrevesse a sahir ao en
contro a impedir a passagem e caminho; e em quanto o Go
vernador se prepara em o sitio do Suto para comboyar o
soccorro atraveçando a Provincia do Quisama ao Rio
Coamza , vamos ver ao nosso trabalhado Governador em

ram as Salinas (eram um pouco abaixo de Benguela ali recebeu os por


tugueses de Benguela que passaram por ali de noite para não serem
presentidos pelos holandeses; que lá tinha deixado 'cartas para Pedro
Cezar de Menezes; que chegou ao porto de Quicombo em 23 de Julho;
que do primeiro socorro que partiu da Bahia se acharam somente
20 soldados com o capitão mór Antonio Teixeira, os quais já tinha
consigo ; que tinha ali 400 soldados, sendo os seus 260, os 90 do pri
meiro socorro e 50 portugueses de Benguella; que se fortificou em Qui
comba ; que em 4 de Setembro estava quasi 'com a determinação de ir
a Masangano .
Dizia mais que o porto de Quicombo devia ser fortificado : — Que
o porto de Quicombo se podia conservar sem quebrar as tregoas não
obstante que está entre as presidios dos Olandeses que se intitulão se .
nhores porque está mais de vinte legoas a sota - vento de Benguela e a
trinta a barlavento das de Quanza e Loanda e nunca nele tiverão comer
cio com seus navios e os naturaes sempre reconhecerão por paes os
Capitães de V. Mag.de os quaes em observação de vassalagem lhe trou
xeram tributo de murrão e azeite . -
Pelo mesmo navio mandou outra carta ao Rei e esta datada de
17 de Setembro, a qual tambem existe e está extratada onde a primeira.
Nela dizia que já tinha recebido resposta de Pedro Cezar, o qual lhe
indicava que não fosse a Masangano saindo de Quicombo, mas que
fasse de Cabo Ledo, ou mesmo pelo Quanza; que a Cabo Ledo era
mais facil ele mandar- lhe de Masangano gente preta. Dizia mais que
ia já mandar os Jesuitas, P.dre Matheus Dias, e o irmão Antonio Pires,
á Bahia para o Governador d'aquela cidade lhe mandar gente, munições
e bastimentos emquanto o Rei não mandasse mais.
O Rei em resolução a esta consulta, por Decreto de 3-2-1646, man
dou que o porto de Quicombo fosse fortificado.
Até aqui consta tudo da dita consulta de 17-1-1646.
Mas nada se fez ; as dificuldades eram muitas: falta de dinheiro, de
homens e de navios.

363
a conservação destes Reinos, e disposição das Armas Por
tuguezas, e darmos fim ao seu Governo dizendo algumas
couzas mais que succederão em seu tempo, para mais livre
mente meçarmos com o novo Governo que lhe vem a
succeder.

o Conselho Ultramarino continuou a tratar de ser fortificado o


porto de Quicombo e ir novo socorro a Angola; trata disto a consulta
de 27-2-1646 .
O Rei por sua parte ia decretando, mas sem os decretos produzi
rem efeito .
O decreto a esta consulta é de 12-3-1646 e diz que mandava que
fosse socorro e que o Conselho lhe propozesse pessoa para correr com
este apresto .
(Livro de consultas aqui citado, fl. 322 ) .
A relação, em forma de diario , da viagem de Souto Mayor da
Bahia até Quicombo e Quanza, está na pág. 18 da Revista de Historia,
vol. 12, citada na nota á pág . 357.

364
CAPITULO OITAVO DA TERCEIRA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS E ULTIMO DO GO
VERNO DE PEDRO CEZAR DE MENEZES .

Hindo no ultimo de seu Governo havia vindo da Cidade,


a servir a Coroa de Portugal de baixo de suas Bandeiras,
hum Estrangeiro que dizia ser Alemão, o qual era seu appel
lido João Anriques, e o tempo , e exercicio nas guerras da
Provincia do Libolo lhe deu o Appellido de Casabe, to
mandoo de hum Jaga Senhor de Quicombo desse Appellido,
que elle havia vencido na dita Provincia ; retirou - se da Ci
dade por differenças que ali teve com o Superior, o qual
trouxe o seu Cavallo e alguns poucos Estrangeiros que o
accompanhavão, e como era ardilozo e esperto Soldado,
Amigo de emprender fauçoens, que para tudo tinha engenho
e despozição, para o que lhe deu o Governador alguns Sol
dados de bom pé filhos da terra expertos, e Quilambas com
guerra preta que o accompanhassem , e com os Estrangeiros
que com sigo trouxe foi obrando na Provincia do Libolo
alguns progressos de guerra, alojando a gente que em sua
Companhia trazia em parte eminente, que tivesse poucas
entradas, por onde podesse ser entrado daquelles inimigos; e
alguma aberta que havia lhe mandava fazer quisaco, que
he barda de Espinhos, e páu a pique com que ficasse res
guardado por todas as partes; desta sorte com esta preven
ção de ardiz fez muita guerra naquella Provincia aos Qui
lombos dos Jagas, onde entrou o Jaga Casabe de quem este
valerozo Alemão tomou o Appellido de Casabe, pello haver
vencido, elle se afoutava muito em cima do seu Cavallo de
que era mui dextro ; mas nem com toda essa afouteza deixou
de estar quazi tomado ás mãos daquelles Jagas, se lhe não

365
acudira hum valente Quilamba nosso que o salvou de não
ser morto ou aprisionado, mas ninguem lhe pôde tirar o ser
muito valerozo e esforçado Soldado, e pella communicação
dos Portuguezes se reduzio de herege que era á fé de nosso
Senhor Jesus Christo, convencido de alguns errores despois
de andar em este serviço algum tempo, que vay a dizer
muito andar entre Catholicos Romanos, ou entre quem o não
hé. Veyo tambem neste tempo da Cidade o Commissario
das Roupas Paulo de Escorel com consentimento do Go
vernador compromettido de cazar com huma Mulher Cas
telhana, da qual constava era Catholico Romano, por nunca
ouvir os Predicantes e Domines Hereges, nem entrar onde
fazião suas juntas e assembleas, em Companhia dos Hollan
dezes e sectarios.
Conforme a Tregoa e Cessão de Armas com o Flamengo
vinhão alguns a tratar e mercanciar á Villa de Masangano,
com Passaporte do seu Director, entre os quaes veyo o Fla
mengo Daniel que tinha advertido ao Governador quando
foi do esbulho do nosso Arrayal do Bengo e sua barra, se
não pozesse a Cavallo, que o havião de matar, e na Cidade
havia servido ao Governador em algumas couzas que o
occupou ; nessa occazião lhe foi gratificado o bom modo e
primor com que se havia com elle portado, mandando - lhe
dar bom agazalhado, fazendo-lhe algum serviço, em satis
fação do beneficio recebido, que só quem os sabe avaliar
os sabe satisfazer. Foi o nosso Governador em todo o dis
curso de seu Governo mui zelozo do serviço de Deos, e
assim acudia a tudo com zelo mui Catholico, evitando tudo
o que era contrario a elle; fazia o Gentio e a gente bauti
zada dos Portuguezes huns baylos mui deshonnestos a que
chamavão o Quimbuari, entrando nelles homens e Mulhe
res, e se fazia nelles muitas ofenças a Deos; estando huma
noite muita gente preta naquelles deshonnestos baylhos,
muito acezos e descuidados, mandou o Governador cercar

366
ao derredor de Infantaria, precedendo já sobre bando lan
çado, se não fizesem , onde se apanharão muitos dos Bay
lharims, mandando a huns cortar orelhas, a outros açouta
das pellas ruas publicamente, assim Negros como Negras;
o mesmo mandou fazer em algumas partes donde tinha noti
cia havia sacalamentos, e feitiçarias, invocando nelles o
Diabo, mandando apanhar estes taes, principalmente o mo
tor delles que erão os feiticeiros, se fazia nelles exemplar
castigo, e nos mais que assistião aquellas Diabolarias.
Teve o Governador noticia que hum Negro descido do
Sertão dentro, vinha pellos nossos Sovas Vassallos de Sua
Magestade fazendo huma grande Cisma, chamando -se e
appellidando- se Suqueco, que derivava que elle era só no
Mundo; (' ) e como tão singular no Appellido, acudia muita
gente a elle a buscarem remedio a seus malles, porque em
todas as Artes e maldades se fazia perito, assim de curar
todos os malles, e dar saude a Enfermos, como para quem
quizesse ter filhos, que não paria por ser esteril, e para que
parindo fossem Gemeos; com estas embustias e maldades
tinha já grande sequito, e o seguia muita gente; e era tanto
o credito que davão a suas couzas o Gentio e muita gente
bautizada, que mandavão benzer, ou maldiçoar, se podéra
melhor dizer, as sementes com que havião de semear as
terras, para que com aquella virtuoza ou malina benção da
rem fruto : o Gentio destes Reinos hé mui facil em crer tudo
o que hé para mal, e mais entrando nisso o Pay das mal
dades que elles tanto adorão e venerão, assim se inclinarão
ao bem se forem , bons Christãos, e o não serem muitos só
no nome; mas o rato sempre foge para o mato .
Tendo o Governador de tudo noticia, e vendo era neces
sario apagar aquelle fogo, antes que cauzasse mayor in

e ) Esta he digna de dotar -se . (Nota marginal do Ator ).


( Nota marginal do Autor ).

367
cendio , e dando tratos ao seu bom juizo, e buscando modos
para o poder haver ás mãos aquelle cismatico, que se fazia
Deos na terra, procurando a paragem e Sova onde esti
vesse, porque como andava apregoando as suas diabolicas
virtudes a todos os Sovas corria e todos o dezejavão nas
suas terras, foi lhe dito como estava esta boa peça em a
bamza e morada de Angola Quiaito, do qual Sova fazia o
Governador muita conta, despois que veyo da prizão do Fla
mengo, e soube o que este Sova obrou mostrando - se fiel na
condução da gente portugueza da rota e esbulho do alloja
mento do Gambo e barra do Bemgo, conduzindo - a a Man
sangano; por este beneficio fazia o Governador delle muita
ta , não vindo nenhum Sova a velo que não viesse por
sua porta , mandando - o assentar em sua Quibuna (1 ) assento
baixo diante de sy dando - lhe huma roupeta de seda com o
Habito da venerada Ordem de Christo de que o Governa
dor era Commendador dando - lhe outras datas, e sempre de
comer e beber em sua casa. (2)
Sabendo como dissemos que estava na Bamza do dito
Angola Quiaito , e como o dito Sova tinha hido á sua terra
que assistia sempre em Masangano ao Governador, e pa
rece que tinha hido ver aquelle portento de Santidade ou
de malinidade, que a ventura lhe tinha trazido á sua terra,
para o Governador sahir com o que tanto dezejava, formou
huma estratagema, vendo que só por ella o poderia haver
ás mãos, que de outra sorte por mais que fizesse lhe havião
de dar escapula, e foi ella fingir - se doente, deitando - se na
cama , fazendo - o assim mandou chamar á sua terra e banza
ao Sova Angola Quiaito, que distava daquella Villa de Ma
sangano quatro legoas aonde morava , mandando - lhe dizer

® ) Quibuna he como huma Tripeça de Sapateiro, ou hum Tanho.


(Nota marginal do AutorJ.
) Ainda é assim boje.

368
que amizade era a sua, pois estando doente o não vinha
ver; com dito recado, veyo logo o dito Sova, ao qual estando
prezente se queixou o zeloso da honra de Deos, em como
estava com grandes dores, e que não havia Medico nem
Surgião que lhe desse remedio a seus malles, e que era força
buscar os Curadores hervolarios da terra para tomar suas
Medicinas, a ver se se achava melhor; que tivera por noticia ,
que á sua terra e banzo tinha vindo hum Curador de grande
fama, que lhe tinhão gavado muito que curava muitos males
intrinsecos; que folgaria lho fosse buscar para o curar, que
elle lhe pagaria mui bem : com aquella falla ficou o Sova
muito alegre em ver que era tal a fama daquelle diabolico
Negro, que até mesmo o Governador se queria curar com
elle, e tomar as suas mezinhas; com o que disse que logo o
hia buscar, e o traria .
Dali a dous dias se ouviu grande matinada e algazarra ao
largo pella outra banda da Lucala, que até aquela paragem
chegavão as terras e Senhorio daquelle Sova, tocando muitos
instrumentos de allegria, como erão, Engomas, Marimbas e
Gonges, Pandeiros e Maçanzas e Zaçazaças, fazendo tudo
hum grande estrondo, vindo todos sangando (1 ) a modo de
guerra, dando muitos lozos e apupadas , trazendo muito
Gentio em sua Companhia , e accompanhamento, festejando
todos o vir aquelle seu mayor feiticeiro curar a pessoa do
Governador, vindo a Cavallo em sua Rede que o trazião
pellos Ares, com aquelle Sova em outra Rede que o vinha
accompanhando.
Havia o Governador prevenido da outra banda do Rio

(“ Sangar he dar saltos fazendo arremetidas como quem peleja.


Gonges são huns chocalhos que tocados com huns palitos faz
consonancia . engomas são Tambores, a seu modo. Marimbas são feitas
de Cabassos que fazem consonancia como Orgão, e he o melhor delles.
(Nota marginal do Autor ).

369
Lucala hum Cabo com Infantaria para logo ali o prenderem ,
e os do seu sequito; assim com forão chegando a passagem do
Rio , foi a Infantaria rodeando por fora em Cordão , ficando
da banda de dentro o Grão Mestre Diabolico com alguns
dos seus , e o mesmo Sova ; a turba multa do acompanhamento
ainda agora foge e corre com os seus magnificos instrumen
tos com que vinhão tão de festa, que se lhe virou em tristeza;
não havia nenhum Negro que naquele fino feiticeiro quizesse
pegar por mais que os mandarão, guardando aquelle respeito,
e tambem por temor de os não empecerem seus feitos; só
hum Negro do Governador chamado o Somgo lhe perdeo o
respeito e cortezia, abalançandose a elle , e amarrando - o
muito bem; este o prendeo, o qual era da Provincia dos Som
gos, onde guardavão differentes ritos, e costumes, e este
Diabolico era de contraria Nação, e Lingoagem, cauza por
que foi tão afouto: com elle se apanharão juntamente seus
Idolos, e Badulaques, e immundicias Diabolicas com que in
vocava o Pay das trevas, e fazia suas curas, com alguns
Escravos de sua conta, que lhe havião dado os Sovas por
onde havia passado, em obzequio de ser tão afamado fei
ticeiro.
Pouco tinha que fazer o Ante-Christo com esta Genti
lidade, que com apparencias que lhe fizera , não ficaria ne
nhum que o não seguisse, e muito mais se representasse com
elles ter feito o officia de Curador, Medico, ou Surgião; é
este genero de gente aquem rendem adoraçoens, obsequios,
e veneraçoens, e como enfermão de muitas enfermidades, e
as mais dellas lhes cauza a imaginação, bem sabem os en
tendidos que a imaginação é cauza, pella mayor parte, de
sonharem com seus defuntos , dizendo os coatou (1 ) ozombi,
outros que seus Pays ou Avós tiverão este ou aquelle mal,

© Coatou he pegou na sua lingoa. Ozambi chamão ao defunto .


(Nota marginal do Autor) . É nzumbi.

370
ou doença, elles tambem querem que lhe venha isto por
herança, como a Lepra aos Reis de Espanha; vão então
consulta - las com hum feiticeiro destes; como sabem o de que
peccão, applica -lhe qualquer páo, erva, ou lavagem , elles
com a fé que tem no sugeito se lhe tira a imaginação, e
tirada ella ficão sãos ou melhorados : podemos dizer a isto
como disse o outro vendo - se em perigo de ser naufragado;
A fé te salva , e não o Pao da Barca! este era ao divino
applicado, e o de que fallamos era ao humano e diabolico.
Prezo o mandárão pôr a bom recado em ferros no Cor
po -da-Guarda com boas sentinellas; o Sova Amigo teve
honorifica prizão em Caza do mesmo Governador com bom
trato, e se largou toda a gente daquella quadrilha , que como
já errantes, seguião aquelle Enredador, que levava aquellas
almas á sua perdição, e só ficou o que constava ser o seu
proprio .
Tratou o Governador de ver se o podia reduzir á nossa
Santa fé, em que esteve sempre pertinaz, hindo - o a Cathe
quizar alguns Sacerdotes autorizados filhos da terra, mui
praticos nas lingoas dos Gentios destes Reinos , não que
rendo admittir o que se lhe dizia em ordem a sua salvação,
antes dizia Blasfemias; dizendo que elle era hum só no
Mundo; que o seu nome de Suqueco o significava, assim
que não queria reduzir - se, nem fazer o que se lhe dizia, e
ainda se fazia Propheta falso , como já neste Mundo houve
alguns; dizendo que se elle morria , não havia de chuver
mais; e que os dous Rios Coamza e Lucala se havião de
secar, e outras parvoices semilhantes, e de tudo o que lhe
dizião em contrario se ria e zombava : era Negro Corpu
lento de Cara bem assombrada, reprezentava gravidade; o
que visto pello Governador, mandou em hum alto junto á
Igreja de São Benedito, que de todas as partes se descubria,
fazer hum cadafalco, e muita gente com Lenha de que se
fez ao derredor huma grande fogueira, e deu por ordem ao

371
Ouvidor Geral , que então era Domingos Luis de Andrade,
por Francisco de Figueira se ter aprisionado na Barra do
Bemgo, e ao Licenciado João Soares Pacheco, que se se
reduzisse, lhe dessem garrote e o queimassem , e se não fosse
queimado vivo.
Pello caminho hindo para a fogueira, assim como lhe
punhão o Santo Christo diante virava a Cara para a outra
parte sem se reduzir; e excedendo a ordem os executores
da Sentença lhe mandarão dar garrote, e despois o queima
rão , de que o Governador se ressentio muito em haverem
excedido a sua ordem , em o não queimarem vivo como tinha
ordenado : foi este tão publico e exemplar castigo couza ,
que deixou a esta gentilidade admirada para exemplo de
se não dezaforarem , como este idolatra Cismatico tinha
feito, e hia fazendo, se não acudira a isso hum tão Christão
e Catholico Governador, zelando a honra de Deos, e sua
Santa fé Catholica; mas bastava ter sangue tão fidalgo, e
ser de tão boa maça para produzir semelhantes effeitos.
Estando ainda o brazido da fogueira, permittio Deos
para confuzão daquella Gentilidade, que esperavão ver
cumpridas as Prophecias daquelle barbaro, que chovesse ao
anoitecer huma boa pancada de agoa, não tendo chovido
até então; tambem esperavão vêlas cumpridas na seca dos
Rios: succedeo á cerca disso huma couza digna de notarse ,
para que se veja o que hé esta Gentilidade, e como dão cre
dito aos seus falsos adivinhos; e foi que estando hum Mo
rador em hum seu Arimo ou fazenda do Lembo, sito á mar
gem do Rio Lucala, o seu Appellido era Antonio Roldão ,
o qual tinha naquella sua fazenda hum Negro por Mucu
lumto (' ) ou Abegão que he o mesmo, que lha , governava ,
e toda a mais gente sua Escrava que ali tinha, e era Negro

() Mukuluntu, palavra do Congo que quer dizer - chefe superior.

372
muito Portuguez, e estava crente em que o Rio Lucala se
havia de secar ; disse - lhe seu Senhor, que fosse ver em que
estado estava , veya elle com recado, dizendo que se hia
secando, tornou - o a mandar outra vez, disse o mesmo: o
Morador disse então, Negro vay com toda essa gente com
todas as Vasilhas que houver a enchelas de agoa, antes que
se acabe de todo, e elle o fez tão diligente , que lhe não ficou
nenhuma , nem do Senhor nem da sua gente, por pequena
que fosse, que a não fosse encher; vindo com a agua mui de
pressa do Rio lhe tornou seu Senhor a perguntar, como vá
la isso ? tem ainda agoa ? a que respondeu já vay tendo
pouca, com que o não pode soffer mais mandando-o amarrar
e abrazar com açoutes, porque , sendo Portuguez e bautizado
com a agoa do Santo bautismo estivesse tão crente no dito
de hum feiticeiro , filho do Diabo .
Tinha havido muita falta de tudo em a Villa da Victoria
de Masangano, Praça de Armas da Conquista , e sem em
bargo que havia a Tregoa, e Cessão de Armas com o Fla
mengo, quando elle o não tinha para o seu sustento, me
nos o teria para outrem ; e do que mais se necessitava , era
de Cera par o culto divino, que como nas Cazas onde se
ajuntão os Domines, e Predicantes das Seitas de Calvino,
e Lutero, acendem poucas Luzes , tudo ao avesso do nosso
uzo Catholico Romano, não lhe vinha do norte nenhuma
desta Mercancia , com que chegou a valer naquella Villa a
Livra a quatro mil Reis de prata ou boa peça , que pessoa
de Negocios havia retirado da Cidade, e como se achava
só em huma mão, lhe punha o preço que queria ; mas nem
por amor da caristia se deixavão de fazer os Sepulcros na
Quaresma Quinta Feira de Endoenças, com a mesma gran
deza, como se actualmente valesse muito barata pello preço
ordinario de quatro ou cinco Tostoens, zelo que a Nação
Portugueza mais que outra nenhuma do Mundo observa, e
muito mais para admirar em partes tão remotas, quando

373
mais opprimidos, e atenuados de Cabedaes, não ser nada
disso bastante para são deixarem de venerarem e adorarem
a Deos e a sua sacratissima May, e a seus Santos, solemni
zando - se suas festividades com muito dispendio.
Quiz Nosso Senhor em parte pagar o fervorozo zelo com
que a Nação Portugueza em Angola, e em tantas mizerias
o servião ; e foi o cazo, que vindo da Provincia da Quisama,
onde há muitas Colmeias, alguns potes de mel, com os mes
mos favos dentro; posto o mel de parte, mandou o Gover
nador ao seu Pagem por nome Manuel Faya , atraz lhe
chamo Francisco, e agora Manoel; e isto nasce do que dirá
o Autor : bem sabem os Senhores fidalgos, que em suas no
bres, e excellentes Cazas, se não nomeão os Pagens com o
nome inteiro; e como assim o costumasse o nosso Governa
dor, ordinariamente o seu appellido era de Faya, com que
não está na lembrança se era Francisco ou Manoel, ainda
que esta equivocação he de pouca consideração, não quizera
o Autor que nisto houvesse alguma objecção, porque se
pretende mostrar mui verdadeiro em esta historia que va
escrevendo; e assim que digo que mandou ao seu Pagem por
sobre-nome o Faya, porque sabia era filho de hum homem
honrado de Lisboa, Cerieiro, fizesse experiencia pello que
tinha visto obrar em caza de seu Pay, se aquella Cera era
boa e se se lavrava e curava bem : feita a experiencia se
achou ser riquissima, tambem como a melhor que pode haver
no Mundo todo, facil de lavrar, e em quatro dias de a tra
zerem ao Sol, fica alva como huma neve, de modo que logo
se pode por no Altar, sem andar com ella por hortas, nem
sereno de noute; esta experiencia foi bastante para dali por
diante se tratar de ir buscar aquella Cera aquella Provincia
da Quisama ; e logo houve muitos Cerieiros, que chegou a
haver tanta que agora em nossos tempos tem hido muitos
Quintaes de lá para o Brazil, e escuza vir do nosso Reino
Cera, que val a dous tostoens e a pouco mais; este descu

374
brimento se deve ao nosso Governador Pedro Cezar de Me
nezes, assim como ao Governador Fernão de Souza a Agri
cultura e Searas, que bem nos mostrou o tempo em que
estamos , que se ellas não forão , mal se poderão sustentar
estes Reinos.
Sempre foi costume aos que morrem o hirem accompa
nhados de muitas Luzes, parece logo que isto de fallar em
Cera veyo de molde ao nosso Governador, pois morre para
nós a sua vista , e fica vivo nos coraçoens suas lembranças,
e o muito que trabalhou com animo incançavel, em susten
tar e conservar estes Reinos a Sua Magestade, e ainda há
de ser chorada a sua auzencia , que os trabalhos e castigos
de Deos ainda não são findos; governou e teve o governo
destes Reinos passante de cinco annos entrando o tempo que
esteve prisioneiro, que forão alguns mezes.
Foi- se preparando hum e outro Governador, o nosso para
descer pella Coamza abaixo , e se ir embarcar nas Náos em
que veyo o soccorro ao Suto, e o que vinha para vir por
ella acima a Masangano; o nosso em quanto as couzas se
não baralharão com o Flamengo alcançou do Director li
cença para botar pella barra da Coamza hum seu Pataxo,
de que hia por Mestre Francisco Gonsalvres Terras com
Escravos e Marfim , o qual teve effeito com a licença con
cedida, e sahio de mar em fora a ir esperar no porto do
Suto; mandou o Governador avizar a todos os Cidadoens
e Moradores, assim da Loanda como de Masangano, fossem
todos acudir com suas embarcaçoens, pessoas e Escravos,
e mantimentos ao Governador Francisco de Souto Mayor,
e comboyo do soccorro todos em sua Companhia, e mandou
aos Donos dos Pataxos e Lanchas que havia do Rio Coamza
para dentro , acudissem todas abaixo a dito comboy; e elle
embarcado com seu Capitão da guarda, e mais tres Cria
dos deu á vella ou ao Remo daquella vistoza se bem pouco
sadia Villa da Victoria de Mansagno, que pella verdura e

375
agoa de que he cercada parece hum deleitozo Pais de Flan
dres, onde estava já como compatriota, passando com todos
não com aquella altivez, que he dado aos que occupão se .
melhantes postos, se não como Irmão e Companheiro , tendo
nestas miserias seu passatempo com os principaes, que nem
sempre se ha de gemer e chorar, que até hum enfermo que
sente mal , trata de aliviar - se pello melhor modo que pode;
os que cá ficamos nos deixou saudozos.
Ficou o nosso Governador com toda a gente na Ilha do
Encandeira, e alguns dos Moradores passarão a encontrarse
com o novo Governador, passando tambem toda a Escrava
ria da gente portugueza ao Combóy da Artilharia, muni
çovens e mais petrechos de guerra , que tudo trazia em abun
dancia , até Seiras de esparto, que tudo foi necessario, como
ao diante se verá; constava a Artilharia de doze peças de
ferro, de oito até dezoito de grande e piqueno Calibre, e
algumas peças de Bronze de Campanha: 0 Irmão da Com
panhia de Jesus por nome Antonio Pires, e pello da terra
o Ganga anjaine por ser muito antigo nella, tomou á sua
conta o Comboy de duas peças de mayor Calibre, as quaes
veyo combóyando do Suto atraveçando a Quisama por onde
veyo todo o mais com os Escravos e Forros do Collegio, fa
zendo aquelle serviço com gosto e alegria, mostrando - se ze
laso no serviço de Sua Magestade, o que nesta sagrada Re
ligião he bem conhecido o exemplo que dão aos mais, como
tão Leaes Vassallos.
Havia o novo Governador escrito algumas Cartas, como
dito he, com astucia de guerra, para que fossem á mão do
Flamengo, como forão algumas em que dava parte trazia
mil e duzentos homens, que descesse o Governador com o
poder que tivesse, verião se podião ter hum bom dia; com
esta noticia ficou o Flamengo confuzo, conforme despois se
soube, não se determinando em o que havia de fazer, afim
de impedir a passagem do soccorro para Masangano, porque

376
para vir com gente por mar dependia de ter Navios e estar
a barra da Coamza capaz para entrarem para dentro; se por
terra a Tombo não tinhão dentro do Rio Lanchas sufficien
tes para passar nellas o poder; para hirem a Calumbo, Sam
belo, ou penedo, era distancia grande, e não tinha a certeza,
ficandolhe o nosso poder pellas Costas, se se emprenderia
a Cidade de que dava motivo o Governador fazer, nas Car
tas que tinha escrito , que lhe havião hido ás mãos, com o
que houve por seu barato não botar o poder fora da Cidade
que não sabia o que lhe podia vir: com tudo tinha o nosso
Governador posto gente no Morro dos Nambios destoutra
parte do Quisama frente a sua fortaleza da barra da Coam
za , para dali atalayarem os intentos dos inimigos, se vinha
gente por mar em seus Navios, ou se da Fortaleza da barra
sahia alguma, que quem se guardou não errou . Desta Sorte
se foi conduzindo tudo por aquella travecia da Provincia da
Quisama ao Rio Coamza, não fazendo nenhum estorvo
aquelle bellicozo Gentio do Quisama , que, como se não
entendia com elle, estava todo á mira com os Arcos e Armais
nas mãos observando a nossa passagem por suas terras com
aquella quietação.
Havia o nosso Governador tambem passado palavra a
todos os que tivessem peças para embarcar, que acudissem
com ellas ao Suto, por não hirem as naos tão de vazio, man
dandose despachar pellos Officiaes Reaes; e não forão tão
poucas que não rendessem os direitos alguns dez mil cru
zados, ou os que na verdade forão, que Lopo da Fonseca,
homem de largo negocio , que fez neste tempo officio de
Contratadar, os tomou sobre sy, para os dar em fazendas,
para a farda dos Soldados, hindolhe correndo o risco para o
Brazil fazendo por sua Conta.
Tendo dado fim o novo Governador á conducção de
todo o soccorro , tendo - o já a salvamento no Rio Coamza e
suas margens , marchou do sitio do Suto com o resto da In

377
fantaria e gente principal do Reino de Benguela e soccorro
do Capitão mor Antonio Teixeira de Mendonça, e outras
pessoas de consideração que havia vindo em sua companhia,
como era Bartolomeu de Vasconcellos da Cunha, e outros;
vindo accompanhado de tão boa gente chegou ao Rio Coam
za e paragem onde estava o Governador Pedro Cezar de
Menezes, onde em virtude da Patente Real que a apprezen
tou, sendo lida per ante todo aquelle concurso de gente, lhe
entregou o Governo destes Reinos de Angola dando a home
nagem primeiro em suas mãos delles, reinos onde estando
poucos dias, dando ao novo Governador as noticias necessar
rias das couzas destes Reinos, se foi embarcar ao porto do
Suto , em as Náos que estavão de verga dalto esperando por
elle; chegado que foi derão á vella, e soprando o Vento nos
levou com sigo nossas saudades, sendo elle favoravel, que
estava convidando a terem boa viagem, boa viagem .

378
CAPITULO PRIMEIRO DA QUARTA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS ESCRITAS POR ANTO
NIO DE OLIVEIRA DE CADORNEGA , CAPITAO
REFORMADO , E CIDADÃO DA CIDADE DE SÃO
PAULO DA ASSUMPÇAO NATURAL DE VILLA
VIÇOZA.

Havendo tomado posse do Governo destes Reinos de


Angola o Governador e Capitão Geral Francisco de Souto
Mayor, na era de mil e seiscentos e quarenta e cinco , em
o fim do anno, começou a dispor as couzas destes Reinos
com boa dispozição, como aquelle que havia militado su
bindo em os accrescentamentos da milicia e seus postos,
até o de Mestre de Campo em a Cidade da Bahia , de donde
foi mandado pello Governador do Estado do Brazil Anto
nio Telles da Silva como Mestre de Campo mais antigo
daquella Praça, a governar ( ' ) o Rio de Janeiro , por morte

( ) Tomou posse do governo em 25-10-1645 no sitio do Quanza,


em Terras do soba Senga ia Aquimona, defronte da ilha de Gaspar
Gonçalves, o Ensandeira. Em 2-11 já estava em Masangano.
Sobre a sua partida do Rio e chegada a Quicombo , etc. , vêde a
nota no fim do capitulo 7.º da 3. parte deste tomo . — As datas aqui
supra são dadas na sua carta de 4-12 — escrita do Arraial do Quanza,
que devia ser perto de Masangano. Esta carta está no Arquivo Ultra
marino .
Souto Mayor era, em principios de 1644, mestre de campo de um
dos terços de infantaria na Bahia. Tendo morrido em 15-4-1644 no
Rio de Janeiro o governador de lá, Luis Barbalho Bezerra, o governa
dor do Estado do Brazil (Bahia) , que era então Antonio Telles da
Silva, nomeou o Souto Mayor governador do Rio, tendo tomado posse
em 10-6-1644 e de que teve carta patente em 6-10 do mesmo ano .
Salvador Correia saiu de Lisboa, para ir ao Rio, em fins de De

379
do Governador Luiz Barbalho Bezerra, onde se houve com
muita aceitação, fazendo o que lhe foi mandado, a respeito
da soblevação que tinha havido naquella Cidade de São
Sebastião, sobre o Cunho da moeda ; estando naquelle Go
verno lhe ordenou a Magestade del Rey Dom João o Quarto,
viesse a governar estes Reinos com o soccorro que foi ser
vido mandarlhe dar, e que o aviasse de todo o necessario o
Governador Salvador Correia de Sãa e Benavides, que lhe
tinha vindo a succeder em o Governo : de como chegou ao
Porto de Mani Quicombo , e do succedido até que agora to
mou posse deste Governo, o tem o Autor desta historia já
referido e feito menção; agora hiremos proseguindo no Com
boy do soccorro que vay navegando pello Rio Coamza acima ;
e para o appresto delle e acudir a muita gente enferma que
trazia , fez Sargento mor a Diogo Gomes Sampayo Mora
dor da Cidade, pessoa de serviços e merecimentos, e vinhão
em sua Companhia conforme lembrança do Autor por Ca
pitaens de Infantaria Nuno Vas Guedes Bartelameu Paes
Bulhão do Habito de Christo despachado com a Fortaleza
de Cambambe, Francisco Coelho de Azevedo, que servia
juntamente de Secretario, Feliz de Moura, Christovão de
Lima, todos Soldados praticos da Campanha de Pernam
buco; Paulo Pereira Capitão do terço de Henrique Dias com
alguns Soldados Pretos daquelle esforçado Mestre de Cam

zembro de 1644 e levou a nomeação regia de Souto Mayor para o


governo de Angola e ordem para ele ir para lá.
Salvador Correia escreveu do Rio em 14-5-1645 ao Rei , dizendo
que tinha dado a Souto Mayor um socorro de navios.
Consta tudo dos Documentos n .06 318 , 319, 333 e 341, nas Caixas
do Rio, no Arquivo Ultramarino.
A patente está na Torre do Tombo, Chancelaria de D. João IV.
Livro 14. fl . 304.
Consultas de 13-1 11 e 31 de Agosto de 1645, no Livro I de con
sultas mixtas , fls. 154, 226, v. , e 236 .

380
po , Dinis da Mota da gente de Benguela; e Corneli Elles (1 )
tambem Capitão da gente daquelle Reino; viria por toda a
gente Soldados de huma e outra parte, passante de seiscen
tos homens ; (? ) vinha em sua Companhia o Padre Matheus
Dias da Companhia de Jesus, Religiozo de Lettras, e exem
plar vida, que lhe servia de seu Confessor, e de administrar
os divinos Sacramentos a toda a gente daquelle soccorro ,
acudindo a todos com muita caridade.
Foi embarcando em os Pataxos a Artilharia grossa des
calvagada mettida no porão, por se não poderem trazer ca
valgadas pella pouca possibilidade das embarcaçoens; só a
de Campanha o vinhão, sobre a cuberta com as muniçoens
e mais petrechos de guerra; e em cada Pataxo sua Compa
nhia de Infantaria com suas Caixas de guerra , e Bandeiras
arboladas; ao som de Caixas e Trombetas forão navegando
por aquelle famozo e espaçozo Rio acima, dando a Infantaria
suas cargas de Mosquetaria , que assombrarão todo aquelle
Gentio da Quisama , e admirava a todos os mais, vendo
entrar aquelle soccorro tão Luzido tão perto do Flamengo,
sem elle se atrever a fazer huma minima demostração; nas
mais Lanchas vinhão aquelles Cazaes do Reino de Ben
guela com suas Mulheres e familias, e suas fardagens e ba
gagem ; os Cidadoens e Moradores em mui boas Canoas com
que reprezentava hum poder grande.
O Capitão e Cabo daquelle Rio Coamza se achava neste
tempo doente em Masangano na sua Ilha; e ainda occupava
aquelle posto, o mesmo que havia servido até agora que era
Fernão. Rodriguez , mas tinha mandado as Lanchas e Ca
pitaens de seu terço com o seu Alferes aquella conducção ;
e por elle não estar ociozo no serviço del Rey, sem embargo

© Cornelio Noelbs; era o comissario holandes de que o autor falou


na pag. 310.
© Eram só 400 soldados, como se vê na nota á pag . 361 .

381
de seus achaques, se occupou em hum serviço de muita con
sideração, assistindo com sua pessoa e Escravos a romper
hum caminho, que subia do principal porto aquella Villa, a
que chamão o Oitavo de Pires, por morar junto delle hum
Morador nobre desse Appellido; e sendo - o por onde se ser
via a gente daquella Villa mui ingrime e estreito, o fez tão
largo e lançante que pôde subir por elle a Artilharia caval
gada, em seus Carros Matos, e as Companhias em sua for
matura, e o Governador a Cavallo em hum dos que trazia
em sua Companhia .
A entrada naquella Villa de Masangano foi mui vistoza,
porque vierão todos aquelles pataxos em ordem costeando
para tomar porto pella Ilha frente a Masangano, de que era
Senhor o que havia feito o caminho, e por isso lhe chamão
a Ilha de Fernando, tocando Caixas e Clarins, dando muitas
surriadas, e entre ellas disparando a Artilharia de Campar
nha; a immensidade de Gentio que se ajuntou a ver esta
entrada não tinha numero porque tudo era coalhado delle;
os Moradores daquella Villa os que tinhão ficado, que não
havião hido ao accompanhamento e Combóy, lhe ordenarão
alguns Arcos por onde havia de passar, Ornados de ricas
sedas, flores e verdura cheiroza, tudo o que podia ser , con
forme o tempo em que se achavão ; As janellas e Muros das
ruas todas ornadas de boas Colchas, Quadros e Alcatifas;
o chão todo de verdura, fazendo - se toda a demostração de
contentamento e alegria; e o povo miudo com muitos Vivas
a el Rey Nosso Senhor, que não se esquecia, nem erão bas
tantes as occupaçoens de huma guerra tão continua com hum
tão poderozo Monarca, para não deixar de acudir a estes seus
Reinos e Vassallos.
O Capitão mor daquella Villa e Capitania esperou o
Governador com sua Infantaria posta em ala no topo da
subida com seu Alferes dando cargas, e tremolando a Ban
deira, até que chegando se lhe abateu, como a Governador

382
€ Capitão Geral provido pella mão Real. Entrando por
aquellas ruas, e seus quatro Arcos, foi dando volta até a
Igreja Matriz, onde o esperava o Clero com seu Vigario
Geral o Padre Mestre Escola Francisco Pinheiro : entrado
que foi se abrio o sacrario , cantando a Capella da Musica
o te Deos laudamos, em acção de graças de haver trazido
aquelle soccorro a salvamento . Feita esta solemnidade se
apozentou o Governador em humas Cazas na praça frente
á Igreja Matriz, onde tinha tambem morado o seu Ante
cessor .
E porque trazia muita gente doente os Moradores de
Masangano tomarão a cura deles á sua conta , conforme a
possibilidade de cada hum , curando -os e sustentando -os á
sua custa, que como erão muitos não cabião em humas Ca
zas que servião de hospital; o que fizerão como zelozos e
Leaes Vassallos de Sua Magestade; por este caminho que
fez o Governador tão difficultozo atraveçando a Provincia
da Quisama, lhe poz o Gentio o nome de Quicoca , ( ) que
he o que elles na sua lingoa chamão aos caminhos; e he seu
costume põrem a todos nomes Ambundos, e a muitos poem
com propriedade, como puzerão ao Governador Pedro Cezar
de Menezes, chamando lhe o Camongoa que era sal que
tudo adubava ou salgava , mongoa na sua lingoa chamão
an sal .
Foi logo o Governador tomando intelligencia das cou
zas destes Reinos, (?) e sabendo o modo e trayção que o

(°) (Kikoha ainda hoje é caminho.


( ) Estando já em Masangano, escreveu duas cartas ao Rei, data
das de 4 de Dezembro de 1645 , numa das quais pedia outro socorro e
que fosse fortificado o porto de Quicombo com artilharia.
O Conselho Ult.mo informou que se devia fazer assim. O Rei em
Decreto de 15-4-1646 disse: « Ao Conselho da Fazenda mando ordenar
que havendo possibilidade para se poder fazer e enviar este socorro

383
inimigo Holandes tinha feito e se tinha havido com os Vas
sallos Portuguezes no saque da barra do Bemgo, e seu aloja
mento do Gango, e mortes que fez cruelmente nos Cabos
mayores Moradores e Soldados, roubando - lhes tudo o que
possuhião de baixo das pazes feitas e celebradas entre el
Rey nosso Senhor por seus Embaixadores, e os Senhores
dos Estados de Hollanda, estranhando o commercio , Tre
goa e Cessão de Armas que com aquelle inimigo se fez ; des
pois disso, não havendo nada por bem , mandou logo á Ci
dade da Loanda huma Embaixada pello Capitão mor Diogo
Gomes Moralles ao Director, e o que continha era, que por
quanto havião quebrado a paz apregoada e estabelecida
entre a Coroa de Portugal e Estados de Hollanda, não es
tava pella Tregoa, e lhe mandava intimar a guerra ; a que

por todo o mes de Abril o disponha e execute como parece ao Con


selho e que não sendo possivel o referido pelo estado das cousas se
enviem nas cinco embarcações de particulares que estão para partir
150 infantes, artilharia e munições que puder ser . »
Consultas de 13 e 14 de Abril le 1646 , no Livro I de Consultas
mixtas, fls. 330 e 331 , v .
A Camara em Massangano, com carta sua de 2-12-1645, mandou
copia do auto da posse do Souto Mayor; pedia um socorro de solda
los e munições e mostrava a importancia que havia em este ir para
conservação do reino de Angola.
Em consulta de 27-6-1646 foi este assunto tratado em Conselho, o
qual disse ao Rei que aproveitava a ocasião para lhe lembrar para se
tratar do socorro com a maior brevidade que fosse possivel. O Rei,
por despacho de 27-7, disse que logo que partisse o socorro do Brazil
se trataria do de Angola; não se tratava de ambos ao mesmo tempo
para não impedir um ao outro . Existe o original desta consulta e tam
bem está no Livro I das mixtas, fl. 347.
Ainda houve mais a consulta de 5-7-1646 provocada por um me
morial dado pelo Irmão Jesuita, Gonçalo João, o qual tratava das coisas
de Angola e suas minas.
O Conselho foi de parecer que se devia mandar este socorro a
Angola e que feito depois se trataria das minas; lembrava ao Rei que

384
respondeo o Director, que elle ficava de acordo na guerra
que lhe mandava denunciar; que elle não fora com tempo
sabedor da passagem de seu soccorro, que a sabelo, não
passara como passou , mas que elle lhe promettia de o bus
car em Masangano, e dar-lhe huma purga com que lhe bo
tasse os Diabos fora, que no Corpo trazia.
Vindo o Inviado com a resposta não fez della muito cazo;
e como era tão bom Soldado e servidor del Rey, tudo lhe
parecia limitado ao seu grande animo; mas pareceu a muitos
accelerada rezolução , visto estar já neste tempo falto de todo
o necessario para a vida humana e lhe acconselharão, tra
tasse de se fornecer primeiro do necessario , e deixar vir para
nós hum Morador que estava na Loanda por nome Domin
gos Fernandes de Pinda ( - ) com permissão, attendendo ao

sem Angola não havia Brazil, como o dito memorial referia e o Con
selho já tinha representado ao Rei. – O Rei disse : «Agora que se acaba
com o socorro do Brazil tenho ordenado que se entre logo com este
de Angola. » Lisboa 2-8-1646.
Para se ver como o Conselho e o Rei encaravam este gravissimo
assunto leia -se a carta seguinte do Rei para Francisco de Souto Mayor :
« Francisco de Souto Mayor. Eu El Rey vos envio muito saudar;
pela necessidade e falta que nesse Reyno deve haver de gente é socorro
para a conquista delle se fica aqui tratando com toda a brevidade de
se enviar todo o que puder ser para sua defença.
Encomendovos que entretanto que elle se dilata tenhaes preve
nido e disposto o que virdes que he necessario para melhor acerto de
meu serviço , como espero de vosso valor e inteligencia , e pela melhor
via que puder ser me fareis aviso do estado em que fica esse Reyno e
as cousas delle ; escrita em Lisboa a 15 de Outubro de 1646 ; e eu o
Secretario A.° de Barros Cam ." a fis escrever. Rey . »
(A consulta citada de 5-7-1646 está no Livro das consultas mixtas,
a fl. 348. carta regia está no Livro I Geral de Cartas a fl . 91 , v. )
Apesar de tanta consulta, não foi socorro algum a não ser o de
Salvador Correia, em 1648, que libertou Angola dos holandeses.
p ) Com tudo este Morador se veyo da Cidade vendo o feito mal
parado. (Nota marginal do Autor ).

385
negocio , e de baixo de ser de utilidade a sua estada até en
tão, fazendo da Cidade muitos avizos a sua Magestade, que
podia trazer com sigo muito seu e alheio ; a nada disto
attendeo , despois o sentio vendo - se islhado.
O Flamengo (1 ) logo mostrou a paixão com que ficara,
e mandou dar em a Ilha do Ensandeira , onde rezidia aquelle
Morador por seu consentimento que foi como dito he,
o que salvou da prizão ao Governador passado toman
do -lhe tudo o mais do que possuhia, e a elle lhe derão tantas
feridas com que dellas veyo a morrer em breves dias; e logo
derão ordem na dita Ilha a fabrica de huma fortaleza
porque não tivesse tão livre a passagem outro algum socorro
nosso .
Mandou o Governador chamar a sua Caza a Paulo Es
corel aquelle commissario das Roupas que havia cazado em
aquella Villa , e lhe perguntou de quem era Vassallo, a que
respondeo que pois se achava em Masangano e cazado de
quem o havia de ser se não del Rey de Portugal ? Mandou
logo assinasse termo de fidelidade: o mesmo fez a outro Fla
mengo por nome Jacinto da Camara o qual se mostrou per

☺ O ms. de Evora tem assim :


Chegado o enviado com a resposta do Director Flamengo não fes
muito cazo della como valerozo lhe parecia limitado o animo delle avista
do que de si prezumia , a muitos apareceu mui declerada rezolucam visto
estar neste tempo faltos de todo o necessario para o sustento da vida
e lhe aconcelharam que primeiro tratasse de se aparelhar e fornecer de
todo o necessario deixar tambem vir para nos hum morador que estava
na cidade de Loanda por nome Domingos Fernandes da Pinda, com
licença do Governador antecesor delle e por estar fazendo negocio, e
por este titulo fazia entam todos avizos a sua Magestade nos Navios
delles e que podia trazer consigo na sua retirada muitos dos seus e da
conta aleya , a nada disto o Governador que se lhe devertio atendeo e o
depois foi o esperimentando, o dito morador que se achava na cidade
tanto que teve noticia da embaxada logo se pos a caminho retirando - se
do furor do Flamengo e se pos a Massangano.

386
plexo com a pergunta, ao que lhe disse se resolvesse logo,
com que veyo a fazer o mesmo que o primeiro .
E tendo o Governador avizo da Enbaca de que a Rainha
Ginga Dona Anna de Souza assombrava com sua guerra os
nossos Sovas Vassallos, e todo o seu destricto, dando alguns
assaltos em o Dominio del Rey de Domgo Gola Airi , Vas
sallo de Sua Magestade, Senhor das Pedras do Mapungo;
para acudir a este reparo, nomeou por Capitão mor da guerra
a Gaspar Borges Madureira pessoa de valor, e experiencia
nas cousas da guerra de Sertão, de quem já havemos fallado
em algumas partes desta historia, a quem deu alguma gente
Baquiana da terra Soldados e Moradores que levasse em
sua Companhia, alem da gente de guerra que assistia no
destricto e Capitania da Enbaca da outra banda do Rio
Lucala em o sitio do Xilla, para que com huma e outra incor
porada fizesse appozição aquella inimiga; o que o Capitão
mor fez com muito modo e diligencia , engrossando o Arrayal
de Quilambas Capitaens de guerra preta do Jaga Cabucu ,
e Escravos e forros dos Portuguezes; e como aquella Rainha
era tão astuciosa, tinha noticia por suas Espias e confiden
tes de tudo o que se obrava da nossa parte, e sabendo que
em huma Libata ou Povoação nossa distante pouco do nosso
Arrayal, onde morava hum Negro rico por nome Gregorio,
forro do serviço do Capitão mor, Antonio Teixeira de Men
donça , e que na dita Libata estava hum Cidadão nobre com
seu Cavallo o qual exercitava o posto de Capitão de Cavallos
por nome Estacio de Sãa de Miranda que havia hido áquella
Povoação a alguma couza que lhe importasse, mandou a Rai
nha Ginga hum seu Capitão de mais fama, por nome Gaspar
Aquibuata, dando -lhe a melhor gente escoteira ou bolante
que tinha em seu Quilombo, com ordem que viesse dar hum
assalto naquella Povoação, e lhe levasse aquelle homem de
a Cavallo que na dita libata estava ; o que fez aquelle seu
esforsado Cabo com grande presteza, marchando do sitio

387
36
em que alojava o seu Quilombo, que era nas Sangas do
Covanga, como dito hé, distante de mais de oito jornadas
de boa marcha, dando na Povoação em tempo que o Capi
tão de Cavallos havia vindo para o Arrayal, que essa foi
a sua ventura, aprisionou e matou o que na Povoação achou ,
esbulhandoa de Gado e do mais que nella havia achado,
dandolhe despois fogo á Cazaria.
Veyo num continente avizo ao Capitão mor, e o dava
a enteder assim o incendio que se via do nosso Arrayal;
mandou logo tocar Mucucu (1 ) a rebate , e os mais instru
mentos bellicos, e montando em hum Cavallo com o Capitão
de Cavallos e mais seus Soldados, se foi sahindo com toda
a guerra preta para fora do Arrayal, e feita moima, (2 ) fez
o Capitão mor huma breve falla ao Quilambas e Jagas e
Golambollas dos Vassallos Portuguezes, reprezentandolhes o
atrevimento daquella inimiga mandar fazer hum assalto ás
barbas de hum Arrayal del Rey de Portugal, e que se sahia
á Luz com aquella cavalgada, que nada daquelles arredores
estava seguro; por tanto importava a conservação de todos
os Vassallos Portuguezes assim brancos, como pretos, fos
sem elles com todo o cuidado bolantes sem nenhum empeci
lho atraz daquella guerra da Rainha, porque era força que
havião de fazer passada, assim por amor da preza que le
vavão, como para tomar alguma refeição.
Com esta falla que lhes fez o Capitão mor prometterão
elles que havião de fazer tudo aquillo que lhes mandava, e
que nem de comer levarião, que havião de comer do que
aquelles Ladroens levavão; com isto os accompanharão até
hum tezo que ali fazia, e dali os despedirão; marchou a
dita guerra com todo o cuidado, e diligencia , e andadas al

( ) Moucu, ou Mucucu he instrumento de guerra a que todos acodem .


© ) Muima he fazer alto para tomarem a ordem do que hão de
fazer. (Notas marginais do Autor ).

388
gumas jornadas, chegarão já de noite a huns Outeiros sobre
o Rio Zemza; tem pello Sertão dentro este Rio este nome,
e nos Arimos, e fazendas dos Moradores da Cidade tem o
nome de Bengo; dali descubrirão os batedores que levavão
diante do mais poder, em como aquelles inimigos estavão
da outra banda daquelle Rio com muitos fogos, fazendo
suas paneladas de Carne, assim do Gado, que havião levado
como de Carne humana dos que havião mortos naquelle
assalto, que para elles tão gostoza lhes era, huma como a
outra, e ainda a humana tinha para aquelles Jagas o primeiro
lugar; tanto que ali os tiverão certos, forão fazer sua pas
sagem mais acima, donde não fossem sentidos, e se lhes
escapasse a Caça tomando todos suas divizas que por ser
noite não houvesse alguma confuzão, que ou a tomão de fo
lhas de Palmeiras verdes, levando - as amarradas no pescoço ,
ou de pedaços de Aliconde; feita esta prevenção lhe sahirão
pellas costas, bem alheyos elles do mal que tinhão sobre sy ,
e derão de borbotão sobre elles, começando a degolar, e
mattando tudo á Machadinha, não dando vida naquelle
conflicto a nenhum do inimigo, salvo aquelles que davão
sinal erão da preza e tomadia; com o que delles escapou
apenas quem levasse as novas ao Quilombo da Rainha, e
ainda para os que escaparão daquelle assalto, como o des
pois se soube, foi ella tão cruel que a todos mandou cortar
as cabeças por lhe hirem com tão ruim nova , e não morrerem
com os mais ; recolherão os nossos os despojos, e vierão
victoriozos e fartos do que lhes havião tomado, e preza que
lhe havião achado da gente da nossa Povoação, e alguma
gente feminina da sua; ficando naquella refrega e encontro
morto aquelle seu Valente Cabo Gaspar Aquibuata com ou
tros Capitaens de porte; o Capitão mor tendo avizo diante
do bom successo os foi a receber com toda a gente de a
Cavallo, distancia do Arrayal , fazendo aquella honra aquem
tam bem tinha trabalhado em aquella empreza .

389
Se alguem fizer reparo em como a nossa Cavallaria não
sahio ao inimigo nesta occazião dir -lhe -hão, que a nossa
guerra preta bolante ou volante não tem limite o seu mar
char, que não ha Cavallaria que nisso lhe leve vantagem ,
que os Cavallos e Cavalleiros he força que descancem , e
que comão para poderem aturar, e mais em tantas jornadas
de marcha; e esta gente, quando quer, e lhe importa, anda
dias e dias com pouco descanço, e comem andando como
Burros de Castelhanos que trazem suas Cevadeiras por
baixo da cabeça, e não tem limite esta gente no seu cami
nhar: com o que havemos satisfeito com quem fizer o reparo .
Foi este bom successo de grandissima consequencia á
conservação destes Reinos porque toda aquella gente que
morava em Libatas, e Povoaçoens da banda da Lucala per
tencentes aos Vassallos Portuguezes, todos vinhão despe
jando seus domicilios, fazendas e terras que cultivavão , che
gando - se a nosso Arrayal, e outros não se dando por segu
ros se não passando o Rio Lucala para a Fortaleza da En
baca, despois que virão ou ouvirão dizer daquelle assalto
tão repentino de guerra daquella nossa inimiga; observando
aquelle Proverbio antigo, que quando vires arder as barbas
de teu visinho , deita as tuas em remolho. El Rey de Domgo
foi o mais interessado neste bom successo que os mais dos
ameaços erão contra elle, pello mal que lhe queria, sem em
bargo de que era grande Soldado, e tinha sua notavel For
taleza das Pedras do Mapungo, que a natureza lhe havia
dado este nome pello inexpugnavel e fortaleza do sitio; mas
tinha muitos Vassallos por fora della, e temia lhos não le
vasse nas unhas , como ave de rapina , sem lhes poder valer;
soube -se de Negros que vierão fugidos do Quilombo da
Rainha Ginga em como houvera nelle muitos tambis, (1 ) ou

ľ ) Tambi he choro e alaridos que fazem muito grandes quando lhe


morre alguma pessoa de Conta,

390
choros no nosso vulgar, pellos que naquella occazião mor
rerão, sem esta Rainha com ser tão obedecida dos seus, o
poder evitar, por serem pessoas grandes constituidas em
dignidade; fez de tudo o Capitão mor avizo ao Governador,
de que ficou muito satisfeito do que se havia obrado.
Em este tempo succedeu apanhar -se hum homem Por
tuguez de baixa sorte Official de Carpinteiro, e que cha
mavão Domingos Fernandes Campanhão, o qual havia fu
gido para o Flamengo, e vinha por seu mandado em huma
Embarcação pequena ao Rio Coamza e Sova da Quisama,
à resgatar e comprar mantimentos para aquelle inimigo,
como pratico da terra, que perecia á fome; assim como foi
apanhado pella gente que assistia na Coamza no sitio do
Ispinheiro em guarda daquella passagem , remettido que veyo
a Masangano, e prezo em ferros no Corpo da guarda, lhe
mandou logo o Governador junto com o Ouvidor Geral
dizer de sua justiça; e feito o processo pello dito Ouvidor,
foi entre ambos sentenciado á morte; hindo - lhe o Escrivão
daquelle Juizo ler-lhe a Sentença de morte respondeu com
muita sacorranice, diga Vm . ao Senhor Governador que eu
me virei nisso; o Governador, que o estava ouvindo da ja
nella por lhe ficar perto o Corpo da guarda , disse para o
Escrivão, diga a esse homem que se ponha bem com Deos ,
porque há de morrer sem fallacio; respondeu a isso o tolo
maliciozo; isto são trovoadas de Guiné, Logo hão de passar;
com isto se lhe leu a sentença se lhe metterão Padres Es
pirituaes para o confessarem ; e dali a tres dias se foi o Go
vernador ao Lembo e Igreja de Quixoto, que distava da
Cidade, digo da Villa, que Cidade se pudera appellidar pel
los serviços que tem feito á Coroa de Portugal , duas Legoas
com pretexto de que hia ver as Cavinas e fortificação beira
Rio Lucala ; em tanto que foi deixou ordem ao Ouvidor desse
execução a sentença; e fez este desvio pello não importunar
a Misericordia, e alguns Religiosos, em lhe pedirem a vida

391
que era cazado com huma Mulher parda filha da terra; com
que se fez a execução dando- lhe garrote; tendo o Gover
nador avizo de estar já feito o Supplicio , se veyo á tarde
para a Villa ; e antes de vir, vendo as vallas e trincheiras
de terra que estavão beira Rio da nossa parte, e o quanto
aquelle Rio era caudalozo, disse em Masangano, e nesta
paragem ; Não temo todo o poder de Hollanda! o Flamengo
me há de temer a mim : faz o Autor menção deste dizer para
o apontar a seu tempo .

392
CAPITULO SEGUNDO DA QUARTA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS EM O GOVERNO DE
FRANCISCO DE SOUTO MAYOR .

O inimigo Hollandes, dezejozo de mostrar ao Governa


dor o erro, que no seu conceito havia feito, em não estar
pella Tregoa assentada com os seus Antecessores, veyo mui
caladamente sem ser sentido, se não ao perto, e assaltou a
gente que tinhamos de Sentinella no Rio Coamza sitio do
Ispinheiro; irritado tambem de lhe havermos prezo aquelle
homem que lhe vinha buscar o sustento a Coanza , e Qui
sama, em que nos matou alguns Soldados e aprizionou ou
tros; os mais se puzerão em cobro com o seu Cabo por
terem o partido mui desigual ; teve tambem neste tempo o
Governador avizo da nossa Fortaleza da Embaca, como
aquella nossa inimiga não cessava em ver, se se podia de
sempenhar - se da rota passada, havendo mandado dar al
guns Rapuzes em os Sovas Vassallos del Rey de Domgo,
que estavão mui distantes do nosso Arrayal algumas vinte
Legoas; e se sabia por noticia certa havia mandado huma
boa data de peças ao Flamengo incitando-o em nossa ruina ,
e pedindo -lhe ajuda de Flamengos para cometer a nossa
Fortaleza da Enbaca e seu destricto.
Tendo o Governador todas as noticias ditas, do que
obrava aquella Rainha Ginga em nosso odio, afim de ver
se junta com o Flamengo nos podia acabar, e destituir a
gente Portugueza dos Reinos de Angola, que acabando nos
a nós com dita ajuda facil couza lhe seria explorar e botar
fora o Flamengo de Angola, porque lhe não conhecião
tanto as suas forças como os Portuguezes, nem tinhão tanto
poder de guerra preta que os accompanhasse na Conquista

393
do Sertão, que bastava a Escravaria e gente forra, que a
gente Portugueza moradora possuhião, para lhe fazer al
guma oppozição quando faltasse aos Portuguezes toda a de
mais; com este presupposto tratou o Governador de ver se
podia acabar de huma vez com esta inimiga , tão astucioza ,
para o que tratou de por guerra em Campo para a hirem
buscar e derrotar, pois se não achava muito distante como
em outro tempo amarrada pello Sertão dentro, e , receando
que o inimigo Hollandes a soccorresse mandou fazer duas
frentes huma pello Rio Coamza com Pataxos e Lanchas, e
algumas Companhias das que tinhão vindo em sua Com
panhia ; e por Cabo de tudo ao Capitão Reformado Pedro
Pereira Soldado de valor, e experiencia cazado e morador
destes Reinos , que havia servido em Armadas a Coroa de
Portugal: posto isto em ordem mandou descer as Embar
caçoens preparadas do necessario Coamza abaixo até o sitio
do Espinheiro, onde havia sido a rota da nossa gente, e
guarda do Rio Coamza.
Ordenado por terra a frente em o Lombo sitio
do Outeiro da Igreja do Quixoto destoutra banda do Rio
Lucala, mandando ali fazer hum Corpo gesto da gente mais
inutil a Cargo do Capitão mor Bartolomeu de Vasconcellos
da Cunha , e do Sargento mor Diogo Gomes Moralles; tanto
que teve ordenado e posto em ordem o que dito he, tendo
avizados os Cidadoes e Moradores de mayor Cabedal de
gente, com a Infantaria Sertanea, mandou marchar tudo a
cargo do Sargento mor Diogo Gomes Sampayo, com ordem
fosse marchando até a fortaleza da Enbaca e Arrayal da
Xila a encorporar a gente que levava com o Capitão mor
Gaspar Borges Madureira , com a gente de seu Arrayal, tudo
em hum Corpo; que marchasse o Capitão mor com toda a
guerra preta que de novo hia e lá tinha em demanda da
quella Rainha inimiga, e seu Quilombo, fazendo toda a dili
gencia pella haver as mãos; e que lá mesmo lhe tirasse a

394
vida , sem ser necessario trazela com sigo, e tudo o mais do
seu Quilombo; e que até as mesmas arvores de fruto The
virasse as rayzes para cima , com que em tudo ficasse seu
nome destituido para sempre .
Preparado o Capitão mor Gaspar Borges Madureira de
todo o necessario para aquella jornada , vindo de seu Reino
el Reino de Domgo Dom Phelipe Vassallo del Rey nosso
Senhor a accompanhar as suas Reaes Bandeiras e a seu
Capitão mor, por lhe importava tanto como aos Portuguezes
ver aquella inimiga destruida de huma vez para quietação de
todos; trazendo el Rey de Domgo com sigo toda a sua guerra
preta , dando Cem Carregadores para ajuda do Combóy da
da Infantaria e sua fardagem . Sahio o Capitão mor do Ar
rayal do Xila com trezentos e trinta homens de que erão Ca
pitaens Jorge da Silva; Antonio Dias de Macedo; Manuel
Banha de São Diniz da Motta; Manoel Telles Barreto; An
tonio Nunes Cortez; Francisco Mendes Cazulo; Paulo Pe
ceira, com seu Alferes Francisco Affonço, com trinta Can
goandas que são crioulos vestidos á Portugueza de Angola
e São Thomé , com tres Ajudantes para a composição da
Marcha e do arranchar o Arrayal todos os dias pella tarde,
que era hum excessivo trabalho em buscar sitio conveniente
onde houvesse agoa , e perfilar as Cortinas, e mandar fazer
alojamento aos Sabados de suas barracas ; seus nomes erão
Affonso Mendes de Moura , Manoel Rabello de Brito, e João
da Costa o manja Legoas por Alcunha por ser grande cami
nhante em as marchas que fazia.
Hião mais muitos Negros empacaceiros com boas espin
gardas de alcance e Mosquetes , repartidos por Esquadras
e seus Cabos ; o Capitão de Cavallos que era Estacio de Saã
de Miranda levava alguns dezaseis Cavallos na sua Com
panhia que era então toda a possibilidade que havia nestes
Reinos , por haverem mortos muitos , que se não dão na terra
os vindos de fora , salvo dos nascidos nella ; mas estes poucos

395
valião por muitos, que os que hião montados erão todos
Moradores de posses, soldados antigos praticos nas guerras
do Sertão; o poder da nossa guerra preta foi das mayores
que havia muitos tempos havia Campeado que avaliavão
passar de mais de vinte mil Arcos, muitos delles com vontade
de se satisfazerem dos agravos e tomadias que aquella ini
miga lhes tinha feito, principalmente o nosso Rey de Domgo
Senhor das Pedras, e o Jaga Cabucu , o Rey porque sabia
a vontade que lhe tinha, reputando - o por Rebelde á sua
Coroa, e o Jaga que lhe tinha o Senhor Cativo desde a guerra
e desbarato das Empures , e a Mulher do mesmo Jaga por
nome Coamzaque lhes venerenciavão e querião muito, assim
ao Marido como a dita sua Mulher, por serem daquelles
primeiros Jagas Antigos que havião descido do Sertão onde
era sua habitação.
Forão com todo este poder marchando com boa forma
tura onde a terreno dava lugar, sempre por caminhos emi
nentes donde se descobrisse a Companhia , levando na van
guarda a huma vista dous mil ou mais descubridores aquem
chamão Pombos, os quaes servem de hirem atalayando; se
topão com o inimigo com quem elles tinhão partido chocão
com elle , se não fazem alto dando sinal com Armas que le
vavão de fogo para que marche o poder que vay atraz. A
nossa guerra preta hia toda ella em mozemgo que he Esqua
drão, mas confuzo, porque todos vão a montão, mas não
formados tendo nelles mão a gente de Cavallo porque se não
dividão e espalhem ; A Infantaria marchava por aquelles
caminhos a desfilada , levando em meyo a guerra preta com
aquella ordem que parecia hum fato de gado Vacum quando
vay junto que tocão as pontas humas com as outras; assim
o fazia esta guerra preta tocando os Arcos huns com outros;
o Jaga a desfilada pello mato com sua bagagem hia mar
chando á vista da nosso guerra , o que sempre he seu estilo
fazerem rancho á parte como fazem os ciganos.

396
A bagagem a que chamão em Angola Quicumba hia
mettida entre o Esquadrão do Gentio que occupava hum
grande campo que era maquina a gente que hia de Carrua
gem de todos aquelles grossos Moradores, del Rey de
Domgo, dos Quilambas, dos Sovas , dos Escravos Forros dos
Portuguezes, porque nestas guerras de Angola he necessario
carregar tudo o que se há de comer; e até os instrumentos
onde se há de cozinhar, porque naquela deserta Campanha
não se acha nada para o sustento , nem bodegas nem cazas
de pasto , como se acha nos Exercitos das outras partes.
Levava seu Capellão mor que era o Conego Phelipe de
Lima de Aguiar, e Capellão o Padre Baracho; el Rey de
Dongo levava tambem seu Capellão que lhe dizia Missa a
quem chamavão o Padre Camacho; desta sorte com dita
ordem e preparação foi marchando o nosso Exercito por
aquellas campinas desertas de povoado, com muito cuidado
e prevenção até passarmos hum Rio chamado Lifua em que
houve algum pescado, que he Rio caudalozo, que Lucala ,
Lifua , e o Rio Damde todos sahem de hum nascimento de
huma Lagoa ou Brejo em terras de Sambo Angombe, Sova
dos Dembos, Vassallo de Sua Alteza que Deos guarde; pas
sado aquelle Rio que se vadeava por ser tempo de verão, a
que chamão em Angola Casibo, se foi marchando com jor
nadas vagarozas a respeito do muito que havia que arrastar,
hindo as muniçõens todas entre a Infantaria entregue aos
Reformados e Negros filhos dos nossos Quilambas que as
carregavão, por ser gente mais fiel junto com as peças de
Artilharia de Campanha ; quando se andava tres para quatro
legoas cada dia era o mais ; passou - se tambem o Rio Zemza
onde se entendeu sempre tivessemos na sua passagem algum
encontro de guerra inimigo , e se hia com mais cuidado por
cauza , porque teve um avizo no Caminho o Capitão mor do
Governador em que lhe dizia que fosse marchando com toda
a boa forma e compostura , e com animo feito a que havia de

397
achar Flamengos em socorro daquella Rainha que tinha por
noticia o mandara pedir, e que visse que elles não vencião,
se não a descuidados.
Foi a nossa marcha chegando ao Rio Damde e de huns
Outeiros Altos se descobria o sitio a donde o Quilombo da
Ginga estava; dali partio hum Negro a correr fora do Es
quadrão grande para ir com os batedores que hião diante;
parece que lhe dava já o cheiro como cão de caça , de haver
alguma pilhagem; tanto que o Capitão mor o vio, que hia
na Vanguarda em hum Cavallo murzelo, metteu pernas e
partiu atraz do Negro e dahi a huma grande distancia lhe
deu alcance, e o trouxe diante do mozengo ou Esquadrão
e diante dos mais lhe mandou cortar a Cabeça por exemplo
não fazerem outro tanto e se esparcirem , que isto era muito
contrario a ordem e concerto com que caminhavão, e a não
ser o ginete tão bom e brioso, e o Capitão mor tão forte
homem de Cavallo, correra muito risco quando lhe deu
caça , hindo por cima de penadias e barrancos á redea
solta.
Neste comenos acudio á execução de cortarlhe a Cabeça
hum dos Cavalleiros que ali hião chamado Luiz Feliz
Cruz (1 ) pedindo ao Capitão mor o não matasse ou man
dasse matar, que era de seu Tio Simão Fernandes Cruz ;

© Luis Félix Cruz foi depois secretario do reino de Angola e es


creveu o- « Manifesto das ostilidades que a gente que serve a Com
panhia Ocidental de Olanda obrou contra os Vassalos del Rei de Por
tugal neste Reyno de Angola... » Em Lisboa 1651. Como este folheto
era rarissimo foi em 1919 reimpresso e publicado por Edgar Prestage,
socio da Academia das Sciencias de Lisboa. É de 41 págs. em 8.º.
Já era secretario do reino de Angola em Janeiro de 1650 e era
então alferes. (Consta dos « Subsidios para a historia de Angola »; pu
blicação feita em 1918 por conta do Governo de Angola. Na pág. 23 se
vê o que eu disse aqui e na pág . 24 se vê que o mesmo Felis Cruz em
Agosto de 1650 era capitão ) .

398
com este peditorio e outros Padrinhos revogou a sentença
que batia sobre (ia contra ) o bando inviolavel sobre aquella
dispozição de guerra , com o que lhe mandou ao menos cortar
as orelhas por não ficar sem castigo e a Capitão mór com seu
bando quebrado ; e ainda assim, dando - se dali a poucos dias
no Quilombo da Rainha , constou apanhara á sua parte dez
Cabeças de Escravos; hia a nossa guerra preta com muita
fome por não achar em todo aquelle caminho em que pôr
olhos, que foi necessario hilos alimentando seus Senhores
com matalotagens que levavão, para seu sustento ; nisto avis
tarão o Rio Dande, onde se sabia tinha aquella inimiga feito
tres pontes; forão alguns de parecer fossem passar nellas; no
que o Capitão mor com outros de contrario parecer, não
vierão nisso ; e foi marchando com seu Exercito para baixo
a buscar hum vao, que elle e pessoa pratica que levava da
quelle Sertão havião preditado; despois que foi o nosso poder
marchando para baixo, entendeu aquella Rainha, como ao
despois se soube, que levava outra derrota : com tudo a tinha
o Diabo enganado ou seus adevinhos feiticeiros, assegurada
em a Victoria contra a guerra Portugueza que os seus do
Diabo mimos e favores servem só de pôr num precipicio
aquelles que melhor o servem e adorão; asseguravão na tam
bem aquelles Pays de maldade, dizendo - lhe que com humas
buzinas (" ) a que chamão enxias , tocando -as havião de en
cantar a todos os Portuguezes e a sua guerra , com que não
havião de poder dar passo para diante de inchados ou de
prenhes como elles diz que dizião, e que aos Cavalos lhes
havião de cortar as pernas; o Diabo que lho dizia ou man
dava dizer estas couzas, devia de ser Demo bom , que nem
todos se parecem com seu Dono.

( Não tinhamos nos ca a bozina del Rey Ramiro que conta Frei
Bernardo de Brito em a sua Monarquia Lusitana. (Nota marginal do
Autor ).

399
Foi a nossa guerra descendo e subindo outeiros com
algumas quebradas da Infantaria , o que vendo hum dos
Capitaens o trabalho com que hião disse com alguma paixão,
que seja possivel que nos venha o Capitão mor trazendo
por estes brancos, deixando as pontes onde podia muito bem
passar! que se aqui nos seguem quatro Negros, nos hão de
descompor da sorte que isto vay : o Capitão mor não vinha
mui distante que não ouvisse este dizer; ao que lhe disse, ah!
Senhor Jorge da Silva, quando Gaspar Borges mette aqui
a Vm, já sabe, de que aqui a seis legoas não há quem o offen
da; marche que seguro vay; e asim era que tinha muita intel
ligencia de tudo, e toda a noite estava vestido sem dormir,
fallando a Negros que tinha mandado fora a tomar noticias,
e expedindo outros a saber tudo o que passava ao largo,
dando pouco descanço a seu Corpo.
Chegados á passagem do Rio Damde, ali se entendeo nos
viesse aquella Rainha Ginga com sua guerra a ter o en

contro naquella passagem , que não há duvida, se o intentara


nos podera servir de muita molestia , porque o Váo era muito
alto, e houve mister passar a Infantaria ás Costas de Ne
gros; os Moradores mettidos nas suas redes os levava a
sua gente Escrava no ar por se não mulharem , que he couza
muito nociva em Angola e cauza muitas enfermidades e
doenças; hindo elles mettidos no Rio até os peitos, que hindo
daquella sorte nas redes, não podião bem menear as Armas;
o Capitão mor se assentou em huma Cadeira já passado de
outra banda, mandando por seus Escravos passar a Infan
taria; e vendo alguns Moradores, e parentes que ali hião do
Capitão mor aquella passagem tão em silencio, sem haver
encontro de guerra , derão a Rainha e sua gente por fugida
como ella tinha por costume quando não a via , ou via a sua
boa; disto começarão a murmurar dizendo que os vagares
com que hiamos era cauza de Ginga haver fugido, ao que
respondeo o Capitão mór com grande descanço, ahi está

400
Ginga, ahi tem Vossas merces (4 ) Ginga, que não fugio;
e em verdade que se huns dezejavão que não fugisse alguns
o estimarião, porque hião pello caminho representando tan
tas grandezas suas, que em vez de alentar, desanimava aos
que não erão de coração forte e animozo; já dizião que tinha
seiscentas Armas de fogo, no que não mentião , que a ex
periencia nos mostrou ser assim pellas muitas Armas que no
esbulho do seu Quilombo se acharão, e que tinha grandes
Cabos, e esforçados Capitaens, e immensa guerra ; estas e
outras couzas dizião pello caminho; quem disso tinha me
lhor noticia .
Passado o Rio Dande com aquelle trabalho e fadiga
marchando todo o nosso Exercito aonde havia de allojar
aquella noite, descubrirão hum grande poder de guerra so
bre hung outeiros ao largo que negrejavão muito, e se en
tendeo, como de feito, era guerra do Dembo Ambuila, que
ou vinha de soccorro á Rainha ou a ver naquella paragem
touros de palanque; sendo já horas de tarde hindo o Sargento
mór e Ajudantes dando ordem a marchar, havia por ali
huns grandes palhagaes, que devia de haver annos não ti
nha experimentado incendio; neste tempo do allojar, veyo
por aquella banda o mais terrivel fogo que se podia imaginar,
dando grandes estalilhos, que parecia vinha Satanás met
tido nelle , o que assim se podia crer, pois tinha sido posto
por aquella May sua , para ali nos abrazar, e de traz do
incendio vinhão os Diabos Soltos, que erão os exploradores
da guerra inimiga, a ver se naquella agoa envolta podião
fazer algum emprego ou faução; mas evitou a prevenção com
que o Capitão mor digo de Cavallos com seus Cavalleiros
acudio á Vanguarda com a guerra preta, de onde podia vir

( ) Puderamos comparar o nosso Capitão mor com Lucio Luculo


famoso Tribuno Romano, que com vagares e maximas vencia aos ini
migos. (Nota marginal do Autor ).

401
o dano, e Soldados e Moradores fizerão como puderão com
grande diligencia hum grande terreiro limpo daquella palha,
onde se puderão por os tululos ou tendas de campo , em
que se metterão as muniçoens, e se botou contra fogo , com
que foi voltando aquelle fogo Infernal e se foi apagando
com que não fez nenhum prejuizo.
Dizem os que melhor entendem que tem poder o Diabo
para formar huma apparencia, mas que não podera fazer
effeito com ella sem lhe ser permittido por Deos; á cerca
disso contavão os Antigos, que quando foi da guerra das
Ilhas da Quimdomga feita a esta Rainha inimiga pello Ca
pitão mór Bento Banha Cardozo como se tem escrito na
primeira parte estando allojado em seu Arrayal mettido em
huma tenda de campo , viera tal torvoada com hum redo
moinho de vento que arrancára e levara pellos Ares a tenda
tão alta que quando cahio veyo feita toda em pedaços, mas
não offendeo a pessoa do Capitão mór que estava dentro
della : muita força tem o Elemento do vento como se tem
visto seu poderio em muitas occazioens, mas isto de redo
moinhos e incendios casuaes parece que tem os Demonios
dentro de sy , e tanto que as gentes os ve, lhe faz os con
juros com o sinal da que foi remedio principal da redemção
do Genero Humano que he a santissima Cruz e o nome de
Jesus.
Aquella noite se esteve naquelle allojamento com muito
cuidado e desvello, porque aquella bixa peconhenta nos não
desse alguma ferretoada venenoza , estando com Sentinella
ao largo, assistida da gente de Cavallo e guerra preta quando
la pella meya noite, no mayor silencio della, ouvirão as
nossas Sentinellas tocar hum gomge (' ) que he como Choca
Iho com que se botão os Bandos, pello qual mandava dizer que
fossem bem vindos, que havia muito que esperava a sua vin

☺ Ngongue.

402
da, que as panellas estavão postas ao fogo para cozer a Carne
que elles lhe trazião, que havia dias a dezejavão comer ; ao
que lhe responderão, que estava bem que pella manhãa lha
levarião; tudo fazia por nos atemorizar que era couza que
podia ser, hirmos a suas panellas se Deos nos não ajudasse
em nos dar victoria contra aquella Idolatra inimiga de sua
Santa Lei, que ainda que bautizada não tinha mais que o
nome de Christão.
Amanheceo a manhãa rizonha a nosso bom successo; an
tes que alevantasse o Arrayal, tomou o Capitão mor Con
selho se daria a batalha com a nossa Quicumba junta , ou
se a deixaria naquelle alojamento com sua guarnição que
constava de muita gente femea, humas que hião com car
gas, ou para o serviço de seus Senhores; concordarão que
dessem com a bagagem ou Quicumba a batalha , por não
dividir o poder, e não a pôr a risco de aquella inimiga dividir
o seu poder, pois o podia fazer pella muita força que tinha ,
c levarnola nas unhas e ficarmos vencedores e vencidos, não
em Alemanha como Gustavo Adolfo Rey de Suecia, se não
em Angola com a Rainha Ginga , e que a nossa bagagem
nos havia naquella occazião servir de Fortaleza, e que pe
leijarião com mais socego a nossa gente preta que muitos
levavão ali suas Mulheres ou Concubinas.
Tomado dito acordo alevantou o Capitão daquelle sitio
com todo o Exercito, e ordenou ao Sargento mor formasse
a gente dandolhe as ordens de como havia de ser a forma
tura para que as distribuisse pellos Ajudantes, com que se
formou em Esquadrão duas Companhias na vanguarda fei
tas dellas quatro fileiras, por cada lado duas estendidas a
desfilada em duas alas para abraçarem toda a bagagem , assim
no lado direito como no esquerdo, a bagagem metida toda em
meyo , a gente de Cavallo repartida com a guerra preta a me
tade na Vanguarda outra na retaguarda, tendo primeiro o
Capitão mor feito muima e falla á guerra preta, assim Qui

403
27
lambas, como Jaga e Gola ambolles dos Portuguezes, os Ca
beças de huns e outros, dandolhe as ordens necessarias, em
que no primeiro conflicto se não desse vida a nenhum Ne
gro de Arco da parte inimiga; A Paulo Pereira com os seus
Camgoandas e seu Alferes deixou na retaguarda volantes,
para accompanharem o Capitão mor da guerra preta Fran
cisco da Mata Falcão, e darem costas á guerra preta hindo
a inimiga e sua gente de retirada ou fugida; os Empacacei
ros tambem os repartio por seus postos; o Capitão mor to
mou a vanguarda montado em seu Cavallo, e deu a reta
guarda ao Sargento mor, com ordem que acudisse com seus
Ajudantes aonde fosse mais necessario , encomendando a el
Rey de Domgo a retaguarda com alguns Quilambas esfor
çados de melhor opinião, e Sovas que accompanhavão a 1

nossa guerra ; e a Fungi Amusungo que era Capitão Geral


do Quilombo de Cabucu lhe ordenou , que com os Jagas de
seu partido acudisse onde fosse mais necessario : com esta
ordem se foi marchando aquella manhãa até se entrar em
huns grandes palhagaes que fazião ao pé de hum tezo
donde se não via huma gente a outra, que tão altos e bas
tos erão ; hindo todo o nosso poder mettido por elles, se
descubrio em huma eminencia o Capitão Geral da Rainha
Ginga Amona , que pellas suas Bandeiras e devizas foi logo
conhecido, o qual nos esperava em hum caminho por cima;
e como vio que tinhamos tomado por baixo veyo descendo
pello nosso lado direito para nos sahir ao encontro de hum
mato fechado que ali havia; a nossa gente tanto que derão
vista daquelle inimigo antes de descer começou o Sargento
mor a dizer Arma, Arma , Calamexa, Calamexa, estando
todos com as mexas caladas e com valor Portuguez, cegos
porem ainda do palhagal invocando a Senhora da Victo
ria com huma Ave Maria; veyo neste tempo passando hum
Morador, e Soldado antigo, que vinha doente em seu Ca
vallo por nome Leonardo Pereira Capitão Reformado, adver

404
tio ao Sargento que melhorasse de posto, e fosse com as
Armas assim nas mãos marchando para aquella Colina que
diante estava ; de la verião e descubririão com quem pele
javão, e não ali que se não vião huns aos outros, que os
arcos bastavão ali do inimigo para só com elles nos hirem
maxucando, e fazendo muito dano; com tão bom parecer
fez o Sargento mor ir marchando a retaguarda, e passou
palavra á mais gente da vanguarda fizessem o mesmo para
aquella eminencia.
A este sitio nos chegou hum Negro Emgoma, ou Tam
bor do nosso Jaga Cabucu que havia sido apanhado (1 ) com
seu Senhor na guerra e rota dos Empures o qual Senhor
era já morto com o máo trato que lhe dava aquella inimiga;
e nos mostrou este dito Negro daquelle alto aquella valeroza
Amazona e Rainha Ginga em hum outeiro de baixo de
grande Chapeo de Sol; e do nosso poder aonde ella estava
se não mettia mais de hum corrego ou vale de premeyo, que
bem se devizava a sua pessoa estar vestida a modo de guerra
com divizas e apparato , entre hum Embululu ou batalhão
de gente de sua guarda, que são os mais moços; e dali ti
nha disposto toda a sua guerra como se fora hum valente
Generalissimo, tomando ella a Vanguarda e accomettimento
do nosso Exercito com seis Flamengos com que de presente
se achava e muitos Empacaceiros com Armas de fogo que
elles Capitaneavão; a nossa retaguarda e seu accomettimento
encomendou ao seu esforçado como valente Ginga Amona
seu Capitão Geral ; o lado direito ao seu Muene Lumbo e
parente Dom João Guterres Angola Canini, que hindo em
nosso favor contra ella agora peleijava contra nós; ao lado
esquerdo mandou acometer por hum seu grande valente
Macota e Capitão por nome Ifamuto; todos estes Cabos

(" ) Foi aprisionado na derrota dos Empures, pág . 352. É o de que


me fala na pág. 279.

405
em Companhia de outros Capitaens e Soldados de muito
valor, com immensa guerra preta que accompanhava a cada
hum ; e era tanta a que tinha, que se vio daquelle tezo hir
por seu mandado hum grande troço em demanda do nosso
allojamento, presupondo havia lá ficado a bagagem com
gente branca de guarnição, no que se enganou .
Começou - se a Batalha e Acometimentos ás nové horas
da manhãa , tremolando - se as Bandeiras, retumbando as
Caixas , e outros instrumentos bellicos, de parte a parte com
grande vozaria, que atroava a terra , sendo o nosso Exercito
acometido por todas as partes com grande valor daquelles
inimigos; mas vibrando rayos de fogo todo em contorno ,
assim das Armas Portuguezas como dos muitos Empacacei
ros, do que logo forão experimentando á sua custa o seu
poderio, cahindo mortos dos inimigos muita quantidade; dis
parando elles muitas cargas, acaudilhados pellos Flamengos;
mas como as suas armas, as mais dellas havião sido nossas ,
nos rendião ainda que em suas mãos obsequios de obedien
cia, para não ser a nossa gente tanto ofendidas dellas; as
nossas peças de Campanha que hião na Vanguarda des
paradas com bala miuda forão abatendo a muitos por terra ;
os acometimentos da vanguarda forão feitos com muito es
forço e resolução de nos entrarem , por serem acaudilhados
pella mesma Rainha que estava á vista incitando a que
entrassem e nos rompessem; mas não puderão ser nesta
occazião seus mandatos obedecidos, porque elles pelejavão
com a sua pelle, e não com a alhea ; com o que despois de
haverem sobre a porfiada contenda mortos a muitos dos
mais esforçados que lhe coube por sorte acometernos por
aquelle posto se forão retrahindo com valor, até que virarão
as costas em vergonhosa fugida, hindo em seu seguimento
a nossa guerra preta fazendo nelles grande degolação até
o Rio Damde e passagem das pontes, onde se afogarão
muita quantidade ; e todas as tres pontes abaterão a barriga

406
na agoa, pello grande pezo de gentio que por ellas passou,
e com a confuzão, e aperto cahirão muitos ao Rio ; a Rainha
que estava á vista infundindo com sua vista valor aos seus,
vendo a gente da vanguarda, e seu partido rota , desapareceo
da nossa vista como hum relampago, que dá e logo fenece ,
pondose em cobro, antes que o mal fosse muito .
Os mais Cabos ainda pelejavão com grande porfia em
nos entrarem e romperem , e o teve conseguido lfamuto,
rompendo as duas Companhias de Portuguezes, que guar
necião aquelle lado, esquerdo chegando já a tomar despo
jos e Cargas da nossa bagagem; mas refazendo - se os nossos
como Rebanho, que se vê entrado de Lobos, os tornarão
com denodado Valor a sacudir fóra; como tambem succedeo
na nossa Provincia do Alemtejo, sendo entrada a nossa
Villa de Olivença, daquelle valente Cabo Lagones, que es
tando já dentro, e Senhores da Praça e Baluarte da Rainha,
Senhores de sua Artelharia, os sacudio outra vez fora o
valor portuguez, governados pello Governador daquella
Praça, Dom João de Menezes, que sahio com Artas feri
das, e Dom Antonio Ortis com a vida menos; assim os
nossos Portuguezes sendo huma mesma Nação imitando os
nossos Heroes sacudirão como dito he aquelles Barbaros,
se bem esforçados, outra vez fora, se não das trincheiras
de Olivença, foi das Cortinas do nosso Exercito e seu lado
esquerdo por onde nos havião entrado com perda de muito
do seu Gentio, e do Cabo valerozo que os Capitaneava
Ifamuto .
O Muene Lumbo que tinha ordem de acometer o lado
direito estando com sua guerra metido em hum mato á
queima roupa da nossa Infantaria das duas Companhias
daquella guarnição, fervendo dentro com hum zunido como
de enxames de abelhas; foi tanto o sentilhar das Armas de
fogo das nossas Companhias sobre aquelles espessos e
alevantados bosques, que não teve lugar nem se atreveo a

407
sahir a campo para fora deles com seu poder, e pelejando
de dentro cuberto, experimentando seu dano em os muitos
que naquelles matos se acharão mortos; e alguns que inten
tavão sahir fora delle a investirnos, pagarão com a vida seu
atrevimento .
Neste comenos veyo sahindo pella retaguarda o Capitão
Geral daquella inimiga Rainha, Ginga Amona, com a mayor
bizarria e deliberação que se pode dizer, que pudera cauzar
enveja ao mayor General ; pois vendo e descubrindo hum
poder, todo o mais delle em ser, que havia vencido os mais
Cabos e todos os seus Capitaens, e até a mesma Rainha
Ginga , fosse tão animozo com deliberação denodada, que
viesse avançando todo o nosso Exercito trazendo diante sua
Bandeira de Capitão Geral, dandonos cargas cerradas de
Mosquetaria e Espingardas; foi tal o seu valor, que fez que
toda a nossa guerra preta se retrahisse assim como a baga
gem, e Quicumba; e não havia Cabos, como era Fungi
Amusungo, Capitão Geral do nosso Jaga, que ás troxadas
os podessem botar para fora, amparados das nossas Armas;
os trinta Soldados Camgoandas fizerão o mesmo, desempa
rando seus postos, deixando sós o seu Capitão, e Alferes;
el Rey de Domgo Dom Phelipe com animo Senhoril de
grande Soldado, se assentou em huma Cadeira que trazia
de Espaldas sustentando o seu posto , e mandando pelejar
alguns seus Empacaceiros, accompanhando - o dous Quilam
bas nossos mui esforçados e valentes Capitaens Mulundo
e Bango; e satisfeito aquelle Rey do esforço com que o
Quilamba Mulundo pelejava, que era hum Deos Marte em
quanto Negro, no modo e bizarria , assim de seu trajo guer
reiro, como do seu valor, lhe prometteu de dar-lhe huma
sua filha por Mulher, (* ) que aquelle Rey mais estimava, e

a ) Cumprio a palavra o Rey em dar a filha ao Quilamba, a qual


se chamada Dona Anna . (Nota marginal do Autor ).

408
era de muitos requestada, por ser sangue de Rey, e por sua
fermosura, que tambem nestas cores a há.
Vendo as nossas Companhias o empenho del Rey de
Dongo, o desamparo em que estava de toda a mais da nossa
guerra preta consignada aquelle posto, a Companhia de
Camgoandas que se tinha retirado para a bagagem , os nos
sos Sovas mostrando - se Neutraes , como quem não queria
criminar contra aquella sua Rainha e seu Capitão Geral,
que de semelhante gente não há nunca que fiar; vendo este
aperto desceo a Companhia de Manoel Telles Barreto, que
guarnecia o lado direito da banda de fora, ficando a de den
tro sustentando o posto pello que podia succeder, dando vi
vas cargas naquelle inimigo, o fez em parte parar a torrente
da furia e valor com que vinha avançando o nosso poder;
neste tempo hum Morador e Soldado Antigo por nome João
Rodrigues Castelhano, que no tempo que se escreve esta
historia vive cego em a Cidade de São Paulo de Assumpção,
com huma espingarde de alcance empacaceira carregada de
humas balas miudas, mostrada a Bandeira da quelle Valente
Capitão Geral Ginga Amona e a sua mesma pessoa, pello
Emgoma ou Tambor que comnosco se tinha metido no prin
cipio da batalha como dito he , fez tiro com tão boa sorte e
acerto, que derrubou a sua Bandeira e quem a trazia, e al
cançou huma bala como se despois soube aquelle Capitão
Geral Ginga Amona que se vio logo contorcer-se; mas com
tudo sustentando a Batalha com demasiado valor ao estado
em que se achava, que dava a entender a sua contumacia ,
que havia tomado o juramento, a que elles chamão Zenza
de morrer ou vencer; neste entre teve avizo o Capitão mor
na Vanguarda por palavra que se lhe passou , o aperto em
que a retaguarda estava, que fazia huma grande distancia ,
o qual mandou socorrer logo pella gente de Cavallo e seu
Capitão sahindo então a nossa guerra preta que retrahida
estava na Quicumba, e Camgoandas seguindo a gente de

409
Cavallo; com este impeto, e as continuas Cargas da nossa
Infantaria e mortandade que lhe havião feito, foi o inimigo
perdendo terra, até que não podendo mais rezistir, virou de
todo as Costas, pondo - se em fugida; a nossa guerra preta
foi em seu alcance, fazendo nelles degolação até ás pontes
do Rio Damde, não se dando vida a nenhum Negro de guer
ra , guardando a ordem do Capitão mor.
A gente da vanguarda e sua guerra preta tinha seguido
o alcance passando as pontes da outra banda do Rio Damde
aprisionando a gente inutil e Mulherio, e degolando a todo
o Negro de guerra; e como o Capitão mor ou Geral Ginga
Amona foi o ultimo que largou o Campo , hindo como Sol
dado incorporado com alguma guerra arrebentou aos nossos
pellas costas, e lhe fez largar alguma preza , e foi dando
Costas a muita parte da Quicumba que se hia retirando e
fugindo daquelle seu grande Quilombo, ficando muita por
despojo do nosso Exercito, que se aprisionou gente que mal
se poderião numerar e contar; a que se afogou nas pontes e
que os nossos degolarão, bem se deixa ver em o grande nu
mero que estava engasgado em os páos das pontes, que com
o grande pezo havia feito cair a gente na agoa daquelle Rio .
que esta foi a causa porque o Capitão mor deu aquelle rodeio
por The tomar as Costas, como tomou , onde tinha melhor a
retirada ou fugida, e a tomar de encalhada entre aquelle Rio
Damde , e suas pontes.
Soube -se depois que foi tão ardilosa e astuta aquella
Rainha Ginga, que não quiz retirarse pellas pontes porque
não fosse seguida e lhe pudessem dar alcance, nem foi em
Companhia de nenhuma sua guerra rota naquella ocazião;
antes lhes havia ordenado que havendo ruim successo cada
hum seguisse differente derota , fazendo muitas quicocas que
são caminhos, para que lhe não dessem na trilha, e ella com
aquelle seu magote do seu embululu , com que se nos poz a
vista se retirou pello mesmo caminho que a nossa guerra

410
e Exercito havia levado, e na mesma passagem do Damde
foi a passar, levando - a aquelle seu troço de gente voando
em sua Rede, que lhe não daria alcance a mais ligeira
tropa de Cavallos, porque elles havião de cançar e os seus
não, que a adoravão como a seu Idolo, e era já costumada
a dar boas carreiras, porque não tratava mais do que pôr
sua pessoa em salvo, mas que perdesse quasi tudo o que
possuhia, só por se não ver em nossas mãos prisioneira.
Quando a sua Vanguarda quebrou se apanharão cinco
Flamengos; o que primeiro topou com elles foi o Capellão
mor e Conego Phelipe de Lima de Aguiar, que como valente
Soldado havia pelejado na vanguarda com a guerra inimiga,
ao qual pedirão bom quartel , e elle como Sacerdote lho con
cedeo , mas entregues a 'huns Soldados filhos da terra para
os levarem ao Capitão mor, hindo o dito Padre seguindo
por diante o alcance, viradas as Costas os fizerão em peda
ços; e ainda pelejava a nossa retaguarda , quando os filhos
da terra lhes andavão com os quartos por diante das nossas
Companhias; pago bem merecido ao que elles tambem havião
uzado comnosco , em as occazioens de nossas rotas, de que
estes filhos da terra havião participado em seus Irmãos e
parentes, que a donde se las dan, se las toman .
Tendo - se alcançado esta tão notavel victoria e assina
lado, em que se pelejou desde as nove da manhã até as duas
horas da tarde com hum Sol que ofendia e não havia quem
o podesse suportar; mas como a Nação Portugueza he
grande sofredora de trabalhos, e dezejavão de ver comprida
até o fim esta glorioza empreza , tudo suportavão com pas
ciencia e animo incançavel, e era tal o calor que veyo hum
Negra esforçado Angola Ambole que he cabeça de toda a
guerra do Jaga Cabucu, o qual era hum pouco gordo, e
vinha esbaforido e abafando, assim do muito pelejar como do
rigor do Sol; Chegado ás Companhias se poz de joelhos
pedindo pello amor de Deos huma pouca de agoa, a que foi

411
socorido com presteza , dando -lhe hum daqueles Moradores
hum Muringe della que levava por sy , e o bebeo quasi todo,
e a que subejou botou por cima da Cabeça, e Corpo; naquelle
sitio se esteve parado o nosso Exercito na turreira do Sol á
vista da Bamza e Quilombo da Rainha, e dizendo algumas
pessoas ao Capitão mor porque não marchava, se arreceava
se refizesse outra vez aquella inimiga , respondeu não ha que
temer, huma vez rota a guerra não se refaz outra vez; attri
buisse a outro fim aquella demora para que até na Bamza
se não fazer hum sinal dando fogo a hum Dumbe ou Caza
se não marchou dali,, que havia hido hum Explorador, sem
ser o da terra de promissão , a ver o primeira fruto que havia
naquella Colheita; forão então, feito o dito sinal, marchando
para o Quilombo, e Bamza daquella inimiga, a qual achou
a Infantaria já esbulhada e saqueada , e de posse das cazas
principaes, onde havia mui ricas fazendas e sedas, os negros
de homens brancos e outros dos Quilambas e Jaga ; e el Rey
de Domgo como tinha gente pratica daquelle Quilombo se
accomodou com as Cazas de Muene Lumbo, que como era
seu parente quiz naquella ocazião ser herdeiro de seus bens,
sem elle ainda ser morto, onde se achou mui ricas peças de
seda , e outras couzas de valor, que era Guarda Roupa do
melhor que aquella Rainha tinha , como seu Muene Lumbo que
era. Ao entrar da Bamza se achou assentado ao Soba Dembo
Caculo Ca Caenda , que de gordo não se pôde bolir, e como
sabião muitos o que elle havia uzado com o Padre Prestes
seu Capellão , que o havia bautizado, como se tem dito nesta
historia em o Governo de Pedro Cezar de Menezes, os que
hião passando lhe davão muitos repelões, dizendo -lhe havia
morto e esfolado o seu Pay do sal ; hum the tirou a lucuca (- ) .

© Lucula chamão a huma Rede de palha bem tecida que vestem


como Capa pellos ombros. Cabunga chamão aos barretes feitos de teci
dos da mesma materia . (Nota marginal do Autor ).

412
ou barrete da Cabeça que elle se contentára, e não lhe tirarão
como tirarão o que estava mais abaixo até o pescoço; ali o
despejarão, até o deixarem como sua May o pario; castigo
bem merecido ao que elle tinha obrado contra a Nação Por
tugueza, sendo hum Sova tão poderoso ver-se naquelle es
tado tão abatido por suas maldades.
Achou-se huma Flamenga muito choroza em hum quem
bre ou Loenhe grande feito de Madeira compostos de páos
mui grossos fechado por de traz e aberto todo por diante
para a banda da Praça ou terreiro, em que recebi os Embai
xadores que hião a fallar com ella; a cauza do choro da
Flamenga era por lhe faltar seu Marido, cuidando o havião
morto com os mais, e elle se havia retirado ou fugido com a
Rainha Ginga em Companhia de hum filho seu , e ella estava
prenha para cada hora que logo pario e se bautizou o filho
como Catholico Romano, e a May tambem, e ainda hoje vive
na nossa Fortaleza e Presidio de Cambambe; os nossos ami
gos Holandezes querião agradar tanta aquella Rainha , que
até Flamengas lhe mandavão lá , para ella com isso ostentar
sua grandeza, e mostrar aquelles poderosos Sovas Dembos
onde tinha o seu Assento e Quilombo, que até aquelles ini
migos de mar em fora lhe erão tributarios , e obedecião a
seus mandados.
Contavão os nossos prisioneiros que lá estavão a osten
tação com que em aquella grande caza recebia os Embaixa
dores , principalmente os del Rey de Congo, que a esse só
tinha por seu igual , quando lhe mandou dar o Parabem da
Victoria alcançada contra as nossas Armas em os Empures
de Angolomem Acaita, para o que tinha hum assento muito
alto encostado á parede, que mandava cubrir de Veludos e
sedas , assim o assento como as paredes, vestida ella de ri
quissimos pannos , ornada de muitas Joyas de ouro e Pedras,
o chão cuberto de muitas peças de londres vermelho de
Inglaterra, com suas ricas alcatifas em que se assentavão a

413
Infanta sua Irmãa Dona Barbora, e a Rainha de Matamba;
e era tão astuta que a hum moço criado do Capitão mor
Beiçorra que havia aprisionado como dito he em os Empu
res, como era desbarbado o mandava vestir em trajos e ves
tidos de Mulher á Portugueza, e o mandava pôr tambem
assentado em sua Alcatifa, e dizia aos Embaixadores que
era a Mulher daquelle Capitão mor que havia vencido, que
a tinha aprisionado na Enbaca; então perguntava para ella,
queleca -xala, he verdade Senhora; a que respondia o pobre
transformado, queleca calunga (' ) queto, he verdade minha
morte; toda aquella grande Praça e Terreiro mandava cubrir
de quantidade de peças de Londres, e todos os officiaes
da sua Caza Real, Macotas e Capitaens de guerra, com seu
Capitão Geral, todos estavão por ali assentados á turreira
do Sol com os Dembos e mais Sovas que ali se achavão , e
a gente toda do seu serviço que era numero grande; e aos
Embaixadores mandava dar assento no chão em suas Alca
tifas; com esta e muita mais ostentação se governava esta
barbara Rainha, tendo muita gente de guerra nas entradas
em Corpos de guarda, em que tinhão encostado muitas Ar
mas os seus atiradores com seus Capitaens e Cabos.
O nosso Quilamba Mulundo aprisionou naquelle Qui
lombo a Irmãa da Rainha e Infanta Dona Barbara chamada
Mocambo pello nome da terra, a qual achou assentada em
sua Caza com algumas quarenta Damas, a que chamão na

( ) O nome de Calunga tem duas significaçoens na lingua Ambunda


de Angola, porque Calungo chamão a morte; e chamão Calunga ao
mar, que para elles he o mesmo que a morte. (Nota marginal do Autor ).
A palavra kéleka ( kieleka ) é do Congo e significa — verdade; xala,
não se sabe que palavra seja.
Kalunga tem as significações que o autor lhe dá, mas no interior
tambem significa — Senhor; portanto - Kéleka, kalunga ketu, é - E ver
dade minha senhora.
Não era o que o autor diz: («é verdade minha morte » ).

414
sua Lingoa Mocamas, de seu serviço, sem fazer nenhum mo
vimento de sy, nem em fugir nem alterarse, e descompor,
que não sei o que tem isto de sangue Regio, que com serem
daquellas cores, mostrão Magestade e Soberania; este dito
Quilamba a trouxe ao Capitão mór ao outro dia da Batar
tha , por pertencer a preza da mesma pessoa a sua Mages
tade, e a seu Governador em seu lugar; o que se observa
com todos os fidalgos apanhados nestas gueras ; mas como
a não trouxe no mesmo dia, lhe fez disso crime, e foi cauza
do Capitão mór lhe tirar todas as suas Damas que lhe per
tencião como preza sua do Quilamba Mulundo e algumas
couzas mais de valor; e por ser Capitão e pessoa de res
peito o não castigou por outro estilo : vinha ella mui ornada
de ricos pannos, os dedos cheios de Aneis de ouro , a Ca
beça, e pescoço com boas Joyas e Gargantilha , com muitas
Xingas (1 ) de endure que são huns Cabellos ou sedas de
huns Animais que tem esse nome; são mui compridos e agi
bixadas, cousa de que se faz muita estimação, amarradas na
Cabeça e pescoço , cahidas atraz, mãos, e pernas e seus Ar
telhos, misturado com as Joyas, e o mais que vestem ; com
esta Infanta ser já de idade, parecia huma moça de vinte
e cinco annos, com os areios e bom trato de sua pessoa ;
esta éra a segunda vez que tinha sido nossa prisioneira,
como he dito no Governo de Fernão de Souza; (? ) e por

@ ) Nxinga é palavra do Congo e significa: fio, cordel, corda.


☺) Não se pode saber quando D. Barbara tinha sido dada á Rainha
e qual o governador que lh'a deu , depois de ter sido tomada com a
outra irmã, D. Engracia (ou Garcia ), por Paio de Araujo de Azevedo
em 25-5-1629 . como ficou dito em notas no capitulo 1.º da 2.° parte.
O autor diz ali que foi Fernão de Sousa quem deu as duas irmãs
á Rainha; é erro ; quem deu D. Barbara deve ter sido D. Manuel Pe
reira Coutinho; a Engracia nunca foi dada á Rainha; ficou em nosso
poder até que foi afogada em um pégo no Quanza, em Massangano,
por ser muito má. A rainha deixou-a ficar em nosso poder sem a pedir

415
constar o bom trato que ella dava aos nossos prisioneiros,
acudindolhe a seus trabalhos e miserias com demasiada bom
dade ás escondidas da Rainha sua Irmãa, excedeo o Capi
tão mor a ordem que levava do Governador concedendolhe
a vida, mas não o que trazia sobre sy , que logo a forão des
pojando pouco a pouco ; que o que lhe não fez o Quilamba
the fizerão os Portuguezes; despois disso a tomou o Sargento
mor á sua conta , dandolhe o agazalho e sustento , tendoa
em sua Caza, o que lhe (a ela) veya a ser de proveito em
outro tempo, o que agora havia sido Caridade Christãa.
Tinha esta Rainha huma grande Caza que lhe servia de
Serralho, sem ser o do Gram Turco, porque este era de
homens, e essoutro de Mulheres, no qual tinha suas Concu
binas e Mulheres, que assim chamava aquelles tristes homens,
transformados em Mulheres, até em o seu vestir : era com
posto de muitos e bizarros mocetoens com os nomes de Em
vala hineni, e Samba Amzila; e não sahião dali , se não com
grande prevenção; e era pena de morte inviolavel aquelle
que se achasse comprendido em Adulterio, como se elles
fossem femeas, e ella Varão; e nenhum dos seus lhe cha
mava Rainha, se não Rey : uzava delles para suas torpesas
e deshonestidades, dando sinal áquelle que melhor lhe pa
recia; quando chegou a nossa guerra estava hum deste Lote
posto em grande trabalho, que era sua segunda Mulher, e
a que ella mais queria, o qual era Senhor de hum grande
Senhorio que Reino se poderia então chamar pellas muitas
terras e Vassallos que possuhia, e se chamava Andala Qui

ou resgatar para ter sempre uma espia que lhe contasse o que se pas
sava entre nós. Veja -se o capitulo 2.º da 5.* parte e o 5.º da 2. parte.
D. Barbara foi agora aprisionada pela segunda vêz; isto foi nos
principios de Março de 1646 e ficou em nosso poder até principio de
Setembro de 1656, como se refere na nota ao capitulo 10.º da 1.' parte
do tomo II .

416
suba, e o mesmo nome tinhão as suas terras e Senhorio :
com este tal entrou nella a desconfiança, ou o amor que lhe
tinha lhe cauzou este ciume, que elle tinha olhado para Mu
ther , ou tido com ella alguma couza , o qual estava fora de
sua graça e caza , na de hum seu adivino ou feiticeiro , para
se purificar com os juramentos da terra a que elles chamão
Bulungos, como se tem dito atraz; mandado apartar a Ca
beça dos hombros : veja - se que mayor miseria e tirania se
pode ver que hum diabo de huma Mulher em Corpo Humano.
sugeite a liberdade de hum tão bizarro moço que o era de
preto em fora , fazelo estar sugeito com precepito de morte
transformado de homem em Mulher, com trajos que o pa
recia fiando em huma Roca Algodão, encerrado em 'huma
Caza com muitos do seu toque, sem ser Senhor de sy , nem
de suas acçoens nascendo fidalgo e Senhor livre de grandes
terras, e Vassallos, exposto a lhe cortarem a Cabeça por
Antojo de huma Mulher diabolica : he isto cousa que faz
pasmar a mesma natureza ; que Achilles se transformasse em
mulher era por alcançar o que amava e se esconder de quem
o buscavam ; mas, que este triste aborrecendo, o fazião trans
formarse e amar a quem aborrecia e não podia ver, não pode
mais verse; (1 ) mas tudo o causava estar sua vida sugeita á
tirania , e de quem dominava sobre elle : com sua ruina ficou
este pobre fidalgo livre, e lhe foi concedida a vida por ter es
tado ás portas da morte .
Junto desta diabolica Caza havia mandado fazer hum
quembre grande aberto por diante com toda a perfeição, em
quanto a ser feito de madeira e palha cuberto, com hum
Altar encostado á parede de traz (2 ) daquella boa Caza, com
duas Tribunas com suas gelozias , para por ali ver os seus

C) O sentido aqui não é claro; parece que é — que uma depravação


como esta é impossivel tornar a ver - se.
© Do fundo ?

+17
Damos, e tinha para sy , que o Padre que tinha por prisio
neiro (' ) por nome Jeronimo de Siqueira chamado o Pato
de Alcunha lhe havia de dizer missa ; veja - se que boa pare
Tha havia de fazer a Caza de Deos, junta com a de Satanaz;
por baixo do aparamento deste Altar se acharão muitas
Cartas que o Autor desta historia vio algumas, de avizos
que lhe fazia a Irmãa que entre os Portuguezes teve de in
dustria, sem nunca a querer resgatar nem pedir, como fez
á que agora de novo se aprisionou ; esta era a Infanta Dona
Gracia sua Irmãa, que de tudo o que passava entre os Bran
cos a avizava como dissemos, e alguns mais de seu Sangue
e Couros; huma se achou vinda de Congo de pessoa Eccle
siastica constituido em dignidade, que lhe dava o Parabem
da Victoria alcançada contra os inimigos communs, (?) e
outras cousas, que não erão capazes de seu habito ; a isso
diria em Roma, Romano, e em Turquia, Turco.
Como se não acharão naquelle desbarato nenhum dos
nossos prisioneiros, enquerindo o Capitão mor por onde
havião hido, se achou pellas noticias , os tinha mandado

( Foi aprisionado na derrota dos Empures, fl. 386 .


( ) A dita carta foi escrita pelos dois irmãos conegos pretos, pa
rentes do rei do Congo D. Garcia Afonso II, que então reinava. Eram
Simão de Medeiros e Miguel de Castro, maus padres e maus homens
e foram contra nós na usurpação holandesa . Vestiram um estafermo
de holandês e puzeram -no na Sé (em S, Salvador), chamando- lhe — seu
restaurador. Na carta supra mencionada davam parabens á rainha,
pela victoria que alcançára contra nós, chamando -nos « inimigos
comuns » . Esta carta foi para Lisboa.
Foi isto dito ao Conselho pelo Deão da Sé, Manuel Fernandes
Curado, em Lisboa em 1665. (Consultas de 12-8 e 7-9-1665, no Li
vro 4.* de consultas mixtas, fls. 170, v. e 174 ) .
Em 1662 o conego Simão de Medeiros era o confessor do Rei
D. Antonio I e provisor e vigario geral; tinha pedido ao Rei de Cas
tella que o nomeasse Bispo do Congo. — (Mesmas consultas ). Miguel
de Castro morreu em 1685 , o irmão já tinha falecido antes dele.

418
aquella Rainha Ginga para o Sova Quitexi Can Dambi, para
lhos guardar dentro de seus matos com outras couzas de
preço: mandou logo o Capitão hum recado ao dito Sova que
distava dali huma jornada, e os mandou logo entregar por
seus Macotas e Inviados que os trouxerão no nosso Arrayal;
e mandou dizer aquelle poderoso Sova que aquella Rainha
lhe havia la mandado guardar aquelles Brancos por se
arrecear de ser desbaratada e rota da nossa guerra, que elle
soba viria em pessoa tomarlhe a benção, porque este ea seu
Amigo por força, e lhe havia entrado os seus matos á força
de Armas, com ajuda de Cem Flamengos que para isso lhe
forão da Loanda, dos quaes havião lá ficado aquelles pou
cos que agora perecerão, como atraz se tem relatado em o
Governo de Pedro Cezar de Menezes : constavão os prisio
neiros do Padre Pato Jeronimo de Sequeira, de dous Homens
brancos, hum que havia sido Alferes e se chamava Jorge
de Queiroz, homem honrado que ao despois, foi Morador
da Cidade da Loanda, e outro era o criado do Capitão mor
morto na guerra dos Empures, que ella mandava vestir em
trajos de Mulher por ser sonsinho (1 ) os outros erão filhos da
terra, e seus pays homens honrados, os quaes se chamavão
João Lobo, André de Valbuenas, o Vieira, o Prado, e o Ma
genbi ; todos muito bons Soldados, que a Rainha Ginga
tratava muito mal, fazendo -os trabalhar no que se lhe an
tojava, dizendo eram suas peças filhos de suas Escravas
pellas mais das ditas serem negras ou Mulheres pretas; Ao
Padre o tratava melhor que com ser tão perversa catava res
peito á dignidade Sacerdotal, chamandolhe Ganga Angola ;
e quando o mandava chamar respondia Calunga Calunga
queto ; aos dous brancos lhe dava tambem bom trato dizendo
erão Senhores. Degolarão - se nesta occazião doze Sovas, os
ľ ) Esta palavra não se entende a que seja; na Academia tem lun
ginho.

419
28
mais delles Dembos, onde entrou o gordo desalmado de Ca
cula Ca Caenda, e foi feito o Supplicio em Praça publica á
vista de todo o Mundo por emenda e satisfação, do que
contra nós havião cometido com a alteração do Hollandes
despois que nestes Reinos entrou, que em quanto aquella
Rainha Ginga, estavão com ella ali entre as suas terras
assombrados, que não erão Senhores de sy nem de suas
acçoens e os deste genero se chamavão Amigos por
força.
Resgatou -se tambem nesta occazião a Mulher principal
da nosso Jaga Cabucu , que elle havia morrido estando pri
sioneiro como dito he; ella se chamava Coamza, de que fi
carão os Jagas mui contentes que mais era ella sua Senhora
do que o Marido morto , por ser filha de Domga Senhor do
Quilombo, o qual havia desbaratado e morto o Capitão mor
João Mendes de Vasconcellos, em a guerra que fez em
Domgo como se tem dito em o Governo de seu Pay Luiz
Mendes de Vasconcellos, e esta Senhora Coamza era sua
filha, e lhe tinhão os Jagas muito amor e respeito pello ser,
e descender daquelles Jagas e Senhores de Quilombos que
descerão da terra dentro ; tambem veyo ao nosso poder o
Serralheiro que estava com tenda aberta , ordinariamente
concertandolhe Armas, que nolo havia tomado na rota da
nossa guerra nos Empures, e Era Escravo do Capitão mor
Beiçorra ali morto , Negro de Valor pello prestimo; tenda,
e todo o mais ficou por despojo; o saco que houve foi de
muito valor, houve homem para quem os seus escravos to
marão muito boa prata, em que entravão Castiçaes deste
metal , a hum lhe apanharão os seus Negros huma Fras
queira de prata que a Rainha Ginga havia mandado fazer
a Loanda e lhe tinha custado muitas peças de Escravos, e
tinha muitos marcos de prata de pezo; as Armas forão mui
tas em que entrarão mui boas Espingardas, muita quanti
dade de fazendas e peças de seda inteiras e partidas de

420
toda a sorte: os Jagas que forão melhor aquinhoados, como
quem tinha melhor conhecimento daquelle Quilombo, an
davão vendendo pellos Portuguezes muitos Aneis de ouro ,
alguns de preço , a troco de fazendas , porque elles não uzão
destes adornos e Gaytarias.
Ao outro dia da Batalha mandou o Capitão mor seguir
o alcance hindo elle em pessoa por onde cuidou levava
aquella Rainha a retirada , com a gente de Cavallo e algu
mias Companhias de gente volante de bom pé com bas
tante guerra preta para a parte dos Empures onde havia
sido a nossa rota ; mas esta disposição foi já tarde, mas foi
ainda de proveito pella gente espalhada daquelle Quilombo
que se foi recolhendo, que estava escondido por aquelles
matos, e Palmares; e alguns houve que acharão boas peças
de prata o que hia largando a gente da bagagem daquelle
poderoso Quilombo e Povoaçoens por hirem mais despejados
na sua fuga : marchou -se por aquella banda cinco dias de boa
marcha, até o pé daquelles medonhos Empures de Angolo
mem Acaita , achando - se diversos caminhos e rastos de muita
gente que por ali havia passado; Chegámos até o nascimento
do Rio Zenza , que o pé daquelles Empures o tem ; e vendo
era um vão aquella diligencia se virou dali para o Arrayal
de Tabi, que estava allojado na mesma Bamza, e Quilombo
daquella Rainha Ginga.
Ao passarmos pellas pontes que aquella Rainha havia
feito em Rio Damde, achamos a muitos dos nossos Jagas
fazendo Azite e cozendo panelladas para o tirarem daquelles
seus Irmãos Jagas, tirando delles as polpas e o mais gordo
de seus Corpos dos que se havião afogado naquellas pontes,
e os não pode levar a corrente do Rio, por ficarem engas
gados em os páos que estavão a pique em que se sustenta
vão , para que se veja a desumanidade que uzão huns com
outros: e com este Azeite de gente humana se untão, e he a
sua mais estimada untura , e o não comião tambem por estar

421
já podre, mas o tinhão feito de muita polpa ou carne fresca,
de que estavão bem fartos; Tem sido o Autor tão prolongado
em esta relação da occasião desta guerra Ginga, porque
huma couza he escrever de ouvida , e outra de vista, e por
esta causa se deteve em descrever todos os requisitos que
nesta occazião houve de tanta opinião para as Armas Por
tuguezas: o Curioso o releve se ha sido prolongado, já himos
dando fim .
Estava este Quilombo da Rainha em hum sitio superior
sobre huma Vargea dilatada que quando se sahio em busca
da Rainha e seu seguimento por ella acima, se poz duas
jornadas de boa marcha em a vencer, regada de hum vistoso
e aprasivel Rio de riquissima e Cristalina ágoa; o qual se
passou algumas sete vezes em aquella amena, e deleitosa
Vargea , dando a agoa por meya perna, sendo ella huns
pedaços de Cristal que brandamente corria dando muitas
voltas, com que regava aquella dilatada lhanura, e a fazia
fructifera pello humor que de sy distilava a qual se podera
comparar sua amenidade áquelles Campos Elysios, que os
Poetas descreverão , ou verdadeiros ou fingidos; o que tudo
erão sementeiras de gente daquelle copioso Quilombo em
que se achavão muchissimos mantimentos de diversas Cas
tas; os Valles de que era cercada era tudo de bastos Pal
mares mui dilatados, tendo tambem o Caudaloso Rio Damde
que atravecava com sua corrente ao pé do Quilombo, com
outros mais Ribeiros que servião aquella Rainha alguns
delles de recriação, onde se hia a banhar com as Damas de
seu Palacio, e alguns dos seus Damos dos encerrados.
Achouse gado de toda a casta e galinhas em quantidade,
com que teve bem o nosso Exercito onde se goarecer da
fome que levava; tinha esta inimiga Rainha no melhor lugar
da Praça as cazas de seus feiticeiros e adevinhadores, que
em estas occazioens, e em outras muitas forão falsas suas
adevinhaçoens, as quaes estavão cheas de mil immundicies,

422
e boxinifadas que cauzavão espanto a quem as via, tendo
nas portas as divizas de quem as habitava, que erão muitos
Chifres Cheos de sugidades, pelles e Cabeças de diversos
Animaes, com diversidades de Rayzes de páos e hervas para
applicarem a suas diabolicas curas, sendo estas as mezinhas;
e parece que o Pay das maldades, vendo as cousa dos seus
devotos Gangas (- ) e feiticeiros, que tanto o tinhão exaltado
com enredos e mentiras, que estavão ultrajadas de gente que
o não venerava como fazião aquelles seus embusteiros e
enganadores, cauzou hum incendio tão terrivel, e medonho,
que ardeo a mayor parte do Quilombo e Bamza , entrando
todas as Cazas diabolicas, onde sahia hum fedor que se
não podia suportar; e foi necessario fazerem Cazas de novo
para ali poderem estar; em algumas destas Cazas antes da
queima se tinhão achadas enterradas algumas cousas de
valor.
Succedeu no Arrayal e sitio estar o Capelão mor dizendo
Missa em huma Ramada que se havia feito na Praça da
quelle Quilombo, e no mesmo tempo que se hia acabando
de celebrar, haver em o Quilombo do Jaga Cabucu, que es
tava a huma vista separado do nosso Arrayal, grandes
gritos e apupadas, accompanhadas de tiros de Mosqueteria
e conhecendo o dito Padre, que havia acabado de dizer
Missa, pello que sabia da terra , de que procedia aquelle es
trondo e vozaria, hum pouco indignado para o Capitão mor,
lhe disse que seja possivel que se esteja aqui sacrificando
a Deos, e que ali se fação sacrificios ao Diabo; a que res
pondeu o Capitão mor, deixe Padre que lhe dei licença: com
esta resposta enfadado mais o Padre Capellão mor lhe tor
nou a dizer, ainda Vm . diz isso, que deu licença ; eu não hei
mais de dizer Missa neste Arrayal, pois isto se faz assim ;

Gangas chamão aos seus Medicos e Surgioens; E ganga Amica


chamão aos nossos Sacerdotes. (Nota marginal do Autor ).

+23
ao que lhe disse, o Capitão mor, não diga embora Padre !
que Gaspar Borges pode andar annos e annos sem ouvir
Missa! este Jaga com seu Quilombo depende delle as Ar
mas del Rey Nosso Senhor, de sua ajuda, e assistencia, e
he necessario conservalo ; elle me pedio licença para disparar
huns tiros de seus Mosquetes, porque o não podia fazer
estando as nossas abas sem isso, porque se não dera parte
nos pudera cauzar rebate, e nos pôr em Arma, entendendo
rós, que eramos acometidos de nossos inimigos, que ao
derredor não faltão, para o que digo hé que lhe dei licença,
e não para fazerem offenças a Deos; com esta satisfação
ficou aquelle Padre mais socegado.
De modo que esta nossa inimiga foi esbulhada da mayor
parte do que havia tantos annos possuhido, degolada muita
da sua guerra e seus melhores Cabos, e apanhada e Cati
vada muita de sua gente ; e se ella se gloriou tanto com a
rota que nos tinha dado em os Empures de Angolomem
Acaita , este disbarato foi o mayor, que despois que nos
guerreava , havia tantos annos tinha tido, e foi bem recom
pensado, e sabe que chegou a Re, e ao Souto mayor lhe
mandou dar a mayor Açoute. (sic ) .
Tendo - se dado alguns assaltos em aquelles Dembos
Circumvizinhos se veyo retirando o nosso Arrayal pello ca
minho que havia levado; aquelle dia que alevantou passando
pello sitio em que o nosso Jaga Cabucu estava allojado com
seus Jagas , se achou hum Negro, dos que havião tomado
naquella guerra de preza , degolado em hum tezo com a ca
beça lançante para baixo, com huma regueira de sangue;
e este tinha sido o sacrificio que havião feito por este estilo
a seu Senhor Cabucu, morto estando prisioneiro em poder
daquella Rainha Ginga , que o que he feito a pessoa grande
não comem a pessoa ou pessoas que matão nos sacrificios
mas os deixão estirados vertendo todo o sangue que no
Corpo tem : Costumes Gentilicos de Jagas , e ainda quizerão

424
matar dos do seu Quilombo, e enterrar na sua inbila (1 )
que lhe foi mostrada pello Tambor ou Engoma, e en
terrar vivo na sua Sepultura a hum desdichado que havia
sido seu mimozo, que he costume seu diabolico, e de muitos
Sovas, metterem pessoas vivas Machos e Femias nas sepul
turas dos fidalgos, que fazem como de abobadas de baixo
da terra ; huns com Cachimbos, outros com tabaco para elles
chuparem , e outros com fogo para lho acenderem , e alguma
couza para que lhe desse de comer, e os que matão e en
terrão vivos tem para sy que aquelles serventes os servem
estando mortos, e lhe dão do que lhe ali mettem, ficando
aquelles pobres que lhe coube por sorte sepultados vivos, e
são dos mais seus queridos e mimozos, barbaridade Genti
lica e cruel ; não se pode ser querido nem mimozo de seme
lhante gente. Mas o mimozo de Cabucu não quiz estar
quedo nisso ; esquecido do Amor que devia a seu Senhor,
fugio para Caza de hum Morador, sabendo o que os seus
lhe querião fazer : a muito chegão os extremos do amor , mas
não que se perca a vida pella cousa amada, que nem todos
são os amantes de Trevel, nem Piramo e Fhisbé que contão
os Poetas. O caminho que se fez de marcha em dezoito dias
se desandou em alguns oito, que como não vinhão tão avolu
mados, marchando formados, com aquella compostura que
se tem relatado, se vinha mais a la ligeira, como quem vinha
por sua Caza, imitando aos quadrupios da praça da
palha .
Chegados que forão ao destricto da Enbaca sitio de
Enbaca sitio de Querimgo, se apartou de nós, e do nosso
Exercito, el Rey de Domgo Dom Phelipe Angola Airi para
suas terras e Corte das Pedras do Mapungo, onde tinha sua
Morada, passando á vista de toda a nossa gente do Arrayal,
com toda a guerra de seu partido ; hindose assim apartando

() Mbila é cova, sepultura.

425
de nós, disse hum Morador e Soldado Antigo da Conquista ,
Veem Vossas Mercês aquelle Rey Angola Airi, que ali
vai, que não quiz dar nenhum Carregador de volta para
ajuda do Comboy da nossa Infantaria, e vay carregando em
Redes Caxorros que apanhou no Quilombo da Rainha; este
he nosso Amigo, e Vassallo de sua Magestade por conve
niencia propria, e porque quer que o amparem e defendão
da Rainha Ginga , sua inimiga; e agora que a vé com esta
Rota , já vay com soberbo, entendendo que nos não haja
mister; se Vossas Merces virem que esta nossa inimiga e
sua, se acabo de todo , há de ser o mayor inimigo que have
mos de ter, e ainda o havemos de ir conquistar as suas Pe
dras que elle tem por sua Fortaleza : Prophecia foi esta, se
assim se pode chamar, que se vio cumprida em nossos
tempos, que já Nosso Senhor (" ) mandou fallar por boca
de huma besta , que he poderoso para tudo, não he muito
fallasse nesta occazião pella boca de hum homem racio
nal. (? )
Neste sitio do Querimgo chegou ordem do Governador
cuidando que o Arrayal estava ainda no sitio do Quilombo
da Rainha, para que descesse o Capitão mor com todo o
poder pella outra banda do Rio Damde onde elle estava,
destruindo todos aquelles Sovas da voz del Rey do Congo,
e da do Flamengo, e que lhe não ficasse pedra sobre pedra;
acordo que tomou muito tarde, como quem havia vindo de
novo, e não estava visto nas couzas da terra, e não tomou
nisto parecer com quem lho podia dar, tendo para sy que a
todo o tempo que mandasse aquella ordem , teria lugar, no

) Esta profecia cumpriu -se não em D. Filipe mas sim em seu


filho D. João, em 1671 , que se rebelou contra nós, sendo - lhe tomado
Pungo e Ndongo.
Ⓡ ) Como disse hum sugeito em certa occazião. A Asna de Balem
tambem fallou deu sua razão logo se calou. (Nota marginal do Autor ).

426
que se enganou , que huma vez as guerras destes Reinos des
feitas, e divididas tornam -se a juntar com muita difficuldade;
e se levara logo aquella ordem o Capitão mor, ou fôra a
tempo , se faz hum grande feito, porque á vista da preza que
entrou na Enbaca e em seus contornos, se vinha despachando
muito mais cantidade de guerra preta só afim de se apro
veitarem da occasião de Camzarem e apanharem que he tudo
huma mesma cousa; e marchando o nosso Exercito victorioso
houverão se de abrazar todas as terras de nossos inimigos ,
e até o Flamengo em a Cidade havia de tomar, e ter mui
máos dias, ou más noites; mas tarde se cobra a occazião
perdida.
Veyo marchando o nosso Exercito até entrar na nossa
Praça de Armas da Villa da Victoria de Masangano, sendo
todos em geral do Governador mui bem recebidos, dando
muitos Louvores do bem que havião obrado naquella occazião
de tanta importancia do serviço del Rey e conservação destes
seus Reinos, servindo todos á sua custa; e como ele era tão
zeloza do Real serviço, estimava muito aquelles que a elles
se mostravão prontos; entrando na matriz com o Capitão
mor, e toda a gente de guera, que era Domingo de Ra
mos (" ) , a dar as devidas graças a Deus e a sua Bemdi
tissima May Senhora da Victoria, que no dia da batalha se
havia invocado pello bom sucesso que por sua intervenção
tios deu seu filho Bemdito ás nossas Armas Portuguezas,
regidas e governadas de baixo das Bandeiras del Rey nosso
Senhor Dom João o Quarto.
De hida e volta se poz em esta jornada e occazião trez
mezes : todas as vezes que por este estilo, e brevidade se
fizer guerra em Angola terão feliz sucesso , e pello contrario

) o Domingo de Ramos em 1646 caiu no dia 25 de Março, como se


vê da tabela das festas moveis em um Missał do mesmo ano de 1646 ,
existente na Academia .

427
sendo tardias e detençozas porque a experiencia tem mos
trado que as que são desta Calidade se desfazem por sy, e
se vé pouco lucro dellas.
Deu o Capitão mor da guerra Gaspar Borges Madureira
ao Governador e Capitão Geral informação de todas as
cousas succedidas naquella jornada de Ginga, e entre ellas
foi a das Cartas que no Quilombo e Caza da Rainha Ginga
Dona Anna de Souza havia achado, assim do Irmão a In
fanta Dona Gracia, e pello nome da terra Quifungi, que em
poder da gente Portugueza estava, como noticias que de avi
zos fazia Dom Francisco Moemga Aquiloangi parente da
Rainha Ginga que tambem estava entre nós, ao qual tinha
ella degolado a seu Pay sendo seu Tio , como nesta historia
se tem relatado, quando hia esta Rainha de volta da Loanda
de se bautizar em o Governo de João Correa de Souza; mas
como o Sangue se não quer rogado, e se tem sempre huns
pellos outros como as cerejas pellos pés, sem embargo de
tudo isso nos queria a nós ser traydor que o haviamos ampa
rado e livrado de lhe fazer o que fez a seu Pay se o acolhera
ás mãos, lhe queria a ella ser leal ; outro Negro tambem que
vestia á Portugueza , escravo de hum Morador, que sabia
escrever e lho fazia, e avizava tambem de tudo mandado da
Infanta sua irmã Dona Gracia .
Com estas tão certas noticias, mandou logo o Governador
prender aos tres nomeados, e confiscar-lhe tudo o que pos
suhião, principalmente á Irmã da Rainha que não possuhia
pouco, que parte apllicou á Real fazenda, e a outra para o
hospital e sustento dos pobres delle, mandando - a para o
Corpo da guarda a fazer Companhia a outra sua Irmãa
Dona Barbora, que agora se havia aprisionado como dito hé.
Hia o Governador fazendo muita prevenção de guerra ,
como quem tambem o entendia , e havia tantos annos mili
tado, mostrando o zelo e vontade que tinha ao serviço del
Rey, fazendo muita honra e estimação dos que se mostravão

428
diligentes, e serviçaes em o serviço Real ; havendo neste
tempo muita falta de tudo não tendo com que socorrer aos
Soldados de farda para se vestirem , farinha de trigo apenas
havia para se fazerem os santos sacrificios; vinho tambem
muito pouco , que chegou a valer a peruleira delle, que hé
hum Almude, e essa não bem chea, duas peças dindias , que
valem em Masangano trinta e seis mil Reis, a dezoito cada
huma Caxa de marmelada do Brazil refervida seis mil Reis
prata ou peça ; azeite de Portugal não havia gota; todas estas
cousas havião dado ao Governador muito cuidado em se
verem tantas miserias , sem remedio nenhum .
Sustentava ainda as duas frentes no Rio Coamza e em
o Lembo sitio da Igreja do Quixoto botando bramo que havia
de dar huma vista á Cidade; tendo mandado Embaxada ao
Jaga Casangi por pessoa Antiga destes Reinos por nome
João Pinhão para que descesse com seu poder como Aliado
del Rey de Portugal , intitulando- se por seu Gola Ambole
como ainda hoje se preza muito disso, e lhe escrevem os
Governadores dando - lhe este titulo e preminencia, que val
tanto como Capitão Geral ; e quando mandou dar guerra á
Rainha Ginga lhe mandou, lhe tomasse as costas lá pello
Sertão, para que não fugisse, e o dito Casangi, chamado
Dom Pascoal Rodriguez Machada Casangi Ca Quingure,
mandou muito da sua guerra e derão na Provincia da Qui
tuxila Senhorio da Rainha Ginga , que era muito povoado e
de muitos Palmares tão bastos e fechados que dizião por
encarecimento, os não penetrava o Sol; esta empreza havia
feito mais em seu proveito do que a favor nosso.
Tinhão succedido ao Governador algumas cousas que
lhe havia dado pena , e as devia de tomar por má estrea , e
foi morrer -lhe o Cavallo em que montava que havia trazido
do Brazil . e hum Papagayo do mesmo Paiz a que chamão
Curica, que huma cousa e outra era o seu regalo e passa
tempo; tambem indo a huma festividade á Igreja Matriz lhe

429
cahio a sua Cadeira forrada de Damasco Cramesim , e em
o panno de Seda que a cobria, cantidade de azeite da terra
de huma Alampada por descuido do Sacristão ou de seus
criados, que tudo encheo de nodoas; dali a poucos dias en
fermou da doença da terra, e lhe deu com tanta força que
o foi pondo na ultima extremidade: feitos Autos de Christão
de que elle havia dado mostras de o ser bom , pella frequen
tação das Igrejas, e da veneração ao Culto Divino, Confes
sada e Commungado, feito seus apontamentos, encommen
dando ao Padre da Companhia de Jesus Matheus Dias seu
Confessor, que levando - o Deos para sy, puzesse no fogo
alguns Papeis de suas Poesias de que era curioso, tomado
o Sacramento da Extrema-unção deu a Alma a seu Cria
dor, (4 ) com magoa e tristesa geral, pois nelle se cifravão
todas as esperanças de nossa melhoria; pois nos faltava quem
entendia a guerra, e sabia dispor as cousas della, que ou
havia de restaurar a Cidade da Loanda ou polo em aventura
de o perder todo, o que não sabemos se convinha ao serviço
del Rey e conservação destes seus Reinos, polo em semelhante
aventura; os juizos de Deos não ha pessoa humana que os
possa compreender: foi sepultado em a Igreja dos Reve
rendos Padres da Companhia de Jesus, fazendo - se - lhe as
honras e Exequias devidas, como quem tinha sido Governa
dor e Capitão Geral destes Reinos ; trouxe em sua companhia
algumas Cartas de Sua Magestade assinadas em branco para

o O autor diz adiante, no principio do capitulo terceiro, que este


Governador faleceu em fim de 1646. O catalogo dos governadores diz
que ele morreu em Maio de 1646, o que Lopes de Lima aceitou por
certo , pois tambem indica esta data .
A data de Cadornega não pode aceitar -se. O governador da Bahia
em 16-12-1645 já sabia da morte de Souto Maior e foi ele quem deu
a noticia para Lisboa ao Rei. Veja -se o principio da nota ao capitulo 3.°,
seguinte, e no terceiro socorro a Angola, o qual a libertou dos holandezes.

430
as dar ás pessoas de mayores merecimentos e só se soube
dera huma dellas ao Capitão mor, e Governador do Reino
de Benguela Manoel Pereira, pello muito que havia servido
e trabalhado na conservação, e condução da gente daquelle
Reino de Benguela : governou quasi um anno.
Começou logo na noite do seu fallecimento a haver al
guma alteração entre a gente da terra , porque querendo dar
algumas ordens o Ouvidor Geral que então era João Juzarte
de Andrada, lhe sahio ao encontro o Capitão mor da gente
de guerra Gaspar Borges Madureira , dizendo, quem dá aqui
ordens onde eu estou ? com o que tiverão suas baralhas e
razoens, com as terem de parentesco, até que o Senado da
Camara que então era se juntou na Igreja Matriz daquella
Villa, com o Vigario Geral o Mestre Escola Francisco
Pinheiro, e tratarão de fazer eleição de quem havia de go
vernar estes Reinos : muitos erão os pretendentes com estar
o Reino naquelle estado, que tão suave hé nos homens isto
de governar e mandar aos outros; e para que participassem
nelle mais alguns do que fosse hum só , dando para isso suas
razoens, se assentou se votasse em tres, cuidando cada qual
lhe passaria a procissão pella sua porta; estando juntos para
começarem a eleição mandou o Senado dizer ao Capitão mor
da gente de guerra, que elles não podião fazer eleição livre
mente menos que sua Mercê não encostasse o Bastão, que
fosse servido de o fazer: a que elle obedeceo, e lhe foi
notado de alguns o vir nisso com tanta facilidade; que se
elle tivera vindo daquella guerra de Ginga mais bem quisto
da gente de guerra factivelmente ninguem tivera a primeira
se não elle; mas era pouco liberal com a Infantaria e isso o
tinha feito aborrecivel.
Deixarão os Camaristas só Arvorado ao Sargento mor
Diogo Gomes Sampayo, e lhe ordenarão fosse chamando
a votos Cidadoens e Moradores de todo o Reyno; cum
prindo elle assim a ordem foi avizando e chegando -os áquella

431
função, até que acabados de os tomar regulados pellos juizes
Vereadores e Procurador de Conselho em presença do Vi
gario Geral prevalecerão aos mais votos Bartelomeu de Vas
concellos de Cunha , Antonio Teixeira de Mendonça, e João
Juzarte de Andrada, que ainda era Cunhado do primeiro
elegido, não se atentou nisso , nem elles erão muito amantes,
ficando os mais pretendentes com a alma torta como la dizem.
Feita tambem a sua Ceremonia com te Deos laudamos,
com as portas do Sacrario abertas pedindo a Deos lhe desse
graça para nos governarem bem ; mas o jogo de tres &.a
muitos nesta occazião beijarão mãos que dezejavão ver
cortadas.

432
CAPITULO TERCEIRO DA QUARTA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS . EM O GOVERNO DOS
TRES GOVERNADORES ELEITOS, BARTELAMEU
DE VASCONCELLOS DA CUNHA , ANTONIO TEI
XEIRA DE MENDONÇA E JOAO ZUZARTE DE
ANDRADA .

Havendo tomado posse os tres Governadores eleitos do


Governo destes Reinos por fallecimento do Governador e
Capitão Geral Francisco de Souto Mayor, no fim do anno
da Era de mil seiscentos e quarenta e seis, (1 ) a primeira
cousa que intentarão foi de mostrarem seu valor e bizarria,
pondose todos tres em Campo em o sitio chamado da Ca
valla , da outra banda do Rio Lucala frente dos Arimos da
Varzea do Lembo e Igreja do Outeiro do Quixoto, para onde

( Veja -se a nota antecedente e sobre a organisação do terceiro


socorro a salvar Angola houve o seguinte.
O Governador da Bahia , Antonio Telles da Silva , mandou nos
meados de 1646 a Angola um piloto, chamado Manuel Soares, em um
navio; tendo voltado á Bahia, o Governador mandou - o a Lisboa com
carta sua , datada de 16-12-1646 , para ele dar aqui ao Rei conta do
estado das cousas de Angola, pois tinha lá morrido o Governador Souto
Mayor. O piloto foi ao Conselho e ali foi ouvido e tendo dito
tudo o que sabia, se lhe mandou que fizesse uma relação por escrito em
que contasse o que viu em Angola e o que lhe parecia daquela Con
quista, pela muita experiencia que tinha dela por haver lá estado 30 anos;
ele assim o fez e a relação e a carta do Governador da Bahia foram
presentes ao Rei , sendo depois este grave assunto tratado em Conselho,
o qual disse ao Rei que convinha muito tratar já da conservação e
recuperação do Reino de Angola, porque dele dependia o comercio do
Brazil e de ambos o deste Reino.
O Rei resolveu que fossem a Angola 300 homens em 2 navios seus
e 1 de particular, conforme o estado das cousas e morte do Gover

433
convocarão toda a possibilidade que havia de gente de guerra
neste Reino, onde elles Governadores fizerão suas Cazas e
allojamento, e no meyo da Praça o Corpo da guarda, e o
derredor as Cortinas da Infantaria dobres em quadra,
huns com a frente para fora , e outros com a cara para a

nador Francisco de Souto Mayor. – O Conselho disse mais ao Rei


que devia mandar nomear governador de talento e partes que era neces
sario para a segurança e restauração daquele reino; e que o poder que
levasse devia ser capaz assim para poder resistir aos holandeses no
mar, como para tomar e fortificar porto , sem o qual se não poderia
sustentar nem socorrer aquele reino, nem haver comercio para o Brazil
e para este Reino. Que o socorro devia constar ao menos de uma Capi
tania e Almiranta, navios do Rei da mesma força e de dois mais pe
quenos, tambem do Rei, a cuja sombra deviam ir alguns de particulares,
nos quais deviam ir pelo menos ao todo 800 infantes; que destes
800 infantes se podia botar em terra 600 e 200 ficassem nos navios
do Rei.
Que conforme o estado em que estava Angola se devia tratar
logo deste socorro com toda a brevidade possivel. - O Rei disse em
21-5-1647 que tinha nomeado por Capitania a fragata Conceição; por
Almiranta S. João da Ribeira e para embarcações de sua companhia
a charrua Santo Antonio, Santa Catarina e o navio Sacramento e con
formou -se em tudo o mais com o Conselho.
(Consultas de 23-3 e de 24-5-1647. Livro II das Consultas mixtas,
fl. 44. — Existem os originais delas ).
Salvador Correia esteve no Conselho .
O Conselho em consultas de 15-6-1647 tratou da nomeação dos
capitães dos navios que deviam ir a Angola. O socorro ia para a recu .
peração daquele reino e ia a cargo de Salvador Correia, que já estava
nameado Governador de Angola; ( foi nomeado em 8 de Abril de 1647 ).
A dita consulta tem os nomes dos navios que deviam ir e dos capi
tães deles; o despacho do Rei é datado de 25-6-1647. Deviam ir - A fra
gata Conceição, a charrua Santo Antonio e o navio Santo Thamaz.
(Livro citado, fl. 55 ).
A consulta de 17-6-1647 trata da nomeação dos capitães das 800
infantes que iam a Angola, e o Rei por despacho de 256 nomeou - os.
(Livro citado, fl. 57, v. ) .
A consulta de 3-9-1647 ainda trata do pessoal que devia ir. ( fl. 79,v.).

434
Praça, estando ali juntos entrando e sahindo as Companhias
de guarda com vigias e rondas como quem estava em cam
panha, ficando só em Masangano a guarnição necessaria go
vernada por seu Alferes da Fortaleza Manoel Soares Laço,
por quanto o Capitão mór que então era daquela fortaleza e

Em 11 de Setembro estava para ir a Armada para a Bahia ; iam


nela navios para irem com Salvador Correia para Angola, mas sem
aparencias de que iam para lá. O Rei mandou avisar pelo Conselho
Salvador Correia que se dispozesse a partir na Armada para ir a An
gola. Deviam ir quatro barcos longos e seis navios de particulares; a
Armada era comandada pelo Conde de Vila Pouca de Aguiar, Antonio
Teles de Menezes, que era o General dela. Salvador Correia tinha
dado ao Conselho uma relação das munições que era preciso levar.
Consulta de 18-7-1647, a qual teve o despacho do Rei na data de
11-9 . (Livro citado , f ). 71 ).
Ainda na consulta de 9-9 se tratou deste socorro a Angola e o Rei
por despacho de 17-9 mandou aprontar tudo. (Mesmo Livro, fl. 80 ).
Apesar de ser de tanta pressa a partida, ainda a Armada não tinha
partido em 5-10 1647.
(Consulta de 3-9 — fl. 89 do mesmo Livro ).
A Armada deve ter saido de Lisboa em Novembro de 1647 .
O Conde de Vila Pouca escreveu da Bahia em 9-1-1648. (Consta
da carta do Rei para ele de 6-7 - no I Livro Geral de Cartas, fl. 135, v. ) .
Salvador Correia escreveu do Rio em 29-1 dizendo pouco da sua
viagem e tratando da sua ida a Angola. Dizia que o Conde de Vila
Pouca lhe tinha mandado da Bahia navios para o Rio .
Esta carta existe e é o documento n.° 637 na 2. caixa do Rio ,
no Arquivo Ultramarino.
Ainda escreveu do Rio em 15-5 mandando copia de um auto feito
em 9 sobre a derrota que haviam de levar a Angola. A carta e o auto
existem na dita caixa; são os documentos n . ° 641 e 642 .
Deve ter partido do Rio em 15-5 ou poucos dias depois.
Salvador Correia la para restaurar Angola, apesar de alguns auto
res dizerem que não.
Prova -se pelo que ficou dito nesta nota, na consulta de 24-5-1647.
e pelo seguinte :
Depois da saida de Salvador Correia de Lisboa, ainda o Conselho
em consulta de 17-2-1648 fod de opinião que se devia restaurar Angola.

435
Capitania, que era Antonio Teixeira de Mendonça por des
pacho de sua Magestade, estar na occupação do Governo;
e como o dito Alferes era seu Primo, e havia assistido no
serviço del Rey na Provincia do Alemtejo, se fiava delle o
Governo da Infantaria que já mandava, entrando e sahindo

Por esta opinião agora se vê que era esta a que tinha na data da par
tida da Armada. A dita consulta começa assim :
« Vossa Mag.de por decreto de 29 de Janeiro do presente ano diz
a este Conselho que conforme as avisos que ultimamente se receberam
de Holanda poderia suceder que se efectuasse uma conveniencia e se
celebrasse uma paz perpetua entre estes Reinos e os Estados Geraes
das Provincias Unidas, e porque havia de ser necessario prover nos
casos de que tratava a memoria , que veio com a dito decreto , encomenda
V. Mag.de muito ao Conselho lhe diga sobre eles seu parecer com toda
a brevidade . »
O Conselho disse que dos holandeses só se podiam esperar traições
como já o tinham feito .
Que lhe parecia mais do serviço da Rei e bem do Reino (de Por
tugal) que por todos os meios se fizesse o possivel para que os holan
deses largassem de todo aquele reino de Angola, ainda que fosse á custa
da fazenda Real e da de seus vassalos porque com as utilidades deles
em breve se recuperaria ( o que se gastasse ).
Esta consulta não teve despacho do Rei.
Esta falta de despacho mais prova a minha asserção, pois, como
Salvador Correia já tinha partido, o despacho de nada servia e a sua
falta mostra que as ordens já estavam dadas sobre a restauração de
Angola. (Livro II das Consultas mixtas, fl. 110 ) .
Eis a historia do socorro que libertou Angola dos holandeses; este
foi o 3.º socorro e foi pedido por Souto Mayor e, em virtude da morte
dele , foi organisado com mais diligencia do que os dois primeiros.
Quem desejar ver tudo o que foi tratado sobre os tres socorros a
Angola, depois da usurpação holandesa até á sua expulsão, veja a nota
no Capitulo 8.º da 2.* parte; a no capítulo 3.º da 3.º parte; as 4 no
capítulo 4.º da 3.º parte; e a 1a no capítulo 7.º da 3a parte. Estas todas
tratam do primeiro socorro .
Do segundo socorro trata a 2.' no capitulo 7.º da 3. parte no
capitulo 1.º da 4. parte .
Do terceiro socorro trata só esta.

436
de guarda como Alferes e Mestre de Campo com as mais
Companhias, quando estavão rezidindo em Masangano; ti
nha ficado tambem o Ouvidor Geral que então era Francisco
de Mello da Cunha , Irmão do Governador eleito Bartelameu
de Vasconcellos da Cunha, para acudir as obrigaçoens de
seu Cargo.
Estando os Governadores naquelle sitio da Cavala para
onde havião passado contra os dictames do Governador de
funto, que daquelle Rio Lucala fazia o mayor reparo à sua
defença, quando o inimigo Hollandes o buscasse, e sabendo
que os Sovas Vassallos de Sua Magestade que distavão de
Masangano para a Cidade estavão mettidos com o Fla
mengo, observando seus mandados, como de quem os re
conhecia por Senhores, oppondo- se-nos, e fazendo todo o
mal que podião, aquelles que não seguião seus dictames, qui
zerão os eleitos emprender huma faução, e mandar castigar
seus desaforos, para o que ordenarão ao Capitão mór da
guerra , que neste tempo era Manoel da Nobrega, por Gas
par Borges Madureira não querer mais alvorar, entendendo
lhe roubarão a sua justiça em o deixarem de fora do Go
verno, sem embargo de que os dous Cunhados eleitos o erão
tambem de seu filho Thomas Borges Madureira , por serem
todos tres cazados com tres filhos de Payo de Araujo de
Azevedo, em tocando al pundonor, cesa la comodidad ; E
dandolhe gente bastante, marchou ao castigo daquelles So
vas rebeldes, fazendo nelles algumas mortes e prezas em
suas terras, e vendo elles que erão da nossa guerra assalta
dos, se forão valer á Cidade da Loanda de seus novos Amos ,
representando e chorando suas Lastimas, que por lhe serem
fieis, os havião destruidos e castigados daquella sorte.
Havendo chegado a nossa guerra até o sitio da Queza
nelemba, donde se descobre toda aquella dilatada Vargea
do Rio Bemgo e seus Arimos, onde primeiro havião estado
os nossos Arrayaes.

437
Vendo o inimigo Hollandes a molestia e dano que tinha
mos cauzado aquelles Sovas, que já tratavão como seus, ser
vindo esta jornada mais de acordar o Cão que dormia , do
que de proveito, lastimado e importunado daquelles seus con
fidentes, botarão todo o poder fóra que tinhão na Cidade, de
que estavão mais fornecidos de gente dos soccorros que lhe
havião entrado, a respeito do nosso que havia vindo: com
orgulho e presteza vierão marchando, accompanhados de
muita guerra dos Sovas seus Amigos, e de Dom Cristovão
Corte Real Governador da Ilha da Loanda e seus Mixiloan
das, chegando á mesma paragem de Quezanelumba onde
havia chegado a nossa guerra , la qual não acharão já por ter
vindo de volta; e como elles vinhão com tamanho poder se
afoutarão a marcharem algumas jornadas mais acima, che
gando até á Bamza do Sova Angola Quiaito , hindo contra
a ordem militar, meterse por hum Paiz dentro, tendo a reti
rada tão distante; que isso foi o que se estranhou a Dom João
de Austria, sendo elle tão dextro e valeroso Soldado e Ge
neral, meterse pella Provincia do Alentejo a buscar a Cidade
de Evora , algumas doze Legoas, ou as que são de Arron
ches, aonde podia ter a retirada, deixando as nossas Praças
fortes pellas Costas; mas elle devia de vir confiado em outra
cousa : como este inimigo vinha confiado em o muito poder
que trazia, que se não fôra estar o poderoso braço de Deos
com seu Açoute castigando os peccados de Angola cometti
dos contra sua Divina Magestade, factivel cousa fora o
não tornar nenhum para a Cidade, por mais poder que trou
xessem , que havia matos e ruins passagens onde com pouca
gente se lhe pudera fazer muito dano; mas contra o Ceo não
valem mãos, como já temos dito.
O Capitão mór da guerra estava alheio no que lhe vi
nha nas Costas, porque tanto que chegou ao sitio do nosso
allojamento da Cavala se despartirão alguma da sua gente
a descançar onde tinhão suas Cazas, e nos Arimos e fazen

438
das daquelle Arrayal circunvizinhas; quando nisto chegou
novas que o inimigo Hollandes estava na Banza do Sova An
gola Quiaito, distante do allojamento algumas duas Legoas,
e de Masangano quatro , onde havia descançado da marcha
tão prolongada que havião trazido, onde os Vassallos da
quelle Sova os refrescarão dandolhe dos regalos da sua terra ,
tratando -os como a seus Senhores; em que aquelle Sova que
tinhamos por Leal e confidente, não dera consentimento , ao
que os Macotas e Tandala fizerão; mas não deixou de pa
gar com a Cabeça semelhante excesso, que algumas vezes
paga o Justo pello Peccador.
Ao rebate de estar aquelle inimigo tão nosso vizinho
acudirão a elle com brevidade e resolução de lhe teremo
encontro em que houve diversos pareceres, pella pouca con
formidade que havia entre os tres eleitos, que o que hum
dizia o outro o encontrava : alguns forão de parecer se não
passasse a Cavalo, antes o que lá estava de pé de Arrayal
se mandasse recolher a estoutra banda do Rio Lucala, onde
de suas trincheiras defenderião aquella passagem; outros que
prezumião de valentes Moradores de respeito, e Capitaens
de Infantaria, não lhe lembrando o dizer de hum Governa
dor tão grande Soldado, afrontados de verem que o Flamen
go nos vinha com tal atrevimento a buscar as nossas Cazas,
sendo alguns delles Campanistas da Campanha de Pernam
buco, que havião muitas vezes provado a mão com esta Na
ção : mas diz o Rifão, tal terra andar, tal pão manjar; com
o que se resolverão com grande coragem acompanhada de
valor soldadesco que havião de ser o encontro da outra banda
do Rio Lucala, para onde começarão todo o restante da
gente a passar em Companhia dos Governadores, a mais
cedo buscarem sua perdição.
Despacharão logo o Capitão dos Empacaceiros chamado
o Lomba que fosse aquella Bamza de Quiaito picar o inimi
go, o que elle fez com muito valor com sua Companhia de

+39
Mosqueteiros ou Empacaceiros, que era bom Soldado: atraz
despacharão o Sargento mor Nuno Vas Guedes, que então
exercitava este posto por morte do Governador defunto com
quem havia vindo por Capitão de Infantaria , e se tinha por
seu parente, com cinco Companhias de que erão Capitaens
Cristovão de Lima, Feliz de Moura, Cornelio Elis, Antonio
Dias de Macedo e Francisco Coelho de Azevedo, com a me
lhor gente da terra , e da que havia escapado da doença da
terra que havia vindo no soccorro , e alguns homens de a
Cavallo e Moradores; forão marchando mais de huma legoa
até onde chamão as Mibangas de Quiaito , onde fizerão Alto ;
e por o Sargento mór estar de convalecença, não pôde se
guir o caminho, que era muito bom Soldado, e a estar em
outro estado, fizera mui bem sua obrigação.
Estando os nossos Capitaens e mais gente num sitio mui
superior, que havia mister aquelles inimigos subir, para os
buscar; e forçosamente havião de vir ali a dar, por não haver
por ali outro caminho, por serem os lados tudo alagadiços,
estando ali descançados, e com vantagem, veyo hum homem
de a Cavallo grave por nome Duarte Muniz Barreto , Irmão
do Alcayde mór da Cidade da Bahia, Francisco Muniz Bar
reto, o qual trazia ordem dos Governadores para os Capi
taens, com suas Companhias e mais gente marchassem para
diante a buscar o inimigo, porque sabião que naquelle sitio
das Mibangas havião feito Alto, que tão acodados estavão;
vendoos aquelle Cavalleiro tão compostos com sua gente em
sitio eminente , lhe não deu a ordem que levava; veyo outro
atraz deste que foi Estacio de Saa de Miranda, que servia
de Capitão de Cavallos, e não se levando desse erro deu a
ordem, que mandavão os Govenadores fossem adiante bus
car o inimigo; vendo o Capitão Cristovão de Lima , que era
o Capitão mais antigo, o disparate daquella ordem , encolheo
os hombros , pello empenho em que se tinha havido, em se
hir ter o encontro aquella banda , disse para o Capitão Cor

440
nelio , Amigo himos perdidos; levantados daquelle sitio, forão
marchando descendo o que o Flamengo e mais inimigos
havião de subir; ao subirem da outra banda aquella Colina,
acharão o Flamengo no topo onde os tinha trazido o Lomba
Capitão dos Empacaceiros que o Flamengo havia já dego
lado e a sua guerra preta : assim como os nossos forão su
bindo foi o inimigo descarregando sobre elles surriadas dos
seus Capitaens de Cravinas, em que logo nos matarão os
principais Capitaens, como forão Cristovão de Lima , Feliz
de Moura e o Capitão Cornelio , fartando e executando nelle
sua paixão com crueldade por se ter mettido comnosco em
o Reino de Benguela, sendo seu Commissario das Roupas,
e ter cazado com nossa Portugueza; os mais Capitaens e
Soldados forão tendo mão, e fazendo seu dever; mas como
o Partido era tão desigual , começou tudo a descomporse, e
vir de quebrada até onde estavão os Governadores, que que
rendo ter mão na gente por mais que o intentavão, não lhe
foi possivel, com que veyo o inimigo degolandonos muita
gente; e o Gentio que trazia em sua Companhia fez o mayor
mal; ali nos matarão tambem ao Sargento mór Nuno Vas
Guedes, que por doente não pôde marchar estando á borda
do Rio para o passar , e ao Capitão João Rodrigues que tam
bem o era de huma companhia de soccorro , e ainda valeu
estar aquelle Rio Lucala com algum vao, que a não ser isso
muito mais perecera nesta occazião e Rota da Cavala.
Destoutra parte do Rio se fez alguma frente com a gente
que havia escapado daquelle disparate, mas durou pouco na
quelle prepozito, e cada hum se começou a desordenar, e
tomar o caminho por onde acertava ; os que vierão direitos
para Masangano forão os que melhor se livrarão; destoutra
parte nos matarão alguma gente como foi o Padre Jeronimo
da Fonseca Sarayva que por ser muito bom Soldado exerci
tava o officio de Capitão trazendo Gineta, e traçado na
Cinta; e alguns Negros naquella agoa envolta mulharão as

441
mãos, Escravos de Portuguezes, entendendo que daquella
feita , se acabavão todos em Angola, e quizerão nesta occar
zião mostrar o seu máo animo, que despois pagarão com as
vidas; tudo foi huma confuzão porque estavão todos os Mo
radores com suas Mulheres e Familias espalhados por aquel
les Arimos e fazendas; cada hum fez a retirada ou fugida
por onde os seus Negros quizerão, não se dando já por segu
ros em Masangano, fiados na sua bondade ou malinidade;
mas como Masangano prevaleceu, se não atreverão muitos
a declararse, e se mostravão Leaes, que donde há máos, há
tambem alguns que parecem bons; tal houve que o levarão
a Enbaca , outros a Cambambe, e outros emboscados em
matos.
A primeira nova que veyo a Masangano pellos mesmos
fugidos da Rota, foi que tudo havia ali perecido, e que os
inimigos vinhão marchando de Coalho com a gente derro
tada ; forão nisto chegando alguns Moradores e Soldados, e
forão no sitio do Alicondo da Lucala fazendo Alto , e tra
tando cada hum de alevantar ali huma Trincheira de terra
para impedir a passagem de hum esteiro de agoa e Lama
que ali havia, onde houve diversos pareceres, sobre man
dar -se á Cavala a pedir bom quartel ao inimigo, antes que
elle avançasse aquella Villa , e metesse tudo á espada; esta
opinião foi rebatida com muito valor e constancia , que tal se
tão intentasse, nem devia fazer até vermos o que a fortuna
dava de sy; que hum bom , ou máo quartel, de baixo daquellas
fracas Trincheiras da Villa nos não poderia faltar a todo o
tempo; e de quem mais se arreceavam era da ferocidade do
Gentio pello mal que nos queria e dezejava acabar o nome
Portuguez em Angola , que ao Flamengo facilmente o explo
rarião fora da sua terra ; neste comenos chegou hum dos Go
vernadores eleitos, que era Antonio Teixeira de Mendonça
acudindo com toda a presteza aquella Villa , pois lhe combi
nava por ser Capitão mór della de que havia dado homena

442
gem ; e puxando por alguns setenta homens que tinha de sua
guarnição, marchou com elles, com mais alguns Moradores
para o sitio da Lagem entrada por terra para aquella Villa ,
onde mandou fazer Alto, mandando dez homens com hum
Cabo fazer sentinella ao largo para avizarem se o inimigo
intentava aquella entrada, fazendo parar ali todos os que
entravão daquella Rota; dahi a hum pouco chegou por aquelle
caminho o Sova Angola Quiaito á la ligeira com pelles de traz
e diante como quem vinha de guerra , com alguns poucos Ne
gros dos seus Vassallos que o acompanhavão; muitos forão
para elle com alvoroço festejando sua vinda, com o que ficou
elle como assustado; se elle nos vinha buscar como quem era
Leal , só Deos o pode saber, que come Coraçoens e os conhece,
que este Sova tinha a prezunção contra sy, por haver estado
o inimigo em sua Bamza, e tambem hospedados de sua gente,
e nada se faz na terra de hum Sova que elle não seja sabe
dor, porque he Senhor nella de baraço e cutello, e estão as
vidas e Cabeças de seus Vassallos de baixo de seu Cuxillo ,
e assim são mui temidos , e mui respeitados .
Veyo a noite e com as Sombras della muitas Angustias ,
e com razão lhe chamou hum Poeta noite tenebrosa e fea ,
todos cada vez mais confuzos , receando algum funesto fim;
tinha naquella occazião tambem acudido de sua Ilha o Capi
tão e Cabo da Coamza Fernão Rodrigues com todos os seus
Escravos, mandando salhar a Artelharia e levando duas pe
ças de dezoito para aquella entrada da Lagem , que era o
caminho que vinha , por terra, e outras se plantarão nas duas
entradas das trincheiras ou recinto da Igreja Matriz , erão
ellas de Calidade, que aos pés juntos se podião saltar, que
só podião servir de Parapeto; estando aquelle Capitão com
este serviço se chegou a elle pessoa de consideração pergun
tando -lhe se tinha perto alguma das suas Lanchas, pergun
tandolhe para que a queria, disse que para se ir nella para
a Cidade com sua Molher e familia , a pedir quartel ao Di

443
rector e boa passagem : ao que lhe disse que aquillo o não
havia de dizer hum homem como elle; que sim tinha Lanchas,
mas que lhe havia de mandar dar barreno e metellas a pique
no Rio, só porque se não conseguisse tal cousa como aquella;
que ali havião de viver ou morrer.
Hum Capitão esteve aquella noite com o resto que lhe
ficou da sua Companhia para se sahir fóra da Villa com
outros seus parentes, juntos com suas Molheres e familias,
a buscarem hum sitio a que chamão o Outeiro do Quitungo,
por se não darem ali por seguros, o que evitou hum honrado
Cidadão e muito bom Soldado chamado Leonardo Pereira,
de quem havemos fallado algumas vezes em esta historia; e
como elle havia vindo atalayando em seu Cavallo ao inimigo,
lhes disse que tal não fizessem , porque o Flamengo lhes tinha
tomado aquelle passo e lhe hião a dar em suas mãos; ardil
com que os dissuadio a não emprenderem o que intentavão,
fazendo este serviço a Sua Magestade, como em muitas occa
zioens havia feito outros.
Era tanta a perturbação que algumas pessoas com Mulhe
res e filhos se forão meter em casa de hum Flamengo por
nome Jacinto da Camara, que em outro tempo havia assistido
naquella Villa com negocio do Flamengo, para que vindo
aquella noite o inimigo lhes alcançasse como seu conhecido
hum bom quartel, para o que lhe permettião muito, do que
possuhião; Todo o Mulherio que era em cantidade , o mais
delle estava metido na Igreja Matriz, pedindo com muitas
lagrimas Misericordia a Deos, e a sua May Santissima, que
suas lagrimas farião chorar as Pedras, quanto mais a quem
era capaz de sentimento.
A gente que estava no caminho da entrada da Lagem e
Lucala, que erão as duas entradas, que havia para aquella
Villa , mandarão os Governadores retirar daquelles postos
para as Trincheiras de dentro, por nenhum delles ser capaz
de nelle se ter o encontro, e por não serem degolados ali dos

444
inimigos ; e já todos juntos naquellas Trincheiras podião fazer
alguma rezistencia , á sombra da nossa Artilharia; com dita
gente se guarneceu aquella debil Trincheira. Seis rebates
houve aquella noite em que toda ella se não socegou; a cada
hum levantava a gente feminina clamores ao Ceo com grande
borburinho que lastimava e cortava o coração; o mais apertado
foi no quarto da alva, que como se havia dito e as Mulheres
tambem estavão nisso, porque havia entre ellas gente muito
branca e bastantemente entendida, que ao romper da Alva
era que o inimigo Hollandes ordinariamente fazia as suas
envestidas, como o haviamos bem experimentado : Succedeo
naquelle proprio tempo choviscar com o que toda a gente
que estava por fora á inclemencia do tempo fez hum grande
rebuliço ; começarão aquellas Mulheres moças e meninas com
sua fraqueza femenil a lamentarse gemendo e chorando, di
zendo, hay! quarto da Alva , quarto da Alva! que já os ini
migos nos tem entrado nas Trincheiras, somos perdidas! a
que forão a apazigua -las algumas pessoas de mayor idade
e respeito, dizendo- lhe o que causára aquelle rebuliço; moça
donzella houve que se não deu por segura, se não subida ao
Altar, e abraçada com a May de Deos Senhora da Victoria,
todas em geral chamando por suas Misericordias , que alcan
çasse de seu precioso filho , o não serem ali violadas de Here
ges e infieis Idolatras.
Desterradas as trevas da noite amanheceo a manhã alegre ,
annuncios de bom sucesso ; tratarão logo todos de se confes
sarem e commungarem pondo-se bem com Deos, offerecidos
a tudo o que podia succeder; seria hum nunca acabar contar
as Angustias e afflicçõens que a gente toda de Angola pa
deceo nesta occazião da perda do nosso Allojamento da
Cavala, que nem tão longe pella terra dentro escapavão de
semelhantes infortunios, e invasoens inimigas , tudo suppor
tando com animo Catholico e Portuguez por serviço de seu
Principe, e de se não sugeitarem a Gente de contraria Lei e

445
Costumes ; mas como Deos queria castigar e não acabar o
nome Portuguez em Angola, nem destituila do Lume da
nossa santa fé Catholica permittio que ao cabo de tres dias,
despois de mandar o inimigo passar algumas tropas a assolar
todas as Cazas que estavão destoutra banda do Rio Lucala,
farinheiras de fazer farinhas com todos os seus aviamentos
de rodas e prensas, posto fogo a tudo, e juntamente á Igreja
do Lembo, mostrando nisso o quanto são devotos aos Tem
plos consagrados a Deos, saqueando tudo o que achavão,
tomadas algumas Canoas que lhes forão dar ás mãos carre
gadas com cousas de valor, dos Moradores , que mandavão
para Masangano pello Rio Lucala a baixo, não entendo que
marchase o inimigo da Bamza de Quiaito tão depressa, e por
haver nos Rios sacas não puderão navegar com a presteza
necessária .
O primeiro que deu motivo em como o Flamengo levan
tava daquelle sitio, foi um Negro Xingaleo do nosso Qui
lamba Mulundo; a estes Xingales (" ) falla o espirito maligno
dentro delles, e os tem por seus Adevinhadores, com quem
consultavão tambem os seus bons ou máos Successos, e o
que elles pronosticão, he, o que crem, como nós -outros nos
Evangelhos; este tal, estando tomado daquella malignidade,
que lhe vem por tempos, quando delles he invocado, começou
a dizer que o inimigo se retirava; se pode haver Diabo bom
e que de boa nova, este foi um delles; mas faria , mais este
obséquio aos seus do que a nós, que nunca nos dezeja cousa
que boa seja , mais que levarmos a precipicios; com a guerra
preta , e alguns homens de a Cavallo, a hirem ao Lembo, e
sitio da Igreja abrazado por aquelles Infieis, avistar o inimigo
o qual achavão se hia retirando por outro caminho differente

( ) Xingale o que hoje nós chamamos Xingiladores E do verbo


kuxingila, magnetizar (fazer com que uma pessoa tenha o magnetismo
animal).

446
do que havião trazido, que era pellos Altos do Rio Coamza;
paragens havia por ali aonde poucos puderão derrotar a
muitos; mas os peccados muitas vezes cegão o juizo aos
homens para que não vejão nem oução; foi-lhe a nossa
guerra com as costas da gente da Cavallo picando - lhe na
retaguarda; despois do Asno morto & a; com tudo como
o caminho tinha por ali tão ruins passagens forão mais que
de passo por elle largando parte do avolumado que levavão;
hum Sova nosso por nome Cuso da lotação da nossa forta
leza de Muchima , metido com sua guerra e mais gente no
mato por não o levarem de caminho nas unhas, que não que
ria fallar Flamengo, nem ser do seu partido, como outros o
erão, de onde estava emboscado empennou a muitos com
suas frechas e elles não curando de se satisfazerem do dano
pello fogo que lhe vinha nas espaldas; emfim tarde cobra la
occasion perdida, como já dissemos outra vez; tambem hão
de ter seu São Martinho.
Quando da Villa virão o incendio do Arrayal da Cavalla
que de la se descobria, sinal certo da retirada de nossos ini
migos, houve muito contento principalmente em Mulheres,
que se até então choravão de magoa e pezar, agora o fazião
de contento e allegria, que muitas vezes tanta demostração
se faz por hum gosto como por hum pezar, como se tem visto
em muitas occazioens; mas este todo era gosto derivado a
Maria Santissima, Mater gracia , Mater Misericordia, que
nem de balde aquella donzella que dissemos se aferrava e
abraçava com a Senhora, subida em o Altar, pois só nella
tinhão suas esperanças; esperança nossa illos tuos miseri
cordes oculos ad nos converte : assim lho pedião com fre
quente e afervorada oração, até que alcançou graça para os
peccadores angustiados filhos de Eva. O inimigo fez nesta
occazião discurso de Soldado, porque elle bem sabia o que
era a nossa fortificação em Masangano, mas tambem sabia
muito bem que tinha muita e boa Artilharia, e muitas mu

447
niçõens vindas no soccorro, com que a piedade del Rey Nosso
Senhor Dom João o Quarto havia mandado para defença
destes seus Reinos e Vassallos; que mediantemente a graça
divina e a dita prevenção livrou a Masangano assim desta
occazião como de outras do perigo em que esteve, e a não se
asenhorearem aquelles inimigos de seus Reinos e Vassalos,
porque ainda que em gente trazião o pleito vencido, não trar
zião Artilharia com que podessem rebater a nossa ; e essa
foi a causa porque se não atreverão a invadir a nossa Praça
de Armas de Masangano, que o medo guarda u v.pha .

448
CAPITULO QUARTO DA QUARTA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS EM O GOVERNO DOS
TRES ELEITOS .

Tendo - se retirado o Flamengo como dito hé, se passou


mostra em a Villa da Victoria de Masangano estando já toda
a gente junta que havia escapado daquella Rota , e se achou
faltarem os Capitaens que logo na primeira Refrega forão
mortos, como se tem relatado, e o Sargento mor com o Ca
pitão João Rodrigues, e o Padre que servia de Capitão de
Infantaria , muitos officiaes, Alferes e Sargentos , e alguns
Moradores que vierão feridos, e quasi toda a gente Solda
desca que havia vindo no soccoro a que chamavão os Ge
deoens, mas faltavalhe o caudilho para se bem assemelharem
no nome, e que soubesse escolher os que beberão na fonte
com socego, ou depressa , (' ) e em falta deste, que era for
talecido de Deos e de sua Divina graça , haver um Santo
Mayor que os Capitaneasse com saber e disposição; que

( ) O autor faz aqui alusão muito velada a uma passagem da Biblia


no Livro dos Juizes. – Os Judeus estavam dominados e escravisados
pelos Madianitas. Deos mandou que Gedeão se tornasse chefe dos
Judeus para os livrar dos seus escravisadores.
Depois de algumas provas mandou a Gedeão que levasse dez mil
dos seus homens á agua e que os dividisse conforme a maneira porque
bebessem ; os que beberam levando a agua á boca com as mãos, a um
lado ; os que beberam de joelhos, a outro. Os que beberam do primeiro
modo foram só trezentos; com estes é que Gedeão devia ir vencer os
Madianitas, como realmente venceu . Estes beberam com socêgo; os que
beberam de brucos (de joelhos) beberam depressa.
(Biblia, Livro dos Juizes, capitulo VII, vol. 4, 5, 6 e 7. )

449
outra cousa poderá ser mui differente do que foi, porque
hum Exercito de Ovelhas governadas por um Lião e Capi
taneadas todas se convertem de brandas e humildes em sua
braveza , e pello contrario sendo de Lioens não pode dar boa
conta delles o que não tiver os mesmos espiritos: feita a
dita resenha e mostra fizerão os do Governo novos Cabos
e Sargentos mor a Diogo Gomes Moralles, ao qual orde
narão logo fosse dar em duas Sangalhas e Arimos do Lem
bo, onde os nossos Negros retirados da Rota ; o que elle fez
com todo o cuidado em a fazenda de hum Morador da Ci
dade por nome Manoel Castanho, e na de hum Preto de
posses, chamado Sebastião Machado ; em huma e outra parte
fez bastante castigo, trazendo as Cabeças de hum e outro
que forão castigados em a Villa , á vista de todos , feitos em
pedaços nas bocas das peças da Artilharia por terror, cas
tigo e satisfação.
Feito conselho dos homens e Moradores, e Antigos da
Conquista destes Reinos em Caza dos Governadores, ou
em Caza de hum delles, acnde se ajuntavão os mais, sendo
ali chamados os Sovas e Quilombas dos destricto e Capi
tania daquella Villa , se propoz em o mal com que se tinham
havido com os Portuguezes Vassallos da Coroa de Portugal
como elles Quilambas e Sovas tambem erão em aquela occa
zião e aperto do Flamengo, principalmente o Sova Angola
Quiaito, pois esteve em sua Bamza dandolhe refresco; e
alem disso haverem suas terras despois da nossa Rota e des
barate morto a sangue frio alguns Portuguezes e filhos da
terra. Feito este exordio, se levantou em pé dentre os mais
Sovas, que no chão estavão assentados, Angolo Quilomgela,
em cujas terras está situada aquella Villa , e o Sova Quixin
gango que demarca seu Senhorio com o primeiro , e batendo
as palmas tomando a venia aos Governadores e Circuns
tantes para fallar disserão, que passado o Rio Lucala da
banda dalem, não havia Sova que não fosse traydor a Mue

450
neputo, ( ) e que todos estavão com a voz do Flamengo,
dezejando destruir a Nação Portugueza ; e que assim erão
merecedores de grande castigo, principalmente quem os teve
e hospedou em sua terra Bamza, festejando sua vinda com
davidas , e sustento, e que não podia ter desculpa o Sova
Angola Quiaito, que presente estava , porque elles erão fi
dalgos e Sovas como elle, e que nas suas terras e Senhorias
se não movia huma folha ou palha de que elles não fossem
sabedores, nem se fazia nada sem sua ordem e consenti
mento, que isso era cousa bem sabida, e assim que era digno
de Castigo, para emenda delles e dos mais.
Ouvindo Angola Quiaito esta Sentença dada pellos da
sua Ralé, se ergue, pedindo a venia para se desculpar, mas
nunca quiz culpar a sua Tandala e mais Macotas, tomando
quasi a culpa sobre sy, com o que foi logo ali prezo, e posto
a bom Recato, que bem lhe advinhava o coração, quando
aquella tarde da Rota entrou na Villa, que hindo os Portu
guezes para o receberem com boa conta e alvoroço, o virão
retrahirse , como aquelle que se achava culpado, ou conhecia
o em que aquelle excesso que elle, e os seus Vassallos havião
cometido, havia de vir a parar em cazo que a Villa de Mar
sangano prevalecesse com a gente Portugueza .
Que o coração presagio nunca mente : como diz o nosso
Principe dos Poetas Luiz de Camões; prendeu-se mais hum
Irmão do dito Sova por nome Caringo, e hum Negro muito
portuguez no fallar chamado o Gemge, que era o seu mimo
zo , e todo o seu Governo, muito autorizado na pessoa , que
sempre accompanhava a este Sova; e porque não ficassem
suspeitozos alguns dos Sovas que ali se acharão, e não estar
em tempo de termos tantos inimigos declarados, tomou a
mão hum dos mais autorizados Moradores que ali estava ,

( ) Muene se deriva o Senhor de Portugal; Puto, hé Portugal, e


Muene quer dizer Senhor. (Nota marginal do Autor ).

451
30
e lhes disse que aquelles Sovas fallarão com aquella gene
ralidade contra os da banda dalem do Rio Lucala, que era
de serem já Velhos, e não saberem distinguir os bons dos
máos; e assim que a elle os tinhão por Leaes filhos e Vas
sallos del Rey de Portugal , que ficassem advertidos para
dali por diante procederem mais finos com a Lealdade que
devião á Nação Portugueza, que os não perturbassem outros
da facção inimiga, porque não procuravão outra cousa mais
que velos destruhidos e arruinados de todo: que entendessem
que a Nação Portugueza havia de permanecer sempre em
Angola, porque tinhão hum Principe por seu Rey mui pode
roso , que tinha Portuguezes e Vassallos como palhas que
havia por aquelles campos , que tão povoado e tão bastos
erão os Portuguezes em Portugal , e que não havia de tar
dar que elles não vissen aquelle seu dizer verificado muito
cedo; e que erão aquelles inimigos botados fora da Cidade ;
e então serião premiados os bons e castigados os ruins tray
dores.
Feita esta falla e pratica aquelles Sovas que se achavão
presentes baterão todos as Palmas , pondo as mãos na terra ,
e despois nos peitos, Ceremonia entre elles de sugeição e
agradecimento, promettendo de serem Leaes e Vassallos a
el Rey de Portugal , e á Nação Portugueza seus Vassallos :
houve tambem em aquelle Congresso pareceres despois de
se haverem despedidos Quilambas e Sovas, sobre se mandar
destruir e abrazar toda a terra e Vassallos do Sova Angola
Quiaito; alguns forão de parecer se consumisse tudo para
emenda dos outros; mas os que melhor o sentirão, disserão
não convinha , porque não era bem pagasse o justo pello
peccador, e tantos innocentes que não tinhão sido parte na
quella trayção e maldade ; que el Rey nosso Senhor não havia
mister terras dezertas se não muito povoadas, com Vassallos
que ajudassem seu real serviço, que bastavão tantas quantas
havia; que se examinassem os culpados e se castigassem as

452
Cabeças culpadas; que era estilo, e tinhamos o exemplo
em nosso Rey e Senhor que maquinando - se tantas tray
çoens contra sua pessoa e Coroa Real , não tratou mais de
Cortar os Erpes, com que o mais Corpo não tivesse Conta
gião.
Com este tão Christão e acertado parecer se mandou
pello Ouvidor Geral Francisco de Mello da Cunha fazer
processo, e justificadas as culpas de haverem morto a san
gue frio, despois da Rota da Cavala em sua Bamza e Po
voaçoens a alguns Portuguezes, postos a tormento de potro
o Irmão do Sova, e o seu privado, que disserão havia sido
a mayor parte, não atendendo o fallar tão bem portuguez,
devia de querer juntamente aprender a fallar Flamengo; por
isso se diz que não há peor Cunha do que hé do mesmo
Páo ; sentenceado pello Ouvidor Geral, junto com o Governo,
que morresse o Sova Angola Quiaito degolado em Praça
publica como traydor e que o seu mimozo fosse na boca de
huma peça feito em pedaços, o que assim se executou ; não
querendo aquelle Sova que se havia em outra occazião mos
trado tão Leal, descubrir os culpados , dizendo morria por
amor disso ; Ao Irmão Caringo não se lhe achou culpa for
mal , nem nos tratos confessou nada; algumas pessoas dis
serão, que a este Sova não proseguir na fedelidade, fora causa
o ficar obstinado daquella prizão em que havia estado, que
bem honrosa e leve foi, quando o Governador Pedro Cezar
de Menezes o teve preso em Caza quando foi do Suqueco
que mandou chamuscar ou queimar na fogueira, como dis
semos em seu Governo ; esta lhe devia de doer mais do que
a sua prisão, como de feito ; pois para elle, e os mais da sua
Rale, foi huma grande afronta e injuria , cousa que elles
nunca havião visto semelhante castigo; se foi assim a honra
de Deos está em primeiro lugar que tudo o mais : a acção
do Governador foi pia e Catholica , corresse o mais por onde
corresse .

453
Estando as cousas postas nestes termos, vendo os Gover
nadores a pouca gente com que se achavão, e que neste
Reino havia não havendo poder com que sahir a campo a
opporem -se ao outro vay vem da fortuna derão ordem em
fazer em aquella Villa de Masangano huma fortaleza em
forma para a conservação do Reino e defensa dos Vassallos
delle ; o que puzerão logo por obra começando -se a obrar
nella em hum Alto superior onde estava a Igreja do Santo
Preto de Palermo, ( ) que algumas tradiçoens dizem que era
sua May de Angola e Quisama, e que hindo com este filho
piqueno a cativarão os Mouros, e elle o diz assim ou quem
escreveo por elle sua vida, que nasceu na Audusta Ethiopia:
averigue agora o curiozo e entendido se hé esta, ou qual hé;
Vamos a trabalhar na nossa fortificação, que nos he muito
necessaria, que estas averiguaçoens tem seu tempo.
Foi-se repartindo esta fortificação ás Braças pellos Mo
radores ; e como era para recolher dentro toda a gente deste
Reino se tomou grande espaço de terreno ; valeu -nos muito
para esta fortificação haver vindo no soccorro muitas e boas
ferramentas, com que se fez differente do que nos Arrayaes
do Bemgo, que tudo nos faltava; constava de Pás, Enchadas,
Alavancas , Marroens, Alvioens, Picoens, e Picaretas, até
seiras desparto veyo muita cantidade dellas, que tudo nos
foi necessario, que parece inspirou Deos ao nosso tão bom
e pio Rey para prover este Reino, de tudo o que havia de
ser necessario á defensa destes seus Reinos e destes seus
sempre Leaes Vassallos.
As taypas de pilão de que foi fabricada tinhão sete
taypaes de altura , a banqueta por dentro feita da mesma
taypa de quatro, desviada da de fora , e no meyo entulho
com que ficava para poder rezistir a mayor Bataria de Ca
nhão, com seu parapeito que servia disso a taypa de fora ,

( São Benedicto .

454
com duas ordens de pentes, quatro Baluartes nos Cantos
bem espaçozos; hum se chamava de São Benedito, por estar
junto a sua Igreja; no outro canto correndo a cortina fron
teira á Villa o Baluarte dos Clerigos por haverem assistido
todo o Ecclesiastico á sua fabrica com seus Escravos e sua
assistencia , em companhia do seu Vigario Geral o Mestre
Escola Francisco Pinheiro, o qual fizerão com muito fervor
por serviço de Sua Magestade e defensa destes seus Reinos ,
não pondo por diante izenção ecclesiastica , atendendo só a
obrigação de Leaes Vassallos: da parte da Lagem e sua
Cortina se fizerão outros dous nos Cantos, ficando em qua
dro a fortaleza ; e como as Cortinas erão espaçozas e os
Baluartes distantes, se fizerão em meyo alguns travezes, re
partindo - se a Artelharia por igual pellos quatro Baluartes,
fazendo - lhe suas Ramadas em razão do tempo não consumir
as madeiras das Carretas.
Fez-se em meyo da fortificação Corpo de guarda e Al
mazem de traz para o trem da Artelharia e mais petrechos
de guerra, pondo -se as peças de Campanha na Praça e
Corpo da Guarda Cavalgadas para com ellas se acudir aonde
fossem mais necessarias; a hum Lado do Corpo da guarda
em terreno baixo se fez caza da polvora e mais muniçoens,
soterrada a polvora por não haver nella algum sucesso de
fogo que como tudo erão cazas de palha podia haver algum
incendio na cubertina dellas; repartio- se pellos Cidadoens e
Moradores a mayor parte daquelle terreno, para fazerem
suas Cazas, deixando praça larga para entrar e sahir da
guarda e lugar para Quarteis da Infantaria.
E porque havia huma eminencia como padrasto, ainda que
distante, de onde podia ser offendida a fortaleza e podia dali
laborar Artelharia por elevação, se mandou fazer hum Forte
naquele sitio Alterozo, que se subia a elle por escada de mão
de muitos degraos que parecia o Forte do Ladrão Gayão,
fazendo -se nelle dous Baluartes na frente para fora com pe

455
ças de Artelharia de bronze de pouco calibre cubertos com
seus tigupares; para a banda da fortaleza e Villa, fechava
em ponta de Diamante, que vinha a ficar quazi triangular,
fazendo - se- lhe tambem Almazem para muniçoens e basti
mentos, e o mais necessario, e por cima assobradado para
allojar a Infantaria; fizerão os Governadores Capitão do
dito Forte com homenagem tomada em suas mãos ao Capi
tão mór João Pilarte Morador daquella Villa Conquistador
Antigo, o qual o havia sido da Fortaleza de Cambambe,
dando-lhe e consignando- lhe Cincoenta homens para sua
guarnição, quando a occazião o pedisse ; e lhe derão o nome
de Forte de São João, havendo respeito a ser a invocação
de hum tão grande Santo, o mayor dos nascidos, e junta
mente pello da Tenencia se chamar João e haver tido em sua
fabrica e fortificação o mayor trabalho.
Deste Forte se correu huma trincheira de taypa por
aquelle tezo a baixo até o Rio Lucala guardando aquella
frente com hum Fortim sobre o Rio onde acabou a trincheira ,
e daqui corria beira Rio huma grande vala de terra até o
Baluarte do Alicondo, que era tambem de taypa de pilão,
e dali hia abraçando a mesma vala de trincheira de terra
até o Baluarte da Lagem , entrada por terra daquella Villa ,
feita de estacada e faxina ; e dali hia correndo esta fortifi
cação por fora até o Rochedo de Samba Coamza e entrada
para o Camdumbo : fez -se toda esta Circunvalação a res
peito do muito Gentio de Portuguezes que ali estava reco
lhido, e se havia de recolher quando a occazião o pedisse ,
e para muita cantidade de Gado de toda a sorte que ali tinha
seu aprisco, e outro que havia de vir de fora em caso de al
guma invasão do inimigo, que vinha a ser isto como
Arrabalde da Villa .
Avizarão e ordenárão os Governadores ao Capitão mór
da Fortaleza , presidio , e Capitania de Cambambe que neste
tempo estava servindo por provimento del Rey Nosso Se

456
nhor Francisco Rodrigues Bexiga , tratasse com todo o cui
dado de fazer fortificação em forma porque a Fortaleza que
ali havia era mui debil e antiga ; o que elle poz logo por obra
como bom Soldado e Leal Vassalo de Sua Magestade, fa
zendo sobre huma serventia e caminho que hia para o Rio
Coamza chamado o Cavino , o qual não tinha mais de huma
entrada por terra e tudo o mais era rochedo sobre o Rio
Coamza , onde não havia caminho nem serventia ; e a fez de
taypa de pilão com seus Baluartes , Trincheiras e Cavas , fa
zendo Corpo de guarda dentro , feituria para muniçoens,
Caza para o Capitão, e Quarteis para Soldados, mandando
aos Moradores daquelle Presidio , e ali retirados fazer Cazas
dentro, pondo nos Baluartes algumas peças de Artelharia
de Bronze de pouco calibre que ali havia antigas, e alguns
falcoens , e esmerilhoens do mesmo metal ; O mesmo ordena
rão ao Capitão mor da Fortaleza da Enbaca, Presidio e Ca
pitania , que neste tempo era por Patente Real Matteus Telles
Barreto, o qual fez tambem por esta ordem e avizo Fortaleza
nova em o sitio chamado da Condeça e Alicondo do ouro;
tambem se fez a mesma advertencia ao Capitão mor da for
taleza de Muchima , que servia por provimento dos Gover
nadores , Pedro Barreiros , o qual fez sobre hum Alto da
Povoação do Presidio a Fortaleza de estacada de páo a pi
que, e não fez mui campeira por o terreno e cabeça do
Outeiro não dar mais lugar; feita que esteve com Igreja ,
Almazem e Cazas dentro , veyo o dito Capitão mór a Ma
sangano, onde era Morador e tinha sua Caza , em busca do
soccorro de gente e muniçoens como quem adevinhava o que
lhe havia de vir, e trabalho que havia de ter.
Neste comenos chegou avizo aos Governadores em como
o Flamengo viera sobre aquella Fortaleza e Presidio de Mu
chima , marchando com o poder pella Provincia da Quisama ,
trazendo em sua ajuda muita gente daquella bellicosa Pro
vincia , os quaes em odio dos Portuguezes fazião aquelle

457
obsequio a nossos inimigos, como elles tambem o erão e fo
rão sempre; e que tinhão trazido pello Rio Coamza acima
Lanchas com Artelharia e muniçoens e mais petrechos de
guerra, que tanto que elles chegarão tinhão os Moradores
dado fogo o Presidio para dezafogo da Fortaleza, deixando
só em ser a Caza e Igreja de Nossa Senhora da Conceição
dado fogo a todo o Presidio para dezafogo da Fortaleza, dei
xando só em ser a Caza e Igreja de Nossa Senhora da Con
ceição Padroeira da Fortaleza e Presidio , donde advertida
mente tinhão aquelles Moradores e mais Povo levado a San
tissima May de Deos em Procissão para a Fortaleza onde
lhe tinhão feito nova Caza de Madeira e palha ; e que logo
aquelle inimigo lhe puzera fogo a sua benta Caza, e lhe quei
mara o tecto mostrando nisso a Christandade que os accom
panhava , e dizia mais o avizo que havia o Flamengo mandado
Embaixada lhe entregassem a Fortaleza, que faria todos os
partidos honrosos; a que lhe responderão dous Moradores
€ Soldados Antigos que havia deixado o Capitão mór em
sua tenencia , os quaes erão seus nomes Francisco de Novaes,
e Estevão Lopes, que as Fortalezas del Rey de Portugal
que guarnecião a sua Nação e Vassallos Portugueses se
não entregavão aos inimigos seus contrarios com a facilidade
que elles imaginavão; com o que ( o Flamengo ) lhe havião
posto duas Batarias de Artelharia, huma da banda de baixo
chamada a Sola de Lazaro (1 ) em Outeiro eminente, e a ou
tra em hum Outeiro da banda de cima por nome Muta
Aita (2) que sobre pujava a estacada da Fortaleza, de onde

© Chamavão a Sola de Lazaro porque ao pé daquelle Outeiro


havia terras de Lavradio onde morava e fazia sua Seara hum homem
que se chamava Lazaro. ( Nota marginal do Autor ).
☺ Muto Aita quer dizer Cabeça da guerra , Muto he Cabeça, Ita
a guerra . (Nota marginal do Autor ).
Como o autor diz « mutu a ( 15a ) ita » , é pessoa de guerra ; para ser
cabeça de guerra devia ser mutue ua ita .

458
havião feito continuas batarias de huma e outra parte, fi
cando a nossa Fortificação no meyo como em duas Tenazes
metida.
Com este avizo ficarão os Governadores, e todos os mais
suspensos, considerando o intento que o Flamengo levava
em se ir assenhoreando destes Reinos pouco a pouco, tendo
já na Barra da Coamza huma Fortaleza , dahi a seis Legoas
Rio Coamza acima outra, em a Ilha do Encandeira , Senho
reando - se mais acima da sitio do Espinheiro, que dista da
ultima algumas dez legoas, e agora se tinha posto sobre a
nossa Fortaleza de Muchima, que distava da Villa de Ma
sangano dez legoas, hindo -se chegando cada vez mais, e
que o mesmo faria podendo a Masangano, e ás mais For
talezas; e assim assentarão que convinha tirar forças de fra
queza , e soccorro a nossa Fortaleza em todo o caso, a todo
o risco ; para o que ordenarão logo ao Capitão mor Pedro
Bareiros se fosse meter e acudir á sua Fortaleza , de que
havia dado homenagem , para o que lhe derão alguma In
fantaria com muniçoens e mantimentos , e o mais de que ne
cessitava; o qual sahindo de Masangano com toda a reso
lução como bom Soldado que era embarcado na Lancha em
que havia vindo, chegando ao pé da Fortaleza pello Rio no
mayor silencio da noite, entrou com todo o valor por entre
ambas as Batarias e sentinellas do inimigo ; e como he es
paço breve daquelle Rio á Fortaleza, quando o sentirão já
estava dentro, havendo nella grande rumor com o alvoroço
de haver entrado o seu Capitão mór com o soccorro que
levava, sem embargo que os dous Moradores Tenentes se
havião mostrado até então com todo o valor e bizarria Por
tugueza , não cessando do reparo e defensa da Fortaleza .
Ao amanhecer deu o Capitão aquelle inimigo os bons
dias com mui boas Espingardas de alcance, de que elle era
bem abastado e grande Espingardeiro; e tinha Negros seus
Escravos que sabião muito bem aquelle minister, que elle
459
havia exercitado, e erão grandes Caçadores; despachárão
os Governadores hum Capitão por nome Lourenço de An
drade Colaço em huma Lancha com parte da sua Compa
nhia com ordem se fosse meter na Fortaleza de guarnição,
em quanto elles tratavão de acudir com soccorro em forma ,
que fosse capaz de desalojar o inimigo Flamengo, e mais
Gentio daquelle cerco ; partido que foi por mais diligencia
que fez não pode já entrar dentro pella prevenção com que
o Flamengo estava em razão da entrada do Capitão mor,
prevenindo huma Plataforma da outra banda do esteiro em
a Ilha frente a Muchima, assim para impedir lhe não entras
sem soccorros, como tambem não descessem os da fortaleza
a tomar agoa ao Rio, o que o inimigo não pode evitar, em
quanto o tomar da agoa , os soccorros sim .
Estando as cousas em ditos termos passarão os Gover
nadores da banda dalem do Rio Lucala com toda a gente
que havia de guerra e Moradores , com pretexto de hum
delles ir em soccorro da dita Fortaleza com a gente que
fosse possivel , o que não surtio a effeito o ir hum dos Go
vernadores por causas que para isso terião, e se resolverão
a mandar ao Sargento mór Diogo Gomes Moralles orde
nandolhe escolhesse em toda a gente que havia de guerra
duzentos homens, e muniçoens necessarias, e lhe ordenarão
que em todo o cazo, fizesse todo o esforço a effeito de dezal
lojar o inimigo da nossa Fortaleza que bem vião que na
quella occazião consistia a saude de todo o Reino e mais
Dominio Portuguez de Angola ; que seria serviço aquelle
que Sua Magestade sendo sabedor saberia gratificar assim
a elle como aos mais que naquella ardua empreza mostrassem
o valor necessario, e Lealdade que devião a el Rey nosso
Senhor , como seus Vassallos que erão.
E estando o Sargento mor já com a gente, á parte a huma
piquena distancia , sabendo os Governadores que alguns Mo
radores por serviço de seu Rey e conservação destes seus

460
Reinos estavão de acordo com a Infantaria em se acharem
naquella faução, mandarão a notificar-lhes que não era sua
tenção que Moradores fossem aquella occazião pello risco
a que hião expostos; por tanto se recolhessem : ao que foi
por elles respondido que elles estavão já naquelle empenho
postos em marcha que não pareceria bem á sua opinião tor
narem atraz , porque elles mais se prezavão do habito de Sol
dados que havião professado do que o que agora reprezen
tavão, e que se aquella Fortaleza se assenhoreasse o inimigo
della que Morador ficava em Masangano seguro ? e quando
tudo corresse turbio, elles querião antes morrer em Campa
nha , do que chegarem a ver suas Mulheres e Familias em
poder do Flamengo, e delles ultrajadas , pello que o houves
sem assim por bom ; isto tocava em algum modo de pique que
como os Governadores havião arripiada a Carreira em não
ir hum delles, parecia- lhe menoscabo seu, hirem aquella
occazião pessoas que lhes podessem dar mate .(1)
Os que se puzerão nesta em esta aventura , sem serem
Cavalleiros Andantes daquelles que conta Palmerim de In
glaterra em suas ficções, erão o Capitão Reformado Leonardo
Pereira , Soldado de grande pundonor ; Pedro Pereira tambem
Capitão Reformado, Soldado Antigo de profição; Francisco
Correa da Silva ; e Antonio de Oliveira de Cadornega , am
bos Alferes Reformados: Francisco Alvres Covas, tambem
Reformado ; Domingos Dias da Silva Capitão de experiencia
e Soldado Antigo da Conquista, que ficou de vir pello Rio
Coamza com os Pataxos Lanchas e Artelharia , o qual com

☺ O autor quere aqui dizer que - os moradores, que queriam ir


com o sargento mór e infantaria a Muxima, censuravam deste modo os
governadores e os faziam ficar mal vistos por não ir ao menos um de
les; para evitar isto é que os governadores dissuadiram os moradores
de irem a Muxima.
Dar xeque mate a alguem, exceder-lhe, levar-lhe vantagem.

46 )
prio sua palavra; o que não cumprirão outros, que promet
terão ao Sargento mór virem pello Rio com mais commodi
dade e presteza a encontrar - se com elle ao Outeiro de Lião
beira Rio Coamza; mas foi a presteza que tiverão tão vaga
roza que nunca chegárão. O inimigo Flamengo não atira
nas occazioens com maçãas Camoezas se não com balas de
chumbo, e ferro ; e isto he cousa que não faz bom estomago ,
e he indigesta para a natureza humana : he necessario to
mar hum pouco de folego e refrigerio em tão comprida nar
ração.
Contou hum Soldado honrado que ainda hoje vive na
Villa da Victoria de Masangano por nome Antonio Trava
ços, que hindo accompanhando a seu Amo Antão de Almada
na primeira Embaixada que mandou a Magestade del Rey
Dom João o Quarto nosso Senhor a el Rey da Gram -Bre
tanha Carlos primeiro; hia o dito Embaixador em huma po
deroza Náo como Embaixador de quem a inviava, levando
por Adjunto e pessoa de Letras para ornato daquella tão
nobre e Real Embaixada, ao Dezembargador Francisco de
Andrade ; e que hindo navegando em certa Altura derão
vista de humas Náos, com o que mandou o Embaixador
enpavezar a Náo em que hia , e preparar a Infantaria e
Artelharia , mandando com sua fidalguia arribar sobre as
Náos : ao que lhe disse o Adjunto com muito socego, Senhor
vamos seguindo nossa viagem ? que nos importão as Náos
que apparecem a huma vista ? Ao que lhe respondeo o va
lerozo Embaixador, não he razão que sendo eu hum Embai
xador de hum Rey de Portugal , hindo eu neste seu Galeão
com seu Estandarte Real, passe por Náos que não reco
nheça, e lhe faça fazer as devidas Cortezias, que se deve a
este Estandarte, e a minha pessoa; a que lhe respondeu com
muita graciosidade o Dezembargador, porque Senhor elles
hão de nos atirar com algumas camoezas ou verdeaes: foi
o dito celebrado, mas elle com sua fidalguia e valor chegou

462
a reconhecer, e achou serem Náos Amigas, e dando - se suas
Salvas como he costume, cada qual tomou sua derrota; assim
que dizemos que o inimigo não atira se não com bons mar
mellos de ferro e plomo, e que nem todos os estomagos os
sabem digerir.
Começou sua marcha por terra com os duzentos homens
consignados ao Sargento mor para aquelle tão importante
soccorro , repartidos em cinco Companhias de que erão Ca
pitaens Jorge da Silva; Antonio Dias de Macedo; Blas de
Espinosa Navarrete; Manoel Rebello de Brito; e Lourenço
de Andrade Colaço que havia hido diante a entrar na For
taleza, e não pôde, e se havia de encontrar no caminho;
hião em Companhia da nossa gente os nossos Leaes Quilam
bas Mulundo e Bango -Bango, Gonge Acamocala, com ou
tros Capitaens de guerra preta de seu nome e partido; havia
se de encontrar com o sargento mor o Capitão Geral do Jaga
Cabucu Candonga , Fungi Amusungo, que era mandado vir
da Enbaca a toda a pressa com hum esforsado Soldado de
a Cavallo por nome Manoel Godinho que assistia no seu
Quilombo para lhe mandar fazer o que fosse do serviço del
Rey, e trazia com sigo alguns Capitaens como Gola Ambole
daquelle Quilombo, e a mayor parte dos seus Jagas; os
Moradores tambem que hião naquella occazião levavão todos
os Escravos que possuhião, com boas Armas de fogo que
manejavão mui bem.
Com esta preparação se foi marchando algumas jorna
das por detraz da notavel Lagoa de Angolomen fertil de
pescado e madeiras de quem no terceiro tomo quando se
descreva se fará particular menção; na segunda jornada (1 )

() Não faça duvida ao Curiozo o dizerse e fizerão jornadas por


quanto se deu hum grande Rodeyo pellos Altos, e que a Lagoa e beira
Rio serem terras alagadiças, e não haver caminho. ( Nota marginal do
Autor ).

463
1

encontramos o Capitão Geral dos Jagas que dito hé, com o


homem de a cavallo seu Caudilho, o qual Cabeça dos Jagas
tomando a benção e saudando ao Sargento mór como cos
tumão , perguntou para onde éra a jornada ; disse -lhe que
hião a botar o Mafulo (1 ) fora da nossa Fortaleza de Mu
chima; a que replicou o Jaga Fungi Amusungo, que elle nem
os seus podião passar o Rio Coamza por ser pacto e jura
mento dos seus Antepassado, quando descerão da terra den
tro havião feito, que o não tornarião a passar huma vez cá
desta banda, e assim que não podião ir contra o que seus
Mayores havião feito : não faltarão razoens ao Sargento mór
que era pessoa mui intelligente nas cousas da terra para os
dissuadir daquella contumazia, dizendo -lhe entre muitas que
os que havião feito aquelle pacto já erão mortos, e que a
elle nem aos mais lhe não imcumbia , e mais que elles a não
passavão para se voltarem para as terras donde os seus
Mayores havião descido, se não que passavão o Rio Coamza
naquella occazião para logo se voltarem a seu Assento; taes
razoens lhe disse com tanta efficacia e saber que os moveo
á passagem .
Vencida esta difficuldade do nosso Jaga, se foi mar
chando até o Outeiro de Leão, descendo dos Altos á Beira
Rio Coamza; ao outro dia da nossa chegada vierão as Pa
taxos e Lanchas, com quatro peças de Artelharia, duas de
Campanha de bronze, e duas de ferro de mayor Calibre, em
que vinhão muniçoens, e Armas de sobreselente, e muitos
bastimentos para a Infantaria que ali hia , como tambem para
soccorro da Fortaleza, vindo com este apresto aquelle Mo
rador que dera palavra de vir a encontrarse nesta paragem;
e neste sitio de Leão por ser abundoso de Madeiras se fi
zerão alguns Cestoens de suasos para reparos da Artelharia;

( ) Mafulos chama este Gentio aos Flamengos (Nota marginal do


Autor ).

464
ali se exercitárão as Companhias em escaramuças e avança
das com ordem militar, descubrindose deste sitio a nossa
Fortaleza a huma vista, e o relumbrar dos tiros das batarias
que não cessavão; estando já tudo preparado quando nos
chegou hum homem Soldado de valor por nome o Dinis ,
o qual passou a nado a todo o risco, assim o Esteiro como
a Coamza grande , mais arriscado a ser engulido de hum
Lagarto do que o receio daquelle inimigo, que os há por ali
mui bastos; e por-se a tamanho perigo foi por dar avizo
ao Sargento mor, em como estava aquella Fortaleza arriscada
a ser entrada daquelles inimigos se a não soccorria com bre
vidade porque as muniçoens estavão quasi estancadas; e sem
embargo que não tinha havido dentro da estacada muitas
mortes, que só hum homem Antigo muito bom Soldado por
alcunha o Cavalga era morto de huma bala de Artelharia ,
havia muitos feridos de estilhaços que o numero das balas
era infinito que naquella fortificação havião mettido, mas
todas milagrozas pois tinhão huma tão boa defensora como
o era a Senhora da Conceição; mas que vendo aquelle ini
migo a pouca ruina que havia causado as suas batarias na
estacada, esperavão da Cidade Artelharia de mayor Calibre ,
que havia novas vinhão já no Rio Coamza , e assim pedia
o Capitão mór se não detivesse em o soccorro .
Com este avizo levantou logo o Sargento mór daquelle
sitio hindo marchando com todo o poder beira Rio Coamza ,
levando os Pataxos e Lanchas a par, despachando ao Afouto
Soldado com avizo ao Capitão mor da Fortaleza em como
hia marchando a soccorrelo , o qual tornou com resposta com
o mesmo risco de que primeiro, passando a nado aquella lar
gura do Rio Coamza e Esteiro, que vinha a ser o filho quasi
do Caudal da May; mas como vinha na fé e protecção da
Senhora da Conceição que se via cercada com aquella gente
Portugueza que a tinha por defensora e advogada ; e mais
sendo a oppressão por gente herege e infiel , inimiga do seu

+65
Santo nome , e de seu filho bemdito, não podia correr perigo
que vinha accompanhado e fortalecido da May de Peccado
res, Mater admirabilis .
Havendo o Sargento mór Diogo Gomes Moralles, avis
tado a Ilha de Muchima frente á nossa Fortaleza fez Alto;
e como quando partio do sitio de Leão havia tirado das cinco
Companhias que levava quarenta homens, e os tinha entre
gues ao Capitão Reformado Domingos Dias da Silva todos
elles Reformados , para com elles bater o Campo e algumas
Emboscadas que podia haver, e ir o Corpo da gente de
guerra com mais segurança , nesta paragem beira Coamza
forão os primeiros que mandou embarcar em duas Lanchas,
que erão as que podião servir naquella passagem , mais livia
nas, para que tomassem sitio na Ilha, e viessem logo a ir
passando a mais Infantaria , hindo caulando; (1 ) em meyo do
Rio descubrio hum Soldado honrado, que naquella occazião
quiz servir de Gageiro, da Gavea de hum daquelles Pataxos,
que seu nome era Diogo Rodrigues Pilarte, em como nar
quella Ilha se levantava huma grande polvoreda , certesa de
que o inimigo vinha marchando com muita pressa a ternos
o encontro á borda do Rio Coamza; o que visto e certificado
ser assim, deu parte ao Cabo, o qual vendo que aquellas
duas Lanchas e sua gente hião expostos a notavel perigo,
por não ser poder que podesse rezistir aquelle inimigo, e
que antes de tomarem terra por haver muita Corrente na
quelle caudalozo Rio poderia o Flamengo ter chegado á
beira do Rio e de mão posta descarregarem os Capitaens
de Cravineiros na Infantaria das Lanchas, e fazer- lhe muito
dano; feitas estas consideraçoens mandou com muita pressa
capear aos das Lanchas tornassem para o Corpo da mais
gente, o que logo fizerão, voltando a tomar terra firme.

ľ ) Caulando, hé passar, e vadear. (Nota marginal do Autor ).


Do verbo kukaulas passar a vau um rio.

466
Mandou logo o Sargento mor salhar em terra huma peça
das de mayor Calibre de oito libras de bala , a qual lhe
havia tomado o Capitão e Cabo da Coamza Fernão Rodri
guez em o Navio que naquelle Rio lhe havia rendido, que
quer Deos muitas vezes dar o Castigo com as proprias mãos
daquelles que commetterão o delicto; Cavalgada que esteve
a dita peça e carregada com bala raza , assinalou o que ser
via de Gageiro huma Arvore na Ilha por onde vinha mar
chando o Flamengo; por esta baliza com tão bom acerto se
disparou, que lhe entrou pello Esquadrão, e lhe levou alguns
doze homens, e outros feridos, e lhe descompoz ferido tam
bem o seu Sargento mor chamado o Taca , largando o seu
Bastão , que ao outro dia achamos na Ilha ; e tudo virou de
rota a passar o Esteiro para as suas estancias ; foi tal a furia
desta peça , que atirando se de terra firme, passou todo o
largo daquelle Rio, levando esta Rastolhada de inimigos, e,
salvando toda aquella Ilha que he bastantemente larga , foi
cahir em o Esteiro de Muchima ao pé da nossa Fortaleza
hindo fazer obsequio á May de Deos Rainha dos Anjos em
cujo nome se atirou .
Ajudou tambem a este desbarato do inimigo as Peças
de Campanha que tambem se disparárão com boa fortuna,
€ muitos tiros de Espingardas de alcance e Mosquetaria que
para o Esquadrão inimigo se dispararão por vezes; e não
assomou pessoa quer Flamengo quer Negro, que quizesse
descobrir o Rio , e a nossa estancia , que não pagasse com a
vida seu atrevimento: podéramos comparar este bom a certo
da nossa Artelhia ao que obrou em o Degebre as plataformas
dispostas pello nosso insigne General da Artelharia Dom
Luiz de Menezes , que forão plantadas com tanto acerto que
forão a total causa do desbarato naquella occazião, e inten
tona de Dom João de Austria , recolhendose outra vez a
Evora tão destroçado; assim o apregoão pello mundo as

467
31
Relacoens impressas da gloriosa Batalha do Cano, e encon
tro do Degebre.
Quando os nossos da Fortaleza virão, que volvia o inimigo
com os fucinhos quebrados, os festejarão com muitos tiros,
e apupadas; e por mais que quizerão entre os seus encubrir
os mortos e feridos, lhe não foi possivel, que como a nossa
Fortaleza estava em sitio superior e eminente, e a Ilha em
frente ficava rasteira, tudo o que havia se descubria; e como
se havião embarcado nas Lanchas e desembarcárão á vista
da Fortaleza, os contavão os nossos quasi hum por hum, e
acharão serem os que forão a ter o encontro trezentos e trinta
Flamengos pouco mais ou menos com algum Gentio do que
o accompanhava, deixando só a Bataria da Sola de Lazaro
com guarnição e muito do Gentio da Quisama; e havião re
tirado á de Mutu Ayta e á plataforma da Ilha, que o poder
que havião trazido da Cidade, como despois se soube, cons
tava de perto de Quinhentos homens, e bem vião a falta
que trazião da gente que havião levado ao encontro, e com o
que se vinhão retirando a passar o Esteiro para as suas
Estancias, que era o terço menos; e este foi o São Martinho
que havião de ter em desconto da nossa Rota da Cavalla; e
ainda vay por diante, que donde as dão, as tomão .
Com este principio de bom successo foi anoitecendo, e
passou ali aquella noite a nossa gente; no principio do quarto
da Alva mandou o Sargento mór hum Alferes Reformado
por nome Francisco Sidralhes souto Mayor com dez homens
e huma Canoa fosse reconhecer a Ilha se havia inimigos
nella , e algumas emboscadas em os grandes palhagaes que
havia , e farinhas plantadas que fazem grandes matas; des
pois de a reconhecer avizou não havia inimigos nella; com
dito avizo mandou logo passar toda a nossa guerra preta
e empacaceiros com suas Armas , e Espingardas, e Mosque
tes, e tanto que rompeo a Alva foi passando toda a Infan
taria, mettendo - se a furioza Peça que havia feito o espalha

468
fato na sua embarcação e mais Artilharia , ficando naquelle
sitio a bagagem dos Capitaens e alguns particulares; pas
sado que foi todo o nosso poder vierão descendo pelo Esteiro
que ali desembarca a Coamza as nossas Embarcaçõens, á
vista da nossa gente e de baixo das nossas Armas; os Qui
lambas Jagas e mais guerra preta se forão a pôr em huns
Outeiros que há naquella Ilha hum pouco distantes chamados
de Joanna Gomes; ali fizerão seu Corpo gesto com suas Ban
deiras tendidas: e como lá dizem vendo touros de palanque ,
como quem diz lá se avenhão brancos com brancos; mas
tambem havião muitos Quisamas com quem elles se poderam
medir; ainda assim daquella sorte fizeram sua patarata , que
não se pode querer delles mais daquillo que poder ser á boa
mente, que de outra sorte nos não seguiram.
Formou o Sargento mor a sua gente no lhano daquella
Ilha frente grande e pouco fundo para que entendesse o
inimigo era mayor o poder que levávamos, que na guerra
muitas vezes se vence mais com ardil e estratagema do que
com Armas , dando a Vanguarda ao Capitão Reformado Leo
nardo Pereira, fiando do seu valor aquelle Lugar mais do
que de nenhum dos Capitaens , pello conhecimento que de
sua pessoa tinha ; e por esta mesma causa havia dado os qua
renta homens Reformados a Domingos Dias da Silva que
marchava diante do nosso poder como batedor, e descubridor
do Campo; com esta ordem se foi marchando á vista do ini
migo e Fortaleza vindo na Retaguarda o Sargento mor dis
pondo pellos Ajudantes e Sargentos o que era mais neces
sario , não levando os Alferes Bandeiras arboladas se não
nas Cintas, porque não julgasse o inimigo por ellas a gente
que levávamos; desta sorte se foi andando, até frente da
nossa Fortaleza ; quando nos viu o inimigo tão perto , virou
para nós a Artilharia fazendo -nos alguns tiros com bala
raza sendo todos milagrozos pois não ofendeo o nosso Bata
lhão que hia diante dos quarenta Reformados nem o Corpo

469
da mais gente; não continuarão com muitos, porque devião
estar faltos de muniçõens pellas muitas que havião gastadas
em bater a nossa fortificação, ou os seus Artilheiros deviãa
de ser mortos em aquellas Refregas ; porque estando tão
perto das suas Estancias, e não nos offederem os seus tiros,
foi cousa sobrenatural.
Chegados os nossos Pataxos se tirarão os Cestoens, e foi
tal hum dos nossos Artilheiros que não quiz lavorar com
huma peça menos que lhe não fizessem reparos com os Ces
toens e era Portuguez ; e outro chamado o Monguru vinou
de alcunha não quiz que lhos assentassem da peça com que
havia de atirar : veja - se a disparidade da natureza dos ho
mens , e mais era velho e faltavão -lhe alguns dedos das mãos,
perdidos em seu Officio, causa porque tinha aquelle appel
lido, mas era Soldado velho cursado em Armadas, o que ao
outro lhe faltava ; e ainda tinha outra cousa que tanto que
disparava para a estancia do Flamengo se punha em cima da
peça fazendo para elles muitas barretadas ; e porque não
fique no esquecimento os que bem obrão, ainda que seja em
posto inferior, o seu nome era Domingos Peres, de alcunha
o Monguru vinou, e outro que atirava com segurança Fran
cisco Lopes.
Tendo - se lavorado com as duas peças de menos Calibre
para a estancia e allojamento do inimigo, e com Espingardas
compridas, que mais abaixo da nossa estancia se lhe descu
bria o quartel por huma aberta de onde forão alguns Mora
dores aventureiros a fazer-lhe alguns tiros com suas Espin
gardas de alcance, que pello dano que recebião os obrigou
a retrahir; neste movimento que fizerão avançou da fortaleza
aquelle valerozo Soldado Dinis, que por Mar e por terra
sabia navegar sua valentia ; este dito com sua Espingarda na
mão, e alguns nossos Espingardeiros, e outros com Arcos
e frechas que havião passado da outra banda, foi com elles
pello Outeiro acima avançando a sua Bataria e estancia , que

470
experimentando os que as guarnecião algumas mortes dos
seus, e outros empenados e feridos das frechas largarão a
Artilharia e huma peça que ali tinhão de Mayor Calibre ; e
esteve o famoso Dinis cavalgado em cima della , que se tivera
mais acordo , e a rodára pello Outeiro para a banda da For
taleza, cá nos ficava.
Vendo aquelle Cabo Flamengo a covardia da sua gente
mandou de soccorro de seu allojamento duas Companhias de
Carabineiros com seus Capitaens tocando seus Clarins, e
tocando tambem por de trás seus Officiaes aos Soldados com
boas troxadas de seus suchos , com que á força os fizerão vir
por diante a soccorrer sua Artilharia, disparando sobre a
nossa gente boas suriadas de seus tiros , mas com tanto medo
que nos não offenderão com que a tornarão a recuperar
que os muitos tirão a virtude aos poucos , e onde há força,
direito se perde; o Capitão da Fortaleza pudera soccorrer
esta faução mas não devia de querer pôr em aventura a sua
gente que a havia mister para a occazião, e não sabia os ter
mos que aquillo tomaria , com que o bom do Dinis se retirou
com os Companheiros, mui desconsolado.
Vendo aquelle inimigo o que lhe tinha succedido á sua
Artilharia , e tendo já poucas esperanças de sahirem bem
desta empreza , tratarão de a retirar ás suas Lanchas , e
hindo a salhando com seu Cabo Faca, que havia ficado
bem atacado o dia dantes, largando o seu bastão, que o nosso
Sargento mor empunhou por trofeo, e por lhe pertencer, por
ser de pessoa seu igual em posto , fazendo o Faca aos seus
levar a Artilharia ; lhe fez o mesmo Capitão mor da Forta
leza alguns tiros com suas Espingardas compridas , morto
por dar hum taque na Faca; ao primeiro tiro virou elle para
a Fortaleza fazendo para ella huma grande barretada , ao
segundo fez o mesmo, no terceiro não curou mais de corte
zias , e tratou de apertar o passo, e o Barreiros desejozo de
o fazer barreira de suas Espingardas, e de seus pilouros;

+71
mas nem deixou de alcançar aos circunstantes que puchavão
pellos calabrotes, cahindo alguns delles no chão contra sua
vontade.
Estando aquellas cousas perplexas, mandou o nosso Cabo
passar á banda da nossa Fortaleza a Artilharia que levava ;
As de bronze e menor calibre mandou metter na fortificação,
e mandou que a peça que nos havia dado a primeira boa
fortuna se puzesse beira Rio ao pé de huma Arvore chamada
Espinheiro, que estava frente ao quembre ou alpendre quei
mado e Cume da Caza da Senhora da Conceição, e que dali
varejassem as Lanchas do inimigo que havião descahido
hum pouco pello esteiro abaixo, em que tinhão metido sua
Artilharia e os feridos e enfermos; o que se fez com tão bom
acerto dando muitas balas nas Lanchas que não carecerão
doentes e enfermos de mais cura , pois os tinhamos curado
com tão boas pirulas ; com esta hospedagem se forão alar
gando com as Lanchas esteiro abaixo, e nos tirou do Cui
dado em que estávamos, presumindo que o Flamengo queria
passar a sua Artilharia á Ilha, para a sua sombra chocar
com o nosso poder; e essa foi a causa porque não se fez da
nossa parte mais diligencia por lhes impedir o passo , e lhas
fazer largar; mas quem se acha com muita obra cortada
não pode cozer toda a hum tempo, nem as pessoas tem olhos
de Lince que possão penetrar tudo.
Neste comenos passarão aquelles dous Tenentes que
na primeira instancia defenderão a fortaleza ao inimigo,
Francisco de Novaes, e Estevão Lopes, com hum recado da
parte do seu Capitão mor, que vio lhe metia o Sargento
mor com a Artilharia e muniçoens e bastimentos na For
taleza, entrou em desconfiança de que o nosso Cabo não
queria passar o poder á banda da Fortaleza; e o que con
tinha era que bem lhe constava como o Flamengo estava
ainda em ser no seu allojamento, se bem muito diminuto
de seu poder , pella muita perda que havia tido, que pois

472
elle o hia a soccorrer, e desallojar aquelle inimigo daquella
Fortaleza ; que em quanto o não fazia podia chegar o soccorro
que esperava de gente e Artilharia grossa e muniçoens, que
já lhe vinha pello Rio acima; por tanto tratasse de dar com
tempo comprimento aquella empreza, para ter o fim dezejado,
e fazendo o contrario lhe mandava protestar pella Fortaleza
de sua Magestade e por todo o dano que disso resultasse.
Estranhou muito o Sargento mor aos Inviados semelhante
proposta, dizendo não era merecedor de ter o seu Capitão
mor com elle aquella desconfiança , que elle com muito valor
com a mais gente que o accompanhavão vinhão a soccorrer
a Fortaleza e desallojar della aquelle inimigo, como bem o
havião mostrado as obras, e o efeito; que aquelle negocio
dependia de mais consideração e Conselho do que o seu
Capitão entendia , porque aquelle inimigo estava com as Cos
tas nos matos da Quisama, accompanhado de todo o Gentio
daquella Provincia, onde não podia ter com elle Batalha
Campal; que daquella Ilha estava Senhor de suas acçoens,
e que não era assim passando á Fortaleza , pois não tinha
terreno para formatura de Esquadrão, nem ella era capaz
de ter em sy mais guarnição, e ainda quando o fora nunca
lhe convinha meter - se dentro della ; que isso he o que o
inimigo estava vendo sua disposição como Soldado que era,
que isso era o que elle dezejava ve-lo encurralado; e que o
Flamengo tendo mayor poder receava de perder gente, tendo
donde lhe poder vir, e não sahia a campo descuberto, que
mais razão tinha elle de a poupar, pois naquella gente que
trazia consistia a conservação destes Reinos, que ella perdida
e derrotada, tudo quanto tinha Angola era perdido; e em
cazo que elle pudesse allojar dentro, que possibilidade ficava
em Masangano para o vir a soccorrer ( ? ) portanto que esti
vessem com bom animo, que elle havia de obrar aquillo que
fosse mais do serviço de seu Rey e conservação destes seus
Reinos, e Vassallos; com esta resposta os despedio.

473
Com outro differente modo e audacia respondeu o Sar
gento mor, do que aqui he relatado, porque era pessoa pre
vista em todas as materias, sem embargo de ser natural da
mui nobre e Leal Cidade de Elvas, que não são tidos seus
1
naturaes, de quem os não conhece, por el dizir de las Gentes,
de pouco entendidos: não há regra sem exceição; que
conheceo o Autor desta historia a muitos fidalgos e gente
nobre daquelle Pais mui discretos, e de muito agudo engenho,
como erão os Mellos, os Silvas, os Peçanhas, os Mirandas,
Emriques, os Lobos, os Manoeis, os Souzas, e os Mesqui
tas, e outras muitas familias de muito talento ; não ficando
de fora os Azevedos; e se atreve a dizer com arrojo Sol
dadesco, que hé huma das Cidades de Portugal que tem
em numero mais fidalguia e nobreza, exceptuando a Corte
e Cidade de Lisboa, e a minha amada Patria quando tinha
em sy sua Corte, que então os nomeados daquella nobre
Cidade se prezavão de assistir a seu serviço e Cortejo; não
fallando tambem em Condes e Marquezes que tem muitas
Cidades e terras de Portugal alguns delles chegados ao
Sangue Real, que isso fora então atrevimento do Autor,
porque esses Senhores nascerão primeiro, e tem a pri
mazia; falla em quanto a fidalgos e gente nobre, e numero
delles.
Serião duas horas da tarde quando foi esta Requesta
entre os dous Cabos, estando a gente do soccorro bem afati
gados com o rigor do Sol, que como era tempo de chuva,
ferem mais seus Rayos; tudo ao Reves do nosso Portugal,
que quando he tempo de Inverno ha grande frio , e nestes
Reinos faz grandissima calma , e quando quer chover muito
mayor; e em tempo de verão a que chamão Casibo ha alguns
mezes de frio; estava tambem a gente toda sem haver comido,
que he cousa esta que dá mayor detrimento, do que a aspe
reza do Sol, e faz ver as Estrellas ao meyo dia; grande
cousa he neste tempo alcançar a benção do Papa ; este aperto

474
pôde remediar o nosso experto Cabo , mandando desembar
car alguns sacos de farinha com hum motete de Cacussos,
e foi dando a cada hum seu punhado de farinha de guerra
de Mandioca , e hum Cacusso a cada hum , e como a neces
sidade não há lei, sucedeu hum daquelles Moradores, visto
haver-lhe ficado a cozinha em terra firme com o comer da
outra banda do Rio , com a mais bagagem , pello que tinha
hido de Soldado, tomar ração para sy e outro Camarada,
porque os mais Moradores se achavão divididos em seus
postos ; tomou dous punhados de farinha e dous Cacussus
como os mais Infantes, pois marchavão como elles debaixo
da Bandeira paga , mandou acender humas palhas, e nellas
deu hum Ar de fogo vista ao pescado, e disse para o Cama
rada já atraz nomeado Francisco Correa da Silva , que
comesse porque elle o hia já fazendo; respondeu mui izento
que parece se havia então achado em poucos trabalhos,
porque eu heide comer isso ; não forcejou muito a materia ,
€ foi comendo o seu com a farinha seca , e em cima quente
a barriga , não com aquelle que se abre dia de São Marti
nho , se não com a agoa daquelle espaçozo e bizarro Rio,
que esta farinha com agoa sendo tudo de sua natureza
frio faz hum galhardo e forte estomago; A farinha que su
bejou com o outro peixe que tocava ao Camarada, como o
Soldado velho perdido por malas pagas, o amarrou no Lenço
e o metteu na Correa do Cinto , da outra banda dos frascos;
acabado de tomarem todos esta colação, ou abstinencia que
assim se podia chamar, ficarão esforsados que podião pelejar
com toda a Hollanda ; isto serião tres para quatro horas da
tarde quando se determinou o Capitão a passar da outra
banda , e as sentinellas do Flamengo á nossa vista e fala ,
sem fazer aquelle inimigo neste tempo outro movimento ,
nem impedir o passo nem outra cousa ; passado que foi toda
a gente do soccorro, hindo toda subindo para o sitio da
Fortaleza , quando se abrem as catarratas do Ceo com a

475
mais tremenda pancada de agoa que se pode imaginar, toda
apanhada ás costas ao deredor da Fortaleza, sem haver re
paro nenhum, que foi mais cuidadozo o Soldado que es
capou corda aceza, as sentinellas do Flamengo á falla com
nosco dizendo -lhe que já hiamos, o Capitão sem querer
abrir as portas da Fortaleza, e os de dentro enxutos zom
bando dos molhados como pintãos ; Alguns Soldados houve
insufriveis que disserão aos de dentro mil liberdades; a fome
fervia, quando o do Lenço á Cinta o tornou a abrir e achou
estar a farinha de guerra, de seca que era , mulhada, unida
huma com a outra ; o Irmão peixe, frio, e humido; tanto que
o Lenço esteve aberto , o que se tinha feito grave na Ilha
investio a elle com huma furia grande; o que tinha sido
costodia daquelle haver, fazendo -lhe Caixa Amoroza, dizen
do -lhe, homem, tu hás de comer isto, que te pode fazer criar
bixos na barriga ?; a nada respondia se não a embutir com
a salça de São Bernardo; e ainda teve questão, que aquelle
era o peixe de sua Ração, com o que em aquellas miserias
houve muito que rir; quando nisto nos mandou abrir a porta
o Capitão da Fortaleza movido de piedade Christã , de lhe di
zerem , que querião fazer Oração antes que fosse noite, que
já vinha anoitecendo, e ainda foi com concerto que não havião
de entrar se não alguns e, feita oração, e dando graças
á May de Deos e Avogada de Peccadores, sahirem para
fóra.
Veja-se o desconcerto dos homens que á Ilha nos tinha
mandado fazer protestos mostrando que no nosso soccorro
estava a sua salvação, e agora ter com nosco estes modos;
mas elle fazia bem que conforme a gente hia faminta , se lá
a deixava entrar o havião de comer por hum pé, sem embargo
de que os tinha maltratados de humores galicos, e não seria
gostoza Vianda.
Entrados que forão aquelles Devotos acharão a Rainha
dos Anjos tão formoza como ella he na terra e mais nos

476
Ceos: parece que vertia licor do seu formozo Rostro , toda
muito corada como envergonhada de se ver, havia mais de
hum mez , enserrada naquella Fortaleza em Companhia
daquelles seus Devotos Portuguezes oprimidos e cercados
daquella gente Heresiarcas e Gentios que se havião atrevido
a pôr o fogo em sua benta Caza. Toda a em que então esta
va, a achamos passada de muitas balas, que como era a
Capitoa recebia em seu escudo aquelles balazios, para que
não prejudicassem a gente que ella protejava. Muitas forão
as que derão por differentes partes, todas maravilhozas;
achamos em Companhia da Senhora todas as Mulheres
daquelle Presidio lagrimosas com suas contas nas mãos pe
dindo á May de Deos alcançasse misericordia do seu bento
filho para aquellas pobres affligidas, que se vião alli mettidas,
com suas cazas queimadas e viveres destruidos; só lhe pedião
as livrasse com vida das mãos daquelles Infieis . Todas nos
receberão com muita urbanidade, chamando -nos os seus
redemptores, pois as hiamos libertar daquella opressão : ali
achámos huma valeroza Matrona , por nome Joanna Gomes,
assim no corpo como no valor agigantado, á qual lhe não
levou vantagem Aquellas Mossas que se acharão na India
naquelles dous Cercos de Diu ; hum em tempo do valerozo
Antonio da Silveira sendo Capitão daquella nossa Fortaleza;
e no famoso Dom João de Mascarenhas; assim esta de que
fallamos nestas partes da Ethyopia , á imitação dos da Asia
fez feitos Varonis , rondando de noite as Sentinellas, fazen
do -as estar Alerta quando havia Combate com aquelles
inimigos ; e exhortava os Soldados a defensa da fortaleza
levando a polvora e balas ás trincheiras, não tendo receio
ás muitas que vinham da parte do inimigo; estando com suas
filhas e Netas, que tinha muitas, prevenindo o sustento para
os Soldados, para com isso terem valor para a peleja,
curando com suas proprias mãos as feridas; o que sabendo
despois da restauração da Cidade os Governadores o modo

477
com que esta Varonil Mulher se houve naquella occazião,
lhe mandarão dar huma praça de Soldado naquella Forta
leza , que comeu emquanto a vida lhe durou, fazendo Alferes
a hum seu filho, em gratificação do serviço da May; e tam
bem accrescentarão ao posto de Alferes aquelle valerozo
Soldado Diniz , e emquanto não desalloja o inimigo Hollan
des, e Gentio da Quisama, será bem fazer menção em como
aquella Imagem da Senhora da Conceição foi para aquelle
Presidio e Fortaleza da Muchima .
Há - se de saber que esta Santissima Imagem da Senhora
da Conceição era Patrona da Cidade de São Paulo da
Loanda, estando collocada em o Altar mor da Igreja Matriz
da dita Cidade a qual era reverenciada e servida como ella
merecia; e havia tanta fé nella que a tinhão por milagrosa ,
a respeito que em tempo de Secas, nunca a tirarão de sua
benta Caza para a da Misericordia, que não chovesse, alcan
çando de seu benditissimo filho misericordias e graças para
os Peccadores. Sucedeu que poucos dias antes que o Fla
mengo occupasse a Cidade de Loanda a havião levado em
Procissão para a Caza da Santa Misericordia como havia
por costume fazer-se, faltando as Chuvas; succedeu a tomada
da terra pello Belga Hollandes, e quando foi da retirada,
com aquella confusão do inimigo, não lembrou retirar a
Senhora; havia huma Mulher por nome Beatriz Paes, Mulher
do Capitão mór Sebastião Pinheiro, a qual por sua devoção
vestia a Senhora , e tinha em sua caza huma canastra encou
rada onde punha os seus Vestidos ; muitas pessoas passarão
a noite da retirada pella porta da Misericordia, por onde
passou a mais da gente e virão esta milagrosa Senhora em o
Altar mór pellas grades das janellas que abertas estavão,
a respeito do Mulherio que hia de noite a fazer-lhe oração;
vindo esta dita Mulher de retirada para Masangano, onde
tinha o dito seu Marido por Capitão mór daquella Capitania
por Patente Real, achou hum dia em sua Caza a Canastra

478
dos bens moveis da Senhora da Conceição e dos seus
Vestidos; a Devota vendo e conhecendo a Canastra sem
ver pessoa que trazido a houvesse, foi a abrir, quando achou
aquella ditoza aya a Ama a quem vestia ; com esta Mulher
de contento a gritar como douda, vendo hum tão protentoso
milagre, que sem duvida já que os homens se descuidavão
della, com a deixarem , não se descuidarião os Anjos em a
pôr em salvo como Rainha sua , e Emperatriz dos Altos Ceos,
e não quererião fosse sua Imagem ultrajada daquelles
Hereges.
Quando se largou o Presidio e Fortaleza da Muchima
como se disse em o Governo de Pedro Cezar de Menezes,
havia nella huma Imagem da Immaculada Conceição, a quem
se fazia por ser muito milagrosa muita Romagem ; como
tinha vindo para Masangano, quando o Governador Pedro
Cezar de Menezes sahiu de Masangano a campo a tinha
levado em sua Companhia como tão boa companheira ; suc
cedeu quando o inimigo deu na Barra do Bemgo sitio do
Outeiro do Gango, apanharão ali a Imagem da Senhora
de Muchima, a qual levarão os Muxicongos para aquelle seu
Reino de Congo, como despois se soube, quando despois
tornou a apparecer milagrosamente, como se dirá ao seu
tempo : tornou a povoar o Presidio de Muchima como se tem
relatado ; e por não haver Imagem da Conceição para aquella
sua Igreja de que tem a invocação a Fortaleza e Presidio ,
foi esta gloriosa Senhora suprir por emprestimo esta falta,
que era a que agora havia obrado tantas maravilhas; tambem
se dirá como tornou para seu lugar onde está colocada,
obrando as mesmas maravilhas que de primeiro.
Que esta Santissima invocação da Immaculada Conceição
favoreça e acuda com sua divina graça nos apertos e tra
balhos aos Portuguezes dos Reinos de Angola , não he de
estranhar pois a tem Portugal por sua Protectora, fazen
do-lhe o nosso invicto Rey Dom João o Quarto aquelle tão

479
apparatozo triunfo , jurando - a com toda a Caza Real, e os
tres Estados do Reino, em que se acharão seis Bispos sobre
o ponto da Immaculada Conceição , sendo por todos feito
voto e juramento em Cortes na sua Capella Real , e tomada
por Protectora, prometendo- lhe pagar-lhe tributo todos os
annos de cincoenta Cruzados em Ouro, como logo fez, o que
foi celebrado Domingo de Ramos, dia de Nossa Senhora da
Incarnação á tarde, em vinte e cinco de Março de mil e
seiscentos e quarenta e seis; e prometterão mais defendella
até dar as vidas que foi concebida sem peccado Original, e
quem dissesse o contrario, o havia el Rey nosso Senhor
Dom João o Quarto por desnaturalizado de seus Reinos;
consta tudo da impressão feita deste tão solene como pio
Acto, com as Indulgencias que se ganhão, concedidas por
sua Santidade, a quem trouxer com sigo a sua Santissima
Imagem ou Medalha.
E se a esta Senhora lhe occorre por obrigação de ser Pa
droeira dos Reinos de Portugal, estes tambem de Angola
sendo da mesma jurisdição, ficão em igual gráo, e na mesma
protecção; e já que em Portugal mostrou o quanto valia o
ser sua Avogada como se experimentou em muitas occa
zioens, principalmente em aquelle Cerco tão apertado de
Villa Viçoza, feito pello Exercito de Espanha o General
Marquez de Carracena, sendo a Senhora da Conceição
daquella Villa a principal defença, pois se achava opprimida
em seu Castello, desterrada de sua benta e antiguissima
Caza, as mesmas circunstancias houverão no Cerco desta
nossa Fortaleza de Muchina, por ser a invocação igual , e
ter sua Santa Caza não só despejada se não abrazada pellos
inimigos Hollandeses, vendo - se dentro mettida e oprimida,
a nossa Senhora; pois sendo tudo huma cousa , não podia
ella faltar de justiça e piedade, com seus divinos auxilios.
Fizemos esta Reflexão das cousas divinas, vamos agora ás
humanas .

480
O Flamengo até que anoiteceo nos teve as suas Senti
nellas á vista, paceando em suas estancias; tratou o nosso
Cabo de descer da Fortaleza para baixo e allojar a sua gente
para darem algum descanço aos Corpos de tão extraordiná
rias fadigas, de guerra, de Sol, de Chuva , e de fome, de
que todos em geral estavão estalando, não para descançar
em camas de Lançoens e Colchão, se não sobre hum sapal
de Agoa e Lama que a chuva havia causado, deitados sobre
huma pouca de palha , não seca , se não mulhada, e a seu
tibio Lume enxugando até a mesma camiza , ficando como
suas Mays os pario, excepto alguns que estavão com as
Armas nas mãos, que tudo com sua vigilancia tinha o nosso
Caudilho prevenido com muito valor e acerto, não se expondo
a que aquelle inimigo o achasse desprevenido a toda hora
que o buscasse, fazendo com os Reformados Rondas mui
dobres e bem trabalhosas; porque como aquella terra toda
he de hum barro pegajozo , levantavão se delle os pés do
chão com muito trabalho, tendo o Sargento mór no sentido
aquelle dizer do nosso Principe dos Poetas:

Crer tudo emfim que nunca louvarei


o Capitão que diga não cuidei. (1 )

Passou - se toda a noite com este desvelo ; mandou o Sar


gento mór de madrugada reconhecer o sitio e allojamento
do inimigo não sentindo as nossas sentinellas que estavão
á vista nelle rumor ; chegado a reconhecer achárão ser o
Flamengo fugido com todo o immenso Gentio que o accom
panhava, e tinha em seu favor, tudo desemparado; ordenou
logo o nosso Cabo a hum Negro esforçado, por nome Ca

c ) Canto oitavo , Rima 89.

481
nhamanho Capitão dos Espingardeiros Pretos, fosse com a
sua Companhia e alguma guerra preta em seguimento
daquelle inimigo dando -lhe na retaguarda da sua gente ; e
por ser de noite e por entre matos espessos, que podia nelles
haver algumas embuscadas, não mandou algumas Compa
nhias de gente branca; mas sempre he o mais acertado seguir
aquelle exemplo já recitado do Imperador Carlos Quinto,
que al inimigo que huie, pontes de plata. O mesmo succedeu
agora em nossos tempos entre dous famosos Generais, hum
do Império, e outro do Christianissimo Rey de França, que
teve tal manha o do Imperio, estando de Campo a Campo
que mandando acestar hum Canhão para a tenda do General
Francez, que era Monsieur de Turenne, que o matou aquelle
tiro, e como lhe faltou o General, se foi o Exercito retirando;
avizado o General do Imperio disso, respondeo, deixai,
deixai-os ir.
O Capitão dos Espingardeiros lhe foi dando na reta.
guarda ferindo-lhe alguns Flamengos, e era tal o medo que
levavão que nunca virarão cara atraz, se não hindo por
diante, largando despojo, não do que havião saqueado na
povoação do Presidio, que esse havião recolhido aquelles
Moradores á Fortaleza ; e o que não puderão retirar o con
sumio o fogo, que nossos mesmos puzerão a suas Cazas, só
pello inimigo se não aproveitar e dezafogo da Fortaleza ,
se não os despojos suas muxillas, chapeos, e sapatos, que
assim como lhe cahia o deixavão; muito corre quem corre ,
mas mais corre quem foge. Contou o Sova Muchima que
neste tempo do Cerco esteve retirado em seus matos, e se
tinhão achados com o Flamengo alguns seus Vassallos, em
companhia dos mais Quisamas, que havia o Flamengo en
terrado muita da sua gente assim do rigor das nossas
Armas, como em razão de doença do máo Clima; com
esta nova nos veyo o Capitão dos Espingardeiros Canha
monho trazendo a gente da sua Companhia mui luzida do

482
despojo do inimigo, huns com Roupetas outros com Chapeos
e Sapatos, e outros com Patronas das muniçoens a tiracolo ,
e com alguns traçados, e Carabinas; com esta nova certa de
o inimigo ir marchando pella Quisama dentro na volta da
Cidade , forão todos a cima da Fortaleza dar as devidas gra
ças á Senhora da Conceição por tão singular favor de haver
livrado aquella Fortaleza de sua invazão, e seus Habitantes
de tamanha oppressão.
Esteve ali o Sargento mor alguns oito dias com toda a
gente do soccorro , ajudando a reparar as ruinas do que
tinha desbaratado o inimigo com suas baterias; e foi cousa
digna de grande reparo que dali a dous dias despois do Fla
menga se ter levantado ou fugido, se veyo huma Coartina
de trincheira toda ao chão da parte de Mutu a Aita , onde
havia da banda de fora, pegado á fortificação, cheio de
agoa ( ) , que havia prevenido o Capitão mór e os seus dous
Tenentes como Cisterna, por se a cazo impedisse o inimigo
a agoa do Rio, tivessem ali donde beber: a trincheira se veyo
abaixo, assim do abalo da bataria do inimigo , como de se não
poder fundear muito a madeira , em razão da pedraria que
naquelle Cabeço do Outeiro havia ; o que se attribuhio a
favor particular do Ceo não cahir, quando o Flamengo estava
á vista, se não despois de elle hido.
Os Capitaens que hião no soccorro se mostrarão ali mui
queixosos do nosso Cabo, em lhes haver tirado os quarenta
homens Reformados que era a flor das Companhias, e dado

( ) A Gente do Quisama tem sempre por costume pella terra dentro,


onde não há agoa , fazerem suas Cisternas destas Arvores chamadas
Licondos; vasadas por dentro, levão cantidade de agoa por sua grossura.
estando sempre com a Rama verde: a essa imitação se fez este por
estar chegado á Portaleza debaixo de nossas Armas: Faz agoa frigi
dissima porque de sua natureza o hé a mesma Arvore. (Nota marginal
do Autor ).

32
483
a Vanguarda com elles a hum homem particular que não era
Capitão vivo; ao que lhes disse que aquella querella fora
muito boa, quando lhos mandou tirar; e não agora despois
da occazião passada que não havia nenhum Lugar para
fallar nisso, quando o puderão fazer e reprezentar a tempo ,
que se pudera remediar ou emendar. Sabendo o nosso Cabo
a certeza de o inimigo se ter recolhido á Cidade, tratou de
fornecer a Fortaleza de muniçoens, Armas, e Bastimentos,
que a Artilharia já a tinha dentro: embarcada nos Pataxos
e Lanchas toda gente inutil daquelle Presidio, Mulheres e
Meninos, com todo o seu movel e Escravos, porque se o
Flamengo tornasse refeito de gente e Artilharia aquella
empreza, ficasse a Fortaleza mais desempachada e com
menos comedores; e vendo o Capitão mór lhe não deixava
mais Infantaria, se veyo ao porto, onde estava o nosso Cabo
e embarcaçoens, com o Escrivão daquella juridicção, protes
tando -lhe pella Fortaleza de Sua Magestade, se nella fosse
rendido á mingoa de quem a defendesse ; o que recebeo o
Sargento mór muito mal, e ficou daquelle excesso tão obsti
nado, que mandava outra vez desembarcar toda a gente que
embarcado tinha daquelle partido; e sobre isso houve entre
ambos algumas palavras, pouco idoneas: o que vendo os
Moradores que ali hião do soccorro, se metterão de permeyo,
fazendo que o nosso Cabo lhe deixasse alguma Infantaria ,
com o que ficou applacada aquella polvoreda, que o enfa
dado do Sargento mór foi do máo termo, e entender tinha
gente bastante para guarnição e defença da Fortaleza, e por
em Masangano a não haver tão de sobra, que elle pudesse
fazer da gente daquelle soccorro desperdicios, não sendo a
falta tanta como o Capitão mór manifestava. Cada hum trata
de melhorar o seu partido, e não atende a mais, sem embargo
que ambos erão servidores del Rey, e fazião tudo por seu
Real serviço. Despedidos da Fortaleza se despacharão os
Pataxos com a gente inutil Rio acima, para a nossa Arro

484
xella de Masangano (' ) que na verdade assim se lhe podia
chamar, pois servio da conservação de toda a gente Portu
gueza destes Reinos. Passado nas Lanchas o nosso poder á
Ilha e da Ilha passada a Coamza grande á terra firme, vol
tamos pello mesmo caminho que haviamos trazido, por não
haver outro, salvo o do Rio; e para esse havia mister huma
grande Armada para se accomodar tanta gente ; neste breve
tempo achámos toda aquella Vargea até os Outeiros com
hum Babel de esteiros de agoa, sendo aqueloutro de diversas
Lingoas, porque erão quasi infinitos, e esses bem profundos,
que a inundação daquelle potente Rio Coamza havia cau
zado; com que se passou por elles a vaó com grande trabalho
por havermos despedido as Lanchas para cima ; e se pode
dizer se veyo por debaixo de agoa , o que foi huma boa jor
nada até os Outeiros.
Chegados aos Altos nos vierão ali receber alguns Sovas
do nosso partido, como forão Caculo Ca Amgo com os seus
Sovas seus Vassallos, com o Sova Cuso, Quemza, Quiam
gonga, e Angola Angolomem Acumdo, e outros mais des
viados, que estes nomeados erão daquella Corda dos Altos
do Coamza, que chegão suas terras a beber no Rio Coamza,
batendo todos as palmas ao Sargento mór, e mais companhia,
dando os parabens de tão assinalada Victoria, que como até
então não tinha havido com o Flamengo occazião seme
lhante, tendo - os por invenciveis, cauzou em todos elles e o
mais Gentio grande espanto e maravilha; e ainda realçou
mais este bom successo ser o poder do Flamengo dobrado do
nosso , e ser em sua ajuda toda aquella bellicosa Provincia
do Quisama com seus Habitantes, que elles por sy só , bas

C) « Arroxella de Massangano» — alusão à praça francesa de La


Rochelle, centro principal dos calvinistas franceses, desde meados do
seculo XVI, só tomada por Richelieu em 1628.

485
tavão a dar em que entender a hum grosso poder, como a
experiencia o havia mostrado em muitas occazioens.
Os Sovas que dizemos, que são de viva quem vence ,
quizerão dar ao Sargento mór algumas offertas com effeito
de peças, que elle não quiz aceitar, dizendo- lhes, que não
queria delles mais, que a perseverança na Lealdade devida
a el Rey de Portugal, e em seu lugar aos seus Governadores
que o erão delles, e de todos os Vassallos Portuguezes, e
que estivessem em suas terras com toda a vigilancia e cui
dado tomando intelligencias por seus subditos dos intentos
do inimigo Flamengo para de tudo darem avizo a Masan
gano aos Governadores; com isto os deixou fortalecidos na
devida obediencia, e agradecidos á izenção do Capitão mór,
que tudo se podia chamar, em não querer aceitar o seu
baculamento, que se fora intereceiro, podera esta boa fortuna ,
que Deos foi servido dar-lhe, render -lhe muitas peças.
Vindo este tão desentereçado Cabo chegando perto da
Villa de Masangano, lhe chegou huma ordem dos Gover
nadores eleitos em que lhe mandavão só estivesse da outra
banda, não sabendo se aquella ordem nascia de emulação,
porque não entrasse naquella Villa com triumpho daquella
Victoria, que ainda que foi para todos proveitoza e nella
consistir muita parte da conservação destes Reinos; mas a
inveja e mal querença em toda a occazião reina, e he a nossa
natureza de calidade que lhe peza em ver a outros com
aplauzos , como o tempo o tem mostrado em muitas occa
zioens; o que vendo nosso Cabo a ordem que lhe tinha vindo,
e que era impossivel conservar aquelle poder da banda de
fora, da sorte que vinha, ainda que Victoriozo, destroçados
da falta de vestido e calçado, com o máo trato do passar,
despachou dali dous Moradores daquelles Aventureiros, para
que informassem aos Governadores no estado em que
aquella gente vinha; havia alguns delles enfermos de se ha
verem molhado, que he cousa mais nociva que há nestes

486
Reinos: nenhum se mulhou , que o não pagou ; os Moradores
informarão com tal liberdade Soldadesca, que os Governa
dores houverão por bem de que se recolhesse com a gente
toda a Masangano, aonde entrou com Companhias forma
das, Bandeiras tendidas ao som dos bellicos instrumentos
de Clarins, e Caixas, mostrando as Armas pellas bocas o
que tinhão obrado naquella occazião ; e a mayor maravilha
que teve foi não havermos perdido hum só homem com gente
tão veterana e cursada nas Armas; o que tudo se atribuhio
a impulso Soberano de Maria Santissima Senhora da Con
ceição. Foi de todos festejado e aplaudido dos Governa
dores, honrado com os Capitaens e particulares, ficando
reconcentrado no coração, o que no publico era fingido ,
como o mostrarão dali a poucos dias os effeitos. Jesus! que
cançada e Comprida Relação dirá neste passo o discreto
Curioso ; ao que se lhe responde, que nem todos podem ter
huma correnteza de palavras, que isso e outras mais prero
gativas, he graça, gratis data; e cada hum hé, como Deos
o fez .

487
CAPITULO PRIMEIRO DA QUINTA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS . ESCRITAS POR ANTO
NIO DE OLIVEIRA DE CADORNEGA, CAPITAO
REFORMADO , E CIDADÃO DA CIDADE DE SAO
PAULO DA ASSUMPÇAO , NATURAL DE VILLA
VIÇOSA .

Hindo os Governadores eleitos dispondo as cousas de


seu Governo com a disposição que lhe era possivel, chega
rão as cousas deste Reino em quanto ao sustento, e que ves
tir, ao mayor extremo que se pode imaginar; porque não
havia já vinho para celebrar os Santos Sacrificios da Missa ,
nem farinha para hostias por nenhum dinheiro; em quanto ao
vinho se fizerão alguns frascos de Mosto das uvas de algu
mas Parreiras, o qual despois do seu cozimento , se remediava
esta falta com elle, custando aquem não tinha uvas, seis, e
oito mil Reis cada hum ; Azeite de Portugal não havia gota;
de Palmia algum havia, mas a Peruleira delle por seis mil
reis : a industria dos homens inventou fazerse algum de
Cocos, de Gergelim , de pevides de Aboboras que era o mais
sadio , e de Amendoins que são mayores que Pinhoens, e
nascem de baixo da terra em seus Cazulos; Vinagre se fazia
de vinho de Palma, e de mel de Abelhas; Açucar para hum
doente não havia huma migalha, salvo algum mascavado ne
gro como pez que a mesma industria e necessidade fazia fazer
de algumas Canas de Açucar selvagens; porque são muito
grosgas, e compridas de casca dura se lhe dá este appellido:
e quem fazia o Mascavado denegrido, o vendia por muito
bom dinheiro ; muito melhor se fizera se houvera aquelle barro
que tem o Brazil que lhe faz purgar a Reima, e o faz alvo.
Os bebedores, que não tinhão o de Caparica nem da Ilha

488
da Madeira, inventarão sua agoardente de Cana, de Milho
grosso , de Mese fos, de Bananas, e de mel de Abelhas, de
Cajus, de Geges; de toda esta bazofia inventárão, feito tudo
em calda, e despois de estar muitos dias e bem azedo o lam
bicavão por Lambiques, e fazião Agoandente para se conso
larem com ella, que apenas lambicava quando já estava
recolhida nas vazilhas dos seus estomagos; cousa de ves
tir não havia já por encorrer, havendose todos já valido
das Colchas, Cobertores, e Pavilhoens, com o que derão em
mandar fazer algum panno de Algodão como ligatura, branco
que era o seu natural, e acabelado, e pardo, ficando na pare
cença de hum panno a que chamão, Pero Lopes, de que se
fazião Cazacas, Giboens, e Calçoens; o calçado já não havia
Guadamecinos, nem Couro de Cadeira que tivesse, que tudo
estava já estancado, com que foi necessario fazer sapatos
de pelles de xibos e de Carneiros, não cortidas se não tucuta
das (1 ) nas mãos para se abrandecerem , feitas as sollas de
Couro mal cortido com alguma cal e casca de mangue que
era o mesmo que cru; tudo a miseria fazia fazer, que a neces
sidade he mestra de enganos, ainda que estes não prejudi
cavão ao proximo, senão aos mesmos que os inventavão.
Vendo os Governadores tantas miserias padecidas se fez
conselho sobre se mandar huma pessoa á Cidade que fosse
intelligente para de baixo de algum pretexto de Embaixada
simulada, de alguma couza hiria a fazer negócio, levando
prata e patacas genero que até muralhas rende com seu
grande poderio como o traz Francisco Rodrigues Lobo (
nas suas noites de Inverno, e que de baixo disso se provesse
do necessario , sobre que houve diversos pareceres, e prevar

( ) Tucutar he esfregar nas mãos para ser brando. (Nota marginal


do Autor ). É o verbo kutukuta,
p) Corte na Aldea, e noites de inverno , de Francisco Rodrigues
Lobo. ( Nota maginal do Autor ).

489
lecérão os mais a que fosse; para o que se elegeo a Lopo da
Fonseca pessoa de consideração e negocio largo, o qual se
houve de calidade na jornada que trouxe de volta das cousas
de que mais se necessitava, e as dava geralmente a todos
quasi pello mesmo que lhe havião custado, mostrando nisso
sua generosidade e que o não levara aquella negociação o
enterece, se não o serviço del Rey e conservação de seus
Reinos.
Em este tempo veyo assistir em a Villa da Victoria de
Masangano Dom Phelipe Angola Airi Rey de Domgo, Vas
sallo del Rey Nosso Senhor, com o Principe seu filho Dom
Francisco; e esta fineza nasceo de saber que a Rainha Ginga
Dona Anna de Souza tinha já erguido a Cabeça despois da
quella Rota, e mandava suas Embaixadas ao Flamengo á
Cidade com grandes dadivas, que, ainda que a haviamos
esbulhado do melhor que possuhia, não lhe faltavão peças
que o Flamengo não regeitava, que Ouro he, o que Ouro val;
tudo era em razão de o persuadir a que acabasse com Masan
gano e seus defensores, porque tinha muita pena em saber da
prisão em que suas Irmãas estavão, principalmente Dona
Gracia, que era conforme a sụa natureza de malinidade, e
dezejava muito tiralas da prisão que padecião.
Neste tempo chegou novas aos Eleitos em como alguns
Sovas da Ilamba que tinhão a nossa voz erão muito avexa
dos dos Sovas da parte contraria, só por não quererem fal
lac Flamengo; e para remediarem este desacocego dos nossos
Sovas, e terem em campo quem os amparasse, elegérão para
isso por Capitão mor da guerra a Gaspar Borges Madureira,
dando -lhe alguma gente paga, ou que foi paga, porque neste
tempo o não era , por não haver fazenda Real, com o Capi
tão dos Camgoandas Paulo Pereira, e alguns homens de a
Cavallo, com os Jagas e seu Capitão Geral Fungi Amusungo
e dos nossos Quilambas, e guerra preta dos Portugueses; com
dita gente passou da outra banda do Rio Lucala, e foi mar

490
chando para a Provincia do Lumbo e terras do Sova Caculo
Ca Oje (- ) nestas terras e Senhorio fez seu allojamento, man
dando dar alguns assaltos aos Sovas Rebeldes.
Nesta expedição estava o nosso Capitão mór melhorado
de sitio nas terras e Senhorio do Sova Cadungo da mesma
Provincia onde havia passado alguns mezes, entendendo lhe
não podia vir cousa que o molestasse, e lhe estavão nossos
inimigos fazendo a Cama : por huma parte el Rey de Congo
Dom Gracia chamado o Quimpaco, por outra a Rainha Ginga
Dona Anna de Souza, e por outra os Sovas Rebeldes, moles
tados da nossa opposição, e todos incitando ao Flamengo,
em quem tinhão todas as suas esperanças, á nossa ruina e
dezejando acabarem o fogo de monturo de Masangano, que
assim The chamavão, porque durava muito e havia prevale
cido e sustentado a voz del Rey Nosso Senhor e a conserva
ção destes seus Reinos; feita Liga entre todos, mandou el Rey
de Congo muito poder de seu dilatado Reino, com o seu Go
vernador da Ilha da Loanda Dom Christovão Corte Real e
os Mixiloandas de sua juridição; a Rainha Ginga mandou o
seu Capitão Geral Ginga Amona, já convalecido de hum
braço que lhe maltratavão quando foi do seu desbarato em
o seu Quilombo ; og Sovas Rebeldes todos preparados com
sua guerra , como então mais molestados.
Sabendo o inimigo Hollandes como os poderes daquelle
Rey, Rainha, e mais Sovas alevantados estavão preparados
em paragens preditadas entre elles, sahio da Cidade com
perto de quinhentos homens a encorporarse com ditos pode
res ; encorporados que estiverão forão marchando em de
manda do sitio em que estava allojado o nosso Capitão mor
com seu pequeno poder, bem alheio do que lhe vinha, e
estava urdido que, como a Rainha Ginga mettia a mão nisto,
todos os nossos Sovas, lembrados de que tinhão sido seus

() Kahojt.

491
Antepassados os Reys de Angola seus Senhores, guardarão
nesta occazião segredo, mostrandose mais fieis a ella do que
a nós , por cuja causa não derão noticia ao Capitão mor de
tão disformidavel poder, que contra elle vinha, que a sabelo
puzera- se com tempo em cobro, ou ao menos estivera pre
venido, pois o com que se achava era tão limitado e inferior;
com o que chegou o inimigo e deu de supitu em a nossa
gente , a qual poz logo em desbarato, achando ao Capitão
mor Gaspar Borges mal tratado de huma perna que se não
pôde pôr a Cavallo, que podéra se salvar , como fez hum
homem de a Cavallo Manoel Cardozo Quitamdola que
trouxe a nova desta Rota, ao qual chamavão Fernão Men
des Pinto de Angola, como ao outro da India, porque sem
pre escapava em o seu Cavalinho das occazioens para con
tar; da gente de pé só escapou o Capitão dos Camgoandas
ou Criollos Paulo Pereira, como Sertanejo da Campanha
do Brazil , mettido pello mato, escapou deste desbarato com
vida. Aqui se vio em parte vingado o Flamengo na Car
reira que lhe fizerão dar em a nossa Fortaleza de Muchima;
Ginga pello conseguinte pello esbulho que havia tido do
seu Quilombo; este valeroso Capitão mor , que assim doente
como estava, mostrou bem o valor que o accompanhava,
vendendo bem a vida com alguns dos nossos Portuguezes,
que com elle se incorporarão, á custa de muitas dos inimi
gos; como tambem o Capitão Geral dos Jagas Fungi Amu
sungo, que podendo se salvar o não quiz fazer, se não
morrer pelejando com alguns dos seus junto do Capitão
mor, e alguns Portuguezes, até que não podendo mais pella
multidão inimiga largando as vidas morrendo gloriosa
mente, satisfeitos do que havião obrado em dano daquelle
inimigo.
Cousa muito certa he , como em muitas occazioens se
tem visto, que quem poupa o seu inimigo ás suas mãos
vem a morrer dilatando sua ruina ; disto foi notado e mur

492
murado este nosso Capitão mor que quando foi do destroço
do quilombo da Raynha podéra fazer mais diligencia em
haver as mãos aquella nossa inimiga, como elle assim o deu
a entender, porque quando se sahio ao primeiro assalto em
seu seguimento havendose marchado quatro ou cinco jor
nadas, com marchas bem despedidas, lhe disserão alguns
Moradores, e alguns delles seus parentes ou de seu filho,
enfadados de ser aquelle trabalho e fadiga de balde, que
se podéra dispôr aquella occazião com mais acerto quando
se deu logo aquelle dia a Batalha, e não fazer aquella pa
rada á torreira do Sol, e não ao outro dia mandar em se
guimento fora, já de tempo, e o ir elle proprio, como nesta
occazião havia feito ; ao que foi respondido pello Capitão
mor que a hum Cavalleiro que tinha quatro Cavallos que
hoje lhe matavão hum, amanhãa outro, o outro dia outro,
até que ficava apeado sem nenhum ; ao que lhe foi respon
dido, e se a esse Cavalleiro lhe matarão logo da primeira
vez os quatro Cavallos, não ficara logo apeado, e posto por
terra, respondeu, então acabava - se tudo, dando com este
seu dizer, a entender o que se presumio de alguns Generaes
da Coroa de Espanha que tendo muitas occazioens em que
poderão acabar as guerras de Flandres, dizião elles a al
guns Conselheiros de guerra , se ellas se acabarem onde
hão de comer nossos filhos ? mas não o disserão assim al
guns valerosos Portuguezes que servirão e accompanharão
e governarão muitas emprezas daquella Coroa Castelhana,
como foi o nosso insigne Infante Dom Luiz, filho do felicis
simo Rey Dom Manoel, que querendo- se achar e ajudar
em as emprezas a seu Cunhado o invicto Emperador Carlos
quinto não poupou o mouro inimigo na tomada da notavel
Fortaleza da Galeta e Cidade de Tunis, onde estava o Rey
com aquelle famoso Corsairo Barbaroxa, que dando-lhe o
Emperador seu Cunhado a Vanguarda com a Bandeira Im
perial , foi o primeiro que com ella chegou á Cidade de

193
Tunis, marchando por tamanho sol, e secos Areaes, onde
não havia huma gota de agoa ; todas estas Calamidades com
seu grandioso animo e valor, venceo , accompanhado do Em
perador.
O mesmo succedeo em esta mesma occazião ao nosso
General Antonio de Saldanha, (' ) que hindo com aquelle
potente Galeão que parece cousa incrivel levar trezentas pe
ças de Artelharia em Companhia de doze Caravellas, com
que mandava el Rey Dom Manoel ajudar ao Emperador
seu Genro e Cunhado, em aquella tão ardua e perigoza em
preza, não se poupando a sy , nem tão pouco ao inimigo
com a corta mar de asso rompeu , entrando á Vela aquelle
muele ou Cadea que abraçava a entrada aquelle Porto,
pondose a Bataria com aquella tão potente força da Galeota,
botando de sy fogo, que cauzou espanto a todos os que o
virão, e aquelles inimigos mahometanos muito mais, pois foi
a principal causa de render aquella força, pella fortidão de
tão admiravel Galeão, e valor de tão grande General.
Com a mesma galhardia se houve o nosso famoso Gene
ral da Armada de Portugal Dom João de Menezes, Mor
domo mor de Serenissimo Rey Dom Manoel, e Conde de
Tarouca, (2) hindo com huma Armada poderosa a encon
trar - se com a Armada de Espanha de que era General o
Grão Capitão Gonçalo Fernandes de Cordova Duque de
Seça e Soma da nobilissima Caza de Aguilar, para que am
bas unidas tivessem encontro ao Grão Turco, que vinha com
grande poder de Armada sobre a Christandade; com ordem

) Cronica del Rey Dom Manoel seu cronista Damião de Goes.


E Pedro de Maris na Recopilação das Cronicas dos Reys de Por
tugal. (Nota marginal do Autor ).
() Em a historia do tempo del Rey Dom Fernando Catholico se
trata do aqui referido, e nas ligas e emprezas de Italia, (Nota marginal
do Autor ).

494
dos Reys Catholicos Dom Fernando e Dona Izabe !, se unis
sem ambos os Generaes num Corpo, e num parecer; o mesmo
ordenava ao seu General Dom João de Menezes o nosso
Rey Dom Manoel, o qual esteve com todo o valor e bizarria
esperando o nosso General e impedindo o passo a que não
passassem os Turcos a dar favor a el Rey de Napoles Dom
Fradrique que o havia mandado pedir ao Gram Turco em sua
defensa.
O mesmo succedeo ao nosso General da Armada de Por
tugal, o valeroso Francisco Barreto, (' ) que, hindo em tempo
del Rey Dom Phelipe prudente á empreza do Penon de
Velez em Companhia do General de Espanha o famoso Dom
Pedro de Toledo, não se poupou a sy , nem deu tempo ao
inimigo e saltando em terra da sua Armada com mil e du
zentos Portuguezes, dando ordem o General de Espanha
que igualmente fossem suas ordens guardadas como as suas
proprias, respondeo que elle cedia aquella umbridade, e só
queria que na marcha para o Avance do Penon, e fortaleza,
levasse com o seu terço Portuguez elle a Vanguarda, e que
se lhe concedeo , e obrou na accazião com elles de calidade
que foi a mayor parte daquella jornada ter bom successo ,
havendo - se já emprendido em outras occazioens aquella
mesma jornada sem effeito; e bastava ir accompanhada do
valor de tão esforçado General e valerozos Portuguezes para
que tudo se lhe rendesse, pelejando em a Vanguarda com
o esforço que nelles he bem conhecido.
Este valeroso General foi a governar a India (? ) onde
fez grandes Conquistas e proezas; dali foi mandado a Mo
çambique á Conquista de Sofala; daquella Cafraria foi morto ,
não por elle poupar aquelles inimigos se não por que lhos
© Autor Antonio de Errera em sua historia general escrita do
tempo del Rey Dom Phelipe prudente. (Nota marginal do Autor ).
(*) No segundo tamo da Asia Portugueza de Manoel de Faria e
Sousa se trata do aqui referido. (Nota marginal do Autor ).

495
fizerão poupar o Ajunto que levava, que elle queria obrar,
como tão grande General que era , por outro estilo ; com que
veyo a morrer miseravelmente as mãos daquelles Cafres
com toda a gente Portugueza que levava, para fazer aquella
Conquista.
O famoso Simão Antunes chamado o Grande e Senhor
por Antommazia, como foi chamado o Grão Capitão Gon
salo Fernandes de Cordova em a Conquista do Reino de
Napoles defendendo aquelle Reino por parte del Rey Dom
Fernando de Napoles Cunhado del Rei Dom Fernando o
Catholico, do Christianissimo Carlos segundo Rey de França,
e segunda vez fazendo a Conquista daquelle Reino, el Rey
Luiz Rei de França, e del Rey Dom Fradrique, que então
era Rey de Napoles nesta guerra ultima lhe foi dado pellas
Nacoens Estrangeiras o nome de Grão Capitão como o traz
o mesmo historiador do tempo del Rey Dom Fernando o
Catholico, que tambem neste tempo se lhe deo este honori
fico titulo ; assim foi chamado o Senhor Antonio de Leiva
o Senhor Alarcão em tempo do Emperador Carlos quinto;
este nosso Portuguez que dizemos era natural de Villa Boim
do partido da Real caza de Bragança; bem notorio he a to
dos pois foi em nosso tempo o muito que em Flandres obrou,
e emprezas que teve e alcançou, não tratando nunca de di
latar a guerra, e poupar ao inimigo.
Governando as Armas em Flandres e Praça de Brus
sellas o nosso Portuguez Dom Francisco de Mello, sendo
tambem General da Cavallaria Dom Phelipe da Silva tive
rão aquella Batalha de Raucroy (+ ) naquelles Paizes em que
estes nossos insignes Portuguezes não alcançarão aquella
Victoria por quererem dilatar aquella guerra e quererem pou
C) Refere este successo o Marques Virgilio; Maluezo em o seu tra
tado das guerras do tempo del Rey Phelipe terceiro até Phelipe quarto ;
passando este Autor em huma balança as perdas e ganhancias que teve
Espanha. ( Nota marginal do Autor ).

496
par os inimigos, se não por confiados e sobra de valor, da
rem tempo ao inimigo para se refazer; e ainda assim cinco
ou seis mil homens os mais delles Portuguezes feitos fortes
em huns Bosques sahirão delles com honrados partidos.
Dom Francisco de Mello sabida he sua fidalguia pois
era filho do Excellente Senhor Dom Constantino de Bra
gança , Irmão por parte do Rey do Serenissimo Senhor Dom
Theodosio segundo do nome, e o testifica as suas mages
tozas Cazas que pallacio se podia chamar, sitas no Rocio
da populosa Villa de Estremoz que he hum extremo das
mais Villas; de Dom Phelipe da Silva notorias são a todos
as proezas que obrou em aquelles vistozos Paizes de Flan
dres, emprezas de tanto porte, que com seu valor conseguio ;
sua fidalguia tambem he bem conhecida, pois basta dizerse
ser Irmão do Tombo da nobreza o Conde Mordomo mor
Marquez de Gouveya, aquem toda a fidalguia respeita .
e quita Sombrero, descendente daquelle fino Portuguez,
Conde de Portalegre.
De muitos Heroes Portuguezes pudéra fazer menção
assim antigos como modernos de feitos em Armas que fize
rão, assim na mesma Patria, como fora della, de que as his
torias estão cheas; e só faz o Autor menção dos que fazem
a seu propozito, e historia que va seguindo, obrando sempre
estes insignes Portuguezes sem Duello com grande valor,
não se achando nunca nelles que prolongassem as guerras
e emprezas, em que forão Generaes por enterece proprio,
nem tão pouco por pouparem a seus inimigos; assim que se
o nosso Capitão mor o poupou, por el dizir de los Generales
y Consejeros Castellanos, onde han de comer nuestros
hijos! merecido castigo he da divina justiça, que ás suas
mãos venhão a morrer. Sahi fóra da minha historia , porque
já que o Corpo do Autor por ser velho, não pode ir á Patria
amada, vá lá se quer o pensamento , levando com sigo o
Coração .

497
CAPITULO SEGUNDO DA QUINTA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS, PROSEGUINDO O GO
VERNO DOS GOVERNADORES ELEITOS.

Com a nova da nossa Rota em a Provincia do Lumbo,


terras e Senhorio do Sova Cadongo, (" ) ficarão os Gover
nadores, e todos os Vassallos Portuguezes de Angola com
grandissimo cuidado, e com muita mais razão sabendo que
marchavão aquelles inimigos victoriosos na volta de Masan
gano com tenção de o levarem nas unhas como Gavioens;
tocou - se logo a rebate, e tratou o Governador Bartalameu
de Vasconcellos da Cunha de sahir de Masangano a hir
ter o encontro ao inimigo, para o que logo aquella tarde
mandarão marchar para o Lembo as Companhias que havia
com a mayor parte da gente , ficando em Masangano só a
guarnição necessaria ; isto foi de tarde que a essas horas
havia chegado a nova, e marchárão a ordem do Sargento
mor que então era Pedro Barreiros, que era o que havia
defendido Muchima; que a emulação e algum receyo de ser
tanto applaudido havia tirado daquelle posto a Diogo Go
mes Moralles, que desta sorte se pagão serviços e beneficios
neste mundo aquelles que melhor servem ; assim entrou o
mundo, assim há de sahir : muito se pudéra dizer sobre esta
materia, mas ella por sy se deixa muito bem entender; mas
o inimigo que vem marchando nos não dá lugar para mais.
Sahio de Masangano ao outro dia o dito Governador
accompanhado de muitos Moradores, ficando em Masan
gano os dous eleitos Antonio Teixeira de Mendonça, e

p ) Na pág. 491, tem Cadungo; não sei qual é a verdadeira forma.

498
João Zuzarte de Andrada ; chegado que foi ao sitio do
Lembo se foi arranchar mais acima da Igreja do Outeiro do
Quixoto, entre huns Bananaes onde se não vião huns aos
outros; parecendolhe a alguns Moradores Soldados velhos
e Conquistadores Antigos não ser aquelle sitio conveniente
lho advertirão, que ou para mais diante em hum Limpo que
ali havia fossem para elle, ou hum pequeno mais atraz ao
Outeiro da Igreja do Lembo ; admittio o parecer que dor
mirião ali aquella noite, e que pella manhãa se passarião
para o sitio da Igreja.
Mandou pessoas intelligentes que fossem todo aquelle
Rio Lucala acima até onde chega a sua navegação, ou que
se pode navegar que são algumas quatro Legoas, até os
Outeiros de Ango e Rio Luinha, com ordem que quebrassem
quantas Canoas houvesse, e que outras trouxessem para
baixo, para que aquelles inimigos não tivessem onde passar
destoutra banda . Amanheceo e se veyo buscar o sitio do
Outeiro da Igreja do Quixoto; repartindo alguns Capitaens
com suas Companhias para estarem na guarda de algumas
passagens principaes daquelle Rio, mas erão mui distantes;
mandou - se avistar o inimigo por alguns homens de a Ca
vallo e gente preta , e trouxerão por novas que era hum dis
formidavel poder que cubria montes e valles, no que não
mentião ; com esta nova começou tudo a titubiar, e logo se
foi pondo em pratica que não era bem nem serviço del Rey,
esperarse aquelle tamanho poder fora das nossas fortifica
çoens, que se por mal de nossos peccados succedia outra
Rota semelhante á da Cavala que lá hia o Reino e tudo
quanto nelle havia, e ficava o inimigo de huma vez Senhor
de tudo o que el Rey nosso Senhor possuhia em Angola e
seus Vassallos, porque as Companhias estavão divididas
por aquellas passagens onde se não podião dar a mão
humas as outras, e alem daquellas passagens, havia outras
muitas,

499
Estas razoens representarão os de mais cordura que me
lhor o sabião avaliar ao Governador; de primeiro se fez
muito de rogar, mas logo veyo ao que era razão que não só
entendia mal, e o via que aquellas razoens tinhão bastante
fundamento , e não erão ditas no ar ; resolvido em nos reco
lhermos tanto que foi noite, tomamos a derrota do nosso
Valha - Couto : não faltou pessoa que topando ali a Diogo
Gomes Moralles lhe disse; nós somos aquelles que fomos
desallojar o inimigo Hollandes e toda a Provincia da Qui
sama da nossa Fortaleza de Muchima, e agora aqui do
Lembo duas Legoas de nossas cazas nos himos retirando ou
para melhor dizer fugindo de noite, sem ver cara ao inimigo,
tão afrontosamente; ao que respondeo, todos o vemos! donde
há força, direito se perde; a tal pessoa fallava como Soldado ,
mas nem todos erão do seu panno. Chegados que forão
aquella noite a Masangano, o inimigo chegou com todo o
seu poder pella manhãa ao sitio da Cavalla delle bem conhe
cido; dali começou a fazernos todo o mal que pôde, com
tenção de emprender o invadirnos, para o que era bem in
citado do Capitão Geral da Rainha Ginga, a respeito de
dar liberdade ás Infantas presas Irmaās da Rainha sua Se
nhora; nesta occazião não houve Sova que não titubiasse
na Lealdade que devião como Vassallos Conquistados a el
Rey nosso Senhor e aos Portuguezes destes Reinos seus
Vassallos; que como vião o Capitão Geral da Rainha Ginga
unido tanto com o Flamengo, todos se fazião do seu partido
e bando , e todos tiverão Flamengos nas suas Bamzas e Po
voacoens, admittindo seus recados e Embaixadas, excepto o
Sova Angola Quilongola, em cujo Senhorio e terras está a
nossa Villa situada, e o Sova Cambambe que tambem era
o mesmo que este primeiro, e ainda se mostrou mais fino
na Lealdade, que largando as suas terras e bamza onde
morava se veyo a meter na Fortaleza com suas Mulheres,
e filhos e alguns dos seus Vassallos, com mui boas Espin

500
gardas , de que sabia uzar muito bem, e era grande Caçador,
e entranhavelmente era amigo da gente Portugueza; elle era
tambem para ser amado e respeitado de todos, pella auto
ridade e gravidade de sua pessoa, tendo Veronica de homem
fidalgo e de bem.
Tratárão os Governadores de recolherem tudo para a
Fortaleza , pequeno recinto para tanta gente, que ainda que
a guera viva de sette Annos continuos com o Hollandez o
Gentio da terra havia gastado muita gente nas perdas que
haviamos tido e com o máo Clima da terra ; Com tudo havia
muito Mulherio, e gente inutil , e assim se accomodarão
como puderão, e a necessidade o pedia , em suas Choças, e
Choupanas: tratárão tambem de desafogar a Fortaleza de
tudo o que lhe podia servir de impedimento ao manejo da
Artelharia e Mosquetaria, derrubando -se algumas Cazas
nobres até os Cimentos , sem haver nisso respeito a pessoa
nenhuma , como forão humas do Capitão mor Vicente Pe
gado da Ponte, sobre que houve algumas refertas, e outras
do Sargento mor Manoel Rodrigues da Cunha , e outras de
huma Viuva honrada por nome Maria das Neves, as quaes
derão muito trabalho á Infantaria e Moradores a puxar
pellos Calabrotes , picando o pé com alavancas, que como
erão Cazas antigas ligadas de muitos annos, custarão muito
o derrubarem - se; as mais que erão de madeira, se safárão
com mais facilidade, entregando-as ao fogo ardendo em
muito breve.
Proveose o Forte de São João de muniçoens e bastimen
tos dando - se para sua defensa Cincoenta homens de guar
nição, entregue sua Tenencia a seu Capitão João Pilarte,
o qual se meteu dentro com elles e sua mulher e filhos, me
tendo a escada dentro. Em o sitio e baluarte da Lucala e
seu Licondo se poz hum Cabo Soldado Reformado com dez
homens, e o mesmo se fez em o da entrada da Lagem , para
guarda do Gentio que era numeroso , Escravaria de homens

501
brancos e quantidade de Gado que tudo estava do Vallão
e Trincheira para dentro.
Tudo estava com a preparação necessaria como quem
esperava todas as horas pellos inimigos, e todos com muito
valor; esperando ver o seu designio; e não se podia capa
citar, que o Flamengo, se atrevesse a combater e avançar
a nossa fortificação de Masangano, guarnecida de boa Ar
telharia, provida de Municoens e gente bastante á sua
defensa ; que conforme Regra militar para Cem homens for
tificados há mister seiscentos para seu acometimento, e em
tal sitio podem estar, que ainda esses e muitos mais não
bastam : Masangano ainda se achava com alguns centos
delles, com muitas pessoas Ecclesiasticas, armados de boas
armas, e Grandes Espingardas, que na occazião havião de
fazer muito hem seu dever, sem embargo da dignidade
Sacerdotal, que como era defensa natural, e mais contra
Infieis , não devião de ficar irregulares por mais que ma
tassem; o inimigo traria quinhentos homens Flamengos sem
Artelharia para a bater (°) : he verdade que o accompa
nhava muitos milhares de Gentios, mas não havião de ser
nesta occazião os expugnadores com toda a sua multi
dão, que como vestem poucas roupas, com qualquer fogo
se lhe cresta a pelle, que tambem não nos faltavão muitos
Artificios de fogo; de alguma Rota em Campanha fora de
fortificação, nos livre Deos delles, que como são Ligeiros,
e desembarassados no correr, apenas escapa quem traga
novas: se o Flamengo se atrevesse a nos avançar lhe havia
de custar muito sangue, salvo houvesse tal covardia ou Deos
nos atasse as mãos por nossos peccados, que se lhe não
fizesse opposição; só hum fogo dentro se podia temer por
estar tudo dentro tão abarrotado de Cazas de palha; tam

C ) A fortificação.

502
bem da banda da Lucala era a Cortina hum tanto baixa
por descer o terreno da fortificação para aquella banda,
e de hum teso perto se descubria muita parte; mas como
tinhamos a nossa ditosa como bem afortunada Artelha
ria não daria lugar ao inimigo que tão perto nos fizesse a
parada.
Em esta conformidade estavão dispostas as cousas quando
nos chagárão novas pellos descubridores do Campo em como
o inimigo tinha passado destoutra banda do Rio Lucala o
seu poder, que lhe não faltarão Canoas para isso, das mui
tas Lagoas que este Rio faz , onde as tinhão o Gentio escon
didas ; e vinha marchando pello caminho das Izamgas de
Cavala em demanda da nossa Villa. Despediose alguma
guerra preta com Negros espingardeiros, não para lhe terem
o encontro se não para que viessem observando como gente
de bom pé os designios daquelles inimigos, e nas espaldas se
despachou ao Capitão Antonio Dias de Macedo, Soldado
de valor, filho desta terra de Angola com sua Companhia,
com ordem que desse Costas á nossa guerra preta, e não
passasse o esteiro de Sambi que por ali atravessa com sua
Corrente, estando da nossa banda nos Outeiros de Cam
bangi; passada a nossa guerra preta da outra banda do
esteiro , que como trazem pouco vestido vadeão por onde
querem : assim como os sentio o inimigo que vinhão mar
chando encuberto com grandes palhagaes que por aquellas
terras alagadiças se crião, que então não tinhão muita agoa
por ser tempo seco, forãolhe logo botando hum cordão
com a sua guerra preta, para os cazarem no meyo; mas
os nossos que não durmião se puzerão logo em cobro com
tempo ; e alguns por virem mais leves largarão algumas
Armas. Vindo com toda a furia a passar o esteiro, e o ini
migo atraz delles, vendo que se lhe hia a Caça dentre as
mãos, chegando até dito esteiro do Sambi com todo o seu
poder; assim forão descubertos do nosso valeroso Capitão,

503
despois de haver recolhido e amparado a nossa guerra
preta, começou a sentilhar com a sua Companhia cargas
sobre o inimigo, com que lhe foi fazendo muito dano que
como estava donde o descubria e ficava o inimigo em var
gea lhana, lavorando as Armas e suas balas por ella, não
lhe fazendo impedimento o palhagal de que o inimigo
estava quasi cuberto; mandarão os Governadores, tanto que
ouvirão as cargas, soccorrer com gente aquelle esforçado
Capitão, que duas vezes mandou buscar soccorro de muni
çoens e não cessava em ir sentilhando e sacudindo aquelles
inimigos.
Nisto se poz a nossa Fortaleza toda em Arma mui bem
guarnecida; e vendo os Governadores que o inimigo se ti
nha mettido para aquelle saco do esteiro de Sambi, despa
chárão tres Companhias com os Capitaens Jorge da Silva,
Blas de Espinoza Nabarrete, e Manoel Rabelo de Brito,
que terião de Soldados Cento e cincoenta homens entre In
fantes e Moradores a cargo de Jorge da Silva como Capitão
mais antigo, fossem advertir o inimigo, e se podessem dar
-lhe nas Costas com pouco risco, o fizesse, ou sahirlhe ao
passo do Rio; estando no sitio do Licondo da Lucala para
passar hum esteiro Lucalaoafo (* ) , que ali atravessa, e já al
guns mettidos em as Canoas á passagem, quando soubérão
os Governadores que aquelle inimigo havia avistado o es
teiro de Sambi , e não se atrevia a passar, com a valerosa
resistencia do nosso Capitão; e com a noticia das nossas
Companhias, que haviam perdido muita gente, mandárão os
Governadores em hum Cavallo a toda a pressa ao Capitão
mor de Benguela Manoel Pereira fosse da sua parte soster
as Companhias não passassem da outra banda do esteiro
da Lucalaoafo, expostos a darem em algumas embusca

© Lukalauafu.

504
das do inimigo, que não estavão em tempo de perder gente,
se não de a conservarem .
Com dita ordem ficarão aquelles Capitaens, e mais In
fantaria muito enfadados, de os mandarem tornar atraz , e
os Moradores que havião sido Soldados velhos, e dezeja
vão provar a mão com aquelles inimigos em Campanha rasa ,
que muitos e os mais delles, assim Capitaens, como Solda
dos, e Moradores, se havião achado no soccorro da Forta
leza de Muchima ; mas quem governa e tem a sua cargo o
Leme de seu Governo, vay muito atento em as materias!
que isto de Soldadesca , tudo he bizarrear, e mostrarem
sempre animo constante e valeroso, e muito mais os que são
Portuguezes, que muito lhe parece nada.
Estes inimigos, conforme despois se soube, vierão com
esta marcha tão perto da Villa da Victoria de Masangano,
que seria hum quarto de legua , com diversas tençoens; a
primeira foi entenderem que a sua multidão cauzasse em os
defensores tanto espanto, que tudo se lhe rendesse ás mãos
lavadas, e podendo fazer sua marcha pellos Altos do Mu
lundo Acacubo, que era só a entrada que, passada a Lucala,
havia para aquesta Villa da terra firme, por caminho en
xuto, sem terem esteiro de agoa que passar, e só no baluarte
o sitio da Lagem se lhe podia ter o encontro, antes da nossa
fortificação; e como se lhe quebrarão tambem os narizes
por aquelle nosso Capitão, que teria com sigo Cem homens,
não lhe fez bom estomago, e lhes ficarão seus designios frus
trados, se vinha a reconhecer a nossa força, a respeito de
a quererem avançar, ou saberem de que tinha procedido o
incendio que virão quando se desafogou a nossa Fortaleza
da cazaria que a cegava; pella parte que fez sua marcha
o não podia fazer por lhe ficarem no rosto os outeiros de
Cambangi, sobre o esteiro do Sambi, onde se lhe teve o
encontro ; o certo era, que o inimigo vinha fiado em hum
Sova traydor que era Senhor das terras e vargea do Lembo,

505
onde os Portuguezes tinhão suas fazendas, por nome Dom
Pedro Bamba Atungo, o qual havia estado com o Flamengo,
e com o Capitão Geral da Rainha Ginga, e tinha com elles
forjada a trayção, que era , que vindo elles combater a nossa
fortificação, quando mais embebidos estivessem os Portu
guezes em sua defensa, poria elle fogo dentro em duas ou
três partes; e naquella confusão terião elles lugar de faze
rem tudo quanto quizessem ; para o que se veyo o dito Sova
meter com nosco na Fortaleza, mostrando - se na Lealdade
mui fino; o que permitio Deos fosse descuberto, e o traydor
preso; e verificada a trayção, cortada a cabeça.
E como nossos inimigos ficarão com a sua invectiva
frustada , que nem tudo o que se maquina sahe conforme ao
desejo dos que as urdem . Semelhantes maquinas se forja
rão no nosso Portugal , despois da feliz acclamação del Rey
nosso Senhor Dom João o quarto , conforme as noticias que
vierão por estas remotas partes , de se pôr fogo em alguns
Bairros da muito nobre Corte e populosa Cidade de Lisboa;
o que descuberto pella divina misericordia de Deos, custou
a vida de muitos. No tempo que as cousas estavão neste
estado que se tem referido, veyo pôr -se -nos á vista da outra
banda da Coamza grande hum Sova da Quilumba Acam
bolo, assentando sua tenda de campo em hum Alto ao pé de
huma grande Arvore chamada Licondo, atirando dali seus
tiros de Espingardas e Mosquetes ao Ar, dando signal de
que ali estava; o que já havia feito da outra vez quando foi
da perda da Cavala ; e mandando - lhe da sua Ilha que está
em frente perguntar o Capitão e Cabo da Coamza Fernão
Rodrigues que he o que queria ? e se nos vinha ajudar con
tra o Flamengo como nosso Amigo e Vizinho; respondeu
que elle vinha para aquellas suas terras caçar; ao que lhe
disse aquelle Capitão , fazendo do Ladrão fiel, que elle vi
nha para a Villa, com alguns homens que ali tinha , acudir
ao serviço del Rey e defensa da terra ; que toda a gente que

506
naquella Ilha tinha, seus Escravos e os mais que nella havia
lhe deixava entregue para coma amigo lho guardar; ao que
respondeu : queoaba, (' ) está bem .
Tambem succedeu estando as cousas neste estado ir o
Sargento mor Pedro Barreiros de noite ao Corpo de guarda
onde estavão presas as duas Infantas Irmaãs da Rainha
Ginga, Dona Gracia, e Dona Barbara, ou com ordem dos
Governadores ou sem ella , mandar por seus Negros carregar
ás Costas ambas as Irmaãs; e como se vio o intento, e para
que era, lhe forão á mão a respeito de Dona Barbara que
não fosse morta daquella sorte, pois sempre havia sido in
clinada á Nação Portugueza, favorecendo sempre os nossos
Portuguezes estando prisioneiros, ás escondidas da Raynha
sua Irmaã : Quem fez bem sempre teve seu galardão, e quem
mal , seu devido castigo, como a esta Dona Gracia, que era
talhada pella medida da Irmaã, em maquinar traycoens con
tra a Nação Portugueza , e dando avisos de tudo o que o
que entre nós passava , e ainda assim presa o fazia; e era
tão altiva , que quando havia rumor que passava o nosso
Rey de Dongo Dom Phelipe Angola Airi, pello não ver
mandava pôr huma esteira diante que tanto odio lhe tinha
por ser feitura del Rey nosso Senhor e dos Portuguezes
seus Vassallos; e era seu Irmão por parte de seu Pay An
gola Aquiloamgi Rey de Angola, e o reputavão por filho
de Mocana por ellas serem filhas da Mulher principal del
Rey seu Pay; mas nenhum delles de Legitimo Matrimonio,
porque então o não usavão, vivendo na sua Gentilidade, mas
erão preferidos á Successão do Reino o filho da Envala
Ineni e Mulher principal.
Levada por Pedro Barreiros a mandou botar por hum

© Queoaba, quer dizer no nosso Idioma Portuguez está bem .


(Nota marginal do Autor ). É: kiauaba.

507
Negro seu em huma futa (* ) ou pego no Rio Coamza; e foi
muito haver Negro que ouzasse a pôr lhe a mão, porque
para elles era cousa sagrada, mas felo por medo, e seu Se
nhor estar á vista; fez- se este excesso , se assim se pode
chamar, em recompensa e castigo do que ella marecia, e a
Rainha Sua Irmaã porque lhe chegassem as novas de gosto
misturadas com pezares, porque se festejasse o haverem - nos
morto, o Flamengo e o seu Capitão Geral a hum Capitão
mór tão valerosa e de tantas partes (2 ) em Companhia de tan
tos Portuguezes, e de Fungi Amusungo, Capitão Geral do
Quilombo de Cabucu, com alguns Quilambas Capitaens de
muito valor, e muitos fieis á Nação Portugueza, tivesse tam
bem esta nova de tanto pezar para ella de contrapezo .
Muitas vezes castiga Nosso Senhor aos filhos pellos
peccados dos Pays; e tambem com lhe tirar diante dos olhos
a cousa que mais amão, que ninhuma pessoa humana póde
comprehender seus secretos juizos; o que se pode alludir a
esta nossa inimiga , pois por ser Rainha e Senhora absoluta,
houve com astucia ás mãos o Princepe seu Sobrinho her
deiro do Reino de Angola, filho de seu Irmão Angola Am
bandi Rey daquelle Reino, e Neto de Angola Aquiloangi,
que havia reinado como seus Antepassados, de quem estas
boas peças erão filhas, como já se disse em a primeira parte
desta historia , e acolhendo ás mãos, como se disse, o man
dou botar naquelle mesmo Rio por lhe uzurpar o Reino de
que era Legitimo herdeiro ; e como a Rainha Ginga não teve
filhos permittio Deos por seus Secretos Juizos e Divina Pro
videncia que morresse pello mesmo estilo a cousa que ella
mais amava, que era esta sua Irmaã de sua mesma naturesa
delineada á sua semelhança ; o que alludio com seu engenho

Futa, chamão na lingoa Ambunda de Angola aos pegos que


são fundos. ( Nota marginal do Autor ). É Difuta , mafuta .
© Gaspar Borges Madureira.

508
em materia quasi semelhantes o nosso insigne Poeta Luis
de Camoens em hum quarteto das oit.a. Rimas das suas
Lusiadas.

Occultos os Juizos de Deos são


ás gentes vaās, que não nos entenderão,
Chamarão -lhe fado máo , fortuna escura
sendo só providencia de Deos pura.

Vendo o Flamengo que por aquella banda não pudera


reconhecer as nossas fortificaçoens, passado da outra banda
da Lucala, veyo pella surdina pellos Altos da Quinbanza
a descubrir o que dezejava tanto ver; descuberto tudo da
quella eminencia , esteve vendo muito de seu vagar, com seus
oculos de ver de longe a nossa fortificação; e olhando para
o Forte da invocação de São João, sito na eminencia do Pa
drasto, disse, aquelle estar diabo! porque como era conche
gado e alteroso fabricado conforme manda a Arte das for
tificaçoens; não lhe deu a Fortaleza grande tantos receios
como aquelle Forte a que davão o titulo de diabo, e nós de
Deos, e do seu precursor seu Primo emquanto á carne, o
niayor dos nacidos de Mulher; e bem mayor era, pois
aquelles inimigos o respeitavão por tal ; Voz que clama no
deserto tambem lhe combinava, pois naquella eminencia onde
aquelle Forte estava, não tinha companhia nenhuma ao de
redor, que bem deserto era e se podia chamar, e tinha a voz
da sua Artelharia e bocas della para dar muitas vozes con
tra os inimigos da Lei de Deos e seu Santo bautismo, e dali
apontava tudo com seu divino dedo, mostrando que, se não
perdoava peccados, defendia com sua protecção aos peccado
res alcançando graça para elles , de quem era a fonte della.
O Santo Negro chamado em outro tempo Rosanbuco, e
agora São Benedito de Palermo, como aquelle que naquella

509
Fortaleza tinha a mayor parte, assim com o seu templo e
Caza . como em o mais principal baluarte de sua invocação,
o que tambem á porta principal daquella fortificação para
a banda daquella Villa, espritaria aquelle numeroso Gentio
de sua côr, e não dos seus costumes , não fossem offendidos
os Soldados, e Fortaleza que amparava como principal
defensor, e o que elles perdião por sua soberba e idolatria
elle alcançava para com Deos por humilde, e Catholico, pois
havia isso professado em a Seraphica Religião, sendo Frade
da Terceira Ordem .
E a Virgem e Senhora dos Remedios que naquella
Igreja tem sua Imagem e Confraria, alcançou graça de seu
bemdito filho para que não fossem ultrajadas daquelles ini
migos tantas Donzellas Orfaãs sem Pays, e Viuvas sem
Maridos, que já que havia permittido fossem mortos na hos
tilidade da guerra , não tivesse detrimento o Sexo feminino.
E o principe da Igreja Catholica, e Capitão Geral das
Gerarquias Celestes o Archanjo São Miguel, naquella mesma
Igreja estava accompanhando com sua Confraria aquellas
bemditas Almas como fiel do Campo , permittiria formar
huma Legião dellas armadas todas de punto em blanco com
quem faria terror e espanto aquelles perfidos inimigos de
Deos, e de seu Santo nome, e lhe diria quem como a Deos!
pois daquellas cores se fizerão aquelles que com o seu sin
gular valor tinha por sua soberba botado nas profundezas.
Tinha -se tambem aquelles inimigos quando forão derrota
dos do escontro do esteiro do Sambi, dando (") mostras de seu
poder a nossa Fortaleza, pello nigrume de tanto Gentio lhe
fizerão do baluarte que estava para a banda da Lucala al
guns tiros com a Artelharia, para lhes dar a entender o valor
de seu Calibre, e o quanto alcançávão com seu curso ; vendo
c Flamengo a preparação e valor com que estava a gente

(" ) dado.

510
Portugueza em Masangano tratou de se retirar para a Ci
dade; e antes de o fazer mandou abrazar todas as fazendas,
daquella dilatada Vargea do Lombo, que já estava outra
vez redificada das Cazas e farinheiras, despois da primeira
queima e incendio quando foi da perda da Cavalla, dando
aquelle inimigo fé e palavra; mas que digo, fé ? elles a não
tinhão, antes erão contrarios aos que a professavão; palavra
tão pouco havia nelles! pois a não tinhão guardado em mui
tas occazioens; pois como diremos logo promettendo a todos
aquelles Sovas que logo tornarião a acabar com Masangano
de huma vez; que se hião a refazer de gente, e buscar Ar
telharia com que bater aquella Villa e Fortaleza.
Vendo o Capitão Geral da Rainha Ginga, Ginga Amona
que o Flamengo não acabava aquella empresa que elle tão
encommendado trazia de sua Senhora, se apartou com sua
guerra descontente, pois não levava as Infantas Irmaās da
Rainha sua Senhora; mas já que as não levava, ao menos
lhe levava aquella boa nova de haver escorregado huma no
Rio Coamza, que tudo o que passava de huma e outra parte
se sabia pellos Negros que fugião de huma parte para a
outra . Foi- se o inimigo retirando pellos Altos da Coamza,
caminho que havia feito da outra vez ; não levava muito
despojo; porque nesta occazião não tinhão entrado onde o
adquirissem , salvo alguma cousa que apanharão no destroço
da nossa gente; o que elle então levava muitos feridos e
doentes, e muitos mortos que cá deixava, para o despois lhe
virem fazer as exequias que elles costumão. Desafogado
Masangano daquella oppressão tamanha, tomarão outra vez
folego hindo primeiro dar as devidas graças a Deos, e a sua
Santissima May Senhora da Victoria como Padroeira da
quella Villa. Ainda neste tempo estava o Sova da Quisama
Mulumba Acambolo á vista da Villa em o seu sitio já delle
mui versado, e se tinha vindo para ali, para que em caso
que a Villa e Fortaleza fossem entradas do Flamengo, para

511
elle ficar bem aquinhoado em muita parte da Escravaria da
gente portugueza, que de necessidade se havião de passar
para aquella banda da Quisama por se livrarem do cativeiro
do Flamengo, e mais Gentio; e elle vinha ali pôr -se para os
receber, e se aproveitar de tudo o mais que pudesse; o que
visto pellos Governadores mandarão salhar huma peça de
Artelharia meya Colubrina e lhe fizerão alguns tiros com
bala rasa ao Ajuntamento e Tenda posta ao pé do Licondo
de sua sombra , com que levantando a Tenda ou Tululo se
forão amparando das Arvores, porque alguns devião de ter
pago o pato.
Foi cousa que admirou que aquella Arvore que entre
muitas que ali havia era a mais frondosa, alta e de mais som
bra, fazer sentimento como Criatura criada da divina mão
se bem corpo sem Alma, de que aos que Deos a infundio se
bem Idolatras com alma e sem ella, pois erão filhos de Sa
tanas, viessem a fazer parada e recreio á sua sombra, a
opposição dos que tinhão alma de Deos, e não do Demo,
como quem mostrava pezar de ser emparo de semelhante
gente , se foi apodrecendo e cahindo seus grandes troncos
c pernadas, pedaço a pedaço, não permittindo Deos que fosse
amparo sua sombra de tantas maldades quaes ali se fazião.

512
CAPITULO TERCEIRO DA QUINTA PARTE DO
PRIMEIRO TOMO DA HISTORIA GENERAL DAS
GUERRAS ANGOLANAS NO GOVERNO DOS TRES
GOVERNADORES.

Todos os Sovas Vassallos de Sua Magestade ficarão á


voz do Flamengo rebellados contra a Nação Portugueza e
Vassallos destes Reinos, esperando pello que lhe havião
promettido os Belgas afim de se acabar o nome Portuguez
em Angola : que em gente noveleira e malcontentes, sempre
há nella dezejos de melhoramentos, e tal vez lhe servem
mais de sua ruina, principalmente os que são sogeitos a es
cravidão que o mesmo nome de Escravos está com os animos
appellidando liberdade; e succede muitas vezes darem em
outro jugo, e cativeiro mais rigoroso do que até então havião
tido : esta razão de mudar de estado engana o parecer das
Gentes barbaras, pois os não deixa conhecer que os Portu
guezes, como Catholicos filhos da Santa Madre Igreja de
Roma e Vassallos de hum tão pio e Catholico Principe, havia
de ser differente o seu trato para elles, do que o de Gente
de contraria Ley, que lhe ensinaria diversas Seitas, perver
tendoos e tirandoos do caminho da salvação; mas quem trata
de melhoras, não sabe avaliar o que lhe virá a succeder.
Com estes presupostos estavão quasi todos alevantados,
mui tibiog na fé e Lealdade devida. Vendo os Governado
res este desconcerto que o tempo noveleiro havia causado,
e era forçoso acudirlhe ao remedio porque se não atrevessem
de tal calidade vendonos encorralados em Masangano, que
viessem a estado de não sermos Senhores de sahirmos das
fortificaçoeng a buscar o sustento necessario ; e que atraz
dog Sovas Vassallos fossem a Escravaria dos Portuguezes
que era principal membro da nossa Conservação; para o

513
que tirando forças da fraqueza, tratarão de pôr guerra em
campo por reputação de nossas Armas, e serem castigados
os que mais se mostravão desaforados, nomeando por Ca
pitão mór da guerra a Manoel da Nobrega que já o havia
exercitado quando foi da perda da Cavalla ; e por Sargento
mór a Antonio Dias de Macedo com Capitaens e gente bas
tante, com o Capitão de Cavallos Estacio de Sãa de Miranda
com a gente de a Cavallo que então havia, com Quilambas
e gente de Jagas, e Escravaria de Portuguezes; hia accompa
nhando as Bandeiras del Rey nosso Senhor Dom Francisco
Principe de Domgo filho del Rey Dom Phelipe Angola Airi
Senhor das Pedras do Mapungo com hum troço de gente
de guerra do seu partido.
Com dito poder passou da outra banda do Rio Lucala,
e foi fazendo sua marcha para a Provincia da Ilamba e sitio
da Calaranza terras e Senhorio do nosso Quilamba Ma
lange Abamgo bamgo, onde fez Alto o seu Allojamento
mandando daquella paragem castigar alguns Sovas rebel
des; e em quanto o deixamos neste serviço com dita expe
dição, veremos o que neste tempo passava em a Villa de
Masangano .
He cousa mui ordinaria na nossa Nação Portugueza não
renderem de boa vontade adoraçoens aquem lhe parece he
seu igual em Calidade e merecimentos, e mais principal
mente em esta Ethiopia tão remota do nosso Portugal, que
não tendo o governo algum fidalgo vindo do nosso Reino
de illustre Sangue da igualdade de tanta fidalguia que a
estes Reinos tem vindo, de que se tem feito menção, e dos
mais se fará no segundo tomo quando o tempo e annos dem
lugar ao Autor desta tão dilatada historia em o pôr em limpo;
só esta excellente gente são os respeitados e temidos, que
como se criarão longe tão distantes, e não tiverão com elles
tanto maneio e conservação he cousa mui differente ; que por
isso disse aquelle entendido, que la mucha conversacion es

517
causa de menos precio, con el nescio ; o governo de tres & ."
pello que dizemos foi causa em alguns Moradores dos prin
cipaes haver nelles aborrecimento; não porque elles não fos
sem das pessoas principaes destes Reino, se não porque a
pouca união que entre elles havia causava desacertos, por
que todos vem o argoeiro no olho alheio e nenhum o vê no
seu ; succedeu ir hum dia o Capitão Antonio Dias de Ma
cedo neste tempo Sargento mór da guerra com huma sua
petição sobre certo requerimento, e dizer-lhe o Secretario do
Governo Sebastião Rodrigues que emendasse sua Merce a
petição, porque estando em Governo se lhe devia dar Se
nhoria ; o Capitão tinha sua veya de Poeta, entrando ali
perto em huma Caza pedio tinta e papel e escreveo o se
guinte :

Se a Deos chamão por tu,


e a el Rey chamão por vós,
como chamaremos nós,
a tres que não fazem hum,
que o povo indiscreto, e nú
falto de experiencia, fez
em lugar de hum estes tres
que com toda a Cortezia
tú, nem vós, nem Senhoria
merecem suas mercês .

Com estes e outros modos havia alguns malcontentes,


que faz muito endeosar isto de governar filhos alheos; o
que vendo estes descontos o senado da Camara tratou de o
querer enmendar com que não houvesse mais de hum; para
o que mandou avizar pello Alcayde aos bons do povo que
era do serviço da Rapublica que ás tantas horas da tarde
se achassem em caza de Josephe Carrasco, por não haver

SIS
paço do Concelho, que servia então de Juiz mais velho :
alguns forão e outros não , por não serem todos amigos de
novidades; com os que ali se acharão se discutio sobre esta
materia ; mas como nos que estavão no governo, nem nos
que estavão de fora havia nenhum Scipião Africano , nem
nenhum Heitor Troyano, se não conferio nada ; mas o que
gião puderão fazer Senado Cidadoens e Moradores o fez a
Infantaria que havia ficado na Villa que não tinhão sahido
á Campanha; e como og mais delles tinhão seu allojamento
dentro da fortaleza onde tambem moravão os tres Gover
nadores e alguns particulares: pegarão huma noite nas Ar
mas e guarnecendo o baluarte de São Benedito , e tomadas
as tres portas que havia na Fortaleza, começarão da mu
calha a appellidar, Viva el Rey Dom João, e morra o máo
governo; ao som de suas vozes, hião junto as de suas Ar
mas : aquella noute foi tudo huma confusão que bastava se - lo
para trazer todo o máo com sigo; no principio do motim tendo
alguma noticia o Governador Antonia Teixeira de Men
donça, vindo rondando os Quarteis com alguns Capitaens
que o accompanhavão e outros particulares, achando hum
Magote de Infantaria , se não deixarão reconhecer, antes hum
delles fallou algumas palavras maltoantes, com o que o
Governador meteo mão a huma pistola, e disparando deo
por hum braço de hum, e por serem muitos não tratou de
os prender : o Capitão de guarda no Corpo de guarda prin
cipal com outros Soldados que se lhe chegarão , que não
erão daquelle partido, por nome Jorge da Silva, sustentou
com muito valor e disposição o seu Corpo de guarda em que
estava defendendo delle a Feitoria da polvora e mais muni
çoens, porque os do Alvoroto se não provessem della, do
brandolhe as sentinellas; poz tambem gente de guarda ás
portas dos Governadores, porque naquella agoa envolta
lhe não perdessem o respeito .
Achouse nesta occasião o Alferes do Presidio Manoel

516
Soares Laço dentro da fortificação, com o Capitão mór da
Villa e Governador seu Primo; e como tinha o seu Corpo
de guarda e gente da Lotação do Presidio fora, e as portas
estarem tomadas pella Infantaria amotinada, lhe foi forçoso
sahir para fora, e o não podia fazer se não por hum Cano
por onde aquella Fortaleza desagoava suas agoas e immun
dicias: sahido que foi achou alguns oitenta homens daquelle
Presidio juntos os mais delles Moradores e Soldados velhos
da Conquista do Sertão; mandou aviso ao Capitão mór e
Governador que visse se lhe era necessaria aquela gente
dentro para sustentar o seu partido, que elle entraria com
ella pella parte por onde havia sahido; o que não quiz con
sentir, vendo o estado do Reino, antepondo sua honra ao
serviço de Sua Magestade e conservação destes Reinos,
porque se não fora tão servidor del Rey , metendo os oitenta
homens que valião por muitos dentro com o Capitão que
estava no Corpo de guarda com mais outra gente Morado
res e Soldados pudéra - se melhorar e derrotar os do motim ,
o que se não podia fazer sem mortes e perda de gente de
parte a parte; que isso folgárão os nossos inimigos de ver,
assim o Gentio como o Flamengo em a Cidade, e mais
azinhão tratarião da nossa ruina que já a estavão preditando.
Não deixavão os do alvoroto entrar na Fortaleza se não
os que erão do seu bando, e hindo hum morador que tinha
razão de parentesco com os do Governo lhe perguntárão,
quem Vive respondeo vive el Rey nosso Senhor Dom João
o quarto, repetirão el Rey Phelipe retire-se, e o fez mais que
de passo; (' ) e logo vierão zunindo algumas balas; estavão
alguns com grandes espiritos que como tinhão dentro da
Fortaleza hum Flamengo que tinha taverna daquelle oleo

() Parece que deve ficar assim : – lhe perguntarão: Quem vive ?


- Respondeu: Vive El Rey nosso Senhor Dom João o quarto . Repeti
rão el Rey. Phelipe retire -se, e o fez mais que de passo ...

517
distilado gota a gota pello Lambique, que elles algumas
havião metido na barriga ás Canadas, estavão com grande
Corragem , dizendo os que lhe tinhão bem tomado o gosto,
Viva o suor de Roberto, que assim se chamava o Flamengo
dos Lambiques.
Nunca succedem estes movimentos que não tenhão seus
cimentos, que não seja na pessoa propria e nos seus affeiçoa
dos e devotos ; tiradas as trevas da noite que havia sido tão
tenebrosa para muitos, se bem alegre para outros, amanheceo
o dia e se começou a conferir as Conveniencias pello Senado
da Camara, para aquelle negocio se por em socego e quie
tação que tanto importava á saude de todos; hião e vinhão
Embaixadas estando a Camara junta em a Igreja Matriz
onde hum Letrado por nome João Soares Pacheco orou, e
da sua oração sabendo della os da Fortaleza, não ficarão
satisfeitos de que resultou acestarem - lhe huma peça de
Artelharia para a sua casa , o que sabido pela Camara lhes
mandou dizer não fizessem tal demostração, pois aquelle
Letrado não era o que havia de governar, e pôr em ordem
semelhante negocio ; que elles havião de fazer o que mais
fosse do serviço del Rey, e conservação e quietação de todos.
Passou - se aquelle dia e a noite seguinte estando tudo
sobordinado ás ordens daquella Infantaria e de seus Cabos,
dos quaes era o principal André Caldeira, Ajudante Refor
mado natural da muito nobre e Leal Villa de Abrantes, que
teve o Governo destes Reinos em suas mãos quarenta e oito
horas; que tambem hum pobre ha de ter algum dia seu lugar,
como o teve em o Reino de Napoles sete dias hum pescador;
mas em tal parou ella que ninguem sahio fora da sua es
fera por semelhantes Caminhos que não tivesse a sua cahida
serta : ao outro dia se ajuntou outra vez o Senado da Ca
mara em a Igreja Matriz de Masangano, junto com o Vi
gario Geral , o Mestre Escola Francisco Pinheiro, onde
mandarão chamar a votos Cidadoens e Moradores, e bons

518
do povo, a que tambem se acharão os dous Governadores
João Zuzarte de Andrade e Antonio Teixeira de Mendonça,
por permissão da Infantaria dominante; e forão os primeiros
que votarão ficasse no Governo Bartalameo de Vasconcellos
da Cunha, por terem entendido de que assim o deseja a
Infantaria, e que não virião em que o fosse outro ; e por ve
rem que assim convinha ao serviço de Sua Magestade, e por
haver muita gente particular que querião o mesmo.
Forão - se tomando os votos (1 ) canonicamento como he
estilo e aos mais votos sahio eleito novamente Bartolameu
de Vasconcellos da Cunha, o qual se foi buscar á Forta
leza, e dada novamente a homenagem em nome de Sua Ma
gestade nas mãos do Senado da Camara e de seu Juiz mais
velho fazendo- se os mais Autos e Ceremonias costumadas
em semelhantes occazioens, abrindo - se o sacrario , cantan
dose a te Deos Laudamos: feita esta solenidade se levantou
em pé o Licenciado João Soares Pacheco, dizendo Viva o
Senhor Bartolameu de Vasconcellos da Cunha ; o que res
ponderão , Viva! huns com a boca aberta e outros entre
dentes com ella fechada; dali foi levado á Fortaleza onde
tinha sua casa de morada accompanhado de todo aquelle
concurso abrindo, ou mandando abrir o famoso Cabo da
quella Infantaria a porta principal da Fortaleza , se achou
dentro toda a Infantaria posta em ala da porta até a casa
do Governador novamente eleito, e o seu caudilho posto na
Vanguarda com hum chuço na mão , e hum chapeu de palha
na cabeça, capitaneando aquelles Infantes de que havia sido

( Os tres governadores ainda governavam em 11 de Novembro


de 1647; nesta data assinaram uma provisão de mercê do habito de
Christo feita ao quilamba João Bango -Bango. Consta do Arquivo da
Secretaria Geral do Governo de Angola, publicada no folheto « Subsi
dios para a historia de Angola ».
Loanda - 1818 — na pag. 20 e 21 .

519
governador, estando tudo o mais á sua ordem , excepto o
Capitão Jorge da Silva, que sustentou o Corpo da guarda
as mesmas quarenta e oito horas, tendo conta com a feitoria
da polvora, pondo sentinellas e guardas aos Governadores,
e rondando os seus postos com grande cuidado e zelo do
serviço de sua Magestade.
Ficárão com aquella eleição aquella Soldadesca do Al
voroto mui satisfeitos, e lhe forão com muito contento en
tregar as chaves da Fortaleza, cedendo seu bastão ou chuco
que empunhado tinha o Cabo daquella empreza; e com isto
ficou tudo com algum socego e quietação, mas não fóra de
ruins successos como os tinha havido até então.

520
CAPITULO QUARTO DA QUINTA PARTE DA
HISTORIA GENERAL DAS GUERRA ANGOLANAS
NO GOVERNO DO NOVAMENTE ELEITO BAR
TOLAMEU DE VASCONCELLOS DA CUNHA.

Antecedente. Tomada novamente posse do Governo des


tes Reinos, Bartolameu de Vasconcellos da Cunha foi dis
pondo a direcção delle conforme as occurrencias dos negocios
o pedia; e vendo que estava a guerra em Campo a foi for
necendo e despedindo- lhe ordens; havia o Capitão mór
Manoel da Nobrega (* ) do sitio de Calaramza mandado cas
tigar alguns Sovas daquella Provincia da llamba, assim dos
novamente rebeldes como dos antigos, e havia dias que es
tava naquella expedição; huns e outros Sovas chamavão ao
Flamengo em a Cidade da Loanda em seu amparo e favor,
contra as hostilidades feitas contra elles pellas Armas Por
tuguezas; a Rainha Ginga Dona Anna de Souza mais acesa

) Como se viu na nota antecedente, este governador foi eleito de


pois de 11 de Novembro de 1647 .
O autor diz que foi em 1647. Existe no Arquivo Ultramarino uma
carta de João Zuzarte de Andrada, (um dos companheiros de Bartolo
meu da Cunha no governo anterior ), datada de 30-3-1653, na qual ele
diz que a eleição do Cunha foi em 15-8-1648 em Massangano. Esta
carta está com muitas outras que tratam da mesma eleição, em 14-2-1653.
- Mas, se os factos que Cadornega conta neste capitulo foram reali
zados governando o Cunha sosinho, então a eleição dele foi pelo menos
nos meados de 1648; e isto pela data dada neste capitulo, um pouco
adiante, da morte de Manuel da Nobrega, que é certo ter sido em
1-8-1648 .
Não ha meio de se saber a certeza; mas, para ter sido eleito em
15-8, parece muito pouco tempo entre as realisação dos factos relatados
neste capitulo e a chegada, a Massangano, da noticia da restauração
de Luanda.

521
que nunca em nosso odio , assim por antiguidade como agora
proximo, a respeito do successo daquella sua Irmaã, que ella
tanto queria e amava , por lhe faltar entre nós quem com
tantas veras lhe fizesse os avizos de tudo o que entre os
Portuguezes passava; por estas causas mandava ao Fla
mengo muitas Embaixadas com grandes offertas e dadivas,
persuadindoos a que acabassem com o fogo de monturo de
Masangano, que quasi arruinado permanecia, de que ella
tinha grandissima pena de saber que estava em ser, fazendo
partidos que viria em pessoa com toda a sua guerra ; o
mesma promettia e persuadia el Rey de Congo Dom Gracia,
offerecendo todo o seu poder, para que de huma vez se
acabasse com os Portuguezes, esquecido das grandes obri
gaçoens que devião os Reys seus Antepassados aos Sere
nissimos Reys de Portugal, fazendo tantos dispendios de
sua Real fazenda, só afim de os meter no Caminho da Sal
vação, e defendelos de seus inimigos, hindo Rui de Souza
por mandado del Rey o segundo do nome Dom João, com
tres navios tomando o porto de Sonho, (' ) e não de Sono
como diz algum Autor, e dali por terra a Corte del Rey de
Congo, onde mandou fazer Igreja , e começou com os Reli
giozos que levava a plantar a Siara da Senhor, bautizando - se
aquelle poderoso Rey com o nome de João, a respeito do
nosso Rey (? ) e a Rainha sua Mulher com o de Leonor em

a) O Conde de Sonho se chama Manisonho que no edioma de


sua lingoa quer dizer o Senhor da Vergonha, Mani he Senhor, e Sonho
he vergonha como dizermos he homem de vergonha. (Nota marginal
do Autor ).
A palavra mani não é do Congo nem de Angola; deve ter sido
da Guiné ou da Costa da Mina. Mesmo que existisse no Congo faria
Mani Soia . De Soio fizemos nós Sonho . Sonhi em Kimbundo não
deu Manisonho. Vergonha era e é em Congo asoni e em Kimbundo sonhi.
(*) Foi em tempo del Rey Dom João o segundo e da Rainha Dona
Leonor sua Mulher. Era de 490. (Nota marginal do Autor ).

522
razão tambem da nossa Rainha Dona Leonor, e muitos mi
lhares de seus Vassallos muitog delles com o appellido de
nossos Reys em memoria de haverem plantado aquella pri
meira Christandade e com a Bandeira da Santa Cruz al
cançar logo huma tão assinalada Victoria; hindo o mesmo
Rui de Souza com os Portuguezes em sua Companhia bau
tizando -se despois o Principe com o nome de Afonço que
andava auzente , tomando este appellido em obsequio del
Rey nosso Senhor Dom Afonco o quinto chamado o Afri
cano, Pay del Rey Dom João o segundo, sendo isto na era
de mil e quatrocentos e noventa e um annos.
Agora este Rey Dom Gracia chamado o Quimpaco pa
gava aos Portuguezes tantos beneficios quantos havião re
cebido seus Progenitores, da Real Coroa de Portugal , com
se confederar com o Flamengo nosso inimigo, só a fim de
querer ver destinguida a nação portugueza destes reinos.
Com estas confederações caviladas de novo , tratou o Fla
mengo de sahir a Campo com o poder que pôde botar fora
da Praça da Loanda, de trezentos e tantos homens que lhe
parecia bastante as grandes ajudas que tinha, e intento que
levava; incorporado com toda a guerra del Rey de Congo e
seu Governador da Ilha da Loanda Dom Christovão Corte
Real com a gente Mixiloanda de sua Juridicção, foi mar
chando e a poucas jornadas se encontrou com hum grande
poder de Jagas guerra da Rainha Ginga Capitaneada pello
seu Capitão Geral Ginga Amona , e outros Capitaens esfor
çados, ficando a Rainha dali a pouca distancia com o resto
do seu Quilombo.
Forão marchando por aquella Provincia da llamba, onde
se lhe forão ajuntando todos aquelles Sovas com sua guerra ,
em demanda do nosso alojamento do nosso Arrayal, da qual
marcha tendo noticia o nosso Capitão mór, sahio a encon
trar o inimigo; mas como não sabia parte certa em que esti
vessem , e marchava hum para o outro; hia a nossa gente a

523
desfilada, e talvez com algumas quebradas que não dava o
mato nem o caminho lugar para outra cousa , hindo com tudo
o Capitão mór com animo Portuguez em busca do inimigo,
assim naquella conformidade de sua marcha, quando impen
sadamente deu com o inimigo Flamengo formado em Esqua
drão em hum limpo que aquelle mato fazia, não havendo
mais daquelle caminho que era passagem ; assim que foi des
cuberto , foi o Capitão mór com muito valor incorporando a
sua gente como pode, sem a poder formar como havia de
ser; com tudo investio ao Flamengo com tanto esforço que
lhe entrou o Batalhão, fazendolhe muito dano, havendo mui
tas mortes de parte a parte que durou hum grande espaço
a contenda; mas como a nossa gente toda junta não faz a
investida e accomettimento , por virem prolongados, serrou
aquelle numeroso Gentio com a nossa Infantaria , que não
havia chegado com os da Vanguarda, começando a degolar,
com que faltou ao Capitão e mais Cabos quem os fosse soc
correndo , hindo o inimigo disparando muitas surriadas das
suas Companhias de Cravineiros, com que nos forão matando
muita gente, e entre ella foi o Capitão mór Manoel da No
brega (' ) que havia pelejado com muito esforço como Soldado
antigo Conquistador; faltou tambem o Sargento mór Anto
nio Dias de Macedo que havia em muitas occazioens pro
vado a mão com elles, e nesta mostrou o esforço que o
accompanhava, á custa de muitos inimigos; forão faltando
outros Capitaens de valor como o Capitão de Cavallos Esta
cio de Sáa de Miranda, obrando grandes proezas como a
sua Calidade o pedia; o mesmo Manoel Godinho e Julião
Dias, ambos bons homens de Cavallo que vendérão muito

( ) A morte do capitão mór Manoel da Nobrega foi em 1-8-1648 .


É isto dito nas pag . 22 e 27 do folheto «Manifesto das astillidades que
a gente que serve a companhia occidental de Olanda obrou contra os
portugueses» . Foi escrito por Luis Felix da Cruz em 1651.

52+
valerosamente as vidas como bons Soldados; tres filhos do
Capitão mór Payo de Araujo de Azevedo, Manoel, Fran
cisco e Carlos, Araujos e Azevedos, fizerão a Cavallo feitos
honrados incorporados todos tres, com a união de Irmãos,
venderão bem as vidas á custa de muito sangue inimigo,
assim Flamengo, como Gentio, imitadores verdadeiros de seu
Pay; Antonio Teixeira da Fonseca, filho de Diogo Teixeira
da Fonseca obrou maravilhas, com outros muitos Soldados
de grande valor e esforço, que em muitas occazioens de
guerra tinhão mostrado o quanto valião, e nesta venderão
bem suas vidas á custa de muitos inimigos, assim Hollande
zes como Gentios.
Morreo tambem nesta occazião o Principe Dom Fran
cisco filho del Rey de Dongo pelejando com os seus com
muito valor, que era grande Soldado, imitador de seu Pay,
até mais não poder largando a vida gloriosamente com muita
perda dos contrarios; de modo que tudo nesta occazião pere
ceo , e só della escapou a Cavallo Fernão Mendes Pinto de
Angola, transformado em Manoel Cardozo que trouxe as
novas deste destroço a Masangano. Considere o pio Leitor
o pranto e choros que haveria naquella Villa , faltando - lhe a
humas os Maridos, a outras os filhos, e a todos o amparo de
nossa defensa, pois em aquella guerra e gente consistia parte
da nossa conservação.
Estando todos em geral postos em tamanha aflição e
muito mais por haver noticia do intento de nossos inimigos,
que era o seu fito acabar de huma vez com tudo o que a
Coroa de Portugal possuhia e havia conquistado nos Reinos
de Angola á custa de tanto sangue Portuguez e gastos de
sua Real fazenda, sendo o intento principal daquelles Prin
cipes e Catholicos Reys a propagação da fé Catholica extir
pações de idolatrias em que se havião tanto cançado, man
dando a isso grandes Sugeitos que trabalhárão na vinha e
Seara do Senhor, principalmente os Reverendos Padres da

525
Companhia de Jesus, que, assim como nas mais partes do
mundo tinhão obrado com sua singular doutrina, obrarão
tambem nestas remotas partes da Ethiopia occidental, desde
o principio de seu descubrimento e conquista grandes Con
vercoens, com estes barbaros e Idolatras Gentios, trazendo
muitos delles com suas pregaçoens e exortaçoens e Santas
amoestaçoens ao conhecimento da Santa fé Catholica, e ca
minho da Salvação, principalmente no Reino de Angola, e
no de Domgo despois de sua separação, sacrificando suas
vidas por Deos, entregues ás calamidades da asperesa do
Sertão , onde muitos largarão as vidas com doenças e máo
passar. O mesmo obrárão naquelle populoso Reino de Con
go, convertendo muitas almas a Deos com sua exemplar vida
e Santas admoestaçoens, o que para se especificar havia mis
ter huma grande escritura; e como esta historia o mais della
he do Reino de Angola toca algumas cousas de passagem
daquelle Reino de Congo seu Autor.
A tenção do Flamengo e dos seus Colligados era mar
charem para a Enbaca onde tínhamos a mayor força de
guerra preta em aquella nossa Fortaleza e sua Capitania ,
assim escravos e gente forra dos Portuguezes, os mais dos
rossos Quilambas, o Quilombo do Jaga Cabucu, que já
havião feito Senhor despois da morte de Fungi Amusungo;
não fallo nos muitos Sovas que esses erão traydores contra
os Portuguezes por nascimento , e mais estando de permeio
a Rainha Ginga sua Senhora antiga , qual delles ficaria que
não seguisse sua voz e partido, e dahi a dous dias de cami
nho dominarem o Rey de Domgo Vassallo del Rey nosso
Senhor, e hoje de sua Alteza o Principe nosso Senhor que
Deos guarde, com sua Fortaleza das Pedras do Mapungo,
seu Reino, e Senhorios, que igoalmente com os Portuguezes
dezejava aquella inimiga commua destruir e abrazar por se
haver separado e dividido de sua Real Coroa; e tendose apo
derado do mais remoto da nossa praça de Armas de Masan

526
gano, descendo á Fortaleza, Presidio, e Capitania de Cam
bambe sogeitandoa da mesma maneira; despois de estar tudo
por fora sugeito a seu dominio pôr a Masangano em Cerco
a Rainha Ginga pella entrada de terra em os Outeiros de
Mulundo Acaculo, que vem direito a Lagem ; e o Flamengo
com o mais Gentio da banda do Rio Lucala , sem deixar sahir
por huma parte nem outra gente Portugueza, nem seus Es
cravos a buscar o sustento aos Arimos e fazendas do Lembo :
deste modo o levarão preditado, e o conseguirião sem duvida,
que até os mesmos nossos Escravos havião de titubar na
Lealdade, vendonos cercados e aquella nossa inimiga tão á
vista; tudo o aqui referido era sabido pello Gentio que sem
pre estava fugindo de huma parte para a outra, e causava
em os Portuguezes muita afflição em seus coraçoens, princi
palmente na gente feminina, que erão mais de novecentas
Almas a fora os homens que erão mais de setecentos; ven
dose todos em vesporas de serem ultrajados daquelles tão
crueis inimigos de Religião tão contraria á Catholica Ro
mana, vendose sem nenhum remedio humano mais que o de
Deos e de sua May santissima, pello qual continuadamente
chamavão com ferventes oracoens, ou frequentes oracoens.
Estando neste extremo de miserias e Calamidades a gente
de Angola, com ultimos bocejos, havendo sustentado sete
annos a fé e Lealdade devida a seu Principe e Senhor, an
dava falla entre os Negros, que primeiro sabem as novas
como gente amiga de novidades, em como na Costa do mar
tinhão ouvido o Gentio da Provincia da Quisama tiros de
Matendas; (' ) e logo vierão outros que disserão que em a
Cidade se havia disparado muita Artelharia; com estas noti
cias recorrerão todos á Igreja Matriz a pedir á Senhora da
Victoria Padroeira daquella Villa fosse servida alcançar de

C ) Matendas chamão as Peças de Artilharia. (Nota marginal do


Autor ).

527
seu bento filho nos mandasse boas novas, obrigandoa aquel
les afflictos com sua Ladainha Cantada, com o Sacrario
aberto; em quanto se fazia esta devoção e novena, chega
neste comenos aquella Villa hum homem , que não foi homem ,
se não Anjo, porque a elles só lhe he dado levarem grandes
Embaixadas, o qual veyo dando salva aquella Fortaleza com
tiros de hum mosquete que trazia em huma Canoa em que
elle vinha, o qual foi de todos conhecido ser Niculáo Lopes
que havia tambem estado no principio nestas miserias e tra
balhos; e se tinha embarcado no Suto ou no Pataxo que sabio
pella Barra da Coamza com permição do Flamengo como se
disse nesta historia por ser homem maritimo; o qual deo por
novas estava a Cidade restaurada, sabendose pellas Cartas
mais por meudo, escritas pello General restaurador Salvador
Corrêa de Sâa e Benevides, ao Govenador eleito Bartolomeu
de Vasconcellos da Cunha; o que continha a Carta era que
havia chegado com huma Armada ao Porto da Cidade de
São Paulo da Loanda por mandado del Rey nosso Senhor
Dom João o quarto, e porque estava para emprender a res
tauração da Cidade e Fortalezas, com toda a brevidade des
cesse e marchasse a se incorporar com elle com toda a gente
que podesse tomar Armas, mandando ir pello Rio toda a
farinha, e sustento que podesse porquanto vinha delle falto
pella muita demora que havia feito no mar, e que marchasse
com todo o cuidado e prevenção, porque o inimigo que havia
sahido fóra estava ainda na Campanha.
Deixo á consideração do discreto Leitor o gosto e con
tentamento que haveria com semelhante nova que foi como
tornar da morte á vida. Fez toda a gente Portugueza, cousas
que mais parecião de Loucos do que de homens sezudos; mas
erão - no de alegria em os Deos deixar chegar a ver cousa
que tanto dezejavão, dando todos muitos vivas a el Rey
nosso Senhor Dom João o quarto , e a seu General que ainda
que era a primeira nova da chegada ao porto e Cidade, já

528
consideravão tudo rendido e restaurado, porque huma vez
de posse da Cidade davão o Forte e Fortaleza por rendido :
por morte de Manoel da Nobrega Capitão mór da guerra ,
havia feito o Governador eleito Capitão mór da gente de
guerra a Duarte Munis Barreto, ao qual mandou logo mar
char com as Companhias e gente de guerra para a outra
banda do Rio Lucala , sitio da Quitanda de Vicente, de que
erão Capitaens Jorge da Silva, Manoel Telles Barreto, Pran
cisco Coelho de Azevedo, Blas de Espinosa Nabarrete, Bal
tazar Dias, e Lourenço de Andrade Colaço. O Governador
despois de haver dado expedição a alguns Barcos carrega
dos de farinha de guerra e de outras cousas de sustento , des
pedidas que forão pello Rio Coamza abaixo, passou da
banda dalem do Lucala ,accompanhado de alguns Cidadoens
e Moradores da Cidade, que muito poucos havia os antigos
já neste tempo, que o rigor da guerra e Calamidade do Ser
tão havia desbaratado, e se via quasi comprida a Prophecia
se assim se pode chamar daquelle virtuoso sogeito da Com
panhia de Jesus o Padre João de Paiva que continha como já
temos dito, que poucos dos antigos verião a Cidade da Loan
da restaurada, e que duraria o Castigo de Deos sete Annos;
huma cousa e outra se vio comprido : hião tambem Morado
res principaes de Masangano, que lhe não tinha alcançado
tanto este vaticinio , que aquelle que he criado com a peço
nha não lhe faz mal o Veneno ; assim vinhão a ser elles, que
como moravão na conquista expostos a tantas Calamidades,
resistião mais como gente sertaneja aos rigores do Clima, o
que não tinha a gente da Cidade que não estavão costuma
dos aquelles vaivens.
Estando tudo junto para marchar na dita Quitanda (1 )
chegarão aquelle sitio da Cidade sessenta homens trinta da

p ) Quitanda chama este gentio á Feira onde se compra e vende.


(Nota marginal do Autor ).

529
Armada a Cargo do Capitão João Rabello pessoa pratica da
terra que havia hido de Masangano com o Governador Pedro
Cezar de Menezes e agora vinha em Companhia do Gene
ral , os trinta delles Flamengos com hum Ajudante por Cabo;
e a razão de os mandar o General foi por entender não tinha
passado nenhum avizo seu á Conquista, no que se não en
ganava em parte, que os mais delles havia morto o Gentio,
e até hum homem que vinha em seu Cavallo; e só Niculao
Lopes havia tido essa dita, que ainda lhe valeo alguma cousa
as alviçaras que lhe derão em Masangano, veyo da Loanda
a Tombo, ou Calumbo, onde achou huma Canoa e dali para
cima veyo com hum Mosquete que trazia esbonbardeando
para se livrar do Gentio; e como era pratico daquella nave
gação, por haver andado nella com o Capitão e Cabo da
Coamza Fernão Rodrigues, passou por amor disso.
Hião entrechaçados os Flamengos com os Portuguezes
como gente então do Gentio mais conhecida e respeitada,
para que tivessem o passo Livre; neste tempo estava já o
Forte da Morro de São Paulo e Fortaleza da Guia já capi
tulado com o Flamengo e rendido; só lhe faltava a gente
que estava fora, e estes Flamengos que aqui vinhão, para se
embarcarem como tambem a gente das suas duas Fortalezas
a da barra da Coamza e Ilha do Ensandeira, que a da barra
do Bengo como mais proxima á Cidade já era recolhida; mas
não sabia o Director nem o nosso General se estaria o Sar
gento mór Faca pella Capitulação e concertos, ou se se que
reria ficar com aquelles Gentios por seus particulares, porque
elle então governava mais que o seu Director e Governador,
por ter hum Irmão em Casa ou Palacio do Principe de
Orange, e lhe escrevia , conforme informação dos de sua Na
ção, tratasse de se aproveitar, que com tanto se havia de
achar, porque em o Norte não ha secretario das Merces,
como o há em Portugal e Castella que remunerem serviços;
acabada a occazião ou empreza se o não acrecentão em ou

530
tro posto ou o conservão no que actualmente está servindo,
fica posto a hum canto; assim o dizem os que daquellas par
tes tem mais noticia .
Com aquellas novas certas ficarão todos muito mais
contentes pois agora se podia dizer com certeza estava a
terra e Cidade restaurada; fomos marchando com boa or
dem pellos Altos do Rio Coamza com duas peças de Arte
lharia de Campanha, com nossa guerra preta, até que che
gamos ao sitio de Rosa, onde nos chegárão novas que o
inimigo que estava na Campanha hia marchando na volta
da Cidade; dali se mandou pello Rio Coamza a Artelharia
que levavamos para a nossa Fortaleza de Muchima que fi
cava mais perto, e alguma gente que não podia marchar, da
que tinha vindo por terra da Cidade, para ir pello Rio com
mais commodo; ficando a nossa gente mais escuteira ou vo
lante, foi marchando com o passo mais apressado; perto da
Ensaca se dividio o nosso poder em duas partes , a guerra
preta e a nossa bagagem seguida de alguns Moradores,
tomou para a vargea do Bemgo, e as Companhias como
Governador e os dous Reformados para os matos da En
saca, que de cerrados he hum Laberinto ; esta divisão foi
causa do inimigo da Campanha apressar mais sua marcha
que como se achava desemparado de sua multidão de guerra
preta não se quiz pôr a risco de se tomar satisfação do des
concerto passado; nós hiamos com o cuidado nelle, e elle
tambem com o sentido em nós, por isso se diz que o medo
guarda a vinha e não o Vinheiro; tambem desta divisão
nasceo ficarmos nós metidos no espeço daquelles matos, com
os estomagos mal concertados, que se não havia comido todo
aquelle dia, e a nossa bagagem havia levado todo o sustento ;
se não fora a divina Providencia deparar-nos ali humas espi
gas de Maça de milho grosso ou zaburru como elles lá cha
mão, que com ellas assadas nos fomos desejuando ; todos
andavão perguntando huns aos outros se tinhão alguma

531
35
cousa e nenhum tinha nada ; ali dormimos aquella noute se
há sono que tenha com o estamago e barriga vazia; he certo
que nenhum dormio, assim por este respeito como por se
vigiar que estavamos metidos entre muitos inimigos; mas
ainda assim mais vigiavão alguns, vendo se vinha a Qui
cumba, do que se nos acometia o inimigo, dando todos horas
não com badaladas em sinos que he como se costuma nos
quartos, se não com os das tripas que se achavão vazias,
quando la pella madrugada veyo chegando o soccorro da
bagagem ; á boa fé que não quiz o mais pintado que se lhe
aquentasse o comer, que isto de caldo requentado não faz
bom estamago, e sempre se disse era de pouco proveito ;
assim como vinha se foi investindo sem esperar mais cere
monias, nem lavar as mãos nem outra cousa, que o Porco
he o que engorda; e assim se pegou no sono hum tanto com
mais descanço: de fome Libera nos Domine; passe isto por
graça, pois estamos de gracetas com a nossa feliz, restau
ração, que no ay plaso que no llegue si la muerte nó le
ataja, e outro dizia , ni deuda que no se pague. Cada qual
estrenuda como Dios le ayuda.
Succedeo tambem nesta occazião huma graciosidade,
não sei se a diga ? hora hei de dize-la, habita facultate; e
foi que veyo huma pessoa nobre que havia occupado postos
mayores, a ter com outro do seu toque e seu amigo, e lhe
perguntou como vay ? respondeo o Amigo como há de ir,
que comi duas maçarocas de milho assadas que me causarão
mais desinquietação em a barriga de que proveito; e se dizem
que as tripas tambem pelejão humas com as outras, bemo
tenho experimentado, assim que estou estalando á fome :
disse-lhe o vizitante, quereis vós comer hum Chouriço que
tenho em o meu Rancho ? respondeo o vizitado, comêra eu
não digo eu Chouriço se não a perna de hum Jumento, se a
tivéra guizada , pois, disselhe , vamos a tela ; ao cheiro do
chouriço foi seguindo mais gente; foi dando huma grande

532
volta ao Arranchado para chegar á sua estancia onde tinha
suas Armas e Cavallo, que todos estavão naquella occazião
á clemencia do tempo sem Casa nem Cabana; chegados á
estancia acharão o quadrupedante que parece que de pro
posito tinha desembainhado o pretigo do seu mangoal; o ou
tro annellando pello chouriço lhe disse ali o tendes do meu
palafrem ou chouriço ou murcela ; ficou o Amigo frustrado ,
mas levou-o com galhofa de que houve muito que rir , a que
respondeo affirmando com juramento, que se o achára gui
zado lhe não perdoára nem tivera asco de o comer, e não
enganava nisso , que a outra pessoa de muito mayor esfera
havia succedido em o Imperio da Alemanha , e não foi me
nos que ao Infante Dom Duarte ; e se lembra o Autor desta
historia estando elle ainda em Villa - Viçosa, Corte daquel
les Excellentissimos Principes, mandar o Senhor Infante
hum Cinto da pelle de hum Cavallo a seu carissimo e amado
Irmão, dizendo que lhe mandava da pelle daquelle que lhe
havia servido de sustento em hum grande extremo de fome
em que se vira .
Que como Gustavo Adolfo Rey de Suecia se hia apode
rando de todo o Imperio de Alemanha , tinha huma impor
tante Praça em Cerco, a qual carecia de soccorro; e por não
haver Principe nenhum de quantos servião aquelle Cesareo,
Imperio, que se atrevesse a conduzilo, com seu Real sangue
e valor Portuguez o Infante Dom Duarte aquella empreza
á sua conta como quem havia occupado mayores postos da
milicia naquelle Imperio, de quem era parente tão chegado.
Intentou - o e consegui-o com tanta bizarria que foi emvejado
o Principe de Portugal que assim lhe chamavão, e na reali
dade o era , haver emprendido tão defficultosa como arris
cada empreza, ficando com o soccorro dentro da Praça ,
ajudando com sua valentia a defendela, chegando o aperto
a tanto extremo que chegárão a comer os cavallos e mais
animais immundos, que dentro havia , e daquelle que mandou

533
o Cinto lhe havia servido de sustento sua Carne; assim que
não fora muito que aquelle homem nobre naquelle aperto
tão breve daquella fome se deixasse enganar, e não seria o
primeiro que se havia valido daquelle genero de sustento,
quando hum Principe tão bizarro e magnanimo havia pas
sado por elle semelhante necessidade, que quando hum tão
grande Senhor chega a experimentar estes rigores, que a
guerra traz com sigo, que seria dos mais.
Hindo - se marchando todos alvoroçados por ver a Ci
dade restaurada , fomos tendo por aquelle caminho muita
infinda caça que como havia muitos annos que aquelles ca
minhos não erão trilhados nem cursados de gente e Caça
dores, se via por ali ás manadas mui diversidade della; huma
Empalanca passou rente da nossa Infantaria com passo tão
veloz que parecia hum vento, que não deo lugar a se lhe
fazerem alguns tiros ; e o que a fazia correr tão apressada,
era o ir ferida da frechada; foi a cousa mais vistosa que se
podia ver assim na sua ligeireza como em sua fermosura,
se assim se pode dizer de hum fermozo Animal : nos arimos
do Bengo e fazenda dos Padres da Companhia se matárão
daquelles ferozes Empacaças, que são como vacas bravias;
e quem mais participou de sua carne forão tres Camaradas
que hião naquella marcha ; hum delles era o Mestre Escola
€ Vigario Geral o Padre Francisco Pinheiro, o segundo An
tonio Teixeira de Mendonça que se não era já Governa
dor era Capitão mór por sua Magestade da Fortaleza
e Capitania da Villa da Victoria de Masangano e havia dei
xado em sua Tenencia ao Alferes seu Primo Manoel Soares
Laço por vir ver o General e dar-lhe as boas vindas e o
parabem do bom successo da recuperação destes Reinos e
sua Cidade; o terceiro era Baltezar de Albuquerque Coelho,
Capitão Reformado e pessoa nobre; a este ultimo havião
morto os seus Negros espingardeiros as Empacaças; disse
elle ao Capitão mór que de tantos Negros soltos que ali le

534
vava desse alguns para carregarem daquella carne , pois na
Cidade não havia em que pôr olhos, que lhes havia de ser
boa ; não quiz vir nisso; com que elle mandou carregar o
que pode sem o elle saber: forão elles pouzar ao Collegio
da Companhia de Jesus, e começou a haver falta do neces
sario; o que havia feito a providencia (1 ) mandava dar or
dem ao jantar e valiase della , sobre que havia na meza
grandes galanteyos sobre que elle a não havia de comer,
pois a não quizera mandar carregar por tantos Negros va
dios que com sigo trazia : cada comer havia muito que rir,
com que se passava o tempo, que entre Amigos de qualquer
cousa se toma motivo para isso.
Chegados com a marcha ao sitio da Igreja do Outeiro
do Gango e Barra do Bengo, que nos tinha sido tão fu
nesto , aquella paragem chegou ordem do General que só es
tivesse ali o Arrayal, porque determinava ir ou mandar fazer
guerra aos Sovas rebeldes, e inimigos que tanto havião per
seguido aos Vassallos Portuguezes, com as Costas quentes
do Flamengo; e que o Governador fosse para a Cidade com
os Cidadoens, e Moradores : nova que não foi de muito gosto
pello que todos levavão de ver a nossa Cidade restaurada
Cabeça destes Reinos.
Partio logo o Governador eleito accompanhado da gente
principal ; chegados á Cidade forão mui bem recebidos e fes
tejados do General restaurador; cedendo o nosso Governa
dor Bartolameu de Vasconcellos da Cunha o bastão que
pouco lhe havia durado desta feita , reconhecendo em vir
tude da Patente Real por Governador e Capitão Geral des
tes Reinos de Angola suas Provincias e Conquistas ao Ge
.neral Salvador Correia de Sãa e Benavides.
Informou o Governador Reformado ao General o desejo
com que vinha toda a gente Angolana de ver a Cidade, e

(1 ) Provisão .

535
que para sahirem a Campo contra o Gentio rebelado, era
necessario refazerem-se de muitas cousas de que vinhão
faltos; vendo o General a razão que os accompanhava man
dou aquella noute ordem ao Capitão mór marchasse tudo
para a Cidade: nova que foi para todos de muito contento :
antes que amanhecesse se começou a marchar a respeito do
rigor do Sol; chegados á Cidade pellas nove horas formando
o Capitão mór Duarte Monis Barreto as seis Companhias
que levava, foi marchando com ellas em formatura , cada
hum dos Capitaens em ordem de milicia , conforme a cada
hum tocava , fazendo a entrada pella banda do Convento de
São Joseph , dos Frades Franciscanos; vindo todos com o
mayor lusimento que ser podia, porque o que reservado tinha
das nossas miserias algum cubertor de Damasco de seda o
não poupou nesta occazião que delle se não vestisse, outros
com outras alfayas e os que mais não podião com seus ves
tidos de Tangas de algodão que parecia tiçume Pedro Lor
pes, entrando por aquella famosa e espaçosa rua direita á
Praça que chamão de São Joseph , toda a Infantaria mos
trando com os ecos das Armas o gosto que trazião no
Coração; ao entrar da Praça estava toda a gente da restau
ração em duas alas de huma parte e outra ; tanto que apon
tarão começou o Collegio da Companhia de Jesus com repi
ques de seus Sinos, que o inimigo havia conservado, não
para clamar com elles á Missa e ao Sermão, tendo levado
só hum muito grande, a festejar a gente Angolana; e era a
primeira vez que se tocavão; a Infantaria da restauração
dando vivas cargas, a que respondião os Fortes com sua
Artelharia; os Alferes tremolando as suas vistosas Bandeiras
e bem afortunadas, o General posto á janella de seu Palacio,
que seu se podia já chamar, pois o havia tirado do poder
do Flamengo, com o seu Tenente General, Francisco Ribeiro
de Aguiar; Sargento mór, Diogo Coelho de Albuquerque;
Ajudantes de Tenente com todos os Capitaens de mare

536
guerra pellas mais janellas com outra muita gente particular;
passando pello General os Capitaens Masanganistas Serta
nejos fazendo suas devidas Cortesias, os Alferes abatendo
suas Bandeiras Ceremonia e honra que se devia a hum tão
excellente bizarro e bem afortunado General restaurador.
Tudo foi nesta occazião hum contento huma alegria,
dando todos muitos vivas ao nosso invicto Rey Dom João
c restaurador dos Reinos de Portugal e tambem dos de An
gola, de saudosa Memoria , que acudio com seu General
de Armada a tirar este inimigo de sua Cidade Cabeça de
seus Reinos de Angola, que injustamente havião occupado;
Libertando a sua Nação Portugueza do Cativeiro que os
opprimia, estando com sua fé e Lealdade nos ultimos bo
cejos de serem dominados de gente tão contraria á nossa
Lei , não querendo Deos que esta planta da nossa Santa fé
nestas partes tão remotas da Ethiopia Occidental, se aca
basse de huma vez ; pois havia custado tanto desvelo á Coroa
de Portugal a sua propagação e Conquista.
As consequencias tão grandes que nesta recuperação e
feliz restauração havia fazia realçar mais o gosto : em quanto
as da gente Angolana já estavão manifestas ao General res
taurador tambem lhe combinavão, porque se não achára es
tas reliquias da Gente Sertaneja em Angola humanamente
se podéra conservar , porque não tendo a Escravaria sugeita
que os Portuguezes possuhião com os mais seus Aliados,
praticos a gente da terra nos costumes dos Gentios, abun
dantes dos mantimentos que produz este Sertão, fora ne
cessario começar de novo esta Conquista com grandissimos
trabalhos, como se fez em tempo do primeiro Conquistador
Paulo Dias de Novaes, e dos mais que lhe succedérão.
Assim que a Deos sejão dadas as graças e a sua Santissima
May Senhora da Conceição Protectora dos Reinos de Por
tugal e tambem dos de Angola, pois foi servida alcançar
graça de seu bento filho para os peccadores, fazendo por

537
sua intercessão levantasse o açoute do castigo da affligida
e miseravel Gente de Angola, inspirando no nosso Rey
Portuguez e tanto seu devoto acudisse com a restauração.
E já que foi servida que vissemos o que tanto se deze
java , razão será que o Autor desta historia verdadeira, se
bem pouco minada e elegante, de algum descanço a seu des
velo e fadiga com que veyo descrevendo este primeiro tomo
começando desde o primeiro Conquistador, Era de 1575 até
a de 1648, em que houve nestes Reinos 24 Governadores: (* )
essa he a causa porque o Autor desta historia lhe dá o nome
de Companhia pello succinto ; que se puderão fazer grandes
escrituras para se especificar guerra por guerra , e occazião
por occazião , escrevendo feitos valerosos em Armas que
obrarão muitos Portuguezes na Conquista destes Reinos, que
nesta historia não vão nomeados, como o foi Dionizio Soares
Capitão de mar e guerra na Conquista de Domgo; Manoel
Jorge de Oliveira governando a Gente de guerra em Ma
sangano na Era de 610, mandando fazer assaltos, assim por
terra como pello Rio Coamza aos Quisamas, e pello Rio
Lucala ao Sova Angola Quiaito; hum Sebastião Paes Sar
gento mór de guerra pessoa de valor; Sebastião Dias Tição,
que governou a guerra que se deo em Dala quisuba, sendo
Cabo de Companhias , em que se houve com muito valor;
Domingos de Faria, excellente Capitão que se achou em
muitas occazioens de guerra fazendo feitos valerosos; Ro
drigues Guterres na Era de 610 que sendo Capitão do Rio

( ) Foram 25 governos, excluindo Salvador Correia e contando o


de Pedro César de Menezes por dois governos ( 1639 a 17-5-1643, data
em que foi preso pelos Olandeses; e depois, de Janeiro de 1644, em
que sitamos o governo, até 25-10-1645, em que o entregou a Francisco
de Souto Maior ) . O Governo de Bartolomeu de Vasconcellos da Cunha,
que foi o ultimo, durou apenas dias, cedendo «o bastão que pouco lhe
havia durado », como diz o autor.

538
Coamza fez nelle grandes assaltos, e trazia os Quisamas tão
acossados que sonhavão com elle, e lhe puzerão o nome de
Sungi Amdambi, porque quando menos o pensavão estava
sobre elles; e se os nossos Portuguezes forão curiosos em
escrever como forão cotumados a guerrear, se tivera noticia
le fizera menção de muitos feitos valerosos que fizerão na
Conquista destes Reinos , o Autor os especificara de boa
vontade, se á sua noticia vierão; mas fiquem ao olvido já
que tão pouco curiosos forão.
Tomára ter a correnteza afeite, e saber essa audacia de
tão insignes Escritores e Historiadores assim Portuguezes
como de outras Nacoens, como forão os nossos Chronistas
Frey Bernardo de Brito, e Frey Antonio Brandão que es
creverão a Monarchia Lusitana e Chronica de Cister onde
dão noticias de muitas Antiguidades da nossa Antiga Lu
sitania .
Hum Duarte Nunes de Leão que escreveo as Chronicas
dos nossos Reys de Portugal até el Rey Dom Fernando
Hum Doutor Pedro de Maris que recopilou todas as Chro
nicas dos Reys de Portugal.
Hum Antonio Paes Viegas que escreveo os principios
de Portugal, e apparecimento de Deos nosso Senhor em o
Campo de Ourique ao nosso primeiro Rey Dom Afonço
Henriques.
Os Insignes Historiadores João de Bairros , e Diogo de
Couto com as suas celebradas Decadas daquelle Emperio da
India .
Hum Fernão Mendes Pinto com as Grandezas da China ,
e successos varios que lhe acontecerão, naufragios que teve .
Manoel de Faria e Sousa que escreveo com tanta erudi
ção e Correnteza de palavras abreviadas a sua Asia Portu
gueza em tres Tomos, mostrando mais evidente as cousas da
India, fazendo algumas declaraçoens ao que escreveo João
de Bairros em suas Decadas. O seu Epitome onde descreve

539
36
todas as antiguidades de Portugal e Chronicas de seus Reys.
Francisco de Sãa de Miranda que escreveo em tempo del
Rey Dom João o terceiro o seu Livro tão Poetico como en
tendido, em que deu noticia ao Mundo de tanta Fidalguia
Portugueza .
Francisco Rodrigues Lobo com a vida do Heroe Condes
tavel , Pedra fundamental da sempre Real Casa de Bragança
e Barcellos com o seu Pastor peregrino, e o seu desenganado,
as Eglogas, a Primavera, os Romances, as Elegias, a Corte 1

na Aldea e Noites de Inverno, onde traz tão discretas Car


tas breves e compendiosas, dando noticia das Armas e em
presas dos nossos Principes e Infantes de Portugal , e de
muitas Cidades de seu Reino.
Hum Antonio de Herrera com a sua Historia Geral do
tempo del Rey Dom Phelipe prudente .
Mariana e Garivay Chronistas de Espanha que escreve
rão sua recuperação, desde o tempo daquelle famoso Godo
Dom Pelaio; se bem pouco affeiçoados em suas historias á
Nação Portugueza, refutadas pello nosso Chronista Duarte
Nunes Deleam.
O Historiador das Ligas e empresas de Italia do tempo
del Rey Dom Fernando o Catholico e da Rainha Dona
Izabel , com a Valerosa Conquista do Reino de Napoles,
feita por Gonçalo Fernandes de Cordova Duque de Seça e
Soma á opposição do Christianissimo Carlos Rey de França,
e de el Rey Luis, onde lhe foi dado pellas Naçoens Estran
geiras o nome de Gram Capitão.
O insigne Varão Frey Luis de Granada com o seu douto
Livro do Symbolo da Fé , em que descreve a destruição de
Jerusalem por Tito Vespasiano. Dom Antonio de Gevara
Bispo de Mondonuelo com suas gostosas Epistolas em que
relata o que obrarão os Malcontentes Cumuneros em tempo
do Emperador Carlos quinto com o seu Curioso Marco Au
relio e tão doutas Cartas.

540
Hum Lope da Veiga Carpio com o seu Izidro de Madrid,
e venturoso Lavrador em que dá noticia de muitas cousas de
Espanha, e daquelle Graceran Ramires que vendose aper
tado do Mouro, cuidando fosse naquella Praça entrado
pellos Infieis degolou em huma Ermida de Nossa Senhora
fora dos Muros sem de ninguem ser sabido sua Mulher e
Filhas; e despois do combate e defensa valerosa, pezaroso
do que havia feito, as achou milagrosamente vivas com o
vinco da degolação pella garganta.
O mesmo conta o nosso Chronista Frey Bernardo de
Brito succedeo em a nossa Villa de Monte-mór o Velho.
A Arcadia de Lope o peregrino en su patria a sua filomena
dedicada a Dona Leonor Pimentel filha do Conde de Be
navente em que descreve o insigne Monte cercado da Ta
pada recreação dos Serenissimos Duques de Bragança e sua
Real Ascendencia , muitos Volumes de Comedias afeitadas
conficçoens Poeticas se bem muitas dellas historias verda
deiras com que condizem as Chronicas de Espanha .
Gustavo Adolfo Rey de Suecia escrito por aquelle Reli
gioso Catalão em que relata as empresas daquelle valeroso
Rey, vencedor e vencido em Alemanha.
Pedro Mexia com a historia da Vida dos Emperadores
Romanos até Julio Cezar com a sua Silva de varia lição em
que relata muitas cousas boas que houve no Mundo.
O mesmo Julio Cezar nos seus Comentarios escripto por
sua Cesarea mão descrevendo suas proesas o que obrava com
a Espada de dia escrevia de noute com a penna.
Os Commentarios do grande Afonço de Albuquerque os
feitos e empresas valerosas que naquelle Mappa da India
obrou o seu valor; Como tambem aquelle famoso Duarte
Pacheco na defensa del Rey Cochim contra el Rey de Ca
licut; o Cerco de Goa e Chaul defendido por Dom Luis de
Atayde; o de Diu por Antonio da Silveira, e segundaria
mente por Dom João Mascarenhas.

541
O insigne Poeta Luis de Camoens nas oitavas Rimas dos
seus Lusiadas, cousa de tanto deleite que juntamente foi
Soldado e Escritor.
Dom Luis de Gongara com suas tão elegantes Poesias,
Dom Francisco de Quevedo e Vilhegas Senhor de João
Abad , com seus Sonhos tão misteriosos.
Dom Francisco Manoel de Mello com seus insignes es
critos, o Serafim abrasado São Francisco. A Aguia de Africa
com sua Conversão. A Guia de bem Casados. As Guerras
de Catalunha com suas apanagoras escritas com tanto juizo
e concerto .
Antonio de Sousa de Macedo com as suas flores de Es
panha e excellencias de Portugal em que deo noticia de
muitos valerosos feitos em Armas da Nação Portugueza, e
da virtude e Santidade de muitos Santos e Santas que deo
de sy a nossa Lusitania, trazendo a antiguidade de muitas
nobres Familias Portuguezas.
O Padre Provincial da Companhia de Jesus Simão de
Vasconcellos Chronista do Brazil descrevendo a vida e ma
ravilhosas virtudes daquelle Varão da Companhia de Jesus
o Padre João de Almeida assitente que foi do Collegio do
Rio de Janeiro, Cidade de São Sebastião ; dando noticia
tambem dos Ritos e costumes daquella Gentilidade, Animaes,
e Plantas daquelle Sertão.
E agora novamente escritas as Guerras Brasilicas por
Francisco de Brito Freire Governador de Penambuco, e
General das Frotas do Brazil escritas com tanta verdade e
erudição. O Marques Virgilio Malvezi pesando em huma
balança as perdas e ganancias de Castella escrevendo as
guerras de Flandres e de Italia em tempo dos Reys daquella
Coroa Dom Phelipe terceiro, e Dom Phelipe quarto.
Jeronimo de Santa Cruz em o seu tão bem escrito Mani
festo em defensa de Portugal contra as Calumnias Castelha
nas, dando a conhecer a verdade a todas as Nacoens da Eu

542
ropa. Aquelle douto tratado da Vida e singulares virtudes da
Princeza Dona Joanna fundadora do Convento de Aveiro
e nelle Religiosa , filha del Rey Dom Afonco quinto o Afri
cano , Irmão del Rey Dom João o segundo, escrito tão ele
gante e doutamente pello dignissimo Bispo do Porto Fernão
Correa de la Cerda.
A vida e morte da Rainha de Portugal Santa Isabel filha
del Rey de Aragão Mulher del Rey Dom Diniz, escrita por
Vasco de Quevedo de Castelbranco , em que escreve a rara
Santidade e Singulares Virtudes desta Gloriosa Santa des
crevendo desde o primeiro Rey de Portugal até el Rey Dom
Diniz , e as affliçoens em que a Rainha Santa se vio para
compor o Pay com o filho estando ambos de Campo a
Campo para se darem batalha , sendo tudo Portuguez e huma
mesma Nação.
Dom Antonio Alvarez da Cunha Senhor de Taboa com
aquella tambem escrita e verdadeira Relação da Batalha do
Cano e ameixial tomada de Evora Cidade , e de sua recupe
ração, governando as Armas de Portugal Dom Sancho
Manoel Conde de Villa-Flor, e as de Castella Dom João de
Austria ; dando este insigne escritor noticia ao Mundo desta
tão famosa Victoria e Batalha , e de todas as que alcançarão
as Armas Portuguezas contra Castella no discuso de tantos
annos que constão de vinte e huma , e os tempos em que forão
alcançadas.
A famosa Relação da Batalha de Montes-Claros alcan
çada pellas Armas Portuguezas e pello Capitão General Dom
Antonio Luiz de Menezes Conde de Castanhede Marquês
de Marialva onde os Portuguezes fizerão tão assinaladas
proezas governando as Armas de Castella o Marquês de
Caracena; com a admiravel defensa de Villa - Viçosa, sendo
Governador daquella Praça Cristovão de Brito Pereira
fidalgo da Real Casa de Bragança e natural da mesma
Villa .

543
E ultimamente o Compendio agora escrito da vida e
morte daquelle Heroe Marquês de Tavora Conde de São
João Senhor do Mogadouro e de outras Villas, escrito por
aquelle singular General da Artelharia Dom Luis de Me
nezes Conde da Ericeira em que recupila sua antiga fidalguia
e descendencia, as singulares empresas que obrou em sua
vida; Batalhas em que se achou , obrando sempre com notavel
valor e desposição; como quem tinha sido testemunha de
vista em todas as Campanhas, governando o Trem da Ar
telharia no Degebre mandando plantar artilharia com tanta
diligencia e acerto , que foi a total causa do destroço do
inimigo ; na de MontesClaros apenas descubrio o inimigo
e seu Exercito Castelhano quando já havia disposto suas
Plataformas com que foi fazendo no inimigo muito dano.
As Relacoens impressas o dizem, e apregoão por toda a
parte, e até a estas tão remotas da Ethiopia tem chegado,
junto com as empresas valerosas de tantos e tão insignes e
valerosos Portuguezes que na defensa de sua patria e ser
viço de seu Principe obrarão tantas maravilhas. Para o Autor
desta historia querer relatar tão doutos, eloquentes, e insi
gnes Historiadores, assim antigos como modernos que há,
e tem havido na nossa Lusitania, fora nunca acabar! Só aqui
referi os mais dos allegados nesta minha, e desnuda historia ;
só o que lhe enveja o Autor não ter hum pequeno de seu
talento para saber collocar, limar, e escrever; se perdoarem
minhas faltas, tratarei de proseguir com a historia, e pôr em
Limpo meus Borroens das cousas Angolanas e empresas de
guerras que nestes Reinos houve em tempo dos Governado
res que os governarão, desde a feliz restauração até o Go
verno de Ayres de Saldanha de Menezes e Sousa de que
será o segundo tomo desta historia; e o terceiro será de mais
gosto ao curioso Leitor, pella diversidade de cousas em que
o Autor dará noticia de Algumas cousas singulares e de
admiração que em sy enserrão estas partes tão remotas desta

544
Audusta Ethiopia Occidental descrevendo algumas extra
vagancias de alguns Rios notaveis, e Monstrosidades de
Animais criados em suas margens e dentro em suas agoas;
o que comprehende a Cidade de São Paulo da Assumpção;
que da Restauração para cá se esqueceo o Appellido de
Loanda, que a seu tempo se dirá o porquê; a sua grandesa e
Comarca, como tambem as Fortalezas e Presidios da Con
quista, e suas Capitanias e Lotaçoens de seus numerosos
Sovas fidalgos Vassallos de sua Alteza o Principe nosso
Senhor que muitos annos nos viva, e o prospere Deos e o
guarde com toda a Caza Real de baixo de cujo patrocinio
vay a confiada Dedicatoria do Autor, e hirá de baixo da
mesma protecção tudo quanto escrever, prestando -lhe Deos
a vida.

Só a Deos honra e gloria ,


de baixo da Correcção da
Santa Madre Igreja de Roma.

545
E porque não he bem , que fique in toto ao esquecimento,
os que bem obrarão na Conquista destes Reinos por serviço
de seu Principe, e exaltação da Santa fé Catholica, fez o
Autor esta pauta dos que elle conheceo, e vierão á sua no
ticia, que muitos delles occuparão postos mayores na Mi
licia .

Pessoas que forão moradores, e Cidadoens nestes Reinos


de Angola.
Custodio Antunes da Silva, Luis Gonçalves o Velho,
Manoel da Costa, Manoel Dias de Macedo , Martim Correa ,
Roque Camelo , Diogo da Silva o Muxilo, Antonio do Couto ,
Pascoal Antunes Victoria , Lourenço de Figueiredo, Antonio
Dias Pinheiro, Afonco Mendes de Moura, Antonio Pinto de
Vargas, João do Couto, espanhol, Francisco de Mello de
Moubela, João de Govea, Alexandre Bonina florentino , Jo
seph Carrasco , Baltezar Rabello do Aragão , Manoel da Sil
veira , Antonio d'Araujo , Francisco Machado , Pedro de Nam
vaes, espanhol, Baltezar Carvalho, Francisco Rodrigues
d'Azevedo, Pero de Sousa Souto Mayor seu filho, Duarte
Rodrigues, João Vieira, Francisco Mendes de Carvalho ,
Pantaleão Monteiro, Antonio Roldão , Francisco de Crasto,
espanhol.

Dos que forão de Massangano :


Andres de Valbuenas, espanhol, Gaspar Dias Limpo ,
Vicente Luis de Paiva, Paulo Couracas, Pero de Carvalhaes
Dantas, João Pereira Girão o Bolongonho, Bartelomeu Lobo,
Antonio Teixeira da Fonseca, Pero de Carvalhaes, Manoel
Tavares, Diogo Nunes, Vasco Rodrigues Cardoso , João da
Costa Leal, Thomas de espinel, espanhol, Francisco de Ara
gão, Antonio da Fonseca Homem , João Dias Botelho, Anto

546
nio da Silva, Antonio Gomes Pilarte, Antonio Gomes de
Macedo, Domingos Pinto, Francisco Fernandes dos Frascos,
Francisco de Araujo, o Venturinha, João de Araujo, Fran
cisco de Moura Pereira, Domingos Pinto, Francisco de Sousa
Coelho, João de Sousa Cardoso , Francisco de Sousa , o Sou
zinha .

Dos que forão da Fortaleza e Presidio da Enbaca :


Gonçalo Borges, que vinha do Reino, despachado por
Capitão mór do Reino de Angola e morreo no Brasil . João
Correa, fidalgo que servia nesta Conquista, e foi Capitão
mór da Enbaca, que se embarcou para Portugal , e foi lá
Morador da Cidade de Evora. Jeronimo da Costa, Pero
Banha , Francisco Dias Pilarte, Manoel Gomes Leiria, Anto
nio Gomes Leiria, ambos Irmãos, Pedro de Torredor Sapata ,
o Caboinge, Gonçalo de Salinas.

De Cambambe , sua Fortaleza e Presidio os seguintes:


Valentim Pedrozo , João Gonçalves Machado, Martim
A fonco Tibão, João Soares da Coixa, Antonio Rodrigues
Quileba, Jerónimo Vas Sarrazino, Luis Martins, Antonio
Feyo, Andre Carvalho, João Ribeiro, Alvaro Colaco, Ma
noel de Albuquerque, Francisco Lourenço .

A Fortaleza e Prezidio de Muchina :

Manoel de Moraes, Agostinho Teixeira, Manoel da


Roza, Estevão Lopes, Francisco de Novaes, Francisco Ro
drigues Guerra, Luiz de Abreu, O Machado. Angelo Gomes,
Ignacio Teixeira . Gaspar Carneiro, que foi o primeiro Mo
rador da Cidade.
Estes são os nomes dos Conquistadores, que na Con

547
quista destes Reinos trabalhárão com muito cuidado pela
ampliar, sofrendo muitos trabalhos, e miserias; e são os que
o Autor conheceo , e outros que a sua noticia vierão; e vem
isto a ser hum rabisco a respeito dos muitos, de que não
temos noticia , e dos aqui nomeados, que delles se não faz
menção no discurso desta historia; não há hu'm so delles vivo,
salvo seus Descendentes.
Ut Supra

548
ALFABETO DO QUE CONTEM ESTA HISTORIA
DAS GUERRAS ANGOLANAS.

Contem esta primeira parte treze Capitulos; Em o pri


meiro se relata em que tempo se começou a Conquista deste
Reino de Angola por Paulo Dias de Novaes, sendo o pri
meiro descubridor desta Costa Diogo Cão; e o que se obrou
em este primeiro Governo págs. 11 a 24. No segundo Ca
pitulo se refere o que foi conquistando Paulo Dias de Novaes
sahido a Campo; e se dá noticia dos principios dos Reys de
Angola dos Lemites do Reino dos seus Ritos e Costumes, e
das muitas comcubinas que tinhão, e os filhos que precedião
na herança do Morgado, e como veyo a herança do Reino
de Angola a Angola Ambamdi e as Infantas suas Irmaãs
corre de paginas 25 a 31. Em o terceiro Capitulo se relatão
as empresas de guerra que foi obrando o primeiro Conquis
tador com seus valerosos Portuguezes supportando muitas
misérias e trabalhos até chegar com a Conquista a Caculo
Caango, corre de paginas 32 a 34 da primeira parte.
Refere-se como passou o seu poder o nosso Conquistador
da outra parte do Rio Coamza a Provincia da Quisama onde
teve grandes encontros e Batalhas com aquelle bellicoso
Gentio, fundando naquella Provincia beira Rio a Fortaleza
e Presidio de Muchima no coração daquella Provincia se
passou destoutra banda da Ilamba fazendo a Conquista
avassalando á força de Armas o Sova Angola Angolomem
Acundo com mais tres Sovas, pagina 34 da primeira
parte.
Da- se noticia das grandes batalhas que teve o nosso
Conquistador com hum Sova poderoso chamado Angola
Quiaito; e como cançado de tanto batalhar se passou do Rio
Lucala onde estava em suas margens ao sitio chamado Mas
sangano por ser forte onde se fortificou, pagina 37 da pri

549
meira parte. Relata - se como despois de fortificado e haver
descançado de tanta fadiga de fomes e misérias, chegando
a grande extremo teve a providencia milagrosa das Abobaras
disse antecedente os ritos e costumes dos fidalgos Sovas que
se hião Conquistando e avassallando a Coroa de Portugal;
e como sahio a Campo confiado na graça Divina alcançou
huma milagrosa batalha com tão pouco numero de Portu
guezes para tanta multidão corre de paginas 38 a 43.
Dá - se noticia como foi proseguindo a Conquista, e para
chegarem com ella a Masangano se gastarão annos e daqui
foi conquistando até o Rio Mocoso terras do Sova Quilonga
Quiabungo do nosso Conquistador bem conhecido, onde
teve muitas batalhas e recontros com os Sovas do Moseque.
Como havendo gastado annos nesta Conquista, despois que
sahio do Porto de São Paulo da Loanda tendo tido muitos
trabalhos fomes e miserias, deo a Alma a Deos. Faleceu Era
de 1589. Pags. 43 a 45 da primeira parte.

CAPITULO QUARTO DA PRIMEIRA PARTE .

Em o Capitulo quarto da primeira parte se trata como


por morte de Paulo Dias de Novaes, succedeo em o Governo
da Conquista deste Reino por sua nomeação Luis Serrão
que havia sido seu Capitão mór da guerra, relata - se o que
obrou em seu Governo que foi breve corre de paginas 46 a 48
da primeira parte . Dá -se noticia como lhe succedeo por
sua morte em o Governo deste Reino de Angola Andre
Ferreira Pereira, relata-se como foi conservando o Con
quistado pellas Armas Portuguezas, por se não achar com
poder para fazer novas empresas, paginas 48 a 49 da p.
parte .
Relata - se como succedeo em o Governo deste Reino ,
vindo despachado por Governador he Capitão Geral do
Reino de Sebaste Conquista da Ethiopia, João Furtado de

550
Mendonça, o qual subio logo da Loanda a Conquista com
seu Capitão mór de guerra João de Veloria Espanhol, tendo
pella Coamza a cima , pelejado com valor com a gente que
havia trazido do soccorro com aquelles inimigos que todos
estavão alevantados pagina 49 da primeira parte do primeiro
tomo .
Faz - se menção como se levantarão alguns Soldados mal
contentes, e se passarão da outra banda a Provincia da
Tumda hindo - se meter com huns poderosos Sovas chamados
os Gingas que fazião guerra naquella Provincia, como
mandou o Governador m' archar contra elles ao seu Capitão
mór da guerra João de Veloria , o successo que teve der
rotando huns e apprisionando os Soldados Portuguezes
despois de porfiada rezistencia compondo desta feita alguns
Sovas da Quisama que estavão em guerras pagina 52 da
primeira parte do primeiro tomo.
Refere - se como o Governador João Furtado de Men
donça escreveo a el Rey Angola Ambandi a respeito de se
reduzir a nossa Santa fé Catholica, e o que disso rezultou
com a Irmãa do Rey, chamada pello nome da terra Ginga,
e a successo que teve o Princepe filho de Gola Ambandi.
Como fallecido o Rey de Angola Ambandi se apoderou a
Irmãa Ginga do Governo do Reino que tanto dezejava ,
havendo o Principe seu Sobrinho as mãos astuciosamente o
mandou afogar em o Rio Coamza por ficar absoluta Rainha
sem mais empecilho sendo fratecida do seu sangue de pagi
nas 53 a 55 da primeira parte .
Dá - se noticia como em tempo deste Governo se apanha
rão huns vistozos Animaes chamados Zebras, e os mandou
o Governador a Madrid a el Rey Phelipe, e forão tão aceites
que veyo bem premiado a pessoa que a seu cargo os levou,
e deo fim a seu Governo havendo nelle obrado na Conquista
deste Reino de Angola com todo o valor e aceitação , pagina
55 da primeira parte.

551
CAPITULO QUINTO DA PRIMEIRA PARTE .

Faz - se menção em como succedeo em o Governo deste


Reino de Angola Manoel Serveira Pereira vindo despachado
com o Governo destes Reinos; como subio a Conquista hindo
tendo batalhas, e encontros os Sovas da Provincia da Qui
sama, mandando por seu Capitão mór Baltezar de Aragão
fazer guerra a Provincia da Ilamba, junto com o Capitão
mór de a Cavallos Luiz Gomes Machado, tendo grandes
Batalhas e recontros daquelles inimigos alcançando delles
muitas Victorias. Como acabada esta empresa da llamba foi
o Governador em pessoa com todo o seu Exercito contra
o poderoso do Sova Cambambe e seus Aliados Sovas fidal
gos do Moseque, batalha que com aquelle grosso Gentio
houve ficando as nossas Armas milagrosamente victoriosas,
fazendose nesta occazião a Fortaleza de Cambambe com o
Orago da Senhora do Rosairo, corre de paginas 57 a 61
da primeira parte.
Relata -se como despois de feita esta empresa de Cam
bambe , passou o Exercito o Rio Coamza a provar a mão
com aquelle belicoso Gentio da Quisama para que ficassem
no conhecimento do valor Portuguez, e como a tal respei
tassem a sua Fortaleza que a sua vista tinhão.
Como quiz o Governador com seu animo valeroso em
prender novas faucoens, intentando a Conquista do Reino
de Benguela; para o que começou a alistar gente e prepa
rarse para ella ; e como disso rezultou fugir- lhe muita gente
Portugueza para a Provincia da Tunda passando da outra
banda do Rio Coamza em cujo seguimento mandou o Capi
tão mór da gente de guerra Baltezar de Aragão, o qual
tendo com os alevantados grandes pendencias os sogeitou,
trazendoos a obediencia; com que o Governador emprendeo
sua jornada deixando em a Loanda por seu lugartenente ao
Capitão mór João de Veloria , que o havia sido da gente de

552
guerra como dito hé : dá-se noticia como fez a Conquista na
quelle Reino de Benguela pelejando com o Rey daquelle Pais
Gola Amgimbo, fundando a Cidade São Phelipe e a Forta
leza na marinha ; e não fez mais empresas por lhe atalharem
seus Emulos , corre de paginas 61 a 66 da primeira parte .

CAPITULO SEISTO .

Em o Capitulo seisto se trata como veyo despachado pella


Magestada Catholica del Rey Dom Phelipe prudente, João
Rodrigues Coutinho; e apresto que trouxe para fazer guerra
a Provincia da Quisama, e provisão que veyo em sua Com
panhia que aqui vay lançado como se mandavão despachar
os serviços feitos nas Conquistas do Angola, corre de pa
ginas 67 a 69.
Relata - se como sahio da Loanda o Governador João
Rodrigues Coutinho com Calos da experiencia e foi nave
gando pello rio Coamza e suas margens até a nossa Forta
leza de Cambambe, passando ao pé della o seu Exercito
contra banda da Quisama onde começou a ter muitas bata
lhas e recontros com aquelle soberbo Gentio .
Como foi obrando grandes progressos iguaes a seu valor
e fidalguia , e o que não pode obrar aquelle bellicoso Gentio
contra elle, obrou o máo Clima ; adoecendo de calidade que
largou a vida e como por sua morte forão os Cabos mayores
obrando o que poderão; mas como falta a Cabeça não go
vernão os pés, não ha noticia certa quem lhe succedeo no
Governo, e só se acha que na Era de 1602 vierão Náos
Hollandezas a infestar esta Costa , sendo Capitão mór da
gente de guerra João de Veloria e os mais Conquistadores
se embarcárão de Arma, hindo por Cabo João Alvres Sar
dinha , havendo grande peleja , botando as Náos Hollandezas
fora da Costa corre este relatorio da pagina 69 a 72 da
primeira parte

553
Dá-se noticia como veyo despachado com o Governo
destes Reinos Dom Francisco de Almeida trazendo hum
grosso soccorro de gente mas não se sabe das empresas que
em seu tempo houve que não podião deixar de ser grandes
conforme a sua grande fidalguia , só dizião os que vierão
em sua companhia hum cerco que teve sobre huma pedra
chamada de Bamba - ampango em que gastou muito tempo
em a render. Das mesmas noticias carece Dom Jeronimo de
Almeida que lhe succedeo em o Governo o que consta só
de hum Livro antigo que se conserva na Villa da Victoria
de Masangano, e não diz quem succedeo no Governo destes
Reinos, de pagina 72 a 74 da pr.a parte .

CAPITULO SETIMO .

Em o Capitulo setimo se relata como foi Governador


destes Reinos Antonio Gonçalvres Pita, e como assistio em
a Villa de Masangano dispondo as occazioens da guerra da
Conquista de Reino de Angola, vay correndo este Governo
mais ao diante.
Primeiro se diz em este Capitulo setimo como veyo des
pachado pella catholica Magestade Dom Manoel Pereira
Forjas o qual foi dispondo da Cidade de São Paulo da
Loanda que já neste tempo tinha o nome de Cidade as em
presas de guerra por seu Capitão mór do Reino Bento Banha
Cardozo, do qual Governo se não mais porque lhe atalhou
a morte o que da sua fidalguia se esperava, foi sepultado
em a Igreja Matriz desta Cidade.
Por cuja morte foi eleito Governador Bento Banha Car
dozo que era Capitão mór do Reino por el Rey. Era de 1615
o qual tendo tomado posse do Governo foi dispondo as
cousas do Governo como tão noticioso dellas fazendo seu
Capitão mór da guerra ao valerozo Pedro de Sousa, hindo
em pessoa com o seu Capitão mór em demanda dos Sovas da

554
Provincia do Lumbo que impedião a Feira Real , que era
cousa de muita importancia , deixando tudo a obediencia de
el Rey de Portugal.
Dá - se noticia como formou a Fortaleza de Amgo para
freo dos Sovas daquella Provincia do Lumbo dando invo
cação a Fortaleza de São Bento, deixando -lhe por Capitão
mór a Roque de São Miguel espanhol nobre.
Relata-se como foi com seu poder em demanda do pode
roso Dembo Namboa -Amgongo que vinha alevantado del
Rey de Congo com cincoenta mil Negros de guerra talando
a Campanha e avassalando a sy os nossos Sovas, como afu
gentou e recuperou o que havia dito Dembo ganhado, e que
foi serviço de muita consideração a respeito dos viveres da
gente da Cidade de Loanda que os estrovava e intimi
dava corre este relatorio de paginas 78 a 79 da primeira
parte.
Dá- se noticia como governou estes Reinos de Angola
Antonio Gonçalves Pita como foi dispondo as cousas do seu
Governo subindo á Conquista e Villa da Victoria de Masan
gano, dispondo daquella Praça de Armas da Conquista as
cousas e empresas de guerra .
Como foi mandar fazer guerra a Provincia da Quisama
pello Capitão mór do Reino que acabava de ser Governador,
encontros e batalhas que houve valerosas com aquelle belli
coso Gentio sempre persistindo em se não sugeitar a Nação
Portugueza de paginas 80 a 82 da primeira parte.

CAPITULO OITAVO .

Em o Capitulo oitavo se trata como veyo o Governador


a estes Reinos de Angola Luiz Mendes de Vasconcellos,
como trouxe em sua Companhia dous filhos, Francisco Luiz
de Vasconcellos, e João Mendes de Vasconcellos, o qual
despois de haver dado expedição aos negocios da Cidade

555
37
subio a Conquista a compor em Masangano humas altera
coens, deixando em a Cidade por seu lugartenente a seu fi
lho mais velho Francisco Luiz de Vasconcellos. Faz -se rela
ção como hindo a Masangano levando comsigo seu filho mais
Moço João Mendes de Vasconcellos compoz o Alvoroto que
tinha havido naquella Villa castigando aquem o mereceo ,
convidando com boas palavras aquelles Moradores para o
accompanharem na Conquista de Dongo, por tambem cas
tigar a altivez do Rey de Angola ou da Rainha Ginga, que
é o mesmo, por não querer vir ao verdadeiro conhecimento.
Corre de paginas 83 a 85 da primeira parte.
Refere- se como sahio o Governador em Campo contra
aquelle Rey de Angola, tendo grandes batalhas, alcançando
muitas Victorias, até que opprimido do Exercito e Armas
Portuguezas fez paz com o Governador. Relata -se como vin
do para a Loanda doente o Governador, deixou por Capitão
mór da gente de guerra da Conquista a seu filho João Men
des de Vasconcellos, e por quebrar o Rey a paz, e se rebe
lar Caza e Donga subio o Governador outra vez a Conquista
e fundarão a Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção da
Enbaca .

Como vindo o Governador para a Cidade mandou a seu


filho fosse fazendo guerra aquelle Rey e perseguisse os dous
Quilombos de Jagas até os destruir de todo. Como mandou o
Capitão mór soccorrer a Fortaleza da Enbaca que estava
cercada de immenso Gentio, e das mais Fortalezas forão al
guns Moradores por sua vontade a soccorrela e meterse den
tro della, e a soccorreo por vezes com sua pessoa e Exercito
alcançando muitas Victorias destes inimigos. Corre de pági
nas 86 a 91 da primeira parte.
Dá - se noticia como o Capitão mór João Mendes de Vas
concellos fez a junta de todos os Sovas Vassallos Conquis
tados, e pellos achar a muitos delles traydores contra a Na
ção Portugueza, convencidos em Terreiro Publico , mandou

556
degolar alguns setenta Sovas, o que fez grande terror aos
mais chamandolhe o Caxaxi, e ficandolhe este nome em Lem
brança , paginas 91 a 92 da primeira parte.

CAPITULO NONO .

Em o Capitulo nono se dá noticia das faucoens que foi


obrando o Capitão mór João Mendes de Vasconcellos hindo
com seu Exercito em seguimento de dous Quilombos de
Jagas Caza e Caiete ou Donga com os quaes teve gran
des batalhas e encontros até por fim haver Donga as mãos
e Caza desbaratado botado fora do Reino de Dongo, que
proximo havião Conquistado as Armas Portuguezas; faz- se
declaração do que era Dongo.
Relata-se como foi tendo algumas batalhas e assaltos
nas Pedras de Mauzondo e Maupungo tendo muitos conflic
tos de guerra com os fidalgos daquelles Senhorios sahindo
de tudo victorioso andando naquelle aspero Sertão com o seu
Exercito padecendo muitas fomes e miserias o que tudo atro
pelava o esforço e valor Portuguez.
Havendo tido estes progressos marchou com o seu Exer
cito para a Provincia do Airi dando batalha a hum poderoso
chamado Quigilo, dando Rota ao Quilamba Bamba e Coamza
entrando nas terras e Senhorio de Quiloangi Ca Congo, e
Aquitexi conquistando estes poderosos, e avassalando -os a
Coroa de Portugal.
Dá - se noticia da entrada e Conquista que fez pella terra
dentro em o Reino de Matamba, tendo nelle apertadas occa
zioens, entrando a Bamza e Povoaçoens de Mulundo Acam
bolo Rainha daquelle Reino de Matamba, hindo em demanda
da dita Rainha, dando batalha a sua gente vindo aquelle nu
meroso Gentio bafigados de sua Senhora a cometer o nosso
Exercito onde se obrou com grande valor.
Como foi proseguindo a dita Conquista do Reino de Ma

557
tamba hindo marchando com seu Exercito para a Bamza ou
Povoação dos Reys antigos daquelle Reino em que teve no
vas batalhas e recontros sahindo de tudo vencedor, hindo
tambem contra hum poderoso daquelle Reino Quilamba
Augundo , tendo com elle batalha campal até ser roto e des
baratado o seu Quilombo e elle morto no Campo em que
gastou na Conquista de Dongo, e neste Reino de Matamba
alguns quatro annos, padecendo todos muitas fomes e mise
rias com grande constancia corre este relatorio de paginas
92 a 96 da primeira parte.
Disse tambem como foi dado ao nosso valeroso Conquis
tador pella ambundanha e Gentilidade desta Ethiopia o
nome de Catunda que val tanto no nosso idioma como
filho do Sol, assim como foi dado outros nomes a outras
pessoas valerosas lho derão tambem , a respeito de haver
entrado tanto pella terra dentro, o que até então se não havia
feito .
Dá- se noticia em como tendo obrado tambem Pay e filho
em a Conquista destes Reinos os Cavilladores e Emulos en
vejosos de suas proezas formarão culpas contra elles, com
que os prenderão, e devaçarão que assim se paga neste
mundo aquem melhor serve, de paginas 96 a 98 da primeira
parte .

CAPITULO DECIMO.

Em o capitulo decimo da primeira parte se relata como


veyo a governar estes Reinos João Correa de Sousa, pondo
as causas do Politico em boa forma, fazendo seu lugarte
nente para as empresas de guerra ao valeroso Pedro de
Sousa e do Gentio da Ensaca, era muito molestada a Cidade
da Loanda e seus habitantes com assaltos e tomadias lhe
encomendou esta Conquista como pessoa de tanto valor e
experimentado nas guerras da Conquista .

558
O qual sahio da Cidade com todo o apresto necessario
para aquella ardua e difficultosa Conquista; como duas Le
goas andadas da Cidade começou a ter grandes recontros
com aquelle valeroso Gentio, derramandose muito sangue de
parte a parte, onde houve muitos feitos valerosos pelejando
com aquelles Gentios mão a mão por estarem cubertos de
seus espezos matos nos ferirão muita gente com suas agudas
frechas e aremeços de Azagayas fazendo nelle, com as nos
sas Armas grande restolhada daquelle bellicoso Gentio.
Prevenção que mandou fazer o Governador em o Rio
Coamza por Cabos de experiencia para que o Gentio da
Quisama não dessem favor e ajuda aos da Ensaca, nem tão
pouco passassem elles para aquella banda, por estarem estas
terras destes inimigos de fronte daquella Provincia da Qui
sama; foi-se continuando com esta Conquista assistida
sempre de soccorros da Cidade do Governador, assim de
gente como de sustento pelejandose todos os dias com este
obstinado Gentio, queimandolhe bamzas e Libatas, reco
lhendo o que possuhião no intimo dos matos e profundo de
suas barracas .
Como despois de se gastarem alguns mezes nesta por
fiada contenda não podendo aquelle Gentio sustentar mais
seu partido largou suas terras e espeço de seus matos levando
sua retirada e fugida para as terras del Rey de Congo, com
quem estavão avindos , e sabião o poder que tinha em Campo
para os emparar das Armas Portuguezas. Relata -se como sa
bendo o nosso Capitão mór a fuga que levava aquelle nume
roso Gentio puxou por Cento e trinta homens mais Moços
de pé mais ligeiro com o Capitão mór de Cavallos Luiz Go
mes Machado com guerra preta , Escravos dos Portuguezes,
Quilambas e Sovas Vassallos, partio em seu seguimento apri
sionando muita gente passando os Rios Zemza , Damde , e
Hicua até a terras do Marques de Bumbi do partido do
Duque de Bamba.

559
Como em dito Senhorio veyo o poder del Rey de Congo
com muita fidalguia daquelle Reino a ter o encontro, como
formou sua batalha em Campo raso, e em que forma forman
do tambem o nosso pequeno poder como foi disposto pello
nosso experto e valeroso Capitão mór, alcançando daquelle
soberbo e numeroso Gentio huma tão assinalada e gloriosa
victoria , e o mais que succedeo neste conflicto e o despois
delle corre este relatorio de paginas 99 a 106 da parte deste
primeiro tomo.
Dá-se noticia em como havendo o Governador obrado
com tanto modo em a Conquista da Ensaca de Casangi se
malquistou de calidade , tendo muitas descomposicoens com
a gente principal da terra , Senado da Camara , Ouvidor Ge
ral Reverendos Padres da Companhia de Jesus, chegando
com todos a grande extremo, e por fim de tudo veyo a largar
c Governo embarcandose para Indias de Castella, e o mais
que succedeo na Cidade de Evora a este Ouvidor e em Cas
tella ao Governador, corre de paginas 106 a 111 da primeira
parte desta historia .

CAPITULO DECIMO PRIMO.

Em este Capitulo decimo primo se relata em como por


auzencia do Governador, João Correa de Sousa, governou
estes Reinos o Bispo de Congo e Angola Dom Frey Simão
Mascarenhas, como foi dispondo as cousas de seu governo
em boa forma, fazendo Cabos para a guerra e castigando os
Sovas rebeldes contaminados pella Rainha Ginga Dona Anna
de Souza, e passou por alto dizer ao Governo passado como
se havia vindo bautizar a Cidade da Loanda e o mesmo
havião feito as Infantas suas Irmaãs Dona Gracia e Dona
Barbara.
Dá -se noticia do muito que trabalharão para reduzir esta
Gentilidade a fé Catholica aos filhos daquelle Grão Patriarca

560
Santo Ignacio de Loyola que foi a total causa suas Santas
admoestaçoens desta Rainha Ginga e Infantas suas Irmaãs,
e outros fidalgos seus parentes do Reino de Angola e Dongo
tomarão a agoa do Santo bautismo.
Refere-se o que obrou a Rainha Ginga hindo da Cidade
da Loanda de se bautizar topando hum Tio seu que se vi
nha de suas terras para os Portugueses por se temer da So
brinha, o qual degolou no caminho tomando - lhe muita gente
do seu partido que com sigo trazia escapando daquella furia
hum filho seu por vir por outro caminho por nome Dom
Francisco Moenga Aquiloangi vivendo dali por diante en
tre os Portuguezes.
Relata - se como o Bispo Governador poz prevenção em
a navegação do Rio Coamza cousa de tanta importancia
encomendando sua guarda a Cabo de experiencia , dando -lhe
Infantaria e Cabos menos para andarem nos Comboyos a
respeito do Gentio da Provincia da Quisama ter impedido
aquella navegação com assaltos, corre esta narração de
paginas 112 a 117 da primeira parte desta historia.
O que dispoz o Bispo Governador mandar fazer em a
Cidade da Loanda Casa da Santa Misericordia e Hospital
arespeito da Calamidade da terra e haver muitos doentes
e infermos os quaes morrião a mingoa por não haver quem
delles tivesse cuidado serviço que foi de muita utilidade ao
serviço de Deos, e del Rey .
Dá-se noticia como veyo neste Governo huma Esquadra
de Hollanda a infestar esta terra e por Cabo della o Cos
sario Pero Peres ; como o Bispo Governador encomendou
a defensa da terra ao famoso Pedro de Sousa Tenente da
pessoa do Governador passado; como prevenio tudo com
muita disposição, ajudado da gente Conquistadora que
desceo de Masangano, com que não poz o inimigo pé
em terra com muita vigilancia tendo mais perda do que
proveito .

561
Relata -se como neste tempo estando o porto impedido
pella Esquadra da Hollanda e dito Cossario , veyo o Gover
nador Fernão de Sousa a Costa de Angola, e sabendo es
tava dita Esquadra na barra e porto da Cidade elle não
trazer Náos de força com que se poder medir com elle tratou
de entrar pella barra da Curimba sete legoas acima do
porto para barlavento, e por não haver fundo para entrar
carregado alizou em terra o que trazia nos navios de Carga,
e entrou boyando para dentro pello braço de mar que dali
corre até a Cidade.
Como com a chegada do Governador se deo mais calor
a defensa da terra, não havendo faltado o Bispo Governador
a ella que igualmente sabia empunhar Baculo e o Bastão
ajudado de seu valente Cabo Pero de Sousa , o que sabido
pello inimigo Hollandes haver chegado o Governador com
alguma gente de refresco se lhe perderão as esperanças de
fazer cousa de proveito , com que se foi sahindo do porto
para fora.
Corre este relatorio de paginas 117 a 120 da primeira
parte desta historia .

CAPITULO DECIMO SEGUNDO .

Em o Capitulo decimo segundo se relata como veyo


despachado com o Governo destes Reinos de Angola, ( Era
de 1625 ) , Fernão de Sousa Senhor de Gouvea .
Relata- se como veyo despachado para o Governo destes
Reinos, sua Calidade, e o que dispoz na boa direcção delle:
exortação que fez a Gente desta terra sobre o inclina - los
ás Lavouras, para o que lhe mandou repartir terras, e a
mesma exhortação fez a gente Portugueza da Conquista .
Da - se noticia do grandioso soccorro de gente de Armas
e muniçoens com que veyo do Reino o Capitão mór Bento
Banha Cardoso . Communicadas as ordens que trazia com o

502
Governador para ir com a Conquista por diante do Reino
de Angola.
Havendo tomado intelligencia do Estado do Reino se dis
poz com parecer do Governador a ir buscar a Rainha Ginga
as Ilhas de Quimdonga onde estava com todo o seu poder
fortificada . Corre esta narração de paginas 121 a 130 da
primeira parte desta historia.
Dá-se noticia como se levarão a esta ardua empresa ,
entre os mais aprestos necessarios duas Lanchas feitas em
quarteis para a passagem do nosso Exercito aquellas Ilhas
de Quindonga ; o bom modo com que agenciou algumas
pessoas Conquistadoras para aquella jornada, escrevendo
-lhe Cartas benevolas e honradas, como consta de huma que
neste Paragrafo vay relatada.
Relata-se como nesta occazião, accompanhavão o nosso
Exercito alguns fidalgos de grande Estado, terras e Vassal
los , Parentes mui chegados da Rainha Ginga , os quaes ella
repontava por rebeldes e traydores a sua Coroa.
Como marchou o Capitão mór com seu Exercito até to
mar sitio á vista das Ilhas de Quindonga, destoutra banda
do Rio Coamza .
Dá-se noticia como estando o nosso Exercito com a
gente de Cavallo e guerra preta talando aquella campanha
dando ordem a unir os quarteis das Lanchas, ajuntando mais
embarcaçoens para passar as Ilhas de Canoas Jamgadas e
Balcas para a guerra preta e mais apresto necessario aquella
empresa . Corre de paginas 130 a 133.

CAPITULO DECIMO TERCEIRO .

Em este Capitulo decimo terceiro se faz relação desta


Conquista das Ilhas de Quindonga investida ou sortida
que mandou dar de noite em o nosso Arrayal; o valor com
que foi rezistida pellos nossos valerosos Portuguezes ; o que

563
se obrou na passagem do Rio Coamza e entrada das quatro
Ilhas, que a cada huma dellas pello menos em as três de
Mapolo, do Tandala, e do Gola Ambole, houve faucoens
valerosas; e vendo - se aquella inimiga Rainha Ginga abarbada
do nosso poder mandou seus Embaixadores pedindo tres
dias de Tregoas que viria dar a obediencia como subdita
da Coroa de Portugal, á qual tomado conselho lhe foi con
cedida dita Tregoa com que nos deixou burlados, fugindo
com todo seu poder da Ilha em que estava para terra firme,
da outra banda Provincia do Libolo.
Vay correndo esta relação de paginas 134 a 139 da pri
meira parte .
Dá-se noticia em como despois do Capitão com parte do
seu Exercito gente valente ter seguido aquella inimiga al
gumas jornadas pella terra dentro, continuando -lhe muita
gente chegão até huma paragem a que chamão a Quina pe
quena , vendo era impossivel dar-lhe alcance se recolheo ao
Arrayal de Tabi .
Refere- se como tendo já armado alguns Cavalleiros na
quella guerra viva os de mais merecimentos, tratou tambem
de gratificar aos fidalgos parentes da Rainha, e fazer a
hum delles Rey das Terras da Provincia do Airi de que hum
delles era Senhor, com mais alguns Sovas Conquistados
pelas nossas Armas que lhe consinou com titulo de Rey de
Dongo e o mais que passou em este Arrayal chamado o
Quilombo dos Corvos; e como ficou immemoravel esta no
tavel Conquista das Ilhas de Quindonga pellas cousas di
versas que nella houve.
Correm estas noticias de paginas 139 a 144 da primeira
parte .
Dá - se noticia em como havendo este valeroso e esfor
çado Portuguez Capitão mór do Reino e gente de guerra
por patente Real , dando fim a esta gloriosa empresa como
o havia feito a outras muitas na Conquista destes Reinos,

564
vindo de volta com seu Exercito vencedor, chegando a
Villa da Victoria de Masangano pagou o tributo a Parca,
fallecendo em aquella Villa; e tambem deo fim esta primeira
parte do primeiro tomo da historia general Angolana pági
nas 144 a 145.
Esta segunda parte deste Alphabeto contem nove Capi
tulos, no primeiro se continua o Governo de Fernão de
Sousa , e se diz o como foi delle sentida a morte de hum tão
grande Conquistador como era o Capitão mór Bento Banha
Cardozo, e muito mais sabendo como a Rainha Ginga Dona
Anna de Souza, havia dado hum repentino assalto em o
Senhorio do nosso Rey de Dongo e levado prisioneiro hum
dos Capitaens que havião ficado em guarda del Rey de
Dongo, e alguns Soldados Portuguezes que andavão der
ramados para aquellas terras, não se temendo desta ardiloza
inimiga.
Com que nomeou logo para a cudir a este reparo por
Capitão mór da guerra a Payo de Araujo de Azevedo pessoa
de Calidade e Conquistador antigo ao qual mandou com
toda a pressa Sahir da Cidade com todo apresto necessario,
com ordem de que em todo o caso buscasse aquella inimiga
até acabar de todo. Relata - se como sahio da Cidade o novo
Capitão mór ; faz o Autor huma declaração como era odiado
da Rainha Ginga este Rey de Dongo , e o mal que lhe que
ria por haver aceitado o ser Rey da mão dos Portuguezes
em seu vituperio.
Relata- se como o Capitão mór incorporado que esteve
com a gente da Conquista , Rey de Dongo, e guerra preta ,
foi pella terra dentro em busca da Rainha Ginga tendo bata
lhas e encontros pello caminho daquelle Sertão, sem quere
rem aquelles Gentios descubrirem parte certa em que esti
vesse guardando-lhe aquelle decoro como a sua Senhora
natural ; e só huns Jagas apanhados no destroço de huma
renhida e sangrenta batalha como não erão seus Vassallos

565
por nascimento, derão noticia ao Capitão mór como aquella
Rainha estava em huma eminencia forte por natureza, só
com huma entrada, e com as Costas e retirada na Quina
grande . Corre esta narração de paginas 146 a 149 da se
gunda parte .
Relata -se em como com aquellas certas noticias ficou
toda a gente do nosso Exercito alvoroçada hindo marchando
por aquelles asperos Caminhos, levando aquelles Jagas por
guias , hindo chegando o Capitão mór a vista do seu nume
roso Quilombo, onde teve huma terrivel batalha com aquelle
numeroso Gentio estava aquella valerosa Pantasilea infun
dindo esforço aos seus, até que vendo o feito malparado, se
poz em Cabo, deixando os seus na peleja com ordem sus
tentassem até mais não poder; até que de todo largarão o
Campo, hindo em seu alcance a gente de Cavallo, hindo
largando muita bagagem aos nossos Portuguezes, e até as
sua proprias Irmaãs Dona Gracia e Dona Barbora, que nesta
occazião se aprisionarão e vendose acossado se despenhou
por Cordas, ella e muita parte de sua guerra , chamada esta
paragem Quina grande; e se faz menção do mais que em
esta empresa succedeo, e se diz como esta Rainha Ginga com
esta fuga pella terra dentro se foi assenhoriar do Reino do
de Matamba, onde havia entrado primeiro a nossa Con
quista como se tem referido, corre esta relação de paginas
149 a 159 da segunda parte.
Dá-se noticia em como o Governador e Capitão Geral
Fernão de Sousa vendo que quando veyo o Pirata Pero
Peres com sua Esquadra a invadir estes Reinos de Angola
estava a Marinha e Praya da Cidade sem nenhuma defensa ,
e que podia em toda ella desembarcar e botar gente em
terra, deo ordem a se fazer hum recinto de trincheira de
pedra e cal da altura de hum homem com seus fortins
e trechos para defensa da cidade o que se obrou com muito
cuidado.

566
Dá - se tambem noticia como mandou pôr grande cuidado
em a navegação do Rio Coamza a respeito dos assaltos e
tomadias que a gente da Provincia da Quisama fazia em
tão importante passagem e navegação, e se diz de como es
tava o Governador composto a toda a hora que o buscassem ,
costume que havia observado em a Real Casa de Bragança
na assistencia do Paço, e Posto que occupava de Veador
daquella magnifica e opulenta Caza.
Refere - se o que passou com hum Morador hindoo a
vizitar; Conselho que lhe deo, e como por estas e outras
muitas cousas que obrou em seu Governo lhe foi dado por
todos em geral o nome de Governador perfeito porque em
todas as suas acçoens assim o mostrou. Corre de paginas
160 a 177, do ultimo cap.º da pr. parte desta historia .

CAPITULO SEGUNDO DA SEGUNDA PARTE .

Acha - se em este segundo capitulo, conforme consta de


alguns papeis antigos como foi Governador e Capitão
Geral destes Reinos Dom Manoel Pereira Coutinho - Era
de 1633 .
Dá - se noticia de sua calidade e fidalguia, e como foi
proseguindo seu Governo fazendo e mandando fazer inteira
justiça as partes, mandando prover as Fortalezas da Con
quista de Armas e muniçoens, e Infantaria.
Dá - se noticia em como teve o Governador avizo das
molestias e presas que fazião os Quisamas em a passagem
do Rio Coamza em as embarcaçoens daquella navegação;
o que prevenio de Cabo experto e de experiencia Conquis
tador antigo dando -lhe Infantaria bastante para guarda e
comboys de tão importante navegação, dando - lhe tambem
regimento por escrito do que havia de fazer e obrar que nesta
historia vay tresladado. Correm estas noticias de paginas
175 a 178 da seg.da parte .

567
Relata - se como foi o Governador avizado que os Sovas
Chamados Dembos fazião muitas molestias e vexacoense
tomadias aos Vassallos Portuguezes que naquelle Sertão
andavão ao trato do negocio principalmente o Sova Dembo
Ambuila, e não querer entregar a gente fugida que em suas
terras tinha dos Portuguezes, como fez conselho sobre esta
matéria , e se resolveo a que se lhe fizesse guerra .
Como nomeou para esta empresa a Antonio Bruto por
Capitão mór desta guerra pessoa de larga experiencia e
Conquistador antigo; dando -lhe todo o aviamento para esta
Campanha de Cabos mayores Capitaens, e Infantaria bas
tante, Armas e muniçoens, peças de Artelharia de Campa
nha e todo o mais necessario, ajuntando - se toda a guerra
em a Provincia da Ilamba sitio da Camulemba . Corre este
relatorio de paginas 178 a 179 do Capitulo segundo da
segunda parte.
Faz - se relação desta empresa, e como forão avançadas
as Trincheiras do inimigo com muito valor. Como houve
fauçoens valerosas, principalmente em o Capitão mór da
gente preta . Como forão entradas as trincheiras de huma e
outra parte, fazendo- se em aquelle inimigo muita degolação
e aprisionandose muita gente; pondo o Capitão mór Cerco
a Pedra onde se havia recolhido o Dembo Ambuila com
muita gente de seu partido.
Faz -se menção do grande valor e disposição do Ca
pitão mór da guerra preta e Tandala do Reino, o modo
do trato de sua pessoa, e respeito que lhe tinha a gente
preta obedecendo suas ordens, comparação que faz delle o
Autor.
Como foi preso embarcado para o Reino por culpas que
se achárão; o que lhe succedeo na jornada até que tornou
confirmado em seus Cargos para este Reino de Angola.
Corre esta narração de paginas 179 a 185 do Segundo
Capitulo da segunda parte.

568
Dá-se noticia do alvoroto que neste tempo houve na
Cidade de São Paulo da Assumpção sobre a imposição de
huma finta que o Ouvidor Geral queria impor que foi neces
sario acudir o Bispo e Governador a aquietar o povo atumul
tuado, que não descompozessem ao Ouvidor.
Refere - se aprevenção que mandou fazer o Governador
com a nova que veyo a este Reino de o Hollandez haver
tomado Pernambuco . Como mandou fazer hum trincheirão
com hum fortim em huma entrada que hia da Marinha para
a Lagoa dos Elephantes, chamada neste tempo Casimas ou
poços da Majanga, encommendando o cuidado desta forti
ficação a hum Morador de posses; e como mandou de arma
dilha ao esforçado Pedro de Sousa ao Porto de Pinda accom
panhado de gente de Masangano Conquistadora em busca
de huma Náo poderosa Flamenga, com a qual tiverão huma
grande pendencia botando aquelles inimigos fora daquelle
porto e Costa
Relata-se tambem a quietação e socego com que se houve
em seu Governo, e por andar hum seu Neto que havia tra
zido em sua Companhia o embarcou logo para o Reino por
não querer que houvesse desinquietaçoens em seu Governo.
Faz- se lembrança neste Governo do dignissimo Bispo de
Congo e Angola Dom Francisco do Soveral e promette o
Autor mais ao diante fazer menção de sua virtuosa vida,
e por agora da fim a este Governo e a este segundo Capi
tulo da segunda parte desta historia. Correm estas noticias
de paginas 185 a 188.

CAPITULO TERCEIRO DA SEGUNDA PARTE .

Em este terceiro Capitulo da terceira parte desta historia


se relata como veyo despachado com o Governo destes Rei
nos Francisco de Vasconcellos da Cunha vindo pello Es
tado do Brazil conduzindo hum soccorro para a Campanha

569
de Pernambuco; como trouxe dous sobrinhos em sua Com
panhia e alguns Soldados que o accompanhavão e gente
de sua obrigação.
Como foi dispondo as cousas de seu Governo como
fidalgo prudente e de experiencia e temendo - se alguma in
vasão inimiga , fundou o Forte ou Fortaleza de Nossa Se
nhora da Guia , beira mar ao pé do morro chamado de São
Paulo onde mandou fazer aos Almazens Reaes, como hoje
se vem dentro da Fortaleza fechada, com huma Cisterna e
Quarteis para Soldados Capitão e mais Officiaes.
Relata-se como mandou recolher o Exercito que estava
em Campo sobre o Dembo Ambuila pedindo misericordia ,
e appellidando - se Vassallo da Coroa de Portugal entregar
a gente fugida e satisfazer perdas e danos; e tambem man
dou recolher o Capitão mór Antonio Bruto por andarem
Nossos inimigos na Costa destes Reinos.
Corre este relatorio de paginas 189 a 191 da segunda
parte do Capitulo terceiro .
Dá - se noticia como mandou o Governador pôr muito
cuidado em a guarda da Navegação do Rio Coamza en
commendando de novo aquella assistencia e Comboys das
embarcações que navegavão abaixo e acima, dando - lhe
aquelle Cabo, novo Regimento, por escripto , e poder para
fazer alguma entrada e assaltos pella terra dentro ; dá - se
noticia como dispoz huma entrada , e o que lhe succedeo nella
por desordeiro dos que accompanhavão esta empresa, como
tambem nos succedeo em a Ilha de Taparica do destricto
da Bahia . Corre esta narração de paginas 191 a 193 do
terceiro Capitulo da segunda parte.
Dá -se tambem noticia do avizo que neste tempo veyo da
Fortaleza da Enbaca em como a Rainha Ginga Dona Anna
de Sousa desoccupada da Conquista que havia feito no
Reino de Matamba intentava desinquietar ao nosso de
Dongo , molestando tambem alguns Sovas da nossa Con

570
quista, para reparo do que elegeo por Capitão mór a seu
Sobrinha Bertolameo de Vasconcellos da Cunha ; como mar
chou para Enbaca com gente de guerra , e sitio que se tornou
em seu districto em Campanha a opposição daquella inimiga.
Relata - se como botou o Governador Armadilha fora a
correr a Costa por andarem nella Náos de Cossario Hol
landezes; quem foi por Cabo e Almirante, como ajudou o
Prelado com seus Estudantes a esta occazião peleja que
houve com aquelles Piratas trazendo a nossa Armada huma
Náo inimiga de presa , com que deo o Governador fim a seu
Governo. Corre esta relação de paginas 193 a 196 da
segunda parte do terceiro capitulo desta historia.

CAPITULO QUARTO DA SEGUNDA PARTE .

Em o capitulo quarto da segunda parte desta historia


se relata como veyo despachado com o Governo destes Rei
nos ( Era de 1639 ) Pedro Cezar de Menezes; diz - se sua
fidalguia e merecimentos pellas Armas; como sahio do Porto
e Rio de Lisboa com duas Náos de força Capitania e Al
miranta o Almirante e Capitaens, quem erão ; a Infantaria
que trazia de soccorro, como arribou a Ilha da Madeira a
Compassar a Náo Almiranta que vinha zurreira onde esteve
dezoito dias; e dahi seguio sua viagem com mais huma Pulha
cra de guerra até Altura de trinta e tres gráos e meyo onde
teve huma grande tormenta de Mares mui grossos que cru
savão por cima da cuberta , e o mais que naquelle aperto
passou. Corre esta relação de paginas 197 a 199 da Capi
tulo quarto da segunda parte desta historia .
Dá -se noticia em como da Altura de trinta e tres gráos
e meyo e tantos minutos se virou a buscar terra como se
fizerão com ella muitas Legoas ao mar e so o Mestre e Se
nhorio da Náo Almiranta trouxe o seu ponto fixo como
grande maritimo que era e se tomou terra de quatorze gráos

571
38
do Cabo Negro para dentro, hindo correndo a Costa o nosso
Reino de Benguela e Cidade de São Phelipe de Regozijo
que houve assim das Náos como da Fortaleza de terra com
muito desparar de Artelharia. Como foi logo o Batel da
Capitania a terra em que logo veyo o Governador que então
era daquelle Reino por Patente Real a ver o Governador e
Capitão Geral e dar-lhe as boas vindas; a informação que
lhe deo do estado das cousas daquelle Reino e Conquista ;
e da perda que proximamente havião tido naquelle Sertão
com o Capitão mór da guerra, pedindo -lhe o soccorresse de
gente, Armas e muniçoens, porquanto naquella perdição não
havia escapado mais de hum só homem que trouxe a nova.
Corre este relatorio de paginas 199 a 201 do Capitulo quarto
da segunda parte.
Tendo informado o Governador do Reino de Benguela
ao Governador e Capitão Geral do estado em que se achava,
lhe mandou logo dar Armas e muniçoens prometendo- lhe
de o soccorrer de gente conforme a possibilidade, conforme
achasse as cousas do Reino de Angola o qual hido para
terra mandou hum grandioso refresco que o nosso Gover
nador mandou repartir pellas Náos e Infantaria, e como
estando naquelle porta de Benguela tres dias levarão as
Náog ferro , correndo Costa abaixo até tomarem o porto de
São Paulo da Loanda.

CAPITULO QUINTO DA SEGUNDA PARTE .

Em este Capitulo quinto se relata como chegado o


Governador ao Porto de São Paulo da Loanda mandara
desembarcar a Infantaria do soccorro , vindo elle de bordo
accompanhado do dignissimo Bispo Senado da camara,
montado em hum Cavallo subio a Calçada onde estava pre
venido hum Pallio, apeado metido de baixo delle , feita a
pratica como hé estilla entregue das Chaves da Cidade foi

572
dali para a Igreja , onde lida a Patente Real lhe entregou
o Governador Francisco de Vasconcellos da Cunha o bastão
e a Governo destes Reinos ; e as mais Ceremonias que se
fizerão naquelle Auto.
Dá- se noticia em como havendo tomado posse do Go
verno foi provendo os Cargos que estavão vagos de Justiça
e postos de Milicia ; e como dahi a poucos dias de sua che
gada veyo o Governador de Benguela e seu Reino buscar
o soccorro de gente, como lhe fez todas as honras e deo
a gente que pede. Corre de paginas 206 a 208 do quinto
Capitulo da segunda parte .
Dá - se noticia da Caravella chamada dos Diamantes que
sahio diante do Governador a buscar os Diamantes e Cabe
dal del Rey a qual achou haver quinze dias que era perdida.
Refere-se como achou o Governador neste porto da
Loanda o Galeão São Bento o apresto que lhe mandou dar,
e como se desaviou com o Capitão mór delle, e o mais que
passou hindo nelle embarcado o Governador passado.
Dá -se noticia da Embaixada que mandou a Rainha Ginga
Dona Anna de Sousa vinda em sua Companhia hum In
viado que lhe havia mandado o Governador sobre a gente
fugida; como mandou huma pouca de gente velha que já se
lhe não conhecião Senhores.
Corre esta narração de paginas 208 a 210 do quinto
Capitulo da segunda parte.
Dá-se noticia como mandou o Governador seu Embai
xador á Rainha Ginga , a Calidade da pessoa, e ostentação
com que foi , que hé o que este Gentio respeita.
Relata-se como botou a Armadilha a correr a Costa, que
Navios e Cabos forão e o que se obrou, e successo que
houve; faz -se declaração o porque chamavão ao Cabo da
Armadilha o Renegado.
Como neste tempo mandou o Governador queimar huma
Lancha na praya com fazenda, e tudo por haver ido ao

573
Loango a contratar com os Hollandezes , e ser fazenda de
Contrabando, mandando Castigar o Dono da Lancha. Corre
de paginas 210 a 216 do quinto Capitulo da segunda parte
desta historia .

CAPITULO SEISTO DA SEGUNDA PARTE .

Em este Seisto Capitulo da segunda parte se dá noticia


das differencias que teve o Governador por Cartas com el
Rey de Congo em ordem ao bom tratamento dos Conigos
daquella Sé, e Juridição do Ouvidor, e aperto dos Portu
guezes tratantes em as passagens dos Rios, e suas Aduanas ;
não Lembrando aquelle Rey as obrigaçoens que devia aos
Serenissimos Reys de Portugal e a seus Vassalos Portugue
zes . Relata-se em como o Governador elegeo a hum Con
quistador Antigo por Vizitador, e Superintendente das For
talezas; as Revoluçoens que houve sobre isso com os Capi
taens mores por não quererem obedecer a Superintendencia
a Vizitador sir Como foi assistir no sitio da Axila a
opposição da Rainha Ginga.
Dá-se noticia como mandou vir de Masangano aonde era
cazado e morador ao Capitão Fernão Rodrigues para lhe
encarregar como encarregou a guarda do Rio Coamza ; como
o havião feito os Governadores seus Antecessores, por an
darem os Quisamas mui soltos, fazendo assaltos e tomadias
em aquella navegação. Correm estas noticias de paginas
217 a 221 da segunda parte do Capitulo Seisto desta historia .
Dá-se noticia como neste tempo veyo a este Reino por
mandado do Marques de Montalvão Vizo Rey do Brasil
Dom Phelipe de Moura Mestre de Campo da Praça da
Bahia, e o que se divulgou de sua vinda.
Relata- se como chamou o Governador a conselho o Pre
lado, Senado da Camara, Cabeças das Religioens, e Mora
dores principaes, e propoz o estado em que o Reino estava

574
com o Rey de Congo com a Rainha Ginga, com os Sovas
Dembos, e mais Gentio; se convinha pôr- se guerra em
Campo, e o que resultou desta proposta, corre esta nar
ração de paginas 221 a 223 do Seisto Capitulo da segunda
parte.
Relata - se como em este tempo chegou huma Caravella
ao porto desta Cidade da Loanda, o que todos tiverão a no
vidade, a qual foi de aviso em como havia em Portugal Rey
Portuguez; o como foi festejada de todos esta nova; como
foi logo acclamado, e festas que se fizerão, e em todo o mais
Reino de Angola suas Conquistas e Reino de Benguela.
Dá -se noticia em como despois das festas da feliz Accla
mação fez o Governador as exequias de seu Pay, e nomeou
para Capitão mór da guerra ao Capitão mór Antonio Bruto,
fazendo seu pé de Exercito em a Emgombota junto da
Ermida de Santa Maria Madalena, paginas 223 a 227.

CAPITULO SETIMO DA SEGUNDA PARTE .

Dá - se noticia como avistarão este porto da Cidade da


Loanda quatro Náos inimigas; como marchou o Governador
para a Praya com a pouca Infantaria que tinha, e o mais
que nesta occazião houve; e as intelligencias que tinha o
Governador do Rey de Congo, que esperava Armada
Flamenga.
Relata - se como em 22 de Agosto appareceo por cima da
Barra da Corimba huma Armada da qual veyo primeiro
aviso a Cidade do Capitão da Corimba. Como mandou
o Governador tocar Caxas , e marchou com toda a gente
de guerra para a marinha a ter o encontro ao inimigo; e o
mais que nesta occazião houve , até se retirar o Governador
da Cidade com toda a gente Portugueza . Corre esta relação
da tomada da terra de paginas 228 a 240 da Segunda parte
do Setimo Capitulo em que dá fim .

575
CAPITULO OITAVO .

Dá - se noticia em este oitavo Capitulo em como o Gover


nador e Capitão Geral Pedro Cezar de Menezes esteve
alguns dias em a fazenda dos Padres da Companhia beira
Rio Bengo: e como dali passou seu Arrayal para o sitio de
Gregorio Ribeiro, onde veyo ter com elle o Capitão e Cabo
do Rio Coamza.
Como por sua ordem aviou dous Pataxos que forão de
aviso ao Brasil com os pregos del Rey, e tambem vierão
a este sitio ter com o Governador dous Moradores do Pre
sidio de Cambambe, correm estas noticias de paginas 241
a 245 do Capitulo Oitavo da Segunda parte.
Relata - se como tratou o Governador de se fortificar a
opposição do inimigo que já estava na Barra do Bengo, como
escolheo para isso o sitio do Outeiro da Igreja da Quibumda,
o qual fortificou e passou toda a gente para elle, e como
mandou a Cidade de noite buscar duas Peças de Artelharia
que plantou em os baluartes; e se dá noticia em como a este
Arrayal se veyo incorporar com o Governador a gente da
Conquista com seu Cabo e Capitaens e guerra preta . Como
vinhão mui Orgulhosos em querer provar a mão com o
inimigo; e só lhes permitio fossem alguns delles a fazer suas
embuscadas a Cidade aos poços da Majanga, o que delles
resultou.
E se relata tambem o engano que fizerão dous Quilam
bas nossos ao Hollandes em a Cidade e o que delle resultou.
Corre esta narração de paginas 245 a 248 do Capitulo oitavo
da segunda parte.
Dá -se noticia das intelligencias que o Governador tomou
de hum Soldado Inglez prisioneiro, do que tomou motivo
para se avistar em o sitio do sequele com o Director An
dreson Governador das Armas Hollandezas.
Dá -se tambem noticia como haviamos tido muitos recon

576
tros com os Hollandeses fortificados na Barra do Bengo, fi
cando as nossas Armas sempre de ganancia, e as vistas que
teve o nosso Governador com o Director Andresom , ficando
mais desavindos que antes, correm estas noticias de pags.
248 a 249 do Cap.º oitavo .
Dá - se noticia e se relata em como despois das vistas do
Sequele dos dous Governadores Portuguez e Hollandez tra
tou o nosso de reforsar as tropas que andavão em Campo,
e como vendose acossados e encurralados em suas fortifi
caçoens impetrarão do seu Director os soccorresse , ou os
mandasse retirar.
Relata - se em como mandou o Director o mais do poder
que tinha em a Cidade por mar em soccorro dos seus a
Barra do Bengo.
Como nos foi hum Sova nosso Traydor. Rota que houve,
e como sahio em soccorro o nosso Governador. Corre esta
relação de pags. 249 a 255.

CAPITULO NONO E ULTIMO DA SEGUNDA PARTE .

Em este nono Capitulo e ultimo da segunda parte se re


lata em como o Governador sustentou o Campo desafiando
a campanha o inimigo até quasi noite que se retirou para o
seu Arrayal, e como mudou o Arrayal do Outeiro da Igreja
da Quilunda para outro sitio mais a cima, e mais conve
niente onde se fortificou novamente mandando recolher toda
a gente a fortificação, e Arrayal chamado de Antonio
Vieira .
Como se propoz neste Arrayal estando em conselho bo
tarem - se Tigres Onças e Lioens em a Cidade em damno do
Hollandez que havia Negros Encantadores ou Feiticeiros que
o sabião fazer, o que estrovou o Prelado dizendo era guerra
suja , e mais sendo feita por arte diabolica; e como prevenio
Governador duas tropas bolantes que andassem em guarda

577
daquellas fazendas do Arrayal para baixo, que não tivessem
paragem certa . Corre este relatorio de pags. 256 a 259
do nosso Capitulo da segunda parte.
Dá-se noticia tambem como ordenou o Governador que
em o sitio do sequele fossem de oito em oito dias dous
Moradores de posses, huns hidos os outros a atalayar aquel
les caminhos, assim a respeito do Gentio não ter communi
cação com o Hollandez para tambem não passar pessoa ne
nhuma a metterse com o inimigo.
Como se apanhou hum Francez Boticario que hia para
o inimigo, e o que succedeo quando lhe derão garrote; e se
dá noticia das advertencias que mandou o Capitão mór da
Enbaca ao Governador, e se refere o castigo que se fez em
Namboa Calombe assim nelle como nos mais Sovas alevan
tados.
Relata - se tambem como estando a nossa guerra fora em
dito castigo, nos veyo visitar o inimigo Hollandes com todo
o seu poder ao dito Arrayal de Antonio Vieira para nos in
vadir por interpresa e o mais que succedeo, corre esta rela
ção de pags. 259 a 265 do nono Cap.º da segunda parte.
Dá- se noticia do que succedeo a humas pessoas que se
forão do Arrayal para se embarcarem no Rio Coamza em
hum Pataxo que havião prevenido para sahir pella Barra
da Coamza fora, e dahi navegar ao Brazil, e o que dahi
resultou .
Relata -se como teve o Governador nova certa pellas in
telligencias que tinha com a Cidade do grosso soccorro que
havia vindo ao inimigo com ordem de seus mayores inva
dissem e sogeitassem o nosso Governador e Arrayal ajudas
de Congo, e do Governador da Ilha ; falla que fez o nosso
Governador e o Prelado para se retirarem para Masangano,
como se poz em ordem , e o mais que succedeo até se por
emi marcha , corre esta relação de pags. 265 a 270 com que
dá fim o nono Cap .° e esta segunda parte desta historia.

578
CAPITULO PRIMEIRO DA TERCEIRA PARTE DESTA
HISTORIA

Relata - se em este primeiro Capitulo da terceira parte em


como posto em marcha o nosso vigilante Governador foi
levando toda a gente da retirada por diante tendo nisso
muito trabalho até chegar a Villa da Victoria de Masan
gano, corre este relatorio de pags. 271 a 275 da terceira
parte .
Dá-se noticia do que dispoz o Governador despois de
sua chegada a Villa de Masangano, formando Senado da
Camara, e os mais Tribunaes da Justiça e fazenda e Casa
e hospital da Misericordia para curar a tantos Enfermos
quantos havia .
E se diz tambem do aviso que teve o Governador do
Capitão e Cabo do rio Coamza haver entrado por sua barra
hum Navio Flamengo a fazer negocio com o Gentio ; o que
dispoz o Governador sobre isso mandando aquelle Capitão
com quatro Lanchas com Cabos e Soldados em busca da
quelle Navio, e successo que houve, corre esta narração de
pags. 275 a 277 do pr.° Cap.º da ter ." parte.
Relata - se o que dispoz o Governador sobre hum Negro
nosso Cossario que andava alevantado com a gente da Qui
sama dando assaltos; como se aprisionou e se fez em quar
tos , e o mesmo dispoz com outro Negro esforsado Cabeça
de Banduleiros que andava na Provincia da Ilamba dando
assaltos e sahindo aos caminhos a roubar o qual teve o
mesmo fim do que o outro.
Dá - se noticia como mandou o Governador por pessoa
intelligente das cousas da terra buscar pello Sertão dentro
a hum Jaga Senhor de Quilombo para ajudar a nossa de
fensa por ser o nosso Gentio pouco fiel . Correm estas noti
cias de pags . 277 a 279 do primeiro Capitulo da terceira
parte.

579
Dá -se tambem noticia em como chegou ao ultimo Arrayal
do Bengo João Zuzarte de Andrada mandado da Cidade
pello Governador ao Sova Dembo Caculo Cacaenda ; como
deo por noticias estarem todos os Dembos alevantados, e
tirannias que havião feitas em suas terras aos Portuguezes
que nellas andavão ao trato das peças com que deo fim este
primeiro Capitulo da terceira parte.

CAPITULO SEGUNDO DA TERCEIRA PARTE .

Relata - se em este segundo Capitulo da Terceira parte


a grande doença que teve o Governador em Masangano do
grande trabalho da marcha e máo Clima. Como melhorou e
cahio doente o Prelado de que morreo . Faz o Autor huma
reflecção sobre a sua vida e morte. Corre esta relação de
pags. 280 a 285 com que dá fim este Capitulo segundo da
terceira parte desta historia.

CAPITULO TERCEIRO DA TERCEIRA PARTE .

Dá- se noticia em este terceiro Capitulo da terceira parte


como veyo o Jaga Cabucu Camdonga com a gente do seu
Quilombo ao serviço da Coroa de Portugal e de seus Vas
sallos Portuguezes; successos que teve na sua passagem das
terras de Dambi e Quitexi.
Relata - se em como sahio o Governador a campo a opposi
ção do inimigo Hollandez e Gentio rebellado, como despa
chou o Capitão mór da guerra Antonio Bruto a castigar
huns Sovas rebeldes da facção do Flamengo. Corre esta
narração de pags. 286 a 287 do terceiro Capitulo desta ter
ceira parte .
Relata-se em como mandou o Governador marchar para
a Fortaleza da Enbaca Cento e trinta homens com ordem ao
Capitão mór marchasse com elles junto com os nossos Qui

580
lambas e Jagas a castigar os Sovas Dembos pellos desafor
ros que havião feito; o que se obrou nesta occazião, como
tambem na guerra que deo em o Sova Dembo Motemo
Aquingengo, como dispoz o Capitão mór esta empresa.
Corre esta relação de pags. 287 a 290 do terceiro Capitulo
da terceira parte .
Relata-se o destroço que tiverão as nossas Armas em os
matos do Libunzo terras do Dembo Namboa Amgongo aju
dado aquelle Gentio de Duzentos Flamengos que lhe forão
de soccorro da Loanda, corre esta relação de pags. 290 a 293
do Capitulo Terceiro da Terceira parte.
Dá - se noticia da Confederação que fez a Rainha Ginga
Dona Anna de Souza com o Hollandez tudo afim de des
truir a Nação Portugueza. Como chegou o seu Quilombo
para nos, e sobre os Sovas Dembos sogeitando -os. Como
lhe vierão Cem Flamengos da Loanda para com essa ajuda
entrar os matos de Quitexi Camdambi. Como entrou e so
geitou a sua obediencia.
Dá - se tambem noticia em como ao Arrayal de Cazoan
gongo onde estava o Governador chegarão huns Hollande
zes Inviados da Loanda do seu Director e Governador de
Armas com a nova das pazes. Como forão apregoadas com
alegria de todos. Como mudou o Governador o seu aloja
mento mais para baixo terras do Sova Namboa Aquizamso.
Corem estas noticias de pags . 293 a 295 do terceiro Capi
tulo da terceira parte .
Relata - se como persuadirão os Cidadoens e Moradores
da Loanda ao Governador fizesse conveniencias com o Fla
mengo para descerem do Arrayal de Namboa Aquisamza
para as suas fazendas e arimos do Bengo, como a respeito
disso mandou a Cidade da Loanda ao Licenciado Guerreiro,
assento e concordata que fez sobre isso com o Director e
Commissarios da bolça, corre esta narração até pags. 298
com que dá fim este terceiro Capitulo da terceira parte.

581
CAPITULO QUARTO DA TERCEIRA PARTE .

Relata -se neste quarto Capitulo da terceira parte desta


historia em como de baixo da paz e concordata desceo o
Governador com toda a gente Portugueza para o sitio da
Igreja do Gango e Barra do Bengo correndo dali com o Fla
mengo em boa amizade e correspondencia, mandando o
Governador e mais gente Portugueza, vir para aquelle sitio
e alojamento todo o bem que possuhião. Como estando de
baixo daquella boa fé e palavra estabelecida e capitulada,
deo o inimigo e assaltou o nosso alojamento do Gango e
Barra do Bengo matando a muitos, e esbulhando e rou
bando a todos, e o mais que succedeo, corre esta relação de
pags. 299 a 309 do quarto Cap.º da ter. parte.
Relata - se tambem o aviso que ao Governador veyo por
terra do Reino de Benguela em que davão parte ao Gover
nador e Capitão Geral como havia o Flamengo invadido
aquelle Reino Cidade e Fortaleza e os termos em que se
achavão as cousas daquelle Reino .
Dá-se tambem noticia da nova que levou a Masangano
hum Crioulo fugido da Loanda de que havia despejado a
Cidade o Hollandez e embarcado, diligencia e noticia que o
Governador mandou tomar como achando o contrario man
dara enforcar aquelle Crioulo.
E como por saber o estado da Cidade mais ao certo
mandou a ella huma pessoa intelligente com disfarce de hir
pedir huns medicamentos. Como foi e noticias que tomou ,
corre esta narração de pags. 309 a 312 do quarto Cap.º da
terceira parte .
Disse- se tambem o como tinha o Governador disposto
huma guerra para a Provincia do Libolo em favor dos Sovas
contra os Jagas que os molestavão empresas de guerra que
houve avassalando -se alguns Sovas em pago do beneficio.
Relata -se as grandes tribulaçoens em que se vio a gente

582
Portugueza com a Rota de Gango e Barra do Bengo, todos
angustiados principalmente as Mulheres que lhes faltavão
seus Maridos por mortos naquella occazião e prisioneiros,
alludindo todas estas Calamidades e miserias que padecião
a castigo de Deos.
Dá - se noticia como se forão congregando algumas fami
lias vendo - se sem cabeça, e quem os governasse, retirandose
de suas fazendas para hirem pellos matos a experimentar
trabalhos e miserias, Lealdade grande, e se dá tambem noti
cia do que obrou nesta occazião hum Conquistador antigo,
e hum Sova Leal. Correm estas noticias de pags. 312 a 316
do quarto Cap.º da terceira parte desta historia .
Relata -se as differenças que houve entre a gente Portu
gueza sobre quem havia de governar; os oppositores que
houve; e como foi admittido ao Governador Antonio de
Abreu de Miranda com titulo de Capitão mór com poderes
de Governador em auzencia do Governador Prisioneiro .
Como começou seu Governo e o que foi dispondo, corre
este relatorio de pags. 316 a 319 do Capitulo quarto.
Dá -se noticia dos Embaixadores que vierão da Loanda
mandados pello Director e Governador das Armas Hollande
zas a disculparem -se do esbulho que havia feito em o nosso
Arrayal do Gamgo e Barra do Bengo; o que passou com o
novo Governador eleito. Como assentou com elle Tregoa e
Cessão de Armas ; em quanto mandava hum Morador ao
Reino a dar parte a Sua Magestade do succedido para o que
deo por sua via passagem . Corre esta relação de paginas
319 a 323 do quarto Cap.º da tr.* parte.
Dá -se noticia em como de baixo desta tregoa e cessão de
Armas com o Hollandez hião algumas pessoas a Cidade com
licença do Governador a comprar algumas cousas de que
necessitavão, e como lhe permittião fallar com o Governador
prisioneiro, e lhe levavão alguns soccorros para seu passar.
E como o Capitão mór Governador mandou outra vez

583
présidiar a Fortaleza e Presidio de Muchima que se havia
largado e desmantelado, como feita esta diligencia de tanta
opinião para as Armas Portuguezas, havendo fortificado a
Masangano se poz o Capitão mór Governador em Campo
com toda a gente Capaz de tomar Armas.
E como ficou a Rainha Ginga pezarosa do Hollandes
haver feito com nosco Tregoa e cessão de Armas; correm es
tas noticias de pags. 323 a 327 do quarto Cap.º da tr.a parte,
Relata - se a guerra e Conquista que a Rainha Ginga man
dou fazer pello seu Capitão Geral Ginga Amona ao Duque
de o Amdo Vassallo del Rey de Congo e como se houve
este experto General em aquella Conquista. Corre este rela
torio de pags. 327 a 329 do quarto Cap.º da tr . parte.
Dá - se noticia das Revoluçoens e discordia que houve em
o Estado Ecclesiastico sobre se eleger Provizor e Vigario
Geral e o mais que houve neste tempo sobre este particular,
correm estas noticias de pags. 329 a 332 do quarto Capº
da tr. parte.
Dá - se tambem noticia do grande extremo de miseria a
que chegou a gente Portugueza de Angola por faltarem as
chuvas. Prevenção que fez o Capitão mór Governador para
o sustento da Infantaria, e a Maça que houve de milagre e
mais legumes, correm estas noticias de pags. 332 a 333 do
quarta Capitulo da tr. parte.
Relata -se em como de baixo da tregoa e Cessão de Ar
mas com o Hollandes hião algumas pessoas a Loanda a com
prar em que entravão duas pessoas huma Ecclesiastica e
outra secular a buscarem cura e remedio aos males que
padecião.
Como vindos da Cidade narrarão , e o que disse a cerca
disto hum sacerdote de bom humor.
E se dá noticia do risco em que esteve posto hum homem
estrangeiro nosso Confidente por haver recebido huma
Carta hida de Masangano antes de haver a tregoa com o

584
Hollandes, e como havia outro Flamengo em Masangano
com quem se correspondia, e tambem havia em a Cidade da
Loanda hum homem Portuguez, fazendo negocio, mas era
outro o fim da sua assistencia. Correm estas noticias de pags.
333 a 335 com que se dá fim este quarto Cap.º da terceira
parte.

CAPITULO QUINTO DA TERCEIRA PARTE .

Relata - se em este quinto Capitulo da terceira parte desta


historia como hia o Capitão mór Governador proseguindo
seu Governo, mandando castigar alguns Sovas alevantados,
fornecendo de gente a Fortaleza da Enbaca a respeito da
Rainha Ginga a não invadir como ameaçava, e o cuidado
que ponhão alguns Cabos em o Rio Coamza a respeito do
Governador prisioneiro. Dá- se noticia como neste tempo
assistia na Cidade da Loanda hum Irmão da Companhia de
Jesus o qual tinha communicação com o Governador prisio
neiro , o qual fiou delle o vir a Masangano apalpar as von
tades da gente Portugueza, se estavão a sua devoção, e o
receberião, e o mais que resultou, correm estas noticias de
pags. 336 a 338 da quinto Cap.º da tr. parte.
Dá -se noticia da Communicação que teve o Governador
Pedro Cezar de Menezes com hum Morador sito no Rio
Coamza na Ilha de seu alcunha, ao qual mandou pedir o
viesse tirar do cativeiro e aperto em que estava . Como veyo
e o tirou, e o mais que passou até chegar a Masangano.
Corre esta narração de pags. 338 a 340 do quinto Cap ."
da tr. parte desta historia .
Relata-se o como chegou o Governador a Masangano,
e o como foi recebido da gente Portugueza, e como se portou
com o Capitão mór Governador e mais adjuntos, Sargento
mór e Provedor da fazenda Real ; de pags. 340 a 342 com
que deo fim este quinto Capitulo da tr . parte.

585
CAPITULO SEISTO DA TERCEIRA PARTE ,

Havendo o nosso Governador sahido da prisão (Era


de 1644) e tomado novamente posse do Governo se relata
o como começou a dispor as cousas delle, confirmando a
Tregoa e Cessão de Armas por convir assim a conservação
destes Reinos e o mais que nisto obrou.
Dá - se noticia em como vierão Embaixadores ao Gover
nador dos Sovas da Provincia do Libolo, e em sua Compa
nhia hum daquelles Sovas a tomar agoa do Santo bautismo,
a pedir soccorro contra os Quilombos dos Jagas que os mo
lestavão. Como mandou a esta empresa a Diogo Gomes
Moralles Cabo experto com outros Capitaens de experiencia,
e o que se obrou nesta jornada. Corre esta relação de
pags. 343 a 346 do Cap . Seisto da tr. parte.
Relata-se como veyo ao Governador aviso do Capitão
mór da Enbaca das molestias que fazia naquelles contornos
hum Sova alevantado annexo com outros, sahindo da For
taleza dos seus Empures a fazer assaltos. Como despachou
o Governador a sua opposição, batalha que houve em Campo.
Cerco que se poz aos Empures. Como forão soccorridos pella
Rainha Ginga, e rota que tivemos. Corre esta relação de
pags. 346 a 350 do Capº Seisto da tr.* parte desta historia.
Dá - se noticia em como desta rota dos Empures escapou
hum homem a Cavallo com a guerra preta por estar fora
alongado, que foi o que trouxe a nova. E como mandou logo
o Governador Cabos de satisfação com gente em soccorro
da Enbaca porque se não desmandasse aquella inimiga
victoriosa .
Dá - se tambem noticia em como mandou o Governador
retirar a guerra que andava na Provincia do Libolo contra
os Quilombos dos Jagas em favor dos Sovas, e como por
este beneficio se avassallarão alguns a Croa de Portugal.
E como e Quilombo do Jaga Cabucu prisioneiro da Rai

586
nha Ginga elegerão Senhor que os Governasse; e o trouxe
rão a umdar á Fortaleza da Enbaca.
Correm estas noticias de pags. 350 a 355 com que dá
fim o Capitulo seisto da terceira parte desta historia .
CAPITULO SETIMO DA TERCEIRA PARTE.
Relata - se como nosso Senhor acudio com sua divina Mi
sericordia as affliçoens que padecião a gente de Masangano,
trazendo hum homem milagrosamente a Masangano com as
novas de soccorro . Como o encontrou em Quicombo ao
Governador Souto Mayor junto com a gente do Reino de
Benguela e gente que ficou na marinha do primeiro soccorro;
perdido a mayor parte as mãos do Gentio, e astucia com que
este homem passou pello Flamengo. Correm estas relaçoens
de pags. 356 a 364 do Cap.° setimo da tr . parte com que
dá fim este Capitulo.
CAPITULO OITAVO E ULTIMO DA TR .: PARTE .

Dá- se noticia em este oitavo Cap.º em como havia vindo


da Cidade da Loanda hum Estrangeiro de Nação Alemãa
por descontos que teve com o seu superior. Como trouxe
seu Cavallo e alguns Estrangeiros que o accompanhavão.
Como guerriou na Provincia do Libolo com grande fortuna.
E como se reduzio a fé de nosso Senhor Jesus Christo.
Dá-se tambem noticia como veyo a Masangano o Fla
mengo Daniel que havia dado aviso ao Governador quando
foi da perda do Gango, se não pozesse a Cavallo que o
havião de matar, servindo - lhe de outras cousas
Como nesta occazião lhe foi agradecido o beneficio,
correm estas noticias de pags. 365 a 367 do Cap.º oitavo
da tr .* parte .
Relata -se o que obrou o Governador com hum Negro
Scismatico vindo da terra dentro, fazendo- se Deos na terra

587
39
e Propheta falso. O que nisto passou o zeloso Governador
até o pôr em huma fugueira . Corre de pags. 367 a 373
do Cap.º Oitavo da tr . parte.
Dá-se noticia como havia em Masangano falta de tudo
e tambem de cera para o culto divino, e como se descubrio
a cera na Provincia da Quisama por industria do Governa
dor e Capitão Geral Pedro Cezar de Menezes. Corre esta
noticia de pags. 373 a 375 do oitavo Cap.º da tr . parte.
Dá - se notícia como se preparava o nosso Governador
para descer o Rio abaixo e o que vinha para subir com o
soccorro por elle acima, como mandou notificar a todos acu
dissem ao Comboy do Governador e soccorro com todas as
embarcaçoens que houve de Pataxos, Lanchas, e Canoas e
houve licença do Director para botar hum seu Pataxo pella
Barra do Coamza fora carregado de peças e Marfim. Em
barcado em huma Lancha partio da Villa de Masangano
accompanhado do seu Capitão da guarda e dous pagens em
companhia da mais gente até a Ilha do Ensandeira. Correm
estas noticias de pags. 375 a 376 do Cap. Oitavo da Tr."
parte .
Relata -se como ficou o nosso Governador na Ilha do
Ensandeira , e como passarão algumas pessoas a encon
trar -se com o novo Governador ao Suto .
E o que se obrou no Comboy do soccorro e ardil da
guerra do Governador a respeito do Hollandes, e o mais
que passou até se avistarem os dous Governadores. E tomada
entrega do Governo destes Reinos. Corre esta relação de
pags. 376 a 378 com que dá fim o Oitavo Capitulo, e a ter
ceira parte desta historia .

CAPITULO PRIMEIRO DA QUARTA PARTE DESTA HISTORIA .

Com este primeiro Capitulo da quarta parte, se relata o


como tomou posse destes Reinos o Governador Francisco

588
de Souto Mayor, e como foi dispondo as cousas delle. Como
fez o Comboy do soccorro pello Rio Coamza acima , até
entrar este porto e Villa da Victoria de Masangano, e o
mais que houve. Corre esta narração de pags. 379 a 383
do primeiro Cap.º da quarta parte.
Dá-se noticia do cuidado que houve em Masangano com
a gente enferma tomando o cuidado delles os Moradores
daquella Villa á sua conta. E como tomando intelligencia o
Governador das cousas da terra, sabendo o dano que o Hol
landes havia feito no Arrayal do Gango não esteve pella
Tregoa e Cessão de Armas, mandou pessoa a Loanda a
intimar a guerra, e o que a isso respondeo o Director Gover
nador das Armas Hollandezas. Correm estas noticias de págs.
383 a 386 do primeiro Cap.º da quarta parte.
Relata - se em como o Hollandes fez logo demonstração
de guerra, mandando dar em a Ilha do Ensandeira onde
matarão o Senhorio della , e se assenhorearão de tudo o mais
que possuhia. Dá - se tambem noticia em como o Governador
mandou chamar a sua Casa a Paulo Escorel Flamengo que
havia casado em Masangano e lhe fez jurar fidelidade a el
Rey nosso Senhor e o mesmo fez a outro Flamengo por nome
Jacinto da Camara. Corre este relatorio de pags. 386 a 387
do primeiro Cap.º da quarta parte.
Relata-se o aviso que teve o Governador da Fortaleza
da Enbaca sobre a Rainha Ginga . Como o mandou soccorrer
de gente e Cabo experto de experiencia .
Assalto que mandou dar aquella inimiga em huma Po
voação perto do nosso Arrayal. Disposição do Capitão mór,
e o mais que nesta occasião houve. Corre este relatorio de
pags. 387 a 391 do primeiro Cap.º da quarta parte desta
historia .
Dá-se noticia de hum Portuguez que se apanhou no Rio
Coamza o qual se havia mettido com o Hollandes, e vinha
por seu mandado buscar mantimentos. Como lhe mandou o

589
Governador dar garrote e o mais que nisto houve. Correm
estas noticias de pags. 391 a 392 com que dá fim o primeiro
Cap.º da quarta parte .

CAPITULO SEGUNDO DA QUARTA PARTE .

Dá - se noticia em este segundo Capitulo da quarta parte


em como o inimigo Hollandes deu em alguma gente nossa
que estava no Rio Coamza sitio do Espinheiro, assim esti
mulado da Tregoa quebrada como de lhe justificarmos
aquelle nosso Portuguez que vinha por seu mandado a com
prar de comer. Corre esta noticia na pag. 393 do segundo
Cap.º da quarta parte desta historia.
Relata-se a confederação que fazia a Rainha Ginga com
o Hollandes em nosso odio , e como sendo o Governador
disso inteirado tratou de ver se a podia destruir de todo, e
por o Hollandes a não soccorrer lhe mandou fazer duas fren
tes por terra e por agua, botando parte do poder fora a en
corporar no Enbaca. Como marchando o Capitão mór em
sua demanda, a ordem com que marchou e tudo o mais que
succedeo até se derrotar a Rainha Ginga , e se dá noticia
de outras muitas cousas, e relação sabroza ainda que dila
tada para o curioso. Corre esta relação de págs. 393 a 428
do Cap.º segundo da quarta parte desta historia.
Relata-se as noticias que deo o Capitão mor ao Gover
nador do succedido naquella jornada, e Cartas que se acha
rão no Quilombo da Rainha dos inconfidentes e o que dispoz
o Governador sobre isso .
E como hia o Governador fazendo muito apresto de
guerra , e ao extremo da Miseria a que chegou a gente Por
tugueza em Masangano. Correm estas noticias de pags. 428
a 429 do segundo Cap.º da quarta parte desta historia .
Dá -se noticia em como o Governador sustentava ainda
em duas frentes assim por terra como pello Rio Coamza

590
botando bramo havia de dar huma vista a Cidade. Tendo
convocada o Jaga Casangi para o vir assistir com seu poder
e o mais que havia obrado Casangi contra a Rainha Ginga,
quando foi desbaratada pelas nossas Armas.
Tambem relata o que havia succedido ao Governador
que havia tomado a má estreia e o mais que havia obrado
até que a doença da terra de que morreu.
Refere -se o que succedeo por sua morte até succedere
se eleger novo Governador com que dá fim o segundo Cap.º
da quarta parte desta historia e corre este relatoria de pags.
429 a 432.

CAPITULO TERCEIRO DA QUARTA PARTE .


Relata - se como tomarão posse do Governo destes Rei
nos os tres Governadores eleitos, e o como forão dispondo
as cousas delle pondo -se em Campo da outra banda do Lu
cala contra os Dictames do Governador defunto que daquelle
Rio Lucala fazia a maior fortificação.
Como fizerão Capitão mor da gente de guerra e o man
darão castigar huns Sobas Rebeldes que estavão a voz do
Flamengo, e o effeito que teve esta empresa , e o que della
resultou vindo o inimigo nas Costas, e rota que tivemos no
Arrayal da Cavalla, e o mais que succedeo. Corre esta rela
ção de pags. 433 a 448 do terceiro Cap.º da quarta parte
com que dá fim .

CAPITULO QUARTO DA QUARTA PARTE .

Em este Capitulo quarto se refere em como se retirou o


inimigo Hollandes para a Cidade, e como se passou mostra,
e se achou faltar muita gente nossa , principalmente da gente
vinda no soccorro a que chamavão os Guedeoens, e o Castigo
que se fez em huns Negros traydores escravos dos Por
tuguezes.

591
Como se fez Conselho em casa dos Governadores dos
homens principaes de Angola, em presença dos nossos Qui
lambas e Sovas. Como foi ali convencido de traydor Angola
Quiaito e alguns seus Vassallos, e o mais que nesta occazião
houve. Corre este relatorio de pags. 449 a 454 do quarto
Capitulo da quarta parte .
Da-se noticia como derão ordem os Governadores a fazer
em Masangano huma Fortaleza capaz para se recolher toda
a gente Portugueza nella, e se fez o respeito de haver pouca
gente para campear, e o mais que se obrou . Correm estas no
ticias de pags. 454 a 456 do Cap.º quarto da quarta parte.
Relata - se em como ordenarão os Governadores aos
Capitaens mores das Fortalezas se fortificassem , e como veyo
o Capitão mór da de Muchima a pedir soccorro de gente e
muniçoens.
E como em este comenos chegou aviso aos Governadores
de estar a Fortaleza de Muchima Cercada do inimigo Hol
landes e Gentio da Quisama. O que disposerão os Gover
nadores até se desalojarem estes inimigos da nossa Fortaleza.
Corre esta Relação de pags. 456 a 487 em que dá fimo
Capit.º quarto e sua quarta parte.

CAPITULO PRIMEIRO DA QUINTA PARTE .

Dá -se noticia neste primeiro Cap. da quinta parte desta


historia o que hião dispondo os Governadores em seu Go
verno . E extremos de miserias a que chegou a gente de
Masangano e de todo este Reino; o que inventarão de cou
sas para se remediarem .
E como em este tempo veyo assistir em a Villa de Ma
sangano Dom Phelipe Angola Airi Rey de Dongo com o
Principe seu filho Dom Francisco, e por que razão fez esta
fineza de Vassallos. Correm estas noticias de pags. 488 a 490
do prim.° Cap.º da quinta parte.

592
Relata - se em como chegarão novas aos eleitos do que
obrarão os Sovas alevantados que estavão da parte do
Hollandes com os nossos Sovas Vassallos, por não quere
rem fallar Flamengo como mandarão emparar os nossos
Sovas e castigar os rebeldes ao Capitão mór Gaspar Bor
ges Madureira. Como tomou sitio em a Provincia do Lumbo
fazendo dali opposição aos contrarios.
Relata - se a confederação que fizerão contra nós o Hol
landes, Congo e Ginga com os Sovas Rebeldes como des
baratarão a nossa gente matando o Capitão mór, e o Capi
tão Geral do Jaga, não escapando mais desta rota que dous
homens hum a Cavallo e outro a pé que trouxerão a nova
deste disbarato. Correm estas noticias de pags. 490 a 497
em que se relata esta perda, e dá fim o Cap. prim . da quinta
parte desta historia .

CAPITULO SEGUNDO DA QUINTA PARTE .

O cuidado e sentimento que houve em Masangano com


a nova desta perda, e com muita mais razão sabendo que
marchava aquelle numeroso e victorioso inimigo na volta de
Masangano. Como se tocarão Caixas e se mandou marchar
a gente de guerra para o Lembo a ordem de Pedro Barreiros
sargento mor que então era.
Como sahio de Masangano o Governador eleito Berto
lameu de Vasconcellos accompanhado de toda a gente prin
cipal, com presuposto de ter o encontro ao inimigo; e o mais
que dispoz e succedeo até que se retirou para Masangano
corre este relatorio de pags. 498 a 501 do Segundo Capitulo
da quinta parte desta historia.
Relata-se em como tratarão os Governadores de reco
lher tudo dentro das fortificaçoens, desasombrando a Forta
leza de toda a casaria que podia servir de estorvo ao manejo
da Artelharia, e o mais que se dispoz em ordem a nossa de

593
fensa, e valeroso encontro que se teve com o inimigo em o
Esteiro de Sambi, querendoo passar para nos invadir em
Masangano e o mais que succedeo até desalojar o inimigo.
Corre esta relação de pags. 501 a 512 em que se dá fim
este segundo Capitulo da quinta parte desta historia .

CAPITULO TERCEIRO DA QUINTA PARTE .

Em este terceiro Capitulo da quinta parte desta historia


se refere como em esta invasão de nossos inimigos titubia
rão todos os mais dos Sovas Vassallos na Lealdade, ficando
com esperanças em a tornada do Hollandes com mais pre
venção a invadir-nos em Masangano.
Como se tirou forças de fraquesa e se poz guerra em
Campo por reputação de nossas Armas, e como era odioso
o Governo dos tres eleitos Governadores a respeito da pouca
união que entre elles havia , e hirem - se odiosandose os fasia
aboresciveis. Correm estas noticias de pags. 513 a 515 do
Capitulo terceiro da quinta parte desta historia.
Dá-se noticia em como tratou a Camara e seu Senado de
querer emendar este desconcerto do Governo chamando os
bons do povo preposta a mão se não conferio nada; e se diz
em como o que não pode fazer a gente da rapublica
fez a Infantaria atumultuada, e o mais que succedeo nesta
occasião até ser elegido novamente hum dos tres Governa
dores. Corre esta narração de pags. 515 a 520 com que dá
fim o Capitulo terceiro da quinta parte desta historia.

CAPITULO QUARTO DA QUINTA PARTE .

Em este quarto Capitulo da quinta parte desta historia


se relata o como foi eleito novamente Bertolameu de Vas
concellos da Cunha e tomado posse do Governo como he
estilo foi dispondo as cousas fornecendo a guerra que estava

594
em campo , e a Confederação que fizerão de novo nossos
inimigos para nos destruirem e acabarem por huma vez não
atentando el Rey de Congo as obrigaçoens que nos devia .
Como se ajuntarão os poderes de Congo e Ginga e So
vas rebeldes com o Hollandes e forão marchando em de
manda do nosso Arrayal.
Como marchou tambem para elles o nosso Capitão mór,
batalha e recontro que houve no caminho. Como foi rota e
desbaratada a nossa gente daquelle grosso inimigo não esca
pando della mais que hum homem de Cavallo que trouxe a
nova . Corre esta relação de pags. 521 a 525 do Capitulo
quarto da quinta parte.
Dá -se noticia da grande afflicção com que ficou a gente
Portugueza Masanganista com a nova desta perda. Sen
timento que houve, e intento com que vinhão aquelles inimi
gos de se apoderarem de todo o Reino que he o mais se
sentia e se diz da propagação da fé que se havia feito neste
Reino de Angola e Dongo, e primeiro no Reino de Congo.
Dá -se tambem noticia da tenção que trazia o Flamengo
e seus Colligados para in toto se senhorearem destes Rei
nos; e como Deos destruhio estas ruins tençoens acudindo
com sua divina misericordia a affligida e perseguida gente
Portugueza destes Reinos.
Vindo hum homem a Masangano com carta do Geral
Salvador Correa em que avizava havia chegado com huma
Armada ao porto da Loanda e estava de posse da Cidade,
e o mais que passou até a marcha da nossa gente para a
Cidade. Correm estas noticias de pags. 525 a 527 do quarto
Capitulo da quinta parte.
Relata - se em como estando da outra banda do Rio Lu
cala a nossa gente Portugueza posta en marcha por terra
para a Cidade chegarão aquelle sitio da Quitanda sesenta
homens Portuguezes e Flamengos com as novas certas do
General de estar tudo restaurado rendido, e capitulado, e a

595
razão porque vinhão Flamengos com os Portuguezes misticos.
Como se foi marchando com toda a prevenção e ordem
militar por estar ainda o inimigo que sahio a campanha fora,
o qual havia entrado na Capitulação feita entre a General
restaurador e o Director Governador das Armas Hollande
zas. Como vierão novas que hião retirados na volta da
Cidade da Loanda com marcha aprezurada e a razão por
que correm estas noticias de págs. 527 a 531 do quarto
Capitulo da quinta parte desta historia.
Dá - se noticia em como se dividio o nosso poder com que
marcharemos, e como ficou a Infantaria e mais gente Mora
dora com o Governador ingrémes, metidos nos confusos
matos da Ensaca entre inimigos da terra sem sustento ne
nhum. Refere-se huma graciosidade que ali houve; com que
se allude e acarreta huma cousa grande succedida no Em
perio de Alemanha ao Serenissimo Infante Dom Duarte
Tio de sua Alteza o Principe Nosso Senhor que Deos guarde.
Corre este relatorio de pags. 531 a 535 do Capitulo da
quinta parte desta historia.
Dá-se noticia do que succedeo naquella marcha da En
saca para baixo até se chegar ao sitio do Outeiro da Igreja
do Gamgo e barra do Bengo tão funesto em outro tempo a
gente Portugueza.
Dá - se noticia da ordem que se achou naquelle sitio do
Gango em que ordenava o General fosse o Governador
eleito para a Cidade de São Paulo da Assumpção que nesta
occasião prescreve o nome de Loanda com Cidadoens e Mo
radores ficando a gente de guerra com o Capitão mór na
quelle sitio em Campo. Nova que não foi mui gostosa para
o alvoroço com que todos hião dever a Cidade restaurada.
Corre esta noticia na pagina 535 do quarto Capitulo e sua
quinta parte.
Dá - se noticia em como marchou o Governador com Cida
doens e Moradores, e como chegado a Cidade cedea o Bas

596
tão e Governo e informou ao General o gosto com que todos
vinhão de ver a Cidade , e haverem mister de refazerem-se
do que estavão faltos para sahirem a guerra do Gentio Re
belde.
Como veyo logo ordem marchassem todos para a Cidade.
Como entrarão em formatura militar na Cidade.
Festejo que houve de huma e outra parte sendo tudo
nesta occasião hum contento e alegria dando todos muitos
vivas ao invicto Rey Dom João o quarto, e a seu General
de mar e terra .
Relata o Autor desta historia em como veyo discorrendo
com ella desde a primeira conquista, até este tempo presente :
Allega com muitos Autores, e Historiadores, que allegou os
mais delles nesta sua historia, fazendo pauta de muitos va
lerosos Portuguezes, que a sua noticia vierão , que não forão
nomeados nesta prolongada historia com que dá fim a este
Alphabeto, do que ella contem .

597
1 .. TOMO

Vocábulos empregados por Cadornega e de alguma difi


culdade na sua significação.
A abreviatura — s. 0. a. é- quere dizer - segundo o
sentido que o autor dá ao vocábulo é...

ABARBADO- afrontado com trabalho; cheio, sobrecarregado de ser


viço, atrapalhado; metido em lance dificultaso de que custa a ver - se
livre .
ABAS - amparo , protecção. - Em outros logares é - junto.
ACABELADO - côr de cabelo; castanho claro .
ACAREAR — captar com afagos; atrahir com boas palavras.
ACARICIAR — Idem .
ACAUDILHAR — capitanear; comandar tropas; ordena -la para a peleja.
AÇODADO- muito apressado; acelerado ; com impeto e precipitação.
ACORDO (DE ) — andar em acordo com vigilancia e cautela; vigi
lante, atento . - Concordar (que concordava ).
ACORDO - vigilancia, cuidado, atenção.
ADVERTIR- é divertir. Distrair, entreter, desviar.
AGUA ENVOLTA - confusão; perturbação; desordem .
AGUÇAR — dirigir-se a.
AJIBIXADA - E um termo meio portugues, meio kimbundu. Outrora
foi usado o vocabulo bicha, significando arrecada de ouro que as
mulheres traziam nas orelhas do feitio de uma pequena serpente.
Esta palavra foi kimbundisada e deu — bixa, jibixa, que ainda
hoje significa brincos das orelhas. De jibixa (plural de bicha ) veio
- ajibixada, em forma de jibixa ou em forma de bichas. Aqui é :
que as duas eram em forma de bichas, ou pequenas serpentes.
ALABANÇAS- de alabar, gabar, louvar, elogiar. - Elogios, lou
voures .

ALANDO DE GUERRA — formando alas.


ALCANZIA — Na pág. 226 é bola ôca de barro seco ao sol do tamanho
de uma laranja que se enchia de cinza ou de flores e com ela se
fazia tiros em jogo de cavalo e se quebrava batendo do cavaleiro.

598
- Na pàg. 268 panela de barro cheia de polvora ou de alcatrão ou
de outra qualquer materia inflamavel que se arrojava acessa ao ini
miga - Granada, bombarda.
ALICONDA - aliconde, alicondo , aliconte, aliquango, vêde licondo.
ALOJAR — acampar - Alojar -se. Abrigar -se, recolher-se. Viver ?
ALVITRIO - (é alvitre ), arbitrio , vontade, parecer.
ALVORAR arvorar .

ALVORADO — vêde arvorar , arvorado.


AMBUNDAINHA — gente ambunda.
AMOUCOS - homens que entre os malabares e em outras partes do
Oriente juram de morrer na empreza em que entrão e o cumprem
ainda que seja meterem - se dois entre mil.
ANTIGUALHAS — tradições antigas; historias ou cousas antigas.
ANTOJAR – S. o a. é apetecer. Nos dicionarios é - fazer desejar;
provocar o apetite.
ANTOJO- apetite; capricho.
APLACADO - s. o a. é — pedido; combinado.
APPELIDAR — clamar; implorar auxilio; bradar; chamar.
APRECEBIMENTO - B apercebimento. Acção de preparar, prover.
Preparativo, apresto .
APRISIONAR - B aprovisionar. Abastecer; prover; fornecer.
ARBOLADA - E arvorada.
ARES (PELOS) - depressa, com a rapidez do vento .
ARGOLINHAS — jogo no qual ganhava o que correndo em um cavalo
conseguia enfiar na ponta da lança uma argolinha que pendia de
uma corda .
ARIMO— vêde os termos de kimbundu — arimar e arimo.
ARMADILHA -s.
- O a . é — pequena armada; poucos navios.
ARRANCADA (DE VOGA ) – avançada impetuosamente. O sentido
é remando logo impetuosamente; remando imediatamente com
grande força.
ARREIOS - enfeites, adornos, adereços.
ARREMAÇO - E arremesso . Qualquer arma que se despede de longe
com força, como chucos, dardos.
ARROCHOADA — chamavam os antigos assim a um baluarte de pau
a pique e taipa , apertado com um arrocho, para ficar mais unido
e formando um corpo resistente. Esta palavra não se encontra nos
dicionarios. O baluarte era atado fortemente e depois apertado com
um arrocho .
ARTAS - não se acha nos dicionarios.

599
ARVORADA — levantada ao alto; mas na pág. 431 significa que o sar
gento mór foi naquela ocasião elevado ao cargo de governador, ou
superior.
ARVORAR — levantar ao alto . Na pág. 431 é ser um soldado ou um
sargento elevado temporariamente a um posto superior.
ATABALES - tambor militar de cobre, como metade de uma laranja,
coberto portanto de coiro por um só lado.
ATINUADO- diminuido, reduzido, privado.
ATOSSICADO- de atossicar; envenenado.
AUDUSTA - B adusta . Queimada; abrazada.
AUSTUCIOSA - B astuciosa .
AUSTUCIOSAMENTE - E astuciosamente.
AZINHAO - B azinha. Depressa; sem demora.

BACULAMENTO - vêde os vocabulos de kimbundu.


BADULAQUES — coisas miudas e de pouco valor. Mas aqui são pe
quenos objectos de que se servem os feiticeiros para seus feitiços.
BAFIJADO - E bafejado - favorecido, ajudado.
BALSA — paus e pedaços de madeira atados em modo de jangada.
BALUARTE - fortaleza inexpugnavel.
BANDO - pregão de guerra , ao som de caixas, com pena imposta aos
transgressores de alguma lei militar. Proclamação. Na pág. 500 é
partido, facção, parcialidade.
BANIDO
BAQUIANO - O autor emprega esta palavra no sentido de gente já
acostumada ao Sertão ; já aclimado no Sertão, ou que tem acostu
mado o seu organismo ás condições do clima do Sertão.
BARDA - montão , amontoamento .
BARRENO - Aqui é palavra espanhola. É rombo, buraco que se faz
de proposito em uma embarcação para que vá a pique.
BASTIMENTO - provimento ; cousas necessarias para a subsistencia
de uma cidade, praça ou exercito ou navio.
BAZOFIA — guisado feito de restos e sobras da mesa. Mas s. o a. é
mistura (de varias cousas).
BEIRAMAR — muralha, ou qualquer defesa á beiramar.
BEIRAME — Pano de algodão da India ; especie de chita.
BODEGONEIRA – é : bodegueira, que tem bodega, taverna . O autor
tirou esta palavra do espanhol — bodegonera, taverneira .

600
BOLANDO - E voando (de volando ).
BOLANTE - é volante. Que se move com rapidez - ligeiro. Soldado
volante é armado á ligeira .
BOXINIFADA — É moxifinada; vêde esta palavra
BRAMO— Não existe nos dicionarios. S. o a , é — noticia ; pregão ,
clamor. É espanhol.
BRANDANDO- é brandindo .
BROCAIS - é barrocais; barracas .

CABAIS — por seus cabais é de modo licito , legal, completo . S. o a. é


por seu justo valor.
CABAR — Não se acha nos dicionarios — s. o a. é — ser herdeiro pro
vavel; estar na presunção de ser herdeiro do cargo de sóba ou rei.
CALABROTE – pedaço de calabre; calabre menos grosso .
CALAMEXA — cala e mecha; prepara a mecha para incendiar a pol
vora .

CALAR - preparar; vêde mesa .


CALIDADE (DE ) — muito .
CALIDADE QUE (DE ) – de modo que .
CAMPANISTA - E campanhista. O soldado curtido e bem exercitado
em campanhas militares.
CAMPEAR — fazer serviço em campanha.
CAMPEIRO- que indica importancia ou grandeza; que denota osten
tação. É termo do autor. Na pág. 457 é - espaçoso .
CANAS — jogo militar antigo fingindo peleja na qual se acometiam
com canas .
CANCARA — Não sei o que fosse.
CAPEANDO -LHE DELLES — fazendo -lhes sinal com um pano ?
CAPEAR — capear, fazer sinal com um pano.
CARCAVADO- escavado; feito ôco; aberto por dentro.
CARNIÇA — carne de pessoas ou animaes mortos, que serve de pasto
aos outros animaes.
CATAR RESPEITO- acatar , guardar respeito .
CAVA — fosso .
CAVALETE (A ) cousas postas umas sobre as outras (as pipas postas
umas sobre outras).
CAVINA — Não se encontra nos dicionarios.
CAZACULA - é termo kimbunda.

601
CAZAREM NO MEIO - unirem no meio, s. o a. é -- para os rodea
rem e apanharem no meio .
CESTAO- cestos grandes que se enchem de terra nas fortificações
para servirem de parapeito ou para formarem reparos á artilhaia.
COALHO- união ; vinculo. De coalho; 6. o a, é - juntamente
COBRO- Pôr-se em cobro é pôr -se em salvo.
COLA — cauda.
CONTO- estar a conto alguma cousa a alguem é convir-lhe; fa
zer - lhe conta; ser -lhe util.
CONTRAMINAR - s. o a. é — voltar; intrigar; dispôr; incitar. Nos
dicionarios é - opôr-se aos designios de alguem ; inutilisar os seus
efeitos.
CONTRAS - objectos ou drogas que são contra- venenos.
CONTRASTAR — afrontar com os perigos; fazer oposição.
CORPO GESTO (FAZER UM ).- É um termo que se não encontra
nos dicionarios. O sentido do autor é — fazer um corpo gesto -
reunirem -se, juntarem - se; formar um corpo unido.
CORTINA — lanço de muralha entre os flancos de dois baluartes.
COUROS — péle; s. o a. é- côr da pele.
CRES - Cré, fazenda de la.

DATA - dadiva, doação.


DEBROTE - E erro ; deve ser beberete , refeição simples e composta
de bebidas.
DE PIQUE DERRAMADO- $, o a. é -- zangado; desavindo.
DESCOMPADRAR - indispor -se com ; desunir -se com;
DESCORTINAR - avistar; descobrir .
DESFILADA ( A ) - disposição dos soldados em fileira, uns atraz dos
outros; marchar a desfilada, marcharem uns atraz dos outros, mas
um a um ,

DESPENHADO- alcantilado ; talhado a pique.


DESTINGUIDA - E erro - B ( extinguida ) extinta .
DIMINUTO- diminuido; minguado.
DISCURSO - E decurso ; sucessão.
DISFORMIDAVEL- É deformidade. Lealdade, mas s . o a. e - enor
midade.
DIVIRTIR- É divertir. Desviar; desviar de alguma empresa.
DOBRE - dobrado .

602
E

EMBUSTIAS — Esta palavra não se encontra nos dicionarios. É em


buste ou embustice; mentira artificiosa para enganar .
EMPACASSEIROS — Vēde os significados de kimbundu.
EMPAVEZAR A NAU – Guarnecer a nau com pavezes para o com
bate. Pôr pavezes reparos contra os tiros. Pavezes são reparos
contra os tiros. Tambem é - Enfeitar com pavezes; mas aqui é o
primeiro sentido.
ENSANDEIRA — vêde Mulemba , no vocabulo de kimbundu .
ENCORRER por encorrer é erro : é a que recorrer.
ENLICONDO- Vêde licondo .
ENRAMAR — cobrir de ramos. Parece que mandou cobrir as peças
com ramos para não serem vistas pelo inimigo.
ENTRECHAXADA - É entressachada. Mistura, enlaçada.
ENTRECHAÇADOS — misturados.
ERVOLARIOS — Vêde hervolarios.
ESCAMBAR -- trocar; cambear.
ESCOTEIRO - o que viaja sem bagagem alguma, á ligeira e a pé.
ESCRITORIO– contador sobre o qual se escreve, abrindo- o , e no
qual se fecham papeis e tudo o que é necessario para escrever .
ESMERILHÕES — peças antigas de artilharia.
ESPARCIDO- É espargido; espalhado, derramado.
ESPARCIR – É espargir - espalhar.
ESPLORAR - É erro ; é expulsar.
ESPRITAR inspirar.
ESQUILÕES --- Não se encontra nos dicionarios.
ESQUIPADO - provido de tudo o necessario para a viagem (dum
navio ) .
ESTAR A CONTO --- vêde conto .
EXPLORAR - E erro. É expulsar

FACÇÃO - partido, parcialidade .


FACHINA — É faxina. Molhos de paus e ramos.
FAÇÕES -- feito notavel de armas; empresa militar.
FACTIVEL — facil . Factivel é o que pode acontecer ; que se pode
fazer.
FACTIVELMENTE -s . o a. é — facilmente.

603
40
FALCOES —-canhão de tres polegadas de diametro que jogava balas
de libra e meia.
FAMICE - não se acha nos dicionarios - S. o a, é — desejo de al
cançar fama.
FATO- é rebanho, manada. Na pag. 32, nota , é roupas, bagagem ,
FAUÇÃO- é facção .
FIEREZA - É fereza . Ferocidade, crueldade.
FOGO DE MONTURO— vêde monturo .
FORRO - o que foi escravo e que já é liberto ou livre .
PRIVOLLOS — É frivolamente ; sem dar importancia (ao caso ),
FUNDERAD — não se encontra nos dicionarios. Da palavra fundeiro
fez o autor fundeirão, parte funda; o fundo de uma floresta, ou
região.
FUNDIAR - S. o a. é - enterrar fundo .

GAITARIA — não existe. O verbo gaitear -se é enfeitar-se com gar


ridice. — S. o a. é — garridice:
GALIZABRA – certa embarcação de vela.
GATOS DE ALGALIA — gato selvagem caracterisado por um saco
profundo, situado debaixo do anus, cheio de uma pomada abun
dante, de cheiro almiscarado, que se chama algalia. Extrae-se a
algalia do animal vivo, introduzindo com precaução uma pequena
colher no saco que a contem . Esta materia era muito empregada
em perfumaria.
GEGES - é termo de kimbundu .
GENTE ESCOTEIRA — gente que viaja sem alforge á ligeira.
GESTO (FAZER UM CORPO ) — vêde — corpo gesto ( fazer um ) .
GINETA — insignia antiga de capitão ; especie de lança curta.
GIRAO — tira ou porção de terra; courela. — cercadura ou barra de
côr diversa nas roupas . - S. o a. é — um pilar ou monticulo .
GUARECER – curar; salvar; livrar; remediar. Defender
GUERRA ESCOTEIRA — chama o autor assim aos soldados pretos
que não levavam bagagem alguma, mas só arco , frechas, azagaias
e machadinha.

HERBOLARIOS — pessoa que cultiva e vende hervas oficinais (me


dicinais ) .

604
I

ILHOS — não se acha nos dicionarios. Pano cujo tecido era em forma
de ilhos ? Vestido feito de malha em forma de ilhos?
ISENÇÃO- desapego, desinteresse.
ISENTO- desapegado, livre; livremente sem temor ou interesse.
ISLHADO- Não se encontra nos dicionários.

LAVORAR - 8 laborar. Atirar sobre (a artilharia ). É termo do autor .


Nos dicionários é disparar; estar a artilharia em acção.
LAVRAR — (lavrar a cera ) trabalhar.
LETUARIO- É electuario ; preparação feita com pós, polpas e assucar
ou mel.
LEVAÇÃO – Não se acha nos dicionários. S. o. a. serem levados ao
acaso , naturalmente .
LHANO - planicie - palmo.
LHANURA — planicie.
LICONDO- Nome que davam ao « baobah ). É palavra derivada
da lingua do Congo, onde — nkondo é baobab; lukondo é um; de
lukondo fizeram os portuguezes licondo. A mudança de lu em li
deu - se aqui como em Lufune - Lifune ; Lubolo - Libolo , etc. A pa
lavra licondo deu - liconda, liconde, liconte, liquongo e até enli
condo; deu ainda — aliconda aliconde, alicondo, aliconte, eliconde,
olicandi e alicunde. Licondo transitou do Congo para Loanda, onde
em 1680 Cadornega ainda a usa. Hoje desapareceu e emprega -se,
para significar o baobah, a palavra embondeiro, da palavra kim
bundu — mbondo, a dita arvore; era melhor escrever imbondeiro,
pois mbondo foi outrora imbondo.
LIGATURA — Parece ser ligadura.
LIMPO (UM ) – Uma clareira limpa de arvores ou mato .
LIVIANAS - É levianas. S. o. a . é- leves, ligeiras.
LONDRES (pano de ) — Não sei que pano fosse . Os dicionarios dizem :
especie de tecido antigo, fabricado em Londres.
LOTE - qualidade; rancho; numero . S. o. a. é- igualha .
LUENHE – Não se acha nos dicionarios.
LUNGINHO- Segundo o autor é : imberbe.

605
M
MACHEGO - E manchego, natural da Mancha, na provincia de Ciu
dad Rial em Castella a Nova. E vocabulo espanhol.
MALEZA — Parece ser palavra de kimbundu.
MANGA — Na antiga milicia eram os lados guarnecidos de arcabuzes.
MANGA — sacos de licondo. В palavra antiga de kimbundu, mbamba,
ou Congo.
MANIPUTO , MANISONHO – vede nos vocabulos de kimbundu.
MAO TENTE ( A ) — muito de perto ; — pelejar á mão tente , travados
os combatentes.
MAQUINA — grande quantidade.
MARANHA – entender a maranha conhecer o logro que se prepa
rava . Maranha - intriga, enredo.
MARROES — marrão — martelo muito grande para quebrar pedra.
MATALOTAGEM — provisão de mantimentos que fazem as pessoas
que embarcam para viagem longa.
MATE - termo do jogo do xadrez . Xeque mate. Dar mate ao rei é polo
em perigo de se não poder mover , o que faz perder o jogo . S. 0 , a.
é - censura .
MATEVAL parece ser — matebal, de mateba; campo de mateba.
Vēde os vocabulos de kimbunda.
MATINADA — ruido; barulho; estrondo de buzinas, chocalhos, vozes,
sinos.
MEZA — parte da arma onde se punha polvora e se lhe chegava o
morrão .
MONETA — vela pequena que se põe por baixo dos papafigos para
aproveitar o vento .
MONTURO (FOGO DE ) – fogo de monturo , o que arde sem levantar
labareda.
MOXIFINADA - mistura de varios ingredientes, comidas, bebidas. S.
o a. é pequenos objectos, alguns imundos, de que se servem os
feiticeiros.
O
OBRAS MORTAS — termo de nautica . Espaço exterior do navio entre
o lume d'agua e a borda.
OUTAVO , OUTAVOS – Eram assim chamados, não sei porquê, os
portos no braço do rio Quanza, perto de Massangano, ao qual braço
chamavam Samba Quanza. O autor no III tomo da sua obra, depois
de descrever a vila de Massangano e o rio Lukala , descreve o
Samba Quanza e então ahi diz o que eram os Outavos, ou Oitavos.

боб
р

PADRASTO monte, edificio que sobreleva, e fica superior ao vale.


do qual se pode atirar e combater as praças mais baixas com res
guardo de seus defensores.
PALHAGAL - é palhegal. Terra onde existe palha crescida.
PANO DE LONDRES — Vēde — Londres (pano de ) .
PARIAS - É pareas; tributo de vassalagem .
PATARATA -- cousa ridicula e vistosa , mas de pouco valor e duração:
mentira com basofia Parece que o autor quere dizer - esboço de
combate.
PAU TOSTADO- Eram uns paus compridos, agudos na ponta, e
queimados no fogo, ficando assim com tal tempera que os endurecia
como ferro.
PEÇA -- Chamavam assim aos escravos. Na Jinga existe a palavra
pessoa , rapaz .
PEÇA ROQUEIRA peça de artilharia que jogava pelouros de pedra.
PELOS ARES — Vêde ares (pelos).
PEROLEIRA — botija grossa de barro; algumas levavam um almude.
PETRINA — cinto com fivelas que se cingia por cima da roupa.
PICUREIA — Não se acha nos dicionarios.
PILOURO- É pelouro; projectil de toda a arma de fogo.
PINTAO - pinto grande. S. o a . é — molhados como pintos.
PIQUE - toque satirico a alguem ou afrontoso para o ofender (picar ).
remoque .
PLOMO - chumbo .
POLVORADA — Não se acha nos dicionarios. É poeirada. Tumulto ,
desordem .
PONTALETE - forquilha de sustentar o mosquete. S. o a . é — chu
ços de ferro .
PRANTAR - E plantar.
PREDITADO -- Pensado , premeditado, predito , previsto .
PREDITAR — premeditar.
PRESAGIO - E presago ; que presente o futuro .
PRESSAS- Aperto , trabalho , aflição , perigo , conflito .
PRETENCERES — ( pretensores) pretendentes, S, o a, é — os herdeiros
presuntivos.
PRETENDES- É pretendentes.
PRETEXTO - B erro ; deve ser portento .
PRETIGO- É prétiga. Vara do carro . S. o a. é - vara

607
PREZADOS DE
ESPANHA DE Não se acha nos dicionarios portuguezes e
ENXARAMA espanhois.
PULHACRA - É polhacra, ou (melhor) polaca; embarcação de vela
e remo de 3 mastros.

QUADAMECIM -Ě guadamecim . Sorte te tapeçaria de couros dou


rados e pintados.
QUADRUPIO– Quadrupede.
QUEMBRE – Não se acha nos dicionarios portugueses e espanhois.
S. o a. é - alpendre.

RALE casta, igualha, especie.


RAPUZES - Não se acha nos dicionarios. O sentido não dá a signi
ficação. Ataques ? assaltos?
RASTOLHADA — Ruido , barulho. S. o a. é — mortandade ou estrago.
RAZIMO < se não trousserão o razimo de uvas» ... Isto é alusão ao
facto de Moysés ter mandado homens a explorar terra de Canaan
e dois deles lhe terem trazido um ramo de vide con um cacho de
uvas. (Livro dos Numeros, cap . 13, v. 18 e 24; Biblia ) Razimo é
cacho de uvas . É melhor — racimo .
RECADO- No sentido figurado é — caução, segurança . Pôr a recado
ou pôr a bom recado — pôr em logar seguro . — Ter a recado – ter
preso com segurança .
REDE - o meio de tansporte que lá se usa ainda hoje e que se chama
tipoia, chamava -se então rêde, por ser feito de rede.
REFERTA - contenda, disputa, briga , altercação.
REPUZAR -ė refusar. Não aceitar; não consentir; não se prestar
a ... ; recusar .
RELUMBRAR - reluzir; scintilar; resplandecer.
REPAIRO - é reparo . Maquina de guerra feita de madeira onde se
colocam os canhões. — Resguardo, defeza; qualquer cousa disposta
para a defeza.
REQUESTA — contenda; briga .
RERIODO- ? .........
RETORCER — fazer volta ou dobra; s. o a. é — contorcer- se ( com
dores)

бо8
RIACHUELO- É vocabulo espanhol. Riacho, pequeno rio .
RODELA -- escudo redondo.
RONQUAO- Não se acha nos dicionarios portugueses e espanhois.
ROQUEIRA — Vêde peça roqueira.
ROTA - desbarate do exercito . desbaratada.
ROTO– destroçado; desbaratado.

SACALAMENTO - Véde vocabulos de kimbundu .


SACO— Rapina que faz o vencedor depois da batalha e a outorga
aos do que podem apanhar e guardar no seu saco .
SACORRANICE — Não se acha nos dicionarios. S. o a , é - indife
rença; afectação; falacia .
SALHAR (A ARTILHARIA ) arrastar , colocar, asseitar
SALSA DE S. BERNARDO - O dicionario de Fr. Domingos Vieira
regista esta frase como proverbio , mas não dá a explicação.
SANEAR — captar a amisade; congraçar -se com ...
SAPAL — terra bréjosa e apaülada; terra alagadiça, lameiro .
SENTILHAR - É centelhar. Lançar centelhas, faiscas; faiscar.
SEPULCROS — Capelas onde está a imagem de Nosso S. J. C. “º morto
S. o a . é - Endoenças, oficios de 5.9 e 6.* feira santa
SERRADO- É cerrado . Coberto de arvoredo .
SERRAR - É cerrar . Apertar, travar.
SESMARIA — Doação de terras que foram de alguns donos e foram
outrora cultivadas, mas que na ocasião da doação estão incultas;
mas aqui é dar as terras como incultas, ou desaproveitadas.
SEVANDIJA — insecto , verme. S. o a. é — animaes pequenos.
SEVAR- É cevar. Engordar, tentar.
SUCHAÇO- É chuçada; golpe de chuco .
SUCHO- É chuco. Pau com ferrão ou aguilhão.
SURGIAO- É cirurgião.
SURRIADA — descarga de tiros de espingarda ou artilharia.

TANHO - assento baixo feito de tabüa.


TAQUE - Deve ser toque. Vêde toque.
TENDIDA — desfraldada; estendida.
TENTE ( A MAO ) — Vêde — mão tente (á ) .
TERÇO - porção de soldados.

609
TEZO - E teso . Alto do monte, do morro. S o a. é — pequeno monte.
TIÇUME - tecido.
TIGUPARES — Não se acha nos dicionarios.
TOCAR ARMA - dar sinal aos soldados para se prevenirem ou acudi
rem a algum posto .
TOQUE - quilate. -S. o a é igualha.
TOQUE - pancada - Dar um toque no inimigo, acertar- lhe com um
tiro .
TRABALHADO- cançado de trabalhos, lides, fadiga .
TRAVEZES baluarte feito de certa maneira .
TRECHOS (A ) a pedaços; com intermissão de logar de quando em
quando.
TROMBETAS BASTARDAS — que davam um som mixto de agudo
e grave .
TROXADA ( A ) - É trochada. Pancada com trocho (pau tosco ).
TURBIO- é termo espanhol. Turbido, que se perturba. S, o a. é - mal .

u
UMBRIDADE - E hombridade. Mas o autor dá -lhe aqui o sentido de
honra.

VALHAO - Parece ser — vala grande.


VERDIAES — especie de peros.
VITUALHAS — viveres; mantimentos.
VOGA - acção de remar .
VOUGA - E voga.

х
XALO
XARAVISCAIS — xaraviscal, mata serrada de silvados; espinheiros.
É o mesmo que chavascal que é hoje moitedo; pocilga, logar
imundo .

ZUBURRO - milho zaburro - milho grosso .


ZABURRO — milho zaburro — milho grosso .
ZURREIRA - É zorreira ; ronceira .

610
1

Vocabulos em kimbundu, kikongo, mbamba ou outros


dialectos .

Segundo Lepsius, os fonemas :


- C, são transcritos por k .
ç, ce , ci — por s.
ge, gi — por g , tendo esta letra sempre o valor duro
como em português gue, gui , ga .
u no fim da palavra o (átono ) .
As abreviaturas - «S. o a . é : » , querem dizer segundo o
autor é :

AMBUNDO. (ambundu ) — São os povos que falam o kimbundu.


AMBUNDAS — Esta palavra indica pessoas e não linguagem , como
foi sempre erradamente empregada pelos europeus. Para linguagem
é o termo kimbundu ( o iu é atomo. ) e não ambundo , lingua am
bundo , ambunda ou só bunda .
ANGOLAMBOLE; (Ngola -mbole ) — Era entre os pretos o cargo equi
valente ao nosso capitão geral de gente de guerra .
ANGA (kanga ) -galinha da Guiné, pintada.
ARIMAR — (do verbo kudima ) , cultivar os campos, hortas.
ARIMO- Esta palavra significa campo cultivado, plantação, horta.
Não se encontra em kimbundu e portanto não é usada pelos indi
genas entre si. Não sei de onde foi formada; deve ser da palavra
antiga madimu que se encontra no catecismo de 1642 e que signi
ficava sementeiras; mas não sei o motivo de ter perdido o m inicial.
Hoje plantações é idima, plural de kidima.
B

BACULAMENTO - Do verbo kubakula, tributar.


BANGIS - Mbangui (mbangi) testemunha.
BANZA mbanza, povoação grande (de soba).
BANZAR - do verbo kubanza, calcular; mas hoje é pensar.

611
BINDA — mbinda, cabaça. Mbinda ué; a silaba ué não dá significação
nova; é uma forma explectiva (particula explectiva ).
BONGES — mbongue (mbonge) trincheira, dique.
BULUNGO - (mbulungu ) prova da bebida da casca dada pelos feiti
ceiros para se saber se o acusado é criminoso ou não. - É uma
bebida feita de uma casca ou de certos vegetaes emeticos que qual
quer acusado de um crime bebe e toma da mão do feiticeiro - se
morre era culpado; se vomita era inocente; mas o feiticeiro é que
prepara a bebida carregando ou diminuindo a dose conforme o pa
ciente lhe poude pagar ou a sua familia; se pagou, o feiticeiro di
minuiu a dose; se não pagou , o acusado morreu .

CABUNGA — Diminutivo de kibunga, barrete de soba, feito de rafia


ou de outro vegetal. São ordinariamente muito bem feitos e bonitos.
CACUSSO - é kikusso (kikusu ); peixe das lagoas de grande uso en
tre os pretos e mesmo entre os brancos.
CALUNGA — significa mar, senhor e morte .
CAMULEMBA - diminutivo de mulemba .
CAMONGUA mongua, sal; hoje mungua. O ca é prefixo proprio
para as alcunhas. Este nome foi dado ao Gov.dor Pedro Cesar
de Menezes, porque tudo procura remediar, ou temperar como se
tempera a comida com o sal.
CANGOANDAS- Eram assim chamados os soldados crioulos de S.
Thomé e de Loanda ou de Angola os quaes eram vestidos á por
tuguesa.
CANZAR — apanhar, saquear. É o verbo kukanza, aportuguesado: hoje
é apanhar frutos pendentes.
CAPOPOS — Diz o autor que eram tambores como os timbales. Não
sei que palavra fosse; deve ser da lingua mbamba.
CASAXI OU CAXAXI — Diz o autor que era degolação e que foi dado
este nome á grande degolação de gente na ocasião referida na pag. 44
e na pag . 91 .
CASIBO - cassibo - de (kisibu ); hoje kiribu. Da palvra kisibu fize
ram os portugueses cassibo ou cacimbo. É o tempo desde o meiado
de Maio a fim de Setembro, que é a estação fresca, em que não
chove e baixa a temperatura .
CASIMA - cassima (kissima, hoje — kixima), poço — hoje :cacimba.
CASSA - vēde macassa .

612
CATUNDA-- tunda é o oriente, Diz o autor que o nome de catunda
foi dado a João Mendes de Vasconcellos, filho do Gov.dor Luis
Mendes de Vasconcellos; que este nome significava filho do sol.
B erro do autor; significava Oriente, melhor: O Oriente como
alcunha, sabido que as alcunhas são formadas com o prefixo – ca.
CAULAR -- do verbo kukaula, vadear um rio.
CAZUCULA – Diz o autor que era rede de apanhar peixe. Não sei
se existe hoje .
COATA - COATA -- Diz o autor que chamavam as guerras d'Africa
guerras de coata - coata . - Este coata não pode ser senão o verbo
kukuata, apanhar, segurar, tomar; o seu imperativo é — kuata .
Coata - coata seria pois - apanha, apanha. Não lhe vejo outra ex
plicação .
COATAR- É o verbo kukuata, de que falei acima.
COLA PUPA - Cola é o imperativo do verbo kukola, ser forte de,
ser rijo de ... ; pupa, é peito, coração. — Cola pupa não dá o sen
tido que o autor diz; para dar o dito sentido devia ser — vakola
pupa, que dá assim o sentido — (é ) rijo do coração. Pupa é da classe
-i— ji .

DITEMO -- diterio , matemu, enxada .


DIFUTA - vêde futa .
DUMBE - Diz o autor que era casa . Não sei que palavra é e de que
lingua. Se existir em kimbundu ou kikongo é ndumbe.

EMBACA — era e é Mbaka; os portugueses hoje dizem Ambaca e sem


pre pronunciaram Ambaca.
EMBULULO - Devia ser — mbululu . Diz o autor que chamavam assim
á gente mais moça do exercito (da gente preta ) .
EMGOMBOTA –E: Ngombota. Era um logar defronte da cidade.
junto da ermida de Santa Maria Magdalena. Foi muitos anos o
bairro dos naturais da terra (pretos) até 1922. Dai por diante, os
indigenas passaram para outro local.
EMPACASSEIROS — Eram os caçadores dos « empacassos » ; empa
cassa (então mpakasa, hoje — pakasa ) é o boi selvagem. Para estes
animais serem caçados eram necessarios homens valentes destemi
dos e bons atiradores. É o synceros caffer planiceros.

613
EMPALANCA — Era mpalanka: hoje é – palanga; é um antilope
grande como um burro; é o hippotragus equimos.
EMPURES — são umas grandes cavernas; distavam quatro jornadas de
Ambaca; eram perto do soba Ngolome a Caſta . Esta palavra era
então — mpudi; hoje é só — pudi. Deve ser o Pudi a Cadiambolo ,
descrito nos Annaes do Conselho Ultramarino , parte não official,
de 1854 a 1858, pag. 9.
EMVALA INENE — mvala era le é ) a primeira mulher do soba;
mvala irene, concubina grande, principal.
ENCASSA --- era -- ncassa , (nkasa ) feijão preto. Não sei se esta pa
lavra ainda é usada no interior: se o fôr é só — (kasa ).
ENCUTO- era uma especie de casaco ; era - nouto (nkutu ). Hoje não
existe e se existisse era só — kutu. Nouto a lukaka pano para se
vestir .
ENDURE - Diz o autor que era certo animal que dava umas sedas
muito estimadas que eram usadas no pescoço, pulsos e artelhos; a
estas sedas chamavam xingas e eram em forma de pequenas cobras.
ENGOMA — Era e é - ngoma. Tambor feito de um pedaço de tronco
direito de arvore cavado no interior; na extremidade mais larga
poem -lhe uma pele.
ENGUNHO- Era - ngunhu. Diz o autor que era uma arvore como
o sipó.
ENXAQUETAMENTO - Diz o autor: « impetrando enxaquetamento ».
Parece que quere dizer que pediam ao demonio que os viesse em
pessoa curar. E palavra feita do verbo kutxaketa, invocar o demo
nio. Não sei se este verbo existe hoje em kimbundu.
ENXIA — Era nxiia. Diz o autor que era uma busina dos feiticeiros
que sendo tocado enfeitiçava ou encantava os inimigos. Hoje se exis
tir é -- xiia .
ENZEQUES sacos feitos da fibra do entrecasco do embondeiro .
ENTAMBI — vêde tambi .

FUBA — farinha de milho .


FUMAR do verbo kufuna, negociar (então e hoje ).
FUNDAR — do verbo kufunda litigar; tratar de uma questão em tri
bunal. É d'aqui que nasceu a palavra fundação, creada pelos por
tugueses no Congo, pois este verbo é da lingua do Congo e de
kimbundu .

614
PUTA — É difuta, mafuta, pégo . Como é palavra muito usada em
prega- se sem o prefixo di, ou melhor — os portugueses emprega
vam -na assim .

GANGA – E nganga; era o advinho, feiticeiro, medico e curandeiro .


Aos padres catolicos chamavam nganga ia missa .
A um religioso Jesuita, irmão leigo, chamado Antonio Pires que
viveu muitos anos em Angola no tempo de Pedro Cesar de Me
nezes e de Francisco de Souto Mayor e antes do primeiro chama
vam - Nganga ia njaidi. Não sei que palavra fosse esta; diz o
autor que lhe chamavam assim por ser antigo na terra.
GARIAMA -- ngandiama, pobre.
GEGES – é nguengue, (ngenge ). cajázeiro e seu fruto. É um arbusto
que pega muito bem de estaca e serve para fazer sebes ou cercados.
GINGO - Diz o autor que eram os herdeiros ou sucessores presuntivos
dos sobas.
Não sei se era nguingu (ngingu ) ou njingu; como o autor não
escreve bem o kimbundu, não se pode saber isto e tambem , não sei
se qualquer das formas é hoje usada com este sentido; tambem não
sei se é kimbundu ou não .
GOLAMBOLE - E ngolambole; vêde Angolambole.
GONGES – É ngongue (ngonge ) dois chocalhos unidos com um arco
pela parte superior o qual era e é usado pelos sobas para man
darem fazer uma proclamação ao seu povo .

HANGA - o autor escreve anga; pintada, galinha da Guiné.


I

INBILA – é mbila, sepultura.


ITA – guerra. (é plural de kita ).
IZANGA — plural de kizanga, lagoa. Era então brejos, paues, la
meiros .

LIBAMBOS - erro, é lubambu, malubambu, corrente de ferro .


De lubambu fizemos libambu , como de Lufune Lifune.

615
LIBATA — Era o conjunto das casas de um individuo rico e dos seus
escravos. Hoje é povoação e casa , mas na forma de dibata e não
libata, que é termo creado pelos portugueses.
LOENHE – Creio que devia ser luenhe; o autor dá-lhe o sentido de
alpendre; não sei que palavra seja .
LOZO— Não sei que palavra seja. O autor dá-lhe o sentido de tiros?
gritos ? Talvez seja palavra derivada do verbo kuloza, disparar
um tiro matando ou ferindo o ente que se pretendia matar ou ferir .
LUCUCA — Diz o autor que era uma especie de capa feita de tecido
de palha. É lukuka .
LUMBU — cercado, sebe, feita ordinariamente do (ngenge ), geges,
como o autor escreve .

MACA — maka. conversa ; questão levada ao tribunal. (macassa, vēde


no fim de M.
MAKAIA - E palavra kikongo, folhas; folhas medicinaes.
MAKANHA — tabaco.
MAÇANZA - instrumento musico ou só de fazer ruido. (masanza )
Não sei se é usada hoje.
MACOTAS - é makota, plural de dikota ; o mais velho, conselheiro
de soba. Significa homens velhos.
MACULUNTO-- Era mukuluntu, mikuluntu; era e é palvara kikongo
e hoje diz -se nkuluntu e significa o mesmo que dikota.
MACUNZES — vêde mucunzes. Desta palavra fizemos macunze .
MAFULO— Nome dado aos holandeses pelos ambundu.
MAIANGA — Vale, em Luanda onde havia poços. Era a Lagoa dos
elefantes, antiga.
MALEZA — Não sei que palavra seja nem de que lingua. S. o a . é -
covas ? cavernas ?
MALUNGAS - E malunga, plural de dilunga, argola, pulseira. Se
gundo o autor eram argolas nos pulsos ou artelhos para serem se
gurados ou presos com correntes .
MANGA Diz o autor que eram sacos enlicondos — sacos feitos da
fibra do licondo (embondeiro ); não sei que palavra seja ; deve ser
mbamba ou kikongo.
MANI – Esta palavra muito usada pelos portugueses é de dificil ex
plicação. A primeira vista parece ser correcção da palavra muene,
senhor, de kimbundu; mas encontra -se na Historia do Congo, do
Visconde de Paiva Manso, já empregada nos Alvarás de 18 de Julho

616
de 1493 , e de 10 de Dezembro do mesmo ano na forma de mani
congo , rei do Congo, (pag . 2 e 4 ) ; ora nesta data não tinham os
portugueses comunicação alguma com Angola, para de lá trazerem
ou receberem a palavra muene; em Angola (kimbundu ) não existe
a palavra mani. Não veio pois esta palavra muene de Angola; no
Congo não existe tambem o tal mani, nem existiu, pois não ha
vestigio de tal palavra. Isto me foi afirmado pelo antigo missionario
do baixo Zaire, o Conego José Lourenço Tavares, que por ali an
dou mais de 12 anos; este missionario publicou em 1915 uma bem
feita gramatica da dita lingua. Temos, pois, de admitir que mani não
é kimbundu nem kikongo , e que foi levada para o Congo e trazida
para Lisboa logo no principio da descoberta d'aquele reino. De
onde a receberam ? Deve ter sido recebida da Guiné , ou melhor da
Costa da Mina, ou do Reino de Benim ou do de Oere ( reino entre
o rio Niger e o rio Benim ) .
Era empregada como Rei; d'agui formaram os portugueses -mani
congo , rei do Congo , Marisonho, rei de Santo Antonio do Zaire
(Conde do Sonho ); Maniputo, rei de Portugal e ainda Manibanba
e Mani Quicombo !!!
Cadornega, que infelizmente pouco sabia de kimbundo, quiz inter
pretar a significação de Manisonho e deu a opinião que era senhor
de vergonha, dizendo --- mani, senhor, sonho, vergonha. Ora ele
quiz dizer que sonho era o mesmo que sonhi, vergonha em kini
bundo, ou nsoni, vergonha em kikongo; mas a palavra sonho tam
bem foi arranjada pelos portugueses, pois os mussorongos dizem
Soio e não sonho.
MARIMBAS — instrumento musico. É madimba.
MASA — massa (masa; o autor escrevia inconscientemente segundo a
forma de Lepsius ); milho; uma espiga ou maçaroca é disa.
MATEBA — plural de diteba, uma especie de palmeira – A palavra
mateval empregada pelo autor parece ser matebal, campo de mateba,
que talvez fosse empregada pelos portugueses em Angola .
MATENDAS – peças de artilharia, plural de ditenda; foi palavra
criada pelos pretos.
MICEFOS-— é micefo (musefu , misefus, um fruto.
MINDELE - plural de mundele – Os brancos; por extensão tambem
significa qualquer pessoa civilizada ou com costumes europeus,
embora africana.
MIXILUNDA — plural de mixilunda — habitantes da ilha de Luanda;
são pescadores.

617
MOUCU - vede mucucu .
MOZENGO - Diz o autor que era batalhão -esquadrão. Devia ser
muzengu e palavra mbamba ou kikongo; hoje em kikongo existe
ainda a palavra, njingu, guerra, que outrora devia ter sido muzingu ;
(o z antigo mudou -se em j ) . No mais antigo dicionário bantu tem
musengo a vita exercito. Era pois palavra do Congo.
MUCAMA — (mukama), escrava do serviço interno da casa .
MUCAMBO– (mukambu ), ainda é hoje a forquilha que sustenta o
pau da cumieira da casa .
MUCANO– (mukanu ) pleito, questão.
MUCEFOS — vêde micefos.
MUCUNZES – É mukunji, mikunji, embaixador, enviado. O z ( antigo)
mudou -se em j . Nós fizemos macunzes.
MUCUCU — Era (segundo o autor) um chocalho de convocar gente
para a guerra. O autor escreve - moucu e muucu, mas devia ser
mucucu (mukuku ).
MUENE — Senhor. Esta palavra serve para formar nomes compostos.
O autor tem : muene -lumba senhor do cercado – parece que era o
superintendente de tudo o que estava dentro dos muros do rei ou
soba.
Muene -mucete (musete ) parece que era o guarda das roupas
musete era cofre , caixa .
Muene - kizokola, o que tratava de tudo que pertencia á alimentação.
É possivel que estes cargos sejam fantasia do autor.
MUFUMA — arvore de que os indigenas fazem as camas, os portu
gueses de mufuma fizeram mafumeira.
MUIMA Diz o autor que era os Soldados pararem ou fazerem alto
para receberem ordens.
MULEMBA - É a arvore chamada em Luanda e seu interior ensan
deira. Esta arvore é chamada no Congo nsanda; desta palavra fize
ram os portugueses no Congo a palavra ensandeira, a qual palavra
transitou para Luanda e ali se continuou a usar, talvez porque de
mulemba não quizessem fazer mulembeira, ou cousa parecida. —
Nsanda foi em tempos remotos no Congo musanda e nunca insanda
e por isso deve- se escrever ensandeira e não insandeira. — Compa
re -se esta palavra com licondo (mbandeira ou melhor seria imbon
deira );; a palavra licondo desapareceu e deu logar a embondeiro e
enquanto ensendeira persistiu com despreso de mulembeira.
MUNDELES — vêde mindele.
MUZINDA – Diz o autor que era povoação ou senhorio de soba.

618
MUSUNGU A ANGA — mussungu ; (musungu a hanga) era a alcunha
do bom preto militar Antonio Dias. Musungu é bico, hanga, galinha.
Musungu na hanga, bico de galinha.
MUTETE uma especie de cesto feito de ramos de palmeiras em que
os pretos transportam ao ombro varios objectos (especialmente juba ,
jingarba, pintos, cebolas ).
MUUCU — vēde mucucu .
MUTU A ITA — pessoas de guerra - mutu isa ita .
MUTUE AU ITA cabeça de guerra .
MACASSA — (makasa) — Diz o autor que eram as folhas do feijão
en cassa (nkasa ) .

PEÇA — Nome dado aos escravos . Não sei se esta palavra é kim
bunda , mas parece ser, pois na Jinga ainda hoje dizem pesa , ra
paz ; jipesa, rapazes.
PEZO - O autor emprega — pôr o pezo de Mueneputu - e diz que
era pôr farinha de milho pelos ombros e peito . Parece que era um
acto de vassalagem . Vêde undar.
POMBEIRO- Eram escravos de negociantes portugueses que iam ás
feiras fazer o negocio da permuta. Pumbeiro.
POMBOS — Era gente que ia na vanguarda de um exercito para des
cobrir terreno.
PUMBOS — Parece que eram as feiras.
As tres palavras supra não sei de onde são oiundas.
PUNGIS — pungi (mpungi). No Congo é dente de marfim , e dos dentes
grandes de marfim fazem umas especies de trombetas fazendo -lhe
um orificio perto da ponta e por ahi as fazem soar como se toca
um instrumento de metal. As musicas dos sobas e do rei do Congo
são constituidas por 15 ou 20 tocadores destas trombetas que fazem
um ruido enorme, contudo sujeito a ritmo.
PUPA — Vêde cola.

QUÉLECA — Não é kimbundu. No Congo, kiéleka verdade. Kieleka,


wala, é verdade, senhor, ou senhora, segundo diz o autor. Xala,
não sei o que fosse.
QUEOABA É kiavaba, está bem .

41 619
QUIAMBOLE -- era o Capitão mor da gente preta.
QUIBUNA Kibuna, tripeça como as dos sapateiros; ainda hoje é
usada .
QUICOCA Kikoca — Nome dado ao Governador Francisco de Souto
Mayor por ter atravessado a Kisama e ir para Masangano. — É
estrada .
QUICUMBA – Kikumba. Bagagem (munições , comida, roupas ). Não
sei se era kimbundu .
QUIFUNJI Nome dado a D. Gracia , irmã mais velha da Rainha
Jinga – Não sei o que significa.
QUIJICO - Diz o autor que filho de kijuku eram chamados os escra
vos , ou prisioneiros de guerra. Não sei se era kimbundu .
QUILAMBAS - Kilamba, ilamba; capitães da guerra preta e ganhavam
soldo.
QUILOMBO — arrayal. Kilombu . Não sei se era kimbundu
QUIMBUARI Kimbuadi, imbuadi. Diz o autor que eram bailes
desonestos.
QUINA — Kina. Cova (qualquer ) kina kineni, cova grande .
QUINDONGA — Kindonga, indonga. Diz o autor que era o nome de
umas ilhas no Kuanza, acima de Masangano .
QUITANDA —Kitanda, itanda. Ainda hoje é mercado, feira .
QUISACO – Não sei se era Quisaco ou Quizaco. (kisaku ou kizaku ).
O autor diz que era um resguardo feito de pau a pique com
espinhos.
QUIZANGA — singular de izanga.
QUIZACOLA — Diz o autor (na pag . 289 ) que era comezana, banquete.
(Na pag . 29) tem quizoula , mas deve ser êrro . Kizokola. Não sei se
era kimbundu.
QUIZONGELO- Kizongelu ) Quizonguelo, medida de secos, (meio
alqueire ) ; ainda é usado hoje e diz — Cazonguel
QUIMBARE — preto forro que se dedicava á agricultura; feitor.

SACALAMENTO - É palavra formada do verbo (kusakala ) que ,


segundo o autor diz no tomo III , era invocar o demónio ( o mesmo
que kuxaketa ) . Não sei se estes dois verbos existem hoje ainda.
SAMBA— ENZILA - Hoje sambanjila. É a segunda mulher do soba.
SAMBATANDALA - Era a segunda pessoa do governo ou comando
da guerra preta.

620
SANGAR — Diz o a. que era saltar. No Congo é saltar com alegria ,
dançar. Hoje em kimbundu kusanga é encontrar.
SANZALA - Era a reunião das casas de um morador rico com toda a
sua gente (escrava ).
SOASO - suasso (suasu) . Segundo o a, é vergonteas, vergastas. Não
sei se é kimbundu .

TABUCAR - É o verbo kutabuka, vadear um rio.


TAMBI — Ainda hoje é enterro de uma pessoa .
TANDALA Era o capitão mór da guerra preta .
TEMO -- Vêde ditemu.
TUCUTAR - É o verbo kutukuta , amaciar uma pele com as mãos.
TULULU — tenda de campo . Não sei se era kimbundu.
TUNGAR - É o verbo kutunga, construir , morar, viver em.

UNDASSE - É o verbo kuunda, que os portugueses traduziram por


undar e que significa prestar vassalagem; mas o autor emprega -o
no sentido de receber vassalagem . — Para que o undasse — para
que lhe recebesse a vassalagem e lhe puzesse o pezo... Vede pezo .

VUNGAS — Não se entende o que é pelo sentido. No Zaire (baixo)


ha a palavra mvunga, cobertor; esta dá aqui sentido - alcatifas e
cobertores .

XALA — vêde quéleca.


XAQUETAR do verbo kuxaketa, invocar o demonio . Vêde sacala
mento.
XICACOS – Era palavra do Congo e significava tributo de vassala
gem ; páreas .
XINGA — No Congo nkinga é fio, cordel, corda. Xinga de endure, ca
belo ou seda do animal chamado endure .
XINGALE - É palavra tirada do verbo ( kuringila ) kuxinguila, hipno
tisar, magnetisar. Xingale era o hipnotisador a que hoje se chama
xinguilador.

621
z

ZAÇAZAÇAS — objecto de uso nas danças para ruido e acompanha


mento do tambor (ngoma ). Isto segundo o sentido do autor.
ZENZA — Devia ser nzenza . Diz o autor que era um juramento de
guardar um segredo ainda que fosse morto para o revelar, ou de
vencer ou morrer em combate .
ZOMBI — É nzumbi, defunto .
ZONGAR — Diz o autor que era juntar; hoje é medir, pesar.
ZUNGAIS nzunque (nzunge ) ; capim que o gado come.

622
LISTA DOS GOVERNADORES ATÉ 1648 .

(A ardem dada por Cadornega até 1617 é errada; d'ahi por


diante ainda dá alguns erros nas datas)

ORDEM E DATAS SEGUNDO CADORNEGA.

Paulo Dias de Novaes, 1575 pág. 18


Luis Serrão , 1589 45
André Ferreira Pereira, 1592 .. 48
João Furtado de Mendonça, 1594 49
Manuel Cerveira Pereira, 1597 57
João Rodrigues Coutinho, 1600 67
João Veloria, 1602 ....... 72
D. Francisco de Almeida 72
D. Jeronimo de Almeida ..... >> 73
D. Manuel Pereira Forjaz, 1614 75
Bento Banha Cardoso, 1615 .... >> 76
Antonio Gonçalves Pita, 1617 >> 80
Luis Mendes de Vasconcelos, 1620 83
João Correia de Sousa , 1623 99
D. Fr. Simão Mascarenhas, 1624 112
Fernão de Sousa, 1625 121
D. Manuel Pereira Coutinho, 1633 ... 175
Francisco de Vasconcelos da Cunha, 1635 189
Pedro Cesar de Menezes, 18-10-1639 >> 197
Antonio de Abreu de Miranda, 1643 ..... 317
Pedro Cesar de Menezes , principio de 1644 343
Francisco de Souto Maior. fim de 1645 >> 379
Antonio Teixeira de Mendonça, Bartolomeu de
Vasconcelos da Cunha , João Zuzarte de An
drada , fim de 1646 ..... 433
Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, 1647 521
Salvador Correia de Sá, 15-8-1648 .... 535

623
ORDEM E DATAS SEGUNDO DOCUMENTOS OFICIAIS ,
(DELGADO E CATALOGOS)

Paulo Dias de Novaes, 20-2-1575 .


Luis Serrão, 9-5-1589.
André Ferreira Pereira, 1591 (Delgado ).
D. Francisco de Almeida, meados de Junho de 1592.
D. Jeronimo de Almeida, 1593.
João Furtado de Mendonça, Agosto de 1594.
João Rodrigues Coutinho, principio de 1602.
Manuel Cerveira Pereira, principio de 1603.
D. Manuel Pereira Forjaz, Agosto de 1607.
Bento Banha Cardoso , 16-4-1611 .
Manuel Cerveira Pereira, principios de Outubro de
1615 .
Antonio Gonçalves Pita, 1-4-1617.
Luis Mendes de Vasconcelos, 27-8-1617.
João Correia de Sousa, 12-10-1621.
Pedro de Sousa Coelho, 2-5-1623.
D. Fr. Simão Mascarenhas, 10-8-1623.
Fernão de Sousa , 22-6-1624.
D. Manuel Pereira Coutinho, 4-9-1630.
Francisco de Vasconcelos da Cunha, principios de 1635.
(Delgado ).
Pedro Cesar de Menezes , 18-10-1639 (Cadornega ) .
Antonio de Abreu de Miranda, 25-5-1643.
Pedro Cesar de Menezes, principio de 1644. (Cadornega ).
Francisco de Souto Maior, 25-10-1645 .
Antonio Teixeira de Mendonça, Bartolomeu de Vascon
celos da Cunha, João Zuzarte de Andrada, Maio de 1646 .
(Catalogos ).
Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, 15-8-1648 (em
Massangano ).
Salvador Correia de Sá, 15-8-1648.

624
INDICE DOS CAPITULOS COM A INDICAÇÃO DO GOVER
NADOR OU GOVERNADORES DE QUE TRATA CADA UM
DELES.

1.' PARTE

Cap. 1.º Paulo Dias de Novaes Pág. 11

»
2. ° Idem 25
3. ° Idem 32
4.° Luis Serrão, André Ferreira Pereira e João Furtado
de Mendonça 46
5.9 Manuel Cerveira Pereira 57
6.° João Rodrigues Coutinho, João de Veloria, D, Fran
cisco de Almeida e D. Jeronimo de Almeida >> 67
7.° D. Manuel Pereira Forjaz, Bento Banha Cardoso e
Antonio Gonçalves Pita 75
8. ° Luis Mendes de Vasconcelos 83
9.º Idem 93
10.º João Correia de Sousa 99
11.º D. Fr. Simão Mascarenhas » 112
12.° Fernão de Sousa » 121
13.° Idem » 134

2. · PARTE

Cap. 1.° Fernão de Sousa (continuação ) » 146


2.º D. Manuel Pereira Coutinho » 175
3.° Francisco de Vasconcelos da Cunha » 189
4.° Pedro Cesar de Menezes » 197
5.° Idem » 206
6.° Idem > 217
>>
7.º Pedro Cesar de Menezes (Usurpação holandesa e
Odisseia dos portuguezes) » 228
8.° Pedro Cesar de Menezes (no Bengo ) » 241
9.° Idem ( Idem ) » 256

3.° PARTE

Cap. 1.º Pedro Cesar de Menezes (em Massangano ) » 271


2.º Idem e Bispo ( em Massangano) ... > 280

625
Cap. 3.° Pedro Cesar de Menezes (volta ao Bengo) ............ Pág. 286
4." Idem ( Traição do Gango ) e An
tonio de Abreu de Miranda » 299
5.° Antonio de Abreu de Miranda e fugida do Menezes
de Luanda > 336
6.º Pedro Cesar de Menezes ( 2.• vez ) » 343
7.• Idem » 356
8.° Idem (Sua saída ) > 365

4.- PARTE

Cap. 1.° Francisco de Souto Mayor > 379


2. • > 393
3.º Governo de tres eleitos » 433
4. ° Os mesmos > 419

5.“ PARTE

Cap. 1.º Governo de tres eleitos > 483


2. • Os mesmos > 498
3.° Os mesmos > 513
4.° Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha » 521

626
Este livro realizado pela
Editorial Ática , Rua das Cha
gas, 23 a 27, Lisboa , loi
composto impresso durante
o més de Julho de 1911
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