0 notas0% acharam este documento útil (0 voto) 762 visualizações31 páginasEVIDÊNCIA DA HISTORIA - François Hartog
Artigo acadêmico
História e pesquisa histórica
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cer experiences du temps Maria Helena Martins
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‘Eliana de Frotas Dutra Patrice CR Reuilrd
roto GrARCOOE CAPA vera Chacham
Teco de Souza esto oe
(Sobre foto de Eic WinclschiStockxchng.) Temistocies Cezar
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Conrad Esteves lizete Mercadante Machado
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Sema autortacio preva dakar,
sa, 2073 . Conjunto Nacional
‘Cerquara César
ie 3 Tempo 4 Historiograta |
00-301 |
A Jipe, na luz de Samzun
“— no Tempo.”
Marcel Prousta2 eames or son SOHO € BEAEEAS OTE
passado, mas do futuro. Com esse instrumento, toma-se entio
possivel elaborar essa “‘ciéncia politica nova”.
Deixemos agora 1789 ¢ o Attintico para reunir, dois séculos mais
tarde, os arredores de 1989 as margens de uma outra crise maior do
tempo, que se estende de um e de outro lado dessa data que se tormou.
simbélica, Se a paisagem & mais familiar, porque mais préxima de nés,
nio é necessariamente mais fil orientar-se nela, porque préxima de-
mais. Os dados so abundantes, os comentirios ¢ os estudos também.
Cada livraria contribu com seu lote. Por isso, mais ainda do que em
nossos exercicios anteriores, que tangiam mais ao olhar distanciado,
& conveniente nos dois capfeulos que seguem, exercicios de contem-
poraneidade, encontrar uma entrada precisa e a0 mesmo tempo tio
esclarecedora quanto possivel. Sem perder, contudo, os conhecimentos
adguiridos da experiéncia do olhar distanciado. A meméria e 0 patri-
mGnio, duas das palavras-chave do momento, nogdes norteadoras de
nosso espaco pablico, pareceram-me responder a essas exigéncias.
Nenhum dos dois termos seri examinado por si proprio, nem.
desdobrado nas suas miiltiplas idas e vindas, mas ambos serio essen-
cialmente examinados do ponto de vista do tempo. Para a meméria,
Les Liewx de mémoire nos servirio para comecar. Quanto ao patrimé-
nio, uma visio de conjunto nos serviré de fio interrogativo. De que
ordem do tempo esses termos sio a traducio e, talvez, igualmente,
uma expressio de seu questionamento? Sio indicios de que crise do
tempo? O regime modemno de historicidade que vimos tomar forma
por volta de 1789 é ainda operatério? A inteligibilidade vem, ainda
€ sempre do futuro, como todos os criadores do progresso ousaram
pensar em primeiro lugar, antes de afirmi-lo com uma seguranga
cada vez maior? O “fato novo” no podia sendo sobrepujar 0 “fato
historico”. Hoje, nesta evidéncia da meméria e da centrilidade do
patriménio, exatamente como nas polémicas em torno da meméria
da historia, deve-se reconhecer um “retomo” da categoria do pas-
saco, uma nostalgia pelo velho modelo da historia magistra ou, antes,
uma predominincia, inédita até entio, da categoria do presente? O
proprio m do presentismo. Mas 0 patriménio é obrigatoria~
mente “passadista"? Nao, na medida em que a conduta que consiste
‘em patrimonializar o meio ambiente leva a reintroduzir 0 futuro.
13
caPiTULo 4
Meméria, histéria, presente
evocados no capitulo anterior. Neles assumia a pose do histor
dor surpreendido pela histéria: “Eu escrevia a historia antiga, €
indo muito depressa, avangava rapido demais para cle! Seria pre-
ciso, observari nas Memérias, poder “fazer historia de caleche”.
Na Alemanha, Lorenz von Stein, teérico da historia, observava
do mesmo modo em 1843: “E como se a historiografia tivesse
certa dificuldade em seguir a histéri”. Evidentemente, dizendo
isso, Chateaubriand permanecia senhor do jogo, ja que fazia de
seu proprio anacronismo a motivago € © motor de sua escrita
Quanto & recomposigao dos anais, de acordo com os progressos
da inteligéncia, isto é, totalmente em sintonia com o regime mo-
demo de historicidade, essa tarefa no era, concluindo, para ele
De fato, cabia 3 jovem geragio de historiadores liberais, a comegar
por Augustin Thierry, dedicar-se a ela.
Efetivamente, a histéria nacional tornou-se por muito tempo
grande asstinto dos historiadores franceses ¢ 0 motto de Chateau-
briand poderia figurar como epigrafe das obras de muitos deles, dos
‘mais ousados a0 menos, ao longo dos séculos XIX e XX. Até Lavisse,
certamente, ¢ mesmo até o proprio projeto dos Liew de mémoire de
© STEIN, Loren voo, ciuado por KOSELLECK. Le wpa. 160= Rone WHR ENO Fem SOTO
Pierre Nora. Nao que a situa¢io fosse a mesma, obviamente, mas
para Chateaubriand em 1830, como para Nora no inicio dos anos
1980, tratava-se de partir de um diagnéstico feito sobre o presente
de registro, Para reconstruir “a partir de um novo plano”, dizia
Chateaubriand; para se perguntar, primeiramente, o que quer dizer
“recompor” no caso de Nora: pode-se ainda escrever uma historia
da Franca, como e por qué"?
© momento dos Liewx de mémoire (1984-1993) ocorreu antes
€ depois de 1989: concebido e langado antes, 0 projeto terminou
depois. Se na época pensivamos, na Franca, no bicentendrio da Re-
volugio, repetindo antecipadamente algumas guerras irris6rias, nas
dquais cada um devia fazer a sua parte, a queda do muro de Berlim,
na qual ninguém pensava, pegou todo mundo desprevenido™. Po-
rém, o projeto acompanhou a onda memorial que, desde a metade
dos anos 1970, espalhou-se na Franga. Ele registrou-a como um.
sismégrafo, refletiu-a como um espelho, e refletiu sobre ela.
Entre 0s miltiplos indicios possiveis desse movimento memo-
rial, basta mencionar o filme de Marcel Ophuls, A dor e a piedade,
que teve de esperar até 1971 para ser langado, seguido do livro A
Franga de Vichy, Velha Guarda e New Order, 1940-1944 de Robert
Paxton, minuciosa acusagao contra o regime de Pétain, publicado
em 1972. Mas também, em outro tom, Le Cheval d’orgueil, em
1975, de Pierre-Jakez Hélias. Essas “memérias de um bretio da
regito de Bigouden”, nascido em 1914, recriam uma civiliza~
io popular bret, © livro chega rapidamente a um milhio de
exemplares. Shoah, o filme de Claude Lanzmann, em 1985; Os
Assassinos da meméria, de Pierre Vidal-Naquet, desmantelando e
denunciando o negacionismo; no mesmo ano, Le Syndrome de Vi-
chy (1944-198...), de Henry Rousso. Em uma investigagio sobre
Vichy, Rousso acabara de descobrir que “nio era a hora do médico
Iegista, mas do médico, simplesmente, e mesmo do psicanalista”. E
ainda tantos outros até o tltimo livro de Paul Riceeur, publicado
° NORA, Prete (Org), Le de mii
2 1789, La ommraon (vol
es Fane. Pas Galimard, 1993. ¥.1, 9p 11-82
sgon publicados
IA, Pack. Le bern de
Neon an, razor 135
em 2000, para 0 milénio, A meméria, a histria, o esquecimento, Em.
um plano mais tangivel, mais visivel, testermunham isso também a
eficaz renovagio ou museificagio dos centros histéricos urbanos, a
multiplicagao dos ecomuseus ou museus de sociedade ¢ a ascensio
do Patriménio.
hberdade, filha dos costumes,
fescoberta na América, aquele que fazia do Ensaio histbrico re
sitado uma testemunha dessa caminhada. Mas ele sabia também
que a forma de trabalhar dos historiadores liberais que julgavam o
mundo novo como “escala retificada para medir 0 mundo antigo”
era 0 oposto de sua vocagio de escritor, cuja escrita € marcada por
ranhuras incessantes de um a outro, Ao passo que, no momento
de empreender 0 que se tornaria Les Liewx de mémoire, Nora nao
apenas no invocava nenhum tempo progressista, como tampou-
co saia do circulo do presente. Muito pelo contritio, observava
cle, “o desaparecimento rapido de nossa meméria nacional me
parecera exigir um inventirio dos lugares onde ela se encarnou de
maneira seletiva", Um inventirio antes de uma morte anunciada.
Fernand Braudel tivera também a audicia de se langar em uma
longa historia da Franga solitaria, 4 moda Michelet, em suma, mas,
tendo comegado muito mais tarde do que ele (Michelet consagrou
4quarenta anos a cla), no péde explorar até
Franca, na qual singularidade e permanéncia coincidiam**. Nao se
tratava de modo algum de meméria, mas de uma historia extraida
do mais profundo da longa duragio, esta “enorme superficie de
gua quase estagnada” que, gradativamente, mas itresistivelmente,
“arrasta tudo com el Mesmo que seja um projeto coletivo
excepcionalmente amplo, Les Liewx de mémoire tiveram, no entan~
© NORA (Org
= BRAUDEL,Fe 0 DORI MERE EDS 0
26
to, um supervisor que, ao longo de suas intervengdes, um volume
apés outro, deu sua “interpreta¢io” da histéria da Franca, quase no
sentido musical da expressio: sua “pequena miisica”,
(GEHRY: que € evidente que comegam por nio restabelecer o regi-
‘me modemo de historicidade. Para além deles e de sua abordagem,
Les Liewx de mémoire nos servirio também de projetor para iluminar
as temporalidades mobilizadas pelo género da histéria nacional no
curso de sua histdria. Mas, antes, distanciemo-nos um pouco nova-
mente ¢ pratiquemos uma outra modalidade de olhar distanciado.
As crises do regime modemo
Nio se poderia inscrever, como hipétese, o regime moderno
de historicidade entre as duas datas simbélicas de 1789 ¢ 1989? Seria
preciso proclamar que clas manifestam sua entrada e sua saida de
cena da grande histéria? Ou, pelo menos, que marcam dois cortes,
duas fendas na ordem do tempo”? Desse ponto de vista, o 11 de
setembro de 2001 nao provocaria grande questionamento desse
esquema, a nio ser que a administra¢do norte-americana decidisse
fazer disso um marco zero da histéria mundial: um novo presente,
uum éinico presente, o da guerra contra o terrorismo. Em todo caso,
© 11 de setembro leva a0 extremo a l6gica do acontecimento con-
temporineo que, se deixando ver enquanto se constitui, se histori-
ciza imediatamente e ji & em si mesmo sua propria comemoragio
sob olho da cimera™*. Nesse sentido, ele é totalmente presentista,
2 Entre muta ours posblidades,citemos wm histonador, observadr engjado no seu culo,
oc Hotsbawn: "Very few people woul deny that epoch an woe history ended wth the
calls of the Soviet Bloc andthe Soviet Union, whatever we read in the events
enon, isons, eset
Entre seus proprios atores ¢ entre aqueles que quase imedia~
tamente tentaram justifici-la, a Revolugio Francesa pode ser de-
cifiada, particularmente, como um conflito entre dois regimes de
historicidade. Apelou-se para o passado, convocou-se amplamente
Roma ¢ Plutarco, enquanto se proclamava bem alto que no havia
modelo que nao se devia imitar nada. A propria trajetéria de Na-
poledo pode ser explicada desse modo. Levado pela nova ordem do
tempo, ele sempre quis estar 4 frente de si mesmo ~ “ia tio rapido
que mal dispunha de tempo para respirar por onde passava”, obser-
vava Chateaubriand ~e, no entanto, ficou fascinado pelos herdis de
Plutarco, até entrar no seu futuro recuando, como notava Valéry,
formando uma pscudolinhagem™. Também cle teceu seu destino
de herdi finalmente trigico entre dois regimes de historicidade.
As caracteristicas do regime modemno, tais como se destacam das
anilises agora clissicas de Koselleck, sio, como ja vimos, a passagem
do plural alemio die Geschichten ao singular die Geschichte: a Hist6-
tia. “Para além das hist6rias, hi a Historia”, a Histéria em si, que
segundo a expressio de Droysen, deve tomar-se “conhecimento de
simesma”™. Particularmente, cla é doravante compreendida como
processo, com a ideia de que os acontecimentos nio se produzem
mais somente no tempo, mas através dele: 0 tempo torna-se ator,
se no o Ator. Entio a exigéncia de previsdes substitui as ligdes da
histéria, j4 que o passado nio explica mais o futuro. © historiador
no produz mais a exemplaridade, mas est em busca do tinico. Na
historia magistra, © exemplar ligava o passado ao futuro, por meio
da figura do modelo a ser imitado, Atris de mim, 0 homem ilustre
estava tanto na minha frente como 4 frente de mim
Com o regime moderno, 0 exemplar como tal desaparece
para dar lugar a0 que nio se repete. O passado é, por principio ou
por posigio, ultrapassado. Um dia, mais tarde, quando as condig&es
pelos xades Unidos por meio de wna “smog da mics, Atta expo instantnes da
— smeditsconsieaies do acontecimento,
PLUTARQUE Son avenir 3 teculons” & expresso de
Valésy
© ROSELLECK. Le uu pas, p43.ra faene oe Noe. eNO EECA COD
estiverem reunidas, os historiadores conseguirio estabelecer uma lei
como a que ji se produziu nas ciéncias da natureza. Ou, conforme
uma formulagio propria & histéria-ciéncia do final do século XIX,
© dia glorioso da sintese acabaré por nascer, mas, enquanto isso, 0
historiador deve, como um artesio desvalorizado, limitar-se ao habito
ingrato da andlise. E cedo demais. De qualquer modo, o futuro, isto
é,0 ponto de vista do futuro, exige: “A histéria passou a ser essen-
cialmente um ultimato dirigido pelo Futuro ao Contemporineo”
(© ultimato, cu acrescentaria para completar a expressio tomada
de Julien Gracq, estendeu-se também ao passado e se imps aos
historiadores que, durante o século XIX, organizaram e conceberam
sua disciplina como a ciéncia do passado, Esse futuro, explicando a
histria passada, esse ponto de vista e esse tlos dando-Ihe significado,
adquiriu sucessivamente, com a roupagem da ciéncia, a fisionomia
da Nagao, do Povo, da Repiblica, da Sociedade ou do Proletariado
Se ha ainda uma li¢io da histéria, cla vem do futuro € nio mais
do pasado. Ela est4 em um futuro que se deve fazer surgir como
ruptura com o pasado, pelo menos como algo diferente dele, en-
quanto a historia magistra repousava na ideia de que o futuro, se nio
repetia exatamente 0 passado, pelo menos nio o excedia nunca
Vivia-se no interior do mesmo cfrculo (mesmo que Chateaubriand
tivesse arriscado a imagem dos circulos concéntricos), com a mesma
Providéncia ou as mesmas leis e, em todos os casos, com homens
dotados da mesma natureza humana.
Por que essa hipétese de dois cortes: 1789 ¢ 1989? Certamente
nio para bloquear a reflexio e seguir repetindo o fim de tudo e da
historia, em particular, j4 que a democracia nao tem mais desafios
agora; mas, bem pelo contrario, para estimular, relangar a questio,
deslocando a evidéncia do presente. Entio, ler Les Liewx de mémoi-
re a partir de uma perspectiva ampla ou de uma historia de longa
duragio das relagdes com o tempo leva a question-los como uma
forma de trabalhar a partir desse corte (que nfo se reduz somente 20
dia 9 de novembro de 1989, data da queda do Muro), mas também
de fazé-lo trabalhar, buscando propor para cle uma abordagem e
uma hist6ria. Esses cortes, vamos chamé-los ainda de brechas no
tempo, retomando o diagnéstico feito por Hannah Arendt, isto 6,
enc, ona, msoae eg
esses intervalos totalmente determinados pelas coisas que no sio mais,
€ pelas coisas que no sio ainda™. Brechas, pois ha uma pausa ¢ esse
tempo parece desorientado. Por isso, Chateaubriand concluia suas
_Memérias, lembremos, com a constatagio das duas impossibilidades em
gue se encontrava 0 mundo em 1840: a impossibilidade do pasado,
‘a impossibilidade do faturo™, Voltaremos a esse ponto na conclusio.
Essa hipétese ndo implica absolutamente que o regime mo-
demo nio tenha passado por um questionamento antes de 1989,
que nio tenha havido outras crises da ordem do tempo, Muito
pelo contririo, Nés comecamos por isso, na introdugio. Alids, um
regime de historicidade nunca foi uma entidade metafisica, caida
do céu e de alcance universal. E apenas a expresso de uma ordem
dominante do tempo. Tramado por diferentes regimes de tempo-
ralidade, ele é, concluindo, uma maneira de traduzir e de ordenar
experiéncias do tempo ~ modos de articular passado, presente €
futuro — ¢ de dar-lhes sentido. Ainda assim, para a apreensio
a manifestagio dessas experiéncias, a descrigio fenomenologica
agostiniana dos trés tempos permanece um ponto de referéncia
essencial. Como poderiamos enumerar regimes? Eu 0 ignoro. O
exemplo do regime heroico polinésio mostra, pelo menos, que
© inventario esti aberto e que nao estamos confinados somente
na autocontemplacio da histéria europeia. Contestado logo que
instaurado, ¢ mesmo nunca completamente instaurado (exceto
no melhor dos mundos), um regime de historicidade instaura-se
Ientamente ¢ dura muito tempo.
Foi o que aconteceu com 0 grande modelo da historia ma-
sgistra antiga (cujo cardter uniforme ¢ abrangente nao se deveria,
aliés, exagerar)*®. Fle foi retomado pela Igreja e pelos clérigos
medievais quando thes coube a tarefa de escrever a historia, De
uma maneira mais profunda, 0 regime cristio pode se combinar
com 0 da historia magistra, na medida em que ambos olhavam para
© passado, para um jé, mesmo que 0 ja dos Antigos nao fosse dete fecne 2 OR MEINAHD EORIDEAS OHO
modo algum o dos cristios (abrindo para o horizonte de um ainda
no), Nao resulta que esse antigo regime de historicidade no tenha
experimentado muitos questionamentos na sua longa hist6ria. Na
Franca, por exemplo, na segunda metade do século XVI: entre
muitas indicages possfveis, poderiamos lembrar a publicago, em
1580, dos Ensaios de Montaigne, onde vemos o exemplums antigo
desestabilizado em um mundo em perpétuo movimento. Ele se
desfiz transformando-se em “singularidade™"”. Langando-se como
jum novo Plutarco, Montaigne escreve finalmente os Ensaios.
“Bu sou a matéria de meu livro”, langa a Adverténcia ao leitor.
Do mesmo modo, um século mais tarde, 0 desencadeamento da
Querela dos Antigos dos Modems (1687) marca um importante
momento de crise do tempo. Se, como demonstra Perrault, os
Modemnos vencem os Antigos, se houve progresso ¢ aperfeigoa~
mento em quase todas as éreas, ainda assim 0 tempo nao se abre
para um futuro de onde viria a luz. A perfeicio € quase atingida
com o século de Luis XIV", Como de fato autorizar-se a pensar
além do soberano absoluto?
‘Passat finalmente de um regime a outro comporta periodos de
sobreposigio. Produzem.-se interferéncias, muitas vezes trigicas. A
Revolucio foi um desses momentos. Colocado entre Volney ¢ To-
cqueville, Chateaubriand nos guiou, ele que nio deixou de observar
¢ de ser o intérprete desses tempos de entremeio e de si mesmo
capturado € constituido por esse entremeio. Sob esse mesmo pris-
‘ma, 0 destino de Napoledo pode ainda ganhar em inteligibilidade.
A ascensio do presentismo
O século XX ali
primeiro lugar, ele foi mais fururista do que presentista, terminow mai
presentista do que futurista. Foi fucurista com paixdo, com cegueira,
até 0 pior, hoje todos sabem. Futurismo deve ser entendido aqui como
finalmente, futurismo e presentismo. Se, em
26.27
(Sel). Phaague: Gres
Comming, 1998. p.
Monn anim, mes =
a dominagio do ponto de vista do futuro. Este € 0 sentido imperati-
vo da ordem do tempo: uma ordem que continua acelerando ou se
apresentando como tal. A historia é feita entio em nome do futuro ¢
deve ser escrita do mesmo modo. O movimento futurista estimulou
essa postura ao extremo, A exemplo do Manifesto do partido comunista,
© Manifesto futurista, langado por Marinetti em 1909, pretende ser
‘um ato retumbante de ruptura em relagio & antiga ordem. & preciso
liberar a Itdlia de “sua gangrena de professores, de arquedlogos, de
cicerones ¢ de antiquirios”, declarando que “o explendor do mando
se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da velocidade”. B sin
tomitico que seja a partir do Iugar-marco onde a Europa forjou sua
nogio de patrimSnio que uma contestagao radical dessa ordem tena
vindo. “Mais belo do que a Vitéria de Samotricia", um automével
“ruidoso” € a expressio mais forte disso. “Estamos no promontério
extremo dos séculos”, acrescenta ainda Marinetti, “De que serve
olhar atras de nés [...J?” Um ano mais tarde, 0 Manifesto dos pintores
“fturistas & igualmente radical: “Camaradas! N6s declaramos que
‘progresso triunfante das ciéncias ocasionou mudangas tio profundas
para a humanidade que um abismo se cavou entre os déceis escravos
do pasado e nés, livres e certos da radiosa magnificéncia do futuro,
(..J] Mas a Itilia renasce, ¢ a0 seu Risorgimento politico faz eco sua
renascenga intelectual”™*, As vanguardas artisticas alimentaram-se
desse impulso inicial, em busca dessa radiosa magnificéncia.
Porém, © Manifesto futurista mostra também como podemos
pasar do faturismo ao presentismo, ou como o faturismo é também
(8) um presentismo, Quando Marinetti proclama: “O Tempo € 0
Espago morreram ontem, Vivemos jd no Absoluto, pois jé criamos
a etema velocidade onipresente”, 0 presente encontra-se “futuri-
zado” ow nao ha mais senao presente. Pela velocidade, o presente
se transform: 1 eternidade ¢ Marinetti, no volante de seu carro
de corrida, vé-se como um substituto de Deus.
Sea catistrofe da Primeira Guerra Mundial ¢ as crises que a se~
guiram, ¢ depois aquela da Segunda Guerra abalaram, e até rejeitaram,
© LISTA, Giovanni Le fine Pars: Teri 2001, p29, 30 € 38- Feat enone MDE HREOC oO
© faturismo, ainda assim toda uma série de fatores, retomados muitas
vezes em slogans, concorreu finalmente para relangar os hinos ao
_progresso ¢ nao somente para manter operatério o regime modemo
de historicidade, mas para fazer dele © tinico horizonte temporal.
Mesmo que 0 futurismo, tendo perdido seu lirismo, tivesse que se
adaptar i ameaga nuclear ¢ dedicar-se a responder a ela. Na Europa,
foram assim brandidos os imperativos da reconstrugio e da moderni-
za¢io, acompanhados pelo planejamento, enquanto em nivel mundial
Jmpunham-se as exigéncias da competicio econémica, tendo como
pano de fiando a Guerra Fria ea corrida armamentista, cada vez mais
ripida, Tivemos assim, entre outros, “o futuro radiante” socialista, 0
“Milagre”, alemio, ou o perfodo dos “Trinta Gloriosos” franceses
{assim chamados a partir do liveo de Jean Fourastié)*”. Pouco a pou-
co, contudo, o firturo comegava a ceder terreno 20 presente, que ia
exigir cada vez mais lugar, até dar a impressio recente de ocupé-lo
por inteiro. Entravamos entio em um tempo de supremacia do ponto
de vista do presente: aquele do presentismo, exatamente
Esse presente, aparentemente tio seguro de si e dominador,
no surgi todavia em um dia (na diltima terga parte do século
XX), como tampouco é uma novidade radical. De certa forma,
todo grupo, toda sociedade, ontem como hoje, pode contar apenas
com seu presente. Mais tarde podem ocorrer estratégias diversas
que induzem a valorizi-lo ou, pelo contritio, a desvalorizi-lo, em
proporgdes varidveis ¢ sempre inconstantes, conforme as conjun-
turas. Pode-se se fechar nele ou, pelo contrario, apressar-se para
sair dele o mais ripido possivel. Praesens, como chamava a atengio
© linguista Emile Benveniste, significa etimologicamente “o que
esté na minha frente”, em consequéncia, “iminente, urgente”,
““imediatamente”, conforme o sentido da preposigo latina prac’™.
O presente é 0 iminente: 0 corpo do corredor inclinado para frente
de se langar.
no mo}
Mere, 04 nce 18
Para os sibios, a filosofias antigas, 0 epicurismo e o estoicismo,
produziram uma teoria do presente em razo da qual existe apenas 0
Presente no qual eu possa ter influéncia. “Convence-te”, observava
Horacio, “que cada dia novo que nasce sera para tio iltimo. Entio
€ com gratido que tu receberis cada hora inesperada™.” E Marco
Aurélio: “Se separas de ti mesmo, isto é, de teu pensamento [...]
tudo o que tu fizeste ou disseste no passado, tudo 0 que no futuro
teatormenta, tudo 0 que escapa 20 teu livre arbittio, se separas [de ti
mesmo] 0 futuro e o passado, se te aplicas em viver somente a vida
que vives, isto é, somente o presente, poderis passar todo o tempo
gue te resta até a morte com calma, benevoléncia, serenidade™®”,
£ ainda nesse presentismo que Goethe se inspira, quando atribui
2 Fausto, no encantamento de seu encontro com Helena: “Entio
a mente no olha nem para frente nem para trés. S6 0 presente é
nossa felicidade™*”,
Porém, com as religides reveladas, 0 presente encontrou-se a
uma s6 ver desvalorizado (nada do que acontega tem real importin-
ia), estendido (em certo sentido hi apenas o presente) e valorizado
como presente messiinico, 3 espera do eschaton: a qualquer momento
© Mesias pode surgir. Rosenzweig distingue assim “o hoje que 6
apenas uma ponte para © amanha” do “outro hoje que é um tram-
polim para a eternidade”*”, Para os cristios, se ninguém sabe, salvo
© Pai, quando vird a Hora final, é em todo caso certo que o tempo
aberto pela passagem de Cristo é presente ¢ que a historia, até seu
Retomo, foi, &¢ seri a da Salvacio. Dai essa apbstrofe de Pascal, a0
Fetomnar is origens do Evangelho, evocando a dimensio escatolégica
do presente: “O presente nunca é nosso fim: o passado ¢ o presente
sio nossos meios; somente o futuro é nosso fim. Em consequéncia,
nunca vivemos, mas esperamos viver; © nos preparando sempre
* HORACE, Bam,
© MARC AURELE, Pens, 12.3, 34
“* GOETHE. Send Feu, v. 9981, Ver HADOT, Phere, ‘Le présent sul et notre bon
‘aleu de inane prise chez Goethe et dans a phionphie antique Diagn 133
Frans Rosenrweig, carts de 5 de tevereio de 1917, ctada por MOSES, Stéphane, Lange
tie: Reset, Boxanin, Sklen. Pas: Seu, 1992. p39a Feones 0 RHORCEAE SND EECA £0 THO
para sermos felizes, é inevitivel que nunca o sejamos“*”. Temos
aqui as duas grandes formas hist6ricas de presentismo: a religiosa e
1 das filosofias antigas, com passagens de uma para outra, como em
Montaigne e ainda em Pascal.
‘Algumas expresses modemas de presentismo, explicitamente
inspiradas por correntes vitalistas, levaram a desvalorizar 0 passado.
(© presente ergue-se entio contra © passado, em nome da vida e
da arte. No que tange as vanguardas artisticas do periodo de 1905
a 1925, Bric Michaud chamou a atengio para o espago dado ao
presente nos proprios titulos dos seus manifestos, suas reivindicagBes
presentistas, eu diria. Ao lado do Futurismo presentista de Marinetti,
evocado hi pouco, podemos citar o Simultaneismo, 0 Praesentismus,
‘© Nunismo (de nun, “agora” em grego), o PREsentismo, o Instan~
taneismo™". A literatura nao ficaria atras, primeiramente porque é
parte integrante de muitos desses manifestos. Basta pensar no lugar
‘ocupado por Apollinaire, Poderiamos também, retrocedendo um
pouco, pensar no papel de inspiragao representado por Considera-
(ses extemporiineas (1874) de Nietzsche. O Imoralista (1902) de Gide
seria um bom exemplo. © herdi, Michel, descobre, apés ter quase
morrido, que seus estudos de erudicio perderam seu atrativo: “Eu
descobri que, para mim, algo havia, sendo suprimido, pelo menos,
modificado 0 seu gosto; era o sentimento do presente”. Encon-
trariamos algo anilogo em Hedda Gabler de Tbsen, ow ainda, nos
anos 1920, com as reflexes j evocadas de Paul Valéry sobre, ou
melhor, contra a histéria™*.
De modo que, se quisesse responder ¢ escapar a “faléncia da
histéria” (que se tornou patente com a Guerra de 1914), a historia
profissional teria entio de comecar por demonstrar que © passado niio
cea sindnimo de morte e que iio queria sufocar a vida. Precisou propor
odo de relagio entre 0 passado e o presente, tal que o passado
Meson, oe, IS as
nio pretendesse dar ligdes ao presente, sem que esse fosse tachado
por isso de inanidade de principio. E isso mesmo que o antigo mo-
delo da historia magistra ja tivesse deixado de ser operatério hi um
bom século, A insisténcia dos primeiros Annales de Marc Bloch ¢
Lucien Febvre sobre a essencial preocupagio do presente assumia
também seu sentido em relagio a esse contexto intelectual’. Mais
tarde, eles colocario o trabalho do historiador sob o signo de um
duplo movimento: do passado para o presente ¢ do presente para
© pasado, Nisso reside a justificativa da historia, mas dai também
surgem seus recursos heuristicos.
Publicada em 1938, A Néusea de Sartre pode também apre-
sentar-se como um fragmento presentista. Roquentin, o narrador,
escreve um livro de hist6ria. De fato, ele consagra-se 4 realizagio
de uma biografia do marqués de Rollebon (que se parece mais ou
menos com Talleyrand). Mas um dia, de repente, foi impossivel
continuar, pois subitamente impusera-se a ele como uma evidéncia
tangivel que existia apenas “o presente, nada além do. presente”.
O presente era “o que existe, ¢ tudo 0 que nio cra presente, nio
cexistia. O passado nio existia, Absolutamente. Nem nas coisas,
nem mesmo no meu pensamento”. Conelusio: “O marqués de
Rollebon acabava de morrer pela segunda vez”. Ele era “meu as-
sociado: precisava de mim para existir e eu precisava dele para nio
sentir meu ser”, “Eu existo.” Da mesma forma que “as coisas si
inteiramente o que elas parecem” ¢ que “atrds delas... no hi nada”,
© passado nao é nada
‘Mas tampouco o futuro, mais exatamente o ponto de vista do
faturo, Por isso, em 1945, Sartre mais uma vez, no editorial do pri-
meiro néimero de Temps modemes, persistia e assinalava: “Escrevemos
para nossos contemporineos, no queremos olhar nosso mundo
com olhos futuros, isso seria 0 modo mais certo de maté-sie eon ot MECRRDAEE ESNISN €BPRIEAS 00 THO
com olhos de carne, com nossos verdadeiros olhos pereciveis. Nao
desejamos ganhar nosso processo com recurso ¢ nao temos 0 que
fazer com uma reabilitag3o péstuma: € aqui mesmo ¢ durante nossa
vida que os processos sio ganhos ou sio perdidos””. O existencialis-
mo concebe salvagio somente no engajamento sem reserva na ago.
“Militante”, retomari o autor de As Palavras, “eu quis salvar-me pelas
obras.” A revolugio atribufdo, a partir de entio, “o papel que a
vida eterna ontrora desempenhou’”, ela “salva aqueles que a fazem”,
observava Malraux’, O existencialismo era um presentismo,
Se a critica 20 progresso nio implica uma promogio automa-
tica do presente, cla instila a diivida sobre o cariter inevitavelmente
positive da caminhada para o futuro, Certamente o topos nio era
‘novo, mas podemos assinalar aqui sua reativagio e seu deslocamento,
‘em meados dos anos 1950, por Claude Lévi-Strauss na obra Tristes
trépicos, imediatamente célebre. No contexto da descolonizagio,
ele propunha uma interpretagio renovada do bom selvagem. A
noite nas florestas do Novo Mundo de Chateaubriand nio estava
‘Go longe! Sua defesa apaixonada de Rousseau e sua critica a con-
cepgio estreita do progresso nas sociedades modernas terminavam,
em todo caso, por uma reflexio sobre este mundo que “comecou
sem o homem e terminard sem ele, jé que nunca fez nada mais do
que acelerar uma matéria poderosamente organizada rumo a uma
inércia cada vez maior e que um dia seré definitiva”. Assim, a an-
tropologia deveria, antes, escrever-se “entropologia”, o nome de
uma ciéncia consagrada a estudar esse processo de desintegracio nas
suas manifestagdes mais significativas’", Com essa perspectiva de
resfriamento final das sociedades quentes, estivamos aqui, é verdade,
no olhar muito distanciado: algo como o ponto de vista das esferas,
Em um momento de intensa crise do tempo, mesmo que a
antiga ordem do tempo desmoronasse ¢ que 0 novo tentasse ainda
© SARITIRE Jean-Paul. Apreventao da
Pcie. Callinard, 1964 “Pretend
Les Temp Moles, 1945, Reta and em Le
ramente erever spe pars 0 mes tengo"
2 LEVE-STRAUSS. Tht topiqus, p74,
Mose, ean, eet a7
se afirmar, Chateaubriand havia feito, resumidamente, 0 ensaio da
utopia selvagem: um fora do tempo. Nos anos 1950, Lévi-Strauss,
como vimos, é levado a questionar o regime moderno estabelecido
sobre a evidéncia da ordem do progresso. A hist6ria, observava
ele, nio & senfo de tempos em tempos cumulativa e, além disso,
apreendemos como cumulativo somente © que é anilogo a0 que
acontece conosco. As formagdes sociais ¢ a historia universal ain-
da esperam o seu Einstein. Nos anos 1960, o selvagem entrou na
moda, Praticou-se todo tipo de usos selvagens do “pensamento
selvagem”, exerceu-se influéncia sobre “o pensamento mitico”;
valorizou-se o Selvagem, em oposicio a0 Civilizado ou a0 Estado,
‘mas houve também retornos ou fugas para os Selvagens”®, Antes
dos “retomos” ao pais.
O slogan “esquecer o futuro” &, provavelmente, a contribuigo
dos Sixties a um fechamento extremo no presente. As utopias revo-
lucionarias, progressistas e futuristas (¢ como!), em seu principio, mas
também passadistas retrospectivas (as barricadas revolucionitias ea
Resisténcia) deviam operar-se, a partir de entio, em um horizonte
que nio transcendia muito o circulo do presente: “Sob o calgamen-
to, a praia” ou “Tudo, répido!”, proclamavam os muros de Patis
em maio de 1968. Antes que aparecesse, logo depois, “No future”,
isto é, nlio mais presente revolucionario. De fato, vieram, nos anos
1970, as desilusdes ou o fim de uma ilusio, a desagregagio da ideia
revolucionaria, a crise econdmica de 1974, a inexorivel escalada do
desemprego em massa, o enfraquecimento do Estado de Bern-Estar
Social, construfdo em tomo da solidariedade e a partir da ideia de
que amanhi sera melhor do que hoje, ¢ as respostas, mais ou menos
desesperadas ou cinicas, que apostaram todas no presente, e somente
nele. Nada além. Porém, nao se tratava mais exatamente nem de
epicurismo ou estoicismo nem de presente messianico.
Nessa progressiva invasio do horizonte por um presente cada
vez mais inchado, hipertrofiado, é bem claro que o papel motriz foi
© CLASTRES, Pee. Ls salt conte PEt Pars: Minuit, 1974; LIZOT, Jags, Le cei
ove: edt des indies Yavoman Pris: Se, 1976eS eas HONDA: SNF HRENAS OO HNO
desempenhado pelo desenvolvimento rapido e pelas exigéncias cada
vez maiores de uma sociedade de consumo, na qual as inovagdes
tecnologicas e a busca de beneficios cada vez mais ripidos tornam
obsoletos as coisas ¢ os homens, cada vez mais depressa. Produti-
vidade, flexibilidade, mobilidade tornam-se as palavras-chave dos
novos administradores!™. Se 0 tempo é, hi muito, uma mercadoria,
© consumo atual valoriza 0 effmero. A midia, cujo extraordinario
desenvolvimento acompanhou esse movimento que é em sentido
proprio, sua razio de ser, fiz-a mesma coisa, Na corrida cada vez mais
acelerada para 0 ao vivo, ela produz, consome, recicla cada vez mais
palavras e imagens e comprime 0 tempo: um assunto, ou seja, um
minuto ¢ meio para trinta anos de historia. O turismo é também.
‘um poderoso instrumento presentista: 0 mundo inteiro ao alcance
da mio, em um piscar de olhos e em quadricromia,
Esse tempo coincide também com o do desemprego em massa
que as sociedades europeias comegaram a softer nessa época. Para
© desempregado, um tempo cotidiano, sem projetos possiveis, ¢
‘um tempo sem futuro. Para esses “homens sem futuro”, como os
denominava Pierre Bourdieu, “o tempo parece se aniquilar”, pois
“o trabalho assalariado é o suporte, senio o principio, da maior
parte dos interesses, das expectativas, das exigéncias, das esperan-
as € dos investimentos no presente, assim como no futuro ou no
pasado que ele envo O desemprego contribui fortemente
para o confinamento no presente € para um presentismo, agora
penoso e desesperado.
O faturismo deteriorou-se sob © horizonte e o presentismo
o substituiu®”. O presente tornou-se © horizonte. Sem futuro €
sem passado, ele produz diariamente 0 passado ¢ o futuro de que
1m dia apds 0 outro, e valoriza o imediato. Os
(0 faltaram. Assim, a morte tem sido cada
Ses 1997. p 268,
preudoccico consumive”,
© presente" (DEBORD. Gay.
Monona, Hons, rs 1
vez mais escamoteada. O poeta T. S. Eliot jé testemunhava esse
xpansionismo do presente: “Em nossa época”, observava ele,
.] apresenta-se um novo género de provincianismo, que talvez
mereca um nome novo. £ um provincianismo nao do espago, mas
do tempo; para o qual [...] 0 mundo é propriedade somente dos
vivos, do qual os mortos nio participam®**”. Os mortos nao tém
mais seu lugar, e mesmo, lugar nenhum. Como historiador, Philippe
Aris soubera chamar nossa atengio sobre esse mesmo fendmeno:
“Tudo se passa na cidade como se ninguém mais morresse™”. A
recusa do envelhecimento (conforme © modelo do jagger califor-
iano, que fez escola em muitos lugares) seria outro indicio disso,
que a valorizagio crescente da juventude enquanto tal acompanha as
sociedades ocidentais que jA comegavam a envelhecer. Ou ainda,
mais recentemente, todas as técnicas de supressio do tempo, gracas
20 desenvolvimento das “autoestradas da informagio” e a promogao
universal do tempo dito “real”. Qualquer um poderia facilmente
completar 0 catilogo dos comportamentos cotidianos que demons-
cram uma obsessio pelo tempo: controlé-lo cada vez mais ¢ melhor
ou, do mesmo modo, suprimi-lo. Até 4 guerra em tempo real. Ali~
4s, no se ouve que uma pessoa que se respeite ndo deve ter nem
tempo para, nem mesmo tempo"! E um executivo sobrecarregado
6 alguém com déficit crdnico de tempo". Esses comportamentos
raduzem uma experiéncia amplamente compartilhada do presente
€ sio um de seus componentes, delineando assim um dos regimes
de temporalidade do presente
As fendas do presente
A economia mididtica do presente nao cessa de produzir e de
utilizar 6 acontecimento, ji que a televisio deu seguimento ao radio.
Porém com uma particularidade: 0 presente, no moment:
mesmo
7.6,
ell, 1977. p 354
rao de sentiment du tmp, Trg de,
fences de L'Horeme, 1992ss eons ce cemte: RENIN MADE
em que se faz, deseja olhar-se como jé histérico, como jé passado.
Volta-se, de algum modo, sobre si préprio para antecipar o olhar
que seri dirigido para ele, quando teri passado completamente,
como se quisesse “prever” o passado, se fazer passado antes mesmo
de ter acontecido plenamente como presente; mas esse olhar € 0
seu, presente para ele. Essa tendéncia em transformar o futuro em
futuro anterior pode chegar 4 caricatura. Por exemplo, no dia 10
de maio de 1994, jornalistas entrevistavam aquele que ainda era 0
presidente Mitterrand. Jé outros tempos, mas nio outros costumes!
Era exatamente um ano antes do fim determinado de seu mandato.
Todo 0 jogo consistiu em fazé-lo falar como se j4 fosse um ano
mais tarde, como se jé tivesse partido e mesmo (por que poupar?)
morto e enterrado, jé que estava convidado a indicar 0 epitifio que
hha escollido! Para estar seguro de ser o primeiro na informagio,
nfo h4, por fim, nada melhor do que anunciar como ocorrido o
que ainda nfo teve lugar. E uma resposta midiatizada ¢ midistica
antiga questio provocadora formulada por Kant: “Como a histéria
& possivel a priori? Reesposta: quando aquele que faz prognésticos
realiza e organiza cle proprio 0s acontecimentos que anunciou an-
cecipadamente™*”. Certamente, trata-se apenas de histéria a priori
midiftica, mas reconhece-se nisso também uma forma politica
denunciada sob © nome de efeito de amincio, Na verdade, toda
a presidéncia de Mitterrand, da visita inaugural ao Panteio até a
dupla encenagio final dos funerais, passando pelo caso que expés
as relacdes entre o presidente e René Bousquet, encontrou-se sub-
metida 4 crise do tempo. Que ele tenha tentado escapar ou se servir
disso, no muda, na verdade, grande coisa. Ainda sustentada pelo
\stantaneamente encontrou a onda da meméria e do patriménio
€ as imposigdes do presentismo.
Simetricamente, nosso presente tem
senio de predigdes. Ele se cercou de exp:
a ansia de previsdes,
1e consulta sem parar.
LECK. Le ft pa, p50, Sobre
refle,m um our
reizo, bre 0 filme de Woody Allen, Bann ou ve € brigade 3 sae 20
sasinato 30 vivo de um presidente
Monoen, wen, resort 454
Solicitado, © historiador encontra-se, em mais de uma ocasio,
investido como expert da memiria ¢ preso no circulo do testemu-
nho™. Esse presente julgou encontrar nas sondagens seu Sésamo:
usou ¢ abusou dessas projegdes no futuro, sem deixar o presente. A
resposta dada hoje, imagem instantinea, é transmitida seis meses ou
trés semanas mais tarde e tende gradativamente a tornar-se a imagem
efetiva da situagio seis meses ou trés semanas mais tarde. O que
vocé vota hoje, como imagem daquilo que vocé votari. Portanto,
© que vocé jd votou. A duragio é somente reintroduzida do ponto
de vista da série que permite tracar uma curva de amostras, mas jé
€ 0 assunto dos comentaristas: dos experts. Contudo, as sondagens
erram, nés j6 constatamos, e 0 futuro escapal Mais uma vez, gos-
tariamos de estar em uma forma de historia a priori. Ou, o que di
no mesmo, negar 0 tempo. Dai, a contrario, o sucesso, em mead
dos anos 1980, da maxima de Mitterrand “Dar tempo ao temp.
Ele também buscava a identidade da Franga na dire¢io do tempo
longo, embora, sofrendo de cdncer, devesse viver, principalmente,
dia a dia: no presente da doenga. Porém, em segredo,
Em meados dos anos 1970, outra fenda manifesta-se nesse
presente, Ele come¢a a se mostrar preocupado com a conservagio
(de monumentos, de objetos, de modos de vida, de paisagens, de
cespécies animais) ¢ ansioso em defender o meio ambiente. Os modos
de vida local e a ecologia, de temas exclusivamente contestatérios
passaram a ser temas mobilizadores e promissores. Gradativamente,
a conservagdo e a renovagao substituiram, nas politicas urbanas, 0
‘mero imperativo de modemizasio, cuja brilhante e brutal evidéncia
nfo tinha sido questionada até entio. Como se se quisesse preservar,
na verdade, reconstituir um passado j extinto ou prestes a desapa-
recer para sempre. Jf inquicto, 0 presente descobre-se igualmente
‘em busca de raizes de identidade, preocupado com meméria e
genealogias.
Ao lado dos retornos aos modos de vida local, um pablico
novo, que foi preciso acolher, passou a frequentar os arquivos. As
8° DUMOLIN, Obie Lees eau. deca an pre Pas Albin Michel 2003, p. 27-63,igi Fone ce Neoncme: Nn FRANCA! 20 HO
administragdes auxiliaram os arquivos departamentais a se preparar
para isso, enquanto muitas cidades médias dotavam.-se de servigos de
arquivos. Com efeito, a partir de entio, mais da metade dos leitores
eram genealogistas comuns. Esse periodo corresponde também a
‘uma produgio em massa dos arquivos. Sua quantidade multiplicou-
-se por cinco desde 1945 e, um ao lado do outro, se desdobrariam,
por mais de trés mil quilmetros lineares. Acompanhando esse
movimento, a lei de 1979 sobre os arquivos (a primeira desde a
Revolugio) dava uma definigio bem ampla: “Os arquivos sio 0
conjunto dos documentos, qualquer que seja sua data, sua forma e
seu suporte material, produzidos ou recebidos por toda pessoa fisica
‘ou moral, e por todo servigo ou organismo piblico ou privado, no
exercicio de sua atividade”. Tudo pode, em dltima instincia, ser
arquivado, ¢ 0s arquivos “‘constituem a meméria da nago € uma
parte essencial de seu patriménio histérico”. Os termos-chave es-
tGo aqui: meméria, patrim6nio, histéria, nagio. Eles assinalam que
entramos efetivamente nos anos-patriménio. Os arquivos tinham,
esse contexto, evidentemente, seu lugar. Contudo, os arquivis
tiveram o sentimento, mais ou menos justificado, de terem sido,
afinal, os abandonados daqueles anos, enquanto os museus € as
bibliotecas faziam mais sucesso junto aos poderes piiblicos. O que
€ uma das componentes da crise dos arquivos.
Proclamados memiéria, historia, patrimOnio da nagio, os arqui-
vos foram necessariamente recuperados pelo presente. Aqui esti a
outra componente, mais visivel e mais discutida da crise: os prazos
de consulta (longos demais) ¢ as derogages (restrtivas demais)°*
‘Como se a questio dos arquivos se resumisse apenas aos arquivos
contemporaneos (aqueles da Colaboracio e, h pouco, da guerra
rmémoize, histoire. Le Dat. 112, 200, p
1 COEUR, Sophie; DUCLERT, Vincent
nascs desrtos de apiagio
(pars oF documentos que
1 segurnga do Esa
rasoapan 38690
privada ou que dizem espe
‘3 defesa nacional), Em 1995, o eatne Bribane vista redone.
Mena, Hee, set 153
da Argélia). Relat6rios foram solicitados, prometeu-se uma nova lei
que, finalmente, nio foi criada, houve uma mobiliza¢io por uma
“cidade dos Arquivos”, por ora inexistente, mas se teve direito a
duas circulares do primeiro ministro. A circular de 3 de outubro de
1997 (a alguns dias da abertura do caso Papon e apés a declaragio
de arrependimento da Igreja da Franca) tornou menos rigidas as
regras de consulta dos documentos relativos ao periodo 1940-1945.
Lembrando que “E um dever da Repitblica perpetuar a meméria dos
acontecimentos que ocorreram em nosso pais entre 1940 ¢ 1945",
cla convidava a ir mais longe em matéria de derrogagdes, sem se
fixar “na personalidade ou na motivagio das pessoas que solicitam
‘uma derrogagio”. Traduzia, em suma, para a administragio, o dever
de meméria. A segunda, de 5 de maio de 1999, anunciava: “Em.
busca de transparéncia ¢ em respeito as vitimas e suas familias, 0
governo tomou a resolugio de facilitar as buscas histéricas sobre
4 manifestagio organizada pela Frente de Libertagio Nacional da
Argélia (FLN), em 17 de outubro de 1961”.
Maurice Papon, que acabava de perder o processo de difama~
io que havia intentado (como ex-chefe de policia de Paris) contra
Jean-Luc Einaudi, relativo 4 questio das vitimas da manifestagao,
fBzia, mais uma vez, a ligagio com a atualidade. Considerado em
toda sua duragio, 0 caso Papon é, aliis, um exemplo esclarecedor
dessas modificagdes de comportamento em relago ao tempo. £
apenas em 1998 que o ex-secretirio geral da policia da Gironda é
condenado, em Bordeaux, por cumplicidade em crimes contra a
humanidade, ow seja, cinquenta e cinco anos apés os atos denun-
ciados e ao final de um processo que durou noventa e cinco dias™*,
Antes dele, em 1994, houve o caso de Paul Touvier, ex-chefe da
mmilicia de Lyon, Inicialmente perdoado, em 1972, pelo presidente
Pompidou, que queria “encobrir” © tempo em que os franceses
“ndo se amavam"”, vinte e dois anos mais tarde é condenado por
crimes contra a humanidade. No entanto, tratava-se exatamente do
erporineo de seu crime. Mas nés também,a ect ce CIC RENO FHC HO
mesmo Touvier, Porém, o tempo funcionow as avessas. Ao invés de
ter produzido 0 esquecimento, ele avivou a meméria, reconstituiu
¢ impés a lembranca. Coma temporalidade até entio inédita criada
pelo crime contra a humanidade, o tempo nao “passa”: 0 criminoso
permanece contemporiineo de seu crime™’.
O urbanismo parisiense oferece outro registro, tio visivel que
chega a ofuscar, para compreender os efeitos da ordem do tempo
ow de seus questionamentos. Lembremos alguns momentos dessas
dramaturgias principescas ou desses balés urbanistico-politicos. Com
‘um primeiro tempo, ainda sob 0 signo do faturismo ¢ em sintonia
como regime modemno de historicidade. Inicialmente, encontramos
Georges Pompidou, 0 modernizador, no papel do presidente que
queria “adaptar Paris a0 automével”, acelerar seu crescimento, mas
também restituir-Ihe o brilho internacional, dotando a capital de
tum grande muscu de arte contemporiinea. Estendendo-se por vinte
anos, a reestruturagio do bairro do mercado central, Les Halles, dé
uma clara demonstragao dessas transformacSes. Em 1959, © governo
decide transferit 0 mercado para a cidade de Rungis. Nos dez anos
seguintes, a administragio de Paris promove projetos arquitetdnicos
1nos quais florescem os arranha-céus: “arranha-céus, arranha-céus
e mais arranha-céus**". Modernismo e rentabilidade parecem as
‘inicas palavras de ordem.
‘Apesar dos protestos, tendo maio de 1968 marcado sua presen-
‘ca, 0s pavilhdes de Baltard, que constitufam o complexo do mercado
central, sio finalmente destruidos em 1971: nio apenas desmontados
e transferidos, mas verdadeiramente destruidos. Resta entio um va~
zio célebre por um tempo, 0 “buraco dos Halles”, que se consegue
preencher apenas em 1980, ainda com virias peripécias, em que 0
prefeito de Paris da época, Jacques Chirac, pode dar sua dimensio de
urbanista. E incontestével que Les Halles, por poucos anos, teriam
sido preservados como “patriménio” excepcional do século XIX.
i Pome, Choniqus @ubnione. Pasi
omiger no Newel Obert, depss wo Le
inde, pnite seguir o face das Les erginoe progiesiva do ters do pain.
een vc, es oe
Essa destrui¢io marca até a inversio da conjuntura; 0 momento em
que o regime moderno (e modernizador) perde sua evidéncia. Com
efeito, pouco depois, a estacdo de trem Orsay, também destinada a
destruigio, é a0 contririo preservada, ¢ 0 secretirio da Cultura do
Estado do novo presidente Valéry Giscard d’Estaing, Michel Guy,
ccomega a chamar a atengio para o patriménio contemporineo: 0
dos séculos XIX ¢ XX.
Quanto 20 muscu, chamado finalmente de Centro Georges
Pompidou, é interessante lembrar que ele devia inicialmente ser um
muscu “experimental”, Em que sentido? “Um museu”, esclarecia~
se, “cuja finalidade nio seria conservar obras de arte, mas permitir
1a expressio livre a todas as formas da criagio contemporinea”?.”
O prédio de vidro, com seus espagos polivalentes e suas estruturas
méveis, devia aliar uma arquitetura funcionalista¢ rigorosa 20 lédico
€ a0 efémero, Devia expor mais a arte contemporinea do que a
arte moderna e, mais ainda, mostrar a arte acontecendo. A proposta
associava assim o ftturismo (inerente a todo projeto museolégico)
com uma componente forte de presentismo. Desejava-se colocar
no museu 6 presente da arte ¢ tornar visivel a cria¢io contempora-
nea acontecendo, rejeitando a museificacio. Porém, ao longo das
adaptagdes e das renovages, a parte experimental se reduziu c 0
conservat6rio venceu o laboratério. O espaco reservado ao museu
aumentou, enguanto o destinado & criagio diminufa™. Como se
6 presente, passando de uma postura presentista Ididica e narcisista
para outra bem menos segura, reconhecesse que duvida dele mesmo.
Contudo, 0 triunfo cotal do museu ¢ do patriménio coube a
Francois Mitterrand, quando inaugurou, no final de 1993, o Grande
Louvre, com sua pirimide de vidro ~ as piramides menores 08
expelhos d'agua -, que di um toque de arquitetura pos-modemna,
através da qual se pode descer para contemplar quarenta séculos de
© Grande Louvre, que perdeu sua ilkima fungio régia com
1 saida do Ministério das Finangas, acabou se transformando em wm
0 FERMIGIER. La btle de Ps, p. 148
& Vero douié“L'atople Beauboorg dans apr
Le Cente Pompidou, une wopie Epusée Le Dib, nRowe enone eo BeOS HaO
16
imenso espago museal: o maior museu (0s principes nao deixam
por menos) e © principal lugar do patriménio universal da Franca
{tendo no subsolo o saguio de sua galeria comercial).
Assim, esse presente, que reina aparentemente absoluto, “di~
Jatado”, suficiente, evidente, mostra-se inquieto. Ele queria ser seu
proprio ponto de vista sobre si mesmo e descobre a impossibilidade
de se fiar nisso: mesmo na transparéncia das grandes plataformas
do Beaubourg. Ele se mostra incapaz de preencher a lacuna, no
limite da ruptura, que ele proprio nio cessou de aprofundar, entre
‘© campo da experiéncia e o horizonte de expectativa. Escondido
na sua bolha, 0 presente descobre que 0 solo desmorona sob seus
pés. René Magritte poderia ter pintado isso! Trés palavras-chave
resumiram ¢ fixaram esses deslizamentos de terreno: meméria, mas
trata-se, na verdade, de uma meméria voluntiria, provocada (a da
historia oral), reconstruida (da historia, portanto, para que se possa
contar sua historia); patriménio — 1980 foi decretado o ano do Patri-
da palavra e do tema (a defesa, a valorizacio, a
promogio do patriménio) acompanha a crise da propria noio de
“patrimdnio nacional”; comemorago, de uma comemoracao 4 outra
poderia sero titulo de uma crénica dos tiltimos vinte anos, Esses trés
termos apontam para um outro, que & como seu lar: a identidade
‘As grandes comemoragées definiram um calendirio novo da
vida pablica, impondo-Ihe seus ritmos ¢ seus prazos. Ela se submete
ese serve disso, tentando conciliar meméria, pedagogia ¢ mensagens
politicas do dia, A visita de Frangois Miterand, recém-eleito, 20
Panteio, no dia 10 de maio de 1981, foi concebida sob essa perspec-
tiva, De fato, ela revelava uma incursio inaugural a0 pafs dos mortos
ilustres da Repablica, com a rosa na mio (Jules Michelet, a0 escre~
ver sua hist6ria, tinha um ramo dourado) para reavivar esses Ingares
abandonados, sagrar-se, inscrevendo-se em uma linhagem, e relangar
um tempo instaurado pela Revolugio. Esse acontecimento simbélico.
comportava ainda uma dimensio futurista ¢ uma outrajé pattimonial:
a representacio as reunia. Em seguida, comeyavam as
Os anos seguintes assistiram 4 alternincia das comemoragdes
em um ritmo que ia acelerando, Porém, todas essas reorganizages
francesas em torno da meméria se produziam enquanto se apro-
ménio ~, 0 suces
Maven, ns ree =
ximava a comemoragio maior anunciada: a da Revolugio, que
incitava a colocar na ordem do dia e em discussio o proprio fato de
comemorar, essa “atividade estranha, que oscila entre a presenga ea
auséncia""", O que nos valeu, além de varias polémicas, um milénio
capetiano em 1987, finalmente autenticado por uma missa solene,
na presenga do presidente da Repitblica: 0 tempo longo da Franga
sempre! A esse primeiro fogo de artificio comemorativo sucederia
imediatamente a rajada do jubileu da Segunda Guerra Mundial.
Longe de ser um fenémeno somente francés, a comemoragio
floresceu em todos os higares a partir dos anos 1980. Assim, a Ale-
manha praticou-a com um ardor igual e até superior, pela rivalidade
entio existente entre as duas Alemanhas. Houve o quinto centenario
do nascimento de Lutero em 1983; 0 septingentésimo quinquagé-
simo aniversirio da fandag3o de Berlim em 1985; a transferéncia
das cinzas de Frederico I] para Potsdam em 1991; e, finalmente, a
inauguragdo da “Nova Guarda” (Neue Wache) em Berlim, em 1993,
exigida pelo chanceler Helmut Kohl como memorial central da
Repiblica Federal da Alemanha. Pode-se acrescentar, naqueles anos,
© langamento de varias histérias da Alemanha por grandes editoras
¢, um pouco mais tarde, 0 inicio dos Lugares de mendria alemaes™.
Memoria e historia
Em 1974, sio publicados os trés volumes de Faire de
dirigidos por Jacques Le Goff e Pierre Nora, cuja pretensio ¢
e promover um tipo novo de histéria”, aquela que responde i “pro-
vocagio” das outras ciéncias humanas, em particular da etnologia™.
Da histéria das mentalidades 3 antropologia historica, era o momento
de uma consciéncia e de uma ciéncia de nossa distancia em relagao
4 nds mesmos, mas distanciada tanto no tempo quanto no espaco.
A meméria, assim como 0 patriménio, ainda nio era considerada
» OZOUF, Mona
© FRANCOIS, Eeane.N
Le Dita, v.78face Seren NNO ENC mro
ase
entre 0s novos objetos ou as novas abordagens. De fato, mesmo que
os historiadores tenham sempre lidado com a meméria, eles quase
sempre desconfiaram dela. Tucidides jé a recusava, considerava-a
como no confiivel: ela esquece, deforma, nio resiste ao prazer de
agradar aquele que escuta. © olho, a evidéncia da aut6psia, deve
prevalecer sobre 0 ouvido. Esse era o valor da historia, como busca
da verdade™. Grande admiradora de Tucidides, a historia-ciéncia
do século XIX comegou a marcar uma clara cisio entre o passado ¢
© presente. © que sempre fez de Michelet um transgressor, ele que
atravessou e reatravessou tantas vezes 0 rio dos mortos. A histéria devia
comegar exatamente onde a memiéria parava: nos arquivos escritos.
Quatro anos mais tarde, A histéria nova, dicionario codirigido
por Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel, abriu espago
para a meméria, com o verbete “Memiéria Coletiva”. Forjada por
Maurice Halbwachs, a nogio é retomada e defendida por Pierre
Nora, mas com a condig4o de que os historiadores saibam como
dela se servir. As rupturas modemas conduziram a uma multiplicagio
de memérias coletivas, de maneira que a histéria se escreve agora
sob sua pressio: a propria histéria cientifica vé seus interesses ¢ suas
curiosidades ditados por elas. O que explica a proposigao de Nora
de “conferir4 meméria coletiva, ¢ para a historia contemporiinea, o
papel que representara a histéria dita das mentalidades para a histéria,
moderna”. Decorre disso 0 primeiro esbogo dos faturos Lieux de
‘mémoire: partir dos lugares topogrificos, monumentais, simbélicos,
funcionais, onde a sociedade deposita voluntariamente suas lembran-
gas e fazer histéria desses memoriais. O objetivo € claro: “A anilise
das memérias coletivas pode ¢ deve tomnar-se a ponta da langa de
uma histéria que se pretende contemporinea”®”*
Durante mais de vinte anos, dos anos 1920 até sua morte
em 1945, no campo de concentragio de Buchenwald, Maurice
Halbwachs dedicara-se de fato a desenvolver uma sociologia da
meméria coletiva. Encontrava-se, investiga’ continuada,
(CHARTIER, Roger: REVEL,
Meson usta, mse 139
algo do pés-guerra de 1914. Hoje, sua propria obra tornou-se
um verdadciro lugar de meméria dos estudos sobre a meméria.
Por muito tempo pouco frequentada, ela foi sendo cada vez mais
revisitada, citada, e, finalmente, reeditada. Dessa forma, fornece,
simultaneamente, uma ferramenta para trabalhar sobre 0 objeto
da meméria ¢ um indice da presente conjuntura. Propondo-se
a abrir o campo da meméria a0 sociélogo, Halbwachs pensava
a0 mesmo tempo com e contra Bergson: com, ja que fazia suas
as anilises da duragio; contra, pois tinha a intengio de colocar
antes a dimensio social (¢ inicialmente familiar) da meméria: seus
“quadros sociais”. Por isso, conclufa que “o pensamento social
é essencialmente uma meméria”, constituida de “lembrangas
coletivas”, mas dessas lembrangas somente permanecem aquelas
lade, “ao trabalhar sobre seus quadros atuais, pode
O destaque era dado nitidamente a “atuais”,
Com A meméria coletiva, livro que ele deixou inacabado, Hal-
bbwachs tracava uma clara linha divis6ria entre a historia e a meméria,
em beneficio de uma abordagem pela meméria, que polidamente
dispensava o historiador, reenviando-o a seus arquivos e 4 sua exte-
rioridade. A histéria é uma, enquanto ha tantas memérias coletivas
quantos grupos, nas quais cada um imprime sua prépria duragio””.
Assim, sob efeito de uma vida social cada ver mais acelerada, hi cada
vez mais memérias coletivas. Também se encontrava em Halbwachs
a constatagio da aceleragio. A meméria coletiva, em seguida, forma
“uma corrente de pensamento continuo” (cla s6 retém do passado
© que ainda esta vivo), enquanto © historiador “s6 pode fazer sua
obra com a condigio de pér-se deliberadamente fora do tempo
vivido pelos grupos que assistiram aos acontecimentos, que tiveram
com eles 0 contato mais ou menos direto, ¢ que podem lembrar-
“ HALBWACHS, M 994.
296. LAVABRE, Mane-Claze. Maurice Halbwachs et asociloge de a mémoie, Rain Prien,
°7 MALBWACHS, Maurice, Le mémee alle, Edgio extn organiza por Cera) Namer.
Pans Abin Michel, 1997p,
™ HALBWWACHS. La mimotete eon oF HERERO: UD RN TAL
forja “uma duragio artificial que no tem realidade para nenhum
dos grupos dos quais esses acontecimentos sio emprestados"”. O
pissaro da histéria, s6 poderia, assim, algar seu voo quando a noite
tivesse caido completamente, quando o presente estivesse definiti-
vamente morto. Em 1867, um relatério sobre os estudos histéricos
na Franga terminava por estas fortes constatagées: “A histéria s6
nasce para uma época quando ela esti inteiramente morta. Assim,
© dominio da historia é 0 passado, o presente convém a politica e
© futuro pertence a Deus”™®. © autor, J. Thiénot, apresentava-se
20 ministro destinatario do relatério como um “escrivio preciso”.
‘Mas @ partir do momento em que a figura do historiador nio
éidentificada como aquele que seria profissionalmente excluido do
campo da meméria, a oposicéo categérica entre hist6ria e meméri
cai, A meméria coletiva pode também fazer parte do “territorio’
do historiador ou, melhor ainda, tornar-se instrumento da escalada
da historia contemporiinea. Ora, Nora sempre recusou 0 postulado
de um corte (artificial ou ilus6rio) entre o passado € o presente.
ario, diferentemente dos autores do relatério encami
, ele defende que é incumbéncia do “historiador
do presente” fazer, “de forma consciente, 0 pasado manifestar-se
no presente (no lugar de fazer, de forma inconsciente, o presente
manifestar-se no passado)”. Ainda sobre o tempo, a reflexio que
cle conduz, a propésito do acontecimento, sugere uma relagio
entre 0 novo estatuto dado a0 acontecimento em uma sociedade
de consumo ¢ uma maneira de apreender o tempo: “Talvez tra~
tamento a que submetemos o acontecimento seja uma maneira[...]
de reduzir 0 proprio tempo a um objeto de consumo e de investir
nele os mesmos afetos?”™". Aqui se indicaria, como sugestio, um
‘outro componente do presentismo. Tomado
também o tempo se torna um objeto de consumo,
O modo de ser do passado € o de seu surgimento no presente,
mas sob o controle do historiador. Este € 0 postulado dos Liew de
tempo do consumo,
> HALBWACHS. Le mémoie cle
> THEN!
p66
msprimerie mpésale, 1868. p. 386
Mena, ash aE
a1
mémoire, cujo primeiro volume é publicado em 1984. O longo texto
de abertura, intitulado “Entre meméria e historia” cumpre a fungi0
de manifesto e exposigao da problemitica geral™, O importante
é,inicialmente, 0 entre: posicionar-se entre historia e meméria, nio
NORA, Pere Pour une hisoire second deg, Le Débt n. 122, 2002.27168 roe TONDO RENO EBrNGAS 20 NO
divisa dos Monumenta Germaniae) pressupunha © conhecimento da
patria, que s6 podia se adquirir pela histéria. A fungio, ou melhor,
a missdo do historiador era clara.
Certamente, Lavisse ocupou um lugar no itineririo de Pierre
Nora**”. Mas ha mais. Sua histéria representou o papel de laborat6-
tio. A Repilblica dos Lugares saiu inicialmente de uma leitura critica
de Lavisse, um Lavisse visto dos bastidores, de onde se mostra a
fabricagio de uma histéria nacional, ao mesmo tempo em que é
desmontada como meméria republicana, resultando, justamente, no
primeiro ensaio da nogio de lugar de meméria. Para compreender
‘© que se passava em 1980, entre meméria ¢ historia ¢ tudo 0 que
estava em jogo nessa nova demanda de meméria, Nora comegava
por transportar-se para um século antes, quando, com Lavisse, 56
existia a questio da historia. 1980 vinha olhar 1880, ¢ 1880, refle
tindo esse olhar, devolvia inteligibilidade a 1980. A aproximagio
dos dois momentos era, para ele proprio, esclarecedora: ele m
trava que a “Histéria” de Lavisse era, em seu principio, memé:
(republicana) promovida a dignidade de histéria.
Para chegar a uma primeira definigio do lugar, como o que é,
0 mesmo tempo, material, funcional, simbélico (objeto espelhado,
por meio do qual o passado encontra-se retomado no presente), quase
bastava partir da evidéncia dos “lugares comuns” da Repiblica (as
tnés cores da bandeira, o 14 de julho, o Panteio...), desenvolvé-la e
question-la. Ora, hoje em dia a relagio com estes lugares simbélicos
tomou-se muito ténue: eles sio, escrevia Nora, como “as conchas sobre
aa praia quando se retira o mar da meméria viva”. Estio aqui, masa finica
relagio ativa que se pode manter com eles é a que propéem os Lieu:
uma relagio de segundo grau, feita da reativagio daquilo de que foram
a historia. Ese primeiro volume desembocava em uma Repiiblica que
se mostrava como ja sendo ela propria o lugar de meméria. Havia no
primeito volume um pouco do “manto de pérpura onde dormem
08 deuses mortos”™™, Os dois volumes seguintes retomaram a nogio,
snil-sep. 1962,
= RENAN, Eres. Pe sur! Agople le: ae comps, Pars: Calmann-LAvy, 1948, p. 758,
Monten, Heron, Dee et
propondo uma concep¢io mais ampla ¢ mais dinimica que permitia
avangar mais em diregao a esta histéria simbélica ou de segundo
grau, da qual Nora se fez o praticante o defensor™.
Para além desse diagnéstico sobre a meméria de hoje, a pro~
pria expressio lugar de meméria remete As artes da meméria, que
conduzem, por sua vez, até a arte oratéria da Antiguidade™. A
definicéo canénica foi dada por Cicero: o lugar (locus) € a locali-
zacio — as pecas de uma casa, por exemplo, ou colunas — onde o
orador, preparando seu discurso, é convidado a organizar as imagens
das coisas que ele quer selecionar. Deve escolher particularmente
imagens vivas (imagines agentes). Nesse sentido, Les Liew de mémoire
estabeleceram uma concep¢io retérica do lugar e da meméria. Se 0
lugar do orador é sempre um artefato, o lugar, de acordo com Nora,
no é jamais dado simplesmente: ele ¢ construido e deve mesmo
ser constantemente reconstruido. Cabe, assim, ao historiador dos
lugares de meméria encontrar os lugares ativos, as imagines agentes
de Cicero, mas, a0 contrario do orador que escolhia os lugares
para memorizar seu discurso, 0 historiador parte dos lugares para
reencontrar 0s “discursos”, dos quais foram os suportes. O que fiz
6 lugar de meméria &, enfim, que ele seja um entroncamento onde
se cruzaram diferentes caminhos de meméria. De modo que so-
mente ainda estio vivos (agentes) 0s lugares retomados, revisitados,
remodelados, rearranjados. Desativado, um lugar de meméria nio
mais, na melhor das hipéteses, do que a lembranga de um lugar,
tais como os gauleses ¢ 05 francos, apés 1914.
Explora¢io continuada do nacional sob o prisma da meméria,
Les Liewx de mémoire colocaram em evidéncia uma periodizacio dos
“impulsos memoriais”, com varios tempos fortes: 1830 (resumido pela
obra de Guizot); 1880 (quando se fixam os rituais da Republica e sua
histéria); 1980 (ponto de partida e razio de ser da pesquisa sobre os
Lieux). Hi ainda um, em minha opiniio, capital: 1914 (crata-se, mais
uma vez, de um numero redondo). Ele ficou menos visivel (inclusive
na pesquisa de Nora), na mesma medida em que nio se traduziu pela
NORA. Pour une htt a second deg, p30.
YATES, Frances. L'Art dele mina. Teaduo de D, Aras, Pais: Gallimard 1975,si eons & ICRRAOE ESPN F BRINGS 0 RD
organizagio de instituigdes centrais de histéria ou pela produgio de
grandes histérias nacionais, retomadas ou renovadas, mas sobretudo
por uma contestago da histria oficial, uma valorizacio jé da meméria
contra a hist6ria e, entre alguns, a busca de uma outra histéria, quer
dizer, de outras temporalidades histéricas, que conduzem a novas
petiodizagSes. O trabalho de Halbwachs sobre a meméria associava~
-se a esse momento de crise da ordem do tempo, acompanhado por
questionamentos do regime modemo de historicidade.
Dessa crise do tempo o proprio projeto de Em busca do tempo per-
dido jé era um sinal de miltiplas ressonincias, A obra é, ¢
este livro que viri, que deveria exprimir o tempo mesmo, ‘a forma
do Tempo”, depois que, na biblioteca do principe de Guermantes,
a evidéncia da ideia do Tempo finalmente impés-se a0 natrador.
Jase encontra ali uma forma do lugar de meméria. Proust nao fala
de “Iugar distante” © de “lugar atual” e, de um a outro, a propria
sensago de outrora, enquanto opera a ressurrei¢o da meméria, que
€ irrupgao do passado no presente? Assim, madame de Saint-Loup
mostra-se ao olhar do narrador como um tipo de lugar de meméria:
“Nio era ela”, pergunta-se, “como sio nas florestas as estrelas dos
cruzamentos onde vém convergir rotas que vém, para nossa vida
também, dos pontos mais diferentes?” Visto que vinham a ela “os
dois grandes lados” onde ele fizera “tantos passeios sonhos”™”.
O livro pode agora se concluir sobre essa presenca fisica, vertical
do tempo. “O homem, tendo a dimensio nio de seu corpo, mas
de seus anos”, usa, lembremos, pernas-de-pau vivas de tempo, que
podem ser “is vezes mais altas do que campanérios”. Tal como 0
duque de Guermantes, vacilante sobre suas pemas, “No Tempo”
so entio as iltimas palavras de Em busca do tempo perdido.
Proust levaria a Bergson suas anilises da duragio™®, Dever-se~
-ia associar também Charles Péguy, adversirio proclamado e feroz
dee oni [188),Pait: PUE, 1961, em
de duragio. Ouvine ds aus de Bergson, Péguy
refledo 2 “revoluco bergsonina". Sobre Péguy, Berson dit que
“pensmento exerci
\cluindo,
Move sen, mee sae
da historia, tal como a encamavam e a promoviam os mestres da
Sorbonne, Lavisse, Langlois e Seignobos. Contra a historia, Péguy
invoca resolutamente 2 meméria. Contra o sacrossanto método
historico, ele escolhe Hugo ¢ Michelet. Em Clio, ele opée a his-
t6ria “essencialmente longitudinal” 4 meméria “essencialmente
vertical”. A histéria “passa ao longo”, diz, quer dizer, “ao lado”,
enquanto “a memiéria consiste, antes de tudo, por estar ligada a0
acontecimento, em nio sair dele, em ficar e em fazer 0 caminho
inverso de dentro”. Péguy nio deixava evidentemente de refletir
sobre o Affaire: “Eu dizia, pronunciava, enunciava, transmitia um,
certo caso Dreyfus, 0 caso Dreyfus real, no qual nés, desta geracio,
nunca paramos de imergir”™*, No fim das contas, para retomar seu
vocabulitio, a historia é “inscrigZo”, enquanto a meméria é “'re~
memoragio”, Estamos em plena contesta¢io do regime modemo
de historicidade.
De fato, enquanto Bergson s6 se dedica 4 durago individual,
Péguy se arrisca do lado do “tempo do mundo”: “Consulte em
sua meméria ¢ também na meméria do seu povo [...] Vocé seri
conduzido a questionar-se se niio hi também duragdes de povos e
uma duragéo do mundo, pois parecera evidente que a vida, que
acontecimento dos povos e 0 acontecimento do mundo nao escoam,
nio se desgastam, nio se distendem constantemente com a mesma
rapidez, de acordo com o mesmo ritmo, no mesmo movimento
[.-]. Nio é evidente que 0 acontecimento nio seja homogéneo,
que talvez seja orginico, que haja o que se chama, em aciistica, de
ventres e nés, plenos e vazios, um ritmo, talvez uma regulacio,
tensdes e distensdes, periodos e épocas, eixos de vibra¢io, pontos de
elevagio, pontos de crise, mornas planicies e repentinos pontos de
suspensio®*”, Enfim, uma ordem do tempo ou conjunto de ondas168 ros 0: HSIAO: MESON ¢ OMRENCHE CO AMO
temporais, na qual se podem encontrar, como que seccionados,
regimes de historicidade.
Do mesmo modo, pouco depois, Walter Benjamim fez da
rememora¢ao um dos conceitos centrais de sua reflexio nas suas
teses Sobre 0 conceito de histéria”. Contra 0 “historismo”, ideolo-
gia que encamava, segundo ele, a faléncia da histéria e da cultura
historica modemnas, contra seu tempo “homogéneo ¢ vazio”, cle
trabalhou, até seu suicidio em 1940, na fronteira espanhola, cons~
ttuindo um novo conceito de historia, para o qual ele recorria, 20
mesmo tempo, a0 marxismo e a0 messianismo judeu. Ao forjar a
nogio de “tempo de hoje” (Jet2tzeit), propunha definir tempo
histérico como que s6 nasce propriamente quando se opera “uma
conjungio fulgurante entre o passado e o presente e que forma
uma constelagio”””. De acordo com Hannah Arend, ele sabia que
“a ruptura da tradigao e a perda da antoridade de sua época eram
irrepariveis, ¢ concluia que era preciso descobrir um estilo novo
de relagio com o passado”, que consistia em “instalar-se por frag-
‘mentos no presente” em ‘“mergulhar nas profundezas do passado
como o pescador de pérolas’”*. A rememoracio é ativa, cla nio
um surgimento involuntitio do passado no presente; visando um
momento do passado, ela tende a transformé-lo. Homem da bre-
cha do tempo, do presente, seguramente, mas em nenhum caso do
presentismo, sua aura nao parou de crescer, justamente, desde que
© regime modemo de historicidade encontrou-se questionado. Do
passado, ele nio faz de forma alguma tébula rasa, enquanto formula
um pensamento da revolugio.
Entio, como 0s historiadores profissionais responderam a esses
questionamentos, a essas interrogagées? Nao responder
diretamente. Ji
ou nio
vente, Lavisse tinha que imperativamente lancar
aug de Jean Lacon,
tad por TASSIN. Ler ped, 9.3637
Menon, sees, ese 169
‘a sequéncia de sua histéria com A histéria da Franca contempordnea,
Publicado em 1922, o iitimo volume, dedicado a Guerra de 1914,
termina com uma “Conclusio geral” redigida pelo proprio Lavisse.
Embora reconhega que “o presente é muito sombrio”, emprega-se
a encontrar raz6es de “confianga no futuro”: uma unidade nacional
E, sobretudo, “apés 0 marasmo febril®, 0 progresso reencontrari
seu lugar, “as nagdes retomario o caminho para uma nova etapa,
Nés temos 0 direito de esperar ¢ de acreditar que a Franca estar
na vanguarda”™. Exsperemos
‘A verdadeira resposta, ainda que indireta, foi a dos historiado-
res que, desviando-se do nacional, levaram em conta 0 econémico
€ 0 social, com suas temporalidades reguladas por outros ritmos €
nio mais exclusivamente pela sucessio linear dos acontecimentos
politicos. Aspirando associar-se a essa ciéneia social, da qual os
durkheimianos, em particular Frangois Simiand, atuavam como
promotores ativos e cuidadosos guardides, a histéria ambicionava
contribuir, no que Ihe tocava, para a produgio do saber da socie~
dade sobre si mesma. Esse deslocamento da Nagio em diresio 4
Sociedade era acompanhado de uma relagio de tempo diferente:
“Com 0 advento da sociedade no lugar da Nagio, a legitimagio
pelo passado, portanto, pela histéria, cedeu vez 4 legitimagio pelo
fururo”®, Seguramente, mesmo que © futuro estivesse antes ati-
vo, visto que era ele que esclarecia o pasado. Pois a conversio do
olhar ocorrera desde o momento em que a Revolugio se tornara 0
ponto de vista a partir do qual se ordenava toda a histéria passada
da Franga. Repensemos o Volney das Rufnas, jé
Futuro jé advindo, ¢ no vindouro, ficariamos tentados a obje~
tar, salvo que o século XIX nao parou de correr atras do verdadeiro
fim da Revolugio, oscilando entre o receio de uma revolugio
confiscada ¢ 0 de uma revolugio inacabada, Ao menos, até a
consolidagio da Terceira Repiiblica. Em seguida, veio a interro-
pate de 1918. Pasi370 res HSCREEAGE ENTSNO EBRRENGAS 00 THO
gacio, sempre relangada, sobre o que é a Repiiblica. De mancira
ais especifica, os fundadores dos Annales preconizaram as idas €
vindas entre o presente e 0 passado.-Aproximar os trabalhadores
{analistas, estudiosos) do contemporineo e 0s profissionais do pas-
sado, certamente, sem no entanto esquecer que a “incompreensio
do presente nasce fatalmente da ignorincia do passado. Mas que
talvez nao seja menos vio se esgotar para compreender 0 passado,
se nio se sabe nada do presente”, Seria uma maneira de recolocar,
‘0 historiador nos debates intelectuais e no jogo social,
Historias nacionais
‘Ao longo de todo um século, que foi tio fortemente aquele das
nacionalidades, a historia nacional e a escrita em nome do futuro
tiveram, de fato, interesses comuns. No caso da Franca, trata-se
de um futuro jé advindo, mas malogrado, desviado ou perdido,
inacabado em todo caso. 1789 ja aconteceu, mas suas promessas
ainda estio por vir. Estamos mais uma ver entre 0 jé ¢ 0 ainda nao,
Partamos da geragio liberal de 1820: a que planta a bandeira
da reforma historica, reclamando justamente a Nagio. Com esses
jjovens, abre-se um perfodo ativo, inventivo, ingénuo também, mas
intelectualmente inovador, que é também a primeira reivindicagio
¢ expressio da histéria-ciéncia, e ndo mais arte. A Nagio é para eles
a0 mesmo tempo uma cvidéncia, uma arma politica, um esquema.
cognitivo ¢ um programa histérico. Uma evidéncia, ji que é 0
mesmo sentido da revolugio que, no lugar do rei ~ na pessoa de
quem, assim como se dizia, “a nagio residia inteiramente” —, insta~
Jou justamente a nacio como “recepticulo mistico da soberania™
© gue explica os problemas (de longa duragio) da representagio
que decorrem dessa brutal substituigio de um absoluto a outro.
Como apreendé-lo ¢ servi-lo, esse absoluto, como encarni-lo? Ao
“© BLOCH, Marc, Apo pn ou i
Sobre a imperincs do jogo pasadopcesente,
Prose: de
“© GAUCHET, Mi
Galimard, 1986
Phsoren Pasi: Annan Cali, 1993. p. 85.
DUMOULIN, Over Ma Bib, Pans
eee m
longo de todo 0 século, os historiadores tentaram compreender
momento fandador ¢, portanto, inscrevé-lo ¢ dar-lhe sentido
nna longa duracio da historia da Franca, do inicio ao fim. Dat saiu,
na realidade, 0 conceito modemo de histéria e definiu-se a tarefi
(até mesmo a missio) do historiador. Dai também, Frangois Furet,
fazendo-se leitor dos historiadores do século XIX, partin de novo
para “pensar” a Revolugio francesa",
‘Annagio é uma arma. Contra a Carta Constitucional de 1814,
© sua reiteragio de uma histéria da Franca central, sendo exclusi-
vamente monarquica, era capital mostrar que ‘a massa inteira da
ago” era agente da histéria e que, em particular, a longa marcha
do Terceiro Estado comegara no século XII. Estava, na realidade,
em andamento uma outra continuidade, bem mais carregada de
histéria e, sobretudo, mais rica de futuro do que apenas a sucessio
dinfstica, Para Augustin Thierry, 1789 vem esclarecer “as revolu-
‘GBes medievais”, e 1830 oferece ao observador esse ponto de vista
“extremo” de onde ele acredita ter sob os olhos “o fim providencial
do trabalho de séculos transcorridos desde o século XII". Julho
de 1830 conclui julho de 1789. Tal é 0 sentido da inteligibilidade:
-vai-se do presente, que ontem ainda era um faturo, a um passado
muito distante, e 1830 mostra-se praticamente como fim da historia
[Nesse momento preciso, programa politico (a monarquia constitu-
ional) e progressio metodoldgica podem encontrar-se ¢ caminhar
a partir dai de mios dadas.
Para escrever essa nova hist6ria, a dos cidadios, dos sujeitos,
em resumo, do povo, que esta “ainda esquecido na poeira das
crénicas” da época, & preciso, de fato, por-se a ler os documentos
originais e, muito rapidamente, sera preciso ir aos arquivos. O publi-
cista transforma-se em historiador. Mesmo que encontre, mas com
uum outro questionirio, a antiga erudi¢io dos membros de socieda-
des dedicadas i hagiografia, como os bolandistas e os beneditinos de
Saint-Maur, Thierry medita também sobre Walter Scott e 0 romance
1868. c1V. 148,an Front & SCRCOACE RENE EBRRBNON 90 HO
histérico (é todo o debate em torno da “cor local”), Pode-se
cem seguida rir da ingenuidade do historiador que pensava poder
articular também simplesmente o politico e 0 cientifico, vendo-os
andar juntos, Nao deixa de ser verdade que a questio nacional deu
© impetus a esse movimento que, apés 1830, a monarquia de julho
institucionalizou, antes de encontrar 0 estupor de 1848. A historia
nfo estava assim acabada, nem mesmo as vésperas de acabar. Como.
entio escrevé-lo: a Revolugio nao tinha terminado e o ponto de
vista estava embaralhado?
Michelet também parte do “raio de julho” de 1830, que,
riscando a noite, é este momento de graca e de inteligibilidade
total, quando a histéria, como em uma visio mistica, revela-se por
inteiro, condensa-se € toma sentido. A fissura de 1789 pode 20
‘mesmo tempo ser plenamente reconhecida e integrada de maneira
que possa ser restabelecido “o fio da tradic¢io”. Varias consequéncias
importantes decorrem desse encontro com a nagio como “alma”
como “pessoa”. Inicialmente, uma transformagio do caderno de
tarefis do historiador: compete a ele, dai por diante, revelar 0 que
no cra imediatamente visivel, com menos atengio aos segredos dos,
grandes e mais voltado aos murmiirios dos andnimos € mesmo aos,
siléncios da histéria. Mas, para descobri-los e se impregnar deles,
cle nao pode mais se contentar em s6 sacudir a pocira das crdnicas,
deve decididamente “mergulhar” nos depésitos dos arquivos. Na
poderosa lingua de Michelet, o historiador, caminhante das galerias
dos arquivos ¢ visitante dos mortos, deve de fato saber ouvir “os
irmiirios de uma grande quantidade de almas sufocadas”: todos
esses mortos em relagio a quem o presente contraiu uma divida
Essas elegias fiinebres, que sio (também) da epistemologia, recu-
sam a ruptura entre o passado € o presente, instauradora da hist6ria
moderna. Grande leitor de Virgilio, 0 chefe da segio de Historia
dos Arquivos Nacionais é também um vate, mas essa postura € esse
registro so sua maneira de refletir teoricamente sobre a histéria.
Meena, ons, me a
Em seguida, a Nagio como pessoa é viva: esta, 20 mesmo
tempo, ja aqui e em perpétuo tornar-se, ela é fracasso e promessa,
pasado e futuro, mas sobretudo, em uma linguagem retomada de
Vico, ela é constante “trabalho de si sobre si”. Por consequén
ndo ha nada de “fatal” em sua histéria: nem “solo” nem “raga’
‘ou qualquer outro determinismo. Ela é liberdade: hist6ria aberta,
Contra as histérias, quer “muito pouco materiais”, quer, “muito
Michelet preconiza uma historia atenta aos
” (de instincias, de niveis ou de fatores)*”, Essa
visio e esse uso da na¢io como um organismo complexo tiveram
incontestiveis capacidades heuristicas, tendo em vista que sio um
convite permanente a retomar, ir mais longe, refinar, em sintese,
tomar a anilise mais complexa: fazer da Franga um quadro ex-
perimental e um. problema. justamente isso que tentari ainda
Fernand Braudel em A Identidade da Franga, invocando Michelet
(enquanto se distingue dele), mas ja estaremos um bom século
mais tarde, ¢ trés guerras depois: “Eu amo a Franga com a mesma
paixio, exigente e complicada, que Jules Michelet [...]. Mas essa
paixdo quase nio interferird nas paginas desta obra. Eu a manterei
cuidadosamente a distancia”.
Antes e depois de 1870, houve o empreendimento de Fustel
de Coulanges, que no conseguiu desenvolver-se completamen-
tet, As manhis de Julho j4 estio longe e as promessas de 1789
mais longe ainda: a histéria ndo parou mais: 1830 foi sucedido por
1848; a Repablica, pelo golpe de Estado e pelo Império, “autori-
trio” iberal”, por fim. Sedan e a Comuna estio
chegando. A questio da Revolugao acompanhou Fustel ao longo
de toda sua vida cientifica. Ele desenvolveu de sua parte uma du-
pla estratégia de redugio, No curso da historia, na Antiguidade
o nos tempos modemos, houve revolugdes sem pausa, mas as
revolugdes nao sio o que se acha hoje em dia: na realidade, a parte
ICHELET,
1918.1. 1V.pim Rene 8 STONER RESEND £SHRENCUS BOTS
do invisivel prevalece sobre o visivel e no momento em que uma
revolugio “irrompe” ela esté, na realidade, jé acabada. O tempo do
acontecimento conta pouco.
A Cidade antiga (publicado em 1864) j4 era uma histéria das
iigdes politicas, mas dos Antigos, quer dizer, o estudo das
revolugdes sucessivas que conduziram até a formagio da cidade.
Pois, para compreender a cidade, é preciso partir de um exame das
origens, 0 que resulta em evidenciar que as primeiras instituigdes
Jhumanas tiveram, na realidade, um fandamento religioso: a primeira
crenga, de acordo com a qual a morte no era o fim de tudo, foi
a raiz do primeiro laco social (0 culto dos mortos supe de fato a
familia, enquanto a tumba do ancestral representa a primeira for-
‘ma da propriedade privada). O adversirio era ainda Rousseau € 0
artificialismo do Contrato,
Trés consequéncias decorrem desse postulado: a necessidade,
para o historiador, “de desenvolver suas pesquisas sobre um vasto
espaco de tempo”, j4 que s6 hé hist6ria na longa duracio. © objeto
privilegiado do historiador em seguida é realmente o que Fustel
nomeia de “as instituigdes” (no sentido etimolégico de tudo o que
institui a vida em sociedade): sua formagio é “lenta, gradual, regu-
inst
lar”, € ha grande diferenga entre a possibilidade de ser “o fruto de
um acidente fortuito ou de um brusco golpe de forga”. Logo, elas
no sGo jamais “a obra da vontade de um homem, nem a vontade
pouco sua histéria, Essa Histéria das instituigdes politics da Antiga
Franca (que ele nio terminou e 4 qual ele renunciou) deveria ter
sido algo como A Identidade da Franca de Fustel. Essa longa duraco
ruigo, como processo
de institucionalizacio, seu caminho até Braudel? Certamente, com
importantes mudangas de posicio, visto que o historiador mergulhou
‘em diregio a outras profundezas. “A histéria de longa dura¢:
escreve Braudel im, um tipo de referéneia em relagio 3 qual
fasteliana nio terd feito, em termos de
© COULANGES, Fel de. Hato der bunnies pbtiues de Monee Fane Pans: Hache,
1875, Inwodugt, p. 2
ee
Nowe, ten, ence ae
todo destino nfo se julga, mas se situa e se explica. [..] B tomar
uma medida inabitual da Franga, enriquecer sua hist6ria. Aceder 0
que pode ser sua identidade. [...] Ela nao limita (nao digo suprime)
40 mesmo tempo a liberdade e a responsabilidade dos homens*"?”
Como ja revelara Philippe Ariés, a abordagem de Fustel, enfim,
ressalta as diferencas das épocas e busca dar-lhes sentido, mostrando
as coertncias gerais de que as instituiges sio a resultante ¢ a ex-
pressio. Diferengas “radicais” entre os povos antigos e as sociedades
modernas, diferencas entre a antiga Franga e a Franga modema. Se
Fustel nio esti do lado do regime modemo de historicidade e de seu
futurismo, todo seu trabalho parte da constatagio de que o antigo
regime da historia magistra nao se sustenta mais: as épocas diferem.
Foi justamente para encontrar as logicas respectivas que as suben-
tendem que ele se dedicou. Ha descontinuidade na hist6ria, mas
nio sio os acidentes de superficie que constituem suas verdadeiras
mareas. Se 0 passado nao esclarece mais o futuro, Fustel resiste,
no entanto, 3 ideia de escrever uma historia da Franga na qual 0
futuro esclareceria plenamente o passado. Quanto ao presente, cle
proclama, apés 1870, que o historiador, para verdadeiramente agit
como histotiador, deve comegar por “esquecé-lo”. Quando ele
publica, em 1875, 0 primeiro volume de suas Instituigées politicas,
nio atribui mais outra finalidade explicita a seu trabalho do que a de
contribuir “ao progresso da cigncia histérica e ao conhecimento da
natureza humana”. O tinico progresso reivindicado é o dos estudos.
Também ele se encontra entre duas impossibilidades: tanto a do
passado como a do futuro
Nenhum clarim patriético soa e nenhum toque aos mortos
ressoa: trata-se apenas, em princfpio, de ciéncia e de conhecimento.
Nés estamos muito longe do que clamari, um pouco mais tarde,
Maurice Barrés. Mas hi uma distincia, mesmo em relagio a Gabriel
Monod. Em 1876, nais tarde, Monod apresenta o primeira
niimero da Revue historique: nao é evidentemente questio de histé-
ria nacional como tal, mas de uma colegao de textos que pretende
“contribuir para
progresso dos estudos histéricos”, ao adotar umi Rone oon MEDD ENE BO ao
“ponto de vista estritamente cientifico”. Trata-se de anilise e néo
de sintese. A sintese, jé lembramos, esta por vir: ela seria prematuray
Nio impede que o historiador tena claramente um papel social,
dirfamos hoje em dia, e uma responsabilidade. Cabe a ele ser 0
pontifice (aquele que propriamente faz ponte) entre o passado da
Franga e seu presente: sua tarefa € compreender e explicar a “co=
nexio légica que liga todos os periodos do desenvolvimento” do
pais: de ontem até hoje. De onde resulta que a histéria tenha uma
“importincia nacional” para devolver ao pais “a unidade e a forga
moral da qual ele precisa”*!?. Mede-se a distincia em relagio & re
tirada (proclamada) fusteliana: outro é o lugar do historiador, outro
também o que se entende por “progresso” dos estudos histdricos.
Encontra-se ainda algo do programa de Thierry (menos conquis~
tador ou ingénuo), mas sobretudo a divisa dos Monumenta alemaes,
«que liga erudigo e amor pela patria (sanctus amor patria dat animum),
no pode ser ignorada, mesmo que se busque se diferenciar dela. O
historiador de Monod é republicano: esforga-se para no abandonar
nem 0 pasado, nem o futuro, nem o presente, nem abandonar-se
a uma ow outra das trés categorias.
Quando, alguns anos mais tarde, vem Emest Lavisse, 0 face a
face escolhido por Nora, nés estamos entre duas guerras: a que foi
perdida e aquela para a qual é preciso preparar-se. Lucien Febvre
evocari com ironia sua recusa da “Historia dos vencidos de 1870”,
“suas prudéncias trémulas” e seu “gosto quase exclusivo pela histé~
tia diplomitica”*. Certamente, desde a instalagio da Repiiblica, a
histéria da Franca tomou-se a da “nagio realizada”: 1889 substituiu
1830 como ponto de vista de onde contempli-la, desenvolvé-la e
ensini-la. Retomando pela illtima vez a grande escansio do jd e do
ainda nao, 0 jé (trazido pela Revolucio) € o ainda nao (a instauragio
definitiva da Repiblica) retinem-se ¢ realizam-se em 1889. Mesmo
que reste muito a fazer, deixaram-se as inquietudes da espera. A
histéria nacional s6 pode portanto triunfar, ¢ Lavisse, que se fez seu
(com os Lavisse) seu epénimo.
arauto, torna-se
® MONOD, Gabriel. Editorial. Rowe Hig, 1, 1876
© PEBVRE. Combat pou
Menon, Ha, ese ae
Se politica c pedagogicamente a sintese lavissiana representou
um papel maior, intelectualmente ela é pobre. Esse triunfo também
tum canto do cisne. Uma vez a nagio encamada, restava “dispé-la
em fichas""*, No fundo, é preciso acabar de levantar as fronteiras
historicas que dividem 0 passado da Franga (de uma parte e de ou-
tra da Revolugio) para fazer todo seu passado servir como defesa
da fronteira geogrifica, esperando poder recusi-la (além da linha
azul do Vosges). Fis © programa, quase jé em forma de ordem de
mobilizacao. Quando a guerra irrompeu, os mais jovens dos histo-
Hiadores foram efetivamente mobilizados e a maior parte dos outros
se consideraram como “mobilizados nos servigos de retaguarda”,
conforme a expresso de Charles Petit-Dutaillis.
Em seguida, pés 1914, produziu-se uma fenda na ordem do
tempo: uma brecha. Apés os abusos sangrentos das nagdes em guerra,
05 anos 1920 traduziram-se, do ponto de vista da historia, ou por
tum recuo do nacional em direcio ao social, ou por seu superin=
vestimento, que sio duas estratégias profundamente diferentes para
reunir 0 passado ¢ o futuro. “Ao perder a esperanga na historia”,
que no soube nada prever, Paul Valéry, nossa testemunha jé citada,
denuncia entio este produto perigoso que toma “as nagdes amargas,
soberbas, insuportiveis e vis", Como se justamente nio existisse
outra historia seno a hist6ria nacional e a historia historicizante,
logo ridicularizada por Lucien Febvre
‘Mas quando Febvre assume a cétedra na Universidade de
Strasbourg, em 1919, ele comega sua aula inaugural afirmando que
“‘a hist6ria que serve” é “uma historia serva. Professores da Univer-
sidade de Strasbourg, nés nfo somos os missionarios descalcos de
um evangelho nacional”, £ mesmo essa recusa que Ihe permite
nder enfim afirmativamente & sua interrogucio inicial e cen-
‘Tenho direito”, quer dizer, ainda tenho o direito de fazer
historia no “mundo em ruinas”? E essa recusa que toma legitimo
"NORA (Org), Lows de mdi, I La Nain 1p. 327
monde te In: Cus, Pans Gallimard, 1960, Bibliotheque de
" FEBVRE, Lucien, Uhnoire dans le monde ea anes. Reve de Sythe Hine, 2. 1920,
pav8 es WECCADE: REESHO FEEREVOS CO TAO
retomar 0 oficio e “restabelecer os lagos rompidos” e, sobretudo, &
cla que vai abrir um espaco de trabalho e de interrogagao para uma
histéria-ciéncia, em busca de outros ritinos, outras dimensdes, outros
objetos: outras temporalidades. Nisso se abrigar4, alguns anos mai
tarde (apés 1929), o programa dos Annales d'histoire économique et
sociale, Esse reco do nacional, ou ainda seu eclipse, no significava
seu esquecimento ou um abandono definitivo e sabe-se que, mais
tarde, os préprios Bloch e Febvre conceberam projetos de histéria
da Franga, que finalmente nfo vingaram‘’.
Do lado oposto, Jacques Bainville, também marcado pela guerra
de 1914 e preocupado com suas consequéncias, recolhe-se no na-
cional. Diferentemente da hist6ria produzida no meio universitirio,
sua Histoire de France, langada em. 1924, foi um grande sucesso de
ico. Fundada na ideia simples, expressa no preficio, de que
“os homens de antigamente pareciam com os de hoje em dia e que
suas ages tinham motivagdes iguais is nossas”, ela é, de inicio, uma
tentativa de reativar o modelo da historia magistra, constituido, como
deve ser, pelo motor explicativo da repeticio © da analogia. “Nés
morremos”, constata em 1916 em seu Joumal, “de ignorancia e de
ininteligéncia de nosso passado, do estpido preconceito democriti-
co de que o tempo anda.” Hé, portanto, boas ligSes da hist6ria, que
deve ser além disso “a meméria do homem de Estado”. Trata-se,
em suma, de conjurar o futuro que se teme, conduzindo 0 tempo
para fora da historia. Contra o esttipido preconceito democritico, a
Histoire de Bainville deve demonstrara falsidade do regime moderno
de historicidade: nao, o tempo nao “anda”.
Grande leitor e admirador de Bainville na juventude, Philippe
Arias, cujo trabalho sobre a morte j4 nos serviu de indicador, no
se voltou, apés a “brecha” da Segunda Guerra Mundial, que cle
chamava de “rupturas de 1940", para a hist6ria nacional. Ao con~
trério, manteve-se cuidadosamente a distincia. Comega por uma
Moe, wa, msc a
Histoire des populations frangaises et de leurs attitudes devant la vie depuis
(1977) ¢ conclui, dirigindo com Duby, com uma grande Histiria
da vida privada (1985). Em 1958 ainda, George Duby ¢ Robert
Mandrou publicam, nfo uma histéria da Franga, mas uma Histoire
de la civilisation frangaise, cujo preficio termina com esta frase:
breve livro teri cumprido seu papel [..] se ele permitir aos leitores
compreenderem melhor, estabelecidos por dez séculos de historia,
605 tragos originais da Franga de hoje em dia, essa ‘pessoa'**”. Ou
seja, uma dupla lembranga em forma de alusio, mas tio discreta
ue parece quase um happy few: a Michelet (pela “pessoa”), a Marc
Bloch (pelos Caraceres originaux de Uhistoire rural francaise)
Durante mais de meio século, 0 nacional, dessa maneira, nio foi
mais o motor da pesquisa: nem a escala adequada, nem a perspectiva
adequada. Tampouco a escala cronolégica certa. Desgastara-se de-
mais e suas capacidades cognitivas pareciam exauridas. No entanto,
surgiram formas renovadas de histéria-ciéncia, que tiveram como
horizonte o materialismo histérico, © quantitativo, o serial e, como
instramentos, as fichas mecanizadas € depois 0 computador. Ora,
tomou-se claro, em tomo de 1980, que esses modelos cientificos,
frequentemente grandes consumidores de futuro ¢ solidamente
ligados a0 conceito de progresso (tanto da sociedade como da
ciéncia), atingiam resultados decrescentes, € mesmo sem efeito.
Abriu-se entio um tempo de estase, momento de pausa, no qual
© olhar retrospectivo tornou-se legitimo: para abarcar o caminho
percorrido, para tentar compreender onde tinhamos chegado e por
«qué? Era uma mancira de tomar distincia, passando do prospectivo ao
retrospectivo: os individuos punham-se a preocupar-se com genea~
logias, ¢ as empresas, com seus arquivos (com seu chamariz, a cultura
cempresarial), © regime modemo de historicidade perdia sua evidéncia
‘Como as outras disciplinas, a histéria no escapou desse movi-
mento, que nada mais é do que um elemento da conjuntura geral
“© DUBY, Georges MANDROU. Rober: Hise de lesan fate Paris Amand Colin, 1958,
‘Mas, em 1987, Duby prtips obra Hire de Fane, publica por Hachere, cena
poltica ma gual asinaoprmet volume, L Major Aged Hague: Cap Jemed A,180 acne ARCADE MEN FORBES POTD
esbogada em nossas primeiras péginas, da qual nio foi de modo
algum a origem. A reintrodugio do historiador na hist6ria, pra~
ticada e proclamada por Febyre, preconizada por Marrou ¢ Aron
contra a historia positivista, preparara, no entanto, o terreno:
historiador parecia disposto, segundo a formula de Péguy, a entrar
“na fileira histérica
faca a historia dos historiadores. Querem esgotar a imprecisio do
detalhe histérico, mas no querem entrar na linha de calculo dessa
indefinigio do detalhe histérico. Nao querem estar na fileira his-
térica, Posicionam-se como se fossem médicos que no quisessem
ficar doentes morrer‘”. Acabou a imunidade ou a superioridade,
Foram condigSes que favoreceram a abertura de um espago para
uma histéria da histdria, da qual Nora soube fazer, como vimos, um,
dos pontos de partida da reflexio que levou aos Lieux de mémoire.
Essa postura reflexiva, historiogrifica, nio foi reivindicada nem por
tum s6 tipo de historia, nem, evidentemente, s6 pela histéria™. Ao
que cla procura responder senio, em parte, a essa conjuntura nova,
marcada por um questionamento da temporalidade, até aquele mo-
mento paradigmitica, do regime modemo de historicidade? A luz
projetada a partir do futuro diminui, a imprevisibilidade do porvir
aumenta, o presente torna-se a categoria preponderante, enquanto
© passado recente ~ aquele que surpreende por “nao passar” ou
‘que inquieta por “passar” ~ exige ser incessante € compulsivamente
visitado e revisitado. Com a consequéncia de que a histéria nio
pode mais ser escrita a partir do ponto de vista do futuro (ou de
suas diversas hipéstases) ou em seu nome: inicialmente a histéria
contemporinea, mas, 0s poucos, nio somente ela
Ora, foi necessirio esperar justamente esses mesmos anos 1980
para assistir a uma retomada do nacional (nio apenas na Franga) €
a su reinvestimento (intelectual, politico) com, em particular, a
publicagio de toda uma gama de historias nacionais. Nao haveria
nessa coincidéncia um paradoxo entre um momento presentista ¢
© PEGUY, Chases Lage
Inénée De lalopigue de
1.54, 1989, p, 248-272
1 DOSSE, Fangs L'Enpie dsr: amanaton een ein Paris La Dover, 1995,
lo: Gare yl, Ul, 883; MARROU, Here
one higue delhizonen Rene de Mbuphysiqu et de Morale,
Eles [os historiadores} no querem que se
Mercer, soe, Nee ser
a produgio de histérias nacionais? Enquanto 0 século XIX uniu
to fortemente Nagio ¢ Progresso, como pode ser que se retome
a Nagio quando Progresso se encontra em dificuldade? O que
resta da Nacio? Uma Nagio, ndo mais prospectiva, e sim retros-
pectiva ¢ nostélgica, em suma, um refiigio, mas também uma for-
ma de historia que gostaria de poder olhar de novo para a historia
magistra? Seguramente, 3s vezes. Ou ainda, seria uma maneira de
considerar a escalada memorial, propondo uma resposta, mais ou
menos explicita ou voluntarista, para a interrogacio identitiria? Os
historiadores poderiam tomnar-se de novo os preceptores da Nagio
(@ Lavisse) ou de uma nova Repiblica (i Claude Nicolet), mesmo
pela mediagio da televisio? Ou s6 deveriam ser seus memorialistas,
‘mais bem informados do que outros, mas dentre outros?
Fernand Braudel, em seus iiltimos anos, quando acabava de
publicar, para divina surpresa, a primeira parte de sua Identidade da
Franga, foi solicitado a encarregar-se deste magistério entre historia
meméria. Mesmo que sua Franga evidentemente nao seja mais
considerada como uma pessoa, pois é construida como um ob-
Jeto histérico. Ele no esté em busca de nenhuma esséncia, a ser
‘encontrada no passado ou realizada no futuro, j& que a idensidade
esta, justamente, na longa duragio: s6 esti aliis nisso ou é isso.
“Sio as marés, esses fluxos profundos do passado da Franga, que
cu tento detectar, seguir para examinar a maneira como elas se
langam no tempo presente, assim como os rios no mar”. Assim,
no final do percurso de Braudel historiador, © que parecia mais
rebelde as andlises que ele propusera com brilho e sucesso desde
1949, essa historia de fOlego curto, superficial, a histéria nacio-
nal, em suma, se justificava também na longa duragio, a ponto
de dar-the, afinal, sua face mais expressiva e mais verdadeira, Se
6 livro s6 é langado em 1986, a primeira intuigo remonta a ex-
periéncia do prisionciro de guerra de 1940: “Nés, os vencidos,
no caminho injusto de um cativeito aberto de uma s6 vez, nds
éramos a Franga perdida, como a poeira que © vento faz subir
em um monte de areia, A verdadeira Franga, a Franca em reserva,
1 BRAUDEL, Laem dela Fone Ip. 16182 Feces nstoNcHee: RISEN + ortoNONs DO TARO
a Franca profianda ficava atris de nés, sobrevivia, sobreviveu.
Desde essa época distante, no parei de pensar em uma Franga em
profundidade, como soterrada em si mesma, que escorre de acordo
coma inclinagio propria de sua histéria, condenada a continuar seja
como for. Dessa fascinagao nasceu 0 titulo ambiguo ao qual, pouco
4 pouco, habituei-me ®”, Histéria de um vencido, em suma, a0
gual foi preciso perto de quarenta anos para poder reinvestir no
nacional de maneira diferente
Quanto a L’Histoire de la France, organizada por André Bur-
guidre e Jacques Revel, ela deliberadamente substituiu “a clissica
narrativa da nacio, das origens aos nossos dias”, por “um método
temitico ¢ légico”. Nao se tratava absolutamente de “contar”,
tals uma vez, a hist6ria da Franga, mas de romper com a narrativa
convencional, interrogando-se sobre ela, sempre, a partir do pre~
jara tentar encontrar em suas géneses ¢ em suas mutagdes,
as caracteristicas originais do conjunto nacional", Longe de ser
tcleol6gico, retroativamente teleol6gico, seu método é regressivo.
Aqui também, o presente fornece © ponto de partida, 0 ponto de
vista € 0 ponto de chegada para questionar o nacional.
De uma maneira mais geral, a abordagem historiogrifica, por
seu marcado interesse em delimitar os pressupostos, de se interrogar
sobre as ferramentas e as categorias mobilizadas, traz uma contri~
buigio a esse novo tratamento do nacional. Les Liewx de mémoire
exploraram 20 maximo essa perspectiva até incluir, j4 insistimos sobre
A medida de sua publicagiio, a historiografia de sua propria tra~
jetéria, o que conduziu a uma ampliagio da nogio de lugar. A partir
esses modos de apreensio do nacional como problema rompe-se,
em todo caso, com todas as histérias-memérias nacionais, escritas
do ponto de vista do futuro. No oposto da historia metdica (que
jamais falava disso, embora sempre pensasse), 0 presente tomou-se
de fato — explicitamente ~ a categoria dominante (e suficiente?).
© BRAUDEL, L'ldewi dle Fam. 18
1 exemple, BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique, Pats msmpou champ chan de
histor, Pans: Aswement, 1995,
Manca, sen, eset
‘Comemorar
Respondendo 4 onda da meméria, pressentindo sua amplitude
© sua forga, como Tucidides que reconhecera desde o primeiro
dia a importincia da guerra que comecava na Grécia, Les Lieu de
mémoire converteram as interrogacdes que cla continha questionan-
do inicialmente a maneira como haviam sido escritas as principais
histérias da Franca. Como, em certos momentos-chave, o passado
(qual passado e 0 que do passado?) fora retomado no presente, para
fazer dele um passado significante. Sem jamais perder de vista que,
apés ter seguido esses deslocamentos ¢ essas retomadas sucessivas do
passado no presente, que toda uma ret6rica organizou, © objetivo
de Nora, claramente estabelecido desde 0 comego, era voltar para
© hoje, para tentar, instruido por esse longo desvio, compreender
melhor e fazer melhor compreender. Vai-se exatamente do presente
ao presente, para interrogar o momento presente.
Partindo do espanto diante do sucesso contemporineo do fend-
meno comemorativo, Nora podia atualizar, ao fim de seu percurso,
© que ele chamou de “inversio da dindmica da comemoragio”
Embora nfo se pare de comemorar em nome da trilogia Meméria,
Identidade, Patriménio, o sentido da palavra modificou-se. Assim
como a meméria e semelhante ao patrimdnio, cujo percurso va-
mos acompanhar no préximo capitulo. E a comemoragio? Ela é
inicialmente religiosa. “Faga isso em minha meméria”: justamente
no momento em que acontece, a Ceia, imediatamente faz-se co-
memoragio dando-se em primeira instincia como a comemorar,
incluindo a auséncia, quer dizer, também a presenga invisivel daquele
gue nio se deveri nunca parar de lembrar ¢ de imitar. Jé 0s rituais
monarquicos apelam para uma outra logica, que deseja insistir sobre
a continuidade: “O rei esté morto, viva o rei”. A Revolugio ¢ a
Repiblica trazem a comemoragio de volta, que, por transferéncia
de sacralidade, tomna-se nacional, republicana e Iaica
Tem-se, entio, “o 14 de julho”, no qual 1880, 1789 e 1790
correspondem-se e complementam-se mutuamente. Péguy soubera,
© AMALVI, Chan Le 14Jult x NORA (Org), Leer demain, Le Ribu, p 423434