Tepedino - Obrigações
Tepedino - Obrigações
(Coordenador)
OBRIGAÇÕES:
ESTUDOS NA PERSPECTIVA
ÇIVIL-CQNSTITUCIONAL
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Revisão Tipográfica: Fernando Guedes
Capa: Simone Villas-Boas
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ISBN 85-7147-514-8
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Proibida a reprodução (Lei 9.610/98)
Impresso no Brasil
Printed in Brazi/
Sumário
Apresentação ...................................................................................... XI
l. Reflexões em torno do conceito de obrigação, seus elementos
e suas fontes
Marcelo Junqueira Calixto ............................................................... 1
2. A Boa-fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no
Novo Código Civil (arts. 113, 187 e 422)
Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber ....................................... 29
3. Apontamentos para uma visão abrangente da função social
dos contratos (art. 421)
Pedro Oliveira da Costa .................................................................. 45
4. Relações Reais e Relações Obrigacionais: Propostas para uma
nova delimitação de suas fronteiras
Roberta Mauro e Silva .................................................................... 69
5. As obrigações propter rem
Bárbara Almeida de Araújo ............................................................. 99
6. Classificação: Obrigações de dar, fazer e não fazer (arts. 233
a 251)
Gustavo Birenbaum ...................................................................... 121
7. Obrigações alternativas e com faculdade alternativa.
Obrigações de meio e de resultado (arts. 252 a 256)
Gisela Sampaio da Cruz ............................................................... 147
8. Obrigações Divisíveis e Indivisíveis e Obrigações Solidárias
(arts. 25 7 a 285)
Flavia Maria Zangerolame ............................................................. 181
9. Cessão e circulação de crédito no Código Civil (arts. 286 a
298)
Maurício Moreira Mendonça de Menezes .................................... 211
I O. Assunção de dívida (arts. 299 a 303)
Beatriz Conde Miranda ................................................................. 249
ll. Pagamento (arts. 304 a 314 e arts. 319 a 333)
Celso Quintella Aleixo ................................................................. 275
12. O desequilíbrio da relação obrigacional e a revisão dos
contratos no Código de Defesa do Consumidor: para um
cotejo com o Código Civil
Raquel Bellini de Oliveira Salles ................................................... 303
l3. Obrigações pecuniárias e revisão obrigacional (arts. 315 a 318)
Gabriela Tabet .............................................................................. 333
14. Enriquecimento sem causa e pagamento indevido (arts. 876
a 886)
Carlos Nelson Konder ................................................................... 369
15. Pagamento indireto ou especial (arts. 334 a 359)
Alice dos Santos Soares ................................................................ 399
16. Extinção das obrigações sem pagamento: novação,
compensação, confusão e remissão (arts. 360 a 388)
Ana Luiza Maia Nevares .............................................................. .429
17. Inadimplemento das Obrigações, Mora e Perdas e Danos
(arts. 389 a 405)
Sérgio Savi ..................................................................................... 457
18. Os juros e o novo Código Civil: uma abordagem doutrinária e
jurisprudencial (arts. 406 e 407)
José Eduardo Coelho Branco Junqueira Ferraz ........................... .489
19. Aspectos pontuais da cláusula penal (arts. 408 a 416)
Tatiana Magalhães Florence ........................................................... 513
20. Das arras ou sinal (arts. 417 a 420)
José Dionízio da Rocha ................................................................. 539
Autores
Gustavo Tepedino
Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro. Diretor da Revista Trimestral de
Direito Civil. Presidente do Instituto de Direito Civil.
Anderson Schreiber
Mestre em Direito Civil pela UERJ e Doutorando em Direito Priva-
do Comparado pela Università degli Studi del Molise (Itália). Professor
de Direito Civil da PUC-Rio. Professor do curso de pós-graduação da
FGV. Vice-presidente do Instituto de Direito Civil. Membro do Conse-
lho Assessor da Revista Trimestral de Direito Civil. Advogado.
Gabriela Tabet
Mestranda em Direito Civil pela UERJ. Promotora de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro.
Gustavo Birenbaum
Mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogado.
Sérgio Savi
Mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduado em Direito Pro-
cessual Civil pela UCAM. Professor do curso de Pós-graduação latu senso
de Direito Civil da UCAM Advogado.
Gustavo Tepedino
Reflexões em torno do conceito de obrigação,
seus elementos e suas fontes
1. Conceito de obrigação
Esta influência romana é recordada por Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de
Direito Civil, vol. 11, 20• ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 3, segundo o qual "a
palavra obrigação tem para nós, agora, um sentido técnico e restrito, que se cultiva
desde as origens da especialização jurídica, guardado nos tratados e conservado nas
legislações. Não alude o Código a deveres outros, ainda que juridicamente exigíveis.
Tem em vista uma ocupação própria e específica, devendo o hermeneuta reportar-se,
mais do que em outros setores, ao Direito Romano" (grifo no original).
2 Institutas, Livro 111, Título 14. Não se sabe ao certo quem foi seu autor, sendo que
grande parte dos romanistas considera ter sido elaborada pelo jurisconsulto Florenti-
no, embora a tese seja sujeita a críticas (a questão é ressaltada por José Carlos Moreira
Alves, Direito Romano, vol. 11, 6• ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 3, nota 5).
não consiste em nos tornar proprietários ou em nos fazer adquirir uma
servidão, mas em obrigar alguém a nos dar, fazer ou prestar alguma
coisa" 3 .
A verdade é que, recordando as fontes romanas, a doutrina nacio-
nal basicamente salienta ser a obrigação um vínculo jurídico que une
dois sujeitos, denominados credor e devedor, por força do qual este
deve realizar em favor daquele uma prestação, consistente em um dar,
fazer ou não fazer, sob pena de coerção judicial 4 .
3 Digesto, Livro XLIV, Título 7, Fragmento 3. Recorda Moreira Alves (Direito Ro-
mano, cit., p. 3, nota 6) que "são numerosas as interpolações que os romanistas vislum-
bram nesse texto".
4 Começando pelos autores clássicos, citamos o pensamento de Pontes de Miranda
(Tratado de Direito Privado, tomo XXII, Rio de Janeiro, Borsói, 1958, p. 12) quem
"em sentido estrito, 'obrigação' é a relação jurídica entre duas (ou mais) pessoas, de
que decorre a uma delas, ao debitar, ou a algumas, poder ser exigida, pela outra,
creditar, ou outras, prestação". Clóvis Beviláqua (Código Civil dos Estados Unidos do
Brasil comentado, vol. IV, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1958, p. 6) apresenta uma
definição considerada "extensa" pelo próprio autor e que vê na obrigação "a relação
transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa econo-
micamente apreciável, em proveito de alguém, que por ato nosso ou de alguém conos-
co juridicamente relacionado, ou em virtude de lei, adquiriu o direito de exigir de nós
essa ação ou omissão". Passando aos manuais, citamos a definição de Caio Mário
(Instituições, cit., p. 7), segundo o qual "obrigação é o vínculo jurídico em virtude do
qual uma pessoa pode exigir de outra prestação economicamente apreciável". Esta
definição é muito próxima da fornecida por Orlando Gomes (Obrigações; 16' ed., Rio
de Janeiro, Forense, 2004, p. 15), segundo o qual "obrigação é um vínculo jurídico em
virtude do qual uma pessoa fica adstrita a satisfazer uma prestação em proveito de
outra". Mas o mesmo autor fornece, um pouco mais à frente (p. 17), um novo concei-
to, agora de relação obrigacional, que seria "um vínculo jurídico entre duas partes, em
virtude do qual uma delas fica adstrita a satisfazer uma prestação patrimonial de inte-
resse da outra, que pode exigi-la, se não for cumprida espontaneamente, mediante
agressão ao patrimônio do devedor". Afirma Washington de Barros Monteiro (Curso
de Direito Civil, vol. 4, 32" ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. R) que "obrigação é a
relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo
objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo
primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio". Já
Sílvio Rodrigues (Direito Civil, vol. 2, 30a ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 6) viu na
obrigação "o vínculo de direito pelo qual um sujeito passivo fica adstrito a dar, fazer ou
não fazer alguma coisa em favor de um sujeito ativo, sob pena de, se não o fizer,
espontaneamente, seu patrimônio responder pelo equivalente". Os autores nacionais
mais novos também seguem o mesmo caminho, tal como se vê em Carlos Roberto
Gonçalves (Direito Civil Brasileiro, vol. 11, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 21 ), segundo
o qual "obrigação é o vínculo jurídico que confere ao credor (sujeito ativo) o direito de
exigir do devedor (sujeito passivo) o cumprimento de determinada prestação. Corres-
2
A obrigação vincularia, assim, sujeitos determinados - o que a
diferenciaria dos direitos reais, em que o sujeito passivo seria indeter-
minado5 - sendo que a eventual coerção judicial só poderia ser exer-
cida sobre o patrimônio do devedor, visto, portanto, como garantia
comum ou geral dos seus credores 6 • Afirma-se, em conseqüência, um
conceito dualista ou binário de obrigação, uma vez que são vislumbra-
dos dois fatores, o primeiro dos quais chamado débito 7 e o segundo
sendo conhecido pelo nome de responsabilidade 8 • Tendo origem no
pensamento de Brinz, esta concepção considera que a obrigação gera
para o devedor o dever de prestar, que normalmente será adimplido
mas que, uma vez violado, permite a agressão ao seu patrimônio a fim
de permitir ao credor a satisfação do seu crédito 9 . Tal teoria afirma
3
ainda que os dois fatores, embora normalmente estejam presentes na
mesma obrigação, podem ser desmembrados, admitindo-se, por
exemplo, a existência de débito sem responsabilidade ou de responsa-
bilidade sem débito 10 .
A doutrina tradicional via neste vínculo jurídico praticamente um es-
tado de subordinação do devedor, que seria o único responsável pelo
adimplemento da obrigação, garantindo-o com seu patrimônio 11 • A dou-
trina mais recente, contudo, tem encarecido o fato de que a obrigação
perde seu relevo, ofusca-se a si mesmo. Mas, por outro lado, a teoria eclética não
amesquinha e não despreza questionado elemento material, colocando os bens do
devedor à disposição do credor, no caso de inadimplemento da obrigação" (Curso, cit.,
p. 26). Como defensor da teoria unitária pode ser citado Inocêncio Galvão Teles
(Direito das Obrigações, 4" ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 12), segundo o
qual "a verdade parece estar na teoria unitária. O credor não tem qualquer direito
autônomo sobre o patrimônio do devedor. Quando o devedor não cumpre, o credor,
com o concurso do tribunal, obtém, à custa do referido patrimônio, a prestação que
lhe é devida: ou a prestação originária, se ainda é possível (cumprimento específico);
ou no caso oposto uma indenização, que toma o lugar da primeira e passa a ser a
prestação debitória. Duma maneira ou doutra, realiza o próprio crédito, como ele existe
quando a execução se inicia" (grifas no original).
lO Orlando Gomes (Obrigações, cit., p. 19) chega a vislumbrar quatro hipóteses: a)
de debitum sem obligatio; b) de obligatio sem debitum próprio; c) de obligatio sem
debitum atual; d) de debitum sem obligatio própria. Segundo o autor, o primeiro caso
ocorre na obrigação natural, "pois que o credor não pode exercer seu poder coativo
sobre o patrimônio do devedor"; o segundo quando uma garantia real, como o penhor
ou a hipoteca, é oferecida por terceiro; a terceira hipótese ocorre na fiança, em que "a
obligatio nasce antes do debitum"; por fim, o quarto caso ocorre "na obrigação imper-
feita, garantida por terceiro".
li Característica desta concepção é a afirmação de Carvalho Santos (Código Civil
Brasileiro Interpretado, vol. XI, 5" ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1953, p. 6),
segundo o qual "a obrigação atua no interesse do credor, pelo menos em regra. Por isso
mesmo este não tem senão direito, mas não obrigação de cooperar, de sua parte, para
o adimplemento da prestação: exemplo- exigir, fazer a escolha nas obrigações alter-
nativas. Excepcionalmente, todavia, pode se admitir obrigação de cooperar da parte
do credor, quando o devedor tenha um interesse próprio muito relevante que a pres-
tação se realize. É o que acontece, em casos raros, por exemplo, nas prestações devidas
por artistas teatrais, que legitimamente aspiram, com o cumprir a prestação a que se
obrigaram, adquirir a fama que os consagrará. Ou quando da cooperação do credor
depender a possibilidade do devedor fazer a prestação, como veremos mais adiante".
Provavelmente neste sentido é que os irmãos Mazeaud (Leçons de Droit Civil, tomo
11, 3• ed., Paris, Montchrestien, 1966, p. 4) afirmam ser o direito das obrigações o
"direito dos interesses egoístas, livre de todas as considerações afetivas que dão um
aspecto muito particular aos direitos da personalidade e temperam de modo muito
feliz as relações jurídicas na família".
4
deve ser vista sob um aspecto dinâmico e não estático, salientando existir
uma verdadeira relação jurídica obrigacional, que tem por conteúdo
uma série de direitos e deveres de ambas as partes 12 .
Para essa doutrina, portanto, a obrigação pode ser vista como um
processo 13 , no qual também o credor assume o dever de cooperar com o
5
adimplemento, embora, por certo, não possa ser obrigado à realização da
prestação principal. Neste sentido as palavras de Clóvis do Couto e Silva,
segundo o qual "a concepção atual de relação jurídica, em virtude da in-
cidência do princípio da boa-fé, é a de uma ordem de cooperação, em
que aluem as posições tradicionais do devedor e do credor". E remata o
autor dizendo que ao credor "não caberá, a toda evidência, a efetivação
da obrigação principal, porque isso é pensão precípua do devedor. Ca-
ber-lhe-ão, contudo, certos deveres, como os de indicação e de impedir
que a sua conduta venha dificultar a prestação do devedor. Esse último
dever, como já se mencionou, é bilateral. Se houver descumprido um
desses deveres, não poderá exigir a pretensão para haver a obrigação
principal. Dir-se-ia que a sua pretensão precluiu" 14 .
Não se quer com isso negar que a relação jurídica obrigacional está
destinada à satisfação do interesse do credor 15 , mas enfatizar a neces-
sidade de que este também deve cooperar na consecução deste fim,
tal como recorda Pietro Perlingieri quando afirma que "a obrigação
não se identifica no direito ou nos direitos do credor; ela configura-se
cada vez mais como uma relação de cooperação. Isto implica uma mu-
dança radical de perspectiva de leitura da disciplina das obrigações:
esta última não deve ser considerada o estatuto do credor; a coopera-
ção, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação e o
credor se torna titular de obrigações genéricas ou específicas de coo-
peração ao adimplemento do devedor" 16 . Da mesma é necessário, sa-
lienta-se que este interesse creditório seja digno de tutela, isto é, obe-
diente aos valores e princípios constitucionais 17 •
14 Clóvis do Couto e Silva, A obrigação, cit., p. 120. Esta visão da obrigação como
vínculo de cooperação entre as partes, jungidas a uma conduta segundo os ditames da
boa-fé objetiva, ganha a cada dia novos adeptos em nossa doutrina e também em nossa
jurisprudência. Pelo limitado escopo deste trabalho, deixamos de listar as inúmeras
obras que discorrem sobre o assunto, remetendo o leitor ao artigo seguinte da presente
obra.
15 Neste sentido podem ser vistos Fernando Noronha, Direito das Obrigações, cit.,
pp. 19/35; Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, cit., pp. 70/73 e Antunes
Vareia, Direito das Obrigações, cit., pp. 110/112. Igualmente válida é a referência a
Karl Larenz (Derecho de Obligaciones, cit., p. 39), segundo o qual "toda relação de
obrigação persegue, se for possível, a mais completa e adequada satisfação do credor
ou dos credores em razão de um determinado interesse na prestação".
16 Pietro Perlingieri, Perfis, cit., p. 212.
17 É o mesmo Pietro Perlingieri (Perfis, cit., p. 211) quem observa que "a diversifica-
ção dos interesses deduzidos na relação obrigacional, com a evidenciação também
daquelas não-patrimoniais destinadas a caracterizar a concreta ordem, postula, por um
6
Apresentado o conceito de obrigação e a visão contemporânea de
tal instituto, podemos analisar os elementos que o caracterizam.
2. Elementos da obrigação
7
A regra é que a obrigação já nasça entre sujeitos determinados,
sendo esta, como dito, uma das formas de diferenciação entre os di-
reitos de crédito e os direitos reais. Admite-se, contudo, a indetermi-
nação da pessoa do credor em casos como o título ao portador e a
promessa de recompensa. Nestes casos, o devedor será pessoa deter-
minada, mas credor será aquele que se apresentar com o título ou que
realizar a conduta que motivou a promessa de recompensa.
A indeterminação subjetiva passiva é um pouco mais rara, mas
pode ser vislumbrada na hipótese de um adquirente de um imóvel
hipotecado responder com o devedor pela solução da dívida garantida,
pois, neste caso, "o credor que o era de um certo devedor tornar-se-á
apto a receber de qualquer um a quem venha tocar a coisa gravada "21 .
Lembre-se, por fim, que, com o abandono do excessivo persona-
lismo que marcou o direito romano primitivo 22 , hoje é perfeitamente
admissível a substituição subjetiva dos sujeitos da relação obrigacio-
nal, tal como se verifica, por exemplo, na cessão de crédito (Código
Civil, arts. 286/298) e na assunção de dívida (Código Civil, arts.
299/303).
Outro elemento essencial da obrigação é o seu objeto, sendo pos-
sível diferenciar, na mesma obrigação, um objeto imediato e um obje-
to mediato. Em verdade, o objeto imediato da obrigação consiste em
uma conduta do devedor, recebendo o nome de prestação debitória.
Esta, portanto, pode ser positiva (obrigações de dar e de fazer) ou
20 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 21. Neste sentido é que se entende, por
exemplo, o disposto no artigo I 04, I do Código Civil, aplicável à capacidade negociai,
e o disposto no artigo 928 do mesmo Código, que permite ser o incapaz responsável
pelos "prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação
de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes".
21 Caio Mário, Instituições, cit., p I6. A hipótese encontra-se hoje regulada pelo art.
303 do Código Civil. Washington de Barros (Curso, cit., pp. IS/I8) recorda, generi-
camente, as obrigações propter rem (também chamadas obrigações reais) como hipó·
tese em que o sujeito passivo seria indeterminado, "porque transeunte, variável; mas,
em dado instante, torna-se determinado, individualizando-se então o elemento pes-
soal passivo da relação jurídica" (p. I8).
22 Pontes de Miranda, Tratado, cit., p. 8 recorda que "no direito romano, as relações
jurídicas do direito das obrigações eram mais estritamente pessoais do que hoje. O
vinculum iuris prendia as pessoas do devedor e do credor, de modo que o objeto da
prestação era secundário. O direito germânico foi que concorreu para essa deslocação
dos pontos de ligação, caracterizando a pessoal idade do direito e das pretensões como
relação entre sujeito ativo e passivo porém sem a inserção da pessoa em si. ( ... ) A
concepção germânica preparou o princípio da transmissibilidade das relações jurídicas
de obrigação".
8
negativa (obrigação de não fazer) 23 . Já o objeto mediato da obrigação,
que também pode ser considerado como objeto da prestação, será a
coisa nas obrigações de dar, ou o fato (ação ou omissão) nas obrigações
de fazer ou não fazer 24 .
O objeto da obrigação deve atender a três requisitos: ser lícito,
possível e determinado ou determináveF 5 . O objeto será lícito se não
contrariar a lei nem a moral ou os bons costumes. Lembre-se que a lei
nem sempre será minuciosa ou casuística, sendo que a ilicitude, apu-
rada in concreto, resultará da contrariedade aos princípios e valores
consagrados pelo ordenamento 26 . Sendo considerado ilícito seu obje-
to, a obrigação será nula, desobrigando-se o devedor 27 .
9
A impossibilidade do objeto determina igualmente a invalidade da
obrigação, mas há que se distinguir entre impossibilidade atual ou su-
perveniente e impossibilidade absoluta ou relativa. Em verdade, a im-
possibilidade contemporânea à formação da obrigação, desde que ab-
soluta, determina a sua nulidade; se, ao contrário, for relativa, não
acarretará tal efeito, pois poderá ser cumprida por outrem, uma vez
que não se trate de obrigação personalíssima. Da mesma forma, a obri-
gação cuja prestação era absolutamente impossível, mas que se tornou
possível até o implemento da condição a que o negócio estava subor-
dinado, não será reputada inválida 28 .
O que se destacou aqui diz respeito à impossibilidade material de
realização da prestação, uma vez que à chamada impossibilidade jurí-
dica pode ser aplicada a mesma regra de nulidade afirmada quanto à
ilicitude do objeto da obrigação 29 •
lO
O objeto da obrigação deve ser ainda determinado ou determiná-
vel, sendo certo que a indeterminação definitiva torna nula a obriga-
ção30. O objeto é determinável quando especificado somente por seu
gênero, recebendo a obrigação, neste caso, o qualificativo de obrigação
genérica 31 • Neste tipo de obrigação deve haver a determinação do ob-
jeto, denominada concentração do débito, que será feita pelos dois
sujeitos ou "pela escolha de um deles (obrigação alternativa), ou por
terceiro (como se dá com o preço na compra e venda, cuja fixação
pode ser deixada ao arbítrio de um terceiro), ou ainda por fato impes-
32
soal (preço deixado à oscilação da Bolsa ou mercado) " .
Um quarto requisito da prestação lembrado pela doutrina majori-
tária é a sua patrimonialidade, ou seja, o fato de que a prestação deve
ser economicamente apreciável. Este seria, inclusive, um fator de di-
ferenciação da obrigação em relação a outros deveres reconhecidos
nos demais ramos do Direito 33 . À objeção de que a exigência da patri-
monialidade da prestação afastaria do domínio do Direito das Obriga-
ções a reparação das violações a direitos não patrimoniais (pense-se na
reparação do dano moral, por exemplo) contrapôs-se a afirmação de
que o interesse do credor pode não ser patrimonial, mas a prestação,
ao contrário, sempre apresentará este aspecto. Esta a doutrina mais
aceita entre nós 34 . Contudo, também esta visão pode ser contestada,
Recorde-se ainda, como exemplo de negócio jurídico com objeto juridicamente im-
possível, o disposto no artigo 426 do Código Civil, segundo o qual "não pode ser objeto
de contrato a herança de pessoa viva".
30 Assim, será nula, por falta de determinação, a disposição em que o testador deixe
uma coisa do seu patrimônio a terceiro; mas será, ao contrário, válida, a disposição pela
qual ele deixe um dos seus cinco cavalos a B, à escolha do legatário ou de terceiro (os
exemplos são de Antunes Vareia, Direito das Obrigações, cit., p. 73).
31 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 45.
32 Caio Mário, Instituições, cit., p. 20.
33 É o mesmo Caio Mário (Instituições, cit., p. 22) quem afirma que "é precisamente
a pecuniariedade que extrema a obrigação em sentido técnico daqueles deveres que o
direito institui, numa órbita diferente, como, exempli gratia, a fidelidade recíproca
dos cônjuges, imposta pela lei, porém exorbitante da noção de obrigação".
34 Neste sentido podem ser vistos: Caio Mário, Instituições, cit., p. 23; Orlando Go-
mes, Obrigações, cit., p. 24; Sílvio Rodrigues, Direito Civil, cit., p. 6; Carlos Roberto
Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, cit., pp. 28/29; Carvalho Santos, Código Civil,
cit., p. 12 e Clóvis Beviláqua, Código Civil, cit., p. 6.
Esta visão prevaleceu no art. 1.174 do Código Civil Italiano de 1942, que afirma: "A
prestação que forma objeto da obrigação deve ser suscetível de valoração econômica e
deve corresponder a um interesse, ainda que não patrimonial, do credor".
11
sob o argumento de que atualmente o direito prevê outras formas de
reparação dos danos que não a simples condenação a uma reparação
pecuniária. Pense-se no caso de execução específica da obrigação ou
no caso de retratação pública de uma afirmação que tenha afetado a
honra de outra pessoa 35 . Nestes últimos casos, o que deve ser observa-
do é se o interesse do credor é digno de tutela pelo ordenamento,
pois, do contrário, de obrigação não se tratará 36 . Esta última visão já
obteve consagração legislativa no Código Civil Português 37 e está mais
12
próxima de nossa realidade, sendo que a defesa do interesse do cre-
dor como digno de tutela se fará, como já
salientado, à luz dos valores e princípios de nosso ordenamento, des-
tacando-se, neste contexto, o papel desempenhado pelas normas
constitucionais 38 .
Terceiro elemento da obrigação seria o vínculo jurídico, chamado
por alguns de elemento abstrato 39 . Sobre este elemento já discorre-
mos ao conceituar a relação jurídica obrigacional e apresentar a con-
ção não necessita de ter valor pecuniário; mas deve corresponder a um interesse do
credor, digno de protecção legal".
38 Desta forma, como salienta Mário Júlio de Almeida (Direito das Obrigações, cit.,
p. 480), não serão tutelados "quer os puros caprichos ou excentricidades (ex.: não ir à
janela ao domingo; só usar gravata castanha), quer as vinculações que, embora perfei-
tamente legítimas e fundadas em face de outros ordenamentos, se encontram excluí-
das dos fins específicos visados pelo direito (ex.: cumprimentar os vizinhos; participar
em certo acto litúrgico todos os meses)". Este autor diferencia ainda a prestação que
tem um caráter pecuniário indireto (v.g. A compromete-se para com B a deixar de
tocar piano durante certas horas do dia, a fim de não prejudicar a feitura de um
trabalho, com valor pecuniário, que este traz entre mãos) daquela totalmente privada
deste mesmo caráter (v.g. A vincula-se a não tocar piano, mas apenas com o objetivo
de garantir a tranqüilidade ou bem estar de B). As duas hipóteses são dignas de prote-
ção jurídica, sendo que na primeira o credor (B) poderá exigir do devedor (A) a inde-
nização dos danos patrimoniais; já na segunda hipótese as medidas podem variar, por
exemplo, entre a proibição judicial de tocar durante as horas convencionadas e a
apreensão do piano ou "a imposição temporária de selos" (p. 479).
Certo é, contudo, que as hipóteses em que a prestação não reveste caráter econômico
são raras, o que é salientado por Galvão Teles (Direito das Obrigações, cit., pp. 8/9) e
Fernando Noronha (Direito das Obrigações, cit., p. 47). Em verdade, afirma este
último autor: "Por essas razões pode ser dito que, no plano prático, muito raras serão
as obrigações que digam respeito a prestações sem conteúdo econômico. Por isso é que
se a doutrina tradicional não está certa nos seus fundamentos, também não chega, na
prática e na generalidade dos casos, a soluções erradas".
39 A expressão é de Carlos Roberto Gonçalves, Direito das Obrigações, cit., p. 29.
Antunes Varela (Direito das Obrigações, cit., p. 94) considera o vínculo "o elemento
estável da relação obrigacional - o verdadeiro cerne do direito de crédito" (grifos no
original). Sobre o vínculo obrigacional podem ser vistos, na doutrina nacional: Caio
Mário, Instituições, cit., pp. 23/27; Washington de Barros, Curso, cit., pp. 23/28;
Sílvio Venosa, Direito Civil, cit., pp. 42/43; Sílvio Rodrigues, Direito Civil, cit., pp.
4/6; Serpa Lopes, Curso, cit., pp. I 0/17 e Carvalho Santos, Código Civil, cit., pp.
7/10.
Interessante observar, neste sentido, que o Código Civil Português conceitua a obriga-
ção a partir do vínculo jurídico, tal como se lê em seu artigo 397, verbis: "Obrigação é
o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à reali-
zação de uma prestação".
13
cepção binária que é atualmente a mais aceita pela doutrina. Cabe
aqui somente recordar que o vínculo jurídico, visto como elemento da
relação jurídica obrigacional, não se confunde com o conteúdo desta
- o conjunto de direitos e deveres presentes na relação - nem com
sua finalidade, qual seja, a satisfação de um interesse do credor digno
de tutela.
Alguns autores apresentam ainda como elemento essencial da
obrigação o fato jurídico 40 . Parece-nos, contudo, que se trata de um
desvio de perspectiva, uma vez que o fato jurídico apresenta-se como
um aspecto exterior à própria relação, devendo ser estudado como
fonte desta, tal como faremos a seguir 41 •
Quinto elemento para parte da doutrina seria a garantia, mas acre-
ditamos que esta não se apresenta como um elemento autônomo, ten-
do em vista o que dissemos acima ao configurarmos a relação jurídica
obrigacional 42 . Em verdade, observamos que a garantia pode muitas
vezes permanecer em estado potencial, não sendo vislumbrada na hi-
pótese de cumprimento espontâneo da obrigação, visto que então não
ocorrerá a agressão judicial ao patrimônio do devedor. Assim, evita-
mos catalogá-la como elemento autônomo, uma vez que a vislumbra-
mos no próprio conceito que demos do vínculo obrigacional 43 .
40 É o que se vê em Inocêncio Galvão Teles (Direito das Obrigações, cit., pp. 36/37).
Afirma o autor: "Há factos constitutivos, modificativos e extintivos. Os primeiros
criam as obrigações. Os segundos introduzem-lhes alguma alteração, de natureza ob-
jectiva ou subjectiva; pertencem a este número, inclusivamente, os casos de transmis-
são, em que as obrigações, mantendo-se as mesmas na sua objectividade, todavia mu-
dam de sujeito. Por último, os factos da terceira espécie põem fim ou termo às obriga-
ções" (grifas no original).
41 No mesmo sentido pode ser visto Antunes V areia (Direito das Obrigações, cit., p.
65), segundo o qual "o fato jurídico, que no caso equivale à fonte da obrigação, é um
elemento exterior à relação obrigacional, distinto dela como o filho se distingue da
mãe, apesar de gerado no ventre materno. Uma coisa é o contrato, o acordo negociai
firmado sobre as declarações de vontade permutadas entre as partes; e outra, muito
distinta, é a relação contratual, o conjunto de direitos, deveres, estados de sujeição,
ônus, etc. emergentes do contrato" (grifas no original).
42 Defende ser a garantia um elemento autônomo da obrigação Galvão Teles (Direito
das Obrigações, cit., pp. 37/40), que distingue entre garantia geral (ou comum), aque-
la pertencente a todos os credores, c garantia especial, que pode ser de natureza pes-
soal (v.g. fiança) ou real (v.g. hipoteca).
43 Também não concede autonomia à figura da garantia Antunes V areia (Direito das
Obrigações, cit., p. 65). No mesmo sentido podem ser vistos ainda Orlando Gomes
(Obrigações, cit., pp. 28!29) e Fernando Noronha (Direito das Obrigações, cit., p.
15), que afirma ser a garantia "posterior à obrigação, porque é posta em movimento
somente quando ela não é realizada pelo devedor".
14
O que se estudou até aqui aplica-se à obrigação perfeita (também
chamada obrigação civil), uma vez que estão integralmente presentes
todos os seus elementos. Algumas leis e a doutrina apontam, contudo,
para a existência de um outro gênero de obrigações, chamadas obriga-
ções imperfeitas, que teria como principal espécie a obrigação natu-
ral44. É esta última que passamos a estudar.
3. Obrigação natural
44 Neste sentido pode ser consultado Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 96, que
dentro do gênero "obrigações imperfeitas" contempla três espécies: a) obrigações na-
turais stricto sensu; b) deveres morais e sociais; c) obrigações secundárias.
45 Ebert Chamoun, Instituições de Direito Romano, 5• ed., Rio de Janeiro, Forense,
1968, p. 303. Sobre tal instituto em Roma também podem ser consultados Vandick
Londres da Nóbrega, História e Sistema do Direito Privado Romano, Rio de Janeiro,
Freitas Bastos, 1955, pp. 328/330 e José Carlos Moreira Alves, Direito Romano, cit.,
pp. 24/26.
46 Moreira Alves (Direito Romano, cit., pp. 25/26) inicialmente afirma que a questão
da obrigação natural ainda é motivo de discórdia entre os romanistas, os quais tentam
estabelecer seus contornos a partir do estudo das interpolações aos te>.:tos que se
referem a tal espécie de obrigação. Em linhas gerais, contudo, afirma que, no direito
clássico, só eram consideradas obrigações naturais as relações obrigacionais entre o
escravo e seu dono ou entre aquele e um estranho, bem como as relações entre os
filhos-famílias ou entre um filius familias e seu pater. Todas estas obrigações eram
desprovidas de actio. Já no direito justinianeu passou-se a reconhecer que a obrigação
natural tinha fundamento em preceitos dos ius natura/e, inerente à própria natureza
humana, englobando todas as relações obrigacionais desprovidas de actio e também as
que tinham sua fonte neste direito e que, "desde o direito clássico, etam tuteladas por
actiones concedidas quer pelo ius ciuiles, quer pelo ius honorarium" (p. 26). Salienta
ainda que Justiniano passou a atribuir a alguns deveres morais e religiosos o efeito da
soluti retentio (retenção do pagamento). A tais deveres, decorrentes dos bons costu-
mes ou de considerações de ordem pública, passou-se a dar o nome de "obrigações
naturais impróprias" (p. 26).
Vandick Londres da Nóbrega (História e Sistema, cit., p. 330) salienta ser uma fonte
15
Foi esta mesma idéia central dos romanos - a de existência de
uma obrigação que não pode ser coercitivamente exigida pelo credor,
mas que permite a este a retenção do que foi espontaneamente pago
pelo devedor - que atravessou os séculos e chegou aos direitos con-
temporâneos. Mas a passagem dos anos não afastou as inúmeras con-
trovérsias que cercam o instituto.
Assim é que, do ponto de vista legislativo, podem ser observadas
três posições principais: a) completa omissão dos Códigos 47 ; b) refe-
rência a esta modalidade de obrigação, mas sem que se apresente sua
definição 48 ; c) consagração legislativa expressa, regulando-se, igual-
mente, os seus efeitos 49 .
16
Estas mesmas distintas visões refletem-se na doutrina, que é di-
vergente especialmente quanto à natureza jurídica e aos efeitos a se-
rem atribuídos à obrigação natural. Em verdade, quanto à natureza
jurídica, são conhecidas afirmações no sentido de tratar-se de verda-
deira espécie de obrigação que, entretanto, se particulariza pelo fato
de apresentar um vínculo jurídico esmaecido, pois não há responsabi-
lidade (obligatío) para o devedor, isto é, este não pode ter seu patri-
mônio agredido para a satisfação do crédito 50 . Outros autores, contu-
do, negam o caráter obrigacional a este tipo de relação jurídica -que
representaria, em verdade, meros deveres morais ou sociais- propondo
inclusive, que se afaste a nomenclatura consagrada pelos séculos e que
é fonte de tantas confusões 51 • Pode-se citar, por fim, um outro enten-
17
dimento doutrinário, que enxerga na obrigação natural um terceiro
gênero, a meio caminho entre a Moral e o Direito, entre a obrigação
civil ou jurídica e os deveres morais 52 . Esta realmente é a posição que
18
merece prosperar, visto que a obrigação natural ou, o que é preferível,
a obrigação judicialmente inexigível, não se confunde com o simples
dever moral ou dever de consciência, pois "o fundamento difere, já
que a caridade assenta num impulso de solidariedade humana enquan-
to que a solução de uma dívida prescrita pressupõe a existência ante-
rior de um débito, que não podia ser exigido pelo credor, mas que
nem por isso deixava de ter corpo" 53 •
Quanto aos efeitos, a doutrina destaca em primeiro lugar a impos-
sibilidade de repetição do que foi voluntariamente pago, reconhecen-
do-se, contudo ao credor, a possibilidade da soluti retentio (retenção
do pagamento). Mas não se entende a doutrina quanto à natureza des-
te ato, isto é, se se trata de verdadeiro pagamento ou de ato de libera-
lidade daquele que o realiza 54 . Por outro lado, prevalece o entendi-
que não são todos os deveres morais ou sociais que justificarão a intervenção do direi-
to, para que este imponha o seu respeito, como os de boa educação ou de cortesia,
quando hajam sido voluntariamente cumpridos. Haverá sempre aqueles que normal-
mente permanecerão a todo o tempo indiferentes ao direito. Os deveres que consti-
tuem as obrigações naturais são aqueles que, não tendo a relevância necessária, de
acordo com os padrões culturais de cada sociedade e de cada época, para serem trans-
formados em deveres jurídicos (como acontece a outros deveres morais ou sociais), já
são suficientemente significantes para, segundo os mesmos padrões, merecerem des-
taque em relação aos demais, aqueles que permanecem sempre indiferentes ao direi-
to". Este autor faz ainda interessante classificação das obrigações naturais, dividindo-
as em duas espécies: a) obrigações de trato social e b) obrigações fundadas em impe-
rativos morais, dividindo-se estas ainda em obrigações degeneradas, obrigações frus-
tradas e obrigações de consciência.
53 Caio Mário, Instituições, cit., p. 3 I. Com esta citação fica claro que entendemos
ser a dívida prescrita uma espécie de obrigação judicialmente inexigível, no que acom-
panhamos outros autores (Fernando Noronha, Direito das Obrigações, cit., pp.
235/236, que salienta ser a dívida prescrita um exemplo de obrigação degenerada;
também Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 101 e Clóvis Beviláqua, Código Civil,
cit., p. I 02). Outro exemplo legal desta espécie de obrigação é a dívida resultante de
jogo ou aposta, na forma do artigo 814, caput do Código Civil.
54 De fato, afirma Galvão Teles (Direito das Obrigações, cit., p. 41) que "designada-
mente o cumprimento espontâneo de uma obrigação natural é tratado como se fora
cumprimento de uma obrigação civil (considerando-se espontâneo o cumprimento
livre de toda a coacção). O que significa duas coisas: que não pode pedir-se a restitui-
ção da prestação (irrepetibilidade ou soluti retentio); e que a prestação efectuada vale
como verdadeiro cumprimento (acto oneroso) e não como liberalidade (acto gratui-
to). O devedor natural não pode ser compelido a efectuar a prestação; mas, se a realiza
sponte sua, o seu acto é irretratável e a qualificação que lhe compete é a de pagamento
e não de doação. São-lhe aplicáveis as disposições sobre cumprimento das obrigações
civis e não, quer no aspecto de direito privado quer no aspecto de direito fiscal, as
19
mento de que não é necessário indagar o estado de ânimo do solvens,
isto é, a irrepetibilidade terá lugar tão logo "o devedor cumpra es-
pontanea-
mente, sem coação, ainda que erroneamente persuadido da natureza
exigível da prestação" 55 . Se o pagamento é parcial, a obrigação perma-
nece judicialmente inexigível quanto ao restante 56 . Saliente-se, por
20
fim, que a retenção não terá lugar se o que paga for incapaz- pois a
proteção legalmente conferida a este último prevalece sobre a exis-
tência de um vínculo jurídico privado de coerção -ou se for efetuada
em prejuízo de terceiros que sejam credores civis do solvens 57 .
Também quanto às outras formas de extinção das obrigações nem
sempre a doutrina é uniforme no que diz respeito à obrigação judicial-
mente inexigível. Em relação à novação, por exemplo, o entendimen-
to é majoritário no sentido de ser a mesma incabível à espécie, em
especial por que "a novação não é só a substituição da dívida anterior;
é a criação da dívida nova para o fim de extinguir a antiga" e "admitir-
se a novação é dar à obrigação natural os efeitos da civil" 58 . Quanto à
57 Neste sentido pode ser visto Fernando Noronha (Direito das Obrigações, cit., pp.
223/224). O mesmo entendimento é apresentado por Antunes Varela (Direito das
Obrigações, cit., pp. 288/289). Afirma este último autor (p. 288) que "assim, não é
válido, como se sabe, o cumprimento da obrigação natural feito por incapaz. E análoga
solução vale para o pagamento obtido por dolo ou coação ou efetuado por terceiro em
nome do devedor, mas sem a vontade deste (v.g. por mandatário infiel)". Quanto à
possibilidade de repetição no caso de pagamento feito por menor, é válida a referência
ao art. 814, parte final, do Código Civil brasileiro, que trata da dívida decorrente de
jogo ou aposta, considerada espécie de obrigação judicialmente inexigível. Com visos
de generalidade, esta é a solução adotada pelo Código Civil Italiano (artigo 2.034, in
fine) e pelo Código Civil Português (artigo 403, número I, in fine).
Sobre a possibilidade de impugnação do pagamento por parte dos credores civis da-
quele que paga uma obrigação judicialmente inexigível, vale recordar o mesmo Antu-
nes Varela (p. 289): "A nota da incoercibilidade da obrigação natural, leva também a
distinguir entre o cumprimento da naturalis obligatio e o cumprimento da obrigação
civil, no que respeita ao regime dos atos em fraude dos credores. Do texto do artigo
li O [hoje a referência deve ser feita ao artigo 162 do Código Civil] depreende-se que
não é impugnável pelos credores quirografários o cumprimento de uma dívida (civil)
já vencida. Mas, igual solução se não justifica em relação ao cumprimento da obrigação
natural, pois desse modo se permitiria ao devedor beneficiar o credor de uma simples
naturalis obligatio em detrimento dos credores de obrigações comuns. O velho bro-
cardo nemo liberalis nisi liberatus cobre ainda, pelo seu espírito, o cumprimento da
obrigação natural. Ninguém se dê ao luxo de cumprir as suas obrigações incoercíveis ou
inexigíveis, antes de estar quite com os seus credores comuns, titulares de dívidas
judicialmente exigíveis'" (grifos no original).
58 Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática, cit., p. 157. Também contrária à no-
vação mostra-se a doutrina de Antunes V areia (Direito das Obrigações, cit., p. 290).
Já Fernando Noronha (Direito das Obrigações, cit., pp. 245/250) traz algum abranda-
mento a esta doutrina diferenciando as obrigações naturais resultantes de dívidas de
jogo e aposta das obrigações naturais fundadas em imperativos morais. Para este autor,
em verdade, não é possível a novação na primeira espécie de obrigação natural por
força da norma contida no art. 814, § 1o do Código Civil, que veda a estipulação de
"qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fiança de
21
compensação, parece inquestionável que o credor da obrigação juridi-
camente inexigível não a pode opor ao devedor, sob pena deste ser
forçado indiretamente ao cumprimento 59 . Admite-se, contudo, por
acordo entre as partes, a dação em pagamento para a extinção da obri-
gação judicialmente inexigível e, se ocorrer a evicção, renascerá uma
obrigação de mesma espécie, por força do disposto no artigo 359 do
Código Civil, que fala em "obrigação primitiva", sendo mantidas, por-
tanto, as características desta 60 .
dívida de jogo;( ... )". A razão desta norma seria o fato de o interesse do credor, no jogo
ou na aposta, ser "socialmente não útil". Contudo, em relação às obrigações naturais
fundadas em imperativos morais "não há qualquer razão para fugir da regra geral da
plena liberdade das pessoas para assumirem as obrigações que bem lhes aprouverem.
Portanto, em princípio há de ser possível confirmar por obrigação jurídica a prestação
devida numa obrigação natural fundada em imperativo moral. Desta regra, só se res-
salvam os casos em que princípios maiores do ordenamento jurídico exijam que a
pessoa permaneça sempre livre, inclusive para deixar de cumprir eventuais compro-
missos assumidos: é o que acontece na obrigação de pagar dízimo religioso e na de
prestar coisas ou fatos assumida em esponsais (compromisso recíproco de casamen-
to)" (p. 246). Mais à frente (p. 248), entretanto, o Autor esclarece que nesta última
hipótese não haveria propriamente novação, "que pressupõe a existência de prévia
obrigação jurídica, e a obrigação natural é dever extrajurídico. Mas o fato de não ser
possível a novação não implica a impossibilidade de constituição pura e simples de
nova obrigação".
Sílvio Venosa (Direito Civil, cit., p. 57) admite a novação em respeito à liberdade
negociai das partes, que concordam em novar uma obrigação natural por outra civil.
De mesmo teor é o entendimento de Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil, cit., p.
173. Também Clóvis do Couto e Silva (A obrigação, cit., p. 110) entende possível a
novação de obrigação natural oriunda de dívida prescrita.
59 Neste sentido Carvalho de Mendonça (Doutrina e Prática, cit., p. 155), Sílvio
Venosa (Direito Civil, cit., p. 57) e Washington de Barros (Curso, cit., p. 212), que
recorda o fato do Código Civil exigir, dentre outros requisitos, que as dívidas a serem
compensadas sejam vencidas (art. 369), isto é, "cobráveis, atualmente exigíveis, e as
obrigações naturais, juridicamente, caracterizam-se pela inexigibilidade".
Antunes Vareia (Direito das Obrigações, cit., p. 290), no entanto, admite haver com-
pensação no caso em que o "credor da obrigação civil, que seja ao mesmo tempo
devedor de uma obrigação natural, promova a compensação de uma com a outra,
desde que se verifiquem os demais requisitos necessários entre as dívidas compensá-
veis". Este último entendimento é igualmente partilhado por Mário Júlio de Almeida
(Direito das Obrigações, cit., p. 130).
60 Neste sentido a doutrina de Antunes V areia (Direito das Obrigações, cit., p. 289).
O mesmo Autor salienta não ser aplicável à obrigação judicialmente inexigível o regi-
me dos vícios redibitórios, uma vez que se trata de "sanções só justificáveis em face de
prestações exigíveis do devedor, e não de prestações espontaneamente efetuadas por
quem a elas não pode ser coagido" (p. 290).
22
Questão igualmente controversa na doutrina é a possibilidade de
serem apostas a uma obrigação inexigível garantias pessoais (v.g. fian~
ça) ou garantias reais (v.g. penhor e hipoteca). A part~r do disposto no
artigo 824 do Código Civil pode-se argumentar que; se a obrigação
nula; por incapacidade pessoal do devedor e a obrigação anulável são
suscetíveis de fiança, tàmbém o será a obrigação inexigível. Contra
este argumento, contudo, objeta-se que "as obrigações anuláveis, que
são afiançáveis, são sempre as civis, definidas na lei" e que tais garan-
tias pressupõem uma obrigação primitiva exigível, o que não se verifi-
ca nci'caso eni. exame 61 .
Da mesma forma, a obrigação nula por incapacidade da parte ou
por defeito de forrria'não se converte em obrigação judicialmente ine-
xigível, podendo o devedor que espontaneamente fez o pagamento
repetir o quanto foi pago. Somente a ratificação ou o atendimento à
forma·legal convertem tais obrigações em nulas obrigações civis plena-
mente exigíveis 62 .
23
Podemos concluir este tópico observando-se que as obrigações ju-
dicialmente inexigíveis são hoje pouco numerosas 63 e de efeitos bem
reduzidos, ao contrário do que se verificou no Direito Romano 64 . Não
há razão, contudo, para negar sua permanência nos direitos contempo-
râneos e a necessidade de seu estudo 65 .
62 Esta a doutrina de Clóvis Beviláqua (Código Civil, cit., p. 102): "Assim, as obriga-
ções contraídas por pessoas civilmente incapazes (o menor, a mulher casada) e as que
provêm de atos nulos por vício de forma se não consideram naturais; se permanecerem
no estado defeituoso, que apresentam, serão anuláveis as primeiras e nulas as segun-
das. Não há em relação a elas irretratabilidade de pagamento". Neste sentido pode ser
visto ainda Carvalho Santos, Código Civil, cit., p. 432.
63 O aspecto é ressaltado pela generalidade dos autores, podendo ser vistos Carvalho
de Mendonça (Doutrina e Prática, cit., pp. 152/153), Orlando Gomes (Obrigações,
cit., p. 99) e Washington de Barros Monteiro (Curso, cit., p. 215). Fernando Noronha
(Direito das Obrigações, cit., p. 230) entende que o interesse prático desta espécie de
obrigação é muito reduzido por que seu cumprimento depende apenas da boa forma-
ção do devedor.
Antunes Varela (Direito das Obrigações, cit., p. 286) admite, contudo, que, além das
hipóteses legais -dívida prescrita e dívida de jogo -desta espécie de obrigação, seja
possível a verificação de outras hipóteses, aplicando-se, por analogia, as normas legais.
Exemplos de novos casos seriam o pagamento do devedor incapaz, depois de se tornar
capaz, ao fiador que por ele satisfez a dívida (artigo 824) e o pagamento do devedor,
que invocou a prescrição, ao fiador que cumpriu a obrigação, por não querer invocá-la.
Neste sentido pode ser recordado antigo julgado do TJRS (6a Câmara Cível, Ap. Cív.
587022880, Rei. Des. Adroaldo Furtado Fabrício, julg. em 01.09.1987), cuja ementa
é a seguinte: "Pagamento indevido. Restituição. Filho que paga ao advogado da mãe
honorários profissionais, mesmo gozando esta do benefício da gratuidade judiciária em
razão de momentânea inacessibilidade de seu vasto patrimônio. Inocorrência de erro
provado. Satisfação de obrigação natural. lrrepetibilidade segundo os arts. 965 e 970,
parte final do CC. Apelação provida". Este julgado foi obtido no site www.tj.rs.gov.br
em 01.12.2004.
64 Em verdade, acredita-se que em Roma, além da possibilidade de soluti retentio no
caso de pagamento espontaneamente feito pelo devedor, admitia-se, em alguns casos,
a compensação entre uma obrigação natural e uma obrigação civil, além de novação e
aposição de garantias pessoais e reais a uma obrigação natural (neste sentido pode ser
visto Moreira Alves, Direito Romano, cit., pp. 24!25).
65 Neste sentido as palavras de Pietro Perlingieri (Perfis, cit., p. 215), segundo o qual
"a falta de coercibilidade da obrigação natural não é de per si motivo para excluir a sua
relevância jurídica. A obrigação natural é suscetível de sofrer todas aquelas vicissitudes
que são compatíveis com a limitada relevância jurídica a ela reconhecida".
24
4. Fontes das Obrigações
25
mais Códigos Civis atualmente em vigor ou simplesmente silenciam a
respeito da matéria 71 ou apresentam fontes que não se confundem
com aquelas do Código de Napoleão 72 •
Também a doutrina contemporânea não se entende quanto às fon-
tes, apresentando-as em maior ou menor número e ressaltando opa-
pel desempenhado pela lei neste contexto 73 . Mas se assevera, igual-
ou a não fazer alguma coisa". Nos arts. 1.102/1.369 regula tal instituto para, no artigo
1.3 70, definir as outras fontes das obrigações, verbis: "Art. 1.370. Certos vínculos se
formam sem que intervenha qualquer convenção, nem da parte de quem se obriga,
nem da parte daquele em relação a quem está obrigado. Alguns resultam somente da
autoridade da lei; outros nascem de um fato pessoal daquele que se encontra obrigado.
Os primeiros são vínculos formados involuntariamente, tais como aqueles entre pro-
prietários vizinhos, ou aqueles dos tutores e dos outros administradores que não po-
dem recusar a função que a eles é deferida. Os vínculos que nascem de um fato pessoal
daquele que se encontra obrigado resultam ou dos quase-contratos, ou dos delitos ou
quase-delitos; eles são a matéria do presente título". Os quase-contratos são definidos
no art. 1.371 como "os fatos puramente voluntários do homem de que resulta um
vínculo qualquer em relação a um terceiro e por vezes um vínculo recíproco das duas
partes". O mesmo Código não apresenta uma definição de delito nem de quase-delito,
mas o primeiro dispositivo do capítulo que rege conjuntamente as duas figuras dispõe
que: "Art. 1.382. Todo fato do homem que cause a outrem um dano, obriga aquele por
culpa de quem ele ocorreu, a repará-lo".
Observe-se, igualmente, que esta classificação das obrigações foi acolhida pelo Código
Civil Italiano de 1865 (art. 1.097), revogado pelo Código Civil de 1942.
70 Neste sentido podem ser vistos os irmãos Mazeaud (Leçons, cit., p. 13), que, entre
outras críticas, afirmam o seguinte: "I. A categoria dos quase-contratos foi criada
artificialmente para agrupar operações jurídicas extravagantes que não se conseguia
classificar nas outras categorias definidas; 2. Alguns afirmam que existe, além do con-
trato, uma fonte voluntária de obrigações: a declaração unilateral; 3. Encontram-se
obrigações que não nascem da vontade e que não são nem delituais ou quase-delituais,
nem quase-contratuais".
71 É o caso dos Códigos Civis Alemão e Português e também do Código Suíço das
Obrigações. O mesmo se diga do Código Civil Brasileiro.
72 Neste sentido o vigente Código Civil Italiano que, de forma semelhante à segunda
definição gaiana das fontes das obrigações, dispõe: "Art. 1.173. (Fontes das obriga-
ções). As obrigações derivam do contrato, do fato ilícito, ou de todo outro ato ou fato
idôneo a produzi-las na conformidade do ordenamento jurídico".
73 Assim é que, para Clóvis Bcviláqua (Código Civil, cit., p. 6), são fontes das obriga-
ções os contratos, a vontade unilateral e os atos ilícitos. Para Caio Mário (Instituições,
cit., pp. 37 /38) são duas as fontes: a vontade humana e a lei. Segundo o Autor, esta
"profissão de fé dualista" constava do artigo I o de seu Anteprojeto de Código das
Obrigações. Este entendimento é acompanhado por Washington de Barros Monteiro
(Curso, cit., p. 44), que afirma que o legislador pátrio poderia ter retornado "à classi-
ficação tripartida do direito romano ex contractu, ex delictu c ex variis causarum
26
mente, que a lei não deve ser tomada como fonte imediata das obriga-
ções, pois que entre "a norma e a obrigação está sempre um aconteci-
mento e se ele é o pressuposto (fatispécie, ou suporte fático) da nor-
ma, então este é que será fonte da obrigação correspondente. E dizer
que cada obrigação tem um pressuposto normado é o mesmo que di-
zer que toda e qualquer obrigação há de nascer de uma situação fática
juridicamente relevante" 74 .
Assim, o que parece ser mais certo a respeito do tema é a conside-
ração da sua pouca importância prática, não sendo perfeitamente jus-
tificada a intensa querela doutrinária que o caracteriza 75 •
27
5. Conclusão
28
A Boa-fé Objetiva no Código de Defesa do
Consumidor e no novo Código Civil 1
Gustavo Tepedino
Anderson Schreiber
29
o termo, referindo-se, por exemplo, ao possuidor de boa-fé como
aquele que tem a posse de um bem sem consciência de que há um
vício ou obstáculo que lhe impede a aquisição do domínio sobre a
coisa. 3 Tomada neste sentido, a existência ou não de boa-fé é questão
inteiramente subjetiva, vinculada ao estado anímico do agente. 4
Ao longo dos séculos XIX e XX, contudo, o acelerado desenvolvi-
mento do capitalismo e o advento de uma sociedade de massas vieram
evidenciar abusos praticados por agentes econômicos em face de con-
tratantes mais vulneráveis, sobretudo em países como o Brasil, em que
o acesso ao Poder Judiciário e a outros meios efetivos de coibição
destes abusos é, ainda hoje, tortuoso para a maior parte da população. 5
A necessidade de coibir estes abusos e proteger os consumidores e as
30
partes vulneráveis em relações contrátuais de massa veio dar margem
a inúmeras medidas, dentre as quais a mais marcante foi, sem dúvida
alguma, ~ Lei n° 8.078, promulgada em 11 de setembro de 1990, que
instituiu o Código de Defesa do Consumidor.
No intuito de atender às "necessidades dos consumidores, o res~
peito a sua dignidade, saúde e segurahça, a proteção de seus interesses
econômicos; a tnelht>riá de sua qualidade de vida, bem como a trans-
parência e harmonia das relações de consumo" (art.4°), vpleu-se o
código cànsumerista de uma série de instrumentos como a responsa-
bilidade objetiv~ do fornecedor, o elenco não-taxativo de cláusulas
abusivas, à di!iciplina de ações coletivas, a previsão expressa de direi-
tos indisponíveis do consumidor como o direito à adequada informa-
ção sobre à produto e à inversão do ôhus da prova, e assim por dian-
te. Todos esses mecanismos têm declaradamente a finalidade de
proteger o cànsumidor, cuja vulnerabilidade, reconhecida no artigo
4°, inciso I, conpicioha a aplicação de todas as normas constaptes da-
quele diploma.
Foi justathente neste artigo 4° do Código de Defesa do Consumi-
dor que surgiu a primeira previsão moderna da boa-fé objetiva no di-
reito brásileii-o, como princípio da política riqcional de relações de
consumo:
"Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contra-
tuais relati~as ao fornecimento de produtos e serviços que:
31
( 00 o)
IV- estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que co-
loquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incom-
patíveis com a boa-fé ou a eqüidade".
32
a celebração do contrato. E foi neste sentido que o Código de Defesa
do Consumidor a incorporou. Ocorre, contudo, que, por conta da
finalidade declaradamente protetiva do código consumerista, também
a noção de boa-fé objetiva acabou, na prática jurisprudencial, sendo
empregada como instrumento de proteção ao consumidor, embora
ontologicamente não se trate de um preceito protetivo, mas de uma
sujeição de ambas as partes, e em igual medida, aos padrões objetivos
de lealdade e colaboração para os fins contratuais.
A boa-fé objetiva ganhou na jurisprudência brasileira um papel,
por assim dizer, reequilibrador de relações não-paritárias, que nada
tem com o conceito de boa-fé em si, mas que era fundamento do
Código de Defesa do Consumidor em que a cláusula geral de boa-fé
vinha inserida. Era natural, portanto, que os tribunais brasileiros, des-
conhecedores dos contornos dogmáticos da noção de boa-fé objetiva,
atribuíssem ao instituto finalidade e função que tecnicamente não
eram suas, mas do código consumerista. Contribuiu para este fenôme-
no certa inexperiência do Poder Judiciário brasileiro em lidar com
princípios e cláusulas gerais, o que resultava em uma "super-invoca-
ção" da boa-fé objetiva como fundamento ético de legitimidade de
qualquer decisão, por mais que se estivesse em campos onde a sua
aplicação era desnecessária ou até equivocada. 8
A confusão conceitual era de certa forma inofensiva, porque os
conflitos originados em relações de consumo exigiam mesmo uma so-
lução protetiva; e se a boa-fé era invocada muitas vezes de forma in-
correta à luz da ciência do direito, para exercer funções que eram, a
rigor, próprias de outros mecanismos, isto, na prática, pouco importa-
va, desde que a solução alcançada fosse aquela mais favorável ao con-
sumidor.
33
se verificasse a presença de uma parte vulnerável a ser protegida. Con-
tinuavam raros os casos de aplicação do instituto a relações contratuais
paritárias. De fato, os tribunais brasileiros haviam se acostumado a
compreender e a aplicar a boa-fé objetiva como um princípio reequili-
brador e de forte caráter protetivo, e, por esta razão, relutavam em
estender sua incidência às relações contratuais em que não se vislum-
brasse a vulnerabilidade de uma das partes.
O novo Código Civil brasileiro veio corrigir esta tendência, pre-
vendo expressamente a aplicação do princípio da boa-fé objetiva às
relações contratuais comuns, independentement e de qualquer vulne-
rabilidade presumida ou demonstrada:
34
indicação de uma solução favorável ao consumidor, torna-se altamen-
te perigosa nas relações paritárias. Isto porque, não havendo, nestas
relações, uma definição apriorística de que parte se deve proteger,
torna-se necessário, para se chegar à solução adequada, preencher o
conteúdo da boa-fé objetiva, não bastando mais a sua simples invoca-
ção vazia de qualquer consideração concreta. 10 Ao contrário do que
ocorre nas relações de consumo, nas relações paritárias a insistência
nesta concepção excessivamente vaga e puramente moral da boa-fé
objetiva traz o risco de sua absoluta falta de efetividade na solução dos
conflitos de interesses.
Daí a importância de se buscar, com o advento do novo Código
Civil, definir com maior precisão os contornos dogmáticos da boa-fé
objetiva, em especial as suas funções e os seus limites.
35
direitos contratuais; e (iii) função criadora de deveres anexos ou aces-
sórios à prestação principal, como o dever de informação e o dever de
lealdade.
Na primeira função, alude-se à boa-fé como critério hermenêuti-
ca, exigindo que a interpretação das cláusulas contratuais privilegie
sempre o sentido mais conforme à lealdade e à honestidade entre as
partes. Proíbe-se, assim, a interpretação que dê a uma disposição con-
tratual um sentido malicioso ou de qualquer forma dirigido a iludir ou
prejudicar uma das partes, em benefício da outra. 12 O novo Código
Civil consagrou, em seu artigo 113, o papel hermenêutica da boa-fé
objetiva, ao determinar:
12 Sobre a boa-fé como critério de interpretação contratual, ver, entre outros, MA-
RIA COST ANZA, Profili dell'Interpretazione dei Contratto secando Buona Fede, Mi-
lano: Dott. A. Giuffre Ed., 1989, passim.
13 Tal tripartição é adotada, para fins didáticos, por MENEZES CORDEIRO, ob. cit.,
pp. 605 e seguintes. Ressalte-se, entretanto, que tais deveres não têm conteúdo fecha-
do. De fato, qualquer tipificação dos deveres anexos é inviável, porque derivam da
relação obrigacional concreta, e inconveniente, porque limitaria uma cláusula que se
pretende geral.
36
atribuída ao §242 do BG B, deduzida do já transcrito artigo 422 do
diploma brasileiro.
A rigor, as três funções apontadas acima poderiam ser reduzidas a
apenas duas: (i) a função interpretativa dos contratos e (ii) a função
criadora de deveres anexos. Tecnicamente, são estes deveres anexos,
que formando o núcleo da cláusula geral de boa-fé, se impõem ora de
forma positiva, exigindo dos contratantes determinado comporta-
mento, ora de forma negativa, restringindo ou condicionando o exer-
cício de um direito previsto em lei ou no próprio contrato. 14
Estes deveres anexos, todavia, não incidem de forma ilimitada.
Seria absurdo supor que a boa-fé objetiva criasse, por exemplo, um
dever de informação apto a exigir de cada contratante esclarecimen-
tos acerca de todos os aspectos da sua atividade econômica ou de sua
vida privada. Assim, se é certo que o vendedor de um automóvel tem
o dever- imposto pela boa-fé objetiva- de informar o comprador
acerca dos defeitos do veículo, não tem, por certo, o dever de prestar
ao comprador esclarecimentos sobre sua preferência partidária, sua
vida familiar ou seus hábitos cotidianos. Um dever de informação as-
sim concebido mostrar-se-ia não apenas exagerado, mas também ir-
real, porque seu cumprimento seria, na prática, impossível tendo em
vista a amplitude do campo de informações. Faz-se necessário, por-
tanto, identificar o critério que determina os limites do dever de in-
formação e dos demais deveres anexos, sob pena de inviabilizar a pró-
pria aplicação da cláusula geral de boa-fé.
37
A busca dos limites ao conteúdo dos deveres criados pela boa-fé
tem início e fim no seu próprio conceito. De fato, basta lembrar que
os deveres criados pela boa-fé são deveres anexos às prestações esta-
belecidas no contrato. Voltam-se, portanto, para aqueles interesses
comuns às partes, objetivamente consagrados no contrato- entendi-
do, substancialmente, como núcleo compartilhado destes interesses,
e não como mero instrumento formal de registro das intenções dos
contratantes. É, portanto, a própria função social e econômica do con-
trato que deve servir de limite à incidência da boa-fé objetiva.
A afirmação não é inovadora; já se encontrava implícita em toda a
construção do conceito de boa-fé objetiva, como se vê da doutrina
estrangeira e pátria. Veja-se, a título de exemplo, a opinião do profes-
sor espanhol Jose Luis de los Mozos:
"( ... ) sua aplicação [da boa-fé objetiva] requer volver à natureza da
coisa, quer dizer, à lógica do preceito ou à natureza da relação jurídica
em que atua; não cabe, pois, um arbítrio indefinido ou imoderado na
aplicação de critérios éticos ou de razões sociais, senão proporciona-
do secundum speciem rationem." 15
"Cio che emerge da quanto sinora esposto e che la buona fede non
puo concretizzarsi se non avendo riguardo alie fattispecie contrattuali
in se, ovvero ai suo contenuto volontaristico, e ancora piu precisa-
mente alia pianificazione economica in cu i si sostanzia il contratto. " 16
"a partir desses dispositivos que regulavam uma inédita figura batiza-
da de Leistung nach Treu und Glauben, os juristas tedescos começa-
15 JOSE LUIS DE LOS MOZOS, Derecho Civil- Método, Madrid: Civitas, I 988,
p. 227.
16 GIOVANNI MARIA UDA, "Buona Fede Oggettiva ed Economia Contrattuale",
in Rivista di Diritto Civile, anno XXXVI, p. 370. Em tradução livre: "Aquilo que
emerge do até aqui exposto é que a boa-fé não pode concretizar-se se não tendo em
vista os suportes fáticos contratuais em si, ou seja, o seu conteúdo voluntarista, e ainda
mais precisamente a planificação econômica na qual se substancia o contrato" (original
não grifado).
38
ram a identificar obrigações anexas, não expressas nos contratos, mas
que decorriam da própria natureza do vínculo assumido ( ... 17 r.
De volta ao exemplo da venda de automóvel, é de se concluir,
portanto, que o comprador está legitimado a exigir, e que o vendedor
tem o dever de fornecer, informações relativas ao próprio veículo ou
ao contrato de compra e venda em si, na medida em que tais informa-
ções se relacionam à função social e econômica do contrato. Entretan-
to, não se pode·admitir que o comprador alegue violação do dever de
informação pelo vendedor que não relatou suas preferências políticas
ou sua crença religiosa, porque tais informações, ainda que possam ser
do interesse do comprador- e para ele efetivamente relevantes, de~
pendendo de suas convicções pessoais -, não correspondem a um
interesse legítimo que resulte diretamente ou que esteja objetivamen-
te contido na função social e econômica do contrato celebrado.
É certo, assim, que os deveres anexos impostos pela boá-fé objeti-
va se aplicam às relações contratuais independentemente de previsão
expressa no contrato, mas seu conteúdo está indissociavelmente vin-
culado e limitado pela função sócio-econômica do negócio celebrado.
O que o ordenamento jurídico visa com o princípio da boa-fé objetiva
- já se disse - é assegurar que as partes colaborarão mutuamente
para a consecução dos fins comuns perseguidos com o contrato. 18 Não
se exige que o contratante colabore com o interesse privado e indivi-
dual da contraparte. Tais interesses individuais mostram-se, muitas
vezes, antagônicos, o que inviabiliza a cooperação. Não há dúvida, por
exemplo, de que, em uma situação de reajuste de' aluguel, o locador
terá interesse em chegar ao maior valor possível, enquanto o interesse
do locatário será diametralmente oposto. Exigir do locatário que ado-
te uma interpretação do contrato ou que colabore, de 'algum modo,
para a adoção de um valor superior (que corresponde ao interesse
individual e privado do locador) apresenta-se absolutamente irreal e
39
desnecessário, visto que a persecução de interesses contrapostos não
é empecilho para a construção de um ambiente contratual ético e
compatível com a ordem jurídica.
40
traduca in violazione di precise disposizioni normative o di principi
generali de li' ordinamento giuridico. "20
41
cas que possam derivar de tal postura e principalmente dá formá como
a matéria societária veio regulada no novo diploma, é preciso atentar
para a ampliação que daí resultou para o âmbito das relações obrigà-
cionais regidas pelo Código Civil. De fato, as relações mercantis que
antes sofriam incidência de norma especial, passaram a se inserir inte-
gralmente na disciplina das obrigações e contratos do código de 2002.
Também a esta diversidade de conteúdo das relações tuteladas deve
estar atento o magistrado ao aplicar a cláusula geral da boa-fé objetiva.
É evidente que a aplicação do princípio da boa-fé objetiva nas rela-
ções mercantis e societárias deve repercutir de modo diverso daquele
que se tem vislumbrado no âmbito consumerista. O campo interem-
presarial não é apenas paritário, no sentido de que não há flagrante
desequilíbrio entre as partes a ser corrigido pela atividade jurisdicio-
nal, mas se caracteriza, ainda, pela presença de pessoas jurídicas, que,
em situação de equilíbrio econômico e jurídico, negociam direitos e
obrigações, de forma puramente patrimonial, e até matemática, de
modo que à aquisição de cada direito corresponde um custo que, de
uma forma ou de outra, acaba incorporada ao preço da operação.
O ambiente comercial e societário, e em particular o ambiente
interempresarial, são palco de interesses distintos daqueles que guiam
as relações obrigacionais comuns, e se encontram ainda mais distantes
dos valores existenciais que recomendam uma tutela protetiva. Veja-
se, a respeito, a lição de Pietro Perlingieri, em tudo aplicável ao direito
brasileiro:
42
privada da pessoa física); aquele, um interesse patrimonial do banco
e/ou do cliente." 22 .
7. Conclusão
22 PIETRO PERLING IERI, Perfis de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999,
pp. 157-158. •
23 "Naturalmente, há várias determinações possíveis, segundo o tipo de área de ativi-
dade ou de negócios que as partes estão fazendo. J_á nas Ord~naçõ~s ~o ~ei~b se
prescrevia que quem compra cavalo no mercado de Evora não tem djrelto aos vícios
redibitórios. Os standards variam. Se um sujeito vai negociar no mercado de obj~tos
usados, em feira de troca, a boa-fé exigida do vendedor não pode ser igual à de ~má
loja muito fina, de muito nome, ou à de outro negócio, em que há um pressuposto de
cuidado." (ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, ob. cit., p. 4f
43
que não se justificam mais pela proteção final ao consumidor ou à
parte mais vulnerável, simplesmente porque estas relações não são, a
princípio, caracterizadas por qualquer vulnerabilidade. Faz-se neces-
sário, portanto, trabalhar efetivamente sobre o conteúdo da cláusula
geral de boa-fé objetiva, precisando suas funções e seus limites, e se-
parando do núcleo do instituto o caráter protetivo que lhe foi empres-
tado pelo Código de Defesa do Consumidor. Entender o contrário é
insistir em uma invocação abstrata e ineficaz da boa-fé objetiva, ou,
pior, aplicar a relações paritárias, e até mesmo a relações mercantis e
societárias que o novo Código Civil veio contemplar, um conceito de
boa-fé objetiva transfigurado por uma proteção que não se justifica
fora das relações de consumo e das demais relações marcadas pela
vulnerabilidade.
44
Apontamentos para uma visão abrangente da
função social dos contratos
C f. FERD INAND LAS SALLE, para quem "os fatores reais de poder que atuam no
seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e institui-
ções jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal
como elas são" (grifos no original) (LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constitui-
ção. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. l 0-ll ).
45
legislador infraconstitucional, servindo como um limite à atuação do
Estado 2 .
Encontrava-se arraigada a idéia de que as relações entre partícula·
res eram estabelecidas e tuteladas apenas pelo Código Civil, norma
maior a disciplinar as relações entre os indivíduos, resguardando-os
contra as ingerências do Poder Público 3 , sem nenhum influxo da nor-
mativa constitucional, então completamente desprestigiada.
Direito Público e Direito Privado eram considerados como áreas
estanques, impermeáveis 4, admitindo-se a interferência do Estado nas
relações privadas apenas para "manter a coexistência pacífica entre as
esferas individuais" 5, privilegiando, sempre, a circulação de riquezas e
a autonomia da vontade. O valor fundamental era o indivíduo.
Esse panorama, entretanto, começa a se modificar no final do sé-
culo XIX, quando as demandas sociais e a incipiente industrialização
tornam inevitável a intervenção do Estado na economia, através da
promulgação de algumas leis extracodificadas. O aumento deste con-
tingente de leis extravagantes desloca os Códigos Civis do centro do
sistema, perdendo a disciplina codificada o seu caráter de exclusivida-
de na regulação das relações patrimoniais privadas 6 .
Com o pós-Guerra, surgem as grandes constituições democráti-
cas, permeadas por valores sociais. O dirigismo contratual se acentua,
refletindo os princípios sociais insertos nessas cartas constitucionais,
que estabelecem compromissos e metas a serem levados a cabo pelo
legislador ordinário e perseguidos pelo Poder Público em todos os as-
pectos e em todas as questões, públicas ou privadas.
O fim dos estados absolutistas e o reforço do federalismo 7, acarre-
tam a ruptura ideológico-social que abre caminho para uma nova or-
dem constitucional, com novos paradigmas 8 . Altera-se, então, a per-
46
cepção da importância do texto constitucional e da aplicabilidade de
suas normas. Em que pese a resistência de alguns setores da doutrina,
os princípios constitucionais deixam de ser encarados como meros
princípios políticos, cujo destinatário seria apenas o legislador infra-
constitucional, e passam a ser entendidos como necessariamente pre-
sentes em "todos os recantos do tecido normativo" 9; normas cogentes
a nortear a solução de conflitos entre particulares 10 e destes perante o
Estado. A Constituição deixa de ser "do Estado" e passa a ser do cida-
dão, agora capacitado a exigir do seu semelhante, inclusive mediante
a provocação do Judiciário 11 , o respeito às regras e princípios 12 consti-
tucionais, cuja normatividade passa a ser reconhecida 13 ,
Verifica-se, assim, a ascensão política e científica da Constitui-
ção14, que assume, definitivamente, o seu lugar de direito no centro
47
do ordenamento jurídico, de onde irá desempenhar uma função de
"filtro" 15 , conformando a interpretação, aplicação e compreensão de
todo o direito infraconstitucional.
Delineia-se um novo quadro, inspirado por novos valores. Os valo-
res liberais, sobre os quais se erigia a antiga dogmática jurídica, são
substituídos por valores sociais. As grandes figuras do direito privado
são revisitadas, entranhadas por princípios constitucionais que deter-
minam que a dignidade da pessoa humana deve ser respeitada acima
de todas as coisas (CF, art. 1°, 111); que a erradicação da pobreza e a
redução das desigualdades sociais deve ser buscada a todo custo (CF,
art. 3°, III); que o desenvolvimento econômico tem por finalidade
última assegurar a todos uma existência digna (CF. art. 170, caput).
Modificam-se os paradigmas: não mais se privilegia o patrimônio
ou o crédito, mas a pessoa 16 • A dignidade da pessoa humana, elevada à
condição de fundamento da República 17 , é concebida como referência
maior, dirigente, em última instância, do labor hermenêutico 18 •
Estabelecida a existência condigna do ser humano como o valor a
ser primordialmente tutelado, consolida-se o entendimento de que é
necessário garantir uma igual dignidade para todas as pessoas. O sen-
timento que vigora é de que o indivíduo não pode ser isoladamente
considerado, mas, ao revés, "somente pode ser apreendido pelo Direi-
to em sua dimensão coexistencial, uma vez que a vida sem os outros
nada mais é do que uma abstração, afastada da realidade." 19
A sociedade- ou, ao menos, a comunidade jurídica- se dá conta
da importância das relações intersubjetivas e da necessidade de se
considerar os interesses de toda a coletividade, de forma a evitar, ou
neutralizar, possíveis conflitos entre os homens, necessariamente in-
seridos em um contexto sociaF 0 . O individualismo dá lugar ao solida-
rismo jurídico 21 .
48
Mitigam-se, em conseqüência, antigos dogmas do Direito Privado,
em especial do Direito Civil. A propriedade não mais é vista como um
direito ilimitado, total, devendo antes observar uma função sociaF 2; a
família deixa de ser considerada um valor em si mesma, passando a ser
entendida como merecedora da tutela jurídica na medida em que re-
presente um ambiente no qual seus integrantes possam se desenvolver
plenamente 23 ; os contratos devem respeitar um crescente número de
normas que procuram garantir a prevalência do interesse social sobre
o interesse meramente privado, egoisticamente manifestado 24 ; a res-
ponsabilidade civil preocupa-se mais com a efetiva reparação e pre-
venção25 do dano do que com a identificação de um eventual culpado,
para sancioná-lo pela falta cometida 26 .
49
2. A nova disciplina contratual
Essa nova tábua de valores provoca, por certo, uma profunda mu-
dança no Direito dos Contratos, exigindo que se avance ainda mais
numa evolução sentida e afirmada já há tempos na seara contratual.
Com efeito, não é exatamente nova a idéia de que o contrato não
pode mais ser visto e estudado consoante a doutrina oitàcentista, que
atribuía um caráter hegemônico à autonomia da vontade, com base na
crença de igualdade entre os contratantes, os quais estariam livres
para decidir se e quando contratar, bem C{)mo para definir o conteúdo
do contrato.
A inevitável constatação da imensa desigualdade comumente exis-
tente entre as partes 27 - em especial nos casos dos contratos padro~
nizados 28 , mas também nas mais diversas situações negociais - oca-
50
sionou uma revisão da disciplina contratual, uma verdadeira "objetiva-
ção do contrato" 29 , redimensionando a importância do elemento voli-
tivo para tutelar a confiança gerada acerca âii celebração e do efetivo
cumprimento do contrato 30 , não mais visto como um instrumento
representativo do antagonismo das partes, mas como um instrumento
de cooperação, onde todos os signatários se encontram comprometi-
dos com a concreta e efetiva irhpl~mentação das finalidades do negó-
cio jurídico nele representado 31 • ·
· A "evolução" que assim se promove, no entanto, não obstante a
sua indiscutível e extremada importância, mantém-se atrelada a ve-
lhos conceitos. Embora reinterpretado, o contrato permanece deli-
neado pelos mesmos princípios que informam a disciplina contratual
desde a Roma Antiga 32 . Liberdade contratual, obrigatoriedade e rela-
tividade dos contratos aparecem nos manuais ainda como dogmas in-
contrastáveis. ·:
Contudo, é preciso reconhecer que a mudança de paradigmas
operada no direito privado, resultante da necessária releitura de todo
o ordenamento de acordo com o projeto constitucional de uma socie-
dade livre, justa e solidária, promove uma autêntica transformação na
SI
disciplina contratual, criando uma nova Teoria do Contrato 33 , em que
os princípios clássicos, já chamados de "liberais", coexistem com no-
vos princípios, ditos "sociais": boa-fé objetiva, equilíbrio econômico
(ou equivalência material) e função social do contrato 34 .
Se não afasta a incidência dos antigos princípios, esse novo quadro
por certo mitiga-lhes a força, obrigando o intérprete a conciliar o anti-
go e o novo, conferindo maior ou menor importância a um ou outro
princípio, conforme as peculiaridades do caso concreto e os interesses
envolvidos.
No modelo contemporâneo dos contratos, portanto, cada um dos
princípios clássicos é confrontado com um novo princípio, capaz de
moldar-lhe a aplicação e redefinir-lhe a abrangência 35 . A liberdade
contratual é informada pela boa fé, considerada em seu viés objetivo,
a incidir em todas as fases da relação negociai, qualificando a conduta
das partes e orientando a interpretação do contratado; o vetusto pacta
sunt servanda é mitigado pela necessidade de se àssegurar o equilíbrio
entre prestação e contraprestação, evitando-se contratações iníquas
ou execuções dasarrazoadas de obrigações inicialmente razoáveis; a
relatividade dos efeitos do contrato é abrandada pelo reconhecimento
e afirmação da sua função social.
52
trina o considera apenas um princípio ético, atinente à justiça contra-
tual, cujo escopo seria proteger o contratante hipossuficiente.
A função social dos contratos funcionaria, assim, única e exclusi-
vamente como um princípio integrador, capaz de orientar e informar
os diversos dispositivos do Código Civil representativos do ideal de
equilíbrio contratual, com vistas a assegurar uma verdadeira e substan-
cial igualdade entre os contratantes. Pouca ou nenhuma concretude se
lhe reconhece, portanto. Sua missão se resumiria a auxiliar na inter-
pretação e aplicação de dispositivos como os referentes à revisão judi-
cial dos contratos (CC, arts. 317 e 480), lesão (CC, arts. 157 a 165),
onerosidade excessiva (CC, arts. 478 a 480), boa-fé objetiva (CC, art.
422), etc., sempre com o objetivo de proteger o contratante mais
fraco 36 •
Nessa acepção, o que se percebe é uma superposição entre o princí-
pio da função social do contrato e aqueles da boa-fé objetiva e, principal-
mente, do equilíbrio contratual. Isso acaba por minorar sua importância
e contribui enormemente para a doutrina que, receosa de um crescente
desrespeito ao contrato sob qualquer ou nenhum fundamento, na verda-
de lhe nega aplicabilidade prática, partindo em defesa do pacta sunt ser-
vanda, menina dos olhos do contratualismo liberal, ainda hoje veemen-
temente invocado e cuidadosamente resguardado 37 .
53
Por certo, não se deve permitir que o elemento funcional do con-
trato seja utilizado para um inconseqüente desrespeito ao próprio
contrato - o que representaria paradoxo inaceitável, somente vis-
lumbrado em razão de uma equivocada confusão entre a promoção do
bem social, buscada através da afirmação de que o contrato (e tam-
bém a liberdade contratual) só será legítimo se atendida a sua função
social, e um assistencialismo não raro piegas.
Impõe-se, todavia, evitar que o terror da solidarização absoluta e
da completa exclusão de valor da manifestação de vontade acarrete
indevido desprezo ao princípio da função social dos contratos, recu-
sando-lhe a importância devida.
É impossível negar que a função social informa também as rela-
ções entre os contratantes, servindo sim, em certa medida, para orien-
tar a busca da justiça contratual. Nesses casos, porém, os seus ditames
se confundem com os da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico do
contrato, princípios de grande densidade científica, cujos limites e
pressupostos de aplicação encontram-se bem definidos e exaustiva-
mente estudados.
As hipóteses de revisão ou rescisão contratual, que tanto preocu-
pam empresários e doutrinadores, temerosos de um arbítrio judicial
infelizmente recorrente, devem ser analisadas sob esta ótica, evitan-
do-se a invocação disparatada da função social, invariavelmente tra-
vestida em assistencialismo 38 . Sem dúvida, é descabida a simples invo-
cação da função social, sem quaisquer parâmetros ou limites técnicos,
função social que o contrato tem que cumprir na sociedade, o que justifica a interven-
ção pública na relação jurídica privada, por outro, ao certo há de se evitar a aplicação
equivocada das normas que asseguram a consecução da referida função social, consi-
derando-se a posição dos sujeitos na relação obrigacional (se particulares ou 'não pro-
fissionais', hipótese, via de regra, de relação tipicamente civil) e evitando-se o desne-
cessário abalo da estabilidade social, da segurança jurídica e o comprometimento do
fornecimento de crédito" (cit., p. 134).
38 Identificando a indevida confusão que se tem feito entre função social e assisten-
cialismo, HUMBERTO THEODORO JUNIOR ressalta, apreensivo: "A função social
que se atribui ao contrato não pode ignorar a sua função primária e natural, que é a
econômica. Não pode esta ser anulada, a pretexto de cumprir-se, por exemplo, uma
atividade assistencial ou caritativa. Ao contrato cabe uma função social, não uma fun-
ção de 'assistência social'. Um contrato oneroso e comutativo não pode, por exemplo,
ser transformado por revisão judicial em negócio gratuito e benéfico. Por mais que o
indivíduo mereça assistência social, não será no contrato que se encontrará remédio
para tal carência" (TH EO DO RO JUNIOR, Humberto. O contrato e sua função social.
Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 98).
54
tão-somente de acordo com as crenças e convicções do julgador, para
se alterar cláusulas e condições ou para extinguir contratos. Qualquer
caso, seja de revisão ou rescisão, deve atende·r a requisitos específicos,
presentes em dispositivos e institutos próprios. 1
Não se exaure neste perfil intrínseco 39 , no entanto, a função social
do contrato. O contrato, todo contrato, tem importância para a socie-
dade, impondo-se perante terceiros. Reside aqui, no seu perfil extrín-
seco, a verdadeira importância do princípio.
55
Apesar de parecer simplório, esse raciocínio é eficaz em eviden-
ciar que até mesmo a simples compra de um picolé envolve mais do
que contratante e contratado: o adimplemento da obrigação de pagar
o preço possibilita, p. ex., que o ambulante aumente sua remuneração,
contribuindo para um implemento da renda familiar, que, assim, po-
derá arcar com os custos com material escolar para seus filhos.
Embora soe forçada em casos simples como a compra e venda de
um doce, a constatação acerca das repercussões do contrato perante
terceiros se torna irrefutável quanto maior e mais sofisticado o objeto
do contrato 42 . No paradigmático caso analisado por Antônio Junquei-
ra43, envolvendo contratos coligados de licença de uso de marca, co-
modato de equipamentos e compra e venda de combustível e deriva-
dos de petróleo, celebrados entre donos de postos e a empresa respon-
sável pelo refino e distribuição de combustível, as conseqüências para
terceiros são enormes e inegáveis: além de lesar os consumidores, sub-
metendo-os ao risco de adquirir combustível "batizado", quando acre-
ditavam estar resguardados por um rígido controle de qualidade de
empresa de renome internacional, o sistemático descumprimento, pe-
los postos de gasolina, da cláusula de exclusividade na compra de com-
bustível, óleos e lubrificantes reduz a lucratividade da refinaria e põe
em risco a credibilidade de sua marca, que fica associada a produtos
de qualidade duvidosa. Os enormes custos de marketing decorrentes
da necessidade de se recuperar a confiança do público consumidor,
aliados à diminuição da margem de lucro, podem levar à retração da
empresa, ou, na pior hipótese, à inviabilização de suas atividades, en-
sejando desde a demissão de empregados até o não recolhimento de
impostos e a falta de cuidados com o meio ambiente.
A necessidade de se ver e compreender o contrato em um contex-
to social, considerando-se as suas repercussões além dos signatários,
56
permite, de início, duas conclusões: ao contrário do que pode parecer,
o princípio da função social dos contratos (i) não tem como único
fundamento legal o recém-editado art. 421 do Código Civil e (ii) não
deve ser compreendido apenas como uma restrição à liberdade de
contratar, como se fosse esta, e não o contrato em si, a possuir e exer-
cer importante função junto à sociedade.
Com efeito, o princípio da função social do contrato tem base
constitucional, encontrando fundamento no princípio da solidarieda-
de e na afirmação do valor social da livre iniciativa44 • O Código Civil
apenas consolidou, no ordenamento infraconstitucional, a idéia de
que o contrato deve ser funcionalizado, i. e., elaborado e interpretado
sempre de forma a não causar influência negativa no meio social, bem
como observado por terceiros, dos quais se exige que "respeitem as
situações jurídicas anteriormente constituídas, ainda que as mesmas
não sejam providas de eficácia real" 45 • Assim, o princípio se aplica a
todo e qualquer contrato, sendo descabida a alegação de que seus con-
sectários só atingiriam aqueles pactos celebrados após a vigência do
Código Civil 46 .
Por sua vez, a interpretação segundo a qual é a liberdade de con-
tratar (rectius: contratual) que deve ser funcionalizada representa in-
57
devida restrição do princípio 47 , com graves consequências que devem
ser de imediato afastadas.
Tal posicionamento- reforçado por uma leitura rápida e despre-
tensiosa do art. 421, CC-, acaba por restringir a aplicação do princí-
pio àquelas situações em que se verifiquem contratações sucessivas,
abrangendo um dos contratantes originais e terceiros, onde a celebra-
ção dos contratos posteriores, assim como a definição de seu conteú-
do, encontra limites no contrato primitivo.
Como se verá, é o próprio contrato que se impõe a terceiros,
sujeitando-lhes aos seus efeitos ou condicionando-lhes a conduta,
de forma que a restrição à autonomia contratual é apenas um- mas
certamente não o único - dos efeitos do princípio da função social
dos contratos.
58
Considerada a natureza do contrato como instrumento de circula-
ção de riquezas 52 , a sua função social é apresentada pela doutrina con-
temporânea como importante elemento de tutela do direito de crédi-
to53 criado ou assegurado pela avença, sendo invocada para impor a
terceiros responsabilidade pelo rompimento ou ineficácia de pactos
cujo objeto tenha resultado impossível ou desinteressante em razão da
sua conduta ou de um ato que tenham praticado 54155 ·
O conhecimento da existência e do conteúdo do contrato cria
para terceiros, portanto, segundo consistente doutrina, obrigações de
caráter negativo: encontram-se eles obrigados a não praticar quaisquer
atos que atentem contra o adimplemento ou a própria existência de
um contrato previamente celebrado e indiscutivelmente conhecido. A
função social se apresenta, pois, como um elemento limitador da con-
duta do terceiro, qualificada e julgada de acordo com os parâmetros
59
da boa-fé, já não mais considerada objetivamente, mas sim sob um
viés subjetivo, presente na exigência de que o terceiro tenha conheci-
mento do contrato e, mesmo assim, aja em desacordo com suas
estipulações, pretendendo ou assumindo o risco de inviabilizá-lo.
Encontram-se delineados, portanto, os marcos teóricos eleitos
pela doutrina para a aplicação do princípio da função social do contra-
to nesta sua faceta externa: superação do voluntarismo, reconhecen-
do-se o contrato como fato social, merecedor de tutela por sua impor-
tância para toda a coletividade; necessidade de proteção ao crédito,
assegurando-se a manutenção das trocas econômicas; e publicidade,
possibilitando-se a responsabilização do terceiro, apresentada como
consequência maior da relativização do "res inter alias" promovida
por este novo princípio contratual.
Quando confrontado com a evolução sentida pelo Direito nos seus
mais diversos ramos, esse quadro, no entanto, ao mesmo tempo em
que evidencia sua grandeza, provoca reflexões que demonstram a ne-
cessidade ainda de aprimoramento.
60
que a mesma se dará apenas em situações excepcionais, como aquela
em que a disparidade entre os contratantes seja evidente, fazendo
57
surgir a necessidade de se proteger o contratante hipossuficiente •
Por outro lado, respeitando a concepção de que o objeto do contrato
é res inter alios acta, afirma-se a mitigação do princípio da relativida-
de apenas para determinar, sob pena de responsabilidade por perdas e
danos, uma abstenção de conduta dos terceiros 58 , os quais, não sendo
parte na avença, não podem se sujeitar senão à cláusula geral do nemi-
nen laedere 59 , agora informada e robustecida pela função social.
61
tado a sua vontade no sentido de celebração do vínculo, sujeitando-se
voluntariamente aos seus termos e condições- ou terceiros- os que
não participaram do negócio jurídico.
Ainda hoje, o raciocínio é o mesmo de séculos atrás: ou as pessoas,
físicas ou jurídicas, assinaram o contrato, participaram de sua celebra-
ção e, portanto, como partes, sujeitam-se às suas estipulações, ou não
participaram e, assim, não estão obrigadas a cumpri-las.
Esta concepção achata a teoria contratual, desconsiderando milha-
res de tons de cinza, presentes nas inúmeras nuances que se apresen-
tam nas relações entre os homens e na vida em sociedade.
Somente um inaceitável "temor reverencial" à teoria clássica jus-
tifica o enquadramento em uma mesma categoria- "terceiros"- de
pessoas em situações absolutamente díspares em relação a determina-
do contrato, como o sublocatário e o porteiro do prédio, em relação a
um contrato de locação de apartamento residencial, ou a sociedade
comercial e algum de seus fornecedores, em relação a um acordo de
acionistas ou quotistas.
É indiscutível, nos dias atuais, a necessidade de se revisar os con-
ceitos de "parte" e "terceiro"G0 , seja para permitir a atenuação do efei-
to relativo dos contratos, de forma a obrigar o contratante frente a
terceiros, seja para reconhecer a existência de "terceiros qualifica-
dos", os quais, mais do que respeito ao contrato (condutas negativas),
lhe devem obediência (condutas positivas).
No caso dos acordos de acionistas ou quotistas, p. ex., essa neces-
sidade de revisão é por demais evidente. Os pactos parassociais têm
por objeto exatamente disciplinar as relações de seus signatários en-
quanto integrantes de uma determinada sociedade. Irão levar em con-
sideração, por certo e necessariamente, as regras estabelecidas no es-
tatuto ou contrato social, definidoras do funcionamento daquela so-
ciedade específica, que irá sofrer os efeitos do pacto, sujeitando-se às
suas estipulações e obrigando-se ao seu cumprimento, uma vez cum-
pridas as formalidades definidas em lei ou no próprio contrato.
Considerar tais sociedades mero "terceiro", como ainda defen-
dem alguns, é impropriedade que não se justifica senão pela tendência
infelizmente verificada de se incluir situações novas em conceitos
62
preexistentes 61 . Embora não possam ser consideradas "partes" dos re-
feridos pactÇ>s, as sociedé1des em cujo âmbito se inserem por certo não
podem ser relegadas à vala comum dos "terceiros", sendo necessário
criar-lhes uma categoria própria 62 , Essa simples constatação torna cla-
ra a imperatividade de se avançar no estudo das relações contratuais,
deixando para trás o viço oitocentista que vincula os conceitos de
"parte" e "terceiro" àqueles que tenham manifestado a sua vontade no
sentido de criar o vínculo contratual 63164 , alterando-se, assim, a pró-
pria concepção do princípio da relatividade dos contratos 65 .
63
Em algumas hipóteses especiais, a existência de "terceiros qualifica-
dos" é tão evidente que não deixa de causar um certo espanto a completa
64
apatia da doutrina em estudá-los ou referi-los. Há casos, por certo, como
o dos pactos parassociais, em que somente com a participação do tercei-
ro - no caso, a sociedade - o contrato estará apto a atender as suas
múltiplas funções 66 . Há outros em que isso somente se dará em se admi-
tindo a extensão dos efeitos do contrato a terceiros (determinados ter-
ceiros, com características diferenciadas frente ao pactuado).
Tal fato, ainda ignorado pela doutrina, já se faz sentir na jurispru-
dência, impulsionada pelos cada vez mais consistentes reclames de
uma sociedade melhor informada de seus direitos e impregnada, mes-
mo que disso não tenha plena consciência, pelos ideais de justiça, ética
e solidariedade que marcam a época em que vivemos.
Em recentes julgamentos, o STJ estendeu a terceiros o efeito de
contratos dos quais não participaram e cujo objeto sequer lhes dizia
respeito, especificamente. Na primeira destas decisões, considerando
que o segurado não teria recursos para indenizar a vítima os danos que
lhe causou, uma seguradora foi obrigada não a ressarcir o segurado,
mas a pagar diretamente à vítima do sinistro a indenização prevista no
contrato de seguro 67 . Na outra, a quitação dada ao comprador no con-
trato de compra e venda de unidade imobiliária foi imposta à institui-
ção financeira que pretendia executar a hipoteca constituída em ga-
rantia do financiamento concedido à construtora-vendedora, que ain-
da incidia sobre o imóvel 68 .
Ambas as decisões invocam a função social e se coadunam com a
moderna concepção do contrato 69 , tornando clara a necessidade de
65
superar-se os estreitos limites impostos pelo voluntarismo, para possi-
bilitar que o contrato atinja a sua finalidade 70 .
é que no acórdão, ainda que sob outra fundamentação [que não a da função social dos
contratos], acabou-se por impor a um contratante obrigações de natureza contratual
(não mais aquiliana, como no caso dos distribuidores de petróleo), tornando-o deve-
dor de um terceiro que não era parte no contrato" (idem, ibidem, p. 142).
70 Nesse sentido a lição de LUIS RENATO SILVA, ao comentar a decisão supracita-
da, especificamente no tocante ao contrato de seguro: "O contrato de seguro assume
relevância no mundo econõmico, pois permite que se garanta a indenização mais am-
pla dos danos, desempenhando uma função precípua de permitir a reparação e a re-
composição dos prejuízos sofridos pelas vítimas dos acidentes. Se as seguradoras pu-
derem deixar de cumprir o que se comprometeram por força da suposta ilegitimidade,
estar-se-ia a validar um caráter absoluto do efeito relativo, esquecendo-se que o con-
trato de seguro existe, em certa medida, para que os terceiros não restem sem indeni-
zação" (cit., p. I 42)
71 SILVA, Luis Renato ferreira da. cit., p. 133.
72 Atento a essa mudança, PERLING lER! adverte: "A obrigação não se identifica no
direito ou nos direitos do credor; ela configura-se cada vez mais como uma relação de
cooperação. Isso implica uma mudança radical de perspectiva de leitura da disciplina
das obrigações: essa última não deve ser considerada o estatuto do credor; a coopera-
ção, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação c o credor se torna
titular de obrigações genéricas ou específicas de cooperação ao adimplemento do de-
vedor. Também o terceiro encontra-se envolvido nesse novo clima de colaboração e de
responsabilidade, e o crédito assume cada vez mais a fisionomia de um 'bem' autõno-
mo sobre o qual, em modo evidente, incidem direitos de terceiros qualificados (tome-
se, como exemplo, o usufrutuário e o credor pignoratício de créditos: arts. 2.800 ss.,
2.025, I .250, I .254 Cód. Civ.) c que os terceiros são obrigados a respeitar" (PERLIN-
GIERI, Pietro. Perfis, p. 212).
66
O que se busca, em qualquer das hipóteses, é assegurar eficácia ao
contrato, garantindo não só a produção de efeitos consentânea com a
legítima expectativa das partes, mas, também e principalmente, a pró-
pria manutenção do vínculo, com todos os seus consectários, inclusive
sociais.
Insuficiente, portanto, analisar-se a função social do contrato ape-
nas sob a ótica da tutela externa do crédito. Esta concepção, por de-
mais atrelada à inteligência do contrato como instrumento de circula-
ção de riquezas, desconsidera uma sua importantíssima faceta: a de
eficaz mecanismo de pacificação sociaF 3 .
Mais do que criar, auxiliar e promover trocas econômicas, os con-
tratos conformam as relações entre os homens 74 , aparando arestas,
prevenindo conflitos e satisfazendo necessidades não apenas econômi-
cas, mas também existenciais 75 .
Em um mundo que se pretende solidário e humanizado, tributário
da pessoa humana, entender-se o contrato apenas sob o viés objetivo,
desconsiderando os inúmeros matizes subjetivos envolvidos na contra-
tação, parece um equívoco preocupante.
De fato, afirmar a despatrimonialização do direito civil (como,
decerto, de todo o direito privado) e raciocinar o contrato apenas sob
o aspecto econômi~o é um contra-senso. Mais do que nunca, se impõe
uma leitura complexa da relação obrigacional, afastando-se a interpre-
tação meramente econômica ou pecuniária para abraçar novos concei-
tos, privilegiando-se, sempre que possível, os aspectos pessoais envol-
vidos na negociação e no cumprimento do vínculo 76 .
73 A respeito dessa importante faceta do contrato, confira-se ROPPO, Enzo. cit., pp.
315-316.
74 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. III. 7" ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1984, pp. 9 e 10.
75 NALIN, Paulo. "O contrato em movimento no Direito pós-moderno", in Revista
trimestral de Direito Civil, n° 10. Rio de Janeiro: Padma, 2003, p. 280.
76 A ênfase que se apresenta a que a obrigação tenha, necessariamente, conteúdo
econômico desconsidera as inúmeras variações ocorridas nos últimos séculos, apresen-
tando-se dissonante em relação ao fenômeno de despatrimonialização verificado no
direito civil constitucionalizado. Daí a necessidade, apontada por PERLING IERI, de
superação da noção a-histórica da relação obrigacional. Nas suas palavras: "Apesar da
difundida consciência da historicidade e da conseqüente relativização das categorias
jurídicas, a obrigação, ou seja, a relação obrigacional, ainda hoje se apresenta, o mais
das vezes, como categoria a-histórica 'sempre igual a si mesma', neutra; ( ... ) Disso
deriva a preferência à acentuação do perfil c das classificações inspiradas na estrutura:
a obrigação se configura como relação entre credor e devedor, entre crédito e dívida,
67
À função social dos contratos, portanto, deve ser reservado um
papel de ainda maior relevância do que a simples tutela externa do
crédito. Através dela se deve poder assegurar eficácia ao contrato,
privilegiando a prestação in natura, em detrimento do seu "equivalen-
te patrimonial", representado por uma eventual indenização por per-
das e danos.
Com efeito, inegável evolução do Direito reside exatamente no
reconhecimento da insuficiência do critério indenizatório como solu-
ção para o inadimplemento das obrigações, daí porque não se deve
prender a noção da função social dos contratos à possibilidade de im-
por ao terceiro a obrigação de pagar perdas e danos quando tenha
faltado com seu dever de abstenção, contribuindo decisivamente para
o descumprimento de um contrato: em alguns casos excepcionais
deve-se poder exigir do terceiro (não qualquer terceiro, mas um ter-
ceiro qualificado em relação àquela determinada obrigação) uma con-
duta positiva, tendente a resguardar a eficácia do contrato 77 .
Ao que parece, portanto, o estudo da função social do contrato
ainda demanda melhor sistematização e aprimoramento, podendo se
apresentar como importantíssima ferramenta para casos complexos,
como o dos acordos de acionistas/quotistas, que ainda hoje desafiam
doutrinadores e julgadores, carentes de instrumentos que possam em-
basar soluções satisfatórias.
68
Relações Reais e Relações Obrigacionais
Propostas para uma nova delimitação
de suas fronteiras
Não é triste mudar de idéias; triste é não ter idéias para mudar.
Barão de Itararé
l. Introdução
69
de Hans Christian Andersen, elogiam a roupa do rei que na verdade
está nu, até as traições imaginárias da Capitu de Machado de Assis,
também a literatura está repleta de enganos famosos. No mundo dos
fatos, a dissimulação ou mesmo o erro não podem dissociar-se da pers-
pectiva que a humanidade tem das coisas e da vida. O risco maior é
que aquilo que já nos é familiar acabe tornando-se um dogma incon-
testável, como o era a Teoria Geocêntrica quando Nicolau Copérnico
propôs que não a Terra, mas o Sol seria o verdadeiro centro do sistema
solar. Mesmo com a condenação à morte de Giordano Bruno, um de
seus seguidores, a comprovação posterior da Teoria Heliocêntrica de
Copérnico mostrou que o tempo, bem como as novas experiências
humanas, são capazes de transformar dogmas incontestáveis em men-
tiras evidentes.
Não é à toa que as mudanças operadas pelo tempo no seio do
direito civil e que conduziram à sua constitucionalização são compara-
das à "Virada de Copérnico" 2 • Ocupando a posição que um dia foi do
Código Civil, a Constituição é hoje o epicentro do direito privado,
reunificando-o em torno de seus valores. 3 Com isso, este ramo do
direito perde o seu caráter de tutela exclusiva do indivíduo para "so-
cializar-se", já que a atividade econômica privada extrapola as frontei-
ras das relações intersubjetivas, "penetrando no centro do corpo social
através da possibilidade de satisfazer um número e uma variedade de
necessidades antes mesmo in imagináveis. "4
Assim, alguns dogmas professados durante anos pelos civilistas
perdem o seu sentido. É o caso da dicotomia direito público/direito
privado, distinção que passou a ter relevância apenas se feita caso a
caso, com base em termos quantitativos: ora os interesses em jogo
serão mais privados - quando versarem, por exemplo, sobre opções
existenciais da pessoa - , ora mais públicos- hipótese que justificará
as limitações a serem impostas à autonomia privada. Em uma socieda-
de de massas como aquela em que hoje vivemos, autonomia privada e
Poder Público se entremeiam a todo tempo, em prol da prevalência
dos objetivos traçados pela Constituição.
70
A ordem civil foi profundamente alterada pela substituição da tu-
tela da liberdade individual pela proteção da pessoa humana. Diante
de tamanha transformação em sua estrutura, o sistema de direito pri-
vado está "à espera da redefinição do fundamento e da extensão dos
seus principais institutos jurídicos, da reposição de seus conceitos es-
truturantes. "5 Diante do caráter normativo dos princípios dispostos na
Constituição, que contêm os valores ético-jurídicos fornecidos pela
democracia, o direito civil deixa de ter como fundamento axiológico
os valores individualistas codificados.
A distinção entre direitos reais e direitos obrigacionais também
não poderia passar incólume às profundas alterações ocorridas no seio
do direito civil, sobretudo por envolver seus tradicionais pilares:·a pro-
priedade e o contrato. ·
Com relação à primeira, houve uma inserção de interesses sociais
no âmbito de sua tutela, o que corresponde ao reconhecimento da
função social intrínseca a este instituto. A partir disso, a propriedade
deixa de ser vista como um direito tendencialmente absoluto, para
representar uma "situação jurídica subjetiva complexa, composta de
direitos, ônus, deveres, obrigações. "6
Na esfera contratual, a autonomia da vontade, antes ampla e irres-
trita, passou a ter como freios os princípios da boa-fé e da solidarieda-
de social, que acabaram por alterar completamente a estrutura do
contrato. A este instituto também foi atribuída uma função social que
- servindo-lhe de causa legitimadora - acabou fazendo com que as
obrigações assumidas pelas partes extrapolassem o âmbito de seus in-
teresses, tornando-se relevantes também para terceiros que não parti-
ciparam do vínculo contratual. A partir disso, supera-se o dogma da
relatividade das obrigações.
Desta forma, se direitos reais, como a propriedade, perdem o seu
caráter absoluto, enquanto os direitos obrigacionais deixam de ser
relativos, as duas esferas tornam-se mais próximas, fazendo com
que a idéia de um sistema único de direitos patrimoniais não soe tão
absurda. · ..
Atualmente, os institutos jurídicos não devem ser analisados pelos
operadores do direito como se suas formas fÓssem i~'Utáveis, tendo
5 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana - Uma leitura civil-
constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Reno~~r, 2003, p. 73.
6 SCHREIBER, Anderson. Função social da propriedade na prática jurisprudencial
brasileira. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 6. Rio de Janeiro~ Padma, abr./jun.
200l,p.l81.
71
em vista que estes não servem apenas de molde às relações sociais,
sendo também moldados por elas. Neste sentido, podemos citar os
avanços tecnológicos, que obrigaram o jurista a defrontar-se com
questões sem resposta e com hipóteses que não se encaixam em ne-
nhuma das categorias tradicionais propostas pelo direito. 7 Além disso,
a Segunda Guerra Mundial deixou ao jurista uma triste lição: os insti-
tutos jurídicos que gozavam de pureza científica não foram suficientes
para proteger o homem do preconceito, da desigualdade e da barbá-
rie.8 Hoje, sabemos que de nada adianta a forma perfeita se o conteú-
do do instituto não for direcionado ao fim último do direito, que é a
tutela da pessoa humana, onde quer que ela melhor se desenvolva.
Diante desta nova realidade, os direitos patrimoniais - ligados à
propriedade e ao crédito- merecem tutela na medida em que atuam
como "instrumentos para a realização da dignidade da pessoa huma-
na."9 Com isso, opera-se, no ordenamento, uma opção "entre persona-
lismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da
patrimonialidade como um fim em si mesma)" 10 , o que representa a
chamada "despatrimonialização" do direito civil. Trata-se de atribuir à
72
aspiração econômica uma "justificativa institucional de suporte ao li-
vre desenvolvimento da pessoa" . 11
Na verdade, "quando se afirma que o direito privado contemporâ-
neo centra-se na pessoa humana e nos seus valores existenciais, cons-
tata-se a superação do paradigma individualista." 12 Portanto, a opção
pelo personalismo, imposta pelos valores constitucionais, "coloca o
ser humano no centro do sistema jurídico, retirando o patrimônio des-
sa posição de bem a ser primordialmente tutelado, ao contrário do que
faz o individualismo proprietário." 13 Assim, se a tutela da patrimonia-
lidade- único ponto de contato entre as relações reais e obrigacionais
-encontra seu fundamento na promoção da dignidade da pessoa hu-
mana, institutos antes tão díspares, como a propriedade e o contrato,
acabam por aproximar-se em virtude do fim último a que se dirigem,
embora isso não chegue a torná-los idênticos. Por estas razões, cumpre
ao civilista voltar os olhos à tradicional summa divisio dos direitos
patrimoniais, avaliando até que ponto esta subsiste para, ao final, reva-
lidá-la ou não.
li Id., o.l.u.c.
12 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003, p. I 18.
13 FACHIN, Luis Edson. Estatuto, cit., p. 49.
14 GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 2.
73
tian- persanal actian, própria do sistema da Camman Law. No direi-
to romano, a distinção entre os dois tipos de ação se dava basicamente
em razão da oponibilidade perante terceiros e o caráter erga amnes da
primeira, que inexistia nas ações pessoais. Na Camman Law, a oposi-
ção passa pelo caráter reivindicatório ou não da ação, estando ligada ao
direito de seqüela: a real actian visa à recuperação do bem, enquanto
a persanal actian tem por escopo apenas o ressarcimento do dano. Daí
a distinção entre real praperty e persanal praperty: a primeira é tutela-
da por uma real actian, enquanto a segunda é tutelada por meio de
uma persanal actian. Portanto, na cultura Anglo-Saxônica, real pra-
perty e persanal praperty são aspectos diferentes da temática proprie-
tária, o que faz com que relações como a locação, que na tradição
romano-germânica seria classificada como obrigacional, sejam parte
relevante da law af praperty no sistema da Camman Law. 15
Tradicionalmente reconhecida como uma relação pessoal, a obri-
gação (ou relação creditícia) irradia, na lição de Pontes de Miranda,
"pretensões pessoais, isto é, pretensões a que alguém possa exigir de
outrem, debitar, que dê, faça, ou não faça, em virtude de relação jurí-
dica só entre eles." A pretensão supõe o crédito, enquanto a obrigação
supõe a dívida. 16 Portanto, as relações obrigacionais seriam, necessa-
riamente intersubjetivas, já que traduzem o vínculo existente entre
credor e devedorY Daí serem classificadas como relações pessoais,
oponíveis a uma única pessoa (debitar). Trata-se de res inter alias
cicta, não vinculando senão as partes, jamais atingindo terceiros, seja
para beneficiar ou prejudicar. Um outro traço marcante da obrigação
é o seu caráter temporal, já que a inércia do titular poderá acarretar a
prescrição da pretensão existente. 18
No âmbito dos vínculos obrigacionais há amplo espaço de at~ação
para a autonomia da vontade 19 , já que o direito não fixa moldes rígi-
74
dós, admitindo, por exémplo, figuras como os "contratos inomina-
20
dos", sendo as normas que os regulam apenas supletivas.
Diversamente, os direitos reais estão sujeitos ao princípio do nu-
21
merus clausus, já que sua única fonte criadora é a lei (CC, art.
1.225). São hipóteses em que se consubstancia um vínculo entre uma
pessoa e um bem, sendo este "poder jurídico" de cada um sobre as
coisas delimitado pelas regras que regem os direitos reais, podendo
variar da mais ampla soberania (propriedade) a uma mais restrita (di-
reitos reais limitados). É a partir desta exposição que Manuel Henri-
que Mesquita define tais relações como "pertinenCiais, ordenadoras
ou atributivas", enquanto a relação jurídica, no campo obrigacional,
seria ·sempre de "cooperação".ZZ Esta concepção do direito real como
um vínculo entre uma pessoa e uma coisa não está livre de críticas, já
23
que não poderia haver relação jurídica senão entre pessoas. Segundo
Arnaldo Wald, no direito real haveria um vínculo mais estreito entre
o sujeito ativo e o objeto sobre o qual recai o direito, já que este pode-
rá ser reivindicado de quem injustamente o possua, enquanto o ina-
dimplemento do dever jurídico oriundo de vínculo obrigacional só dá
margem à responsabilidade do sujeito passivo. 24
Caio Mário da Silva Pereira ressalta ainda que o ius in re é exclu-
sivo, não se compadecendo com a pluralidade de titulares com iguais
direitos. Ademais, exige a existência atual da coisa, que será sempre
determinada, enquanto no direito de crédito o objeto pode ser bem
futuro e apenas determinávei.2 5 ·
Um outro traço típico dos direitos reais decorre do dever geral de
abstenção: para que terceiros respeitem o bem alheio, a publiCidade
75
das relações reais existentes faz-se indispensável. Daí a necessidade de
se registrar tais direitos. No entanto, alguns vínculos entre uma pessoa
e um bem não são levados a registro, como normalmente ocorre com
a propriedade móvel, o que não impede a sua classificação como um
direito real. Na verdade, a imposição do registro consubstancia apenas
uma forma de se garantir maior segurança jurídica na circulação de
bens, e não um traço distintivo entre obrigações e direitos reais. Vale
ressaltar que algumas operações de caráter obrigacional, sobretudo no
âmbito do direito societário, também devem ser levadas a registro,
para garantir maior estabilidade a tais práticas comerciais. 26
Enquanto as obrigações são consideradas relativas 27 , por serem
oponíveis apenas contra um ou mais sujeitos determinados, os direitos
reais são oponíveis erga omnes, já que seu sujeito passivo é indetermi-
nado, obrigando toda a coletividade a respeitar o vínculo existente
entre o titular e a coisa. Segundo alguns autores, ao impor este dever
geral de abstenção, a ordem jurídica não visa relacionar o titular do
direito real com as demais pessoas, mas sim criar uma situação de total
separação, excluindo a coletividade de qualquer ingerência sobre a
coisa. 28 Violada a "obrigação passiva universal", surge o dever de repa-
rar. Daí dizer-se que os direitos reais são absolutos, permitindo ao
titular do ius in re perseguir o objeto que lhe cabe onde e com quem
76
quer que este se encontre (direito de seqüela) 29 , além de fazer preva-
lecer seu "direito sobre qualquer outro constituído posteriormente e
que com ele seja incompatível. "30
Contudo, como bem demonstra Orlando Gomes, a oponibilidade
a terceiros não é peculiaridade dos direitos reais, mas característica de
todos os direitos absolutos. 31 Neste sentido, Pietro Perlingieri tam-
bém formula crítica à distinção entre relações reais (absolutas) e obri-
gacionais (relativas):
29 Há direitos que são considerados absolutos e que não figuram no rol de direitos
reais previsto pela lei. É o caso da posse, que também garante a seu titular o direito de
buscar o bem nas mãos de quem injustamente o possua. Não há dúvidas quando ao seu
caráter absoluto, já que é oponível erga omnes. Contudo, apenas uma minoria conside-
ra a posse um direito real. Neste sentido, v. PEREIRA, Caio Mário da Silva, Institui-
ções, cit., p. 22.
30 Idem, p. 66.
31 GOMES, Orlando, Direitos Reais, cit., p. 3.
32 PERLING lER!, Pietro. Perfis, cit., p. 140.
33 Id., o.l.u.c.
34 ALTERJNI, Atílio Aníbal. Derecho de Obligaciones, cit., p. 27.
77
No entanto, o que o presente artigo visa demonstrar é que muitos
dos argumentos que sempre sustentaram a tradicional dicotomia não
mais subsistem, razão pela qual as questões que a envolvem merecem
estudo mais aprofundado.
78
Uma outra crítica que deve ser formulada à tradicional distinção é
a insuficiência da contraposição entre dever genérico e dever específi-
co no que tange a algumas das relações reais. Tome-se, como exemplo,
os direitos reais de gozo: no caso do usufruto, além do dever geral de
abstenção - que impõe à coletividade o dever de respeitar aquela
relação jurídica - há deveres contrapostos entre usufrutuário e nu-
proprietário que se destinam apenas às partes envolvidas. Trata-se,
portanto, de uma figura jurídica que- ao impor deveres à coletivida-
de -apresenta uma estrutura externa, típica dos direitos reais, além
de uma estrutura interna - relativa aos deveres a cargo do nu-pro-
prietário e do usufrutuário, que em nada diferem das prestações devi-
das no âmbito das relações obrigacionais. 39
Ademais, em algumas espécies contratuais, a distinção entre "par-
tes" e "terceiros" nem sempre é clara. Conforme demonstram Pietro
Perlingieri e Pasquale Femia, um sujeito pode ser destinatário dos
efeitos de um contrato sem ser parte dele. É o caso, por exemplo, da
cessão de crédito, em que o dévedor é destinatário dos efeitos sem ter
sido parte do contrato de cessão. 40 O mesmo irá ocorrer nas estipula-
ções em favor de terceiro.
Na verdade, o princípio do efeito relativo das obrigações era visto
como uma conseqüência da regra da autonomia da vontade que reihou
durante muito tempo sobre a teoria geral dos contratos. A vontade
aparecia como o único critério capaz de conferir a alguém a qualida-
de de parte em uma relação de crédito. Portahto, a manifestação
volitiva que criava obrigações entre as partes não poderia produzir
efeitos perante terceiros, vinculando apenas aqueles que concluíram o
contrato. 41
Hoje, na esfera das relações de consumo, o Código de Defesa do
Consumidor contribui para que a linha que sepata partes e terceiros
fique cada vez mais tênue. Em seu art. 1 7, este diploma legal determi-
na que, em caso de acidente de consumo, equiparam-se aos consumi"
dores todas as vítimas do evento. Portanto, mesmo sem fazer parte da
contratação do serviço ou aquisição do produto, a yítimà deverá ser
indenizada pelo fornecedor. Assim, já distantes do paradigma indivi-
dualista, a formação e execução dos contratos são dirigidas por princí-
79
pios que, como veremos oportunamente, acabam por restringir a au-
tonomia da vontade.
No que concerne ao dever geral de abstenção, este não estaria
restrito ao âmbito das relações reais. Como bem observa Muriel Fa-
bre-Magnan, todo direito subjetivo impõe a chamada "obrigação pas-
siva universal". Com efeito, a oponibilidade não seria característica
exclusiva dos direitos reais 42 , não sendo suficiente para caracterizá-
los. Em contrapartida, o princípio da relatividade não deve conduzir
à idéia de que não existe um dever coletivo de respeitar o vínculo
obrigacional alheio, mas apenas que a prestação devida será exigida
de pessoas determinadas- daí o efeito "relativo" de sua força obriga-
tória. 43
A principal conseqüência do reconhecimento de que as relações
obrigacionais também impõem um dever geral de abstenção é a neces-
sidade de se reformular a idéia de que apenas a violação de situações
obrigacionais ensejaria apenas responsabilidade civil contratual. Em-
bora a obrigação seja um vínculo que interessa ao devedor e ao credor,
esta também tem relevância externa, já que o crédito não deixa de ser
um interesse juridicamente relevante, devendo ser respeitado por to-
dos como tal.
Ademais, cabe evidenciar que a gradativa valorização dos valores
mobiliários 44 contribuiu para que o direito de crédito se aproximasse
ainda mais do direito de propriedade. É o que demonstra Anne-Fran-
çoise Zattara ao comentar a jurisprudência francesa, que parece admi-
42 Na verdade, a oponibilidade é uma característica dos direitos que podem ser leva-
dos a registro, e não dos direitos reais. É o que se extrai do seguinte julgado: "A
averbação no registro de imóveis, de que depende a oponibilidade do contrato de
locação ao novo adquirente, tem como requisitos legais a 'apresentação de qualquer
das vias do contrato, assinado pelas partes e subscrito por duas testemunhas, bastando
a coincidência entre o nome de um dos proprietários e o locador' (art. 169, inciso III,
da Lei n° 6.015/73, com redação dada pelo art. 81 da Lei n° 8.245/91)." STJ, 6 3
Turma, REsp 4 75033/SP, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, julg. 16.12.2003, publ. DJ
09.02.2004, p. 215.
43 FABRE-MAGNAN, Muriel. Proprieté, cit., p. 587.
44 Conforme demonstra Pietro Perlingieri, a rápida expansão do mercado de capitais
contribuiu para que diversos aspectos que se destinavam à tutela exclusiva dos direitos
reais se estendessem aos direitos de crédito. (Manuale di Diritto Civile. Napoli: ESI,
2002, p. 203). Ao versar sobre o tema, Rodrigo Baptista Martins leciona que "Nas
sociedades pré-industriais os valores mobiliários não eram os mais importantes: em
todo o direito antigo, ao lado da res soli imperava a concepção de uma propriedade
mobiliária de valor insignificante, vilis mobilium possessio" (A propriedade e a ética do
capitalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 3).
80
tir implicitamente o conceito de "propriedade de créditos". Ao exa-
minar uma lei de 6 de agosto de 1986 que impunha limites à disposi-
ção de ações de alguns tipos societários, a Corte Constitucional deste
país entendeu que tais disposições violariam um elemento fundamen-
tal do direito de propriedade, que é a livre disposição do bem por seu
proprietário. 45
Com isso, o que se pode deduzir é que todos os direitos patrimo-
niais são - assim como os bens corpóreos - objeto de direito de
propriedade. 46 Cumpre ressaltar que, conforme observa a autora, a
vinculação do objeto do direito ao seu titular não serve de traço distin-
tivo das relações reais, tendo em vista que é característica comum de
todos os direitos subjetivos. Assim, não seria incorreto afirmar que o
direito de crédito é um bem que se vincula ao credor e adere ao seu
patrimônio como um típico direito de propriedadeY
Por fim, devemos reconhecer que a principal causa a justificar a
revisão da tradicional dicotomia é a funcionalização das relações patri-
moniais à plena realização daquelas de caráter existencial. Com isso, a
atividade econômica curva-se ao atendimento das necessidades da
pessoa, o que acabará ofuscando, diante de certas hipóteses, os limites
que separam as relações reais das obrigacionais. É o que demonstra
Ricardo Aronne ao versar sobre os direitos reais em garantia:
81
As garantias reais, em que pese seu conteúdo estático, erigem carac-
teres dinâmicos, rompendo com a perspectiva tradicional, que opera
o corte drástico entre o direito das coisas e o das obrigações, impondo
uma investigação acurada na busca das novas respostas exigidas pelo
Direito Civil Contemporâreo. "4R
48 ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados- das
raízes aos fundamentos contemporâneos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 406.
49 BODIN DE MORAES, Maria Celina. O conceito de dignidade humana: substrato
axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, lngo Wolfgang. Constituição, Direitos
Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 14 7.
50 Para uma análise mais detalhada das mudanças sociais mencionadas, v. TEPEDI-
NO, Gustavo. Prcmisssas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil.
82
A liberdade contratual não poderia passar incólume a tais mudan-
ças. A partir da necessária intervenção estatal, resta evidente que as
obrigações assumidas pelas partes -ao contrário do que acreditava a
doutrina clássica- podem ter efeitos externos, extrapolando a máxi-
ma res inter alias acta e despertando o interesse legítimo de terceiros.
É o que ocorre, exemplificativame nte, nas hipóteses de concorrência
desleal, em que terceiros podem ser prejudicados em virtude de pacto
do qual não foram parte. A complexidade gradativa da vida em socie-
dade demonstra, nos dias de hoje, que a tese seguida por autores como
Robert Joseph Pothier- para quem as convenções produziriam efei-
tos somente em relação ao seu objeto e às partes contratantes 51 - não
mais prevalece.
Em obra pioneira, .Alvino Lima reconhece as conseqüências desta
gradativa "inserção" do contrato no seio da sociedade:
"O contrato não pode ser considerado apenas nos seus efeitos jurídi-
cos entre as partes; sendo uma realidade concreta, um fato social, um
valor patrimonial, a sua existência não se limita às partes contratan-
tes, mas age, como tal, erga omnes". 52
In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
1999, p. 1-22.
51 POTHIER, Robert Joseph. Tratado das Obrigações (1761). Trad. Adrian Sotero
De Witt Batista e Douglas Dias Ferreira. Campinas: Servanda, 2001, p. 94.
52 LIMA, Alvino. A fraude no Direito Civil. ?ão Paulo: Saraiva, 1965, p. 58.
53 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desre-
gulamentação do mercado - Direito de Exclusividade nas relações contratuais de
fornecimento - Função social do c'ontrato e responsabilidade aquiliana do terceiro
que contribui para inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, n° 750, mai.
2000,p.113/ll5. .
83
liberdade contratual, outrora ampla e irrestrita. São eles: a boa-fé ob-
jetiva, o princípio do equilíbrio econômico financeiro do contrato e a
função social do contrato.
A boa-fé objetiva tem função tríplice, atuando como cânone her-
menêutica e integrativo, como fonte de deveres jurídicos e como limi-
te ao exercício de direitos subjetivos. 54 Esta se estende da fase pré-
contratual à pós-contratual, criando deveres entre as partes, como o
dever informar, o de guardar sigilo 55 e o de colaborar com o outro
contratante 56 . A boa-fé objetiva introduz, ainda, "um elemento de
ponderação axiológica nas regras obrigacionais que instrumentalizam
as relações de mercado, locus no qual se desenvolvem, privilegiada-
mente, as relações obrigacionais. "57
O Código Civil consagra este princípio dispondo, em seu art. 422,
que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do
contrato como na sua execução, os princípios da probidade e boa-fé".
Com isso, o legislador de 2002 apenas retrata o que a Constituição já
impunha aos agentes da atividade econômica privada, que têm no con-
trato uma de suas ferramentas: a missão de promover, no exercício de
sua atividade, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Assim, a boa-fé objetiva permite que o dever de solidariedade social
imposto constitucionalmente possa contaminar o cumprimento das
obrigações assumidas pelos contratantes. Ao dispor sobre o tema an-
tes do advento do Código de 2002, Teresa Negreiros foi mais além, ao
considerar o princípio como verdadeiro instrumento de constitucio-
nalização do direito obrigacional:
84
Por sua vez, o princípio do equilíbrio econômico do contrato im-
pede que as prestações contratuais "expressem um desequilíbrio real
e injustificável entre as vantagens obtidas por um e por outro contra-
tantes, ou, entre outras palavras, a vedação a que se desconsidere o
sinalagma contratual em seu perfil funcional" 59 , sendo expressão do
princípio da igualdade substancial, consagrado no art. 3°, III, da Cons-
tituição. Seu corolário imediato é a proteção do contratante mais dé-
bil.60 O Código de 2002, ao contrário de seu antecessor, admite ex-
pressamente a resolução por onerosidade excessiva, por violar frontal-
mente este princípio. Neste sentido, podemos citar o art. 478 61 , que
admite a resolução por onerosidade excessiva e o art. 480, que visa
equiparar as prestações justamente para evitar o seu desequilíbrio. 62
Finalmente, o princípio da função social do contrato impede que
se constituam vínculos capazes de prejudicar a coletividade ou tercei-
ros que, embora não tenham figurado como parte da relação contra-
tual, foram prejudicados pela mesma. 63 Tendo como fundamento
constitucional o princípio da solidariedade, a função social do contra-
to impõe que "os contratantes e os terceiros colaborem entre si, res-
peitando as situações jurídicas anteriormente constituídas, ainda que
as mesmas não sejam providas de eficácia real, mas desde que a sua
prévia existência seja conhecida pelas pessoas implicadas". 64 Portanto,
o princípio da função social do contrato acaba por romper com a tra-
dicional relatividade das obrigações, impondo que terceiros respeitem
o vínculo alheio, em prol da solidariedade social e impedindo a cons-
tituição de pactos que possam prejudicar pessoas determinadas ou a
ordem social como um todo. Há um nítido deslocamento das relações
obrigacionais do "âmbito exclusivo das disposições de vontade indivi-
85
dual para o seio da ordem jurídica. "65 Com isso, evidencia-se a exis-
tência de um dever geral de abstenção também no âmbito das obriga-
ções.66
Ademais, a irradiação dos contratos pelo princípio da solidarieda-
de social faz com que estes deixem de ser apenas forma de circulação
de riqueza, tornando-se meio de transformação social 67 e assumindo o
compromisso constitucional de promoção da pessoa humana. O ato
de contratar não cria direito, e sim o recria, o concretiza. Conseqüen-
temente, "os contratantes devem aceitar seus pressupostos, e não agir
isoladamente "68 alheios ao que se passa à sua volta.
I
65 Idem, p. 224.
66 Além da existência de um dever genérico de abstenção, que impõe a terceiros o
respeito ao pacto alheio, há também a possibilidade de se impor deveres positivos a
um terceiro que não figurou como parte do vínculo. Seria o caso de um acordo de
acionistas que vincula a sociedade, embora esta não tenha figurado como parte do
vínculo.
67 Neste sentido, v. LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 542: o autor define o contrato como "ope-
ração econômica de produção, distribuição e acesso aos bens".
68 Idem, p. 546.
69 Neste sentido, v. G UELFUCCI-THIBIERGE, Catherine. De lelargisscment de la
notion de partie au contrat ... à I elargissement de la portée du príncipe de leffet relatif.
Revue Trimestrielle de Droit Civil2. Paris: Sirey, abr./jun 1994; AUBERT, Jean-Luc.
A propos d'une distinction renouveléc des parties et des tiers, Revue Trimestrielle de
Droit Civil 2. Paris: Sirey, abr./jun. I 993 e G HESTIN, Jacques. Nouvelles proposi-
tions pour um renouvellement de la distinction des parties et des tiers". Revue Trimes-
trielle de Droit Civil4. Paris: Sirey, out./dez. 1994.
70 Segundo Jacque's GUESTIN, somente no momento da execução do contrato é
que realmente importa avaliar quem está efetivamente vinculado a ele. Les effets du
contrat, cit., p. 777.
86
do contrato, mesmo aqueles que não participam diretamente do vín-
culo não poderão lhe ser indiferentes 71 , o que impede, portanto, que
sejam definidos como penitus extranei. 72
Conforme leciona Eros Grau, com base no art. l 0 , IV, da Consti-
tuição, "a livre iniciativa não é tomada, enquanto fundamento daRe-
pública Federativa do Brasil, como expressão individualista, mas sim
no quanto expressa de socialmente valioso. "73 Portanto, nas hipóteses
em que o exercício da livre iniciativa resultar em vínculos incompatí-
veis com as normas constitucionais que apontam "para um indiscutível
compromisso com a causa social" 74 , estes não merecerão tutela de
nosso ordenamento jurídico.
Em outras palavras, pode-se afirmar que o novo direito dos contra-
tos deve inspirar-se na funcionalização do mercado em prol da pessoa,
transformando sua disciplina quando a contratação envolver, v. g., a
aquisição de bens essenciais à manutenção da vida digna, bem como a
sua disponibilidade no mercado. 75
Diante de tantas alterações no âmbito das obrigações assumidas
contratualmente, a distinção entre responsabilidade civil contratual e
extracontratual também não poderia restar imutável. A flexibilização
do princípio da relatividade permite, em certas hipóteses, que a res-
ponsabilidade contratual alcance terceiros lesados pelo descumpri-
mento ou constituição de uma obrigação da qual não figuravam como
partes. 76 Em contrapartida, é inegável a responsabilidade aquiliana do
terceiro que, sabendo ou devendo saber da existência do vínculo obri-
gacional, colabora para o seu inadimplemento. Neste sentido, vale
transcrever a observação de Pietro Perlingieri:
87
nal: se o comportamento do sujeito é lesivo de uma situação juridica-
mente relevante (absoluta ou relativa) de maneira a provocar um
dano injusto, não há motivo de excluir a responsabilidade de quem
provocou a lesão.
A distinção entre situações absolutas e relativas perdeu portanto a
sua justificação histórica na medida em que, com fundamento no de-
ver de solidariedade e da conseqüente responsabilidade, todos devem
respeitar qualquer situação e o titular da mesma tem uma pretensão
à sua conservação em relação a todos". 77
88
Cumpre ressaltar que o terceiro que, ao contratar, contribui para
o inadimplemento de obrigação alheia, só será responsável se sabe ou
deveria saber da existência do vínculo anterior. Alvino Lima, embora
reconheça que há divergência doutrinária quanto ao critério de fixa-
ção da cumplicidade do terceiro, havendo quem sustente que basta o
simples conhecimento do contrato, enquanto outros exigem a exis-
tência de conluio fraudulento entre o terceiro e uma das partes con-
tratantes, admite que o simples conhecimento do contrato anterior já
revela a má-fé do terceiro. O autor, ao comentar a hipótese de aliena-
ção subseqüente de imóvel objeto de promessa de compra e venda não
registrada, observa que a "segurança que a lei confere aos contratan-
tes pressupõe a boa-fé, a honestidade com que deve agir todo con-
tratante. As medidas legais de segurança dos atos jurídicos não fo-
ram estatuídas para os que agem fraudulentamente." 79 Assim, na hi-
pótese citada como exemplo, o terceiro só não será responsabilizado
se for adquirente de boa-fé (aqui em sua versão subjetiva), ignorando
por completo e não tendo meios de saber da existência de alienação
anterior.
A jurisprudência vem caminhando a passos lentos em direção à
superação do princípio da relatividade das obrigações. 80 Habitualmen-
te, os acórdãos que admitem que os efeitos do vínculo alcancem ter-
ceiros o fazem em razão da natureza do pacto, e não em virtude da
superação do princípio, como podemos extrair das seguintes ementas:
caso no parecer Princípios do Novo Direito Contratual, cit, p. 119. Hipótese seme-
lhante já havia sido comentada em 1979 por Ferrer Correia e Lobo Xavier (FERRER
CORREIA, A. e LOBO XAVIER, Vasco. Efeito externo das obrigações; abuso do
direito; concorrência desleal (a propósito de uma hipótese típica). Revista de Direito
e Economia n. I, jan./jun. 1979.
79 LIMA, Alvino. A fraude, cit., p. 60.
80 O STJ, em acórdão recente, decidiu que "o contrato, por consubstanciar lei entre
as partes, não produz efeitos na esfera juridicamente protegida de terceiros que não
3
tomaram parte na relação jurídica de direito material" (STJ, 6 Turma, RESP
252867 /SP, Rei. Min. Vicente Leal, publicado no DJ em 05.02.2001 ).
89
II - Nas estipulações em favor de terceiro, este pode ser pessoa
futura e indeterminada, bastando que seja determinável, como no
caso do seguro, em que se identifica o beneficiário no momento do
sinistro.
111 - O terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do
contrato, tem legitimidade para ajuizar ação direta contra a segurado-
ra, para cobrar a indenização contratual prevista em seu favor." 81
"Civil e Processual Civil. Contrato de Seguro. Legitimidade Ativa ad
causam. Estipulação em favor de terceiro [ ... ] .
I - A legitimidade para exercer o direito de ação decorre da lei e
depende, em regra, da titularidade de um direito, do interesse juridi-
camente protegido, conforme a relação jurídica de direito material
existente entre as partes celebrantes.
II -As relações jurídicas oriundas de um contrato de seguro não se
encerram entre as partes contratantes, podendo atingir terceiro be-
neficiário, como ocorre com os seguros de vida ou de acidentes pes-
soais, exemplos clássicos apontados pela doutrina.
III - Nas estipulações em favor de terceiro, este pode ser pessoa
futura e indeterminada, bastando que seja determinável, como no
caso do seguro, em que se identifica o beneficiário no momento do
sinistro.
IV - O terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do
contrato, tem legitimidade para ajuizar ação direta contra a segurado-
ra, para cobrar a indenização contratual prevista em seu favor.
V- Tendo falecido no acidente o terceiro beneficiário, legitimados
ativos ad causam, no caso, os seus pais, em face da ordem da vocação
hereditária. "82
81 STJ, 4" Turma, RESP 401718/PR, Rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, publi-
cado no DJ em 24.03.2003.
82 STJ, 4" Turma, RESP 257880/RJ, Rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, publi-
cado no DJ em 07.10.2002.
83 Apud NEGREIROS, Teresa. Teoria, cit., p. 224/225.
H4 Neste sentido, v. TJRS, 14" CC, Ap. Cível 70004342309, do Rei. Des. Aymoré
Roque Pottes de Mello, julgado em 19.12.2002; TJRS, 14" CC, Ap. Cível
90
tanto, que apesar de algumas decisões reconhecerem a necessidade de
se superar o princípio da relatividade- baseado na concepção volun-
tarista do contrato -, bem como da criação inevitável de novas cate-
gorias, mais adequadas aos problemas atuais dos meios de produção,
ainda há um longo caminho a ser trilhado por nossos tribunais.
70004403358, Rei. Des. Aymoré Roque Pottes de Mello, julgado em 19.1 2.2002;
TJRS, 14" CC, Ap. Cível 70005251830, Rei Des. Aymoré Roque Pottes de Mello,
julgado em 19.12.2002.
85 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários, cit., p. 23.
86 MESQUITA, Manuel Henrique. Obrigações, cit. p. 71.
87 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto lurldico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 298.
91
que se estipula por bens essenciais", 88 o que acaba provocando uma
exclusão intolerável para os valores constitucionais. Daí Stefano Ro-
dotà afirmar que, atualmente, a tutela do direito real de propriedade
se dá em função do direito individual de não ser excluído por outros
do gozo de uma coisa. O enfoque não é mais a exclusão, mas sim o
acesso aos bens. 89 Note-se a inversão evidente na estrutura do direito
de propriedade: se antes este permitia ao proprietário excluir os de-
mais do uso de um bem que lhe pertence, hoje, ele se limita a garantir
a seu titular que outros não poderão excluí-lo do uso de um bem que
lhe foi atribuído pelo ordenamento jurídico.
Vale ressaltar que, segundo Perlingieri, a relação de propriedade
seria a "ligação entre a situação do proprietário e aqueles que entram
em conflito com esta e constituem centros de interesses antagôni-
cos".90 A partir disso, o autor conclui que o aspecto funcional é preva-
lente na propriedade vista como relação, seja entre vizinhos, seja entre
o proprietário e o Estado. Trata-se de uma relação não de subordina-
ção, mas de cooperação, assim como ocorre com os direitos obrigacio-
nais, de forma que o "regulamento de propriedade às vezes dá preva-
lência ao interesse do proprietário, outras vezes àqueles de outros su-
jeitos".91
As relações entre o titular do direito real e o bem também foram
obrigadas a sair de seu isolamento, exatamente como nas relações cre-
ditícias. Diante da enorme relevância que os bens de produção têm na
concretização de muitos dos valores constitucionalmente tutelados, a
propriedade, independentemente da forma através da qual se mani-
festa, passa a cumprir uma função social, que serve de fundamento à
tutela jurídica que lhe é destinada. 92 Em um sistema fundado na soli-
dariedade social e econômica, bem como no pleno desenvolvimento
da pessoa humana, "o conteúdo da função assume um papel de tipo
promocional, no sentido de que a disciplina das formas de proprieda-
92
de e suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para
promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento". 93
Trata-se de um critério de ação para o legislador, bem como um
critério de individuação da norma a ser aplicada pelo intérprete cha-
mado a avaliar as atividades do titular do direito real.
Neste sentido, a propriedade não constituiria mais uma cttribuição
de poder tendencialmente plena. A determinação de seu conteúdo
"dependerá de centros de interesses extraproprietários" 94 , que serão
regulados no âmbito da relação jurídica real. Isso não só corrobora a
idéia de Perlingieri, segundo o qual a propriedade consubstanciaria
uma relação de "cooperação", como evidencia a existência de "situa-
ções não-proprietárias" 95 , que o titular do bem deverá respeitar. Por-
tanto, embora mantido o dever geral de abstenção, que impõe o res-
peito coletivo ao vínculo de natureza real, a titularidade do bem im-
põe ao proprietário um dever genérico de respeito às "situações não-
proprietárias". Assim, a oponibilidade passa a constituir uma "via de
duas mãos", viabilizando a compatibilização da "situação jurídica de
propriedade com situações não-proprietárias". 96
Ao tratar do tema, Eroulths Cortiano Junior sustenta que na situa-
ção jurídica proprietária funcionalizada, o não-proprietário é mais im-
portante que o proprietário, sobretudo no que tange ao estatuto de
acesso aos bens. 97 Com isso, resta evidente que o direito real de pro-
priedade - que antes conferia ao seu titular o direito de excluir ter-
ceiros do acesso ao bem - apresenta hoje um duplo estatuto: um de
garantia e outro de acesso. Diante de sua funcionalização, o exercício
do direito de propriedade deve conformar-se à incontornável escassez
de recursos, afastando-se da relação imediata do proprietário com o
bem e servindo de instrumento capaz de "definir a representação mais
íntima do estatuto jurídico da pessoa". 98
Em linhas gerais, o que se pode afirmar é que o "poder de excluir"
terceiros- que já foi um dos principais traços distintivos deste direi-
93 Idem, p. 226.
94 TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In:
TEPEDINO, Gustavo (org.}. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999,
p. 280.
95 Idem, p. 286.
96 Id. o.l.u.c.
97 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico de propriedade e suas ruptu·
ras- uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
pp. 152-153.
98 Idem, p. 162.
93
to real - não mais se coaduna com o direito de propriedade previsto
na Constituição Federal, que deve ser exercido na medida em que se
mostra capaz de atender aos interesses da coletividade.
Cumpre evidenciar o que seriam as tais "situações jurídicas não-
proprietárias", que fazem com que o terceiro também acabe por in-
fluir no exercício do direito de propriedade. Estas representam situa-
ções dignas de tutela, tais como os interesses sociais, difusos, interes-
ses de crédito atingidos pelo exercício do domínio ou até interesses de
titulares de direitos reais menores. Por estarem voltados à realização
dos valores constitucionais, tais como a dignidade da pessoa humana e
a solidariedade, o direito subjetivo de propriedade deverá curvar-se a
tais interesses, já que a razão da tutela que o ordenamento lhe destina
é o cumprimento de sua função social. Vale dizer que "não somente os
bens de produção, mas também os de consumo possuem uma função
social, sendo por esta conformados em seu conteúdo - modos de
aquisição e de utilização" 99 . Portanto, se uma certa propriedade não a
cumpre, os direitos que dela decorreriam não deverão ser tutelados
pelo ordenamento, assim como ocorre com os contratos constituídos
contrariamente à sua função social.
Contudo, embora a função social da propriedade corresponda a
uma "formulação contemporânea de legitimação do título que encerra
a dominialidade" 100 , o mau proprietário não poderá ser plenamente
destituído de sua propriedade por meios diversos da ação de desapro-
priação, já que negar "qualquer ato de defesa do mau proprietário à
agressão de terceiros significaria legitimar o reino da força, uma vez
que, sendo os bens escassos em relação às necessidades do homem,
seria inevitável a luta por sua apropriação." 101
Portanto, mesmo que o mau proprietário ainda disponha dos re-
médios processuais para a defesa de seus direitos, caberá ao judiciário
ponderar, no caso concreto, valores e interesses de forma a conformar
o direito de propriedade com a sua função social. Além das gradativas
sanções estipuladas constitucionalmente, que vão desde a edificação
compulsória, passando pela tributação progressiva, até a desapropria-
94
ção para fins de irtteresse sociatl 02 , nossbs tribunais vêm adaptando a
situação proptietária a uma nova realidade. Isso significa dizer que
idéias como a imprescritibilidade da ação reivinçlicatóri;l, em razão de
ser a propriedade um direito perpétuo que não se perde pelo não uso,
não se coaduna com a visão dinâmica e social deste instituto. 103 Exem~
plo de ponderação dos interesses em jogo, em que se nega o direito de
reivindicação, embora ressalvado o direito à indenização é o acórdão
do Tribunal de Justiça de São Paulo citado por Apderson Schreiber:
95
6. Conclusão
96
débito. Destarte, a "riqueza mobiliária" ganha extrema importância,
decorrente de operações comerciais de quantias cada vez mais signifi-
cativas, em detrimento da propriedade imobiliária. 107
Esta, por sua vez, na condição de direito real por excelência, assu-
me uma função social que lhe é atribuída constitucionalmente. A par-
tir disso, inverte-se o enfoque do direito de propriedade: se antes
permitia ao proprietário excluir os demais do uso de um bem, hoje,
este se limita a garantir a seu titular que outros não poderão excluí-lo
do uso daquilo que lhe pertence. Não há mais que se falar em "direito
absoluto" ou atribuição de poder tendencialmente plena. A determi-
nação do conteúdo de tais direitos irá depender do respeito aos "cen-
tros de interesses não-proprietários", que transformam as situações
reais em relações de cooperação, exatamente como ocorre no âmbito
das obrigações. Portanto, a oponibilidade passa a configurar uma via
de duas mãos: enquanto a coletividade deve respeitar o direito subje-
tivo do titular sobre a coisa, este deverá respeitar as situações não-pro-
prietárias, que seriam interesses dignos de tutela, tais como os direitos
difusos, cujo respeito vêm a conformar o instituto com a função social
que lhe é atribuída.
Com isso, os direitos reais perdem também seu caráter perpétuo,
que não se coaduna com a visão dinâmica e social que possuem atual-
mente. Conseqüentemente, o titular do direito poderá perdê-lo dian-
te de sua inércia, assim como ocorre com o credor de uma obrigação.
Além disso, diante das vultosas operações de crédito oriundas das
relações societárias, o registro deixa de ser peculiaridade dos direitos
reais, sendo imposto também a certas obrigações assumidas entre de-
terminadas empresas. Este passa a ser visto apenas como uma técnica
legislativa capaz de garantir maior segurança jurídica à circulação de
bens em geral, sejam estes mobiliários (como, por exemplo, as ações
de uma Sociedade Anônima) ou imobiliários.
Em contrapartida, resta evidente que não mais podemos falar em
relatividade das obrigações: seus efeitos externos são inegáveis, po-
dendo, sem sombra de dúvidas, prejudicar terceiros (como nas hipó-
teses de concorrência desleal) ou beneficiá-los em detrimento de uma
das partes (como o caso de terceiro que contribui para o inadimple-
mento de obrigação de outrem). A relatividade das obrigações não
poderia restar como justificativa para que pessoas alheias ao vínculo
obrigacional venham a violá-lo. Este merece ser respeitado por toda a
97
coletividade, como qualquer direito subjetivo, seja de natureza real ou
obrigacional. Ademais, o direito das obrigações nãô pode mais ser vis-
to como o "reino da autonomia da vontade", já que esta não é mais
ampla e irrestrita. Se as obrigações não chegam a ter um princípio do
numerus clausus e a tipicidade como seu corolá'rio, há uma série de
regras de conduta que são hoje impostas pelos novos princípios que as
orientam: boa-fé objetiva, equilíbrio econômico-finance iro e função
social do contrato. Com relação este último, trata-se de imperioso
óbice à constituição de vínculos que lhe sejam contrários. A tais víncu-
los, não será atribuída tutela jurídica, exatamente como ocorre com a
propriedade que não cumpre a sua função social.
A partir da análise crítica de tais critérios distintivos, podemos
concluir que talvez não seja absurdo sustentar a formulação de um
direito comum às situações patrimoniais, que seria a síntese da disci-
plina de todas as relações de caráter patrimonial. 108 Se direitos reais e
obrigacionais não chegam a ser completamente idênticos, não mais
subsistem os critérios distintivos que justificavam um tratamento di-
ferenciado.
98
As obrigações propter rem
Nesse sentido, as palavras de Serpa Lopes: "As obrigações propter rem apresentam
esse efeito especial. Como a própria denominação o indica, são obrigações cuja força
vinculante se manifesta, tendo em vista a situação do devedor em face de uma deter-
minada coisa, isto é, quem a ela se vincula o faz em razão da situação jurídica de um
titular do domínio ou de uma relação possessória sobre uma determinada coisa, que é
a base desse débito". Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, vol.II, Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, 2a ed., p. 50.
99
veces periódica, de entregar o de hacer; o se ha de observar un deber
negativo dependiente de un derecho real sobre una cosa (posesión,
propiedad, compropiedad, enfiteuse, usufructo, servidumbre, etc.)
( ... ) La obligación grave sobre la persona, no en cuanto tal sino en
cuanto titular de aquel determinado derecho". 2
2 Manual de Derecho Civil y Comercial, voi. I, tomo IV, Derecho das Obligaciones,
Parte General, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, p. 43.
3 Direito das Obrigações, Almcdina: Coimbra, 1998, 7 3 ed., p. I 05.
4 Orlando Gomes, Direitos Reais, Rio de Janeiro: forense, 2002, p. 188.
5 Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, p. 52. Segundo José Puig
Brutau, poderíamos imaginar a existência de servidões in faciendo:
"Cuando los deberes que nos incumben por razón de una cosa que nos pertenece
consisten en tener que soportar los actos ajenos o en omitir lo que de otro modo
podríamos hacer, nadie duda que estamos ante un derecho real; pero cuando el deber
por razón de una cosa consiste en tener que hacer, surge la duda ante el fenónemo de
un derecho real que impone ai sujcto pasivo una conducta impuesta a una persona sólo
por el hecho de ser duefia de la cosa gravada, y para mientras lo sea, se trata de un
derecho real. Como alguna vez se ha dicho, la cosa gravada y su proprietario tienen una
consideración unitaria frente ai derecho real sobre cosa ajena existe porque el ordena-
miento jurídico estima justo este resultado de que la limitación de las facultades do-
minicales afecte a todo propietario de la cosa, pero sólo mientras lo sea. El derecho
real limitado ha de ser concebido como una disminución dei complejo de facultades
que integran cl domínio. Lo que sufre restricción es la utilización de la cosa y ha de
afectar a su propietario o a quien la utilice. Éste no puede suprimir la limitación
conservando la cosa; sólo puede liberarse dei gravamen si la abandona. Lo que se acaba
de decir no ofrece dudas cuando los derechos reales imponem ai propietario dei domi-
nio gravado cl deber de soportar (pati) o de no hacer (non facere). Las obligaciones de
soportar y de no hacer condicionao la conducta dei propietario. Sólo cl duefio de la
cosa gravada y no precisamente ésta puede cometer una transgresión contra el derecho
100
Além disso, as regras provenientes das relações de vizinhança ge-
ram limitações recíprocas em todas as propriedades. Em se tratando
de servidões, necessariamente, existe um prédio serviente e outro do-
minante. Nas relações de vizinhança, não existe essa divisão tão clara:
"se fossem servidões, todos os prédios seriam servientes e, ao mesmo
tempo, dominantes. Há, com efeito, em razão da vizinhança, recipro-
cidade, o que se não verifica em relação às servidões" 6 .
Arnaldo Rizzardo lembra, ainda, que enquanto as servidões decor-
rem da autonomia da vontade, os direitos de vizinhança possuem fon-
te imediata na lei. Além disso, se, existe uma intenção do legislador
em evitar um prejuízo nos conflitos entre propriedades vizinhas, nas
servidões, as partes desejam aumentar a utilidade econômica de de-
terminado bem 7 .
del titular activo del gravamen. El fondo no soporta na servidumbre, sino el propieta-
rio. El inmueble no puede adoptar la actitud de soportar, en el sentido jurídico de la
expresión, sino su duefio. El titular del derecho real limitado ejercita directamente su
derecho sobre la cosa, pero la posibilidade de semejante ejercicio depende de la inac-
tividad, cuando menos, del propietario. En este sentido para la efectividad del derecho
real limitado, basta la idea genérica de que el propietario de la cosa gravada está afec-
tado por el deber jurídico de tolerar o no impedir, a pesar de lo cual su mediación
resulta indispensáble. El dominio o derecho de propiedad queda alterado y ello mal
podría suceder sin la existencia del titular de este dominio limitado. Si se habla- recur-
riendo a una imagen- de que la cosa sufre o soporta un gravamen, podrá también
hablarse de que ha de cumplir con una obligación de hacer. En esta medida sería
posible imaginar la existencia del derecho real in faciendo." José Puig Brutau, Funda·
mentos de Derecho Civil, vol.I, tomo 11, El derecho real, la posesión, la propiedad: sus
limites, aquisicíon y pérdida, ejercicio de acciones, Barcelona: Bosch, Casa Editorial,
1994, 43 ed., pp. 27-28.
6 Orlando Gomes, Direitos Reais, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 188. Ricardo
Lira lembra ainda outras espécies de obrigações reais, tais como edificação, parcela-
mento ou edificação do solo: "É o caso do parcelamento, edificação ou utilização
compulsórios agora alvitrados. É uma obrigação de fazer (parcelar, edificar ou utilizar)
que, nos termos da lei municipal baseada em plano de uso do solo, acede ao lote ou à
gleba, criando para o seu titular o dever jurídico da prestação de um daqueles fatos.
Repita-se que a situação não decorre da discrição, muito menos do arbítrio, do admi-
nistrador municipal, mas da vontade comunitária expressa através de uma lei munici-
pal, baseada em plano de uso do solo. É limitação administrativa, a exemplo de tantas
outras já existentes. Nessa nova configuração, a propriedade, como decorrência da sua
função social, deixa de ter o não-uso no leque das suas faculdades. Não é do interesse
social, naquelas condições, a propriedade ociosa, que se mantida como tal, deixa de
exercer sua função social". Elementos de Direito Urbanístico, Rio de Janeiro: Renovar,
1997, p.189.
7 Arnaldo Rizzardo, Das Servidões, Rio de Janeiro, Aide, 1986, 2• tir. revista, p. 95.
101
A dupla vinculação das obrigações propter rem já suscitou ainda
maiores questionamentos por parte dos juristas. Por essa razão, San
Tiago Dantas afirma que a questão fundamental das obrigações reais
está relacionada, na verdade, com as diferenças entre os direitos reais
e os direitos obrigacionais 8 •
102
pela sujeição universal, mas também os chamados direitos da persona-
lidade. O sujeito passivo, portanto, somente será reconhecido no mo-
mento dà violação do direito-subjetivo. Podem ser citados, por exem-
plo, os direitos à honra, ao nome, à integridade física como direitos
ligados imediatamente à personalidade do indivíduo 11 •
Importa ressaltar, entretanto, que a clássica divisão dos direitos
subjetivos tem sido revista pela doutrina 12 • Pietro Perlingieri assevera
que mesmo nas relações reais, tais como nos direitos de fruição, exis-
tem relações específicas que não se estendem à coletividade. Esses
interesses juridicamente não poderiam ser opostos à sociedade, mas
aos titulares de determinadas situações subjetivas (como no caso do
proprietário da nua-propriedade ou do prédio serviente) 13 . Orlando
Gomes lembra ainda, que, o respeito aos direitos subjetivos alheios
não é característica exclusiva dos direitos reais. Mesmo nos direitos de
créditos, existe uma espécie de sujeição universal, o que explica, por
exemplo, a responsabilização do terceiro, na hipótese de cumplicida-
de na violação contratuaJI 4 .
11 SanTiago Dantas explica, todavia, que não se trata de estender, no caso de direitos
absolutos, a relação jurídica a todas as pessoas da sociedade e, sim, de que todos estão
sujeitos ao cumprimento do dever jurídico. San Tiago Dantas, Programa de Direito
Civil, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 125.
12 Para estudo específico do assunto ver Roberta Mauro, "Relações Obrigacionais e
Relações Reais: propostas para uma nova delimitação de suas fronteiras", presente
nesta obra.
13 Pietro Perlingieri, Perfis de Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 203.
Segundo o autor, as relações patrimoniais deveriam ser submetidas à disciplina co-
mum com princípios básicos. Perlingieri, Perfis, p. 218.
14 Orlando Gomes, Direitos Reais, cit., p. S. No mesmo sentido ver Antonio Jun-
queira, "Princípios do novo Direito Contratual e desregulamentação do mercado-di-
reito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento-função social do con-
trato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento",
in Revista dos Tribunais, vol. 750/abril 1998, p. 120. Tradicionalmente, algumas dife-
renças são apontadas entre os direitos reais e os obrigacionais: Em primeiro lugar, o
direito de crédito deve obrigatoriamente ter natureza transitória; no direito real, pelo
contrário, nada impede à sua perpetuidade. Além disso, o objeto do direito real deve
ser uma coisa certa e determinada (princípio da especialidade), enquanto nos direitos
obrigacionais, o objeto é sempre uma prestação (obrigação de dar, fazer ou não fazer),
a qual pode não ser determinada no início, mas deverá ser determinável. O sujeito
passivo nos direitos obrigacionais é determinado ab initio. O devedor nos direitos
reais, somente é definido no momento da violação, pois até esse momento, conforme
já foi ressaltado, o ius in rem dirige-se à coletividade (Orlando Gomes, Direitos Reais,
cit., p. 6). No direito real, faz-se necessária a existência atual da coisa, ao contrário dos
direitos de crédito, onde é possível, a prestação futura. Finalmente, os direitos reais
103
3. A natureza jurídica das obrigações propter rem. Características
essenciais
são exclusivos, não admitindo a "pluralidade de sujeitos com iguais direitos" (Caio
Mário da Silva Pereira, Instituições, vol. IV, cit., p. 4).
15 Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, cit., p. 57. No mesmo sen-
tido, Carlos Lasarte Alvarez: "Planteamiento similar, pero desde la perspectiva contra-
ria, ha de realizarse en relación con las llamadas obligaciones propter rem, también
denominadas ob rem o, sencillamente, ambulatorias. En este caso, el titular dei dere-
cho real y para evitar su pérdida. Mas, nuevamcnte, estamos frente a obligaciones
accesorias dei derecho real propiamente dicho" (Principias de derecho civil. Madri:
Trivium, t. 4, 2000, p. 34.), ver ainda Paulo Carneiro Maia, Estudos de Direito Civil,
Rio de Janeiro: Alba, 1962, p. 93. Amoldo Wald prefere identificar, por outro lado, as
obrigações reais com os chamados direitos reais inominados: "Tecnicamente, discutiu-
se, pois, o caráter obrigacional ou real dos direitos de vizinhança, reconhecendo-se
finalmente neles obrigações propter rem (vinculadas à coisa) ou direitos reais inomina-
dos, expressões que, como já vimos, são sinônimas e expressam a situação jurídica
existente no caso" (Amoldo Wald, Direito das Coisas, São Paulo: Saraiva, 11 a ed.,
2002, p.ISI).
16 O conflito de vizinhança e sua composição, Rio de Janeiro: Borsoi, 1939, p. 244. Na
verdade, o professor San Tiago Dantas entende ser possível estender à denominação
"obrigações propter rem", aos chamados direitos reais inominados. (op. cit., p., 249).
Orozimbo Nonato afirma que as obrigações propter rem não podem gerar um direito
real: "Como se observa em doutrina invocada em Serpa Lopes (liv. cit., n. 25), reve-
lam-se o direito real de domínio, o usufruto e o ônus real em permanente eficácia
contra quem quer que os ofenda c o mesmo não passa com respeito a uma prestação
infaciendo que interessa às partes na obligatio"(Curso de Obrigações: generalidades e
espécies, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 46).
104
têm por objeto um facere. Finalmente, as obrigações propter rem te-
17
riam uma acessoriedade especial, ao contrário das servidões .
Apontam-se, contudo, alguns atributos específicos das obrigações
propter rem relacionados ao fato do sujeito passivo ser titular da rela-
ção jurídica real. O caráter real das obrigações propter rem pode ser
observado, por exemplo, na sua ambulatoriedade.
A respeito das principais características das obrigações propter
rem, os autores nacionais, em sua maioria, lembram que:
"a) ela prende o titular de um direito real, seja ele quem for, em
virtude de sua condição de proprietário ou possuidor; b) o devedor se
livra da obrigação pelo abandono do direito real; c) a obrigação se
18
transmite aos sucessores a título singular do devedor" .
!OS
A arnbulatoriedade das obrigações propter rem foi salientada,
igualmente, por Trabucchi:
"Não será preciso lembrar que existem obrigações que não resultam
de uma avença entre pessoas, podendo o vínculo decorrer do fato de
ser alguém titular de um direito real. O titular desse direito real pode
mudar, mas a obrigação acompanha a coisa. A titularidade do direito
real define o sujeito passivo da obrigação. Por força dessa razão, esse
tipo de obrigação se denomina arnbulatória, propter rem, ou também
obrigação real". 22
postos pelo tipo, todavia, o princípio da tipicidade é aplicado. Por essa razão, "as
obrigações reais são taxativas na justa medida da tipicidade do direito a que respeitam"
(Lições de Direitos Reais, Lisboa: Quid Júris, 1997, 2• ed., p. 169).
21 lstituzioni di diritto civile. Padova: Cedam, 1989, p. 522.
22 Ricardo Pereira Lira, Elementos de direito urbanístico, Rio de Janeiro: Renovar,
1997, p. 189.
23 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 28.
106
rência do direito real, a propriedade da unidade, e as consequências
para o novo condômino. Vale dizer, a dúvida surge a respeito de even-
tuais débitos do alienante em relação ao condomínio e a legitimidade
passiva do adquirente para pagamento dessas dívidas.
A doutrina, capitaneada pelo professor Caio Mário, tem admitido
expressamente a cobrança de dívidas pretéritas do alienante pelo con-
domínio, sendo o adquirente o legitimado passivo. A base legal para
esse entendimento encontrava-se no artigo 4 da Lei 4.591/1964, ao
afirmar o dispositivo a responsabilidade do adquirente pelos débitos
da unidade condominial. Nesse caso, o adquirente teria apenas direito
à ação regressiva de cobrança em face do alienante. Verifica-se, ainda,
a identificação, por parte dos autores, da categoria de obrigações prop-
ter rem e dos chamados ônus reais. Na verdade, alguns dos principais
atributos dos ônus reais, a seqüela 24 e a ambulatoriedade, conforme
ressaltado, são estendidos às obrigações propter rem:
107
Pontes de Miranda também não possuía entendimento diverso:
108
A Lei n° 7 .181, de 27 de março de 1984, modificou a redação do
artigo 4 da Lei n° 4.591!64, determinando que a alienação das unida-
des estaria vinculada à quitação das obrigações condominiais do alie-
nante. Mesmo assim, essa alteração legal não foi suficiente para gerar
uma mudança no posicionamento doutrinário e jurisprudencial, con-
forme se verifica de excerto do voto do Ministro Sálvio de Figueiredo
Teixeira:
109
Maria Helena Diniz, contudo, citando Messineo e Torrente, pro-
cura distinguir obrigações propter rem dos chamados ônus reais: en-
quanto na primeira categoria o devedor encontra-se vinculado, res-
pondendo com a totalidade do seu patrimônio, em se tratando de
ônus reais, somente a coisa será utilizada para pagamento da dívida 30 .
Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho lembra também
que a noção de ônus reais, no direito brasileiro, possui diversas acep-
ções, significando tanto direito real sobre a coisa alheia, a teor da re-
dação do artigo 518 do Código Civil de 1916 ou simplesmente direito
real de garantia. Em se tratando de ônus reais, portanto, quando há
transmissão do direito real, o vendedor desobriga-se; nas obrigações
reais, por outro lado, o vendedor continua vinculado e responsável
pela dívida 31 .
Por fim, conclui o autor que as despesas para conservação da coisa
comum no condomínio horizontal são obrigações propter rem. Por essa
razão, "o devedor responde somente pelas dívidas presentes e não
pretéritas à relação de direito real que mantém com a coisa, sendo o
débito garantido por todo o seu patrimônio e não pela coisa." 32 .
No âmbito do direito espanhol, Luis Diez-Picazo afirma que a
transferência da obrigação ao adquirente do direito real, sem uma cor-
respondente assunção específica da dívida tem um significado excep-
cional e somente é admitida naquelas hipóteses em que a lei a reco-
nhece de maneira especiaJ3 3 .
O autor português Luís A. Carvalho Fernandes aponta algumas
questões fundamentais em matéria de obrigações propter rem. Trata,
por exemplo, da transmissão do direito real, do qual a obrigação é
vinculada. Em outras palavras, uma vez transferido o direito real, per-
gunta se a obrigação real será também transmitida. Nesse sentido,
afirma o autor português, seguindo os ensinamentos de Henrique
Mesquita, que duas devem ser as soluções de acordo com a natureza
30 Curso de Direito Civil Brasileiro, São Paulo: Saraiva, vol. li, 6" ed., p. 16.
31 A Responsabilidade pelo Pagamento de Quotas Condominiais no Regime de Pro-
priedade Horizontal, São Paulo: Advocacia Dinâmica- Seleções Jurídicas, novembro
1998, p. 10.
32 A Responsabilidade pelo Pagamento de Quotas Condominiais no Regime de Pro-
priedade Horizontal, São Paulo: Advocacia Dinâmica- Seleções Jurídicas, novembro
1998, p. 11.
33 Luis Diez-Picazo, Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial, vol. III, Las Rela-
ciones jurídico-reales, el registro de la propriedad, la Posesion, Madrid: Editorial Civi-
tas, 1995, p. 89.
110
da obrigação. Em se tratando de obrigação reais de facere, ou seja,
aquelas que imponham a realização de atos materiais sobre a coisa
objeto do direito real, serão transmitidas. Serão, portanto, ambulató-
rias. Serão não ambulatórias todas as demais, especialmente as obriga-
ções de dare, exceto aquelas cujos pressupostos materiais estão carac-
terizados na coisa sobre a qual o direito real incide 34 •
O autor procura ainda fazer uma distinção entre obrigação real e
ônus real. Afirma que os ônus reais, no direito português, constituem
obrigações, geralmente de prestação periódica, impostas ao titular de
um direito real. Não sendo pago o crédito espontaneamente, esse po-
derá ser satisfeito com o valor da coisa, com preferência em relação
aos demais credores. Mesmo existindo transferência do imóvel grava-
do com determinado ônus real, o credor poderá, ainda assim, execu-
tá-lo em relação às obrigações vencidas 35 .
No direito italiano, Giovanni Balbi também afirma não existir
identidade entre obrigações reais, ônus reais e servidões, apesar da
posição majoritária em contrário da doutrina italiana:
5. A posição jurisprudencial
34 Lições de Direitos Reais, Lisboa: Quid Júris, 1997, 2" ed., p. 171.
35 Lições de Direitos Reais, Lisboa: Quid Júris, 1997, 2" ed., pp. 173-174.
36 Giovanni Balbi, Le Obbligazioni propter rem, Torino: Giappicheli Editore, 1950,
p. 117.
111
"Ementa: Agravo Regimental. Recurso Especial não admitido. Cotas
condominiais. I. No tocante à prescrição, a recorrente não indicou
especificamente o dispositivo porventura violado. De todos os mo-
dos, o posicionamento adotado no Acórdão recorrido harmoniza-se
com o desta Corte quanto à incidência do prazo prescricional vinte-
nário na ação de cobrança de cotas condominiais. Precedentes. 2. O
entendimento desta Corte também é tranqüilo no sentido de que os
encargos de condomínio configuram modalidade de ônus real, deven-
do o adquirente do imóvel responder por eventual débito existentes.
Trata-se de obrigação propter rem. Precedentes. 3. Agravo regimen-
tal improvido. "37
112
outras palavras, o sujeito passivo, em regra, não é determinado, como
nas relações obrigacionais, nas quais o devedor é conhecido em razão
do vínculo jurídico. A sujeição universal nos direitos reais significa a
oponibilidade erga omnes: a relação jurídica real produzirá efeitos so-
bre a sociedade, e não apenas sobre aqueles que a constituíram.
Corolário da oponibilidade erga omnes é a publicidade dos direitos
reais. Se todos estão sujeitos aos efeitos da relação real, inde-
pendentemente de terem participado ou não de sua constituição,
pode-se entender o motivo da exigência da publicidade na constitui-
ção e transmissão dos direitos reais 38 .
A publicidade dependerá da natureza do bem jurídico. Em se tra-
tando de bens móveis será concretizada pela tradição, ou seja, pela
transmissão da posse da coisa com a vontade de transferência de do-
mínio (arts. 1.267 a 1.268 do Código Civil)3 9 .
Desse modo, resguardam-se os interesses dos titulares do direito
subjetivo real bem como da sociedade, impedindo-se também que a
oponibilidade seja instrumento para fraudes.
Os bens imóveis, naturalmente, não poderiam estar sujeitos à tra-
dição. O Registro de Imóveis supre a função como instituto com a
finalidade de garantir publicidade e segurança aos negócios jurídicos
de transmissão inter vivos de direitos reais sobre imóveis (arts. 1.245
a 1.247 do Código Civil). O artigo } da Lei de Registros Públicos
0
38 O professor Serpa Lopes explica que: "por sua natureza, o direito real é oponível a
todo mundo e que, portanto, deve aparecer, em face de todo o mundo, como sendo de
quem dele se pretende titular" (Curso de Direito Civil, cit., p. 513).
39 Caio Mário lembra que tradição é "o ato de entrega da coisa ao adquirente, trans-
formando a declaração translatícia de vontade em direito real" (Caio Mário da Silva
Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. IV, Posse. Propriedade. Direitos Reais de
Fruição. Garantia e Aquisição, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 117).
3
40 Orlando Gomes, Direitos Reais, Rio de Janeiro: Forense, 1996, 12 ed., p. 140.
113
6.2. O direito de seqüela e a preferência
Walter Cencviva lembra que "o sistema brasileiro de Registro de Imóveis sofreu a
influências de diversos sistemas alienígenas, não se filiando a nenhum em particular.
Por essa razão é qualificado como "miscigenação legislativa. O registro imobiliário
nacional é composto de retalhos apanhados em diversas origens c sua compreensão
exige que repasse pelos sistemas mais conhecidos" [Walter Ceneviva, Lei dos Regis-
tros Públicos Comentada, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 306).
41 Silvio Rodrigues, Direito Civil: Direito das Coisas, vol. V, São Paulo, Saraiva,
1995, 22" ed., p. 5.
42 Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, p. 30.
43 Orlando Gomes, Direitos Reais, Rio de Janeiro: Forense, 1996, 12 3 ed., p. 6.
114
direitos reais de garantia, visto que, nesses casos, o próprio bem tem
como função servir de segurança para o cumprimento da obrigação
principal. .·
115
Gustavo Tepedino afirma, portanto, que o debate a respeito da
taxatividade das situações subjetivas reais deve ser posto em novos
termos. Além de repetir a regra da taxatividade, mais interessante
será analisar se as categorias que possuem efeitos reais ferem o con-
teúdo mínimo do direito de propriedade, preservando-se tanto a auto-
nomia da vontade quanto o domínio:
I 16
Ao mesmo tempo, vale lembrar, ainda, que em matéria de situa-
ções subjetivas reais ou a elas assemelhadas, como se tratam das
obrigações propter rem, deve ser observado o princípio da taxativida-
de. Conforme ressaltado, o princípio dos numerus clausus não signifi-
cará tipicidade, o que em se tratando de obrigações propter rem, tor-
na-se efetivamente importante e como observa André Gondinho, po-
derá haver ajustamento do conteúdo das obrigações condominiais:
ll7
reais correlacionados, como, por exemplo, aqueles decorrentes do
mau uso da propriedade, nas relações de vizinhança. Assim é que
quaisquer outras formas de restrição, não relacionadas às normas de
boa vizinhança e à paz condominial, configuram ofensa ao exercício
lícito do direito de propriedade. No caso em apreço, as obrigações
citadas serão lícitas à medida que permitam a convivência pacífica
entre os 420 condôminos, mantendo-se, ainda, os fins declarados do
empreendimento". 49
49 André Gondinho, Direitos Reais, cit., p. 131. Flávia Almeida Viveiros de Castro,
ao comentar a finalidade das obrigações reais, afirma que: "Esta talvez seja a função
típica da obrigação propter rem. Ela diminui as prerrogativas naturais do direito real
quando este, exercido à sua máxima potência, possa atingir um direito contrário. Ela
impõe prestações positivas, sempre no mesmo sentido, como quando obriga à constru-
ção de uma cerca. Ela cria entre os titulares de distintos direitos reais a possibilidade
de pacífica convivência entre estes" (Obrigações propter rem e Condomínios Atípicos,
São Paulo: Revista dos Tribunais vol. 799/maio 2002, p. 70).
50 REsp. 199801-RJ, 3 3 Turma, Relator: Min. Eduardo Ribeiro, Relator para acórdão:
Min Waldemar Zveiter, DJ de 02.10.2000, p. 163, JBCC, vol. 185, p. 227, LEXSTJ,
vol. 137, p. 216; RSTJ, vol. 140, p. 344).
118
Em matéria de conservação ambiental, o Superior Tribunal de Jus-
tiça também já decidiu tratar-se obrigação propter rem a preservação
de terreno adquirido:
SI REsp n.343. 741-PR (2001/01 03660-8), 2a Turma, Relator: Min. Franciulli Neto,
Data de julgamento: 04. 06.2002. Transcreve-se ainda recente decisão, com posicio-
namento semelhante, do Superior Tribunal de Justiça, mas que não faz menção ao
caráter propter rem: "Administrativo. Dano ao meio ambiente. Indenização. Legitima-
ção ao novo adquirente. I. A responsabilidade pela preservação e recomposição do
meio ambiente é objetiva, mas se exige nexo de causalidade entre a atividade do
proprietário e o dano causado (Lei n° 6.938/81). 2. Em se tratando de reserva flores-
tal, com limitação imposta por lei, o novo proprietário ao adquirir a área, assume o
ônus de manter a preservação, tornando-se responsável pela reposição, mesmo que
não tenha contribuído para devastá-la. 3. Responsabilidade que independe de culpa ou
nexo causal, porque imposta por lei. 4. Recurso especial provido" (REsp. 282. 781-PR
(2000/0105532-1), 2a Turma, Relatora Min. Eliana Calmon, Data do julgamento:
16.04.2002).
119
legitimidade constitucional sobre tais deveres jurídicos, com a finali-
dade de não ser imposta excessiva restrição ao direito de propriedade.
Finalmente, para a constituição da obrigação propter rem deverá
ser observado, de alguma forma, o princípio da publicidade, sob pena
de serem atingidos os interesses de terceiros, em razão do seu caráter
ambulatório e de seu poder de seqüela.
120
Classificação:
Obrigações de dar, fazer e não fazer
Gustavo Birenbaum
I. Introdução
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil, v. 11- Teoria geral das
obrigações, 20• ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 45.
2 Curso de obrigações, v. I - Generalidades; espécies. Rio de Janeiro: Forense,
1959, p. 208.
3 A bem da verdade, ao falar-se em classificação das obrigações, se está diante de
uma tentativa de classificar o seu objeto, que é justamente a prestação. A rigor, por-
tanto, tem-se uma classificação em torno dos tipos de prestação.
121
nando Noronha, "a prestação debitória pode dizer respeito à entrega
ou devolução de coisas, ou a meras ações ou omissões do devedor. No
primeiro caso, fala-se em obrigações de prestação de coisa, no segun-
do, em obrigações de prestação de fato". 4 Há outras classificações,
baseadas, e.g., nos sujeitos das obrigações, nas relações intrínsecas en-
tre duas ou mais obrigações etc. Tais classificações, todavia, não serão
examinadas neste estudo.
Como dito, as obrigações se dividem, quanto ao seu objeto media-
tamente considerado, em positivas e negativas. As obrigações de fazer
e de dar são consideradas obrigações positivas, porque exigem um
comportamento ativo do devedor, isto é, para o implemento da pres-
tação a que se referem tais obrigações, é necessário que o devedor
abandone o seu natural estado de inércia e efetivamente (positiva-
mente) atue de modo a dar ou a fazer algo em benefício do credor. Já
as obrigações de não-fazer são consideradas negativas, uma vez que,
neste caso, a prestação do devedor resulta de uma abstenção ou do
não-exercício de alguma faculdade que, em tese, ele poderia desem-
penhar, não fosse a existência da obrigação negativa.
Vale também acrescer que as obrigações positivas, por sua própria
natureza, admitem a mora, diversamente das obrigações de caráter
negativo -estas, uma vez descumpridas, não são mais passíveis de
restabelecimento do estado de coisas anterior e, por isso, importam
em imediato inadimplemento. Essa, inclusive, é a orientação contida
no Código Civil italiano 5.
No presente estudo, analisaremos os principais aspectos das
obrigações de dar, de fazer e de não-fazer, seja porque a divisão das
obrigações em positivas e negativas apresenta diminuto interesse prá-
tico, seja porque essa é a classificação tradicionalmente adotada pelo
nosso Código Civil (o código de 2002 manteve, quanto a essa divisão
das obrigações, o mesmo regime do código revogado), e seja ainda
porque, como se verá, é profundamente diverso o regime jurídico des-
sas obrigações.
Tratemos separadamente de cada uma dessas modalidades de
obrigações -ou mais propriamente de prestações.
122
2. A obrigação de dar: generalidades
123
Como acentua Clóvis do Couto e Silva, "a distinção entre a fase do
nascimento e desenvolvimento dos deveres e do adimplemento adqui-
re, entretanto, sua máxima relevância ( ... ) quando o adimplemento
importa em transmissão da propriedade. A fase do adimplemento se
desloca, então, para o plano do direito das coisas". 9
Quando essa distinção entre os planos de direito pessoal e de di-
reito real é absoluta, tem-se o negócio jurídico abstrato, isto é, negócio
em que a causa deixa de ter relevância. Esse é o traço marcante do
sistema germânico de aquisição da propriedade. O nosso sistema, no
entanto, não chegou a esse ponto. Entre nós, embora a fase do adim-
plemento da obrigação de dar esteja realmente situada no plano dos
direitos reais, não se faz completa abstração da causa do negócio trans-
lativo da propriedade. 10 De todo modo, fica registrada, no estudo das
obrigações de dar, a chamada separação dos planos de direito pessoal
(no momento da constituição e desenvolvimento do vínculo obriga-
cional) e de direito real (quando do seu adimplemento via tradição ou
transcrição no Registro Imobiliário).
Frise-se, ainda, que autores tradicionais costumam afirmar que a
obrigação de dar se diferencia da obrigação de fazer porque a inexecu-
ção desta resultaria apenas na possibilidade de reparação de danos, ao
passo que o descumprimento da obrigação de dar tornaria possível ao
credor obter o bem objeto da prestação manu militare, mediante
apreensão da coisa. Como se verá mais adiante, porém, modernamen-
te, a tendência é a de se possibilitar a execução específica de ambas as
modalidades de obrigações, ressalvadas certas hipóteses.
124
a prestação chamada tradicionalmente de certum corpus, ou prestação
de corpo certo.
De acordo com o artigo 233 do Código Civil, a obrigação de dar
coisa certa abrange a obrigação de transferir os respectivos acessórios,
salvo estipulação em contrário. Soa um tanto despicienda a regra do
artigo 233, já que, de acordo com o princípio geral da acessão, salvo
disposição especial em contrário, a coisa acessória sempre segue a sor-
te da coisa principal. 12 Tal princípio inclusive se encontrava expresso
no artigo 59 do código revogado, mas foi deixado de lado na codifica-
ção de 2002.
Aspecto de especial relevância no trato das obrigações de dar coisa
certa é o referente à teoria dos riscos. Noutras palavras: quem deve
suportar os riscos pela perda ou deterioração do bem objeto da pres-
tação de dar coisa certa? Ou o que acontece em caso de perda total de
um bem que, por ser único, não pode ser substituído por outro?
O ponto de partida dessa análise é investigar se a coisa se perdeu
ou se deteriorou em razão de conduta culposa do devedor. O artigo
234 do código estabelece que, se a coisa certa se perde antes da tradi-
ção ou pendente condição suspensiva, desde que sem culpa do deve-
dor, tem-se por resolvida a obrigação para ambas as partes, cabendo ao
devedor inclusive devolver o que tiver recebido do credor. 13 Contra-
riamente, se a perda resultar de culpa do devedor, estará igualmente
resolvida a obrigação, sendo que este responderá ao credor pelo equi-
valente à coisa perdida (em dinheiro, já que se trata de coisa certa)
mais perdas e danos. 14
Clóvis do Couto e Silva sustenta, combatendo (a nosso ver com
razão) os ensinamentos de Pontes de Miranda, que, com ou sem culpa
do devedor, a obrigação fica resolvida em caso de perda total do bem,
uma vez que o negócio ficou sem objeto, não havendo possibilidade de
o credor exigir a prestação primária. Nas suas palavras, "não tem o
125
credor o direito de resolver aquilo que já não existe, mas, apenas,
pretensão para receber o que já tiver prestado" 15 • Acrescente-se que,
em caso de perda do objeto por culpa do devedor, o credor terá o
direito de exigir as perdas e danos devidas.
Já em caso de deterioração da coisa, que se diferencia da perda, o
Código oferece outras soluções, justamente porque o negócio, nessa
hipótese, não perdeu o seu objeto por completo- este apenas sofreu
alguma modificação. Também aqui será fundamental perquirir se o
devedor obrou ou não com culpa. Nesse sentido, o artigo 235 estabe-
lece que "deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o
credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o
valor que perdeu".
Nota-se aqui uma sutil, mas importante, diferença com relação à
disciplina da perda da coisa. É que, pelo artigo acima transcrito, passa
ao credor a escolha quanto a resolver o negócio, exercendo o chamado
direito formativo de resolução, ou manter viva a prestação, adaptan-
do-a em termos de valor à realidade derivada da modificação da coisa.
Na perda da coisa, regulada pelo artigo 234, a resolução dá-se ex vi
Legis, diante da superveniente perda do objeto da obrigação, sem a
necessidade de exercício pelo credor de qualquer direito formativo.
Já na hipótese de culpa do devedor pela deterioração da coisa, é
facultado ao credor, na forma do artigo 236, "exigir o equivalente, ou
aceitar a coisa no estado em que se acha, com direito a reclamar, em
um ou em outro caso, indenização das perdas e danos".
A obrigação de dar coisa certa é marcada pelo princípio da identi-
dade da coisa devida, pelo qual o devedor não se desobriga com a
entrega de coisa diversa da que foi pactuada, ainda que mais valiosa,
porque o credor não é obrigado a recebê-la. 16 De fato, o artigo 313 do
Código de 2002, embora esteja inserido no capítulo sobre pagamento,
estatui que "o credor não é obrigado a receber prestação diversa da
que lhe é devida, ainda que mais valiosa". 17
O risco recai sobre os ombros do devedor até a tradição da coisa
(se móvel) ou a inscrição do título no Registro de Imóveis (se imóvel).
15 Ob. cit., p. 152. Vale o acréscimo de que "o conceito de perda é lato, e tanto
abrange o seu [da coisa) desaparecimento total, quanto ainda o deixar de ter as suas
qualidades essenciais, ou de tornar indisponível, ou situar-se em lugar que se tornou
inatingível, ou ainda de confundir-se com outra". (Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit.,
p. 51).
16 Caio Mário da Silva Pereira, ob. cit., p. 50.
17 Naturalmente, a vontade das partes pode modificar esse quadro, tal como sucede
com a dação em pagamento, regulada no artigo 356.
126
Após eSses eventos, passa ao credor o risco sobre a coisa. Essa, à inter-
pretação que se tem dado ao artigo 237 do Código de 2002, de reda-
ção praticamente idêntica à do artigo 868 do código revogado. 18 Cum-
pre, porém, diferenciar se se trata de contrato bilatenil ou unilateral,
como a doação, por exemplo. É que, nestes atos, porque unilaterais, o
risco deve ser sempre do -credor, que a nada se obriga. Indaga-se o que
acontece se a coisa sé perder estando nas mãos do comprador, porém
sob reserva de domínio, ou em venda a contento. Clovis do Couto e
Silva leciona que, nessas hipóteses, com a só transferência da posse
pela tradição Uá que a propriedade é transferid~ ou ratificada ulterior-
mente), já se transfere ao comprador o risco da co~sil. E isso significa
que, mesmo pe'rdida a coisa, ele não ficará livre da obrigação de págar
o preço ao devedor. 19
Ainda de acordo tom o artigà 237 do Código, se a coisà recebe,
antes da tradição, melhoramentos ou acréscimos atribuídos ao deve-
dor, é facultado a este exigir aumento proporcional do preço. Não
aceita a majoração pelo credor, pode o devedor dar por resolvida a
obrigação.
Embora o Código nada diga a esse respeito, é de se entender que
tais melhorias, para serem indenizadas, deve~ ter-se revelado úteis ou
necessárias, e realizadas de boa-fé, de forma muito assemelhada com
o que se passa no âmbito das benfeitorias 20 • Cumpre ter em mente,~
propósito, a perspicaz advertência de Orosimbo Nonato, segundo a
qual "será necessário ao juiz, sempre, na aplicação do art. 868 [atual
23 7], verificar a ocorrência de boa ou má-fé da parte do devedor e
cercear quaisquer atos dêste suscitado~ solertemente para forçar a so-
lução do débito". 21 De igual modo, mas por outro prisma, terr-se tam-
bém a lição de Clovis do Couto e Silva, segundo a qual "se o aumento
ou melhoramento ocorreu sem despesa ou trabalho, o credor receberá
o acréscimo sem indenização". 22 As advertências de tão renomados
autores indicam que a regra do artigo 23 7 d~ve ser examinada com o
127
devido temperamento, sempre tomando em consideração a cláusula
geral de boa-fé e também as circunstâncias do caso.
Já pelo parágrafo único do mesmo artigo 237, tem-se que os frutos
percebidos pertencem ao devedor, ao passo que os pendentes caberão
ao credor. Tal norma é plenamente coerente com a natureza dos fru-
tos. De fato, se constituem os frutos "um acréscimo natural e espon-
tâneo, e nada mais são do que acessões internas, já que produzidos
pela coisa" 23 , nada mais natural do que atribuí-los àqueles que estejam
na posse da coisa no momento da efetiva disponibilidade desses acrés-
cimos naturais.
Quando se trata de obrigação de restituir, em que a prestação
consiste na devolução de determinado objeto à posse do titular do
domínio respectivo, a chamada teoria dos riscos assume outras fei-
ções. Pelo artigo 238, "se a obrigação for de restituir coisa certa, e
esta, sem culpa do devedor, se perder antes da tradição, sofrerá o
credor a perda, e a obrigação se resolverá, ressalvados os seus direitos
até o dia da perda". A diferença de tratamento conferida ao credor na
obrigação de dar coisa certa e na de restituir coisa certa se explica pelo
mesmo princípio: res perit domino. Nos dizeres de Washington de
Barros Monteiro, "na obrigação de dar coisa certa, antes da tradição, o
objeto pertence ainda ao devedor; se ele perece, sofre o prejuízo o
respectivo dono. Na obrigação de restituir, a coisa pertence ao credor;
se esta se perde, antes da tradição, sem culpa do devedor, cabe tam-
bém ao credor, como dono, suportar o conseqüente prejuízo. Res perit
domino é sempre a regra, quer para uma, quer para outra modalidade
de obrigação". 24 As disposições que se seguem em relação à teoria dos
riscos na obrigação de restituir coisa certa seguem essa orientação.
Indaga-se, finalmente, o que pode ser postulado pelo credor em
caso de recusa do devedor em dar a coisa certa. Esclarece Sílvio de
Salvo Venosa que, "na obrigação de restituir, o problema não se põe,
porque a coisa pertence ao próprio credor" e por isso possui meios
processuais hábeis para reavê-la (tais como a reintegração de posse, o
despejo, ou mesmo a busca e apreensão). 25 Já o descumprimento da
23 GustavoTepedino, Heloisa Helena Barboza, Maria Cclina et alii. Código Civil in-
terpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.
501.
24 Curso de direito civil, 4° volume - Direito das obrigações, I" parte. 27" ed. São
Paulo: Saraiva, 1994, pág. 65.
25 Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo:
Atlas, 2001, pág. 83.
128
obrigação de dar coisa certa propriamente dita traz consigo questiona-
mentos mais delicados. Como visto, até o momento da tradição da
coisa ou da transcrição do título no cartório imobiliário, o bem conti-
nua a pertencer ao devedor. Sendo ela ainda passível de apropriação
(i.e., se ela não tiver se perdido, por exemplo), deve-se possibilitar ao
credor a execução específica, também chamada execução in natura.
Somente quando a entrega for impossível, ou se resultar em constran-
gimento físico à pessoa do devedor (o que dificilmente ocorrerá nesse
tipo de obrigàção), recorre-se à via (quase sempre insuficiente, demo-
rada e custosa) das perdas e danos. Caso contrário, a execução é espe-
cífica, permitindo inclusive a expedição de mandados de imissão na
posse da coisa ou de busca e apreensão, na forma dos artigos 621 e
seguintes do Código de Processo Civil 26 .
129
Embora não se possa conhecer de antemão os aspectos individuais
da coisa a ser prestada, tem-se por suficiente a indicação do gênero e
da quantidade, ficando a individualização da coisa para um momento
posterior ao da constituição do vínculo obrigacional, que em regra é o
momento em que a prestação tiver de ser cumprida 29 , tendo-se aqui
um ponto crucial dessa modalidade de obrigação: o momento da indi-
cação da coisa antes referida apenas pelo seu gênero e sua quantidade;
o momento em que a prestação deixa de ter por objeto uma coisa
incerta e passa a se identificar com uma coisa certa. A esse momento
se dá o nome de concentração do débito e a partir desse marco a obri-
gação passa a ser regida pelas normas das obrigações de dar coisa certa
(Código Civil, artigo 245).
Pelo artigo 244, tem-se, como regra geral, que a escolha da coisa
certa pertence ao devedor, exceto se o contrário estiver disposto no
título da obrigação. Entende-se que a razão de ser de a escolha compe-
tir ao devedor reside no fato de que o credor poderia ter se expressado
de modo claro, mas não o fez; daí ter que se submeter à escolha do
devedor. 30 Não é raro, entretanto, a escolha caber a terceiros, que
podem atuar como "árbitros", ou mesmo ficar a cargo de fatores ex-
ternos, sem a interferência da vontade das partes, como por exemplo
a ordem de nascimento de uma cria de animais (prometo entregar o
segundo filhote do rebanho).
Ainda de acordo com a segunda parte desse mesmo dispositivo
legal, quando a escolha couber ao devedor, ele não poderá optar por
entregar a coisa pior, assim como não estará obrigado a prestar a me-
lhor. Por isso, a princípio, se o devedor entrega uma coisa compreen-
dida nas especificações de gênero e quantidade expressas no título, e
desde que não preste a pior do gênero, entende-se que ele solveu a
obrigação, liberando-se do vínculo. O legislador aqui parte da premis-
sa de que as partes provavelmente teriam acordado aquilo que é corri-
queiro (nem o melhor e nem o pior). Tivessem elas em mira algo
diverso desse meio-termo, presume-se que teriam assim se expressa-
do. E justamente por isso discordamos de Silvio Rodrigues 31 , quando
este sustenta que, se a escolha couber ao credor, este terá o "direito
de exigir a nata do gênero". Para que isso seja possível, deverá o credor
130
especificar essa condicionante no título, ao invés de preferir a indeter-
minação da coisa.
De imediato se pode constatar que, quando da incidência dessa
segunda parte do artigo 244, necessariamente se estará diante de uma
forma de concretização da cláusula geral de boa-fé (objetiva). Comen-
tando regra idêntica presente na codificação anterior, Carvalho Santos
anota que a lei "não permite ampla liberdade, com sacrifício da lealda-
de que deve presidir a todas as convenções". 32 E a tal lealdade que
deve presidir a todas as convenções é nada menos que a boa-fé. O
mesmo autor, porém, adverte, com muita propriedade, que, no título
da obrigação, podem as partes prever que a concentração recaia entre
um elemento de um grupo dos melhores (entrego-lhe uma entre as
cinco obras premiadas). 33 Também nada impede que o contrato pre-
veja a obrigação de se entregar o melhor entre um determinado gênero
(por exemplo, o filhote mais sadio de uma cria).
Foi dito linhas acima que o ato de concentração se dá, em regra, no
momento da efetiva entrega da coisa, isto é, da execução da obrigação.
É facultado às partes, contudo, estabelecer a especificação da coisa
(concentração) para momento diverso do da entrega. Pode-se consi-
derar realizada a escolha quando o devedor pratica atos tendentes à
entrega da coisa, como, por exemplo, notificar o credor acerca da
eleição feita.
Essa escolha, para gerar o efeito aqui estudado, não pode ser um
mero ato subjetivo do devedor, como, e.g., o de separar quinhentas
sacas de café do seu armazém. Ela deve ser clara no sentido de deixar
à disposição do credor os bens objeto da obrigação. Justamente por
isso que o artigo 245 fala em ciência do credor. Carvalho Santos, nesse
sentido, cita pitoresco exemplo de Ihering: "num restaurante, um fre-
guês pede uma garrafa de vinho; o criado vai buscá-la, mas tropeça, cai
e quebra-se a garrafa. Deverá o freguês, por acaso, pagá-la, porque já
estava separada ou individualizada e, portanto, já era propriedade sua?
Evidentemente, não" .34
131
Indaga-se o que acontece se o credor, a quem caiba a escolha num
dado contrato, não exerce essa faculdade. Nesse caso, o devedor pode
citá-lo numa ação para fazer a escolha em cinco dias (ou no prazo
contratual), sob pena de yoder o devedor fazê-lo mediante consigna-
ção da coisa em juízo. E o que se vê do artigo 894 do Código de
Processo Civil.
Num ponto a obrigação de dar coisa incerta se diferencia sobre-
modo da de dar coisa certa: em matéria de riscos, tem-se que, enquan-
to não é feita a concentração da coisa, o ônus da integridade da coisa
incumbe ao devedor. Com efeito, pela regra do artigo 246 do Código
Civil, imputa-se ao devedor, independentemente de força maior ou
caso fortuito, o risco pela perda ou deterioração da coisa, se isso ocor-
rer antes da especificação da coisa. Daí a velha parêmia: genus nun-
quam perit (o gênero nunca perece). Vale dizer: se o cavalo ltajara
falece antes da tradição, a obrigação se resolve. Mas se a obrigação
tiver por objeto um cavalo qualquer, capaz de completar um grande
prêmio de turfe dentro dos índices das últimas cinco edições do tor-
neio, não pode o devedor deixar de cumpri-la se aquele cavalo que ele
pensou em entregar (mas ainda não havia entregado) tiver falecido.
Deverá obter um outro com as mesmas qualificações. Mas se o mo-
mento da escolha coincide com o da entrega, dificilmente haverá in-
terregno suficiente para perda ou deterioração da coisa. Antes da con-
centração, porém, vige o princípio de que o gênero nunca perece.
Há, contudo, algumas exceções a essa regra. Pense-se na hipótese
em que uma determinada mercadoria, objeto de obrigação genérica,
deixa de ser fabricada num momento entre a celebração do negócio e
a concentração (por exemplo: a obrigação de dar um determinado
disco de vinil que deixa de ser fabricado ou a de entregar uma merca-
doria estrangeira, proveniente de um país com o qual o país destinatá-
rio cortou relações comerciais). O Código argentino previu expressa-
mente esse tipo de situação e estabeleceu que "cuando la obligación
tenga por objeto la entrega de una cosa incierta, determinada entre un
número de cosas ciertas de la mesma especie, queda extinguida si se
perdiesen todas las cosas comprendidas en ellas por un caso fortuito o
de fuerza mayor". 35 De fato, nesse caso, a impossibilidade da presta-
ção se passa de modo quase idêntico à impossibilidade da prestação na
obrigação de dar coisa certa, porquanto não soa justo o devedor ser
obrigado a prestar o impossível. Por isso que, salvo culpa do devedor,
a obrigação nesta hipótese excepcional, fica resolvida sem perdas e
danos.
132
O artigo 246 em questão, quando ainda fazia parte do Projeto de
Código Civil, previa expressamente essa possibilidade, ao estatuir
que, salvo se se tratar de dívida genérica restrita, imputa-se ao deve-
dor o risco pela perda ou deterioração da coisa, se isso ocorrer antes da
especificação. Estranhamente, o artigo foi modificado quando o pro-
jeto se converteu em lei. E modificado para pior.
Cabe esclarecer que a obrigação de dar coisa incerta não se con-
funde com a obrigação alternativa. Nesta, há a opção entre duas ou
mais coisas individuadas, e que não necessariamente pertencem a um
mesmo gênero, uma das quais será objeto de escolha. Já nas obrigações
de dar coisa incerta, a escolha recai sobre uma só coisa, que simples-
mente é indicada de modo genérico no título. Na síntese feliz de Caio
Mário da Silva Pereira, "enquanto a primeira [obrigação de dar coisa
incerta] é obrigação de gênero, aquela [obrigação alternativa] versa
mais de uma coisa individuada, liberando-se o devedor mediante a
prestação de uma delas". 36 Tenha-se em mente, contudo, a advertên-
cia de Washington de Barros Monteiro, de que "a confusão entre am-
bas as modalidades é possível sempre que ao genus corresponda núme-
ro muito limitado de objetos (por exemplo, um quadro de determina-
da galeria, um livro de certa estante). Esclarecer então se se trata de
obrigação genérica ou de obrigação alternativa constituirá questão de
fato, dependente da interpretação do contrato" _37
Registre-se, por fim, que a obrigação pecuniária- entrega ao cre-
dor de certa quantidade em moeda - constitui um gênero à parte de
obrigação de dar, não sendo a priori qualificável nem como obrigação
de dar coisa certa e nem como obrigação de dar coisa incerta. De fato,
o objeto desse tipo de obrigação é o dinheiro - coisa fungível por
excelência. Ocorre que, nos dizeres de Orlando Gomes, caracteriza-
se a prestação pecuniária "pelo valor quantitativo, isto é, medida ob-
tida por meio de cálculo, sendo indiferente a moeda ou o papel em-
pregado ( ... ). Na dívida pecuniária, a prestação não é de coisas, ainda
quando tenha por objeto determinada espécie monetária". 38
Por aí se percebe que à obrigação pecuniária não se pode simples-
mente aplicar regras atinentes à obrigação de dar coisa (certa ou incer-
ta), tampouco as normas que regulam as obrigações de fazer, visto que
tal prestação encerra transferência patrimonial, e não uma mera ativi-
133
dade humana. E essa modalidade obrigacional, de fato, possui tantas
particularidades que o Código houve por bem destinar um conjunto
de regras próprio para esse tipo de obrigação (artigos 315-318), moti-
vo pelo qual remetemos o leitor para o artigo sobre Pagamento.
5. A obrigação de fazer
134
Constatação recorrente no estudo dessa modalidade obrigacional
é a de que a prestação que tenha por objeto um dar representa, tam-
bém, numa relação gênero-espécie, uma obrigação de fazer algo. Afi-
nal, dar pertence ao gênero fazer. Para sanar essa aparente dificulda-
de, pode-se dizer que, quando o dar é conseqüência do fazer, se está
diante de uma obrigação de fazer e vice-versa. Nas palavras de Was-
hington de Barros Monteiro, "se o devedor tem de dar ou de entregar
alguma coisa, não tendo, porém, de fazê-la previamente, a obrigação é
de dar; todavia, se, primeiramente, tem ele de confeccionar a coisa
para depois entregá-la, se tem ele de realizar algum ato, do qual será
mero corolário o de dar, tecnicamente a obrigação é de fazer". 43 Veja-
se, ainda, exemplo pitoresco de Pontes de Miranda: "se B recebe de A
cartazes para pregar nas ruas, não é de dar a obrigação, mas de fazer". 44
Sucede que nem todos os casos são assim fáceis de distinguir.
Numa espécie de zona nebulosa, existem realmente prestações que
reclamam especial atenção, como no exemplo tradicional da emprei-
tada, em que existe o facere no ato de confeccionar e um dare no de
entregar as coisas elaboradas, sendo ambos os momentos integrantes
da prestação. Aqui, o fazer a obra é conseqüência da obrigação de
entregá-la, do mesmo modo que a sua entrega é corolário da obrigação
de realizá-la. Igualmente, no contrato de compra e venda, o alienante
obriga-se a entregar a coisa (obrigação de dar) e a responder pelos
riscos da evicção (obrigação de fazer). Enfim, a dificuldade na diferen-
ciação de uma ou outra modalidade pode se revelar evidente. 45
Entendemos que, nesses casos, deve-se tentar estabelecer qual o
aspecto que prepondera na prestação, o aspecto de dar ou o de fazer,
seja em sentido de uma relação acessório-principal, seja no sentido de
qual o objetivo visado pelas partes. 46 Caso, ainda assim, não se possa
aferir qual o aspecto principal, revela-se então possível cindir as
obrigações, aplicando-se a cada qual o regime que lhe for cabívelY
135
Diversamente do que se passa com as obrigações de dar, que sem-
pre admitem o adimplemento por terceiros interessados na extinção
do vínculo (Código Civil, artigo 304), nas obrigações de fazer, não
raras vezes, apenas um único devedor pode validamente honrar a ob-
rigação (é o exemplo clássico da encomenda de um objeto de arte a
um determinado artista). Diz-se aí que a obrigação é infungível. 48
Contrapõem-se a estas as obrigações fungíveis, que admitem execu-
ção por pessoa diversa da do devedor (tal como se passa, v.g., com a
obrigação de consertar um automóvel).
Realmente, as obrigações de fazer podem por vezes assumir - e
muito freqüentemente o assumem -uma feição personalíssima, isto
é, a prestação respectiva somente pode ser realizada (ou o credor pre-
fere que ela apenas seja realizada e assim se estabelece no título da
obrigação) por uma determinada pessoa. Em regra, essa peculiaridade
consta do título. Mas naturalmente há obrigações intuítu personae que
não precisam estar declaradas como tais no título. Basta verificar as
circunstâncias do caso: se, por exemplo, alguém paga elevado preço a
um renomado profissional para que este desempenhe o mister pelo
qual se tornou afamado, é de se presumir que se quis a atividade pes-
soal e intransferível deste, e somente deste, profissional. 49
Como observa a doutrina, o Código atual modificou de certo
modo o paradigma das obrigações de fazer. Antes, em regra, elas eram
consideradas infungíveis, como se via do artigo 878 da codificação de
136
1916, não reproduzido no sistema vigente ("na obrigação de fazer, o
credor não é obrigado a aceitar de terceiro a prestação, quando for
convencionado que o devedor a faça pessoalmente"). 50 A supressão
dessa norma, em realidade, tem sido atribuída ao reconhecimento de
que é mais eficaz averiguar-se a fungibilidade da prestação diante do
caso concreto, tal como já propugnado por aclamada doutrina. 51
A distinção das obrigações de fazer em fungíveis ou infungíveis
está longe de constituir frívolo academicismo. Tal diferenciação se
revela extremamente relevante e repleta de utilidade prática no mo-
mento em que se dá o inadimplemento culposo por parte do devedor.
De fato, estabelece o artigo 24 7 do Código Civil que "incorre na obri-
gação de pagar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele
só imposta, ou só por ele exeqüível". Esse artigo consagra a velha má-
xima de que nemo ad factum precise cogit potest ad factum (ninguém
pode ser compelido a prestar um fato contra a sua vontade), sacra-
mentada para evitar a violência contra a individualidade das pessoas.
Em que pese o caráter secular desse brocardo, e a sua aplicação a
muitos casos, de que cuidaremos adiante, entendemos que o Código,
ao proclamar a opção das perdas e danos como regra geral, não levou
em consideração o importante progresso que a disciplina do descum-
primento das obrigações de fazer vem experimentando nos últimos
anos, especialmente por intermédio das crescentes reformas do direi-
to processual civil brasileiro. 52
Com efeito, a composição de perdas e danos não é, nunca foi e
dificilmente alguma dia o será, a solução mais satisfatória para o cre-
dor prejudicado pelo inadimplemento culposo do devedor. Por isso
mesmo, só se deve recorrer a ela quando a execução forçada da obri-
gação de fazer resultar numa violência à liberdade do sujeito passivo
da relação obrigacional.
Orosimbo Nonato, já nos idos da década de cinqüenta, alertava
para o fato de que o nemo ad factum precise cogit potest ad factum
137
seria "próprio apenas daquelas [obrigações] cuja execução direta im-
porte constrangimento da liberdade física do devedor". 53
Em obra de cunho predominantemente processual, dedicada ao
tema das tutelas específicas, Luiz Guilherme Marinoni propicia um
belo estudo acerca da insuficiência da via reparatória em muitas mo-
dalidades de obrigações de fazer e de não-fazer, apontando inclusive o
fato de que a preferência pela tutela meramente ressarcitória advém
de uma concepção liberaJ5 4, sendo, portanto, ultrapassada se conside-
rados os pilares constitucionais e mesmo a orientação da nova codifi-
cação de se conceber o contrato. Nas suas palavras, "no mercado,
como é sabido, pouco importam as qualidades do sujeito ou as dos
seus bens, de modo que a tutela ressarcitória, ao expressar apenas o
custo econômico do valor da lesão, mantinha íntegros os mecanismos
do próprio mercado, sem alterar a sua lógica". 55 Ou seja: a preferência
pela tutela ressarcitória parte de um pressuposto absolutamente inve-
rídico, que é a existência de um ordenamento jurídico neutro em re-
lação às variadas situações jurídicas subjetivas. E essa preferência re-
pousa no dogma romanístico de que a tutela da reparação do dano
seria a única tutela existente contra o ilícito; o dano, ao invés de ser
impedido, deveria apenas ser reparado, uma vez configurado. 56
Note-se, inclusive, que a tutela específica é aquela que melhor
atende aos interesses do credor e todos os demais interesses dignos de
tutela, "consagrando em definitivo o princípio da maior coincidência
possível entre a prestação devida e a tutela jurisdicional entregue". 57
Há mais um detalhe: desde o Código de Processo Civil de 1939,
tem-se permitido ao juiz suprir a vontade do devedor que recalcitra
em manifestar a sua vontade quanto à realização de negócio jurídico.
Assim se passou com a evolução da chamada ação de adjudicação com-
pulsória, por meio da qual uma sentença "equivalia" à manifestação
volitiva de realizar uma compra e venda, prometida pelo vendedor
mediante determinadas condições estabelecidas em pré-contrato,
mas não realizada por ele, após o implemento dessas condições. 5 8 Vale
dizer que, já há muito tempo, tem-se constatado ser mais acorde com
53 Ob. cit., p. 21 O.
54 Consagrada no artigo 1.142 do Código Civil francês, segundo o qual qualquer
hipótese de inadimplemento deveria ser resolvida pela via das perdas e danos.
55 Tutela específica -arts. 461, CPC e 84, CDC, 2• ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 200 I, p. 18.
56 Luiz Guilherme Marinoni, ob. cit., p. 20.
57 Gustavo Tepedino et al., ob. cit., p. 513.
58 Clóvis do Couto c Silva, ob. cit., p. 157 e ss.
138
os ditames da justiça a imposição de um certo sacrifício à esfera jurí-
dica do devedor do que simplesmente atribuir-se ao credor a tutela
ressarcitória - a qual, em certos casos, não será mais do que um prê-
mio de consolação.
Percebe-se, por isso tudo, o quão retrógrada se revela a dicção do
artigo 247 do Código, que se distancia da necessidade de efetividade
da relação obrigacional, a qual deve sempre ser voltada para o adim-
plemento.
Portanto, uma vez descumprida a obrigação de fazer, e se o cum-
primento forçado dessa obrigação não resultar em violência à liberda-
de do devedor (por exemplo, não se pode, sem agressão à liberdade
individual, obrigar alguém a se casar apenas porque havia se compro-
metido a tanto), é preferível, em termos de eficácia do processo obri-
gacional, o recurso à tutela específica. E como reforço para o cumpri-
mento da obrigação de fazer, o nosso direito processual importou do
sistema francês a figura da astreinte. A astreinte consiste na imposi-
ção, pelo juiz, de uma multa de natureza cominatória - isto é, ela é
devida independentemente da ocorrência de danos, bastando a verifi-
cação do descumprimento - por meio da qual o devedor fica instado
ao cumprimento da obrigação in natura. 59 Nos termos do parágrafo 5°
do artigo 461 do CPC, "para a efetivação da tutela específica ou a
obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou
a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a impo-
sição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de
pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade
nociva, se necessário com requisição de força policial" (grifou-se).
Note-se que todas estas considerações se aplicam ao caso da pres-
tação do fato ser infungível, tal como definida no artigo 247 do Códi-
go. Para as prestações fungíveis, porém, aplica-se a regra do artigo
249: "se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor
mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste,
sem prejuízo da indenização cabível". Como leciona João Manuel de
Carvalho Santos, essa alternativa oferecida ao credor, de mandar ter-
ceiro realizar a atividade, já existente no sistema revogado, pode ser
139
utilizada mesmo quando a prestação do fato seja infungível, contanto
que o credor abra mão do caráter de infungibilidade da prestação que
lhe aproveita. 60 Vale também destacar que o dispositivo em questão
amplia as faculdades do credor, ao possibilitar que este postule, além
da execução da prestação, o recebimento de perdas e danos que acaso
lhe tenham sido infligidas pelo descumprimento do devedor (desde
que verificadas, obviamente).
Muito se discutiu na doutrina anterior à edição do Código de 2002
se poderia o credor mandar um terceiro executar a prestação à custa
do devedor, independentement e de ordem judicial autorizando-o a
assim proceder. Noutras palavras, seria admissível, aí, uma espécie de
autotutela 61 ? A doutrina mais tradicional, capitaneada por Clóvis Be-
viláqua, entendia que a conduta do credor por autoridade própria
constituiria "fonte de abusos e uma anarquia imprópria". 62 O Código
de 2002, porém, traz uma interessante inovação a esse respeito. No
parágrafo único do referido artigo 249, estatui que "em caso de urgên-
cia, pode o credor, independentement e de autorização judicial, exe-
cutar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido" (grifou-se).
Daí resultam uma conclusão imediata e um questionamento: a conclu-
são é a de que, não havendo urgência, prevalece a orientação tradicio-
nal, que veda a autotutela, cabendo ao credor a possibilidade de plei-
tear ao juiz que o autorize, até liminarmente, se presentes os pressu-
postos, a contratar o terceiro. Já o questionamento é o seguinte: quem
avalia se o caso é realmente de urgência? Ao que tudo indica, essa será
a questão principal, a ser analisada pelo magistrado, na demanda em
que o credor venha a pleitear o ressarcimento a que se refere a parte
final do referido dispositivo legal, ou em demanda em que o devedor
discorde da execução da tarefa por terceiro. 63
140
Resta ainda examinar a teoria dos riscos no âmbito da obrigação de
fazer. De acordo com o artigo 248 do Código Civil, "se a prestação do
fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obri-
gação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos". O dispositi-
vo em causa, de redação praticamente idêntica à do artigo 879 da
codificação revogada, trata cumulativamente das hipóteses de impos-
sibilidade e de descumprimento voluntário, atribuindo a cada um des-
ses eventos conseqüências bastante diversas.
Em se tratando de impossibilidade, é necessário distinguir se esta
se deu desde o início da constituição do vínculo ou de modo superve-
niente. Entende Clovis do Couto e Silva que a norma em apreço se
refere apenas à impossibilidade superveniente. Nas suas palavras, "em
se tratando de mera inaptidão inicial, cuidando-se de obra que possa
ser feita por outrem, como não há equiparação da inaptidão inicial
com a impossibilidade, o devedor assume o risco de prestá-la, portan-
to entregá-la, ainda que realizada por terceiro. Se for posterior, no
entanto, como inaptidão se equipara a impossibilidade, o devedor li-
bera-se, a teor do art. 879, que se dirige à impossibilidade ou à inapti-
dão superveniente". 64 O devedor também fica liberado, acrescente-
se, se a impossibilidade for apenas relativa a ele, isto é, ainda que
terceiro possa realizar a mesma atividade à qual se obrigara o devedor,
entende-se que se a impossibilidade não lhe for imputável, fica o anti-
go sujeito passivo liberado. 65
Situação diversa é a que se passa quando o devedor da obrigação
de prestar fato deixa de cumprir a sua prestação culposamente. Por
exemplo, se um artista precisa ser internado às pressas, devido a um
mal súbito que lhe acometeu momentos antes da sua apresentação,
evidentemente, ele estará liberado da obrigação. Mas se esse mesmo
artista for internado por ter-se excedido com bebidas alcoólicas horas
antes da apresentação, certamente haverá de responder pelas perdas e
danos que causar ao credor.
141
de algum ato, de permitir-se ou tolerar-se um determinado estado de
coisas 66 . Em suma, por essa modalidade de obrigação, o devedor se
obriga a deixar de praticar um ato que, não fosse a obrigação por ele
contraída, poderia legitimamente praticar (daí por que, se alguém se
obriga a não fazer o que a lei já proíbe, não houve a assunção válida de
qualquer obrigação de não-fazer).
A obrigação de não-fazer, assim como a de fazer, interfere enor-
memente na liberdade individual da pessoa. Por isso mesmo, não se
pode validamente criar uma obrigação dessa natureza com conteúdo
genérico, tampouco por prazo e alcance indeterminados. Tais obriga-
ções, ademais, assim como as obrigações positivas, são em princípio
passíveis de transmissão.
Não raras vezes, esse tipo de obrigação surge sob a forma de dever
anexo a outras obrigações, como as de dar ou de restituir, 67 sendo
também emanação própria dos direitos reais (estes impõem à coletivi-
dade deveres de abstenção). Caracteriza-se, ainda, essa prestação pela
circunstância de seu cumprimento ser quase imperceptível, residindo
na "constância ou sucessividade da abstenção" 68 , diversamente do que
se passa com as demais modalidades, que em geral se extinguem ins-
tantaneamente com o pagamento a que visam.
Uma peculiaridade da obrigação de não fazer reside no fato de
que, quase sempre, uma vez descumprida, não é mais possível ao cre-
dor perseguir o adimplemento devido pelo sujeito passivo da relação.
O pacto que tenha por objeto a não participação de uma pessoa em
determinado certame, por exemplo, resta inteira e irremediavelmen-
te frustrado se a pessoa que havia se obrigado a não participar do con-
curse tomar parte nele. 69 E justamente por isso, prescreve o artigo 390
do Código que "nas obrigações negativas o devedor é havido por ina-
dimplente desde o dia em que executou o ato de que se devia abs-
ter"70. Também por razões desta ordem, a prevenção contra o possível
142
inadimplemento da obrigação negativa deve ser feita de modo até
mais enérgico do que para as demais, com recurso aos instrumentos
processuais de que já se falou acima, dispostos no artigo 461 da Lei
Adjetiva.
Naturalmente, nesse caso, será necessário aferir se essa quebra do
pactuado decorreu de ato culposo do devedor ou da impossibilidade
de ele se comportar de modo diverso. Isso porque, em caso de impos-
sibilidade, o artigo 250 prevê que "extingue-se a obrigação de não
fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abs-
ter-se do ato, que se obrigou a não praticar". A impossibilidade do
cumprimento de um dever de abstenção, quase sempre, decorre de
atos de império, emanados do Poder Público, como aqueles derivados
da imposição de cumprimento, pela propriedade urbana, da sua fun-
ção social. Adverte Caio Mário da Silva Pereira, com muita proprieda-
de, que "se eventualmente o credor tiver feito algum adiantamento ao
devedor, cabe a este restituí-lo, não como indenização, mas porque a
resolução da obligatio repõe as partes no status quo ante, sem o que
haveria locupletamento indevido do devedor". 71
Em caso de ter o devedor agido culposamente, prescreve o artigo
251 que "praticado pelo devedor o ato, a cuja abstenção se obrigara, o
credor pode exigir dele que o desfaça, sob pena de se desfazer à sua
custa, ressarcindo o culpado perdas e danos". Essa solução é pratica-
mente a mesma daquela preconizada, para os casos de descumprimen-
to culposo das obrigações de fazer, pelo artigo 249 do Código. Embora
referido dispositivo não o diga expressamente, entendemos que, não
sendo mais possível ou conveniente para o credor a prestação negativa,
poderá ele cobrar do devedor o pagamento das perdas e danos que o
inadimplemento deste tiver ocasionado àquele. E mais: ainda que o
credor opte pelo desfazimento, realizado pelo próprio devedor ou por
terceiro, ainda assim, poderá ele cobrar perdas e danos do devedor,
acaso verificadas.
A obrigação negativa é extremamente comum no âmbito empre-
sarial. Um ótimo exemplo dessa realidade é encontrado no artigo
1.14 7 do Código Civil, o qual proíbe o vendedor de um estabeleci-
mento comercial a concorrer com o adquirente desse mesmo estabe-
lecimento comercial pelo prazo de cinco anos, se o contrário não esti-
143
ver disposto no título. Esse dispositivo legal, a bem da verdade, apenas
positivou um entre muitos tipos de cláusula de não-concorrência diu-
turnamente entabuladas entre empresários. Ninguém questiona a lici-
tude de semelhantes disposições contratuais, muito comuns quando
há um grau de interdependência ou troca de informações entre duas
empresas, sendo tais preceitos, inclusive, uma decorrência lógica da
cláusula geral de boa-fé, quando compreendida como fonte de deve-
res anexos para além do prazo contratual.
A questão se complica quando tal tipo de previsão é inserido em
contrato de trabalho de diretores de empresas, a cujos segredos indus-
triais, métodos de negócios e outros ativos intangíveis referido profis-
sional tivera acesso em razão do seu cargo. 72 Evidentemente, após fin-
do o vínculo, tal profissional em tese poderá iniciar atividades em
quaisquer empresas concorrentes daquela que era sua ex-empregado-
ra, podendo franquear ao novo empregador informações privilegiadas
de uma concorrente. Justamente por isso, é bastante comum a aposi-
ção de cláusula nos contratos de trabalho desses profissionais preven-
do que eles se abstenham de trabalhar para a concorrência durante um
certo espaço de tempo, ou no mínimo que paguem multa caso venham
a quebrar esse pacto. 73 Esse dever anexo, embora usualmente previsto
contratualmente, é de tal modo derivado da boa-fé que se tem susten-
tado, em boa doutrina, até mesmo a desnecessidade de sua previsão.
O dever de lealdade emergente da boa-fé seria suficiente para esse
144
fim. De fato, leciona José Roberto de Castro Neves que, "em alguns
casos, nos quais haja estratégicos segredos comerciais, por exemplo,
pode entender-se que essa obrigação negativa independe, até mesmo,
de ajuste específico, sendo um reflexo da boa-fé que as partes devem
empregar na condução de seus negócios. Seria, em muitos casos, um
ato contrário à lealdade que um ex-empregado revelasse informações
sigilosas de sua ex-empregadora para uma concorrente, mesmo que
não fosse estipulado expressamente qualquer acordo nesse sentido. É
o que se chama de culpa post factum finitum, ou seja: deveres contra-
tuais que seguem válidos mesmo depois de findo o vínculo jurídico
principal que atrela as partes, alargando o conceito tradicional do iter
negotii''. 74
Uma última observação, por fim, merece ser feita com relação à
possibilidade, prevista no parágrafo único do artigo 251 do Código, de
o credor desfazer por sua própria conta, ou mandar desfazer, à custa
do devedor, o ato a que o devedor deveria se abster.
Em princípio, somente após a recusa do devedor em desfazer o ato
(se isso for possível, evidentemente), poderá o credor requerer ao juiz
que mande um terceiro desfazê-lo, à custa do devedor (CPC, artigos 642
e 643). O que esse parágrafo traz de inovador é justamente a possibilida-
de de o credor, em caso de urgência, desfazer ou mandar desfazer o ato
praticado, independentemente de autorização judicial nesse sentido. E
aqui cabe a advertência de que "a juridicidade da conduta do credor que,
com fundamento no art. 251, par. ún., exerce a autotutela, praticando
atos de desfazimento do ato proibido, será aferida segundo uma ponde-
ração dos interesses em conflito, tornando-o responsável quando se veri-
ficar a ocorrência de abuso, sempre que a satisfação do seu direito não
deva prevalecer sobre o direito do devedor, à luz dos princípios constitu-
cionais que regem o ordenamento". 75
145
Obrigações alternativas e com faculdade alternativa.
Obrigações de meio e de resultado
1. Introdução
Machado de Assis, Dom Casmurro {1899), São Paulo: Moderna, 1995, p. 91.
147
lidade" 2 . As classificações que tão bem serviram a catalogar as relações
jurídicas privadas da idade pré-industrial continuariam a apresentar
hoje, na era da cibernética, a mesma utilidade de outrora?
Esta indagação crítica, formulada por Fábio Konder Comparato,
vem atormentando o jurista que, "habituado a se mover com facilida-
de e destreza no mundo fechado de suas categorias", resiste a qual-
quer reflexão desta natureza 3 . A importância das classificações, entre-
tanto, não passou despercebida pela doutrina - e nem mesmo pode-
ria!-, porque em todo esquema classificatório, como observa Teresa
Negreiros, está presente a tipificação como instrumento de determi-
nação do regime contratual aplicável 4 . Além disso, não se deve perder
de vista a importância da qualificação para a interpretação do negócio
jurídico, já que qualificação e interpretação não são, nas palavras de
Pietro Perlingieri, "entidades ontológicas estanques, ( ... ) mas expres-
sões e aspectos de um mesmo processo cognitivo que nele encontra o
seu unitário modo de atuação" 5.
Pretende este trabalho não mais do que revitalizar o estudo das
obrigações alternativas e com faculdade alternativa, classificação que
remonta aos glosadores, mas que sobrevive até os dias atuais. O desen-
volvimento da relação obrigacional de tipo alternativo, sob o aspecto
dogmático, é bem estruturado. Nesta espécie de obrigação, não é difí-
cil identificar cada momento e fase por que deverá passar o vínculo ao
endereçar-se para o adimplemento, daí Clóvis do Couto e Silva equi-
pará-la, sem muito esforço, a um processo 6 .
Mas não é só. O presente artigo tem, ainda, como objetivo, anali-
sar outra classificação. No direito das obrigações, às tradicionais clas-
sificações, que distinguem as categorias tendo em vista o conteúdo ou
o sujeito da prestação, tem sido adicionada a que procura contrastar as
obrigações de meio às obrigações de resultado 7 • Estas também serão
objeto deste estudo.
148
2. Obrigações alternativas: considerações iniciais
149
Lira, a obrigação alternativa pode nascer com outra forma de determi-
nação da prestação que não seja a escolha, sem que com isso fique
descaracterizada como verdadeira obrigação alternativa, daí este autor
preferir não fazer referência à escolha ao conceituar esta espécie de
obrigação 11 •
Seja como for, o importante é esclarecer que é a concentração que
vai definir qual é a natureza da prestação a ser cumprida. Com exce-
ção dos casos em que todas as prestações postas como alternativas têm
idêntica natureza, não é possível saber, até o momento em que se dá a
concentração da obrigação alternativa, se a prestação a ser cumprida
consiste em um dar ou um fazer, se é divisível ou indivisível, específica
ou genérica, envolvendo, assim, esta espécie de obrigação uma grande
variedade de hipóteses 12 . Note-se também que, ao contrário do que
sugere o art. 253 do Código Civil, a obrigação alternativa pode referir-
se a mais de duas obrigações. São as chamadas obrigações alternativas
múltiplas.
As obrigações alternativas guardam algumas semelhanças com ou-
tras espécies de obrigações. Com as obrigações genéricas, as obriga-
ções alternativas têm em comum o fato de que, em ambas, há relativa
indeterminação do objeto, mas nestas as prestações nascem individua-
lizadas e a indeterminação reside apenas na circunstância de que, até
o momento da escolha, não se sabe qual delas será utilizada para o
pagamento da obrigação. Há, como se vê, uma diferença no grau de
indeterminação que se revela mais elevado na obrigação genérica, ra-
zão pela qual afirma o brocardo latino que genus non perit.
Essa assertiva de que "gênero não perece" não é absoluta, mas, ao
revés, comporta certos temperamentos, já que o gênero pode ser limita-
do ou ilimitado, conforme seja mais ou menos amplo ou restrito. No gê-
nero limitado, demarca-se o local ou o patrimônio de onde deve proce-
der a coisa -por exemplo, o café de determinada fazenda, os livros de
determinada biblioteca - , ou, então, estipula-se no contrato que esta
seja relativa à determinada época. Desse modo, o perecimento ou a in-
viabilidade de todas as espécies que o componham, desde que não sejam
imputáveis ao devedor, acarretará a extinção da obrigação.
Se, por um lado, o gênero pode ser limitado, por outro, as obriga-
ções alternativas também podem referir-se a duas, três, ou mais pres-
ISO
tações, razão pela qual a distinção entre essas espécies de obrigações
por vezes se torna muito delicada 13 . Nesses casos, para se saber de
qual espécie se trata, deve-se recorrer às técnicas de interpretação
para verificar se as partes tomaram em consideração o conteúdo das
prestações, ou se visualizaram apenas o conjunto, o gênero 14 .
Embora também se aproximem das obrigações solidárias, as obri-
gações alternativas com elas não se confundem. Naquelas, a indeter-
minação refere-se ao aspecto subjetivo da relação obrigacional, sendo
que essa incerteza não diz respeito à qualidade do titular do crédito,
ou à do obrigado; o que é incerto é qual dos credores irá receber (soli-
dariedade ativa), ou qual dos devedores realizará o pagamento (solida-
riedade passiva). Por outras palavras: enquanto nas obrigações alterna-
tivas a pluralidade de objetos é essencial, apesar de que apenas um
151
será escolhido, nas obrigações solidárias a pluralidade de sujeitos é que
lhe é inerente 15 .
Quanto à fonte dessas obrigações, as alternativas ora decorrem da
lei, ora da vontade das partes, constituindo-se, neste caso, quer por
meio de negócios jurídicos bilaterais, quer por meio de negócios jurí-
dicos unilaterais, como o testamento e a promessa de recompensa 16 .
As que decorrem de lei são mais raras, pois, embora freqüentemente
a lei crie hipóteses de concurso alternativo de direito, como o faz no
art. 24 7 do Código Civil, e situações de alternatividade, de que é
exemplo o art. 327, parágrafo único, do Código Civil, estes não che-
gam a configurar verdadeiras obrigações alternativas 17 .
Introduzidas essas primeiras considerações, passa-se, pois, à análi-
se da obrigação alternativa sob a perspectiva funcional, para depois se
ater ao estudo de sua estrutura, já que, tal qual observa Perlingieri,
todo instituto deve ser estudado com base no binômio estrutura-fun-
ção, sendo a função a "síntese causal do fato, a sua profunda e comple-
xa razão justificadora" 18 .
152
3. Perspectiva funcional da obrigação alternativa
I 53
4. Perspectiva dinâmica da obrigação alternativa
4.1. Estrutura
154
Na obrigação alternativa, o devedor deve uma ou outra prestação1
e não cada uma das prestações, tampouco nenhuma das prestações. E
por isso que na estrutura da obrigação alternativa há um só vínculo
certo quanto à sua existência - e, portanto, não pendente nem con-
dicional - , com objeto plural, temporariamente indeterminado,
que se converte em determinado pela escolha ou fato equivalente,
eximindo-se o devedor com a entrega da prestação determinada.
No ordenamento jurídico brasileiro, a doutrina manifesta-se a favor
da tese da unidade de vínculo que recebe o sufrágio quase unânime
dos autores 24 .
Deduz-se, pois, da estrutura acima delineada que a obrigação al-
ternativa se caracteriza pela pluralidade de prestações possíveis, dis-
tintas e independentes, que provocam, desde o nascimento do víncu-
lo, a relativa indeterminação do objeto da prestação. É afirmação cor-
rente na doutrina a de que o fim natural e desejável de uma obrigação
alternativa é se tornar uma obrigação simples, ordinária 25 .
ISS
Há situações que, apesar da similitude, não caracterizam verda-
deiras obrigações alternativas, ou o são apenas na aparência. Figure-se,
por exemplo, uma obrigação cujas prestações são duas somas desi-
guais, ou duas quantidades diferentes de uma mesma coisa. Esta hipó-
tese não configura uma obrigação alternativa e a razão é muito sim-
ples: se a escolha incumbir ao devedor, a prestação escolhida será ob-
viamente a menor, ao passo que, se a escolha incumbir ao credor, a
prestação escolhida será, ao revés, a maior. É evidente que esta con-
clusão supõe que as condições de pagamento para as duas prestações
sejam idênticas 26 .
Entre as chamadas situações jurídicas alternativas que não caracte-
rizam verdadeiras obrigações alternativas, está também a hipótese em
que o pagamento pode ser feito em um ou outro lugar. Não se trata
também aqui de verdadeira obrigação alternativa, que pressupõe pres-
tações distintas e independentes, ocorrendo simples modalidade di-
versa de cumprimento de uma mesma prestação.
Outra hipótese a ser mencionada, lembrada por Ricardo Lira, é
aquela em que o fato contratualmente estabelecido para determinar a
prestação não é futuro, de tal modo que a obrigação nasce substancial-
mente simples, não obstante sob aparência de alternativa. Observe-se
o seguinte exemplo formulado por Ricardo Lira: "A se obriga a vender
a B o selo x ou y, entre os dois o que seja mais antigo, conforme perícia
a ser levada a efeito. Na realidade, o vínculo nasceu com prestação
objetivamente determinada, existindo portanto uma obrigação sim-
ples e ordinária" 27 . Neste caso, se o selo mais antigo vier a perecer
antes do resultado da perícia, a obrigação fica resolvida, sendo inapli-
cáveis a esta os princípios que regulam a obrigação alternativa.
156
Da mesma forma, se uma das duas prestações- ou todas com exce-
ção de uma-, no momento de constituição da obrigação, já não for pas-
sível de ser objeto de obrigação, é porque não se trata de verdadeira ob-
rigação alternativa, mas tão-só de obrigação alternativa aparente 28 . Não
há obrigação alternativa, igualmente, quando o credor autoriza o deve-
dor a lhe entregar um bem em substituição da quantia devida (dação em
pagamento) 29 . Também não configura obrigação alternativa aquela que
apresenta duas prestações, sendo uma delas subsidiária.
Na obrigação alternativa, apesar de distintas e independentes, for-
mando estruturalmente um conjunto heterogêneo, as prestações são
sempre equivalentes, isto é, "estão postas no mesmo grau, sem qual-
quer relação de subordinação entre umas e outras" 30 . A obrigação al-
ternativa é uma obrigação primária, no sentido de que já se constitui
como tal por efeito imediato da vontade das partes, ao contrário da-
quelas espécies em que, por exemplo, um fato superveniente incide
na relação obrigacional, fazendo surgir pretensões alternativas concor-
rentes. Nestas últimas, quando uma dessas pretensões é satisfeita, fi-
cam prejudicadas as demais, mas este concurso alternativo de preten-
sões é estruturalmente bem diferente da obrigação alternativa, por-
que não há unidade de vínculo.
4.2. Concentração
28 Robert Joseph Pothier ( 1699-1 772), Tratado das obrigações, cit., p. 202.
29 Orlando Gomes, Obrigações, 12. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 72.
30 Ricardo Pereira Lira, A obrigação alternativa e a obrigação acompanhada de pres-
tação facultativa: dúvidas e soluções em face do Código Civil brasileiro, cit., p. 34.
31 O termo "concentração" é próprio das obrigações alternativas. Nas obrigações ge-
néricas, a doutrina refere-se à "concretização".
32 Pode realizar-se, por exemplo, por meio de um sorteio.
33 Silvio Rodrigues observa que:"( ... ) a escolha desempenha relevantíssimo papel no
157
Trata-se de verdadeiro ato jurídico- e, como tal, exige, para seu
exercício, que o agente tenha capacidade jurídica- que faz cessar a
indeterminação própria da obrigação alternativa, concentrando-a no
objeto escolhido 34 . A escolha é, em realidade, um "momento ou fase
do processo de desenvolvimento do vínculo obrigacional" 35 . Como
pertence ao plano do desenvolvimento da obrigação, a escolha deverá
ocorrer necessariamente antes do termo fixado para o adimplemento,
mediante declaração receptícia de vontade, que produzirá efeitos ex
nunc36 .
A escolha, como anota a doutrina, é um direito e, ao mesmo tem-
po, não deixa de ser um dever, tanto é que, nos arts. 571 e 894 do
Código de Processo Civil, o legislador determinou que a escolha cabe-
rá à outra parte, se aquela inicialmente indicada não a efetuar no prazo
estabelecido 37 . Analisada a questão sob o ponto de vista do poder,
parece correto o entendimento de Ricardo Lira, para quem a escolha
é um direito potestativo que, quando exercido, produz não uma sim-
ples mutação de fato, "mas verdadeira mutação na estrutura da rela-
ção obrigacional, que, de alternativa, se convola em simples" 38 . Note-
se que, independentemente de sua natureza jurídica, o direito de es-
funcionamento de tal relação jurídica, pois permite, entre outros efeitos, que a presta-
ção se transforme de complexa em simples" (Direito civil: parte geral das obrigações,
cit., p. 47).
34 Parte da doutrina discute se a conversão da obrigação alternativa em simples con-
figura novação, mas esta pergunta merece, como esclarece Joaquin Rams Albesa, uma
resposta negativa, pois a concentração não implica a modificação do objeto da obriga-
ção ou de suas condições, embora seja "un hecho jurídico evidentemente modificativo
de un i ter prefigurado por la norma, al que la ley confiere una serie de efectos tendentes
todos al aseguramiento de un derecho de crédito, tanto más cuanto nos encontramos con
un tipo obligacional que, por norma, refuerza la responsabilidad del deudor de tal
forma que sólo se libera por pérdida de los contenidos de la prestación, cuando todos
devienen imposibles sin su concurso" (Joaquin Rams Albesa, Las obligaciones alterna-
tivas, cit., p. 260).
35 Clóvis V. do Couto e Silva, A obrigação como processo, cit., pp. 205-206.
36 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 72.
37 Veja-se, neste sentido, o entendimento de Orlando Gomes: "O direito de escolha
pode apresentar-se sob a forma de um dever. Incorre em mora quem não o exerce
oportunamente. Se cumpre ao credor exercê-lo, tem-se admitido, no caso de mora,
que a faculdade de escolher se transmite ao devedor" (Obrigações, cit., p. 73). Já
Clóvis V. do Couto e Silva entende que a escolha é apenas um direito, e não um dever:
"O direito formativo moficativo de escolher, apesar de inserto numa relação obrigacio-
nal, não constitui dever" (A obrigação como processo, cit., p. 206).
38 Ricardo Pereira Lira, A obrigação alternativa e a obrigação acompanhada de pres-
tação facultativa: dúvidas e soluções em face do Código Civil brasileiro, cit., p. 44.
158
colha sujeita-se também, como observa a doutrina, aos novos princí-
pios do direito contratual:
39 Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza, Maria Celina Bodin de Moraes et. al.,
Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, Rio de Janeiro: Re-
novar, 2004, p. 528. Em sentido contrário, afirma Ricardo Pereira Lira: "Não aderimos
à opinião daqueles que discursaram no sentido de o optante não poder praticar uma
escolha que pareça evidentemente iníqua, em conseqüência do princípio da boa-fé,
que domina as partes na obrigação" (A obrigação alternativa e a obrigação acompanha·
da de prestação facultativa: dúvidas e soluções em face do Código Civil brasileiro, cit.,
p. 45).
40 TJ/DF, I" T. Cív., AC 799081, Rei. Des. Eduardo Ribeiro, j. 14.12.1981, DJ
17.02.1982, p. 997; TJ/PR, I" CC, AC 1091, Rei. Des. Nunes do Nascimento, j.
20.05.1996; TJ/PR, 3" CC, AC 1717, Rei. Des. Silva Wolff, j. 01.12.1987. Na dou-
trina, v. 1. M. Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, cit., p. li O.
!59
te, preenchendo a lacuna deixada pelos estipulantes. Além disso,
como lembra Ricardo Lira, corresponde à idéia dominante de facilitar
o cumprimento da obrigação para o devedor, tal como o faz o art. 327
ao estipular que, em princípio, as dívidas são quesíveis 41 . Seguindo a
mesma linha de raciocínio, no legado alternativo, que nada mais é do
que uma obrigação alternativa, presume-se que a escolha foi deixada
ao herdeiro, nos termos do art. 1.932 do Código Civil.
À luz do Código Civil de 1916, a doutrina já debatia sobre a possi-
bilidade de a escolha ficar, tacitamente, a cargo do credor. Para Tito
Fulgêncio, a atribuição ao credor do direito de escolha podia ocorrer
de forma expressa ou tácita, desde que, de modo inequívoco, se reve-
lasse a intenção das partes ou do estipulante. Na opinião deste autor,
o uso local em certas obrigações, o contexto do ato e as circunstâncias
do fato, esclarecendo o sentido literal da linguagem, podem deixar
transparecer uma opção concedida ao credor 42 . Para Ricardo Lira, é
necessário que "a entrega ao credor do direito de opção resulte inequí-
voco do ato constitutivo da obrigação" 43 .
Já ao ver de Carvalho Santos, embora fossem dispensáveis pala-
vras sacramentais, era preciso ser expressa a adjudicação do direito ao
credor, impondo este autor a consignação textual da vontade, sob
pena de incidir a regra geral 44 . Carvalho de Mendonça, por sua vez,
entendia que, quando a escolha era, mediante estipulação, deferida ao
credor, deveria sê-lo por palavras expressas e bem claras, como deve-
riam ser, aliás, todos os atos de manifestação de vontade, que venham
a derrogar regras postas por lei 45 •
Discute-se também, em sede doutrinária, o que fazer quando, nas
obrigações alternativas, as partes forem reciprocamente devedoras
uma da outra. Como aplicar o art. 252 do Código Civil- regra geral
segundo a qual a opção incumbe ao devedor-, se ambos os figurantes
são devedores com obrigações recíprocas? Se as partes estipularam
qual delas deveria entregar em primeiro lugar sua prestação, ambas
160
são devedoras, mas uma delas há de solver seu débito antes, e, para os
fins do art. 252 do Código Civil, deve esta ter o direito de opção.
Idêntica solução deve ser aplicada quando o ordenamento estabeleça
a precedência na entrega da prestação 46 .
Outra questão interessante é a que diz respeito àquela situação em
que o devedor, omisso no exercício do direito de escolha, recusa-se a
praticá-la e, com isso, retarda o cumprimento da obrigação. Nas obri-
gações alternativas, conforme o disposto no caput do art. 5 71 do Có-
digo de Processo Civil, "quando a escolha couber ao devedor, este será
citado para exercer a opção e realizar a prestação dentro em dez ( 1O)
dias, se outro prazo não lhe for determinado em lei, no contrato, ou na
sentença". No § 1° do referido dispositivo, ao regular a hipótese de o
devedor não exercer a opção no prazo marcado, o legislador determi-
nou a devolução do direito de escolha ao credor.
O devedor, como se vê, não perde o direito de escolha desde logo,
mas passa a responder pela mora, desde o momento em que uma das
prestações deveria ter sido entregue, e não o foi. Se, depois de citado
na execução, o devedor retarda ainda mais o adimplemento, respon-
derá perante o credor também por esse atraso. Depois do prazo de dez
dias, não tendo o devedor exercido a opção e realizado a prestação, a
escolha passa a ser do credor que a fará de forma definitiva, irrevogá-
vel, não podendo a execução ser dirigida a qualquer das outras presta-
ções, no caso de o credor não conseguir a prestação inicialmente esco-
lhida, porque, com a opção, a obrigação alternativa se torna uma obri-
gação simples.
E se o credor estiver se omitindo no exercício de seu direito de
escolha? De acordo com o art. 342 do Código Civil, será ele citado
para este fim, sob pena de perder o direito, podendo o devedor depo-
sitar a coisa que lhe convier. A regra está igualmente expressa no art.
894 do Código de Processo Civil. É importante ter em vista que, se a
opção for do credor, o devedor, evidentemente, não estará em mora
se, no vencimento, não cumprir a obrigação. O credor é que está em
atraso no exercício da opção, embora a mora no exercício do direito
de escolha não se confunda com a infração do dever de receber. Não
há, como esclarece Ricardo Lira, mora accipiendi:
"( ... ) pois não houve oferta e subseqüente recusa (art. 955, CC). O
que existe é mora do credor no escolher. Quando a escolha caiba ao
161
devedor, não havendo a opção até o advento do termo, a mora no
escolher implica mora solvendi. Mas a recíproca não é verdadeira. A
mora no escolher, por parte do credor, não é, a rigor, mora accipien-
d l... 47 .
Para que o devedor fique liberado dos riscos- de, por exemplo,
ambas as coisas perecerem por fortuito, extinguindo-se , dessa forma,
a alternativa e ficando o devedor obrigado a restituir o preço que even-
tualmente recebera antes da entrega de uma das prestações - , ele
deverá tomar a providência prevista no art. 342 do Código Civil, com-
binado com o art. 894 do Código de Processo Civil. Nesse caso, se o
credor, no prazo estipulado, não exercer seu direito de escolha, o de-
vedor depositará a coisa, objeto da prestação por ele escolhida, e assim
transferirá os riscos para o credor, tal como previsto no art. 337 do
Código Civil.
Na vigência do Código Civil de 1916, a doutrina debatia também
qual seria a solução para fazer cessar a indeterminaçã o relativa da obri-
gação nos casos em que, em meio à pluralidade de optantes, não hou-
vesse acordo no tocante à escolha. Inovou o legislador ao prever, no
§3° do art. 252 do Código Civil de 2002, que, "não havendo acordo
unânime entre eles, decidirá o juiz, findo o prazo por este assinalado
para a deliberação" 48 . O direito de escolha, aqui, torna-se um dever 49 .
A existência de uma pluralidade de optantes não afasta a regra da
indivisibilidad e da escolha, isto é, a obrigação não poderá ser cumpri-
da parte em uma prestação, parte em outra, por força do § 1° do art.
252 do Código Civil.
Surge, então, o problema de se saber quais são os efeitos que pro-
duz, por exemplo, o pagamento, parcial ou total, de uma das presta-
ções, que o devedor faça a um dos credores, antes de uma opção eficaz
162
por parte deles. A primeira conclusão lógica a que se chega é que este
pagamento não prejudicará os demais credores. Se o devedor pagar
parte de uma prestação para um credor, os demais poderão constran-
gê-lo a cumprir a outra prestação. O devedor não pode valer-se do
princípio da indivisibilidade, instituído em seu benefício, para não
cumprir a prestação exigida. Caso, porém, tenha pago prestação indi-
visível a um dos credores, pode exigir que todos entrem em acordo
quanto à opção, pois não deve ser obrigado a pagar mais do que o
pactuado. Assim, se a escolha recair sobre a outra prestação, ele terá o
direito de repetir a que pagou. Por fim, se os credores não chegarem a
um acordo, nos termos do §3° do art. 252 do Código Civil, a escolha
caberá ao juiz50 •
50 No caso de obrigações alternativas solidárias, deve exigir-se para uma escolha efi-
caz o acordo de todos os devedores solidários? Ora, se um dos devedores solidários
pode estipular com o credor, sem o consentimento dos demais, qualquer cláusula,
condição ou obrigação adicional, não lhes agravando a posição, pode, da mesma forma,
escolher com eficácia exclusiva para si e contra si, já que isso em nada agrava a condi-
ção dos outros.
51 Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. 1, 10. ed. Coimbra: Almedina,
2000, p. 837.
163
às partes atinge as duas prestações, conduz à extinção da obrigação por
falta de objeto. Isto porque, neste caso, a impossibilidade decorre de
um ato que não era possível impedir ou evitar - caso fortuito ou de
força maior-, e alcança as prestações pactuadas, sucessiva ou simul-
taneamente. Diz-se, então, que "a impossibilidade inocente extingue
o vínculo" 52 . Para que ocorra a extinção, contudo, o devedor não pode
estar em mora, pois, do contrário, responderá pela impossibilidade da
prestação, mesmo que a perda decorra de caso fortuito ou de força
maior, desde que este tenha ocorrido durante o atraso. Mas, se o de-
vedor conseguir provar, nos termos do art. 399 do Código Civil, "que
o dano sobreviveria ainda quando a obrigação fosse oportunamente
desempenhada", ficara isento do dever de indenizar.
Se o caso fortuito ou de força maior atingir apenas uma das pres-
tações, os efeitos serão diversos, conforme tenha sido ou não realizada
a escolha. Quando o fortuito ocorre antes da escolha, estreita-se o
círculo com a concentração da obrigação, operada de forma automáti-
ca, independentement e da vontade de qualquer das partes 53 . A obri-
gação alternativa convola-se, então, em simples, desaparecendo a al-
ternatividade. Depois da escolha, porém, se a impossibilidade não
atingir a prestação escolhida, a obrigação permanecerá intacta. Por
outro lado, se a impossibilidade atingir justamente a obrigação escolhi-
da, serão aplicáveis ao caso as regras atinentes à obrigação simples, isto
é, extingue-se a obrigação.
Quando todas as prestações, com exceção de uma, se tornam ine-
xeqüíveis por culpa do devedor, sendo sua a escolha, a obrigação tor-
na-se simples, concentrando-se na prestação remanescente. O deve-
dor não se exonera pagando ao credor o equivalente à prestação que
pereceu. Não se concede ao devedor, conforme explica Antunes Va-
rela, "como sanção contra a sua culpa, a faculdade de escolher a pres-
tação que se tornou impossível, entregando ao credor o valor respecti-
vo"54. Com esta solução, também "não há que se falar em exercício
52 Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, vol. 4, 4.
ed., Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1934, p. 34.
53 Aqui reside uma das diferenças entre as obrigações alternativas e as chamadas
obrigações facultativas: nestas, com o perecimento sem culpa da coisa devida, extin-
gue-se a própria obrigação, ainda que subsista o outro bem. Se, ao contrário, houver
perda do objeto da prestação cuja substituição é facultada ao devedor - prestação
supletória ou supletiva -, afasta-se apenas a faculdade de substituir a coisa devida,
mas a obrigação em si subsiste.
54 Antunes V areia, Das obrigações em geral, cit., p. 840.
164
abusivo do direito de escolha ou em agressão ao princípio da boa-fé,
ainda que a expectativa da contraparte fosse a da possibilidade de
escolha entre todas as prestações acordadas; afinal, em última instân-
cia a escolha depende de um ato simples e imotivado do optante" 55 .
Nesta mesma situação, se a escolha for do credor, a solução é
outra. O credor pode optar entre a prestação remanescente e a inde-
nização equivalente à prestação que pereceu, acrescida de perdas e
danos, pois as normas do Código Civil 56 protegem seu direito de esco-
lha, ao mesmo tempo que punem a conduta culposa do devedor 57 .
Esta é uma boa solução, porque, em realidade, mantém o poder de
escolha do credor quanto à prestação impossível, substituindo, po-
rém, sua realização in natura pela correspondente indenização pecu-
niária.
Caso o devedor tenha contribuído para a impossibilidade jurídica
de todas as prestações avençadas, não competindo ao credor a escolha,
obriga-se o devedor pelo valor da última que se tornou impossíveC
adicionadas as perdas e danos que o caso determinar- assim enten-
didas aquelas causadas pelo não-recebimento tempestivo da última
prestação impossibilitada-, conforme o disposto no art. 254 do Có-
digo Civil. À luz do direito anterior, que previa idêntica solução, Clo-
vis Bevilaqua criticava a imposição das perdas e danos além do valor da
prestação que, por último, se tornou impossível, porque ultrapassaria
o valor da prestação naturalmente devida 58 . Com esta solução, entre-
tanto, o legislador estimula o zelo do optante pela sobrevida da pres-
tação restante, o que é uma boa medida.
Não há no Código Civil qualquer determinação para o caso de
ambas as coisas perecerem ao mesmo tempo, por culpa do devedor,
sendo seu o direito de escolha. Deve-se aqui recorrer à analogia para
concluir que, se cabe ao devedor a escolha, pode este pagar o valor de
qualquer das prestações, acrescido de eventuais perdas e danos 59 . Isto
55 Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza, Maria Cclina Bodin de Moraes et. ai.
Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, cit., p. 532.
56 Código Civil: "Art. 255. Quando a escolha couber ao credor e uma das prestações
tornar-se impossível por culpa do devedor, o credor terá direito de exigir a prestação
subsistente ou o valor da outra, com perdas e danos; se, por culpa do devedor, ambas
as prestações se tornarem inexequíveis, poderá o credor reclamar o valor de qualquer
das duas, além da indenização por perdas e danos".
57 TJ/PR, 2" CC, AC 83223900, Rei. Des. Altair Patitucci, j. 22.12.1999.
58 Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, cit., p. 32.
165
porque, em última análise, o devedor estará sempre obrigado pelo
valor de uma das prestações que podia escolher conforme seu livre
arbítrio.
O legislador não trouxe, no Código Civil, qualquer previsão quan-
to às hipóteses de perecimento ou perda do objeto por culpa do cre-
dor. Aqui também as conseqüências vão variar conforme caiba a um
ou a outro o direito de escolha, e ocorra a perda de uma ou de todas as
prestações. Quando a escolha competir ao devedor e uma das presta-
ções se impossibilitar por culpa do credor, considera-se cumprida a
obrigação, ficando o devedor liberado, a não ser que prefira satisfazer
a remanescente, mas poderá, neste caso, exigir que o credor indenize
a que pereceu. Se a escolha couber ao credor, considera-se apenas
cumprida a obrigação, como se o culpado tivesse escolhido a prestação
cuja realização se tornou impossível.
Quando todas as prestações se tornam impossíveis por culpa do
credor, o devedor igualmente terá resguardado o direito de escolha,
podendo pleitear o valor de qualquer delas, acrescido das perdas e
danos. Se a escolha for do credor, entretanto, ele indenizará o devedor
pelo valor daquela que escolher. Nos dois casos, tem-se por cumprida
a obrigação.
E se a escolha não couber às partes, mas a terceiro? Nos casos de
impossibilidade superveniente imputável ao credor, sendo a escolha
de terceiro, reputa-se cumprida a obrigação, salvo se o terceiro optar
pela prestação possível. Quando imputável ao devedor, o terceiro po-
derá optar por qualquer das prestações possíveis ou, como observa a
doutrina, pela indenização correspondente à impossibilidade daquela
que pereceu. Para Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, entretanto,
o terceiro só escolhe entre prestações possíveis (e não entre prestação
e indenização), passando a escolha às partes, quando se verifica a im-
possibilidade de uma das prestações: "Uma opção que envolva um
pedido de imdemnização implica um juízo sobre os danos sofridos,
juízo esse que só a parte está em condições de fazer, pelo que não faz
sentido que seja atribuído a um terceiro" 60 .
Por fim, vale lembrar que o legislador também não tratou das hi-
póteses de impossibilidade resultante de culpa de terceiro, sendo cer-
to, porém, que este deve responder pelos prejuízos.
166
5. Obrigações com faculdade alternativa
167
Na obrigação com faculdade alternativa, como o objeto é formado
por uma única prestação, não há lugar para "escolha", tendo o credor
o direito de exigi-la, e podendo fazê-lo, tão logo a obrigação vença. Se
a prestação devida for originalmente impossível ou ilícita, todo o ne-
gócio será reputado nulo, de nada valendo o fato de o devedor poder
exonerar-se com o cumprimento da segunda prestação possível e líci-
ta, já que esta não é devida, tampouco exigível. Caso, porém, seja a
segunda prestação impossível ou ilícita, em nada será afetada a valida-
de da obrigação, pois apenas caduca a possibilidade de substituição de
seu objeto por parte do devedor.
Na hipótese de a impossibilidade ser superveniente, se afetar a
prestação devida, a obrigação extinguir-se-á, tal como se extinguiria
qualquer outra obrigação simples. Quando a impossibilidade diz res-
peito à segunda prestação, a obrigação permanece válida.
Parte da doutrina admite ainda a existência de obrigações com
faculdade alternativa a benefício do credor 63 . De fato, nada impede
que, em uma obrigação simples, as partes atribuam ao credor a facul-
dade de escolher uma outra prestação, em lugar da devida. Na prática,
porém, deve tratar-se de espécie rara, porque "os interesses do cre-
dor, que poderiam justificar uma composição jurídica desse tipo, se-
rão quase sempre satisfeitos, em maior grau, mediante a instituição de
uma obrigação alternativa, com escolha do credor" 64 . Em realidade, se
a faculdade de substituição couber ao credor, a obrigação praticamen-
te equivalerá à alternativa 65 .
influi sobre ela de um modo apreciável, senão depois de adotada. Como há uma obri-
gação única devida, única exigível, esta é que imprime seu caráter à obrigação, muito
embora, no momento da execução, o devedor possa afastá-la para substituí-la por
outra" (Direito das obrigações, edição histórica, São Paulo: RED Livros, 2000, p. 126).
63 Karl Larenz, Derecho de obligaciones, tomo I, versión espaiiola y notas de Jaime
Santos Briz, Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958, pp. l 72-173.
64 Antunes Varela, Das obrigações em geral, cit., p. 845.
65 É o que afirma, por outras palavras, Antonio Hernandez Gil: "Si la facultad de
sustitución corresponde ai acreedor, la obligación, prácticamente, equivale a la alterna-
tiva, porque entonces el deudor, en rigor, en todo momento adviene obligado a realizar
una de las dos (o más) prestaciones" (Derecho de obligaciones, tomo III, Madrid: Espa-
sa-Calpe, 1988, p. 100).
168
o comportamento do bonus pater famílias, enquanto em outras, ao
revés, o credor tem o direito de exigir a produção de determinado
resultado, sem o qual não se considera adimplida a obrigação. Na pri-
meira espécie, o credor deve comprovar, na ação indenizatória, que o
devedor não agiu de forma diligente, ao passo que, na segunda, é o
devedor que deve provar que a falta do resultado previsto ocorreu sem
culpa de sua parte. Assim proposta, esta classificação obteve logo de
início grande êxito na doutrina francesa, sendo consagrada em 1936
pela Corte de Cassação, em célebre julgado relacionado à prestação
de serviços médicos 56 .
As obrigações cuja prestação não consiste em um resultado certo
e determinado a ser produzido pelo devedor, mas tão-só em uma ati-
vidade diligente deste em benefício do credor, são denominadas obri-
gações de meio 67 • O exemplo mais comum, aventado pela doutrina, é
o do contrato de prestação de serviços profissionais celebrado pelos
médicos e advogados. É claro que o paciente que procura um médico
deseja restabelecer sua saúde, assim como o litigante quer que seu
advogado ganhe a causa. Mas estes resultados não são, ou pelo menos
não deveriam ser, o objeto do pactuado. O que o paciente deve exigir
é que o médico lhe dispense um tratamento adequado, diligente e
conforme a ciência médica; não pode, porém, exigir que o médico
proporcione a cura. Da mesma forma, o cliente não pode cobrar do
advogado uma sentença que lhe seja favorável 68 . Quer isto dizer, por
66 A distinção proposta por Demogue obteve desde logo grande sucesso na doutrina,
alcançando sua consagração na jurisprudência, em célebre acórdão proferido pela Cor-
te de Cassação sobre prestação de serviços médicos. Acórdão de 20 de maio de 1936,
Rec. Dalloz, 1936, I, p. 88, cujo relator foi Louis Josserand.
67 A terminologia sofre variações de autor para autor. "Obrigações de meio" e "obri-
gações de resultado" foram as denominações empregadas por Demogue. André Tunc
preferiu as expressões "obrigações determinadas" e "obrigações gerais de prudência e
diligência". As obrigações de meio para Mengoni são "obrigações de simples compor-
tamento", e para Betti "obrigações de conduta" (cf. André Tunc, "A distinção entre
obrigações de resultado e obrigações de diligência", Revista dos Triburwis, vol. 778,
São Paulo: RT, ago./2000, p. 755).
68 A obrigação do advogado é considerada de meio também pela jurisprudência:
TR/JEC, 2• TRC, RC 71000588673, Rei. Des. Luiz Antônio Alves Capra, j.
03.11.2004; TJ/RS, 5• CC, AC 7000797 4660, Rei. Des. Antônio Vinícius Amaro da
Silveira, j. 05.08.2004; TJ/RS, 9• CC, AC 70008064180, Rei. Des. Marilene Bonza-
nini Bernardi, j. 30.06.2004; TR!JEC, 3" TRC, RC 71000513929, Rei. Des. Maria
José Schmitt Santanna, j. 08.06.2004; TR!JEC, 3' TRC, RC 71000508325, Rei. Des.
Maria de Lourdes G. Braccini de Gonzalez, j. 20.04.2004; TJ/RS, 15" CC, Rei. Des.
Vicente Barrôco de Vasconcellos, j. 17.03.2004.
169
outras palavras, que o conteúdo da obrigação não é um resultado de-
terminado, mas a própria atividade do devedor, isto é, "os meios ten-
dentes a produzir o resultado almejado" 69 .
Já nas chamadas obrigações de resultado, o contratante obriga-se à
alcançar um determinado fim, cuja não consecução implica o descum-
primento do contrato. São exemplos dessa espécie de obrigação os
contratos de transporte e de empreitada. No contrato de transporte,
se o bem transportado não chega incólume ao destino previsto, há
inadimplemento por parte do transportador 70 . Do mesmo modo, des-
cumpre o contrato de empreitada o construtor que não produz o
edifício com a segurança e as especificidades previstas no contrato.
Tanto o transportador quanto o construtor tinham, perante o outro
contratante, um débito específico, que consistia em alcançar o fim
predeterminado. "Esse fim confundia-se com a prestação devida, mo-
tivo pelo qual se dá o inadimplemento contratual, quando tal meta
não é atingida" 71 .
Contra a dicotomia obrigações de meio e de resultado, objetou-se
que toda prestação comporta, de certa forma, um resultado mais ou
menos determinado e que a chamada obrigação de meio pode ser mais
ou menos precisa quanto ao seu conteúdo, dependendo da previsão
contratual que a estipule 72 . Um marceneiro, por exemplo, pode obri-
170
gar-se a consertar a mobília da melhor maneira possível, como pode
obrigar-se também a fazer o conserto com o emprego de certos mate-
riais indicados pelo proprietário. A objeção, ao ver de Fábio Konder
Comparato, até poderia ser considerada procedente, caso se afirmasse
que certos contratos só comportam obrigações de meio e outros só
obrigações de resultado. A experiência demonstra, entretanto, que
essa rigidez sistemática, na prática, está fora de cogitação 73 .
No exemplo acima formulado, é evidente que os materiais empre-
gados pelo marceneiro e exigidos pelo proprietário dos móveis que o
contratou são bens tangíveis, incorporados ao resultado objetivo esti-
pulado no contrato. A obrigação, neste caso, é de resultado, e não
apenas de meio. Quando, porém, o médico se obriga a fazer uma ope-
ração determinada, ainda não está aí prometendo um resultado, razão
pela qual não há que se falar, ao menos a princípio, em culpa presumi-
da, tampouco em responsabilidade objetiva do cirurgião pelo eventual
desfecho desfavorável de sua intervenção. É por isso que o regime de
prova será diverso. Mas o médico responderá pelos danos causados ao
paciente, salvo se provar a ocorrência de um fortuito, impedindo-o de
operar tal como previsto 74 .
No caso da cirurgia plástica estética, porém, a maioria da doutrina
entende que o médico tem aí uma obrigação de resultado, porque se
75
compromete a efetivamente melhorar a aparência do paciente • Há,
distinção entre prestações de meios e prestações de resultado veio, porém, a ser objec-
to de crítica na doutrina. Entre nós, Gomes da Silva demonstrou o fracasso da distin-
ção, com o argumento de que mesmo nas obrigações de meios existe a vinculação a um
fim, que corresponde ao interesse do credor, e que se o fim não é obtido presume-se
sempre a culpa do devedor. Efectivamente, a crítica parece proceder já que em ambos
os casos aquilo a que o devedor se obriga é sempre uma conduta (a prestação), e o
0 0
credor visa sempre um resultado, que corresponde ao seu interesse (art. 398. , n. 2).
Por outro lado, ao devedor cabe sempre o ónus da prova de que realizou a prestação
(art. 342. 0 , n. 0 2) ou de que a falta de cumprimento não procede de culpa sua (art.
799. 0 ), sem o que será sujeito a responsabilidade. Não parece haver assim base no
nosso direito para distinguir entre obrigações de meios e obrigações de resultado"
(Direito das obrigações, cit., pp. 140-141).
73 Fábio Konder Comparato, "Obrigações de meio, de resultado e de garantia", cit.,
p. 26.
74 Fábio Konder Comparato, "Obrigações de meio, de resultado e de garantia", cit.,
pp. 29-30.
75 Na cirurgia plástica estética, a maioria da doutrina considera a obrigação do médico
uma obrigação de resultado: Sérgio Cavalieri Filho, "A responsabilidade médico-hos-
pitalar à luz do Código do Consumidor", Revista Forense, vol. 346, Rio de Janeiro:
Forense, abr.-jun./1999, p. 140; Rui Stoco, "A teoria do resultado à luz do Código de
171
contudo, uma corrente minoritária, capitaneada pelo Min. Ruy Rosa-
do, que defende ser de meio a obrigação do médico também neste
caso, sob o argumento de que a álea está presente em qualquer espécie
de intervenção cirúrgica, pois as reações do corpo humano são sempre
imprevisíveis. Embora o próprio Min. Ruy Rosado reconheça que este
entendimento é minoritário, a seu ver:
Defesa do Consumidor", cit., p. 203; Teresa Ancona Lopez, O dano estético, 3. ed.,
São Paulo: RT, 2004, p. 70; Silvio Rodrigues, Direito civil: responsabilidade civil, vol.
4, 19. ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 252; Humberto Theodoro Júnior, "Aspectos
processuais da ação de responsabilidade por erro médico", Revista Forense, vol. 349,
Rio de Janeiro: Forense, jan.-mar./2000, p. 71; Alexandre Gir Gomes, "A responsabi-
lidade civil do médico nas cirurgias plásticas estéticas", Revista de Direito Privado, n. 0
12, São Paulo: RT, out.-dez./2002, p. 85; Gerson Luiz Carlos Branco, "Aspectos da
responsabilidade civil e do dano médico", Revista dos Tribunais, voi. 733, São Paulo:
RT, nov./ 1996, p. 56; Hélio Apoliano Cardoso, Responsabilidade civil: doutrina, juris-
prudência e prática, São Paulo: ME, 2004, p. 136; Fabrício Zamprogna Matielo, Res·
ponsabilidade civil do médico, Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998, p. 56; Sílvio de
Salvo Venosa, Direito civil: responsabilidade civil, vol. 4, São Paulo: Atlas, 2003, p.
90; Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade civil, 8. ed., São Paulo: Saraiva,
2003, p. 366; Rachei Sztajn, "A responsabilidade civil do médico: visão bioética",
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 0 108, São Paulo:
Malheiros, out.-dez./1997, p. li; Ênio Santarelli Zuliani, "Inversão do ônus da prova
na ação de responsabilidade civil fundada em erro médico", Revista dos Tribunais, vol.
8 I I, São Paulo: RT, maio/2003, p. 49; Reynaldo Andrade da Silveira, "Responsabili-
dade civil do médico", Revista dos Tribunais, vol. 674, São Paulo: RT, dez. 1991, p.
61; Carlos Ferreira de Almeida, "Os contratos de prestação de serviço médico no
direito civil português", Revista de Direito do Consumidor, n. 0 16, São Paulo: RT,
out.-dez./1995, p. 18; Di mas Borelli Thomaz Júnior, "Responsabilidade civil do médi-
co", Revista dos Tribunais, vol. 741, São Paulo: RT, jul./1997, p. 91; Nelson Luiz
Guedes Ferreira Pinto e Marco Antônio Gonçalves Torres, "Responsabilidade civil-
Parecer de auditores- Obrigações de meio e de resultado- Dever de indenizar",
Revista dos Tribunais, vol. 716, São Paulo: RT, jun./1995, p. 144; Renato de Lemos
Manuschy, Direito das obrigações, Rio de Janeiro: Editora Líber Júris Ltda, 1984, p.
17. No mesmo sentido: STJ, 4a T, REsp 196306/SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves,
j. 03.08.2004, DJ 16.08.2004, p. 261; STJ, 3" T, REsp 81101/PR, Rei. Min. Walde-
mar Zveiter, j. 13.04.1999, DJ 31.05.1999, p. 290; STJ, 3" T, REsp !0536/RJ, Rei.
Min. Dias Trindade, j. 21.06.1991, DJ 19.08.1991, p. 10993; TJ/RS, 10' CC, AC
70007178304, Rei. Des. Luiz Ary Vessini de Lima, j. 18.03.2004; TJ/RS, 5' CC, AC
70006501472, Rei. Des. Leo Lima, j. 25.09.2003; TJ/RS, 5• CC, AC 70004180808,
Rei. Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha, j. 11.09.2003; TJ/RS, 5' CC, AC
70000159616, Rei. Des. Clarindo Favretto, j. 15.06.2000.
172
prometam corrigir, sem o que ninguém se submeteria, sendo são, a
uma intervenção cirúrgica, pelo que assumiriam eles a obrigação de
alcançar o resultado prometido, a verdade é que a álea está presente
em toda intervenção cirúrgica, e imprevisíveis as reações de cada or-
ganismo à agressão do ato cirúrgico. Pode acontecer que algum cirur-
gião plástico, ou muitos deles assegurem a obtenção de um certo re-
sultado, mas isso não define a natureza da obrigação, não altera a sua
categoria jurídica, que continua sendo sempre a obrigação de prestar
um serviço que traz consigo o risco" 76 •
76 Ruy Rosado de Aguiar Jr., "Responsabilidade civil do médico", Revista dos Tribu-
nais, vol. 718, São Paulo: RT, ano 84, ago./1995, p. 40. No mesmo sentido: Luís O.
Adorno, "La responsabilidad civil médica", AJURIS- Revista da Associação dos Juí-
zes do Rio Grande do Sul, vol. 59, Porto Alegre, pp. 224-235; Nestor José Forster,
"Cirurgia plástica estética: obrigação de resultado ou obrigação de meios?", Revista
dos Tribunais, vol. 738, São Paulo: RT, abr./1997, p. 88; Rosana Jane Magrini, "Mé-
dico- Cirurgia plástica reparadora e estética: obrigação de meio ou de resultado para
o cirurgião", Revista Jurídica, n. 0 280, Porto Alegre: Síntese, fev./2001, p. 80; Hilde-
gard Taggesel Giostri, "Algumas reflexões sobre as obrigações de meio c de resultado
na avaliação da responsabilidade médica", Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 5,
Rio de Janeiro: Padma, jan.-mar./2001, p. 107; José Marcelo Martins Proença e Rafael
Dutra Barreiros, "Cirurgia plástica estética: obrigação de meio", Revista do Instituto
dos Advogados de São Paulo, n. 0 8, São Paulo: RT, jul.-dez./2001, p. 55. Para Sylvio
Capanema, a cirurgia plástica é, em princípio, obrigação de meio, e só deve ser consi-
derada de resultado quando há prova inequívoca de que o resultado prometido foi
assegurado pelo médico, como condição da contratação (Direito das obrigações, Cole-
tânea de textos CEPAD, Rio de Janeiro: Editora Espaço Jurídico, 2003, pp. 46-47).
77 Alexandre Gir Gomes, "A responsabilidade civil do médico nas cirurgias plásticas
estéticas", cit., p. 86.
78 Rui Stoco, Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial, 4. ed., São
Paulo: RT, 1999, p. 298.
173
Mas ainda que comporte exceções 79 , a regra geral é a de que a
obrigação do médico é de meio, e não de resultado. O mesmo ocorre
em relação ao contrato de prestação de serviços advocatícios. Na ad-
vocacia, o advogado não pode se obrigar a ganhar o litígio para o seu
cliente, porque este resultado não depende única e exclusivamente de
sua competência, mas também de outras circunstâncias alheias à sua
vontade. Tanto é que, independente do que for proferido na sentença,
o advogado fará jus aos seus honorários, que são a contraprestação
pelos serviços prestados, e não o preço de um resultado. Sua obrigação
consiste, conforme esclarece Rui Stoco, em defender seu cliente, dan-
do-lhe os conselhos profissionais pertinentes: "Se atuou corretamen-
te, sem vícios, falhas ou omissões graves, ainda que tenha perdido a
causa, nenhuma responsabilidade se lhe pode imputar" 80 .
Neste particular, surge uma dificuldade quando se estipulam ho-
norários em função do êxito da demanda. Em realidade, se bem se
atentar, o condicionamento da prestação de honorários advocatícios à
vitória judicial não tem o condão de sujeitar o profissional a uma obri-
gação de resultado. Do contrário, a não obtenção do resultado corres-
ponderia ao inadimplemento contratual, com a sujeição do profissio-
nal à composição das perdas e danos. Com efeito, o resultado preten-
dido pelo cliente não é o objeto da obrigação, mas, sim, a condição do
pagamento dos honorários. Significa dizer, por outras palavras, que o
direito aos honorários, nesta hipótese, fica submetido à superveniên-
cia de um evento futuro e incerto, sendo inteiramente independente
da vontade do devedor. "O objeto da obrigação do advogado continua
sendo a sua atividade diligente e perita, de forma que ele só responde-
rá se esta não se verificar, cabendo a prova, como de regra nas obriga-
ções de meio, ao credor" 81 .
Não se pode perder de vista que toda obrigação comporta, evidente-
mente, um resultado que corresponde à sua utilidade econômico-social
para o credor. No entanto, nem sempre este resultado é compreendido
no vínculo como elemento da prestação; às vezes, deixa de exercer a fun-
ção de objeto ou conteúdo da obrigação para ser tão-somente, como ano-
174
ta Fábio Konder Comparato, "sua causa no sentido teleológico" 82 • De
acordo com a concepção clássica, consagrada no Código napoleônico, a
prestação era fundamentalmente objetiva e material. Assim, o id quod
debetur, segundo esta concepção, era sempre uma coisa, isto é, um obje-
to material. Em reação a esta corrente, formulou-se, na Alemanha, a
concepção subjetiva de prestação, segundo a qual a prestação é sempre
uma ação ou comportamento do devedor.
Em realidade, toda obrigação compreende dois elementos: (i) um
elemento objetivo que corresponde ao bem ou ao resultado a ser pro-
duzido a benefício do credor, o qual não precisa ser forçosamente
material; (ii) um elemento subjetivo, consistente no comportamento
do devedor em direção ao resultado. Em alguns casos, porém, esse
resultado final não pode entrar no vínculo, porque depende de fatores
estranhos à vontade do devedor, segundo o critério do id quod ple-
rumque accidit. Nestas hipóteses, a prestação compreende apenas um
comportamento diligente e honesto do devedor com vistas à obtenção
do resultado. É, na opinião de Fábio Konder Comparato, no critério
da aleatoriedade do resultado esperado que se situa o fundamento
desta classificação 83 .
175
categorias de obrigações resulta das circunstâncias e não, em princí-
pio, de uma diferença de grau ou de intensidade da obrigação" 85 .
Essa diferença de circunstâncias, como adverte este autor, gera
efeitos práticos, porque conduz "a uma inversão do ônus da prova,
justificada para as obrigações de resultado pela presunção de que a
diligência do devedor obterá o resultado desejado" 86 . Este é, nas pala-
vras de Philippe de Touneau, "o verdadeiro interesse da distinção" 87 .
Na obrigação de meio, a finalidade é a própria atividade do devedor e,
na obrigação de resultado, o resultado dessa atividade 88 . Na prática,
portanto, "o fato de ser o contrato enquadrável numa das duas referi-
das espécies influi sobre a definição do objeto do negócio jurídico, isto
é, a configuração da prestação devida e, conseqüentemente, sobre a
conceituação do inadimplemento" 8'l:
176
à primeira vista pode parecer, essa classificação não rompe com a teo-
ria da culpa 92 . Na obrigação de meio, o credor poderá provar a conduta
ilícita do obrigado, isto é, que o devedor não agiu com atenção, dili-
gência e cuidados adequados na execução do contrato. Na obrigação
de resultado, porém, presume-se que sua não obtenção decorreu de
atuação inadequada ou culposa do contratado. Por vezes, porém, o
que deveria "ser un debate sobre la 'materialidad del incumplimiento'
se convierte en un 'debate sobre la culpa'; no se trata de demostrar
imprudencias, negligencias o imperícias; se trata, s( de probar la rea-
lización- o la falta- de actividad diligente debida" 93 •
Indaga-se, em sede doutrinária, como se justifica a obrigação de
resultado, atribuída ao cirurgião plástico estético, em face da respon-
sabilidade subjetiva estabelecida no Código de Defesa do Consumidor
para os profissionais liberais. Esta questão, entretanto, só cria embara-
ço para aqueles que entendem que a obrigação de resultado gera sem-
pre responsabilidade objetiva, o que, a nosso ver, se trata de um equí-
voco. A obrigação de resultado apenas inverte o ônus da prova quanto
à culpa, mas a responsabilidade não deixa, por isso, de ser subjetiva.
Trata-se, isto sim, de responsabilidade subjetiva com culpa presumi-
da. O Código de Defesa do Consumidor, conforme esclarece Sérgio
Cavalieri Filho, "não criou para os profissionais liberais nenhum regi-
me especial, privilegiado, limitando-se a afirmar que a apuração de sua
responsabilidade continuaria a ser feita de acordo com o sistema tra-
dicional, baseado na culpa" 94 .
Em relação aos prestadores de serviços em geral, com exceção
evidentemente dos profissionais liberais, a distinção entre obrigação
de meio e de resultado mostra-se pouco relevante, uma vez que o
Código de Defesa do Consumidor lhes impôs a responsabilidade obje-
tiva. Dessa forma, quer na obrigação de meio, quer na obrigação de
177
resultado, responderá o prestador de serviço pelo dano causado, inde-
pendentemente da verificação de culpa, o que leva Rui Stoco a afir-
mar que "o Código de Defesa do Consumidor rompeu, em parte, com
a teoria do resultado, no que pertine aos prestadores de serviços, ex-
ceto, porém, com relação aos profissionais liberais e aos hospitais, em
que a teoria mantém eficácia plena, harmonizando-se com a disposi-
ção contida no seu art. ] 4, § 4°" 95 .
De fato, a tendência mais atual do direito das obrigações é a de
temperar a distinção entre obrigação de meio e de resultado. O prin-
cípio da boa-fé objetiva, iluminado pelos princípios da dignidade da
pessoa humana e da solidariedade social, consagrados na Constituição
Federal, impõe às partes da relação contratual não só o dever de cum-
prir, mas também o de facilitar o cumprimento das obrigações. Daí
afirmar Gustavo Tepedino que "ao resultado esperado pelo credor,
mesmo nas chamadas obrigações de meio, não pode ser alheio o deve-
dor. E, de outro lado, o insucesso na obtenção do fim proposto, nas
chamadas obrigações de resultado, não pode acarretar a responsabili-
dade tout court, desconsiderando-s e o denodo do devedor e os fatores
supervenientes que, não raro, fazem gerar um desequilíbrio objetivo
entre as prestações, tornando excessivamente oneroso o seu cumpri-
mento pelo devedor" 96 .
95 Rui Stoco, "A teoria do resultado à luz do Código de Defesa do Consumidor", cit.,
p. 204.
96 Gustavo Tepedino, "A responsabilidade médica na experiência brasileira contem-
porânea". In: Arruda Alvim, Joaquim Portes de Cerqueira César e Roberto Rosas
(coord.), Aspectos controvertidos do novo Código Civil, São Paulo: RT, 2003, p. 294.
97 Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, cit., p. 206.
98 É claro que esta pergunta deve ser relativizada, porque a classificação que divide as
obrigações em obrigações de meio e de resultado é muito mais recente do que a que as
decompõe em obrigações alternativas e com faculdade alternativa. Mas mesmo naque-
la seara- obrigações de meio e de resultado- o questionamento é válido, pois já há
quem diga que a distinção não é fundamental (André Tunc, "A distinção entre obriga-
ções de resultado e obrigações de diligência", cit., p. 763).
178
Para que se possa responder a essa questão, é preciso ter em conta
toda a crise por que perpassa o direito das obrigações. De fato, não
obstante a difundida consciência da historicidade e da conseqüente
relativização das categorias jurídicas, a obrigação ainda hoje se apre-
senta, no mais das vezes, "como categoria a-histórica 'sempre igual a si
mesmo', neutra, construída individuando o mínimo denominador co-
mum entre as diversas obrigações e reduzindo as diversidades a perfis
descritivos e externos ao conceito, espúrios em relação a ele" 99 .
As obrigações não são, contudo, categorias neutras, a-históricas.
Muito pelo contrário. Sofrem constantemente com qualquer modifi-
cação da realidade. O estudo do direito não pode prescindir da análise
da sociedade na sua historicidade, já que se trata de uma ciência social
e, como tal, é sensível às alterações do complexo fenômeno social.
As obrigações alternativas, com faculdade alternativa, de meio e
de resultado, conceitualmente, continuam as mesmas, mas hoje de-
vem sujeitar-se aos novos princípios do direito contratual, como a boa-
fé objetiva e a função social do contrato. Não se limitam mais a uma
estrutura formal, pois devem cumprir um fundamento axiológico-
normativo que será a base de sua validade. Assim como o exercício do
direito de escolha do optante, na obrigação alternativa, está limitado
por esses novos princípios, o devedor de uma obrigação de meio tam-
bém não poderá manter-se totalmente alheio ao resultado esperado
pelo credor, da mesma forma que, por outro lado, não poderá ser
automaticamente responsabilizado na hipótese de insucesso na obten-
ção do fim proposto, nas chamadas obrigações de resultado.
As classificações aqui expostas, contudo, permanecem úteis. Em
primeiro lugar, porque correspondem a uma realidade. Em segundo,
porque permitem submeter cada espécie de obrigação a um regime
particular que parece oportuno. E, enfim, em terceiro lugar, porque
ajudam a sistematizar o estudo do direito das obrigações, sendo utili-
zadas sem muita dificuldade na prática.
179
Obrigações Divisíveis e Indivisíveis
e Obrigações Solidárias
1. Introdução
A epígrafe foi colhida do texto elaborado pela Professora Maria Celina Bodin de
Moraes sobre o princípio da solidariedade, que está adiante referido e encaixa-se per-
feitamente no ideal de indivisão analisado a seguir.
2 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral das obrigações, 30. ed., São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 15.
181
No caso de multiplicidade de sujeitos na relação jurídica obriga-
cional, a regra é a divisão em obrigações independentes, repartindo-se
de acordo com o número de sujeitos envolvidos, nos termos do broca-
do concursu partes fiunt, consagrado no artigo 257 do Código Civil.
Desse modo, em razão do texto legal explícito, cada credor o é apenas
de sua parte, enquanto que cada devedor deve apenas a quota a ele
cabente.
Contudo, a regra da divisão da obrigação entre os sujeitos envolvi-
dos no liame obrigacional comporta duas exceções, que afastam a in-
cidência da regra concursu partes fiunt: a indivisibilidade e a solidarie-
dade, quando o credor poderá exigir a entrega da prestação integral
pelos devedores, embora cada um destes só deva parte do todo, ou,
de outro modo, quando o devedor proceder à entrega da prestação
a apenas um credor, embora exista mais de um, livrando-se, assim,
do débito.
Em. decorrência da regra estatuída pelo concursu partes fiunt, é
possível afirmar que a indivisibilidade e a solidariedade são exceções
na teoria obrigacional, e conferem ao credor garantias na solução da
obrigação, especialmente quando a pluralidade de partes se manifesta
no lado passivo, quando é possível acionar qualquer dos devedores
para cumprir a obrigação por inteiro. Em decorrência da indivisão e da
solidariedade, desaparece a regra da repartição de responsabilidades,
como ocorre normalmente no campo obrigacional, em que cada deve-
dor será instado a pagar apenas aquilo a que está obrigado, sem dimi-
nuição ou acréscimo, dada a independência do vínculo obrigacional.
É importante ressaltar que a solidariedade e indivisibilidade têm
lugar quando houver pluralidade subjetiva, uma vez que, existindo
apenas um credor e um devedor em cada pólo, a obrigação será sim-
ples, e se não houver estipulação em sentido diverso, não haverá utili-
dade na invocação da indivisibilidade ou solidariedade diante de ape-
nas um único sujeito em cada vértice da relação 3 . O artigo 314 do
Código Civil consagra o princípio da unidade da prestação, segundo o
qual "ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não
pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por
partes, se assim não se ajustou" 4 .
O dispositivo conduz à conclusão de que a regra é a entrega da
prestação integral, exceto nos casos de convenção entre as partes no
3 SERPA LOPES. Curso de direito civil, vol. 2, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000,
p. 106-107.
4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. 2, 20.ed., Rio de
Janeiro: Forense, p. 73.
182
tocante ao parcelamento, não sendo possível compelir, por qualquer
modo, o credor a receber por partes, se assim não se ajustou.
No entanto, a normativa obrigacional deverá voltar-se para a visua-
lização da obrigação em fases, ou processos, e, nesse prisma, a relação
obrigacional deverá ser entendida como um todo voltado para o cum-
primento, na visão esposada por Clóvis do Couto e Silva 5, que ressalta
que o desenvolvimento do vínculo jurídico das obrigações duradouras
não deve ser confundido com o das obrigações com prestação divisí-
vel. A obrigação como processo possui início, meio e fim, e as dívidas
com prestação indivisível serão extintas de pronto, eis que a préstação
é ofertada em sua integralidade, sem se sujeitar a divisões em razão da
indivisibilidade do objeto da obrigação 6 •
A ressistematização valorativa, provocada principalmente pelo ad-
vento da Constituição da República, impôs a consideração da pessoa
humana como objetivo principal do ordenamento jurídico 7 e a subor-
dinação e relativização das relações patrimoniais em função das rela-
ções existenciais 8 . Em razão disto, alia-se à compreensão do direito
civil em bases inafastáveis, o que, obviamente, atinge a seara obriga-
cional, entendida como "as relações jurídicas que constituem as mais
desenvoltas projeções da autonomia privada na esfera patrimonial" 9 , a
qual deve ser éncarada em uma perspectiva dinâmica e funcionaP 0 .
~ partir de tais premissas metodológicas, serão traçadas as consi-
derações sobre a pluralidade subjetiva na relação obrigacional através
da indivisibilidade e da solidariedade, com apontamentos das diferen-
"A relação obrigacional tem sido visuali7..ada, modernamente, sob o ângulo da tota-
lidade. O exame de vínculo como ~m todo não se opõe, entretanto, à sua compreensão
como processo, mas· antes, o complementa. Como totalidade, a relação obrigacional é
um sistema de processos" (COUTO E SILVA,Clóvis. A obrigação como processo. São
Paulo: José Bushatsky, ·1976, pp. 5-6).
6 COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky,
1976, p. 42.
7 Neste sentido, TEPEDINO, Gustavo. "Premissas Metodológicas para a Constitu-
cionalização do Direito Civil", in Temas de Direito Civil, 3. ed. Rio de Janeiro: Reno-
var, 2001, p. 21, e MORAES, Maria Celina Bodin de. "A caminho de um direito
civil-constitucional". Revista de Direito Civil, São Paulo, vol. 65, pp. 21-32, jul./set.
1993.
8 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 175: "O caminho até agora percorrido aponta claros sinais: indica
para arco evolutivo que migra da relação jurídica fundada acentuadamente na garantia
do crédito para o trânsito jurídico que dá relevo destacado à proteção da pessoa".
9 GOMES, Orlando. Obrigações, 11. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 3.
1O PERLING IERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, tradução de Maria Cristina de Cic-
co, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 207.
183
ças e similitudes existentes entre os institutos, levando em considera-
ção a perspectiva da obrigação como um processo lógico e desencadea-
do e que atinge o objetivo não apenas com a satisfação do interesse do
credor, mas configurada como uma relação de cooperação 11 •
Isso implica uma "mudança radical de perspectiva de leitura da
disciplina das obrigações: esta última não deve ser considerada estatu-
to do credor; a cooperação, e um determinado modo de ser, substitui
a subordinação, e o credor se torna titular de obrigações genéricas ou
específicas de cooperação ao adimplemento do devedor" 12 •
2. Conceito de Indivisibilidade
184
não guarda correspondência com nenhum artigo do Código Civil de
1916, mas por metonímia, fala-se em divisibilidade ou indivisibilidade
da obrigação 17 , tal como demonstra o título do capítulo V do Código
vigente.
O artigo 257 do Código Civil denota que a distinção entre divisi-
bilidade e indivisibilidade só possui relevância quando ocorre plurali-
dade subjetiva, nas denominadas obrigações complexas, em que o su-
jeito ativo, o sujeito passivo ou ambos são múltiplos.
A indivisibilidade tem lugar, deste modo, sempre que a prestação,
objeto da obrigação, deva ser cumprida em sua integralidade 18 . A ob-
rigação é divisível quando puder ser cumprida de modo fracionado, e
indivisível quando o adimplemento só puder ser feito por inteiro. Se a
obrigação é divisível, deverá ser dividida em tantas partes quanto fo-
rem os credores e devedores, "conservando-se independentes como
um feixe de relações justapostas, iguais e distintas, cada credor com
direito a uma cota e cada devedor respondendo também por uma
cota" 19 . Sendo a obrigação (rectius: prestação) indivisível, o credor
poderá exigir a entrega da prestação por inteiro, e o devedor liberar-
se-á da dívida efetuando o pagamento a apenas um dos credores, e a
razão da indivisão pode assentar-se em critérios diferenciados, o que
significa dizer que a indivisibilidade pode ter fundamento em causa
material ou jurídica.
O exame da indivisibilidade demanda menção à teoria dos bens
considerados em si mesmos, classificação que atenta para a possibili-
dade ou não de divisão.
donça, que assegura: "Outra teoria mais acreditada e mais generalizada nos códigos,
decorrentes dos ensinos de Dumoulin e Pothier, procura, na divisibilidade ou indivisi-
bilidade das coisas que fazem objeto da obrigação, a divisibilidade ou indivisibilidade
desta. Não menos errônea é tal teoria. A indivisibilidade é um característico da pres-
tação e não do objeto dela. De modo que é um êrro concluir-se da indivibilidade dêste
ou daquela". MENDONÇA, Manuel Inácio Carvalho de. Doutrina e prática das abri·
gações, tomo I, 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 278.
Pontes de Miranda é enfático ao afirmar que "nenhuma coisa entra no mundo jurídico
como objeto de obrigação: o que é objeto da obrigação é a prestação. A divisibilidade
ou indivisibilidade da obrigação em geral consiste na possibilidade ou impossibilidade
de se fracionar o objeto da prestação, isto é, da prestação mesma (pois o dividi-lo
importaria em dividir-se a prestação)." MIRANDA, Francisco Pontes de. Op. cit., pp.
150/15 I.
17 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 69.
18 MIRANDA, Francisco Pontes de. Op. cit., p. 152.
19 TEPEDINO, Gustavo et alli. Código Civil interpretado conforme a Constituição
da República. Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 535.
185
De acordo com os ensinamentos da física, toda matéria pode ser
dividida, e o exemplo mais eloqüente é a divisão do átomo, cujas par-
tículas não são perceptíveis a olho nu, daí ser tão ínfimo o resultado da
divisão. Entretanto, no campo jurídico são adotados outros critérios
para que se possa qualificar um bem como divisível ou indivisível, pois
a divisão material ou física por si só não é critério bastante para definir
se um bem é ou não passível de ser fracionado, devendo ser levados
outros critérios em consideração 20 .
No direito anterior, consideravam-se divisíveis as coisas que pu-
dessem ser partidas em porções reais e distintas, formando cada qual
um todo perfeito, nos termos do artigo 52 do CC/]6 21 (não reprodu-
zido pelo diploma atual), que colheu inspiração no direito romano, em
que a partida era autorizada se não acarretasse dano para o bem 22 .
Este critério revelou-se insuficiente, e o conceito atual de divisibi-
lidade encerra o critério econômico e de conservação das qualidades
essenciais do todo, além de a divisão não causar prejuízo ao fim desti-
nado. A divisibilidade pode ser decorrente de várias causas distintas,
podendo ocorrer em razão da natureza do bem, por determinação le-
gal ou instituída por vontade das partes.
Ao tratar dos bens naturalmente divisíveis, a primeira parte do
artigo 87 dispõe que um bem é divisível quando o fracionamento ou
divisão não acarretar alteração ou lesão na substância. A contrario sen-
su, um bem é considerado indivisível, se após o fracionamento, houver
vulneração na substância, que, de acordo com a sistemática atual, pos-
sui o significado de descaracterização da parte real ou essencial de
uma coisa, que perde as características essenciais que possuía. Desta
forma, as frações resultantes deverão reunir características ou quali-
dades essenciais do todo, pois, caso contrário, será o bem tido por
20 "Não pode haver mais metafísico do que afirmar que uma obrigação é divisível ou
indivisível se seu objeto é material ou intelectualmente divisível. Não há nada que a
química ou as operações subjetivas do cérebro não possam reduzir aos seus extremos
limites da divisibilidade". MENDONÇA, Manuel Inácio Carvalho de. Op. cit., p. 278.
21 Dispunha o texto do artigo 52 do código revogado: "Coisas divisíveis são as que se
podem partir em porções reais e distintas, formando cada qual um todo perfeito".
22 Eis o texto do Digesto, Livro XXX, 26.2: "C um bonorum parte legata dubium sit,
utrum rerum partes an aestimatio debeatur, Sabinus quidem et Cassius aestimationem,
Proculus et Nerva rerum partes esse legaras existimaverunt. Sed oportet heredi succur-
ri, ut ipse eligat, sive rerum partes sive aestimationem dare maluerit. In his tamen
rebus partem dare heres conceditur, quae sine damno dividi possunt: sin autem vel
naturaliter indivisae sint vel sine damno divisio earum fieri non potest, aestimatio ab
herede omnimodo praestanda est" (grifamos).
186
indivisíveF 3 . Os exemplos utilizados por Silvio Rodrigues servem para
ilustrar a assertiva, como no caso de um semovente ou um relógio,
que, ao serem divididos, deixam de ser o que eram, diversamente do
que ocorre com uma barra de ouro, que "dividida continua a ser, em
cada qual de suas partes, uma barra de ouro, embora menor" 24 .
Aliada à aludida homogeneidade, é imperioso considerar a econo-
micidade como requisito necessário e integrante da classificação em
estudo. O artigo 87 determina que, mesmo havendo alteração na
substância, não poderá ocorrer diminuição considerável do valor, que
importe grande desvalorização econômica.
Os bens são ainda divisíveis por determinação legal ou por acordo
entre as partes contratantes. Deste modo, casos há em que os bens, em-
bora materialmente divisíveis, são considerados indivisíveis por manda-
mento da lei ou convenção da partes contratantes, ocorrendo o fenôme-
no nominado por Orlando Gomes de conversão intelectual, uma vez
que tanto a divisibilidade quanto a indivisibilidade podem se conver-
ter intelectualmente na coisa oposta, diante da admissão pela ordem
jurídica da di visibilidade (e indivisibilidade) material e intelectuaF 5 .
Desta forma, nos moldes do artigo 88 do Código Civil, o parcela-
mento será admitido ou vedado considerando-se os critérios apontados
acima, em que cada uma das partes deverá guardar correspondência com
o todo, sem sofrer grande desvalorização econômica (ou frações econo-
micamente depreciadas, utilizando as palavras de Caio Mário) 26 , ou ain-
da considerando a razão determinante do negócio jurídico.
Em simetria com a classificação exposta, e pela análise do artigo
258, se dessume que o Código Civil optou pela distinção entre indivi-
sibilidade material e jurídica. A prestação pode ser indivisível por na-
tureza, convenção entre as partes ou pela razão determinante do negó-
cio jurídico.
23 Assevera Caio Mário da Silva Pereira, ao criticar o critério adotado pelo Código
anterior, afirma a insuficiência da existência de dano para a teoria da divisão dos bens,
"pois que a divisão, mesmo que se faça sem dano, não tem lugar juridicamente, se as
frações perderem conteúdo econômico, deixando de formar cada qual um todo homo-
gêneo, o que faz associar duas idéias inspiradoras da divisibilidade jurídica, quais se-
jam, de um lado, o econômico, e, de outro lado, a conservação, nas frações resultantes,
das qualidades essenciais do todo" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de
Direito Civil, voi.J, 20. ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 430.
24 RODRIGUES, Silvio. Parte geral das obrigações, vol. 2, 32. ed., São Paulo: Sarai-
va, p. 130.
25 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, 15. ed., Rio de Janeiro: Forense,
p. 225.
26 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., vol. 2, p. 71.
187
A indivisibilidade material da prestação terá lugar sempre que as
porções fracionadas não guardarem as características essenciais do
todo, nem sofrerem depreciação acentuada, em consonância com a
exposição supra 27 , enquanto que a indivisibilidade jurídica, além de
referir-se à impossibilidade de fracionamento do objeto, pode decor-
rer da lei, que instituiu a indivisão 28 , ou ainda da vontade das partes,
que convencionam no sentido de transformar a prestação material-
mente divisível em indivisível. A disposição poderá figurar ainda como
razão determinante do negócio jurídico, e a divisão poderá acarretar a
extinção do vínculo contratual se a indivisibilidade desaparecer por
outro meio que não seja a vontade das partes 29 .
Exemplo de indivisibilidade por determinação legal é o do condo-
mínio de coisa indivisível, que tem por conseqüência a existência do
direito de preferência por parte dos outros condôminos, quando um
dos consortes desejar alienar sua cota parte, devendo oferecê-la pri-
meiro aos demais comproprietários 30 . A hipoteca 31 e as servidões pre-
27 Idem, p. 70.
28 Exemplo de indivisibilidade jurídica é o dos terrenos com área mínima para a
construção. Presente a divisibilidade física, é o bem indivisível juridicamente, pois os
lotes remanescentes não poderão servir à construção, por não possuírem a área mínima
exigida pelas leis municipais.
29 TEPEDINO, Gustavo, et alli. Op. Cit., p. 537. No mesmo sentido, LIRA, Ricardo
César Pereira. "Sobre a indivisibilidade do negócio jurídico Shopping Center", in Re-
vista Trimestral de Direito Civil- RTDC, vol. I, Rio de Janeiro: Padma, 2000, pp.
241-249.
30 Conforme determina o artigo 1322 do Código Civil brasileiro. Neste sentido, os
seguintes julgados: "CITAÇÃO. CONDOMÍNIO. BEM INDIVISÍVEL. A Turma de-
cidiu pela obrigatoriedade de serem citados os condôminos do imóvel comum e indi-
visível que se quer alienar judicialmente (art. I. I OS do CPC). Cabe a eles não apenas
o direito de preferência, que poderá ser oportunamente exercido, mas também se
manifestarem contra o próprio pedido de alienação em hasta pública. Note-se que o
terreno do imóvel pertence ao ex-marido, à agravante, ao seu ex-cunhado e à esposa,
servindo o imóvel de moradia à ex-mulher (agravante) e aos filhos do interessado na
venda em hasta pública para resguardar seu direito de 25% sobre o imóvel" (STJ, REsp
367.665-SP, Rei. Min. Ruy Rosado, j. I 5.05.2003).
E, ainda: "Imóvel comum indivisível. Direito de preferência. Intimação do condômino
para a praça. Anula-se a arrematação de imóvel comum indivisível se o co-proprietário,
titular de metade do prédio de moradia, não foi intimado da realização da praça,
quando poderia exercer o seu direito de preferência. Art. I 118 do CPC. Recurso
conhecido e provido". STJ, REsp 229.247-SP, 4a Turma, Rei. Min. Ruy Rosado, julga-
do em 23/11/1999, publicado em DJ I 7.12.1999 p. 381.
31 Como preceitua o §2° do artigo 1420 do Código Civil e a jurisprudência: "Hipote-
ca. Penhora. Arts. 757 e 758 do Código Civil. Precedente da Corte.
188
diais 32 são outras hipóteses de indivisibilidade por determinação da
lei, e, mesmo que fosse possível a divisão material, o comando norma-
tivo proíbe expressamente, sobrelevando a imposição com todos os
seus consectários.
189
As obrigações de não-fazer são também indivisíveis, porque não
comportam a realização fracionada. Quem age de modo contrário à
abstenção, descumpre obrigação de não-fazer a que estava obrigado, e,
conseqüentemente, incide em inadimplemento. Todavia, a doutrina
afirma ser admissível a divisibilidade das prestações negativas quando
tem por objeto "um conjunto de omissões que não guardem entre si
relação orgânica", como a obrigação de não caçar e não pescar, decom-
poníveis em duas omissões independentes 37 • A hipótese é de difícil
ocorrência na prática, pois geralmente as prestações de não-fazer não
comportam fracionamento 38 .
2.2. Efeitos
190
ção for indivisível. Neste caso, o credor tem o direito de cobrar de
qualquer devedor a prestação por inteiro em razão da natureza da
prestação, mesmo que este deva quota-parte da coisa, devendo entre-
gá-la em sua totalidade, pelo fato de não ser possível o cumprimento
parcelado, não importando a forma com que a indivisibilidade foi ins-
tituída, se em função da lei, da natureza do objeto ou da vontade das
partes. Este é, sem dúvida, o efeito principal da indivisibilidade.
Para restabelecer o equilíbrio, o parágrafo único do artigo 259
criou a figura da sub-rogação entre os devedores, e aquele que solver
a dívida por inteiro assume a posição do credor em relação aos outros
coobrigados 41 . A própria instituição da sub-rogação corrobora a afir-
mação de que cada devedor só deve uma parte (abstrata) da dívida,
mas que, em razão da indivisibilidade, deverá prestá-la por inteiro.
Se a prestação for indivisível e um ou mais co-devedores se tornar
insolvente, não haverá prejuízo imediato para o credor (ou credores),
o qual poderá cobrar a dívida por inteiro dos outros devedores, que
decerto irá eleger e acionar o devedor que possuir melhor saúde
financeira e que seja capaz de cumprir a prestação em sua integrali-
dade. Solução diversa ocorre quando a prestação é divisível, caso
em que o credor deve arcar com a insolvência do devedor, sem pre-
judicar os demais devedores, que prosseguem obrigados apenas por
suas parcelas.
Sendo a prestação divisível, e interrompida a prescrição contra um
dos devedores, não haverá influência ou interrupção em relação à dí-
vida dos demais. Contudo, se a prescrição é interrompida contra um
dos devedores de prestação indivisível, atingirá os demais e beneficia-
rá os outros credores, já que a dívida deverá ser integralmente solvida,
e o credor que faz a cobrança persegue o recebimento por inteiro,
como demonstra o artigo 204, §2°, do Código Civil. A mesma solução
será tomada diante da ocorrência das causas de suspensão elencadas
no artigo 197 a 201 do mesmo diploma legal.
Havendo indivisibilidade com pluralidade de credores, dispõe o
artigo 260 do Código Civil que o devedor se desobrigará pagando a
todos conjuntamente, ou a apenas um, desde que este preste caução
de ratificação dos demais. O credor de obrigação indivisível só poderá
191
exigir o cumprimento da totalidade da prestação se der caução ratifi-
cando o recebimento pelos outros credores; e na hipótese da caução
não ser concedida, é legítima a recusa do devedor. Caso não ocorra
nenhum dos dois casos, cumprimento não houve, e o devedor perma-
necerá inadimplente e não se desobrigará pagando ao credor comum
desprovido de garantia, permanecendo obrigado perante os demais
credores, mas desde que descontada a cota que pagou a um deles,
aplicando por analogia a regra inscrita no artigo 262 do Código Civil.
A quitação dada ao devedor comum pelo credor solidário será vá-
lida, segundo entendimento dominante, somente no caso de o credor
ter oferecido caução, nos termos do disposto no artigo 260, 11, do
Código Civil 42 , pois quando um dos credores exige a prestação inte-
gralmente- embora tenha direito a apenas parte dela-, "exige o que
é seu e o que é do outro, ou dos outros. A entrega, mediante caução,
é entrega a todos, tanto assim que a lei fala de ratificação" 43 .
Do mesmo modo, se houver recusa por parte de um dos credores
em receber a prestação, poderá o credor utilizar-se da ação consigna-
tória para solver a obrigação, e credor que receber a prestação em sua
totalidade poderá ser demandado pelos demais, que poderão exigir
dele, em dinheiro, a parte que lhes caiba, no caso de as cotas serem
diferenciadas, ou em cotas iguais se o contrato não dispuser de outra
forma. Embora esta solução não esteja explicitamente contemplada
no artigo 261, não há outra eficazmente apresentada em caso de silên-
cio entre as partes contratantes.
192
bem divisível por excelência 44 . Entretanto, a solução será diversa se a
conversão ocorrer por culpa de um ou de todos os devedores. Neste
último caso, responderão todos por partes iguais no montante das per-
das e danos, exceto se a culpa for provocada por um ou alguns dos
devedores envolvidos, caso em que incide a regra da responsabilização
do devedor ou devedores que deverem causa à configuração, das per-
das e danos, que possui a natureza de pena para o devedor culpado
pela impossibilidade da prestação, como se extrai da regra do parágra-
fo 2° do mesmo dispositivo legal. Como a regra da distribuição da
responsabilidade só se refere às perdas e danos, a mesma solução deve
ser adotada por analogia em caso de mora dos devedores, diante da
independência entre os coobrigados e do silêncio da lei 45 .
A remissão, bem como as demais formas de extinção da dívida,
tais como transação, novação, compensação e confusão, não possui o
condão de extinguir a obrigação quando se tratar de relação obrigacio-
nal indivisível, pelo que o devedor continuará obrigado após o descon-
to da cota remitida, nos termos do artigo 262 do Código Civil.
A indivisibilidade convencional poderá extinguir-se por acordo
entre as partes, que resolvem dispor de modo contrário à indivisibili-
dade anteriormente estatuída. A divisibilidade jurídica tem lugar
quando desaparecer a disposição naquele sentido, "ocorrendo uma
causa que permita passar cada devedor a responder pela sua" 46 .
3. Solidariedade
193
à solidariedade como uma das modalidades das obrigações, objeto
deste estudo.
Empregando o enfoque civil-constitucional à responsabilidade so-
lidária, é cediço que as duas acepções deverão ser analisadas em con-
sonância com os ditames da Constituição da República, razão por que
não há inconveniente em considerar a solidariedade disciplinada pelo
direito das obrigações diametralmente oposta ou afastada por comple-
to da idéia de partilhamento dos interesses da comunidade nos mol-
des aludidos pela carta constitucional, pois a todos interessa o cumpri-
mento de uma avença, que impulsiona o crescimento e desenvolvi-
mento social, sempre levando em consideração que o ser humano é o
elemento central do Direito e referência da ordem jurídica. Corrobo-
ra este entendimento o magistério de Orlando Gomes, o qual asseve-
ra, com apoio em Enneccerus, que a solidariedade (no direito obriga-
cional) deve caracterizar-se pela coincidência de interesses para a sa-
tisfação dos vínculos jurídicos correlacionados, com a união de credo-
res e devedores "para conseguir o mesmo fim; a idéia desse fim co-
mum é tão necessária, que se nos faltar, não haverá solidariedade" 49 .
1988, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 171. Ao receber a qualificação jurídica, o
princípio da solidariedade é dotado da coerção necessária para que se possa exigir
juridicamente um comportamento solidário através do comando legal, que cria e esta-
belece ohrigatoriamente determinadas condutas com hase no princípio da solidarieda-
de, pouco importando a indagação sobre se existe ou não a (virtude) da solidariedade
no âmago do sujeito praticante.
49 GOMES, Orlando. Obrigações, cit., p. 60.
50 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op cit., vol. 2, p. 80.
194
Toda a doutrina ocupou-se de elucidar o conceito de obrigação
solidária, e os autores são unânimes em relacioná-la à idéia de coinci-
dência de interesses para a satisfação da obrigação 51 havida entre os
vários credores e/ou devedores 52 . A confirmar a assertiva está a defi-
nição lançada por Mário Júlio de Almeida Costa, que afirma que a
obrigação solidária "caracteriza-se por corresponder à pluralidade de
sujeitos um cumprimento unitário da prestação" 53 . Washington de
Barros Monteiro, na mesma linha, esclarece que as obrigações solidá-
rias surgem "quando, existindo pluralidade de credores, ou de deve-
dores, ou ainda de uns e de outros, cada um tem direito, ou é obriga-
do, à dívida toda" 54 .
Vocacionada à solução da obligatio, afirma-se, preliminarmente,
que a solidariedade é, tal qual a indivisibilidade, instituto anormal e
excepcional, por afastar a regra da repartição de direitos e responsabi-
lidades entre todos os credores e devedores.
O primeiro requisito para a sua configuração é a pluralidade subjeti-
va. Havendo vários credores, estes terão direito à dívida toda, ou ao rece-
bimento da prestação por inteiro, hipótese denominada solidariedade
ativa. Ou, ao revés, se a pluralidade é de devedores- e nada obsta que
existam vários credores e devedores simultaneamente-, cada um ficará
obrigado pela dívida toda, também em função da prestação ser una e in
solidum. A pluralidade pode se apresentar simultaneamente nos dois pó-
los, ocasião em que é denominada solidariedade mista 55 .
Ao lado da pluralidade subjetiva, o segundo requisito indispensá-
vel para a ocorrência desta modalidade de obrigações é a unidade ob-
jetiva, traduzida na unidade de prestação. Enquanto na indivisibilida-
de a unidade decorre da natureza da prestação, que não pode ser divi-
dida em decorrência de causa material ou jurídica, na solidariedade, a
entrega da prestação integral encontra fundamento diverso. A presta-
ção una não está ligada à natureza, perfeitamente compatível com a
divisão, mas por razões técnicas, foi imposta a indivisão por determi-
nação da lei ou da vontade das partes.
195
Em decorrência da unidade da prestação, se verá mais detidamen-
te adiante que, na solidariedade ativa, os credores terão o direito de
receber a dívida por inteiro, embora sejam apenas credores de cota-
parte; na solidariedade passiva, cada um dos devedores possui a obri-
gação de solver o débito integralmente, embora só devam cota-parte.
Ultrapassada a conceituação, é possível identificar o elemento
subjetivo como a principal característica do instituto da solidariedade.
Assim, afirma-se que a solidariedade é subjetiva por tratar de vínculo
estabelecido pelas partes ou por lei com fundamento no título, diver-
samente da indivisibilidade, que encontra o fundamento, normalmen-
te, na natureza da prestação, que não pode ser fracionaqa.
Ressaltando o aspecto subjetivo da solidariedade, Alvaro Villaça
Azevedo afirma:
"A solidariedade funda-se em uma relação jurídica subjetiva, com
base nas pessoas, nos sujeitos dessa mesma relação, credores e deve-
dores. Ela resulta, tecnicamente, da lei ou da vontade das partes,
trazendo maior garantia ao credor, que tem mais facilidade para co-
brar seu crédito". 56
Encontrando a fonte na lei 57 ou na vontade das partes, o resultado
é a aplicação do princípio da não-presunção da solidariedade, discipli-
nado no artigo 265 do Código Civi1 58 .
Na hipótese da solidariedade instituída por avença, a maioria da
doutrina entende que a manifestação de vontade das partes deverá ser
inequívoca neste sentido, embora não seja exigida fórmula sacramen-
Só AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral das Obrigações, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1990, p. 99.
57 Exemplo de solidariedade instituída por lei pode ser demonstrado através do se-
guinte julgado, que versa sobre relação de consumo: "Havendo pluralidade de forne-
cedores de serviço haverá solidariedade entre eles, visto que esta tem fundamento no
bom adimplemento dos contratos e não na culpa de um dos fornecedores. Portanto,
contratada hospedagem em hotel cinco estrelas c colocado à disposição do consumi-
dor estabelecimento de categoria inferior, responde solidariamente tanto a empresa
que intermediou a aquisição do pacote turístico quanto a empresa responsável pela sua
execução"- RT 746/218.
58 Solução diversa foi adotada pelo BGB (§ 427) e pelo Código Civil italiano, com se
extrai do texto do artigo 1294, I, em franca opção pela presunção da solidariedade,
que reveste o credor de maiores garantias no recebimento do crédito: "Artigo 1294- I
condebitori sono tenuti in solido, se dalla legge o dal titolo non risulta diversamente
(441, 443,752,754,961, 1314, 1408, 1682, 1944, 1948,2150,2268,2304,2513,
2670)". No mesmo sentido, SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil,
vol. V, 73 ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 123-124; e MIRANDA, Francis-
co Pontes de. Tratado de direito privado, t. 22. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, p. 335.
196
tal, como também não comporta interpretação extensiva. O que se
exige, tão somente, é que conste no instrumento que as partes dese-
jam instituir a solidariedade, do lado ativo, passivo ou de ambos, esta-
belecendo a unidade de prestação, e se houver dúvida ou contradição,
voltará a viger a regra do concursu partes fiunt 59 . Essa é a única inter-
pretação permitida pelo texto incisivo do artigo 265 do Código Civil,
que não deixa margem a entendimentos diversos.
Em sede contratual, é controvertida a possibilidade da instituição
da solidariedade somente por ato bilateral das partes, ou se é possível
estabelecer o vínculo também por ato unilateral de uma das partes.
Carvalho de Mendonça entende que a manifestação de vontade como
fonte da solidariedade necessita da convergência entre as vontades de
ambas as partes 60 , enquanto Maria Helena Diniz pondera que a solida-
riedade poderá ser instituída por ato unilateral, mas deverá sempre
contar com a anuência expressa das partes, como no caso da solidarie-
dade instituída por testamento, quando é imprescindível a aceitação
dos herdeiros e legatários 61 .
Alguns autores admitem a denominada solidariedade jurispruden-
cial, que tem raízes no direito francês, com esclarece De Page, embora
a maioria se posicione como Caio Mário, em repúdio a esta possibili-
dade no direito pátrio, diante dos termos peremptórios do artigo 265
do Código Civil 62 .
197
A estrutura da relação obrigacional possui duas vertentes, e englo-
ba as relações internas e externas. A relação interna diz respeito à
situação jurídica existente entre as partes que ocupam a mesma posi-
ção na estrutura obrigacional, que, na solidariedade passiva, é a relação
dos devedores entre si, e na ativa, é o tipo de ligação existente entre
todos os credores. A relação externa traduz o elo de ligação entre estes
dois pólos diversos, e consiste nas relações havidas entre os dois pólos,
constituídos pelos credores e devedores.
Ponto de grande controvérsia doutrinária é a indagação a respeito
da natureza jurídica da solidariedade, ou, em outras palavras, se esta
consiste na reunião de vários vínculos obrigacionais, com unidade de
objeto; se importa em representação de um coobrigado em relação aos
demais; se há vinculação fidejussória ou, diversamente, é apenas uma
relação com um só vínculo e multiplicidade de sujeitos.
A teoria da representação consiste na consideração da solidarieda-
de como sociedade, em que os devedores e credores atuam como
mandatários uns dos outros, agindo em benefício de todos. Com apoio
em Giorgi Giorgio, Lacantinerie e Carvalho de Mendonça, Serpa Lo-
pes, referindo-se à solidariedade ativa, faz referência à teoria da re-
presentação, ao entender que as obrigações solidárias são tratadas
como"( ... ) uma relação de direito entre os muitos credores de uma
só obrigação e em virtude da qual cada um REPRESENTA todos os
demais perante o devedor comum para haver o crédito ou assegurar
sua solução" 63 .
A conexão da solidariedade com a teoria fidejussória justifica-se
na função da garantia que cada devedor representa perante o credor
comum 64 , e justifica a extensão da quitação aos demais coobrigados. A
teoria é repudiada após a avaliação detida das (muitas) distinções exis-
tentes entre a fiança e a solidariedade, como na possibilidade de invo-
cação do benefício de ordem no primeiro caso, vedada no segundo 65 .
Antunes Varela arremata a questão, frisando que "na solidariedade
faltam as notas típicas da fiança, que são o caráter acessório e subsidiá-
rio da obrigação do fiador" 66 .
A vexata quaestio pertine no reconhecimento da pluralidade ou
unidade de vínculo. A teoria pluralista defende a existência de tantos
vínculos jurídicos quanto o número de credores ou devedores, que
estão enfeixados por ocasião da solidariedade, reunidos em torno da
198
prestação, que é única. Uma das justificativas utilizadas em defesa da
corrente pluralista é a dicção do artigo 266 do Código Civil, que de-
termina que a obrigação solidária pode ser pura e simples para um dos
co-devedores, e condicional, ou a prazo, para os demais. No entender
dos adeptos, isso só é possível graças à pluralidade de vínculos 67 .
Por outro lado, a corrente denominada unitarista defende a unida-
de de vínculo com pluralidade de devedores e/ou credores, e tece
críticas à teoria pluralista, levando em consideração que as disposições
descritas no dispositivo mencionado têm natureza de elementos aci-
dentais, e não possuem o condão de vulnerar a solidariedade existen-
te. Desta maneira, não há incompatibilidade ou incongruência entre
os elementos acidentais e a natureza incindívél da prestação, pois o
que se revela de extrema importância é que o credor (ou credores)
não receba de modo fracionado. Se determinado devedor gozar das
vantagens decorrentes do dispositivo, não poderá ser acionado en-
quanto não ocorrer a condição, ou compelido a pagar no mesmo local
estipulado para os outros devedores, se para ele houve previsão diver-
sa, nos moldes da parte final do mesmo artigo. Após a configuração do
evento futuro e incerto, o co-devedor da obrigação, antes condicional,
passa a ficar à disposição do credor ou dos credores, podendo ser com-
pelido a entregar a prestação integralmente.
O modo diferenciado de cumprimento da obrigação, bem como o
lugar e o prazo de pagamento distintos, como preceitua o artigo 266
do Código Civil, não afastam a unidade de vínculo e, igualmente, não
desnaturam em nenhum momento a solidariedade, dada a autonomia
que pode haver entre as prestações.
A tese unitarista foi adotada por autores como Regina Gondim 68 e
Caio Mário da Silva Pereira 69 , e não colide com a pluralidade de sujei-
tos, antes a confirma, sendo mais razoável admitir um só vínculo cons-
tituído pela pluralidade subjetiva e unidade de objeto.
Ainda quanto à natureza jurídica, sem alcance prático é a distinção
apontada por alguns entre solidariedade perfeita ou correalidade e a
solidariedade imperfeita, sendo a primeira constituída por uma só
199
obrigação, e a segunda por multiplicidade de vínculos. A solidariedade
é assim denominada porque o objeto da obrigação é devido in solidum
ou integralmente, com apenas um vínculo e envolvendo pluralidade
de partes, razão pela qual a distinção, que possui ares de subdivisão, é
inócua para a elucidação da questão 70 . Afastadas as discussões a res-
peito, parece tecnicamente adequado filiar-se à doutrina de Caio Má-
rio da Silva Pereira, para quem a natureza jurídica da obrigação é uma
só: há a divisão em duas relações distintas, interna e externa, com
pluralidade de sujeitos e unidade de prestação.
200
mia privada 74 , como nos contratos bancários de conta-corrente con-
junta, em que os depositantes possuem a liberdade de movimentar a
conta comum, podendo atuar sozinhos ou separadamente 75 , como se
depreende do julgado a seguir 76 :
na. Op. cit., p. 157: "É extensivo ao avalista o benefício da anistia da correção mone-
tária do débito previsto no art. 4 7 das "Disposições transitórias" da CF diante da
obrigação solidária por ele assumida no título de crédito originário" (RT 670/92).
74 "Constituídos vários advogados no mesmo mandato, configura-se a solidariedade
ativa, tendo cada qual, nos termos do art. 898 do CC, direito a exigir do devedor o
cumprimento da prestação por inteiro. Patente, assim, a legitimidade ativa de qual-
quer dos mandatários para pleitear o arbitramento de honorários de advogado" (RT
655/116).
75 Já se decidiu pela exclusão da responsabilidade do correntista que não emitiu os
cheques sem provisão de fundos, afastando, por conseguinte, a aplicação da solidarie-
dade: "A conta bancária em conjunto não acarreta responsabilidade solidária para o
parceiro correntista na execução de cheques emitidos sem a suficiente provisão de
fundos desde que provado não ter sido ele também emitente"- RT 574/236.
76 A seguir, ementas a respeito do tema: "A solidariedade existente entre correntistas
de conta bancária conjunta (e/ou) limita-se a estes e ao banco. Portanto, perante
terceiros, só responde pelo pagamento do cheque o correntista que o emitiu" (RT-
605/112).
"Embora os titulares da conta corrente conjunta sejam credores solidários perante a
instituição financeira, tal solidariedade não se verifica quando um dos titulares da
conta emite cheque sem suficiente provisão de fundos"- RT 794/375.
"A conta bancária em conjunto não acarreta responsabilidade solidária para o parceiro
correntista na execução de cheques emitidos sem a suficiente provisão de fundos
desde que provado não ter sido ele também emitente" (RT 574/236).
201
dor, após ter sido citado em ação ajuizada, continuará em mora, pelo
desatendimento do dispositivo legal 77 .
A prevenção perdura enquanto perdurar o processo. Cessando a
relação processual ajuizada, por qualquer motivo, desaparecem os
efeitos da demanda e da prevenção, voltando o obrigado a ter a facul-
dade de entrega da prestação a qualquer outro credor, de sua livre
escolha.
Nas relações internas, vigora o princípio da comunhão de interes-
ses, que traduz a conseqüência prática de estender os ônus e os bônus
aos diversos coobrigados que estão no mesmo lado na obrigação, em
razão de todos possuírem interesse comum no objeto da obrigação,
salvo se houver estipulação em contrário 78 .
Em razão disto, o artigo 274, inovação neste particular, dispõe
sobre o partilhamento dos efeitos favoráveis obtidos pelos co-credo-
res solidários. Deve ser feita ressalva em relação ao resultado do julga-
mento a ser obtido. Se o julgamento desfavorável referir-se a causas
que dizem respeito a todos, como nulidade contratual ou prescrição
da dívida, o resultado atingirá os demais, pois não há como cindir uma
decisão desta estirpe 79 .
O que o dispositivo legal veda, a toda evidência, é a extensão dos
efeitos de um julgamento desfavorável quando o resultado não é de
aplicação a todos os envolvidos no vínculo da solidariedade, e obvia-
mente não pode atingir os credores que não deflagraram a demanda,
pois o objetivo é a facilitação no recebimento do crédito 80 , dispensan-
do os credores da atuação conjunta em juízo, que é de natureza facul-
tativa.
A esse respeito, Gustavo Tepedino esclarece que somente podem
ser alcançados pelos efeitos da coisa julgada os credores que foram
parte no processo com vistas a cumprir a obrigação solidária. Entretan-
202
to, o dispositivo instaura um regratnento particular de eficácia subje-
tiva da coisa julgada secundum eventum litis, "ou seja, variarão as con-
seqüências conforme o resultado da demanda, alcançando os terceiros
interessados que não integraram a relação processual, mas apenas para
beneficiá-lo", tal como foi adotado em outras ocasiões, como nas
ações coletivas, e está em perfeita consonância com o teor do artigo
273 81 .
203
ativa, que, por seu turno, não apresenta vantagens, ao contrário, pos-
sui diverso inconveniente .
Quanto aos juros de mora na solidariedade passiva, determina o
artigo 280 do Código Civil que todos os devedores devem responder
pelos juros de mora (em razão da solidariedade considerada em sua
vertente externa). No entanto, o culpado responderá pela obrigação
acrescida, pois, nas relações internas entre os devedores solidários, a
regra a incidir é responsabiliza r pela mora o devedor que deu causa à
configuração. Caio Mário adverte que a regra só é aplicável aos juros
moratórios legais, não sendo possível estender a disposição legal se os
juros são resultantes de pacto novo 84 .
A defesa do co-devedor demandado na solidariedade passiva pode
ser realizada através da oposição das exceções pessoais que lhe são
próprias e das exceções comuns a todos os outros devedores 85 , sendo
vedada pelo artigo 281 a oposição das exceções pessoais inerentes aos
outros devedores, que não se comunicam entre si, como na compen-
sação e na confusão 86 . A prescrição pode ser invocada por todos os
devedores(arti go 204, §I 0 do Código Civil) e atinge a todos os herdei-
ros do credor solidário, mas, se for operada somente em relação ao
herdeiro do devedor solidário, não será extensível e prejudicial em
relação aos demais, exceto em se tratando de obrigação indivisível,
nos termos do parágrafo 2° do mesmo dispositivo.
204
apenas em relação à sua parte, pois a extinção opera em benefício dos
demais devedores quanto ao credor original, e sub-roga-se nos direitos
deste, assumindo a posição de credor frente aos demais devedores. Já
o co-credor solidário, ao receber o pagamento integral, e de acordo
com o princípio da comunidade de interesses, aplicável às relações
internas, responderá aos demais credores pela parte que lhes caiba,
segundo a dicção do artigo 272 do Código Civil. À falta de disposição
expressa, a solução é a analogia com o artigo 283 do mesmo Código,
rateando-se a prestação recebida proporcionalmente entre os credo-
res, ou em partes iguais, se não houver pacto 87 .
Com já ressaltado, a conversão da prestação em perdas e danos
não afasta a solidariedade, que subsiste exatamente porque se refere
ao aspecto subjetivo e não à natureza da prestação. Se for de índole
passiva, o devedor prosseguirá devedor in totum em relação ao valor
das perdas e danos sub-rogados no lugar, na forma do artigo 271 do
Código Civil, acrescentados os juros de mora e a cláusula penal even-
tualmente devida, conseqüências do descumprimento da obrigação e
da substituição pelo equivalente pecuniário.
Os juros de mora devidos por conta da demora no cumprimento
da obrigação são devidos por todos, mas aquele devedor que tiver
dado causa à inexecução parcial deverá reembolsar os demais pela
obrigação acrescida por sua culpa.
No caso de insolvência de um dos devedores, o artigo 283 do CC
determina que a cota do insolvente será dividida por todos os demais
devedores, que suportarão o encargo. A solução objetiva restabelecer
o equilíbrio na relação obrigacional, e não seria justo imputar ao deve-
dor que satisfez a obrigação o encargo de responder pela sua cota e
também pela cota do insolvente. O devedor que efetua o pagamento
integral se investe no chamado direito de regresso em relação aos ou-
tros devedores solidários, podendo exigir a parte que lhes cabia na
dívida comum 88 . O artigo 285 mostra exceção no caso em que a dívida
205
interessar a um dos devedores, que responderá por ela sozinho, sem a
ajuda dos demais, tudo em função do interesse que possui, como na
hipótese do fiador que tem direito ao reembolso pelo afiançado 89 .
206
em cada lado da obrigação, o solvens deverá proceder à entrega da
prestação por inteiro, voltando a viger a regra do concursu partes fiunt.
A solidariedade ativa extingue-se pela renúncia, quando os credo-
res beneficiários poderão dela abrir mão, no caso de solidariedade
convencional, e, do mesmo modo, haverá retorno à regra do partilha-
menta de obrigações. A solidariedade legal se éxtingue com a revoga-
ção da lei que a instituiu, não sendo possível a renúncia nesta hipótese,
a não ser que a regra tenha o caráter dispositivo, o que é de difícil
ocorrência.
A solidariedade passiva é instituída em benefício do credor, e au-
menta as chances de adimplemento, porque a prestação poderá ser
cobrada, integralmente, de qualquer dos devedores 90 . Poderá o credor
207
renunciar à solidariedade, optando por cobrar a dívida de cada um dos
devedores separadamente, através da renúncia à solidariedade.
A renúncia poderá ser expressa ou tácita, esta última extraída da
prática de conduta incompatível com a solidariedade (exemplo: co-
brança de parcela a que o devedor está obrigado, com a quitação). O
devedor exonerado pelo credor permanece com a obrigação de contri-
buir para a integralização da cota do devedor insolvente, pois a renún-
cia não possui influência na relação jurídica interna (que se desenvolve
entre os devedores), e não havendo afetação, o dever de integralização
e o direito ao reembolso permanecem intactos.
O pagamento e as demais formas de extinção da obrigação (remis-
são, compensação, novação e a dação em pagamento) extinguem a
dívida, em decorrência do efeito liberatório que possuem, de acordo
com o artigo 269 do Código Civil, que conjugado com o artigo 272,
ordena que o credor remitente responda pela cota que lhes cabe. Re-
gistre-se que o artigo 272 só dispõe sobre a remissão, mas não exclui
as outras modalidades extintivas mencionadas.
Na solidariedade passiva, a remissão ou perdão obtido por um dos
devedores, também chamada de remissão pessoal, não extingue a
dívida como na solidariedade ativa, devendo apenas ser descontada
a cota do devedor remitido 91 , e sendo qualquer dos outros devedo-
res demandado para a entrega da prestação in totum, poderá, em
face da remissão concedida ao co-devedor, pleitear o abatimento da
parte remitida. Quanto ao resto, subsistirá a solidariedade em todos
os termos.
Não há óbice algum à ocorrência de compensação entre devedor
solidário e credor, assim como a novação entre eles exonerará os de-
mais devedores. A transação realizada entre um dos devedores solidá-
rios e o credor extinguirá a dívida daquele em relação aos demais, tal
qual na dação em pagamento, em que o vínculo não subsiste 92 .
O cumprimento da obrigação pelo terceiro interessado não extingui-
rá a dívida solidária (nem a dívida simples) em face da ocorrência da sub-
rogação pessoal, aplicando-se o artigo 346, III, do Código Civil 93 •
208
A prescrição interrompida contra o devedor comum beneficiará a
todos os credores, mas as exceções pessoais não aproveitarão, haja
vista que são externas à relação principal (artigo 273 do Código Civil).
É possível a renúncia à solidariedade pelo credor, que tem o direi-
to de se despojar da garantia de solução do débito 94 . Efetivada parcial-
mente, produzirá a diminuição da proporção do direito de acionar os
outros devedores, pelo abatimento do montante objeto da renúncia.
A morte de um dos credores solidários (hipótese do artigo 270 do
CC) é causa atenuante, mas não extintiva do vínculo da solidariedade.
Cada herdeiro, individualmente considerado, não pode receber senão
apenas a sua cota-parte, salvo se a prestação for indivisível, razão por-
que, na morte de um dos credores solidários, o crédito se transmitirá
sem essa qualidade. Mas todos os herdeiros reunidos representam o
credor falecido, podendo invocar a solidariedade em conjunto e rece-
ber a prestação por inteiro.
Nas relações internas, a morte de um dos devedores solidários não
afeta o vínculo existente entre os demais devedores, e a solidariedade
passiva subsiste entre os sobreviventes, sem maiores dificuldades.
Contudo, não haverá transmissão da solidariedade para os herdeiros
do devedor solidário, que só poderão ser demandados para pagar a
cota-parte, exceto se a obrigação for indivisível, caso em que a impos-
sibilidade de cumprimento fracionado deriva da natureza da presta-
ção, nos termos do artigo 276.
Deste modo, a obrigação do de cujus transmitir-se-á conjuntamen-
te aos herdeiros, que somente poderão ser acionados pelo vínculo da
solidariedade quando reunidos. O mesmo não ocorre se cada herdeiro
atuar individualmente, quando, nessa qualidade, não responderá pela
prestação in totum 95 .
Assim, todos os herdeiros, agindo em conjunto, são considerados
um só devedor solidário, e respondem pela dívida toda. Para isto, a
209
herança deverá estar ainda indivisa, sob a forma de universalidade,
porque, se já tiver havido partilha, não haverá solidariedade.
210
Cessão e circulação de crédito no Código Civil
2ll
Diz-se que o crédito assume diferentes vertentes, de acordo com
a finalidade para a qual é outorgado: à produção industrial, à atividade
rural, ao comércio, ao consumidor, sendo estes, de certo modo, vincu-
lados à atividade econômica. Ao lado dessas categorias, subsistem as
operações de crédito realizadas sem escopo especulativo, à margem
do sistema financeiro nacional e que não estão revestidas de propósi-
tos previamente definidos: aqui se refere ao simples mútuo realizado
entre particulares, qualquer que seja o contexto em que celebrado o
negócio jurídico. Importante ressalvar que, em qualquer caso, uma
operação de crédito pode ser definida como troca de um valor presen-
te por um valor futuro, o que, desde logo, permite pontuar suas prin-
cipais características, sendo elas tempo e confiança 3 .
A partir do incremento das relações econômicas - o que se cons-
tatou substancialmente no curso do Séc. XIX- o Direito passou a
atentar para a criação de instrumentos jurídicos que viessem a facilitar
a substituição da posição do credor. Logo, o que era inadmissível em
tempos longínquos, em virtude do caráter personalíssimo da obriga-
ção4, passou a ser fundamental para o melhor aproveitamento do cré-
"Dal punto di vista econômico, enoto che la economia moderna si fonda largamente sul
credito. La maggior parte dei produttori, infatti, per potere collocare il maggior numero
di beni prodotti, li vendono a credito; a foro volta, gli stessi produttori hanno bisogno di
ricostituire i foro capitali in moneta, per potere riprendere il ciclo di produzione: percià
in tanto possono vendere a credito i prodotti, in quanto riescono a cedere ad altri (di
solito: le banche) i crediti verso la clientela. In línea generale puà affermarsi che chi ha
bisogno di credito l'ottiene tanto piu largamente quanto piu il creditare e sicuro di
potere, sempre che voglia, cedere ad altri il suo credito e realizzame cosi il valores in
denaro" (Diritto Commerciale, Milão, Giuffre Editore, 2003, p.305).
3 Nesse exato sentido, a lição de J.X. Carvalho de Mendonça: "A operação mediante
a qual alguém efetua uma prestação presente, contra a promessa de prestação futura,
denomina-se operação de crédito( ... ) A operação de crédito por excelência é a em que
a prestação se faz e a contraprestação se promete em dinheiro" (Tratado de Direito
Comercial Brasileiro, Volume III, Tomo 11, Campinas-SP, Russell, 2003, p.S8).
Como também sustenta Waldirio Bulgarelli, com a seguinte passagem: "Economica-
mente, implica o crédito dois elementos básicos: a confiança, pois ao entregar um bem
ao devedor, o credor demonstra confiar que o devedor o pague ou o devolva ( ... ) o
tempo, havendo sempre um período de tempo mediando entre a entrega do bem e sua
devolução ou pagamento. Portanto, o crédito pressupõe prazo" (Títulos de Crédito,
São Paulo, Editora Atlas, 1996, p. 21 ). Leiam-se ainda as palavras de Fran Martins: "O
crédito, ou seja, a confiança que uma pessoa inspira a outra de cumprir, no futuro,
obrigação atualmente assumida, veio facilitar grandemente as operações comerciais,
marcando um passo avantajado para o desenvolvimento das mesmas (... )" (Títulos de
Crédito, V oi. I, Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 3).
4 Referindo-se à cessão de crédito, sustentava Clóvis Beviláqua, em linhas clássicas,
212
dito, permitindo sua utilização por um maior número de sujeitos, a
um só tempo. Surgem nessa época os títulos de crédito, que, como se
verá, tiveram o propósito bem sucedido de alcançar o máximo de ob-
jetivação do direito de crédito, o qual, incorporado em um documen-
to, passou a ser negociado como coisa móve!S.
Os títulos de crédito atingiram elevado prestígio com a edição da
Lei Cambiária alemã de 1848 6 , cujos princípios orientaram os traba-
lhos da unificação do Direito Cambiário, finalmente concluídos com a
Lei Uniforme de Genebra de 1930. A construção do Direito Cambiá-
rio trouxe uma espécie de dicotomia de regimes de substituição do
credor: passou-se a falar em "cessão de crédito do Direito obrigacional
comum" em contraposição à "circulação cambiária do crédito".
Em conseqüência, o sistema de transmissão de crédito conhece
dois regimes distintos, sendo eles a cessão comum e a cessão por meio
dos títulos de crédito 7 .
que se trata de "instituto relativamente moderno, estranho aos romanos, para os quais
a rigorosa personalidade do vínculo obrigacional não permitia a transmissão dos direi-
tos creditórios por ato entre vivos. Hoje a doutrina está, definitivamente, formada, e
os modernos Códigos Civis, o alemão, o suíço das obrigações, e o nosso, deram à
transferência dos créditos o seu lugar próprio, na parte geral das obrigações, para
acentuar a sua generalidade, e fixaram os seus caracteres dominantes'" (Código Civil
dos Estados Unidos do Brasil Comentado, Vol. IV, Rio de Janeiro, Editora Paulo de
Azevedo, I I" edição, 1958, p. 180).
5 Nessa direção, é interessante observar que os tratadistas da época inseriram o
estudo da circulação do crédito entre o "Direito das Coisas", valendo citar a obra de
Vivante, que consolidou tais estudos no Volume III ("Das coisas'") de seu Tratado de
Direito Mercantil (confira-se a respeito a edição espanhola da 5• edição do Tratado,
publicada em Madri, em 1936, pela Editora Reus, traduzida por Miguel Cabeza Y
Anido, p. 135-629).
6 A referência se faz à Ordenança sancionada em 24 de novembro de I 848, resultan-
te das Conferências de Leipzig (nas quais predominaram as posições científicas de
Einert, Liebe e Thõl), destinadas à uniformização da legislação cambial, fragmentada
em 56 leis então em vigor nos diversos Estados da Liga Alemã. Segundo registrado pela
doutrina, as legislações posteriores quase transcreveram a Ordenança, por sua exata
correspondência às exigências econõmicas, valendo citar o Código Federal Suíço das
Obrigações de I 881 e o Código Comercial Italiano de 1882. Ao lado disso, aquela
Ordenança influenciou o Código Comercial português de 1888 e a Lei Cambial inglesa
de 1882, diferentemente do caminho seguido pela França, que se manteve fiel aos
sistemas consagrados pela Ordenança de 1673 e ao Code de 1808, vendo na letra de
câmbio um título causal e instrumento do contrato de câmbio e, mais tarde, meio de
pagamento, pelo emprego do endosso (vide, por todos, Mario Alberto Bonfanti e José
Alberto Garrone, De Los Titulas de Credito, Buenos Aires, Editora Abeledo-Perrot,
1976, p. 171-172).
213
O Código Civil brasileiro de 2002 entrou em vigor trazendo regras
tanto sobre a cessão comum de crédito (arts. 286 a 298), quanto sobre
os títulos de crédito (arts. 887 a 926), sistematizando os últimos se-
gundo o modo de circulação do direito (títulos ao portador, à ordem e
nominativos).
À vista do que foi dito nestas notas introdutórias, o escopo deste
estudo consiste na realização de uma leitura atual da disciplina de
transferência de crédito no Código Civil, mediante a abordagem dos
seus dois diferentes regimes, de forma a identificar pontos de conver-
gência e, por outro lado, as distinções subsistentes, que justificam a
dupla previsão da transmissibilidade do crédito pelo Código Civil.
2. Cessão de crédito
214
fato dele não participar do negócio de cessão não permite induzir que sua
realização seja concluída e produza os efeitos intencionados sem que o
devedor ao menos esteja ciente da transmissão pretendida. A regra,
atualmente prevista no art. 290, do Código Civil, é antiga, estando antes
disposta no art. 1.069, do Código Civil de 1916 10 .
Não obstante seja bilateral, não configura a cessão de crédito um
contrato típico, vez que carece de identidade própria. Nesse sentido,
não deve ser interpretada como um contrato novo, produzindo apenas
alterações subjetivas na relação jurídica a que se refere, sem a criação
de novas obrigações 11 •
215
A cessão pode ser onerosa ou gratuita, característica decisiva para
a fixação do regime de responsabilidade do cedente. Logo, pelos ter-
mos dos arts. 295 a 297, na cessão a título oneroso, o cedente será
responsável pela existência do crédito, enquanto na cessão a título
gratuito, tal responsabilidade apenas lhe será oponível acaso compro-
vada sua má-fé (art. 295). A preocupação do legislador, nessa hipóte-
se, é coibir o enriquecimento indevido do cedente, o que poderia
ocorrer, por exemplo, em casos de inexistência ou vício de nulidade
do vínculo obrigacional anterior, ou caso tenha ele sido extinto por
fato anterior à cessão.
Por outro lado, será lícito convencionar, no bojo do instrumento
de cessão, cláusula de responsabilidade pela solvência do devedor (e
não pelo efetivo pagamento do crédito!), cujos efeitos se operarão a
partir da declaração de insolvência ou falência do devedor originário
(art. 296). A doutrina vem interpretando esse dispositivo no sentido
de permitir a referida convenção de responsabilidade tanto nas ces-
sões onerosas, como nas gratuitas, sem admitir, entretanto, a estipula-
ção de renúncia ao benefício de ordem do cedente 12 , razão pela qual o
último não poderá ser demandado antes de caracterizada a dita insol-
vência ou falência (i.e., declarada por sentença judicial). Nessa hipó-
tese, a responsabilidade do cedente, ainda que expressamente con-
vencionada, não se refere ao adimplemento da obrigação de pagar o
valor do crédito, cujo risco se presume tenha sido assumido pelo ces-
sionário à vista da análise da capacidade de pagamentos do devedor
originário (ou seja, o risco de crédito permanece respeitante ao deve-
dor originário). Caso o cessionário decida adquirir crédito de significa-
tivo risco, supõe-se que o preço da cessão seja bem inferior ao valor
nominal do crédito, considerando as reais chances de inadimplemento
pelo devedor originário. Nessa eventualidade, em sendo o devedor
declarado insolvente ou falido, o cessionário apenas poderá exigir do
cedente o valor correspondente ao preço de aquisição do crédito, pago
pelo primeiro ao segundo, além de juros e despesas incorridas pelo
cessionário para a cobrança do crédito contra o devedor originário. Tal
regra está textualmente prevista no art. 297, do Código Civil, e tem
por finalidade limitar a responsabilidade do cedente 13 , o qual, tendo
216
alienado o risco do negócio, dele se exime. Como bem observado pela
doutrina, a limitação de responsabilidade visa coibir o enriquecimento
sem causa do cessionário, que, do contrário, poderia perceber doce-
dente valor muito superior ao que este recebeu quando alienou o cré-
dito14.
Interessante questão consiste em saber se créditos futuros podem
ser cedidos. Em trabalho especializado, Carlos Alberto da Mota Pinto
sustenta a possibilidade dessa cessão, incluindo-se os créditos que ve-
nham a surgir no curso do tempo (por exemplo, alugueres futuros de
contrato de locação), aqueles cujo fato constitutivo ainda deva ser
consumado (como o crédito às contraprestações de contrato de forne-
cimento, no qual o montante da prestação ainda deve ser delimitado,
ou o crédito relacionado com dividendos futuros de uma sociedade
anônima), ou ainda aqueles cujo fundamento só surja com o decurso
do tempo (relacionados com certos tipos de seguros e previdência).
Na opinião do autor, que se mostra predominante, ainda que futuros,
os créditos devem ser determináveis, da mesma forma que se exige
para o objeto do negócio jurídico (art. 104, li, do Código Civil) 15 .
Admitindo a cessão de créditos futuros, o Superior Tribunal de Justi-
ça assim se pronunciou, em bela decisão, relatada pela Ministra Nancy
Andrighi (Resp 356383/SP, publicado no D.J. de 06.05.2002, p.
289): "( ... )A celebração entre as partes de cessão de posição contra-
tual, que englobou créditos e débitos, com participação da arrendado-
ra, da anterior arrendatária e de sua sucessora no contrato, é lícita,
pois o ordenamento jurídico não coíbe a cessão de contrato que pode
englobar ou não todos os direitos e obrigações pretéritos, presentes ou
futuros, inclusive eventual saldo credor remanescente da totalidade
de operações entre as partes envolvidas ( ... )".
217
Quanto à função da cessão comum de crédito, a complexidade da
vida moderna a estendeu substancialmente, determinando seu em-
prego inclusive em operações realizadas no âmbito da atividade econô-
mica, figurando muitas vezes ao lado de títulos de crédito. Exemplos
podem ser encontrados em técnicas criadas para o atendimento de
diferentes estruturas financeiras (i.e, diferentes regimes de serviço de
dívida), como a securitização de recebíveis e a cessão fiduciária de
direitos creditórios decorrentes de contratos imobiliários, além de de-
terminadas operações bancárias.
Em um panorama geral, a securitização de recebíveis caracteriza-
se pela cessão de créditos originariamente titulados por uma unidade
empresarial para uma outra entidade, que os deve empregar como
lastro na emissão de títulos ou valores mobiliários, colocados junto a
investidores, no escopo de se angariar recursos, ordinariamente para o
financiamento da atividade econômica 16 . A instituição cessionária dos
créditos deve, direta ou indiretamente, coletar os recursos resultantes
do pagamento dos créditos cedidos, depositando-os em conta bancá-
ria específica, cujas regras de movimentação são convencionadas pelas
partes interessadas, tendo como standard orientador a liquidação da
dívida por meio do crédito cedido ou dos valores em dinheiro resul-
tantes de sua realização e, por outro lado, o retorno ao cedente dos
valores que excedam o saldo devedor lastreado no crédito cedido.
Não obstante, o mecanismo da securitização de recebíveis, acima re-
sumido, pode ostentar diferentes particularidades, de acordo com a
existência de norma, legal ou regulamentar, que discipline suas distin-
tas modalidades, as quais, por sua vez, variam conforme a natureza do
crédito cedido (comercial, financeiro, imobiliário etc). Nesse sentido,
observe-se que a securitização de recebíveis imobiliários foi positivada
no Direito brasileiro pelo art. 8°, da Lei n° 9.514/97 (que instituiu as
bases do Sistema de Financiamento Imobiliário), enquanto a securiti-
zação de recebíveis financeiros veio a ser regulada pela Resolução n°
2.493/98, do Conselho Monetário Nacional.
218
A cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos
imobiliários encontra-se disciplinada na Lei 9.514/97. A estrutura da
aludida cessão fiduciária é pontuada por seu art. 18, produzindo a
transferência em garantia da titularidade do crédito, até a liquidação
da dívida garantida, cujo efeito será a resolução da propriedade do
cessionário, retornando o crédito para o patrimônio do cedente. Essa
modalidade negociai foi introduzida no referido diploma com a função
de fortalecer o crédito imobiliário e, por conseguinte, fomentar a pro-
dução dessa indústria.
Ademais, certas operações bancárias podem ser, por sua atipicida-
de, plenamente realizadas, tanto pelo instituto da cessão de crédito
quanto por meio de títulos de crédito. Logo, o desconto bancário,
embora preferivelmente realizado mediante a transferência ao Banco
de um título de crédito, por endosso, pode ser celebrado desde que
efetivamente exista um crédito, objeto do desconto, conforme bem
salientado por Nelson Abrão 17 •
Outro complexo e sofisticado instrumento, performado por meio
da cessão de crédito, consiste no fundo de investimento em direitos
creditórios (FIDC), atualmente regulado pela Instrução n° 356/2001,
alterada pela Instrução n° 393/2003, ambas editadas pela Comissão
de Valores Mobiliários. Pelas definições adotadas no referido regula-
mento, considera-se fundo de investimento em direitos creditórios
"uma comunhão de recursos que destina parcela preponderante do
respectivo patrimônio líqüido para a aplicação em direitos creditó-
rios" (art. 2°, III, Instrução n° 356/2001 ). Por sua vez, direitos credi-
tórios são definidos como "direitos e títulos representativos de crédi-
to, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, co-
mercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mer-
cantil e de prestação de serviços, de warrants e de contratos de com-
pra e venda de produtos, mercadorias ou serviços para entrega ou
17 Direito Bancário, São Paulo, Editora Saraiva, 1999, p. 97 e ss. No Direito Italiano,
a operação de desconto encontra-se tipificada no art. 1.858, do Código Civil, como o
contrato pelo qual o banco, com prévia dedução do juro, antecipa ao cliente a importân-
cia de um crédito para com terceiro, ainda não vencido, mediante a cessão do próprio
crédito. Sergio Carlos Covello, examinando o conceito proposto pelo Codice, descre-
ve: Desse conceito depreendem-se as seguintes características fundamentais do contrato
em exame: la) trata-se de contrato de natureza creditícia, tendo sempre por objeto um
crédito contra terceiro ainda não vencido; 2a) aperfeiçoa-se com a transmissão efetiva
do crédito ao Banco; 3a) o Banco toma-se proprietário do crédito por meio da cessão,
quando se trate de crédito simples, ou de endosso, caso se trate de crédito incorporado
a um título; 4a) a cessão (ou endosso) do crédito não é plena, pois o Banco não suporta
o não pagamento do crédito(. ..) (Contratos Bancários, São Paulo, Leud, 1999, p. 238).
219
prestação futura, bem como direitos e títulos representativos de cré-
ditos de natureza diversa assim reconhecidos pela Comissão de Valo-
res Mobiliários" (art. 2°, I, Instrução n° 356/2001). De outra feita, a
cessão de direitos creditórios consiste na "transferência pelo cedente,
credor originário ou não, de seus direitos creditórios para o FIDC,
mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacio-
nal" (art. 2°, 11, Instrução n° 356/2001). O FIDC destina-se à capta-
ção de recursos junto a investidores qualificados (definidos nos ter-
mos da Instrução n° 409/2004, alterada pela Instrução n° 411/2004,
ambas da Comissão de Valores Mobiliários). Segundo a norma regula-
mentar, tais recursos devem ser aplicados preponderantemen te na
aquisição de direitos creditórios (cinqüenta por cento, no mínimo, do
patrimônio líquido do fundo), sendo o efetivo valor de tais direitos
determinante para o cálculo do valor da cota (art. 14, Instrução n°
356/2001 ). Enfim, o regulamento do fundo deverá prever informa-
ções sobre a natureza dos direitos creditórios a serem adquiridos, so-
bre os respectivos instrumentos jurídicos, a descrição dos processos
de origem dos direitos creditórios e, ainda, sobre os mecanismos e
procedimentos de cobrança dos direitos creditórios (art. 24, X, Ins-
trução n° 356/2001).
Como se vê dos casos declinados, a função da cessão de crédito,
quando inserida no bojo da atividade econômica com escopo especu-
lativo, em muito se aproxima daquela desempenhada pelos títulos de
crédito. Vale dizer que dita proximidade foi viabilizada por uma série
de fatores, dentre os quais se destaca o fenômeno da objetivação dos
direitos, adiante comentada.
18 Obrigações, p. 199-200.
220
Posteriormente, a intensa reaproximação entre ética e Direito, ocor-
rida principalmente a partir da segunda metade do século XX, projetou
substanciais efeitos na metodologia jurídica, que, naturalmente, evoluiu
de uma jurisprudência de interesses para uma jurisprudência de valores,
nos termos muito bem salientados por Perlingieri 19 .
Logo, a valoração das relações jurídicas privadas contribuiu para
ressaltar o aspecto funcional e dinâmico dos direitos, não mais cir-
cunscritos à estrutura jurídica abstratamente prevista em lei, de cará-
ter essencialmente estático. Com efeito, a funcionalização dos direi-
tos permitiu privilegiar a noção de interesse em comparação ao direito
subjetivo.
Nessa orientação, Perlingieri defende, com referência aos direitos
subjetivos, que contrapõem-se duas diferentes definições: poder da
vontade versus interesse protegido. A definição atual é no sentido de
misturá-las: o poder de vontade é aquele reconhecido a um sujeito
para a realização de um interesse do próprio sujeito. Nesse exame, o
direito subjetivo deixa de ser considerado unilateralmente, finalizado
a si mesmo, para fins de incluir o ponto de vista daquele com relação
ao qual tal direito é exercido. Como resultado, o direito subjetivo
passa a corresponder a deveres e obrigações atribuíveis ao titular do
direito, o qual não mais pode provocar danos na esfera de outros sujei-
tos, à luz do princípio da solidariedade. Essa visão funcionalizada e
socializada do direito subjetivo permite a ponderação dos interesses
em jogo, dentro de uma situação concreta, de modo que prevaleça o
interesse que, à luz dos valores constitucionais, esteja em maior har-
monia com o ordenamento jurídico: "No ordenamento moderno, o
interesse é tutelado se, e enquanto for conforme não apenas ao inte-
resse do titular, mas também àquele da coletividade" 20
221
Sem dúvida, esse caminho reduziu a importância do elemento
subjetivo da relação jurídica e fortaleceu seu elemento objetivo.
Enzo Roppo, ao tratar da objetivação do contrato e da tendência
para a progressiva redução do papel e da importância da vontade dos
contraentes, expõe que "a razão unificante de todas estas regras é a
exigência de tutelar a confiança (e enquanto isso, como sabemos, ga-
rantir a estabilidade, a ligeireza, o dinamismo das relações contratuais
e, portanto, das transferências de riqueza). Mas tutelar a confiança só
é possível dando proeminência- na definição do tratamento jurídico
das relações - aos elementos exteriores, ao significado objectivo e
típico dos comportamentos, à sua cognoscibilidade social; e isto signi-
fica, por contraposição, atenuar o tradicional relevo dado às atitudes
psíquicas singulares, concretas e individuais dos contraentes, às suas
representações subjetivas, limitadas ao foro íntimo- em conclusão, à
sua vontade. Daqui uma objetivação do direito dos contratos e do
próprio conceito de contrato (cujas definições tendem, cada vez mais,
a basear-se no elemento declaração em vez de no elemento vontade):
conseqüência inevitável do objetivar-se, standartizar-se, despersonali-
zar-se das operações econômicas que constituem o seu substracto
real" 21 •
Trazidos tais dados para a disciplina do crédito, é lícito afirmar
que a objetivação dos direitos e a idéia de interesse permitiram flexi-
bilizar ainda mais a posição dos sujeitos dessa relação, facilitando sua
substituição e expandindo a tutela jurídica do terceiro cessionário do
crédito, sobretudo em homenagem à boa-fé e à confiança.
Com a expressão objetivação do crédito, procura-se realçar a im-
portância do interesse vinculado à satisfação do crédito, inde-
pendentemente do fato desse interesse pertencer ao patrimônio do
credor originário ou ter sido transmitido a terceiro.
Portanto, a objetivação do direito de crédito constitui ponto cen-
tral do estudo de sua transmissibilidade. Pietro Perlingieri enfrenta o
problema da objetivação do crédito ao analisar a aproximação entre as
situações reais e as situações de crédito 22 , sustentando que, para a qua-
lificação real ou creditória de uma situação, não importa que ela tenha
como ponto de referência objetivo uma coisa, ainda porque os direitos
de crédito podem ser objeto de um direito real, tal como ocorre com
o penhor de direitos e de títulos de crédito (art. 1.451 e ss., do Código
21 O Contrato, tradução por Ana Coimbra eM. ]anuário C. Gomes, Coimbra, A1me-
dina,I988,p.301.
22 Perfis do Direito Civil, p. 205.
222
Civil brasileiro) e o usufruto de títulos de crédito (àrL 1.395, do Có-
digo Civil brasileiro). Por isso, a objetivação do crédito decorre da
constatação de que a própria situação credi~óiia constit11i um interesse
juridicamente relevante, o qual é merecedor, por conseguinte, de uma
tutela jurídica específica.
Essa visão, fruto da evolução científica, aproxima o regime da ces~
são comum do mecanismo de transmissão de obrigações por meio dos
títulos de crédito, cuja estrutura fundamentou-se na coisificação do
crédito, o qual, incorporado à cártula, passou a circular como objeto
de direito 23 . No entanto, enquanto no primeiro caso a objetivação do
crédito foi sendo admitida no decorrer de longa e gradual caminhada
da ciência, a partir de uma jurisprudência dl} interesses, seguiçla por
uma jurisprudência de valores, a construção do Direito Cambiário foi
conseqüência de uma das mais brilhantes e talentosas construções
dogmáticas oitocentistas, resultante do método da jurisprudência dos
conceitos, cuja.s linhas foram habilmente registradas por Larenz, em
sua Metodologia 24 •
23 Como registrado pelo jurista espanhol Rodrigo Uría, deve-se a Savigny uma das
primeiras construções de relevo da dogmática cambiária, estritamente vinculada à
incorporação do direito ao título. Entendido o direito de crédito como, metaforica~
mente, transposto no documento, aquele passou a seguir a sorte deste último: o direito
não pode existir nem ser transferido sem o documento, seguindo suas vicissitudes
(Derecho Mercantil, 28" edição, Madri, Marcial Pons, 2002, p. 91 0). Confira-se, ade-
mais, o magistério de Francesco Messineo, referindo-se às diferentes categorias de
títulos de crédito como coisas móveis: "Prima di precisare inche cosa le varie leggi di
circolazione consistono, e necessario mettere in evidenza il vaiare di un elemento, che e
comune ad esse. Efuori dubbio che il ti tolo ai portatore e considerato (per lo meno ai
fini della sua circolazione) como cosa mobile corporale (. .. ) Il titolo all'ordine e il titolo
nominativo e, non meno dei ti tolo ai portatore, una cosa mobile" {I Titoli di Credito,
Vol. I, Pádua, Editora Cedam, 1964, p. 262).
24 Sobre a jurisprudência de conceitos, leciona Larenz: "Foi PUCHTA quem, com
inequívoca determinação, conclamou a ciência jurídica de seu tempo a tomar o cami-
nho de um sistema lógico no estilo de uma «pirâmide de conceitos», decidindo assim
a sua evolução no sentido de uma «Jurisprudência dos conceitos» ( ... ) PUCHTA aban-
donou pois a relação, acentuada por SAVIGNY, das «regras jurídicas» com o «instituto
jurídico» que lhes é subjacente, em favor da construção conceptual abstrata, e colo-
cou, no lugar de todos os outros métodos - e também no de uma interpretação e
desenvolvimento do Direito orientados para o fim da lei e· o nexo significativo dos
institutos jurídicos- o processo lógico-dedutivo da «Jurisprudência dos conceitos>>,
preparando o terreno para o «formalismo» jurídico que viria a prevalecer durante mais
de um século ( ... ) Formalismo que, como acentua WIEACKER, constitui a «definitiva
alienação da ciência jurídica em face da realidade social, política e moral do Direito».
Não foi assim por mero acaso que o movimento contraposto arrancou, de início, não
223
3. Títulos de crédito no Código Civil
224
nião, as regras inseridas no Código Civil teriam abandonado os princí-
pios norteadores do Direito Cambiário, consagrados na Lei Uniforme
de Genebra, posição comungada por Fran Martins 27 . Requião exter-
nou sua perplexidade quanto à possibilidade de admissão no Direito
brasileiro de duplo tratamento dos títulos de crédito, vez que as regras
do Código se divorciariam da legislação cambiária.
Fabio Konder Comparato bem observou que o Código Civil teria
seguido o Codice italiano de 1942, que contém normas gerais sobre
títulos de crédito (arts. 1992 a 2.027) 28 . Em seu ponto de vista, caso
as normas do Código Civil viessem a ser supletivas da lei especial,
teriam aplicabilidade quase nenhuma 29 .
O autor do Anteprojeto nessa parte, Mauro Brandão Lopes, sus-
tentou que o problema de se pontuar o alcance das normas sobre títu-
los de crédito no Código Civil não seria de caráter jurídico, mas sim de
política legislativa 30 . Para ele, restringir os títulos de crédito aos regu-
lados por lei especial seria inutilizar sua previsão no Código Civil.
Logo, as disposições gerais codificadas não se aplicariam aos títulos de
crédito regulados por leis especiais, mas sim aos chamados títulos ino-
minados ou atípicos, criados por particulares, no dia-a-dia de suas ati-
vidades, sem uma lei específica que os preveja, assim como se admite
para os contratos em geral.
Essa posição encontrou- e ainda encontra!- algumas resistên-
cias na doutrina, que, em geral, reconhece o atributo de legalidade
dos títulos de crédito, apenas admitindo, como tais, aqueles que sejam
criados e regulados por lei. Comparato se posicionou nessa linha, aler-
tando para a gravidade de se atribuírem a documentos criados por
particulares as características de títulos circulantes, dotados de auto-
nomia e literalidade 31 . Ademais- continuou o jurista- a admissibi-
lidade dos títulos atípicos operaria em detrimento da clássica distin-
ção entre os títulos de crédito propriamente ditos, os títulos de legiti-
mação e os comprovantes de legitimação, cuja relevância não seria
meramente acadêmica, mas sim decorrente do fato de as duas últimas
categorias serem despidas de força executiva. A desvantagem dessa
situação seria a insegurança jurídica causada pela dificuldade de se
225
distinguir, na prática, se um documento criado por particular seria ou
não um título de crédito próprio, cujo direito seria exigível via ação
executiva.
Na doutrina clássica, J. X. Carvalho de Mendonça era favorável à
emissão dos títulos de crédito atípicos, circuláveis via endosso 32 . Tam-
bém nessa orientação há importantes opiniões na Itália, desde as lições
de Vivante 33 e Messineo 34 até as aulas contemporâneas de Giuseppe
Auletta e Niccolo Salanitro, sustentando que a cláusula geral do artigo
1.987 do Código italiano vem sendo interpretada no sentido de admi-
tir a emissão de quaisquer títulos, em respeito ao princípio da autono-
mia privada, sendo assim reconhecida a faculdade de emissão de títu-
los atípicos por particulares, desde que não ao portador, em face da
regra limitativa da autonomia prevista no artigo 2.004 daquele Códi-
go35 (regra que, aliás, se encontra presente no direito brasileiro desde
o Código Civil de 1916- art. 1.511 -permanecendo no Código de
2002, art. 907). No Direito argentino, embora não estejam em vigor
normas gerais sobre títulos de crédito 36 , a doutrina vem externando
32 Tratado de Direito Comercial Brasileiro, Volume III, Tomo 11, p.ll 0/111.
33 Lecionou Vivante, em seu Tratado: "Toda persona capaz para contratar puede
obligarse en materia mercantil poniendo su firma en un titulo a la orden, en virtud de
la nonna que presta eficacia a toda declaración de voluntad no prohibida por la ley.
Pera hay más que este argumento de carácter general. Al regular en varias lugares de
modo genérico los títulos a la orden, e/legislador ha reconocido que aun hoy, en esta
materia, se halla en pleno vigor ac1uella libertad bajo la cual se desarrollaron y fueron
acogidas en el Código todas las formas más usadas y más conocidas de títulos a la orden
(. .. ) El emisor de un titulo de crédito que le anade la cláusula a la orden, le imprime la
virtud de circular con las formas dei Derecho cambiaria, porque dicha cláusula tiene un
significado técnico que las invoca todas abreuiadamente" (Tratado de Derecho Mer-
cantil, Volumen 111, 5" edição, Madri, 1936, Editora Reus, traduzida por Miguel Ca-
beza Y Anido, p. 54 7). Importante ressalvar, dt>sde logo, que Vivante defendia que o
endosso nos títulos atípicos apenas tinha o efeito de transmitir o crédito e não de
responsabilizar o endossante pt>lo pagamento, orientação mais tarde st>guida pelo Có-
digo Civil italiano (art. 2.012) e pelo Código brasileiro (art. 914), conforme adiante
comentado.
34 No seguinte sentido: "lnnominati possono chiamarsi i titoli che la pratica escogita
e che vivono sotto una disciplina giuridica creata dagli usi, o desunta dall'applicazione
analogica di norme predisposte per i titoli nominati ( ... ) In sostanza, nessun preciso
diuieto, anche implicito, si oppone per il caso dei titoli ali' ordine, sempre che essi
rivestano la forma deltitolo all'ordine e rechino l'apposita clausola" (I Titoli di Credi-
to, Vol. I, p. 79).
35 Diritto Commerciale, Milão, Giuffrc Editore, 2003, p.326.
36 Sobre o tema, esclarece Osvaldo E. Pisani, Professor na Universidade de Buenos
Aires, que: "No existe en nuestra legislación una regulación general de los títulos de
226
sua aceitação quanto à existência em tese dos títulos atípicos, com
idêntica ressalva quanto aos títulos ao portador, à vista do art. 768 do
Código de Comércio, devendo destacar-se a opinião de Mario Alberto
Bonfanti e José Alberto Garrone 37 , autores de excelente monografia
especializada.
Ainda sobre essa discussão, Antônio Mercado Jr. 38 e Newton de
Lucca 39 acolhem a possibilidade de emissão dos títulos atípicos e de-
fendem a aplicação das normas gerais do Código Civil tanto a tais
títulos quanto como fonte subsidiária dos títulos típicos, nas hipóteses
de lacuna da lei especial 40 .
crédito, como sucede en otros países; la calificación de título valor surge de la misma ley
que regula a cada uno de estas documentos (ley de cheques, ley de warrants, etcétera).
La mayor parte de estas leyes especiales suele remitir, para su aplicación supletoría, al
decr. Ley 5965!63 de letra de cambio y paga ré (. .. ) Debemos destacar que, por la ya
seiialada falta de regulación general de los títulos de crédito, las características que
doctrínalmente se les atribuyen como una generalidad común a todos ellos, no es tan
categórica y corresponderá analizar cada una de estas regulaciones, para determinar
en cada supuesto si concurren todas las características que seguidamente indicamos.
Esta advertencia es con respecto a los títulos de crédito o títulos valores en general, pera
no a los títulos cambiarias, los cuales tal como veremos sí poseen todas estas caracterís-
ticas" (Elementos de Derecho Comercial, Buenos Aires, Editora Astrea, 2002, p. 211)
37 Escrevendo sobre a classificação dos títulos de crédito, os autores ensinam que:
"Los títulos se puden dividir en típicos- o nominados- y atípicos- o inominados-
Mientras que los primeros están sometidos a una particular disciplina legal (caso de la
letra de cambio, dei pagaré o dei cheque), en los atípicos se cuestionó, en cierto momen-
to, la libertad de emisión. Volvemos a replantear que el criterio para resolver este tipo
de cuestiones es de política económica de la autoridad. Así, por ejemplo, el art. 2004 dei
Cód. Civil italiano de 1942 sólo autoriza la emisión de títulos al portador cuando ella
sea admitida expresamente por una ley. Por el contrario, en nuestro derecho positivo
pareciera que priva una tesis más liberal en el sentido de admitirse, en forma más o
menos indiscriminada, la emisión de títulos al portador, como consecuencia dei texto
dei art. 768 dei Cód. de Comercio que se refiere a los papeles ao portador con criterio
lato, a fin de encuadrarlos, dentro de lo posible, en las disposiciones sancionadas para
la letra de cambio" (De Los Titulas de Credito, p. 74)
38 Observações sobre o Anteprojeto de Código Civil, quanto à matéria dos Títulos de
Crédito, Revista de Direito Mercantil, no 9, p. 118.
39 Comentários ao Novo Código Civil, V oi. XII, São Paulo, Editora Forense, 2003, p.
228 e ss.
40 Como bem relata o Prof. Newton de Lucca, o reconhecimento da aplicação subsi-
diária do Código Civil aos títulos típicos foi refutado, num primeiro momento, pelo
autor do Anteprojeto nesta parte, Prof. Mauro Brandão Lopes, que apenas em fase
posterior concordou com Mercado Jr. neste particular (Comentários ao Novo Código
Civil, V oi. XII, p. 231).
227
À luz do art. 903, do Código Civil, essa última posição parece ser
a mais correta. Assim, as normas gerais do Código Civil sobre títulos
de crédito são destinadas a disciplinar quaisquer títulos de crédito não
previstos em lei especial e emitidos com observância aos requisitos de
que tratam o art. 889 (data de emissão, indicação precisa dos direitos,
assinatura do emitente), ressalvados, em qualquer caso, os títulos ao
portador, que dependem para sua emissão, como dito, de autorização
expressa em lei especial, nos termos do art. 907, do Código Civil. No
direito brasileiro, podem ser emitidos ao portador o conhecimento de
transporte (arts. lo e 2°, do Decreto n° 19.4 73/30) e o cheque no
valor de até cem reais (art. 69, da Lei no 9.069/95).
Ao lado disso, como acima exposto, as normas gerais do Código
Civil poderão ser aplicadas aos demais títulos regulados por lei espe-
cial e em sua lacuna. Entretanto, e em nossa opinião, tais normas não
se confundem com a nomeada Lei Cambiária, consubstanciada na Lei
Uniforme de Genebra e no Decreto no 2.044/1908 41 •
3.2. Atualidades
228
das pela duplicata e, em certas situações, pela nota promissória). Al-
guns exemplos desse obsoletismo técnico podem ser citados: venci-
mento a certo termo de vista e a certo termo de data (art. 31, da
3
LUG), protesto por falta de data ao aceite (art. 25, 2 alínea, da
LUG), ressaque (art. 52, da LUG), aceite por intervenção (art. 56, da
LUG) e pagamento por intervenção (art. 59, da LUG).
O mais importante princípio de Direito Cambiário, consubstan-
ciado na autonomia da obrigação cambiária, fundamento para a produ-
ção do efeito constitutivo da assinatura lançada em um título de cré-
dito (e, portanto, não meramente probatório de uma obrigação ante-
rior, contraída contratualmente), que a isenta de eventuais vícios exis-
tentes no negócio jurídico de origem, vem sendo, de tempos em tem-
pos, desconsiderada por magistrados, sobretudo à luz do regime de
proteção ao consumidor, cuja tutela impõe ampla investigação acerca
do modo como se originou a obrigação.
Problema corrente nas relações de consumo consiste na prática
abusiva imposta por certas entidades hospitalares a pacientes (ou seus
familiares) que, muita vez, precisam ser atendidos em caráter de
emergência: antes da internação, exige-se a emissão de cheque para
"caucionar" as despesas de atendimento médico do paciente. Em ca-
sos tais, o Superior Tribunal de Justiça vem se posicionando no senti-
do de admitir ampla investigação da origem da obrigação assumida
pelo cheque, a fim de afastar eventuais iniqüidades, não obstante o
disposto no art. 13, da Lei n° 7.357/85, que consagra a autonomia da
aludida obrigação. Confira-se adiante trecho da ementa do acórdão
proferido nos autos do Resp 111154/DF, julgado pela Terceira Turma
do STJ e relatado pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito:
"( ... ) Reconhecendo embora a divergência doutrinária e jurispruden-
cial, não é razoável juridicamente admitir-se o cheque como caução,
como garantia, e negar-se a relação entre a garantia e a sua causa. Essa
posição permitiria toda sorte de abusos, ocasionando o enriquecimen-
to sem causa, como no presente caso, no qual se ofereceu em garantia
um cheque de valor muito maior do que o efetivamente comprometi-
do. Se a praxe no mercado aceita o cheque em garantia, vedar, em
tese, a investigação da causa debendi propiciaria um desequilíbrio na
relação jurídica entre as partes, uma das quais, em casos de extrema
necessidade, ficaria a depender do arbítrio da outra ( ... )" 42 . A origem
da lide relaciona-se com a emissão de cheque para efeito de "caucio-
229
nar" despesas hospitalares, em favor da Unimed de Brasília (Unimed
Brasília Cooperativa de Trabalho Médico), no qual restou demonstra-
do, nas instâncias ordinárias, a desproporção entre o valor do cheque
e o montante das despesas efetivamente realizadas. A Unimed susten-
tou, para fins de admissibilidade do recurso especial, afronta aos arts.
1° e 47, da Lei n° 7.357/85, bem como divergência jurisprudencial,
sob o fundamento de que o cheque em questão se encontrava formal-
mente perfeito e, pois, exeqüível, nos termos do art. 585, I, do Códi-
go de Processo Civil. O emitente do cheque, por sua vez, alegara que
sua filha havia sido vítima de aborto espontâneo, tendo que recorrer à
instituição hospitalar, a fim de realizar o procedimento de curetagem.
Por tal razão, o mencionado emitente sustou o pagamento do cheque.
O relator votou, afinal, no sentido de admitir a discussão da causa
debendi no cheque, tendo sido acompanhado pelos demais julgadores.
Outras decisões relacionadas com o afastamento da autonomia da
obrigação assumida pelo cheque e sua independência com o negócio
de origem se seguiram, valendo mencionar o Resp 43513/SP, relatado
pelo Ministro Aldir Passarinho Junior, publicado no D.J. de
15.04.2002, p. 219, em cujo acórdão se concluiu: "a autonomia e in-
dependência do cheque em relação à relação jurídica que o originou é
presumida, porém não absoluta, sendo possível a investigação da causa
debendi e o afastamento da cobrança quando verificado que a obriga-
ção subjacente claramente se ressente de embasamento legal".
A relativização de conceitos cambiários pela jurisprudência do Su-
perior Tribunal de Justiça não se limita ao cheque.
Com efeito, a nota promissória -considerada, ao lado da letra de
câmbio, título cambiário puro, em razão de sua perfeição- vem ten-
do sua força executiva refutada por motivos ligados a sua origem. As-
sim, vale conferir a ementa de acórdão, relatado pelo Ministro Sálvio
de Figueiredo Teixeira (Resp 261563/AM, publicado no D.J. de
OI. I 0.200 I, p. 222), no qual se considerou legítima a investigação da
causa de emissão do título, ao arrepio de sua abstração e da autonomia
da obrigação cambiária: "A jurisprudência deste Tribunal admite a dis-
cussão da relação jurídica subjacente à emissão do título quando há
sérios indícios de que a obrigação foi constituída em flagrante desres-
peito à ordem jurídica ou se configurada a má-fé do possuidor do
título. Na espécie, ao concluir pela nulidade dos títulos, o acórdão
impugnado não se baseou somente na análise do atestado médico que
afirmava a incapacidade civil da emitente, mas também em outras
provas e circunstâncias dos autos".
Outro importante reflexo dessa crise do Direito Cambiário se
nota do enunciado n° 258 da súmula de jurisprudência dominante do
230
Superior Tribunal de Justiça, a dispor que "a nota promissória vincu-
lada a contrato de abertura de crédito não goza de autonomia em razão
da iliquidez do título que a originou". O referido enunciado foi firma-
do com o declarado escopo de proteção aos consumidores que, sendo
beneficiários de contratos de abertura de crédito bancário, assinavam
nota promissória em branco e vinculada ao contrato: ao final de certo
período, a instituição financeira calculava, unilateralmente, o valor do
saldo devedor, que era inscrito na nota promissória à revelia do deve-
dor. Nessas situações, a validade do documento como título cambiário
passou a ser argüida, vez que estava ausente um dos requisitos de
executividade, fundado no prévio reconhecimento da dívida pelo de-
vedor.
A rigor, a nota promissória assim emitida poderia ser considerada
dependente do contrato, mas jamais perderia sua autonomia, que se
refere não ao título, mas sim ao fato da obrigação cambiária ser válida
e não sofrer os efeitos de vícios de quaisquer outras obrigações, cam-
biárias ou não. Por conseguinte, o Superior Tribunal de Justiça deveria
dar a essa situação a mesma solução que adotara para o caso das cédu-
las de crédito que, sendo títulos cambiariformes e dependentes, po-
dem vir a exigir elaboração de cálculos aritméticos para a quantifica-
ção do valor devido, sem que, com isso, perca sua executividade. 43
Como fundamento dessa crítica, vale lembrar a lição histórica de
Vivante, que, ao conceituar o título de crédito como documento neces-
sário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado,
esclarecia a existência de uma característica que intensifica a cartula-
ridade, nomeadamente a independência ou substantividade, em virtu-
de da qual os títulos bastam por si mesmos, não podendo e não deven-
do integrar-se a outros documentos. Complementando sua sustenta-
ção, dizia Vivante que a independência, cujo mérito seria facilitar ain-
da mais a circulação rápida e segura da cártula, não é uma qualidade
geral e comum a todos títulos de crédito, vez que muitos fazem refe-
231
rência a outros contratos. A conseqüência da dependência consiste na
redução da confiabilidade da circulação do crédito. Essa redução de
confiança tende a se agravar conforme a maior importância da referên-
cia ao documento extracartular e quanto mais difícil seja para o credor
o exame do documento citado no título 44 .
Evidentemente, não se pode dizer que o Superior Tribunal de Jus-
tiça tenha decidido, por razões de eqüidade, inaplicar a Lei Uniforme
de Genebra ou as diversas leis especiais que disponham sobre títulos
de crédito. O que se tem verificado, a partir da análise de julgados
daquele Tribunal, é a desconsideração de conceitos de Direito Cam-
biário em circunstâncias de elevada gravidade. O julgamento do Resp
190753/SP bem demonstra que, em certas lides, aquele Tribunal se
mantém ortodoxo na aplicação dos preceitos cambiários: "O aval é
obrigação autônoma e independente, descabendo assim a discussão
sobre a origem da dívida. Instruída a execução com título formalmen-
te em ordem, é do devedor o ônus de elidir a presunção de liquidez e
certeza" (Relator Ministro Barros Monteiro, publicado no D.J., de
19.12.2003, p. 467).
Em resumo, o artificialismo dos dogmas jurídicos colaborou para a
ampliação da distância que se formara entre o discurso científico e as
exigências do cotidiano: nem os empresários estão absolutamente a
par da técnica cambiária, nem os Tribunais estão mais dispostos a apli-
car irrestritamente os princípios de Direito Cambiário (sobretudo os
da autonomia e da abstração) sem considerações às peculiaridades do
negócio jurídico e ao contexto fático de sua formação, quando as cir-
cunstâncias concretas assim exigirem.
232
dispensada a notificação do devedor. Leiam-se adiante as palavras do
citado jurista: "Há créditos cuja transferência dispensa a formalidade
de notificação, porque têm forma especial. Tais são 1°, Os títulos ao
portador, que se transferem por simples tradição. 2°, Os títulos nomi-
nativos, que se transferem pela inscrição nos livros do emissor. 3°, Os
títulos à ordem, que se transferem por endosso" 45 •
Para efeitos do presente artigo, o tema será limitado à contraposi-
ção dos regimes de cessão comum de crédito e de sua circulação via
endosso, vez que tal confrontação encerra maior riqueza de proble-
mas, que serão adiante considerados.
Sob o ponto de vista estritamente legal, a distinção dos regimes
fica nítida à vista do teor do art. 919, do Código Civil, ao determinar
que "a aquisição de título à ordem, por meio diverso do endosso, tem
efeito de cessão civil". Pretendeu o legislador fixar uma espécie de
sanção à eventual inobservância da forma de transmissão dos títulos à
ordem, subtraindo-lhe as vantagens propiciadas pela circulação do tí-
tulo por endosso, entre as quais convém destacar a simplicidade de
sua forma (art. 910, p. único, do Código Civil), sua incondicionalida-
de (art. 912, do Código Civil) e o efeito de operar a transferência da
integralidade do crédito (em homenagem à segurança da circulação do
crédito e à certeza de sua realização, conforme o art. 912, p. único, do
Código Civil), a possibilidade de se convencionar a responsabilidade
do endossante pelo pagamento do título (art. 914, do Código Civil) e,
enfim, a inoponibilidade de exceções ao terceiro de boa-fé, portador
do título (arts. 915 e 916, do Código Civil).
Enfim, é importante que se releia a clássica distinção entre a ces-
são comum de crédito e a circulação por meio de títulos de crédito, a
fim de que, à luz do Código Civil e da evolução da ciência jurídica,
sejam registrados alguns pontos de contato e, ainda, sejam reafirma-
das as diferenças que justificam a sanção a que se refere o art. 919, do
Código Civil, acima comentada.
Passemos ao exame, tratando dos temas considerados mais ur-
gentes.
45 Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, Vol. IV, p. 183-184.
233
Como muito bem registrado por João Eunápio Borges, em obra
editada décadas atrás, ao tempo em que a idéia da boa-fé objetiva era
pouquíssimo disseminada no Brasil, "a própria noção de boa-fé, tão
importante nos títulos de crédito, muda de aspecto, deixando de ser,
como no direito comum, a consciência de seu bom direito, para ser
apenas a simples regularidade de uma situação" 46 .
Tal opinião vinha fundada em cláusula geral prevista na Lei Cam-
biária, segundo a qual "o detentor de uma letra é considerado porta-
dor legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de
endossos, mesmo se o último for em branco" (art. 16, 1a alínea, Anexo
I, da Lei Uniforme de Genebra). Essa tutela objetiva vem reforçada
por dois outros importantíssim os dispositivos, sendo eles o art. 17, do
Anexo I, da Lei Uniforme de Genebra 47 e o art. 3°, do Decreto n°
2.044/1908 48 (refletido no art. 891, do Código Civil). De modo geral,
esses dispositivos (que tratam de situações distintas) consagram a tu-
tela do terceiro portador do título e apenas a exclui na hipótese de tal
portador ter agido conscienteme nte em detrimento do devedor. Em
uma palavra, ao exigir que seja provada a má-fé do terceiro (i.e., sua
intenção de prejudicar o devedor), a norma exime esse mesmo ter-
ceiro, em contrapartida , do ônus de provar sua boa intenção (boa-fé
subjetiva) quanto ao exercício do direito decorrente do título, prote-
gendo-o.
No regime dos títulos de crédito disciplinado pelo Código Civil,
aqueles citados dispositivos da Lei Cambiária encontram correspon-
dência no art. 891, p. único (preenchimen to do título emitido de
modo incompleto), art. 896 (tutela do direito de crédito regularmen-
te adquirido, observada a forma de transmissão do título, se ao porta-
dor, à ordem ou nominativo), art. 911 (que complementa o art. 896,
no que se refere aos títulos à ordem) e art. 916 (inoponibilida de de
exceções a terceiro portador do título, salvo comprovada sua má-fé).
Ao que tudo indica, esses dispositivos foram redigidos de forma a
esclarecer regras já consagradas na Lei Cambiária, facilitando sua in-
terpretação e reduzindo a margem de controvérsias em sua aplicação.
234
Vale dizer que, no sistema norte-america no, não filiado à Lei Uni-
forme de Genebra 49 , a proteção do terceiro de boa-fé, portador do
título, consubstancia ·se em princípio fundamental daquele regime
(good faith purchase ide a), servindo como paradigma na construção
jurisprudencia l, como bem salientado por Robert L. Jordan, William
50
O. Warren e Steven D. Walt, em obra especializada .
Atualmente, é pacífico o entendimento que defende ser a boa-fé
objetiva um princípio de direito contratual, orientando as relações pa-
trimoniais privadas, entre as quais se inclui o contrato de cessão co-
51
mum de crédito. Como expus em trabalho monográfico , a boa-fé
objetiva opera principalment e na tutela da confiança: o comporta-
mento de uma das partes, que tenha colaborado para a formação do
consentimento da outra, deve seguir exatamente aquilo que razoavel-
mente se espera (ou seja, que se confia), sem que eventuais desvios de
conduta possam ser justificados por razões de foro íntimo, que digam
respeito à vontade interna da parte (ou seja, em total desconsideraç ão
a elementos que sejam referentes à boa-fé subjetiva, que, em tese, se
contrapõe à noção de má-fé).
Assim, a boa-fé deve reger a relação contratual em todas suas eta-
pas (pré-contratua l, executiva e conclusiva), bem como nas relações
derivadas do contrato (como ocorre com a cessão de crédito, cujo
direito é destacado do negócio originário e deve permanecer sob a
235
atuação do princípio da boa-fé), operando em três planos distintos: na
interpretação das cláusulas contratuais, na limitação ao exercício de
direitos e como fonte autônoma de direitos e deveres 52 .
No Código Civil, a cláusula geral da boa-fé vem disposta no art.
113 e no art. 422. Segundo a lição do professor Gustavo Tepedino 53 ,
com a qual concordamos, o primeiro dispositivo fixa um novo parâme-
tro interpretativo, adotado anteriormente pelo Código de Defesa do
Consumidor54 e expandido às relações contratuais em geral, pelo tra-
balho da doutrina e da jurisprudência . Já no segundo dispositivo, o
Código de 2002 deixou evidente sua intenção de elevar a boa-fé a
categoria de princípio fundamental do sistema contratual.
Por força do que foi dito, deve-se concluir que a tutela da confian-
ça, elemento central do crédito, impõe que o princípio da boa-fé ob-
jetiva seja fundamentalm ente respeitado nas relações jurídicas que se
destinem à transmissão do crédito, qualquer que seja a forma adotada,
em proveito tanto do titular do direito, quanto do devedor originário
e, enfim, em homenagem aos interesses (públicos e privados) vincula-
dos à mobilização e ao fortalecimento do crédito.
236
4.2. Oponibilidade de exceções
55 Nessa opinião, Fábio Ulhoa Coelho (Curso de Direito Comercial, Vol. 11, São
Paulo, Editora Saraiva, 2003, p. 376).
56 Teoria Geral dos Títulos de Crédito, p. 55.
237
clusiva do direito nele referido, permanecendo no patrimônio do titu-
lar o direito derivado da relação fundamental. Dessa característica
deduz-se que o direito do título é autônomo e distinto daquele pre-
sente na relação fundamental e, por conseguinte, tem como fonte
uma declaração de vontade igualmente autônoma e independente 57 .
A subsistência da relação contratual explica a oponibilidade de
exceções originadas no contrato, pelo devedor ao portador do título,
quando estes figurem como partes na dita relação. De outro modo,
razões ligadas à eqüidade permitem a oposição de exceções pessoais
pelo devedor quando o terceiro portador do título houver atuado com
má-fé. Exemplo clássico na doutrina corresponde ao caso em que o
portador do título, parte da relação contratual viciada, endossa-o para
terceiro, apenas para operar a desvinculação do direito de crédito. O
terceiro, sabedor da fraude, age em conluio com o endossante, em
detrimento do devedor.
Nesse exato sentido, o Código Civil disciplina a inoponibilidade
de exceções nos títulos à ordem nos arts. 915 e 916. Enquanto o pri-
meiro veda a oponibilidade de exceções pessoais (i.e., extratítulo)
fundadas em outras relações que não a existente entre o devedor e o
portador, o segundo ressalva a situação em que o portador age de má-
fé, facultando ao devedor a oposição de exceções pessoais.
No regime da cessão comum de crédito, a orientação é diametral-
mente oposta. Com efeito, dispõe o art. 294, do Código Civil, que o
devedor pode opor, ao cessionário, as exceções que tinha contra o
cedente no momento em que aquele veio a ter conhecimento da ces-
são. A regra já existia no Código de 1916, cujo art. 1.072, no entanto,
ressalvava a hipótese de simulação entre devedor e cedente, caso em
que não poderia ser oposta qualquer exceção ao cessionário de boa-fé.
Como bem observado pela doutrina, a razão para a exclusão da aludida
ressalva consiste no novo tratamento dado pelo Código de 2002 à
simulação, que não mais figura como causa de anulabilidade, a depen-
der da invocação da parte interessada, mas sim como causa de nulida-
de (art. 167, do Código Civil). Nessa situação e em homenagem à
boa-fé do cessionário, deve-se reconhecer seu direito de ação em face
do devedor cúmplice do cedente 58 .
A regra da oponibilidade de exceções na cessão comum de crédito
funda-se no fato de o cessionário adquirir um direito derivado, justa-
238
mente ao contrário do que ocorre com o endossatário. O direito trans-
mitido permanece com todos os bônus e defeitos, tal como constituí-
do no documento contratual. Já anunciava Ascarelli, acerca dos efei-
tos da cessão comum, que "quem adquire um crédito, adquire, em
certo sentido, uma caixa de surpresas, cujo real conteúdo é sempre
difícil, senão impossível, prever qual seja. A aquisição diz respeito a
determinado crédito, nascido de determinado negócio, passível, por-
tanto, as exceções oriundas deste ( ... ) então, o direito do cessionário
ficará subordinado à existência do direito do cedente e passível das
exceções oponíveis a este, exceções cujo alcance e, algumas vezes,
cuja própria existência, o cessionário dificilmente poderá avaliar" 59 •
Sem dúvida, a questão da oponibilidade é uma das diferenças mais
relevantes que subsiste entre cessão comum e o mecanismo dos títulos
de crédito, pois afeta diretamente a segurança da circulação do direito
e a certeza de sua realização.
Não obstante, uma pequena aproximação entre os regimes já se
verifica, à vista das exigências de tutela da confiança e de observância
da boa-fé objetiva: concretamente, tal princípio pode ser empregado
como argumento de satisfação do direito do cessionário, conforme as
circunstâncias que se apresentem, sobretudo a conduta do devedor,
que, ciente da cessão, tenha se quedado omisso em alertar o cessioná-
rio acerca de vícios preexistentes, alimentando sua confiança de ver
seu direito de crédito oportunamente satisfeito.
239
do cedente pelo pagamento do crédito, o ato de cessão em nada con-
tribuía para o fortalecimento do crédito. Ao cessionário, seria extre-
mamente dificultado o exercício de direitos em face do cedente, ou
seja, em face daquele com quem negociou diretamente a aquisição do
crédito, e, ao mesmo tempo, ficaria ele sujeito às vicissitudes presen-
tes na relação obrigacional originária, nem sempre claras para o tercei-
ro que dela não tenha participado. Esse sistema permaneceu no Códi-
go Civil de 2002, à luz dos arts. 294 a 297, acima examinados.
Embora no regime cambiário a responsabilidade do endossante
pelo pagamento do título fosse a regra, desde que observadas as for-
malidades legais (i.e. protesto por falta de pagamento até o primeiro
dia útil seguinte à data de vencimento da obrigação, nos termos do art.
28, do Decreto n° 2.044/1908, mantida em vigor em face da reserva
do Governo brasileiro ao art. 44, 3a alínea, do Anexo I, da Lei Unifor-
me de Genebra), a doutrina sempre reconheceu que essa responsabi-
lidade correspondia a um efeito não essencial do ato, visto que o en-
dossante poderia, no ato do endosso, excluir tal responsabilidade (art.
15, do Anexo I, da Lei Uniforme de Genebra). Nesse sentido leciona
Rodrigo Uría que: "Cada endoso anade así a la letra um nuevo deudor
y ai ampliar e! círculo de los obligados se aumentan las garantías de
pago y se refuerza e! crédito cambiário. Pero no estamos aquí ante un
efecto esencial dei endoso, puesto que la Ley admite que e! endosante
se exonere de esa responsabilidad mediante cláusula especial, inserta
en el endoso. Esa cláusula, en su caso, sólo beneficiará ai endosante
que la pone, pero no a los anteriores o posteriores" 60 .
O Código Civil orientou-se, quanto ao problema da responsabili-
dade do endossante, pelo Código Civil italiano de 1942, cujo caráter
expositivo e doutrinário, em matéria de títulos de crédito, foi dura-
mente criticado naquele país 61 • Nessa linha, bem se vê que o art. 914,
do Código Civil brasileiro, praticamente reproduz o teor do art.
2.012, do Codice, dispondo que o endossante não responde pelo cum-
primento da prestação constante do título, salvo cláusula em contrá-
rio. Fran Martins registrou, em artigo de doutrina, a contrariedade
desse dispositivo ao sistema cambiário, sugerindo a inclusão de ressal-
va aos casos em que a responsabilidade do endossante se encontra
determinada por lei especial 62 .
240
Ao que parece, a orientação seguida pelos códigos brasileiro e ita-
liano é aquela proposta pelas lições de Vivante, que, ao admitir a emis-
são e circulação dos títulos inominados, sustentava que, com relação a
eles, o endosso apenas produziria o efeito de transmissão do direito,
excluindo-se, portanto, a vinculação patrimonial do endossante pelo
pagamento da prestação mencionada no título, salvo convenção em
contrário, lançada em seu próprio corpo 63 .
Aliás, é interessante mencionar que, segundo Vivante, a responsa-
bilidade solidária dos endossantes deixou de ser aplicada, inclusive na
Alemanha (cuja dogmática anterior influenciou, como se disse, a lei
uniforme genebrina), onde, nos trabalhos preparatórios do Código
Comercial (Handelsgesetzbu ch- HGB, de 1896, que entrou em vi-
gor juntamente com o BGB, em 1° de janeiro de 1900), foi desconsi-
derada a proposta de se facultar o direito de regresso aos possuidores
de títulos endossáveis, sob a justificativa de que havia sido excessivo o
reconhecimento ao último possuidor do título o direito de voltar-se, a
seu exclusivo critério, contra qualquer ou todos os endossantes que o
precederam, devendo bastar-lhe o direito fundado na norma comum
para reclamar, junto ao endossante imediato, indenização pelo dano
suportado.
Para o autor italiano - assim como para a maioria da doutrina,
como acima registrado - a responsabilidade do endossante não cons-
titui o efeito substancial do endosso (mas, sim, a transferência de pro-
priedade do crédito), razão pela qual essa grave vinculação patrimo-
nial apenas seria admitida nos casos expressamente previstos em lei
especial, reguladora do título. Em se tratando de títulos atípicos, a
própria ausência de norma específica viria a excluir qualquer conside-
ração acerca da responsabilidade do endossante, que não poderia ser
imposta por analogia. Para evitar novas discussões sobre essa impor-
tante matéria, os códigos italiano e brasileiro preferiram esclarecer
que não se reconhecerá a responsabilidade do endossante de título de
crédito (nesse caso, os atípicos), salvo cláusula em contrário, a qual,
uma vez sendo convencionada, obriga solidariamente o endossante ao
adimplemento da obrigação constante da cártula, nos termos do art.
914, § 1°, do Código Civil, independentemen te do portador ter pro-
videnciado o protesto do título em tempo útil, tal como previsto na
Lei Cambiária para as notas promissórias e letras de câmbio (art. 28,
do Decreto n° 2.044/1908) e, ainda, para as duplicatas (art. 13, § 4°,
241
Lei n° 5.4 7 4/68). Importante trazer à baila que essa solidariedade não
se confunde com a do direito comum, regulada nos arts. 275 a 285, do
Código Civil, porquanto o endossante que realiza a prestação pode
cobrar dos demais coobrigados a totalidade do valor pago, conforme
permite o art. 914, § 2", do Código Civil.
O fato do endossante não se responsabilizar pelo pagamento da
prestação não o exime de responder pela existência da prestação, tal
como ocorre com a cessão comum de crédito, a título oneroso (art.
295, do Código Civil), à luz da cláusula geral que visa coibir o locuple-
tamento sem causa (art. 884, do Código Civil).
Em suma, o Código Civil de 2002 atuou no sentido de aproximar,
quanto à responsabilidade do transmitente do crédito, os regimes da
cessão comum e da circulação dos títulos à ordem atípicos ou daqueles
que venham a ser criados por lei que remeta a disciplina de sua circu-
lação ao Código Civil.
4.4. Forma
242
entendem estar o devedor incluído entre os terceiros, enquanto Or-
lando Gomes e Carvalho Santos entendem o contrário, tendo o últi-
mo apresentado, como fundamento, o fato de o devedor originário
encontrar-se em uma espécie de posição privilegiada, não figurando
nem como parte na cessão, nem como terceiro 65 .
A última opinião parece ser a ~ais correta, por reputar que a for-
malidade registrária se mostra, de fato, insuficiente para a tomada de
ciência do ato de cessão pelo devedor, operando como uma espécie de
intimação ficta. Se assim não fosse, o devedor ficaria sujeito ao duplo
pagamento da prestação, vez que, pagando a seu credor primitivo (por
não ter realizado busca prévia junto aos Ofícios de Títulos e Docu-
mentos, como se presume que, na prática, não faça), não poderia opor
ao cessionário o efeito liberatório previsto no art. 292, do Código Ci-
vil. Aliás, a exceção à exigência de notificação está prevista no art.
290, do Código Civil, relacionando-se com a hipótese em que o deve-
dor manifesta formalmente sua ciência, por escrito.
Se para a cessão comum deve ser observada uma série de formali-
dades, o endosso, por sua vez, corresponde a um dos meios mais sim-
ples e eficazes de transferência do direito de crédito. A forma de apo-
sição do endosso, nos títulos regulados pelo Código Civil, está dispos-
ta no art. 91 0: basta uma simples assinatura do portador, aposta no
verso do título (art. 91 O, § 1°) -modalidade conhecida como endosso
em branco, por não designar o nome do endossatário- ou, ainda, é
suficiente a assinatura seguida do nome do endossatário (endosso em
preto), que, nesse caso, pode ser aposta em qualquer face do título,
podendo ser empregada a expressão Endosso este título a Gabriel, ou
qualquer outra declaração equivalente. Praticado este ato, o endosso
está perfeito e acabado, "sendo a transmissão do crédito complemen-
tada pela formalidade da tradição do título ao endossatário", confor-
me dispõe o§ 2°, do aludido dispositivo.
Não há necessidade de notificação do devedor originário, por-
quanto sua obrigação ostenta natureza unilateral 66 , vinculando-o a
quem quer que se apresente como legítimo portador do título. Diga-
se de passagem, a legitimação da posse se demonstra pela "série regu-
243
lar e ininterrupta de endossos, ainda que o último seja em branco"
(art. 911, do Código Civil). O efeito liberatório do pagamento feito
pelo devedor impõe prévia verificação da regularidade da cadeia de
endossos, mas o exime da conferência da autenticidade das firmas
lançadas no título.
Dessa confrontação resulta que, diante de um negócio jurídico: (i)
as partes podem, a seu critério, destacar o direito de crédito e docu-
mentá-lo em um título à ordem, apto a circular por endosso, emitido
pelo devedor originário com observância dos requisitos formais decli-
nados no art. 889, do Código Civil; ou (ii) o credor pode substituir-se
na relação obrigacional por meio da cessão comum de crédito, inde-
pendentemente da colaboração do devedor (e desde que tal pretensão
não seja vedada pela natureza da obrigação ou por convenção entre as
partes), hipótese em que, como contrapartida, deverão ser observadas
as formalidades acima comentadas, a fim de que o ato de transferência
do direito produza plenamente os efeitos desejados.
244
A Lei Uniforme de Genebra ratificou a vedação e impôs a sanção
de nulidade (art. 12, do Anexo 1), no que foi acompanhada pelo Có-
digo Civil (art. 912, p. único). Essa rígida disciplina é motivada pelas
exigências de segurança na circulação do crédito, cujo fracionamento
poderia trazer incertezas quanto à extensão do direito. Em outras pa-
lavras, seria esvaziada a função do título de delimitar o direito nele
mencionado.
Ainda sobre a justificativa da vedação, Saraiva expunha que o en-
dosso parcial implicaria na divisibilidade do título, algo absolutamente
incompatível com a unidade do crédito, que "reclama uma soma única
de dinheiro e um só ato de protesto" 70 . Para J. X. Carvalho de Men-
donça, permitir o endosso parcial seria criar situação embaraçosa, vez
que diferentes pessoas teriam direitos no vencimento do título, e sen-
do indivisível a soma cambial e única à época do vencimento do título,
este não poderia achar-se simultaneamente nas mãos do endossador e
do endossatário ou de muitos endossatários, para que cada um deles
pudesse exercer a fração de direitos cambiais que porventura lhe cou-
bessem71. Esse argumento, a propósito, mantém-se atual, à luz do art.
887, do Código Civil, que, consagrando a lição histórica de Vivante,
define título de crédito como documento necessário ao exercício do
direito literal e autônomo nele mencionado. Logo, a imprescindibili-
dade de apresentação do documento para pagamento da soma inviabi-
liza o fracionamento do crédito nele incorporado.
A vedação do endosso parcial não importa na proibição de endosso
a mais de um endossatário. Nesse caso, o endossatário que portar o
título será considerado credor único, em face da indivisibilidade do
crédito. Embora o Código Civil seja omisso a respeito, essa solução
deve ser aceita para os títulos à ordem atípicos, porquanto se ajusta à
norma há muito positivada no Direito brasileiro (art. 39, § 1°, Decreto
n° 2.044/1908).
245
Por último, vale observar que nada impede que o interessado, por-
tador do título, transfira apenas parcela de seu crédito por meio da
cessão comum, conforme faculta o art. 919, do Código Civil.
5. Conclusões
246
(vii) no regime cartular, vige a cláusula geral de inoponibilidade
pelo devedor de exceções fundadas na relação contratual, salvo na
hipótese do terceiro portador do título ter atuado com má-fé ou ter
figurado como parte na referida relação; no regime da cessão comum
de crédito a orientação é diametralmente oposta, podendo o devedor
opor ao cessionário as exceções que tinha contra o cedente no mo-
mento em que aquele veio a ter conhecimento da cessão;
(ix) a regra da oponibilidade de exceções, na cessão comum de
crédito, funda-se no fato de o cessionário adquirir um direito deriva-
do, justamente ao contrário do que ocorre com o endossatário;
(x) a questão da oponibilidade é uma das diferenças mais relevan-
tes que subsiste entre cessão comum e o mecanismo dos títulos de
crédito, pois afeta diretamente a segurança da circulação do direito e
a certeza de sua realização. Não obstante, uma pequena aproximação
entre os regimes já se verifica, à vista das exigências de tutela da con-
fiança e de observância da boa-fé objetiva;
(xi) o Código Civil de 2002 atuou no sentido de aproximar, quan-
to à responsabilidade do transmitente do crédito, os regimes da cessão
comum e da circulação dos títulos à ordem atípicos ou daqueles que
venham a ser criados por lei que remeta a disciplina de sua circulação
ao Código Civil;
(xii) da confrontação entre os regimes da cessão comum e da circula-
ção dos títulos à ordem atípicos resulta que, diante de um negócio jurídi-
co: (a) as partes podem, a seu critério, destacar o direito de crédito e
documentá-lo em um título à ordem, apto a circular por endosso, emiti-
do pelo devedor originário com observância dos requisitos formais decli-
nados no art. 889, do Código Civil; ou (b) o credor pode substituir-se na
relação obrigacional por meio da cessão comum de crédito, inde-
pendentemente da colaboração do devedor (e desde que tal pretensão
não seja vedada pela natureza da obrigação ou por convenção entre as
partes), hipótese em que, como contrapartida, deverão ser observadas as
formalidades próprias da cessão comum, a fim de que o ato de transfe-
rência do direito produza plenamente os efeitos desejados;
(xiii) enquanto a doutrina admite a cessão parcial de crédito,
eventualidade em que o cedente pode permanecer na relação obriga-
cional, nos títulos à ordem o contrário se verifica: o endosso deve
abranger toda a soma indicada no título, sendo expressamente vedado
o endosso parcial, sob pena de nulidade; entretanto, nada impede que
o interessado, portador do título, transfira apenas parcela de seu cré-
dito por meio da cessão comum, conforme faculta o art. 919, do Códi-
go Civil.
247
Assunção de dívida
249
poderiam advir do inadimplemento das obrigações: o corpo do deve-
dor era dado em garantia para a satisfação do débito 2 . Contudo, veri-
ficou-se a pouca utilidade que estas sanções possuíam, pois, com o
sacrifício do devedor, não haveria nem a remota possibilidade de qui-
tação da dívida em fase posterior.
Com o advento da Lex Poetelia Papiria, em meados do século IV a.
C., foi abolida a manus injectio. A responsabilidade decorrente do ina-
dimplemento das obrigações passou a ter cunho patrimonial, mas o cará-
ter pessoal do vínculo obrigacional foi mantido. Não se admitia a circula-
ção do crédito e do débito de forma autônoma, porém o mesmo resulta-
do poderia ser obtido modificando-se a própria obrigação, que passava a
ser transmissível, importando, todavia, sempre uma novação.
Em razão da crescente necessidade de se facilitar o tráfico comer-
cial, começou a doutrina a construir teorias que se desprendiam do
dogma personalista das obrigações, visando, assim, possibilitar a circu-
lação do ativo e passivo através de uma modificação subjetiva da obri-
gação, sem ensejar, todavia, uma alteração substantiva. O Código Ci-
vil francês foi o primeiro diploma legal a permiti-la, por meio da ces-
são de créditos 3 .
Contudo, nem sempre pode ser uma obrigação transmitida. Por
vezes, existem limitações que impedem que haja a sua transferência.
2 Na história, Bassânio, nobre de Veneza, para cortejar Pórcia, pede ao amigo Anto-
nio, rico comerciante, o empréstimo de 3.000 ducados. Este, sem dinheiro à época do
pedido, faz um empréstimo com seu inimigo Shylok, que aceita emprestar o dinheiro
sem juros, sob a condição de, inadimplida a obrigação, seja esta paga através da retirada
de uma libra de carne de qualquer parte do corpo de Antonio.
3 Contudo, quanto à admissão da cessão de débitos, não há no diploma francês
nenhum artigo que trate especialmente da questão. A solução efetuada, na França,
consta no art. 1271 do seu Código, que trata da novação, que pode, para eles, ocorrer
quando: a) o devedor contrai com o credor uma nova dívida que substitui a antiga, que
é extinta; b) um novo devedor substitui o antigo que é liberado pelo credor; e c) por
efeito de uma nova obrigação, um novo credor substitui o antigo, frente ao qual o
devedor fica liberado. Em regulação posterior, o art. 1274 admitiu que a novação por
substituição de um novo devedor poderia ocorrer sem o concurso do devedor primiti-
vo, equivalendo a idéia a uma expromissão, modalidade de assunção, como veremos
(BASOZABAL, Xavier. El contrato de asunción de deuda. In: Anuario de Derecho
Civil,LIII (I) Madrid: BOE - Boletín Oficial dei Estado, 2000, p. 88. Da mesma
forma, na Espanha, a assunção foi inserida no instituto da novação. Para Diez-Picazo,
ambas as hipóteses abraçam a tese de que existiriam duas formas de novação: uma
novação com efeitos extintivos e uma com efeitos apenas modificativos, estando a
assunção inserida nesta última modalidade (DJEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos Del
Derecho Civil Patrimonial, 5. ed., Madrid: Civitas, 1996, pp. 849-853).
250
A doutrina distingüe estas vedações em a)legais; b) voluntárias; c) de-
correntes da inerência ao credor e também d) decorrentes da própria
natureza da obrigação.
2. Modalidades de Transmissão
A transmissão das Obrigações pode ser efetuada por meio das se-
guintes formas:
a) cessão de crédito (constituída pela cessão da posição ativa na
relação negociai);
b) sub-rogação, disposta no Código Civil no capítulo destinado ao
pagamento, mas que possui conexão com a transmissão, sendo espécie
desta;
c) cessão do contrato ou cessão da posição contratual, quando
ocorre a cessão simultânea do lado ativo e passivo da relação negociai;
e, por fim,
d) a transmissão de dívidas ou assunção de dívida, que será aqui
enfocada.
3. Assunção de Dívida
251
do crédito, porém a essência da obrigação nela não consiste. Eviden-
temente, esta garantia que se oferece na pessoa do devedor (por in-
termédio dos atributos da solvabilidade, honra, etc) não pode ser
subtraída ao credor, sem o concurso de sua vontade. Contudo, se ele
concorda com a mudança do sujeito passivo, nada obsta a que esta
substituição se dê, preservada a identidade da dívida, uma vez que o
conteúdo da obrigação é o mesmo" 5 .
252
e da Lei das S.A., art. 233, parágrafo único. Para José Carlos Barbosa
Moreira 8, contudo, a primeira instituição legal da assunção em nosso
país ocorreu no diploma processual civil, no art. 568, inciso III, em
197 4. Outras hipóteses também são ventiladas; como exemplo, o pas-
sivo na venda de estabelecimentos comerciais; as fusões e as
incorporações 9 .
Contudo, o legislador pátrio deixou a desejar quanto à redação dos
artigos do Código Civil de 2002, deixando algumas dúvidas pairadas
no ar. É o que se pretende analisar a seguir.
4. Conceito
253
dem a mitigação da formulação da abstração pura. Como exemplo,
Velasco detém posição interessante sobre o tema. Para ele, difícil é a
estipulação da assunção como um negócio jurídico puramente abstra-
to, existindo, mesmo no Código Civil alemão, duas causas: uma causa
geral dos contratos, pois a assunção pode ser assumida de forma gra-
tuita ou onerosa; e outra, específica, eis que a assunção tem a finalida-
de típica de substituir o devedor sem extinguir a obrigação 14 • Explana
este autor que
"( ... ) todo negocio jurídico tiene una finalidad típica que constítuye su
causa . ... la concepción germana lleva inevitablemente a un contrasen-
tido. En efecto, la causa es el elemento 15 que mantiene la identidad de
la obligación pese a sus cambias. Si el contrato de asunción de deuda
es absolutamente abstracto, no puede conservar la causa de la obliga-
ción, de modo que produce su extinción. Lo que significa que la deuda
no simplemente se modifica sino que desaparece, surgiendo una nueva
obligación en su lugar" 16 •
254
Da mesma forma, numa leitura crítica dos textos brasileiros, aca-
bamos por averiguar que parte da doutrina parece trazet à luz algumas
conclusões que põem em indagação a abstração do referido negócio
jurídico. Luiz Roldão de Freitas Gomes, reportando-se à existência e
validade da obrigação e validade do contrato de transmissão, entende
que:
255
S. Modalidades
22 Fernando Noronha, a respeito da assunção de dívida, informa que "O Código Civil
de 2002, nos arts. 299 a 303, regula ( ... )a assunção de dívida propriamente dita, ou
assunção liberatória de dívida: neste caso, perante o compromisso do assuntor, o cre-
dor libera o devedor primitivo" (Direito das Obrigações, vol. l, São Paulo: Saraiva,
2003, p. 192).
256
a) no art. 299 há uma "exoneração" do devedor, característica da
assunção liberatória (seja na forma expromissória ou delegatória);
b) o art. 300 dispõe, como regra, sobre a extinção das garantias
especiais dadas pelo devedor primitivo, o que não é possível na assun-
ção cumulativa, eis que este permanece no vínculo obrigacional;
c) o art. 301 pertine à "substituição" do devedor, identificando
mais uma vez a assunção liberatória, que não ocorre quando se está
diante de uma assunção cumulativa; e, por fim
d) na assunção hipotecária, o art. 303 somente a possibilita ao
assuntor "adquirente de imóvel hipotecado", o que confirma mais
uma vez o que dizemos, pois não há uma permanência do devedor
hipotecário originário.
Pareceu o legislador referir-se à assunção cumulativa apenas
quando, na assunção liberatória, o devedor originário não puder ser
liberado em razão da insolvência do assuntor. Entretanto, diante das
preponderantes posições doutrinárias, parece perfeitamente possível
a construção da assunção cumulativa em outros casos pelo ordena-
mento brasileiro.
6. Concordância do credor
257
Contudo, diante da timidez legislativa, os operadores do direito,
numa interpretação sistemática da norma, vêm abrandando a autono-
mia aqui estabelecida, criando critérios para a averiguação em concre-
to da norma: a recusa efetuada pelo credor somente poderia se apre-
sentar de forma justificada, sob pena de ficar caracterizada uma situa-
ção de abuso de dircito 25 .
Todavia, é de se efetuar o seguinte questionamento: estaria o di-
ploma legal exigindo a aceitação do credor para todas as espécies de
assunção?
Para a expromissão, seja em sua modalidade liberatória ou cumu-
lativa, não se faz esta indagação necessária, uma vez que é o próprio
credor quem efetua a negociação com o assuntor. 26
Quanto à sua aplicação à delegação liberatória, mostra-se a doutri-
na pacífica no sentido de exigir uma resposta positiva do credor, pois
em qualquer modalidade de cunho liberatório pode o crédito ser aba-
lado. Mas, em relação à delegação cumulativa, paira divergência dou-
trinária sobre a necessidade da aprovação do credor para que o negó-
cio jurídico seja concretizado.
A maioria da doutrina entende que a anuência do credor também
será essencial para que seja configurada uma assunção cumulativa -
na forma de delegação cumulativa, como já explicado -, utilizando-
se, como base, duas premissas: que a ninguém pode ser imposto bene-
fício27 e, em segundo lugar, porque poderia haver a ameaça para o
credor de uma compensação de débitos 28 .
novo devedor, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava, salvo previ-
são em contrário no instrumento contratual; §3° Qualquer das partes pode assinar
prazo ao credor para que consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silên-
cio como recusa; §4° Enquanto não for ratificado pelo credor, podem as partes livre-
mente distratar o contrato a que se refere o inciso 11 deste artigo".
25 "Art. I 87. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes."
26 Nas palavras de TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES,
Maria Celina Bodin de et al.: " ( ... ) na expromissão, o devedor originário não participa
do negócio e a anuência do credor não é condição de eficácia da transmissão, visto que
a assunção é pactuada diretamente entre este e o interessado" (Ob. cit., nota li, p.
585).
27 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigaçôes. 7. ed. Coimbra: Alme-
dina, 1998. p. 735.
2H GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Da Assunção de Dívida e sua Estrutura :-.legocial.
Rio de Janeiro: Lumen Juris. 1998. p. 390.
258
Outros, minoritariamente, entendem não ser indispensável a au-
torização do credor quando se tratar de assunção cumulativa (delega-
ção cumulativa). Para estes, a estrutura deste negócio jurídico permite
a interpretação segundo a qual toda assunção, enquanto não autoriza-
da pelo credor, possuirá a natureza de uma assunção cumulativa 29 , não
trazendo prejuízos para o credor, numa situação que acaba por favore-
cê-lo, pois passa a ter dois devedores.
É de se questionar, diante das posições abordadas, qual a função
da assunção de dívida. Tendo sido esta criada para a melhor circulação
das riquezas, quais os prejuízos que poderiam advir para o credor com
a entrada do assuntar em uma assunção cumulativa? A nosso ver, ne-
nhuma. O devedor originário, na assunção cumulativa, permanece na
relação obrigacional; não há a sua substituição, mas apenas um reforço
do pólo passivo, uma garantia do negócio jurídico. Além disto, a garan-
tia que vem por ocorrer em razão do reforço na relação obrigacional
não traz segurança jurídica exclusiva ao credor, mas para a própria
manutenção da relação obrigacional e também para o devedor 30 . Adi-
cionado ao que aqui é dito, tem-se defendido, como antes já mencio-
nado, que a recusa do credor deve ser colocada sempre de forma jus-
tificada, sob pena de se caracterizar uma situação de abuso de direito
do crédito. Estas explanações acabam por resultar na seguinte conclu-
são: torna-se quase impossível haver uma justificativa plausível para a
negativa do credor, pois esta situação não lhe ocasiona qualquer pre-
juízo.
Ainda, sobre o segundo argumento da posição que entende ser a
aceitação condição imprescindível, em razão de que poderia ocorrer
uma compensação eventual entre o crédito do terceiro (candidato a
259
assuntor) e o crédito do credor, não há sinceramente uma razoável
utilidade à objeção. O instituto da cessão de crédito não exige a
anuência do devedor. Assim, hipoteticamente, para quem entende
ser necessária a concordância, caso o credor se recusasse em aceitar
a assunção, temeroso de uma futura compensação, poderia o tercei-
ro negado ceder perfeitamente o seu crédito ao devedor fora da re-
lação assuntiva, sem que o credor pudesse impedi-los de fazer a nego-
ciação. 31
O Código também ventila, no parágrafo único do art. 299, a pos-
sibilidade das partes estipularem um prazo para a concordância do
credor, quando o silêncio será interpretado como recusa, o que carac-
teriza, portanto, uma exceção ao art. 111 do Código Civil, que o inter-
preta como uma forma de anuência. 32 Contudo, tal norma merece
críticas, pois o art. 299 se refere à assunção liberatória, que exige seu
acerto em comum acordo com o credor 33 .
31 O art. 290 do atual diploma civil dispõe que o cessionário do crédito deverá apenas
notificar o devedor da cessão. Não há, assim, a necessidade da expressa autorização do
devedor para que ocorra a Cessão de Crédito. Todavia, pode-se efetuar ressalva na
convenção, impedindo-se a cessão, conforme estipula o art. 286: "O credor pode ce-
der o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção
com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de
boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação".
32 "Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o
autorizarem, e não for necessária a declaração da vontade expressa".
33 É a crítica efetuada por Caio Mário da Silva Pereira:"( ... ) depois de ter enunciado
o princípio, segundo o qual a assunção de dívida depende de consentimento do credor,
diz que a este pode ser assinado prazo para declarar se consente, valendo o seu silêncio
como recusa. A disposição é inútil, pois se a assunção não for concertada, de comum
acordo, com o credor, de nada vale sua interpelação para que manifeste a sua anuência.
Se ele não a deu, na fase dos entendimentos, ou se o devedor não a obteve, não será a
interpelação que mudará seus propósitos" ("Crítica ao Anteprojeto do Código Civil".
In: Revista de Direito do Instituto dos Advogados Brasileiros, n. 20, Rio de Janeiro:
IAB, 1972, p. 30.
260
cordância do credor na hipótese especial da assunção cumulativa, já
estaria o negócio estipulado apesar da recusa do credor. Porém, sendo
a espécie a liberatória, será sempre a anuência necessária.
8. Anuência do Devedor
261
da obrigação 36 , por se entender que somente ocorre assunção quando
há liberação do devedor originário. Contudo, entende-se majoritaria-
mente ser a assunção cumulativa uma espécie de assunção.
262
Verifica-se, portanto, que a assunção cumulativa apresenta o be-
nefício de facilitar a negociação da prorrogação do prazo da dívida, por
40
ampliar a proteção do credor, estendendo a garantia do seu crédito .
A única semelhança que existe com o instituto da solidariedade é a
possibilidade do credor poder escolher cobrar a dívida tanto do assun-
tar quanto do devedor primitivo 41 •
40 Fernando Noronha a cataloga entre as garantias pessoais; todavia, afirma não ser
propriamente uma garantia pessoal, o que acaba por nos fazer depreender que o autor
entende haver semelhança entre os institutos, não tendo, todavia, efetuado uma aná-
lise da natureza jurídica do mesmo (Ob. cit., nota 22, pp. 190-192).
41 Diversamente, Oiez-Picazo, falando sobre o ordenamento espanhol, aborda ames-
ma questão e se inclina pela possibilidade de se defender uma solidariedade: "Cuando
la asunción de deuda es cumulativa, el problema en averiguar la naturalez del vínculo
que surge de la existencia de una pluralidad de deudores. La doctrin y el Derecho
Comparado prpenden a considerar ai antiguo y ai nuevo deudor como deudores solida·
rios. Aunque esta solución parece chocar prima facie en nuestro Derecho Positivo con el
principio de no presunción de la solidariedad ... , es la única solución admisible para el
caso de una asunción de deuda acumulativa, pues la aplicación de las regias de la
mancomunidad y de la parciariedad conducirían a una asunción por lo menos parcial-
mente liberatoria. En aquella parte en que se aplica la regia concursu partes fiunt, el
antiguo deudor tendria que quedar liberado. Y para establecer una subsidiariedad de
la obligación de un deudor respecto de la del outro, no hay base alguna en la ley" (Ob.
cit., nota 3, p. 859).
263
ria, conjunta ou separadamente. Como exemplo, a transmissão das
cláusulas penais, arras e outras figuras similares. Porém, os acessórios
inseparáveis do devedor não serão transmitidos, como a entrega pes-
soal da prestação, a atualização do valor das prestações do empréstimo
segundo índices oficiais de reajustamento, entre outros. Caso não te-
nha sido estipulado contratualmente o limite da assunção, ensejando
dúvidas, deverão os acessórios serem considerados transmitidos, não
abarcando contudo interesses convencionais vencidos antes da trans-
ferência.
O Código fez uma ressalva, no art. 300, não aceitando a manuten-
ção das garantias especiais prestadas pelo devedor, salvo se existir
anuência permitindo a manutenção. Ressalta-se, contudo, que este
artigo somente se refere à modalidade liberatória 42 . As garantias que
não permanecem são as pessoais; porém, quanto às garantias reais,
Leoni Lopes de Oliveira entende pela preservação das mesmas (pe-
nhor ou hipoteca) 43 • Na doutrina estrangeira, Diez-Picazo 44 observa
ser necessária a averiguação do consentimento do credor quanto à ma-
nutenção das garantias reais: se a aquiescência da liberação se restringe
à obrigação principal ou também às garantias, devendo, em caso de
dúvida, se inclinar o intérprete pelo entendimento da liberação de
ambas.
Não obstante, esqueceu-se o legislador de dispor sobre as conse-
qüências que deveriam atingir as garantias dadas por terceiro, que de-
verá consentir para que sejam preservadas 45 , salvo na hipótese em que
se estabeleça uma assunção cumulativa.
Quanto à possibilidade do assuntor opor exceção ao credor, o art.
302 do Código Civil impede apenas que sejam utilizadas como defesa
as exceções pessoais do devedor primitivo. Em conseqüência, autoriza
as exceções derivadas do próprio negócio de assunção 46 . Assim, dife-
42 Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza, Maria Celina Bodin et ai. entendem
que o artigo se aplica à delegação bem como à expromissão, ambos na modalidade
liberatória (p. 586). Portanto, somente nesta se poderá falar na extinção da garantia,
pois, do contrário, na assunção cumulativa há a permanência do devedor, o que justi-
fica assim a manutenção da garantia.
43 OLIVEIRA, J.M. Leoni Lopes. Novo Código Civil Anotado (arts. 233 a 420), vol.
2, Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002, p. 100.
44 Ob. cit., nota 3, pp. 860-862.
45 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Oh. cit., nota 33, p. 30.
46 Segundo os autores do Código Civil Interpretado, Tepedino, Heloísa Helena Bar-
boza, Maria Celina Bodin et al.: "( ... )são as que têm fundamento em fato ou circuns-
tância inerente à pessoa de um ou de alguns coobrigados, de que seriam exemplos a
264
rentemente do que ocorre nos direitos português e alemão, em que,
como antes citado, os autores sustentam a abstração deste negócio
jurídico, no Brasil este caráter foi afastado pelo artigo 302 que, inter-
pretado a contrario sensu, admite exceções relativas à existência ou à
validade do negócio que originou a assunção.
Quanto ao tempo, podem ser assumidas dívidas presentes, condi-
cionais, a prazo e futuras.
265
porque era do conhecimento do credor, entender-se-á que este assu-
miu o risco do negócio. Nesta hipótese, haveria, sim, a liberação do
devedor originário. 47
47 Roldão, em artigo em que critica a redação do artigo, nos informa que "Relativa-
mente à insolvência, não ressalvou a hipótese de as partes, aceitando correr o risco,
exonerarem o primitivo obrigado, mesmo se o novo for insolvente à época da celebra-
c;ão do contrato .... Mas pode o credor preferir correr o risco, liberando, por motivos
vários, aquele" (Ob. cit., nota 9, p. 69). A norma espanhola parece possuir redação
mais coerente: "la insolvencia dei nuevo deudor, que hubiese sido aceptado por el acre-
dor, no hará revi vir la acción de és te contra e/ deudor primitivo (art. 1206)." Para
Diez-Picazo, "Naturalmente, debe quedar a salvo el caso en que el deudor antiguo se
hubiera comprometido expresamente a suplir tal insolvencia. Pera en tal hipótesis debe
entederse que existe un pacto expreso de constitución de! antiguo deudor en fiador o
garante de! nuevo" (Ob. cit., nota 3, p. 859).
266
estabelecida no art. 299, parágrafo único: aqui, na assunção hipotecá-
ria, o silêncio é tido como anuência.
Portanto, a anuência pode ser expressa ou tácita.
Ao se analisar a norma, verifica-se que o legislador se preocupou
exclusivamente com a assunção liberatória, pois possibilitou a assun-
ção hipotecária somente pelo adquirente do imóvel, deixando em
aberto inúmeras situações que seriam protegidas através de uma as-
sunção cumulativa 48 •
O prazo estipulado pelo legislador é extremamente exíguo, de 30
(trinta) dias, diferenciando-se do que ocorre, por exemplo, na Alema-
nha e na Espanha, em que o credor dispõe do prazo de 6 (seis) meses
49
para efetuar a resposta, seja de forma expressa ou tácita . Contudo,
não vai aí uma crítica ao legislador pátrio: há apenas uma reflexão da
urgência na regularização da situação imobiliária em nosso país.
Esta norma suscita polêmica no ramo imobiliário, existindo dou-
trinadores que defendem a sua não incidência às hipotecas efetuadas
através do SFH (Lei n. 0 8.004/90).
Para solucionar a questão, é mister diferenciar-se a norma do Có-
digo Civil da Lei n° 8.004/90, que trata da transferência de imóveis no
Sistema Financeiro de Habitação. A Lei n° 8.004/90 dispõe em seu
art. I 0 a viabilidade da transferência de obrigações e direitos através
de contrato, definindo em seu parágrafo único as formas pelas quais
seriam necessárias a interveniência obrigatória do credor hipotecário:
através de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão.
Desta premissa, podem ser depreendidas duas outras: a) a primei-
ra, que a Lei 8.004/90 impõe uma interveniência obrigatória, não exi-
gindo, todavia, que seja expressa, podendo perfeitamente ocorrer
uma anuência tácita; b) a segunda, que acaba por inutilizar a argumen-
tação da não-aplicabilidade da assunção de dívida às hipóteses inseri-
das no SFH: a Lei 8.004/90 não dispôs expressamente a respeito da
assunção, como explicaremos a seguir.
267
Na Lei 8.004/90, em seu art. 2°, há expressa menção da possibili-
dade da manutenção do contrato sob as mesmas condições e obriga-
ções para o novo devedor, desde que o financiamento seja efetuado
para a compra de casa própria, e que haja no contrato cláusula de
cobertura de eventual saldo devedor residual pelo FCUS. Dita norma
poderia até ensejar, aparentemente, uma interpretação a favor da
constituição de uma assunção de dívida, uma vez que estabelece uma
preservação da obrigação originária; todavia, através de uma análise
minuciosa do inciso I do mesmo artigo, acaba-se por averiguar que não
há, na prática, uma manutenção das condições da obrigação, em virtu-
de dos acréscimos à dívida que são efetuados (art 2° e incisos da lei) 5°,
mas, sim, refinanciamento do imóvel e, portanto, uma novação con-
tratual. Portanto, não há na Lei n" 8.004/90 a nosso ver, ao contrário
do que defende Chalhub 51 , uma especificidade da matéria, mas antes
uma omissão no que tange ao instituto da assunção de dívida 52 .
De forma diversa, o art. 303 não importa uma novação, mas ape-
nas substituição subjetiva passiva na mesma obrigação, mantendo-se
as condições da relação obrigacional.
A assunção de dívida hipotecária aplacaria a conduta das financia-
claras no sentido de tentar refinanciar o imóvel e incentivaria a regula-
rização dos contratos de gaveta, pois, como já antes mencionado, a
recusa do credor hipotecário teria que ocorrer de forma justificada e
não somente pelo contra-argumento baseado na possibilidade de po-
der efetuar um refinanciamento do imóvel.
50 "Art. 2°. Nos contratos que tenham cláusula de cobertura de eventual saldo deve-
dor residual pelo FCVS, a transferência dar-se-á mediante simples substituição do
devedor, mantidas para o novo mutuária as mesma condições e obrigações do contrato
original, desde que se trate de financiamento destinado à casa própria, observando-se
os requisitos legais e regulamentares, inclusive quanto à demonstração da capacidade
de pagamento do cessionário em relação ao valor do novo encargo mensal, bem assim
os seguintes requisitos: I - o valor do encargo mensal para o novo mutuário será
atualizado pro rata die, a contar da data do último reajustamento desse encargo até a
data da formalização da transferência, com base no índice de atualização das contas de
poupança mantidas no Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo. - SBPE, e
acrescido da quinta parte do valor atualizado do encargo ( ... )".
SI CHALHUB, Melhim :"\~amem. "Novos Aspectos Obrigacionais do Direito Imobi-
liário". Disponível em http://www.irib.org.br /biblio/boletimel677a. asp. Acesso em
15.11.2004.
52 Como sabemos, o critério de escolha das normas em função da especialidade (lex
specialis derrogat lex generalis) ocorre somente quando existem duas normas aparen-
temente contraditórias tratando sobre o mesmo tema.
268
É certo que a construção jurisprudencial e doutrinária terá uma
árdua tarefa pela frente, porque difícil é imaginar a aceitação da assun-
ção pelo credor hipotecário, que certamente se utilizaria de todos os
artifícios obscuros e indiretos para impedir a assunção, o que acabaria
estimulando novamente entre os compradores de casa própria os con-
tratos de gaveta.
269
19.1. Novação subjetiva
19.2. Delegação
270
mesmo antes ou depois dela. Além disto, o consentimento do terceiro
à estipulação não é requisito para a celebração do contrato, mas ape-
nas condição de sua irrevogabilidade, diversamente da assunção,
quando o consentimento do assuntar é elemento constitutivo do ne-
gócio.
A estipulação a favor de terceiro ainda pode, rigorosamente, não
lhe produzir nenhum benefício, como o acordo entre o depositante
não proprietário e o depositário para que este restitua diretamente ao
dono. De outra forma, a assunção sempre beneficia o credor, seja em
sua forma cumulativa, seja liberatória.
Ainda, o estipulante pode revogar a promessa enquanto não ocor-
rer a anuência do terceiro, aderindo ao contrato, não sendo também
possível o aproveitamento dos meios de defesa derivados da relação
entre o estipulante e o terceiro. Na assunção de dívidas, a revogação
pode se dar a qualquer tempo, uma vez que não há período de pendên-
cia e os meios de defesa oponíveis são aqueles entre o primitivo deve-
dor e o credor.
E, por fim, na estipulação as partes perseguem o interesse de ter-
ceiro, enquanto que na assunção de dívidas, os devedores satisfazem
seus próprios interesses 54 .
19.5. Fiança
271
uma obrigação imperfeita (obligatio sem debitum). E, mesmo que o
fiador se responsabilize como devedor principal, ainda assim continua
obrigado por dívida alheia e não própria. Na assunção cumulativa, não
há possibilidade de se invocar o benefício de excussão, diversamente
da fiança.
272
concordou com a assunção, não pode ele se beneficiar da solidarieda-
de, pois é terceiro estranho ao negócio jurídico. Já para quem defende
não ser necessária a anuência do credor na assunção cumulativa, mes-
mo assim haveria um equívoco: porque não existe uma relação de
solidariedade na relação interna entre os devedores e sim uma subsi-
diariedade.
20. Conclusão
273
Pagamento
1. Conceito
275
para ser cumprida. A extinção pelo cumprimento é então, por exce-
lência, o sucesso jurídico de uma relação jurídica obrigacional.
Nas obrigações decorrentes de contrato, quando as partes consti-
tuem o vínculo, o fazem com o intuito declarado, dentro da normali-
dade, de chegar ao resultado final, que é o cumprimento daquilo que
cada um se obrigou. Naturalmente, isto somente se dá quando ambas
estão de boa-fé, pois, obviamente, alguém pode contratar tencionan-
do de antemão o inadimplemento. Juridicamente, porém, as partes se
obrigam a uma conduta, a um dar, fazer ou não fazer. É a prática da
conduta devida que se considera pagamento, ou adimplemento, ou
ainda, como prefere o Código Civil português, cumprimento das
obrigações.
Apesar de, na linguagem comum, o termo pagamento referir-se a
uma prestação em dinheiro, ou seja, em moeda de curso forçado, no
sentido jurídico, o conceito é mais amplo. Deste modo, Caio Mário
Pereira afirma que "pagamento é qualquer forma de liberação do de-
vedor, mediante a prestação do obrigado" 1• A doutrina, porém não se
manifesta de modo uniforme quanto a esta questão. Para alguns estu-
diosos2, a palavra pagamento, em seu sentido estrito, diz realmente
respeito à entrega de dinheiro. No Brasil, Silvio Venosa 3 também
menciona que se deveria utilizar a expressão pagamento para as
prestações em dinheiro, como é o sentido comum do termo, e adim-
plemento para quando houvesse outras espécies de prestações, como
a entrega de uma coisa. Mas o mesmo autor, em outra passagem de sua
obra 4, admite que as expressões podem ser utilizadas uma pela outra.
A diferença parcial existente entre o significado jurídico da pala-
vra pagamento e o seu significado comum é realmente propícia para a
controvérsia 5. E, se a finalidade for diferenciar o sentido jurídico do
I Silva Pereira, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil, vol. li. Rio: Forense, 12"
cd., 1992, p. 114.
2 Von Tuhr, Andreas. Tratado de las Obligaciones, vol. 11, trad. de Wenccslao Ro-
ces. Madrid: Reus, reimpresíon, 1999, p. 3. Carbonnier, Jean. Derecho Civil, t. 11, Voi.
III, trad. de Manuel Zorrilla Ruiz. Barcelona: Bosch, 1971, p. 198.
3 Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil, vol. 11. São Paulo: Atlas, 2003, p. 177.
4 Idem, p. 178.
5 A esse respeito, Caio Mário da Silva Pereira não esconde um certo inconformismo,
valendo transcrever seu pensamento: "É certo que a linguagem comum especializou o
vocábulo pagamento para a solução das obrigações pecuniárias, mas nem por isto per-
deu ele o seu sentido científico. Por mais, contudo, que o técnico se esforce na apura-
ção semântica das palavras, é sempre vencido pelo seu curso vulgar, ou normal. E,
então, depois de muito lutar, acaba cedendo. Neste particular, o jurista, resistindo
276
seu sentido vulgar, a melhor solução é a utilização do vocábulo cum-
primento, que é o adotado no Código Civil português. Este sim está
inclusive de acordo com a utilização do termo em seu sentido comum,
muito mais que adimplemento. Cumprimento seria, então, termo ge-
nérico, expressando qualquer forma de prestação do obrigado e, paga-
mento, espécie do gênero, termo reservado para as prestações em di-
nheiro. Como, todavia, a utilização da palavra pagamento tem respal-
do legal, histórico e teórico, de modo algum estará incidindo em erro
quem tomar os termos por juridicamente sinônimos. Reservar o ter-
mo pagamento apenas para a entrega de moeda corrente é, ainda, me-
dida cuja utilidade real não foi até agora demonstrada.
Judith Martins-Costa 6, a seu turno, entende que, em sentido es-
trito, o termo adimplemento, ou pagamento, designa o cumprimento
da prestação devida, de modo voluntário e exato, no tempo, lugar e
forma convencionados, com a satisfação do credor; em sentido lato,
indica qualquer forma de satisfação do credor, inclusive pela imposi-
ção judicial coativa. Segundo esta autora, os vocábulos pagamento e
adimplemento expressam a satisfação qualificada da prestação devida
pelo sujeito passivo da relação jurídica obrigacional. Ao praticar a con-
duta devida, fazendo ou não fazendo aquilo a que se comprometeu, ou
entregando o bem pretendido, o devedor faz com que seja alcançado
o resultado social e jurídico almejado pela relação obrigacional. Esta
satisfação de seu objeto extingue a dívida e todos os seus acessórios
como, por exemplo, garantias reais ou fidejussórias. Apesar disto, po-
dem ainda sobreviver deveres anexos pós-contratuais, como, por
exemplo, o dever de sigilo.
É importante ressaltar que somente a realização espontânea da
prestação é considerada adimplemento. A execução forçada, através
da qual é utilizada a via coativa estatal para compelir o devedor a satis-
fazer o crédito não é, a rigor, pagamento, embora seja uma via de
satisfação do credor, pois para a realização da prestação não se é neces-
sária a utilização do aparato estatal, que somente ocorre ante a inação
ou desvio de agir do devedor.
277
2. Natureza Jurídica
7 Ruggiero, Roberto de. Instituições de Direito Civil, V oi. III, trad. da 6" ed. italiana
por Paolo Capitano, atualizado por Paulo Roberto Benasse, Ed. Bookseller, Campinas,
1999, p. 140.
278
ou negativa) tendente à obtenção do resultado, que a prestação tem
por fito, se obtém tal resultado" 8 . Ou seja: se a prestação devida foi
executada, houve pagamento. Apesar de o Código Civil utilizar, por
mais de uma vez (arts. 308, 309 e 310), termos que, se interpretados
estritamente em seu sentido literal, indicariam a validade do paga-
mento, este não pode ser invalidado. Pode haver discussão no plano da
existência, se houve ou não o pagamento; ou então no plano da eficá-
cia, se produz ou não produz efeitos. Não se pode, contudo, anular ou
decretar a nulidade do pagamento, mas sim considerá-lo eficaz ou
ineficaz.
Uma outra parte da doutrina entende que o adimplemento é um
fato jurídico9 . Para Pontes de Miranda, é um ato-fato, pois o que é
essencial é que o pagamento seja conforme a obrigação 10 . Repre-
sentativo grupo se filia à corrente que nele enxerga um fato, a não.ser
quando a prestação tenha caráter negocial 11 Outros o elencam como
um ato jÚi-ídico. Dentre os que vislumbram no pagamento um ato,
existem alguns que ainda o classificam como um ato devido 12 • Segun-
do o que defende esta vertente, o pagamento é ato, já que seus efeitos
são previstos na norma, independentemente da intenção de quem o
pratica, sendo desnecessária a intenção de solver. Este ato seria ainda
devido porque o sol vens está obrigado a realizar (ou seja, deve) a con-
duta que foi definida no momento em que foi contraída a obrigação.
Como ato devido é aquele que está qualificado pela existência de um
dever jurídico anterior, impondo à parte uma determinada conduta,
nada existe a justificar que isto defina a natureza do pagamento.
O pagamento parece então ser, na verdade, um ato jurídico, mes-
mo quando se trate do atendimento a uma obrigação de realizar um
negócio jurídico, como a promessa de celebração de um contrato. É
que se faz necessário separar o ato negociai, do ponto de vista intrín-
seco, de seu aspecto extrínseco. Analisado em seu interior, tal ato
seria sem dúvida um negócio jurídico. Exteriormente, porém, quando
279
confrontado com a relação jurídica prévia que existia, se percebe que
houve um ato humano que produziu efeitos jurídicos nessa relação
jurídica anterior. Tanto isto é verdade que, se houver a celebração
de um ato negociai diverso daquele que devia ser praticado, paga-
mento não terá havido, embora se possa afirmar que houve um negó-
cio jurídico.
3. Princípios do Pagamento
280
adimplemento e da quitação, se o contrário não foi convencionado, se
o contrato não é gratuito 13 ou se as despesas não se originarem de fato
imputável a ele.
A prestação do devedor poderá ser adimplida em partes, ainda
que não tenha havido convenção neste sentido, quando, por sua natu-
reza, não puder ser efetuada de uma só vez.
Esses dois últimos princípios podem na verdade ser considerados
sub-princípios do primeiro, caso seja adotado o entendimento que
considera o pagamento apenas em seu sentido estrito, que é a realiza-
ção da prestação exatamente como convencionado, por inteiro, na for-
ma, no local e no momento devidos.
Parte da doutrina 14 acrescenta ainda aos princípios do pagamento
o princípio da boa-fé. Não parece, porém, que a boa-fé possa serdes-
tacada como princípio do pagamento. A mesma doutrina reconhece a
boa-fé como um princípio que abrange a relação obrigacional em seu
todo. E realmente assim o é. Desde as negociações preliminares, até
depois do fim da relação, as partes estão obrigadas a agir de acordo
com a boa-fé. Assim, não há qualquer razão específica para estabele-
cê-la como princípio do cumprimento, sendo preferível estabelecer a
boa-fé como princípio geral do direito das obrigações. Mesmo por
que, além da precisão teórica, por uma questão de didática, a boa-fé
deve ser tratada ao se examinar os princípios gerais do direito das
obrigações.
Obviamente, o adimplemento, assim como todas as outras etapas
do processo obrigacional, deve ser executado por ambas as partes de
acordo com a boa-fé, já que uma é credora da boa-fé da outra. Por esta
razão, Francesco Galgano chega a afirmar que a violação do dever de
executar o contrato segundo a boa-fé constitui uma violação do negó-
cio, sendo verdadeiro descumprimento contratuaJI 5 .
13 Código Civil, Art. 114 - "Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpre-
tam-se estritamente". Nos contratos de depósito gratuito as despesas relativas à resti-
tuição da coisa correm por conta do depositante, nos termos do artigo 631 do Código
Civil. Nos contratos gratuitos de mandato, ver o art. 675 do Código Civil, em sua
parte final.
14 Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. Extinção dos Contratos por Incumprimento do De-
vedor. Rio de Janeiro: Aide, 2' ed., 2004, p. 92. Martins-Costa, Judith. Comentários
ao Novo Código Civil. Rio: V oi. V, tomo I, Forense, Rio, 2003, p. 93.
15 Galgano, Francesco. El Negócio Jurídico, trad. de Blasco-Gasco. Valencia: Tyrant
le Blanch, p. 465.
281
3.1. Doutrina do Adimplemento Substancial
Tal doutrina, que tem suas raízes no direito inglês, foi adotada
pelo Código Civil italiano de 1942, em seu art. 1455, expressamente,
mas que não tem previsão legal expressa no Código Civil de 2002. O
adimplemento substancial constitui um adimplemento parcial, mas
que é tão próximo do adimplemento total que, em razão do atendi-
mento ao interesse das partes, não fica autorizada a resolução contra-
tual sob este fundamento. O credor não fica sem o proveito auferido
pela prestação parcial, não tendo interesse considerado digno de tute-
la jurídica que justifique solução tão drástica como a resolução contra-
tual, podendo ainda buscar outro meio para haver do devedor o res-
tante do devido.
Ao sustentar a manutenção do contrato, essa doutrina está defen-
dendo a aplicação da justiça, da equidade e da solidariedade, e respei-
tando a função social das relações obrigacionais, valores que são pre-
vistos em sede constitucional. A resolução do contrato, em casos nos
quais uma das partes executa sua prestação praticamente de forma
completa, atendendo a essência do interesse da outra, não gera qual-
quer proveito social. Não pode, portanto, o ordenamento jurídico au-
torizar a dissolução do vínculo. Neste caso, é cabível ainda a indeniza-
ção por perdas e danos eventualmente causados pelo não adimple-
mento integral, juntamente com a cobrança pelo saldo não pago (parte
não adimplida), acrescida de juros, multa e correção monetária. Isto
porque, por outro lado, não se pode, apesar da manutenção do contra-
to, permitir que o devedor enriqueça sem justa causa, em detrimento
do credor, a quem, por sua vez, deve ser autorizado o ressarcimento.
Já é clássico o exemplo do financiamento de veículos em que o
comprador toma empréstimo para pagar em 24 parcelas, porém deixa
de pagar a última ou as duas últimas delas. Admitir que o financiador
possa retomar o veículo, quando o consumidor o pagou quase por
completo, é solução injusta e divorciada da finalidade do contrato.
Igualmente, o caso do segurado que, sendo obrigado a pagar o prêmio
em doze vezes, deixa de pagar a derradeira. Se o segurado pagou pra-
ticamente todo o valor do prêmio, ele faz jus à cobertura em caso de
sinistro, devendo ser indenizado pelo valor do bem, mesmo que com
o abatimento da proporção relativa à parcela não paga.
É importante observar que não está protegido o contratante que
ardilosamente deixa de adimplir a integralidade do que deve, pois
somente ao devedor de boa-fé fica aberta a possibilidade de manuten-
ção do contrato. A invocação do adimplemento substancial não pode
ser usada por espertalhões como instrumento do calote, mas sim
282
como uma proteção àquele que, de boa-fé, acaba por não cumprir
integralmente aquilo a que se obrigou, mas atendeu a essência do in-
teresse da outra parte, tão ínfimo que foi o valor da parte que restou
inadimplida.
O Anteprojeto de Código das Obrigações do Prof. Caio Mário da
Silva Pereira, que jamais chegou a se tornar direito positivo, consagrou
expressamente a doutrina do adimplemento substancial, ao prever
que não se daria a resolução do contrato se o inadimplemento fosse
ínfimo em relação ao valor do negócio. Lamentavelmente, o projeto
que se transformou no Código Civil de 2002 não contemplou, da mes-
ma maneira que seu antecessor, a referida teoria de forma expressa,
de modo que o intérprete tem que se socorrer das cláusulas gerais de
tutela da boa-fé, abuso do direito e da função social do contrato, estas
sim, previstas expressamente no código atual, como decorrências de
princípios consagrados na Constituição da República.
283
micas na Europa daquele tempo eram extremamente estáveis 16 , não
havia nem espaço no plano fático para qualquer contestação àquilo
que é a espinha dorsal do direito contratual, que é a obrigatoriedade
das convenções.
Assim, as legislações mais antigas não contemplaram o princípio
traduzido pela cláusula rebus sic stantibus. O Código Civil do Reino
da Saxônia, de 1863, chegou a ser expresso ao prever que a mudança
das circunstâncias que tornasse desproporcional a prestação de uma
das partes não a eximiria do cumprimento. Esta regra somente seria
afastada se as partes tivessem previsto expressamente no contrato tal
situação, ou se houvesse previsão legal. As exceções legais seriam para
o comodato e o depósito gratuito, mas, na verdade, nestes contratos,
por serem eles gratuitos, não se pode falar em contraprestação.
O único código antigo considerado realmente exceção foi o Códi-
go Prussiano de 1794. Apesar de enunciar como regra geral que as
prestações não poderiam deixar de ser cumpridas com fundamento na
alteração das circunstâncias, o seu § 377 estabelecia, em tradução li-
vre, que "se porém uma mudança imprevista torna impossível alcan-
çar o resultado final objetivado pelas partes, como expressado no con-
trato ou aferível pela natureza da transação, então cada uma delas
pode desistir do contrato não cumprido".
O art. 31 7 do Código Civil é uma verdadeira manifestação, em
matéria de adimplemento, dos princípios constitucionais da função
social e da solidariedade. Por esta via, fica possibilitada a revisão con-
tratual sempre que, mantidos os originais termos do negócio, as partes
sejam colocadas em situação de tamanha iniqüidade, que o contrato
poderia acabar sendo realmente um instrumento de desordens na so-
ciedade17, perdendo seu sentido social.
Sobre a antiga cláusula rebus sic stantibus, foram desenvolvidas
teorias na França- Teoria da lmprevisão, Itália- Teoria da Onero-
sidade Excessiva, e Alemanha- Teoria da Base do Negócio, que serão
brevemente analisadas.
16 Tão estáveis que o escritor austríaco Stefan Sweig denominou aquele tempo como
a época da segurança, conforme noticia Maria Celina Bodin de Moraes in Danos à
Pessoa Humana- Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de janei-
ro. Renovar, 2003, p. 66.
17 Exemplo disso é o que já aconteceu no Brasil, por exemplo, nos casos dos contratos
de leasing de veículos em dólar, que, apanhados em curso pela desvalorização cambial
de 1999, logo após a reeleição de um governante que se gabava de ter trazido estabili-
dade econômica ao país, tornaram inviável sua execução pelos consumidores.
284
Teoria da Imprevisão
De acordo com essa doutrina, quando ocorrerem, de forma super-
veniente, circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis ao tempo da
formação do contrato, este poderá ter a sua resolução decretada, ou
ter seus termos revistos. Não é o caso do art. 31 7, que exige a impre-
visibilidade do evento e a desproporção manifesta, mas não a excep-
cionalidade da álea, entre as prestações.
18 Karl Larenz, Base dei Negocio Jurídico y Cumplimiento de los Contratos, trad.
Carlos Fernández Rodriguez. Granada: Comares, 2002.
19 É notável a antevidência demonstrada por Windsheid, antes mesmo da eclosão dos
dois· conflitos mundiais que marcariam o século XX, notadamente porque, em sua
época, a autonomia da vontade atingiu o apogeu de sua força. Mesmo após mais de
285
Na ausência de disposição específica, os juristas alemães acabaram
tendo que se socorrer da cláusula geral da boa-fé, inserida no§ 242 do
B.G.B., da integração do contrato do§ 157, ou interpretando extensi-
vamente o conceito da impossibilidade econômica da prestação, con-
tida no § 2 7 5 do mesmo código.
O aprimoramento da teoria da base do negócio chegou mais tarde,
quando Karl Larenz esboçou sua teoria objetiva. Ao contrário do que
já se afirmou em doutrina, esta teoria não dispensa a imprevisibilidade
como característica fundamental de revisão ou resolução contratual.
De acordo com esse jurista alemão, todo contrato é estipulado levan-
do em conta as circunstâncias objetivas de caráter geral, como por
exemplo, ordem econômica. Assim, uma vez alteradas estas circuns-
tâncias objetivas, vale dizer, uma vez desaparecida a base do negócio
jurídico, e quando a relação de eqüiponderância 20 entre prestação e
contraprestação restar deteriorada em tão grande medida, que não se
poderá mais falar em contraprestação, poderá haver a revisão, ou a
resolução, do contrato.
286
que seria aquilo que não poderia ser legitimamente esperado pelos
contratantes de forma objetiva. Não é imprevisível, por exemplo, que,
no Brasil, o governo adote um plano econômico que desvalorize a
moeda. Contudo, como os governos em muitas ocasiões fazem a po-
pulação crer que tais medidas não ocorrerão, não parece que se possa
exigir que os contratantes possam sempre, em qualquer hipótese, ter
essa previsibilidade.
22 Nesse sentido é a lição de Von Tuhr, Tratado de las Obligaciones, V oi. 11, p. 8.
287
solvens não possuir a capacidade de exercício, esta poderá ser suprida
pela participação no ato de seu representante legal.
Da mesma maneira, não podem praticar atos de alienação os que,
não obstante possuem a genérica capacidade de exercício, não detêm
o específico poder de disposição. É o que se dá, por exemplo, na falên-
cia, em que o devedor fica privado da prática de atos de disposição
patrimonial, ou o que ocorre na entrega da coisa feita por quem não é
o seu proprietário, uma vez que aquele que não é o titular do domínio
não tem, juridicamente, o poder de dispor sobre coisa alheia, a não ser
que represente o verdadeiro proprietário.
O pagamento feito por quem não tem o poder de disposição não
produz efeitos. A dívida não se extingue e a coisa entregue tem que ser
restituída ao seu dono, não aproveitando ao accipiens, quem a rece-
beu, a alegação de seu crédito, já que, apesar de existir, a dívida não
pode ser paga em desacordo com os preceitos legais.
Essa regra da obrigação de dar comporta exceção: se coisa fungível
for entregue em pagamento e for consumida pelo credor, que a rece-
beu de boa-fé, nada poderá ser reclamado deste, inobstante a falta de
legitimação, ou a falta de capacidade de exercício de quem efetuou o
adimplemento.
Para que o credor não possa ser compelido a devolver a coisa rece-
bida, é necessária a ocorrência concomitante de quatro requisitos exi-
gidos pelo art. 307, par. único, do novo Código Civil. São eles:
I - a falta, por aquele que efetua o pagamento, do poder de
disposição da coisa, ou de capacidade de exercício;
2 - fungibilidade da coisa entregue;
3 - recebimento de boa-fé por parte do credor; e
4- a consunção da coisa.
Considera-se de boa-fé o credor que, desconhecendo a falta de
capacidade de exercício, ou desconhecendo a falta de legitimação do
solvens, recebe a coisa e a consome, ainda que em momento posterior.
Se o credor tiver recebido a coisa de má-fé, isto é, sabendo que o
solvens não poderia entregá-la, ele terá que restituí-la. Se, porém, ele
tiver consumido a coisa fungível, deverá entregar outra coisa da mes-
ma qualidade, quantidade e espécie. A consumação da coisa pode se
dar tanto no sentido físico, que implica na destruição material da coi-
sa, quanto no seu sentido jurídico, que ocorre quando ela é alienada.
A doutrina 23 lembra três casos em que há o interesse do incapaz
23 Colin, Ambroise y Capitant, Henri. Curso Elemental de Derecho Civil, t. 111, trad.
de Dcmófilo de Buen. Madrid: Reus, 4a ed., reimpresión, 1987, p. 175.
Z88
em receber de volta a coisa, mesmo continuando a dívida a existir e o
seu representante legal tendo que, de uma ou outra maneira, executar
a prestação:
a) se o incapaz houver pago uma quantia em dinheiro antes do
vencimento da dívida, ele tem interesse em recobrar o numerário,
para auferir eventuais rendimentos até a data em que o credor possa
exigir a prestação;
b) o devedor de uma coisa in genere que tenha entregue objeto de
melhor qualidade, já que poderá liberar-se pela entrega de coisa de
qualidade média.
c) o devedor em razão de obrigação alternativa (a que lhe caiba a
escolha), pode desejar recuperar a coisa entregue e a substituir por
outra, fazendo opção que lhe seja mais vantajosa.
Questão interessante acontece quando o incapaz solve dívida pres-
crita. Neste caso há, sem dúvida, uma renúncia tácita à prescrição,
feita, todavia, por quem não tem capacidade para tanto. Esta falta não
parece ser, porém, suficiente para ensejar a devolução daquilo que foi
pago, pois o código tem dispositivo específico e expresso - art. 882
-que institui que a dívida prescrita não pode ser repetida. Não só a
lei é peremptória ao tratar do assunto, como não estabelece a exceção.
E uma vez que o direito de crédito continua a existir, reputar como
válido e eficaz o pagamento é solução mais adequada, inclusive porque
é a compatível com a segurança jurídica, fundamento da prescrição.
24 Silva Pereira, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil. Vol. li. Rio: Forense,
l2 3 ed., l992,p.ll7.
289
As prestações que somente podem ser executadas pelo próprio
devedor, em razão de suas qualidades, são chamadas prestações infun-
gíveis. São consideradas fungíveis, inversamente, as prestações em
que o sujeitá que as executa não é relevante para o interesse do cre-
dor, sendo-lhe indiferente se é o devedor ou outra pessoa. É por isto
que, sob este aspecto, observa Biondo Biondi 25 que se pode falar na
fungibilidade da pessoa que realiza a prestação.
Nas obrigações cuja prestação não seja intuitu personae, é preciso
fazer a distinção entre a figura do terceiro interessado e a do terceir.o
não interessado, eis que diversas são as conseqüências que podem
ocorrer.
Todos os terceiros que tenham interesse jurídico na solução do
débito podem pagá-lo, independentemente de consentimento do cre-
dor ou do devedor. É o caso do fiador, do sócio, do credor do devedor
(por outra dívida, obviamente) ou do sub-inquilino. Válida aqui é a
observação de que o mandatário não é terceiro interessado, pois está
agindo em nome do próprio devedor.
Se o credor se recusar a receber a prestação, o terceiro, seja ele
interessado ou não interessado, pode inclusive se valer de meios que
conduzam à exoneração do devedor. Porém, se o credor e o devedor
se opuserem ao pagamento do terceiro não interessado, o ordenamen-
to jurídico não tolera que este terceiro, estranho à relação obrigacio-
nal, venha nela intervir, determinando seu destino, contra a vontade
de ambas as partes envolvidas.
Os terceiros interessados se sub-rogam nos direitos do credor. O
terceiro passa então a ocupar a posição deste, com todas as suas vanta-
gens, privilégios ou garantias. Diversamente, o terceiro não interessa-
do não se sub-rogará nos direitos do credor, cabendo-lhe tão-somente
o reembolso do que dispendeu, para evitar o enriquecimento sem cau-
sa. Neste caso, a obrigação é diversa da primeira, que foi extinta pelo
pagamento.
O devedor, se desconhecia o pagamento por terceiro, ou se, tendo
conhecimento, manifestou-se em contrário ao ato, não ficará obrigado
a reembolsar o solvens se pudesse deixar de pagar a dívida, opondo ao
credor exceções como a de compensação e a de prescrição, ou defesas
como a invalidade ou inexistência do ato que originou a obrigação. Ou
seja, se, por exemplo, o terceiro, sem a anuência do devedor, pagou
uma dívida que, por qualquer motivo jurídico, poderia deixar de ser
25 Biondi, Biondo. Los Bienes. Barcelona: Bosch, 2" ed., 2003, p. 83.
290
paga, este não ficará obrigado junto àquele. No entanto, é imprescin-
dível que o motivo seja efetivamente jurídico, não séhdo permitido ao
devedor deixar de pagar ao solvens sob o argumento de que o credor,
por motivos meramente morais, como a amizade ou a piedade, não lhe
cobraria a dívida. A própria conduta do credor em aceitar o pagamen-
to de terceiro pode indicar até mesmo o contrário, revelando sua in-
tenção de ver satisfeito o crédito.
O devedor, todavia, é obrigado a ressarcir o terceiro que paga sua
dívida, se não tinha fundamento jurídico para invocar contra o credor,
não podendo enriquecer sem causa 26 , e etn detrimento do solvens.
Por outro lado, se a dívida ainda não estava vencida, o terceiro não
poderá cobrar o reembolso antes da data do vencimento, caso contrá-
rio, o devedor teria a sua situação piorada.
291
sentado pelos seus pais, ou pelos tutores. Se o credor estiver privado
judicialmente da administração de seus bens, o pagamento deve ser
feito àquele que tiver sido designado por ato judicial, a quem incum-
birá a recepção do pagamento. O mesmo se diz quanto ao que teve
alguma constrição judicial ao crédito. Neste caso, o devedor deverá
efetuar o adimplemento junto a quem o juiz determinar. O credor
também pode se fazer representar por um mandatário, autorizando
este a receber o pagamento em seu nome.
O pagamento diretamente feito ao incapaz, tendo o solvens co-
nhecimento desta incapacidade, produzirá efeitos se for provado que
reverteu em benefício dele. O ônus da prova de que o credor incapaz
se beneficiou do adimplemento é do devedor. Se, todavia, quem paga
não tiver conhecimento da incapacidade de exercício do credor, o
pagamento terá efeito liberatório. Idêntica conseqüência ocorrerá
quando o credor incapaz ardilosamente oculta do solvens esta condi-
ção, pois as regras que definem as incapacidades, como corolário da
cláusula geral de tutela da pessoa, prevista em nível constitucional,
têm o objetivo de proteção àqueles que se encontram em uma situa-
ção de desvantagem. Assim, não se pode permitir que o incapaz, como
afirma Georges Ripert 28 , transforme num meio desleal de luta uma
arma que lhe foi dada para socorrer sua fraqueza.
Credor Putativo
O credor putativo é o que aparenta ser o verdadeiro credor, em-
bora não o seja. Nas palavras de Ambroise Colin e Henri Capitant, é
aquele que aos olhos do público passa por ser o verdadeiro credor 29 • O
pagamento, feito de boa-fé ao credor putativo, é eficaz em relação ao
credor de direito, tendo efeito liberatório. Apesar do art. 309 utilizar
a expressão "válido", o que poderia fazer acreditar que se está no pla-
no da validade dos atos jurídicos, a hipótese é de eficácia.
Não é suficiente, porém, para que a putatividade se verifique, a
mera alegação do suposto credor, sendo preciso que existam fortes
elementos que indiquem essa condição. É imprescindível que outras
circunstâncias fáticas levem o devedor a acreditar que uma determi-
28 Ripert, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis, tradução da terceira edição
francesa por Osório de Oliveira. Campinas: Booksellcr, 1a ed., 2000, p. 159.
29 Colin, Ambroise y Capitant, Henri. Curso E/ementa/ de Derecho Civil, t. III, trad.
de Demófilo de Buen. Madrid: Reus, 4" ed., reimpresión, 1987, p. 176. Beviláqua,
Clóvis. Código Civil do Estados Unidos do Brasil- Comentado, V oi. 11. Rio de Janei-
ro: Editora Rio, edição histórica, 1977, p. 72.
292
nada pessoa é mesmo o credor. Tendo aquele agido de boa-fé, e toma-
do as cautelas que seriam razoáveis lhe exigir, obedecendo ao seu de-
ver de diligência, o pagamento terá a eficácia de liberá-lo da dívida. De
outro lado, o incauto, que pagou ao primeiro que lhe apareceu à frente
apresentando-se como credor, será obrigado a pagar novamente ao
legítimo titular do crédito.
Por expressa disposição legal (art. 311 do Código Civil), a pessoa
que portar a quitação presume-se autorizada a receber o pagamento.
Tal presunção, todavia, é relativa, admitindo prova em contrário. As
circunstâncias de fato também podem contrariá-la, mesmo que não
constituam provas cabais. Se, inobstante o porte da quitação, existi-
rem indícios razoáveis de que a pessoa não está autorizada a receber, o
devedor pode e deve recusar-se a solver o débito, sob pena de, ante
sua negligência, ter que pagá-lo a quem de direito.
Mandatário Putativo
É igualmente eficaz o pagamento feito ao mandatário putativo,
que é o terceiro a quem o solvens tem justa razão para acreditar auto-
rizado pelo credor a receber. É o exemplo do locador que outorga a
uma administradora de imóveis, por contrato por tempo indetermina-
do, autorização para receber os aluguéis. Se uma vez findo este contra-
to de administração, o devedor não é cientificado e continua, de boa-
fé, pagando à administradora, não há razão para que não se tenha por
bom o adimplemento, eis que a comunicação da extinção do contrato
de administração ao locatário-devedor é diligência de responsabilida-
de do locador-credor. A este caberá, na hipótese, haver o valor dos
aluguéis que forem pagos, acrescidos de perdas e danos, bem como
juros e correção, de quem indevidamente recebeu.
6. Objeto do Pagamento
293
do direito romano: aliud pro alio invto creditare non potest. Como já
visto, o credor pode até receber prestação diversa da que é realmente
devida, mas neste caso não se estará diante de adimplemento, e sim de
uma dação em pagamento (art. 356 do Código Civil). Nas obrigações
de dar coisa incerta, em que ares seja determinada apenas pelo gênero
e quantidade, o devedor, salvo convenção em contrário, não é obriga-
do a prestar coisa de melhor qualidade (art. 244 do Código Civil).
Pelos valores da equidade e da boa-fé, se presta o devedor coisa de
qualidade média dentre as do gênero, presta em correspondência com
o que deve, já que o credor não pode exigir bem de melhor qualidade.
Se voluntariamente presta à de melhor qualidade, igualmente estará
prestando o devido. Também em homenagem ao princípio da boa-fé,
o que não é permitido ao solvens (seja ele o próprio devedor ou tercei-
ro) é prestar, sem a concordância do credor, coisa de qualidade infe-
rior à média.
A prestação não pode ser efetuada por partes, se assim não se
ajustou, ainda que a soma destas seja materialmente igual ao que é
devido. Mesmo que a prestação suporte fisicamente divisão, sendo
naturalmente fracionável, o cumprimento tem que ser feito por intei-
ro, a não ser que o credor aceite receber por partes, pois a utilidade da
prestação pode ficar comprometida pela sua execução gradual, ou
causar algum transtorno ao credor.
Existem, porém, exceções à regra geral. É permitida a modifica-
ção do objeto da prestação na hipótese de revisão contratual, quando
fato superveniente e imprevisível a tornar excessivamente onerosa,
conforme já analisado. Através da doutrina do adimplemento substan-
cial, brevemente exposta linhas atrás, também fica autorizada a manu-
tenção do vínculo contratual, se o inadimplemento for irrisório. Em
hipóteses extremas, considera-se 30 abuso de direito a recusa do credor
em aceitar objeto ligeiramente modificado, por falta de boa-fé.
Nas obrigações decorrentes de atos ilícitos, a regra geral, prevista
no art. 944 do novo código, é que a indenização deve corresponder à
integralidade do dano. O mesmo artigo, todavia, concretizando o prin-
cípio constitucional da solidariedade no direito das obrigações, permi-
te que caso haja excessiva desproporção entre o dano e a gravidade da
culpa, a indenização pode ser reduzida eqüitativamente. Esta exceção
à regra somente pode ser aplicada pelo juiz em situações realmente
diferenciadas, e em uma proporção harmoniosa e comedida.
294
Na esteira do direito estrangeiro, o Código Civil brasileiro tam-
bém adotou expressamente o princípio nominalista, ou do nominalis-
mo monetário, para fixar que as dívidas em dinheiro deverão ser pagas
em moeda corrente pelo seu valor nominal (art. 315). Moeda corrente
é o meio de troca geral e convencional, controlado e emitido exclusi-
vamente pelo governo de um país, que estabelece seu valor nominal.
Alguém que deva uma quantia expressa numericamente em dinheiro
somente se desonera prestando o montante correspondente em moe-
da de curso legal ao tempo do pagamento. Uma dívida é em dinheiro
quando é representada pela quantificação nominada da moeda. Ao
contrário, é de valor, quando é representada pelo poder de compra da
mesma, pela capacidade de seu poder aquisitivo. O princípio do valo-
rismo não é, todavia, negligenciado pelo ordenamento pátrio 31 , e, ain-
da quando não exista disposição expressa, pode ser utilizado mediante
a aplicação da boa-fé, do enriquecimento sem causa e da equidade.
O credor não é, ainda, na forma do art. 325 do Código Civil, obri-
gado a arcar com os custos e encargos do adimplemento e da quitação,
se o contrário não foi convencionado, se o contrato não é gratuito, ou
se as despesas não se originarem de fato imputável a ele, conforme já
referido. Se o credor o é pela integralidade da prestação, não se po-
dem presumir a seu cargo as despesas necessárias à entrega da coisa da
realização da prestação. .J
Se houver pluralidade de credores nas obrigações solidárias, o de-
vedor se libera prestando a um só deles, não podendo, se a prestação
(
for divisível, prestar pro rata, a cada um. Não sendo a obrigação soli-
1
dária, se existirem diversos tredores de prestação divisível, aí então o
devedor tem que prestar a~cada um deles o que proporcionalmente
lhes couber. ,J
Nas obrigações alternativas, em que é devida uma ou outra presta-
ção, o devedor se libera mediante a execução da que for escolhida.
Nas obrigações facultativas, a execução de uma das prestações é adim-
plemento, tendo igualmente efeito liberatório.
Já se o adimplemento se der por medida, ou peso, estes serão os
do lugar da execução da prestação, a não ser que convenção das partes
tenha disposto em contrário. Muitas vezes os critérios de medida va-
riam de acordo com a região em que ela é feita. Exemplo constante-
mente repetido pela doutrina é o caso do alqueire, unidade de medida
de terras, que varia de acordo com a região do Brasil. Neste caso a
medida será a do lugar onde a prestação deva ser executada.
295
Não se pode deixar de ressaltar que é preciso haver uma relação
de causalidade entre a conduta do solvens e a produção do resultado
previsto para sua prestação. Se um evento estranho à sua conduta vem
a ocorrer e produz o resultado que deveria ser alcançado pelo devedor
para que houvesse a satisfação do crédito, a obrigação deixa de ter
objeto, vindo a ser, portanto, extinta pela impossibilidade fática da
prestação. Desta maneira, se, por exemplo, alguém contrata com ou-
trem o reflorestamento de uma área de terra ambientalmente degra-
dada, mas a própria natureza se recompõe antes da realização da pres-
tação pelo devedor, este não fará jus à sua remuneração, inobstante
lhe caiba o ressarcimento de despesas que tiver suportado, assim
como uma remuneração proporcional pelo trabalho prévio que even-
tualmente já tiver sido efetuado 32 .
7. Prova do Pagamento
296
8. Lugar do Pagamento
34 Como ressalta Von Tuhr, nas obrigações solidárias em que há pluralidade de deve-
dores, o lugar do cumprimento será diverso para cada um deles, de acordo com seu
domicílio. Von Tuhr, Andreas. Tratado de las Obligaciones, Vol. 11. Madrid: Reus,
1999,p.37.
35 Os termos em português, quesíveis (do latim quaesere: reclamável) e portáveis,
são preferidos em substituição aos ainda muito utilizados vocábulos da língua francesa,
quérables e portables. Uma vez que o idioma pátrio oferece os recursos, não existe
razão para o inútil e de mais difícil apreensão estrangeirismo. O emprego de neologis-
mos como, por exemplo, os termos "buscável" e "conduzível" ou "levável", seria algo
que facilitaria ainda mais a compreensão tanto pelo leigo, quanto pelo estudante, da
idéia que se deseja transmitir.
36 STJ, 3 3 Turma, Resp. 363.614, Rei. Min. Fátima Nancy Andrighi.
37 Von Tuhr, Andréas. Tratado de las Obligaciones. V oi. 11. Madrid: Reus, 1999, p.
38.
38 Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, t. XXIV.
Campinas: Bookseller, 2003, p. 160.
297
tendendo que a transferência da propriedade imobiliária somente
ocorre com o registro do título no cartório de imóveis do lugar onde se
situe o bem 39 . As prestações relativas a imóvel também se sujeitam a
esta regra, devendo ser feitas no local do bem. As partes têm liberda-
de, porém, para dispor em sentido contrário, escolhendo outro lugar,
desde que a própria natureza da prestação não imponha a realização no
local do bem 40 .
Inovação do Código Civil de 2002, que não tem correspondente
no código revogado, é a possibilidade do devedor realizar o cumpri-
mento em local diverso do originalmente estabelecido, se houver mo-
tivo grave para tanto. A relevância que autoriza o devedor a adimplir
em outro local deverá atender à razoabilidade e não aos eventuais ca-
prichos das partes. O juiz deve apreciar tal relevância, completando o
sentido da norma mediante o exercício de atividade integrativa, já que
a expressão "motivo grave", utilizada no art. 329 do Código Civil, é
um conceito jurídico indeterminado. A análise do caso concreto pos-
sibilitará a conclusão sobre a existência e gravidade dos motivos que
forem mencionados. É importante não olvidar que a alteração do local
não poderá trazer prejuízos ao credor, e que, por outro lado, este não
poderá abusar do direito de receber a prestação em determinado lo-
cal. Aqui, a boa-fé de ambas as partes deve novamente ocupar posição
de destaque, devendo estas agir de modo cooperativo para que sejam
alcançadas as legítimas finalidades da obrigação. Se o credor insistir
em alguma exigência abusiva e inútil, esta não deve ser merecedora de
tutela jurídica.
O próprio Código Civil chega, em seu art. 330, a pormenorizar um
caso em que há evidente abuso no exercício da posição do credor, auto-
rizando o devedor a efetuar o adimplemento em lugar diverso do previs-
to no contrato, quando, em prestações sucessivas, reiteradamente estas
tenham sido recebidas em local diverso, sem oposição do interessado, o
que faz presumir a renúncia ao local convencionado. Foi utilizada aqui
uma especificação do princípio da boa-fé e do abuso do direito, conheci-
da como supressio, que é a eliminação de uma faculdade jurídica decor-
298
rente de atos de seu titular que criem na outra parte a expectativa funda-
da que houve a intenção dela não mais ser exercida.
Embora o art. 330 mencione expressament e o termo renúncia, na
realidade há muito mais substância teórica em se apelar para a tutela
42
da confiança 41 . Não obstante abalizado entendimento em contrário ,
não parece que se possa proibir as partes de dispor sobre o assunto, e
estabelecer que o credor possa aceitar receber a prestação em local
diverso do pactuado sem que isto implique em alteração do lugar do
pagamento. É que, imbuído pelo espírito de cooperação e pela ressalva
feita, o credor pode sem dúvida ver nascer uma expectativa de que sua
aceitação não lhe trará prejuízos. Essa expectativa é legítima e merece
proteção, mesmo porque a tutela da confiança existe para ambos os
contratantes.
Eventuais despesas que decorram da mudança do local do paga-
mento deverão ser suportadas pela parte que lhe tenha dado causa.
Se, diversamente, a mudança tenha sido imposta por evento fortuito,
a responsabilidade pelas despesas extras deverá ser dividida entre as
partes 43 , solução que também ocorrerá se a culpa for de ambas.
Por fim, cabe não confundir local do pagamento com o local onde
o mesmo pode ser exigido judicialmente, ou seja, o foro. Não necessa-
riamente a prestação deverá ser executada no local que as partes ele-
gerem como aquele onde serão dirimidas judicialmente suas conten-
das, inclusive as que versem sobre o adimplemento .
9. Tempo do Pagamento
299
execução é algo que, contudo, nem sempre pode ser considerado
como uma verdade absoluta.
Como regra geral, e em princípio, a exigibilidade da obrigação é
imediata. A não ser que se convencione o contrário, o credor pode
exigir de imediato a prestação do devedor, desde que a própria natu-
reza da prestação não implique conseqüência diversa, ou ainda que
não exista dispositivo legal de ordem pública, ou costumes que obs-
tem a exigibilidade instantânea do adimplemento.
É óbvio que uma prestação que, por sua própria natureza, não possa
ser cumprida de imediato, tenha sua execução postergada até momento
em que isto seja possível. Quem, por exemplo, contrata a construção de
um edifício, não pode pretender que em um único instante todo o mate-
rial se agrupe e a obra esteja completa, eis que há uma impossibilidade
física entre a ocorrência de tal resultado e os meios empregados pela en-
genharia atual. Noutros casos, os costumes locais podem impor um certo
padrão temporal para a execução de determinadas prestações, que deve-
rá ser respeitado pelas partes. Do mesmo modo, a lei, por questões de
ordem pública, que não podem ser afastadas pela vontade das partes,
pode conceder ao devedor um prazo que impeça o credor de exigir o
pagamento antes de sua fluência.
Se o termo do prazo ocorrer em finais de semana ou feriado, have-
rá a sua prorrogação para o dia útil seguinte, salvo se o contrário resul-
tar da natureza da prestação, dos costumes ou de convenção em con-
trário. Se, por exemplo, alguém contrata uma apresentação musical
para a animação de uma festa a ser realizada em um domingo, é evi-
dente que o serviço não poderá ser prestado na segunda-feira.
O tempo, em geral, presume-se a favor do devedor, por conta de
uma idéia de solidariedade, no sentido de que, uma vez que o cumpri-
mento é o objetivo da obrigação, deve haver uma cooperação entre as
partes, com o objetivo de facilitar a execução da prestação, minimi-
zando, tanto quanto possível, a hipótese de inadimplemento.
Se o cumprimento da obrigação dentro do prazo for indispensável
à utilidade da prestação para o credor, este poderá enjeitá-la (Código
Civil, art. 395), e a obrigação resolver-se-á pleno jure. Nestes casos se
está tratando, na verdade, de inadimplemento, e não simplesmente de
mora. Ao credor prejudicado incumbe, porém, o ônus da prova da
inutilidade, salvo se a própria natureza da prestação indicar o contrá-
rio. Se, por outro lado, o descumprimento do prazo não acarretar a
perda de utilidade para o credor, a resolução não ocorre de plano.
Se, voluntariamente, o devedor efetua a prestação antes do advento
do termo que tenha sido estabelecido em seu favor, nada poderá serre-
300
clamado do credor, já que houve uma renúncia tácita ao benefício. Se, ao
revés, o prazo existe em benefício do credor, não há maneira deste ser
compelido pelo devedor a aceitar o pagamento antes do termo.
Embora o devedor que cumpre a sua obrigação antes do vencimento
não tenha direito à repetição, a doutrina lembra que, nas prestações em
dinheiro, o incapaz que pagou antecipadamente tem interesse em tomar
44
a quantia de volta para aproveitar os juros • Nas obrigações de entrega
de coisa, também pode existir interesse do incapaz em recuperá-la, para
usá-la e dela fruir até a data do vencimento.
Apesar de existirem na legislação extravagante diversos casos em
que o devedor pode pagar antecipadamente a dívida, com o abatimen-
to proporcional dos juros eventualmente devidos 45 , o Código Civil
silenciou a respeito. A omissão faz com que se deva buscar no princí-
pio da solidariedade, previsto na Constituição da República, a solução
para o problema, utilizando-se, para tanto, as cláusulas gerais da boa-
fé objetiva e da proibição ao abuso de direito (arts. 186 e 422 do
Código Civil), para permitir que o devedor que cumpra antecipada-
mente sua obrigação deduza proporcionalmente o valor dos juros de-
vidos. Outro recurso é aplicar o art. 885, que trata do enriquecimento
sem causa, e prevê a restituição daquilo que for auferido quando sua
causa deixou de existir46 .
O direito brasileiro, salvo na hipótese de recuperação judicial da
empresa 47 , não admite ainda a prorrogação judicial do vencimento da
dívida, ou que o juiz obrigue o credor a aceitar o pagamento por par-
tes, solução adotada, por exemplo, pelo Code francês, no seu art.
1.244 48 • É o chamado termo de graça. O novo Código Civil, repetindo
44 Colin, Ambroise y Capitant, Henri. Curso Elemental de Derecho Civil, t. 111, trad.
de Demófilo de Buen. Madrid: Reus, 4" ed., 1987, p. 175.
45 E o exemplo mais conhecido é o Código de Defesa do Consumidor, que permite
expressamente a hipótese, em seu art. 52, § 2°, assegurando ao consumidor a liquida-
ção antecipada do débito, com a redução proporcional dos juros e demais acréscimos,
nos contratos que envolvam outorga de crédito ou concessão de financiamento. Quan-
to às dívidas hipotecárias e pignoratícias, v. art. 7 do Dec. 22.626/33. Por interpreta-
ção extensiva, também se pode considerar que os casos de pagamento antecipado da
dívida hipotecária ou pignoratícia são amparados pelo art. 1.426 do Código Civil.
46 Código Civil, art. 885: "A restituição é devida, não só quando não tenha havido
causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir."
47 Nestes casos a nova Lei de Falências objetiva facilitar a superação da crise econô-
mico financeira do devedor, em atenção a seu papel social, como fonte de circulação
de bens, e de geração de empregos e tributos.
48 Em alínea inserida pela lei de 20.08.36.
301
o direito anterior, não franqueou a possibilidade de o devedor reque-
rer que o juiz leve em conta a sua situação econômica para lhe conce-
der um prazo adicional para efetuar o pagamento, cuja extensão será
determinada pelas circunstâncias, sem que o credor possa, durante o
período tomar qualquer medida.
Há de se ressaltar que existem obrigações que, ao invés de esta-
rem sujeitas a um espaço de tempo, estão subordinadas a uma condi-
ção. E esta, como evento futuro e incerto, faz com que a própria exis-
tência da dívida fique comprometida enquanto a situação não se defi-
nir. Assim, se houver o pagamento antecipado será possível a sua repe-
tição, pois terá havido solução de dívida cuja existência é incerta. Se,
porém, entre o momento da execução da prestação e o da repetição
ocorrer o implemento da condição, nada mais restará a ser devolvido,
pois é incabível repetir-se o pagamento de uma dívida cuja certeza foi
confirmada pela realização do evento.
É necessário, ainda, distinguir pagamento antecipado de venci-
mento antecipado. Ao passo que o pagamento antecipado ocorre
quando a dívida é solvida prematuramente, antes do momento devi-
do, o vencimento antecipado transfere o termo final para ocasião an-
terior, passando a prestação a ser exigível em data anterior.
O Código Civil de 2002 enumera três hipóteses, em rol que, como
exceção, deve ser tomado como estrito, nas quais o vencimento da
dívida é antecipado. A primeira delas é a falência ou concurso de cre-
dores, em que, em razão da incapacidade econômica do devedor para
pagar todas as suas dívidas, seus credores se reúnem para apurar e
dividir seus bens. A segunda é a penhora, por outro credor, de bens do
devedor hipotecados ou empenhados, que sejam garantia da dívida. E
a terceira ocorre quando cessam ou se tornam insuficientes as garan-
tias fidejussórias ou reais da obrigação. Nestes dois últimos casos, em-
bora o art. 333 somente seja expresso quanto ao terceiro, como o
credor fica ameaçado com a perda da garantia real do débito, ele tem
a possibilidade de exigir do devedor que o garanta por outros meios,
medida que deve necessariamente ser tomada antes da cobrança.
Nas obrigações decorrentes de ato ilícito extracontratual, o art.
398 do Código estabelece a mora presumida do devedor, que ocorre
na data do evento danoso, dia em que surgiu o prejuízo e quando
deveria o devedor ter pago sua dívida.
302
O desequilíbrio da relação obrigacional e a
revisão dos contratos no Código de Defesa do
Consumidor: para um cotejo com o Código Civil
I. Intróito
Maia, Paulo Carneiro. Cláusula rebus sic stantibus. Enciclopédia Saraiva de Direi-
to, v. 15. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 137.
303
revolução francesa e a instauração do Estado liberal, assentado em
bases individualistas e voluntaristas, a cláusula entrou em decadência,
não sendo positivada no Código de Napoleão, de 1804, e, tampouco,
no Código Civil alemão, de 1896.
A justificativa para a não positivação da cláusula se encontra no
liberalismo burguês, fundamento político-ideológico das codificações,
que pregavam a autonomia da vontade dos contratantes e a obrigato-
riedade dos contratos, princípio consubstanciado na máxima pacta
sunt servanda, segundo o qual as convenções livremente ajustadas va-
liam como lei entre as partes.
Extirpada do cenário do "mundo da segurança e da certeza" 2, em
que o contrato se revelava como dogma intocável, a cláusula rebus
sic stantibus retomou paulatinamente o seu espaço após a Primeira
Guerra Mundial, devido às injunções sociais e econômicas dela de-
correntes3.
V árias foram as construções doutrinárias surgidas para explicar a
cláusula em comento, concebendo-se, assim, matizes diversificados
da chamada teoria da imprevisão 4 •
A evolução da idéia de modificação do conteúdo do contrato por
circunstâncias supervenientes evoluiu, aos poucos, de um modelo al-
tamente subjetivista e sobremaneira arraigado no voluntarismo, como
a teoria da pressuposição, de Windscheid, para um modelo mais obje-
tivado, como a teoria da base objetiva do negócio jurídico, de Karl
Larenz.
Em meados do século XIX, sustentava Windscheid que o contra-
tante emite sua vontade na pressuposição, ainda que desconhecida do
outro contratante, de que as circunstâncias no momento da execução
serão iguais às do momento da contratação, sendo que, frustrando-se
tal pressuposição, haverá motivo para resolver ou modificar a avença.
Como bem sintetiza Fabiana Rodrigues Barletta, a maior crítica que
recai sobre tal teoria é o fato de a mesma admitir que uma pressupo-
304
s1çao não manifestada, absolutamente unilateral, tenha o poder de
desestabilizar uma operação jurídica 5.
Já no século passado, Larenz propôs que o contrato só deveria
subsistir quando sua base objetiva também subsistisse como regula-
mentação dotada de sentido. Segundo ele, as bases do negócio jurídico
se dividem em subjetiva e objetiva. A primeira "há de ser concebida
juridicamente dentro da teoria do erro sobre os motivos e vícios da
vontade", já a segunda constitui-se por elementos mais precisos, como
a "equivalência entre prestação e contraprestação" e a "finalidade ob-
jetiva do contrato" 6 . Embora apresente elementos objetivos, a teoria
da quebra da base objetiva de Larenz ainda se reveste de um dado
subjetivismo, porquanto não dispensa a imprevisibilidade das circuns-
tâncias supervenientes como causa de revisão contratuaF.
No Brasil, o Código Civil de 1916, influenciado pelas codificações
francesa e alemã, também não positivou a cláusula rebus sic stantibus
como princípio geral, e, conseqüentemente , a possibilidade de revisão
contratual por excessiva onerosidade além das hipóteses específicas e
pontualmente previstas 8 .
A propósito, bem lembrou Clóvis do Couto e Silva que, numa
economia agrária, com moeda estável, não haveria porque se sugerir a
9
adoção dessa cláusula, vigorante apenas em épocas de crise .
5 Barletta, Fabiana Rodrigues. "A Revisão contratual por excessiva onerosidade su-
perveniente à contratação positivada no código do consumidor, sob a perspectiva civil
constitucional". In Gustavo Tepedino (coord.), Problemas de Direito Civil-Constitu-
cional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 294.
6 Larenz, Karl, apud Barletta, Fabiana Rodrigues, cit., p. 14.
7 Nesse sentido, Barletta, Fabiana Rodrigues. Ob. cit., p. 16.
8 Observe que o Código Civil de 1916 admitia uma aplicação restrita da cláusula
rebus sic stantibus, a exemplo do disposto nos arts. 1.190, 1.250, 1.131 e 1.092, que
tratavam, respectivamente, da redução proporcional do aluguel em caso de deteriora-
ção da coisa locada, sem culpa do locatário, da suspensão pelo comodante do uso e
gozo da coisa emprestada antes de findo o prazo convencionado, por necessidade im-
prevista e urgente, da possibilidade de o vendedor sobrestar a entrega da coisa se,
antes da tradição, o comprador cair em insolvência, e da exceção de contrato não
cumprido, sobrevindo a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio,
capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou. Os referi-
dos dispositivos encontram hoje correspondência nos arts. 567, 581, 495 e 477 do
Código Civil de 2002.
9 Couto e Silva, Clóvis Veríssimo do. "O Direito civil brasileiro em perspectiva
histórica e visão de futuro". Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 14, n. 40, jul. 1987, p.
136.
305
Mas a estabilidade econômica não perdurou por muito tempo, ra-
zão pela qual a doutrina brasileira, a partir dos anos 30, posicionou-se,
majoritariamente, favorável à aplicação da referida cláusula, já que o
Código não a havia repelido.
A jurisprudência, por seu turno, não se revelava pacífica sobre o
acolhimento da teoria, registrando-se desde julgados que não a admi-
tiam até aqueles que dispensavam a imprevisibilidade dos fatos super-
venientes.
A consolidação da teoria da excessiva onerosidade superveniente
à contratação como fenômeno suficiente para ensejar o revisionismo
contratual, independentemen te da imprevisibilidade das circuns-
tâncias, somente ocorreu com o advento da nova ordem traçada
pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código de Defesa do
Consumidor.
Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor representa, no nos-
so ordenamento, a expressão mais importante do intervencionismo esta-
tal na esfera privada, refletindo as profundas transformações ideológicas
e políticas operadas com a passagem do Estado Liberal para o Estado So-
cial, que influenciaram decisivamente a reformulação de institutos tra-
dicionais do Direito Privado, entre os quais o contrato 10 •
Pode-se dizer que os influxos de tais transformações nas relações
contratuais se fizeram sentir em razão da própria historicidade do con-
trato, compreendido não como uma categoria jurídica imutável, mas,
ao revés, flexível ao dinamismo social.
Nesse sentido, sustenta Enzo Roppo que o contrato "corresponde
instrumentalmente à realização de objectivos e interesses valorados
consoante as opções políticas c, por isso mesmo, contingentes e histo-
lO A propósito, observa Gustavo Tepedino: "A codificação, como todos sabem, des-
tinava-se a proteger uma certa ordem social, erguida sob a égide do individualismo c
tendo como pilares, nas relações privadas, a autonomia da vontade e a propriedade
privada. O legislador não deveria interferir nos objetos a serem alcançados pelo indiví-
duo, cingindo-se a garantir a estabilidade das regras do jogo, de tal maneira que a
liberdade individual, expressão da inteligência de cada um dos contratantes, pudesse
se desenvolver francamente, apropriando-se dos bens jurídicos, os quais, uma vez ad-
quiridos, não deveriam sofrer restrições ou limitações exógenas. ( ... ) Tal ordem de
coisas, própria do Estado Liberal, altera-se profundamente no Estado intervencionista
do século XX, onde a atenção do legislador se desloca para a função que os institutos
privados devem cumprir, procurando proteger e atingir objetivos sociais bem defini-
dos, atinentes à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades culturais e
materiais ( ... )". Tepedino, Gustavo. "As Relações de consumo e a nova teoria contra-
tual", in: Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 201.
306
ricamente mutáveis". Para o autor, "da·í resulta que o próprio modo de
ser e de se conformar do contrato como instituto jurídico não pode
deixar de sofrer a influência decisiva do tipo de organização político-
social a cada momento afirmada" 11 •
De fato, se, no apogeu do liberalismo, como expressão da liberda-
de e da igualdade formal das partes, o contrato viabilizava o cápitalis-
mo que florescia, na sociedade contemporânea, furtcionalizado à rea-
lização dos valores constitucionais, o contrato deve ser um instrumen-
to de promoção da igualdade substancial entre os contratantes, tradu-
zida nas noções de justiça e de equilíbrio.
Como é cediço, com a industrialização e a massificação das rela-
ções contratuais, especialmente através da conclusão de contratos de
adesão, ficou evidenciado que o conceito clássico de contrato não
mais se adaptava à realidade socioeconômica do século XX, restando
flagrante o desequilíbrio entre os contratantes 12 .
Sobreleva, nesse contexto, o papel da lei, que se interpõe entre os
contratàntes no intuito de dirigir o contrato, não permitindo que a
mera vontade das partes, por si só, determine a obrigatoriedade do
ajuste. Por certo, a auto-regulamentação dos interesses privados não é
de todo rechaçada, mas é a lei que reserva um espaço para a autonomia
da vontade, a qual, muito embora permaneça essencial à formação dos
negócios jurídicos, teve sua força diminuída, relativizando-se, por
conseguinte, a obrigatoriedade e a intangibilidade do conteúdo do
contrato 13 .
Depreende-se, daí, a relevância do papel desempenhado pelo Có-
digo de Defesa do Consumidor, que, na lição de Cláudia Lima Mar-
ques, representa "o mais amplo grupo de normas cogentes, editado
com o fim de disciplinar as relações contratuais entre fornecedor e
consumidor, segundo os postulados da nova teoria contratual" 14 .
E, na nova teoria contratual, o tempo torna-se elemento relevante,
seja pela visão da obrigação como um processo dirigido a um fim, qual
307
seja, a realização das expectativas legítimas de ambas as partes, seja
pela sua valorização como fator de pressão e catividade, pois, quanto
mais duradoura a relação, mais difícil e prejudicial é seu rompimento
para o contratante. Assim, destacam-se os deveres de cooperação e de
adaptação, a fim de possibilitar a revisão contratual e a manutenção do
vínculo.
A possibilidade de revisão contratual parte da noção elementar,
contemporaneamente bastante difundida, de que o vínculo obrigacio-
nal não é estático, como se quis outrora, mas, ao contrário, é um vín-
culo dinâmico, polarizado pela idéia do adimplemento 15 .
Nesse particular, observa Judith Martins-Costa que, como efeito
da apreensão da totalidade concreta da relação obrigacional, percebe-
se ser a mesma, de fato, um vínculo dinâmico, porque passa a englo-
bar, num permanente fluir, todas as vicissitudes que a ela possam ser
reconduzidas, movimentando-se processualmente com vistas a uma
finalidade e desenvolvendo-se em fases distintas, desde o nascimento
do vínculo até o adimplemento 16 .
Como vínculo dinâmico que é, portanto, o contrato sujeita-se à
ação do tempo 17 , sofrendo, no dizer de Caio Mário da Silva Pereira, a
influência de fatores determinantes das injunções sociais 18 .
Postas tais premissas, buscaremos analisar, à luz da nova teoria
15 Couto e Silva, Clóvis Veríssimo do. A Obrigação como processo. São Paulo: Bus-
hatsky, 1976.
16 Martins-Costa, Judith. A Boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2000, p. 394. Segundo a autora, a concepção da obrigação como um processo e
como uma totalidade concreta põe em causa o paradigma tradicional do direito das
obrigações, fundado na valorização jurídica da vontade humana, e inaugura um novo,
não mais baseado exclusivamente no dogma da vontade, mas na boa-fé objetiva.
17 Observa Judith Martins-Costa: "No século XX, a própria noção do tempo se trans-
forma: o tempo constitui um 'meio heterogêneo', como quer Régis Fabre, diversamen-
te do que ocorria outrora, quando aparecia, então, como um 'meio homogêneo que, da
conclusão à extinção do contrato, não conteria nenhuma perturbação', tendo sido os
códigos elaborados 'em função de um postulado de estabilidade monetária"'. Martins-
Costa, Judith. "A Teoria da imprevisão e a incidência dos planos econômicos governa-
mentais na relação contratual". Revista dos Tribunais, n. 670, São Paulo, ago. 1991, p.
41
18 Pereira, Caio Mário da Silva. Direito Civil: alguns aspectos da sua evolução. Rio de
Janeiro: Forense, 2001, p. 226. Atenta o autor para o fato de que, embora, em princí-
pio, assente o contrato sobre a influência estrutural da vontade humana, pode, contu-
do, absorver a maior ou menor influência das forças sociais ou naturais, sobre as quais
individualmente não exerça o homem seu poder individual: guerras, revoluções, terre-
motos, enchentes, ou quaisquer fenômenos, sejam humanos, sejam físicos ou naturais.
308
contratual, os fundamentos principiológicos da revisão dos contratos,
apontando, em seguida, as causas que a autorizam, segundo o Código
de Defesa do Consumidor, com enfoque nos institutos da lesão, das
cláusulas abusivas e da onerosidade excessiva superveniente à contra-
tação.
309
rev1sao contratual quando a referida p~estação se figure excessiva-
mente onerosa a uma das partes 21 .
Consoante a nova teoria contratual, portanto, a revisão dos contra-
tos passa a ser admitida, senão, por vezes, efetivamente imposta pela
incidência dos novos princípios. Entre estes, podem-se identificar, de
forma mais particular.izada, como fundamentos da revisão contratual
os princípios da boa-fé objetiva, do equilíbr.io econômico e, como co-
rolário destes, o da conservação do contrato.
21 Ibidem, p. 551.
22 Martins-Costa, Judith. Ob. cit., p. 4 I 2.
23 Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. "A Boa-fé na relação de consumo". Revista de Di-
reitodoConsumidor,n . I4,abr./jun. I995,p.25.
24 Silva, Agathe E. Schmidt da. "Cláusula geral de boa-fé nos contratos de consumo".
Revista de Direito do Consumidor, n. I 7, jan./mar. I 996, p. I 59.
3IO
A propósito, observa Pietro Perlingieri que "a obrigação não se
identifica no direito ou nos direitos do credor; ela configura-se cada
vez mais como uma relação de cooperação". Segundo o autor, "isto
implica uma mudança radical de perspectiva de leitura da disciplina
das obrigações: esta última não deve ser considerada o estatuto do
credor; a cooperação, e um determinado modo de ser, substitui a su-
bordinação e o credor se torna titular de obrigações genéricas ou espe-
cíficas de cooperação ao adimplemento do devedor" 25 •
Assim é que, atuando de conformidade com a boa-fé objetiva, o
contratante há de entender que novas situações, inexistentes no mo-
mento da formação do vínculo, trouxeram uma onerosidade de tal
monta que torna inexigível o cumprimento do contrato conforme pac-
tuado de início.
O direito do contratante de exigir do outro a execução da presta-
ção avençada não seria, portanto, ilimitado, tratando-se, consoante os
ensinamentos de Pietro Perlingieri, de uma "situação jurídica que já
em si mesma encerra limitações para o titular" 26 , e a onerosidade ex-
cessiva sofrida pelo consumidor configura esse tipo de limitação.
A boa-fé objetiva, como expressão do princípio constitucional da
solidariedade, valoriza os interesses legítimos que levam cada uma das
partes a contratar, e assim o direito passa a valorizar, igualmente e de
forma renovada, o nexo entre as prestações, sua interdependência,
isto é, o sinalagma contratual 27 •
Observa Cláudia Lima Marques que, no Brasil, estamos mais acos-
tumados a unir a noção de boa-fé a efeitos e atitudes externas do
relacionamento contratual, reservando à noção de lesão o olhar inter-
no do equilíbrio razoável do contrato. No entanto, frisa a autora que a
boa-fé autoriza e mesmo obriga a este olhar interno do contrato, do
relacionamento contratual como um todo, impondo novos deveres e
25 Perlingieri, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio
de Janeiro: Renovar, 1999, p. 212.
26 Ibidem, p. 122. Segundo o autor, "as situações jurídicas subjetivas sofrem uma
intrínseca limitação pelo conteúdo das cláusulas gerais e especialmente daquela de
ordem pública, de lealdade, de diligência e de boa-fé, que se tornaram expressões
gerais do princípio de solidariedade. O ordenamento reconhece a propriedade de um
bem, a titularidade de um crédito, somente enquanto o direito for exercido em con-
formidade com as regras; se assim não acontecer, o interesse não será nem reconheci-
do e nem tutelado".
27 Marques, Cláudia Lima. Ob. cit., p. 241.
311
novos limites aos que ocupam as posições contratuais, de forma a per-
mitir a realização das expectativas legítimas 28 •
Não se pode olvidar, ainda, que, à luz da nova teoria contratual,
"conduta negociai, boa fé e confiança caminham juntas" 29 , porquanto,
no Código de Defesa do Consumidor, normas imperativas também
tutelam a confiança 30 que o consumidor depositou no vínculo contra-
tual.
312
equilíbrio econômico do contrato 32 , o qual, como os princípios da boa-
fé objetiva e da função social, encontra-se fundamentado na Consti-
tuição Federal.
A vedação a que se desconsidere o sinalagma 33 contratual em seu
perfil funcionaP 4 constitui expressão do princípio da igualdade subs-
tancial, consagrado no artigo 3°, inciso III, da Constituição FederaP 5 .
Em conformidade com o princípio da igualdade substancial, que é
pressuposto da justiça social, o contrato não deve servir de instrumen-
to para que, sob um equilíbrio meramente formal, as prestações a
serem suportadas por um dos contratantes lhe acarretem excessiva
onerosidade em favor do outro.
Como sustenta Teresa Negreiros, "a incidência do princípio da
igualdade substancial nas relações contratuais traz para o seio da teoria
contratual a tormentosa discussão acerca do que deva ser considerada
uma relação contratual 'justa'" 36 , eis que a justiça contratual deixa de
ser concebida como uma decorrência lógica da autonomia da vontade,
na medida em que um contrato livremente pactuado pode ser, não
obstante, um contrato injusto 37 •
O princípio do equilíbrio econômico remete à concepção aristoté-
lica de justiça, sintetizada na idéia de "meio termo". Nesse sentido,
podemos dizer que o princípio do equilíbrio econômico do contrato
seria, no âmbito específico da teoria contratual, corolário não só do
princípio da igualdade substancial, mas, também, de um princípio
mais geral que é o princípio da proporcionalidade.
313
Contudo, a idéia de equilíbrio econômico, aliada à de proporcio-
nalidade, não quer significar propriamente uma equivalência absoluta
entre as prestações, mas, como demonstra Pietro Perlingieri 38 , uma
vedação à "desproporção macroscópica e injustificada" entre elas 39 .
Inspirado, assim, na igualdade substancial, o princípio do equilí-
brio econômico expressa a preocupação da nova teoria contratual com
o contratante mais fraco, sendo certo que, diante do constatado dese-
quilíbrio entre consumidores e fornecedores no mercado de consumo,
a Lei n° 8.078/90 alçou a vulnerabilidade 40 do consumidor à categoria
de princípio do estatuto consumerista, na forma de seu artigo 4°.
314
2.3. O princípio da conservação do contrato
41 Ibidem, p. 245.
42 Ibidem, p. 246.
43 Há que se ressaltar, contudo, como bem sustenta Teresa Negreiros, que "a justiça
social constitui um ideal a ser perseguido com instrumentos não apenas ou principal-
mente do direito civil, mas, sobretudo, do direito tributário e administrativo". Negrei-
ros, Teresa. Ob. cit., p. 156. Alude a autora ao posicionamento de Pietro Perlingieri,
que, embora reconhecendo a correlação entre o valor da justiça social e o instituto da
lesão, defende que "consistiria uma distorção do sistema pretender atribuir a função
reequilibradora típica da justiça social, reali7..ável mediante a contribuição fiscal, a
intervenções ocasionais em esporádicas e individuais relações entre cidadãos e entre o
mesmo cidadão e o Estado quando age iure privatorum".
44 Tepedino, Gustavo. "A Teoria da imprevisão e os contratos de financiamento fir-
mados à época do plano cru7..ado". Revista Forense, v. 301, p. 52. Afirma o autor que
315
Vale notar, ademais, utilizando-nos das palavras de Ruy Rosado de
Aguiar Júnior, que "a boa-fé é limitadora do direito subjetivo, angustia
o âmbito da liberdade contratual, flexibiliza a estrutura material do
contrato e gera certa insegurança quanto ao seu conteúdo, mas sua
finalidade principal é a de manutenção e conservaçã~ do vínculo" 45 .
Hoje, portanto, por força do princípio da conservação do contrato,
em lugar da exclusão de determinados atos do mundo jurídico, busca-
se conformar esses mesmos atos aos fins do ordenamento, não sendo
necessário, para a alteração de cláusulas contratuais, como outrora
impunha a concepção clássica do princípio da autonomia, uma nova
manifestação de vontade. Pondera-se, enfim, que, caso a única solu-
ção fosse a extinção do vínculo, poderia o prejudicado preferir um
contrato injusto, por ainda comportar uma dada utilidade, à inexistên-
cia de qualquer contrato.
"a revisão se afigura mais oportuna 'pois não se cogita de um contrato que haja perdido
a sua utilidade, senão apenas de um contrato que perdeu o seu equilíbrio'".
45 Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. Ob. cit., p. 27. No mesmo sentido posiciona-se
Nelson Nery Júnior et alli, Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos
autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 367: "Em
atendimento ao princípio da conservação do contrato, a interpretação das estipulações
negociais, o exame das cláusulas apontadas como abusivas e análise da presunção de
vantagem exagerada, devem ser feitas de modo a imprimir utilidade e operatividade
ao negócio jurídico de consumo, não devendo ser empregada solução que tenha por
escopo negar efetividade à convenção negociai de consumo".
316
3.1. Lesão e cláusulas abusivas
46 Pereira, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999, pp. 187/189.
47 Nos termos do art. 6°, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor, é direito
básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam
prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as
tornem excessivamente onerosas".
48 Segundo Teresa Negreiros, cit., p. 190, "tal como previsto no CDC, o princípio do
equilíbrio econômico parece, prima facie, assumir uma conformação objetiva, consi-
derando suficiente para a configuração da lesão contratual o desequilíbrio objetivo. De
fato, o coe não se refere à exploração, por parte do fornecedor, da situação de
inferioridade do consumidor, tampouco faz uso dos critérios herdados da tradição
alemã: necessidade, inexperiência e leviandade".
49 Vide nota 39. Observe-se que, na dicção do art. 157 do Código Civil de 2002, o
dolo de aproveitamento também não aparece como requisito da lesão; no entanto, há
expressa menção a elementos subjetivos, como o estado de necessidade ou inexpe-
riência do contratante lesado.
50 Negreiros, Teresa. Ob. cit., p. 191. Conclui a autora que, "no âmbito das relações
de consumo, o traço subjetivo da lesão não deixa de estar igualmente presente na
317
É, portanto, no estado de inferioridade pertinente à pessoa do
contratante prejudicado que se encontra o fundamento da admissão
da lesão como causa de revisão ou de invalidade do contrato. Como
demonstra Anelise Becker, a inferioridade deve ser compreendida nos
seguintes termos: "qualquer circunstância apta a reduzir consideravel-
mente a efetividade da autonomia negociai do contratante lesado. As
legislações costumam identificá-la com estados de perigo ou de neces-
sidade (Código Civil italiano), inexperiência ou leviandade do preju-
dicado (a par do estado de necessidade: BGB, Código Civil argentino
e nossa Lei dos Crimes contra a Economia Popular)" 51 .
A lesão, contemporânea à celebração do contrato, pressupõe um
conceito de equilíbrio que é exterior à vontade das partes, ao passo
que a onerosidade excessiva superveniente tem como parâmetro de
equilíbrio aquilo que foi originalmente estipulado pelos próprios con-
tratantes52.
O Código de Defesa do Consumidor consagra o instituto da lesão
em três momentos, quais sejam, no art. 6°, inciso V, primeira parte,
ao disciplinar os direitos básicos do consumidor; no art. 39, inciso V,
ao tratar das práticas abusivas; e no art. SI, inciso IV, ao coibir as
cláusulas abusivas, dispondo serem nulas de pleno direito as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos ou serviços que "es-
tabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com
a boa-fé ou a eqüidade". Nos termos do§ 1°, inciso III, do referido art.
SI, presume-se exagerada a vantagem que se mostra excessivamente
onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e o conteúdo
do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares
ao caso.
No dizer de Cláudia Lima Marques, o Código do Consumidor
pressupõe a noção de "desvantagem exagerada", isto é, "não basta o
exagero nos direitos assegurados ao fornecedor, por contrato, não bas-
ta a vantagem deste fornecedor, o importante é o prejuízo, a desvan-
lógica funcional do instituto", eis que "a necessidade é a noção-chave da lesão; a pro-
teção ao contratante fraco (rectius necessitado) é o substrato, nesse sentido, do prin-
cípio do equilíbrio econômico".
51 Becker, Anelise. Teoria geral da lesão nos contratos. São Paulo: Saraiva, 2000, p.
120.
52 Daí o motivo pelo qual Teresa Negreiros, cit., p. 168, observa que a lesão é "o
elemento que melhor simboliza o impacto transformador do princípio do equilíbrio
econômico no direito dos contratos contemporâneo".
318
tagem irrazoável para o consumidor, este, sim, sujeito tutelado na
nova noção de equilíbrio das relações contratuais" 53 .
Consideram-se abusivas as cláusulas "resultantes da prevalência
de uma das partes sobre a outra em decorrência de fatores os mais
diversos" 54 . Diz-se serem causas contemporâneas ou concomitantes à
formação do negócio porque já existem e contaminam a avença con-
tratual desde o seu nascimento, fazendo com que o contrato já traga,
em seu conteúdo, o germe que pode determinar a sua revisão ou reso-
lução por determinação judicial. O vício que as macula é o de nulida-
de, acarretando o seu expurgo do contrato. Retirada a cláusula abusi-
va, por força do princípio da conservação dos negócios, o pacto deverá
ser integrado, possibilitando-se a revisão judicial.
A revisão será feita de modo que o contrato seja implementado
através de uma interpretação integradora, permitindo-se um reequilí-·
brio que conduza ao fim que ambos os contratantes se dispuseram a
alcançar inicialmente. Nesse sentido, afirma Nelson Nery Júnior que,
"caso não haja acordo, na sentença deverá o magistrado, atendendo
aos princípios da boa-fé, da eqüidade e do equilíbrio que devem pre-
sidir as relações de consumo, estipular a nova cláusula ou as novas
bases do contrato. Emitirá sentença determinativa, de conteúdo cons-
titutivo-integrativo e mandamental, vale dizer, exercendo verdadeira
atividade criadora, completando ou mudando alguns elementos da re-
lação jurídica de consumo já constituída" 55 .
Mister ressaltar que a integração, nesse caso, concerne aos efeitos
do negócio, agora não mais previstos expressamente em virtude da
invalidade da cláusula, devendo o juiz recorrer a normas supletivas ou
dispositivas do ordenamento jurídico, uma vez que as nulidades abso-
lutas, como as do art. SI do Código de Defesa do Consumidor, carac-
terizam-se por não serem sanáveis, passando a relação contratual, na-
quele aspecto, a ser regida pela lei 56 .
Caso não seja possível restabelecer-se o equilíbrio, apesar dos es-
forços de integração, pois que o ônus excessivo terá que ser suportado
por uma das partes, permite o Código de Defesa do Consumidor a
resolução do contrato, nos termos de seu art. SI, § 2° 57 •
319
Sustenta Cláudia Lima Marques que o art. 6°, inciso V, primeira
parte, do Código de Defesa do Consumidor, o qual, a par do art. 51,
também trata da lesão, abre uma exceção no sistema de nulidade ab-
soluta das cláusulas abusivas, permitindo que o juiz modifique, a pedi-
do do consumidor, as "cláusulas que estabeleçam prestações despro-
porcionais"58. A citada autora chama atenção para o fato de que o
Código do Consumidor quis autorizar uma modificação das cláusulas
de preço, onde geralmente não há regra supletiva para preencher a
lacuna. Nesse particular, a sanção de nulidade absoluta não seria apta
a preencher sua função, sendo necessário autorizar o juiz a agir de
forma excepcional, modificando as cláusulas do contrato com base em
princípios gerais, como o da razoabilidade 59 .
Na hipótese de lesão, o consumidor é, pois, livre para requerer ou
a modificação da cláusula e a manutenção do vínculo, com base no art.
6°, inciso V, primeira parte, ou a decretação de nulidade da cláusula,
sendo abusiva, com base no art. 51, § 2°, do Código do Consumidor,
o que, como já explicitado, pode ou não ensejar a invalidade do con-
trato.
Ainda discorrendo sobre o instituto da lesão, indaga Teresa Ne-
greiros, com pertinência, se condiz com a Constituição o tratamento
indiscriminado de todos os contratos de consumo no que se refere à
aplicação do princípio do equilíbrio econômico ou se isto é incompatí-
vel com a igualdade substancial 60 .
De fato, a vulnerabilidade admite gradações significativamente
distintas, sobretudo considerando-se que os consumidores compõem,
na sociedade contemporânea, categoria por demais ampla.
contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer
ônus excessivo a qualquer das partes ...
58 Marques, Cláudia Lima. Ob. cit., p. 781.
59 Ibidem, p. 783.
60 Negreiros, Teresa. Ob. cit., p. 198. Sustenta a autora que "o princípio do equilíbrio
econômico, ao eleger a necessidade como um dado essencial à equação contratual,
desafia a teoria dos contratos, obrigando à formulação de novos critérios de classifica-
ção. Tais critérios devem buscar um certo patamar de objetividade sem contudo forçar
generalizações demasiadamente indiscriminadas, como a que resulta da caracterização
de todo e qualquer consumidor como um contratante necessitado c, nesse sentido,
frágil. Se, por um lado, a exacerbação do elemento subjetivo apresenta o risco de
causar uma indevida diluição da lesão na antiga dogmática dos vícios do consentimen-
to, por outro lado, tampouco se deve admitir um princípio absoluto de equivalência
entre as prestações, sob pena de afrontar outros princípios igualmente informadores
da ordem econômica constitucional'".
320
Assim, se a necessidade do contratante, como expressão do seu
estado de inferioridade, assume especial relevância no instituto da
lesão, parece-nos justo e razoável, à luz do princípio da igualdade subs-
tancial, a proposta da citada autora no sentido de que, para graduar-se
a necessidade e, por conseguinte, a inferioridade do consumidor, vi-
sando ao modo e à medida de aplicação do princípio do equilíbrio
econômico, deve ser enfocada a natureza do bem objeto do contrato.
Nesse sentido, "a utilidade existencial do bem contratado, gradua-
da conforme a sua maior ou menor importância relativamente à con-
servação da dignidade da pessoa humana, é um critério constitucional-
mente consistente para diferenciar os contratos e para determinar,
conseqüentemente, o modo como se lhes deve aplicar a nova princi-
piologia. Diferenciar os contratos conforme a natureza essencial, útil
ou supérflua do bem contratado parece, de fato, um critério relevante
na determinação do grau de necessidade do contratante" 61 .
61 Ibidem, p. 203.
62 Segundo Cláudia Lima Marques, "o caráter de abusividade da cláusula é concomi-
tante com a formação do contrato, logo nenhuma ligação tem com as chamadas causas
de revisão dos contratos por atuação de fatores supervenientes (regime diferenciado
no CDC, por força do art. 6°, V). A identificação dessa abusividade, exercício de
aplicação/subsunção da lei e de interpretação do contrato como um todo e das práticas
comerciais, é que pode ser posterior à formação do contrato, como a fotografia atual
de um fato já existente''. Marques, Cláudia Lima. Ob. cit., p. 773.
63 Gomes, Orlando. Contratos. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 139.
321
O primeiro requisito atine à prestação a ser revisada, que deve ser
duradoura ou periódica. As obrigações instantâneas não sofrem a ação
do tempo para resultar excessivamente onerosas por motivos superve-
nientes. Assim, para efeito de revisão contratual por onerosidade ex-
cessiva superveniente, as prestações serão sempre objeto de contrato
de execução diferida ou retardada, ou de contrato de execução suces-
siva ou de trato sucessivo.
O contrato de execução diferida ou retardada, como ensina Caio
Mário da Silva Pereira, é "aquele em que a prestação de uma das par-
tes não se dá de um só jato, porém a termo, não ocorrendo a extinção
da obrigação enquanto não se completar a solutio" 64 , enquanto o con-
trato de execução sucessiva ou de trato sucessivo, nas palavras do mes-
mo autor, é aquele "que sobrevive, com a persistência da obrigação,
muito embora ocorram soluções periódicas, até que, pelo implemento
de uma condição, ou decurso de um prazo, cessa o próprio contra-
to"65, caracterizando-se pelo fato de que os pagamentos não geram a
extinção da obrigação, que renasce.
O segundo requisito necessário à revisão será a bilateralidade dos
contratos ajustados. A doutrina tradicionalmente utiliza-se do termo
"bilateralidade" em três acepções diversas, ou seja, na classificação do
negócio quanto à sua formação e na classificação do negócio quanto
aos seus efeitos, desdobrando-se, nesse particular, em bilateralidade
quanto às obrigações e quanto às prestações 66 .
Quanto à sua formação, o contrato classifica-se em bilateral ou
plurilateral, conforme exija o acordo de duas ou mais pessoas. No
tocante às obrigações, esclarece Maria Celina Bodin de Moraes, com a
mais moderna doutrina, que os contratos são sempre bilaterais, eis
que "de todo e qualquer contrato surgem efeitos, vínculos jurídicos
para as partes, além dos deveres gerais de boa-fé, de diligência e de
cooperação "67 •
É, contudo, na classificação atinente às prestações do negócio que
repousa o aspecto mais relevante da bilateralidade para o nosso estu-
do, observando-se, nesse particular, que os contratos podem ser bila-
64 Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 3. I O. ed. Rio de Janei-
ro: Forense, 1998, p. 41.
65 Ibidem, p. 41.
66 Bodin de Moraes, Maria Celina. "O Procedimento de qualificação dos contratos e
a dupla configuração do mútuo no direito civil brasileiro". Re11ista Forense, v. 86, n.
309, jan./mar. 1990, p. 40.
67 Ibidem, p. 40.
322
terais ou unilaterais, co~forme contenham ~u não pr~stações corres-
pectivas. A correspectividade ou sinalagmaticidade deve ser entendi-
da como o particular nexo que liga indissoluvelmente en.tre si as
prestações contratuais, de modo que cada uma é causa da outra 68 .
Destarte, é a natureza sinalagmática da relação que e~plica por
que um dos contratantes pode se utilizar da exceção de contrato não
cumprido ou da exceção do adimplemento imperfeito. É, aind~, o
sinalagma funcional 69 que justifica a resolução ou a revisão contratual
por onerosidade excessiva superveniente, sendo que, nesse caso, não
há propriamente falta da prestação correspondente, "mas sua presen-
ça é apenas aparente porque ela está sensivelmente esvaziada de va-
lor"70.
Se no Código de Defesa do Consumidor a bilateralidade é um
pressuposto da revisão obrigacional, não se verifica o mesmo no Códi-
go Civil, que, em seu art. 480, admite a revisão de contratos unilate-
rais. Em qualquer das hipóteses, todavia, não se impõe como requisito
a comutatividade do contrato.
Nesse particular, é cediço que os contratos aleatórios, diferente-
mente dos comutativos, pressupõem um dado risco, compreendendo
uma álea normal ou ordinária, sendo inadmissível que o contratante
que assumiu tal risco possa pretender a revisão contratual. Nada obs-
ta, contudo, que, em face da ocorrência de um fato superveniente que
extrapole a álea normal do contrato, possa ser o contrato revisto sem-
pre que acarrete a um dos contratantes onerosidade excessiva.
Tomando-se, por exemplo, o contrato de seguro, sabe-se que a
álea normal está na ocorrência ou não do sinistro, cabendo ao consu-
midor, mesmo sem receber de imediato uma contraprestação, pagar o
prêmio, não podendo alegar, por isso, onerosidade excessiva. Lado
outro, ocorrendo um fato superveniente que torne supermajorado o
valor do prêmio pago pelo consumidor, traduzindo uma álea extraor-
dinária, revela-se admissível a revisão do contrato 71 .
323
O terceiro requisito impõe que a onerosidade excessiva seja alheia
ao comportamento do consumidor, ou seja, este não pode ser o causa-
dor do fato superveniente, que deve ser externo e independente de
sua vontade.
Um quarto requisito, essencialmente ligado àquele por último
mencionado, diz respeito à ausência de mora, porquanto, em princí-
pio, nega-se a revisão contratual ao consumidor que esteja em tal si-
tuação72.
No entanto, tem-se entendido que, se a mora for justificada, po-
derá ser admitida a revisão contratual, mormente nas hipóteses de
súbita onerosidade excessiva, inviabilizando-se para o consumidor a
propositura da ação em tempo hábil, e nas de onerosidade de grande
monta, ficando o consumidor impossibilitado de depositar o valor a
ser discutido 73 .
Mister salientar que, precedendo a mora ao fato superveniente
causador da excessiva onerosidade, mostra-se ponderada a exigência
no sentido de que o consumidor inadimplente deposite em juízo, an-
tes de proceder ao pedido de revisão contratual, o valor das prestações
não pagas até a ocorrência do aludido fato superveniente.
324
Observe-se, ademais, que os efeitos da revisão contratual operam
retroativamente, desde a ocorrência do fato superveniente, o que im-
porta na impossibilidade de se rever o valor das prestações até então
já pagas ou não pagas.
Adverte ainda Cláudia Lima Marques que o direito de rescindir o
contrato, mesmo inadimplente, é excepcional e só pode ser concedido
à parte mais fraca, o consumidor 74 .
Cumpre observar, ainda, que a moderna teoria do adimplemento
substancial (substancial performance) tem admitido, a favor dos con-
sumidores, a conservação dos contratos inadimplidos, quando tal ina-
dimplemento não é significativo 75 , o que reforça o dever de coopera-
ção do contratante fornecedor 76 . Por outro lado, é este mesmo dever
325
de cooperação que confere ao consumidor excessivamente onerado o
direito de pleitear a revisão do contrato após ter pago a quase totalida-
de das prestações 77 .
O quinto requisito para a revisão contratual por onerosidade ex-
cessiva superveniente diz respeito à extrema dificuldade de cumpri-
mento da prestação, não sendo necessária a impossibilidade, que é
pressuposto do caso fortuito ou força maior.
Utiliza-se a expressão "extrema dificuldade" não só para diferen-
ciar a onerosidade excessiva da impossibilidade, mas, também, da
mera dificuldade, que traduz uma situação ordinária e corriqueira em
nossa realidade sócio-econômica 7R.
326
A questão que se impõe é se essa extrema dificuldade deve ser
apurada objetiva ou subjetivamente, isto é, se deve levar em conta as
circunstâncias do consumidor considerado em sua particularidade, ou
se deve ser aferida conforme um determinado padrão.
Segundo Orlando Gomes, "a onerosidade há de ser objetivamente
excessiva, isto é, a prestação não deve ser excessivamente onerosa
apenas em relação ao devedor, mas a toda e qualquer pessoa que se
encontrasse em sua posição" 79 .
Em que pese o entendimento do renomado jurista, parece-nos
mais coerente com uma interpretação civil-constitucional do instituto
da revisão contratual a noção segundo a qual a "extrema dificuldade"
de cumprimento da prestação deve ser apurada em concreto, sob pena
de restar prejudicado aquele consumidor que, fugindo a um determi-
nado padrão, foi, em seu contexto peculiar, excessivamente onerado
por um fato superveniente para cuja realização não contribuiu.
A consideração meramente objetiva da onerosidade, por admitir a
possibilidade de um dado fato exercer seus efeitos indistintamente
sobre "toda e qualquer" pessoa, não obstante suas diferenças, vem de
encontro ao espírito do princípio da igualdade substancial, que quer
significar o tratamento desigual dos desiguais 80 •
Utilizando-nos das palavras de Fabiana Rodrigues Barletta, "se o
adimplemento da obrigação ocasionar sacrifícios tão grandes para o
consumidor a ponto de ferir sua dignidade, se os obstáculos a serem
superados puderem levá-lo à pobreza, evidentemente tal consumidor
encontra-se em situação de excessiva onerosidade" 81 , e, ao nosso ver,
tais circunstâncias somente podem ser apuradas concretamente.
Se, de um lado, exige-se a extrema dificuldade de cumprimento
da prestação pelo consumidor, por outro, no âmbito das relações de
consumo, não se exige como requisito da revisão contratual a extrema
vantagem para o fornecedor. Diferentemente, o Código Civil de
2002, em seu artigo 478, exige, para a verificação da onerosidade ex-
cessiva, a "vantagem extrema para a outra parte" 82 .
327
Casos há em que, embora verificada a extrema dificuldade para o
consumidor, a onerosidade excessiva superveniente não pode ser afas-
tada sem grave prejuízo para o outro contratante, impondo-se, por
conseguinte, uma solução de eqüidade 83 , com a repartição dos ônus 84 .
dt., p. 152: "( ... )exigir também extrema vantagem para a outra parte para que ocorra
intervenção judicial na órbita do contrato quando a excessiva onerosidade para uma
parte está latente é demasiado prejudicial ao excessivamente onerado. Observe-se
ainda que o Código Civil brasileiro sancionado em janeiro de 2002 cuida especifica-
mente da cláusula geral de vedação ao enriquecimento sem causa justa e de seus
efeitos na seara jurídica. Não havia, pois, necessidade de o legislador brasileiro inserir
esse plus da vantagem extrema para a outra parte a fim de possibilitar o intervencio-
nismo do Estado, por meio do juiz, no conteúdo do contrato em caso de excessiva
onerosidade posterior à formação do vínculo, conforme se extrai do artigo 478 da
referida lei".
R3 Destaca-se, a propósito, a discussão acerca da onerosidade excessiva ocasionada
pela variação cambial do dólar norte-americano em janeiro de 1999. Em face da diver-
gência instaurada entre as Terceira e Quarta Turmas do Superior Tribunal de Justiça,
a Segunda Seção, uniformizando os julgamentos sobre o assunto, decidiu que as
prestações vencidas a partir de 19 de janeiro de 1999 serão reajustadas pela metade da
variação cambial verificada à época, sendo que a outra metade será arcada pelas em-
presas de leasing. Em seu voto, acompanhado pela maioria, o Min. Aldir Passarinho
destacou o entendimento defendido pelo Min. Ari Pargendler, vencido na Terceira
Turma, sustentando que os contratos firmados com os consumidores eram derivados
de outros assumidos pelas financeiras no exterior, daí igualmente vinculados à moeda
estrangeira. Ressaltou o Ministro: "Não parece, pois, razoável que estando autorizada
a arrendadora a contratar pela variação cambial do dólar e assim acordando o mutuá-
rio, tenha de arcar com o ônus integral, já que igualmente vítima da drástica desvalori-
zação do Real. Que há onerosidade excessiva, sem dúvida ela existe, porém não pro-
priamente da cláusula em si, que é legal, mas das circunstâncias que advieram a partir
de certo momento, quando em curso a relação obrigacional". Acrescentou, ainda, que
a probabilidade de mudanças no câmbio fazia parte do cenário, "mas as partes quise-
ram, ambas, acreditar que teriam tempo de fazer um bom negócio. Cada qual, por
isso, tem uma parcela de (ir)responsabilidadc pela onerosidade que dele resultou, e
nada mais razoável que a suportem. Tal é o regime legal, que protege o consumidor da
onerosidade excessiva, sem prejuízo das bases do contrato. Se a onerosidade superve-
niente não pode ser afastada sem grave lesão à outra parte, impõe-se uma solução de
eqüidade" (RESP n° 4 72594/SP, julgado em 12/02/2003, Rei. originário Min. Carlos
Alberto Menezes Direito, Rei. para acórdão Min. Aldir Passarinho Junior).
1l4 Seguindo essa mesma orientação, vejamos o seguinte aresto proferido pela 4a Tur-
ma do STJ, em 01/04/2003, da lavra do Rei. Min. Aldir Passarinho Junior, no RESP
n° 264592/RJ: "Comercial e processual civil. Consignação em pagamento. Contrato
de arrendamento mercantil. Fato novo c falta de fundamentação. Prequestionamento.
Ausência. Súmulas n. 282 c 356-STF. Revisão de contrato. Possibilidade. Aplicação
do CDC. Correção das parcelas. Variação cambial. Dólar. Repartição dos ônus. I. Não
prequestionados temas objeto do inconformismo, a admissibilidade do Recurso Espe-
328
Por derradeiro, cumpre reiterar que o Código de Defesa do Con-
sumidor não impõe como requisito da revisão contratual por onerosi-
dade excessiva que o fato superveniente derive de acontecimento ex-
traordinário, imprevisível ou irresistível, bastando, como já explicita-
do, a comprovação de circunstâncias supervenientes que alterem o
equilíbrio da relação obrigacional, tornando a avença excessivamente
onerosa para o consumidor. O Código Civil de 2002, ao revés, exige
expressamente, para a configuração da onerosidade excessiva, que os
acontecimentos tenham sido "extraordinários e imprevisíveis", tendo
adotado, portanto, a teoria da imprevisão.
Em suma, o Código de Defesa do Consumidor consagrou a teoria
da onerosidade excessiva, prescindindo da imprevisibilidade do fato
superveniente e, bem assim, da vantagem extrema por parte do con-
tratante não onerado. Diferentemente, o Código Civil de 2002 ado-
85
tou a teoria da imprevisão, condicionando a resolução ou a revisão do
contrato à imprevisibilidade das circunstâncias supervenientes causa-
doras da excessiva onerosidade e ao lucro significativo da outra parte.
cial, no particular, encontra óbice nas Súmulas n. 282 e 356 do STF. li. Aplicam-se às
instituições financeiras as disposições do Código de Defesa do Consumidor, no que
pertine à possibilidade de revisão dos contratos, conforme cada situação específica.
!li. Plenamente possível a revisão das cláusulas contratuais em sede de ação consigna-
tória, eis que necessária à correlação entre o valor depositado e o efetivamente devido.
Precedentes. IV. Segundo o entendimento pacificado na egrégia Segunda Seção (Resp
n° 4 72.594/SP, Rei. p. acórdão Min. Aldir Passarinho Junior, por maioria, julgado em
12.02.2003), é legítima a cláusula de variação cambial, conforme prevista na Lei n°
8.880/94, porém admissível a incidência do coe, em razão da substancial elevação
superveniente, para reverter situação de onerosidade excessiva ao consumidor, deven-
do a diferença ser dividida em partes iguais entre os litigantes, mantida a higidez da
cláusula contratual. V. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, parcial-
mente provido".
85 O Código Civil de 2002, em seu artigo 4 78, prevê como conseqüência primeira da
onerosidade excessiva a resolução do contrato. Em seus arts. 4 79 e 480, abre margem
à revisão contratual mediante a aquiescência do contratante não onerado, e, em seu
art. 31 7, dispõe especificamente sobre a possibilidade de revisão judicial do contrato,
sem, no entanto, exigir como requisito a "vantagem extrema" da outra parte.
329
no art. 6°, inciso V, da Lei n° 8.078/90, é conferido apenas ao consu-
midor e, não, ao fornecedor 86 .
Tal posicionament o, segundo seus defensores, justifica-se tanto
pela interpretação literal e sistemática da legislação, já que o referido
dispositivo encontra-se no Capítulo III, que trata dos "direitos básicos
do consumidor", quanto pela própria ratio juris da lei, eminentemen-
te protecionista do consumidor, enquanto parte mais fraca na relação
contra tua!.
Não obstante, nos termos do art. SI, § 2°, do Código consumeris-
ta, pode o fornecedor pleitear a resolução do contrato sempre que o
expurgo de uma cláusula abusiva, apesar dos esforços de integração,
acarretar-lhe ônus excessivos 7 . Com base no dispositivo em comento,
poder-se-ia entender que o fornecedor não tem amparo jurídico para
pleitear a modificação ou a revisão de cláusulas, sendo-lhe facultada,
apenas, a resolução do contrato.
Contudo, esse não nos parece o entendimento mais acertado, por-
quanto, se o Código do Consumidor admite expressament e a possibi-
lidade de resolução do negócio quando o fornecedor esteja em situa-
ção de excessiva onerosidade, por que não haveria de admitir a revi-
são, inclusive mais benéfica para o próprio consumidor, tendo em vis-
ta o princípio da conservação do contrato?
Destarte, à luz do aludido princípio, filiamo-nos àqueles que en-
tendem admissível a revisão contratual também quando a onerosida-
de resulte excessiva para o fornecedor 88 .
330
Com efeito, pode o fornecedor, eventualmente , estar impossibili-
tado de cumprir uma prestação que lhe tenha acarretado, por motivos
alheios à sua vontade, um ônus excessivo, o que invoca a incidência do
artigo 4°, inciso III, da Lei n° 8.078!90, segundo o qual os contratos
devem ser celebrados e executados sempre com supedâneo na boa-fé
e no equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
5. Consideraçõe s finais
331
Destarte, infere-se que a revisão contratual ganhou dupla discipli-
na em nosso ordenamento, mas, nem por isso, vislumbra-se qualquer
antinomia ou fragmentação no sistema, na medida em que o Código
de Defesa do Consumidor tem um âmbito de incidência que lhe é
próprio, cabendo ao Código Civil regular, tão-somente, as relações
contratuais que não sejam propriamente de consumo.
Reconhecendo, embora, a existência de universos legislativos se-
toriais, tal como é o Código de Defesa do Consumidor, é de se buscar,
conforme a lição sempre oportuna de Gustavo Tepedino, a unidade
do sistema, "deslocando para a tábua axiológica da Constituição da
República o ponto de referência antes localizado no Código Civil "91 .
332
Obrigações pecuniárias e revisão obrigacional
Gabriela Tabet
1. Introdução
333
o que impunha a obrigatoriedade destes que, assim, faziam lei entre
aquelas 3 .
Esta concepção foi adotada pelo Código Civil brasileiro de 1916 e
justificada nos seguintes termos:
334
Propagam-se, então, em nível doutrinário e jurisprudencial,
manifestações tanto favoráveis quanto desfavoráveis à aplicação da
cláusula rebus sic stantibus como fundamento a teorias resolutivas e
revisionistas das obrigações no direito pátrio.
A cláusula rebus sic stantibus -cuja origem remonta aos escritos
de Cícero e Sêneca, mas que se vestiu de força impositiva somente na
Idade Média, quando ganhou sua denominação clássica 7 - "consiste,
resumidamente, em presumir, nos contratos comutativos, uma cláu-
sula, que não se lê expressa, mas figura implícita, segundo a qual os
contratantes estão adstritos ao seu cumprimento rigoroso, no pressu-
posto de que as circunstâncias ambientes se conservem inalteradas no
momento da execução, idênticas às que vigoravam no da celebração" 8 .
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o ordenamento
jurídico brasileiro passou a contar com a previsão expressa de incidên-
cia do instituto da onerosidade excessiva no curso de relações obriga-
cionais, não mais restrita à aplicação da norma contida no art. 6°, V, 2a
parte, do Código de Defesa do Consumidor.
2. Obrigações pecuniárias
7 A fórmula integral da máxima rebus sic stantibus é trazida por Paulo Carneiro Maia
(Cláusula rebus sic stantibus, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 15, p. 137 apud
Fabiana Rodrigues Barletta, A revisão contratual no Código Civil e no Código de Defe-
sa do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 3, nota 8): "contractus qui habent
tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur" cuja
tradução livre seria "os contratos que têm trato sucessivo ou são a termo, ficam subor-
dinados, a todo tempo, ao mesmo estado de subsistência das coisas".
3
8 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, 9 ed., Rio de
Janeiro, Forense, 1993, p. I 09.
9 Cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 11, 20• ed.,
revista e atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes, Rio de Janeiro, Forense, 2004,
pp.J3lel88.
335
dade, por culpa do devedor, do cumprimento da prestação avençada nas
obrigações de dar coisa certa e de fazer, respectivamente.
Dentre as obrigações pecuniárias, identificam-se as dívidas de di-
nheiro e as dívidas de valor.
A dívida de dinheiro representa-se pela moeda considerada em
seu valor nominal ou extrínseco, ou seja, pelo importe econômico nela
consignado 10 , que consiste no valor imposto pelo Estado à moeda me-
tálica ou ao papel-moeda 11 • O quid debeatur, o objeto da prestação, é
o próprio dinheiro.
Distingue-se da dívida de dinheiro a dívida de valor, na qual o
dinheiro apenas representa o valor do objeto da prestação, determi-
nando o seu quantum. A dívida de valor, portanto, tem o dinheiro
como instrumento para a composição ou recomposição de uma situa-
ção patrimonial 12 •
Ao determinar que o pagamento das dívidas de dinheiro deve ser
efetivado, no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, o
art. 315 do Código Civil consagra, mais uma vez, como regra geral, o
princípio do nominalismo.
Moeda corrente é a que tem curso legal no país e importa no efeito
liberatório do pagamento nela realizado. Isto porque, a unidade mone-
tária dotada de curso legal é inderrogável convencionalmente, não po-
dendo ser recusada 13 .
O curso forçado da moeda implica em nulidade de quaisquer cláu-
sulas que convencionem o pagamento em moeda estrangeira, atribuin-
do, portanto, à moeda corrente a natureza de objeto compulsório dos
pagamentos 14 . Como decorrência do curso forçado, o art. 318 do Có-
10 Cf. Álvaro Villaça Azevedo, Teoria Geral das Obrigações, s• ed., São Paulo, RT,
2000, p. 131, apud Gustavo Tepedino et al., Código Civil interpretado conforme a
Constituição da República, volume I, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 607.
li Cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 11, 20 3 ed.,
revista e atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes, Rio de Janeiro, Forense, 2004,
p. 132.
12 Cf. lição de Cândido Rangel Dinamarco apud Giselda Maria F. Novaes Hironaka,
Dívida de valor e dívida de pecúnia: velha polêmica, disponível em http:/ I www.anp-
prev.org.br/doutrina-?.htm, acesso em 09.11.2004.
13 O Real foi instituído como moeda corrente com curso legal em todo o território
brasileiro pela Lei n° 9.069, de 29 de junho de 1995.
14 Cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 11, 20" ed.,
revista e atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes, Rio de Janeiro, Forense, 2004,
p. 189.
336
digo Civil prescreve, como regra, a vedação da cláusula-ouro, do paga-
mento em moeda estrangeira e da indexação em moeda estrangeira.
À vista da desvalorização monetária - e conseqüente disparidade
entre o poder aquisitivo e o valor nominal da moeda - decorrente do
fenômeno inflacionário, admite-se, tanto nas dívidas de dinheiro,
quanto nas de valor 15 , a atualização ou correção monetária. Trata-se
de mecanismo econômico que visa à reposição do valor da moeda, ou
seja, apenas a atualizar o seu valor nominal sem gerar qualquer acrés-
cimo, não consistindo, portanto, em exceção ao conceito nominalista.
A aplicação da correção monetária foi generalizada, por força da
Lei n" 6.899/1981, regulamentada pelo Decreto n° 86.649/1981, a
todas as dívidas cobradas judicialmente. O entendimento de que o
reajuste monetário tem como objetivo tão somente a manutenção do
valor real da dívida sedimentou-se no Superior Tribunal de Justiça,
consoante se infere do seguinte julgado:
337
A teoria nominalista, todavia, não é absoluta 17 , prevendo o próprio
Código Civil exceções nos arts. 316 a 318.
O art. 318 do Código Civil, conforme já mencionado, dispõe,
como regra, serem nulas as convenções de pagamento em ouro ou em
moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o
valor desta e o da moeda nacional.
A proibição de convenções que pudessem restringir ou recusar,
nos seus efeitos, o curso legal da moeda, em verdade, decorre do iní-
cio da década de 1930, a partir da promulgação de sucessiva legislação
que introduziu modificações nas regras da economia privada, inicial-
mente previstas no art. 947, caput e parágrafos, do Código Civil de
1916, como sendo de livre estipulação dos pactuantes.
Contudo, o dispositivo em comento do Código Civil de 2002 ex-
cetua os casos previstos na legislação especial, dentre os quais podem
338
ser ressaltadas as exceções do art. zo
do Decreto-Lei n° 857/1969,
tais como contratos e títulos referentes à importação ou exportação
de mercadorias e contratos de compra e venda de câmbio em geral,
entre outras, e do art. 6° da Lei n° 8.880/1994, como contratos de
arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domi-
ciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do
exterior.
As hipóteses legais admitidas pelo art. 318, portanto, constituem
exceções ao curso forçado da moeda nacional e ao princípio do nomi-
nalismo.
Permite o art. 316 do Código Civil a convenção, pelas partes, do
aumento progressivo das prestações nas obrigações sucessivas, como
mecanismo de revisão que visa tanto a corrigir possível perda do valor
do dinheiro quanto ao aumento mesmo da prestação. Trata-se da de-
nominada cláusula de escala móvel ou cláusula de reajuste.
Define-se a cláusula de escala móvel como "o mecanismo previsto
no contrato, que estabelece uma revisão dos pagamentos, que deverão
ser feitos em função das variações do preço de certas mercadorias ou
serviços ou do índice geral do custo de vida ou dos salários" 18 . Cuida-
se, assim, de hipótese em que os próprios interessados convencionam,
no momento da celebração da avença, a adoção de um índice que
estabeleça uma escala móvel no valor do preço acordado, mediante
previsão sobre o aumento do preço do produto ou serviço 19 .
O Código Civil mesmo traz inúmeras exceções às dívidas de di-
nheiro, como, por exemplo, nas obrigações alimentares (art. 1.694),
nas indenizações por atos ilícitos (arts. 404, 944 e segs.), na restitui-
ção por enriquecimento sem causa (art. 884), às quais podem ser
acrescidas outras hipóteses em que a legislação infraconstitucional
considera lícito o reajuste das prestações decorrentes de indenizações
trabalhistas, locação de prédios urbanos, desapropriação 20 , entre ou-
tras. Ressalte-se que a justa indenização nos casos de desapropriação
18 Mareio Klang, A teoria da imprevisão e a revisão dos contratos, 2• ed., São Paulo,
RT, 1991, p. 34, apud Rogério Ferraz Donnini, A revisão dos contratos no código civil
e no código de defesa do consumidor, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 53.
19 Cf. Rogério Ferraz Donnini, A revisão dos contratos no código civil e no código de
defesa do consumidor, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 53.
20 Cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. ll, 20" ed.,
revista e atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes, Rio de Janeiro, Forense, 2004,
pp. 138-139.
339
por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social decorre
de norma constitucional expressa 21 .
A adoção da teoria das dívidas de valor e a convenção de cláusula
de reajuste devem, contudo, ser orientadas e controladas pelos princí-
pios da ordem pública, da boa-fé objetiva e da eqüidade 22 . Neste sen-
tido, Caio Mário da Silva Pereira 23 esclarece que as cláusulas de rea-
juste são "tecnicamente valiosas" e "moralmente admissíveis" quando
amparam, de um lado, o credor contra o efeito corrosivo da desvalori-
zação monetária e, de outro lado, o devedor por evitarem que o valor
da prestação seja antecipadamente sobrecarregado como garantia des-
ta futura depreciação. Tais cláusulas, portanto, não poderiam ser dei-
xadas ao livre arbítrio dos contratantes 24 mas seriam lícitas quando
importassem em estipulação da variação da prestação à vista da eleva-
ção, por exemplo, do valor pecuniário de um elemento componente
da prestação25 , ou seja, desde que respeitado índice que se relacione
com o objeto do contrato, ou com as atividades da partes 26 •
As cláusulas de reajuste, pois, poderiam, em tese, vincular a pres-
tação ao valor de determinada mercadoria (cláusula mercadoria), a
determinado índice ou à variação geral abstrata do custo de vida (cláu-
sula index-number) 27 ou, por fim, à determinada moeda estrangeira
(cláusula monetária) 28 .
Nos contratos celebrados ou convertidos em real com cláusula de
correção monetária por índices de preço ou por índice que reflita a
21 Constituição da República, art. 5°, XXIV. V., também acerca da indenização por
desapropriação em nível constitucional, o que preceituam os arts. 182, § 4°, lll, e 184,
caput.
22 C f. Gustavo Tepedino et al., Código Civil interpretado conforme a Constituição da
República, volume I, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 608.
23 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 11, zo• ed., revista e
atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes, Rio de Janeiro, Forense, 2004, pp. 137
el91.
24 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 11, zo• ed., revista e
atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes, Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 191.
25 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 11, zo• ed., revista e
atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes, Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 138.
26 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 11, zo• ed., revista e
atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes, Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 140.
27 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 11, zo• ed., revista e
atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes, Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 191.
28 Nas hipóteses, acima mencionadas, de exceção legal ao curso forçado da moeda
previsto no art. 318 do Código Civil.
340
variação ponderada dos custos dos insumos utilizados, a periodicidade
de aplicação dessas cláusulas será anual, sob pena de nulidade da con-
venção, conforme preceitua o art. 28 da Lei n° 9.069/1995. Por se
tratar de norma de ordem pública e autêntica diretriz de política eco-
nômica, a lei em questão permanece em vigor, não devendo ser consi-
derada derrogada pelo Código Civi1 29 .
A Constituição da República veda, no art. 7°, IV, parte final, a
vinculação do salário mínimo para qualquer fim, sendo, portanto,
proibida sua utilização como indexador. O Supremo Tribunal Federal,
contudo, entende não ser violadora da norma constitucional a utiliza-
ção do salário mínimo como valor de referência a pensões alimentí-
cias, dada a semelhança de situação e identidade dos fins, consoante
se depreende dos seguintes julgados:
341
3. Revisão obrigacional
342
adotou a teoria da imprevisão ao prever, no art. 317, a possibilidade de
revisão obrigacional quando sobrevier manifesta desproporção entre o
valor da prestação devida e o do momento de sua execução decorrente
de motivos imprevisíveis.
São fundadas na imprevisão "aquelas construções que justificam a
resolução ou a revisão de um contrato que se tornou excessivamente
oneroso no decorrer do tempo, em virtude de transformações ocorri-
das posteriormente à contratação, que não puderam ser previstas no
momento da formação do referido contrato" 37 .
Diversas teorias buscaram fundamentar a imprevisão contratuaP 8,
dentre as quais destacam-se a teoria da pressuposição, de Bernardo
Windscheid 39; a teoria da superveniência ou teoria da vontade marginal,
elaborada por Giuseppe Osti 40 e a teoria do erro, de Achille Giovene 41 •
343
Ao lado dessas teorias, Anísio José de Oliveira 42 elenca as teorias
da base do negócio jurídico, de Paul Oertmann, da vontade eficaz, de
Kaufmann, da situação extracontratual ou da situação extraordinária,
de A. Bruzin e da diligência ou teoria do dever de esforço, de Hart-
mann, como doutrinas com base na vontade, enquanto as teorias do
estado de necessidade, de Lehmann e Coviello e do equilíbrio das
prestações ou interesses, de Giorgi e Lenel, seriam doutrinas com
nação de vontade deve permanecer inalterada (ou de qualquer modo deve reproduzir-
se inalterada) até o momento no qual aquela concreta prestação terá início, traduzin-
do-se, então, no ato" (Giuseppe Osti, Appunti per uma teoria della 'sopravvenienza'
(la cosi detta dausola 'rebus sic stantibus' nel diritto contrattualc odiemo), Rivista di
Diritto Civile, ano 5, 1913, p. 672, apud Fabiana Rodrigues Barletta,A revisão contra-
tual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 2002,
p. 10).
41 Apoiada na figura do erro como justificadora da anulação do negócio jurídico,
segundo a qual: "se no momento da conclusão do negócio a vontade determina-se com
base na representação de uma certa valoração da entidade econômica da prestação,
sendo admitido deduzi-la das condições de fato então sustentadas, e, em tempo pos-
terior tal prestação demonstra-se falsa em virtude de uma mudança de circunstâncias,
inimputáveis e imprevisíveis ao tempo da conclusão do negócio, a declaração de von-
tade não pode deixar de ser corrompida pelo erro e um tal defeito dá direito a pedir a
anulação do vínculo constituído" (Achille Giovene, Sul fondamento spccifico dell'ins-
tituto della 'sopravvenienza', Rivista dei Diritto Commerciale e dei Diritto Generale
delle Obbligazione, v. 19, p. 170, apud Fabiana Rodrigues Barletta, A revisão contra·
tual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 2002,
p. 12). Essa teoria "admite que a parte incida em erro quando, ocorrendo fato super-
veniente, imprevisto c imprevisível, a vontade inicial das partes difere da realidade
posterior." (Rogério Ferraz Donnini, A revisão dos contratos no código civil e no código
de defesa do consumidor, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 40). Contudo, trata-se o erro de
vício do consentimento, da manifestação expressa quando da celebração do contrato;
não há, pois, como se falar em erro sobre fato futuro. Nas palavras de J. M. Othon
Sidou (Resolução judicial dos contratos e contrato de adesão no direito vigente e no
projeto de Código Civil, 3a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 31 ): "O contrato,
particularizadamente, cuja manifestação da vontade resulta de erro, já nasce vicioso e
não há falar em modificação futura de circunstâncias, porque muito mais lógico, e
mais fácil, será, para escusa do cumprimento da prestação, argüir o vício, formal ou
substancial, do que alegar a mudança do estado negociai." Com efeito, o art. 138 do
Código Civil brasileiro de 2002 dispõe que "são anuláveis os negócios jurídicos, quan-
do as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido
por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio."
42 Anísio José de Oliveira, A Cláusula rebus sic stantibus através dos tempos, Belo
Horizonte, 1968, apud J. M. Othon Si dou, Resolução judicial dos contratos e contrato
de adesão no direito vigente e no projeto de Código Civil, 3a ed., Rio de Janeiro, Foren-
se, 2000, pp. 29 e ss.
344
base na prestação, sendo todas estas proposições revisionistas intrínse-
cas, enquanto dentre as extrínsecas estariam as proposições revisionis-
tas com fundamento na moral, de Ripert e Voirin, na boa-fé, de
Wendt e Klenke, na socialização do direito, de Gasset, e na eqüidade,
de Arnaldo Medeiros da Fonseca.
Consigne-se, por fim, a teoria da quebra da base objetiva do negó-
cio jurídico, de Karl Larenz que, não obstante eleja elementos menos
subjetivos para justificar a insubsistência do contrato na forma inicial-
mente pactuada, ainda possui certa dose de subjetivismo, por enten-
der que devem ser desconsiderados os fatos supervenientes que fos-
sem previsíveis 43 •
De qualquer sorte, as teorias fundadas na imprevisão tiveram o
mérito de "relativizar a força obrigatória dos contratos, quando se ma-
nifestasse a alteração das circunstâncias supervenientemente à con-
clusão contratual, e fossem essas circunstâncias extraordinárias e im-
previsíveis ao tempo de formação do contrato" 44 •
345
como nortes a inspirar toda a ordem jurídica 46 , fornecendo substrato
axiológico à interpretação de outras normas constitucionais e infra-
constitucionais, como também a merecer aplicação direta a situações
concretas, por serem os princípios constitucionais dotados de verda-
deira força normativa.
Os princípios constitucionais da igualdade substancial e da solida-
riedade servem de supedâneo, no âmbito das relações contratuais, aos
princípios do equilíbrio econômico e da boa-fé objetiva que, ao lado
do princípio da conservação e da função social dos contratos, infor-
mam a atividade econômica privada e definem a nova teoria contra-
tual.
Essa indispensável análise das relações privadas com fulcro nos
princípios constitucionais é fruto de uma inadiável releitura do Códi-
go Civil e das leis especiais à luz da Constituição da República e im-
porta muito mais do que se considerar os enunciados normativos cons-
titucionais tão somente como limite às normas ordinárias ou ainda
como embasamento a uma atividade hermenêutica stricto sensu. A
constitucionalização do direito civil impõe a aplicabilidade direta das
normas constitucionais que, somente quando observadas, propiciarão
eficácia à legislação ordinária 47 e, in casu, à teoria obrigacional.
346
Portanto, "a teoria revisionista dos contratos, antes de ser regra
confinada no direito civil, é inafastável princípio de ordem jurídica" 48 •
A conservação ou manutenção do vínculo contratual, visando ao
restabelecimento da economia do contrato mediante intervenção ju-
dicial, pode, muitas vezes, afigurar-se como a medida mais convenien-
te para ambos contratantes que, não obstante a situação em que se
encontre um deles de insuportabilidade da superveniente onerosidade
excessiva da prestação que lhe cabe, têm interesse na continuidade da
relação contratual.
Fala-se menos em extinção, e mais em readaptação das presta-
ções, atribuindo-se ao Juiz o poder de intervir na economia do contra-
to, para reajustar, em bases razoáveis, as prestações recíprocas 49 .
Gustavo Tepedino ressalta "que a revisão do contrato será prefe-
rível à sua resolução sempre que aquela for possível, em homenagem
ao princípio da conservação dos contratos, e despojando-se da nostál-
gica fobia reinante em doutrina, à ingerência judicial sobre a autono-
mia privada." 50
A afirmativa é irretorquível quando se leva em conta que, ainda
hoje, os contratos são interpretados imbricados da visão arcaica do
instituto como modo somente de obtenção de riquezas e que despreza
o seu perfil hodierno funcionalizado. Destarte, a intervenção do Esta-
do-juiz na relação contratual a quebrantar o dogma da autonomia da
vontade urge como uma ameaça indesejada para aqueles que não acei-
tam a evolução do direito 51 •
347
Indiscutivelmente sadia, contudo, é a possibilidade que se dá aos
contratantes de buscarem o Poder Judiciário, buscando uma relação
contratual mais justa e eqüânime, do qual, aliás, não pode a lei excluir
a apreciação de lesão ou ameaça a direito.
Pelo princípio do equilíbrio econômico, cujo conteúdo axiológico
é definido à luz do princípio da igualdade substancial, pressuposto da
justiça social, seu fundamento constitucional, "o contrato não deve
servir de instrumento para que, sob a capa de um equilíbrio meramen-
te formal, as prestações em favor de um contratante lhe acarretem um
lucro exagerado em detrimento do outro contratante 52 •
O princípio do equilíbrio econômico, destarte, deve ser verificado
durante toda a relação contratual - desde o momento da formação
do vínculo até o pagamento do avençado - , possibilitando a revisão
do pactuado livremente pelos contratantes se for maculado por fato
superveniente causador de excessiva onerosidade ao cumprimento da
prestação que cabe a uma das partes 53 .
Tal equilíbrio não importa, necessariamente, em equiparação de
valores e sim em descompasso da proporcionalidade entre as presta-
ções. Nada impede que uma prestação cujo valor era inferior à do
outro contratante seja onerada excessivamente por acontecimento su-
perveniente e embase um pedido de revisão contratual; de igual for-
ma, uma prestação que já se apresentava superior à contraprestação
pode sofrer uma oneração exacerbada, tornando inviável seu cumpri-
mento. Ambas hipóteses retratam um desequilíbrio econômico do
programa contratual.
Neste sentido, a lição de Teresa Negreiros:
348
tudo relativo ao conteúdo e aos efeitos do contrato, que devem res-
guardar um patamar mínimo de equilíbrio entre as posições econômi-
cas de ambos os contratantes. 54
349
11 -A cláusula que atrela a correção das prestações à variação cam-
bial não pode ser considerada nula a priori, uma vez que a legislação
específica permite que, nos casos em que a captação dos recursos da
operação se dê no exterior, seja avençado o repasse dessa variação ao
tomador do financiamento.
III- Consoante o art. 6°, V do Código de Defesa do Consumidor,
sobrevindo, na execução do contrato, onerosidade excessiva para
uma das partes, é possível a revisão da cláusula que gera o desajuste,
a fim de recompor o equilíbrio da equação contratual.
IV - No caso dos contratos de leasing atrelados à variação cambial,
os arrendatários, pela própria conveniência e a despeito do risco ine-
rente, escolheram a forma contratual que no momento da realização
do negócio lhes garantia prestações mais baixas, posto que o custo
financeiro dos empréstimos em dólar era bem menor do que os cus-
tos em reais. A súbita alteração na política cambial, condensada na
maxidesvalorização do real, ocorrida em janeiro de 1999, entretanto,
criou a circunstância da onerosidade excessiva, a justificar a revisão
judicial da cláusula que a instituiu.
V - Contendo o contrato opção entre outro indexador e a variação
cambial e tendo sido consignado que os recursos a serem utilizados
tinham sido captados no exterior, gerando para a arrendante a obriga-
ção de pagamento em dólar, enseja-se a revisão da cláusula de varia-
ção cambial com base no art. 6°, V do Código de Defesa do Consumi-
dor, para permitir a distribuição, entre arrendantes e arrendatários,
dos ônus da modificação súbita da política cambial com a significativa
valorização do dólar americano. 56
350
57
Corolário do princípio constitucional da solidariedade , o princí-
pio da boa-fé objetiva consiste em "uma atuação 'refletida', uma atua-
ção refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitan-
do-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoá-
veis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução,
sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o
bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a
realização dos interesses das partes" 58 .
351
Portanto, "ao conceito de boa-fé objetiva estão subjacentes as
idéias e ideais que animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra
de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, princi-
palmente, na consideração para com os interesses do "alter", visto
como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Ai
se insere a consideração para com as expectativas legitimamente gera-
das, pela própria conduta, nos demais membros da comunidade, espe-
cialmente no outro pólo da relação obrigacional. "59
Infere-se da noção de boa-fé objetiva no âmbito das relações con-
tratuais que se trata de atuação esperada de todos os pactuantes, não
havendo porque se restringir a incidência da cláusula geral a uma ou
outra espécie de negócio jurídico. Esse aspecto é relevante quando se
tem em conta que a positivação da boa-fé objetiva em nosso ordena-
mento jurídico foi alcançada, primeiramente, por meio do Código de
352
Defesa do Consumidor o que gera, para alguns, equívocos na sua apli-
cação60.
Não se nega que a boa-fé seja o "princípio máximo orientador do
Código de Defesa do Consumidor" 61 , contudo, é imperioso afirmar
que não é princípio apenas orientador da interpretação e integração
das relações de consumo. O Código Civil de 2002, contudo, veio cor-
rigir esta tendência, ao prever expressamente, nas disposição prelimi-
nares dos contratos em geral (art. 422), a aplicação do princípio da
boa-fé objetiva às relações contratuais comuns, independentemente
de qualquer vulnerabilidade presumida ou demonstrada 62 .
Expressa Teresa Negreiros 63 que "deve-se invocar o princípio da
boa-fé como fundamento para se considerar a finalidade da relação
jurídica sub judice, e, neste sentido, condicionar a sua interpretação às
circunstâncias concretas do caso em exame na medida em que revela-
doras desta finalidade "64 .
353
3.3. Requisitos
354
cia da revisão, sem, contudo, adentrar no aspecto mesmo dessa exigi-
bilidade de sinalagma.
São comutativos "os contratos em que as prestações de ambas as
partes são de antemão conhecidas, e guardam entre si uma relativa
equivalência de valores" 66 .
Ocorre que nada obsta que os obrigados tenham avençado presta-
ções que não guardam equivalência entre si, e que a superveniência de
determinado fato torne a obrigação tão-somente de um dos contratan-
tes excessivamente onerosa. O fato de os contratantes terem optado
por um contrato em que não é observado o sinalagma das prestações
não afasta por si só a incidência do instituto.
A exigência de um contrato comutativo apresenta-se ainda mais
questionável quando a própria lei civil aponta para a possibilidade de
ocorrência de onerosidade excessiva em contratos unilaterais.
Os contratos unilaterais - sob o ângulo de seus efeitos - são
aqueles negócios jurídicos bilaterais - sob o aspecto de sua formação
-que geram obrigações para um dos contratantes somente 67 .
Se cabível a verificação da excessiva.onerosidade em contratos em
que apenas um dos pactuantes possui obrigações, por que não naque-
les em que as obrigações atinentes a ambos contratantes não são sina-
lagmáticas?
Por outro turno, exige-se que os contratos - sejam bilaterais, se-
jam unilaterais- caracterizem-se como de execução diferida ou con-
tinuada, "conditio sine qua non para a aplicação da teoria da imprevi-
são"68. Contrato de execução diferida ou retardada "é aquele em que
a prestação de uma das partes não se dá de um só jato, porém a termo,
não ocorrendo a extinção da obrigação enquanto não se completar a
solutio" 69 , enquanto o de execução continuada ou sucessiva ou, ainda,
de trato sucessivo "é o contrato que sobrevive, com a persistência da
66 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, g• ed., Rio de
Janeiro, Forense, 1993, p. 47.
67 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, 9• ed., Rio de
Janeiro, Forense, 1993, p. 45. A doutrina sempre defendeu a aplicabilidade do insti-
tuto da onerosidade excessiva ao contrato de mútuo feneratício, uma vez que, não
obstante seja o mútuo um contrato unilateral gratuito, quando feneratício passa a ser
oneroso. Contudo, a discussão perde muito em importância diante da nova regra con-
tida no art. 480 do Código Civil.
68 Rogério Ferraz Donnini, A revisão dos contratos no código civil e no código de
defesa do consumidor, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 62.
69 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, 9a ed., Rio de
Janeiro, Forense, 1993, p. 48.
355
obrigação, muito embora ocorram soluções periódicas, até que, pelo
implemento de uma condição, ou decurso de um prazo, cessa o pró-
prio contr<;1to" 70 .
Já os contratos de execução imediata ou instantânea, que são
aqueles "em que a solução se efetua de uma só vez e por prestação
única, tendo por efeito a extinção cabal da obrigação" 71 , não se coadu-
nam com o instituto, visto que, por não possuir execução que se pro-
traia no tempo, não está sujeito à superveniência de fato novo 72 .
Pela mesma razão, é que se exige a vigência do contrato, já que, se
extinto, ou seja, se cumpridas todas as prestações, não há como se
sujeitar a acontecimentos futuros.
Este aspecto de diferimento tem importante repercussão no que
tange aos efeitos da decretação da resolução ou da revisão do contrato
por excessiva onerosidade.
À vista do disposto na parte final do art. 4 78 do Código Civil, que
determina que os efeitos retroagirão à data da citação, Caio Mário da
Silva Pereira conclui que:
70 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, 9" ed, Rio de
Janeiro, Forense, 1993, p. 48.
71 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. III, 9a ed., Rio de
Janeiro, Forense, 1993, p. 48.
72 No mesmo sentido, Sílvio de Salvo Venosa (Direito Civil - Teoria geral das
obrigações e teoria geral dos contratos, volume 11, 3• ed., São Paulo, Atlas, 2003, p.
466) para quem "Os contratos devem ser a prazo, ou de duração. O contrato de
cumprimento instantâneo, como é elementar, não se amolda à problemática da exces-
siva onerosidade. Esta surge com o decorrer de certo tempo, ainda que muito próxima
à feitura do contrato. [ ... ) O campo de atuação é dos contatos bilaterais comutativos,
ou unilaterais onerosos. A onerosidade, como a própria denominação está a dizer, é
essencial".
73 Caio Mário da Silva Pereira, lmtituições de Direito Civil, vol. !li, I I a ed., revista e
atualizada por Regis Fichtner, Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 166. V., ainda, Lucia-
na de Oliveira Leal (A onerosidade excessiva no ordenamento jurídico brasileiro, Re-
356
Porém, em sentido diametralmente oposto, a Terceira Turma do
Superior Tribunal de Justiça decidiu:
357
cuia-se (ou seja, tem relação direta) com a álea do contrato, ou se diz
respeito a um aspecto totalmente avesso aos riscos assumidos quando
da celebração do pacto.
Neste sentido, transcreve-se a lúcida lição de J. M. Othon Sidou:
Forense, 2003, p. 167), afirma que "nunca haverá lugar para a aplicação da teoria da
imprevisão naqueles casos em que a onerosidade excessiva provém da álea normal e
não do acontecimento imprevisto, como ainda nos contratos aleatórios, em que o
ganho e a perda não podem estar sujeitos a um gabarito predeterminado".
77 J. M. Othon Si dou, Resolução judicial dos contratos e contrato de adesão no direito
vigente e no projeto de Código Civil, 3' edição, Rio de Janeiro, Forense, 2000, pp.
113-114. Cf., ainda, Sílvio de Salvo Venosa (Direito Civil- Teoria geral das obriga-
ções e teoria geral dos contratos, volume 11, 3' edição, São Paulo, Atlas, 2003, p. 466):
"Não se aplica, em linha geral, aos contratos aleatórios, embora possamos defender a
onerosidade excessiva se o fato imprevisível nada tem a ver com a álca propriamente
dita do contrato, isto é, fatores estranhos aos riscos próprios do contrato. Aliás, a
dicção da segunda parte do art. 1.198 do Código Civil argentino é expressa em descre-
ver, com minúcias, os contratos atingidos pelo princípio". Continua este Autor, mais à
frente em sua obra (p. 468), "o Código argentino, em redação não original incorporada
ao diploma mais recentemente, na segunda parte do art. 1.198, dispõe: "Nos contratos
bilaterais comutativos e nos aleatórios onerosos de execução diferida ou continuada, se
a prestação a cargo de uma das partes se tornou excessivamente onerosa, por aconteci-
mentos extraordinários e imprevisíveis, a parte prejudicada poderá demandar a reso-
358
(ii) Alteração das condições econômicas objetivas no momento da
execução, em confronto com o ambiente objetivo no da celebração
A diversidade das condições econômicas objetivas verificadas no
momento do cumprimento da prestação avençada em relação às
condições existentes quando da celebração do pacto deriva do fato
superveniente ocorrido no lapso temporal inerente às execuções dife-
ridas ou continuadas dos contratos. Caio Mário da Silva Pereira 78 faz
menção à necessidade de uma alteração radical.
(iii) Imprevisibilidade daquela modificação
De todos os pressupostos expressos na lei a autorizar a revisão
obrigacional, a imprevisibilidade é o mais questionável.
Trata-se de conceito carregado de subjetivismo, apesar do esforço
de muitos doutrinadores em empreender-lhe critérios objetivos de
aferição.
Neste sentido, Judith Martins-Costa afirma que "o imprevisível é
o que não poderia ser legitimamente esperado pelos contratantes, de
acordo com a sua justa expectativa, a ser objetivamente avaliada, no
momento da conclusão do ajuste" 79 complementando que "para a sua
caracterização, devem ser tomadas em conta todas as concretas cir-
cunstâncias do negócio, a capacidade de previsão de uma 'pessoa ra-
zoável', e as características do ramo de atividade no qual a prestação
devida está inserida. Exponencial também será o princípio da boa-fé,
do qual decorre, para além do dever de reequilíbrio contratual, o de-
ver de consideração aos legítimos interesses da contraparte. Todos
esses elementos devem, pois, ser considerados, pois o grau de certeza
e especificidade da previsão -por se tratar de um juízo de fato -não
se presta a uma definição a priori" 80 .
359
A imprevisibilidade, destarte, é insuscetível de ser percebida sem
a análise do subjetivismo que a impregna o que a torna um elemento
caracterizador do anacronismo da previsão do instituto da revisão ob-
rigacional pelo Código Civil em comparação com o paradigma objeti-
vista adotado pela Constituição da República de 1988 81 .
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu:
360
siderar, neste reajuste, a inflação verificada depois da data do contra-
to, porquanto a desvalorização da moeda já ocorria antes do venci-
mento da prestação diferida. 83
361
guação da imprevisão do fato carregaria, ainda, certa dose de subjeti-
vismo, enquanto o desejável seria que as circunstâncias a serem obser-
vadas tivessem relação tão somente com o desequilíbrio contratual ou
com a impossibilidad e de se alcançar a finalidade contratual 86 .
Neste sentido é a manifestação de Fabiana Rodrigues Barletta:
362
extraordinárias e imprevisíveis em sua contingência" 89 . Para a Autora
o direito positivo adotou a Teoria da excessiva onerosidade: "foi essa
a Teoria que acabou prevalecendo, como matriz teórica, no novo Có-
digo Civil brasileiro, muito embora entre nós não se restrinja à resolu-
ção (art. 4 78), apanhando, por igual, os casos de revisão judicial, por
força do art. 31 7 "90 .
(i v) Onerosidade excessiva para um dos contratantes e benefício
exagerado para o outro
A doutrina é unânime em asseverar que a alteração fática supra-
mencionada deverá ocasionar uma excessiva onerosidade para um dos
obrigados, não sendo, contudo, uníssona quanto à necessidade de se
contrapor a esta onerosidade um benefício exagerado para o outro.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira 91 "não o justifica [insurgir-se
e recusar a prestação] uma apreciação subjetiva do desequilíbrio das
prestações, porém a ocorrência de um acontecimento extraordinário,
que tenha operado a mutação do ambiente objetivo, em tais termos
que o cumprimento do contrato implique em si mesmo e por si só o
enriquecimento de um e o empobrecimento do outro."
Pode-se entender como onerosidade excessiva aquela que corres-
panda a uma dificuldade extrema por parte do contratante que a su-
porta em cumprir o pacto tal como avençado, o que não significa,
contudo, impossibilidade no cumprimento da prestação.
Sobre a distinção, transcreve-se o entendimento de Maria Anto-
nieta Lynch de Moraes:
363
esta idéia vejamos a opinião de Renato Jungmam [A superveniência
de acontecimento imprevisível como causa da revisão dos contratos.
Revista da Ordem dos Advogados de Pernambuco. Recife, 5-6-7,
1964, p. 145]: "Outras vezes, porém, a alteração das circunstâncias,
por força da superveniência de acontecimento imprevisto e imprevi-
sível, conquanto não torne a prestação impossível, exige, para torná-
Ia efetiva, um acentuado aumento no valor da obrigação a que se
vincularam as partes contratantes. O cumprimento da obrigação para
uma das partes, neste caso, exigirá sacrifícios enormes que não esta-
vam em suas cogitações quando consentiu em celebrar o contrato.
Alguns autores aludem a este fenômeno falando de impossibilidad e
relativa, para distinguir da impossibilidad e absoluta oriunda do for-
tuito. Com razão, porém observa Galvão Telles que esta expressão é
imprópria porque não se trata de verdadeira impossibilidade e sim de
mera dificuldade. Como toda prestação pressupõe um sacrifício, ex-
pressar-se-ia melhor este fato referindo a um considerável aumento
no grau das dificuldades preconcebidas. "92
364
Código Civil-, não se apresenta, dogmaticamente, como um pressu-
posto para a revisão ou resolução obrigacional. Isto porque, a onerosi-
dade excessiva para um dos pactuantes não importa, necessariamente,
em lucro extremo para o outro, já que, muitas vezes, aquela onerosi-
dade poderá decorrer de mudanças econômicas que, não obstante afe-
tem a prestação de uma das partes, em nada influenciam a da outra,
como, por exemplo, um aumento exacerbado da alíquota de determi-
nado imposto, como o de importação, a cujo pagamento apenas uma
obrigara-se 93 .
93 Sílvio de Salvo Venosa (Direito Civil- Teoria geral das obrigações e teoria geral
dos contratos, volume 11, 33 ed., São Paulo, Atlas, 2003, p. 462) assim se manifesta: "A
possibilidade de intervenção judicial no contrato ocorrerá quando um elemento sur-
presa, uma circunstância nova, surja no curso do contrato, colocando em situação de
extrema dificuldade um dos contratantes, isto é, ocasionando uma excessiva onerosi-
dade em sua prestação. Nem sempre essa onerosidade equivalerá a um excessivo be-
nefício em prol do credor. Razões de ordem prática, de adequação social, fim último
do direito, aconselham que o contrato nessas condições excepcionais seja resolvido, ou
conduzido a níveis suportáveis de cumprimento para o devedor.". Na mesma obra,
mais à frente (p. 469), o A. pontifica que: "O essencial nesse instituto é a posição
periclitante em que se projeta uma das partes no negócio, sendo irrelevante que haja
benefício para a outra. Desse modo, não se deve configurar a onerosidade excessiva
com base em um contraponto de vantagem.". No mesmo sentido, cf. J. M. Othon
Sidou (Resolução judicial dos contratos e contrato de adesão no direito vigente e no
projeto de Código Civil, 3 3 ed., Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 108): "O esboço
omite [o autor refere-se ao seu esboço legislativo, de 1962, que dispunha: "Art. Qual-
quer das partes poderá demandar a resolução do contrato, se não houver acordo para
a revisão, desde que alegue a ocorrência de circunstâncias desconhecidas ou imprevis-
tas ao tempo da conclusão do contrato e que ocasionam excessiva onerosidade no seu
cumprimento. Parágrafo único. Na demanda se provará que a mudança de circunstân-
cias não foi ocasionada por mora ou culpa do devedor, nem que a onerosidade exces-
siva decorre dos riscos normais do contrato."]. com intenção, o enriquecimento sem
justa causa; e mais que omitir-se, desconhece-o, por ser conseqüência, não motivo.
Duas razões adversativas fazem-nos assim pensar. A primeira prende-se a que a extre-
ma onerosidade para uma parte nem sempre resulta em excepcional vantagem para a
outra; só os casos singulares tratados poderão demonstrar. A segunda relaciona-se com
que a extrema onerosidade de uma parte resulta em enorme vantagem para a outra; só
também os casos especificamente observados poderão demonstrar."; Rogério Ferraz
Donnini (A revisão dos contratos no código civil e no código de defesa do consumidor,
São Paulo, Saraiva, 1999, p. 79): "Com relação ao primeiro caso, sustentamos ser
dispensável a prova do benefício injusto e exagerado para o outro contratante. Basta, a
nosso ver, a onerosidade excessiva sofrida por uma das partes, haja vista que esta não
implica necessariamente lucro indevido para a outra parte. Determinada situação
pode causar onerosidade excessiva para um dos contraentes sem que exista um lucro
indevido para o outro, como afirmamos anteriormente."; e Regina Beatriz Papa dos
365
Note-se, ainda, a constatação de Fabiana Rodrigues Barletta no
sentido de que "o Código Civil sancionado em 2002 prejudica sobre-
maneira a parte que já sofre a excessiva onerosidade posterior à for-
mação do contrato quando coloca como requisito para a resolução
contratual uma extrema vantagem para a outra parte, sendo mais se-
vera para com o excessivamente onerado do que legislações alieníge-
nas bem mais antigas, como, por exemplo, o Código Civil italiano de
1942 e o Código Civil português de 1966" 94 .
(v) Inexistência de mora ou ausência de culpa do obrigado
Não pode se valer da revisão ou resolução obrigacional aquele que
já se encontrava em mora quando da superveniência do fato responsá-
vel pelo desequilíbrio, pois "não seria justo que o devedor já em mora
se socorresse da revisão do contrato que não era por ele cumprido" 95 .
A inexistência de mora do devedor deve ser aferida no momento
da superveniência do fato que acarretou a alteração das condições eco-
nômicas do contrato e não quando da propositura da ação visando à
revisão ou resolução da obrigação.
Assim, se o devedor já se encontrava em mora no cumprimento da
obrigação quando do acontecimento superveniente que lhe acarretaria
excessiva onerosidade neste cumprimento, não lhe socorrerá a aplica-
ção do instituto.
366
Ademais, se o fato superveniente decorreu justamente da mora
em que se encontrava o contratante, a hipótese enseja a mesma res-
posta, diante da impossibilidade de venire contra factum proprium.
Ao contrário, se a mora sobreveio ao fato, decorrendo dele, é ób-
vio que assiste ao contratante o direito de recorrer ao judiciário bus-
cando a revisão ou resolução contratual 96 .
96 Afirma Sílvio de Salvo Venosa (Direito Civil - Teoria geral das obrigações e
teoria geral dos contratos, volume 11, 3" ed., São Paulo, Atlas, 2003, p. 466) que "Os
fatos causadores da onerosidade devem desvincular-se de uma atividade do devedor.
Portanto, temos de verificar uma ausência de culpa do obrigado. A doutrina e algumas
legislações também mencionam como requisito a ausência de mora do devedor. No
entanto, devemos tomar cuidado com esse aspecto. O devedor somente pode benefi-
ciar-se da revisão, se não estiver em mora no que diga respeito ao cumprimento das
cláusulas contratuais não atingidas pela imprevisão, isto porque o inadimplemento
poderá ter ocorrido justamente pela incidência do fenômeno. Não podemos conside-
rar, nesse caso, em mora o devedor se a falta não lhe é imputável."
367
Enriquecimento sem causa e pagamento indevido
l. Introdução
Neste sentido, Giovanni Ettore Nanni, Enriquecimento sem causa. São Paulo: Sa-
raiva, 2004, p. 166 e ss.
369
2. O enriquecimento sem causa como princípio. Aplicações jurispru-
denciais
2 Entre tantos, pode-se destacar Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito
civil, vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 289; e Orlando Gomes, Obrigações. Rio
de Janeiro: Forense, 1961, p. 322-323.
3 Giovanni Ettore Nanni destaca a invocação do princípio na França, a partir do arrêt
Boudier de 1892, op. cit., p. 57. Na doutrina espanhola, entre outros, v. Luis Diez-Pi-
cazo, Fundamentos de[ derecho civil patrimonial, vol. I, 5. ed. Madrid: Civitas, 1996,
p.89-111.
4 Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil, vol. 2, 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 215.
Pode-se exemplificar com sua aplicação no âmbito do direito administrativo, como
observa Celso Antônio Bandeira de Mello, O princípio do enriquecimento sem causa
em direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, n. 21 O, out-dez. 1997,
p. 25-35. Até mesmo no direito do trabalho observa-se sua aplicação judicial: "CON-
TRATO DE TRABALHO- NULIDADE- ALCANCE DO VÍCIO- DISCIPLI-
NA. A Carta da República não disciplina as conseqüências da nulidade do contrato de
trabalho firmado, valendo notar que a prestação de serviços, sob pena de consagrar-se
o enriquecimento sem causa, é conducente, por si só, à satisfação ao menos dos salários.
AGRAVO- CARÁTER INFUNDADO- MULTA. Surgindo do exame do agravo
a convicção sobre o caráter manifestamente infundado, impõe-se a aplicação da multa
prevista no§ 2° do artigo 557 do Código de Processo Civil" (STF, 2" T., AgR 233108,
Rei. Min. Marco Aurélio, julg. 01.06.1999, publ. DJ 06.08.99- grifas nossos).
5 Teresa Negreiros, Enriquecimento sem causa- aspectos de sua aplicação no Bra-
sil como um princípio geral de direito. Revista da Ordem dos Advogados. Lisboa. v.
55,n.3,de~ 1995,p. 792.
6 É a posição de Agostinho Alvim (Do Enriquecimento sem causa. Revista dos Tri·
bunais, v. 46, n. 259, maio 1957, p. 3-36), seguindo a lição de Georges Ripert em sua
obra clássica, La regle morale dans les obligations civiles, Paris: LGDJ, I 929.
370
teoria da destinação (ou atribuição) jurídica dos bens. 7 Para esta dou-
trina:
7 A teoria da destinação jurídica dos bens é sustentada por Fernando Noronha, para
quem a autonomia do enriquecimento sem causa como fonte de obrigações conduz à
autonomia do seu fundamento, em oposição à invocação genérica da eqüidade (Enri-
quecimento sem causa, Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial,
v. 15, n. 56, abr./jun. 1991, p. 57). Já para Teresa Negreiros, aquela teoria é abrangida
pela eqüidade: "Embora admissíveis as conclusões a que chega esta teoria, não logra
êxito como substitutiva da eqüidade, uma vez que a aludida destinação jurídica dos
bens constitui uma premissa não menos vaga: aliás, não destoa da eqüidade, pois é
precisamente esta que determina seja a a utilização injustificada de bens fundamento
da restituição do proveito daí derivado" (Enriquecimento sem causa, cit., p. 792).
8 Antunes Varela, Direito das obrigações, Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 200. A
teoria da destinação jurídica dos bens, contudo, deve ser relativizada em face da or-
dem constitucional que consagra a função social da propriedade. Isto porque, sob esta
nova ótica, a propriedade funcionalizada implica uma determinação conceitual quali-
tativamente diversa, que envolve a consideração de interesses não-proprietários igual-
mente merecedores de tutela (Gustavo Tepedino, Contornos constitucionais da pro-
priedade privada, Temas de direito civil, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.
303-332).
9 V., por todos, Gustavo Tepedino, As relações de consumo e a nova teoria contra-
tual. Temas de direito civil, cit., p. 217-238, e Teresa Negreiros, Teoria do contrato.
Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
lO Judith Martins-Costa, Comentários ao novo Código Civil, vol. V, tomo I. Rio de
Janeiro: Forense, 2003, p. 45. Vale salientar que a autora dá uma maior abrangência a
este princípio do que a maior parte da doutrina, uma vez que ela situa o equilíbrio
econômico não como um princípio autônomo, mas como um aspecto da boa-fé (Tere-
sa Negreiros, Teoria do contrato, cit., p. 106).
371
vanni Ettore Nanni funda a proibição ao enriquecimento injustificado
na incidência dos preceitos constitucionais sobre as relações obri-
gacionais. 11
Esta tendência a informar o princípio de grande generalidade e
abrangência revela-se especialmente na observação de como a utiliza-
ção jurisprudencial do princípio geral do enriquecimento sem causa
foi recorrente e com os mais variados intuitos.
Em diversas ocasiões o princípio é invocado no âmbito de aplica-
ção de uma norma que atribua ao juiz um maior grau de discricionarie-
dade, como é o caso da redução do valor da cláusula penal (CC, art.
413) 12 e da fixação do quantum indenizatório no dano moral. 13 Em
tais casos, o princípio atua de maneira similar ao da razoabilidade,
impondo ao aplicador uma ponderação que evite qualquer tipo de
excesso.
Em outras decisões, o princípio aparece como ratio decidendi em
situações em que a lei é obscura, ou mesmo para o suprimento de
lacunas. É o exemplo dos bens adquiridos pelo esforço comum nos
casamentos sob o regime da separação legal de bens, que se comuni-
372
cam, de acordo com o STJ, sob pena de acarretar enriquecimento sem
causa. 14
Contudo, a aplicação jurisprudencial do enriquecimento sem cau-
sa não vem se limitando a utilizá-lo supletivamente, como um princí-
pio geral de direito nos termos do art. 4° da LICC. Muitas vezes o
princípio vem sendo invocado pela jurisprudência como uma "válvula
de escape" interna ao sistema para situações nas quais a aplicação ex-
cessivamente rígida da lei levaria a situações explicitamente injustas.
Esta foi, por exemplo, a decisão do STJ no que toca ao cheque em
garantia. De acordo com a L. 7.375/85, o cheque é ordem de paga-
mento à vista, cujas obrigações são autônomas e independentes (art.
13), o que impede a investigação causal. Contudo, uma vez que a
praxe vem admitindo a utilização do cheque em garantia, o STJ enten-
deu que impedir, nestes casos, a invocação da causa acarretaria um
enriquecimento sem causa. 15
Em especial, o princípio vem sendo aplicado para garantir a atuali-
zação monetária dos valores das prestações, por vezes corroborando o
373
princípio contratual do equilíbrio econômico entre as partes. 16 A uti-
lização do princípio do enriquecimento sem causa para uma aplicação
ampla da regra de atualização monetária- hoje objeto do art. 389 do
CC- é objeto de diversas decisões:
374
tada como uma proibição, e que os agricultores não se locupletassem
graças à inflação galopante, o princípio do enriquecimento sem cau-
sa foi aduzido pelo relator, destacando um fundamento moral do
princípio. 17
A esta decisão, seguiu-se uma outra, do Tribunal de Alçada de São
Paulo, que, mais radical, limitava a eficácia de uma lei federal com
base no enriquecimento sem causa. 18 Nela, o princípio é aplicado de
maneira a superar a lei federal, a qual determinava como termo inicial
para a atualização dos valores a data da propositura da ação, enquanto,
de acordo com o princípio, a correção deveria retroagir à data do ven-
cimento da obrigação. Embora a decisão tenha sido mantida no STJ,
os fundamentos foram ligeiramente distintos: o ministro relator de-
fendeu a necessidade de ponderar o aspecto material em detrimento
do formal e assim dispensou a necessidade de uma análise acerca do
caráter normativo do princípio do enriquecimento sem causa. 19
375
No entanto, depois deste precedente, houve outros casos de apli-
cação do princípio do enriquecimento sem causa contra texto expres-
so de lei, no próprio TASP, como a aplicação contra disposição de
plano econômico. Por conta disso, persistiu a necessidade de que os
tribunais superiores debatessem a posição hierárquica do princípio de
vedação ao enriquecimento sem causa em nosso sistema.
A questão chegou ao STF por meio de certas decisões de relatoria do
Ministro Marco Aurélio Mello. Em uma primeira decisão, em que se dis-
cute também o papel do magistrado na aplicação do direito, o princípio
foi invocado em nome de uma justa indenização e contra a coisa julga-
da. 20 Mas a atribuição expressa de um caráter de princípio constitucional
implícito veio em uma decisão posterior, em que se afirmou:
ao valor substancial. Nesse quadrante, não se deve conferir a títulos de dívida líquida
e certa (Lei n. 6.899/81) significado restrito eminentemente formal, de documento
que enuncie a dívida, revestido das formalidades legais. Compreende qualquer relação
jurídica, que defina de modo constatado pelo devedor, a existência e o quantum da
dívida. Nesse caso, o devedor não é tomado de surpresa e sabe da obrigação. Não a
satisfazendo, evidencia propósito de resistir a pretensão do credor. O vencimento do
servidor é exemplo. Definido em lei, com data certa de pagamento, representa relação
conhecida do estado. O atraso impõe a correção monetária" (STJ, 6' T., REsp 27.027,
rei. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, julg. 22.09.1992, publ. DJ 19.10.1992, RSTJ
37/582).
20 "OFÍCIO JUDICANTE- POSTURA DO MAGISTRADO. Ao examinar a lide,
o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação
humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensá-
vel apoio, formalizá-la. DESAPROPRIAÇÃO- JUSTA INDENIZAÇÃO- COR-
REÇÃO MO:-.JETÁRIA- TERMO INICIAL. O título executivo judicial referente à
demanda de cobrança, em face da chamada desapropriação indireta, assenta-se em
provimento que assegura a justa indenização. Impossível é olvidá-lo mediante o em-
préstimo de valor maior a trecho que encerre, como termo inicial da correção mone-
tária, a data do trânsito em julgado da sentença de liquidação. A passagem dos anos
sem que a decisão se tornasse definitiva acabaria por esvaziar o conteúdo econômico
do que sentenciado, conduzindo a verdadeiro enriquecimento sem causa da entidade
desapropriante. O choque entre as duas partes do provimento resolve-se via homena-
gem ao preceito inserto no artigo 153, par. 22, da Constituição Federal de 1969, no
que minimiza o direito de propriedade mas garante, na desapropriação, a justa indeni-
zação, a que não equivale conclusão sobre o direito a algumas centenas de cruzeiros
pela perda de quase uma centena de alqueires produtivos" (STF, 2' T., RE 111787,
Rei. Min. Aldir Passarinho. Rei. p. acórdão Min. Marco Aurélio, julg. 16.04.1991,
publ. DJ 13.09.91, RTJ 136-03/1292).
376
NÃO-CUMULATIVIDADE . Homenageia o princípio da não-cumu-
latividade decisão no sentido de considerar-se os créditos pelo valor
devidamente corrigido, isso em face da passagem do tempo até a
vinda a balha de definição da legitimidade respectiva, por ato da Fa-
zenda do Estado. Descabe falar, na espécie, de transgressão ao princí-
pio da legalidade. O alcance respectivo há de ser perquirido conside-
rada a garantia constitucional implícita vedadora do enriquecimento
sem causa" (STF, 2a T., Ag. lnst. 182458, Rei. Min. Marco Aurélio,
julg. 04.03.1997, publ. DJ 16.05.97- grifos nossos).
377
3. Enriquecimento sem causa como instituto
Como se pode observar, a utilização do enriquecimento sem causa
como princípio é antiga, vasta e, por vezes, pouco criteriosa. No en-
tanto, a face mais concreta do enriquecimento sem causa é sua quali-
ficação como fonte de uma obrigação de restituir. Ou seja, em uma
situação em que ocorre o locupletamento de uma pessoa às custas de
outrem, o enriquecimento sem causa geraria a obrigação de restituir
àquela pessoa o que seria seu por direito. Esta idéia finca suas raízes
históricas nas condictiones do direito romano, que eram "meios técni-
cos de aplicação da eqüidade a situações casuisticamente definidas,
em que o deslocamento patrimonial se revelava carecedor de uma
causa que o legitimasse". 23
Neste sentido, o enriquecimento sem causa costuma ser qualifica-
do como uma fonte autônoma de obrigações, figurando ao lado da
responsabilidade civil (por culpa ou por risco) e das obrigações de
origem negociai (contrato e negócios unilaterais). 24
A distinção com a responsabilidade civil é marcante. De um lado,
a responsabilidade civil visa, com base no princípio do neminem laede-
re, a reparar um dano sofrido pela vítima em razão de um ato ilícito
(culposo) ou em virtude de uma atividade de risco (responsabilidade
objetiva). Ela confere uma proteção dinâmica ao patrimônio e se volta
para o ressarcimento pleno da vítima, atribuindo uma obrigação de
indenizar.
Já o enriquecimento sem causa é um instrumento de proteção
estática do patrimônio; 25 posto menos intenso, abarca casos que não
378
seriam cobertos pela responsabilidade civil, uma vez que não há ilici-
tude (stricto sensu) ou dano. 26 A reparação do dano sofrido, quando
ocorre é sempre indireta, pois o que se busca é remover a vantagem
auferida por um para transferi-la a quem ela era de direito. Como
destaca Antunes Varela, "o verdadeiro objetivo da lei, numa interpre-
tação racional dos seus comandos, não é o de reparar o dano sofrido
pelo proprietário sacrificado, mas o de forçar o beneficiado a restituir
aquilo com que ele fica locupletado à custa do outro". 27
Até o vigente Código Civil, não havia uma previsão legislativa geral
do enriquecimento sem causa como fonte de uma obrigação de resti-
tuir, mas apenas a regulação de situações específicas. 28 A consagração
do enriquecimento sem causa como um instituto supriu uma lacuna
existente no nosso sistema, que pode ser observada na comparação
com ordenamentos estrangeiros.
No sistema alemão, a regra geral de abstração dos negócios jurídi-
cos restringe a aplicação prática da teoria das nulidades. Desse modo,
uma série de efeitos claramente injustos que poderiam ser supridos
por uma alegação de falta de causa, ou causa injusta, permaneceriam
intocáveis em virtude da abstração dos negócios. A demanda por um
instrumento capaz de atingir a injustiça de tais situações foi respondi-
da exatamente pela previsão legislativa da possibilidade de acionar
aquele que se enriqueceu às custas alheias, por meio da chamada actio
de in rem verso- a ação por enriquecimento sem causa. 29
contrapõe desde logo se tratar de uma distorção grave, a começar pela questionável
premissa - a existência de uma função sancionatória na responsabilidade civil (ibid.,
p. 28-33).
26 Fernando Noronha, op. cit., p. 57 e ss.
27 Antunes Varela, op. cit., p. 188. Sobre a distinção, v. também Diogo de Leite
Campos, Enriquecimento sem causa, responsabilidade civil e nulidade. Revista dos
Tribunais, v. 71, n. 560, jun. 1982, p. 259-266.
28 Poderíamos exemplificar com o art. 48 do Decreto n° 2.044/1908, que determina
que o sacador ou aceitante da letra de câmbio e o emitente da nota promissória resti-
tuam com juros o valor do enriquecimento ao portador do título, independente da
exoneração da responsabilidade cambial. Não se inclui como exemplo o enriqueci-
mento ilícito que configura improbidade administrativa (art. 6° da Lei n° 8.429/92).
Os casos de enriquecimento sem causa se situam em um âmbito de reprovabilidade
perante os princípios do sistema, mas não de ilicitude stricto sensu. A ilicitude conduz,
em regra, à responsabilidade, seja ela civil, administrativa ou penal. A distinção já era
traçada com clareza por Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t. 26. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1959, p. 159 e ss.
29 Eduardo Takemi Kataoka, op. cit., p. 103-104.
379
Já no sistema francês ocorre o oposto. A causa figura expressa-
mente como requisito de validade dos negócios jurídicos, o que per-
mite que a sua falta acarrete a nulidade do próprio negócio. 30 O enri-
quecimento sem causa permanece lá apenas como princípio geral, de-
senvolvido em doutrina e jurisprudência, 31 incorporado em alguns dis-
positivos específicos. O recurso à teoria das nulidades supre, no mais
das vezes, a ausência do enriquecimento sem causa.
No Brasil, o Código Civil de 1916 seguiu o modelo alemão e não
elencou a causa como requisito de validade dos negócios. 32 No entan-
to, também não trazia previsão expressa do enriquecimento sem cau-
sa. Clóvis Bevilaqua justificava a omissão com base em uma impossibi-
lidade de sistematizar o princípio. 33 A opção, contudo, foi objeto de
grande controvérsia. 34
380
fu objeções proliferaram e a utilidade da consagração legislativa
do enriquecimento sem causa foi tornando-se quase pacífica em dou-
trina. Como resultado, o anteprojeto de código de obrigações de 1941
e os projetos de 1965 e de 1975 trouxeram o instituto em seu bojo e,
finalmente, a vedação geral ao enriquecimento sem causa ganhou sede
legislativa no Código Civil, a partir da cláusula geral no caput do seu
artigo 884:
4. Modalidades
35 Teresa Negreiros, Enriquecimento sem causa, cit., p. 84Z; e Eduardo Takemi Ka-
taoka, op. cit., p. 96.
381
Com base em outro critério classificatório- o causador do enri-
quecimento - , podemos distinguir três modalidades de enriqueci-
mento sem causa. Primeiro, o enriquecimento produzido em virtude
de ato do enriquecido. São os casos mais freqüentes, como o uso da
imagem alheia, a colocação de outdoor de propaganda em terreno
alheio e a obtenção de prêmio por meio da utilização de cavalo alheio
em corrida, todos sem autorização do proprietário, ou ainda o consu-
mo de bens alheios que lhe foram entregues por engano. Nestes casos,
a regra é a restituição.
Pode ainda o enriquecimento decorrer de ato do próprio "empo-
brecido", como no caso do pagamento indevido, ou da oficina que
efetua mais reparos do que o combinado. Nestes casos, a configuração
efetiva de um enriquecimento sem causa, na forma da lei, é excepcio-
nal. A obrigação de restituir existirá, no mais das vezes, de acordo com
a boa-fé daquele que causou o enriquecimento, conforme previsão
específica.
Enfim, o enriquecimento pode ser originado por ato de outrem ou
por fato natural, como nos casos de avulsão, ou de bovinos que pastam
em propriedade alheia.
Todos estes exemplos são de casos de enriquecimento diretoY
Mas é possível cogitar também do enriquecimento indireto, que ocorre
quando há pessoa interposta entre o enriquecido e aquele às custas de
quem houve o enriquecimento. Nestes casos predomina o entendi-
mento de que não deve ocorrer restituição, salvo previsão legal espe-
cífica, como quem aufere gratuitamente produto de crime (CC, art.
932, V), ou quem planta em terreno alheio com sementes de terceiro
(CC, art. 1.257). A situação do enriquecimento indireto causa dificul-
dades, mas prevalece o entendimento de que, em regra, não cabe a
restituição. 38 Como indica Fernando Noronha, nestes casos é praxe a
lei exigir, para impor a restituição, a gratuidade da segunda transmis-
são e, por vezes, como no sistema francês, a insolvência da pessoa
interposta. 39
382
5. Requisitos
5.1. Enriquecimento
40 É a posição de Giovanni Ettore Nanni que sustenta ser tal corrente mais consentâ-
nea com a tendência de despatrimonialização do direito civil (op. cit., p. 230 e ss.).
41 É o caso de Agostinho Alvim, op. cit.; p. 57. Serpa Lopes também se refere a uma
vantagem moral apreciável em dinheiro (op. cit., p. 71).
42 Teresa Negreiros, Enriquecimento sem causa, cit., p. 794 e ss.
43 Francisco Manuel Pereira Coelho, op. cit., p. 26.
44 Francisco Manuel Pereira Coelho, op. cit., p. 26.
45 Como indica Teresa Negreiros, a posição é razoavelmente pacífica, defendida, por
exemplo, por Mario Júlio de Almeida Costa, Antunes V areia, Serpa Lopes, Orlando
Gomes e Vaz Serra (Enriquecimento sem causa, cit., p. 797). Oiogo Leite de Campos,
contudo, pode aproximar-se mais da concepção real do enriquecimento com sua visão
peculiar de que o enriquecimento é a utilidade que o beneficiado auferiu com o inde-
vido deslocamento patrimonial (op. cit., p. 261 ).
383
no pagamento de imposto pelo gestor, ou ainda a poupança de um
gasto, como no pagamento de alimentos para outrem, ou o enterro
realizado pelo gestor de negócios. 46
A distinção é muito pertinente, como se depreende ao examinar
casos concretos. No caso da utilização de imóvel alheio, por exemplo.
Pensemos em alguém que desfrute da casa de veraneio de um amigo,
supondo, de boa fé, ter-lhe sido emprestada, quando, na verdade, o
amigo lhe entregara as chaves apenas para que fizesse o favor de che-
car se tudo estava em ordem na casa. A partir do mal entendido, o
sujeito passa a desfrutar do imóvel alheio, que é de qualidade conside-
ravelmente superior à da casa de veraneio que ele próprio - de pou-
cas posses- alugaria, não fosse o empréstimo putativo.
Neste caso, o enriquecimento real auferido foi o valor de mercado
do aluguel do imóvel utilizado, avaliado objetivamente. Contudo, o
enriquecimento patrimonial, neste caso menor, foi a despesa que lhe
foi poupada, a despesa que ele teria não fosse o ato causador do enri-
quecimento, ou seja, o aluguel da casa que ele hipoteticamente aluga-
ria. É a diferença entre o que ele realmente despendeu- nada- e o
que ele despenderia hipoteticamente - a despesa com a locação de
uma outra casa, dentro das suas possibilidades. Isto porque a situação
hipotética, no caso, é aquela que ocorreria se não existisse o fato que
deu origem ao locuplctamento.
Usando outro exemplo, vejamos o caso daquele que presta ali-
mentos a filho alheio acreditando ser seu. O enriquecimento real seria
simplesmente o valor da pensão alimentícia prestada. Por outro lado,
o enriquecimento patrimonial auferido seria o valor da pensão alimen-
tícia que o pai verdadeiro da criança faria. Ou seja, considerando que
o valor da pensão é fixado pelo binômio necessidade-possibilidade, se
as possibilidades do verdadeiro pai forem maiores, o enriquecimento
patrimonial será maior do que o real. De outro lado, as possibilidades
do verdadeiro pai podem ser menores, quando o enriquecimento pa-
trimonial será de menor monta do que o real. 47
384
No entanto, embora esteja definido que o enriquecimen to que
importa para a definição do valor da obrigação de restituir é o enrique-
cimento patrimonial, isto não significa dizer que o valor da obrigação
de restituir seja sempre o do enriquecimen to patrimonial. Trata-se de
um parâmetro necessário, mas insuficiente. Como veremos, de acor-
do com a chamada teoria do duplo limite, o quantum da actio de in rem
verso é guiado por dois parâmetros. Melhor dizendo, ele será, entre
dois critérios, o menor. São estes critérios o enriquecimen to patrimo-
nial, de um lado, e, de outro, o "empobrecime nto" real.
60). A posição de Antunes Vareta parece mais condizente com a sistemática do enri-
quecimento sem causa, pois a boa fé do enriquecido pode ser critério para minorar o
objeto da restituição em casos específicos previstos em lei, mas não serve para exone-
rá-lo da obrigação de restituir em geral. Novamente, o ato que acarreta o enriqueci-
mento não requer a má-fé do enriquecido; não se confunde com o ato ilícito que
justifica a responsabilidade subjetiva.
48 Diogo de Leite Campos, op. cit., p. 262.
49 O exemplo é de Antunes V areia, op. cit., p. 199.
385
ção efetiva do empobrecido e a situação hipotética. Destaque-se, no-
vamente, que a situação hipotética aqui é aquela na qual não ocorrera
o fato que deu origem ao enriquecimen to (c ao "empobrecime nto").
Já o empobrecime nto real vincula-se às condições objetivas da
vantagem auferida pelo enriquecido, ou melhor, neste caso, às condi-
ções objetivas da vantagem não fruída pelo "empobrecido ". Abstrai,
portanto, qualquer especulação sobre a aplicação especial que o lesado
teria dado ao bem, ou a relação com seus outros bens. 50 O empobreci-
mento patrimonial será maior que o real, por exemplo, se o lesado
revenderia a coisa com lucro. Ao contrário, o empobrecime nto real
será maior se o bem se deterioraria ou seria vendido com prejuízo.
O que é requisito do enriquecimen to sem causa - e que define o
outro limite da obrigação de restituir- é o "empobrecime nto" real, e
não o patrimonial. Como foi observado, o patrimonial muitas vezes
sequer ocorrerá.
Assim, mesmo os autores que se permitem usar o termo "empo-
brecimento" ressaltam que ele não possui sua acepção comum (patri-
monial), mas aquela acepção reaiY A questão aparenta ser, portanto,
de cunho puramente terminológico. 52
Tendo estes dois critérios em vista, é possível fixar o quantum da
obrigação de restituir na actio de in rem verso. Segundo a teoria do
duplo limite, o valor da restituição será, entre o enriquecimen to patri-
monial e o "empobrecime nto" real, o de menor monta. Ou seja, quan-
do houver diferença, o valor não pode ser maior do que qualquer um
dos dois critérios.
Isto porque, como foi exposto, o instituto do enriquecimen to sem
causa não busca reparar o empobrecimen to, indenizando a vítima de
um dano, como na responsabilida de civil, nem restituir as partes ao
estado anterior, como na decretação de uma nulidade. A pretensão da
386
actio de in rem verso é comparativamente mais fraca, pois tem em
53
vista apenas entregar uma vantagem a quem ela de direito pertencia.
Nos casos em que o enriquecimento ocorre pela aquisição de um
bem, a solução sequer demanda a aplicação do duplo limite: basta a
restituição do bem, como vem expresso no parágrafo único do art. 884
do Código Civil:
387
ciado teria que pagar para desfrutar do bem ou direito, o produto
auferido com a venda ou aluguel do bem. São irrelevantes, para averi-
guar o "empobrecimento" , considerações hipotéticas como se o bene-
ficiado teria, de fato, utilizado o bem. No caso do genealogista que
informa ser o enriquecido herdeiro, cobram-se os honorários de pra-
xe. No caso de imagem usada em publicidade sem autorização, cobra-
se o cachê.
Há casos mais complexos, em que o empobrecido tem mesmo um
lucro patrimonial. Seria o exemplo daquele que constrói um dique que
beneficia a ele e ao vizinho, ou o co-proprietário que contrata um corre-
tor sem autorização do outro, mas com isso garante maior preço para a
venda do prédio. Agostinho Alvim entende que, em tais casos, cabe a
ação para pedir a restituição do enriquecimento, em proporção da cota-
parte. 56 Já Fernando Noronha acha que há uma causa justificadora do
enriquecimento alheio, que é o interesse do próprio "empobrecido" .57
Reitere-se, no entanto, que a satisfação da vítima, objetivo da res-
ponsabilidade civil, não é tão pertinente para a configuração do enri-
quecimento sem causa, o qual se volta para a vantagem injustamente
atribuída. Parece, segundo este ponto de vista, que os casos apresen-
tados justificariam a restituição do enriquecimento, uma vez que, in-
dependente do lucro do "empobrecido", apresentaram sim ao "enri-
quecido" uma vantagem às custas de outrem.
Alguns autores falam ainda da necessidade de um nexo de causali-
dade entre o "empobrecimento " e o enriquecimento. 58 Contudo,
como explica Agostinho Alvim 59 , não há uma relação de causa e efeito
entre enriquecimento e empobrecimento; o que deve haver é uma
interdependência em virtude de um fato originário em comum, que
causou ambos- o que se tem chamado de indivisibilidade de origem.
388
tica reside na conceituação do que seja a causa, ou melhor, a ausência
de causa.
A causa já é, em si, um conceito jurídico polissêmico. No sistema
francês, trata-se da causa da obrigação, ligada à contra-prestação ou ao
animus donandi, e nesse sentido vem carregada de subjetividade, ra-
zão pela qual costuma ser aproximada do motivo determinante para a
celebração do negócio. 60 Já no sistema italiano, a causa traz uma acep-
ção objetiva, como causa do contrato, que significa a sua função eco-
nômico-social61 ou síntese dos seus efeitos essenciais 62 , e tem um pa-
pel determinante na configuração do equilíbrio econômico e na quali-
ficação do negócio. 63 Já no sistema alemão, em que a causa não figura
como requisito de validade do negócio jurídico, encontram-se refe-
rências à causa de atribuição patrimonial, ou à causa-fato jurídico
(causa efficiens), em que a causa se equipara ao fato jurídico que dá
origem à obrigação. 64
Mas boa parte da doutrina entende que a ausência de causa que
justifica a actio de in rem verso é ainda um tipo peculiar. Tratar-se-ia
de uma fórmula geral de reprovabilidade com relação aos princípios
do sistema 65 , um conceito que traduz a contrariedade do enriqueci-
mento perante o ordenamento como um todo 66 . É a posição, por
exemplo, de Mario Júlio de Almeida Costa:
389
justifique a deslocação patrimonial; sempre que aproveita, em suma,
a pessoa diversa daquela a quem, segundo a lei, deveria beneficiar"Y
67 Op. cit.; p. 431. Prossegue o autor, afirmando que o dispositivo do Código Civil
português: "enuncia um simples princípio geral que, pela amplitude e elasticidade dos
seus termos, permite à jurisprudência contemplar adequadamente, sob o instituto do
enriquecimento injustificado, muitos casos práticos que o legislador não poderia pre-
ver de modo expresso" (ibid., p. 433-434}.
68 Pietro Perlingieri, Manuale di diritto civile. Na poli: ESI, 2000, p. 237.
69 Antunes Varela, op. cit., p. 196.
70 Op. cit.; p. 69. Agostinho Alvim trata inicialmente de uma outra concepção que
assimila a causa à contraprestação, no sentido da doutrina francesa mais clássica: "Cau-
sa, portanto, é aquilo que pode explicar o enriquecimento; é a contrapartida. Se não
há causa, ou se a causa não é justa, o enriquecimento será condenado" (op. cit., p. 61 ).
Contudo, ao cogitar da injustiça da causa, acaba por remeter à concepção já exposta:
"A justa causa pode ter apoio em lei que autorize o enriquecimento; ou num contra-
to ... " (ibid.).
71 Agostinho Alvim, op. cit., p. 55.
390
zero Krn, no valor de R$ 33 mil, em um sorteio promovido por um
hipermercado em razão de cupom preenchido em virtude das com-
pras feitas a mando de sua patroa e pagas com o cartão de crédito
dela. 72 A juíza Maria Leonor Baptista Jourdan, da 29 3 Vara Cível do
Rio de Janeiro, ressaltou que consumidor é quem adquire o produto
como destinatário final e que, pela definição legal, a empregada que
faz as compras a mando do empregador não é o consumidor. Mas que,
no caso, a sorte foi dela, pois as urnas, que reuniram mais de cem mil
cupons, continham 26 preenchidos com o nome da empregada, qua-
tro a mais do que os 22 a que lhe deram direito as compras realizadas
com o cartão da patroa.
A ausência de causa capaz de justificar a restituição do enriqueci-
mento também pode ser superveniente. São exemplos o bem desapa-
recido que reaparece (seguro de objeto roubado), pagamento anteci-
pado em um contrato que se extingue antes do vencimento da presta-
ção, o resultado futuro previsto que não ocorreu, enfim, a causa que
deixou de existir, como determina o art. 885 do Código Civil. 73
Entre as situações em que a lei figura como causa do enriqueci-
mento estão a prescrição e a decadência. O enfraquecimento da pre-
tensão em virtude do fim do prazo prescricional com a invocação da
exceção e a extinção do direito potestativo pelo decurso do prazo
decadencial têm o condão de justificar o enriquecimento do benefi-
ciado, em detrimento daquele que se quedou inerte durante o prazo
que a lei lhe conferia para exercer o seu direito.
391
O requisito, contudo, é objeto de controvérsia doutrinária, e tam-
pouco resta pacífico no direito comparado, pois sistemas como o ale-
mão e o grego não a consagram.
A idéia de uma subsidiariedade do instituto tem origem no siste-
ma francês que, como foi visto, já conta com a ausência de causa como
fundamento para a nulidade do negócio. 75 Em virtude disso, temia-se
que a actio de in rem verso, sugerida somente em doutrina, viesse a
suplantar a aplicação das outras ações. 76
Junte-se a isso, também, a possibilidade de que a ação pudesse
viabilizar o afastamento e a fraude de dispositivos imperativos ou be-
neficiar aquele que perde uma ação por erro ou negligência. Neste
sentido, Giovanni Ettore Nanni busca restringir o alcance desta subsi-
diariedade, destacando que esta deve ser entendida não abstrata ou
formalmente, mas tendo em vista o caso concreto.l 7
De fato, a suposta subsidiariedade da aplicação do instituto está
diretamente ligada à dificuldade de precisar o que se deva compreen-
der por ausência de causa. Uma vez caracterizada a causa como título
justificativo do enriquecimento, a afirmação da subsidiariedade torna-
se menos relevante, pois a existência de outra ação possível, no mais
das vezes, caracterizará título jurídico capaz de afastar a aplicação do
enriquecimento sem causa. Contudo, em nossa doutrina sempre ten-
deu a prevalecer a subsidiariedade, agora corroborada pela letra do
Código. 78 Neste sentido, afirma Marcelo Trindade:
392
" [ ... ] com a regra da subsidiariedade visa-se à preservação da discipli-
na específica de um grande número de situações para as quais a lei
adotará soluções múltiplas, estabelecendo requisitos para o cabimen-
to da ação, exceções a seu cabimento ou limitações quantitativas da
restituição, com isto impedindo ou limitando a reversão do enrique-
cimento". 79
Civil de 2002. Revista Trimestral de Direito Civil, n. 18, abr./jun. 2004, p. 242). Já
na doutrina espanhola, Luis Diez-Picazo afirma: "En términos generales, debemos
sostener que no existe en nuestro Derecho ninguna razón de fondo que determine la
subsidiariedad de la acción de enriquecimiento y que ésta sea compatible con otras
acciones que puedan coincidir en los resultados que con ella se pretende obtener" (op.
cit., p. 105).
79 Op. cit., p. 260.
80 É o que sustenta Mario Júlio de Almeida Costa, op. cit., p. 44 7.
81 Apud Agostinho Alvim, op. cit., p. 53.
393
Um primeiro exemplo seria o pagamento indevidamente efetuado a
incapaz, no qual só se pode reclamar o valor mediante a prova de que este
de fato reverteu em proveito dele (CC, art. 181). Outro exemplo, já
bastante mencionado, é o do possuidor que realiza benfeitorias no bem
do proprietário ao qual se aplica um sistema diferenciado conforme seu
estado: se de boa-fé, recebe indenização das benfeitorias necessárias e
úteis, mas, se estiver de má-fé, só lhe são indenizadas as necessárias e o
proprietário pode optar pelo seu valor atual ou o seu custo (CC, arts.
1.219, 1.220 e 1.222). A mesma distinção aplica-se no que toca aos fru-
tos: se de boa-fé, o possuidor restituirá só os frutos pendentes e os colhi-
dos por antecipação, se de má-fé, indenizará todos, inclusive os que por
culpa sua deixou de colher (CC, arts. 1.214 e 1.216).
Outro exemplo a ser trazido, mas que não merece ser detalhado,
é o regime da avulsão como modo de aquisição da propriedade imóvel.
Ela exemplifica claramente um modo de enriquecimento sem causa
em virtude de fato natural: ocorre quando uma porção de terra se
destaca de um prédio e se junta a outro (CC, art. 1.251 ). Mecanismo
semelhante encontra-se na aquisição de propriedade móvel por espe-
cificação (CC, art. 1.271), assim como na confusão, comissão e adjun-
ção (CC, arts. 1.272 a 1.274).
O art. 932, V, do Código Civil, embora situado entre as regras da
responsabilidade civil, traz um exemplo de enriquecimento sem causa
indireto, uma vez que há interposta pessoa entre o enriquecido e o
empobrecido. É o caso daquele que participou gratuitamente de pro-
duto de crime. Enquanto o criminoso responde pelo ilícito, o ordena-
mento abre uma exceção e permite ao prejudicado interpelar direta-
mente o terceiro enriquecido, tendo em vista a gratuidade da vanta-
gem que ele auferiu.
Enfim, a gestão de negócios (CC, arts. 861 e ss.) configura propria-
mente espécie do gênero enriquecimento sem causa. O gestor que, de
boa fé, proceda a uma administração útil, que redunde em proveito para
o dono do negócio, ou se proponha a acudir prejuízos iminentes deverá
ser ressarcido pelo proprietário (CC, arts. 869 e 870).
Um último exemplo, que merece destaque especial, é o pagamen-
to indevido.
7. Pagamento Indevido
394
meio do pagamento indevido, por vezes mesmo confundindo os dois
institutos. 82 No entanto, o pagamento indevido constitui um caso es-
pecífico de aplicação do princípio geral do enriquecimento sem causa.
Ele configura a obrigação de restituir aquilo que se recebeu a título de
pagamento de uma dívida que não existia ou deixou de existir (indé-
bito objetivo) ou que cabia a outro credor (indébito subjetivo).
Embora o artigo 876 do CC determine a obrigação de restituir o
que foi indevidamente recebido como regra geral, os pressupostos
para a sua configuração podem ser ligeiramente distintos. No caso de
um pagamento que seja voluntário, além da inexistência de dívida,
demanda-se, de acordo com o art. 877, a prova do erro.
A justificativa de uma tal exigência estaria no fato de que, sem ela,
tratar-se-ia de uma liberalidade. 83 Entretanto, a necessidade de prova
do erro, vem sendo mitigada jurisprudencialmen te, podendo mesmo
ser abarcada pelo requisito de que o pagamento seja voluntário.
82 Era o caso de Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, vol. 4. São
Paulo: Saraiva, 1960, pp. 293 e ss.
83 Antunes V areia, op. cit., p. 182.
84 "Enriquecimento sem causa", cit., p. 817. Sílvio de Salvo Venosa também destaca
que "a noção de erro sob enfoque, portanto, afasta-se do conteúdo desse vício de
vontade na teoria geral dos negócios jurídicos. [... ] No pagamento indevido, o erro
situa-se no plano da execução de uma prestação, em que, ao lado do erro do solvens,
deve ser examinada a posição do accipiens, que, beneficiado pelo erro do primeiro,
torna-se responsável por uma repetição com perdas e danos, conforme o caso" (op.
cit., p. 227).
395
de, dispensando a prova do erro. No caso de relação de consumo, se o
engano cometido pela cobradora não for justificável, o consumidor
tem direito à repetição em dobro (COC, art. 42, parágrafo único).
Tratando-se de tributo, a simples ameaça da sanção já quebra a volun-
tariedade. A jurisprudência vem admitindo até que a dúvida acerca da
existência da dívida - que deveria justificar tão-somente a consigna-
ção do valor- equivale ao erro em certas situações. 85
Também será indevido o pagamento quando não cumprida a con-
dição a que a eficácia da obrigação se encontrava subordinada. A omis-
são de uma referência ao termo no dispositivo, embora objeto de dis-
cussão, é intencional: o legislador o excluiu da disciplina do pagamen-
to indevido porque o termo suspende o exercício, mas não a aquisição
do direito (CC, art. 131). Desse modo, o pagamento antes do venci-
mento não gera obrigação de restituir, pois presume tratar-se de uma
renúncia ao benefício do prazo. 86
O Código regula ainda as hipóteses específicas em que o pagamen-
to indevido for a transferência de um imóvel e quando se tratar de
uma obrigação de fazer. Neste último caso, o art. 881 tornou expressa
a regra de que a prestação de fazer, insuscetível de ser restituída, im-
põe a obrigação de indenizar na medida do lucro obtido.
Já no primeiro caso, tratado no art. 879, quando o accipiens alie-
nar o imóvel a terceiro, a extensão da obrigação de restituir dependerá
da boa ou má-fé do alienante e do adquirente, c se a alienação ocorreu
a título gratuito ou oneroso. Na alienação de boa-fé e a título oneroso,
o alienante responderá pela quantia recebida pelo imóvel; mas, se
396
houve má-fé de sua parte- se ele sabia ou deveria saber que o paga-
mento fora indevido - , a obrigação de restituir transforma-se em
verdadeira obrigação de indenizar, e ele deverá responder por perdas
e danos também. Se, contudo, a alienação ocorreu a título gratuito ou
houve má fé do adquirente, o solvens prejudicado não estará limitado
ao ressarcimento: prevalece o direito de seqüela e ele poderá interpe-
lar o terceiro adquirente para obter o próprio imóvel, mediante reivin-
dicação, configurando caso específico da já examinada hipótese de
enriquecimento indireto.
Por vezes, mesmo aparentemente presentes os requisitos do paga-
mento indevido, não se configura a obrigação de restituir o indébito.
São casos, expressamente previstos, em que se pode vislumbrar uma
outra causa que justifica o aparente enriquecimento do accipiens. O
primeiro seria daquele que, recebendo o pagamento por dívida verda-
deira, abre mão dos mecanismos para exigi-la judicialmente, seja inu-
tilizando o título, deixando ocorrer a prescrição, seja abrindo mão das
garantias. Como afirma Caio Mário da Silva Pereira:
Por conta disso, o legislador optou, no art. 880, por eximir o acci-
piens de restituir o que foi pago, mas franqueou ao solvens a possibili-
dade de acionar, então, o devedor que encontrava-se efetivamente
obrigado pela dívida indevidamente quitada. 88
Outro caso em que não se configura a obrigação de restituir é o das
obrigações judicialmente inexigíveis, tradicionalmente classificadas
por obrigações naturais. Nestes casos, embora o ordenamento não au-
torize a cobrança da prestação, também não se compraz com, sendo
ela paga, seja exigida de volta (CC, art. 882).
397
Enfim, também não terá direito à restituição aquele que paga com
finalidade ilícita ou imoral. Neste caso, a novidade trazida pelo art.
883, em seu parágrafo, foi a reversão do valor pago em favor de esta-
belecimento de beneficência, a critério do juiz. 89
89 A novidade, contudo, foi objeto de críticas. Caio Mário da Silva Pereira afirma:
"Ao aditar ao preceito do artigo 882 o que consta do parágrafo único, o Código incide
numa falha injustificável. Movimentada a justiça, para a restituição que alguém entre-
gou para obter fim ilícito, imoral ou proibido em lei, o certo é que o juiz encerre de
plano a ação, recusando-se a discutir a pretensão ob turpem causam. E é jurídico que
se recuse, como que dizendo: não entro no campo da iliceidade. Com o parágrafo,
ainda que traga o propósito primitivo, vai a lei admitir a discussão, a todos os títulos
imprópria no procedimento judicial" (op. cit., p. 302).
398
Pagamento indireto ou especial
I. Introdução
2. Pagamento em consignação
399
nal. E mais: pagando no prazo, não tem que sofrer os ônus correspon-
dentes a sua demora (art. 389 1, Código Civil). Mas pode ser que o
credor, no dia do vencimento, não queira ou não possa receber, injus-
tificadamente, ou ainda, não queira dar quitação, não seja conhecido,
etc 2 . Para todas estas situações, há previsão do chamado pagamento
em consignação 3 , o primeiro modelo apresentado no Código Civil, do
que a doutrina convencionou nomear de pagamento indireto ou espe-
cial4 e definido como sendo o modo de pagamento indireto consistente
no depósito judicial ou em estabelecimento bancário 5, da coisa devida,
nos casos e forma legais (art. 334, Código Civil).
Há, desta forma, nas palavras de Judith Martins-Costa, para o de-
vedor, "um direito subjetivo à liberação", justificado pela "compreen-
são da relação obrigacional como relação de cooperação" 6 . Portanto,
fundamenta-se o instituto sob análise na ausência da devida coopera-
ção por parte do credor_?
"Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais
juros e atualização monetária segundo os índices oficiais regularmente estabelecidos, e
honorários de advogado."
2 OLIVEIRA, J. M. Leoni Lopes. Novo Código Civil Anotado: arts. 233 a 420. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 153.
3 Neste mesmo sentido, Adroaldo Furtado Fabrício diz que o devedor tem direito a
pagar e não mera faculdade, justificando-se esta possibilidade de consignação aberta
pelo legislador FABRICIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo
Civil, v. 8, t. III (arts. 890 a 945). Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 39/40.
4 Note-se que o Legislador não emprega esta nomenclatura.
5 "Estabelecimento bancários oficiais são todos os que têm participação da União ou
do Estado em sua composição (sociedades de economia mista e empresas públicas,
como Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, etc.)" SANTOS, Ernani Fidélis.
Manual de Direito Processual Civil. v. 3. 9 ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 2003, p.
8.
6 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil: Do direito das
obrigações. Do adimplemento e da extinção das obrigações. v. 5. Forense: Rio de Janei-
ro, 2003, p. 355.
7 lbid., p. 356. Ver, nas páginas 20 a 30, a reflexão da autora sohre esta colocação.
400
a natureza mista do instituto 8, sendo ao mesmo tempo, pertinente ao
direito civil, quando à sua substância, e ao direito processual civil,
quanto à sua forma, atuando as normas processuais em complementa-
ção das normas materiais.
No mesmo sentido, sublinha Caio Mário da Silva Pereira:
8 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, v. 2, I7. ed. rev. atual.
Saraiva: São Paulo, 2003, p. 243: "Quanto à sua natureza jurídica, autores há, como
Planiol, que entendem tratar-se de um instituto processual. Na verdade, porém, pos-
sui natureza jurídica mista ou híbrida, por ser, concomitanteme nte, um instituto de
direito civil (CC, arts. 334 a 345) e de direito processual civil (CPC, arts. 890 a 900,
com redação dada pela Lei n. 8.95I/94). O elemento processual complementao con-
tingente substantivo, as normas adjetivas estão estreitamente ligadas às materiais, pois
o direito civil disciplina o poder liberatório da consignação, enquanto o processual rege
sua parte formal, ou seja, a forma de exercício da ação." No mesmo sentido: ROSEN-
VALD, Nelson. Direito das obrigações. 3" ed. rev. atual. Impetus: Rio de Janeiro,
2004, p. I69.
9 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das
Obrigações, v. 2, 20. ed. atual. rev. Forense: Rio de Janeiro, 2003, p. 210.
10 MARTINS-COST A, Judith, op. cit., p. 358: " ... é, antes de tudo, uma forma de
extinção das obrigações: o depósito que se faz com eficácia liberatória não é um ato
processual por excelência, pois, inclusive, permite-se a liberação por esta via sem
nenhuma intervenção judicial, desde que não impugnado o depósito."
11 Esta inovação trazida pela Lei n° 8.951/84, veio ao encontro do espírito do acesso
à justiça, buscando desonerar a máquina judiciária. PACHECO, José da Silva. Do
pagamento em consignação, de acordo com o Novo Código Civil. ADV: Advocacia
Dinâmica- Informativo Semanal, São Paulo, a. 24, n. 36, set. 2004, p. 528.
12 "Art. 890. Nos casos previstos em lei, poderá o devedor ou terceiro requerer, com
efeito de pagamento, a consignação da quantia ou da coisa devida.
401
2.3. Pressupostos
Determina o art. 336 que, "para que a consignação tenha força de pa-
gamento, será mister concorram, em relação às pessoas, ao objeto, modo
e tempo, todos os requisitos sem os quais não é válido o pagamento."
Dividem-se estes requisitos em subjetivos e objetivos. São subjetivos:
a) Legitimidade ativa: pessoa capaz de pagar, ou seja, o devedor ou
seu representante legal (genitor, tutor ou curador) ou convencional
(procurador), os seus sucessores, o terceiro interessado e o terceiro
não interessado, se o fizer em nome do devedor (em razão do dispos-
to no art. 304 13 ). Destaque-se, por oportuno, a previsão do art. 345,
que estabelece, excepcionalme nte, a legitimidade ativa do credor
para a ação consignatória: "Se a dívida se vencer, pendendo litígio
entre credores que se pretendem mutuamente excluir, poderá qual-
quer deles requerer a consignação." Assim sendo, um credor poderá
ter a iniciativa de requerer a consignação da coisa intimando-se quem
tem a posse, se for o caso, e esta sendo realizada, libera o devedor,
mesmo neste momento em que ainda não está determinado quem é
o verdadeiro credor;
402
já se a obrigação for indivisível, o depósito deve ser feito em nome de
todos os credores. Destaque-se desta questão da legitimidade para
receber o depósito, a freqüente hipótese do credor que usa interme-
diário para receber (aluguel pela administradora do imóvel, por
exemplo). Em geral, há um mandato estabelecido. Mas ainda que
este não exista, na prática, por força dos usos e costumes, pode ser
considerado que há um mandato tácito ou gestão de negócios. Em
atenção, também, ao princípio da boa-fé, nasce para o credor o dever
de aceitar o pagamento feito a tal intermediário, entendimento este
já sedimentado pela jurisprudência. 15 Cabe, assim, ação de consigna-
ção em pagamento contra quem, com aquiescência do locador, vem
recebendo aluguéis e dando quitações.
403
são, no curso da ação consignatória, sobre a liquidez da dívida, dispen-
sando-se este requisito, portanto. 20 É certo que se o réu-credor alegar
insuficiência do depósito (art. 896, inciso IV do Código de Processo
Civil) 21 , este poderá ser completado pelo autor-devedor (art. 899, do
Código de Processo CiviJ2 2);
se exaurem num fazer. Somente as obrigações de dar podem ser objeto de consigna-
ção.
20 Neste sentido: ROSENVALO, Nelson, op. cit., p. I 76; PORTO, Odyr José e
OLIVEIRA JÚNIOR, Waldemar Mariz de. Ação de Consignação em Pagamento. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 22. Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza
e Maria Celina Bodin de Moraes, amparando-se em recente decisão proferida pelo
Superior Tribunal de Justiça, admitem, também, a consignação de prestações venci-
das, além da possibilidade de discussão acerca do quantum debeatur: "De acordo com
a jurisprudência mais recente, admite-se a consignação de dívidas já vencidas, que
estejam em atraso, pois 'a consignação em pagamento é ação própria para discutir-se a
natureza, a origem e o valor da obrigação, quando controvertidos', além disso, 'repu-
dia-se a antiga prática de expurgar-se, do âmago da consignatória, cognição quanto a
controvérsias em torno do an e do quantum debeatur', para se reconhecer que 'presta-
ções atrasadas, se idôneas para o credor, podem ser consignadas' (STJ, 2• T., Resp
256.275, Rei. Min. Eliana Calmon, julg. 19.02.2002, publ. DJ 08.04.2002). TEPEDI-
NO, Gustavo. BARBOZA, Heloísa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de, op.
cit., p. 630.
21 "Art. 896. Na contestação, o réu poderá alegar que: ... IV - o depósito não é
integral."
22 "Art. 899. Quando na contestação o réu alegar que o depósito não é integral, é
lícito ao autor completá-lo, dentro em lO (dez) dias,( ... )". Confira-se, sobre o tema,
a seguinte ementa: "Consignatária. Insuficiência do depósito. Embora no atual rito da
consignatória, a insubsistência do valor depositado não signifique mais a improcedên-
cia do pedido, a complementação do depósito é faculdade do autor, se concordar com
o réu (Artigo 899 do CPC), o que não ocorreu neste caso. Não há que se falar em
extinção parcial da obrigação, quando existindo mais de um credor, o montante da
importância consignada, sequer atinge o crédito menor. Assim, não há outra conclusão
de julgamento a não ser a improcedência do pedido. Recurso desprovido." (TJRJ, 15•
Câm. Cív., Apelação Cível n° 2004.001.14347, Rei. Des. Roberto Wider, julg. em
21.09.2004).
23 "CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. Contrato de financiamento para aquisi-
ção de veículo com cláusula de alienação fiduciária. Inexistência de onerosidade ex-
cessiva. Depósitos insubsistentes. Justa recusa. Improcedência do pedido. Recurso
desprovido". (TJRJ, !8• Câm. Cív., Apelação n° 2004.001.25142, Rei. Des. Fonseca
Passos, julg. em 26.1 0.2004).
404
cluindo os frutos naturais ou os juros vencidos, quando estipulados ou
24
legalmente devidos (RT, 186:824,478:195,434:246, 449:259)" ;
405
todas estas deve o devedor se ater, pois não cabe consignação sem
previsão legal.
406
Por último, "se pender litígio sobre o objeto do pag~mento" 1 será
gerada para o devedor a obrigaçãode consignar, sob pena de, reali-
zando o pagamento ao perdedor da lide entre os .possíveis credores,
ter que pagar novamente ao ganhador (art. 344 33 ). Em consonância,
com o art. 219 do Código de Processo Civil, o objeto se torna
litigioso quando for citado o réu no processo entre os pretendidos
credores.
407
devedor pelos riscos, juros, despesas processuais 36 etc., como se não
tivesse havido pagamento (art. 337 37 ).
A doutrina apresenta, ainda, rol de efeitos secundários (isto é,
derivados da extinção da obrigação) do depósito: a) exoneração dos
demais co-obrigados; b) extinção das garantias incidentes sobre o cré-
dito; c) constituição do credor em mora, no caso das obrigações que-
síveis; d) cessação dos juros; e) condenação do credor ao pagamentos
das despesas processuais (art. 343 38 ).
408
"Enquanto o credor não declarar que aceita o depósito, ou não o im-
pugnar, poderá o devedor requerer o levantamento, pagando as res-
pectivas despesas, e subsistindo a obrigação para todas as conseqüên-
cias de direito."
se tratanto de oferta feita pelo próprio devedor, não pode o Juiz impedir o credor de
levantar o que foi oferecido, pois isso permite o art. 899, § 1°, do Código de Proc. Civil
( ... )" (TJRJ, 15• Câm. Cív., Agravo de Instrumento n° 2004.002.13220, Rei. Des.
Sérgio Lúcio Cruz, julg. em 22.09.2004).
40 "Art. 267. ( ... ) § 4°. Depois de decorrido o prazo para a resposta, o autor não
poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação."
41 OLIVEIRA, José Maria Leoni Lopes de. op. cit., p. 171.
42 Segue o mesmo raciocínio: TEPED1NO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena.
MORAES, Maria Celina Bodin de. op. cit., p. 632.
409
Por derradeiro, determina o art. 340:
410
Embora a sub-rogação pessoal propicie a exoneração do credor
originário, subsiste o mesmo vínculo obrigacional, agora entre o sub-
rogado e o devedor. Portanto, é modo de pagamento indireto, por
apenas promover a satisfação do sub-rogante, com alteração subjetiva
no pólo ativo da relação jurídica. 45
Discute-se, no entanto, na doutrina, "a respeito da natureza jurídica
da sub-rogação, procurando alguns ver nela a figura da novação, en-
quanto outros enxergam o instituto da cessão de crédito. Essas teo-
rias hoje estão repudiadas pela doutrina majoritária, reconhecendo-
se que a sub-rogação trata-se, na verdade, de instituto autônomo em
que por determinação legal ou por convenção das partes, a dívida
extingue-se em rela~ão ao credor originário, mas subsiste em relação
aquele que pagou. "4
Distingue-se da cessão de crédito47 uma vez que: a) nesta, opera-
se a transferência do direito por ato de vontade do credor, sem que
411
haja um pagamento deste; já a sub-rogação assenta-se no pagamento
do credor e pode ocorrer independente de sua vontade (sub-rogação
legal); b) a sub-rogação dispensa notificação do devedor, enquanto a
cessão de crédito a exige (art. 290) 48 ; c) na cessão de crédito, em
razão de seu caráter especulativo, o cessionário poderá cobra o crédito
integral, independente do quanto desembolsou; na sub-rogação, há
limitação prevista no art. 350 49 ; d) na cessão, exige-se a capacidade
das partes, o que não ocorre na sub-rogação 50 .
É certo que há duas espécies de sub-rogação, adiante expostas:
legal 51 (opera-se independentement e da vontade do credor originário)
e convencional 5 2 (decorre da vontade das partes).
412
No primeiro caso, credor paga a dívida de seu devedor, que tam-
bém é devedor de terceira pessoa, satisfaz o crédito desta, com o inte-
resse de evitar que uma possível execução ponha em risco do seu pró-
prio crédito. O Código Civil de 1916 53 exigia que o solvens fosse titu-
lar de crédito preferencial, para que pudesse operar-se a sub-rogação.
No segundo inciso, temos a situação do adquirente de imóvel hi-
potecado que satisfaz o credor hipotecário. Um proprietário pode dar
imóvel em hipoteca sem que, com isso, perca o direito de alienação
sobre ele. Alienando-o a terceiro, a garantia mantém-se sobre o imó-
vel, como ônus real que é. Interessado em desonerar o imóvel, este
adquirente pode satisfazer o crédito garantido pela hipoteca, hipótese
em que se sub-rogará nos direitos deste credor (originário), todavia,
na qualidade de quirografário, pois a hipoteca não poderá se manter
sobre imóvel de seu próprio domínio.
Na terceira hipótese, tem-se protegidos os denominados terceiros
interessados 54 , aqueles que poderiam ter seu patrimônio constrangi-
do, caso o principal pagador ou co-obrigado não satisfaça o crédito 55 .
Por último, analisa-se o art. 350, e sua possibilidade de aplicação à
sub-rogação convencional. Prevê o aludido artigo: "Na sub-rogação le-
gal o sub-rogado não poderá exercer os direitos e as ações do credor,
senão até a soma que tiver desembolsado para desobrigar o devedor."
Esta norma impede o caráter especulativo, de forma expressa, nas
sub-rogações legais.
É fato que, quando da elaboração do Código Civil de 1916, Bevi-
láqua insistiu pela inclusão da sub-rogação convencional no artigo.
53 "Art. 985. ( ... ) I -do credor que paga a dívida do devedor comum ao credor, a
quem competia direito de preferência".
54 Pergunta-se se a seguradora se sub-rogaria nos direitos do credor - seu segurado
-, uma vez que é a garantidora do risco. Entende-se que por força da S. 188 do STF
("O segurador ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pa-
gou, até o limite previsto no contrato de seguro"), súmula esta convertida na norma
disposta no art. 786 ("Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limi-
tes do valor respectivo, nos direito e ações que competirem ao segurado contra o autor
do dano") e dos arts. 8° e 9° da Lei n° 6.194/74, a resposta deva ser positiva. MAR-
TINS-COSTA, Judith. op. cit., p. 443. Neste sentido: "Apelação. Subrogação legal e
contratual. Seguradora, ora apelada, que arca com o prejuízo oriundo de acidente de
trânsito envolvendo o veículo segurado. Súmula 188 do STF. ( ... )" (TJRJ, I a Câm.
Cív., Apelação Cível n° 2004.001.17498, Rei. Des. Amaury Arruda de Souza, julg. em
03.08.2004).
55 Aqui serão considerados, o devedor solidário, o co-devedor de obrigação indivisível
e o fiador.
413
Mas a opinião prevalecente e em consonância com o espírito da época
era que deveria prevalecer a autonomia da vontade. Beviláqua sugeriu
então, que o próprio devedor, atento, incorporasse esta limitação ao
negócio 56 .
Hoje em dia, diante do princípio da boa-fé, da vedação ao enrique-
cimento sem causa e ainda, do dever de proporcionalidade, Judith
Martins-Costa, em posição minoritária, afirma que deve-se evitar o
caráter especulativo, estendendo o art. 350 às sub-rogações conven-
cionais também 57 .
414
"É importante distinguir, porque se houver a condição expressa da
sub-rogação, o novo credor substitui o primitivo, com preferência
oponível a outros credores já existentes, mesmo anteriores a ela; se
não houver o novo credor é tratado como qualquer outro sem as van-
tagens da sub-rogação, ainda que se prove que a quantia mutuada se
destinou a adoção do débito anterior" 59 .
4. Imputação do pagamento
415
O tratamento legal dispensado a esta forma de pagamento, a des-
peito da sua aparente pouca importância dentro do universo das
obrigações, tem utilidade prática nas mais variadas situações concre-
tas, a fim de ser definida qual obrigação será extinta e, por conseguin-
te, de qual vínculo o devedor estará liberado. 63 É certo que a finalida-
de do instituto é dirimir possíveis dúvidas sobre o adimplemento de
uma obrigação, dentre duas ou mais, entre o mesmo credor e o mesmo
devedor, pois o estado de dúvida é prejudicial a qualquer dos sujeitos
obrigacionais, ou mesmo a terceiros.
Note-se que o Diploma Civil assumiu uma linha média, "nem
francamente ao lado do devedor, nem procura reforçar a posição do
credor" 64 .
4.2. Requisitos
Dispõe o art. 352 que: "A pessoa obrigada por dois ou mais débitos
da mesma natureza, a um só credor, tem o direito de indicar a qual
deles oferece pagamento, se todos forem líquidos e vencidos." Con-
forme esta norma legal, a configuração da imputação pressupõe os
seguintes requisitos:
416
art. 354 66 , em que o pagamento primeiro é imputado nos juros, de-
pois no capital (ainda que haja apenas uma obrigação), o que clara-
mente favorece o credor, na dúvida. 67 Esta norma é dispositiva, po-
dendo ser afastada por vontade das partes, como dispõe o artigo. Não
é demais acrescentar que, caso o devedor esteja inadimplente de
prestações sucessivas de uma mesma obrigação, não se aceita, igual-
mente, a imputação a qualquer delas, indistintamente, em razão do
69
art. 322 68 , como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça . Enten-
der de forma diversa seria onerar o credor, que teria o ônus de de-
monstrar que as prestações anteriores restam em aberto.
da Silva. op. cit., p. 230; VENOSA, Sílvio de Salvo, op. cit., p. 282; TEPEDINO,
Gustavo. BARBOZA, Heloísa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. op. cit., p.
645.
66 Art. 354: "Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros
vencidos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar a
quitação por conta do capital.". Havendo capital e juros, pagam-se primeiro os juros,
depois o capital, salvo se combinado em contrário ou se o credor der quitação do
capital. Privilegia o credor esta norma, uma vez que se o devedor pudesse saldar o
capital, seus juros seriam menores.
67 Imagine-se a o seguinte exemplo: "A" deve a "B" R$ I.OOO,OO, com juros de IO%
mensais. Passado um mês, a dívida será de R$ II 00,00. "A" apresenta apenas R$
I 00,00 para adimplir parcialmente a dívida. Por força do dispositivo, será imputado
este valor nos juros, não no principal, restando para o mês subseqüente R$ I 000,00 de
capital, sobre o qual incidiriam I 0%, perfazendo o valor de R$ I.I 00,00. Todavia, se a
norma determinasse o oposto, o principal seria reduzido a R$ 900,00 e sohre este valor
incidiriam os juros, sendo o valor do mês subseqüente de R$ I.090,00. Lembre-se que
é vedado o anatocismo, ou seja, a incidência de juros sobre juros, salvo a capitalização
anual.
68 "Art. 322. Quando o pagamento for em quotas periódicas, a quitação da última
estabelece, até prova em contrário, a presunção de estarem solvidas as anteriores."
69 "Em se tratando de prestações periódicas, a quitação da última gera a presunção
relativa de já terem sido pagas as anteriores, incumbindo a prova em contrário ao
credor, conforme o art. 943 do Código Civil (nota: Código Civil de 1916, cuja nonna
é reproduzida no art. 322 do Código Civil de 2002). l i - Pode o credor recusar a
última prestação periódica, estando em débito parcelas anteriores, uma vez que, ao
aceitar, estaria assumindo o ônus de desfazer a presunção juris tantum prevista no art.
943 do Código Civil, atraindo para si o ônus da prova. Em outras palavras, a imputação
do pagamento, pelo devedor, na última parcela, antes de oferecidas as anteriores,
devidas e vencidas, prejudica o interesse do credor, tornando-se legítima a recusa no
recebimento da prestação." (STJ, REsp 225435/PR, 4a T., Rei. Min. Sálvio de Figuei-
redo Teixeira, DJ I9.06.2000).
4I7
o caso de pluralidade ativa ou passiva, ou seja, casos em haja mais de
um credor ou mais de um devedor em cada dívida, desde que sejam
comuns a todas as dívidas imputáveis. É certo que cabe a escolha,
com exclusividade, ao fiador que efetue o pagamento, isto é, se o
fiador solve a dívida, ele tem direito de indicação, não o seu afiança-
do. O mesmo raciocínio há que ser empregado no caso de co-devedo-
res, tendo aquele que paga, a opção de imputar 70 .
418
dinheiro) apresentado pelo devedor deve ser igual ao da prestação de
valor (ou quantidade) menor dentre as ünputáveis 75 •
4.3. Espécies
419
escolha é do credor. Se há relações jurídicas processuais distintas, o
devedor pode escolher qual dívida (de uma ou outra execução) ele irá
satisfazer. 78
Por último, o art. 355 oferece um modelo de ordem de preferên-
cia, para a realização da imputação legal (que pode ser subvertido pelo
devedor, ao exercer o seu direito formativo de indicação). Dispõe o
aludido dispositivo:
"Se o devedor não fizer a indicação do art. 352, e a quitação for omis-
sa quanto à imputação, esta se fará nas dívidas líquidas e vencidas em
primeiro lugar. Se as dívidas forem todas líquidas e vencidas ao mes-
mo tempo, a imputação far-se-á na mais onerosa."
"a) a que rende mais juros em relação a que não rende; b) entre as que
rendem juros, aquela que rende juros mais elevados; c) a que possui
garantia real em relação a que não possui; d) a que contém cláusula
penal em relação a que não possui; e) aquela em que o devedor fi~ura
como principal obrigado em relação àquela em que ele é fiador." 0
"h) mais onerosa é a dívida com ação do que a sem ação; i) mais
onerosa é a dívida com pretensão do que a dívida sem pretensão; j)
420
mais onerosa é a dívida prescrita antes do que outra também prescri-
ta, porque se solve o que há mais tempo já não tinha eficácia;" 81
5. Dação em pagamento
421
ção, se ambas as partes consentirem. É nesta hipótese que se insere o
instituto sob análise 88 , de inegável importância 89 .
A dação em pagamento (datio pro soluto, datio in solutum) encon-
tra previsão nos arts. 356 a 359 do Código Civil de 2002, e pode ser
definida como a "modalidade de pagamento indireto em que o cre-
dor consente em receber objeto diverso ao da prestação originaria-
mente pactuada, com efeito liberatório, extinguindo-se a obrigação
anterior 90
o "
422
ficação, verificada entre o Código Civil de 1916 e o Código Civil de
2002, da redação do dispositivo que inicia o capítulo sobre dação em
pagamento. No art. 955 do Código Civil de 1916 está previsto que "o
credor pode consentir em receber coisa que não seja dinheiro, em
substituição da prestação que lhe era devida.", enquanto que no Có-
digo Civil de 2002, o art. 356 determina que "o credor pode consen-
tir em receber prestação diversa da que lhe é devida." O Código Civil
atual, diversamente do Código de 1916, não mais exige que o objeto
da dação em pagamento não seja dinheiro. O texto sob análise fala em
prestação diversa da devida 93 . Na verdade, trata-se de substituição
de um objeto da prestação devida por outro objeto, qualquer que seja
ele. Desta maneira, como afirma Moacir Adiers, não há como aludir-
se à figura da dação em pagamento quando alguém cumpre obrigação
alternativa (nota: ou facultativa;,. Nesta, devem-se várias prestações,
mas uma só há de ser prestada. 4
423
5.2. Natureza jurídica e distinção de figuras afins
96 Aplicam-se assim, por exemplo, as normas sobre repartição de despesas (art. 490),
responsabilidade do devedor até a tradição, anulabilidade da dação realizada entre
ascendentes e descendentes (art. 496) etc.
97 PEREIRA, Caio Mário da Silva, op. cit., p. Z37.
98 Judith Martins-Costa apresenta seus próprios argumentos de distinção: "a) na
compra e venda não cabe, em linha de princípio, a repetição do indébito, cabível na
dação em pagamento quando ausente a causa debendi; b) o próprio objetivo, ou fina-
lidade da dação em pagamento é a solução da dívida ... c) a dação exige, como pressu-
posto, a entrega, constituindo negócio jurídico real." MARTINS-COSTA, Judith, op.
cit., p. 494.
99 ADIERS, Moacir. Da dação em pagamento, op. cit., p. 19Z
I 00 A favor da caracterização como sendo uma espécie de novação, os bens articulados
argumentos de Planiol, reproduzidos por Sílvio Rodrigues: "Tradicionalmente, consi-
dera-se a dação em pagamento como especial modo de extinção, ou mesmo como uma
variedade de pagamento, por derrogação do princípio que obriga o devedor a receber
exatamente aquilo que prometeu ... Mas tal maneira de ver está sendo cada vez mais
abandonada; os autores admitem que a dação em pagamento implica uma novação por
mudança do objeto: o credor consentiu em substituir seu crédito antigo por um novo,
cujo objeto é diferente; este novo crédito não durou senão um instante, ou seja, o
tempo que transcorreu entre a convenção de dação em pagamento e sua realização,
mas a rapidez das operações que se sucedem não modifica a natureza do negócio .... o
objeto devido não pode se modificar sem que a dívida seja renovada, novada. Toda
4Z4
extingue-a. Devedor e credor não cogitam criar um novo débito para
extinguir o anterior. A vontade de ambos se dirige, direta e imediata-
mente, à extinção do crédito anterior (enquanto que, na novação, há
necessariamente a criação de uma nova obrigação) 101 , através de pres-
tação outra que não a devida. Substitui-se a prestação e não a obriga-
ção, como ocorre na novação. 102
Da mesma forma, não se confundem a dação em pagamento e a
dação em função de cumprir ou em cumprimento (datio pro-solven-
do). Nesta (não prevista pelo ordenamento brasileiro) o devedor efe-
tua uma prestação diferente da devida para que o credor obtenha mais
facilmente a satisfação do seu crédito, só se extinguindo a obrigação
quando for satisfeito o crédito. Aproveita-se o exemplo apresentado
por Mário Júlio de Almeida Costa e reproduzido por Judith Martins-
Costa103:
"( ... )quando 'A', pianista, e devedor a 'B', proprietário de uma casa
de espetáculos, de 2.000 reais, convenciona com ele realizar um con-
certo, a fim de que o mesmo obtenha, através da referida prestação,
104
mais facilmente a satisfação do seu crédito. "
dação em pagamento implica, portanto, mesmo que as partes não percebam, uma
novação subentendida." RODRIGUES, Sílvio, op. cit., p. 206.
IOI " ... a dação em pagamento tem por fim extinguir a dívida, exonerando o devedor do
liame obrigacional, e a novação visa solver débito precedente, criando outro, novo."
DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 275.
102ADIERS, Moacir, op. cit., pp. 192/193.
103 Moacir Adiers também se manifesta sobre a diferença entre dação em soluto e
dação pro solvendo: "Destarte, a intenção do dador é de grande valia quando se perqui-
re se houve dação em soluto ou dação pro solvendo. Havendo dúvida, a entrega foi
feita pro solvendo. Há dação pro solvendo quando o devedor assume, perante o cre-
dor, uma obrigação paralela, a qual somente extinguirá a dívida originária quando de
seu cumprimento. Ela não extingue, imediatamente, como ocorre na dação em soluto,
a dívida. Constitui-se, fundamentalmente, em um reforço do primitivo débito. Sub-
sistem, assim, dois débitos, com a peculiaridade de que a efetivação do segundo, o qual
se fará preferencialmente, importa, ipso. iure, na extinção da anterior." ADIERS, Moa-
cir, op. cit. p. 202.
I04COSTA, Mário Júlio Almeida apud MARTINS-COSTA, Judith, op. cit., p. 489.
425
vez de sub-rogação uma na outra, subsistem duas obrigações, e, quan-
do o devedor satisfizer a segunda (que é a que lhe cumpre solver pre-
ferentemente), ficam extintas as duas" 105 •
5.3. Evicção
426
Note-se, como bem observam Gustavo Tepedino, Heloisa Helena
Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, que "na dação em pagamen-
to, não se aplica a conseqüência normal da evicção prevista no art.
450. A norma geral é afastada pela norma especial, que prevê a restau-
ração da obrigação primitiva. Ao invés de facultar ao adquirente de-
mandar a responsabilidade do alienante nos termos ao art. 450, pare-
ceu ao legislador preferível o simples restabelecimento da obrigação
que havia sido extinta pela dação em pagamento. Voltam as partes,
logo, ao status quo anterior à dação". 112
112 TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bo-
din de, op. cit., p. 655.
427
Extinção das obrigações sem pagamento:
Novação, compensação, confusão e remissão
I. Introdução
1 PIETRO PERLINGIERI, Manuale di Diritto Civile, Napoli, ESI, 2000, 2" ed., p.
250.
429
realizar uma economia quanto aos atos, pois persegue um resultado
análogo àquele que ocorreria a partir de dois adimplementos recípro-
cos, e a confusão, porque depois da reunião das contrapostas qualida-
des de credor e devedor, na titularidade de um mesmo sujeito, este
perde uma vantagem (o crédito), mas adquire outra correspondente,
que é a liberação do débito. Já dentre as causas extintivas não satisfa-
tórias, incluem-se a remissão e a impossibilidade do cumprimento da
prestação por causa não imputável ao devedor, pois em ambas as hipó-
teses não há uma atuação nem específica nem equivalente ao interesse
do credor 2•
Nesta sede, interessa referir a novação, a compensação, a confusão
e a remissão.
2. Novação
430
por institutos conexos, como a cessão de crédito, a cessão de contrato
e a sub-rogação 7 .
431
submetido ao poder de fogo do credor, chamado de pólo ativo. De
fato, a novação subjetiva do devedor deve ser analisada em perspectiva
dinâmica, havendo a ponderação dos interesses em jogo 11 .
Esta pode se dar por dois modos: expromissão e delegação. A ex-
promissão é a substituição do devedor por outro independentemente
de seu consentimento, ou até contra a sua vontade 12 . Entretanto, na
linha da advertência acima, o fenômeno não prosperará se houver in-
teresse do devedor, merecedor de tutela jurídica, na manutenção do
vínculo obrigacional 13 .
Já a delegação ocorre quando o devedor indica terceira pessoa para
cumprir a obrigação, desde que haja expressa concordância do credor,
podendo esta ser simultânea à declaração de vontade do devedor ou
posterior 14 .
Observe que pelo fato de ser necessária a anuência do credor na
delegação, este não tem ação contra o primitivo devedor na hipótese
de prejuízo com o novo negócio, como, por exemplo, se o novo deve-
dor for insolvente. Como aponta Caio Mário da Silva Pereira, "cabe ao
credor, antes de aceitá-lo, apurar as suas condições de liquidez. Se o
não fez, ou se não logrou comprovar, e mesmo assim anuir na novação,
procede a seu próprio risco" 15 . No entanto, se o primitivo devedor
conhecia a insolvência de seu substituto, tendo ocultado tal fato ao
credor, responderá por sua má-fé (Código Civil, art. 363).
A novação subjetiva ativa ocorre quando em virtude de obrigação
nova, outro credor é substituído ao antigo, ficando o devedor quite
com este (Código Civil, art. 360, 11). Neste caso, surge dívida nova,
não havendo, pois, o que se falar em cessão de crédito.
2.2. Pressupostos
432
dos; jamais por força da lei" 16 . De fato, para a configuração do institu-
to, é preciso que as partes convencionem a extinção da obrigação pri-
mitiva a partir da criação de uma nova e, para tanto, precisam ter
capacidade, bem como legitimidade para a prática do ato.
Daí o motivo pelo qual o ânimo de novar precisa ser expresso ou
restar inequívoco dos termos da nova obrigação, uma vez que, se não
houver animus novandi, a segunda obrigação apenas confirma a pri-
meira (Código Civil, art. 361 ). Por conseguinte, não se presume nova-
ção I?.
Sem dúvida, quando não expresso, a averiguação do animus no-
vandi pode ser tarefa difícil. Judith Martins Costa aponta exemplifi-
cativamente algumas regras que, combinadas com as dos arts. 112 e
113 do Código Civil, auxiliam a detectar casos em que o animus no-
vandi apresenta-se sob a forma tácita:
433
maç·ão meramente formal do ato, ou a emissão de uma cambial, nem
a redução do preço de aluguéis, sem a modificação do título obriga-
cional, nem a tolerância do credor em relação a um ato do devedor
(que pode gerar os fenômenos da supressio e da surrectio), nem a
prorrogação de prazo concedida pelo credor;
d) a novação tácita exige uma mudança radical no objeto e na causa
debendi;
e) na novação subjetiva o animus novandi resulta, em regra, da pró-
pria modificação subjetiva, não se devendo confundir, contudo, com
as hipóteses de cessão de crédito, de sub-rogação e de assunção de
dívida,( ... );
f) nos negócios novativos firmados por adesão, maior é a exigência de
inequivocidade do animus novandi, a ser apreciado conforme o con-
junto de circunstâncias e a concreta possibilidade de percepção das
partes, mormente as que se apresentam como hipossuficientes." 19
crédito industrial. Embargos opostos pelo avalista. O avalista não é obrigado a suportar
pagamento de débito pelo qual não se comprometeu no novo negócio. Agravo regi-
mental improvido" STF, 2• Turma, AI I06285 AgR, Rei. Min. Carlos Madeira, j.
I 6. I 2. I 985, v.u., DJ I 4.02.86, p. I 2 I. Neste caso, através de um aditivo, foi prorro-
gado o prazo de vencimento c alterado o valor do débito, sem que, neste aditivo, o
avalista manifestasse concordância.
19 JUDITH MARTINS-COSTA, Comentários ao novo Código Civil, vol. V, Tomo I,
in Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.), Rio de Janeiro, Forense, 2003, pp. 537/538.
20 Recurso Especial. Contratos bancários. Alegação de novação. Súmulas OS e
07 /STJ. CDC. Revisão. Possibilidade. Limitação da taxa de juros. Afastamento. Lei n°
4.595/64. I - Afastada pelo tribunal de origem a ocorrência de novação em razão da
434
A obrigação extinta também não pode ser novada, porque nesta
hipótese não haverá o que ser novado. A novação pressupõe exata-
mente a existência de uma obrigação, qúe será extinta pela criação de
outra.
As controvérsias surgem quanto às obrigações naturais e quanto às
obrigações prescritas.
Em relação às obrigações naturais, assinala Clovis Bevilaqua que
es~as constituem um dever juridicamente não exigível, sem meios ju-
rídicos de prevalecer. Desse modo, "se álguém no cumprimento delle
despender alguma coisa, seria immoral que o pudesse repetir, mas se
o quizer novar já não o poderá fazer, porque a novação pressupõe uma
obrigação anterior válida ou suscetível de ser validada" 21 • Outros auto-
res não corroboram este entendimento. Segundo Silvio Rodrigues, "a
obrigação natural é mais do qúe mero dever moral, pois a própria lei
tem como válido o seu pagamento, tanto que não admite repetição
(CC, art. 882). De modo que, se as partes quiserem nová-la, podem
fazê-lo, e a obrigação nova, extinguindo a antiga, é jurídica e, por con-
seguinte, exigível" 22 .
Quanto às obrigações prescritas, aponta Caio Mário da Silva Perei-
ra que a novação de obrigação prescrita não terri efeito e não obriga o
devedor, ressalvando, no entanto, que por ser lícito ao devedor renun-
ciar a prescrição já consumada (Código Civil, art. 191 )I prevalecerá a
novação de dívida prescrita se resultar inequívoco o propósito de re-
nunciar a prescrição 23 . Já Orlando Gomes aduz que "o devedor que
aceita a novação de dívida prescrita estará renunciando tacitamente ao
direito de invocá-la" 24 .
435
Assim como é preciso que a obrigação primitiva seja válida para a
novação, o mesmo pode ser dito quanto à obrigação que será criada,
extinguindo a primeira 25 . De acordo com João de Matos Antunes Va-
rela, "se é a nova obrigação que falha (por ser declarada nula ou por ser
anulada), renasce naturalmente a obrigação primitiva, visto caducar a
causa da sua extinção, que foi a constituição da nova obrigação" 26 . O
autor, ainda, adverte para os interesses de terceiros que, tendo garan-
tido a obrigação primitiva, contaram compreensivelmente com a ex-
tinção dessas garantias. Apontando uma solução, acrescenta o autor
que "sendo a causa da nulidade ou da anulação imputável ao credor
(por hipótese, autor da coação ou do dolo que serviu de fundamento
à anulação do novo vínculo), não renascem com a antiga obrigação as
garantias prestadas por terceiro, a não ser que este conhecesse o vício
da nova relação, na altura em que se operou a novação" 27 .
Caio Mário da Silva Pereira ressalva que a nova obrigação pode ser, por
sua vez, uma obrigação natural, "pois que, se se tolera que esta seja a sua
causa, nenhuma razão jurídica existe proibindo que seja o seu efeito" 28 .
436
2.3. Efeitos
3. Compensação
Não raro uma pessoa deve a outra determina quantia, sendo tam-
bém credora da mesma em virtude de certo título. Nestes casos, como
acentua João de Matos Antunes Varela, a solução que acode ao espíri-
to do jurista, quando diante de reciprocidade de créditos, é a de con-
siderá-los extintos por encontro de contas, ou por compensação,
como tecnicamente se diz 31 .
Assim, "quando duas pessoas reúnem as qualidades de credor e
devedor, conjunta e reciprocamente, dá-se a compensação, modo de
extinguir obrigações" 32 (Código Civil, art. 368).
247.
29 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, ob. cit., p. 253.
30 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, ob. cit., p. 252.
31 JOÁO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, volume 11,
cit., p. 196.
32 CLOVIS BEVILAQUA, Direito das obrigações, Rio de Janeiro, Livraria Freitas
437
3.1. Pressupostos
"I 0 , que cada um dos obrigados, o seja por obrigação principal e por
crédito principal; 2°, que as dívidas sejam de dinheiro, de coisas fun-
gíveis, da mesma espécie; 3°, que sejam exigíveis, vencidas e líquidas,
4°, que, sendo de coisas incertas (indicadas pelo gênero), pertença
aos dois devedores, a escolha; 5°, que sobre nenhuma das dívidas
tenha terceiro direito, em virtude dos quais possa, legitimamente,
opor-se ao pagamento" 34 .
438
opor ao cedente se, notificado da cessão, nada opõe à mesma. Porém,
se a cessão não lhe foi notificada, poderá opor ao cessionário a com-
pensação que teria contra o cedente (Código Civil, art. 377). Desse
modo, se Tito deve a Mário e Mário a Tito, as dívidas se compensam.
Se Tito cede seu crédito a Celso, Mário deve opor-se, cientificando
Celso da exceção que oporia ao cedente. Se silencia, é como se renun-
ciasse a compensação, passando a ser devedor de Celso, embora con-
tinue credor de Tito. Como seu crédito e débito não mais são recípro-
cos, não se opera a compensação 37 .
O segundo pressuposto para a compensação é que as obrigações
tenham por objeto coisas fungíveis, da mesma espécie e qualidade,
quando esta última estiver indicada no contrato (Código Civil, art.
370). Desse modo, a compensação se opera não só entre obrigações
pecuniárias, mas também entre obrigações fungíveis que sejam do
mesmo gênero entre si, ou seja, homogêneas. Como acentua Sílvio
Rodrigues, "o carvão e· o açúcar são coisas fungíveis. Entretanto, se
alguém deve carvão a quem lhe deve açúcar, as dívidas não se compen-
sam, porque as prestações não são homogêneas, isto é, não são fungí-
veis entre si". Acrescenta o autor que "a idéia de fungibilidade envolve
a de permutabilidade, ou melhor, implica a noção de ser indiferente
para o credor receber uma ou outra das coisas objeto da prestação" 38 .
Além da fungibilidade das prestações, a compensação exige que as
obrigações sejam exigíveis, vencidas e líquidas (Código Civil, art.
369). Com efeito, para que haja compensação, os débitos devem estar
vencidos, pouco importando que o sejam pelo escoamento do prazo,
ou em razão de uma antecipação prevista na lei ou título 39 . Se a obri-
gação ainda não for exigível, por estar subordinada a termo ou condi-
ção, não será passível de compensação40 .
439
No entanto, os prazos de favor, embora consagrados pelo uso ge-
ral, não obstam a compensação (Código Civil, art. 372). Esta regra,
como assinala Judith Martins-Costa, tem conteúdo ético relevante,
assemelhando-se à situação que dá causa à proibição do venire contra
factum proprium: se alguém recebe de outrem um benefício, não pode
invocar este mesmo benefício para prejudicar os interesses de quem
lhe beneficiou 41 .
Tendo em vista o requisito da exigibilidade, não se compensam
obrigações naturais, seja em confronto com outra idêntica, seja com
uma civil 42 , salvo por vontade das partes, na hipótese em que o credor
civil, ao mesmo tempo devedor natural, aceite tal compensação 43 .
Quanto à obrigação prescrita, aduz Caio Mário da Silva Pereira
que se deve conjugar o requisito da exigibilidade com o efeito automá-
tico da compensação. Assim, se a prescrição se completou antes da
coexistência das dívidas, aquele a quem ela beneficia pode opor-se à
compensação, sob o fundamento de que a prescrição extingue a pre-
tensão44.
Além de exigíveis e vencidas, devem ser as obrigações líquidas
para a compensação. O art. 1.533 do Código Civil de 1916 definia
como líquida a obrigação certa quanto à sua existência e determinada
quanto ao seu montante. Como observa Judith Martins-Costa, a exis-
tência e a determinação devem derivar do título constitutivo da obri-
gação, razão pela qual não necessariamente se identificam o crédito
líquido e o crédito certo, na medida em que a liquidez não é certeza
em termos subjetivos, mas certeza em termos objetivos, no sentido de
que deve derivar do título constitutivo, ainda que momentaneamente
440
haja dificuldade para qualificá-lo como certo em virtude, por exem-
45
plo, da contestação judicial que lhe é oposta .
Segundo Gustavo Tepedino e outros, embora a tendência dos có-
digos modernos, como da jurisprudência, seja a de atenuar a condição
da liquidez das dívidas, como requisito obrigatório para a compensa-
ção, o Código insistiu nesse ponto. Com efeito, a lei poderia ter res-
salvado, pelo menos, os débitos que, embora ilíquidos, sejam de fácil
ou rápida liquidação, tais como os que dependam de simples cálculos
aritméticos 46 .
Quando as obrigações tiverem por objeto coisas incertas, só será
possível a compensação quando a escolha competir aos dois devedo-
res. Nas lições de Caio Mário da Silva Pereira,
Por fim, para a compensação, não pode pesar, sobre nenhuma das
dívidas, direitos de terceiro, em virtude dos quais possa, legitimamen-
te, opor-se ao pagamento. Este é o enunciado do art. 380 do Código
Civil. Segundo Judith Martins-Costa, duas normas decorrem da inci-
dência do art. 380: uma delas de caráter geral, afirmando que a com-
pensação não pode atingir direitos de terceiros, devendo obedecer ao
4
princípio res inter alias acta; a outra especifica essa regra geraJ R.
Assim, se Tito é devedor de Celso de importância de cem e, para
extinguir a obrigação, compra um crédito de igual importância, em
441
que Celso figura como devedor, a reciprocidade das dívidas provoca-
ria, em regra, a compensação, extinguindo-se as duas relações jurídi-
cas. Entretanto, se o último dos débitos houvesse sido penhorado por
algum credor de Celso, e em respeito ao interesse dessa pessoa, a
cessão obtida por Tito não teria o efeito de provocar a compensação 49 .
O mesmo pode ser dito no caso de crédito dado em penhor, como
no exemplo de Antunes Varela: A deve a B 3000 contos, por merca-
dorias que este lhe vendeu. Antes de B se ter tornado, por sua vez,
devedor de A pela importância de 4000 contos, aconteceu que o
crédito de B foi dado em penhor a C. Se A pudesse considerar-se
desobrigado em tais circunstâncias, por compensação com o crédito
que posteriormente obteve sobre B, a solução envolveria um injusti-
ficado sacrifício dos direitos que C, antes disso, adquiriria sobre o
crédito de B50 .
3.2. Espécies
442
"a) é irrelevante o problema da capacidade das partes, pois, mesmo
que na relação jurídica figure um incapaz, a obrigação se extingue
mesmo sem a vontade deste, desde que de maneira objetiva se confi-
gure a hipótese de se apresentarem duas partes, credoras e devedoras
reciprocamente, uma da outra; b) a compensação retroage à data em
que a situação de fato se configurou; embora a compensação só tenha
sido alegada depois, ela opera desde o momento em que o réu, cobra-
do de uma prestação, tornou-se, por sua vez, credor do autor; c) o
efeito retroativo repercute nos acessórios do débito. De modo que os
juros e garantias do crédito cessam a partir do momento da coexis-
tência das dívidas; o devedor cuja dívida se extinguiu a partir desse
momento, escapa aos efeitos da mora, bem como da incidência da
cláusula penal'' 52 .
443
tacitamente, o benefício 54 . De fato, a compensação pode ser afastada
pelas partes por mútuo acordo ou quando uma delas renuncia previa-
mente o benefício (Código Civil, art. 375). Em ambas as hipóteses,
deverão ter capacidade e legitimidade para tanto.
Note, portanto, que a compensação poderá ser convencional,
quando os interessados a ajustam fora dos casos previstos na lei, como
na hipótese em que há obrigações ilíquidas. Neste caso, as partes de-
verão ter capacidade e legitimidade para dispor de seus créditos 55 .
Há, ainda, uma terceira modalidade de compensação denominada
de compensação judicial. Trata-se de uma modalidade autônoma.
Com efeito, conforme Gustavo Tepedino e outros, o que a distingue
é uma parcial diversidade de requisitos, quanto à necessidade ou não
de liquidez dos créditos envolvidos. Na compensação legal deve haver
liquidez, então o juiz se limita a verificar que o crédito, não obstante a
contestação de uma das partes, era objetivamente determinado; na
compensação judicial, embora originalmente ausente a liquidez, o
juiz acerta que o crédito é pronta e facilmente liquidável. O pro-
nunciamento judicial não tem papel puramente declarativo, como
nas outras 56 .
54 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de Direito Civil, vol. 11, cit., p.
267.
55 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de Direito Civil, vol. 11, cit., p.
263.
56 GUSTAVO TEPEDINO, HELOISA HELENA BARBOZA et alii, Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República, cit., pp. 670/671.
444
dry-Lacantinerie: "devo R$ 100.000,00; o credor, não logrando obter
o respectivo pagamento, por sua própria autoridade, apodera-se da
soma devida. Movo então ao credor ação tendente a obter a devolução
do numerário, de que me vi desapossado. É claro que o credor, réu
nesse feito, não poderá argüir compensação pelo crédito que tem con-
tra mim. Admiti-la seria coonestar procedimento maligno, condenado
pelo direito. Ainda que as duas dívidas sejam concomitantement e de
57
origem ilícita ou criminosa, inadmissível se tornará a compensação" .
Se uma das dívidas se originar de comodato, depósito ou alimen-
tos, da mesma forma não haverá compensação (Código Civil, art. 373,
li). De fato, tanto no comodato como no depósito, a relação se baseia
na mútua confiança entre as partes, só se efetuado o pagamento com
a restituição da própria coisa emprestada ou depositada 58 . Quanto aos
alimentos, realmente, estes não cumpririam a sua função de subsis-
tência caso o devedor pudesse compensá-los com aquele que necessita
dos mesmos para sobreviver 59 .
445
Por fim, não haverá compensação se uma das dívidas for coisa
insuscetível de penhora (Código Civil, art. 373, III), pois, caso contrá-
rio, estaria a lei admitindo que fosse alienado aquilo que ela mesma
determina ser inalienável. Assim, créditos de salários, por exemplo,
não podem ser compensados com outros de natureza diversa.
4. Confusão
parte da dívida alimentar do provedor, aqueles por ele diretamente efetuados, refe-
rentes à luz, telefones, provedor de internet, dentista, academia de ginástica, empre-
gada doméstica terapia e vestuário. Pesa singela razão que não lhe é dado definir, desde
logo, as rubricas em que seus credores empregarão as verbas que lhe são devidas e,
dessa forma, impor-lhe modo de vida diária de que já não mais participa. Expressões
injuriosas. Não se sujeitam à crítica do artigo I5, do C PC., expressões hostis, embora
desnecessárias, se não se revelam injuriosas. Litigância de má-fé não caracterizada.
Recurso parcialmente provido". TJRJ, I a CC, AI 2003.002.0II78, Rei. Des. Maurício
Caldas Lopes, j. em I0.06.2003.
60 CLOVIS BEVILAQUA, Direito das obrigações, cit., p. I4I.
61 "Apelação. Honorários de Advogado. Estado vencido em causa cujo vencedor foi
patrocinado pela Defensoria Pública. Extinção da Obrigação. Confusão entre credor e
devedor. Art. 1.049 do CC. Ausência de personalidade da DPGE. Precedentes do
STJ. Provimento do Recurso". TJRJ, I7 3 CC, AC 2004.001.18477, Rei. Des. Rudi
Loewenkron, j. em I5.09.2004.
62 JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, volume li,
cit., p. 258.
63 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de Direito Civil, vol. 11, cit., p.
271.
446
De acordo com Sílvio Rodrigues, em rigor, a relação jurídica não
se devia extinguir, mas tão-só neutralizar-se, pois a obrigação não foi
cumprida, nem se resolveu, já que ela apenas deixou de ser exigida, na
prática, porque o credor não há de reclamá-la de si mesmo. Em defesa
de sua posição, invoca o autor o art. 384 do Código Civil, uma vez que
o restabelecimento da obrigação com todos os seus acessórios é incon-
cebível se a obrigação efetivamente se extinguiu, já que, nesta hipóte-
se, extinguiram-se, também, todos os privilégios e garantias da obriga-
ção, só se podendo compreender a solução da lei a partir da concepção
da confusão não como modo de extinção da obrigação, mas como for-
ma de neutralização do crédito 64 .
Em realidade, o art. 384 não descaracteriza a confusão como
modo de extinção da obrigação, mas aponta que para a mesma é pre-
ciso que o fato que a ensejou seja válido e definitivo. Com efeito, se há
interesse na manutenção do vínculo, não se dá a extinção. Tal ocorre
quando posteriormente à reunião subjetiva verifica-se que a razão de
que procede é transitória (como, por exemplo, a do herdeiro legítimo
que, aberta a sucessão, vem a repudiar a herança) ou porque adveio de
relação jurídica ineficaz (por exemplo, a situação do herdeiro testa-
mentário beneficiado por testamento, que vem a ser anulado ) 65 . Nes-
tes casos, a obrigação é restaurada retroativamente, com todas as suas
conseqüências e acessórios 66 .
No entanto, como assinala Caio Mário da Silva Pereira, "as garan-
tias reais e os direitos de terceiros têm de ser respeitados, quando
constituídas aquelas ou adquiridos estes na pendência do efeito extin-
tivo da confusão. Se, por exemplo, a restauração da garantia hipotecá-
ria defronta-se com uma nova inscrição, realizada após aquela extin-
ção, não terá sobre ela prioridade, pois que perde o grau de que ante-
riormente gozava" 67 •
A extinção da obrigação pela confusão será excluída se "o crédito
e o débito a ele correspondente, embora sob a mesma titularidade
subjetiva, encontram-se em patrimônios juridicamente separados.
447
Isto se dá quando se configuram patrimônios distintos, juridicamente
protegidos, a despeito da presença em ambos de um mesmo titular" 68 .
Afirma-se, por conseguinte, que a confusão se configura diante
dos seguintes requisitos: "i) unidade da relação obrigacional, que pres-
supõe a existência do mesmo crédito, da mesma obrigação; ii) reu-
nião, na mesma pessoa, das qualidades de credor e devedor; que gera
a extinção do vínculo independentement e da vontade, e bem assim da
natureza ou da origem da obrigação, pois que real ou pessoal o direito,
ou gerada a obligatio pela lei ou pela vontade das partes desaparece
ope Legis pelo só fato de se anularem os seus dois termos, ativo e pas-
sivo, ao se integrarem em uma só pessoa; iii) ausência de separação de
patrimônios" 69 .
De acordo com Gustavo Tepedino e outros, "este último requisito
quer significar que não haja, na mesma pessoa, a divisão entre o patri-
mônio comum, que é a garantia geral dos credores, e os ditos patrimô-
nios especiais, cuja separação é afetada à origem dos bens que os com-
põem (por exemplo, os bens excluídos da comunhão, v. art. 1.659) ou
aos fins que devem desempenhar (por exemplo, o bem de família). Se
o crédito e o débito, ainda que atinentes à mesma pessoa, estão posi-
cionados em patrimônios distintos, não há confusão" 70 .
A confusão pode ser total, se extingue toda a dívida, ou parcial, se
extingue tão-somente parte dela (Código Civil, art. 382). Desse
modo, na hipótese de sucessão causa mortis, só se opera a confusão
total quando houver um único herdeiro, sendo a herança solvente,
pois, se houver co-herdeiros, o cumprimento da obrigação devida por
um deles aumentará o patrimônio a ser partilhado, não se operando,
por conseguinte, a confusão total. Do mesmo modo, se a herança for
insolvente, os credores do autor da herança terão interesse em que o
herdeiro pague o que deve ao espólio, para que suas dívidas possam ser
satisfeitas.
Em relação às obrigações solidárias, a confusão operada na pessoa
do credor ou devedor solidário só extingue a obrigação até a concor-
rência da respectiva parte no crédito, ou na dívida, subsistindo quanto
448
71
ao mais a solidariedade (Código Civil, art. 383) . Desse modo, se A,
B e C devem 600 a D em regime de solidariedade e A falece deixando
D como único herdeiro, B e C passarão a responder solidariamente
perante D por 400. A confusão não exonera os demais devedores da
totalidade da dívida, mas somente em relação à parte da obrigação
relativa ao devedor diretamente atingido por ela, mantendo-se a soli-
dariedade.
Quanto às obrigações indivisíveis, uma vez operada a confusão em
relação ao credor e um dos co-devedores, ou em relação ao devedor e
um dos co-credores, será mantida a obrigação, abatendo-se a parte em
que se verificou a extinção pela confusão. Assim, se A, B e C devem
uma baixela a D e este morre e deixa como sucessor C, este terá
direito de exigir de A e B a entrega da baixela, mas deverá entregar a
parte que lhe cabia na dívida a A e B. Se for o inverso, ou seja, A, B e
C credores de uma baixela em relação a D, sucedendo este a C, man-
tém-se o direito de A e B cobrar de D a baixela, mas com a obrigação
72
de entregar a Do valor que correspondia a C . Segundo Silvio Rodri-
gues, a cobrança da prestação indivisível com desconto da parte em
que se operou a confusão decorre da aplicação analógica do art. 272 do
Código Civil 73 .
5. Remissão
449
não as referentes a direitos estabelecidos mais em atenção à ordem
pública e ao interesse da coletividade 75 .
A remissão é equivalente a um ato de disposição. Por esta razão,
não basta ao remitente a capacidade genérica para os atos da vida civil,
sendo preciso que este tenha legitimação para alienar 76 .
Para a validade da remissão, não é necessário que esta venha reves-
tida de forma especial. De fato, a forma do ato dependerá da natureza
da obrigação e das providências que se devam seguir para obter a libe-
ração plena do devedor 77 •
Muito se discute sobre a natureza do ato remissivo. Para alguns,
trata-se de ato unilateral, que se aperfeiçoa pela manifestação da von-
tade do credor. Dentre os defensores desta posição, situa-se Caio Má-
rio da Silva Pereira, asseverando que: "A essência do perdão está, pois,
na vontade do credor, a qual, como declaração receptícia, deve ser
dirigida ao devedor. Nem por isso, entretanto, a validade da renúncia
depende de aceitação deste. Basta a não-oposição, que não se confun-
de com aceitação, para que ela se perfaça" 78 .
Outros, no entanto, vêem na remissão um negócio bilateral, de-
pendendo da aceitação do devedor. Conforme João de Matos Antunes
Varela, não se coadunaria com a moderna concepção da relação obri-
gacional (toda virada sobre os deveres de cooperação entre credor e
devedor) a tese da unilateralidade da remissão 79 .
A segunda corrente foi adotada pelo Código Civil em seu art.
450
385 80 . Referido dispositivo determina que a remissão da dívida, aceita
pelo devedor, extingue a obrigação. Sem dúvida, ainda nas lições de
João de Matos Antunes Varela, "a obrigação é mais alguma coisa do
que o direito de crédito, que não passa de uma das faces da relação
creditória. ( ... )A extinção do vínculo obrigacional por meio da remis-
são não envolve apenas uma perda definitiva do poder de exigir confe-
rido ao credor; implica do mesmo passo um enriquecimento do deve-
dor, traduzido na supressão dum elemento negativo, que onerava o
seu patrimônio" 81 •
Sem dúvida, o devedor pode ter diversas razões, inclusive de natu-
reza não econômica, para não aceitar o perdão. Este, por exemplo,
pode travestir-se em humilhação 82 . Ou, ainda, o devedor pode preten-
der afirmar a inexistência da dívida e obter a declaração judicial do
fato 83 .
Ressalte-se a impossibilidade de a remissão causar prejuízos a ter-
ceiros, conforme parte final do art. 385. De fato, a remissão, como ato
equivalente a uma disposição, pode ensejar fraude contra credores,
ocasionando a anulação do ato, nos termos do art. 158 do Código
Civil. Segundo Judith Martins-Costa, a regra traduz o princípio da
confiança, em torno do qual se articula o Direito das Obrigações:
451
Segundo Gustavo Tepedino e outros, a remissão da dívida não
deve ser confundida com a renúncia ao crédito, figura atípica no direi-
to brasileiro: "Tendo o direito de crédito natureza patrimonial, e sen-
do disponível, nada obsta a que o credor dele abdique, o que não
demandará a aquiescência do devedor. Cumpre distinguir: a remissão
é bilateral, exigindo a concordância do devedor, ao passo que a renún-
cia é unilateral; a remissão aproveita ao devedor diretamente, ao passo
que a renúncia só o atinge por efeito secundário ou reflexo; para acei-
tar remissão, o devedor deve ser pessoa civilmente capaz, enquanto a
renúncia depende da capacidade apenas do renunciante" 85 .
Observe que a remissão é ato gratuito, não se admitindo contra-
partida86. Alguns autores, no entanto, admitem a remissão onerosa,
como Orlando Gomes:
452
dentro da fórmula usada pelo legislador, é evidente que não basta o
ato material da detenção do título pelo devedor, para que se tenha por
extinta a obrigação, assinalando a presença de outros fatores: a) entre-
ga efetiva do título, a significar tomada de posição do credor. Se o
título estiver com o devedor por outra causa, falta base à remissão; b)
entrega feita pelo credor ou por pessoa que o represente; c) entrega
voluntária, tanto no sentido da sua espontaneidade quanto no de abri-
gar a intenção de abdicar da qualidade creditória 90 .
A remissão pode, ainda, ser total, quando extingue toda a obriga-
ção, ou parcial, quando atinge apenas parte da mesma.
O credor pode remitir apenas a garantia do crédito, subsistindo a
obrigação íntegra, mas quirografária (Código Civil, art. 387). A remis-
são da garantia se presume quando o devedor restitui voluntariamente
o objeto empenhado, valendo aqui as mesmas considerações feitas
acima sobre a entrega voluntária do título da obrigação ao devedor.
Ressalte nesta questão o princípio da gravitação jurídica: o acessório
segue a sorte do principal, mas a recíproca não é verdadeira. Desse
modo, o fato de o credor ter remitido a garantia não extingue a obri-
gação principal, ao passo que a remissão desta extingue as garantias
que porventura lhe foram concedidas.
título ao devedor pelo credor. Presunção relativa possível de ser elidida. Remissão da
dívida. Inexistência do ânimo de perdoar. Descaracterização. Alegação de desvirtua-
mento do Princípio do livre convencimento. Não-explicitação dos motivos da Insur-
gência. Desconsideração das provas produzidas. Inocorrência. Enunciado n° 7 da Sú-
mula/STJ. Advogado como testemunha. Possibilidade. Depoimento por ter presen-
ciado o fato e não por ouvir dizer. Impedimento restrito ao processo em que assiste ou
assistiu a parte. Julgamento extra perita. ;\lão-caracterização. Pedido existente no cor-
po da petição. Embora não constasse da parte específica dos requerimentos. CC arts.
945 e I .053, CPC, arts. 125, I 28, 131, 332, 334-IV, 405-parágrafo 2. e 460. Recurso
desacolhido. I - A entrega de título ao devedor promissário-comprador, pelo credor
promitente vendedor, firma a presunção relativa de pagamento disciplinada pelo art.
945, CC. Contudo essa presunção e possível de ser elidida, nos termos de parágrafo I.
do mencionado artigo. Afirmando o aresto impugnado sua ocorrência, após análise de
todo o contexto probatório, impossível averiguar-se sua exatidão, pois demandaria
reexame de provas, defeso em sede especial nos termos do Enunciado n. 7 da Sumu-
la/STJ. 11- Discutindo-se a respeito da entrega de título como forma de pagamento,
insistindo o credor ter ela se efetivado tão-somente em confiança, constata-se a ausên-
cia do ânimo de perdoar, descabendo, por conseguinte, cogitar de aplicação do art.
1.053 do Código Civil, referente à remissão de dívidas( ... )". STJ, 4" T., Resp 76153,
j. 05.12.1995, v.u., DJ 05.02.1996 p. 1406.
90 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de Direito Civil, vol. 11, cit., p.
277.
453
Nas hipóteses de obrigações solidárias passivas, se o perdão se re-
fere a apenas um dos co-devedores solidários, já não poderá mais o
credor cobrar o débito sem a parte remitida, embora conserve a soli-
dariedade em relação aos demais co-devedores (Código Civil, art.
388). Já em caso de solidariedade de credores, como qualquer um
pode exigir o cumprimento da obrigação, o mesmo pode se dizer do
perdão. Neste caso, o credor remitente indenizará os demais.
Havendo pluralidade de credores e obrigação indivisível, se um
dos credores perdoa a dívida, o devedor continua obrigado à dívida
por inteiro, mas os credores devem indenizá-lo quanto à parte do cre-
dor remitente. Do mesmo modo, na hipótese de obrigação indivisível
com pluralidade de devedores, se o credor perdoa apenas um dos de-
vedores, poderá cobrar dos outros a prestação por inteiro, mas terá
que indenizar, ou melhor, restituir a parte remitida.
6. Conclusão
454
De fato, a compensação é fato extintivo duplamente, pois deter-
mina a extinção de duas obrigações. Já a novação é fato além de extin-
tivo, também constitutivo de uma obrigação. A remissão, por sua vez,
tem por efeito a não realização da prestação, ensejando uma va!}t~gem
patrimonial para o devedor.
Assim, o ato remissivo do credor pode ser anulado pela ação pau-
liana, se causar prejuízo aos seus credores (Código Civil, art. 158), ao
passo que a dívida extinta pela compensação legal não ~stá sujeita. à
mesma possibilidade 94 . ; ,
Sem dúvida, identificar os fatos acima além de seu efeito extinto
é essencial para que possam ser analisados na sistemática do ordena-
mento jurídico, a partir da função que nele desemp~nharri., que deverá
sempre estar permeada pela boa-fé que deve informar as relações
obrigacionais.
455
Inadimplemento das Obrigações,
Mora e Perdas e Danos
Sérgio Saví
I GOMES, Orlando. Obrigações, 12• ed., Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2002, p. 9.
457
conclusão de que a noção simples de relação obrigacional estava ultra-
passada. Isto porque, constatou-se que, ao lado dos deveres de presta-
ção há deveres secundários, os chamados deveres laterais, além de
direitos potestativos, sujeições, ônus, expectativas jurídicas, etc 2 .
De grande importância para a criação da concepção complexa 3 de
relação obrigacional foi o reconhecimento pela doutrina, jurisprudên-
cia e, mais recentemente, pelo próprio legislador, da incidência do
princípio da boa fé objetiva nas relações obrigacionais. Isto porque, a
boa fé objetiva tem como uma de suas principais características ser
fonte criadora de deveres instrumentais 4, também chamados de ane-
xos, conexos ou laterais, que compõem a relação obrigacional em con-
junto com os deveres principais, mesmo que as partes não tenham
expressamente pactuado tais deveres 5.
Os deveres decorrentes da boa fé, tais como os deveres de prote-
ção, de lealdade, de cuidado e de informação, são considerados instru-
mentais porque direcionam a relação obrigacional ao seu adequado
adimplemento, considerando os legítimos interesses das partes envol-
2 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações, 7a ed., Coimbra: Alme-
dina, 1999, p. 60.
3 Conforme ressalta Judith Martins-Costa, "... a relação obrigacional, mormente a
relação contratual, é sempre complexa, pois estruturada não apenas na obrigação prin-
cipal (dever de prestação), mas igualmente, por deveres de prestação secundários e
deveres instrumentais, assim reconhecidos pela ordem jurídica porque visam garantir,
otimamente, a consecução da finalidade à qual se dirigem a relação e a proteção dos
legítimos interesses do alter". In Comentários ao Novo Código Civil, vol. V, Tomo 11:
do inadimplemento das obrigações, Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rio
de Janeiro: Forense, 2003, p. 64. A relação obrigacional complexa é, nos dizeres de
Jorge Cesa Ferreira da Silva, "a relação (unitária) que reúne, ao lado dos deveres de
prestação (principais e acessórios), os deveres laterais de conduta, assim como outras
eficaciais: os direitos potestativos, estados de sujeição, ônus jurídicos, etc." SILVA,
Jorge Cesa Ferreira da. A Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato. Rio de Janeiro:
Renovar,2002,p. 57
4 A denominação "deveres instrumentais" adotada por Judith Martins-Costa, con-
forme ressaltado pela própria autora, parece mais significativa do que a de "deveres
anexos" ou "deveres laterais", pois enfatizao caráter instrumental dos deveres, além
de ser mais abrangente, na medida em que sinaliza a possibilidade de existência desses
deveres mesmo quando ainda não existe a prestação principal, como ocorre nas fases
pré e pós contratuais. In Comentários ... cit. p. 36.
5 Para o estudo da boa-fé objetiva ver, dentre outros, MENEZES CORDEIRO, An-
tonio Manoel da Rocha. Da boa-fé no Direito Civil, Coimbra: Almedina, 200I; e
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo
obrigacional, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
458
vidas na relação e visando alcançar as finalidades que nortearam a cria-
ção do vínculo 6 .
Além de considerar a relação obrigacional como sendo uma rela-
ção complexa, a doutrina moderna afirma que a relação obrigacional
não pode ser vista de forma estática. Pelo contrário, a relação obriga-
cional se desenvolve como um processo, polarizado pelo seu adimple-
mento com a satisfação das partes, que é o seu fim. Como todo pro-
cesso, a obrigação caminha para algo, este algo é o adimplemento que,
7
por sua vez, é o próprio fundamento de existência da obrigação •
Com base na noção simples e estática de relação obrigacional, o
ordenamento jurídico brasileiro anterior a entrada em vigor do Novo
Código Civil desenvolveu um modelo dicotômico de inadimplemen-
to. De acordo com o revogado Código Civil de 1916, o inadimplemen-
to das obrigações dividia-se, tão somente, em inadimplemento absolu-
to e inadimplemento relativo ou mora. O traço distintivo entre ina-
dimplemento absoluto e a mora está no fato de que no inadimplemen-
to absoluto a obrigação deixa definitivamente de ser cumprida, en-
quanto que, para a configuração da mora, é necessário que seja possí-
vel o cumprimento da obrigação, ainda que tardio.
Ao se considerar os deveres laterais criados pela boa fé objetiva
como integrantes da relação obrigacional, amplia-se o próprio concei-
to de adimplemento 8 , na medida em que este passará a abarcar todos
os interesses envolvidos na relação, estendendo-se dos deveres de
prestação aos deveres instrumentais. Ampliando-se o conceito de
459
adimplemento, por conseqüência, amplia-se também conceito de ina-
dimplemento, na medida em que poderá ser ocasionado não só pela
quebra dos deveres de prestação, mas também pela violação dos deve-
res instrumentais impostos pelo princípio da boa fé objetiva.
O entendimento da relação obrigacional como sendo uma relação
complexa e dinâmica ampliou, portanto, a própria noção de inadim-
plemento, restando insuficiente o modelo dicotômico (inadimple-
mento absoluto e mora) para a resposta a diversas questões em torno
do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso das obrigações
verificadas no dia a dia forense. Assim, conforme defendido pela dou-
trina moderna, o modelo dicotômico de inadimplemento deve ser
alargado, para que nele seja incluída uma terceira via, a violação posi-
tiva do contrato 9 , que será objeto de mais detida análise no item 6
infra.
A palavra inadimplemento significa, em sentido amplo, a "situação
objetiva de não realização da prestação devida e de insatisfação do
interesse do credor" 10 . Este conceito amplo, contudo, tem o defeito
de abranger os casos em que a prestação devida não é realizada em
razão da impossibilidade de prestar, independentemente da causa da
impossibilidade, seja ela imputável ou não ao devedor 11 .
Assim, estritamente falando, inadimplemento não é a simples au-
sência de cumprimento da prestação devida. No sentido estrito, ina-
dimplemento constitui a não realização da prestação devida, enquanto
devida, na medida em que essa falta de cumprimento corresponda à
violação da norma, legal, convencional ou imposta pelos usos, que era
especificamente dirigida ao devedor, cominando o dever de prestar,
ou ao credor, cominando o dever de receber 12 .
Há duas classificações mais importantes das situações de inexecu-
ção das obrigações. A primeira delas se dá em relação à causa da ine-
xecução, classificação esta que será de extrema importância para a
fixação das conseqüências da inexecução da obrigação. Quanto à cau-
sa, a inexecução pode se dar por fato inimputável às partes, por fato
460
imputável ao devedor ou por fato imputável ao credor. A segunda
classificação leva em consideração o efeito do não cumprimento, dis-
tinguindo o inadimplemento em definitivo (ou absoluto), o inadim-
plemento não definitivo ou mora e, devido à ampliação do conceito de
adimplemento, o cumprimento imperfeito ou a violação positiva do
contrato 13 .
O inadimplemento pode ser total ou parcial. Será total o inadim-
plemento quando a obrigação é inteiramente descumprida, será par-
cial quando a prestação é entregue apenas em parte. É importante
atentar para não confundir inadimplemento absoluto com total e ina-
dimplemento relativo (mora) com o parcial. Isto porque, tanto o ina-
dimplemento absoluto quanto a mora podem ser totais ou parciais.
Como exemplo de inadimplemento absoluto parcial, podemos ci-
tar aquele da agência de turismo que promove uma excursão envol-
vendo visitas a diversas cidades, mas deixa de levar os viajantes a uma
das cidades previamente designada como local de visitação por não ter
pré-agendado a hospedagem no hotel e não ter conseguido alojar os
seus contratantes em outro estabelecimento. A viagem, neste caso,
ocorreu, mas acabou descumprida, definitivamente, uma das obriga-
ções previstas no contrato 14 . O inadimplemento aqui é absoluto, mas
parcial. Por outro lado, será total o inadimplemento relativo (a mora)
do mutuário que atrasa a devolução da quantia emprestada 15 •
2. Inadimplemento absoluto
461
Como exemplo da primeira hipótese pode-se citar o caso de uma
pessoa que se comprometeu a entregar um determinado cavalo de
raça em data futura, mas que se viu impossibilitada de cumprir a obri-
gação em virtude da ocorrência de um incêndio no estábulo que cau-
sou a morte do animal. Neste exemplo, o objeto da prestação pereceu
e, assim, a prestação não poderá ser cumprida definitivamente.
Já em relação ao inadimplemento absoluto da obrigação decorren-
te da falta de interesse do credor em receber tardiamente a prestação
ainda possível, pode-se citar o exemplo da debutante que contrata um
coral para cantar em sua festa de quinze anos. O coral não aparece
para a apresentação no dia da festa. O cumprimento daquela obriga-
ção ainda seria possível, tendo em vista que o coral poderia se apresen-
tar em outra data. Contudo, por motivos óbvios, a debutante não terá
interesse em receber a prestação tardiamente, configurando, assim,
hipótese de inadimplemento absoluto.
A impossibilidade ocorre quando existe "obstáculo invencível ao
cumprimento da obrigação, seja de ordem natural ou jurídica" 17 . En-
quadra-se também no conceito jurídico de impossibilidade as situa-
ções em que o devedor teria que envidar um esforço extraordinário e
injustificável para o cumprimento da obrigação 18 •
A impossibilidade será física ou fática, quando o objeto da presta-
ção não puder realizar-se por ter perecido. Será jurídica quando o
obstáculo ao adimplemento decorrer de prescrição legaP 9 . Será total
quando toda a prestação não puder ser realizada e parcial quando, em
virtude da natureza cindível da prestação, apenas uma parte dela não
puder ser realizada.
A impossibilidade pode ser superveniente ao nascimento da obri-
gação ou pode estar presente ao tempo de sua constituição, caso em
que a prestação desde o início não poderia ser fática ou juridicamente
realizada. Para o estudo da teoria do inadimplemento somente inte-
ressa a impossibilidade superveniente, na medida que a impossibilida-
de originária, conforme disposto no art. 145, 11, do Código Civil,
atinge a própria validade do negócio jurídico, que será considerado
nulo de pleno direito. O vício de nulidade, todavia, somente atinge à
impossibilidade originária objetiva (ou absoluta), assim considerada
aquela que é impossibilidade em si mesma e para todos. Quando a
462
impossibilidade originária for subjetiva (ou relativa), por ser impossí-
vel apenas para o devedor, o ato será válido, sendo hipótese de incapa-
cidade do devedor 20 .
São consideradas causas de extinção da obrigação tanto a impossi-
bilidade superveniente absoluta (objetiva- em relação a todos) como
a superveniente relativa (subjetiva- em relação ao devedor) 21 .
As conseqüências do não cumprimento da obrigação irão variar
devido à causa do inadimplemento. Se imputável ao devedor, ocorrerá
o efeito típico do inadimplemento, previsto no art. 389 do Código
Civil, que é o surgimento do dever de reparar os danos causados pelo
inadimplemento. Por outro lado, se o inadimplemento for inimputá-
vel ao devedor, seja em razão de caso fortuito, de força maior, de fato
de terceiro ou de fato imputável ao credor, a relação obrigacional será
extinta, sem que para o devedor surja a obrigação de indenizar.
20 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos ... , cit., p. 97.
21 lbid, p. 98.
22 Conforme esclarece Sérgio Cavalieri Filho, "O que é indiscutível é que tanto um
como outro estão fora dos limites da culpa. Fala-se em caso fortuito ou de força maior
quando se trata de acontecimento que escapa a toda diligência, inteiramente estranho
à vontade do devedor da obrigação". CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa deres-
ponsabilidade civil, 4• ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 85.
463
rente da impossibilidade de superá-lo 23 • De acordo com o Código Ci-
vil, a imprevisibilidade não é um requisito do fortuito e da força
maior, podendo, contudo, contribuir para a aferição da inevitabilidade
do evento 24 .
Se o comportamento do devedor facilitou ou contribuiu para a
ocorrência do caso fortuito ou de força maior, não se poderá falar em
fortuito 25 . Da mesma forma, se o fato for resistível e o credor não o
houver superado, seja por culpa, seja por dolo, também não poderá se
valer da escusa de responsabilidade concedida pelo artigo 393 26 .
O caso fortuito ou de força maior é, portanto, excludente deres-
ponsabilidade do causador do dano. Contudo, em se tratando deres-
ponsabilidade civil objetiva, em que a existência de culpa do ofensor
não é um elemento essencial para o surgimento da obrigação de inde-
nizar, a doutrina moderna impõe um refinamento no conceito de caso
fortuito, de modo a restringir ainda mais as hipóteses de excludentes
de responsabilidade.
Assim, em sede de responsabilidade objetiva, divide-se o conceito
de caso fortuito em fortuito interno e fortuito externo, sendo que
somente o fortuito externo é considerado apto a excluir a responsabi-
lidade do ofensor. O fortuito interno seria aquele fato imprevisível, e
por isso, inevitável, mas que está ligado à organização da empresa, que
se relaciona com os riscos da atividade desenvolvida pelo ofensor.
Como exemplos de fortuito interno na atividade do transportador,
tem-se o estouro de pneus ou o mal súbito do motorista 27 . Já o fortui-
23 FONSECA, Amoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão, 3" ed., Rio
de janeiro: Forense, 1958, pp. 14 7 e 148.
24 Conforme destaca Orlando Gomes: "Importa que seja estranho à sua vontade.
Não se requer, em suma, como na teoria objetiva, um acontecimento natural, extraor-
dinário, imprevisível e inevitável. Fatos correntes, e portanto previsíveis, podem im-
pedir o adimplemento da obrigação, liberando o devedor, desde que impossibilitem a
prestação sem sua culpa". Obrigações, cit., p. ISO.
25 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, vol. Z: Parte Geral das Obrigações, 30• ed.:
Saraiva, 2002, p. 238. Como exemplo desta hipótese, pode-se citar o mencionado por
Agostinho Alvim: Se o devedor guardou em casa, por largo tempo ante do vencimento,
importante soma destinada ao pagamento da prestação devida e no intervalo a soma
foi roubada, em condições tais de modo a tornar impossível qualquer resistência, não
poderá alegar o fortuito, na medida em que o evento se deu por sua culpa. Isto porque,
se não era possível defesa contra os ladrões, podia ter evitado o acontecimento reco-
lhendo o dinheiro a um banco. Da inexecução ... , cit., p. 207.
26 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil ... , cit., p. 238.
27 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa ... , cit., p. 298.
464
to externo é aquele fato estranho à organização da empresa, cujos
riscos não são suportados por ela 28 .
4. Imputabilidade e Culpa
465
Assim, diante do sistema dualista da responsabilidade civil, que
prevê hipóteses de responsabilidade civil fund,adas ou não na culpa,
entendemos que imputar não é inculpar, não é atribuir culpa, mas sim
atribuir responsabilidade. Ou seja, a culpa não é elemento essencial e
indispensável da imputabilidade 31 .
5. Mora
466
a mora se, em função da entrega em lugar diverso ou em desconformi-
dade com a forma estabelecida, houver atraso no cumprimento da
prestação.
O cumprimento em lugar e forma diversos do estabelecido, disso-
ciado do fator tempo, implica, na realidade, em cumprimento defei-
tuoso, atualmente denominado de violação positiva do contrato.
O conceito de mora não deriva exclusivamente da leitura restriti-
va do artigo 394 do Código Civil, devendo ser complementado pelo
disposto no artigo 396, que exige, para a caracterização da mora, que
o inadimplemento seja imputável.
Deve o devedor solver a sua obrigação e o credor receber oportu-
namente. A falta de execução da obrigação no momento devido pode-
rá acarretar a mora de um ou de outro, dependendo do caso concreto.
Assim, incumbirá àquele a que for imputada a responsabilidade pelos
prejuízos decorrentes da mora o ônus de provar a existência de um
fato capaz de afastar a sua imputabilidade como, por exemplo, a ocor-
rência de caso fortuito ou de força maior 35 . Isto porque, não cumprida
a obrigação no tempo devido haverá imputabilidade presumida decor-
rente da presunção de culpa, presunção esta que poderá ser afastada
por prova em contrário.
Questão interessante a se sublinhar é a do "caráter. transformis-
ta"36 da mora. Há situações em que, apesar de a prestação estar em
atraso por motivo imputável ao devedor e de ainda ser possível o seu
cumprimento tardio, a mesma converte-se em inadimplemento abso-
luto (definitivo) em razão da falta de interesse do credor em receber
a prestação tardiamente (CC, art. 395, parágrafo único 37 ). Este "cará-
ter transformista" da mora será analisado como um dos efeitos da
mora do devedor no item seguinte.
467
mora solvendi será o retardamento no cumprimento da obrigação pelo
devedor por fato a ele imputável.
Portanto, os requisitos da mora do devedor são (i) a imputabilida-
de; (ii) exigibilidade imediata da obrigação; e (iii) a interpelação nos
casos das obrigações sem prazo estipulado para o adimplemento.
O primeiro requisito da mora do devedor é a imputabilidade, pois
"não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este
em mora" (CC, art. 396). No ordenamento jurídico brasileiro a impu-
tabilidade do devedor em caso de mora é presumida, tendo em vista o
entendimento pacífico, doutrinário e jurisprudencial, no sentido de
que há presunção de culpa do devedor em caso de retardamento no
cumprimento da obrigação. Esta presunção, contudo, é relativa e ad-
mite prova em contrário, cabendo ao devedor provar a ocorrência de
um fato capaz de exonerá-lo da responsabilidade pelo retardamento.
O segundo requisito da mora do devedor é a imediata exigibilida-
de da obrigação. Para que uma obrigação possa ser imediatamente
exigível, terá que ser certa, líquida e estar vencida. Certa é a prestação
caracterizada por seus elementos específicos. Líquida é a prestação
que, além da certeza do débito, tenha apurado o seu montante e indi-
viduado o seu objeto 38 . A obrigação deve, ainda, estar vencida, pois
antes do termo final, ou na pendência de condição suspensiva a mora
não ocorre 39 .
Por fim, o último requisito da mora do devedor, a interpelação,
somente será exigível nos casos em que, não havendo prazo estipulado
para o adimplemento da obrigação, a mora somente começa com a
interpelação do devedor.
De acordo com o disposto no art. 395 40 do Código Civil, o princi-
pal efeito da mora do devedor consiste na sua responsabilidade pelos
prejuízos que o credor vier a sofrer em razão do retardamento impu-
tável. No caso de mora do devedor, a indenização, ao contrário do que
ocorre nas hipóteses de inadimplemento absoluto, não tem o condão
de substituir a prestação devida. Isto porque, se a prestação ainda for
útil para o credor, ele poderá exigir a execução da prestação, cumula-
da com a indenização pelos prejuízos causados pela mora do devedor.
468
O segundo efeito da mora do devedor decorre da interpretação do
parágrafo único do art. 395, do Código Civil. De acordo com este
dispositivo legal, se em virtude da mora, a prestação se tornar inútil ao
credor, este poderá enjeitá-la e exigir indenização pelos danos sofridos
com a demora. Assim, surge uma alternativa para o credor, que poderá
aceitar a prestação acrescida da indenização pelos prejuízos sofridos
ou, se provar que a prestação tornou-se inútil por causa da mora, po-
derá rejeitá-Ia e reclamar perdas e danos 41 . Nos contratos bilaterais,
portanto, se o credor provar a inutilidade da prestação tardiamente
prestada, e a ele é atribuído este ônus, poderá pedir a resolução do
contrato.
Inicialmente, cumpre destacar que o conceito de inutilidade exi-
gido pelo parágrafo único do art. 395 para atribuir ao credor o direito
de rejeitar a prestação com atraso é subjetivo. Ou seja, a prestação
deve ser inútil para aquele credor específico no caso concreto e não
para qualquer pessoa (conceito objetivo) 42 .
Assim, a verificação da inutilidade ou não da prestação e do direito
do credor rejeitar a prestação e pedir a resolução do contrato depen-
derá sempre da análise do caso concreto e da prova da situação de fato
da inutilidade pelo credor.
Como exemplo de inutilidade superveniente da prestação, imagi-
ne-se que uma empresa é proprietária de um determinado imóvel no
Centro do Rio de Janeiro. Esta empresa sabe que se o imóvel for anun-
ciado e ela não tiver pressa na venda, conseguirá, mais cedo ou mais
tarde, vendê-lo por uma quantia entre R$ 450 e R$ 550 mil reais
devido, principalmente, à sua excelente localização.
Ocorre que a empresa se vê na necessidade de ter dinheiro em
caixa em razão de uma oportunidade de investimento. Desta forma,
para não perder a oportunidade de negócio surgida, a empresa, ao
invés de anunciar o imóvel pelo preço de mercado, opta por vendê-lo
por R$ 300 mil a uma corretora de imóveis, que se compromete a
quitar o preço em dois meses, tempo esse suficiente para que a em-
presa possa aproveitar aquela oportunidade de investimento. Assim,
empresa e corretora assinam uma promessa de compra e venda, pa-
gando a corretora um sinal e se comprometendo a quitar o preço em
dois meses.
Passados dois meses, a corretora, que na realidade havia adquirido
o imóvel para revendê-lo pelo preço de mercado, não consegue efe-
469
' .
tuar a venda e, assim, não efetua o pagamento do saldo do preço para
a empresa. Sem levar em conta a situação de fato em que foi celebrada
a escritura de promessa de compra e venda, por certo estaríamos dian-
te de um caso típico 4e mora, de atraso no cumprimento da obrigação.
Contudo, levando-se em consideração a situação fática do caso
concreto, facilmente perceber-se-á a inutilidade para o credor em re-
ceber a prestação tardiamente. Isto porque, fosse para aguardar o
comprador ideal que pagaria o preço de mercado, a empresa não pre-
cisava ter vendido o imóvel para a corretora com urgência e pelo preço
que vendeu. Ela mesma poderia aguardar a oportunidade para vendê-
lo pelo preço de mercado. A venda para a corretora por R$ 300 mil foi
feita tão somente pela necessidade da empresa de ter essa quantia em
caixa para outro investimento. Não tend9 recebido a quantia no prazo
acertado, não conseguiu dinheiro no caixa para a oportunidade de in-
vestimento e, assim, a prestação tardia se tornou inútil do ponto de
vista do credor. Desta forma, provada a mora da corretora promitente
compradora, a empresa poderá rejeitar a prestação tardia e pedir a
resolução do compromisso de compra e venda do imóvel em razão da
inutilidade da prestação tardia, além de indenização pelos danos que
conseguir comprovar.
O terceiro efeito da mora do devedor está previsto na primeira
parte do art. 399 43 , do Código Civil, que consagra a perpetuação da
obrigação do devedor moroso. Conforme se extrai do art. 393, do
Código Civil, o caso fortuito e a força maior resolvem a obrigação.
Contudo, de acordo com o art. 399, do Código Civil, o devedor, uma
vez em mora, passa a responder pelos riscos da coisa, inclusive por
aqueles riscos decorrentes do fortuito e da força maior.
A regra da perpetuação da obrigação em caso de mora do devedor
sofre, todavia, um abrandamento, prevendo duas hipóteses em que,
não obstante o atraso, o devedor não responderá pelos riscos do fortui-
to e da força maior. A primeira exceção ocorrerá quando o devedor
conseguir provar que os danos sobreviriam mesmo que a obrigação
fosse oportunamente desempenhada. Como exemplo desta hipótese,
pode-se citar o da coisa fixa no solo (uma casa, por exemplo) e des-
truída por um raio na pendência da mora do devedor. Mesmo que o
470
devedor tivesse cumprido a sua obrigação no tempo devido, o credor
perderia a casa em virtude do raio que a destruiu 44 .
O artigo 399, do Código Civil estabelece, ainda, uma segunda ex-
ceção à regra da perpetuação da obrigação, ao dispor que o devedor
não responderá pelos prejuízos causados pelo fortuito durante a sua
mora "se provar isenção de culpa". A leitura desta parte do dispositivo
legal poderá ser feita de duas formas, dependendo do conceito de
imputabilidade utilizado pelo intérprete.
Pata aqueles que consideram a culpa (latu sensu) um requisito
essencial da imputabilidade e, portanto, também da mora (cf. art. 396
do CC), a exceção prevista nesta parte do dispositivo seria inútil, su-
pérfula. Para esta corrente, dizer que o devedor responde pela mora,
salvo se provar ausência de culpa, equivale a dizer que ele responde
pela mora, salvo se não houver mora 45 .
Por outro lado, para aqueles que não consideram a culpa (latu
sensu) um requisito essencial da imputabilidade e, conseqüentemen-
te, da mora, e que admitem a divisão da imputabilidade em subjetiva
(com fundamento na culpa) e objetiva (não baseada na culpa), a exce-
ção prevista nesta frase do art. 399 do CC, tem o seguinte significado:
mesmo se a prestação estiver atrasada o devedor poderá alegar a ex-
cludente do caso fortuito e da força maior se provar, e a ele caberá
este ônus, que a mora não lhe pode ser imputável porque não foi gera-
da por culpa sua.
Conforme demonstrado no item 4, supra, somos partidários da
segunda corrente, razão pela qual entendemos que a exceção prevista
nesta frase do art. 399 do CC, consiste na prova produzida pelo deve-
dor de que inexistiu culpa de sua parte no atraso da prestação. Como
a exceção visa beneficiar o devedor, "a demonstração da inexistência
de culpa passa a ser um ônus a mais imposto ao moroso" 46 .
471
tuação subjetiva de dever em relação ao credor. Principalmente em ra-
zão da incidência do princípio da boa-fé objetiva, que faz da relação obri-
gacional uma relação de cooperação, o credor também estará sempre em
uma situação de dever em relação ao devedor, dever este que variará de
acordo com o caso concreto e a natureza da obrigação 47 •
A mora do credor pode ser conceituada como a recusa injustifica-
da de aceitar a prestação devidamente ofertada, ou de aceder ao con-
vite do devedor para prestar a sua cooperação, quando esta é necessá-
ria para tornar a prestação materialmente possível 48 .
Deste conceito, é possível extrair os requisitos para a mora do
credor (ou mora accipiendi). São requisitos da mora do credor: (i) a
oferta do devedor, desde que seja completa, no lugar e tempo oportu-
nos; e (ii) a recusa sem justa causa do credor em recebê-la ou de
prestar a cooperação necessária imposta pela boa fé objetiva para per-
mitir o correto adimplemento.
De acordo com o disposto no artigo 400, do Código Civil, a mora
do credor causa os seguintes efeitos: (i) a isenção da responsabilidade
do devedor pela conservação da coisa (salvo em caso de dolo); (i i) a
obrigação de ressarcir as despesas feitas pelo devedor com a conserva-
ção da coisa, bem como os prejuízos que a sua mora tiver causado ao
devedor; e (iii) a obrigação do credor de recebê-la pela estimação mais
favorável ao devedor, em caso de oscilação de preço entre o dia esta-
belecido para o pagamento e o dia de sua efetivação 49 .
O primeiro efeito da mora do credor consiste na diminuição da
responsabilidade do devedor, que somente responderá pela eventual
deterioração da coisa em caso de dolo. O devedor continuará, contu-
do, obrigado aos cuidados indispensáveis à conservação que a coisa
exigir, não obstante a mora do credor, até porque o abandono pode,
em certos casos, ser considerado ato doloso 50 .
O segundo efeito da mora do credor é o de responsabilizá-lo pelas
despesas empregadas pelo devedor na conservação da coisa, assim
4 7 PERLING IERI, Pietro. li fenomeno dell' estinzione delle obligazioni. Napoli: Jovene
Editore, 191, pp. 45 e 46.
48 CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. XII, Di-
reito das Obrigações, 7" ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958, p. 3 I 9.
49 Além destes três principais efeitos, a mora do credor gera (i) a liberação do deve-
dor da pena convencional estipulada para o caso de inadimplemento; (i i) a liberação do
devedor do pagamento de juros de mora; e (iii) a possibilidade do devedor consignar
em pagamento para se desobrigar.
50 cf. Agostinho Alvim, Da inexecução ... , cit., p. 113.
472
como por eventuais danos por este sofrido em conseqüência da mora
do credor 51 .
Como último efeito da mora accipiendi, o artigo 400 menciona a
obrigação do credor de receber o objeto da obrigação pela mais alta
estimação se o valor daquele variar do dia em que a obrigação deveria
ter sido cumprida e o de sua efetivação. Assim, por exemplo: o deve-
dor se obriga a entregar cem sacas de café em determinado dia, mas,
em função da mora do credor que se obrigou a ir recebê-las, somente
vem a adimplir a sua obrigação um mês depois. Se no intervalo de
tempo compreendido entre o dia em que o pagamento deveria ter sido
realizado e a data de sua efetivação o valor da saca do café oscilou
entre cem e cento e cinqüenta reais e se no dia em que o credor for
receber a mercadoria o preço da saca do café estiver em cento e vinte
reais, este será obrigado a pagar cento e cinqüenta reais por saca de
café, recebendo, portanto, o café pela sua mais alta estimação 52 .
473
O art. 398 do Código Civil 55 , ao estabelecer que o causador do
dano é constituído em mora no momento em que pratica o ato ilícito,
cria uma hipótese legal e não convencional de mora ex re. Apesar de
estar localizado topograficamente no capítulo relativo à responsabili-
dade contratual, o ato ilícito mencionado pelo art. 398 é aquele que
tem como um de seus elementos a culpa extracontratual ou aquiliana.
Antes da entrada em vigor do vigente Código Civil, ocorreu signi-
ficativa discussão jurisprudencial acerca do âmbito de aplicação do
disposto no artigo 962 do Código Civil de 1916, que tinha redação
quase idêntica a do 398 do Código Civil. Após muita divergência,
pacificou-se a posição de que o disposto no art. 398 somente se aplica
aos casos de responsabilidade extracontratual subjetiva e não aos casos
de ilícito contratual ou de responsabilidade objetiva 56 .
O parágrafo único do art. 397 trata da chamada mora ex persona.
Aqui, ao contrário da mora ex re, a obrigação não prevê termo certo
para o adimplemento, sendo obrigatória a interpelação judicial ou ex-
trajudicial do devedor para a sua constituição em mora. O fim precí-
puo da interpelação exigida é o de demonstrar a vontade do credor de
receber o objeto da obrigação.
A interpelação judicial poderá ser suprida pela citação em ação
judicial 57 que produzirá o efeito de constituir o devedor em mora,
mesmo que seja nula por ter sido ordenada por um juiz incompetente
ou por vício de forma.
Assim, conforme leciona Carvalho Santos, para que tenha eficácia a cláusula que esti-
pula a constituição em mora de pleno direito pelo não pagamento de dívida líquida e
certa no prazo convencionado, a cláusula deverá ser complementada pela exigência do
pagamento no domicílio do credor. Ibid, p. 357.
55 Art. 398 -Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em
mora, desde que o praticou.
56 Nesse sentido, STJ, REsp. 56731, j. 03.12.1996, DJ 10.03.1997 e REsp. 136599,
j. 08.10.1997, DJ 15.12.1997.
57 Nesse sentido: Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de direito civil, vol. 11, obriga-
ções em geral, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, 7" ed., p. 359; J. M. Carvalho
Santos, Código Civil ... , cit., p. 362; Agostinho Alvim, Da inexecução ... , cit., p. 133.
58 Art. 401. Purga-se a mora: I -por parte do devedor, oferecendo este a prestação
mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta; 11 - por parte do
474
da mora tanto pelo credor, como pelo devedor. A emenda ou purga-
ção da mora é o procedimento espontâneo do contratante moroso,
pelo qual ele se prontifica a remediar a situação a que deu causa, sujei-
tando-se aos efeitos dela decorrentes 59 .
Tanto a mora do devedor (solvendi) quanto a mora do credor (ac-
cipendi) podem ser purgadas, desde que a prestação, apesar da mora,
continue sendo útil ao credor e que as partes não tenham previamente
estipulado que a ocorrência de mora implicaria na rescisão imediata
do negócio jurídico.
Nos termos do inciso I do art. 401, para que o devedor purgue a
mora, deverá oferecer a prestação no lugar e forma convencionados,
acrescida de importância relativa a todos os prejuízos sofridos pelo
credor em função de sua mora.
Interessante questão é a de saber até que momento pode ser pur-
gada a mora do devedor. Entendemos que a melhor doutrina é a que
defende a possibilidade da purgação da mora mesmo após a propositu-
ra de ação judicial, mas desde que antes de expirar o prazo para a
apresentação da defesa 60 .
O credor também poderá purgar a sua mora e, para tanto, terá que
se oferecer para receber o pagamento sujeitando-se aos efeitos da
mora até a data da oferta (CC, art. 401, 11). Além disso, para a efetiva
purga da mora, o credor terá que reembolsar o devedor pelas despesas
empregadas na conservação da coisa, bem como indenizá-lo por pre-
juízos eventualmente sofridos e decorrentes da mora do credor.
475
Para Jorge Cesa Ferreira da Silva, no ordenamento jurídico brasi-
leiro, violação positiva do contrato pode ser conceituada como "todo
inadimplemento decorrente do descumprimento culposo de dever la-
teral imposto pela boa fé objetiva, quando este dever não tiver vincu-
lação direta com os interesses do credor na prestação" 62 .
Não só a violação aos deveres instrumentais impostos pelo princí-
pio da boa fé objetiva ou o cumprimento defeituoso da obrigação con-
figuram hipóteses de violação positiva do contrato. Além destas duas
hipóteses, também se enquadram no conceito de violação positiva do
contrato as hipóteses de inadimplemento antecipado do contrato
quando, em função de declarações do devedor ou de condutas do
mesmo no sentido de descumprimento do pactuado, o adimplemento
se torna inviável 63 .
A questão mais interessante no acolhimento desta terceira espécie
SILVA, Jorge Cesa. Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar,
2002. Como exemplo desta espécie de inadimplemento, Jorge Cesa cita o seguinte
caso mencionado por Hermann Staub: "membro de uma sociedade que tinha o dever
de entregar, nos primeiros três meses do ano fiscal, o balanço da empresa. Em face do
balanço, disposições internas seriam adotadas, fazendo com que a sociedade tomasse
este ou aquele rumo. Na segunda semana após o início do ano fiscal, o sócio apresenta
balanço demonstrando que a situação da empresa era muito boa. Contudo, 14 dias
mais tarde, evidencia-se que dito balanço fora produzido com extrema negligência, e
que por isso, o conteúdo do documento não refletia a realidade. As decisões, baseadas
no errôneo balanço c tomadas ao longo desses 14 dias, geraram danos à empresa.
Nesse momento, entrega o sócio à empresa o balanço verdadeiro. Poder-se-ia conside-
rar este um exemplo de impossibilidade da prestação? A resposta de STAUB é negati-
va, dado que a entrega do verdadeiro balanço ainda era possível, tanto que o sócio o fez
posteriormente. De outra parte, igualmente não houve qualquer atraso na prestação,
na medida que os dois balanços foram entregues durante o prazo inicialmente estabe-
lecido (3 meses). O problema todo decorreu do fato de que o conteúdo do documento
que o sócio forneceu era falso e não da sua não-entrega ou do atraso na sua entrega. Ou
seja, o problema adveio de uma atividade positiva". STAUB, Hcrmann. Die positiven
Vertragsverletzungen. In: Culpa in Contrahendo und Die positiven Vertragsverletzun-
gcn, mit einem Nachwort Von Eike Schmidt. Bad Hamburg v.d.H: Gehlen, 1969, pp.
97 e 98, apud FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Boa-fé ... , cit., pp. 13 e 14.
62 FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Boa-fé ... , cit., p. 273. Segundo o autor "A
importância do tema, portanto, encontra-se na demonstração de que os casos de des-
cumprimento de deveres laterais configuram verdadeiros casos de inadimplemento,
em essência nada distintos dos descumprimentos dos deveres de prestação, capazes de
provocar todos os efeitos comuns ao inadimplemento, como o direito de resolução e a
possibilidade de oposição do contrato não cumprido". Jbid.
63 Nesse sentido: BECKER, Anelise. Inadimplemento antecipado do contrato. In Re-
vista do Consumidor, n°12, 1994, pp. 68-78.
476
de inadimplemento é, sem dúvida, o reconhecimento da contratuali-
dade dos deveres instrumentais 'diretamente vinculados à realização
da prestação 64 '. Isto porque, no momento em que se admite tal con-
tratualidade, em caso de inadimplemento de deveres instrumentais
diretamente vinculados à realização da prestação, o prejudicado pela
violação positiva do contrato, ao invés de receber tão somente indeni-
zação pelos prejuízos sofridos, poderá se valer de instrumentos de
direito contratual como, por exemplo, a exceção de contrato não
cumprido ou o direito de resolução por inadimplemento.
477
A principal característica da responsabilidade civil contratual está
na existência de uma relação jurídica previamente estabelecida pelas
partes e, assim, na diferença da natureza do dever jurídico violado. Ao
contrário do que ocorre na responsabilidade extracontratual, na res-
ponsabilidade contratual o dever jurídico violado tem por fonte, na
maioria das vezes, a própria vontade dos indivíduos. Diz-se na maioria
das vezes em razão da possibilidade de ocorrer violação aos deveres
instrumentais, criados pela boa fé objetiva, sem que tais deveres te-
nham sido transplantados para o instrumento da relação obrigacional
pelas partes.
Assim, na responsabilidade civil contratual, antes do surgimento
do dever de indenizar, já existe uma relação jurídica previamente es-
tabelecida pelas partes, o chamado 'contato social qualificado', ao pas-
so que na responsabilidade extracontratual inexiste qualquer liame
jurídico anterior entre o causador do dano e a vítima até que o ilícito
faça emergir a relação obrigacional entre as partes, criando para o cau-
sador do dano o dever de indenizar a vítima 67 .
Outra importante diferença entre a responsabilidade civil contra-
tual e a extracontratual reside no fato de que naquela há a inversão do
ônus da prova, cabendo ao devedor provar que a prestação não era
devida, ou que o inadimplemento não decorreu de culpa sua (nos ca-
sos de responsabilidade subjetiva), ou, ainda, se houve fato de tercei-
ro, do próprio credor ou provocado por caso fortuito ou força maior
que teriam rompido o nexo causal entre a sua conduta e os eventuais
prejuízos sofridos pelo credor.
A responsabilidade civil contratual tem como pressupostos (i) um
contrato válido entre credor e devedor; (ii) o ilícito contratual, que
poderá ser um inadimplemento absoluto, a mora ou mesmo a violação
positiva do contrato; (iii) a ocorrência de um dano ressarcível e, por
fim, (i v) o nexo causal entre o inadimplemento contratual e os danos
sofridos pelo credor.
478
que mesmo que se comprove a violação de um dever jurídico e a culpa
do infrator, nenhuma indenização será devida se não tiver ocorrido um
prejuízo 68 .
Para que o dano seja indenizável, é imprescindível que ele preen-
cha os requisitos de certeza e atualidade. Atual é o dano que já existe
ou já existiu no momento da ação de responsabilidade e certo é o dano
fundado sobre um fato preciso e não sobre hipótesé9 . Os danos futu-
ros também são indenizáveis, desde que seja suscetível de avaliação no
momento do ajuizamento da ação de indenização. O que se exclui da
reparação, conforme destaca Caio Mario, é o dano meramente hipoté-
tico, eventual ou conjuntural, isto é, aquele que pode não vir a reali-
zar-se70.
O dano é conceituado como patrimonial ou material quando re-
sulta da lesão a bens ou interesses materiais integrantes do patrimônio
da vítima (apreciáveis em dinheiro) 71 . O conceito 'dano material', por
sua vez, engloba uma subdivisão em danos emergentes e lucros cessan-
tes, que será analisada no item subseqüente.
Por outro lado, o popularmente conhecido com dano moral tem
como causa a injusta violação a uma situação jurídica subjetiva extra-
patrimonial, protegida pelo ordenamento jurídico através da cláusula
geral de tutela da personalidade que tem sua fonte no princípio cons-
titucional de respeito à dignidade humana 72 .
68 Nesse sentido, STJ, 1a Turma, Resp. 20.386, Rei. Ministro Demócrito Reinaldo,
julg. 23.05.1994, RSTJ 63/251. Sérgio Cavalieri Filho exemplifica a importância da
existência de dano para a configuração da responsabilidade civil, nos seguintes termos:
"Se o motorista, apesar de ter avançado o sinal, não atropela ninguém, nem bate em
outro veículo; se o prédio desmorona for falta de conservação do proprietário, mas não
atinge nenhuma pessoa ou outros bens, não haverá o que indenizar". Programa ... , cit.,
p. 89.
69 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, 9• ed., Rio de Janeiro, Ed.
Forense, 2002, p. 40.
70 lbid.
71 CAVALIERl FILHO, Sérgio. Programa ... , cit., p. 90.
72 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana: Uma leitura Civil-
Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 132. Na análise
do dano moral sob a perspectiva civil-constitucional a autora complementa: "não será
toda e qualquer situação de sofrimento, tristeza, transtorno ou aborrecimento que
ensejará a reparação, mas apenas aquelas situações graves o suficiente para afetar a
dignidade humana em seus diversos substratos materiais, já identificados, quais sejam,
a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade familiar ou social,
no plano extrapatrimonial em sentido estrito". Jbid, pp. 188 e 189.
479
7.2.1. Danos emergentes e lucros cessantes
480
Dentre os exemplos mais conhecidos pode-se citar o clássico do
advogado que perde o prazo para interpor o recurso de apelação con-
tra a sentença contrária aos interesses de seu constituinte 77 .
Ninguém poderia afirmar, com absoluta certeza, que, acaso inter-
posto, o recurso seria provido. Contudo, diante do caso concreto é
possível analisar quais eram as reais chances de provimento do recur-
so, se a hipótese era de mera possibilidade ou de efetiva e séria proba-
bilidade de reforma do julgado 78 .
Nestes casos, os Tribunais costumavam exigir que a vítima produ-
zisse prova verdadeiramente diabólica. Isto porque, para o provimen-
to do pedido indenizatório, exigia-se que a vítima provasse que se o
recurso tivesse sido tempestivamente interposto seria, com absoluta
certeza, provido. Ocorre que, por óbvio, aquilo que não aconteceu
jamais poderá ser objeto de certeza absoluta 79 .
Se fosse possível afirmar que o recurso seria provido pelo Tribu-
nal, teríamos a prova da certeza do dano final e, com isso, o ofensor
seria condenado ao pagamento de todos os benefícios que o cliente
iria auferir com a vitória no processo judicial. Se, por outro lado, fosse
possível demonstrar que o recurso não seria provido, teríamos a certe-
za da inexistência do dano final e, assim, o advogado negligente estaria
liberado da obrigação de indenizar 80 .
Mas, se não é possível determinar com uma certeza absoluta qual
teria sido o resultado dos eventos dos quais dependia a realização da
vantagem esperada, pode-se falar, ainda, de um dano certo e, portan-
to, indenizável? 81
contexto em que está inserido no presente artigo teremos que ser breves a respeito do
tema. Contudo, se o leitor tiver interesse em uma análise mais aprofundada e, princi-
palmente, na forma como a doutrina e a jurisprudência brasileira vem tratando do
tema, ver o nosso "Responsabilidade Civil por Perda de Uma chance: A leitura italiana
da teoria e a sua aplicação no direito brasileiro". Dissertação de Mestrado. Faculdade
de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, sob a orienta-
ção do Prof. Dr. Regis Fichtner Pereira, 2004, no prelo. SAVI, Sérgio. Responsabilida-
de Civil por Perda de Uma chance ... cit., p.l.
77 O exemplo é fornecido por PACCHIONI, Giovanni. Diritto Civile Italiano. Parte
Seconda: Diritto Delle Obbligazioni, Volume IV: Delitti e quasi delitti. Padova: CE-
DAM, I940, pp. I09a 115.
78 SAVI, Sérgio. Responsabilidade Civil por Perda de Uma chance ... cit., p. I.
79 BOCCHIOLA, Maurizio. Perdita di uma chance e certezza dei danno. In Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Anno XXX (1976), p. 60.
80 lbid., p. 59.
81 BOCCHIOLA, Maurizio. Perdita di una chance ... , cit., p. 59.
481
Durante muito tempo o dano decorrente da perda desta oportuni-
dade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo foi ignorado
pelo Direito. Como não era possível afirmar com certeza que sem o
ato do ofensor a vantagem seria obtida, ignorava-se a existência de um
dano diverso da perda da vantagem esperada, qual seja, o dano da
perda da oportunidade de obter aquela vantagemR 2 .
Graças ao desenvolvimento do estudo das estatísticas e proba-
bilidades é possível hoje predeterminar, com uma aproximação mais
que tolerável, o valor da própria chance perdida, a ponto de poder
considerá-la um valor normal, dotada de uma certa autonomia em
relação ao resultado definitivo 81 .
Diante desta evolução, hoje é possível visualizar um dano inde-
pendente do resultado final. Se, por um lado, a indenização do dano
consistente na vitória perdida (na causa judicial, por exemplo) é inad-
missível, ante a incerteza que lhe é inerente, por outro lado, não há
como se negar a existência de uma possibilidade de vitória antes da
ocorrência do fato danoso. Em relação à exclusão da possibilidade de
vitória poderá, dependendo do caso concreto, existir um dano jurídico
certo e passível de indenização 84 .
O óbice à indenização nestes casos se dava pela indevida qualifica-
ção desta espécie de dano. Normalmente, a própria vítima do dano
formulava inadequadamente a sua pretensão. Ao invés de buscar a
indenização da perda da oportunidade de obter uma vantagem, reque-
ria, a título de lucros cessantes, a indenização da própria vantagem
perdida 85 .
Ao assim proceder, a vítima esbarrava no requisito de certeza dos
danos, tendo em vista que a realização da vantagem esperada será
sempre considerada hipotética, em razão da incerteza que envolve os
seus elementos constitutivosR 6 .
Com a evolução do estudo da teoria da perda de uma chance na
França e na Itália, doutrina e jurisprudência daqueles países passaram
a visualizar um dano independente do resultado final, consistente na
82 SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance ... cit., p. 3.
83 BOCCHIOLA, Maurizio. Perdi ta di una chance ... , cit., pp. 83 e 84.
84 DE CUPIS, Adriano. li danno: Teoria Generale della responsabilità civile. Voi. I,
seconda edizione, Milano: Giuffre Editore, 1966, p. 264.
85 SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance ... cit., p. 4.
86 Ibid.
482
perda da oportunidade de obter uma vantagem ou de. evitar um pre-
juízo. Passou-se, então, a admitir o valor patrimonial da chance por si
só considerada, desde que séria, e a traçar os requisitos para o acolhi-
mento da teoria 87 • \
87 SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance ... cit., p. S.
88 No mesmo sentido: DE CUPIS, Adriano. Il danno ... , cit., p. 264; e BOCCHIOLA,
Maurizio. Perdita di una chance ... , cit., p. 78.
89 BOCCHIOLA, Maurizio. Perdita di una chance ... , cit., p. 56.
90 Ibid.,p.lOI.
483
vem sendo adotada pelos italianos. Para tanto, o julgador deverá partir
do valor do dano final e fazer incidir sobre este um coeficiente de
redução proporcional à efetiva probabilidade de obtenção do resulta-
do esperado 91 .
91 SAVI, Sérgio. Responsabilidade Civil por Perda de Uma chance ... , cit., p. 6.
92 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, cit., p. 75.
93 Conforme ensina Sérgio Cavalieri Filho "Só há dever de indenizar onde houver
dano. Ninguém, entretanto, pode responder por um dano a que não tenha dado causa.
Vale dizer, não basta a mera coincidência entre a falta e o dano para que se tenha lugar
o dever de indenizar. É necessário que o ato ilícito seja a causa do dano, que o prejuízo
sofrido pela vítima seja resultado desse ato, sem o que a responsabilidade não correrá
a cargo do autor material do fato. Daí a relevância do chamado nexo causal. Cuida-se,
então, de saber quando um determinado resultado é imputável ao agente; que relação
deve existir entre o dano e o fato que este, sob a ótica do Direito, possa ser considera-
do causa daquele". In Programa de Responsabilidade Civil, 2a ed., Rio de Janeiro, Ed.
Malheiros, 1999, p. 49.
94 Nas palavras de Judith Martins-Costa: "É, talvez, de todos os pressupostos da
responsabilidade, o mais de perto ancorado na perspectiva moral da ação humana, pois
indica, primariamente, que se responde pelo dano injusto que se causa (imputação
subjetiva). A lei, porém, pode ampliar este nexo, atribuindo a responsabilidade a
quem não causou diretamente o dano, mas é tido, por um nexo de imputação, respon-
sável pela segurança, ou pela garantia, ou pelo risco (imputação objetiva). Portanto, a
noção de causalidade não é, ela também, uma noção naturalista, mas normativa". Ibid.
Sérgio Cavalieri Filho, em sentido contrário, entende que o conceito de nexo causal
não é jurídico, e sim decorre das leis naturais. Para este autor o nexo causal. "É o
vínculo, a ligação ou relação de causa e efeito entre conduta e o resultado"; Comentá-
rios .... , cit., p. 49.
484
É importante destacar que, o nexo causal não se busca, diante do
atual sistema dualista de responsabilidade civil, entre o dano e o com-
portamento culposo, ou o ato ilícito, já que estas não são as únicas
hipóteses em que se configura o dano indenizável. É necessário estar
atento para a possibilidade de o fato causador do dano não consistir
em um ilícito. Ou seja, o nexo deve-se dar entre o dano e a conduta
ativa ou passiva prevista na lei como capaz de gerar a responsabilidade.
O Código Civil brasileiro, em seu artigo 403 95 , acolheu a teoria da
causalidade direta e imediata (ou da interrupção do nexo causal) para
a averiguação da existência do vínculo entre o ato do ofensor e o dano
sofrido pela vítima. Esta teoria exige que entre a inexecução da obri-
gação e o dano, haja uma relação de causa e efeito, direta e imediata.
Com intuito de delimitar o que viria a ser causa direta e imediata,
Doutrina e Jurisprudência acabaram por explicar tais expressões por
intermédio de diversas teorias, dentre as quais a subteoria da necessa-
riedade da causa defendida, entre outros, por Agostinho Alvim.
Segundo Agostinho Alvim, de acordo com esta teoria, suposto
certo dano poder-se-á considerar como a sua causa tanto a próxima
como a remota desde que esta última se ligue diretamente ao dano. O
importante é, portanto, que a causa seja a necessária para a ocorrência
do dano "porque ele a ela se filia necessariamente; é causa única, por-
que opera por si dispensadas outras causas" 96 ·
O exemplo citado por Pothier torna mais fácil o entendimento a
compreensão desta teoria. Confira-se:
95 Assim dispõe o art. 403 do novo Código Civil: "Ainda que a inexecução resulte de
dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessan-
tes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual".
96 E assim conclui Agostinho Alvim: "Assim, é indenizável todo dano que se filia a
uma causa, ainda que remota, desde que ela lhe seja causa necessária, por não existir
outra que explique o mesmo dano". Da inexecução ... , cit., pp.338 e 339.
97 Apud TEPEDINO, Gustavo. "Notas sobre o nexo de causalidade", in Rez;ista Tri-
mestral de Direito Civil- RTDC, vol.6, abril/junho de 2001, p. S.
485
Ou seja, esta teoria não pretende excluir o dano indireto. O que a
subteoria da necessariedade da causa exige é, como o próprio nome
sugere, o nexo causal necessário entre a inexecução ou a conduta pre-
vista em lei como geradora de responsabilidade e o dano, "afastando-
se aqueles que podem ter outras causas". 98 .
Segundo esta subteoria, portanto, os vocábulos direto e imediato
são considerados como sinônimos empregados pelo legislador com a
intenção de reforçar a idéia de necessariedade da causa para a defla-
gração do dano. A expressão direto e imediato deve, portanto, ser
entendida como o nexo causal necessário. 99
É importante ressaltar que, apesar de o art. 403 estar localizado
topograficamente na parte destinada à denominada responsabilidade
contratual, a norma foi estendida para a hipótese de responsabilidade
extracontratual, devendo a sua ampla adoção ao acórdão proferido
pelo Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário n° 130.764-
Paraná, do qual foi relator o Ministro Moreira Alves 100 .
486
Nesta ocasião, o Supremo Tribunal Federal deixou clara a opção
do legislador brasileiro pela teoria da causa direta e imediata, ou da
interrupção do nexo causal. Tratava-se de ação de indenização movida
contra o Estado do Paraná, em virtude de assalto praticado por quadri-
lha que possuía, entre seus membros, um ex presidiário, fugitivo da
penitenciária estadual. A responsabilidade do Estado era invocada em
virtude da omissão da qual resultou a fuga do preso e a sua permanên-
cia em liberdade por quase dois anos. Postulava-se que a causa do
assalto teria sido tal fato omissivo.
O Supremo Tribunal Federal, reformando o acórdão recorrido,
negou a indenização pretendida, por considerar que o fato imputado
ao Estado não era a causa direta e imediata do dano. Isso porque, o
assalto fora praticado por uma quadrilha, da qual o fugitivo participava
cerca de 21 meses depois da fuga. Logo, a fuga não causou diretamen-
te o roubo, em função de concausas, das quais o dano foi efeito neces-
sário.
O Ministro Moreira Alves, relator do recurso, afirmou que entre a
fuga e o dano, ocorreram causas supervenientes, havendo intercorrên-
cia de outra cadeia causal consubstanciada no planejamento, associa-
ção e execução do roubo, certamente propiciadas pela fuga, mas não
causa necessariamente vinculada a esta 101 •
- No caso, em face dos fatos tidos como certos pelo acórdão recorrido, c com base nos
quais reconheceu ele o nexo de causalidade indispensável para o reconhecimento da
responsabilidade objetiva constitucional, é inequívoco que o nexo de causalidade ine-
xiste, e, portanto, não pode haver a incidência da responsabilidade prevista no artigo
107 da Emenda Constitucional n° l/69, a que corresponde o parágrafo 6° do artigo 37
da atual Constituição. Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha de
que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da
autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou
de concausas, como a formação de quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um
meses após a evasão."
IOI Por seu grande valor didático, cumpre transcrever um trecho do voto do Ministro
relator: " ... Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.060 do
Código Civil, a teoria adotada quando ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto
e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante
aquele dispositivo da codificação civil diga respeito à impropriamente denominada
responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual,
inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quais quer considerações de ordem
subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência
das condições e a da causalidade adequada ( ... ) Essa teoria, como bem demonstra
Agostinho Alvim ( ... )só admite o nexo de causalidade quando o dano é efeito neces-
sário de uma causa, o que abarca o dano direto e imediato sempre, c, por vezes, o dano
indireto e remoto, quando, para a produção deste, não haja concausa sucessiva."
487
A grande vantagem da Teoria da causa direta e imediata, interpre-
tada segundo a subteoria da necessariedade, consiste no fato de que a
observação do nexo de causalidade, segundo estas é feita em concreto
e não em abstrato como ocorre da teoria da causalidade adequada.
É importante ressaltar que, conforme acima demonstrado, a dis-
tância entre o dano e a primeira causa não afasta, por si só, o nexo de
causalidade. No julgado do Supremo Tribunal Federal, o Estado do
Paraná não foi condenado não pelo fato de ter transcorrido 21 meses
entre a fuga do presídio e o assalto. O Estado deixou de ser condenado
pela ocorrência de causas supervenientes e preponderantes que rom-
peram o nexo de causalidade entre a fuga do preso e o assalto. Pode-se
afirmar, portanto, que tanto os danos próximos, quanto os remotos
são indenizáveis, desde que exista íntima e estreita relação de causa e
efeito.
Por fim, é curioso notar que em diversos doutrinadores e em di-
versas decisões judiciais encontramos referência às teorias da causali-
dade adequada e a da equivalência das condições, quando na realidade
exigem para solução dos exemplos e casos analisados a causalidade
necessária acima explicada 102 .
102 Esta é a conclusão a que chega o Prof. Gustavo Tepedino, ao afirmar que: " ... Por
todas estas circunstâncias, pode-se considerar como prevalentes, no direito brasileiro,
as posições doutrinarias que, com hase no art. 1.060, do Código Civil brasileiro, auto-
denominando-se ora de teoria da interrupção do nexo causal (Supremo Tribunal Fe-
deral), ora de causalidade adequada (STJ e TJRJ), exigem a causalidade necessária
entre a causa e o efeito danoso para o estabelecimento da responsabilidade civil." No·
tas ... , cit., p. 14.
488
Os juros e o novo Código Civil: uma abordagem
doutrinária e jurisprudencial
l. Introdução
489
gem pecuniária. Como veremos, tal aversão dos católicos à cobrança de
juros nas pactuações creditícias só cedeu quando se passou a vislumbrar
que tais operações não serviriam tão somente para suprir necessidades
mínimas dos devedores mas, em muitos casos, para propiciar a inaugura-
ção ou alavancagem da atividade empresarial, geradora de riquezas, tri-
butos e, sobretudo, empregos para terceiros.
Superado tal viés histórico, passaremos ao exame da previsão nor-
mativa do juro em nossa ordem positiva, desde o privatismo marcante
do sistema de 1916, passando pela limitação normativa inaugurada
pela Lei da Usura e consolidada com a Constituição Federal de 1988
até a nova disciplina do Código Civil vigente.
Nesta altura, como veremos, o novel diploma civilista, de forma
inédita e extremament e polêmica, fixou a taxa legal de juros nas
pactuações entre particulares, como sendo a taxa utilizada nos casos
de mora de tributos federais, dando azo ao advento de enorme celeu-
ma doutrinária e jurisprudencia l, acerca do correto instrumento legis-
lativo a ser utilizado para indicação de tal taxa de juros.
Desse modo, veremos que duas grandes correntes se formaram
após a entrada em vigor da nova dicção do art. 406 do Código Civil,
tanto no plano acadêmico quanto pretoriano, quais sejam, a que en-
tende, com arrimo em interpretação direta de tal dispositivo legal, a
aplicação da Taxa Selic como taxa legal de juros e a que vislumbra,
com fulcro no art. 161, § 1°, do Código Tributário Nacional, que tal
taxa seja de 1% ao mês. Cientes da materialidade de tais linhas de
convenciment o, analisaremos os fundamentos e peculiaridades de
cada posicionament o, firmando o que entendemos ser a fragilidade e
adequação de cada uma.
Assim, procederemos , inicialmente, a uma rápida, porém indis-
pensável, para a própria eficácia do presente estudo, abordagem da
Taxa Selic como instituto das ciências econômicas, onde examinare-
mos sua composição intrínseca bem como sua origem normativa, ver-
dadeiros pólos fomentadores de debates no seio das ciências jurídicas.
Compreendid o o que é e o que efetivamente representa a Taxa
Selic, adentraremos ao âmago conflitivo do presente trabalho, onde
dispensaremos atenção às críticas e defesas fomentadas por setores da
doutrina e da jurisprudência à aplicação de tal taxa como juros legais.
Outra importante inovação trazida pelo novo Código Civil e que
será abordada em nossa obra, pela íntima relação que mantém com o
objeto da presente, materializa-se na nova dicção dada ao art. 591, que
trouxe à lume outra questão inteiramente polêmica, qual seja, a per-
missão da capitalização anual dos juros, a que na sistemática anterior
tinha vedação expressa ditada pelo Decreto n° 22.626/33.
490
Por fim, fechando a análise de temáticas absolutamente controverti-
das envolvendo a regulação do juro, nos dedicaremos ao exame de ques-
tão que vem suscitando muitas discussões no meio doutrinário, qual seja,
a possibilidade do mutuário antecipar a restituição do dinheiro empres-
tado e exonerar-se dos juros compensatórios vincendos.
Em suma, já pelas linhas introdutórias do presente, pode-se ex-
trair o quão polêmica apresentou-se a sistemática normativa do juro
inaugurada pelo novo Código Civil.
MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil, Vol. IV, zoa ed.,
Saraiva, São Paulo, 1985, p. 338.
491
Idêntica a lição de Sílvio Rodrigues 2 que grifa que:
2 RODRIGUES, Sílvio, Direito Civil, vol. 11, I 6" ed., Editora Saraiva, São Paulo,
1986, p.31 7
3 MONTEIRO, Washington de Barros, op. cit., p. 339.
492
'
493
Se a obrigação em dinheiro é líquida e vincula-se a termo final, os
juros de mora contam-se a partir do vencimento. Se, entretanto, ine-
xiste data pré-fixada para o pagamento de obrigação líquida, o credor
deverá, interpelar, expressa e inequivocamente, o devedor, consti-
tuindo-o em mora. Só a partir de então, se inicia a contagem dos ju-
ros. Sendo a obrigação em dinheiro ilíquida 5, os juros de mora contam-
se desde a citação inicial, segundo o teor do art. 405 e a inteligência do
art. 219 do CPC Tal dispositivo tem por fito proteger o credor dos
prejuízos decorrentes da demora na execução, razão porque se acres-
cerá ao quantum debeatur juros moratórios desde a regular e eficaz
citação do devedor.
Quanto às obrigações de outra natureza, que não as de dinheiro, os
juros começam a correr desde que lhes seja fixado o valor pecuniário
por sentença judicial, arbitramento ou acordo entre as partes.
Assim, firmada a conceituação do instituto objeto do presente es-
tudo, bem como delineada a distinção entre suas diversas modalida-
des, impõe-se o exame da evolução legislativa de sua regulação, tanto
aqui quanto alhures.
494
o consumo material, daquele para fomento dos meios produtivos. Isto
porque, enquanto o empréstimo ao consumo podia representar, quan-
do oneroso, efetivamente, uma exploração do necessitado que carecia
de auxílio alheio para garantia de sua dignidade humana, tal explora-
ção não se materializaria quando o empréstimo fosse destinado à pro-
dução. Neste caso, o empresário se socorre da economia alheia, obje-
tivando o início ou alargamento da sua atividade empresarial. Por esta
razão, ganhou espaço a tese de que não se justificariam os óbices à
fixação de remuneração para acesso aos recursos econômicos.
Em que pese a flexibilização da repulsa inicial da Igreja Católica,
os legisladores, em quase todos os sistemas jurídicos, ainda guardam
uma certa resistência ao empréstimo oneroso, a qual se corporifica na,
muito mais do que usual, imposição de limites à estipulação de juros
convencionais.
Entretanto, cumpre esclarecer que no ordenamento pátrio, o Có-
digo Civil de 1916, como corolário de sua feição eminentemente pri-
vatista, individualista, em sentido diverso, deixou ao livre alvedrio das
partes a fixação da taxa de juros.
Nessa perspectiva, o Código de 1916 apresentava, segundo o ma-
gistério de Judith Martins Costa 6 , um tratamento micro-jurídico dos
juros, forma tradicional de regramento do instituto que se caracteriza-
va por tentar um equilíbrio entre os interesses particulares envolvidos
na relação contratual.
Quanto à perspectiva de tratamento micro-jurídico do juro adota-
da por Bevilaqua, cumpre trazer à baila a observação de Roberto Braga
Andrade 7 no sentido de que, no sistema anterior:
6 COSTA, Judith Martins. "Os juros (moratórios legais) :para uma interpretação do
Art. 406 do Código Civil" in www.migalhas.com.br, p. 2. acesso ao si te: 16.10.2003.
7 ANDRADE, Roberto Braga. A Limitação Constitucional da Taxa de Juros Reais:
Gênese, Fundamentos e Regime Jurídico. Belo Horizonte, 1991, inédito, p. 7).
8 COSTA, Judith Martins, op. cit., p. 2.
495
"eram vistos, fundamentalmente, na relação intersubjetiva e a coibi-
ção dos juros usurários era tratada como uma questão de justiça co-
mutativa."
496
Contudo, desde a entrada em vigor do Texto Maior, forte corren-
te doutrinária e jurisprudencial sustentou que tal preceito constitu-
cional não estava munido de auto-executoriedad e, sendo tal temática,
enquanto perdurasse a carência de edição de lei complementar, regu-
lamentada pela Circular n° 1.365 do Banco Central do Brasil e Reso-
lução n° 1.064/85 onde se consagra que as entidades financeiras, sujei-
tas ao funcionamento e fiscalização por parte da autoridade monetária
pátria, poderiam praticar a taxação de juros livremente pactuados.
Grande ícone do entendimento contrário à auto-executorieda de
de tal preceito constitucional foi o Aresto proferido pelo Supremo
Tribunal Federal em Mandado de Injunção, publicado no DJ em
04.08.1995, cuja relatoria coube ao Min. Moreira Alves que, ao anali-
sar a hipótese sob comento, firmou entendimento no sentido de que:
497
anterior, com a peculiaridade de tratar de forma mais abrangente e
volátil as hipóteses que permitem a fixação da taxa de juros.
A veracidade de tal assertiva advém do fato de que o legislador
atual adotou uma posição intermediária entre aquela a tomada no Có-
digo de 1916, que deixava as partes inteiramente livres para conven-
cionarem a taxa de juros que melhor lhes aprouvesse, e a do Consti-
tuinte, que fixou um limite máximo de taxa de juros a ser praticado
no mercado.
Assim, o legislador não fixou uma expressão percentual como má-
ximo de fixação pactuai a .título de juro, nem liberou totalmente as
partes, elegendo como paradigma para prática pelo mercado, a taxa
que estiver em vigor para a mora do pagamento dos impostos devidos
a Fazenda Nacional.
Daí se dizer que o novo Código, atrelando a taxa a ser praticada no
meio privado à taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento
dos impostos devidos à Fazenda Nacional, assumiu uma posição inter-
mediária entre o liberalismo consagrado no Código de 1916 e a rigidez
constitucional.
Eis o dispositivo legal em comento, in verbis:
498
ria. A veracidade d~ tal assertiva repousa no acolhimento, pela juris-
prudência pátria, da regularidade da utilização da taxa Selic, a Taxa
Referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia para os tí-
tulos federais, instituída pela Lei n° 8.981/95, como instrumento ba-
silador da taxa moratória em caso de inadimplência dos impostos da
Fazenda Nacional.
Em suma, uma leitura direta e linear, do art. 406 do Código Civil
em vigor, nos apontaria para a aplicação da Taxa Selic como taxa legal
de juros a ser aplicada nos contratos privados.
Ocorre que, várias controvérsias advieram de tal conclusão, como
passaremos a expor.
499
financiamentos apurados no Se li c (leia-se mercado secundário) para
títulos públicos federais. Traduzindo, são as operações efetuadas no
mercado secundário, entre detentores dos títulos públicos e determi-
nados aplicadores, que determinarão a taxa de remuneração do pró-
prio título.
Essas operações no mercado secundário, conhecidas como opera-
ções overnight de troca de reservas bancárias, lastreadas em títulos
públicos federais, dão forma ao juro primário da economia, que serve
de referência para todas as demais taxas de juros a serem praticadas no
mercado.
A única ingerência estatal nesta taxa típica de mercado se materia-
liza nas deliberações do Copom - Comitê de Política Monetária do
Banco Central - que realiza reuniões periódicas onde são traçadas
metas para a Taxa Selic, o que em nada mitiga sua volatilidade merca-
dológica.
Entendido o que é e para que serve o Selic e compreendido que a
taxa apurada nas operações com títulos públicos, efetuadas por inter-
médio desse sistema de liquidação e custódia é a taxa básica da econo-
mia, passemos ao exame do imbróglio doutrinário advindo de sua elei-
ção como taxa legal de juros.
10 Neste sentido, cumpre cita: LEONI, J. M., Código Civil Anotado. Lumen Juris,
Rio de Janeiro, 2003 p. 267.
500
"a utilização da taxa Selic não é juridicamente segura porque impede
o prévio conhecimento dos juros."
SOl
renomada doutrinadora, tal observação é importante para que possa-
mos vislumbrar com clareza que a narrativa do art. 406 do novo Códi-
go não se constitui na ~era transposição -em parte, alterada - dos
arts. 1.062 e 1.063 do Código de 1916. Isto porque, muito maior do
que a alteração da regra contida em ambos os Diplomas é a alteração
do enfoque constitucional dado à matéria.
De fato, a grande alteração no enfoque regulador de tal matéria,
desde o Código de Beviláqua, materializa-se, segundo Judith Martins
Costa 13 , na idéia de "juros reais", expressão introduzida em nosso or-
denamento jurídico pelo art. 192, § 3°, da Constituição Federal.
No que tange à temática dos chamados "juros reais" grande relevo
tem a polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento
da Adin n° 4-7- DF, que versou sobre a interpretação e o alcance do
referido dispositivo constitucional.
Quanto a tal preceito constitucional, a primeira e fundamental
observação a ser feita é a de que muito embora tal regra constitucional
regule os juros compensatórios, e o art. 406 do Código Civil atrele-se
aos juros legais moratórios, o certo é que a Constituição adjetivou os
juros, sejam quais forem, utilizando a expressão "real", para deixar
claro que a taxa de juros real é a parcela da taxa de juros que excede a
taxa de inflação de um determinado período.
O Ministro Paulo Brossard de Souza Pinto consagrou em seu voto
nos autos da Adin no 4-7- DF que o juro real:
"os juros reais são juros deflacionados, são os juros que se calculam
desprezando-se a parcela referente à correção monetária".
502
dispor sobre uma espécie Uuros legais moratórios) busque fixar como
taxa legal de juros a SELIC que, como vimos anteriormente, possui
composição híbrida, na medida em que alberga taxa de juros bem
como indexador de correção monetária.
Desta forma, para o sempre preciso entendimento de Judith Mar-
tins Costa, não há que se falar em utilização da SELIC como taxa legal
de juros sob pena de se eivar de indisponível inconstitucionalidade o
art. 406 do novo Código Civil, por sua desconsonância com o preceito
insculpido no art. 192, § 3° da Constituição Federal.
Tal construção doutrinária, em que pese seu requinte, restou bas-
tante mitigada após a entrada em vigor da Emenda n° 40, que retirou
do seio constitucional o dispositivo supra-referido, subtraindo o óbice
constitucional para a utilização da SELIC como taxa legal de juros.
Em contrapartida, não só críticas levantaram-se contra a dicção
normativa do art. 406 do Código Civil pátrio que, segundo a interpre-
tação majoritária, elegeu a SELIC como taxa legal de juros.
O professor Fábio Barbalho Leite, numa completa resenha de to-
dos os fundamentos levantados em prol da utilização da SELIC como
taxa legal de juros nas pactuações privadas, enumerou cinco razões
para sua utilização, quais sejam,:
Primeiro, o argumento que motivou a edição do enunciado pela
I Jornada de Direito Civil de que a Selic não deva ser aplicada por
provocar insegurança jurídica na medida em que impossibilita as par-
tes de terem ciência prévia da taxa de juros incidentes em caso de
inadimplência é, segundo o entendimento do citado-professor, deve-
ras frágil, uma vez que, se assim o fosse, estariam também eivados de
manifesta nulidade os contratos de aplicações financeiras atrelados a
taxas futuras bem como outros tantos contratos aleatórios; nulos tam-
bém, seriam os contratos de financiamento imobiliário, pois, os índi-
ces que pautam os reajustes das prestações são conhecidos apenas no
futuro
Segundo, ainda no que concerne à mitigação da segurança jurídica,
aduz Barbalho Leite que não se apresenta crível se falar em atentado à
segurança jurídica, se há quase dez anos a SELIC vem sendo atrelada
à inadimplência dos tributos federais, com manifesta aprovação do
Judiciário, não havendo de se falar em drásticas mudanças causadas
pela alteração subjetiva do credor, do ente estatal para particulares em
geral;
Terceiro, o CTN, art. 161, § 1°, que originalmente definia a taxa
de juros de mora para débitos tributários inadimplidos, foi revogado
pela Lei n° 8.981/95, cujo art. 84, I, impõe a incidência sobre os cré-
503
ditos fiscais inadimplidos de "juros de mora, equivalentes à taxa mé-
dia mensal de captação do Tesouro Nacional relativa à Dívida Mobi-
liária Federal Interna", a qual, por força do art. 13 da Lei n°
9.065/95, corresponde ao percentual da taxa Selic (também pela Lei
n° 9.250/95, art. 39, § 4°).
Quarto, preocupa muito os operadores do Direito, por ser a Selic
uma taxa de mercado, por conseguinte, extremamente volátil, que a
mesma venha a representar pesado gravame ao devedor. Contudo,
aduz Barbalho Leite que, pela sua própria natureza mercadológica,
nada impede que a taxa Selic venha a ser inferior a l% ao mês;
O Quinto fundamento de defesa da aplicação da Selic, este de
cunho econômico, materializa-se no óbice que a mesma pode repre-
sentar para a comezinha prática de rolagem temerária de dívidas, evi-
tando que seja mais vantajoso ao devedor adiar o pagamento de dívi-
das por anos a fio no Judiciário- com juros de mora de 0,5% ou l%
ao mês - enquanto remunera-se com bem mais que isso em várias
aplicações possíveis no mercado financeiro.
Destarte, pode-se asseverar, com clara certeza, após o exame des-
tas diversas e antagônicas posições fomentadas no meio acadêmico,
que o objeto do presente estudo materializa-se numa das mais polêmi-
cas prescrições do novo Diploma Civilista.
Contudo, há de se impor que tal dissenso não se limitou aos meios
doutrinários, sendo tal temática objeto de enormes celeumas nos pre-
tórios pátrios, principalmente, em sua Corte Superior, como passare-
mos a analisar.
504
bustíveis, optou pela declaração de inconstitucionalidade da aplicação
da taxa Selic como juros moratórios, sob os seguintes fundamentos:
505
"l.Aplica-se, a partir de I 0 de janeiro de 1996, no fenômeno compen-
sação tributária, o art. 39, § 4°, da Lei n° 9.250, de 26.12.95, pelo que
os juros devem ser calculados, após tal data, de acordo com o resulta-
do da taxa Selic, que inclui, para a sua aferição, a correção monetária
do período em que ela foi apurada.
2. A utilização dos juros, tomando-se por base a taxa Selic, afasta a
cumulação de qualquer índice de correção monetária. Este fator de
atualização de moeda já se encontra considerado nos cálculos fixado-
res da referida taxa."
506
não fixa limites a mesma, deixando-a flutuar conforme as injunções
do mercado.
Por tal liberdade, de natureza muito mais política do que jurídica,
conveniente à política monetária do Governo Federal, chegamos às
opressoras distorções vivenciadas na atualidade, onde as instituições
financeiras experimentam marcas superavitárias recordes, em razão
do prejuízo dos projetos familiares e do implemento da atividade em-
presarial.
Contudo, celeumas político-econômicas à parte, há de se impor
que, em matéria de limitação de juros, em nosso sistema, existe uma
verdadeira cisão ratione personae.
Assim, para que possamos vislumbrar a exata extensão do art. 406
do novo Código Civil, deveremos aferir se em algum ponto da relação
creditícia encontra-se alguma entidade integrante do Sistema Finan-
ceiro Nacional ou não. A necessidade de tal aferição tem relevância na
medida em que a regra do art. 406 não tem incidência nas relações
entre particulares e instituições integrantes do Sistema Financeiro
Nacional, mas, tão somente, nas relações interprivadas em que não
esteja, na posição ativa ou passiva, ente integrante do Sistema Finan-
ceiro Nacional.
Neste diapasão, o certo é o teor do art. 406 do novo Código Civil
nenhum efeito gera perante as instituições financeiras pátrias.
8. Capitalização de juros
507
A vedação de tal expediente em nosso ordenamento jurídico esta-
va de tal forma sedimentado, que a Súmula 121 do Supremo Tribunal
Federal grifa que:
508
9. O pagamento antecipado e a redução proporcional dos juros
17 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 3, Ed. Saraiva, São Pau-
lo, p. 125.
509
1O. Conclusão
510
me celeuma doutrinária e jurisdicional acerca de sua auto-executorie-
dade.
Todavia, agora, num momento em que a problemática dos juros
no ordenamento pátrio parecia estar dissociada de grandes polêmicas,
na medida em que a Emenda n° 40 subtraiu a limitação de juros do
Texto Constitucional, eis que entra em vigor o novo Código Civil,
inovando em tal temática, ao fixar como taxa legal de juros a que
estiver sendo utilizada nos casos de mora de impostos federais.
A dicção normativa do art. 406 do novo Código Civil propiciou a
escalada das discussões no país, tanto em sede doutrinária quanto ju-
risdicional, acerca da taxa legal a ser aplicada nas pactuações privadas.
Como vimos, o fundamento de tal dissenso repousa na resistência à
adoção da Selic como taxa legal de juros, notadamente por possuir a
mesma, concomitantement e, natureza remuneratória e atualizadora
do capital.
Contudo, em que pese o brilhantismo de vários defensores da uti-
lização da hipótese prevista no art. 161, § 1°, do CTN, como taxa legal
de juros, entendemos não ser tal opção a mais adequada, uma vez que
a própria dicção de tal dispositivo grifa que a taxa ali consagrada só
terá eficácia se não houver lei específica que disponha diversamente,
o que efetivamente existe no caso sob exame.
A veracidade de tal assertiva repousa, mansa e tranqüila, na norma
do art. 84, I, da Lei n° 8.981/95, que impõe a incidência sobre os
créditos fiscais inadimplidos de "juros de mora, equivalentes à taxa
média mensal de captação do Tesouro Nacional relativa à Dívida Mo-
biliária Federal Interna", a qual, por força do art. 13 da Lei n°
9.065/95, corresponde ao percentual da taxa Selic.
Destarte, por haver lei específica estabelecendo que os juros de
mora dos créditos tributários federais serão estabelecidos com base na
Selic, entendemos inaplicável ao caso sob exame a hipótese prevista
no art. 161, § 1°, do Código Tributário Nacional, impondo-se a aplica-
ção da Selic como taxa legal de juros, sendo vedada sua aplicação em
dobro, pela revogação do dispositivo da Lei da Usura que contemplava
o limite de juros no dobro da taxa legal.
Sll
Aspectos pontuais da cláusula penal
513
O Estado Liberal dava lugar, assim, ao Estado Social Democrático
de Direito, que passou a intervir na economia e nas relações privadas,
como forma de garantir o interesse da coletividade. O dirigismo con-
tratual e a necessidade de uma igualdade material, e não meramente
formal, como garantia a Declaração dos Direitos dos Homens de
1789, foram, assim, flexibilizando a rígida separação entre as esferas
de atuação do direito público e do direito civil, "suscitando uma rede-
nifição de limites e uma profunda relativização conceitual" 1•
A necessidade, a partir de então, de que os institutos do direito
civil, dentre os quais o contrato, atendessem a uma função social acar-
retou a elaboração de uma série de leis extravagantes com esse intuito
(Estatuto da Criança, Estatuto da Terra, Lei do Inquilinato e Código
de Defesa do Consumidor).
Nessas circunstâncias, será analisado como, sob a influência dos
"novos" princípios da teoria contratuaF- função sociaP do contrato,
514
equilíbrio das prestações, boa-fé objetiva - , decorrentes da tábua
axiológica consagrada na Constituição Federal, o dogma da autonomia
da vontade foi dando espaço a uma intervenção cada vez mais fre-
qüente do Estado nas relações privadas, a fim de evitar o abuso de
direito por parte do contratante economicamente mais forte, espe-
cialmente no tocante às estipulações das penas convencionais.
Sobre a crise da autonomia da vontade na nova teoria do contrato,
salienta Heloísa Carpena que "cumpre elaborar uma noção revisitada
da autonomia da vontade, justificando a intervenção estatal nos.domí-
nios do direito privado. Impende, portanto, investigar o confronto en-
tre os preceitos legais e os derivados da autonomia da vontade para
refletir sobre até que ponto aqueles podem derrogar estes. A proteção
da confiança surge c~mo resultado da evoluÇão a partir do voluntaris-
4
mo, resgatando na teoria contratual a figura dos deveres anexos."
Em razão da mudança de paradigma proposta pela metodologia
civil-constitucional, que volta a atenção do direito privado parà .a pro-
teção da pessoa humana e não de seu patrimônio, revela-se a preocu-
pação em não se admitir a validade de contratos que, escorados no
voluntarismo, imponham a superioridade econômica de uma parte so-
bre a outra, não atendendo, assim, à função social exigida pela Carta
Maior.
A cláusula penal tem importante papel na teoria das obrigações, na
medida em que visa a dar segurança ao credor em relação ao cumpri-
mento dos contratos. É, assim, o remédio para a i~adimplência.
Ocorre, porém, que tal medida, sobretudo em épocas de crise
econômica, quando a insegurança quanto ao adimplemento das
obrigações cresce demasiadamente, não pode, em contrapartida, acar-
retar um "efeito colateral" devastador na outra parte, com a pactuação
de obrigações desproporcionais e extremamente onerosas.
dever imposto aos contratantes de atender -ao lado dos próprios interesses indivi-
duais perseguidos pelo regulamento contratual - a interesses extracontratuais social-
mente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são
por ele atendidos. Tais interesses dizem respeito, dentre outros, aos consumidores, à
livre concorrência, ao meio ambiente, às relações de trabalho." (Gustavo Tepedino,
Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de
2002,in Gustavo.Tepedino (coord.) A parte geral do novo Código Civil, Rio de Janei-
ro: Renovar, 2002, p. XXXII).
4 Heloísa Carpena, Abuso de Direito nos contratos de consumo, São Paulo, Renovar,
2001, p. 11-13.
515
Mesmo imbuído da dogmática patrimonialista e do liberalismo do
século XIX, o legislador de 19 I 6 previu determinados limites para a
estipulação da pena convencional, além dos quais o juiz era autorizado
a intervir no contrato (arts. 920 e 924).
Entretanto, não obstante a previsão legal, a atuação do judiciário
em relação à redução das cláusulas penais era, até o advento da CF e,
posteriormente do coe, ainda muito tímida, tendo em vista a for-
te influência da autonomia da vontade no regramento das relações
privadas.
Assim, serão abordadas a evolução da jurisprudência e as divergên-
cias doutrinárias no tocante ao tema ora examinado, as quais espelham
o debate em torno das questões envolvendo, de um lado, a autonomia
da vontade das partes na prefixação das perdas e danos e, de outro, a
consideração de que as suas conseqüências não importem na ofensa da
dignidade de um dos contratantes ou mesmo na imposição de um
excessivo gravame.
Interessante é o exame da matéria também nas relações de consu-
mo, notadamente quanto à validade de cláusulas penais estipuladas
em favor do consumidor.
Contudo, para melhor compreensão das questões acima referidas,
é indispensável que, antes, façamos uma incursão pelas funções da
cláusula penal, sua distinção em relação a outros institutos afins e os
seus efeitos.
5 Para alguns, a pena convencional se distingue da cláusula penal, posto que a primei-
ra é pactuada em ato posterior e a segunda juntamente com o contrato, como J. M. de
Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. XI, parte geral, 4a ed. Rio
de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1951, p. 301.
516
A cominação constante da cláusula é comumente pecuniária, mas
nada impede que constitua a prestação de um serviço, entrega de um
bem, ou até uma abstenção 6 .
Destaca-se a importância da cláusula penal como instrumento de
segurança das relações obrigacionais na sociedade moderna, sobretudo
nos momentos de crise econômica nos quais vem à tona o temor da
inadimplência dos contratos. Nas palavras de Arnaldo Rizzardo,
"quanto maiores as instabilidades de uma economia e mais fortes as
crises que assolam os povos, ou menos evoluída a consciência moral
das pessoas, geralmente mais cresce a inadimplência das obrigações,
ensejando mecanismos de defesa e proteção dos direitos e créditos
emanados das convenções e contratos" 7 • Entretanto é preciso observar
que esse mecanismo de proteção do crédito não pode caracterizar
situação de abuso de direito e nem de enriquecimento sem causa.
Nessa perspectiva, é considerada a cláusula penal como um refor-
ço das obrigações pactuadas, na medida em que intimida o devedor a
cumprir com o que foi acordado 8 . Mas não se sustenta, nos dias de
hoje, interpretar esta função coercitiva nos moldes de uma função
punitiva, que encontra suas raízes no Direito Romano 9 . Ao lado da
6 Arnaldo Rizzardo, Direito das obrigações, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 252.
7 Op. cit., p. 251.
8 Para Caio Mário da Silva Pereira essa é a sua função primordial: "A finalidade
essencial da pena convencional, a nosso ver, é o reforçamento do vínculo obrigacional,
e é com esse caráter que mais assiduamente se apõe à obrigação. A pré-liquidação do
id quod interest aparece, então, como finalidade subsidiária, posto que nem sempre
como tal se configura" (Instituições de Direito Civil, vol. li, 17• ed. Rio de Janeiro:
Forense, p. 101). No mesmo sentido Arnaldo Rizzardo, op. cit. p. 253.
9 Mais do que uma reparação dos prejuízos decorrentes do inadimplemento, era a
repressão ao descumprimento do contrato o principal objetivo do instituto no direito
romano. Contudo, salienta Miguel Maria de Serpa Lopes, citando Ihering, que "a
história da pena é uma abolição constante - e o direito romano, acrescenta, em seu
último desenvolvimento, tendeu cada vez mais para abandonar a idéia de pena, c
finaliza: as penas decaem à medida que a idéia do direito engrandece. Mais a ordem
jurídica se aperfeiçoa, mais os povos se aproximam da maturidade, e cada vez se torna
menos necessário o recurso à pena. Assim a stipulatio paenae modificou-se, com a
transformação havida no direito romano, em torno das suas causas já apontadas, isto é
processou-se uma evolução no domínio dos contratos, acabando-se com um formalis-
mo rígido, para se admitir a eficácia das convenções, a força da vontade do contratan-
te, ao mesmo tempo em que se concedia ao juiz uma soma de poderes que até então
não havia fruído. Assim, de seu aspecto fortemente penal, e sem perdê-lo, a cláusula
penal evoluiu para sobrelevar-se em seu papel de elemento reparador, tal qual aparece
em nossos dias, como elemento de composição de perdas e danos." (Miguel Maria de
Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, vol. li, 6 3 ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Jurídica
Freitas Bastos, 1995, p. 150/151).
517
função coercitiva, é ainda igualmente importante o caráter compensa-
tório do instituto.
Para Orlando Gomes, a pré-fixação das perdas e danos é o princi-
pal objetivo buscado na cláusula penal, sendo a força intimidativa
mero efeito acidental, argumentando, para tanto, que "por vezes sua
função é diminuir o montante da indenização que seria devida numa
liquidação de perdas e danos conforme as regras comuns que a presi-
dem. Ademais, o valor estipulado pelas partes para o eventual ressar-
cimento pode ser reduzido pelo juiz, em algumas situações, e não se
permite que exceda o da obrigação principal" 10 .
A cláusula penal, ao funcionar como uma pré-estimativa das per-
das e danos, traz a vantagem para o credor de evitar as delongas pro-
cessuais com a liquidação do dano. Podem as partes, assim, fixar as
perdas e danos, agravando ou atenuando, nas suas conseqüências, a
responsabilidade 11 •
Miguel Maria de Serpa Lopes, analisando a problemática da finalida-
de ontológica do instituto, salienta que a sua estrutura apresenta ele-
mentos incompatíveis tanto com a natureza de pena como com a de in-
denização. O ilustre jurista observa que a pena supõe sempre uma pres-
tação que, em valor, se encontra situada acima da indenização normal
dos danos, pois a pena supõe algo mais que a indenização. Por outro lado,
"a indenização pressupõe um prejuízo e, nada obstante, a cláusula penal
é devida, mesmo na ausência desse prejuízo e é inalterável, ainda quando
o prejuízo tenha maior monta que o valor da pena." 12
Seguindo a linha do Código Civil de 1916, o Código Civil faz re-
ferência à função de pré-fixação de perdas e danos em vários disposi-
tivos, notadamente nos arts. 410 e 412. Contudo, pode-se afirmar
que os fundamentos da cláusula penal são tanto o de servir de instru-
mento de pré-fixação das perdas e danos como elemento de reforço
do liame contratual. 13
lO Orlando Gomes, Obrigações, 11" ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 159.
li Orlando Gomes, op. cit., p. 158.
12 Miguel Maria de Serpa Lopes, op. cit., p. 156.
13 Gustavo Tepedino et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da
República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 742.
518
Civil de 1916 que a nulidade da obrigação principal importava a da
pen(l convencional. Não obstante ter sido suprimido o texto no Códi-
go Civil, o mesmo entendimento persiste como consectário da regra
elementar da teoria obrigacional, segundo a qual a sorte do acessório
segue a do principal.
Alguns autores, entretanto, sustentam que há casos em que isso
não ocorre 14 . Se a nulidade da obrigação for relativa, então poderá
subsistir a cláusula penal "se da anulabilidade resultar uma obrigação
de indenizar por perdas e danos, pois, em tal caso, a cláusula penal
representa o seu equivalente" 15 . Todavia, não nos parece que o cum-
primento da cláusula penal poderá ser exigido após declarada a nulida-
de da obrigação principal, ela apenas servirá como um parâmetro para
o juiz, ao fixar a indenização perseguida pela parte prejudicada com a
extinção do contrato.
Há ainda a hipótese de as partes pré-estipularem cláusula que ga-
ranta ao credor indenização advindo a nulidade da obrigação principal,
também conhecida como cláusula penal independente 16 • A terminolo-
gia, porém, não nos parece adequada, pois a estipulação contratual
tem como pressuposto de sua eficiência a inexistência da obrigação
principal, quando a cláusula penal é, ao contrário, instituída em fun-
ção da proteção daquela obrigação.
519
convencional, pois caberá ao credor essa escolha, em caso de inexecu-
ção total da prestação.
As arras confirmatórias do contrato são exigidas no momento da
celebração do contrato, como garantia de que a avença será comprida,
ao passo que a cláusula penal será exigida posteriormente e somente
em caso de descumprimento culposo da prestação.
520
As partes podem estipular duas espécies de cláusula penal (art.
409 do CC). A cláusula penal é dita compensatória quando regular as
conseqüências do inadimplemento total do contrato. Já a cláusula pe-
nal moratória é aquela em que as partes estipulam as perdas e danos
em razão da demora no cumprimento da obrigação, em caso de cum-
primento defeituoso ou pelo descumprimento de uma outra cláusula
específica do contrato.
A importância na distinção entre ambas se dá na medida em que,
dependendo da espécie de cláusula, os efeitos que irão gerar serão
distintos.
A cláusula penal compensatória não poderá ser exigida juntamen-
te com o cumprimento da obrigação (art. 410), o que já poderá ser
admitido na cláusula penal moratória (art. 411).
Um critério adotado pela doutrina para se distinguir entre uma e
outra espécie seria observar o valor da pena convencionada 18 . Se mui-
to inferior ao valor do contrato, então a pena será considerada mora-
tória, pois seria ilógico que as partes estipulassem as perdas e danos
em virtude do descumprimento da obrigação principal em quantia
excessivamente modesta. Ao contrário, se a cláusula penal prever va-
lor elevado, aproximando-se do valor da obrigação principal então será
o caso de considerá-la como compensatória.
Advindo a cláusula penal compensatória, duas são as opções do
credor: ou insiste no cumprimento da obrigação, através de execução
específica, ou exige o pagamento constante da cláusula penal (art.
410).
Não é permitido, portanto, a cumulação dos pedidos. Escolhida
uma via não pode o credor pleitear a outra cumulativamente.
Se escolhida a obrigação orinalmente pactuada e esta se tornar im-
9
possível, então poderá ainda o credor se socorrer da cláusula penaJI .
Silvio Rodrigues sustenta que no caso do inadimplemento total
das obrigações restam três saídas para o credor. Além das duas acima
referidas, poderia ainda o credor "recorrer ao procedimento ordinário
e pleitear as perdas e danos, nos termos do art. 389, as quais serão
calculadas em juízo" 20 . Justifica o autor esse entendimento no fato de
o art. 41 O estipular ser a cláusula penal compensatória alternativa: "é
evidente que lhe defere a prerrogativa de preferir a indenização do
521
preJUIZO, quando este, sendo maior que a pena, for suscetível de
prova; caso contrário, nenhuma alterriativa ficaria aberta ao credor
quando a prestação houvesse se tornado impossível, por culpa do
devedor" 21 .
A maioria da doutrina defendia, ao nosso ver acertadamente, que
o ordenamento jurídico brasileiro não admitia essa possibilidade, pois
tiraria a principal característica e também a maior vantagem da cláu-
sula penal que seria, justamente, a prévia determinação das perdas e
danos. A indenização suplementar seria admitidíi, contudo, se assim
tivessem as partes expressamente estipulado, o que seria plenamente
possível eis que não se trata de questão de ordem pública. Essa cumu-
lação apenas não seria presumida.
A pré-estimativa das perdas e danos é vantagem para o credor,
uma vez que poderá exigi-la em face do inadimplemento culposo do
devedor sem precisar provar o dano, conforme disposto no art. 416.
Tal entendimento decorre de uma presunção iure et iure de prejuízo.
O devedor, por outro lado, poderá ser favorecido se a pena estipulada
vier a ser menor do que o real prejuízo. Há aí um equilíbrio entre as
partes, configurado no risco de a responsabilidade poder ser agravada
ou atenuada conforme as conseqüências do eventual inadimplemento.
Entretanto, se o credor, além de poder exigir do devedor o valor
da cláusula penal sem ter que demonstrar o prejuízo, ainda pudesse
demandá-lo para pagar indenização suplementar sem que as partes
tenham expressamente assim convencionado, entendemos que tal
possibilidade tiraria o caráter principal da cláusula penal que é justa-
mente a prefixação da responsabilidade do devedor.
O Código Civil expressamente dispôs sobre a questão, vedando a
possibilidade de indenização suplementar por parte do credor, caso as
partes não tenham avençado o contrário. Tal disposição se encontra no
parágrafo único no art. 416, com a seguinte redação:
522
conseqüências do inadimplemento ocasionam prejuízos que vão além
do valor do próprio contrato.
Acreditamos que o limite do art. 412 deve ser observado somente
quando do momento da pré-fixação das perdas e danos em caso de
cláusula penal compensatória. Se o prejuízo excede ao valor pré-esti-
mado pelas partes e o credor logra comprovar esse dano (essa possibi-
lidade deve ser prevista no contrato) não incide na hipótese o limite
do art. 412, até porque o legislador deixou expresso que o montante
da cláusula penal será apenas o mínimo, não cogitando o dispositivo de
nenhum teto para essa indenização suplementar, desde, é claro, que
seja comprovado o prejuízo excedente.
A doutrina salienta que, diante do texto acima transcrito, "a dis-
posição do art. 412 do Código Civil de 2002 é inócua, tendo em vista
que o seguinte permite a redução eqüitativa pelo juiz, e o art. 416
admite seja estipulada indenização suplementar", de modo que a sua
22
permanência no Código é "fruto da pura força da inércia" .
22 Caio Mário, Instituições de Direito Civil, vol. li, 20• ed. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p. ISS.
23 "O Código de I9I6 considerava-a [cláusula penal] irredutível, desde que se conte-
nha no limite legal, o que significa atribuir ao juiz a faculdade de diminuí-la no caso de
ultrapassar o gabarito estabelecido em lei, e para fazê-lo conter-se nele, Portanto a
pena convencional será imutável, já que não se confunde a sua irredutibilidade com a
sua limitação originária a um teto determinado (Código Civil, art. 920), seja uma cifra
percentual (I 0% no mútuo, por força do Decreto n° 22.262, I 0% na venda de terrenos
loteados, ex vi do Decreto-Lei n° 58, de 10 de novembro de I937, art. II, alínea f).
De lege ferenda, contudo, não faltam espíritos de escol sustentando, em nome da
eqüidade, a sua redutibilidade pelo juiz, a requerimento do devedor, quando o con-
fronto com a obrigação principal revela seu evidente excesso." (Caio Mário, Institui-
ções de Direito Civil, vol. li, I?" ed. Rio de Janeiro: Forense, p. I 09).
24 Entendendo que não havia contradição entre o disposto no art. 924 e no art. 927:
523
Possibilitava-se ao juiz reduzir o valor estipulado pelas partes em
duas hipóteses: quando superior ao valor máximo legal ou quando
houvesse cumprimento parcial da obrigação.
Assim, mesmo consagrando o princípio do pacta sunt servanda,
corolário da liberdade contratual, o próprio legislador de 1916 colo-
cou um limite na vontade das partes, com base na eqüidade e na boa-
f e-25 .
Carvalho Santos em seus comentários ao dispositivo no Código
Civil de 1916 já acenava para necessidade de serem observados prin-
cípios constitucionais na disciplina contratual, os quais estariam acima
da "lei entre as partes", mencionando expressamente a boa-fé, mesmo
quando tal princípio era apenas secundário na teoria dos contratos
daquela época:
524
constitucionais do comércio jurídico'. Não é possível que o direito
ultrapasse os limites da boa-fé~ "26 •
525
o coe em seu art. 52, § 2°, estabeleceu o limite da cláusula
moratória em 2% do valor do débito. E no art. 53, o COC estipula que
em casos de venda financiada será nula a cláusula que exigir a perda
total da parcelas pagas, juntamente com a resolução do contrato e a
retomada do imóvel, por inadimplemento contratual do adquirente.
Com relação ao valor máximo estabelecido pelo art. 920 do Códi-
go Civil de 1916, e reproduzido pelo art. 412 do Código Civil vigente,
indagava-se se a multa cominatória disposta no art. 644 do CPC, fixa-
da pelo juiz nas sentenças condenatórias de obrigação de fazer ou não
fazer, deveria atender àquele limite.
Para a doutrina processualista a multa cominatória diária não tem
natureza de pena civil, eis que não é estipulada pelas partes como
reforço da obrigação ou prefixação das perdas e danos; tem origem no
âmbito processual e é fixada pelo juiz com o propósito de tornar efe-
tivo o processo.
A preocupação da norma processual é fazer com que o devedor
não seja estimulado a procrastinar o máximo de tempo possível o
cumprimento da obrigação, sendo, portanto, irrelevante que as cha-
madas "astreintes" ultrapassem o valor da obrigação principaP 1•
A Terceira Turma do STJ tem afastado o limite do art. 920 do
Código Civil de 1916, atual art. 412 do Código Civil, nos moldes da
decisão cuja ementa encontra-se assim transcrita:
526
"Há diferença nítida entre a cláusula penal, pouco importando seja a
multa nela prevista moratória ou compensatória, e a multa cominató-
ria, própria para garantir o processo, por meio do qual pretende a
parte a execução de uma obrigação de fazer ou não fazer. E a diferen-
ça é, exatamente, a incidência das regras jurídicas específicas para
cada qual. Se o Juiz condena a parte ré ao pagamento de multa pre-
vista na cláusula penal avençada pelas partes, está presente a limita-
ção contida no art. 920 do Código Civil. Se, ao contrário, cuida-se de
multa cominatória em obrigação de fazer ou não fazer, decorrente de
título judicial, para garantir a efetividade do processo, ou seja, o cum-
primento da obrigação, está presente o art. 644 do Código de Proces-
so Civil, com o que não há teto para o valor da cominação." 32
32 STJ, 3" Turma, RESP 196.362-RJ, Rei. Min. Carlos Alberto Direito, DJ
11.09.2000, p. 250. A 43 Turma também já havia se manifestado nesse mesmo sentido
no julgamento do RESP 169.057, de relataria do Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira,
em 01.06.1999.
33 Gustavo Tepedino, Efeitos da crise econômica na execução dos contratos, in Te-
mas de Direito Civil, 2• ed. Rio de Janeiro: Renovar, 200 I, p.l 00.
527
A segunda hipótese para a redução da cláusula penal prevista no
Código Civil de 1916 era a observância de cumprimento parcial da
obrigação (art. 924, correspondente ao art. 413 do Código Civil) 34 .
Tendo em vista se tratar de uma mera faculdade do juiz, muitos
contratos passaram a ser celebrados com cláusula estabelecendo a im-
possibilidade de redução do valor com base no art. 924.
Sobre a questão salientou Caio Mário que: "[s]endo, no Código,
instituído o princípio com caráter privado, é suscetível de derrogação
pelas partes, que têm, portanto, a liberdade de ajustar o limite da
redutibilidade, ou ainda a própria irredutibilidade, tanto mais que a
finalidade cogente da pena convencional poderia frustrar-se com a
perspectiva de sua diminuição, e o ajuste contrário a esta restituir-lhe
todo o prestígio". Contudo, para o ilustre professor "se ficar instituída
a redução por onerosidade excessiva, caberá ao juiz o poder de decre-
tá-la, ainda contra a estipulação do contrato, desde que se configure
esse requisito e o interessado o requeira "35 o
528
inadimplemento parcial da obrigação. 11- a moderna doutrina e a
atual jurisprudência se opõem a clássica doutrina civilista da supre-
macia da vontade, preferindo optar pelo caráter social de proteção a
parte presumidamente mais frági\." 37
529
no caso da decisão acima), a jurisprudência, ao mesmo tempo que
reduzia o valor da cláusula penal obrigando o promitente-vended or a
restituir ao adquirente grande parte das parcelas pagas, condenava
aquele ao pagamento da taxa de ocupação do imóvel desde o momen-
to em que deixou de pagar o financiamento. Verifica-se que o argu-
mento utilizado para ambas as condenações foi o da vedação ao enri-
quecimento sem causa das partes 39 .
Importante ainda destacar que, não obstante ter o legislador utili-
zado no art. 413 o termo "obrigação principal", relacionando-o, assim,
com a cláusula penal compensatória, a doutrina o tem aplicado tam-
bém para a redução de cláusula penal moratória. Nesse particular,
afirma-se que é "incontestável que, quanto à cláusula penal moratória,
a possibilidade de redução judicial apresenta-se mais distante, uma
vez que esta foi estipulada justamente para prevenir e castigar a im-
pontualidade. Entretanto, nenhum óbice surge à redução judicial de
cláusula penal moratória quando esta for manifestamente excessiva,
traduzindo-se em indevido castigo,ao devedor (STJ, 4a T., REsp.
265.092, Rei. Min. Aldir Passarinho Junior, julg. 07.03.2002, publ.
DJ 15.04.2002; STJ 4 2 T., REsp. 1.642. Rei. Min. Sálvio de Figueire-
do Teixeira, julg. 13.02.1990, publ. DJ 16.08.1999) "40 .
O art. 413 do Código Civil inovou ao introduzir uma terceira pos-
sibilidade para a redução judicial da cláusula penal, qual seja, quando
o quantum for "manifestamente excessivo", aum~ntando, assim, a dis-
cricionariedade do juiz-, o que, aliás, é característica marcante do
Código Civil em vigor.
530
De acordo com o aludido artigo, com base na eqüidade o juiz está
autorizado a intervir no contrato diminuindo o valor convencionado se
a cláusula se mostrar excessiva no caso concreto.
Importante ponderar que a redução nesse caso deve ser feita caso
a caso analisando-se os interesses e valores discutidos no contrato e
nunca "em atenção à circunstância fortuita de- eventualmente- os
prejuízos se revelarem muito mais baixos ou até inexistentes. Não se
pode ter a preocupação de reduzir a indenização convencionada ao
valor dos prejuízos reais ou eliminá-la no caso de ausência de danos,
pois isso seria desvirtuar a índole da própri~ cláusula penal." 41
Quanto à questão da majoração pelo juiz da cláusula penal, vimos
que o nosso sistema não a admite, tendo o art. 416 expressamente
disposto sobre essa impossibilidade, na ausência de estipulação das
partes nesse sentido.
531
parte que regulamenta a responsabilidade pelo vício e pelo fato do
produto dispõe que "é vedada a estipulação contratual de cláusula que
impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista
nesta e nas seções anteriores."
Claudia Lima Marques analisa em sua festejada obra a cláusula
penal clássica nos contratos de consumo, sob a ótica da abusividade.
Salienta que cláusula penal não foi incluída entre as expressamente
mencionadas na lista do art. 51, o que apesar de não ter grandes
implicações, tendo em vista o caráter meramente exemplificativo do
rol ali estabelecido, de certo que retira das penas convencionais
"aquela 'desconfiança', aquela especial atenção que desperta os juízes,
em outros ordenamentos jurídicos" 42 .
Ressalte-se, entretanto, que o próprio CDC, em seu art. 54, § 4°,
admite a existência de cláusulas restritivas de direitos do consumidor.
Dispõe, contudo, a obrigatoriedade de que, nos contratos de adesão,
elas sejam redigidas em destaque, cabendo ao intérprete, contudo,
estabelecer o âmbito dessas limitações 43 •
Os litígios relacionados ao tema que têm sido apreciados pelo Ju-
diciário são em sua grande maioria entre partes efetivamente desi-
guais, nos quais não teve o consumidor a oportunidade nem o poder
de exercer a sua vontade para discutir o conteúdo da cláusula penal
em seu favor.
532
Quando se trata de resolução do contrato por inadimplemento do
fornecedor, não há qualquer uniformidade nas decisões de nossos tri-
bunais.
Hipótese comumente apreciada pela jurisprudência diz respeito à
ação de rescisão contratual de promessa de compra e venda de imóvel,
no qual a construtora não entrega o imóvel no prazo determinado. Nos
recentes julgados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não há
consenso quanto a inúmeras questões envolvendo as ações que versam
sobre a matéria.
Em ação de rescisão do contrato de compra e venda ajuizada pelos
adquirentes contra a incorporadora, que respondeu perante o consu-
midor pelo inadimplemento da entrega do imóvel por parte da cons-
oa
trutora Encol, a 1 Câmara Cível acolheu o pedido de indenização
por danos morais em face do inadimplemento contratual e manteve a
condenação do réu na devolução integral das parcelas pagas. Mas, ten-
do em vista a ausência de cláusula penal favorável ao consumidor,
indeferiu a aplicação de multa. 44
Entretanto, a 15 3 Câmara Cível apreciando caso análogo, enten-
deu que na existência de cláusula penal somente em caso de inadim-
plemento do comprador, deveria a mesma ser invertida a favor do
consumidor no caso de descumprimento contratual do vendedor 45 ·46 .
44 "Ação ordinária de rescisão de negócio jurídico, com devolução das parcelas pagas
e perdas e danos. Responsabilidade de incorporadora, diante da falência da construto-
ra Encol, com a paralisação da obra. Danos morais. Fluência dos juros. Índice de cor-
reção a ser aplicado. Taxa de juros e multa compensatória. Danos materiais traduzidos
por lucros cessantes. Tendo sido retardada a conclusão da obra, pela notória falência
da construtora Encol, escolhida pela incorporadora e proprietária do terreno, cabe a
rescisão do contrato, respondendo esta pelos prejuízos sofridos pelos adquirentes. A
paralisação dos pagamentos, por parte dos compradores se impunha, diante da parali-
sação da obra e da notória dificuldade enfrentada pela construtora, que acabou redun-
dando em sua quebra. A frustração do sonho de adquirir a casa própria traduz sofri-
mento d'alma ou seja, dano moral, não se confundindo com o simples inadimplemento
de obrigação contratual. Os juros devem fluir dos desembolsos das parcelas do preço,
na base de 0,5% ao mês, à falta de expressa previsão contratual de taxa mais elevada.
A multa não é devida também porque não foi prevista para o caso do inadimplemento
ser da alienante. Não sendo comprovados os danos materiais, não é devida a indeniza-
ção, que não pode ser remetida para apuração em fase de liquidação da sentença."
TJRJ, lO" C.C. Ap. Cív. 2001.001.08507, Rei. Des. Sylvio Capanema, j. 07.08.2001.
No mesmo sentido, em relação a impossibilidade de aplicação de multa contratual não
prevista em favor do consumidor, ver Ap. Cív. 2001.001.04159, 14" C. C., Des. Rei.
Edson Scisinio, j. 25.06.2002.
45 A Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, em atendimento ao
533
A 73 Câmara Cível, salientando a impossibilidade de exigir o cum-
primento da cláusula penal acrescida das perdas e danos, assim deci-
diu: "Ação de rescisão contratual, com devolução das quantias pagas,
além de multa e perdas e danos julgada procedente. Contrato des-
cumprido sem justa causa, ensejando a sua rescisão com o direito a
restituição das importâncias pagas. Multa estábelecida no contrato na
hipótese do seu descumprimento. Diante da s_ua existência, as perdas
e danos estão prefixados, outra indenização é incabível. "47
Em outra decisão, o Tribunal aplicou a multa moratória cumulada
o
com indenização por danos morais, apesar de contrato ter sido res-
cindido, o que ensejaria, pelo descumprimento total da obrigação, a
multa compensatória. 48
534
A ga Câmara Cível, por sua vez, afastou a aplicação de cláusula penal
iníqua, reconhecendo a sua abusividade e, além da devolução das quan-
tias pagas, também condenou ao pagamento de danos morais 49 .
8. Conclusão
das com indenização por dano moral, com fundamento na frustração do sonho da casa
própria.
49 "Procede o pedido de rescisão do contrato se a Ré ajustou a conclusão de entrega
do apartamento para 30/01/97, admitindo a prorrogação por noventa dias c não cum-
priu, inexistindo motivo de força maior. Procedência do pedido que se impõe com a
devolução das quantias pagas para a aquisição do imóvel corrigidas monetariamente.
Cláusula abusiva e nula de pleno direito que estabelece a devolução de quantia ínfima
a título de indenização. Aplicação do art. 51, inciso IV do CPC. Presente o dano moral
na espécie, uma vez que óbvio que a frustração causada pelo desfazimento do negócio,
que se destinava à aquisição de casa própria -sonho da classe média -com investi-
mento de poupança de praticamente toda a família, causa um sofrimento anormal c
que merece ser indenizado. O montante deve proporcionar uma compensação pelo
desgosto, dor e tristeza sofridos, ao mesmo tempo em que representa uma sanção ao
infrator, além de desestímulo a outras infrações. Embora possa ser questionada a im-
posição de dano moral em virtude de inadimplemento contratual, o fato é que a nuli-
dade da cláusula penal que o englobaria deixa a outra parte sem a justa e perfeita
reparação, motivo pelo qual deve ser contemplada." TJRJ, 9a C.C., Ap. Cív.
2000.001.01967, Rei. Des. Paulo César Salomão, j. 15.08.2000. A 3" Câmara Cível,
por sua vez, rejeitou a indenização por danos morais decorrentes do inadimplemento
contratual nesses casos: "Incorporação frustrada quanto ao prazo de entrega. Inadim-
plência da incorporadora corretamente reconhecida em sede monocrática. Rescisão
do contrato,devolução do preço pago, corrigido e com juros. Transtornos e aborreci-
mentos da vida de relação que não subsumem a hipótese de agressão a direito subjeti-
vo absoluto da personalidade da parte inocente da rescisão." TJRJ, 33 C.C., Ap. Cív.
2001.001.23115, Rei. Des. Murilo Andrade de Carvalho, j. 12.09.2002.
535
sula penal compensatória no valor da obrigação principal e a redução
em caso de cumprimento parcial da obrigação.
Nesse ponto salientamos que apesar de a expressão "manifesta-
mente excessivo" dar margem a muitas interpretações, é importante
que não seja desvirtuado o sentido da norma ao aplicar-se a redução
objetivamente sempre que haja desproporção entre o prejuízo sofrido
e o valor da cláusula penal, sem se atentar para os interesses e bens
visados com a contratação. Não se pode esquecer que é característica
da cláusula penal a prefixação das perdas e danos pelas partes, am-
pliando - caso em que o valor pactuado na multa será maior que o
prejuízo, que poderá até mesmo não existir- ou reduzindo a respon-
sabilidade do devedor em caso de inadimplemento do contrato.
Igualmente em consonância com entendimento já consolidado na
jurisprudência, o Código Civil determinou que a redução da cláusula
penal é verdadeiro dever do magistrado, não mais se caracterizando
como uma mera faculdade, como era previsto no Código Civil de
1916.
Outra importante alteração encontra-se no parágrafo único do art.
416, inexistente no Código Civil de 1916, o qual põe fim à discussão
acerca da (im)possibilidade de ser afastada a cláusula penal quando veri-
ficado que o prejuízo decorrente do inadimplemento foi maior que o
prefixado pelas partes, hipótese em que o devedor teria que arcar com a
integralidade das perdas e danos comprovados pelo credor.
O dispositivo legal acima mencionado optou por vedar a indeniza-
ção suplementar, se as partes não tiverem expressamente previsto de
forma contrária, dando, assim, maior importância à função de prefixa-
ção das perdas e danos da cláusula penal.
No que tange às relações de consumo, vimos que nosso ordena-
mento jurídico não consagrou a multa contratual como uma cláusula
abusiva a priori como o fez outros ordenamentos jurídicos estrangei-
ros, como o alemão.
Assim, a abusividade da cláusula penal é analisada no caso concre-
to, com base nos dispositivos do coe que versam sobre a matéria,
bem como dos princípios da boa-fé objetiva, da igualdade das presta-
ções e da função social do contrato.
Quanto às cláusulas penais estipuladas em favor do consumidor
que sejam consideravelmente inferiores ao prejuízo por ele sofrido
com o inadimplemento do fornecedor e não haja previsão no contrato
de indenização suplementar, não se poderá afirmar de imediato que
ante a previsão do art. 416, teria o consumidor que se contentar com
a quantia prefixada.
536
Vimos que a cláusula penal assume comumente um caráter de prefi-
xação, pelos contratantes, de todas as perdas e danos pelo descumpri-
mento do ajuste. E quem assim age, aceita, de antemão, todas as conse-
qüências daí decorrentes. No quantum reparador da cláusula penal estão
compreendidos, à forfait e a priori, todos os prejuízos a serem experi-
mentados pelo lesado, inclusive os de natureza não patrimonial.
Tal posicionamento pode proceder nos casos em que as partes
estão na mesma igualdade de condições para negociar, e é dessa hipó-
tese que o legislador civilista se ocupou ao vedar a possibilidade de
indenização suplementar quando o prejuízo for maior que a quantia
prefixada pelas partes, no silêncio do contrato a esse respeito.
Ocorre, porém, que nas relações de consumo não se verifica essa
igualdade por uma das partes, que tem quase nenhuma força negociai
para ajustar uma cláusula penal que cubra os prejuízos materiais, e
acaso morais, que o inadimplemento do contrato possa lhe causar.
Sendo toda a normatividade consumerista voltada para a proteção da
parte mais fraca, seria incoerente a aplicação de uma norma do Código
Civil que desconsiderasse inteiramente essa condição de hipossufi-
ciência.
As relações contratuais subordinadas ao Código de Defesa do
Consumidor são casos típicos em que, invariavelmente, o consumidor
acaba por se submeter a cláusulas abusivas que de forma alguma irão
indenizá-lo pelo descumprimento da obrigação do contrato. Naquele
diploma legal há regra dispondo que os direitos do consumidor serão
protegidos contra "cláusulas abusivas impostas no fornecimento de
produto ou serviço" (art. 6, IV, do CDC), considerando abusivas e
nulas de pleno direito, dentre outras, cláusulas que "atenuem a res-
ponsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos pro-
dutos e serviços ou impliquem a renúncia de direitos" (art .51, I, do
CDC) ou "que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas,
que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade" (art. 51, IV, do CDC).
Trata-se portanto de uma relação contratual com peculiaridades,
as quais devem ser dirimidas sob a égide do coe, lei especial que
trata da matéria, e não do CC. A aplicação de normas do CC para as
relações típicas de consumo serão admitidas em caráter subsidiário,
quando não afrontar os dispositivos do coe nem contrariar os princí-
pios da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico e da função social do
contrato.
537
Das arras ou sinal
I. Introdução
539
sição da parte geral dos contratos para o título referente ao inadimple-
mento das obrigações.
Inicialmente, faremos uma abordagem sobre o conceito de arras,
origem, natureza jurídica, diferenças em relação à cláusula penal, e a
possibilidade de acumulação com perdas e danos.
A seguir, trataremos da função das arras confirmatórias e peniten-
ciais. Faremos, ainda, um breve comentário sobre as funções assecura-
tória e probatória atribuídas às arras.
Finalmente, procuraremos demonstrar que, no novo Código Civil,
a transposição das arras da parte geral dos contratos para o título refe-
rente ao inadimplemento das obrigações teve como objetivo atender
às razões de sistema. Ainda, que as arras desempenham uma função de
indenização prefixada (penitenciai) e que, somente excepcionalmen-
te, desempenham função confirmatória do contrato, se é que seria
esse o termo adequado.
2. Considerações gerais
2.1. Conceito
540
Serpa Lopes, ao tratar das características das arras, afirma que
estas podem consistir na entrega de coisa infungível. 3
Chamamos atenção para a questão da fungibilidade da coisa, pon-
to em que divergem o prof. Washington de Barros e o prof. Serpa
Lopes, e entendemos que nada impede que a coisa dada seja infungí-
vel. Neste caso, apenas não poderá ser computada na prestação devi-
da, em caso de execução do contrato, a menos que as partes, quando
possível, convencionem a sua fungibilidade.
Temos a ratificação deste entendimento no conceito de arras for-
mulado por João de Matos Antunes V areia, que assim descreve o ins-
tituto:
3 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil (Fontes das Obrigações:
Contratos). V oi. III. 3• ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1960, p. 214.
4 VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. Vol. I, lO" ed.
Coimbra, Almedina, 2000, p. 311-312.
5 Quarto Livro das Ordenações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 835.
6 Ordenações, op. cit., p. 835.
541
marido à sua esposa, de todos os bens que na casa se encontrassem,
sem excetuar coisa alguma, por mais preciosa que fosse. As Ordena-
ções proibiam a promessa ou doação de câmara cerrada, tendo-a como
nula de pleno direito.
De Plácido e Silva conceitua arras como penhor dado em sinal de
firmeza do contrato ajustado. 7
Não entendemos ser esta a melhor conceituação de arras, e encon-
tramos dificuldades quando esta for uma soma em dinheiro, uma vez
que, neste caso, fica difícil aplicar as regras impostas ao contrato de
penhor.
2.2. Origem
542
de familiar e insuficiência do escambo para conter a complexidade
dos negócios jurídicos. Sua primeira finalidade, no Direito das
Obrigações, foi assegurar a perfeição do contrato; com as institutas
de Justiniano, teriam as arras adquirido uma função secundária de
penitência. 11
543
2.4. Diferenças em relação à cláusula penal
544
inadimplemento. Outros admitiam a cumulação quando convenciona-
da pelas partes.
Serpa Lopes assim se posicionou:
3. Função e tipos
545
No Direito italiano, onde é chamada de Caparra, as arras são con-
firmatórias, e só excepcionalmente penitenciais, conforme dicção dos
arts. 1.385 23 e 1.386. Muito embora este art. 1.385 trate de arras
confirmatórias, entendemos ser a sua segunda parte uma hipótese tí-
pica de arras penitenciais, pois a conseqüência jurídica em nada difere
daquela em que se exerce o direito de arrependimento. 24
No Código Civil alemão, art. 338 25 , as arras exercem função ape-
I. Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou
restituída quando a imputação não for possível.
2. Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja
imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não
cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o
dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prome-
tido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado
objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço
convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal c a parte do preço que tenha
pago.
3. Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode,
em alternativa, requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830°;
se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou do direito, como
se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa facul-
dade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no artigo 808°.
4. Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do
contrato, a qualquer outra indenização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento
do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumpri-
mento".
23 "art. 1385. Caparra confirmatoria
Se al momento de/la conclusione ( 1326) del contratto una parte dà all'altra, a ti tolo di
caparra, una somma di danara o una quantità di altre cose fungibili, la caparra, in
caso di adempimento, deve essere restitui ta o imputa ta alia prestazione dovuta ( 1194).
Se la parte che ha dato la caparra e inadempiente (1218), l'altra puà recedere dal
contratto, ritenendo la caparra; se inadempiente e invece la parte che l'ha ricevuta,
l'altra puà recedere dai contralto ed esigere il doppio della caparra (1386,1826; att.
164)."
24 "Se perà la parte che non e inadempiente preferisce domandare l'esecuzione o la
risoluzione (1453 e seguenti) del contralto, il risarcimento dei danno e regolato dalle
norme generali (1223 e seguenti; att. 164)."
"Art. 1386. Caparra penitenziale
Se nel contratto e stipulato il diritto di recesso per una o per entrambe le parti, la
caparra ha la sola funzione di corrispettivo dei recesso.
In questo caso, il recedente perde la caparra data o deve restituire il doppio di quella
che ha ricevuta. "
25 BGB. "art. 338. Wird die von dem Geber geschuldete Leistung infolge eines Ums-
tands, den e r zu vertreten hat, unmoglich oder verschuldet der Geber di e Wiederaufhe-
546
nas confirmatória. Observa a maioria dos autores que 26 o nosso Códi-
go Civil, abandonando a concepção anterior, que atribuía às arras efei-
to penitenciai, passou a adotar a concepção alemã.
O professor Orlando Gomes, no entanto, afirma que as duas fun-
ções podem ser admitidas, alternativamente, prevalecendo a confir-
matória, se não for estipulado, expressamente, que o sinal é dado para
permitir o arrependimento. 27 .
Nas Ordenações Filipinas, .às árras eram penitenciais, conforme
podemos aferir do Livro IV, Título II: Das compras e vendas feitas,
por sinal dado ao vendedor simplesmente, ou em começo de paga:
bung des Vertrags, so ist der Empfiinger berechtigt, die Draufgabe zu behalten. Ver-
langt der Empfiinger Schadensersatz wegen NichterfüUung, so ist die Draufgabe im
Zweifel anzurechnen oder, wenn dies nicht geschehen kann, bei der Leistung des Scha-
densersatzes zurückzugeben ".
26 RODRIGUES, op. cit., p. 84. "( ... ) Código Civil Francês, entende que a mera
existência de um sinal torna possível o arrependimento, o que vale dizer que, nessa
legislação, as arras têm basicamente um sentimento penitenciai; ( ... ) Código Civil
Alemão vê nas arras um elemento comprovador do contrato( ... ) um caráter confirma-
tório".
DAIBERT, Jefferson. Dos contratos: parte especial das obrigações, 3• ed. Rio de Janei-
ro: Forense, 1980, p. 91. "Os efeitos da reforma justinianéia se fizeram sentir no C.
Civil Francês que os considera (arras) penitenciais, eis que torna possível- pelo sinal
- o arrependimento das partes ( ... )o nosso Código, adotando o mesmo critério do C.
Civil Alemão dá às arras o caráter de confirmatórias do contrato( ... )."
PEREIRA, op. cit., p. 59-60. "Para umas legislações como a Alemã( ... ) a arra ou sinal,
( ... ) importa em uma convenção ( ... ), tendo o efeito de provar que o contrato principal
( ... ) para outras legislações, tendo à frente a Francesa, a entrega da arra tem o signifi-
cado de serem às partes livres para o arrependimento ficando a perda do sinal regulan-
do a indenização".
27 GOMES, Orlando. Contratos, 6 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. I I 9.
547
désse logo ao vendedor certo dinheiro em sinal por segurança da com-
pra, se comprador se arrepender, e se quizer affastar do contracto,
podê-lo-há fazer; mas perderá o dinheiro, que assi deu em sinal.
E bem assim, se o vendedor que o sinal recebeu do comprador se
quizer arrepender o affastar da venda podê-lo-há fazer; mas tornará
ao comprador todo o dinheiro, que delle recebeu em sinal, com outro
tanto. E esta pena é dada ao comprador e vendedor, porque não qui-
zeram confiar da perfeição do contracto, e quizeram usar de outra
nova provisão, convêm a saber, de dar e receber o sinal.
E isto não se entenderá nas compras e vendas, que se fazem per Cor-
retores entre alguns Mercadores estrangeiros, ou visinhos sobre algu-
mas mercadorias; porque em tal caso, aindaque o comprador dê al-
gum dinheiro em sinal ao vendedor, não deixará portanto a venda ser
em todo firme, sem alguma das partes se poder mais se arrepender
della sem consentimento da outra parte; porque assi foi sempre usa-
do entre os Mercadores.
E se depois da compra e venda acabada per consentimento e firmeza
das partes, o comprador der ao vendedor certo dinheiro em parte de
paga, ou em sinal e paga, como alguns costumam fazer, não se poderá
jámais alguma das partes arrepender e sahir do contracto sem consen-
timento da outra parte, aindaque queira perder o dinheiro, que deu
em parte de paga, ou em sinal de paga, on outro tanto, como o que
recebeu; porque pelo dinheiro, que foi dado em sinal e em paga, ou
em parte de paga, ficam esses contractos de compra e venda mais
perfeitos, que onde sómente foi dado em sinal, e não em parte de
paga".zs
548
Por esta razão, as arras tinham, no Direito Romano, a função de
reforçar o vínculo contratual.
Na medida em que as convenções se tornaram obrigatórias, pela
própria força do consentimento, as arras perderam esse caráter de
elemento reforçador do vínculo, para se tornarem instrumento proba-
tório.30
Serpa Lopes pede cautela aos que acreditam nas arras como força
obrigatória dos contratos, lembrando que, a partir do momento em
que há o encontro de vontades, o contrato está formado, não restando
às arras qualquer papel confirmatório. 31
De fato, não vemos cabimento nesta função de confirmar a exis-
tência de um contrato atribuída às arras. Talvez isso fosse importante
no Direito Romano, não mais atualmente, em que até um simples
contato social cria obrigações.
Assim, entendemos que o que existe não é a confirmação do con-
trato, pois, como já vimos, isto ocorre no momento do encontro das
declarações de vontades, mas a confirmação de sua execução, da in-
tenção do seu cumprimento. Por isso, falamos em reforço do vínculo
da obrigação.
549
"O sinal constitui predeterminação das perdas e danos em favor da
parte inocente; se o arrependido foi quem o forneceu, perde-o em
favor do outro; se o que recebeu, deve restituí-lo em dobro. A aplica-
ção do castigo tem como pressuposto a culpa do que se arrependeu,
funcionando então as arras como cláusula penal, independentemente
da prova de prejuízo real. ( ... ) a restituição é duplicada porque, se
fosse singela, o inadimplente nada teria pagado à parte inocente, vin-
do assim a desaparecer a indispensável igualdade de direitos e obriga-
ções que deve reinar entre os contratantes". 33
"Com efeito, mesmo quando haja prestação de sinal com caráter pe-
nitenciai, o autor do sinal pode não cumprir a promessa, porque não
pode cumprir (porque falhou o projectado contrato de financiamen-
to da compra, por exemplo) e não porque tenha querido desistir do
contrato.
Se não cumpriu, apenas porque não pôde fazê-lo, haverá em princípio
simples mora. ( ... ) Se não cumpriu, declarando que não quer realizar
o contrato prometido e o sinal tem realmente natureza penitenciai,
terá havido simples e regular exercício do jus poenitendi que o con-
trato-promessa lhe confere, embora se sujeitando à sanção da perda
do sinal". 35
550
relativo ao inadimplemento das obrigações, os comentadores continuam
a afirmar que a principal função das arras é confirmatóriaY
O professor Renan Lotufo afirma que os art. 41 7 a 419 tratam de
arras confirmatórias: "Os três primeiros (artigos) ocupam-se das arras
confirmatórias; o último das arras penitenciais". 38 E em outra passa-
gem: "A função das arras é confirmar contrato que deverá ser celebra-
do, daí a razão fundamental inclusive de se ter alterada a denominação
do capítulo para arras ou sinal". 39 .
Há quem diga ter havido um desvirtuamento da função confirma-
tória das arras, em virtude de uma interpretaÇão incorreta do§ 338 do
BG B, cujo correspondente no Código Civil de 1916 é o art. 1.097.
O§ 338 do BGB assim prescreve:
37 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: obrigações, Vol2, 30" ed. São Paulo: Saraiva,
2002, pp. 279-284.
MONTEIRO, Washington de Barros. Obrigações. Atuali1..ação de Carlos Alberto Da-
bus Maluf. Vol. 4, 32• ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 356-362.
38 LOTUFO, op. cit., p. 484.
39 LOTUFO, op. cit., p. 490.
40 Tradução do Prof. Sílvio Rodrigues, op. cit., p. 89.
551
arras como tendo a principal função de indenizar. É que ninguém pa-
recia entender a razão pela qual o art. 1.097 não previa punição para
aquele que recebia as arras e não cumpria o contrato e, uníssonos,
alegavam que deveria ser aplicado o art. 1.056, que tratava, no CC-1916,
da indenização por perdas e danos, genericamente. Ora, o art. 1.097
não previa punição para quem recebia as arras porque a idéia do§ 338
do BGB que, como já vimos, deu origem ao nosso art. 1.097, não era
a de que as arras tivessem caráter punitivo, e isso já confirmamos, ao
analisarmos a parte final daquele artigo.
O novo código, na tentativa de "corrigir" essa suposta omissão do
art. 1.097, estabeleceu, no art. 418 que, se o que recebeu arras não
cumprir a obrigação, poderá a outra parte haver o contrato por desfei-
to e exigir sua devolução mais o equivalente, ou seja, prescreveu uma
punição específica para ambas as partes. Se antes as arras já tinham
função indenizatória, com este dispositivo tal função encontra-se de-
finitivamente consolidada, pois muito embora a parte inicial do art.
418 fale em retenção, o sentido empregado é mesmo de perda, por
uma das partes.
Somente quando, no caso de inexecução do contrato, a parte pre-
judicada optar pela execução específica da obrigação, as arras serão
confirmatórias.
Contrário a esse entendimento, o professor Orlando Gomes assim
afirma: "Quando não se atribui às arras expressamente outra função,
devem ser consideradas confirmatórias". 41 Mas, logo a seguir admite:
"Nas arras confirmatórias, não há que se falar em pena. Constituindo,
como constituem, uma garantia, tornam o contrato obrigatório. Mas,
se o contratante que pagou o sinal der causa à impossibilidade da
prestação, ou à resolução do contrato, perdê-lo-á em benefício do
outro. Trata-se de uma espécie de indenização" .42
Parece haver uma resistência na doutrina em admitir que as arras
possuam função primordialmente indenizatória, por mais que uma in-
terpretação sistemática deste instituto, no nosso direito, demonstre
ser essa a principal função das arras.
552
arras não exercem função probatória, pois o próprio instrumento
cumpre essa função. Já nos contratos não solenes, admitimos que elas
possam exercer função probatória, contudo, não é exclusiva, nem
principal. Podemos confirmar isso ao analisarmos o art. 273 do CPC,
que trata da antecipação de tutela. Um dos requisitos deste dispositi-
vo é a existência de "prova inequívoca". Esta expressão veio substituir
a expressão "prova documental", que constava da redação primitiva;
com isso, o legislador evitou que esta prova fosse privilegiada. Enten-
demos que tal decisão foi acertada, uma vez que temos outros meios
probatórios que, dependendo das circunstâncias, podem ser mais con-
vincentes. Ninguém duvida que um exame de DNA tenha mais peso
que uma certidão de nascimento, em uma ação contestatória de pater-
nidade.
44
las arras las pierde si se niega a concluir el contrato".
A nossa legislação não aborda esse tipo de arras, contudo, os dou-
trinadores admitem-na.
553
plcmento das obrigações. Essa modificação, todavia, causou muito ba-
rulho em grande parte da doutrina, na medida em que muitos enten-
dem que as arras não deveriam ter saído da parte geral dos contratos,
haja vista aquelas referirem-se a estes. Parece ser essa a opinião do
prof. Luiz Roldão de Freitas Gomes:
"( ... ) restaria indagar se não ficaria melhor continuarem as arras tra-
tadas nas disposições gerais dos contratos, cuja conclusão pressu-
põem, ao invés de em seqüência à cláusula penal, no título do inadim-
plemento das obrigações, como que olvidada sua função confirmató-
na .45
• 11
45 GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Observações sobre o livro (Do direito das obriga-
ções) da parte especial do Projeto do Código Civil. Na Internet, em www.fem-
perj.org.br/artigos/civ pro/acpl9.htm, acesso em mai. 2003.
46 ALVIM apud LOTUFO, op. cit., p. 484.
47 COSTA, Dilvanir José da. "Inovações principais do novo Código Civil", in Revista
dos Tribunais, n. 0 796, São Paulo: RT, fev./2002, p. 47.
48 COSTA, op. cit., p. 47.
554
À exceção da referência às arras confirmatórias, que entendemos
não ser pena convencional, concordamos com as afirmações do prof.
Costa, principalmente no que se refere à necessidade de se confrontar
o instituto das arras com a regulação do inadimplemento. É exatamen-
te isto que procuraremos fazer a partir de agora.
O art. 417, que parece ter substituído o art. 1.096 do Código Civil
de 1916, assim dispõe:
"art. 417. Se, por ocasião da conclusão do contrato, uma parte der à
outra, a título de arras, dinheiro ou outro bem móvel, deverão as
arras, em caso de execução, ser restituídas ou computadas na presta-
ção devida, se do mesmo gênero da principal".
Esse art. 417 trata das arras confirmatórias. À primeira vista, pare-
ce constituir uma quebra no sistema do inadimplemento das obriga-
ções, pois prescreve as conseqüências jurídicas de uma obrigação cum-
prida, contrariamente ao que ocorre com os demais dispositivos do
sistema do inadimplemento. Contudo, essa quebra é apenas aparente.
Se compararmos esse art. 41 7 com o art. 418, que trata das conse-
qüências jurídicas para quem celebrou contrato corn arras, e entretan-
to não o executou, veremos que as previsões normativas de ambos
coincidem parcialmente, diferindo apenas pelo fato de que, no art.
417, cuida-se de obrigação cumprida, enquanto no art. 418, de obri-
gação não cumprida. Todavia, as conseqüências jurídicas são diferen-
tes. Assim, alguns casos caem sob uma previsão, outros sob outra e
outros, ainda, sob nenhuma delas. 49
555
Tomemos a situação básica em que alguém realiza um contrato e
entrega uma soma em dinheiro ou outro bem móvel à outra parte.
Esse fato cairia na hipótese do art. 417, se os valores entregues fossem
a título de arras, e o contrato tivesse sido cumprido. Caso o contrato
não fosse cumprido, teria cabimento, em princípio, o art. 418 e não o
41 7. Mas, se considerarmos a hipótese de que os valores entregues
não tenham sido a título de arras, então, ambas as normas seriam afas-
tadas, e no caso de não cumprimento, teria aplicação a norma constan-
te do art. 475, CC, que trata da execução. específica, ou a norma geral
sobre inadimplemen to das obrigações, constante do art. 389, CC.
Essa última hipótese, em que os valorés entregues não forem a
título de arras, com conseqüente afastamento das normas do art. 417
e 418, demonstra o quanto essas duas normas constituem parte de
uma mesma proposição jurídica 50 , que atuam em conexão. Demons-
tra, também, e desde já, que, à exceção do art. 417, CC, todas as
proposições que compõem o instituto das arras concorrem com a nor-
ma geral do art. 389, tratando-se, portanto, de indenização prefixada.
Como proposições jurídicas completas (possuem previsão norma-
tiva e conseqüência jurídica), as normas do art. 41 7 e 418 concorrem
entre si, e suas conseqüências jurídicas são distintas, excluindo-se re-
ciprocamente. O afastamento de uma norma e aplicação da outra de-
correm, não de um critério de hierarquia, cronologia ou especialidade,
mas da relatividade na formação dos conceitos da hipótese e da parcia-
lidade de suas coincidências. 51
O direito de restituição, previsto no art. 41 7, não se contrapõe ao
556
direito de retenção contido no art. 418; ao contrário, combinam-se, pois
o direito de restituição apenas se refere à parte que cumprir o contrato,
e o de retenção àquela que suportar a inadimplência da outra.
O art. 418 prescreve que:
"art. 418. Se a parte que deu as arras não executar o contrato, poderá
a outra tê-lo por desfeito, retendo-as; se a inexecução for de quem
recebeu as arras, poderá quem as deu haver o contrato por desfeito, e
exigir sua devolução mais o equivalente, com atualização monetária
segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honorá-
rios de advogados".
A norma contida neste art. 418 concorre com aquela do art. 389,
pois há uma ampla coincidência na previsão normativa de ambas (tra-
tam de obrigação não cumprida); porém, as suas conseqüências jurídi-
cas são distintas (perda das arras no primeiro; indenização por perdas
e danos no segundo). Neste caso, apenas uma norma pode ser aplica-
da, com a conseqüente exclusão da outra. A escolha de uma norma e
o afastamento da outra decorrerá de um critério de especialidade.
Aplicamos o critério da especialidade no conflito de normas,
quando a previsão da norma especial contém todas as notas distintivas
da norma geral, e, pelo menos, uma nota adicionalY
O art. 418 possui todas as notas distintivas do art. 389 (não cum-
primento de uma obrigação), e, como nota adicional, a entrega de
arras. Assim, essa norma prescrita no art. 418 é especial em relação
àquela contida no art. 389, que é geral para todos os demais casos de
obrigações não cumpridas, tendo precedência sobre ela.
No art. 418, as arras exercem função penitenciai, pois, no caso de
não cumprimento do contrato, pode a parte inocente resolvê-lo, re-
tendo-as. Essa opção não se coaduna com a natureza das arras confir-
matórias, que é a de garantia e reforço do vínculo obrigacional. Mesmo
não prevendo o direito de arrependimento, o art. 418 parece autorizá-
lo tacitamente.
Uma crítica feita pela melhor doutrina, e que nos parece com
muito acerto, é sobre a expressão "mais o equivalente". Essa expres-
são é de uso dos processualistas, e o que pretende dizer esse art. 418
é que a devolução deverá ser em dobro.
Relembramos que, em qualquer caso, a punição com perda das
arras só terá cabimento se a inexecução do contrato for culposa, pois,
557
nos casos de inexecução por motivo de força maior, caso fortuito ou
culpa de terceiro, as arras deverão ser devolvidas simplesmente por
quem as recebeu, não cabendo pagamento de indenização a quem as
deu, conforme prescreve o art. 393, CC.
O art. 419 dispõe:
558
confirmatórias. Por fim, o art. 41 7 determina a devolução das arras
sempre que o contrato for executado, não fazendo distinção entre ser
essa execução voluntária ou forçada.
Uma vez que o art. 419 só pode ser corretamente aplicado em
conexão com o art. 418, decorre daí que teremos um concurso de
proposições jurídicas com previsões normativas amplamente coinci-
dentes e conseqüências jurídicas que, apesar de diferentes, são com-
patíveis entre si, e que irão ocasionar um concurso cumulativo de nor-
mas. É o que podemos observar quando a segunda parte do art. 419
prevê a execução específica com perdas e danos. Isso nada mais é do
que admitir, simultaneamente, a aplicação desse dispositivo junta-
mente com os art. 389 e 475, ambos do CC. Vale lembrar, ainda, que
as perdas e danos a que se refere o art. 419, segunda parte, são devidas
pela mora, e não por inadimplemento completo.
Podemos observar, ainda, que nem sempre aplicamos o critério da
especialidade apenas para a exclusão de uma proposição e aplicação de
outra; isso só ocorrerá quando as conseqüências jurídicas forem in-
compatíveis entre si, excluindo-se reciprocamente. Havendo compa-
tibilidade entre estas, teremos um concurso cumulativo ou alternati-
vo, conforme o caso.
Finalmente, fechando o instituto das arras, temos o art. 420, que
assim prescreve:
"art. 420. Se no contrato for estipulado o direito de arrependimento
para qualquer das partes, as arras ou sinal terão função unicamente
indenizatória. Neste caso, quem as deu perdê-las-á em benefício da
outra parte; e quem as recebeu devolvê-las-á, mais o equivalente. Em
ambos os casos não haverá direito a indenização suplementar".
559
389 e 475, sendo que, neste caso, muito embora as previsões norma-
tivas sejam amplamente coincidentes, as suas conseqüências jurídicas
são diferentes e se excluem reciprocamente. Assim, tendo aplicação a
norma do art. 420, afastadas estarão as normas dos arts. 389 e 475.
560
Seja como for, o direito de arrependimento, sendo direito potes-
tativo, sempre traz os seus inconvenientes, seja para quem o exerce,
seja para quem o suporta, ainda quando não haja punição para o seu
exercício.
Concluiremos a análise do art. 420 afirmando que, por conter este
uma ordenação negativa de vigência, exercido o direito de arrependi-
mento nele previsto, as arras terão uma função unicamente indeniza-
tória, não cabendo indenização suplementar nem execução específica
da obrigação, ainda que a parte inocente prove maior prejuízo, confor-
me vimos ao fazer uma análise sistemática desse dispositivo.
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eqüitativo e coerente com o ordenamento jurídico do que aquele ex-
presso nos Códigos Civis de 1916 e 2002. Eqüitativo, porque protege
a parte presumidamente hipossuficiente dos enganos provocados pela
propaganda; coerente com o ordenamento, porque não há aqui uma
contradição lógica nem jurídica.
7. Conclusão
As arras, ou sinal, constituem a importância em dinheir~ ou. outro
bem móvel (fungível ou infungível) dado por um contratante ao outro,
por ocasião da conclusão do contrato, com o escopo de firmqr a pre-
sunção de acordo final, reforçando o vínculo obrigacional; ou ainda,
excepcionalmente, com o propósito ,de assegurar, para cada um dos
contraentes, o direito de arrependimento. ,
As arras possuem natureza jurídica de contrato real acessório, sen-
do esta a sua principal característica.
Na legislação pré-codificada, as arras eram penitenciais.·
As arras, no Código Civil de 1916, eram eminentemente peniten-
ciais. Muito embora o instituto tenha sido inspirado do§ 338 do BGB,
segundo o qual as arras são confirmatórias, um provável erro de inter-
pretação desvirtuou o instituto, que, no nosso direito, sempre teve
caráter penitenciai.
A transposição do instituto das arras da parte geral dos contratos
para o título referente ao inadimplemento das obrigações teve como
objetivo atender às razões de sistema.
O instituto das arras é composto por um conjunto de normas jurí-
dicas completas e incompletas, que se ligam à regulação do inadimple-
mento das obrigações, atuando numa espécie de "jogo concertado",
onde todas essas normas se combinam, alternando-se, excluindo-se
reciprocamente ou incidindo cumulativamente, conforme suas previ-
sões normativas, conseqüências jurídicas e situação fática.
As arras, no atual Código Civil, possuem função principal de inde-
nização prefixada, penitenciais, portanto.
As únicas hipóteses de arras confirmatórias, no novo Código, en-
contram-se nos arts. 417 e 419, segunda parte. Nos demais casos, elas
possuem função penitenciai.
O direito de arrependimento, previsto no art. 420, CC, traz em si
duas contradições: uma lógica e outra jurídica. A contradição lógica
consiste no fato de afirmar e negar ao mesmo tempo. A contradição
jurídica consiste em que ele pune o exercício de um direito.
Verdadeiro direito de arrependimento pode ser encontrado no
art. 49 do CDC. Ali, esse direito, quando atendidas determinadas
condições, não acarreta qualquer punição para quem o exerce.
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