N
o ano 70 da era cristã, novecentos
judeus resistiram durante meses às
f orças romanas em Massada, uma
montanha no deserto da Judeia. De
a cordo com o antigo historiador
Flávio Josefo, duas mulheres e cinco
c rianças sobreviveram. Baseado
nesse acontecimento trágico e
icônico,
o romance de Hoffman é uma
história encantadora de quatro
mulheres
e xtraordinariamente corajosas,
engenhosas e sensuais, cada uma
delas
t endo chegado a Massada por um
caminho diferente. A mãe de Yael
orre no parto e seu pai, um assassino
experiente, nunca a perdoa por
e ssa morte. Revka, a esposa do
padeiro de uma aldeia, assiste ao
assacre brutal de sua filha pelos
soldados romanos; leva então para
assada os netos pequenos, que
perderam a fala depois de
resenciarem a morte da mãe. Aziza é
a filha de um guerreiro, criada
c omo um menino, uma cavaleira
destemida e hábil atiradora que
escobre a paixão nos braços de um
soldado que era seu companheiro.
S hirah, nascida em Alexandria, é
instruída nos segredos ancestrais da
agia e da medicina, uma mulher
perspicaz e detentora de poderes
isteriosos. As vidas dessas quatro
mulheres complexas e
i mpetuosamente independentes
cruzam-se nos dias de desespero do
c erco. Elas são encarregadas da
guarda dos pombos e também
guardam
s eus segredos umas das outras ?
sobre quem são, de onde vieram,
quem
as criou e a quem amam.
Deixe que o meu fardo seja o seu
fardo, e que o seu seja o meu.
PRIMEIRA PARTE
Verão, 70 d.C.
A Filha do Assassino
Viemos como pombos através do
deserto. Em um
tempo em que não existia nada
além da morte,
éramos gratos por qualquer coisa,
e muito gratos
por tudo quando acordávamos para
mais um dia.
CAMINHAMOS POR TANTO
TEMPO QUE me esqueci do que era
viver entre quatro paredes ou dormir
por toda uma noite. Nessa época,
perdi tudo o que
poderia ter possuído caso Jerusalém
não tivesse caído: um marido, uma
família, um futuro para chamar de
meu. A minha infância desapareceu
no
deserto. A pessoa que fora um dia
deixou de existir quando me vesti de
branco e a poeira subiu em nuvens.
Éramos nômades, deixando para trás
camas e pertences, tapetes e vasos
de bronze. O nosso lar então era a
casa
do deserto, preta à noite,
brutalmente branca ao meio-dia.
Dizem que a beleza mais verdadeira
encontra-se na terra mais árida e
que Deus pode ser encontrado lá por
quem tem os olhos abertos. Mas os
meus olhos estavam fechados contra
os ventos da mudança, que podem
cegar uma pessoa em um instante. A
própria respiração era um milagre
quando as tempestades vinham
rodopiando por toda a terra. A voz
que
surge do silêncio é algo que ninguém
é capaz de imaginar até que seja
ouvida. Ela ruge quando fala, mente
para convencê-lo, rouba-lhe o pouco
que tenha e o deixa sem uma única
palavra de conforto. O conforto não
pode existir em tal lugar. Só o que é
brutal sobrevive. O que é astúcia
subsiste até de manhã.
A minha pele estava queimada, as
minhas mãos, esfoladas. Entreguei-
me
ao deserto, curvando-me à sua voz
poderosa. Por onde quer que
andasse, o
meu destino andava comigo,
costurado aos meus pés com linha
vermelha.
Tudo o que nunca será já foi escrito
muito antes que aconteça. Não há
nada
que possamos fazer para impedi-lo.
Não poderia seguir em outra
direção.
As estradas de Jerusalém levavam
apenas a três lugares: a Roma, ao
mar ou
ao deserto. Meu povo tornara-se
errante, como fora no início dos
tempos,
novamente expulso.
Segui meu pai para fora da cidade
porque não tinha escolha.
Nenhum de nós tinha, verdade seja
dita.
NÃO SEI COMO tudo começou, mas
sei como terminou. Ocorreu no mês
de Av1,
cujo signo é Arieh, o leão. É um mês
que para o nosso povo significa a
destruição, um período em que as
pedras do deserto tornam-se tão
quentes
que não se pode tocá-las sem
queimar os dedos, em que a fruta
murcha nas
árvores antes de amadurecer e as
sementes chacoalham em seu
interior,
em que o céu torna-se branco e a
chuva não cai. O primeiro Templo
foi destruído nesse mês. As
ferramentas significavam armas e
não puderam
ser usadas na construção do mais
sagrado dos lugares santos; por isso,
o grande guerreiro, o rei Davi, foi
proibido de construir o Templo,
porque conhecera os males da
guerra. Em vez disso, a honra recaiu
sobre seu filho,
o rei Salomão, que invocou o
shamir, um verme capaz de
atravessar a pedra, e assim criou
glória a Deus sem o uso de
ferramentas de metal.
O Templo foi construído como Deus
decretara que deveria ser, livre de
derramamento de sangue e da guerra.
Seus nove portões foram recobertos
com ouro e prata. Lá, no mais
sagrado dos lugares, ficou a Arca
que guardava a aliança do nosso
povo com Deus, um baú feito com a
melhor madeira de acácia, decorado
com dois querubins dourados. Mas,
apesar da
grandiosidade, o primeiro Templo
foi destruído, o nosso povo, exilado
para
a Babilônia. Entretanto, retornaria
após setenta anos para reconstruí-lo
no
mesmo local em que Abraão se
dispusera a oferecer o filho Isaac em
sacrifício ao Todo-Poderoso, em
que o mundo fora originalmente
criado.
O segundo Templo resistiu por
centenas de anos como a morada da
palavra de Deus, o centro da criação
no centro de Jerusalém, embora a
Arca
em si tivesse desaparecido, talvez
na Babilônia. Mas então o tempo de
derramamento de sangue impôs-se a
nós uma vez mais. Os romanos
quiseram tudo o que tínhamos.
Chegaram até nós depois de
invadirem
inúmeras terras com suas legiões
imensas, pretendendo não apenas
conquistar, mas humilhar,
reivindicar não só a nossa terra e o
nosso ouro,
mas a nossa humanidade.
Quanto a mim, não esperava nada
além de desastre. Conhecera o seu
abraço antes mesmo de respirar ou
enxergar. Era a segunda criança na
família, um ano mais nova que o meu
irmão Amram, mas radicalmente o
oposto dele, amaldiçoada pelo fardo
do meu primeiro alento. Minha mãe
morreu pouco antes de eu nascer.
Naquele momento, o mapa da minha
vida
manifestou-se sobre a minha pele
como uma explosão de marcas
vermelhas, pintas que, quando
seguidas de uma para outra, me
conduziram
ao meu destino.
Lembro-me do instante em que entrei
no mundo, a grande calma que foi
subitamente interrompida, o calor da
minha pulsação sob a pele. O ventre
da minha mãe foi aberto com uma
faca afiada e fui tirada de lá. Estou
convencida de que ouvi o rugido de
dor do meu pai enlutado, o único
som a
romper o silêncio terrível de alguém
que nasce da morte. Eu mesma não
chorei, nem me lamuriei. As pessoas
notaram isso. As parteiras
sussurraram entre si, convencidas de
que eu era ou abençoada ou
amaldiçoada. Meu silêncio não foi o
único aspecto incomum em mim,
nem
as sardas avermelhadas que
surgiram sobre a minha pele uma
hora depois
do meu nascimento. Foi o meu
cabelo, com a sua cor vermelho-
escura de sangue, uma cobertura
espessa crescente, como se eu já
conhecesse este mundo e aqui já
tivesse estado antes.
Disseram que trazia os olhos
abertos, a marca de um rebanho à
parte. O
que era de esperar de uma criança
nascida de uma mulher morta, pois
fui
tocada por Mal’ach ha-Mavet, o
Anjo da Morte, antes de nascer no
mês de
Av, no Tisha B’Av, o nono dia, sob o
signo do leão. Sempre soube que
haveria um leão à minha espera.
Sonho com tais criaturas desde que
consigo me lembrar. Nos meus
sonhos, alimentava um leão com a
minha
mão. Em troca, ele tomava a minha
mão inteira em sua boca e me comia
viva.
Ao deixar a infância, decidi cobrir a
cabeça; mesmo quando estivesse no
pátio do meu pai, guardava-me para
mim. Nas raras ocasiões em que
acompanhei a nossa cozinheira ao
mercado, via outras jovens se
divertindo
e enciumava-me até mesmo da mais
comum dentre elas. Elas viviam uma
vida plena, ao passo que eu só
conseguia pensar em tudo o que não
tinha.
Elas falavam alegremente de seu
futuro como noivas enquanto se
encontravam junto ao poço ou se
reuniam na rua dos Padeiros,
acompanhadas das mães e tias.
Sentia vontade de gritar com elas,
mas não
dizia nada. Como poderia falar da
minha inveja quando havia coisas
que queria ainda mais do que um
marido, um filho ou uma casa
própria?
Ansiava por uma noite sem sonhos,
um mundo sem leões, um ano sem
Av, aquele amargo mês vermelho.
DEIXAMOS A CIDADE quando o
segundo Templo foi posto em ruínas,
aventurando-nos pelo Vale dos
Espinhos. Durante meses os romanos
haviam profanado o Templo,
crucificando o nosso povo dentro
dos seus
muros sagrados, arrancando o ouro
dos umbrais de entrada e dos
pórticos.
Era para lá que os judeus de toda a
criação viajavam a fim de oferecer
sacrifícios perante o local mais
sagrado, com milhares chegando à
época da
Festa dos Pães Ázimos, ansiosos por
vislumbrar as paredes de ouro do
lugar de morada da palavra de Deus.
Quando os romanos atacaram o
terceiro muro, o nosso povo foi
forçado
a fugir daquela parte do Templo. Em
seguida, a legião derrubou o
segundo
muro. Ainda não foi o bastante. O
grande Tito, líder militar de toda a
Judeia,
passou a construir quatro rampas de
cerco. Nosso povo as destruiu com
fogo e pedras, mas o ataque dos
romanos aos muros do Templo havia
enfraquecido as nossas defesas. Não
muito tempo depois conseguiram
abrir uma brecha. Os soldados
entraram no labirinto de muros que
cercavam o nosso local mais
sagrado, correndo como ratos, os
escudos
erguidos para o alto, as túnicas
brancas abrasando-se com o sangue.
O
Templo sagrado estava sendo
destruído por suas mãos. Depois que
isso
acontecesse, a cidade também,
obrigada a acompanhá-lo, tombaria
de
joelhos como um prisioneiro
comum, pois sem o Templo não
haveria lev ha-olam, o mundo
perderia o centro, não restando nada
por que lutar.
O anseio por Jerusalém era um fogo
que não se extinguia. Existia uma
faísca dentro do mais sagrado dos
lugares santos que fazia as pessoas
quererem possuí-lo, e o que mais
desejam muitas vezes os próprios
homens destroem. À noite, os muros
que tinham sido feitos para durar
uma
eternidade gemeram e oscilaram.
Quanto mais os romanos nos
prendiam
por crimes contra a sua lei, mais
lutávamos entre nós mesmos,
incapazes de nos decidir sobre uma
única linha de ação. Talvez por
saber que não conseguiríamos
triunfar sobre o seu poderio,
voltávamo-nos uns contra os
outros, divididos por ciúme,
desunidos pela traição, a nossa vida
tornou-se
um emaranhado sombrio de medo.
As vítimas muitas vezes atacam
umas às outras, como galinhas em
um
cercado, trocando bicadas
frenéticas. Nós fizemos o mesmo
que elas. Não só o nosso povo foi
sitiado pelos romanos, mas as
pessoas entraram em guerra umas
contra as outras. Os sacerdotes
foram condescendentes,
pendendo para o lado de Roma, e os
que lhes faziam oposição eram
declarados ladrões e bandidos, meu
pai e seus amigos entre os
opositores.
Os impostos eram tão altos que os
pobres não podiam mais alimentar
os filhos, enquanto os que se aliaram
a Roma prosperavam e enriqueciam.
As
pessoas testemunhavam contra os
próprios vizinhos, roubavam umas
das
outras e fechavam a porta aos
necessitados. Quanto mais
desconfiávamos
uns dos outros, mais éramos
derrotados, divididos em grupos
hostis,
quando na verdade éramos um corpo
só na crença em Adonai, éramos os
filhos e as filhas do reino de Israel .
DURANTE OS MESES que
antecederam a destruição do
Templo, instalou-se o caos enquanto
enfrentávamos os nossos inimigos.
Fizemos todo o esforço
para vencer aquela guerra, mas,
assim como Deus criou a vida,
também
gerou a destruição. Durante o
furioso mês vermelho de Av, corpos
inchados lotavam o kidron, a ravina
profunda que separava a cidade do
cintilante Monte das Oliveiras. O
sangue de homens e animais formava
lagos escuros
nos nossos lugares mais sagrados. O
calor era estranho e implacável,
como
se a maldade da terra se refletisse
contra nós, um espelho dos nossos
pecados. Dentro dos salões mais
secretos do Templo, o ouro era
fundido e
partilhado; desaparecia, roubado do
mais santo dos lugares, para nunca
mais ser visto.
Nem uma única brisa soprava. A
temperatura subira com a desordem,
do chão para cima, e os tijolos que
pavimentavam as estradas romanas
eram tão quentes que queimavam os
pés das pessoas, enquanto os
desesperados buscavam um paraíso
seguro – um estábulo, uma câmara
abandonada, até mesmo um espaço
de pedra fria no interior do forno de
um padeiro. Os soldados da décima
legião, que seguiam a insígnia do
javali,
plantaram as suas bandeiras sobre as
ruínas do Templo, com pleno
conhecimento de que isso era uma
afronta para nós, pois atiravam em
nossa cara um animal que
considerávamos impuro. Os
soldados eram como
os próprios javalis, irresponsáveis,
cruéis. Corriam por todo lado,
matando
galos brancos do lado de fora das
sinagogas, tratando lugares que
serviam
como bet kenesset e bet tefilliah,
casas tanto de reunião como de
oração, como um insulto e uma
maldição. O sangue de um galo
tornava as nossas
casas de adoração impuras. As
mulheres esfregavam os degraus
com soda
cáustica, lamuriando-se enquanto o
faziam. Estávamos contaminados,
não
importava o quanto esfregassem ou
quanta água fossem capazes de
derramar sobre as pedras.
A cada violação entendíamos o
aviso da legião: O que fazemos com
o galo, podemos fazer com vocês.
*
UMA NOITE, uma estrela
semelhante a uma espada despontou
sobre a cidade.
Podia ser vista noite após noite,
brilhando continuamente no leste. As
pessoas tremeram, certas de que era
um presságio, esperando pelo que
estava por vir. Pouco depois o
portão oriental do Templo abriu-se
por conta própria. Multidões se
reuniram, apavoradas, convencidas
de que essa
ocorrência permitiria a chegada do
desastre. Os portões não se abrem se
não há uma razão. As espadas não
surgem no céu se a paz está para vir.
Os
nossos vizinhos começaram a
negociar os pequenos tesouros que
possuíam, acotovelando-se pelas
ruas, determinados a escapar com o
pouco que tinham. Reuniram os
filhos e começaram a fugir de
Jerusalém, esperando chegar à
Babilônia ou a Alexandria, saudosos
do Sião desde o instante em que
partiam.
Nas valas que se enchiam de água da
chuva durante os períodos de
enchentes repentinas, logo se formou
um rio de sangue escorrendo do
Templo. O sangue chorava,
lamentava-se e amaldiçoava, pois as
suas
vítimas não abriam mão da vida
facilmente. Os soldados mataram os
rebeldes primeiro, depois
chacinaram a esmo. Quem fosse
infeliz o bastante
para passar por perto deles era pego
em sua rede. As pessoas eram
arrancadas da família, arrebanhadas
nas ruas. Veio a noite conhecida
como
Flagelo dos Inocentes. A última
ilusão de que as nossas orações
seriam atendidas desapareceu.
Quantos de nós perderam a fé
naquela noite?
Quantos se afastaram do que o nosso
povo sempre acreditou? Um menino
de dez anos foi levado a ferros e
depois crucificado porque se
recusou a se
curvar aos soldados. Esse menino
padecia de surdez e nem sequer
ouvira a
ordem, mas ninguém se importava
mais com essas coisas. Um mundo
de
ódio se abatera sobre nós.
O pecado da morte do menino
elevou-se como uma nuvem,
evidente
para todos. Depois disso, vinte mil
pessoas entraram em pânico nas
ruas, atropelando-se umas às outras
em frenesi, abandonando a
dignidade
enquanto afluíam para as estradas.
No momento em que a manhã surgiu,
quase todos haviam abandonado
Jerusalém.
QUANTO A MIM, o meu mundo se
acabara antes que o Templo
começasse a queimar, antes que o pó
de pedra cobrisse as vielas. Muito
antes de o Templo cair, eu perdera a
minha fé. Não significava nada para
o meu pai, abandonada por ele
desde o momento em que nasci.
Teria sido
completamente negligenciada não
fosse a família da minha mãe insistir
em
que se contratasse uma babá. Uma
jovem serva de Alexandria foi
trazida para cuidar de mim, mas
quando ela cantava canções de
ninar, meu pai, o
temível Yosef bar Elhanan, mandava
que se calasse. Quando me
alimentava,
ele insistia em que eu já comera o
bastante.
Eu mal deixara de engatinhar quando
o meu pai me chamou para
contar-me a verdade do meu
nascimento. Chorei ao descobrir a
realidade e
assumi o peso da minha entrada
nesta vida. Meu nome era Yael e foi
a primeira coisa sobre mim que
aprendi a desprezar. Esse fora o
nome da minha mãe também. Toda
vez que era pronunciado, servia
somente para
lembrar ao meu pai que a ocasião da
minha chegada a este mundo roubara
a sua esposa.
– O que isso faz de você? – ele
perguntou amargamente.
Eu não tinha uma resposta, mas me
vi refletida em seus olhos. Era uma
assassina, digna de sua indignação e
de sua ira.
A garota contratada para cuidar de
mim foi logo despedida, levando
consigo toda a consolação e o
conforto. Eu sabia o que me
esperava depois
de sua partida, a vida atrofiada de
uma criança órfã de mãe. No dia em
que
ela nos deixou, eu solucei
segurando-me em suas saias,
desesperada pelo seu abraço terno.
Meu irmão, Amram, disse-me para
não chorar; tínhamos
um ao outro. A serva ofertou-me
uma romã para dar sorte, antes de
gentilmente desvencilhar as saias do
meu enlace. Ela era jovem o
bastante
para ser minha irmã, mas fora como
uma mãe para mim e me dera a única
ternura que eu conhecera.
Dei a minha romã de presente ao
meu irmão, tendo já decidido deixá-
lo
sempre em primeiro lugar. Mas essa
não foi a única razão. Já tivera o
bastante do meu quinhão de tristeza.
QUANDO CRESCI, tornei-me calma
e bem-comportada. Não pedia nada,
e isso era exatamente o que recebia.
Se fosse inteligente, tentava não
demonstrá-
lo. Se me ferisse, guardava as
feridas para mim mesma. Virava-me
para o lado sempre que via as outras
meninas com o pai, pois o meu não
queria ser visto comigo. Ele não
falava comigo nem me tomava no
colo.
Preocupava-se apenas com o meu
irmão, seu amor por Amram era
evidente
a cada instante. No jantar eles se
sentavam juntos, enquanto eu era
deixada
no corredor, onde dormia. Havia
escorpiões escondidos pelos cantos
e eles
logo se acostumaram comigo.
Observava-os temerosa, mas
também
admirando como ficavam à espreita
de suas presas nas pedras frias sem
nunca se revelar. Guardei o meu
sentimento de profunda vergonha
dentro
de mim, de maneira muito
semelhante a como um escorpião
esconde o seu
desejo insaciável. Nisso éramos
iguais.
Ao mesmo tempo, eu era humana.
Ansiava por uma mecha de cabelo
da
minha mãe, para que pudesse
conhecer a sua cor. Naquele
corredor muitas
vezes chorei pelo conforto dos seus
braços.
– Acaso acha que sinto pena de
você? – perguntou o meu pai um dia
em
que se fartara do meu pranto. – Vai
ver que foi esse seu choro que a
matou.
Causando tal inundação que a afogou
por dentro.
Eu nunca retrucara antes, mas saltei
à frente dele. O pensamento de que
poderia ter afogado a minha mãe
com as minhas lágrimas era demais
para
suportar. Meu peito e a garganta
ardiam. Nesse instante, não me
importava
que o homem à minha frente fosse
Yosef bar Elhanan e eu não fosse
nada.
– Não foi culpa minha – declarei.
Vi uma expressão estranha
atravessar o rosto do meu pai. Ele
deu um
passo para trás.
– Está dizendo que a causa fui eu? –
advertiu ele, erguendo as mãos como
que para se proteger de uma
maldição.
Não respondi, mas depois que ele
saiu percebi que na realidade
tínhamos algo em comum, mais do
que com os escorpiões, mesmo que
meu
pai nunca falasse comigo ou me
chamasse pelo nome. Tínhamos
matado a
minha mãe juntos. E, no entanto, ele
queria que eu carregasse a culpa
sozinha. Se era isso o que ele
queria, então assumiria o manto da
culpa, porque eu era uma filha
obediente. Não choraria nunca mais.
Nada me faria
quebrar essa promessa. Quando uma
vespa me picou, e formou-se um
vergão vermelho no meu braço,
forcei-me a ficar quieta e não sentir
a sua
dor. Meu irmão correu até mim para
certificar-se de que eu não me ferira.
Chamou-me pelo nome secreto que
me dera quando éramos pouco mais
que dois bebês, Yaya. Eu adorava
ouvi-lo chamar-me assim, pois o
apelido
carinhoso fazia-me lembrar das
canções de ninar da minha babá e de
uma
época anterior à consciência de que
trouxera a ruína para a minha
família.
Eu ardia de dor com a picada da
vespa, mas insisti que estava bem.
Quando ergui os olhos, vi o brilho
de lágrimas nos olhos de Amram.
Qualquer um teria pensado que fora
ele quem tinha se ferido. Ele sentia a
dor mais facilmente que eu e era
muito mais sensível. Às vezes, eu
cantava
para ele quando não conseguia
dormir, entoando as canções de
ninar de Alexandria de cujas
palavras me recordava, como se
tivesse vivido antes outra vida.
DURANTE TODO o tempo em que
crescia, eu me perguntava como
seria ter um
pai que não olhasse para o lado ao
me ver, que me dissesse como
estava bonita, muito embora o meu
cabelo flamejasse com uma estranha
tonalidade avermelhada e a minha
pele fosse salpicada de manchas cor
de
terra como se eu tivesse sido
aspergida com lama. Ouvi meu pai
dizer a outro homem que aquelas
marcas eram manchas do sangue da
minha mãe.
Depois disso, tentei arrancá-las com
as unhas, até tirar sangue da carne,
mas meu irmão me impediu quando
descobriu as depressões
avermelhadas
em meus braços e pernas. Ele me
garantiu que as sardas eram salpicos
de
cinzas caídos das estrelas do céu.
Por causa disso, eu sempre brilharia
na
escuridão. E ele sempre seria capaz
de me encontrar, por mais longe que
estivesse.
Quando me tornei mulher, não tive
mãe para me dizer o que fazer com o
sangue que veio com a lua ou para
me acompanhar na mikvah, o banho
ritual que teria me purgado com uma
imersão total na pureza. A primeira
vez que sangrei pensei que estivesse
morrendo, até que uma velha que era
minha vizinha teve pena de mim e
me disse a verdade sobre os ciclos
mensais das mulheres. Baixei os
olhos enquanto ela falava,
envergonhada de ser informada de
tais detalhes íntimos por uma
estranha, sem acreditar
muito no que ela dizia, imaginando
por que o nosso Deus faria com que
eu
me tornasse impura. Mesmo agora,
acho que poderia estar certa por
tremer
de medo no dia em que sangrei pela
primeira vez. Talvez o fato de me
tornar mulher fosse o fim para mim,
por ter nascido no sangue e merecer
ser tirada da vida do mesmo modo.
Não me incomodei em contornar os
meus olhos com kohl ou esfregar
óleo de romã nos pulsos. O flerte
não era algo que praticasse, nem me
achava atraente. Não perfumei o meu
cabelo, em vez disso prendi as
tranças na nuca e depois cobri a
cabeça com um xale de lã do tecido
mais
simples que pude encontrar. Meu pai
só se dirigia a mim quando me
chamava para trazer a sua refeição
ou lavar as suas roupas. Por essa
época
eu tinha começado a perceber o que
ele fazia quando saía para se
encontrar
com os companheiros durante a
noite. Geralmente ele envolvia os
ombros
em um manto cinza-claro, que se
dizia ter sido tecido com os fios de
uma
teia de aranha. Eu tocara a sua
bainha uma vez. Era tão sinistro
quanto belo, concedendo ao seu
portador a capacidade de se
dissimular. Quando o
meu pai saía, desaparecia, porque
tinha o poder de desaparecer mesmo
ele
estando à sua frente.
Eu ouvira meu pai ser chamado de
assassino pelos nossos vizinhos.
Franzira a testa e não acreditara,
mas, quanto mais analisava as suas
idas e
vindas, mais sabia que era verdade.
Ele fazia parte de um grupo secreto
de
homens que carregavam a adaga
encurvada dos sicários , zelotes
fanáticos que escondiam as facas
afiadas sob seus mantos e as usavam
para punir aqueles que se recusavam
a lutar contra Roma, especialmente
os
sacerdotes que aceitassem
sacrifícios da legião e seus favores
ao Templo.
Os assassinos eram implacáveis, até
eu sabia disso. Ninguém estava a
salvo
de sua ira; os outros zelotes os
repudiavam, contestando os seus
métodos
brutais. Dizia-se que os sicários
lutavam contra os judeus que se
curvavam
demais a Roma, e que Adonai, o
nosso grande Deus, nunca perdoaria
o assassinato, especialmente de
irmão contra irmão. Mas os judeus
eram uma
fraternidade dividida, em conflito na
prática e nas orações. Os que
pertenciam aos sicários riam-se da
ideia de que Deus não desejava
outra coisa senão que todos os
homens fossem livres. O preço era
de nenhuma consequência. Seu
objetivo era um só governante, não
imperadores, não
reis, só o Rei da Criação. Somente
ele governaria quando tivessem
terminado o seu trabalho na terra.
MEU PAI fora um assassino por
tanto tempo que os homens que ele
matara eram como folhas de uma
árvore de salgueiro, muitas para
contar. Porque
ele possuía uma habilidade que
poucos homens tinham e afirmava ter
o
poder da invisibilidade, era capaz
de entrar em uma sala como uma
sombra
e despachar o inimigo antes que a
vítima estivesse mesmo ciente de
que uma janela se abrira ou que uma
porta se fechara.
Para a minha tristeza, o meu irmão
seguiu o caminho do nosso pai assim
que teve idade suficiente para se
tornar um discípulo da vingança.
Amram
era perigosamente suscetível a seus
estilos violentos, pois em sua pureza
via o mundo como bom ou mau, sem
gradação entre os extremos. Sempre
os espiava juntos, meu pai falando
no ouvido do meu irmão, ensinando-
lhe
as regras do assassinato. Um dia,
enquanto reunia as túnicas e a capa
de Amram para lavar no poço,
encontrei uma adaga, já marcada por
uma linha
carmesim. Teria chorado se fosse
capaz, mas tinha abandonado as
lágrimas.
Não afogaria mais ninguém como
afogara a minha mãe, de dentro para
fora.
Ainda assim, saí em busca do meu
irmão, encontrando-o no mercado
com os amigos. As mulheres
desacompanhadas não eram vistas
com
frequência entre os homens que se
dirigiam àquelas passagens estreitas;
as
que não tinham escolha a não ser
sair desacompanhadas dirigiam-se
às
pressas à rua dos Padeiros ou às
barracas que ofereciam cerâmica e
jarros
feitos do barro de Jerusalém, e
depois, rapidamente, corriam de
volta para
casa. Eu usava um véu e a minha
túnica estava apertada com força.
Havia
zonnoth no mercado, mulheres que
se vendiam para o prazer dos
homens,
que não cobriam os braços ou o
cabelo. Uma delas zombou de mim
enquanto passava apressada, o rosto
soturno abrindo-se em um sorriso
quando me viu correndo pelo beco.
– Você acha que é diferente de nós?
– gritou. – Você é apenas uma
mulher, assim como nós.
Puxei o meu irmão para longe dos
amigos para que pudéssemos ficar
debaixo de um flamboyant. As
flores vermelhas exalavam o cheiro
do fogo e pensei que isso era um
presságio, que o meu irmão
conheceria o fogo.
Preocupava-me com o que
aconteceria com ele quando a noite
chegasse e
os sicários se reunissem sob os
cedros, local em que faziam seus
planos.
Pedi-lhe para renunciar aos meios
violentos que adotara, mas meu
irmão,
jovem como era, ardia por justiça e
uma nova ordem na qual todos os
homens fossem iguais.
– Não posso reconsiderar a minha
fé, Yaya.
– Então considere a sua vida – foi a
minha resposta.
Para me provocar, Amram riu
imitando uma galinha, empertigando
o
corpo magro e forte e debruçando-
se, enquanto batia asas imaginárias.
– Você quer que eu fique em casa no
galinheiro, onde possa me trancar
por dentro e ter certeza de que estou
seguro?
Ri, apesar dos meus temores. Meu
irmão era corajoso e bonito. Não
admirava que o meu pai o
favorecesse. Tinha o cabelo
dourado, os olhos escuros, mas
salpicados de luz. Nesse momento,
vi que a criança de quem
cuidara como uma mãe tornara-se
um homem, um homem puro em suas
intenções. Eu não poderia fazer mais
do que questionar o caminho que
escolhera. No entanto, estava
determinada a agir em seu benefício.
Quando
meu irmão voltou para junto dos
amigos, continuei para dentro do
mercado, chegando até o fundo das
ruas tortuosas, por fim contornando
para um beco pavimentado com
tijolos cinzentos empoeirados.
Ouvira
dizer que era possível comprar boa
sorte nas proximidades, ali havia
uma
loja misteriosa de que sussurravam
as mulheres do bairro. Em geral,
elas interrompiam a conversa
quando eu me aproximava, mas
ficara curiosa e
ouvira dizer que, se uma pessoa
seguisse a imagem de um olho
rabiscada
dentro de um círculo, seria levada a
um lugar de medicamentos e magias.
Tomei o caminho do olho até chegar
à casa de keshaphim, um tipo de
magia praticada por mulheres,
sempre perseguido em segredo.
Bati na porta e apareceu uma velha
que me examinou atentamente.
Irritada com a minha presença, ela
perguntou por que eu estava ali.
Como
hesitasse, ela começou a fechar a
porta contra mim, resmungando.
– Não tenho tempo para alguém que
não sabe o que quer – murmurou.
– Proteção para o meu irmão –
consegui dizer, nervosa demais para
informar mais que isso.
No Templo praticava-se a magia dos
sacerdotes, homens santos ungidos
pela oração, escolhidos para
oferecer sacrifícios, tentar milagres
e realizar
exorcismos, expulsando o mal de
que muitas vezes os homens
poderiam
estar possuídos. Nas ruas praticava-
se a magia das minim,
menosprezadas
pelos sacerdotes, chamadas de
charlatãs e impostoras por alguns,
muito
embora respeitadas por muitos. As
casas de keshaphim, no entanto,
eram consideradas os lugares em
que se praticava o tipo mais
desprezível de magia, um trabalho
de mulheres, nocivo, vingativo,
praticado por aquelas que eram
acusadas de bruxas. Mas uma min
que realizasse feitiços e maldições
jamais falaria com uma garota como
eu se não tivesse prata para
entregar e um pai ou irmão para me
recomendar. E se tivesse procurado
um dos sacerdotes em busca de um
amuleto, eles o negariam a mim,
porque era filha de alguém que lhes
fazia oposição. Até eu sabia que não
merecia os seus favores.
O aposento atrás da velha achava-se
às escuras, mas vislumbrei ervas e
plantas penduradas em cordas
compridas presas ao teto. Reconheci
a
arruda e a murta, e as amareladas
maçãs secas da mandrágora, a que
chamavam de yavrucha, uma erva
de natureza tanto afrodisíaca como
antidemoníaca, venenosa e eficaz.
Pensei ter ouvido o som de uma
cabra, que se dizia ser um animal de
estimação de bruxas, partindo de
dentro da
câmara escura.
– Antes de desperdiçar o meu
tempo, tem shekalim suficientes para
proteção? – a velha perguntou.
Abanei a cabeça. Não tinha moedas,
mas trouxera comigo um espelho de
mão precioso. Pertencera à minha
mãe e era muito bem trabalhado,
feito de
bronze, prata e ouro, completado
com um pedaço de lápis-lazúli
escuro. Era
a única coisa que eu tinha de algum
valor. A anciã o examinou e depois,
satisfeita, aceitou a minha oferta e
voltou para dentro. Depois que
fechou a
porta, ouvi o barulho de uma
fechadura. Por um momento
perguntei-me se
ela se fora para sempre com o meu
espelho, talvez nunca mais fosse vê-
la,
mas ela voltou a aparecer na porta e
me disse para abrir a mão.
– Tem certeza de que não quer este
amuleto para si mesma? – ela
advertiu, insistindo que existia
apenas um como aquele em todo o
mundo. –
Você pode precisar de proteção
nesta vida.
Abanei a cabeça e, assim que o fiz,
o meu véu simples de lã caiu.
Quando
viu a cor escarlate do meu cabelo, a
velha se afastou como se tivesse
descoberto um demônio em sua
porta.
– É bom que não o queira – disse
ela. – Ele não funcionaria no seu
caso.
Você precisa de um símbolo muito
mais potente.
Apanhei o amuleto, depois me virei
e comecei a me afastar. Fiquei
surpresa quando ela me pediu para
esperar.
– Não quer saber por quê? – A
mulher do mercado fazia um sinal,
me pedindo para voltar, mas me
recusei a atendê-la. – Não quer
saber o que vejo para você, minha
irmã? Posso lhe contar em que irá se
tornar.
– Eu sei o que sou. – Eu era a filha
nascida de uma mulher morta, que
não conseguia suportar olhar para o
próprio rosto. Estava imensamente
feliz por me livrar daquele espelho.
– Não preciso que me diga – gritei
para
a bruxa no beco.
FUI PARA CASA e entreguei o
presente ao meu irmão, um amuleto
delgado de prata para usar em volta
do pescoço, um medalhão impresso
com a imagem
de Salomão combatendo um
demônio prostrado diante dele no
chão. Na
parte de trás do talismã, o Selo de
Deus fora escrito em grego,
juntamente
com o símbolo de uma chave, para
significar a chave que Moisés
possuíra
para desbloquear a proteção de
Deus. Assim, também, esse amuleto
protegeria o meu irmão no futuro
banhado em sangue a que ele se
destinava.
Amram ficou encantado com o
símbolo. Disse que eu tinha a
capacidade
de conhecer a sua mente, pois havia
orado pedindo orientação e
sabedoria,
a menor porção do que Deus
concedera a Salomão. Não lhe
contei que fora
a mulher envolvida com magia que
soubera o que ele queria, não eu.
Os demônios, garantiu meu irmão,
nunca devem vencer. Essa era a
missão dos sicários, e eles não
podiam falhar. Ele se abriu comigo
sem reservas e acreditei no que
falou. Amram tinha jeito para
convencer o ouvinte a aceitar o
mundo pela sua visão, permitindo
ver através dos seus
olhos. Olhando para o meu irmão,
tudo o que via diante de mim era o
reino
de Sião e o nosso povo finalmente
livre.
Em muito pouco tempo, meu irmão
superou meu pai em sua tarefa
sombria. Ele era o melhor, não por
acaso, mas por escolha. Aprendeu
os procedimentos do assassinato
com meu pai e também com um
homem
chamado Jachim ben Simon, que se
tornou seu professor. Dizia-se que
Ben
Simon conhecia melhor a morte que
a maioria e era admirado pelo uso
de
uma faca de dois gumes feita de
prata. Sob a sua tutela, Amram
estava determinado a progredir com
sua habilidade, a elevar-se acima de
todos os
outros. Meu irmão era dedicado,
praticando com a intensidade de um
mestre artesão. No entanto, à medida
que o tempo passava, seu
temperamento e seus humores
mudaram diante dos meus olhos. Vi
desaparecer o menino que conhecia
e um assassino frio e destemido
tomar
o seu lugar. Com o nosso pai ele
aprendeu a esgueirar-se invisível
pela noite e a escalar torres usando
um único fio de corda enrolado em
volta da
cintura. Praticava o silêncio, sem
falar durante dias a fio, tornando-se
tão discreto que até mesmo os
camundongos do nosso jardim não o
notavam.
Caminhava descalço para garantir
que não houvesse nenhum som
quando
se aproximasse, apenas a rapidez da
lâmina, segundo os ensinamentos de
Ben Simon, que Amram aperfeiçoou
ainda mais com o seu talento natural.
Em pouco tempo, meu irmão era
chamado para as tarefas mais
perigosas, todas as que carregavam
o frio da morte. Embora ele não
tivesse
o manto que se dizia conceder a
invisibilidade, o seu dom maior era
a sua
capacidade de se disfarçar. Vestia-
se como um sacerdote ou um homem
pobre, escondendo-se em roupas
emprestadas para ter acesso a quem
era
considerado traidor. Era capaz de
fazer-se mais velho, com o rosto
transformado por linhas traçadas
com carvão, ou parecer um simples
menino, com os olhos brilhantes. As
pessoas diziam em segredo que ele
era
invencível, e logo surgiram rumores
de que o amuleto de Salomão em seu
pescoço o protegia do mal. Seus
amigos o adoravam e o chamavam
de Hol,
o nome da Fênix. Juravam que ele se
parecia com aquele pássaro místico
que ressurgia do fogo e das cinzas;
ele escapava de todas as tentativas
feitas pelas autoridades para
apanhá-lo e assassiná-lo.
Por causa do meu pai e do meu
irmão, os homens tinham medo de
falar
comigo. As atividades dos sicários
eram misteriosas, mas alguns de
seus segredos todos conheciam,
especialmente em Jerusalém. Os
homens da
minha família eram apontados na
rua, mencionados com voz
sussurrada,
tanto reverenciados como
desprezados. Não era de admirar
que ninguém
me quisesse ter como esposa, nem
mesmo o bruto que conduzia os
burros
ao mercado. Eu era uma mulher
jovem, mas era tratada como
mendiga,
desprezada, minha reputação estava
manchada. Somente quando os
homens viam a cor incomum do meu
cabelo, eu percebia neles a
curiosidade
e,
muitas
vezes,
o
desejo.
Seus
olhares
eram
desconcertantemente sensuais,
óbvios, mesmo para alguém tão
inexperiente como eu. Sabia que
entraria nos seus sonhos quando não
pudessem controlar o que
desejavam. Mas um sonho não tem
valor no
mundo. Que bem faria o seu desejo
por mim? À luz do dia, eles
passavam
direto. Queria gritar Leve-me a todo
homem que passava. Livra-me do
que aconteceu, do pilar de sal
amargo em que me tornei, do crime
que cometi antes de nascer, dos
homens da minha casa, que
espreitam do lado de fora do
Templo buscando apenas vingança.
Leve-me para a sua cama, para a
sua casa, para a sua cidade.
Tirei os véus em locais públicos.
Não me incomodei em trançar o
cabelo,
mas quis deixá-lo brilhar, buscando
a salvação da minha solidão.
No entanto, todos me davam as
costas, incapazes de me ver, porque
eu
não era mais que um ar vermelho
rodopiando por eles, invisível aos
seus olhos.
EM POUCO TEMPO viram-se
cartazes com uma imagem
semelhante à do meu irmão pregados
nas paredes. Os romanos pagavam
por informações, mais
um tanto se fosse capturado, ainda
mais se fosse considerado culpado
pelos
crimes cometidos e crucificado.
Amram já não voltava para casa e,
em vez
disso, resignou-se a se deslocar pela
cidade depois de escurecer;
pertencia
aos sonhos e não à rotina da nossa
vida diária. Meu pai e eu éramos os
únicos ocupantes da nossa casa.
Embora não falássemos um com o
outro, nós dois olhávamos para o
escuro quando a noite começava a
cair.
Sabíamos que era onde Amram se
encontrava. Uma vez mais
dividíamos
algo. Não podíamos ouvir sobre uma
captura sem estremecer.
Mostrávamos lampejos de pura
emoção um ao outro cada vez que a
porta
batia. Mas nunca era ele, apenas a
força do vento.
Uma noite terrível não foi o vento, e
sim uma tropa de soldados à porta.
Meu pai deu de ombros quando o
nome de Amram veio à tona; ele
insistiu
que não tinha filho. Era sua má sina
ter apenas um rebento, uma filha
inútil.
Quando até mesmo os amigos de
Amram, aqueles que o elogiaram
como
a Fênix imbatível, não se atreveram
a ajudá-lo, meu irmão concluiu que
sua
vida em Jerusalém se acabara. Não
tinha outra escolha senão fugir.
Havia fortalezas no deserto
controladas pelo nosso povo. Se
conseguisse chegar a
uma delas, estaria seguro. Antes de
partir, correu o risco de vir se
despedir.
Depois que ele e meu pai se
abraçaram, Amram acenou-me de
lado.
Trouxera um presente de despedida.
Um lenço azul. Era lindo demais
para
mim, mais do que eu merecia, mas
ele insistiu para que o aceitasse.
– Há larvas que passam a vida
tecendo esses fios e você se recusa a
honrar o seu destino?
– Nenhuma larva fez isto. – Eu ri ao
pensar como aquele tecido celestial
podia ter sido tramado por insetos.
Era o oposto da aranha que fizera a
capa do meu pai, tecida de fio tão
claro que desaparecia no ar. Aquela
seda
azul se anunciava como o toque de
uma cor inesperada.
Amram jurou que era verdade,
insistindo que, enquanto as larvas
teciam
a seda nos ramos das amoreiras,
elas estavam consagradas a mim,
assim como ele. Ao completar sua
tarefa, cada larva transformara-se
em uma
borboleta azul, subindo aos céus
depois que sua obra na terra fora
completada.
Enrolei o lenço sobre o cabelo.
Pensaria no céu todas as vezes que o
usasse, e no meu irmão, que era tão
firme em sua fé. Permaneci parada à
porta da nossa casa, lembrando-me
de que ele dissera que as sardas em
minha pele eram como estrelas.
Como as estrelas no alto elas o
levariam a
me encontrar de novo.
RESTAVAM POUCOS de nós na
cidade. Explorávamos as ruínas,
cautelosos, temendo por nossa vida.
À noite, ouvíamos os gritos dos que
eram levados
para o Templo, capturados por
soldados rondando os becos em
busca de
alguém da nossa fé. Os integrantes
da legião bebiam absinto, uma
bebida fermentada perigosa, quase
letal, que os deixava mais cruéis,
além de
bêbados. Nenhuma mulher estava
segura. A vida de nenhum homem
lhe
pertencia. Quem foi capaz conseguiu
fugir para Alexandria ou Chipre,
mas
meu pai insistia em ficarmos. Tinha
mais trabalho a fazer, e esse
trabalho
era a faca que ele carregava. Com o
tempo, Jerusalém despertaria e,
como
um leão, libertar-se-ia das malhas
da servidão. Dentes e garras, ouvi-
o dizer, isso é o que o nosso futuro
nos trará. Mas eu sabia que o que
realmente queria dizer era carne e
ossos.
Sabia pelos meus sonhos o que
significava ficar cara a cara com um
leão.
A FUMAÇA subia dos incêndios
provocados por toda a cidade e as
sombras que projetava serviam
como uma cortina de proteção para
o nosso povo
escapar dos soldados saqueadores.
Eu podia sentir o cheiro da madeira
de
oliveira, do salgueiro queimando.
Restos chamuscados ainda ardendo
de
telhados de sapé e palheiros. Sobre
o estrado em que eu dormia, em
nossa
casinha, cobria a minha cabeça e
desejava morar em outra época e em
outro lugar. Gostaria de nunca ter
nascido.
Uma tarde, enquanto me encontrava
no mercado vasculhando as caixas
quase vazias dos vendedores em
busca de ervilhas e feijões para a
nossa ceia escassa, os romanos se
apropriaram da nossa casa. Fiquei
observando
de um lugar escondido no quintal
abandonado dos meus vizinhos, pois
a sua casa fora arruinada meses
antes. Os soldados saquearam a
nossa casa
para depois a queimarem
completamente e nossos pertences
ficarem
espalhados sobre a terra calcária.
As faíscas voavam como mariposas
brancas, mas, quando caíam sobre a
terra, ardiam com um tom carmesim
brilhante, como as pétalas das flores
do flamboyant.
Se antes eu tinha pouco, agora tinha
quase nada. Atravessei os
escombros e consegui pegar apenas
o que caberia nas minhas duas mãos,
uma chapa de ferro pequena para
assar o pão sírio, uma lâmpada feita
de
argila branca de Jerusalém, para
queimar o azeite no shabat, o xale
de oração do meu pai, chamuscado
nas franjas dos quatro cantos, seu
cantil de
couro, e um pacote de sal que teria o
gosto de fumaça quando utilizado na
culinária. Esperei pelo meu pai
escondida atrás de uma parede. A
minha pele estava escura e havia
cinzas em meu cabelo. Se meu pai
não
regressasse, se ele tivesse sido
assassinado ou fugido sem me dizer,
pensei
que poderia simplesmente
permanecer atrás da parede,
plantada ali como
um flamboyant.
Finalmente meu pai apareceu,
esgueirando-se ao crepúsculo,
vestindo o
manto que lhe permitia seguir seu
caminho sem ser detido. Quando viu
o
xale de oração em minhas mãos,
concluiu que o momento de fugir
havia chegado. Pensei que me
deixaria lá para ser a mendiga que
sempre temi um
dia me tornar, para furtar o lixo.
Mas ele lançou um gesto para que o
seguisse como qualquer outro
homem faria sinal a um cão. Resolvi
obedecer como me fora indicado e
me arrastei atrás dele. Talvez a
nossa relação de sangue significasse
algo para ele depois de tudo, ou
talvez me levasse com ele porque
temesse que a minha mãe, no Mundo
Vindouro,
pudesse reagir se ele me
abandonasse ali na rua. Ou pode
simplesmente ter-se lembrado de
que fora ele quem lhe dera a criança
e que eu estava certa em considerá-
lo parceiro no meu crime. Se as
minhas lágrimas a
afogaram de dentro para fora, fora
ele quem introduzira a minha vida na
dela.
À NOITE íamos de casa em casa,
pedindo que nos deixassem entrar.
Havia cada vez menos pessoas do
nosso povo na cidade a cada dia –
todos haviam
fugido ou estavam escondidos – e
tornou-se difícil encontrar alguém
disposto a nos ajudar. Eu era como
um cão e nada mais, sem fazer
perguntas, incapaz de pensar por
mim mesma. Pairava nas sombras
enquanto as pessoas nos davam as
costas. Mesmo as que acreditavam
na
política do meu pai estavam
cautelosas, não querendo correr
riscos. Apenas
algumas deixaram as portas abertas
e mesmo essas se certificaram de
olhar
para o outro lado e não nos
cumprimentar com um abraço.
Muitas vezes dormimos em estrados
de palha, gratos por um abrigo
destinado às cabras.
Compartilhamos os alojamentos com
os animais e dormíamos inquietos
com o ruído da respiração deles ao
nosso lado. Vezes seguidas eu tive o
mesmo sonho. Nele havia um leão
adormecido ao sol, que eu não
ousava acordar. Uma noite sonhei
que o leão fora comido inteiro por
uma cobra que devorava tudo em seu
caminho. Estava descalça em meu
sonho, em um
trecho de terra rochosa que era tão
deslumbrantemente branco que eu
não
conseguia abrir os olhos. Senti
compaixão por aquela fera
selvagem, o rei do deserto, pois em
meu sonho ele se rendera à cobra
sem lutar. Ele me olhara, suplicante,
fitando-me nos olhos.
Naquela noite meu pai me sacudiu
para que eu acordasse. No sonho, os
meus pés sangravam sobre as
rochas. Diante de mim achava-se a
víbora
preta do deserto que se enrola em
torno de sua presa e se recusa a
soltá-la.
Ela devorara o leão e agora se
aproximava de mim. Ofereci à fera
escamosa
amêndoas e uvas, mas ela tinha
gosto por carne humana. Implorei a
ela que
me soltasse enquanto lamentava pelo
leão. Angustiei-me por aquela fera
do
mesmo modo que uma pessoa se
angustia pelo próprio destino. O que
acontece já está escrito, e o leão
estava escrito ao lado do meu nome.
– Temos de ir e não olhar para trás –
disse o meu pai quando me
acordou.
Se não fosse rápida o bastante, sem
dúvida meu pai me deixaria para
trás. Não discuti, mas senti uma
onda de terror naquele alojamento
escuro.
Havia sangue na roupa do assassino
e seus olhos brilhavam. Algo
acontecera, mas não me atrevi a
perguntar o que era. Levantei-me do
estrado no chão, pronta em um
instante. Juntei os pertences que
levara comigo de casa. O lenço azul
que o meu irmão me dera, a chapa
de ferro e a
lâmpada que encontrara nos
escombros. Saímos com outra
família, a do
assassino Jachim ben Simon, o
homem que adotara meu irmão como
aprendiz e lhe ensinara a matar com
a faca curva de dois gumes. Esse
assassino era conhecido por ser
terrível quando golpeava o inimigo,
um turbilhão que buscava apenas
vingança. Ele já fora sacerdote, o
filho mais
velho de uma família de sacerdotes,
e passara a juventude em estudo e
oração. Mas vira como o ouro
forrava os bolsos de poucos,
enquanto os pobres eram pisados e
usados ou escravizados. Vira o
próprio pai
concordar em fazer oferendas e
sacrifícios em nome dos romanos em
nosso
Templo no Dia da Expiação,
insistindo que os pecados romanos
poderiam
ser deixados sobre os nossos altares
e ser perdoados pelo nosso Deus.
Ele tomara a faca dos sicários e se
destacara em seu trabalho. Era um
homem verdadeiramente perigoso,
todo nervos e músculos. Vi sua
cabeça
grande e característica e baixei os
olhos, não querendo vislumbrar um
homem tão temido. Sua esposa
chamava-se Sia, seus filhos
pequenos eram
Nehimiah e Oren. Ouvi a mulher
chorar enquanto se reunia aos filhos.
Sua
família possuía pouco mais que nós,
mas tinha um burro que a esposa de
Ben Simon e os filhos montavam.
Andei atrás deles, como uma mulher
em
desgraça. Na verdade, estava
acostumada a ser excluída, mais à
vontade comigo mesma. Jachim ben
Simon olhou por cima do ombro uma
vez e
pareceu assustado, como se tivesse
se esquecido de mim e agora via um
fantasma.
Enquanto saíamos de Jerusalém, já
tentava adivinhar quem de nós
morreria e quem viveria, pois
certamente todos não
sobreviveríamos. Sem
força bruta, até mesmo a nossa fuga
seria difícil. As ruas estavam um
caos.
Todos os judeus haviam sido
expulsos da cidade e aquele que
fosse
encontrado seria instantaneamente
assassinado. Esse era o novo
decreto e,
portanto, a lei. Muitos dos
sacerdotes tinham mergulhado nos
esgotos, na
esperança de escapar da cidade sem
ser detectados. Mas suas artimanhas
não poderiam ajudá-los agora,
achavam-se no reino dos ratos,
lutando
pelas suas vidas juntamente com o
restante de nós.
Ouvimos o que soou como um
rugido quando o Templo foi
demolido.
Era Tisha B’Av, o nono dia do mês,
o dia em que eu nascera. Nos anos
vindouros, as pessoas jurariam que
seis anjos desceram do céu para
proteger os muros do Templo para
que não fossem totalmente
destruídos;
diriam que aqueles anjos sentaram-
se lá e choraram, e que continuariam
chorando. Os romanos usavam
aríetes que pesavam cem toneladas e
mais
de mil homens foram necessários
para balançá-los a fim de que
pudessem
folgar, depois derrubar as enormes
pedras sobre as quais a insígnia do
rei
Herodes fora gravada. Cordas eram
içadas por centenas de homens,
alguns
deles dos nossos, escravizados,
amaldiçoando-se pelo seu destino e
pela desventura dos próprios atos. A
pedra deveria durar para sempre,
mas
naquela noite vim a entender que
uma pedra era apenas outra forma de
pó.
As nuvens de poeira santa pairavam
no ar e cada respiração incluía os
restos do Templo, de modo que
inalamos o que era para perdurar
por toda
a eternidade.
Mais uma vez os incêndios ateados
na cidade produziram uma cortina
de fumaça que nos ajudou na fuga.
Pelo que ficamos gratos, apesar do
calor
latente. O ar estava carregado,
sufocante e cinzento. Levei o lenço à
boca e
tentei não respirar as faíscas.
Imaginei que meu pai matara alguém
naquela
noite e que era por isso que seu
manto estava manchado de
vermelho.
Pensava sobre esses assuntos
quando a esposa de Ben Simon, Sia,
veio
andar ao meu lado. Sentia pena de
mim porque eu seguia atrás, entre as
nuvens de poeira levantada. Era,
talvez, dez anos mais velha que eu,
com um cabelo negro volumoso
penteado em cachos. Seus olhos
eram escuros
com manchas douradas. Ela poderia
ter mantido a sua beleza, não tivesse
sido a esposa dedicada de um
assassino, desgastada pelo medo.
Concluí
então que os assassinos não
deveriam se casar ou ter filhas, ou
permitir que alguém os amasse.
– Gostaria de ir montada com meus
filhos por um tempo? – a esposa de
Ben Simon sugeriu.
Pude ver que ela estava cansada e eu
era uma pessoa acostumada a
caminhar. Agradeci e disse que não,
que estava feliz em acompanhá-los.
Esperei que fosse me deixar sozinha.
– Estou feliz por você estar aqui –
desabafou. – Partir teria sido muito
pior sem outra mulher além de mim.
Olhei para ela, perguntando-me o
que queria de mim. Ela sorriu,
pegando a minha mão, e então
entendi. Ela queria uma amiga.
Pedi-lhe que voltasse aos seus
filhos. Ela deveria deixar-me seguir
atrás,
uma vez que era invisível para a
maioria das pessoas, mesmo sem um
manto como o que meu pai usava.
Talvez tivesse herdado essa
capacidade,
ou talvez tivesse aprendido seus
segredos por observá-lo. De
qualquer
maneira, os romanos que nos
procurassem veriam apenas um
redemoinho
de poeira por onde quer que eu
andasse.
Sia não quis ouvir o que eu disse.
– Você está enganada – ela
comentou. – Você seria a primeira
que
veriam. Seu cabelo é tão bonito que
me faz pensar em flamboyants.
Imaginei se suas palavras seriam
uma maldição, pois estava de pé ao
lado de um flamboyant quando meu
irmão admitira que se tornara um
assassino. Não era possível para ela
saber, mas em raras ocasiões em que
sonhara com a minha mãe ela me
procurara como um flamboyant, e
nos meus sonhos abaixava a cabeça
diante dela e chorava.
Observando Sia, vi que sua intenção
era ser gentil naquela noite
atravessada pelo perigo e pela
incerteza. Andamos próximas,
atraídas pelo
perigo que nos cercava.
Atravessávamos o Vale dos
Espinhos sob um céu carregado com
tantas estrelas que isso me fez
pensar nas pedras no
deserto, incontáveis, muito brancas
para demorarmos o olhar sobre elas.
Dizem que o rosto do nosso Criador
é assim, tão brilhante que um único
olhar produz a cegueira. Mantive os
olhos no chão. Teria preferido andar
sozinha, mas Sia definia o seu ritmo
por mim, com o braço entrelaçado
ao
meu.
Ela me confidenciou que meu pai e
seu marido tinham matado um
importante general romano e que era
por isso que tinham pressa de fugir.
Ela mesma limpara as lâminas das
suas facas, lavara o metal em água
pura,
recitando uma oração enquanto o
fazia. Ela era obrigada a não fazer
perguntas e acatar as ordens do
marido, mas sentia desejo de
confessar, enquanto caminhávamos
atrás dos homens, que ela segurara
uma faca com
estrias de sangue humano. Sua voz
falhou depois de comentar o
ocorrido.
– Como Deus vai me punir? – ela
murmurou.
Procurei silenciá-la – as mulheres
não deviam falar de tais assuntos –,
mas já era tarde demais. Ben Simon
ouvira e virara-se para nos olhar.
Era
um homem alto e imponente, com a
pele morena escura, temível, com
uma
cicatriz profunda gravada em um dos
lados do rosto. De novo olhei para o
chão, na tentativa de evitá-lo. Ele
falou duramente para Sia se calar.
– Não falemos mais disso – disse
ela então. – Às vezes é melhor não
saber o que os homens devem fazer.
QUANDO NÃO conseguimos mais
andar, paramos em um lugar de
descanso, um
oásis ao qual os amigos dos
assassinos haviam se referido em
termos
elogiosos. Todo zelote tinha um
plano caso sobreviesse o desastre,
uma direção em que correr se
necessário. Essa foi a primeira
parada, um
pequeno espaço verde no qual os
camelos que tinham fugido durante o
caos haviam se reunido. Os animais
correram quando nos aproximamos,
levantando poeira, com medo de que
lhes lançássemos cordas ao redor do
pescoço, como se não quisessem ser
escravos como nós. Uma cidreira
crescera no local. Seu fruto era
chamado pri etzhadar, de cujo
etrog, semelhante a um limão, fazia-
se geleia. Os que encontramos
estavam
machucados, azedos, sem mel para
adoçar o paladar, mas não nos
importamos. Estávamos morrendo
de fome e sede. Comemos em
silêncio,
devorando a nossa ceia escassa. À
distância, podíamos ver Jerusalém
em chamas. A fumaça subia em uma
nuvem afunilada e depois
desaparecia.
Contei as estrelas, muito brilhantes
acima de nós. Sia sentou-se ao meu
lado
e falou-me em voz sussurrada.
Insistiu que era um bom presságio
encontrar uma planta cítrica na
primeira noite da nossa jornada e eu,
embora não discutisse com ela,
achava o contrário. Aquela árvore
amarga
nada mais era que a chave para uma
porta e essa porta abria-se para o
deserto.
Ouvira meu pai falar com Ben
Simon. Não estávamos indo em
direção a
Alexandria, ou Chipre. Em vez
disso, seguíamos pela rota antiga,
que levava
ao Mar de Sal, a rota dos
condenados. No mês de Av, os
pássaros não voavam para onde
estávamos indo, mesmo à noite.
Muito quente, o ar era
implacável, um forno. Era possível
fazer pão em uma pedra. Vagaríamos
pelo deserto até onde fosse possível,
pois meu pai acreditava que lá
encontraríamos os zelotes e suas
fortalezas, meu irmão entre eles.
Na noite em que fugimos, enquanto o
Templo queimava e o céu era um
anel de fogo, soprava uma brisa
leve. Esse seria o momento mais frio
que
conheceríamos antes de entrar no
deserto. Mas haveria mais uma coisa
que
me lançava em um mundo ardente na
noite em que deixamos Jerusalém.
Desci para um poço que fora
abandonado muito tempo antes. Não
havia
mais nenhuma água. Isso não era
realmente uma surpresa. As pessoas
muitas vezes mentiam sobre a água,
prometendo piscinas onde não havia
nenhuma, sonhando com a água em
um mundo composto de pó. Ainda
assim, se alguém se agachasse sobre
os joelhos para cavar com as mãos,
era
possível encontrar lama. Drenada
entre os dedos cerrados, a água
brotaria,
apresentando-se a quem estivesse
disposto a afundar-se de joelhos.
Não me
sentia muito orgulhosa de fazer isso.
Determinada a conseguir o que
queria, pude encher metade de um
jarro
com água lodosa, filtrada entre os
meus dedos, em seguida através do
tecido do meu lenço azul. Depois de
terminar eu me levantei, ávida para
bebê-la. Virei-me do poço, então
ergui os olhos, alarmada. Não via o
céu noturno cheio de estrelas, nem
as chamas de Jerusalém, apenas o
outro assassino, Ben Simon,
observando-me. Meus braços
estavam cobertos de
lama, a minha túnica, entreaberta.
Senti-me inundar de calor. Não
entendia
por que ele aparecera no escuro ou
por que ficara ali. Ele nem sabia o
meu
nome. Pensei que fosse embora, mas
ele olhou para mim por um longo
tempo, da mesma maneira que um
homem olha para um veado ao
avaliar
se está muito longe para persegui-lo
ou perto o bastante para pegá-lo. Ele
inclinou a cabeça e então eu soube.
Afinal de contas, eu não era
invisível.
*
CONTEI OS DIAS no deserto
cortando a minha perna com uma
pedra afiada. O
nosso povo não tinha permissão de
ferir a si mesmo; essa era uma
prática
dos pagãos e nômades em seus
períodos de luto. Pelos mortos não
dareis golpes na vossa carne; nem
fareis marca alguma sobre vós, o
Senhor nos ordenara no Quarto
Livro de Moisés. Mas eu ouvia
apenas a voz do deserto
e não as palavras do Todo-
Poderoso. Escondi os cortes sob o
meu xale. Na
vida que levávamos, a dor era algo
com que se acostumar, com a qual se
habituar. Preferiria antes me
machucar que ser ferida por alguém,
por isso
adotei essa prática com um sentido
de propósito e sem remorso.
Era a primeira vez que
desrespeitava as nossas leis. Depois
disso, o
restante sucedeu sem dificuldade.
Fui posta juntamente com Sia e seus
filhos, quando teria preferido ficar
sozinha. Ainda assim, ela era gentil
comigo e me acostumei a ela.
Porque ela
era mais velha e casada, pensei que
esperaria que fosse respeitosa com
ela,
mas em vez disso me considerava
uma irmã, e então passei a gostar da
sua
companhia. Havia dias em que
ríamos e transformávamos a nossa
vida
difícil em um jogo, mesmo que os
homens nos lançassem olhares
carrancudos. Trabalhávamos bem
juntas, coletando as poucas folhas
verdes
que conseguíamos encontrar,
fazendo guisados com o nosso
suprimento
cada vez menor de azeite e
azeitonas, figos secos e lentilhas.
Preparávamos
os pães sobre as pedras quentes da
fogueira, cobrindo-os com as cinzas
para que assassem melhor. Quando
os homens saíam para caçar, às
vezes
traziam consigo uma perdiz, que
acrescentávamos aos nossos
ensopados.
Fui profundamente influenciada pela
boa mãe que Sia era para os seus
filhos, como não se queixava quando
clamavam pela sua atenção. Seus
filhos eram pouco mais que bebês e
ela cantava para eles dormirem
todas
as noites, determinada a não
abandonar de todo a bondade que
conhecera
no mundo que deixara para trás.
Todas as vezes que ela cantava eu
pensava
na garota de Alexandria que cuidara
de mim na falta da minha mãe.
Muitas
vezes adormeci ao lado das
crianças, pensando que as canções
de ninar cantadas por Sia eram para
mim. A minha nova amiga expulsara
incansavelmente com o pente as
cinzas que haviam caído no meu
cabelo
durante o incêndio em Jerusalém.
Quando encontramos uma lagoa
rasa,
corremos para ela assim que vimos
a água brilhante, capazes de
esquecer a
nossa situação, mesmo que
brevemente, espirrando água uma na
outra
como se fôssemos realmente irmãs.
Em segredo, continuei a marcar o
meu tempo no deserto pela gravação
de cada dia na minha pele. Guardei
aquilo para mim, sem conseguir me
esquecer de Ben Simon e da cicatriz
em seu rosto. Sempre que o via me
observando, cobria rapidamente a
minha perna. Não queria que
soubesse
quem eu realmente era, uma menina
abandonada, feia e com as mãos
calejadas. E no entanto algo nos
ligava, talvez porque tivéssemos os
dois as
nossas cicatrizes. Era evidente que
ele me via como ninguém jamais o
fizera. Podia ver seu rosto se
transformar quando me olhava;
parecia haver
algo ardente e imprudente em seu
olhar. Chegava a parecer que as
únicas
vezes em que me sentia viva era
quando ele me olhava. Sua presença
era como picadas de abelha,
concentrando a minha atenção. Dei
de ruminar
sobre ele, imaginando como fora
ferido e sobre as tarefas sombrias
que teria cumprido em Jerusalém.
Tinha pensamentos abrasadores e
persistentes misturados na minha
cabeça, que me envergonhavam e me
faziam sentir traidora, embora não
tivesse feito nada de errado.
Uma noite, à luz clara da lua cheia,
fui à lagoa em que Sia e eu tínhamos
nos banhado. Durante o meu período
de sangramento mensal, eu me
isolava de todos, como era nosso
costume. Naquele momento, aquilo
havia
acabado e precisava me lavar. Em
Jerusalém, iríamos à mikvah para
nos banhar. Ali havia apenas a lagoa
no nachal, a ravina em que as aves
vinham beber à noite, bandos de
corvos, cotovias e enorme grifos, os
fortes e destemidos abutres a que
chamávamos nesher, que formavam
os seus ninhos nos penhascos. Achei
que a água estava para desaparecer
rapidamente com o calor crescente
de Av. Ainda assim, tirei minha
túnica, mergulhei na água e senti
algum alívio. Ouvi um sussurro nas
tamargueiras,
uma espécie que costuma crescer
nos piores lugares. Rapidamente
tornei a
vestir a túnica, com medo de que um
dos leopardos em cujo território
tínhamos entrado pudesse estar me
perseguindo, faminto o bastante para
me considerar sua presa.
Ouvi um eco de passos e me
imobilizei, até que desapareceram.
Voltei ao
nosso acampamento limpa, mas com
os nervos em frangalhos. Todos
dormiam dentro da nossa tenda de
pele de cabra, presa ao chão com
estacas feitas de chifre. Apenas Ben
Simon permanecia acordado.
Parecia inquieto. Enrubesci ao
pensar que talvez pudesse ter-me
visto na lagoa. Ele
me chamou e me aproximei dele de
olhos baixos.
– É perigoso – ele me advertiu.
Até então ele nunca me dirigira a
palavra. Não sei se quis dizer que
era
perigoso andar no deserto sozinha
ou erguer os olhos para encontrar os
dele. Senti-me revoltada por ele
pensar que poderia me dizer o que
fazer,
tratando-me como se fosse uma
criança, ou pior, sua escrava, e
ainda assim
senti um tremor de prazer quando
notei as folhas verdes pontiagudas
em
seu cabelo. Eram da tamargueira que
crescia à beira da lagoa, uma árvore
que erguia os ramos para o céu em
lugares onde nada mais poderia
sobreviver.
VINTE E UM CORTES e então veio
a noite em que aconteceu. Depois me
perguntei se estivera marcando o
tempo até que aquilo acontecer.
Seria aquilo o que estava
esperando? Seria para aquilo que o
meu desejo me levava? Talvez
tivesse olhado no Livro da Vida, que
preconiza o destino, e
na profundeza dos meus sonhos já
vira o nome dele inscrito lá. Ou
talvez eu
fosse apenas uma garota invejosa
que nada possuía e, portanto,
estivesse disposta a tomar o que
pertencia a outra mulher, que por
sinal era a minha
única amiga.
Estava preparando uma fogueira
para cozinhar a nossa refeição de
bolos
de lentilha na chapa de ferro que
trouxera comigo de Jerusalém. Ele
se agachou ao meu lado. O céu
empalideceu com o calor. As
cotovias voavam
na penumbra e grandes colônias de
abelharucos cantavam, as brilhantes
penas azuis destacando-se no ar
nebuloso. Jachim ben Simon era
mais
imponente que a maioria dos homens
e pude sentir o calor da sua presença
ao meu lado. Ele não me olhou nesse
momento. Em vez disso, abaixou o
braço e passou a mão na minha
perna, demorando-se nos cortes que
fizera
até a minha pele parecer em chamas.
– Você não tem medo das coisas que
as outras mulheres temem – disse
ele.
Percebi que isso era verdade. Ele
ainda não me olhava, mas parecia
me
conhecer, mesmo estando escondida
dentro dos meus véus. A maioria das
mulheres temia pela vida dos seus
filhos e maridos. Suas preocupações
eram a doença, a fome, os demônios,
a escravidão. Eu temia os leões dos
meus sonhos, quase acreditando que
seria devorada por uma das
criaturas
que me espreitavam no sono. Temia
que um anjo estivesse me esperando
no deserto, enviado para dizer que a
minha vida era uma escalada de
erros,
que nascera uma assassina,
responsável pela morte da minha
mãe antes
mesmo do primeiro sopro de vida,
que o meu crime era pior que o de
qualquer assassino, pois era culpada
não só aos olhos do meu pai, mas
aos
olhos de Deus.
Ben Simon tirou a mão, mas eu ainda
sentia o calor do seu toque.
Continuei a senti-lo por dias. Será
que isso significava que ele era um
anjo,
escondido entre nós, para me julgar?
Ou era apenas um homem que queria
satisfazer a si mesmo?
ESTÁVAMOS QUASE ficando cegos
com a luz branca que penetrava na
nossa tenda nas horas mais brutais.
Seguir viagem era impossível no
calor do dia,
pois os ventos eram impiedosos e
poderiam cortar um homem em
pedaços.
Éramos gente da cidade extraviada
no deserto, andarilhos sem direção,
encalhados no território de
bandidos, ladrões e homens santos.
Vazio era como se poderia chamar a
terra desolada que atravessamos.
Não víamos
ninguém. Quando a lagoa de águas
claras desapareceu na areia, quando
até
mesmo a lama deixada para trás
tornou-se dura e ressecada, não
havia
nenhuma razão para permanecermos
no nosso acampamento.
Arrumamos os nossos poucos
pertences – a tenda de pele de cabra,
os
fusos de mão que usávamos para fiar
a lã, as facas e a chapa de ferro, um
pote em que ainda havia um pouco
de azeite, a lâmpada que acendíamos
para assinalar o shabat, embora
houvesse pouco azeite para fazê-lo.
Seguimos em frente, em busca de
água. Nós nos arriscamos a
prosseguir sob o céu escuro do
início da manhã, durante as horas
que eram menos brutais, antes que o
sol surgisse na escuridão. O nosso
percurso levou-nos a
um poço, mas o encontramos seco.
Ele nos levou a um pomar, mas era
estéril. As oliveiras tinham
murchado, sua casca prateada
transformara-se
em conchas vazias. Dizia-se que os
nômades que atravessavam esse
deserto
muitas vezes eram forçados a matar
seus camelos e beber o sangue
quente
quando não podiam conter a sede.
Não havia grama e até mesmo os
rebanhos de íbex, cabras selvagens
que não temiam escalar as falésias
rochosas, muitas vezes não se
aventuravam por essa terra áspera.
Apenas
os leopardos a frequentavam.
Embora fossem misteriosos e raros,
ocasionalmente avistávamos os seus
rastros. Esses eram os animais mais
rápidos de toda a criação, de uma
beleza sobrenatural, mas viajavam
sozinhos. Somente aqueles que
viviam desgarrados de todos os
demais da
sua espécie chegavam até ali.
Seguimos adiante, crentes sem nada
em que acreditar. Os nossos lábios
estavam tão secos que se racharam e
tornaram-se brancos. Sia esfregou a
última gota do azeite na boca dos
filhos – para que seus lábios não
sangrassem. Os dias amontoavam-se
como galhos, dobrados e inúteis.
Por
fim encontramos uma caverna para
nos abrigar da luz e do vento.
Continha
ainda uma lagoa de água turva, com
uma capa rendilhada sobre toda a
superfície imunda, no entanto
enfiamos nossos rostos nele como
cães. O
vento leste, Ruach Kadim, soprava
de Edom, flamejante com o calor.
Enrolamo-nos em lenços leves, de
um tecido fino feito de linho, mais
frio que a lã, talvez porque as canas
de que esse tecido era feito
cresceram em
pântanos e carregavam água na sua
trama. Velamos nossos rostos,
certificando-nos de manter as mãos
sobre os ouvidos. Ainda assim não
conseguíamos abafar o som do
deserto, o uivo de protesto contra a
nossa
presença como um ser vivo.
OCUPAMOS A CAVERNA por dias
a fio, exaustos e ressequidos demais
para continuar, receosos de
encontrar a guarnição romana que
patrulhava o
deserto. Queimamos galhos de
arbustos espinhosos que
encontramos para
espantar os chacais. Uma nuvem de
fumaça branca subiu da boca da
caverna, as cinzas atingindo nossos
olhos e nossas gargantas. Os
assassinos
saíram para caçar, mas não
encontraram nenhuma presa. Eles
oraram, mas
não havia nenhum alívio. Continuei a
cortar a minha perna com a pedra
afiada. Se não mantivesse o controle
da minha vida, ninguém mais o faria.
À
medida que o tempo passava,
começamos a enfraquecer de fome.
De novo
me perguntei quem entre nós duraria
mais que os outros. A nossa fome
nos
manteve extasiados e exaustos.
Dormíamos tantas horas que não
saberia
dizer a diferença entre as horas de
vigília e os momentos entregues aos
sonhos. Sonhei com Jerusalém, com
a minha mãe e com o flamboyant do
mercado. Essas imagens me
pareciam mais reais que o mau
cheiro da
caverna. Secretamente começara a
comer a terra úmida, nos locais em
que
a umidade se acumulava perto das
rochas. A minha pele ficou escura e
parecia que o deserto brotava de
mim, da mesma maneira que dizem
que a
terra se derrama quando se abre um
demônio com uma faca que tenha
sido
abençoada e limpa em água pura.
Uma noite, meu pai e Ben Simon
cortaram o pescoço do burro. Há
pessoas que dizem que os animais
não têm alma, mas ouvi o burro
gritar.
Sua voz era como a de qualquer
homem ou mulher implorando pela
respiração e pela vida. Mesmo
correndo para as falésias, ainda
podia ouvir
o seu eco. Os homens fizeram uma
oração, agradecendo a Deus pelo
que tinham se convencido de que
fora uma morte fácil para a pobre
criatura, pois haviam usado uma
faca ritual; depois acenderam fogo
com uma pilha
de galhos e assaram a carne. Eu
podia ver as poças do sangue escuro
do burro na encosta abaixo da nossa
caverna. As estrelas permaneciam
acima
de nós no céu. Algumas podiam ser
vistas claramente, outras se
mantinham
escondidas na escuridão das trevas.
Esperamos pela estrela da manhã, a
que chamávamos Cochav hashachar
e outros chamavam de Vênus,
aguardando que rompesse o céu com
as suas faixas de luz clara e
cintilante
e nos desse mais um dia.
Depois que comemos, senti-me
contaminada. Os ossos do burro
cozinhavam em uma panela sobre o
fogo para que pudéssemos ter
comida
até o shabat seguinte, se a
distribuíssemos em pedaços a serem
devorados.
Éramos como pessoas que tinham
regredido, bárbaros do deserto.
Existiam
nômades que viviam dessa maneira;
às vezes víamos evidências deles.
Eram homens selvagens, pagãos, de
rostos pintados; usavam lanças de
dois
gumes e seus chamados entre si eram
como balidos. Sua vida dependia
dos
camelos, que lhes davam carne e
leite, e também abrigo quando as
peles curtidas eram esticadas em
tendas. As suas mulheres davam à
luz sobre a
areia, deixando-as oleosas e pretas;
seus mortos eram deixados sobre as
rochas para os carniceiros; os seus
homens eram extremamente
perigosos,
pois seguiam um código próprio.
Ninguém que atravessasse o seu
caminho
era poupado. Alguns desses homens
tinham seis esposas e as mulheres
eram tratadas como burros,
maltratadas, usadas para as
transações.
Ben Simon encontrara os corpos de
duas dessas mulheres. Eram pouco
mais que crianças, provavelmente
ainda não velhas o suficiente para
sangrar com a lua. Deviam ter
tentado escapar da sua condição e
fugiram
até onde o deserto permitira. Ben
Simon os descobriu quando estava
caçando, enterrados sob um monte
de areia e pedra, de mãos dadas,
com os
olhos arregalados, abertos para o
Mundo Vindouro. As meninas tinham
cachos longos de cabelo negro e
usavam as túnicas índigo de tecido
tingido
do seu povo. Deitaram-se para
esperar a morte como a noiva espera
pelo
noivo, as palmas das mãos e as
solas dos pés adornados com hena
em
desenhos intrincados da cerimônia
thania, para que pudessem trazer
sorte ao homem que desposassem.
Talvez tivessem sido usurpadas pelo
marido
sem recurso ou ele se desfizera
delas. Talvez tivessem fugido juntas
antes
da cerimônia de casamento e se
perdido no caminho.
Eu estava limpando a panela quando
Ben Simon fez sinal para mim.
Segui-o, mesmo que não tivéssemos
nos falado desde que ele me avisara
do
perigo. Ele me levou para ver as
duas esposas. Não comentamos
nada, nem
mesmo olhamos um para o outro.
Imaginei por que ele me escolhera
para
compartilhar a descoberta, por que
me revelara o fato de a poeira ter se
levantado e então as mortas
apareceram diante dele, um
assassino feroz, que dera cabo de
tantos, que lavava o sangue das
mãos noite após noite, cujo rosto se
dividia em dois por uma cicatriz
irregular, e que tinha lágrimas em
seus olhos.
Ficamos ali parados, sob o céu
escurecendo, na hora em que a terra
se
tinge de azul-escuro. Era o momento
em que aqueles que vagueiam muitas
vezes veem miragens, jurando que as
rochas sobre as quais caminham
tornaram-se o mar. Talvez as duas
crianças-esposas se considerassem
resgatadas pelo mar dos mortos,
preferindo isso à vida que levavam,
em que eram mantidas como
animais, trocadas como moedas de
prata. De
repente entendi que Ben Simon
estava me dizendo que nunca me
levaria a
esse fim. Ele me protegeria e
cuidaria de mim. Meu destino se
revelou quando ele carinhosamente
enterrou as duas irmãs-esposas, tão
certo
como se o Livro da Vida tivesse
caído aberto diante de mim.
Eu nunca mais ia querer fugir dele.
TODAS AS NOITES eu me
enroscava na caverna,
permanecendo acordada até muito
tempo depois que os outros tinham
adormecido. Não era a única que
conservava os olhos abertos. Uma
noite, bem tarde, Jachim ben Simon
se aproximou. Ele se deitou ao meu
lado e passou os braços em volta de
mim.
Eu estava esperando por ele, mas me
senti atordoada demais para me
mover ou gritar. Ele me olhou ainda
mais profundamente do que fizera no
poço em que não havia nenhuma
água ou no túmulo das duas esposas.
Eu
sabia que ele me via de verdade.
Via que eu estava acostumada a
fazer o que um homem me dissesse
para fazer, que seguira o meu pai
para fora de
Jerusalém sem uma única pergunta.
Mas havia mais coisas dentro de
mim, e
ele via isso também. Via que eu
estava ardendo, que estava sozinha,
que era
encurralada pelo leão nos meus
sonhos, o anjo que estava esperando
e o fardo do meu nascimento.
Nós provavelmente morreríamos
muito em breve. Nossos ossos se
tornariam brancos sobre as pedras
brancas. Seríamos arranhados pelas
águias, levados por chacais.
Subiríamos com o vento e nos
tornaríamos
cinzas. Mas não agora. Ainda não.
Ainda estávamos vivos. Ben Simon
deslizou a mão por dentro da minha
túnica. Havia profundas veias azuis
em
seus braços que eu podia ver através
da escuridão. Podia sentir o seu
sexo
contra mim, excitado. Eu sentia
medo de que ele pudesse me rasgar
ao meio. Ao mesmo tempo, não
tentei impedi-lo. Estava queimando
da
maneira que as folhas das romãs
queimam no mês de Av. Elas estão
verdes
em um momento, em chamas no
instante seguinte. Sia tinha razão. Eu
era
como o flamboyant: quanto mais
queimava, mais viva ficava. Se ela
tivesse se inclinado sobre mim, teria
percebido o cheiro do fogo e seria
avisada, em
vez de me considerar sua amiga.
Ben Simon moveu a mão entre as
minhas pernas. Ouvi-me ofegar. Ele
rapidamente cobriu a minha boca
com a mão livre. Os outros estavam
do outro lado da caverna, não
deviam ouvir. Ele sussurrou que o
silêncio era a
única coisa que me pediria.
Concordei, e ele afastou a mão da
minha boca.
Meus lábios estavam quentes com o
seu toque. Queria saber uma coisa
antes do meu voto de segredo, antes
de engolir as minhas palavras e de
cumprir a minha promessa. Podia
sentir o encanto do silêncio me
envolvendo, mas, antes que fosse
completo, tinha apenas uma
pergunta.
Queria saber como ele chegara a ter
uma cicatriz no rosto. Parecia um
segredo para mim, e, se soubesse o
seu segredo, poderia conhecê-lo, e
então ele pertenceria a mim, mesmo
que fosse o marido de Sia.
Ele disse que era a marca deixada
por um leão. Encolheu-se quando
falou da lembrança. Os romanos o
capturaram fora do Templo quando
era
jovem e solteiro. Ele era alto e
musculoso, com braços fortes,
exatamente o
tipo de homem que eles queriam.
Estavam à procura de gladiadores e,
portanto, tinham concebido um teste.
Fecharam dez homens em um espaço
com um leão. Quem sobrevivesse
seria mandado a Roma. Os
primeiros
nove foram mortos, mas, quando
chegou a vez desse homem que
estava ao
meu lado, o leão cortou-o uma vez
no rosto, em seguida caiu aos seus
pés. A
criatura tivera morte súbita,
desmoronando de uma só vez,
espalhando-se
sobre o piso ladrilhado. Talvez o
leão tivesse sido ferido nos outros
combates, mas Ben Simon anunciou
aos soldados que matara seu inimigo
com um olhar. Foi uma visão tão
estranha que os romanos, perplexos
e confusos, passaram a discutir as
possíveis causas daquela
circunstância
incomum. Foi então que Ben Simon
conseguiu escapar, apesar da ferida
que
ainda sangrava.
Ficara chocado por ter matado uma
fera tão bonita, quando teria
preferido matar os soldados, porque
um dos nove que poderiam ter sido
gladiadores e que morreram diante
dele era seu irmão.
– A verdade é que eu era amargo –
ele me confidenciou, sussurrando em
meu ouvido, para explicar por que o
leão caíra aos seus pés. – O leão
não
gostou do meu sabor.
Corri a mão sobre o seu semblante
no escuro, imaginando como seria
ficar cara a cara com um leão.
Talvez a criatura tivesse percebido
algo nele,
um leão em forma de homem. Eu
choraria pela humilhação e pelo
sofrimento de Ben Simon nas mãos
dos romanos, mas o deserto secara
as
minhas lágrimas. Talvez eu fosse
amarga também.
Ele não teve pressa comigo naquela
primeira noite. Fez-me coisas que eu
não sabia que existiam. Beijou-me
por toda parte e pediu-me para fazer
o
mesmo com ele. Depois de um
tempo meu prazer estava em ouvir o
dele,
fazendo-o me segurar com força e
querer-me mais. Quando ele entrou
em
mim, meus olhos estavam abertos.
Vi a cicatriz deixada pelo leão e
soube que meus sonhos vinham me
contando a história da minha vida o
tempo
todo, tanto o que acontecera como o
que viria a acontecer. Ele podia ser
o
marido de outra, mas naquela noite
foi meu, o leão que eu sempre soube
que me encontraria. Eu deveria me
poupar para o meu marido, mas já
sabia
que nunca seria uma jovem esposa
cuja família esperaria para ver o
meu primeiro sangue depois da
nossa união. Em vez disso, só existia
esse
homem dizendo-me que era bonita. E
disse de tal maneira que acreditei
nele.
NÓS NOS TORNAMOS pessoas do
deserto no transcurso do mês de
Elul, envoltos em mantos para nos
esconder do sol, buscando o nosso
sustento ao longo
de todo o dia. Esquecemos os dias
de festa. Até mesmo o shabat era um
dia como qualquer outro, embora
fosse belo e santo e devesse ter sido
lembrado com alegria e louvor.
Todas as horas eram brancas, todos
ardendo iguais. Em breve o meu pai
seria o único que orava três vezes
por
dia, e em pouco tempo ele se juntou
a Ben Simon, orando diariamente
apenas ao amanhecer, voltado para
Jerusalém.
Em uma tarde afortunada, Ben Simon
capturou uma cabrita selvagem.
Porque o animal caminhou na minha
direção quando ele a trouxe para o
nosso acampamento, deu-a para mim
como um presente. A cabra pareceu
dedicada a mim desde o início,
implorando para ser acariciada,
seguindo nos meus calcanhares.
Fiquei tão lisonjeada que não fui
capaz de me
obrigar a abrir mão dela em favor
daquela a quem deveria pertencer
por direito. Sia era a esposa de Ben
Simon, a mais velha das duas; no
entanto,
quando chamou a cabra para junto
de si, acenando e gesticulando, o
animal
se recusou a obedecer, recuando e
investindo.
Eu mantinha o meu animal amarrado
com uma corda para podermos
beber o leite e fazer o iogurte a que
chamávamos lebben e outros
chamavam homes, usando o meu
lenço para torcer a coalhada,
batendo um
pouco do chem’ah amanteigado que
muitas vezes comíamos puro antes
de
ser transformado em queijo, pois na
nossa situação atual considerávamos
esse prato simples um banquete.
Cavava à sombra no local em que
havia uma antiga oliveira solitária,
atrofiada pelo vento. Lá encontrava
lama de onde tirava um pouco de
água escura e salgada. Podia então
fazer queijo, haris halab,
envolvendo a mistura em um pano
até que ficasse dura e pronta para
comer. Quanto mais pratos nós
tínhamos para as refeições,
graças ao leite da cabra, mais Sia
parecia sofrer e arder de inveja. Um
dia eu
a vi inclinada conversando com a
cabra, fazendo o possível para
convencer
a criatura selvagem a mudar sua
lealdade, mas a cabra apenas correu
para
o meu lado. Depois pensei se fora
nesse momento que Sia soubera.
Embora
ela cobrisse os olhos, pude ouvi-la
mais tarde soluçando. De algum
modo,
naquele deserto, onde não havia
umidade suficiente para as lágrimas,
ela ainda era capaz de chorar.
A ESSA ALTURA, eu tinha cortes
demais para contar; eles se
cruzavam como mariposas pairando
sobre a superfície da minha pele.
Encontramos alguns
viajantes perdidos no nosso caminho
e comerciávamos sempre que
podíamos. Tudo o que tivéssemos
que pudesse ser considerado
precioso –
o reservatório de couro fino do meu
pai, as pulseiras de casamento de
Sia –
era trocado por sal e cominho. Uma
vez, conseguimos diversas galinhas
magricelas e nos refestelamos como
reis, mas depois de terminar ficamos
apenas com os pés e os ossos. Um
prato tão magro acabaria por nos
servir
por um longo tempo. Passamos fome
e, em nossa fome, tornamo-nos
descuidados, como acontece muitas
vezes às pessoas perdidas.
Tínhamos
tão pouco que parecíamos não ter
ligação com esse mundo, se não
estivéssemos ligados um ao outro.
Quando minha hora chegou e
sangrei, usei a bainha da túnica
rasgada
como um pano entre as pernas. Não
havia mais nada. Estávamos nos
tornando selvagens, bem como as
tribos bárbaras que viviam no
deserto e
obedeciam a leis brutais. Viva se
puder, ou será deixado para trás com
os
idosos e enfermos, uma oferenda às
criaturas que rondam à noite.
Enrolei o
lenço azul que meu irmão me dera na
cabeça, mesmo que azul fosse a cor
usada pelas irmãs-noivas que
encontráramos enterradas no
deserto. Tudo
o que tínhamos era carregado nas
nossas costas. Tudo aquilo que
éramos
estava iluminado pela luz brilhante
do Todo-Poderoso. Vivíamos
porque
Ele permitia. Cada respiração
pertencia ao nosso Senhor, que nos
dera mais
um dia na terra.
AGORA, sempre que tentava
caminhar ao lado de Sia, ela
acelerava o passo. A intimidade
entre nós fora perfurada até o osso.
Quando cozinhávamos
juntas, ela não falava. Às vezes,
vacilava quando eu estava ao seu
lado. Uma
vez ela ficou nervosa e queimou a
mão na chapa posta sobre o fogo.
Quando
encontramos uma lagoa rasa no
acampamento seguinte, convidei-a a
tomar
banho comigo. Ela se recusou,
insistindo que tomaria banho
sozinha, mas
não foi. Em vez disso, ficou me
olhando de modo reprovador por
trás das
rochas, meu corpo jovem era uma
afronta para ela. Pude ouvir o seu
choro.
Poderia ter chorado se não tivesse
perdido a capacidade de fazê-lo,
mas decidira havia muito tempo, na
casa do meu pai, em Jerusalém, que
nunca
choraria novamente. A cabra logo se
tornou a minha única companhia.
Encontrei-me a falar com ela, até
que me lembrei de que era o que se
dizia
que as bruxas faziam. Então apenas
sussurrava, para ninguém ouvir.
QUANDO FINALMENTE
encontramos um lugar em que
poderíamos ficar por algum tempo,
com mudas de hortelã e algumas
cebolas amarelas
conseguindo crescer em um
desfiladeiro vizinho, procurei uma
caverna
mais elevada no penhasco, a fim de
isolar-me quando o meu período
viesse
com a lua. Uma mulher que
sangrasse era impura, o que era
chamado
niddah, e devia se afastar dos outros
por sete dias. Até mesmo uma única
gota de sangue que caísse obrigava a
mulher a se retirar do mundo dos
homens, até que se limpasse em uma
mikvah, a água que era pura,
correndo diretamente de Deus.
Afastei-me por conta própria porque
essa era a nossa lei, mas havia
outra razão também. Não podia mais
dormir no mesmo espaço que Sia.
Começara a pensar que ela
permanecia acordada no escuro
quando o
marido me procurava,
insistentemente agora, como se
cobrando algo que
lhe era devido. Perguntava-me se ela
cobria as orelhas, ou pior, se nos
ouvia. Pus-me à parte para escapar
de seus olhos curiosos. Na verdade,
preferia a solidão. Cobria a pele
com lama para me refrescar.
Desembaraçava o cabelo. As
estrelas eram mais brilhantes no
cume em que
eu acampava, elas salpicavam a
escuridão para preencher a noite. Já
vira mulheres que seguiam os
nômades, as segundas e terceiras
esposas que
eram banidas para andar somente
com as outras mulheres. Elas
também se
cobriam de lama. Embora devessem
seguir envergonhadas, eram ainda
mais bonitas que as primeiras
esposas, pois sua pele era branca,
amarela e
vermelha por causa da lama, e seu
cabelo ficava solto, caindo sobre as
costas, como a água. Pareciam
estranhamente orgulhosas pois, se
não
houvesse nada para matar a sede dos
homens, então havia pelo menos isso
disponível, seu corpo, sua alma.
Comemoramos o Rosh Chodesh, o
nascer da lua nova, que assinalava o
início do mês de Tishri. Bendito o
que falou e o mundo veio à
existência. Todo mês começava
como um reflexo das primeiras
palavras da Torá, com uma
nova vida, assinalada pelo
reaparecimento da lua. Até então
tínhamos
andado cerca de cinquenta dias,
evitando qualquer sinal de tropas
romanas. No Dia da Expiação
encontrei-me dominada pelo
sentimento de
culpa, horrorizada por pensar que
Deus sabia o que fazia à noite, que
havia
roubado algo que não me pertencia,
como se fosse um ladrão comum,
bem
como a assassina que meu pai
alegava que eu era. Meu pai e eu
tínhamos
pouco a ver um com o outro, embora
muitas vezes estivéssemos
confinados
em um espaço apertado e fizéssemos
as refeições juntos. Virávamos as
costas um para o outro. Ele tinha
pouca escolha a não ser comer a
comida
que conseguia pôr diante dele,
embora tivesse certeza de que ele a
considerava impura. Ouvira-o
recitar uma oração sobre sua bacia,
como os
homens fazem para espantar os
demônios.
– Acha que poderia matá-lo de
dentro para fora? – perguntei com
ousadia enquanto ele murmurava
sobre as verduras que lhe havia
preparado na refeição do meio-dia.
Ele me lançou um olhar asqueroso.
Estava curvado, frágil, de repente
um
homem idoso. Pela primeira vez o vi
por quem ele era, apesar da sua capa
de invisibilidade. Sabia que estava
quebrado. Percebi, então, que era a
oração pelos mortos que vinha
murmurando, as palavras que se
devem
dizer quando ocorre uma passagem:
Bendito és Tu, Senhor, nosso Deus,
Rei
do Universo. Desde a época do meu
nascimento, ele estivera e ainda
continuava de luto pela minha mãe.
Tudo pelo que eu me envergonhava.
Ele era o meu pai, não importava
quão cruel fosse, e eu não o honrara.
Celebramos a glória de Deus na
Festa dos Tabernáculos. Os homens
rezaram, mas não tínhamos uvas na
videira nem romãs vermelhas para
partir ao meio a fim de que o suco
caísse sobre as nossas bocas e
braços e
esse dia não foi muito diferente de
qualquer outro. Pouco depois o
tempo
começou a mudar. Por fim as aves
voltaram. Não percebera como o
mundo
estivera silencioso nos meses de
grande calor, até os bandos de
pássaros retornarem revoando acima
de nós. Aquela era a rota que
percorriam para
passar o inverno no sul, onde as
noites não eram tão escuras nem tão
frias.
Todo o céu encheu-se de bandos de
cotovias e pintarroxos vermelhos.
Havia verdelhas, rolas, brilhantes
rolieiros-da-abissínia, íbis
acetinados.
Havia colônias inteiras de gloriosos
abelharucos amarelos e turquesa,
que
cantavam uns para os outros, até
mesmo durante a noite. Acima de
nós não
parava de se deslocar uma enorme
paleta de cores, movendo-se em
direção
ao sul em busca das áreas
verdejantes. Às vezes eram como
nuvens ao nível
do horizonte, outras vezes ocupavam
o espaço inteiro do céu. Ver aquelas
ondas vibrantes de pássaros em tons
que iam do vermelho ao azul acima
do
deserto branco era como um
milagre. Eu mesma já não contava os
dias com
pesar, mas com alegria.
Até mesmo quando estava impura,
quando me retirava do convívio dos
outros, ainda mesmo que sua esposa
pudesse acordar à noite e descobrir
que ele saíra, Ben Simon não se
afastava de mim. Os homens
deveriam
evitar as mulheres durante aquele
período do mês, estava escrito no
Quarto Livro de Moisés, e portanto
era a lei. Mas desrespeitávamos
todas as
leis que nos coubesse desrespeitar
no deserto, e era a isso que tinha me
levado a iniciativa de cortar a minha
perna, pois fora a primeira lei que
ignorara. Não tinha mãe para me
chamar a atenção, mas, na verdade,
teria
desobedecido mesmo se a minha
estivesse viva para me advertir.
Uma lei
desobedecida levou à outra. Ben
Simon tornou-se impuro, manchado
com o
meu sangue do mesmo modo que se
manchara com o sangue romano
quando atingia os seus inimigos no
pátio do Templo. Estava acostumado
a
cometer crimes. Seu comportamento
era ao mesmo tempo carinhoso e
grosseiramente masculino. Quando
ele se punha ao meu lado, a mão na
curva do meu quadril, o sexo duro
de encontro ao meu corpo, não
conseguia ver nenhuma culpa em
seus olhos. Ele dizia que Deus podia
distinguir um pecador de um pecado,
e o que fazíamos estava além de
julgamento.
Sempre que descia da caverna, era
capaz de dizer se Sia sabia onde seu
marido estivera todas as vezes que
desaparecera do seu lado. Eu
percebia
pela maneira resignada que se
entregava ao trabalho, pela sua
carranca.
Não conseguia olhar nos olhos da
minha amiga. Tudo o que eu poderia
ter
sido para ela desaparecera. Da
garota que seguira para o oásis na
noite da
destruição do Templo já não havia
mais nem rastros. Aquela que trazia
cinzas no longo cabelo vermelho e
chorara pela perda da sua cidade e
do seu lar ficara para trás, no oásis
em que crescia a cidreira. A chave
que abrira o portão para o deserto
abrira Sia para a minha traição.
Provei a areia entre os dentes. Era
uma mulher do deserto agora, não
mais a excluída tímida e
envergonhada, uma garota da cidade
com medo de
escorpiões. Tornara-me uma pessoa
feroz, disposta a fazer qualquer
coisa
para conseguir o que queria. Era
assim que nasciam os caçadores.
Sentia essa selvageria dentro de
mim, uma vontade imperiosa antes
quase
imperceptível que resolvera
sobreviver. Se quisesse uma coisa,
ela se
tornava minha. Aproximava-me
sorrateira das aves migratórias e as
capturava com o meu lenço, às vezes
com as próprias mãos. Era astuta,
uma
leoa. Vira o modo que a víbora
negra do deserto hipnotizava um
pássaro, enrolando-se lentamente em
torno da sua presa antes da mordida
final que
o imobilizava.
O nosso povo acreditava que toda
criatura possuía uma centelha –
nitzotz – e por isso era sagrada, e
que devíamos demonstrar a bondade
e a compaixão por todos os seres, o
que chamávamos de baal chayyim.
Todos
os animais louvavam a Deus, assim
como nós, com as suas canções e as
suas vozes. Em meados do inverno,
dedicamos um shabat aos pássaros
para demonstrar a nossa gratidão e
reconhecer que foram a sua música
que
ensinou a humanidade a cantar e a
louvar a glória do nosso Criador.
Éramos até mesmo obrigados a
afugentar as galinhas antes de
coletar os seus ovos, para que não
vissem o que aconteceria aos seres
em gestação que poderiam ser a sua
prole. Quando precisávamos de
carne, devíamos
cortar a garganta do animal com um
único talhe perfeito, para permitir
que
o seu espírito subisse em um fluxo
constante de luz. Não deveríamos
consumir sangue de nenhuma
maneira, mas deixá-lo escorrer do
pescoço
da nossa presa, retornando à terra de
onde viera.
Mas eu testemunhara o modo que a
morte sobrevinha no deserto todas
as vezes que a víbora que esperava
nas sombras camufladas das rochas
praticava a sua refeição. Aprendera
a lição. Quebrava o pescoço das
aves, mas o fazia muito rapidamente,
e sempre murmurava uma oração.
Acomodava o corpo dessas criaturas
voadoras sobre os joelhos e
arrancava
as suas penas, ignorando o fato de
haver tirado a vida de seres tão
maravilhosos. O que não era capaz
de fazer? Que coisa amarga e brutal
não
estaria disposta a fazer? Na caverna
eu desenvolvera dentes e garras,
exatamente o que o meu pai dissera
que nos aconteceria no deserto.
Imprudente, já não me importava
com quem pudesse nos ouvir à noite.
Não
me importava se os olhos de Sia
estivessem inchados ou se meu pai
cuspisse no chão quando me via,
para se proteger, claramente
convencido
de que eu poderia manifestar
malevolência e atrair maldições.
Que
acreditassem em ouvir leões
descendo dos seus esconderijos nas
montanhas e fazer tais alaridos
selvagens tarde da noite. Sia não
significava
nada para mim. Os seus filhos não
eram meus. Quem sobrevivesse
dependia de nervos e músculos, e de
uma espécie tosca de vontade. Eu
possuía todos os três. Parei de
voltar à tenda para dormir e
permanecia na
caverna.
Era agora o Cheshvan, que alguns
chamam o mês amargo, o mês de
Noé,
mês em que a chuva inundou o
mundo assim como a minha paixão
inundara a minha cabeça. Permiti
que Ben Simon observasse a minha
nudez em pé sobre as rochas no topo
da caverna. Permiti que me levasse
lá
em cima para ver os falcões, para
que o Senhor de todas as coisas
testemunhasse, para que a sua
esposa visse se tivesse coragem de
olhar para os penhascos que eu
adorava. Meu amado deveria
aproximar-se
apenas até certo ponto, deixando
claro que eu deveria ser a única a
pecar.
Todo homem é tentado pelos
impulsos malignos; ele não seria um
homem
se uma centelha de desejo não se
manifestasse em seu íntimo. Mas
uma mulher que se permitisse
render-se ante tais humilhações seria
julgada
com severidade, porque estaria
repetindo o primeiro pecado do
paraíso
como uma das filhas de Eva, traindo
as leis de Deus para sua satisfação.
Aceitei isso. Já era uma criminosa, a
assassina da própria mãe, o desejo
não
era nada em comparação com um
pecado dessa natureza.
Quando Ben Simon me chamava
para perto de si eu corria para junto
dele como um cão, mas pelo menos
agora era um cão que escolhera seu
dono. Deixava que me possuísse
como os cães possuem um ao outro,
e
depois à maneira dos leões, face a
face, entrelaçados. Quando ele
insistia em que era obrigado a me
deixar, não o deixava ir. Satisfazia
todos os seus
desejos, oferecendo qualquer favor
para convencê-lo a ficar. Ardia
junto dele, quente e fluida em suas
mãos, os nossos corpos um escuro
emaranhado, pois havíamos nos
tornado animais para quem essa era
a
única língua. Lágrimas salgadas
picavam os meus olhos, mas não
caíam. A
nossa era uma espécie destruidora
de amor. Quando se sentia
humilhado
pelas próprias necessidades, Ben
Simon cobria-me de insultos, depois
chorava e me tomava novamente em
seus braços. Eu nunca tinha o
bastante dele, sabendo que em breve
me deixaria para voltar aos seus
familiares. Ele lhes pertencia. Nunca
me enganara quanto a isso. Ficava
olhando para as suas pegadas
quando partia e pranteava-o depois
que se fora.
ESSA FOI A ÉPOCA em que nos
lembramos da reconsagração do
Templo depois
da expulsão dos sírios, quando
Adonai permitiu que o azeite de um
único dia queimasse durante oito
noites para assinalar a nossa fé e o
nosso triunfo. Mas agora o Templo
estava perdido para nós e o nosso
azeite queimava em nuvens de
fumaça negra. As rochas eram os
nossos fornos
enquanto as chamas saltavam dos
poucos galhos retorcidos que
conseguíamos encontrar. Caía uma
chuva fraca que respingava sobre o
nosso fogo, de modo que até mesmo
cozinhar era difícil. O nosso
banquete
foi uma pomba que capturara com o
meu lenço. A criatura arrulhava
fazendo tirr tirr, uma linda canção
que soava como tor, a nossa palavra
para
“rola”. Notei que em cima de um
arbusto de murta o companheiro da
pomba a esperava. Mais tarde, na
estação em que as rolas migram para
o sul, perguntava-me se a que ficara
empoleirada no ramo partiria
sozinha ou
se ficaria e choraria. Pensei nas
palavras de Salomão para a sua
amada, Ó
querida minha, eis que és formosa;
os teus olhos são como os das
pombas. Vi a tristeza embaciando os
olhos escuros da pomba que ficara
empoleirada nos
arbustos, e uma ternura que nunca
observara na humanidade. Caminhei
em
direção à pomba solitária pensando
se deveria acabar com a sua solidão,
mas ela passou rapidamente para um
galho mais alto, as penas claras
brilhando, uma criatura adorável
demais para ser morta.
Uma porção de água foi o nosso
vinho naquela noite, pois não havia
uvas
nem tempo para tentar fermentar os
figos silvestres que às vezes
encontrávamos. Acostumara-me a
esse modo de viver e encontrei
consolo
no silêncio. Aprendera a amar o
perfume do deserto à noite, fragrante
e áspero ao mesmo tempo. Íamos de
um lugar a outro seguindo a
possibilidade de encontrar água,
correndo atrás dos rastros deixados
pelas
codornas. Continuei a viver afastada
dos outros para que Ben Simon
pudesse me procurar mais
facilmente, enquanto a esposa e os
filhos
dormiam. Uma vez em que Ben
Simon saíra para caçar, meu pai me
procurou para perguntar se era meu
desejo ser uma zonah. Senti como se
tivesse me dado um tapa. Ele me
comparava às prostitutas que viviam
em
torno de Jerusalém e se dispunham a
retirar o manto a quem quisesse
pagá-las, até mesmo soldados
romanos.
– Se isso é o que sou, então foi isso
que você fez acontecer comigo –
informei ao meu pai, o homem que
assassinara tanta gente com sua
adaga
curva, que me ignorara e me usara
como se fosse um cão, que não
vacilara
ao me trazer para o deserto, onde
não poderia ter um futuro diferente
do
que já fora escrito.
EU PARARA de contar os dias. Não
queria estar em outro lugar, mesmo
que ainda não houvesse nenhum
sinal do meu irmão e das fortalezas
dos judeus
rebeldes. O calor se dispersara e as
chuvas começaram para valer. Logo
haveria lagoas se formando nos
nechalim; pelas ravinas entre os
penedos passariam cachoeiras
iridescentes. Eu era como o
leopardo que vagava pelo
deserto, pensando apenas na
sobrevivência e no que precisasse
para passar
cada dia. Vi impressões na areia,
sempre de um felino único, nunca
dois juntos. Eles eram criaturas
solitárias que, quando encontravam
um
companheiro, começavam a gritar,
pois era atraídos um pelo outro,
embora
continuassem inimigos. Não eram
como os leões, que eram ligados por
toda
a vida e descansavam abraçados.
Uma vez me deparei com um
leopardo, embora um encontro
desses
fosse extremamente raro. Permaneci
em silêncio ao lado de algumas
rochas
onde as aves nidificavam, à espera
da chegada de alguma para que
pudesse
apanhá-la. Olhei para cima e lá
estava o leopardo amarelo com as
suas manchas pretas, grande, com
certeza forte o bastante para me
matar. Meu
coração disparou. Fui tomada por
um enorme desejo de viver. Postei-
me
em cima de uma pedra e levantei
meu xale, procurei parecer feroz, o
cabelo
vermelho voando atrás de mim, o
rosto em uma careta de rosnado, e
gritei
como um leopardo. A criatura olhou
para mim, assustada, então correu
para longe. Desapareceu entre as
rochas, depois disparou na planície,
onde
parecia deslizar sobre a terra. Eu
tremia sem parar, atordoada ante a
minha
ferocidade. Assim era eu agora.
Uma criatura que não dava a mínima
para a
fome do outro, que só pensava em si
mesma.
Ficaria feliz em levar essa vida para
sempre. Esperando pelo escurecer
para ter Ben Simon quando pudesse,
mas não era esse o modo pelo qual
as
coisas foram escritas. No fim do
mês de Kislev, quando as nuvens se
recolheram e as noites esfriaram, os
filhos de Sia adoeceram. A má sorte
espreitava todas as vezes que
comíamos alimentos que não haviam
sido
abençoados ou quando bebíamos das
lagoas paradas. Tínhamos deixado
um lugar em que havia demônios e
talvez alguns nos tivessem seguido
pelas portas do Sião. As crianças
eram meninos doces, sempre prontos
a me acompanhar à procura de figos
no solo fértil das ravinas, pelo
menos até a mãe protestar e não
mais permitir que me
acompanhassem. Quando
perguntei se poderia ajudar com as
crianças doentes, Sia fez-me saber
que
não havia nada que pudesse fazer.
Eles não eram meus filhos, ela me
disse.
Vi a dor estampada em seu
semblante, mas não me ofereci para
compartilhá-la, porque ajudara a
causar o seu desespero. Era claro
que não
me quereria por perto.
Dia após dia os meninos ardiam de
febre, embora o ar se tornasse mais
frio. Logo as crianças emitiam sons
roucos quando tentavam respirar.
Tênues marcas vermelhas
espalharam-se sobre a pele. Podia
ouvir o choro
de Sia quando recusavam a sopa de
ervilhas escaldadas que ela lhes
oferecia. Ela clamou a Adonai que a
levasse em lugar dos filhos. No mais
fundo do meu coração, desejara a
mesma coisa. Era terrível, mas era
verdade. Sentia a minha desgraça,
mas queria que Sia partisse. Essa
era quem eu me tornara e quem o
meu desejo fizera de mim. Agora,
quando pensava sobre quem seria o
primeiro a morrer, imaginava que
seria ela.
Se você não for capaz de ser brutal
no deserto, nunca sobreviverá. Isso
era o que dizia a mim mesma e em
que acreditava. Eu não era um burro
ou
uma menina inocente, ou mesmo uma
mãe preocupada ou um menino com
febre alta. Era uma mulher de cabelo
vermelho que encarara um leopardo.
Falava com uma cabra na montanha.
Vi que Ben Simon se sentava para
vigiar os filhos, os traços toscos do
seu semblante transformados pela
preocupação. Aproximei-me dele,
curvei-me à sua frente e pedi para
cuidar
de seus filhos. A curva de um
sorriso formou-se no canto de sua
boca e ele
acariciou o meu cabelo, mas disse
que a vida deles estava nas mãos de
Deus, não nas minhas.
Sia assistiu à cena, o rosto pálido.
– Deixe-me mostrar o que posso
fazer – insisti.
Em um único dia, capturei três
galinhas selvagens e cozinhei-as no
fogo.
Encontrei água em uma fonte que
alimentava um sicômoro egípcio e
arranquei a fruta cor de laranja. Fiz
uma sopa saudável para os meninos,
em seguida cortei a fruta do
sicômoro em fatias finas e frias para
manter contra seus lábios febris.
Sia não pôde me censurar. Não tinha
escolha a não ser assentir sem
expressão e aceitar os meus dons.
Dediquei-me toda à sobrevivência.
Apliquei minha vocação e minha
arte, ao contrário do meu pai, que
passava
o tempo de braços cruzados olhando
em direção a Jerusalém enquanto o
céu passava do branco ao azul. Ele,
que matara uma dezena de romanos,
que era um rebelde e um renegado,
estava sendo superado pela Judeia,
abatido pelo vento e pela fome que o
deixaram impotente. Agora que as
crianças haviam adoecido, vivia
apavorado, cantando ao Todo-
Poderoso ao
longo do dia. Não que se
preocupasse com os meninos, era a
própria pele
que o preocupava. Insistia em que os
demônios poderiam passar de uma
pessoa a outra com um toque ou uma
respiração. Eu tinha desprezo por
ele
e me afastava. Quando ele me pediu
água para lavar as mãos, disse-lhe
para
encontrá-la por si mesmo, cavando a
areia como eu fizera.
Importava-me apenas com um
homem, aquele que enfrentara um
leão.
Mas temia que tivesse amolecido
demais e fosse recuperado pela
esposa e
pela família. Ele parara de me
procurar à noite. Na minha caverna,
eu tremia sozinha. Sofria e
espreitava por trás das rochas. Ele
sentava os filhos
ao lado de um fogo feito de galhos
que eu catara, tomava a sopa que eu
fizera, bebia a água que eu cavara
debaixo do sicômoro. Eu os estava
curando uns para os outros. Uma vez
o vi pegar a mão de Sia na sua
grande
mão e levar-lhe a palma à boca.
Tinha o direito de fazê-lo, era sua
esposa,
mas ardi em meio a uma névoa de
ciúme. Não podia tomar a sopa que
preparara. Não bebia a água que
encontrara sob as raízes do
sicômoro.
Sabia pela conversa das mulheres
junto ao poço em Jerusalém que era
possível ligar um homem a você e
impedi-lo de se afastar. Era um ato
de sangue, diziam elas, receosas de
tais coisas, mas o sangue não me
assustava. Encaminhei-me sozinha a
um lugar em que vira serpentes
negras, onde havia um bosque de
maçãs amarelas cujas sementes
fibrosas e
compridas serviram como pavios
quando não tínhamos gordura de
perdiz
suficiente para usar como a luz do
shabat. Agachei-me sobre as minhas
ancas e desenhei o rosto de um leão
no chão com um pedaço de pau, em
seguida circulei-o com pedras, que
manchei com listras do meu sangue
menstrual. Queria manter o meu leão
enjaulado e desse modo imaginava
que poderia fazê-lo. Não tinha mãe
que me ensinasse a mais simples das
curas, mas o meu feitiço foi bem-
sucedido. Ben Simon procurou-me
naquela noite. Ainda me queria.
Amarrei o cabelo com o cachecol
azul. Fui
cuidadosa e silenciosa, grata em
demasia. Tudo parecia frágil nesse
momento. O que havia entre nós
crescera até se desabrochar em uma
flor, a
flor vermelha do flamboyant, que
mancha os dedos quando a pegamos,
torcida como uma videira que pica a
pele.
– Não devia estar aqui – disse ele.
O mesmo se aplicava a mim, e eu
devia tê-lo dito. Em vez disso, fui
até
ele e não nos negamos nada. Nenhum
de nós deveria estar naquele
deserto,
mas, como fora escrito que
deveríamos viajar por lá, fora
escrito que ele me
procuraria. Não queria outra coisa
senão as mãos dele em mim, a sua
boca
na minha, o seu corpo e o meu
tornando-se um só. Era assim que eu
me sentia viva. Imaginava se talvez
tivesse lançado um feitiço sobre
mim e se
essa fosse uma maldição pela qual
teria de pagar finalmente. Deveria
ter permitido a Ben Simon cuidar da
esposa e dos filhos, mas não o
deixei ir.
Um leopardo sabe o que é, e não
calcula a agonia e o medo da sua
presa, corre porque é feito para isso,
e tem o que precisa.
Talvez fosse melhor quando eu era
invisível, quando os homens
passavam por mim e desviavam o
olhar, quando ficava em casa como
um
cão. Mal me reconhecia agora. Mas
sabia o que queria. Quando saía
caminhando por entre as rochas, com
os pés descalços, deixava um rastro.
Ele sempre o seguia para me
encontrar. Ainda assim, esse não era
um
pecado para ele carregar, pois toda
vez que me procurou eu nunca me
neguei.
AS NOITES tornaram-se mais frias e
o ar ficou azulado, varrendo o
Grande Mar, trazendo chuvas nos
bancos de nuvens. No entanto, a
febre dos
meninos ainda não diminuíra. Eles
permaneciam doentes. Seus lábios
estavam inchados e brancos. Seus
olhos haviam rolado para trás e eles
falavam com espíritos. Nós os
observávamos inquietos, temendo o
pior.
Haviam chegado a um ponto em que
não comiam nem bebiam. E então um
dia, quando nos ramos da
tamargueira brotaram flores cor-de-
rosa e viam-
se tufos de sálvia crescendo entre as
rochas ao longo da falésia, Sia
adoeceu. Ela jurou que não havia
nada de errado com ela, mas tremia
e se
recusava a comer. À noite ela se
deitou ao lado dos filhos e, quando
veio a
manhã seguinte, não se levantou do
chão. Levei-lhe água e ela aceitou,
mas
o modo que me olhou foi terrível.
Quando ela apertou a minha mão,
pensei
que estava prestes a me amaldiçoar.
Em vez disso, ficou olhando nos
meus
olhos com uma intensidade febril.
Não sei se encontrara o que
procurava,
mas talvez sim, pois me perguntou se
cuidaria dele caso viesse a morrer.
Soube que falava sério. Abaixei a
cabeça e prometi que o faria.
– Sim, é claro que vai cuidar – ela
murmurou. Não parecia revoltada,
mas
uma mulher que se rendera e não
precisava mais se preocupar com os
detalhes de quem permaneceria na
terra, a não ser pela certeza de que o
marido a quem amava seria amado.
Depois disso não conseguia mais
olhar para ela, a minha única amiga,
que fora tão boa para mim. Ajudei o
melhor que pude, agachando-me ao
lado dela com um pano umedecido
para refrescar sua pele em brasa.
Fervi
um chá de urtiga e hortelã, mas ela
não conseguiu beber. Fiz um caldo
com
os ossos e a carne de uma perdiz,
mas ela balançou a cabeça e me deu
as
costas. Nunca cuidara de ninguém,
nem atendera a doentes ou
moribundos.
Ela se deixou ficar sem queixas,
assim como as crianças, que gemiam
baixinho. Em Jerusalém, podia-se
pagar pelas minim para que
entoassem seus cantos secretos. Elas
rezariam pelas curas do Infinito e,
como mestres
da pharmaka, tinham acesso a
medicamentos que podiam curar
cegueira, dores de cabeça, febres. A
raiz da peônia podia ser esmagada e
digerida por
aqueles que tinham convulsões; a
cera quente parava um sangramento.
As
minim escreviam o nome do Todo-
Poderoso mil vezes, guardavam o
pergaminho dentro de um rolo de
couro, com orações misteriosas tão
particulares que só podiam ser
sussurradas a Deus. Se eu pudesse,
teria procurado uma das mulheres
dos corredores do mercado como a
que
recorri para o amuleto de Amram,
pois muitas vezes elas tinham acesso
a
magias secretas e eram capazes de
recuperar uma vida que o Anjo da
Morte
parecia pronto a arrebatar.
Mas não tinha ninguém a quem
pudesse pleitear uma cura. Não
tínhamos nada além de poeira. O
tempo se passou, mas a febre não.
Até eu
sabia que um corpo não poderia
conter tais demônios por muito
tempo.
Uma noite, Ben Simon não me
procurou. Fui ao lugar em que a
tamargueira crescia. As rochas que
tão cuidadosamente colocara
estavam
embaralhadas, talvez por camelos
selvagens ou chacais preparando um
antro para a noite. De qualquer
modo, o feitiço fora quebrado.
Voltei ao acampamento e encontrei-
o abraçado aos filhos, chorando.
Então soube
que estava enganada. Uma pessoa
realmente era capaz de chorar no
deserto, até mesmo uma marcada
pela mordida de um leão. Naquele
momento entendi quem eu era para
ele. Não vinha em primeiro lugar,
nem
em segundo, ou mesmo em terceiro.
Isso não diminuiu a intensidade do
que eu sentia ou quem ele era para
mim.
Mas eu soube.
Apenas uma coisa eu poderia fazer
para agradá-lo. Quando disse a Ben
Simon que partiria para encontrar
uma cura, ele me abraçou. Sorvi a
sua gratidão como se fosse água.
Queria partir sozinha, mas ele não
permitiu.
Uma mulher no deserto era como um
pássaro em uma armadilha, à mercê
de qualquer um. Ele insistiu para
que meu pai me acompanhasse e,
embora
meu pai pensasse tão pouco de mim,
concordou, talvez somente para fugir
daqueles que estavam mal.
Ben Simon entregou-me sua faca, a
mesma que usara para eliminar
tantas vítimas. Viam-se manchas de
ferrugem ao longo dela, mas a
lâmina
de prata era tão afiada que, mal
rocei a mão em sua borda, brotou
sangue
do meu polegar. Guardei a faca na
túnica, acondicionada dentro de uma
peça de lã, amarrada com um cordão
feito do pelo torcido da minha
cabra.
Ben Simon fez questão que eu
levasse o meu animal de estimação
comigo,
para que o leite nos sustentasse se
não encontrássemos nada. Entregou-
me
o frasco em que carregava água e o
último dos bolos de cevada. Aceitei
todas essas coisas, embora sentisse
um impulso de devolver tudo. Como
um presente assinalando um começo,
assim também tudo aquilo
significava um fim. Acontecia
alguma coisa enquanto nos
despedimos. Ele dava-me tudo o que
tinha e ainda uma cortina
interpusera-se entre nós.
Senti a garganta se fechar, o coração
bater forte no peito. Olhei para o
rosto
do meu amado, mas ele não via mais
o meu íntimo. Eu me tornara
transparente, nada mais significando
para ele do que o ar. Foi como no
dia
em que saímos de Jerusalém, antes
de ele me ver peneirando a lama
para
obter água, antes de saber o meu
nome. Pensei que talvez esse fosse o
modo de um assassino dizer adeus,
ferozmente e com dignidade. Não
fazia
ideia de que ele era capaz de ler o
que já fora escrito.
SAÍMOS QUANDO a manhã ainda
estava escura e viam-se falcões
espiralando no céu.
Meu pai e eu partimos sem saber
quanto tempo demoraríamos para
encontrar uma cura ou se realmente
havia alguma a ser encontrada. Não
podíamos confiar em nada e por
boas razões. Poderíamos tanto ser
assassinados como chegar a algum
lugar habitado. Bandos de ladrões
ocupavam as cavernas por toda a
Judeia. Havia escravos fugidos,
ladrões, rebeldes sem nada a perder.
O deserto era enorme. Cada
penhasco de
calcário se parecia com os que já
tínhamos ultrapassado. Demos
voltas, perdidos, por vários dias,
para evitar os soldados da legião
romana, a cabra
que eu levava balindo para nos
advertir do nosso erro. Houve quem
vagasse por ali eternamente, nunca
mais sendo visto por pessoas
civilizadas. Ouvira histórias
contadas pelas mulheres junto ao
poço em
Jerusalém de uma garota perdida
que vivera com as hienas,
acompanhando-as e comendo
carniça, dormindo entre elas e que,
quando
fora encontrada, tinha os dentes
afiados, tendo deixado de ser
humana.
Quando passamos pelos mesmos
penhascos pela terceira vez, não tive
outra escolha: peguei o lenço que
meu irmão me dera e rasguei-o em
tiras
de seda. Em seguida, amarrei as
tiras azuis como sinalizadores nos
espinheiros, para ajudar a guiar
nosso retorno.
Depois de alguns dias de jornada,
surpreendi-me quando meu pai me
dirigiu a palavra. Não esperava que
o fizesse, até porque não tinha nada
de
bom a dizer. Ele me passou um
sermão, culpando-me por atrair Ben
Simon
como se estivesse convencido de
que eu era o leão que devorara
aquele homem, separando-o da
esposa. Encarei-o em desafio,
imaginando o que
pensaria se eu fosse embora e o
deixasse para se defender por si
mesmo.
Ele continuou dizendo que, se os
meninos de Ben Simon
sobrevivessem,
deveriam a mim a sua vida e seriam
meus filhos tanto quanto de Sia. Seus
olhos brilhavam de raiva.
– Talvez, então, Deus a perdoe.
Não me defendi. Muitas vezes
passava a mão pelos cortes
gravados em
minha pele, que assinalavam o
tempo passado no deserto, tendo
parado no
dia em que Ben Simon me procurara
pela primeira vez. Para falar a
verdade, saíra novamente para o
deserto em busca de uma cura como
um
pretexto para trazê-lo de volta para
mim. Não pensara nos meninos ou
em
Sia até aquele momento. Por isso
Deus não me perdoaria.
Meu pai e eu acampávamos ao
anoitecer. Naquela estação, as noites
eram frias e eu seguia juntando
galhos pelo caminho, para acender
uma fogueira à noite. Quando não
havia outro combustível,
queimávamos o
nosso excremento e o da cabra, e a
fumaça cheirava abominavelmente.
Cercada por aquele fogo terrível,
temia que tivéssemos nos afastado
de Deus. À noite dormíamos
sentados, um de costas para o outro,
envolvidos
pelos nossos mantos, as dobras do
tecido carregadas de sujeira.
Ouvíamos
as criaturas no escuro, cães
selvagens e chacais, uma vez um
urso
encaminhando-se desajeitado para a
sua caverna. Aquela era uma rota
muito pouco percorrida, pois não
víamos nem sinal de água.
Ouvíramos
falar sobre o destino de Sodoma, um
lugar que fora destruído por um
incêndio ocasionado por um raio. As
pessoas comentavam sobre a
existência de árvores carregadas de
belos frutos, mas, uma vez
arrancados,
os frutos transformavam-se em
fumaça e cinzas em suas mãos. Nas
horas
da luz do dia, cada respiração
queimava. Não ousávamos nos
aproximar de
nenhum oásis, temendo ser
encontrados pelos romanos. A cabra
não
recebera água por tantos dias que já
não podia dar leite. Ela se encolheu
ao
meu lado. Seus cascos estavam
cheios de pedras, que fiz o possível
para arrancar. Ainda assim, quando
insisti em prosseguirmos, pensei ter
ouvido
seu choro.
Tínhamos chegado tão longe que
apenas uma única tira do meu lenço
restava. À nossa retaguarda, um
mapa de pontos azuis indicava o
caminho
pelo deserto de volta a Ben Simon.
Nossa jornada parecia impossível,
pois
não víamos nada além de penhascos
brancos à nossa frente. Meu pai fez
uma careta, reclamando que devia
ter previsto isso, pois eu só trazia
má sorte. Mas então chegamos ao
topo de um penhasco e à distância
tivemos
uma visão que fez nossos corações
se elevarem. Era o Mar de Sal, um
horizonte de azul vívido. A água era
de cores variáveis: um instante era
azul, depois verde, e por fim de uma
tonalidade de ardósia. As nuvens se
aproximaram e a superfície ficou
preta, por isso os romanos o
chamavam
Asphaltitis, pois apresentava trechos
negros semelhantes ao asfalto. Mas
para nós parecia o céu, tão azul que
tivemos de piscar várias vezes para
conter as lágrimas.
O mar parecia estar tão próximo que
imaginei que poderia estender a
mão e tocá-lo, mas meu pai disse
que era uma caminhada de mais
alguns dias. Advertiu-me que a
distância era uma ilusão que
enganava muitos
homens, até mesmo grandes sábios,
levando-os a caminhar para a morte.
Tão certos estavam de que se
encontravam a poucos momentos do
mar que
partiam debaixo do sol brutal em um
curso que os levaria diretamente a
Mal’ach ha-Mavet, o Anjo da
Morte, que se dizia ter mil olhos,
nunca perdendo de vista uma única
de suas vítimas.
Os dias se passaram rapidamente
sob o sol ardente enquanto
seguíamos
pelo antigo caminho em direção ao
mar. Passamos pelas ruínas de um
povoado de onde era possível ver a
lua dobrada ao se refletir no Mar de
Sal.
A povoação fora destruída pelos
romanos. Pretendia ser um paraíso
construído pelo Yahad, um grupo de
crentes da seita dos essênios, os
judeus que praticavam códigos
rígidos com horários fixos de
oração. Dizia-
se que o nosso povo fora dividido
em quatro partes, cada uma com sua
filosofia, e depois dividido mais
quatro vezes para compor o cenário.
Verdadeiramente justos, os essênios
realmente tinham se isolado de todos
os outros.
O nome que davam ao seu oásis era
Sechacha, que se poderia traduzir
por “cobertura”, pois suas casas
eram cobertas com as folhas largas
das tamareiras. Eles foram para o
deserto como verdadeiros crentes,
abandonando a vida confortável em
Jerusalém. Haviam previsto a queda
do
Templo e fugido para lá, no intuito
de esperar o Fim dos Dias, e passar
suas
últimas horas entregues a cânticos,
seus escribas trabalhando em rolos
de
pergaminho para assegurar que sua
verdade não se perdesse quando o
mundo acabasse. Os essênios
proibiam ídolos, como fazíamos,
mas eram
muito mais rigorosos em suas
práticas e nem sequer tocavam em
uma
moeda que tivesse uma efígie.
Acreditavam que nenhum homem
deveria
ser o rei. No entanto, não tomariam
armas nem lutariam contra seus
opressores. Estávamos todos nas
mãos de Adonai, insistiam, portanto
flechas e lanças não faziam sentido.
Segundo sua crença, existiam os
filhos
das trevas e os filhos de luz, e a
verdadeira batalha a ser travada na
terra
era permanecer na luz e louvar
aquele que tudo sabe, Elohim.
Avistamos as ruínas do que fora o
seu aqueduto e a represa sob uma
cachoeira, onde bebemos
longamente, apesar de a lagoa estar
entulhada
com os destroços do assentamento
que os romanos haviam destruído:
lâmpadas de azeite e vasos de vidro
quebrados, tinteiros de cerâmica,
pilhas de ostraca – cacos de
cerâmica quebrada utilizados para
escrever.
Viam-se ainda altos carvalhos e pés
de louro que ofereciam relativa
sombra, mas tudo o que havia sido
feito por mãos humanas fora
esmagado.
Vigas caídas de madeira talhada de
palmeiras e as folhas utilizadas para
os
telhados achavam-se amontoadas em
pilhas. Caminhei através do
scriptorium, uma biblioteca cujas
prateleiras e colunas se espalhavam
pelo chão. Pedaços rasgados de
pergaminhos de pele de cabra ou de
papiro
jaziam no chão, apodrecendo e se
esfarelando. Segui pelo calçamento
de pedras para ver as casas de
banhos rituais circundadas por
largos degraus
de gesso. No momento viam-se
cobras nesses lugares, fazendo
ninhos junto
às piscinas de água fétida.
Finalmente cheguei às pilhas de
ossos, restos dos fiéis. Embora fosse
indigna, rasguei as minhas roupas
esfarrapadas no ato de keriah, como
um sinal de respeito e luto, e
murmurei uma oração pelos mortos.
Que o Seu grande nome seja
louvado. Bendito seja, para todo o
sempre.
Encontrei o caminho de volta para a
fogueira que meu pai tinha
acendido. Passamos a noite nesse
oásis, sabendo que os romanos
evitariam
esse lugar e os fantasmas daqueles
que tinham assassinado, mas os
chacais
famintos seriam atraídos pelo medo
no nosso cheiro. Certamente
estiveram
ali antes, pois os ossos dos mortos
estavam espalhados tão amplamente
que não seria possível recuperá-los
para armazená-los em um recipiente
de
pedra, como lhes era devido.
Entreolhamo-nos, meu pai e eu, e
talvez nos
tenhamos visto por um prisma
diferente, com as estrelas
penduradas em
cima e os ossos brilhando à nossa
frente. Meu pai não me repreendeu
naquela noite. Em vez disso, disse-
me que deveria ser a primeira a
dormir,
tendo decidido que ficaria de guarda
para observar se algum animal se
aproximasse. Era o primeiro gesto
de bondade que jamais fizera em
meu benefício.
PROSSEGUIMOS CEDO no dia
seguinte. Talvez um anjo tenha nos
conduzido em nossa jornada.
Encontramos o nosso caminho para
o sul, na direção das nascentes. Era
ali que os essênios de Sechacha iam
buscar água para a sua
povoação. Tomamos um caminho
cercado por arbustos. A cabra,
agora
faminta, mastigava as folhas que
eram espinhosas e marrons. No
entanto,
quando avançamos mais,
encontramos brotos verdes entre as
rochas. A
brisa refrescou, carregando a
fragrância do bálsamo e o cheiro
suave, quase
imperceptível, da água. De imediato
reconheci o zumbido das abelhas.
Fazia
tanto tempo que não ouvia a sua
canção adocicada que quase
desfaleci.
Tínhamos chegado a um oásis em
que uma fonte brotava do chão e
cresciam tamareiras muito altas. O
ar era um bálsamo refrescante, tão
doce
que parecia que havíamos entrado
em uma nuvem de perfume, com
grande
intensidade de aromas de mirra e
coentro. Encontráramos as pessoas
do
grupo Yahad que haviam
sobrevivido, estabelecendo-se ali
para esperar o
Fim dos Dias.
Na clareira suas videiras e seus
jardins luziam brilhantes contra o
céu branco de tão quente. A beleza
do mundo explodia em cada planta
que
crescia. Via-se um campo de trigo e
linho, amarelo e dourado, refletindo
o
sol como se estivesse em chamas.
Ouvimos sinos, que pendiam das
árvores
em cordas pretas retorcidas, soando
ao serem movidos pela brisa. Vimos
dezenas de amoreiras e oliveiras
circundando um poço de pedra ao
lado de
um bosque de pistache que tornava a
neblina verdejante. Umas quarenta
cabras ocupavam um cercado
erguido na sombra, enquanto outras
quarenta cochilavam ao sol.
Muitos entre os essênios tinham sido
sacerdotes, alguns viviam sem
mulheres nos penhascos de calcário,
as suas cavernas repletas de
mezuzoth, recipientes de
pergaminho contendo orações a
Deus. Esses homens eram puros
demais para ter contato com os
afazeres da vida
mundana, mas também havia homens
que chegaram com esposa e filhos,
as
mulheres vestidas com linho branco,
a cabeça coberta em todos os
momentos. Moravam em grandes
tendas com a família, alguns fugidos
de
Sechacha, outros tendo chegado
recentemente de Jerusalém após a
destruição do Templo.
As pessoas nos observaram
enquanto avançávamos pela
povoação. As
casas eram comunais e feitas de
pedra, além das casas de banhos
rituais e
das bibliotecas em que estudiosos
trabalhavam para completar os
documentos, dividindo-se em grupos
de três, para trabalhar nos
pergaminhos escritos em peles de
animais ou sobre papiro ao longo do
dia
e da noite. Talvez meu pai e eu
parecêssemos demônios, feitos de
areia, em
vez de gente de carne e osso. Nossos
olhos se projetavam nos nossos
rostos
sujos. Meu cabelo era como um
trança de sangue torcida sobre as
minhas
costas, àquela altura chegando à
minha cintura. Algumas mulheres
pestanejaram quando me viram, mas
nenhuma delas escarneceu de nós.
As
pessoas da seita Yahad praticavam a
bondade durante o que acreditavam
ser os nossos últimos dias neste
mundo. O que pertencia a um homem
também pertencia ao seu vizinho.
As mulheres aproximaram-se para
nos cumprimentar. O tecido que
produziam em seus teares era tão
leve que suas vestes voavam em
torno delas. Eu ansiava por lençóis
de linho para enrolar meu corpo
para que ninguém me visse. Quem
sabe, então, fosse capaz de suportar
a intensidade
da luz ofuscante de Deus quando Ele
não pudesse me perdoar por tudo o
que fizera.
Embora aquelas pessoas santas
houvessem perdido muitos dos seus
nas
mãos dos romanos, pois revelaram
que a povoação de Sechacha fora
conquistada e arrasada antes mesmo
da destruição do Templo, os
essênios
não se interessavam em portar
adagas, que consideraram uma
afronta à
grandeza de Deus. No mesmo
instante, meu pai tomou a decisão de
não
lhes contar que era um dos sicários.
Aquelas pessoas consideravam os
sicários partidários das trevas,
serpentes que desafiavam Adonai.
Ele apenas anunciou que estávamos
entre os que foram expulsos de
Jerusalém,
um pobre pai e sua filha, que então
se tornaram pessoas errantes.
Quando
mencionamos que a mãe e os filhos
que nos acompanhavam haviam sido
acometidos de febre, as mulheres
essênias se compadeceram e
imediatamente decidiram nos ajudar.
Uma delas, que se identificou como
Tamar bat Aaron, conduziu o meu
pai a um homem culto, um sacerdote
cujos seguidores o chamavam de
Abba – pai –, um mestre de virtude
cujos
conselhos as pessoas seguiam mais
por satisfação que por dever.
Abba era tão velho que precisava
ser levado a todos os lugares em sua
cadeira, carregado por quatro
homens fortes; tão puro que Tamar
nos
segredou que devíamos nos
acomodar a uma distância de
sessenta
comprimentos de braço dele, a
distância mantida por todas as
mulheres, a
cabeça coberta, os olhos baixos
ainda que atentos, pois, embora as
mulheres não fossem incluídas nos
aprendizados rígidos dos essênios,
elas
se regozijavam em ouvir o grande
homem falar. Outro sacerdote da
magnitude de Abba teria nos dado as
costas, ocupado demais nas suas
orações para ser incomodado com
os nossos apelos. Ou, então, um
homem
assim poderoso talvez concordasse
em nos ouvir se levássemos alguma
prata em troca do seu favor. Mas
Abba estava convencido de que
todos os
homens eram seus irmãos. Era um
seguidor de um mestre da Galileia
que
ensinava que a paz era a única
esperança para a humanidade. Sem
ela, éramos como os chacais no
deserto, nada mais.
Ao meu lado, Tamar sussurrou-me
que Abba tivera dez esposas e que
sobrevivera a todas elas; agora
passava os dias dando glória a Deus
e ministrando os ensinamentos da
paz. Os homens ali oravam três
vezes ao
dia: pela manhã, pondo-se de frente
para a direção de Jerusalém,
novamente ao pôr do sol, e por fim
depois do anoitecer. Levavam o que
era
mais sagrado dentro de si mesmos,
pois cada homem era um templo e
cada
oração proferida podia ser ouvida
pelo nosso Pai acima de nós.
Quando informado da nossa
situação, Abba presenteou meu pai
com um
amuleto contra a febre, uma oração
guardada dentro de um tubo de metal
que era para ser preso aos braços
dos aflitos. Ele ofereceu um pedaço
de corda abençoada para amarrar
nas túnicas das crianças e ligá-las à
boa saúde, bem como um bulbo
precioso de alho roxo para afastar
os demônios.
Deveríamos recitar o nome de
Adonai cem vezes acima de um copo
de água
com alho que fora fervida três vezes
em cima de fogo bem quente, em
seguida instruir aqueles que tinham
adoecido a bebê-la enquanto oravam
pela graça de Deus.
DERAM-NOS tâmaras prensadas e
bolos de cevada, além de permissão
para passar a noite. Caía uma chuva
leve e a terra rapidamente ficou
inundada
com poças. Meu pai foi levado a
uma casa comum para ficar entre os
homens. Amarrei a minha cabra em
uma tamargueira e acompanhei as
jovens solteiras, que me olhavam
com expressão intrigada. Devia
estar
parecendo um animal selvagem a
seus olhos. Quando descobri meu
cabelo
diante delas, ficaram chocadas com
os nós e começaram a desfazê-los
com
pentes de madeira. Levaram-me para
tomar banho na sua piscina ritual e a
água ficou preta em volta de mim.
Mesmo que eu visse isso como um
mau
presságio, as jovens essênias riram
e disseram que a água benta levara
todos os meus pecados. As pessoas
do seu povo acreditavam que a
imersão
em água as aproximava de Deus e
assim banhavam-se várias vezes ao
dia.
Havia duas escadas na piscina, um
lance de degraus de calcário para
entrar,
outro para que os que haviam se
purificado pudessem sair da água
sem tocar nos que ainda estavam
imundos. Na verdade, quando saí da
água, pela
primeira vez desde que deixara
Jerusalém senti-me verdadeiramente
purificada. Meu cabelo estava tão
vermelho que as abelhas se
aproximaram, circulando ao meu
redor. As mulheres essênias riram,
sugerindo que meu cabelo devia
parecer a elas um canteiro de rosas.
Precisei correr de um enxame e
gritar que era uma mulher, não uma
flor.
Recebi uma túnica de Tamar. Era
uma peça de roupa branca simples,
com uma corda de pelo de cabra
para amarrar na cintura. Eu disse
que era
um presente demasiado grande, mas
Tamar insistiu.
– As posses não são nada, pois
serão inúteis no Mundo Vindouro –
ela me disse. – Não se leva nada
disso para a casa do Senhor.
O passado parecia um sonho
distante. Estávamos longe da
carnificina
que conhecera em Jerusalém, a uma
caminhada de vários dias das
cavernas
em que encontráramos abrigo. Mas o
que fizera e o que aprendera eram
mais que um sonho. Semicerrando os
olhos, podia ver, além dos pomares,
os penhascos de calcário
esburacado e o caminho que marcara
com
pedaços de seda azul do meu lenço.
Podia sentir a pulsação na base da
garganta, uma onda de pânico por ter
deixado Jachim ben Simon para trás.
Temia que o que nos unira pudesse
desaparecer se não estivesse à sua
vista. Talvez ele viesse a acreditar
que eu também era somente um
sonho
do qual já havia despertado.
Gostaria de saber o que nossos
anfitriões pensariam se soubessem a
verdade sobre nós. Meu pai
continuava a dar tempo ao tempo e a
guardar
nossos segredos. Ele acreditava que
aquelas pessoas piedosas eram
tolas, convencido de que aqueles
que ficam esperando pelo Fim dos
Dias o
estavam criando para si. Mas
obviamente era inevitável que
pensasse
assim. Todo homem envolvido na
guerra diz a si mesmo que é capaz
de alterar o que estava escrito, que é
ele, e não Deus, o criador do
destino, livre para mudar o que está
destinado a ser.
NA MANHÃ da nossa partida, Tamar
levou-me à sua casa e me deu um
pedaço
de queijo haris halab branco e
salgado, que duraria vários dias e
nos manteria bem alimentados,
juntamente com algumas batatas-
doces
prensadas. Ela era mãe de quatro
filhos pequenos que, não
acostumados a
ver estranhos, fitaram-me
boquiabertos quando apareci, até
que a mãe os
enxotou. Quando ficamos sozinhas,
ela me advertiu de que deveríamos
ter
cuidado em nossa jornada.
Recentemente ocorrera um ataque a
outro
assentamento, chamado Ein Gedi,
um oásis em que quatro vertentes se
reuniam para produzir grandes
cachoeiras, uma das quais formava
uma
piscina onde se dizia que o rei Davi
se escondera dos seus inimigos. Era
ali
que brotava a Moringa Peregrina,
uma flor com poderes mágicos que
ajudaram Davi a compor suas
músicas com tanta pureza. Acácias
floridas cresciam ao lado das águas,
e pés de jujuba, cuja fruta alaranjada
atraía aves da Grécia e do Egito, e
havia bosques de bálsamo, cuja
goma pegajosa
produzia o incenso que era mais
valorizado que o ouro. Ein Gedi era
um lugar de abundância em uma
época de fome. Por causa disso, era
invocado
como um cordeiro entre aqueles que
estavam famintos. Os atacantes
tinham chegado durante a noite.
Setecentas pessoas foram mortas ou
mantidas em cativeiro pelos sicários
que invadiram os armazéns do
assentamento. Os essênios sabiam
que aqueles eram os culpados
porque
fora usada a faca curva, a arma que
atinge o alvo e depois extrai a alma
da
sua vítima. Os ladrões roubaram
tudo, grãos, vinho e água, juntamente
com
as vidas dos inocentes.
Meu coração afundou à menção dos
sicários.
– Os assassinos não os encontrarão
se tomarem cuidado – disse-me
Tamar. – Se alguém se aproximar no
deserto, escondam-se o melhor que
puderem. Talvez agora entenda por
que estamos certos de que o fim está
próximo. Com tamanhas traições na
terra, os anjos certamente virão
guiar-
nos para o Mundo Vindouro.
Inclinei a cabeça concordando,
muito embora soubesse que meu pai
acreditava que os punhais e não os
anjos eram a resposta para traição.
Não
deixei escapar que meu irmão
poderia estar entre aqueles que
tinham
invadido Ein Gedi. Tínhamos pressa
de partir e, enquanto nos
preparávamos, um dos homens
chegou para entregar uma última
mensagem de Abba. Os olhos do
meu pai estavam velados, seu
coração,
fechado, mas ele ouviu, pois era um
hóspede na povoação e devia, pelo
menos, fingir ter boas maneiras.
Ouvi também o que fora dito e
rapidamente baixei os olhos.
Quando o mensageiro acabou de
falar, meu
pai acenou um adeus, mas nunca
demonstrou sua gratidão. Esse era o
caráter do meu pai, silencioso e sem
coração; exatamente o que eu
esperava dele. Ele fez sinal para
mim com a mão e como seu cão eu o
acompanhei, seguindo a certa
distância, os olhos baixos.
Quando partimos, várias das
mulheres nos acompanharam,
acenando,
desejando-me sorte, dizendo como
estava bonita com minhas roupas
novas. Não sabiam nada de mim,
somente o pouco que revelara, o que
em
parte senti como mentira. Meu pai e
eu éramos estranhos um para o outro
também. Sabíamos tão pouco um do
outro como os essênios sabiam de
nós.
Caminhamos muitos dias juntos e,
embora meu pai tivesse deixado de
me
humilhar e repreender, não tínhamos
nada a dizer um ao outro. Não sabia
nada da vida do meu pai antes de ele
adotar a adaga, embora tivesse
ouvido
rumores de que tivera um irmão que
fora vendido como escravo. Se um
homem vê seu irmão amarrado com
cordas e arrastado sobre o
calçamento
da rua, será que já viu tudo? Se dez
homens são mantidos em uma sala
com
um leão e apenas um sobrevive, o
que isso faz desse homem? Se uma
mulher com cabelo vermelho se
mantiver em silêncio, será capaz de
falar a
verdade de novo?
Enquanto viajávamos, olhávamos
para trás, a fim de ver as cores em
constante mudança do Mar de Sal.
Conseguíamos identificar as velas
das barcaças de fundo chato que
navegavam pelo mar para o país de
Moabe, governado por pessoas
ferozes chamadas nabateus. Nessa
terra fértil dizia-se que Moisés fora
enterrado, mas ninguém nunca
descobrira onde ficava
esse lugar sagrado, apesar de muitos
terem procurado por ele. Talvez
assim
fosse melhor, pois Moisés guardava
a chave de segredos imensos para os
homens absorverem, uma dádiva e
um fardo pesados demais para o
nosso
povo suportar.
Um dia, depois de termos subido as
mais altas falésias, o mar
desapareceu de vista, afundando-se
na terra, como se tivesse sido
tragado.
Ondas de calor escaldante subiram
acima do local onde ficara, pois
suas águas eram ainda mais quentes
que o ar. Logo até mesmo isso
desapareceu.
Continuamos caminhando
penosamente. Não pensei no fato de
que era
uma jovem mulher no deserto,
sozinha e em chamas. Recusei-me a
deixar
que meus pensamentos levassem
vantagem sobre a preocupação com
feras
ou salteadores. Acima de tudo, não
me permitia imaginar o que poderia
ter
acontecido no nosso acampamento
durante a nossa ausência, como uma
febre pode queimar como uma
chama até que não haja mais nada
além de
cinzas, como ela se espalha à
maneira do fogo, saltando de uma
vítima para
a seguinte.
Tínhamos a bênção de Abba e o seu
remédio. Precisávamos apenas
encontrar o caminho. Apressei o
meu pai, coletando os restos de azul
à medida que seguíamos o mapa que
formavam, eu mesma ainda grata ao
meu irmão pelo presente. O tecido
estava esfarrapado. Alguns dos
quadrados tinham sido levados por
hienas ou pelo vento, por isso só o
que
restou foram alguns fios produzidos
pelas larvas que haviam se
transformado em borboletas. Um
dia, caiu uma chuva pesada. Meu pai
quis
esperar a chuva passar, refugiando-
se em uma caverna de calcário, mas
insisti que continuássemos a
caminhar, apesar de nossas peles
brilharem com a água e nossas
roupas estarem encharcadas. Meu
pai teve pouca
escolha. Estaria perdido sem mim,
pois somente eu sabia a direção que
deveríamos seguir. Enquanto
caminhávamos, meu pai praguejou e
reclamou, mas a chuva foi parando,
um pouco de cada vez, e assim
andamos sob suas gotas e depois
através do novo ar refrescado.
O local do acampamento estava
deserto quando chegamos. A
fogueira
ainda estava lá, assim como a cesta
usada para coletar hortelã e
verduras.
Estavam as tigelas das nossas
refeições e o machado que cortara
os
espinhos do nosso caminho. Uma
fina camada de areia cobria tudo e
pensei
nas duas meninas-noivas que Ben
Simon me levara para ver, como ele
tinha
chorado e como eu me encantara
com ele. Roubáramos um tempo para
passar juntos, um tempo que
parecera interminável no escuro.
Senti uma pontada na garganta. Não
sabia que era o início da minha dor
até que meu
pai me silenciou. Estivera chorando,
à maneira do leopardo, subitamente
e
sem levar em conta nenhuma outra
criatura viva.
Fomos encontrá-los na caverna
úmida, em busca de conforto e
abrigo
em suas horas finais. Estavam todos
juntos, como deveriam estar. Todos
exibiam as marcas vermelhas das
pústulas da doença sobre a pele,
definhados a um ponto que exibiam
os ossos através da pele. Ben Simon
acomodara a esposa e os filhos
sobre uma saliência de pedra antes
de se deitar ao seu lado. As veias
em seus braços ainda estavam azuis,
mas já se
apagavam, e sua pele tornara-se fria.
Caí de joelhos e me agarrei a ele,
desesperada para transmitir algum
calor. Pus minha boca sobre a dele,
mas
não havia respiração, não havia
vida. Podia sentir o gosto do Mundo
Vindouro.
Não me afastei quando meu pai
gritou comigo, nem quando levantou
a
mão para mim. No fim, meu pai teve
de enterrá-los. Era o papel de uma
mulher preparar os corpos para o
Anjo da Morte e entoar as
lamentações,
depois colocar-se de lado até que o
espectro da morte não mais a
acompanhasse, mas eu me recusei.
As chicotadas subiram pelas minhas
costas e meus ombros quando meu
pai me bateu, mas eu não seria seu
cão
nesse dia. Meu pai gritou que eu era
covarde, sem coragem de cuidar das
necessidades dos mortos, mas ele
estava errado. Eu não estava com
medo
dos mortos mais do que de ser
impura. Só temia que, se segurasse
Ben Simon por muito tempo, não
fosse capaz de deixá-lo ir.
Meu pai levou os corpos para o
mais alto penhasco e depositou
rochas
em cima deles para que os falcões,
abutres e chacais não se
aproximassem.
Proferiu as lamentações, tendo
dobrado o xale de oração de Ben
Simon em
torno dos próprios ombros para
homenageá-lo. Durante sete dias
após esse
ritual, meu pai teve de se sentar ao
sol para se purificar, porque chegara
perto demais da morte e era
considerado tamé, impuro. Entoou
as lamentações que uma mulher
deveria entoar, porque eu não
permitiria
essas palavras em minha boca. Não
reconheceria a morte de Ben Simon,
nem suportaria vê-lo caminhar para
o Mundo Vindouro. Quando fechava
os
olhos, podia imaginar a graça
natural do seu corpo forte, os planos
angulosos do seu rosto, seu olhar
profundo e crítico que me
atravessava.
Não queria deixá-lo ir, mas podia
ouvir os lamentos e as orações do
meu pai, mesmo cobrindo os
ouvidos com as mãos. Seu canto
soava como o
vento, e como o vento me envolveu,
até que não ouvi nada a não ser uma
única canção.
Gostaria de saber se, em sua doença,
Ben Simon fora como o leão que
enfrentara nove guerreiros, deixando
a cabeça pender e morrendo perante
o décimo. Imaginei se resistira até o
dia em que chovera, quando
estávamos
tão perto, a poucos momentos de
distância, e se essa chuva fora feita
de suas lágrimas, pois ele não tinha
vergonha de chorar.
Lembrei-me das palavras que
entreouvira antes de partirmos de
junto
dos essênios, quando Abba enviara
seu mensageiro ao meu pai. Mesmo
entre os justos, cabe apenas a
Adonai punir. Talvez o santo homem
soubesse quem éramos o tempo
todo. Agora a punição dos
assassinos caíra sobre
nós. Se um dos sicários, aonde quer
que fosse, carregasse nas costas
todos
os homens que assassinara, os
mortos não quereriam, finalmente,
obter sua
vingança? Talvez os seus espíritos
tivessem seguido Ben Simon e,
quando
estava enfraquecido pela dor,
quando caíra, os olhos brilhantes de
lágrimas
diante dos corpos inertes dos filhos,
atravessaram sua pele febril e o
surpreenderam.
Enterrei o remédio dos essênios,
pois era inútil agora, considerando
que
disseram que as coisas desse mundo
permaneciam aqui para sempre.
Enquanto cavava a terra dura e
branca, perguntava-me se seria a
única pessoa a ser punida, se estaria
destinada a sofrer como fizera sofrer
o meu
amigo, quando roubara o que lhe
pertencia.
Durante os sete dias em que meu pai
se manteve afastado, para se
purificar da proximidade com os
mortos, não comi nem bebi. Amarrei
a
cabra a um arbusto baixo e não lhe
dei ouvidos quando me chamava. No
amanhecer de cada dia, cortava uma
marca da minha tristeza na perna,
cada uma mais profunda que a
anterior, já que agora usava a faca
afiada de
Ben Simon. Cada ferida era como
um beijo para mim, uma cicatriz
escura de
paixão. O cheiro de sangue emanava
da minha pele, como uma película
que
me cobria. Um leopardo veio uma
noite e se sentou no outro lado da
fogueira, onde permaneceu me
observando. Não me levantei para
afugentá-
lo. Venha me devorar. Veja se me
importo. Meus olhos se encontraram
com os dele e vi o brilho amarelo da
violência em seu olhar. Mas, no fim,
ele deve ter considerado que não
valia a pena, pois se afastou
furtivamente.
Quando meu pai retornou dos seus
dias de purificação, ficou chocado
ao
ver a minha condição. Mal
conseguia me levantar do chão, tão
pálida
quanto o pó em que um dia me
tornaria. Não tinha nada a fazer na
vida a
não ser esperar a minha vez para o
Mundo Vindouro. O que era aquela
terra para mim agora? Uma cela de
prisão, um chicote de corda. Meu
pai sempre me dissera que eu não
era nada, e fora isso em que eu me
tornara.
Mais tarde ele admitiu que, quando
me viu assim, pensou na minha mãe
na
hora do meu nascimento, já ausente
deste mundo. No dia em que me
encontrou definhando, ele pensou no
que ela teria feito se tivesse
permanecido com sua única filha.
Teria desejado me salvar. Foi por
isso que me convenceu finalmente a
beber um gole de água.
No oitavo dia após Jachim ben
Simon ter sido enterrado debaixo de
pedras, quebrei meu jejum e bebi do
cantil de couro de cabra que lhe
pertencera. Fiz isso não por mim,
mas pelo meu amado, pois ele ainda
não
se fora de mim. Embora o Anjo da
Morte o tivesse arrebatado, uma
centelha
do seu espírito permanecera.
Nesse momento eu soube que não
sangraria novamente.
POUCO TEMPO DEPOIS, meu pai
teve uma visão inspiradora.
Acordou com lágrimas escorrendo
pelo rosto e a fé renovada. Sonhara
que meu irmão nos esperava no alto
de uma torre. O sonho fora tão real
que ele podia ouvir meu irmão lhe
falar. Olhe, vou ao seu encontro,
Amram dissera. Meu pai jurou que,
quando as nuvens se elevassem,
veria seu filho.
Acreditando nisso, o assassino
carregou uma vara para poder subir
mais
alto nos rochedos, onde acreditava
que seria possível testemunhar na
terra
o que vira no sonho. Não discuti
com ele, mas não acreditei. Meu pai
podia
ter fé, mas eu não tinha nenhuma. Via
em que havíamos nos tornado: um
homem muito velho e frágil para ser
um assassino confiável, a filha
arruinada, incapaz de chorar ou
sangrar. Achei que talvez alguém
tivesse posto uma maldição de ódio
em mim, quem sabe Sia antes de
morrer, e talvez fosse tudo o que
merecesse neste mundo.
As chuvas vieram então com muita
força. O ar tornou-se azul e úmido
com as chuvas pesadas. Permaneci
com o meu pai durante dias na
caverna
para escapar das inundações no
nachal, a cabra nos fazendo
companhia.
Aquela caverna fétida fora o último
lugar em que Ben Simon estivera
neste
mundo; respirara o cheiro úmido e
gredoso do calcário e soprara a sua
alma dentro daqueles limites
cobertos de teias de aranha. Pensei
que me sentiria mais perto dele ali,
mas era o espírito de Sia que
pairava por perto.
Sentia-a me beliscar tentando
chamar a minha atenção. Ela me
perseguia nos sonhos. Pensou que
poderia ser de outro modo? Achou
que conseguiria o que queria?
Quando acordava, ofegante por ar,
às vezes acreditava ouvir a explosão
do seu riso, como se tivéssemos
travado uma batalha, ela se saíra
vitoriosa e agora se regozijava com
os resultados.
Os meses de inverno abateram-se
sobre nós. Tive vontade de fugir,
mas
as chuvas que caíam em lençóis
criavam um mundo impossível de
deixar.
De repente, o deserto era um mar.
Onde antes só se ouvia o chacoalhar
do
vento, agora tudo o que escutávamos
era a água correndo no nachal. O
que antes ansiávamos agora
tínhamos em abundância.
Formavam-se lagoas em
toda parte e, ao fim de cada ravina,
as águas corriam com tamanha
rapidez
que cabras ou veados que dessem
um passo em falso seriam facilmente
carregados. Os insetos voadores
levantavam-se em enxames,
nascidos da
água em nuvens afuniladas. Os
cabritos-monteses chegaram para
beber e
se refrescaram. A minha cabra
puxava a sua corda; ela sempre me
seguira
nos calcanhares, mas agora parecia
enlouquecida pelo cheiro de chuva.
Ela
escoiceou e correu em círculos, seu
leite era fresco e com sabor de
grama.
Chorei de pensar que a vida
continuava, mesmo quando muito se
perdera,
que a chuva continuava a cair e a
murta crescia entre as rochas.
Encontrei uma lagoa clara que se
formara em um valo. Dei-me conta
de
que não me purificara desde que
participara do banho ritual das
mulheres
essênias. Despi-me das roupas e
notei o quanto estava machucada e
magra.
Mal reconhecia a minha pele. E
ainda assim a minha barriga parecia
avolumar-se, inchada, fazendo-me
parecer com uma mulher que
ingerira
água em excesso. Vi quão
profundamente cortara a perna, com
marcas que
nunca se cicatrizariam
completamente. Tive de me conter
para não me
cortar em pedaços, pois a faca em
mim me fazia sentir como se
estivesse sendo levada por Ben
Simon, e ansiava por aquela
conexão de sangue com
ele.
A escuridão caiu enquanto me
banhava na lagoa. As estrelas logo
surgiriam no céu. Quando ouvi o
som de soluços, implorei ao
fantasma da
esposa do meu amado para me
deixar em paz, certa de que estava
ao meu
lado, dilacerada por toda a sua
tristeza. Sia era mais sensível,
sempre pronta a chorar.
Estava certa de que eram as
lágrimas dela que chorava, não as
minhas.
NO FIM de Shevat as flores
silvestres desabrocharam em cores
vivas, os salgueiros encheram-se de
fios de folhas verdes e tenras. Meu
pai e eu nos
resignamos. Não reclamávamos das
nossas circunstâncias, nem
discutíamos o passado. Mas todo
fim de tarde eu subia ao penhasco
em que
se encontravam os ossos.
Ajoelhava-me enquanto a luz ia se
extinguindo e
o dia terminava. Rezava por algo
que nunca poderia ser concedido;
outra vida, que já vivera e perdera.
Permaneci por lá um dia até mais
tarde, observando a luz se
desvanecer
em faixas rosadas e acinzentadas,
quando avistei dois homens se
aproximando, vindo do deserto.
Eram jovens guerreiros. Chamei o
meu pai,
que subiu para meu lado usando um
ramo da tamargueira que ele alisara
para fazer um cajado em que se
apoiar ao caminhar. Juntos ficamos
lá no alto observando os estranhos
se aproximarem, a poeira levantada
subindo
atrás deles em nuvens.
– Esse é o meu sonho – meu pai
disse, com expressão alegre. –
Aquelas
são as nuvens que revelarão para
onde devemos ir. Esses homens nos
levarão à torre onde Amram está
escondido.
Estivéramos sozinhos no deserto por
um longo tempo, tendo apenas os
ossos sob as pedras por companhia.
Mas os ossos falavam comigo. Eles
me
diziam que as minhas orações não
seriam atendidas. Nunca seria
perdoada.
Teria de pagar pelos meus pecados.
Quis fugir da voz que soava como a
de
Sia. Se fosse a outro lugar, quem
sabe ela se calasse. Queria acreditar
no sonho do meu pai. Era mais
cautelosa que ele, mas também
podia sentir o
meu irmão perto de nós.
– Não podemos confiar – eu disse, e
pela primeira vez meu pai não
discordou. Os sonhos se manifestam
aos homens por muitas razões, tanto
como oráculos quanto como avisos.
Observei enquanto os homens se
aproximavam, curiosa, envolvida no
meu xale. Meu pai se preparou para
o caso de serem inimigos se fingindo
nossos salvadores, pronto para lutar
caso se voltassem contra nós e
provar
que seu sonho fora uma falsa
profecia. Pegou a adaga, depois
murmurou uma prece a Deus,
implorando que ficasse do seu lado.
Os homens pararam no desfiladeiro
abaixo. Chamaram meu pai e
juraram ser guerreiros zelotes. Meu
pai respondeu ao chamado. Ainda
segurava a adaga escondida sob a
capa. Embora estivesse
enfraquecido e não fosse mais
jovem, ainda era capaz de
arremessar uma faca de uma
grande distância e derrubar um
homem. Já o vira fazer isso quando
um soldado o encurralara em um
beco próximo da nossa casa. Depois
se
afastara sem olhar para trás, como
se não tivesse tirado uma vida.
Os jovens guerreiros gritaram que
Hol os enviara. Conheciam a Fênix,
o
guerreiro que se levantava todas as
vezes que outro teria caído. À
menção
do nome do animal conhecido
apenas pelos amigos mais próximos
do meu
irmão, meu pai soltou a arma. Seus
olhos encheram-se de lágrimas e seu
rosto desgastado, mais envelhecido
desde que deixáramos Jerusalém,
abriu-se em um sorriso.
– Levem-me até ele – ordenou.
Percebi que meu pai não dissera
para nos levarem a ele. Eu não era
nada, como sempre. Somente quando
ele precisava de mim para guiá-lo,
alimentá-lo, para ser o seu único
alento no deserto, é que se lembrava
de que também era sua filha.
Os homens que vieram à nossa
procura não eram mais velhos que
meu
irmão, jovens em idade, mas já
endurecidos pelo que tinham visto e
feito.
Reconheci um deles, Jonathan, de
Jerusalém. Fora um religioso,
estudante de orações. As pessoas
achavam que se tornaria um rabino
ou um
estudioso, então ele se juntara ao
meu irmão e adotara a adaga. O
outro se
chamava Uri, que significava luz.
Era um jovem desajeitado e afetuoso
cujo
bom humor dominava todas as suas
conversas. Eu me esquivei, relutante
em dar a conhecer a minha presença,
mas os amigos do meu irmão
alegraram-se em me encontrar e me
chamaram para juntar-se a eles.
Amram lhes contara sobre mim, a
irmã chamada Yaya, que cuidara
dele
como uma mãe, que preparara suas
refeições, costurara suas túnicas e
seu
manto, ouvira os planos tão secretos
que não ousara contar a ninguém. O
que se chamava Jonathan exibiu um
quadrado de seda azul que o vento
levara até o meu irmão. Fora assim
que me acharam.
TOMAMOS UMA rota que nos
levaria à região mais ao sul do Mar
de Sal. Eu sabia que, depois que
fosse, não poderia olhar para trás.
Estaria
abandonando Ben Simon, o único
homem que conhecera quem eu era.
Seus
ossos não seriam reunidos no
aniversário da sua morte, como
sempre fora
o nosso costume, para serem
guardados em um ossuário de pedra.
Mas, se
eu ficasse, o deserto me reclamaria.
Não podia vacilar agora, ou ceder à
vontade de me deitar ao lado do meu
amado.
Atravessaríamos a parte mais
impiedosa do deserto, um lugar de
sal e
tristeza, uma terra ainda mais difícil
de atravessar do que o vale onde
encontráramos os essênios. Dizia-se
que os soldados da guarnição
romana
espalhavam-se por toda parte e
precisaríamos tomar cuidado para
evitar
os seus acampamentos, recuando
quando necessário. Pensei na minha
pobre cabra, cujo leite era a única
coisa que eu suportava beber. Dizia-
se que existia um demônio em
formato de cabra no deserto
chamado Sa’ir, mas, fosse como
fosse, a cabra que eu encontrara era
um anjo. Ela salvara a
nossa vida quando não tínhamos
nada; ela era selvagem e eu a
mantivera
em cativeiro e ela me perdoara; fora
a minha única amiga na minha
solidão.
Antes de sairmos, eu a soltei.
Amarrei uma corda vermelha em
volta do
seu pescoço e levei-a ao mais alto
penhasco.
– Pode ir – disse a ela enquanto
cortava a corda que a prendia.
Ela estava tão acostumada a me
seguir que não fugiu de volta para o
deserto. Meu animal de estimação
apenas ficou lá, olhando para mim.
Bati
em seu traseiro para fazê-la andar.
Pensei nos olhos escuros de Ben
Simon,
na sua pele cor de azeitona, a curva
de um sorriso sempre que via a
cabra
me acompanhando tão mansamente.
– Fique longe de mim – insisti,
acenando para que se afastasse.
Sabia que, embora estivesse
gritando com a cabra, falava com o
fantasma de Sia.
NO INÍCIO da nossa jornada, os
penhascos eram tão altos que os
homens tiveram de amarrar cordas
em volta da minha cintura, e também
em torno
da cintura do meu pai, para depois
nos puxar sobre as lousas lisas de
calcário. Por causa da estação,
brotavam ervas e aspargos
selvagens nos nechalim entre as
falésias. O ar estava perfumado com
a hortelã e a cebolinha picante. Cada
pedacinho de verde era uma delícia
de ver. Viam-se
também as flores amarelas da
mostarda, como se fossem estrelas
caídas no
chão. O fruto do sicômoro adquiria
uma cor alaranjada brilhante, e
vespas
eram atraídas pelo aroma do seu
amadurecimento. Apreciávamos o
som
dessa vida abundante, mas logo
seguíamos em frente, cada vez mais
alto, para onde o ar era claro e
fresco. Galgamos trechos de rochas
de formas agudas entre as quais até
mesmo o cabrito-montês não se
arriscava. Já no
segundo dia nossos pés sangravam.
Ao crepúsculo, não importava onde
estivéssemos, ia me sentar em
silêncio sozinha. No caminho
obtinha o nosso jantar. Todas as
noites eu observava as aves. Assim
que descobria a rede delicada de
galhos em que
nidificavam, sentava-me por perto
em silêncio. Elas se aproximavam
de
mim, pensando que fosse feita de
pedra, vendo-me como uma parte do
deserto e nada mais. Eu cobria seus
olhos quando lhes quebrava o
pescoço.
Deveria deixar sua respiração subir
de uma vez e dar-lhes uma morte
limpa
com um único golpe de faca. Sempre
carregava a adaga de Ben Simon sob
a
túnica, guardada perto da pele, mas
não a usava, a não ser para virá-la
contra mim e marcar a minha perna.
Segurava as aves perto de mim para
ouvir seu coração bater e então fazia
o que o deserto me ensinara.
Assávamos as aves em uma fogueira
preparada pelos guerreiros. Eles
me elogiavam enquanto comiam o
alimento que eu preparara. Diziam
que
eu tinha talento. Era uma caçadora,
brincavam. Meu pai fuzilava-me
com os
olhos quando entoavam seus elogios.
– Não foi nada – eu insistia. – Os
pássaros me procuram.
Os guerreiros pareciam meninos
quando brincavam comigo sobre
minhas habilidades de caça; ainda
assim, eu tentava me tornar
invisível, como em Jerusalém. Os
meninos tornavam-se homens à
noite, quando sua
pulsação se acelerava e o proibido
parecia possível. Embora não
tivesse um
manto cinzento, sabia como
desaparecer. Era capaz de me fazer
sumir e parecer um nada quando me
debruçava para limpar a panela com
areia, os
olhos fugidios. Mas à luz da fogueira
o xale escorregava da minha cabeça
e
os amigos do meu irmão viam que
meu cabelo era vermelho. Era como
se
pensassem mais que eu era uma
garota. Desviavam o olhar, pouco à
vontade, envergonhados dos
próprios pensamentos. Não
deveriam nem
mesmo ter-se sentado junto ao fogo
com uma mulher que não era sua
mãe,
sua irmã ou sua esposa, que dirá
aceitar alimento preparado pelas
minhas
mãos. Eu era considerada niddah,
impura e imunda, pois não havia ali
uma mikvah, nem mesmo uma lagoa
de água barrenta. Estávamos no
deserto e
eles tinham pouca escolha. Comiam
as aves que eu matava, ajudavam-me
nas falésias, levavam-me para meu
irmão. Ao fazerem isso, contavam
histórias da fortaleza de que tinham
se apossado, narrativas que
considerei
absurdas.
A fortaleza era inexpugnável,
diziam, o terreno ao redor tão hostil
que nenhum ataque contra eles seria
bem-sucedido. O esconderijo fora
um
palácio construído pelo rei Herodes,
um lugar de beleza sobrenatural
escondido pelas nuvens. Ouvira
falar daquele rei, cuja crueldade era
tão lendária que se dizia que certa
vez abrira ao meio um porco-
espinho,
depois virara o pobre animal do
avesso para depositá-lo sobre o
rosto de
um inimigo, para cegá-lo. Traíra as
pessoas mais próximas e fora
responsável pelo assassinato da
esposa, Mariamne, a quem acusara
de
traficar philtrons e pharmaka –
medicamentos, poções do amor e
feitiços.
Ela era tão linda que o general
romano Marco Antônio
enlouquecera ao vê-
la e estava desesperado para possuí-
la. Por causa disso, Herodes a
condenou à morte. Pouco depois seu
filho foi acusado de possuir um
veneno preparado com peçonha de
víboras por uma mulher de Edom,
que
era praticante de keshaphim. A
execução do filho seguiu-se à da
mãe.
Todo traidor sabe que sua sorte é
receber em espécie o mesmo
sofrimento que causou aos outros,
mas Herodes sonhava pular a página
em
que fora inscrito o seu destino.
Assim, construiu sua fortaleza na
encosta ocidental da montanha
chamada Massada, que concluiu cem
anos antes da
nossa época. A rainha do Egito
queria a Judeia para si, pleiteando
junto a Marco Antônio e Roma para
que lhe concedessem esse deserto
como um
presente, pois ansiava pelos
tesouros que possuía: uma rota para
o mar, as
salinas, as florestas de bálsamo que
estavam além, em Moabe, tesouros
de
mirra e incenso, riquezas em
demasia.
Diziam que nos esperavam em
Massada mais de novecentos
resistentes,
trezentos dos quais guerreiros.
Cinco invernos antes haviam tomado
a
grande fortaleza de Herodes das
mãos de um pequeno grupo de
soldados
romanos que se alojavam ali.
Fizeram isso com facilidade, na
calada da noite, esgueirando-se pela
parte traseira da montanha, um feito
que os romanos consideravam
impossível. Nada era impossível,
eles descobriram.
Eles conseguiram escalar em
direção ao céu, para mais perto de
Deus.
Pensei que fosse um sonho quando o
amigo do meu irmão jurou que o
Palácio do Norte do velho rei era
mais bonito que os jardins suspensos
da
Babilônia, uma das maravilhas da
humanidade. As colunas em preto e
branco haviam sido transportadas da
Grécia, amarradas em barcos que
atravessaram o mar aberto, depois
puxadas por cordas e roldanas por
toda
a Judeia nas costas dos escravos. Os
mosaicos cintilantes tinham sido
trazidos da Itália ao deserto, para
serem assentados, um ladrilho por
vez, pelos melhores pedreiros. As
casas de banhos, aquecidas por
colunas de cerâmica dispostas sob o
piso, eram feitas de quartzo de tanta
qualidade que as pedras brilhavam
com uma luz vermelha quando o sol
estava alto.
Os pisos eram estampados em tons
de rosa, verde e preto, e os afrescos
foram pintados por centenas de
artistas italianos usando os melhores
pigmentos de Roma, lembrando
joias de água-marinha, safira e
cornalina, brilhando como elas. As
únicas cores que eu conhecia
naquele momento
eram as do deserto branco, o negro
da noite, as manchas vermelhas do
meu
sangue na sola dos pés enquanto
subíamos as pedras.
Ao mesmo tempo em que os homens
falavam de tais maravilhas,
amontoávamo-nos em cavernas
úmidas onde os escorpiões se
reuniam,
buscando abrigo da fúria dos
vendavais. Lembrei-me dos
escorpiões
aninhados no corredor da minha
infância. Eles ficavam tão imóveis
que
poderiam passar por uma ilusão, até
que de repente saltavam para atacar
suas presas e provavam o contrário.
A culpa era assim, eu descobrira.
Distante, até nos atingir. Eu a ouvia
quieta, a amiga que tivera, a mulher
a
quem traíra. Quando adormecia,
sentia a curva do seu quadril contra
o meu. Ouvira dizer que os
demônios podiam unir-se a uma
pessoa. Uma vez
feito isso, era impossível deixá-los
ou livrar-se deles. À noite, eles
fechavam
as mãos sobre as suas, tomando
posse da sua presa como um
predador.
Sussurrava apenas em seu ouvido:
Você me pertence.
O remorso me tragava naquele
deserto, assim como meu silêncio.
Ele
subira em torno de mim como as
árvores criam espinhos, selvagens,
seus membros eram um emaranhado
de galhos traiçoeiros. Havia hienas
onde
acampávamos, eu as ouvia
chamando. À noite, víamos que
formavam um
círculo por entre as árvores
sombrias na escuridão. Pegávamos
pedras,
prontos para o caso de a fome das
feras poder levá-las a atacar. As
minhas
mãos estavam sujas, o meu lenço
retalhado por faca. Segurava o único
quadrado de azul que restara. Era
tudo o que tinha do meu irmão e da
vida
que levara antes de vir para esse
lugar.
Achava impossível imaginar que, se
viajássemos mais para dentro
daquele deserto, encontraríamos
afrescos capazes de rivalizar com
qualquer outro no império e com o
palácio de um rei. Ainda assim os
amigos do meu irmão juravam em
nome de Yehuda da Galileia, o
homem
que começara o estilo de vida zelote
e a rebelião contra os sacerdotes
que
se curvaram a Roma, que à nossa
frente houvesse mil lâmpadas de
azeite
para iluminar a noite, todas ardendo
tão ferozmente que se igualavam às
estrelas no céu. Quando perguntei
quanto tempo levaríamos para
chegar a
esse lugar milagroso, eles riram e
disseram que ainda algum tempo,
pois a
fortaleza só poderia ser encontrada
no fim do mundo e deveríamos ter
cuidado para não errar o caminho.
Um passo em falso e nos
desviaríamos
por toda a eternidade.
O ar leve nos envolvia. Felizmente
era inverno, portanto não seríamos
assados vivos. Do oeste, o vento
frio do mar chamado Ruach Hayam
nos chegava em nuvens e
estremecíamos ao seu contato
gelado. O vento voou
por dentro da minha túnica e
lembrou-me de coisas que seria
melhor
esquecer. O toque de Ben Simon, o
modo pelo qual nos uníamos, como
ele
possuía a habilidade de me ver
quando estava agachado na
escuridão.
Embora ouvisse as histórias do
palácio de Herodes, não era atraída
para pensamentos sobre o futuro e
sobre milagres. Ansiava pelo que
tivera
antes, tudo o que perdera no
transcurso de um único dia, no
momento em
que ele fora tirado de mim.
A minha vida no deserto
transformara-se em cinzas. Tive o
castigo que
merecia. Assim como não libertara o
seu marido, Sia não me libertava,
não
importa quão longe pudéssemos
viajar. Pensei que poderia deixá-la
para
trás, mas, ao contrário, a distância
ajudara o seu fantasma a parecer
mais
forte. Seu espírito revolvia-se em
torno de mim todas as vezes que
tentava
comer, bicando-me. Não conseguia
engolir mais que um bocado de
comida.
Se eu conseguia dar uma mordida,
precisava devolvê-la e tentar engoli-
la de novo. Quando fechava os olhos
para dormir, ela estava lá, à minha
espera. Ela me fitava com o mesmo
olhar triste de quando perguntara se
cuidaria de Ben Simon, embora
soubesse o que fizéramos juntos no
escuro
e o que ele era para mim. Era dele
que eu sentia saudade, mas era ela
quem
punha os braços em volta de mim,
que deslizava seus dedos sobre a
minha
pele, que sussurrava em meu ouvido.
Podia sentir sua febre por toda a
minha pele.
*
UMA NOITE estávamos tão perto do
Mar de Sal que acordei no meio de
um sonho para descobrir que o sal
tinha se entranhado de tal modo no
meu cabelo que revirara as pontas e
as tingira de branco. Sonhava com
um caminho de pedras e uma
serpente tão grande que poderia
devorar uma
cidade. Tentei falar com a criatura
rastejante, implorando que fosse
embora
e nos deixasse em paz, mas a
serpente não quis saber disso.
Chegue mais perto, ela sussurrou.
Senti falta do leão dos meus sonhos.
Senti sua falta e ansiei pela presença
dele, apesar do perigo que isso
representava. Estendi a
mão para a serpente, mas ela
desapareceu, deixando-me com um
punhado
de pó preto.
Os gritos dos guerreiros que nos
conduziam me fez acordar de vez.
Ainda grogue, despreguei-me do
emaranhado do sono. Levantei-me e
esfreguei o sal dos olhos. De
repente, vi um milagre à minha
frente. Se milhares de borboletas
azuis tivessem se elevado juntas do
chão, não teria
sido uma maravilha maior. A
fortaleza de Herodes estava
suspensa no ar, projetando-se para
fora da borda de um penhasco
branco, exatamente
como os guerreiros haviam
prometido, uma maravilha do
mundo.
Adiante se via o caminho que levava
a Massada, subindo em curvas pelo
precipício mais íngreme que podia
ser imaginado. Um passo em falso,
um
momento de dúvida, e quem seguia
por ali poderia facilmente despencar
para a morte no vale abaixo. O
deserto deixara-me descrente, mas,
quando
subi pelo que era chamado de
caminho da serpente, que se
enrodilhava
como uma serpente pelo lado da
montanha, senti algo aberto dentro
de
mim. Esse era o lugar para onde a
serpente no meu sonho nos levara.
Reconheci-o com tanta certeza como
se fosse um caminho pelo qual
andara
cem vezes antes: os pequenos
salgueiros e os bosquetes de
oliveiras, o giz
branco da terra sob as rochas
calcárias. Estava escrito no Livro da
Vida que
viríamos por esse caminho e era
isso o que tinha de ser.
Acima de nós voavam aves de
rapina, falcões e gaviões. Sabia o
que seria
de mim se tropeçasse. Eles iriam se
vingar de todas as aves que eu
matara
no deserto, todas as penas que
arrancara, algumas com os dedos,
outras, quando estava morrendo de
fome, com os dentes. Desejara a
morte de
alguém e tomara um homem que não
me pertencia. Dera-me ao deserto
para ser o que era agora, uma mulher
possuída por um fantasma, de luto
por uma existência que nunca teria
novamente, carregando um segredo
que amadureceria e me exporia
como a ladra que me tornara.
Prestei atenção ao caminho e fiz o
melhor que pude para não pensar em
como poderia parecer aos outros,
uma bárbara, a pele toda empoada
de pó
branco de rocha, a roupa suja, o
cabelo transformado em palha
salgada, branco nas extremidades
mas escarlate nas raízes, os olhos
vazios, apenas
refletindo o deserto. Era uma leoa
sem garras nem dentes, inclinando-
me como uma velha enquanto me
equilibrava sobre as rochas, tão
longe da
garota que fora um dia que mal
conseguia me lembrar do meu nome.
Pensei na promessa que fizera a Ben
Simon de manter silêncio. Agora, o
silêncio era tudo o que tinha. O
vento uivava à medida que subíamos
mais
alto no penhasco, e essa era a única
voz que ouvíamos.
O caminho da serpente parecia não
ter fim. As pedras que caíam
produziam eco ao atingir o chão. O
mundo parecia nevoento e distante
daquele ponto de vista. Peguei a
corda na minha cintura e disse que
queria
seguir sozinha. Andei sem ajuda,
mesmo pela parte mais íngreme do
caminho. Podia ouvir o ruído da
minha respiração, afiada como um
punhal.
A fortaleza à minha frente era como
um sonho, e como uma sonhadora
segui em frente, maravilhada com a
vista que presenciava. Aquilo era
tudo
o que disseram, ainda mais
fulgurante em face da desolação que
nos
cercava.
Fôramos encontrados e trazidos a
esse lugar tão próximo do céu que
podíamos ouvir a voz do Rei da
Criação. O Senhor nos salvara e
libertara,
como a Torá prometia que faria. Eu
estaria disposta a fazer qualquer
coisa
pela glória de Deus enquanto
caminhava até o portão, a não ser
perdoá-Lo
pela minha perda.
SOB A TÚNICA, meu irmão usava
uma armadura para se proteger nas
ocasiões em que saía no meio da
noite. Uma adaga não seria
suficiente. Ele precisava
de armas mais pesadas agora: um
arco, flechas, um machado, uma
lança de
madeira e latão. Ele parecia um
dragão com escamas ou uma
serpente de
prata, criaturas temidas pelos
homens, conhecidas apenas de Deus.
Havia de fato trezentos guerreiros,
mas reconheci instantaneamente o
meu irmão
através do campo sob o
caramanchão cor-de-rosa das
amendoeiras,
plantadas no alto desse patamar
acima do resto do mundo. Reconheci
a
arrogância com que caminhava, a luz
cintilante que brotava de dentro
dele.
Até mesmo a armadura não
conseguia esconder isso. Meu pai
fora levado a
ele imediatamente, mas só me
encontrei com Amram depois de me
purificar. Fui levada para uma das
mikvahs, pois havia várias, para as
mulheres e para os homens. Na
maior casa de banhos havia uma
fileira de
escadas para os já limpos e outra
para os sujos. A água tingiu-se de
preto no
local em que me encontrava e as
outras mulheres deixaram o banho,
para
não se tornarem impuras novamente.
Não me surpreendi. O que fizera
nunca poderia ser lavado.
Vesti a túnica rasgada e os lenços
que Tamar me dera, depois corri
para
encontrar o meu irmão no campo. Se
fechasse os olhos e inspirasse o
aroma
das amendoeiras, poderia imaginar
que havia entrado em outra vida.
Talvez pudéssemos um dia voltar a
Jerusalém e encontrar o mundo que
nos
fora roubado. Talvez todos aqueles
meses tivessem sido um sonho,
como o
meu com o leão. Então ouvi meu
irmão gritar para mim e ficou bem
claro
que não haveria como voltar. Ele me
chamou de Yaya, meu nome de
infância. Eu sabia que aquela menina
desaparecera.
– Demorou muito tempo para que
você viesse até aqui – disse Amram,
abraçando-me, depois me afastando
para me dar uma olhada.
Apenas alguns meses tinham
transcorrido desde o nosso último
encontro, no entanto parecia que
haviam se passado dez verões.
Antes
desse dia, Amram sempre parecera
mais jovem que eu – agora se
mostrava
um verdadeiro guerreiro, feroz,
seguro de si. Pela primeira vez me
senti a
irmã mais nova. Meu irmão me fazia
pensar em aço, um metal que era
transformado pelas chamas. Não
quis saber quantos homens ele
matara ou
que atos cruéis teria perpetrado.
Fiquei horrorizada ao pensar que ele
poderia ter sido um dos guerreiros
que tomaram Ein Gedi e abatido
pessoas da nossa fé.
– Estou aqui agora – disse.
Meu cabelo estava limpo e
lubrificado, trançado acima da
cabeça. Pelo
olhar do meu irmão, poderia dizer
quão diferente lhe parecia. Ele me
examinou, perscrutando a minha
expressão, não capaz de ver o que
acontecera, mas consciente de que
algo mudara. Eu fora mordida por
um leão, mas era preciso olhar para
o meu íntimo para ver a cicatriz.
– Pensei que a encontraria muito
antes. Deve ter se escondido bem,
Yaya
– Amram brincou.
Pensei nas cavernas em que
acampara e no que fizera lá, e no
último lugar triste onde Ben Simon
morrera. Se tivesse me
acompanhado aos
essênios, poderia ter vivido.
Cheguei a pensar que ele sabia o que
lhe aconteceria se escolhesse ficar
para trás, e ainda assim preferiu
ficar.
Deveria ter percebido isso pelo
modo que desviou o olhar de mim,
como se
já estivéssemos separados, quando o
procurei para me despedir. Deveria
ter notado quando me deu a adaga.
Não queria que meu irmão visse a
minha vergonha. Deixei-me cair
sobre
a grama, sob uma cobertura de flores
cor-de-rosa da amendoeira, para
desviar o meu rosto e escapar do
olhar curioso de Amram. Dizia-se
que as
amêndoas das árvores cor-de-rosa
eram amargas, ao passo que as das
árvores de flores brancas eram
sempre doces. Baixei os olhos para
tentar me parecer com qualquer
outra jovem mulher solteira.
– Fizemos o melhor que pudemos –
disse simplesmente.
– Os outros não tiveram sorte –
respondeu ele. – Fiquei triste ao
ouvir sobre a sua travessia. Pensei
que Jachim ben Simon cuidaria de
você. Foi por isso que a deixei nas
mãos dele.
– Era o destino dele seguir para o
Mundo Vindouro – disse a ele. Só
isso
e nada mais.
Meu irmão sentou-se ao meu lado
alegremente, por um momento um
menino de novo em vez de um
guerreiro. Exibia cicatrizes que não
vira antes, incluindo um corte
profundo em seu pescoço, no ponto
em que fora
perfurado por uma flecha. Quando
soltou a armadura, notei que a
constante
pressão do arco que carregava
gravara uma marca em sua pele: via-
se um
crescente em suas costas e seu peito,
mesmo quando não portava a arma.
Deixara crescer o cabelo, que
trançara com firmeza como era
hábito
entre os guerreiros. Seu rosto ainda
era bonito, mas queimado pelo sol,
mais fino. A receptividade da
juventude se fora. Não era mais um
garoto aprendendo sobre a rebelião
na meia-sombra vermelha do
flamboyant.
– Somos um dos últimos redutos de
toda a Judeia – ele me disse. –
Fortaleza depois de fortaleza, todas
caíram. Não sairemos daqui, nunca o
faremos.
Havia apenas duas rotas para
Massada, o caminho pelo qual
viéramos,
pelo deserto impiedoso que se
estendia em direção às montanhas de
Moabe, do outro lado do Mar de
Sal, ou ao longo da rota poeirenta
que ligava Edom e o Vale do Aravá
a Ein Gedi e Jerusalém. As duas
rotas eram
visíveis daquela altura.
– Estamos seguros aqui – meu irmão
me confortou.
Disse-me que, quando chegaram, os
rebeldes puseram abaixo a águia
dourada que Herodes instalara sobre
o enorme portão do palácio. Não
deveria haver ídolos ali, nem
grandes ostentações de riqueza.
Todos os homens eram iguais
naquele domínio, não havia reis,
somente o reino de Deus. Ninguém
precisava se curvar para ninguém,
nem mesmo a Eleazar
ben Ya’ir, seu líder, um grande
homem e um grande guerreiro.
Meu irmão me mostrou que
continuava a usar o amuleto de
Salomão
que lhe dera, amarrado em torno do
pescoço. Ainda se orgulhava muito
dele.
– Onde está o seu lenço? – ele
perguntou então.
Mostrei-lhe o único pedaço de seda
que restara. Disse-lhe como o lenço
salvara a minha vida e a do nosso
pai, contei-lhe como se tornara um
mapa
para nos guiar através do deserto,
amarrado às árvores espinhosas.
Para a
minha grande surpresa, meu irmão
estendeu-me um pedaço de tecido
azul
que combinava. Esse lhe fora trazido
pelo vento, ele me contou. De início
pensara que fosse um pássaro e
estendera a mão. O tecido
aproximou-se dele como se o tivesse
chamado. Assim ficara sabendo que
eu ainda estava
viva e que me encontraria, e que a
nossa presença nesse lugar tão perto
de
Deus estava para acontecer.
SEGUIMOS ANDANDO pelo
pomar, em direção a terraços em que
cresciam antigas oliveiras e videiras
enormes e retorcidas. Nos jardins
havia cebola,
grão-de-bico, pepinos, melões,
todas essas culturas possíveis graças
ao uso
surpreendente, determinado pelo rei
Herodes, de cisternas e lagoas de
onde era trazida a água para a
montanha. À nossa frente estendia-se
um campo de trigo e cevada, os
feixes amarrados por cordas. Um
arado puxado
por burros sulcava o restante da
cultura, a lâmina ligada a uma
comprida
viga de madeira, dois rapazes
gritando aos burros para mantê-los
andando.
À medida que o joio se levantava, o
ar brilhava amarelado, como o mel
derramado para dentro de uma
tigela.
Amram contou-me sobre os imensos
armazéns da época de Herodes,
cheios de enormes vasos de
porcelana com vinho e azeite
enviados de
Roma e da Grécia, muitos
ostentando o selo do rei. Pelo Portão
da Água e
pelo Portão da Água do Sul, burros
traziam dos barrancos abaixo barris
de
madeira cheios de água recolhida
nas lagoas, o suficiente para as
quatro casas de banhos e as doze
cisternas, uma delas tão grande que
podia conter
cinquenta pessoas ombro a ombro.
Não era problema encher as
piscinas,
mesmo nos meses de seca. Dentro da
muralha da fortaleza, desenvolvia-se
um mercado muito parecido com o
de Jerusalém. Havia padeiros,
curtidores e tecelões em pequenas
lojas montadas em baias estreitas
entre
a muralha de Herodes e o campo
aberto da praça. As tendas e casas
de madeira eram construídas de
encontro à muralha fortificada.
Os guerreiros moravam nos
alojamentos antes ocupados pela
guarnição
romana, enquanto os sacerdotes e
homens cultos ocupavam os
pequenos
palácios em que os parentes e
assessores de Herodes viveram
muito tempo
antes. Todos os aposentos dos
palácios tinham pisos de mosaico de
ônix preto e branco pérola. Os
banhos públicos também eram
decorados com
mosaicos reluzentes, formando
faixas de flores de pedra ou de
padrões
numéricos. Viam-se afrescos
vermelhos e alaranjados nas paredes
do
palácio, alguns ainda com as bordas
folheadas a ouro. Ben Ya’ir e seus
parentes moravam no palácio menor,
com vista para o vale. Quanto ao
Palácio do Norte, a construção mais
elegante e impressionante, tão
fantástica que rivalizaria com
qualquer maravilha do mundo,
guardava as
armas e os suprimentos. Ali foram
criadas lojas em barraquinhas, com
sapateiros e açougueiros, pois
nenhum homem entre os rebeldes
jamais
viveria em um lugar de riqueza
como o rei o fizera antes,
estabelecendo residência sobre
aquela montanha para provar que era
o dono do mundo.
Os homens reunidos em Massada
eram dedicados ao Sião, dispostos a
qualquer sacrifício, desafiadores em
todos os sentidos, não querendo ser
escravos de nenhum outro homem.
Quanto a Ben Ya’ir, dizia-se que
não
temia sequer Mal’ach ha-Mavet.
Quando o Anjo da Morte aparecesse
à sua
procura, tinha a intenção de arrancar
as doze asas daquele ser feroz e
derrubá-las ao chão, ensanguentadas
e cobertas de penas, como um dom
de
Deus.
Meu irmão e eu ficamos olhando
para a residência de Eleazar ben
Ya’ir.
– É uma honra para mim segui-lo –
meu irmão comentou.
– Ele mora em um palácio e eu moro
no campo? – provoquei.
Meu irmão me disse que haviam
preparado os aposentos para o meu
pai
e que era para eu acompanhá-lo e
cuidar dele. Amram ficara chocado
ao ver
como nosso pai se tornara frágil.
– Está doente? – meu irmão
perguntou, preocupado.
– Ele não descansaria enquanto não
o encontrássemos. – Quis poupá-lo
da verdade. A velhice do nosso pai
se acelerara pelo fardo dos homens
que
matara, pela filha a quem dera as
costas, por um deserto tão feroz que
o pusera de joelhos.
Quando Amram quis saber mais
sobre o tempo em que estivemos
vagando, disse apenas que
sobrevivêramos. Não mencionei o
homem que
fora marcado por um leão ou a
mulher cujo fantasma me
assombrava. Em
vez disso, contei-lhe sobre a cabra
selvagem, que devia ser um anjo,
cujo leite nos salvara da inanição.
Rimos ao pensar em uma cabra
como um anjo
e admiti que sentia falta do meu
animal de estimação, pois ela se
tornara minha confidente e amiga.
Meu irmão lembrou-me que a nossa
palavra
para anjo era a mesma para
mensageiro, pois era possível saber
que se fora
visitado por um ser luminoso pela
mensagem que se recebia. Quem
sabe a
cabra viera para me ensinar como
sobreviver em uma terra tão
inclemente
que parecia impossível fazê-lo.
– E quanto a você? – perguntei. –
Recebeu alguma mensagem?
Meu irmão pareceu vulnerável nesse
momento, mais um menino que um
guerreiro de olhos frios. Mas o
tempo se passara e ele, que sempre
me contara os seus segredos,
pareceu aliviado quando foi
chamado para a
guarnição antes de poder me
responder. A mãe do seu amigo Uri
apareceu
para levar-me ao espaço que
ocuparia.
– Não espere muito – ela me
advertiu.
Por não esperar nada, fiquei
satisfeita com o que recebi. Nosso
quarto ao
lado da muralha de Herodes era
muito melhor que qualquer abrigo
que
conhecera desde que fugira da
cidade. Tinha um telhado de tecido e
três paredes de madeira. Fora
construído um pequeno forno
redondo contra a
parede de pedra e havia uma
pequena câmara em que poderia
dormir. Se
ficasse na ponta dos pés, poderia
enxergar através de um vão na
parede e
admirar as falésias. Meu pai
esperava por mim quando cheguei.
Já havia abençoado o lugar.
– Eu lhe disse para confiar em Deus
– ele falou. – Você não devia ter
sido
tão fraca.
Engoli as minhas palavras. Não
disse: Foi você quem chorou no
deserto,
não eu. Você temia os animais
selvagens e a fome, enquanto eu ia
caçar pássaros e ousava enfrentar
os leopardos.
Arrumei a nossa casa com o que o
conselho local decretara que deveria
caber a cada família – um colchão
de palha para dormir, duas lâmpadas
de
azeite, cobertores de lã, copos e
tigelas de pedra. A mãe de Uri
trouxe-nos
nossa ração de tâmaras, lentilhas e
frutas, juntamente com uma panela
de
cerâmica e um recipiente com azeite
para cozinhar e usar para acender a
lâmpada no shabat. Ela me avisou
que a vida ali era difícil. Inclinei a
cabeça, fingindo ouvir, mas quase ri.
Ela estava limpa, tinha o cabelo
trançado e eu
era uma bárbara que enfrentara um
leopardo. Agradeci-lhe pelas
inúmeras
gentilezas.
DEPOIS DA MINHA primeira noite
na fortaleza, muitas vezes voltei a
visitar o pomar onde as amendoeiras
estavam em flor. Era o mês de Adar,
o começo
da primavera. Precisava de um lugar
calmo, que me oferecesse a
oportunidade de fugir do desprazer
da companhia do meu pai. Ele me
olhava, infeliz por compartilhar a
sua residência comigo, incomodado
com
o canto em que eu me alojara,
amaldiçoando a minha existência.
Nunca me
atrevi a retrucar. Sabia que três luas
novas haviam se passado desde que
tivera o meu sangramento mensal.
Nos pomares, as abelhas egípcias
eram
abundantes e o ar, suave e rosado.
Viéramos de uma terra árida para
um jardim, de vales de morte para
campos de abundância. Estava tão
acostumada à luz branca fustigante
que me atormentava ver os inúmeros
tons de verde, dourado e rosa.
Precisava semicerrar os olhos e
protegê-los
com a mão. Acostumara-me ao
silêncio do deserto. Ali havia cerca
de mil pessoas, uma humanidade
diversa, em uma cidade que
irrompia por entre
as nuvens, sem necessidade do resto
do mundo. O conselho imprimia suas
moedas em oficinas próprias. As
uvas eram recolhidas para a
produção do
vinho, cuidava-se das colmeias para
o aproveitamento das abelhas. Havia
teares montados na praça para as
mulheres e à noite suas vozes
irrompiam
enquanto cardavam a lã. Eram
mantidos cercados para os animais,
feitos de
uma trama de ramos de árvores
espinhosas. As ovelhas empoeiradas
baliam umas para as outras; as
cabras negras e seus filhotes tinham
espaço
para correr. O ar vivia impregnado
do aroma da panificação, do preparo
das refeições nas cozinhas, da
fragrância fresca das ervas
verdejantes, do coentro, do endro e
da sálvia cinza-escura.
Aquilo tudo era demais para eu
absorver depois do período passado
no
deserto, uma torrente de ruídos e
aromas engolfando-me como a maré.
Ansiava pelo que tivera antes. Um
pássaro entre as rochas. As
estampas empoeiradas de um
leopardo. Eu mesma quase sem
falar, e, se levantava os
olhos para alguém, era por nada
mais que um instante. Algumas
mulheres
me observavam enquanto eu andava,
curiosas. Algumas acenaram, mas
puxei o cachecol mais para junto de
mim. Garotas passaram correndo a
caminho dos banhos. Senti o pesar
crescer dentro de mim quando as
avistei. Desejei poder jogar fora
meu lenço e correr com elas,
tagarelando
esperançosa. Se pudesse despir
minhas roupas e mergulhar na
piscina
talvez conseguisse me purificar, ser
perdoada e começar de novo, uma
garota de novo. No entanto, se
tivesse de renunciar a tudo o que
acontecera, eu recusaria. Ansiava
por tudo o que perdera. Gostaria de
poder recuperar a cabra que era o
meu anjo. Gostaria de amarrar uma
corda de sinos ao seu pescoço e
outra em volta dos meus pés para
que pudéssemos encontrar uma à
outra sempre que irrompessem as
tempestades. Gostaria de assistir ao
aguaceiro escuro despencar do céu
enquanto ouvia o som dos sinos.
Não teria de fingir ser nada além do
que
me tornara.
Avistei o auguratorium, o
observatório de aves deixado pelos
romanos quando acamparam ali. Era
uma das muitas torres construídas ao
longo da
enorme muralha que circundava todo
aquele posto. O observatório
encontrava-se na posição mais
favorável, com vista para as
montanhas do
norte, o ar temperado pela brisa
fresca. Vira torres semelhantes em
Jerusalém, edifícios sagrados em
que os ossos das aves eram jogados
para
predizer o futuro, de cujas alturas os
mágicos podiam observar o
movimento dos rebanhos e prever o
que estaria por vir.
Diziam os sábios que era possível
estudar e aprender a magia, mas
nunca praticá-la, pois isso era
proibido, embora pudesse ser
encontrada em
segredo ou escondida em torres
como aquela. Subi a escada de
madeira. O
ar era ainda mais frio ali, a distância
reluzindo em ondas cintilantes.
Engoli
em seco diante do mundo à minha
frente, pestanejando na luz
ofuscante.
Falcões deslizavam pelo céu, mas eu
não sabia o que significava seu voo,
nem quando mergulhavam mais
próximo do precipício, nem quando
subiam no horizonte ocidental. Não
tinha talento para a magia de
qualquer
espécie.
Ajoelhei-me para ver centenas de
ossos espalhados no chão,
abandonados pelos romanos quando
fugiram. O piso estava salpicado de
cacos brancos. Não fazia ideia do
que significavam. No entanto, senti-
me profundamente afetada ao ver os
ossos afiados, pela música sutil que
o vento compunha nas suas
cavidades. Senti que era observada.
Ergui os
olhos e vi uma pomba que aparecera
na parede. Fiquei quieta e estendi as
mãos. Depois de tudo o que fizera,
de todos os meus pecados, ela se
aproximou sem medo.
PELA MANHÃ enviaram uma
menina para me encontrar, talvez
uma daquelas que passaram por mim
correndo a caminho dos banhos, uma
menina muito
jovem e inocente para conhecer os
segredos existentes entre mulheres e
homens, que pensava que o que se
via à luz do dia era tudo o que
existia e
que não tinha conhecimento da noite.
Ela era educada e bonita, não teria
mais que treze anos e usava brincos
pequenos de cornalina e ouro nas
orelhas. Disse que se chamava
Nahara, cujo significado
timidamente me
explicou. Trazia-me um par de
sandálias e riu quando hesitei,
desconfiada
de aceitar um presente de uma
estranha.
– Vai precisar delas onde está
prestes a ir – ela me informou.
As minhas sandálias haviam ficado
arruinadas ao longo da viagem, o
couro desfeito em tiras. Calcei as
novas para descobrir que se
ajustavam perfeitamente aos meus
pés. Enquanto a acompanhava,
Nahara informou-me que estava me
levando para a função que me fora
atribuída. Perguntou
o meu nome, uma palavra que não
havia pronunciado em voz alta havia
tanto tempo que quase me esquecera
do seu som.
– Meu nome é feio – assegurei a ela.
– Ao contrário do seu.
Caminhamos juntas por toda a Praça
Ocidental, pavimentada com
pedras enormes trazidas da Grécia
pelo mar. Nahara mantinha-se ao
meu
lado.
– Preciso chamá-la de algum nome –
ela insistiu. Era uma menina séria,
serena, mas voluntariosa, situada
entre uma irmã mais velha e um
irmão mais novo, acostumada a
tomar as próprias iniciativas.
Alguns acreditavam que por saber o
nome de algo era possível ter
acesso à sua essência. A maioria
dos pais não revelaria o nome de um
filho
do sexo masculino após o
nascimento até que fosse
circuncidado oito dias
depois, para que pudesse reunir suas
forças e não ficar vulnerável aos
demônios que pudessem chamá-lo.
Nahara encolheu os ombros quando
disse que cada nome era um segredo
conhecido apenas por Adonai.
Insistiu que provavelmente eu tinha
um nome bonito, pois o cabelo era o
mais
bonito que já vira. Todas as
mulheres do assentamento
comentavam sobre
isso, ela me disse. Falavam que fora
queimada em um incêndio e que essa
era a causa das manchas na minha
pele e do meu cabelo cor de fogo.
– Pois devem ter cuidado para não
soprá-las – avisei. – Poderia ser um
dragão. Elas ficariam cobertas de
faíscas.
Nahara riu, depois confidenciou que
a mãe me vira no auguratorium e
pensara que tinha um talento
especial.
– É por isso que vai trabalhar
conosco nos pombais. Ela a
escolheu
quando a viu na torre.
Meu coração murchou. A tantos
lugares eu preferia ser enviada,
praticamente qualquer outro lugar
teria sido um avanço: os olivais, as
padarias, até mesmo os celeiros de
cabras. Havia três columbaria, os
pombais em estilo romano em que eu
trabalharia. Dois construídos no
formato oblongo, mas o terceiro era
uma torre circular com uma
plataforma no piso superior, usada
para observação. As janelas de
todos eram cobertas por telas, para
impedir a entrada de falcões
curiosos. Os três
edifícios eram feitos de pedra e
cobertos com argamassa branca,
erguidos
do chão, para que as cobras em
busca de ovos não entrassem. Eram
criadas
milhares de aves e cada um dos
nichos esculpidos nas paredes
brancas
abrigava um casal de pombas, unido
por toda a vida.
Durante a época em que a guarnição
romana ocupara Massada, as
prateleiras no local eram usadas
como câmaras funerárias, para
armazenar
as cinzas dos mortos, mas agora
voltavam a alojar as rolas em
nidificação. O
que quer que os romanos tivessem
corrompido durante a sua estada ali,
depois da queda do rei Herodes os
nossos rebeldes devolveram ao uso
adequado. O que usavam para os
mortos fora transformado em vida
nos
corações palpitantes das pombas.
Não acreditávamos em transformar
carne em cinzas, mas em venerar os
ossos dos antepassados devolvendo
o
corpo à terra, de onde ele veio nos
dias de criação. O local que
abrigava os
mortos durante a ocupação romana
estava de novo permeado de música,
o
arrulho tirr tirr que aprendera a
imitar no deserto, para que os
pombos se aproximassem por me
considerar um dos seus.
Uma das abominações que os
romanos haviam cometido era usar a
sinagoga para seus estábulos. As
pessoas diziam que foram
necessárias
semanas para limpar o excremento e
purificar o espaço. Mesmo depois
de
tudo, dizia-se que ainda era possível
sentir o cheiro de cavalos quando
caíam as chuvas, então se acendia
incenso ali todas as manhãs. Mas
nenhum incenso seria capaz de
encobrir o odor pungente, úmido dos
dejetos das pombas, que me atingiu
em cheio quando Nahara me levou
ao
pombal de pedra. De todos os três,
esse era o maior, impregnado com o
mau cheiro dos pássaros. Ainda pior
era o barulho. Quando adentramos a
penumbra pelas pesadas portas de
madeira, o som era insuportável,
pois as
pombas entoavam seu canto a uma
só voz. Parei, abalada pelo bater de
asas, de novo ansiando pelo silêncio
que conhecera no deserto.
Nahara sorriu ao notar a minha
reação, o rosto virado para cima.
– Elas não mordem – afirmou ela. –
Você vai se acostumar.
Pegou um pássaro que voara para o
chão, segurando-o com suavidade.
Era para cuidarmos deles, alimentá-
los, recolhermos os ovos. Mais
importante ainda, era para
recolhermos seus excrementos,
utilizados para
fertilizar as culturas. Era por isso
que prosperavam os belos bosques
sobre
aquele precipício, em que o solo era
pouco mais que calcário coberto por
uma fina camada de terra, e por isso
o ar cheirava a amêndoas. Os
dejetos
das pombas fertilizavam os campos;
seus excrementos eram o segredo
para
criar um jardim no deserto.
Três outras mulheres trabalhavam no
pombal, todas elas ocupadas até a
nossa chegada. Elas se voltaram na
minha direção. Alguém poderia
imaginar que aquela tarefa
desagradável seria o último tipo de
trabalho que se poderia querer, mas
as três mulheres pareciam
orgulhosas do que faziam. Uma
deles, a mais velha, cujo nome era
Revka, olhou-me com
desaprovação, como se tivesse
invadido sem ser convidada o seu
domínio e
já me classificara como indigna. As
outras eram a mãe e a irmã mais
velha
de Nahara, cada uma mais bela que
a outra. Aziza tinha dezesseis anos,
era
tranquila e tinha a pele bem morena.
Como estava ao lado da mãe, mal
consegui distingui-las. Mas fora
Shirah, a mãe delas, quem me
escolhera.
Nahara sussurrou-me para dar um
passo adiante, lembrando-me do
interesse da mãe por mim. Gostaria
de saber se fizera sua escolha
quando
vira a pomba se aproximar de mim
sem ser chamada.
Naquele lugar barulhento, Shirah
mantinha-se serena, envolvida por
uma calma sombria. Aproximei-me,
depois parei, afogueada. Nossos
olhares se encontraram e senti algo
inesperado entre nós, uma onda de
calor. Parecia que me tornava
transparente aos seus olhos.
– Eu me pergunto como uma leoa
cuidará de um pombal. É capaz de
guardar seus dentes e suas garras?
As outras mulheres se reuniram à
nossa volta, rindo do comentário de
Shirah. Senti-me vulnerável e
exposta, ainda que o salão estivesse
às
escuras, apenas com réstias finas de
sol entrando pelo telhado e pelas
janelas teladas.
Shirah usava uma longa trança negra
nas costas. Era de uma beleza
extraordinária, com as maçãs do
rosto salientes e os olhos escuros,
quase
negros. As outras mulheres
pensaram que estava me
provocando, depois
de ter percebido o meu desagrado
em cuidar das aves. Não entenderam
o
que quis dizer. Mas eu, sim. Ela
sabia o que havia em meu íntimo.
– Quem me dera ser uma leoa –
disse pesarosa. – Não passo de uma
pobre andarilha.
– E não somos todos? – a mulher
mais velha, Revka, respondeu. –
Você
se acha muito diferente de nós?
Pensa que é boa demais para colher
a merda destas pombas, não é? –
perguntou com desdém. – Se for
isso, pode
sair agora.
As mulheres admiravam meu cabelo
vermelho. Como Nahara dissera,
era o que as pessoas notavam em
primeiro lugar. Talvez acreditassem
que
Shirah se referisse à cor castanho-
amarelada quando falara de leões.
Não faziam ideia de quem eu era ou
do que fizera. Os pássaros
esvoaçavam à nossa volta,
espontaneamente atraídos por mim.
Mantive os olhos no chão
enquanto falava. Tudo o que queria
era ficar sozinha.
– Farei o trabalho que me
destinarem – disse.
Façam comigo o que quiserem, o
que lhes der vontade. Não mereço
mais
do que o que recair sobre mim.
Shirah aproximou-se com uma cesta
de folhas de palmeira, belamente
tramada com um desenho de folhas
sobrepostas. Seus olhos eram
enormes
e profundos, contornados por kohl.
Usava pulseiras de ouro nos braços
e amuletos amarrados em torno do
pescoço por um cordão vermelho,
incluindo dois talismãs de ouro, que
brilhavam a meia-luz. As filhas se
aproximavam e passaram os braços
ao redor da cintura fina da mãe. Seu
amor por ela era evidente e as
invejei. Gostaria de ter sabido o que
é ter mãe, alguém que estaria sempre
ao meu lado, não importando o que
fizesse.
As aves arrulhavam. Senti uma
pulsação na garganta, recordando-
me de
como esperava as minhas presas no
deserto, como se aproximavam de
mim
e como as matava. Shirah entregou-
me a cesta. Perguntei-me se fora
tecida
com as folhas das palmeiras de Ein
Gedi, se alguma mulher tramara o
desenho com as folhas na manhã da
própria morte.
– Até mesmo uma leoa precisa
trabalhar – disse-me Shirah.
O TRABALHO começou
imediatamente. Estávamos todas
vestidas de branco, pois se
acreditava que as cores vivas
perturbariam as pombas e
prejudicariam a postura. Talvez não
fosse por acidente que a mulher
essênia, Tamar, tivesse me dado
aquela túnica, como se de algum
modo
soubesse que seria escolhida para o
pombal. Talvez não fosse tão
invisível
quanto imaginara.
Não havia tempo para duvidar de
mim mesma ou para reclamar.
Rapidamente, Aziza ensinou-me a
alimentar as que estavam sob nossa
incumbência com uma mistura de
quirera, trigo e ervilhaca, e como
afugentar os pares dos ninhos
quando necessário para recolher os
ovos ou
limpar os excrementos. Os ovos que
permanecessem nos ninhos
eclodiriam
em breve, e os pais cuidariam juntos
dos filhotes. Aziza preocupava-se
em
me ajudar a aprender os trabalhos no
pombal. Ela se parecia com um
cervo,
com pernas e braços delgados, e
uma grossa trança de cabelo escuro,
como
a mãe, brilhante e negro como a
noite. Mas, enquanto os olhos de
Shirah eram muito escuros, os de
Aziza eram de um cinza-claro
incomum, como a
água do rio, cheios de luz e
movimento. Trazia uma pequena
cicatriz quase
imperceptível, como uma lágrima,
embaixo de um dos olhos.
Nahara foi conversar com sua irmã a
meu respeito. Os olhos das irmãs
brilhavam. Parecia bom ter alguém
novo de quem falar, uma
oportunidade
para quebrar a monotonia do dia de
trabalho.
– Ela não me disse seu nome quando
perguntei – Nahara informou a
Aziza.
As irmãs ficaram com as mãos nos
quadris, considerando o que fazer
comigo. Eu me envergonhava de ser
considerada digna do seu interesse.
– Precisamos chamá-la de algum
nome – Aziza insistiu, querendo ser
minha amiga.
As irmãs estavam tão perto que suas
palavras eram como contas no
mesmo cordão de ouro. Se eu
dissesse o meu nome em voz alta
talvez me
livrasse da curiosidade delas.
Trabalharíamos lado a lado, afinal
de contas,
e elas precisariam me chamar de
algum nome.
– Yael – consegui pronunciar, pois
era uma palavra que me deixava um
gosto amargo na boca. Soara sempre
como uma maldição e manteve-se
assim desde aquele dia.
As irmãs pareceram satisfeitas,
assegurando-me de que o meu era
um
nome bonito.
– Tem mais alguém aqui com você?
– Queriam saber mais sobre mim,
para que pudéssemos ser amigas.
Dei de ombros friamente, como se
desdenhasse a resposta.
Um leão, um fantasma, uma cabra
que é um anjo, uma centena de aves
com o pescoço quebrado.
– Fui trazida para cá pelo meu
irmão. Amram, filho de Yosef bar
Elhanan.
Para minha surpresa, a curiosidade
delas definhou e as minhas palavras
caíram como pedras. Ouvi o eco do
nome do meu irmão. O silêncio que
obtive em resposta foi algo que
entendi, era melhor deixar intocado
o reino
dos segredos.
Nahara foi chamada pela mãe.
Pareceu grata por ter uma desculpa
para
sair em direção ao menor dos
pombais, muito embora as guardiãs
dos
pombos geralmente não gostassem
de trabalhar lá, pois o prédio era tão
apertado que cabia apenas uma
pessoa dentro das suas paredes. Ao
meu
lado, Aziza rapidamente voltou ao
trabalho, afastando as pombas,
recolhendo os seus ovos. Eu podia
ver através do espelho dos seus
lânguidos olhos cinzentos. Ela não
precisava me dizer mais nada para
que
eu compreendesse como o nome do
meu irmão soara para ela. Uma vez
pronunciado, ele se recusava a
desaparecer.
*
NOS DIAS que se seguiram, guardei-
me para mim durante as horas
passadas nos pombais, cumprindo as
tarefas que me haviam sido
designadas. Era
amável o bastante, mas só falava
quando as outras me dirigiam a
palavra.
Era a sua serva, nada mais. Não era
uma delas e não pretendia ser.
Tivera
uma amiga uma vez, e a traíra. Não
precisava de outra.
As outras mulheres faziam a refeição
juntas ao meio-dia. Eu comia
sozinha. Ia ao pomar sob o sol do
meio-dia, levando comigo um pouco
de queijo seco e pão sírio.
Aproximava-me da muralha e
observava ao longe,
olhando para o norte, a direção da
qual viera, onde deixara os ossos.
Um dia, algumas das mulheres que
trabalhavam nos campos vieram
sentar-se
ao meu lado. Prendiam o cabelo e
cobriam a cabeça com um lenço
para sombrear a pele. As suas mãos,
no entanto, estavam marrons do
trabalho em um bosquete de
pistache, lisas com óleo de nogueira.
Tinham vindo de
Jerusalém, acompanhando os
maridos, pais ou irmãos. Agora
agiam como
pessoas afortunadas que haviam
encontrado o caminho para o Jardim
do
Paraíso. Ouvira-as cantando
enquanto trabalhavam. Algumas
carregavam
bebês em tipoias amarradas às
costas ou nos quadris. As mulheres
solteiras
convidaram-me para encontrá-las
nos banhos. Abanei a cabeça e disse
que
não podia fazê-lo. Não queria que
ninguém notasse as minhas formas
arredondadas quando tirasse a
túnica. Como desculpa, disse que
deveria
permanecer nos pombais, pois mal
começara a trabalhar por lá e queria
agradar Shirah. Quando ouviram
isso, as mulheres ficaram
desconfiadas.
– Tudo bem – disse uma delas,
afrontada. – A escolha é sua, se
prefere a
Bruxa de Moabe.
As mulheres do campo que haviam
se reunido ao meu redor me
alertaram, murmurando que Shirah
viera do deserto depois de
atravessar o
Mar de Sal. O sal a levantara,
permitindo que ela e as filhas
atravessassem
sem se afogar. Shirah, asseguraram-
me, era capaz de invocar as nuvens
assim como chamava os pombos no
pombal. Depois da sua chegada
chovera a cântaros por semanas. As
torrentes caíram até que o mundo se
tornasse verde e as pessoas
chorassem de alegria. Fora por isso
que o líder
de todos ali, Ben Ya’ir, a mandara
chamar. Shirah era sua prima, mas
havia
mais coisas por trás da sua chegada.
Até mesmo um grande homem
poderia
às vezes precisar de uma bruxa.
Considerei aquelas mulheres tolas,
alheadas da realidade. Que tipo de
bruxa trabalharia em um pombal,
teria lentilhas como refeição,
coletaria excrementos, recolheria
ovos de pombos em uma cesta? Ela
era uma
mulher como qualquer outra. Ainda
assim, quando regressei ao pombal
notei que Shirah insinuava uma
curiosidade intensa; o que passava
despercebido das outras parecia
claro para ela. Às vezes, no fim do
dia, quando trancava a porta, ela se
voltava para me observar. Naqueles
momentos sentia que ela sabia tudo
sobre mim. Ainda mais estranho, não
tinha vontade de me esconder dela.
Queria falar da noite em que me
cortara pela vigésima primeira vez,
da manhã em que partira em busca
de
uma cura e da noite em que voltara
para descobrir que Ben Simon já
entrara no Mundo Vindouro. Talvez
isso, sim, fosse bruxaria, fazer
alguém
ansiar por revelar-se.
*
UMA NOITE, uma jovem aguardava
no lado de fora do maior pombal.
Era uma
serva, trazida de Jerusalém pela
família do seu senhor, que vivia com
eles
como sua cozinheira e empregada
doméstica. Eu a vira nos campos de
cultivo. Em meio às sombras, ela fez
um gesto para Shirah, pedindo-lhe
para acompanhá-la. Shirah dirigiu-
se às filhas, mandando-as para casa,
a fim de encontrarem-se com o
irmão mais novo e começarem a
refeição da
noite.
Depois que Shirah se foi com a
empregada, eu a segui, curiosa.
Descalcei
as sandálias e andei descalça, como
fazia quando espreitava os pássaros.
Senti algo errado nas minhas ações,
mas continuei. Shirah e a empregada
não pararam até chegar ao extremo
da muralha. Lá, entraram por um
canto
escuro. Não estávamos muito longe
do lugar em que haviam sido
montados
grandes teares para as mulheres
trabalharem à noite, depois de
concluídas
as tarefas diárias. Parei atrás de uma
coluna, onde sombras esverdeadas
espalhavam-se sobre as pedras.
Senti-me como quando me agachava
no
deserto, à espera de uma presa.
Podia sentir a pulsação latejar na
garganta.
Com um pedaço de madeira
carbonizada, Shirah desenhou na
muralha a
imagem de um olho. Pegou uma
agulha da bainha da túnica que usava
e, enquanto recitava um
encantamento, perfurou o olho com a
agulha. O som
baixo e rítmico de sua voz se
propagava até onde eu estava
escondida.
Apesar de não entender as palavras,
imaginei o que estaria fazendo.
Estava
obrigando algum homem a ser
verdadeiro, como eu fizera no
deserto na
noite em que desenhara o rosto do
leão na areia. Outros homens
poderiam
se desviar, mas aquele seria
obrigado à fidelidade como um fio,
ao ser conduzido pela agulha, era
obrigado a atar os pontos.
Não devia ter permanecido ali.
Poderia facilmente ter voltado pelo
caminho que viera sem que ninguém
me visse, mas sentia-me presa ao
feitiço. A cantilena me aprisionou, a
voz de Shirah envolvendo-me como
se
tivesse a capacidade de me prender,
assim como o amante fazia com a
empregada. Shirah virou-se para me
olhar como o escorpião encarava o
camundongo. Afastei-me correndo,
mas continuei sentindo o seu olhar.
No dia seguinte, quando fui trabalhar
no pombal, usei um véu para
encobrir o rosto, esperando que me
fizesse invisível, do mesmo modo
que a
capa do meu pai escondia sua
verdadeira natureza. Shirah
acompanhou-me
para dentro, um sorriso brincando
em seus lábios. Poderia jurar que
via através do meu véu. Quando os
outros saíram para a refeição do
meio-dia,
cozinhando lentilhas e ervilhas em
uma cozinha ao ar livre, Shirah
insistiu
que precisava da minha ajuda. Havia
uma tarefa que deveríamos realizar.
Não tive escolha a não ser
acompanhá-la. Como a empregada
que a seguira,
eu era apenas uma serva.
Fomos ao campo levando as nossas
cestas. O sol precipitava-se sobre
nós.
– O que fiz junto à muralha me foi
pedido – Shirah informou-me
quando
passamos sob a sombra rendada das
amendoeiras verdejantes. – Não era
amor o que a jovem pedia, apenas
decência.
De onde se achavam sentadas para o
seu almoço no bosque, as mulheres
do campo olharam para nós,
sussurrando, exceto uma delas, a
empregada
que ainda colhia pistache para a
patroa. Pétalas claras caíam em
torno de
nós, a metade delas amarga.
– Quando chegar a hora e precisar
da minha ajuda, eu a ouvirei também
– disse Shirah. – Farei o que pedir.
Corei, confusa.
– Pedi alguma coisa?
Shirah despejou a cesta de
excrementos das pombas ao redor da
amendoeira mais alta, que
desabrochava em mil flores.
Ocorreu-me que ela
podia adivinhar a verdade, mesmo
através do silêncio.
– É verdade – ela respondeu. – Você
não pediu.
Lado a lado, retomamos a
caminhada de volta ao pombal,
passamos
pelos arbustos de amoreiras, com
suas confusões de bagas negras,
cruzamos o pé de pistache, no qual a
empregada trabalhava tirando as
vagens dos ramos. Notei que a
jovem não ergueu os olhos para nós,
mesmo
quando Shirah tocou seu ombro em
uma saudação silenciosa.
– Não ainda – disse ela para mim.
NOS CORREDORES do Palácio
Ocidental, no ponto mais elevado do
planalto, o que no passado servia à
realeza agora servia a todos nós.
Trigo e grãos eram armazenados
onde antes eram câmaras elegantes.
Os curtidores,
padeiros e ferreiros trabalhavam em
um salão em que o piso de mármore
era tão fino como qualquer outro de
Atenas ou de Roma. Para aqueles
que
provinham de aldeias pequenas, a
glória daquele palácio era
surpreendente. Ali, local em que
foram realizados grandiosos
encontros da
nobreza, no momento trabalhávamos
a serviço do Todo-Poderoso, não
pela
nossa ganância. Os rebeldes tinham
preocupações puras, muito embora
os
homens vivessem no limite de seus
nervos, meu pai inclusive. Todas as
manhãs ele se dirigia à sinagoga
construída na muralha ocidental,
para orar
e ouvir os sábios falarem sobre o
que o futuro traria. Eu acordava uma
hora
antes do meu pai para aquecer bolos
de cevada em azeite para sua
refeição.
Era a sua serva, o seu cão e a sua
escrava. Seus desejos eram as
minhas necessidades, seus humores
governavam a minha vida.
Os homens reuniam-se na sinagoga
preocupados com o bem-estar de
seu líder, Eleazar ben Ya’ir, que
deixara a nossa fortaleza alguns dias
antes
para angariar apoio entre as cidades
do deserto por toda a Judeia. Os
seus
seguidores ansiavam pelo seu
regresso. Na sua ausência, sentíamos
mais de
cem vezes o perigo que corríamos,
tendo apenas a borda implacável da
montanha para nos proteger. Quando
um ancião em uma das assembleias
exigiu saber quem tomaria o lugar de
Ben Ya’ir, caso o perdessem no
campo de batalha, todos os
presentes silenciaram. Ninguém
queria pensar
em Massada sem um líder, um corpo
sem espírito. Sem Eleazar ben Ya’ir
estaríamos perdidos, à mercê uns
dos outros, com o nosso pescoço em
risco. Seu destacamento de
guerreiros incluía meu irmão, e eu
estava
especialmente preocupada, pois
aqueles que haviam sido reunidos
recentemente não deveriam ser
separados.
Naquele mesmo dia, como uma
resposta aos céticos, Ben Ya’ir –
nosso
salvador e nosso redentor, o homem
que salvara nosso povo da
destruição
de Jerusalém – regressou. Chegou ao
anoitecer. As pessoas queriam vê-lo
e
foram para a muralha, enquanto ele e
os companheiros mais próximos
subiam pelo caminho que levava aos
domínios de Deus. Alguns
acreditavam que fosse capaz de
conversar com os anjos, que o
próprio
Rafael andava ao seu lado, a espada
reluzente elevada contra nossos
inimigos. Olhamos sobre os
penhascos que nos protegiam e
sentimo-nos
abençoados por ter um líder tão
nobre.
Em consequência das fortes chuvas
do inverno, o mundo abaixo de nós
estava verdejante. O deserto achava-
se coberto de murta, um sinal de boa
sorte. Nós, mulheres, tecíamos a
murta nas roupas íntimas, para
carregar conosco o doce aroma do
deserto enquanto caminhávamos. Um
sentimento
de alegria espalhava-se com a
virada da estação e eu guardava a
minha alegria pelo segredo que
carregava em mim. Avistei Amram e
senti-me
aliviada. Quis conhecer
pessoalmente Ben Ya’ir, o homem
que levara o meu
irmão e os seus amigos para aquele
lugar remoto e perigoso. Uma
multidão
de pessoas se acotovelava com o
mesmo objetivo, vê-lo e sentir-se
consolado pela sua força. Precisei
ficar na ponta dos pés para ter um
vislumbre. As pessoas estavam
dispostas a morrer por ele,
permaneceriam
ao seu lado para impedir que as
flechas atingissem sua carne. Muitos
abaixavam a cabeça na sua
presença, como faziam perante os
homens
santos e os sábios.
Em Jerusalém, ele teria passado
despercebido na multidão. Não era
um
homem que se destacasse por causa
da aparência. Não era alto nem
bonito,
apenas de ombros largos, com uma
expressão simples e direta. Era
marcado por várias cicatrizes, seus
braços eram enormes, capazes de
lançar um machado através do
campo de batalha. Possuía um
domínio
especial sobre os outros homens e
uma energia intensa que tornava
impossível não reagir à sua
presença. Ele brilhava porque os
outros o seguiam, porque o
adoravam e obedeciam, por confiar
nele. Era um homem
de pele escura, mas tinha luz dentro
de si, um brilho inexplicável.
Mesmo se
estivesse imóvel, os nossos olhos se
voltavam em sua direção, e assim
ele
comandava todos nós.
O destacamento de guerreiros
regressava trazendo burros
carregados
de armas – arcos e flechas de
diversos tamanhos, juntamente com
dezenas
de escudos recolhidos dos
derrotados. Outra parte da guarnição
romana
caíra diante deles, e o que lhes
pertencera era agora nosso. Algumas
das armaduras de bronze seriam
derretidas para que a nossa fortaleza
pudesse
ter suas moedas – de um lado eram
impressas as folhas da videira, do
outro, as palavras Pela libertação
do Sião. Dois homens acorrentados
caminhavam atrás dos burros,
humilhados, as cabeças
ensanguentadas, os
olhos brilhantes para a multidão.
Eles eram soldados romanos
recrutados
pela legião de uma terra longínqua e
ninguém nunca vira alguém
descorado
como eles, com a pele leitosa de tão
branca. Embora usassem capacetes
romanos, suas túnicas eram da sua
terra de nascimento e haviam sido
tecidas com desenhos estranhos de
cinza-azulado, azul e vermelho. Era
desconcertante vê-los à nossa
mercê; sempre nos consideráramos
as
vítimas de uma guerra injusta, e ali
seguiam aqueles dois recrutas, a
ferros.
Havia escravos entre nós, trazidos
pelas pessoas que haviam fugido de
Jerusalém, mas eles eram tratados
como governantas e camponeses, e
muitas vezes recebiam a liberdade
depois de anos de serviço. Não
sangravam nem andavam
acorrentados. Agora, as pessoas
aplaudiam a
captura dos inimigos, que
inclinavam a cabeça, provavelmente
esperando
ser executados. Mas logo a multidão
os esqueceu. Estava mais
interessada
no nosso herói, gritando o nome de
Eleazar ben Ya’ir como homens
sedentos implorando por água. Ouvi
algumas mulheres dizerem que os
olhos de Ben Ya’ir mudavam de cor,
eram de um cinza frio como a água
ainda em um poço, mas, às vezes,
seu olhar tornava-se como o verde-
claro
de um córrego que deságua em uma
lagoa. Como homem, ele era tão
complicado quanto a cor dos seus
olhos. Costumava se afastar quando
não
concordavam com ele, mas depois
de pensar melhor ele reconsiderava
e
pedia explicações sobre a opinião
diversa. Era um homem a quem as
discussões sucediam naturalmente,
mas era atencioso também. Quando
um
dos seus homens caíra em batalha e
estava muito ferido para viver, Ben
Ya’ir não enviara um guerreiro para
executar o terrível golpe de
misericórdia. Ele mesmo completou
a tarefa, depois proferiu as orações
pelos mortos, um ato de caridade
que nunca poderia ser
recompensado.
Era aberto de um modo que fazia as
pessoas reagirem em um nível
profundo, essencial, pois todos
respeitavam e temiam a sua ira,
ainda que o
amassem, assim como a um irmão ou
a um filho.
No dia em que trouxeram os
escravos, Ben Ya’ir ostentava uma
cicatriz
recente no pescoço e no peito.
Usava o cabelo comprido trançado
como
nossos guerreiros, mas sempre
manteve o xale enrolado em torno
dele,
pronto para orar em todos os
momentos. Era bem possível que o
que as pessoas sussurrassem fosse
verdade e ele realmente soubesse
mais que os
outros homens, e se tornara ainda
mais feroz pelo poder da profecia.
Era capaz de distinguir os justos dos
ímpios e, quando observava os
inimigos,
podia ver além dos seus trajes e de
sua pele para enxergar seu espírito.
Quando a multidão se aproximou
dele, agitada, batendo os pés, eu
recuei
com medo de que me visse por quem
era. O avanço fervoroso poderia
facilmente esmagar quem não
acompanhasse o ritmo da multidão
fremente. Acima de nós aproximou-
se um bando de pombos selvagens,
mas, se esse fosse um sinal, não fui
capaz de ler a profecia, e as pombas
rapidamente se voltaram, voando
para o leste e depois para o norte,
em direção a Jerusalém. Vi Shirah
observá-los e seu rosto pareceu
corar de desespero. Pensei que ela
entendera algo que eu deixara de
notar, e notei
que carregava um ramo de murta
consigo, como as noivas deviam
fazer em
sua noite de núpcias.
Ben Ya’ir deixou a plateia
encantada. Contou sobre os romanos
que
haviam sido derrotados naquela
batalha mais recente, soldados
usando
capacete e cota de malhas, seus
escudos quase impenetráveis quando
se
amontoavam em uma formação que
parecia uma tartaruga. Somente os
mais corajosos guerreiros eram
capazes de combatê-los, entrando no
confronto com a adaga
desembainhada. Ben Ya’ir
cumprimentou seus
guerreiros pela coragem, destacando
o meu irmão com um elogio. Amram
abaixou a cabeça para não parecer
arrogante, mas estava nitidamente
honrado pelo reconhecimento.
Avistei o disco de prata de Salomão
em seu
pescoço, que continuava a lhe
fornecer proteção.
Ben Ya’ir passou a contar sobre os
tesouros saqueados dos romanos –
uma couraça de ouro decorada com
pedras preciosas, anéis de ouro com
sinete, jarros de vinho, moedas para
serem fundidas. Ele proclamou que a
nossa vitória se devia ao nosso Deus
e que os nossos corações deveriam
ser
fortes para honrá-Lo.
– Se a vida parece difícil agora, ela
só tende a piorar – anunciou Ben
Ya’ir, a expressão sombria, a luz se
desvanecendo no seu semblante.
No entanto, essa declaração
perturbadora não teve o poder de
deter a
crescente onda de triunfo. Eu nunca
vira uma multidão em tamanha
comunhão assim, uma só carne e um
só espírito, oscilando de um lado
para
o outro. Os guerreiros em particular
pareciam enfeitiçados, pois agiam
com
um homem em transe e ausente, ou
assim eu acreditava até olhar para o
outro lado da praça. Lá estava
Amram, entre os seus companheiros,
muitos
dos quais feridos na batalha que
acabavam de travar. Esperaria que
meu irmão estivesse atento a cada
palavra de Ben Ya’ir, encantado
com o líder
amado, como estavam seus irmãos
de armas. Em vez disso, olhava para
uma garota em um dos extremos da
multidão.
Essa era Aziza, com os olhos
baixos, o cabelo lustroso puxado
para trás
sob o véu.
NAQUELA NOITE, fui à mikvah.
Era um lugar de renovação e
esperança, o que sentia agora que
meu irmão tinha regressado. As
lâmpadas de azeite
queimavam nos nichos ao longo da
muralha de pedra, iluminando a
câmara
escura. Esperava ficar sozinha –
embora a minha condição não se
anunciasse, ficaria evidente para
quem observasse de perto. Quando
cheguei, as mulheres do campo
estavam lá. Se me virasse para sair,
eu as ofenderia, portanto despi-me
no escuro, removendo a túnica e os
lenços, na
esperança de disfarçar a minha
forma arredondada. Escondi a adaga
de Ben
Simon, que sempre carregava
comigo, sob as vestes dobradas,
depois
rapidamente subi a escada e entrei
na água antes que alguém tivesse
tempo
de examinar as minhas formas.
– Finalmente decidiu ser uma de nós
– provocaram elas. – Por que está
tão tímida?
Deixei-as acreditar que tinha um
temperamento acanhado. Abaixei a
cabeça e disse que as sardas na
minha pele sempre me
envergonhavam.
Não havia mal em permitir-lhes me
ver como queriam, era uma garota
que
preferia manter-se escondida por
timidez. Sabia como participar da
brincadeira. Lembrei-me de como
sorrir, sendo ou não sincera. As
mulheres sentiam-se mais livres
para falar durante o banho;
compartilhavam segredos formando
um círculo na água. As mulheres do
campo perguntaram sobre o meu
irmão, o que não foi nenhuma
surpresa.
Onde quer que Amram andasse, as
mulheres se atiravam para ele.
Muitas
das mulheres no banho
consideravam-no bonito, mas dei-
lhes poucas
respostas. Disse que raramente o via
e elas aceitaram a minha reserva.
Decidiram discutir sobre Shirah. Se
não fosse uma prima distante de Ben
Ya’ir, uma jovem mulher chamada
Naomi sussurrou, certamente teria
sido
lançada ao deserto. Shirah era uma
praticante do keshaphim, iniciada
nos segredos da magia. O nosso
povo acreditava que qualquer item
com um sol
e uma lua gravados deveria ser
levado ao Mar de Sal e atirado na
água, mas
várias mulheres afirmaram ter visto
amuletos de ouro com tais efígies no
pescoço da bruxa. Dizia-se que em
sua cozinha havia uma caixa
trancada com uma chave em forma
de serpente, Deraqon, outra figura
do Egito que
fora banida. Dentro dela falavam ter
uma infinidade de pecados que se
tornariam o fardo de quem se
atrevesse a abrir a tampa e libertá-
los, pois
seriam como um enxame ao seu
redor, como vespas, ardendo e
mordendo,
nunca abandonando a sua
companhia. Uma jovem alegou ter
sido picada
quando se atrevera a chamar Shirah
de bruxa.
Reparei em uma mulher tranquila,
com tranças no cabelo cor de mel,
que permanecera à margem do
grupo. Era a serva da muralha em
que o
feitiço fora lançado, aquela cujos
braços eram manchados com a
tonalidade
marrom do pistache. Sabia que ela
me reconhecera também, pois não
conseguia sustentar o meu olhar.
Não percebera como era jovem,
pouco
mais que uma menina. Senti uma
pontada de tristeza por tudo o que
tivesse
perdido na montanha.
As outras mulheres continuaram com
suas fofocas. A bruxa era apenas
uma mulher, alguém sussurrou, mas a
filha Aziza era ainda pior. Ela era
uma dos sheydim. Metade anjo,
metade humana, uma combinação
que formava um demônio. As
mulheres no banho juraram que o pai
de Aziza
era um anjo enviado à terra para
ensinar magia às mulheres do mal
que ansiavam conhecer tais
segredos. Criaturas como Aziza
nasciam dessas
associações. Era difícil avaliar
quem eram, pois comiam e bebiam
como nós.
Podiam ter relações sexuais e deixar
os homens saudosos por muito
tempo,
pois podiam até mesmo morrer
como os mortais, mas não eram
como nós.
Viam o futuro em um copo de água e
folheavam as páginas do Livro da
Vida
para ver os nomes que haviam sido
inscritos nelas. Voavam de um lado
do
mundo para o outro no tempo que
levávamos para nos levantar da
cama.
Praticavam a paciência, mas
pegavam o que queriam, com direito
a tudo o
que tínhamos neste mundo; desse
modo, eram iguais aos mensageiros
do
céu, um enigma para nós, que não
tínhamos escolha senão nos curvar
às nossas necessidades e nossos
desejos humanos.
Ouvi essas afirmações sem
comentários e sem expressão, mas
senti um
arrepio de desconforto ao longo da
espinha. Tudo o que fizera desde
que deixara Jerusalém era
certamente um pecado aos olhos de
qualquer um. Se
as mulheres do campo soubessem
que tinha conhecido um leão e o
atraído
para mim, sem nunca deixá-lo ir,
mesmo durante o período do mês em
que
era niddah, o que diriam a meu
respeito? O que pensariam se me
vissem no deserto, à sua espera no
penhasco, desejando-o mais que à
pureza, à
obediência ou ao dever?
Virei-me quando falaram mal de
Aziza. Vira-a cavar os ninhos nos
pombais até suas mãos sangrarem.
Aquele era um trabalho pouco
adequado para um anjo, não mais
que um ofício para uma bruxa.
– Vejam como ela é – as mulheres
insistiram. – Ela nunca virá aos
banhos. Não despirá a túnica ou os
lenços para que qualquer uma possa
ver
esse seu corpo. Há uma razão para
esse recato.
Estavam com ciúme, inveja de que,
onde quer que Aziza aparecesse, os
homens se voltavam para ela, de que
o seu cabelo era da cor da noite, que
o
seu sorriso era doce, de que ela não
pensaria em falar sobre elas com
rancor, como agora a difamavam.
Talvez, também, tivessem visto o
seu
rubor à menção do nome do meu
irmão. Várias das mulheres
claramente
queriam o meu favor só porque era a
irmã de Amram. A que se chamava
Naomi boiava ao meu lado, tão
perto que podia sentir o calor do seu
corpo
na água fria. O ciúme queimava
assim. Sabia disso muito bem.
– Tome cuidado com a filha da
bruxa – advertiu-me Naomi. Sem
dúvida
ela acreditava que eu era uma
mulher que queria uma amiga. – E
nunca tente pegá-la. Os sheydim têm
asas.
As asas de Aziza eram negras,
continuou ela, como as de um corvo,
e como um corvo, dizia-se, ela
cantava para anunciar a chegada do
Anjo da Morte. Todas as vezes que
nossos guerreiros saíam, ela se
empoleirava na
muralha de Herodes, admirando a
paisagem através dos olhos
prateados.
– Está enganada – disse eu,
humildemente, não querendo insistir
na
questão.
Sabia que o Anjo da Morte nunca se
anunciava. Ele vinha em silêncio e
saía em meio à tristeza. Chegava
quando se imaginava estar seguro,
como
quando seguíamos o caminho das
bandeiras azuis através do deserto,
com
a cura para Ben Simon na mão.
Caminhando na volta da mikvah
para o meu quarto, o cabelo
molhado, senti frio e achei-me
superior às mulheres tolas no banho.
Mas, enquanto atravessava a praça,
vi uma figura no escuro que parecia
um anjo,
movendo-se como se dizia que os
anjos faziam, nos cantos da nossa
vista.
Por um instante temi que a morte
estivesse realmente próxima e que
as
mulheres no banho tivessem razão.
Tremi ao pensar que o seu
mensageiro
estivesse solto acima de nós. Ou,
talvez, tivesse me esquecido de
trancar o
pombal e os pombos haviam fugido
para se esconder nos galhos das
oliveiras, farfalhando as folhas.
Estava muito escuro para distinguir
alguma
coisa, então parei onde estava,
pestanejando sob o luar. Vi um
brilho na forma de uma menina
pairar na noite.
Foi então que avistei meu irmão ao
lado de uma pequena piscina em que
cem anos antes o rei Herodes criara
peixes, criaturas pequenas e
cintilantes
que se dizia ser feitas de ouro puro.
Quando um falcão arrancasse um
peixe
do tesouro do rei, cairia sobre a
terra imediatamente, sob o peso da
ganância. Vi uma menina correr para
Amram, voando para seus braços.
Não
havia necessidade de um feitiço para
prendê-lo, ele estava amarrado pelo
próprio desejo, sem uso de bruxaria.
Ele mergulhou nessa rede de amor e
puxou as cordas por si mesmo, não
porque Aziza fosse um anjo, mas
porque era de carne e osso.
UM VENTO frio repentino
surpreendeu todos nós naquele mês
suave. Quando
partiu, as frutas caíam das árvores e
se espalhavam pelas pedras.
Algumas
mulheres juraram que os restos dos
figos dispersos pelo chão formaram
a
imagem de falcões vermelhos que
circulavam sobre nós, esperando
para
reivindicar a nossa fortaleza para si.
Houve pressa para ir com as foices
para os campos de trigo, para colher
o que ainda poderia ser aproveitado
antes que os talos escurecessem.
Nosso povo fez uma oração,
conduzida
pelos sábios e pelos integrantes do
conselho. O principal dos nossos
sacerdotes, geralmente enclausurado
na sinagoga, onde estudava e
distribuía conselhos, postou-se
sobre a muralha e liderou os homens
na oração. Seu nome era Menachem
ben Arrat e era conhecido como um
dos
cinco homens mais cultos da Judeia.
As pessoas diziam que ouvira a voz
de
Deus no topo da montanha. A
situação era terrível, portanto ele
agora aparecia, pois sem os pomares
não teríamos sustento e sem os
pombos não
haveria pomares. Eu aprendera a
gostar do arrulho dos pássaros, um
canto
tão belo que o Cântico dos
Cânticos, a grande glória do rei
Salomão, exaltava-o como se fosse a
voz da pessoa amada. Pomba
minha, que andas
pelas fendas dos penhascos, no
esconderijo das rochas escarpadas,
mostra-me
o rosto, faze-me ouvir a tua voz,
porque a tua voz é doce, e o teu
rosto, amável.
O conselho tomou uma decisão em
nosso benefício. Os pombais foram
abençoados e fizeram-se oferendas
pela saúde dos animais. Queimamos
bálsamo e mirra em suportes de
prata, para que a fumaça assegurasse
a postura ininterrupta dos nossos
protegidos. Por causa do vento
cortante, as
pombas tremiam em seus poleiros e
enfiavam a cabeça debaixo da asa.
Destinaram-nos um dos soldados
romanos do norte para fazer a parte
mais
pesada do nosso trabalho, carregar
os cestos para os campos, estender o
feno e recolhê-lo depois de usado e
úmido. O outro soldado fora trocado
por dois burros brancos que os
comerciantes de Edom nos
trouxeram e já
fora embora da fortaleza. Era isso o
que valia um escravo neste mundo.
O
nosso usava algemas de metal nos
pés, que foram destrancadas quando
veio trabalhar para nós. Ele
mantinha o olhar de lado e fazia o
que lhe era
dito. Torcera o cabelo louro em
tranças, em vez de permitir que
caíssem lisos como quando chegara,
mas, apesar dessa tentativa de
esconder como
era diferente, ainda assim não se
parecia conosco de modo algum.
Ele parecia envergonhado da sua
situação, no entanto, quando Revka
lhe
fazia um sinal, apressava-se a fazer
o que lhe era ordenado. Ele era alto,
quase um gigante, bem musculoso,
com braços e pernas longos.
Cobrindo o
seu antebraço forte, via-se uma
imagem tatuada em preto de uma
criatura
que parecia um cabrito-montês, mas
com enormes chifres ondulados. O
escravo me viu olhando e devolveu
o olhar abertamente.
– Não se preocupe – comentou
Revka quando notou seu
comportamento
rude. – Faremos todos os esforços
para domá-lo.
O escravo lançou-lhe um olhar
sombrio, em seguida voltou a
trabalhar,
limpando os ninhos. Rapidamente
vim a acreditar que ele conhecia
mais a
nossa língua do que deixava
transparecer. Ele dava de ombros e
fingia não
entender, mas pude ver a verdade
pelo modo que me encarou um dia,
quando quebrei um ovo e murmurei
uma prece para o espírito da pomba
que poderia ter nascido.
– Sabe o que acabei de dizer? –
perguntei.
Ele desviou o olhar. Seus estranhos
olhos azuis eram frios.
Notei que muitas vezes ele
esquadrinhava a praça através das
ripas que
cobriam as janelas do pombal, que
permitiam a entrada de ar mas
detinham os pássaros. Pensei que
poderia estar procurando o outro
escravo.
– O seu companheiro foi mandado
embora – disse-lhe. – Não o
veremos
mais.
Embora não tivesse certeza, pensei
vê-lo estremecer ao ouvir a notícia.
Senti pena dele, talvez porque fosse
agora o único da sua espécie.
Lembrei-
me do leopardo que enfrentara no
deserto, como a fera correra de mim
quando pulei em cima de uma pedra
e rugi. Como parecera solitário ao
correr para os arbustos espinhosos,
como me senti só quando me deixou.
– Bem, se sabe o que lhe convém,
não ouvirá mesmo que seja capaz de
entender – adverti o nosso cativo.
Passei a observá-lo e notei que era
inteligente, pois adotara um método
novo de limpeza dos pombais com
um ancinho que inventara. O escravo
encontrara pregos enferrujados no
chão, que utilizara para prender os
galhos a um ramo torcido de oliveira
que crescera no meio de um espaço
no telhado. Toda vez que ele
percebia que eu o estava
observando, parecia
envergonhado, cauteloso. Ele me fez
pensar em um urso sírio que vira
uma
vez em Jerusalém, preso a ferros
para executar truques para o seu
dono romano. O urso mantinha os
olhos baixos, mas uma vez, quando
não
conseguiu se conter, arreganhou os
dentes, apenas para receber um
bofetão. Erguera as patas sobre a
cabeça, como se fosse um homem
sendo
espancado. Embora outros rissem na
multidão, recuei e fugi, o coração
batendo forte.
– Você tem comida suficiente? –
perguntei ao escravo no fim de um
dia.
Imitei o gesto de comer para que
pudesse entender. Ele balançou a
cabeça, encolheu os ombros. Sabia
que ele dormia no sótão fétido acima
do
pombal, onde era acorrentado à
noite, que recebia grãos e biscoitos
como
ração e pouco mais. Comecei a
deixar-lhe pilhas de galhos, para que
pudesse ter uma fogueira e aquecer-
se quando as noites fossem frias.
– Você é surdo? – perguntei em voz
alta.
Ele erguera os olhos para mim
então. Era um estranho vindo de uma
terra coberta de neve, algo que só
vira uma vez na vida, quando era
menina.
A neve caiu sobre Jerusalém até
cobrir as colinas, enviada por
Shalgiel, o anjo da neve. Algumas
crianças a confundiram com maná e
comeram
punhados dela, congelando seus
lábios.
O escravo me entendeu. Estava certa
disso.
Eu sabia o que era ansiar por uma
vida tão distante que parecia nunca
ter sido nada além de um sonho.
Será que ele sonhava com neve e
cabras
selvagens azuis, ou com o
companheiro, levado acorrentado
para além do
Mar de Sal?
Tirei uma das pombas do seu nicho,
segurei-a até que se acalmasse,
então rapidamente quebrei seu
pescoço. Quase ri ao ver a surpresa
do
escravo. Observando-me daquele
modo, talvez não esperasse uma
ação tão
abrupta e mortal. Mas eu não temia a
crueldade, sabia que estava dentro
de
mim, pois estava dentro do
leopardo, que devia pegar seu jantar
para
sobreviver. O escravo mostrou-se
grato quando lhe entreguei o pássaro
para cozinhar para o jantar;
escondeu-o num canto distante, onde
poderia
alcançá-lo quando fosse acorrentado
à noite.
Na manhã seguinte, quando Revka,
sempre azeda e pronta para culpar
alguém, notou um pássaro faltando,
declarei ter visto um falcão mais
cedo
naquele dia. Essas coisas
aconteciam com bastante frequência:
uma pomba
surgia pela estreita abertura no teto e
era atingida em pleno ar. Então
haveria penas flutuando para baixo
e, se você estreitasse os olhos, veria
uma chuva fina de sangue.
QUANDO IA à muralha apreciar o
panorama a perder de vista além do
nosso povoamento, muitas vezes me
impressionava com o quanto
estávamos
isolados do resto do mundo. Era
como se o deserto não tivesse fim, a
terra
tão distante que parecia impossível
voltarmos a andar sobre ela
novamente. Se isso era ser um anjo,
ser um Rafael ou um Miguel, ou um
dos
sheydim que observavam a
humanidade do alto, então aquele
era um lugar
solitário e terrível para ocupar.
Éramos uma cidade e um mundo
para nós
mesmos, com mais gente chegando o
tempo todo. Desesperados, devotos,
batidos, perdidos. Era por isso que
havia tanto falatório, era difícil
manter
um segredo naquele tipo de mundo
apinhado e implacável. As famílias
compartilhavam o espaço vital,
tendo apenas as paredes finas de
tecido grosseiro de pelo de cabra
amarrado por cordas a nos separar.
Ouvíamos o que deveria ser
privado, as relações amorosas e
igualmente
as discussões. Sabíamos de quem
eram os filhos que não se
comportavam e
eram repreendidos, e quem era a
esposa que murmurava maldições
tão
logo o marido deixava o seu
alojamento. As casas de banhos
estavam
sempre cheias, tanto de conversas
como de corpos. As lojas se
enchiam de
pessoas à procura de farinha e
azeite. Tantos tinham se deslocado
de
Jerusalém para lá que não havia o
suficiente para todos; éramos
obrigados
a dividir tudo, a esperar em filas
pelos alimentos e provisões
distribuídos
com cuidado dos depósitos cada vez
mais vazios, a labutar até altas horas
da noite. Eu entendia por que os
homens saíam para os ataques.
Embora fosse apenas uma mulher,
alheia ao que os homens discutiam
na sinagoga
ou nos alojamentos militares, ainda
assim compreendia o que se
esperava
se fôssemos desfavorecidos por
Deus. Embora os campos estivessem
verdes no momento, era impossível
prever a chegada de tempestades, se
nos atacariam nuvens de gafanhotos,
se passaríamos fome no mês de Av,
quando o mundo ardesse novamente.
Por ora, estávamos na estação
amena. Podíamos colher rabanetes
silvestres e verduras que cresciam
entre as rochas no outro lado do
Portão
da Serpente, aparecendo em lugares
em que parecia impossível crescer
alguma vegetação. Ainda assim,
sabíamos que o período de
abundância não
duraria muito. Fora por isso que
Herodes abastecera seu depósito
com
provisões suficientes para durar cem
anos, um tempo que alcançáramos e
ultrapassáramos. As jarras de azeite
e vinho estavam se esvaziando.
Batíamos nas laterais e, quando o
barro ecoava, sabíamos que não
restava
mais nada ali dentro.
Naquele momento, éramos tantos
que a madeira para as fogueiras
passara a ser racionada. Imaginava o
que aconteceria se as nossas culturas
fracassassem e nos restasse somente
o espírito e nada mais. Uma noite,
quando busquei alguns gravetos
deixados à nossa porta, não os
encontrei.
Meu pai disse que cabras os tinham
comido, mas as cabras ficavam
presas
nos cercados. Ele disse que eu era
idiota, incapaz até mesmo de contar
varas. Mas eu sabia que um dos
vizinhos nos roubara. Era o que
acontecia
em tempos de vacas magras. A
verdade sobre as pessoas vinha à
tona tão
seguramente quanto os minúsculos
peixes prateados que surgiam na
areia
do deserto na época das inundações,
aparecendo milagrosamente nas
ravinas em meio às súbitas
corredeiras. Dizia-se que aqueles
peixes se enterravam na areia por
sete anos, a carne tão seca que
parecia não ser nada além de poeira.
Ao primeiro sinal de chuva eles se
revelavam,
exatamente como as pessoas faziam
quando tinham tempo e motivo
suficiente.
MEU PAI contentava-se em não ter
nada a ver comigo. Permitia que
fizesse a limpeza e cozinhasse para
ele, mas me ignorava em todas as
outras
ocasiões. Ouvira a sua opinião
quando alguns homens indagaram a
meu
respeito, admirando o meu cabelo
vermelho.
– Ela não é nada – dissera ele. – Só
um problema.
Depois que a noite caía, meu pai
sentava-se no lado de fora do nosso
alojamento em um banco que
construíra com o manto sobre os
ombros. A
meia-luz ele desaparecia, tornando-
se rapidamente a muralha, a
escuridão,
a noite em si, como fazia quando se
escondia no lado de fora do Templo,
praticando a invisibilidade.
Imaginava se eu mesma seria capaz
de vê-lo contra as pedras, voltado
para Jerusalém, ansiando, assim
como eu, por uma vida que passara.
Sentia compaixão por esse homem,
apesar de tudo o
que fizera. Eu mesma era sua
parceira no crime.
Meu pai não era orgulhoso a ponto
de não participar das refeições que
eu preparava, apesar do desprezo
que nutria por mim, consumindo
lentamente um ensopado de
lentilhas, feijão e cevada. Nas horas
em que saía do nosso alojamento, eu
tinha a liberdade de ficar lá dentro à
vontade.
Ouvia as outras mulheres reunidas
na praça, cantando enquanto
trabalhavam nos teares; o som das
suas vozes era agradável, melodioso
como o canto dos pássaros.
Aprendera a fiar e a tecer, mas
nunca as acompanhei. Caso
contrário, alguma poderia ter-me
interrogado e depois
me identificado por quem eu era,
nada além de um problema,
exatamente
como o meu pai declarara, uma
mulher arruinada cuja hora da
verdade se
aproximava. Em pouco tempo não
seria mais capaz de esconder a
verdade.
Ninguém me procurava; até mesmo o
meu irmão estava ausente,
aproveitando o pouco tempo
disponível fora da guarnição para
dedicar a Aziza. Meu único visitante
era a mulher fantasma dos meus
sonhos. Só ela
me procurava fielmente. Com o
tempo, vim a conhecê-la melhor que
ninguém. Dormia com ela todas as
noites e nos meus sonhos ela
chorava.
Eu não acreditava em lágrimas, nem
nas minhas nem nas dos outros;
achava que era vergonhoso, um sinal
de fraqueza, mas não tinha escolha a
não ser mentir em silêncio ao lado
dela e ouvir enquanto chorava.
Estava
acorrentada a ela da mesma maneira
que o escravo do país do norte era
acorrentado à muralha de pedra do
pombal.
Em uma noite escura, em lugar do
fantasma foi Nahara quem me
procurou. Era a hora em que o meu
pai me acordara quando fugimos de
Jerusalém, mas Nahara não gritou
como ele. Ao contrário, ela se
aproximou
discretamente do meu leito e pousou
a mão sobre a minha boca. Era
acordada assim para assegurar que
não gritasse e despertasse o meu pai.
Por um instante imaginei que
estivesse no deserto e fosse Ben
Simon que
queria o meu silêncio, e não resisti.
Mas a mão era muito pequena, muito
delicada. Quando abri os olhos,
Nahara estava lá, insistindo que eu
me apressasse. Peguei a minha
túnica e segui-a para fora, a fim de
que o meu
pai não fosse perturbado com nossa
conversa sussurrada. Sempre havia
alguém vigiando, mas encontramos
um canto escuro.
– A minha mãe quer que venha
comigo. – Nahara tinha uma natureza
doce e descomplicada. Ela esperava
simplesmente que fizesse o que me
era
dito. – Ela precisa da sua ajuda.
– Devia pedir para sua irmã ajudar –
recomendei, ansiosa para voltar ao
meu quarto. Havia tantas estrelas na
noite escura que podia vê-las cair
enquanto erguia os olhos para a
escuridão. Eles pareciam tão
próximas, assim como o Mar de Sal
ao longe, quando estavam tão
distantes.
– A minha irmã não tem a coragem
necessária para o que vamos fazer. –
Nahara estava tão séria que poderia
ser a irmã mais velha. Ao contrário
de
Aziza, tinha olhos escuros, mas os
seus eram salpicados de amarelo,
que pareciam sempre semicerrados,
um olhar sutil que sugeria
pensamentos
profundos. – Aziza nunca assistirá a
um parto. Ela diz que não suporta
ver
sangue.
– Como isso é possível? Ouvi dizer
que sua irmã é capaz de coisas que
nenhuma mulher mortal pode fazer –
aventurei-me a testá-la. – Será que
meu irmão saberia mais sobre isso?
Nahara sorriu. Se parecia mais
velha que a sua idade, eu também
era
igual quando tinha a idade dela.
– Duvido. O que um guerreiro
saberia sobre o comportamento das
mulheres?
– Preciso dormir – objetei, mas
Nahara me puxou pela manga,
recusando-se a desistir.
– A minha mãe disse que você
precisa vir. Prometeu que ajudará a
leoa
em troca do que fizer hoje à noite.
Senti-me totalmente acordada
quando ouvi isso. A mensagem era
uma
ameaça velada ou uma promessa?
Nada me esperava no meu
alojamento
além de um fantasma encolhido que
chorava. Não tinha ninguém em casa,
a
não ser um assassino que me
repreendia enquanto eu varria o seu
chão.
Quando Nahara me disse que
estavam à procura de um cão preto,
fiquei curiosa e decidi acompanhá-
la. Nahara carregava um jarro e
entregou-me
um pedaço de corda. Havia muitos
cães pretos no assentamento, se era
isso
que Shirah queria. Encontrei um a
certa distância e o peguei. Simples
assim.
Mas quando levei o desgarrado a
Nahara ela riu, cobrindo a boca para
que
ninguém ouvisse.
– Este não está bom? – disse,
irritada. Passara a corda com
firmeza ao redor do pescoço da
criatura, mas Nahara agachou-se
para retirar o laço.
Ela se divertiu por eu ter imaginado
que a nossa tarefa fosse tão fácil.
– Aquele lá. – Ela apontou para uma
cadela feroz que rosnava para nós a
certa distância. – Acha que consegue
capturá-la?
– Um cão preto não é um leão –
comentei.
Peguei a cadela como capturava as
aves selvagens no deserto. Sentei-
me
ao seu lado, fingindo não prestar
atenção enquanto ela exibia os
dentes sob
os lábios. Permaneci em silêncio,
pois aquele era o meu dom e o que
fazia
melhor. Depois de um tempo, passei
a corda em volta do seu pescoço. A
cadela olhou para mim. Assim que o
fez, passou a me pertencer, como
acontecia com as aves, do mesmo
modo que olhara para Ben Simon e
ele me pertencera.
Nahara aproximou-se correndo,
satisfeita com a minha atuação, o
cabelo
escuro voando atrás de si. No
entanto, ainda não tínhamos
concluído nossa
tarefa.
– Agora você deve tirar o
ingrediente de que precisamos – ela
instruiu. –
Pode ser que ela a morda quando
tentar.
Então entendi. As tetas da cadela
estavam cheias; ela tivera filhotes
recentemente. Era o seu leite que
procurávamos.
– Por que não tenta? – retruquei. –
Você é magra e ágil. Vou impedir
que
ela a morda. Basta agir como faria
ao se aproximar de uma cabra, mas
seja
rápida.
Nahara balançou a cabeça.
– Não sou mulher ainda. Precisa ser
você.
Mantive a corda firmemente presa
ao redor do pescoço da cadela e
ordenei-lhe que olhasse para mim.
Sem falar, disse-lhe para não se
mover.
Instruí-a com o meu toque e com o
meu silêncio, e ela se comportou.
Seu corpo estava quente e rendeu-se
a mim, certamente meu toque era
mais
suave que os dentinhos afiados dos
seus filhotes. Quando acabei de
coletar
o leite, libertei-a, então acompanhei
Nahara ao longo da parte mais
antiga
da muralha. As pessoas diziam que
as pedras ali eram feitas do mesmo
calcário que Herodes usara na
construção do Templo de Jerusalém,
com
sua marca gravada na borda de cada
uma delas. Imaginei se o fizera com
a
certeza de que as pedras com a sua
marca durariam pela eternidade e se
talvez Adonai as fizera cair
simplesmente para provar que um
homem era
apenas um homem, mesmo sendo um
rei.
Atravessamos para uma parte
abandonada do palácio, arruinada
por
incêndios na época dos romanos,
mas ainda útil quando se quisesse
um
lugar de privacidade em um mundo
abarrotado como o nosso.
– Por que não pediram a Revka para
ajudá-las esta noite? – Certamente
ela era mais confiável que eu. – Ela
tem medo de mordida de cachorro?
–
ironizei.
– Ela tem dois meninos para cuidar
e isto aqui pode levar a noite toda.
– Revka? – surpreendi-me. Ela era
tão amarga, mal abria a boca para
falar. – Ela é muito velha para ter
filhos pequenos.
– São seus netos. Ela cuida deles e
eles dormem ao lado dela. Você é
sozinha. Ninguém sentirá a sua falta.
Não podia argumentar contra isso.
– A minha mãe quis você. – Nahara
olhou para mim com um respeito que
me surpreendeu. – Disse que você
seria capaz de pegar o cão preto e
você
conseguiu. Deve se sentir
lisonjeada.
Entramos por um portão de ferro,
depois, juntas, usamos a nossa força
para empurrar uma porta antiga de
madeira de acácia esculpida que nos
levou a um corredor que conduzia ao
mais antigo dos depósitos. Essas
câmaras já haviam sido tão cheias
de tesouros que se dizia que ainda
havia
pó de ouro entre as pedras.
Descemos uns cem degraus de uma
escada
curva para o subterrâneo, e
realmente era possível notar um
brilho fraco na escada. O ar estava
úmido e frio, denso, as sombras de
uma cor de ardósia escura. O
corredor ficou mais estreito à
medida que prosseguíamos.
Por fim, fomos obrigadas a andar
uma atrás da outra. Nahara
carregava uma lâmpada cheia de
azeite de oliva. Eu portava o jarro
de leite. Chegamos
a um salão vazio feito de pedra, em
ruínas.
Ouvia-se eco enquanto
continuávamos, embora
estivéssemos descalças.
Uma voz soou em algum lugar, mas o
som nos chegou abafado. Reconheci
os lamentos entrecortados de dor.
Sia chorava dessa maneira quando
adoecera, a mão cobrindo a boca
para tentar calar os soluços,
esconder a sua fragilidade de nós.
Quando olhei através das sombras
dos longos sulcos na muralha, quase
acreditei haver um demônio estirado
no chão, muito parecido com o
impresso no amuleto do meu irmão,
a fêmea do monstro que se dizia que
Salomão matara no chão do Templo.
Quando nos aproximamos, reconheci
a
forma de uma mulher rolando de um
lado para o outro em agonia. Era a
jovem empregada que pedira um
feitiço a Shirah, aquela que
permanecera
de lado no banho na noite em que me
disseram que Aziza pertencia ao
mundo dos anjos e demônios. Ela
viajara para aquele lugar como uma
serva, mas, recentemente, a família
para a qual trabalhava a expulsara,
quando sua condição se tornara
evidente. Já não era mais
considerada
digna de colher amoras ou pistaches,
ou de transportar as cestas da
patroa.
Vivia escondida perto dos armazéns,
roubando comida dos celeiros das
cabras. Seu atual estado de miséria
tocou-me profundamente. Senti-me
amedrontada ao ver como ela
esfregava o abdome, ofegante,
transtornada
de dor.
Shirah pedia que se sentasse, mas a
jovem se recusava. Uma criança
estava prestes a entrar no nosso
mundo, uma criança sem pai nem
família.
Se fosse descoberto que o pai da
criança era um homem casado, seria
impossível àquela jovem escapar do
seu destino. O conselho poderia
recomendar que fosse expulsa da
montanha. Aquele nascimento teria
de
permanecer em segredo e, como
logo cheguei a entender, os segredos
eram
o maior dom de Shirah.
Shirah me fez um sinal, mas
permaneci no lugar sem me mover,
picada
pelo pânico como uma vez fora por
uma vespa. Eu, que nascera de uma
mulher morta, não tinha o direito de
ajudar alguém a trazer a vida.
– Depressa – Shirah insistiu. Havia
um segundo jarro ao lado dela. –
Misture o leite com a água.
Fiz isso, depois observei, presa
como em um sonho, enquanto Shirah
e
Nahara apoiavam a mulher e pediam
que bebesse a mistura com o leite da
cadela. A empregada cuspiu um
pouco no chão e produziu um som
terrível,
o grito de uma mulher que estivesse
se afogando. Segurava a barriga
enquanto a dor a dilacerava. Shirah
e Nahara puseram-na de pé e
fizeram o
possível para que caminhasse, mas
nem mesmo isso nem fez diferença.
O
bebê não nascia.
Shirah então mandou que a
empregada se agachasse sobre o
banquinho
de parto que trouxera, e que fizesse
força para baixo. Ainda assim, nada
aconteceu. A empregada era tão
jovem que parecia pouco mais que
uma
criança naquele momento. Ela
amaldiçoou não o homem que era o
pai, mas
a si mesma. Senti algo subir pelo
meu peito e pela garganta enquanto
acompanhava um nascimento que
não acontecia. Tinha a faca de Ben
Simon
sob a túnica, fria contra a minha
pele. Pensei na faca usada para me
tirar da
minha mãe, nos ecos dos seus gritos
estridentes e no silêncio do seu
último
suspiro.
Shirah aproximou-se de mim e me
sacudiu.
– Pare de sonhar! Vá até o pombal e
me traga uma cesta de excrementos.
Fazia um calor insuportável dentro
do depósito e Shirah estava
encharcada de suor. Seu cabelo
preto escorria pelas costas. O kohl
em torno dos seus olhos derretia-se
de tal modo que eles pareciam estar
por trás de
um véu. Pensei nunca ter visto uma
mulher tão bonita ou tão feroz. A sua
túnica se abrira e fiquei chocada ao
ver um redemoinho de tatuagens
vermelhas em seus ombros, uma
prática proibida ao nosso povo.
Dizia-se que as pessoas que
possuíam aquelas marcas pertenciam
aos kedeshah, mulheres santas que
eram leais a grupos religiosos com
práticas tão
secretas e polêmicas que haviam
sido banidas muito antes da queda
de
Jerusalém.
– Vá de uma vez! – ordenou Shirah.
– Se essa mulher tivesse alguém a
quem recorrer, acha que estaria
aqui? Ela não tem ninguém, só um
homem
que não quer nada com ela e um
bebê que se recusa a deixar seu
ventre.
Quanto mais rápido fizesse o que
Shirah ordenava, mais rápido estaria
de volta ao meu alojamento, longe
daquele cenário louco. Saí
temerariamente por aqueles
corredores, que pareciam uma série
de
masmorras, pretos como breu, pois
não tinha uma lâmpada. Finalmente
cheguei à porta que me levava para
a noite. Uma lua clara brilhava no
céu
com uma luz ácida que quase me
cegou depois do ar escuro do
depósito.
Ainda assim, ninguém percebeu
enquanto corri para o pombal, com
passos
silenciosos sobre as pedras de
granito. Abri a porta, depois abri
caminho por entre o bater das asas
das aves assustadas por terem sido
perturbadas
a uma hora tão tardia. Comecei a
encher a cesta, frenética, o sangue
correndo em disparada pelo corpo.
Foi então que vi o escravo. Sua
corrente estendia-se desde a
plataforma
no alto, onde dormia, até o chão.
Acordara quando a porta do pombal
fora
aberta, pronto para se defender, caso
nossos guerreiros tivessem chegado
para mutilá-lo, ou matá-lo, ou trocá-
lo com os nômades. Esquecera-me
completamente dele. Ouvia a minha
respiração rouca, dominada pelo
pânico. As lágrimas que não caíam
ardiam por trás da minha visão.
Nossos
olhares se cruzaram. Fitamos um ao
outro como dois animais reunidos
em
uma lagoa, sedentos e desconfiados,
ambos perfeitamente capazes de
violência. Depois de um instante, o
escravo inclinou a cabeça,
indicando-me
para continuar com o que viera
fazer. Voltou a se deitar e baixou os
olhos,
que assim pareciam duas fendas.
Fingiu estar dormindo, as costas
contra as
pedras. Senti-me grata a ele por
isso. Falasse ou não a nossa língua,
não importava. Bastava ele me olhar
e eu sabia que entendera.
Terminei o meu serviço, depois
tranquei o pombal e corri de volta
do mesmo modo que viera. O chão
estava branco, forrado com as flores
caídas
das amendoeiras. Pensei na neve, no
maná e em Jerusalém. Pensei no
escravo encolhido entre as pombas.
A minha respiração pulsava contra
os
ossos.
Shirah me esperava, andando de um
lado para o outro. Enrolara o cabelo
comprido sobre a cabeça e se
desfizera dos véus. Com uma caneta
de ponta
fina feita com uma pena de falcão,
usando sangue em vez de tinta, ela
escrevera o nome do nosso Senhor
em seus braços, as letras lidas de
baixo
para cima, na direção do céu.
Preparara pharmaka com as folhas
preciosas da arruda, uma erva que a
maioria das mulheres com filhos
evitava, pois provocava cólicas.
Muitas pessoas recusavam-se a
tocar a planta, pois a arruda
queimava a pele. Geralmente era
arrancada do chão amarrada a um
cão, para que a maldição que
acompanhava a extração da raiz
recaísse
sobre o animal. Algumas mulheres
usavam a erva quando queriam
abortar,
mas a arruda também poderia ser
usada quando fosse preciso apressar
o nascimento de um bebê, tanto para
o bem dele como para o da futura
mãe.
Shirah reuniu os excrementos de
pomba e acendeu uma fogueira
usando-os como turfa. Ela atiçou as
chamas até subir uma nuvem de
fumaça. O cheiro emanado era
amargo, mas também familiar.
Parecia que
os pombos nos haviam seguido até
aquele lugar; podíamos ouvir suas
asas
batendo, tão rápidas quanto a nossa
respiração, tão rápidas que o
nascimento deveria acontecer se
fosse para a mãe e a criança
sobreviverem. Depois que a
parturiente bebeu a arruda amarga,
vomitando
com ela, Shirah nos fez segurá-la
por um braço. Em seguida, nós a
obrigamos a ficar em cima do fogo.
O ar queimava com o calor e todas
nós
estávamos ensopadas de suor. Tirei
o xale, sentindo que poderia sufocar.
Mal conseguia enxergar em meio a
tantas cinzas e faíscas. O mundo era
feito de sal e fumaça, e não havia
escolha a não ser seguir em frente.
Entráramos no lugar mais profundo,
a sede da grande deusa Astarte,
mencionada pelos profetas, a deusa
que continuava a nos acompanhar
apesar de os sábios do Templo
terem feito tudo para destruí-la. Nem
mesmo eles poderiam derrotar o que
muitos alegavam ser o aspecto
feminino de Deus, a Shechinah, tudo
o que era divino e radiante, a noiva
do noivo Adonai. A Shechinah
curava os enfermos, convivia com
os pobres, abraçava igualmente os
maus e os bons.
A parturiente ofegava apoiada em
nós. Quanto a mim, parara de pensar
e simplesmente fazia o que me era
ordenado. Não sabia como viera
parar
ali, acordada dos meus sonhos,
arrastada do meu alojamento
naquela noite
escura. De todas as pessoas, um
prenúncio do Anjo da Morte,
conhecido como Mal’ach ha-Mavet
antes de eu ser conhecida como do
gênero humano,
uma assassina da própria mãe,
estava agora de guarda para Astarte,
a
Rainha do Céu.
A empregada pediu-nos para tirá-la
de cima do fogo. Disse que estava
sendo queimada viva, que as faíscas
entravam em seu corpo,
entrelaçando-
se com seu sangue e seus ossos. Pedi
permissão para movê-la, mas Shirah
insistiu que a fumaça era necessária
para abrir seu ventre.
– A bondade pode ser uma maldição
– disse ela. Agachou-se ao lado da
serva e começou a cantar.
Beshem eh’yeh asher eh’yeh tsey
tsey tsey.
A voz de Shirah era rouca e quente,
as entonações subiam. Ela
pronunciou as palavras várias vezes,
e seu canto nos envolveu até
podermos ouvir somente o tom e o
desespero.
Va’yees’sa va’ya’vo va’yett. Em
nome de eu sou quem sou, em nome
de Deus, saia. Já fez a sua jornada
e agora chegou. Amém. Amém.
Selah.
A mulher continuara a chorar, mas
nesse momento os seus lamentos
pioraram. Os chacais se chamavam
daquela maneira, chorando na noite.
A
pobre serva estava tão imersa em si
mesma, no âmago mais profundo,
que
parecia impossível voltar à tona
novamente. Pensei na minha mãe nos
seus
últimos instantes, antes do silêncio
se impor, clamando em seu choro
contra a brutalidade da sua sina,
enquanto o meu pai, lamuriando-se
na porta, me amaldiçoava.
A parturiente falava aos que não
estavam presentes, orando ao nosso
Deus, Adonai, e a Abraxas, um deus
dos egípcios, e a Astarte. Fazia
barganhas secretas, prometendo tudo
o que estivesse disposta a sacrificar
se o seu tormento terminasse, sua
vida, sua alma, seu filho recém-
nascido.
– Levem tudo! – ela gritou. –
Levem-me também!
Receei que chamasse a atenção dos
guerreiros com seu choro, ou
convocasse demônios que não
conseguíssemos repelir, mas Shirah
disse
que não, que era o silêncio que
deveríamos temer. O silêncio em um
nascimento significava que os
demônios haviam vencido e que
Lilith, a
criatura da noite da Babilônia, com
seus longos cabelos negros e suas
asas
negras, que atacava as outras
mulheres, seduzia seus homens e
roubava
seus filhos, tinha prevalecido.
Shirah escreveu o nome de Obizoth,
o demônio feminino que
estrangulava os recém-nascidos, e
depois queimou o papiro em que
escrevera aquele nome vil. A
fumaça subiu escarlate, da cor do
sangue.
Éramos as defensoras e estávamos
em batalha. Senti que poderia pegar
um
demônio pelo pescoço, caso ousasse
aparecer diante de nós. O deserto
me
ensinara que devemos destruir para
poder viver. Tínhamos montes de sal
para atirar sobre todas as criaturas
da noite que se aventurassem a se
aproximar. Peguei um punhado e
esfreguei sobre meu abdome, pois as
crianças não nascidas eram
especialmente vulneráveis aos
demônios.
Permanecemos ao lado do fogo, o
suor dos nossos corpos fazendo
arder
os olhos. Quando o fogo ardente
passou de vermelho a azul, Shirah
recitou
sua devoção a Adonai para que o
anjo Rafael frustrasse qualquer
tentativa de fazer mal ao bebê
quando ele finalmente surgisse. A
futura mãe começou
a ter contrações. Eram visíveis os
movimentos dentro dela, como se
uma tempestade atravessasse seu
corpo. Percebi que estava recitando
o
encantamento de Shirah. Aprendera
as palavras e as memorizara, pois
também acreditava que nos
protegeria do mal.
Shirah orientou-nos a afastar a
mulher das chamas assim que seu
líquido desceu em uma torrente.
Percebi o quanto me apavorara
pensando
que a criança não nasceria, enquanto
Nahara, embora não tivesse mais
que
treze anos, não temia o que estava
por acontecer.
– Finalmente ele chega – disse ela,
radiante. Bateu palmas e depois se
agachou, preparada.
O bebê chegou a suas mãos
rapidamente, o rosto retorcido em
uma
carranca. Nahara sorriu, sem medo,
embora o sangue se espalhasse por
toda parte. Pensei: Ela é uma
mulher e eu não. Ela já é tudo e eu
sou nada.
– O que acontecerá a ela agora? –
perguntei a Nahara, indicando a
nova
mãe.
– Ela voltará à mulher que é a sua
senhora e dirá que encontrou o bebê
nos penhascos.
– E vão acreditar nela? – perguntei.
– A minha mãe vai acompanhá-la.
Eles vão aceitá-la de volta. Vão
acreditar que devem fazer isso para
que o homem da casa possa ter um
novo filho.
Shirah ajoelhou-se e enfiou a mão
dentro da mulher, entoando seu
cântico enquanto retirava a placenta.
Essa seria enterrada no pomar, onde
ninguém a descobriria. O que dera a
vida a essa criança traria boa sorte
para as nossas culturas.
A noite fora um turbilhão. Por fim o
silêncio se abateu sobre nós.
Estávamos molhadas e quentes,
cansadas demais para nos purificar.
Agora
que o bebê lhe fora entregue e era
envolvido em um pano limpo, a mãe
o
segurou e pôs contra o peito. Ouvi
um soluço e percebi que partira da
minha garganta.
Entendi a razão de Shirah querer a
minha presença ali naquela noite.
Ela
já adivinhara o que vinha se
desenvolvendo dentro de mim.
Chegando ao meu lado, ela
sussurrou, para ninguém ouvir.
– Pensou que fosse a única leoa? –
indagou ela, o nosso trabalho ali já
terminado. – Pensou que eu não
soubesse?
MEU IRMÃO liderou um ataque
pouco tempo depois. Era uma honra
para ele fazê-lo, um sinal da sua
bravura e do seu favor aos olhos de
Ben Ya’ir. No
entanto, aqueles que o amavam
desejaram que não fosse tão
honrado.
Temíamos que a sua fosse uma
missão que o levasse para o Mundo
Vindouro. No pombal, Aziza se
extenuava de trabalhar. O cabelo se
embaraçava às suas costas, uma
massa de fios pretos. Recusava as
refeições
e passava suas noites na muralha,
olhando para o vazio dos campos
esbranquiçados de pedras que Deus
estendera à nossa frente. Ainda era
possível ver as pegadas dos
guerreiros que haviam se aventurado
vale
abaixo, mas elas desapareciam e o
vento empoeirado acabava por
apagar
seus últimos vestígios, e logo
parecia que nunca haviam tomado
aquele
caminho.
O céu estava nublado e avistavam-se
incêndios a distância, pois os
nômades vagavam por ali e os
soldados da legião não andavam
muito
longe. A fumaça elevava-se até as
nuvens, tornando o mundo sombrio.
Amram se fora fazia alguns dias.
Logo Aziza foi para a cama,
recusando-se a
sair dali até mesmo quando o sol
finalmente rompia a escuridão. Nem
mesmo a irmã mais jovem conseguia
convencê-la de que deveria cuidar
da
própria vida. Estava dominada pelo
terror que se abatia sobre todas as
mulheres que esperavam por um
guerreiro.
Meu pai e eu também olhávamos
para cima dos penhascos,
procurando
no horizonte. Apesar da distância
que nos separava, éramos iguais no
nosso
amor por Amram. Talvez por causa
da nossa preocupação comum,
começamos a fazer a refeição da
noite juntos. Não falávamos, a não
ser para
nos referir à comida, mas finalmente
podíamos compartilhar o mesmo
alojamento sem nos dar as costas.
Tentava não pensar sobre como meu
pai
reagiria ante a minha desonra, se
soubesse que carregava o filho de
Ben Simon, o quanto seu ódio por
mim se multiplicaria, como me
humilharia e
me expulsaria, como provaria que
estava certo. Nada além de um
problema.
Eu, que podia afogar alguém de
dentro para fora, que seduzira o
marido de
outra, como se dizia que Lilith fazia,
não era digna de varrer o chão que
ele
pisava. Meu pai cortaria o cabelo da
minha cabeça e rasgaria as minhas
roupas para me marcar como uma
zonah, depois rasgaria as próprias
roupas, como fazemos para chorar
pelos mortos.
Eu só poderia ficar em silêncio se
ele fizesse tudo aquilo, pois o
silêncio
era o que eu conhecia melhor.
NOS CAMPOS, as árvores frutíferas
não produziram tão copiosamente
quanto poderiam depois da onda de
frio. Os suprimentos de Herodes iam
diminuindo rapidamente, as rações
foram reduzidas. Meu pai queixava-
se
das refeições que lhe preparava, e
tinha todo o direito de fazê-lo. O
nosso
povo começava a passar fome.
Amram e os outros guerreiros
haviam sido
enviados ao vale para tomar o que
os outros assentamentos tinham em
seus armazéns e campos. Isso
poderia ser chamado de roubo, de
violência
ou de assassinato, mas era a maneira
pela qual passáramos a viver. A lei
do
deserto era a que eu aprendera bem,
a simples sobrevivência. Meu irmão
jurava que até mesmo um bandido
poderia ser puro aos olhos do Todo-
Poderoso. Insistia em que o juízo de
Deus dependia do motivo, e o nosso
era permanecer fiéis a Israel.
Certamente Deus olharia por nós e
enviaria a
fortuna ao nosso caminho.
Desde o nascimento do filho da
serva, Nahara passara a confiar em
mim.
Um dia, depois de horas trabalhando
lado a lado, ela admitiu que, antes
de
o meu irmão descer da nossa
montanha para liderar o ataque,
Aziza o
procurara levando consigo um pó
feito de couro de serpente queimado.
Sua
mãe conhecia todo tipo de feitiço e,
apesar de Aziza nunca ter
demonstrado
interesse por tais assuntos, pelo
amor de Amram consultara o livro
mágico
que ela guardava a sete chaves.
Quando abraçara meu irmão na
despedida, Aziza espalhara o pó da
serpente no seu cabelo. Enquanto o
mantinha próximo de si, ele não
percebera que, juntamente com o
abraço, havia uma essência branco-
esverdeada de uma serpente que
morderia seus inimigos e o
protegeria do
mal. Meu irmão podia não entender
até que ponto Aziza estaria disposta
a
chegar para salvá-lo, mas eu sim.
Teria feito o mesmo se tivesse
acesso a um feitiço poderoso. Teria
queimado a serpente até as cinzas se
fosse para
poupar o meu amado de todo o mal.
Depois que os guerreiros realizaram
o ataque, ficou claro que não foram
favorecidos. O assentamento que
atacaram fora prevenido pelo latido
dos cães e a batalha foi feroz, com
perdas de ambos os lados. Os
nossos homens
não voltaram para a fortaleza, em
vez disso entraram nas falésias à
nossa
frente, um lugar cheio de marcas e
obscuro, conhecido dos animais
selvagens. Soubemos então que
tinham se tornado tamé, impuros
pela proximidade da morte, e que
agora deveriam se purificar. Os
sobreviventes
precisavam orar e jejuar por sete
dias antes de poder ser recebidos de
volta.
As famílias dos que haviam partido
esperaram em silêncio junto ao
portão, com pleno conhecimento de
que em breve alguns de nós estariam
de luto. Quando, finalmente, os
guerreiros remanescentes
regressaram,
quase caí desmaiada ao ouvir as
pessoas gritarem o nome de Amram.
Fui
me encontrar com meu irmão, grata
em demasia por ele se encontrar
entre
os que sobraram para enterrar os
mortos. Mas essa tamanha
proximidade
de Mal’ach ha-Mavet o queimara,
da mesma maneira que o aço é
cozido em
forno para endurecer. Ele fora
forçado a enterrar seu amigo
Jonathan, o único que se preparara
para ser um estudioso, que pensara
em se tornar um sacerdote, mas que
em vez disso assumira a adaga.
Naquele dia Amram
usou o xale de oração de Jonathan,
com as franjas brancas e azuis.
Havia mulheres cujo único ofício
era preparar o corante violeta-
azulado utilizado
nos xales de oração, aferventando
mariscos que só podiam ser
encontrados
em uma única costa do Grande Mar,
acrescentando sal, areia e pedra até
que a cor se tornasse como a do céu.
Cada nó na indumentária era um
sinal
de devoção. Amuletos eram
anexados aos fios, para proteger de
demônios e
trazer fortuna aos devotos. E no
entanto Jonathan fora levado pela
morte.
Sua família permaneceu escondida
em um quarto escuro, rasgando suas
vestes, recusando-se a falar com
alguém, fechando as portas para
garantir
que a luz não entrasse em seus
alojamentos.
Meu irmão veio comer e beber
conosco, mas não ergueu os olhos.
Havia
manchas escuras de sangue no xale
que mantinha sobre os ombros. Meu
pai estava tão feliz com o retorno do
filho à sua companhia que não
percebeu a diferença estampada no
semblante de Amram, a sua
expressão
sombria, o seu olhar fixo. Via
apenas um homem forte, capaz de
levantar uma espada tão pesada que
poderia matar qualquer rival, mas eu
via algo
completamente diferente. Meu irmão
dera um passo para longe da vida.
Andara muito perto do Mundo
Vindouro quando esse reivindicara
os que o
rodeavam. Os demônios
aproximaram-se dele e o macularam,
agarrando-se
ao seu espírito, tentando arrebatá-lo
para o outro lado, o lado do
desespero
e do sofrimento fervilhante. O Anjo
da Morte tudo via com seus mil
olhos;
seu toque, segundo se dizia, poderia
ser sutil o quanto desejasse. Aquele
que permitisse seu abraço afundaria
em seus braços, dos quais nunca
mais
sairia. Notei o modo que meu irmão
olhava para os penhascos lá
embaixo.
Estava vendo o que acreditava ter
sido escrito a seu respeito, o destino
a que escapara quando o amigo
tomara seu lugar.
Quando meu pai comentou que
Jonathan tivera a morte de um
guerreiro,
como cabia a todo homem, vi
Amram estremecer e virar para o
lado. Ao fim
da refeição, depois que nosso pai
fora rezar e agradecer pelo retorno
do filho em segurança, saímos do
alojamento.
– Devia ter sido eu – meu irmão
comentou, incapaz de escapar da
tristeza de sua perda.
Pobre Aziza, pensei, o seu feitiço
não protegera Amram como ela
planejara. Jonathan pusera-se à
frente do meu irmão
intencionalmente,
recebendo o golpe que era para
Amram, em nome do amor e da
amizade.
Insisti que isso não poderia ter sido
um erro. Deus tinha um projeto para
nossas vidas e o retorno de Amram
já deveria ter sido escrito,
acreditando
ele ou não que o merecesse. Meu
irmão ainda usava o amuleto que eu
lhe
dera. Lembrei-lhe de que devia tudo
ao favor de Deus, como Salomão.
– Não podemos conhecer ou
entender o plano de Deus – disse a
ele.
Peguei sua mão e depositei-a sobre
minha barriga, para que sentisse a
vida dentro de mim. Ela se
desenvolvera e se formara
plenamente, como um peixe em um
lago. Meu irmão disparou-me um
olhar. Fora rápido em
adivinhar que estivera nos braços de
um leão.
– Ele deveria protegê-la – disse,
referindo-se a Ben Simon, que fora o
seu
mestre, um homem a quem respeitara
e em que depositara a fé. – Se esse
fardo pertence a alguém, é a mim,
por enviá-la a ele.
– Posso questionar mais o Anjo da
Vida do que você o Anjo da Morte?
Isso tinha de acontecer.
Meu irmão me fitou e compreendeu:
o que eu compartilhava com ele
não era o meu fardo, mas a minha
alegria.
TALVEZ SEJA possível descobrir
mais no silêncio que no discurso. Ou
talvez seja apenas que os que estão
em silêncio entre nós aprenderam a
ouvir. O
Homem do Norte, que era o nosso
escravo, não tinha outra escolha
senão
conviver com nosso palavreado o
dia todo. Sentia pena dele, como me
compadecia de todos os homens
acorrentados, mas talvez fosse mais
do
que isso o que tínhamos em comum.
Éramos ambos exilados ali, cada um
de posse de um passado que
ninguém seria capaz de imaginar. Às
vezes, era
mais fácil ser como um
desconhecido de quem nada se
espera e para quem
nada se dá em troca. Eu me
acostumara àquele homem. Todas
nós o
tínhamos feito. Suas mãos estavam
calejadas do trabalho, mas ele nunca
reclamou. Comia o pouco que lhe
dávamos. Baixava os olhos quando
fofocávamos, embora uma vez ou
duas eu o visse sorrir. Fora uma
visão estranha, à qual dei as costas,
pois sua expressão fazia parecer que
não era
um escravo, mas um homem. Sabia
que era um erro pensar nele desse
modo.
Uma vez, quando ele carregava um
cesto pesado para mim nos campos,
algumas crianças desordeiras lhe
atiraram pedras, rindo, até que as
persegui. Ainda assim elas gritaram,
chamando o escravo de Leviatã, o
nome de um monstro marinho
enorme, por causa da sua grande
altura e
dos braços fortes. Talvez tenha sido
nesse momento que a minha
compaixão começara a brotar, uma
semente que se desenvolvera a partir
da maneira que era insultado.
Virei-me para as crianças que o
provocavam avisando que, se
continuassem a fazer aquilo,
atrairiam demônios para o seu meio.
– Corram! – gritei, e aqueles rudes
xingadores espalharam-se como
sementes, rindo e correndo para
longe.
O escravo inclinou a cabeça para
agradecer-me à sua maneira
hesitante,
mas acenei para detê-lo.
– Não suportei ouvir aquelas vozes.
Foi só isso. – Disse isso para ele
não
se atrever a supor que me
preocupava com seu conforto. –
Mandei-os
embora pelo meu bem, não pelo seu.
Muitas vezes o surpreendia me
observando enquanto trabalhávamos
lado a lado. Passei a atar o lenço
com mais força. Chegara a acreditar
que
ele poderia falar a nossa língua
perfeitamente se quisesse. Ele
parecia estar
ciente de tudo o que dizíamos mas,
quando alguém lhe fazia uma
pergunta,
dava de ombros e murmurava algo
no seu vocabulário áspero, fingindo
ser
tão ignorante do nosso quanto as
pombas. E então um dia, não muito
tempo
depois de eu ter afugentado as
crianças rudes, enquanto
trabalhávamos
embaixo de algumas figueiras
espalhando o esterco, de repente ele
falou comigo.
– Seu cabelo é como o fogo – disse.
Falava a nossa língua de maneira
estranha, as palavras congeladas,
com
cautela, mas sem dúvida a conhecia
bem, e talvez a tivesse aprendido
antes
de ser capturado. Os recrutas do
exército romano andavam com
soldados
de muitas terras e encontravam
maneiras de se comunicar. Essa
manifestação sobre meu cabelo, no
entanto, não era o que esperava. Ri
sem
poder me controlar.
– Tenha cuidado – eu disse. – Pode
se queimar.
Depois que o silêncio é quebrado,
muitas vezes segue-se uma torrente
de palavras. O Homem do Norte
então me disse que, de onde ele
vinha, muitas mulheres tinham o
cabelo vermelho. Antes de ser
recrutado pela
legião romana, nunca fora além das
fronteiras da sua aldeia, que
continha
talvez duzentos moradores, a
maioria deles seus parentes. Sua
terra era tão
fria que a neve e o gelo se
mantinham grande parte do ano, o
céu era escuro
mesmo durante o dia. Por um breve
período do ano, o seu mundo se
tornava verde, não como o deserto,
que florescia em tufos, como uma
neblina rarefeita, mas em uma
cortina de verde profundo e
impressionante,
com grama tão alta quanto as
oliveiras e florestas tão extensas que
era preciso um mês para atravessá-
las.
Quanto mais quente o nosso mundo
se tornava, mais eu ansiava por
ouvir as histórias que ele contava.
Sentávamos à sombra das figueiras
no calor escaldante, indiferentes ao
sol que nos atingia de forma brutal.
Eu escutava, revigorada, ao saber
que na terra dele havia lagos azuis
como lápis-lazúli, nos quais os
peixes eram do tamanho dos homens.
Os
guerreiros tatuavam-se com tinta
preta e lutavam tão ferozmente
quanto
os lobos; em combate, usavam
escudos que eram mais fortes que
qualquer
coisa que tínhamos, um metal que
não podia ser rompido com lanças
ou machados. Tais homens podiam
passar toda uma lua sem dormir,
vigiando
suas mulheres e seus rebanhos, as
ovelhas com os pelos tão longos que
tocavam a terra, as cabras da cor da
neve e com olhos que eram esferas
amarelas. Se um inimigo fosse atrás
de um guerreiro daquela terra do
norte, seria rapidamente morto com
um único golpe na garganta.
– Se tudo isso é verdade, então por
que você é um escravo?
Era um insulto fazer uma observação
dessas a um homem que fora um
guerreiro, depois um soldado da
legião e agora era um humilde
escravo de
mulheres. Ele poderia ter
considerado uma ofensa, mas apenas
deu de
ombros.
– Por que você é? – disse
simplesmente.
Eu ri.
– Não sou.
A expressão do Homem do Norte
deixou claro que discordava.
– Não sou – insisti.
Ele fitou-me com tristeza.
– Você será. Vi isso na minha terra.
Os romanos tinham dominado o seu
país, então ofereceram àqueles que
foram conquistados uma alternativa
a morrer de fome. O Homem do
Norte
estivera com os seus irmãos e
escolhera viver. Fora levado através
do Mar
Frio e conduzido a Roma, antes de
ser enviado com a legião para a
Judeia.
Enquanto estivera em Roma, vira
coisas milagrosas, banhos, onde
havia
água corrente quente e fria, casas em
que era possível possuir mulheres e
meninos por um preço mínimo, lojas
que vendiam criaturas monstruosas –
elefantes, enguias e peixes enormes
com uma lança presa à cabeça. Fora
ao
Coliseu com as multidões que se
acotovelavam e empurravam através
dos
corredores calçados, assistindo às
batalhas entre os gladiadores. Não
podia
acreditar em tudo o que
testemunhara; aquelas visões muito
vívidas ainda
lhe pareciam sonhos.
Perguntei se era verdade que os
romanos mandavam homens lutar
contra animais selvagens. Um
homem não era diferente de um
animal aos
olhos dos romanos, o escravo me
disse, talvez uma diversão melhor,
porque o homem muitas vezes
chamava pela mãe ou pela amada
nos seus
últimos momentos no mundo,
enquanto o animal sabia quando se
render.
Pensei em Ben Simon e na marca em
seu rosto, e na criatura que o
considerara amargo demais para
comer. Perguntei ao escravo se vira
homens combaterem leões. Ele
inclinou a cabeça, dizendo que os
gladiadores temiam os leões mais
que quaisquer outras criaturas, até
mais
que os crocodilos que nadavam em
grandes tanques rolados para o
centro
da arena sobre toras, puxados com
cordas pesadas e correntes por mais
de
cem homens. Aqueles animais
aquáticos podiam pegar um homem
na boca,
arrastando a vítima para o fundo a
fim de afogá-la, mas era possível
lutar
contra um crocodilo, trespassar seu
olho com uma faca e forçar sua
retirada. Alguns gladiadores
sobreviviam. Mas o leão, depois de
atacar, jamais recuava. Lutava até o
fim, até que houvesse uma rendição
e nada mais restasse além de ossos.
– Por que pergunta sobre esses
animais? – ele quis saber depois que
o
interroguei tão detalhadamente.
Dei de ombros, fingindo não ter
nenhum interesse em particular.
– Sonho com eles às vezes.
– Mantenha-os em seus sonhos – o
Homem do Norte aconselhou-me,
mas pude perceber pelo seu olhar
que ele sabia que havia algo mais.
PASSEI A OUVIR todas as histórias
do escravo. Algumas eram tão
absurdas que mal acreditava nelas.
Ele falou sobre um animal chamado
veado, uma
criatura enorme em comparação ao
íbex, a cabra selvagem encontrada
na
Judeia. Disse que era capaz de
seguir um daqueles pela neve com
bastante
facilidade, mesmo sob uma
tempestade, porque aqueles veados
esfregavam
os chifres nas árvores e assim
deixavam marcas. No seu mundo, as
raposas
ficavam brancas quando a neve caía;
depois, quando o inverno
desaparecia,
voltavam ao vermelho diante dos
seus olhos. Ele jurou que a cor do
meu cabelo era igual ao das
mulheres mais bonitas da sua terra e,
acrescentou
maliciosamente, da minha. Eu ria de
algumas das coisas que ele me dizia,
sem acreditar que os rios pudessem
correr prateados, que os monstros
do
oceano fossem tão cheios de água
que a cuspiam para o ar, que
houvesse alcateias com a força de
uma centena de lobos, que se
chamavam na noite
com vozes puras e frias.
Com frequência, Revka nos
observava nos campos. Às vezes,
quando
voltávamos para o pombal com as
cestas vazias, ela balançava a
cabeça, franzindo a testa. Apesar da
sua má vontade, eu não pretendia
parar de ouvir o Homem do Norte.
Quando ele falava, eu não pensava
no deserto, ou
no passado que me acenava, ou nos
pecados que cometera, apenas na
terra
que nunca conheceria, nos
deslocamentos da neve, nos bandos
de homens
com tatuagens negras, que
amarravam ramos planos nos pés
para poder
andar na neve com facilidade, como
os ursos.
O escravo confiou em mim o
bastante para contar os detalhes da
sua
captura, embora ficasse tenso e com
raiva ao recordar o evento. Quando
a
guarnição romana foi saqueada
pelos nossos guerreiros, ele e o seu
parente
caíram de joelhos, jurando que não
tinham lealdade ao imperador e que
nunca haviam levantado a mão
contra nosso povo. Não conseguia
erguer os
olhos quando ele falou dessa
humilhação. Nosso povo lhes
permitira viver
porque fizeram um juramento contra
Roma e porque haviam sido
roubados
de sua terra natal. Todos os demais
foram mortos, apesar de alguns dos
soldados serem pouco mais que
meninos que imploravam por suas
vidas e
se encolhiam à vista de uma faca.
Naquela noite, o sangue dos
romanos que tinham sido mortos
evaporou
para as nuvens e se transformou em
chuva. A chuva de sangue seguiu os
nossos guerreiros em suas tendas,
escorrendo e formando rios. Nossos
homens entraram em pânico e
estavam prestes a correr dali, mas
Ben Ya’ir
instruiu-os a não fugir. Ele
conseguia fazer isso com seus
guerreiros, o escravo vira isso
pessoalmente, fazê-los render-se sob
seu olhar. Com
ousadia, ele informou que uma chuva
de sangue não era uma maldição,
mas
uma promessa. Era o futuro que
teriam de enfrentar, como todos os
homens devem encarar a morte um
dia. Poderiam fazê-lo como
covardes
ou como homens de Deus, aquela era
sua escolha.
Todos os homens sob seu comando
permaneceram. O escravo comentou
que soube então que Ben Ya’ir era
um homem que jamais desistiria, não
importava quais fossem as
circunstâncias.
Pela manhã, quando a escuridão se
dissipara, o sangue que caíra do céu
transformou-se em flamboyants.
Graças a isso, os homens puderam
se proteger do sol do meio-dia, uma
bênção evidente de Adonai. Os
nossos guerreiros caíram de joelhos
em gratidão.
Corei à menção da árvore sob a qual
tantas vezes me deixei ficar e
sonhei. Comentei que o flamboyant
era uma das minhas favoritas e ele
balançou a cabeça, disse que não
estava surpreso em ouvir isso.
Naquele dia, no entanto, apesar de
ter sido posto a ferros, acorrentado
ao seu parente, apenas um escravo e
nada mais, ele conhecera o
verdadeiro
significado do que o nosso líder
dissera ser um milagre quando vira
os flamboyants. Não era a graça de
Deus que viam, o escravo me
assegurou.
Ele conhecia os presságios da
guerra e estava ciente do significado
das flores vermelhas florescerem
naquele dia. Nosso povo teria de
atravessar o
fogo.
Porque testemunhara o massacre,
Deus o considerava culpado
também.
Ele também teria de enfrentar o
fogo. Olhou para meu cabelo
enquanto
falava. Foi então que insisti que era
hora de voltar ao pombal. Voltamos
pelo mesmo caminho por onde
tínhamos ido. Uma brisa passou por
entre
as árvores. Essa era uma razão tão
boa como qualquer outra para cobrir
a
minha cabeça. Tínhamos falado
muito livremente e nada de bom
podia
resultar disso. Regressei em
silêncio, mas o Homem do Norte
tinha mais uma coisa para contar.
Confidenciou-me que não sabia o
que sentir quando
fora poupado pelos nossos
guerreiros. Devia sentir-se grato ou
indignado?
Fora resgatado da legião romana
apenas para ser lançado à
escravidão.
Essa humilhação não era o que
previra como caminho da sua vida.
– O que pretende fazer?
– Pretendia encontrar uma mulher
como você. – Ele me falava como se
não fosse um escravo e eu uma
mulher que carregava outra vida
dentro de
si.
– Você está confuso – objetei. –
Acha que, porque tenho o cabelo
vermelho, sou como uma das
mulheres que conheceu em outro
mundo.
Tínhamos atravessado o campo e
nos aproximávamos do maior dos
pombais com as cestas vazias nas
mãos, o céu azul acima de nós, o ar
fresco, e realmente parecia que
havíamos entrado no país do
escravo
durante a época em que tudo era
verde.
– Você demorou demais – falou
Revka, ao nos ver pelo vão da porta,
observando-nos de novo, mesmo que
não fosse minha parenta e as minhas
ações não fossem da sua conta. –
Apresse-se. Há trabalho aqui. Você
já ouviu falar disso?
– Não estou confuso, Yael – o
Homem do Norte me disse antes de
entrarmos, momento em que Revka
poderia ouvir. – Sei quem você é.
Levei metade do dia para perceber
que ele dissera meu nome e ainda
mais para admitir que não me
encolhera ao ouvir o som dele.
EM UM MUNDO de sangue, é de
esperar ver o vermelho, mas quando
acordei com uma torrente de sangue
fluindo de dentro de mim,
manchando o
estrado em que dormia, fiquei
atordoada. Carregara o meu filho
por mais de seis meses, supondo que
estivesse em segurança. Mas
sonhara com a
fantasma que dormia ao meu lado.
Ela ficara sussurrando em meu
ouvido a
noite toda, recusando-se a deixar-
me, chorando por tudo o que perdera
no
mundo, incapaz de me deixar em
paz. Eu quisera o que lhe pertencera,
agora ela desejava o que era meu.
Talvez suas palavras tivessem me
ferido
e era por isso que sangrava. No meu
sonho, estivéramos juntas no
penhasco em que deixara seus ossos.
Penas caíam do céu e todas as aves
que matara com as minhas mãos
chegavam vivas.
Eu precisava desesperadamente de
um remédio, algo que interrompesse
o sangramento e ligasse a criança
que carregava ao mundo em que
vivíamos, não ao Mundo Vindouro.
Na escuridão do amanhecer, fui ao
aposento do meu pai e peguei as
poucas moedas que ele tinha. Não
sentia
vergonha de roubar sua prata.
Preferiria ser uma ladra a uma
mulher sem
filho.
Enquanto corria pela praça à luz
fraca, senti uma onda de calor
implacável, formada pela dor que
ardia dentro de mim. Perguntei a um
guarda onde Shirah morava.
– O que quer com a bruxa? –
perguntou ele.
– Trabalhamos nos pombais – disse-
lhe. Ele me observou com atenção,
talvez para julgar se era culpada de
alguma coisa e agora apenas tentava
determinar a natureza do meu crime.
Talvez tivesse sentido o cheiro do
meu sangue e soubesse que eu estava
impura. – Os pombos estão doentes
e
não sou experiente o bastante para
reconhecer a doença – insisti.
Embora parecesse desconfiado, ele
apontou para um dos palácios. É
claro, pensei, Shirah era parenta de
Ben Ya’ir, portanto deveria viver
em um palácio, mesmo que a
acusassem de bruxaria. Alguns
sussurravam que
a vida ali não era tão diferente da
que fora antes em Jerusalém: os que
governavam conseguiam viver bem,
enquanto os que seguiam passavam
fome. Mas descobri que Shirah
ocupava um anexo que antes fora
uma
cozinha, usada por servos no tempo
do rei. Quando bati na porta, essa se
abriu. Não tínhamos fechaduras. A
montanha era a nossa fechadura, o
caminho da serpente era a nossa
chave.
Não havia ninguém lá dentro, mas
entrei e olhei ao redor. O chão do
seu
alojamento tinha o desenho de
mosaicos que se abriam em leque.
Destacava-se um altar de madeira ao
lado de prateleiras fixadas na
muralha
de pedra. Essas prateleiras estavam
repletas de tigelas e jarros, frascos
de
mel e vinho, juntamente com
recipientes de ervas. O piso ecoou
quando fui
abrir a porta para olhar dentro do
pequeno dormitório. Aziza e Nahara
dormiam entrelaçadas no mesmo
estrado. O irmão, Adir, um menino
moreno de não mais de onze anos,
dormia ao lado da porta dos fundos.
Não
havia nenhum sinal de Shirah,
apenas um quadrado de palha
coberto por uma manta tecida
intocada.
Virei-me para encontrá-la entrando
em casa, os passos leves, como se
fosse uma ladra. Estava sem fôlego,
talvez tivesse corrido. Trazia a
cabeça
coberta por um xale estampado com
um desenho de folhas douradas e
meia
dúzia de pulseiras que tilintavam em
seus braços. Ela parou quando me
viu,
então rapidamente recuperou a
compostura.
Saíra para uma caminhada, ela me
contou, tirando as pulseiras.
– Não conseguia dormir – disse ela.
– Talvez sejamos duas quanto a isso.
– Talvez – concordei.
Não perguntei sobre qual assunto
obscuro ela fora tratar. Começava a
perder as forças e, antes que
pudesse dizer mais, desfaleci de
encontro à parede. Quando Shirah
viu que eu estava sangrando,
repreendeu-me por
não mencionar o problema de
imediato. Fez-me sentar a uma mesa
que era
apenas um pedaço tosco de madeira
apoiado sobre um cavalete. Apalpou
a
minha barriga e soube pelo simples
toque quando a criança começara a
se
formar e quando entraria no mundo.
Mostrei-lhe as moedas que trouxera
comigo e pedi uma poção, mas com
um gesto ela as recusou. Disse-me
que a
cura não era tão fácil de encontrar.
Embora não quisesse pagamento,
tentaria ajudar. Ferveu umas folhas
de garança, uma planta que, segundo
se
dizia, tingia de vermelho os ossos
dos animais que a pastavam.
Acrescentou
bagas de amora silvestre e me serviu
um chá escarlate e fumegante. Bebi-
o
apesar de me queimar os lábios.
Essa mistura não era a cura, disse-
me Shirah, mas poderíamos esperar
que acabasse com as cólicas.
– Existe alguém que não queira o
nascimento do seu filho? – ela
perguntou. – Alguma pessoa que lhe
deseje o mal?
Senti como se uma flecha tivesse me
perfurado. Havia apenas uma
pessoa. Como tirara algo de Sia, ela
tiraria de mim.
– O fantasma de uma mulher – disse
em voz baixa.
– Ela está aqui com você agora?
Ergui os olhos e vi que minha
fantasma realmente me seguira e
estava
de pé na porta, fitando-me com
censura.
Inclinei a cabeça concordando.
– Bem, ela veio por uma razão. –
Shirah examinou-me. Os seus olhos
estavam bem delineados pelo kohl.
Por um momento, senti como se
estivesse me afogando.
– Peguei algo que não me pertencia
– admiti.
– Entendo. – Ela continuou a me
examinar, a interpretar em detalhes a
minha expressão. – Você se
arrepende disso?
Uma pergunta bastante simples. Mas
não poderia dar a resposta que ela
queria. Quando balancei
negativamente a cabeça, Shirah
suspirou.
– Se é assim que se sente, então vai
ter de aceitar que o que roubou vai
levar seu filho.
Se Sia tivesse vivido, o bebê que eu
carregava pertenceria a ela, caso
Ben
Simon o assumisse como seu e se
casasse comigo. Ela seria sempre a
primeira esposa e poderia tomar
conta da minha vida. Talvez fosse
essa sua
intenção agora.
Recuei de um salto, fora de mim
pela preocupação. A faca que
carregava
como uma lembrança de amor caiu
no chão. Shirah inclinou-se para
pegá-
la. Senti o calor aumentar no meu
rosto quando ela passou o dedo
sobre a
lâmina. Ela ainda estava afiada o
bastante para tirar uma gota do seu
sangue.
– Sente-se – Shirah falou em voz
baixa. Advertiu-me que, se ficasse
agitada, só faria acelerar o sangue
entre as pernas. – Não ajude a sua
rival
em sua vingança.
Fiz como me era dito.
– Quando fica com um homem que
tem uma esposa, você se casa com
ela
também. Certamente você sabia
disso na ocasião, não sabia?
Inclinei o queixo e olhei diretamente
nos olhos de Shirah.
– Não desmancharia o que tinha com
ele.
– Mas é exatamente isso o que está
acontecendo – ela advertiu. – Se
você
quer o filho, deve se livrar da
fantasma, e para isso deve se
arrepender. Um
fantasma simplesmente não vai
embora. Ela está costurada a você.
Vocês partilham a mesma pele, por
isso ela acha que essa criança
pertence a ela,
mesmo estando no Mundo Vindouro.
Só há uma maneira de se livrar dela.
Ouvi atentamente, sem saber o que
sentia mais forte: terror ou gratidão.
– Faça o que digo e não se considere
responsável por mudar nada. Corte
uma mecha do seu cabelo. Amarre-a
em um nó. Vá para onde os
salgueiros
novos crescem abaixo desta
fortaleza e queime seu cabelo na
madeira do salgueiro.
Ela voltou para junto dos frascos de
ervas e tirou três folhas de um deles,
envolvendo-as em um pedaço de
linho branco, em seguida entregou-
me o pacotinho dobrado.
– Coma estas folhas quando a noite
cair. O que engolir terá o gosto do
que fez. Esteja preparada para isso.
Só você saberá como é amargo. Mas
não
se preocupe com nada se não sentir
nenhum arrependimento. Se esse for
o
caso, sirva uma xícara de chá à sua
rival todas as manhãs, porque ela
estará
lá, com seu filho nos braços.
Meus olhos ardiam. Se não tomasse
cuidado, choraria as lágrimas de Sia
novamente. Não disse nada.
Shirah inclinou-se para a frente,
abaixando o tom da voz. Seu lenço
de cabeça escorregou. O cabelo
estava torcido em uma trança
elegante,
enrolada graciosamente para cima à
moda egípcia.
– Se estiver pronta para o perdão,
terá de dizer o nome do anjo Rafael
três vezes. Em seguida, três vezes
dizer: Não deveria ter prejudicado
você.
No final, diga o mesmo de trás para
frente três vezes, para ter certeza de
que o que fez desapareceu.
Shirah pegou a faca do assassino.
Antes que eu pudesse reagir, ela
adiantou a mão e cortou uma
comprida mecha do meu cabelo. Ela
caiu
entre nós como uma serpente. Pensei
ouvi-la silvar como as impiedosas
víboras pretas faziam.
– Você precisa se entregar a ela se
quiser se livrar dela. A única coisa
que
sei é que o que está feito pode ser
desfeito, mas o que está desfeito
nunca
mais poderá acontecer de novo.
PARTI NO DIA seguinte. Perguntei
ao vigia do portão se poderia
caminhar ao longo do caminho da
serpente. Havia alguns arbustos de
salgueiro que
cresciam nas proximidades, árvores
novas cujos ramos maleáveis eu
queria
usar para enfeitar um cesto. O vigia
era jovem e não se ocupou de me
perguntar nada, acenando para que
seguisse, apesar de as mulheres não
terem permissão para ir além do
portão. Segui em frente em linha
reta, pelo
caminho que descia íngreme, antes
que ele mudasse de ideia e me
chamasse de volta.
O ar estava especialmente seco
nesse dia. Pequenas faíscas
brotavam da
terra calcária enquanto eu avançava.
O inverno se fora. Logo a terra
arderia
e eu arderia com ela. Caminhei
rapidamente por um campo
inclinado para
baixo, o deserto diante de mim.
Tudo parecia branco em meio à
bruma. Não
havia diferença entre a terra e o céu.
Avistei o bosquete de salgueiros de
que Shirah falara e me desviei do
caminho por uma cumeeira, depois
desci
para um buraco, onde havia uma
cobertura sombreada e uma lagoa de
água
parada e fétida. Sentei-me ali
abrigada pelas árvores e tentei
recuperar o fôlego. As minhas
cólicas tinham cessado, mas o fio de
sangue ainda
brotava. Uma vibração de desespero
estremeceu o meu peito.
Levara a faca de Ben Simon comigo,
aquela estranha lembrança
assassina do seu amor. Pensei em
todas as pessoas que ele
assassinara, ele
fizera o seu melhor trabalho comigo.
Uma parte de mim se fora para
sempre. Mal podia resistir à
tentação dos penhascos e ao desejo
de acabar
com a minha luta. Fiz o melhor que
pude para não pensar em tais ações
covardes. Era contra a lei fazer dano
a si mesmo, um pecado tão grande
que
não havia perdão e apenas um
campo de fogo no Mundo Vindouro.
Concentrei os pensamentos no
desenho das folhas do salgueiro
quando
olhei para os galhos caídos e na
suavidade da casca quando inalei
seu perfume, tão fresco e verdejante.
Juntei os gravetos no lenço branco
que os
essênios haviam me dado. Afastei
para o lado as folhas perdidas.
Quando o
fiz, elas pareceram chuva caindo, ou
as lágrimas no rosto de Ben Simon
quando vira as duas irmãs-noivas no
deserto.
Levei a lenha para uma caverna
onde não seria vista, esgueirando-
me
por uma fenda que dividia as rochas.
As mulheres eram advertidas a
manter distância de tais lugares.
Animais selvagens viviam entre as
pedras,
além de bandidos, quem sabe
demônios também. O céu brilhava
com uma
luz esmaecida e as falésias tingiam-
se de rosa e dourado. Esperei
anoitecer.
Respirava à maneira do leopardo,
ofegante, ainda sentindo o calor
entre as
minhas pernas, pois o sangramento
persistia. Senti-me sozinha,
recolhida no fundo do meu silêncio.
Quando chegou o momento e o céu
começou a escurecer, fiz uma
fogueira entre os penhascos para que
os tufos de fumaça não fossem
notados pelos guardas que
patrulhavam a muralha. Tirei as
roupas e as dobrei. Trouxera óleo da
romã, que pus nas mãos e esfreguei
no meu cabelo
e na pele. Depois, então, joguei o nó
feito com a mecha do cabelo cortado
na
pilha de galhos queimados de
salgueiro. O forte odor de uma parte
de mim
incendiada despertou um tremor no
meu íntimo.
Agachei-me entre as rochas e comi
as ervas que recebera, muito embora
a minha língua ficasse inchada.
Tratava-se de um cardo abençoado,
e o sabor era realmente acerbo,
deixando uma camada áspera no
interior da
minha boca. Mal conseguia engolir.
Depois de ter consumido as folhas,
senti
uma sombra estender a mão dentro
de mim.
Por um tempo que pareceu
interminável, permaneci sentada
sobre os
calcanhares, esperando que o feitiço
funcionasse. Vi estrelas caírem do
céu.
Vislumbrei o arco brilhante da lua
nova. Era Rosh Chodesh, o novo
mês de Nissan. Naquela noite havia
comemoração na praça, pois esse
fora o primeiro mandamento de
Deus para Israel, que deveríamos
reservar tempo
para comemorar a lua nova, pois ela
significava a renovação do nosso
povo
e era uma lembrança de que há luz
na escuridão. Era isso o que
significava
ser humano, saber que o tempo se
passou e que todas as coisas
mudaram.
Percebi então que precisava
renunciar ao silêncio, que fora a
minha
espada e o meu escudo. Esse era o
preço que devia pagar. O que me
protegera uma vez agora devia jogar
fora. Fora o meu dom, mas era não
mais.
Comecei a rezar. Amém. Amém.
Selah. O feitiço envolveu-me como
a escuridão girava na luz. As
estrelas caíram mais perto. Receei o
que
pudesse acontecer, uma vez que a
minha verdadeira natureza se
revelava
aos olhos de Deus. Mas o que
deveria acontecer estava além da
minha
vontade, nas mãos do destino. Eu
comera as ervas, acendera o fogo,
dissera
a oração que abria minhas feridas e
meu coração, levantara a voz ao
Todo-
Poderoso.
O rugido do fogo soou como a voz
do fantasma de mulher. Eu a
chamara,
pedindo-lhe para vir a mim, como
havia se banhado comigo e retirado
as cinzas do meu cabelo. O fogo
estava tão brilhante que blindou os
meus olhos, mas ardeu mais
brilhante ainda. Algo dentro de mim
se partiu e se
estilhaçou. Produzi um som que não
reconheci como a minha voz.
Chamei,
implorando, em seguida meus apelos
foram atendidos.
Sia achava-se diante de mim.
Sua túnica estava em frangalhos, o
cabelo, cheio de nós, seus braços
eram nada mais que ossos. Não pude
suportar a visão do mal que lhe
causara. Corri para a beira do
precipício a fim de escapar dela. As
pedras moviam-se sob meus pés e
sentia como se estivesse
escorregando. Se
pulasse, voaria para o chão do
deserto lá embaixo, uma pétala de
flamboyant, uma pomba livre. Mas
o fantasma de mulher ainda não me
deixaria em paz, mesmo agora. Ela
não me libertaria para a morte pela
qual
eu ansiava. Estendeu a mão,
puxando-me de volta da borda. Lutei
contra ela, mas ela se recusou a me
deixar ir. Quando finalmente não
tive escolha,
passei meus braços em torno dela, a
minha primeira e única amiga.
Entreguei-me a Sia.
Quando implorei seu perdão, não
foram as lágrimas dela que chorei,
mas
as minhas, que não mais derramaria.
Adormeci sobre as rochas,
esparramada em uma borda escura,
onde as
árvores espinhosas cresciam.
Quando acordei já era quase de
manhã. Sia permanecera nos meus
sonhos durante toda a noite. Ela
estava com um
leão no deserto, debaixo de um
salgueiro. Ela o recuperara de mim,
como
merecia, mas, ao contrário de mim,
não era uma ladra. Deixara-me o que
me pertencia. Senti o movimento da
criança em meu ventre e chorei de
alegria. Não era um demônio ou um
leopardo, apenas uma mulher de
cabelo vermelho. Então, enquanto a
luz dividia o céu, tornando rosa o
deserto, vesti a minha túnica. Sentia
o corpo frio e machucado. Vi as
marcas
que fizera havia muito tempo na
perna, pálidas como o arco da lua.
Pareciam pertencer a outra pessoa,
mas era eu quem carregaria as
cicatrizes.
Ajoelhei-me perto da fogueira para
me certificar de que não haviam
restado brasas acesas. Nesse
momento avistei os rastros de um
leão.
Restavam apenas umas poucas feras
dessas no deserto, mas uma viera até
ali, atendendo ao meu chamado.
Estivera lá o tempo todo, cuidando
de
mim, antes de me deixar por último.
TENTEI CONVERSAR com meu pai
para fazer as pazes, mas todas as
vezes que me aproximava ele me
virava as costas. Ele me fazia um
gesto com faria a
um cão, pois era assim que ainda me
via. Ali na fortaleza, ele se tornara
um
homem ainda mais desprezível do
que fora em Jerusalém. Ele, que
cortejara
a invisibilidade, tornara-se o que
desejava ser; ninguém podia vê-lo
agora.
Os idosos eram invisíveis naquele
mundo de guerra, considerados
inúteis.
Meu pai não tinha mais vitalidade.
Ben Ya’ir precisava de homens
jovens que pudessem combater lado
a lado armados de machados, não de
assassinos que escondiam as facas
afiadas nas vestes e golpeavam os
inimigos nos cantos escuros do pátio
do Templo. Ninguém admirava o
grande Yosef bar Elhanan pela
capacidade de se esgueirar para
dentro das
casas dos inimigos, sempre
protegido pela escuridão da noite.
Ele era designado para vigiar e
cuidar do armamento. Esse era um
trabalho humilde, destinado aos
muito jovens e aos idosos. Substituir
as pontas de flechas estava abaixo
de sua competência, mas ninguém o
ouvia,
ninguém o valorizava. Ele começou
a se fechar em si mesmo, um
emaranhado de inveja. Agora,
quando via meu irmão regressar com
os
guerreiros, meu pai sentia ciúme em
vez de orgulho. Amram sempre fora
o
único a brilhar aos seus olhos, mas
ultimamente nosso pai começara a
observá-lo com desgosto. A
exemplo do professor cujo aluno o
supera, meu
pai se ressentia das vitórias e da
juventude do meu irmão.
Era como se já não tivesse filhos.
Somente sombras na muralha, ali
presentes para menosprezá-lo e traí-
lo.
UMA NOITE, meu pai viu Aziza
com meu irmão, sozinhos ao lado da
fonte.
Todo mundo sabia que ela era a
filha da bruxa. Não era a mulher que
o meu
pai queria para seu filho. Ele se
virou na direção dela e cuspiu no
chão.
Shedah, sussurrou ele, como se
tivesse visto uma serpente. Chamou
o meu
irmão para que viesse ter com ele e
protestou com tamanha ferocidade
que
cheguei a cobrir os ouvidos.
Meu irmão anunciou que planejava
se casar com Aziza, apesar das
afirmações do meu pai de que não
queria saber desse enlace. Amram
ameaçou denunciá-lo e meu pai
revidou com outras ameaças. Se a
mãe de
Aziza descobrisse alguma impureza
na filha, talvez cuidasse ela própria
de
uma punição adequada: obrigá-la a
um período de silêncio ou cobri-la
de furúnculos, cortar todo o seu
cabelo ou atirá-la para fora do
portão. Eu estava em um canto
torcendo o fio em meu fuso, fazendo
o possível para não interferir, mas
meu coração batia forte contra o
peito enquanto meu irmão e meu pai
vociferavam um contra o outro. O ar
no alojamento estava
quente, carregado. Quanto mais meu
pai protestava, mais pálido meu
irmão
se tornava, transformando-se em
gelo. A luz clara é perigosa,
impetuosa e
fria. Amram pousou a mão na faca.
Talvez se tivesse esquecido de que
era o
nosso pai diante dele. Sussurrei seu
nome, na esperança de acordá-lo do
seu devaneio sombrio. Meu irmão
olhou para a faca que arrancara do
seu
cinto, como se estivesse de fato em
um pesadelo. Rapidamente deixou a
discussão de lado.
– Não volte a falar comigo – ele
advertiu meu pai antes de partir. –
Se me
vir, passe por mim em silêncio,
como passarei na sua presença.
Naquele momento, o pouco que tinha
como família estava
desmantelado. Naquela noite, meu
pai recusou a refeição. Foi deitar-se
na
cama, o rosto voltado para a parede.
Tornara-se mais velho que a própria
idade, um homem que jogara fora
tudo o que poderia ter tido,
arruinado pela amargura.
Senti a piedade brotar dentro de
mim.
– Ele vai voltar – assegurei a ele.
Meu pai balançou a cabeça.
– Tenho certeza disso – disse,
embora o abismo entre os dois fosse
profundo. – Amram é seu filho e seu
aluno.
Procurei meu irmão na guarnição. Lá
o encontrei rachando madeira.
Estava furioso, grunhindo enquanto
trabalhava, como um homem
rasgando
um inimigo em dois. Mas seu
inimigo lhe dera a vida e era o seu
pai. Esse
inimigo lhe ensinara os segredos da
invisibilidade e atravessara o
deserto
para encontrá-lo.
– Ele é um homem velho – lembrei a
Amram.
Talvez me compadecesse do nosso
pai porque ele era o meu parceiro no
nosso crime terrível.
– O luto pela nossa mãe envenenou a
vida dele.
– Quando formos à mãe de Aziza
pedir a sua bênção, você irá ao meu
lado, Yaya? – ele perguntou.
Embora me chamasse assim, nós
dois sabíamos que a menina que fora
Yaya não existia mais. Inclinei a
cabeça concordando, depois tive a
coragem
de perguntar se ficaria também ao
meu lado, não importava aonde o
destino me levasse.
Do mesmo modo, o menino que ele
fora, aquele que se orgulhara em
anunciar que seria um assassino,
enquanto estávamos juntos em
Jerusalém,
também já não existia. Ainda assim,
continuava sendo o meu irmão.
– Encontrei-a no deserto – ele me
lembrou. – Por que a abandonaria
agora?
POUCO TEMPO depois, comecei a
sonhar com minha mãe. Durante toda
a minha vida, sonhara com leões e
fantasmas, mas não mais. Podia
sentir a presença da minha mãe.
Desejava vê-la, ter uma lista das
suas virtudes, saber se éramos
parecidas.
Procurei meu pai logo de manhã,
antes que perdesse a coragem,
depois
de ter acordado de um sonho com a
voz da minha mãe, a mesma que
ouvira
quando entrei neste mundo. O
assassino estava do lado de fora do
quartel,
limpando as armas, sentado no
tronco de uma velha oliveira. Jovens
e
meninos que por ali passavam não
faziam ideia de que ele fora um dos
homens mais ferozes em Jerusalém,
que tinha a capacidade de ocultar-se
e
que assassinara um número maior de
homens do que as folhas de um
salgueiro.
Meu pai estava curvado, o cabelo
muito branco, as rugas do rosto
profundamente marcadas. Nunca
antes pedira um favor a ele, mas
queria
pedir um agora.
Pedi-lhe para me dizer a cor do
cabelo da minha mãe.
– Acaso não adivinhou por que não
posso olhar para você? Toda vez
que
olho para você a vejo em seu lugar.
Finalmente entendi por que todas as
vezes que ele me olhava a tristeza
brilhava em seus olhos. O cabelo da
minha mãe era da mesma cor que o
meu. Assim como ela, eu era um
flamboyant. Apesar de tudo, ainda
queimava.
A ESTAÇÃO CHUVOSA terminou
mais cedo. A trilha áspera do futuro
era evidente no céu branco e quente
acima de nós, uma fogueira à espera
de ser acesa. A
cada dia enchiam-se barris de água
que eram trazidos das lagoas abaixo,
amarrados ao lombo dos burros, até
que finalmente as nossas cisternas
estavam cheias o bastante para
resistir aos áridos meses do verão.
O ar já
parecia enfurecido, o vento
soprando do outro lado do Mar de
Sal lançava
chispas de calor.
Comemoramos a Festa dos Pães
Ázimos, mas esse ano era diferente
de
qualquer outro, porque não
podíamos mais levar sacrifícios ao
Templo.
Festejamos quando terminamos
nossas orações, mas continuamos de
olho
no deserto enquanto nos
regozijávamos com a liberdade.
Durante as noites,
eu começara a acompanhar Revka
nos teares. Trabalhar ali mantinha a
mente ocupada com a tarefa
imediata. Mas não podíamos evitar
as fofocas
das outras mulheres e, embora não
participássemos, não podíamos
deixar
de ouvir. Muitas vezes, as mulheres
nos teares comentavam sobre nosso
líder, que era nosso herói e a única
esperança. Elas o elogiavam e havia
entre elas quem desejasse ser sua
esposa. Até mesmo as casadas
admitiam
isso, e escondiam os olhos, para que
ninguém visse que, embora rissem,
falavam sério sobre a inveja daquela
com quem ele se casara. Não sabia
que
Ben Ya’ir tinha uma esposa. Revka
apontou-a. Uma mulher morena e
discreta, com véus que a mantinham
separada. Vira-a andando nos
pomares sem saber quem era.
Quando perguntei o que significaria
ser a esposa de um grande homem
como Eleazar ben Ya’ir, Revka riu
amargamente.
– Dê uma boa olhada na próxima vez
que a observar – sugeriu. – Veja se
ela parece feliz com seu destino.
PENSEI EM QUÃO POUCO
sabíamos do nosso destino quando
fui sozinha ao pombal. Lá, o Homem
do Norte falou-me da ameaça que
pairava sobre nós.
Pegou a minha mão na sua, o que
seria motivo suficiente para matar
um escravo, entre aqueles que
acreditavam na escravidão, ou em
assassinato,
ou em qualquer outra coisa diferente
daquilo em que eu acreditava no
momento.
– Se acha que Roma não virá aqui,
está enganada. Eles já podem ter
começado a planejar. Não deixarão
uma única fortaleza resistir na
Judeia.
Querem mostrar ao mundo que
venceram.
– Eles confiaram em você? –
provoquei. Tirei a minha mão da
dele. Ele
parecia de gelo, mas o gelo é
conhecido por queimar. – É por isso
que sabe
tanto? Enquanto carregava suas
armas e os saudava, os generais o
levaram
para um lado e lhe contaram seus
planos?
– Ouvi o que falavam. Isso é o que
faço.
Eu me dispusera a afastar os
pombos, para recolher os ovos
claros e
sarapintados.
O Homem do Norte postou-se ao
meu lado.
– Planejo partir antes que Roma
chegue aqui.
Falara sem rodeios, como se
fôssemos iguais. Admitia um crime
antes de
praticar a ação, confiando-me sua
pretensa fuga. Se eu acreditasse no
cumprimento das leis, teria de
denunciar seus comentários ao
conselho.
– Esse é o seu plano? Voltar a pé
para casa? Como acha que
conseguirá
isso? Não sabe o que é estar no
deserto sozinho. Estava protegido e
alimentado pela legião. Não gostaria
do que encontraria por lá.
– O que você encontrou?
O que estava dentro de mim, a parte
que ninguém conhecia, a que fora
mordida pelo leão.
– Algo que será evidente para todos
em breve. – Não tinha noção do que
me levava a falar com tamanha
intimidade.
– Você pode achar que não a vejo,
mas se engana – disse o Homem do
Norte.
Qualquer outra esperaria que ele
baixasse os olhos, mas ele continuou
me olhando diretamente nos olhos.
No fim, fui eu quem desviou o olhar.
O AMENO mês de Iyar chegara para
nós. As noites já não eram
totalmente escuras como antes. Em
vez disso, tingiam-se de um azul
profundo, como os fios de um xale
de oração. A luz pairava em meio à
escuridão que se aproximava,
alongando as noites, mantendo o
entardecer por mais tempo.
Eu passava muitas horas nos teares e
tornei-me boa tecelã. Tingi um
pouco
de lã sozinha, meus braços
matizados pelas cubas de cor depois
que a ovelha foi tosquiada e a lã,
torcida e limpa. O açafrão e o
girassol eram usados para obter o
amarelo, o verde podia ser
produzido do sumo do
líquen, o vermelho extraía-se da raiz
da garança e da pele descascada da
romã, o preto, da amoreira.
Eu começara tecendo algo que não
era diferente da roupa usada pelo
Homem do Norte. Ele me permitira
tirar um pedaço de tecido da sua
túnica
para poder estudar o padrão
incomum. Guardei-o embaixo do
meu estrado
de dormir, juntamente com o último
quadrado azul que restara do lenço
que meu irmão me dera. O pedaço
de tecido em si não significava nada.
Eu
simplesmente apreciava a
complexidade da tecelagem.
Enquanto
trabalhava, as outras mulheres se
reuniram para elogiar o serviço.
Mostrei-
lhes como alimentava o tear com
fios diferentes até surgir a sequência
desejada, cruzando a linha,
formando quadrados. Azul como o
mar, o
branco como uma estrela, o
vermelho como um rubi.
O Homem do Norte pedira-me que o
chamasse Odeum, a nossa palavra
para rubi. As outras no pombal logo
ouviram a conversa e mais que
depressa concluíram que ele falava
nossa língua. Uma vez descoberto,
ele estava à sua mercê. Não havia
mais como fingir que não entendia as
ordens.
– Assim como qualquer homem, ele
pode falar quando quiser – as
mulheres bradaram. Aziza e Nahara
também passaram a me chamar de
Rubi, só para me provocar. Quando
queriam que o Homem do Norte
fizesse
alguma coisa, riam e falavam:
“Deixe que a Rubi lhe diga. Ele é o
escravo dela”.
O Homem do Norte ficava muito
vermelho quando as mulheres
falavam
a seu respeito, mas eu ria com elas.
Começara a fazer a minha refeição
do
meio-dia com as outras, embora
comesse pouco, apenas bolos de
figo e
biscoitos, o máximo que podia
consumir sem me abarrotar demais.
Passara
a gostar da companhia de Shirah e
de suas filhas. Revka ainda era
difícil, mas eu ansiava por ganhar
seu apoio, mesmo que apenas para
ter sossego.
Ofereci-me para caminhar com ela
no outro lado da praça.
– Por qual razão? – ela perguntou.
Parecia que não confiava em
ninguém.
– Quem sabe assim você para de
desconfiar de mim – declarei.
– Isso não vai acontecer – ela
resmungou. Ainda assim, permitiu
que eu
carregasse a porção de grãos e a
água.
Seus netos corriam ao nosso
encontro quando nos aproximávamos
do
alojamento. Quando lhes falava, eles
olhavam, mas não respondiam.
Ouvira
comentários de que nenhum dos dois
garotos tinha voz.
– Você tem algo a dizer sobre eles?
– Revka perguntou, olhando para
mim.
– Não há muito o que dizer neste
mundo – justifiquei-me. – É melhor
manter a boca fechada.
Ela riu da minha observação,
abrandando um pouco a atitude em
relação a mim.
– Quando tiver um filho, você vai
entender – ela disse. – Será capaz de
qualquer coisa por ele.
Dizia-se que uma mulher prestes a
ter uma filha tinha fome o tempo
todo, mas a que estava para dar à luz
um filho tinha aversão a comida até
o
instante em que ele nascesse. Nem
Revka nem eu dissemos mais nada.
Ela
deixou escapar que estava ciente do
meu estado e eu já entendia que seus
netos haviam perdido a voz em
circunstâncias que ela não queria
comentar.
Não me arrisquei a perguntar se
havia participação dos demônios
naquilo,
como algumas pessoas haviam
sugerido. Em troca, ela não insistiu
em me
questionar.
Entendi que ter um filho era uma
honra. No entanto, dizia-se que, no
momento em que a mãe visse o filho
do sexo masculino pela primeira
vez,
ela também veria o homem em que
ele se tornaria, o machado que
carregaria, o arco que usaria, as
batalhas que o esperavam. Até
mesmo uma
bruxa não podia desfazer o desejo
do filho de se tornar um homem. Eu
observara Shirah na porta do
pombal pequeno no outro lado do
campo, o
cabelo negro caído para trás, a voz
triste quando chamava o filho. Na
maioria das vezes Adir não
respondia. Ele passava a maior
parte do tempo
na guarnição com os guerreiros.
Shirah continuava amarrando nós na
túnica do menino para protegê-lo.
Prendia saquinhos de sal e salsinha
ao tecido para afastar o mal. Mas eu
o vira no beco retirando aqueles
anexos
um por um, atirando os encantos ao
chão.
QUANDO NÃO conseguia dormir,
sentava-me em um banquinho no meu
quarto
e girava um tear manual. Era capaz
de fazer esse trabalho no escuro, a
porta aberta para deixar entrar uma
réstia de luar. O corante que usara
nessa lã era shani, escarlate, uma
cor carmesim obtida de carapaças
fervidas de pequenos insetos. O fio
vermelho sempre servia como
proteção
e era notado pelos anjos e por
Adonai. Enquanto trabalhava, o fio
era como rubis na minha mão.
Voltei-me para a fonte da praça e
avistei uma sombra. Dela não
jorrava
mais água, pois as chuvas havia
muito inexistiam e a noite estava
silenciosa.
Por um momento pensei que fosse
Aziza, indo encontrar-se com meu
irmão. Levantei-me para fechar a
porta, a fim de respeitar sua
privacidade.
Foi então que reconheci a silhueta
no escuro. Era Shirah que se
encontrava
de pé ao lado da fonte, como uma
mulher desesperada por água. Ouvi-
a chorando, como se o mundo
estivesse prestes a acabar. Não pude
deixar de
imaginar o que na terra faria uma
bruxa sofrer assim.
Depois que ela se foi, abri
totalmente a porta do quarto para
sorver o ar
mais frio da noite. Pensei no período
brutal que sempre temia, o mês do
leão, o centro vermelho de Av,
quando ansiaríamos pelo mínimo
refresco.
Como se dizia que a arruda soltava
faíscas vermelhas à meia-noite, a
sua força dispersa no calor, eu iria
queimar mais vivamente em Av.
Lembrei-me do flamboyant de
Jerusalém, da cabra que fora o meu
anjo e do rastro de azul que seguira
no deserto. Pensei na mulher no
Mundo Vindouro com
quem compartilhava o meu nome e
que lhe devia tanto a minha vida
como
a cor do meu cabelo.
Guardei meu fuso e entrei no escuro,
meu manto apertado no corpo. Fui
ao auguratorium, onde atiravam
ossos de pombas e de águias sobre a
terra para contar os anos de vida de
um homem, ou a que número o seu
rebanho
chegaria, ou a força dos seus filhos.
Os sábios adivinhavam o porvir de
guerreiros e reis pelo voo das
andorinhas e por uma coleção de
ossos branco-azulados, mas não
havia ninguém para prever meu
futuro, ou
mesmo sugerir aonde poderia me
levar.
Segui pelas escadas curvas,
desgastadas pelo correr dos anos e
pelas
pegadas dos sábios. Queria ver a
terra abaixo de mim, um mundo ao
mesmo tempo bonito e cruel, a terra
que meu filho pisaria. Mulheres
trabalhavam nos teares mesmo
àquela hora tardia. Se me voltasse
para o oeste, poderia identificar
suas vozes, mas me virei para o
leste e ouvi apenas o vento. Em
meio ao seu rugido vinham as vozes
dos leões, dos homens que
caminhavam no escuro, das mulheres
extraviadas.
Sete falcões circulavam acima de
mim, imitando as sete irmãs, as
estrelas sempre unidas no céu.
Usava as vestes brancas de uma
guardiã de
pombos. Talvez pensassem que
estava pronta a alçar voo e me
considerassem um sacrifício. Subi
sobre a muralha de Herodes,
equilibrando-me entre os grossos
blocos de pedras afiadas com a
marca do
rei. Levantei os braços abertos. O
vento passou por mim. Abalou-me
até as
entranhas. Não havia nada além do
vazio à minha frente, mas eu não
estava
sozinha.
Primavera, 71 d.C.
1 No calendário sagrado judaico, Av
é o quinto mês. Corresponde a parte
do mês de julho e parte do de agosto
no calendário gregoriano. (N. E.)
SEGUNDA PARTE
Verão, 71 d.C.
A Esposa do Padeiro
Apenas um idioma
compreendíamos,
uma oração recordávamos, um
caminho
percorríamos, tão distantes do
poder celestial
que não mais o sentíamos.
DIZEM QUE ÀS MULHERES não é
dado conhecer os desígnios do
nosso Deus, mas eu vi Sua verdade
com meus olhos. Nosso Deus tudo
sabe e tudo vê, e tem
compaixão tanto pelo pardal como
pelo falcão que o caça no céu.
Perante Ele, tudo desaparece no
vento. Se você depositar um
punhado de grãos
sobre uma pedra e lhe virar as
costas, quando se voltar os grãos
terão voado para longe. Se deixar
um pardal em uma torre, ele não
estará lá quando regressar. Se pedir
misericórdia a um falcão, suas
palavras serão mudas.
Foi isso o que aconteceu na minha
vida: eu virei as costas. Não podia
mais ouvir a voz do pardal. Recorri
à bondade de uma criatura que só
conhecia a crueldade. Não entendi
de que era capaz o vento e como
devemos nos curvar a ele,
agradecidos, não importa para onde
possa nos levar.
QUANDO menina, eu vivia em uma
aldeia ao norte de Shiloh, onde se
dizia que a água da nascente era
capaz de impedir abortos
espontâneos e
proporcionar filhos às mulheres
estéreis, tal era o prazer de Deus
naquela
terra. Estabelecemo-nos no Vale dos
Ciprestes, onde os campos eram
verdes e havia cinco cabras negras
em cada galpão. Casei-me quando
era jovem, inexperiente demais para
saber sobre o mal que havia no
mundo.
Era feliz e pensava que a felicidade
fosse duradoura. Na minha porta
mantinha uma mezuzah
intricadamente decorada, um
símbolo que traz felicidade e sorte.
Cada vez que passava por aquele
símbolo, sentia-me feliz,
segura de que Deus nos livraria do
mal. Proferia os agradecimentos a
Adonai, sem refletir, e com a
convicção temerária de que a
maldade nunca se avizinharia. À
noite, a minha cama era feita de uma
palha tão suave que
adormecia assim que fechava os
olhos. Minha casa era feita de pedra
com
vigas de ciprestes locais cortados
nas matas próximas. Meu marido era
gentil e de bom coração, e ainda
assim fora-me concedido mais.
Quando a
minha filha nasceu, era tão bonita
que as pessoas paravam no mercado
para me felicitar pela boa sorte.
Devia ter começado a me preocupar
então,
pois assim como a sorte nos vem um
dia, depois ela se vai.
ENQUANTO se passavam os anos,
meus sonhos eram impregnados pelo
cheiro
de pão, pois embaixo do nosso
quarto de dormir meu marido
mantinha
seus fornos de pão, do tipo que
chamávamos tannur, feitos de
montes de barro arredondado. A
argila clara e esfumaçada brilhava
com o calor
alaranjado quando os fornos eram
alimentados antes do amanhecer. Ao
longo dos anos, o fogo que queimava
embaixo dos quartos assegurava
nosso calor. No pátio tínhamos uma
pedra de moinho e dois burros para
puxá-la, moendo o trigo que
estocávamos em um celeiro alto de
madeira.
Meu marido aprendera a arte da
panificação com o pai, que a herdara
do
próprio pai antes dele. O sabor do
pão de um padeiro nunca era igual
ao de
qualquer outro, dissera-me o meu
marido, pois a vida do padeiro
entrava em cada pão. Alguns
assavam com piedade, alguns com
orações, alguns
com a intenção de produzir mais que
a mera subsistência, elevando o seu
ofício ao nível da maestria,
encantado com a beleza da chama do
tannur e com a arte da challah.
Meu marido incorporava os três,
piedoso e inspirado pelas orações,
mas
também dedicado ao mistério do
crescimento do pão, o milagre pelo
qual o
trigo e a água ganhavam vida em
suas mãos. O pão que assava era tão
delicioso que os viajantes muitas
vezes nos encontravam seguindo o
aroma
da fermentação através da aldeia,
guiados por um mapa de fragrâncias
intensas levadas pelo ar
expressamente para quem estivesse
motivado pela
fome. Todas as manhãs meu marido
separava um pouco de massa em
oferenda a Adonai enquanto proferia
uma bênção. Em troca, suas bênçãos
subiam até Deus e tínhamos tudo o
que queríamos neste mundo.
Meu marido guardava seus segredos,
a exemplo de todos os padeiros.
Tive o privilégio de aprender com
ele ao longo dos anos, simplesmente
observando-o trabalhar. Ele sovava
a massa mais que a maioria e o
fermento que usava para dar vida ao
pão era uma receita secreta mantida
em potes de pedra fria, deixada a
fermentar durante a maior parte do
ano.
Ele polvilhava a massa com
cominho, coentro e sal antes que
deslizasse os
pães para dentro do forno em tábuas
planas de madeira. Talvez o mais
importante, deixava sua marca sobre
a massa, a letra R rabiscada em
honra ao meu nome, Revka, pois
depois de tantos anos ainda era a sua
noiva, a menina a quem ele
prometera sua vida.
Quando os dias eram sem neblina,
podíamos ver onde a neve caía nas
terras altas. A vista da minha casa
era a única que sempre quis
apreciar.
Nunca acreditaria que viria a viver
na fortaleza de um rei, onde o vento
nos
engolfava e nos queria como seus,
deixando claro que não somos nada
mais
que um momento no tempo. Cem
anos antes, Herodes atravessou a
mesma
praça que devo cruzar todas as
manhãs no meu caminho para o
pombal.
Agora há homens pobres dormindo
em seus alojamentos, mas esses
pobres
respiram ao passo que o rei que
assassinou a própria esposa,
Mariamne, seus filhos, e qualquer
outra pessoa que topasse o seu
caminho, não é nada
além de pó. Os guerreiros afiam
suas facas no que fora o estábulo
real, um
lugar enorme, cavernoso, que já
abrigou uma centena de cavalos,
cada um
deles, segundo se dizia, capaz de
subir pelo caminho da serpente no
escuro.
Colocavam-se vendas sobre seus
olhos para que não vissem o quanto
era traiçoeiro o terreno que
pisavam. Se tivessem consciência
das alturas
impressionantes, certamente
entrariam em pânico e cairiam no
abismo, um
após o outro, como se despencassem
do céu. O mesmo se aplica a nós. Se
alguém dentre nós, que residimos
nessa fortaleza, parasse por um
momento para arrancar dos olhos a
venda da fé, veria quão perigoso era
o
nosso poleiro, quão esmagadora
seria uma queda dele.
Se perdêssemos a fé, nós nos
tornaríamos como as nuvens que se
acumulam no céu ocidental, quando
o vento as empurra para o deserto,
prometendo chuva, mas vazias por
dentro.
PELA MANHÃ, sempre tinha um
momento para mim antes de os meus
netos acordarem. Para mim era o
melhor momento do dia. Observava
os meninos
dormindo ao meu lado, os rostos
serenos. Imaginava que estavam em
suas
camas em casa, que a mãe estava no
outro lado da porta, preparando a
refeição matinal, que não tinham
perdido a voz no deserto, roubada
por um
demônio, arrancada de sua garganta
e armazenada em uma caixa trancada
no Mundo Vindouro.
Atava fios na lã de suas vestes para
proteção enquanto dormiam. Isso
era permitido até os nove anos,
então eu teria de entregá-los aos
desígnios
de Adonai, ou pelo menos era o que
as pessoas diziam. Era grata pelos
amuletos que Shirah me ofertava.
Não prestava atenção aos que
afirmavam
que ela era uma bruxa, sussurrando
que sua presença nessa montanha
nos
levaria à ruína. Já vira o que havia
de mau neste mundo e não era a
mulher
com quem eu trabalhava. Dentro das
túnicas dos meus netos, eu prendia
pequenas bolsas de sal para afastar
Lilith, que roubava o fôlego das
crianças, uma concha do Mar
Vermelho como uma prenda para o
anjo
chamado Miguel, a raiz e as
sementes da mandrágora, que
manteriam
afastados os terrores que vinham
com os sonhos, pois certamente eles
existiriam entre os três que restavam
na nossa família, como certamente
havia para o quarto dentre nós que
sobrevivêramos, o homem que já
não
nos falava, que se perdera quando
perdera a fé.
Deixo para Noé e Levi a refeição
matinal antes de sair na madrugada.
Pequenos bolos prensados de
amêndoas e figos para que
provassem a sua
doçura, tâmaras que cresciam
silvestres nos penhascos para que
saboreassem o fruto do deserto, pão
achatado frito no azeite em uma
frigideira, polvilhado com coentro,
cominho e sal, para que se
lembrassem
do sabor do pão do avô. Em algumas
manhãs, tomava conhecimento do
filho de Shirah, Adir, correndo ao
longo do caminho onde crescia a
hortelã
silvestre. Era um menino encantador,
arisco, com o cabelo preto e os
olhos
puxados salpicados de amarelo.
Havia pouco tempo, ele completara
doze
anos, mas eu sabia que dentro da sua
túnica carregava dezenas de nós.
Está
escrito que a pessoa precisa contar
com Adonai sem o uso da magia e
assim deve ser. Mas nossos meninos
eram mais valorizados. A mãe de um
menino
era considerada impura apenas
durante sete dias depois de dar à luz,
ao passo que a que tivesse uma
menina seria considerada teme’ah
por duas vezes esse tempo.
Eu entendia por que Shirah faria o
necessário para proteger seu único
filho.
Não dava ouvidos ao que falavam
sobre ela, mas uma vez, quando ela
estava doente e eu lhe levara uma
sopa de caldo de nabos, avistei um
altar
escondido dedicado à deusa.
Acabara de entrar no alojamento,
sem esperar
por uma resposta depois de bater em
sua porta. Shirah rapidamente fechou
o armário onde escondia o altar, mas
vi o brilho de uma lâmpada acesa à
frente de oferenda de mel e azeite ali
colocados em honra à terafim de
alabastro. Uma pequena imagem
luminosa de uma mulher com os
braços
levantados. Reconheci Astarte, mãe
e guerreira, cuja presença fora
banida
havia tempo. Não devíamos ter
ídolos, nem dar graças à deusa. As
mulheres
que o faziam não se esqueciam de
fechar seus altares para que as
lâmpadas
ali acesas nunca fossem reveladas.
Shirah agradeceu-me pela sopa. Não
tocamos em assuntos que alguns
poderiam atribuir à bruxaria e não
tornei a levantar os olhos para o seu
altar. Sentia compaixão por ela, pois
muitas vezes vira a preocupação
estampar-se em seu fascinante
semblante de ossos delicados. Por
mais que
ela tentasse mantê-lo como uma
criança, o filho de Shirah já se
esforçava para ser um homem.
Embora o cobrisse de advertências,
Adir corria
sempre para a guarnição,
determinado a permanecer entre os
homens que
admirava. Quando o vento é tão
forte que nós mulheres sabemos que
vamos engasgar com a poeira
levantada se não amarrarmos os
lenços sobre
o rosto, os meninos ignoram os
elementos e correm através das
nuvens de
tempestade, sonhando com a glória.
Até mesmo uma bruxa é incapaz de
impedir que seu filho se torne um
guerreiro. Não existe magia
poderosa o
bastante para isso.
ANTES DA CHEGADA de Yael, eu
era a mulher mais nova nos pombais.
Pensara que me mandariam ao
padeiro, pois aprendera muito dos
mistérios do pão
com meu marido. Mas usava o xale
branco do luto ao chegar à fortaleza
e
talvez os membros do conselho
pensassem nas pombas quando me
postei
diante deles, a cabeça baixa em
derrota. No momento em que passei
pelas
portas de madeira esculpida do
pombal maior, uma torre circular
com
aberturas para entrada de luz no teto,
tive certeza de que uma maldição se
abatera sobre mim. Não conseguia
entender por que a original guardiã
dos
pombos e suas lindas filhas sentiam
tamanho orgulho pelo que faziam.
Elas
me asseguraram que era uma honra
para mim e me receberam com
grinaldas de flores, que rapidamente
joguei fora. Considerava as pombas
animais imundos, boas para um
guisado ou quem sabe alguns ovos
frescos,
nada mais. E afundei ainda mais
baixo que essas simples criaturas,
pois recebi a ordem de recolher seus
restos em barris. Era uma escrava
dos seus
dejetos e da sua sujeira, desonrada
aos olhos do Senhor. Essa era a
minha
posição na vida. Tal era o meu
destino.
CHOREI na primeira noite depois
que trabalhei no pombal, uma mulher
da minha idade, que deveria saber
mais, com vergonha de me encontrar
em
lágrimas, de costas para meus netos
a fim de que não soubessem da
minha
humilhação. Tínhamos chegado à
montanha apenas alguns dias antes.
Os
pés ainda doíam, a pele estava
queimada pelo sol, o silêncio
espesso preso
em nossa garganta. Tudo parecia
novo e estranho – os homens com
armaduras prateadas, as mulheres
labutando nos campos sob as
amendoeiras. Deveria ter dado
graças pela nossa salvação, em vez
disso chorara como uma criança em
desespero.
Embora tentasse esconder minha
tristeza, não consegui. Meus netos
afagaram meus ombros com as
mãozinhas para me dar conforto e
senti a
preocupação em seu toque. Eles não
podiam falar e talvez o seu tormento
lhes permitisse adivinhar o que os
outros ignoravam, a verdadeira
natureza
do mundo. Eram capazes de capturar
uma mariposa no escuro,
acompanhando o ritmo esvoaçante
das suas asas macias. Podiam
avaliar se
o vento vinha do oeste ou se surgira
do leste simplesmente pelo som.
Talvez essas habilidades fossem
milagres.
Onde havia um milagre, certamente
haveria mais.
Chorei até dormir e acordei cedo
depois de uma noite inquieta. Meus
olhos estavam vermelhos e
inchados. Esperava que os meninos
ainda
estivessem dormindo, mas meu neto
mais novo, Levi, que acabara de
completar sete anos, estava
agachado ao meu lado, esperando-
me acordar,
seu olhar experiente sobre mim. Ele
pegou a minha mão e me levou para
fora, meu guia através da luz fraca.
Senti como se continuasse sonhando,
mas a poeira e o ruído das cabras
em seus cercados eram reais o
bastante.
Estávamos aqui dentro dessa
fortaleza, longe de tudo que
conhecíamos, dos
campos de papoulas e de cardo, dos
bosques de ciprestes, das flores de
romãs, cujas flores vermelhas em
forma de sino se transformavam em
fruta
diante dos nossos olhos.
Levi conduziu-me à muralha sobre
os penhascos brancos que se
estendiam até onde a vista podia
alcançar. Observamos as pombas
voarem.
Soltas àquela hora para que
pudessem abrir as asas, elas
tornavam todo o
céu branco. Elevavam-se e
desapareciam, depois retornavam,
atraídas de
volta para os ninhos. Eram
dedicadas aos companheiros. Por
isso, nunca se
permitia aos casais voarem juntos, a
lealdade de um trazendo-o de volta
ao
seu parceiro uma e outra vez, apesar
da atração da liberdade.
Entendi o que meu neto queria me
dizer ao levar-me para ver a beleza
do seu voo. Era uma honra trabalhar
com as criaturas que viviam no céu,
tão perto de Adonai. Se fosse o meu
destino fazê-lo, não seria um fardo,
mas um presente. Virei-me e beijei a
testa de Levi, murmurando uma
prece de
gratidão por tudo o que ainda
possuía.
FALAVAM sobre nós desde que meu
genro nos trouxera para cá. As
pessoas nos observavam, tentando
adivinhar a catástrofe que se abatera
sobre
nossa família, convencidas de que,
mesmo entre os infelizes,
merecíamos sua compaixão, pela
incapacidade de falar dos meus
netos. Ninguém sabia
de mais nada sobre nós, só que
havíamos sido expulsos da nossa
casa, a exemplo de todos ali, e que
escolhêramos vir para cá.
Poderíamos ter ido para o norte, na
direção de Nazaré, na Galileia, onde
se dizia que o ar era
sempre fresco, onde poderíamos ter
começado uma nova vida,
encontrando uma aldeia onde
ninguém conhecesse nossa má sorte.
Mas
meu genro não era mais um homem
que pudesse viver dessa maneira,
voltado para as questões práticas da
vida diária. Não estava disposto a
criar
um rebanho de cabras, ou encontrar-
nos uma casa feita de pedra em uma
cidade em que pudéssemos ir a pé
ao poço, preparar as refeições e
esquecer o passado. Ele queria
vingança, nada menos. Em Massada
encontrara o que procurava, a
companhia de homens dispostos a
morrer
por aquilo em que acreditavam.
Não sei quanto tempo passamos no
deserto depois que Deus nos
abandonara. Bendito o que falou e o
mundo veio à existência. Assim
como a criação começou com
palavras, o nosso mundo
desmoronou em silêncio.
Nenhum de nós falava. Os meninos
porque não podiam, meu genro
porque
não o faria, e eu mesma porque não
havia palavras que valessem a pena
ser
ditas em voz alta. O mundo se
rompera e só uma estrada
permanecera,
aberta diante de nós como se fosse
feita de ossos.
Entendi que, ao fazer dessa
montanha nosso destino, vínhamos
para
uma terra de ninguém, um lugar do
qual não haveria retorno. Fôramos
banidos do mundo que conhecíamos.
Víramos coisas demais e
perdêramos
demais para ir a outra cidade e
descarregar os poucos pertences que
ainda
tínhamos a fim de começar de novo.
Aqui meu genro é chamado Homem
do Vale; ele não precisa de outro
nome além desse. Vive no quartel,
mas até mesmo seus irmãos o
temem.
Ele é o que vai na frente em
qualquer batalha, destemido e
inflexível, a expressão sombria de
quem está determinado a intimidar o
Anjo da Morte.
Empunha um machado, a única arma
de que precisa. Abstém-se da
armadura. Leve-me consigo, ele
incita o anjo, Mal’ach ha-Mavet.
Leve-me se for capaz.
Algumas pessoas dizem que o
Homem do Vale dorme com seu
machado,
que o adora como outro homem ama
uma mulher, ou um pai adora seu
filho. Ele, que já foi um estudioso
chamado Yoav, é agora tão brutal e
impiedoso quanto se diz do anjo
Gabriel, pois esse está à esquerda
de Deus,
do lado dos justos. Sua espada é
feita de fogo e seus olhos são de
fogo também. Se ele aparecer à sua
frente, caia de joelhos e implore
piedade, mas certamente irá
queimar.
Meu genro não corta o cabelo desde
o tempo que passamos no deserto.
Jurou nunca mais fazê-lo. Torce-o
em tranças que lhe caem pelas
costas. Já
os fios embranqueceram, embora ele
seja um homem jovem. Gravetos e
espinhos misturam-se aos fios como
o fazem na lã de ovelhas e cabras,
mas
ele não percebe, pois vive em um
mundo de dor, não no nosso.
Espinhos nada significam para ele.
Gravetos são tudo o que espera do
mundo.
Algumas crianças sussurram que ele
é capaz de bafejar fogo, como
Gabriel,
que se diz possuir a capacidade de
destruir cidades inteiras com um
único
sopro. Quando veem esse Homem
do Vale, as crianças correm dele.
Ele não
tem amigos, não tem mulher para a
sua cama, nem confia em ninguém. O
que lhe aconteceu transformou-o em
algo que é como o vento – não se
pode
vê-lo, mas sabe-se que existe,
pronto para provocar danos.
Quando penso em meu genro, não
posso deixar de recordar a história
do
judeu rebelde que alguns chamam
Taxo. Os homens do rei Herodes o
perseguiram até uma caverna no
tempo em que a nossa fortaleza
ainda era
um palácio, mas esse homem não se
curvou à vontade do rei. Não
permitiu
que os filhos fossem convocados e
recusou-se a pagar a sua parte dos
impostos. O rei não poderia permitir
tal rebelião, pois essas coisas se
multiplicam como enxames de
insetos que, irrompendo em uma
fúria de
picadas, um único se torna muitos,
acumulando força.
Quando os soldados de Herodes
desceram do topo das falésias em
cordas grossas, vestidos para a
batalha e prontos para derrotá-lo, o
rebelde
cortou a garganta dos sete filhos, um
por um. Depois, cortou a garganta da
esposa antes de acompanhá-la,
saltando para a ravina onde
espalhara os corpos dos filhos. Não
permitiria que aqueles de quem
gostava se
submetessem à tortura e à crueldade
do rei. Em vez disso, deixou este
mundo ao lado deles, mesmo que
estivesse escrito que nenhum de nós
possa fazer mal a si mesmo. Quando
Taxo se lançou sobre as rochas,
talvez
imaginasse que Deus culparia as
rochas pela sua morte e ele seria
perdoado no Mundo Vindouro.
Embora nossa lei diga que nenhum
homem pode ferir a si mesmo, Yoav
destruiu o pai que fora para seus
filhos e, ao fazer isso, destruiu a si
mesmo.
Meu genro nunca vem ver os
meninos, pois, quando ele se perdeu,
perdeu-
os também. Se acaso encontra as
crianças nos corredores ou nos
pomares,
segue seu caminho como faria um
cego. No começo, os meninos
corriam
para ele e se agarravam nas suas
pernas, mas não obtinham resposta.
Yoav
não piscava, não gaguejava, nem
mesmo olhava para eles, nem que se
atirassem sobre ele, desesperados
pela sua atenção. Tudo o que há de
bom
neste mundo está oculto do homem
no qual meu genro se tornou. A água
reluzindo em um copo é sinistra aos
seus olhos, o céu claro é uma afronta
e
seus filhos tornaram-se nada mais
que lembranças de como a carne
pode queimar e se transformar em
pó.
As pessoas consideram a sua
negligência como uma prova de que
há
algo de errado com as crianças. Por
que o próprio pai as renega, mesmo
sendo tão bonitos, com os cabelos
dourados e os olhos escuros,
lembrando
a mãe? Há aqueles que sussurram
que os meninos são possuídos e isso
causou o seu silêncio, mas entendo
que as palavras não são necessárias.
As
pombas me ensinaram isso. É
possível falar sem palavras, saber o
que outra
criatura quer e deseja mesmo
havendo só o silêncio. Essa era a
minha lição
a aprender, o meu destino o tempo
todo.
Toda manhã, quando chego, as
pombas me reconhecem; seu canto
sobe
e desce com prazer e aceitação. Está
sempre presente, um rio de sons.
Alguém que não esteja acostumado a
esses ruídos pode cobrir os ouvidos
e
correr para fora. Yael fez
exatamente isso em seu primeiro dia
conosco, cobrindo a cabeça,
alarmada. Rimos e brincamos com
ela, dizendo que, se
simples pássaros poderiam assustá-
la dessa forma, melhor seria que
nunca
enfrentasse um animal feroz. E ainda
assim as pombas a procuram como
se
ela falasse sua língua. Embora ela
não pareça lhes dar importância,
elas voam em sua direção como
encantadas. É o silêncio dela que as
atrai e conforta.
Quanto a mim, sinto-me grata pelo
meu trabalho nos pombais. Quanto
mais distraída estiver, mais chances
terei de suportar outro dia. O sol
lança
seus raios e começo a alimentar
minhas protegidas com seus grãos.
Revisto
os ninhos em busca de ovos. A
maioria agita as asas, recusando-se
a sair do
ninho, então sacudo o avental para
elas. Como é que posso sentir pena
das
pombas, tanto que quando tiro seus
ovos salpicados e os coloco em uma
cesta muitas vezes choro, se no
entanto quando sonho com os
homens que
matei não sinto absolutamente nada?
ANTES DE VIRMOS para cá,
acreditávamos que nossa aldeia no
Vale dos Ciprestes era o céu, ou
talvez imaginássemos que não fosse
muito diferente
do céu em que um dia entraríamos.
Devíamos saber que seria tirado de
nós.
Nada neste mundo é duradouro,
apenas a nossa fé sobrevive. Um
dia,
chegaram os soldados da legião, em
fileiras de seis, andando pelas ruas
que
meu pai ajudara a construir.
Primeiro vieram os legionários,
treinados em
Roma, adornados com cotas de
malha e capacetes; depois chegaram
as
ferozes tropas auxiliares, muitas
delas provenientes de tribos,
vestindo túnicas de couro, portando
espadas e lanças longas. Queriam
qualquer
riqueza que pudessem encontrar.
Desde aquela manhã em que
entraram
em nossa aldeia, nossa terra passou
a lhes pertencer, assim como nossa
vida. Mataram um galo branco sobre
os degraus da sinagoga. Na nossa
lei,
isso é um pecado. Eles estavam bem
cientes dessa doutrina. O sangue da
ave nos contaminava. Esse ato
inicial de violência anunciou o que o
futuro
traria, se ao menos os sacerdotes se
incomodassem em interpretar os
sinais
deixados pelos ossos do galo.
Nossos cidadãos fizeram um
comício contra a
legião, uma centena deles, exigindo
um pedido de desculpas. Eram
homens
que pagavam impostos e tinham casa
e família, homens honestos e
respeitáveis, certos de que ao fim do
dia receberiam um pedido de
desculpas de Roma.
Não poderiam estar mais enganados.
Não enxergávamos além dos
ciprestes que cresciam com a
fragrante
casca retorcida em um bosque ali
existente havia tanto tempo que
achávamos que duraria para sempre.
O ultraje uivava nas aldeias
destruídas nas proximidades para
quem pudesse ouvir, mas nós éramos
surdos ao seu sofrimento. Para os
que respirassem fundo, era possível
sentir o cheiro da guerra, mas era
também a estação em que as flores
cor-
de-rosa da espirradeira soltavam a
sua fragrância e perfumavam o ar. A
nossa terra fora conquistada muitas
vezes, os bosques e campos doces
atraíam os estranhos para nós da
mesma forma que o padeiro
chamava
seus clientes com o aroma intenso
dos pães. Mas isso estava no
passado; queríamos acreditar que a
nossa vida estivesse resolvida. Meu
marido não
prestou atenção ao que estava
acontecendo. A um tempo era
realmente
ingênuo, além de trabalhador. Os
sábios e rabinos curvaram-se à
legião, aceitando impostos tão altos
que mal conseguíamos sobreviver,
mas,
enquanto houvesse madeira para os
fornos, meu marido estaria feliz.
Cortava as toras ele mesmo e
formava uma pilha tão alta como
uma
montanha no quintal. Meu marido
pedia apenas uma bênção a Adonai
para
o que estava prestes a trazer ao
mundo a cada dia, o mistério da
challah.
Tinha pó branco nas dobras da sua
pele. Cada vez que me beijava,
deixava
uma marca branca, o beijo de um
padeiro. Ele me garantia que, se não
prestássemos atenção ao que
acontecia ao redor, e não fizéssemos
mal,
estaríamos seguros. As pessoas
sempre precisavam de pão.
Meu marido deixou nossa casa
determinado a levar a primeira
fornada
de pães à sinagoga como uma
oferenda, como sempre fazia. Ele
prometera
evitar problemas, mas nesse dia eles
o encontraram. Nossos vizinhos
tinham se reunido em um grupo que
tomava toda a rua para protestar
contra a ameaça de perderem suas
casas para os romanos. Meu marido
foi
convencido a acompanhá-los. Ele
levava sua bandeja de oferendas, os
pães
cobertos por um xale de oração feito
com os mais finos fios de ouro
habilmente trançados entre as franjas
roxas. Estava pronto para se
encontrar com os rabinos, mas,
quando os vizinhos o repreenderam
e
disseram que todos os homens
deviam tomar uma posição, sentiu-se
obrigado a deixar sua marca com os
outros. A letra R moldada nas
crostas dos pães que assara deveria
ter sido uma marca suficiente para
ele, o meu
nome era a sua inspiração e o seu
escudo. Em vez disso, ele se juntou
aos
homens que queriam mais.
PERCEBI que alguma coisa estava
errada quando senti o cheiro de
fumaça.
Havia pães no forno. Fui verificá-
los, mas ainda não estavam
queimando.
Por que ele saíra justamente naquele
dia dentre todos os outros? Por que
naquela manhã ele não fora ingênuo
quando todas as outras vezes não via
nada além da própria padaria? A
cevada, o sal, o coentro, o cominho,
esses
eram os ingredientes que constituíam
o seu mundo. Até então, o único
problema que atormentara meu
marido eram os ratos que entravam
pelas
janelas; a exemplo de tantos
padeiros, muitas vezes ele espalhava
cicuta para afugentá-los das caixas
de farinha. Agora havia perigo em
todos os cantos do nosso mundo. Os
demônios tinham escancarado as
portas da
nossa aldeia. Haviam nos declarado
suas vítimas em algum canto escuro
e
esfregavam as mãos alegremente. O
que lhes foi dado, eles declararam,
agora vamos tirar.
Enquanto as horas se passavam,
comecei a andar de um lado para o
outro alarmada. O padeiro deveria
retornar antes que os pães que
assavam
lentamente no forno se queimassem.
Será que um homem podia sair e
desaparecer assim? Ele me dissera
para tirar os pães quando o sol
chegasse
ao centro do céu, se ainda não
tivesse retornado. Não tirei. O que
quisera dizer com isso? Fazia ideia
de algum problema por vir? O meio-
dia veio e se
foi. Olhei alarmada quando vi as
sombras se alongarem, a fumaça
sobre os
pátios e telhados.
Pensei que, se esperasse para tirar
os pães, meu marido sentiria o
cheiro
do pão, perceberia que estava
queimando e correria de volta para
casa. Na
pior das hipóteses, ficaria com raiva
de mim por não fazer como me
instruíra. Mas o sol começara a cair
na direção da noite e ele não
voltara.
Agora os pães estavam
carbonizados, as crostas pretas de
fuligem.
Tive um único pensamento, e era o
de encontrar meu marido. Eu podia
ser ingênua também, talvez fosse
isso o que nos unira por tantos anos.
Abri
a porta, desesperada para começar a
busca pelo padeiro, pronta para
disparar pela rua, apesar de estar
agora repleta dos nossos vizinhos,
muitos
deles tingidos com o próprio sangue
e com o dos seus pais.
Quando estava me preparando para
sair, encontrei meu genro, Yoav, na
minha porta. Ele não era um lutador
nessa época, ainda não era o
guerreiro
que prometera nunca mais cortar o
cabelo. Ao contrário, era um homem
gentil, que só queria fugir dos
problemas. Tinha o olhar de pânico
de um estudioso que é subitamente
confrontado com as brutalidades e
as
preocupações desprezíveis da vida.
A exemplo do meu marido, que se
dedicava ao trabalho, ele se
preocupava com os estudos e com a
vontade de
Adonai. Eu já enrolara o lenço na
cabeça, dominada pela intenção de
procurar meu marido, mas meu
genro me deteve. Em seguida me
alertou
para me preparar para o que tinha a
dizer.
Ergui o queixo, pronta para passar
por ele, sem disposição para ouvir.
O
que me impediria de sair em busca
do meu marido? Que desculpa
poderia
dar o meu genro para me obrigar a
desistir da minha busca? Meu genro,
que era devoto e nunca tocaria outra
mulher que não fosse a minha filha,
sua esposa, pousou a mão no meu
braço.
– Há uma razão para lhe dizer que
não saia – murmurou ele.
Só poderia haver uma razão. O
mundo revelara-se tão severamente
que
o homem com quem passara a minha
vida toda se perdera. Podia ver a
verdade nos olhos do meu genro
quando começou a falar. Ele
confessou
que vira os restos do que fora o meu
marido no centro da nossa cidade,
lançados na praça, junto a dezenas
de nossos vizinhos, desfeitos como
ramos ao vento. Era tarde demais
para recuperar o corpo. Se tentasse,
eu
perderia a minha vida também.
Apesar do seu relato, tentei passar
pelo vão em que o meu genro se
plantara na porta. Ele era mais forte
do que imaginava, ou talvez eu
estivesse enfraquecida pela dor.
– Escute o que estou dizendo – Yoav
insistiu. E expressou-se de um
modo que não me deixava escolha, a
não ser ouvi-lo. – Não tenho outra
maneira de lhe dizer isso, e não há
tempo para discutir. Seu marido já
está
no Mundo Vindouro.
Não existia um mapa para levar os
vivos até lá. Eu não conseguiria
alcançá-lo. Os romanos já estavam
empilhando os corpos na rua. Eles
tinham acendido uma fogueira que
me advertia para a infelicidade do
dia.
Então percebi que não fora de pão o
cheiro que sentira em ondas de
fumaça
saindo pela cidade, mas o odor
amargo da carne.
Yoav era um jovem rabino
respeitado e culto; pela sua posição,
precisara
pensar duas vezes antes de tomar a
filha de um padeiro como noiva. A
maioria dos rabinos procurava as
filhas de outros rabinos para o
casamento, pois, assim como as aves
do céu se uniam com as da sua
espécie, também os integrantes da
congregação procuravam os seus
semelhantes. Mas sem dúvida Yoav
quisera a minha filha. Zara era linda
em
demasia. Não era de admirar que a
cortejasse, ignorando as moças mais
adequadas que o perseguiam. O
nome da minha filha significava
“bela
manhã”, e ela era realmente mais
admirável que qualquer coisa neste
mundo, com sua pele dourada, o
cabelo como o trigo, seu semblante
ainda
mais lindo porque seus olhos negros
eram uma lembrança da noite antes
que a manhã rompesse, um momento
em que o mundo era um mistério e as
sombras eram tudo o que tínhamos.
Sempre me perguntei se Zara me
tinha sido dada por um anjo. Como
poderia uma mulher simples como
eu ser abençoada com uma filha que
se
assemelhava a uma rainha? Sentia
muito orgulho dela, e por boas
razões.
Nem uma vez parei para pensar que
o que era dado também poderia ser
tirado.
FICAMOS lisonjeados quando Yoav
veio morar na nossa casa. Meu
marido sempre cortava um pedaço
de pão para lhe ofertar todas as
manhãs, o
primeiro do pão assado naquele dia.
Agora aquele jovem culto, que muito
honráramos com o nosso orgulho e
respeito, tornara-se pálido,
tremendo
de medo. Quando me inclinei contra
ele, soluçando, não me pareceu
diferente de qualquer outro homem
assustado, não melhor certamente,
talvez mais aterrorizado que muitos.
Ele insistiu para que eu me
apressasse
a fazer as malas. Hesitei até que ele
me informou que minha filha e seus
filhos já estavam nos esperando.
Algo me obrigou a embalar alguns
ingredientes extras. Você pensaria
que eu pegaria meus melhores trajes
ou pulseiras do meu casamento,
aqueles artigos especiais e
valorizados que guardava no
armário ao lado da
cama, escondidos onde nenhum
ladrão poderia alcançar. Em vez
disso,
peguei o que pertencera ao padeiro:
uma tigela de madeira, um conjunto
de
colheres pesadas, o pano branco que
ele amarrava na cintura enquanto
trabalhava, a roupa que usava para
que nenhum mal recaísse sobre nós,
desde que usasse o xale de oração.
No último momento, recolhi vários
frascos que ele guardava debaixo do
fogão: coentro, cominho e sal. Um
frasco da massa fermentada que
fazia os pães crescerem.
Sabia que os mortos não nos
deixavam tão rapidamente, então
sussurrei
para meu marido enquanto arrumava
os pertences. Olhe para nós agora,
disse ao homem com quem vivera
por tantos anos, como se ainda
estivesse
ao meu lado. Olhe o que nos
tornamos.
Éramos como ratos, correndo para
longe antes que o dilúvio de morte
nos alcançasse. Peguei o pão
queimado do forno, escaldando as
minhas
mãos. Bolhas surgiram nos meus
dedos, mas pelo menos me
certifiquei de
que teríamos os últimos pães do
padeiro para nos sustentar. Yoav me
pegou pelo braço para me levar
embora. Eu sabia que não
deveríamos nos
atrasar. Mas acredito que meu genro
não era o único comigo na padaria
naquele dia. Estou convencida de
que um anjo estava ao meu lado,
sussurrando: Pegue isto, pegue
aquilo.
No último momento, alcancei uma
jarrinha de cicuta que meu marido
usava contra os animais daninhos.
Talvez o anjo tenha me dado o que
mais precisava.
AS PESSOAS que conhecêramos a
vida toda saíam em massa da aldeia,
algumas carregando tudo o que
possuíam. O caos tomara conta de
tudo e as nossas
vidas eram como pedras atiradas em
um jogo de azar, lançadas ao ar,
para
em seguida cair e se espalhar sobre
a terra. Cacos de objetos de
cerâmica
quebrados forravam a estrada e
muitos jogavam fora os pertences
que logo
descobriam ser muito pesados para
levar em uma viagem assim às
pressas
e frenética. Ouviam-se os latidos de
cães vadios e o eco do choro de
bebês.
Por toda parte viam-se as chamas se
elevarem, uma vez que as pessoas
ateavam fogo às próprias casas para
não permitir que os romanos as
saqueassem depois de terem sido
abandonadas. Elas queriam se
assegurar
de que os inimigos não pudessem
desfrutar do que haviam conquistado
com o trabalho de toda uma vida. No
dia seguinte, não restaria um tijolo
sequer, nosso mundo desmoronara
da noite para o dia. Algumas
mulheres
soluçavam na rua, mas o vento
chegara, soprando impiedoso do mar
para
anunciar o inverno iminente, e
ninguém ouvia seu choro. Não se
poderia dizer se proferiam
juramentos ou orações.
Segui nos calcanhares do meu genro,
preocupado, como estava, em
assegurar que minha filha e seus
filhos ficassem em segurança.
Chorei por
todo o caminho, certa de que atrairia
uma maldição sobre nós por não
preparar o corpo do meu marido.
Devia permanecer ao lado dele
durante
toda a noite e ajudá-lo, com
lamentos e orações, na sua travessia
para o Mundo Vindouro. Em
qualquer outro momento, eu teria
ficado com a casca
que outrora abrigara seu espírito
antes que o corpo que o continha
fosse deixado na caverna, ao lado
dos ossos do nosso povo. Pensei nos
nossos antepassados que fugiram do
Egito, nos seus filhos que
tropeçavam na
areia enquanto fugiam da
escravidão, nas águas que subiram e
depois se separaram à sua frente.
Sua agonia nunca fora mais real para
mim. Senti que poderia chorar por
eles.
Envolvi os ombros em um xale
branco, já de luto pela morte do
homem
que inscrevera a minha inicial em
cada pão que assava. Adotei a cor
do vestuário dos mortos, como se
tivesse partido desse mundo
juntamente
com meu marido. Por um momento,
achei que deveria ficar para trás,
entregar a vida nas mãos dos
romanos e permitir que meu espírito
se
reunisse ao dele. Mas tive uma visão
da minha filha e dos seus filhos, a
quem considerava mais preciosos
que qualquer outro tesouro, e entendi
o
que deveria fazer. Rezei para meu
marido, mas deixei a nossa aldeia
naquela noite. A exemplo dos ratos,
fugi do que desmoronava ao nosso
redor, abandonando a vida que
levávamos, agora destruída.
AO CAIR da noite, caminhávamos
para o deserto. Era o mês de Tishri,
quando comemoramos o Rosh
Hashanah, a festa que assinala o
momento em que o
Todo-Poderoso começa a tomar nota
dos nomes dos que pertencem ao
Livro da Vida e viverão por mais
um ano. Não fazia ideia de que ainda
estaríamos vagando durante o Yom
Kippur, o momento de expiarmos os
nossos pecados, e de que o Livro da
Vida seria fechado naquele dia,
depois
selado. Os nomes que não tinham
sido escritos em suas páginas eram
os daqueles que não viveriam no
próximo ano.
Estávamos preparados para uma
longa jornada. Meu genro trouxera
os
dois burros com a carroça em que
transportava os sacos de trigo para a
padaria e com os quais movia a
pedra do moinho para produzir a
farinha.
Eu carregava os últimos cinco pães
do meu marido, lembranças do que
nos
proporcionava uma vida boa. Minha
filha embalara potes de azeitonas e
azeite e trouxera queijo envolto em
tecido e bolsas de couro para água.
Fugimos e os burros fugiram
conosco. Acima de nós, víamos
enormes
bandos de pássaros, todos
escapando das nuvens de fumaça
lançadas pelos
inúmeros incêndios ateados na
aldeia. Dormimos amontoados ao ar
livre,
desacostumados com a vida cruel do
deserto, com saudade do cheiro de
pão e do conforto das nossas camas
macias. Meu genro usava a túnica
longa
de um estudioso. Pareceu perturbado
quando minha filha o abraçou e lhe
disse que estaria perdida sem ele,
talvez receando que a fé em sua
capacidade de liderança fosse
descabida. Vivia mais em casa, com
seus
pergaminhos e suas orações, do que
nos guiando através do deserto.
À noite, sonhei com meu marido. Ele
continuava ao meu lado, como
muitas vezes acontece com os
mortos antes de seguirem em frente.
Dizem
que os que nos deixam não mudam
quem são, mesmo no Mundo
Vindouro.
Meu marido estava sovando o pão,
trabalhando duro, como se
continuasse
em nosso mundo. Parecia o mesmo,
um homem gentil e sério,
preocupado
com seu ofício, como sempre, mas
usava ingredientes que eu não
reconhecia. A massa era vermelha e
as especiarias haviam sido moídas
de
pétalas de flores negras e de ferrões
pontiagudos de abelhas. Então ouvi-
o
falar. Ele dizia: Cada pedaço de
pão o alimenta do modo que
precisa ser alimentado. Meu marido
era um homem simples e só usava as
palavras quando necessário. Agora,
nos meus sonhos, tinha certeza de
que ele estava
me dizendo algo que precisava
ouvir. Acordei desejando que
houvesse dito
mais.
Pela manhã, os bandos de aves que
fugiam ao longo das encostas das
colinas eram tão enormes que
apagavam o sol. Mordi a língua, mas
estava
certa de que se tratava de um mau
sinal. O galo branco que fora
sacrificado
nas escadas da sinagoga estava nos
seguindo, era o que acreditava,
enviando seus mensageiros para nos
perseguir. As aves passaram por
nós,
voando mais rápido do que nunca
vira, e isso nos disse alguma coisa
também.
Se tivesse prestado atenção, teria
entendido que há algumas coisas
neste
mundo que não podemos vencer.
OS DIAS foram se passando e em
pouco tempo tínhamos comido quase
tudo o
que tínhamos, o pão, as azeitonas, o
queijo. Começamos a racionar os
alimentos. O plano do meu genro era
simples, as táticas de um homem
lógico. Esperaríamos que os
romanos se fossem e, em seguida,
retornaríamos à nossa aldeia e
começaríamos de novo. Eu não disse
o que
sabia, que não haveria nada para o
que voltar. Encontraríamos apenas
sangue e tijolos quebrados. Vi que
meu genro estava intimidado pelo
deserto à nossa frente e com o nosso
lugar nele. O deserto se aproximava,
uma paisagem agreste, mesmo para
aqueles com experiência em
sobreviver aos seus perigos. Em
todas as suas horas de estudo, Yoav
nunca
acendera uma fogueira de galhos
com o uso de uma pedra, nunca
caçara com um arco, nunca
procurara água nem seguira por um
caminho de
pedras e rochas de calcário tão
duras que deixavam nossos pés
sangrando.
Era um homem importante na aldeia,
mas ali não era nada. Em pouco
tempo estávamos perdidos. Cada
arbusto espinhoso parecia o mesmo
para
nós, devastado, preto. Cada colina
levava a outra. Só o céu mudava,
cor-de-
rosa rubro no crepúsculo e depois
filtrando uma luz acinzentada antes
de a
escuridão nos dominar.
Yoav começou a rezar, hora após
hora, como se isso lhe indicasse o
que
fazer em seguida. Eu já tentara fazer
pão em uma chapa de ferro sobre a
fogueira e não conseguira. Só
conseguia fazer biscoitos que não
tinham força para crescer.
Finalmente fui capaz de assar o pão
sobre pedras
quentes que coloquei embaixo de
gravetos em chamas. Os meninos
chamaram os pães pretos e
crescidos de pães das cinzas, eram
amargos
mas satisfaziam. As bolsas de água
de pele de cabra estavam menos
pesadas, drenadas pela nossa sede, e
as chuvas ainda não haviam
chegado.
Yoav prometeu que Adonai nos
guiaria e que não tínhamos escolha
senão aceitar seus desígnios.
Secretamente, desejei que
pudéssemos encontrar
um guia entre as tribos de vestes
azuis que às vezes víamos seguindo
em direção a Moabe. Eu lhes daria
tudo o que tinha se nos ajudassem a
encontrar uma boa trilha.
Embora nossa aldeia ficasse para
trás, eu ainda achava que havia um
mundo para o qual pudéssemos
voltar.
Mantive meus olhos nos céus.
Avistávamos cada vez mais
pássaros. A
cada dia o número aumentava.
Tentei contá-los, mas era
impossível, pois eram tão
numerosos quanto as estrelas e, no
fim, desisti. Ainda sentia que o
padeiro me acompanhava, e que me
dava conforto. Falava com ele em
voz
baixa, tentando diverti-lo com as
minhas descrições dos diversos
tipos de
ventos que encontrávamos: o tipo
esvoaçante, o tipo uivante, o vento
suave
e quente do sul, o vento forte e azul
que chegava ao anoitecer e de
repente
partia ao amanhecer, o vento violeta
do desespero. Conversava com meu
marido sem que ninguém pudesse
ouvir.
Então um dia acordei e ele se fora.
Senti sua partida com tanta certeza
quanto se tivesse visto seu espírito
subir. De uma só vez, a solidão
instalou-
se em mim profundamente como uma
pedra em meu íntimo, dura e afiada.
Enquanto dormia, o espírito do meu
marido fora reivindicado pelo
Mundo
Vindouro. Ele desapareceu de uma
vez por todas. Quando comentei
sobre o
vento que assobiava, salpicado de
chuva, que soprava com a chegada
do inverno, ele não respondeu.
Quando descrevi o vento batido pelo
sol nos funis de poeira flutuantes,
falava com ninguém, a não ser com o
próprio pó.
Apenas pássaros pretos nos
sobrevoavam naquele momento, uma
formação de penas e carne turvando
o céu como nuvens de tempestade.
Esperei até a noite para chorar,
guardando a dor só para mim, pois
não fazia nenhum sentido
compartilhar a minha tristeza.
Não tínhamos outra escolha senão
seguir em frente, uma vez que apenas
o vazio estendia-se ao nosso redor.
No dia seguinte assim o fizemos.
Tive de
deixar aquele lugar indistinto,
abandonando a última essência do
meu
marido. Carregava a minha perda
como um fardo, que retardava o meu
progresso com seu peso. Não
conseguia nem manter o ritmo dos
burros
cansados, que seguiam indiferentes o
seu caminho. Os meninos voltavam
correndo para junto de mim e
seguravam as minhas mãos, me
apressando.
Por causa deles continuei, mas Deus
sabia que passara pela minha cabeça
ficar para trás. Queria deitar-me ao
lado das rochas e sonhar com o
padeiro,
pedir-lhe para voltar para mim,
mesmo que isso significasse abrir
mão
deste mundo. Talvez esse tenha sido
o pecado que cometi. Esqueci-me de
que mesmo o pior da vida é um
tesouro.
*
APARECEU à nossa frente um
pequeno oásis. Possuía uma queda-
d’água que jorrava de um penhasco,
derramando-se sobre as pedras para
formar uma
piscina de água doce. Sentimo-nos
abençoados, muito felizes com a
nossa boa sorte.
– Eu lhes disse para ter fé – meu
genro advertiu. – Deus fez
exatamente
como eu disse que faria.
Cresciam palmeiras e um amontoado
de jasmim perfumado. Caniços de
hastes carnudas brotavam ao longo
das margens da piscina. Flores
brancas
boiavam na água verde, cada uma
exibindo o formato de uma estrela.
Via-
se um grupo de amoras silvestres,
onde vespas e libélulas se
aglomeravam,
seu zumbido como música para os
ouvidos. O ar era fresco e doce,
agitado
pela brisa. Eu poderia ter descrito
essa brisa para meu marido se seu
espírito continuasse ao meu lado, um
vento tão calmo que inspiraria
inveja
em todos os outros ventos em todos
os cantos do mundo.
Meu genro pensou que poderíamos
esperar pela partida dos romanos
ali, naquele lugar aprazível.
Deveríamos saber que em tempos
tão cruéis não era o melhor prender-
se a um único local, mesmo se
houvesse água e o
ar fosse refrescante. A inveja era
igual, tanto entre os ventos como
entre os
homens sobre a terra. Quanto melhor
o lugar, mais os outros cobiçariam o
que você tivesse. Fosse um mendigo,
um andarilho, um solitário na
escuridão da noite. Se possuísse
algo que outros não tinham, você
seria um
alvo para os maus. Teria sido
melhor se tivéssemos feito nosso
acampamento em uma das cavernas
para além do oásis, ou talvez mais
longe na direção do deserto,
seguindo os caminhos batidos entre
os
espinheiros socados pelas manadas
de camelos selvagens. Mas meu
genro
temia o coração do deserto e quis
que permanecêssemos onde
estaríamos
mais seguros. Senti uma onda de
medo, uma premonição. Vi as
sombras
recortadas embaixo de uma palmeira
assumirem a forma de uma víbora,
que deslizou pela areia até parar aos
meus pés.
Minha filha me calou quando
comentei sobre meus temores e
sugeri que
seguíssemos em frente. Pessoas
haviam entrado na imensidão do
deserto à
nossa frente e nunca mais foram
vistas, sussurrou ela. Andarilhos que
eram
abandonados ou devorados por
feras, vencidos pela fome e pela
sede,
sequestrados, escravizados pelas
tribos que usavam mantos azuis. Ali
tínhamos tudo de que poderíamos
precisar e deixar aquele lugar seria
uma
ingratidão aos olhos de Deus.
– Pense nas crianças – pediu Zara. –
Estão felizes aqui.
Olhei para os meninos, que gritavam
alegremente brincando à sombra
das palmeiras, e pus de lado os
meus medos. Ficaríamos onde havia
água, o
elemento mais precioso de todos,
mesmo que as hienas viessem beber
no
crepúsculo, atraídas pela água,
assim como os demais animais do
deserto.
Aquelas criaturas ferozes se
aproximavam, os olhos brilhando
enquanto
espiavam os burros, outro presságio
que ignoramos. À noite aqueles
ímpios
animais manchados produziam um
choro estranho, desejando o pouco
que
tínhamos, ou talvez quisessem
convencer-nos de que eram mansos,
como
cães, ansiosos pela nossa
companhia, quando o que realmente
queriam era
a nossa carne.
Vimos poucas pessoas durante esse
período, apenas viajantes errantes
que vinham encher seus recipientes
de água, depois seguiam em frente,
sábios o bastante para montar
acampamento em tempos tão
incertos.
Fomos informados de que zelotes de
Jerusalém tinham tomado vários
postos avançados nas proximidades
do Mar de Sal, incluindo a fortaleza
de
Herodes, uma maravilha de palácio
no topo de falésias brancas,
construído
por um rei tão cruel que assassinava
quem quer que lhe fizesse oposição.
Um homem idoso, um eremita com
os pés atados com tecido e a túnica
desfiada pelo vento, advertiu que,
embora o deserto pudesse parecer
despovoado, era repleto de vida. O
que parecia vazio era cheio, assim
como
a água em um copo. O mais
importante era invisível aos olhos.
OS PÁSSAROS permaneceram
conosco, como uma praga pairando
no céu. Até mesmo eu, uma mulher
simples, percebia esse prenúncio do
mal. Um dia, havia tantos deles que
nos escondemos na barraca em que
dormíamos,
assustados com a escuridão tão
extrema no meio do dia, o mundo
enegrecido pelos corvos. Quando
saímos, na manhã seguinte, a estrada
que
levava para o leste estava coberta
de penas. Pássaros tinham caído do
céu,
atingidos por algum desastre
desconhecido. Zara e eu estávamos
ocupadas
recolhendo gravetos para fazer a
fogueira para a refeição do meio-
dia.
Antes que pudesse detê-los, meus
netos começaram a catar as penas e
a brincar com elas, adornando-se,
fingindo que haviam se transformado
em
corvos. Minha filha e eu trocamos
um olhar. A um só tempo, havíamos
percebido que era Yom Kippur, o
Dia da Expiação, quando pedimos a
Deus
para perdoar os nossos pecados. No
deserto, todos os dias eram muito
parecidos com o seguinte, e nos
esquecêramos do aspecto divino do
dia até
aquele exato momento. Não
deveríamos trabalhar nem comer,
somente
pedir perdão.
Dizia-se que no Templo havia uma
corda escarlate pendurada no altar;
no fim do Yom Kippur, depois do
jejum, dos sacrifícios e de muitas
orações, ela se tornaria branca se
Deus perdoasse as nossas
transgressões. Agora, ignoráramos o
mais santo dos dias e, ao fazer isso,
viráramos as costas ao
nosso Deus. Os meninos dançavam
na areia, cobertos de penas,
cacarejando
entre si como pássaros. Esse era o
tipo de erro que atraía os demônios
dos
seus esconderijos. Pensei se não
tínhamos tomado o caminho errado
na
nossa jornada e imprudentemente
virado à esquerda, o lado que dava
origem a todos os males.
O marido da minha filha ficou
furioso quando viu os meninos
brincando
como selvagens. Compelido a
corrigir a situação, ele se afastou
para rezar,
andando de um lado para o outro no
deserto, o vento fustigando seu
corpo,
deixando sua marca como
chicotadas. Ele gritou contra o vento
feroz que faria as coisas direito e
implorou por perdão, rezaria pela
misericórdia de
Deus, mesmo que isso lhe custasse
todo o dia e toda a noite. Mas minha
filha e eu sabíamos que o que fora
feito não poderia ser corrigido.
Havíamos nos esquecido de Adonai.
Pensáramos somente em nós mesmos
e nas nossas triviais necessidades
humanas. Por causa disso,
sofreríamos.
Nossos pecados cresceriam e nos
engoliriam por completo.
Eu chamara a minha filha de
esplendor da manhã, mas manhã
tinha dois
significados, e talvez tivesse lhe
rogado uma maldição quando
escolhera chamá-la assim. Agora me
perguntava se previra o que fora
escrito, embora
os homens cultos insistissem em que
nenhuma mulher era capaz de prever
o que viria a ser. Eles podiam dizer
o que quisessem. Eu sabia que nada
de
bom aconteceria no deserto no Yom
Kippur que havíamos esquecido. O
marido da minha filha podia rezar
por perdão até a sua garganta secar.
Eu
diria que, pelo vento crescente,
aquele vento impiedoso, não haveria
nenhum perdão.
AQUELE DIA terrível continuaria a
ocupar os meus pensamentos se a
algazarra nos pombais não me
distraísse com o seu estardalhaço
contínuo. O alarde
dos ruídos espelha o silêncio, pois
se está sozinho nas duas situações.
Muitas vezes notei Shirah
observando-me enquanto trabalhava.
Perguntava-me o que pensaria de
mim. Não temia enfiar as mãos na
sujeira
e não ultrapassava os meus limites.
Quando ela pousava o olhar em mim
no
ar obscuro, abaixava a cabeça para
esconder o que residia em meu
íntimo.
Apenas uma réstia de luz filtrava-se
do telhado e eu evitava passar por
ela,
com medo de que a claridade
revelasse a verdade sobre o meu
luto. Mas um
dia, não muito tempo depois da
minha chegada, Shirah de repente
pegou a
minha mão na dela. Surpreendi-me
com o gesto e, antes que pudesse
pensar em me afastar, ela olhou para
a minha palma áspera. Seu toque era
como a água fria sobre a minha pele.
Depois disso, poderia dizer que me
conhecia. Tinha a mão de um
assassino. Ela queimava durante a
noite, no
escuro. Outra mulher olharia para a
lua que se levantava para ver o seu
destino refletido, mas eu olhava para
a palma da minha mão a fim de
enxergar o que fora escrito e o que
fizera.
Como não quisesse que os outros
falassem a meu respeito, ficava
longe
das fofocas em torno de Shirah. Se
ela fosse realmente uma bruxa, eu
não a
temia, pois, quando apertara a minha
mão na sua, pegara parte do meu
fardo para si mesma.
– Ser humano significa perder tudo o
que mais se ama neste mundo – ela
murmurou, soltando-me. – Mas você
pediria para ser outra coisa?
PERMANECI em silêncio na
ocasião, mas depois me perguntei se
realmente preferiria ser uma cobra,
em vez de mulher, se escolheria
viver a minha vida embaixo de uma
rocha, atacando ao anoitecer,
devorando o meu
sustento, voraz e sozinha na minha
pele fria. Será que uma cobra amava
seus rebentos? Será que chorava sob
a rocha, ansiando por braços para
enlaçá-los, por uma voz para contar-
lhes histórias, por um coração que
se
desdobrasse em dois? Muitas vezes
não conseguia dormir ao pensar em
tais assuntos. Essas eram as
ocasiões em que via Shirah andando
pela noite.
Talvez ela soubesse as respostas às
minhas indagações, mas nunca
perguntei, como nunca questionei
aonde ia ou aonde fora. Se ela
tivesse uma caixa de pecados
mantida sob sete chaves, como
algumas pessoas
juravam, não era da minha conta.
Depois de desrespeitar as leis de
Deus, tomamos consciência de que
só Ele pode nos julgar. Sabemos que
nenhum
homem é capaz de entender o que
uma mulher pode ser levada a fazer.
QUANDO YAEL chegou para
trabalhar conosco, eu estava
convencida de que ela era uma
menina tola e egoísta, que se
considerava boa demais para limpar
os nichos das pombas ou carregar
pesados cestos de esterco para os
campos. Nunca imaginei que ela
viria a morar na minha casa, se é
que se pode chamar assim um único
alojamento com uma cortina como
divisória
de vizinhos como uma casa
adequada. E ainda assim fora
culpada por essas
mesmas ideias na minha chegada,
amargurada por ter sido enviada
para
trabalhar nos pombais. Mantivera a
postura da minha antiga vida com
uma
arrogância a que não tinha direito.
Chorava, convencida de que estava
relegada à posição mais humilde da
montanha, até meu neto me mostrar a
verdade sobre as pombas. Agora
entendo o orgulho demonstrado por
Shirah e suas filhas, uma devoção
que me intrigara na primeira vez que
passei pelas portas de madeira
entalhada, o rosto coberto por um
lenço, temendo respirar uma única
vez o mau cheiro do barro
composto.
Sem os pombos, essa fortaleza já
teria caído. Os restos espalhados no
pomar tornaram o nosso mundo
verde e exuberante, alimentando as
raízes
das tamareiras e das oliveiras,
fertilizando as amendoeiras, fazendo
com que explodissem em nuvens de
flores cor-de-rosa e branco. Sem os
pombos, teríamos morrido de fome
há muito tempo. Era proibido matar
um deles, pois sem o Templo não
poderia mais haver sacrifícios; um
homem que pegasse um deles por
ganância arriscava-se a tornar-se
karet,
ser banido da vista de Deus, pois tal
ato era considerado um crime contra
todos nós.
Todas as vezes que cortava um
pedaço de fruta, sentia-me grata às
criaturas claras e dóceis de que
cuidava. Sempre que uma delas
adoecia, levava-a para casa a fim de
cuidar da sua saúde. Mantinha essas
aves em uma prateleira de madeira
ao lado da minha cama. Escutava
quando
arrulhavam, confortando-me com sua
música.
Aquelas eram as únicas noites em
que não sonhava.
COMECEI a mudar de opinião
sobre Yael, a filha do famoso
assassino Yosef bar Elhanan, um
matador sobre quem as pessoas
sussurravam ter a
capacidade de atravessar paredes e
desaparecer diante dos olhos
humanos,
irmã de um dos nossos jovens
guerreiros. Notei que ela possuía um
estilo
próprio de magia. Bastava que
estendesse a mão e as pombas a
procuravam. Não precisava
cacarejar nem oferecer grãos, os
truques com
os quais eu costumava atraí-las.
Surpreendi-me com suas
habilidades,
tomada pelo ciúme. Era sempre eu a
primeira a abrir a porta pela manhã,
era eu quem alimentava as pombas e
a sua enfermeira quando adoeciam.
Era eu quem atirava pedras quando
os falcões se aproximavam do nosso
telhado, prontos para se esgueirar
pelos vãos da cobertura e destruir os
ninhos de que cuidávamos com tanto
carinho, ou para atacar, quando
deixávamos as pombas voar no
início da manhã, certas da sua
lealdade e do
seu retorno.
No entanto, elas procuravam por
Yael, não por mim. Ela ficava no
escuro
e eles esvoaçavam ao seu redor.
– Por que elas a preferem? –
perguntei a Shirah, que estava entre
as pombas por mais tempo. Acho
que a inveja brilhou nos meus olhos.
– Ela fala a língua delas.
– Sério? Dos pássaros? Que língua é
essa?
Shirah sorriu em resposta.
– Dentre todas as pessoas, você
deveria saber.
Então entendi. Era a linguagem do
silêncio.
EU ADIVINHARA o que Yael estava
escondendo por baixo da túnica e
dos lenços, embora ela não falasse
sobre isso, e por uma boa razão,
apesar de estarmos
longe das leis de Jerusalém, onde as
mulheres em sua condição seriam
chamadas perante um conselho de
sábios e anciãos, depois exiladas
para se
arranjar sozinhas. As mulheres que
cometiam adultério e concebiam
eram
forçadas a beber água amarga com a
poeira do chão do Templo, que
alguns
acreditavam ser capaz de fazer as
crianças saírem de dentro delas.
Essa era
a cerimônia do sotah, na qual a sua
inocência ou culpa seria provada
por Deus quando fossem forçadas a
beber o Seu nome escrito em um
pedaço de
pergaminho e dissolvido em um
copo de água. As pessoas
cochichavam que
o mal repelia a graça de Deus. Caso
o mal tentasse absorver o nome de
Deus em seu corpo, cairia sobre o
pó.
Mas talvez nessa montanha, com
tantos perigos diante de nós, havia
pouco tempo para buscar o pecado e
pouca razão para fazê-lo. Será que
meus vizinhos não se perguntavam
se seus pecados os haviam trazido a
esse lugar, por que o nosso povo
precisava sofrer tanto, por que os
caminhos de Deus eram tão
misteriosos, por que Ele nos
abandonara nessa
montanha?
O constante uivo do vento
enlouquecia algumas pessoas;
muitos dentre
nós amaldiçoavam a fortaleza e
desciam mais baixo do que tinham
imaginado. Havia mulheres que
choravam durante um vendaval até
as
lágrimas marcarem seus rostos com
listras de sal. Será que não se
perguntam por que tiveram de se
afastar para tão longe de Jerusalém e
de
tudo o que tinham conhecido e
amado? Nas horas mais sombrias,
quando
se reuniam com os filhos à luz quase
inexistente, tendo os xales como
proteção contra as tempestades de
areia, elas sem dúvida se
perguntavam
pelo que estávamos lutando.
Eu nunca fiz essa pergunta. Olhava
para a terra além do caminho da
serpente e pensava nas inúmeras
formas que uma fera poderia
assumir.
Havia aquelas que se revelavam ao
meio-dia, pousando firmemente os
pés
sobre a terra, e aquelas que se
infiltravam nos seus sonhos. Havia
aquelas
que vinham de Roma, as feras mais
desprezadas que quaisquer outras, as
garras começando a se mostrar
quando cruzavam o Grande Mar,
pois o sal
repelia os demônios. Quando
pensava em tal perversidade, não
conseguia
dormir. Para me proteger, entoava o
encantamento que Shirah instruíra-
me a recitar quando me virava na
cama à noite. Proíbo todas as
formas de
destruidores, demônios, pragas,
aflições, medos e pesadelos, e juro
solenemente contra todos eles.
Ainda assim, continuava acordada,
incapaz de fechar os olhos.
Houve ocasiões em que avistava
meu genro escalando o caminho,
separado dos outros guerreiros,
quando regressavam das missões
destinadas a nos proteger, ou quando
tentavam encontrar as provisões de
que precisávamos no mundo fora das
nossas muralhas. Não queria pensar
nas ações tristes que cometiam, no
sangue que derramavam, nas vidas
que
tiravam.
O Homem do Vale que não andava
ao lado dos seus irmãos não tinha
mais nenhuma semelhança com o
estudioso que fora um dia. Ele nunca
saía
sem o machado pelo qual trocara o
seu cálice mais precioso,
carregando a
arma tão perto do corpo que essa
parecia uma parte dele, presa por
uma seda vermelha invisível. Seu
cabelo que embranquecera da noite
para o dia
era tão comprido que as pessoas
diziam que Deus seria capaz de
agarrá-lo
para tirá-lo de um perigo. Essa era a
razão pela qual ele ainda vivia,
embora
se deixasse em perigo o tempo todo.
Era conhecido por ser furioso em
batalha, disposto a atirar-se à luta
sem pensar na própria vida. Eu
entendia
por que ele fazia isso, pois sabia
pelo que lutava; no que não era
diferente
de mim. Uma angústia como a nossa
alimentava-se de ossos e de sangue.
Não tínhamos mais opções do que o
vento de para onde ir e a que lugar
pertencer. Eu era grata por esse
período de silêncio na montanha.
Ali, finalmente, meus netos estavam
seguros, podiam descansar sem
perigo,
enquanto as pombas da minha
cabeceira os silenciavam para
dormir.
Quanto a mim, o sono era uma terra
que já não visitava, apesar do meu
encantamento. Quando o fazia,
ansiava apenas pela minha vida em
vigília,
as horas em que não via as imagens
de pesadelo de tudo o que
acontecera e
de tudo em que me tornara.
MUITOS DEIXAVAM as suas
cidades e aldeias quando fugimos.
Eram na maioria pessoas boas, mas
também havia aqueles que se
desviavam para o lado
esquerdo da estrada, o lado dos
maus. Antes que o padeiro colocasse
seus
últimos pães no forno na enorme
tábua de madeira que sempre usava,
antes que eu soubesse que ele não
regressaria, antes que as penas
pretas caíssem sobre a estrada, já
estava escrito que encontraríamos
aqueles que
eram do mal e que eles cairiam
sobre nós no fim daquele dia,
quando o céu
se incendiou de azul e o ar cheirava
a jasmim.
Eles vieram por causa dos burros,
que ficaram espionando do
penhasco.
Vieram por causa da água fresca que
rebrilhara nos seus olhos. Mas
ficaram
quando viram Zara inclinada sobre a
fogueira. Viram o seu esplendor, tão
linda que parecia que aquela manhã
nascera para eles, e a sua intenção
mudou. Eles se esqueceram dos
burros, da piscina de água e da
décima legião, o regimento romano
de que tinham desertado, temendo a
punição
dos superiores, os bastões dos
generais se quebrado em cima de
suas
costas em consequência dos delitos
e do mau serviço.
Eles já se encontravam além da
linha que nos separa das criaturas
das
trevas. Atravessaram o caminho
batido frequentado pelo bando de
hienas
que vinham nos rondar, lamentando-
se no meio da noite, tentando ganhar
o nosso apoio com seus ganidos
tristes, esperando pelos restos de
comida
antes de vir nos devorar. Quatro
soldados romanos que viviam sem
água, sem comida nem esperança
desceram pela encosta, a armadura
de cota de
malhas pesando nos ombros, homens
cuja natureza se degenerara. Era
fácil
para eles tornarem-se brutos como
animais ferozes; mais um passo e a
sua
humanidade seria uma ilusão. Sob a
armadura havia apenas dentes e
garras, fome e sede. Era o shabat, e
Yoav saíra para orar no deserto, o
xale de oração jogado sobre os
ombros. O vento aumentava de
intensidade,
então ele não ouviu nada do que nos
aconteceu. Estava comprometido
com
Deus e com o som da própria voz.
Desde o Yom Kippur ele estivera
ausente durante todo o dia e à noite,
orando pela nossa salvação. Quando
a primeira
estrela aparecesse no céu,
acenderíamos a lâmpada do shabat
com o resto
do nosso azeite e ele voltaria para
nós. Essa foi a desgraça que
aconteceu.
Ele viu a luz, mas nunca esperou a
escuridão.
Avistei os soldados como se avista
um demônio, uma sombra no canto,
fundindo-se no outro lado do
terreno. Não pensei duas vezes.
Mandei os meninos fugirem. Foi
como se uma chave tivesse aberto o
futuro e por um
breve instante enxerguei do outro
lado.
– Vão depressa e não se arrisquem –
disse aos meus netos. – Não voltem
até eu chamar. Mesmo que a noite
caia, mesmo que o sol seja comido
pela
lua, não importa o que ouçam,
mesmo que alguém os chame pelo
nome.
Não respondam. Não falem. –
Olhava em seus olhos enquanto os
instruía. –
Acima de tudo: fiquem escondidos.
Mandei-os para um ressalto
escondido atrás da cachoeira, onde
às vezes
brincavam. As crianças eram
pequenas o bastante para caber
dentro de
uma fenda que se formara entre as
rochas. A água era uma cortina
enquanto caía. Pensei que, se algo
desse errado, os meninos não seriam
capazes de ver através da água e
Deus os protegeria.
Mas a água é clara, como uma janela
aberta, e seus olhos estavam
abertos também.
OS HOMENS caíram sobre Zara
junto à fogueira. Ouvi a voz dela
como se ouve um sino, soando acima
de todos os outros ruídos. Corri até
ela e um dos intrusos me atirou para
o lado, pois para ele eu não era mais
que um gafanhoto seco, bom para
nada mais que o jantar de um corvo.
Senti o gosto
de sangue ao redor da boca.
Ataquei-os, gritando, mas eles eram
quatro, e
brutalmente fortes, e eu uma mulher
desacostumada ao combate.
Enquanto
dois deles seguravam Zara, rasgando
suas vestes, os outros dois cuidaram
de mim rapidamente. O mundo
escureceu quando bateram com uma
pedra
na minha cabeça. Senti o calor do
meu próprio sangue correr pela
testa.
Tudo ficou negro como a noite
dentro de mim. Para a minha
vergonha, não
vi o que os meus netos viram, só
entendi quando vi a concha partida
em que Zara se transformara. Mas os
meninos observaram tudo: como os
soldados se revezaram com sua mãe,
como ela tentou afastá-los, como
quando terminaram eles a torturaram
com fogo e com pedras quentes e
paus afiados, por nenhuma outra
razão a não ser pela própria
maldade.
Quando saí da escuridão e despertei
novamente para este mundo, era
tarde demais. Os brutos se
apossavam dos poucos pertences
que haviam
sido armazenados na nossa tenda.
Aproximei-me de Zara, embora
soubesse
que ela entrara no reino dos
demônios e que cada demônio que
caminha sobre a terra tem a força de
mil homens, e eu era apenas uma
mulher, mais
envelhecida ainda naquelas poucas
horas, uma idosa, coisa sem valor.
Arrastei-me sobre a areia.
Em um momento tínhamos todo o
tempo do mundo estendendo-se à
nossa frente e, no seguinte, a minha
amada filha estava morrendo nos
meus
braços. Ela estava sussurrando para
que terminasse com aquilo e a
deixasse ir para o Mundo Vindouro.
Implorou-me enquanto o seu sangue
corria entre nós, o sangue que eu me
esfalfara para trazer a este mundo.
Não bastara para eles usá-la para o
seu prazer e depois deixar-nos em
paz.
Não bastara para eles tomarem tudo
o que possuíamos – os burros, a
água,
a tenda, as provisões – e abandonar-
nos para as hienas que já estavam
circulando. Eles eram os anjos da
destruição, vira isso claramente,
embora
parecessem soldados romanos.
Tinham vindo do lado escuro do
mundo,
onde a luz não conseguia penetrar. A
pele de Zara estava enegrecida onde
tinham encostado paus e pedras
ardentes contra ela. Tinham
colocado as pedras dentro dela só
para ouvi-la gritar. Atirei aquelas
pedras para longe,
mas não adiantou. Ela já conversava
com os entes do Mundo Vindouro, já
destroçada. Então vi que ela fora
dividida em dois com um machado e
tudo
o que estava contido dentro do seu
corpo tinha se derramado sobre a
terra.
Naquele momento, agachada ao lado
dela, transformei-me em algo que
não era uma mulher.
Os brutos tinham jogado as suas
armas, armaduras e capacetes de
bronze no chão. Peguei uma faca que
tinham deixado de lado, lisa com o
sangue. Fiz como Zara me pedia,
embora fosse um crime contra Deus
e
contra as nossas leis. Sussurrei em
seu ouvido que ficaria livre e que
deveria fechar os olhos. Então fiz o
que nenhuma mãe deveria ter de
fazer.
Peguei a faca e cortei sua garganta.
Fiz do modo que se faz um
sacrifício, pois mesmo uma besta de
carga é tirada da vida dessa
maneira, com
compaixão, em um corte único e
rápido, concluído sem dor. Ao fazê-
lo, inclinei-me e pousei a boca
sobre os lábios machucados da
minha filha. Seu
último suspiro entrou em meu corpo
e guardei seu espírito dentro de mim
como o tivera antes de ela nascer.
Os maus pegaram o que queriam.
Depois riram ao me ver deitada ao
lado de Zara. Saí atrás deles,
rugindo, empunhando a faca, e um
dos
soldados a tomou de mim e a
segurou contra a minha garganta.
Senti-me grata quando ele o fez. Era
isso o que queria. Pedi-lhe para me
matar.
– Vá em frente – disse. – Minha
morte será seu presente para mim.
Se não podia entender
completamente a minha língua, ele
com certeza
compreendeu o significado das
palavras. Eu não suportava mais as
agonias
da terra que pisávamos. Mas aquele
que era líder disse ao bando para
esperar. A maldade despertara a
fome nos soldados. Como animais,
eles
queriam mais. Ordenaram-me que
cozinhasse para eles sobre o fogo
em
que mataram a minha filha. A fumaça
carregava o aroma do perfume que
ela usava, uma mistura de canela e
óleo de gengibre, uma nuvem de
fragrância subindo das cinzas.
Uma ideia começou a se formar
dentro de mim.
– Vai nos negar isso? – disse o
líder. Tinha um sorriso no rosto
traiçoeiro, como se pedisse um
favor a um vizinho. – Certamente
sabe
cozinhar.
Eu não era mais uma mulher, mas
ainda era esposa de um padeiro.
Pensei no que o meu marido me
dissera no sonho. Por fim entendi o
significado. Disse aos brutos que
poderia fazer mais que simplesmente
cozinhar uma refeição. Poderia fazer
pão, o suficiente para carregarem
para
o deserto, assegurando que teriam a
fome saciada por muitos dias. Iria
alimentá-los da maneira que
mereciam.
– É melhor não estar mentindo –
aquele que queria me matar
comentou.
Peguei a chapa de ferro e as
colheres de pau do meu marido.
Amarrei o
avental branco na cintura.
– Como estou? – disse a eles. – Esta
é a vocação da minha vida.
Devia estar parecendo uma velha
acabada, mas alguém que conhecia
os
mistérios do pão, pois eles me
pediram para continuar com a
refeição. Eles
cochilaram ao sol. O cheiro
chamuscado da morte por
queimaduras não os
incomodava, assim como não
incomodava às hienas, que caçavam
suas
presas nas colinas, ou aos chacais,
que viviam nas ruínas, alimentando-
se dos ossos dos mortos. Enquanto
os brutos se aplacavam, os olhos
sonolentos fechados, assei os pães
recheados com escaravelhos e os
cobri
de maldições. Encontrei o coentro
espalhado pelo chão, ao terem
revirado
os nossos pertences, e peguei um
pouco para temperar, para que não
suspeitassem que o que comiam
nada mais era do que pão. Por fim,
avistei
o frasco daquele ingrediente que o
anjo na minha cozinha me mandara
levar. Não tinha um só grão
derramado. Misturei-o com água e
com o resto
de farinha, acrescentei uma porção
de levedura do pote de barro frio e
em
seguida coloquei a mistura sob uma
faixa de tecido para ajudar a massa
a
crescer no escuro.
Antes que os pães estivessem
prontos, os brutos acordaram.
Tinham
mais danos a fazer no mundo. Eram
desertores do serviço do seu
imperador, ansiosos por fugir, mas
não me apressei, zelando pela minha
porção de vingança e de desespero.
– Não podemos esperar – me
disseram. – Depressa – gritaram.
Não tive escolha senão assar os
pães diretamente sobre o fogo antes
que
acabassem de crescer. Esperava que
se tornassem espessos e lisos, como
bolachas, como fica o pão na chapa,
ou que se tornassem chamuscados de
preto, como fica o pão de cinzas,
mas eles cresceram em pães
perfeitos.
Soube então que o anjo que me
acompanhara na cozinha continuava
ao
meu lado, ajudando a formar a
massa.
O pulso sombrio da tristeza apertava
a minha garganta. Senti-me grata
por não me pedirem para falar,
apenas para servir. Ouvia os corvos
acima
de nós. Pensei nas penas na estrada
e nos inúmeros sinais que o anjo me
dera e eu não prestara atenção. Isso
nunca aconteceria novamente. Cortei
os pães com a faca ensanguentada,
queimando os dedos enquanto os
rasgava em pedaços, e servi às feras
que pareciam homens. Eles usavam
a
insígnia da legião, apesar de serem
traidores da própria espécie, e
portanto
ainda ostentavam o símbolo do
javali. Pensei em como convinha aos
suínos
comerem daquele pão. Sorri como
uma mulher que não tivesse
presenciado
tudo o que vira naquele dia, uma
mãe cujo corpo da filha não fora
assolado
em uma ravina onde crescia o
jasmim.
Eu era outra coisa agora, a coisa em
que me tornara.
Eles devoraram o que eu preparara,
comendo mais pão que qualquer
outro homem que eu vira antes. A
violência e os dias espreitando e
caçando
os outros despertaram-lhe uma
grande fome. Servi-os uma vez após
a
outra, como se fossem os meus
senhores. Aos seus olhos eu parecia
ser uma
mulher e sua serva, nada mais.
Então, os estômagos cheios, foram
encher os
frascos no lago, bem como os dois
grandes barris, para terem água
suficiente para a jornada. Chegaram
tão perto da cachoeira que me senti
atordoada, temendo que pudessem
ver meus netos escondidos e
assassiná-
los por esporte, caso as crianças se
atrevessem a falar. Não sabia que o
anjo
me concedera um último favor. Ele
tirara a voz dos meninos para que
não
pudessem se entregar. Quando
abriram a boca para gritar e chorar,
não saiu nenhum som.
Nesse momento os brutos
agachavam-se à beira do lago, os
rostos na
água como cães, subitamente
possuídos por uma sede insaciável.
Respirei o
meu sucesso triste, sabendo que
aquele era um sinal de que o veneno
lhes
cobrava o seu efeito. Eles não
conseguiam deter sua ânsia por mais
água, apesar de segurarem as
barrigas muito cheias, quase a ponto
de estourar.
Assisti com os olhos frios enquanto
bebiam até a morte. Era o mesmo
que
se dava com os ratos na padaria do
meu marido. Muitas vezes os
encontrava afogados em um balde
depois de morderem a isca,
morrendo
com a sede terrível que a cicuta lhes
dava.
Um dos homens aproximou-se de
mim e caiu de joelhos, implorando
misericórdia. Engasgou-se ao bradar
que tinha esposa e filhos à sua
espera.
Declarou ser um homem bom na
vida que levava antes, mas as
palavras, como todas as coisas no
deserto, foram levadas pelo vento.
Na verdade, eu
era alguém que já não ouvia essas
súplicas. Não trazia mais piedade
em mim, somente o último suspiro
da minha filha.
NO MOMENTO em que a noite caiu
e meu genro retornou das suas
orações, eu havia matado as quatro
bestas humanas, tendo cortado suas
gargantas por
via das dúvidas, não por
misericórdia, mas para ter certeza
de que
completara a tarefa. Lavara o corpo
da minha filha com água limpa e o
envolvera no xale de linho branco
que ela usara em seu casamento. Ela
trouxera o xale consigo na nossa
jornada, o único tesouro que levara
de casa, enquanto eu buscava o
veneno. A escolha que fazemos
nessas
ocasiões revela quem somos por
dentro. Ela era uma boa esposa, ao
passo
que eu era uma criatura capaz de
qualquer coisa para proteger o que
era meu. Juntei pedras para colocar
sobre seu corpo, de modo que os
chacais não se aproveitassem do que
restava dela. Se as pedras eram
pesadas, não
reparei. Elas eram vermelhas e se
esfarelavam, tingindo as minhas
mãos.
Talvez tivesse sido assim que fiquei
marcada pelo resto da minha vida e
por isso, se alguém olhasse muito de
perto as minhas mãos, sem dúvida
elas lhe revelariam a minha
verdadeira natureza.
Devia estar parecendo um demônio.
Assim que meu genro me viu, caiu
de joelhos. Quando percebeu o que
acontecera na sua ausência, ele
esmurrou a terra; chorou, praguejou
e rasgou seu manto. Pensei que
correria para o deserto como um
louco, abandonando-nos. Isso não
poderia
acontecer, mesmo que desejasse um
alívio radical para a agonia.
Recusava-
me a permitir que a morte da minha
filha fosse a morte dos seus filhos.
Precisava do meu genro para nos
ajudar a fugir. Segurei seu xale de
oração,
que não deveria ter tocado nem
mesmo na bainha. Dessa vez seria eu
a dizer-lhe o que fazer. Falei para
acabar logo com aquilo, pois o
tempo tornara-se como areia
debaixo dos nossos pés. Eu sabia
que deveríamos
deixar aquele lugar antes que alguém
procurasse os brutos no lago.
Enquanto Yoav embalava tudo o que
nos restava em cima dos burros, fui
até a cachoeira, pois era lá que meu
tesouro estava guardado. Os
meninos
me fitaram com os olhos escuros e
brilhantes, mas não saíram. Bati
palmas
e chamei por eles, mas não houve
resposta.
O ruído da água caindo era
ensurdecedor. Esgueirei-me por trás
da
cachoeira, os pés escorregando nas
pedras frias e molhadas. Era muito
grande para caber na fenda onde
eles se escondiam contra as rochas
úmidas prateadas de mica. Eles
tinham apenas seis e oito anos de
idade e
no entanto haviam visto o que
homem adulto nenhum na terra
deveria ver.
Estendi a mão e pedi-lhes para sair.
Disse-lhes que carregava o espírito
da
sua mãe dentro de mim e que a
levaria conosco aonde quer que
fôssemos.
Tínhamos de nos apressar. Era o que
sua mãe queria que fizéssemos.
Depois de um tempo, os meninos se
agarraram em mim e me seguiram
por
trás da queda-d’água. Não falaram
uma única palavra desde que saímos
daquele lugar terrível, nem mais
tarde, quando fizemos um
acampamento
apressado sob as estrelas, distante
da cachoeira. Nunca mais falaram
desde
aquela ocasião.
TÍNHAMOS entrado no território do
silêncio, invadindo-o como as
sombras avançam sobre a terra
quando o dia tarda a findar. O vento
era a única coisa que ouvíamos, a
menos que encontrássemos viajantes
pelo caminho
que nos contavam histórias do
palácio de Herodes e dos homens de
Jerusalém que seguiram o caminho
da faca curva, zelotes que agora
governavam a fortaleza do rei. Yoav
ouvia essas histórias de rebeldes,
absorto, seu perfil grave distante de
nós. Fizemos círculos no deserto
para
manter distância da guarnição
romana. Sem destino, e sem nenhum
conhecimento do deserto,
cambaleávamos no caminho para o
Mar de Sal.
Enquanto viajávamos, meu genro
mudou diante dos meus olhos.
Parecia
distanciar-se cada vez mais do
mundo, como se já caminhasse ao
lado do anjo Gabriel. Aquilo que
víamos como a terra embaixo dos
nossos pés, ele
via como o fogo. À noite, ele
enveredava chorando pelos arbustos
espinhentos e eu sentia no coração o
peso da sua dor. À luz do dia,
porém,
ele recuperava a dureza, os olhos
semicerrados, a pele tostada pelo
sol.
Consumia apenas ervas verdes e, se
não tivéssemos algumas delas para
consumir, não comia nada. Quando
chegamos a um assentamento
nômade,
negociou o cálice de prata que usava
para a bênção do vinho.
O velho do assentamento de tendas
de pelo de cabra e crianças nuas não
podia acreditar na boa sorte do seu
comércio. Não teve a menor dúvida
em
abrir mão do seu machado em troca
da prata pura. Era uma arma pesada,
feita para um lenhador, não um
guerreiro, muito mais forte que a que
dividira a minha querida Zara ao
meio. Depois que prosseguimos, eu
ouvia
Yoav praticando nas horas matinais,
com o céu ainda escuro, dedicando-
se
ao machado como um dia se
dedicara às suas preces e seus
pergaminhos.
Dormia ao lado dele, como dormira
com a esposa.
Meu pressentimento de que Yoav
seguiria para o deserto e nos
abandonaria pela sua dor estava
correto, só que não da forma que
imaginara. Ele permanecera
conosco, só que inteiramente
dedicado a outro
lugar que o convocara, o reino da
vingança. Foi então que seu cabelo
branqueou da noite para o dia e ele
passou a usá-lo comprido e
emaranhado. Seu corpo tornou-se
esguio e forte. Ouvíamos pouco da
sua
parte, a não ser quando praticava a
arte da destruição, atirando o
machado
com tamanha força que grunhia e
gemia, como um homem nos
estertores
da morte. Os próprios filhos,
aqueles meninos doces e
silenciosos,
assustavam-se com ele. Concluí que
ele se parecia com os loucos que
por vezes avistávamos no deserto:
guerreiros, eremitas, profetas,
sacerdotes; homens que só viam o
próprio caminho e o de mais
ninguém.
A MINHA primeira visão da
fortaleza foi de tirar o fôlego. Uma
miragem surgiu na pedra, um milagre
aparecendo sob o sol do meio-dia.
Como que
encantados, fizemos uma pausa no
vale. Era a temporada dos ventos, a
época em que o Ruach Kadim, o
vento quente e furioso que soprava
de Edom, nos trazia nuvens de
poeira. Meus netos estavam envoltos
em
túnicas, um próximo do outro, em
busca de algum conforto. Talvez
conversassem entre si através dos
sonhos, pois pareciam comunicar-se
e
entender-se sem o uso da linguagem.
Eles se recusavam a se separar e
dormiam sob o mesmo cobertor,
como comiam no mesmo prato e
bebiam
em um único copo. Pensei que os
penhascos íngremes que levavam a
Massada os assustariam e que iriam
hesitar. Esperava que seu pai tivesse
de amarrar cordas em volta da
cintura para ajudá-los a galgar os
penhascos, mas o mais novo, Levi,
foi o primeiro a entrar no caminho
de serpente, o caminho em espiral,
andando como uma cabra, e Noé
aplaudiu
os passos corajosos do irmão e
acompanhou-o em seguida.
Naquele instante tive a visão de que
os meninos nunca mais teriam o pai
de novo e que aquela escalada
perigosa seria a última vez que
estariam com
o Yoav que conhecêramos antes que
aquele outro homem, o que não se
separava do seu machado, tomasse o
seu lugar completamente. O sol
abatia-se sobre a terra como quando
os brutos no oásis caíram sobre nós,
ousados, impiedosos. Meus netos
foram subindo, as nuvens de poeira
seguindo atrás deles, carregadas
pelo vento em pequenos turbilhões
que
desapareciam diante dos nossos
olhos. Pousei a mão no braço do
meu
genro antes que ele começasse a sua
ascensão. Yoav virou-se para mim,
mas seus olhos estavam
encapuzados. Ele era como o falcão,
vendo
somente o que precisava para
sobreviver. Tudo o que queria era a
vingança, mas dei-lhe mais que isso.
Contei-lhe como me curvara sobre
Zara para roubar-lhe o último
suspiro. Neshamah, a nossa palavra
para a alma, significava a
respiração, e assim ela continuava
conosco.
Meu genro deixou escapar um
soluço quando ouviu isso. Ele
balançou a
cabeça e deu-me as costas.
– Jamais suportarei tornar a ouvir o
nome dela – ele enfatizou. – Não o
pronuncie na minha presença.
Entendi como era profundo seu amor
por ela. Ainda que tudo mudasse
em sua vida, nisso ele era constante.
Era o único capaz de entender o
significado da perda de Zara. O
nosso luto nos unia, apesar do
silêncio, do
vento e do homem que ele se
tornara. Lancei um sinal para ele se
inclinar, e
ele assim o fez. Então realizei a
segunda coisa mais terrível que uma
mãe
poderia fazer, em alguns aspectos
algo pior que enterrar a filha
debaixo das
pedras. Soltei o último suspiro da
minha filha em sua boca. Dei-a para
ele,
para que o seu espírito lhe
pertencesse e ele pudesse levá-la
consigo, para
que pudesse continuar a ser um
homem com uma alma, apesar de ter
perdido todo o resto.
A MINHA única preocupação era
com meus netos. Eles eram o meu
mundo, o
meu presente e o meu futuro. Jurei
me concentrar na nossa vida diária e
em
nada mais. Ao chegar a essa
fortaleza, instalamo-nos no nosso
pequeno
alojamento, construído junto à
muralha do rei, uma simples cortina
dividindo a nossa residência da de
outra família. À noite, ouvíamos os
nossos vizinhos, as crianças rindo,
os pais discutindo ou fazendo amor.
No
nosso espaço, apenas o silêncio.
Assim era a nossa vida agora. Já não
precisávamos da linguagem; não
havia palavras para o que
presenciáramos. Os meninos me
fitavam com seus olhos escuros
salpicados
de noite. Eu insistia que estávamos
seguros e fazia todos os esforços
para
lhes mostrar isso. Passei um fio na
soleira da porta, de modo que
ninguém
saísse sem o meu conhecimento.
Dormia com uma faca embaixo do
estrado
da cama. Passava cada dia em um
ritual de mesmice, esperando que as
crianças encontrassem consolo nas
pequenas tarefas e nos deveres da
vida
cotidiana. Na presença deles eu era
calma e paciente, a avó prática de
quem
podiam depender em todos os
momentos e em todos os sentidos,
mas meu
sorriso desaparecia sempre que me
via sozinha. Todas as manhãs ia
para os
pombais. Todas as noites voltava
para fazer o jantar. Mas todas as
noites chorava.
OS MESES transcorreram desse
modo. Acabamos nos acostumando
com o ar seco da montanha e com o
cheiro de sal trazido do mar lá
embaixo.
Conhecemos outras pessoas no
assentamento, as quais chegaram à
fortaleza por não ter outro lugar para
viver no Sião. Estávamos todos nas
mãos de Deus e assim éramos
irmãos e irmãs, não importava de
onde
tivéssemos vindo. Entre nós viviam
guerreiros e assassinos, rebeldes
criminosos e outros que insistiam
ser vítimas de crimes. Uns eram
homens
cultos, outros eram curtidores,
oleiros e pastores de cabras, homens
simples entre outros que sabiam ler
aramaico e hebraico, bem como
latim e
grego. Uns foram expulsos de
Jerusalém, outros fugiam de Jericó
incendiada e muitos eram refugiados
de pequenas aldeias como a minha.
Muitas das mulheres quiseram ser
minhas amigas e me convidaram
para
o grupo que se reunia nos teares à
noite, discutindo os acontecimentos
do
dia. Tinham boas intenções, mas
mantive a minha distância. Não
toleraria o
seu falatório bem-humorado tanto
quanto a sua fé. Embora fingisse o
contrário, não me desprendera do
passado. Era tudo que tinha, e me
agarrava a ele e o saboreava, pois
minha filha ficara naquela terra
pesarosa.
A tristeza me preenchia, deixando
pouco espaço para mais que isso.
Fechava os olhos para o mundo por
trás da barricada que erguera entre
mim e todos os outros, do mesmo
modo que a cortina separava o nosso
alojamento da casa dos vizinhos.
Entendi que não se fugia do destino
para
sempre; ele sempre voltava com
suas asas rijas, mergulhando no
escuro
como os morcegos nos pomares.
Ouvimos rumores sobre a presença
de batedores romanos, que teriam
montado um acampamento não muito
longe da nossa fortaleza. Os nossos
guerreiros foram enfrentá-los, mas
os inimigos eram muito numerosos e
no
fim os nossos homens tiveram de se
afastar e esperar que os romanos
levantassem acampamento. Nossos
inimigos deixaram pouco para trás, a
não ser ossos de porcos e pilhas dos
próprios resíduos. Mas também
deixaram uma torre de pedras. E
isso tinha um significado aterrador,
assinalava o lugar ao qual tinham a
intenção de retornar.
De minha parte, para o bem dos
meus netos, permanecia determinada
a
fazer com que a nossa vida
continuasse sem incidentes pelo
maior tempo
possível. Estava decidida a nos
guardar para nós mesmos. Sem
amigos, sem
inimigos, apenas nós três. Fazia o
possível para evitar perturbações.
Então,
uma noite, ouvi batidas na porta.
Senti um nó na garganta. Sabia o
tempo
todo que a qualquer momento o
mundo entraria em nossa vida.
Nenhuma
porta era capaz de evitar todas as
intrusões. Nenhuma barreira era
forte o
bastante para deter o avanço do
tempo. O joio do trigo que é batido
se eleva
no ar e é levado pelo vento para
outro lugar, se a um campo verde ou
uma
extensão de terra estéril, isso
dependia da vontade de Deus.
Rezei para as batidas cessarem, mas
elas se repetiram. Meus netos se
agitaram. Sua audição era tão
sensível que ouviram as batidas no
momento
em que me virei para a porta. Levei
um dedo aos lábios e fui em frente.
Temia o que estava por vir e fiquei
parada, tremendo como um pássaro
manso que se espanta à frente da
porta aberta da gaiola. Queria que a
nossa
existência modesta e tranquila
permanecesse constante, cada dia
refletindo
a mesma imagem do que o
precedera. Peguei a minha faca. O
nosso
alojamento já fora usado como um
depósito. Os ratos costumam
aparecer
em busca de grãos. Nesse momento
eles saíram correndo, driblando
meus
passos enquanto me aventurava a ver
quem nos visitaria em uma hora tão
tardia. Olhei através de uma fenda
entre as pedras.
Era Yael, esperando no escuro. Não
um soldado, nem uma besta humana,
apenas uma mulher de cabelo ruivo
comprido. Trazia uma cesta
contendo
todos os seus bens, tão poucos que
era como se não possuísse nada.
Pensei em mandá-la embora, estava
inclinada a isso, mas ela parecia
desesperada. Relutante, permiti que
entrasse. Ela sentou-se no estrado
em
que eu dormia. Não perguntei o que
estava errado; não foi preciso. Em
seu
rosto pálido, uma das bochechas
exibia a marca azul-escura de uma
contusão provocada recentemente
por alguém. Tive compaixão do seu
silêncio reservado e senti-me
atraída por ela, tanto quanto as
pombas.
Ela não se queixou, apenas
murmurou que lamentava incomodar.
Ela e o
pai tinham discutido. Eu o vira na
praça, e ele me parecera um homem
frio
e egoísta, que se julgava superior
aos que o rodeavam. Já vira homens
desse
tipo subestimarem meu marido por
ser padeiro, os mesmos que
consideravam Yoav bom demais
para viver sob nosso teto. Arrumei
um
lugar para Yael dormir, indo buscar
um cobertor que tecera e tingira de
azul do hissopo em memória da
minha filha, que amava a cor dessa
flor.
Yael viera em busca de abrigo,
embora eu tivesse sido fria com ela,
distante
desde o dia em que chegara ao
pombal. Ela tinha a idade da minha
filha.
Estava viva e Zara não, por isso
decidira contrariá-la, agredi-la,
ressentida.
Estremeci ao pensar no que fizera.
Ainda assim, ela vira algo em mim
que a
trouxera até ali. Sabia que eu
entendia a linguagem do silêncio.
Não lhe pediria para entregar seu
passado mais do que estaria
disposta a revelar-lhe o que eu
mesma fizera.
PELA MANHÃ, fomos juntas para os
pombais como se os nossos dias
sempre começassem assim. O
hematoma no rosto, no local em que
o pai a acertara,
já começara a se desvanecer sob o
bálsamo que usei para tratá-la, um
cataplasma feito de mel e figos. Não
discutimos a crueldade de seu pai,
ou o
fato de que a criança dentro dela
chegaria em breve, uma realidade
que não
podia esconder, apesar dos xales
que usava para se cobrir. Em vez
disso, falamos do calor e da
insuficiência da colheita de
amêndoas. As flores rosadas tinham
se queimado naquela estação nos
últimos dias do Tammuz,
como se alguém lhes tivesse ateado
fogo, chamuscando as bordas das
pétalas com uma camada de pó
preto. A grande maioria dos frutos
não se
formara nas árvores, murchando em
cachos estragados que explodiam em
cinzas quando puxados. A tristeza se
alastrara entre todos, e também a
apreensão. O manto da liberdade
que parecia nos proteger no início
ao chegar à fortaleza encolhia-se à
medida que as culturas começavam a
declinar. Estávamos tão isolados do
restante da humanidade que eu não
podia deixar de pensar que até os
anjos iam para longe de nós; tão
afastados que, mesmo quando
tentassem nos surpreender em um
tropeço,
a distância era grande demais para
compreenderem verdadeiramente a
nossa desgraça.
– Sempre tive medo de Av – disse
Yael do mês em que estávamos
prestes
a entrar. – Mas não este ano.
Ela parecia determinada, pronta
para combater as chamas da estação.
Av
era o mês em que seu filho entraria
no mundo. Imaginei que estivesse
enfraquecida, agora que fora expulsa
da casa do pai, mas esse não era o
caso. A sua força parecia renovada.
Encarava os que a fitavam com
curiosidade, exatamente como eu
mesma fazia quando as pessoas
sussurravam sobre a mudez dos
meus netos. Nisso éramos iguais,
marcadas pelo que fizéramos, mas
orgulhosas das nossas crianças,
mesmo
tendo sido abandonadas por Deus.
Normalmente, eu era a primeira a
chegar para cuidar das pombas, mas
nesse dia me atrasara enquanto
apresentava Yael aos meus netos.
Shirah e
as filhas já estavam trabalhando;
elas nos fitaram quando entramos
juntas,
tão intrigadas pela nossa nova
aliança quanto pela marca no rosto
de Yael.
Eu não fizera outra coisa senão me
queixar de Yael desde a sua
chegada, era
verdade. Mas uma mulher pode
mudar de opinião.
– Precisava de ajuda com os meus
netos – eu disse, indicando que
estarmos juntas era uma questão
simples, apesar da contusão que
claramente indicava a ocorrência de
algo mais. – Estou velha demais
para
brincar com eles.
Era só isso, sem a necessidade de
mais explicações. Uma coisa boa,
uma
vez que nenhuma outra se
apresentaria. As mulheres eram
feridas todos os
dias e atribuíam a causa a si
mesmas. Yael lançou-me um olhar
agradecido
e rapidamente começou a trabalhar.
Notei a expressão do escravo
quando
viu o ferimento em seu rosto. Se ele
fosse senhor da sua liberdade,
imaginei
que assumiria a necessidade de
encontrar quem fizera mal a ela. Fiz
sinal
para ele se concentrar nas suas
funções. Ele obedeceu, mas pelo
restante do
dia acompanhou cada movimento de
Yael. Era estranho vê-lo comportar-
se
como se a sua lealdade o prendesse
a uma mulher que carregava o filho
de
outro homem.
– Deixe-a em paz – disse a ele
quando ninguém podia ouvir. Ele
não
conseguia tirar os olhos dela. – Ela
já tem problemas suficientes, não
precisa dos seus.
– O que a faz pensar que tenho
problemas? – ele perguntou da
maneira
hesitante que falava a nossa língua.
Fiz uma pausa e considerei o que
dissera, vendo-o trabalhar com o
ancinho que inventara para recolher
o esterco, um guerreiro que as
pombas não mais temiam. Pensava
nele como uma esquisitice, por
causa da
sua cor clara e da sua grande
estatura, o que o obrigou a se
abaixar no pombal. Agora via que
era realmente bonito, de ombros
largos, com feições
atraentes
compleição
avantajada,
mãos
ásperas
que
eram
surpreendentemente sensíveis
quando cuidava das pombas.
– Você não é um homem? – disse,
implicando que todo homem neste
mundo tinha seus próprios
problemas.
– Fui – disse ele. – Um dia.
Eu não era tão velha que não
entendesse o que ele queria dizer.
Apesar
das cadeias da escravidão, ele
voltaria a sê-lo.
TODOS OS DIAS ouvíamos os
nossos guerreiros se prepararem
para novos ataques. Os depósitos
careciam de suprimentos, os
estômagos estavam
vazios. O verão era sempre a época
em que a nossa vida emagrecia, mas
esse ano estava pior que os
anteriores. Na refeição da noite
comi a metade
do que havia no meu prato – um
pouco de grão-de-bico, algumas
tâmaras
prensadas – para assegurar que os
meninos e Yael pudessem ter mais.
Cada
um de nós recebera uma ostraca,
uma lasca de pedra com o nosso
nome ou
inicial gravados na superfície, com a
qual tínhamos direito a um tanto de
comida, água e lenha todas as
semanas. Era um momento
preocupante para
todos. O calor do verão precipitava-
se em sua plenitude sobre nós, o ar
em
ondas crescentes tão secas que
usávamos lenços sobre a boca para
refrescar a respiração. A água das
cisternas já havia alcançado as
marcas baixas e estávamos apenas
entrando no mês do fogo.
Yael e eu não falávamos no nosso
acordo, mas ela continuou
hospedada
no nosso pequeno alojamento. Meus
netos mostraram-se tímidos com ela
a
princípio, mas um dia ela os
chamou. Os meninos hesitaram, mas
se
aproximaram quando Yael apontou
para um escorpião em um canto
escuro. Quando era pequena, ela
disse, ficava observando aquelas
criaturas
no corredor em que dormia, mas
tinha sempre o cuidado de não lhes
tocar.
Alertou Levi e Noé para que também
nunca perturbassem um escorpião,
mantendo uma distância respeitosa,
considerando não só a picada
mortal,
mas também o seu silêncio
astucioso.
Meus netos observaram, os olhos
escuros hipnotizados, visivelmente
encantados quando Yael capturou o
temível intruso em um frasco. Ela o
pinçou agilmente entre os dedos. Eu
me perguntava o que mais ela fizera
para mostrar tamanha bravura, ou se
a sua coragem, assim como a minha,
derivava do sofrimento. Quanto
menos se tem a perder, mais fácil se
torna
pegar a faca, a espada, o escorpião.
Quando ela levou a criatura mortal
para
os jardins em um terraço nas
proximidades, os meninos a
seguiram em
seus calcanhares, emocionados com
a ousadia. Ao vê-los tão alegres e
cheios de interesse, senti minha
garganta se apertar e pensei que
poderia
perder a voz também. Marcados por
sorrisos e uma profunda
concentração,
eles não pareciam diferentes de
quaisquer outras crianças; ninguém
os
tomaria por dois meninos que
haviam perdido a fala na teia de um
demônio. Eles ficaram fascinados,
agachando-se sobre os joelhos em
um
canteiro de rabanetes sírios para
assistir, boquiabertos, a como Yael
libertava o escorpião em um canto
escuro, entre maços de cebolas.
– O mundo é muitas coisas para
muitas criaturas – ela disse às
crianças,
enquanto todos observávamos o
jardim murado, que certamente era
uma
floresta para a pequena criatura que
fora arrancada da sua casa. O
escorpião desaparecera da vista. –
Somos considerados gigantes por
alguns
e formigas a serem pisadas por
outros.
AS PESSOAS sussurravam sobre
Yael, perguntando quem seria o pai
do seu filho e especulando sobre a
noite em que o assassino Bar
Elhanan expulsara
a própria filha de casa. Os meus
netos, porém, já haviam começado a
adorá-
la. Embora mantivesse a minha
distância, acostumara-me a ela
também. Se
as pessoas falassem mal dela na
minha presença, eu as encarava e
ficava por isso. Embora preferisse
ser discreta, de certo modo sentia-
me
confortada de ter Yael em casa,
ouvi-la respirar com facilidade
enquanto dormia, como a minha filha
faria se ainda estivesse conosco.
A bem da verdade, era grata pela
ajuda nas tarefas domésticas.
Mesmo
em seu estado, avantajada com a
criança prestes a nascer, Yael estava
longe
de ser preguiçosa. Cozinhava as
refeições, agachando-se sobre o
poço de fogo para fritar os alimentos
em uma grelha que se encaixava
sobre o anel
de pedras. Ia aos depósitos para
pegar nossa porção diária de feijão
e grãos,
e providenciava para que não
faltasse lenha, tudo isso em
pagamento por
aceitá-la em minha casa. Mas as
histórias que ela contava eram o
único pagamento de que
precisávamos. Os olhos dos meninos
brilhavam quando
a ouviam na hora de dormir,
hipnotizados. Em todas as façanhas
envolvendo escorpiões, o silêncio
era um bem e um presente, não uma
falha, mas uma virtude. O escorpião
podia fazer o que outros não
conseguiam: podia ver no escuro,
ouvir uma mosca voando no outro
lado da montanha, sentir o perigo
enquanto o restante do mundo
dormia.
– Foi a sua mãe que lhe contou essas
histórias? – perguntei uma noite,
enquanto Yael e eu íamos juntas
para a praça. Começáramos a
trabalhar nos teares com
regularidade. Continuávamos
afastadas das outras
mulheres, mas era um prazer tecer e
as nossas roupas estavam rasgadas,
tínhamos necessidade de xales e
túnicas. Quando nos ocupávamos
dessa
forma, era possível esquecer a
poeira que subia em nuvens ao nosso
redor
e nos distanciar da fome. Podíamos
não ter mais nada, mas pelo menos
tínhamos a lã das ovelhas e o
trabalho de fiação e tecelagem.
– Não tive mãe. – Yael manteve os
olhos baixos.
Chegamos aos teares, onde nos
instalamos, levando as nossas
medidas
de lã cardada e tingida. Yael
trabalhava em um desenho muito
elogiado. Até
mesmo as fofoqueiras que
sussurravam a seu respeito estavam
impressionadas. Os desenhos
incluíam uma disposição intrincada
de fios
coloridos, formando uma linha
contínua de blocos quadrados
multicoloridos. Notei que era o
mesmo desenho do tecido usado
pelo
escravo.
– Todo ser humano tem mãe – insisti
enquanto trabalhávamos.
– Tem certeza de que sou humana? –
Yael disse, o queixo inclinado,
provocando-me. Nunca vira uma
mulher com o cabelo tão vermelho
ou com
tão pouco medo como ela, disposta a
pegar um escorpião entre os dedos.
Podiam sussurrar que estava
possuída por um demônio e juro que
ela era
diferente de outras filhas e esposas.
Mas a vira na noite em que o pai a
pusera para fora de casa, quando se
encolhera em um canto como
qualquer
outra mulher espancada. Notara a
expressão em seu rosto quando ela
estava ao lado do Homem do Norte.
Ela era humana.
QUANDO ELES achavam que
estavam sozinhos, eu ouvia o que
não deveria ser ouvido da parte
deles. Yael tinha a sorte de eu ser
acostumada ao silêncio e,
portanto, a segurar a minha língua.
Uma fofoca teria sido implacável,
propagando rapidamente o encontro
íntimo com que me deparei. Um
falcão vinha circulando o pombal
maior por vários dias, com a
intenção de
pegar nossas pombas para seu
jantar. Montamos paus amarrados
com
cordas que pareciam brinquedos de
criança; quando a brisa soprava, as
varas giravam e assustavam os
falcões. Mas um falcão era
destemido; não
se deixaria intimidar. Parecia
subnutrido e decidido a conseguir a
sua ceia.
A fome no deserto assolava todos ao
mesmo tempo.
Quando o falcão apareceu no
parapeito da janela, Yael encontrou
alguns
grãos e estendeu a mão para ele.
Fiquei chocada ao ver a criatura
comer da
sua mão, como se fosse uma pomba.
Não fui a única a tomar
conhecimento
disso. O Homem do Norte chegara
ao seu lado. Ouvi-o dizer que em
seu país
os caçadores treinavam os falcões
para atacar as presas e trazer de
volta perdizes e pombas. Seus
afiados bicos amarelos eram
enrolados com fios de couro, presos
um tanto fechados para que não
pudessem devorar suas
presas; tinham de aprender a esperar
pacientemente quando as traziam de
volta, passando fome até que o
caçador lhes atirasse um pedaço de
carne.
Geralmente eram necessários meses
para que se ganhasse a confiança
de um falcão. O escravo
surpreendera-se com a facilidade
com que Yael atraíra aquele para si.
Ele disse que ela devia possuir
magia. Então caiu de
joelhos e inclinou a cabeça, meio na
brincadeira, declarando que ela o
enfeitiçara também. Yael riu das
suas palavras – lembrei-me porque
não a
vira fazer isso antes. Foi um som
encantador, surpreendente. Ela disse
que
as mulheres com cabelo vermelho
tinham o dom de domar as criaturas
selvagens. Considerando que o
escravo viera de um país onde
muitas das mulheres tinham essa
aparência, ele devia saber que isso
era verdade. Ele
se levantou, mas inclinando um
pouco o corpo alto para ficar à
altura dela.
Foi então que o ouvi dizer:
– Você não se parece com elas,
Yael. Você não se parece com
ninguém.
Não tive certeza se com essas
palavras ele queria fazer um elogio
ou um
insulto, mas depois pegou a mão
dela e a beijou no pulso, o lugar em
que o
que alguém precisa e o que ela
deseja se cruzam e tornam-se uma
coisa só.
YAEL NÃO era minha filha, mas
morava na minha casa, e isso me
levava a me preocupar. Sabia que
uma mulher no fim da gestação
poderia procurar
consolo em lugares curiosos. Ter
uma criança poderia causar
confusão, e a
bondade em um mundo cruel poderia
induzir Yael a esquecer-se de que o
Homem do Norte não era um de nós.
No cobertor em que dormia à noite,
ela se mexia e revirava,
desconfortável com o calor. Pela
manhã ela remoía
os pensamentos, os olhos cheios de
sono. Perguntava-me se ela sonhava
com o seu bebê que ia nascer, como
eu fizera havia muito tempo, se já
vira
o rosto do seu filho e talvez tivesse
escolhido um nome, embora fosse
melhor não fazê-lo. Atribuir um
nome prematuramente alertava os
demônios de que uma criança estava
prestes a vir ao mundo. Divulgar o
nome de uma criança poderia fazer o
recém-nascido ser mais facilmente
atraído para a escuridão. Eu o
fizera, tentando o destino. Talvez os
demônios da noite tivessem seguido
a minha filha desde que a chamara
Manhã.
NÃO RECLAMÁVAMOS do nosso
trabalho naquele período brutal do
ano, pois o pombal era um lugar
ameno, as paredes de gesso
proporcionavam-nos
algum alívio. Ficávamos abrigadas
da febre implacável da estação.
Abaixo de nós o vale chiava sob
uma névoa rosada. O mundo além
dos nossos
portões reluzia e usávamos nossos
lenços sobre a cabeça puxados para
baixo a fim de fazer sombra aos
nossos olhos. Não havia um único
broto verde para ser visto, até as
folhas audazes dos espinheiros
tinham
encolhido como se fossem feitas de
pergaminho. Podíamos ouvir os
chacais
lamentando-se à noite e
estremecíamos com o som. Enormes
bandos de
pássaros voavam acima de nós,
abandonando a nossa terra estéril em
busca de água e alimento em lugares
distantes, voando para as montanhas
ao norte ou a leste, para Moabe,
onde se dizia que os campos eram
sempre
verdes.
Todos os dias o Homem do Norte
deixava uma fileira de grãos no
parapeito da janela para o falcão.
Quando ele falava em sua língua de
grunhidos sobrenaturais, a criatura
parecia entender, com um brilho nos
olhos amarelos. O pássaro tinha a
cabeça vermelha e por isso o
escravo o
chamava Odeum, rubi, que era
também o seu nome para Yael. Yael
sorriu
quando ele o fez, sabendo que a
provocava. Também brincando, ela
disse que só um idiota manteria um
falcão tão perto de um pombal. Um
dia
poderíamos descobrir que o falcão
abatera todas as nossas protegidas.
Ela
alimentara a ave de rapina com
alguns grãos por piedade, mas o
escravo fora longe demais, fazendo
de uma criatura selvagem um animal
de
estimação. Será que não entendia o
erro? Ali estava uma criatura em que
ninguém jamais poderia confiar.
– Você está errada sobre ele – ouvi
o Homem do Norte dizer. – Ele está
atento ao seu chamado.
– Um falcão é sempre um falcão –
informei a ambos, incapaz de
segurar
a língua por mais tempo.
Depois da minha observação, eles
se apressaram a ficar em silêncio e
voltaram às suas tarefas imediatas.
Como poderiam discutir comigo?
Sabiam que o que dizia era verdade.
Não se pode mudar a natureza de um
falcão mais do que se pode ensinar
uma pomba a matar. E ainda assim,
no
fim do dia, quando vi o escravo e
Yael levarem os cestos de estrume
para os
campos a fim de alimentar a terra
violada e golpeada pelo calor, o
falcão deslizou acima deles como se
fosse um cachorro, manso e
subserviente.
Pensei que talvez estivesse errada,
julgando muito depressa a essência
de
um ser pela sua aparência, ainda
sem compreender plenamente que,
no
mundo que Deus nos dera, todas as
coisas mudam.
POR ORA, a única constante era que
os dias se precipitavam
pesadamente, todos com o mesmo
calor hipnótico e implacável. As
ondas de calor
levantavam-se em cortinas
brilhantes de luz. Formavam-se filas
de
mulheres exaustas e perplexas nos
depósitos, cada uma delas
esperando o
que cabia a sua família em água e
alimentos. Eu me sentia tão
imobilizada
dentro do mês de Av como
permanecia dentro dos meus sonhos
quando acordava lentamente com o
cheiro de fermento do pão em
crescimento na
minha vida antiga, naquelas manhãs
preciosas em que o campo era
verdejante e o aroma dos ciprestes
pairava no ar. Ficava presa no
tempo então, como estava mais uma
vez, mas um quadro era um baú de
tesouro, o
outro, uma prisão.
Tínhamos muito pouco ali na
montanha, mas pelo menos
estávamos
seguros. No mundo lá fora a
violência contra o nosso povo só
tinha piorado.
Havia rumores de que os mortos se
amontoavam nas principais estradas
de
toda a Judeia, que o rio Jordão
estava tão cheio de corpos que era
possível
caminhar sobre as costas dos mortos
como se formassem uma trilha de
pedras. Chegou-nos a notícia de que
outro assentamento essênio fora
dizimado. Eu ouvira falar do seu
povo, aqueles que se chamavam os
Filhos
da Luz e que tinham ocupado o
assentamento conhecido como
Sechacha.
Um dia, um grupo pequeno e pobre
apareceu no nosso vale. Vimos a
poeira
subindo à medida que se
aproximavam. As suas vestes de
linho branco
rebrilhavam enquanto passavam
pelas rochas. Os nossos guerreiros
desceram pelo caminho da serpente
para atender a esses visitantes e
trazê-
los até nós. Sabia-se que os essênios
abominavam a guerra e nós éramos
uma fortaleza. Ainda assim, como o
restante de nós, quando não tinham
mais opções e nenhum lugar para ir,
chegavam a esta montanha.
Eram sete homens e três mulheres,
com quatro filhos. Os homens
carregavam os pertences em pacotes
amarrados às costas com cordas
grossas de linho trançado. As
mulheres seguiam atrás, vestidas
com
simplicidade, descalças, sem
adornos. Eram as mulheres que
portavam os
recipientes de pele de cabra com
água e queijo, e conduziam o
rebanho de
cabras magras amarradas com
cordões de couro formando uma
ribqâh, de
modo que a distância os animais
pareciam ser uma criatura com cinco
cabeças. Vinham também dois
burros pretos carregando vasos altos
de
cerâmica; dentro deles seguiam os
rolos de pergaminho contendo os
ensinamentos dos essênios. Os
homens eram cultos, com aspecto de
santos,
especialmente um mais idoso, que
era, talvez, o mais antigo que já vira.
Eles
estavam viajando desde que os
romanos destruíram o seu
assentamento,
vivendo em cavernas, deixando para
trás os seus escritos sempre que
possível, para garantir que as suas
crenças não se perdessem caso
viessem
a ser abatidos.
Quando os visitantes entraram pelo
Portão da Serpente, uma multidão já
estava reunida. Os sobreviventes
pareciam atordoados, alarmados
com as
instalações fortificadas de Massada.
Olhavam com rostos sombrios para
os
parapeitos que os nossos guerreiros
haviam preparado, as pilhas de
armaduras, as lanças afiadas com
pontas de bronze mantidas ao lado
da sinagoga, para que os homens
sábios pudessem abençoá-las. Os
essênios
tinham se deparado com uma
província feita para a guerra e só
para
guerra, onde as armas eram
estocadas do mesmo modo que as
outras
aldeias armazenavam azeite e vinho,
onde cada pedra fora arredondada
com um cinzel, pronta para ser usada
como arma caso a batalha
sobreviesse.
Olhamos um para o outro na
presença daquelas pessoas gentis,
cientes
de que o sangue e a vingança
circulavam entre nós como se
fôssemos
bárbaros. Era a guerra que nos
despertava dos nossos sonhos pela
manhã e
nos embalava para um sono inquieto
à noite. Alguns entre nós baixaram
os
olhos, atordoados com o que
havíamos nos tornado. Outros
olharam para o
grupo que consideraram de tolos,
sem vontade de lutar pelo Sião.
O mais velho dos essênios, cujo
povo o chamava Abba como uma
expressão de respeito, era carregado
pelos seus seguidores. Ele era fraco
de
corpo, mas forte de espírito. Seu
povo o levantou acima dos ombros
para que ele pudesse se dirigir a
todos nós.
– Todos pertencemos ao nosso
Senhor. Tudo o que existe hoje e
sempre
existirá originou-se de Deus. Antes
que as coisas existissem, Ele
ordenou a
sua concepção. Seu plano glorioso
cumpre o nosso destino, um destino
que
é impossível mudar. Viemos porque
devíamos estar aqui, mas somos tão
diferentes de vocês como a noite do
dia.
Fiquei em dúvida se o nosso povo
aceitaria a proclamação de Abba, ou
se a vergonha e a fúria tornariam
isso impossível. Formou-se tensão
no ar,
revelada no grande silêncio que
ecoou no vazio; em seguida Yael
correu para uma das mulheres do
grupo e a abraçou. A sua alegria ao
ver a outra
quebrou o silêncio. Soubemos que
aquela era a sua amiga Tamar, que
tivera
quatro filhos e agora tinha apenas
um – os outros, juntamente com seu
marido, haviam sido mortos no
ataque ao assentamento pela legião.
Agora,
tudo o que restara àquela mulher
essênia era um menino de dez anos
chamado Yehuda, a quem ela se
agarrava como se só ele a prendesse
a essa
terra que pisava.
Ben Ya’ir em pessoa permitiu que
os essênios ficassem. Ele chegou
para
falar com o líder, aquele homem
culto que era tanto pai como
sacerdote, que usava uma roupa de
linho branco e estava descalço, cujo
rosto estava
descoberto, embora fosse muito
velho. Eles se sentaram juntos sob
uma
oliveira, falando durante horas.
Depois, então, sentaram-se com
Menachem
ben Arrat, o nosso grande sacerdote.
No fim desse período, circulou uma
mensagem – ninguém deveria
perturbar o grupo de recém-
chegados, não
importava quão diferentes pudessem
parecer. Seus costumes eram
próprios deles, permitidos dentro
das nossas muralhas enquanto
permanecessem entre nós.
Todos os catorze essênios queriam
viver juntos em uma casa, como era
a
sua prática, pois o que pertencia a
um pertencia a todos. Foi-lhes
concedido
um pequeno celeiro de pedra no
outro lado do pomar, que no passado
fora
usado como abrigo de cabras prestes
a ter filhotes. Faziam as refeições
juntos, compartilhando o pouco que
tinham sob a mesma árvore onde seu
líder e o nosso haviam conversado e
chegado a um acordo. Banhavam-se
em água fria antes de cada refeição e
faziam as orações fervorosamente
antes de qualquer alimento lhes
passar pelos lábios. Três vezes por
dia – ao
amanhecer, ao meio-dia e de novo
após as três primeiras estrelas
aparecerem – podia-se vê-los nas
suas orações, de frente para
Jerusalém.
Os seis homens que eram fiéis
discípulos de Abba montaram mesas
compridas formadas de tábuas de
madeira para abrir os seus
pergaminhos,
os documentos armazenados nos
vasos de cerâmica que tinham sido
trazidos pelo deserto no lombo dos
seus burros desajeitados. Eles
faziam suas anotações com uma tinta
retirada do óleo de noz e da goma da
árvore
de terebintina.
Yael e eu lhes levamos azeitonas,
queijo e uma porção de trigo.
Nahara
acompanhou-nos, levando garrafas
de água e azeite que a mãe enviara.
Um
jovem essênio, muitas vezes ao lado
de Abba e claramente o seu favorito,
veio ajudar Nahara a carregar a
água. Para que ele o fizesse, Nahara
precisou colocar os frascos no chão,
a fim de que o jovem não se
arriscasse
a tomá-los da sua mão; tudo o que
ela tocara poderia ser considerado
tamé.
Ele murmurou uma prece enquanto
levava os frascos, pois entre seu
povo ele tinha o poder da bênção,
embora não contasse mais que
dezessete
anos de idade.
As mulheres essênias mostraram-se
gratas quando receberam nossos
presentes, ainda que o reflexo da
morte brilhasse em seus olhos.
Nahara pôs-se de lado com o jovem
essênio; ela era muito jovem e pura
para ouvir
as brutalidades narradas pelos
essênios. Mas Yael e eu nos
sentamos com
as mulheres, que nos contaram com
vozes indiferentes como seus filhos
tinham sido assassinados. Elas não
gritaram nem desmaiaram de dor,
pois
acreditavam que os filhos
ressuscitariam no Fim dos Dias.
Quando esse
momento chegasse, as mães
abraçariam outra vez seus filhos e
filhas, e os
maridos e esposas estariam
novamente juntos.
Tamar estava mais quieta que as
outras mulheres, o rosto contraído
de
tristeza, dolorosamente pálida.
Quando íamos sair, ela pousou a
mão no braço de Yael, puxando-a
para junto de si.
– Não vou perder este aqui – ouvi-a
dizer.
Seu filho, Yehuda, estava deitado na
grama, olhando para cima,
enquanto as primeiras estrelas
começaram a aparecer no céu
escuro. Os
homens essênios tinham se reunido
no campo e podíamos ouvi-los
cantando em tons profundos e
sonoros. O calor era tanto que cada
movimento do ar era como uma
língua de fogo, cada estrela uma
lanterna
na noite.
– Prometa que me ajudará, como a
ajudei – sussurrou Tamar. Tudo
naquela mulher essênia parecia
carregado de dor; até mesmo o seu
tom de
voz parecia um encantamento que
brotava da sua aflição. Ela inclinou
a cabeça para indicar a barriga
volumosa de Yael. O bebê viria a
qualquer momento. – Eu soube,
quando procurou um remédio para a
febre, que era
um homem que queria salvar. Pude
vê-lo escrito em você.
Yael olhou na minha direção. Eu
rapidamente desviei o olhar, para
não
parecer que ouvira a conversa.
Quando vi Yael abraçar a amiga,
soube que a
promessa fora dada. Enquanto
caminhávamos de volta, não
perguntei por
que atenderia ao desejo fervoroso
daquela mulher que pertencia a um
grupo tão diferentes de nós, que
claramente subestimava nossos
costumes.
Não questionei sobre a vida de que
homem ela tentara proteger ou por
que
se dispusera a atravessar o deserto
por ele, não importando o sacrifício.
Simplesmente acrescentei essas
informações à minha lista, pronta a
fornecê-las caso Yael e eu
discordássemos e eu precisasse
provar que ela era, de fato, humana.
*
QUANDO O MÊS de Av caiu sobre
nós com toda a sua força e a lua
tornou-se tão vermelha quanto o sol,
Abba enviou o jovem essênio aos
pombais para
trabalhar conosco, em
agradecimento pelas rações que
leváramos. Porque
o seu povo era muito rigoroso, e aos
homens não era permitido tocar nas
mulheres fora da própria família,
esse jovem, chamado Malaquias ben
Aaron, muitas vezes trabalhava
sozinho no pombal pequeno. No
entanto,
em pouco tempo ele fez amizade
com Nahara e não demorou muito
para
que os dois se envolvessem em
longas conversas. Malaquias ben
Aaron era
apenas alguns anos mais velho que
Nahara. Era o mais forte entre os
seus
parentes e muito bem-conceituado.
Por isso, tinham-lhe grande respeito
e
ele parecia considerar-se um homem
de honra. Nós, que trabalhávamos ao
lado de Nahara, ainda a víamos
como uma criança; talvez porque
apenas desejássemos vê-la como tal.
Para nossa surpresa, víamos essas
duas
pessoas, que tinham tão pouco em
comum, muitas vezes sentadas juntas
contra a muralha durante o intervalo
do meio-dia. Malaquias falava e
Nahara escutava, embevecida, como
se cada história que ele contasse
fosse
uma iluminação. Algumas das suas
palavras chegavam até nós. Ele
falava sobre o Fim dos Dias e como
o seu povo estava se preparando,
confessando
seus pecados, seguindo o caminho
da luz, oferecendo a vida na terra a
Adonai. Seu povo não lutaria contra
os romanos porque esse mundo em
que vivíamos não era o fim para
eles, pois poderiam ressuscitar após
a morte e brilhar com a graça de
Deus.
Desde a minha chegada à montanha,
conhecia Nahara como uma menina
séria, aparentando ser mais velha
que a sua idade, pelo modo que
encarava
o aprendizado e a responsabilidade.
A mãe ensinara-lhe a ler aramaico e
hebraico. Enquanto a instruía,
Malaquias certamente
impressionava-se
com ela – e por uma boa razão: ela
não só era muito inteligente, mas
também linda e pura. Em pouco
tempo os dois começaram a chegar
mais
cedo ao pombal pequeno para que
suas conversas pudessem começar
assim que Malaquias terminasse
suas preces matinais. Eles
cochichavam ao
romper da aurora e essas conversas
murmuradas fortaleciam a ligação
que
os aproximava.
Assim como os demais integrantes
da sua casa, Malaquias usava apenas
o branco e mantinha o cabelo
trançado. Ele evitava as sandálias e
andava de
pés descalços sobre a areia, pois
seu povo acreditava que deviam
andar no
céu com os pés descalços e esperar
lá na névoa até que o mundo
ressuscitasse depois do Fim dos
Dias. Malaquias era tranquilo,
trabalhador,
um estudioso que não tinha medo de
sujar as mãos. Fora enviado ao
pombal porque Abba acreditava que
o trabalho duro e o louvor a Deus
passavam de mão em mão. E
Malaquias, apesar de jovem,
escrevia nos
rolos de pergaminho com os mais
velhos; dizia-se que sua letra era tão
perfeita que os anjos vinham
observar sua escrita; ele era tão
virtuoso que
a tinta de óleo de noz que usava se
transformava em sangue e parecia
vermelha sobre a página. Já se
decidira que Malaquias ocuparia o
lugar de
Abba quando chegasse a hora, e os
dois muitas vezes sentavam-se com
as
cabeças próximas, mergulhados em
conversas profundas e orações.
Apesar das virtudes de Malaquias,
depois de curto período Shirah
começou a parecer descontente com
nosso novo ajudante. Apesar de ter
sido muitas vezes enviado para o
pombal mais distante, onde havia
espaço
apenas para uma pessoa, Shirah
descobrira que Nahara podia ser
vista
trabalhando ao lado dele nesse
pequeno espaço. Não podíamos
deixar de
perguntar se seus ombros se
roçavam ou se suas mãos se
tocavam. Quando
ele orava ao meio-dia, encontrando
um lugar santo ao lado da oliveira
retorcida, beijando as franjas do seu
xale de oração e, em seguida,
oferecendo o seu beijo a Deus, será
que rezava para purificar a cabeça
de
pensamentos e desejos terrenos?
Shirah observava-o de perto, os
olhos
semicerrados, o semblante
perpassado por uma sombra.
Em um intervalo do meio-dia,
quando Nahara voltou para casa a
fim de
buscar a refeição de lentilhas e
azeitonas, Shirah dispensou
Malaquias. O
restante de nós afastou-se para
assistir; em muitos aspectos, aqueles
eram
os pombais de Shirah; ela estava ali
havia mais tempo e recorríamos a
ela
para tudo.
– Pode ir embora agora – ela disse
ao essênio. – Não há nenhuma razão
para ficar por este dia.
Três pombas perfeitas haviam sido
escolhidas para serem levadas à
sinagoga para o jantar do sacerdote
e eu estava arrancando as suas
penas.
Abaixei a cabeça, mas ouvi a
conversa.
– Meus esforços não são bons o
bastante? – Malaquias perguntou,
confuso. Entre o seu povo ele não
era contestado e, agora, uma mulher
o demitia. Ele ergueu os olhos para
ela, um lampejo de desconfiança em
seu
olhar.
– Não há nada de errado com o seu
trabalho – ouvi Shirah responder. –
Você só não é necessário aqui.
Shirah deve ter notado a minha
expressão, pois eu estava confusa
também. Malaquias aliviara a nossa
carga de trabalho e eu não via
necessidade de humilhá-lo,
mandando-o embora. Os essênios
nos enviaram
seu melhor homem, mas não na
opinião de Shirah. Quando ficamos
sozinhas, ela me confidenciou:
– Se ela fosse sua filha, você faria o
mesmo.
Ela temia a atração entre o essênio e
Nahara, e entendi por que não o
queria para a filha. Malaquias era
piedoso demais para ver algo além
de Deus e si mesmo, isso era bem
verdade: a mulher que escolhesse
não
caminharia ao seu lado, mas atrás
dele, com a cabeça baixa.
Quando Nahara voltou com a nossa
refeição, ficou surpresa ao descobrir
que Malaquias não estava, o rosto
enrubescido enquanto olhava ao
redor em busca de sinais dele.
Depois olhou para a mãe com
amargura e a ouvi
dizer para Aziza:
– Ela o dispensou para me
contrariar.
– Estou certa de que ela tem suas
razões – respondeu Aziza, o que era
verdade.
– Ela é cruel – comentou Nahara, a
voz aguda. – Essa é a razão. Só se
dedica ao que ela quer. Você mais
do que ninguém deveria saber disso.
Você é sensata para guardar seus
segredos.
Aziza baixou os olhos.
– Ela é a nossa mãe.
Nahara estava sombria.
– Mas que não se preocupa com a
nossa felicidade, como você bem
sabe.
Pensei que Nahara estivesse
enganada sobre a intenção da mãe.
Malaquias não era adequado para
ela; ele era conhecido por orar até o
primeiro brilho das estrelas da
noite. Aziza parecia concordar.
– Observe a maneira que vivem –
disse ela à irmã quando Nahara se
queixara a ela. Fazia sentido que
uma mãe não quisesse para sua filha
o destino de uma mulher essênia,
dedicado ao serviço, à pobreza e ao
sacrifício.
No entanto, apesar de ter sido
despedido do pombal, Malaquias
não se
afastou. Há momentos em que as
pessoas ao nosso lado veem o nosso
destino, mas agimos como cegos,
enveredando por uma sucessão de
erros.
Foi o que sucedeu à jovem filha de
Shirah. Todas víamos o seu futuro,
escolhendo um caminho em vez de
outro, mas ela mesma não se via.
Emburrada, escapuliu pela pesada
porta de madeira sem ter concluído
o
trabalho. Shirah a seguiu, mas era
tarde. Em um instante Nahara pôs-se
fora da vista. Foi como se tivesse
sido arrancada da terra e só restasse
sua
sombra. Talvez já tivesse seguido
Malaquias para o celeiro de cabras
dos essênios, tirando as sandálias
para andar descalça entre as
mulheres. Ela fora uma menina
obediente, mas agora o seu dever
parecia estar além do
domínio de sua mãe. Permaneci na
porta ao lado de Shirah. Nesse
momento, ela não parecia uma
dedicada praticante do keshaphim,
mas apenas uma mãe que facilmente
se magoaria com as ações
imprudentes de
uma filha.
– Ela vai voltar – tentava dar-lhe
alguma esperança.
Shirah ficou olhando para a praça
vazia. Balançou a cabeça.
Testemunhara o amor mais de mil
vezes antes. Tinha encantos prontos
para induzi-lo e amuletos para cortar
seus laços; recitava feitiços para
unir
amantes e outros para separá-los.
Era suficientemente experiente nos
caminhos do amor para reconhecer a
sua trama, mesmo à luz fraca do
pombal.
– Infelizmente você está errada – ela
me disse, a voz suave entrecortada
pela mágoa. – Ela já se foi. E se ele
soubesse quem ela realmente é
nunca a
quereria.
Senti um resfriamento repentino no
ar borbulhante. Pensei que era isso
o que queríamos, pois diariamente
participávamos de reuniões em que
rezávamos por chuva. Agora uma
leve chuva começara, uma fortuna
inesperada naquele período árido do
ano. Mas a chuva era estranha,
caindo
em faixas desoladas de branco do
céu cor de ardósia. Lambi os lábios
e percebi que era carregada de sal.
Era uma chuva do Mar de Sal, um
fenômeno estranho que às vezes
acontecia quando o vento crescia,
levando
uma nuvem de poeira. As rajadas
furiosas e quentes também
carregavam
água e sal, lançando seus
componentes sobre nós. Era um mau
presságio, pois o que parecia ser
chuva era apenas água do mar. Uma
chuva de sal envenenaria pomares e
contaminaria as cisternas. Os
homens com
ferimentos chorariam naquela noite
de dor, as mulheres não poderiam
acender fogueiras e cozinhar a
refeição da família à noite. Os
cabreiros encontrariam o leite fresco
a que chamávamos halab
transformado em coalhada salgada
nos baldes da ordenha.
Seria preferível não ter chuva
nenhuma a ter essa.
Shirah começara a recitar um
encantamento quando nos
recolhemos
para dentro, para fugir do aguaceiro.
Ela surpreendeu todas nós ao pegar
uma das pombas e puxar a faca que
usava nas refeições. Como se
estivesse
possuída, fez um corte na garganta
da pomba e virou o pássaro para que
o
sangue escorresse para o chão de
pedra. Matar uma pomba era um
crime
punível por lei. Certamente ainda
mais se executado para os usos mais
obscuros do keshaphim.
Aziza virou de costas ao entender a
pretensão da mãe, interpor-se entre
Nahara e o essênio que ela
escolhera. O Homem do Norte
desviou os olhos
também, para não testemunhar um
ato que lhe pareceu íntimo demais.
Quanto a Yael, só ela ficou
extasiada, atraída pelas penas
caindo, o sangue
no chão. Notei que se apressara a
murmurar as palavras do canto com
Shirah, como se esperasse que sua
voz desse mais força ao feitiço.
Enquanto elas cantavam, a chuva do
Mar de Sal respingou através da
porta e lavou o sangue. Com o
tempo, passei a acreditar que foi
isso que dissolveu o encantamento,
tornando-o inútil antes mesmo de ser
lançado.
Aziza e o escravo tentaram acalmar
as pombas, que se debatiam contra o
teto, assustadas com a chuva que
caía como pedras chacoalhando
acima de
nós, e ainda mais perturbadas com a
morte repentina de uma da sua
espécie. Observei a expressão grave
de Shirah quando tentou sem sucesso
varrer o sal, e meu coração sofreu
por ela. Até mesmo a bruxa mais
temida
entre as pessoas, que conhecia a
magia melhor que os homens mais
cultos,
era incapaz de deter uma menina
totalmente determinada a seguir seu
caminho.
Corri para casa a fim de ver meus
netos, em passos largos para evitar
as
pilhas traiçoeiras de sal que se
acumulavam sobre a montanha com
aquela
chuva maligna. No outro lado do
campo, avistei Nahara caminhando
com o
rapaz essênio. As mulheres essênias
a haviam presenteado com um dos
seus finos xales brancos, agora
envolto em seu cabelo. Vendo-a ao
lado de
Malaquias, protegida por uma peça
do mais puro linho da terra, soube
antes mesmo que a própria Nahara.
Ela se tornara um deles.
ENQUANTO A LUA vermelha de Av
pulsava, uma nova vida amadurecia,
expulsando a água de dentro de Yael
com o calor da sua chegada
iminente.
Ela estava ajoelhada junto à fogueira
em que cozinhávamos as nossas
refeições quando de repente suas
saias ficaram encharcadas. Vi o
terror fulgurar nos seus olhos
arregalados. Sem perda de tempo,
mandei meus
netos chamarem Shirah, assim ela
saberia que chegara a hora de Yael.
O
filho dela, Adir, poderia vigiar os
meninos menores enquanto nos
reuníamos para receber o recém-
nascido.
Acompanhei Yael em direção aos
depósitos, parando quando ela
precisava se recuperar e respirar.
Seu pai não a chamara uma única
vez durante os últimos dias da
gravidez, quando ela permaneceu
confinada no
nosso alojamento, pesada demais e
indisposta para se mover. Mas o
irmão
a visitara. Depois de murmurar um
pedido de desculpas por perturbar a
nossa casa, fora ajoelhar-se ao lado
de Yael, ainda com sua armadura
prateada, de modo que ele brilhava
à meia-luz. Eu os ouvira comentar
sobre Jerusalém, às vezes caindo na
gargalhada quando se lembravam da
casa em que haviam crescido, do
flamboyant que havia no mercado.
Ele apareceu muitas vezes depois
dessa, sentindo-se à vontade na
nossa casa,
permitindo que os meus netos
subissem em cima dele e brincassem
de
guerreiro. Yael muitas vezes
caçoava do irmão em relação a
Aziza,
chamando-o de cordeiro que seguia
cegamente atrás da amada.
– Ela lhe dá feno para comer? –
Yael perguntava e ria. – Será que o
tranca no cercado à noite?
– Está querendo me irritar, Yaya? –
Amram dizia com um sorriso,
chamando-a pelo nome de infância.
Yael mostrou-lhe um tecido azul, um
pedaço que sobrara do lenço que
ele lhe dera. Ela acenou com o
presente para lembrar-lhe que o
guardava
por trazer sorte, enfiado embaixo do
cobertor em que dormia. Eu o vira lá
uma vez. Ela não mencionara,
porém, que também guardava ali a
amostra
de tecido do vestuário do escravo.
Durante as visitas de Amram, eles
não conversavam sobre a vinda do
bebê, mas o guerreiro uma vez
trouxe um chocalho que esculpira
com
caroços de ameixa em seu interior,
que estalavam quando o brinquedo
era
agitado. Yael pareceu contente,
aliviada pelo fato de o irmão ter
aceitado a
sua situação, não importando quem
fosse o pai do seu filho.
– Eu me culpo – ouvi-o dizer a Yael
um dia. Imaginei então que o pai
fora
um companheiro dele. – Nunca deixe
algo precioso nas mãos de outro.
– O que estou para trazer ao mundo
é precioso – Yael assegurou. – Se
você é o culpado, então é o único a
quem ofereço a minha gratidão.
AGORA QUE se aproximava o
momento da chegada do bebê,
caminhávamos à
luz do anoitecer em direção ao
armazém abandonado, onde nos
encontraríamos com Shirah. Eu
seguia com os braços passados ao
redor de
Yael para apoiá-la, permitindo que
se encostasse em mim quando as
dores
a castigavam. Fizemos uma pausa na
escada, onde ela se dobrou, arfando,
espantada com a força da criança em
seu interior.
– Isso é o que ela fará a você pelo
resto da vida, portanto esteja
preparada – avisei.
Yael tentou sorrir, mas as dores
eram fortes demais para permitir.
Ela começou a divagar em voz baixa
sobre um leão que perdera no
deserto, um
homem a quem amara, o preço que
devia pagar pelos seus pecados. Fiz
o melhor que pude para acalmá-la.
Seu rosto estava vermelho pelo
desconforto e pelo calor.
– Eu lhe retribuí – ela murmurou. –
Não é o bastante?
Eu não fazia ideia se ela falava
sobre o homem, o animal ou a
criança que
estava para chegar. Ela parecia
presa em um delírio. Senti-me
aliviada ao ver Shirah apressar-se
através do campo. Ela chamara
Nahara, que
concordara em acompanhá-la apesar
de ter-se afastado. Nahara andava
descalça, o xale branco de linho
diáfano preso sobre a cabeça. Tinha
o cabelo trançado em uma trança
única, ao estilo dos essênios.
Nahara e Shirah não se falaram
enquanto caminharam lado a lado, os
rostos
sombrios e sérios, suas diferenças
evidentes na distância que
mantinham entre si. Quando nos
alcançaram na escada, Shirah
rapidamente apalpou a
barriga de Yael. Assentiu
vivamente, satisfeita, em seguida
apressou-nos a
entrar para fazermos uma fogueira e
pôr um balde de água para ferver,
para expulsar os demônios que
poderiam ter entrado nas nossas
cisternas.
Antes de concordar em prosseguir,
Yael gesticulou para Shirah, o rosto
tomado por uma mistura de
emoções. Ouvi-a sussurrar.
– Se houver escolha, não se esqueça
de ficar com a criança. Deixe-me ir.
– Sim, sim – Shirah concordou. Ela
me lançou um olhar para me
informar que aquele era um momento
para concordar com tudo. Ajudamos
Yael a chegar aos depósitos, depois
a seguir por um longo corredor,
parando quando as dores ficavam
avassaladoras, tornando a continuar
toda vez que abrandavam.
– Este é o lugar em que o demônio
rolou no chão – Yael murmurou
cautelosamente.
– Ela era uma criada, não um
demônio, e seu filho está forte e
saudável –
disse Shirah, para assegurar-lhe que
estava tudo bem.
Em pouco tempo a fogueira estava
acesa e a água fervia, tudo feito de
forma rápida e em silêncio. Nahara
e Shirah trabalhavam juntas como se
a
sua intimidade não estivesse
interrompida. Notei que Nahara
começara a
rezar quando Yael entrou em
trabalho de parto e que olhou de
modo
desaprovador para a imagem de
Astarte que Shirah colocara sobre
uma
prateleira de pedra, para que
houvesse uma oferta feita do sangue
do parto.
O bebê estava quase pronto antes
mesmo que nós, parecendo não
poder
esperar para entrar no nosso mundo.
Yael chorou e nos pediu para
fazermos uma única promessa: a
certeza de que ela veria o seu rosto.
Falara
como se estivesse no leito de morte
e tivesse apenas uma única
oportunidade para testemunhar a
vida que estava prestes a dar à luz.
Continuou a implorar, insistindo que
estaria disposta a entrar no Mundo
Vindouro, se pudesse, mas depois de
ver o filho, ao contrário da sua mãe,
que dera à luz com os olhos
fechados, sem vê-la.
– Bobagem. Você vai vê-lo todas as
manhãs e noites – prometeu Shirah,
aconselhando a futura mãe a
concentrar-se na tarefa imediata.
– Quero saber a cor do seu cabelo e
se os olhos são escuros ou claros –
Yael continuou.
– Sim, sim – todas fomos rápidas em
concordar, pois o ar mudara,
tornando-se denso e pesado. O
momento chegara. O sangue
transbordava
no local em que Yael mordera os
lábios e seu rosto estava pálido.
Havia um banquinho de parto para
se agachar em cima, mas Yael não
se
preocupou com ele, nem fez como
lhe diziam. Ela implorou a Shirah
para criar a criança como sua, se
necessário, certificando-se de que
não fosse tratada como os filhos sem
mãe, em épocas de crise às vezes
deixados no
deserto para os chacais. Shirah
conseguiu acalmar a criatura em
pânico com uma torrente de
promessas. Nahara trouxe água para
aplacar a febre
da sua testa e dos lábios.
Uma vez iniciado, o parto foi
surpreendentemente fácil. Yael
agora se
agachava quando lhe mandavam
fazê-lo; estava empenhada, tanto
mais
quando Shirah pediu que se
esforçasse.
– Uma mulher que se lamenta tem um
bom trabalho de parto. É o
silêncio que devemos temer. Então
vá em frente, grite à vontade –
Shirah a
instruiu.
Yael obedeceu. Ela foi realmente
bem eloquente em sua fúria e
pareceu
que aquela raiva sem palavras era a
sua verdadeira linguagem. Ela
empurrou com toda a força, o rosto
rubro com o esforço. Uma vez, duas
vezes, e em seguida a cabeça do
bebê apareceu. Yael estava exausta
e disse
que não conseguiria forçar mais.
Shirah e Nahara usaram azeite e
água quente sem interromper os
incentivos. Por fim, a futura mãe
reuniu suas forças e fez pressão pela
terceira vez. A criança veio ao
mundo, caindo nas
mãos de Nahara como se não
quisesse ser um fardo para nenhuma
mulher.
Era um menino grande e bonito, de
pele escura. Rapidamente o
envolvemos em um pano de linho e o
pusemos nos braços da mãe.
Depois que a criança chegou em
segurança, fui tomar um pouco de ar
fresco, exausta pelo trabalho que
testemunhara e pelas emoções
daquela
noite. Pensava na minha filha, a
menina linda que perdera, parecendo
terem transcorrido apenas alguns
momentos desde o seu primeiro
sopro
de vida até o último suspiro. Para a
minha surpresa, encontrei o Homem
do
Norte nos degraus da escada. Como
um fantasma, ele se soltara das
algemas, depois saíra do pombal,
pulara a cerca viva dos espinheiros
que mantinham as cabras e as
ovelhas seguras nas pastagens
poeirentas. Se
alguém o visse, ele teria sido morto,
seria considerado um fugitivo e uma
ameaça para todos nós. Ele se
encolheu nas sombras enquanto eu
me
aproximava. Quando me reconheceu,
no mesmo instante se aproximou
para saber notícias de Yael.
– Você realmente é um tolo – eu
disse – para vir aqui e se comportar
como se fosse o pai.
– Não sou pai de ninguém – disse
ele com pesar, o rosto transtornado
pela preocupação. – Não estou aqui
para isso. Vim por causa dela.
– Duas vezes tolo – eu disse –, já
que ela não é a sua esposa.
Apesar das minhas palavras, estava
tocada pela sua determinação.
Assegurei-lhe que Yael estava bem
e já se recuperando. Ainda assim,
ele pediu para vê-la, incapaz de
tranquilizar-se até ver seu rosto para
se convencer de que ela estava
segura e bem. Ele jurou que ela o
chamara, insistindo que fora a voz
dela que o levara até ali. Ouvira a
agonia febril que
a sobrecarregara, ainda que ela
estivesse em um calabouço no
subterrâneo,
cercada por pedras, e ele isolado
dentro do pombal. Ele foi tão
sincero que
o levei para dentro, ordenando que
ficasse quieto. Nenhum homem
deveria
ver os trabalhos de um nascimento,
mas ele era um escravo, longe de ser
um homem. Eu sentira pena dele,
algo incomum em mim. Talvez
tivéssemos nos tornado mais
próximos enquanto trabalhávamos
lado a
lado no pombal. Talvez fosse a
maneira que seus olhos brilhavam
quando
falava da chegada da criança.
Enquanto nos dirigíamos ao salão,
eu ouvia a sua respiração constante
atrás de mim. Paramos no limiar da
câmara. Dali podíamos ver o brilho
da
lâmpada que Shirah acendera diante
da imagem da proscrita Astarte, a
Rainha do Céu, doadora da vida.
O bebê repousava nos braços da
mãe. O Homem do Norte inclinou a
cabeça concordando, aliviado ao
ver por si mesmo que Yael
realmente
passara pelo parto e saíra ilesa. Ela
parecia encantada com o bebê em
seus
braços, os olhos vivos e brilhantes,
a pele reluzente de suor. Quando ela
riu,
encantada com a expressão da
criança, vi o escravo sorrir também,
orgulhoso, como se o menino fosse
realmente dele.
O Homem do Norte segurou meu
braço e agradeceu, em seguida nos
deixou cuidando dos nossos
afazeres. Nahara despejava água
fervente
sobre as pedras para purificá-las.
Ela já parecia uma estranha, sem
vontade
de falar conosco, presente apenas
pelo tempo que fosse necessário e
no momento já se preparando para
se retirar. Mantinha os olhos baixos,
apoiada nas mãos e nos joelhos
enquanto esfregava o sangue.
Quando
ofereci ajuda, ela sorriu levemente.
– A ajuda de Deus é tudo de que
preciso – ela murmurou, uma devota
bela e pura, não mais a menina que
fora antes.
Shirah estava agachada ao lado de
Yael, a cabeça próxima da dela.
Nahara levantou o olhar e a vi
observá-la. Shirah tirara um dos
amuletos de
ouro que usava para proteção e o
presenteava a Yael, prometendo-lhe
que
traria boa sorte e a manteria a salvo
de todos os males. Uma face do
disco
do amuleto homenageava o nosso rei
verdadeiro, Ehyeh Asher Ehyeh, eu
sou
quem sou, o Uno inominável com
mil nomes. Ha-nora ha-gibbor, o
Poderoso, o herói. Na outra face do
disco, letras do hebraico
misturavam-se
às do grego. Chayei ‘olam le-‘olam.
Vida eterna, para sempre.
Esses amuletos de ouro eram
provenientes do Egito, pois
continham as
formas da lua e do sol estampadas
naquele que ela concedera a Yael,
significando o poder da Rainha do
Céu. O nosso povo não tinha
permissão
de usar essas imagens, mas Yael
manteve o amuleto preso à volta do
pescoço, satisfeita. Era um presente
de uma mãe para outra, aceito com
gratidão. As mulheres se beijaram
para celebrar a nova vida. Não se
podia
dar um nome ao filho do sexo
masculino até que fosse
circuncidado, e assim Yael
simplesmente o chamou de menino
enquanto o segurou contra
o peito, uma palavra tão amorosa
quanto qualquer nome poderia ser.
Nahara reuniu a placenta em um
pano. Ela iria enterrá-la no pomar,
como era o nosso costume, debaixo
das árvores em declínio, permitindo
que a essência dessa nova vida
revigorasse a terra arruinada. Ela
parou ao
meu lado, a túnica branca salpicada
de sangue. Ela sempre parecera mais
velha para sua idade e agora tinha os
ares de uma mulher adulta. Avaliou
friamente o amuleto que a mãe
prendera ao pescoço de Yael.
– Aquilo seria um presente para uma
filha – ela me disse em relação ao
colar, a voz indiferente. – Ela quis
me dizer que não o guardou para
mim. –
Havia uma boa dose de dor na sua
voz, juntamente com o desprezo.
Nahara não usava adornos, a
exemplo das mulheres essênias, os
pés
estavam descalços sobre as pedras
chatas e frias. Desfizera-se das
pulseiras
e dos adornos que usava antes. Eu
vira as crianças brincando com eles
no
jardim empoeirado ao lado da casa
de pedra, como se fossem
brinquedos.
– Aceitaria o presente se ela lhe
oferecesse? – aventurei-me a
perguntar,
pois fora Nahara quem virara as
costas aos costumes da mãe.
A jovem deu de ombros, sabendo
que eu estava certa. Não se dá um
presente a alguém que seja obrigado
a negá-lo. Nahara agora passava os
dias cuidando das cabras dos
essênios, alimentando-as distraída
com ervas
daninhas, como se tivesse sido uma
pastora de cabras a vida toda. Eu a
vira
com as mulheres piedosas,
enxugando a água da cabeça antes de
uma
refeição, oscilando em oração, de
olhos fechados no êxtase pela graça
do Todo-Poderoso. Nós, que
trabalhávamos nos pombais, não
discutíamos o
que era evidente: ela não voltaria
para nós.
– O que faria com o ouro? –
continuei, porque ouvira dizer que
as
pessoas com quem ela se alinhara
não valorizavam os bens materiais,
considerando que pertenciam apenas
a este mundo. – Pensei que o que
pertencesse a um essênio pertenceria
a todos.
Naquela noite, Nahara fora uma
parceira como qualquer outra de
Shirah
no nascimento do filho de Yael, no
entanto pareceu consumida pelo
ciúme
da criança quando olhou para Yael.
– Isso não inclui compartilhar a mãe
– ela comentou em tom magoado,
como se fosse ela a enjeitada no dia
da chuva de sal, quando fora ela
quem
fizera a sua escolha.
OITO DIAS depois, acompanhei
Yael à sinagoga, quando ela levou o
filho para pedir o ritual pelo qual
toda criança do sexo masculino
deveria passar em
razão da sua fé no nosso Deus.
Desde o tempo de Abraão fora
assim, e assim continuava, muitos
acreditando que os nossos meninos
eram
considerados tamim, aperfeiçoados,
por esse ritual. Dizia-se que Domah,
o anjo da sepultura, não queimava
nem assediava nenhum homem
circuncidado que entrasse no Mundo
Vindouro; dizia-se que o sofrimento
aqui e agora evitaria o sofrimento
por toda a eternidade.
Passamos pelas portas da sinagoga,
mas não nos autorizaram a
prosseguir. Os anciãos não
realizariam o ritual. Era o pai da
criança que providenciava essa
aliança entre o filho e Deus e, caso
não houvesse pai, não lhes
interessava. Yael apertou o bebê
contra o peito, receosa de que
nenhum homem respondesse por seu
filho em razão das circunstâncias do
seu nascimento e que talvez ela, a
exemplo da mulher de Moisés,
Zipora, teria de perpetrar o ato. Eu
sabia que Yael carregava uma faca,
mas ela recuou da ideia de cortar o
próprio filho, jurando que a sua mão
fraquejaria
pela sua devoção e seu amor.
Por fim o irmão dela chegou,
justificando-se, os ombros
envolvidos pelo
xale de oração. Amram mostrou-se
claramente incomodado com a tarefa
não familiar de cuidar de um bebê.
Perguntei-me como administraria o
ritual da aliança uma vez que se
encolheu quando Yael acomodou o
recém-
nascido nos seus braços. O bebê
encontrou o olhar do guerreiro e
sustentou-o com os olhos cor de
brasa arregalados. Ele tinha um sinal
vermelho no lado esquerdo do rosto,
que todos esperávamos que
desaparecesse.
– Não pensei que ele parecesse
assim – desabafou Amram.
– Ele se parece com um bebê –
comentei com naturalidade. Não
havia
nenhum motivo para essa criança ser
considerada um mamzerim, um
bastardo sem nenhum direito, nem
mesmo o da circuncisão, embora
certamente seria vista como o que
chamavam de shetuki, silenciosa,
qualquer criança que não conhecesse
o pai.
Amram riu.
– Isso ele parece. – Ele inclinou a
cabeça para Yael em aprovação. – E
parece forte.
Não notei a presença de nenhuma
outra pessoa até Yael dar um passo
para trás.
O velho assassino estava lá, nas
sombras. Estivera ali o tempo todo,
o olhar frio pousado no bebê.
– Ele vai realizar o ritual – Amram
referiu-se ao seu pai.
Yael segurou o bebê contra si,
insegura, confusa pelo pai ter
concordado
em participar. O último contato que
tivera com ele fora quando brigaram
amargamente sobre o seu estado, e
ele lhe batera, expulsando-a de casa.
– Acha que não me lembro de como
usar uma faca? – o assassino
perguntou ao notar a sua hesitação.
Yael ergueu o olhar para ele.
– Ah, não. Tenho certeza de que
sabe.
Esse, sem dúvida, era o seu medo.
– Não sou o seu pai? – disse o
assassino.
Yael fitou-o, insegura.
– Essa criança não é o meu neto?
Calmamente, o irmão de Yael pediu-
lhe para ter fé. Fora ele quem
convencera o pai a vir à sinagoga, e
os dois, que haviam se afastado
antes,
tinham feito as pazes por causa do
nascimento do menino.
– Essa criança nos pertence, e nós a
ela, muito mais que apenas neste dia.
Ele não é um fardo, pois nos uniu.
Apenas os parentes do sexo
masculino eram autorizados a estar
presentes na cerimônia em que se
atribuía um nome ao menino. Ele
estava
pronto para a aliança, tinha vida e
fôlego suficientes para protegê-lo,
de modo que Lilith e seus demônios
não pudessem chamá-lo tão
facilmente
como poderiam ter feito nas
primeiras horas após o nascimento.
Até aquele
dia, ele ainda tinha um pé no mundo
deles e o outro no nosso; agora
estava
enraizado, alimentado pelo leite da
mãe. Aquele ritual definiria o
caminho
de toda a sua vida futura.
O assassino manteve a cabeça baixa
enquanto esperava pela decisão de
Yael, um sinal de respeito que nunca
mostrara pela filha no passado.
– Leve-o – disse Yael. – Mas,
mesmo que eu não esteja vendo,
Deus
estará lá.
Esperamos nervosamente ao lado da
muralha ocidental. O rosto de Yael
estava branco. Ela se recusou a
sentar-se em um banco próximo e em
vez
disso ficou andando de um lado para
o outro. Quando o bebê chorou, ela
segurou o meu braço.
– O choro é uma coisa boa – lembrei
a ela, repetindo as palavras de
Shirah. – É o silêncio que devemos
temer.
O próprio Amram estava pálido
quando finalmente devolveu o bebê
à
mãe. A expressão preocupada de
Yael rompeu-se em um sorriso ao
ver o semblante do irmão, a sua
arrogância habitual substituída pelo
peso da imensa responsabilidade
pelo recém-nascido.
– Você parece pior que ele –
brincou ela.
– Acho que doeu mais em mim –
Amram concordou.
Yael abriu as cobertas da criança. O
corte fora perfeito, deixando apenas
um leve rubor de sangue. O bebê já
cochilava nos braços da mãe,
exausto
pelos próprios gritos e pelo súbito
lampejo de dor que conhecera, bem
como pelo vinho que recebera para
amenizar a dor. O velho assassino
esperava na soleira da porta. Yael,
ainda insegura com a presença do
pai, por fim acenou com gratidão,
mas Yosef bar Elhanan já
desaparecera, como
se nunca tivesse estado presente.
Olhei para a praça. Não havia nem
mesmo
uma sombra para ser vista.
– Ele falou com a criança? – Yael
perguntou ao irmão, curiosa apesar
de
tudo.
– Ele a abençoou – Amram disse. –
Já é o bastante.
MANTIVEMOS a ferida limpa,
aplicando um cataplasma de
bálsamo e mel que promoveria a
cura mais depressa. Mas havia mais
coisas a serem feitas para anunciar a
chegada dessa criança ao nosso
mundo, mais tarde, e em segredo.
Levamos o bebê ao campo uma
noite, com a lua minguante. Shirah
nos
esperava. Nós três paramos onde a
placenta fora enterrada, para
realizar a
nossa própria cerimônia de nomeá-
lo. Estava uma noite estrelada, mas
evitamos a luz e nos reunimos nas
sombras, para não sermos vistas
pelos
guardas e questionadas. Shirah
quebrara uma casca de ovo em duas
metades, em que escrevera o santo
nome de Deus tantas vezes pudessem
caber em pequenas letras pretas, a
tinta produzida com amoras
esmagadas.
Ehyeh Asher Ehyeh.
Acendemos uma pequena fogueira
de madeira verde. Yael depositou o
bebê na grama. Ele choramingou,
depois cochilou. Ela tirou o lenço da
cabeça e o roupão, para permanecer
diante de Deus como estivera no dia
em que a mãe morrera, no dia em
que nascera, naquele mesmo mês de
Av.
Shirah começou a entoar palavras de
proteção em uma nuvem de fumaça.
Redimi esta criança e salvai-a de
todas as aflições. Permiti que se
torne um homem e entoe canções
gloriosas de louvor ao nosso
Senhor e Rei, o poderoso
Deus que nos criou. Amém. Amém.
Selah, que Deus o guarde de todo o
mal e
que Ele permita que viva em
Jerusalém e em toda a santidade.
Concluído o hino, Shirah enterrou as
cascas de ovo debaixo da árvore. O
luar varria o campo com uma luz
amarelada. A placenta já
desaparecera, alimentando a terra,
dando graças ao Todo-Poderoso.
Yael pegou o seu xale
e vestiu a túnica. Pegou a criança e
nomeou-a sob o céu aberto, como
fora
nomeado naquela manhã pelos
homens na sinagoga. Ela o chamou
de
Arieh, a palavra para leão, muito
embora ele dormisse, perante a
nossa alegria, como se fosse um
cordeiro.
QUANDO os nossos guerreiros
voltaram ao deserto na vez seguinte,
não foi para lutar, mas para caçar,
fazendo o melhor que podiam para
saciar a nossa fome. Os romanos
haviam voltado ao lugar que tinham
marcado com
as pedras e os nossos homens foram
obrigados a recuar, a sua incursão
foi
interrompida. Não tiveram escolha
senão fugir do inimigo, que retornara
para nos espionar. Com esse
problema em mãos, os nossos
guerreiros
trouxeram consigo perdizes que
eram mais ossos que carne e um
filhote de
íbex extraviado, deixado para trás
pelo rebanho. Era Tishri, a época da
estação de crescimento, e
deveríamos estar nos regozijando.
Em vez disso,
a montanha foi tomada pelo silêncio,
por um sentimento de mau presságio.
Nos pombais, todas sentíamos a
falta de Nahara. Aziza,
especialmente,
ansiava pela irmã. Ela costumava se
dirigir ao campo próximo ao
acampamento dos essênios, onde
permanecia sentada de pernas
cruzadas
sobre a grama por muitas horas, mas
Nahara nunca se aproximou para
cumprimentá-la. Quando Aziza
acompanhava as cabras de que a
irmã
cuidava, Nahara apressava-se em
levá-las embora. Magoada com as
recusas
da irmã, Aziza começou a fazer
flechas para preencher o tempo e
manter as
mãos ocupadas. Todos tinham sido
solicitados a ajudar com o
armamento e
muitas mulheres se reuniam à noite
para moldar pedras para os
estilingues. No entanto, Aziza
escondia seu trabalho de Shirah.
– Ela poderia considerá-lo
inadequado para mim – ela
confidenciava.
Aziza demonstrou que tinha um
toque leve. As pontas das flechas
que
ela produzia eram finas, muito
benfeitas. Cada uma delas era presa
a uma
haste de madeira por um fio de
linho. A filha mais velha de Shirah
era surpreendentemente bem
inclinada para esse trabalho, pois o
metal era
para ela o que o tecido e a linha
representavam nas mãos de outras
mulheres. Observei nela o que vira
no padeiro todas as manhãs da sua
vida,
o amor de dar forma a algo a partir
de ingredientes que não seriam nada
sem o toque humano, fosse o sal, o
trigo ou o ferro que eram
transformados.
O Homem do Norte revelou que, no
país em que nascera, as flechas de
cada guerreiro eram decoradas com
a insígnia da sua tribo, no seu caso
um
veado macho, uma criatura de que
havia nos falado, mas não
acreditáramos, pois ele dissera que
os ombros desse cervo eram tão
altos
quanto os de um homem, seus chifres
eram mais abertos que a
envergadura das asas de um abutre.
Desde que era menino, ele nos
assegurou, todas as flechas que
fizera eram gravadas com a imagem
daquela criatura milagrosa.
– Amarre penas na outra
extremidade da haste – o escravo
disse a Aziza
enquanto ela fabricava suas armas. –
Isso é o que faz as flechas voarem.
Como Amram era comparado à
Fênix, saindo de todas as batalhas
pronto para lutar de novo, Aziza
procurava preparar flechas que
fossem dignas dele, adornando-as
com penas de falcão tingidas em um
banho de raiz de garança. Logo as
suas mãos estavam avermelhadas;
ouvi Yael
provocá-la, sugerindo que estava tão
consumida pela paixão que o calor
subia pela sua pele em ondas
escarlates.
Quando chegou o momento de testar
a obra de Aziza, ela enviou Adir à
guarnição para lhe trazer um arco.
Adir voltou logo, rindo, brincando e
fazendo comentários rudes,
sugerindo que era melhor a irmã não
tocar no
arco ou poderia atirar em si mesma
acidentalmente. Aziza sorriu e
mandou-o embora com um
empurrão.
Sentei-me com Yael, que trazia seu
bebê descansando em uma tipoia
feita de lã finamente tecida. Arieh
era um menino quieto, de olhos
escuros e
cristalinos, calmo como a ovelha
que parecera se assemelhar na noite
em que recebera o seu nome. Apesar
de ter apenas algumas semanas de
idade,
ele dormia a noite toda, segurando o
quadrado de tecido azul que Yael
deixava que segurasse para
sossegar. Ele ainda exibia a marca
de nascença
vermelha na bochecha, apesar de
essa ter sido tratada com uma
pomada de
trigo, mel e aloé misturados, e ter
começado a se desvanecer.
Imaginamos
que a juba de cabelo grosso e preto
fosse um sinal da sua virilidade,
maravilhando-nos com o tamanho
das mãos e dos pés, e seu pênis
pequeno,
viril, sugerindo que ele seria capaz
de erguer um burro acima da cabeça
aos
dez anos de idade.
– Talvez devêssemos deixar Arieh
testar as flechas como se já fosse um
guerreiro – caçoávamos, pois não
tínhamos nenhum homem entre nós.
Aziza entregou o arco ao Homem do
Norte, apesar de ser um crime pôr
uma arma nas mãos de um escravo.
Ele o segurou, grato pela confiança.
Todas as setas de Aziza atingiam o
alvo quando o escravo apontava a
sua
meta – um nó no tronco da velha
oliveira atrás do pombal. Ele se
posicionara no batente da porta para
que ninguém mais o visse. Quando
fazíamos os elogios, ele se curvava.
Então reparou na expressão intensa
do
rosto de Aziza, o olhar fixo no arco
em suas mãos.
– Deixe-me ensiná-la – sugeriu ele.
– Assim poderá apreciar por si
mesma o valor do que produziu.
Essas flechas estão entre as
melhores que
já usei.
Aziza recuou, sacudindo a cabeça,
seus olhos dissimulados. Ainda
assim,
notava-se algo semelhante ao desejo
gravado em seu rosto.
As mulheres não deviam tocar em
armas, tal era a nossa lei, mas nós já
havíamos desrespeitado a lei
entregando o arco a um escravo.
Nós, que já
havíamos pecado, não
questionaríamos ou condenaríamos.
Encarávamos a
quem sussurrasse sobre Yael e o seu
bebê até obrigar essas pessoas a
baixarem os olhos.
– Experimente o que fez – insisti,
nem que fosse só para a nossa
diversão.
– Tudo bem – Aziza assentiu. – Mas
só para agradar vocês.
O escravo mostrou-lhe o que
deveria fazer e ela o acompanhou
atentamente. Segurava o arco com
facilidade, um largo sorriso
iluminando
seu rosto. A primeira flecha acertou
o alvo. Pude ver a surpresa no rosto
do
escravo.
– Você tem uma guerreira dentro de
si! – comentou ele.
– Pura sorte. – Aziza soltou o arco e
foi recolher as flechas caídas,
admirando o seu trabalho,
assegurando-se de que cada pena
estivesse no lugar. – A Fênix triunfa
sempre – ela disse. – Não importa
quem ataque, Amram sempre
vencerá.
Shirah permanecera dentro do
pombal. Nesse momento, ela
assomou à
porta. Exibia uma expressão
distante, difícil de interpretar. Ela
havia mudado desde a partida de
Nahara, tornando-se mais
circunspecta e
reservada. Algumas pessoas
sussurravam que ela possuía a
capacidade de
ver o outro mundo além do nosso. Se
isso fosse realmente verdade, então
para Shirah o futuro não era um
lugar distante. Nós, que não
fazíamos ideia
do que viria a acontecer,
permanecíamos no pátio nos
divertindo,
aplaudindo Aziza enquanto ela
acertava o alvo várias vezes
seguidas, sua agilidade e graça uma
revelação para todas nós.
Quanto a Shirah, ela só observava,
da mesma maneira que se mantém o
olhar atento sobre um enxame de
abelhas já em voo, momento em que
já
era tarde demais para mudar o seu
curso ou fazer com que voltassem à
colmeia. Quando o dano já fora
feito.
NÃO DEMOROU muito tempo e o
novo ano chegava para nós, um
momento de
celebração. Mas comemoramos o
feriado de Rosh Hashanah de
maneira frugal e sem alegria. As
mesas foram montadas com coisas
simples,
abóboras e alho-poró, algumas
perdizes descarnadas, saladas de
lentilha e
iogurte. Yael levou um pouco desse
banquete magro à amiga Tamar. A
mulher essênia mostrou-se grata e,
em troca, seu filho, Yehuda, um
garoto
sonhador que estava sempre subindo
em árvores no pomar quando
deveria
dedicar-se aos estudos, surpreendeu
meus netos com um pião que ele
mesmo esculpira. Os meninos
ficaram encantados com o presente;
para
ficarem alegres não era preciso
muito. Eles não haviam notado que
Yehuda
os observava, curioso depois que
descobrira que não tinham a
capacidade
de falar. Noé e Levi, porém,
pareciam conformados com sua
condição. Eles
aproveitavam a vida como podiam,
indiferentes aos olhares de
curiosidade
que os acompanhavam na praça, com
muitas pessoas tentando adivinhar o
que lhes causara a perda da voz. Os
meninos adoravam o novo bebê em
casa, passando horas divertindo
Arieh com seu chocalho, ou com
flautas feitas de cabaças, e agora
com o pião interessante que Yehuda
lhes fizera.
Arieh parecia atraído pelo
agradável silêncio dos meus netos,
seguindo-
os com os olhos pelo alojamento.
Nós alimentávamos nosso leãozinho,
que
jogava a cabeça para trás rindo
quando meus netos faziam as
sombras
dançarem sobre a parede. Já quando
brincavam com ele de esconder,
esquivando-se atrás de uma peça de
tecido, ele os chamava gritando,
rindo
e arrulhando até meus netos
reaparecerem silenciosos, como se
fossem de
fato sombras em vez de meninos de
carne e osso.
Esse novo ano foi especialmente
amargo para mim. Cada fruta que eu
cortava pela metade possuía um
sabor que eu não conseguia suportar.
O
que era doce passei a considerar
intolerável. Comia verduras amargas
e me
acostumara com o gosto de sal na
língua. Ia à sinagoga e permanecia
com as
mulheres ao fundo. Os homens não
deviam se distrair com as mulheres,
mas e quanto às mulheres que eram
distraídas pelos próprios
pensamentos? Recitava as orações
que sabia de cor, mas a minha voz
era hesitante, apática.
Tornara-me tão pálida que Yael me
perguntou se adoecera. Disse que
não, mas já não conseguia me dirigir
aos pombais pela manhã. Em vez
disso, preferia permanecer na cama,
o rosto voltado para a parede. Via
as
sombras dos meus netos quando
entravam e saíam pela soleira da
porta.
Via tudo o que acontecera no deserto
todas as vezes que fechava os olhos.
Um ano se passara desde que
tiraram a vida da minha filha. No
Dia da
Expiação, fui à sinagoga para as
orações de lamentação, mas a perda
era como uma flecha me
atravessando e os rituais não foram
suficientes para
aliviar a dor. A melancolia me
envolvia como uma mortalha, a
tristeza costurada em mim com os
fios pretos que, segundo se dizia,
eram usados
pelos demônios. Quando voltei à
praça, as pessoas me evitaram. Era
possível que vissem as trevas que
carregava. Até mesmo os meus netos
fugiram de mim, preferindo sentar-se
com Yael para ouvir suas histórias.
Somente uma pessoa seria capaz de
me entender, alguém que trilhara o
mesmo caminho e vivera sob o
mesmo céu.
Com certeza Yoav estaria em algum
canto escuro, sofrendo como eu.
ERA NOITE quando me dirigi ao
quartel. Não deixava o meu quarto
havia vários dias, a não ser para ir
rezar na sinagoga. Quando não se sai
da cama,
perde-se o costume de caminhar.
Quando não se perdoa a si mesmo,
não se
é capaz de perdoar ninguém. Eu dera
fim àquelas bestas humanas no oásis,
mas elas também deram cabo de
mim. A mulher que eu fora um dia,
aquela
que acordava com o aroma do pão,
que varria a escada todas as manhãs,
com toda a certeza de que o novo
dia seria como qualquer outro,
desaparecera. Eu era uma concha,
um besouro, um feixe de carne
costurado
com a linha do demônio.
Os guerreiros achavam-se em
oração naquela noite. Reparei em
uma
enorme pilha de pedras esculpidas
na forma de bolas desbastadas e
duras,
para serem usadas nas catapultas
caso viéssemos a ser atacados.
Aquelas pedras estavam empilhadas
onde antes havia toras de madeira. A
madeira
fora toda usada e restara pouco dela
a ser encontrado nos penhascos ao
redor, apenas alguns arbustos
perdidos e crestados pelo sol, com a
casca branqueada e escamosa que se
enfumaçava e não queimava quando
atirada
ao fogo. Era a época do plantio, mas
o ar cheirava como um forno em que
o
pão queimara durante dias. Ninguém
trabalhava nos campos; todos só nos
ocupávamos em nos proteger contra
os elementos e contra nossos
inimigos. Eu me perguntava o que
pensaria meu marido de um mundo
quente demais para o pão,
demasiado brutal para a bondade
humana.
Esperei sob os restos de uma
amoreira não muito distante do
quartel. As
folhas farfalhavam no escuro. O som
ecoava como um chocalho, ou talvez
fosse mais como uma pele de cobra
agitada pelo vento. Sentei-me sobre
o
tronco de uma árvore cuja
generosidade alimentara um rei.
Logo os jovens
guerreiros voltaram das orações.
Eles se ocupavam do seu trabalho
até
mesmo naquele que era o mais
sagrado dos dias. Avistei o grande
assassino
de Jerusalém, Bar Elhanan, ocupado
na limpeza das lâminas planas de
bronze das lanças com trapos e areia
como se fosse um escravo. Ele vinha
à
minha casa várias vezes, apenas
murmurando-me uma saudação, mas
iluminando-se à visão de Arieh, a
quem sentava em cima dos joelhos.
Vislumbrei também o irmão de Yael,
ocupado no campo em uma disputa
com os amigos para ver quem tinha
os melhores olhos e a melhor
pontaria,
e quem dentre eles dispararia uma
flecha através de uma das janelas
estreitas abertas na pedra, feitas
para despejar óleo quente e água
fervente
sobre os inimigos que fossem tolos o
bastante para tentar fender a
muralha.
Esperei por tanto tempo que
comecei a ouvir os ecos das corujas
nas
cavernas. Os guerreiros retiraram-se
aos seus alojamentos. Quando o
assassino atravessou a praça, vi a
idade nos seus passos, o peso do seu
fardo, pois carregava nos ombros
todas as iniquidades de que
participara.
Eu me ressentia do seu desejo de vir
ao meu alojamento porque era
levado
a visitar o neto, mas naquele
momento senti que não poderia
julgar suas ações neste mundo, não
depois de tudo o que eu mesma
fizera.
A lua estava no centro do céu
velando por mim, solitária, fria.
Ainda assim fiquei. Por fim meu
genro atravessou a praça, o machado
na mão, a
expressão contrita. Ainda era jovem,
apesar do cabelo branco. Trazia os
braços nus por baixo do xale de
oração. Vi que envolvera vários
comprimentos de tiras afiadas de
bronze em torno dos braços
musculosos;
as torções ferozes, ensanguentadas,
eram feitas para transformar cada
movimento que fazia em uma
excruciante autopunição. Tal abuso
não era
permitido; tratava-se de um costume
lúgubre praticado entre nômades e
bárbaros enlutados. Ainda assim, ele
fazia o que lhe apetecia,
desrespeitando as nossas leis. Viam-
se listras de cicatrizes
sanguinolentas
onde ele cortara diretamente sua
carne com uma faca, uma fileira de
lesões
estabelecidas acima das suas veias
azul-escuras. As marcas
autoinfligidas eram como o azul do
hissopo quando florescia, a flor
predileta da minha filha. Em torno
delas emergiam hematomas que
eram da cor saturada de
ameixas, a fruta preferida dela.
Chamei seu nome e Yoav estreitou
os olhos como se eu tivesse
proferido
uma maldição. Mas acenei-lhe, ele
me reconheceu e se aproximou.
Parou
embaixo das folhas secas da
amoreira, semivestido com sua
armadura
prateada. Imaginei se dormia com
ela, se sonhava com batalhas e
sangue, ou com o belo rosto da
minha filha.
– É o dia da tristeza – lembrei-lhe,
pensando que poderíamos orar
juntos
ou acender uma lâmpada em
memória de Zara.
Ele bufou. Pensei nos cavalos
vendados do rei, forçados a
percorrer um
caminho que não podiam ver. Alguns
deviam ter protestado; deviam ter
refugado, furiosos por serem
impedidos de enxergar no caminho
brutal da
serpente que levava até o alto da
montanha.
– Todo dia é – disse o Homem do
Vale, que ainda era o meu genro,
embora eu não tivesse filha. – Por
que devo orar?
Ele parecia ao mesmo tempo
envergonhado e furioso; havia
desprezo na
sua voz à menção da oração. É claro
que ele sabia que dia era. Contara
cada
momento desde que a encontrara
debaixo das pedras com que eu a
cobrira
para protegê-la de quaisquer outras
criaturas de rapina.
– Você tem dois filhos – lembrei-
lhe. – Eles têm os olhos escuros da
sua
esposa.
Yoav surpreendeu-me com um
rugido de pesar. Recuei, incerta de
quem
estava à minha frente, aquele
Homem do Vale que não confiava
em
ninguém e dormia de costas para a
parede, o machado na mão, pronto
para
lutar até mesmo quando sonhava.
– Disse-lhe para não falar nela – ele
me advertiu.
– Ou nos meninos?
Ele me encarou, desafiador.
– Este mundo não significa nada
para mim. Por que acha que me
importo com essas coisas?
– Procurei-o porque você a carrega
consigo – disse, lembrando-lhe de
que lhe oferecera o seu último
suspiro. Ele o tomara e agora ela lhe
pertencia. Em troca dessa grande
dádiva, ele ainda precisava me
respeitar,
não importava o quanto se
amargurasse.
Ele inclinou a cabeça, reconhecendo
o vínculo entre nós e o sacrifício
que eu fizera. Conteve o seu
temperamento e ouviu a razão. O
homem que
ainda era o meu genro veio sentar-se
ao meu lado, sob a amoreira preta.
Ele
nunca perguntou como eu conseguira
matar aquelas bestas humanas, como
os atraíra para a morte com pão.
Talvez se ressentisse de mim, por
ter cometido o ato de vingança de
que provavelmente se envergonhava
por
não ter executado. Mas na ocasião
ele era um homem que só sabia orar,
ao
passo que eu já me tornara uma
torrente furiosa.
– Ainda deve haver alguma coisa
aqui para você – insisti, tentando
falar
ao homem que ele fora, não com o
violento guerreiro que só pensava
em se
torturar. – O ar que você respira, a
água que bebe, acordando a cada dia
para ver o sol. Deve haver alguma
coisa que ainda queira neste mundo.
–
Restava tão pouco do que ele fora,
mas, quando baixei o olhar para a
poeira,
a sua sombra parecia a mesma.
Yoav riu e balançou a cabeça.
– Está me perguntando o que quero?
Por um momento vi o estudioso que
procurara o padeiro para pedir a
mão da nossa filha, o jovem noivo
tão assoberbado no dia do
casamento que, mesmo depois de
elaborado e acordado o contrato
legal, a ketubah, ainda parecia
atordoado demais para compreender
que Zara era realmente
sua. Quando vira a beleza da noiva
ficara sem palavras, e os amigos
caçoaram dele, assegurando que fora
hipnotizado.
– As vozes deles – ele disse.
Ouvíamos os guerreiros que tinham
saído para a refeição da noite,
quebrando o jejum, a conversa
barulhenta dos jovens, alguns jovens
demais
para conhecer os horrores que
encontrariam quando se arriscassem
pelo
deserto para nos defender. A
maioria desses jovens guerreiros
desviava o
olhar ao ver o Homem do Vale, com
suas cicatrizes e faixas metálicas,
imediatamente convencidos de que
jamais seriam como ele, um matador
enlouquecido pela guerra.
– Pode me dar só uma coisa? –
Yoav perguntou. – Quero que os
meus
filhos falem como qualquer pessoa.
O seu Deus é capaz disso?
Isso era o mesmo que eu queria,
pelo que rezara inutilmente. Éramos
tão iguais que chegava a doer, duas
pessoas afogadas no mesmo lago.
Observamos em silêncio a noite e as
estrelas sobre nós. Não poderia
prometer-lhe que a graça de Deus
triunfaria.
Yoav deu de ombros quando não lhe
respondi.
– Exatamente – disse ele. – Só me
procure quando eles voltarem a
falar.
Quando os inocentes não carregarem
mais a maldição, volte a me
encontrar. Até esse momento, não
terei fé. Se alguma vez houve um
Deus,
Ele nos abandonou e não existe
mais.
Continuamos sentados com esse
pensamento terrível e imprudente. A
luz fria da lua que se punha filtrava-
se no ar.
– Lutarei até não haver mais
ninguém a quem enfrentar. Depois
me
deitarei, sabendo que não tive Deus.
Mais tarde, quando parti, Yoav
permaneceu no mesmo lugar,
debaixo da
velha árvore com os galhos
descorados pelo sol. Durante todo o
tempo em
que viajamos em direção àquela
montanha, ele mantivera inalterado o
semblante contraído de um homem
perseguido pela dor. Agora o seu
objetivo era a morte, querendo
confrontá-la e ficar quite com este
mundo.
Eu sabia com o que ele sonhava, e
não era com a minha filha. Sonhar
com
ela o quebraria de mil maneiras.
Uma visão de Zara seria
infinitamente mais dolorosa que as
faixas afiadas com que se amarrava
em autopunição.
Não olhei para trás quando me
afastei da guarnição, nem prestei
atenção
às corujas que deslizavam no céu
àquela hora. Tinha uma missão a
cumprir
e não me atrevia a demorar. Fizera
um voto solene de proporcionar
àquele
homem a única coisa no mundo que
ainda queria: o som das vozes dos
seus
filhos, um motivo para crer.
*
FUI À SINAGOGA em busca de um
amuleto que curasse os meus netos.
Humilhei-me, os olhos no chão, a
voz suplicante. Mas o grande
homem,
Menachem ben Arrat, apenas me
fitou e balançou a cabeça. Lembrou-
me de
que seu destino era fazer nosso povo
orar e, portanto, não poderia se
preocupar com os problemas de dois
meninos pequenos. Dispensou-me
como se a condição deles fosse
insignificante, como talvez a
considerasse, e
acompanhou-me à saída.
No entanto, apesar da negação do
sacerdote, um dos estudiosos deu-
me
um amuleto que trazia enrolada uma
oração pelo perdão. Enterrei-o junto
àquele templo, como era o costume,
mas, enquanto limpava a sujeira das
mãos, não estava convencida de que
o encantamento de um estudioso
fosse
forte o bastante para as minhas
necessidades. Já me encaminhava
em outra
direção.
A noite caía e as mulheres
trabalhavam nos teares da praça. Os
homens
vinham para a oração, atraídos pelo
chamado estridente soprado no
chifre
de carneiro que soava desde a base
da muralha, passando por mim
enquanto me encaminhava à
extremidade oposta da fortaleza.
Aproximei-
me do quartel, onde avistei Aziza
assistindo pacientemente ao irmão,
que
praticava com um arco, e lhe
mostrando tudo o que aprendera.
Adir
tornara-se o favorito entre alguns
guerreiros mais jovens. Embora
fosse um
aluno bastante bom, não fazia ideia
de que fora a irmã quem se revelara
uma exímia atiradora. Não lhe
contáramos por que essas coisas
eram
proibidas; Adir poderia não
entender se soubesse que
ignorávamos as leis.
Qualquer arma tocada por uma
mulher, mesmo que por acidente,
deveria
ser purificada com água e orações
para que a essência feminina não
perdurasse, distraindo o próximo
guerreiro a usá-la, pois até mesmo o
menor contato atrairia a luxúria para
o coração daquele homem. Quem
sabe isso significasse que uma
mulher bem-treinada em armas seria
uma
guerreira superior, nunca desviando
a atenção da sua tarefa. Aziza tinha
os
ombros e o rosto queimados de sol
pelas horas de prática atrás do
pombal
sob a orientação do escravo, o
corpo esguio belamente musculoso
pelo
esforço de operar o arco. Ainda
assim, ela aplaudia o irmão quando
suas flechas subiam, para depois
cair com estrépito sobre as pedras.
CONTINUEI a atravessar a Praça
Ocidental à procura de Shirah,
aliviada por pensar que poderia
encontrá-la sozinha. Quando cheguei
à sua porta, no entanto, não obtive
resposta. Olhei para o interior,
vendo que o alojamento
achava-se à meia-luz. Uma névoa de
fumaça pairava no ar, resultante do
incenso queimado diante do altar.
Em cima da mesa havia um pote de
tinta
para os olhos feita com lápis-lazúli
moído, uma paleta de uma mistura
de tintas e ruge feito de uma concha
plana, opalescente e branca, trazida
do Mar Vermelho. Um pequeno
frasco de cerâmica de óleo
perfumado com
essência de lírio estava aberto,
como se alguém tivesse saído com
grande pressa. O lírio era associado
a Shechinah, que alguns chamavam
a Morada Divina. Era o aspecto
feminino de Deus, que era oculto e
tocado apenas pelos mais
verdadeiros dos crentes em um véu
de conhecimento e êxtase.
Era a compaixão de Deus, e dizia-se
que os que morriam nos braços de
Shechinah eram favorecidos pelos
anjos.
Eu mesma ouvira apenas
comentários sobre esses assuntos; no
entanto,
reconhecia o odor do divino,
extremamente feminino na sua
essência, uma
mistura de pureza e impureza,
doçura e acidez atraídas em um só
fôlego.
Saí do alojamento de Shirah, pois o
cheiro me conduzia para a praça.
Atravessei-a em direção à muralha
ocidental. Olhei o palácio abaixo de
mim. Àquela hora, sob o céu
começando a escurecer, o Palácio
do Norte em
ruínas, atrelado aos penhascos, era
cercado por uma névoa de luz lilás.
A fragrância do perfume era fraca,
mas mais forte que o odor amargo
do vale
estéril abaixo de nós.
As lojas estavam fechadas, o
curtume e a adega trancados, a
padaria às
escuras. Vários homens fortes
trabalhavam na padaria; até então os
fornos
enormes eram abastecidos com
madeira de corte, mas, agora que
ficáramos
sem toras, as chamas passaram a ser
alimentadas com as tábuas
arrancadas do piso dos alojamentos
internos do palácio. Eu evitara
aqueles
fornos desde que passara uma manhã
e vira os homens trabalhando, o
peito nu coberto pelos aventais
brancos, transpirando com o calor
emanado dos fornos. Sentia-me
covarde, sem coragem de ver os
padeiros.
Por um momento, imaginei que via
meu marido entre eles.
Antes de desmaiar, percebi que era
alguém completamente diferente,
alguém que não se parecia
absolutamente com meu marido. O
homem que
trabalhava na padaria me acenou
quando me viu olhando. Corri para
longe.
Desde aquele momento, passara a
assar meu pão sírio, temperado com
o
resto de coentro do meu marido.
Não queria ir àquele lugar e entrar
na fila
com as outras mulheres, esperando
pelos pães frescos, lembrando-me
do
cheiro da minha casa no Vale dos
Ciprestes.
Agora, no escuro, vi uma sombra
atravessar o piso da padaria. Um
rato.
Continuei a procurar Shirah,
chegando à passagem que levava à
terra.
Segui em frente, embora me
atordoasse o modo que o caminho
descia por
centenas de degraus inclinados,
muitos desfazendo-se, arruinados.
Os
cortesãos do rei desciam por essas
escadas e, não muito tempo depois,
os
soldados romanos tinham patrulhado
o lugar antes que os nossos
guerreiros o tomassem para
reivindicar a fortaleza para si.
Entranhei-me tão profundamente na
terra que parecia estar penetrando
em outro mundo,
um lugar escuro e úmido, apesar da
paisagem árida em cima.
Embora não tivéssemos chuva havia
vários meses, e o mundo ao redor
estivesse seco e dolorido, ouvi o
ruído de água. No início a promessa
de água foi como um sonho, como
fora quando chegáramos ao oásis.
Senti-me
chocada com o som alegre do seu
eco, pela própria noção de que
havia muito eu me esquecera de
como era a água, como poderia ser
tão fria e doce, com pétalas brancas
flutuando na superfície, como
poderia facilmente
atrair alguém, atrair o banhista
desavisado para o círculo dos seus
braços
claros e incansáveis.
Continuei em frente, atraída pela
promessa inesperada de água, assim
como os ratos são atraídos para os
grãos da padaria, a mão apoiada
contra
a parede de pedra fria para me
ajudar a manter o equilíbrio na
escada retorcida. Os degraus
tornaram-se menores à medida que
descia, cada um
menor que o anterior. Precisava
andar de lado para não cair.
Finalmente, percebi onde estava.
Dirigia-me à cisterna maior, um
poço tão enorme que
cinquenta homens poderiam lhe dar
a volta ombro a ombro e ainda
sobraria espaço para se esticar. No
inverno aquele poço era enchido
com os
aquedutos de Herodes, até tornar-se
um lago usado para abastecer as
nossas casas de banhos e os barris
de água. Agora, no entanto, o nível
estava perigosamente baixo. Havia
apenas uma pequena piscina verde
concentrada no meio do poço,
orlada de pedras afiadas. Uma única
lâmpada
fora colocada sobre uma pedra e o
azeite em fusão flutuava como um
líquido ambarino. Olhei através do
que era sombra e luz bruxuleante em
igual medida. Sentia um frio tão
forte que era como se tivesse me
transportado para a terra de gelo que
o Homem do Norte tantas vezes
mencionara, um lugar onde um
guerreiro poderia congelar até os
ossos em
instantes.
Via-se o brilho de carne na água e
os movimentos convulsivos de um
frenesi sexual. Estremeci e pensei
em monstros, pois quem senão os
crocodilos escorregariam na água
assim por prazer? Mas, certamente,
monstros não se abraçavam com
tanta paixão, nem se beijavam na
boca,
nem usavam a carne de homens e
mulheres. Os dois na água eram os
dois
escuros, as suas trevas se juntando
quando se tornaram um. Quando se
separaram um do outro só pude ver
as costas e os ombros largos do
homem, mas notei que a mulher
usava um amuleto de ouro em torno
do
pescoço e que seus olhos, tão
escuros na água, eram semeados
com o pó de
lápis-lazúli, uma sombra que
algumas pessoas juravam ser a cor
do céu.
Permaneci parada contra a parede e
tentei não respirar. Acabara de
tropeçar em algo que era melhor
deixar em paz. Agora tropeçava
ainda
mais enquanto me atirava pelos
degraus em uma tentativa de fugir.
Uma pedra deslocou-se e caiu na
água. As ondulações formaram um
círculo
brilhante quando a pedra foi
engolida pela piscina. A mulher na
cisterna atraiu o seu amado para si.
Nesse instante vi sua garganta e os
seios. Ela era
marcada por tatuagens de hena, uma
prática não permitida entre o nosso
povo, a menos que a mulher fosse
uma kedeshah, uma não ungida,
disposta
a oferecer seu corpo como um
sacrifício e como uma bênção aos
sacerdotes.
O nadador virou-se e olhou na minha
direção, vendo através das
sombras. Nossos olhares se
cruzaram, como uma gazela olhando
nos olhos
do caçador, embora quem fosse a
presa e quem o caçador eu não
pudesse
dizer. Rapidamente recuei mais uma
curva. Meus netos haviam me
ensinado a linguagem do silêncio.
Não precisava de palavras que me
dissessem que a Bruxa de Moabe
era como qualquer outra mulher. Ela
puxou o amante mais para perto,
envolvendo-o com braços
protetores,
para garantir que eu não visse seu
rosto. Não importava. Eu sabia
quem ele
era pela forma que a luz caía nas
suas costas, como se ela tivesse sido
atraída para a luz no interior dele,
que brilhava e fazia que os homens o
seguissem, como se não tivessem
escolha.
Eu gostaria de poder apagar o que
vira. Só queria pedir um favor a
Shirah e descobrira muito mais do
que esperava. Subi pela escada o
mais rápido que pude. Embora já
não fosse nova, fugi como uma
jovem. Passou-me pelo pensamento
correr por todo o caminho de volta
para casa, mas os
nossos olhares haviam se
encontrado; não haveria como
esconder esse fato
uma da outra depois do encontro. Se
não enfrentamos algo, isso nos
perseguirá, seja como for. Se
aprendera alguma coisa no tempo
que passara
no deserto, era que, depois de
começar a correr, nunca mais se
consegue parar.
Esperei na porta dela, ansiosa pelo
que aconteceria em seguida.
Inimigos
se criavam por razões muito
menores do que eu chegara a
conhecer, e uma
mulher que praticava o keshaphim
não era uma inimiga fácil de
enfrentar.
Eu sabia demais, mas não sabia
nada. Talvez aquilo me fizesse a
mais perigosa das duas no momento.
Se eu tivesse algum dom afinal, era
a
capacidade de ver as sombras.
Avistei uma naquele momento
cruzando a
praça; se semicerrasse os olhos
veria um corvo querendo voar, mas
preso
em uma armadilha, impedido de
deixar a terra.
Seu cabelo preto comprido pendia-
lhe às costas, molhado e solto,
perfumado com a fragrância do lírio.
Nós nos enfrentamos à meia-luz
lançada pela lua. Notei que até
mesmo uma bruxa poderia corar,
especialmente uma que fora
descoberta nas profundezas de um
poço. Um
tremor passou pelo semblante escuro
de Shirah, não exatamente de
vergonha, mas de rendição.
– O que é que você quer de mim? –
perguntou ela, resignada.
Pensei nas pombas, como nunca nos
encaravam e sempre desviavam o
olhar para baixo. Ao contrário
dessas criaturas tímidas, Shirah
olhava para
mim, os olhos em chamas,
convencida, ao que parecia, de que
eu pudesse
usar contra ela o que acabara de
descobrir.
– O que você faz é da sua conta –
assegurei-lhe. – Nem sequer me
lembrarei desta noite.
Viera em busca de um favor e foi
isso o que pedi. Abaixei a cabeça e
inspirei a fragrância do lírio
enquanto implorava a única coisa
que o meu
genro queria neste mundo. A
devolução da voz aos meus netos.
– O que a faz pensar que eu possa
fazer a obra de Deus?
Shirah era destemida, mesmo agora
que eu sabia o suficiente para
destruir sua reputação e sua vida. As
mulheres que cometiam adultério na
maior parte das vezes eram
expulsas, tinham o cabelo cortado
rente ao crânio, os bens confiscados,
os filhos arrancados da sua guarda.
Não era sua
bravura prova suficiente da sua
força? Ela era a razão pela qual o
conselho
deixara Yael em paz. Haviam
aparecido uma vez, com perguntas
sobre o
nascimento de Arieh. Shirah fechara
a porta do pombal e entoara uma
oração até que fossem embora. Se
era capaz de trazer as crianças ao
mundo, lutando contra Lilith quando
a deusa tentava reclamá-las, então
certamente poderia ajudar dois
meninos pequenos a recuperar a voz.
Para
convencê-la, eu teria de romper o
silêncio. Fiz isso curvando a cabeça
enquanto contava a minha história,
tendo em mente a imagem do
Homem
do Vale envolto em tiras de metal e
marcado pelo próprio sangue.
Enquanto falava, o passado
envolveu-nos como as trevas se
acumulavam
nos cantos do mundo. Mencionei o
jasmim que crescia na borda do lago
e
as marcas de queimadura na pele da
minha filha. Seguiu-se o anjo que me
sussurrara na padaria, então o
demônio que me permeara quando
tomei da
faca do soldado contra a minha
natureza em carne e sangue, por fim
o fantasma do meu marido,
assegurando-me de que teríamos no
caminho
todo o pão de que precisássemos
para nos alimentar.
Shirah recuou, o rosto pálido. Agora
apenas ela e Deus sabiam como eu
matara aquelas bestas que se
abateram sobre nós, a alegria com
que os vira
beber até a morte, o prazer terrível
que sentira ao cortar suas gargantas.
Tirei a túnica para que me visse
melhor e soubesse em que havia me
tornado. Não era a esposa do
padeiro, a avó ou a mulher que
cuidava das
pombas, alimentando as aves
enfermas com colheradas de água de
cevada,
protegendo-as durante a noite. Era
uma assassina. Segurei a lâmpada
sobre
a palma da mão para que Shirah
visse exatamente o que estava à sua
frente.
A marca da morte.
Sentia-me desgastada e exausta. As
palavras tinham feito isso comigo,
torcendo meu coração enquanto se
derramavam, caindo como pedras
sobre o calçamento. Talvez meus
netos tivessem a sorte de ser mudos,
protegidos contra as histórias da
própria vida. Shirah puxou-me para
perto
e em seu abraço senti-me como uma
criança que vira demais, observando
através da cachoeira, horrorizada, o
que um animal era capaz de fazer a
um
ser humano e no que um ser humano
poderia então se tornar.
– Para todo mal há uma cura – disse
Shirah suavemente. – Qualquer mãe
defenderia a filha. Seria um pecado
não fazer isso, um crime além de
tudo o
que foi escrito. O que você fez foi
por amor.
Contra minha pele febril, sua carne
era deliciosamente fresca. Ela me
confidenciou que a água era o seu
elemento e fora assim desde que era
criança, por isso eu a encontrara na
cisterna. Sua mãe a levara a um rio e
ela descobrira que sabia nadar sem
nunca ter aprendido. O que era
perigoso para uma pessoa era a
misericórdia para outra. O desejo do
meu
genro não era uma tarefa impossível,
assegurou-me, mas seu preço era a
paciência. Esperar e ter fé, ela
insistiu. Capture um demônio e
quebrará o
encantamento. Ofereça a gratidão a
um anjo e ele devolverá as vozes
que foram tiradas para impedir que
as crianças gritassem quando
estavam
escondidas atrás da cachoeira. Era
para eu rezar todas as noites para
Beree,
o anjo da chuva. Esse anjo era
calado, assim como meus netos, por
isso não
deveria esperar resposta, pelo
menos imediatamente.
– Sei o que seu genro deseja – disse
Shirah então. – Mas e quanto a
você?
– O desejo dele é o meu – assegurei-
lhe.
– Não. – Ela não estava convencida.
Fitou-me bem e senti a garganta
apertar, talvez para conter a
verdade. – Há algo mais.
Shirah levou a minha mão à boca.
Antes que pudesse pensar em me
afastar, ela beijou o centro da minha
palma. Naquele instante deixei sair a
verdade, o que escondera dela, de
Deus e de mim mesma. Rompi com
um
soluço trêmulo. Os soldados tinham
agido como animais e fora um prazer
para mim matá-los, mas eles também
eram homens. Haviam caminhado
sobre a terra e sob o céu. Aquele
que me implorara fora o único que
permanecera comigo, pois pedira
algo que agora eu desejava também.
Eu queria ser perdoada.
– Sempre foi assim aos olhos de
Deus – Shirah me disse.
Ela deixou que o manto escorregasse
dos ombros para que eu pudesse
avaliar em sua pele todas as
tatuagens vermelhas proibidas que
antes
espionara na cisterna. Eu sabia o
que representavam: lealdade à
deusa, uma vida dedicada ao
serviço, o mais profundo sacrifício
de uma mulher, desprezada pelo
próprio povo.
– Eu deveria me julgar? – arriscou-
se a perguntar. – Ou deixar isso ao
Todo-Poderoso, que perdoa todos
nós por sermos o que Ele nos fez?
Debaixo da amoreira, ao lado do
meu genro, eu quase chegara a
renunciar à minha fé. Quem estaria
em posição de avaliar as minhas
provações e transgressões? Quem
teria o dom de curar uma ferida
impossível de ser cicatrizada?
Shirah provara a minha tristeza e
confiara em mim o bastante para se
revelar em troca. Se ela pudesse, e
Deus
permitisse, seria atendido o desejo
que meu genro trazia no coração.
Talvez então eu conseguisse me
perdoar.
PRATIQUEI a paciência durante
todo o mês de Tishri, pois não
manifestava essa virtude com
facilidade. Na verdade, a paciência
nunca me fora
suficiente no passado. Se tivesse
paciência, meus netos teriam ficado
ao lado do lago de água verde
quando os renegados nos
encontraram,
esperando como ovelhas para serem
abatidas. Se tivesse paciência, os
assassinos da minha filha ainda
estariam andando sobre a terra.
Pensei no
meu marido e em como ele esperava
a massa crescer, sem nunca se
apressar para colocar os pães no
forno. Ele sabia o momento exato de
tirar
as coberturas de linho dos pães
crescidos, quando introduzir a tábua
de madeira no forno em brasa. Era
como se fosse tanto a challah como
o criador, e, portanto,
compreendesse seu mistério de
dentro para fora.
Comecei a observar o escravo mais
atentamente. Ele também era um
homem profundamente paciente.
Esperava sem reclamar todas as
noites,
acomodado sobre as pedras do
pombal, aguardando pelo retorno de
Yael
no dia seguinte, tão calmo como as
pombas que esperavam pelo nosso
retorno. Mas eu reparava no calor
dos seus olhos claros; ele não
conseguia
esconder isso. Até mesmo a sua
paciência tinha limite.
A estação do ano era inclemente e o
calor não se dissipara. Eu tinha
dificuldade para pegar no sono,
embora as outras pessoas sob o meu
teto
dormissem bem, incluindo Arieh, já
com mais de dois meses de idade,
um
menininho saudável e tranquilo. Uma
noite em que arrumava o nosso
alojamento, colocando palha nova
nos estrados de dormir, olhei para
fora,
atraída por um movimento ao lado
da porta. Notei uma sombra, como
fizera no oásis quando as manchas
sombrias dos soldados projetaram-
se
sobre a areia. Esse era o meu
talento. Era capaz de observar o que
mal começara a se manifestar aos
olhos: os homens ferozes no alto da
montanha, um rato em um canto, a
mulher encontrando-se com seu
amante, o frasco de veneno atrás dos
potes de especiarias, a forma fugidia
de um homem esgueirando-se no
lado de fora do nosso alojamento.
Pensei
que se tratasse de um espírito
ressurgido que caminhasse entre nós,
depois
de ter abandonado o corpo
entorpecido. Mas, não, era uma
pessoa de carne
e osso.
QUANDO o reconheci, entendi que o
Homem do Norte não era tão
paciente quanto eu imaginara. Quem
sabe isso se aplicasse a todos os
homens. Então
me lembrei de que realmente havia
dias em que o padeiro amaldiçoava
os
fornos por serem lentos, quando
tirava os pães das prateleiras antes
de estarem totalmente resfriados.
Até mesmo a pessoa mais paciente
entre
nós tem um ponto de limite. Nessa
noite, quando vi a figura
esgueirando-se
ao longo da parede, concluí que
chegara esse momento para o
escravo. Ele
usava um lenço na cabeça para se
disfarçar, mas qualquer um diria que
não
era um de nós. Seu cabelo louro
brilhava. Podia-se pensar que um
homem
do mundo do gelo tivesse pouco
sentimento, mas esse não era o caso.
Quando lhe batesse a impaciência,
era como o gelo aquecido, pronto
para
derreter.
O Homem do Norte teve a sorte de
só ser visto por mim. Qualquer outra
pessoa que o descobrisse cairia
sobre ele imediatamente e, mesmo
que se
rendesse no mesmo instante, se a
pessoa decidisse matá-lo o teria
feito sob
seus direitos legais. Acenei-lhe para
que se fosse, batendo palmas, como
faria para afugentar ratos. Ele se
colou contra a parede, mergulhando
na escuridão, desaparecendo, como
se fosse o personagem de um sonho.
Mas,
ao contrário de um sonho, ele deixou
sua marca. Quando à meia-luz me
aproximei da parede e passei a mão
sobre as pedras, encontrei-as
quentes
ao toque no lugar em que ele
esperara, motivado pela impaciência
perceptível em todo homem
apaixonado.
Na manhã seguinte, enquanto
acompanhava Yael pelo campo, ela
seguia
com a atenção voltada para o
pombal, onde a sombra que a
espreitava
habitava. Eu andava em um ritmo
mais lento que o dela e notei sua
impaciência quando me pediu que
me apressasse.
– As pombas não podem esperar? –
perguntei.
Ela corou e começou a mexer com o
bebê que carregava no quadril.
– Meu querido – disse ela,
cobrindo-lhe os olhos e esfregando a
pele macia sob o queixo de Arieh.
– Existe uma razão para você estar
tão impaciente? – insisti com ela.
Yael fitou-me hesitante. Percebi a
mentira se formando antes mesmo de
ser declarada.
– Não estou com pressa – ela
respondeu, mas seu olhar dizia o
contrário.
Foi então que entendi que fora ela a
pessoa que deixara as correntes do
escravo destrancadas.
Ela o estava tratando como um
homem.
Eu falei que tinha uma pedra presa
na sandália. Parei para tirá-la,
dizendo que não poderia andar com
uma pedra na sandália mais que um
escravo poderia tornar-se um de
nós. Olhei para Yael, que me
pareceu
nervosa, irritada com o comentário.
– Acha mesmo que ele vale menos
que nós? Que não é nada mais que
uma pedra?
Dizia-se que os anjos procuravam os
seres humanos para confortá-los.
Como deveriam ser solitários,
trancados no silêncio de seu mundo.
Mas um
ser humano ardia entre seus braços,
com o corpo em chamas, e a
bondade
de tais criaturas poderia tornar-se
maldição. Ali naquela montanha a
indiscrição de Yael seria
considerada traição.
– Se o encontrarem solto, vão matá-
lo – avisei. – Se você soltá-lo,
estará
facilitando a morte dele. Acha
mesmo que ele fará o que
mandarmos se estiver sem as
correntes? Ele vai querer mais,
como qualquer outro
homem.
Yael admitiu em voz baixa que o
Homem do Norte comentara sobre
os
seus planos de fuga. Ele sabia de
outros que conseguiram escapar.
Vários de seus companheiros
recrutas tinham abandonado a legião
e depois
atravessaram o Grande Mar, no
entanto muitos haviam desaparecido
depois de chegar a Jerusalém.
Fiquei em silêncio, imaginando se
ele poderia
ter conhecido os animais que nos
atacaram, talvez os tivesse
considerado amigos.
Quando o Homem do Norte fazia
seus discursos inflamados sobre a
liberdade, eu desconfiava que ele
estivesse tentando convencer Yael a
fugir
também. Ele insistia em que os
romanos logo cairiam em cima de
nós – e
era verdade que avistávamos cada
vez mais espiões na região. Em
pouco tempo seríamos escravos, o
Homem do Norte afirmava. Mas
talvez ele
tivesse esquecido que, se Yael
deixasse o pombal, não estaria
sozinha. Ela
me dissera que jamais voltaria ao
deserto, onde havia deixado ossos
sob pilhas de pedras, brilhando
muito brancos no calor, restos do
homem que
amava.
Eu sabia sobre o leão que a mordera
e possuíra. Ela divagara sobre ele
quando parara nos degraus da
escada para respirar na noite em que
dera à
luz seu filho. Embora nunca mais
voltasse a falar sobre isso, eu sabia
que ela não pretendia levar outro
leão ao deserto. Se o Homem do
Norte
estivesse planejando fugir, teria de
fazê-lo sozinho.
Não fiz mais nenhum comentário
quando os vi trabalhando juntos.
Virei-
me quando ele lhe entregou um
cobertor e um saco de pele de cabra
com
água. Ela não era minha filha,
embora lhe tivesse permitido usar os
bens do
padeiro, os frascos de coentro e de
cominho, as colheres de madeira, o
avental que ele amarrava na cintura.
Eu chorara sobre essas coisas antes
e
o faria de novo, não importando se
Yael arruinasse ou não o que restara
de
sua vida servindo ao escravo. Ela
devia tratá-lo como uma simples
pedra na
sandália. Em vez disso, ela o via
como homem.
Quando eles saíram para ir ao que
restava dos pomares, árvores que
não
tinham sido cortadas para lenha e
ainda davam frutos, o falcão os
acompanhou, dedicado, não se
desviando do topo da montanha.
Observei
suas sombras se estenderem por
todo o campo e depois
desaparecerem
quando uma nuvem passou no alto.
Tive certeza de que esse era o sinal
da
infelicidade próxima. Talvez já não
acreditasse na bondade e
desconfiasse
dela. Passara a considerar a
compaixão como uma faca nas mãos
dos anjos
do infortúnio.
EM UMA NOITE de shabat, o
conselho anunciou que não traria
mais recrutas ou escravos para a
fortaleza depois de uma batalha,
mas, em vez disso, os mataria,
juntamente com seus senhores.
Vários recrutas romanos tinham
sido capturados e já trabalhavam
com os burros que carregavam os
barris
de água. Mal havia comida
suficiente para os moradores, não
podíamos
alimentar mais bocas. O que era um
escravo senão uma pedra?, o povo
murmurava. Exatamente como eu
dissera. Observei Yael atentamente
após
a proclamação; ela franziu a testa e
olhou para o conselho alarmada,
enquanto os escravos entre nós eram
denunciados.
– É um pecado manter as pessoas
assim – disse-me ela, em um
evidente
impulso de emoção, quando saímos
da praça.
– Imagino que não vai ouvir a minha
recomendação – murmurei.
Ela riu e enlaçou o braço no meu.
– Vou ouvir – ela me garantiu.
– E depois vai fazer o que quiser –
observei.
Rimos juntas, então me mantive em
silêncio, porque percebi o quanto
temia por ela naquele mundo
perverso. Embora não fosse minha
filha, eu me preocupava como se
fosse.
NA MANHÃ seguinte, vi que Yael
trouxera um arco e várias flechas
para o Homem do Norte, uma para
cada uma das sete irmãs que se
reuniam como
estrelas no céu. Ela escondera tudo
sob a túnica, mas reconheci a forma
da
arma pela sua sombra quando ela a
guardou debaixo de um monte de
palha. O arco era um que o irmão
dela carregara. Quando ele desse
por falta
dele, questionaria os amigos no
quartel e nenhum se lembraria de tê-
lo visto desde sua visita recente à
irmã. Essa fora a sombra que eu vira
sobre
o campo enquanto o gavião pairava
acima deles. Ela se dispunha a fazer
demais por um homem que não
significava nada nessa montanha e
não
deveria significar nada para ela
também.
– Não me diga quando vai acontecer
– ouvi-a dizer quando estava ao
lado dele. – Chegarei uma manhã e
você terá ido embora.
O Homem do Norte estava ciente de
que tinha um rival, mas, ao
contrário da maioria dos
pretendentes, não estava com ciúme.
Ao
contrário, adorava o concorrente,
nosso pequeno leão. Poderia ter-se
ressentido de Arieh pela alegrias
que proporcionava à sua mãe em
seus braços, mas em vez disso
ficava feliz em ajudá-la a divertir o
filho, levantando-o para ver o falcão
acima de nós. Ele assobiava de um
modo que
fazia o pássaro mergulhar, o que
levava o bebê a jogar a cabeça para
trás e
rir. Com frequência, o escravo
relacionava os nomes das coisas em
sua própria língua áspera, tentando
ensinar Arieh como dizer pomba e
falcão, e também mãe e neve, como
se convencido de que a criança
pudesse um dia viver naquela terra
fria de onde viera e falar como ele.
– Está desperdiçando seu tempo –
avisei enquanto ele apertava Arieh
nos braços e, em seguida, jogava-o
no ar, até que a criança se derretesse
de
tanto rir.
Então um dia ele disse à criança o
seu nome. Trabalhávamos tão
próximos uns dos outros que todos
entreouviram. Era Wynn, uma
palavra
áspera que ficava presa na garganta.
Shirah e Aziza trocaram um olhar,
surpresas com o fato de o escravo se
revelar assim. Ele se dirigira a
Arieh
da maneira que um homem falaria ao
próprio filho. Eu sabia que o
momento de sua partida chegara. Um
escravo nunca pronunciava o
próprio
nome em voz alta; depois de ser
capturado, não deveria dizê-lo
enquanto não entrasse no outro
mundo. Seu nome era para ser uma
palavra
conhecida apenas pelos parentes que
o esperavam e por fosse qual fosse o
Deus que ele venerava.
Apenas um homem livre correria
esse risco.
Todas as noites eu esperava,
segurando o bebê, enquanto Yael se
abaixava dentro do pombal e abria
as correntes. Era um cadeado
simples; a
chave ficava pendurada em um
gancho martelado na parede do
pombal. E
ainda assim demorava algum tempo
antes de Yael surgir, alisando o
cabelo.
Ninguém mais espionaria sua
sombra, nem saberia como era
atraída para
aquele homem, mas as sombras eram
o meu dom. Porque ela não era
minha filha, eu ficava com o bebê,
zangava-me, mas não dizia nada.
Essa era a época do ano em que a
noite chegava mais cedo, lavando
todo
o céu para inundar os cantos do
horizonte. Todas as noites em que
Yael deixava o escravo, sua
expressão era sombria.
Ela explodiu na noite em que se
divulgou um decreto informando que
as
rações seriam reduzidas a metade e
que não haveria mais água pura para
os animais ou escravos.
– Ninguém deveria ser tratado dessa
maneira.
– Seria melhor se o matassem? –
perguntei.
– Quando os homens agem como
animais, se tornam como eles – ela
respondeu.
Eu não poderia negar isso, então
deixei passar.
– Este é o mundo em que vivemos –
murmurei, e ela pegou a minha mão,
como se fosse realmente minha filha.
YAEL NÃO ESTAVA sozinha na sua
infelicidade. Todos sentimos as
limitações da montanha, a falta de
alimentos, a inveja por ninharias.
Muitas das ovelhas e
cabras valorizadas pelo leite foram
mortas por necessidade. As pessoas
estavam passando fome. Os brotos
das videiras murchavam com as
rajadas
de calor, transformando-se em
cinzas, como se dizia que as frutas
se
tornaram na cidade arruinada de
Sodoma.
O conselho permitiu que um grupo
de viajantes se instalasse no campo
distante, para além da casa dos
essênios no celeiro de cabras. Eram
nômades que tingiam as mãos de
azul e falavam em sua língua, mas
trouxeram consigo seus animais para
compartilhar conosco, embora não
tivéssemos nada a ver com os
porcos que criavam. Eles também
tinham
sido expulsos pelos romanos.
Algumas de suas mulheres, as que
haviam
sido violadas pelos soldados,
tinham aberto talhos profundos nas
palmas das mãos e nas solas dos
pés, para que a tristeza lhes saísse
do corpo.
Quando partiram de volta ao
deserto, pois seus rebanhos
necessitavam
de pastagens, encontramos um bebê
que resultara da união forçada de um
soldado romano com uma de suas
mulheres. O bebê fora sufocado,
depois
deixado embaixo de uma
amendoeira, os joelhos contra o
peito, os
bracinhos dobrados, como se
dormisse em paz, resgatado da
dureza do
mundo. Yael ficou ao meu lado e
chorou. Ela vira duas filhas-noivas
da mesma tribo enterradas em seu
caminho no deserto. Disse que
estavam de
mãos dadas, para poderem seguir
juntas para qualquer que fosse o
mundo
que as esperava.
Muitos dentre nós desejavam que
pudéssemos fugir e encontrar um
caminho de volta para as cidades e
vilas. Mas não havia nada para onde
voltar. Nossas casas tinham sido
queimadas, nossas cidades,
destruídas.
Imaginei se Yael queria poder
escapar e atravessar o deserto, o
Grande Mar, em direção ao mundo
em que a neve era uma ocorrência
diária em vez
de um milagre.
Vi meus netos brincando perto da
muralha como sombras filtradas
através da escuridão crescente.
Minha garganta se fechou como
sempre
acontecia quando os observava.
Pensei no bebê sufocado e depois
deixado
ali, com cuidado e carinho, para
descansar. Yael enroscou o braço no
meu,
pois passávamos todas as noites
juntas. A primeira estrela apareceu
acima
de nós, aquela que diziam ser a
lanterna de Astarte, que arde com
tamanho
brilho que lhe permite cruzar o céu
quando todos os outros estão presos
na
escuridão.
AS SENTINELAS o capturaram em
uma noite do mês de Cheshvan,
quando o ar estava vitrificado de
frio. Era o início da estação
chuvosa, a época do ano em que
vivíamos sob o signo do escorpião,
que trazia transtorno e tristeza,
o período das inundações. No
entanto, o céu pairava sobre nós
como uma
tigela vazia, deixando cair as trevas
e nada mais. Não houvera chuva e
todos sabíamos que isso era um
sinal de que o nosso povo não
contava com
o favor de Deus.
Os guardas caíram sobre ele quando
atravessava o campo em que as
árvores erguiam seus ramos para o
alto, desesperadas de sede. Estava
próximo da parte da muralha que
contornava o alojamento, o local
onde deixara sua marca de calor
sobre as pedras na noite em que o
vira
esperando, talvez com paciência,
certamente com desejo.
Não falamos sobre isso, mas todas
sabíamos que, caso estivesse se
dirigindo para o Portão da Serpente
a fim de tentar a fuga, não teria
vindo
naquela direção. Só havia uma razão
para ser preso no jardim das
cebolas,
onde morava o escorpião, e essa
razão era Yael. Talvez ele tivesse se
convencido de que, se lhe falasse
mais uma vez, e se as palavras
fossem fortes o bastante, conseguiria
que penetrassem sua determinação e
ela,
quem sabe, se dispusesse a nos
deixar.
Só viemos a saber que fora
capturado pela manhã. Soprava uma
brisa
forte que trazia o cheiro da mirra e
também do perfume do cipreste,
lembrando-me do vale em que
vivera no passado. Costumávamos
ter chuva
nesse mês, mas até agora nenhuma
gota caíra, embora os sacerdotes
orassem por tal ocorrência três
vezes ao dia. As pessoas se
lembravam das
histórias da grande seca, quando um
sábio chamado Honi atraíra a chuva
e
salvara o nosso povo. A situação
justificava um milagre e pedia a voz
de alguém que pudesse ser ouvido
ao clamar a Deus.
Ao saber da notícia da prisão do
escravo, Yael apoiou-se contra a
parede
do pombal, como se tivesse levado
um golpe, e não fosse capaz de ir
adiante. O bebê, que estava
amarrado a ela, remexeu-se no sono
e fez menção de choramingar.
Rapidamente, Yael acariciou-lhe o
cabelo escuro
para acalmá-lo. Qual seria um sonho
de criança? Leite e amor, a
linguagem
dos cuidados da mãe, a voz de um
homem que nasceu na neve? Esse é o
tipo de sonho que nunca se terá
novamente. Nosso descanso é
formado
pela vida que levamos em vigília e a
vida em vigília é formada pelas
nossas
tristezas.
Ninguém nos disse onde o escravo
estava, mas, quando vimos o falcão
circulando o alto de uma torre,
soubemos que era para lá que o
tinham levado. Teriam acabado com
sua vida, mas não valeria a pena o
esforço. Se
o deixassem em paz, trancado e
esquecido, morreria por conta
própria. Vi o
olhar de Shirah voar na direção de
Yael, que naquele momento se
esforçava
para não revelar nenhuma expressão.
Nenhum estranho diria que ela
sentia mais do que todas nós, a não
ser que percebesse que ela se
tornara
tão pálida que as sardas de sua pele
se destacavam como uma tela
respingada de sangue.
Mantivemo-nos reservadas naquele
dia, lamentando a ausência do
escravo, com os nervos à flor da
pele e à espera da pior notícia. Eu
mesma
não esperava sentir a falta dele com
tanta intensidade como senti. Ele era
um homem corpulento e ocupava
tanto espaço que o pombal agora
parecia
completamente vazio sem a sua
presença. As aves mostravam-se
instáveis;
haviam poucos ovos a ser
encontrados e os que descobrimos
na palha
tinham manchas escuras tingindo a
casca azul-acinzentada, um mau
presságio. Fizemos a nossa refeição
do meio-dia juntas no jardim atrás
do
pombal, em silêncio, dando
pequenas mordidas nos bolos de
cevada frios com azeite de oliva,
enquanto esperávamos pelo que
aconteceria em
seguida. Era como se uma pedra
tivesse caído na água e cada círculo
que se
espalhava mudasse a maré da nossa
sina ao longo do curso de um destino
inevitável. O dia de hoje não era
como o que viera antes; amanhã
seríamos
levadas para ainda mais longe do
mundo cotidiano com que nos
acostumáramos.
Quando os guardas chegaram para
nos interrogar, como sabíamos que
viriam, dissemos que ficáramos
chocadas com o desaparecimento do
escravo. Não tínhamos ideia de que
ele aprendera o truque de destravar
as
correntes ou que soubesse como
abrir o ferrolho da porta. Shirah
encontrara uma lingueta de aço
torcido que rapidamente curvou para
que
se parecesse com uma chave.
Entregou-a aos guardas, sugerindo
que talvez
fosse dessa maneira que o escravo
conseguira escapar. Olhou
rapidamente
para Yael, a quem se esforçava para
proteger contra a investigação. De
novo, o rosto de Yael estava em
branco.
Fomos em frente, dizendo mais,
cacarejando como galinhas,
insistindo
que pensávamos que homens do
norte eram obstinados e estúpidos,
incapazes de planejar uma fuga.
– Mas vejam como ele foi
inteligente – Shirah disse aos
guardas,
balançando a cabeça – para fazer
uma chave de quase nada.
– Ele vai morrer de fome em breve –
disse um dos guardas, talvez
acreditando que fosse a notícia que
quiséssemos ouvir.
Shirah perguntou se uma de nós
poderia falar com o prisioneiro,
dizendo que ele inventara um
ancinho que era útil e que queríamos
aprender os seus métodos para
poder fazer uso da ferramenta por
nossa conta. Yael fitou-a com
gratidão, ciente de que essa
disposição seria uma oportunidade
de levar comida e água para a torre.
Havia apenas uma
pessoa que poderia permitir esse
encontro, o nosso líder, Ben Ya’ir.
– Informem-lhe do nosso desejo –
disse Shirah sem hesitação. – Ele
será
generoso conosco.
Mas Ben Ya’ir partira para o
deserto com seus guerreiros, não
deixando
um segundo em comando a não ser
os anciãos, e eles certamente não
ouviriam os apelos de Shirah ou
mesmo permitiriam que passasse por
suas
portas.
Fomos informadas de que somente
uma pessoa seria capaz de
convencer as autoridades de que o
Homem do Norte merecia receber
um
visitante – a esposa de Ben Ya’ir,
Channa, a mulher morena que
morava na
área inferior do Palácio Ocidental,
uma casa com afrescos criados
pelos pintores de Roma. Ela detinha
parte da autoridade do marido
quando se tratasse de assuntos
domésticos, ouvindo queixas sobre a
distribuição de espaço ou de
trabalho entre as mulheres. Ela era
respeitada ainda que se mantivesse
distante de todos os outros. Durante
alguns dias, em
determinadas ocasiões, ela se
recusava a abrir a porta; sua ração
de comida
era levada até ela e então deixada no
lado de fora da sua porta, a água que
lhe cabia disponível ao lado de seu
jardim, em baldes e recipientes de
pele
de cabra. Ela se aventurava a sair à
noite e às vezes era vista na Praça
Ocidental, os lenços esvoaçantes
enrolados em volta do corpo
assemelhando-se a uma mortalha, o
rosto afilado contrito como se
estivesse de luto, embora não
tivesse perdido ninguém. Ela era um
mistério
e uma sombra, mas mais que tudo eu
entendia de sombras.
Quando dissemos o que queríamos,
o guarda perguntou qual de nós
visitaria a esposa de Ben Ya’ir.
Senti a hesitação das outras, e até
mesmo Shirah virou-se para o lado,
com medo de tal encontro. Vi-me
oferecendo-me para ir. Era a mais
velha e por isso era o meu dever.
Mas havia mais que
isso. Eu era a adivinha das sombras
que tinha aprendido a não mostrar o
que ia por dentro. Poderia fingir ser
viúva de um padeiro, uma mulher
simples, e tinha talento para o
disfarce que poderia ajudar nessa
tarefa. As
outras mulheres me fitaram, gratas
pela minha oferta, cada uma com
seus
próprios motivos para não querer ir
ao palácio.
No momento de sair, por impulso,
decidi levar Arieh comigo. Tive
uma
premonição. Pensei ter ouvido uma
voz dizer o seu nome. Talvez o anjo
que
me visitara na padaria estivesse ao
meu lado novamente. Talvez o
mesmo
que me instruíra a pegar o frasco de
veneno agora murmurasse que essa
criança poderia ser a chave para
destrancar a porta da prisão.
– Quem negaria um sorriso a Arieh?
– disse a Yael. – Que mal pode
fazer?
A esposa de Ben Ya’ir poderia ter
interesse no bem-estar dos pombais
se
também tivesse uma queda pelo
bebê. Se assim fosse, quem sabe nos
permitisse visitar um homem que
nada mais era que uma pedra, mas
que
mesmo assim nos confiara seu nome.
QUANDO BATI na porta do palácio,
a esposa do grande homem foi
rápida em gritar Vá embora. Voltei
a bater. Muitas vezes precisava ir
cobrar clientes que se esqueciam de
pagar ao padeiro e não desistia
facilmente quando diziam para eu ir
embora. A porta da casa grandiosa
era feita de cipreste vermelho, o que
considerei um bom presságio.
Diziam que a nossa cidade
no Vale dos Ciprestes fora
abençoada pelo anjo Miguel; talvez
a madeira usada na porta tivesse
vindo da nossa floresta e, portanto,
também fora abençoada. A bisavó
da minha mãe poderia ter caminhado
embaixo dos
ramos daquela árvore muito antes de
ser cortada pelos construtores do rei
Herodes.
Arieh contorceu-se nos meus braços.
Um vento soprou e em um instante
senti um calafrio. Talvez tivesse
cometido um erro em trazer o bebê,
pois
ele era sempre tão bem-humorado e
calmo. Agora, com a luz do dia
diminuindo, ele se remexia como
nunca. Pensei que uma mulher
jamais
poderia saber se fora um anjo que
lhe pedira ou se um dos demônios de
Lilith lhe sussurrara ao ouvido.
Apesar de insegura e preocupada de
que tivesse cometido um erro, bati
novamente. Não havia sombras
porque as nuvens passavam
correndo;
talvez fosse isso que tinha me
levado ao erro. Eu era capaz de
interpretar
muito melhor as sombras do que a
carne e o sangue.
A esposa de Eleazar ben Ya’ir abriu
uma fresta da porta, suficiente para
espreitar o lado de fora. Ela era
magra e morena, e tinha uma
expressão aborrecida.
– Não tenho tempo para você – me
disse ela.
Ela teria partido com a desculpa, e
talvez conseguido me mandar
embora, mas seu olhar recaiu sobre
o bebê nos meus braços. Ele sorriu
para ela, a marca afogueada na sua
bochecha dificilmente perceptível na
penumbra da porta. Parecia a marca
de um beijo.
– Quem é esse que veio me chamar?
– a esposa de Ben Ya’ir perguntou,
seu interesse despertado.
– Esta é uma criança cuja mãe
precisa de um favor seu – respondi.
Channa estava distante novamente.
– Não tenho nenhum favor a
conceder. É meu marido quem você
quer,
não eu.
Quando ela respirou, ouvi um som
áspero. Perguntei-me se a
dificuldade
de inspirar o ar era a razão pela qual
muitas vezes ela se fechava e
raramente era vista entre as outras
mulheres. Ela se virou e tossiu,
expelindo sangue, que escondeu de
mim em seu lenço. Mas eu vira a
sombra da mancha. Era evidente que
ela sofria de uma doença
respiratória,
do tipo que forçava a pessoa a
abandonar o ar livre. Cada
respiração ficava
retida dentro da gaiola das suas
costelas e não podia ser liberada.
Permanecia ali, chacoalhando, como
pães secos presos em uma rede.
– Talvez eu tenha um favor a lhe
conceder – eu disse.
Meu marido muitas vezes convencia
os fregueses a comprar mais pães
do que inicialmente pensavam ser
necessários. Você nunca passará
fome, dizia-lhes. A sua mesa será
invejada por todos. Sempre era
possível chegar a um acordo. Se na
padaria era sempre assim, por que
não na porta do
palácio?
A esposa magra e morena de Ben
Ya’ir me fitou, desconfiada. Seus
lábios
estavam brilhantes de sangue.
– Ninguém pode me ajudar.
Assegurei-lhe que alguém poderia.
Gostaria de oferecer a prova de que,
para cada doença, havia realmente
uma cura. Quando me virei para
sair, Channa disse-me para trazer o
bebê se fosse voltar. A minha
previsão
estava correta. Ele era a chave da
porta que permitiria ao Homem do
Norte
escapar daquela situação.
ENCAMINHEI-ME diretamente ao
alojamento de Shirah e sentei-me à
sua mesa.
Compartilhamos um chá feito da raiz
seca do hissopo. A água fervida
tingiu-
se de azul-celeste. Havia um prato
de frutas secas, passas e figos. Os
meus
netos ficaram no pátio com Adir, o
filho de Shirah, juntamente com o
menino dos essênios, Yehuda, o
filho de Tamar que se tornara grande
amigo de Adir, embora seu povo
ordenasse que mantivesse distância
e se
concentrasse nos estudos. Todos se
revezavam para rodar o pião,
portanto
tivemos privacidade.
– Ela falou com você? – Shirah
tentava parecer desinteressada do
assunto, mas seu olhar era intenso. –
Ela tranca a porta para a maioria.
Perguntei-me como era possível que
os outros não vissem a verdade
como eu via. Será que não tinham
reparado na cor incomum dos olhos
de
Aziza? A sombra não era diferente
do Mar de Sal, mudando com o seu
humor, uma hora cinza, outra verde,
depois escura como pedra. Apenas
outra pessoa tinha esses olhos. Ante
a menção da esposa de Ben Ya’ir,
Shirah foi atingida pela dor. Quando
mencionei a doença de Channa, no
entanto, ela não pareceu surpresa.
– Quando o hissopo floresce, ela só
pode sair à noite, momento em que
as flores se fecham e seu perfume
evapora – Shirah informou-me. –
Ela tem
os mesmos horários que os ratos.
Shirah tomou um gole de chá, feito
da flor que causava o mal da esposa
de Ben Ya’ir. Ela me pareceu gostar
muito do sabor acentuado.
– Não sabia que você a conhecia.
Shirah riu sombriamente.
– Nunca estive com ela.
Pensei em como era possível Shirah
não conhecer essa mulher, mas
ainda assim estar familiarizada com
os detalhes mais íntimos de sua
vida.
No nosso mundo, um homem casado
podia deitar-se com uma mulher
solteira e ninguém pensaria o pior a
seu respeito por isso; ele poderia
ser
obrigado a pagar à família da mulher
pela sua vergonha. Mas a mulher que
se entregasse a um homem não teria
direitos legais. Até mesmo seus
ossos
seriam condenados a jazer sozinhos
se ela fosse condenada por qualquer
crime; ela seria expulsa e deixada
insepulta, para que nunca
encontrasse descanso entre os da
própria espécie.
– Channa tem o poder de abrir a
porta da prisão – lembrei a Shirah. –
Ela
poderia estar disposta a fazê-lo em
troca de um remédio.
– Então pagamos o carcereiro –
Shirah disse de mau humor. – É isso
que
você quer de mim?
– É isso que ela é? – Quando a
esposa de Eleazar ben Ya’ir me
espiara por trás da porta, ela me
parecera mais prisioneira que
carcereira. – Tenho
pena dela.
– Não se deixe enganar – Shirah
advertiu-me. – O que vemos na terra
é
tudo o que existe? Você compreende
que existe um mundo de sombras.
Será que não consegue reconhecer
um demônio mesmo que não possa
vê-
lo ou sentir a respiração dele em sua
pele?
Shirah convenceu-se a encontrar um
remédio, pois não havia outro
recurso. Foi até a prateleira em que
guardava as ervas. Havia feixes
castanhos atados por um cordão e
recipientes com pós, cardo e alho,
absinto e canela. Quando voltou,
estendeu-me uma bolsa de couro
com
mirra esmagada. Suas instruções
eram simples: não devia deixar a
chama
do fogo muito brilhante ou adicionar
outros ingredientes à mistura quando
a presenteasse à esposa do nosso
líder. Medicamentos como esse
eram
fortes e, portanto, perigosos.
Poderia ocorrer a morte caso não se
tivesse cuidado.
– Se ela inspirar faíscas, pode ser
que nunca mais volte a respirar –
comentou Shirah enquanto fechava o
cordão da bolsa. Havia certo deleite
em seu tom de voz.
Estendi a minha mão para a de
Shirah, a fim de contemplar a sua
palma.
Eu não era muito educada em tais
questões, no entanto havia um sinal
que
conhecia muito bem. A marca que eu
mesma carregava, que denunciava
assassinos, uma marca que se
gravara na minha carne no dia que
me
tornara o que era agora. Fiquei
aliviada ao descobrir que a mão de
Shirah
era livre de tal abominação.
– Achou que veria o sangue dela nas
minhas mãos? – indagou Shirah,
recuando. Ela riu, bem consciente do
que eu estava procurando. – Se
quisesse fazer isso, poderia ter feito
quando era menina.
A informação era inesperada.
– Você a conhecia naquela época?
– Não a conhecia mais do que
conheço agora. – Shirah guiou-me
até a porta. – Se quer que ela aceite
este remédio – murmurou,
entregando-me a
erva preciosa –, não lhe diga onde o
encontrou. Se ela tivesse a minha
vida e
eu a dela, ela faria exatamente o que
você pensou que eu faria. Se quer
olhar a mão de alguém em busca da
marca da morte, olhe na dela. –
Shirah
acenou para Arieh, que agora
cochilava nos meus braços. – Leve-
o para Yael antes de voltar ao
palácio.
– Por que acordá-lo? Vou levá-lo
comigo.
Shirah fitou-me. Era capaz de ver
dentro de mim e sabia que havia
algo
mais por trás da minha desculpa.
Admiti que Channa me pedira para
voltar
com ele.
– Quem não se encantaria com ele?
– disse, pois o nosso leão iluminara
a
nossa vida.
Shirah pareceu incomodada.
Normalmente ela parecia ser uma
garota,
não mais velha que Aziza, mas
naquele momento ostentava sua
verdadeira
idade, uma mulher que atravessara o
deserto não uma vez, mas duas, que
trouxera três filhos ao mundo e fora
marcada com as tatuagens proibidas
quando era pouco mais que uma
menina.
– Leve-o, se necessário. Mas, não
importa o que fizer – alertou Shirah,
e
nisso foi muito clara –, não a deixe
segurá-lo.
RETORNEI AO PALÁCIO e parei
em frente à porta finamente
trabalhada. Dessa vez, Channa abriu
a fechadura antes de eu bater na
madeira, já esperando,
curiosa, os olhos brilhantes. Sua
respiração estava rouca e ela
agarrou o peito, sob os efeitos da
sua doença. Ainda assim, animou-se
com a visão da
criança adormecida e apressou-se a
me convidar para entrar.
Atravessei o umbral da casa do
nosso líder com humildade. Sentia-
me
aliviada por Ben Ya’ir encontrar-se
no deserto com seus homens, para
não
ter de me curvar diante da sua
grandeza ou arriscar-me a, na sua
sabedoria,
ele me reconhecer como uma
assassina.
Acompanhei a minha anfitriã
passando pelos afrescos, muito
elogiados
por todos que os viam, e por boas
razões. Tinham sido pintados sobre
o gesso com tons gloriosos de
laranja, vermelho e dourado. Apesar
de
desbotados, sem dúvida nenhuma
eram obra de um mestre. As sete
irmãs
que os gregos acreditavam mover-se
através do céu em uma explosão de
estrelas tinham sido pintadas no alto
da parede, realistas na sua forma
humana, juntamente com a Lua, a
mulher mais bela de todas, com um
vestido prateado com fios dourados
correndo por todo o seu traje; tão
real
que os fios pareciam ter sido
costurados no tecido pintado.
Lampiões
iluminavam o corredor escuro e o
cheiro era de puro azeite de oliva
queimando. O aposento em que
entramos era bem-decorado,
mobiliado
com mesas e bancos deixados pela
casa real. Lembrei-me das nossas
esteiras de palha, dos nossos
cobertores de pano grosso, dos
nosso pisos sujos.
Pedi à minha anfitriã que buscasse
um prato e alguns gravetos. Depois
que ela trouxe o que pedira, retirei a
mirra que Shirah me dera. Arieh
ainda
cochilava, por isso o acomodei em
cima de um tapetinho tecido. Depois
disso, acendi os gravetos com a
pedra que trazia. Quando o fogo
pegou, disse a Channa o que deveria
fazer. Deveria inclinar a cabeça
sobre a fumaça e eu ia cobri-la com
um xale, de modo que a fumaça não
escapasse.
Deveria respirar profundamente e
manter a fumaça dentro de si pelo
tempo que conseguisse reter o
fôlego.
Channa recuou, com medo de
sufocar até a morte com a fumaça.
Parecia
ter medo de mim, quem sabe em
função dos crimes que eu cometera.
Mas
eu não estava ali para fazer o mal.
Trouxe Arieh de volta aos meus
braços e
escondi a marca do meu pecado
enfiando a mão por dentro da túnica
do bebê adormecido, esperando não
o manchar simplesmente por tocá-lo.
– Inspire e o caminho ficará
desimpedido – prometi.
A esposa de Ben Ya’ir fitou-me com
reprovação, em seguida fez o que
lhe
dissera. Embora não confiasse em
mim, estava desesperada por ar,
dispondo-se a aproveitar a
oportunidade de que a cura não
poderia ser pior
do que a doença. Quando ela se
inclinou para a frente, cobri sua
cabeça com
um xale de tecido bonito e sentei-me
para observar. Seus suspiros e
tremores diminuíram enquanto ela
respirava a fumaça. Depois que a
mirra
se reduzira a cinzas, removi o xale
de sua cabeça. Channa inspirou
grande
quantidade de ar sem nenhum
bloqueio. Sua cor se transformara de
pálida
para rósea. O cheiro de mirra
prendia-se a tudo, uma fragrância
amarga na
sua forma mais pura. Examinamos
uma à outra até que o bebê acordou
e começou a brincar, feliz, com um
galho que caíra da pilha de gravetos.
– Falarei com os guardas sobre a
visita – disse Channa, pensativa.
Tive a
impressão, no entanto, de que seus
pensamentos estavam
verdadeiramente
em outros assuntos. – Farei o
possível pelo seu escravo.
Ela me conduziu de volta pelo
corredor, passando pelas luzes
alaranjadas e pelas sete irmãs na
parede. Quando a deixei, ela me
pediu a
promessa de que lhe traria mais
erva, para que pudesse ter acesso ao
medicamento antes de outro ataque
começar. Eu disse que faria o
possível
para conseguir o que ela precisava.
– Acho que você sabe onde
encontrá-lo – ela comentou. Depois
sorriu
tristemente, sem dúvida nenhuma
ciente de que não era eu quem
possuía o
conhecimento sobre tais recursos. E
acrescentou: – Diga à bruxa que sou
grata.
YAEL FOI AUTORIZADA a visitar o
Homem do Norte, levando uma cesta
de comida e um odre de água.
Mandaram-lhe falar com ele através
da porta, mas ela teve um vislumbre
dele quando abriram a cela para
empurrar as provisões para dentro.
Viu que tinham cortado sua barba e
seu cabelo e que
cordas e correntes haviam deixado
marcas de açoite sobre ele.
– Volte ao palácio – Yael insistiu
depois de retornar de sua visita
terrível.
Seu rosto estava inchado de raiva. –
Fale de novo com a esposa de Ben
Ya’ir.
Convença-a a insistir para que os
guardas permitam outra visita. Vão
matá-
lo em breve. O mínimo que posso
fazer é levar comida e água, e ver se
poderia curar as suas feridas.
Disse que teria mais sorte com a
esposa de Ben Ya’ir se levasse o
bebê
comigo.
Yael mostrou-se cautelosa. Nesse
sentido, ela era muito mais sábia que
eu.
– Por que ela se preocuparia com
um bebê cujo nome nem conhece?
– Ela é solitária, sem amigos. Não
precisa se preocupar. Parece que ela
gostou dele. Quem poderia culpá-la?
Yael aceitou o elogio. Correu a mão
sobre o cabelo preto de Arieh e o
abraçou com força. Mal conseguia
deixá-lo ir, mesmo que por algumas
horas.
– É difícil dizer não a um rostinho
como o dele – lembrei a ela.
– Por uma hora – disse ela. – Não
mais.
No dia seguinte, Yael ficou
cuidando dos meus netos enquanto
fui à casa
de Shirah a fim de conseguir mais
remédio para a respiração. Shirah e
Aziza
já tinham começado a preparar a
refeição da noite, mas Shirah
levantou-se
e encaminhou-se para a sua coleção
de ervas. Dessa vez, ela me deu
tanto
mirra quanto incenso – queimados
juntos, o remédio seria dobrado.
Quem
sabe, se a cura durasse mais tempo,
Channa não pedisse mais. Seria
melhor
manter distância dessa mulher,
Shirah murmurou. A esposa de um
homem
no poder poderia tornar-se ela
própria faminta de poder.
– Ela disse alguma coisa a meu
respeito? – Shirah perguntou.
Pensei que o melhor seria não
revelar a amargura dentro da
verdade.
– Nada. Só enviou a sua gratidão.
Shirah riu, mas seus olhos escuros
revelavam preocupação.
– A gratidão dela é uma maldição.
Lembre-se disso.
ENCAMINHEI-ME diretamente à
casa de Eleazar ben Ya’ir. De onde
me encontrava, podia ouvir os
homens trabalhando nos campos,
muito embora
a luz estivesse se desvanecendo em
faixas rosadas que chegavam até a
terra branca e empoeirada, tingindo-
a de vermelho. Os homens tinham
levado baldes de água das cisternas
na tentativa de salvar a colheita de
trigo, pois ainda não chovera. As
abelhas nas colmeias geralmente
fervilhavam nessa época do ano;
elas mergulhavam no ar em busca de
flores de narciso branco e ciclâmen
rosado. Mas nessa estação não
encontravam nada. Channa deixou-
me entrar quando cheguei e sem
demora arrebatou o medicamento de
mim. Eu lhe disse que não deveria
nunca acrescentar nada à mistura e
que as chamas deveriam ser
mantidas
constantes; demasiado calor tiraria a
força do remédio. Em troca, ela
prometeu que falaria com os
guardas. Então, ela hesitou.
– O escravo é o pai da criança? –
quis saber.
– Esta criança não tem pai – eu
disse.
Ela fez sinal para que eu pusesse a
criança em seus braços, mas segurei
o
bebê com força enquanto
permanecia no corredor cujo piso
era estampado
com azulejos pretos e brancos.
Vozes ecoavam. Irritada, Channa
acenou de
novo para mim. Eu sabia o que ela
queria. Pensei na advertência de
Shirah,
mas sabia o que era sentir a falta de
uma criança. Como Channa poderia
enfeitiçar-nos ou prejudicar-nos?
Ela era uma mulher magra e fraca
que vivia sob uma nuvem de doença.
Achei que não faria mal agradá-la
por um
instante. Pus Arieh em seus braços.
Imediatamente, ela foi dominada
pelo
seu encanto.
– Talvez ele precise de um pai –
disse ela sonhadora.
Rapidamente tomei-o dela, trazendo-
o de volta para meus braços.
– Ele tem uma mãe – informei. –
Não precisa de mais nada.
Channa sorriu.
– Todo mundo precisa de mais.
EMBORA nós todas nos uníssemos
para reunir o pouco de comida que
conseguíamos poupar, ficou
decidido que Yael seria a única a
continuar a visitar o Homem do
Norte.
– Ele sempre foi o seu escravo –
Aziza declarou.
Yael ergueu os olhos para ela,
magoada.
– Nenhum homem deveria ser
escravo.
Na volta de Yael à torre, abriram a
porta e permitiram que ela se
sentasse ao lado dele. Ela estava
tomada pela raiva, estarrecida com
as péssimas e brutais condições de
sua prisão, mas não diria nada.
Quando ele
inclinou a cabeça sobre o seu colo, e
ela acariciou o local em que o
cabelo
fora rapado de forma tão cruel,
percebeu que ainda havia gotas de
sangue
ao longo do couro cabeludo. Ela
levara um cataplasma de babosa e
mel, o
mesmo remédio que usara para a
marca de Arieh, e, se a pomada não
aliviava a dor, pelo menos dava a
impressão de que alguém tivera a
intenção de fazê-lo.
Channa cumprira a sua parte no
acordo, nisso fora honesta o
bastante.
Eu esperava que o bem-estar do
escravo valesse o preço que estava
sendo
pago, pois, a cada vez que Yael o ia
ver o escravo naquele mês de
escorpião,
eu levava o bebê à casa de Ben
Ya’ir e deixava Channa segurá-lo
em seus braços. Eu estava
desconfiada e preocupada. Nunca o
deixava fora da vista.
Todas as vezes lembrava à esposa
de Ben Ya’ir que a criança tinha
mãe.
Eu me convencia de que ela me
ouvia mas, na verdade, não escutava
uma palavra.
O NOSSO MUNDO foi punido com
a sede. Nessa época do ano, no mês
de Kislev, esperávamos que a terra
recuperasse a cobertura verde,
depois que os
campos haviam sido semeados e
regados, melões e abóboras já
crescendo
nas parreiras, os figos polinizados
pelas vespas egípcias. Essa
temporada foi diferente. Não haveria
cominho ou coentro nem alho-poró
ou anis. As árvores frutíferas
estavam nuas e pretas.
Embora os dias fossem sombrios e
usássemos as nossas túnicas, não
havia nenhum sinal da chuva muito
necessária. Era o momento de
espalhar
as sementes para a primavera,
depois arar os campos para enterrá-
las, os
burros puxarem as lâminas de metal
por toda a terra. Os homens
normalmente reduziam a cevada, que
era então amarrada em feixes e
espalhada pelo campo, para que o
gado pudesse andar sobre os talos e
debulhá-los. Mas, sem chuva, que
bem faria isso? Para joeirar a
cevada, era
necessário que o vento soltasse o
grão da palha, e o ar agora estava
sem vida e sem brilho. As sementes
deveriam ser plantadas em épocas
de chuva
para ficarem presas à terra, em vez
de secar e murchar antes de criar
raízes.
Os homens da sinagoga convocaram
a expiação pública e o jejum, na
esperança de que seu sacrifício
pudesse fazer a chuva cair. Fomos
chamados à praça para rezar por
perdão. As mulheres ficaram na
parte de
trás, para cuidar das crianças e dos
animais, se necessário. Os homens
se reuniram, abandonando suas
funções e tarefas, um mar de orações
sob o céu implacável. O sumo
sacerdote, Menachem ben Arrat,
geralmente
enclausurado no interior da
sinagoga, onde estudava e distribuía
conselhos,
apareceu para se postar sobre a
muralha e conduzir os homens nas
orações. Mas, por mais culto que
fosse, ele não foi capaz de fazer
chover, nem mesmo quando enterrou
doze frascos de chumbo com tampa
de
cerâmica sob os muros da sinagoga
para impedir que os demônios se
imiscuíssem em nosso meio.
Foi decidido que nosso povo
jejuaria até que Deus nos enviasse
algum
alívio. A seca tornara-se um martelo
e a sede do nosso povo era um prego
sob ele. No segundo dia do jejum,
alguns homens mais velhos estavam
tão
enfraquecidos pela fome que caíram
de joelhos, mas continuaram a orar
mesmo assim, os xales sobre os
ombros, cantando para um céu que
não
atenderia às suas orações, mas que
em troca dava-lhes apenas pó.
O jejum foi cancelado depois de três
dias. Nada mudara. Não tivemos
nenhuma escolha a não ser esperar
que Deus visse a nossa situação. As
folhas das videiras se enrolavam. As
azeitonas cresciam brancas e em
seguida caíam das árvores, fazendo
barulho sobre as pedras. As pessoas
começaram a murmurar sobre a água
que os essênios utilizavam para seus
rituais. Guardas foram postados
próximo ao celeiro das cabras para
ver que
ritos ali realizados poderiam
requerer água. Então, para não
chamar a
atenção sobre si, os hóspedes não
pediram mais água. Em vez disso,
passaram a reutilizar a água até que
as gotas derramadas sobre suas
cabeças para se purificar tornaram-
se negras como as penas dos corvos.
Quando Yael pensou que ninguém
perceberia, furtou um pouco da água
que separávamos para as pombas.
Um pouco ela deu para o escravo, o
restante ajudei-a a levar para a casa
de pedra, a fim de deixar nas mãos
de
sua amiga Tamar. Levamos também
algumas frutas e azeitonas murchas.
Nahara aproximou-se de nós
timidamente. A filha mais nova de
Shirah
parecia ter-se tornado uma mulher
adulta, séria, vestida de branco, com
as
mãos endurecidas pelo trabalho.
Perguntou sobre a irmã, mas não
disse
nada sobre a mãe. Notei que ela
olhava para o amuleto de ouro que
Yael usava no pescoço, depois
rapidamente desviou o olhar.
Em troca dos presentes de sustento
que leváramos, Tamar deu-nos uma
peça de tecido de puro linho que
suas mulheres haviam tecido.
Cobrimos a
mesa no shabat com o tecido quando
acendemos a lâmpada e proferimos
as
orações. Depois de termos estendido
o tecido de linho sobre a mesa,
quase
podíamos acreditar que o
alojamento era uma casa como
qualquer outra.
UMA NOITE, enquanto me
encaminhava aos teares, vi Ben
Ya’ir andando no pomar através de
uma miragem branca de poeira
esvoaçante. Ele retornara
das suas viagens ao deserto, seus
guerreiros trazendo consigo nada
além de
aves selvagens que tinham capturado
com redes, como faziam as meninas.
As provisões estavam menores que
nunca, nosso povo, profundamente
perturbado. Pude ver o peso que
nosso líder carregava nos ombros
pela sua
postura, o destino de todos nós
dependendo de suas palavras e atos.
Onde outro poderia ver apenas
escuridão, notei a sombra da esposa
de
Ben Ya’ir, observando. Começara a
conhecê-la em minhas visitas com
Arieh,
quando nos sentávamos juntas
exclamando sobre seus encantos. Ela
fazia o
bebê rir com uma demonstração de
caretas enquanto o balançava sobre
os
joelhos. Viera a entender que
Channa erguera uma parede ao seu
redor
para manter os outros afastados. No
entanto, de vez em quando,
surpreendia um sorriso que ondulava
seus lábios. Quando ela pronunciava
o nome de Eleazar ben Ya’ir, seu
rosto se transformava, e eu podia
imaginá-
la como a menina que fora um dia.
Seu amor pelo marido era evidente,
embora ela parecesse tão distante
dele quanto o restante de nós.
Percebi que, enquanto caminhava,
Ben Ya’ir olhava na direção da casa
de Shirah. Ele se sentia atraído por
aquele lugar como os falcões pelos
pombais. Parecia que havia
chamado por ela, pois Shirah saiu
para o calor
líquido da noite. Não estava usando
o véu e levantou o cabelo como que
para se refrescar. Quando Ben Ya’ir
se aproximou, pousou a mão em seu
pescoço, pois ela claramente lhe
pertencia. Eles permaneceram na
mais
profunda confiança, as cabeças
juntas.
Se eu podia ver o que existia entre
eles, certamente Channa também
podia. Virei-me para ela, mas, no
instante em que desviei o olhar, ela
desaparecera da praça. Ela correra
tão rapidamente que deixara sua
sombra para trás. Segui-a como uma
sombra perseguindo sua senhora,
esgueirando-me sobre as pedras do
calçamento. Por fim, avistei a
esposa do
nosso líder no caminho de volta aos
seus aposentos, no palácio em que o
filho de Herodes vivera um dia, um
filho que o rei assassinara quando
lhe
conviera fazê-lo, quando pusera suas
necessidades acima de todos os
outros, como fazem muitas vezes os
homens no poder.
Chegando a um ponto mais elevado,
vi Channa olhar de volta à casa de
Shirah. Seus olhos estavam escuros
e amargos. Ela mantinha uma das
mãos
sobre o peito, pois mais uma vez não
conseguia respirar. No entanto,
permaneceu ali, ainda que fosse a
época em que costumava trancar-se
longe de todos, pois o hissopo
estava florescendo – a única flor
capaz de sobreviver a uma estação
sem água. Nesse instante, quando
sua sombra
regressou à sua carne, percebi que
Channa era o tipo de mulher
disposta a
qualquer coisa para manter o
marido.
Ocorreu-me que, de todos os feitiços
conhecidos na terra, uma criança
era o único ingrediente capaz de
vincular um homem a uma mulher de
um
modo que somente os anjos
poderiam compreender.
AO VOLTAR a visitar a esposa de
Ben Ya’ir, não levei Arieh.
Repensara a nossa barganha e
percebi meu erro. Channa não
escondeu a decepção. Seus olhos
brilharam da mesma maneira que a
vira à noite, sem a sombra.
– Ele estava irritadiço – disse a ela.
– É um dente chegando.
Se houve alguma diferença nela, foi
que a notícia a deixou ainda mais
ansiosa para vê-lo.
– Coitadinho – sussurrou ela. – Se
pudesse segurá-lo, quem sabe
aliviaria
a dor.
Senti um calafrio ante a sua
expressão. Eu me questionei se o
pacto que
fizera com ela adiantara alguma
coisa no sentido de ajudar o Homem
do Norte. Na visita seguinte eu lhe
disse que Arieh estava muito pesado
para
ser carregado, que estava crescendo
muito depressa e por isso eu não
poderia mais trazê-lo comigo. Ela
não disse nada. Nem mesmo na
despedida. Indicou-me a porta e
fechou-a atrás de mim. Ouvi o ruído
do ferrolho sendo fechado.
Não muito tempo depois, vi que
rondava a muralha perto do nosso
alojamento. Estava escuro, mas eu a
reconheci. Fiquei surpresa ao vê-la
ali,
ela que se mantinha reservada e
geralmente evitava a praça. Mas
essas coisas costumam acontecer; o
que é doce tira o que é azedo, assim
como o
bem, com toda a sua inocência, atrai
os ímpios. Dizem que Lilith tem
treze
demônios para ajudá-la quando quer
roubar um bebê. Um deles é a
própria
Noite, envolta em preto estrelado,
capaz de desaparecer em um instante
ao
romper da luz do dia, mas ainda
assim persistindo sem uma sombra
no
lado de fora da porta.
POR FIM, Shirah acabou de
preparar o encantamento para meus
netos. Eu fora paciente, e a minha
paciência foi recompensada. Agora
que chegara a
hora, estava ansiosa, pois essa era
minha última esperança. Além dessa
esperança, havia um precipício e
depois nada mais que o ar
implacável. O
feitiço era uma bacia encantada, uma
peça bonita e delicada de cerâmica,
cuja confecção Shirah aprendera
com uma mulher da antiga
Babilônia.
Sobre a argila seca, haviam sido
escritos os nomes de Deus em
aramaico e
em hebraico. No centro da bacia
via-se a imagem de um demônio
negro, com cabeça de cobra e asas,
algemado com cordas trançadas com
as letras
do nome de Deus.
Este amuleto deve reunir as vozes,
prender os demônios e libertar os
anjos
para que façam o que devem fazer.
Em louvor de Deus. Amém. Amém.
Selah.
Ela escrevera essas palavras dentro
de um círculo de anjos, suas asas
totalmente pretas, as penas de
corvos.
Para proteger e curar, devolver o
que pertence às crianças, para
reverter o
efeito e deixar o demônio sem voz e
sem poder.
– Coloque isto embaixo da cama e
espere. Tenha mais um pouco de
paciência – ela me instruiu. – Está
faltando um ingrediente. Por causa
disso,
esta bacia é impotente. Eu mesma
não posso dizer o que está faltando,
mas,
quando aparecer, você saberá. Seja
rápida em acrescentá-lo à bacia e
seu genro terá o desejo atendido.
Eu nada mais era que uma esposa de
padeiro, uma mãe sem filha, uma
tola que pusera um bebê nas mãos de
uma mulher invejosa. Como poderia
reconhecer o ingrediente mais
importante de todos?
– Você saberá porque ele virá no
dia em que eu for posta a ferros –
Shirah me disse.
OS HOMENS que praticavam magia
ocuparam a praça em um dia
poeirento. O
inverno estava no fim e a seca
continuava. Nosso povo parecia
amaldiçoado. O sacerdote e os
rabinos tinham falhado e agora os
minim que praticavam magia fora
das leis do Templo afirmavam que,
lançando flechas,
eles poderiam adivinhar a causa da
seca. As pessoas acreditaram neles
porque havia pouco mais em que
acreditar. Estavam todos
ressequidos,
abatidos, desesperados por água.
Certamente, alguém era culpado
pelo
nosso martírio. A multidão reuniu-se
em torno daqueles praticantes que
afirmavam ter acesso à verdade de
Deus. Os homens circularam mais
próximos aos minim, atrás deles
vinham as mulheres e, em seguida,
as crianças, com paus e pedras nas
mãos. Uma linha de fúria se
desenhava no
chão, resvalando para todos os
lados. Alguém seria culpado, todos
nós
sentíamos isso. O nosso povo queria
mais que um demônio. Todos
queriam
a carne e o sangue, alguém contra
quem se voltar, qualquer um na
terra.
Muitos diziam que o anjo da chuva
aparece às mulheres em seus sonhos.
É Beree, que as faz chorar quando
sentem que não têm mais nada dentro
de
si, nem alma, nem lágrimas. Talvez
fosse por isso que Shirah não
aparecera
no pombal naquele dia. Beree a
visitara e agora voltava para
sussurrar que
ela deveria se preparar. A manhã
veio e se foi, no entanto Shirah
continuou
em seu quarto. Ela trançou o cabelo,
vestiu a capa preta e os véus,
adornou-
se com os amuletos. Descalça, não
comeu, não bebeu, não falou durante
todo aquele dia. Sentou-se à mesa
preparando-se para a visão que lhe
aparecera quando chegara à
fortaleza. Ela se vira posta a ferros,
em uma época em que a chuva se
recusava a cair.
As flechas lançadas pelos minim
apontaram diretamente para o que
fora
antes a cozinha do rei. A casa da
Bruxa de Moabe. Ela esperava pelos
adivinhos no umbral da porta, o
manto apertado contra o corpo.
Exatamente como previra, ela foi
algemada e levada embora.
Eu soube que esse era o dia em que
a bacia encantada seria terminada,
pois Shirah afirmara que o
ingrediente que faltava só seria
acrescentado quando ela fosse posta
a ferros. Entretanto, não pude cuidar
da magia. Fugi
do pombal com Yael e Aziza quando
ouvimos a notícia do cativeiro de
Shirah. Juntas, corremos para a
praça. Havia uma multidão de
pessoas e o
surto de raiva superaquecido
rasgava o ar. As pessoas queriam
uma razão
para explicar por que Deus se
voltara contra nós, por que as folhas
das árvores estavam chamuscadas,
por que as azeitonas estavam
brancas e não
amadureciam, por que sentíamos
sede até ficarmos ofegantes, como o
peixe
na praia. Todos acreditaram que
naquele momento contemplavam
esse
motivo.
Observando a multidão engolir sua
mãe, Aziza precisou ser contida para
impedir que corresse para o lado de
Shirah e talvez também recebesse
parte da culpa. Yael segurou-a por
um dos braços e eu pelo outro. Ela
era
mais forte do que eu jamais teria
imaginado, mas Yael conseguiu
acalmá-la.
– Tenha fé – ela pediu, sussurrando
a Aziza de modo que ninguém
ouvisse e as acusasse de
conspiração. O talismã de ouro
brilhava no
pescoço de Yael e seu rosto estava
sereno, apesar de todo aquele caos.
Dizem que os inimigos de uma bruxa
devem segurá-la no ar e separá-la
da terra para conseguir minar seu
poder, mas, quando os minim
tentaram
fazê-lo, Shirah riu deles. Os homens
a baixaram e recuaram, confusos.
Não
faziam ideia de que a água, não a
terra, era o seu elemento.
– Não existe nada acima de Adonai
– Shirah declarou para aqueles que a
acusavam de atrair a ira de Deus
sobre nós. Sua voz era imponente.
Nós que viéramos do pombal a
encaramos e nos convencemos de
que ela falava
diretamente para nós. As crianças da
multidão se aquietaram. Várias
mulheres que Shirah ajudara em um
momento de necessidade desviaram
o
olhar, envergonhadas por não
oferecer sua ajuda em troca. As
pessoas
cochicharam que Menachem ben
Arrat, o sumo sacerdote, chegara à
sua
porta, mas temera os poderes da
bruxa, de modo que não fora além
disso,
nem condenara nem entrara na
contenda. Ao meu lado Aziza
estremeceu,
mas seus olhos brilharam com
orgulho.
Eleazar ben Ya’ir apareceu no meio
da multidão, a caminho do quartel. A
princípio ficou intrigado com a cena
à sua frente, então compreendeu
quando viu Shirah posta a ferros.
Ordenou que a libertassem
imediatamente. Quando os homens
que a mantinham presa hesitaram,
ele
gritou:
– Como é que têm a coragem de
atacar um dos nossos? Uma mulher
da
minha própria família? Temos
inimigos reais que gostariam mais
que tudo
de que nos matássemos uns aos
outros.
Houve um momento em que pareceu
que a multidão não cumpriria sua
ordem. Esse momento passou e por
fim os anciãos adiantaram-se com a
chave, mas a ameaça de caos
permaneceu presente, pairando no
ar, aquele
instante em que nosso povo poderia
ter-se voltado contra seu líder. Uma
multidão enfurecida não podia ser
controlada facilmente e uma
serpente
enviada pelos manifestantes oferecia
uma mordida para a qual não havia
cura.
Aquela fortaleza teria caído pela
febre desse instante desonroso não
fosse ele encerrado como o fogo de
carvão é apagado pela água. Nossos
inimigos não teriam mais
necessidade de nos destruir não
tivesse a
multidão se afastado, pois teríamos
nos destruído a nós mesmos.
Soldados
romanos foram vistos algumas vezes
nas proximidades nas últimas
semanas. A legião sabia que
estávamos ali e bem-defendidos,
naquele local
protegido. Mas os romanos não
faziam ideia de que poderíamos
facilmente
nos lançar uns contra os outros e que
a vontade de Ben Ya’ir era tudo o
que
nos mantinha juntos e unidos.
Vi a esposa do grande homem
assistindo à cena de onde se
encontrava,
ao lado do hissopo. Fora Channa
quem orientara os minim contra a
bruxa.
Se estava perturbada por ver que seu
marido agia como protetor de
Shirah,
não deixou transparecer. Seu
semblante estava sombrio e
impassível.
Talvez tivesse esperado demais. A
respiração, geralmente tão irregular,
estava perfeitamente constante e via-
se mesmo um rubor de saúde em seu
rosto. Imaginei que ela olhava para
aquela que a curara, mas ela
enxergava
além de Shirah, além do marido, na
direção da criança nos braços de
Yael.
Senti um arrepio subir pela coluna.
Depois que as algemas foram soltas
e ela foi libertada, Shirah pegou um
pedaço de pau e desenhou um
círculo no pó.
– Você me queria aqui – ouvi-a
dizer a Ben Ya’ir. – Não foi por
isso, primo?
Ela se postou dentro do círculo, em
seguida enfiou a mão sob a túnica,
de
onde tirou um punhado de cinzas que
espargiu sobre a própria cabeça,
entoando um cântico, como
costumava fazer, em um tom baixo e
contínuo.
A multidão esforçava-se para ouvir
e teve medo daquela língua
incompreensível. Muitos
acreditaram que ela estava atraindo
uma
maldição sobre nós e recuaram,
puxando os filhos para junto de si, a
fim de
protegê-los do mal.
Aconteceu tudo de uma vez, antes
que entendêssemos o que estava
acontecendo. O céu empalideceu e
tornou-se incandescente. A chuva
veio
de diferentes sentidos, mas na forma
de uma torrente sem igual. Em um
instante a terra era pó e no seguinte
formavam-se lagos. O mundo
tornara-se úmido e luminoso,
tomado por lençóis de água. Eu
nunca notara que a chuva continha
todas as cores dentro de si, o verde
dos campos, o azul do
céu, o branco de um cordeiro, o
amarelo do cabelo da minha filha.
Os homens caíram de joelhos,
levantando as franjas dos xales de
oração
para os lábios e depois para o céu,
em louvor a Deus e ao mistério da
vida.
Ouvíamos as cabras e as ovelhas
nos seus cercados. Diante dos
nossos
olhos, a cerca viva de espinhos que
continha o gado começou a exibir
brotos e depois, como comandados
pelo Todo-Poderoso, esse mesmos
botões se desfraldaram,
transformando-se em folhas.
As pessoas cochichavam que era por
esse motivo que a Bruxa de Moabe
fora capaz de atravessar o Mar de
Sal sem se afogar. Ela, que descera
os mil
degraus da cisterna para banhar-se
no escuro, foi a nossa salvação.
Abençoei-a por isso enquanto corria
através das rajadas de vento,
apressando-me em direção ao nosso
alojamento para pegar a bacia
encantada que ela preparara. Eu era
apenas uma mulher simples, mas
reconheci o ingrediente que faltava
exatamente como Shirah me
garantira
que eu faria.
Levei a bacia para fora e a segurei
acima da cabeça, cantando para o
Todo-Poderoso, entoando louvores
embora tivesse o rosto fustigado
pelo
vento e os ouvidos tomados pelo seu
rugido. A bacia transbordou e
também
o meu coração. Podia ouvir meus
netos chamando um ao outro
enquanto
eu me regozijava ali, sob os pingos
da chuva, com uma alegria que
nunca experimentara. Suas vozes
permaneceram guardadas na
cachoeira durante
todo aquele tempo, armazenadas em
um vaso pelo anjo que os protegera
do mal. Agora essas vozes tinham
sido libertadas, atraídas para as
orações
da bacia enquanto o anjo Beree fazia
chover sobre nós. Mais tarde eu os
levaria perante o pai e, apesar de as
crianças recuarem diante de sua
postura feroz, quando os mandasse
expressar uma saudação veria o
Homem do Vale chorar de gratidão.
Talvez sua fé se restaurasse com
essa
dádiva, assim como eu recuperara a
minha.
Ouvi a voz de Deus ao meu redor,
mas não tive medo. Deveria ter
tremido perante o Todo-Poderoso e
me escondido. Deveria ter levado
uma
faca à minha carne para cortar a
marca dos meus atos passados. Mas
agora
entendia que, embora as palavras
fossem a primeira criação de Deus,
o silêncio era mais próximo do seu
espírito divino, e as orações feitas
em silêncio eram infinitamente mais
poderosas que os milhares de
palavras
que os seres humanos pudessem
dirigir ao céu.
Ouvi o vento que subira no deserto
para nos seguir até ali.
Ouvi o que tinha a dizer.
Inverno, 71 d.C.
TERCEIRA PARTE
Primavera, 72 d.C.
A Amada do Guerreiro
Tu és a minha armadura e a minha
espada, a minha fé
e o meu tesouro, tudo por que estou
lutando.
MINHA IRMÃ, VOCÊ É COMO
UMA POMBA, tão bonita e tão
distante, uma criança que vi nascer
neste mundo, agachada ao lado da
nossa mãe. Você é a razão de
eu me recusar a testemunhar outro
nascimento. O cordão da vida estava
enrolado em seu pescoço e nos seus
olhos vi naquele momento o Mundo
Vindouro, um lugar tão distante e
vasto que nenhuma pessoa viva
deveria
ver os seus confins. Você estava
ofegante, começava a tornar-se
azulada, um pequeno ser frágil
atraído para nosso frágil mundo. Eu
mesma não
passava de uma criança, indesejada,
trazida para o casamento entre a
nossa
mãe e o seu pai na terra de Moabe,
onde as mulheres usavam véus azuis
e
ninguém sabia quem fora a nossa
mãe, ou em que se tornaria, embora
a temessem do mesmo jeito.
Por ser a nossa mãe estrangeira,
nenhuma das mulheres que viviam
nas
redondezas apareceu para ajudá-la
na hora do parto. Elas vinham em
outros momentos, quando as
próprias necessidades as levavam a
chegar no
escuro, em busca de maldições ou
remédios. Traziam iguarias de carne
de
cordeiro, ervas e azeitonas em belos
pratos de cerâmica, tigelas de barro
decoradas com desenhos vermelho-
escuros. As mulheres chegavam a
implorar pela magia da nossa mãe
quando dela precisavam. Ela era
bondosa o bastante para oferecer às
estéreis as maçãs do amor, o fruto
amarelo da mandrágora que
amadurece com o trigo, para que
pudessem
conceber. Dava-lhes cataplasmas de
cura feitos com figos para erupções
e
furúnculos e, nos casos mais
aflitivos, proporcionava-lhes os
seus
conhecimentos do tzari, o antigo
medicamento sírio utilizado contra a
lepra, a doença em que a carne é
consumida por demônios e se afasta
dos
ossos. No entanto, quando foi sua
vez de precisar de ajuda, as
mulheres do
campo esconderam-se, sumiram de
vista, com medo de que a nossa mãe
pudesse trazer outra bruxa para o
mundo e que seu poder fosse
dobrado.
Então, apesar da aversão por ela e
do ciúme inchado de má vontade,
todas
seriam forçadas a cair de joelhos
diante dela.
Fui a única a testemunhar o evento
do seu nascimento e, verdade seja
dita, também quis correr para a luz
do dia, temendo menos a bruxaria
que o
sangue. Ele se acumulava em poças
e o calor que emanava dele me
aterrorizou. Aquele líquido estava
vivo, pulsando com o poder da
criação.
Eu era muito jovem, inocente demais
para ser de alguma valia. Mas a
nossa
mãe gritou Salve-a, e suas palavras
foram como estrelas, brilhantes e
pungentes.
Fiz o que pude. Desenrolei o
cordão. Mas isso não foi o bastante,
então
respirei na sua boca e tirei o líquido
que a afogava. Provei o gosto de
sangue e de sal, tudo de que a vida é
feita, e cuspi o líquido no chão. É
um
milagre quando se sabe o que se
deve fazer, sem nenhuma instrução, e
foi
isso o que me aconteceu no instante
do seu nascimento. Esse
conhecimento
misterioso foi-me outorgado por
Deus na hora do desespero e por ele
sempre serei grata. Guardei a sua
morte e a sua vida no meu íntimo.
Naquele instante, tornamo-nos um só
ser, irmãs sustentadas pela mesma
força. Por isso sempre cuidarei de
você. Mesmo que tente fugir,
descobrirá
que não será possível deixar-me.
Nesse dias você se afasta de mim
nos campos em que as amêndoas
florescerão em breve. Insiste em
pertencer a outro lugar, mas não a
abandonarei. Vejo-a vestida com
linho branco, no campo rochoso,
cuidando
de seis cabras pretas, a cabeça
inclinada, os pés descalços, e choro
ao vê-la
tirada de mim no seu fervor e no seu
desejo por um homem que talvez
nunca a conheça como eu a conheço.
Talvez você não deseje que ele a
conheça. Você me dá as costas e não
me dirige a palavra, nem mesmo
quando bato na porta de madeira
áspera do galpão de cabras onde
você vive, ao lado das pessoas que
escolheu como sua gente. Elas são
pobres, cujo único desejo é louvar o
Todo-Poderoso com orações pela
paz, muito embora no outro lado dos
limites da nossa fortaleza o mundo
rugisse com a
guerra. Você não se senta à nossa
mesa, pois nossos costumes não são
tão
rigorosos como os que agora você
reverencia, e nosso modo de viver é
impuro aos seus olhos.
Enviei-lhe uma pomba, toda branca
e pura, uma das favoritas da nossa
mãe, pensando que essa criatura a
encheria de remorso e quisesse
segui-la,
mas o pássaro regressou ao pombal
com a minha mensagem não lida.
Dentro do tubo que prendera à perna
da ave escrevera o seu nome e o
meu
entrelaçados, como o nosso destino
entrelaçara-se no instante do seu
nascimento. Não consigo imaginar a
quem pudesse amar mais neste
mundo
em que vivemos.
Quando a vejo na muralha, em
oração com as mulheres essênias na
hora
em que o dia se torna noite, você
não me olha, embora a minha
respiração
esteja em você e a sua seja parte de
mim. Não importa o quanto me
recuse,
os nossos espíritos se combinam
para formar um único fio. Mesmo
que
nunca mais fale comigo, ou levante
os olhos para mim, mesmo que se
envergonhe de mim e do nosso
passado.
Você é minha e só minha.
SEU PAI era um homem rico e sabia
o que queria. Não fosse assim, não
tivesse ele viajado a Jerusalém
desde a outra margem do Mar de
Sal, a nossa mãe e
eu pereceríamos, expulsas no dia em
que nasci. Eu não tinha uma irmã
para
me confortar, como você teve no dia
da sua chegada a este mundo, tinha
apenas o gosto de sangue na minha
boca.
O homem que viria a ser o seu pai
fora muito longe para mercadejar as
riquezas que acumulara, pilhas de
mirra e bálsamo preto, especiarias
em montes ocres e vermelhos, cestas
de incenso da alva flor estrelada de
Edom, sal marinho, calcário dos
penhascos. Talvez um anjo o tivesse
detido
na rua e sussurrado em seu ouvido,
sugerindo que voltasse a cabeça. Ele
usava um lenço comprido e as vestes
azuis do seu povo, tingidas com a
raiz
do gengibre. Embora estivesse longe
de ser jovem, a sua visão era mais
aguda que a de um falcão e ele
percebeu a grande beleza da minha
mãe.
Entre os homens que o
acompanhavam nas viagens, ele era
famoso por ver
o que os outros não viam. Talvez
por isso tenha nos avistado dentro
de uma
carroça que trouxera cabras ao
açougueiro enquanto éramos levadas
para
o deserto. O Anjo da Morte nos
esperava – Mal’ach ha-Mavet, o
que tem mil olhos brilhantes –, mas
foi derrotado quando seu pai nos
seguiu.
Seu pai entregou ao condutor um
punhado de moedas que ele mesmo
considerava inúteis. Ele era um
homem que acreditava que o que
importava vinha da terra, não dos
tesouros de um templo ou das
oficinas dos homens. Naquele
mesmo dia ele nos levou consigo,
com destino ao
Oriente, a terra antiga no outro lado
do Mar de Sal, onde a montanha é
feita
de ferro e os montes de asfalto
flutuam ao longo da costa, tornando-
se incendiados quando o calor
aumenta. O povo do seu pai coletava
redes
cheias de asfalto para vender por
alto preço à legião, para que os
soldados
pudessem forjar estradas
pavimentadas em Alexandria e em
Roma.
A nossa mãe confidenciou que,
quando viu aquele mar negro, não
sabia
se fora resgatada ou abandonada por
aquele homem feroz e silencioso,
cujos braços eram envolvidos por
tatuagens azuis e que marcava o
próprio
rosto com cicatrizes que cortava
com uma faca afiada, para
comemorar
suas inúmeras batalhas. Ela temeu
que ele a levasse para o Gehennom,
o vale do inferno. Na verdade,
viajamos da Judeia para Moabe, um
reino que
fora arruinado e abandonado mais
de uma vez, mas que no momento
achava-se em pleno florescimento.
Muitas das tribos dessa terra
recusavam-se a permanecer em um
único lugar, mas em vez disso
chamavam de lar a cada canto da sua
terra. Essa era a terra a que Ruth
chegara quando seguira Naomi para
a Judeia, embora seu povo tivesse
amaldiçoado o nosso. Da sua
linhagem nasceu o grande rei Davi,
uma
dádiva para seu povo e para o
mundo. A terra ali era verde, o solo
vivia salpicado pela chuva mesmo
quando os outros países se
incendiavam com
o calor, os campos gramados
oferecendo paisagens exuberantes.
Viam-se
acácias em flor, a árvore de que
Deus pedira que fosse feita a Arca
da Aliança, para que a Sua palavra à
humanidade permanecesse abrigada
em
sua madeira forte e perfumada.
Arbustos de murta cresciam bem
alto em Moabe e via-se cassis
silvestre em profusão. E as inúmeras
florações
espontâneas do íris amarelo faziam
parecer que a luz solar se derramava
sobre a terra como uma bênção.
Seu pai e os parentes viviam nas
colinas, enriquecidos não só pela
venda
do asfalto, mas também pelos
tesouros que apreendiam de
caravanas que
viajavam pela Estrada do Rei, que
ligava Damasco ao Egito. Diriam
tratar-se
de bens roubados, mas, aos olhos
dos homens das tribos, aqueles
tesouros
eram simples pagamento, de que se
apossavam como algo devido, pois a
sua pátria era a rota de ligação entre
as duas nações. Seu pai acreditava
que
um ladrão é um rei na sua terra, o
senhor da própria montanha. Dizia-
se que todo homem dessa região
nascia com uma faca na mão, um
cavalo já escolhido para ele e uma
oração para oferecer ao seu Deus.
Minha mãe ainda sangrava em razão
do meu nascimento quando eles
pararam para montar acampamento
na primeira noite. Ainda assim, ela
me
envolveu em panos e deitou-me em
uma cavidade, para que seu pai
fizesse
dela a sua esposa naquela noite.
Para comemorar o casamento, ele
lhe deu
um par de brincos de rubi. Qualquer
pessoa em Jerusalém saberia por
que
ela era marcada com tatuagens, um
redemoinho de tinta vermelha de
hena
sobre a sua carne. Desde que era
apenas uma criança, ela fora
treinada no
Egito para ser uma kedeshah, uma
mulher destinada ao uso sagrado
pelos
sacerdotes, como a sua mãe fora
antes dela. Mas coisas dessa
natureza tornaram-se secretas e
foram proscritas. Nossa mãe foi
mandada para fora
de Alexandria, para ser criada pelos
parentes em Jerusalém. Ela nunca
conseguiu voltar à cidade onde a
mãe desejava vê-la novamente,
esperando
ao lado do portão pelo retorno da
única filha.
A nossa avó, a quem nunca
conhecemos, deu à nossa mãe dois
amuletos
de ouro para proteção. Em um via-se
a inscrição Chayei ‘olam le-‘olam –
Vida eterna, para sempre –
impressa sobre o ouro com as
imagens do sol e da lua. No outro
estavam inscritas as palavras
Sempre pus o eterno adiante
de mim; no verso do medalhão fora
gravado um peixe, para garantir que
o
usuário sempre estivesse perto da
água, o elemento mais precioso, o
doador da vida.
Embora a nossa mãe tivesse sido
enviada a Jerusalém para a sua
segurança, lá ela foi repudiada pelos
seus pecados, acusada de seduzir um
homem casado. Alegou-se que se
casara tanto com ele como com um
demônio. Quando a família do
homem levou o caso aos sacerdotes,
ela se recusou a admitir qualquer
mau procedimento. Realizou-se
então a
cerimônia do sotah, em que o nome
de Deus foi escrito em papiro e
mergulhado em um tambor usado
para lavar e amolecer couro. Depois
de
dissolvido na água, foi misturado à
poeira do chão do Templo para ser
consumido por ela, uma mulher
suspeita de adultério. A minha mãe
bebeu
o nome de Deus e não vacilou; no
entanto, seus opositores ainda
consideraram que ela mantinha
conluio com os demônios. Ela podia
negar
o seu pecado, mas eu era uma
evidência, segura pelos calcanhares
perante
três juízes. Talvez, quando me
examinaram, buscassem provas de
que ela realmente dormira com um
demônio procurando por chifres, ou
por asas,
para verificar se eu era uma shedah,
filha de um observador, um anjo que
fora atraído à terra pela beleza da
minha mãe, ou se eu simplesmente
nascera mesmo da carne.
O homem tribal de Moabe que viria
a ser seu pai não se importava com
essas questões. Os julgamentos
feitos pelos nossos conselhos não
faziam sentido para ele. Nosso Deus
não era seu Deus. O pecado da
nossa mãe não
era do seu interesse. Ele sabia o que
queria. Era simples nesse sentido,
ainda que fosse complicado também.
Quanto a mim, era pouco mais que
um
camundongo preso em uma
armadilha, uma criatura que ele
permitiu que a
nossa mãe mantivesse como um
animal de estimação quando
partiram na
manhã seguinte e ela se recusou a me
deixar para trás. O mundo ainda
estava escuro no dia em que eles
partiram da Judeia, assim como do
mar,
mas diante deles o horizonte estava
radiante como uma pérola. A nossa
mãe disse-me que, depois que
passaram pelos montes negros de
asfalto
ardente no Mar de Sal, sentiu-se
grata por não termos caído nas
chamas do
inferno. Ela sentiu o coração se
enlevar ao ver as montanhas, que
permanecem verdes mesmo quando
o restante do mundo morre de sede.
Os lírios que crescem lá são
vermelhos e ela ainda usa o seu
perfume; um
frasco de cerâmica com perfume foi
um dos poucos pertences que trouxe
conosco ao vir para essa fortaleza.
Talvez, quando usa o perfume dos
lírios, ela se lembre da manhã em
que
nos foi concedida outra vida.
O NOSSO POVO acredita que o
mundo está dividido em dois. No
lado do bem estão os malachim, os
mil anjos de luz. No lado do mal há
os mazzikim, demônios que são
incontáveis e incognoscíveis, não
controlados até mesmo
pela vontade do Todo-Poderoso. O
seu pai era uma combinação dos
dois.
Acampamos nas montanhas, com
uma visão privilegiada do
desfiladeiro
por onde passava a Estrada do Rei,
proveniente de Damasco. O seu pai
não
pensava duas vezes antes de descer
com seus homens para atacar uma
caravana e levar o que quisesse, mas
era tímido com crianças e amável
com
a nossa mãe. Embora fosse um
guerreiro, ele poderia tornar-se
perturbado
na presença da nossa mãe e mal
sabia o que lhe dizer. Seus olhos
ardiam quando a olhava e muitas
vezes mandava que todos saíssem da
nossa tenda
para poder ficar a sós com ela,
mesmo durante o dia. Ele tinha
outras esposas que viviam em um
vale distante, mulheres cujos nomes
nunca
ouvimos pronunciados em voz alta.
Talvez também as amasse.
Certamente
ele não as olhava do mesmo modo
que fitava nossa mãe. Ela era sua
favorita. Por esse motivo, estávamos
seguras em sua companhia.
Então, em uma noite da qual mal
posso me lembrar, antes de você
nascer, bandidos entraram em nossa
tenda, nômades sem lei e sem
deuses.
Vieram como ladrões, mas, quando
viram a nossa mãe, seu propósito
mudou. Ela era linda com seu cabelo
preto comprido, ainda muito jovem,
e
havia quem dissesse que possuía a
capacidade de hipnotizar um homem
com um olhar, assim como era capaz
de curar uma pessoa doente com
uma
única palavra de oração. Ela me
disse que, quando a deitaram à
força, um
dos invasores apoderou-se de mim e
arrancou a minha túnica com a ideia
de que me possuiria também, apesar
de eu ainda ser uma criança. Não me
lembro dos gritos que ela jura que
dei, gemidos furiosos que
lembravam os
gritos estridentes de um camundongo
quando é aprisionado e se debate em
uma armadilha, mas a minha
garganta doeu de novo quando ela
me contou
a história daquela noite. Ela me fez
esse relato apenas uma vez, quando
saímos de Moabe para viajar a
Massada. Tentei me lembrar de cada
palavra
que ela disse. Sabia que não me
contaria de novo.
Assim como sabia que aquela noite
era a razão do meu destino e em que
havia me tornado.
O SEU PAI, alertado pelos
companheiros sobre a presença dos
intrusos, retornou antes do esperado,
com o rosto escuro, cheio de
cicatrizes,
encoberto pelo lenço azul. Ele foi
como um redemoinho. Nossa mãe
me
segurou junto de si, escondida nas
suas vestes, enquanto seu pai matava
os
ladrões um por um. O sons brutais e
pungentes que ele emitia eram
terríveis, como o vento quando se
abate sobre nós. Disseram que era
possível ouvi-lo ao longe, no sul,
onde havia uma cidade que se
projetava da
rocha vermelha, seu grande templo e
suas colunas esculpidas uma
maravilha a ser vista. Muitos entre
nós juravam que ele possuía o grito
de
um mazzik, um demônio de outro
mundo.
Depois que a luta acabou, seu pai
era o único homem vivo na nossa
tenda. Minha mãe me confidenciou
que as pessoas de fora muitas vezes
sussurravam que o sangue que corria
no povo do seu pai era azul, e na
verdade a sua tribo era tão temível
que até mesmo os romanos a
evitavam.
Lembro que ele se ajoelhou ao lado
da nossa mãe com grande ternura,
ainda lustroso de sangue. Quando
ele o fez, parecia um dos mil que
observam o nosso mundo, um anjo
que nos resgatara do deserto.
Depois daquela noite, nossa mãe
amaldiçoou o que significava ser
mulher. A vida dela se moldara por
tudo o que não podia fazer e por
tudo
aquilo que nunca seria. Mas ainda
assim ela tinha um dom, que homem
nenhum jamais entenderia. A mãe
dela lhe dera um livro de
encantamentos, receitas mágicas que
lhe trariam proteção enquanto
estivessem separadas. Ela carregava
o manuscrito consigo, o mais
precioso
dos seus pertences, juntamente com
os amuletos de ouro que usava em
torno do pescoço, preferindo-os a
todas as outras joias que lhe
pudessem
oferecer. Nenhuma outra proteção
contra o mal seria mais forte.
Mas o que era a magia naquela
noite? Minha mãe tentara sujeitar os
vis
intrusos recitando um encantamento,
mas necessitávamos de outro tipo de
proteção, feita de ferro, um homem,
uma espada, um salvador. Nossa
mãe
rendeu graças à Rainha do Céu pela
nossa salvação. Ainda assim, seu
sangue estava quente e ela se sentia
insatisfeita. Queria ter sido quem
empunhava a faca para matar os
ladrões, em vez de simplesmente
permanecer calada enquanto
observava seu pai fazê-lo.
Foi nessa noite que nossa mãe
decidiu mudar quem eu era. Ela me
levou
consigo enquanto todos estavam
dormindo. Até mesmo os cavalos
estavam
sonhando, montarias rápidas e
possantes mantidas no lugar sem a
necessidade de cordas, leais aos
seus cavaleiros até o dia em que não
pudessem mais correr. As pessoas
de Moabe em geral têm camelos
para
montaria, mas o povo do seu pai
possuía os mais belos e ferozes
cavalos, que recebiam água apenas a
cada três dias para que pudessem ter
as
ótimas qualidades dos camelos e
acostumar-se com a sede, superando
em
força qualquer cavalo dos nossos
inimigos. Nossa mãe entoou a
canção de
proteção, depois iniciou os ritos de
atribuição do nome perante Astarte.
Quando muda o seu nome, você
muda também o seu destino. A
pessoa que
você foi desaparece e nem mesmo
os anjos podem encontrá-la.
Estávamos
sobre a Montanha de Ferro, sob uma
lua vermelha. Não havia placenta
para
marcar essa ocasião, nenhum
sacrifício para devolver à terra.
Desse modo,
nossa mãe enterrou seu próprio
sangue mensal. Em seguida, cortou
meu
braço e deixou que três gotas
caíssem sobre a terra, como uma
oferenda à
Rainha do Céu.
O meu braço ardia e eu poderia ter
chorado, mas meu coração estava
pleno quando a nossa mãe, muito
orgulhosa, disse que eu não seria
como
nenhuma outra pessoa. Desde aquele
momento, somente ela e Deus
saberiam sobre a minha vida
passada. O meu nome havia sido
Rebeca, mas
esse nome desapareceu na noite do
nosso sangue. Nunca mais o ouvi de
novo. Quanto ao seu pai, ele
concedeu à nossa mãe o que ela
desejava, permitindo que me levasse
com eles através do deserto.
Dali por diante eu era um menino.
ELA ME CHAMOU de Aziza, um
nome do povo do seu pai. Pode
significar uma pessoa que é amada,
mas também aquele que é poderoso
e feroz. Há quem
acredite que o nome é uma antiga
palavra para arqueiro, aquele que
nunca
está sem uma arma, nunca à mercê
de ninguém. Era isso o que a nossa
mãe
desejava para mim. O povo que
vivia na Montanha de Ferro adorava
uma
grande deusa entre os seus deuses;
esse povo também considerava a
força
das suas mulheres. Agora, quando
vejo a minha irmã trabalhando no
campo
entre os essênios, seguindo os
costumes rígidos, cantando para as
cabras que apascenta, uma serva
calmamente à espera do Fim dos
Dias como se ela mesma nada mais
fosse que uma ovelha passiva e bela,
acho que a carne
e a grama são a mesma coisa, tão
fugaz, mudando diante dos nossos
olhos.
Minha irmã foi concebida no país
em que o céu brilhava prateado e os
homens eram ferozes. Se o seu pai a
visse caminhando na poeira atrás
dos
homens essênios, de cabeça baixa,
ele teria sido envergonhado. Mas
não importa o quanto você se curve
diante dos outros, minha irmã, o
vínculo que nos une durará por toda
a eternidade, até nos reencontrarmos
em um
lugar onde nada possa nos separar,
como na noite em que você nasceu,
na
tenda do seu pai, com a minha
respiração dentro de você e a minha
vida, o
fio que a manteve neste mundo.
DURANTE O PERÍODO em que
você crescia, eu era o seu irmão.
Você me seguia como uma pomba
segue os campos de cereais. Eu
usava trajes azuis, trazia
o cabelo preso, depois bem-
trançado à moda dos meninos. O seu
pai
ensinou-me a montar um cavalo, a
usar a funda e a lança. Eu era um
guerreiro nato, feito de ferro. Esse
era meu elemento desde o início. Em
vez
de me amedrontar, trazia-me
conforto. O metal era frio, pesado e
confiável.
Fazia o que eu pedisse. Em troca, eu
era dedicada; nunca houve um dia
em
que não expressasse a minha
gratidão à espada que carregava e
ao cavalo
que montava.
Os espíritos malignos têm aversão
ao metal e dizem que o nome do
ferro
ao ser invocado perante o Todo-
Poderoso é Barzel, que alguns
acreditam ser uma combinação de
letras tirada dos nomes das mães
dos filhos de Jacó,
Léa, Raquel, Bilá e Zilpá. A armas
são vedadas às mulheres, mas esse
nome
sugere que talvez os homens temam
tanto os nossos talentos na guerra
quanto nosso desejo de paz. Eu era
assistida pela graça das
antepassadas da nossa tribo, Raquel
e Léa, mas não trilhei o mesmo
caminho que haviam
percorrido. Nunca soube o que
significava ser uma esposa. Nunca
trabalhei
em um tear. Não andava na
companhia das meninas para receber
os
nascimentos e por isso era
especialmente grata. O seu
nascimento fora o bastante para
mim.
Eu preferia ser o filho do seu pai,
esperando em silêncio com os
cavalos
enquanto os homens faziam seus
ataques. Segurava as rédeas
enquanto os
guerreiros desciam a pé ao longo da
passagem estreita para atacar as
caravanas que viajavam para o oeste
em direção ao Egito, as carroças e
os
cavalos destemidos carregados de
mercadorias do Oriente. Eu ajudava
a
carregar as pilhas de incenso, as
fieiras de lápis-lazúli, coral e jade,
as cestas de cardamomo e cássia, as
bolsas cheias de barras e moedas de
ouro. Via mais sangue no chão que
qualquer uma das meninas
presenciava nos
partos. Sabia coisas que elas não
podiam sequer entender: como era
cavalgar durante a noite quente com
uma lança às costas. Como era
precipitar-se pela Montanha de
Ferro, uma só criatura, um só
coração,
bradando gritos de guerra, brilhante
de suor, correndo sob a lua. Nessas
ocasiões, era possível imaginar que
tinha asas e era livre como qualquer
ave de rapina, feroz como qualquer
homem.
O meu segredo tornou-se a minha
vida diária. Nossa mãe certificava-
se
de que eu me banhasse sozinha.
Quando meus seios começaram a
despontar, ela os amarrou com uma
faixa de linho. Essa ligadura fazia-
me
ficar ereta, em toda a minha altura,
como se fosse feita de ferro e não de
carne. Era capaz de bater mais forte
que os meninos. Era mais rápida
também, e mais ágil com a espada.
Com o tempo seu pai ficou
orgulhoso de
mim, quase como se eu fosse seu
filho, como se a nossa mentira fosse
verdade. À noite a nossa mãe me
ensinava a ler e a escrever. Aprendi
grego,
aramaico e hebraico. Havia garotas
que caçoavam de mim e me
perseguiam, como faziam com todos
os meninos que admiravam. Uma me
beijou durante essas brincadeiras e
eu ri, pensando em como ela era
tola.
Eu estava acima de tais interesses. E
ainda me sentia confusa porque,
quando meu amigo Nouri me
empurrou para podermos fugir das
meninas,
meu sangue disparou. Quando ele me
agarrou, seus dedos deixaram meu
braço pulsando, como se ele tivesse
me queimado sem querer.
Procurei a nossa mãe e chorei, como
qualquer menina boba, quando lhe
contei o que acontecera. Lutei contra
o impulso de me aproximar de
Nouri,
mas ele me atraía, como o aço
chama o aço. Nossa mãe disse que
era o momento de eu entender que
nunca poderia ser como as meninas
desatentas que perseguiam os
rapazes. Disse que vira meu destino.
O amor
seria a minha ruína. Ela sussurrou
que não me dissera isso por
crueldade,
mas por preocupação. Lançara as
pedras no dia do meu nascimento e a
minha sorte aparecera no chão à sua
frente, um aviso que agora
compartilhava comigo, como a sua
mãe compartilhara a adivinhação do
seu
futuro com ela. Não devia olhar para
os meninos ou considerá-los outra
coisa que não irmãos. No dia em que
fizesse isso, meu destino e minha
ruína me reclamariam. Nossa mãe
tinha lágrimas nos olhos enquanto
me
instruía. Eu sabia que ela queria o
melhor para mim e não duvidei dela.
Ainda não.
Foi fácil dar-lhe a minha promessa
naquele dia. Ela me abraçou e me
chamou de filha, um deslize
perigoso com relação ao que eu fora
e não era mais.
DEPOIS DISSO, passei a evitar
Nouri, embora ele se mostrasse
claramente magoado por eu tê-lo
abandonado. Evitei pensar nas suas
belas feições, na
maneira que seu rosto se abria de
repente em um sorriso. Ele não era
um
cavaleiro tão bom como eu, afinal;
nunca conseguiria me alcançar. Eu
era a
melhor entre os meninos da minha
idade, destemida. Quando soltava os
seios para tomar banho, sentia as
asas sobre os ombros, entrelaçando-
se através dos ossos, o segredo dos
meus dons, um legado de quem era o
meu
pai, quem e o que quer que ele
pudesse ser. Eu quase acreditava
que ele poderia ser mesmo um anjo,
pois existiam essas criaturas divinas
luminosas, aladas, mensageiros
esvoaçantes de Deus, que segundo
se dizia
extasiavam-se com as mulheres da
terra e as visitavam durante a noite,
unindo-se à carne humana.
Eu cavalgava com o grito do seu
povo na garganta quando perseguia
coelhos e o tímido hírax que se
entoca nas rochas e ronda os
matagais.
Praticava a minha habilidade para
impressionar seu pai, vindo a matar
o meu primeiro íbex quando tinha
dez anos. Ele não disse nada quando
o íbex tropeçou e caiu, mas notei o
que ele sentia na sua expressão
enquanto
ajudava a esfolar o animal. Era
Adar, o mês em que se encontravam
íbex jovens nos campos, mas eu
matara um macho enorme. Seu pai
tocou minha
testa em uma bênção para a minha
habilidade. Vindo de um homem tão
silencioso, isso foi um grande
elogio.
Senti-me feliz por ser um menino
naquele mundo de homens e por ter
recebido uma grande honraria
quando seu pai me permitiu cavalgar
ao
lado dele. Eu vivia intensamente
cada dia, o cabelo preto trançado, o
manto
azul índigo do povo do seu pai. Mas
nosso irmão havia nascido e, quando
ele cresceu, tudo mudou. Era para
Adir que nosso pai olhava com
orgulho.
Talvez ele realmente tivesse se
esquecido de quem eu era durante
todos aqueles anos e só então se
lembrasse de que era uma menina
que a minha
mãe se recusara a deixar para trás na
primeira noite do seu casamento,
antes de chegarmos à terra de
Moabe e mudarmos quem eu me
destinava a
ser.
*
NA ESTAÇÃO das chuvas, quando
não havia caravanas, os homens
voltavam para as outras aldeias,
para as outras esposas. Seu pai e os
companheiros
nunca paravam em um único lugar,
mas em vez disso enrolavam suas
tendas e partiam por toda a terra,
deixando a família na Montanha de
Ferro
para ir visitar as outras esposas e
seus filhos em lugares distantes do
nosso
acampamento. Eles cavalgavam para
tão longe que suas sombras
dificilmente poderiam ser vistas
pela humanidade. Nós ficávamos
para trás
com as cabras e as ovelhas brancas
tosquiadas. Havia centenas no
rebanho,
todas aumentando a riqueza do seu
pai, e elas precisavam de cuidados.
As
acácias desabrochavam em flores
amarelas e os gramados no campo
eram
tão altos que podíamos desaparecer
e nunca ser vistos quando corríamos
pelo prado. À noite, os morcegos
voavam juntos em uma nuvem
escura,
caindo sobre as árvores para beber
o suco de figos. O ar era leve e a
chuva
tornava o ar do mesmo tom de azul
que as túnicas que seu povo usava.
Nossa mãe não reclamou por termos
ficado para trás na Montanha de
Ferro quando seu pai partiu. Ela
tinha outros afazeres. Quando a
nossa mãe
foi expulsa de Jerusalém, eu não era
seu único animal de estimação. Ela
também trouxera duas pombas e era
dedicada a elas. As pombas ficavam
dentro de uma gaiola de madeira e
eram alimentadas com grãos e
tâmaras.
Quando bebiam água, levantavam a
cabeça como se louvassem a Deus.
A
nossa mãe as soltava uma de cada
vez, prendendo mensagens nos tubos
de
bronze presos às suas pernas. As
pombas levantavam-se no céu
ocidental
quando ela as atirava para cima,
desaparecendo em um piscar de
olhos.
Elas sempre voltavam. Com o
tempo, seus filhos e netos também o
faziam,
seguindo a mesma rota misteriosa.
Nossa mãe esperava pelo retorno
das pombas enquanto o anoitecer
caía
entre as montanhas em faixas azuis.
Ela dizia que a cor do céu a fazia se
lembrar de água e da terra em que
ela passara a infância, antes de ser
mandada para Jerusalém. Ela sentia
saudade da cidade de Alexandria,
um
lugar onde os rios estavam cheios de
criaturas milagrosas e monstros
semelhantes, onde a sua mãe entoara
canções para ela dormir, as mesmas
que nos cantava agora. Durante
todos os anos em que estivemos em
Moabe,
ela permaneceu solitária. Talvez
estivesse pensando na cidade do seu
nascimento. Talvez por isso muitas
vezes eu a visse chorando.
Quando uma das pombas reaparecia,
nossa mãe tornava-se totalmente
absorta. Se a chamasse, ela não
ouviria. Se uma abelha pousasse em
sua mão, ela não tomaria
conhecimento. Ao contrário do seu
pai, que vivia satisfeito, percebi que
nossa mãe ansiava por algo mais.
No entanto, não conseguia decifrar
sua expressão, não enquanto
permanecesse ali com os
pés descalços, vestida como um
menino. Somente agora entendo. Ela
era
uma mulher apaixonada.
Durante os anos em que vivemos
com seu pai, ela enviava mensagens
para outro homem, aquele que era o
meu pai. Uma vez encontrei uma
carta
que ele lhe enviara de volta, escrita
em um pequeno pedaço de
pergaminho,
menor que a unha do polegar.
Entendi então que não havia um anjo
envolvido na questão do meu
nascimento, pois os anjos nos
procuram em
sonhos e visões, não em um
pergaminho. Nossa mãe pensou que
tinha
dobrado o bilhete e guardado no seu
livro de encantamentos, mas em vez
disso a mensagem caíra no meu
caminho. Talvez fossem mesmo os
anjos
que tivessem provocado isso, para
eu ficar sabendo a verdade sobre as
minhas origens, ou talvez um
demônio o tenha arrancado de entre
as
páginas. Minha verdadeira esposa
estava escrito. Minha mãe me
ensinara a língua dos estudiosos e,
porque eu sabia ler em hebraico,
conheci a traição
ao seu pai, o homem que me
ensinara tudo o que eu sabia, como
cavalgar e
caçar, e como ser leal às pessoas a
quem amamos.
Joguei o pergaminho na fogueira
naquela noite. Quando o fiz, ele
voou como uma vespa para me
picar. Existe uma marca embaixo do
meu olho
esquerdo, o que restou dessa
ocasião. Por isso nunca pude
esquecer o que
descobri. Às vezes as pessoas
pensam que estou chorando,
acreditam que
viram uma lágrima, mas estão
enganadas. Passei a primeira parte
da minha
vida sem lágrimas, a exemplo de
qualquer rapaz. A marca embaixo do
meu
olho foi feita pelo fogo. É o único
elemento capaz de vencer o ferro.
PERMANECEMOS até o verão em
que completei catorze anos. Eu sabia
que sangrava muito, embora os
meninos com quem eu corresse não
o fizessem,
mas isso não mudava quem eu era, a
mais feroz dentre eles, o cavaleiro
com asas, Aziza, que carregava a
compaixão e o poder em seu íntimo.
Simplesmente precisava manter meu
sangue em segredo, assim como
ocultava o corpo da vista de todos.
As mulheres ali não eram
consideradas
niddah quando sangravam, então eu
não cometia nenhum pecado de
verdade ao guardar meu segredo e
permanecia entre as pessoas durante
essa época do mês. Nas viagens de
caça, eu insistia que tinha o sono
agitado
e precisava acampar sozinha.
Quando os outros se aliviavam, eu
brincava que era um camelo e podia
reter a minha água por dias,
esperando até o momento em que
poderia passar despercebida.
Nessa época seu pai dera a Adir um
lindo cavalo, no qual eu treinara mas
que não era mais meu. Àquela altura
eu cavalgava um velho garanhão
branco, cujo tempo passara e nunca
mais venceria uma corrida, por mais
que o açoitasse. O povo do seu pai
estava se mudando para o sul, para
Petra, abandonando o costume de
viajar. A cidade que surgira das
rochas vermelhas, tiradas da borda
da ravina profunda, quase infinita,
começara a
atraí-los com sua grande beleza e a
vida sedentária que lá poderiam
encontrar. Havia uma piscina com a
fama de ser maior que qualquer lago
e
jardins incomparáveis. Dizia-se que
os peregrinos sentiam-se em casa
nesse lugar e que até mesmo esses
homens indomáveis que ansiavam
pela
liberdade, tendo passado a vida em
busca de campos abertos, não
conseguiam ignorar o chamado de
Petra. E havia outra razão – os
romanos
poderiam atacar nosso
acampamento, apesar da promessa
de paz e do
temor da coragem lendária dos
homens da tribo. Corria um boato de
que,
se todo o sangue fosse derramado
sobre as falésias de ferro de Moabe,
uma
dezena de homens surgiriam do
sangue do primeiro. Talvez os
homens
estivessem cansados de se mudar
sempre de casa, das inúmeras
esposas, e
ansiassem por uma única residência
e uma vida tranquila.
Minha mãe implorou ao seu pai que
permanecêssemos nas montanhas
quando ele, seus irmãos e os tios
atenderam ao chamado de Petra.
Poderíamos acampar com aqueles
que estavam estacionados de guarda
contra a legião, caso os romanos
mudassem de paz com as tribos para
guerra. Ela disse que seu espírito
não podia ser contido em uma
cidade, mesmo em uma tão gloriosa.
Contou ao marido que se acostumara
à tenda
e às estrelas, mas eu sabia que não
era verdade. Era mais que isso.
Algo que
seu pai não vira, apesar de ter a
visão aguçada de um falcão. Algo
que somente uma mulher notaria.
Desse modo, eu ainda era mulher o
bastante.
No dia em que as mulheres
começaram a desfazer o
acampamento,
desmontando as tendas, reunindo
suas chaleiras e seus tapetes, uma
pomba chegou. Vi-a descer
flutuando entre nós como se fosse
uma parte arrancada do céu caindo
sobre a terra. O ar violeta estava
frio e ergui os olhos alarmada,
perturbada com a chegada da
pomba. Tive a sensação de que tudo
estava prestes a mudar e que o
passado já se consumia em cinzas.
Nossa mãe pedira para ficar, mas
seu pai recusara o pedido. Ele a
queria consigo. Disse-lhe para levar
todos os pertences que lhe
importassem,
porque talvez nunca mais
regressasse à Montanha de Ferro.
Nossa mãe foi até o topo da
montanha com a ave em uma cesta,
para
poder ler sozinha a mensagem
recebida. Não sei o que dizia, mas
ela voltou
ao acampamento com uma expressão
definida.
A bagagem estava pronta e parecia
que partiríamos para Petra pela
manhã, mas minha mãe não esperou
o sol nascer. Ela me acordou no
instante em que seu pai partiu com
os irmãos para garantir que a rota
até a
cidade estivesse segura para as
mulheres e crianças que seguiriam
depois.
Assim que ele se foi, preparamos o
cavalo rápido de Adir. Tínhamos
também o grande cavalo de corrida
do meu pai, pois ele levara uma das
éguas, deixando sua montaria para a
minha mãe, um sinal da devoção que
lhe dedicava. O cavalo chamava-se
Leba, um nome que significa
coração.
Era um animal tão leal que jamais
teria ido conosco, não fosse por me
conhecer bem, por eu tê-lo
alimentado e hidratado muitas vezes.
Sempre desejei que ele fosse meu
um dia, embora soubesse que seu pai
nunca me
daria Leba. Adir era o verdadeiro
filho.
Levamos apenas as pombas na
gaiola de madeira e uma única
sacola de
tecido com nossos pertences,
juntamente com uma bolsa de couro
com
água e outra sacola com iogurte e
queijo. Vi a minha mãe pegar o livro
de
encantamentos da mãe dela e a caixa
de pau-ferro em que guardava o
diário. Usava os amuletos de ouro
que ganhara em Alexandria, quando
era
improvável que o destino a
trouxesse a Moabe, e os brincos que
o seu pai
lhe dera no dia do casamento. Ela
deixou para trás todo o resto, uma
grande quantidade de joias com que
seu pai lhe presenteara. Entre elas
havia colares de jade, pulseiras de
ouro e turquesa, contas de prata e
pérolas, anéis de ouro adornados
com pedras preciosas como nunca
víramos, alguns dos quais com raras
opalas que mudavam de cor,
incandescentes, contendo água e
fogo dentro das pedras. Ela estendeu
as joias com ternura e gratidão sobre
o estrado em que tinham dormido,
mas
não mostrou nenhum
arrependimento. Seu pai era o
homem que nos
salvara, mas não aquele a quem ela
amava.
O SEMBLANTE da nossa mãe foi se
transformando pelo caminho
enquanto seguíamos para o oeste,
como se ela fosse recuperando a
juventude. Eu passara a vida toda ao
lado dela; era como se ela se
tornasse totalmente desconhecida de
um modo que eu não conseguia
definir.
É verdade que você e nosso irmão
não queriam ir. Adir ficou amuado e
lamentou-se e você chamava pelo
seu pai. Poderia ter nos matado com
seus
gritos, mas cavalgávamos tão
rapidamente que o vento levou a sua
voz para
o céu. Deixamos os cavalos junto ao
Mar de Sal para que pudessem
retornar
ao seu legítimo proprietário. Não
éramos ladrões. O cavalo do seu pai
virou-se e correu de volta pelo
mesmo caminho por onde viéramos.
O
cavalo de Adir o acompanhou. Em
um instante eles tinham
desaparecido.
Restaram somente as marcas dos
seus cascos sobre a areia, e até
mesmo elas desapareceram enquanto
as observávamos, por isso naquele
momento
pareceu que nossa vida nas tendas
fora um sonho. Se voltássemos pelo
caminho por onde viéramos,
certamente não encontraríamos nada
na
montanha onde vivêramos por tanto
tempo, nem mesmo cinzas.
O único sinal daquele período era a
cicatriz embaixo do meu olho.
AS PESSOAS dizem que nossa mãe
caminhou sobre a água e que os treze
demônios de Lilith a sustiveram pela
bainha do vestido mas, na verdade,
encontramos um homem com uma
embarcação de fundo chato. Um
homem
simples mas ganancioso, que queria
um alto preço para nos levar pela
água.
Olhou para minha mãe, com seus
olhos negros, contentando-se por tê-
la
como pagamento. Em vez disso, ela
trocou as primeiras joias que seu pai
lhe dera, os brincos que usava
sempre. Eram de rubis da Índia,
capturados
de uma caravana de homens que
falavam uma língua que ninguém
nunca
ouvira. Os rubis faziam que me
lembrasse do seu pai, tão puros eles
eram,
tão elementares, tão brilhantes e
vermelhos que pareciam quentes ao
toque. Virei-me, incapaz de assistir
àquela troca. Já vira sangue
derramado
do seu pai em muitas ocasiões.
Apesar dos rumores nas histórias
dos
romanos, de maneira alguma ele era
azul.
Antes de partir coletamos figos,
juntamente com um feixe de ramos
de
acácia. Uma tempestade se formava
e o mar estava cheio de corcovas
negras. Pareciam pedras colocadas
para bloquear o caminho. Nossa mãe
disse para não nos preocuparmos.
Ela jurou que a água se aplacaria e
nos
protegeria; vira isso como seu
próprio destino. O barco balançava
e o homem que remava proferia
maldições e lutava com o mar.
Ainda assim, a
minha mãe continuava serena. A
água salgada respingava nos nossos
rostos
e ameaçava nos cegar, mas na outra
metade do percurso o mar se
acalmou,
tornando-se azul, depois acinzentado
e, por fim, prateado e calmo. As
montanhas da Judeia refletiam-se na
água, flutuando à nossa frente. A
visão
fez parecer que já chegáramos ao
nosso destino, embora ainda restasse
uma longa jornada. Senti o cheiro de
fogo e metal. Os meus elementos. A
minha vida dupla.
Quando chegamos ao outro lado do
Mar de Sal, o barqueiro nos deixou.
No silêncio à nossa volta, senti que
poderia ouvir o coração pulsante do
mundo em Jerusalém, lev ha-olam, o
centro da criação. Acampamos onde
o
barqueiro nos deixara, exaustos
pelas viagens. À noite, depois de
você e Adir terem adormecido sobre
a areia úmida, nossa mãe fez sinal
para que
eu a seguisse. Acendemos uma
fogueira com a madeira de acácia
que
coletáramos na outra margem, a
última acácia que eu veria com
raízes
fincadas em Moabe. Minha mãe
soltou suas pombas de estimação.
Depois
que desapareceram, lançou a gaiola
ao fogo e a deixou queimar em um
borrão de chamas.
Ali naquele vazio eu não conseguia
parar de pensar na Montanha de
Ferro e na vida que levara lá, como
imaginava estar voando quando
cavalgava à noite com a tropa de
bandidos destemidos, como
tomávamos
tudo com o que nos deparávamos.
Eu estava com catorze anos, mas já
matara vários homens. Depois de
fazê-lo, queimava as flores da
acácia em
um tributo a cada um deles, como
era o costume. Seu pai muitas vezes
trazia ramos carregados de centenas
de flores para nossa mãe. Ela
agradecia, mas não se interessava
por aqueles ramos bonitos. Não
apreciava a natureza adocicada das
flores e o modo que atraíam as
abelhas.
Aquelas criaturas aladas
compreendiam a verdadeira
essência da acácia, a
razão pela qual as queimávamos em
homenagem às almas. Quando as
flores da acácia queimavam, subiam
para o alto, em homenagem ao nosso
Deus, que as criara.
A única vegetação que crescia nesse
lado do Mar de Sal era o bálsamo
de
Jericó, uma árvore que o povo dizia
brotar do submundo, contendo uma
chama dentro de uma fruta
comestível. Nossa mãe pegou três
dessas frutas
e as lançou ao fogo, e as chamas
tornaram-se amarelas como o ouro.
Ela então me disse para tirar toda a
roupa. Porque eu não ousava
desobedecer,
fiz o que ela pedira.
Tirei as calças e a túnica, depois a
capa, juntamente com o lenço de
cabeça que fora tingido com a cor
azul do povo do seu pai. A nossa
mãe queimou tudo. O tecido enviava
faíscas escuras para o céu. Ela
soltou meu
cabelo e desfez os nós com os
dedos. Não reclamei, embora
doesse. Não disse nada e sufoquei
as lágrimas. Contaram-me que no
início, quando
chegamos, o povo do seu pai
sussurrava que ele trouxera uma
bruxa de Jerusalém e que nossa mãe
teria o poder de hipnotizá-lo. Era
melhor não olhar nos olhos dela,
diziam as mulheres do nosso
acampamento, ou
contrariá-la. Naquele momento eu
me perguntei se não estariam certas.
Temi a minha própria mãe naquela
noite. Fiquei parada ali, nua sobre o
sal,
os pés ardendo, enquanto ela
cantava em uma língua
incompreensível, os
braços, o pescoço e o rosto cobertos
pela lama do Mar de Sal, parecendo
um
demônio. Senti-me desmascarada, os
seios soltos, o cabelo tão comprido
que passava da cintura, como um
lençol preto.
Nossa mãe levara consigo a pequena
sacola de tecido com nossos
pertences. Quando ela remexeu no
seu interior, temi pelo que poderia
ser
revelado. Talvez uma cobra ou um
escorpião, ou uma faca com a
finalidade
de me marcar em um sacrifício,
como Abraão recebera a ordem de
levar seu único filho, Isaac, perante
Deus. Demorou um pouco para eu
entender o
que ela pretendia, mesmo depois de
revelar o que trouxera consigo de
Moabe. Era uma saia e uma capa
feitas com seda que seu pai lhe dera,
um
tesouro da Índia, contornadas por
borboletas. Vesti-me, enfiando-me
nas
roupas estranhas, depois calcei um
par de sandálias finas de couro.
Estava
escuro naquela noite, o que era uma
coisa boa. Não teria sido capaz de
olhar para mim mesma. Tornara-me
uma estranha em minha própria pele.
Ainda sentia as asas acima dos
ombros, mas elas pareciam presas
de um modo diferente de quando
havia uma folha de linho enrolada
em torno de
mim, escondendo-as.
Nossa mãe e eu dissemos as orações
em conjunto, aquelas que são
recitadas quando nasce uma criança
e uma alma humana entrou no nosso
mundo. Aquela foi a noite em que
me tornei mulher, embora
mantivesse
meu nome. Aziza, a piedosa, a
poderosa. Aziza, a mulher que sabia
o que era
ser homem.
Durante a manhã chegou um
mensageiro de Massada. Ele fora
informado de onde exatamente
estaríamos esperando. Deu-nos água
potável e alimentos, então disse que
iria nos levar em segurança. Ele me
fitou de um modo que nenhum
homem me fitara antes.
Foi a primeira vez na vida que
entendi o que era para o resto do
mundo.
Fiz questão de baixar os olhos.
MESMO AGORA sinto-me atraída
para o meu antigo estilo de vida.
Passo o menor tempo possível
dentro dos pombais. As pombas não
me interessam,
assim como nenhum outro trabalho
feminino. Não consigo tecer ou
costurar sem picar os dedos. Quando
cozinho, deixo queimar o pão sírio.
O
meu guisado é insípido, não importa
quantos ingredientes acrescente à
panela. Não há sal ou cominho
suficientes no mundo para satisfazer
às minhas tentativas de temperar os
alimentos. Sou desajeitada em
tarefas
que minha irmã terminava com
facilidade quando tinha apenas oito
anos
de idade.
Inúmeras vezes me encontro ao lado
do quartel, atraída para lá,
especialmente nas noites que
assinalam o novo mês, Rosh
Chodesh, quando
as mulheres se reúnem para
comemorar, pois não é na
companhia delas
que me identifico, mas ali, ao lado
dos guerreiros. Quando encontro
pontas
de flechas, guardo-as na palma da
mão, como talismãs do meu passado.
As
lâminas encaixam-se perfeitamente
no meu punho. O peso do material,
frio
e plano, é o que mais anseio.
Somente o metal alcança o centro de
quem sou.
Estou nessa fortaleza há muito
tempo, mas ainda sonho com a outra
época, embora não tenha dito a
ninguém, nem mesmo a Amram, a
quem me
prometi, apesar das advertências da
minha mãe. Algumas coisas devem
ser
mantidas em segredo, aprendi isso
ainda jovem, e tenho mantido bem
guardado o nosso segredo. A minha
mãe pode ser tomada pelas dúvidas,
mas não tem nenhuma prova de que a
tenha desobedecido. Ela espalhou
sal
na soleira da nossa porta, para eu
deixar as minhas pegadas, mas pulo
por
cima do sal, sem deixar rastros. Ela
amarrou um fio do seu cabelo na
porta,
mas eu simplesmente me esgueiro
por baixo dele. Posso enganá-la em
algumas coisas; ainda assim, penso
na sua profecia todas as vezes que
me
encontro com Amram. Sou dele, mas
sei que me desonro escondendo a
verdade da minha mãe, que me deu a
vida, não uma, mas três vezes.
Desde o início minha irmã foi minha
cúmplice. Estávamos havia quase
um ano trabalhando com nossa mãe
nos pombais quando Amram chegou.
Passávamos os dias dedicadas à
labuta. Os três pombais eram como
uma
família de cabras – o pai, construído
como uma torre, depois a mãe e o
filho,
quadrados e atarracados, um
pequeno e o outro menor ainda. Até
então
eles eram o meu mundo, uma vez que
evitava os vizinhos e me mantinha
afastada das outras mulheres,
temendo que, de algum modo, elas
percebessem nossas diferenças.
Quando Amram chegou de Jerusalém
no início do verão, no ano da
queda do Templo, ele era apenas
mais um rapaz fugindo dos inimigos,
condenado tanto pela sua origem
como pelas suas ações, um matador
que
poderia ser visto como um assassino
ou como um herói, dependendo de
quem você era e a que local o
destino o levara. Aconteceu de eu
estar lá, atravessando a praça.
Estava com quase dezesseis anos,
mas ainda me
guardava para mim mesma. Não me
importara com nenhum homem, até
que vi Amram subir pelo caminho da
serpente. Ele caminhava com
facilidade, como se as escarpas
fossem pouco mais que um campo. O
que era íngreme e difícil para os
outros, para Amram não era
diferente que o ar
para a cotovia. Estava claro que
poderia vencer o que aparecesse à
sua frente, homem ou animal, até
mesmo a própria terra.
Observando-o, quase me vergonhei
de achá-lo tão bonito. Ele era o
guerreiro que gostaria de ter-me
tornado, esguio e magro, seguro de
si.
Invejei-o e quis possuí-lo, e a tudo o
que ele tinha. Lembrei-me do modo
que a noite caía no outro lado do
Mar de Sal, em ondas de azul
profundo, no
dia em que minha mãe me advertiu
da profecia de que deveria evitar o
amor a todo custo. Mas eu nasci
para desobedecê-la. Soube disso
quando descobri que não conseguia
desviar o olhar de Amram. Tentei e
não
consegui, embora fosse mais forte
que ferro e mais ainda em tais
assuntos.
Aziza, a poderosa, de algum modo
se desmanchou. Será que havia
algum
anjo ou demônio que se lembrava de
qual fora o meu nome e agora me
chamava Rebeca dos confins do
céu? Fiquei lá como qualquer outra
mulher
no Portão da Serpente, ao lado de
todos os demais que ali se reuniram,
encantada e seduzida por Amram,
antes mesmo de ele chegar até nós.
Quem sabe o momento pudesse ter
passado, e eu me virado e retomado
os meus deveres, se ele não me
tivesse visto também, se nós não nos
tivéssemos transformado por um
simples olhar que trocamos.
Compreendi
que fora capturada no instante em
que me rendera ao impulso de ficar
em
cima da muralha para aplaudir a sua
chegada. Minha intenção era outra.
Apenas ver o tipo de homem que
poderia ter sido na minha segunda
vida.
Em vez disso, tornei-me uma mulher
naquele instante. Através do calor
bruxuleante, enquanto ele subia pelo
caminho da serpente, vi seu destino
entrelaçar-se ao meu.
SENTIA-ME CURIOSA, atraída por
ele. Quando as chuvas vieram,
ficava ao lado do arsenal, toda
molhada, na esperança de ter um
vislumbre daquele homem
no quartel. Dava a volta na muralha
em busca de sinais de sua passagem:
uma ponta de flecha, uma pegada,
um fio de cabelo. Quando a poeira
levantava eu pensava nele; quando
olhava para o céu, lembrava-me
dele; quando ia buscar água, comia o
jantar, trabalhava entre os pombos,
tudo, não importava quão trivial,
trazia-o à minha lembrança. Não o
teria
perseguido, mas um dia ele cruzou
meu caminho quando minha irmã e
eu
seguíamos apressadas para o
pombal. Levantei a mão em proteção
aos
olhos, não só para poder vê-lo, mas
também para esconder a marca
embaixo do olho. Naquele instante
fui pretendida mais uma vez. Ele
sorriu,
convencido de que me conhecia, e
eu retribuí o sorriso, sabendo que
não.
Nossa mãe nos esperava. Se
estivesse junto a nós, ela me
obrigaria a me
virar de lado. Quem sabe tudo que
se seguiu tivesse sido diferente, mas,
como o destino quis que ela não
estivesse lá, senti-me imensamente
grata
por isso. Nahara lançou-me um olhar
quando lhe disse para prosseguir,
mas fez o que pedi.
– Você faz esse caminho todos os
dias – comentou Amram depois que
a
minha irmã se afastou.
– Como você sabe? – falei-lhe como
me dirigia a Nouri, como se fosse
um
igual, não me curvando diante dele.
– Porque a observei.
Senti-me como era quando estava
nas montanhas, eu mesma outra vez.
– Não tanto quanto observo você –
disse, o meu sorriso se alargando.
Por ter crescido entre os meninos,
não tinha a malícia da mulher.
Amram riu, surpreso com a minha
franqueza. Acho que, quando o
beijei
pela primeira vez, sem esconder
nada, fiz como um homem o faria,
desenvolto pelo ardor. Se ele ficou
surpreso com isso, pelo menos não
se decepcionou.
AS MULHERES nos campos
fofocavam sobre nós. Eu ouvia as
palavras, mas tais comentários não
eram nada para mim, picadas de
vespa, grãos de areia no
meu sapato. Deixava as fagulhas do
seu ciúme rude caírem no chão.
Nenhuma delas teve a coragem de
procurar minha mãe e arriscar-se a
enfrentar a sua raiva com as
histórias sobre o meu mau
comportamento.
Começamos a nos encontrar no
escuro, ao lado da fonte da Praça
Ocidental. Sempre que estava com
Amram, a minha irmã jurava que eu
estava com ela. Ela era o meu
escudo, a minha chave para a
liberdade, a pombinha que levava as
palavras que eu escrevia para ela
dizer quando fosse contar a Amram
a hora em que poderíamos nos
encontrar em
segurança. Eu salvara a minha irmã
uma vez, agora ela me pagava.
Muitas
vezes ela cruzou a praça comigo à
noite. Dávamos as mãos e
sussurrávamos
como crianças, mas, quando nos
aproximávamos da fonte, em
determinado
momento ela cobria os olhos e eu
seguia sozinha. Se ela não
testemunhasse
nosso encontro, não seria obrigada a
dizer uma mentira deslavada quando
assegurasse à nossa mãe que não me
vira com nenhum homem.
Encontrávamos lugares para ficar
sozinhos, depósitos, jardins, o
campo
à noite. Uma vez mais, como quando
dera a vida à minha irmã, a
respiração
de alguém me pertencia e a minha à
dele. Amram prometeu que
esconderia
o nosso segredo da minha mãe, e ele
era um homem de palavra. Havia
quem jurasse que em Jerusalém ele
fora o mais ousado dos assassinos,
capaz de se transformar. Dizia-se
que seu pai, o grande e temível
assassino
Bar Elhanan, possuía a capacidade
de desaparecer à vista de todos.
Talvez
ele tivesse herdado esse truque da
invisibilidade, pois Amram era
capaz de
passar sem ser notado pela minha
mãe, a sua presença pouco mais que
uma
nuvem. Tornamo-nos tão corajosos
que nos atrevemos a nos encontrar
no
porão embaixo do nosso alojamento,
pois havia uma escada secreta no
chão
da velha cozinha, e ainda outra que
dava acesso ao porão a partir da
praça.
Despíamos as capas sob o assoalho
que a minha mãe pisava. Talvez
tenha
feito isso para ofendê-la, para
reivindicar a minha própria vida e
refutar a
sua profecia de que o amor só me
traria angústia.
No nosso porão secreto eu tentava
ao máximo espionar Amram no
tecido escuro das sombras antes que
ele pudesse me ver. Conseguia
identificar os ratos do campo em
busca de grãos e as formas
modorrentas
dos morcegos pendurados no teto,
mas Amram me enganava todas as
vezes, segurando-me antes que
soubesse que ele estava lá,
deslizando a mão sobre a minha
boca para eu não gritar. Poderia
escapar dele
facilmente e levar uma faca ao seu
pescoço antes que ele piscasse, mas
dizia
a mim mesma que esse era o nosso
jogo, esconder a nossa verdadeira
natureza. Embora ele não me visse
por quem eu era, mas eu deveria
saber
bem disso, nunca lhe negava nada. E
ainda assim não me sentia satisfeita.
Ele não enxergava através de meus
véus e não lhe revelava o meu eu
mais profundo. Talvez fosse apenas
para desafiar a minha mãe, mas na
época que Revka chegou para
trabalhar conosco nos pombais, eu
tinha me
prometido a ele. Não muito tempo
depois que a irmã dele, Yael,
chegou para trabalhar conosco, eu
era dele.
TALVEZ ALGUNS segredos sejam
impossíveis de manter, pois parecia
que os meus pecados estavam
escritos em mim. Eu era solteira,
embora soubesse
o que as noivas sabiam, como os
homens gemiam de paixão, como
eles às
vezes choravam por tudo o que
sentiam, como o desejo os vinculava
tão firmemente como as roupas que
eu usava na vida – xales, véus e
mantos –
ligando-me ao que havia me tornado.
Os homens me olhavam rudemente
no mercado quando entrava na fila
para receber as rações de trigo e de
milho. Eles observavam como eu
carregava as cestas de esterco para
o
campo e faziam sugestões que eu
ignorava. Não era submissa,
disposta a assumir o ônus dos seus
desejos. Gritava-lhes para voltarem
para casa, para
as suas esposas ou mães. A própria
ideia de que me submeteria a
qualquer
homem que decidisse me falar desse
modo revivia o guerreiro que havia
em mim. Deixava o xale deslizar do
meu cabelo e dos meus ombros,
permitindo que meus braços
brilhassem nus à luz do sol. As
outras
mulheres começaram então a
sussurrar que era uma sheydim, uma
criatura
que ninguém podia controlar. Nisso
elas estavam certas. Eu fazia o que
queria, mesmo que minha mãe me
proibisse de fazê-lo, mesmo que
fosse
um pecado.
Comecei a me perguntar se não
havia algum sentido nas histórias
das
mulheres do campo a meu respeito,
talvez o que me separasse de todas
as
outras não fosse a vida que levara
antes de chegar ali, mas antes se
devesse
a quem poderia ser meu pai de
verdade. Embora ele não fosse um
anjo ou
um íncubo, mas um homem que
escrevia em pergaminhos, eu me
confundia
cada vez mais sobre a sua
identidade com o passar do tempo.
Pensei que era estranho que o
mensageiro soubesse exatamente
onde nos encontrar
na costa do Mar de Sal e que ele
inclinara a cabeça para minha mãe,
como
se ela fosse a esposa de um homem
importante. Imaginava por que,
dentre
todos os lugares a que poderíamos
ter ido neste mundo, tivéssemos de
chegar a essa fortaleza e não a outra.
Minha mãe não me dizia nada. Ela
se recusava a revelar para onde
enviara as pombas do alto da
Montanha de Ferro. Negava ter
alguma vez recebido respostas,
embora as palavras que lhe
enviaram tivessem me
queimado e eu ainda carregava a
cicatriz. Somente disse que havia
sido uma menina que seguiu o
caminho determinado para ela pelo
Todo-Poderoso.
– Seria eu tão grosseira e
presunçosa a ponto de perguntar a
Deus por
que me pôs em um caminho e não em
outro?
Quando ela disse isso, seu rosto
estava jovem e inocente. Pela
primeira
vez ela, que sempre fora tão
destemida, parecia vulnerável.
Minha mãe me
ensinara muito. Graças a ela eu
sabia ler mais idiomas que a maioria
dos homens cultos, ainda que
soubesse muito pouco a seu respeito
ou sobre mim. Desde Moabe, nossos
segredos pareciam uma teia de
aranha, um fio
sustentando o seguinte. As palavras
que não dizíamos tornaram-se as
únicas coisas que realmente
importavam. Nós nos movíamos
como
aranhas, circulando uma ao redor da
outra, desconfiadas, esperando pelo
que viria em seguida.
– Será que eu também não tenho um
caminho? – perguntei, encorajada
quando disse que não questionara a
direção a que Deus a conduzira.
Ela me olhou pensativa.
– Um deles você deve evitar a todo
custo.
Essa observação foi suficiente para
me convencer de que eu precisava
encontrar meu próprio caminho.
COMO OS NOSSOS segredos nos
forçavam a nos afastar, eu me isolei.
Seguindo o exemplo da minha mãe,
não contava nada. Ficava no nosso
alojamento
quando ela saía para ajudar no
trabalho das mulheres ou para
assistir pessoas afligidas por febres,
levando o cântaro e a tigela, além de
um sabão
feito de gordura e cinzas, insistindo
que os doentes lavassem as mãos
para
se purificar. Não a acompanhava
quando saía à noite para a sinagoga,
onde
cavava a terra a fim de enterrar
amuletos em lugares santos, para a
proteção de quem a procurasse em
uma necessidade. Quando a minha
mãe
me pedia para aventurar-me com ela
além do portão e coletar arruda,
manjerona e as maçãs amarelas da
mandrágora, utilizadas na
pharmaka, restava-me pouca
escolha a não ser obedecer. Mas,
mesmo quando tentava
atender aos seus desejos, não tinha
utilidade para ela. As minhas mãos
não
eram ágeis. Rasgava as folhas, e os
frutos se desfaziam. Não tinha o
toque
da feitiçaria. Não dominava
nenhuma das habilidades que uma
mulher
deveria possuir.
Não foi de admirar que Yael
tomasse meu lugar. Minha mãe a
escolhera
para se juntar a nós no momento em
que ela entrou pelo portão, enquanto
Yael seguia atrás do pai, a cabeça
inclinada, o cabelo vermelho
grudado com o sal. Talvez minha
mãe tivesse ficado tocada com sua
condição, que
adivinhou tão logo observou o modo
de andar de Yael e o cuidado com
que
ela cobria o corpo com o xale.
Minha mãe também estava sozinha
quando
trouxera o primeiro filho a este
mundo.
Quando Yael revelou o nome do seu
irmão no pombal, senti o sangue
correr mais forte, com medo de que
a minha vida oculta pudesse ser
percebida pela minha expressão. Ali
estava Yaya, a irmã de que Amram
falara muitas vezes, a sua protetora e
amiga na infância. Eu deveria tê-la
puxado de lado para pedir que
contasse histórias da sua infância,
mas me
mantive distante. Não tinha nenhuma
razão para acreditar nela ou confiar-
lhe os meus segredos. Quando ela
me viu com Amram no nosso ponto
de encontro, esperei pela sua
traição, imaginando que fosse
revelar a verdade
à minha mãe, com quem trocava
tantas confidências. Mas ela nunca
mencionou nada. Em vez disso,
chamou-me de lado para cochichar
que o
irmão era um homem bom. Que
quem eu amasse não era da sua
conta.
Ainda assim, apesar da sua bondade
com relação a mim, ela se tornou a
minha rival. No dia brutal em que a
minha mãe foi levada para a praça e
posta a ferros, acusada de bruxaria,
Yael foi a única que a assistiu, não
eu.
Ela correu para a minha mãe, usando
um dos amuletos de ouro da nossa
família, um presente que sempre fora
passado de mãe para filha. Pude vê-
las de braços dados através das
cortinas de chuva. Virei-me e não
disse nada, engolindo o amargor do
meu próprio ciúme.
Não pude deixar de pensar no que
mais a minha mãe vira no dia em que
nasci, se acaso foi um presságio que
a levou a me deixar de lado,
preferindo
uma estranha à própria filha.
DURANTE TODO o belo e suave
mês de Adar, Yael vinha todas as
noites ao nosso alojamento na antiga
cozinha do palácio. Aprendia os
encantamentos
que minha mãe conhecera em
Alexandria, juntamente com letras
gregas e
hebraicas. Elas se sentavam à mesa,
as cabeças próximas, as vozes
baixas,
para não acordar Arieh, agora com
quase oito meses de idade, que
dormia
no estrado em que minha irmã antes
passava as noites. Não me ofendi
por
não pensarem em me incluir. Não
tinha interesse em tais assuntos. O
keshaphim não era nada mais que
um ofício de mulheres aos meus
olhos, com suas receitas e seus
remédios de ervas, não diferente da
limpeza das
pombas, ou da fiação da lã, ou de
manter as panelas fervendo no
fogão. Eu
usara um encantamento para proteger
Amram uma vez, quando ele
liderara a primeira incursão a partir
dessa montanha. Mas depois me
senti
impura e fui à mikvah para me
purificar.
E ainda assim, enquanto as
observava nos seus estudos, pensava
como
seria mais fácil se pudesse fazer o
que a minha mãe me pedia, se fosse
capaz de acompanhá-la, se já não
tivesse sido escrito que eu era
fadada a desobedecer.
*
QUANDO NAHARA nos deixou,
estava convencida de que ela
voltaria. Era eu a rebelde e ela era a
boa filha, a minha querida irmã de
confiança. Com o tempo, tive certeza
de que os rígidos costumes dos
essênios a cansariam.
Então ela se lembraria de que me
pertencia.
Mas a estação mudou, o trigo
cresceu e não houve nenhuma notícia
dela.
Houve Yael em seu lugar à mesa.
Houve Arieh, arrulhando, brincando
com
os dedinhos do pé ou com seu
chocalho na cama. Minha irmã
baixava os olhos quando nos
cruzávamos, como se não
tivéssemos atravessado o Mar
de Sal juntas e dormido uma nos
braços da outra. Ela parecia não
ouvir quando a chamava na praça.
Pensei que me procuraria no devido
momento,
mas me enganei. Devia ter entendido
que a ovelha não sai pela porta
aberta
quando todo o seu mundo consiste
do cercado em que vive. Depois que
uma criatura assim memoriza a cerca
de espinhos, não mais atravessa esse
marcador, nem mesmo depois de
derrubada, pois ela ainda governa os
limites da sua visão e da sua vida.
Quando avistei Nahara no campo,
pastoreando as cabras pretas,
incitando-as com um pedaço de pau
torto, seguindo os homens da tribo,
os
olhos submissos a Malaquias,
perguntei-me se minha mãe se
enganara na
profecia ao dizer que o amor traria a
minha ruína.
Talvez tivesse visto o destino da
minha irmã no meu lugar.
NO DIA da Festa dos Pães Ázimos,
quando comemoramos a libertação
do nosso povo da escravidão, o
kadim começou a soprar de Edom.
Nada de bom podia vir disso, pois
se dizia que, uma vez que começa, o
vento permanece por semanas. Não
havia como escapar do seu calor
brutal ou se
esconder da sua fúria. Durante
semanas as aves não subiriam ao
céu, as asas repelidas pela força das
rajadas e pela vontade do nosso
Deus,
lembrando-nos de que devíamos nos
curvar perante Ele e render graças à
nossa vida na terra. A confusão
reinava quando os homens tentavam
se
falar e as intenções das mulheres
eram mal interpretadas.
No pombal, as aves estavam
agitadas e recusavam-se a deitar. A
minha
mãe desenhou o sinal dos quatro
ventos sobre o chão de terra, depois
queimou incenso, uma pequena pilha
de mirra que fez com que as pombas
se acalmassem, embora ainda
tremessem. Yael pegava os pássaros
no
regaço e eles se consolavam, mas,
no momento em que ela saía pela
porta,
eles começavam a se agitar e a
chamar.
Quando a Festa dos Pães Ázimos
terminou e os padeiros voltaram a
trabalhar nos fornos, usando os
poucos grãos que tinham para os
pães, o vento ainda estava conosco,
tão feroz como antes. As pétalas
choviam das
amendoeiras em saraivadas capazes
de cegar. Formavam-se filas nos
armazéns, onde os vizinhos
aguardavam sua porção de
alimentos. As
pessoas tinham de gritar para serem
ouvidas; no fim, elas muitas vezes se
afastavam umas das outras,
abanando as cabeças. O kadim
trouxera um turbilhão; a poeira e a
areia se acumulavam nos locais em
que dormíamos e
comíamos, e nas costuras das nossas
roupas.
Felizmente havia um momento em
que o vento diminuía e trazia
tranquilidade, pela qual éramos
todos gratos. Ocorria no momento
em que
a luz azul da noite começava a cair.
A cor do horizonte era tão
maravilhosa
que até mesmo os cegos juravam que
conseguiam enxergar. Era o beyn
ha’arbayim, um momento em que
não é nem dia nem noite, quando o
véu
da ilusão é mais fino e podemos ver
as coisas à luz lilás que não é vista
em
nenhuma outra hora. Esse era o
momento em que os demônios ou
anjos
podiam aparecer, quando os
sheydim passaram a existir.
Uma noite Yael não apareceu
sozinha no nosso alojamento para
sua
visita à minha mãe. Trouxera
consigo a amiga essênia naquele
momento
em que o vento kadim silenciava. A
túnica branca de Tamar parecia
azulada em torno dela. As mulheres
se aproximaram de nós, os olhos
baixos.
Estremeci na luz e no vento. Quanto
à minha mãe, seu rosto estava
desfigurado. Ela vira um escorpião
em um canto naquela manhã. Desde
aquele momento, esperava que o
desastre chegasse à nossa porta.
– Não culpe Tamar pelo que está
prestes a lhe dizer – Yael
aconselhou à
minha mãe, a voz tomada de
preocupação. O seu cabelo escarlate
brilhava
na luz fraca. – Ela me procurou,
como faz agora com você, para
oferecer a
verdade, não para lhe causar algum
mal.
O menino de Tamar, Yehuda,
tornara-se amigo do meu irmão.
Pensáramos que ela talvez tivesse
vindo à procura dele, como
acontecia com frequência. Mas
Tamar não viera por causa do filho.
Era a minha mãe
que ela queria, mas estranhamente
não se aproximou muito de nós.
Estávamos de pé ao lado da porta
com Yael, que se juntara a nós,
enquanto
Tamar permanecera no outro lado,
como se cruzar o umbral pudesse lhe
trazer alguma maldição.
Era um mau presságio ficarmos
divididas, mas ninguém se moveu.
– Quando chega o shabat, não há
com voltar atrás a outro dia –
comentou Tamar, os olhos baixos.
Ela era uma mulher gentil, que
sofrera muito, e claramente doía-lhe
dizer mais.
Yael pediu que continuasse, então
finalmente ela nos contou.
– Eles procuraram Abba para ter a
sua bênção.
A minha mãe deixou escapar um
soluço ao ouvir a notícia. Ela sabia
que
o shabat representava uma noiva,
pois era o sétimo dia da criação e o
mais bonito de todos. A noiva em
questão era a minha irmã, que
acabara de se
tornar uma mulher. Ela se casara
sem o conhecimento ou a permissão
da minha mãe.
– Você não poderia ter feito nada –
Yael sugeriu. – Eles se casaram esta
manhã.
Tamar murmurava um pedido de
desculpas pelo modo que seu povo
nos
desrespeitara. Por não termos um
homem na nossa família, Abba dera
seu
consentimento, com a graça de Deus.
Minha mãe não ouvia mais nada. Ela
correu para o armário em que
guardava os talismãs e as ervas,
desesperada
por um encantamento que
consertasse as coisas. O óleo do
lírio, aquele aroma santo e precioso,
derramado sobre o altar, foi o que
ela fez. Por um
instante pareceu que retornara aos
campos de Moabe, era verão e as
flores,
vermelhas. Vi que minha mãe
chorava. Só isso já era aterrorizante.
Não conseguia me lembrar de tê-la
visto chorar antes, nem mesmo na
noite em
que os ladrões foram à nossa tenda,
quando ela mudara meu nome e,
assim,
o meu destino.
Desejei ainda ser um menino, saindo
para atacar as caravanas com os
homens, mandado com os guerreiros
para procurar provisões, deixando
os
desgostos daquela natureza para as
mulheres resolverem. Fiquei ali em
silêncio, incapaz de lidar com a dor
da minha mãe. Foi Yael quem se
adiantou para abraçá-la. Qualquer
um pensaria que ela era a filha e eu
não
mais que uma convidada, confusa
demais para fazer algo além de
assistir à
minha mãe lamentar a drástica
decisão da minha irmã.
– Está feito – Yael a acalmou. – Ela
pertence a eles.
Minha mãe balançou a cabeça,
indignada. O cabelo preto
derramava-se
pelas suas costas.
– Você sabe tão bem quanto eu. O
que é feito pode ser desfeito.
Ela deixou às pressas o nosso
alojamento. Agarrei Yael pelo braço
quando ela fez menção de segui-la.
Pelo menos uma vez, eu seria a filha
da
minha mãe.
– Nahara é minha irmã – disse
friamente. – Isso não diz respeito a
você.
Yael fitou-me surpresa e depois
recuou.
– É claro.
Persegui minha mãe até o outro lado
da praça, o coração batendo forte
no peito. Ouvia o ruído dos seus
passos sobre as pedras. Ela andava
depressa, mas alcancei-a na borda
do pomar. A nossa respiração estava
áspera enquanto paramos por lá. O
vento retornara. Balançou os ramos
e levantou demônios de poeira. O
momento da luz azulada findara e a
escuridão começara a descer em
espiral. Minha mãe não se mostrou
surpresa em me ver. Sabia que
minha irmã me pertencia.
– Ela voltará para nós – eu disse.
Ela balançou a cabeça.
– Seu pai mandou isso como uma
punição para mim. Esse é o modo
que
ele busca a vingança.
Eu não acreditei que o homem que
me ensinara tudo o que sabia
pudesse ser tão cruel.
– Ele não faria uma coisa dessas –
arrisquei, sentindo amargura pelo
modo que o traíramos, sumindo com
as rajadas do Ruach Kadim. – Ao
contrário do seu, o amor dele era
verdadeiro.
Minha mãe me fuzilou com o olhar.
Apertou mais a capa ao redor do
corpo.
– Se não é um homem o responsável,
então é a vontade de Deus. Assim
sendo, não podemos desfazer o que
está destinado a ser. Portanto, reze
para que tenha sido uma maldição
do pai dela.
Além do campo, via-se uma
lâmpada acesa sobre a tosca mesa
dos
essênios, iluminando o grupo
desorganizado que se reunira para a
refeição
compartilhada da noite. Em vez dos
pergaminhos que geralmente eram
desenrolados para os homens se
ocuparem, vimos um banquete de
casamento com tâmaras e vinho,
coalhada e figos de sicômoro. Uma
tenda
fora montada sobre a mesa, como
proteção contra os redemoinhos de
poeira.
O olhar da minha mãe fixou-se no
líder dos essênios.
– Veremos se é a mão de Deus em
ação ou simplesmente a ganância
dos
homens – me disse ela. – Se
soubessem quem é o pai dela, nem
mesmo considerariam que ela fosse
da nossa fé.
Ela se encaminhou na direção de
Abba, o homem santo que não
conseguia mais andar. Até mesmo os
não crentes curvavam-se diante dele
em respeito à sua idade avançada e
à sua distinção perante o Todo-
Poderoso, mas minha mãe não
estava lá para oferecer seu respeito.
Notei que ela levava algo na mão,
que segurava firmemente com o
punho
fechado. Os homens essênios
também haviam notado e tentaram
bloquear
a passagem, para impedi-la de
causar qualquer mal a Abba. Pensei
em
como ela subia sozinha a Montanha
de Ferro para esperar as pombas.
Entendi por que as mulheres de
Moabe sentiam medo de encará-la.
Como
me ocorrera na costa do Mar de Sal,
descobri que também a temia.
– Elohim me protegerá – garantiu
Abba aos seus seguidores.
– Será que vai? – A minha mãe
levantou os olhos para Abba. Com a
cabeça descoberta, ela parecia
perigosa. – A única coisa que quero
é a minha filha.
Não era uma arma o que minha mãe
carregava, mas um punhado de sal.
E no entanto podia ser mais fatal que
um punhal, pois continha uma
maldição que ela pretendia lançar
sobre aquelas pessoas, uma maneira
de
prender o mal para que não pudesse
oferecer-lhe perigo.
Os homens protegeram os olhos,
para não serem encantados e
transformados por ela em monstros
ou cabras. Murmuraram orações,
invocando a misericórdia de Deus.
Minha mãe não prestou atenção. Ela
invocou os anjos do céu e os
espíritos da ira, implorando ao
Criador do universo que trouxesse
aflição sobre seus inimigos. Pensei
na maneira com
que os ladrões que o pai de Nahara
assassinara caíram entre nós, como
ramos de acácia, o sangue como
seiva, tão grosso que minha mãe
levou dias
para lavá-lo. Enquanto fazia isso,
ela amaldiçoara cada um deles, as
mesmas maldições que proferia
naquele momento.
O vento rasgou em tiras as roupas
que as mulheres essênias tinham
amarrado em um varal; sacudiu a
tenda do casamento. Minha mãe
ergueu
os braços e pareceu atrair o kadim
para si. Ela invocou as quatro
direções do universo. Quando o
lançou, o punhado de sal se elevou
como uma coluna
de fumaça, como se atendesse ao seu
comando.
O céu ficou preto e não conseguimos
ver uma única estrela no
firmamento; parecia que minha mãe
conseguira fechar a cortina do céu,
escondendo o Trono da Glória. Vi
uma expressão de espanto e medo
cruzar
o semblante de Abba. Ele percebera
que minha mãe era uma mulher culta,
não uma ovelha para ser conduzida
no campo. Ela não seria contida por
uma cerca de espinhos ou pela
indignação de um homem virtuoso.
Os essênios ficaram imobilizados,
como um rato permanece imóvel
perante uma víbora negra. Uma de
suas mulheres, uma velha avó,
pensou
em correr para um balde de água
suja a fim de lavar o sal lançado
pela minha mãe aos pés de Abba.
Mas não havia água suficiente para
lavá-lo completamente, e o que
restou formou um desenho que se
assemelhava a
uma serpente, que ficou preta
enquanto se filtrava na areia.
Abba, que mal conseguia andar,
levantou-se da cadeira. Ele
reconhecia
os sinais, mas os interpretava em seu
próprio benefício. Acreditava que
seu
povo fora escolhido por Deus e que
a paz era o único modo de venerar o
Todo-Poderoso. O fim do mundo
recaía sobre nós e o que fora escrito
não
poderia ser apagado ou desfeito.
– Não se pode enfrentar o que é para
ser com armas ou maldições. –
Enquanto ele falava, seus seguidores
circularam ao redor para protegê-lo.
– Eu a quero agora – minha mãe lhe
disse. – Você não pode tirar o que
pertence a outro.
– Ela não é sua filha – Abba disse à
minha mãe. – Ela é filha de Deus.
– É isso o que você acha? – disse
minha mãe.
Malaquias saiu da casa que antes
fora um celeiro de cabras, local em
que
seu povo vivia, todos juntos,
comendo dos mesmos pratos,
derramando
água sobre suas cabeças antes de
cada refeição, vivendo uma vida de
oração e de glorificação a Deus.
Abba indicou-o quando ele se
aproximou.
– Ela pertence a este homem.
O rapaz que a minha mãe expulsara
do pombal ouvira o conflito
crescente e o tumulto no campo e
deixara o leito conjugal. Lá estava
ele. O
noivo.
Minha mãe o encarou, entoando as
maldições do livro de
encantamentos
que sua mãe lhe legara, o livro que
viera de Alexandria e que viajara
para a
Montanha de Ferro e através do Mar
de Sal. Se o que acontecera pudesse
ser desfeito, seria desencadeado
naquele momento. O vento mudou de
direção, para fora dali, levantando
folhas e chacoalhando galhos. O
noivo entendeu o que minha mãe
tentava fazer, desmanchando os
pontos do
destino.
– Ela já é minha mulher – lhe disse
ele.
– Veremos se ela é sua esposa ou
minha filha.
Ninguém se atreveu a interferir
quando minha mãe passou por
Malaquias. Sua capa raspou nele e
ele se encolheu, temeroso do pecado
de
tocar em outra mulher a não ser sua
esposa. Quando a segui, mantive os
olhos baixos, embora Malaquias me
suplicasse ajuda.
Nahara fez o possível para manter a
porta fechada, mas não era páreo
para nós. Por fim, ela recuou. Por
um instante, quando a porta se abriu,
pensei que minha mãe se tornara
como os ladrões de Moabe,
reivindicando
o que pertencia aos outros. Senti a
garganta arder; cada respiração
queimava como fogo. Era muito
parecido com o que senti quando
tirara o
líquido quente da boca da minha
irmã no dia em que ela nascera, para
que
pudesse respirar pela primeira vez.
Talvez meu erro tivesse sido cuspir
o sangue aguado no chão em vez de
engolir a essência de sua alma.
Talvez ela
nunca tivesse me pertencido, pois eu
nos desligara naquele momento.
A minha irmã usava uma simples
túnica branca. O cabelo, geralmente
trançado e coberto por um xale,
estava desfeito e solto, negro como
o cabelo da minha mãe, tanto quanto
o meu. Eu a salvara somente para
vê-la
casar-se com Malaquias e viver
naquela casa de cabras. Mas onde
quer que
ela estivesse, por mais distante que
fosse, seria sempre a minha irmã.
– Venha conosco agora – nossa mãe
implorou. – Antes de pertencer a
ele.
– Antes? – Nahara ergueu o queixo
desafiadoramente.
O quarto estava quente, impregnado
com o cheiro persistente de suor e
sexo. Havia sangue no estrado em
que as mulheres daquela seita tinham
desenrolado um lençol de linho
branco para capturar a prova da
pureza da
minha irmã.
– Se ele soubesse que seu pai não é
do nosso povo, não quereria você –
eu disse.
– Mas ela não lhe dirá. – Nahara
acenou para a minha mãe. – É tarde
demais. Ele me possuiu e pertenço a
ele. – Ela parecia dominada pelo
seu
poder de nos magoar. Tinha as mãos
nos quadris, como se fosse a rainha
daquela casa malcheirosa de cabras.
– Se quer salvar alguém, salve-a.
Ela inclinou a cabeça na minha
direção, a minha irmã, a quem eu
amava
como a ninguém mais, que agora se
tornara a minha traidora. Pensei em
como cuidara dela com tanto carinho
quando morávamos na tenda da
Montanha de Ferro. Sempre que
nossa mãe era chamada pelo marido,
eu
cantava para minha irmã dormir. Ela
sempre dormira bem, o polegar na
boca, sonolenta assim que
começavam os primeiros versos de
uma canção
que lhe dizia que as estrelas estavam
acima dela, velando por ela.
Prometia
levar folhas de tamarindo e usá-las
como uma vassoura para varrer toda
a
noite, para que a manhã pudesse
retornar.
– Você não enxerga tudo o que ela
faz – agora Nahara falava de mim.
Ela
encarava a minha mãe sem nenhuma
tentativa de respeito. – Ela se
encontrou com Amram uma centena
de vezes e você não percebeu nada.
Abra os olhos agora.
A minha mãe voltou-se para mim.
– O que você esperava? – minha
irmã continuou. – Uma prostituta
aprende o ofício com aquela que
sabe melhor que todas.
Quando a nossa mãe estendeu a mão,
pensei que fosse pegar Nahara e
forçá-la a sair conosco. Em vez
disso, ela a esbofeteou. Nossa mãe,
que nunca fizera outra coisa senão
nos abraçar, fora levada a isso.
Ouvi Nahara engolir o ar com força.
Ela levantou a mão para a bochecha
avermelhada, mas não chorou. Ela
sorriu, mais composta que antes,
mais certa do que queria, pelo
menos naquilo a filha do seu pai,
destemida e obstinada.
– Pode tentar silenciar-me, mas não
pode negá-lo – ela disse à pessoa
que a trouxera à vida.
Lá fora, o vento do deserto subira
uma vez mais, a porta da casa de
cabras abriu-se com tanta força que
as madeiras se separaram. Era tarde
demais, como Yael avisara. O vento
continuaria conosco por dias,
obrigando-nos a cobrir a cabeça, a
comer os grãos de areia com a
comida, a
ouvir os seus lamentos até tarde da
noite. Eu, que só conhecia o ferro,
senti
as lágrimas arderem nos olhos.
Embora estivesse à minha frente,
minha
irmã não era mais minha.
Nossa mãe abaixou a cabeça,
desonrada. Pensei em como ela
labutara
para trazer minha irmã para este
mundo, pois fora sua testemunha
naquele
dia.
Salve-a, ela me ordenara.
Nem uma única vez Salve-me.
NA NOITE em que deixamos os
essênios, minha mãe rasgou seu
manto como
as mulheres faziam quando entravam
em luto. Há aqueles que dizem que a
nossa palavra para sepultura, kever,
também é usada para representar o
local em que o filho mora dentro da
mãe, pois a vida e a morte são
entrelaçadas. A filha que minha mãe
gerara para trazer a este mundo
morrera para ela agora. Ela nunca
confessaria qual era o verdadeiro
povo
de Nahara, pois então Nahara seria
uma mulher desonrada. Em vez
disso,
ela desistiu da filha. Não voltamos a
falar sobre minha irmã, embora
minha
mãe cantasse por ela durante sete
dias, como se cantava pelas almas
dos mortos, pois esse é o tempo que
o espírito permanece próximo do
corpo, incapaz de se separar da sua
forma terrena.
Dessa época em diante, vivendo
juntas no nosso alojamento, mesmo
com o passar do tempo, raramente
nos falávamos. Éramos somente nós
duas, pois meu irmão se mudara
para uma tenda perto do quartel, a
fim de
melhor servir os guerreiros, mas
também para evitar o silêncio entre
mim e
minha mãe. Um grande poço de
desconfiança formara-se entre nós,
um
lugar para se afogar. Qualquer um
com bom-senso ficaria longe de
tamanha
amargura, e Adir era um menino
prático.
Passei a trabalhar no pombal menor,
separada das outras. Não era
possível fazermos as pazes. Mentira
para minha mãe e a enganara.
Estivera
com um homem antes do casamento.
O que fora feito não poderia ser
desfeito, pois, mesmo nas mãos de
uma bruxa, uma mulher arruinada
não
voltaria a ser pura.
NO ENTANTO, quando me deitava
para dormir, era uma pessoa
diferente da mulher em que me
tornara. Sempre sonhava que andava
por entre os pés
de acácia. Pensava no meu antigo
amigo Nouri e em como o traíra,
fingindo
ser algo que não era, um ser formado
de nervos e músculos em vez de uma
mulher de carne e osso. Não fingira
tal coisa com Amram, mas talvez
tenha
ocultado dele o mais importante.
Nunca lhe disse o nome que me fora
dado.
Por isso, ele não me conhecia e
nunca poderia me conhecer, não
importava
quantas vezes me possuísse, ou
quanto lhe oferecesse o meu amor
em
troca.
Por esse motivo, mesmo quando
estava ao lado dele, eu estava
sozinha.
Ele não era o único para mim, pois
nunca aceitaria a minha parte
escondida. Ele me chamava de sua
ovelha, sua pomba, a sua menina
querida, mas eu não era nenhuma
dessas coisas. Comecei a evitar o
nosso
ponto de encontro. Ele, que me
conhecera como um marido,
esperava ao
lado da fonte, ardendo por mim. Mas
eu o observava das sombras, como
os
anjos observavam a nossa espécie
da sua distância solitária. Eu
ansiava por
aquilo com que sonhava, a liberdade
que já tivera. Nos meus sonhos,
perguntava ao pai da minha irmã se
ele vira a pessoa que eu era no meu
âmago. Ele me olhava com tristeza e
não respondia, pois perdera todos
nós
e não poderia nos acompanhar ou
responder, nem mesmo em sonho.
Comecei a usar uma velha túnica
que pertencera ao meu irmão. Era
marrom, tingida com cascas de noz,
macia pelo desgaste. Imediatamente
sentia-me confortável. Trançava meu
cabelo, depois prendia com uma
fivela de latão por baixo de um
lenço de cabeça, para que pudesse
passear
pela fortaleza, um menino sem nome
que se sentia muito grato por ser
ignorado.
Pela primeira vez, desde que
chegara ali, era eu mesma.
NO POMBAL, preocupávamo-nos
com o Homem do Norte no seu
confinamento. Entráramos no mês de
Iyar e nos aproximávamos do verão,
o mês de Sivan, quando o calor
subia do centro da terra e caía do
céu. O
Homem do Norte não era nada para
nós, um prisioneiro em uma torre,
um
homem que mal falava a nossa
língua, que era feito de gelo e nunca
fora destinado a viver no nosso
meio. Mais que seis meses haviam
se passado.
Outro homem teria morrido de fome,
mas outro homem não teria Yael e o
restante de nós para cuidar de suas
necessidades. Talvez tivéssemos nos
esquecido de que ele era um
escravo. A sua contenção tranquila
levara-nos
a fazer amizade com ele, pois, para
nós, ele não era como os outros
homens.
Não temíamos nem sua força nem
seu julgamento. De muitas maneiras
ele
nos surpreendera, ainda mais quando
pronunciara seu nome antes de ser
preso. Outros ficariam chocados
com a intimidade dessa revelação,
mas eu
entendia por que ele poderia ter
anunciado um detalhe tão privado.
Conheça o nome de um homem e ele
lhe pertencerá. Em troca, não
importa
o quanto negue, você será dele
também.
A primeira vez que Wynn me viu
empunhar o arco, no mês anterior à
sua prisão, ele percebeu que eu era
mais um rapaz que uma mulher. Ele
era
um guerreiro forte e reconheceu o
mesmo em mim. Eu deveria ter sido
mais cautelosa, mas estava tão
acostumada a lidar com armas que
não
poderia esconder a minha alegria ou
a minha habilidade. Percebi pela
expressão do Homem do Norte que
ele via em mim um irmão, alguém
com
quem poderia ter caçado em outro
mundo e outro tempo.
– Bom trabalho – me disse ele,
depois de ter testado as flechas que
fizera
para Amram.
As mulheres haviam retornado ao
pombal. Eu estava recolhendo as
flechas, puxando cada uma delas do
alvo na oliveira.
– Sim, excelente – disse
educadamente. Em seguida, riu.
Tinha um jeito
estranho com nossas palavras, que
pareciam frias quando as
pronunciava,
para ser mais precisa. – Excelente?
Estava me referindo à sua pontaria.
Quantos homens você matou?
Baixei os olhos para que ele não
notasse o brilho da verdade.
– Você acha que ataco as minhas
vítimas quando estou no tear à noite?
Ele pegou minha mão e examinou os
calos.
– Estes aqui não são de tear.
Ele me ensinou o modo de preparar
o armamento do seu povo como
faria com um irmão mais novo. Os
escravos não traem um ao outro e,
embora eu não estivesse a ferros,
era uma escrava da verdade de quem
nascera. Aquele homem chamado
Wynn era um bom professor,
paciente,
mais que disposto a compartilhar os
segredos sobre a guerra. Quando
amarrei as penas às hastes das
flechas, prendendo-as à maneira do
seu povo, elas voaram com maior
velocidade. Passava horas
praticando atrás
do pombal. Uma vez, derrubei uma
de nossas pombas; a ave achava-se
tão
distante que poderia ser confundida
com um rabicho de nuvem.
Wynn instruiu-me na arte do arco,
como tomar fôlego antes de puxar a
corda, depois esperar mais um
batimento do coração antes de soltá-
la. A espera daquele batimento a
mais revelou-se um milagre,
conferindo à
flecha vida, alento e velocidade. Ele
me falou de uma criatura do seu país
que era parecida com um cervo, só
que mais rápida que o vento, mais
até
que os leopardos no deserto, tão
rápida que somente as aves
acompanhavam o seu ritmo. Era isso
que desejávamos para as nossas
armas: as penas transformavam as
flechas em pássaros que fendiam o
ar. O
instante adicional antes do tiro era
comparado à maneira que a ave
mergulha, contendo o poder das
asas, antes de subir novamente em
disparada pelo céu.
QUANDO MEUS DEDOS
sangraram por causa da prática com
o arco, disse a Amram que os
perfurara nos teares. Ao contrário
do escravo, ele acreditou
em mim. Estava cego para quem eu
era. Era como se eu fosse uma
pessoa
que possuísse a capa de
invisibilidade que seu pai dizia ter
usado nos pátios do Templo quando
atacava os inimigos. Amram pediu-
me para tecer-lhe uma capa na sua
tonalidade favorita de azul, como
prova do meu amor.
Concordei, embora soubesse que
esse era um dom que jamais poderia
lhe
dar. Não sabia trabalhar no tear.
Meus braços ficaram mais fortes
depois de tantas horas de prática
com o
arco, tão musculosos como os de um
guerreiro, mas insisti que
desenvolvera a minha força de tanto
levantar as cestas que entregávamos
no campo. Durante semanas depois
disso, Amram veio ajudar-me a
carregar as cestas, imaginando que o
trabalho fosse uma carga muito
pesada para mim. Atrás dele, Wynn
sorriu, e eu retribuí o gesto, pois
alguns
segredos nos aproximam quando os
temos, assim como outros nos
separam.
EU NÃO queria saber o que havia
entre Yael e o escravo, embora
pudesse dizer que ele ardia por ela.
Uma vez Yael me dissera que a
pessoa a quem
eu amava era apenas da minha conta,
então dei-lhe o respeito que
merecia.
Ainda assim, via a maneira que ele a
olhava e sabia que ela deixava os
seus
ferros destrancados.
– Você já perguntou quantos homens
ela matou? – indaguei a Wynn um
dia. As palavras tinham saído em
tom de brincadeira, mas ele ficou
olhando
para Yael, sentido.
– Um, com certeza – disse ele.
Eu devia ter percebido então que ele
pareceria um tolo aos olhos dela,
por tentar convencê-la a fugir em sua
companhia. Ele era o tipo de homem
aberto que não podia se esconder,
mesmo se isso significasse ser posto
a ferros.
Era Yael quem lhe levava as parcas
provisões durante o tempo em que
ele permaneceu trancado. Ela nos
disse que mal conseguia ouvir o que
falava. Estava tão debilitado que
não conseguia se levantar do leito,
um catre áspero feito da palha do
trigo. A cela era fétida, tornada mais
imunda
pelos próprios dejetos. Ainda assim,
Wynn não reclamava ou
amaldiçoava
os seus captores, mas falava da terra
de gelo em que nascera. Era como se
a
estivesse vendo diante dos olhos. O
calor se dissipava quando ele falava
do
seu país, e ele estremecia como se
andasse na neve. Seu povo
acreditava que um homem voltava
para casa após deixar esta vida. No
outro mundo,
ele caminharia sob as grandes
árvores de teixo da sua pátria e
voltaria a se
reunir com aqueles que tinham
partido antes dele.
Um dia, ele insistiu que podia ver
um veado no lado de fora da janela.
Era o animal mais difícil de caçar,
pois voava pela grama como os
pássaros
voam acima de nós.
– É uma bela criatura – sussurrou
ele.
Yael chorou quando nos contou isso,
pois não havia veados no nosso
país, e nenhuma janela na sua cela.
Foi uma época sombria. Tínhamos
consciência de que nossas vidas
estavam ali, tão apartadas do resto
do mundo que bem poderíamos estar
no Mundo Vindouro. Em breve
celebraríamos o Shavuot, a Festa
das Semanas, em memória do dia em
que Moisés recebeu a Torá. No
passado, o
nosso povo fazia uma peregrinação
ao Templo de Jerusalém, com
sacrifícios de bikkurim, os
primeiros frutos produzidos depois
de sete semanas de trabalho no
campo, ofertando as sete espécies de
colheita:
trigo, cevada, uvas, figos, romãs,
azeitonas e tâmaras.
Essa era a nossa tradição e a nossa
lei, mas não havia mais Templo para
onde viajar, tínhamos pouco a
comemorar e nenhum lugar em que
oferecer
um sacrifício. Nossos pomares não
produziam, apesar da chuva que
minha
mãe chamara. Havia tão poucos
grãos que muitos dos vasos de
armazenamento achavam-se apenas
pela metade. As pessoas se
perguntavam se isso era obra dos
demônios. Na verdade, quando
chovia
agora o céu formava-se sobre nós
tão densamente que a chuva em si
parecia feita de pedra.
Apesar de ter sido dito que Massada
nunca poderia cair, e que Deus
fizera essa montanha com o
propósito da nossa rebelião,
permitindo-nos
continuar a glorificá-lo, imaginei
por quanto tempo poderíamos
aguentar o
cerco dos romanos. Os armazéns do
rei não nos sustentariam para
sempre.
O azeite, o vinho e as lentilhas de
Herodes tinham nos alimentado, e
dependêramos disso, mas eles não
existiam mais. Tínhamos uma grande
prensa de azeite, mas as azeitonas
nas árvores eram poucas e o azeite
produzido mal enchia frascos
pequenos. Os ratos mandavam nos
depósitos.
Dizia-se que haviam sido trazidos
pelos romanos, propositadamente
deixados para trás para o caso de o
nosso povo retomar essa fortaleza,
para
que nos transmitissem doenças,
devorando o pouco que nos restasse.
CORRIA A NOTÍCIA de que a
guarnição romana capturara outro
reduto zelote no deserto. A fortaleza
de Maqueronte, a leste do Mar de
Sal, na fronteira de Moabe, caíra
perante a décima legião, comandada
por Lucilius Bassus, um
general que alguns diziam ser
impossível derrotar. Um oráculo
declarara que ele seria sempre
favorecido e assim parecia ser.
Embora o nome
Maqueronte significasse espada,
talvez a sua derrota inevitável tenha
sido
causada pelas mãos do próprio
povo. Havia uma história sangrenta
sobre aquele lugar, e corriam
rumores de que um grande professor
chamado João
fora preso e decapitado ali quando
se recusara a renunciar aos seus
ensinamentos.
Também se contava que, quando os
rebeldes de Maqueronte chegaram à
fortaleza, quiseram destruir tudo o
que pertencia ao cruel Herodes e
seus
filhos. Por zelo, eles cortaram um
arruda enorme que era cultivada
havia centenas de anos, uma planta
mais alta que qualquer figueira, um
talismã
que, segundo se dizia, guardaria o
segredo da liberdade e do sucesso
do nosso povo. Com aquela ação
impulsiva, tinham destruído suas
chances de
vitória. A arruda pode poupá-lo ou
arruiná-lo, ela pode trazer sorte ou
agonia. Dizia-se que diversos
guerreiros ficaram tão assombrados
por esse
ato que tentaram plantar outra erva
no mesmo local, mas as raízes
sempre
murchavam e se recusavam a pegar.
Quando os romanos os cercaram, um
de seus guerreiros mais queridos
foi preso. Ele foi torturado em
público, para que todos pudessem
ver como
era horrível o procedimento, brutal
demais para que a maioria dos
homens
decentes pudessem imaginá-lo. Seus
amigos e entes queridos foram
forçados a assistir ao modo que os
romanos cortavam pedaços da sua
carne
e o enchiam com plantas espinhosas
queimadas ainda acesas, separando
a
pele coberta de bolhas da alma. Os
companheiros guerreiros pediram a
sua
liberdade e a promessa da sua
segurança, dispostos a se entregar
em troca
da vida do irmão. A barganha foi
feita e os rebeldes desceram a
montanha.
A segurança fora assegurada, mas
nunca concedida. Não foi nenhuma
surpresa para o nosso povo ouvir
que Lucilius Bassus era mentiroso.
Quando os nossos guerreiros
pensavam em demônios, imaginavam
o seu
nome. Todos os homens de
Maqueronte foram mortos, seu
sangue
tornando o chão preto.
Os romanos fizeram piras altas com
os corpos empilhados – não apenas
os mortos foram lançados às
chamas, também os fracos e os
doentes,
aqueles que não eram dignos de ser
escravos. Os sons de seus gritos
ecoaram por toda a Judeia. Algumas
mulheres nos nossos campos
juravam
que caiu uma chuva de pedras nesse
dia e, quando o último dos figos foi
amassado no chão, viram-se
formigas dentro da fruta pegajosa,
destruindo-a de dentro para fora.
Houve uma reunião de oração na
sinagoga e os homens que lá estavam
foram atingidos pelo horror da
notícia. Naquela noite ouvimos não
apenas
orações, mas também discussões.
Como poderíamos evitar o mesmo
destino de Maqueronte? Ouvimos a
voz de Ben Ya’ir, baixa e constante.
Sabíamos que era ele porque,
quando falou, todos os outros
ficaram em silêncio.
– Nunca deixaremos nossas
mulheres e crianças morrerem em
piras –
ele disse aos seus guerreiros.
Não havia escolha para nós,
advertiu, não haveria retirada. Era
evidente
que a nossa força nascia de sua
coragem; ainda assim, quando fui
aos campos vi que os figos tinham
realmente caído; na que deveria ser
a época
mais verde do ano, o fruto dourado
jazia enegrecido no chão.
*
YAEL PREOCUPAVA-SE não só
com Wynn, mas também com o seu
filho. Arieh servira como a chave
com a qual fora aberta a porta
trancada da torre. Ele
fora apresentado à esposa do nosso
líder para a sua diversão em troca
da
permissão de levar provisões ao
escravo. Mas algumas chaves podem
ser
usadas para muitos tipos de
fechaduras e nunca devem ser
emprestadas ou
cedidas. A esposa do nosso líder
tomara um gosto perigoso por Arieh
e uma
nova prisão se criara, feita dos seus
braços e da rede dos seus desejos.
Eu observara essa mulher morena
sozinha à noite, caminhando ao lado
da muralha que nos cercava, como
se ela fosse uma sombra em busca
da substância para trazê-la à vida.
Talvez a criança fosse a cura para a
doença
que a esposa do nosso líder
carregava dentro de si, a
esterilidade e o desespero.
A esposa de Ben Ya’ir começara a
reter Arieh quando Revka a
procurava
no fim do dia, insistindo em ficar
com o bebê durante a noite,
balançando-o
como se ele fosse seu filho. Ela
proferiu a ameaça de que, se não
pudesse
manter Arieh consigo, não poderia
mais oferecer proteção ao escravo.
Por
que o bárbaro poderia viver e ela
não ter nada em troca pelos seus
esforços? Ela chegou ao ponto de ir
ao sacerdote para escolher um dia
auspicioso para a morte de Wynn.
Yael foi pessoalmente ao palacete
quando soube disso. Ela curvou a
cabeça para Channa, mas disse-lhe,
em termos inequívocos, que aquela
deveria ser a última visita de Arieh
em troca da vida do escravo.
Quando naquela noite regressou para
recuperar a criança, a porta estava
trancada.
Um guarda postava-se no lado de
fora a pedido de Channa. Ele era o
amigo
de Amram, Uri, que trouxera Yael
para a fortaleza, um jovem de boa
índole
que era apreciado por todos. No
entanto, ele negou sua entrada.
– Fazemos o que nos mandam –
disse ele, desculpando-se. – Ela fala
pelo
marido, assim como por ela mesma.
Você entende. Não tenho escolha
neste
assunto.
Yael passou a rondar em volta do
palácio, como os mendigos vagam
pelos mercados com as mãos
estendidas. Nas noites em que Revka
mantinha vigília ao lado de Yael,
era a mulher mais velha que
chorava, culpando-se pelo que
acontecera, pois fora ela quem fizera
o acordo com Channa. Minha mãe
avisara que nada de bom poderia vir
de um acordo com
a esposa de Ben Ya’ir. Ela era
perigosa, dissera a minha mãe. Mais
do que
aparentava. Eu ouvira Revka
insistindo em que o interesse de
Channa pelo
bebê era apenas capricho de uma
mulher solitária.
Minha mãe rira friamente em
resposta.
– Então, talvez devêssemos dizer
que uma cobra tem capricho por uma
pomba quando falamos da sua fome.
Espere e verá o quanto Channa está
disposta a devorar.
Yael procurou a minha mãe,
chorando, desesperada por um
feitiço que a
ajudasse a recuperar o filho.
– Deve haver algo que você possa
fazer – pediu ela.
Eu tinha certeza de que a minha mãe
ajudaria a sua favorita. Em vez
disso, ela balançou a cabeça
tristemente.
– Não devia ter deixado que ela o
tocasse. Agora ela o tem em suas
garras.
– Dê-me algo para derrotar o
demônio – Yael implorou.
– Ela não é um demônio, é uma
mulher – disse a minha mãe com
tristeza.
– Nesse caso, é pior.
COMECEI a vigiar com os outros.
Nós todos chegáramos a desprezar
Channa pelas liberdades que
tomava, exibindo o menino,
vestindo-o com uma
túnica que tecera para ele. Aquela
mulher, que se afastara de todos por
tanto tempo, a quem os criados
serviam no jardim e na cozinha
enquanto o
restante de nós passava fome,
mostrava-se orgulhosa exibindo-se
na praça
às tardes com ele no colo, como se o
bebê fosse seu, conversando com as
outras mulheres, que se apressavam
em admirá-lo, dizendo como era
bonito, como sorria com facilidade.
Os netos de Revka agiam como
nossos espiões, acompanhando a
esposa
de Ben Ya’ir todos os dias,
relatando-nos suas atividades. Noé e
Levi tinham
a capacidade de desaparecer nas
sombras, embora tivessem
recuperado a
voz plenamente. Dizem que quando
perdemos alguma coisa, e ela
retorna a
nós, é duplamente agradável, e
assim foi com os netos de Revka.
Quando tornaram a falar, suas
palavras cativavam os ouvintes.
Parecia que as
conversas que haviam sido
silenciadas por tanto tempo agora
eram
travadas com doçura, e o que
comentavam era trazido de forma
artística, seus relatos se
materializando à nossa frente como
escritos no ar.
– Ela vai até onde a víbora negra
vive sobre as rochas e faz uma
oferenda
– eles nos confidenciaram. – Ela
alimenta o bebê com os próprios
dedos, enchendo-o de figos, romãs e
bolos de cevada, como se ele fosse
uma
pomba. Ela diz que ele é tão doce
que as abelhas o perseguem.
O menino mais velho, Noé, parecia
muito com o pai, o Homem do Vale,
o
guerreiro solitário, um lutador sobre
quem eu tinha curiosidade. Amram
contara-me que era impossível
afastar esse homem de uma
carnificina,
permanecendo em combate quando
os demais teriam recuado, e com
habilidade. Ele corria riscos que
somente um louco assumiria,
cortejando o
Anjo da Morte, chamando-o,
desafiando Mal’ach ha-Mavet a
aparecer quando empunhava o
machado tosco, a única arma de que
tinha
necessidade. Seus companheiros de
batalha o admiravam, mencionando-
o
com respeito, e até mesmo
admiração, mas não lutavam ao seu
lado.
Sabiam que um homem que não tem
medo da morte é o mais perigoso de
todos.
O que torna uma mulher perigosa, no
entanto, nem sempre é tão
evidente, pois o que é imperceptível
ao olho humano muitas vezes é o
atributo mais fatídico. O que está
escondido pode destruí-lo. Os
demônios
aparecem no escuro, quando você
menos espera traição, quando seus
olhos
estão fechados. Quando a minha mãe
se recusou a enfrentar Channa,
perguntei-me qual poderia ser o
poder daquela mulher escura sobre
ela.
Examinei Channa atentamente e
continuei vendo uma criatura fraca,
mas
que tecera uma teia forte.
– A esposa do nosso líder sussurra a
Arieh que somente ela o protege –
disseram-nos os netos de Revka. –
Ela o adverte contra as mulheres que
espreitavam junto à muralha. Diz
que ele nunca deve acatar uma delas
chamada Yael, pois ela lhe contará
mentiras e rogará que acredite que
ele
lhe pertence.
Yael empalideceu ao ouvir essas
palavras caluniosas, as sardas do
seu
rosto destacando-se como se
tivessem sido feitas de sangue.
Ainda assim,
mandou os meninos descobrirem
mais. Eles rastejaram pelo jardim ao
lado
do palácio, esgueirando-se pelos
canteiros de hortelã, manjerona e
sálvia, chegando o mais próximo
que ousaram. Os meninos
espionaram Channa à
espera do marido, à porta com o
bebê nos braços, como se Arieh
tivesse sido uma prenda.
– E o que o marido dela diz sobre
isso? – Yael quis saber quando os
netos
de Revka retrataram a situação, a
voz afiada.
– Ele passa por ela – comentou Noé.
– Nunca a olha.
Ao ouvir isso, Yael balançou a
cabeça, satisfeita. Estava magra e
inquieta,
mas fazia o possível para se
convencer de que o filho lhe seria
devolvido.
– O que está feito pode ser desfeito
– disse-nos.
Não dei minha opinião, mas ouvira
minha mãe dizer a mesma coisa no
dia do casamento da minha irmã, e
Nahara continuava ligada ao marido.
Não estava certa de que nossas
vidas fossem tão semelhantes a fios,
podendo ser separados, depois
novamente entrelaçados.
UMA NOITE, enquanto continuava a
observar, juntamente com Revka e
Yael, vimos o grande homem entrar
no seu alojamento. A minha mãe
recusara-se
a nos acompanhar, tendo feito uma
advertência que fora ignorada. Notei
que ela empalidecera à menção do
nome de Channa. Ela não estava
entre
nós quando reconhecemos os
ombros largos de Ben Ya’ir e seu
manto de oração, e como ele andava
empertigado, à maneira de um rei,
embora na verdade não se
importasse em ter propriedade sobre
o que quer que fosse
naquela terra e tivesse se desfeito
dos bens que possuía quando
observara
a ganância dos ricos em Jerusalém.
Sua esposa podia dormir no palácio,
mas Eleazar ben Ya’ir permanecia
fora, sob as estrelas, ou ia ao quartel
passar as noites ali, para que seus
guerreiros soubessem que não era
diferente daqueles que comandava.
Decidimos que seria melhor
procurá-lo, para informá-lo da
situação de
Yael. Ele era conhecido por ser
justo; quem sabe fizesse um
julgamento a favor da mãe
verdadeira. Mas, quando chegou a
hora, as outras sentiram-se
nervosas demais para enfrentá-lo,
em razão da carga do nosso povo
que ele
suportava. O peso daquela fortaleza
em cima de um único homem era tão
imenso que Revka e Yael temeram
parecer tolas ao pleitear Arieh.
Como ousávamos envolver o nosso
líder em problemas tão mesquinhos
quando
Jerusalém caíra e havia demônios à
espera de todos nós?
Éramos então a única fortaleza de
rebeldes na Judeia. Todas as outras
tinham sido conquistadas e isso
aumentara o interesse de Roma em
nós, restávamos apenas nós. A
princípio nos exaltamos, orgulhosos
por mostrar
que não fôramos vencidos e
mantínhamo-nos firmes na nossa
determinação. Mas pouco a pouco
fomos ficando mais temerosos da
reação
da legião, agora que percebiam que
somente nós conseguíramos
sobreviver.
Até mesmo Revka, conhecida pela
língua afiada, recusava-se a abordar
o
nosso líder com a preocupação
sobre uma única criança, ainda que
se
tratasse do nosso amado Arieh. Ben
Ya’ir era um homem muito
importante,
com inúmeras preocupações. Eu, no
entanto, não tinha tais temores.
Eleazar ben Ya’ir era um guerreiro
como qualquer outro. Um homem era
apenas um homem, e eu matara a
parte deles que me coubera na outra
vida. Vira que todos entregavam a
vida a Deus da mesma maneira.
Ofereci para ir ter com ele.
Yael estava tão surpresa quanto
agradecida.
– Vejo a sua beleza assim como o
meu irmão – ela disse com
simplicidade.
Ultimamente, eu chegara a acreditar
que Amram via apenas a beleza de
uma mulher, nada mais. Tudo o que
eu era se escondia atrás da cabeleira
preta, a mulher que eu aparentava
ser. Nada comentei com Yael,
limitando-
me a aceitar sua gratidão, depois
rumei para os muros do palácio com
a escuridão já se instalando. Segui
em silêncio, sabendo como espreitar
a presa e como envolver-me nas
sombras.
Quando cheguei a uma janela, subi
em uma pilha de gravetos e alcei-me
até o peitoril, para espiar lá dentro.
O aposento continha poucos móveis,
a
maioria já quebrada e usada como
lenha. Mas o piso de mármore e os
afrescos me surpreenderam. Por um
momento senti-me subjugada,
pensando na realeza que ali vivera,
sem medo nem pobreza. Entendi por
que se dizia que a rainha do Egito
implorara a Roma a posse dessa
fortaleza. Então observei Channa e a
cautela apoderou-se de mim. Ela
estava sentada em um banco perto da
lareira, sussurrando para o menino,
segurando-o junto a si. A alegria que
ela sentia por ele era tão evidente
que
agradeci por Yael não estar ali ao
meu lado para vê-la.
Junto ao fogão havia um berço de
acácia trabalhada, feito por um
mestre
marceneiro de Jerusalém. Via-se um
amuleto de proteção amarrado acima
de onde a criança descansaria a
cabeça. O colchão em si era
opulento, forrado com finos lençóis
de linho, e viam-se sinos de bronze
amarrados aos balanços, para que o
som expulsasse os demônios. Quanto
a Arieh,
usava uma túnica roxa, como se
fosse o filho de um rei. Parecia que
a criança não tinha outra casa além
daquele alojamento e que todas as
suas
necessidades eram atendidas.
Naquele momento entendi que
aquela
mulher não tinha a intenção de
devolvê-lo.
Pensei no pai da minha irmã, como
ele era capaz de se transformar em
um furacão contra os inimigos, e
como eu poderia tornar-me
igualmente
temível caso desejasse. Mas
precisava esconder essa parte de
mim, como fizera com Amram. Não
poderia subir pela janela ou
alcançar a faca deixada
sobre a mesa para pegar o que
queria. Em vez disso, bati na porta
educadamente.
Não esperava que o grande homem
atendesse.
– Estou aqui para buscar a criança –
disse suavemente, apresentando-
me como uma mulher bonita e nada
mais. Queimara meia dúzia de ramos
de acácia em memória das almas
que libertara. Cobrira-me com o
sangue das cabras e sentira o seu
calor. Naquele momento, baixei os
olhos. Ainda
assim tive um vislumbre do nosso
líder, que me olhou com tal
intensidade
que entendi por que Yael e Revka
tiveram medo de falar diretamente
com
ele.
– A criança? – disse ele, confuso
com a minha presença e com o meu
pedido.
Ele parecia mais imponente que a
maioria dos homens e senti-me
desaparecer quando abaixei a
cabeça. Obriguei-me a me lembrar
da pessoa
que fora um dia, dos homens que
matara, das noites que me
pertenceram.
Ergui os olhos para ele.
– A mãe a espera.
Ben Ya’ir virou-se para ver Yael,
ao lado de Revka e dos netos, que
esperavam junto ao muro. Não eram
diferentes das sombras
remanescentes sobre a terra quando
os que eram injustamente
condenados
à morte se mostravam incapazes de
encontrar descanso.
– Ela tem uma mãe? – A sua
surpresa me fez perceber que a
esposa lhe
dissera o contrário.
– Todas não têm?
O rosto do homem grande torceu-se
em um sorriso. Fiquei aliviada.
Talvez tenha sorrido também.
– E um pai? – perguntou ele.
– Nem todo mundo tem – apressei-
me a dizer.
– Todo mundo tem – me assegurou
ele.
Ele me disse para esperar, então
fechou a porta. Olhei para o jardim
que
era cuidado pelos escravos. Havia
uma fonte de pedra da época do rei,
agora seca, a borda rachada, os
remates quebrados em pedaços
sobre o
chão. Uma variedade de ervas e
hortelã cresciam em fileiras, e o
odor que
se desprendia delas era verdejante e
doce. Ouvi o canto de pássaros,
embora estivesse escuro e os
pássaros não voassem depois do
crepúsculo,
apenas as corujas silenciosas que
viviam nas cavernas da montanha.
Ainda
assim, eles cantavam, um sinal
estranho àquela hora.
Dei a volta por trás da fonte. Mais
adiante, abaixo da treliça de uma
trepadeira de pepino, com suas
folhas verde-escuras, via-se uma
gaiola de
madeira. No interior dela havia duas
pombas aconchegadas, arrulhando.
Senti a faísca embaixo do meu olho,
como se a mensagem que
encontrara uma vez no chão ainda
me queimasse. Meu coração pesou,
a tal
ponto que duvidei que fosse capaz
de fugir, embora quisesse fazê-lo
naquele momento. Gostaria de saber
se essa gaiola de pombos continha
os
mensageiros para a Montanha de
Ferro e se fora por isso que a minha
mãe
se recusara a vir a essa casa e
arriscar-se à ira de Channa.
Ben Ya’ir reapareceu à porta, o
bebê em seus braços. Eu podia ouvir
o choro ecoando no aposento atrás
dele. Eu voltara pelo mesmo
caminho
através do jardim, o aroma de
hortelã apegado às minhas vestes, o
ruído das pombas uma música que
carreguei comigo e que me
acompanhava
desde o outro lado do Mar de Sal,
onde as pombas engaioladas comiam
cereais na minha mão enquanto
esperavam que a minha mãe as
libertasse.
– Foi isso que veio buscar? – ele me
perguntou, estendendo-me a
criança.
Quando ele falou, entendi por que os
homens o seguiriam mesmo que
pudessem morrer e nunca mais
voltar, e por que acreditavam nele.
Embora
quisesse lhe dizer que encontrara as
pombas, percebi que não diria outra
palavra na sua presença. Ele pôs o
bebê em meus braços. Eu deveria
ter-lhe
agradecido, mas não consegui falar.
Ele esperou por tanto tempo que eu
o
fizesse que o próprio silêncio foi
eloquente sobre o que havia entre
nós.
Antes de voltar para seus aposentos,
Eleazar ben Ya’ir pôs a mão sobre a
minha testa, suavemente, como se
cumprimentasse uma filha. Naquele
momento eu soube que era ele o
homem por quem a minha mãe fizera
tantos sacrifícios, a razão pela qual
fora expulsa de Jerusalém, o motivo
pelo qual esperara dia após dia na
Montanha de Ferro, até que a pomba
regressasse com a mensagem para ir
procurá-lo, enfim.
NAQUELA NOITE, quando regressei
ao alojamento, não pedi à minha mãe
para pronunciar o nome do meu pai
em voz alta. Fiquei observando-a
enquanto
penteava o longo cabelo negro com
um pente feito com a madeira da
acácia
das florestas de Moabe. Vi as
tatuagens sobre a sua pele. Ela era a
mesma, a
mulher que jamais se dispusera a me
dizer quem eu era, que não
ofereceria
ajuda a Yael se isso significasse ser
forçada a se postar diante do
inimigo que me usara como prova
para nos expulsar para o deserto.
Vi o meu rosto refletido em uma
bacia de água e reconheci os olhos
do
meu pai me fitando de volta. Agora,
quando as pessoas dissessem o seu
nome, estariam dizendo o meu
também. Caminhei sozinha pela
noite,
vestida com a túnica e o manto de
Adir, procurando aqueles que
falavam do
meu pai, querendo ouvir sobre seus
feitos no campo de batalha e sobre
sua
magnanimidade com relação aos
necessitados. Ele insistia que todos
os
homens eram iguais, fossem servos
ou sacerdotes, e assegurava-se de
que
todos seguissem a lei segundo a qual
não devíamos colher a fruta dos
quatro cantos do nosso pomar, como
Deus ordenara, para garantir que até
mesmo os mais pobres entre nós
encontrassem misericórdia ao passar
fome.
Tive ímpeto de ir falar com ele, algo
de que fora incapaz enquanto
estivera na sua presença. Quando
soube que haveria uma competição
de
arqueiros entre os guerreiros,
apresentei-me, como o rapaz que
fora um dia, o rosto coberto por um
lenço, com o arco que usara para
testar as minhas flechas preso às
costas. Quem sabe visse meu pai e
ele me
reconhecesse por quem eu era, como
agora o conhecia. Esperei passar o
dia, observando os homens, com os
braços fortes e as costas distendidas
enquanto puxavam os arcos. Eles
lançavam brados fraternais e
competitivos, culpando o vento por
errar o alvo, elogiando os
companheiros de melhor pontaria.
Quando chegou a vez de Amram,
notei a admiração evidente entre os
companheiros de armas pela sua
habilidade. Também quis elogiá-lo,
mas
sentia algo além disso. Sentia a
picada do ciúme, uma ferroada de
vespa no
coração. Ben Ya’ir estava entre os
guerreiros que aplaudiam os jovens
e elogiou Amram com sinceridade.
Pensei no modo que ele me
abençoara e
me perguntei se não seria essa a
razão de ter nascido sob o signo do
metal,
a razão de querer mais que as outras
meninas. Mesmo naquele momento,
ao avistar a multidão de jovens
mulheres nas laterais, soube que
jamais poderia assistir ao lado delas
sem arder de vontade de estar entre
os homens.
Poderia ter-me retirado
silenciosamente para o alojamento,
mas nas
horas obscuras do dia em declínio vi
pairar sobre nós o falcão cujas
penas
usara para fazer as flechas para
Amram. Lembrei-me das manchas de
tinta
vermelha das raízes de garança nas
mãos quando as preparara
cuidadosamente. Fizera as flechas
como um presente, mas nunca as
entregara. Finalmente entendi que o
tempo todo queria as flechas para
mim. Fizera-as não em honra da
Fênix que significava o meu amado,
mas em memória do lírio vermelho
que crescia nos campos em Moabe,
como
uma lembrança da pessoa que eu
fora.
Levava-as agora, escondidas sob a
capa.
Encontrei-me na fila dos arqueiros,
empurrado até ali por um demônio,
ou talvez pelo meu orgulho, um
rapaz desconhecido autorizado a
competir,
embora claramente ninguém me
visse como concorrente. Ninguém se
preocupou em prestar atenção
quando a minha primeira flecha
atingiu a
marca do alvo. Talvez a segunda
flecha os tenha convencido a se
virar e observar. Quem sabe tenha
sido a terceira. Eu me concentrava
em uma
única coisa: o exato momento em
que recuava o arco, esperando,
como
Wynn me instruíra, de modo que a
flecha pudesse mergulhar e depois
subir
como os pássaros. Não dedicava um
único pensamento à garota que fingia
ser. Ouvia o vento e nenhuma outra
voz. Pensava nos meus dois pais,
aquele que me ensinara tudo o que
sabia e o outro com quem queria
aprender naquele momento.
Quando estreitei os olhos, vi meu
caminho à frente, em linha reta como
o
ferro.
As minhas flechas cortaram as que
já estavam no alvo, lançando as dos
outros guerreiros ao chão. Os
guerreiros observavam naquele
momento. O
vermelho das penas era impossível
de ignorar, um campo de lírios. No
instante em que terminei, instalou-se
o silêncio.
Vi Ben Ya’ir ficar de pé quando a
multidão soltou um grito. Os meus
ouvidos zumbiam, como se uma
tempestade tivesse se abatido sobre
mim,
um turbilhão no outro lado do Mar
de Sal. Murmurei um sussurro de
gratidão para o pai da minha irmã e
para os homens com quem montara,
e
para Nouri, a quem sempre superara.
Fiquei parada por um instante, a
minha felicidade completa,
desejando poder manter essa visão
diante de
mim para sempre. Mas uma visão é
como um sonho, que se dissipa logo
que
se tenta prendê-lo, e a minha visão
levantou-se para ser reclamada por
Ele,
que nunca deve ser esquecido. De
uma só vez, pude ouvir a verdade
daquele momento. Meus olhos e
ouvidos eram meus uma vez mais. A
multidão clamava por Adir,
proclamando-o o herói do dia.
Todos pensaram que eu era o meu
irmão, convencidos de que era ele o
mestre arqueiro. Todos aplaudiram,
mas eu me virei. Os guerreiros e os
presentes continuaram a chamar
Adir para homenageá-lo, mas
apressei o
passo para a Praça Ocidental,
subindo os degraus rapidamente,
saltando
como se a minha vida estivesse em
risco. O mundo estava ali diante de
mim,
as escarpas e o vale abaixo delas,
mas aquele mundo já não me
pertencia.
Dera-o ao meu irmão.
Encaminhei-me a um jardim
abandonado atrás do Palácio do
Norte, uma
área murada a que as mulheres iam
procurar alho e ervas que haviam
sido
plantados havia muito tempo e
esquecidos. Viam-se cotovias ali,
bicando a
vegetação, mas todas elas se
agitaram quando me aproximei, a
respiração
quente e irregular. Tirei as roupas
de Adir. Não passavam de um
disfarce idiota. No local em que
parei crescia o alecrim, considerado
a erva da lembrança, uma porta para
o passado. Meu coração batia forte
contra o peito e meus membros
tremiam. Enrolei-me no meu lenço
enquanto
chorava por quem era.
O falcão me seguira. Talvez fosse o
que Wynn treinara para vir à janela
do pombal, uma ave de rapina
destemida, capaz de abaixar a
cabeça e tirar
migalhas da mão de Yael. Ergui os
olhos para o céu. Vê-lo pairando no
ar acima de mim fazia-me lembrar
do que era a liberdade. Quisesse ou
não, o
passado me acompanharia. Seria
sempre eu mesma por mais que
tentasse
fugir da verdade.
Sob meu manto, ainda trazia o arco
apoiado nas costas.
DO ALTO DA NOSSA montanha, os
moradores muitas vezes avistaram
soldados da legião durante o calor
crescente de Sivan. Cada vez mais
enviavam seus exploradores para
observar a nossa montanha, os quais
se reuniam na base
rochosa lá embaixo. Eram os
soldados de reconhecimento, cuja
única
missão era procurar inimigos e
informar aos seus generais. Havia
muito os
romanos tinham conhecimento da
nossa presença ali, assim como
tinham
se informado sobre Maqueronte e
sobre as outras fortalezas mantidas
pelos zelotes. Estávamos longe de
Jerusalém e portanto eles nos
ignoraram,
mas nossa fama crescera e as
histórias sobre nossas glórias
chegaram aos
ouvidos romanos. Nossa rebelião
era cada vez mais comentada nos
mercados das cidades de toda a
região. Shir tishbohot, cânticos de
louvor, eram entoados em nosso
nome, e aqueles que comemoravam
nos
denunciavam a Roma em sussurros e
depois em tons mais altos. As
pessoas
diziam que a nossa montanha era
invisível e que os sicários usavam o
alfabeto hebraico para criar uma
cortina ao nosso redor, um tecido
construído de ar e vapor do céu que
se separava da terra. Diziam que era
possível avistar o trono do nosso
Senhor do alto das nossas torres. O
homem que governasse esse lugar
governaria o mundo.
Os soldados da legião podiam vir
nos investigar, mas tudo o que
veriam
era a impossibilidade de preparar
um ataque. Ben Ya’ir fez circular um
comunicado dizendo que, quando
viessem os exploradores,
deveríamos
ficar nos nossos alojamentos, de
modo que não pudessem contar
quantos
éramos. Quem sabe nos
considerassem mais fortes do que de
fato éramos, e
que possuíssemos milhares de
guerreiros, e não uma aldeia deixada
aos
cuidados de homens e mulheres
idosos e crianças todas as vezes que
os homens saíam para realizar
ataques. Deixássemos olhar tudo o
que
quisessem. Tudo o que veriam seria
uma montanha à qual a glória de
Deus
nos enviara, um rochedo tão
impenetrável que eles nunca nos
derrotariam.
Alguns dos nossos meninos
empurravam pedras pelas encostas,
que
desciam escorregando como um
aviso, e riam quando os soldados se
espalhavam lá embaixo.
Eu não ria ao ver as túnicas brancas
da décima legião ou o estandarte do
javali. Sentia um calafrio correr
pelas costas. Na verdade, o nosso
povo não
era páreo para os soldados romanos,
que haviam sido treinados com uma
única finalidade, ser uma máquina
mortífera. Nossos guerreiros eram
os
melhores quando se esgueiravam
como lobos, atacando os inimigos no
escuro. A única esperança de
sucesso dos rebeldes era um ataque
inesperado, quando, com a graça de
Deus, a rapidez e a ferocidade
prevaleciam sobre a potência.
Contra as tropas bem-organizadas e
blindadas, que tinham tanta
experiência de guerra, o nosso povo
estava lamentavelmente
despreparado. Nossos pais e irmãos
eram combatentes
da liberdade, não soldados
treinados. Ao contrário do pai da
minha irmã, os
homens de Massada não eram
guerreiros desde que nasciam, cada
um com
um cavalo já escolhido e uma faca
na mão. Eles haviam sido
sacerdotes, padeiros e estudiosos, as
suas armas eram as facas, as flechas
e as pedras,
não o bronze e o ferro. Não éramos
nada contra o poder implacável do
Império Romano.
QUANDO NOSSOS GUERREIROS
decidiram acompanhar um grupo de
exploradores para descobrir o
quanto a legião estava próxima da
nossa montanha, Yael
deu-me um presente para entregar a
Amram, um pedaço de tecido azul,
da
cor do céu, da glória de Deus e do
Seu trono.
Amram riu e guardou o tecido junto
ao seu coração.
– Não vamos nos separar por muito
tempo – disse ele, reconhecendo o
encantamento. – A minha irmã viu
isso.
Ele me disse que o tecido o levaria
a mim, não importava para quão
longe viajasse. Pôs as mãos em
volta do meu rosto e me beijou. Em
seus braços senti um ímpeto de
medo, pois o que havia entre nós já
acabara, apesar da lembrança. Fui
até a muralha para vê-lo descer com
os
guerreiros. Não fazia ideia de que
meu irmão planejava partir com eles
até
que encontrei a minha mãe ali, fora
de si de preocupação.
– Ele não passa de um menino – ela
me disse, preocupada. Vinha
parecendo doente ultimamente,
recusando suas refeições, fechada
em si
mesma. Agora estava pálida. – Por
que fariam isso? Por que ele iria?
Eu me sentia muito culpada para
responder. Os guerreiros
acreditavam
que Adir fora o arqueiro no
concurso e, portanto, o levavam
como
companheiro. Era por isso que ele
agora caminhava ao lado deles, por
causa das minhas flechas vermelhas.
Seu destino era meu fardo, porque
os
fizera olhar para ele com estima. A
minha mãe pensava em Adir como o
seu
bebê e ainda amarrava amuletos às
suas vestes para protegê-lo do mal.
Ele
rasgava essas coisas da túnica,
rindo, dizendo que a nossa mãe não
fazia ideia do que significava ser um
homem.
Adir completara treze anos de idade,
mas ainda não estava pronto. Eu
matara meu primeiro íbex quando
tinha apenas dez anos, mas fora
preparada para o sangue. Cavalgara
com homens que eram destemidos.
Aprendera a queimar os ramos da
acácia para homenagear os espíritos
dos
mortos. O meu irmão pensava que
ser homem significasse seguir
cegamente o caminho dos guerreiros,
apesar da sua falta de habilidade.
Pensava em grandes glórias, não em
poças de sangue, certamente não
imaginava a brutalidade de que seria
testemunha quando seus
companheiros fossem retalhados à
sua frente.
Rezei com minha mãe no nosso altar
enquanto ela cantava e queimava
óleo pelo retorno seguro de Adir.
Amaldiçoei-me por isso, porque
deveria
ter sido eu a ir no seu lugar. Minha
mãe escreveu os nomes de Deus em
seus braços e depois nos meus, para
sermos ouvidas no céu, embora as
mulheres não tivessem permissão
para essa prática. Somente os
sacerdotes
podiam fazer essas súplicas ao
Todo-Poderoso, mas minha mãe não
temia
desrespeitar a lei. Sacrificamos uma
pomba e escrevemos com seu sangue
sobre as penas, prendendo todos os
demônios que pudessem seguir o
meu
irmão ao vale. Cantamos baixinho
para ninguém ouvir, pois não nos
atrevíamos a revelar o que fazíamos
no nosso alojamento mais do que eu
me atrevia a revelar a verdade sobre
o meu irmão que estava partindo.
Proclamo a majestade do Vosso
esplendor, para assustar todos os
espíritos
dos anjos da destruição e daqueles
que atacam de repente e nos
desviam do
caminho. Destruí os seus corações
maus na vigência do governo da
maldade.
Eu proferi essas palavras com minha
mãe, mas não proclamei que fora a
maldade que enviara o meu irmão
para a batalha, e que era eu quem
deveria me corrigir.
*
EM UMA MANHÃ clara e tórrida,
as pombas caíram dos ninhos sem
explicação.
Reunimos todas elas e as deixamos
juntas, tentando aquietar seus corpos
trêmulos até que revivessem. Várias
morreram naquele dia, sem motivo
aparente. Embora estivéssemos com
fome, não poderíamos prepará-las
como uma refeição para nós mesmas
ou para os nossos guerreiros quando
retornassem em segurança, porque
as pombas haviam morrido de
alguma
doença.
Talvez a hora em que as pombas
caíram assinalasse o momento em
que
Channa retornara ao sacerdote para
escolher um dia para a morte do
escravo. Certamente, todas nós
sentimos a morte por perto; ela
passou
como uma sombra lançada pelas
nuvens e sentimos frio. A minha mãe
levou as pombas para o altar em seu
quarto, cobriu a cabeça e murmurou
uma prece para manter afastado o
Anjo da Morte, mas o sacrifício não
foi
suficiente. No mesmo dia foi
publicado um anúncio. Na tarde
seguinte a guarda iria até a torre e o
mundo ficaria livre do escravo. Nós
não éramos
selvagens como os romanos, que
crucificavam seus inimigos para
causar a
maior dor que um ser humano
poderia suportar, estendendo sua
morte o
máximo de tempo possível enquanto
o homem permanecia esticado em
cima de uma cruz de madeira para
que a agonia perdurasse. Em vez
disso, o
escravo teria a garganta cortada, a
morte mais gentil, a que dávamos até
ao
mais humilde dos animais, de modo
que sua respiração o deixasse de um
único ímpeto.
Quando a noite caiu, Channa
esperava junto à muralha, próximo
ao
alojamento de Revka. Usava uma
capa, mas os netos de Revka a
identificaram instantaneamente,
como se acreditava que fossem
capaz de
perceber os demônios. A esposa do
nosso líder não tinha medo, apenas o
calor do seu desejo, que ardia com
mais fervor que o ar à nossa volta.
Arieh
logo completaria um ano de idade;
era uma criança sossegada e
querida, já
tentando andar. Channa atreveu-se a
procurar Yael; ela foi negligente,
como são muitas vezes os
desesperados, mais que disposta a
desobedecer o
marido, que a advertira a manter
distância. Mas nessa ocasião Ben
Ya’ir achava-se entre os guerreiros
em perseguição aos romanos e,
portanto, não
poderia julgá-la ou puni-la por seus
atos. Ela estava mais forte que antes,
graças ao remédio da minha mãe,
forte o bastante para causar danos.
Ela carregava um ramo de hissopo,
como se insultasse a flor que lhe
causara tanto sofrimento.
Revka chorou ao vê-la.
– Isso é culpa minha. Atraí um
demônio sobre nós.
– Não. – Yael trazia o rosto
mascarado, mas parecia segura de
si. – É meu
castigo.
– Você não fez nada – Revka
insistiu.
– Um ladrão conhece outro – Yael
murmurou, resolvida.
Arrumou todos os pertences de
Arieh, depois encaminhou-se à
muralha,
o bebê em seus braços.
– Negócio é negócio – disse Channa.
– Não estou sendo muito exigente,
só quero o que me devem.
Elas estavam próximas do jardim em
que Yael soltara o escorpião. Ele
não aparecera naquela noite, mas
ainda estava lá. As crianças o viram
e sabiam que o que não se vê pode
ser mais perigoso do que o que está
visível. A batalha que travávamos
era apenas para nos manter
alimentados;
talvez o escorpião passasse fome
como nós. Quanto a Channa, era a
esposa
de um homem rico: apesar da
insistência de seu marido de que
todos
éramos dignos das dádivas de Deus,
ela recebia mais que a sua parte.
– Você cuidou bem dele – ela disse
com aprovação a Yael, pois notou
que
a mancha afogueada na bochecha do
bebê desaparecera. Yael banhara o
filho em óleos e esfregara um
bálsamo na sua pele. – Tenho
certeza de que
podemos chegar a um acordo como
mulheres razoáveis. – Quando
Channa
acariciou o rosto do menino com
carinho, Arieh sorriu-lhe. – Ele fica
melhor
comigo.
YAEL NÃO SE FEZ DE ROGADA,
como seria o caso de algumas
mulheres. Não tinha tempo para tais
favores. O escravo tivera permissão
de viver. O acordo fora
mantido; ainda assim, qualquer um
que confie em uma serpente merece
a
sua mordida. O sábio julga uma
criatura pelo que ela é, não pelo que
diz que
pode ser.
Depois de terminar as tarefas no
pombal, Yael saía para buscar
lenha.
Fazia isso com tanta frequência que
as sentinelas já a conheciam. A filha
de
cabelo vermelho do assassino. Ela
saía no fim do dia, quando o sol
estava se
pondo. Na penumbra, encontrava os
galhos que serviriam para acender o
fogo e mantê-lo queimando. E
retornava somente quando o
crepúsculo
tingia de escuro o céu claro. Às
vezes, ela se sentava sobre a
muralha sob a
luz âmbar, a cesta de galhos ao seu
lado, o lenço tecido sobre o cabelo
escorregando um pouco, de modo
que mechas do seu cabelo brilhavam
na
cor escarlate. Ela sabia que os
guardas a observavam, demorando
os
olhares sobre a sua pele. Por isso,
permitiam que fizesse o que
quisesse.
Todos os dias ela ia mais para baixo
na montanha, encontrando
caminhos pelos quais poucos
ousavam seguir, a não ser o íbex,
que não temia o desmoronamento
dos penhascos. O lenço que usava
fora tecido
com o desenho do país do norte que
nenhum de nós jamais veria, uma
terra
em que o gelo era tão profundo
como um rio, onde um homem
poderia
congelar em instantes, onde as
flechas de cada guerreiro eram
marcadas com o sinal do veado.
Quando Yael pediu a minha ajuda,
acompanhei-a de boa vontade,
embora no momento tivéssemos
mais madeira empilhada na nossa
porta
que qualquer um na montanha.
– Estou surpresa que não tenha
pedido à minha mãe – eu disse.
– A sua mãe os deixaria
desconfiados. Os guardas confiam
em você.
Ao nos aproximarmos das
sentinelas, Yael disse para eu puxar
o xale da
cabeça, para que os guardas vissem
o meu cabelo preto comprido.
Éramos
duas jovens recolhendo madeira,
alegres e bonitas. Acenamos com
uma
saudação. Todos os dias fazíamos
essa viagem. Os guardas nunca se
preocuparam em nos questionar,
apenas nos olhavam, elogiando os
nossos
braços nus, que lhes permitíamos
ver e apreciar.
Yael dizia uma oração todas as
vezes que passávamos por uma
pequena
caverna. Ela segredou que um leão
vivia ali dentro, mas jurou que
olhava por nós. Às vezes ela
deixava uma pomba como oferenda;
às vezes, alguns
fios do seu cabelo. Parecia
convencida de que ele era o seu
guardião. Ao mesmo tempo, eu me
sentia aliviada por levar uma lâmina
comigo, para o
caso de a criatura de que ela falava
decidir se voltar contra nós.
O ar fresco da noite tornava
perfeitamente compreensível que
nos
avolumássemos sob as nossas capas.
Eu usava um xale extra, o que
tornava
a minha aparência mais volumosa.
Meu lenço de cabeça ia bem
amarrado,
quase cobrindo o rosto. Um dia,
Yael levou-me um manto
acinzentado.
Pertencia ao seu pai, ela me disse.
Pensei no talento do seu pai e em
como
ele instruíra Amram nos segredos da
invisibilidade. Sabia que era
possível
um homem tornar-se uma nuvem ou
uma névoa aos olhos do inimigo;
vira
Amram fazê-lo quando queria
desafiar minha mãe, para me
encontrar em
segredo.
Assim que vesti a capa do assassino,
os guardas já não me notaram.
Desapareci na frente deles, como se
me tornasse algo que não valesse a
pena olhar. Eles gritaram uma
saudação a Yael, cujo cabelo
vermelho
brilhante tanto admiravam, mas
ignoraram-me enquanto segui logo
atrás
dela, carregando um feixe de lenha
seca.
No dia em que estava para
acontecer, fui à torre na hora que
Yael
escolhera. Após a refeição, o guarda
postado ali muitas vezes adormecia
em
seu banco, o estômago inchado da
sua ração de lentilhas e feijões. No
bolso,
eu levava a chave de metal retorcido
que minha mãe fizera para mostrar
como seria fácil o escravo fugir do
pombal, de modo que os
funcionários não desconfiassem que
Yael destrancara as correntes.
Mantive a capa do assassino sobre a
cabeça. Ninguém me perguntou
quando passei pelo longo
corredor e depois cheguei à escada.
No fim do corredor o guarda
cochilava,
como Yael me garantira. Entrei na
cela do escravo, sentindo-me
atordoada
com a sujeira e o mau cheiro com
que me deparei. O ar estava escuro,
mas
pude ver o pobre Wynn no seu leito
de trapos. Ele estava tão sujo que
ninguém imaginaria que os tufos do
seu cabelo raspado fossem claros
como
o gelo ou que a sua pele fosse da cor
do leite, como quando chegara para
trabalhar conosco.
Apesar da escuridão, Wynn
reconheceu-me, pondo-se de pé para
me
cumprimentar.
– A guerreira – disse ele com
carinho.
A sua voz estava fraca,
desmanchando-se na garganta. O seu
corpo já
não era forte, debilitado pela falta
de ar e de alimento.
– Sou outra pessoa hoje – informei.
– Quem seria essa? – ele estava
completamente confuso.
Sorri, depois tirei a minha capa e me
pus diante dele.
– Sou você.
NENHUMA das sentinelas tomou
conhecimento quando as duas
mulheres passaram pelo portão, uma
delas pouco perceptível, envolta em
uma capa
acinzentada. Estavam acostumadas a
nos ver deixar a fortaleza àquela
hora,
quando a escuridão se avizinhava no
céu, quando a cortina entre o dia e a
noite se abria para anjos e
demônios. Deixaram de notar que
Yael chegou
com os gravetos e agora voltava
sozinha, demorando-se na muralha
para
olhar por cima das montanhas, onde
o falcão pairava, circulando de volta
como se pudesse retornar, antes de
desaparecer na escuridão crescente.
Na torre, esperei até entender que
Wynn estava livre, repetindo o
salmo
de proteção. Shivitti Adonai l’negdi
tamid. Sempre pus o Senhor adiante
de mim. Fiquei contente de saber
que era a estação em que cresciam
as cebolas silvestres, quando os
coelhos se aventurariam a comer a
grama
nova. Talvez ele conseguisse
sobreviver no deserto para encontrar
seu
caminho de volta ao país do veado.
Nenhum guarda apareceu à porta que
eu destrancara para a fuga. Saí
despercebida, usando a túnica que
levara para passar mais uma vez por
um
rapaz, facilmente considerado um
daqueles que ajudavam a guarda da
torre.
A GUERRA chegou mais perto no
mês cintilante de Tammuz, quando
cuidávamos das videiras e o próprio
ar tinha um cheiro doce. Grandes
bandos de aves nos sobrevoaram,
voltando dos campos do sul,
pelicanos e
cegonhas, andorinhas e falcões.
Viam-se multidões de pessoas
também,
atravessando o deserto antes de ser
capturadas, uma maré correndo à
frente da décima legião. Alguns dos
andarilhos nos procuraram. Quando
imploravam misericórdia, eram
autorizados a montar as suas tendas
nos
nossos pomares, e as frutas que
caíssem nos quatro cantos eram-lhes
concedidas, como ordenava a nossa
lei comum. Os retardatários não
eram
os únicos que estavam famintos. As
frutas caídas e o pão sírio mal eram
suficientes para saciar a nossa fome.
Eu saía para além da muralha e
capturava pássaros em redes feitas
de cordões. Quando me cansei de
caçar
como uma menina, levei o meu arco
e atirei em faisões para pôr sobre a
mesa.
Ninguém dizia uma palavra quando
me via andando na praça com o arco
nas costas; talvez as pessoas
acreditassem que a arma fosse do
meu irmão
e que, na sua ausência, eu cuidasse
de algo que justamente lhe pertencia.
O
mais provável era que pensassem
que eu servia somente para limpar
as
flechas que carregava, pois as
pontas seguiam manchadas de
sangue.
Apesar do fato de a minha mãe ter
estado de luto pela minha irmã, e
agora a considerasse entre os
mortos, eu levava faisões aos
essênios
sempre que podia. Nahara não
estava morta para mim. Eu sempre a
observava entre as mulheres simples
e trabalhadoras. Lembrava-me de
como ela me acompanhava pela
grama na nossa outra vida, como a
mandava voltar correndo para a
nossa tenda, mergulhando atrás dela
como
uma coruja, fazendo-a rir. Pensei
nos anos em que dormíamos no
mesmo
estrado, muitas vezes sonhando o
mesmo sonho, de modo que mesmo
com
os olhos abertos conversávamos
sobre as nossas visões durante a
noite. Eu
sempre ansiara que o pai dela fosse
o meu pai, para poder ser a sua irmã
em todos os sentidos. Agora temia
que ela corresse se me atrevesse a
lhe falar, pedindo que voltasse.
Depois de presentear as aves de
caça, eu ia me sentar ao lado de
Nahara
em um banco de madeira no lado de
fora da casa das cabras. Juntas,
depenávamos os faisões. Em pouco
tempo formava-se um círculo
cintilante
de penas marrons e verdes aos
nossos pés.
– Você ainda pode caçar – minha
irmã observou significativamente.
Os
essênios acreditavam que uma
mulher não deveria tocar uma arma
ou tirar
uma vida.
– Quando ninguém está observando.
– Sorri, esperando que ela
participasse da brincadeira de quem
eu costumava ser. Em vez disso, ela
balançou a cabeça. Minha irmã, com
quem dividira os sonhos, cujo sopro
de
vida era o mesmo que o meu, cujo
verdadeiro pai era um segredo para
o seu povo, considerava as minhas
ações vergonhosas.
– O Todo-Poderoso observa.
Senti a estocada do seu julgamento.
– Eu me curvo para dirigir as minhas
orações a Ele. Isso também é
observado.
– Estamos no limiar do fim, mas
você age como se os dias fossem
durar
para sempre, um igual ao outro.
Era como se a minha irmã tivesse se
tornado a minha mestra e eu não
conseguisse progredir nos meus
estudos. Nahara estava convencida
de que
nos aproximávamos do Fim dos
Dias e, assim como os seus
professores
essênios, acreditava que era tolice
deixar-se consumir pelas minúcias
da vida cotidiana. Aqueles que se
recusavam a aceitar a verdade de
que o mundo como conhecíamos em
breve não mais existiria seriam
informados
do contrário.
O tecido da túnica e do xale da
minha irmã estava esfarrapado, por
não
ter havido tempo para consertar a
tecelagem e, pelo que ela me disse,
não
haveria nenhum propósito em fazer
isso. Se fosse o Fim dos Dias, então
a
túnica da minha irmã seria o seu
traje mortuário. Ela me confidenciou
que
seu povo já não dormia. Havia muito
trabalho a ser concluído nos
pergaminhos, revelando a verdade
de Deus, e muito pouco tempo para
fazê-lo. Talvez esse fosse o motivo
por ela estar tão pálida. Estava tão
magra que os ossos abaixo da
garganta destacavam-se através da
pele. Ela
me disse que seu povo muitas vezes
rezava durante toda a noite,
esperando
para ver se o sol se levantaria
novamente e se haveria de fato outra
manhã.
Estávamos sujas de sangue pelo
preparo dos faisões. As aves seriam
penduradas em um cordão para que
o restante do sangue fosse drenado
do
corpo antes de serem salgadas e
cozidas. O nosso povo nunca
consumia
sangue. Essa era uma das mais
rigorosas leis de Deus. No entanto,
tínhamos
as mãos manchadas com o sangue
dos faisões. Peguei a mão da minha
irmã
na minha. Ela me traíra perante a
nossa mãe, mas eu não seria capaz
de abandoná-la.
– O que essas pessoas têm para lhe
oferecer?
– Tudo. – Nahara retirou a mão da
minha, balançando a cabeça,
desapontada comigo. – Eles me
oferecem um mundo de paz, Aziza.
Ela olhou para o quartel e para o
estoque de armas guardado ali. As
crianças tinham sido destacadas
para preparar as rochas,
transformando-as em pedras
arredondadas, para que fossem
lançadas contra o nosso
inimigo com grande força caso se
mostrassem temerários o bastante
para
nos atacar. Nahara voltou-se para
mim, os olhos úmidos. Ela sempre
tivera
o coração mole nas horas de
matança. Fechava os olhos quando
nos
deparávamos com um coelho em
uma armadilha. O nosso povo não
comia
coelhos, que eram considerados
impuros, mas o povo do pai de
Nahara não
tinha tais leis. Você faz isso, ela me
dizia enquanto a pobre criatura se
debatia na armadilha. Eu pegava o
coelho e cortava sua garganta
rapidamente, para que ela não
tivesse de assistir. Fazia tudo o que
ela pedia.
– Você não pode achar que essa seja
a resposta – ela disse sobre os
montes de armas.
– O que o seu povo quer que você
faça se formos atacados? – quis
saber.
– Confiar em Abba. – As suas mãos
estavam cruzadas sobre o colo. Ela
parecia calma e bela, aparentando
ser mais velha que a sua idade.
Pensei que ela se referisse ao líder
do seu povo, então percebi que
queria dizer Deus. Ela, a exemplo
dos outros essênios, alegava ter uma
relação pessoal
com o Todo-Poderoso. Falava de
Deus como se fosse de fato Sua
filha.
– E se isso significar que devemos
morrer? E então? Deitar-se e deixar
que Roma nos pisoteie?
Nahara olhou-me cheia de
compaixão, como se eu fosse a irmã
mais
nova, singela demais para entender.
– Depois ressuscitaremos.
– O seu pai era um homem de
coragem. A paz era algo que ele
lutava para manter.
Ela sorriu gentilmente da minha
observação. Vi nela um pouco da
menina que um dia ela fora antes de
nos deixar.
– Não se luta pela paz, irmã –
Nahara me disse. – A paz é algo que
se acolhe.
– Não no mundo do seu pai –
lembrei-lhe.
Nahara riu abertamente, pois isso
era inegavelmente verdade.
– Isso foi há muito tempo. Você era
outra pessoa então. Assim como eu.
– Você chorou por causa dele
quando partimos. Pensamos que ele
iria
ouvi-la em Petra, tão alto você
chamava por ele.
– Eu era uma criança. – Nahara
encolheu os ombros estreitos. – Meu
pai
era o único homem que eu conhecia.
Agora… – ela inclinou a cabeça
para a
comprida mesa sobre cavaletes, na
qual Malaquias trabalhava em um
texto
– ... pertenço a ele.
Eu ouvira dizer que Malaquias
escrevia tão bem que os anjos
vinham ver
o seu trabalho, porque as palavras
foram a primeira coisa que Deus
criou
do silêncio e ainda era a mais bela
de todas as Suas criações.
– Então ficarei feliz por você –
disse.
Fui embora, deixando os faisões
com minha irmã, incapaz de lhe
dizer a
verdade. Não importava o que ela
fizesse ou a quem ela amasse, fora
eu quem lhe dera a vida neste
mundo, um mundo que ela estava
ansiosa e pronta para deixar, em que
havia acácias que atraíam as abelhas
para as suas flores, em que havia
campos infinitos de grama e cassis.
Não importava o que dissesse, ela
ainda me pertencia.
ESTAVA CAMINHANDO à noite,
como passara a fazer para poder
apreciar a minha liberdade como um
rapaz, quando me deparei com os
essênios escavando
próximo da sinagoga. A terra era
rochosa, branca como as estrelas
acima de
nós. Era tarde da noite e havia
nuvens de morcegos no céu, em
busca dos
últimos frutos de sicômoro nas
ravinas áridas abaixo. O ponto alto
da época
mais quente logo se abateria sobre
nós e o ar estava pesado com o
calor, grosso como uma cortina.
Aproximei-me furtivamente,
escondendo-me atrás de uma
cidreira que
já não dava o fruto do etrog.
Embora a árvore estivesse atrofiada
e sem folhas, a casca ainda
rescendia a uma fragrância peculiar,
aguda e doce ao
mesmo tempo.
Vi que os homens seguravam uma
grande urna, constituída de uma
simples peça de cerâmica de cor
castanho-acinzentada, do tipo em
que
guardavam os seus pergaminhos.
Enterraram-na com cuidado,
cantando
suavemente, em seguida apressaram-
se a repor a terra santificada. Os
seus
cantos os levaram a um tipo de
êxtase e eles se balançaram para a
frente e
para trás, levantando os fios atados
dos seus xales de oração para o céu,
para que Deus pudesse ouvi-los e
alegrar-se com as orações.
Pensei nas estranhas atividades dos
essênios pelo restante daquela
noite. Na noite seguinte voltei a me
infiltrar nas sombras. Novamente
encontrei-os trabalhando, enterrando
secretamente outra urna.
De manhã perguntei à minha mãe o
que poderia significar para os
homens piedosos perturbar a terra
santa de forma secreta e temerária.
Minha mãe estivera doente por
alguns dias, apática e pálida,
deixando os assuntos do pombal
para mim, Yael e Revka, incapaz de
comer outra coisa
senão sopa e água. Fizera um chá de
ervilhaca amarga e pepino, de cor
verde, muito forte, que bebia durante
o dia. Não podia suportar o calor
subindo e derramava água sobre a
cabeça, trançando o cabelo molhado
para que permanecesse úmido contra
o couro cabeludo.
– Eles estão enterrando os seus
pergaminhos, pois estão de partida.
–
Tinha certeza disso, pois estudara os
costumes dos essênios quando eles
chegaram. Os pergaminhos eram
tudo para eles, os documentos da sua
fé. –
Querem se certificar de que sua
palavra sobreviva caso pereçam e
não
confiam em nenhum de nós para
mantê-los seguros. É a sua maneira
de
fazer as malas antes de partir.
– Temos de detê-la – chorei,
pensando apenas na minha irmã.
O assunto era urgente; precisávamos
resgatá-la agora. Gostaria de ter
uma corda para atá-la e um lenço
para cobrir a sua boca para que ela
não
gritasse como fizera quando fugimos
do seu pai. Pediria a Yael a capa da
invisibilidade, que ela usara para
levar embora o Homem do Norte,
para cobrir a minha irmã da cabeça
aos pés. Se o marido de Nahara
chegasse para procurá-la, veria
apenas o orvalho sobre a grama.
A minha mãe balançou a cabeça
tristemente quando sugeri as
medidas a
serem tomadas.
– Não podemos fazer isso. Acha que
não vi o destino dela assim como o
seu?
O cabelo úmido da minha mãe
brilhava no escuro. Ultimamente, ela
não
conseguia beber água suficiente e
estava seca durante todo o dia.
Passara a
usar um xale preto. As suas mãos e
pernas estavam inchadas e a sua
pele
perdera o brilho, mas ainda assim
continuava linda. Alguns homens
diziam
que o céu empalidecia diante dela e
que no Mundo Vindouro os anjos se
atreveriam a chamá-la para o seu
lado com medo de que a sua beleza
os cegasse.
– No instante em que conheci o
essênio, soube que ele era a pessoa
que
iria tentá-la com o caminho que ela
não deveria trilhar. Vi a destruição
dela
como vi a sua. Por que você acha
que o expulsei do pombal?
– Não consigo entender.
Sentia uma espécie de fúria dentro
de mim. O tempo todo a minha mãe
me dizia que eu seria a única a ser
desajustada pelo amor, não Nahara.
Eu
mudara o rumo da minha vida, não
uma, mas duas vezes, simplesmente
porque ela me dissera para fazer
isso. Fizera o que mandara sem
questionar, sem duvidar. Lembrei-
me de como queimáramos as minhas
roupas na costa do Mar de Sal,
como negara quem era, disposta a
fazer qualquer coisa para agradá-la.
Afastara-me de Amram. Incapaz de
revelar a
minha verdadeira natureza, agora
sentia pouco por ele.
– Segundo me disse, era eu quem
deveria ficar longe do amor. Agora
está
dizendo que esse é também o destino
de Nahara? E quanto ao de Adir, já
foi
escrito também?
A minha mãe olhou para longe, mas
segurei seu braço. Ela estremeceu e
virou-se para mim. Percebi que
estava mais forte. Já não tinha medo
dos seus poderes. Não tinha o dever
de manter as promessas de uma
mulher que me dissera apenas
mentiras.
– Diga-me a verdade de Deus, não a
sua. É esse o destino de todos os
seus filhos?
– Foi o meu – a minha mãe admitiu.
Sua voz estava rouca, ela parecia
frágil e aturdida. – Foi o meu
destino. Quem quer que eu amasse
estaria condenado. – O ar estava
denso e sombrio dentro do nosso
alojamento,
como se estivéssemos debaixo da
água. – Tentei não amar você.
As lágrimas corriam pelo rosto da
minha mãe quando ela disse isso,
mas
eu não tive piedade. Ela destruíra a
pessoa que eu poderia ter sido se
não
tivesse interferido no meu destino.
Toda a minha vida baseava-se nas
suas
mentiras.
– Você conseguiu – eu disse
friamente.
– Quis proteger você. Do amor e
também de mim.
Pensei que, embora ela estivesse
chorando, eu não me importava.
– E tentou não amar Ben Ya’ir? –
comentei rudemente.
– Ah, não – disse ela. – Nesse
assunto não tive escolha. – Ela
levantou os
olhos para mim. Pela primeira vez,
ela me apresentava a verdade. – Eu
o amava demais.
A CASA DAS CABRAS estava vazia
quando cheguei. O campo tinha
pouco mais que pedras; os nacos de
grama que restaram haviam secado,
tufos
amarelados sem valor. Ao contrário
do dia do casamento de Nahara,
quando ela apoiara o corpo contra o
umbral da porta para impedir o
nosso
caminho, agora a porta abria-se sem
oferecer resistência. Aquelas
pessoas
não acreditavam em trancas, pois a
única chave que lhes importava era
a que Moisés usara para revelar as
inúmeras verdades de Adonai.
Eles tinham muito pouca coisa
consigo, algumas cabras, as roupas
que
usavam, os utensílios de escrita,
para poder continuar a louvar a
Deus enquanto o mundo ao redor
desmoronava. No interior, o chão
fora varrido.
Gostaria de saber se a vassoura
encostada na parede estivera nas
mãos de
Nahara. Peguei-a nas mãos por essa
razão, mas a madeira estava fria.
Não
restava uma migalha a ser vista, até
mesmo os ratos que recentemente
haviam caído em cima de nós teriam
pouca razão para procurar nos
cantos
desse alojamento ou debaixo das
camas de palha bem-arrumadas. No
quintal, o varal continuava amarrado
entre duas tamareiras, uma corda
grossa feita de pelo de cabra que eu
poderia ter usado para amarrar a
minha irmã, mantendo-a conosco se
tivesse sido rápida o bastante para
salvá-la pela segunda vez.
Pelo canto do olho, vi um menino
atrás de uma árvore. Era o filho de
Tamar, Yehuda, que estava chorando
no chão.
– Ela não me deixou ir junto – me
disse ele.
Vi que ele fora amarrado a uma das
palmeiras. A mãe dele fizera o que
eu tivera a intenção de fazer para
prender Nahara. Yehuda fora
forçado a
permanecer conosco, onde Tamara
esperava que estaria seguro.
Abba decidira que o seu povo não
poderia participar da nossa guerra.
Não importava que não se
envolvessem diretamente na batalha.
Seus olhos
não deveriam testemunhar nosso
depósito de armas. Eles não
poderiam
permanecer ali de bom grado
sabendo da nossa intenção de
enfrentar a
legião caso fôssemos atacados. E
assim fora decretado, uma
mensagem
enviada de cima por Deus. Eles já
não podiam comer as frutas dos
nossos
pomares, beber a água das nossas
cisternas ou nos aprovar de qualquer
maneira. Se existissem filhos das
trevas e filhos da luz, e se houvesse
uma
batalha constante entre os dois,
então teriam traçado uma linha entre
nós,
muito embora suas antepassadas,
Raquel, Sara, Rebeca e Léa, serem
as
nossas também, ainda que orássemos
ao mesmo Deus, Ele que não tinha
outro equivalente. Não podíamos
reivindicar o mesmo mundo.
Desamarrei Yehuda e levei-o à casa
de Revka. Os seus braços
apresentavam queimaduras de corda,
pois tentara desesperadamente
escapar dos laços que o prendiam.
Perguntei a Revka se poderia cuidar
dele
naquele momento de infortúnio. Ele
era um menino de cabelo escuro,
olhos
claros e cabeça grande e resoluta, já
se esforçando para ser um homem,
humilhado pela decisão da mãe de
deixá-lo para trás. Os netos de
Revka conheciam-no bem e Yehuda
pareceu se conformar na companhia
deles,
embora continuasse com os olhos
marejados.
Dirigi-me à muralha, para descobrir
qual caminho traiçoeiro os essênios
haviam escolhido. Eles seguiam em
direção a uma caverna situada em
uma
das faces da montanha em que era
impossível escalar os penhascos. As
hienas a habitavam e ela seria
imunda por dentro, repleta de
dejetos e de
ossos espalhados. Um rebanho de
íbex assustou-se quando os essênios
se
aproximaram. As cabras selvagens
correram para os lados em um
esforço
para fugir, lançando pedras com
seus cascos, uma cortina de poeira
se elevando enquanto os
pedregulhos rolavam para o vale
abaixo.
No redemoinho de poeira podia
jurar que vira Domah, o anjo da
sepultura, cujo nome significa
silêncio, aquele que visita os mortos
para perguntar o nome verdadeiro da
alma antes que o espírito parta em
sua viagem. Mas quando o ar
clareou vi apenas os essênios com
suas vestes brancas, descalços,
apesar da rudeza da terra, ignorando
os espinheiros que ali cresciam e os
escorpiões que repousavam sob as
rochas. Pensei ter
visto Nahara atrás dos homens, a
cabeça coberta por um xale, os
olhos voltados para o alto, como se
confiasse totalmente no caminho e
não
temesse uma queda.
Mas era outra mulher, cujo nome
nunca soube, não a minha irmã.
NO PRIMEIRO dia do mês de Av,
Yael veio à nossa mesa. Era a época
do ano que nos trazia pouco mais
que lágrimas e sal. Éramos todos
cautelosos no mês
em que os dois Templos haviam
caído, a mesma data em que se dizia
que
Moisés quebrara as tábuas recebidas
de Deus quando se deparara com o
seu povo adorando um ídolo, o nove
de Av, o Dia da Calamidade, quando
o
mal era liberado sobre nós. Se ha-
olam é o mundo e le-olam é para
sempre, então os dois estão
interligados. No entanto, no mês de
Av o mundo que deveria durar para
sempre parecia algo bem frágil. A
pedra se
desintegrava, a morte nos perseguia,
cidades caíam.
Não comentamos sobre o
desaparecimento do escravo. Ainda
sentíamos
a sua presença, pois o falcão voltara
a pousar no peitoril do pombal à
espera da amante que tão
gentilmente o alimentaria com grãos
em sua mão
por algum tempo depois. Mas essa
bondade o prendia e ele era uma
criatura selvagem. Yael afugentou-o.
Fez isso vezes seguidas até que ele
também desaparecesse, voando para
o norte. No dia em que ele se foi,
Yael
deixou a porta do pombal aberta, do
modo que fazemos quando alguém
morre, para permitir que o espírito
se liberte.
Agora que o escravo se fora, Yael
apelava para a ajuda da minha mãe,
porque ela acreditava ser possível
trazer Arieh de volta para a sua
legítima
casa sem medo de represálias. Yael
trazia o cabelo coberto por um véu,
o tecido apertado no pescoço. Notei
que o brilho do amuleto dourado, a
preciosa dádiva da minha mãe para
ela, desaparecera.
– Você continua a fazer negócios
com as mulheres mortas – a minha
mãe
disse tristemente. – Não aprendeu
com o primeiro fantasma?
– Channa não está morta – eu
argumentei, confusa.
Vira-a naquela mesma tarde,
caminhando na praça com Arieh nos
braços, e ela estava muito viva. As
pessoas cochichavam que
convencera o
marido de que Deus a destinara a ter
aquela criança, mesmo sendo estéril
desde o dia do casamento. Ela
dissera a Ben Ya’ir que aquela que
o parira a
procurara implorando para ficar
com ele. O menino fora um presente
e
uma bênção de Adonai.
– Ela está morta para mim – a minha
mãe comentou com frieza.
– Farei tudo para reavê-lo – Yael
prometeu. – Pensei que o preço seria
pequeno, alguns dias de separação.
Não fazia ideia do que ela pretendia.
A minha mãe balançou a cabeça
tristemente.
– Se eu for contra ela, deixarei meu
filho em perigo. É isso o que espera
de mim, em nome da nossa amizade?
– Eu não tenho medo dela – disse eu.
A minha mãe me fitou, depois
rapidamente desviou o olhar. Então
soube
que não falava a meu respeito. Não
era o filho que ela queria proteger.
Entendi o que deveria ter ficado
evidente havia algum tempo.
Houvera
sinais de que a minha mãe estava
com um filho, mas eu simplesmente
não
percebi o que não queria ver. É
claro que sabia quem era o pai. O
homem
que ainda guardava as pombas que
lhe enviava na Montanha de Ferro.
Ela
ainda lhe pertencia.
– Você pensou que eu fosse uma
bruxa e não uma mulher? – minha
mãe
aventurou-se a perguntar.
Magoada além da conta, dei de
ombros.
– Mais um para você destruir com o
seu amor.
Yael lançou-me um olhar de
advertência, depois foi se ajoelhar
ao lado
da minha mãe, implorando por sua
ajuda.
– Nunca pedirei mais nada. Juro.
– Ela já lhe deu um presente
precioso – eu disse, referindo-me ao
amuleto. A ausência do
encantamento passara despercebida
à minha mãe.
Gostaria de saber o que ela pensaria
se descobrisse que Yael abrira mão
do
presente.
Yael expôs o pescoço para revelar
que não trazia o amuleto. Quando ela
admitiu que dera o talismã a Wynn
para a sua proteção, envergonhei-me
de
tê-la confrontado.
– Perdoe-me. – Yael inclinou a
cabeça diante da minha mãe. – Ele
precisava mais que eu. Se me ajudar
agora, não pedirei mais nada – ela
prometeu.
– Mas eu a procurarei em troca de
uma coisa – minha mãe confessou. –
A
confiança é mais valiosa que o ouro,
a lealdade é a melhor proteção. Se
fizer
isso por você, quando chegar a hora,
você me dará qualquer coisa que
pedir?
– Qualquer coisa – Yael prometeu.
– Channa não é como a outra mulher
que queria seu filho – minha mãe
avisou. – Aquela mulher tinha um
coração, embora pertencesse ao pó.
Esta
não tem nenhum. Acredite em mim,
ela preferiria ver o seu filho
assassinado a devolvê-lo a você. E
vai lançar uma maldição sobre mim.
Lembre-se disso quando a procurar
para lhe pedir o que for preciso.
Elas pegaram a faca que Yael
carregava consigo o tempo todo e
cortaram
as suas carnes, depois deixaram
gotas de sangue caírem em um copo
de óleo para ser queimado perante a
imagem de Astarte no nosso altar.
Depois
a minha mãe trouxe uma tigela de
samtar, o emplastro que curava as
feridas causadas por flechas. Ela
revestiu o seu corpo como um
guerreiro o
faria antes da batalha. Pegou um
monte de cinzas e outro de sal, e o
bálsamo precioso de Gileade, feito
da goma da árvore do aguarrás.
Quando
Yael fez menção de imitá-la, minha
mãe a deteve.
Yael pareceu intrigada.
– Você pode precisar de mim.
Minha mãe balançou a cabeça.
– Não de você. – Ela me olhou,
depois assentiu. – Você.
Embora já não tivesse nenhuma
obrigação com aquela mulher, a mãe
que mentira para mim e me traíra, o
destino de uma criança estava em
risco. E havia algo mais, algo que eu
não admitiria em voz alta.
Apesar de ela ter-me traído de
muitas maneiras, eu ansiava por ser
a escolhida por ela.
Cobri-me com o samtar, como a
minha mãe o fizera, e depois com o
óleo.
Trancei o cabelo e deixei sete nós
amarrados dentro da minha capa, o
número convencionado para repelir
o mal quando se fosse alvo de uma
bruxaria.
– Acha que ela é uma bruxa? – eu
perguntei.
A minha mãe riu.
– Eu sei que ela é.
SAÍMOS ao anoitecer, o momento
em que a escuridão e a luz são
difíceis de precisar e todas as coisas
são possíveis. A minha mãe
pretendia realizar um
exorcismo. Às vezes, o próprio
Rafael aparecia para ajudar nesse
processo e
havia rumores de que ficara radiante
uma vez que instruíra um exorcista a
queimar o coração e o fígado de um
peixe para expulsar os demônios. A
minha mãe levava esses ingredientes
consigo naquele momento, os órgãos
secos de um peixe que
milagrosamente aparecera em um
nachal na nossa
viagem àquela montanha, com o
único propósito de exorcizar o mal.
Estremeci quando percebi que era
isso que a minha mãe pretendia
fazer, pois era um ato
verdadeiramente perigoso. Uma vez
aberto aquele mundo,
o próprio exorcista poderia ser
vítima dos maus espíritos. Havia
histórias
de exorcistas que nunca mais
falaram, que perderam o coração em
consequência da tentativa,
encontrados sem nada deles que
pudesse ser
salvo, somente uma pilha de ossos
secos.
Caminhamos ao longo da muralha,
passando pelo jardim. O aroma de
hortelã estava no ar. Podíamos ouvir
as pombas cantando. A minha mãe
não hesitou quando as ouviu. Um
sorriso cruzou o seu rosto quando
foi se
ajoelhar ao lado da gaiola. Abriu a
porta e pensei que pretendesse
acariciar
suas penas, como muitas vezes
acariciara as pombas que criava
quando
estávamos em Moabe. Em vez disso,
ela balançou a gaiola para que
saíssem.
Pegou uma em cada mão e levantou-
as bem alto. No instante em que as
deixou ir, elas alçaram voo para o
céu.
– Não tinham mais nenhuma
utilidade – ela murmurou
observando-as
desaparecer, como fazíamos anos
antes, naquela que agora parecia
outra
vida.
Não foi nenhuma surpresa quando
vimos que Yael nos seguira e
esperava junto à muralha. Ela usava
um véu escuro, para se disfarçar,
mas a
reconhecemos imediatamente e
entendíamos por que não conseguia
ficar
de fora. Talvez a sua presença no
lado de fora do palácio aumentasse
a nossa força.
Aproximamo-nos da porta feita da
madeira do cipreste. A minha mãe
inclinou-se para a frente para que
pudesse sussurrar. Eu sentia o calor
do
seu corpo e o cheiro do óleo que
esfregara no pescoço e nos pulsos.
Quando
o demônio fosse expulso da mulher
que estávamos prestes a enfrentar,
precisaríamos pegar a criança.
Naquele momento, e só então, a
nossa
inimiga estaria impotente.
– Ela tentará aterrorizá-la com seus
argumentos, não dê ouvidos. Ela
lançará um monte de desgraças
contra você, não tenha medo. Existe
um
ingrediente a mais de que ela
precisa para os poderes. É algo que
somente
nós temos.
Entendi qual era esse ingrediente. O
meu pai.
Havíamos nos certificado de manter
as nossas tranças bem apertadas
junto da cabeça, para que o demônio
que estávamos prestes a enfrentar
não fosse capaz de agarrar-nos pelo
cabelo. Tínhamos esfregado óleo de
romã nos braços e nas pernas para
que pudéssemos escorregar
facilmente
das suas garras. Entoamos: Abra
k’dabra. Criarei algo do nada.
Amém.
Amém. Selah. Porque a palavra do
nosso Deus era o que nos guiaria e
nos protegeria do mal. Sua canção
seria o nosso único caminho, a
despeito de
quaisquer pecados que pudéssemos
ter cometido e de quaisquer
punições
que pudéssemos merecer. Aquilo em
que acreditávamos, e com aquilo
que
dissemos em voz alta, poderíamos
criar diante dos Seus olhos e à Sua
imagem.
A minha mãe tinha raiado as suas
pálpebras com lápis e se perfumara
com murta e lírios. Ela ergueu o xale
sobre a cabeça, talvez para parecer
modesta aos olhos da rival. Channa
ficaria ainda mais perplexa quando
descobrisse quem viera chamar.
Minha mãe bateu na porta
levemente, como faria se tivesse
uma cesta de
legumes para oferecer, verduras,
quem sabe, ou dentes de alho.
Ouvimos um ruído abafado, mas não
houve resposta. Minha mãe bateu
novamente,
com mais força dessa vez.
Ninguém apareceu à porta, e não se
ouviu mais nenhum som vindo de
dentro.
Subi na pilha de lenha e estiquei o
pescoço. Em um canto, avistei o
berço
vazio. Só havia sombras. Mas o fogo
estava aceso. Acima das chamas
via-se
um pote pendurado, preso a uma
haste de metal, com a refeição ainda
cozinhando. Pude sentir o cheiro das
lentilhas e da carne cozida.
Tirei da capa a chave feita de um
pedaço de arame de metal. Ela
funcionara para destrancar a porta
da torre, para que Wynn fosse
libertado,
talvez funcionasse de novo. Minha
mãe se afastou para eu tentar. Ela se
encaixou na fechadura perfeitamente.
A porta se abriu com um clique. Nós
nos dirigimos para o aposento em
que a refeição da noite posta sobre o
fogo em breve estaria queimando e
ficaria preta, pois estava
borbulhando,
mais do que pronta. Minha mãe
lançou as entranhas do peixe naquele
guisado e subiu uma fumaça verde-
clara, a cor da inveja e da traição.
Através da névoa da fumaça
avistamos uma lâmpada, e, embora
seu
brilho fosse fraco, era o bastante
para que pudéssemos encontrar o
nosso
caminho. Seguimos pelo vestíbulo,
saindo no corredor em que os
afrescos
das sete irmãs haviam sido pintados
pelos mestres de Roma. Cada uma
das
irmãs era mais bonita que a outra,
mas nenhuma tanto quanto a minha
mãe, nem mesmo a lua prateada. Ela
me chamou para junto de si e
paramos
lado a lado sob amostras de ocre,
ametista e verde da cor do mar. Ela
inclinou a cabeça na direção de uma
porta, pedindo-me para ouvir. Ela
fazia
isso quando éramos crianças, para
aprendermos a identificar a
diferença entre o ruído dos cascos
do grande corcel do seu marido,
Leba, se
aproximando e os ruídos do cavalo
de qualquer outro homem. Quando o
pai da minha irmã se surpreendia
que nós, crianças, aparecíamos para
cumprimentá-lo muito antes de ele
chegar, dizíamos que Leba se
comunicava conosco e que a língua
dos cavalos era fácil de adivinhar.
Agora, na casa de Ben Ya’ir, ouvi o
que me pareceu ser um besouro, do
tipo que dizem que procura os
mortos. Depois de um instante
percebi que
era o som ritmado da respiração de
alguém. Bati no meu pescoço e
minha
mãe concordou. Encontráramos o
que procurávamos.
Seguimos o som, parando quando
ele se tornou mais abafado,
prosseguindo quando recomeçou. A
respiração nos levou a uma pequena
câmara em que eram armazenados
azeite e vinho, os vasos altos
incluídos
entre os últimos pertencentes ao rei
Herodes. O aposento estava às
escuras,
mas a lâmpada que carregávamos
lançou luz suficiente para identificar
sulcos compridos de sombras. Uma
sombra era como um tanque de água
vazando na nossa direção no meio
da escuridão. Ela se agachara atrás
da porta, um corvo em uma túnica
escura, curvada para baixo, como se
pudesse escapar de nós tão
facilmente como o anoitecer
desvanecendo um
campo de árvores enegrecidas.
Como se enfeitiçado, Arieh nos
chamou. Talvez soubesse que sua
verdadeira mãe esperava por perto.
O corvo rapidamente cobriu sua
boca,
mas ele gritou de novo. Havia nos
reconhecido e consideramos isso um
bom presságio. Deus velava por nós.
– Vocês não têm o direito de estar
aqui – disse Channa quando não teve
escolha senão nos encarar. Ela se
levantou orgulhosamente, como se
não tivesse se encolhido no escuro
com os besouros, uma sombra atrás
de uma
porta. – Quando chamar as
sentinelas, vocês serão encerradas
na torre. Ou
talvez expulsas para o deserto. Onde
é o seu lugar. Vocês foram
condenadas, ainda que pensem que
podem vir a esta casa e tratá-la
como
sua.
Channa olhava para a minha mãe
como se ela fosse um demônio que
surgira através de uma janela aberta.
Minha mãe não lhe deu resposta.
Não
discutiu ou retrucou a essas palavras
malignas. Ficou parada na porta
para
que Channa não tentasse fugir. Era
tarde demais para se esconder ou
gritar.
Minha mãe já começara o
exorcismo. Ela espalhara dois
círculos de cinzas,
depois fez sinal para mim. Entramos
nos círculos quando ela começou a
Canção dos Aflitos. A voz da minha
mãe era linda, pura e etérea. A
princípio, Channa apenas ouvia, sob
o efeito do encantamento. Talvez
pensasse que estava sendo elogiada,
ou se convencera de que a minha
mãe viera prestar-lhe homenagem,
admitir os erros cometidos e comer
o sal que agora atirava
em direção à sua rival, como alguns
diziam para comer os seus pecados.
Mas os olhos da esposa do nosso
líder se arregalaram quando ouviu
as palavras recitadas pela minha
mãe.
Aquele que habita o esconderijo do
Altíssimo deve permanecer à
sombra
do Todo-Poderoso. Direi do
Senhor: Ele é o meu refúgio e a
minha fortaleza, o meu Deus, em
quem confio. Certamente, Ele te
livrará do laço do
passarinheiro, e da peste
perniciosa. Ele te cobrirá com as
suas penas, e debaixo das suas asas
te deves confiança. Sua confiança
será o teu escudo e
broquel.
Talvez as asas que sempre imaginei
sobre as minhas costas tivessem
sido postas ali para a minha
proteção pelo Todo-Poderoso, pois
me sentia
protegida, livre de redes e
armadilhas. O que quer que a minha
mãe
dissesse, eu repetia com ela.
Quaisquer que fossem os seus
pecados, eu a perdoava.
À nossa frente, Channa segurava o
bebê com mais força enquanto
olhava
para a minha mãe, alarmada.
– Você tomou o que deveria ter sido
meu. Era para ele dar uma criança
para mim, não para você! Os ladrões
são mortos pelos seus atos, não
perdoados. Você não pode lançar
uma maldição em mim.
Minha mãe continuou a canção do
Todo-Poderoso, louvando-O e
pedindo a Sua luz.
Tu não deverás ter medo do terror
à noite, nem da flecha que voa de
dia.
Nem da peste que anda na
escuridão, nem da mortandade que
assola ao meio-dia. Mil cairão ao
teu lado, e dez mil à tua direita,
mas não chegará a ti.
Somente com os teus olhos tu
contemplarás e verás a recompensa
dos ímpios.
Eu escutava, encantada. Amém.
Amém. Selah. A minha voz soou,
fazendo
eco à da minha mãe. Channa virou-
se para mim. Quando olhou nos
meus
olhos, viu o marido no meu olhar.
Dei um passo para trás quando
confrontada com a mesquinhez do
espírito.
– Permaneça no círculo – avisou
minha mãe.
Agora Channa me conhecia por
quem eu era. Ela se aproximou para
me
ver melhor. Ali estava eu, a criança
que ela mandara para o deserto, para
ser bicada pelos corvos e devorada
no banquete dos chacais.
– Você deveria ter sido minha – ela
me disse. Lançou à minha mãe um
olhar brutal. Sua respiração estava
tão entrecortada que era difícil ouvi-
la,
mas eu o pude fazer. – Você é a
destruidora e o pecado perante o
nome de
Deus.
Sua voz estava rouca, arrancada de
dentro dela. As palavras
perfuraram-
me como nenhuma arma seria capaz;
ainda assim, fiz como a minha mãe
aconselhara e me mantive dentro do
círculo. Recusei-me a ouvir o
veneno
lançado sobre mim pela sua inveja.
Ouvia apenas a canção da minha
mãe.
Podia ver as palavras que ela
pronunciava tornando-se visíveis no
ar entre
nós, incandescentes, escritas pela fé.
Porque fizeste do Senhor, que é o
meu refúgio, e do Altíssimo a tua
habitação, nenhum mal te sucederá,
nem praga alguma chegará da tua
habitação vizinha. Pois Ele dará os
seus anjos a teu respeito, para te
guardarem em todos os teus
caminhos. Eles te sustentarão nas
suas mãos, para que não tropeces
com o teu pé em pedra. Tu pisarás
sobre o leão e a cobra: o leão e o
dragão hás tu de calcar aos teus
pés.
Channa estava começando a revelar
quem ela era e que maldade estaria
disposta a empreender.
– Arieh pertence a mim! Fiz um
acordo com a mãe, diante de Deus!
Ela, que nos mandara para o deserto,
para sermos tomadas nos braços
da Morte quando a minha mãe tinha
treze anos de idade e eu era apenas
recém-nascida, pegou uma faca e
segurou-a contra a garganta de
Arieh. Fiz
menção de me aproximar da criança
mas, novamente, a minha mãe
agarrou
o meu braço.
– Ainda não – sussurrou ela.
Channa segurava Arieh com tanta
força que ele soltou um grito
sentido.
Eu estava grata por Yael não estar
presente e não poder ver o demônio
se
revelando diante de nós. Logo
chegaria o momento em que ela não
teria poder algum.
– Não tomou o bastante de mim para
precisar tomar esta criança
também? Prefiro vê-lo no Mundo
Vindouro a vê-lo com você.
O suor cobria a testa da minha mãe.
Seus lábios se moviam enquanto ela
repetia a canção. Não era de
admirar que os homens ficassem
paralisados
por ela e os anjos viessem lhe falar.
Não era de admirar que a chuva
atendesse ao seu comando e até
mesmo a filha a quem traíra fizesse
qualquer coisa que pedisse.
O manto negro da minha mãe abriu-
se. Esse foi o momento em que
todos nos tornamos quem éramos
aos olhos de Adonai. Channa
indignou-se
ao ver que a minha mãe carregava
uma criança. A sua respiração
piorava,
áspera, como se uma mão lhe
prendesse o pescoço, retendo-lhe o
ar como
ela guardara o meu pai de nós. Um
som emanava dela, que estava sem
palavras, um grito ferido e
sangrento. Era o demônio. Nesse
momento eu me adiantei, para o bem
da criança roubada, arrebatando-a
dela com tanta
força que ela cambaleou,
escorregando no lugar em que minha
mãe
empilhara o sal para conter o mal
dentro dela. A minha mãe exibia
medo em seu semblante quando viu
o inimigo vacilar.
Porque ele depositou o seu amor
em mim, por isso o livrarei: vou
elevá-lo
bem alto, porque conheceu o meu
nome.
– Sua bruxa – a esposa do nosso
líder gritou.
Ele me invocará, e o atenderei:
estarei ao seu lado na angústia; eu
o livrarei e honrarei. Com longa
vida o satisfarei, e lhe mostrarei a
minha salvação.
– Leve-o – disse Channa sobre
Arieh, derrotada à nossa frente. –
Faça o
que quiser com ele. Mas você não
poderá ter o meu marido.
Peguei a criança e corri com ela
para que sua verdadeira mãe
pudesse se
alegrar com ele no pátio do palácio.
Mais tarde faríamos uma festa para
celebrar e cantar louvores, mas
agora apenas uma voz se elevava
enquanto
eu ouvia a minha mãe dispensar o
nosso inimigo. Pois foi ela, não um
anjo
ou uma bruxa, mas uma mulher que
não tinha mais medo de falar, que
enfrentou a sua rival e proclamou:
– Eu o tive o tempo todo.
OS COMERCIANTES chegaram até
nós provenientes do outro lado do
Mar de Sal, trazendo especiarias e
incensos, ervas e sementes.
Estávamos
desesperados pelos seus produtos,
regateamos chicória e azeda,
negociando moedas de prata e
pedras semipreciosas em troca
desses
condimentos. Um dos comerciantes
trazia consigo um enorme cão preto,
um mastim da Ásia. Essa criatura
encaminhou-se para o lugar onde o
meu
irmão muitas vezes acampava ao
lado do quartel, quando era um
garoto de
recados dos guerreiros, fascinado
pela sua coragem e pelos seus feitos.
Agora Adir estava entre os homens,
afastara-se de nós, mas algo da sua
essência devia ter permanecido ali
para que o enorme cão peludo se
recusasse a ser removido. Ele
jogava a cabeça para trás e uivava.
O cão era
um presságio, isso era evidente, se
bom ou ruim eu não sabia.
Enrolei uma corda em volta de sua
grande cabeça, para que parasse de
uivar, em seguida levei-o ao nosso
alojamento, onde o amarrei no lado
de
fora. O cão me observou, latindo
enquanto não voltei para lhe
oferecer água. Quando o
comerciante a quem ele pertencia o
procurou, o cão negro
recusou-se a ir com ele. Correu e
mordeu o seu dono, depois se
escondeu
atrás das minhas pernas, olhando por
entre elas, inclinando o focinho
enorme e a cabeça, choramingando.
– Você estragou o meu animal –
gritou o comerciante. – Ele era
feroz, agora parece uma ovelha.
O comerciante provinha do lado
oriental do Mar de Sal. Eu conhecia
as
entonações com que ele falava, o
sotaque do meu primeiro pai. A voz
de Moabe era linda de ouvir, mesmo
que o comerciante me amaldiçoasse.
Quando respondi a ele no mesmo
tom, sugerindo que o cão fizera a sua
escolha e talvez tivesse sido
maltratado, o viajante ficou
atordoado por eu
conhecer a sua língua. Ele aceitou
algumas moedas em troca da
criatura.
Eu não gostaria de ter um cachorro,
mas ele sempre me acompanhava
até a muralha à noite, enquanto
vigiava o vale com as outras
mulheres à espera do regresso dos
guerreiros. Chamei-o Eran, que
significa vigilante, pois o nome se
ajustava àquela criatura enorme e
silenciosa. Quando
estalava a língua, como fazia para o
meu cavalo em outro mundo e em
outra
época, ele me seguia. Ele não latia
nem rosnava, também não pedia
comida
à nossa mesa. Achei que ele nos
traria sorte; quem sabe o seu destino
e o do
meu irmão estivessem unidos. Como
a minha mãe não insistisse em se
livrar dele, embora não gostasse de
cães, pois os considerava um pouco
melhor que os chacais, quando ela
colocou para ele uma tigela com pão
e leite, a comida favorita do meu
irmão, percebi que ela concordara.
Uma noite Eran começou a latir e
não se deixou consolar, não
importava
o quanto tentasse silenciá-lo. Logo a
minha mãe acordou. Nós duas
tivemos
a mesma sensação de pavor e,
juntas, fomos no escuro até a
muralha.
Outras mulheres já se encontravam
lá, muitas delas em lágrimas, pois
também tinham experimentado
presságios. Uma acordara de um
sonho
enviado pelo anjo Gabriel, em que o
seu pai já falecido lhe ordenava
para se
postar ao lado do portão. Outra
ouvira um morcego, um sinal de
vigilância e
de invisibilidade, voando no seu
alojamento.
Perto do amanhecer, conseguimos
avistar os guerreiros retornando;
vimos a poeira se levantar do chão
antes de enxergarmos as suas
imagens.
Quando eles começaram a subir pelo
caminho da serpente, nossos
corações
dispararam, depois quase pararam.
Fiquei aliviada ao ver Amram, mas
a
figura delgada que ele carregava ao
ombro era o meu irmão. Reconheci a
túnica e o manto.
Nossos homens tinham seguido os
romanos. Houve um confronto e
nossos guerreiros superaram a
pequena tropa de exploradores, que
era
menos numerosa, obrigando-a a
recuar. Vários soldados
despreparados da
legião foram mortos, apesar da
proteção da sua armadura de malha
e dos
capacetes de bronze. Os rebeldes
saíram-se bem, mas Adir fora
derrubado
por uma lança e o seu ferimento era
profundo; ele ardia de febre. Seu
cabelo escuro estava emplastrado, e
os olhos, duas chamas amarelas,
assim
como os do seu pai e de Nahara, que
eram bem claros.
Nós o levamos para nosso quarto,
onde a minha mãe banhou seu corpo
inerte. A febre o deixara frio, como
se Shalgiel, o anjo da neve, o
houvesse
abraçado e trazido para baixo.
Minha mãe me disse para queimar
rapidamente as vestes de Adir.
Fizemos isso para nos proteger dos
demônios que poderiam transmitir
doenças, mas também queimávamos
as
túnicas dos mortos dessa maneira.
Talvez tenha sido por isso que não
fiz o
que ela me dissera. Em vez disso,
lavei a túnica e a capa do meu irmão
em
um balde, depois as pendurei no
varal atrás da casa de cabras, antes
ocupada pelos essênios.
O nosso povo lavava as mãos antes
de cada refeição, antes de cada taça
de vinho, antes de cortar um pão em
dois. Fazíamos isso por uma boa
razão. Os demônios poderiam entrar
em um indivíduo que estivesse sujo
e
o fogo de um demônio se
manifestava como febre. Minha mãe
instruiu-me a
usar um lenço sobre o rosto quando
cuidasse do meu irmão. Lavávamos
as
mãos com um sabonete feito de soda
cáustica e cinzas até que a pele
ficasse
totalmente limpa. Todas as manhãs
minha mãe preparava uma chá de
folhas de louro, óleo de rosas e
pimenta. Embora meu irmão fizesse
cara feia depois de um gole da
bebida, obedecia ao que lhe era
ordenado e bebia
tudo. Um cataplasma de samtar,
misturado com reita, o remédio feito
de trigo, era colocado na sua ferida
limpa.
Minha mãe queimava óleo no altar
de Astarte. Ela encontrou um único
lírio crescendo em um jardim
abandonado, o bulbo raro plantado
ali uma
centena de anos antes pelos
jardineiros do rei para que as
pétalas e os caules pudessem ser
queimados, liberando uma chama
verde para a glória
de Deus.
Resgatai esta criança e salvai-a de
todas as aflições.
Minha mãe tirou do ninho duas
pombas tão bonitas, que elas
próprias
sabiam da sua beleza e
orgulhosamente se pavoneavam
perante a sua
espécie. Sacrificou-as à Rainha do
Céu, embora o nosso povo já não
fizesse
sacrifícios, até mesmo a Adonai,
agora que o Templo fora destruído.
Ela limpou cuidadosamente o sangue
das mãos, até ter certeza de que não
restasse uma única mancha.
Permiti que se torne um homem e
cante canções gloriosas de louvor
ao nosso Senhor e rei, o nosso Deus
poderoso. Amém. Amém. Selah.
Que Ele o proteja de todo o mal e
permita que viva em Jerusalém, na
santidade e na paz.
Adir sempre fora um menino ansioso
pela guerra; o que descobrira
havia sido uma surpresa
desagradável. Ele voltou para nós
calmo e
melancólico. Mesmo depois que a
febre baixou, sua perna continuou
afetada pela ferida. Ele não
conseguia manter-se em pé por
muito tempo e
isso, em especial, o entristeceu. O
único capaz de animá-lo era o cão
enorme
que mandei ficar ao seu lado. Por
isso, minha mãe insistiu para que eu
lavasse a criatura, de modo que sua
sujeira não trouxesse demônios para
o
meu irmão no seu atual estado
debilitado. Levei Eran para a praça
e atirei
punhados de água sobre ele, depois
cobri-o com soda cáustica, enquanto
ele permanecia quieto, impassível,
embora pudesse facilmente ter
fugido
do meu alcance.
– Foi esse que tomou o meu lugar?
Amram apareceu atrás de mim e me
surpreendeu com seu abraço.
Deixei que me envolvesse com seus
braços, mas senti uma reserva
estranha. Enquanto estávamos juntos,
o cachorro latiu e rosnou.
– Pare – disse a Eran, mas ele não
silenciou, e isso me preocupou, pois
ele nunca parecera tão feroz antes.
Fosse qual fosse a razão, ele não
gostara
do homem à sua frente.
– Meu rival – Amram brincou. – Se
ele me morder, vou ter de retribuir a
mordida.
Amarrei o cão no toco de uma
tamareira, depois puxei Amram de
lado
para termos alguma privacidade.
– Você deve dizer aos guerreiros
que meu irmão não poderá sair de
novo.
Amram riu.
– Todos os guerreiros devem ir
quando são convocados. Você sabe
disso.
Ele é um de nós agora. – Amram
então tirou da sua túnica o quadrado
azul
de tecido que era o seu amuleto da
sorte. – Pelo menos comigo você
não precisa se preocupar. Quando
sair de novo, encontrarei o caminho
de volta.
Quis lhe dar uma ordem, mas sabia
que Amram não era um homem que
obedeceria a uma ordem dada por
uma mulher. Era eu quem deveria
cuidar
para que o meu irmão permanecesse
em segurança. Fiz uma promessa a
mim mesma enquanto me encontrava
ali na praça, mas não disse nada a
Amram. Adir não estaria entre eles
quando o novo grupo de ataque
partisse. Eu me asseguraria disso.
Quando Amram partisse para a luta,
outro guerreiro seguiria atrás dele.
PEDI O FAVOR e Yael não o negou
a mim, pois fora eu quem lhe
devolvera o filho aos seus braços.
Eu o arrebatara da mulher sinistra
que desejava tão
desesperadamente ser a mãe dele,
que se convencera de que o era.
Yael esperava por mim na praça,
onde o calor subia da terra em
ondas, o bebê
em seu quadril. Desde que
recuperara Arieh, ela se recusava a
deixá-lo fora
da vista por muito tempo. Se
precisasse ajudar e Revka e eu
estivéssemos
trabalhando no pombal, às vezes ela
o deixava com seu pai, que tomara
gosto pela criança. Ele fizera as
pazes com Yael de tanto que amava
o neto.
Talvez pensasse que tinha uma
segunda chance de forjar outro
guerreiro.
Eu ouvira Revka perguntar a Yael
por que permitia que aquele homem
se
intrometesse na vida do seu filho
depois de ter sido tão cruel com ela.
Yael
disse que ele era um homem mudado
agora, derrotado pelo deserto e pela
idade.
– Quando o vejo com Arieh – Yael
admitiu –, vejo o homem que ele
poderia ter sido se não tivesse
perdido o que mais amava no
mundo.
A segurança de Arieh estava
assegurada enquanto permanecesse
sob os
cuidados do avô, que fora um dos
principais sicários de Jerusalém,
pois o assassino continuava com a
faca escondida sob a capa, apesar
de agora estar relegado a limpar as
armas. Era ele que eu queria ver e
pedi a Yael para me levar ao seu
alojamento. O assassino me
reprovara como indigna
do seu filho. Talvez Yael imaginasse
que eu desejava conquistá-lo. Mas
um
homem como ele não seria
facilmente convencido, e na verdade
eu não
queria tal coisa.
– Lembra-se de Aziza? – Yael
perguntou ao pai.
Yosef bar Elhanan ergueu os olhos,
avaliando-me com um olhar frio.
Gostaria de saber quantos homens
ele assassinara, se o sangue
derramado
já havia sido suficiente para deixá-
lo mais humilde ou fazê-lo buscar o
perdão. Ele pôs o bebê no colo,
depois assentiu.
– A shedah – disse.
Ele queria me insultar, mas sorri
encantada. Um sorriso poderia ser
uma
arma também.
Yael foi preparar chá, embora
temesse deixar-me à mercê de seu
pai.
– Estou acostumado com esse tipo
de homem – assegurei a ela, pois na
verdade sabia que entre os homens
as palavras não eram tão perigosas
quanto as pronunciadas pelas
mulheres.
O assassino ignorou-me, brincando
com a criança com um carinho
inesperado. Inclinei-me de modo
que somente Bar Elhanan ouvisse,
pois o
que estava prestes a dizer era um
pedido íntimo demais para qualquer
outra pessoa ouvir.
– Quero que me ensine a ser
invisível – disse-lhe.
O velho brincava com Arieh sobre
os joelhos, para a alegria do bebê.
Eu
já esperava que fingisse surdez
quando o informasse do que queria,
mas ele
se mostrou curioso quando fiz o
pedido e não resistiu a saber mais.
Fitou-
me rudemente, não me concedendo
mais respeito do que faria com uma
zonah comum.
– Por que faria isso? – perguntou
ele.
– Para eu poder proteger o seu filho
e meu irmão.
– Meu filho está perdido para mim
por sua causa.
Eu sabia que ainda havia uma
distância entre Bar Elhanan e seu
filho, mas não receava retrucar-lhe e
defender minha posição. Se recuasse
ante o
ardor das suas palavras, ele nunca
me respeitaria.
– Se ele está perdido para você, é
porque você é preguiçoso demais
para
encontrá-lo.
O assassino riu e balançou a cabeça
tristemente.
– É verdade. Fechei a porta para ele
e agora me pergunto por que ele não
a atravessa.
Eu atingira seu coração, pois ele
mostrava que o tinha, então me
atrevi a
continuar.
– Quero tomar o lugar do meu irmão,
por que esse deveria ter sido o meu
lugar antes de tudo.
O assassino deu uma risada
desdenhosa. Seu rosto curtido
mostrava
apenas diversão. Ele parecia
acreditar que eu estivesse ali para
entretê-lo
com tolices. Ele teria começado a
advertir-me a me ocupar do trabalho
das
mulheres não tivesse eu aprendido o
que o pai da minha irmã me
ensinara.
Só se é digno do que se demonstra
ser capaz. Antes que o assassino me
dispensasse, peguei a lâmina que
carregava. Pulei para o lado dele,
pousando a faca em seu pescoço.
Apesar de ser proibido tocar em
mim, Bar
Elhanan cometera pecados muito
piores. Ele habilmente agarrou meu
braço e torceu-o para trás, quase o
quebrando, sem abalar o bebê em
seu
colo. Nós dois respirávamos com
dificuldade.
– Por que motivo você veio me
matar? – ele exigiu saber.
– Não era esse o meu objetivo.
Ele me soltou e o enfrentei de novo.
Ele me fitou, confuso.
– Você não é uma mulher? – ele
disse, pensativo, impressionado e
intrigado com a minha rapidez com
uma arma.
– A maior parte do tempo –
respondi.
Felizmente, ele riu.
– Não sou nada aqui – ele me disse
–, mas se você quiser aprender a
limpar as lanças e armaduras, então
sou o seu homem.
– Não. Quero mais – disse eu. –
Quero ser invisível.
No momento em que Yael retornou
com o chá, seu pai já decidira que
me
permitiria tomar o seu manto
emprestado. Quando saímos, ele
sugeriu que
o visitasse no dia seguinte. Eu
estava interessada em limpar as
armas, ele
disse a Yael quando ela o fitou
interrogativamente, e ele tinha muito
a me
ensinar.
*
NO DIA da nossa partida, entramos
no mês de Elul, um período de
introspecção antes dos dias mais
sagrados para nós. Acordei no
escuro
enquanto meu irmão, ainda em
processo de cura, com a perna
enfaixada, cochilava em seu estrado.
Corri para a casa das cabras e me
vesti com suas
roupas, enterrando as minhas
debaixo de um monte de palha.
Vinha
praticando o uso das armas
diariamente com o velho assassino,
um
professor intransigente. Eu era um
enigma para ele, mas ele estava
grato por alguém, mesmo que fosse
eu, pedir para ver a sua grande
habilidade.
Não se incomodava nem um pouco
se eu me ferisse durante os
exercícios. A
sua postura era distante, os métodos,
cruéis, mas ele me instruiu bem.
O cão seguiu-me enquanto eu pegava
a túnica e a capa do meu irmão,
esperando pacientemente. Pensei
que talvez ele estivesse ao meu lado
porque imaginasse que eu fosse
Adir, ou talvez achasse que estaria
lhe preparando uma refeição. No
entanto, quando o enxotei, ele
insistiu em perambular junto ao
quartel. No escuro, vesti a armadura,
uma folha de escamas prateadas.
Usava o lenço amarrado baixo na
testa, de modo que o
meu rosto ficava encoberto e podia
parecer meu irmão aos olhos dos
outros guerreiros. Prova disso foi
um sujeito chamado Uri aproximar-
se e
me dizer quais lanças recolher para
os outros. Fiz isso de bom grado.
Trouxera apenas um pequeno pacote
contendo figos, um pouco de
pistache e queijo duro, juntamente
com a capa acinzentada. O velho
assassino ensinou-me os truques da
invisibilidade, como andar na
sombra,
como dar um passo sem produzir
ruído, como escapar do ataque de
um
adversário em um sopro de neblina.
No fim do período que passamos
juntos, ele me proclamara uma aluna
digna, embora me assegurasse que
não daria uma boa esposa para
Amram.
– Podem dizer que você é mulher,
mas você é outra coisa. – O
assassino
estava envelhecendo, mas ainda
tinha uma visão clara e um olhar
penetrante.
– Uma shedah? – tentei fazer uma
piada sobre isso.
Ele poderia ter rido, mas não o fez.
– Um guerreiro – disse ele.
Curvei-me com gratidão e deixei-o
lá, para limpar as armas dos outros
homens.
SESSENTA DE NÓS partimos
naquele dia, um grupo de ataque
liderado pessoalmente por Ben
Ya’ir. Meu coração disparou ao
pensar que agora
seria um dos homens do meu pai,
que o seguiria e talvez lhe desse
algum
orgulho. Amarrei Eran a um poste,
mas ele arrancou a corda e correu
atrás
de mim. Uma vez que ele se
recusava a sair do meu lado, usei o
enorme cão
como um burro para carregar os
meus pertences, trançando sobre ele
uma
corda grossa para poder amarrar
lanças de cada lado do seu corpo.
Sem dúvida, o animal era tão forte e
quase tão teimoso quanto um
jumento.
Quando passamos pelo portão, eu
seguia na retaguarda da coluna.
Conseguia ver o homem que era meu
pai na liderança e, atrás dele,
Amram
e seus amigos. Identificava Amram
mesmo de uma longa distância,
porque
ele prendera o quadrado azul à
armadura. Vi-o o tempo todo
enquanto
descíamos pelo caminho retorcido
na encosta da montanha.
O calor era escaldante e o céu
brilhava quase branco. Eu não
estava
acostumada com a armadura que
usava no momento e seu peso me
fazia
andar desajeitada. O povo do pai da
minha irmã nunca usara nada que
pudesse aumentar o peso. Quanto
mais leve estivessem, mais rápido
corriam, entrando e saindo como
uma flecha na batalha; apenas os
cavalos
eram protegidos por máscaras de
metal e peças peitorais, pois os
homens
da tribo sabiam o valor dessas
criaturas. Eu sonhava com o cavalo
que fora
dado ao meu irmão, ou com Leba, o
grande cavalo de batalha sempre
capaz
de encontrar o caminho de volta
para casa e sem necessidade de
freio. A cavalo, estaria voando;
naquele momento eu marchava.
A trilha era traiçoeira para os
descuidados. A poeira subia até a
altura do
rosto e as rochas deslizavam
debaixo dos pés. Segui calada, com
Eran ao meu lado, e deixei que os
outros guerreiros interpretassem o
meu
comportamento como timidez. À
medida que prosseguíamos, vários
homens me cumprimentaram pela
disposição de participar logo após o
ferimento. Também elogiaram Eran,
dizendo que um homem cujo cão lhe
fosse leal era do tipo que se queria
ao lado em uma batalha. Inclinei a
cabeça em sinal de gratidão,
agradecendo em silêncio. Aquele
que muito fala acaba se entregando.
Seguíamos na direção de Ein Gedi.
Dizia-se que a oeste daquele lugar
encontravam-se viajantes que
haviam se estabelecido entre os
habitantes
locais e estavam de posse de ouro e
joias, azeite e incenso. Na montanha
sofríamos com uma grande pobreza.
Quando nossas muralhas caíam, nós
as
reparávamos com lama e palha;
quando as lâmpadas ficavam sem
azeite,
permanecíamos no escuro; quando
não havia madeira suficiente,
usávamos
os excrementos dos burros para as
fogueiras. Comíamos não ensopados
ou
cozidos de carne, mas mingau, uma
mistura rala de cevada temperada
com
a carne das poucas pombas que
tínhamos de sobra para as refeições.
Os guerreiros não tinham escolha
senão tomar o alimento de que
necessitavam nas aldeias e nos
campos, pois o povo precisava
viver. Não era diferente do que o
que eu fizera ao lado do pai de
Nahara. Aquela era a
nossa terra e éramos seus reis; os
que entrassem seriam sensatos para
entender que estavam à nossa mercê.
Caminhamos até nos cansar,
dormindo ao relento. A noite estava
fresca
e me senti feliz com a presença do
cão, pois ao lado dele podia me
aquecer.
Observei Amram embaixo da
camuflagem da minha capa e da
minha
armadura, mas tive o cuidado de não
me revelar. Mantive a cabeça baixa
para ele não poder ver a cicatriz que
dizia se parecer com uma lágrima.
Usei os truques que aperfeiçoara em
Moabe, indo sozinha me aliviar,
nunca
me esquivando dos meus deveres,
falando raramente e, quando o fazia,
apenas com uma voz surda. Todos
terminaram por admitir-me como
Adir.
Assim que pude, saí para caçar.
Acertei um íbex jovem e, quando ele
tropeçou ao ser atingido pela minha
flecha, aproximei-me e cortei sua
garganta, para que o espírito subisse
sem dor e com dignidade. Quando
trouxe a minha presa de volta ao
acampamento, estendida sobre os
ombros, Amram dispôs-se
pessoalmente a talhar a criatura
comigo.
– Tem boa pontaria, irmãozinho –
disse para mim.
Meu coração batia forte no peito.
Não sabia o que mais temia: que ele
me
reconhecesse ou não. Engoli as
palavras e simplesmente assenti em
resposta. As minhas mãos tremiam
por causa da sua proximidade de
mim e
do meu fingimento. Naquele
momento, sentia-me tão claramente
uma
mulher que me denunciava a cada
respiração. Mas não fui
desmascarada.
Ele bateu no meu ombro com força e
ainda assim não percebeu o quanto
meu coração estava descontrolado.
Não podia culpar Amram por não
me reconhecer, uma vez que tomara
tamanho cuidado para me disfarçar.
O velho assassino ensinara-me que
os
homens nunca veem o que está bem
diante dos olhos. Eles olham para
todos os lados e procuram o que
talvez esteja escondido, mas, se
você permanecer em pé na frente
deles, eles o deixarão escapar
acreditando que
não seja mais que uma oliveira, uma
parte da paisagem e nada mais. Bar
Elhanan aprendera isso enquanto
perambulava pelos pátios do
Templo,
procurando seus inimigos.
Desapareça como outra coisa, ele
me instruiu.
Torne-se não o que você é, mas o
que está ao seu redor. Uma pedra,
uma
sombra, um arqueiro entre muitos.
Os ratos são invisíveis porque se
escondem na escuridão tão
frequentemente que, quando saem à
sua frente,
aparecem como sombras. Uma
sombra é vista com a mente e não
com os
olhos, ele me disse. É assim que
você convence as pessoas ao seu
redor a
vê-lo como deseja ser visto.
Eu passara a usar a capa do
assassino à noite, quando saía para
passear
com o cachorro. Nas imediações
vivia o hírax, em tocas nas rochas, e
viam-
se rastros de cascos de íbex, que
perambulavam por ali em busca das
cachoeiras próximas, um lugar em
que se dizia que o rei Davi uma vez
fizera um acampamento. Era ali que
podia ser encontrada a Moringa
Peregrina, a orquídea de flores
róseo-esbranquiçadas que aparecia
a cada primavera. Dizia-se que Davi
compusera mais de trezentas
músicas, uma
para cada dia do ano. Não encontrei
orquídeas por onde andei; somente a
mirra silvestre brotava nos
penhascos de calcário. Arranquei
alguns ramos
que guardei sob a capa, como as
mulheres costumavam fazer pelo
encanto
do seu aroma fresco, procurando
evitar as hastes afiadas.
Os outros me deixavam em paz,
compreendendo o meu
comportamento
reservado, enquanto se preparavam
para a batalha, testando suas armas,
bebendo o pouco vinho que haviam
trazido para se sustentar. Eu não era
a
única pessoa que vivia retirada.
Outro guerreiro permanecia nas
bordas do
campo, recusando-se a comer do
íbex que eu trouxera, preferindo
jejuar.
Encontrei-o quando fui me aliviar
longe do acampamento, como fazia
todas
as noites. Aquele guerreiro afastava-
se do contato humano; não precisava
de conforto, nem de capa para se
aquecer, nem de companheiros de
armas.
O cão não rosnou quando nos
deparamos com aquele a quem
chamavam
de o Homem do Vale, que feria a
própria carne com metal. Embora
isso fosse contra as nossas leis,
ninguém se atrevia a condená-lo
pelos seus modos selvagens. As
tranças de cabelo branco
desmentiam sua juventude e
eram tão compridas que
ultrapassavam suas costas. Os outros
guerreiros
diziam que, durante as batalhas,
Deus talvez o levantasse pelo cabelo
para
deixá-lo fora de perigo, a fim de
evitar o pior. Era por isso que ele
conseguia
atravessar os conflitos mais
violentos e voltar são e salvo,
quando qualquer
outro homem teria perecido. Seu
corpo estava coberto de cicatrizes,
muitas
abandonadas e não curadas. O metal
escavava os braços musculosos e
deixava listras de feridas azuis e
roxas.
Quando o encontrei, ele estava
ajoelhado ao lado de um espinheiro,
cantando a canção de luto pelos
mortos. Segurava-se nos ramos
afiados, que perfuravam sua pele e
causavam mais dor a si mesmo.
Nunca vira um
homem tão exposto em sua agonia.
Achei que fosse chorar só de vê-lo,
em
vez disso eu fugi.
Peguei Eran pelo pescoço e nos
afastamos depressa daquele lugar,
correndo como se fôssemos cavalos.
A poeira subiu do chão e o hírax
escondeu-se de nós em sua toca. As
corujas-do-campo voaram para o
alto
dos penhascos; os morcegos de
cauda voaram assustados das
jujubeiras em
uma nuvem de asas de pele,
abandonando os frutos alaranjados
nos ramos.
No dia seguinte, o homem com quem
me deparara me observava. Eu
sabia que nenhum guerreiro desejava
lutar ao lado dele, pois ele não dava
a
mínima para a própria vida. Ele
brandia o machado e mais nenhuma
arma,
mas dizia-se que o machado fora
abençoado e nunca errava o alvo.
Desviei
o olhar do dele, não querendo
revelar a minha verdadeira natureza,
ou de
algum modo provocar o fogo da sua
ira temível, que diziam ser tão
violento
e inextinguível que os próprios
companheiros diziam em voz baixa
que ele
lutava ao lado direito de Gabriel, o
mais destemido e feroz de todos os
anjos.
No fim da tarde nos preparamos
para o ataque daquela noite. Eu me
sentia atordoada com o calor e
cansada do meu ardil para me
disfarçar, além do peso
desconfortável da armadura de
escamas prateadas. Sob a
dureza do sol poente, fizemos fila
para receber a ração de água.
Quando pedi uma parcela para meu
cachorro, o homem encarregado das
nossas
rações balançou a cabeça.
– Ele terá de beber a urina – ele me
disse. – Não há o bastante para dar
uma parte ao animal.
Afastei-me aturdida. Dividia as
provisões que trouxera com o meu
cão e
atirara-lhe os ossos do íbex. O pai
de Nahara ensinara-me que se deve
alimentar o cavalo antes de se
alimentar, mas tinha água suficiente
apenas
para a minha própria garganta
ressecada. Viera para ser um
guerreiro,
agora me via preocupada com uma
criatura que, antes de tudo, não
queria
ter trazido. Enquanto eu pensava
sobre o que fazer, o Homem do Vale
se aproximou. De novo, o cão
deixou de rosnar. O guerreiro
despejou a sua parte de água na cuia
dele. Inclinou a cabeça para Eran.
– Ele ficará com sede – disse.
Eu murmurei algumas palavras de
agradecimento, então perguntei: ele
não precisaria beber água?
– A água não mata a minha sede –
disse o Homem do Vale. E depois,
sem
nenhuma razão aparente,
acrescentou: – Não vá esta noite.
Era evidente que ele pensava que eu
era um garoto inexperiente; para
ele, eu era o meu irmão, Adir, que
fora ferido e tinha pouca experiência
em
batalha. Ele não precisava ter-se
preocupado comigo.
– Muitas vezes lutei contra homens –
assegurei-lhe. – E eles sofreram por
causa disso.
Ele abanou a cabeça. Seu olhar não
encontrou o meu.
– Mas esta é a sua primeira vez
entre nós. Você não esteve na
guerra.
Não invadiu uma aldeia.
Isso era verdade, o derramamento de
sangue que conhecera no lado
oriental do Mar de Sal fora sobre as
pastagens, ao longo da Estrada do
Rei.
– É meu dever ir – disse
simplesmente.
Senti seu olhar sobre mim, mas
então desviei o meu, para esconder
quem eu era de verdade.
– Quando chegar a hora – o
guerreiro que todos os outros
evitavam
aconselhou-me –, fique ao meu lado.
UMA NÉVOA aparecera para cobrir
o chão enquanto eu me envolvia com
a capa acinzentada. Isso foi
considerado um presságio de boa
sorte, pois nos
permitiria surpreender os inimigos.
O meu arco estava preparado para
descermos à aldeia em que os
viajantes se encontravam. O ar tinha
esfriado, mas o chão ainda queimava
com o calor do dia. A própria terra
parecia ter um coração batendo e a
minha pulsação acompanhou o ritmo.
Avistei Eleazar ben Ya’ir no escuro.
Ele dizia uma prece e usava seu xale
de
oração, pois lutava pela glória de
Deus. Ele nos reuniu pela última
vez.
Diante dele, deliberamos ser um
único corpo na batalha. Juramos não
fazer
escravos.
– Não queremos nossas mulheres e
crianças escravizadas – Ben Ya’ir
disse. – Fazemos o mesmo por
aqueles que encontramos na batalha.
As pessoas diziam que nosso líder
vira pessoas queridas crucificadas
em
Jerusalém, irmãos e amigos,
morrendo em agonia à sua frente.
Mais tarde,
os romanos cortavam a cabeça dos
corpos e as jogavam na estrada para
os
enlutados, mas sem os corpos não
poderia haver lamentações, nem
enterros, nem paz. Ben Ya’ir falou
as palavras do nosso Deus.
Quem estiver desanimado deve
voltar para casa, pois poderá fazer
com
que o coração dos companheiros
amoleça como o seu.
Mas nossa casa era Jerusalém, o
Sião sucumbira e nem um único
guerreiro deu as costas à batalha
diante de nós. Vi Amram levantar a
lança
juntamente com os outros para
aplaudir e honrar as palavras do
nosso
líder. Apenas o Homem do Vale não
os acompanhou na oração ou nos
seus
gritos febris. Talvez já tivesse dito
suas próprias orações. Talvez a
única oração que recitasse fosse
uma canção pelos mortos. Ele não
usava o xale
de oração, nem mesmo um roupão,
apenas uma túnica e o metal
enrolado
ao redor dos braços. Ele queria a
dor, eu via isso nele, e o que um
homem
quer muitas vezes consegue
encontrar.
Seguimos em silêncio quando a lua
começou a subir no céu. Eu ia perto
de Amram, para ficar de olho nele, o
cão nos meus calcanhares, o grande
animal tão silencioso quanto nós. O
coração da terra latejava. O mundo
estava envolto em silêncio, até que
nos deparamos com os guardas.
Então
se ouviu um grito selvagem e
instantaneamente os chamados
frenéticos
dos homens na aldeia. A gritaria
rapidamente tornou-se
ensurdecedora e
começou a luta. Apoiei-me sobre um
joelho e comecei a usar o meu arco,
fazendo o melhor que pude para
garantir a segurança daqueles que
seguiram antes de mim. Matei dois
homens imediatamente e eles caíram
diante de Amram. Talvez ele tenha
pensado que havia um anjo ao seu
lado,
pois deu graças a Deus no mesmo
instante.
Meu cão latia sempre que o inimigo
se aproximava. A advertência
permitia-me saber em que direção
procurar, pois havia homens se
aproximando de todos os ângulos e
caos ao redor. Eu poderia ter
entrado
em pânico não fosse por Eran, e
decidi mantê-lo junto de mim dali
por diante.
Não demorou muito para que nossos
guerreiros levassem a melhor na
luta com os moradores da aldeia; os
corpos dos mortos espalhavam-se
por
toda parte. Avistei o Homem do
Vale, um vendaval com o machado.
Cercado
por quatro inimigos, ele derrubou
um atrás do outro, então parou entre
os
cadáveres, parecendo desafiá-los a
se levantar novamente para guerrear.
Quando ainda outro morador se
aproximou dele, saltando sobre suas
costas, ele calmamente tirou o
inimigo de cima de si e abriu-o ao
meio com
o machado. O Homem do Vale saiu
em busca do próximo a ser morto,
mergulhando no caos com uma
intensidade que desmentia o perigo
ao
redor, a arma preparada. Pude sentir
o sangue correr pelo corpo e um tipo
de alegria crescente dentro de mim
quando alvejei um homem que corria
em direção a ele. Pensei que, se meu
pai soubesse quantos haviam caído
sob as minhas flechas, ficaria
orgulhoso de me levar consigo como
um filho
seu.
A noite ficou quente com o sangue e
a terra, escorregadia, cheiro de
morte por toda parte. Havia
gafanhotos no ar, cantando e voando
à nossa
frente. Por usar a armadura de
escamas prateadas sob o manto,
meus
membros doíam, pesados, e eu
estava encharcada de suor. Usei o
lenço
para limpar o suor dos olhos,
levantando-me da posição
ajoelhada.
Naquele instante em que abaixei o
arco, foi como se tivesse me posto
fora da batalha. Talvez eu tivesse
assistido como os anjos, recuada e
distante, mas mantendo a capacidade
de observar muito mais que os
homens que se envolveram na luta.
Minha visão turva me fez
desacreditar o
que via diante de mim. Tínhamos
abatido homens que estavam ali para
defender a si mesmos, juntamente
com os viajantes nas suas capas
azuis, homens de Moabe que tinham
viajado até a aldeia para negociar
especiarias e frutas secas. Não havia
ramos de acácia para queimar em
sua
homenagem, portanto seus espíritos
não quereriam deixar seus corpos.
Senti-me aflita por saber que eles
ficariam presos em um submundo,
longe
da Montanha de Ferro, pois nenhum
homem se elevaria do sangue que
fora
derramado, o sangue que era
vermelho como o nosso até
enegrecer
empoçado na terra.
A noite se tornara um sonho. A
batalha agora era forçar-me a
acordar do
que estava diante de mim, pois além
das pilhas de mortos havia algo
muito
mais terrível que os cadáveres dos
guerreiros. Nossos homens tinham
começado a matar as mulheres que
corriam de suas casas. Era
impossível,
não acreditávamos em tal crueldade,
mas eu sabia que era verdade
porque
ouvia as vozes dos moradores que
eram abatidos. Deles vinham os
gritos das mulheres e no entanto
havia coisa ainda pior. Entre eles
ouvi os berros
das crianças. Quando avistei
Amram, ele se tornou parte do
sonho,
transformando-se diante de mim em
um demônio, o seu semblante era a
feição de um demônio, os seus atos,
os feitos de um demônio.
Nosso líder dissera que não
deveríamos fazer escravos. Eu
entendera
que isso significava que deixaríamos
as mulheres e as crianças vivas, mas
não era assim que se praticava a
guerra neste mundo triste. O cão
estava enlouquecendo, latindo sem
parar, perturbado como nenhum
animal
deveria ficar. Segurei-o pela corda
no pescoço e ordenei-lhe que
parasse, quebrando minhas unhas na
sua pele áspera. Senti-me
enlouquecida, assim
como ele, com as visões diante de
mim e com os gritos selvagens da
morte
dos inocentes. Quase me lancei, não
contra os inimigos, mas contra meu
próprio povo. Tive vontade de lutar
contra os homens com quem viera
como irmãos. Confusa em meio ao
crescente derramamento de sangue,
de
repente não fazia ideia de por que
acreditávamos ter o direito de tomar
o
que pertencia àquelas pessoas, além
do fato de que queríamos e
presumíamos ter direito ao que lhes
pertencia, como os ladrões uma vez
nos quiseram, minha mãe e eu, além
de tudo o que possuíamos.
Fiquei ali, cercada pela destruição,
escapando da morte pela graça de
Deus. Já não me importava lutar,
nem tinha estômago para isso.
Fechei os
olhos e esperei que Mal’ach ha-
Mavet me arrebatasse, como era
para ter sido feito quando minha mãe
e eu fomos mandadas para o deserto.
Talvez
nunca pretendesse viver depois
daquele dia em que a esposa de
Eleazar nos expulsara e me enganara
para iludir o meu destino.
Nunca soube se o Anjo da Morte
pretendeu se aproximar naquela
noite
de batalha, pois o Homem do Vale
agarrou-me pela capa e puxou-me
atrás
de si, para fora do alcance da Morte.
Eran e eu fomos com ele, mesmo que
eu mal pudesse respirar, o coração
pesado dentro de mim, batendo
muito
depressa. Mordi o lábio até que não
houvesse mais sangue, até que fosse
somente o meu a brotar dele. Queria
provar seu gosto. Eu merecia.
O guerreiro conduziu-me a um cume
onde a neblina da noite se
dissipara. Ele tinha muitos
ferimentos dessa batalha, mas não
lhes deu atenção, assim como não
fez nenhuma menção ao fato de eu
ter chorado.
Dali podíamos ver o massacre. As
casas da aldeia eram feitas de pedra;
logo
elas foram completamente
esvaziadas. Tudo o que essas
pessoas possuíam
nos pertenceriam. Tirei o capacete e
a capa manchada de sangue. Entendi
então por que o Homem do Vale me
dissera para não ir, ele sabia o que
aconteceria. Ele não mataria
mulheres e crianças e se recusara a
ver seu sangue derramado. Percebeu
que eu era uma mulher, mas não
disse nada.
Embora soubesse o que seu
comandante queria dele, ele pusera a
vontade
de Deus em seu lugar.
De todos os que foram comigo, ele
era o único de quem eu queria estar
ao lado.
DEIXARAM OS BURROS vivos,
amontoando-os com os bens que
agora nos pertenciam, o gengibre e a
pimenta, as abóboras e o alho-poró,
todos os tipos de vinho, azeite e
trigo, pequenas quantidades de ouro,
brincos e anéis retirados das casas e
dos cadáveres, montes de canela
preciosa,
lâmpadas, pilhas de armas. Levaram
as cabras, as ovelhas e as galinhas
mortas. Eles encheram recipientes
de couro com água e queijo. Tudo
cheirava a sangue.
Voltei à aldeia para recolher minhas
flechas. Foi fácil encontrá-las entre
os mortos, um campo de lírios
vermelhos que deixara para trás.
Tudo o que
precisava era arrancá-las uma a
uma, do peito e das costas dos
caídos. Não
levei nada mais que isso. Enquanto
outros tiravam os anéis dos dedos
frios,
o vinho dos depósitos, lavei as
lâminas das flechas em uma bacia de
água
tirada de um barril de chuva,
recitando uma oração enquanto o
fazia,
pedindo a Adonai para não causar
àqueles que tinham morrido naquela
noite nenhum outro tormento,
pedindo a Ele para mantê-los a
salvo das três portas do Gehennom,
o vale do inferno. Não conseguia
olhar para o rosto das mulheres e
das crianças mortas, mas comecei a
procurar entre os
homens de Moabe aqueles que eu
poderia conhecer.
Amram aproximou-se, coberto de
suor e sangue seco.
– Não se preocupe – ele me disse
quando virei os corpos do povo do
pai
da minha irmã. – São todos iguais.
BEN YA’IR dirigiu-se aos guerreiros
enquanto o fim da noite transcorria
sobre nós. Não pude suportar a
permanência entre eles. As pessoas
diziam que ele agradecia a Deus, em
seguida elogiava seus homens pela
bravura. Ele instruiu seus guerreiros
a rezar pelas almas dos mortos e
disse-lhes que, em outro tempo e
lugar, se nossos inimigos de Roma
não nos tivessem
obrigado à fome e à pobreza,
teríamos chamado as vítimas de
irmãos.
Por essa hora, já nos
encaminháramos para o deserto,
apressando-nos
para não ser encontrados por algum
dos habitantes da aldeia que pudesse
ter se ausentado durante o ataque,
retornando com a vingança no
coração.
Os guerreiros rezaram a Deus e
depois mataram uma cabra para a
ceia.
Para mim, os gritos da cabra soaram
como os de uma mulher. Encolhi-me
ao lado do meu cão, cobrindo as
orelhas, balançando para a frente e
para trás sobre os quadris. O
esplendor da Shechinah, a luz e a
compaixão do Todo-Poderoso, não
estava nem perto daquele
acampamento. Ali
estávamos cercados pelo que alguns
chamavam de o outro lado, o reino
sombrio, pois naquela noite
tínhamos passado para o lado do
mal do
mundo, que também nascia da
criação, ou aquela região terrível
que pode
ser encontrada no lado esquerdo de
Deus e alimentada pelos pecados
humanos.
Eu planejara deitar-me ao lado de
Amram naquela noite após a vitória,
para conduzir-lhe as mãos sob a
minha capa e finalmente mostrar-lhe
quem eu era e me entregar a ele, mas
não fiz nada disso. Estava mal do
estômago e do coração. Fui para o
deserto e devolvi tudo o que comera
desde que saíra da casa da minha
mãe. O gosto era amargo, como se
tivesse
cuspido um demônio. Estava feliz
pelo meu irmão não se encontrar
entre nós. Adir, que tinha um
espírito tão gentil, e no entanto não
queria nada mais do que estar entre
os guerreiros, fora poupado da visão
dos atos covardes daqueles a quem
tanto admirava.
Os penhascos brancos eram
invisíveis no escuro. Tudo estava
escondido.
Agora eu entendia que era nosso
dever como seres humanos olhar por
trás
do véu para o interior do mundo,
para o coração das coisas.
Avistei o Homem do Vale e fui ficar
ao lado dele. Ali crescia um círculo
de arbustos espinhosos e as cotovias
refugiavam-se nas copas e nos
ramos.
Ouvimos as vozes dos outros
cantando, mas suas músicas não
significavam
nada para nós. Cada pedaço de terra
manchada sobre o qual pisávamos
parecia uma parte de um território
de transgressão, onde os inimigos
eram
subjugados a qualquer custo.
Nenhuma acácia crescia ali. Não
havia como
ajudar as almas dos mortos a
encontrar a paz.
Nesse dia vira meu amado matar
uma criança que não teria mais de
quatro anos. Parecia que não custava
nada para ele fazê-lo, mas custava
tudo para mim. Além das estrelas no
céu, eu não era capaz de ver
nenhuma
outra imagem serão o rosto da
criança assassinada, pois ele agora
viveria
atrás dos meus olhos e faria parte da
minha visão para sempre. Todas as
vezes que olhava para Amram, era
aquela criança que eu via.
Desejei ser uma mulher e ter ficado
em casa.
– Achava que o mundo não fosse
assim? – disse o Homem do Vale.
Meu cachorro estava aos meus pés.
Havia sangue no seu pelo. À luz do
dia, as moscas pululariam sobre seu
pelo e ele pareceria monstruoso.
Eran
nunca me abandonara no tumulto
sangrento, investira contra qualquer
um
que se aproximasse de mim,
atacando e arreganhando os dentes.
Nunca me senti tão vulnerável, ou
tão dominada pela vergonha.
Perdera
algo tão completamente que acho
que não poderia recuperar a partir
de nada que fora criado sobre a
terra. Precisava olhar para o céu. A
essa altura,
a neblina desaparecera e as estrelas
brilhavam. Vimos algumas pairar na
escuridão em explosões de luz, para
em seguida desaparecerem,
invisíveis
aos nossos olhos. Fiquei paralisada
por essa visão, encantada ao pensar
na
bondade daquele animal irracional
que em nenhum momento cogitara
fugir de mim e no fato de tanto eu
como o guerreiro ao meu lado
continuarmos vivos.
– Não é lindo? – eu disse sobre o
mundo que nos rodeava.
– Não é terrível? – retrucou o
Homem do Vale.
Ele olhou para mim e rapidamente
entendi que era uma pergunta e que
ele precisava de uma resposta.
Peguei-lhe a mão e puxei-o para
mim,
fazendo-o deitar-se ao meu lado.
Assim como ele me salvara, fiz o
mesmo
por ele. Por uma noite, ainda
sentindo o cheiro de sangue um do
outro, enquanto o ar estava negro e
todo o mundo parecia invisível, não
estivemos
sozinhos.
A FERIDA DE ADIR sarara e sua
febre se extinguira, mas meu irmão
mancava e parecia frágil. Minha mãe
preocupava-se com ele e
experimentou um
remédio após outro, vasculhando
suas pilhas de ervas e suas receitas
de pharmaka. Ainda assim, ele
estava fraco. Embora tivesse
reprovado as minhas ações no
passado, ela concordou que eu
deveria voltar a ocupar o
lugar de Adir quando chegou a hora
de ele ser novamente chamado para
lutar. Era assim que deveria ser. Eu
era melhor guerreira que ele, com
maior probabilidade de retornar.
Mais uma vez, minha mãe e eu
compartilhamos segredos. Era um
vínculo que não negávamos, algo
que
tinha de acontecer, pois nosso
destino sempre fora entrelaçado.
Qualquer amargura preexistente
entre nós havia se dissipado.
Talvez meu pai esperasse um filho, a
exemplo do pai de Adir, pois Ben
Ya’ir tornara-se cada vez mais
imprudente no que se referia à minha
mãe,
passando a encontrar-se com ela na
cisterna quase todas as noites,
encantado tanto com ela como com a
criança que viria a nascer. Sua
esposa
permanecia confinada, longe da
vista de todos. As pessoas
cochichavam
que Channa voltara a adoecer, mas
eu me perguntava se não fora o
marido
que a proibira de aparecer entre as
outras mulheres. Ele não tolerava
mais
a sua interferência, depois de lhe
dedicar a maior parte da vida. O
pouco que lhe restara para um
relacionamento ele agora
reivindicava para si
mesmo.
Desde a nossa chegada, ele vinha
praticando sua própria modalidade
de
invisibilidade, não muito diferente
das habilidades que o velho
assassino me ensinara. Ele mantinha
o seu anseio pela minha mãe
escondido bem
diante dos olhos das outras pessoas.
Na verdade, elas olhavam além do
que
era mais evidente e não viam nada.
Ele tinha o direito de reclamar outra
mulher quando a sua se revelara
estéril; ainda assim, Channa lutara
por ele
e fizera o possível para enganá-lo,
insistindo que Deus lhe dera a
criança que ela roubara de Yael.
Agora, quando parecia que cada dia
era uma dádiva e que outro talvez
não sobreviesse, como os essênios
haviam assegurado que aconteceria,
o
meu pai já não se preocupava com
subterfúgios. Eu o vira com a minha
mãe
à nossa porta, entregues a um abraço
tão apertado que parecia que
estavam se afogando. Havia noites
em que ele se sentava à nossa mesa,
participando da refeição escassa.
Nessas ocasiões, eu ficava no lado
de fora,
levando o meu irmão comigo para o
quintal, embora ele precisasse se
apoiar no meu ombro até para andar.
Nós nos sentávamos no lado de fora
e
comíamos frutas secas e pão sírio
com a mão. Talvez meu irmão
achasse que eu acreditava que
nenhum de nós dois tinha o direito
de permanecer
na presença do grande homem. Mas
eu não podia ver Ben Ya’ir sem que
a
minha cabeça fosse tomada pelos
gritos que ouvira durante a invasão
da aldeia. Sentia que falhara com ele
de alguma forma e que ele, por sua
vez,
falhara comigo. Talvez tivesse sido
melhor vê-lo a distância, de modo
que
suas falhas permanecessem
invisíveis. Quisera que ele me
conhecesse em
batalha e me reconhecesse como
filha; agora eu achava que a
invisibilidade
me agradava.
E no entanto uma noite, quando saiu
da câmara da nossa mãe, Ben Ya’ir
parou diante de nós. Eu advertira
meu irmão sobre o que fazer se tal
ocasião viesse a se concretizar. Era
para nós dois baixarmos os olhos na
presença do nosso líder.
– Quando for novamente para a
batalha, poderá precisar disto –
disse
Ben Ya’ir.
Ele estendeu uma faca diante de nós.
Observei que o cabo era feito de
bronze, lindamente decorado com
um pavilhão de folhas. Perac lavan
estava gravado sobre ele. Flor alva.
Ele carregava a faca em homenagem
à minha mãe e aos lírios que ela
amava quando menina em
Alexandria. Eu não concordava com
tudo o que ele fazia, nem com seus
modos no campo
de batalha, mas ele era meu pai. O
presente era para um guerreiro, por
isso
dei uma cotovelada no meu irmão.
Adir murmurou palavras de
agradecimento, mas, quando Ben
Ya’ir nos deixou, fui eu quem ficou
com a
faca.
COM FREQUÊNCIA cada vez
maior, fazíamos nossas refeições no
quintal, para que minha mãe e Ben
Ya’ir tivessem privacidade. Não
éramos os únicos que
sabiam que o nosso líder ia ao
alojamento da minha mãe todas as
noites.
Minha mãe era perseguida pelo
ciúme, e a desconfiança se imiscuíra
por toda a montanha. Ela era uma
mulher que estivera a ferros, que
podia invocar os demônios e atrair o
kadim para si. Em uma meia-noite,
deixaram uma pomba desmembrada
no lado de fora do nosso alojamento,
o bico e os
pés decepados, as penas brancas
polvilhadas de preto com uma
cobertura
de fuligem. Depois disso, dei à
minha mãe a faca de Ben Ya’ir, para
que pudesse se precaver contra as
más intenções de quem quer que
fosse. Fora
um presente do seu amado e,
portanto, pertencia justamente a ela
pois, embora eu devesse à minha
mãe a minha primeira vida, a
segunda vida
devia ao Homem do Vale, não a Ben
Ya’ir. Agora me achava tola em
pensar
que meu pai fora um dos anjos; o
meu verdadeiro pai fora o homem da
Montanha de Ferro, o único que nos
salvara e me ensinara tudo o que
precisava saber.
Minha mãe pegou a faca, o símbolo
de proteção de Eleazar. Aconselhei-
a
a fechar a porta quando eu estivesse
fora e que fosse mais discreta, para
não ser a causa da própria profecia
e acabar sendo levada à ruína por
amor.
UM GRUPO de exploradores
romanos nos surpreendeu quando
montou
acampamento no vale. Isso
aconteceu no mês mais sagrado,
Tishri, quando
celebrávamos o ano-novo e
expiávamos nossos pecados, aqueles
pelos
quais éramos responsáveis e os que
estariam por vir.
Quando os observadores chegaram,
pensamos que seriam como todos
os outros, surpreendendo-se com a
posição da nossa fortaleza e, em
seguida, passando a informação de
que não poderia ser conquistada.
Mas esse grupo era diferente. Esses
soldados tinham a intenção de ficar.
Haviam
trazido urnas de vinho e azeite,
rebanhos de camelos e, o mais
revelador de
tudo, padeiros, que se estabeleceram
no acampamento. Podíamos sentir o
aroma do pão fresco assando em
seus fornos abobadados.
Ficou evidente que esses soldados
eram apenas os primeiros do que
logo seria uma legião. Roma vinha
acumulando um exército de dez mil
soldados nas imediações de Jericó,
juntamente com mais mil judeus que
haviam sido escravizados e
enviados para servir ao imperador.
Nosso
conselho proclamou que as mulheres
não teriam mais permissão de se
aventurar além dos portões por
nenhum motivo, para assegurar que
não
caíssem nas mãos dos inimigos. Os
homens que viajassem para longe da
montanha o fariam por seu próprio
risco. Os guerreiros ainda saíam,
embora mais sorrateiramente,
tomando o caminho da serpente, sob
a
cobertura da escuridão ou descendo
pela parte traseira da montanha, uma
escarpa tão traiçoeira que vários
perderam a vida tentando retornar
por ali. Apesar do perigo, eu vivia
para essas noites em que as corujas
voavam
mansamente acima de nós.
Passávamos pelos inimigos como se
fôssemos
névoa, livres das nossas formas
terrenas.
À noite, eu andava de um lado para
outro no alojamento, não querendo
outra coisa senão ir além dos
portões. As únicas pequenas
alegrias que tínhamos eram ao
comemorar os inúmeros progressos
de Arieh. Ele estava
com catorze meses de idade. Até
mesmo aqueles que o
menosprezavam
como uma criança órfã admitiam que
era incomum, bonito, forte e
admirável. Ele era tão querido entre
as mulheres no pombal que todas as
vezes que corria sobre as pedras do
calçamento ou falava o nome immah
para a sua querida mãe, aplaudíamos
como se tivesse escalado uma
montanha.
À noite, eu me sentava entre as
mulheres nos teares. Embora não
soubesse tecer, ajudava a girar o
pouco de lã que havia. Ao lado, meu
cachorro repousava a cabeça sobre
meu joelho. Eran e eu queríamos a
mesma coisa, a liberdade do
deserto, mas precisávamos ter
paciência. Eu queria ser como o
Homem do Vale, que dormia além
dos campos. Não o via,
nem procurava por ele, mas sabia
que estava lá. Sempre que éramos
convocados para descer a montanha
em ataques, esgueirando-nos entre
os
observadores romanos, eu nunca
deixava de andar ao lado dele, pois
com
ele não precisava fingir ser alguém
diferente do que era.
AMRAM enviara uma menina para
me perguntar por que já não o
encontrava
na fonte. Ele esperava por mim à
noite, mas eu não aparecia. Decidira
então
correr um risco e envolvera aquela
criança para fazer a sua vontade. A
menina, que não deveria ter mais de
quatro ou cinco anos, era filha de um
dos guerreiros, um amigo em que ele
confiava do seu tempo em
Jerusalém.
A criança usava uma trança grossa e
preta e pareceu muito amigável. Ela
me lembrou de Nahara, com seus
olhos brilhantes e inteligentes.
Falei-lhe
para dizer ao homem que a mandara
que eu estava com febre. Corei sob
o
peso da minha mentira, e talvez
parecesse estar mesmo em chamas,
verdadeiramente tomada por uma
doença, pois a criança pareceu
acreditar
em mim. Ela se afastou rapidamente,
depois correu para transmitir a
mensagem.
Era a época do Rosh Chodesh e o
sacerdote que observava a lua que
nascia soou o chamado do chifre de
carneiro para que nos reuníssemos
para a Bênção da Lua Nova,
Kiddush levanah, uma oração que
nos concedia
o favor de Deus e atraía a
Shechinah, tudo o que era
compaixão e sabedoria, para o
nosso meio. Nosso povo
permaneceu sob a lua nova para
ouvir os sacerdotes e os homens
cultos. Rejubilamo-nos,
comemorando a passagem
do tempo com a dança, os músicos
tocando chocalhos, címbalos e sinos
em
desafio aos romanos estacionados
no vale. Rezamos e dançamos
juntos,
mas somente as mulheres não
trabalhariam pela manhã, pois eram
ligadas
à lua de maneiras que os homens não
entenderiam, mais próximas do
núcleo feminino da criação.
Mantive-me nas sombras, para que
Amram não me visse, porque o
avistara entre seus irmãos. Ao vê-lo,
não enxergava suas belas feições,
mas
o rosto da criança assassinada na
aldeia, ainda mais nova que a
menina que
me mandara com a mensagem. Não
havia ninguém ali com quem pudesse
compartilhar a alegria do novo mês.
Senti a falta da minha irmã e de
como
dançávamos juntas na terra do seu
pai, apesar de o seu povo não contar
os
dias como fazíamos. Nossa mãe nos
ensinara que, quando a lua estava
branca, reaparecendo depois de uma
ausência, era para nos mostrar que o
que estivera oculto poderia
facilmente tornar-se visível outra
vez.
Naquela noite, durante o sono, talvez
tenha me tornado febril,
adoentada pela ausência da minha
irmã. Ansiava por ela, a menina que
trouxera a este mundo. Sonhei que
havia sete lobos na montanha e que
cada um trouxera uma pomba na
boca, cada uma das pombas tinha
sete
asas e podia voar mais longe que
quaisquer outras. Sete era o número
mais
poderoso de todos. As primeiras
palavras da Torá eram em número
de sete
e o shabat era o sétimo dia, o mais
sagrado de todos. Tive o sonho com
números sete. Isso me pareceu uma
bênção e um chamado, que eu não
poderia ignorar.
Fui até a muralha para observar
minha irmã.
Permaneci ali por grande parte do
dia, convencida de que meu sonho
fora um caminho, um sinal de que
Deus sabia que a minha irmã ainda
me
pertencia e que nunca poderíamos
verdadeiramente viver separadas.
Ao
crepúsculo, a hora entre os dois
mundos, quando os olhos nos
pregam
peças e é fácil enxergar o que
desejamos ver, e não o que está à
nossa frente, pensei ter visto Nahara.
Ela seguia as magras cabras pretas,
como se
procurassem em vão por tufos de
grama sobre a falésia de rocha nua.
Abaixo de nós, no seu acampamento,
logo os romanos também a
perceberiam se ela continuasse na
borda da montanha enquanto
houvesse
luz. Depois que os soldados haviam
montado acampamento, os essênios
não saíam da caverna durante o dia.
Mas as provisões durariam por
pouco
tempo se ninguém saísse em seu
auxílio. Se não tivessem uma fonte
ou um
poço, logo morreriam de sede.
Apenas metade das pombas nos
restavam, apesar de minha mãe ter
implorado para que as deixassem
viver. Em vez disso, elas foram
levadas por causa da sua carne.
Tínhamos apenas algumas cestas dos
seus
excrementos para adubar a terra, e
essa nos retribuíra na mesma medida
pela falta de gratidão. Nos pomares,
as folhas que vingavam eram raras;
as
frutas nos chegavam já secas.
Durante a colheita, juntei o que pude
para a
minha irmã. Não podia olhar para o
vale e vê-la morrer de fome
enquanto
ainda conseguíamos nos alimentar,
ainda que escassamente. Embalei um
pouco de feijão e milho, um pequeno
jarro de azeite a que tivéramos
direito. Estava disposta a ser uma
ladra, como estivera disposta a ser
uma
mentirosa, uma impostora e uma
assassina. Mas havia uma falta que
não poderia cometer. Eu, que matara
homens e provara o gosto do sangue,
não
seria capaz de matar as pombas de
que cuidávamos. Procurei Yael e
apelei
por sua ajuda, que ela me deu sem
questionar.
Fomos juntas ao pombal. A lua nova
nos observava do alto e nos
permitiu nos esgueirar pela praça
como nada mais que sombras.
Entramos,
depois nos agachamos sobre a palha.
Observei enquanto Yael chamava as
pombas para junto de si. Ela
levantou a mão e elas se
aproximaram. À
medida que cada uma se aproximava
dela, Yael sentava-se com ela
calmamente e depois lhe quebrava o
pescoço. Ela chorava enquanto o
fazia,
tamanho era o sacrifício que fazia
em meu benefício. Ela então
dispunha seus corpos flácidos sobre
o colo, acariciando as penas antes
de me
entregá-las.
Ela me acompanhou de volta aos
meus aposentos, ajudando-me a
carregar as provisões que pretendia
levar para a minha irmã. Como eu a
havia ajudado nos momentos de
necessidade, agora ela estava ao
meu lado.
Eu nunca teria imaginado que ela,
que um dia fora a minha rival, viesse
a se
mostrar uma irmã para mim. No
máximo eu imaginava que ela
poderia se
tornar minha irmã pelas leis do
casamento. Amram e eu sempre
planejáramos incluí-la na cerimônia,
mas esse tempo acabara. No dia
seguinte ao que a menina mensageira
dissera-lhe que eu estava doente,
Amram veio ao nosso alojamento e
bateu na porta. Minha mãe ficou
surpresa ao ver que, tão logo avistei
quem batia à porta, saíra
furtivamente
para o jardim. Ouvi-o perguntar
sobre a febre e receber a resposta de
que
era meu irmão que estava doente,
não eu. Talvez Amram tivesse
reclamado
com a irmã pois, quando nos
aproximamos do quartel, Yael
murmurou:
– Meu irmão disse que raramente a
vê. Ele ainda usa o lenço azul.
– Ele faz isso por você. – Mantive
os olhos baixos. – Não por mim.
– Todo homem muda na guerra.
Pelo seu tom de voz, entendi que
sabia que alguma parte do seu irmão
se
perdera.
VESTI A TÚNICA do meu irmão e
coloquei sobre as costas a mochila
pesada que levaria para minha irmã.
Adir ainda estava em seu leito por
causa da dificuldade de andar. Ficou
surpreso quando me viu vestida
como ele.
Garantiu que ele mesmo pensaria
que eu era Adir se não soubesse que
era
eu. Ele ainda não entendera muito
bem como conseguia ser um
guerreiro
mesmo estando em um canto escuro
do nosso alojamento.
– Todos acreditam que sou você –
admiti.
Meu irmão aceitou que eu tomasse o
seu lugar e que honrasse o seu
nome. Esse era o motivo de os
guerreiros deixarem presentes de
azeite e mirra à porta e de as
pessoas virem felicitá-lo pela
bravura de seus atos.
Meu irmão levantou-se sobre um
cotovelo para me examinar melhor.
O
cão postou-se ao meu lado, um
pacote amarrado às costas, pois ele
era meu
quando deveria ser do meu irmão.
– Eu me saí bem como um
guerreiro? – Adir quis saber.
Balancei a cabeça, envergonhada
por ter tirado tanto dele. Mas ele
parecia aliviado.
– Matei muitos inimigos?
– Só quando precisou.
Todas as vezes que os guerreiros
saíram em ataques, meu irmão, você
estava entre eles. Atacamos à noite,
divididos em quatro grupos,
atingindo
os inimigos no escuro, vindo dos
quatro cantos do mundo. Fomos
mostrar
aos romanos que eles não haviam
nos destruído e que não
desaparecêramos, apesar da sua
presença no nosso vale. Fomos a fim
de pegar o que precisávamos para
sobreviver e porque nosso povo não
pode
ser contido nem privado do seu
direito ao Sião.
Durante as noites, enquanto você,
meu querido irmão, descansava no
seu estrado, eu me embrenhara entre
os espinheiros e tivera o homem que
não temia o metal, que ansiava por
ele, a exemplo de mim mesma, como
fora durante toda a minha vida.
Embora não fôssemos mais que
metade de
pessoas, embora tivéssemos perdido
a nós mesmos, juntos éramos um e
sentíamo-nos completos. Era por
isso que me achava tão impaciente
sempre que precisava permanecer na
montanha. Ele era a única pessoa
que
me conhecia. Ele me disse que, se eu
fosse uma mulher, não poderia
possuir-me, pois jurara nunca
permanecer com uma mulher que não
fosse
sua esposa. Mas eu era outra coisa,
um guerreiro, assim como ele. Nós
não
precisávamos falar, como aqueles
que lutam lado a lado não precisam
de palavras, mas, em vez disso,
conhecem-se em silêncio. Dessa
forma, era possível cada um de nós
prever o que o outro queria, fosse
algo brutal ou
delicado, fosse para durar a noite
toda ou em uma breve explosão de
tempo
roubado.
No dia em que nos arrependemos
dos nossos pecados, eu deixara esse
homem entregue à dor do passado.
Na véspera do Yom Kippur, ele
desapareceu no deserto. Não pedi
para compartilhar suas dores, pois
isso
não teria sido possível. Esperei na
noite azul, sozinha, como qualquer
companheiro faria. Quando ele
voltou para mim, havia carreiras de
espinhos enfiadas no seu peito.
Ofereci-lhe água e uma parte do meu
jantar,
e não fiz nenhuma pergunta nem
apresentei exigências. Tínhamos
adversários suficientes, não
precisávamos desafiar um ao outro.
Eu me sentia grata, meu irmão, por
você não poder ver como era o
mundo além desses portões, assim
como me sentia grata por poder
fechar
os olhos sob a copa dos espinheiros,
por poder gemer e me debater como
nunca fiz em batalha, pois em
batalha, meu irmão, a sua reputação
era a do
silêncio. Você nunca gritava durante
a noite, tendo apenas o cão para
ouvir
enquanto você se agarrava ao
guerreiro ao seu lado. Você era
jovem, o mais
leve entre eles, mas era um arqueiro
bom, talvez o melhor de todos,
conhecido pelas penas vermelhas
nas suas flechas, que aceleravam
cada
tiro, as armas tornando-se aves à
procura dos nossos inimigos para
levá-los
à morte. Nenhuma cabra selvagem
lhe fugia, nenhum coelho era rápido
o bastante.
Na maior parte das vezes, você
permanecia na retaguarda de uma
escaramuça, porque dali a visão
seria mais clara, observando os
atacantes a
distância e abatendo-os antes que se
apoderassem dos nossos homens.
Por
causa da sua habilidade, vários
guerreiros que poderiam ter sido
mortos viviam. Uma vez Amram foi
surpreendido por uma pedra atirada
contra si
por uma funda, e você, meu irmão,
adiantou-se para matar o atacante de
cima do morro onde se posicionara,
a sua armadura ardendo ao sol,
deixando marcas vermelhas na sua
pele macia.
Depois disso, Amram veio lhe
agradecer. Chamou-o de irmãozinho
e
ofereceu-lhe a sua lealdade. Você
simplesmente baixou os olhos, como
se estivesse muito impressionado
com a honra que ele lhe concedia
por lhe dirigir a palavra, quando a
verdade era que não queria que
visse a cor dos
seus olhos, ou adivinhasse o que
estava por baixo das escamas de
metal prateado que usava. No
entanto, você aceitou como presente
o amuleto, um
disco de prata de Salomão lutando
contra um demônio no piso do
Templo,
para não ofendê-lo.
– Devo-lhe a proteção – disse ele no
dia em que você, mais jovem e mais
leve, salvou-o do Anjo da Morte que
pairara tão perto. – A minha vida é
sua.
Você usou o amuleto dele para não o
ofender no campo de batalha, mas
escondeu-o debaixo de um lenço em
todas as outras ocasiões. Não teve
coragem de lhe dizer que não era a
vida dele que queria. Tudo o que
você
desejava era a sua própria vida, as
noites nos espinheiros, os dias com
os
guerreiros.
Meu irmão, seu cão esteve sempre
ao seu lado, tão calado quanto você,
com um silêncio que poderia muito
bem ter aprendido com o leopardo.
Quando uma batalha começava, ele
rompia o silêncio e rugia ao seu
lado, pois não tinha medo do sangue
nem do metal nem da morte. Ele era
seu companheiro e dormia com
você, estivesse você sozinho ou com
o homem
que sabia quem você era,
entendendo por que você se isolava
sob as
estrelas. Embora fosse zeloso o
bastante quando era necessário,
disposto a
carregar as espadas de dois gumes
dos outros guerreiros, as suas
fundas, as
suas lanças, você não se misturava
com eles.
Quando você saía da sua túnica,
desaparecia sob a lua. Você
evaporava
no ar e ali descansava, entre os
mundos.
Foi assim que vim a tomar seu lugar.
*
SAÍ FURTIVAMENTE pelo Portão
da Água do Sul, juntamente com o
cão, para me encontrar com a minha
irmã. Enrolara-me em xales, pois o
frio da noite logo se abateria sobre
nós. Trouxera a minha irmã à vida
uma vez e faria isso novamente.
Nenhum guarda me impediria, pois
eu era o bravo Adir, o
mesmo nome de reis do povo de seu
pai, e os guardas postados no portão
apenas balançaram a cabeça em
cumprimento a um companheiro
guerreiro. Levava o arco amarrado
às costas. A escuridão começava a
se estender no horizonte. A luz
esmaecente tornara as falésias
vermelhas a distância. As cotovias e
as brilhantes aves canoras azuis
cruzavam o céu, pegando os
mosquitos que enxameavam à noite.
Procurei pisar com
cuidado, pois uma única rocha
poderia fazer com que os romanos
me
notassem na perigosa travessia para
a caverna dos essênios.
Estava tão concentrada no
acampamento romano que jamais
pensei que
poderia estar sendo seguida. Não
estava preparada quando me
agarraram e
me tiraram do caminho. Gostaria de
ter a faca que meu pai me dera. Na
batalha corpo a corpo, o arco era
inútil. Virei-me para lutar, mas o
homem
que me segurava não se intimidou,
como se dizia dos anjos e dos
demônios.
Lutei com ele até que me venceu.
Talvez aquele não fosse um homem
afinal,
mas um dos sete lobos do meu
sonho. Se assim fosse, o sonho
profetizara a
minha derrota. Lamentei a minha
fraqueza. Eu, que sempre fora tão
destemida, entreguei-me a ele,
esperando ser consumida pela luz ou
pelas
chamas.
Reconheci-o quando Eran deitou-se
como se estivesse aos pés do dono.
Vi meu seguidor por quem ele era, o
homem que nada possuía além do
machado que carregava. Disse que
me acompanharia e que, se caísse do
penhasco que descíamos, então
estava destinado a isso, pois ansiava
pela morte e não tinha escolha a não
ser cortejá-la. Se Mal’ach ha-
Mavet o procurasse, isso seria
apenas o que desejava o tempo todo.
Não queria pô-lo em risco por causa
da minha irmã, mas em batalha não
se pode dizer ao outro quando é a
hora de entrar no Mundo Vindouro,
nem
é possível manter qualquer homem
neste mundo quando deseja deixá-lo
para trás. Eu não podia discutir com
o Homem do Vale, pois isso era uma
coisa que uma mulher faria, e ele
jurara nunca ficar com uma mulher
que
não fosse sua esposa. Eu era seu
companheiro e, como tal, devia
respeitar
seu desejo. Não poderia me agarrar
a ele, pois isso também me
mostraria
como uma mulher. Eu usava a túnica
de Adir e levava o seu arco,
portanto
deveria desistir de lutar.
Amarramos o cão a um espinheiro,
depois prosseguimos, o ruído da
nossa respiração produzindo ecos. A
lua nova brilhava com uma luz
delgada e fraca, mas logo as nuvens
a encobriram e pudemos escapulir
através da escuridão. Eu não
precisava ver o Homem do Vale
para saber que se encontrava ali,
pois estávamos ligados por algo
mais forte que a visão e, assim como
os cavalos do rei, não tropeçamos
no penhasco.
Cheguei a imaginar que poderia
capturar a minha irmã, amarrá-la
com
cordas e levá-la de volta para a
fortaleza. Mas, se fizesse isso, ela
gritaria, como chamara pelo pai
quando deixamos a Montanha de
Ferro. Seus gritos
atrairiam os romanos para cima de
nós e eu não queria ser a causa da
morte da minha irmã.
Sabia que precisava deixar que ela
mesma causasse isso.
Uma vez, enquanto olhava para a
escuridão, meu pé escorregou e meu
companheiro me agarrou e me
abraçou até eu recuperar o
equilíbrio.
Pedras rolaram em direção ao vale,
mas, no escuro, poderíamos muito
bem
ter sido dois íbex pretendendo
escalar o precipício. Quando
prosseguimos,
pudemos distinguir três cavernas,
uma para as cabras, uma usada como
depósito, ao lado de outra caverna
maior, na qual os essênios
acampavam.
Não tivemos medo de que pudessem
nos atacar para se proteger, pois não
tinham armas e nenhum desejo de
outra defesa que não fosse a
misericórdia de Deus. O fedor da
caverna nos alcançou primeiro e
ficamos
surpresos por ser pior que o de
qualquer curral. Quando olhei
através da escuridão, mal pude
suportar a visão do modo que
viviam. As fogueiras no
interior da caverna enegreceram
suas peles e as roupas de linho
estavam salpicadas de cinzas. Dois
homens vieram ao nosso encontro,
franzindo a testa, claramente se
ressentindo da nossa intromissão em
seu meio. Eles estavam sujos, muito
magros, com uma expressão
arrebatada de fome em
seus olhos. Reconheci Malaquias,
embora ele não me reconhecesse e,
vendo
a minha túnica, me tomasse por um
menino.
– Trouxemos provisões para vocês –
disse o Homem do Vale. Colocamos
os fardos no chão, algumas frutas, as
pombas, o pão sírio, os grãos, as
bolsas de água.
– Das mãos de assassinos? – disse o
essênio mais velho, avaliando as
provisões que trouxéramos com
grande perigo.
– Das mãos dos seus irmãos –
observou o Homem do Vale. Ele
estava
sendo polido, mas seu tom de voz
carregava uma nota de reprovação.
Dei alguns passos para a frente,
enquanto os homens continuavam a
falar. Através da escuridão avistei o
perfil de Abba; o louvado mestre
dos essênios estava encostado a uma
rocha, tão fraco que parecia que já
passara para o outro mundo, embora
ainda respirasse. Vi as mulheres
reunidas, olhando para nós com
desconfiança, mas não distingui a
minha irmã das outras, nem ela me
reconheceu. Tirei o lenço da cabeça
e deixei o
cabelo cair sobre as costas para que
ela visse quem eu era, a irmã a quem
pertencia. Malaquias imediatamente
aproximou-se de mim depois de me
notar, tão rapidamente que poderia
ter sido uma víbora negra, do tipo
que
se enrola em torno da presa em um
aperto implacável.
– Vá agora – ele me disse, apesar de
eu ter arriscado a minha vida e a
vida do meu companheiro para
trazer-lhes provisões e água. – Ela
não pode
ver você ou pensar naquela outra
vida.
Avistei-a, então, uma mulher em
trapos, a minha irmã linda, cercada
pelas outras mulheres, ovelhas em
um cercado, não mais uma parente
para
mim que as ovelhas por trás das
nossas cercas escamosas feitas de
ramos
de arbustos espinhosos. No entanto,
entendi o medo de Malaquias. Ele
sabia o que eu pretendia fazer antes
que o fizesse. Pois nesse momento
chamei Nahara, a minha voz tão
melancólica e miserável que mal a
reconheci como minha.
– Venha comigo – supliquei, com a
intenção de atraí-la para mim. –
Você
não pertence a eles. Parta comigo e
a protegerei como fazia antes de
você
ter vindo para esse lugar ou de ter
conhecido esse povo.
Não houve resposta além do som
dos meus próprios gritos, pois
minhas
palavras caíram como pedras, que
arrancaram lágrimas de mim. O
Homem
do Vale postou-se ao meu lado.
Esperava que ele me censurasse
pelos meus
atos, porque não estava sendo nada
mais que uma mulher. Em vez disso,
ele se inclinou para perto de mim,
sem julgamento.
– Deixe-me tentar falar com ela –
sugeriu ele.
Esperei na entrada da caverna. Notei
que havia um charco raso de água
parada. Certamente os essênios
bebiam dessa poça, embora não
fosse
adequada para a sede humana. Na
terra enlameada havia crescido um
pezinho de acácia. Pouco mais que
um galho, mas estava florescido. Mil
abelhas vinham aos ramos. Fechei
os olhos e ouvi o zumbido. Por um
momento, estava em outro mundo, na
rotina da minha outra vida,
cavalgando sobre as pradarias.
Sonhei que fazia uma fogueira e
queimava
uma centena de ramos, e que as
faíscas voavam para o céu e
permaneciam
lá no alto para se tornar estrelas.
Levantei-me quando o Homem do
Vale se aproximou. Sentia-me
sedenta
pela nossa viagem, mas ao vê-lo me
senti como se algo tivesse sido
saciado.
Permaneci ao seu lado quando me
disse que os essênios tinham
concordado em aceitar as provisões.
Ele fora levado perante Abba para
que
uma oração pudesse ser oferecida
em seu nome. O antigo mestre mal
podia
falar, pois estava tão fraco que o fio
que o prendia a este mundo se
desgastava. Minha irmã conseguira
se aproximar. Depois que Abba
acabou
de cantar, ela sussurrou ao Homem
do Vale para que só ele ouvisse.
Pediu
que me dissesse que se lembrava de
mim, o cavaleiro mais veloz, o filho
favorito do seu pai, a irmã a quem
um dia pertencera, em outro tempo e
outro mundo.
CAMINHAMOS em silêncio, como
sempre fazíamos. Nossa carga
estava mais leve, pois já não
carregávamos frutas, água e grãos,
assim como eu já não
carregava o destino da minha irmã
nas mãos. Eu a deixara lá. Se fosse
para
nos encontrarmos novamente nesta
vida, não cabia a mim decidir. Ela
renunciara à menina que eu trouxera
para a vida e por isso não estávamos
mais ligadas uma à outra. No
entanto, pensaria nela não como uma
mulher
encolhida em uma caverna, os olhos
baixos, esperando pelo Fim dos
Dias,
mas como o único nascimento que
presenciara na vida, a grande glória
eo
milagre de Deus.
ERAN esperava por nós. Paramos
antes de subirmos em direção ao
portão.
Como camaradas, concordamos em
prosseguir sem dizer uma palavra.
Sabíamos que Roma se aproximava
e entendíamos o que isso
significaria.
Dedicamos aquela noite a nós
mesmos, no caso de não haver outra.
Fomos
para a caverna em que Yael me
dissera uma vez que vivia um leão.
Dentro
não encontramos nenhum leão.
Fizemos uma fogueira longe da boca
da
caverna. Soubemos que outros
tinham feito o mesmo antes de nós,
pois
encontramos montes de cinzas e
fuligem. Talvez quem tivesse estado
ali antes de nós ansiasse por
libertar-se do topo da montanha,
como fizemos.
Talvez tivesse desejado outros
mundos e outra época.
Passei os braços em volta do meu
guerreiro, chamei-o para perto de
mim e me entreguei a ele. Não tinha
mais forças para a batalha. Queria
um
mundo que fosse bonito e naquela
noite ele foi terno comigo de um
modo
que não fora antes, talvez porque
tivesse me visto chorar na frente da
minha irmã. Ele me tratou não como
um guerreiro, mas como uma mulher.
Entendi que essa era a sua maneira
de me dizer que o mundo era terrível
e
que deveria me preparar para o que
estava por vir. Mas eu decidira
ignorar
esses temores, assim como me
desfizera da advertência da minha
mãe
sobre os malefícios do meu amor.
Nada disso importava agora.
Éramos dois
feridos, descrentes de tudo o que já
víramos e conhecêramos. Tínhamos
matado juntos, enterrado os caídos
juntos e entoado orações criadas
apenas para os homens recitarem.
Estivemos juntos como os animais,
desesperados e impulsionados por
uma necessidade feroz, e como
amantes
para quem o resto do mundo
inexistia.
Quando saímos da caverna, a manhã
abrira os cantos mais distantes do
céu. A poeira se levantava enquanto
a legião romana se aproximava. Uma
coluna procedia do norte e outra do
leste. Quando as tropas se reuniram,
as
nuvens ascendentes tomaram não a
forma do javali, o símbolo que
carregavam em seus estandartes,
mas a figura de um leão, ícone da
antiga
tribo de Judá e do deserto em torno
de nós.
– O meu nome é Rebeca – disse a
ele enquanto permanecemos juntos
ali.
E ele era Yoav, o Homem do Vale, o
amor da minha vida.
Outono, 72 d.C.
QUARTA PARTE
Inverno, 73 d.C.
A Bruxa de Moabe
Não éramos diferentes das pombas
acima de nós.
Não podíamos falar ou chorar,
mas, quando não houve
escolha, descobrimos que podíamos
voar. Se você
quer um motivo, considere este: nós
ansiávamos pela
nossa porção de céu.
A MINHA MÃE ME ENSINOU tudo
o que uma mulher deveria saber
neste mundo e tudo o que era
necessário para levar ao Mundo
Vindouro. Com a idade de
oito anos, eu aprendera que a folha
da tamareira fervida em água era
remédio para a picada do escorpião,
que o néctar da espetada flor azul do
hissopo presa ao punho servia para
afastar o perigo, que a pele de cobra
queimada e moída era uma proteção
contra o mal. Eu tinha um dente de
cachorro preto amarrado em volta
do pescoço como proteção contra os
animais selvagens e tinha o cuidado
de recitar um encantamento quando
escavava as raízes do meimendro, a
planta sagrada, porque muitas vezes
enterrava os amuletos da minha mãe
como oferendas a Astarte, a deusa
que nos vigiava em momentos de
dificuldade.
Minha mãe me instruíra na
preparação de encantos contra a
febre e
encantos pela vitória, embora ela se
recusasse a lidar com feitiços de
ódio,
usados para prejudicar rivais, algo
que faltava no meu livro de receitas.
Eu
sabia como lançar encantos que
dissolviam um feitiço e os que
curariam mordidas de répteis. Ela
costurava pedaços de pergaminho
prateado e
escaravelhos nas bainhas das minhas
vestes com seus dedos rápidos e
incansáveis. Sua grande beleza era
eclipsada somente pelo grande
conhecimento. Seu nome era Nisa e
eu o considerava a palavra mais
bela em qualquer idioma. A palavra
em si era como o brotar de uma
fonte, o ritmo da chuva.
Ao crepúsculo, quando o ar em
Alexandria tingia-se suavemente de
azul,
ela me instruía no nosso jardim,
ensinando-me hebraico, aramaico e
grego,
formando as letras na poeira com
algumas estocadas da borda pontuda
de
uma vara. Ninguém via o que
fazíamos durante essas aulas, pois
não
morávamos entre os habitantes da
cidade, mas na casa das mulheres
santas
que estavam disponíveis para os
sacerdotes. Desse modo, éramos
também
abençoadas, pois as leis que se
aplicavam às outras mulheres não se
aplicavam à minha mãe. As orações
não eram proibidas para ela, assim
como não foi a educação, nem a
liberdade de admitir a entrada de
homens
na sua câmara privada.
A entrada da nossa casa era ladeada
por sebes estreitas de arbustos de
jasmim e de rosas perfumadas. À
noite, a própria cidade parecia
tornar-se
azulada, como se mergulhasse o
nosso mundo sob as águas. Sombras
compridas estendiam-se sobre os
tijolos de terracota do caminho da
entrada, de modo que ninguém visse
quem entrasse pela nossa porta e
quem saísse por ela no meio da noite
escura e perfumada. Essas sombras
também me ajudavam pois, embora
fosse solitária, era igualmente
independente. As únicas testemunhas
da minha instrução e da minha
educação foram as lagartas e os
besouros. Ainda muito criança
entendi que
as mulheres guardavam segredos e
que alguns deles deviam ser
transmitidos somente às filhas.
Desse modo, permanecíamos unidas
pela
eternidade.
No jardim, onde aprendia as letras,
crescia uma variedade rara de lírio-
d’água branco que à noite exalava
uma fragrância perfumada. Essas
flores
tornaram-se as minhas favoritas
desde essa época. Uma só delas vale
um barril de bálsamo ou de mirra.
Os lírios vermelhos de Moabe, por
mais gloriosos que sejam, são ervas
daninhas quando comparados a
essas flores,
seu perfume o simples ar quando
comparado ao dos lírios de
Alexandria. A
minha mãe esfregava o perfume nos
punhos e por isso nenhum homem
poderia repudiá-la.
Enquanto as outras mulheres
mantinham-se dentro dos pátios
murados
das casas, não se aventurando além
do mercado – e então apenas
acompanhadas de servos ou parentas
–, minha mãe era autorizada a fazer
o
que quisesse. Toda primavera ela
viajava para visitar a família em
Jerusalém, durante a Festa dos Pães
Ázimos. Era lá naquela cidade que
meu
destino me aguardava.
DIZ-SE QUE, após a expulsão de
Adão e Eva do Éden, dois anjos se
ofereceram para entrar no nosso
mundo para ensinar aos humanos o
conhecimento
permitido por Deus. Esses anjos
faziam as refeições com os humanos,
apaixonaram-se por eles, tiveram
relações sexuais com eles, viram
seus
filhos nascer. Por causa disso, nunca
mais puderam voltar ao mundo
espiritual. Eles continuam na terra
em nossos dias, ensinando a
sabedoria
da feitiçaria àqueles que desejam
aprender. Minha mãe provinha de
uma
linhagem de mulheres que se
dispunham a ouvir quando os anjos
começavam a falar. Ela guardava
seus bens mais pessoais em uma
caixa de
pau-ferro esculpido, cuja chave
trazia ao pescoço, presa a um fio de
crina de
cavalo trançado. A chave tinha o
formato de uma cobra. Quando eu
era criança, ela me parecia uma
coisa viva. Sempre que a minha mãe
me
permitia pegá-la na mão, eu sentia
como se ela rastejasse friamente
sobre a
minha palma.
Dentro da caixa trancada, havia um
caderno de pergaminho em que
minha mãe anotara os inúmeros
segredos que acumulara ao longo
dos
anos. Era um livro de receitas para o
coração humano, pois nosso povo
acreditava que tudo o que sabemos e
tudo o que vivemos está contido ali.
HAVIA ENCANTAMENTOS em cada
página do diário da minha mãe:
Para a Cegueira Noturna. Para
Capturar um Ladrão. Para a Dor
de Cabeça. Para a
Febre. Para a Fidelidade. Para o
Amor. Enquanto as outras meninas
brincavam de corda ou com animais
esculpidos em madeira, eu aprendia
o
que fora escrito pela minha mãe,
segredos que ela me transmitia e que
um
dia eu confiaria a uma filha minha.
Os feitiços em si eram transcritos
em código, para que nenhum
estranho pudesse entendê-los ou
avaliar
plenamente a sua eficácia.
Sempre existiram antigos livros de
mistérios. Os homens que
praticavam a magia eram os mestres
chamados abba, pais abençoados
pelo
conhecimento d’ O Livro dos
Mistérios. Diz-se que o próprio
Moisés tinha o que os mágicos e
grandes mestres chamam de O Livro
da Lua, uma coletânea de magias tão
eficazes que nenhum outro ser
humano jamais
ousou folhear suas páginas, para não
ser queimado vivo pelo calor das
palavras que continha. Houve quem
dissesse que Moisés seria capaz de
fazer o mar desaparecer e que
poderia ter destruído o mundo
inteiro se quisesse, ou se Deus o
mandasse fazê-lo. Noé também tinha
um livro de encantamentos. A voz de
um anjo em O Livro dos Jubileus
relata que os próprios anjos
ensinaram a Noé todos os tipos de
segredos, para que
pudesse usar as ervas da terra a fim
de curar seus filhos. Entre os
homens,
houve rumores sobre a existência de
um tesouro inestimável chamado O
Livro dos Vigilantes, com
instruções diretas do Todo-
Poderoso, um tratado místico tão
complicado, ocultista e envolto em
enigmas, que apenas o
iluminado mais sábio poderia tentar
entender seu significado.
Esse era um trabalho de homens,
estudiosos e sacerdotes. Existiam
duas
escolas de magia de que os homens
eram conhecedores, a que os
sacerdotes praticavam publicamente,
os exorcismos, maldições e bênçãos,
e os trabalhos menores produzidos
pelos minim, todos homens, fossem
eles sábios ou magos, que ofereciam
a magia em troca de pagamento no
lado de
fora das sinagogas. Além disso, em
segredo, no escuro, existia a magia
que
as mulheres praticavam por trás de
portas fechadas, com os livros de
receita de pharmaka, os
medicamentos e philtrons, as
poções do amor. As mulheres tinham
usos secretos para as cinzas, folhas
de louro verdes,
sangue, mirra, enxofre, almíscar,
mel, azeite e flores, juntamente com
as raízes de plantas, tais como as da
mandrágora, as da yavrucha e as
dos ba’aras, muitas vezes chamadas
de “fulgor prodigioso”, de um
vermelho incendiado quando
retiradas da terra. No Templo fora
decretado que
ninguém deveria tolerar feitiçaria,
pois se dizia que esse tipo de magia
era
praticado por prostitutas, cuja
maldade era disfarçada por um
manto de sabedoria que não deveria
ser permitido. Existiam dez
variedades de
homens sábios conhecidos, mas
apenas dois tipos de mulheres que
poderiam ouvir a voz do Todo-
Poderoso: as profetisas e as bruxas.
Para as mulheres que praticavam a
magia em segredo, não havia
ninguém a não ser Ele, o nosso
Deus, o radiante, muito maior que
qualquer
mago. Mas nós não concordávamos
com as regras dos homens e
ignorávamos certos decretos,
embora o tipo de magia que
mulheres como a
minha mãe praticavam fosse
conhecido como fora da lei e,
portanto,
considerado pecado.
Nós sabíamos por que isso
acontecia, e por que a nossa grande
deusa, Astarte, meio guerreira e
meio vidente, fora profanada e alvo
de censura nos escritos que se
seguiram aos profetas. A presença
de Astarte nos foi negada, as
imagens da sua forma foram
derretidas, transformadas em
piscinas de prata e bronze, os bolos
que fazíamos com sua figura eram
considerados ilegais, as árvores que
decorávamos em sua homenagem
tinham sido derrubadas havia muito
tempo. A expulsão da Rainha do Céu
ocorrera pela mesma razão pela qual
Sansão perdera toda a força; a razão
pela qual homens queimavam o
cabelo e as unhas, para que esses
símbolos
não fossem usados contra eles nos
feitiços de qualquer mulher. As
mulheres que praticavam o
keshaphim foram consideradas
bruxas e
punidas como tais, expulsas,
queimadas, desonradas. Elas eram
poderosas
e perigosas e ninguém queria uma
criatura dessas por perto, exceto,
talvez,
em sua cama por uma noite, antes de
livrar o mundo da sua existência.
Certamente foi por causa disso que
as mulheres se acostumaram a não
tomar notas dos seus conhecimentos,
para que eles não fossem
descobertos e usados contra elas
mesmas. Contávamos umas às outras
as
nossas receitas mágicas, assim como
confidenciávamos as melhores
maneiras de fazer um bolo de figos,
um caldo de ossos, um ensopado de
maçãs e mel que fosse mais doce
que qualquer outro. Não discutíamos
métodos, nem tornávamos nossos
talentos públicos, mas as outras
mulheres sabiam. A verdade fora
escrita em nós, como diziam que os
pecados dos homens estavam
marcados em seus ossos, para que,
quando
morressem, seus atos perversos
pudessem ser lidos como se
estivessem
gravados em pergaminho.
Podíamos oferecer às mulheres o
que elas mais quisessem, um
remédio
para as doenças mais comuns do
mundo. Quando um casamento não
fosse
abençoado e os demônios se
apegassem a uma casa, a dissolução
do
matrimônio poderia ser encontrada
em um feitiço, que é um documento
legal de divórcio. Eu te conduzo
para fora da casa dela e não
deverás aparecer para ela, nem
mesmo em sonhos, porque te
dispenso e liberto pelo
ato do divórcio, uma carta de
rejeição de acordo com a lei das
mulheres de
Israel.
Quando as crianças estivessem
doentes ou os bebês se recusassem a
nascer, quando os homens fossem
infiéis, quando o céu estivesse
desprovido de chuva, quando os
amuletos enterrados sob os muros
santos
por instruções dos minim não
oferecessem consolo e todas as
súplicas aos sacerdotes por
orientação falhassem, quando os
rituais que oferecessem
não trouxessem conforto e consolo,
elas viriam até nós.
AINDA MENINA, em Alexandria,
muitas vezes observava minha mãe
folhear seu caderno quando deveria
estar dormindo no estrado, ao pé da
cama, que era
digna de uma rainha, acima do piso
e coberta por um tecido de linho
fino,
bordado com fios roxos e dourados.
Minha mãe parecia ameaçadora a
meia-luz, o cabelo negro caindo
pelas costas. À noite ela queimava
bálsamo
em uma tigela de barro. A fumaça
que espiralava em direção ao teto
era clara, muito parecida com as
penas de dentro da asa de uma
pomba. O
aroma era de terras distantes, onde
os campos estavam sempre verdes e
os
pés de acácia se desenvolviam.
Minha mãe fora escolhida para ir a
Alexandria e viver entre uma seita
de gregos e judeus porque era muito
bonita e culta. Por causa disso, ela
tinha tatuagens secretas gravadas
sobre
a pele, desenhos intrincados feitos
com canas afiadas mergulhadas em
hena. Esses desenhos atestavam a
condição de kedeshah. Após a
iniciação, muitas vezes ela se
mantivera escondida pois, embora
sua posição fosse reverenciada entre
muitos círculos em Alexandria, o
Templo de Jerusalém
proibia essas práticas.
As mulheres que se entregavam a
esse estilo de vida acreditavam que
poucas estivessem mais próximas de
Shechinah que uma kedeshah. Elas
se dedicavam ao aspecto feminino
de Deus, a Habitação, a extensão
espiritual
em que reinava a inspiração, pois
nas palavras escritas de Deus a
compaixão e o conhecimento sempre
foram do sexo feminino. Era por
isso
que cresciam lírios no jardim da
minha mãe e por isso fora-lhe
permitido
ter acesso ao conhecimento do grego
e do hebraico, o que a habilitava a
conversar com qualquer homem.
Quando os sacerdotes nos visitavam,
eu ficava fora de casa, ia para o
jardim. Entre as sebes brotavam as
flores muito alvas da hena, que
produziam uma nuance escura de
vermelho, misteriosa e sagrada,
quando
preparadas como um corante.
Geralmente, passava o tempo ao
lado de uma
pequena fonte decorada com
azulejos azuis e brancos. Não
gostava de ser
separada da minha mãe, mas
mantinha-me ocupada, uma
habilidade
aprendida por crianças que às vezes
tinham de agir como mais velhas que
sua idade. Os lírios-d’água
descansavam sobre rechonchudas
esponjas
verde-claras que arrastavam
tentáculos carnosos abaixo deles nas
águas da
fonte. Os pássaros vinham beber
água, oferecendo suas canções em
troca de saciar a sede. Minha mãe
me dizia para permanecer em
silêncio e
sempre a obedecia. Pratiquei até ser
capaz de me sentar quieta, até me
tornar invisível para os pássaros que
voavam por baixo dos pinheiros.
Muitas vezes eles pousavam nos
meus ombros e joelhos. Podia sentir
seu coraçãozinho batendo rápido
enquanto cantavam de pura gratidão
pela
sombra e pelo conforto do nosso
jardim.
Uma vez, quando tinha pouco mais
de quatro anos, fui mandada por
várias horas para o sol ardente.
Senti tanta raiva por ter sido expulsa
do nosso quarto para o calor brutal
do meio-dia que me atirei na fonte.
Os azulejos pareceram frios e
escorregadios sob meus pés. Na
minha fúria
infantil, pulei sem pensar nas
consequências. No instante em que o
fiz, o calor do dia desapareceu.
Prendi a respiração quando afundei.
Com a água
verde ao meu redor, imediatamente
senti que encontrara um lar. Esse era
o
elemento a que era destinada. O
próprio mundo virou de cabeça para
baixo
e ainda assim parecia mais meu que
qualquer outro lugar. Quis fechar os
olhos e permanecer flutuando ali
para sempre. Vi as bolhas que se
formavam com minha própria
respiração. Nesse instante, alguém
me
agarrou com força. O sacerdote
arrancou-me para fora da água. Ele
me
sacudiu e disse que as meninas que
brincavam com água se afogavam e
que
ninguém se apiedaria de mim se esse
fosse o meu destino.
Mas eu não me afogara e olhei para
ele, desafiadora e respingando água.
Senti um poder inusitado em meu
íntimo, que me deu coragem para
encarar aquele homem santo. No
umbral da porta em que se
encontrava, vi
minha mãe me olhar de uma maneira
estranha, demorando-se em observar
minha roupa encharcada. Trazia o
cabelo solto e vestia apenas um xale
branco enrolado em torno do corpo
nu. As tatuagens de hena que se
enrodilhavam pelo pescoço, seios e
braços haviam sido desenhadas em
padrões melífluos, como se ela fosse
uma flor e não uma mulher.
Não muito tempo depois do meu
mergulho na fonte, minha mãe me
levou ao Nilo. Fora ali, à margem
do rio mais poderoso, que Moisés
inscrevera o nome de Deus em ouro,
jogando-o nas águas, implorando ao
Todo-Poderoso para que tivesse
início o Êxodo do nosso povo. Era
uma
longa jornada a empreender, mas
minha mãe insistiu que devíamos ir.
Nossos servos nos levaram até lá em
um carro puxado por burros.
Viajamos embaixo de uma tenda
erguida sobre as cabeças, para
proteger a
pele de queimaduras. Partimos no
meio da noite, para que a viagem
fosse
mais fresca. Descansamos durante o
calor do dia seguinte, depois
tornamos
a partir. Enquanto cochilava, ouvia
as rodas do nosso carro e os
murmúrios
dos servos conversando em grego, a
língua que todos falavam
publicamente, fôssemos judeus ou
egípcios, pagãos ou gregos. Os
burros
eram brancos e bem-escovados, a
marcha era rápida e constante.
Tínhamos
frutas em uma cesta para comer
sempre que sentíssemos fome,
juntamente
com bolos feitos de tâmaras e figos.
Eu me perguntava se era uma
princesa
e a minha mãe, uma rainha. O ar
cintilava com o calor, mas, à medida
que
nos aproximávamos do rio, a brisa
tornava-se mais fresca.
A manhã avançava e as pessoas já
se ocupavam com o trabalho
cotidiano
ao redor. Na estrada para o rio, a
vida fervilhava em atividade, o ar
perfumado com canela e
cardamomo. Ali cresciam as mais
altas
pimenteiras e tamareiras que eu já
vira antes. Sentia-me excitada e
satisfeita por estar sozinha com
minha mãe. Pela primeira vez na
vida, eu
não precisava dividi-la com
ninguém. Ela me deixava brincar
com os dois amuletos dourados que
usava ao pescoço e com a chave
sinuosa como uma
serpente que brilhava à luz do sol.
Minha mãe usava uma túnica branca
e sandálias. Ela untara o cabelo
com azeite e o trançara, assim como
o meu, como fazíamos quando íamos
participar de um ritual para fazer
uma oferenda. Quando nos
aproximamos
ainda mais do rio, o dia amanhecia,
o céu estava tingido de rosado.
Pairava
um odor penetrante de lama e lírios.
As mulheres carregavam cestos de
roupa para lavar e secar nas
margens, e os homens partiam para a
pesca em barcos de madeira
estreitos e de fundo chato, girando
os remos
enquanto chamavam uns aos outros,
as redes intrincadas luzindo no ar
quando as lançavam para a captura.
Minha mãe se inclinou para
sussurrar que chegáramos ao nosso
destino.
Ela me disse que, se a água fosse
realmente meu elemento, precisava
aprender a nadar com os olhos
abertos. Devia controlá-la ou ela me
controlaria. Para comandar uma
substância tão poderosa, era preciso
antes
entregar-se a ela, fundir-se em
comunhão com ela, para então
triunfar.
Passamos pelos juncos, que eram
afiados e nos vergastavam, deixando
pequenas marcas serrilhadas
cruzando as pernas em um desenho
em
forma de “X”. Vi garças e cegonhas
pescando o desjejum. Nossos pés
afundaram na lama e, quando
entramos mais fundo, as túnicas
flutuaram
ao redor.
O Nilo sempre inchava depois da
lua cheia no verão, suas águas uma
grande dádiva em uma época de
calor brutal. Pude sentir como era
refrescante e doce. Nunca conhecera
o sentido do verdadeiro deleite,
como
o prazer intenso percorria o corpo
lentamente e depois, de repente, em
um
assomo de sensações. A um só
tempo, possuíamos o rio enquanto
ele
igualmente nos possuía. Tive a
sensação de pertencer àquelas águas
e de sempre ter pertencido.
– Agora descobriremos quem você
será – minha mãe me disse, ansiosa
para ver em que a sua filha poderia
se tornar.
Eu afundei, os olhos bem abertos.
Teria piscado se minha mãe não me
dissesse para permanecer vigilante.
Confiava nela e sempre fazia o que
dizia. Procurei manter os olhos
abertos. Graças a isso, tive uma
visão que carregaria comigo por
toda a vida. Apareceu um peixe tão
grande quanto um homem. Ele
parecia luminoso na escuridão da
água turva. Era enorme,
uma criatura que não precisava nem
de ar, nem de terra, como eu
precisava, e ainda assim não tive
medo dele. Em vez disso, um
assomo de
ternura apoderou-se de mim. Senti
como se ele fosse o meu amado.
Estendi
a mão e ele se aventurou perto o
suficiente para eu correr a mão
sobre as
escamas frias e prateadas.
Levantei-me do rio com um
sentimento de alegria, mas também
com
uma melancolia que não conhecera
antes. Não era normal uma criança
sentir tanta tristeza quando nada
mudara e o mundo ao redor ainda
era o
mesmo. No entanto, eu
experimentava um sentimento de
perda extrema.
Quando contei à minha mãe sobre o
peixe, ela disse que eu vira o meu
destino. Ela não parecia surpresa.
– Ele a mordeu? – perguntou ela.
Neguei com a cabeça. O peixe
parecia muito gentil.
– Bem, ele morderá – a minha mãe
me disse. – Eis o enigma do amor:
tudo o que lhe dá, ele tira.
Não sabia o que isso significava,
mas sabia que o mundo era um lugar
perigoso para uma mulher. Ainda
assim, não entendia como uma
pessoa
cujo elemento era a água podia viver
longe dos peixes.
DIZEM QUE a mulher que pratica a
magia é uma bruxa e que toda bruxa
tira seu poder da terra. Um grande
vidente advertiu um dia que, se um
homem
segurasse uma bruxa no ar, poderia
assim eliminar seus poderes,
tornando-a inofensiva. Mas essa
tentativa não teria nenhum efeito
sobre mim. Minha força provinha da
água, meus dons eram motivados
pelo rio.
No dia em que nadei no rio Nilo, e
vi o meu destino escrito nas
profundezas
com tinta azul, minha mãe me disse
que teria meus próprios poderes,
como
se dava com ela. Mas ao mesmo
tempo me advertiu: se me afastasse
demais
da água, perderia o poder e a vida.
Deveria manter a cabeça no lugar e
não
ceder ao desejo, pois isso era o que
fazia com que as mulheres se
afogassem.
*
NO DESERTO, o ar queima. Respire
e ele o incendeia por dentro, pois é
forte como o ferro, tão implacável
quanto o turbilhão de poeira que
sobe em uma
tempestade. Nossa água vem da
chuva e dos aquedutos construídos
há
muito tempo pelos escravos de
Herodes, tubos largos de cerâmica
que
carregam as águas correntes dos
nechalim para nós quando enchem
em vazantes repentinas nos meses de
inverno. Ainda assim, isso não é
suficiente para mim. O deserto me
sobrecarrega, minha força se esvai.
Na
água eu flutuo, mas no inferno seco
do deserto mal consigo manter o
fôlego.
Sonho com rios e peixes prateados.
Há quem diga que no nosso povo as
pessoas são como os peixes do mar,
alimentadas pelas águas do
conhecimento que fluem da Torá, e é
por isso que conseguimos
sobreviver
em uma terra tão brutal e inclemente.
Costumo acordar do sono ofegante,
afogando nas piscinas de luz branca
que rompem o céu todas as manhãs.
As mulheres com uma nova vida
dentro de si são especialmente
suscetíveis ao calor. Senti-me tão
aflita nas
minhas três vezes. Uma vez, em
Jerusalém, quando tinha apenas treze
anos
de idade, mal tendo me tornado uma
mulher. Duas vezes na Montanha de
Ferro, que foi pouco mais que um
exílio para mim. E agora aqui, mais
uma
vez, no lugar em que encontrei meu
destino.
À noite vou às cisternas, guiada pelo
cheiro de água. Para mim, esse odor
é mais pungente que a mirra ou o
incenso. A única fragrância capaz de
rivalizar com ele é o perfume do
lírio branco, que só pode ser
encontrado
em Alexandria. As pessoas dizem
que posso chamar a chuva e que a
água é
atraída para mim, mas estão erradas.
Eu é que estou em busca dela, como
sempre estive. Quando sonho,
enxergo o Nilo naquela manhã
rosada e a
minha mãe, a quem não vejo faz
tanto tempo que ela não mais me
reconheceria, se é que já não partiu
para o Mundo Vindouro.
As estrelas se refletem na água negra
da cisterna. Encontro conforto no
presságio que vislumbro ali: a luz na
escuridão, a verdade quando parece
que não existe nenhuma. Esse é o
único lugar em que posso ser eu
mesma,
a menina que caiu na fonte, que não
tinha medo de monstros, nem de
água
profunda, nem de afogamento. Desço
os cem degraus de pedra, o granito
frio contra os pés. Sei aonde o amor
me levará pois, no dia em que
viajamos
para o Nilo, minha mãe me disse que
ele me levaria à ruína e que a pessoa
a
quem me atrevesse a amar seria
atraída para baixo comigo. Mas,
mesmo
enquanto falava, ela sabia, eu não
teria escolha a não ser seguir meu
destino.
Paro à beira da cisterna, onde as
pedras foram recobertas por uma
camada fina de gesso. O pó do gesso
branco apega-se à minha pele. Vejo
o
brilho do calor sobre a água. Diz-se
que o espírito de Deus paira sobre
as
águas, como aconteceu no primeiro
dia da criação. Estou diante da
glória de
tudo o que Ele criou. Dispo o manto,
as sandálias, a túnica. Outras
mulheres
se purificam na mikvah, mas preciso
de águas mais profundas. Mergulho.
Algumas pessoas dizem que essa, a
maior das cisternas construídas
pelos pedreiros de Herodes, não tem
fundo, e que se alguma vez virmos o
fundo desse poço também veremos a
nossa sina. Essa piscina é profunda,
mas não é infinita. Sei disso com
certeza. Todas as coisas terminam.
Costumo mergulhar para atingir as
profundezas, depois me impeço de
subir de volta segurando as rochas
empilhadas na base. Elas são
escorregadias contra a minha mão,
alisadas pela interminável lapidação
da
água contra a pedra. Mantenho os
olhos abertos mesmo que a água seja
preta. Não há peixes, nem lampejos
de luz, mas, quando volto à
superfície,
meu primo Eleazar está esperando.
Foi ele que vi na água do Nilo
quando avistei o peixe ao meu lado.
Desde o início até agora, essa foi a
única coisa que nunca mudou.
Ele é o meu destino.
OS SOLDADOS da décima legião
eram liderados através do deserto
por Flavius Silva, o procurador de
toda a Judeia, o governador romano
recém-nomeado. As tropas
levantavam uma tempestade de
poeira tão grande que
certamente poderia ser vista de tão
longe quanto a Montanha de Ferro,
onde passei muitos anos na
companhia de um marido que tinha o
dobro da
minha idade e sabia que eu não o
amava, mas ainda assim me
protegeu. Ele
nunca me maltratou, embora tivesse
a indiferença de pedra de muitas das
pessoas destemidas de Moabe,
juntamente com uma ternura
surpreendente com relação aos seus
filhos. Seu nome era Sa’adallos,
embora eu nunca o chamasse assim.
Se o fizesse, poderia tê-lo amado.
Poderia estar em Petra, em vez de
nessa fortaleza, quando os romanos
chegaram. Poderia estar andando
por aquela cidade vermelha, com
suas
milagrosas colunas esculpidas com
elefantes e camelos, desfrutando da
sua
piscina, que diziam ser do tamanho
de um lago, e dos jardins que
pendiam
dos penhascos, fazendo com que os
homens elevassem o olhar para as
montanhas com assombro,
espantados por ver tamareiras onde
em outra
terra haveria apenas nuvens.
Se o amasse, meus filhos viveriam
em segurança, meu futuro estaria
assegurado. Em vez disso, eu os
trouxera para viver presos a esse
poleiro
do qual não há libertação. Embora
os anjos possam nos ouvir chamá-
los, jamais nos alcançariam aqui na
periferia do mundo, mesmo se
quisessem
nos salvar. Entendi isso quando
joguei os ossos dos pombos, pois
eles profetizaram que, assim como
não havia como escapar do que já
fora
escrito, não haveria fuga dessa
fortaleza.
Nosso povo reuniu-se para assistir à
aproximação dos seis mil homens
da legião, acompanhados por mais
de mil escravos e seguidores.
Trememos
em silêncio. O que mais nos
aterrorizou não foi o número, mas
sua absoluta
determinação. Eles vinham em nosso
encalço desde Jerusalém, embora
não
passássemos de algumas centenas.
Encontravam-nos como os chacais
encontram suas presas, cercando a
fraqueza das vítimas, ganhando
tempo,
prontos para saltar quando chegasse
o momento certo.
Na tempestade de poeira que
levantaram, pássaros caíram do céu,
incapazes de levantar voo nas
explosões de areia turbilhonante. Em
pouco
tempo o chão estava juncado de
corvos, mais numerosos que os
soldados.
As aves que não voavam
transformaram a terra em uma
superfície
desolada e enegrecida, e de repente
pareceu que a extensão do Mundo
Vindouro nos alcançara como uma
estrada de carne e penas.
– Já vi isso antes – Revka murmurou
para mim, o rosto pálido. – Não
podemos escapar do perigo.
Havia apenas uma razão pela qual
Roma devia ter vindo para tentar nos
derrotar, quando éramos tão poucos
e seu império tão grande. Temia que
nós, rebeldes, pudéssemos servir
como uma brasa para reacender a
chama
da liberdade. A desonra arde, ela
queima quando menos se espera que
possa se inflamar. Os romanos não
podiam permitir isso. Éramos como
peixes em uma rede, já recolhidos
sobre o costão rochoso; tudo o que
precisavam fazer era cortar a água
que nos sustentava. Àquela altura,
em Roma, já tinham sido cunhadas
moedas em comemoração à queda
da
Judeia. A imagem de um legionário
romano e de uma mulher judia
prisioneira, humilhada e escravizada
debaixo de uma palmeira, fora
impressa em prata. Assim como
tinha sido impresso, eles queriam
que
acontecesse, como se eles, e não
somente Deus, pudessem criar
matéria a
partir de palavras e da vontade.
Em uma terra em que a rebelião foi
esmagada, não pode restar um único
guerreiro.
ERA INVERNO e o ar estava seco.
Usávamos nossas capas puxadas
contra o corpo como uma armadura,
tremendo ao vento, assistindo à
aproximação
do destino. As chuvas vieram,
enchendo os vales com torrentes de
água. O
peixe que desaparecera no solo
profundo durante os meses áridos
reapareceu, enfeitiçado para a vida.
Por todas as colinas viam-se flores
silvestres e abelhas. Os troncos das
árvores mortas murmuravam como
se
tivessem recobrado vida. Havia
pasto verdejante para o íbex, carne
para o
leopardo. O deserto proporcionara à
décima legião as condições mais
favoráveis para uma travessia. Com
certeza, nossos inimigos
consideraram
isso como um presságio de que
seriam os vencedores. Se estivessem
com fome, eram alimentados. Se
estivessem com sede, não
precisavam procurar
mais longe que os córregos, que
haviam se transformado em
cachoeiras.
Talvez aqueles que fossem novos na
Judeia se perguntassem como era
possível que o deserto tivesse
dizimado tantos que os haviam
precedido, como a brutalidade do
seu calor feroz transformara aqueles
que haviam
lutado para se manter vivos no seu
abraço. Pois aquele era o momento
misericordioso do ano, quando as
aves começavam a voltar da África
e do
Egito, quando havia garças em vez
de urubus, quando a terra era
abundante. O exército que veio ao
nosso vale era composto de homens
de
uma dezena de diferentes regiões,
todos falando latim, cada um deles
recompensado por Roma com as
provisões com que não se
atreveriam a
sonhar na pobreza da sua terra de
origem, pois viajavam com camelos
e burros carregados de carne,
tâmaras e barris de couro com água
suficiente
para encher dez cisternas.
Eles se aproximaram da nossa
fortaleza com força intacta, enquanto
comíamos grama e pombas,
sacrificando as ovelhas para as
quais não
tínhamos mais grãos, cortando as
gargantas das cabras que já não
davam leite. Tínhamos água, o que
sempre desejáramos, e as cisternas
se
encontravam cheias, mas estávamos
pobres e nossa fome pulsava e nos
recordava da pobreza. Tantas
pombas haviam sido levadas para
servir de
alimento ou sacrifícios que seus
excrementos já não enchiam as
cestas nem
adubavam os campos. Os pomares
não produziam, os jardins achavam-
se
vazios, os armazéns já não nos
sustentavam. Agora, quando
entrávamos
nos pombais, havia silêncio em
lugar do canto das pombas, ouvia-se
apenas
um leve arrulho.
Os guerreiros estavam exaustos.
Haviam lutado por muito tempo, sem
alívio ou descanso, muitos deles
jovens e destreinados, apenas
garotos de
dez e onze anos de idade
convocados para ocupar o lugar dos
caídos. Ainda
assim, eles escondiam seu medo.
Bradavam que a legião poderia
trazer
toda Roma e ainda assim jamais
escalaria a montanha para chegar até
nós.
Mas aquele era um exército que
assassinara vinte mil pessoas do
nosso
povo na Cesareia, de modo que não
restasse sobreviventes. Destruíra os
outros dois redutos judeus,
Herodium e Maqueronte, onde
executara
aqueles a quem dera uma promessa
de indulto. Informada de que alguns
haviam conseguido escapar e
permaneciam escondidos, a décima
legião
derrubara completamente a floresta
de Jardes, para que não restasse uma
única árvore atrás da qual os
rebeldes fugitivos pudessem se
esconder. Ali
mesmo mataram mais três mil, os
corpos deixados espalhados pelo
campo
para as aves de rapina, sem sequer
um fragmento de tecido para cobrir
sua
nudez.
Depois disso, Flavius Silva voltara
o olhar na nossa direção. Dizia-se
que
era um homem impiedoso, de humor
e temperamento violentos, mas com
o
dom da lógica pura quando
precisasse avançar contra o inimigo.
Postei-me
em cima da muralha com o restante
do povo e vi o vale ser preenchido
pelas colunas de combatentes. A
seguir vinham os que assavam o pão
dos
soldados e cozinhavam suas
refeições e consertavam suas capas,
juntamente com as zonnoth,
mulheres que eram mantidas em
tendas para o
deleite dos soldados, e os escravos
que montaram os acampamentos,
arrastando madeiras enormes do
norte através do deserto, juntamente
com
os ferreiros com suas carroças de
armamento – lanças, escudos e
milhares
de flechas. No entanto, algo mais
temível chegou com a legião, o sinal
do nosso destino, pois os romanos
trouxeram consigo um leão preso
por uma
corrente. Desfalecemos de pesar ao
ver aquele animal feroz. Ele, que um
dia
fora livre no deserto e governara as
planícies da sua caverna, o símbolo
da
força da antiga tribo da Judeia,
agora atendia às ordens dos seus
guardiães.
Ele nos fitou e nos seus olhos vimos
o desejo dos romanos.
Eles queriam nos devorar.
Prenderam a pobre criatura a um
poste de metal, erguido bem em
frente
ao palácio que pertencera ao rei
Herodes. Aquele era o lugar em que
se montariam os acampamentos de
Silva, um local destinado a
representar
um insulto e um desafio todas as
vezes que olhássemos na sua
direção.
Enquanto montavam os
acampamentos, ouvíamos o rugido
da fera
subjugada.
Yael confidenciara-me que sonhava
com um leão. Ao mesmo tempo que
temia essa criatura, sentia-se atraída
por ela. Ela chorou quando me
contou
isso e entendi por que se sentia
dilacerada pelo significado dos seus
sonhos. Um leão poderia
permanecer ao lado de um íbex na
sombra, se o seu apetite estivesse
saciado, poderiam até dormir juntos,
as costas de um
descansando na do outro, mas no dia
seguinte, se o leão acordasse com
fome, então ele deveria servir-se do
íbex.
Agora, o sonho de Yael aparecera
diante de nós. Ela ficou ao meu lado
e
chorou ao ver o leão dominado por
sua corrente, preso como nós,
escravizado por aqueles cuja
brutalidade era uma afronta à
natureza, ao nosso povo e a Deus.
Depois que a poeira baixou,
pudemos observá-lo
claramente, pois havia somente o ar
azul-claro de inverno à nossa frente
e
o dia estava luminoso, o vento
fresco. Muitos disseram que era
possível ver
o céu daquela nossa montanha, mas
agora parecíamos muito mais
próximos do primeiro portão do
inferno. O que ouvíamos e que nos
esperava não provinha dos confins
de Deus. Vinha de baixo de nós, do
rugido do leão.
EM BREVE, os escravos que
montaram os acampamentos
construíram uma aldeia, com tendas
e barracas erguidas durante a noite.
O cheiro de comida
pairava sobre o vale, carne cozida,
pão, especiarias. A tudo
assistíamos, na
miséria, famintos, como fantasmas
diante da mesa posta de um grande
banquete. A construção continuou
sem cessar, os escravos trabalhando
durante a noite. Aquele era um
empreendimento feito para durar; os
romanos estavam se estabelecendo.
Não iriam embora e não admitiriam
a
derrota. Começaram a construir doze
torres, dispostas a uma centena de
metros de distância, subindo tão
depressa que parecia que surgiam
diante
dos nossos olhos. Depois que as
torres foram construídas, qualquer
homem
que desejasse partir para o vale
oriental representaria uma ameaça,
denunciada pelos guardas no topo
dos postos de observação. Eles
nunca
passariam para o outro lado.
Quando os acampamentos estavam
quase terminados, mais escravos
foram trazidos do norte para erguer
um muro de pedras. Esse muro não
chegou a nos preocupar até que
começou a ziguezaguear em direção
às
montanhas, com um desenho
estranho. Não entendemos as
intenções os
romanos, pois parecia uma empresa
idiota designar mil escravos judeus
para o trabalho, dia e noite
carregando pedras tão pesadas que
muitos dos
trabalhadores caíam prostrados no
chão. Quando esse miseráveis não
conseguiam mais se erguer, eram
mortos e deixados no chão, pois era
mais
fácil eliminá-los que curá-los. Os
romanos levavam a sério a
construção daquele muro.
Imaginamos que queriam cercar seus
acampamentos, para
se proteger de nós. Certamente
nossos guerreiros tinham planos
para
ataques, que, apesar de perigosos, já
estavam sendo elaborados.
Assim que foi informado do muro,
Ben Ya’ir veio apreciá-lo do alto.
Quando notou que as pedras eram
amontoadas na direção dos
penhascos,
concluiu era aquele muro destinava-
se a nos cercar. Ele cercava não só
os
acampamentos romanos, mas toda a
montanha. Era um muro de cerco,
com
quase dois metros de espessura. O
nosso líder compreendeu
imediatamente que o objetivo não
era o de proteger os acampamentos
romanos, mas nos manter cercados.
Alguns guerreiros riram disso, pois
o muro não era tão alto que um
homem não pudesse escalá-lo sob a
proteção da noite. Ainda não tinham
percebido que havia outro objetivo
para esse empreendimento. Os
romanos visavam a uma crucificação
da terra que nos pertencia, cada
pedra
do muro servindo como um prego na
nossa carne. Estavam nos dizendo
que lhes pertencíamos, assim como
o leão acorrentado, assim como os
escravos sob as suas ordens, assim
como os seiscentos mil que haviam
dizimado em sua guerra contra os
judeus.
Eles queriam nosso medo e foi isso
que tiveram. O medo tomou conta da
fortaleza como uma febre. De
repente, o ar azul pareceu difícil de
respirar.
Havíamos construído um mundo ali,
um mundo que representava as
aldeias em que conhecêramos a
liberdade e a cidade que amávamos
e para
a qual esperávamos voltar.
Cunhávamos as próprias moedas, o
bronze
despejado em moldes nas oficinas
do palácio, impressas com o nosso
sonho: Pela Libertação do Sião.
Tínhamos nosso mercado, nossos
padeiros e os comerciantes de
vinho, os oleiros que faziam jarros e
vasos de cozinha
com a argila encontrada abaixo, no
nachal. Assim como Adonai nos
criara à Sua imagem, assim também
havíamos criado Massada à imagem
da nossa
vida passada e da vida que
esperávamos viver novamente,
quando
fôssemos livres.
Mas então, diante daquele muro de
cerco à vista, as pessoas entraram
em pânico, com medo de que o Sião
nunca mais ressurgisse. Elas
correram
aos depósitos, cobiçosas no seu
medo, pensando apenas na
sobrevivência,
como o chacal faz no meio da noite,
quando a manhã parece um lugar
distante. Mas até mesmo o chacal
divide a presa com os da sua
espécie, e
não os atropela, nem os abandona.
Nosso povo enlouqueceu com as
obras
dos romanos e com o medo do que
estava por vir durante um cerco que
poderia durar meses.
Eleazar postou-se sobre a fonte para
deter o caos. Seus seguidores
haviam lhe dado um peitoral
dourado em que sobressaíam quatro
pedras
preciosas de grande valor. Apesar
de ter aceitado o presente, ele nunca
o usara em batalha, preferindo
envergar a mesma malha de ferro
usada pelos
seus homens. Agora, com a chegada
dos romanos, passara a exibir o
peitoral de ouro para mostrar à
legião, mesmo a distância, que
éramos fortes e destemidos, e que
fôramos escolhidos pelo Todo-
Poderoso para
derrotar Roma.
– Nós temos somente um inimigo –
gritou ele.
As pessoas voltaram-se para ele
como poderiam se voltar para um
profeta. Ele era a pessoa que as
guiara até ali, que acreditava nessa
fortaleza como salvação. A
montanha que defendera Herodes na
época em
que Cleópatra procurara lhe tomar
essa terra agora também nos
defenderia. Nesse ponto ele nunca
vacilara.
– O muro é apenas um muro, feito de
pedras. Mas as pedras são as
pedras da Judeia. Elas nos
pertencem e o inimigo só nos dá o
que já é nosso.
Não morreremos de fome, pois
ainda há vinho e azeite suficientes
para nos
sustentar. Mesmo durante um
período de sítio, teremos o
necessário para
comer. As cisternas estão cheias de
água. Nosso Deus está em toda
parte, de
ambos os lados do muro.
Os que entraram em pânico, e que
pretendiam atropelar-se por medo,
recuaram. Já não ouvíamos os
soldados no vale pois, como um
milagre, o vento mudara de direção
e as vozes ásperas haviam
desaparecido, para que
pudéssemos escutar nosso líder. A
multidão aproximou-se para ouvir o
salmo que Eleazar agora recitava, as
palavras de Davi, nosso grande rei
do
passado, um guerreiro que, como
qualquer outro homem, sentira medo,
como sentíamos agora, como todos
os homens sentiriam.
– Por causa do clamor do inimigo e
da opressão do ímpio; pois sobre
mim
lançam calamidade e furiosamente
me hostilizam. Estremece-me no
peito o coração, terrores de morte
me salteiam; temor e tremor me
sobrevêm, e o horror se apodera de
mim.
Permaneci na treliça de sombra que
se projetava dos galhos da oliveira
do meu jardim, mas meu coração se
enlevou ao ouvir a voz do meu
amado.
Sua voz era pelo que mais ansiara
quando fora expulsa de Jerusalém,
pois o
modo que ele falava era um milagre.
Com as palavras, ele aproximava a
alma do seu lugar de origem, uma
glória a Deus, pois as palavras
foram a
primeira criação do Todo-Poderoso,
depois do silêncio do mundo, e eram
também um dom de Eleazar ben
Ya’ir.
Fechei os olhos como se
estivéssemos sozinhos e como se
aqueles que se
achavam entre nós já não se
interpusessem no nosso caminho. O
mundo
era um rio, e eu fora trazida para cá
nas suas correntezas, não em busca
de
esperança, mas porque era esse o
meu destino.
QUANDO O VI pela primeira vez,
em Jerusalém, eu me encontrava de
pé junto a um poço, com um jarro de
água nas mãos. Fora enviada a
parentes da
minha mãe porque não tinha pai nem
beit avi, família da linhagem do meu
pai. Embora tivesse de implorar
para que me aceitassem, minha mãe
queria
que eu fosse retirada com segurança
de Alexandria, onde as kedeshah
estavam sendo expulsas de suas
casas. Não haveria mais mulheres
santas
para os sacerdotes, pois as antigas
leis de Jerusalém tinham se
infiltrado no
Egito. Minha mãe e as outras
mulheres que eu sempre conhecera
como tias
eram agora chamadas de vadias e
prostitutas, a exemplo daquelas nas
ruas
que tinham seus preços gravados nas
solas das sandálias para que os
homens que as seguissem soubessem
o quanto deveriam pagar por seus
favores. De uma só vez, o que antes
era honrado agora era injuriado. As
tatuagens de hena que as declaravam
como mulheres de valor agora as
assinalavam como indignas, e os
sacerdotes a quem haviam se
sacrificado
foram os primeiros a acusá-las de
seus pecados.
Antes da minha partida, minha mãe
prendera seus preciosos amuletos
dourados ao meu pescoço,
sussurrando que apenas as minhas
filhas
deveriam recebê-los. Ela tirou o
livro de encantamentos da caixa de
pau-ferro, enrolou as folhas de
pergaminho em linho para disfarçá-
las, depois as
entregou a mim, enchendo a caixa
com ervas de que eu pudesse
precisar:
cominho preto, folhas de louro,
mirra. Nesse momento percebi que
ela
poderia não sobreviver à virada
contra quem ela era. Ela, que antes
fora exaltada, era agora forçada a
percorrer a cidade sob uma capa
escura, escondendo o redemoinho de
marcas que já haviam me
convencido de que
ela era uma rainha, as tatuagens que
agora levavam as pessoas a
desprezá-
la, assobiando, como se fossem
cobras e ela uma pomba, pronta para
ser capturada. Antes de ser mandada
embora, eu já fora iniciada no ritual
doloroso e tedioso de me tornar
tatuada, felizmente só nas costas e
no peito, não no rosto ou nos braços
e pernas, como a minha mãe fora
marcada. Ninguém veria o que
estava predestinada a me tornar.
Eu estava com doze anos de idade
no último dia em que a vi, parada à
minha frente, os olhos banhados em
lágrimas. Essa era a minha idade
quando fui ao poço em Jerusalém.
Fui atraída para lá pela minha
necessidade de água e porque me
lembrei do que vira no Nilo. O meu
parente aproximou-se de mim,
encontrando-me, pois eu não tinha
permissão para ir ao mercado
desacompanhada. Vi que seus olhos
eram
prateados, a cor do peixe. Ele tirou
o balde de água da minha mão.
Quando
a sua mão roçou na minha, ele me
garantiu que isso não importava,
pois éramos do mesmo sangue e
primos. Portanto, era como um
irmão que
tocasse uma irmã, o que não era
pecado.
Ouvi-o e senti-me enfeitiçada, pois
já naquele momento ele me pareceu
ter o jeito de Deus na criação, e suas
palavras se derramaram sobre mim
como água. No entanto, eu também o
enfeitiçara. Ele era um marido, um
jovem de dezoito anos, e eu apenas
uma menina. Ao mesmo tempo, senti
a
mesma força que experimentara
quando o peixe se aproximara de
mim por
vontade própria. Ele não tinha
escolha, pois fora escrito que meu
primo e
eu nos encontraríamos, e que nosso
amor me arruinaria, e que eu não me
importaria com isso.
AGORA, enquanto o ouvia proferir
as palavras do rei Davi no dia da
loucura, quando o nosso povo se
transformara em chacais por medo,
senti-me
novamente em transe. Como
qualquer outra pessoa na montanha,
estava
influenciada pelo esplendor da sua
voz. Mas os outros não o conheciam
como eu. Quando ele recitou a
canção de David, senti como se
falasse diretamente para mim, pois
eu era a sua amada, e o fora durante
todo aquele tempo.
– Quem me dera ter asas como as
das pombas! Voaria e acharia
pouso. Eis
que fugiria para longe e ficaria no
deserto. Selah. Dar-me-ia pressa
em abrigar-me do vento e da
tempestade.
Daquela montanha não haveria mais
fuga para o deserto. Os seis
acampamentos romanos com suas
torres altas bloqueavam todas as
passagens pelas ravinas, ou pela
descida pelo caminho da serpente,
ou ao
longo do percurso traiçoeiro pela
rota sul das falésias na parte traseira
da
montanha. A fortaleza era o único
lugar em que poderíamos
permanecer.
Assim como o leão na sua corrente,
não tínhamos como fugir das forças
do
inimigo. Estava escrito que
tomaríamos posição ali e seríamos
os últimos a
fazê-lo. O resultado permaneceria
desconhecido até se abater sobre
nós e
tudo o que poderíamos esperar era
seguir o caminho de Deus.
– Eu, porém, invocarei a Deus, e o
SENHOR me salvará. À tarde, pela
manhã e ao meio-dia, farei as
minhas queixas e lamentarei; e Ele
ouvirá a minha voz. Livra-me a
alma, em paz, dos que me
perseguem; pois são muitos
contra mim.
Depois, quando as pessoas tinham se
acalmado e a sua fé havia sido
restaurada, as mulheres e as crianças
foram recolher pedras para
transformá-las em armas. Essas
eram então atiradas em uma
saraivada,
como uma tempestade de granizo
que se precipitava sobre os
trabalhadores abaixo. Mas os
romanos pareciam preocupar-se
pouco com
as pedras que eram catapultadas na
direção deles. A construção
continuou
enquanto eles levantavam as suas
guarnições feitas de pedra. Se um
escravo trabalhando no muro
chegasse a morrer, haveria outro
para
substituí-lo. Se um soldado se
ferisse e vacilasse, um companheiro
ocuparia
seu lugar.
No silêncio do crepúsculo,
ouvíamos o eco das rochas que eram
levantadas sobre o muro e
tremíamos, apesar das palavras do
rei Davi e da
ardente confiança de Eleazar. Esse
era o método dos romanos para nos
intimidar e aterrorizar. Naquela
noite, quando alimentaram o leão,
deram-
lhe um burro para que pudesse matar
sua própria refeição. Podíamos
ouvir
os gritos do burro acima do tilintar
infinito das pás e picaretas e das
vozes
ásperas dos homens gritando abaixo
de nós. Houve um grande eco no
vale
e pareceu que os soldados estavam
falando diretamente para nós, como
se
fôssemos aqueles que o leão tinha
em suas mandíbulas.
Olhei para o precipício onde a
minha filha se encontrava, escondida
na
caverna com o povo que escolhera
como seu. Parecia uma caverna
como
qualquer outra, utilizada pelo íbex
selvagem como abrigo. Se a
presença dos essênios permanecesse
desconhecida para os romanos,
talvez ela
estivesse de fato mais segura ali.
Projetou-se um clarão brilhante,
alguém na escuridão da sua caverna
levantara uma tigela de bronze, que
brilhava
no escuro. Considerei aquilo como
uma mensagem. Imaginei que fosse
seu
coração alcançando o meu. Apesar
de tudo, ela ainda era a filha que eu
labutara para trazer a este mundo.
*
NO MÊS de Shevat choveu
torrencialmente. Nosso povo não
plantou trigo, cevada ou linho, nem
se aventurou à praça para celebrar o
Rosh Chodesh, mas em vez disso
ergueu os olhos para o céu inchado
desde a porta de casa,
incapaz de ver a lua nova e,
portanto, de registrar o verdadeiro
mês, que começava com a lua.
Meus vizinhos permaneceram dentro
de casa, observaram a inundação e
respiraram o ar frio. Eles se
protegeram da chuva, tanto quanto eu
era atraída por ela. Fui para o
jardim e fiquei lá até estar
encharcada. Agradeci
a Beree, o anjo da chuva, que se
aproximou de mim quando o
procurei, pois
o havia chamado na esperança de
que os romanos parassem a
construção
se a última das chuvas violentas da
temporada os perturbasse. Quem
sabe
as poças de lama, profundas o
bastante para as mulas e os homens
se afogarem, servissem para atrasá-
los.
Mas, ao contrário, os romanos
empenharam-se com mais afinco na
tarefa. Seu mundo estava se
patenteando diante de nós. Assim
como os
anjos, inclinamo-nos para ver o que
estavam criando acima da areia.
Mais
escravos judeus haviam sido
trazidos para o vale, amarrados com
tiras de
couro, tratados como pouco mais
que ovelhas ou cabras. Só podíamos
observar nossos irmãos que tinham
sido escravizados nos chamar para
salvá-los enquanto eram maltratados
e espancados. Ouvíamos seu choro,
mas não podíamos fazer nada para
aliviar o sofrimento. Eles dormiam
em
cercados, como as ovelhas, sem
abrigo da chuva, enquanto os
soldados
residiam com comodidade em
grandes tendas armadas sobre as
fundações
de pedra, protegidas por muros, com
guardas postados em cada um dos
quatro portões que davam acesso
aos acampamentos.
Uma vez eu acreditara que fosse
capaz de controlar a chuva tanto
quanto de invocá-la, mas agora,
contemplando os inimigos, vi que
estava enganada. Somente o anjo
Beree era capaz de deter a chuva e
fazê-la servi-lo, e assim mesmo pela
graça de Deus. O que eu invocara só
favorecera os
nossos inimigos. Os romanos
banhavam-se na água da chuva e
davam
graças aos deuses. A murta floresceu
e seu perfume enchia o ar. Rebanhos
de íbex vinham deitar-se diante dos
acampamentos dos romanos para
beber das poças, embora isso
significasse que seriam abatidos,
parecendo
ser também uma dádiva do céu.
EMBORA ele estivesse doente,
deixei meu filho aos cuidados da
irmã e pedi a Yael para me
acompanhar até o auguratorium.
Vinha guardando os ossos de
pombos sacrificados, secando-os ao
sol, para depois usar para prever o
futuro.
Subimos a escada em direção à
torre. O mês de Adar estava
começando,
a época da floração das
amendoeiras, e o ar estava
perfumado. Do nosso ponto
privilegiado, pudemos ver os
acampamentos romanos na sua
totalidade, um círculo de
brutalidade. Os ossos que leváramos
conosco em
um saco de seda haviam se tornado
tão brancos que pareciam
incandescentes na escuridão
crescente. Pensei nas pombas que
tinham nos
dado suas vidas, como eram bonitas,
como eram leais entre si, como não
nos temiam, as suas guardiãs, mesmo
quando deviam ser sacrificadas.
Yael limpou a areia, em seguida
despejou um círculo de cinzas que
conteria o futuro, para que ele não se
derramasse no presente. Ela alisou
as
cinzas com a faca que sempre
carregava sob a túnica. Enquanto o
fazia, recitou um hino ao rei
Salomão. Tinha uma bela voz; cada
canto que eu lhe
ensinara era muito mais melodioso
na sua boca do que na minha. A
pureza
da canção dissipou-se através do
vale e por um momento nossos
irmãos, que eram escravos
labutando lá embaixo, olharam para
cima, como se
chamados pelo nome.
Eu ensinara bem a Yael, como sabia
que ensinaria no momento em que a
vi entrar pelo Portão da Serpente.
Embora ela não se lembrasse de
mim, conhecera-a havia muito
tempo. Por essa razão insistira que
aceitasse o amuleto de ouro que
minha mãe me dera. Antes de dar à
luz minha
primeira filha e de ser expulsa de
Jerusalém, antes de ser levada para
a Montanha de Ferro por um homem
a quem nunca chamei pelo nome,
antes
de Nahara chegar a este mundo,
antes de ter um filho chamado Adir,
um nome que o seu pai me permitira
usar, pois significava nobre para o
meu povo, antes que os pombos me
trouxessem para cá, Yael fora a
minha filha,
embora não tivesse nascido de mim,
e eu tinha sido a sua immah, a sua
amada mãe, ainda que não passasse
de uma menina na época.
Em Jerusalém, muito antes de
qualquer uma de nós ouvir falar
dessa
fortaleza, eu lhe sussurrara as
canções da minha mãe. Penteara seu
cabelo,
alimentara-a e cuidara dela, ainda
que seu pai me instruísse para deixar
seu
cabelo despenteado e não lhe dar
nada além de crostas, pois seu
desejo era
que ela nunca tivesse entrado neste
mundo e a culpava por seu luto.
Chegara até a casa deles como uma
serva, uma garota simples, de longos
cabelos negros, tão inútil que o
assassino nunca me fitara o rosto,
não notara os meus traços, nem a
minha história. Se minha mãe
soubesse da minha condição, ficaria
chocada ao descobrir que me tornara
uma
empregada doméstica, embora
soubesse ler aramaico, hebraico e
grego, e
fora educada para conversar com os
homens mais cultos de Alexandria.
Na
verdade, sentia-me aliviada por ter
ido embora da casa dos parentes
dela,
que tinham passado a me desprezar.
Fora a mãe de Eleazar ben Ya’ir que
me mandara embora para ser uma
criada. No dia em que cheguei à sua
casa, ela me levou à mikvah com a
sensação de que me achasse tamé,
impura. Quando despi a túnica,
procurei ficar nas sombras, mas ela
me viu
por quem eu era. Respirou fundo ao
ver as minhas tatuagens, então
rapidamente murmurou uma prece.
Depois desse momento, a minha tia
não perdeu o filho de vista, pois
desconfiava da minha educação. Em
breve seu medo se concretizaria.
Pelos
olhares que compartilhávamos, ela
descobriu o que se passava entre nós
dois e rapidamente adivinhou por
que o filho não se voltava mais para
a esposa, apesar de estarem casados
havia pouco tempo. Assim, minha
tia, que prometera à minha mãe que
eu estaria segura em sua casa,
mandou-me logo embora, planejando
tudo às pressas, sem o conhecimento
de
Eleazar, para que eu fosse servir em
uma casa cuja dona morrera. Era um
lugar de má sorte, onde ninguém
queria trabalhar. Por isso fui aceita
para a
função, apesar de ser uma garota
com pouco conhecimento das tarefas
domésticas, tão jovem e inexperiente
que muitas vezes dormia chorando
de
saudade da minha mãe.
Antes de me mandar embora, a mãe
de Eleazar atou um amuleto de
ervas à minha capa e disse-me que
era para dar sorte. Sorri e agradeci,
mas
sabia que não era nada disso. Ela
procurara uma praticante de
keshaphim
para conseguir um encantamento que
me vinculasse à solidão e me
mantivesse longe do seu filho.
Minha mãe me ensinara sobre essas
coisas e
reconheci a raiz de meimendro.
Assim que cheguei à rua, arranquei a
peça
costurada à capa. Deixei o amuleto
em uma calha em que corria o
esgoto,
pois era o lugar a que pertencia.
Recitei a oração de proteção, Amém.
Amém.
Selah, de modo que Ele, o nosso
Senhor, bendito seja o Seu nome, me
livrasse da maldade da minha tia.
FUI MANDADA para a casa de
Yosef bar Elhanan, onde dormia no
corredor ao lado da criança de que
devia cuidar. Ela era pouco mais
que um bebê, esquecida no seu
estrado, enquanto o irmão recebia
todas as atenções do pai e tinha a
própria babá. Enxuguei suas
lágrimas quando ela chamava pela
mãe, assim como eu o fizera quando
acordava no meio da noite e me
surpreendia ao descobrir que não
estava mais em Alexandria e que
não
havia mais pátio nem fonte, nem
lírios brancos rebrilhando na água
escura.
Sensibilizada pela tristeza da minha
protegida, eu sussurrava que ela
podia me chamar de sua immah,
muito embora tivesse apenas doze
anos e
faria melhor em me considerar a sua
irmã. Sabia que neste mundo toda
menina devia ter um protetor, pois a
minha mãe assim me dissera e eu
acreditava em tudo o que dizia.
Embora tivesse saudade da
sabedoria da minha mãe e dos seus
conselhos, agora precisava tomar as
minhas próprias
decisões. Assim, resolvi cuidar da
pobre criança sem mãe. Prometi a
mim mesma protegê-la enquanto
dormisse no corredor, que varria
todas as
noites para garantir que os
escorpiões ficassem nos cantos.
Quando o pai dessa família mandou
a cozinheira deixar apenas as
crostas para nós, pouco mais que o
alimento para os ratos, mesmo sendo
a
véspera do shabat, resolvi a
situação com as mãos. Encontrei um
cálice de bênção prateado e guardei-
o sob meu manto. Embora soubesse
que o
roubo me atrairia uma maldição,
levei o cálice ao mercado para
trocá-lo por
uma túnica e uma capa novas para a
criança, juntamente com caquis,
romãs
e uvas, bem como uma roupa de
cama para o corredor e uma pomba
que
planejava assar.
A minha pequena protegida chorou,
agarrando-se a mim, quando
percebeu que pretendia matar a
pomba, implorando-me para libertá-
la.
Embora ela fosse calada, também
era destemida quando precisava ser.
– Se eu fizer o que me pede –
adverti antes de soltar o pássaro –,
então
você em troca deve atender aos
meus pedidos.
Essa era uma barganha que minha
mãe frequentemente fazia comigo
quando pedia os seus favores. Yael
deu-me sua promessa e soltei a
pomba.
Ela desapareceu no céu acima de
Jerusalém e, ao fazê-lo, uniu-nos
para toda
a eternidade.
Não tivemos carne para a refeição
naquela noite, mas Yael ficou
contente. Eu também me senti
satisfeita por cuidar dela, ainda mais
ao descobrir que ela dormia bem.
Nunca acordava à noite quando eu
saía para
ir ao poço onde vira meu primo pela
primeira vez, para poder ser sua.
Ele
falava comigo e eu o escutava – foi
assim que começamos. Ele contava
da
sua raiva contra os costumes dos
sacerdotes do Templo, onde havia
discordâncias sobre quem
representaria o verdadeiro Israel.
Dizia que não
podia suportar que a Arca da
Aliança, a palavra de Deus a
Moisés, fosse guardada atrás de
paredes de ouro, uma vez que fora
concebida para ser colocada em uma
tenda simples, como Adonai
instruíra inicialmente. Não era de
admirar que desaparecera da vista
dos homens.
A casa do nosso povo era a palavra
de Deus, insistia Eleazar, não um
prédio construído de pedra ou de
ouro. Eu o ouvia e sabia que um dia
outros o ouviriam também e o
seguiriam, e eu gostaria de estar
entre eles.
Ele era culto e cantava os salmos de
David, ansiando por incorrer na
glória
de Deus. Eu era tanto sua discípula
como prima. Acreditava nele e em
nenhum outro, e logo lhe pertencia.
Entreguei-me a ele, como a minha
mãe
previra que faria.
Quando a esposa de Eleazar viajou
para visitar a família no norte, perto
da costa da Galileia, meu primo
levou-me à presença de um homem
culto
para nos casarmos em segredo.
Depois, conduziu-me à sua câmara,
onde
realizamos em atos o matrimônio. Eu
ardia quando estava ao seu lado.
Esquecia-me de Alexandria e do
jardim em que estudara com minha
mãe.
Nunca revelei que era instruída em
muitas línguas, pois era apenas a voz
dele que queria ouvir, não a minha.
Outro homem poderia ter
questionado
as tatuagens desenhadas no meu
corpo e dado as costas a mim ao vê-
las. Eu
lhe disse que as marcas eram o mapa
que me levara até ele e isso lhe
bastou.
Ele me aceitava como eu era.
*
COMO UMA serva na casa do meu
senhor, era de esperar que não
soubesse nada. Poderia nunca ter
recebido nenhuma instrução, meu
conhecimento
transformava-se em cinzas. Tudo o
que precisava era varrer o chão e
cuidar
da criança. Isso não era um
problema para mim. Era carinhosa
com Yael.
Aprendi a ser mãe cuidando dela.
Talvez me sentisse como se ela
fosse a minha filha, o que contribuiu
para aumentar a minha ternura por
ela.
Eleazar prometera que informaria à
família sobre seu amor por mim,
mas
não conseguiu chegar a fazer isso.
Disse que o pai era um tirano, mas
eu sabia que era à mãe que ele
temia. Uma noite meu coração
disparou e meu
sangue não veio com a lua. Senti-me
quente e afogueada, sofrendo de uma
sede constante, como me senti todas
as vezes que esperava uma criança,
pois cada vida que se desenvolvia
em mim era como uma fogueira
contra a
qual não havia outro recurso senão
carregar e deixar queimar.
Quando me tornei tão grande que
não podia mais esconder meu
tamanho, Bar Elhanan mandou-me
embora da sua casa. A menina
querida
que fora minha filha agarrou minha
capa e chorou. Assegurei-lhe que o
seu
irmão cuidaria dela, advertindo-o de
que fizesse isso sempre. Yael correu
atrás de mim, levando-me água. Era
tudo o que tinha para oferecer, mas
para mim, na minha solidão, parecia
um grande presente. Chorei ao
deixá-
la para trás. Disse-lhe que, se Deus
quisesse, voltaríamos a nos
encontrar neste mundo, antes de
passarmos para o Mundo Vindouro.
A ÚLTIMA VEZ que me encontrei
com Eleazar em Jerusalém estava
chovendo.
Tal acontecimento foi uma alegria,
inesperada e necessária. A poeira
assentou, os ramos das árvores
ergueram os braços para o céu.
Tornei-me
viva de novo, a garota na fonte, a
nadadora no rio, aquela sem medo
de se
afogar. Permaneci na rua, em frente
à casa da minha tia, até ficar
encharcada. Por fim eu o vi,
passando pelo pátio, fluido nos seus
movimentos, tornando-se parte da
torrente que se precipitava sobre
nós, inundando as ruas, forçando as
pessoas a permanecer dentro de
casa.
Somente ele podia saciar a minha
sede.
Eu o chamara para mim como
aprendera a chamar a chuva. Não
fora
preciso nem um sussurro e ainda
assim ele me ouvira. Eu acreditava
que ele se divorciaria da esposa e
me traria para sua casa, convencida
de que,
ao contrário de outras mulheres que
procuravam desesperadas as
praticantes do keshaphim, dispostas
a pagar qualquer preço por um
encantamento, eu nunca teria
necessidade de feitiços de amor.
Mas Eleazar veio me dizer que a
esposa insistira que tinha provas de
que
eu estivera em sua cama. Ela jurara
que o estrado em que dormiam
estava
manchado com o vermelho da hena
da minha pele. A minha tia, que me
desprezava, contara-lhe sobre as
minhas tatuagens, para preveni-la, e
portanto ela olhara debaixo do
cobertor que tecera para o marido e
encontrara a minha marca. O meu
amado me prometera que eu era
tanto
sua esposa quanto ela, mas então vi
a verdade em seu semblante, seu
desejo por mim entrelaçava-se com
a tristeza. Se elas encontraram a cor
vermelha no local em que ficáramos
juntos, então essa era uma previsão
do
meu destino e na realidade era o
meu sangue, pois meu coração
começara a
chorar.
Fui dominada por um tipo de medo
que não sentira antes, nem mesmo
quando deixara a minha mãe.
Lembrei-me do que ela previra no
dia em que
vi o futuro. Havia uma parte de mim
que desejara ter ficado ao seu lado,
embora tivessem tirado de nós a
casa. Novos inquilinos certamente
usufruíam da fonte em que cresciam
os lírios brancos. Eu chorava sobre
aquelas flores raras quando queria
lamentar o meu destino. Disse que
não
poderia viver sem elas. Tornei-me
frenética, incontrolável. Meu primo
aturdiu-se, preocupado; pediu-me
para esperar, enquanto corria ao
mercado, de onde me trouxe um
frasco de perfume. O presente
deveria me
agradar, pois transmitia o cheiro de
lírios, mas a fragrância viera dos
lírios
vermelhos dos campos de Moabe e
não dos que conhecera na infância.
Chorei ainda mais, pois entendia
agora a perda que sentira quando era
apenas uma menininha, não mais
velha que Yael, e vira o meu futuro
no Nilo.
Eleazar prometeu que pleitearia com
os anciãos da família para que eu
fosse aceita no seu lar como a
segunda esposa. Tais arranjos eram
bastante
comuns, especialmente entre as
famílias ricas das cidades em que
havia poucos homens, ou se a
primeira esposa fosse incapaz de
gerar um filho. O
meu amado era um homem honrado,
mas jovem, e ainda não se atrevera a
enfrentar os pais. Ele aprenderia
bem essa lição quando se juntasse
aos zelotes que desafiavam os
sacerdotes do Templo, mas por
enquanto estava
à mercê da família.
Garanti ao meu primo que esperaria
até que fosse me procurar, mesmo
sabendo que não o faria. As marcas
que sua esposa jurava terem
manchado
o leito nupcial foram a minha ruína,
e nenhum homem de algum valor me
tomaria como esposa. Sua família
não permitiria.
ENCONTREI um alojamento onde
poderia me hospedar atrás da casa
de uma keshaphim. Havia reparado
na minúscula choupana quando fora
ao
mercado, pois minha mãe costumava
ir a esses lugares em Alexandria e
eu
não me esquecera disso. Ela me
instruíra que, em momentos de
privação,
poderia encontrar refúgio entre as
mulheres praticantes da magia. Três
velhas que eram irmãs moravam lá.
Eram todas solteiras, que se diziam
ser
bruxas que se transformavam em
dragões à noite. Na verdade, eram
pessoas de bom coração, pobres,
mas experientes nos procedimentos
da
magia. Em troca da permissão de
dormir lá, eu preparava as refeições
e aprendi a fazer pão no pequeno
forno de barro, nunca me
esquecendo de
separar os queimados como
oferenda em sacrifício a Deus para
que Ele não
me abandonasse. Meu primo não
retornou. Sonhei com ele durante
noites a
fio e depois ele desapareceu dos
meus sonhos. Então, quando
acordava do
sono, estava ofegante, pois me
afogava nos sonhos, eu me afogava
no rio a
que a minha mãe me levara. Pela
primeira vez percebi que, apesar de
o peixe se aproximar de mim, ele
também nadara para longe. Essa fora
a razão pela qual me sentira
desamparada enquanto permanecera
atolada no
Nilo.
Implorei às irmãs por um
encantamento de amor, pois não se
pode fazer
um amuleto desses para si mesma.
Elas moldaram uma taça encantada
com
a argila branca de Jerusalém, que
diziam ser a mais pura do mundo.
Antes
de a taça ser levada ao fogo, eu
deveria escrever em torno dela com
uma cana afiada. Santos anjos, eu
vos suplico que, assim como esse
barro é queimado, o coração de
Eleazar ben Ya’ir queime por mim.
Mas, ao ser queimada, a taça se
quebrou. Reunimos os pedaços,
embora
eles nos queimassem os dedos. Era
um mau presságio, mas peguei os
cacos,
enrolei-os em linho e os embebi com
as minhas lágrimas.
Quando chegou a hora de eu trazer
uma vida a este mundo, as irmãs
foram minhas parteiras. O primeiro
parto foi difícil. Eu era jovem e
estava
assustada. Desde aquele momento,
tenho assistido a uma centena de
nascimentos, mas meu sangue me
aterrorizou, e o calor dilacerante
dentro
de mim quase me fez em pedaços.
Quis desistir e deixar que o Anjo da
Morte me levasse, mas uma das
irmãs inclinou-se sobre mim para
me
exortar.
Ehyeh Asher Ehyeh. Em nome do
que sou o que sou, o nome de Deus,
saia.
Você concluiu a jornada e agora
chegou. Amém. Amém. Selah.
Chamei a minha filha de Rebeca e vi
que tinha os olhos do pai. Isso foi
tudo que recebi dele. Esse foi o
castigo de Deus.
FUI CHAMADA à presença dos
anciãos que me julgariam na
cerimônia do sotah, na tentativa de
provar a minha culpa como adúltera.
A situação tornara-se
uma questão legal, pois a mãe e a
esposa de Eleazar me acusavam de
adultério e de ter relações sexuais
com demônios. Eles destrançaram o
meu
cabelo e deixaram-no cair
desgrenhado, para envergonhar-me e
exibir-me
como uma das discípulas de Lilith.
Pareciam se esquecer de que eu era
apenas uma criança, pois completara
treze anos poucos dias antes.
Escreveram o nome de Deus em
pergaminho e o mergulharam em um
copo
de água, para que a palavra se
apagasse no líquido. Eu fui forçada
a beber o
nome do Todo-Poderoso. Se
vomitasse, isso significaria que a
minha
impureza não aceitaria o que era
puro. Então, eu seria revelada como
adúltera.
Mas a água era meu elemento e não
me abandonou. Bebi-a toda,
permanecendo diante deles ilesa e
impenitente. Declarei que não
cometera
adultério, e isso era verdade.
Somente Eleazar ben Ya’ir era meu
marido.
Eles ergueram a minha filha para
examiná-la. Ela era um ser pequeno,
com uma cabeleira escura. Parecia
exatamente como eu quando nasci, a
minha imagem em muitos sentidos.
Aqueles que nos julgaram quase se
convenceram de que não havia
prova nenhuma de qualquer
irregularidade.
A criança morena era minha. Não
havia sinal do pai, fosse ele humano
ou uma criatura indescritível, nem
asas, nem chifres, nem nenhuma
marca do
demônio. Eles quase nos deixaram
ir. Até que encontraram a prova na
cor
dos olhos dela.
– Os olhos de um demônio –
testemunhou a esposa de Eleazar, e
talvez
naquele momento ela acreditasse
que isso fosse verdade.
O pai de Eleazar o confinara, para
que não viesse ter comigo. Naquela
noite ele conseguiu enviar um criado
com uma gaiola de madeira
contendo
dois pombos, treinados para retornar
a ele, dedicados um ao outro como
nós. Levei os pombos e a minha
filha na carroça que usaram para me
expulsar da sua vista. Deixei o meu
amado para trás, mas no xale
mantive o
que restava da taça encantada. Levei
os pedaços de cerâmica para a
Montanha de Ferro quando
acompanhei o homem que pagou
algumas
moedas por mim. Usei goma de
terebintina para colar os cacos
quebrados
no lugar. Então esperei. Passaram-se
anos na espera, toda uma vida.
Quando finalmente meu amado me
chamou, quebrei a taça
deliberadamente, certa de não
precisar mais de tais encantamentos.
Mas, quando joguei os ossos dos
pombos na torre para ler o que
estava
por vir, entendi que me enganara.
NOSSOS GUERREIROS saíam em
pequenos grupos, com lanças, em
silêncio, invisíveis e mortais.
Atacavam os escravos que
construíam o muro nos
penhascos atrás de nós e os
soldados que os supervisionavam.
Mas, assim
que os inimigos caíam, outros os
substituíam, como se não fossem
carne e
osso, apenas talos de trigo.
Quando o nosso povo roubava
armas, no entanto, elas não eram tão
facilmente substituídas. A raiva dos
romanos era brutal contra esse tipo
de
ofensa, a retaliação tornava-se feroz.
Mostravam que não tolerariam tais
procedimentos, capturando os
guerreiros que invadissem seus
depósitos,
aglomerando-se em torno deles em
tão grande número que os nossos
desapareciam sob o ataque.
Os escravos romanos haviam
fincado madeiras profundamente na
terra
e erguido uma plataforma para que
todos pudessem ver. Eles
crucificavam
o nosso povo no nosso próprio vale,
depois cortavam a cabeça dos
corpos,
de modo que o espírito dos nossos
entes queridos permanecessem
vagando. Atiravam as cabeças ao
chão e rolavam-nas para o leão. Mas
o animal se recusava a pegá-las.
Deitava-se e não tocava nelas.
Ainda era Adar, o mês das
amêndoas e da boa sorte, a época
em que Yael
viera pela primeira vez ao pombal.
Talvez o nosso povo ainda fosse de
algum modo afortunado. Um
sussurro espalhou-se entre nós, de
que a
besta que fora aprisionada era o
nosso leão, estava do nosso lado.
Entre os
guerreiros formou-se uma aposta:
quem libertasse o leão daria a maior
glória a Deus. Aquele que o fizesse
seria abençoado e traria a bênção de
Deus para o nosso povo.
NÃO IMPORTAVA como
pudéssemos rasgar as vestes e
entoar lamentações, não haveria fim
à nossa dor, pois sem os corpos ou
sem os ossos não
poderíamos homenagear nosso povo.
As famílias dos assassinados davam
gritos alucinados e procuravam os
sacerdotes, pedindo vingança. Não
havia
um só homem entre nós que não
daria a vida em troca da liberdade
do nosso povo, mas uma vida não
era nada para os inimigos. Éramos
como os
gafanhotos que eles podiam matar
sem esforço, com um único tapa.
Meu filho tentou arrastar-se para
fora da cama, usando uma muleta
que
fizera com um galho caído da árvore
que crescia atrás do alojamento.
Queria lutar ao lado dos
companheiros, mas Aziza pediu-lhe
que a deixasse
ir no seu lugar. Ela se sentou à mesa
e cortou o cabelo comprido, depois
trançou com força o pouco que
restara junto da cabeça. Ela instruiu
o cão
para ficar de guarda e não deixar
que Adir deixasse o alojamento. Ao
seu comando, o enorme mastim
permaneceu ao lado do menino,
rosnando,
formando uma espuma nos cantos da
boca.
– Estou prisioneiro? – o pobre Adir
quis saber.
Ele ainda era uma criança aos meus
olhos, mesmo que tivesse a minha
idade ao ser expulsa de Jerusalém
para encontrar o meu caminho no
deserto, quando fora julgada como
uma mulher e já abdicara da
inocência.
Yehuda viria fazer companhia a
Adir, cuidando para que não fugisse,
pois o menino essênio não lutaria ao
lado do nosso povo e, embora
permanecesse conosco e Revka
cuidasse dele como se fosse seu
filho, ele se
mantinha à parte com as suas
crenças.
– Você é o meu carcereiro também?
– Adir perguntou ao amigo.
– Isso eu nunca seria – Yehuda
respondeu.
O menino essênio levantou-se e
abriu a porta para Adir sair, caso
fosse
esse realmente o seu desejo. Mas
Adir estava cansado das nossas
discussões; ele se reclinou para trás
no estrado, o rosto acinzentado. A
sua
vida de guerreiro fora-lhe tirada;
dele próprio restava apenas uma
parte.
Embora eu sentisse compaixão,
também estava aliviada.
Egoisticamente,
não queria arriscar a vida do meu
filho.
A minha filha era outra questão. Ela
fora forjada do ferro.
NO LADO DE FORA havia uma
loucura crescente. Os romanos
tinham começado
um ataque com flechas incendiárias
que caíam sobre nós em uma chuva
incandescente. Uma parte do pomar
se incendiou e, mesmo quando as
chamas eram apagadas, nosso povo
correndo a extingui-las com jarros
de
água preciosa, o perfume das frutas
queimadas espalhava-se por toda
parte. Enquanto nossas árvores eram
destruídas, enquanto nossos filhos
respiravam a fumaça, enquanto
nossas roupas eram chamuscadas e
ficavam pretas com a fuligem, os
romanos montavam uma arena para
brigas de galos, de modo que
pudessem ter alguma diversão à
noite.
Quando se entediavam disso, eles
incitavam os escravos uns contra os
outros com lanças e correntes, pois,
para os romanos, a vida dos
escravos
não valia mais que a dos galos.
Demos-lhes as costas e não olhamos
para eles lá embaixo. Cobrimos as
orelhas para não ouvir os escravos
clamar por suas mães, suas esposas
e pelo seu Deus, que parecia tê-los
abandonado.
NO DIA em que meu filho foi
chamado ao dever, a exemplo dos
demais guerreiros, fui ao quintal
com Aziza. Alguns diriam que eu
estava errada em
deixá-la ir tão facilmente e permitir
que lutasse entre os homens, mas o
seu
destino já fora escrito. Talvez
pudesse ter evitado a convocação
para a guerra se não tivesse mudado
seu nome, ou talvez fosse esse seu
destino,
não importava por que nome fosse
chamada. Ela seguia o caminho do
seu
elemento. Sempre escolhera o metal,
um elemento frio e afiado. Isso lhe
convinha, como lhe conviera
cavalgar pelas pastagens.
Antes que partisse, ofereci-lhe o
segundo amuleto de ouro para
proteção
que usava ao pescoço, mas ela
balançou a cabeça.
– Estou protegida – ela me
assegurou. – Não tenha medo.
Quando ela levantou o lenço,
observei o medalhão prateado com a
imagem de Salomão atacando um
demônio feminino. Nenhuma mulher
teria permissão de usar tal amuleto.
Sua coragem deixou-me orgulhosa,
assim como atraiu uma nuvem de
pesar.
– Deveríamos ter ficado onde
estávamos – eu disse com tristeza.
Começara a sonhar com a Montanha
de Ferro. Nos meus sonhos havia
quarenta árvores de acácia e, em
cada uma delas, quarenta pássaros
pretos.
Eu me encontrava sob os galhos e
descobria que não conseguia me
mover.
Meus pés haviam se entrelaçado
com as raízes de uma árvore, os
braços eram ramos cobertos de
flores amarelas. As abelhas eram
atraídas para
mim e se aglomeravam ao meu
redor, e eu chorava por não poder
provar a
doçura do seu mel, embora ele
estivesse por toda parte.
Eu fizera tudo o que pudera para
evitar que minhas filhas seguissem o
meu destino. Nada disso impedira o
que a minha mãe me dissera ter sido
escrito antes de elas nascerem, antes
de eu ir para Jerusalém e parar junto
ao poço, e de fazer o que mais me
agradasse, mesmo sabendo aonde
me levaria. O amor seria a causa da
minha ruína. Por essa razão fizera o
possível para não amar as minhas
filhas, para não atrair sobre elas a
minha
maldição. Nisso, eu fracassara.
– Aqui é o lugar onde deveríamos
estar – Aziza me assegurou.
Sua pele estava queimada pelo sol.
Notei que a cicatriz embaixo do seu
olho brilhava muito branca em
contraste com o rosto bronzeado.
Ela
poderia ter sido uma bela mulher,
em vez disso era um guerreiro. Ela
poderia ter sido um menino
caminhando pelas ruas da cidade
vermelha de
Petra, em vez disso era a minha
filha, que me seguira a essa
fortaleza, e a
quem eu amava, apesar das muitas
maneiras pelas quais tentara não
fazê-
lo.
Quando ela foi para o quartel pensei
na minha mãe, que ficara no pátio
ao lado da fonte para me ver deixar
Alexandria. Agora entendia que ela
sabia que não me veria novamente.
O meu coração falhou, porque eu
vira o
futuro e o que estava por vir nos
ossos que jogara no chão da torre.
Eu perderia tudo o que possuía.
Algo estava terminando, mas
também começando. Podia sentir a
vida
dentro de mim se mover e mudar de
posição. A criação começara no
monte
do Templo e talvez recomeçasse
outra vez se o restante
desaparecesse. Já
havia homens falando de um terceiro
Templo, que surgiria no futuro, mais
glorioso que qualquer outro. Da
destruição sucederia a luz, e as
primeiras
palavras seriam novamente
pronunciadas em um silêncio
sagrado, pois o
início é sempre assim.
Caminhei até a muralha, a capa
apertada em torno de mim.
Descansei a
mão sobre a barriga e sobre a minha
filha que ainda não era nascida. O
meu
amado desejava um filho, todos os
homens desejam, mas eu sabia que
teria
outra filha. Sempre carregava uma
menina do mesmo modo, no alto,
embaixo do coração. Queria outro
mundo para ela, não aquele caos
abaixo
de nós. Ainda se viam poças de
chuva no fundo do vale. Em
qualquer outro
momento, eu seria grata. As cabras
selvagens e os cervos viriam beber.
Os
falcões e as garças cairiam do céu
para se banhar, e os corvos, que
haviam
alimentado Elias no deserto, viriam
até nós com ameixas nos bicos.
Agora só havia o leão, cuja corrente
permitia-lhe rolar na água. Estava
coberto de lama, as patas enormes
deixando marcas fendidas na terra
úmida. Obriguei-me a desviar o
olhar do grande animal, pois não
suportava
vê-lo tão aviltado e domesticado.
Lembrei-me dos ursos sírios
treinados que podiam ser vistos nas
ruas de Alexandria e de Jerusalém,
mas o que via
agora era muito pior, pois o leão
fora humilhado na sua própria terra,
despossuído como nós, senhor de
nada, a não ser de pedras.
Em meio à minha tristeza, reclinei-
me sobre o penhasco e, quando o fiz,
avistei uma cabra preta ao lado da
montanha. Por certo fugira da
caverna
dos essênios. O animal descarnado
cambaleava entre as pedras, perdida
e
abandonada, incapaz de encontrar o
restante do rebanho.
Era um sinal das trevas que se
avizinhavam.
UM SOLDADO romano percebeu a
cabra, mas um foi tudo o que bastou.
Ele chamou os companheiros e
rapidamente saíram todos atrás da
criatura,
primeiro por diversão, depois com o
fervor implacável dos caçadores.
Ao fazerem isso, depararam-se com
o acampamento daqueles que só
queriam
a paz. Yehuda aproximou-se da
muralha ao meu lado quando os
romanos
começaram a subir para as cavernas
de calcário abaixo de nós. Era como
se
sua mãe, ainda entre seu povo, o
tivesse chamado ali, assim como me
chamara o coração da minha filha.
Éramos impotentes para fazer outra
coisa senão assistir, enquanto os
soldados escalavam o penhasco. Um
deles
caiu e eu me apressei a louvar a
Deus, perguntando-me o que fora
feito de
mim para rezar pela morte de um
homem sobre as rochas,
regozijando-me
com o som de seus gritos.
Os soldados que conseguiram atingir
um patamar no penhasco depois
lançaram cordas para garantir que
aqueles que os seguissem tivessem
mais
facilidade em escalar a encosta.
Como se diz dos anjos, podíamos
ver o que
estava para acontecer antes de
acontecer, mas, a exemplo deles,
não
éramos capazes de alterar o
resultado. Se era isso o que os anjos
observavam quando contemplavam o
nosso mundo, enquanto nos
matávamos uns aos outros e nos
torturávamos sem descanso, então
senti
pena deles como não sentira de mais
ninguém.
Os nossos guerreiros apareceram
para lançar uma saraivada de
flechas,
mas essas caíram sobre as pedras
como se fossem pássaros caindo do
céu.
Aziza também acorrera à muralha,
mas estava vestida como mulher e,
portanto, era impotente, embora não
pudesse ser impedida de atirar
pedras, e ouvi o grito de guerra de
Moabe escapar de seus lábios. Os
soldados romanos tinham entrado na
caverna e lá nossas armas não
podiam alcançá-los. Vários dos
nossos guerreiros puxaram Aziza de
volta quando ela subiu na muralha,
em uma tentativa de saltar para a
briga abaixo de nós, pois um
guerreiro como a minha filha não
podia ficar de braços cruzados, e ela
foi, portanto, contida por cordas.
Embora os assassinatos ocorressem
fora do alcance da nossa vista, não
estavam longe dos nossos ouvidos, e
fomos obrigados a escutar o som da
morte, tão terrível de ouvir, ainda
pior quando o que vemos está dentro
de
si mesmo, as mil crueldades
praticadas sobre aqueles que
amamos.
Aziza e eu ficamos juntas e
choramos, sem saber se os gritos
que
ouvíamos eram as vozes daqueles
que amávamos ou dos impiedosos
gaviões acima de nós. Poderíamos
segurar as mãos sobre as orelhas,
poderíamos nos virar, mas isso não
acabaria com o horror. O lamento
dos
mortos pode ser ouvido em todos os
cantos deste mundo e no Mundo
Vindouro. Ele não para quando o
som acaba, ele permanece dentro de
nós,
uma parte eterna do nosso ser.
POR ELA NÃO poder ser enterrada
e seus ossos permanecerem
espalhados, a alma da minha filha
ficaria ao lado do seu corpo,
perdida, tentando
desesperadamente reinserir-se e
tornar-se viva mais uma vez. Os
chacais a
encontrariam, mas a alma
permaneceria na caverna, mesmo
quando a
levassem em suas mandíbulas; ela
veria quando os animais a
sacudissem
em pedaços para devorá-la. Ela
sofreria todas as agonias da carne
em
espírito. Não haveria taharah, a
purificação que prepara o corpo
para o outro mundo, nem a água ou
os óleos abençoados, nem o aloé
para lavar os
pecados da vida na terra. Ainda que
os puros de coração, segundo se
dizia,
fossem capazes de ver a Shechinah
enquanto morriam, eles erguiam os
olhos para a face mais radiante e
piedosa de Deus. Era o que eu
poderia esperar. Que no momento da
sua morte ela visse a luz de Deus e
nada mais.
Desejei que a mentira contada pelos
romanos sobre o povo do pai de
Nahara fosse de fato verdadeira e
que seu sangue corresse azul, de
modo que, quando a cortassem, mais
mil surgissem em seu lugar. Eu
quase
morrera no nascimento dela, e teria
morrido não fosse por Aziza ter sido
uma criança tão destemida. Toda
aquela agonia passou somente a fim
de que eu pudesse viver para entoar
lamentações para ela durante todo o
dia e
toda a noite. Rasguei minhas vestes
até as mãos sangrarem, lamentando
como fizera antes. Embora a tivesse
perdido quando ela me desafiara e
se
casara com Malaquias, lamentei-me
amargamente por ela agora. O
sangue
dela estava em minhas mãos. Não
culpei Malaquias nem os essênios,
pois fora eu quem a levara à
perdição, exatamente como a minha
mãe previra que faria, arruinando
todos os que amasse e alguém que
pudesse me amar.
Quando a filha de Moabe nasceu, o
pai esperou dez dias para vê-la,
como
era o costume do seu povo. Ele
queria um filho, mas, quando entrou
na tenda, o rosto se abriu em um
sorriso. Era bom que um homem não
pudesse ver o filho imediatamente,
quando a criança ainda estava
abalada
pelo nascimento, inchada e azul pelo
fardo de vir à vida. Aos olhos do
pai,
essa menina era um ser radiante. Ele
era um homem que não escondia o
que sentia. Ele escolheu o nome para
ela e concordei com a decisão, pois
Nahara significava a luz que
brilhava sobre uma grande beleza.
Concordamos em muitas coisas, mas
nessa mais que tudo. Gostaria de
saber se, do outro lado do Mar de
Sal, o pai da minha filha sabia que
ela estava perdida, se esperara por
todo aquele tempo que voltássemos.
Gostaria de saber se, quando ele me
encontrou no deserto e levou-me
consigo, agi errado por não o amar.
No mínimo, deveria ter sido grata o
bastante para oferecer-lhe em troca
a minha lealdade.
*
NOSSO POVO saiu para ver a lua
nova por ocasião do Rosh Chodesh.
Elevamos a Deus as nossas orações,
mas não nos rejubilamos. Não houve
dança. O
muro romano fora concluído,
cercando-nos como uma víbora. Os
acampamentos tinham sido erguidos,
vários deles maiores que a maioria
das aldeias. Aqueles de nós que não
tinham vindo de Jerusalém ficaram
surpresos com o que a legião
realizara; abaixo deles, havia mais
pessoas do
que muitos tinham visto na vida,
todos os seis mil usando as túnicas
brancas da legião e milhares mais
escravizados para ajudá-los em suas
tarefas brutais.
O acampamento principal dos
romanos, montado diretamente à
frente
do Palácio do Norte, ostentava uma
torre que rivalizava com a de
qualquer
guarnição. Houve outro grande
acampamento atrás de nós,
guardando a
traiçoeira encosta oriental, e mais
seis acampamentos menores
dispostos
em um círculo. Além do
acampamento de Silva, ficava a
aldeia de
seguidores da legião, onde as
pessoas cuidavam das suas
necessidades
cotidianas, criando galinhas,
levando as mulheres para o seu
prazer,
rezando para seus deuses.
Considerei cada um deles como o
assassino da minha filha.
Saí à noite para a muralha, local em
que produzira feitiços
anteriormente, e lá proferi um
terrível juramento.
Invoco e suplico a Deus, o
Altíssimo, o Senhor de todos os
espíritos e da carne, contra aqueles
que traiçoeiramente assassinaram
ou mataram, que derramaram o
sangue inocente de uma forma
injusta. Senhor, que
supervisionais todos os anjos,
diante de quem toda alma se
humilha, vingai o sangue inocente e
buscai justiça.
Escrevi essas palavras em um
pergaminho, depois as queimei para
que
subissem ao Todo-Poderoso.
Invoquei os anjos de Chimah, os
mensageiros
da ira e da vingança. Também se diz
que Chimah é o nome das estrelas
do
céu que são as sete irmãs, que velam
por nós nos momentos de dor.
Enquanto implorava aos anjos,
encostei uma faca sobre a minha
pele e fiz
um corte ao longo da palma da mão
esquerda, embora o nosso povo não
estivesse autorizado a cortar a si
mesmo ou promover dano ao que
fora criado por Deus. Cortei
profundamente enquanto me oferecia
em troca de
manter meus filhos sobreviventes a
salvo de todos os seres vivos, dos
demônios que estavam tão próximos
e do leão abaixo de nós.
OS INIMIGOS estudaram
atentamente nossos costumes. Para
eles, nada mais éramos que um
escorpião preso sob uma peça de
vidro. Eles queriam
avaliar quando seria a nossa
próxima ferroada. Todas as vezes
que
tentaram escalar o caminho da
serpente, derramamos óleo fervente
sobre
seus homens. Nossos arqueiros
empoleiravam-se nas oliveiras e ao
longo
da muralha, prontos para abater
quem quer que tentasse passar. O
caminho era estreito e havia muitos
na legião, os romanos se tornavam
um
alvo fácil quando começavam a
escalar a montanha.
Achamos que eles veriam o quanto
um escorpião podia ser perigoso,
apesar do tamanho diminuto. Mas,
ao que tudo indicava, os romanos
pareciam ter concluído que a melhor
maneira de pegar um escorpião era
esmagando-o no próprio jardim.
Para nos destruir, eles precisavam
chegar
até nós. Então começaram a fazer
seu próprio caminho, uma rampa
larga construída na encosta oeste
que subia na direção do Portão
Norte. Barril após barril de terra
foram trazidos para levantar essa
rampa, que tomou a
forma de uma montanha branca.
Pensamos que eles eram loucos para
tentar criar o que só Deus poderia
formar, um penhasco que se elevava
a cem metros do vale e por onde
poderiam nos perseguir. Mas havia
tantos
escravos, o trabalho era tão
incessante, que diante dos nossos
olhos o penhasco apareceu, tão
branco que seu brilho queimava. À
noite parecia que o mundo virara de
cabeça para baixo e as estrelas
brilhavam abaixo de
nós, subindo em nossa direção,
ameaçando nos queimar com sua luz.
Os homens que estavam na sinagoga
se reuniram para discutir se era ou
não realmente possível que aquela
rampa chegasse à nossa muralha.
Mas,
durante o tempo gasto para debater
esse assunto, a rampa subiu tanto
que
podíamos ouvir claramente os
trabalhadores. Os soldados romanos
foram
capazes de lançar dardos e lanças,
que tiraram várias vidas. Estávamos
atordoados com o que os nossos
inimigos tinham conseguido e como,
a
exemplo do nosso Criador, haviam
construído uma montanha da noite
para
o dia.
EM JERUSALÉM, eu vira minha
rival apenas uma vez, quando subia
na carroça no dia em que fui expulsa
da cidade. Eu tinha na mão a gaiola
de madeira
com os pombos e carregava nos
braços a minha filha, que chorava.
Eles me
forçaram a ir com os pés descalços,
como era o costume; quando meus
pés
sangrassem, mais uma tristeza seria
adicionada ao castigo. Lembro-me
de
que a esposa de Ben Ya’ir estava
usando sandálias finas, feitas de
couro de
cabra, entrelaçadas com fivelas de
metal. Ela usava colares de lápis-
lazúli,
cornalina e turquesa e pulseiras de
ouro nos braços. Eu tinha apenas um
lenço preto ao redor do corpo.
Enquanto a minha inimiga me via
subir na
carroça que transportava ovelhas
para o açougueiro, não pensei nos
tormentos do deserto, nem nos
abutres e nos corvos que nos
acompanhariam. Não estava
preocupada com o calor que se
abateria sobre
nós nem com os chacais que não se
contentariam em esperar nossa morte
para ter sua refeição. Em vez disso,
tinha vergonha dos meus pés
descalços.
Agora, depois de todo esse tempo,
ela veio à minha porta no dia em que
a rampa romana foi concluída. A
rampa não atingira o objetivo e por
isso agradecíamos. Mas
estremecíamos ao pensar que os
romanos corrigiriam
isso e que estavam determinados a
nos alcançar, mesmo que isso
significasse flutuar no ar.
O cão que vigiava meu filho latiu
quando Channa se aproximou, como
se
ela pudesse ser o Anjo da Morte
batendo à nossa porta. Dizem que os
cães
sabem distinguir essas visitas. Em
Alexandria, eu testemunhara o cão
de um padre uivar no momento da
morte do seu dono; a criatura
chorosa foi
depois sacrificada para que o corpo
pudesse ser enterrado ao lado do seu
senhor. Segurei nosso cão de guarda
pelo pescoço e abri a porta para
encarar a minha interlocutora com
ódio. Já a enfrentara uma vez nessa
montanha e ela não tinha mais
nenhum poder sobre mim.
Pelo menos ela foi esperta o
bastante para não cruzar o umbral da
porta.
Observei a minha rival, o rosto
contraído, os olhos tristes, e por sua
vez ela
me fitou. Nesse momento não
procurei disfarçar que logo traria
outra
criança a este mundo. No entanto,
era um mundo dilacerado. Para mim,
o
nascimento parecia menos uma
dádiva para a alma que eu carregava
que
uma maldição.
O cão arregaçou os lábios e exibiu
os dentes para a visitante.
– Só quero um minuto – disse
Channa apressadamente.
Afrouxei o meu domínio sobre o cão
e ele estalou os maxilares. Talvez
Eleazar tivesse mencionado que ela
tinha medo de cães. Talvez isso me
agradasse.
– Pensei que quisesse a minha vida
– comentei.
– Não. – Ela balançou a cabeça. –
Queria o meu marido.
– Então vá procurá-lo – sugeri.
Ela pareceu hesitante. Somente
quando comecei a fechar a porta, ela
falou, disparando as palavras.
– Só você pode me conceder a
proteção da vida dele.
Olhamos uma para a outra no umbral
da porta. Perguntei-me se era
possível que, mesmo naquele
momento, enquanto Roma nos
cercava,
Channa pudesse estar tentando me
atrair para uma armadilha, na
esperança de me levar perante o
conselho para ser julgada como
bruxa.
Ainda assim a escutei, pois aquela
mulher e eu estávamos vinculadas
uma à
outra como a noite está ligada ao
dia, sem nunca nos conhecer e, no
entanto, sem nunca nos iludir uma
com a outra.
Talvez quisesse vê-la implorar por
alguma coisa. A tentação dos seus
apelos consternados e do seu
remorso era irresistível. Mandei o
cão para dentro, depois saí para o
pátio. Em qualquer outro ano, essa
temporada teria significado o início
do plantio, mas os campos estavam
em pousio. Não
havia sementes, nem homens para o
trabalho com o arado, tampouco
animais para ajudá-los.
– Não sou mágica – disse à minha
rival. – Não posso conceder-lhe
nada.
As amendoeiras estavam em plena
floração e o hissopo também
florescia. Channa terminara o
remédio que lhe mandara e
novamente
estava propensa a ter dificuldade
quando respirava fundo. Não
mencionei
que o hissopo crescia ali perto, ao
longo do meu muro. Deixei que
ofegasse.
– Hoje à noite os guerreiros sairão
para tentar impedir a construção da
rampa. Nem todos voltarão.
Eu estava decidida a não deixar que
ela visse o quanto essa notícia me
afetava. Se ela pensasse que eu era
indiferente, não teria o poder de me
magoar.
Channa continuou em face do meu
silêncio.
– Sonhei que ele só voltaria com a
ajuda de um pássaro preto.
– Não sou um pássaro – eu disse,
embora estivesse alarmada com a
notícia, pois também sonhara com
um pássaro preto, um corvo, como o
que
visitou Elias e o alimentou quando
ele se perdeu no deserto e não tinha
sustento. – Por que veio me
procurar?
Ela olhava para a criança dentro de
mim.
– É um filho? – Sua voz soou
melancólica.
– Agora você acha que sou uma
bruxa e capaz de adivinhar a
vontade de
Deus. Acha que sou muitas coisas,
ao que parece. Já pensou que eu era
uma
menina quando fui mandada para o
deserto? Viu que meus pés estavam
descalços, que os abutres me
seguiam e que estava sozinha,
enviada para morrer? Talvez seja
por isso que teve esse sonho. Talvez
esteja destinada a
engasgar com as penas.
– Salve-o, mesmo que seja para si
mesma – Channa disse-me então.
Ela levantou os olhos e vi a
verdade, que ele era o seu marido e
que ela
estava disposta a fazer qualquer
coisa para salvá-lo. Dei um passo
para trás.
Sabia que ela ainda tinha poder
sobre mim e que esse derivava do
fato de
que o amava.
– Eu devia ter levado você para
nossa casa – continuou ela. – Então,
seus
filhos seriam meus como o meu
marido era seu. Poderíamos ter
carregado
nossos fardos e nossas alegrias
juntas, como irmãs.
Fiquei maravilhada por sua coragem
de me falar dessa maneira, por não
ter medo de cortejar o meu ódio e o
meu despeito. Em vista disso,
amoleci
de uma maneira que não pensara ser
possível. Talvez estivesse escrito
que
ela arruinaria a vida dela e a minha.
Talvez ela também não tivesse
escolha
a não ser seguir o destino.
– Não faça para mim – insistiu
Channa. – Faça pela pessoa que
você ama.
O nosso marido.
Observei-a enquanto se afastava,
ligeira, acompanhando a muralha,
embora voassem flechas por perto,
algumas delas incendiárias. Ela não
tinha medo delas; talvez não se
importasse mais com questões como
a
própria segurança. Notei que seus
pés estavam nus, que tinha um lenço
preto enrolado ao redor dos ombros,
que era ela quem estava agora no
deserto e que tudo o que dissera era
verdade.
FUI ATÉ o Portão da Serpente e
pedi ao guarda que me deixasse
passar.
Entendi por que sonhara com
quarenta acácias cercadas por
abelhas. O
sonho fora-me inspirado pelos anjos
e pelo Todo-Poderoso. O que
parecia
ser um quebra-cabeça agora ganhava
a forma de um caminho.
O guarda poderia ter me barrado,
mas Amram passava perto e voltei-
me
para pedir ajuda. Ele parecia
arrogante e impaciente, parcialmente
vestido
com sua armadura prateada. Trazia o
cabelo comprido trançado, pronto
para a guerra.
– Nenhuma mulher passa pelo portão
– ele me disse friamente, já se
preparando para a noite seguinte,
quando os guerreiros pretendiam
atacar
os escravos que construíam a rampa.
Ele não fazia ideia de que o
conhecera como uma criança
mimada e doce,
favorecida aos olhos do pai. Seu
comportamento agora era agressivo
e vi algo sombrio dentro dele, uma
escuridão de espírito que não existia
antes.
Alguns sussurravam que os ataques
do nosso povo tinham incluído o
assassinato de mulheres e crianças.
Juravam que os guerreiros não
tiveram
escolha, que era tudo pela causa do
verdadeiro Israel e daquele cujo
nome
nunca pode ser pronunciado em voz
alta, Eu sou eu. Mas a guerra
provocava essas mudanças em
todos, e essas eram acompanhadas
da perda
de lev, o coração verdadeiro,
especialmente naqueles que traíam
as leis de Deus, que sabiam o que
haviam feito e que diziam a si
mesmos que agiam
como deviam agir.
– Por acaso veio porque sua filha
tem uma mensagem para mim? –
perguntou ele.
Aziza rejeitara esse guerreiro, sem
conceder-lhe uma razão para seu
desagrado, e a dor que ele sentia era
evidente. Ela não falaria com ele e
parecia não ter interesse por ele.
– Você é a mensageira dela? – o
guerreiro quis saber.
Ele usara a palavra mal’ach que,
embora pudesse significar
mensageiro,
também poderia significar anjo.
Talvez essa fosse sua maneira de
chamá-la
de shedah, como muitos a haviam
chamado antes dele, ou talvez
acreditasse que eu tivesse invocado
os anjos de ira sobre ele, que fora a
minha desaprovação que fizera
Aziza se afastar dele.
Yael observara-nos da praça. Ela
usava um manto cinzento
esfarrapado
que era muito grande para seu corpo.
Adiantou-se, preocupada, ao
perceber a amargura do irmão.
– Shirah não é a causa das ações da
filha – Yael lembrou suavemente.
– Ou sou eu, ao que parece – disse
Amram em um tom acalorado. – Ela
não pode nem me ver.
– Seja paciente – Yael sugeriu. –
Ela pode voltar para você.
Amram estendeu a mão para fazer
uma varredura rápida do caos
abaixo
de nós.
– Não tenho tempo para esperar.
Yael notara a cesta que eu
carregava. Ela me lançou um olhar
rápido, em
seguida pediu ao irmão se
poderíamos apanhar ervas na
encosta.
Amram balançou a cabeça, pois isso
não era permitido.
– Não neste dia.
– Meu irmão – Yael brincou –, devo
recordar-lhe que me lembro de
quando dormia com o polegar na
boca e temia o escorpião no
corredor?
– Yaya – disse ele, balançando a
cabeça e sorrindo, apesar de tudo. –
Não
posso deixar você ir.
– Teremos cuidado – ela prometeu.
– O que tiver de ser, será – ouvi-a
sussurrar em seguida. – Vou
procurar uma erva que lhe trará
sorte.
Amram ainda era seu irmão,
disposto a ouvir seus pedidos. Ele
falou
com o guarda, que nos franqueou a
saída pelo portão. A luz do dia
estendera-se em longas sombras, o
que nos permitiu sair coladas aos
penhascos sem sermos vistas. Tivera
a intenção de ficar sozinha, mas
agora
não tinha escolha quanto a isso.
Talvez fosse conveniente Yael
acompanhar-me, pois ela aprendera
as magias que minha mãe me
ensinara
e não teria medo do que deveríamos
realizar.
Caminhamos juntas ao longo da
encosta, depois descemos nos
equilibrando em direção a um
barranco úmido entre duas cavernas.
Uma
vez, juntando gravetos ali por perto,
observara cachos de flores cor-de-
rosa
perfumadas brotando de arbustos
altos e esguios. Eram primos
silvestres do rododendro, uma flor
para a qual a minha mãe apontara em
Alexandria
a fim de me advertir dos seus
perigos. Assim como a raiz dos
ba’aras, que tinham o pendão de
tirar a alma do inimigo, as folhas e
as raízes do rododendro eram
proibidas, embora muitas vezes
fossem usadas para
pharmaka em matéria de amor e de
vingança. De todas as partes dessa
planta tóxica, as flores eram as mais
potentes.
Agachamo-nos e ouvimos
atentamente a lama do nachal
escorregando sob os nossos pés
descalços. Estávamos protegidas do
vento. Parecia que nos
encontrávamos em outro mundo, em
que conseguíamos nos lembrar
de como o deserto podia ser belo.
Estávamos nos aproximando da
Festa
dos Pães Ázimos e o sol seria forte
na ocasião. A flor do rododendro
era a
poção que viera encontrar, eu não
teria necessidade de inventar ou
criar, pois ela já era parte da
criação. Os feitiços e encantamentos
não eram suficientes para proteger
meu amado. Era de veneno que eu
precisava.
Levantei a mão para que Yael
dobrasse a atenção em direção ao
eco que
ressoava perto. Sob o barulho
incessante dos romanos, elevando-se
enquanto eles trabalhavam com pás
e picaretas, ouvia-se o som de
abelhas.
Na primavera, muitas vezes elas
invadiam aquelas montanhas,
viajando
para cá provenientes do Egito para o
último florescimento do deserto
antes
da chegada do calor. Seguimos o
zumbido até um tronco caído, de
onde escorria o mel amarelado, que
alguns entre nós chamavam debas e
outros
referiam como maná. A comida das
abelhas muitas vezes era a salvação
para quem se encontrasse no
deserto, apreciada igualmente por
homens e
animais. Mas esse mel era como
nenhum outro, pois fora produzido a
partir
das fatídicas flores cor-de-rosa que
desabrochavam na ravina; apenas
uma
pequena amostra deixaria um homem
enlouquecido durante horas, talvez
dias.
Encolhi os ombros da minha capa e
insisti para que Yael ficasse para
trás. Somente eu estaria a salvo das
picadas das abelhas iradas, pois
derramara sal sobre a minha pele, de
modo que elas não viessem para
cima
de mim quando alcançasse o interior
do tronco para tirar um favo de mel.
Antes que os nossos guerreiros
partissem para destruir a rampa dos
romanos, os soldados da legião que
partilhassem desse mel contaminado
ficariam enlouquecidos. Quando a
noite chegasse, eles não seriam
capazes
de saber se estavam sonhando ou se
realmente nossos homens haviam
caído sobre eles. Na confusão, com
os homens embriagados, eles não
conseguiriam sacar as espadas.
Yael e eu encolhemo-nos ao lado de
um penhasco enquanto as abelhas
circulavam em torno do favo de mel.
Polvilhei sal sobre o favo, forçando
as
abelhas a voltar para as mortais
flores cor-de-rosa, de onde
coletariam mais néctar. Quando
expus minhas intenções, Yael não
pareceu surpresa.
Admitiu que saíra em busca de mim
porque ouvira uma voz chamando-a,
dizendo-lhe o que deveria fazer.
Seria ela a pessoa que levaria o
veneno para os inimigos. Fora essa a
razão pela qual decidira deixar
Arieh com seu
pai e por ter vestido a capa do
assassino, tirando-a de um gancho
no seu alojamento para servir como
armadura, por mais frágil e fina que
fosse.
Quando a puxou sobre a cabeça, ela
desapareceu diante de mim. O pano
era
da cor do céu claro, das pedras e da
fraca luz do sol que se projetava
sobre
nós. Até mesmo o cabelo escarlate
desaparecera sob a cobertura; seu
rosto
se ocultou, tornando-se uma névoa.
Eu planejara depositar o maná
contaminado para os romanos, mas
Yael
insistiu que a voz lhe falara por uma
razão. Eu não queria deixá-la ir, ou
ser
a causa de qualquer mal que pudesse
lhe acontecer. Cheguei a implorar,
mas ela não quis ouvir. Acreditava
que fora chamada para tirar o mel
das
minhas mãos. Na verdade eu
entendi, pois no meu sonho ela
estava ao lado
das acácias. Ela levantava os braços
para o céu enquanto tomava o meu
lugar.
Gostei de Yael ter dado ao escravo
o amuleto de ouro para proteção;
todas ficáramos consoladas ao
imaginá-lo encontrando o caminho
para a
sua terra, onde a neve descia em
espirais. Ainda assim, ela precisava
de proteção. Prendi o segundo
amuleto de ouro em volta do seu
pescoço,
apesar das suas alegações de que
não era digna dele. Sabia que ela
deveria
ser protegida pelo signo do peixe,
pela promessa de água e pela graça
do Todo-Poderoso.
ESPEREI NA LUZ minguante do dia
enquanto Yael ia sozinha. Tínhamos
entrado na hora que o firmamento se
abria à nossa visão, um momento em
que os
homens santos insistiam que
conseguiam enxergar o trono de
Deus. Eu via
apenas os penhascos à nossa frente.
Não ousava erguer os olhos para a
caverna na encosta onde se dera a
matança dos essênios, pois o
espírito da
minha filha permanecia ali, frio e
sozinho. A maldade do mundo era
parte
da criação, eu sabia disso, e o Anjo
da Morte fora criado no dia do
surgimento da vida, mas ainda assim
sentia-me amargurada. Chorei pelo
que perdera, pelo que o mundo
perdera e pelo que ainda seria
perdido.
Yael seguiu rapidamente pelo
caminho que descia a montanha. Mal
consegui avistar a sua forma sob o
manto enquanto se aproximava da
rampa branca que levava ao inferno,
como passáramos a chamar o vale
que
fora nosso e se tornara parte de
Roma. Quando se aproximou do
local da construção, ela
imediatamente deixou o favo de mel
sobre uma saliência na
pedra, depositou-o com cuidado,
para que os soldados que
supervisionavam os escravos com
certeza o encontrassem. O doce
aroma
os atrairia e eles devorariam o
veneno como o nosso povo
apreciara o maná depois de se
libertar da escravidão no Egito.
Então os nossos
guerreiros teriam certa dose de
segurança quando atacassem.
A cortina da noite em breve se
fecharia sobre nós, o favo de mel
estaria
no lugar, e no entanto Yael
demorava a voltar. Senti frio
enquanto
observava as estrelas aparecerem e
ainda assim ela não vinha. Comecei
a me preocupar e a andar de um lado
para o outro, pois ela parecia ter
desaparecido. Embora usasse o
amuleto de ouro para proteção,
somente
Deus poderia protegê-la naquele
vale. Começou a ficar tarde e tornei-
me frenética, quase dominada pelo
medo do que pudesse ter-lhe
acontecido.
Então vislumbrei uma névoa a
distância.
No escuro, Yael conseguira agachar-
se ao lado de uma pedra e
permanecer escondida enquanto os
romanos exercitavam-se no campo
para a guerra que se aproximava,
lutando com as espadas e as lanças
que
usariam contra nós quando a rampa
branca estivesse concluída.
Finalmente, quando os soldados
retornaram aos seus quartéis, Yael
levantou-se de trás da rocha. Eu não
conseguia entender o significado dos
seus movimentos quando ela deixou
a segurança do seu esconderijo e
continuou a seguir adiante.
Perguntei-me se ela teria provado do
mel e enlouquecido a ponto de
pensar que poderia entrar no vale
dos romanos e
sobreviver. Ainda assim, ela
continuava a seguir em frente.
Diante dela estendia-se o charco de
lama e, além dela, estava o leão.
Em todo o vale, somente a fera a
observara, ou talvez tivesse sentido
o
seu perfume. Yael fora à mikvah
naquele dia e, quando o fedor está
por toda parte, o cheiro do que é
puro destaca-se de tudo. O leão
ergueu a cabeça e
olhou através do charco enquanto
Yael seguia seu caminho, pisando
com
cuidado. Eu não podia suportar a
ideia de vê-la dilacerada, devastada
e devorada enquanto a observava, a
menina a quem amava como se fosse
minha filha, desde quando eu mesma
era uma menina. O meu pesar era
enorme ali sozinha na escuridão
crescente, chorando por tudo o que
fizera
no mundo e pelas inúmeras pessoas
que magoara. Pensei que talvez
estivesse testemunhando o Fim dos
Dias e que os essênios tivessem
razão o
tempo todo e nós fôssemos
simplesmente imprudentes demais
para ouvi-
los. Pensei no que os ossos que
jogara tinham revelado, no futuro
que vira e
em tudo que ainda tinha a perder
neste mundo.
Yael postou-se diante do leão. Ele
poderia facilmente alcançá-la e
atacá-
la, mas não se mexeu. A cauda
mexeu-se, nada além. Yael
aproximou-se
ainda mais. Eu os via através de uma
camada de névoa. Uma criatura
feroz,
uma poça de água, uma mulher que
não sentia medo. Talvez porque já
fora
mordida por um leão, ela imaginasse
que seria imune a quaisquer outras
mordidas, como alguns que são
atacados por abelhas nunca mais
reagem às
picadas.
Ninguém no acampamento romano
prestara atenção ao leão por algum
tempo, ou sequer pensara em
alimentá-lo desde a sua chegada. Um
burro
fora tudo que lhe coubera. Ele fora
maltratado, quase morto de fome,
deixado para ficar exposto ao sol
ardente, incapaz de fugir das
torrentes de
chuva quando caíram. Ele servia ao
seu propósito, amedrontar-nos, e
agora
estava abandonado. Os corvos se
aproximavam, mas ele não
conseguia
alcançá-los. Os íbex, os cervos e as
ovelhas eram assados nas fogueiras
dos
romanos, mas ao leão não coubera
nem uma lasca da carne ou dos
ossos.
Ele não se moveu quando Yael se
aproximou, nem recuou diante dela.
Talvez não a atacasse porque fora
humilhado, tirado da sua terra,
sofrera maus-tratos, e agora era
incapaz de agir como um leão. Ou
talvez estivesse
apenas esperando por um
mensageiro de Deus, como
esperávamos por
Gabriel.
Yael então se aproximou o bastante
para soltar a fivela de latão que
prendia a coleira da criatura à sua
corrente. Eu não conseguia respirar
nem
me mover. Imaginei que o animal se
voltaria contra ela e então eu veria a
sua morte diante dos olhos. Em vez
disso, o leão levantou-se e parou
diante
dela. Ele olhou para Yael com os
olhos amarelos, mais curiosos que
ferozes.
Pode ser que a tenha reconhecido
como uma da sua espécie e se
perguntado se queria acompanhá-lo.
Pode ser que acreditasse que ela
fosse
um sonho, pois se os leões
sonhassem certamente seria assim, a
liberdade
no meio da noite, mãos que os
soltam das correntes, montanhas
elevando-
se à frente.
Yael levantou os braços, como
fazíamos para permitir que as
pombas
levantassem voo. O leão virou-se
para correr através do vale,
desaparecendo nas falésias, a sua
cor pardacenta como manto que lhe
permitia desaparecer diante dos
nossos olhos.
Eu soube então que havia
testemunhado um milagre. Esperei
no lugar
em que estava, rezando, dando
graças ao Todo-Poderoso, a minha
fé
renovada, enquanto no fundo do vale
o mais valente guerreiro entre nós
regressava para a nossa montanha,
invisível a todos os homens sob o
manto acinzentado, mas radiante na
escuridão, uma estrela brilhante aos
olhos de Deus.
NOSSOS GUERREIROS saíram
naquela noite para encontrar os
soldados da legião inebriados,
enlouquecidos e meio adormecidos,
pois tinham misturado o
mel tóxico com vinho para fazer
hidromel, e muitos tinham bebido o
veneno. Os nossos homens mataram
tantos quantos puderam antes que os
gritos dos abatidos trouxessem
centenas de outros soldados
correndo.
Nesse momento, os guerreiros de
Massada voltavam, haviam
começado a
escalar o precipício. Vários se
perderam na luta e foram trazidos
nos ombros dos seus companheiros.
Pelo menos teríamos seus corpos e
poderíamos preparar suas formas
terrenas para o enterro. Em
Jerusalém,
teríamos levado os mortos para as
cavernas dos ancestrais, e depois de
um
ano recolheríamos seus restos para
serem armazenados em ossuários de
pedra. Ali não havia tempo para tais
práticas. Embora os romanos
retaliassem com uma tempestade de
flechas incendiárias, nos reunimos
na
praça para entoar lamentações,
rasgar nossas vestes e estender os
mortos
para descansar.
Durante o luto, alguns dentre nós
olharam para o vale. Viram que o
leão
fora libertado das correntes de
Roma para retornar aos penhascos
da
Judeia. Houve gritos e orações.
Multidões se reuniram, aturdidas,
perguntando se fora Gabriel, o mais
destemido dos anjos, que produzira
aquele presságio para nós, pois
certamente nenhum homem teria a
coragem de se aproximar de um
leão.
AINDA ASSIM, os romanos
construíram a sua rampa branca,
ainda assim ela subiu mais alto.
Embora despejássemos óleo quente,
lançássemos pedras,
atirássemos flechas, eles
continuaram, uma máquina mortífera
concentrada na vitória. Em semanas,
a rampa achava-se a uma distância
da
nossa muralha igual ao comprimento
de algumas armas, e os danos que
seus soldados podiam provocar
agora eram grandes. Tivemos muitas
perdas e incêndios ocorriam todos
os dias. O que quer que destruíssem
com pedras, e chamas nós
reconstruíamos, mas não tínhamos
mãos
suficientes e aumentavam as ruínas
ao redor. Agora, ninguém se atrevia
a
sair da fortaleza, ou até mesmo se
aproximar da muralha. Nós nos
amontoávamos ao vento. Um grande
silêncio se abatera sobre nós. Era o
desespero, e ele passava de um para
o outro mais rapidamente que a
febre.
Quando à noite Eleazar me
procurou, não falou nada. Embora as
palavras sempre nos unissem, não
eram suficientes para nos salvar
agora.
Abaixo de nós havia um borrão de
movimentos, cada vez mais agitados,
mais determinados e mais brutais.
Éramos lembrados de como as
abelhas
podiam criar cidades inteiras da
noite para o dia nas colmeias. Assim
também a legião era capaz. Onde
houvera seis mil, agora havia dez
mil diante de nós. Os romanos eram
como um enxame interminável. Não
seria
possível superá-los em batalha ou
fugir deles. A única opção seria
passar sal na pele, por mais que
doesse fazer isso, e cobrir-se com
um manto para
poder desaparecer.
Meu amado primo dissera ao nosso
povo que os romanos seguiriam em
frente quando entendessem que não
seríamos vencidos por um cerco.
Tínhamos o bastante para nos
sustentar, poderíamos passar fome,
mas
seria possível viver na pobreza e
sobreviver por um ano com rações,
talvez
dois. Certamente Roma se cansaria
de nós e decidiria usar o poder da
legião
para um propósito melhor. Agora
que a rampa subira tão alto na
encosta ocidental, meu primo já não
falava dessas coisas nem nos dava
nenhuma falsa esperança. O Anjo da
Morte tem mil olhos e nenhum
homem o deixa
para trás. Contavam-se histórias de
homens que tinham cavalgado a
noite
toda para escapar ao seu destino,
apenas para chegar a uma aldeia
longínqua em que o Anjo os
esperava, conhecendo o destino das
suas
vítimas antes que elas próprias o
soubessem. Mal’ach ha-Mavet
realizaria seu propósito, não
importava com que rapidez fosse
capaz de cavalgar,
mesmo que o cavalo fosse tão
rápido quanto era o do meu marido,
o grande
Leba, que guardava o coração de mil
cavalos.
Eleazar e eu fomos à cisterna depois
do escurecer, já não nos
importando com quem pudesse nos
acusar de pecado. A Morte nos
vigiava
tanto quanto nós a ela, mesmo de
olhos fechados. Na água, abracei
meu amado em silêncio; ele
estremeceu, pois acabara de ser
ferido e eu não prestara atenção à
sua lesão. Quis cobrir o corte com
samtar, mas ele me disse que não
havia tempo. Quando ele disse isso,
comecei a chorar, como
fizera naquele dia em Jerusalém
quando chovia e ele fora ao mercado
para
me trazer um frasco de perfume com
a fragrância de lírios. Fora a última
vez que nos víramos, até ele me
chamar a essa montanha. Agora, eu o
perdia novamente.
– Não faça isso – ele me disse
enquanto eu chorava. – Não há
tempo para
isso também.
Ele fora endurecido pelos anos de
luta. Quando o conheci, ele não era
muito mais que um menino, agora
matara tantos que suas mãos estavam
manchadas. No entanto, as lágrimas
não podiam desfazer o que realizara
nem lembrá-lo de quanto éramos
humanos. O sofrimento do mundo
pesava
sobre ele. Sequei os olhos, porque
ele me pediu para fazê-lo. Sempre
fizera
o que pedia, não porque era
obrigada a fazê-lo, mas porque via
no fundo quem ele era e como ele
mesmo sofrera. Quando o olhava,
não via a face brutal que os inimigos
enxergavam, ou os braços e as
costas fortes de um
guerreiro que envergava uma
armadura de aço, mas o rapaz do
poço que vira muito além das
tatuagens de hena que eu usava. Ele
sempre soube quem eu era.
Eleazar segurou meu cabelo e
levantou-o para beijar-me o
pescoço. Sem
os amuletos, eu estava desprotegida.
Senti-me arder. Acreditava estar
segura em sua companhia. Ele, que
se mostrava tão cruel no campo de
batalha, ainda era o menino que fora
um dia, tão ansioso por mim que a
sua
esposa, o seu pai e todas as leis de
Jerusalém não puderam afastá-lo de
mim. Ele sussurrou que preferia
gastar o pouco tempo que nos
restava nos
braços um do outro. Não falemos,
nem nos lembremos dos nossos
problemas,
vamos nos deitar juntos e esquecer
o mundo, lembrando-nos apenas um
do outro.
Os romanos nos encontrariam como
abelhas; cairiam como um enxame
sobre nós e o sal cairia da nossa
pele, que ficaria nua e indefesa
perante eles, como agora estávamos
um com o outro.
QUANDO SAÍMOS do nosso sono
agitado, descobrimos que a rampa
no lado ocidental da montanha já
estava concluída. Fazia um tempo
frio, nublado e
azul. Já era o mês de Nissan, em que
nosso povo celebrava a liberdade.
Quando abrimos os olhos, foi como
se a rampa sempre tivesse estado lá,
existindo como por mágica, mais
real que as montanhas, que existiam
desde que Deus as criara.
Naquele mesmo dia a poeira se
levantou sobre o chão do deserto
quando um grupo de viajantes
chegou do Oriente. Vi que muitos
dos
mantos eram azuis. Eles pertenciam
ao povo do pai de Nahara e Adir,
nômades das montanhas de Moabe.
Traziam todos os tipos de
especiarias e
tesouros de Petra e vinham oferecer
sua ajuda aos romanos, com quem
tinham um tratado de paz. Quando
pensei naqueles homens, meu
coração
afundou, porque sabia que eram
ferozes e difíceis de derrotar.
Meu cabelo estava úmido depois da
noite na cisterna, os braços doíam
de tanto abraçar um homem que
sempre me deixava enquanto
dormia. Eu
acordava na beira do poço, ao lado
da água profunda, uma cobertura de
pó
de gesso manchando a pele, e estaria
sozinha. Apesar da minha barriga
inchada, eu tinha emagrecido. O
homem que fora o meu marido em
Moabe
teria notado, teria procurado me
alimentar com tâmaras e figos,
porque acreditava que uma mulher
magra era como um cavalo magro,
fraca demais
para as montanhas da sua terra. Ele
me amava, embora nunca o dissesse.
Ficava me olhando durante todo o
tempo que permanecíamos juntos,
como
se os seus olhos nunca se cansassem
das minhas formas.
Eleazar não notara que as minhas
costelas estavam visíveis, ou que os
ossos dos ombros e da coluna
destacavam-se contra a pele. Não
vira que a
dieta insuficiente de raízes e feijão
deixara meu cabelo menos brilhante,
porque eu o trançava e depois
prendia acima da cabeça com dois
pinos feitos de chifre. Para ele, eu
era a garota com longos cabelos
pretos no poço
de Jerusalém, assim como ele era o
meu amado, o homem que ficara
comigo
na chuva e me tomara para si; aquele
a quem eu fora prometida o tempo
todo.
JÁ NÃO tomávamos conhecimento
das leis dos homens, apenas das leis
de Deus. Rezávamos dia e noite sem
parar. Os anciãos reuniam-se na
sinagoga
e, pela luz bruxuleante do pouco
azeite que nos restava, pediam
perdão a
Deus e sua graça. Os romanos
haviam colocado toras de madeira
sobre a rampa para receber os barris
de terra branca que os escravos
continuavam
a derramar sobre ela. A rampa
estava agora tão próxima que os
romanos podiam nos falar, e Silva
em pessoa aproximou-se para gritar
o nome de Ben Ya’ir. Alguns dos
nossos homens responderam que
nosso líder nunca
falaria com demônios, pois um
demônio era capaz de tirar a alma de
alguém por meio de palavras. Era
verdade, sabíamos, pois quando
ouvíamos o demônio que comandava
a décima legião ele nos trazia
nuvens
de terror. Cobrimos as orelhas, mas
ainda assim podíamos identificar as
palavras de Silva. Rendam-se agora
e deixaremos que partam em
liberdade.
Exatamente o que haviam dito aos
guerreiros da fortaleza de
Maqueronte antes de assassinar cada
um deles, deixando-os para os
chacais, de modo que os ossos
fossem espalhados pela floresta,
como se nunca tivessem sido homens
um dia, mas vindo a este mundo
como pedras.
BEN YA’IR não deu nenhuma
resposta a Silva, em vez disso
enviou uma chuva de flechas
incendiárias. Vi os melhores
arqueiros em cima da muralha, a
minha filha entre eles. Ela usou
tantas flechas que em pouco tempo
não tinha mais nenhuma. Naquela
noite, ela ensinou Adir a fabricar
aquelas armas, como manter o sílex
em linha reta para não raspar as
mãos nuas enquanto esfregasse a
ponta fina de metal contra a pedra,
como amarrar a
ponta afiada à haste de madeira com
uma tira fina de couro. Como
Yehuda
não pudesse, pela sua fé, tocar um
instrumento de guerra, ele recolhia
as penas dos pombos para prender
às flechas, para que elas voassem
em linha
reta das mãos da minha filha até o
coração do inimigo.
Aziza chamou-me de lado antes de
voltar à muralha com a cesta de
flechas recém-acabadas. Ela parecia
muito forte, com os músculos
retesados, o rosto bonito, contraído
e bronzeado. Minha filha me disse
que
aplicaria todas as táticas para salvar
nosso povo, com exceção de uma.
Não
atiraria em nenhum homem de manto
azul. Um deles poderia ser o que
fora
o pai de Nahara e Adir, o meu
marido um dia, que havia muito
tempo se esquecera de que Aziza
não era sua filha verdadeira por
nascimento.
Dei-lhe a minha bênção, lançando
pó de cobra sobre seu cabelo curto e
preto para a proteção. Senti o meu
amor por ela no fundo da garganta.
Não
o revelaria em voz alta, temendo que
lhe trouxesse desgraça, mas abracei-
a
e ela entendeu o que ela significava
para mim, como sabia que eu
dependera dela para me ajudar a
trazer Nahara para este mundo,
como
tivera fé suficiente para permitir que
andasse na companhia dos homens
de
Moabe. Uma vez eu lhe dera um
nome que a ajudaria a ser destemida
em
um mundo dominado pelo medo.
Esse fora o meu maior presente a
ela.
FELIZMENTE, ainda havia um
espaço entre o penhasco e a rampa
branca.
Todas as vezes que os trabalhadores
lançavam mais terra ali, o fim da
rampa desabava em um deslizamento
de terra. Embora os escravos
tivessem trazido enormes aríetes, tão
grandes como os troncos de
palmeiras, aqueles últimos metros
não puderam ser acabados e,
portanto,
não podiam romper a muralha.
Embora o rei Herodes tivesse sido
mau de
muitas maneiras, sentimo-nos gratos
pela muralha que ele construíra e
pelas pedras que levavam a sua
marca. Pensamos que a
incapacidade da
legião de construir a rampa para
atingir a muralha do rei fosse um
presságio do nosso sucesso
garantido e oramos para agradecer
ao Todo-
Poderoso.
Logo seria a véspera da Festa dos
Pães Ázimos, o dia em que o nosso
povo fora libertado da escravidão
no Egito. Pensamos em Moisés no
deserto e como houvera fé mesmo
quando não havia esperança, como
ele
conduzira seu povo apesar dos
infortúnios. Pensamos que a
comemoração
nos trouxesse sorte no futuro. Não
entendemos que, assim como o nono
dia
de Av, quando os dois Templos
caíram, quando Moisés quebrara as
tábuas
recebidas de Deus, quando a tristeza
imperara no nosso mundo, alguns
dias
foram feitos para nos fazer lembrar
que o passado continuava conosco.
Os romanos eram implacáveis, e a
muralha de um rei não significava
nada para eles quando trabalhavam
pela glória do imperador. Eles se
lançariam de uma plataforma
enorme, que se elevava a mais de
cem
metros. Toda a madeira fora trazida
da Grécia, transportada pelo mar,
puxada até ali nas costas dos
escravos; as madeiras carregavam o
aroma da
floresta. Revka disse que haviam
sido feitas de ciprestes e ela chorou
com
essa lembrança. Ficamos
observando enquanto a plataforma
era concluída
e os soldados subiam em cima dela
e gritavam maldições, lançando
rapidamente rajadas de tochas
acesas. O cheiro do fogo tomou
conta de tudo; o doce aroma do
cipreste foi como um sonho que um
dia pairara no
ar.
Como a plataforma ainda não fosse
suficiente para vencer a distância
entre a rampa e a imponente muralha
de Herodes, a legião a ampliou com
enormes pedras encaixadas. Depois
veio a pior criação que jamais
havíamos visto, inventada por
Vespasiano, posteriormente usada
por Tito e
agora por Silva. Parecia que aquela
obra bélica fora fabricada no mundo
dos demônios e milhares de
espíritos malignos a haviam
construído.
Observamos assombrados e em
desespero. Até mesmo os homens
crescidos tinham lágrimas
escorrendo pelo rosto. Uma torre
forrada de
metal de quase cem metros de altura
foi encaixada em cima da plataforma
de madeira, para que os romanos
pudessem nos atacar ao mesmo
tempo
que permaneciam protegidos das
nossas fundas, flechas e dardos.
Dessa
torre, eles eram capazes de lançar
pedras enormes, golpeando a
muralha do rei que fora feita para
durar por toda a eternidade.
Assim foi que tudo começou. A
montanha tremeu e os pássaros
levantaram voo, os corvos e as
cotovias, os pardais e os gaviões,
todas as criaturas aladas fugiram de
nós, exceto as pombas dos pombais,
que não tinham outra escolha senão
permanecer. Senti a criança dentro
de mim
mudar de posição quando me sentei
sobre a borda da fonte. Tudo ao meu
redor era uma loucura. Crianças de
três e quatro anos de idade
raspavam o
sangue das lanças que haviam sido
jogadas em uma pilha, puxadas dos
corpos dos mortos. Os nossos
falecidos eram tantos que foram
levados ao
campo onde as amendoeiras
floresciam em botões cor-de-rosa e
brancos.
Ali os cadáveres eram lavados com
a água da chuva e óleo, depois
enrolados em lençóis de linho.
Quando o linho acabou e chegaram
mais mortos, usamos os nossos
próprios xales para enrolá-los. Dois
dos nossos jovens guerreiros,
apenas garotos de armadura, saíram
pelo portão para lutar contra os
soldados por
conta própria. Tiveram a cabeça
cortada do corpo e foram lançados
sobre
nós por catapulta, os olhos ainda
abertos. As mães desses meninos
rasgaram a própria pele,
horrorizadas, presas ao pesadelo
que era a vida de
vigília.
Revka e os netos vieram ficar
comigo, juntamente com Yael e
Arieh, pois
seu alojamento era muito próximo da
muralha. Seus vizinhos haviam sido
mortos enquanto dormiam, quando
uma flecha entrara por uma fenda na
pedra que servia de janela,
incendiando os estrados. Tínhamos
espaço
suficiente. A minha filha Aziza
montara uma tenda no nosso quintal.
Ela já
não queria dormir dentro de casa e,
como um guerreiro que era,
permanecia sob as estrelas. O
Homem do Vale veio fazer as
refeições com
ela e eles sentavam-se ali como
irmãos, sem falar nada, mas
precisavam de
conforto. Os filhos desse homem,
Noé e Levi, observavam o guerreiro
sério,
pois ele se tornara mais uma lenda
do que um homem para eles. Uma
vez vi
seu olhar relancear sobre eles. A sua
expressão se suavizou e algo
pareceu
agitar-se em seu íntimo, mas ele se
virou, concentrando-se na refeição
escassa de feijões e lentilhas que
Aziza preparara para
compartilharem.
Revka confidenciara-me que, no dia
da morte da sua amada filha, o
genro prometera duas coisas:
enquanto estivesse no mundo não
levaria
outra mulher à sua cama e nunca
mais cortaria o cabelo. Mas uma
noite, quando ele veio para a
refeição, Revka gemeu ao vê-lo,
depois saiu
correndo. Ela ficou de costas para
nós, abalada. O genro cortara o
cabelo, depois raspara a cabeça.
Aproximei-me de Revka e tomei a
sua mão na
minha enquanto ela chorava. Estava
acabada, ela me disse, aquela nossa
vida sobre a terra. O seu genro
rapara o cabelo porque chegara a
hora de
deixar este mundo para trás.
Naquela mesma noite, vi a minha
filha abraçar esse guerreiro no nosso
jardim. Ele parecia um ser brutal,
coberto de cicatrizes, fios de metal
embutidos na carne, as roupas
apenas feitas de escamas de metal.
No
entanto, naquele único abraço, notei
o que nunca vira entre a minha filha
e
Amram. Percebi que o amor a levara
não à ruína, mas ao seu próprio
destino. Eu nunca poderia ter
esperado impedir o caminho que ela
deveria
seguir. O Homem do Vale jurara não
amar uma mulher, mas nunca fizera
esse juramento com relação a outro
guerreiro. Ao tornar-se um rapaz,
Aziza o permitira que a amasse.
Era por isso que muitos acreditavam
que minha filha fosse uma shedah,
pois quando passava os braços ao
redor desse homem, que se cingia
com tiras de metal afiado, era como
se ela fosse um dos milhares de
mensageiros que nos guardavam,
enviado para tomá-lo nas suas asas.
Virei-me quando o vi chorar, porque
sabia que o que Revka dissera era
verdade. Aquele mundo estava se
desfazendo.
Isso já estava escrito.
*
QUEM PODE dizer em que hora a
muralha de Herodes foi violada, o
momento
infeliz em que a primeira pedra
caiu? Tinha chovido, mas, quando a
chuva
parou, continuou a ouvir-se um
trovão. Então, de repente,
percebemos que
não era um trovão, mas o aríete
batendo continuamente contra a
muralha.
Ficamos observando enquanto Deus
nos abandonava e depois fizemos o
melhor que pudemos. Houve caos,
os homens correram para a praça, a
fim
de construir outro muro de forma
rápida, com fúria louca. O meu
primo queria um muro que ficasse
atrás da muralha de pedra que a
legião
quebrara, feito de barro e grama
para poder balançar com o aríete,
em vez
de se quebrar. Em uma tempestade,
uma folha de grama pode suportar a
fúria dos ventos que levam os
palácios dos reis à ruína. Não houve
uma pessoa que não ajudasse na
construção desse segundo muro, pois
o terror
mantinha todos agitados. Até mesmo
Yehuda, o menino dos essênios, e o
meu filho, Adir, de muleta, estavam
lá, ansiosos por ajudar.
Fora a vontade de Deus que
tivéssemos chuva e, portanto, não
faltaria lama, havia poças, que
endureciam rapidamente depois que
o sol saiu,
formando o segundo muro. As
crianças estavam todas cobertas de
barro,
trabalhando entre nós, apesar das
flechas em chamas que pousavam
chamuscando as nossas capas e
ateavam fogo aos nossos telhados e
jardins.
Cada ação nossa parecia ocorrer em
um sonho que se precipitava. Vi
uma criança pegar fogo e morrer nos
braços da própria mãe e homens que
deram a vida sem se queixar. Vi a
legião saltar como um animal feito
de metal, sem coração ou espírito,
quando o muro de lama foi abalado,
mas não caiu, pois era mais forte
que a muralha de Herodes, muito
embora tivesse sido construído por
anciãos e crianças. Vi o Anjo da
Morte
empoleirado ao lado da minha filha
quando ela ergueu seu arco,
passando a
mão sobre sua carne radiante. Vi os
fantasmas dos que haviam sido
assassinados na caverna dos
essênios trilharem os caminhos das
falésias como cabras pretas, suas
almas elevando-se à sua frente. Meu
primo se separou da multidão
quando percebeu que muitos haviam
morrido e
deveriam ser estendidos no campo.
Quando o segui, encontrei-o
chorando
no meu jardim.
Naquele instante, vi a profecia que
se anunciara quando jogara os ossos
na torre. Eles haviam profetizado
que eu me afogaria, exatamente
como o
sacerdote avisara que me
aconteceria quando era criança e
saltara para dentro da fonte no
jardim da minha mãe. Não na água,
mas no meu próprio
sangue.
POR NOITES a fio sonhara com a
criança que carregava. No meu
sonho, ela estava imersa em água,
com os olhos abertos, pois a água
era seu elemento,
como fora o meu. Se todos
devêssemos ser abatidos, e se fosse
para estar
entre os mortos, queria garantir que
essa criança saísse antes de entrar
no
Mundo Vindouro. Essa era a única
maneira de eu poder assegurar que
carregasse um nome, que lhe
permitisse ser chamada por Deus
para junto
de Si, ao contrário dos nascituros,
almas sem nome que deveriam vagar
sem direção pelo resto do tempo.
Eu sabia que era a hora de a minha
filha vir ao mundo, pois logo não
restaria tempo suficiente para nada.
Preparei um chá de arruda,
destinado a provocar o aborto, e
bebi
rapidamente um copo cheio. Essa
mistura traria minha filha antes do
tempo. Andei sobre o chão do meu
aposento enquanto Adir, Yehuda e
todos
os outros, com alguma força,
trabalhavam febrilmente para
restaurar os
danos feitos à segunda muralha.
Chamei Yael para junto de mim,
pois ela prometeu me ajudar no
momento em que tivesse
necessidade. Ela deixou
Arieh aos cuidados de Revka e
trouxe-me uma cesta de excrementos
do
pombal para colocar sobre o fogo.
Como lhe ensinara como conduzir
um
parto, ela agora traria minha filha à
vida.
Parei em cima da fumaça, para que
ela abrisse meu útero. Yael
agachou-
se de cócoras, entoando o nome do
infinito para a frente e para trás até
que
formassem uma única letra em sua
boca, subindo e descendo, um som
tão
antigo que ninguém podia entender o
significado. Concentrei-me na
imagem de Astarte no altar.
Trouxera-a dos aposentos da minha
mãe,
envolta em linho, juntamente com
seu livro de receitas mágicas,
escondida
debaixo de um punhado de palha na
gaiola das pombas.
Tudo o que eu precisava me fora
dado pela minha mãe. Tudo o que
sabia, sabia graças a ela. Mas tudo o
que sacrifiquei foi pela minha filha.
Eu derramara uma oferenda de
azeite perante Astarte e cobri-me
com o
óleo de romã e com o perfume de
lírio em sua homenagem. Essa era a
última fragrância em meu poder.
Sabia que não haveria mais.
Imaginei os
lírios ao lado da fonte no jardim da
minha mãe. Eles pareciam crescer
entre
os mosaicos pretos e brancos que
azulejavam o chão do meu
alojamento.
Concentrei-me neles até ver apenas
aquelas flores invisíveis e o resto do
mundo desaparecer. Dediquei-me
com afinco para não fazer barulho,
para
que ninguém fosse atraído para nós.
Mordi meu braço e tirei sangue.
Apesar da hora e das circunstâncias,
eu estava viva, ainda capaz de dar a
vida.
Conforme o tempo passava e a
criança não aparecia, tive medo de
que a
filha que estava prestes a dar à luz
fosse fraca por ser muito prematura.
O
pânico martelava em minha garganta
como um tambor. O conselho
poderia
decidir lançá-la para fora da
muralha a fim de morrer antes de
receber um
nome. Jurei que isso jamais
aconteceria. Não haveria deserto
para essa criança, nem corvos, nem
ossos insepultos, nenhum soldado da
legião, nem
chacais cobiçando-a com fome. Seu
espírito não ficaria aprisionado em
uma
caverna nem vagaria pelo vale, em
vez disso permaneceria nas mãos de
Deus e sob Seu olhar cuidadoso. Era
por isso que iria trazê-la ao mundo
antes do tempo, para que pudesse
conhecer mais do que a tristeza e
aquecer-se no esplendor do Todo-
Poderoso, na Sua graça e na Sua
sabedoria, mesmo que fosse por
apenas uma hora ou um dia.
Minha filha veio ao amanhecer,
depois de muitas horas e de muito
sangue. Sangue demais saindo de
mim, mas era o preço a ser pago
pelo seu
nascimento. Embora fosse
prematura, ela não era fraca. Ela
gritou e o meu
coração se abriu. Seus olhos eram
acinzentados, como os do pai. O
cabelo
era claro, muito parecido com as
penas das pombas. Nós a levamos
ao
campo, a fim de enterrar a placenta,
embora a última das amendoeiras
tivesse sido derrubada para fornecer
a madeira para a construção do
muro.
Agradecemos a Astarte e a Adonai.
Tirei a capa e fiquei nua diante
deles, embora estivesse exausta e
não tivessem se passado sete dias.
Não
sabíamos quantos dias nos restavam
e por isso eu não podia esperar para
lhe dar um nome.
Chamei-a Yonah, porque ela viera
ao mundo por causa de uma
mensagem trazida por uma pomba.
Minha esposa, minha amada, minha
filha, meu mundo.
*
DURANTE TODA a noite, o nosso
povo reforçou o segundo muro, a
nossa única defesa contra o abismo.
Nossos homens amarraram os ramos
das
amendoeiras que haviam sido
lavrados apressadamente,
preenchendo os
vãos abertos com lama, para que o
novo muro fosse flexível, movendo-
se aos impulsos do aríete. A Festa
dos Pães Ázimos seria comemorada
no dia
seguinte. Em todos os outros
festivais dessa natureza, nosso povo
se reunia
a fim de dar graças pela nossa
libertação do Egito. Agora não
tínhamos tempo para nada, a não ser
as orações que carregávamos em
nosso íntimo.
Mas o muro que não podia ser
rompido podia ser queimado. O
cheiro de
amêndoas subiu em uma nuvem
amarga. Os romanos atearam fogo ao
muro e logo estávamos envolvidos
por um anel incendiário.
À porta, contemplei minha filha nos
meus braços enquanto ouvia os
homens cantarem, pois os cânticos
elevavam-se acima dos sons da
guerra.
Ouvi as mulheres chorando.
Enquanto contemplava a nossa
desgraça, virei-
me para observar uma sombra no
jardim, um corvo agachado entre as
fileiras de ervas que haviam
crescido, todas queimadas e em
cinzas naquele
momento, a hortelã e a arruda, o
coentro e os ramos do hissopo.
Entrei no
jardim que não mais existia.
Channa viera ver a criança. Ela
estava magra, como todos
estávamos,
mas seu rosto se iluminou quando
viu o bebê nos meus braços. Jurou
que
não contara a ninguém sobre o
nascimento, nem mesmo ao nosso
líder,
para não distraí-lo. Sussurrou que as
pombas que eu soltara haviam
retornado para lhe contar sobre o
nascimento, aquelas da gaiola atrás
da sua casa que haviam me visitado
na terra de Moabe.
Fiz sinal para ela, que se aproximou
como um cão dócil, a passos largos,
a cabeça baixa. Ficou cativada
instantaneamente, o semblante
ansioso
quando levantei a criança para que
visse. Observei enquanto a minha
inimiga permanecia ali chorando,
não de tristeza, mas de alegria.
Ela me mandara para o deserto, mas
eu não me lembrava de como os
meus pés descalços haviam se
queimado sobre as pedras. Ela me
rebaixara
e arruinara, mas eu não me
recordava das palavras que haviam
sido usadas
contra mim nem dos anos que
passara em Moabe. O jardim ardia,
o ar
impregnado de faíscas de fogo,
como dizem que seria no Mundo
Vindouro
quando caminhamos ao lado dos
anjos e não tememos sua iluminação
ou
seu poder.
Deixei-a segurar a nossa filha.
Rejubilamo-nos juntas pela beleza
da filha
do nosso marido, pois ela era como
um lago de água calma e bela.
Estávamos submersas, a nossa sede
saciada, embora houvesse incêndios
e
explosões de fogo em todos os
lugares, em folhas e telhados, caindo
sobre
nós como chuva. Ficamos ali, as
cabeças unidas, enquanto os outros
se escondiam nos alojamentos ou
labutavam arduamente para apagar
as
chamas. Já não tínhamos sede e não
mais necessidade de fúria ou
vingança,
pois não éramos mais inimigas.
HORAS MAIS TARDE, todo o muro
pegou fogo. Ele nos cercava como
uma cobra, como se pretendesse nos
devorar. Acreditamos que nossa
hora havia
chegado, mas então Deus nos enviou
o vento do norte e soprou as chamas
na direção dos romanos. Elas
queimaram os soldados ainda vivos
e
incendiaram os aríetes. Nosso povo
veio assistir e todos caíram de
joelhos
em sinal de gratidão.
Mas o que nos é dado também é
tirado, para que saibamos que a
glória
de Deus nos alcança apenas pela
Sua vontade. O salvamento foi
temporário.
O vento tornou a mudar de direção,
soprando então do sul, e passou a
ser
de novo nosso inimigo. Nosso povo
correu, temendo por suas vidas. As
pessoas que puderam encharcaram-
se com o pouco de água que
encontraram, em uma tentativa de
suportar a explosão de calor. Todo
mundo ouviu a torcida dos romanos
e seus gritos sanguinários. Eles
posicionaram uns mil guardas no
vale, para que ninguém do nosso
povo
pudesse tentar se esgueirar sobre a
muralha de Herodes e fugir.
Reunimo-nos todos nos meus
aposentos, cobertos de fuligem. O
menino
de Yael, com seus olhos escuros e
belos, estava quieto; ele parecia
sentir o
terror que se abatia sobre nós e não
se atrevia a chorar. Derramamos a
água de um jarro sobre nossas
cabeças, na esperança de não
sermos
incendiados pelas centelhas
flamejantes. Amamentei minha filha
e pensei
em como o pai de Nahara e Adir não
vira os filhos por dez dias depois
que
nasceram, seguindo um costume do
seu povo. Somente agora percebia
que
essa lei não era apenas para impedir
o pai de ver a criança em uma
condição de ferido, o preço da
viagem para nascer. Pelo contrário,
era para
garantir que o pai esperasse até que
estivesse bem certo de que o filho
viveria. Não fazia sentido para as
pessoas destemidas de Moabe
vincular-se
a alguém que estivesse fadado a
perecer, pois eles cavalgavam na
companhia da morte e armavam as
tendas com a sua companhia. Eles
sabiam que a carne não durava muito
neste mundo.
Eu seguiria a sua lei agora e
manteria a minha filha longe dos
olhos do
pai, para que ele não tivesse de
amar alguém que seria obrigado a
perder.
Enquanto a embalava dentro da
minha capa, dois corações bateram
contra
o meu peito. Mas nenhuma criatura
poderia conter mais de um coração.
Eu
sabia que uma de nós viveria e a
outra morreria. Chorei ao pensar que
não
ouviria minha filha me chamar de
mãe.
O SEGUNDO MURO fora violado.
Essa construção tosca, que
construíramos até nossas mãos
ficarem em frangalhos e sangrando,
até já não haver mais uma
única árvore no campo, rachara sob
os impactos sucessivos do aríete,
seus
pedaços espalhados por todo lado,
os ramos maleáveis das
amendoeiras
destroçados, reduzidos a farelos.
Nosso povo fizera tudo o que fora
possível
para lutar contra a maré do que
estava por vir, os soldados que
entrariam e
nos encontrariam, o derramamento
de sangue, a tortura e o assassinato
no
dia da nossa maior festa. Eleazar
apareceu na praça. Fomos atraídos
para lá
pelo som do chifre de carneiro,
usado para nos chamar para a
oração. Abri
caminho entre o povo, embora ainda
estivesse enfraquecida pelo parto, o
bebê escondido sob o manto. Deixei
um rastro de sangue sobre as pedras,
que foi se enegrecendo à medida que
se distanciava de mim, um
presságio,
eu bem entendia.
Do meu lugar na borda da multidão,
podia ver as mulheres cujos filhos
eu ajudara a trazer ao mundo. Vi a
minha filha com o seu arco, os
braços e
as pernas listrados de lama; o meu
filho, arruinado pela guerra antes de
ter
se tornado um homem; o meu povo
no auge da infortúnio; e o homem a
quem amava desde que vira pela
primeira vez e soubera que seria
meu.
– Resolvemos não obedecer aos
romanos, e sim apenas a Deus.
Agora
chegou a hora de provarmos a nossa
fé. Não podemos cair em desgraça
aos
olhos do nosso Senhor, nem nos
submeter à escravidão. Se cairmos
nas
mãos dos romanos, será o fim de
tudo, não só das nossas vidas, mas
da vida
do Sião. Temos o privilégio de ser a
última fortaleza e, como Deus nos
favoreceu com isso, retribuiremos o
favor morrendo nobremente como
seres humanos livres.
As pessoas começaram a entrar em
pânico ante as palavras de Ben
Ya’ir.
Pareceu que alguns tentariam fugir.
Mas também houve um ímpeto entre
os mais leais, aqueles que ansiavam
fervorosamente pela liberdade e
agora
não poderiam voltar atrás.
– Ao amanhecer, o inimigo cairá
sobre nós e não mais poderemos
detê-
los, mas somos livres para optar por
morrer com honra, nos braços de
quem amamos. Não podemos
derrotar os romanos em uma batalha
aqui na
terra, mas podemos negar-lhes a
vitória.
Mulheres choravam por todos os
lados. Tive pena de Eleazar por ter
de
proferir aquelas palavras.
– Fizemos tudo para reivindicar a
liberdade e não podemos parar
agora.
Não sabemos por que Deus deixou a
cidade ser destruída pelo fogo, por
que
Ele deixou o nosso povo ser
perseguido até a extinção, por que
devemos morrer hoje. A liberdade é
a nossa mortalha e é mais gloriosa
que qualquer
outra. Não deixaremos nada para os
nossos inimigos e o gosto da vitória
será amargo; eles não poderão
cortar as cabeças dos nossos corpos
e deixá-
los para o corvos.
As mulheres lamuriavam-se e alguns
homens as acompanharam. As
chamas ao nosso redor foram uma
bênção, pois rugiam e impediam que
fossem ouvidos os clamores de
agonia e de dor.
– Que as nossas esposas morram
ilesas, os nossos filhos sem o manto
amargo da escravidão. Querem que
eles sejam devorados por animais
selvagens, torturados pelo fogo e
chicoteados, escravizados?
Apressemo-
nos. Evitemos as desventuras da
humanidade. Preferimos a morte a
essas
misérias. Sairemos do mundo com
as nossas esposas e nossos filhos em
liberdade. Que a nossa história seja
um testemunho de que perecemos
por
nossa escolha, uma escolha que
fizemos no início, pois escolhemos a
morte
em vez da escravidão.
Os guerreiros foram enviados para
incendiar os depósitos. O calor se
agravou a ponto de tornar-se um
inferno. Parecíamos ter caído de
cabeça no mês de Av, a época em
que as aflições do nosso povo
ardiam, quando Deus testava a nossa
fé, o nosso respeito e a nossa crença
na Sua grandeza.
OUVIMOS Eleazar, como
poderíamos ouvir um sonho, um
sonho que não terminaria, um sonho
do qual não acordaríamos. Senti meu
amor por ele tão profundamente que
pensei que poderia me desfazer
como acontecera
aos ramos das amendoeiras, o meu
ardor era a faca que me perfurava.
As
pessoas começaram a correr para as
casas, não para fugir, mas para
reunir
seus bens materiais para que
pudessem ser destruídos em vez de
cair nas
mãos dos romanos. Foi erguida uma
grande fogueira e tudo o que
possuíamos era lançado sobre ela,
roupas e sandálias, bacias de
madeira e
peças de lã. As cabras e as ovelhas
que restaram tiveram a garganta
cortada
e os corpos colocados sobre o fogo,
como oferendas queimadas
sacrificadas
a Deus, pois não haveria mais
necessidade de carne ou de leite,
somente da
graça Dele. Não restava mais
nenhum Templo e esse seria o nosso
último
sacrifício.
Os homens de Eleazar, os favoritos,
guerreiros que haviam lutado ao seu
lado, os homens marcados pelas
batalhas que tinham viajado desde
Jerusalém para tornar-se falcões
naquele deserto, aproximaram-se
formando um círculo em torno dele.
Alguns soluçavam e eram
consumidos
pela dor, outros já não sentiam as
dores do mundo, pois se
encontravam em um estado de
sacrifício, como era comum entre os
guerreiros antes de
entrar em batalha. Eram uns
cinquenta ou mais, Amram entre
eles, e esses
homens traziam pedaços de
cerâmica quebrada, ostraca, nos
quais tinham
sido inscritos seus nomes ou
iniciais. O choro tornou-se mais
furioso
quando a loteria teve início. O
sacerdote e os homens cultos
começaram a
rezar e a cantar, balançando-se para
a frente e para trás com a paixão das
orações.
Dez homens seriam escolhidos entre
eles. Esses se incumbiriam da
tarefa e despachariam o restante de
nós. Eles suportariam o fardo do
carrasco, para que não tivéssemos
de carregar o pecado de cometer o
mal
contra nós mesmos, o que era
proibido. Quando chegasse o
momento, eles
matariam um ao outro, até que
restasse apenas um. Esse homem
suportaria
o peso de todos os pecados e
receberia a ordem de entrar pelos
três portões do Gehennom, o vale do
inferno, onde sofreria os tormentos
dos demônios por toda a eternidade.
– Por que devemos temer a morte
quando não tememos o sono? –
Eleazar gritou em frenesi, em
tamanho êxtase que ninguém
conseguiu
desviar o olhar. Eu o vi como ele
fora no poço, furioso com todos os
delitos
dos homens, certo de que poderia
consertar as coisas em nome de
Deus. – A
morte permite a liberdade da alma.
É preciso a verdadeira coragem
para encontrar a verdadeira
liberdade e ser chamado para o lado
de Deus. Teria
sido melhor se tivéssemos morrido
antes de ver Jerusalém destruída.
Agora, a nossa esperança nos
abandonou, mas podemos nos vingar
contra
os inimigos da cidade santa e ser
benevolentes com aqueles que
amamos,
não vê-los serem levados à
escravidão e ser testemunhas da
tortura e da violência que aguardam
nossas mulheres, nossas crianças e
nossos
queridos amigos.
Maridos e esposas abraçaram-se,
mães carregaram os filhos, filhos
correram em busca dos pais para
morrerem lado a lado. Os dez
homens
foram escolhidos, os nossos
salvadores e os nossos verdugos.
Ben Ya’ir pegou a espada para fazer
um juramento sobre a arma que
usara para lutar
por Deus, pela nação e por nós.
– Nós nascemos para morrer, assim
como todos os que são trazidos ao
mundo. Isso até mesmo os mais
afortunados de nós devem enfrentar.
Esse
é o nosso destino e o nosso destino
está agora diante de nós.
O meu destino estava diante de mim
também.
Rapidamente fiz sinal para Yael e
Revka. Voltamos ao meu
alojamento,
puxando pela mão o neto mais novo
de Revka, Levi, para que não fosse
arrastado pela multidão, com Noé
seguindo atrás. A própria Revka por
pouco não desmaiou no empurra-
empurra.
Yehuda estava no meu quarto,
envolto em seu manto branco,
recitando a
oração pelas almas dos mortos. Adir
estava em algum lugar fora da vista.
– Onde ele está? – eu estava tão
perturbada que puxei o pobre
menino
essênio pelo xale de oração.
Revka, que passara a considerar
Yehuda como seu filho, aproximou-
se
para persuadir o menino assustado a
falar.
– Ele estava preocupado com Aziza.
Disse que ela tinha ido no seu lugar
e pretendia encontrá-la e trazê-la de
volta.
Corri até o armário para pegar o
livro de magias da minha mãe, os
meus
dois corações palpitando dentro de
mim. Gritos ecoavam na praça, pois
os
algozes haviam começado o trabalho
e alguns dos moribundos não podiam
suportar a visão da sua família
abatida, mesmo nas mãos dos nossos
próprios homens, anjos de
misericórdia, os mensageiros do
nosso destino.
As minhas mãos tremiam. Talvez
tivesse sido escrito que eu seria
resgatada. Talvez o amor não fosse a
minha ruína, mas a salvação.
Deixei o livro da minha mãe nas
mãos de Yael e insisti para que o
guardasse em segurança. Notei que
ela usava o colar do leão enrolado
no braço e então compreendi que
acertara ao escolhê-la, pois ela era
tão destemida quanto leal.
Revka estava encolhida com seus
netos, segurando Arieh no colo. Ele
se
fazia pouco mais que um bebê, mas
era sensível e sabia quando o
silêncio
se fazia necessário. Revka levou um
dedo aos lábios e ele silenciou,
inclinou-se contra ela. Ela então deu
um tapinha no ombro de Yehuda
quando ele chorou, sentindo-se
culpado por ter permitido que Adir
saísse.
Ele era apenas um menino, e a mãe o
deixara aos nossos cuidados para
protegê-lo do mal. Todos se
amontoaram sobre o chão de
ladrilhos
adaptado para a cozinha de um rei,
um aposento que se tornara fétido,
extremamente quente, como um
túmulo na areia.
A criança que era o meu coração
chorava. Tirei-a de baixo da minha
capa
e a pus nas mãos de Yael, como lhe
dera o livro de encantamentos. Fui
até a
caixa de pau-ferro, que viera comigo
do Egito, aquela que minha mãe
trancava com a chave em formato de
cobra, uma cobra que eu pensava
que
adquiria vida e rastejava na palma
da minha mão quando era apenas
uma
menina. Abrindo a caixa, encontrei
ali dentro os ingredientes que viera
armazenando para o pior dos
momentos: pele de cobra para a
serpente
negra que dormia entre as rochas,
cinzas da fogueira de um pombo
sacrificado, lápis-lazúli moído, a
pedra que é a mais forte entre todas
as outras, cordões amarrados em nós
precisos, destinados a tecer uma
rede de
proteção. Peguei o que precisava.
Iria me encontrar com meus filhos na
praça, e então procuraria Eleazar. O
pânico latejava dentro de mim
porque
sabia que, não importava o que
fizesse, realmente me afogaria nesse
dia.
Esse era o destino revelado pelos
ossos que lançara na torre.
Yael pousou a mão no meu braço,
tentando impedir-me quando fui para
a porta, insistindo que era tarde
demais para ir.
– O que você não faria por aqueles
que ama? – perguntei a ela.
– Estou fazendo isso agora – ela
respondeu, como se fosse realmente
a
minha filha. – Não vá para ele.
Ela me prometera uma vez que faria
o que pedisse. Lembrei-lhe disso
quando lhe dei a última fruta que
conseguira salvar, uma romã, a
mesma fruta que lhe dera no nosso
último adeus. Ela me reconheceu
então como a
menina que cuidara dela em
Jerusalém. Jogou os braços ao meu
redor e poderíamos ter chorado
juntas se houvesse tempo. Em vez
disso, afastei-me e disse-lhe o que
deveria fazer. Esperava que ela me
obedecesse como
quando era criança. Se visse um
sinal das pombas, devia perguntar a
Revka
onde ela me vira como eu era. E
depois encaminhar-se para lá, sem
hesitação.
O CAOS estava por toda parte. Fiz o
que pude para seguir o meu caminho.
Aqueles que dizem que não é
possível ver Mal’ach ha-Mavet não
poderiam
estar mais errados. Vi-o de pé bem à
frente, as doze asas enegrecidas pelo
fogo, os mil olhos vendo tudo o que
somos e tudo o que fazemos. Eu
estava
presa nas garras da sua escuridão,
uma violação do esplendor de Deus
e da
Sua glória. Devemos sofrer na sua
presença, devemos parar diante
dele, mas eu não estaria pronta para
enfrentá-lo enquanto não encontrasse
meus
filhos.
Os romanos já tinham começado a
colocar tábuas para poder atravessar
a nossa muralha pela manhã. Era a
noite que antecedia a da fuga dos
nossos
antepassados do Egito, a noite em
que começou a nossa morte. Viam-se
maridos e esposas deitados lado a
lado sobre as pedras do calçamento,
encharcadas de sangue, para que
pudessem encontrar a morte juntos;
crianças em fila, lamuriando-se. Os
dez executores dedicavam-se ao
trabalho doloroso, indo de casa em
casa, como o Todo-Poderoso fizera
na
noite de Páscoa, quando os judeus
pintaram suas portas com flores de
hissopo manchadas de sangue,
permitindo que Adonai os
identificasse como verdadeiros
crentes e passasse por eles para que
pudessem viver.
Atravessei a Praça Ocidental,
depois desci a escada em direção ao
Palácio do Norte. Meu peito doía e
gotas de sangue pingavam de mim,
mas
continuei. Acima do caos ouvi os
latidos do cachorro da minha filha.
Corri,
seguindo o eco do animal
desesperado, evitando todos os
homens,
avançando pelas sombras até que
avistei vultos próximo à entrada de
uma
pequena piscina em que o rei se
banhava em água fria, cercado por
lírios brancos de lótus que trouxera
de Alexandria. Ali, sobre os
degraus, Amram
viera encontrar-se com minha filha.
As flechas caíram ao seu redor
quando
ele a agarrou pela cintura e cortou
sua garganta. Ao fazer isso, ele a
teve para si afinal, mas, enquanto ela
ofegava em seus braços, ele vira o
medalhão prateado em seu pescoço.
Quando o avistei, ele a puxara para
junto de si, a tristeza enorme, pois a
conheceu por quem ela era pela
primeira vez, o guerreiro que lutara
ao seu lado e o salvara. Ele gritou
pelo
que fizera, lamentando-se por tudo o
que morrera com ela.
Adir aproximou-se correndo de
Amram enquanto eu observava. O
meu
filho não tinha uma lança ou uma
espada, somente a muleta, e a usou
para
bater em Amram por ter visto a irmã
assassinada e pisar em seu sangue.
Amram virou-se e o trespassou,
depois terminou o trabalho com um
corte
rápido na garganta do meu filho. Ele
usava o xale de oração, como o
faziam
os demais carrascos, a peça de
vestuário que era sempre feita de
linho com
um único fio de lã azul, para que o
portador se lembrasse do céu e dos
mandamentos de Deus. Mas o xale
de oração de Amram estava
manchado e
parecia marrom com o sangue
grudado ao linho.
Assisti a tudo aquilo como em um
sonho, como se tivesse visto antes e
vindo ali como testemunha para que
os meus filhos não estivessem
sozinhos na hora da morte. Orei a
Deus para que fossem recebidos por
Shechinah, a morada do Senhor.
O meu filho não era um guerreiro,
apenas um menino. O meu guerreiro
era uma mulher que não esperava o
ataque de alguém que tanto a amara.
O cão estava enlouquecido em vista
do ferimento causado à sua dona,
lamuriando-se como se fosse um
homem e não um animal. Ele não se
calou
quando Amram virou-se para gritar
com ele; montou sobre o corpo
caído
de Aziza, protegendo-lhe as formas
inertes, as mandíbulas salpicadas de
espuma. Amram chutou-o, depois o
atacou, mas o cão manteve-se firme.
Era um animal que desejava
vingança, mais leal que o guerreiro
que então o
esfaqueou uma vez atrás da outra.
O mastim recusou-se a morrer, o
guardião da minha filha, que na sua
morte revelou-se ser apenas uma
mulher jovem que rapara o cabelo e
usava roupas de homem. As flechas
de penas vermelhas estavam caídas
ao
seu redor, seu campo de flores, o
último adeus. Apesar de
mortalmente ferido, o cão agarrou-se
a Amram e recusou-se a deixá-lo ir,
enterrando os
dentes na carne do inimigo. Assisti à
luta em meio a uma névoa de
tristeza,
até que tanto o cão como o homem
estivessem tão feridos que não
conseguiam continuar nem morrer.
O Homem do Vale deveria estar à
disposição do seu líder, pois fora
um
dos dez escolhidos. Em vez disso,
ele viera ao encontro de Aziza.
Quando viu o que acontecera, ele
cortou o pescoço do cachorro para
que o animal
pudesse morrer com honra,
liberando-o, assim, da dor e dos
deveres neste
mundo. Mas o guerreiro se deteve
sobre Amram e observou-o nos seus
estertores, sem oferecer consolo
nem assistência. O homem que fora
o
genro de Revka, quando o seu nome
era Yoav, quando ainda tinha
compaixão e fé, deixou que o
assassino da minha filha morresse
em
angústia.
Depois que Amram se foi, o Homem
do Vale cortou a armadura do
homem morto para aumentar a
desonra, de modo que o chão ficasse
coberto de escamas prateadas e era
dado a conhecer a Deus que ali
estava
um covarde indigno de ser chamado
de guerreiro. Em seguida, o Homem
do
Vale tirou o próprio xale de oração
e cobriu Aziza, como se ela fosse
um homem, um guerreiro caído em
batalha. Talvez fosse nisso que
quisesse
acreditar. Ele não suportava como
uma mulher a quem amara, uma
menina
feita de carne, não de ferro, que
retribuíra seu amor.
Depois que esse guerreiro
enlouquecido retornou ao turbilhão
da praça,
corri até meus filhos. Fechei seus
olhos e rezei pelos seus espíritos.
Lavei os
seus pés e mãos com a água da
piscina, apesar de as cinzas terem
deixado a
água preta. Atei os encantamentos
que levara comigo aos fios dos seus
cabelos para que fossem protegidos,
ainda que não neste mundo, mas pelo
menos no Mundo Vindouro. Pensei
nos momentos dos seus nascimentos:
o
de Aziza, em um quarto em
Jerusalém, onde as mulheres que
praticavam o
keshaphim me ajudaram a trazê-la à
vida. O de Adir, em uma barraca na
Montanha de Ferro, onde esperei
que o meu marido viesse em seu
cavalo
desde os confins orientais de Moabe
para poder estar lá no décimo dia,
para ver o filho e dar-lhe o nome de
um rei do seu povo.
OS DEZ seguiram em frente com a
fúria assassina, pela nossa honra e
pela glória de Deus, e nisso foram
bem-sucedidos. Quando subi a
escada até a esplanada no topo da
montanha, viam-se corpos por toda
parte, os que se
amavam, os que se desprezavam, os
que acreditavam que haveria
liberdade
no Sião, os que haviam
acompanhado um marido ou um
irmão, os que
haviam nascido nessa montanha, os
que haviam sonhado que morreriam
ali, todos em uma total confusão
sobre as pedras. Vi o corvo que me
mandara para o deserto com um xale
negro, curvada em seu jardim, e
chorei pelo seu espírito. Vi o pai de
Yael, o assassino que matara tantos
nos
pátios do Templo de Jerusalém,
esparramado nas imediações do
quartel, o
seu sangue tão vivo como qualquer
flor.
Fui aos pombais e abri as portas dos
dois primeiros, finalmente
chegando ao columbarium de pedra
que tinha o formato de uma torre, o
lugar onde minhas filhas
trabalhavam ao meu lado com mais
frequência,
onde Revka chegara durante o luto,
onde Yael atraíra as aves para si
sem emitir uma única palavra, como
eu soubera que faria quando fomos
juntas
ao mercado em Jerusalém e ela
implorara pela libertação de uma
pomba, e
em troca dera a promessa de fazer o
que quer que eu pedisse.
Afugentei as pombas para fora,
agitando o xale, assobiando como o
falcão, forçando-as a sair dos
poleiros. Elas subiram ao céu
enegrecido todas de uma só vez,
manchando a treva com seu
esplendor, apregoando a
mensagem de que havia um tempo
para morrer e um tempo para
ressuscitar.
O HOMEM a quem eu amava me
encontrou na porta do meu aposento.
Não havia ninguém lá, somente nós
dois, como no dia em que ele me
levara para
a cama, quando deixei uma camada
de vermelho nas roupas de cama,
não
da hena, mas de sangue. Os outros
haviam fugido. Yael mantivera a sua
promessa. Ela fizera o que eu
pedira.
Deixei de lado tudo, a não ser o meu
amado. Não me importava que ele
estivesse coberto de sangue. Não
queria saber quantos matara, ou se
estivera abraçado à sua mulher antes
de ser rápido na morte dela, ou até
mesmo se lhe pedira perdão depois
de todo aquele tempo.
– A morte caminha ao nosso lado,
mas não conosco – me disse ele
enquanto me tomava nos braços.
Fiquei feliz por ele não ter visto sua
nova filha. Se o tivesse feito, teria
sido muito doloroso para ele deixá-
la e eu nunca quis ser a causa da sua
dor, como sabia que ele nunca
quisera me causar nenhuma. A minha
mãe
me avisara o que o amor faria
comigo. Eu não me importara na
época e não
me importava agora.
Os olhos dele eram acinzentados,
como as pombas, como a névoa que
se
desfez quando o mundo começou no
dia em que Deus nos deu a palavra e
pudemos falar, e as nossas palavras
transformaram o mundo no que ele
veio a ser. Eu poderia ter clamado
contra o destino e ter coberto a
cabeça.
Poderia ter implorado por mais
tempo, insistido com ele para fugir
comigo.
Mas talvez me tivesse sido
concedido tudo o que precisara
nesta vida. O
meu amado era um homem teimoso,
um verdadeiro crente. Ele era mais
complicado que qualquer outro
homem que eu já conhecera e o
único que
poderia ter-me chamado para
atravessar o Mar de Sal e deixar
para trás o
meu marido e as colinas verdes de
Moabe.
Era isso o que a minha mãe queria
dizer quando me advertiu que o
amor
seria a minha perdição. O amor fazia
você se entregar, prendia você a este
mundo e ao destino de outro. Deitei-
me ao lado de Eleazar. Estávamos
juntos como fazíamos mesmo quando
separados, pois éramos uma só
pessoa, casados por mais do que
nosso desejo.
Tivemos os últimos momentos de
vida neste mundo, mas eu morreria
uma centena de vezes para ter seu
amor. Beijei-o de um modo que
nunca
beijaria outro homem. O seu espírito
entrelaçou-se ao meu quando ele me
penetrou e me tornou toda sua. Se
chorei, foi apenas porque a água era
o
meu elemento, o que mais ansiava e
o que precisava acima de tudo.
Quando
ele acabou, eu ainda chorava por
perdê-lo, apesar de estar escrito que
deveria acontecer. Amei-o mesmo
nesse momento, em que ele levou
uma
faca à minha garganta, em que me
afoguei em sangue, em que sussurrei:
Primo, você estava errado. Nós
nascemos para viver.
15 de Nissan, 73 d.C.
ALEXANDRIA
77 d.C.
Eles me chamam a Bruxa de
Moabe.
Assim estava escrito no Livro da
Vida. Antes de eu nascer de uma
mulher
que já estava morta, antes de
deixar Jerusalém e ser mordida por
um leão, antes de os romanos virem
para nos destruir, já fora decidido
que isso viria a acontecer.
Um dia eu soube com certeza que
nunca mais conheceria o prazer
das coisas
mais simples: um tear, uma mesa,
um pente para o cabelo. Pensei que
a minha vida tivesse acabado e que
o anjo de mil olhos se achasse à
minha porta. Mas estava errada.
Tenho uma casa feita de pedras
brancas. Os operários trabalharam
para construir a fonte no centro do
pátio no fundo de
um jardim murado, onde há
tamareiras e vasos de jasmins e
lírios brancos que não se
encontram em nenhuma outra terra,
exceto, talvez, nos campos do
mundo além do nosso.
Quando Mal’ach ha-Mavet me
procurou, salpicado pelo sangue do
meu povo, eu usava o manto da
invisibilidade. Embrenhara-me tão
profundamente no interior da terra
que ele precisaria ter descido uma
centena de degraus antes de poder
me avistar, ainda que possuísse a
visão de um exército. A despeito do
seu dom da visão, eu ainda estaria
escondida de sua vista, pois se diz
que a Morte deve fechar os olhos
ao entrar na água e eu estava
submersa em uma cisterna, um
poço tão profundo que há quem
acredite que não tenha fundo, que
chega até o centro da terra, de
volta à primeira pedra de
Jerusalém, onde começou a
criação.
Foi a água que nos salvou,
protegendo-nos das chamas que
tremulavam e
das mãos gananciosas da Morte.
Tínhamos nos apressado a descer
pelos degraus de pedra, perdendo o
fôlego na escuridão, enquanto a
Morte assomava sobre nós, antes
de mergulharmos na água como se
fôssemos peixes, pois os homens e
as mulheres do nosso povo são
irmãos e irmãs de tais criaturas, e
é por isso que conseguimos
subsistir onde outros estão fadados
a perecer.
Em Alexandria as manhãs são
claras, o ar tão úmido que parece
um mundo
de água, até que o sol surge em
faixas amarelas de luz. Posso ver o
porto enquanto preparo xícaras de
chá-preto, doces de gergelim,
laranjas cortadas
em quartos. Há três cabras pretas
no celeiro, uma dezena de ovelhas
detrás
do muro, um burro branco que é
tão rápido que levanta nuvens de
pó vermelho quando corre. O nosso
povo sofreu restrições na cidade,
mas conseguimos permanecer.
Arieh e Yonah brincam no jardim
depois das aulas, escondendo-se
entre os
juncos ao lado de uma lagoa em
que as garças vêm se alimentar. Há
um íbis
branco que se apossou da nossa
fonte. Ele se equilibra sobre uma
perna fina e bebe água, levantando
a cabeça para o céu. Talvez o que
deixamos para trás
tenha vindo a nós na forma dessa
criatura, pois ela nos observa
cuidadosamente e cheia de
compaixão.
Os netos de Revka não são mais
crianças, mas homens cujas
sombras são
tão altas que fico surpresa que
pertençam àqueles que já foram os
meninos a
quem contava histórias para que
pudessem dormir a noite toda.
Agora somos
Revka e eu que nos remexemos e
viramos na cama enquanto
sonhamos com
os homens que se recusaram a se
render e com as mulheres que eram
guiadas
pela devoção. Lembramo-nos de
tudo pelo que lutaram, de todos a
quem amaram e foram leais.
Lembramo-nos de como era o
mundo quando a terra
era governada pela guerra.
No entardecer em que uma diáfana
luz escarlate se esparrama pelo
céu, na hora em que o espaço entre
os mundos se abre antes que a noite
peneire
sobre a terra o seu azul intenso, as
mulheres aparecem no portão dos
fundos
para perguntar pela Bruxa de
Moabe. Elas vêm com as melhores
roupas, sandálias de couro que lhes
deixam os passos silenciosos, anéis
com sinete e pulseiras de ouro
adornando-lhes os dedos e punhos
esguios, kohl preto em torno dos
olhos. Elas me oferecem moedas de
ouro e prata, fios de pérolas. Em
troca, pedem que jogue os ossos de
aves para adivinhar o futuro.
Suplicam manjerona e arruda,
amuletos e poções, uma boa saúde,
o parto de um filho e
o sumiço de inimigos. Elas pedem
amor, sempre. Abro o livro em que
essas receitas estão escritas, a
tinta ainda fresca, embora o
pergaminho tenha ficado marrom,
como se segurasse um maço de
folhas em minhas mãos.
As mulheres que chegam me
chamam de inteligente, esperta,
bonita, sábia.
Contam-me seus segredos e falam
de violações e de sonhos. Confiam-
me o que
jamais admitiriam a outra, ainda
que eu seja uma estranha. Faço o
melhor que posso por elas. Aprendi
a adivinhação com uma mulher
sábia, mas aprendi a escutar com
um fantasma.
Muitas vezes tomo a estrada
sinuosa de pedras até o porto para
ver a grande lanterna que é acesa
todas as noites no farol na ilha de
Faros, uma das sete maravilhas do
mundo. Espero pelos navios que
vêm da Grécia, soprados sobre o
mar, as enormes velas brancas
cheias pelo vento dos quatro
cantos da terra. A água nos
circunda. Quando o Nilo
transborda, os campos
ficam verdes e há grandes
comemorações, lanternas
penduradas em árvores,
tambores retumbando a noite toda,
dançarinas com véus e saias
compridas.
O rio exibe todos os tons de azul
conhecidos pela humanidade:
marinho, turquesa e lápis-lazúli,
índigo, esverdeado, cerúleo e
ultramarino. No entanto, é do
deserto que mais tenho saudade.
Marfim, alabastro, as rochas que
faziam meus pés sangrar, a faca
para marcar os dias, o homem a
quem amava. Ao entardecer, o
cheiro de terra árida chega através
da Judeia e me
lembra de quem eu era. Meu cabelo
é perfumado e trançado, mas à
noite retiro os pinos e deixo-o cair
solto às minhas costas.
Quando me sento no escuro, as
aves se aproximam. Eles ainda me
conhecem por quem sou.
Sou a garota do deserto, mesmo
que esteja tão longe.
Sou a mulher que foi salva pelas
pombas pois, quando as vi se
elevarem em
uma nuvem acima de Massada, à
hora em que reinava a escuridão,
soube que
devíamos fugir.
Estávamos na cozinha do palácio,
esperando que Mal’ach ha-Mavet
entrasse pela porta na forma de um
dos dez verdugos que viriam nos
cortar a garganta. Revka e as
crianças amontoavam-se em um
canto, inertes, com a
perplexidade das ovelhas
empurradas para o açougueiro
quando chamadas e conduzidas por
sinos. Eu andava para lá e para cá
sobre o piso de mosaico preto e
branco, depois fui até a porta,
examinando ansiosamente a
multidão.
Tinha esperança de que logo
Shirah apareceria, retornando com
Aziza e Adir,
resgatados em segurança do caos.
Mas, quanto mais observava, mais
eu tremia, pois os corpos eram
empilhados na praça e o sangue
corria como um
rio, uma maré que alimentava as
oliveiras, as tamareiras e o jardim
reduzido a cinzas. As lamúrias
eram incessantes, mas logo os
gritos ecoantes deram lugar a um
silêncio estranho. Shirah uma vez
me dissera que a única coisa que
deveríamos temer era o silêncio.
Esse era o nosso verdadeiro
inimigo pois significava, como as
pegadas apagadas pela tempestade,
que havíamos
desaparecido da vista de Deus.
Yonah gritou de repente, quebrando
o silêncio com a voz doce de
alguém
que pede para ser alimentado. Eu
ainda amamentava Arieh e, quando
a recém-nascida chorou, senti meu
leite brotar. Naquele instante
compreendi que, apesar da morte
que nos cercava, eu ainda vivia.
A fortaleza queimava de dentro
para fora, devastada pelo nosso
próprio povo. Todas as casas
haviam sido incendiadas, todos os
bens lançados sobre
uma fogueira que se avivou com o
vento e rapidamente se alastrou
fora de controle, as faíscas ateando
fogo aos telhados e às folhagens
das poucas árvores que não tinham
sido cortadas para a construção do
muro interior.
Muitos corpos já haviam queimado
até as cinzas que se elevavam para
produzir uma noite que era a mais
escura já vista. Era a véspera da
Páscoa,
mas não houve um maná como o
nosso povo conhecera na fuga da
escravidão
do Egito, apenas o céu preto e uma
cortina de fumaça. Respirávamos
os ossos
do nosso povo – os desejos, as
diferenças mesquinhas, a fé –,
todos martirizados, desaparecendo
no sombrio ar assassino.
Não se viam estrelas e a escuridão
reinava absoluta, como fora antes
do
primeiro dia da criação. Mas então
as pombas elevaram-se através da
fumaça, como se elas fossem
estrelas. Perguntei-me se o maná
aparecera dessa maneira enquanto
o nosso povo vagara pelo deserto
por quarenta anos, se flutuara
acima da morte com a facilidade de
uma pomba, uma mensagem para
nos informar que éramos
destinados a sobreviver.
Como as aves não voam à noite,
entendi que as pombas em voo eram
o sinal que Shirah prometera me
enviar. Ela, que cuidara de mim
quando eu era uma criança órfã de
mãe em Jerusalém, uma vez mais
me protegia. Ela
abrira as portas dos pombais, como
devíamos agora abrir as portas
para nós
mesmos.
Peguei a filha de Shirah em meus
braços e segurei-a com meu filho.
Para
mim, eles poderiam ter sido
gêmeos, uma recém-nascida, o
outro com vinte meses no mundo,
um não menos querido para mim
que a outra. Mandei Revka parar
de chorar, precisávamos fugir. Não
tínhamos tempo para a morte, disse
a ela, surpresa com a minha
certeza determinada.
Revka encarou-me, pensando que
eu enlouquecera, pois éramos
cativos
dos romanos, do nosso próprio
povo e do destino. Disseram-nos
para ficar indiferentes ao mundo
porque não tínhamos outra escolha
senão perder e abraçar a morte.
Mas as crianças nos meus braços
se mexiam, vivas, destinadas a algo
mais.
Mandaram que nos sacrificássemos
em vez de nos render, e eu poderia
ter
obedecido, não fosse pelas
crianças. Depois que me expliquei,
rapidamente Revka concordou.
Faríamos qualquer coisa para
salvar as crianças sob a nossa
guarda. Revka o fizera na
cachoeira quando a morte
espreitara seus netos. Quanto a
mim, não perderia outro leão. Não
poderia obedecer à ordem
do nosso líder. Se isso fosse
traição, então eu era uma traidora.
Mas eu já desrespeitara as leis
antes e Deus, que fora testemunha
dos meus pecados, me perdoara.
Apressei Revka e as crianças.
Yehuda hesitou, pois fora educado
para não combater a violência, mas
a aceitá-la, e ficou perturbado em
pensar que poderia desrespeitar
seu povo. Incitei-o, lembrando-lhe
que a sua mãe o confiara a nós
para que pudesse viver; essa era a
intenção dela e ele deveria honrar
a sua vontade acima de todas as
outras motivações.
Levantei um tapetinho para revelar
uma porta instalada no chão da
cozinha, idealizada para a fuga do
rei. Aziza uma vez me confidenciara
que
usava aquela saída para se
encontrar com Amram. Ninguém
sabia da
existência dessa porta, a não ser o
rei, que já se fora havia uma
centena de anos.
Entramos no espaço abaixo do
piso, abafado, esgueirando-nos nas
sombras. Puxei a porta, que se
fechou atrás de nós, impedindo a
passagem de
qualquer réstia de luz. Descemos
pela escada até o porão. De mãos
dadas, seguimos no escuro,
rapidamente e em silêncio, como
fazem os ratos. Noé e
Levi estavam acostumados ao
silêncio, pois esse se tornara parte
da sua natureza. Yehuda era
diligente e calado. Até mesmo
Yonah e Arieh
pareceram pressentir que sem o
silêncio seríamos apanhados nas
malhas da
morte. Eles não gemeram nem
choraram, em vez disso agarraram-
se a mim
sem reclamar.
Não pude deixar de pensar no meu
irmão, um dos dez que haviam sido
escolhidos pelo nosso líder.
Imaginei se ele ainda usava aquele
quadrado de
seda azul na armadura, se ele se
lembrava do dia em que o
procurara, debaixo do flamboyant ,
e lhe pedira para abandonar a
faca. Talvez a faca fosse tudo que
tivesse agora, a única coisa com
que se importava ou em que
confiava e à qual era leal. Disse
uma oração por ele. Acho que eu
sabia a resposta aos meus
questionamentos, porque a oração
que murmurei em seu nome era uma
lamentação cantada em memória
dos mortos, para que
encontrassem a paz no Mundo
Vindouro.
Atravessamos a câmara de pedra,
respirando o ar úmido, não
parando até
chegarmos a outro conjunto de
escadas, que nos levariam a uma
pesada porta de madeira. A porta,
uma vez aberta, levou-nos para o
ar livre. Lá estávamos nós, o cheiro
amargo de fumaça nos envolvendo,
o vento em lufadas transportando
faíscas das fogueiras que tinham
sido acesas,
juntamente com os espíritos dos
mortos se contorcendo.
Revka segurou meu braço e nos
entreolhamos, sem precisar de
palavras para entender o pacto
estabelecido entre nós.
Pretendíamos viver.
Enrolei a filha recém-nascida de
Shirah no meu xale, para que
pudesse permanecer em silêncio e
invisível, enquanto Arieh montava o
meu quadril, os olhinhos escuros
bem abertos, segurando-se
firmemente à minha túnica com
as duas mãos. Quando saímos para
a noite e a porta do túnel fechou-se
atrás
de nós, foi como se tivéssemos
entrado pelo primeiro portão do
Gehennom, a
porta de entrada para o vale do
inferno. A cena com que tínhamos
nos deparado dificilmente se
parecia com algo terreno, mas sim
com um mundo
em chamas, com punições para os
maus. Ou talvez esse tivesse sido
um teste
para os fiéis. Será que
conseguiríamos enfrentar o inferno
e atravessar o fogo sem hesitação,
ou cairíamos de joelhos e
desistiríamos da vida que Deus nos
concedera?
Não podíamos recuar naquele
momento. O nosso mundo estava
devastado,
desaparecera do alcance de Deus.
Revka e os meninos relutavam em
prosseguir, pois havia multidões
por toda parte e eles temiam que
fôssemos
vistos. Fiquem nas sombras, eu lhes
disse, pois era isso o que eu fazia
no deserto quando queria passar
despercebida das aves que se
aproximassem.
Perguntei a Revka onde ela vira
Shirah pela primeira vez, porque
era para
onde Shirah instruíra-me a fugir.
Imaginava que quisesse que
corrêssemos para os pombais e nos
escondêssemos lá, ou que
esperássemos por ela próximo ao
Portão da Serpente, mas Revka
referiu-se baixinho a um local que
me surpreendeu: ela vira Shirah
muitas vezes, mas só a veria
claramente por
quem ela era quando a encontrara
por acaso em uma cisterna, a maior
delas,
situada na caverna mais profunda
esculpida na montanha, centenas
de degraus de gesso abaixo,
construída no lugar mais distante.
Era para onde Shirah queria que
fôssemos.
Prosseguimos através da loucura
que nos cercava. Contornando o
quartel,
passamos pela fogueira cujas
chamas estavam fora de controle.
Viam-se corpos empilhados sobre
ela, juntamente com as provisões e
os despojos de animais, tudo o que
tínhamos nos nossos armazéns e
depósitos. Embora a fumaça fosse
acre, parei atordoada, pois fora
ali, ao lado das pilhas de armas,
que vi o meu pai pela última vez,
estendido entre os soldados mortos.
Aproximei-me dele e me ajoelhei ao
seu lado para fechar-lhe os olhos.
Pela
sua expressão entendi que estava
agora ao lado da sua amada
esposa, a mulher de cabelo cor de
fogo que também era a minha mãe.
Pelo menos tivemos isso em comum.
Ao lado dele, no chão, achava-se o
manto
acinzentado. Ele poderia ter
tentado escapar do seu destino,
mas despira o manto para ser visto
por quem ele era, o assassino Yosef
bar Elhanan, que fora o meu pai e
que permaneceria assim por toda a
eternidade.
Enquanto examinava seu rosto,
sereno pela primeira vez, lembrei-
me do que me dissera sobre seu
talento para o disfarce. Os homens
muitas vezes não conseguiam
avistar que estava diante deles.
Eles procuraram por segredos e
pelo que estava enterrado, mas o
que estava abertamente às claras à
sua frente os cegava, de modo que
não conseguiam enxergar. Um rato
que atravessasse rapidamente a
mesa teria menos probabilidade de
ser
apanhado que outro que ficasse
parado no canto de uma sala, onde
era de esperar que ratos se
amontoassem. Um assassino que
entrasse em uma sala
poderia facilmente parecer-se com
um homem comum se agisse com
confiança, com todo o direito de
fazer o que quisesse.
Peguei a capa do meu pai. Os
outros me seguiram e continuamos
juntos como se formássemos uma
nuvem, uma névoa, nada que
parecesse humano.
Rapidamente atravessamos o
pomar onde antes cresciam as
amendoeiras, onde as flores cor-
de-rosa flutuavam no ar quando o
vento kadim se levantava. Não
restara nada ali, nenhum ramo,
nenhum galho, embora o chão
estivesse coberto de faíscas que
brilhavam com a incandescência de
mariposas brancas que tivessem
surgido à nossa frente, caídas
sobre a terra.
Mais do que apenas árvores tinham
sido derrubadas nesse pomar agora
estéril, com sangue fluindo em vez
de seiva e fios de cabelo em vez de
flores.
Cadáver após cadáver se espalhava
pelo campo.
Revka disse aos netos e a Yehuda
para pensarem nas formas escuras
no chão como árvores caídas, não
como homens, mulheres e crianças
com a garganta cortada. A tarefa
dos carrascos estava quase
concluída; em breve eles cairiam
uns sobre os outros, pois tinham se
posicionado ao lado do Portão da
Água e tiravam a sorte para ver
quem seria o último guerreiro, o
homem a atrair todos os pecados
dos irmãos e pôr fim aos outros
nove antes
de virar a espada contra si mesmo.
No entanto, ainda havia entre o
nosso povo alguns para serem
despachados e a violência não
terminara. Vimos uma família com
quatro filhos esperando nos
degraus de um armazém em
chamas, silenciosas como
fantasmas, embora continuassem
no mundo dos vivos, os olhos turvos
e trêmulos. O pai da família foi o
primeiro a oferecer o pescoço a um
dos algozes, como se para ensinar
aos filhos, como se os instruísse
sobre como arrebanhar as ovelhas,
ou como atirar uma flecha, ou
como começar suas orações da
manhã com a subida do sol. Mas
essa não era uma lição de beleza
ou de conhecimento, apenas um
momento feio de horror. As
crianças
acorreram ao redor do pai
moribundo, agarrando o seu manto,
como se ao
fazê-lo pudessem reencontrar-se
com seu espírito no Mundo
Vindouro.
O algoz era Uri, o guerreiro que
nos encontrara no deserto, a mim e
ao meu pai, o menino que fora
amigo do meu irmão, um jovem
brando que ficara tão
impressionado com essa fortaleza
quanto a descrevera para mim
nos mínimos detalhes enquanto
estávamos sentados em volta de
uma
fogueira no deserto, comendo uma
refeição que eu conseguira, um
pássaro que atraíra para mim.
Ele me contara sobre os afrescos
das sete irmãs pintados pelos
melhores artistas de Roma, sobre
os banhos que eram aquecidos por
tubos de cerâmica, sobre os jardins
que se agarravam aos penhascos,
sobre o palácio
voltado para o norte, para que
qualquer pessoa que ali residisse
sempre olhasse na direção de
Jerusalém. Havíamos sentado
juntos no deserto com a
luz minguando aos poucos, o cheiro
da murta em torno de nós, olhando
para
o fogo como se observássemos um
destino que ainda não entendíamos.
Éramos jovens e o deserto abria-se
até o horizonte com sua beleza
sobrenatural, as estrelas cintilando
no firmamento no alto, tão
numerosas que ficávamos
atordoados com sua luz.
Agora as estrelas não podiam ser
vistas, escondidas pelas nuvens
crescentes
de fumaça. Uri murmurou a oração
pelos mortos para o homem que
matara.
O homem morto fora um dos
padeiros do mercado. Revka
hesitou quando viu
o avental branco sob seu manto de
oração tornar-se escarlate. Foi
como se um estandarte de
desespero fosse agitado para ela.
Segurei seu braço e obriguei-a a
me seguir, como segui as pombas
que fugiam da única morada
que conheceram. Já os filhos do
padeiro, nos degraus, eram
despachados pela
faca de Uri; eles tinham se reunido
como para facilitar a tarefa do seu
assassino, pois não havia nenhum
lugar para onde correrem.
Talvez Revka tenha soltado um
gemido ao virar-se da cena de
morte, talvez um dos meninos
tivesse tropeçado em uma pedra, ou
a filha de Shirah,
que recebera o nome que
significava pomba, tivesse
choramingado e
arrulhado dentro da minha capa.
Silenciei-a enquanto apressava os
outros a
prosseguir, mas foi tarde demais. O
eco do ruído fez com que Uri nos
avistasse através da escuridão. Ele
terminou depressa a sua função nos
degraus – eram
apenas crianças e, depois que se
foram, a mãe não resistiu, abrindo
a capa para que pudesse ser levada
desta vida.
Uri veio atrás de nós, forçado pelo
seu dever. Nós corremos,
incentivando-
nos mutuamente, os garotos
seguindo na frente. Nossa
respiração estava quente e todos
nós ofegávamos enquanto
corríamos pelas nossas vidas. Noé
e
Levi pararam quando perceberam
que a avó não se encontrava mais
entre nós. Revka caíra atrás de nós,
incapaz de nos acompanhar. Ela
gritou para continuarmos
correndo, insistindo que a
abandonássemos, pois Uri já a
alcançara, já a estava segurando,
implorando que aceitasse o que
tinha de ser enquanto ela lutava
para repeli-lo. Imaginei que ela
tivesse tropeçado de propósito,
para impedir que o jovem guerreiro
nos alcançasse.
Disse aos meninos para seguir em
frente e entreguei os bebês a
Yehuda antes de voltar correndo de
volta para junto de Revka.
– Continue – ela gritou, agitando
os braços como teria feito se uma
das pombas se recusasse a deixar o
ninho.
Ela não me tivera muito em conta
no início, quando eu chegara ao
pombal, e tinha razão para
desconfiar de mim. Eu não fora
alguém que valesse a pena. Uma
ladra que não conhecia o
significado do amor, uma tola
sem entendimento do que um leão
poderia fazer a quem se deitasse
com ele.
Eu fora uma garota do deserto,
disposta a fazer qualquer coisa
para sobreviver.
Corri na direção de Uri enquanto
ele segurava Revka com firmeza.
Disparei até ele, para alcançá-lo
com mais força, mas também para
não precisar ver o seu rosto. Trazia
a faca que pertencera a Ben Simon,
a que ele usara em nome do Sião,
que me dera para me proteger
quando se convenceu
de que morreria, que havíamos
pecado e que eu precisaria seguir
em frente
sem ele.
Usei a adaga antes de poder
considerar o peso do meu ato, antes
de poder
sentir o calor do sangue de Uri.
Quando emboscava as pombas no
deserto, sua
morte parecia um sopro de fumaça
branca, rápida e silenciosa. Essa
foi um inferno, uma explosão de
sangue e calor. Uri soltou Revka e
virou-se para mim, perplexo, o
olhar fixo em mim, como se eu fosse
a assassina e ele o pássaro na rede.
Ele avançou para me agarrar e me
levar com ele, mas, antes
que conseguisse me segurar, foi
atingido por trás e tropeçou,
caindo para a
frente. Ele parecia um tufo de mato
tirado de um sulco da terra,
cortado na
colheita. Caiu ao chão como as
amendoeiras do pomar.
O Homem do Vale viera em nossa
direção. Ele estava quase
irreconhecível,
o rosto parecendo meio humano,
meio bestial. Foi por isso que o
Todo-Poderoso nos deu a oração,
para distinguir os homens dos
animais, para deixar os animais
trancados em nós, como demônios
presos em frascos de chumbo.
Aquele guerreiro não usava nada
além das suas faixas de metal para
o seu suplício e uma túnica que
estava encharcada de sangue.
Mas não importava a sua
aparência, o Homem do Vale era de
fato
humano, embora ele mesmo
pudesse negá-lo. Quando Uri
procurou me
dominar de novo, segurando a
minha perna, o Homem do Vale
gritou para eu
me esquivar para trás. Ele fez uma
varredura rápida para completar a
morte
de Uri, tão rápida que parecia que
seu machado era feito de luz.
Talvez Gabriel, que era o senhor do
fogo e da vingança, de fato
caminhasse ao lado
dele.
Depois de matar o jovem guerreiro,
o Homem do Vale ajoelhou-se para
entoar a canção para os mortos,
que muitos diziam ser a única
oração que ele oferecia a Deus. Ele
cantou como se estivesse em transe.
Quando se levantou, vi que fora
marcado com as letras do nome do
Todo-Poderoso no peito e nos
braços, pois era o último dos dez, o
que deveria matar todos os
carrascos e, em seguida, causar a
própria morte.
Um dia ele fora um homem culto e
estudioso, fora um homem de fé.
Agora,
participara de um sorteio para ver
quem seria o último homem e Deus
o escolhera para essa terrível
tarefa derradeira. De todos os
verdugos, ele era o mais feroz, pois
a sua indignação elevava-se acima
da condição da sua espécie e o
deixava sem medo. Ele estava
acostumado à violência; fosse
infligida contra si mesmo ou contra
outro, não fazia nenhuma
diferença.
Naquele momento, não tive certeza
se ele seria nosso assassino ou
nossa salvação. As crianças haviam
parado em seu caminho, olhando
com horror.
Os meninos conheciam o pai e o
chamaram, mas ele não respondeu.
Em vez
disso ele olhou para mim,
inofensivo, e nesse momento vi o
homem que ele fora, o que voltaria
a ser quando entrasse no Mundo
Vindouro e se inclinasse diante do
Criador de todas as coisas.
– Deixo meus filhos para você – ele
disse, a voz rouca. – Aonde quer
que forem, a minha esposa estará
com eles.
Nem mesmo nesse momento ele
conseguia se esquecer dela, ou
perdê-la para os animais que a
subjugaram. Se ele tivesse sido
outro homem, poderia
ter vindo conosco para se esconder
daquele caos, pois murmurei que
estávamos fugindo. Mas ele
procurara a morte por tanto tempo
que não poderia permanecer entre
nós agora. Finalmente estava
prestes a encontrar
aquele por quem sempre esperara,
o machado pronto para desferir o
golpe,
perante Mal’ach ha-Mavet , da
única maneira que poderia vencer
essa batalha, contra si mesmo.
Ele soprou na sua mão, em seguida
pegou a minha e disse-me o que
deveria fazer.
Corri para aqueles que me
aguardavam. Corremos para a
cisterna e
descemos pelos degraus o mais
rápido que pudemos. A escuridão
era densa diante de nós e ouvia-se
o eco da água abaixo. Na entrada
da caverna parei para dizer a
Revka que ela deveria beijar a
minha mão, pois fora isso que o
Homem do Vale me ordenara a
fazer. Ela o fez e eu lhe revelei o
presente do seu genro. Neshamah, o
sopro da alma da sua filha, era-lhe
devolvido, para guardar por toda a
eternidade e para levar conosco,
aonde quer que fôssemos.
Nossos passos ecoavam enquanto
nos aprofundávamos na terra, mas
apenas para nossos ouvidos, pois
não restara mais ninguém para
ouvi-los.
Podíamos sentir o silêncio dos
mortos, mas ele não nos seguiu.
Ouvia-se apenas o eco lânguido da
água parada, espirrando quando
caíam pedras sob
a ação dos nossos passos. Quando
chegamos ao fundo do poço, a
borda de gesso branco brilhou e
indicou o caminho. Parecia que as
estrelas tinham caído no
subterrâneo.
Entramos na água e foi ali que nos
escondemos da morte. Chegamos lá
no
dia dezesseis de Nissan , quando
amanhecia o dia da Páscoa.
O calor das fogueiras acima da
cisterna passou sobre nós. Assim
como o nosso povo foi salvo
quando o Anjo da Morte passou
sobre ele enquanto era escravo
no Egito, nós também escapamos
dele. Dormimos na boca do poço,
pois estávamos exaustos e
havíamos passado horas na água,
batendo os pés, segurando-nos na
borda afiada de gesso até os dedos
sangrarem. Então saíramos da
cisterna para descansar ao lado da
boca do poço e não nos afogar pelo
nosso estado de exaustão. Lá
ficáramos, extenuados, o cabelo
arrastando na água, os dedos em
carne viva, as túnicas encharcadas.
Talvez sonhássemos que os que
tinham morrido permaneciam nas
proximidades, pois eles nos
sussurraram durante a noite.
Estávamos tão perto dos mortos
que podíamos ouvi-los do mesmo
modo que é possível ouvir
o vento em uma tempestade, mesmo
quando se está escondido em
segurança.
Quando acordamos, ficamos
maravilhados por ainda estarmos
vivos. A cinza
negra fora lavada de nós durante
as horas passadas na cisterna e
pudemos
ver as réstias de luz filtrando-se de
cima, pois era de manhã e outro dia
chegara.
Erguemos os olhos alarmados
quando ouvimos vozes abafadas.
Pensamos
que fossem as vozes dos mortos e
que talvez estivéssemos entre eles e
não reconhecêramos o Mundo
Vindouro, tomando-o pelo mundo
que sempre
conhecêramos antes daquela noite
assassina. Por tudo o que
sabíamos, pensamos que nós
também estávamos entre os mortos
e ainda não
percebêramos que deixáramos o
corpo, demorando-nos como os
falecidos sempre fazem antes de
seguir em frente. Desanimados,
abaixamos a cabeça.
Levi e Noé temeram que os
demônios nos aguardassem, pois
tinham visto
tais seres em ação. Eles se
abraçaram, preparando-se para
quais fossem os próximos terrores
a serem infligidos sobre eles.
Yehuda insistiu que o Fim dos Dias
chegara e que o seu povo
ressuscitara do túmulo e da
montanha onde os
ossos haviam sido espalhados pelos
chacais e logo viriam juntar-se a
nós. Ele começou a rezar, postado
na direção de Jerusalém, pois
embora estivéssemos
sob a terra ele conseguia indicar a
localização da cidade santa pela
posição dos raios de luz, enquanto
o sol subia acima da cisterna.
Passos soaram ruidosamente na
escada, descendo pela terra, onde
esperávamos o que estava por vir.
Os ruídos me fizeram pensar nos
cavalos
do rei, como haviam galgado o
estreito caminho da serpente
porque não tinham outra opção,
estavam de olhos vendados para os
perigos ao redor.
Quatro soldados da legião
aproximaram-se de nós, exibindo
nos rostos o choque por nos
avistar. Um agarrou Yehuda e
obrigou-o a ficar de pé.
Levantei-me com um grito. O meu
cabelo era da cor do sangue e eu
estava salpicada com manchas em
tons de sangue que sempre me
marcaram e pela
matança sangrenta do meu povo.
O soldado recuou. Talvez
acreditasse em fantasmas.
O que é você?, disse ele. Falava em
latim.
Fingi não entender.
Você está viva?, perguntou.
E então compreendemos que
estávamos vivos, pois ele podia nos
ver e era
feito de carne e osso, vestido com a
túnica branca da legião,
carregando uma lança que fora
preparada para usar contra nós.
Mas a lança pendia folgada
em sua mão, pois ele não sabia o
que éramos, e os fantasmas não
podem ser
mortos com armas feitas pelos
homens.
Se as circunstâncias fossem
diferentes, certamente teríamos
sido todos mortos, mas agora a
expressão dos soldados era de
confusão, pois estavam nervosos
pelo que tinham testemunhado na
montanha acima de nós, as
centenas de corpos carbonizados, a
queima de tudo o que tínhamos sido
e de
tudo o que possuíamos.
O que é feito de todos os outros?,
disse o mesmo soldado.
Eu presumira que haviam
capturado mais sobreviventes,
aqueles que
tinham se escondido em seus
alojamentos, ou tinham se
agachado ao lado da
muralha.
Procuramos em todos os lugares e
não encontramos nada além de
mortos,
prosseguiu ele.
Nós percebemos que éramos os
únicos e que tínhamos somente uma
história para contar.
Eles nos puseram em fila e nos
examinaram, com medo de que
fôssemos realmente fantasmas, e
nos trataram como tal, com um
respeito moldado pelo medo. Havia
sangue nas solas dos nossos pés e
nas palmas das nossas mãos. Um
dos soldados trouxera uma corda
para nos amarrar, mas o que falara
conosco primeiro jogou a corda
para longe.
Para onde é que eles vão?, disse
ele. Como poderiam fugir?
Nós seguimos os soldados, os olhos
baixos. O dia estava claro e seco,
mas
ainda estávamos encharcados pelo
tempo que passáramos na cisterna,
a água pingando dos cabelos e as
túnicas molhadas. Parecíamos
criaturas que
tinham sido trazidas do fundo de
um rio por um peixe reluzente que
emergira
das águas do inferno.
O cheiro de carne queimada nos
provocou tontura e fraqueza.
Muitos soldados cobriam a boca e
o nariz, vários estavam pálidos. As
moscas pululavam por toda parte e
acima de nós pairavam nuvens de
corvos e aves
de rapina. Os romanos tinham se
preparado para uma batalha,
nunca
imaginando que teriam de
atravessar um campo de martírio.
Novecentos queimados, chacinados.
Pior eram as crianças, as mulheres
e os bebês nos braços de suas mães,
seus corpinhos jovens e pálidos
envolvidos em sangue, as abelhas
circulando em volta, como se seus
restos mortais fossem adoçados
com o mel de sua juventude. Essas
mortes foram uma desgraça para a
legião,
e os soldados não tiveram nenhuma
alegria nessa rendição. Os homens
que temiam espíritos e fantasmas
ficaram na periferia quando eles
foram trazidos para a praça. Os
homens que temiam seus deuses
imaginaram que era um pecado
pisar naquela terra.
Abaixei a cabeça diante da legião,
não em respeito aos seus
integrantes, não como sua
prisioneira, simplesmente porque
não era capaz de contemplar
os rostos daqueles que conduziram
a batalha contra nós. As crianças
fizeram
como eu e depois de um momento
Revka também me imitou, embora
soubesse que era uma violação
para ela curvar-se diante dos
romanos.
Esperei que ela não me julgasse.
Certamente, não julgo a mim
mesma. Deixei
isso para o Todo-Poderoso.
Tínhamos um motivo para
prosseguir e muito a
proteger. Ainda estávamos neste
mundo, aquele que conhecíamos, a
que nos
prendemos, embora estivesse cheio
de tristeza, o mundo que nossos
pais tinham criado.
Silva, o grande general, postou-se
à nossa frente. O soldado que nos
encontrara deu um grito e caímos
de joelhos.
Baixamos os olhos para o pó. Ainda
víamos a sombra de Silva; ele era a
força por trás do cerco, o
comandante que construíra o muro
e a rampa, aquele que assassinara
nosso povo. Era impossível
interpretar seu
comportamento, se pretendia nos
trespassar ele mesmo ou ordenar a
nossa crucificação, ou então nos
deixar para os chacais. O pânico
latejava na minha garganta. Senti o
ar fresco esquentar, manchado de
sangue, movendo-se em
ondas vermelhas enquanto o sol
subia.
Meus olhos velados pestanejaram
sobre a forma de Silva. Ele era um
homem alto, de pele morena, de
aspecto sério. Mas ele era mais que
músculos
e tendões. Era um monstro sem
piedade. No entanto, quanto mais
tempo ele
se demorava a nos examinar, mais
passei a acreditar que, se tivesse a
intenção de nos matar, já teria feito
isso. O general não era visto
frequentemente por pessoas comuns
e o fato de ter vindo nos avaliar
fez-me
ter uma ideia de que poderíamos
ser mais importantes do que ousara
imaginar. Talvez tivéssemos algo
que ele queria.
Revka segurava Arieh e eu
carregava Yonah em meus braços.
O
comandante podia muito bem ter
pensado que a menina recém-
nascida fosse um anjo, a causa da
nossa sobrevivência, pois nos
mandou ficar de pé para que
pudesse vê-la mais de perto. Ela
tinha apenas dias de vida, não era
um mensageiro alado, somente uma
criança humana com uma pequena
cabeleira loira platinada. Em
seguida, os olhos de Silva
voltaram-se para mim, para as
manchas vermelhas na minha pele,
o meu cabelo da cor da flor
do flamboyant , escurecido pela
água da cisterna a ponto de os fios
parecerem sangue escorrido.
Retribuí o olhar de Silva. Ele me
lembrava do leopardo que vira uma
vez
no deserto, o que poderia ter me
matado e devorado se não tivesse
subido em
uma rocha e me tornado maior do
que era, acenando com o xale no
ar, rosnando como se fosse um
animal também.
Ouvi um dos homens Silva sugerir
que não éramos nada, prostitutas e
seus
filhotes, que mereciam qualquer
morte que nos dessem. O homem do
general
disse que, embora meu cabelo fosse
da cor da rosa, eu era uma erva
daninha
a ser arrancada e queimada. Ele
cuspiu após essa palavra e sua
saliva caiu sobre mim. Ele falava
em grego. Eu sabia disso porque
Shirah me ensinara a
língua durante nossas aulas.
Aquele soldado sugeriu que seus
homens cuidassem de nós, sem se
preocupar em perder pregos e
madeira para nos crucificar,
apenas nos trespassando com a
espada. Ele cuidaria disso
pessoalmente, um servo do seu
general.
Há sempre um momento em que
algo começa e algo termina. Eu
sentia o
peso da filha de Shirah em meus
braços, um presente e um fardo,
minha filha
agora.
Uma erva daninha alimenta a
ovelha muito melhor que uma flor,
eu disse
em grego.
A minha voz trespassou a discussão
dos homens. Silva virou-se para
mim,
surpreso com o meu conhecimento
dessa língua e com a minha
coragem de
falar diante dele.
Continuei em latim, pois Shirah
também me ensinara a língua do
império.
Uma flor dura um instante, uma
erva daninha pode ser uma praga
por toda a
eternidade.
O que aconteceu com seu povo?,
Silva perguntou. Onde está o
homem que
os liderava?
Ergui o queixo e examinei o
general que nos destruíra. Ele era
apenas um
homem como qualquer outro. O que
faria se tivesse de ficar diante de
um leão sem lança ou espada com
que se proteger? Aí estava o meu
segredo e a minha
força: falara com o leão e essa era
a razão de ter vivido quando o
enfrentara.
Dissera que lhe pertencia. Dera-lhe
o meu nome e em troca ele era meu.
Ele foi assassinado, eu disse.
Deitado entre os mortos do nosso
povo.
Como poderia ser assassinado?,
Silva exigiu saber. Ainda não
havíamos passado o muro e havia
mortos por toda parte.
Ela não sabe nada, comentou
grosseiramente o seu segundo em
comando.
O que ela sabe do seu líder ou dos
seus planos?
Aquele soldado lançou os olhos
sobre mim. Vi que ele tinha uma
ideia do
que poderia fazer antes de me
matar.
Peguei a faca de Ben Simon. Ela
brilhou ao cortar a minha carne.
Segurei
o braço estendido e deixei o sangue
gotejar sobre a areia, manchando-
a, reclamando-a para mim. Um
murmúrio subiu entre os soldados.
Sempre
acreditei que, se fosse para ser
ferida, preferiria que fosse por mim
mesma.
Agora percebi que, quando me
cortara no deserto, eu o fizera não
apenas para marcar os dias que
passei ali, mas para lembrar a mim
mesma que estava viva.
Eleazar ben Ya’ir era meu parente,
anunciei. Conheci-o como a
nenhum outro, porque sou sua
prima. Sou Shirah, sua
companheira mais próxima.
Somente eu posso contar a história
desta fortaleza.
No instante em que mudei de nome,
mudei de destino.
Vou narrar-lhe a história, prometi.
Será a verdade e você será capaz
de dizer em Roma tudo o que
aconteceu aqui hoje. Só peço um
favor em troca.
Ouviram-se risos entre os homens.
Pude sentir a Morte rondando,
olhando
para mim com seus inúmeros olhos.
Posso dizer com certeza que seus
olhos
são frios e que seu olhar pode
congelar o coração. Puxei a capa
do assassino ao meu redor para
que pudesse desaparecer de vista
de Mal’ach ha-Mavet .
Pensei no leopardo que afugentara
quando eu era apenas uma garota
no deserto, no leão que ficara ao
meu lado e naquele que libertara
quando estava acorrentado sem
misericórdia. Desde aquela época,
eu usava a coleira
do animal em torno do meu braço,
como uma pulseira e uma
lembrança.
Havia quem jurasse que o sangue
do leão concedia o poder de
persuasão sobre príncipes e reis.
Tirei a coleira do braço e segurei-
a, pois o leão lutara no cativeiro e
seu sangue estava sobre ele.
Você não reconhece isto?
Vários dos homens conheciam
realmente a coleira e a
identificaram,
recuando, atordoados. Desde o dia
em que o leão fora liberado, vinha-
se falando de bruxaria.
Silva aproximou-se de mim e pegou
a coleira, depois voltou para onde
estivera sobre a plataforma de
madeira. Examinou a coleira e
descobriu que
fora marcada com a insígnia da
décima legião. Vi que estava
confuso, embora
com uma expressão velada. Ele fez
sinal para eu me aproximar.
Reconheci o
gesto, o mesmo que meu pai usara
quando queria que o seguisse,
como chamaria a um cão. Mas um
cão é muitas vezes espancado
depois de ter cumprido sua tarefa,
então permaneci no lugar, ainda
não disposta a ceder e
me aproximar do general.
Tenho necessidade do seu favor, eu
disse. E você do meu.
Os olhos de Silva voaram sobre a
minha forma. Um favor, ele
concordou,
talvez imaginando que eu fosse
apenas uma mulher simples, com
desejos simples, e que gostaria de
pedir pão ou água. Apenas um, me
advertiu ele.
Pedi-lhe para nos deixar ter as
nossas vidas.
Ele me fitou e disse que gostaria de
saber quem eu pensava que era
para
pedir tal adiamento.
Eu disse que era a Bruxa de Moabe
e que estava escrito que deveria
estar
ali para contar a história do que
aconteceu nesse dia no mundo que
Adonai
criara, enquanto as pombas
voavam acima de nós. Disse-lhe
que, sem a história que eu contasse,
ninguém saberia como Roma nos
alcançara e como
tremêramos diante do leão
escravizado em sua corrente.
Você dirá que era destemida, ele
respondeu, pensando em como a
minha
história difamaria o seu império.
Você vai contar como se aproximou
do leão
e ele se curvou à sua frente.
Somente um tolo não teme um leão,
assegurei a ele, lembrando o
homem
que escapara de um leão que
matara nove homens antes dele. Eu
era simplesmente demasiado
amarga para o seu gosto, disse.
Silva acenou com a cabeça, ansioso
por ouvir mais. Por que lhe
concederia
o que quer?
Embora fôssemos apenas mulheres
e crianças, éramos os únicos
sobreviventes daquela maré de
morte. Ouvíramos Eleazar ben
Ya’ir falar aos
seus seguidores e memorizáramos
suas palavras. Somente nós
teríamos
crédito quando se falasse daquela
noite, pois éramos as únicas
testemunhas.
Ouvíramos os gritos dos que
sabiam que não teriam chance de
vitória contra
Roma.
Abaixei a cabeça, pois dissera o
bastante. Uma história pode ser
muitas coisas para muitas pessoas.
Eu lhe daria a história que ele
queria, mas, a exemplo do
escorpião que está escondido em
um canto, a minha história doeria
como uma ferroada. Eu soube não
falar sobre como o nosso povo
escolhera a morte em vez de ser
escravizado. Nem sugeri que
seríamos fortalecidos pela minha
história se eu vivesse para contá-
la, e que Roma seria assombrada
pelos fantasmas do nosso povo, e
que um fantasma pode ser mais
forte que um império, pois poderia
levar as pessoas não só às
lágrimas, mas também à ação.
O general me observou. Eu sabia
que ele queria ouvir mais sobre o
que acontecera. Como pudera o
nosso povo matar a si próprio,
matar todos que
amava? Isso era um enigma, e até
mesmo os homens ferozes podem
ser intrigados por um enigma, mas,
uma vez as peças unidas, elas
poderiam servir para desafiá-los.
Quando ele concordou com a minha
barganha, aproximei-me dele.
Ele me disse para falar e fiz
exatamente o que pediu. Disse-lhe
o que ele queria ouvir.
Viemos para Alexandria porque era
o lugar a que a Bruxa de Moabe
pertencia, a cidade pela qual ela
ansiara quando sonhava com o
grande rio,
com a sua mãe e com os lírios
brancos que cresciam nos jardins
dessa cidade.
Fomos levados perante a legião em
Jerusalém para que a nossa
história fosse
registrada, transcrita e enviada a
Roma. Nós a contamos muitas vezes
e, embora nos curvássemos à força
do império, todas as vezes que a
contávamos
mais milhares de pessoas
aprendiam sobre aquela noite,
quando nos
recusáramos a ser derrotados. A
história tornou-se uma nuvem, a
nuvem uma
cortina de chuva, e a chuva caiu
por todo o império.
Fomos libertados para fora dos
muros de Jerusalém. A cidade
tornara-se
algo que não mais reconhecíamos e
o nosso povo não tinha permissão
de entrar pelos seus portões. Vendi
o amuleto de ouro do peixe para
pagar a viagem. Ele nos protegera,
livrando-nos dos nossos inimigos, e
com isso servira ao seu propósito.
Pensei no escravo do norte e rezei
para que seu amuleto lhe tivesse
servido bem, para que houvesse
encontrado o caminho de
volta à sua terra, onde a neve
durava a maior parte do ano, onde
os veados
eram tão rápidos quanto o
leopardo nas pastagens, onde ele
poderia ser livre.
Yehuda viajou conosco e viveu na
nossa casa durante vários anos,
mas, quando se fez homem, atendeu
ao chamado do seu povo. Os
essênios haviam
se reunido no norte, perto da
Galileia. Muitos dos que restaram
do seu povo
ainda acreditavam na paz e nos
princípios da pura devoção ao
Todo-Poderoso. No dia em que ele
nos deixou, Revka chorou, pois o
amava como se
fosse seu filho.
Noé e Levi logo se tornaram
homens jovens. Ambos tinham a
pele cor de
mel e olhos escuros; eram bonitos,
dedicados à avó enquanto ela
envelhecia.
Poderiam ter-se tornado
estudiosos, como fora o seu pai
antes que o destino o mudasse, em
vez disso aprenderam o ofício do
avô. Todas as manhãs éramos
despertados pelo cheiro de pão
assando no forno de cúpula em um
galpão a
um canto do jardim. Houve
ocasiões em que encontrei pessoas
no portão no
início da manhã, chorando,
atraídas ali pelo cheiro de pão que
lhes lembrava do pão da sua
juventude, quando Jerusalém era
nossa. Agora, somos cidadãos
do mundo, e o pão dos irmãos
reflete isso: o mel é coletado das
abelhas egípcias, o coentro e o
cominho de Moabe, o sal das
margens do mar que a Bruxa de
Moabe atravessou porque estava
destinada a fazê-lo.
Quanto ao meu filho, ele é calmo e
destemido. É um aluno excelente e
fala
quatro idiomas, mas é atormentado
por pesadelos. Era de esperar isso,
depois de tudo que presenciou,
embora nunca reclame dessas
coisas. Descobri sua dificuldade
para dormir porque há noites em
que me levanto e o encontro
sentado no escuro. O sono é ainda
um território desconhecido para
mim, como é para o meu filho.
Talvez o pai fale com ele nos
sonhos, assim como o
meu me procura. Ainda possuo a
capa do assassino, a que se diz ter
sido tecida com teias de aranha que
o ocultavam de todos os olhos.
Perdoei-o, como espero que, no
Mundo Vindouro, ele tenha me
perdoado, porque eu não
fui irrepreensível. Se fosse levada
diante dele, gostaria de
homenageá-lo, pois ele me deu a
minha vida e por isso serei sempre
grata.
Todos os anos, no aniversário da
queda da fortaleza, eu conto a
parte da história que não disse a
Silva, embora meus filhos a
conheçam de cor. Como
os soldados capturaram o leão,
mantiveram-no acorrentado e o
atormentaram, como ele esperou a
sua hora, deitado na lama, até ser
libertado, saindo livre para o
deserto, e como está lá ainda,
sozinho e solitário.
Digo que esse leão não é o rei de
outra coisa senão da própria
liberdade.
Quer o terceiro Templo seja
erguido ou não, que os homens
construam palácios ou arruínem
cidades, é o leão que terá de lutar
por uma terra de pedras. Todas as
coisas mudam, pois assim é o
mundo em que vivemos. Mas
algumas coisas permanecem
constantes, mesmo depois de terem
passado.
Digo aos meus filhos que um dia
tivemos milhares de pombas e que
depois as
libertamos, mas se olharmos para o
céu ainda poderemos vê-las, mesmo
que
estejamos muito longe.
Todos os anos, no mês de Nissan ,
Yonah e eu vamos ao rio na noite
anterior à festa que registra a
jornada do nosso povo para fora do
Egito, uma viagem que esperamos
fazer novamente algum dia, quando
Jerusalém nos pertencer outra vez.
É uma longa viagem que nos
propomos. Neste ano comemoramos
a Bênção do Sol, pois que o orbe
glorioso está exatamente no
mesmo lugar que ocupou durante a
Criação, quando Deus criou o bem
e o mal, imbuindo o nosso mundo
com ambos à mesma hora, quando
criou a palavra e nos tirou do
silêncio, para que pudéssemos
fazer as nossas próprias escolhas.
Montamos o burro branco que
mantemos no galpão. Revka e eu
nos
asseguramos de que essa criatura
seja bem tratada, pronta para o
caso de precisarmos partir de
repente. O nosso povo nunca sabe
quando terá de fugir.
Tudo o que é importante nós
carregamos conosco, esteja ou não
escrito.
Yonah é uma criança linda, embora
com o cabelo claro e os olhos
cinzentos não se pareça nada com a
mãe. Ainda assim, ela é atraída
para a
água. Eu não poderia mantê-la
afastada desse elemento mesmo que
tentasse.
Um dia, encontrei-a mergulhando
na nossa fonte do pátio onde
criamos peixes. Eles não fogem
dela, em vez disso reúnem-se ao seu
redor, assim como as pombas me
procuravam. Esse é o seu elemento,
que ela divide com Shirah,
que fez o possível para trazer essa
menina ao mundo, mesmo que
ainda não
fosse o momento, muito cedo para
fazê-lo com qualquer garantia de
segurança. Shirah sangrou tanto
que, após o parto, não teria
sobrevivido mesmo que o Anjo da
Morte não andasse entre nós
naquela noite terrível. Nós
duas sabíamos disso quando ela
bebeu a arruda e postou-se sobre a
fumaça
para provocar o nascimento. Ela
deu a vida para que Yonah tivesse a
dela.
Para aqueles que dizem que a
Bruxa de Moabe nunca amou
ninguém, que era
egoísta, preocupada apenas com o
próprio destino, só posso dizer que
se arruinou por amor, que se
entregou a ele e que deixou algo
glorioso para o
mundo, um criança que gosta de
ficar na chuva.
Nossos pés descalços afundam na
lama enquanto caminhamos por
entre
as águas do Nilo. O rio está azul-
escuro. Na margem crescem
caniços verdes e
abundantes, e um aroma de
bálsamo flutua no ar. As mulheres
lavam suas roupas e as deixam
para secar sobre rochas ao longo
da margem. Os homens
já saíram em seus barcos e os
carregam sobre os ombros, subindo
com eles pelos caminhos de areia.
Avançamos até avistar as sombras
de peixes prateados pairando por
perto. Enquanto o crepúsculo se
adensa, depositamos
uma vela sobre uma folha de lótus
que flutua na corrente e
observamos enquanto desaparece
no escuro. Essa é a razão de
estarmos aqui, para dar graças às
nossas mães, que estão cuidando de
nós no lugar onde nos juntaremos a
elas um dia, no Mundo Vindouro.
FIM
ALICE HOFFMAN nasceu em Nova
Iorque, em 1952. Autora de mais de
vinte obras de ficção, teve alguns de
seus títulos adaptados para o
cinema,
em filmes como Da magia à
sedução. Muitos de seus romances
receberam a
distinção “livro do ano” por
importantes veículos, como The New
York
Times, Entertainment Weekly, The
Los Angeles Times e revista People.
De sua autoria, a Planeta publicou
em 2011 O terceiro anjo.
Atualmente, Hoffman
divide seu tempo entre Nova Iorque
e Boston. Para mais informações
sobre
a autora, visite seu site:
www.alicehoffman.com.
Document
Outline
Epígrafe
Mapa
ÿþP
A Filha do Assassino
ÿþS
A Esposa do Padeiro
ÿþT
A Amada do Guerreiro
ÿþQ
A Bruxa de Moabe
Alexandria
A Autora