0% acharam este documento útil (0 voto)
168 visualizações2.803 páginas

Alice Hoffman - As Mulheres Do Deserto

O documento descreve os últimos meses de resistência dos judeus em Massada contra as forças romanas no ano 70 d.C. Ele introduz quatro mulheres corajosas que se refugiaram em Massada após a queda de Jerusalém e a destruição do Segundo Templo pelos romanos.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
168 visualizações2.803 páginas

Alice Hoffman - As Mulheres Do Deserto

O documento descreve os últimos meses de resistência dos judeus em Massada contra as forças romanas no ano 70 d.C. Ele introduz quatro mulheres corajosas que se refugiaram em Massada após a queda de Jerusalém e a destruição do Segundo Templo pelos romanos.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 2803

N

o ano 70 da era cristã, novecentos


judeus resistiram durante meses às

f orças romanas em Massada, uma


montanha no deserto da Judeia. De

a cordo com o antigo historiador


Flávio Josefo, duas mulheres e cinco

c rianças sobreviveram. Baseado


nesse acontecimento trágico e
icônico,

o romance de Hoffman é uma


história encantadora de quatro
mulheres

e xtraordinariamente corajosas,
engenhosas e sensuais, cada uma
delas

t endo chegado a Massada por um


caminho diferente. A mãe de Yael

orre no parto e seu pai, um assassino


experiente, nunca a perdoa por

e ssa morte. Revka, a esposa do


padeiro de uma aldeia, assiste ao

assacre brutal de sua filha pelos


soldados romanos; leva então para

assada os netos pequenos, que


perderam a fala depois de

resenciarem a morte da mãe. Aziza é


a filha de um guerreiro, criada

c omo um menino, uma cavaleira


destemida e hábil atiradora que

escobre a paixão nos braços de um


soldado que era seu companheiro.

S hirah, nascida em Alexandria, é


instruída nos segredos ancestrais da

agia e da medicina, uma mulher


perspicaz e detentora de poderes

isteriosos. As vidas dessas quatro


mulheres complexas e

i mpetuosamente independentes
cruzam-se nos dias de desespero do
c erco. Elas são encarregadas da
guarda dos pombos e também
guardam

s eus segredos umas das outras ?


sobre quem são, de onde vieram,
quem

as criou e a quem amam.

Deixe que o meu fardo seja o seu


fardo, e que o seu seja o meu.
PRIMEIRA PARTE

Verão, 70 d.C.

A Filha do Assassino

Viemos como pombos através do


deserto. Em um

tempo em que não existia nada


além da morte,

éramos gratos por qualquer coisa,


e muito gratos

por tudo quando acordávamos para


mais um dia.
CAMINHAMOS POR TANTO
TEMPO QUE me esqueci do que era
viver entre quatro paredes ou dormir
por toda uma noite. Nessa época,
perdi tudo o que

poderia ter possuído caso Jerusalém


não tivesse caído: um marido, uma

família, um futuro para chamar de


meu. A minha infância desapareceu
no

deserto. A pessoa que fora um dia


deixou de existir quando me vesti de
branco e a poeira subiu em nuvens.
Éramos nômades, deixando para trás
camas e pertences, tapetes e vasos
de bronze. O nosso lar então era a
casa

do deserto, preta à noite,


brutalmente branca ao meio-dia.

Dizem que a beleza mais verdadeira


encontra-se na terra mais árida e

que Deus pode ser encontrado lá por


quem tem os olhos abertos. Mas os
meus olhos estavam fechados contra
os ventos da mudança, que podem

cegar uma pessoa em um instante. A


própria respiração era um milagre
quando as tempestades vinham
rodopiando por toda a terra. A voz
que

surge do silêncio é algo que ninguém


é capaz de imaginar até que seja
ouvida. Ela ruge quando fala, mente
para convencê-lo, rouba-lhe o pouco
que tenha e o deixa sem uma única
palavra de conforto. O conforto não
pode existir em tal lugar. Só o que é
brutal sobrevive. O que é astúcia
subsiste até de manhã.

A minha pele estava queimada, as


minhas mãos, esfoladas. Entreguei-
me
ao deserto, curvando-me à sua voz
poderosa. Por onde quer que
andasse, o

meu destino andava comigo,


costurado aos meus pés com linha
vermelha.

Tudo o que nunca será já foi escrito


muito antes que aconteça. Não há
nada

que possamos fazer para impedi-lo.


Não poderia seguir em outra
direção.

As estradas de Jerusalém levavam


apenas a três lugares: a Roma, ao
mar ou

ao deserto. Meu povo tornara-se


errante, como fora no início dos
tempos,

novamente expulso.

Segui meu pai para fora da cidade


porque não tinha escolha.

Nenhum de nós tinha, verdade seja


dita.

NÃO SEI COMO tudo começou, mas


sei como terminou. Ocorreu no mês
de Av1,

cujo signo é Arieh, o leão. É um mês


que para o nosso povo significa a
destruição, um período em que as
pedras do deserto tornam-se tão
quentes

que não se pode tocá-las sem


queimar os dedos, em que a fruta
murcha nas

árvores antes de amadurecer e as


sementes chacoalham em seu
interior,

em que o céu torna-se branco e a


chuva não cai. O primeiro Templo
foi destruído nesse mês. As
ferramentas significavam armas e
não puderam

ser usadas na construção do mais


sagrado dos lugares santos; por isso,
o grande guerreiro, o rei Davi, foi
proibido de construir o Templo,
porque conhecera os males da
guerra. Em vez disso, a honra recaiu
sobre seu filho,

o rei Salomão, que invocou o


shamir, um verme capaz de
atravessar a pedra, e assim criou
glória a Deus sem o uso de
ferramentas de metal.

O Templo foi construído como Deus


decretara que deveria ser, livre de

derramamento de sangue e da guerra.


Seus nove portões foram recobertos

com ouro e prata. Lá, no mais


sagrado dos lugares, ficou a Arca
que guardava a aliança do nosso
povo com Deus, um baú feito com a
melhor madeira de acácia, decorado
com dois querubins dourados. Mas,
apesar da

grandiosidade, o primeiro Templo


foi destruído, o nosso povo, exilado
para

a Babilônia. Entretanto, retornaria


após setenta anos para reconstruí-lo
no

mesmo local em que Abraão se


dispusera a oferecer o filho Isaac em

sacrifício ao Todo-Poderoso, em
que o mundo fora originalmente
criado.

O segundo Templo resistiu por


centenas de anos como a morada da
palavra de Deus, o centro da criação
no centro de Jerusalém, embora a
Arca

em si tivesse desaparecido, talvez


na Babilônia. Mas então o tempo de
derramamento de sangue impôs-se a
nós uma vez mais. Os romanos

quiseram tudo o que tínhamos.


Chegaram até nós depois de
invadirem

inúmeras terras com suas legiões


imensas, pretendendo não apenas

conquistar, mas humilhar,


reivindicar não só a nossa terra e o
nosso ouro,

mas a nossa humanidade.

Quanto a mim, não esperava nada


além de desastre. Conhecera o seu

abraço antes mesmo de respirar ou


enxergar. Era a segunda criança na

família, um ano mais nova que o meu


irmão Amram, mas radicalmente o

oposto dele, amaldiçoada pelo fardo


do meu primeiro alento. Minha mãe
morreu pouco antes de eu nascer.
Naquele momento, o mapa da minha
vida

manifestou-se sobre a minha pele


como uma explosão de marcas

vermelhas, pintas que, quando


seguidas de uma para outra, me
conduziram

ao meu destino.

Lembro-me do instante em que entrei


no mundo, a grande calma que foi

subitamente interrompida, o calor da


minha pulsação sob a pele. O ventre

da minha mãe foi aberto com uma


faca afiada e fui tirada de lá. Estou
convencida de que ouvi o rugido de
dor do meu pai enlutado, o único
som a

romper o silêncio terrível de alguém


que nasce da morte. Eu mesma não
chorei, nem me lamuriei. As pessoas
notaram isso. As parteiras

sussurraram entre si, convencidas de


que eu era ou abençoada ou

amaldiçoada. Meu silêncio não foi o


único aspecto incomum em mim,
nem

as sardas avermelhadas que


surgiram sobre a minha pele uma
hora depois

do meu nascimento. Foi o meu


cabelo, com a sua cor vermelho-
escura de sangue, uma cobertura
espessa crescente, como se eu já
conhecesse este mundo e aqui já
tivesse estado antes.

Disseram que trazia os olhos


abertos, a marca de um rebanho à
parte. O
que era de esperar de uma criança
nascida de uma mulher morta, pois
fui

tocada por Mal’ach ha-Mavet, o


Anjo da Morte, antes de nascer no
mês de

Av, no Tisha B’Av, o nono dia, sob o


signo do leão. Sempre soube que
haveria um leão à minha espera.
Sonho com tais criaturas desde que

consigo me lembrar. Nos meus


sonhos, alimentava um leão com a
minha
mão. Em troca, ele tomava a minha
mão inteira em sua boca e me comia
viva.

Ao deixar a infância, decidi cobrir a


cabeça; mesmo quando estivesse no

pátio do meu pai, guardava-me para


mim. Nas raras ocasiões em que

acompanhei a nossa cozinheira ao


mercado, via outras jovens se
divertindo

e enciumava-me até mesmo da mais


comum dentre elas. Elas viviam uma
vida plena, ao passo que eu só
conseguia pensar em tudo o que não
tinha.

Elas falavam alegremente de seu


futuro como noivas enquanto se

encontravam junto ao poço ou se


reuniam na rua dos Padeiros,

acompanhadas das mães e tias.


Sentia vontade de gritar com elas,
mas não

dizia nada. Como poderia falar da


minha inveja quando havia coisas
que queria ainda mais do que um
marido, um filho ou uma casa
própria?

Ansiava por uma noite sem sonhos,


um mundo sem leões, um ano sem

Av, aquele amargo mês vermelho.

DEIXAMOS A CIDADE quando o


segundo Templo foi posto em ruínas,
aventurando-nos pelo Vale dos
Espinhos. Durante meses os romanos

haviam profanado o Templo,


crucificando o nosso povo dentro
dos seus
muros sagrados, arrancando o ouro
dos umbrais de entrada e dos
pórticos.

Era para lá que os judeus de toda a


criação viajavam a fim de oferecer
sacrifícios perante o local mais
sagrado, com milhares chegando à
época da

Festa dos Pães Ázimos, ansiosos por


vislumbrar as paredes de ouro do

lugar de morada da palavra de Deus.

Quando os romanos atacaram o


terceiro muro, o nosso povo foi
forçado

a fugir daquela parte do Templo. Em


seguida, a legião derrubou o
segundo

muro. Ainda não foi o bastante. O


grande Tito, líder militar de toda a
Judeia,

passou a construir quatro rampas de


cerco. Nosso povo as destruiu com
fogo e pedras, mas o ataque dos
romanos aos muros do Templo havia

enfraquecido as nossas defesas. Não


muito tempo depois conseguiram
abrir uma brecha. Os soldados
entraram no labirinto de muros que

cercavam o nosso local mais


sagrado, correndo como ratos, os
escudos

erguidos para o alto, as túnicas


brancas abrasando-se com o sangue.
O

Templo sagrado estava sendo


destruído por suas mãos. Depois que
isso

acontecesse, a cidade também,


obrigada a acompanhá-lo, tombaria
de

joelhos como um prisioneiro


comum, pois sem o Templo não
haveria lev ha-olam, o mundo
perderia o centro, não restando nada
por que lutar.

O anseio por Jerusalém era um fogo


que não se extinguia. Existia uma
faísca dentro do mais sagrado dos
lugares santos que fazia as pessoas
quererem possuí-lo, e o que mais
desejam muitas vezes os próprios

homens destroem. À noite, os muros


que tinham sido feitos para durar
uma

eternidade gemeram e oscilaram.


Quanto mais os romanos nos
prendiam

por crimes contra a sua lei, mais


lutávamos entre nós mesmos,
incapazes de nos decidir sobre uma
única linha de ação. Talvez por
saber que não conseguiríamos
triunfar sobre o seu poderio,
voltávamo-nos uns contra os

outros, divididos por ciúme,


desunidos pela traição, a nossa vida
tornou-se
um emaranhado sombrio de medo.

As vítimas muitas vezes atacam


umas às outras, como galinhas em
um

cercado, trocando bicadas


frenéticas. Nós fizemos o mesmo
que elas. Não só o nosso povo foi
sitiado pelos romanos, mas as
pessoas entraram em guerra umas
contra as outras. Os sacerdotes
foram condescendentes,

pendendo para o lado de Roma, e os


que lhes faziam oposição eram
declarados ladrões e bandidos, meu
pai e seus amigos entre os
opositores.

Os impostos eram tão altos que os


pobres não podiam mais alimentar
os filhos, enquanto os que se aliaram
a Roma prosperavam e enriqueciam.
As

pessoas testemunhavam contra os


próprios vizinhos, roubavam umas
das

outras e fechavam a porta aos


necessitados. Quanto mais
desconfiávamos
uns dos outros, mais éramos
derrotados, divididos em grupos
hostis,

quando na verdade éramos um corpo


só na crença em Adonai, éramos os
filhos e as filhas do reino de Israel .

DURANTE OS MESES que


antecederam a destruição do
Templo, instalou-se o caos enquanto
enfrentávamos os nossos inimigos.
Fizemos todo o esforço

para vencer aquela guerra, mas,


assim como Deus criou a vida,
também

gerou a destruição. Durante o


furioso mês vermelho de Av, corpos
inchados lotavam o kidron, a ravina
profunda que separava a cidade do
cintilante Monte das Oliveiras. O
sangue de homens e animais formava
lagos escuros

nos nossos lugares mais sagrados. O


calor era estranho e implacável,
como

se a maldade da terra se refletisse


contra nós, um espelho dos nossos
pecados. Dentro dos salões mais
secretos do Templo, o ouro era
fundido e

partilhado; desaparecia, roubado do


mais santo dos lugares, para nunca

mais ser visto.

Nem uma única brisa soprava. A


temperatura subira com a desordem,

do chão para cima, e os tijolos que


pavimentavam as estradas romanas

eram tão quentes que queimavam os


pés das pessoas, enquanto os
desesperados buscavam um paraíso
seguro – um estábulo, uma câmara

abandonada, até mesmo um espaço


de pedra fria no interior do forno de
um padeiro. Os soldados da décima
legião, que seguiam a insígnia do
javali,

plantaram as suas bandeiras sobre as


ruínas do Templo, com pleno

conhecimento de que isso era uma


afronta para nós, pois atiravam em

nossa cara um animal que


considerávamos impuro. Os
soldados eram como

os próprios javalis, irresponsáveis,


cruéis. Corriam por todo lado,
matando

galos brancos do lado de fora das


sinagogas, tratando lugares que
serviam

como bet kenesset e bet tefilliah,


casas tanto de reunião como de
oração, como um insulto e uma
maldição. O sangue de um galo
tornava as nossas

casas de adoração impuras. As


mulheres esfregavam os degraus
com soda

cáustica, lamuriando-se enquanto o


faziam. Estávamos contaminados,
não

importava o quanto esfregassem ou


quanta água fossem capazes de

derramar sobre as pedras.

A cada violação entendíamos o


aviso da legião: O que fazemos com
o galo, podemos fazer com vocês.

*
UMA NOITE, uma estrela
semelhante a uma espada despontou
sobre a cidade.

Podia ser vista noite após noite,


brilhando continuamente no leste. As
pessoas tremeram, certas de que era
um presságio, esperando pelo que

estava por vir. Pouco depois o


portão oriental do Templo abriu-se
por conta própria. Multidões se
reuniram, apavoradas, convencidas
de que essa

ocorrência permitiria a chegada do


desastre. Os portões não se abrem se
não há uma razão. As espadas não
surgem no céu se a paz está para vir.
Os

nossos vizinhos começaram a


negociar os pequenos tesouros que

possuíam, acotovelando-se pelas


ruas, determinados a escapar com o

pouco que tinham. Reuniram os


filhos e começaram a fugir de
Jerusalém, esperando chegar à
Babilônia ou a Alexandria, saudosos
do Sião desde o instante em que
partiam.
Nas valas que se enchiam de água da
chuva durante os períodos de

enchentes repentinas, logo se formou


um rio de sangue escorrendo do

Templo. O sangue chorava,


lamentava-se e amaldiçoava, pois as
suas

vítimas não abriam mão da vida


facilmente. Os soldados mataram os

rebeldes primeiro, depois


chacinaram a esmo. Quem fosse
infeliz o bastante
para passar por perto deles era pego
em sua rede. As pessoas eram

arrancadas da família, arrebanhadas


nas ruas. Veio a noite conhecida
como

Flagelo dos Inocentes. A última


ilusão de que as nossas orações
seriam atendidas desapareceu.
Quantos de nós perderam a fé
naquela noite?

Quantos se afastaram do que o nosso


povo sempre acreditou? Um menino

de dez anos foi levado a ferros e


depois crucificado porque se
recusou a se

curvar aos soldados. Esse menino


padecia de surdez e nem sequer
ouvira a

ordem, mas ninguém se importava


mais com essas coisas. Um mundo
de

ódio se abatera sobre nós.

O pecado da morte do menino


elevou-se como uma nuvem,
evidente
para todos. Depois disso, vinte mil
pessoas entraram em pânico nas
ruas, atropelando-se umas às outras
em frenesi, abandonando a
dignidade

enquanto afluíam para as estradas.

No momento em que a manhã surgiu,


quase todos haviam abandonado

Jerusalém.

QUANTO A MIM, o meu mundo se


acabara antes que o Templo
começasse a queimar, antes que o pó
de pedra cobrisse as vielas. Muito
antes de o Templo cair, eu perdera a
minha fé. Não significava nada para
o meu pai, abandonada por ele
desde o momento em que nasci.
Teria sido

completamente negligenciada não


fosse a família da minha mãe insistir
em

que se contratasse uma babá. Uma


jovem serva de Alexandria foi
trazida para cuidar de mim, mas
quando ela cantava canções de
ninar, meu pai, o
temível Yosef bar Elhanan, mandava
que se calasse. Quando me
alimentava,

ele insistia em que eu já comera o


bastante.

Eu mal deixara de engatinhar quando


o meu pai me chamou para

contar-me a verdade do meu


nascimento. Chorei ao descobrir a
realidade e

assumi o peso da minha entrada


nesta vida. Meu nome era Yael e foi
a primeira coisa sobre mim que
aprendi a desprezar. Esse fora o
nome da minha mãe também. Toda
vez que era pronunciado, servia
somente para

lembrar ao meu pai que a ocasião da


minha chegada a este mundo roubara

a sua esposa.

– O que isso faz de você? – ele


perguntou amargamente.

Eu não tinha uma resposta, mas me


vi refletida em seus olhos. Era uma

assassina, digna de sua indignação e


de sua ira.

A garota contratada para cuidar de


mim foi logo despedida, levando

consigo toda a consolação e o


conforto. Eu sabia o que me
esperava depois

de sua partida, a vida atrofiada de


uma criança órfã de mãe. No dia em
que

ela nos deixou, eu solucei


segurando-me em suas saias,
desesperada pelo seu abraço terno.
Meu irmão, Amram, disse-me para
não chorar; tínhamos

um ao outro. A serva ofertou-me


uma romã para dar sorte, antes de

gentilmente desvencilhar as saias do


meu enlace. Ela era jovem o
bastante

para ser minha irmã, mas fora como


uma mãe para mim e me dera a única

ternura que eu conhecera.

Dei a minha romã de presente ao


meu irmão, tendo já decidido deixá-
lo
sempre em primeiro lugar. Mas essa
não foi a única razão. Já tivera o
bastante do meu quinhão de tristeza.

QUANDO CRESCI, tornei-me calma


e bem-comportada. Não pedia nada,
e isso era exatamente o que recebia.
Se fosse inteligente, tentava não
demonstrá-

lo. Se me ferisse, guardava as


feridas para mim mesma. Virava-me
para o lado sempre que via as outras
meninas com o pai, pois o meu não
queria ser visto comigo. Ele não
falava comigo nem me tomava no
colo.

Preocupava-se apenas com o meu


irmão, seu amor por Amram era
evidente

a cada instante. No jantar eles se


sentavam juntos, enquanto eu era
deixada

no corredor, onde dormia. Havia


escorpiões escondidos pelos cantos
e eles

logo se acostumaram comigo.


Observava-os temerosa, mas
também

admirando como ficavam à espreita


de suas presas nas pedras frias sem
nunca se revelar. Guardei o meu
sentimento de profunda vergonha
dentro

de mim, de maneira muito


semelhante a como um escorpião
esconde o seu

desejo insaciável. Nisso éramos


iguais.

Ao mesmo tempo, eu era humana.


Ansiava por uma mecha de cabelo
da

minha mãe, para que pudesse


conhecer a sua cor. Naquele
corredor muitas

vezes chorei pelo conforto dos seus


braços.

– Acaso acha que sinto pena de


você? – perguntou o meu pai um dia
em

que se fartara do meu pranto. – Vai


ver que foi esse seu choro que a
matou.
Causando tal inundação que a afogou
por dentro.

Eu nunca retrucara antes, mas saltei


à frente dele. O pensamento de que

poderia ter afogado a minha mãe


com as minhas lágrimas era demais
para

suportar. Meu peito e a garganta


ardiam. Nesse instante, não me
importava

que o homem à minha frente fosse


Yosef bar Elhanan e eu não fosse
nada.
– Não foi culpa minha – declarei.

Vi uma expressão estranha


atravessar o rosto do meu pai. Ele
deu um

passo para trás.

– Está dizendo que a causa fui eu? –


advertiu ele, erguendo as mãos como
que para se proteger de uma
maldição.

Não respondi, mas depois que ele


saiu percebi que na realidade

tínhamos algo em comum, mais do


que com os escorpiões, mesmo que
meu

pai nunca falasse comigo ou me


chamasse pelo nome. Tínhamos
matado a

minha mãe juntos. E, no entanto, ele


queria que eu carregasse a culpa
sozinha. Se era isso o que ele
queria, então assumiria o manto da
culpa, porque eu era uma filha
obediente. Não choraria nunca mais.
Nada me faria

quebrar essa promessa. Quando uma


vespa me picou, e formou-se um
vergão vermelho no meu braço,
forcei-me a ficar quieta e não sentir
a sua

dor. Meu irmão correu até mim para


certificar-se de que eu não me ferira.

Chamou-me pelo nome secreto que


me dera quando éramos pouco mais

que dois bebês, Yaya. Eu adorava


ouvi-lo chamar-me assim, pois o
apelido

carinhoso fazia-me lembrar das


canções de ninar da minha babá e de
uma
época anterior à consciência de que
trouxera a ruína para a minha
família.

Eu ardia de dor com a picada da


vespa, mas insisti que estava bem.

Quando ergui os olhos, vi o brilho


de lágrimas nos olhos de Amram.

Qualquer um teria pensado que fora


ele quem tinha se ferido. Ele sentia a

dor mais facilmente que eu e era


muito mais sensível. Às vezes, eu
cantava
para ele quando não conseguia
dormir, entoando as canções de
ninar de Alexandria de cujas
palavras me recordava, como se
tivesse vivido antes outra vida.

DURANTE TODO o tempo em que


crescia, eu me perguntava como
seria ter um

pai que não olhasse para o lado ao


me ver, que me dissesse como
estava bonita, muito embora o meu
cabelo flamejasse com uma estranha

tonalidade avermelhada e a minha


pele fosse salpicada de manchas cor
de

terra como se eu tivesse sido


aspergida com lama. Ouvi meu pai
dizer a outro homem que aquelas
marcas eram manchas do sangue da
minha mãe.

Depois disso, tentei arrancá-las com


as unhas, até tirar sangue da carne,
mas meu irmão me impediu quando
descobriu as depressões
avermelhadas

em meus braços e pernas. Ele me


garantiu que as sardas eram salpicos
de
cinzas caídos das estrelas do céu.
Por causa disso, eu sempre brilharia
na

escuridão. E ele sempre seria capaz


de me encontrar, por mais longe que
estivesse.

Quando me tornei mulher, não tive


mãe para me dizer o que fazer com o

sangue que veio com a lua ou para


me acompanhar na mikvah, o banho
ritual que teria me purgado com uma
imersão total na pureza. A primeira

vez que sangrei pensei que estivesse


morrendo, até que uma velha que era

minha vizinha teve pena de mim e


me disse a verdade sobre os ciclos
mensais das mulheres. Baixei os
olhos enquanto ela falava,
envergonhada de ser informada de
tais detalhes íntimos por uma
estranha, sem acreditar

muito no que ela dizia, imaginando


por que o nosso Deus faria com que
eu

me tornasse impura. Mesmo agora,


acho que poderia estar certa por
tremer
de medo no dia em que sangrei pela
primeira vez. Talvez o fato de me
tornar mulher fosse o fim para mim,
por ter nascido no sangue e merecer

ser tirada da vida do mesmo modo.

Não me incomodei em contornar os


meus olhos com kohl ou esfregar
óleo de romã nos pulsos. O flerte
não era algo que praticasse, nem me
achava atraente. Não perfumei o meu
cabelo, em vez disso prendi as

tranças na nuca e depois cobri a


cabeça com um xale de lã do tecido
mais
simples que pude encontrar. Meu pai
só se dirigia a mim quando me

chamava para trazer a sua refeição


ou lavar as suas roupas. Por essa
época

eu tinha começado a perceber o que


ele fazia quando saía para se
encontrar

com os companheiros durante a


noite. Geralmente ele envolvia os
ombros

em um manto cinza-claro, que se


dizia ter sido tecido com os fios de
uma

teia de aranha. Eu tocara a sua


bainha uma vez. Era tão sinistro
quanto belo, concedendo ao seu
portador a capacidade de se
dissimular. Quando o

meu pai saía, desaparecia, porque


tinha o poder de desaparecer mesmo
ele

estando à sua frente.

Eu ouvira meu pai ser chamado de


assassino pelos nossos vizinhos.
Franzira a testa e não acreditara,
mas, quanto mais analisava as suas
idas e

vindas, mais sabia que era verdade.


Ele fazia parte de um grupo secreto
de

homens que carregavam a adaga


encurvada dos sicários , zelotes
fanáticos que escondiam as facas
afiadas sob seus mantos e as usavam
para punir aqueles que se recusavam
a lutar contra Roma, especialmente
os

sacerdotes que aceitassem


sacrifícios da legião e seus favores
ao Templo.

Os assassinos eram implacáveis, até


eu sabia disso. Ninguém estava a
salvo

de sua ira; os outros zelotes os


repudiavam, contestando os seus
métodos

brutais. Dizia-se que os sicários


lutavam contra os judeus que se
curvavam

demais a Roma, e que Adonai, o


nosso grande Deus, nunca perdoaria
o assassinato, especialmente de
irmão contra irmão. Mas os judeus
eram uma

fraternidade dividida, em conflito na


prática e nas orações. Os que

pertenciam aos sicários riam-se da


ideia de que Deus não desejava
outra coisa senão que todos os
homens fossem livres. O preço era
de nenhuma consequência. Seu
objetivo era um só governante, não
imperadores, não

reis, só o Rei da Criação. Somente


ele governaria quando tivessem
terminado o seu trabalho na terra.

MEU PAI fora um assassino por


tanto tempo que os homens que ele
matara eram como folhas de uma
árvore de salgueiro, muitas para
contar. Porque

ele possuía uma habilidade que


poucos homens tinham e afirmava ter
o

poder da invisibilidade, era capaz


de entrar em uma sala como uma
sombra

e despachar o inimigo antes que a


vítima estivesse mesmo ciente de
que uma janela se abrira ou que uma
porta se fechara.

Para a minha tristeza, o meu irmão


seguiu o caminho do nosso pai assim

que teve idade suficiente para se


tornar um discípulo da vingança.
Amram

era perigosamente suscetível a seus


estilos violentos, pois em sua pureza
via o mundo como bom ou mau, sem
gradação entre os extremos. Sempre

os espiava juntos, meu pai falando


no ouvido do meu irmão, ensinando-
lhe

as regras do assassinato. Um dia,


enquanto reunia as túnicas e a capa
de Amram para lavar no poço,
encontrei uma adaga, já marcada por
uma linha

carmesim. Teria chorado se fosse


capaz, mas tinha abandonado as
lágrimas.

Não afogaria mais ninguém como


afogara a minha mãe, de dentro para
fora.
Ainda assim, saí em busca do meu
irmão, encontrando-o no mercado

com os amigos. As mulheres


desacompanhadas não eram vistas
com

frequência entre os homens que se


dirigiam àquelas passagens estreitas;
as

que não tinham escolha a não ser


sair desacompanhadas dirigiam-se
às

pressas à rua dos Padeiros ou às


barracas que ofereciam cerâmica e
jarros

feitos do barro de Jerusalém, e


depois, rapidamente, corriam de
volta para

casa. Eu usava um véu e a minha


túnica estava apertada com força.
Havia

zonnoth no mercado, mulheres que


se vendiam para o prazer dos
homens,

que não cobriam os braços ou o


cabelo. Uma delas zombou de mim
enquanto passava apressada, o rosto
soturno abrindo-se em um sorriso

quando me viu correndo pelo beco.

– Você acha que é diferente de nós?


– gritou. – Você é apenas uma

mulher, assim como nós.

Puxei o meu irmão para longe dos


amigos para que pudéssemos ficar

debaixo de um flamboyant. As
flores vermelhas exalavam o cheiro
do fogo e pensei que isso era um
presságio, que o meu irmão
conheceria o fogo.

Preocupava-me com o que


aconteceria com ele quando a noite
chegasse e

os sicários se reunissem sob os


cedros, local em que faziam seus
planos.

Pedi-lhe para renunciar aos meios


violentos que adotara, mas meu
irmão,

jovem como era, ardia por justiça e


uma nova ordem na qual todos os
homens fossem iguais.
– Não posso reconsiderar a minha
fé, Yaya.

– Então considere a sua vida – foi a


minha resposta.

Para me provocar, Amram riu


imitando uma galinha, empertigando
o

corpo magro e forte e debruçando-


se, enquanto batia asas imaginárias.

– Você quer que eu fique em casa no


galinheiro, onde possa me trancar

por dentro e ter certeza de que estou


seguro?

Ri, apesar dos meus temores. Meu


irmão era corajoso e bonito. Não

admirava que o meu pai o


favorecesse. Tinha o cabelo
dourado, os olhos escuros, mas
salpicados de luz. Nesse momento,
vi que a criança de quem

cuidara como uma mãe tornara-se


um homem, um homem puro em suas

intenções. Eu não poderia fazer mais


do que questionar o caminho que
escolhera. No entanto, estava
determinada a agir em seu benefício.
Quando

meu irmão voltou para junto dos


amigos, continuei para dentro do

mercado, chegando até o fundo das


ruas tortuosas, por fim contornando

para um beco pavimentado com


tijolos cinzentos empoeirados.
Ouvira

dizer que era possível comprar boa


sorte nas proximidades, ali havia
uma
loja misteriosa de que sussurravam
as mulheres do bairro. Em geral,
elas interrompiam a conversa
quando eu me aproximava, mas
ficara curiosa e

ouvira dizer que, se uma pessoa


seguisse a imagem de um olho
rabiscada

dentro de um círculo, seria levada a


um lugar de medicamentos e magias.

Tomei o caminho do olho até chegar


à casa de keshaphim, um tipo de
magia praticada por mulheres,
sempre perseguido em segredo.
Bati na porta e apareceu uma velha
que me examinou atentamente.

Irritada com a minha presença, ela


perguntou por que eu estava ali.
Como

hesitasse, ela começou a fechar a


porta contra mim, resmungando.

– Não tenho tempo para alguém que


não sabe o que quer – murmurou.

– Proteção para o meu irmão –


consegui dizer, nervosa demais para

informar mais que isso.


No Templo praticava-se a magia dos
sacerdotes, homens santos ungidos

pela oração, escolhidos para


oferecer sacrifícios, tentar milagres
e realizar

exorcismos, expulsando o mal de


que muitas vezes os homens
poderiam

estar possuídos. Nas ruas praticava-


se a magia das minim,
menosprezadas

pelos sacerdotes, chamadas de


charlatãs e impostoras por alguns,
muito

embora respeitadas por muitos. As


casas de keshaphim, no entanto,
eram consideradas os lugares em
que se praticava o tipo mais
desprezível de magia, um trabalho
de mulheres, nocivo, vingativo,
praticado por aquelas que eram
acusadas de bruxas. Mas uma min
que realizasse feitiços e maldições
jamais falaria com uma garota como
eu se não tivesse prata para

entregar e um pai ou irmão para me


recomendar. E se tivesse procurado
um dos sacerdotes em busca de um
amuleto, eles o negariam a mim,

porque era filha de alguém que lhes


fazia oposição. Até eu sabia que não
merecia os seus favores.

O aposento atrás da velha achava-se


às escuras, mas vislumbrei ervas e

plantas penduradas em cordas


compridas presas ao teto. Reconheci
a

arruda e a murta, e as amareladas


maçãs secas da mandrágora, a que

chamavam de yavrucha, uma erva


de natureza tanto afrodisíaca como
antidemoníaca, venenosa e eficaz.
Pensei ter ouvido o som de uma
cabra, que se dizia ser um animal de
estimação de bruxas, partindo de
dentro da

câmara escura.

– Antes de desperdiçar o meu


tempo, tem shekalim suficientes para
proteção? – a velha perguntou.

Abanei a cabeça. Não tinha moedas,


mas trouxera comigo um espelho de

mão precioso. Pertencera à minha


mãe e era muito bem trabalhado,
feito de

bronze, prata e ouro, completado


com um pedaço de lápis-lazúli
escuro. Era

a única coisa que eu tinha de algum


valor. A anciã o examinou e depois,
satisfeita, aceitou a minha oferta e
voltou para dentro. Depois que
fechou a

porta, ouvi o barulho de uma


fechadura. Por um momento
perguntei-me se
ela se fora para sempre com o meu
espelho, talvez nunca mais fosse vê-
la,

mas ela voltou a aparecer na porta e


me disse para abrir a mão.

– Tem certeza de que não quer este


amuleto para si mesma? – ela

advertiu, insistindo que existia


apenas um como aquele em todo o
mundo. –

Você pode precisar de proteção


nesta vida.
Abanei a cabeça e, assim que o fiz,
o meu véu simples de lã caiu.
Quando

viu a cor escarlate do meu cabelo, a


velha se afastou como se tivesse
descoberto um demônio em sua
porta.

– É bom que não o queira – disse


ela. – Ele não funcionaria no seu
caso.

Você precisa de um símbolo muito


mais potente.

Apanhei o amuleto, depois me virei


e comecei a me afastar. Fiquei

surpresa quando ela me pediu para


esperar.

– Não quer saber por quê? – A


mulher do mercado fazia um sinal,
me pedindo para voltar, mas me
recusei a atendê-la. – Não quer
saber o que vejo para você, minha
irmã? Posso lhe contar em que irá se
tornar.

– Eu sei o que sou. – Eu era a filha


nascida de uma mulher morta, que
não conseguia suportar olhar para o
próprio rosto. Estava imensamente
feliz por me livrar daquele espelho.
– Não preciso que me diga – gritei
para

a bruxa no beco.

FUI PARA CASA e entreguei o


presente ao meu irmão, um amuleto
delgado de prata para usar em volta
do pescoço, um medalhão impresso
com a imagem

de Salomão combatendo um
demônio prostrado diante dele no
chão. Na

parte de trás do talismã, o Selo de


Deus fora escrito em grego,
juntamente

com o símbolo de uma chave, para


significar a chave que Moisés
possuíra

para desbloquear a proteção de


Deus. Assim, também, esse amuleto

protegeria o meu irmão no futuro


banhado em sangue a que ele se

destinava.

Amram ficou encantado com o


símbolo. Disse que eu tinha a
capacidade

de conhecer a sua mente, pois havia


orado pedindo orientação e
sabedoria,

a menor porção do que Deus


concedera a Salomão. Não lhe
contei que fora

a mulher envolvida com magia que


soubera o que ele queria, não eu.

Os demônios, garantiu meu irmão,


nunca devem vencer. Essa era a

missão dos sicários, e eles não


podiam falhar. Ele se abriu comigo
sem reservas e acreditei no que
falou. Amram tinha jeito para
convencer o ouvinte a aceitar o
mundo pela sua visão, permitindo
ver através dos seus

olhos. Olhando para o meu irmão,


tudo o que via diante de mim era o
reino

de Sião e o nosso povo finalmente


livre.

Em muito pouco tempo, meu irmão


superou meu pai em sua tarefa
sombria. Ele era o melhor, não por
acaso, mas por escolha. Aprendeu
os procedimentos do assassinato
com meu pai e também com um
homem

chamado Jachim ben Simon, que se


tornou seu professor. Dizia-se que
Ben

Simon conhecia melhor a morte que


a maioria e era admirado pelo uso
de

uma faca de dois gumes feita de


prata. Sob a sua tutela, Amram
estava determinado a progredir com
sua habilidade, a elevar-se acima de
todos os

outros. Meu irmão era dedicado,


praticando com a intensidade de um

mestre artesão. No entanto, à medida


que o tempo passava, seu

temperamento e seus humores


mudaram diante dos meus olhos. Vi

desaparecer o menino que conhecia


e um assassino frio e destemido
tomar

o seu lugar. Com o nosso pai ele


aprendeu a esgueirar-se invisível
pela noite e a escalar torres usando
um único fio de corda enrolado em
volta da

cintura. Praticava o silêncio, sem


falar durante dias a fio, tornando-se
tão discreto que até mesmo os
camundongos do nosso jardim não o
notavam.

Caminhava descalço para garantir


que não houvesse nenhum som
quando

se aproximasse, apenas a rapidez da


lâmina, segundo os ensinamentos de
Ben Simon, que Amram aperfeiçoou
ainda mais com o seu talento natural.

Em pouco tempo, meu irmão era


chamado para as tarefas mais

perigosas, todas as que carregavam


o frio da morte. Embora ele não
tivesse

o manto que se dizia conceder a


invisibilidade, o seu dom maior era
a sua

capacidade de se disfarçar. Vestia-


se como um sacerdote ou um homem
pobre, escondendo-se em roupas
emprestadas para ter acesso a quem
era

considerado traidor. Era capaz de


fazer-se mais velho, com o rosto

transformado por linhas traçadas


com carvão, ou parecer um simples

menino, com os olhos brilhantes. As


pessoas diziam em segredo que ele
era

invencível, e logo surgiram rumores


de que o amuleto de Salomão em seu
pescoço o protegia do mal. Seus
amigos o adoravam e o chamavam
de Hol,

o nome da Fênix. Juravam que ele se


parecia com aquele pássaro místico
que ressurgia do fogo e das cinzas;
ele escapava de todas as tentativas
feitas pelas autoridades para
apanhá-lo e assassiná-lo.

Por causa do meu pai e do meu


irmão, os homens tinham medo de
falar

comigo. As atividades dos sicários


eram misteriosas, mas alguns de
seus segredos todos conheciam,
especialmente em Jerusalém. Os
homens da

minha família eram apontados na


rua, mencionados com voz
sussurrada,

tanto reverenciados como


desprezados. Não era de admirar
que ninguém

me quisesse ter como esposa, nem


mesmo o bruto que conduzia os
burros

ao mercado. Eu era uma mulher


jovem, mas era tratada como
mendiga,

desprezada, minha reputação estava


manchada. Somente quando os

homens viam a cor incomum do meu


cabelo, eu percebia neles a

curiosidade

e,

muitas

vezes,

o
desejo.

Seus

olhares

eram

desconcertantemente sensuais,
óbvios, mesmo para alguém tão

inexperiente como eu. Sabia que


entraria nos seus sonhos quando não

pudessem controlar o que


desejavam. Mas um sonho não tem
valor no
mundo. Que bem faria o seu desejo
por mim? À luz do dia, eles
passavam

direto. Queria gritar Leve-me a todo


homem que passava. Livra-me do
que aconteceu, do pilar de sal
amargo em que me tornei, do crime
que cometi antes de nascer, dos
homens da minha casa, que
espreitam do lado de fora do

Templo buscando apenas vingança.


Leve-me para a sua cama, para a
sua casa, para a sua cidade.

Tirei os véus em locais públicos.


Não me incomodei em trançar o
cabelo,

mas quis deixá-lo brilhar, buscando


a salvação da minha solidão.

No entanto, todos me davam as


costas, incapazes de me ver, porque
eu

não era mais que um ar vermelho


rodopiando por eles, invisível aos
seus olhos.

EM POUCO TEMPO viram-se


cartazes com uma imagem
semelhante à do meu irmão pregados
nas paredes. Os romanos pagavam
por informações, mais

um tanto se fosse capturado, ainda


mais se fosse considerado culpado
pelos

crimes cometidos e crucificado.


Amram já não voltava para casa e,
em vez

disso, resignou-se a se deslocar pela


cidade depois de escurecer;
pertencia

aos sonhos e não à rotina da nossa


vida diária. Meu pai e eu éramos os
únicos ocupantes da nossa casa.
Embora não falássemos um com o
outro, nós dois olhávamos para o
escuro quando a noite começava a
cair.

Sabíamos que era onde Amram se


encontrava. Uma vez mais
dividíamos

algo. Não podíamos ouvir sobre uma


captura sem estremecer.

Mostrávamos lampejos de pura


emoção um ao outro cada vez que a
porta
batia. Mas nunca era ele, apenas a
força do vento.

Uma noite terrível não foi o vento, e


sim uma tropa de soldados à porta.

Meu pai deu de ombros quando o


nome de Amram veio à tona; ele
insistiu

que não tinha filho. Era sua má sina


ter apenas um rebento, uma filha
inútil.

Quando até mesmo os amigos de


Amram, aqueles que o elogiaram
como
a Fênix imbatível, não se atreveram
a ajudá-lo, meu irmão concluiu que
sua

vida em Jerusalém se acabara. Não


tinha outra escolha senão fugir.
Havia fortalezas no deserto
controladas pelo nosso povo. Se
conseguisse chegar a

uma delas, estaria seguro. Antes de


partir, correu o risco de vir se
despedir.

Depois que ele e meu pai se


abraçaram, Amram acenou-me de
lado.
Trouxera um presente de despedida.
Um lenço azul. Era lindo demais
para

mim, mais do que eu merecia, mas


ele insistiu para que o aceitasse.

– Há larvas que passam a vida


tecendo esses fios e você se recusa a
honrar o seu destino?

– Nenhuma larva fez isto. – Eu ri ao


pensar como aquele tecido celestial

podia ter sido tramado por insetos.


Era o oposto da aranha que fizera a
capa do meu pai, tecida de fio tão
claro que desaparecia no ar. Aquela
seda

azul se anunciava como o toque de


uma cor inesperada.

Amram jurou que era verdade,


insistindo que, enquanto as larvas
teciam

a seda nos ramos das amoreiras,


elas estavam consagradas a mim,
assim como ele. Ao completar sua
tarefa, cada larva transformara-se
em uma

borboleta azul, subindo aos céus


depois que sua obra na terra fora

completada.

Enrolei o lenço sobre o cabelo.


Pensaria no céu todas as vezes que o
usasse, e no meu irmão, que era tão
firme em sua fé. Permaneci parada à
porta da nossa casa, lembrando-me
de que ele dissera que as sardas em
minha pele eram como estrelas.
Como as estrelas no alto elas o
levariam a

me encontrar de novo.

RESTAVAM POUCOS de nós na


cidade. Explorávamos as ruínas,
cautelosos, temendo por nossa vida.
À noite, ouvíamos os gritos dos que
eram levados

para o Templo, capturados por


soldados rondando os becos em
busca de

alguém da nossa fé. Os integrantes


da legião bebiam absinto, uma
bebida fermentada perigosa, quase
letal, que os deixava mais cruéis,
além de

bêbados. Nenhuma mulher estava


segura. A vida de nenhum homem
lhe

pertencia. Quem foi capaz conseguiu


fugir para Alexandria ou Chipre,
mas

meu pai insistia em ficarmos. Tinha


mais trabalho a fazer, e esse
trabalho

era a faca que ele carregava. Com o


tempo, Jerusalém despertaria e,
como

um leão, libertar-se-ia das malhas


da servidão. Dentes e garras, ouvi-
o dizer, isso é o que o nosso futuro
nos trará. Mas eu sabia que o que
realmente queria dizer era carne e
ossos.

Sabia pelos meus sonhos o que


significava ficar cara a cara com um
leão.

A FUMAÇA subia dos incêndios


provocados por toda a cidade e as
sombras que projetava serviam
como uma cortina de proteção para
o nosso povo

escapar dos soldados saqueadores.


Eu podia sentir o cheiro da madeira
de

oliveira, do salgueiro queimando.


Restos chamuscados ainda ardendo
de

telhados de sapé e palheiros. Sobre


o estrado em que eu dormia, em
nossa

casinha, cobria a minha cabeça e


desejava morar em outra época e em

outro lugar. Gostaria de nunca ter


nascido.
Uma tarde, enquanto me encontrava
no mercado vasculhando as caixas

quase vazias dos vendedores em


busca de ervilhas e feijões para a
nossa ceia escassa, os romanos se
apropriaram da nossa casa. Fiquei
observando

de um lugar escondido no quintal


abandonado dos meus vizinhos, pois
a sua casa fora arruinada meses
antes. Os soldados saquearam a
nossa casa

para depois a queimarem


completamente e nossos pertences
ficarem

espalhados sobre a terra calcária.


As faíscas voavam como mariposas

brancas, mas, quando caíam sobre a


terra, ardiam com um tom carmesim

brilhante, como as pétalas das flores


do flamboyant.

Se antes eu tinha pouco, agora tinha


quase nada. Atravessei os

escombros e consegui pegar apenas


o que caberia nas minhas duas mãos,
uma chapa de ferro pequena para
assar o pão sírio, uma lâmpada feita
de

argila branca de Jerusalém, para


queimar o azeite no shabat, o xale
de oração do meu pai, chamuscado
nas franjas dos quatro cantos, seu
cantil de

couro, e um pacote de sal que teria o


gosto de fumaça quando utilizado na

culinária. Esperei pelo meu pai


escondida atrás de uma parede. A
minha pele estava escura e havia
cinzas em meu cabelo. Se meu pai
não

regressasse, se ele tivesse sido


assassinado ou fugido sem me dizer,
pensei

que poderia simplesmente


permanecer atrás da parede,
plantada ali como

um flamboyant.

Finalmente meu pai apareceu,


esgueirando-se ao crepúsculo,
vestindo o

manto que lhe permitia seguir seu


caminho sem ser detido. Quando viu
o

xale de oração em minhas mãos,


concluiu que o momento de fugir
havia chegado. Pensei que me
deixaria lá para ser a mendiga que
sempre temi um

dia me tornar, para furtar o lixo.


Mas ele lançou um gesto para que o
seguisse como qualquer outro
homem faria sinal a um cão. Resolvi

obedecer como me fora indicado e


me arrastei atrás dele. Talvez a
nossa relação de sangue significasse
algo para ele depois de tudo, ou
talvez me levasse com ele porque
temesse que a minha mãe, no Mundo
Vindouro,

pudesse reagir se ele me


abandonasse ali na rua. Ou pode
simplesmente ter-se lembrado de
que fora ele quem lhe dera a criança
e que eu estava certa em considerá-
lo parceiro no meu crime. Se as
minhas lágrimas a

afogaram de dentro para fora, fora


ele quem introduzira a minha vida na
dela.
À NOITE íamos de casa em casa,
pedindo que nos deixassem entrar.
Havia cada vez menos pessoas do
nosso povo na cidade a cada dia –
todos haviam

fugido ou estavam escondidos – e


tornou-se difícil encontrar alguém

disposto a nos ajudar. Eu era como


um cão e nada mais, sem fazer

perguntas, incapaz de pensar por


mim mesma. Pairava nas sombras

enquanto as pessoas nos davam as


costas. Mesmo as que acreditavam
na

política do meu pai estavam


cautelosas, não querendo correr
riscos. Apenas

algumas deixaram as portas abertas


e mesmo essas se certificaram de
olhar

para o outro lado e não nos


cumprimentar com um abraço.
Muitas vezes dormimos em estrados
de palha, gratos por um abrigo
destinado às cabras.

Compartilhamos os alojamentos com


os animais e dormíamos inquietos

com o ruído da respiração deles ao


nosso lado. Vezes seguidas eu tive o
mesmo sonho. Nele havia um leão
adormecido ao sol, que eu não
ousava acordar. Uma noite sonhei
que o leão fora comido inteiro por
uma cobra que devorava tudo em seu
caminho. Estava descalça em meu
sonho, em um

trecho de terra rochosa que era tão


deslumbrantemente branco que eu
não

conseguia abrir os olhos. Senti


compaixão por aquela fera
selvagem, o rei do deserto, pois em
meu sonho ele se rendera à cobra
sem lutar. Ele me olhara, suplicante,
fitando-me nos olhos.

Naquela noite meu pai me sacudiu


para que eu acordasse. No sonho, os

meus pés sangravam sobre as


rochas. Diante de mim achava-se a
víbora

preta do deserto que se enrola em


torno de sua presa e se recusa a
soltá-la.
Ela devorara o leão e agora se
aproximava de mim. Ofereci à fera
escamosa

amêndoas e uvas, mas ela tinha


gosto por carne humana. Implorei a
ela que

me soltasse enquanto lamentava pelo


leão. Angustiei-me por aquela fera
do

mesmo modo que uma pessoa se


angustia pelo próprio destino. O que

acontece já está escrito, e o leão


estava escrito ao lado do meu nome.
– Temos de ir e não olhar para trás –
disse o meu pai quando me

acordou.

Se não fosse rápida o bastante, sem


dúvida meu pai me deixaria para

trás. Não discuti, mas senti uma


onda de terror naquele alojamento
escuro.

Havia sangue na roupa do assassino


e seus olhos brilhavam. Algo

acontecera, mas não me atrevi a


perguntar o que era. Levantei-me do
estrado no chão, pronta em um
instante. Juntei os pertences que
levara comigo de casa. O lenço azul
que o meu irmão me dera, a chapa
de ferro e a

lâmpada que encontrara nos


escombros. Saímos com outra
família, a do

assassino Jachim ben Simon, o


homem que adotara meu irmão como

aprendiz e lhe ensinara a matar com


a faca curva de dois gumes. Esse
assassino era conhecido por ser
terrível quando golpeava o inimigo,
um turbilhão que buscava apenas
vingança. Ele já fora sacerdote, o
filho mais

velho de uma família de sacerdotes,


e passara a juventude em estudo e
oração. Mas vira como o ouro
forrava os bolsos de poucos,
enquanto os pobres eram pisados e
usados ou escravizados. Vira o
próprio pai

concordar em fazer oferendas e


sacrifícios em nome dos romanos em
nosso

Templo no Dia da Expiação,


insistindo que os pecados romanos
poderiam

ser deixados sobre os nossos altares


e ser perdoados pelo nosso Deus.

Ele tomara a faca dos sicários e se


destacara em seu trabalho. Era um
homem verdadeiramente perigoso,
todo nervos e músculos. Vi sua
cabeça

grande e característica e baixei os


olhos, não querendo vislumbrar um

homem tão temido. Sua esposa


chamava-se Sia, seus filhos
pequenos eram

Nehimiah e Oren. Ouvi a mulher


chorar enquanto se reunia aos filhos.
Sua

família possuía pouco mais que nós,


mas tinha um burro que a esposa de
Ben Simon e os filhos montavam.
Andei atrás deles, como uma mulher
em

desgraça. Na verdade, estava


acostumada a ser excluída, mais à
vontade comigo mesma. Jachim ben
Simon olhou por cima do ombro uma
vez e
pareceu assustado, como se tivesse
se esquecido de mim e agora via um
fantasma.

Enquanto saíamos de Jerusalém, já


tentava adivinhar quem de nós

morreria e quem viveria, pois


certamente todos não
sobreviveríamos. Sem

força bruta, até mesmo a nossa fuga


seria difícil. As ruas estavam um
caos.

Todos os judeus haviam sido


expulsos da cidade e aquele que
fosse

encontrado seria instantaneamente


assassinado. Esse era o novo
decreto e,

portanto, a lei. Muitos dos


sacerdotes tinham mergulhado nos
esgotos, na

esperança de escapar da cidade sem


ser detectados. Mas suas artimanhas

não poderiam ajudá-los agora,


achavam-se no reino dos ratos,
lutando
pelas suas vidas juntamente com o
restante de nós.

Ouvimos o que soou como um


rugido quando o Templo foi
demolido.

Era Tisha B’Av, o nono dia do mês,


o dia em que eu nascera. Nos anos
vindouros, as pessoas jurariam que
seis anjos desceram do céu para

proteger os muros do Templo para


que não fossem totalmente
destruídos;

diriam que aqueles anjos sentaram-


se lá e choraram, e que continuariam
chorando. Os romanos usavam
aríetes que pesavam cem toneladas e
mais

de mil homens foram necessários


para balançá-los a fim de que
pudessem

folgar, depois derrubar as enormes


pedras sobre as quais a insígnia do
rei

Herodes fora gravada. Cordas eram


içadas por centenas de homens,
alguns
deles dos nossos, escravizados,
amaldiçoando-se pelo seu destino e
pela desventura dos próprios atos. A
pedra deveria durar para sempre,
mas

naquela noite vim a entender que


uma pedra era apenas outra forma de
pó.

As nuvens de poeira santa pairavam


no ar e cada respiração incluía os
restos do Templo, de modo que
inalamos o que era para perdurar
por toda

a eternidade.
Mais uma vez os incêndios ateados
na cidade produziram uma cortina

de fumaça que nos ajudou na fuga.


Pelo que ficamos gratos, apesar do
calor

latente. O ar estava carregado,


sufocante e cinzento. Levei o lenço à
boca e

tentei não respirar as faíscas.


Imaginei que meu pai matara alguém
naquela

noite e que era por isso que seu


manto estava manchado de
vermelho.

Pensava sobre esses assuntos


quando a esposa de Ben Simon, Sia,
veio

andar ao meu lado. Sentia pena de


mim porque eu seguia atrás, entre as
nuvens de poeira levantada. Era,
talvez, dez anos mais velha que eu,
com um cabelo negro volumoso
penteado em cachos. Seus olhos
eram escuros

com manchas douradas. Ela poderia


ter mantido a sua beleza, não tivesse
sido a esposa dedicada de um
assassino, desgastada pelo medo.
Concluí

então que os assassinos não


deveriam se casar ou ter filhas, ou
permitir que alguém os amasse.

– Gostaria de ir montada com meus


filhos por um tempo? – a esposa de

Ben Simon sugeriu.

Pude ver que ela estava cansada e eu


era uma pessoa acostumada a

caminhar. Agradeci e disse que não,


que estava feliz em acompanhá-los.

Esperei que fosse me deixar sozinha.

– Estou feliz por você estar aqui –


desabafou. – Partir teria sido muito
pior sem outra mulher além de mim.

Olhei para ela, perguntando-me o


que queria de mim. Ela sorriu,

pegando a minha mão, e então


entendi. Ela queria uma amiga.

Pedi-lhe que voltasse aos seus


filhos. Ela deveria deixar-me seguir
atrás,
uma vez que era invisível para a
maioria das pessoas, mesmo sem um

manto como o que meu pai usava.


Talvez tivesse herdado essa
capacidade,

ou talvez tivesse aprendido seus


segredos por observá-lo. De
qualquer

maneira, os romanos que nos


procurassem veriam apenas um
redemoinho

de poeira por onde quer que eu


andasse.
Sia não quis ouvir o que eu disse.

– Você está enganada – ela


comentou. – Você seria a primeira
que

veriam. Seu cabelo é tão bonito que


me faz pensar em flamboyants.

Imaginei se suas palavras seriam


uma maldição, pois estava de pé ao

lado de um flamboyant quando meu


irmão admitira que se tornara um
assassino. Não era possível para ela
saber, mas em raras ocasiões em que
sonhara com a minha mãe ela me
procurara como um flamboyant, e
nos meus sonhos abaixava a cabeça
diante dela e chorava.

Observando Sia, vi que sua intenção


era ser gentil naquela noite

atravessada pelo perigo e pela


incerteza. Andamos próximas,
atraídas pelo

perigo que nos cercava.


Atravessávamos o Vale dos
Espinhos sob um céu carregado com
tantas estrelas que isso me fez
pensar nas pedras no
deserto, incontáveis, muito brancas
para demorarmos o olhar sobre elas.

Dizem que o rosto do nosso Criador


é assim, tão brilhante que um único
olhar produz a cegueira. Mantive os
olhos no chão. Teria preferido andar
sozinha, mas Sia definia o seu ritmo
por mim, com o braço entrelaçado
ao

meu.

Ela me confidenciou que meu pai e


seu marido tinham matado um

importante general romano e que era


por isso que tinham pressa de fugir.

Ela mesma limpara as lâminas das


suas facas, lavara o metal em água
pura,

recitando uma oração enquanto o


fazia. Ela era obrigada a não fazer

perguntas e acatar as ordens do


marido, mas sentia desejo de
confessar, enquanto caminhávamos
atrás dos homens, que ela segurara
uma faca com

estrias de sangue humano. Sua voz


falhou depois de comentar o
ocorrido.

– Como Deus vai me punir? – ela


murmurou.

Procurei silenciá-la – as mulheres


não deviam falar de tais assuntos –,
mas já era tarde demais. Ben Simon
ouvira e virara-se para nos olhar.
Era

um homem alto e imponente, com a


pele morena escura, temível, com
uma

cicatriz profunda gravada em um dos


lados do rosto. De novo olhei para o
chão, na tentativa de evitá-lo. Ele
falou duramente para Sia se calar.

– Não falemos mais disso – disse


ela então. – Às vezes é melhor não
saber o que os homens devem fazer.

QUANDO NÃO conseguimos mais


andar, paramos em um lugar de
descanso, um

oásis ao qual os amigos dos


assassinos haviam se referido em
termos

elogiosos. Todo zelote tinha um


plano caso sobreviesse o desastre,
uma direção em que correr se
necessário. Essa foi a primeira
parada, um

pequeno espaço verde no qual os


camelos que tinham fugido durante o

caos haviam se reunido. Os animais


correram quando nos aproximamos,

levantando poeira, com medo de que


lhes lançássemos cordas ao redor do

pescoço, como se não quisessem ser


escravos como nós. Uma cidreira

crescera no local. Seu fruto era


chamado pri etzhadar, de cujo
etrog, semelhante a um limão, fazia-
se geleia. Os que encontramos
estavam

machucados, azedos, sem mel para


adoçar o paladar, mas não nos

importamos. Estávamos morrendo


de fome e sede. Comemos em
silêncio,

devorando a nossa ceia escassa. À


distância, podíamos ver Jerusalém
em chamas. A fumaça subia em uma
nuvem afunilada e depois
desaparecia.
Contei as estrelas, muito brilhantes
acima de nós. Sia sentou-se ao meu
lado

e falou-me em voz sussurrada.


Insistiu que era um bom presságio

encontrar uma planta cítrica na


primeira noite da nossa jornada e eu,
embora não discutisse com ela,
achava o contrário. Aquela árvore
amarga

nada mais era que a chave para uma


porta e essa porta abria-se para o
deserto.
Ouvira meu pai falar com Ben
Simon. Não estávamos indo em
direção a

Alexandria, ou Chipre. Em vez


disso, seguíamos pela rota antiga,
que levava

ao Mar de Sal, a rota dos


condenados. No mês de Av, os
pássaros não voavam para onde
estávamos indo, mesmo à noite.
Muito quente, o ar era

implacável, um forno. Era possível


fazer pão em uma pedra. Vagaríamos
pelo deserto até onde fosse possível,
pois meu pai acreditava que lá

encontraríamos os zelotes e suas


fortalezas, meu irmão entre eles.

Na noite em que fugimos, enquanto o


Templo queimava e o céu era um

anel de fogo, soprava uma brisa


leve. Esse seria o momento mais frio
que

conheceríamos antes de entrar no


deserto. Mas haveria mais uma coisa
que
me lançava em um mundo ardente na
noite em que deixamos Jerusalém.

Desci para um poço que fora


abandonado muito tempo antes. Não
havia

mais nenhuma água. Isso não era


realmente uma surpresa. As pessoas

muitas vezes mentiam sobre a água,


prometendo piscinas onde não havia

nenhuma, sonhando com a água em


um mundo composto de pó. Ainda

assim, se alguém se agachasse sobre


os joelhos para cavar com as mãos,
era

possível encontrar lama. Drenada


entre os dedos cerrados, a água
brotaria,

apresentando-se a quem estivesse


disposto a afundar-se de joelhos.
Não me

sentia muito orgulhosa de fazer isso.

Determinada a conseguir o que


queria, pude encher metade de um
jarro
com água lodosa, filtrada entre os
meus dedos, em seguida através do

tecido do meu lenço azul. Depois de


terminar eu me levantei, ávida para
bebê-la. Virei-me do poço, então
ergui os olhos, alarmada. Não via o
céu noturno cheio de estrelas, nem
as chamas de Jerusalém, apenas o
outro assassino, Ben Simon,
observando-me. Meus braços
estavam cobertos de

lama, a minha túnica, entreaberta.


Senti-me inundar de calor. Não
entendia
por que ele aparecera no escuro ou
por que ficara ali. Ele nem sabia o
meu

nome. Pensei que fosse embora, mas


ele olhou para mim por um longo

tempo, da mesma maneira que um


homem olha para um veado ao
avaliar

se está muito longe para persegui-lo


ou perto o bastante para pegá-lo. Ele

inclinou a cabeça e então eu soube.


Afinal de contas, eu não era
invisível.
*

CONTEI OS DIAS no deserto


cortando a minha perna com uma
pedra afiada. O

nosso povo não tinha permissão de


ferir a si mesmo; essa era uma
prática

dos pagãos e nômades em seus


períodos de luto. Pelos mortos não
dareis golpes na vossa carne; nem
fareis marca alguma sobre vós, o
Senhor nos ordenara no Quarto
Livro de Moisés. Mas eu ouvia
apenas a voz do deserto
e não as palavras do Todo-
Poderoso. Escondi os cortes sob o
meu xale. Na

vida que levávamos, a dor era algo


com que se acostumar, com a qual se
habituar. Preferiria antes me
machucar que ser ferida por alguém,
por isso

adotei essa prática com um sentido


de propósito e sem remorso.

Era a primeira vez que


desrespeitava as nossas leis. Depois
disso, o
restante sucedeu sem dificuldade.

Fui posta juntamente com Sia e seus


filhos, quando teria preferido ficar

sozinha. Ainda assim, ela era gentil


comigo e me acostumei a ela.
Porque ela

era mais velha e casada, pensei que


esperaria que fosse respeitosa com
ela,

mas em vez disso me considerava


uma irmã, e então passei a gostar da
sua
companhia. Havia dias em que
ríamos e transformávamos a nossa
vida

difícil em um jogo, mesmo que os


homens nos lançassem olhares

carrancudos. Trabalhávamos bem


juntas, coletando as poucas folhas
verdes

que conseguíamos encontrar,


fazendo guisados com o nosso
suprimento

cada vez menor de azeite e


azeitonas, figos secos e lentilhas.
Preparávamos

os pães sobre as pedras quentes da


fogueira, cobrindo-os com as cinzas
para que assassem melhor. Quando
os homens saíam para caçar, às
vezes

traziam consigo uma perdiz, que


acrescentávamos aos nossos
ensopados.

Fui profundamente influenciada pela


boa mãe que Sia era para os seus

filhos, como não se queixava quando


clamavam pela sua atenção. Seus
filhos eram pouco mais que bebês e
ela cantava para eles dormirem
todas

as noites, determinada a não


abandonar de todo a bondade que
conhecera

no mundo que deixara para trás.


Todas as vezes que ela cantava eu
pensava

na garota de Alexandria que cuidara


de mim na falta da minha mãe.
Muitas

vezes adormeci ao lado das


crianças, pensando que as canções
de ninar cantadas por Sia eram para
mim. A minha nova amiga expulsara

incansavelmente com o pente as


cinzas que haviam caído no meu
cabelo

durante o incêndio em Jerusalém.


Quando encontramos uma lagoa
rasa,

corremos para ela assim que vimos


a água brilhante, capazes de
esquecer a

nossa situação, mesmo que


brevemente, espirrando água uma na
outra

como se fôssemos realmente irmãs.

Em segredo, continuei a marcar o


meu tempo no deserto pela gravação

de cada dia na minha pele. Guardei


aquilo para mim, sem conseguir me
esquecer de Ben Simon e da cicatriz
em seu rosto. Sempre que o via me
observando, cobria rapidamente a
minha perna. Não queria que
soubesse

quem eu realmente era, uma menina


abandonada, feia e com as mãos

calejadas. E no entanto algo nos


ligava, talvez porque tivéssemos os
dois as

nossas cicatrizes. Era evidente que


ele me via como ninguém jamais o

fizera. Podia ver seu rosto se


transformar quando me olhava;
parecia haver

algo ardente e imprudente em seu


olhar. Chegava a parecer que as
únicas
vezes em que me sentia viva era
quando ele me olhava. Sua presença
era como picadas de abelha,
concentrando a minha atenção. Dei
de ruminar

sobre ele, imaginando como fora


ferido e sobre as tarefas sombrias
que teria cumprido em Jerusalém.
Tinha pensamentos abrasadores e

persistentes misturados na minha


cabeça, que me envergonhavam e me

faziam sentir traidora, embora não


tivesse feito nada de errado.
Uma noite, à luz clara da lua cheia,
fui à lagoa em que Sia e eu tínhamos

nos banhado. Durante o meu período


de sangramento mensal, eu me

isolava de todos, como era nosso


costume. Naquele momento, aquilo
havia

acabado e precisava me lavar. Em


Jerusalém, iríamos à mikvah para
nos banhar. Ali havia apenas a lagoa
no nachal, a ravina em que as aves
vinham beber à noite, bandos de
corvos, cotovias e enorme grifos, os
fortes e destemidos abutres a que
chamávamos nesher, que formavam
os seus ninhos nos penhascos. Achei
que a água estava para desaparecer

rapidamente com o calor crescente


de Av. Ainda assim, tirei minha
túnica, mergulhei na água e senti
algum alívio. Ouvi um sussurro nas
tamargueiras,

uma espécie que costuma crescer


nos piores lugares. Rapidamente
tornei a

vestir a túnica, com medo de que um


dos leopardos em cujo território
tínhamos entrado pudesse estar me
perseguindo, faminto o bastante para

me considerar sua presa.

Ouvi um eco de passos e me


imobilizei, até que desapareceram.
Voltei ao

nosso acampamento limpa, mas com


os nervos em frangalhos. Todos

dormiam dentro da nossa tenda de


pele de cabra, presa ao chão com

estacas feitas de chifre. Apenas Ben


Simon permanecia acordado.
Parecia inquieto. Enrubesci ao
pensar que talvez pudesse ter-me
visto na lagoa. Ele

me chamou e me aproximei dele de


olhos baixos.

– É perigoso – ele me advertiu.

Até então ele nunca me dirigira a


palavra. Não sei se quis dizer que
era

perigoso andar no deserto sozinha


ou erguer os olhos para encontrar os
dele. Senti-me revoltada por ele
pensar que poderia me dizer o que
fazer,
tratando-me como se fosse uma
criança, ou pior, sua escrava, e
ainda assim

senti um tremor de prazer quando


notei as folhas verdes pontiagudas
em

seu cabelo. Eram da tamargueira que


crescia à beira da lagoa, uma árvore

que erguia os ramos para o céu em


lugares onde nada mais poderia

sobreviver.

VINTE E UM CORTES e então veio


a noite em que aconteceu. Depois me
perguntei se estivera marcando o
tempo até que aquilo acontecer.
Seria aquilo o que estava
esperando? Seria para aquilo que o
meu desejo me levava? Talvez
tivesse olhado no Livro da Vida, que
preconiza o destino, e

na profundeza dos meus sonhos já


vira o nome dele inscrito lá. Ou
talvez eu

fosse apenas uma garota invejosa


que nada possuía e, portanto,
estivesse disposta a tomar o que
pertencia a outra mulher, que por
sinal era a minha

única amiga.

Estava preparando uma fogueira


para cozinhar a nossa refeição de
bolos

de lentilha na chapa de ferro que


trouxera comigo de Jerusalém. Ele
se agachou ao meu lado. O céu
empalideceu com o calor. As
cotovias voavam

na penumbra e grandes colônias de


abelharucos cantavam, as brilhantes
penas azuis destacando-se no ar
nebuloso. Jachim ben Simon era
mais

imponente que a maioria dos homens


e pude sentir o calor da sua presença

ao meu lado. Ele não me olhou nesse


momento. Em vez disso, abaixou o
braço e passou a mão na minha
perna, demorando-se nos cortes que
fizera

até a minha pele parecer em chamas.

– Você não tem medo das coisas que


as outras mulheres temem – disse
ele.

Percebi que isso era verdade. Ele


ainda não me olhava, mas parecia
me

conhecer, mesmo estando escondida


dentro dos meus véus. A maioria das

mulheres temia pela vida dos seus


filhos e maridos. Suas preocupações

eram a doença, a fome, os demônios,


a escravidão. Eu temia os leões dos
meus sonhos, quase acreditando que
seria devorada por uma das
criaturas
que me espreitavam no sono. Temia
que um anjo estivesse me esperando

no deserto, enviado para dizer que a


minha vida era uma escalada de
erros,

que nascera uma assassina,


responsável pela morte da minha
mãe antes

mesmo do primeiro sopro de vida,


que o meu crime era pior que o de
qualquer assassino, pois era culpada
não só aos olhos do meu pai, mas
aos
olhos de Deus.

Ben Simon tirou a mão, mas eu ainda


sentia o calor do seu toque.

Continuei a senti-lo por dias. Será


que isso significava que ele era um
anjo,

escondido entre nós, para me julgar?


Ou era apenas um homem que queria

satisfazer a si mesmo?

ESTÁVAMOS QUASE ficando cegos


com a luz branca que penetrava na
nossa tenda nas horas mais brutais.
Seguir viagem era impossível no
calor do dia,

pois os ventos eram impiedosos e


poderiam cortar um homem em
pedaços.

Éramos gente da cidade extraviada


no deserto, andarilhos sem direção,

encalhados no território de
bandidos, ladrões e homens santos.
Vazio era como se poderia chamar a
terra desolada que atravessamos.
Não víamos
ninguém. Quando a lagoa de águas
claras desapareceu na areia, quando
até

mesmo a lama deixada para trás


tornou-se dura e ressecada, não
havia

nenhuma razão para permanecermos


no nosso acampamento.

Arrumamos os nossos poucos


pertences – a tenda de pele de cabra,
os

fusos de mão que usávamos para fiar


a lã, as facas e a chapa de ferro, um
pote em que ainda havia um pouco
de azeite, a lâmpada que acendíamos
para assinalar o shabat, embora
houvesse pouco azeite para fazê-lo.

Seguimos em frente, em busca de


água. Nós nos arriscamos a
prosseguir sob o céu escuro do
início da manhã, durante as horas
que eram menos brutais, antes que o
sol surgisse na escuridão. O nosso
percurso levou-nos a

um poço, mas o encontramos seco.


Ele nos levou a um pomar, mas era

estéril. As oliveiras tinham


murchado, sua casca prateada
transformara-se

em conchas vazias. Dizia-se que os


nômades que atravessavam esse
deserto

muitas vezes eram forçados a matar


seus camelos e beber o sangue
quente

quando não podiam conter a sede.


Não havia grama e até mesmo os

rebanhos de íbex, cabras selvagens


que não temiam escalar as falésias
rochosas, muitas vezes não se
aventuravam por essa terra áspera.
Apenas

os leopardos a frequentavam.
Embora fossem misteriosos e raros,

ocasionalmente avistávamos os seus


rastros. Esses eram os animais mais

rápidos de toda a criação, de uma


beleza sobrenatural, mas viajavam

sozinhos. Somente aqueles que


viviam desgarrados de todos os
demais da
sua espécie chegavam até ali.

Seguimos adiante, crentes sem nada


em que acreditar. Os nossos lábios

estavam tão secos que se racharam e


tornaram-se brancos. Sia esfregou a

última gota do azeite na boca dos


filhos – para que seus lábios não
sangrassem. Os dias amontoavam-se
como galhos, dobrados e inúteis.
Por

fim encontramos uma caverna para


nos abrigar da luz e do vento.
Continha
ainda uma lagoa de água turva, com
uma capa rendilhada sobre toda a

superfície imunda, no entanto


enfiamos nossos rostos nele como
cães. O

vento leste, Ruach Kadim, soprava


de Edom, flamejante com o calor.

Enrolamo-nos em lenços leves, de


um tecido fino feito de linho, mais
frio que a lã, talvez porque as canas
de que esse tecido era feito
cresceram em

pântanos e carregavam água na sua


trama. Velamos nossos rostos,

certificando-nos de manter as mãos


sobre os ouvidos. Ainda assim não

conseguíamos abafar o som do


deserto, o uivo de protesto contra a
nossa

presença como um ser vivo.

OCUPAMOS A CAVERNA por dias


a fio, exaustos e ressequidos demais
para continuar, receosos de
encontrar a guarnição romana que
patrulhava o
deserto. Queimamos galhos de
arbustos espinhosos que
encontramos para

espantar os chacais. Uma nuvem de


fumaça branca subiu da boca da

caverna, as cinzas atingindo nossos


olhos e nossas gargantas. Os
assassinos

saíram para caçar, mas não


encontraram nenhuma presa. Eles
oraram, mas

não havia nenhum alívio. Continuei a


cortar a minha perna com a pedra
afiada. Se não mantivesse o controle
da minha vida, ninguém mais o faria.
À

medida que o tempo passava,


começamos a enfraquecer de fome.
De novo

me perguntei quem entre nós duraria


mais que os outros. A nossa fome
nos

manteve extasiados e exaustos.


Dormíamos tantas horas que não
saberia

dizer a diferença entre as horas de


vigília e os momentos entregues aos
sonhos. Sonhei com Jerusalém, com
a minha mãe e com o flamboyant do
mercado. Essas imagens me
pareciam mais reais que o mau
cheiro da

caverna. Secretamente começara a


comer a terra úmida, nos locais em
que

a umidade se acumulava perto das


rochas. A minha pele ficou escura e
parecia que o deserto brotava de
mim, da mesma maneira que dizem
que a
terra se derrama quando se abre um
demônio com uma faca que tenha
sido

abençoada e limpa em água pura.

Uma noite, meu pai e Ben Simon


cortaram o pescoço do burro. Há

pessoas que dizem que os animais


não têm alma, mas ouvi o burro
gritar.

Sua voz era como a de qualquer


homem ou mulher implorando pela

respiração e pela vida. Mesmo


correndo para as falésias, ainda
podia ouvir

o seu eco. Os homens fizeram uma


oração, agradecendo a Deus pelo
que tinham se convencido de que
fora uma morte fácil para a pobre
criatura, pois haviam usado uma
faca ritual; depois acenderam fogo
com uma pilha

de galhos e assaram a carne. Eu


podia ver as poças do sangue escuro
do burro na encosta abaixo da nossa
caverna. As estrelas permaneciam
acima
de nós no céu. Algumas podiam ser
vistas claramente, outras se
mantinham

escondidas na escuridão das trevas.


Esperamos pela estrela da manhã, a
que chamávamos Cochav hashachar
e outros chamavam de Vênus,

aguardando que rompesse o céu com


as suas faixas de luz clara e
cintilante

e nos desse mais um dia.

Depois que comemos, senti-me


contaminada. Os ossos do burro
cozinhavam em uma panela sobre o
fogo para que pudéssemos ter
comida

até o shabat seguinte, se a


distribuíssemos em pedaços a serem
devorados.

Éramos como pessoas que tinham


regredido, bárbaros do deserto.
Existiam

nômades que viviam dessa maneira;


às vezes víamos evidências deles.

Eram homens selvagens, pagãos, de


rostos pintados; usavam lanças de
dois

gumes e seus chamados entre si eram


como balidos. Sua vida dependia
dos

camelos, que lhes davam carne e


leite, e também abrigo quando as
peles curtidas eram esticadas em
tendas. As suas mulheres davam à
luz sobre a

areia, deixando-as oleosas e pretas;


seus mortos eram deixados sobre as
rochas para os carniceiros; os seus
homens eram extremamente
perigosos,
pois seguiam um código próprio.
Ninguém que atravessasse o seu
caminho

era poupado. Alguns desses homens


tinham seis esposas e as mulheres

eram tratadas como burros,


maltratadas, usadas para as
transações.

Ben Simon encontrara os corpos de


duas dessas mulheres. Eram pouco

mais que crianças, provavelmente


ainda não velhas o suficiente para
sangrar com a lua. Deviam ter
tentado escapar da sua condição e
fugiram

até onde o deserto permitira. Ben


Simon os descobriu quando estava

caçando, enterrados sob um monte


de areia e pedra, de mãos dadas,
com os

olhos arregalados, abertos para o


Mundo Vindouro. As meninas tinham

cachos longos de cabelo negro e


usavam as túnicas índigo de tecido
tingido
do seu povo. Deitaram-se para
esperar a morte como a noiva espera
pelo

noivo, as palmas das mãos e as


solas dos pés adornados com hena
em

desenhos intrincados da cerimônia


thania, para que pudessem trazer
sorte ao homem que desposassem.
Talvez tivessem sido usurpadas pelo
marido

sem recurso ou ele se desfizera


delas. Talvez tivessem fugido juntas
antes
da cerimônia de casamento e se
perdido no caminho.

Eu estava limpando a panela quando


Ben Simon fez sinal para mim.

Segui-o, mesmo que não tivéssemos


nos falado desde que ele me avisara
do

perigo. Ele me levou para ver as


duas esposas. Não comentamos
nada, nem

mesmo olhamos um para o outro.


Imaginei por que ele me escolhera
para
compartilhar a descoberta, por que
me revelara o fato de a poeira ter se
levantado e então as mortas
apareceram diante dele, um
assassino feroz, que dera cabo de
tantos, que lavava o sangue das
mãos noite após noite, cujo rosto se
dividia em dois por uma cicatriz
irregular, e que tinha lágrimas em
seus olhos.

Ficamos ali parados, sob o céu


escurecendo, na hora em que a terra
se

tinge de azul-escuro. Era o momento


em que aqueles que vagueiam muitas
vezes veem miragens, jurando que as
rochas sobre as quais caminham

tornaram-se o mar. Talvez as duas


crianças-esposas se considerassem

resgatadas pelo mar dos mortos,


preferindo isso à vida que levavam,
em que eram mantidas como
animais, trocadas como moedas de
prata. De

repente entendi que Ben Simon


estava me dizendo que nunca me
levaria a

esse fim. Ele me protegeria e


cuidaria de mim. Meu destino se
revelou quando ele carinhosamente
enterrou as duas irmãs-esposas, tão
certo

como se o Livro da Vida tivesse


caído aberto diante de mim.

Eu nunca mais ia querer fugir dele.

TODAS AS NOITES eu me
enroscava na caverna,
permanecendo acordada até muito
tempo depois que os outros tinham
adormecido. Não era a única que

conservava os olhos abertos. Uma


noite, bem tarde, Jachim ben Simon
se aproximou. Ele se deitou ao meu
lado e passou os braços em volta de
mim.

Eu estava esperando por ele, mas me


senti atordoada demais para me

mover ou gritar. Ele me olhou ainda


mais profundamente do que fizera no

poço em que não havia nenhuma


água ou no túmulo das duas esposas.
Eu

sabia que ele me via de verdade.


Via que eu estava acostumada a
fazer o que um homem me dissesse
para fazer, que seguira o meu pai
para fora de

Jerusalém sem uma única pergunta.


Mas havia mais coisas dentro de
mim, e

ele via isso também. Via que eu


estava ardendo, que estava sozinha,
que era

encurralada pelo leão nos meus


sonhos, o anjo que estava esperando
e o fardo do meu nascimento.

Nós provavelmente morreríamos


muito em breve. Nossos ossos se

tornariam brancos sobre as pedras


brancas. Seríamos arranhados pelas

águias, levados por chacais.


Subiríamos com o vento e nos
tornaríamos

cinzas. Mas não agora. Ainda não.


Ainda estávamos vivos. Ben Simon

deslizou a mão por dentro da minha


túnica. Havia profundas veias azuis
em

seus braços que eu podia ver através


da escuridão. Podia sentir o seu
sexo

contra mim, excitado. Eu sentia


medo de que ele pudesse me rasgar
ao meio. Ao mesmo tempo, não
tentei impedi-lo. Estava queimando
da

maneira que as folhas das romãs


queimam no mês de Av. Elas estão
verdes

em um momento, em chamas no
instante seguinte. Sia tinha razão. Eu
era
como o flamboyant: quanto mais
queimava, mais viva ficava. Se ela
tivesse se inclinado sobre mim, teria
percebido o cheiro do fogo e seria
avisada, em

vez de me considerar sua amiga.

Ben Simon moveu a mão entre as


minhas pernas. Ouvi-me ofegar. Ele

rapidamente cobriu a minha boca


com a mão livre. Os outros estavam
do outro lado da caverna, não
deviam ouvir. Ele sussurrou que o
silêncio era a
única coisa que me pediria.
Concordei, e ele afastou a mão da
minha boca.

Meus lábios estavam quentes com o


seu toque. Queria saber uma coisa

antes do meu voto de segredo, antes


de engolir as minhas palavras e de
cumprir a minha promessa. Podia
sentir o encanto do silêncio me

envolvendo, mas, antes que fosse


completo, tinha apenas uma
pergunta.

Queria saber como ele chegara a ter


uma cicatriz no rosto. Parecia um
segredo para mim, e, se soubesse o
seu segredo, poderia conhecê-lo, e
então ele pertenceria a mim, mesmo
que fosse o marido de Sia.

Ele disse que era a marca deixada


por um leão. Encolheu-se quando

falou da lembrança. Os romanos o


capturaram fora do Templo quando
era

jovem e solteiro. Ele era alto e


musculoso, com braços fortes,
exatamente o
tipo de homem que eles queriam.
Estavam à procura de gladiadores e,

portanto, tinham concebido um teste.


Fecharam dez homens em um espaço

com um leão. Quem sobrevivesse


seria mandado a Roma. Os
primeiros

nove foram mortos, mas, quando


chegou a vez desse homem que
estava ao

meu lado, o leão cortou-o uma vez


no rosto, em seguida caiu aos seus
pés. A
criatura tivera morte súbita,
desmoronando de uma só vez,
espalhando-se

sobre o piso ladrilhado. Talvez o


leão tivesse sido ferido nos outros
combates, mas Ben Simon anunciou
aos soldados que matara seu inimigo

com um olhar. Foi uma visão tão


estranha que os romanos, perplexos
e confusos, passaram a discutir as
possíveis causas daquela
circunstância

incomum. Foi então que Ben Simon


conseguiu escapar, apesar da ferida
que

ainda sangrava.

Ficara chocado por ter matado uma


fera tão bonita, quando teria

preferido matar os soldados, porque


um dos nove que poderiam ter sido
gladiadores e que morreram diante
dele era seu irmão.

– A verdade é que eu era amargo –


ele me confidenciou, sussurrando em

meu ouvido, para explicar por que o


leão caíra aos seus pés. – O leão
não

gostou do meu sabor.

Corri a mão sobre o seu semblante


no escuro, imaginando como seria

ficar cara a cara com um leão.


Talvez a criatura tivesse percebido
algo nele,

um leão em forma de homem. Eu


choraria pela humilhação e pelo

sofrimento de Ben Simon nas mãos


dos romanos, mas o deserto secara
as
minhas lágrimas. Talvez eu fosse
amarga também.

Ele não teve pressa comigo naquela


primeira noite. Fez-me coisas que eu

não sabia que existiam. Beijou-me


por toda parte e pediu-me para fazer
o

mesmo com ele. Depois de um


tempo meu prazer estava em ouvir o
dele,

fazendo-o me segurar com força e


querer-me mais. Quando ele entrou
em
mim, meus olhos estavam abertos.
Vi a cicatriz deixada pelo leão e
soube que meus sonhos vinham me
contando a história da minha vida o
tempo

todo, tanto o que acontecera como o


que viria a acontecer. Ele podia ser
o

marido de outra, mas naquela noite


foi meu, o leão que eu sempre soube
que me encontraria. Eu deveria me
poupar para o meu marido, mas já
sabia

que nunca seria uma jovem esposa


cuja família esperaria para ver o
meu primeiro sangue depois da
nossa união. Em vez disso, só existia
esse

homem dizendo-me que era bonita. E


disse de tal maneira que acreditei
nele.

NÓS NOS TORNAMOS pessoas do


deserto no transcurso do mês de
Elul, envoltos em mantos para nos
esconder do sol, buscando o nosso
sustento ao longo
de todo o dia. Esquecemos os dias
de festa. Até mesmo o shabat era um
dia como qualquer outro, embora
fosse belo e santo e devesse ter sido

lembrado com alegria e louvor.


Todas as horas eram brancas, todos

ardendo iguais. Em breve o meu pai


seria o único que orava três vezes
por

dia, e em pouco tempo ele se juntou


a Ben Simon, orando diariamente

apenas ao amanhecer, voltado para


Jerusalém.
Em uma tarde afortunada, Ben Simon
capturou uma cabrita selvagem.

Porque o animal caminhou na minha


direção quando ele a trouxe para o
nosso acampamento, deu-a para mim
como um presente. A cabra pareceu

dedicada a mim desde o início,


implorando para ser acariciada,
seguindo nos meus calcanhares.
Fiquei tão lisonjeada que não fui
capaz de me

obrigar a abrir mão dela em favor


daquela a quem deveria pertencer
por direito. Sia era a esposa de Ben
Simon, a mais velha das duas; no
entanto,

quando chamou a cabra para junto


de si, acenando e gesticulando, o
animal

se recusou a obedecer, recuando e


investindo.

Eu mantinha o meu animal amarrado


com uma corda para podermos

beber o leite e fazer o iogurte a que


chamávamos lebben e outros
chamavam homes, usando o meu
lenço para torcer a coalhada,
batendo um

pouco do chem’ah amanteigado que


muitas vezes comíamos puro antes
de

ser transformado em queijo, pois na


nossa situação atual considerávamos

esse prato simples um banquete.


Cavava à sombra no local em que
havia uma antiga oliveira solitária,
atrofiada pelo vento. Lá encontrava
lama de onde tirava um pouco de
água escura e salgada. Podia então
fazer queijo, haris halab,
envolvendo a mistura em um pano
até que ficasse dura e pronta para
comer. Quanto mais pratos nós
tínhamos para as refeições,

graças ao leite da cabra, mais Sia


parecia sofrer e arder de inveja. Um
dia eu

a vi inclinada conversando com a


cabra, fazendo o possível para
convencer

a criatura selvagem a mudar sua


lealdade, mas a cabra apenas correu
para

o meu lado. Depois pensei se fora


nesse momento que Sia soubera.
Embora

ela cobrisse os olhos, pude ouvi-la


mais tarde soluçando. De algum
modo,

naquele deserto, onde não havia


umidade suficiente para as lágrimas,
ela ainda era capaz de chorar.

A ESSA ALTURA, eu tinha cortes


demais para contar; eles se
cruzavam como mariposas pairando
sobre a superfície da minha pele.
Encontramos alguns
viajantes perdidos no nosso caminho
e comerciávamos sempre que

podíamos. Tudo o que tivéssemos


que pudesse ser considerado
precioso –

o reservatório de couro fino do meu


pai, as pulseiras de casamento de
Sia –

era trocado por sal e cominho. Uma


vez, conseguimos diversas galinhas

magricelas e nos refestelamos como


reis, mas depois de terminar ficamos
apenas com os pés e os ossos. Um
prato tão magro acabaria por nos
servir

por um longo tempo. Passamos fome


e, em nossa fome, tornamo-nos

descuidados, como acontece muitas


vezes às pessoas perdidas.
Tínhamos

tão pouco que parecíamos não ter


ligação com esse mundo, se não

estivéssemos ligados um ao outro.

Quando minha hora chegou e


sangrei, usei a bainha da túnica
rasgada

como um pano entre as pernas. Não


havia mais nada. Estávamos nos

tornando selvagens, bem como as


tribos bárbaras que viviam no
deserto e

obedeciam a leis brutais. Viva se


puder, ou será deixado para trás com
os

idosos e enfermos, uma oferenda às


criaturas que rondam à noite.
Enrolei o
lenço azul que meu irmão me dera na
cabeça, mesmo que azul fosse a cor

usada pelas irmãs-noivas que


encontráramos enterradas no
deserto. Tudo

o que tínhamos era carregado nas


nossas costas. Tudo aquilo que
éramos

estava iluminado pela luz brilhante


do Todo-Poderoso. Vivíamos
porque

Ele permitia. Cada respiração


pertencia ao nosso Senhor, que nos
dera mais

um dia na terra.

AGORA, sempre que tentava


caminhar ao lado de Sia, ela
acelerava o passo. A intimidade
entre nós fora perfurada até o osso.
Quando cozinhávamos

juntas, ela não falava. Às vezes,


vacilava quando eu estava ao seu
lado. Uma

vez ela ficou nervosa e queimou a


mão na chapa posta sobre o fogo.
Quando
encontramos uma lagoa rasa no
acampamento seguinte, convidei-a a
tomar

banho comigo. Ela se recusou,


insistindo que tomaria banho
sozinha, mas

não foi. Em vez disso, ficou me


olhando de modo reprovador por
trás das

rochas, meu corpo jovem era uma


afronta para ela. Pude ouvir o seu
choro.

Poderia ter chorado se não tivesse


perdido a capacidade de fazê-lo,
mas decidira havia muito tempo, na
casa do meu pai, em Jerusalém, que
nunca

choraria novamente. A cabra logo se


tornou a minha única companhia.

Encontrei-me a falar com ela, até


que me lembrei de que era o que se
dizia

que as bruxas faziam. Então apenas


sussurrava, para ninguém ouvir.

QUANDO FINALMENTE
encontramos um lugar em que
poderíamos ficar por algum tempo,
com mudas de hortelã e algumas
cebolas amarelas

conseguindo crescer em um
desfiladeiro vizinho, procurei uma
caverna

mais elevada no penhasco, a fim de


isolar-me quando o meu período
viesse

com a lua. Uma mulher que


sangrasse era impura, o que era
chamado

niddah, e devia se afastar dos outros


por sete dias. Até mesmo uma única
gota de sangue que caísse obrigava a
mulher a se retirar do mundo dos
homens, até que se limpasse em uma
mikvah, a água que era pura,
correndo diretamente de Deus.

Afastei-me por conta própria porque


essa era a nossa lei, mas havia

outra razão também. Não podia mais


dormir no mesmo espaço que Sia.

Começara a pensar que ela


permanecia acordada no escuro
quando o
marido me procurava,
insistentemente agora, como se
cobrando algo que

lhe era devido. Perguntava-me se ela


cobria as orelhas, ou pior, se nos
ouvia. Pus-me à parte para escapar
de seus olhos curiosos. Na verdade,
preferia a solidão. Cobria a pele
com lama para me refrescar.

Desembaraçava o cabelo. As
estrelas eram mais brilhantes no
cume em que

eu acampava, elas salpicavam a


escuridão para preencher a noite. Já
vira mulheres que seguiam os
nômades, as segundas e terceiras
esposas que

eram banidas para andar somente


com as outras mulheres. Elas
também se

cobriam de lama. Embora devessem


seguir envergonhadas, eram ainda

mais bonitas que as primeiras


esposas, pois sua pele era branca,
amarela e

vermelha por causa da lama, e seu


cabelo ficava solto, caindo sobre as
costas, como a água. Pareciam
estranhamente orgulhosas pois, se
não

houvesse nada para matar a sede dos


homens, então havia pelo menos isso

disponível, seu corpo, sua alma.

Comemoramos o Rosh Chodesh, o


nascer da lua nova, que assinalava o
início do mês de Tishri. Bendito o
que falou e o mundo veio à
existência. Todo mês começava
como um reflexo das primeiras
palavras da Torá, com uma
nova vida, assinalada pelo
reaparecimento da lua. Até então
tínhamos

andado cerca de cinquenta dias,


evitando qualquer sinal de tropas

romanas. No Dia da Expiação


encontrei-me dominada pelo
sentimento de

culpa, horrorizada por pensar que


Deus sabia o que fazia à noite, que
havia

roubado algo que não me pertencia,


como se fosse um ladrão comum,
bem

como a assassina que meu pai


alegava que eu era. Meu pai e eu
tínhamos

pouco a ver um com o outro, embora


muitas vezes estivéssemos
confinados

em um espaço apertado e fizéssemos


as refeições juntos. Virávamos as

costas um para o outro. Ele tinha


pouca escolha a não ser comer a
comida
que conseguia pôr diante dele,
embora tivesse certeza de que ele a

considerava impura. Ouvira-o


recitar uma oração sobre sua bacia,
como os

homens fazem para espantar os


demônios.

– Acha que poderia matá-lo de


dentro para fora? – perguntei com

ousadia enquanto ele murmurava


sobre as verduras que lhe havia

preparado na refeição do meio-dia.


Ele me lançou um olhar asqueroso.
Estava curvado, frágil, de repente
um

homem idoso. Pela primeira vez o vi


por quem ele era, apesar da sua capa

de invisibilidade. Sabia que estava


quebrado. Percebi, então, que era a
oração pelos mortos que vinha
murmurando, as palavras que se
devem

dizer quando ocorre uma passagem:


Bendito és Tu, Senhor, nosso Deus,
Rei
do Universo. Desde a época do meu
nascimento, ele estivera e ainda
continuava de luto pela minha mãe.
Tudo pelo que eu me envergonhava.

Ele era o meu pai, não importava


quão cruel fosse, e eu não o honrara.

Celebramos a glória de Deus na


Festa dos Tabernáculos. Os homens

rezaram, mas não tínhamos uvas na


videira nem romãs vermelhas para

partir ao meio a fim de que o suco


caísse sobre as nossas bocas e
braços e
esse dia não foi muito diferente de
qualquer outro. Pouco depois o
tempo

começou a mudar. Por fim as aves


voltaram. Não percebera como o
mundo

estivera silencioso nos meses de


grande calor, até os bandos de
pássaros retornarem revoando acima
de nós. Aquela era a rota que
percorriam para

passar o inverno no sul, onde as


noites não eram tão escuras nem tão
frias.
Todo o céu encheu-se de bandos de
cotovias e pintarroxos vermelhos.

Havia verdelhas, rolas, brilhantes


rolieiros-da-abissínia, íbis
acetinados.

Havia colônias inteiras de gloriosos


abelharucos amarelos e turquesa,
que

cantavam uns para os outros, até


mesmo durante a noite. Acima de
nós não

parava de se deslocar uma enorme


paleta de cores, movendo-se em
direção

ao sul em busca das áreas


verdejantes. Às vezes eram como
nuvens ao nível

do horizonte, outras vezes ocupavam


o espaço inteiro do céu. Ver aquelas

ondas vibrantes de pássaros em tons


que iam do vermelho ao azul acima
do

deserto branco era como um


milagre. Eu mesma já não contava os
dias com
pesar, mas com alegria.

Até mesmo quando estava impura,


quando me retirava do convívio dos

outros, ainda mesmo que sua esposa


pudesse acordar à noite e descobrir
que ele saíra, Ben Simon não se
afastava de mim. Os homens
deveriam

evitar as mulheres durante aquele


período do mês, estava escrito no

Quarto Livro de Moisés, e portanto


era a lei. Mas desrespeitávamos
todas as
leis que nos coubesse desrespeitar
no deserto, e era a isso que tinha me
levado a iniciativa de cortar a minha
perna, pois fora a primeira lei que
ignorara. Não tinha mãe para me
chamar a atenção, mas, na verdade,
teria

desobedecido mesmo se a minha


estivesse viva para me advertir.
Uma lei

desobedecida levou à outra. Ben


Simon tornou-se impuro, manchado
com o

meu sangue do mesmo modo que se


manchara com o sangue romano

quando atingia os seus inimigos no


pátio do Templo. Estava acostumado
a

cometer crimes. Seu comportamento


era ao mesmo tempo carinhoso e

grosseiramente masculino. Quando


ele se punha ao meu lado, a mão na

curva do meu quadril, o sexo duro


de encontro ao meu corpo, não

conseguia ver nenhuma culpa em


seus olhos. Ele dizia que Deus podia
distinguir um pecador de um pecado,
e o que fazíamos estava além de

julgamento.

Sempre que descia da caverna, era


capaz de dizer se Sia sabia onde seu

marido estivera todas as vezes que


desaparecera do seu lado. Eu
percebia

pela maneira resignada que se


entregava ao trabalho, pela sua
carranca.

Não conseguia olhar nos olhos da


minha amiga. Tudo o que eu poderia
ter

sido para ela desaparecera. Da


garota que seguira para o oásis na
noite da

destruição do Templo já não havia


mais nem rastros. Aquela que trazia
cinzas no longo cabelo vermelho e
chorara pela perda da sua cidade e
do seu lar ficara para trás, no oásis
em que crescia a cidreira. A chave
que abrira o portão para o deserto
abrira Sia para a minha traição.

Provei a areia entre os dentes. Era


uma mulher do deserto agora, não
mais a excluída tímida e
envergonhada, uma garota da cidade
com medo de

escorpiões. Tornara-me uma pessoa


feroz, disposta a fazer qualquer
coisa

para conseguir o que queria. Era


assim que nasciam os caçadores.
Sentia essa selvageria dentro de
mim, uma vontade imperiosa antes
quase

imperceptível que resolvera


sobreviver. Se quisesse uma coisa,
ela se

tornava minha. Aproximava-me


sorrateira das aves migratórias e as

capturava com o meu lenço, às vezes


com as próprias mãos. Era astuta,
uma

leoa. Vira o modo que a víbora


negra do deserto hipnotizava um
pássaro, enrolando-se lentamente em
torno da sua presa antes da mordida
final que

o imobilizava.
O nosso povo acreditava que toda
criatura possuía uma centelha –

nitzotz – e por isso era sagrada, e


que devíamos demonstrar a bondade
e a compaixão por todos os seres, o
que chamávamos de baal chayyim.
Todos

os animais louvavam a Deus, assim


como nós, com as suas canções e as
suas vozes. Em meados do inverno,
dedicamos um shabat aos pássaros
para demonstrar a nossa gratidão e
reconhecer que foram a sua música
que
ensinou a humanidade a cantar e a
louvar a glória do nosso Criador.

Éramos até mesmo obrigados a


afugentar as galinhas antes de
coletar os seus ovos, para que não
vissem o que aconteceria aos seres
em gestação que poderiam ser a sua
prole. Quando precisávamos de
carne, devíamos

cortar a garganta do animal com um


único talhe perfeito, para permitir
que

o seu espírito subisse em um fluxo


constante de luz. Não deveríamos
consumir sangue de nenhuma
maneira, mas deixá-lo escorrer do
pescoço

da nossa presa, retornando à terra de


onde viera.

Mas eu testemunhara o modo que a


morte sobrevinha no deserto todas

as vezes que a víbora que esperava


nas sombras camufladas das rochas

praticava a sua refeição. Aprendera


a lição. Quebrava o pescoço das
aves, mas o fazia muito rapidamente,
e sempre murmurava uma oração.
Acomodava o corpo dessas criaturas
voadoras sobre os joelhos e
arrancava

as suas penas, ignorando o fato de


haver tirado a vida de seres tão
maravilhosos. O que não era capaz
de fazer? Que coisa amarga e brutal
não

estaria disposta a fazer? Na caverna


eu desenvolvera dentes e garras,

exatamente o que o meu pai dissera


que nos aconteceria no deserto.

Imprudente, já não me importava


com quem pudesse nos ouvir à noite.
Não

me importava se os olhos de Sia


estivessem inchados ou se meu pai

cuspisse no chão quando me via,


para se proteger, claramente
convencido

de que eu poderia manifestar


malevolência e atrair maldições.
Que

acreditassem em ouvir leões


descendo dos seus esconderijos nas
montanhas e fazer tais alaridos
selvagens tarde da noite. Sia não
significava

nada para mim. Os seus filhos não


eram meus. Quem sobrevivesse

dependia de nervos e músculos, e de


uma espécie tosca de vontade. Eu
possuía todos os três. Parei de
voltar à tenda para dormir e
permanecia na

caverna.

Era agora o Cheshvan, que alguns


chamam o mês amargo, o mês de
Noé,

mês em que a chuva inundou o


mundo assim como a minha paixão

inundara a minha cabeça. Permiti


que Ben Simon observasse a minha

nudez em pé sobre as rochas no topo


da caverna. Permiti que me levasse

em cima para ver os falcões, para


que o Senhor de todas as coisas

testemunhasse, para que a sua


esposa visse se tivesse coragem de
olhar para os penhascos que eu
adorava. Meu amado deveria
aproximar-se

apenas até certo ponto, deixando


claro que eu deveria ser a única a
pecar.

Todo homem é tentado pelos


impulsos malignos; ele não seria um
homem

se uma centelha de desejo não se


manifestasse em seu íntimo. Mas
uma mulher que se permitisse
render-se ante tais humilhações seria
julgada
com severidade, porque estaria
repetindo o primeiro pecado do
paraíso

como uma das filhas de Eva, traindo


as leis de Deus para sua satisfação.

Aceitei isso. Já era uma criminosa, a


assassina da própria mãe, o desejo
não

era nada em comparação com um


pecado dessa natureza.

Quando Ben Simon me chamava


para perto de si eu corria para junto
dele como um cão, mas pelo menos
agora era um cão que escolhera seu
dono. Deixava que me possuísse
como os cães possuem um ao outro,
e

depois à maneira dos leões, face a


face, entrelaçados. Quando ele
insistia em que era obrigado a me
deixar, não o deixava ir. Satisfazia
todos os seus

desejos, oferecendo qualquer favor


para convencê-lo a ficar. Ardia
junto dele, quente e fluida em suas
mãos, os nossos corpos um escuro
emaranhado, pois havíamos nos
tornado animais para quem essa era
a

única língua. Lágrimas salgadas


picavam os meus olhos, mas não
caíam. A

nossa era uma espécie destruidora


de amor. Quando se sentia
humilhado

pelas próprias necessidades, Ben


Simon cobria-me de insultos, depois

chorava e me tomava novamente em


seus braços. Eu nunca tinha o
bastante dele, sabendo que em breve
me deixaria para voltar aos seus

familiares. Ele lhes pertencia. Nunca


me enganara quanto a isso. Ficava
olhando para as suas pegadas
quando partia e pranteava-o depois
que se fora.

ESSA FOI A ÉPOCA em que nos


lembramos da reconsagração do
Templo depois

da expulsão dos sírios, quando


Adonai permitiu que o azeite de um
único dia queimasse durante oito
noites para assinalar a nossa fé e o
nosso triunfo. Mas agora o Templo
estava perdido para nós e o nosso
azeite queimava em nuvens de
fumaça negra. As rochas eram os
nossos fornos

enquanto as chamas saltavam dos


poucos galhos retorcidos que

conseguíamos encontrar. Caía uma


chuva fraca que respingava sobre o

nosso fogo, de modo que até mesmo


cozinhar era difícil. O nosso
banquete

foi uma pomba que capturara com o


meu lenço. A criatura arrulhava

fazendo tirr tirr, uma linda canção


que soava como tor, a nossa palavra
para

“rola”. Notei que em cima de um


arbusto de murta o companheiro da

pomba a esperava. Mais tarde, na


estação em que as rolas migram para
o sul, perguntava-me se a que ficara
empoleirada no ramo partiria
sozinha ou

se ficaria e choraria. Pensei nas


palavras de Salomão para a sua
amada, Ó

querida minha, eis que és formosa;


os teus olhos são como os das
pombas. Vi a tristeza embaciando os
olhos escuros da pomba que ficara
empoleirada nos

arbustos, e uma ternura que nunca


observara na humanidade. Caminhei
em

direção à pomba solitária pensando


se deveria acabar com a sua solidão,
mas ela passou rapidamente para um
galho mais alto, as penas claras
brilhando, uma criatura adorável
demais para ser morta.

Uma porção de água foi o nosso


vinho naquela noite, pois não havia
uvas

nem tempo para tentar fermentar os


figos silvestres que às vezes

encontrávamos. Acostumara-me a
esse modo de viver e encontrei
consolo

no silêncio. Aprendera a amar o


perfume do deserto à noite, fragrante
e áspero ao mesmo tempo. Íamos de
um lugar a outro seguindo a

possibilidade de encontrar água,


correndo atrás dos rastros deixados
pelas

codornas. Continuei a viver afastada


dos outros para que Ben Simon

pudesse me procurar mais


facilmente, enquanto a esposa e os
filhos

dormiam. Uma vez em que Ben


Simon saíra para caçar, meu pai me

procurou para perguntar se era meu


desejo ser uma zonah. Senti como se

tivesse me dado um tapa. Ele me


comparava às prostitutas que viviam
em

torno de Jerusalém e se dispunham a


retirar o manto a quem quisesse

pagá-las, até mesmo soldados


romanos.

– Se isso é o que sou, então foi isso


que você fez acontecer comigo –

informei ao meu pai, o homem que


assassinara tanta gente com sua
adaga

curva, que me ignorara e me usara


como se fosse um cão, que não
vacilara

ao me trazer para o deserto, onde


não poderia ter um futuro diferente
do

que já fora escrito.

EU PARARA de contar os dias. Não


queria estar em outro lugar, mesmo
que ainda não houvesse nenhum
sinal do meu irmão e das fortalezas
dos judeus

rebeldes. O calor se dispersara e as


chuvas começaram para valer. Logo
haveria lagoas se formando nos
nechalim; pelas ravinas entre os
penedos passariam cachoeiras
iridescentes. Eu era como o
leopardo que vagava pelo

deserto, pensando apenas na


sobrevivência e no que precisasse
para passar

cada dia. Vi impressões na areia,


sempre de um felino único, nunca
dois juntos. Eles eram criaturas
solitárias que, quando encontravam
um

companheiro, começavam a gritar,


pois era atraídos um pelo outro,
embora

continuassem inimigos. Não eram


como os leões, que eram ligados por
toda

a vida e descansavam abraçados.

Uma vez me deparei com um


leopardo, embora um encontro
desses
fosse extremamente raro. Permaneci
em silêncio ao lado de algumas
rochas

onde as aves nidificavam, à espera


da chegada de alguma para que
pudesse

apanhá-la. Olhei para cima e lá


estava o leopardo amarelo com as
suas manchas pretas, grande, com
certeza forte o bastante para me
matar. Meu

coração disparou. Fui tomada por


um enorme desejo de viver. Postei-
me
em cima de uma pedra e levantei
meu xale, procurei parecer feroz, o
cabelo

vermelho voando atrás de mim, o


rosto em uma careta de rosnado, e
gritei

como um leopardo. A criatura olhou


para mim, assustada, então correu

para longe. Desapareceu entre as


rochas, depois disparou na planície,
onde

parecia deslizar sobre a terra. Eu


tremia sem parar, atordoada ante a
minha

ferocidade. Assim era eu agora.


Uma criatura que não dava a mínima
para a

fome do outro, que só pensava em si


mesma.

Ficaria feliz em levar essa vida para


sempre. Esperando pelo escurecer

para ter Ben Simon quando pudesse,


mas não era esse o modo pelo qual
as

coisas foram escritas. No fim do


mês de Kislev, quando as nuvens se
recolheram e as noites esfriaram, os
filhos de Sia adoeceram. A má sorte
espreitava todas as vezes que
comíamos alimentos que não haviam
sido

abençoados ou quando bebíamos das


lagoas paradas. Tínhamos deixado

um lugar em que havia demônios e


talvez alguns nos tivessem seguido

pelas portas do Sião. As crianças


eram meninos doces, sempre prontos
a me acompanhar à procura de figos
no solo fértil das ravinas, pelo
menos até a mãe protestar e não
mais permitir que me
acompanhassem. Quando

perguntei se poderia ajudar com as


crianças doentes, Sia fez-me saber
que

não havia nada que pudesse fazer.


Eles não eram meus filhos, ela me
disse.

Vi a dor estampada em seu


semblante, mas não me ofereci para

compartilhá-la, porque ajudara a


causar o seu desespero. Era claro
que não

me quereria por perto.

Dia após dia os meninos ardiam de


febre, embora o ar se tornasse mais

frio. Logo as crianças emitiam sons


roucos quando tentavam respirar.

Tênues marcas vermelhas


espalharam-se sobre a pele. Podia
ouvir o choro

de Sia quando recusavam a sopa de


ervilhas escaldadas que ela lhes
oferecia. Ela clamou a Adonai que a
levasse em lugar dos filhos. No mais
fundo do meu coração, desejara a
mesma coisa. Era terrível, mas era

verdade. Sentia a minha desgraça,


mas queria que Sia partisse. Essa
era quem eu me tornara e quem o
meu desejo fizera de mim. Agora,
quando pensava sobre quem seria o
primeiro a morrer, imaginava que
seria ela.

Se você não for capaz de ser brutal


no deserto, nunca sobreviverá. Isso

era o que dizia a mim mesma e em


que acreditava. Eu não era um burro
ou

uma menina inocente, ou mesmo uma


mãe preocupada ou um menino com

febre alta. Era uma mulher de cabelo


vermelho que encarara um leopardo.

Falava com uma cabra na montanha.


Vi que Ben Simon se sentava para

vigiar os filhos, os traços toscos do


seu semblante transformados pela
preocupação. Aproximei-me dele,
curvei-me à sua frente e pedi para
cuidar
de seus filhos. A curva de um
sorriso formou-se no canto de sua
boca e ele

acariciou o meu cabelo, mas disse


que a vida deles estava nas mãos de
Deus, não nas minhas.

Sia assistiu à cena, o rosto pálido.

– Deixe-me mostrar o que posso


fazer – insisti.

Em um único dia, capturei três


galinhas selvagens e cozinhei-as no
fogo.
Encontrei água em uma fonte que
alimentava um sicômoro egípcio e

arranquei a fruta cor de laranja. Fiz


uma sopa saudável para os meninos,
em seguida cortei a fruta do
sicômoro em fatias finas e frias para
manter contra seus lábios febris.

Sia não pôde me censurar. Não tinha


escolha a não ser assentir sem

expressão e aceitar os meus dons.


Dediquei-me toda à sobrevivência.

Apliquei minha vocação e minha


arte, ao contrário do meu pai, que
passava

o tempo de braços cruzados olhando


em direção a Jerusalém enquanto o

céu passava do branco ao azul. Ele,


que matara uma dezena de romanos,
que era um rebelde e um renegado,
estava sendo superado pela Judeia,

abatido pelo vento e pela fome que o


deixaram impotente. Agora que as
crianças haviam adoecido, vivia
apavorado, cantando ao Todo-
Poderoso ao

longo do dia. Não que se


preocupasse com os meninos, era a
própria pele

que o preocupava. Insistia em que os


demônios poderiam passar de uma

pessoa a outra com um toque ou uma


respiração. Eu tinha desprezo por
ele

e me afastava. Quando ele me pediu


água para lavar as mãos, disse-lhe
para

encontrá-la por si mesmo, cavando a


areia como eu fizera.
Importava-me apenas com um
homem, aquele que enfrentara um
leão.

Mas temia que tivesse amolecido


demais e fosse recuperado pela
esposa e

pela família. Ele parara de me


procurar à noite. Na minha caverna,
eu tremia sozinha. Sofria e
espreitava por trás das rochas. Ele
sentava os filhos

ao lado de um fogo feito de galhos


que eu catara, tomava a sopa que eu
fizera, bebia a água que eu cavara
debaixo do sicômoro. Eu os estava
curando uns para os outros. Uma vez
o vi pegar a mão de Sia na sua
grande

mão e levar-lhe a palma à boca.


Tinha o direito de fazê-lo, era sua
esposa,

mas ardi em meio a uma névoa de


ciúme. Não podia tomar a sopa que

preparara. Não bebia a água que


encontrara sob as raízes do
sicômoro.

Sabia pela conversa das mulheres


junto ao poço em Jerusalém que era

possível ligar um homem a você e


impedi-lo de se afastar. Era um ato
de sangue, diziam elas, receosas de
tais coisas, mas o sangue não me

assustava. Encaminhei-me sozinha a


um lugar em que vira serpentes

negras, onde havia um bosque de


maçãs amarelas cujas sementes
fibrosas e

compridas serviram como pavios


quando não tínhamos gordura de
perdiz
suficiente para usar como a luz do
shabat. Agachei-me sobre as minhas
ancas e desenhei o rosto de um leão
no chão com um pedaço de pau, em
seguida circulei-o com pedras, que
manchei com listras do meu sangue

menstrual. Queria manter o meu leão


enjaulado e desse modo imaginava

que poderia fazê-lo. Não tinha mãe


que me ensinasse a mais simples das
curas, mas o meu feitiço foi bem-
sucedido. Ben Simon procurou-me

naquela noite. Ainda me queria.


Amarrei o cabelo com o cachecol
azul. Fui

cuidadosa e silenciosa, grata em


demasia. Tudo parecia frágil nesse

momento. O que havia entre nós


crescera até se desabrochar em uma
flor, a

flor vermelha do flamboyant, que


mancha os dedos quando a pegamos,
torcida como uma videira que pica a
pele.

– Não devia estar aqui – disse ele.

O mesmo se aplicava a mim, e eu


devia tê-lo dito. Em vez disso, fui
até

ele e não nos negamos nada. Nenhum


de nós deveria estar naquele
deserto,

mas, como fora escrito que


deveríamos viajar por lá, fora
escrito que ele me

procuraria. Não queria outra coisa


senão as mãos dele em mim, a sua
boca

na minha, o seu corpo e o meu


tornando-se um só. Era assim que eu
me sentia viva. Imaginava se talvez
tivesse lançado um feitiço sobre
mim e se

essa fosse uma maldição pela qual


teria de pagar finalmente. Deveria
ter permitido a Ben Simon cuidar da
esposa e dos filhos, mas não o
deixei ir.

Um leopardo sabe o que é, e não


calcula a agonia e o medo da sua
presa, corre porque é feito para isso,
e tem o que precisa.

Talvez fosse melhor quando eu era


invisível, quando os homens
passavam por mim e desviavam o
olhar, quando ficava em casa como
um

cão. Mal me reconhecia agora. Mas


sabia o que queria. Quando saía

caminhando por entre as rochas, com


os pés descalços, deixava um rastro.

Ele sempre o seguia para me


encontrar. Ainda assim, esse não era
um

pecado para ele carregar, pois toda


vez que me procurou eu nunca me
neguei.

AS NOITES tornaram-se mais frias e


o ar ficou azulado, varrendo o
Grande Mar, trazendo chuvas nos
bancos de nuvens. No entanto, a
febre dos

meninos ainda não diminuíra. Eles


permaneciam doentes. Seus lábios

estavam inchados e brancos. Seus


olhos haviam rolado para trás e eles
falavam com espíritos. Nós os
observávamos inquietos, temendo o
pior.

Haviam chegado a um ponto em que


não comiam nem bebiam. E então um

dia, quando nos ramos da


tamargueira brotaram flores cor-de-
rosa e viam-

se tufos de sálvia crescendo entre as


rochas ao longo da falésia, Sia
adoeceu. Ela jurou que não havia
nada de errado com ela, mas tremia
e se

recusava a comer. À noite ela se


deitou ao lado dos filhos e, quando
veio a

manhã seguinte, não se levantou do


chão. Levei-lhe água e ela aceitou,
mas

o modo que me olhou foi terrível.


Quando ela apertou a minha mão,
pensei

que estava prestes a me amaldiçoar.


Em vez disso, ficou olhando nos
meus

olhos com uma intensidade febril.


Não sei se encontrara o que
procurava,
mas talvez sim, pois me perguntou se
cuidaria dele caso viesse a morrer.

Soube que falava sério. Abaixei a


cabeça e prometi que o faria.

– Sim, é claro que vai cuidar – ela


murmurou. Não parecia revoltada,
mas

uma mulher que se rendera e não


precisava mais se preocupar com os

detalhes de quem permaneceria na


terra, a não ser pela certeza de que o
marido a quem amava seria amado.
Depois disso não conseguia mais
olhar para ela, a minha única amiga,

que fora tão boa para mim. Ajudei o


melhor que pude, agachando-me ao
lado dela com um pano umedecido
para refrescar sua pele em brasa.
Fervi

um chá de urtiga e hortelã, mas ela


não conseguiu beber. Fiz um caldo
com

os ossos e a carne de uma perdiz,


mas ela balançou a cabeça e me deu
as
costas. Nunca cuidara de ninguém,
nem atendera a doentes ou
moribundos.

Ela se deixou ficar sem queixas,


assim como as crianças, que gemiam

baixinho. Em Jerusalém, podia-se


pagar pelas minim para que
entoassem seus cantos secretos. Elas
rezariam pelas curas do Infinito e,
como mestres

da pharmaka, tinham acesso a


medicamentos que podiam curar
cegueira, dores de cabeça, febres. A
raiz da peônia podia ser esmagada e
digerida por

aqueles que tinham convulsões; a


cera quente parava um sangramento.
As

minim escreviam o nome do Todo-


Poderoso mil vezes, guardavam o

pergaminho dentro de um rolo de


couro, com orações misteriosas tão

particulares que só podiam ser


sussurradas a Deus. Se eu pudesse,
teria procurado uma das mulheres
dos corredores do mercado como a
que
recorri para o amuleto de Amram,
pois muitas vezes elas tinham acesso
a

magias secretas e eram capazes de


recuperar uma vida que o Anjo da
Morte

parecia pronto a arrebatar.

Mas não tinha ninguém a quem


pudesse pleitear uma cura. Não

tínhamos nada além de poeira. O


tempo se passou, mas a febre não.
Até eu
sabia que um corpo não poderia
conter tais demônios por muito
tempo.

Uma noite, Ben Simon não me


procurou. Fui ao lugar em que a

tamargueira crescia. As rochas que


tão cuidadosamente colocara
estavam

embaralhadas, talvez por camelos


selvagens ou chacais preparando um

antro para a noite. De qualquer


modo, o feitiço fora quebrado.
Voltei ao acampamento e encontrei-
o abraçado aos filhos, chorando.
Então soube

que estava enganada. Uma pessoa


realmente era capaz de chorar no

deserto, até mesmo uma marcada


pela mordida de um leão. Naquele

momento entendi quem eu era para


ele. Não vinha em primeiro lugar,
nem

em segundo, ou mesmo em terceiro.

Isso não diminuiu a intensidade do


que eu sentia ou quem ele era para
mim.

Mas eu soube.

Apenas uma coisa eu poderia fazer


para agradá-lo. Quando disse a Ben

Simon que partiria para encontrar


uma cura, ele me abraçou. Sorvi a
sua gratidão como se fosse água.
Queria partir sozinha, mas ele não
permitiu.

Uma mulher no deserto era como um


pássaro em uma armadilha, à mercê

de qualquer um. Ele insistiu para


que meu pai me acompanhasse e,
embora

meu pai pensasse tão pouco de mim,


concordou, talvez somente para fugir

daqueles que estavam mal.

Ben Simon entregou-me sua faca, a


mesma que usara para eliminar

tantas vítimas. Viam-se manchas de


ferrugem ao longo dela, mas a
lâmina

de prata era tão afiada que, mal


rocei a mão em sua borda, brotou
sangue

do meu polegar. Guardei a faca na


túnica, acondicionada dentro de uma
peça de lã, amarrada com um cordão
feito do pelo torcido da minha
cabra.

Ben Simon fez questão que eu


levasse o meu animal de estimação
comigo,

para que o leite nos sustentasse se


não encontrássemos nada. Entregou-
me

o frasco em que carregava água e o


último dos bolos de cevada. Aceitei
todas essas coisas, embora sentisse
um impulso de devolver tudo. Como

um presente assinalando um começo,


assim também tudo aquilo

significava um fim. Acontecia


alguma coisa enquanto nos
despedimos. Ele dava-me tudo o que
tinha e ainda uma cortina
interpusera-se entre nós.

Senti a garganta se fechar, o coração


bater forte no peito. Olhei para o
rosto
do meu amado, mas ele não via mais
o meu íntimo. Eu me tornara

transparente, nada mais significando


para ele do que o ar. Foi como no
dia

em que saímos de Jerusalém, antes


de ele me ver peneirando a lama
para

obter água, antes de saber o meu


nome. Pensei que talvez esse fosse o
modo de um assassino dizer adeus,
ferozmente e com dignidade. Não
fazia
ideia de que ele era capaz de ler o
que já fora escrito.

SAÍMOS QUANDO a manhã ainda


estava escura e viam-se falcões
espiralando no céu.

Meu pai e eu partimos sem saber


quanto tempo demoraríamos para

encontrar uma cura ou se realmente


havia alguma a ser encontrada. Não
podíamos confiar em nada e por
boas razões. Poderíamos tanto ser

assassinados como chegar a algum


lugar habitado. Bandos de ladrões
ocupavam as cavernas por toda a
Judeia. Havia escravos fugidos,
ladrões, rebeldes sem nada a perder.
O deserto era enorme. Cada
penhasco de

calcário se parecia com os que já


tínhamos ultrapassado. Demos
voltas, perdidos, por vários dias,
para evitar os soldados da legião
romana, a cabra

que eu levava balindo para nos


advertir do nosso erro. Houve quem

vagasse por ali eternamente, nunca


mais sendo visto por pessoas
civilizadas. Ouvira histórias
contadas pelas mulheres junto ao
poço em

Jerusalém de uma garota perdida


que vivera com as hienas,

acompanhando-as e comendo
carniça, dormindo entre elas e que,
quando

fora encontrada, tinha os dentes


afiados, tendo deixado de ser
humana.

Quando passamos pelos mesmos


penhascos pela terceira vez, não tive
outra escolha: peguei o lenço que
meu irmão me dera e rasguei-o em
tiras

de seda. Em seguida, amarrei as


tiras azuis como sinalizadores nos

espinheiros, para ajudar a guiar


nosso retorno.

Depois de alguns dias de jornada,


surpreendi-me quando meu pai me

dirigiu a palavra. Não esperava que


o fizesse, até porque não tinha nada
de
bom a dizer. Ele me passou um
sermão, culpando-me por atrair Ben
Simon

como se estivesse convencido de


que eu era o leão que devorara
aquele homem, separando-o da
esposa. Encarei-o em desafio,
imaginando o que

pensaria se eu fosse embora e o


deixasse para se defender por si
mesmo.

Ele continuou dizendo que, se os


meninos de Ben Simon
sobrevivessem,
deveriam a mim a sua vida e seriam
meus filhos tanto quanto de Sia. Seus

olhos brilhavam de raiva.

– Talvez, então, Deus a perdoe.

Não me defendi. Muitas vezes


passava a mão pelos cortes
gravados em

minha pele, que assinalavam o


tempo passado no deserto, tendo
parado no

dia em que Ben Simon me procurara


pela primeira vez. Para falar a
verdade, saíra novamente para o
deserto em busca de uma cura como
um

pretexto para trazê-lo de volta para


mim. Não pensara nos meninos ou
em

Sia até aquele momento. Por isso


Deus não me perdoaria.

Meu pai e eu acampávamos ao


anoitecer. Naquela estação, as noites

eram frias e eu seguia juntando


galhos pelo caminho, para acender
uma fogueira à noite. Quando não
havia outro combustível,
queimávamos o

nosso excremento e o da cabra, e a


fumaça cheirava abominavelmente.

Cercada por aquele fogo terrível,


temia que tivéssemos nos afastado
de Deus. À noite dormíamos
sentados, um de costas para o outro,
envolvidos

pelos nossos mantos, as dobras do


tecido carregadas de sujeira.
Ouvíamos

as criaturas no escuro, cães


selvagens e chacais, uma vez um
urso

encaminhando-se desajeitado para a


sua caverna. Aquela era uma rota

muito pouco percorrida, pois não


víamos nem sinal de água.
Ouvíramos

falar sobre o destino de Sodoma, um


lugar que fora destruído por um

incêndio ocasionado por um raio. As


pessoas comentavam sobre a

existência de árvores carregadas de


belos frutos, mas, uma vez
arrancados,

os frutos transformavam-se em
fumaça e cinzas em suas mãos. Nas
horas

da luz do dia, cada respiração


queimava. Não ousávamos nos
aproximar de

nenhum oásis, temendo ser


encontrados pelos romanos. A cabra
não

recebera água por tantos dias que já


não podia dar leite. Ela se encolheu
ao

meu lado. Seus cascos estavam


cheios de pedras, que fiz o possível
para arrancar. Ainda assim, quando
insisti em prosseguirmos, pensei ter
ouvido

seu choro.

Tínhamos chegado tão longe que


apenas uma única tira do meu lenço

restava. À nossa retaguarda, um


mapa de pontos azuis indicava o
caminho
pelo deserto de volta a Ben Simon.
Nossa jornada parecia impossível,
pois

não víamos nada além de penhascos


brancos à nossa frente. Meu pai fez
uma careta, reclamando que devia
ter previsto isso, pois eu só trazia
má sorte. Mas então chegamos ao
topo de um penhasco e à distância
tivemos

uma visão que fez nossos corações


se elevarem. Era o Mar de Sal, um
horizonte de azul vívido. A água era
de cores variáveis: um instante era
azul, depois verde, e por fim de uma
tonalidade de ardósia. As nuvens se
aproximaram e a superfície ficou
preta, por isso os romanos o
chamavam

Asphaltitis, pois apresentava trechos


negros semelhantes ao asfalto. Mas
para nós parecia o céu, tão azul que
tivemos de piscar várias vezes para
conter as lágrimas.

O mar parecia estar tão próximo que


imaginei que poderia estender a

mão e tocá-lo, mas meu pai disse


que era uma caminhada de mais
alguns dias. Advertiu-me que a
distância era uma ilusão que
enganava muitos

homens, até mesmo grandes sábios,


levando-os a caminhar para a morte.

Tão certos estavam de que se


encontravam a poucos momentos do
mar que

partiam debaixo do sol brutal em um


curso que os levaria diretamente a
Mal’ach ha-Mavet, o Anjo da
Morte, que se dizia ter mil olhos,
nunca perdendo de vista uma única
de suas vítimas.
Os dias se passaram rapidamente
sob o sol ardente enquanto
seguíamos

pelo antigo caminho em direção ao


mar. Passamos pelas ruínas de um

povoado de onde era possível ver a


lua dobrada ao se refletir no Mar de
Sal.

A povoação fora destruída pelos


romanos. Pretendia ser um paraíso

construído pelo Yahad, um grupo de


crentes da seita dos essênios, os
judeus que praticavam códigos
rígidos com horários fixos de
oração. Dizia-

se que o nosso povo fora dividido


em quatro partes, cada uma com sua
filosofia, e depois dividido mais
quatro vezes para compor o cenário.

Verdadeiramente justos, os essênios


realmente tinham se isolado de todos

os outros.

O nome que davam ao seu oásis era


Sechacha, que se poderia traduzir
por “cobertura”, pois suas casas
eram cobertas com as folhas largas
das tamareiras. Eles foram para o
deserto como verdadeiros crentes,

abandonando a vida confortável em


Jerusalém. Haviam previsto a queda
do

Templo e fugido para lá, no intuito


de esperar o Fim dos Dias, e passar
suas

últimas horas entregues a cânticos,


seus escribas trabalhando em rolos
de
pergaminho para assegurar que sua
verdade não se perdesse quando o

mundo acabasse. Os essênios


proibiam ídolos, como fazíamos,
mas eram

muito mais rigorosos em suas


práticas e nem sequer tocavam em
uma

moeda que tivesse uma efígie.


Acreditavam que nenhum homem
deveria

ser o rei. No entanto, não tomariam


armas nem lutariam contra seus
opressores. Estávamos todos nas
mãos de Adonai, insistiam, portanto
flechas e lanças não faziam sentido.
Segundo sua crença, existiam os
filhos

das trevas e os filhos de luz, e a


verdadeira batalha a ser travada na
terra

era permanecer na luz e louvar


aquele que tudo sabe, Elohim.

Avistamos as ruínas do que fora o


seu aqueduto e a represa sob uma

cachoeira, onde bebemos


longamente, apesar de a lagoa estar
entulhada

com os destroços do assentamento


que os romanos haviam destruído:

lâmpadas de azeite e vasos de vidro


quebrados, tinteiros de cerâmica,

pilhas de ostraca – cacos de


cerâmica quebrada utilizados para
escrever.

Viam-se ainda altos carvalhos e pés


de louro que ofereciam relativa

sombra, mas tudo o que havia sido


feito por mãos humanas fora
esmagado.

Vigas caídas de madeira talhada de


palmeiras e as folhas utilizadas para
os

telhados achavam-se amontoadas em


pilhas. Caminhei através do

scriptorium, uma biblioteca cujas


prateleiras e colunas se espalhavam
pelo chão. Pedaços rasgados de
pergaminhos de pele de cabra ou de
papiro

jaziam no chão, apodrecendo e se


esfarelando. Segui pelo calçamento
de pedras para ver as casas de
banhos rituais circundadas por
largos degraus

de gesso. No momento viam-se


cobras nesses lugares, fazendo
ninhos junto

às piscinas de água fétida.

Finalmente cheguei às pilhas de


ossos, restos dos fiéis. Embora fosse

indigna, rasguei as minhas roupas


esfarrapadas no ato de keriah, como
um sinal de respeito e luto, e
murmurei uma oração pelos mortos.
Que o Seu grande nome seja
louvado. Bendito seja, para todo o
sempre.

Encontrei o caminho de volta para a


fogueira que meu pai tinha

acendido. Passamos a noite nesse


oásis, sabendo que os romanos
evitariam

esse lugar e os fantasmas daqueles


que tinham assassinado, mas os
chacais

famintos seriam atraídos pelo medo


no nosso cheiro. Certamente
estiveram

ali antes, pois os ossos dos mortos


estavam espalhados tão amplamente

que não seria possível recuperá-los


para armazená-los em um recipiente
de

pedra, como lhes era devido.


Entreolhamo-nos, meu pai e eu, e
talvez nos

tenhamos visto por um prisma


diferente, com as estrelas
penduradas em
cima e os ossos brilhando à nossa
frente. Meu pai não me repreendeu

naquela noite. Em vez disso, disse-


me que deveria ser a primeira a
dormir,

tendo decidido que ficaria de guarda


para observar se algum animal se
aproximasse. Era o primeiro gesto
de bondade que jamais fizera em
meu benefício.

PROSSEGUIMOS CEDO no dia


seguinte. Talvez um anjo tenha nos
conduzido em nossa jornada.
Encontramos o nosso caminho para
o sul, na direção das nascentes. Era
ali que os essênios de Sechacha iam
buscar água para a sua

povoação. Tomamos um caminho


cercado por arbustos. A cabra,
agora

faminta, mastigava as folhas que


eram espinhosas e marrons. No
entanto,

quando avançamos mais,


encontramos brotos verdes entre as
rochas. A

brisa refrescou, carregando a


fragrância do bálsamo e o cheiro
suave, quase

imperceptível, da água. De imediato


reconheci o zumbido das abelhas.
Fazia

tanto tempo que não ouvia a sua


canção adocicada que quase
desfaleci.

Tínhamos chegado a um oásis em


que uma fonte brotava do chão e

cresciam tamareiras muito altas. O


ar era um bálsamo refrescante, tão
doce
que parecia que havíamos entrado
em uma nuvem de perfume, com
grande

intensidade de aromas de mirra e


coentro. Encontráramos as pessoas
do

grupo Yahad que haviam


sobrevivido, estabelecendo-se ali
para esperar o

Fim dos Dias.

Na clareira suas videiras e seus


jardins luziam brilhantes contra o
céu branco de tão quente. A beleza
do mundo explodia em cada planta
que

crescia. Via-se um campo de trigo e


linho, amarelo e dourado, refletindo
o

sol como se estivesse em chamas.


Ouvimos sinos, que pendiam das
árvores

em cordas pretas retorcidas, soando


ao serem movidos pela brisa. Vimos
dezenas de amoreiras e oliveiras
circundando um poço de pedra ao
lado de
um bosque de pistache que tornava a
neblina verdejante. Umas quarenta

cabras ocupavam um cercado


erguido na sombra, enquanto outras

quarenta cochilavam ao sol.

Muitos entre os essênios tinham sido


sacerdotes, alguns viviam sem

mulheres nos penhascos de calcário,


as suas cavernas repletas de

mezuzoth, recipientes de
pergaminho contendo orações a
Deus. Esses homens eram puros
demais para ter contato com os
afazeres da vida

mundana, mas também havia homens


que chegaram com esposa e filhos,
as

mulheres vestidas com linho branco,


a cabeça coberta em todos os

momentos. Moravam em grandes


tendas com a família, alguns fugidos
de

Sechacha, outros tendo chegado


recentemente de Jerusalém após a
destruição do Templo.

As pessoas nos observaram


enquanto avançávamos pela
povoação. As

casas eram comunais e feitas de


pedra, além das casas de banhos
rituais e

das bibliotecas em que estudiosos


trabalhavam para completar os

documentos, dividindo-se em grupos


de três, para trabalhar nos

pergaminhos escritos em peles de


animais ou sobre papiro ao longo do
dia

e da noite. Talvez meu pai e eu


parecêssemos demônios, feitos de
areia, em

vez de gente de carne e osso. Nossos


olhos se projetavam nos nossos
rostos

sujos. Meu cabelo era como um


trança de sangue torcida sobre as
minhas

costas, àquela altura chegando à


minha cintura. Algumas mulheres
pestanejaram quando me viram, mas
nenhuma delas escarneceu de nós.
As

pessoas da seita Yahad praticavam a


bondade durante o que acreditavam

ser os nossos últimos dias neste


mundo. O que pertencia a um homem

também pertencia ao seu vizinho.

As mulheres aproximaram-se para


nos cumprimentar. O tecido que

produziam em seus teares era tão


leve que suas vestes voavam em
torno delas. Eu ansiava por lençóis
de linho para enrolar meu corpo
para que ninguém me visse. Quem
sabe, então, fosse capaz de suportar
a intensidade

da luz ofuscante de Deus quando Ele


não pudesse me perdoar por tudo o

que fizera.

Embora aquelas pessoas santas


houvessem perdido muitos dos seus
nas

mãos dos romanos, pois revelaram


que a povoação de Sechacha fora
conquistada e arrasada antes mesmo
da destruição do Templo, os
essênios

não se interessavam em portar


adagas, que consideraram uma
afronta à

grandeza de Deus. No mesmo


instante, meu pai tomou a decisão de
não

lhes contar que era um dos sicários.


Aquelas pessoas consideravam os

sicários partidários das trevas,


serpentes que desafiavam Adonai.
Ele apenas anunciou que estávamos
entre os que foram expulsos de
Jerusalém,

um pobre pai e sua filha, que então


se tornaram pessoas errantes.
Quando

mencionamos que a mãe e os filhos


que nos acompanhavam haviam sido

acometidos de febre, as mulheres


essênias se compadeceram e

imediatamente decidiram nos ajudar.


Uma delas, que se identificou como
Tamar bat Aaron, conduziu o meu
pai a um homem culto, um sacerdote

cujos seguidores o chamavam de


Abba – pai –, um mestre de virtude
cujos

conselhos as pessoas seguiam mais


por satisfação que por dever.

Abba era tão velho que precisava


ser levado a todos os lugares em sua

cadeira, carregado por quatro


homens fortes; tão puro que Tamar
nos
segredou que devíamos nos
acomodar a uma distância de
sessenta

comprimentos de braço dele, a


distância mantida por todas as
mulheres, a

cabeça coberta, os olhos baixos


ainda que atentos, pois, embora as

mulheres não fossem incluídas nos


aprendizados rígidos dos essênios,
elas

se regozijavam em ouvir o grande


homem falar. Outro sacerdote da
magnitude de Abba teria nos dado as
costas, ocupado demais nas suas

orações para ser incomodado com


os nossos apelos. Ou, então, um
homem

assim poderoso talvez concordasse


em nos ouvir se levássemos alguma

prata em troca do seu favor. Mas


Abba estava convencido de que
todos os

homens eram seus irmãos. Era um


seguidor de um mestre da Galileia
que
ensinava que a paz era a única
esperança para a humanidade. Sem
ela, éramos como os chacais no
deserto, nada mais.

Ao meu lado, Tamar sussurrou-me


que Abba tivera dez esposas e que

sobrevivera a todas elas; agora


passava os dias dando glória a Deus
e ministrando os ensinamentos da
paz. Os homens ali oravam três
vezes ao

dia: pela manhã, pondo-se de frente


para a direção de Jerusalém,
novamente ao pôr do sol, e por fim
depois do anoitecer. Levavam o que
era

mais sagrado dentro de si mesmos,


pois cada homem era um templo e
cada

oração proferida podia ser ouvida


pelo nosso Pai acima de nós.

Quando informado da nossa


situação, Abba presenteou meu pai
com um

amuleto contra a febre, uma oração


guardada dentro de um tubo de metal
que era para ser preso aos braços
dos aflitos. Ele ofereceu um pedaço
de corda abençoada para amarrar
nas túnicas das crianças e ligá-las à
boa saúde, bem como um bulbo
precioso de alho roxo para afastar
os demônios.

Deveríamos recitar o nome de


Adonai cem vezes acima de um copo
de água

com alho que fora fervida três vezes


em cima de fogo bem quente, em
seguida instruir aqueles que tinham
adoecido a bebê-la enquanto oravam
pela graça de Deus.

DERAM-NOS tâmaras prensadas e


bolos de cevada, além de permissão
para passar a noite. Caía uma chuva
leve e a terra rapidamente ficou
inundada

com poças. Meu pai foi levado a


uma casa comum para ficar entre os

homens. Amarrei a minha cabra em


uma tamargueira e acompanhei as

jovens solteiras, que me olhavam


com expressão intrigada. Devia
estar
parecendo um animal selvagem a
seus olhos. Quando descobri meu
cabelo

diante delas, ficaram chocadas com


os nós e começaram a desfazê-los
com

pentes de madeira. Levaram-me para


tomar banho na sua piscina ritual e a

água ficou preta em volta de mim.


Mesmo que eu visse isso como um
mau

presságio, as jovens essênias riram


e disseram que a água benta levara
todos os meus pecados. As pessoas
do seu povo acreditavam que a
imersão

em água as aproximava de Deus e


assim banhavam-se várias vezes ao
dia.

Havia duas escadas na piscina, um


lance de degraus de calcário para
entrar,

outro para que os que haviam se


purificado pudessem sair da água
sem tocar nos que ainda estavam
imundos. Na verdade, quando saí da
água, pela
primeira vez desde que deixara
Jerusalém senti-me verdadeiramente

purificada. Meu cabelo estava tão


vermelho que as abelhas se

aproximaram, circulando ao meu


redor. As mulheres essênias riram,

sugerindo que meu cabelo devia


parecer a elas um canteiro de rosas.

Precisei correr de um enxame e


gritar que era uma mulher, não uma
flor.

Recebi uma túnica de Tamar. Era


uma peça de roupa branca simples,

com uma corda de pelo de cabra


para amarrar na cintura. Eu disse
que era

um presente demasiado grande, mas


Tamar insistiu.

– As posses não são nada, pois


serão inúteis no Mundo Vindouro –
ela me disse. – Não se leva nada
disso para a casa do Senhor.

O passado parecia um sonho


distante. Estávamos longe da
carnificina
que conhecera em Jerusalém, a uma
caminhada de vários dias das
cavernas

em que encontráramos abrigo. Mas o


que fizera e o que aprendera eram
mais que um sonho. Semicerrando os
olhos, podia ver, além dos pomares,

os penhascos de calcário
esburacado e o caminho que marcara
com

pedaços de seda azul do meu lenço.


Podia sentir a pulsação na base da
garganta, uma onda de pânico por ter
deixado Jachim ben Simon para trás.
Temia que o que nos unira pudesse
desaparecer se não estivesse à sua
vista. Talvez ele viesse a acreditar
que eu também era somente um
sonho

do qual já havia despertado.

Gostaria de saber o que nossos


anfitriões pensariam se soubessem a

verdade sobre nós. Meu pai


continuava a dar tempo ao tempo e a
guardar

nossos segredos. Ele acreditava que


aquelas pessoas piedosas eram
tolas, convencido de que aqueles
que ficam esperando pelo Fim dos
Dias o

estavam criando para si. Mas


obviamente era inevitável que
pensasse

assim. Todo homem envolvido na


guerra diz a si mesmo que é capaz
de alterar o que estava escrito, que é
ele, e não Deus, o criador do
destino, livre para mudar o que está
destinado a ser.

NA MANHÃ da nossa partida, Tamar


levou-me à sua casa e me deu um
pedaço

de queijo haris halab branco e


salgado, que duraria vários dias e
nos manteria bem alimentados,
juntamente com algumas batatas-
doces
prensadas. Ela era mãe de quatro
filhos pequenos que, não
acostumados a

ver estranhos, fitaram-me


boquiabertos quando apareci, até
que a mãe os

enxotou. Quando ficamos sozinhas,


ela me advertiu de que deveríamos
ter

cuidado em nossa jornada.


Recentemente ocorrera um ataque a
outro

assentamento, chamado Ein Gedi,


um oásis em que quatro vertentes se

reuniam para produzir grandes


cachoeiras, uma das quais formava
uma

piscina onde se dizia que o rei Davi


se escondera dos seus inimigos. Era
ali

que brotava a Moringa Peregrina,


uma flor com poderes mágicos que
ajudaram Davi a compor suas
músicas com tanta pureza. Acácias
floridas cresciam ao lado das águas,
e pés de jujuba, cuja fruta alaranjada
atraía aves da Grécia e do Egito, e
havia bosques de bálsamo, cuja
goma pegajosa

produzia o incenso que era mais


valorizado que o ouro. Ein Gedi era
um lugar de abundância em uma
época de fome. Por causa disso, era
invocado

como um cordeiro entre aqueles que


estavam famintos. Os atacantes

tinham chegado durante a noite.


Setecentas pessoas foram mortas ou

mantidas em cativeiro pelos sicários


que invadiram os armazéns do
assentamento. Os essênios sabiam
que aqueles eram os culpados
porque

fora usada a faca curva, a arma que


atinge o alvo e depois extrai a alma
da

sua vítima. Os ladrões roubaram


tudo, grãos, vinho e água, juntamente
com

as vidas dos inocentes.

Meu coração afundou à menção dos


sicários.
– Os assassinos não os encontrarão
se tomarem cuidado – disse-me

Tamar. – Se alguém se aproximar no


deserto, escondam-se o melhor que

puderem. Talvez agora entenda por


que estamos certos de que o fim está

próximo. Com tamanhas traições na


terra, os anjos certamente virão
guiar-

nos para o Mundo Vindouro.

Inclinei a cabeça concordando,


muito embora soubesse que meu pai
acreditava que os punhais e não os
anjos eram a resposta para traição.
Não

deixei escapar que meu irmão


poderia estar entre aqueles que
tinham

invadido Ein Gedi. Tínhamos pressa


de partir e, enquanto nos

preparávamos, um dos homens


chegou para entregar uma última

mensagem de Abba. Os olhos do


meu pai estavam velados, seu
coração,
fechado, mas ele ouviu, pois era um
hóspede na povoação e devia, pelo
menos, fingir ter boas maneiras.
Ouvi também o que fora dito e

rapidamente baixei os olhos.


Quando o mensageiro acabou de
falar, meu

pai acenou um adeus, mas nunca


demonstrou sua gratidão. Esse era o

caráter do meu pai, silencioso e sem


coração; exatamente o que eu

esperava dele. Ele fez sinal para


mim com a mão e como seu cão eu o
acompanhei, seguindo a certa
distância, os olhos baixos.

Quando partimos, várias das


mulheres nos acompanharam,
acenando,

desejando-me sorte, dizendo como


estava bonita com minhas roupas

novas. Não sabiam nada de mim,


somente o pouco que revelara, o que
em

parte senti como mentira. Meu pai e


eu éramos estranhos um para o outro
também. Sabíamos tão pouco um do
outro como os essênios sabiam de
nós.

Caminhamos muitos dias juntos e,


embora meu pai tivesse deixado de
me

humilhar e repreender, não tínhamos


nada a dizer um ao outro. Não sabia

nada da vida do meu pai antes de ele


adotar a adaga, embora tivesse
ouvido

rumores de que tivera um irmão que


fora vendido como escravo. Se um
homem vê seu irmão amarrado com
cordas e arrastado sobre o
calçamento

da rua, será que já viu tudo? Se dez


homens são mantidos em uma sala
com

um leão e apenas um sobrevive, o


que isso faz desse homem? Se uma

mulher com cabelo vermelho se


mantiver em silêncio, será capaz de
falar a

verdade de novo?
Enquanto viajávamos, olhávamos
para trás, a fim de ver as cores em

constante mudança do Mar de Sal.


Conseguíamos identificar as velas
das barcaças de fundo chato que
navegavam pelo mar para o país de
Moabe, governado por pessoas
ferozes chamadas nabateus. Nessa
terra fértil dizia-se que Moisés fora
enterrado, mas ninguém nunca
descobrira onde ficava

esse lugar sagrado, apesar de muitos


terem procurado por ele. Talvez
assim
fosse melhor, pois Moisés guardava
a chave de segredos imensos para os
homens absorverem, uma dádiva e
um fardo pesados demais para o
nosso

povo suportar.

Um dia, depois de termos subido as


mais altas falésias, o mar

desapareceu de vista, afundando-se


na terra, como se tivesse sido
tragado.

Ondas de calor escaldante subiram


acima do local onde ficara, pois
suas águas eram ainda mais quentes
que o ar. Logo até mesmo isso
desapareceu.

Continuamos caminhando
penosamente. Não pensei no fato de
que era

uma jovem mulher no deserto,


sozinha e em chamas. Recusei-me a
deixar

que meus pensamentos levassem


vantagem sobre a preocupação com
feras

ou salteadores. Acima de tudo, não


me permitia imaginar o que poderia
ter

acontecido no nosso acampamento


durante a nossa ausência, como uma

febre pode queimar como uma


chama até que não haja mais nada
além de

cinzas, como ela se espalha à


maneira do fogo, saltando de uma
vítima para

a seguinte.

Tínhamos a bênção de Abba e o seu


remédio. Precisávamos apenas

encontrar o caminho. Apressei o


meu pai, coletando os restos de azul
à medida que seguíamos o mapa que
formavam, eu mesma ainda grata ao

meu irmão pelo presente. O tecido


estava esfarrapado. Alguns dos

quadrados tinham sido levados por


hienas ou pelo vento, por isso só o
que

restou foram alguns fios produzidos


pelas larvas que haviam se
transformado em borboletas. Um
dia, caiu uma chuva pesada. Meu pai
quis

esperar a chuva passar, refugiando-


se em uma caverna de calcário, mas

insisti que continuássemos a


caminhar, apesar de nossas peles
brilharem com a água e nossas
roupas estarem encharcadas. Meu
pai teve pouca

escolha. Estaria perdido sem mim,


pois somente eu sabia a direção que
deveríamos seguir. Enquanto
caminhávamos, meu pai praguejou e
reclamou, mas a chuva foi parando,
um pouco de cada vez, e assim

andamos sob suas gotas e depois


através do novo ar refrescado.

O local do acampamento estava


deserto quando chegamos. A
fogueira

ainda estava lá, assim como a cesta


usada para coletar hortelã e
verduras.

Estavam as tigelas das nossas


refeições e o machado que cortara
os
espinhos do nosso caminho. Uma
fina camada de areia cobria tudo e
pensei

nas duas meninas-noivas que Ben


Simon me levara para ver, como ele
tinha

chorado e como eu me encantara


com ele. Roubáramos um tempo para

passar juntos, um tempo que


parecera interminável no escuro.
Senti uma pontada na garganta. Não
sabia que era o início da minha dor
até que meu
pai me silenciou. Estivera chorando,
à maneira do leopardo, subitamente
e

sem levar em conta nenhuma outra


criatura viva.

Fomos encontrá-los na caverna


úmida, em busca de conforto e
abrigo

em suas horas finais. Estavam todos


juntos, como deveriam estar. Todos
exibiam as marcas vermelhas das
pústulas da doença sobre a pele,

definhados a um ponto que exibiam


os ossos através da pele. Ben Simon
acomodara a esposa e os filhos
sobre uma saliência de pedra antes
de se deitar ao seu lado. As veias
em seus braços ainda estavam azuis,
mas já se

apagavam, e sua pele tornara-se fria.


Caí de joelhos e me agarrei a ele,
desesperada para transmitir algum
calor. Pus minha boca sobre a dele,
mas

não havia respiração, não havia


vida. Podia sentir o gosto do Mundo

Vindouro.
Não me afastei quando meu pai
gritou comigo, nem quando levantou
a

mão para mim. No fim, meu pai teve


de enterrá-los. Era o papel de uma
mulher preparar os corpos para o
Anjo da Morte e entoar as
lamentações,

depois colocar-se de lado até que o


espectro da morte não mais a

acompanhasse, mas eu me recusei.


As chicotadas subiram pelas minhas

costas e meus ombros quando meu


pai me bateu, mas eu não seria seu
cão

nesse dia. Meu pai gritou que eu era


covarde, sem coragem de cuidar das
necessidades dos mortos, mas ele
estava errado. Eu não estava com
medo

dos mortos mais do que de ser


impura. Só temia que, se segurasse
Ben Simon por muito tempo, não
fosse capaz de deixá-lo ir.

Meu pai levou os corpos para o


mais alto penhasco e depositou
rochas
em cima deles para que os falcões,
abutres e chacais não se
aproximassem.

Proferiu as lamentações, tendo


dobrado o xale de oração de Ben
Simon em

torno dos próprios ombros para


homenageá-lo. Durante sete dias
após esse

ritual, meu pai teve de se sentar ao


sol para se purificar, porque chegara
perto demais da morte e era
considerado tamé, impuro. Entoou
as lamentações que uma mulher
deveria entoar, porque eu não
permitiria

essas palavras em minha boca. Não


reconheceria a morte de Ben Simon,

nem suportaria vê-lo caminhar para


o Mundo Vindouro. Quando fechava
os

olhos, podia imaginar a graça


natural do seu corpo forte, os planos

angulosos do seu rosto, seu olhar


profundo e crítico que me
atravessava.
Não queria deixá-lo ir, mas podia
ouvir os lamentos e as orações do
meu pai, mesmo cobrindo os
ouvidos com as mãos. Seu canto
soava como o

vento, e como o vento me envolveu,


até que não ouvi nada a não ser uma

única canção.

Gostaria de saber se, em sua doença,


Ben Simon fora como o leão que
enfrentara nove guerreiros, deixando
a cabeça pender e morrendo perante

o décimo. Imaginei se resistira até o


dia em que chovera, quando
estávamos

tão perto, a poucos momentos de


distância, e se essa chuva fora feita
de suas lágrimas, pois ele não tinha
vergonha de chorar.

Lembrei-me das palavras que


entreouvira antes de partirmos de
junto

dos essênios, quando Abba enviara


seu mensageiro ao meu pai. Mesmo

entre os justos, cabe apenas a


Adonai punir. Talvez o santo homem
soubesse quem éramos o tempo
todo. Agora a punição dos
assassinos caíra sobre

nós. Se um dos sicários, aonde quer


que fosse, carregasse nas costas
todos

os homens que assassinara, os


mortos não quereriam, finalmente,
obter sua

vingança? Talvez os seus espíritos


tivessem seguido Ben Simon e,
quando

estava enfraquecido pela dor,


quando caíra, os olhos brilhantes de
lágrimas

diante dos corpos inertes dos filhos,


atravessaram sua pele febril e o
surpreenderam.

Enterrei o remédio dos essênios,


pois era inútil agora, considerando
que

disseram que as coisas desse mundo


permaneciam aqui para sempre.

Enquanto cavava a terra dura e


branca, perguntava-me se seria a
única pessoa a ser punida, se estaria
destinada a sofrer como fizera sofrer
o meu

amigo, quando roubara o que lhe


pertencia.

Durante os sete dias em que meu pai


se manteve afastado, para se

purificar da proximidade com os


mortos, não comi nem bebi. Amarrei
a

cabra a um arbusto baixo e não lhe


dei ouvidos quando me chamava. No
amanhecer de cada dia, cortava uma
marca da minha tristeza na perna,
cada uma mais profunda que a
anterior, já que agora usava a faca
afiada de

Ben Simon. Cada ferida era como


um beijo para mim, uma cicatriz
escura de

paixão. O cheiro de sangue emanava


da minha pele, como uma película
que

me cobria. Um leopardo veio uma


noite e se sentou no outro lado da

fogueira, onde permaneceu me


observando. Não me levantei para
afugentá-

lo. Venha me devorar. Veja se me


importo. Meus olhos se encontraram
com os dele e vi o brilho amarelo da
violência em seu olhar. Mas, no fim,
ele deve ter considerado que não
valia a pena, pois se afastou
furtivamente.

Quando meu pai retornou dos seus


dias de purificação, ficou chocado
ao

ver a minha condição. Mal


conseguia me levantar do chão, tão
pálida
quanto o pó em que um dia me
tornaria. Não tinha nada a fazer na
vida a

não ser esperar a minha vez para o


Mundo Vindouro. O que era aquela
terra para mim agora? Uma cela de
prisão, um chicote de corda. Meu
pai sempre me dissera que eu não
era nada, e fora isso em que eu me
tornara.

Mais tarde ele admitiu que, quando


me viu assim, pensou na minha mãe
na

hora do meu nascimento, já ausente


deste mundo. No dia em que me

encontrou definhando, ele pensou no


que ela teria feito se tivesse

permanecido com sua única filha.


Teria desejado me salvar. Foi por
isso que me convenceu finalmente a
beber um gole de água.

No oitavo dia após Jachim ben


Simon ter sido enterrado debaixo de

pedras, quebrei meu jejum e bebi do


cantil de couro de cabra que lhe
pertencera. Fiz isso não por mim,
mas pelo meu amado, pois ele ainda
não

se fora de mim. Embora o Anjo da


Morte o tivesse arrebatado, uma
centelha

do seu espírito permanecera.

Nesse momento eu soube que não


sangraria novamente.

POUCO TEMPO DEPOIS, meu pai


teve uma visão inspiradora.
Acordou com lágrimas escorrendo
pelo rosto e a fé renovada. Sonhara
que meu irmão nos esperava no alto
de uma torre. O sonho fora tão real
que ele podia ouvir meu irmão lhe
falar. Olhe, vou ao seu encontro,
Amram dissera. Meu pai jurou que,
quando as nuvens se elevassem,
veria seu filho.

Acreditando nisso, o assassino


carregou uma vara para poder subir
mais

alto nos rochedos, onde acreditava


que seria possível testemunhar na
terra

o que vira no sonho. Não discuti


com ele, mas não acreditei. Meu pai
podia
ter fé, mas eu não tinha nenhuma. Via
em que havíamos nos tornado: um
homem muito velho e frágil para ser
um assassino confiável, a filha

arruinada, incapaz de chorar ou


sangrar. Achei que talvez alguém
tivesse posto uma maldição de ódio
em mim, quem sabe Sia antes de
morrer, e talvez fosse tudo o que
merecesse neste mundo.

As chuvas vieram então com muita


força. O ar tornou-se azul e úmido

com as chuvas pesadas. Permaneci


com o meu pai durante dias na
caverna

para escapar das inundações no


nachal, a cabra nos fazendo
companhia.

Aquela caverna fétida fora o último


lugar em que Ben Simon estivera
neste

mundo; respirara o cheiro úmido e


gredoso do calcário e soprara a sua
alma dentro daqueles limites
cobertos de teias de aranha. Pensei
que me sentiria mais perto dele ali,
mas era o espírito de Sia que
pairava por perto.
Sentia-a me beliscar tentando
chamar a minha atenção. Ela me
perseguia nos sonhos. Pensou que
poderia ser de outro modo? Achou
que conseguiria o que queria?
Quando acordava, ofegante por ar,
às vezes acreditava ouvir a explosão
do seu riso, como se tivéssemos
travado uma batalha, ela se saíra

vitoriosa e agora se regozijava com


os resultados.

Os meses de inverno abateram-se


sobre nós. Tive vontade de fugir,
mas
as chuvas que caíam em lençóis
criavam um mundo impossível de
deixar.

De repente, o deserto era um mar.


Onde antes só se ouvia o chacoalhar
do

vento, agora tudo o que escutávamos


era a água correndo no nachal. O
que antes ansiávamos agora
tínhamos em abundância.
Formavam-se lagoas em

toda parte e, ao fim de cada ravina,


as águas corriam com tamanha
rapidez
que cabras ou veados que dessem
um passo em falso seriam facilmente

carregados. Os insetos voadores


levantavam-se em enxames,
nascidos da

água em nuvens afuniladas. Os


cabritos-monteses chegaram para
beber e

se refrescaram. A minha cabra


puxava a sua corda; ela sempre me
seguira

nos calcanhares, mas agora parecia


enlouquecida pelo cheiro de chuva.
Ela

escoiceou e correu em círculos, seu


leite era fresco e com sabor de
grama.

Chorei de pensar que a vida


continuava, mesmo quando muito se
perdera,

que a chuva continuava a cair e a


murta crescia entre as rochas.

Encontrei uma lagoa clara que se


formara em um valo. Dei-me conta
de
que não me purificara desde que
participara do banho ritual das
mulheres

essênias. Despi-me das roupas e


notei o quanto estava machucada e
magra.

Mal reconhecia a minha pele. E


ainda assim a minha barriga parecia

avolumar-se, inchada, fazendo-me


parecer com uma mulher que
ingerira

água em excesso. Vi quão


profundamente cortara a perna, com
marcas que

nunca se cicatrizariam
completamente. Tive de me conter
para não me

cortar em pedaços, pois a faca em


mim me fazia sentir como se
estivesse sendo levada por Ben
Simon, e ansiava por aquela
conexão de sangue com

ele.

A escuridão caiu enquanto me


banhava na lagoa. As estrelas logo
surgiriam no céu. Quando ouvi o
som de soluços, implorei ao
fantasma da

esposa do meu amado para me


deixar em paz, certa de que estava
ao meu

lado, dilacerada por toda a sua


tristeza. Sia era mais sensível,
sempre pronta a chorar.

Estava certa de que eram as


lágrimas dela que chorava, não as
minhas.

NO FIM de Shevat as flores


silvestres desabrocharam em cores
vivas, os salgueiros encheram-se de
fios de folhas verdes e tenras. Meu
pai e eu nos

resignamos. Não reclamávamos das


nossas circunstâncias, nem

discutíamos o passado. Mas todo


fim de tarde eu subia ao penhasco
em que

se encontravam os ossos.
Ajoelhava-me enquanto a luz ia se
extinguindo e

o dia terminava. Rezava por algo


que nunca poderia ser concedido;
outra vida, que já vivera e perdera.

Permaneci por lá um dia até mais


tarde, observando a luz se
desvanecer

em faixas rosadas e acinzentadas,


quando avistei dois homens se

aproximando, vindo do deserto.


Eram jovens guerreiros. Chamei o
meu pai,

que subiu para meu lado usando um


ramo da tamargueira que ele alisara
para fazer um cajado em que se
apoiar ao caminhar. Juntos ficamos
lá no alto observando os estranhos
se aproximarem, a poeira levantada
subindo

atrás deles em nuvens.

– Esse é o meu sonho – meu pai


disse, com expressão alegre. –
Aquelas

são as nuvens que revelarão para


onde devemos ir. Esses homens nos

levarão à torre onde Amram está


escondido.
Estivéramos sozinhos no deserto por
um longo tempo, tendo apenas os

ossos sob as pedras por companhia.


Mas os ossos falavam comigo. Eles
me

diziam que as minhas orações não


seriam atendidas. Nunca seria
perdoada.

Teria de pagar pelos meus pecados.


Quis fugir da voz que soava como a
de

Sia. Se fosse a outro lugar, quem


sabe ela se calasse. Queria acreditar
no sonho do meu pai. Era mais
cautelosa que ele, mas também
podia sentir o

meu irmão perto de nós.

– Não podemos confiar – eu disse, e


pela primeira vez meu pai não

discordou. Os sonhos se manifestam


aos homens por muitas razões, tanto

como oráculos quanto como avisos.

Observei enquanto os homens se


aproximavam, curiosa, envolvida no
meu xale. Meu pai se preparou para
o caso de serem inimigos se fingindo

nossos salvadores, pronto para lutar


caso se voltassem contra nós e
provar

que seu sonho fora uma falsa


profecia. Pegou a adaga, depois
murmurou uma prece a Deus,
implorando que ficasse do seu lado.

Os homens pararam no desfiladeiro


abaixo. Chamaram meu pai e

juraram ser guerreiros zelotes. Meu


pai respondeu ao chamado. Ainda
segurava a adaga escondida sob a
capa. Embora estivesse
enfraquecido e não fosse mais
jovem, ainda era capaz de
arremessar uma faca de uma

grande distância e derrubar um


homem. Já o vira fazer isso quando
um soldado o encurralara em um
beco próximo da nossa casa. Depois
se

afastara sem olhar para trás, como


se não tivesse tirado uma vida.

Os jovens guerreiros gritaram que


Hol os enviara. Conheciam a Fênix,
o

guerreiro que se levantava todas as


vezes que outro teria caído. À
menção

do nome do animal conhecido


apenas pelos amigos mais próximos
do meu

irmão, meu pai soltou a arma. Seus


olhos encheram-se de lágrimas e seu
rosto desgastado, mais envelhecido
desde que deixáramos Jerusalém,

abriu-se em um sorriso.
– Levem-me até ele – ordenou.

Percebi que meu pai não dissera


para nos levarem a ele. Eu não era
nada, como sempre. Somente quando
ele precisava de mim para guiá-lo,

alimentá-lo, para ser o seu único


alento no deserto, é que se lembrava
de que também era sua filha.

Os homens que vieram à nossa


procura não eram mais velhos que
meu

irmão, jovens em idade, mas já


endurecidos pelo que tinham visto e
feito.

Reconheci um deles, Jonathan, de


Jerusalém. Fora um religioso,
estudante de orações. As pessoas
achavam que se tornaria um rabino
ou um

estudioso, então ele se juntara ao


meu irmão e adotara a adaga. O
outro se

chamava Uri, que significava luz.


Era um jovem desajeitado e afetuoso
cujo

bom humor dominava todas as suas


conversas. Eu me esquivei, relutante

em dar a conhecer a minha presença,


mas os amigos do meu irmão

alegraram-se em me encontrar e me
chamaram para juntar-se a eles.

Amram lhes contara sobre mim, a


irmã chamada Yaya, que cuidara
dele

como uma mãe, que preparara suas


refeições, costurara suas túnicas e
seu

manto, ouvira os planos tão secretos


que não ousara contar a ninguém. O

que se chamava Jonathan exibiu um


quadrado de seda azul que o vento

levara até o meu irmão. Fora assim


que me acharam.

TOMAMOS UMA rota que nos


levaria à região mais ao sul do Mar
de Sal. Eu sabia que, depois que
fosse, não poderia olhar para trás.
Estaria

abandonando Ben Simon, o único


homem que conhecera quem eu era.
Seus
ossos não seriam reunidos no
aniversário da sua morte, como
sempre fora

o nosso costume, para serem


guardados em um ossuário de pedra.
Mas, se

eu ficasse, o deserto me reclamaria.


Não podia vacilar agora, ou ceder à
vontade de me deitar ao lado do meu
amado.

Atravessaríamos a parte mais


impiedosa do deserto, um lugar de
sal e
tristeza, uma terra ainda mais difícil
de atravessar do que o vale onde
encontráramos os essênios. Dizia-se
que os soldados da guarnição
romana

espalhavam-se por toda parte e


precisaríamos tomar cuidado para
evitar

os seus acampamentos, recuando


quando necessário. Pensei na minha

pobre cabra, cujo leite era a única


coisa que eu suportava beber. Dizia-
se que existia um demônio em
formato de cabra no deserto
chamado Sa’ir, mas, fosse como
fosse, a cabra que eu encontrara era
um anjo. Ela salvara a

nossa vida quando não tínhamos


nada; ela era selvagem e eu a
mantivera

em cativeiro e ela me perdoara; fora


a minha única amiga na minha
solidão.

Antes de sairmos, eu a soltei.


Amarrei uma corda vermelha em
volta do

seu pescoço e levei-a ao mais alto


penhasco.

– Pode ir – disse a ela enquanto


cortava a corda que a prendia.

Ela estava tão acostumada a me


seguir que não fugiu de volta para o
deserto. Meu animal de estimação
apenas ficou lá, olhando para mim.
Bati

em seu traseiro para fazê-la andar.


Pensei nos olhos escuros de Ben
Simon,

na sua pele cor de azeitona, a curva


de um sorriso sempre que via a
cabra

me acompanhando tão mansamente.

– Fique longe de mim – insisti,


acenando para que se afastasse.

Sabia que, embora estivesse


gritando com a cabra, falava com o

fantasma de Sia.

NO INÍCIO da nossa jornada, os


penhascos eram tão altos que os
homens tiveram de amarrar cordas
em volta da minha cintura, e também
em torno
da cintura do meu pai, para depois
nos puxar sobre as lousas lisas de
calcário. Por causa da estação,
brotavam ervas e aspargos
selvagens nos nechalim entre as
falésias. O ar estava perfumado com
a hortelã e a cebolinha picante. Cada
pedacinho de verde era uma delícia
de ver. Viam-se

também as flores amarelas da


mostarda, como se fossem estrelas
caídas no

chão. O fruto do sicômoro adquiria


uma cor alaranjada brilhante, e
vespas
eram atraídas pelo aroma do seu
amadurecimento. Apreciávamos o
som

dessa vida abundante, mas logo


seguíamos em frente, cada vez mais
alto, para onde o ar era claro e
fresco. Galgamos trechos de rochas
de formas agudas entre as quais até
mesmo o cabrito-montês não se
arriscava. Já no

segundo dia nossos pés sangravam.

Ao crepúsculo, não importava onde


estivéssemos, ia me sentar em
silêncio sozinha. No caminho
obtinha o nosso jantar. Todas as
noites eu observava as aves. Assim
que descobria a rede delicada de
galhos em que

nidificavam, sentava-me por perto


em silêncio. Elas se aproximavam
de

mim, pensando que fosse feita de


pedra, vendo-me como uma parte do

deserto e nada mais. Eu cobria seus


olhos quando lhes quebrava o
pescoço.
Deveria deixar sua respiração subir
de uma vez e dar-lhes uma morte
limpa

com um único golpe de faca. Sempre


carregava a adaga de Ben Simon sob
a

túnica, guardada perto da pele, mas


não a usava, a não ser para virá-la
contra mim e marcar a minha perna.
Segurava as aves perto de mim para

ouvir seu coração bater e então fazia


o que o deserto me ensinara.

Assávamos as aves em uma fogueira


preparada pelos guerreiros. Eles

me elogiavam enquanto comiam o


alimento que eu preparara. Diziam
que

eu tinha talento. Era uma caçadora,


brincavam. Meu pai fuzilava-me
com os

olhos quando entoavam seus elogios.

– Não foi nada – eu insistia. – Os


pássaros me procuram.

Os guerreiros pareciam meninos


quando brincavam comigo sobre
minhas habilidades de caça; ainda
assim, eu tentava me tornar
invisível, como em Jerusalém. Os
meninos tornavam-se homens à
noite, quando sua

pulsação se acelerava e o proibido


parecia possível. Embora não
tivesse um

manto cinzento, sabia como


desaparecer. Era capaz de me fazer
sumir e parecer um nada quando me
debruçava para limpar a panela com
areia, os

olhos fugidios. Mas à luz da fogueira


o xale escorregava da minha cabeça
e

os amigos do meu irmão viam que


meu cabelo era vermelho. Era como
se

pensassem mais que eu era uma


garota. Desviavam o olhar, pouco à

vontade, envergonhados dos


próprios pensamentos. Não
deveriam nem

mesmo ter-se sentado junto ao fogo


com uma mulher que não era sua
mãe,
sua irmã ou sua esposa, que dirá
aceitar alimento preparado pelas
minhas

mãos. Eu era considerada niddah,


impura e imunda, pois não havia ali
uma mikvah, nem mesmo uma lagoa
de água barrenta. Estávamos no
deserto e

eles tinham pouca escolha. Comiam


as aves que eu matava, ajudavam-me

nas falésias, levavam-me para meu


irmão. Ao fazerem isso, contavam

histórias da fortaleza de que tinham


se apossado, narrativas que
considerei

absurdas.

A fortaleza era inexpugnável,


diziam, o terreno ao redor tão hostil
que nenhum ataque contra eles seria
bem-sucedido. O esconderijo fora
um

palácio construído pelo rei Herodes,


um lugar de beleza sobrenatural

escondido pelas nuvens. Ouvira


falar daquele rei, cuja crueldade era
tão lendária que se dizia que certa
vez abrira ao meio um porco-
espinho,

depois virara o pobre animal do


avesso para depositá-lo sobre o
rosto de

um inimigo, para cegá-lo. Traíra as


pessoas mais próximas e fora

responsável pelo assassinato da


esposa, Mariamne, a quem acusara
de

traficar philtrons e pharmaka –


medicamentos, poções do amor e
feitiços.
Ela era tão linda que o general
romano Marco Antônio
enlouquecera ao vê-

la e estava desesperado para possuí-


la. Por causa disso, Herodes a

condenou à morte. Pouco depois seu


filho foi acusado de possuir um

veneno preparado com peçonha de


víboras por uma mulher de Edom,
que

era praticante de keshaphim. A


execução do filho seguiu-se à da
mãe.
Todo traidor sabe que sua sorte é
receber em espécie o mesmo

sofrimento que causou aos outros,


mas Herodes sonhava pular a página
em

que fora inscrito o seu destino.


Assim, construiu sua fortaleza na
encosta ocidental da montanha
chamada Massada, que concluiu cem
anos antes da

nossa época. A rainha do Egito


queria a Judeia para si, pleiteando
junto a Marco Antônio e Roma para
que lhe concedessem esse deserto
como um

presente, pois ansiava pelos


tesouros que possuía: uma rota para
o mar, as

salinas, as florestas de bálsamo que


estavam além, em Moabe, tesouros
de

mirra e incenso, riquezas em


demasia.

Diziam que nos esperavam em


Massada mais de novecentos
resistentes,
trezentos dos quais guerreiros.
Cinco invernos antes haviam tomado
a

grande fortaleza de Herodes das


mãos de um pequeno grupo de
soldados

romanos que se alojavam ali.


Fizeram isso com facilidade, na
calada da noite, esgueirando-se pela
parte traseira da montanha, um feito
que os romanos consideravam
impossível. Nada era impossível,
eles descobriram.

Eles conseguiram escalar em


direção ao céu, para mais perto de
Deus.

Pensei que fosse um sonho quando o


amigo do meu irmão jurou que o

Palácio do Norte do velho rei era


mais bonito que os jardins suspensos
da

Babilônia, uma das maravilhas da


humanidade. As colunas em preto e

branco haviam sido transportadas da


Grécia, amarradas em barcos que

atravessaram o mar aberto, depois


puxadas por cordas e roldanas por
toda

a Judeia nas costas dos escravos. Os


mosaicos cintilantes tinham sido

trazidos da Itália ao deserto, para


serem assentados, um ladrilho por
vez, pelos melhores pedreiros. As
casas de banhos, aquecidas por
colunas de cerâmica dispostas sob o
piso, eram feitas de quartzo de tanta
qualidade que as pedras brilhavam
com uma luz vermelha quando o sol
estava alto.

Os pisos eram estampados em tons


de rosa, verde e preto, e os afrescos
foram pintados por centenas de
artistas italianos usando os melhores

pigmentos de Roma, lembrando


joias de água-marinha, safira e
cornalina, brilhando como elas. As
únicas cores que eu conhecia
naquele momento

eram as do deserto branco, o negro


da noite, as manchas vermelhas do
meu

sangue na sola dos pés enquanto


subíamos as pedras.
Ao mesmo tempo em que os homens
falavam de tais maravilhas,

amontoávamo-nos em cavernas
úmidas onde os escorpiões se
reuniam,

buscando abrigo da fúria dos


vendavais. Lembrei-me dos
escorpiões

aninhados no corredor da minha


infância. Eles ficavam tão imóveis
que

poderiam passar por uma ilusão, até


que de repente saltavam para atacar
suas presas e provavam o contrário.
A culpa era assim, eu descobrira.

Distante, até nos atingir. Eu a ouvia


quieta, a amiga que tivera, a mulher
a

quem traíra. Quando adormecia,


sentia a curva do seu quadril contra
o meu. Ouvira dizer que os
demônios podiam unir-se a uma
pessoa. Uma vez

feito isso, era impossível deixá-los


ou livrar-se deles. À noite, eles
fechavam
as mãos sobre as suas, tomando
posse da sua presa como um
predador.

Sussurrava apenas em seu ouvido:


Você me pertence.

O remorso me tragava naquele


deserto, assim como meu silêncio.
Ele

subira em torno de mim como as


árvores criam espinhos, selvagens,
seus membros eram um emaranhado
de galhos traiçoeiros. Havia hienas
onde
acampávamos, eu as ouvia
chamando. À noite, víamos que
formavam um

círculo por entre as árvores


sombrias na escuridão. Pegávamos
pedras,

prontos para o caso de a fome das


feras poder levá-las a atacar. As
minhas

mãos estavam sujas, o meu lenço


retalhado por faca. Segurava o único

quadrado de azul que restara. Era


tudo o que tinha do meu irmão e da
vida

que levara antes de vir para esse


lugar.

Achava impossível imaginar que, se


viajássemos mais para dentro

daquele deserto, encontraríamos


afrescos capazes de rivalizar com

qualquer outro no império e com o


palácio de um rei. Ainda assim os
amigos do meu irmão juravam em
nome de Yehuda da Galileia, o
homem
que começara o estilo de vida zelote
e a rebelião contra os sacerdotes
que

se curvaram a Roma, que à nossa


frente houvesse mil lâmpadas de
azeite

para iluminar a noite, todas ardendo


tão ferozmente que se igualavam às
estrelas no céu. Quando perguntei
quanto tempo levaríamos para
chegar a

esse lugar milagroso, eles riram e


disseram que ainda algum tempo,
pois a
fortaleza só poderia ser encontrada
no fim do mundo e deveríamos ter

cuidado para não errar o caminho.


Um passo em falso e nos
desviaríamos

por toda a eternidade.

O ar leve nos envolvia. Felizmente


era inverno, portanto não seríamos

assados vivos. Do oeste, o vento


frio do mar chamado Ruach Hayam
nos chegava em nuvens e
estremecíamos ao seu contato
gelado. O vento voou
por dentro da minha túnica e
lembrou-me de coisas que seria
melhor

esquecer. O toque de Ben Simon, o


modo pelo qual nos uníamos, como
ele

possuía a habilidade de me ver


quando estava agachado na
escuridão.

Embora ouvisse as histórias do


palácio de Herodes, não era atraída
para pensamentos sobre o futuro e
sobre milagres. Ansiava pelo que
tivera
antes, tudo o que perdera no
transcurso de um único dia, no
momento em

que ele fora tirado de mim.

A minha vida no deserto


transformara-se em cinzas. Tive o
castigo que

merecia. Assim como não libertara o


seu marido, Sia não me libertava,
não

importa quão longe pudéssemos


viajar. Pensei que poderia deixá-la
para
trás, mas, ao contrário, a distância
ajudara o seu fantasma a parecer
mais

forte. Seu espírito revolvia-se em


torno de mim todas as vezes que
tentava

comer, bicando-me. Não conseguia


engolir mais que um bocado de
comida.

Se eu conseguia dar uma mordida,


precisava devolvê-la e tentar engoli-
la de novo. Quando fechava os olhos
para dormir, ela estava lá, à minha
espera. Ela me fitava com o mesmo
olhar triste de quando perguntara se
cuidaria de Ben Simon, embora
soubesse o que fizéramos juntos no
escuro

e o que ele era para mim. Era dele


que eu sentia saudade, mas era ela
quem

punha os braços em volta de mim,


que deslizava seus dedos sobre a
minha

pele, que sussurrava em meu ouvido.


Podia sentir sua febre por toda a
minha pele.
*

UMA NOITE estávamos tão perto do


Mar de Sal que acordei no meio de
um sonho para descobrir que o sal
tinha se entranhado de tal modo no
meu cabelo que revirara as pontas e
as tingira de branco. Sonhava com
um caminho de pedras e uma
serpente tão grande que poderia
devorar uma

cidade. Tentei falar com a criatura


rastejante, implorando que fosse
embora

e nos deixasse em paz, mas a


serpente não quis saber disso.
Chegue mais perto, ela sussurrou.
Senti falta do leão dos meus sonhos.
Senti sua falta e ansiei pela presença
dele, apesar do perigo que isso
representava. Estendi a

mão para a serpente, mas ela


desapareceu, deixando-me com um
punhado

de pó preto.

Os gritos dos guerreiros que nos


conduziam me fez acordar de vez.

Ainda grogue, despreguei-me do


emaranhado do sono. Levantei-me e

esfreguei o sal dos olhos. De


repente, vi um milagre à minha
frente. Se milhares de borboletas
azuis tivessem se elevado juntas do
chão, não teria

sido uma maravilha maior. A


fortaleza de Herodes estava
suspensa no ar, projetando-se para
fora da borda de um penhasco
branco, exatamente

como os guerreiros haviam


prometido, uma maravilha do
mundo.
Adiante se via o caminho que levava
a Massada, subindo em curvas pelo

precipício mais íngreme que podia


ser imaginado. Um passo em falso,
um

momento de dúvida, e quem seguia


por ali poderia facilmente despencar

para a morte no vale abaixo. O


deserto deixara-me descrente, mas,
quando

subi pelo que era chamado de


caminho da serpente, que se
enrodilhava
como uma serpente pelo lado da
montanha, senti algo aberto dentro
de

mim. Esse era o lugar para onde a


serpente no meu sonho nos levara.

Reconheci-o com tanta certeza como


se fosse um caminho pelo qual
andara

cem vezes antes: os pequenos


salgueiros e os bosquetes de
oliveiras, o giz

branco da terra sob as rochas


calcárias. Estava escrito no Livro da
Vida que

viríamos por esse caminho e era


isso o que tinha de ser.

Acima de nós voavam aves de


rapina, falcões e gaviões. Sabia o
que seria

de mim se tropeçasse. Eles iriam se


vingar de todas as aves que eu
matara

no deserto, todas as penas que


arrancara, algumas com os dedos,
outras, quando estava morrendo de
fome, com os dentes. Desejara a
morte de

alguém e tomara um homem que não


me pertencia. Dera-me ao deserto

para ser o que era agora, uma mulher


possuída por um fantasma, de luto
por uma existência que nunca teria
novamente, carregando um segredo

que amadureceria e me exporia


como a ladra que me tornara.

Prestei atenção ao caminho e fiz o


melhor que pude para não pensar em

como poderia parecer aos outros,


uma bárbara, a pele toda empoada
de pó

branco de rocha, a roupa suja, o


cabelo transformado em palha
salgada, branco nas extremidades
mas escarlate nas raízes, os olhos
vazios, apenas

refletindo o deserto. Era uma leoa


sem garras nem dentes, inclinando-
me como uma velha enquanto me
equilibrava sobre as rochas, tão
longe da

garota que fora um dia que mal


conseguia me lembrar do meu nome.
Pensei na promessa que fizera a Ben
Simon de manter silêncio. Agora, o
silêncio era tudo o que tinha. O
vento uivava à medida que subíamos
mais

alto no penhasco, e essa era a única


voz que ouvíamos.

O caminho da serpente parecia não


ter fim. As pedras que caíam

produziam eco ao atingir o chão. O


mundo parecia nevoento e distante

daquele ponto de vista. Peguei a


corda na minha cintura e disse que
queria

seguir sozinha. Andei sem ajuda,


mesmo pela parte mais íngreme do

caminho. Podia ouvir o ruído da


minha respiração, afiada como um
punhal.

A fortaleza à minha frente era como


um sonho, e como uma sonhadora

segui em frente, maravilhada com a


vista que presenciava. Aquilo era
tudo

o que disseram, ainda mais


fulgurante em face da desolação que
nos

cercava.

Fôramos encontrados e trazidos a


esse lugar tão próximo do céu que

podíamos ouvir a voz do Rei da


Criação. O Senhor nos salvara e
libertara,

como a Torá prometia que faria. Eu


estaria disposta a fazer qualquer
coisa

pela glória de Deus enquanto


caminhava até o portão, a não ser
perdoá-Lo

pela minha perda.

SOB A TÚNICA, meu irmão usava


uma armadura para se proteger nas
ocasiões em que saía no meio da
noite. Uma adaga não seria
suficiente. Ele precisava

de armas mais pesadas agora: um


arco, flechas, um machado, uma
lança de
madeira e latão. Ele parecia um
dragão com escamas ou uma
serpente de

prata, criaturas temidas pelos


homens, conhecidas apenas de Deus.
Havia de fato trezentos guerreiros,
mas reconheci instantaneamente o
meu irmão

através do campo sob o


caramanchão cor-de-rosa das
amendoeiras,

plantadas no alto desse patamar


acima do resto do mundo. Reconheci
a
arrogância com que caminhava, a luz
cintilante que brotava de dentro
dele.

Até mesmo a armadura não


conseguia esconder isso. Meu pai
fora levado a

ele imediatamente, mas só me


encontrei com Amram depois de me

purificar. Fui levada para uma das


mikvahs, pois havia várias, para as
mulheres e para os homens. Na
maior casa de banhos havia uma
fileira de
escadas para os já limpos e outra
para os sujos. A água tingiu-se de
preto no

local em que me encontrava e as


outras mulheres deixaram o banho,
para

não se tornarem impuras novamente.


Não me surpreendi. O que fizera

nunca poderia ser lavado.

Vesti a túnica rasgada e os lenços


que Tamar me dera, depois corri
para
encontrar o meu irmão no campo. Se
fechasse os olhos e inspirasse o
aroma

das amendoeiras, poderia imaginar


que havia entrado em outra vida.

Talvez pudéssemos um dia voltar a


Jerusalém e encontrar o mundo que
nos

fora roubado. Talvez todos aqueles


meses tivessem sido um sonho,
como o

meu com o leão. Então ouvi meu


irmão gritar para mim e ficou bem
claro

que não haveria como voltar. Ele me


chamou de Yaya, meu nome de

infância. Eu sabia que aquela menina


desaparecera.

– Demorou muito tempo para que


você viesse até aqui – disse Amram,

abraçando-me, depois me afastando


para me dar uma olhada.

Apenas alguns meses tinham


transcorrido desde o nosso último
encontro, no entanto parecia que
haviam se passado dez verões.
Antes

desse dia, Amram sempre parecera


mais jovem que eu – agora se
mostrava

um verdadeiro guerreiro, feroz,


seguro de si. Pela primeira vez me
senti a

irmã mais nova. Meu irmão me fazia


pensar em aço, um metal que era

transformado pelas chamas. Não


quis saber quantos homens ele
matara ou

que atos cruéis teria perpetrado.


Fiquei horrorizada ao pensar que ele
poderia ter sido um dos guerreiros
que tomaram Ein Gedi e abatido

pessoas da nossa fé.

– Estou aqui agora – disse.

Meu cabelo estava limpo e


lubrificado, trançado acima da
cabeça. Pelo

olhar do meu irmão, poderia dizer


quão diferente lhe parecia. Ele me
examinou, perscrutando a minha
expressão, não capaz de ver o que

acontecera, mas consciente de que


algo mudara. Eu fora mordida por
um leão, mas era preciso olhar para
o meu íntimo para ver a cicatriz.

– Pensei que a encontraria muito


antes. Deve ter se escondido bem,
Yaya

– Amram brincou.

Pensei nas cavernas em que


acampara e no que fizera lá, e no
último lugar triste onde Ben Simon
morrera. Se tivesse me
acompanhado aos

essênios, poderia ter vivido.


Cheguei a pensar que ele sabia o que
lhe aconteceria se escolhesse ficar
para trás, e ainda assim preferiu
ficar.

Deveria ter percebido isso pelo


modo que desviou o olhar de mim,
como se

já estivéssemos separados, quando o


procurei para me despedir. Deveria

ter notado quando me deu a adaga.


Não queria que meu irmão visse a
minha vergonha. Deixei-me cair
sobre

a grama, sob uma cobertura de flores


cor-de-rosa da amendoeira, para

desviar o meu rosto e escapar do


olhar curioso de Amram. Dizia-se
que as

amêndoas das árvores cor-de-rosa


eram amargas, ao passo que as das

árvores de flores brancas eram


sempre doces. Baixei os olhos para
tentar me parecer com qualquer
outra jovem mulher solteira.

– Fizemos o melhor que pudemos –


disse simplesmente.

– Os outros não tiveram sorte –


respondeu ele. – Fiquei triste ao
ouvir sobre a sua travessia. Pensei
que Jachim ben Simon cuidaria de
você. Foi por isso que a deixei nas
mãos dele.

– Era o destino dele seguir para o


Mundo Vindouro – disse a ele. Só
isso

e nada mais.
Meu irmão sentou-se ao meu lado
alegremente, por um momento um

menino de novo em vez de um


guerreiro. Exibia cicatrizes que não
vira antes, incluindo um corte
profundo em seu pescoço, no ponto
em que fora

perfurado por uma flecha. Quando


soltou a armadura, notei que a
constante

pressão do arco que carregava


gravara uma marca em sua pele: via-
se um
crescente em suas costas e seu peito,
mesmo quando não portava a arma.

Deixara crescer o cabelo, que


trançara com firmeza como era
hábito

entre os guerreiros. Seu rosto ainda


era bonito, mas queimado pelo sol,
mais fino. A receptividade da
juventude se fora. Não era mais um
garoto aprendendo sobre a rebelião
na meia-sombra vermelha do
flamboyant.

– Somos um dos últimos redutos de


toda a Judeia – ele me disse. –
Fortaleza depois de fortaleza, todas
caíram. Não sairemos daqui, nunca o
faremos.

Havia apenas duas rotas para


Massada, o caminho pelo qual
viéramos,

pelo deserto impiedoso que se


estendia em direção às montanhas de

Moabe, do outro lado do Mar de


Sal, ou ao longo da rota poeirenta
que ligava Edom e o Vale do Aravá
a Ein Gedi e Jerusalém. As duas
rotas eram
visíveis daquela altura.

– Estamos seguros aqui – meu irmão


me confortou.

Disse-me que, quando chegaram, os


rebeldes puseram abaixo a águia

dourada que Herodes instalara sobre


o enorme portão do palácio. Não

deveria haver ídolos ali, nem


grandes ostentações de riqueza.
Todos os homens eram iguais
naquele domínio, não havia reis,
somente o reino de Deus. Ninguém
precisava se curvar para ninguém,
nem mesmo a Eleazar

ben Ya’ir, seu líder, um grande


homem e um grande guerreiro.

Meu irmão me mostrou que


continuava a usar o amuleto de
Salomão

que lhe dera, amarrado em torno do


pescoço. Ainda se orgulhava muito

dele.

– Onde está o seu lenço? – ele


perguntou então.
Mostrei-lhe o único pedaço de seda
que restara. Disse-lhe como o lenço

salvara a minha vida e a do nosso


pai, contei-lhe como se tornara um
mapa

para nos guiar através do deserto,


amarrado às árvores espinhosas.
Para a

minha grande surpresa, meu irmão


estendeu-me um pedaço de tecido
azul

que combinava. Esse lhe fora trazido


pelo vento, ele me contou. De início
pensara que fosse um pássaro e
estendera a mão. O tecido
aproximou-se dele como se o tivesse
chamado. Assim ficara sabendo que
eu ainda estava

viva e que me encontraria, e que a


nossa presença nesse lugar tão perto
de

Deus estava para acontecer.

SEGUIMOS ANDANDO pelo


pomar, em direção a terraços em que
cresciam antigas oliveiras e videiras
enormes e retorcidas. Nos jardins
havia cebola,
grão-de-bico, pepinos, melões,
todas essas culturas possíveis graças
ao uso

surpreendente, determinado pelo rei


Herodes, de cisternas e lagoas de

onde era trazida a água para a


montanha. À nossa frente estendia-se
um campo de trigo e cevada, os
feixes amarrados por cordas. Um
arado puxado

por burros sulcava o restante da


cultura, a lâmina ligada a uma
comprida
viga de madeira, dois rapazes
gritando aos burros para mantê-los
andando.

À medida que o joio se levantava, o


ar brilhava amarelado, como o mel
derramado para dentro de uma
tigela.

Amram contou-me sobre os imensos


armazéns da época de Herodes,

cheios de enormes vasos de


porcelana com vinho e azeite
enviados de

Roma e da Grécia, muitos


ostentando o selo do rei. Pelo Portão
da Água e

pelo Portão da Água do Sul, burros


traziam dos barrancos abaixo barris
de

madeira cheios de água recolhida


nas lagoas, o suficiente para as
quatro casas de banhos e as doze
cisternas, uma delas tão grande que
podia conter

cinquenta pessoas ombro a ombro.


Não era problema encher as
piscinas,
mesmo nos meses de seca. Dentro da
muralha da fortaleza, desenvolvia-se

um mercado muito parecido com o


de Jerusalém. Havia padeiros,

curtidores e tecelões em pequenas


lojas montadas em baias estreitas
entre

a muralha de Herodes e o campo


aberto da praça. As tendas e casas
de madeira eram construídas de
encontro à muralha fortificada.

Os guerreiros moravam nos


alojamentos antes ocupados pela
guarnição

romana, enquanto os sacerdotes e


homens cultos ocupavam os
pequenos

palácios em que os parentes e


assessores de Herodes viveram
muito tempo

antes. Todos os aposentos dos


palácios tinham pisos de mosaico de
ônix preto e branco pérola. Os
banhos públicos também eram
decorados com

mosaicos reluzentes, formando


faixas de flores de pedra ou de
padrões

numéricos. Viam-se afrescos


vermelhos e alaranjados nas paredes
do

palácio, alguns ainda com as bordas


folheadas a ouro. Ben Ya’ir e seus
parentes moravam no palácio menor,
com vista para o vale. Quanto ao

Palácio do Norte, a construção mais


elegante e impressionante, tão

fantástica que rivalizaria com


qualquer maravilha do mundo,
guardava as

armas e os suprimentos. Ali foram


criadas lojas em barraquinhas, com

sapateiros e açougueiros, pois


nenhum homem entre os rebeldes
jamais

viveria em um lugar de riqueza


como o rei o fizera antes,
estabelecendo residência sobre
aquela montanha para provar que era
o dono do mundo.

Os homens reunidos em Massada


eram dedicados ao Sião, dispostos a
qualquer sacrifício, desafiadores em
todos os sentidos, não querendo ser
escravos de nenhum outro homem.
Quanto a Ben Ya’ir, dizia-se que
não

temia sequer Mal’ach ha-Mavet.


Quando o Anjo da Morte aparecesse
à sua

procura, tinha a intenção de arrancar


as doze asas daquele ser feroz e
derrubá-las ao chão, ensanguentadas
e cobertas de penas, como um dom
de

Deus.
Meu irmão e eu ficamos olhando
para a residência de Eleazar ben
Ya’ir.

– É uma honra para mim segui-lo –


meu irmão comentou.

– Ele mora em um palácio e eu moro


no campo? – provoquei.

Meu irmão me disse que haviam


preparado os aposentos para o meu
pai

e que era para eu acompanhá-lo e


cuidar dele. Amram ficara chocado
ao ver
como nosso pai se tornara frágil.

– Está doente? – meu irmão


perguntou, preocupado.

– Ele não descansaria enquanto não


o encontrássemos. – Quis poupá-lo

da verdade. A velhice do nosso pai


se acelerara pelo fardo dos homens
que

matara, pela filha a quem dera as


costas, por um deserto tão feroz que
o pusera de joelhos.

Quando Amram quis saber mais


sobre o tempo em que estivemos

vagando, disse apenas que


sobrevivêramos. Não mencionei o
homem que

fora marcado por um leão ou a


mulher cujo fantasma me
assombrava. Em

vez disso, contei-lhe sobre a cabra


selvagem, que devia ser um anjo,
cujo leite nos salvara da inanição.
Rimos ao pensar em uma cabra
como um anjo

e admiti que sentia falta do meu


animal de estimação, pois ela se
tornara minha confidente e amiga.
Meu irmão lembrou-me que a nossa
palavra

para anjo era a mesma para


mensageiro, pois era possível saber
que se fora

visitado por um ser luminoso pela


mensagem que se recebia. Quem
sabe a

cabra viera para me ensinar como


sobreviver em uma terra tão
inclemente
que parecia impossível fazê-lo.

– E quanto a você? – perguntei. –


Recebeu alguma mensagem?

Meu irmão pareceu vulnerável nesse


momento, mais um menino que um

guerreiro de olhos frios. Mas o


tempo se passara e ele, que sempre
me contara os seus segredos,
pareceu aliviado quando foi
chamado para a

guarnição antes de poder me


responder. A mãe do seu amigo Uri
apareceu
para levar-me ao espaço que
ocuparia.

– Não espere muito – ela me


advertiu.

Por não esperar nada, fiquei


satisfeita com o que recebi. Nosso
quarto ao

lado da muralha de Herodes era


muito melhor que qualquer abrigo
que

conhecera desde que fugira da


cidade. Tinha um telhado de tecido e
três paredes de madeira. Fora
construído um pequeno forno
redondo contra a

parede de pedra e havia uma


pequena câmara em que poderia
dormir. Se

ficasse na ponta dos pés, poderia


enxergar através de um vão na
parede e

admirar as falésias. Meu pai


esperava por mim quando cheguei.
Já havia abençoado o lugar.

– Eu lhe disse para confiar em Deus


– ele falou. – Você não devia ter
sido

tão fraca.

Engoli as minhas palavras. Não


disse: Foi você quem chorou no
deserto,

não eu. Você temia os animais


selvagens e a fome, enquanto eu ia
caçar pássaros e ousava enfrentar
os leopardos.

Arrumei a nossa casa com o que o


conselho local decretara que deveria

caber a cada família – um colchão


de palha para dormir, duas lâmpadas
de

azeite, cobertores de lã, copos e


tigelas de pedra. A mãe de Uri
trouxe-nos

nossa ração de tâmaras, lentilhas e


frutas, juntamente com uma panela
de

cerâmica e um recipiente com azeite


para cozinhar e usar para acender a
lâmpada no shabat. Ela me avisou
que a vida ali era difícil. Inclinei a
cabeça, fingindo ouvir, mas quase ri.
Ela estava limpa, tinha o cabelo
trançado e eu

era uma bárbara que enfrentara um


leopardo. Agradeci-lhe pelas
inúmeras

gentilezas.

DEPOIS DA MINHA primeira noite


na fortaleza, muitas vezes voltei a
visitar o pomar onde as amendoeiras
estavam em flor. Era o mês de Adar,
o começo

da primavera. Precisava de um lugar


calmo, que me oferecesse a
oportunidade de fugir do desprazer
da companhia do meu pai. Ele me

olhava, infeliz por compartilhar a


sua residência comigo, incomodado
com

o canto em que eu me alojara,


amaldiçoando a minha existência.
Nunca me

atrevi a retrucar. Sabia que três luas


novas haviam se passado desde que
tivera o meu sangramento mensal.
Nos pomares, as abelhas egípcias
eram
abundantes e o ar, suave e rosado.
Viéramos de uma terra árida para
um jardim, de vales de morte para
campos de abundância. Estava tão

acostumada à luz branca fustigante


que me atormentava ver os inúmeros

tons de verde, dourado e rosa.


Precisava semicerrar os olhos e
protegê-los

com a mão. Acostumara-me ao


silêncio do deserto. Ali havia cerca
de mil pessoas, uma humanidade
diversa, em uma cidade que
irrompia por entre
as nuvens, sem necessidade do resto
do mundo. O conselho imprimia suas

moedas em oficinas próprias. As


uvas eram recolhidas para a
produção do

vinho, cuidava-se das colmeias para


o aproveitamento das abelhas. Havia
teares montados na praça para as
mulheres e à noite suas vozes
irrompiam

enquanto cardavam a lã. Eram


mantidos cercados para os animais,
feitos de
uma trama de ramos de árvores
espinhosas. As ovelhas empoeiradas

baliam umas para as outras; as


cabras negras e seus filhotes tinham
espaço

para correr. O ar vivia impregnado


do aroma da panificação, do preparo
das refeições nas cozinhas, da
fragrância fresca das ervas
verdejantes, do coentro, do endro e
da sálvia cinza-escura.

Aquilo tudo era demais para eu


absorver depois do período passado
no
deserto, uma torrente de ruídos e
aromas engolfando-me como a maré.

Ansiava pelo que tivera antes. Um


pássaro entre as rochas. As
estampas empoeiradas de um
leopardo. Eu mesma quase sem
falar, e, se levantava os

olhos para alguém, era por nada


mais que um instante. Algumas
mulheres

me observavam enquanto eu andava,


curiosas. Algumas acenaram, mas

puxei o cachecol mais para junto de


mim. Garotas passaram correndo a

caminho dos banhos. Senti o pesar


crescer dentro de mim quando as

avistei. Desejei poder jogar fora


meu lenço e correr com elas,
tagarelando

esperançosa. Se pudesse despir


minhas roupas e mergulhar na
piscina

talvez conseguisse me purificar, ser


perdoada e começar de novo, uma

garota de novo. No entanto, se


tivesse de renunciar a tudo o que

acontecera, eu recusaria. Ansiava


por tudo o que perdera. Gostaria de

poder recuperar a cabra que era o


meu anjo. Gostaria de amarrar uma

corda de sinos ao seu pescoço e


outra em volta dos meus pés para
que pudéssemos encontrar uma à
outra sempre que irrompessem as

tempestades. Gostaria de assistir ao


aguaceiro escuro despencar do céu

enquanto ouvia o som dos sinos.


Não teria de fingir ser nada além do
que

me tornara.

Avistei o auguratorium, o
observatório de aves deixado pelos
romanos quando acamparam ali. Era
uma das muitas torres construídas ao
longo da

enorme muralha que circundava todo


aquele posto. O observatório

encontrava-se na posição mais


favorável, com vista para as
montanhas do
norte, o ar temperado pela brisa
fresca. Vira torres semelhantes em

Jerusalém, edifícios sagrados em


que os ossos das aves eram jogados
para

predizer o futuro, de cujas alturas os


mágicos podiam observar o

movimento dos rebanhos e prever o


que estaria por vir.

Diziam os sábios que era possível


estudar e aprender a magia, mas

nunca praticá-la, pois isso era


proibido, embora pudesse ser
encontrada em

segredo ou escondida em torres


como aquela. Subi a escada de
madeira. O

ar era ainda mais frio ali, a distância


reluzindo em ondas cintilantes.
Engoli

em seco diante do mundo à minha


frente, pestanejando na luz
ofuscante.

Falcões deslizavam pelo céu, mas eu


não sabia o que significava seu voo,
nem quando mergulhavam mais
próximo do precipício, nem quando

subiam no horizonte ocidental. Não


tinha talento para a magia de
qualquer

espécie.

Ajoelhei-me para ver centenas de


ossos espalhados no chão,

abandonados pelos romanos quando


fugiram. O piso estava salpicado de

cacos brancos. Não fazia ideia do


que significavam. No entanto, senti-
me profundamente afetada ao ver os
ossos afiados, pela música sutil que
o vento compunha nas suas
cavidades. Senti que era observada.
Ergui os

olhos e vi uma pomba que aparecera


na parede. Fiquei quieta e estendi as

mãos. Depois de tudo o que fizera,


de todos os meus pecados, ela se
aproximou sem medo.

PELA MANHÃ enviaram uma


menina para me encontrar, talvez
uma daquelas que passaram por mim
correndo a caminho dos banhos, uma
menina muito

jovem e inocente para conhecer os


segredos existentes entre mulheres e
homens, que pensava que o que se
via à luz do dia era tudo o que
existia e

que não tinha conhecimento da noite.


Ela era educada e bonita, não teria
mais que treze anos e usava brincos
pequenos de cornalina e ouro nas
orelhas. Disse que se chamava
Nahara, cujo significado
timidamente me
explicou. Trazia-me um par de
sandálias e riu quando hesitei,
desconfiada

de aceitar um presente de uma


estranha.

– Vai precisar delas onde está


prestes a ir – ela me informou.

As minhas sandálias haviam ficado


arruinadas ao longo da viagem, o

couro desfeito em tiras. Calcei as


novas para descobrir que se
ajustavam perfeitamente aos meus
pés. Enquanto a acompanhava,
Nahara informou-me que estava me
levando para a função que me fora
atribuída. Perguntou

o meu nome, uma palavra que não


havia pronunciado em voz alta havia

tanto tempo que quase me esquecera


do seu som.

– Meu nome é feio – assegurei a ela.


– Ao contrário do seu.

Caminhamos juntas por toda a Praça


Ocidental, pavimentada com

pedras enormes trazidas da Grécia


pelo mar. Nahara mantinha-se ao
meu

lado.

– Preciso chamá-la de algum nome –


ela insistiu. Era uma menina séria,

serena, mas voluntariosa, situada


entre uma irmã mais velha e um
irmão mais novo, acostumada a
tomar as próprias iniciativas.

Alguns acreditavam que por saber o


nome de algo era possível ter

acesso à sua essência. A maioria


dos pais não revelaria o nome de um
filho

do sexo masculino após o


nascimento até que fosse
circuncidado oito dias

depois, para que pudesse reunir suas


forças e não ficar vulnerável aos
demônios que pudessem chamá-lo.
Nahara encolheu os ombros quando

disse que cada nome era um segredo


conhecido apenas por Adonai.
Insistiu que provavelmente eu tinha
um nome bonito, pois o cabelo era o
mais
bonito que já vira. Todas as
mulheres do assentamento
comentavam sobre

isso, ela me disse. Falavam que fora


queimada em um incêndio e que essa

era a causa das manchas na minha


pele e do meu cabelo cor de fogo.

– Pois devem ter cuidado para não


soprá-las – avisei. – Poderia ser um

dragão. Elas ficariam cobertas de


faíscas.

Nahara riu, depois confidenciou que


a mãe me vira no auguratorium e
pensara que tinha um talento
especial.

– É por isso que vai trabalhar


conosco nos pombais. Ela a
escolheu

quando a viu na torre.

Meu coração murchou. A tantos


lugares eu preferia ser enviada,

praticamente qualquer outro lugar


teria sido um avanço: os olivais, as
padarias, até mesmo os celeiros de
cabras. Havia três columbaria, os
pombais em estilo romano em que eu
trabalharia. Dois construídos no

formato oblongo, mas o terceiro era


uma torre circular com uma

plataforma no piso superior, usada


para observação. As janelas de
todos eram cobertas por telas, para
impedir a entrada de falcões
curiosos. Os três

edifícios eram feitos de pedra e


cobertos com argamassa branca,
erguidos

do chão, para que as cobras em


busca de ovos não entrassem. Eram
criadas

milhares de aves e cada um dos


nichos esculpidos nas paredes
brancas

abrigava um casal de pombas, unido


por toda a vida.

Durante a época em que a guarnição


romana ocupara Massada, as

prateleiras no local eram usadas


como câmaras funerárias, para
armazenar
as cinzas dos mortos, mas agora
voltavam a alojar as rolas em
nidificação. O

que quer que os romanos tivessem


corrompido durante a sua estada ali,
depois da queda do rei Herodes os
nossos rebeldes devolveram ao uso

adequado. O que usavam para os


mortos fora transformado em vida
nos

corações palpitantes das pombas.


Não acreditávamos em transformar

carne em cinzas, mas em venerar os


ossos dos antepassados devolvendo
o

corpo à terra, de onde ele veio nos


dias de criação. O local que
abrigava os

mortos durante a ocupação romana


estava de novo permeado de música,
o

arrulho tirr tirr que aprendera a


imitar no deserto, para que os
pombos se aproximassem por me
considerar um dos seus.

Uma das abominações que os


romanos haviam cometido era usar a

sinagoga para seus estábulos. As


pessoas diziam que foram
necessárias

semanas para limpar o excremento e


purificar o espaço. Mesmo depois
de

tudo, dizia-se que ainda era possível


sentir o cheiro de cavalos quando
caíam as chuvas, então se acendia
incenso ali todas as manhãs. Mas

nenhum incenso seria capaz de


encobrir o odor pungente, úmido dos
dejetos das pombas, que me atingiu
em cheio quando Nahara me levou
ao

pombal de pedra. De todos os três,


esse era o maior, impregnado com o
mau cheiro dos pássaros. Ainda pior
era o barulho. Quando adentramos a

penumbra pelas pesadas portas de


madeira, o som era insuportável,
pois as

pombas entoavam seu canto a uma


só voz. Parei, abalada pelo bater de
asas, de novo ansiando pelo silêncio
que conhecera no deserto.
Nahara sorriu ao notar a minha
reação, o rosto virado para cima.

– Elas não mordem – afirmou ela. –


Você vai se acostumar.

Pegou um pássaro que voara para o


chão, segurando-o com suavidade.

Era para cuidarmos deles, alimentá-


los, recolhermos os ovos. Mais

importante ainda, era para


recolhermos seus excrementos,
utilizados para

fertilizar as culturas. Era por isso


que prosperavam os belos bosques
sobre

aquele precipício, em que o solo era


pouco mais que calcário coberto por
uma fina camada de terra, e por isso
o ar cheirava a amêndoas. Os
dejetos

das pombas fertilizavam os campos;


seus excrementos eram o segredo
para

criar um jardim no deserto.

Três outras mulheres trabalhavam no


pombal, todas elas ocupadas até a
nossa chegada. Elas se voltaram na
minha direção. Alguém poderia

imaginar que aquela tarefa


desagradável seria o último tipo de
trabalho que se poderia querer, mas
as três mulheres pareciam
orgulhosas do que faziam. Uma
deles, a mais velha, cujo nome era
Revka, olhou-me com

desaprovação, como se tivesse


invadido sem ser convidada o seu
domínio e

já me classificara como indigna. As


outras eram a mãe e a irmã mais
velha

de Nahara, cada uma mais bela que


a outra. Aziza tinha dezesseis anos,
era

tranquila e tinha a pele bem morena.


Como estava ao lado da mãe, mal
consegui distingui-las. Mas fora
Shirah, a mãe delas, quem me
escolhera.

Nahara sussurrou-me para dar um


passo adiante, lembrando-me do

interesse da mãe por mim. Gostaria


de saber se fizera sua escolha
quando

vira a pomba se aproximar de mim


sem ser chamada.

Naquele lugar barulhento, Shirah


mantinha-se serena, envolvida por

uma calma sombria. Aproximei-me,


depois parei, afogueada. Nossos

olhares se encontraram e senti algo


inesperado entre nós, uma onda de
calor. Parecia que me tornava
transparente aos seus olhos.

– Eu me pergunto como uma leoa


cuidará de um pombal. É capaz de

guardar seus dentes e suas garras?

As outras mulheres se reuniram à


nossa volta, rindo do comentário de

Shirah. Senti-me vulnerável e


exposta, ainda que o salão estivesse
às

escuras, apenas com réstias finas de


sol entrando pelo telhado e pelas
janelas teladas.

Shirah usava uma longa trança negra


nas costas. Era de uma beleza
extraordinária, com as maçãs do
rosto salientes e os olhos escuros,
quase

negros. As outras mulheres


pensaram que estava me
provocando, depois

de ter percebido o meu desagrado


em cuidar das aves. Não entenderam
o

que quis dizer. Mas eu, sim. Ela


sabia o que havia em meu íntimo.

– Quem me dera ser uma leoa –


disse pesarosa. – Não passo de uma
pobre andarilha.

– E não somos todos? – a mulher


mais velha, Revka, respondeu. –
Você

se acha muito diferente de nós?


Pensa que é boa demais para colher
a merda destas pombas, não é? –
perguntou com desdém. – Se for
isso, pode

sair agora.

As mulheres admiravam meu cabelo


vermelho. Como Nahara dissera,
era o que as pessoas notavam em
primeiro lugar. Talvez acreditassem
que

Shirah se referisse à cor castanho-


amarelada quando falara de leões.
Não faziam ideia de quem eu era ou
do que fizera. Os pássaros
esvoaçavam à nossa volta,
espontaneamente atraídos por mim.
Mantive os olhos no chão

enquanto falava. Tudo o que queria


era ficar sozinha.

– Farei o trabalho que me


destinarem – disse.
Façam comigo o que quiserem, o
que lhes der vontade. Não mereço
mais

do que o que recair sobre mim.

Shirah aproximou-se com uma cesta


de folhas de palmeira, belamente

tramada com um desenho de folhas


sobrepostas. Seus olhos eram
enormes

e profundos, contornados por kohl.


Usava pulseiras de ouro nos braços
e amuletos amarrados em torno do
pescoço por um cordão vermelho,
incluindo dois talismãs de ouro, que
brilhavam a meia-luz. As filhas se
aproximavam e passaram os braços
ao redor da cintura fina da mãe. Seu
amor por ela era evidente e as
invejei. Gostaria de ter sabido o que
é ter mãe, alguém que estaria sempre
ao meu lado, não importando o que

fizesse.

As aves arrulhavam. Senti uma


pulsação na garganta, recordando-
me de

como esperava as minhas presas no


deserto, como se aproximavam de
mim

e como as matava. Shirah entregou-


me a cesta. Perguntei-me se fora
tecida

com as folhas das palmeiras de Ein


Gedi, se alguma mulher tramara o

desenho com as folhas na manhã da


própria morte.

– Até mesmo uma leoa precisa


trabalhar – disse-me Shirah.

O TRABALHO começou
imediatamente. Estávamos todas
vestidas de branco, pois se
acreditava que as cores vivas
perturbariam as pombas e

prejudicariam a postura. Talvez não


fosse por acidente que a mulher

essênia, Tamar, tivesse me dado


aquela túnica, como se de algum
modo

soubesse que seria escolhida para o


pombal. Talvez não fosse tão
invisível

quanto imaginara.
Não havia tempo para duvidar de
mim mesma ou para reclamar.

Rapidamente, Aziza ensinou-me a


alimentar as que estavam sob nossa

incumbência com uma mistura de


quirera, trigo e ervilhaca, e como

afugentar os pares dos ninhos


quando necessário para recolher os
ovos ou

limpar os excrementos. Os ovos que


permanecessem nos ninhos
eclodiriam
em breve, e os pais cuidariam juntos
dos filhotes. Aziza preocupava-se
em

me ajudar a aprender os trabalhos no


pombal. Ela se parecia com um
cervo,

com pernas e braços delgados, e


uma grossa trança de cabelo escuro,
como

a mãe, brilhante e negro como a


noite. Mas, enquanto os olhos de
Shirah eram muito escuros, os de
Aziza eram de um cinza-claro
incomum, como a
água do rio, cheios de luz e
movimento. Trazia uma pequena
cicatriz quase

imperceptível, como uma lágrima,


embaixo de um dos olhos.

Nahara foi conversar com sua irmã a


meu respeito. Os olhos das irmãs

brilhavam. Parecia bom ter alguém


novo de quem falar, uma
oportunidade

para quebrar a monotonia do dia de


trabalho.
– Ela não me disse seu nome quando
perguntei – Nahara informou a

Aziza.

As irmãs ficaram com as mãos nos


quadris, considerando o que fazer

comigo. Eu me envergonhava de ser


considerada digna do seu interesse.

– Precisamos chamá-la de algum


nome – Aziza insistiu, querendo ser

minha amiga.

As irmãs estavam tão perto que suas


palavras eram como contas no

mesmo cordão de ouro. Se eu


dissesse o meu nome em voz alta
talvez me

livrasse da curiosidade delas.


Trabalharíamos lado a lado, afinal
de contas,

e elas precisariam me chamar de


algum nome.

– Yael – consegui pronunciar, pois


era uma palavra que me deixava um

gosto amargo na boca. Soara sempre


como uma maldição e manteve-se

assim desde aquele dia.

As irmãs pareceram satisfeitas,


assegurando-me de que o meu era
um

nome bonito.

– Tem mais alguém aqui com você?


– Queriam saber mais sobre mim,

para que pudéssemos ser amigas.


Dei de ombros friamente, como se

desdenhasse a resposta.
Um leão, um fantasma, uma cabra
que é um anjo, uma centena de aves
com o pescoço quebrado.

– Fui trazida para cá pelo meu


irmão. Amram, filho de Yosef bar
Elhanan.

Para minha surpresa, a curiosidade


delas definhou e as minhas palavras

caíram como pedras. Ouvi o eco do


nome do meu irmão. O silêncio que
obtive em resposta foi algo que
entendi, era melhor deixar intocado
o reino
dos segredos.

Nahara foi chamada pela mãe.


Pareceu grata por ter uma desculpa
para

sair em direção ao menor dos


pombais, muito embora as guardiãs
dos

pombos geralmente não gostassem


de trabalhar lá, pois o prédio era tão
apertado que cabia apenas uma
pessoa dentro das suas paredes. Ao
meu

lado, Aziza rapidamente voltou ao


trabalho, afastando as pombas,

recolhendo os seus ovos. Eu podia


ver através do espelho dos seus

lânguidos olhos cinzentos. Ela não


precisava me dizer mais nada para
que

eu compreendesse como o nome do


meu irmão soara para ela. Uma vez

pronunciado, ele se recusava a


desaparecer.

*
NOS DIAS que se seguiram, guardei-
me para mim durante as horas
passadas nos pombais, cumprindo as
tarefas que me haviam sido
designadas. Era

amável o bastante, mas só falava


quando as outras me dirigiam a
palavra.

Era a sua serva, nada mais. Não era


uma delas e não pretendia ser.
Tivera

uma amiga uma vez, e a traíra. Não


precisava de outra.
As outras mulheres faziam a refeição
juntas ao meio-dia. Eu comia

sozinha. Ia ao pomar sob o sol do


meio-dia, levando comigo um pouco
de queijo seco e pão sírio.
Aproximava-me da muralha e
observava ao longe,

olhando para o norte, a direção da


qual viera, onde deixara os ossos.
Um dia, algumas das mulheres que
trabalhavam nos campos vieram
sentar-se

ao meu lado. Prendiam o cabelo e


cobriam a cabeça com um lenço
para sombrear a pele. As suas mãos,
no entanto, estavam marrons do
trabalho em um bosquete de
pistache, lisas com óleo de nogueira.
Tinham vindo de

Jerusalém, acompanhando os
maridos, pais ou irmãos. Agora
agiam como

pessoas afortunadas que haviam


encontrado o caminho para o Jardim
do

Paraíso. Ouvira-as cantando


enquanto trabalhavam. Algumas
carregavam
bebês em tipoias amarradas às
costas ou nos quadris. As mulheres
solteiras

convidaram-me para encontrá-las


nos banhos. Abanei a cabeça e disse
que

não podia fazê-lo. Não queria que


ninguém notasse as minhas formas

arredondadas quando tirasse a


túnica. Como desculpa, disse que
deveria

permanecer nos pombais, pois mal


começara a trabalhar por lá e queria
agradar Shirah. Quando ouviram
isso, as mulheres ficaram
desconfiadas.

– Tudo bem – disse uma delas,


afrontada. – A escolha é sua, se
prefere a

Bruxa de Moabe.

As mulheres do campo que haviam


se reunido ao meu redor me

alertaram, murmurando que Shirah


viera do deserto depois de
atravessar o
Mar de Sal. O sal a levantara,
permitindo que ela e as filhas
atravessassem

sem se afogar. Shirah, asseguraram-


me, era capaz de invocar as nuvens

assim como chamava os pombos no


pombal. Depois da sua chegada

chovera a cântaros por semanas. As


torrentes caíram até que o mundo se

tornasse verde e as pessoas


chorassem de alegria. Fora por isso
que o líder
de todos ali, Ben Ya’ir, a mandara
chamar. Shirah era sua prima, mas
havia

mais coisas por trás da sua chegada.


Até mesmo um grande homem
poderia

às vezes precisar de uma bruxa.

Considerei aquelas mulheres tolas,


alheadas da realidade. Que tipo de

bruxa trabalharia em um pombal,


teria lentilhas como refeição,
coletaria excrementos, recolheria
ovos de pombos em uma cesta? Ela
era uma

mulher como qualquer outra. Ainda


assim, quando regressei ao pombal

notei que Shirah insinuava uma


curiosidade intensa; o que passava

despercebido das outras parecia


claro para ela. Às vezes, no fim do
dia, quando trancava a porta, ela se
voltava para me observar. Naqueles

momentos sentia que ela sabia tudo


sobre mim. Ainda mais estranho, não

tinha vontade de me esconder dela.


Queria falar da noite em que me

cortara pela vigésima primeira vez,


da manhã em que partira em busca
de

uma cura e da noite em que voltara


para descobrir que Ben Simon já

entrara no Mundo Vindouro. Talvez


isso, sim, fosse bruxaria, fazer
alguém

ansiar por revelar-se.

*
UMA NOITE, uma jovem aguardava
no lado de fora do maior pombal.
Era uma

serva, trazida de Jerusalém pela


família do seu senhor, que vivia com
eles

como sua cozinheira e empregada


doméstica. Eu a vira nos campos de

cultivo. Em meio às sombras, ela fez


um gesto para Shirah, pedindo-lhe
para acompanhá-la. Shirah dirigiu-
se às filhas, mandando-as para casa,
a fim de encontrarem-se com o
irmão mais novo e começarem a
refeição da

noite.

Depois que Shirah se foi com a


empregada, eu a segui, curiosa.
Descalcei

as sandálias e andei descalça, como


fazia quando espreitava os pássaros.

Senti algo errado nas minhas ações,


mas continuei. Shirah e a empregada
não pararam até chegar ao extremo
da muralha. Lá, entraram por um
canto
escuro. Não estávamos muito longe
do lugar em que haviam sido
montados

grandes teares para as mulheres


trabalharem à noite, depois de
concluídas

as tarefas diárias. Parei atrás de uma


coluna, onde sombras esverdeadas
espalhavam-se sobre as pedras.
Senti-me como quando me agachava
no

deserto, à espera de uma presa.


Podia sentir a pulsação latejar na
garganta.
Com um pedaço de madeira
carbonizada, Shirah desenhou na
muralha a

imagem de um olho. Pegou uma


agulha da bainha da túnica que usava
e, enquanto recitava um
encantamento, perfurou o olho com a
agulha. O som

baixo e rítmico de sua voz se


propagava até onde eu estava
escondida.

Apesar de não entender as palavras,


imaginei o que estaria fazendo.
Estava
obrigando algum homem a ser
verdadeiro, como eu fizera no
deserto na

noite em que desenhara o rosto do


leão na areia. Outros homens
poderiam

se desviar, mas aquele seria


obrigado à fidelidade como um fio,
ao ser conduzido pela agulha, era
obrigado a atar os pontos.

Não devia ter permanecido ali.


Poderia facilmente ter voltado pelo

caminho que viera sem que ninguém


me visse, mas sentia-me presa ao

feitiço. A cantilena me aprisionou, a


voz de Shirah envolvendo-me como
se

tivesse a capacidade de me prender,


assim como o amante fazia com a

empregada. Shirah virou-se para me


olhar como o escorpião encarava o

camundongo. Afastei-me correndo,


mas continuei sentindo o seu olhar.

No dia seguinte, quando fui trabalhar


no pombal, usei um véu para
encobrir o rosto, esperando que me
fizesse invisível, do mesmo modo
que a

capa do meu pai escondia sua


verdadeira natureza. Shirah
acompanhou-me

para dentro, um sorriso brincando


em seus lábios. Poderia jurar que
via através do meu véu. Quando os
outros saíram para a refeição do
meio-dia,

cozinhando lentilhas e ervilhas em


uma cozinha ao ar livre, Shirah
insistiu
que precisava da minha ajuda. Havia
uma tarefa que deveríamos realizar.

Não tive escolha a não ser


acompanhá-la. Como a empregada
que a seguira,

eu era apenas uma serva.

Fomos ao campo levando as nossas


cestas. O sol precipitava-se sobre

nós.

– O que fiz junto à muralha me foi


pedido – Shirah informou-me
quando
passamos sob a sombra rendada das
amendoeiras verdejantes. – Não era

amor o que a jovem pedia, apenas


decência.

De onde se achavam sentadas para o


seu almoço no bosque, as mulheres

do campo olharam para nós,


sussurrando, exceto uma delas, a
empregada

que ainda colhia pistache para a


patroa. Pétalas claras caíam em
torno de
nós, a metade delas amarga.

– Quando chegar a hora e precisar


da minha ajuda, eu a ouvirei também

– disse Shirah. – Farei o que pedir.

Corei, confusa.

– Pedi alguma coisa?

Shirah despejou a cesta de


excrementos das pombas ao redor da

amendoeira mais alta, que


desabrochava em mil flores.
Ocorreu-me que ela
podia adivinhar a verdade, mesmo
através do silêncio.

– É verdade – ela respondeu. – Você


não pediu.

Lado a lado, retomamos a


caminhada de volta ao pombal,
passamos

pelos arbustos de amoreiras, com


suas confusões de bagas negras,

cruzamos o pé de pistache, no qual a


empregada trabalhava tirando as

vagens dos ramos. Notei que a


jovem não ergueu os olhos para nós,
mesmo

quando Shirah tocou seu ombro em


uma saudação silenciosa.

– Não ainda – disse ela para mim.

NOS CORREDORES do Palácio


Ocidental, no ponto mais elevado do
planalto, o que no passado servia à
realeza agora servia a todos nós.
Trigo e grãos eram armazenados
onde antes eram câmaras elegantes.
Os curtidores,
padeiros e ferreiros trabalhavam em
um salão em que o piso de mármore

era tão fino como qualquer outro de


Atenas ou de Roma. Para aqueles
que

provinham de aldeias pequenas, a


glória daquele palácio era

surpreendente. Ali, local em que


foram realizados grandiosos
encontros da

nobreza, no momento trabalhávamos


a serviço do Todo-Poderoso, não
pela
nossa ganância. Os rebeldes tinham
preocupações puras, muito embora
os

homens vivessem no limite de seus


nervos, meu pai inclusive. Todas as
manhãs ele se dirigia à sinagoga
construída na muralha ocidental,
para orar

e ouvir os sábios falarem sobre o


que o futuro traria. Eu acordava uma
hora

antes do meu pai para aquecer bolos


de cevada em azeite para sua
refeição.
Era a sua serva, o seu cão e a sua
escrava. Seus desejos eram as
minhas necessidades, seus humores
governavam a minha vida.

Os homens reuniam-se na sinagoga


preocupados com o bem-estar de

seu líder, Eleazar ben Ya’ir, que


deixara a nossa fortaleza alguns dias
antes

para angariar apoio entre as cidades


do deserto por toda a Judeia. Os
seus

seguidores ansiavam pelo seu


regresso. Na sua ausência, sentíamos
mais de

cem vezes o perigo que corríamos,


tendo apenas a borda implacável da

montanha para nos proteger. Quando


um ancião em uma das assembleias

exigiu saber quem tomaria o lugar de


Ben Ya’ir, caso o perdessem no

campo de batalha, todos os


presentes silenciaram. Ninguém
queria pensar

em Massada sem um líder, um corpo


sem espírito. Sem Eleazar ben Ya’ir
estaríamos perdidos, à mercê uns
dos outros, com o nosso pescoço em

risco. Seu destacamento de


guerreiros incluía meu irmão, e eu
estava

especialmente preocupada, pois


aqueles que haviam sido reunidos

recentemente não deveriam ser


separados.

Naquele mesmo dia, como uma


resposta aos céticos, Ben Ya’ir –
nosso
salvador e nosso redentor, o homem
que salvara nosso povo da
destruição

de Jerusalém – regressou. Chegou ao


anoitecer. As pessoas queriam vê-lo
e

foram para a muralha, enquanto ele e


os companheiros mais próximos

subiam pelo caminho que levava aos


domínios de Deus. Alguns

acreditavam que fosse capaz de


conversar com os anjos, que o
próprio
Rafael andava ao seu lado, a espada
reluzente elevada contra nossos

inimigos. Olhamos sobre os


penhascos que nos protegiam e
sentimo-nos

abençoados por ter um líder tão


nobre.

Em consequência das fortes chuvas


do inverno, o mundo abaixo de nós

estava verdejante. O deserto achava-


se coberto de murta, um sinal de boa

sorte. Nós, mulheres, tecíamos a


murta nas roupas íntimas, para
carregar conosco o doce aroma do
deserto enquanto caminhávamos. Um
sentimento

de alegria espalhava-se com a


virada da estação e eu guardava a
minha alegria pelo segredo que
carregava em mim. Avistei Amram e
senti-me

aliviada. Quis conhecer


pessoalmente Ben Ya’ir, o homem
que levara o meu

irmão e os seus amigos para aquele


lugar remoto e perigoso. Uma
multidão

de pessoas se acotovelava com o


mesmo objetivo, vê-lo e sentir-se

consolado pela sua força. Precisei


ficar na ponta dos pés para ter um
vislumbre. As pessoas estavam
dispostas a morrer por ele,
permaneceriam

ao seu lado para impedir que as


flechas atingissem sua carne. Muitos

abaixavam a cabeça na sua


presença, como faziam perante os
homens
santos e os sábios.

Em Jerusalém, ele teria passado


despercebido na multidão. Não era
um

homem que se destacasse por causa


da aparência. Não era alto nem
bonito,

apenas de ombros largos, com uma


expressão simples e direta. Era

marcado por várias cicatrizes, seus


braços eram enormes, capazes de

lançar um machado através do


campo de batalha. Possuía um
domínio

especial sobre os outros homens e


uma energia intensa que tornava

impossível não reagir à sua


presença. Ele brilhava porque os
outros o seguiam, porque o
adoravam e obedeciam, por confiar
nele. Era um homem

de pele escura, mas tinha luz dentro


de si, um brilho inexplicável.
Mesmo se

estivesse imóvel, os nossos olhos se


voltavam em sua direção, e assim
ele

comandava todos nós.

O destacamento de guerreiros
regressava trazendo burros
carregados

de armas – arcos e flechas de


diversos tamanhos, juntamente com
dezenas

de escudos recolhidos dos


derrotados. Outra parte da guarnição
romana
caíra diante deles, e o que lhes
pertencera era agora nosso. Algumas
das armaduras de bronze seriam
derretidas para que a nossa fortaleza
pudesse

ter suas moedas – de um lado eram


impressas as folhas da videira, do
outro, as palavras Pela libertação
do Sião. Dois homens acorrentados
caminhavam atrás dos burros,
humilhados, as cabeças
ensanguentadas, os

olhos brilhantes para a multidão.


Eles eram soldados romanos
recrutados
pela legião de uma terra longínqua e
ninguém nunca vira alguém
descorado

como eles, com a pele leitosa de tão


branca. Embora usassem capacetes
romanos, suas túnicas eram da sua
terra de nascimento e haviam sido

tecidas com desenhos estranhos de


cinza-azulado, azul e vermelho. Era

desconcertante vê-los à nossa


mercê; sempre nos consideráramos
as

vítimas de uma guerra injusta, e ali


seguiam aqueles dois recrutas, a
ferros.

Havia escravos entre nós, trazidos


pelas pessoas que haviam fugido de

Jerusalém, mas eles eram tratados


como governantas e camponeses, e

muitas vezes recebiam a liberdade


depois de anos de serviço. Não

sangravam nem andavam


acorrentados. Agora, as pessoas
aplaudiam a

captura dos inimigos, que


inclinavam a cabeça, provavelmente
esperando

ser executados. Mas logo a multidão


os esqueceu. Estava mais
interessada

no nosso herói, gritando o nome de


Eleazar ben Ya’ir como homens

sedentos implorando por água. Ouvi


algumas mulheres dizerem que os

olhos de Ben Ya’ir mudavam de cor,


eram de um cinza frio como a água
ainda em um poço, mas, às vezes,
seu olhar tornava-se como o verde-
claro

de um córrego que deságua em uma


lagoa. Como homem, ele era tão

complicado quanto a cor dos seus


olhos. Costumava se afastar quando
não

concordavam com ele, mas depois


de pensar melhor ele reconsiderava
e

pedia explicações sobre a opinião


diversa. Era um homem a quem as

discussões sucediam naturalmente,


mas era atencioso também. Quando
um

dos seus homens caíra em batalha e


estava muito ferido para viver, Ben
Ya’ir não enviara um guerreiro para
executar o terrível golpe de

misericórdia. Ele mesmo completou


a tarefa, depois proferiu as orações

pelos mortos, um ato de caridade


que nunca poderia ser
recompensado.

Era aberto de um modo que fazia as


pessoas reagirem em um nível
profundo, essencial, pois todos
respeitavam e temiam a sua ira,
ainda que o

amassem, assim como a um irmão ou


a um filho.

No dia em que trouxeram os


escravos, Ben Ya’ir ostentava uma
cicatriz

recente no pescoço e no peito.


Usava o cabelo comprido trançado
como

nossos guerreiros, mas sempre


manteve o xale enrolado em torno
dele,

pronto para orar em todos os


momentos. Era bem possível que o
que as pessoas sussurrassem fosse
verdade e ele realmente soubesse
mais que os

outros homens, e se tornara ainda


mais feroz pelo poder da profecia.
Era capaz de distinguir os justos dos
ímpios e, quando observava os
inimigos,

podia ver além dos seus trajes e de


sua pele para enxergar seu espírito.
Quando a multidão se aproximou
dele, agitada, batendo os pés, eu
recuei

com medo de que me visse por quem


era. O avanço fervoroso poderia

facilmente esmagar quem não


acompanhasse o ritmo da multidão

fremente. Acima de nós aproximou-


se um bando de pombos selvagens,

mas, se esse fosse um sinal, não fui


capaz de ler a profecia, e as pombas
rapidamente se voltaram, voando
para o leste e depois para o norte,
em direção a Jerusalém. Vi Shirah
observá-los e seu rosto pareceu
corar de desespero. Pensei que ela
entendera algo que eu deixara de
notar, e notei

que carregava um ramo de murta


consigo, como as noivas deviam
fazer em

sua noite de núpcias.

Ben Ya’ir deixou a plateia


encantada. Contou sobre os romanos
que

haviam sido derrotados naquela


batalha mais recente, soldados
usando

capacete e cota de malhas, seus


escudos quase impenetráveis quando
se

amontoavam em uma formação que


parecia uma tartaruga. Somente os

mais corajosos guerreiros eram


capazes de combatê-los, entrando no

confronto com a adaga


desembainhada. Ben Ya’ir
cumprimentou seus
guerreiros pela coragem, destacando
o meu irmão com um elogio. Amram

abaixou a cabeça para não parecer


arrogante, mas estava nitidamente

honrado pelo reconhecimento.


Avistei o disco de prata de Salomão
em seu

pescoço, que continuava a lhe


fornecer proteção.

Ben Ya’ir passou a contar sobre os


tesouros saqueados dos romanos –

uma couraça de ouro decorada com


pedras preciosas, anéis de ouro com

sinete, jarros de vinho, moedas para


serem fundidas. Ele proclamou que a

nossa vitória se devia ao nosso Deus


e que os nossos corações deveriam
ser

fortes para honrá-Lo.

– Se a vida parece difícil agora, ela


só tende a piorar – anunciou Ben
Ya’ir, a expressão sombria, a luz se
desvanecendo no seu semblante.

No entanto, essa declaração


perturbadora não teve o poder de
deter a

crescente onda de triunfo. Eu nunca


vira uma multidão em tamanha

comunhão assim, uma só carne e um


só espírito, oscilando de um lado
para

o outro. Os guerreiros em particular


pareciam enfeitiçados, pois agiam
com

um homem em transe e ausente, ou


assim eu acreditava até olhar para o
outro lado da praça. Lá estava
Amram, entre os seus companheiros,
muitos

dos quais feridos na batalha que


acabavam de travar. Esperaria que
meu irmão estivesse atento a cada
palavra de Ben Ya’ir, encantado
com o líder

amado, como estavam seus irmãos


de armas. Em vez disso, olhava para

uma garota em um dos extremos da


multidão.

Essa era Aziza, com os olhos


baixos, o cabelo lustroso puxado
para trás

sob o véu.

NAQUELA NOITE, fui à mikvah.


Era um lugar de renovação e
esperança, o que sentia agora que
meu irmão tinha regressado. As
lâmpadas de azeite

queimavam nos nichos ao longo da


muralha de pedra, iluminando a
câmara

escura. Esperava ficar sozinha –


embora a minha condição não se
anunciasse, ficaria evidente para
quem observasse de perto. Quando

cheguei, as mulheres do campo


estavam lá. Se me virasse para sair,
eu as ofenderia, portanto despi-me
no escuro, removendo a túnica e os
lenços, na

esperança de disfarçar a minha


forma arredondada. Escondi a adaga
de Ben

Simon, que sempre carregava


comigo, sob as vestes dobradas,
depois
rapidamente subi a escada e entrei
na água antes que alguém tivesse
tempo

de examinar as minhas formas.

– Finalmente decidiu ser uma de nós


– provocaram elas. – Por que está

tão tímida?

Deixei-as acreditar que tinha um


temperamento acanhado. Abaixei a

cabeça e disse que as sardas na


minha pele sempre me
envergonhavam.
Não havia mal em permitir-lhes me
ver como queriam, era uma garota
que

preferia manter-se escondida por


timidez. Sabia como participar da

brincadeira. Lembrei-me de como


sorrir, sendo ou não sincera. As

mulheres sentiam-se mais livres


para falar durante o banho;

compartilhavam segredos formando


um círculo na água. As mulheres do

campo perguntaram sobre o meu


irmão, o que não foi nenhuma
surpresa.

Onde quer que Amram andasse, as


mulheres se atiravam para ele.
Muitas

das mulheres no banho


consideravam-no bonito, mas dei-
lhes poucas

respostas. Disse que raramente o via


e elas aceitaram a minha reserva.

Decidiram discutir sobre Shirah. Se


não fosse uma prima distante de Ben
Ya’ir, uma jovem mulher chamada
Naomi sussurrou, certamente teria
sido

lançada ao deserto. Shirah era uma


praticante do keshaphim, iniciada
nos segredos da magia. O nosso
povo acreditava que qualquer item
com um sol

e uma lua gravados deveria ser


levado ao Mar de Sal e atirado na
água, mas

várias mulheres afirmaram ter visto


amuletos de ouro com tais efígies no

pescoço da bruxa. Dizia-se que em


sua cozinha havia uma caixa
trancada com uma chave em forma
de serpente, Deraqon, outra figura
do Egito que

fora banida. Dentro dela falavam ter


uma infinidade de pecados que se
tornariam o fardo de quem se
atrevesse a abrir a tampa e libertá-
los, pois

seriam como um enxame ao seu


redor, como vespas, ardendo e
mordendo,

nunca abandonando a sua


companhia. Uma jovem alegou ter
sido picada

quando se atrevera a chamar Shirah


de bruxa.

Reparei em uma mulher tranquila,


com tranças no cabelo cor de mel,

que permanecera à margem do


grupo. Era a serva da muralha em
que o

feitiço fora lançado, aquela cujos


braços eram manchados com a
tonalidade

marrom do pistache. Sabia que ela


me reconhecera também, pois não

conseguia sustentar o meu olhar.


Não percebera como era jovem,
pouco

mais que uma menina. Senti uma


pontada de tristeza por tudo o que
tivesse

perdido na montanha.

As outras mulheres continuaram com


suas fofocas. A bruxa era apenas

uma mulher, alguém sussurrou, mas a


filha Aziza era ainda pior. Ela era
uma dos sheydim. Metade anjo,
metade humana, uma combinação
que formava um demônio. As
mulheres no banho juraram que o pai
de Aziza

era um anjo enviado à terra para


ensinar magia às mulheres do mal
que ansiavam conhecer tais
segredos. Criaturas como Aziza
nasciam dessas

associações. Era difícil avaliar


quem eram, pois comiam e bebiam
como nós.

Podiam ter relações sexuais e deixar


os homens saudosos por muito
tempo,

pois podiam até mesmo morrer


como os mortais, mas não eram
como nós.

Viam o futuro em um copo de água e


folheavam as páginas do Livro da
Vida

para ver os nomes que haviam sido


inscritos nelas. Voavam de um lado
do

mundo para o outro no tempo que


levávamos para nos levantar da
cama.

Praticavam a paciência, mas


pegavam o que queriam, com direito
a tudo o

que tínhamos neste mundo; desse


modo, eram iguais aos mensageiros
do

céu, um enigma para nós, que não


tínhamos escolha senão nos curvar
às nossas necessidades e nossos
desejos humanos.

Ouvi essas afirmações sem


comentários e sem expressão, mas
senti um

arrepio de desconforto ao longo da


espinha. Tudo o que fizera desde
que deixara Jerusalém era
certamente um pecado aos olhos de
qualquer um. Se

as mulheres do campo soubessem


que tinha conhecido um leão e o
atraído

para mim, sem nunca deixá-lo ir,


mesmo durante o período do mês em
que

era niddah, o que diriam a meu


respeito? O que pensariam se me
vissem no deserto, à sua espera no
penhasco, desejando-o mais que à
pureza, à

obediência ou ao dever?

Virei-me quando falaram mal de


Aziza. Vira-a cavar os ninhos nos

pombais até suas mãos sangrarem.


Aquele era um trabalho pouco

adequado para um anjo, não mais


que um ofício para uma bruxa.

– Vejam como ela é – as mulheres


insistiram. – Ela nunca virá aos

banhos. Não despirá a túnica ou os


lenços para que qualquer uma possa
ver

esse seu corpo. Há uma razão para


esse recato.

Estavam com ciúme, inveja de que,


onde quer que Aziza aparecesse, os

homens se voltavam para ela, de que


o seu cabelo era da cor da noite, que
o

seu sorriso era doce, de que ela não


pensaria em falar sobre elas com
rancor, como agora a difamavam.
Talvez, também, tivessem visto o
seu

rubor à menção do nome do meu


irmão. Várias das mulheres
claramente

queriam o meu favor só porque era a


irmã de Amram. A que se chamava
Naomi boiava ao meu lado, tão
perto que podia sentir o calor do seu
corpo

na água fria. O ciúme queimava


assim. Sabia disso muito bem.
– Tome cuidado com a filha da
bruxa – advertiu-me Naomi. Sem
dúvida

ela acreditava que eu era uma


mulher que queria uma amiga. – E
nunca tente pegá-la. Os sheydim têm
asas.

As asas de Aziza eram negras,


continuou ela, como as de um corvo,
e como um corvo, dizia-se, ela
cantava para anunciar a chegada do
Anjo da Morte. Todas as vezes que
nossos guerreiros saíam, ela se
empoleirava na
muralha de Herodes, admirando a
paisagem através dos olhos
prateados.

– Está enganada – disse eu,


humildemente, não querendo insistir
na

questão.

Sabia que o Anjo da Morte nunca se


anunciava. Ele vinha em silêncio e

saía em meio à tristeza. Chegava


quando se imaginava estar seguro,
como
quando seguíamos o caminho das
bandeiras azuis através do deserto,
com

a cura para Ben Simon na mão.

Caminhando na volta da mikvah


para o meu quarto, o cabelo
molhado, senti frio e achei-me
superior às mulheres tolas no banho.
Mas, enquanto atravessava a praça,
vi uma figura no escuro que parecia
um anjo,

movendo-se como se dizia que os


anjos faziam, nos cantos da nossa
vista.
Por um instante temi que a morte
estivesse realmente próxima e que
as

mulheres no banho tivessem razão.


Tremi ao pensar que o seu
mensageiro

estivesse solto acima de nós. Ou,


talvez, tivesse me esquecido de
trancar o

pombal e os pombos haviam fugido


para se esconder nos galhos das

oliveiras, farfalhando as folhas.


Estava muito escuro para distinguir
alguma

coisa, então parei onde estava,


pestanejando sob o luar. Vi um
brilho na forma de uma menina
pairar na noite.

Foi então que avistei meu irmão ao


lado de uma pequena piscina em que

cem anos antes o rei Herodes criara


peixes, criaturas pequenas e
cintilantes

que se dizia ser feitas de ouro puro.


Quando um falcão arrancasse um
peixe
do tesouro do rei, cairia sobre a
terra imediatamente, sob o peso da
ganância. Vi uma menina correr para
Amram, voando para seus braços.
Não

havia necessidade de um feitiço para


prendê-lo, ele estava amarrado pelo

próprio desejo, sem uso de bruxaria.


Ele mergulhou nessa rede de amor e

puxou as cordas por si mesmo, não


porque Aziza fosse um anjo, mas

porque era de carne e osso.


UM VENTO frio repentino
surpreendeu todos nós naquele mês
suave. Quando

partiu, as frutas caíam das árvores e


se espalhavam pelas pedras.
Algumas

mulheres juraram que os restos dos


figos dispersos pelo chão formaram
a

imagem de falcões vermelhos que


circulavam sobre nós, esperando
para

reivindicar a nossa fortaleza para si.


Houve pressa para ir com as foices
para os campos de trigo, para colher
o que ainda poderia ser aproveitado

antes que os talos escurecessem.


Nosso povo fez uma oração,
conduzida

pelos sábios e pelos integrantes do


conselho. O principal dos nossos

sacerdotes, geralmente enclausurado


na sinagoga, onde estudava e

distribuía conselhos, postou-se


sobre a muralha e liderou os homens
na oração. Seu nome era Menachem
ben Arrat e era conhecido como um
dos

cinco homens mais cultos da Judeia.


As pessoas diziam que ouvira a voz
de

Deus no topo da montanha. A


situação era terrível, portanto ele
agora aparecia, pois sem os pomares
não teríamos sustento e sem os
pombos não

haveria pomares. Eu aprendera a


gostar do arrulho dos pássaros, um
canto
tão belo que o Cântico dos
Cânticos, a grande glória do rei
Salomão, exaltava-o como se fosse a
voz da pessoa amada. Pomba
minha, que andas

pelas fendas dos penhascos, no


esconderijo das rochas escarpadas,
mostra-me

o rosto, faze-me ouvir a tua voz,


porque a tua voz é doce, e o teu
rosto, amável.

O conselho tomou uma decisão em


nosso benefício. Os pombais foram
abençoados e fizeram-se oferendas
pela saúde dos animais. Queimamos

bálsamo e mirra em suportes de


prata, para que a fumaça assegurasse
a postura ininterrupta dos nossos
protegidos. Por causa do vento
cortante, as

pombas tremiam em seus poleiros e


enfiavam a cabeça debaixo da asa.

Destinaram-nos um dos soldados


romanos do norte para fazer a parte
mais

pesada do nosso trabalho, carregar


os cestos para os campos, estender o
feno e recolhê-lo depois de usado e
úmido. O outro soldado fora trocado
por dois burros brancos que os
comerciantes de Edom nos
trouxeram e já

fora embora da fortaleza. Era isso o


que valia um escravo neste mundo.
O

nosso usava algemas de metal nos


pés, que foram destrancadas quando

veio trabalhar para nós. Ele


mantinha o olhar de lado e fazia o
que lhe era
dito. Torcera o cabelo louro em
tranças, em vez de permitir que
caíssem lisos como quando chegara,
mas, apesar dessa tentativa de
esconder como

era diferente, ainda assim não se


parecia conosco de modo algum.

Ele parecia envergonhado da sua


situação, no entanto, quando Revka
lhe

fazia um sinal, apressava-se a fazer


o que lhe era ordenado. Ele era alto,
quase um gigante, bem musculoso,
com braços e pernas longos.
Cobrindo o

seu antebraço forte, via-se uma


imagem tatuada em preto de uma
criatura

que parecia um cabrito-montês, mas


com enormes chifres ondulados. O

escravo me viu olhando e devolveu


o olhar abertamente.

– Não se preocupe – comentou


Revka quando notou seu
comportamento

rude. – Faremos todos os esforços


para domá-lo.

O escravo lançou-lhe um olhar


sombrio, em seguida voltou a
trabalhar,

limpando os ninhos. Rapidamente


vim a acreditar que ele conhecia
mais a

nossa língua do que deixava


transparecer. Ele dava de ombros e
fingia não

entender, mas pude ver a verdade


pelo modo que me encarou um dia,
quando quebrei um ovo e murmurei
uma prece para o espírito da pomba

que poderia ter nascido.

– Sabe o que acabei de dizer? –


perguntei.

Ele desviou o olhar. Seus estranhos


olhos azuis eram frios.

Notei que muitas vezes ele


esquadrinhava a praça através das
ripas que

cobriam as janelas do pombal, que


permitiam a entrada de ar mas
detinham os pássaros. Pensei que
poderia estar procurando o outro

escravo.

– O seu companheiro foi mandado


embora – disse-lhe. – Não o
veremos

mais.

Embora não tivesse certeza, pensei


vê-lo estremecer ao ouvir a notícia.

Senti pena dele, talvez porque fosse


agora o único da sua espécie.
Lembrei-
me do leopardo que enfrentara no
deserto, como a fera correra de mim
quando pulei em cima de uma pedra
e rugi. Como parecera solitário ao
correr para os arbustos espinhosos,
como me senti só quando me deixou.

– Bem, se sabe o que lhe convém,


não ouvirá mesmo que seja capaz de

entender – adverti o nosso cativo.

Passei a observá-lo e notei que era


inteligente, pois adotara um método

novo de limpeza dos pombais com


um ancinho que inventara. O escravo
encontrara pregos enferrujados no
chão, que utilizara para prender os

galhos a um ramo torcido de oliveira


que crescera no meio de um espaço

no telhado. Toda vez que ele


percebia que eu o estava
observando, parecia

envergonhado, cauteloso. Ele me fez


pensar em um urso sírio que vira
uma

vez em Jerusalém, preso a ferros


para executar truques para o seu
dono romano. O urso mantinha os
olhos baixos, mas uma vez, quando
não

conseguiu se conter, arreganhou os


dentes, apenas para receber um

bofetão. Erguera as patas sobre a


cabeça, como se fosse um homem
sendo

espancado. Embora outros rissem na


multidão, recuei e fugi, o coração

batendo forte.

– Você tem comida suficiente? –


perguntei ao escravo no fim de um
dia.

Imitei o gesto de comer para que


pudesse entender. Ele balançou a

cabeça, encolheu os ombros. Sabia


que ele dormia no sótão fétido acima
do

pombal, onde era acorrentado à


noite, que recebia grãos e biscoitos
como

ração e pouco mais. Comecei a


deixar-lhe pilhas de galhos, para que

pudesse ter uma fogueira e aquecer-


se quando as noites fossem frias.

– Você é surdo? – perguntei em voz


alta.

Ele erguera os olhos para mim


então. Era um estranho vindo de uma

terra coberta de neve, algo que só


vira uma vez na vida, quando era
menina.

A neve caiu sobre Jerusalém até


cobrir as colinas, enviada por
Shalgiel, o anjo da neve. Algumas
crianças a confundiram com maná e
comeram
punhados dela, congelando seus
lábios.

O escravo me entendeu. Estava certa


disso.

Eu sabia o que era ansiar por uma


vida tão distante que parecia nunca

ter sido nada além de um sonho.


Será que ele sonhava com neve e
cabras

selvagens azuis, ou com o


companheiro, levado acorrentado
para além do
Mar de Sal?

Tirei uma das pombas do seu nicho,


segurei-a até que se acalmasse,

então rapidamente quebrei seu


pescoço. Quase ri ao ver a surpresa
do

escravo. Observando-me daquele


modo, talvez não esperasse uma
ação tão

abrupta e mortal. Mas eu não temia a


crueldade, sabia que estava dentro
de
mim, pois estava dentro do
leopardo, que devia pegar seu jantar
para

sobreviver. O escravo mostrou-se


grato quando lhe entreguei o pássaro

para cozinhar para o jantar;


escondeu-o num canto distante, onde
poderia

alcançá-lo quando fosse acorrentado


à noite.

Na manhã seguinte, quando Revka,


sempre azeda e pronta para culpar
alguém, notou um pássaro faltando,
declarei ter visto um falcão mais
cedo

naquele dia. Essas coisas


aconteciam com bastante frequência:
uma pomba

surgia pela estreita abertura no teto e


era atingida em pleno ar. Então
haveria penas flutuando para baixo
e, se você estreitasse os olhos, veria
uma chuva fina de sangue.

QUANDO IA à muralha apreciar o


panorama a perder de vista além do
nosso povoamento, muitas vezes me
impressionava com o quanto
estávamos

isolados do resto do mundo. Era


como se o deserto não tivesse fim, a
terra

tão distante que parecia impossível


voltarmos a andar sobre ela

novamente. Se isso era ser um anjo,


ser um Rafael ou um Miguel, ou um
dos

sheydim que observavam a


humanidade do alto, então aquele
era um lugar

solitário e terrível para ocupar.


Éramos uma cidade e um mundo
para nós

mesmos, com mais gente chegando o


tempo todo. Desesperados, devotos,

batidos, perdidos. Era por isso que


havia tanto falatório, era difícil
manter

um segredo naquele tipo de mundo


apinhado e implacável. As famílias
compartilhavam o espaço vital,
tendo apenas as paredes finas de
tecido grosseiro de pelo de cabra
amarrado por cordas a nos separar.

Ouvíamos o que deveria ser


privado, as relações amorosas e
igualmente

as discussões. Sabíamos de quem


eram os filhos que não se
comportavam e

eram repreendidos, e quem era a


esposa que murmurava maldições
tão
logo o marido deixava o seu
alojamento. As casas de banhos
estavam

sempre cheias, tanto de conversas


como de corpos. As lojas se
enchiam de

pessoas à procura de farinha e


azeite. Tantos tinham se deslocado
de

Jerusalém para lá que não havia o


suficiente para todos; éramos
obrigados

a dividir tudo, a esperar em filas


pelos alimentos e provisões
distribuídos

com cuidado dos depósitos cada vez


mais vazios, a labutar até altas horas

da noite. Eu entendia por que os


homens saíam para os ataques.
Embora fosse apenas uma mulher,
alheia ao que os homens discutiam
na sinagoga

ou nos alojamentos militares, ainda


assim compreendia o que se
esperava

se fôssemos desfavorecidos por


Deus. Embora os campos estivessem

verdes no momento, era impossível


prever a chegada de tempestades, se

nos atacariam nuvens de gafanhotos,


se passaríamos fome no mês de Av,
quando o mundo ardesse novamente.

Por ora, estávamos na estação


amena. Podíamos colher rabanetes

silvestres e verduras que cresciam


entre as rochas no outro lado do
Portão

da Serpente, aparecendo em lugares


em que parecia impossível crescer

alguma vegetação. Ainda assim,


sabíamos que o período de
abundância não

duraria muito. Fora por isso que


Herodes abastecera seu depósito
com

provisões suficientes para durar cem


anos, um tempo que alcançáramos e

ultrapassáramos. As jarras de azeite


e vinho estavam se esvaziando.

Batíamos nas laterais e, quando o


barro ecoava, sabíamos que não
restava

mais nada ali dentro.

Naquele momento, éramos tantos


que a madeira para as fogueiras

passara a ser racionada. Imaginava o


que aconteceria se as nossas culturas

fracassassem e nos restasse somente


o espírito e nada mais. Uma noite,
quando busquei alguns gravetos
deixados à nossa porta, não os
encontrei.
Meu pai disse que cabras os tinham
comido, mas as cabras ficavam
presas

nos cercados. Ele disse que eu era


idiota, incapaz até mesmo de contar
varas. Mas eu sabia que um dos
vizinhos nos roubara. Era o que
acontecia

em tempos de vacas magras. A


verdade sobre as pessoas vinha à
tona tão

seguramente quanto os minúsculos


peixes prateados que surgiam na
areia
do deserto na época das inundações,
aparecendo milagrosamente nas

ravinas em meio às súbitas


corredeiras. Dizia-se que aqueles
peixes se enterravam na areia por
sete anos, a carne tão seca que
parecia não ser nada além de poeira.
Ao primeiro sinal de chuva eles se
revelavam,

exatamente como as pessoas faziam


quando tinham tempo e motivo

suficiente.

MEU PAI contentava-se em não ter


nada a ver comigo. Permitia que
fizesse a limpeza e cozinhasse para
ele, mas me ignorava em todas as
outras

ocasiões. Ouvira a sua opinião


quando alguns homens indagaram a
meu

respeito, admirando o meu cabelo


vermelho.

– Ela não é nada – dissera ele. – Só


um problema.

Depois que a noite caía, meu pai


sentava-se no lado de fora do nosso
alojamento em um banco que
construíra com o manto sobre os
ombros. A

meia-luz ele desaparecia, tornando-


se rapidamente a muralha, a
escuridão,

a noite em si, como fazia quando se


escondia no lado de fora do Templo,
praticando a invisibilidade.
Imaginava se eu mesma seria capaz
de vê-lo contra as pedras, voltado
para Jerusalém, ansiando, assim
como eu, por uma vida que passara.
Sentia compaixão por esse homem,
apesar de tudo o
que fizera. Eu mesma era sua
parceira no crime.

Meu pai não era orgulhoso a ponto


de não participar das refeições que

eu preparava, apesar do desprezo


que nutria por mim, consumindo

lentamente um ensopado de
lentilhas, feijão e cevada. Nas horas
em que saía do nosso alojamento, eu
tinha a liberdade de ficar lá dentro à
vontade.

Ouvia as outras mulheres reunidas


na praça, cantando enquanto
trabalhavam nos teares; o som das
suas vozes era agradável, melodioso

como o canto dos pássaros.


Aprendera a fiar e a tecer, mas
nunca as acompanhei. Caso
contrário, alguma poderia ter-me
interrogado e depois

me identificado por quem eu era,


nada além de um problema,
exatamente

como o meu pai declarara, uma


mulher arruinada cuja hora da
verdade se
aproximava. Em pouco tempo não
seria mais capaz de esconder a
verdade.

Ninguém me procurava; até mesmo o


meu irmão estava ausente,

aproveitando o pouco tempo


disponível fora da guarnição para
dedicar a Aziza. Meu único visitante
era a mulher fantasma dos meus
sonhos. Só ela

me procurava fielmente. Com o


tempo, vim a conhecê-la melhor que

ninguém. Dormia com ela todas as


noites e nos meus sonhos ela
chorava.

Eu não acreditava em lágrimas, nem


nas minhas nem nas dos outros;

achava que era vergonhoso, um sinal


de fraqueza, mas não tinha escolha a

não ser mentir em silêncio ao lado


dela e ouvir enquanto chorava.
Estava

acorrentada a ela da mesma maneira


que o escravo do país do norte era
acorrentado à muralha de pedra do
pombal.
Em uma noite escura, em lugar do
fantasma foi Nahara quem me

procurou. Era a hora em que o meu


pai me acordara quando fugimos de
Jerusalém, mas Nahara não gritou
como ele. Ao contrário, ela se
aproximou

discretamente do meu leito e pousou


a mão sobre a minha boca. Era

acordada assim para assegurar que


não gritasse e despertasse o meu pai.

Por um instante imaginei que


estivesse no deserto e fosse Ben
Simon que

queria o meu silêncio, e não resisti.


Mas a mão era muito pequena, muito
delicada. Quando abri os olhos,
Nahara estava lá, insistindo que eu
me apressasse. Peguei a minha
túnica e segui-a para fora, a fim de
que o meu

pai não fosse perturbado com nossa


conversa sussurrada. Sempre havia

alguém vigiando, mas encontramos


um canto escuro.

– A minha mãe quer que venha


comigo. – Nahara tinha uma natureza

doce e descomplicada. Ela esperava


simplesmente que fizesse o que me
era

dito. – Ela precisa da sua ajuda.

– Devia pedir para sua irmã ajudar –


recomendei, ansiosa para voltar ao

meu quarto. Havia tantas estrelas na


noite escura que podia vê-las cair
enquanto erguia os olhos para a
escuridão. Eles pareciam tão
próximas, assim como o Mar de Sal
ao longe, quando estavam tão
distantes.

– A minha irmã não tem a coragem


necessária para o que vamos fazer. –

Nahara estava tão séria que poderia


ser a irmã mais velha. Ao contrário
de

Aziza, tinha olhos escuros, mas os


seus eram salpicados de amarelo,
que pareciam sempre semicerrados,
um olhar sutil que sugeria
pensamentos

profundos. – Aziza nunca assistirá a


um parto. Ela diz que não suporta
ver

sangue.

– Como isso é possível? Ouvi dizer


que sua irmã é capaz de coisas que
nenhuma mulher mortal pode fazer –
aventurei-me a testá-la. – Será que
meu irmão saberia mais sobre isso?

Nahara sorriu. Se parecia mais


velha que a sua idade, eu também
era

igual quando tinha a idade dela.

– Duvido. O que um guerreiro


saberia sobre o comportamento das

mulheres?

– Preciso dormir – objetei, mas


Nahara me puxou pela manga,

recusando-se a desistir.

– A minha mãe disse que você


precisa vir. Prometeu que ajudará a
leoa

em troca do que fizer hoje à noite.

Senti-me totalmente acordada


quando ouvi isso. A mensagem era
uma

ameaça velada ou uma promessa?


Nada me esperava no meu
alojamento

além de um fantasma encolhido que


chorava. Não tinha ninguém em casa,
a

não ser um assassino que me


repreendia enquanto eu varria o seu
chão.

Quando Nahara me disse que


estavam à procura de um cão preto,
fiquei curiosa e decidi acompanhá-
la. Nahara carregava um jarro e
entregou-me

um pedaço de corda. Havia muitos


cães pretos no assentamento, se era
isso

que Shirah queria. Encontrei um a


certa distância e o peguei. Simples
assim.

Mas quando levei o desgarrado a


Nahara ela riu, cobrindo a boca para
que

ninguém ouvisse.
– Este não está bom? – disse,
irritada. Passara a corda com
firmeza ao redor do pescoço da
criatura, mas Nahara agachou-se
para retirar o laço.

Ela se divertiu por eu ter imaginado


que a nossa tarefa fosse tão fácil.

– Aquele lá. – Ela apontou para uma


cadela feroz que rosnava para nós a

certa distância. – Acha que consegue


capturá-la?

– Um cão preto não é um leão –


comentei.
Peguei a cadela como capturava as
aves selvagens no deserto. Sentei-
me

ao seu lado, fingindo não prestar


atenção enquanto ela exibia os
dentes sob

os lábios. Permaneci em silêncio,


pois aquele era o meu dom e o que
fazia

melhor. Depois de um tempo, passei


a corda em volta do seu pescoço. A
cadela olhou para mim. Assim que o
fez, passou a me pertencer, como
acontecia com as aves, do mesmo
modo que olhara para Ben Simon e
ele me pertencera.

Nahara aproximou-se correndo,


satisfeita com a minha atuação, o
cabelo

escuro voando atrás de si. No


entanto, ainda não tínhamos
concluído nossa

tarefa.

– Agora você deve tirar o


ingrediente de que precisamos – ela
instruiu. –
Pode ser que ela a morda quando
tentar.

Então entendi. As tetas da cadela


estavam cheias; ela tivera filhotes

recentemente. Era o seu leite que


procurávamos.

– Por que não tenta? – retruquei. –


Você é magra e ágil. Vou impedir
que

ela a morda. Basta agir como faria


ao se aproximar de uma cabra, mas
seja
rápida.

Nahara balançou a cabeça.

– Não sou mulher ainda. Precisa ser


você.

Mantive a corda firmemente presa


ao redor do pescoço da cadela e

ordenei-lhe que olhasse para mim.


Sem falar, disse-lhe para não se
mover.

Instruí-a com o meu toque e com o


meu silêncio, e ela se comportou.
Seu corpo estava quente e rendeu-se
a mim, certamente meu toque era
mais

suave que os dentinhos afiados dos


seus filhotes. Quando acabei de
coletar

o leite, libertei-a, então acompanhei


Nahara ao longo da parte mais
antiga

da muralha. As pessoas diziam que


as pedras ali eram feitas do mesmo
calcário que Herodes usara na
construção do Templo de Jerusalém,
com
sua marca gravada na borda de cada
uma delas. Imaginei se o fizera com
a

certeza de que as pedras com a sua


marca durariam pela eternidade e se
talvez Adonai as fizera cair
simplesmente para provar que um
homem era

apenas um homem, mesmo sendo um


rei.

Atravessamos para uma parte


abandonada do palácio, arruinada
por
incêndios na época dos romanos,
mas ainda útil quando se quisesse
um

lugar de privacidade em um mundo


abarrotado como o nosso.

– Por que não pediram a Revka para


ajudá-las esta noite? – Certamente

ela era mais confiável que eu. – Ela


tem medo de mordida de cachorro?

ironizei.

– Ela tem dois meninos para cuidar


e isto aqui pode levar a noite toda.

– Revka? – surpreendi-me. Ela era


tão amarga, mal abria a boca para

falar. – Ela é muito velha para ter


filhos pequenos.

– São seus netos. Ela cuida deles e


eles dormem ao lado dela. Você é
sozinha. Ninguém sentirá a sua falta.

Não podia argumentar contra isso.

– A minha mãe quis você. – Nahara


olhou para mim com um respeito que
me surpreendeu. – Disse que você
seria capaz de pegar o cão preto e
você

conseguiu. Deve se sentir


lisonjeada.

Entramos por um portão de ferro,


depois, juntas, usamos a nossa força

para empurrar uma porta antiga de


madeira de acácia esculpida que nos
levou a um corredor que conduzia ao
mais antigo dos depósitos. Essas

câmaras já haviam sido tão cheias


de tesouros que se dizia que ainda
havia

pó de ouro entre as pedras.


Descemos uns cem degraus de uma
escada

curva para o subterrâneo, e


realmente era possível notar um
brilho fraco na escada. O ar estava
úmido e frio, denso, as sombras de
uma cor de ardósia escura. O
corredor ficou mais estreito à
medida que prosseguíamos.

Por fim, fomos obrigadas a andar


uma atrás da outra. Nahara
carregava uma lâmpada cheia de
azeite de oliva. Eu portava o jarro
de leite. Chegamos

a um salão vazio feito de pedra, em


ruínas.

Ouvia-se eco enquanto


continuávamos, embora
estivéssemos descalças.

Uma voz soou em algum lugar, mas o


som nos chegou abafado. Reconheci

os lamentos entrecortados de dor.


Sia chorava dessa maneira quando

adoecera, a mão cobrindo a boca


para tentar calar os soluços,
esconder a sua fragilidade de nós.

Quando olhei através das sombras


dos longos sulcos na muralha, quase

acreditei haver um demônio estirado


no chão, muito parecido com o

impresso no amuleto do meu irmão,


a fêmea do monstro que se dizia que

Salomão matara no chão do Templo.


Quando nos aproximamos, reconheci
a

forma de uma mulher rolando de um


lado para o outro em agonia. Era a
jovem empregada que pedira um
feitiço a Shirah, aquela que
permanecera

de lado no banho na noite em que me


disseram que Aziza pertencia ao
mundo dos anjos e demônios. Ela
viajara para aquele lugar como uma

serva, mas, recentemente, a família


para a qual trabalhava a expulsara,
quando sua condição se tornara
evidente. Já não era mais
considerada

digna de colher amoras ou pistaches,


ou de transportar as cestas da
patroa.

Vivia escondida perto dos armazéns,


roubando comida dos celeiros das

cabras. Seu atual estado de miséria


tocou-me profundamente. Senti-me

amedrontada ao ver como ela


esfregava o abdome, ofegante,
transtornada

de dor.

Shirah pedia que se sentasse, mas a


jovem se recusava. Uma criança
estava prestes a entrar no nosso
mundo, uma criança sem pai nem
família.

Se fosse descoberto que o pai da


criança era um homem casado, seria

impossível àquela jovem escapar do


seu destino. O conselho poderia

recomendar que fosse expulsa da


montanha. Aquele nascimento teria
de

permanecer em segredo e, como


logo cheguei a entender, os segredos
eram
o maior dom de Shirah.

Shirah me fez um sinal, mas


permaneci no lugar sem me mover,
picada

pelo pânico como uma vez fora por


uma vespa. Eu, que nascera de uma
mulher morta, não tinha o direito de
ajudar alguém a trazer a vida.

– Depressa – Shirah insistiu. Havia


um segundo jarro ao lado dela. –

Misture o leite com a água.

Fiz isso, depois observei, presa


como em um sonho, enquanto Shirah
e

Nahara apoiavam a mulher e pediam


que bebesse a mistura com o leite da

cadela. A empregada cuspiu um


pouco no chão e produziu um som
terrível,

o grito de uma mulher que estivesse


se afogando. Segurava a barriga

enquanto a dor a dilacerava. Shirah


e Nahara puseram-na de pé e
fizeram o
possível para que caminhasse, mas
nem mesmo isso nem fez diferença.
O

bebê não nascia.

Shirah então mandou que a


empregada se agachasse sobre o
banquinho

de parto que trouxera, e que fizesse


força para baixo. Ainda assim, nada
aconteceu. A empregada era tão
jovem que parecia pouco mais que
uma

criança naquele momento. Ela


amaldiçoou não o homem que era o
pai, mas

a si mesma. Senti algo subir pelo


meu peito e pela garganta enquanto
acompanhava um nascimento que
não acontecia. Tinha a faca de Ben
Simon

sob a túnica, fria contra a minha


pele. Pensei na faca usada para me
tirar da

minha mãe, nos ecos dos seus gritos


estridentes e no silêncio do seu
último
suspiro.

Shirah aproximou-se de mim e me


sacudiu.

– Pare de sonhar! Vá até o pombal e


me traga uma cesta de excrementos.

Fazia um calor insuportável dentro


do depósito e Shirah estava

encharcada de suor. Seu cabelo


preto escorria pelas costas. O kohl
em torno dos seus olhos derretia-se
de tal modo que eles pareciam estar
por trás de
um véu. Pensei nunca ter visto uma
mulher tão bonita ou tão feroz. A sua

túnica se abrira e fiquei chocada ao


ver um redemoinho de tatuagens

vermelhas em seus ombros, uma


prática proibida ao nosso povo.
Dizia-se que as pessoas que
possuíam aquelas marcas pertenciam
aos kedeshah, mulheres santas que
eram leais a grupos religiosos com
práticas tão

secretas e polêmicas que haviam


sido banidas muito antes da queda
de
Jerusalém.

– Vá de uma vez! – ordenou Shirah.


– Se essa mulher tivesse alguém a
quem recorrer, acha que estaria
aqui? Ela não tem ninguém, só um
homem

que não quer nada com ela e um


bebê que se recusa a deixar seu
ventre.

Quanto mais rápido fizesse o que


Shirah ordenava, mais rápido estaria

de volta ao meu alojamento, longe


daquele cenário louco. Saí
temerariamente por aqueles
corredores, que pareciam uma série
de

masmorras, pretos como breu, pois


não tinha uma lâmpada. Finalmente

cheguei à porta que me levava para


a noite. Uma lua clara brilhava no
céu

com uma luz ácida que quase me


cegou depois do ar escuro do
depósito.

Ainda assim, ninguém percebeu


enquanto corri para o pombal, com
passos

silenciosos sobre as pedras de


granito. Abri a porta, depois abri
caminho por entre o bater das asas
das aves assustadas por terem sido
perturbadas

a uma hora tão tardia. Comecei a


encher a cesta, frenética, o sangue
correndo em disparada pelo corpo.

Foi então que vi o escravo. Sua


corrente estendia-se desde a
plataforma

no alto, onde dormia, até o chão.


Acordara quando a porta do pombal
fora

aberta, pronto para se defender, caso


nossos guerreiros tivessem chegado

para mutilá-lo, ou matá-lo, ou trocá-


lo com os nômades. Esquecera-me

completamente dele. Ouvia a minha


respiração rouca, dominada pelo

pânico. As lágrimas que não caíam


ardiam por trás da minha visão.
Nossos

olhares se cruzaram. Fitamos um ao


outro como dois animais reunidos
em

uma lagoa, sedentos e desconfiados,


ambos perfeitamente capazes de

violência. Depois de um instante, o


escravo inclinou a cabeça,
indicando-me

para continuar com o que viera


fazer. Voltou a se deitar e baixou os
olhos,

que assim pareciam duas fendas.


Fingiu estar dormindo, as costas
contra as
pedras. Senti-me grata a ele por
isso. Falasse ou não a nossa língua,
não importava. Bastava ele me olhar
e eu sabia que entendera.

Terminei o meu serviço, depois


tranquei o pombal e corri de volta
do mesmo modo que viera. O chão
estava branco, forrado com as flores
caídas

das amendoeiras. Pensei na neve, no


maná e em Jerusalém. Pensei no

escravo encolhido entre as pombas.


A minha respiração pulsava contra
os
ossos.

Shirah me esperava, andando de um


lado para o outro. Enrolara o cabelo

comprido sobre a cabeça e se


desfizera dos véus. Com uma caneta
de ponta

fina feita com uma pena de falcão,


usando sangue em vez de tinta, ela
escrevera o nome do nosso Senhor
em seus braços, as letras lidas de
baixo

para cima, na direção do céu.


Preparara pharmaka com as folhas
preciosas da arruda, uma erva que a
maioria das mulheres com filhos
evitava, pois provocava cólicas.
Muitas pessoas recusavam-se a
tocar a planta, pois a arruda
queimava a pele. Geralmente era
arrancada do chão amarrada a um

cão, para que a maldição que


acompanhava a extração da raiz
recaísse

sobre o animal. Algumas mulheres


usavam a erva quando queriam
abortar,

mas a arruda também poderia ser


usada quando fosse preciso apressar
o nascimento de um bebê, tanto para
o bem dele como para o da futura
mãe.

Shirah reuniu os excrementos de


pomba e acendeu uma fogueira

usando-os como turfa. Ela atiçou as


chamas até subir uma nuvem de

fumaça. O cheiro emanado era


amargo, mas também familiar.
Parecia que

os pombos nos haviam seguido até


aquele lugar; podíamos ouvir suas
asas

batendo, tão rápidas quanto a nossa


respiração, tão rápidas que o

nascimento deveria acontecer se


fosse para a mãe e a criança

sobreviverem. Depois que a


parturiente bebeu a arruda amarga,
vomitando

com ela, Shirah nos fez segurá-la


por um braço. Em seguida, nós a

obrigamos a ficar em cima do fogo.


O ar queimava com o calor e todas
nós

estávamos ensopadas de suor. Tirei


o xale, sentindo que poderia sufocar.

Mal conseguia enxergar em meio a


tantas cinzas e faíscas. O mundo era
feito de sal e fumaça, e não havia
escolha a não ser seguir em frente.

Entráramos no lugar mais profundo,


a sede da grande deusa Astarte,

mencionada pelos profetas, a deusa


que continuava a nos acompanhar

apesar de os sábios do Templo


terem feito tudo para destruí-la. Nem

mesmo eles poderiam derrotar o que


muitos alegavam ser o aspecto

feminino de Deus, a Shechinah, tudo


o que era divino e radiante, a noiva
do noivo Adonai. A Shechinah
curava os enfermos, convivia com
os pobres, abraçava igualmente os
maus e os bons.

A parturiente ofegava apoiada em


nós. Quanto a mim, parara de pensar

e simplesmente fazia o que me era


ordenado. Não sabia como viera
parar

ali, acordada dos meus sonhos,


arrastada do meu alojamento
naquela noite

escura. De todas as pessoas, um


prenúncio do Anjo da Morte,
conhecido como Mal’ach ha-Mavet
antes de eu ser conhecida como do
gênero humano,

uma assassina da própria mãe,


estava agora de guarda para Astarte,
a

Rainha do Céu.
A empregada pediu-nos para tirá-la
de cima do fogo. Disse que estava

sendo queimada viva, que as faíscas


entravam em seu corpo,
entrelaçando-

se com seu sangue e seus ossos. Pedi


permissão para movê-la, mas Shirah

insistiu que a fumaça era necessária


para abrir seu ventre.

– A bondade pode ser uma maldição


– disse ela. Agachou-se ao lado da

serva e começou a cantar.


Beshem eh’yeh asher eh’yeh tsey
tsey tsey.

A voz de Shirah era rouca e quente,


as entonações subiam. Ela

pronunciou as palavras várias vezes,


e seu canto nos envolveu até

podermos ouvir somente o tom e o


desespero.

Va’yees’sa va’ya’vo va’yett. Em


nome de eu sou quem sou, em nome
de Deus, saia. Já fez a sua jornada
e agora chegou. Amém. Amém.
Selah.
A mulher continuara a chorar, mas
nesse momento os seus lamentos

pioraram. Os chacais se chamavam


daquela maneira, chorando na noite.
A

pobre serva estava tão imersa em si


mesma, no âmago mais profundo,
que

parecia impossível voltar à tona


novamente. Pensei na minha mãe nos
seus

últimos instantes, antes do silêncio


se impor, clamando em seu choro
contra a brutalidade da sua sina,
enquanto o meu pai, lamuriando-se
na porta, me amaldiçoava.

A parturiente falava aos que não


estavam presentes, orando ao nosso

Deus, Adonai, e a Abraxas, um deus


dos egípcios, e a Astarte. Fazia
barganhas secretas, prometendo tudo
o que estivesse disposta a sacrificar

se o seu tormento terminasse, sua


vida, sua alma, seu filho recém-
nascido.

– Levem tudo! – ela gritou. –


Levem-me também!

Receei que chamasse a atenção dos


guerreiros com seu choro, ou

convocasse demônios que não


conseguíssemos repelir, mas Shirah
disse

que não, que era o silêncio que


deveríamos temer. O silêncio em um

nascimento significava que os


demônios haviam vencido e que
Lilith, a

criatura da noite da Babilônia, com


seus longos cabelos negros e suas
asas

negras, que atacava as outras


mulheres, seduzia seus homens e
roubava

seus filhos, tinha prevalecido.

Shirah escreveu o nome de Obizoth,


o demônio feminino que

estrangulava os recém-nascidos, e
depois queimou o papiro em que

escrevera aquele nome vil. A


fumaça subiu escarlate, da cor do
sangue.

Éramos as defensoras e estávamos


em batalha. Senti que poderia pegar
um

demônio pelo pescoço, caso ousasse


aparecer diante de nós. O deserto
me

ensinara que devemos destruir para


poder viver. Tínhamos montes de sal

para atirar sobre todas as criaturas


da noite que se aventurassem a se
aproximar. Peguei um punhado e
esfreguei sobre meu abdome, pois as
crianças não nascidas eram
especialmente vulneráveis aos
demônios.

Permanecemos ao lado do fogo, o


suor dos nossos corpos fazendo
arder

os olhos. Quando o fogo ardente


passou de vermelho a azul, Shirah
recitou

sua devoção a Adonai para que o


anjo Rafael frustrasse qualquer
tentativa de fazer mal ao bebê
quando ele finalmente surgisse. A
futura mãe começou
a ter contrações. Eram visíveis os
movimentos dentro dela, como se
uma tempestade atravessasse seu
corpo. Percebi que estava recitando
o

encantamento de Shirah. Aprendera


as palavras e as memorizara, pois

também acreditava que nos


protegeria do mal.

Shirah orientou-nos a afastar a


mulher das chamas assim que seu

líquido desceu em uma torrente.


Percebi o quanto me apavorara
pensando

que a criança não nasceria, enquanto


Nahara, embora não tivesse mais
que

treze anos, não temia o que estava


por acontecer.

– Finalmente ele chega – disse ela,


radiante. Bateu palmas e depois se
agachou, preparada.

O bebê chegou a suas mãos


rapidamente, o rosto retorcido em
uma
carranca. Nahara sorriu, sem medo,
embora o sangue se espalhasse por

toda parte. Pensei: Ela é uma


mulher e eu não. Ela já é tudo e eu
sou nada.

– O que acontecerá a ela agora? –


perguntei a Nahara, indicando a
nova

mãe.

– Ela voltará à mulher que é a sua


senhora e dirá que encontrou o bebê

nos penhascos.
– E vão acreditar nela? – perguntei.

– A minha mãe vai acompanhá-la.


Eles vão aceitá-la de volta. Vão

acreditar que devem fazer isso para


que o homem da casa possa ter um
novo filho.

Shirah ajoelhou-se e enfiou a mão


dentro da mulher, entoando seu

cântico enquanto retirava a placenta.


Essa seria enterrada no pomar, onde

ninguém a descobriria. O que dera a


vida a essa criança traria boa sorte
para as nossas culturas.

A noite fora um turbilhão. Por fim o


silêncio se abateu sobre nós.
Estávamos molhadas e quentes,
cansadas demais para nos purificar.
Agora

que o bebê lhe fora entregue e era


envolvido em um pano limpo, a mãe
o

segurou e pôs contra o peito. Ouvi


um soluço e percebi que partira da
minha garganta.

Entendi a razão de Shirah querer a


minha presença ali naquela noite.
Ela

já adivinhara o que vinha se


desenvolvendo dentro de mim.
Chegando ao meu lado, ela
sussurrou, para ninguém ouvir.

– Pensou que fosse a única leoa? –


indagou ela, o nosso trabalho ali já
terminado. – Pensou que eu não
soubesse?

MEU IRMÃO liderou um ataque


pouco tempo depois. Era uma honra
para ele fazê-lo, um sinal da sua
bravura e do seu favor aos olhos de
Ben Ya’ir. No
entanto, aqueles que o amavam
desejaram que não fosse tão
honrado.

Temíamos que a sua fosse uma


missão que o levasse para o Mundo

Vindouro. No pombal, Aziza se


extenuava de trabalhar. O cabelo se

embaraçava às suas costas, uma


massa de fios pretos. Recusava as
refeições

e passava suas noites na muralha,


olhando para o vazio dos campos
esbranquiçados de pedras que Deus
estendera à nossa frente. Ainda era

possível ver as pegadas dos


guerreiros que haviam se aventurado
vale

abaixo, mas elas desapareciam e o


vento empoeirado acabava por
apagar

seus últimos vestígios, e logo


parecia que nunca haviam tomado
aquele

caminho.
O céu estava nublado e avistavam-se
incêndios a distância, pois os

nômades vagavam por ali e os


soldados da legião não andavam
muito

longe. A fumaça elevava-se até as


nuvens, tornando o mundo sombrio.

Amram se fora fazia alguns dias.


Logo Aziza foi para a cama,
recusando-se a

sair dali até mesmo quando o sol


finalmente rompia a escuridão. Nem
mesmo a irmã mais jovem conseguia
convencê-la de que deveria cuidar
da

própria vida. Estava dominada pelo


terror que se abatia sobre todas as
mulheres que esperavam por um
guerreiro.

Meu pai e eu também olhávamos


para cima dos penhascos,
procurando

no horizonte. Apesar da distância


que nos separava, éramos iguais no
nosso
amor por Amram. Talvez por causa
da nossa preocupação comum,

começamos a fazer a refeição da


noite juntos. Não falávamos, a não
ser para

nos referir à comida, mas finalmente


podíamos compartilhar o mesmo

alojamento sem nos dar as costas.


Tentava não pensar sobre como meu
pai

reagiria ante a minha desonra, se


soubesse que carregava o filho de
Ben Simon, o quanto seu ódio por
mim se multiplicaria, como me
humilharia e

me expulsaria, como provaria que


estava certo. Nada além de um
problema.

Eu, que podia afogar alguém de


dentro para fora, que seduzira o
marido de

outra, como se dizia que Lilith fazia,


não era digna de varrer o chão que
ele

pisava. Meu pai cortaria o cabelo da


minha cabeça e rasgaria as minhas
roupas para me marcar como uma
zonah, depois rasgaria as próprias
roupas, como fazemos para chorar
pelos mortos.

Eu só poderia ficar em silêncio se


ele fizesse tudo aquilo, pois o
silêncio

era o que eu conhecia melhor.

NOS CAMPOS, as árvores frutíferas


não produziram tão copiosamente
quanto poderiam depois da onda de
frio. Os suprimentos de Herodes iam

diminuindo rapidamente, as rações


foram reduzidas. Meu pai queixava-
se

das refeições que lhe preparava, e


tinha todo o direito de fazê-lo. O
nosso

povo começava a passar fome.


Amram e os outros guerreiros
haviam sido

enviados ao vale para tomar o que


os outros assentamentos tinham em

seus armazéns e campos. Isso


poderia ser chamado de roubo, de
violência
ou de assassinato, mas era a maneira
pela qual passáramos a viver. A lei
do

deserto era a que eu aprendera bem,


a simples sobrevivência. Meu irmão
jurava que até mesmo um bandido
poderia ser puro aos olhos do Todo-
Poderoso. Insistia em que o juízo de
Deus dependia do motivo, e o nosso
era permanecer fiéis a Israel.
Certamente Deus olharia por nós e
enviaria a

fortuna ao nosso caminho.

Desde o nascimento do filho da


serva, Nahara passara a confiar em
mim.

Um dia, depois de horas trabalhando


lado a lado, ela admitiu que, antes
de

o meu irmão descer da nossa


montanha para liderar o ataque,
Aziza o

procurara levando consigo um pó


feito de couro de serpente queimado.
Sua

mãe conhecia todo tipo de feitiço e,


apesar de Aziza nunca ter
demonstrado

interesse por tais assuntos, pelo


amor de Amram consultara o livro
mágico

que ela guardava a sete chaves.

Quando abraçara meu irmão na


despedida, Aziza espalhara o pó da

serpente no seu cabelo. Enquanto o


mantinha próximo de si, ele não

percebera que, juntamente com o


abraço, havia uma essência branco-
esverdeada de uma serpente que
morderia seus inimigos e o
protegeria do

mal. Meu irmão podia não entender


até que ponto Aziza estaria disposta
a

chegar para salvá-lo, mas eu sim.


Teria feito o mesmo se tivesse
acesso a um feitiço poderoso. Teria
queimado a serpente até as cinzas se
fosse para

poupar o meu amado de todo o mal.

Depois que os guerreiros realizaram


o ataque, ficou claro que não foram

favorecidos. O assentamento que


atacaram fora prevenido pelo latido
dos cães e a batalha foi feroz, com
perdas de ambos os lados. Os
nossos homens

não voltaram para a fortaleza, em


vez disso entraram nas falésias à
nossa

frente, um lugar cheio de marcas e


obscuro, conhecido dos animais

selvagens. Soubemos então que


tinham se tornado tamé, impuros
pela proximidade da morte, e que
agora deveriam se purificar. Os
sobreviventes

precisavam orar e jejuar por sete


dias antes de poder ser recebidos de
volta.

As famílias dos que haviam partido


esperaram em silêncio junto ao

portão, com pleno conhecimento de


que em breve alguns de nós estariam

de luto. Quando, finalmente, os


guerreiros remanescentes
regressaram,
quase caí desmaiada ao ouvir as
pessoas gritarem o nome de Amram.
Fui

me encontrar com meu irmão, grata


em demasia por ele se encontrar
entre

os que sobraram para enterrar os


mortos. Mas essa tamanha
proximidade

de Mal’ach ha-Mavet o queimara,


da mesma maneira que o aço é
cozido em

forno para endurecer. Ele fora


forçado a enterrar seu amigo
Jonathan, o único que se preparara
para ser um estudioso, que pensara
em se tornar um sacerdote, mas que
em vez disso assumira a adaga.
Naquele dia Amram

usou o xale de oração de Jonathan,


com as franjas brancas e azuis.
Havia mulheres cujo único ofício
era preparar o corante violeta-
azulado utilizado

nos xales de oração, aferventando


mariscos que só podiam ser
encontrados
em uma única costa do Grande Mar,
acrescentando sal, areia e pedra até
que a cor se tornasse como a do céu.
Cada nó na indumentária era um
sinal

de devoção. Amuletos eram


anexados aos fios, para proteger de
demônios e

trazer fortuna aos devotos. E no


entanto Jonathan fora levado pela
morte.

Sua família permaneceu escondida


em um quarto escuro, rasgando suas
vestes, recusando-se a falar com
alguém, fechando as portas para
garantir

que a luz não entrasse em seus


alojamentos.

Meu irmão veio comer e beber


conosco, mas não ergueu os olhos.
Havia

manchas escuras de sangue no xale


que mantinha sobre os ombros. Meu

pai estava tão feliz com o retorno do


filho à sua companhia que não
percebeu a diferença estampada no
semblante de Amram, a sua
expressão

sombria, o seu olhar fixo. Via


apenas um homem forte, capaz de
levantar uma espada tão pesada que
poderia matar qualquer rival, mas eu
via algo

completamente diferente. Meu irmão


dera um passo para longe da vida.

Andara muito perto do Mundo


Vindouro quando esse reivindicara
os que o

rodeavam. Os demônios
aproximaram-se dele e o macularam,
agarrando-se

ao seu espírito, tentando arrebatá-lo


para o outro lado, o lado do
desespero

e do sofrimento fervilhante. O Anjo


da Morte tudo via com seus mil
olhos;

seu toque, segundo se dizia, poderia


ser sutil o quanto desejasse. Aquele
que permitisse seu abraço afundaria
em seus braços, dos quais nunca
mais
sairia. Notei o modo que meu irmão
olhava para os penhascos lá
embaixo.

Estava vendo o que acreditava ter


sido escrito a seu respeito, o destino
a que escapara quando o amigo
tomara seu lugar.

Quando meu pai comentou que


Jonathan tivera a morte de um
guerreiro,

como cabia a todo homem, vi


Amram estremecer e virar para o
lado. Ao fim
da refeição, depois que nosso pai
fora rezar e agradecer pelo retorno
do filho em segurança, saímos do
alojamento.

– Devia ter sido eu – meu irmão


comentou, incapaz de escapar da

tristeza de sua perda.

Pobre Aziza, pensei, o seu feitiço


não protegera Amram como ela

planejara. Jonathan pusera-se à


frente do meu irmão
intencionalmente,
recebendo o golpe que era para
Amram, em nome do amor e da
amizade.

Insisti que isso não poderia ter sido


um erro. Deus tinha um projeto para

nossas vidas e o retorno de Amram


já deveria ter sido escrito,
acreditando

ele ou não que o merecesse. Meu


irmão ainda usava o amuleto que eu
lhe

dera. Lembrei-lhe de que devia tudo


ao favor de Deus, como Salomão.
– Não podemos conhecer ou
entender o plano de Deus – disse a
ele.

Peguei sua mão e depositei-a sobre


minha barriga, para que sentisse a
vida dentro de mim. Ela se
desenvolvera e se formara
plenamente, como um peixe em um
lago. Meu irmão disparou-me um
olhar. Fora rápido em

adivinhar que estivera nos braços de


um leão.

– Ele deveria protegê-la – disse,


referindo-se a Ben Simon, que fora o
seu

mestre, um homem a quem respeitara


e em que depositara a fé. – Se esse

fardo pertence a alguém, é a mim,


por enviá-la a ele.

– Posso questionar mais o Anjo da


Vida do que você o Anjo da Morte?

Isso tinha de acontecer.

Meu irmão me fitou e compreendeu:


o que eu compartilhava com ele

não era o meu fardo, mas a minha


alegria.

TALVEZ SEJA possível descobrir


mais no silêncio que no discurso. Ou
talvez seja apenas que os que estão
em silêncio entre nós aprenderam a
ouvir. O

Homem do Norte, que era o nosso


escravo, não tinha outra escolha
senão

conviver com nosso palavreado o


dia todo. Sentia pena dele, como me
compadecia de todos os homens
acorrentados, mas talvez fosse mais
do

que isso o que tínhamos em comum.


Éramos ambos exilados ali, cada um
de posse de um passado que
ninguém seria capaz de imaginar. Às
vezes, era

mais fácil ser como um


desconhecido de quem nada se
espera e para quem

nada se dá em troca. Eu me
acostumara àquele homem. Todas
nós o
tínhamos feito. Suas mãos estavam
calejadas do trabalho, mas ele nunca
reclamou. Comia o pouco que lhe
dávamos. Baixava os olhos quando

fofocávamos, embora uma vez ou


duas eu o visse sorrir. Fora uma
visão estranha, à qual dei as costas,
pois sua expressão fazia parecer que
não era

um escravo, mas um homem. Sabia


que era um erro pensar nele desse

modo.

Uma vez, quando ele carregava um


cesto pesado para mim nos campos,

algumas crianças desordeiras lhe


atiraram pedras, rindo, até que as

persegui. Ainda assim elas gritaram,


chamando o escravo de Leviatã, o

nome de um monstro marinho


enorme, por causa da sua grande
altura e

dos braços fortes. Talvez tenha sido


nesse momento que a minha

compaixão começara a brotar, uma


semente que se desenvolvera a partir
da maneira que era insultado.

Virei-me para as crianças que o


provocavam avisando que, se

continuassem a fazer aquilo,


atrairiam demônios para o seu meio.

– Corram! – gritei, e aqueles rudes


xingadores espalharam-se como

sementes, rindo e correndo para


longe.

O escravo inclinou a cabeça para


agradecer-me à sua maneira
hesitante,
mas acenei para detê-lo.

– Não suportei ouvir aquelas vozes.


Foi só isso. – Disse isso para ele
não

se atrever a supor que me


preocupava com seu conforto. –
Mandei-os

embora pelo meu bem, não pelo seu.

Muitas vezes o surpreendia me


observando enquanto trabalhávamos

lado a lado. Passei a atar o lenço


com mais força. Chegara a acreditar
que

ele poderia falar a nossa língua


perfeitamente se quisesse. Ele
parecia estar

ciente de tudo o que dizíamos mas,


quando alguém lhe fazia uma
pergunta,

dava de ombros e murmurava algo


no seu vocabulário áspero, fingindo
ser

tão ignorante do nosso quanto as


pombas. E então um dia, não muito
tempo
depois de eu ter afugentado as
crianças rudes, enquanto
trabalhávamos

embaixo de algumas figueiras


espalhando o esterco, de repente ele
falou comigo.

– Seu cabelo é como o fogo – disse.

Falava a nossa língua de maneira


estranha, as palavras congeladas,
com

cautela, mas sem dúvida a conhecia


bem, e talvez a tivesse aprendido
antes
de ser capturado. Os recrutas do
exército romano andavam com
soldados

de muitas terras e encontravam


maneiras de se comunicar. Essa

manifestação sobre meu cabelo, no


entanto, não era o que esperava. Ri
sem

poder me controlar.

– Tenha cuidado – eu disse. – Pode


se queimar.

Depois que o silêncio é quebrado,


muitas vezes segue-se uma torrente

de palavras. O Homem do Norte


então me disse que, de onde ele
vinha, muitas mulheres tinham o
cabelo vermelho. Antes de ser
recrutado pela

legião romana, nunca fora além das


fronteiras da sua aldeia, que
continha

talvez duzentos moradores, a


maioria deles seus parentes. Sua
terra era tão

fria que a neve e o gelo se


mantinham grande parte do ano, o
céu era escuro

mesmo durante o dia. Por um breve


período do ano, o seu mundo se

tornava verde, não como o deserto,


que florescia em tufos, como uma

neblina rarefeita, mas em uma


cortina de verde profundo e
impressionante,

com grama tão alta quanto as


oliveiras e florestas tão extensas que
era preciso um mês para atravessá-
las.
Quanto mais quente o nosso mundo
se tornava, mais eu ansiava por

ouvir as histórias que ele contava.


Sentávamos à sombra das figueiras
no calor escaldante, indiferentes ao
sol que nos atingia de forma brutal.
Eu escutava, revigorada, ao saber
que na terra dele havia lagos azuis
como lápis-lazúli, nos quais os
peixes eram do tamanho dos homens.
Os

guerreiros tatuavam-se com tinta


preta e lutavam tão ferozmente
quanto
os lobos; em combate, usavam
escudos que eram mais fortes que
qualquer

coisa que tínhamos, um metal que


não podia ser rompido com lanças
ou machados. Tais homens podiam
passar toda uma lua sem dormir,
vigiando

suas mulheres e seus rebanhos, as


ovelhas com os pelos tão longos que
tocavam a terra, as cabras da cor da
neve e com olhos que eram esferas
amarelas. Se um inimigo fosse atrás
de um guerreiro daquela terra do
norte, seria rapidamente morto com
um único golpe na garganta.

– Se tudo isso é verdade, então por


que você é um escravo?

Era um insulto fazer uma observação


dessas a um homem que fora um

guerreiro, depois um soldado da


legião e agora era um humilde
escravo de

mulheres. Ele poderia ter


considerado uma ofensa, mas apenas
deu de
ombros.

– Por que você é? – disse


simplesmente.

Eu ri.

– Não sou.

A expressão do Homem do Norte


deixou claro que discordava.

– Não sou – insisti.

Ele fitou-me com tristeza.

– Você será. Vi isso na minha terra.


Os romanos tinham dominado o seu
país, então ofereceram àqueles que

foram conquistados uma alternativa


a morrer de fome. O Homem do
Norte

estivera com os seus irmãos e


escolhera viver. Fora levado através
do Mar

Frio e conduzido a Roma, antes de


ser enviado com a legião para a
Judeia.

Enquanto estivera em Roma, vira


coisas milagrosas, banhos, onde
havia

água corrente quente e fria, casas em


que era possível possuir mulheres e

meninos por um preço mínimo, lojas


que vendiam criaturas monstruosas –

elefantes, enguias e peixes enormes


com uma lança presa à cabeça. Fora
ao

Coliseu com as multidões que se


acotovelavam e empurravam através
dos

corredores calçados, assistindo às


batalhas entre os gladiadores. Não
podia

acreditar em tudo o que


testemunhara; aquelas visões muito
vívidas ainda

lhe pareciam sonhos.

Perguntei se era verdade que os


romanos mandavam homens lutar

contra animais selvagens. Um


homem não era diferente de um
animal aos

olhos dos romanos, o escravo me


disse, talvez uma diversão melhor,

porque o homem muitas vezes


chamava pela mãe ou pela amada
nos seus

últimos momentos no mundo,


enquanto o animal sabia quando se
render.

Pensei em Ben Simon e na marca em


seu rosto, e na criatura que o

considerara amargo demais para


comer. Perguntei ao escravo se vira

homens combaterem leões. Ele


inclinou a cabeça, dizendo que os

gladiadores temiam os leões mais


que quaisquer outras criaturas, até
mais

que os crocodilos que nadavam em


grandes tanques rolados para o
centro

da arena sobre toras, puxados com


cordas pesadas e correntes por mais
de

cem homens. Aqueles animais


aquáticos podiam pegar um homem
na boca,
arrastando a vítima para o fundo a
fim de afogá-la, mas era possível
lutar

contra um crocodilo, trespassar seu


olho com uma faca e forçar sua

retirada. Alguns gladiadores


sobreviviam. Mas o leão, depois de
atacar, jamais recuava. Lutava até o
fim, até que houvesse uma rendição
e nada mais restasse além de ossos.

– Por que pergunta sobre esses


animais? – ele quis saber depois que
o
interroguei tão detalhadamente.

Dei de ombros, fingindo não ter


nenhum interesse em particular.

– Sonho com eles às vezes.

– Mantenha-os em seus sonhos – o


Homem do Norte aconselhou-me,

mas pude perceber pelo seu olhar


que ele sabia que havia algo mais.

PASSEI A OUVIR todas as histórias


do escravo. Algumas eram tão
absurdas que mal acreditava nelas.
Ele falou sobre um animal chamado
veado, uma

criatura enorme em comparação ao


íbex, a cabra selvagem encontrada
na

Judeia. Disse que era capaz de


seguir um daqueles pela neve com
bastante

facilidade, mesmo sob uma


tempestade, porque aqueles veados
esfregavam

os chifres nas árvores e assim


deixavam marcas. No seu mundo, as
raposas
ficavam brancas quando a neve caía;
depois, quando o inverno
desaparecia,

voltavam ao vermelho diante dos


seus olhos. Ele jurou que a cor do
meu cabelo era igual ao das
mulheres mais bonitas da sua terra e,
acrescentou

maliciosamente, da minha. Eu ria de


algumas das coisas que ele me dizia,
sem acreditar que os rios pudessem
correr prateados, que os monstros
do

oceano fossem tão cheios de água


que a cuspiam para o ar, que
houvesse alcateias com a força de
uma centena de lobos, que se
chamavam na noite

com vozes puras e frias.

Com frequência, Revka nos


observava nos campos. Às vezes,
quando

voltávamos para o pombal com as


cestas vazias, ela balançava a
cabeça, franzindo a testa. Apesar da
sua má vontade, eu não pretendia
parar de ouvir o Homem do Norte.
Quando ele falava, eu não pensava
no deserto, ou

no passado que me acenava, ou nos


pecados que cometera, apenas na
terra

que nunca conheceria, nos


deslocamentos da neve, nos bandos
de homens

com tatuagens negras, que


amarravam ramos planos nos pés
para poder

andar na neve com facilidade, como


os ursos.
O escravo confiou em mim o
bastante para contar os detalhes da
sua

captura, embora ficasse tenso e com


raiva ao recordar o evento. Quando
a

guarnição romana foi saqueada


pelos nossos guerreiros, ele e o seu
parente

caíram de joelhos, jurando que não


tinham lealdade ao imperador e que
nunca haviam levantado a mão
contra nosso povo. Não conseguia
erguer os
olhos quando ele falou dessa
humilhação. Nosso povo lhes
permitira viver

porque fizeram um juramento contra


Roma e porque haviam sido
roubados

de sua terra natal. Todos os demais


foram mortos, apesar de alguns dos
soldados serem pouco mais que
meninos que imploravam por suas
vidas e

se encolhiam à vista de uma faca.

Naquela noite, o sangue dos


romanos que tinham sido mortos
evaporou

para as nuvens e se transformou em


chuva. A chuva de sangue seguiu os
nossos guerreiros em suas tendas,
escorrendo e formando rios. Nossos

homens entraram em pânico e


estavam prestes a correr dali, mas
Ben Ya’ir

instruiu-os a não fugir. Ele


conseguia fazer isso com seus
guerreiros, o escravo vira isso
pessoalmente, fazê-los render-se sob
seu olhar. Com
ousadia, ele informou que uma chuva
de sangue não era uma maldição,
mas

uma promessa. Era o futuro que


teriam de enfrentar, como todos os

homens devem encarar a morte um


dia. Poderiam fazê-lo como
covardes

ou como homens de Deus, aquela era


sua escolha.

Todos os homens sob seu comando


permaneceram. O escravo comentou
que soube então que Ben Ya’ir era
um homem que jamais desistiria, não
importava quais fossem as
circunstâncias.

Pela manhã, quando a escuridão se


dissipara, o sangue que caíra do céu

transformou-se em flamboyants.
Graças a isso, os homens puderam
se proteger do sol do meio-dia, uma
bênção evidente de Adonai. Os
nossos guerreiros caíram de joelhos
em gratidão.

Corei à menção da árvore sob a qual


tantas vezes me deixei ficar e
sonhei. Comentei que o flamboyant
era uma das minhas favoritas e ele
balançou a cabeça, disse que não
estava surpreso em ouvir isso.
Naquele dia, no entanto, apesar de
ter sido posto a ferros, acorrentado
ao seu parente, apenas um escravo e
nada mais, ele conhecera o
verdadeiro

significado do que o nosso líder


dissera ser um milagre quando vira
os flamboyants. Não era a graça de
Deus que viam, o escravo me
assegurou.

Ele conhecia os presságios da


guerra e estava ciente do significado
das flores vermelhas florescerem
naquele dia. Nosso povo teria de
atravessar o

fogo.

Porque testemunhara o massacre,


Deus o considerava culpado
também.

Ele também teria de enfrentar o


fogo. Olhou para meu cabelo
enquanto

falava. Foi então que insisti que era


hora de voltar ao pombal. Voltamos
pelo mesmo caminho por onde
tínhamos ido. Uma brisa passou por
entre

as árvores. Essa era uma razão tão


boa como qualquer outra para cobrir
a

minha cabeça. Tínhamos falado


muito livremente e nada de bom
podia

resultar disso. Regressei em


silêncio, mas o Homem do Norte
tinha mais uma coisa para contar.
Confidenciou-me que não sabia o
que sentir quando
fora poupado pelos nossos
guerreiros. Devia sentir-se grato ou
indignado?

Fora resgatado da legião romana


apenas para ser lançado à
escravidão.

Essa humilhação não era o que


previra como caminho da sua vida.

– O que pretende fazer?

– Pretendia encontrar uma mulher


como você. – Ele me falava como se

não fosse um escravo e eu uma


mulher que carregava outra vida
dentro de

si.

– Você está confuso – objetei. –


Acha que, porque tenho o cabelo

vermelho, sou como uma das


mulheres que conheceu em outro
mundo.

Tínhamos atravessado o campo e


nos aproximávamos do maior dos

pombais com as cestas vazias nas


mãos, o céu azul acima de nós, o ar
fresco, e realmente parecia que
havíamos entrado no país do
escravo

durante a época em que tudo era


verde.

– Você demorou demais – falou


Revka, ao nos ver pelo vão da porta,

observando-nos de novo, mesmo que


não fosse minha parenta e as minhas

ações não fossem da sua conta. –


Apresse-se. Há trabalho aqui. Você
já ouviu falar disso?
– Não estou confuso, Yael – o
Homem do Norte me disse antes de

entrarmos, momento em que Revka


poderia ouvir. – Sei quem você é.

Levei metade do dia para perceber


que ele dissera meu nome e ainda

mais para admitir que não me


encolhera ao ouvir o som dele.

EM UM MUNDO de sangue, é de
esperar ver o vermelho, mas quando
acordei com uma torrente de sangue
fluindo de dentro de mim,
manchando o

estrado em que dormia, fiquei


atordoada. Carregara o meu filho
por mais de seis meses, supondo que
estivesse em segurança. Mas
sonhara com a

fantasma que dormia ao meu lado.


Ela ficara sussurrando em meu
ouvido a

noite toda, recusando-se a deixar-


me, chorando por tudo o que perdera
no
mundo, incapaz de me deixar em
paz. Eu quisera o que lhe pertencera,
agora ela desejava o que era meu.
Talvez suas palavras tivessem me
ferido

e era por isso que sangrava. No meu


sonho, estivéramos juntas no

penhasco em que deixara seus ossos.


Penas caíam do céu e todas as aves
que matara com as minhas mãos
chegavam vivas.

Eu precisava desesperadamente de
um remédio, algo que interrompesse
o sangramento e ligasse a criança
que carregava ao mundo em que

vivíamos, não ao Mundo Vindouro.


Na escuridão do amanhecer, fui ao

aposento do meu pai e peguei as


poucas moedas que ele tinha. Não
sentia

vergonha de roubar sua prata.


Preferiria ser uma ladra a uma
mulher sem

filho.

Enquanto corria pela praça à luz


fraca, senti uma onda de calor

implacável, formada pela dor que


ardia dentro de mim. Perguntei a um

guarda onde Shirah morava.

– O que quer com a bruxa? –


perguntou ele.

– Trabalhamos nos pombais – disse-


lhe. Ele me observou com atenção,

talvez para julgar se era culpada de


alguma coisa e agora apenas tentava
determinar a natureza do meu crime.
Talvez tivesse sentido o cheiro do
meu sangue e soubesse que eu estava
impura. – Os pombos estão doentes
e

não sou experiente o bastante para


reconhecer a doença – insisti.

Embora parecesse desconfiado, ele


apontou para um dos palácios. É

claro, pensei, Shirah era parenta de


Ben Ya’ir, portanto deveria viver
em um palácio, mesmo que a
acusassem de bruxaria. Alguns
sussurravam que

a vida ali não era tão diferente da


que fora antes em Jerusalém: os que
governavam conseguiam viver bem,
enquanto os que seguiam passavam

fome. Mas descobri que Shirah


ocupava um anexo que antes fora
uma

cozinha, usada por servos no tempo


do rei. Quando bati na porta, essa se
abriu. Não tínhamos fechaduras. A
montanha era a nossa fechadura, o

caminho da serpente era a nossa


chave.

Não havia ninguém lá dentro, mas


entrei e olhei ao redor. O chão do
seu

alojamento tinha o desenho de


mosaicos que se abriam em leque.

Destacava-se um altar de madeira ao


lado de prateleiras fixadas na
muralha

de pedra. Essas prateleiras estavam


repletas de tigelas e jarros, frascos
de

mel e vinho, juntamente com


recipientes de ervas. O piso ecoou
quando fui
abrir a porta para olhar dentro do
pequeno dormitório. Aziza e Nahara
dormiam entrelaçadas no mesmo
estrado. O irmão, Adir, um menino

moreno de não mais de onze anos,


dormia ao lado da porta dos fundos.
Não

havia nenhum sinal de Shirah,


apenas um quadrado de palha
coberto por uma manta tecida
intocada.

Virei-me para encontrá-la entrando


em casa, os passos leves, como se
fosse uma ladra. Estava sem fôlego,
talvez tivesse corrido. Trazia a
cabeça

coberta por um xale estampado com


um desenho de folhas douradas e
meia

dúzia de pulseiras que tilintavam em


seus braços. Ela parou quando me
viu,

então rapidamente recuperou a


compostura.

Saíra para uma caminhada, ela me


contou, tirando as pulseiras.
– Não conseguia dormir – disse ela.
– Talvez sejamos duas quanto a isso.

– Talvez – concordei.

Não perguntei sobre qual assunto


obscuro ela fora tratar. Começava a

perder as forças e, antes que


pudesse dizer mais, desfaleci de
encontro à parede. Quando Shirah
viu que eu estava sangrando,
repreendeu-me por

não mencionar o problema de


imediato. Fez-me sentar a uma mesa
que era
apenas um pedaço tosco de madeira
apoiado sobre um cavalete. Apalpou
a

minha barriga e soube pelo simples


toque quando a criança começara a
se

formar e quando entraria no mundo.


Mostrei-lhe as moedas que trouxera

comigo e pedi uma poção, mas com


um gesto ela as recusou. Disse-me
que a

cura não era tão fácil de encontrar.


Embora não quisesse pagamento,
tentaria ajudar. Ferveu umas folhas
de garança, uma planta que, segundo
se

dizia, tingia de vermelho os ossos


dos animais que a pastavam.
Acrescentou

bagas de amora silvestre e me serviu


um chá escarlate e fumegante. Bebi-
o

apesar de me queimar os lábios.


Essa mistura não era a cura, disse-
me Shirah, mas poderíamos esperar
que acabasse com as cólicas.
– Existe alguém que não queira o
nascimento do seu filho? – ela

perguntou. – Alguma pessoa que lhe


deseje o mal?

Senti como se uma flecha tivesse me


perfurado. Havia apenas uma

pessoa. Como tirara algo de Sia, ela


tiraria de mim.

– O fantasma de uma mulher – disse


em voz baixa.

– Ela está aqui com você agora?


Ergui os olhos e vi que minha
fantasma realmente me seguira e
estava

de pé na porta, fitando-me com


censura.

Inclinei a cabeça concordando.

– Bem, ela veio por uma razão. –


Shirah examinou-me. Os seus olhos

estavam bem delineados pelo kohl.

Por um momento, senti como se


estivesse me afogando.
– Peguei algo que não me pertencia
– admiti.

– Entendo. – Ela continuou a me


examinar, a interpretar em detalhes a

minha expressão. – Você se


arrepende disso?

Uma pergunta bastante simples. Mas


não poderia dar a resposta que ela

queria. Quando balancei


negativamente a cabeça, Shirah
suspirou.

– Se é assim que se sente, então vai


ter de aceitar que o que roubou vai

levar seu filho.

Se Sia tivesse vivido, o bebê que eu


carregava pertenceria a ela, caso
Ben

Simon o assumisse como seu e se


casasse comigo. Ela seria sempre a

primeira esposa e poderia tomar


conta da minha vida. Talvez fosse
essa sua

intenção agora.
Recuei de um salto, fora de mim
pela preocupação. A faca que
carregava

como uma lembrança de amor caiu


no chão. Shirah inclinou-se para
pegá-

la. Senti o calor aumentar no meu


rosto quando ela passou o dedo
sobre a

lâmina. Ela ainda estava afiada o


bastante para tirar uma gota do seu
sangue.

– Sente-se – Shirah falou em voz


baixa. Advertiu-me que, se ficasse

agitada, só faria acelerar o sangue


entre as pernas. – Não ajude a sua
rival

em sua vingança.

Fiz como me era dito.

– Quando fica com um homem que


tem uma esposa, você se casa com
ela

também. Certamente você sabia


disso na ocasião, não sabia?
Inclinei o queixo e olhei diretamente
nos olhos de Shirah.

– Não desmancharia o que tinha com


ele.

– Mas é exatamente isso o que está


acontecendo – ela advertiu. – Se
você

quer o filho, deve se livrar da


fantasma, e para isso deve se
arrepender. Um

fantasma simplesmente não vai


embora. Ela está costurada a você.
Vocês partilham a mesma pele, por
isso ela acha que essa criança
pertence a ela,

mesmo estando no Mundo Vindouro.


Só há uma maneira de se livrar dela.

Ouvi atentamente, sem saber o que


sentia mais forte: terror ou gratidão.

– Faça o que digo e não se considere


responsável por mudar nada. Corte

uma mecha do seu cabelo. Amarre-a


em um nó. Vá para onde os
salgueiros

novos crescem abaixo desta


fortaleza e queime seu cabelo na
madeira do salgueiro.

Ela voltou para junto dos frascos de


ervas e tirou três folhas de um deles,
envolvendo-as em um pedaço de
linho branco, em seguida entregou-
me o pacotinho dobrado.

– Coma estas folhas quando a noite


cair. O que engolir terá o gosto do
que fez. Esteja preparada para isso.
Só você saberá como é amargo. Mas
não

se preocupe com nada se não sentir


nenhum arrependimento. Se esse for
o

caso, sirva uma xícara de chá à sua


rival todas as manhãs, porque ela
estará

lá, com seu filho nos braços.

Meus olhos ardiam. Se não tomasse


cuidado, choraria as lágrimas de Sia

novamente. Não disse nada.

Shirah inclinou-se para a frente,


abaixando o tom da voz. Seu lenço
de cabeça escorregou. O cabelo
estava torcido em uma trança
elegante,

enrolada graciosamente para cima à


moda egípcia.

– Se estiver pronta para o perdão,


terá de dizer o nome do anjo Rafael

três vezes. Em seguida, três vezes


dizer: Não deveria ter prejudicado
você.

No final, diga o mesmo de trás para


frente três vezes, para ter certeza de
que o que fez desapareceu.

Shirah pegou a faca do assassino.


Antes que eu pudesse reagir, ela

adiantou a mão e cortou uma


comprida mecha do meu cabelo. Ela
caiu

entre nós como uma serpente. Pensei


ouvi-la silvar como as impiedosas

víboras pretas faziam.

– Você precisa se entregar a ela se


quiser se livrar dela. A única coisa
que

sei é que o que está feito pode ser


desfeito, mas o que está desfeito
nunca

mais poderá acontecer de novo.

PARTI NO DIA seguinte. Perguntei


ao vigia do portão se poderia
caminhar ao longo do caminho da
serpente. Havia alguns arbustos de
salgueiro que

cresciam nas proximidades, árvores


novas cujos ramos maleáveis eu
queria

usar para enfeitar um cesto. O vigia


era jovem e não se ocupou de me
perguntar nada, acenando para que
seguisse, apesar de as mulheres não

terem permissão para ir além do


portão. Segui em frente em linha
reta, pelo

caminho que descia íngreme, antes


que ele mudasse de ideia e me

chamasse de volta.

O ar estava especialmente seco


nesse dia. Pequenas faíscas
brotavam da

terra calcária enquanto eu avançava.


O inverno se fora. Logo a terra
arderia

e eu arderia com ela. Caminhei


rapidamente por um campo
inclinado para

baixo, o deserto diante de mim.


Tudo parecia branco em meio à
bruma. Não

havia diferença entre a terra e o céu.


Avistei o bosquete de salgueiros de
que Shirah falara e me desviei do
caminho por uma cumeeira, depois
desci

para um buraco, onde havia uma


cobertura sombreada e uma lagoa de
água

parada e fétida. Sentei-me ali


abrigada pelas árvores e tentei
recuperar o fôlego. As minhas
cólicas tinham cessado, mas o fio de
sangue ainda

brotava. Uma vibração de desespero


estremeceu o meu peito.

Levara a faca de Ben Simon comigo,


aquela estranha lembrança

assassina do seu amor. Pensei em


todas as pessoas que ele
assassinara, ele

fizera o seu melhor trabalho comigo.


Uma parte de mim se fora para

sempre. Mal podia resistir à


tentação dos penhascos e ao desejo
de acabar

com a minha luta. Fiz o melhor que


pude para não pensar em tais ações
covardes. Era contra a lei fazer dano
a si mesmo, um pecado tão grande
que

não havia perdão e apenas um


campo de fogo no Mundo Vindouro.
Concentrei os pensamentos no
desenho das folhas do salgueiro
quando

olhei para os galhos caídos e na


suavidade da casca quando inalei
seu perfume, tão fresco e verdejante.
Juntei os gravetos no lenço branco
que os

essênios haviam me dado. Afastei


para o lado as folhas perdidas.
Quando o

fiz, elas pareceram chuva caindo, ou


as lágrimas no rosto de Ben Simon
quando vira as duas irmãs-noivas no
deserto.

Levei a lenha para uma caverna


onde não seria vista, esgueirando-
me

por uma fenda que dividia as rochas.


As mulheres eram advertidas a

manter distância de tais lugares.


Animais selvagens viviam entre as
pedras,

além de bandidos, quem sabe


demônios também. O céu brilhava
com uma
luz esmaecida e as falésias tingiam-
se de rosa e dourado. Esperei
anoitecer.

Respirava à maneira do leopardo,


ofegante, ainda sentindo o calor
entre as

minhas pernas, pois o sangramento


persistia. Senti-me sozinha,
recolhida no fundo do meu silêncio.

Quando chegou o momento e o céu


começou a escurecer, fiz uma

fogueira entre os penhascos para que


os tufos de fumaça não fossem
notados pelos guardas que
patrulhavam a muralha. Tirei as
roupas e as dobrei. Trouxera óleo da
romã, que pus nas mãos e esfreguei
no meu cabelo

e na pele. Depois, então, joguei o nó


feito com a mecha do cabelo cortado
na

pilha de galhos queimados de


salgueiro. O forte odor de uma parte
de mim

incendiada despertou um tremor no


meu íntimo.
Agachei-me entre as rochas e comi
as ervas que recebera, muito embora

a minha língua ficasse inchada.


Tratava-se de um cardo abençoado,
e o sabor era realmente acerbo,
deixando uma camada áspera no
interior da

minha boca. Mal conseguia engolir.


Depois de ter consumido as folhas,
senti

uma sombra estender a mão dentro


de mim.

Por um tempo que pareceu


interminável, permaneci sentada
sobre os

calcanhares, esperando que o feitiço


funcionasse. Vi estrelas caírem do
céu.

Vislumbrei o arco brilhante da lua


nova. Era Rosh Chodesh, o novo
mês de Nissan. Naquela noite havia
comemoração na praça, pois esse
fora o primeiro mandamento de
Deus para Israel, que deveríamos
reservar tempo

para comemorar a lua nova, pois ela


significava a renovação do nosso
povo

e era uma lembrança de que há luz


na escuridão. Era isso o que
significava

ser humano, saber que o tempo se


passou e que todas as coisas
mudaram.

Percebi então que precisava


renunciar ao silêncio, que fora a
minha

espada e o meu escudo. Esse era o


preço que devia pagar. O que me
protegera uma vez agora devia jogar
fora. Fora o meu dom, mas era não
mais.

Comecei a rezar. Amém. Amém.


Selah. O feitiço envolveu-me como
a escuridão girava na luz. As
estrelas caíram mais perto. Receei o
que

pudesse acontecer, uma vez que a


minha verdadeira natureza se
revelava

aos olhos de Deus. Mas o que


deveria acontecer estava além da
minha
vontade, nas mãos do destino. Eu
comera as ervas, acendera o fogo,
dissera

a oração que abria minhas feridas e


meu coração, levantara a voz ao
Todo-

Poderoso.

O rugido do fogo soou como a voz


do fantasma de mulher. Eu a
chamara,

pedindo-lhe para vir a mim, como


havia se banhado comigo e retirado
as cinzas do meu cabelo. O fogo
estava tão brilhante que blindou os
meus olhos, mas ardeu mais
brilhante ainda. Algo dentro de mim
se partiu e se

estilhaçou. Produzi um som que não


reconheci como a minha voz.
Chamei,

implorando, em seguida meus apelos


foram atendidos.

Sia achava-se diante de mim.

Sua túnica estava em frangalhos, o


cabelo, cheio de nós, seus braços
eram nada mais que ossos. Não pude
suportar a visão do mal que lhe

causara. Corri para a beira do


precipício a fim de escapar dela. As
pedras moviam-se sob meus pés e
sentia como se estivesse
escorregando. Se

pulasse, voaria para o chão do


deserto lá embaixo, uma pétala de

flamboyant, uma pomba livre. Mas


o fantasma de mulher ainda não me
deixaria em paz, mesmo agora. Ela
não me libertaria para a morte pela
qual
eu ansiava. Estendeu a mão,
puxando-me de volta da borda. Lutei
contra ela, mas ela se recusou a me
deixar ir. Quando finalmente não
tive escolha,

passei meus braços em torno dela, a


minha primeira e única amiga.

Entreguei-me a Sia.

Quando implorei seu perdão, não


foram as lágrimas dela que chorei,
mas

as minhas, que não mais derramaria.


Adormeci sobre as rochas,
esparramada em uma borda escura,
onde as

árvores espinhosas cresciam.


Quando acordei já era quase de
manhã. Sia permanecera nos meus
sonhos durante toda a noite. Ela
estava com um

leão no deserto, debaixo de um


salgueiro. Ela o recuperara de mim,
como

merecia, mas, ao contrário de mim,


não era uma ladra. Deixara-me o que
me pertencia. Senti o movimento da
criança em meu ventre e chorei de
alegria. Não era um demônio ou um
leopardo, apenas uma mulher de

cabelo vermelho. Então, enquanto a


luz dividia o céu, tornando rosa o
deserto, vesti a minha túnica. Sentia
o corpo frio e machucado. Vi as
marcas

que fizera havia muito tempo na


perna, pálidas como o arco da lua.

Pareciam pertencer a outra pessoa,


mas era eu quem carregaria as

cicatrizes.
Ajoelhei-me perto da fogueira para
me certificar de que não haviam

restado brasas acesas. Nesse


momento avistei os rastros de um
leão.

Restavam apenas umas poucas feras


dessas no deserto, mas uma viera até

ali, atendendo ao meu chamado.


Estivera lá o tempo todo, cuidando
de

mim, antes de me deixar por último.

TENTEI CONVERSAR com meu pai


para fazer as pazes, mas todas as
vezes que me aproximava ele me
virava as costas. Ele me fazia um
gesto com faria a

um cão, pois era assim que ainda me


via. Ali na fortaleza, ele se tornara
um

homem ainda mais desprezível do


que fora em Jerusalém. Ele, que
cortejara

a invisibilidade, tornara-se o que


desejava ser; ninguém podia vê-lo
agora.
Os idosos eram invisíveis naquele
mundo de guerra, considerados
inúteis.

Meu pai não tinha mais vitalidade.


Ben Ya’ir precisava de homens
jovens que pudessem combater lado
a lado armados de machados, não de

assassinos que escondiam as facas


afiadas nas vestes e golpeavam os

inimigos nos cantos escuros do pátio


do Templo. Ninguém admirava o

grande Yosef bar Elhanan pela


capacidade de se esgueirar para
dentro das

casas dos inimigos, sempre


protegido pela escuridão da noite.

Ele era designado para vigiar e


cuidar do armamento. Esse era um

trabalho humilde, destinado aos


muito jovens e aos idosos. Substituir
as pontas de flechas estava abaixo
de sua competência, mas ninguém o
ouvia,

ninguém o valorizava. Ele começou


a se fechar em si mesmo, um
emaranhado de inveja. Agora,
quando via meu irmão regressar com
os

guerreiros, meu pai sentia ciúme em


vez de orgulho. Amram sempre fora
o

único a brilhar aos seus olhos, mas


ultimamente nosso pai começara a

observá-lo com desgosto. A


exemplo do professor cujo aluno o
supera, meu

pai se ressentia das vitórias e da


juventude do meu irmão.
Era como se já não tivesse filhos.
Somente sombras na muralha, ali

presentes para menosprezá-lo e traí-


lo.

UMA NOITE, meu pai viu Aziza


com meu irmão, sozinhos ao lado da
fonte.

Todo mundo sabia que ela era a


filha da bruxa. Não era a mulher que
o meu

pai queria para seu filho. Ele se


virou na direção dela e cuspiu no
chão.
Shedah, sussurrou ele, como se
tivesse visto uma serpente. Chamou
o meu

irmão para que viesse ter com ele e


protestou com tamanha ferocidade
que

cheguei a cobrir os ouvidos.

Meu irmão anunciou que planejava


se casar com Aziza, apesar das

afirmações do meu pai de que não


queria saber desse enlace. Amram

ameaçou denunciá-lo e meu pai


revidou com outras ameaças. Se a
mãe de

Aziza descobrisse alguma impureza


na filha, talvez cuidasse ela própria
de

uma punição adequada: obrigá-la a


um período de silêncio ou cobri-la
de furúnculos, cortar todo o seu
cabelo ou atirá-la para fora do
portão. Eu estava em um canto
torcendo o fio em meu fuso, fazendo
o possível para não interferir, mas
meu coração batia forte contra o
peito enquanto meu irmão e meu pai
vociferavam um contra o outro. O ar
no alojamento estava

quente, carregado. Quanto mais meu


pai protestava, mais pálido meu
irmão

se tornava, transformando-se em
gelo. A luz clara é perigosa,
impetuosa e

fria. Amram pousou a mão na faca.


Talvez se tivesse esquecido de que
era o

nosso pai diante dele. Sussurrei seu


nome, na esperança de acordá-lo do
seu devaneio sombrio. Meu irmão
olhou para a faca que arrancara do
seu

cinto, como se estivesse de fato em


um pesadelo. Rapidamente deixou a
discussão de lado.

– Não volte a falar comigo – ele


advertiu meu pai antes de partir. –
Se me

vir, passe por mim em silêncio,


como passarei na sua presença.

Naquele momento, o pouco que tinha


como família estava
desmantelado. Naquela noite, meu
pai recusou a refeição. Foi deitar-se
na

cama, o rosto voltado para a parede.


Tornara-se mais velho que a própria

idade, um homem que jogara fora


tudo o que poderia ter tido,
arruinado pela amargura.

Senti a piedade brotar dentro de


mim.

– Ele vai voltar – assegurei a ele.

Meu pai balançou a cabeça.


– Tenho certeza disso – disse,
embora o abismo entre os dois fosse

profundo. – Amram é seu filho e seu


aluno.

Procurei meu irmão na guarnição. Lá


o encontrei rachando madeira.

Estava furioso, grunhindo enquanto


trabalhava, como um homem
rasgando

um inimigo em dois. Mas seu


inimigo lhe dera a vida e era o seu
pai. Esse
inimigo lhe ensinara os segredos da
invisibilidade e atravessara o
deserto

para encontrá-lo.

– Ele é um homem velho – lembrei a


Amram.

Talvez me compadecesse do nosso


pai porque ele era o meu parceiro no

nosso crime terrível.

– O luto pela nossa mãe envenenou a


vida dele.
– Quando formos à mãe de Aziza
pedir a sua bênção, você irá ao meu
lado, Yaya? – ele perguntou.

Embora me chamasse assim, nós


dois sabíamos que a menina que fora

Yaya não existia mais. Inclinei a


cabeça concordando, depois tive a
coragem

de perguntar se ficaria também ao


meu lado, não importava aonde o

destino me levasse.

Do mesmo modo, o menino que ele


fora, aquele que se orgulhara em

anunciar que seria um assassino,


enquanto estávamos juntos em
Jerusalém,

também já não existia. Ainda assim,


continuava sendo o meu irmão.

– Encontrei-a no deserto – ele me


lembrou. – Por que a abandonaria

agora?

POUCO TEMPO depois, comecei a


sonhar com minha mãe. Durante toda
a minha vida, sonhara com leões e
fantasmas, mas não mais. Podia
sentir a presença da minha mãe.
Desejava vê-la, ter uma lista das
suas virtudes, saber se éramos
parecidas.

Procurei meu pai logo de manhã,


antes que perdesse a coragem,
depois

de ter acordado de um sonho com a


voz da minha mãe, a mesma que
ouvira

quando entrei neste mundo. O


assassino estava do lado de fora do
quartel,
limpando as armas, sentado no
tronco de uma velha oliveira. Jovens
e

meninos que por ali passavam não


faziam ideia de que ele fora um dos
homens mais ferozes em Jerusalém,
que tinha a capacidade de ocultar-se
e

que assassinara um número maior de


homens do que as folhas de um

salgueiro.

Meu pai estava curvado, o cabelo


muito branco, as rugas do rosto
profundamente marcadas. Nunca
antes pedira um favor a ele, mas
queria

pedir um agora.

Pedi-lhe para me dizer a cor do


cabelo da minha mãe.

– Acaso não adivinhou por que não


posso olhar para você? Toda vez
que

olho para você a vejo em seu lugar.

Finalmente entendi por que todas as


vezes que ele me olhava a tristeza
brilhava em seus olhos. O cabelo da
minha mãe era da mesma cor que o
meu. Assim como ela, eu era um
flamboyant. Apesar de tudo, ainda
queimava.

A ESTAÇÃO CHUVOSA terminou


mais cedo. A trilha áspera do futuro
era evidente no céu branco e quente
acima de nós, uma fogueira à espera
de ser acesa. A

cada dia enchiam-se barris de água


que eram trazidos das lagoas abaixo,
amarrados ao lombo dos burros, até
que finalmente as nossas cisternas

estavam cheias o bastante para


resistir aos áridos meses do verão.
O ar já

parecia enfurecido, o vento


soprando do outro lado do Mar de
Sal lançava

chispas de calor.

Comemoramos a Festa dos Pães


Ázimos, mas esse ano era diferente
de

qualquer outro, porque não


podíamos mais levar sacrifícios ao
Templo.

Festejamos quando terminamos


nossas orações, mas continuamos de
olho

no deserto enquanto nos


regozijávamos com a liberdade.
Durante as noites,

eu começara a acompanhar Revka


nos teares. Trabalhar ali mantinha a

mente ocupada com a tarefa


imediata. Mas não podíamos evitar
as fofocas
das outras mulheres e, embora não
participássemos, não podíamos
deixar

de ouvir. Muitas vezes, as mulheres


nos teares comentavam sobre nosso

líder, que era nosso herói e a única


esperança. Elas o elogiavam e havia
entre elas quem desejasse ser sua
esposa. Até mesmo as casadas
admitiam

isso, e escondiam os olhos, para que


ninguém visse que, embora rissem,
falavam sério sobre a inveja daquela
com quem ele se casara. Não sabia
que

Ben Ya’ir tinha uma esposa. Revka


apontou-a. Uma mulher morena e

discreta, com véus que a mantinham


separada. Vira-a andando nos

pomares sem saber quem era.

Quando perguntei o que significaria


ser a esposa de um grande homem

como Eleazar ben Ya’ir, Revka riu


amargamente.

– Dê uma boa olhada na próxima vez


que a observar – sugeriu. – Veja se

ela parece feliz com seu destino.

PENSEI EM QUÃO POUCO


sabíamos do nosso destino quando
fui sozinha ao pombal. Lá, o Homem
do Norte falou-me da ameaça que
pairava sobre nós.

Pegou a minha mão na sua, o que


seria motivo suficiente para matar
um escravo, entre aqueles que
acreditavam na escravidão, ou em
assassinato,
ou em qualquer outra coisa diferente
daquilo em que eu acreditava no

momento.

– Se acha que Roma não virá aqui,


está enganada. Eles já podem ter

começado a planejar. Não deixarão


uma única fortaleza resistir na
Judeia.

Querem mostrar ao mundo que


venceram.

– Eles confiaram em você? –


provoquei. Tirei a minha mão da
dele. Ele

parecia de gelo, mas o gelo é


conhecido por queimar. – É por isso
que sabe

tanto? Enquanto carregava suas


armas e os saudava, os generais o
levaram

para um lado e lhe contaram seus


planos?

– Ouvi o que falavam. Isso é o que


faço.

Eu me dispusera a afastar os
pombos, para recolher os ovos
claros e

sarapintados.

O Homem do Norte postou-se ao


meu lado.

– Planejo partir antes que Roma


chegue aqui.

Falara sem rodeios, como se


fôssemos iguais. Admitia um crime
antes de

praticar a ação, confiando-me sua


pretensa fuga. Se eu acreditasse no
cumprimento das leis, teria de
denunciar seus comentários ao
conselho.

– Esse é o seu plano? Voltar a pé


para casa? Como acha que
conseguirá

isso? Não sabe o que é estar no


deserto sozinho. Estava protegido e

alimentado pela legião. Não gostaria


do que encontraria por lá.

– O que você encontrou?

O que estava dentro de mim, a parte


que ninguém conhecia, a que fora

mordida pelo leão.

– Algo que será evidente para todos


em breve. – Não tinha noção do que

me levava a falar com tamanha


intimidade.

– Você pode achar que não a vejo,


mas se engana – disse o Homem do

Norte.

Qualquer outra esperaria que ele


baixasse os olhos, mas ele continuou
me olhando diretamente nos olhos.
No fim, fui eu quem desviou o olhar.

O AMENO mês de Iyar chegara para


nós. As noites já não eram
totalmente escuras como antes. Em
vez disso, tingiam-se de um azul
profundo, como os fios de um xale
de oração. A luz pairava em meio à
escuridão que se aproximava,
alongando as noites, mantendo o
entardecer por mais tempo.

Eu passava muitas horas nos teares e


tornei-me boa tecelã. Tingi um
pouco
de lã sozinha, meus braços
matizados pelas cubas de cor depois
que a ovelha foi tosquiada e a lã,
torcida e limpa. O açafrão e o
girassol eram usados para obter o
amarelo, o verde podia ser
produzido do sumo do

líquen, o vermelho extraía-se da raiz


da garança e da pele descascada da
romã, o preto, da amoreira.

Eu começara tecendo algo que não


era diferente da roupa usada pelo

Homem do Norte. Ele me permitira


tirar um pedaço de tecido da sua
túnica

para poder estudar o padrão


incomum. Guardei-o embaixo do
meu estrado

de dormir, juntamente com o último


quadrado azul que restara do lenço
que meu irmão me dera. O pedaço
de tecido em si não significava nada.
Eu

simplesmente apreciava a
complexidade da tecelagem.
Enquanto

trabalhava, as outras mulheres se


reuniram para elogiar o serviço.
Mostrei-

lhes como alimentava o tear com


fios diferentes até surgir a sequência
desejada, cruzando a linha,
formando quadrados. Azul como o
mar, o

branco como uma estrela, o


vermelho como um rubi.

O Homem do Norte pedira-me que o


chamasse Odeum, a nossa palavra

para rubi. As outras no pombal logo


ouviram a conversa e mais que
depressa concluíram que ele falava
nossa língua. Uma vez descoberto,
ele estava à sua mercê. Não havia
mais como fingir que não entendia as
ordens.

– Assim como qualquer homem, ele


pode falar quando quiser – as

mulheres bradaram. Aziza e Nahara


também passaram a me chamar de

Rubi, só para me provocar. Quando


queriam que o Homem do Norte
fizesse

alguma coisa, riam e falavam:


“Deixe que a Rubi lhe diga. Ele é o
escravo dela”.

O Homem do Norte ficava muito


vermelho quando as mulheres
falavam

a seu respeito, mas eu ria com elas.


Começara a fazer a minha refeição
do

meio-dia com as outras, embora


comesse pouco, apenas bolos de
figo e

biscoitos, o máximo que podia


consumir sem me abarrotar demais.
Passara

a gostar da companhia de Shirah e


de suas filhas. Revka ainda era
difícil, mas eu ansiava por ganhar
seu apoio, mesmo que apenas para
ter sossego.

Ofereci-me para caminhar com ela


no outro lado da praça.

– Por qual razão? – ela perguntou.

Parecia que não confiava em


ninguém.

– Quem sabe assim você para de


desconfiar de mim – declarei.

– Isso não vai acontecer – ela


resmungou. Ainda assim, permitiu
que eu

carregasse a porção de grãos e a


água.

Seus netos corriam ao nosso


encontro quando nos aproximávamos
do

alojamento. Quando lhes falava, eles


olhavam, mas não respondiam.
Ouvira
comentários de que nenhum dos dois
garotos tinha voz.

– Você tem algo a dizer sobre eles?


– Revka perguntou, olhando para

mim.

– Não há muito o que dizer neste


mundo – justifiquei-me. – É melhor
manter a boca fechada.

Ela riu da minha observação,


abrandando um pouco a atitude em

relação a mim.
– Quando tiver um filho, você vai
entender – ela disse. – Será capaz de

qualquer coisa por ele.

Dizia-se que uma mulher prestes a


ter uma filha tinha fome o tempo

todo, mas a que estava para dar à luz


um filho tinha aversão a comida até
o

instante em que ele nascesse. Nem


Revka nem eu dissemos mais nada.
Ela

deixou escapar que estava ciente do


meu estado e eu já entendia que seus

netos haviam perdido a voz em


circunstâncias que ela não queria
comentar.

Não me arrisquei a perguntar se


havia participação dos demônios
naquilo,

como algumas pessoas haviam


sugerido. Em troca, ela não insistiu
em me

questionar.

Entendi que ter um filho era uma


honra. No entanto, dizia-se que, no
momento em que a mãe visse o filho
do sexo masculino pela primeira
vez,

ela também veria o homem em que


ele se tornaria, o machado que

carregaria, o arco que usaria, as


batalhas que o esperavam. Até
mesmo uma

bruxa não podia desfazer o desejo


do filho de se tornar um homem. Eu
observara Shirah na porta do
pombal pequeno no outro lado do
campo, o
cabelo negro caído para trás, a voz
triste quando chamava o filho. Na
maioria das vezes Adir não
respondia. Ele passava a maior
parte do tempo

na guarnição com os guerreiros.


Shirah continuava amarrando nós na

túnica do menino para protegê-lo.


Prendia saquinhos de sal e salsinha
ao tecido para afastar o mal. Mas eu
o vira no beco retirando aqueles
anexos

um por um, atirando os encantos ao


chão.
QUANDO NÃO conseguia dormir,
sentava-me em um banquinho no meu
quarto

e girava um tear manual. Era capaz


de fazer esse trabalho no escuro, a
porta aberta para deixar entrar uma
réstia de luar. O corante que usara
nessa lã era shani, escarlate, uma
cor carmesim obtida de carapaças
fervidas de pequenos insetos. O fio
vermelho sempre servia como
proteção

e era notado pelos anjos e por


Adonai. Enquanto trabalhava, o fio
era como rubis na minha mão.
Voltei-me para a fonte da praça e
avistei uma sombra. Dela não
jorrava

mais água, pois as chuvas havia


muito inexistiam e a noite estava
silenciosa.

Por um momento pensei que fosse


Aziza, indo encontrar-se com meu

irmão. Levantei-me para fechar a


porta, a fim de respeitar sua
privacidade.

Foi então que reconheci a silhueta


no escuro. Era Shirah que se
encontrava

de pé ao lado da fonte, como uma


mulher desesperada por água. Ouvi-
a chorando, como se o mundo
estivesse prestes a acabar. Não pude
deixar de

imaginar o que na terra faria uma


bruxa sofrer assim.

Depois que ela se foi, abri


totalmente a porta do quarto para
sorver o ar

mais frio da noite. Pensei no período


brutal que sempre temia, o mês do
leão, o centro vermelho de Av,
quando ansiaríamos pelo mínimo
refresco.

Como se dizia que a arruda soltava


faíscas vermelhas à meia-noite, a
sua força dispersa no calor, eu iria
queimar mais vivamente em Av.
Lembrei-me do flamboyant de
Jerusalém, da cabra que fora o meu
anjo e do rastro de azul que seguira
no deserto. Pensei na mulher no
Mundo Vindouro com

quem compartilhava o meu nome e


que lhe devia tanto a minha vida
como
a cor do meu cabelo.

Guardei meu fuso e entrei no escuro,


meu manto apertado no corpo. Fui

ao auguratorium, onde atiravam


ossos de pombas e de águias sobre a
terra para contar os anos de vida de
um homem, ou a que número o seu
rebanho

chegaria, ou a força dos seus filhos.


Os sábios adivinhavam o porvir de
guerreiros e reis pelo voo das
andorinhas e por uma coleção de
ossos branco-azulados, mas não
havia ninguém para prever meu
futuro, ou

mesmo sugerir aonde poderia me


levar.

Segui pelas escadas curvas,


desgastadas pelo correr dos anos e
pelas

pegadas dos sábios. Queria ver a


terra abaixo de mim, um mundo ao

mesmo tempo bonito e cruel, a terra


que meu filho pisaria. Mulheres

trabalhavam nos teares mesmo


àquela hora tardia. Se me voltasse
para o oeste, poderia identificar
suas vozes, mas me virei para o
leste e ouvi apenas o vento. Em
meio ao seu rugido vinham as vozes
dos leões, dos homens que
caminhavam no escuro, das mulheres
extraviadas.

Sete falcões circulavam acima de


mim, imitando as sete irmãs, as

estrelas sempre unidas no céu.


Usava as vestes brancas de uma
guardiã de

pombos. Talvez pensassem que


estava pronta a alçar voo e me
considerassem um sacrifício. Subi
sobre a muralha de Herodes,

equilibrando-me entre os grossos


blocos de pedras afiadas com a
marca do

rei. Levantei os braços abertos. O


vento passou por mim. Abalou-me
até as

entranhas. Não havia nada além do


vazio à minha frente, mas eu não
estava

sozinha.
Primavera, 71 d.C.

1 No calendário sagrado judaico, Av


é o quinto mês. Corresponde a parte
do mês de julho e parte do de agosto
no calendário gregoriano. (N. E.)

SEGUNDA PARTE

Verão, 71 d.C.

A Esposa do Padeiro

Apenas um idioma
compreendíamos,

uma oração recordávamos, um


caminho

percorríamos, tão distantes do


poder celestial

que não mais o sentíamos.

DIZEM QUE ÀS MULHERES não é


dado conhecer os desígnios do
nosso Deus, mas eu vi Sua verdade
com meus olhos. Nosso Deus tudo
sabe e tudo vê, e tem

compaixão tanto pelo pardal como


pelo falcão que o caça no céu.
Perante Ele, tudo desaparece no
vento. Se você depositar um
punhado de grãos

sobre uma pedra e lhe virar as


costas, quando se voltar os grãos
terão voado para longe. Se deixar
um pardal em uma torre, ele não
estará lá quando regressar. Se pedir
misericórdia a um falcão, suas
palavras serão mudas.

Foi isso o que aconteceu na minha


vida: eu virei as costas. Não podia
mais ouvir a voz do pardal. Recorri
à bondade de uma criatura que só
conhecia a crueldade. Não entendi
de que era capaz o vento e como
devemos nos curvar a ele,
agradecidos, não importa para onde
possa nos levar.

QUANDO menina, eu vivia em uma


aldeia ao norte de Shiloh, onde se
dizia que a água da nascente era
capaz de impedir abortos
espontâneos e

proporcionar filhos às mulheres


estéreis, tal era o prazer de Deus
naquela

terra. Estabelecemo-nos no Vale dos


Ciprestes, onde os campos eram

verdes e havia cinco cabras negras


em cada galpão. Casei-me quando
era jovem, inexperiente demais para
saber sobre o mal que havia no
mundo.

Era feliz e pensava que a felicidade


fosse duradoura. Na minha porta

mantinha uma mezuzah


intricadamente decorada, um
símbolo que traz felicidade e sorte.
Cada vez que passava por aquele
símbolo, sentia-me feliz,
segura de que Deus nos livraria do
mal. Proferia os agradecimentos a

Adonai, sem refletir, e com a


convicção temerária de que a
maldade nunca se avizinharia. À
noite, a minha cama era feita de uma
palha tão suave que

adormecia assim que fechava os


olhos. Minha casa era feita de pedra
com

vigas de ciprestes locais cortados


nas matas próximas. Meu marido era

gentil e de bom coração, e ainda


assim fora-me concedido mais.
Quando a

minha filha nasceu, era tão bonita


que as pessoas paravam no mercado

para me felicitar pela boa sorte.


Devia ter começado a me preocupar
então,

pois assim como a sorte nos vem um


dia, depois ela se vai.

ENQUANTO se passavam os anos,


meus sonhos eram impregnados pelo
cheiro
de pão, pois embaixo do nosso
quarto de dormir meu marido
mantinha

seus fornos de pão, do tipo que


chamávamos tannur, feitos de
montes de barro arredondado. A
argila clara e esfumaçada brilhava
com o calor

alaranjado quando os fornos eram


alimentados antes do amanhecer. Ao

longo dos anos, o fogo que queimava


embaixo dos quartos assegurava

nosso calor. No pátio tínhamos uma


pedra de moinho e dois burros para
puxá-la, moendo o trigo que
estocávamos em um celeiro alto de
madeira.

Meu marido aprendera a arte da


panificação com o pai, que a herdara
do

próprio pai antes dele. O sabor do


pão de um padeiro nunca era igual
ao de

qualquer outro, dissera-me o meu


marido, pois a vida do padeiro
entrava em cada pão. Alguns
assavam com piedade, alguns com
orações, alguns

com a intenção de produzir mais que


a mera subsistência, elevando o seu

ofício ao nível da maestria,


encantado com a beleza da chama do
tannur e com a arte da challah.

Meu marido incorporava os três,


piedoso e inspirado pelas orações,
mas

também dedicado ao mistério do


crescimento do pão, o milagre pelo
qual o
trigo e a água ganhavam vida em
suas mãos. O pão que assava era tão
delicioso que os viajantes muitas
vezes nos encontravam seguindo o
aroma

da fermentação através da aldeia,


guiados por um mapa de fragrâncias

intensas levadas pelo ar


expressamente para quem estivesse
motivado pela

fome. Todas as manhãs meu marido


separava um pouco de massa em

oferenda a Adonai enquanto proferia


uma bênção. Em troca, suas bênçãos

subiam até Deus e tínhamos tudo o


que queríamos neste mundo.

Meu marido guardava seus segredos,


a exemplo de todos os padeiros.

Tive o privilégio de aprender com


ele ao longo dos anos, simplesmente
observando-o trabalhar. Ele sovava
a massa mais que a maioria e o

fermento que usava para dar vida ao


pão era uma receita secreta mantida

em potes de pedra fria, deixada a


fermentar durante a maior parte do
ano.

Ele polvilhava a massa com


cominho, coentro e sal antes que
deslizasse os

pães para dentro do forno em tábuas


planas de madeira. Talvez o mais
importante, deixava sua marca sobre
a massa, a letra R rabiscada em
honra ao meu nome, Revka, pois
depois de tantos anos ainda era a sua
noiva, a menina a quem ele
prometera sua vida.

Quando os dias eram sem neblina,


podíamos ver onde a neve caía nas

terras altas. A vista da minha casa


era a única que sempre quis
apreciar.

Nunca acreditaria que viria a viver


na fortaleza de um rei, onde o vento
nos

engolfava e nos queria como seus,


deixando claro que não somos nada
mais

que um momento no tempo. Cem


anos antes, Herodes atravessou a
mesma
praça que devo cruzar todas as
manhãs no meu caminho para o
pombal.

Agora há homens pobres dormindo


em seus alojamentos, mas esses
pobres

respiram ao passo que o rei que


assassinou a própria esposa,
Mariamne, seus filhos, e qualquer
outra pessoa que topasse o seu
caminho, não é nada

além de pó. Os guerreiros afiam


suas facas no que fora o estábulo
real, um
lugar enorme, cavernoso, que já
abrigou uma centena de cavalos,
cada um

deles, segundo se dizia, capaz de


subir pelo caminho da serpente no
escuro.

Colocavam-se vendas sobre seus


olhos para que não vissem o quanto
era traiçoeiro o terreno que
pisavam. Se tivessem consciência
das alturas

impressionantes, certamente
entrariam em pânico e cairiam no
abismo, um
após o outro, como se despencassem
do céu. O mesmo se aplica a nós. Se

alguém dentre nós, que residimos


nessa fortaleza, parasse por um

momento para arrancar dos olhos a


venda da fé, veria quão perigoso era
o

nosso poleiro, quão esmagadora


seria uma queda dele.

Se perdêssemos a fé, nós nos


tornaríamos como as nuvens que se

acumulam no céu ocidental, quando


o vento as empurra para o deserto,

prometendo chuva, mas vazias por


dentro.

PELA MANHÃ, sempre tinha um


momento para mim antes de os meus
netos acordarem. Para mim era o
melhor momento do dia. Observava
os meninos

dormindo ao meu lado, os rostos


serenos. Imaginava que estavam em
suas

camas em casa, que a mãe estava no


outro lado da porta, preparando a
refeição matinal, que não tinham
perdido a voz no deserto, roubada
por um

demônio, arrancada de sua garganta


e armazenada em uma caixa trancada

no Mundo Vindouro.

Atava fios na lã de suas vestes para


proteção enquanto dormiam. Isso

era permitido até os nove anos,


então eu teria de entregá-los aos
desígnios

de Adonai, ou pelo menos era o que


as pessoas diziam. Era grata pelos
amuletos que Shirah me ofertava.
Não prestava atenção aos que
afirmavam

que ela era uma bruxa, sussurrando


que sua presença nessa montanha
nos

levaria à ruína. Já vira o que havia


de mau neste mundo e não era a
mulher

com quem eu trabalhava. Dentro das


túnicas dos meus netos, eu prendia
pequenas bolsas de sal para afastar
Lilith, que roubava o fôlego das
crianças, uma concha do Mar
Vermelho como uma prenda para o
anjo

chamado Miguel, a raiz e as


sementes da mandrágora, que
manteriam

afastados os terrores que vinham


com os sonhos, pois certamente eles

existiriam entre os três que restavam


na nossa família, como certamente
havia para o quarto dentre nós que
sobrevivêramos, o homem que já
não
nos falava, que se perdera quando
perdera a fé.

Deixo para Noé e Levi a refeição


matinal antes de sair na madrugada.

Pequenos bolos prensados de


amêndoas e figos para que
provassem a sua

doçura, tâmaras que cresciam


silvestres nos penhascos para que

saboreassem o fruto do deserto, pão


achatado frito no azeite em uma

frigideira, polvilhado com coentro,


cominho e sal, para que se
lembrassem

do sabor do pão do avô. Em algumas


manhãs, tomava conhecimento do

filho de Shirah, Adir, correndo ao


longo do caminho onde crescia a
hortelã

silvestre. Era um menino encantador,


arisco, com o cabelo preto e os
olhos

puxados salpicados de amarelo.


Havia pouco tempo, ele completara
doze
anos, mas eu sabia que dentro da sua
túnica carregava dezenas de nós.
Está

escrito que a pessoa precisa contar


com Adonai sem o uso da magia e
assim deve ser. Mas nossos meninos
eram mais valorizados. A mãe de um
menino

era considerada impura apenas


durante sete dias depois de dar à luz,
ao passo que a que tivesse uma
menina seria considerada teme’ah
por duas vezes esse tempo.

Eu entendia por que Shirah faria o


necessário para proteger seu único
filho.

Não dava ouvidos ao que falavam


sobre ela, mas uma vez, quando ela

estava doente e eu lhe levara uma


sopa de caldo de nabos, avistei um
altar

escondido dedicado à deusa.


Acabara de entrar no alojamento,
sem esperar

por uma resposta depois de bater em


sua porta. Shirah rapidamente fechou
o armário onde escondia o altar, mas
vi o brilho de uma lâmpada acesa à
frente de oferenda de mel e azeite ali
colocados em honra à terafim de
alabastro. Uma pequena imagem
luminosa de uma mulher com os
braços

levantados. Reconheci Astarte, mãe


e guerreira, cuja presença fora
banida

havia tempo. Não devíamos ter


ídolos, nem dar graças à deusa. As
mulheres

que o faziam não se esqueciam de


fechar seus altares para que as
lâmpadas

ali acesas nunca fossem reveladas.

Shirah agradeceu-me pela sopa. Não


tocamos em assuntos que alguns

poderiam atribuir à bruxaria e não


tornei a levantar os olhos para o seu
altar. Sentia compaixão por ela, pois
muitas vezes vira a preocupação

estampar-se em seu fascinante


semblante de ossos delicados. Por
mais que
ela tentasse mantê-lo como uma
criança, o filho de Shirah já se
esforçava para ser um homem.
Embora o cobrisse de advertências,
Adir corria

sempre para a guarnição,


determinado a permanecer entre os
homens que

admirava. Quando o vento é tão


forte que nós mulheres sabemos que

vamos engasgar com a poeira


levantada se não amarrarmos os
lenços sobre
o rosto, os meninos ignoram os
elementos e correm através das
nuvens de

tempestade, sonhando com a glória.


Até mesmo uma bruxa é incapaz de

impedir que seu filho se torne um


guerreiro. Não existe magia
poderosa o

bastante para isso.

ANTES DA CHEGADA de Yael, eu


era a mulher mais nova nos pombais.
Pensara que me mandariam ao
padeiro, pois aprendera muito dos
mistérios do pão

com meu marido. Mas usava o xale


branco do luto ao chegar à fortaleza
e

talvez os membros do conselho


pensassem nas pombas quando me
postei

diante deles, a cabeça baixa em


derrota. No momento em que passei
pelas

portas de madeira esculpida do


pombal maior, uma torre circular
com

aberturas para entrada de luz no teto,


tive certeza de que uma maldição se

abatera sobre mim. Não conseguia


entender por que a original guardiã
dos

pombos e suas lindas filhas sentiam


tamanho orgulho pelo que faziam.
Elas

me asseguraram que era uma honra


para mim e me receberam com
grinaldas de flores, que rapidamente
joguei fora. Considerava as pombas
animais imundos, boas para um
guisado ou quem sabe alguns ovos
frescos,

nada mais. E afundei ainda mais


baixo que essas simples criaturas,
pois recebi a ordem de recolher seus
restos em barris. Era uma escrava
dos seus

dejetos e da sua sujeira, desonrada


aos olhos do Senhor. Essa era a
minha

posição na vida. Tal era o meu


destino.

CHOREI na primeira noite depois


que trabalhei no pombal, uma mulher
da minha idade, que deveria saber
mais, com vergonha de me encontrar
em

lágrimas, de costas para meus netos


a fim de que não soubessem da
minha

humilhação. Tínhamos chegado à


montanha apenas alguns dias antes.
Os

pés ainda doíam, a pele estava


queimada pelo sol, o silêncio
espesso preso

em nossa garganta. Tudo parecia


novo e estranho – os homens com

armaduras prateadas, as mulheres


labutando nos campos sob as

amendoeiras. Deveria ter dado


graças pela nossa salvação, em vez
disso chorara como uma criança em
desespero.

Embora tentasse esconder minha


tristeza, não consegui. Meus netos
afagaram meus ombros com as
mãozinhas para me dar conforto e
senti a

preocupação em seu toque. Eles não


podiam falar e talvez o seu tormento

lhes permitisse adivinhar o que os


outros ignoravam, a verdadeira
natureza

do mundo. Eram capazes de capturar


uma mariposa no escuro,

acompanhando o ritmo esvoaçante


das suas asas macias. Podiam
avaliar se
o vento vinha do oeste ou se surgira
do leste simplesmente pelo som.

Talvez essas habilidades fossem


milagres.

Onde havia um milagre, certamente


haveria mais.

Chorei até dormir e acordei cedo


depois de uma noite inquieta. Meus

olhos estavam vermelhos e


inchados. Esperava que os meninos
ainda

estivessem dormindo, mas meu neto


mais novo, Levi, que acabara de

completar sete anos, estava


agachado ao meu lado, esperando-
me acordar,

seu olhar experiente sobre mim. Ele


pegou a minha mão e me levou para
fora, meu guia através da luz fraca.
Senti como se continuasse sonhando,
mas a poeira e o ruído das cabras
em seus cercados eram reais o
bastante.

Estávamos aqui dentro dessa


fortaleza, longe de tudo que
conhecíamos, dos
campos de papoulas e de cardo, dos
bosques de ciprestes, das flores de
romãs, cujas flores vermelhas em
forma de sino se transformavam em
fruta

diante dos nossos olhos.

Levi conduziu-me à muralha sobre


os penhascos brancos que se

estendiam até onde a vista podia


alcançar. Observamos as pombas
voarem.

Soltas àquela hora para que


pudessem abrir as asas, elas
tornavam todo o

céu branco. Elevavam-se e


desapareciam, depois retornavam,
atraídas de

volta para os ninhos. Eram


dedicadas aos companheiros. Por
isso, nunca se

permitia aos casais voarem juntos, a


lealdade de um trazendo-o de volta
ao

seu parceiro uma e outra vez, apesar


da atração da liberdade.
Entendi o que meu neto queria me
dizer ao levar-me para ver a beleza

do seu voo. Era uma honra trabalhar


com as criaturas que viviam no céu,
tão perto de Adonai. Se fosse o meu
destino fazê-lo, não seria um fardo,
mas um presente. Virei-me e beijei a
testa de Levi, murmurando uma
prece de

gratidão por tudo o que ainda


possuía.

FALAVAM sobre nós desde que meu


genro nos trouxera para cá. As
pessoas nos observavam, tentando
adivinhar a catástrofe que se abatera
sobre

nossa família, convencidas de que,


mesmo entre os infelizes,
merecíamos sua compaixão, pela
incapacidade de falar dos meus
netos. Ninguém sabia

de mais nada sobre nós, só que


havíamos sido expulsos da nossa
casa, a exemplo de todos ali, e que
escolhêramos vir para cá.
Poderíamos ter ido para o norte, na
direção de Nazaré, na Galileia, onde
se dizia que o ar era
sempre fresco, onde poderíamos ter
começado uma nova vida,

encontrando uma aldeia onde


ninguém conhecesse nossa má sorte.
Mas

meu genro não era mais um homem


que pudesse viver dessa maneira,

voltado para as questões práticas da


vida diária. Não estava disposto a
criar

um rebanho de cabras, ou encontrar-


nos uma casa feita de pedra em uma
cidade em que pudéssemos ir a pé
ao poço, preparar as refeições e

esquecer o passado. Ele queria


vingança, nada menos. Em Massada

encontrara o que procurava, a


companhia de homens dispostos a
morrer

por aquilo em que acreditavam.

Não sei quanto tempo passamos no


deserto depois que Deus nos

abandonara. Bendito o que falou e o


mundo veio à existência. Assim
como a criação começou com
palavras, o nosso mundo
desmoronou em silêncio.

Nenhum de nós falava. Os meninos


porque não podiam, meu genro
porque

não o faria, e eu mesma porque não


havia palavras que valessem a pena
ser

ditas em voz alta. O mundo se


rompera e só uma estrada
permanecera,

aberta diante de nós como se fosse


feita de ossos.

Entendi que, ao fazer dessa


montanha nosso destino, vínhamos
para

uma terra de ninguém, um lugar do


qual não haveria retorno. Fôramos

banidos do mundo que conhecíamos.


Víramos coisas demais e
perdêramos

demais para ir a outra cidade e


descarregar os poucos pertences que
ainda
tínhamos a fim de começar de novo.

Aqui meu genro é chamado Homem


do Vale; ele não precisa de outro

nome além desse. Vive no quartel,


mas até mesmo seus irmãos o
temem.

Ele é o que vai na frente em


qualquer batalha, destemido e
inflexível, a expressão sombria de
quem está determinado a intimidar o
Anjo da Morte.

Empunha um machado, a única arma


de que precisa. Abstém-se da
armadura. Leve-me consigo, ele
incita o anjo, Mal’ach ha-Mavet.
Leve-me se for capaz.

Algumas pessoas dizem que o


Homem do Vale dorme com seu
machado,

que o adora como outro homem ama


uma mulher, ou um pai adora seu

filho. Ele, que já foi um estudioso


chamado Yoav, é agora tão brutal e
impiedoso quanto se diz do anjo
Gabriel, pois esse está à esquerda
de Deus,
do lado dos justos. Sua espada é
feita de fogo e seus olhos são de
fogo também. Se ele aparecer à sua
frente, caia de joelhos e implore
piedade, mas certamente irá
queimar.

Meu genro não corta o cabelo desde


o tempo que passamos no deserto.

Jurou nunca mais fazê-lo. Torce-o


em tranças que lhe caem pelas
costas. Já

os fios embranqueceram, embora ele


seja um homem jovem. Gravetos e
espinhos misturam-se aos fios como
o fazem na lã de ovelhas e cabras,
mas

ele não percebe, pois vive em um


mundo de dor, não no nosso.
Espinhos nada significam para ele.
Gravetos são tudo o que espera do
mundo.

Algumas crianças sussurram que ele


é capaz de bafejar fogo, como
Gabriel,

que se diz possuir a capacidade de


destruir cidades inteiras com um
único
sopro. Quando veem esse Homem
do Vale, as crianças correm dele.
Ele não

tem amigos, não tem mulher para a


sua cama, nem confia em ninguém. O

que lhe aconteceu transformou-o em


algo que é como o vento – não se
pode

vê-lo, mas sabe-se que existe,


pronto para provocar danos.

Quando penso em meu genro, não


posso deixar de recordar a história
do
judeu rebelde que alguns chamam
Taxo. Os homens do rei Herodes o

perseguiram até uma caverna no


tempo em que a nossa fortaleza
ainda era

um palácio, mas esse homem não se


curvou à vontade do rei. Não
permitiu

que os filhos fossem convocados e


recusou-se a pagar a sua parte dos
impostos. O rei não poderia permitir
tal rebelião, pois essas coisas se
multiplicam como enxames de
insetos que, irrompendo em uma
fúria de

picadas, um único se torna muitos,


acumulando força.

Quando os soldados de Herodes


desceram do topo das falésias em

cordas grossas, vestidos para a


batalha e prontos para derrotá-lo, o
rebelde

cortou a garganta dos sete filhos, um


por um. Depois, cortou a garganta da

esposa antes de acompanhá-la,


saltando para a ravina onde
espalhara os corpos dos filhos. Não
permitiria que aqueles de quem
gostava se

submetessem à tortura e à crueldade


do rei. Em vez disso, deixou este
mundo ao lado deles, mesmo que
estivesse escrito que nenhum de nós

possa fazer mal a si mesmo. Quando


Taxo se lançou sobre as rochas,
talvez

imaginasse que Deus culparia as


rochas pela sua morte e ele seria

perdoado no Mundo Vindouro.


Embora nossa lei diga que nenhum
homem pode ferir a si mesmo, Yoav

destruiu o pai que fora para seus


filhos e, ao fazer isso, destruiu a si
mesmo.

Meu genro nunca vem ver os


meninos, pois, quando ele se perdeu,
perdeu-

os também. Se acaso encontra as


crianças nos corredores ou nos
pomares,

segue seu caminho como faria um


cego. No começo, os meninos
corriam

para ele e se agarravam nas suas


pernas, mas não obtinham resposta.
Yoav

não piscava, não gaguejava, nem


mesmo olhava para eles, nem que se

atirassem sobre ele, desesperados


pela sua atenção. Tudo o que há de
bom

neste mundo está oculto do homem


no qual meu genro se tornou. A água

reluzindo em um copo é sinistra aos


seus olhos, o céu claro é uma afronta
e

seus filhos tornaram-se nada mais


que lembranças de como a carne
pode queimar e se transformar em
pó.

As pessoas consideram a sua


negligência como uma prova de que

algo de errado com as crianças. Por


que o próprio pai as renega, mesmo
sendo tão bonitos, com os cabelos
dourados e os olhos escuros,
lembrando
a mãe? Há aqueles que sussurram
que os meninos são possuídos e isso

causou o seu silêncio, mas entendo


que as palavras não são necessárias.
As

pombas me ensinaram isso. É


possível falar sem palavras, saber o
que outra

criatura quer e deseja mesmo


havendo só o silêncio. Essa era a
minha lição

a aprender, o meu destino o tempo


todo.
Toda manhã, quando chego, as
pombas me reconhecem; seu canto
sobe

e desce com prazer e aceitação. Está


sempre presente, um rio de sons.

Alguém que não esteja acostumado a


esses ruídos pode cobrir os ouvidos
e

correr para fora. Yael fez


exatamente isso em seu primeiro dia
conosco, cobrindo a cabeça,
alarmada. Rimos e brincamos com
ela, dizendo que, se
simples pássaros poderiam assustá-
la dessa forma, melhor seria que
nunca

enfrentasse um animal feroz. E ainda


assim as pombas a procuram como
se

ela falasse sua língua. Embora ela


não pareça lhes dar importância,
elas voam em sua direção como
encantadas. É o silêncio dela que as
atrai e conforta.

Quanto a mim, sinto-me grata pelo


meu trabalho nos pombais. Quanto
mais distraída estiver, mais chances
terei de suportar outro dia. O sol
lança

seus raios e começo a alimentar


minhas protegidas com seus grãos.
Revisto

os ninhos em busca de ovos. A


maioria agita as asas, recusando-se
a sair do

ninho, então sacudo o avental para


elas. Como é que posso sentir pena
das

pombas, tanto que quando tiro seus


ovos salpicados e os coloco em uma
cesta muitas vezes choro, se no
entanto quando sonho com os
homens que

matei não sinto absolutamente nada?

ANTES DE VIRMOS para cá,


acreditávamos que nossa aldeia no
Vale dos Ciprestes era o céu, ou
talvez imaginássemos que não fosse
muito diferente

do céu em que um dia entraríamos.


Devíamos saber que seria tirado de
nós.

Nada neste mundo é duradouro,


apenas a nossa fé sobrevive. Um
dia,

chegaram os soldados da legião, em


fileiras de seis, andando pelas ruas
que

meu pai ajudara a construir.


Primeiro vieram os legionários,
treinados em

Roma, adornados com cotas de


malha e capacetes; depois chegaram
as
ferozes tropas auxiliares, muitas
delas provenientes de tribos,
vestindo túnicas de couro, portando
espadas e lanças longas. Queriam
qualquer

riqueza que pudessem encontrar.


Desde aquela manhã em que
entraram

em nossa aldeia, nossa terra passou


a lhes pertencer, assim como nossa
vida. Mataram um galo branco sobre
os degraus da sinagoga. Na nossa
lei,

isso é um pecado. Eles estavam bem


cientes dessa doutrina. O sangue da
ave nos contaminava. Esse ato
inicial de violência anunciou o que o
futuro

traria, se ao menos os sacerdotes se


incomodassem em interpretar os
sinais

deixados pelos ossos do galo.


Nossos cidadãos fizeram um
comício contra a

legião, uma centena deles, exigindo


um pedido de desculpas. Eram
homens
que pagavam impostos e tinham casa
e família, homens honestos e

respeitáveis, certos de que ao fim do


dia receberiam um pedido de

desculpas de Roma.

Não poderiam estar mais enganados.

Não enxergávamos além dos


ciprestes que cresciam com a
fragrante

casca retorcida em um bosque ali


existente havia tanto tempo que
achávamos que duraria para sempre.
O ultraje uivava nas aldeias

destruídas nas proximidades para


quem pudesse ouvir, mas nós éramos

surdos ao seu sofrimento. Para os


que respirassem fundo, era possível

sentir o cheiro da guerra, mas era


também a estação em que as flores
cor-

de-rosa da espirradeira soltavam a


sua fragrância e perfumavam o ar. A
nossa terra fora conquistada muitas
vezes, os bosques e campos doces
atraíam os estranhos para nós da
mesma forma que o padeiro
chamava

seus clientes com o aroma intenso


dos pães. Mas isso estava no
passado; queríamos acreditar que a
nossa vida estivesse resolvida. Meu
marido não

prestou atenção ao que estava


acontecendo. A um tempo era
realmente

ingênuo, além de trabalhador. Os


sábios e rabinos curvaram-se à
legião, aceitando impostos tão altos
que mal conseguíamos sobreviver,
mas,

enquanto houvesse madeira para os


fornos, meu marido estaria feliz.

Cortava as toras ele mesmo e


formava uma pilha tão alta como
uma

montanha no quintal. Meu marido


pedia apenas uma bênção a Adonai
para

o que estava prestes a trazer ao


mundo a cada dia, o mistério da
challah.
Tinha pó branco nas dobras da sua
pele. Cada vez que me beijava,
deixava

uma marca branca, o beijo de um


padeiro. Ele me garantia que, se não
prestássemos atenção ao que
acontecia ao redor, e não fizéssemos
mal,

estaríamos seguros. As pessoas


sempre precisavam de pão.

Meu marido deixou nossa casa


determinado a levar a primeira
fornada
de pães à sinagoga como uma
oferenda, como sempre fazia. Ele
prometera

evitar problemas, mas nesse dia eles


o encontraram. Nossos vizinhos

tinham se reunido em um grupo que


tomava toda a rua para protestar

contra a ameaça de perderem suas


casas para os romanos. Meu marido
foi

convencido a acompanhá-los. Ele


levava sua bandeja de oferendas, os
pães
cobertos por um xale de oração feito
com os mais finos fios de ouro
habilmente trançados entre as franjas
roxas. Estava pronto para se

encontrar com os rabinos, mas,


quando os vizinhos o repreenderam
e

disseram que todos os homens


deviam tomar uma posição, sentiu-se

obrigado a deixar sua marca com os


outros. A letra R moldada nas
crostas dos pães que assara deveria
ter sido uma marca suficiente para
ele, o meu
nome era a sua inspiração e o seu
escudo. Em vez disso, ele se juntou
aos

homens que queriam mais.

PERCEBI que alguma coisa estava


errada quando senti o cheiro de
fumaça.

Havia pães no forno. Fui verificá-


los, mas ainda não estavam
queimando.

Por que ele saíra justamente naquele


dia dentre todos os outros? Por que
naquela manhã ele não fora ingênuo
quando todas as outras vezes não via

nada além da própria padaria? A


cevada, o sal, o coentro, o cominho,
esses

eram os ingredientes que constituíam


o seu mundo. Até então, o único

problema que atormentara meu


marido eram os ratos que entravam
pelas

janelas; a exemplo de tantos


padeiros, muitas vezes ele espalhava
cicuta para afugentá-los das caixas
de farinha. Agora havia perigo em
todos os cantos do nosso mundo. Os
demônios tinham escancarado as
portas da

nossa aldeia. Haviam nos declarado


suas vítimas em algum canto escuro
e

esfregavam as mãos alegremente. O


que lhes foi dado, eles declararam,

agora vamos tirar.

Enquanto as horas se passavam,


comecei a andar de um lado para o
outro alarmada. O padeiro deveria
retornar antes que os pães que
assavam

lentamente no forno se queimassem.


Será que um homem podia sair e

desaparecer assim? Ele me dissera


para tirar os pães quando o sol
chegasse

ao centro do céu, se ainda não


tivesse retornado. Não tirei. O que
quisera dizer com isso? Fazia ideia
de algum problema por vir? O meio-
dia veio e se
foi. Olhei alarmada quando vi as
sombras se alongarem, a fumaça
sobre os

pátios e telhados.

Pensei que, se esperasse para tirar


os pães, meu marido sentiria o
cheiro

do pão, perceberia que estava


queimando e correria de volta para
casa. Na

pior das hipóteses, ficaria com raiva


de mim por não fazer como me
instruíra. Mas o sol começara a cair
na direção da noite e ele não
voltara.

Agora os pães estavam


carbonizados, as crostas pretas de
fuligem.

Tive um único pensamento, e era o


de encontrar meu marido. Eu podia

ser ingênua também, talvez fosse


isso o que nos unira por tantos anos.
Abri

a porta, desesperada para começar a


busca pelo padeiro, pronta para
disparar pela rua, apesar de estar
agora repleta dos nossos vizinhos,
muitos

deles tingidos com o próprio sangue


e com o dos seus pais.

Quando estava me preparando para


sair, encontrei meu genro, Yoav, na

minha porta. Ele não era um lutador


nessa época, ainda não era o
guerreiro

que prometera nunca mais cortar o


cabelo. Ao contrário, era um homem
gentil, que só queria fugir dos
problemas. Tinha o olhar de pânico
de um estudioso que é subitamente
confrontado com as brutalidades e
as

preocupações desprezíveis da vida.


A exemplo do meu marido, que se

dedicava ao trabalho, ele se


preocupava com os estudos e com a
vontade de

Adonai. Eu já enrolara o lenço na


cabeça, dominada pela intenção de
procurar meu marido, mas meu
genro me deteve. Em seguida me
alertou

para me preparar para o que tinha a


dizer.

Ergui o queixo, pronta para passar


por ele, sem disposição para ouvir.
O

que me impediria de sair em busca


do meu marido? Que desculpa
poderia

dar o meu genro para me obrigar a


desistir da minha busca? Meu genro,
que era devoto e nunca tocaria outra
mulher que não fosse a minha filha,
sua esposa, pousou a mão no meu
braço.

– Há uma razão para lhe dizer que


não saia – murmurou ele.

Só poderia haver uma razão. O


mundo revelara-se tão severamente
que

o homem com quem passara a minha


vida toda se perdera. Podia ver a

verdade nos olhos do meu genro


quando começou a falar. Ele
confessou
que vira os restos do que fora o meu
marido no centro da nossa cidade,
lançados na praça, junto a dezenas
de nossos vizinhos, desfeitos como

ramos ao vento. Era tarde demais


para recuperar o corpo. Se tentasse,
eu

perderia a minha vida também.

Apesar do seu relato, tentei passar


pelo vão em que o meu genro se

plantara na porta. Ele era mais forte


do que imaginava, ou talvez eu
estivesse enfraquecida pela dor.
– Escute o que estou dizendo – Yoav
insistiu. E expressou-se de um

modo que não me deixava escolha, a


não ser ouvi-lo. – Não tenho outra
maneira de lhe dizer isso, e não há
tempo para discutir. Seu marido já
está

no Mundo Vindouro.

Não existia um mapa para levar os


vivos até lá. Eu não conseguiria

alcançá-lo. Os romanos já estavam


empilhando os corpos na rua. Eles
tinham acendido uma fogueira que
me advertia para a infelicidade do
dia.

Então percebi que não fora de pão o


cheiro que sentira em ondas de
fumaça

saindo pela cidade, mas o odor


amargo da carne.

Yoav era um jovem rabino


respeitado e culto; pela sua posição,
precisara

pensar duas vezes antes de tomar a


filha de um padeiro como noiva. A
maioria dos rabinos procurava as
filhas de outros rabinos para o

casamento, pois, assim como as aves


do céu se uniam com as da sua

espécie, também os integrantes da


congregação procuravam os seus

semelhantes. Mas sem dúvida Yoav


quisera a minha filha. Zara era linda
em

demasia. Não era de admirar que a


cortejasse, ignorando as moças mais
adequadas que o perseguiam. O
nome da minha filha significava
“bela

manhã”, e ela era realmente mais


admirável que qualquer coisa neste

mundo, com sua pele dourada, o


cabelo como o trigo, seu semblante
ainda

mais lindo porque seus olhos negros


eram uma lembrança da noite antes
que a manhã rompesse, um momento
em que o mundo era um mistério e as

sombras eram tudo o que tínhamos.

Sempre me perguntei se Zara me


tinha sido dada por um anjo. Como

poderia uma mulher simples como


eu ser abençoada com uma filha que
se

assemelhava a uma rainha? Sentia


muito orgulho dela, e por boas
razões.

Nem uma vez parei para pensar que


o que era dado também poderia ser

tirado.

FICAMOS lisonjeados quando Yoav


veio morar na nossa casa. Meu
marido sempre cortava um pedaço
de pão para lhe ofertar todas as
manhãs, o

primeiro do pão assado naquele dia.


Agora aquele jovem culto, que muito

honráramos com o nosso orgulho e


respeito, tornara-se pálido,
tremendo

de medo. Quando me inclinei contra


ele, soluçando, não me pareceu

diferente de qualquer outro homem


assustado, não melhor certamente,
talvez mais aterrorizado que muitos.
Ele insistiu para que eu me
apressasse

a fazer as malas. Hesitei até que ele


me informou que minha filha e seus
filhos já estavam nos esperando.

Algo me obrigou a embalar alguns


ingredientes extras. Você pensaria

que eu pegaria meus melhores trajes


ou pulseiras do meu casamento,

aqueles artigos especiais e


valorizados que guardava no
armário ao lado da
cama, escondidos onde nenhum
ladrão poderia alcançar. Em vez
disso,

peguei o que pertencera ao padeiro:


uma tigela de madeira, um conjunto
de

colheres pesadas, o pano branco que


ele amarrava na cintura enquanto

trabalhava, a roupa que usava para


que nenhum mal recaísse sobre nós,
desde que usasse o xale de oração.
No último momento, recolhi vários

frascos que ele guardava debaixo do


fogão: coentro, cominho e sal. Um
frasco da massa fermentada que
fazia os pães crescerem.

Sabia que os mortos não nos


deixavam tão rapidamente, então
sussurrei

para meu marido enquanto arrumava


os pertences. Olhe para nós agora,
disse ao homem com quem vivera
por tantos anos, como se ainda
estivesse

ao meu lado. Olhe o que nos


tornamos.
Éramos como ratos, correndo para
longe antes que o dilúvio de morte

nos alcançasse. Peguei o pão


queimado do forno, escaldando as
minhas

mãos. Bolhas surgiram nos meus


dedos, mas pelo menos me
certifiquei de

que teríamos os últimos pães do


padeiro para nos sustentar. Yoav me

pegou pelo braço para me levar


embora. Eu sabia que não
deveríamos nos
atrasar. Mas acredito que meu genro
não era o único comigo na padaria
naquele dia. Estou convencida de
que um anjo estava ao meu lado,

sussurrando: Pegue isto, pegue


aquilo.

No último momento, alcancei uma


jarrinha de cicuta que meu marido

usava contra os animais daninhos.

Talvez o anjo tenha me dado o que


mais precisava.

AS PESSOAS que conhecêramos a


vida toda saíam em massa da aldeia,
algumas carregando tudo o que
possuíam. O caos tomara conta de
tudo e as nossas

vidas eram como pedras atiradas em


um jogo de azar, lançadas ao ar,
para

em seguida cair e se espalhar sobre


a terra. Cacos de objetos de
cerâmica

quebrados forravam a estrada e


muitos jogavam fora os pertences
que logo
descobriam ser muito pesados para
levar em uma viagem assim às
pressas

e frenética. Ouviam-se os latidos de


cães vadios e o eco do choro de
bebês.

Por toda parte viam-se as chamas se


elevarem, uma vez que as pessoas
ateavam fogo às próprias casas para
não permitir que os romanos as

saqueassem depois de terem sido


abandonadas. Elas queriam se
assegurar
de que os inimigos não pudessem
desfrutar do que haviam conquistado

com o trabalho de toda uma vida. No


dia seguinte, não restaria um tijolo
sequer, nosso mundo desmoronara
da noite para o dia. Algumas
mulheres

soluçavam na rua, mas o vento


chegara, soprando impiedoso do mar
para

anunciar o inverno iminente, e


ninguém ouvia seu choro. Não se
poderia dizer se proferiam
juramentos ou orações.
Segui nos calcanhares do meu genro,
preocupado, como estava, em

assegurar que minha filha e seus


filhos ficassem em segurança.
Chorei por

todo o caminho, certa de que atrairia


uma maldição sobre nós por não
preparar o corpo do meu marido.
Devia permanecer ao lado dele
durante

toda a noite e ajudá-lo, com


lamentos e orações, na sua travessia
para o Mundo Vindouro. Em
qualquer outro momento, eu teria
ficado com a casca

que outrora abrigara seu espírito


antes que o corpo que o continha
fosse deixado na caverna, ao lado
dos ossos do nosso povo. Pensei nos
nossos antepassados que fugiram do
Egito, nos seus filhos que
tropeçavam na

areia enquanto fugiam da


escravidão, nas águas que subiram e
depois se separaram à sua frente.
Sua agonia nunca fora mais real para
mim. Senti que poderia chorar por
eles.
Envolvi os ombros em um xale
branco, já de luto pela morte do
homem

que inscrevera a minha inicial em


cada pão que assava. Adotei a cor
do vestuário dos mortos, como se
tivesse partido desse mundo
juntamente

com meu marido. Por um momento,


achei que deveria ficar para trás,

entregar a vida nas mãos dos


romanos e permitir que meu espírito
se
reunisse ao dele. Mas tive uma visão
da minha filha e dos seus filhos, a
quem considerava mais preciosos
que qualquer outro tesouro, e entendi
o

que deveria fazer. Rezei para meu


marido, mas deixei a nossa aldeia

naquela noite. A exemplo dos ratos,


fugi do que desmoronava ao nosso

redor, abandonando a vida que


levávamos, agora destruída.

AO CAIR da noite, caminhávamos


para o deserto. Era o mês de Tishri,
quando comemoramos o Rosh
Hashanah, a festa que assinala o
momento em que o

Todo-Poderoso começa a tomar nota


dos nomes dos que pertencem ao

Livro da Vida e viverão por mais


um ano. Não fazia ideia de que ainda
estaríamos vagando durante o Yom
Kippur, o momento de expiarmos os
nossos pecados, e de que o Livro da
Vida seria fechado naquele dia,
depois

selado. Os nomes que não tinham


sido escritos em suas páginas eram
os daqueles que não viveriam no
próximo ano.

Estávamos preparados para uma


longa jornada. Meu genro trouxera
os

dois burros com a carroça em que


transportava os sacos de trigo para a
padaria e com os quais movia a
pedra do moinho para produzir a
farinha.

Eu carregava os últimos cinco pães


do meu marido, lembranças do que
nos
proporcionava uma vida boa. Minha
filha embalara potes de azeitonas e

azeite e trouxera queijo envolto em


tecido e bolsas de couro para água.

Fugimos e os burros fugiram


conosco. Acima de nós, víamos
enormes

bandos de pássaros, todos


escapando das nuvens de fumaça
lançadas pelos

inúmeros incêndios ateados na


aldeia. Dormimos amontoados ao ar
livre,
desacostumados com a vida cruel do
deserto, com saudade do cheiro de

pão e do conforto das nossas camas


macias. Meu genro usava a túnica
longa

de um estudioso. Pareceu perturbado


quando minha filha o abraçou e lhe

disse que estaria perdida sem ele,


talvez receando que a fé em sua

capacidade de liderança fosse


descabida. Vivia mais em casa, com
seus
pergaminhos e suas orações, do que
nos guiando através do deserto.

À noite, sonhei com meu marido. Ele


continuava ao meu lado, como

muitas vezes acontece com os


mortos antes de seguirem em frente.
Dizem

que os que nos deixam não mudam


quem são, mesmo no Mundo
Vindouro.

Meu marido estava sovando o pão,


trabalhando duro, como se
continuasse
em nosso mundo. Parecia o mesmo,
um homem gentil e sério,
preocupado

com seu ofício, como sempre, mas


usava ingredientes que eu não

reconhecia. A massa era vermelha e


as especiarias haviam sido moídas
de

pétalas de flores negras e de ferrões


pontiagudos de abelhas. Então ouvi-
o

falar. Ele dizia: Cada pedaço de


pão o alimenta do modo que
precisa ser alimentado. Meu marido
era um homem simples e só usava as
palavras quando necessário. Agora,
nos meus sonhos, tinha certeza de
que ele estava

me dizendo algo que precisava


ouvir. Acordei desejando que
houvesse dito

mais.

Pela manhã, os bandos de aves que


fugiam ao longo das encostas das

colinas eram tão enormes que


apagavam o sol. Mordi a língua, mas
estava

certa de que se tratava de um mau


sinal. O galo branco que fora
sacrificado

nas escadas da sinagoga estava nos


seguindo, era o que acreditava,

enviando seus mensageiros para nos


perseguir. As aves passaram por
nós,

voando mais rápido do que nunca


vira, e isso nos disse alguma coisa

também.
Se tivesse prestado atenção, teria
entendido que há algumas coisas
neste

mundo que não podemos vencer.

OS DIAS foram se passando e em


pouco tempo tínhamos comido quase
tudo o

que tínhamos, o pão, as azeitonas, o


queijo. Começamos a racionar os

alimentos. O plano do meu genro era


simples, as táticas de um homem
lógico. Esperaríamos que os
romanos se fossem e, em seguida,

retornaríamos à nossa aldeia e


começaríamos de novo. Eu não disse
o que

sabia, que não haveria nada para o


que voltar. Encontraríamos apenas

sangue e tijolos quebrados. Vi que


meu genro estava intimidado pelo

deserto à nossa frente e com o nosso


lugar nele. O deserto se aproximava,

uma paisagem agreste, mesmo para


aqueles com experiência em

sobreviver aos seus perigos. Em


todas as suas horas de estudo, Yoav
nunca

acendera uma fogueira de galhos


com o uso de uma pedra, nunca
caçara com um arco, nunca
procurara água nem seguira por um
caminho de

pedras e rochas de calcário tão


duras que deixavam nossos pés
sangrando.

Era um homem importante na aldeia,


mas ali não era nada. Em pouco

tempo estávamos perdidos. Cada


arbusto espinhoso parecia o mesmo
para

nós, devastado, preto. Cada colina


levava a outra. Só o céu mudava,
cor-de-

rosa rubro no crepúsculo e depois


filtrando uma luz acinzentada antes
de a

escuridão nos dominar.

Yoav começou a rezar, hora após


hora, como se isso lhe indicasse o
que

fazer em seguida. Eu já tentara fazer


pão em uma chapa de ferro sobre a
fogueira e não conseguira. Só
conseguia fazer biscoitos que não
tinham força para crescer.
Finalmente fui capaz de assar o pão
sobre pedras

quentes que coloquei embaixo de


gravetos em chamas. Os meninos

chamaram os pães pretos e


crescidos de pães das cinzas, eram
amargos
mas satisfaziam. As bolsas de água
de pele de cabra estavam menos

pesadas, drenadas pela nossa sede, e


as chuvas ainda não haviam
chegado.

Yoav prometeu que Adonai nos


guiaria e que não tínhamos escolha
senão aceitar seus desígnios.
Secretamente, desejei que
pudéssemos encontrar

um guia entre as tribos de vestes


azuis que às vezes víamos seguindo
em direção a Moabe. Eu lhes daria
tudo o que tinha se nos ajudassem a
encontrar uma boa trilha.

Embora nossa aldeia ficasse para


trás, eu ainda achava que havia um

mundo para o qual pudéssemos


voltar.

Mantive meus olhos nos céus.


Avistávamos cada vez mais
pássaros. A

cada dia o número aumentava.


Tentei contá-los, mas era
impossível, pois eram tão
numerosos quanto as estrelas e, no
fim, desisti. Ainda sentia que o
padeiro me acompanhava, e que me
dava conforto. Falava com ele em
voz

baixa, tentando diverti-lo com as


minhas descrições dos diversos
tipos de

ventos que encontrávamos: o tipo


esvoaçante, o tipo uivante, o vento
suave

e quente do sul, o vento forte e azul


que chegava ao anoitecer e de
repente

partia ao amanhecer, o vento violeta


do desespero. Conversava com meu

marido sem que ninguém pudesse


ouvir.

Então um dia acordei e ele se fora.


Senti sua partida com tanta certeza

quanto se tivesse visto seu espírito


subir. De uma só vez, a solidão
instalou-

se em mim profundamente como uma


pedra em meu íntimo, dura e afiada.

Enquanto dormia, o espírito do meu


marido fora reivindicado pelo
Mundo

Vindouro. Ele desapareceu de uma


vez por todas. Quando comentei
sobre o

vento que assobiava, salpicado de


chuva, que soprava com a chegada
do inverno, ele não respondeu.
Quando descrevi o vento batido pelo
sol nos funis de poeira flutuantes,
falava com ninguém, a não ser com o
próprio pó.

Apenas pássaros pretos nos


sobrevoavam naquele momento, uma
formação de penas e carne turvando
o céu como nuvens de tempestade.

Esperei até a noite para chorar,


guardando a dor só para mim, pois
não fazia nenhum sentido
compartilhar a minha tristeza.

Não tínhamos outra escolha senão


seguir em frente, uma vez que apenas

o vazio estendia-se ao nosso redor.


No dia seguinte assim o fizemos.
Tive de

deixar aquele lugar indistinto,


abandonando a última essência do
meu

marido. Carregava a minha perda


como um fardo, que retardava o meu

progresso com seu peso. Não


conseguia nem manter o ritmo dos
burros

cansados, que seguiam indiferentes o


seu caminho. Os meninos voltavam

correndo para junto de mim e


seguravam as minhas mãos, me
apressando.

Por causa deles continuei, mas Deus


sabia que passara pela minha cabeça

ficar para trás. Queria deitar-me ao


lado das rochas e sonhar com o
padeiro,

pedir-lhe para voltar para mim,


mesmo que isso significasse abrir
mão

deste mundo. Talvez esse tenha sido


o pecado que cometi. Esqueci-me de

que mesmo o pior da vida é um


tesouro.

*
APARECEU à nossa frente um
pequeno oásis. Possuía uma queda-
d’água que jorrava de um penhasco,
derramando-se sobre as pedras para
formar uma

piscina de água doce. Sentimo-nos


abençoados, muito felizes com a
nossa boa sorte.

– Eu lhes disse para ter fé – meu


genro advertiu. – Deus fez
exatamente

como eu disse que faria.

Cresciam palmeiras e um amontoado


de jasmim perfumado. Caniços de

hastes carnudas brotavam ao longo


das margens da piscina. Flores
brancas

boiavam na água verde, cada uma


exibindo o formato de uma estrela.
Via-

se um grupo de amoras silvestres,


onde vespas e libélulas se
aglomeravam,

seu zumbido como música para os


ouvidos. O ar era fresco e doce,
agitado
pela brisa. Eu poderia ter descrito
essa brisa para meu marido se seu
espírito continuasse ao meu lado, um
vento tão calmo que inspiraria
inveja

em todos os outros ventos em todos


os cantos do mundo.

Meu genro pensou que poderíamos


esperar pela partida dos romanos

ali, naquele lugar aprazível.


Deveríamos saber que em tempos
tão cruéis não era o melhor prender-
se a um único local, mesmo se
houvesse água e o
ar fosse refrescante. A inveja era
igual, tanto entre os ventos como
entre os

homens sobre a terra. Quanto melhor


o lugar, mais os outros cobiçariam o

que você tivesse. Fosse um mendigo,


um andarilho, um solitário na

escuridão da noite. Se possuísse


algo que outros não tinham, você
seria um

alvo para os maus. Teria sido


melhor se tivéssemos feito nosso
acampamento em uma das cavernas
para além do oásis, ou talvez mais

longe na direção do deserto,


seguindo os caminhos batidos entre
os

espinheiros socados pelas manadas


de camelos selvagens. Mas meu
genro

temia o coração do deserto e quis


que permanecêssemos onde
estaríamos

mais seguros. Senti uma onda de


medo, uma premonição. Vi as
sombras

recortadas embaixo de uma palmeira


assumirem a forma de uma víbora,

que deslizou pela areia até parar aos


meus pés.

Minha filha me calou quando


comentei sobre meus temores e
sugeri que

seguíssemos em frente. Pessoas


haviam entrado na imensidão do
deserto à

nossa frente e nunca mais foram


vistas, sussurrou ela. Andarilhos que
eram

abandonados ou devorados por


feras, vencidos pela fome e pela
sede,

sequestrados, escravizados pelas


tribos que usavam mantos azuis. Ali

tínhamos tudo de que poderíamos


precisar e deixar aquele lugar seria
uma

ingratidão aos olhos de Deus.

– Pense nas crianças – pediu Zara. –


Estão felizes aqui.

Olhei para os meninos, que gritavam


alegremente brincando à sombra

das palmeiras, e pus de lado os


meus medos. Ficaríamos onde havia
água, o

elemento mais precioso de todos,


mesmo que as hienas viessem beber
no

crepúsculo, atraídas pela água,


assim como os demais animais do
deserto.
Aquelas criaturas ferozes se
aproximavam, os olhos brilhando
enquanto

espiavam os burros, outro presságio


que ignoramos. À noite aqueles
ímpios

animais manchados produziam um


choro estranho, desejando o pouco
que

tínhamos, ou talvez quisessem


convencer-nos de que eram mansos,
como

cães, ansiosos pela nossa


companhia, quando o que realmente
queriam era

a nossa carne.

Vimos poucas pessoas durante esse


período, apenas viajantes errantes

que vinham encher seus recipientes


de água, depois seguiam em frente,

sábios o bastante para montar


acampamento em tempos tão
incertos.

Fomos informados de que zelotes de


Jerusalém tinham tomado vários
postos avançados nas proximidades
do Mar de Sal, incluindo a fortaleza
de

Herodes, uma maravilha de palácio


no topo de falésias brancas,
construído

por um rei tão cruel que assassinava


quem quer que lhe fizesse oposição.

Um homem idoso, um eremita com


os pés atados com tecido e a túnica

desfiada pelo vento, advertiu que,


embora o deserto pudesse parecer
despovoado, era repleto de vida. O
que parecia vazio era cheio, assim
como

a água em um copo. O mais


importante era invisível aos olhos.

OS PÁSSAROS permaneceram
conosco, como uma praga pairando
no céu. Até mesmo eu, uma mulher
simples, percebia esse prenúncio do
mal. Um dia, havia tantos deles que
nos escondemos na barraca em que
dormíamos,

assustados com a escuridão tão


extrema no meio do dia, o mundo
enegrecido pelos corvos. Quando
saímos, na manhã seguinte, a estrada
que

levava para o leste estava coberta


de penas. Pássaros tinham caído do
céu,

atingidos por algum desastre


desconhecido. Zara e eu estávamos
ocupadas

recolhendo gravetos para fazer a


fogueira para a refeição do meio-
dia.

Antes que pudesse detê-los, meus


netos começaram a catar as penas e
a brincar com elas, adornando-se,
fingindo que haviam se transformado
em

corvos. Minha filha e eu trocamos


um olhar. A um só tempo, havíamos

percebido que era Yom Kippur, o


Dia da Expiação, quando pedimos a
Deus

para perdoar os nossos pecados. No


deserto, todos os dias eram muito

parecidos com o seguinte, e nos


esquecêramos do aspecto divino do
dia até

aquele exato momento. Não


deveríamos trabalhar nem comer,
somente

pedir perdão.

Dizia-se que no Templo havia uma


corda escarlate pendurada no altar;

no fim do Yom Kippur, depois do


jejum, dos sacrifícios e de muitas
orações, ela se tornaria branca se
Deus perdoasse as nossas
transgressões. Agora, ignoráramos o
mais santo dos dias e, ao fazer isso,
viráramos as costas ao

nosso Deus. Os meninos dançavam


na areia, cobertos de penas,
cacarejando

entre si como pássaros. Esse era o


tipo de erro que atraía os demônios
dos

seus esconderijos. Pensei se não


tínhamos tomado o caminho errado
na

nossa jornada e imprudentemente


virado à esquerda, o lado que dava
origem a todos os males.

O marido da minha filha ficou


furioso quando viu os meninos
brincando

como selvagens. Compelido a


corrigir a situação, ele se afastou
para rezar,

andando de um lado para o outro no


deserto, o vento fustigando seu
corpo,

deixando sua marca como


chicotadas. Ele gritou contra o vento
feroz que faria as coisas direito e
implorou por perdão, rezaria pela
misericórdia de

Deus, mesmo que isso lhe custasse


todo o dia e toda a noite. Mas minha
filha e eu sabíamos que o que fora
feito não poderia ser corrigido.

Havíamos nos esquecido de Adonai.


Pensáramos somente em nós mesmos

e nas nossas triviais necessidades


humanas. Por causa disso,
sofreríamos.

Nossos pecados cresceriam e nos


engoliriam por completo.
Eu chamara a minha filha de
esplendor da manhã, mas manhã
tinha dois

significados, e talvez tivesse lhe


rogado uma maldição quando
escolhera chamá-la assim. Agora me
perguntava se previra o que fora
escrito, embora

os homens cultos insistissem em que


nenhuma mulher era capaz de prever

o que viria a ser. Eles podiam dizer


o que quisessem. Eu sabia que nada
de
bom aconteceria no deserto no Yom
Kippur que havíamos esquecido. O

marido da minha filha podia rezar


por perdão até a sua garganta secar.
Eu

diria que, pelo vento crescente,


aquele vento impiedoso, não haveria

nenhum perdão.

AQUELE DIA terrível continuaria a


ocupar os meus pensamentos se a
algazarra nos pombais não me
distraísse com o seu estardalhaço
contínuo. O alarde

dos ruídos espelha o silêncio, pois


se está sozinho nas duas situações.

Muitas vezes notei Shirah


observando-me enquanto trabalhava.

Perguntava-me o que pensaria de


mim. Não temia enfiar as mãos na
sujeira

e não ultrapassava os meus limites.


Quando ela pousava o olhar em mim
no
ar obscuro, abaixava a cabeça para
esconder o que residia em meu
íntimo.

Apenas uma réstia de luz filtrava-se


do telhado e eu evitava passar por
ela,

com medo de que a claridade


revelasse a verdade sobre o meu
luto. Mas um

dia, não muito tempo depois da


minha chegada, Shirah de repente
pegou a

minha mão na dela. Surpreendi-me


com o gesto e, antes que pudesse

pensar em me afastar, ela olhou para


a minha palma áspera. Seu toque era

como a água fria sobre a minha pele.


Depois disso, poderia dizer que me
conhecia. Tinha a mão de um
assassino. Ela queimava durante a
noite, no

escuro. Outra mulher olharia para a


lua que se levantava para ver o seu
destino refletido, mas eu olhava para
a palma da minha mão a fim de
enxergar o que fora escrito e o que
fizera.
Como não quisesse que os outros
falassem a meu respeito, ficava
longe

das fofocas em torno de Shirah. Se


ela fosse realmente uma bruxa, eu
não a

temia, pois, quando apertara a minha


mão na sua, pegara parte do meu
fardo para si mesma.

– Ser humano significa perder tudo o


que mais se ama neste mundo – ela

murmurou, soltando-me. – Mas você


pediria para ser outra coisa?
PERMANECI em silêncio na
ocasião, mas depois me perguntei se
realmente preferiria ser uma cobra,
em vez de mulher, se escolheria
viver a minha vida embaixo de uma
rocha, atacando ao anoitecer,
devorando o meu

sustento, voraz e sozinha na minha


pele fria. Será que uma cobra amava
seus rebentos? Será que chorava sob
a rocha, ansiando por braços para
enlaçá-los, por uma voz para contar-
lhes histórias, por um coração que
se

desdobrasse em dois? Muitas vezes


não conseguia dormir ao pensar em

tais assuntos. Essas eram as


ocasiões em que via Shirah andando
pela noite.

Talvez ela soubesse as respostas às


minhas indagações, mas nunca

perguntei, como nunca questionei


aonde ia ou aonde fora. Se ela
tivesse uma caixa de pecados
mantida sob sete chaves, como
algumas pessoas

juravam, não era da minha conta.


Depois de desrespeitar as leis de
Deus, tomamos consciência de que
só Ele pode nos julgar. Sabemos que
nenhum

homem é capaz de entender o que


uma mulher pode ser levada a fazer.

QUANDO YAEL chegou para


trabalhar conosco, eu estava
convencida de que ela era uma
menina tola e egoísta, que se
considerava boa demais para limpar

os nichos das pombas ou carregar


pesados cestos de esterco para os

campos. Nunca imaginei que ela


viria a morar na minha casa, se é
que se pode chamar assim um único
alojamento com uma cortina como
divisória

de vizinhos como uma casa


adequada. E ainda assim fora
culpada por essas

mesmas ideias na minha chegada,


amargurada por ter sido enviada
para

trabalhar nos pombais. Mantivera a


postura da minha antiga vida com
uma
arrogância a que não tinha direito.
Chorava, convencida de que estava

relegada à posição mais humilde da


montanha, até meu neto me mostrar a

verdade sobre as pombas. Agora


entendo o orgulho demonstrado por

Shirah e suas filhas, uma devoção


que me intrigara na primeira vez que
passei pelas portas de madeira
entalhada, o rosto coberto por um
lenço, temendo respirar uma única
vez o mau cheiro do barro
composto.
Sem os pombos, essa fortaleza já
teria caído. Os restos espalhados no
pomar tornaram o nosso mundo
verde e exuberante, alimentando as
raízes

das tamareiras e das oliveiras,


fertilizando as amendoeiras, fazendo
com que explodissem em nuvens de
flores cor-de-rosa e branco. Sem os

pombos, teríamos morrido de fome


há muito tempo. Era proibido matar

um deles, pois sem o Templo não


poderia mais haver sacrifícios; um
homem que pegasse um deles por
ganância arriscava-se a tornar-se
karet,

ser banido da vista de Deus, pois tal


ato era considerado um crime contra

todos nós.

Todas as vezes que cortava um


pedaço de fruta, sentia-me grata às

criaturas claras e dóceis de que


cuidava. Sempre que uma delas
adoecia, levava-a para casa a fim de
cuidar da sua saúde. Mantinha essas
aves em uma prateleira de madeira
ao lado da minha cama. Escutava
quando

arrulhavam, confortando-me com sua


música.

Aquelas eram as únicas noites em


que não sonhava.

COMECEI a mudar de opinião


sobre Yael, a filha do famoso
assassino Yosef bar Elhanan, um
matador sobre quem as pessoas
sussurravam ter a

capacidade de atravessar paredes e


desaparecer diante dos olhos
humanos,

irmã de um dos nossos jovens


guerreiros. Notei que ela possuía um
estilo

próprio de magia. Bastava que


estendesse a mão e as pombas a

procuravam. Não precisava


cacarejar nem oferecer grãos, os
truques com

os quais eu costumava atraí-las.


Surpreendi-me com suas
habilidades,
tomada pelo ciúme. Era sempre eu a
primeira a abrir a porta pela manhã,

era eu quem alimentava as pombas e


a sua enfermeira quando adoeciam.

Era eu quem atirava pedras quando


os falcões se aproximavam do nosso

telhado, prontos para se esgueirar


pelos vãos da cobertura e destruir os
ninhos de que cuidávamos com tanto
carinho, ou para atacar, quando

deixávamos as pombas voar no


início da manhã, certas da sua
lealdade e do
seu retorno.

No entanto, elas procuravam por


Yael, não por mim. Ela ficava no
escuro

e eles esvoaçavam ao seu redor.

– Por que elas a preferem? –


perguntei a Shirah, que estava entre
as pombas por mais tempo. Acho
que a inveja brilhou nos meus olhos.

– Ela fala a língua delas.

– Sério? Dos pássaros? Que língua é


essa?
Shirah sorriu em resposta.

– Dentre todas as pessoas, você


deveria saber.

Então entendi. Era a linguagem do


silêncio.

EU ADIVINHARA o que Yael estava


escondendo por baixo da túnica e
dos lenços, embora ela não falasse
sobre isso, e por uma boa razão,
apesar de estarmos

longe das leis de Jerusalém, onde as


mulheres em sua condição seriam

chamadas perante um conselho de


sábios e anciãos, depois exiladas
para se

arranjar sozinhas. As mulheres que


cometiam adultério e concebiam
eram

forçadas a beber água amarga com a


poeira do chão do Templo, que
alguns

acreditavam ser capaz de fazer as


crianças saírem de dentro delas.
Essa era
a cerimônia do sotah, na qual a sua
inocência ou culpa seria provada
por Deus quando fossem forçadas a
beber o Seu nome escrito em um
pedaço de

pergaminho e dissolvido em um
copo de água. As pessoas
cochichavam que

o mal repelia a graça de Deus. Caso


o mal tentasse absorver o nome de
Deus em seu corpo, cairia sobre o
pó.

Mas talvez nessa montanha, com


tantos perigos diante de nós, havia
pouco tempo para buscar o pecado e
pouca razão para fazê-lo. Será que
meus vizinhos não se perguntavam
se seus pecados os haviam trazido a

esse lugar, por que o nosso povo


precisava sofrer tanto, por que os

caminhos de Deus eram tão


misteriosos, por que Ele nos
abandonara nessa

montanha?

O constante uivo do vento


enlouquecia algumas pessoas;
muitos dentre
nós amaldiçoavam a fortaleza e
desciam mais baixo do que tinham

imaginado. Havia mulheres que


choravam durante um vendaval até
as

lágrimas marcarem seus rostos com


listras de sal. Será que não se

perguntam por que tiveram de se


afastar para tão longe de Jerusalém e
de

tudo o que tinham conhecido e


amado? Nas horas mais sombrias,
quando
se reuniam com os filhos à luz quase
inexistente, tendo os xales como
proteção contra as tempestades de
areia, elas sem dúvida se
perguntavam

pelo que estávamos lutando.

Eu nunca fiz essa pergunta. Olhava


para a terra além do caminho da

serpente e pensava nas inúmeras


formas que uma fera poderia
assumir.

Havia aquelas que se revelavam ao


meio-dia, pousando firmemente os
pés

sobre a terra, e aquelas que se


infiltravam nos seus sonhos. Havia
aquelas

que vinham de Roma, as feras mais


desprezadas que quaisquer outras, as

garras começando a se mostrar


quando cruzavam o Grande Mar,
pois o sal

repelia os demônios. Quando


pensava em tal perversidade, não
conseguia
dormir. Para me proteger, entoava o
encantamento que Shirah instruíra-

me a recitar quando me virava na


cama à noite. Proíbo todas as
formas de

destruidores, demônios, pragas,


aflições, medos e pesadelos, e juro
solenemente contra todos eles.

Ainda assim, continuava acordada,


incapaz de fechar os olhos.

Houve ocasiões em que avistava


meu genro escalando o caminho,
separado dos outros guerreiros,
quando regressavam das missões

destinadas a nos proteger, ou quando


tentavam encontrar as provisões de

que precisávamos no mundo fora das


nossas muralhas. Não queria pensar

nas ações tristes que cometiam, no


sangue que derramavam, nas vidas
que

tiravam.

O Homem do Vale que não andava


ao lado dos seus irmãos não tinha
mais nenhuma semelhança com o
estudioso que fora um dia. Ele nunca
saía

sem o machado pelo qual trocara o


seu cálice mais precioso,
carregando a

arma tão perto do corpo que essa


parecia uma parte dele, presa por
uma seda vermelha invisível. Seu
cabelo que embranquecera da noite
para o dia

era tão comprido que as pessoas


diziam que Deus seria capaz de
agarrá-lo
para tirá-lo de um perigo. Essa era a
razão pela qual ele ainda vivia,
embora

se deixasse em perigo o tempo todo.


Era conhecido por ser furioso em
batalha, disposto a atirar-se à luta
sem pensar na própria vida. Eu
entendia

por que ele fazia isso, pois sabia


pelo que lutava; no que não era
diferente

de mim. Uma angústia como a nossa


alimentava-se de ossos e de sangue.
Não tínhamos mais opções do que o
vento de para onde ir e a que lugar
pertencer. Eu era grata por esse
período de silêncio na montanha.
Ali, finalmente, meus netos estavam
seguros, podiam descansar sem
perigo,

enquanto as pombas da minha


cabeceira os silenciavam para
dormir.

Quanto a mim, o sono era uma terra


que já não visitava, apesar do meu
encantamento. Quando o fazia,
ansiava apenas pela minha vida em
vigília,
as horas em que não via as imagens
de pesadelo de tudo o que
acontecera e

de tudo em que me tornara.

MUITOS DEIXAVAM as suas


cidades e aldeias quando fugimos.
Eram na maioria pessoas boas, mas
também havia aqueles que se
desviavam para o lado

esquerdo da estrada, o lado dos


maus. Antes que o padeiro colocasse
seus
últimos pães no forno na enorme
tábua de madeira que sempre usava,

antes que eu soubesse que ele não


regressaria, antes que as penas
pretas caíssem sobre a estrada, já
estava escrito que encontraríamos
aqueles que

eram do mal e que eles cairiam


sobre nós no fim daquele dia,
quando o céu

se incendiou de azul e o ar cheirava


a jasmim.

Eles vieram por causa dos burros,


que ficaram espionando do
penhasco.

Vieram por causa da água fresca que


rebrilhara nos seus olhos. Mas
ficaram

quando viram Zara inclinada sobre a


fogueira. Viram o seu esplendor, tão

linda que parecia que aquela manhã


nascera para eles, e a sua intenção
mudou. Eles se esqueceram dos
burros, da piscina de água e da
décima legião, o regimento romano
de que tinham desertado, temendo a
punição
dos superiores, os bastões dos
generais se quebrado em cima de
suas

costas em consequência dos delitos


e do mau serviço.

Eles já se encontravam além da


linha que nos separa das criaturas
das

trevas. Atravessaram o caminho


batido frequentado pelo bando de
hienas

que vinham nos rondar, lamentando-


se no meio da noite, tentando ganhar
o nosso apoio com seus ganidos
tristes, esperando pelos restos de
comida

antes de vir nos devorar. Quatro


soldados romanos que viviam sem
água, sem comida nem esperança
desceram pela encosta, a armadura
de cota de

malhas pesando nos ombros, homens


cuja natureza se degenerara. Era
fácil

para eles tornarem-se brutos como


animais ferozes; mais um passo e a
sua
humanidade seria uma ilusão. Sob a
armadura havia apenas dentes e

garras, fome e sede. Era o shabat, e


Yoav saíra para orar no deserto, o
xale de oração jogado sobre os
ombros. O vento aumentava de
intensidade,

então ele não ouviu nada do que nos


aconteceu. Estava comprometido
com

Deus e com o som da própria voz.


Desde o Yom Kippur ele estivera
ausente durante todo o dia e à noite,
orando pela nossa salvação. Quando
a primeira

estrela aparecesse no céu,


acenderíamos a lâmpada do shabat
com o resto

do nosso azeite e ele voltaria para


nós. Essa foi a desgraça que
aconteceu.

Ele viu a luz, mas nunca esperou a


escuridão.

Avistei os soldados como se avista


um demônio, uma sombra no canto,

fundindo-se no outro lado do


terreno. Não pensei duas vezes.
Mandei os meninos fugirem. Foi
como se uma chave tivesse aberto o
futuro e por um

breve instante enxerguei do outro


lado.

– Vão depressa e não se arrisquem –


disse aos meus netos. – Não voltem

até eu chamar. Mesmo que a noite


caia, mesmo que o sol seja comido
pela

lua, não importa o que ouçam,


mesmo que alguém os chame pelo
nome.

Não respondam. Não falem. –


Olhava em seus olhos enquanto os
instruía. –

Acima de tudo: fiquem escondidos.

Mandei-os para um ressalto


escondido atrás da cachoeira, onde
às vezes

brincavam. As crianças eram


pequenas o bastante para caber
dentro de

uma fenda que se formara entre as


rochas. A água era uma cortina

enquanto caía. Pensei que, se algo


desse errado, os meninos não seriam
capazes de ver através da água e
Deus os protegeria.

Mas a água é clara, como uma janela


aberta, e seus olhos estavam

abertos também.

OS HOMENS caíram sobre Zara


junto à fogueira. Ouvi a voz dela
como se ouve um sino, soando acima
de todos os outros ruídos. Corri até
ela e um dos intrusos me atirou para
o lado, pois para ele eu não era mais
que um gafanhoto seco, bom para
nada mais que o jantar de um corvo.
Senti o gosto

de sangue ao redor da boca.


Ataquei-os, gritando, mas eles eram
quatro, e

brutalmente fortes, e eu uma mulher


desacostumada ao combate.
Enquanto

dois deles seguravam Zara, rasgando


suas vestes, os outros dois cuidaram

de mim rapidamente. O mundo


escureceu quando bateram com uma
pedra

na minha cabeça. Senti o calor do


meu próprio sangue correr pela
testa.

Tudo ficou negro como a noite


dentro de mim. Para a minha
vergonha, não

vi o que os meus netos viram, só


entendi quando vi a concha partida
em que Zara se transformara. Mas os
meninos observaram tudo: como os

soldados se revezaram com sua mãe,


como ela tentou afastá-los, como

quando terminaram eles a torturaram


com fogo e com pedras quentes e

paus afiados, por nenhuma outra


razão a não ser pela própria
maldade.

Quando saí da escuridão e despertei


novamente para este mundo, era

tarde demais. Os brutos se


apossavam dos poucos pertences
que haviam

sido armazenados na nossa tenda.


Aproximei-me de Zara, embora
soubesse

que ela entrara no reino dos


demônios e que cada demônio que
caminha sobre a terra tem a força de
mil homens, e eu era apenas uma
mulher, mais

envelhecida ainda naquelas poucas


horas, uma idosa, coisa sem valor.

Arrastei-me sobre a areia.

Em um momento tínhamos todo o


tempo do mundo estendendo-se à
nossa frente e, no seguinte, a minha
amada filha estava morrendo nos
meus

braços. Ela estava sussurrando para


que terminasse com aquilo e a

deixasse ir para o Mundo Vindouro.


Implorou-me enquanto o seu sangue

corria entre nós, o sangue que eu me


esfalfara para trazer a este mundo.

Não bastara para eles usá-la para o


seu prazer e depois deixar-nos em
paz.
Não bastara para eles tomarem tudo
o que possuíamos – os burros, a
água,

a tenda, as provisões – e abandonar-


nos para as hienas que já estavam
circulando. Eles eram os anjos da
destruição, vira isso claramente,
embora

parecessem soldados romanos.


Tinham vindo do lado escuro do
mundo,

onde a luz não conseguia penetrar. A


pele de Zara estava enegrecida onde
tinham encostado paus e pedras
ardentes contra ela. Tinham
colocado as pedras dentro dela só
para ouvi-la gritar. Atirei aquelas
pedras para longe,

mas não adiantou. Ela já conversava


com os entes do Mundo Vindouro, já

destroçada. Então vi que ela fora


dividida em dois com um machado e
tudo

o que estava contido dentro do seu


corpo tinha se derramado sobre a
terra.
Naquele momento, agachada ao lado
dela, transformei-me em algo que

não era uma mulher.

Os brutos tinham jogado as suas


armas, armaduras e capacetes de

bronze no chão. Peguei uma faca que


tinham deixado de lado, lisa com o
sangue. Fiz como Zara me pedia,
embora fosse um crime contra Deus
e

contra as nossas leis. Sussurrei em


seu ouvido que ficaria livre e que
deveria fechar os olhos. Então fiz o
que nenhuma mãe deveria ter de
fazer.
Peguei a faca e cortei sua garganta.
Fiz do modo que se faz um
sacrifício, pois mesmo uma besta de
carga é tirada da vida dessa
maneira, com

compaixão, em um corte único e


rápido, concluído sem dor. Ao fazê-
lo, inclinei-me e pousei a boca
sobre os lábios machucados da
minha filha. Seu

último suspiro entrou em meu corpo


e guardei seu espírito dentro de mim

como o tivera antes de ela nascer.


Os maus pegaram o que queriam.
Depois riram ao me ver deitada ao

lado de Zara. Saí atrás deles,


rugindo, empunhando a faca, e um
dos

soldados a tomou de mim e a


segurou contra a minha garganta.
Senti-me grata quando ele o fez. Era
isso o que queria. Pedi-lhe para me
matar.

– Vá em frente – disse. – Minha


morte será seu presente para mim.

Se não podia entender


completamente a minha língua, ele
com certeza

compreendeu o significado das


palavras. Eu não suportava mais as
agonias

da terra que pisávamos. Mas aquele


que era líder disse ao bando para
esperar. A maldade despertara a
fome nos soldados. Como animais,
eles

queriam mais. Ordenaram-me que


cozinhasse para eles sobre o fogo
em
que mataram a minha filha. A fumaça
carregava o aroma do perfume que
ela usava, uma mistura de canela e
óleo de gengibre, uma nuvem de

fragrância subindo das cinzas.

Uma ideia começou a se formar


dentro de mim.

– Vai nos negar isso? – disse o


líder. Tinha um sorriso no rosto

traiçoeiro, como se pedisse um


favor a um vizinho. – Certamente
sabe
cozinhar.

Eu não era mais uma mulher, mas


ainda era esposa de um padeiro.

Pensei no que o meu marido me


dissera no sonho. Por fim entendi o

significado. Disse aos brutos que


poderia fazer mais que simplesmente

cozinhar uma refeição. Poderia fazer


pão, o suficiente para carregarem
para

o deserto, assegurando que teriam a


fome saciada por muitos dias. Iria
alimentá-los da maneira que
mereciam.

– É melhor não estar mentindo –


aquele que queria me matar
comentou.

Peguei a chapa de ferro e as


colheres de pau do meu marido.
Amarrei o

avental branco na cintura.

– Como estou? – disse a eles. – Esta


é a vocação da minha vida.

Devia estar parecendo uma velha


acabada, mas alguém que conhecia
os

mistérios do pão, pois eles me


pediram para continuar com a
refeição. Eles

cochilaram ao sol. O cheiro


chamuscado da morte por
queimaduras não os

incomodava, assim como não


incomodava às hienas, que caçavam
suas

presas nas colinas, ou aos chacais,


que viviam nas ruínas, alimentando-
se dos ossos dos mortos. Enquanto
os brutos se aplacavam, os olhos

sonolentos fechados, assei os pães


recheados com escaravelhos e os
cobri

de maldições. Encontrei o coentro


espalhado pelo chão, ao terem
revirado

os nossos pertences, e peguei um


pouco para temperar, para que não

suspeitassem que o que comiam


nada mais era do que pão. Por fim,
avistei
o frasco daquele ingrediente que o
anjo na minha cozinha me mandara

levar. Não tinha um só grão


derramado. Misturei-o com água e
com o resto

de farinha, acrescentei uma porção


de levedura do pote de barro frio e
em

seguida coloquei a mistura sob uma


faixa de tecido para ajudar a massa
a

crescer no escuro.
Antes que os pães estivessem
prontos, os brutos acordaram.
Tinham

mais danos a fazer no mundo. Eram


desertores do serviço do seu

imperador, ansiosos por fugir, mas


não me apressei, zelando pela minha
porção de vingança e de desespero.

– Não podemos esperar – me


disseram. – Depressa – gritaram.

Não tive escolha senão assar os


pães diretamente sobre o fogo antes
que
acabassem de crescer. Esperava que
se tornassem espessos e lisos, como
bolachas, como fica o pão na chapa,
ou que se tornassem chamuscados de

preto, como fica o pão de cinzas,


mas eles cresceram em pães
perfeitos.

Soube então que o anjo que me


acompanhara na cozinha continuava
ao

meu lado, ajudando a formar a


massa.

O pulso sombrio da tristeza apertava


a minha garganta. Senti-me grata

por não me pedirem para falar,


apenas para servir. Ouvia os corvos
acima

de nós. Pensei nas penas na estrada


e nos inúmeros sinais que o anjo me
dera e eu não prestara atenção. Isso
nunca aconteceria novamente. Cortei

os pães com a faca ensanguentada,


queimando os dedos enquanto os

rasgava em pedaços, e servi às feras


que pareciam homens. Eles usavam
a
insígnia da legião, apesar de serem
traidores da própria espécie, e
portanto

ainda ostentavam o símbolo do


javali. Pensei em como convinha aos
suínos

comerem daquele pão. Sorri como


uma mulher que não tivesse
presenciado

tudo o que vira naquele dia, uma


mãe cujo corpo da filha não fora
assolado

em uma ravina onde crescia o


jasmim.

Eu era outra coisa agora, a coisa em


que me tornara.

Eles devoraram o que eu preparara,


comendo mais pão que qualquer

outro homem que eu vira antes. A


violência e os dias espreitando e
caçando

os outros despertaram-lhe uma


grande fome. Servi-os uma vez após
a

outra, como se fossem os meus


senhores. Aos seus olhos eu parecia
ser uma

mulher e sua serva, nada mais.


Então, os estômagos cheios, foram
encher os

frascos no lago, bem como os dois


grandes barris, para terem água

suficiente para a jornada. Chegaram


tão perto da cachoeira que me senti
atordoada, temendo que pudessem
ver meus netos escondidos e
assassiná-

los por esporte, caso as crianças se


atrevessem a falar. Não sabia que o
anjo

me concedera um último favor. Ele


tirara a voz dos meninos para que
não

pudessem se entregar. Quando


abriram a boca para gritar e chorar,
não saiu nenhum som.

Nesse momento os brutos


agachavam-se à beira do lago, os
rostos na

água como cães, subitamente


possuídos por uma sede insaciável.
Respirei o

meu sucesso triste, sabendo que


aquele era um sinal de que o veneno
lhes

cobrava o seu efeito. Eles não


conseguiam deter sua ânsia por mais
água, apesar de segurarem as
barrigas muito cheias, quase a ponto
de estourar.

Assisti com os olhos frios enquanto


bebiam até a morte. Era o mesmo
que

se dava com os ratos na padaria do


meu marido. Muitas vezes os

encontrava afogados em um balde


depois de morderem a isca,
morrendo

com a sede terrível que a cicuta lhes


dava.

Um dos homens aproximou-se de


mim e caiu de joelhos, implorando

misericórdia. Engasgou-se ao bradar


que tinha esposa e filhos à sua
espera.

Declarou ser um homem bom na


vida que levava antes, mas as
palavras, como todas as coisas no
deserto, foram levadas pelo vento.
Na verdade, eu

era alguém que já não ouvia essas


súplicas. Não trazia mais piedade
em mim, somente o último suspiro
da minha filha.

NO MOMENTO em que a noite caiu


e meu genro retornou das suas
orações, eu havia matado as quatro
bestas humanas, tendo cortado suas
gargantas por

via das dúvidas, não por


misericórdia, mas para ter certeza
de que

completara a tarefa. Lavara o corpo


da minha filha com água limpa e o
envolvera no xale de linho branco
que ela usara em seu casamento. Ela
trouxera o xale consigo na nossa
jornada, o único tesouro que levara
de casa, enquanto eu buscava o
veneno. A escolha que fazemos
nessas

ocasiões revela quem somos por


dentro. Ela era uma boa esposa, ao
passo
que eu era uma criatura capaz de
qualquer coisa para proteger o que
era meu. Juntei pedras para colocar
sobre seu corpo, de modo que os
chacais não se aproveitassem do que
restava dela. Se as pedras eram
pesadas, não

reparei. Elas eram vermelhas e se


esfarelavam, tingindo as minhas
mãos.

Talvez tivesse sido assim que fiquei


marcada pelo resto da minha vida e
por isso, se alguém olhasse muito de
perto as minhas mãos, sem dúvida
elas lhe revelariam a minha
verdadeira natureza.

Devia estar parecendo um demônio.


Assim que meu genro me viu, caiu

de joelhos. Quando percebeu o que


acontecera na sua ausência, ele

esmurrou a terra; chorou, praguejou


e rasgou seu manto. Pensei que

correria para o deserto como um


louco, abandonando-nos. Isso não
poderia

acontecer, mesmo que desejasse um


alívio radical para a agonia.
Recusava-

me a permitir que a morte da minha


filha fosse a morte dos seus filhos.

Precisava do meu genro para nos


ajudar a fugir. Segurei seu xale de
oração,

que não deveria ter tocado nem


mesmo na bainha. Dessa vez seria eu
a dizer-lhe o que fazer. Falei para
acabar logo com aquilo, pois o
tempo tornara-se como areia
debaixo dos nossos pés. Eu sabia
que deveríamos
deixar aquele lugar antes que alguém
procurasse os brutos no lago.

Enquanto Yoav embalava tudo o que


nos restava em cima dos burros, fui

até a cachoeira, pois era lá que meu


tesouro estava guardado. Os
meninos

me fitaram com os olhos escuros e


brilhantes, mas não saíram. Bati
palmas

e chamei por eles, mas não houve


resposta.
O ruído da água caindo era
ensurdecedor. Esgueirei-me por trás
da

cachoeira, os pés escorregando nas


pedras frias e molhadas. Era muito

grande para caber na fenda onde


eles se escondiam contra as rochas

úmidas prateadas de mica. Eles


tinham apenas seis e oito anos de
idade e

no entanto haviam visto o que


homem adulto nenhum na terra
deveria ver.
Estendi a mão e pedi-lhes para sair.
Disse-lhes que carregava o espírito
da

sua mãe dentro de mim e que a


levaria conosco aonde quer que
fôssemos.

Tínhamos de nos apressar. Era o que


sua mãe queria que fizéssemos.

Depois de um tempo, os meninos se


agarraram em mim e me seguiram
por

trás da queda-d’água. Não falaram


uma única palavra desde que saímos
daquele lugar terrível, nem mais
tarde, quando fizemos um
acampamento

apressado sob as estrelas, distante


da cachoeira. Nunca mais falaram
desde

aquela ocasião.

TÍNHAMOS entrado no território do


silêncio, invadindo-o como as
sombras avançam sobre a terra
quando o dia tarda a findar. O vento
era a única coisa que ouvíamos, a
menos que encontrássemos viajantes
pelo caminho
que nos contavam histórias do
palácio de Herodes e dos homens de

Jerusalém que seguiram o caminho


da faca curva, zelotes que agora

governavam a fortaleza do rei. Yoav


ouvia essas histórias de rebeldes,
absorto, seu perfil grave distante de
nós. Fizemos círculos no deserto
para

manter distância da guarnição


romana. Sem destino, e sem nenhum

conhecimento do deserto,
cambaleávamos no caminho para o
Mar de Sal.

Enquanto viajávamos, meu genro


mudou diante dos meus olhos.
Parecia

distanciar-se cada vez mais do


mundo, como se já caminhasse ao
lado do anjo Gabriel. Aquilo que
víamos como a terra embaixo dos
nossos pés, ele

via como o fogo. À noite, ele


enveredava chorando pelos arbustos

espinhentos e eu sentia no coração o


peso da sua dor. À luz do dia,
porém,

ele recuperava a dureza, os olhos


semicerrados, a pele tostada pelo
sol.

Consumia apenas ervas verdes e, se


não tivéssemos algumas delas para

consumir, não comia nada. Quando


chegamos a um assentamento
nômade,

negociou o cálice de prata que usava


para a bênção do vinho.

O velho do assentamento de tendas


de pelo de cabra e crianças nuas não

podia acreditar na boa sorte do seu


comércio. Não teve a menor dúvida
em

abrir mão do seu machado em troca


da prata pura. Era uma arma pesada,

feita para um lenhador, não um


guerreiro, muito mais forte que a que
dividira a minha querida Zara ao
meio. Depois que prosseguimos, eu
ouvia

Yoav praticando nas horas matinais,


com o céu ainda escuro, dedicando-
se

ao machado como um dia se


dedicara às suas preces e seus
pergaminhos.

Dormia ao lado dele, como dormira


com a esposa.

Meu pressentimento de que Yoav


seguiria para o deserto e nos

abandonaria pela sua dor estava


correto, só que não da forma que

imaginara. Ele permanecera


conosco, só que inteiramente
dedicado a outro

lugar que o convocara, o reino da


vingança. Foi então que seu cabelo
branqueou da noite para o dia e ele
passou a usá-lo comprido e

emaranhado. Seu corpo tornou-se


esguio e forte. Ouvíamos pouco da
sua

parte, a não ser quando praticava a


arte da destruição, atirando o
machado

com tamanha força que grunhia e


gemia, como um homem nos
estertores

da morte. Os próprios filhos,


aqueles meninos doces e
silenciosos,

assustavam-se com ele. Concluí que


ele se parecia com os loucos que
por vezes avistávamos no deserto:
guerreiros, eremitas, profetas,
sacerdotes; homens que só viam o
próprio caminho e o de mais
ninguém.

A MINHA primeira visão da


fortaleza foi de tirar o fôlego. Uma
miragem surgiu na pedra, um milagre
aparecendo sob o sol do meio-dia.
Como que

encantados, fizemos uma pausa no


vale. Era a temporada dos ventos, a

época em que o Ruach Kadim, o


vento quente e furioso que soprava
de Edom, nos trazia nuvens de
poeira. Meus netos estavam envoltos
em

túnicas, um próximo do outro, em


busca de algum conforto. Talvez
conversassem entre si através dos
sonhos, pois pareciam comunicar-se
e

entender-se sem o uso da linguagem.


Eles se recusavam a se separar e
dormiam sob o mesmo cobertor,
como comiam no mesmo prato e
bebiam

em um único copo. Pensei que os


penhascos íngremes que levavam a

Massada os assustariam e que iriam


hesitar. Esperava que seu pai tivesse
de amarrar cordas em volta da
cintura para ajudá-los a galgar os
penhascos, mas o mais novo, Levi,
foi o primeiro a entrar no caminho
de serpente, o caminho em espiral,
andando como uma cabra, e Noé
aplaudiu

os passos corajosos do irmão e


acompanhou-o em seguida.

Naquele instante tive a visão de que


os meninos nunca mais teriam o pai

de novo e que aquela escalada


perigosa seria a última vez que
estariam com

o Yoav que conhecêramos antes que


aquele outro homem, o que não se

separava do seu machado, tomasse o


seu lugar completamente. O sol

abatia-se sobre a terra como quando


os brutos no oásis caíram sobre nós,

ousados, impiedosos. Meus netos


foram subindo, as nuvens de poeira

seguindo atrás deles, carregadas


pelo vento em pequenos turbilhões
que

desapareciam diante dos nossos


olhos. Pousei a mão no braço do
meu

genro antes que ele começasse a sua


ascensão. Yoav virou-se para mim,
mas seus olhos estavam
encapuzados. Ele era como o falcão,
vendo

somente o que precisava para


sobreviver. Tudo o que queria era a

vingança, mas dei-lhe mais que isso.


Contei-lhe como me curvara sobre

Zara para roubar-lhe o último


suspiro. Neshamah, a nossa palavra
para a alma, significava a
respiração, e assim ela continuava
conosco.

Meu genro deixou escapar um


soluço quando ouviu isso. Ele
balançou a

cabeça e deu-me as costas.

– Jamais suportarei tornar a ouvir o


nome dela – ele enfatizou. – Não o

pronuncie na minha presença.

Entendi como era profundo seu amor


por ela. Ainda que tudo mudasse
em sua vida, nisso ele era constante.
Era o único capaz de entender o
significado da perda de Zara. O
nosso luto nos unia, apesar do
silêncio, do

vento e do homem que ele se


tornara. Lancei um sinal para ele se
inclinar, e

ele assim o fez. Então realizei a


segunda coisa mais terrível que uma
mãe

poderia fazer, em alguns aspectos


algo pior que enterrar a filha
debaixo das
pedras. Soltei o último suspiro da
minha filha em sua boca. Dei-a para
ele,

para que o seu espírito lhe


pertencesse e ele pudesse levá-la
consigo, para

que pudesse continuar a ser um


homem com uma alma, apesar de ter

perdido todo o resto.

A MINHA única preocupação era


com meus netos. Eles eram o meu
mundo, o
meu presente e o meu futuro. Jurei
me concentrar na nossa vida diária e
em

nada mais. Ao chegar a essa


fortaleza, instalamo-nos no nosso
pequeno

alojamento, construído junto à


muralha do rei, uma simples cortina

dividindo a nossa residência da de


outra família. À noite, ouvíamos os
nossos vizinhos, as crianças rindo,
os pais discutindo ou fazendo amor.
No
nosso espaço, apenas o silêncio.
Assim era a nossa vida agora. Já não
precisávamos da linguagem; não
havia palavras para o que

presenciáramos. Os meninos me
fitavam com seus olhos escuros
salpicados

de noite. Eu insistia que estávamos


seguros e fazia todos os esforços
para

lhes mostrar isso. Passei um fio na


soleira da porta, de modo que
ninguém
saísse sem o meu conhecimento.
Dormia com uma faca embaixo do
estrado

da cama. Passava cada dia em um


ritual de mesmice, esperando que as

crianças encontrassem consolo nas


pequenas tarefas e nos deveres da
vida

cotidiana. Na presença deles eu era


calma e paciente, a avó prática de
quem

podiam depender em todos os


momentos e em todos os sentidos,
mas meu

sorriso desaparecia sempre que me


via sozinha. Todas as manhãs ia
para os

pombais. Todas as noites voltava


para fazer o jantar. Mas todas as
noites chorava.

OS MESES transcorreram desse


modo. Acabamos nos acostumando
com o ar seco da montanha e com o
cheiro de sal trazido do mar lá
embaixo.
Conhecemos outras pessoas no
assentamento, as quais chegaram à

fortaleza por não ter outro lugar para


viver no Sião. Estávamos todos nas

mãos de Deus e assim éramos


irmãos e irmãs, não importava de
onde

tivéssemos vindo. Entre nós viviam


guerreiros e assassinos, rebeldes

criminosos e outros que insistiam


ser vítimas de crimes. Uns eram
homens
cultos, outros eram curtidores,
oleiros e pastores de cabras, homens

simples entre outros que sabiam ler


aramaico e hebraico, bem como
latim e

grego. Uns foram expulsos de


Jerusalém, outros fugiam de Jericó

incendiada e muitos eram refugiados


de pequenas aldeias como a minha.

Muitas das mulheres quiseram ser


minhas amigas e me convidaram
para
o grupo que se reunia nos teares à
noite, discutindo os acontecimentos
do

dia. Tinham boas intenções, mas


mantive a minha distância. Não
toleraria o

seu falatório bem-humorado tanto


quanto a sua fé. Embora fingisse o

contrário, não me desprendera do


passado. Era tudo que tinha, e me

agarrava a ele e o saboreava, pois


minha filha ficara naquela terra
pesarosa.
A tristeza me preenchia, deixando
pouco espaço para mais que isso.

Fechava os olhos para o mundo por


trás da barricada que erguera entre
mim e todos os outros, do mesmo
modo que a cortina separava o nosso
alojamento da casa dos vizinhos.
Entendi que não se fugia do destino
para

sempre; ele sempre voltava com


suas asas rijas, mergulhando no
escuro

como os morcegos nos pomares.


Ouvimos rumores sobre a presença
de batedores romanos, que teriam

montado um acampamento não muito


longe da nossa fortaleza. Os nossos

guerreiros foram enfrentá-los, mas


os inimigos eram muito numerosos e
no

fim os nossos homens tiveram de se


afastar e esperar que os romanos

levantassem acampamento. Nossos


inimigos deixaram pouco para trás, a

não ser ossos de porcos e pilhas dos


próprios resíduos. Mas também

deixaram uma torre de pedras. E


isso tinha um significado aterrador,

assinalava o lugar ao qual tinham a


intenção de retornar.

De minha parte, para o bem dos


meus netos, permanecia determinada
a

fazer com que a nossa vida


continuasse sem incidentes pelo
maior tempo

possível. Estava decidida a nos


guardar para nós mesmos. Sem
amigos, sem

inimigos, apenas nós três. Fazia o


possível para evitar perturbações.
Então,

uma noite, ouvi batidas na porta.


Senti um nó na garganta. Sabia o
tempo

todo que a qualquer momento o


mundo entraria em nossa vida.
Nenhuma

porta era capaz de evitar todas as


intrusões. Nenhuma barreira era
forte o

bastante para deter o avanço do


tempo. O joio do trigo que é batido
se eleva

no ar e é levado pelo vento para


outro lugar, se a um campo verde ou
uma

extensão de terra estéril, isso


dependia da vontade de Deus.

Rezei para as batidas cessarem, mas


elas se repetiram. Meus netos se

agitaram. Sua audição era tão


sensível que ouviram as batidas no
momento

em que me virei para a porta. Levei


um dedo aos lábios e fui em frente.

Temia o que estava por vir e fiquei


parada, tremendo como um pássaro

manso que se espanta à frente da


porta aberta da gaiola. Queria que a
nossa

existência modesta e tranquila


permanecesse constante, cada dia
refletindo
a mesma imagem do que o
precedera. Peguei a minha faca. O
nosso

alojamento já fora usado como um


depósito. Os ratos costumam
aparecer

em busca de grãos. Nesse momento


eles saíram correndo, driblando
meus

passos enquanto me aventurava a ver


quem nos visitaria em uma hora tão

tardia. Olhei através de uma fenda


entre as pedras.
Era Yael, esperando no escuro. Não
um soldado, nem uma besta humana,

apenas uma mulher de cabelo ruivo


comprido. Trazia uma cesta
contendo

todos os seus bens, tão poucos que


era como se não possuísse nada.

Pensei em mandá-la embora, estava


inclinada a isso, mas ela parecia

desesperada. Relutante, permiti que


entrasse. Ela sentou-se no estrado
em
que eu dormia. Não perguntei o que
estava errado; não foi preciso. Em
seu

rosto pálido, uma das bochechas


exibia a marca azul-escura de uma

contusão provocada recentemente


por alguém. Tive compaixão do seu

silêncio reservado e senti-me


atraída por ela, tanto quanto as
pombas.

Ela não se queixou, apenas


murmurou que lamentava incomodar.
Ela e o
pai tinham discutido. Eu o vira na
praça, e ele me parecera um homem
frio

e egoísta, que se julgava superior


aos que o rodeavam. Já vira homens
desse

tipo subestimarem meu marido por


ser padeiro, os mesmos que

consideravam Yoav bom demais


para viver sob nosso teto. Arrumei
um

lugar para Yael dormir, indo buscar


um cobertor que tecera e tingira de
azul do hissopo em memória da
minha filha, que amava a cor dessa
flor.

Yael viera em busca de abrigo,


embora eu tivesse sido fria com ela,
distante

desde o dia em que chegara ao


pombal. Ela tinha a idade da minha
filha.

Estava viva e Zara não, por isso


decidira contrariá-la, agredi-la,
ressentida.

Estremeci ao pensar no que fizera.


Ainda assim, ela vira algo em mim
que a

trouxera até ali. Sabia que eu


entendia a linguagem do silêncio.
Não lhe pediria para entregar seu
passado mais do que estaria
disposta a revelar-lhe o que eu
mesma fizera.

PELA MANHÃ, fomos juntas para os


pombais como se os nossos dias
sempre começassem assim. O
hematoma no rosto, no local em que
o pai a acertara,

já começara a se desvanecer sob o


bálsamo que usei para tratá-la, um
cataplasma feito de mel e figos. Não
discutimos a crueldade de seu pai,
ou o

fato de que a criança dentro dela


chegaria em breve, uma realidade
que não

podia esconder, apesar dos xales


que usava para se cobrir. Em vez
disso, falamos do calor e da
insuficiência da colheita de
amêndoas. As flores rosadas tinham
se queimado naquela estação nos
últimos dias do Tammuz,
como se alguém lhes tivesse ateado
fogo, chamuscando as bordas das

pétalas com uma camada de pó


preto. A grande maioria dos frutos
não se

formara nas árvores, murchando em


cachos estragados que explodiam em

cinzas quando puxados. A tristeza se


alastrara entre todos, e também a
apreensão. O manto da liberdade
que parecia nos proteger no início
ao chegar à fortaleza encolhia-se à
medida que as culturas começavam a
declinar. Estávamos tão isolados do
restante da humanidade que eu não

podia deixar de pensar que até os


anjos iam para longe de nós; tão

afastados que, mesmo quando


tentassem nos surpreender em um
tropeço,

a distância era grande demais para


compreenderem verdadeiramente a

nossa desgraça.

– Sempre tive medo de Av – disse


Yael do mês em que estávamos
prestes

a entrar. – Mas não este ano.

Ela parecia determinada, pronta


para combater as chamas da estação.
Av

era o mês em que seu filho entraria


no mundo. Imaginei que estivesse
enfraquecida, agora que fora expulsa
da casa do pai, mas esse não era o
caso. A sua força parecia renovada.
Encarava os que a fitavam com

curiosidade, exatamente como eu


mesma fazia quando as pessoas
sussurravam sobre a mudez dos
meus netos. Nisso éramos iguais,

marcadas pelo que fizéramos, mas


orgulhosas das nossas crianças,
mesmo

tendo sido abandonadas por Deus.

Normalmente, eu era a primeira a


chegar para cuidar das pombas, mas

nesse dia me atrasara enquanto


apresentava Yael aos meus netos.
Shirah e

as filhas já estavam trabalhando;


elas nos fitaram quando entramos
juntas,

tão intrigadas pela nossa nova


aliança quanto pela marca no rosto
de Yael.

Eu não fizera outra coisa senão me


queixar de Yael desde a sua
chegada, era

verdade. Mas uma mulher pode


mudar de opinião.

– Precisava de ajuda com os meus


netos – eu disse, indicando que
estarmos juntas era uma questão
simples, apesar da contusão que

claramente indicava a ocorrência de


algo mais. – Estou velha demais
para

brincar com eles.

Era só isso, sem a necessidade de


mais explicações. Uma coisa boa,
uma

vez que nenhuma outra se


apresentaria. As mulheres eram
feridas todos os
dias e atribuíam a causa a si
mesmas. Yael lançou-me um olhar
agradecido

e rapidamente começou a trabalhar.


Notei a expressão do escravo
quando

viu o ferimento em seu rosto. Se ele


fosse senhor da sua liberdade,
imaginei

que assumiria a necessidade de


encontrar quem fizera mal a ela. Fiz
sinal

para ele se concentrar nas suas


funções. Ele obedeceu, mas pelo
restante do

dia acompanhou cada movimento de


Yael. Era estranho vê-lo comportar-
se

como se a sua lealdade o prendesse


a uma mulher que carregava o filho
de

outro homem.

– Deixe-a em paz – disse a ele


quando ninguém podia ouvir. Ele
não
conseguia tirar os olhos dela. – Ela
já tem problemas suficientes, não
precisa dos seus.

– O que a faz pensar que tenho


problemas? – ele perguntou da
maneira

hesitante que falava a nossa língua.

Fiz uma pausa e considerei o que


dissera, vendo-o trabalhar com o

ancinho que inventara para recolher


o esterco, um guerreiro que as

pombas não mais temiam. Pensava


nele como uma esquisitice, por
causa da

sua cor clara e da sua grande


estatura, o que o obrigou a se
abaixar no pombal. Agora via que
era realmente bonito, de ombros
largos, com feições

atraentes

compleição

avantajada,
mãos

ásperas

que

eram

surpreendentemente sensíveis
quando cuidava das pombas.

– Você não é um homem? – disse,


implicando que todo homem neste

mundo tinha seus próprios


problemas.

– Fui – disse ele. – Um dia.


Eu não era tão velha que não
entendesse o que ele queria dizer.
Apesar

das cadeias da escravidão, ele


voltaria a sê-lo.

TODOS OS DIAS ouvíamos os


nossos guerreiros se prepararem
para novos ataques. Os depósitos
careciam de suprimentos, os
estômagos estavam

vazios. O verão era sempre a época


em que a nossa vida emagrecia, mas
esse ano estava pior que os
anteriores. Na refeição da noite
comi a metade

do que havia no meu prato – um


pouco de grão-de-bico, algumas
tâmaras

prensadas – para assegurar que os


meninos e Yael pudessem ter mais.
Cada

um de nós recebera uma ostraca,


uma lasca de pedra com o nosso
nome ou

inicial gravados na superfície, com a


qual tínhamos direito a um tanto de
comida, água e lenha todas as
semanas. Era um momento
preocupante para

todos. O calor do verão precipitava-


se em sua plenitude sobre nós, o ar
em

ondas crescentes tão secas que


usávamos lenços sobre a boca para

refrescar a respiração. A água das


cisternas já havia alcançado as
marcas baixas e estávamos apenas
entrando no mês do fogo.
Yael e eu não falávamos no nosso
acordo, mas ela continuou
hospedada

no nosso pequeno alojamento. Meus


netos mostraram-se tímidos com ela
a

princípio, mas um dia ela os


chamou. Os meninos hesitaram, mas
se

aproximaram quando Yael apontou


para um escorpião em um canto

escuro. Quando era pequena, ela


disse, ficava observando aquelas
criaturas

no corredor em que dormia, mas


tinha sempre o cuidado de não lhes
tocar.

Alertou Levi e Noé para que também


nunca perturbassem um escorpião,

mantendo uma distância respeitosa,


considerando não só a picada
mortal,

mas também o seu silêncio


astucioso.

Meus netos observaram, os olhos


escuros hipnotizados, visivelmente

encantados quando Yael capturou o


temível intruso em um frasco. Ela o
pinçou agilmente entre os dedos. Eu
me perguntava o que mais ela fizera
para mostrar tamanha bravura, ou se
a sua coragem, assim como a minha,

derivava do sofrimento. Quanto


menos se tem a perder, mais fácil se
torna

pegar a faca, a espada, o escorpião.


Quando ela levou a criatura mortal
para
os jardins em um terraço nas
proximidades, os meninos a
seguiram em

seus calcanhares, emocionados com


a ousadia. Ao vê-los tão alegres e

cheios de interesse, senti minha


garganta se apertar e pensei que
poderia

perder a voz também. Marcados por


sorrisos e uma profunda
concentração,

eles não pareciam diferentes de


quaisquer outras crianças; ninguém
os

tomaria por dois meninos que


haviam perdido a fala na teia de um

demônio. Eles ficaram fascinados,


agachando-se sobre os joelhos em
um

canteiro de rabanetes sírios para


assistir, boquiabertos, a como Yael

libertava o escorpião em um canto


escuro, entre maços de cebolas.

– O mundo é muitas coisas para


muitas criaturas – ela disse às
crianças,

enquanto todos observávamos o


jardim murado, que certamente era
uma

floresta para a pequena criatura que


fora arrancada da sua casa. O

escorpião desaparecera da vista. –


Somos considerados gigantes por
alguns

e formigas a serem pisadas por


outros.

AS PESSOAS sussurravam sobre


Yael, perguntando quem seria o pai
do seu filho e especulando sobre a
noite em que o assassino Bar
Elhanan expulsara

a própria filha de casa. Os meus


netos, porém, já haviam começado a
adorá-

la. Embora mantivesse a minha


distância, acostumara-me a ela
também. Se

as pessoas falassem mal dela na


minha presença, eu as encarava e
ficava por isso. Embora preferisse
ser discreta, de certo modo sentia-
me

confortada de ter Yael em casa,


ouvi-la respirar com facilidade
enquanto dormia, como a minha filha
faria se ainda estivesse conosco.

A bem da verdade, era grata pela


ajuda nas tarefas domésticas.
Mesmo

em seu estado, avantajada com a


criança prestes a nascer, Yael estava
longe

de ser preguiçosa. Cozinhava as


refeições, agachando-se sobre o
poço de fogo para fritar os alimentos
em uma grelha que se encaixava
sobre o anel

de pedras. Ia aos depósitos para


pegar nossa porção diária de feijão
e grãos,

e providenciava para que não


faltasse lenha, tudo isso em
pagamento por

aceitá-la em minha casa. Mas as


histórias que ela contava eram o
único pagamento de que
precisávamos. Os olhos dos meninos
brilhavam quando
a ouviam na hora de dormir,
hipnotizados. Em todas as façanhas

envolvendo escorpiões, o silêncio


era um bem e um presente, não uma

falha, mas uma virtude. O escorpião


podia fazer o que outros não

conseguiam: podia ver no escuro,


ouvir uma mosca voando no outro
lado da montanha, sentir o perigo
enquanto o restante do mundo
dormia.

– Foi a sua mãe que lhe contou essas


histórias? – perguntei uma noite,
enquanto Yael e eu íamos juntas
para a praça. Começáramos a
trabalhar nos teares com
regularidade. Continuávamos
afastadas das outras

mulheres, mas era um prazer tecer e


as nossas roupas estavam rasgadas,
tínhamos necessidade de xales e
túnicas. Quando nos ocupávamos
dessa

forma, era possível esquecer a


poeira que subia em nuvens ao nosso
redor

e nos distanciar da fome. Podíamos


não ter mais nada, mas pelo menos
tínhamos a lã das ovelhas e o
trabalho de fiação e tecelagem.

– Não tive mãe. – Yael manteve os


olhos baixos.

Chegamos aos teares, onde nos


instalamos, levando as nossas
medidas

de lã cardada e tingida. Yael


trabalhava em um desenho muito
elogiado. Até

mesmo as fofoqueiras que


sussurravam a seu respeito estavam
impressionadas. Os desenhos
incluíam uma disposição intrincada
de fios

coloridos, formando uma linha


contínua de blocos quadrados

multicoloridos. Notei que era o


mesmo desenho do tecido usado
pelo

escravo.

– Todo ser humano tem mãe – insisti


enquanto trabalhávamos.

– Tem certeza de que sou humana? –


Yael disse, o queixo inclinado,

provocando-me. Nunca vira uma


mulher com o cabelo tão vermelho
ou com

tão pouco medo como ela, disposta a


pegar um escorpião entre os dedos.

Podiam sussurrar que estava


possuída por um demônio e juro que
ela era

diferente de outras filhas e esposas.


Mas a vira na noite em que o pai a
pusera para fora de casa, quando se
encolhera em um canto como
qualquer

outra mulher espancada. Notara a


expressão em seu rosto quando ela

estava ao lado do Homem do Norte.

Ela era humana.

QUANDO ELES achavam que


estavam sozinhos, eu ouvia o que
não deveria ser ouvido da parte
deles. Yael tinha a sorte de eu ser
acostumada ao silêncio e,

portanto, a segurar a minha língua.


Uma fofoca teria sido implacável,
propagando rapidamente o encontro
íntimo com que me deparei. Um

falcão vinha circulando o pombal


maior por vários dias, com a
intenção de

pegar nossas pombas para seu


jantar. Montamos paus amarrados
com

cordas que pareciam brinquedos de


criança; quando a brisa soprava, as

varas giravam e assustavam os


falcões. Mas um falcão era
destemido; não
se deixaria intimidar. Parecia
subnutrido e decidido a conseguir a
sua ceia.

A fome no deserto assolava todos ao


mesmo tempo.

Quando o falcão apareceu no


parapeito da janela, Yael encontrou
alguns

grãos e estendeu a mão para ele.


Fiquei chocada ao ver a criatura
comer da

sua mão, como se fosse uma pomba.


Não fui a única a tomar
conhecimento

disso. O Homem do Norte chegara


ao seu lado. Ouvi-o dizer que em
seu país

os caçadores treinavam os falcões


para atacar as presas e trazer de
volta perdizes e pombas. Seus
afiados bicos amarelos eram
enrolados com fios de couro, presos
um tanto fechados para que não
pudessem devorar suas

presas; tinham de aprender a esperar


pacientemente quando as traziam de
volta, passando fome até que o
caçador lhes atirasse um pedaço de
carne.

Geralmente eram necessários meses


para que se ganhasse a confiança

de um falcão. O escravo
surpreendera-se com a facilidade
com que Yael atraíra aquele para si.
Ele disse que ela devia possuir
magia. Então caiu de

joelhos e inclinou a cabeça, meio na


brincadeira, declarando que ela o
enfeitiçara também. Yael riu das
suas palavras – lembrei-me porque
não a

vira fazer isso antes. Foi um som


encantador, surpreendente. Ela disse
que

as mulheres com cabelo vermelho


tinham o dom de domar as criaturas

selvagens. Considerando que o


escravo viera de um país onde
muitas das mulheres tinham essa
aparência, ele devia saber que isso
era verdade. Ele

se levantou, mas inclinando um


pouco o corpo alto para ficar à
altura dela.

Foi então que o ouvi dizer:

– Você não se parece com elas,


Yael. Você não se parece com
ninguém.

Não tive certeza se com essas


palavras ele queria fazer um elogio
ou um

insulto, mas depois pegou a mão


dela e a beijou no pulso, o lugar em
que o

que alguém precisa e o que ela


deseja se cruzam e tornam-se uma
coisa só.

YAEL NÃO era minha filha, mas


morava na minha casa, e isso me
levava a me preocupar. Sabia que
uma mulher no fim da gestação
poderia procurar

consolo em lugares curiosos. Ter


uma criança poderia causar
confusão, e a

bondade em um mundo cruel poderia


induzir Yael a esquecer-se de que o

Homem do Norte não era um de nós.


No cobertor em que dormia à noite,

ela se mexia e revirava,


desconfortável com o calor. Pela
manhã ela remoía

os pensamentos, os olhos cheios de


sono. Perguntava-me se ela sonhava

com o seu bebê que ia nascer, como


eu fizera havia muito tempo, se já
vira

o rosto do seu filho e talvez tivesse


escolhido um nome, embora fosse
melhor não fazê-lo. Atribuir um
nome prematuramente alertava os
demônios de que uma criança estava
prestes a vir ao mundo. Divulgar o
nome de uma criança poderia fazer o
recém-nascido ser mais facilmente

atraído para a escuridão. Eu o


fizera, tentando o destino. Talvez os

demônios da noite tivessem seguido


a minha filha desde que a chamara

Manhã.

NÃO RECLAMÁVAMOS do nosso


trabalho naquele período brutal do
ano, pois o pombal era um lugar
ameno, as paredes de gesso
proporcionavam-nos

algum alívio. Ficávamos abrigadas


da febre implacável da estação.
Abaixo de nós o vale chiava sob
uma névoa rosada. O mundo além
dos nossos

portões reluzia e usávamos nossos


lenços sobre a cabeça puxados para

baixo a fim de fazer sombra aos


nossos olhos. Não havia um único
broto verde para ser visto, até as
folhas audazes dos espinheiros
tinham
encolhido como se fossem feitas de
pergaminho. Podíamos ouvir os
chacais

lamentando-se à noite e
estremecíamos com o som. Enormes
bandos de

pássaros voavam acima de nós,


abandonando a nossa terra estéril em

busca de água e alimento em lugares


distantes, voando para as montanhas

ao norte ou a leste, para Moabe,


onde se dizia que os campos eram
sempre
verdes.

Todos os dias o Homem do Norte


deixava uma fileira de grãos no

parapeito da janela para o falcão.


Quando ele falava em sua língua de
grunhidos sobrenaturais, a criatura
parecia entender, com um brilho nos
olhos amarelos. O pássaro tinha a
cabeça vermelha e por isso o
escravo o

chamava Odeum, rubi, que era


também o seu nome para Yael. Yael
sorriu
quando ele o fez, sabendo que a
provocava. Também brincando, ela
disse que só um idiota manteria um
falcão tão perto de um pombal. Um
dia

poderíamos descobrir que o falcão


abatera todas as nossas protegidas.
Ela

alimentara a ave de rapina com


alguns grãos por piedade, mas o
escravo fora longe demais, fazendo
de uma criatura selvagem um animal
de

estimação. Será que não entendia o


erro? Ali estava uma criatura em que
ninguém jamais poderia confiar.

– Você está errada sobre ele – ouvi


o Homem do Norte dizer. – Ele está

atento ao seu chamado.

– Um falcão é sempre um falcão –


informei a ambos, incapaz de
segurar

a língua por mais tempo.

Depois da minha observação, eles


se apressaram a ficar em silêncio e
voltaram às suas tarefas imediatas.
Como poderiam discutir comigo?

Sabiam que o que dizia era verdade.


Não se pode mudar a natureza de um

falcão mais do que se pode ensinar


uma pomba a matar. E ainda assim,
no

fim do dia, quando vi o escravo e


Yael levarem os cestos de estrume
para os

campos a fim de alimentar a terra


violada e golpeada pelo calor, o
falcão deslizou acima deles como se
fosse um cachorro, manso e
subserviente.

Pensei que talvez estivesse errada,


julgando muito depressa a essência
de

um ser pela sua aparência, ainda


sem compreender plenamente que,
no

mundo que Deus nos dera, todas as


coisas mudam.

POR ORA, a única constante era que


os dias se precipitavam
pesadamente, todos com o mesmo
calor hipnótico e implacável. As
ondas de calor

levantavam-se em cortinas
brilhantes de luz. Formavam-se filas
de

mulheres exaustas e perplexas nos


depósitos, cada uma delas
esperando o

que cabia a sua família em água e


alimentos. Eu me sentia tão
imobilizada

dentro do mês de Av como


permanecia dentro dos meus sonhos
quando acordava lentamente com o
cheiro de fermento do pão em
crescimento na

minha vida antiga, naquelas manhãs


preciosas em que o campo era

verdejante e o aroma dos ciprestes


pairava no ar. Ficava presa no
tempo então, como estava mais uma
vez, mas um quadro era um baú de
tesouro, o

outro, uma prisão.

Tínhamos muito pouco ali na


montanha, mas pelo menos
estávamos

seguros. No mundo lá fora a


violência contra o nosso povo só
tinha piorado.

Havia rumores de que os mortos se


amontoavam nas principais estradas
de

toda a Judeia, que o rio Jordão


estava tão cheio de corpos que era
possível

caminhar sobre as costas dos mortos


como se formassem uma trilha de
pedras. Chegou-nos a notícia de que
outro assentamento essênio fora

dizimado. Eu ouvira falar do seu


povo, aqueles que se chamavam os
Filhos

da Luz e que tinham ocupado o


assentamento conhecido como
Sechacha.

Um dia, um grupo pequeno e pobre


apareceu no nosso vale. Vimos a
poeira

subindo à medida que se


aproximavam. As suas vestes de
linho branco

rebrilhavam enquanto passavam


pelas rochas. Os nossos guerreiros

desceram pelo caminho da serpente


para atender a esses visitantes e
trazê-

los até nós. Sabia-se que os essênios


abominavam a guerra e nós éramos
uma fortaleza. Ainda assim, como o
restante de nós, quando não tinham
mais opções e nenhum lugar para ir,
chegavam a esta montanha.

Eram sete homens e três mulheres,


com quatro filhos. Os homens

carregavam os pertences em pacotes


amarrados às costas com cordas

grossas de linho trançado. As


mulheres seguiam atrás, vestidas
com

simplicidade, descalças, sem


adornos. Eram as mulheres que
portavam os

recipientes de pele de cabra com


água e queijo, e conduziam o
rebanho de
cabras magras amarradas com
cordões de couro formando uma
ribqâh, de

modo que a distância os animais


pareciam ser uma criatura com cinco

cabeças. Vinham também dois


burros pretos carregando vasos altos
de

cerâmica; dentro deles seguiam os


rolos de pergaminho contendo os

ensinamentos dos essênios. Os


homens eram cultos, com aspecto de
santos,
especialmente um mais idoso, que
era, talvez, o mais antigo que já vira.
Eles

estavam viajando desde que os


romanos destruíram o seu
assentamento,

vivendo em cavernas, deixando para


trás os seus escritos sempre que

possível, para garantir que as suas


crenças não se perdessem caso
viessem

a ser abatidos.
Quando os visitantes entraram pelo
Portão da Serpente, uma multidão já

estava reunida. Os sobreviventes


pareciam atordoados, alarmados
com as

instalações fortificadas de Massada.


Olhavam com rostos sombrios para
os

parapeitos que os nossos guerreiros


haviam preparado, as pilhas de

armaduras, as lanças afiadas com


pontas de bronze mantidas ao lado
da sinagoga, para que os homens
sábios pudessem abençoá-las. Os
essênios

tinham se deparado com uma


província feita para a guerra e só
para

guerra, onde as armas eram


estocadas do mesmo modo que as
outras

aldeias armazenavam azeite e vinho,


onde cada pedra fora arredondada

com um cinzel, pronta para ser usada


como arma caso a batalha
sobreviesse.

Olhamos um para o outro na


presença daquelas pessoas gentis,
cientes

de que o sangue e a vingança


circulavam entre nós como se
fôssemos

bárbaros. Era a guerra que nos


despertava dos nossos sonhos pela
manhã e

nos embalava para um sono inquieto


à noite. Alguns entre nós baixaram
os
olhos, atordoados com o que
havíamos nos tornado. Outros
olharam para o

grupo que consideraram de tolos,


sem vontade de lutar pelo Sião.

O mais velho dos essênios, cujo


povo o chamava Abba como uma

expressão de respeito, era carregado


pelos seus seguidores. Ele era fraco
de

corpo, mas forte de espírito. Seu


povo o levantou acima dos ombros
para que ele pudesse se dirigir a
todos nós.

– Todos pertencemos ao nosso


Senhor. Tudo o que existe hoje e
sempre

existirá originou-se de Deus. Antes


que as coisas existissem, Ele
ordenou a

sua concepção. Seu plano glorioso


cumpre o nosso destino, um destino
que

é impossível mudar. Viemos porque


devíamos estar aqui, mas somos tão
diferentes de vocês como a noite do
dia.

Fiquei em dúvida se o nosso povo


aceitaria a proclamação de Abba, ou

se a vergonha e a fúria tornariam


isso impossível. Formou-se tensão
no ar,

revelada no grande silêncio que


ecoou no vazio; em seguida Yael
correu para uma das mulheres do
grupo e a abraçou. A sua alegria ao
ver a outra

quebrou o silêncio. Soubemos que


aquela era a sua amiga Tamar, que
tivera

quatro filhos e agora tinha apenas


um – os outros, juntamente com seu
marido, haviam sido mortos no
ataque ao assentamento pela legião.
Agora,

tudo o que restara àquela mulher


essênia era um menino de dez anos

chamado Yehuda, a quem ela se


agarrava como se só ele a prendesse
a essa

terra que pisava.


Ben Ya’ir em pessoa permitiu que
os essênios ficassem. Ele chegou
para

falar com o líder, aquele homem


culto que era tanto pai como
sacerdote, que usava uma roupa de
linho branco e estava descalço, cujo
rosto estava

descoberto, embora fosse muito


velho. Eles se sentaram juntos sob
uma

oliveira, falando durante horas.


Depois, então, sentaram-se com
Menachem
ben Arrat, o nosso grande sacerdote.
No fim desse período, circulou uma
mensagem – ninguém deveria
perturbar o grupo de recém-
chegados, não

importava quão diferentes pudessem


parecer. Seus costumes eram

próprios deles, permitidos dentro


das nossas muralhas enquanto

permanecessem entre nós.

Todos os catorze essênios queriam


viver juntos em uma casa, como era
a
sua prática, pois o que pertencia a
um pertencia a todos. Foi-lhes
concedido

um pequeno celeiro de pedra no


outro lado do pomar, que no passado
fora

usado como abrigo de cabras prestes


a ter filhotes. Faziam as refeições
juntos, compartilhando o pouco que
tinham sob a mesma árvore onde seu

líder e o nosso haviam conversado e


chegado a um acordo. Banhavam-se

em água fria antes de cada refeição e


faziam as orações fervorosamente
antes de qualquer alimento lhes
passar pelos lábios. Três vezes por
dia – ao

amanhecer, ao meio-dia e de novo


após as três primeiras estrelas

aparecerem – podia-se vê-los nas


suas orações, de frente para
Jerusalém.

Os seis homens que eram fiéis


discípulos de Abba montaram mesas

compridas formadas de tábuas de


madeira para abrir os seus
pergaminhos,

os documentos armazenados nos


vasos de cerâmica que tinham sido

trazidos pelo deserto no lombo dos


seus burros desajeitados. Eles
faziam suas anotações com uma tinta
retirada do óleo de noz e da goma da
árvore

de terebintina.

Yael e eu lhes levamos azeitonas,


queijo e uma porção de trigo.
Nahara
acompanhou-nos, levando garrafas
de água e azeite que a mãe enviara.
Um

jovem essênio, muitas vezes ao lado


de Abba e claramente o seu favorito,
veio ajudar Nahara a carregar a
água. Para que ele o fizesse, Nahara
precisou colocar os frascos no chão,
a fim de que o jovem não se
arriscasse

a tomá-los da sua mão; tudo o que


ela tocara poderia ser considerado
tamé.

Ele murmurou uma prece enquanto


levava os frascos, pois entre seu

povo ele tinha o poder da bênção,


embora não contasse mais que
dezessete

anos de idade.

As mulheres essênias mostraram-se


gratas quando receberam nossos

presentes, ainda que o reflexo da


morte brilhasse em seus olhos.
Nahara pôs-se de lado com o jovem
essênio; ela era muito jovem e pura
para ouvir
as brutalidades narradas pelos
essênios. Mas Yael e eu nos
sentamos com

as mulheres, que nos contaram com


vozes indiferentes como seus filhos

tinham sido assassinados. Elas não


gritaram nem desmaiaram de dor,
pois

acreditavam que os filhos


ressuscitariam no Fim dos Dias.
Quando esse

momento chegasse, as mães


abraçariam outra vez seus filhos e
filhas, e os

maridos e esposas estariam


novamente juntos.

Tamar estava mais quieta que as


outras mulheres, o rosto contraído
de

tristeza, dolorosamente pálida.


Quando íamos sair, ela pousou a
mão no braço de Yael, puxando-a
para junto de si.

– Não vou perder este aqui – ouvi-a


dizer.
Seu filho, Yehuda, estava deitado na
grama, olhando para cima,

enquanto as primeiras estrelas


começaram a aparecer no céu
escuro. Os

homens essênios tinham se reunido


no campo e podíamos ouvi-los

cantando em tons profundos e


sonoros. O calor era tanto que cada

movimento do ar era como uma


língua de fogo, cada estrela uma
lanterna
na noite.

– Prometa que me ajudará, como a


ajudei – sussurrou Tamar. Tudo

naquela mulher essênia parecia


carregado de dor; até mesmo o seu
tom de

voz parecia um encantamento que


brotava da sua aflição. Ela inclinou
a cabeça para indicar a barriga
volumosa de Yael. O bebê viria a
qualquer momento. – Eu soube,
quando procurou um remédio para a
febre, que era
um homem que queria salvar. Pude
vê-lo escrito em você.

Yael olhou na minha direção. Eu


rapidamente desviei o olhar, para
não

parecer que ouvira a conversa.


Quando vi Yael abraçar a amiga,
soube que a

promessa fora dada. Enquanto


caminhávamos de volta, não
perguntei por

que atenderia ao desejo fervoroso


daquela mulher que pertencia a um
grupo tão diferentes de nós, que
claramente subestimava nossos
costumes.

Não questionei sobre a vida de que


homem ela tentara proteger ou por
que

se dispusera a atravessar o deserto


por ele, não importando o sacrifício.

Simplesmente acrescentei essas


informações à minha lista, pronta a

fornecê-las caso Yael e eu


discordássemos e eu precisasse
provar que ela era, de fato, humana.
*

QUANDO O MÊS de Av caiu sobre


nós com toda a sua força e a lua
tornou-se tão vermelha quanto o sol,
Abba enviou o jovem essênio aos
pombais para

trabalhar conosco, em
agradecimento pelas rações que
leváramos. Porque

o seu povo era muito rigoroso, e aos


homens não era permitido tocar nas

mulheres fora da própria família,


esse jovem, chamado Malaquias ben
Aaron, muitas vezes trabalhava
sozinho no pombal pequeno. No
entanto,

em pouco tempo ele fez amizade


com Nahara e não demorou muito
para

que os dois se envolvessem em


longas conversas. Malaquias ben
Aaron era

apenas alguns anos mais velho que


Nahara. Era o mais forte entre os
seus

parentes e muito bem-conceituado.


Por isso, tinham-lhe grande respeito
e

ele parecia considerar-se um homem


de honra. Nós, que trabalhávamos ao

lado de Nahara, ainda a víamos


como uma criança; talvez porque
apenas desejássemos vê-la como tal.
Para nossa surpresa, víamos essas
duas

pessoas, que tinham tão pouco em


comum, muitas vezes sentadas juntas

contra a muralha durante o intervalo


do meio-dia. Malaquias falava e
Nahara escutava, embevecida, como
se cada história que ele contasse
fosse

uma iluminação. Algumas das suas


palavras chegavam até nós. Ele
falava sobre o Fim dos Dias e como
o seu povo estava se preparando,
confessando

seus pecados, seguindo o caminho


da luz, oferecendo a vida na terra a
Adonai. Seu povo não lutaria contra
os romanos porque esse mundo em
que vivíamos não era o fim para
eles, pois poderiam ressuscitar após
a morte e brilhar com a graça de
Deus.

Desde a minha chegada à montanha,


conhecia Nahara como uma menina

séria, aparentando ser mais velha


que a sua idade, pelo modo que
encarava

o aprendizado e a responsabilidade.
A mãe ensinara-lhe a ler aramaico e
hebraico. Enquanto a instruía,
Malaquias certamente
impressionava-se

com ela – e por uma boa razão: ela


não só era muito inteligente, mas
também linda e pura. Em pouco
tempo os dois começaram a chegar
mais

cedo ao pombal pequeno para que


suas conversas pudessem começar

assim que Malaquias terminasse


suas preces matinais. Eles
cochichavam ao

romper da aurora e essas conversas


murmuradas fortaleciam a ligação
que

os aproximava.
Assim como os demais integrantes
da sua casa, Malaquias usava apenas

o branco e mantinha o cabelo


trançado. Ele evitava as sandálias e
andava de

pés descalços sobre a areia, pois


seu povo acreditava que deviam
andar no

céu com os pés descalços e esperar


lá na névoa até que o mundo

ressuscitasse depois do Fim dos


Dias. Malaquias era tranquilo,
trabalhador,
um estudioso que não tinha medo de
sujar as mãos. Fora enviado ao

pombal porque Abba acreditava que


o trabalho duro e o louvor a Deus

passavam de mão em mão. E


Malaquias, apesar de jovem,
escrevia nos

rolos de pergaminho com os mais


velhos; dizia-se que sua letra era tão
perfeita que os anjos vinham
observar sua escrita; ele era tão
virtuoso que

a tinta de óleo de noz que usava se


transformava em sangue e parecia
vermelha sobre a página. Já se
decidira que Malaquias ocuparia o
lugar de

Abba quando chegasse a hora, e os


dois muitas vezes sentavam-se com
as

cabeças próximas, mergulhados em


conversas profundas e orações.

Apesar das virtudes de Malaquias,


depois de curto período Shirah

começou a parecer descontente com


nosso novo ajudante. Apesar de ter
sido muitas vezes enviado para o
pombal mais distante, onde havia
espaço

apenas para uma pessoa, Shirah


descobrira que Nahara podia ser
vista

trabalhando ao lado dele nesse


pequeno espaço. Não podíamos
deixar de

perguntar se seus ombros se


roçavam ou se suas mãos se
tocavam. Quando

ele orava ao meio-dia, encontrando


um lugar santo ao lado da oliveira
retorcida, beijando as franjas do seu
xale de oração e, em seguida,

oferecendo o seu beijo a Deus, será


que rezava para purificar a cabeça
de

pensamentos e desejos terrenos?


Shirah observava-o de perto, os
olhos

semicerrados, o semblante
perpassado por uma sombra.

Em um intervalo do meio-dia,
quando Nahara voltou para casa a
fim de

buscar a refeição de lentilhas e


azeitonas, Shirah dispensou
Malaquias. O

restante de nós afastou-se para


assistir; em muitos aspectos, aqueles
eram

os pombais de Shirah; ela estava ali


havia mais tempo e recorríamos a
ela

para tudo.

– Pode ir embora agora – ela disse


ao essênio. – Não há nenhuma razão

para ficar por este dia.

Três pombas perfeitas haviam sido


escolhidas para serem levadas à

sinagoga para o jantar do sacerdote


e eu estava arrancando as suas
penas.

Abaixei a cabeça, mas ouvi a


conversa.

– Meus esforços não são bons o


bastante? – Malaquias perguntou,
confuso. Entre o seu povo ele não
era contestado e, agora, uma mulher
o demitia. Ele ergueu os olhos para
ela, um lampejo de desconfiança em
seu

olhar.

– Não há nada de errado com o seu


trabalho – ouvi Shirah responder. –

Você só não é necessário aqui.

Shirah deve ter notado a minha


expressão, pois eu estava confusa

também. Malaquias aliviara a nossa


carga de trabalho e eu não via

necessidade de humilhá-lo,
mandando-o embora. Os essênios
nos enviaram

seu melhor homem, mas não na


opinião de Shirah. Quando ficamos

sozinhas, ela me confidenciou:

– Se ela fosse sua filha, você faria o


mesmo.

Ela temia a atração entre o essênio e


Nahara, e entendi por que não o
queria para a filha. Malaquias era
piedoso demais para ver algo além
de Deus e si mesmo, isso era bem
verdade: a mulher que escolhesse
não

caminharia ao seu lado, mas atrás


dele, com a cabeça baixa.

Quando Nahara voltou com a nossa


refeição, ficou surpresa ao descobrir

que Malaquias não estava, o rosto


enrubescido enquanto olhava ao
redor em busca de sinais dele.
Depois olhou para a mãe com
amargura e a ouvi
dizer para Aziza:

– Ela o dispensou para me


contrariar.

– Estou certa de que ela tem suas


razões – respondeu Aziza, o que era
verdade.

– Ela é cruel – comentou Nahara, a


voz aguda. – Essa é a razão. Só se
dedica ao que ela quer. Você mais
do que ninguém deveria saber disso.

Você é sensata para guardar seus


segredos.
Aziza baixou os olhos.

– Ela é a nossa mãe.

Nahara estava sombria.

– Mas que não se preocupa com a


nossa felicidade, como você bem
sabe.

Pensei que Nahara estivesse


enganada sobre a intenção da mãe.

Malaquias não era adequado para


ela; ele era conhecido por orar até o
primeiro brilho das estrelas da
noite. Aziza parecia concordar.
– Observe a maneira que vivem –
disse ela à irmã quando Nahara se

queixara a ela. Fazia sentido que


uma mãe não quisesse para sua filha
o destino de uma mulher essênia,
dedicado ao serviço, à pobreza e ao

sacrifício.

No entanto, apesar de ter sido


despedido do pombal, Malaquias
não se

afastou. Há momentos em que as


pessoas ao nosso lado veem o nosso
destino, mas agimos como cegos,
enveredando por uma sucessão de
erros.

Foi o que sucedeu à jovem filha de


Shirah. Todas víamos o seu futuro,
escolhendo um caminho em vez de
outro, mas ela mesma não se via.

Emburrada, escapuliu pela pesada


porta de madeira sem ter concluído
o

trabalho. Shirah a seguiu, mas era


tarde. Em um instante Nahara pôs-se
fora da vista. Foi como se tivesse
sido arrancada da terra e só restasse
sua

sombra. Talvez já tivesse seguido


Malaquias para o celeiro de cabras
dos essênios, tirando as sandálias
para andar descalça entre as
mulheres. Ela fora uma menina
obediente, mas agora o seu dever
parecia estar além do

domínio de sua mãe. Permaneci na


porta ao lado de Shirah. Nesse

momento, ela não parecia uma


dedicada praticante do keshaphim,
mas apenas uma mãe que facilmente
se magoaria com as ações
imprudentes de

uma filha.

– Ela vai voltar – tentava dar-lhe


alguma esperança.

Shirah ficou olhando para a praça


vazia. Balançou a cabeça.

Testemunhara o amor mais de mil


vezes antes. Tinha encantos prontos

para induzi-lo e amuletos para cortar


seus laços; recitava feitiços para
unir
amantes e outros para separá-los.
Era suficientemente experiente nos

caminhos do amor para reconhecer a


sua trama, mesmo à luz fraca do

pombal.

– Infelizmente você está errada – ela


me disse, a voz suave entrecortada

pela mágoa. – Ela já se foi. E se ele


soubesse quem ela realmente é
nunca a

quereria.
Senti um resfriamento repentino no
ar borbulhante. Pensei que era isso

o que queríamos, pois diariamente


participávamos de reuniões em que

rezávamos por chuva. Agora uma


leve chuva começara, uma fortuna

inesperada naquele período árido do


ano. Mas a chuva era estranha,
caindo

em faixas desoladas de branco do


céu cor de ardósia. Lambi os lábios
e percebi que era carregada de sal.
Era uma chuva do Mar de Sal, um
fenômeno estranho que às vezes
acontecia quando o vento crescia,
levando

uma nuvem de poeira. As rajadas


furiosas e quentes também
carregavam

água e sal, lançando seus


componentes sobre nós. Era um mau
presságio, pois o que parecia ser
chuva era apenas água do mar. Uma
chuva de sal envenenaria pomares e
contaminaria as cisternas. Os
homens com

ferimentos chorariam naquela noite


de dor, as mulheres não poderiam

acender fogueiras e cozinhar a


refeição da família à noite. Os
cabreiros encontrariam o leite fresco
a que chamávamos halab
transformado em coalhada salgada
nos baldes da ordenha.

Seria preferível não ter chuva


nenhuma a ter essa.

Shirah começara a recitar um


encantamento quando nos
recolhemos

para dentro, para fugir do aguaceiro.


Ela surpreendeu todas nós ao pegar
uma das pombas e puxar a faca que
usava nas refeições. Como se
estivesse

possuída, fez um corte na garganta


da pomba e virou o pássaro para que
o

sangue escorresse para o chão de


pedra. Matar uma pomba era um
crime

punível por lei. Certamente ainda


mais se executado para os usos mais
obscuros do keshaphim.
Aziza virou de costas ao entender a
pretensão da mãe, interpor-se entre

Nahara e o essênio que ela


escolhera. O Homem do Norte
desviou os olhos

também, para não testemunhar um


ato que lhe pareceu íntimo demais.

Quanto a Yael, só ela ficou


extasiada, atraída pelas penas
caindo, o sangue

no chão. Notei que se apressara a


murmurar as palavras do canto com
Shirah, como se esperasse que sua
voz desse mais força ao feitiço.

Enquanto elas cantavam, a chuva do


Mar de Sal respingou através da

porta e lavou o sangue. Com o


tempo, passei a acreditar que foi
isso que dissolveu o encantamento,
tornando-o inútil antes mesmo de ser
lançado.

Aziza e o escravo tentaram acalmar


as pombas, que se debatiam contra o
teto, assustadas com a chuva que
caía como pedras chacoalhando
acima de
nós, e ainda mais perturbadas com a
morte repentina de uma da sua

espécie. Observei a expressão grave


de Shirah quando tentou sem sucesso

varrer o sal, e meu coração sofreu


por ela. Até mesmo a bruxa mais
temida

entre as pessoas, que conhecia a


magia melhor que os homens mais
cultos,

era incapaz de deter uma menina


totalmente determinada a seguir seu
caminho.

Corri para casa a fim de ver meus


netos, em passos largos para evitar
as

pilhas traiçoeiras de sal que se


acumulavam sobre a montanha com
aquela

chuva maligna. No outro lado do


campo, avistei Nahara caminhando
com o

rapaz essênio. As mulheres essênias


a haviam presenteado com um dos
seus finos xales brancos, agora
envolto em seu cabelo. Vendo-a ao
lado de

Malaquias, protegida por uma peça


do mais puro linho da terra, soube

antes mesmo que a própria Nahara.

Ela se tornara um deles.

ENQUANTO A LUA vermelha de Av


pulsava, uma nova vida amadurecia,
expulsando a água de dentro de Yael
com o calor da sua chegada
iminente.

Ela estava ajoelhada junto à fogueira


em que cozinhávamos as nossas

refeições quando de repente suas


saias ficaram encharcadas. Vi o
terror fulgurar nos seus olhos
arregalados. Sem perda de tempo,
mandei meus

netos chamarem Shirah, assim ela


saberia que chegara a hora de Yael.
O

filho dela, Adir, poderia vigiar os


meninos menores enquanto nos
reuníamos para receber o recém-
nascido.

Acompanhei Yael em direção aos


depósitos, parando quando ela

precisava se recuperar e respirar.


Seu pai não a chamara uma única
vez durante os últimos dias da
gravidez, quando ela permaneceu
confinada no

nosso alojamento, pesada demais e


indisposta para se mover. Mas o
irmão

a visitara. Depois de murmurar um


pedido de desculpas por perturbar a
nossa casa, fora ajoelhar-se ao lado
de Yael, ainda com sua armadura

prateada, de modo que ele brilhava


à meia-luz. Eu os ouvira comentar

sobre Jerusalém, às vezes caindo na


gargalhada quando se lembravam da

casa em que haviam crescido, do


flamboyant que havia no mercado.
Ele apareceu muitas vezes depois
dessa, sentindo-se à vontade na
nossa casa,

permitindo que os meus netos


subissem em cima dele e brincassem
de

guerreiro. Yael muitas vezes


caçoava do irmão em relação a
Aziza,

chamando-o de cordeiro que seguia


cegamente atrás da amada.

– Ela lhe dá feno para comer? –


Yael perguntava e ria. – Será que o
tranca no cercado à noite?

– Está querendo me irritar, Yaya? –


Amram dizia com um sorriso,
chamando-a pelo nome de infância.

Yael mostrou-lhe um tecido azul, um


pedaço que sobrara do lenço que

ele lhe dera. Ela acenou com o


presente para lembrar-lhe que o
guardava

por trazer sorte, enfiado embaixo do


cobertor em que dormia. Eu o vira lá

uma vez. Ela não mencionara,


porém, que também guardava ali a
amostra

de tecido do vestuário do escravo.


Durante as visitas de Amram, eles
não conversavam sobre a vinda do

bebê, mas o guerreiro uma vez


trouxe um chocalho que esculpira
com

caroços de ameixa em seu interior,


que estalavam quando o brinquedo
era

agitado. Yael pareceu contente,


aliviada pelo fato de o irmão ter
aceitado a

sua situação, não importando quem


fosse o pai do seu filho.
– Eu me culpo – ouvi-o dizer a Yael
um dia. Imaginei então que o pai
fora

um companheiro dele. – Nunca deixe


algo precioso nas mãos de outro.

– O que estou para trazer ao mundo


é precioso – Yael assegurou. – Se
você é o culpado, então é o único a
quem ofereço a minha gratidão.

AGORA QUE se aproximava o


momento da chegada do bebê,
caminhávamos à

luz do anoitecer em direção ao


armazém abandonado, onde nos

encontraríamos com Shirah. Eu


seguia com os braços passados ao
redor de

Yael para apoiá-la, permitindo que


se encostasse em mim quando as
dores

a castigavam. Fizemos uma pausa na


escada, onde ela se dobrou, arfando,

espantada com a força da criança em


seu interior.

– Isso é o que ela fará a você pelo


resto da vida, portanto esteja
preparada – avisei.

Yael tentou sorrir, mas as dores


eram fortes demais para permitir.
Ela começou a divagar em voz baixa
sobre um leão que perdera no
deserto, um

homem a quem amara, o preço que


devia pagar pelos seus pecados. Fiz
o melhor que pude para acalmá-la.
Seu rosto estava vermelho pelo

desconforto e pelo calor.

– Eu lhe retribuí – ela murmurou. –


Não é o bastante?

Eu não fazia ideia se ela falava


sobre o homem, o animal ou a
criança que

estava para chegar. Ela parecia


presa em um delírio. Senti-me
aliviada ao ver Shirah apressar-se
através do campo. Ela chamara
Nahara, que

concordara em acompanhá-la apesar


de ter-se afastado. Nahara andava

descalça, o xale branco de linho


diáfano preso sobre a cabeça. Tinha
o cabelo trançado em uma trança
única, ao estilo dos essênios.
Nahara e Shirah não se falaram
enquanto caminharam lado a lado, os
rostos

sombrios e sérios, suas diferenças


evidentes na distância que
mantinham entre si. Quando nos
alcançaram na escada, Shirah
rapidamente apalpou a

barriga de Yael. Assentiu


vivamente, satisfeita, em seguida
apressou-nos a

entrar para fazermos uma fogueira e


pôr um balde de água para ferver,
para expulsar os demônios que
poderiam ter entrado nas nossas
cisternas.

Antes de concordar em prosseguir,


Yael gesticulou para Shirah, o rosto

tomado por uma mistura de


emoções. Ouvi-a sussurrar.

– Se houver escolha, não se esqueça


de ficar com a criança. Deixe-me ir.

– Sim, sim – Shirah concordou. Ela


me lançou um olhar para me
informar que aquele era um momento
para concordar com tudo. Ajudamos

Yael a chegar aos depósitos, depois


a seguir por um longo corredor,

parando quando as dores ficavam


avassaladoras, tornando a continuar

toda vez que abrandavam.

– Este é o lugar em que o demônio


rolou no chão – Yael murmurou

cautelosamente.

– Ela era uma criada, não um


demônio, e seu filho está forte e
saudável –

disse Shirah, para assegurar-lhe que


estava tudo bem.

Em pouco tempo a fogueira estava


acesa e a água fervia, tudo feito de
forma rápida e em silêncio. Nahara
e Shirah trabalhavam juntas como se
a

sua intimidade não estivesse


interrompida. Notei que Nahara
começara a

rezar quando Yael entrou em


trabalho de parto e que olhou de
modo

desaprovador para a imagem de


Astarte que Shirah colocara sobre
uma

prateleira de pedra, para que


houvesse uma oferta feita do sangue
do parto.

O bebê estava quase pronto antes


mesmo que nós, parecendo não
poder

esperar para entrar no nosso mundo.


Yael chorou e nos pediu para
fazermos uma única promessa: a
certeza de que ela veria o seu rosto.
Falara

como se estivesse no leito de morte


e tivesse apenas uma única

oportunidade para testemunhar a


vida que estava prestes a dar à luz.

Continuou a implorar, insistindo que


estaria disposta a entrar no Mundo
Vindouro, se pudesse, mas depois de
ver o filho, ao contrário da sua mãe,

que dera à luz com os olhos


fechados, sem vê-la.
– Bobagem. Você vai vê-lo todas as
manhãs e noites – prometeu Shirah,

aconselhando a futura mãe a


concentrar-se na tarefa imediata.

– Quero saber a cor do seu cabelo e


se os olhos são escuros ou claros –

Yael continuou.

– Sim, sim – todas fomos rápidas em


concordar, pois o ar mudara,

tornando-se denso e pesado. O


momento chegara. O sangue
transbordava
no local em que Yael mordera os
lábios e seu rosto estava pálido.

Havia um banquinho de parto para


se agachar em cima, mas Yael não
se

preocupou com ele, nem fez como


lhe diziam. Ela implorou a Shirah
para criar a criança como sua, se
necessário, certificando-se de que
não fosse tratada como os filhos sem
mãe, em épocas de crise às vezes
deixados no

deserto para os chacais. Shirah


conseguiu acalmar a criatura em
pânico com uma torrente de
promessas. Nahara trouxe água para
aplacar a febre

da sua testa e dos lábios.

Uma vez iniciado, o parto foi


surpreendentemente fácil. Yael
agora se

agachava quando lhe mandavam


fazê-lo; estava empenhada, tanto
mais

quando Shirah pediu que se


esforçasse.
– Uma mulher que se lamenta tem um
bom trabalho de parto. É o

silêncio que devemos temer. Então


vá em frente, grite à vontade –
Shirah a

instruiu.

Yael obedeceu. Ela foi realmente


bem eloquente em sua fúria e
pareceu

que aquela raiva sem palavras era a


sua verdadeira linguagem. Ela

empurrou com toda a força, o rosto


rubro com o esforço. Uma vez, duas
vezes, e em seguida a cabeça do
bebê apareceu. Yael estava exausta
e disse

que não conseguiria forçar mais.


Shirah e Nahara usaram azeite e
água quente sem interromper os
incentivos. Por fim, a futura mãe
reuniu suas forças e fez pressão pela
terceira vez. A criança veio ao
mundo, caindo nas

mãos de Nahara como se não


quisesse ser um fardo para nenhuma
mulher.
Era um menino grande e bonito, de
pele escura. Rapidamente o

envolvemos em um pano de linho e o


pusemos nos braços da mãe.

Depois que a criança chegou em


segurança, fui tomar um pouco de ar

fresco, exausta pelo trabalho que


testemunhara e pelas emoções
daquela

noite. Pensava na minha filha, a


menina linda que perdera, parecendo

terem transcorrido apenas alguns


momentos desde o seu primeiro
sopro

de vida até o último suspiro. Para a


minha surpresa, encontrei o Homem
do

Norte nos degraus da escada. Como


um fantasma, ele se soltara das

algemas, depois saíra do pombal,


pulara a cerca viva dos espinheiros
que mantinham as cabras e as
ovelhas seguras nas pastagens
poeirentas. Se

alguém o visse, ele teria sido morto,


seria considerado um fugitivo e uma
ameaça para todos nós. Ele se
encolheu nas sombras enquanto eu
me

aproximava. Quando me reconheceu,


no mesmo instante se aproximou

para saber notícias de Yael.

– Você realmente é um tolo – eu


disse – para vir aqui e se comportar
como se fosse o pai.

– Não sou pai de ninguém – disse


ele com pesar, o rosto transtornado
pela preocupação. – Não estou aqui
para isso. Vim por causa dela.

– Duas vezes tolo – eu disse –, já


que ela não é a sua esposa.

Apesar das minhas palavras, estava


tocada pela sua determinação.

Assegurei-lhe que Yael estava bem


e já se recuperando. Ainda assim,
ele pediu para vê-la, incapaz de
tranquilizar-se até ver seu rosto para
se convencer de que ela estava
segura e bem. Ele jurou que ela o
chamara, insistindo que fora a voz
dela que o levara até ali. Ouvira a
agonia febril que
a sobrecarregara, ainda que ela
estivesse em um calabouço no
subterrâneo,

cercada por pedras, e ele isolado


dentro do pombal. Ele foi tão
sincero que

o levei para dentro, ordenando que


ficasse quieto. Nenhum homem
deveria

ver os trabalhos de um nascimento,


mas ele era um escravo, longe de ser
um homem. Eu sentira pena dele,
algo incomum em mim. Talvez
tivéssemos nos tornado mais
próximos enquanto trabalhávamos
lado a

lado no pombal. Talvez fosse a


maneira que seus olhos brilhavam
quando

falava da chegada da criança.

Enquanto nos dirigíamos ao salão,


eu ouvia a sua respiração constante

atrás de mim. Paramos no limiar da


câmara. Dali podíamos ver o brilho
da
lâmpada que Shirah acendera diante
da imagem da proscrita Astarte, a

Rainha do Céu, doadora da vida.

O bebê repousava nos braços da


mãe. O Homem do Norte inclinou a

cabeça concordando, aliviado ao


ver por si mesmo que Yael
realmente

passara pelo parto e saíra ilesa. Ela


parecia encantada com o bebê em
seus

braços, os olhos vivos e brilhantes,


a pele reluzente de suor. Quando ela
riu,

encantada com a expressão da


criança, vi o escravo sorrir também,

orgulhoso, como se o menino fosse


realmente dele.

O Homem do Norte segurou meu


braço e agradeceu, em seguida nos

deixou cuidando dos nossos


afazeres. Nahara despejava água
fervente

sobre as pedras para purificá-las.


Ela já parecia uma estranha, sem
vontade

de falar conosco, presente apenas


pelo tempo que fosse necessário e
no momento já se preparando para
se retirar. Mantinha os olhos baixos,

apoiada nas mãos e nos joelhos


enquanto esfregava o sangue.
Quando

ofereci ajuda, ela sorriu levemente.

– A ajuda de Deus é tudo de que


preciso – ela murmurou, uma devota
bela e pura, não mais a menina que
fora antes.

Shirah estava agachada ao lado de


Yael, a cabeça próxima da dela.

Nahara levantou o olhar e a vi


observá-la. Shirah tirara um dos
amuletos de

ouro que usava para proteção e o


presenteava a Yael, prometendo-lhe
que

traria boa sorte e a manteria a salvo


de todos os males. Uma face do
disco
do amuleto homenageava o nosso rei
verdadeiro, Ehyeh Asher Ehyeh, eu
sou

quem sou, o Uno inominável com


mil nomes. Ha-nora ha-gibbor, o
Poderoso, o herói. Na outra face do
disco, letras do hebraico
misturavam-se

às do grego. Chayei ‘olam le-‘olam.


Vida eterna, para sempre.

Esses amuletos de ouro eram


provenientes do Egito, pois
continham as
formas da lua e do sol estampadas
naquele que ela concedera a Yael,

significando o poder da Rainha do


Céu. O nosso povo não tinha
permissão

de usar essas imagens, mas Yael


manteve o amuleto preso à volta do

pescoço, satisfeita. Era um presente


de uma mãe para outra, aceito com
gratidão. As mulheres se beijaram
para celebrar a nova vida. Não se
podia

dar um nome ao filho do sexo


masculino até que fosse
circuncidado, e assim Yael
simplesmente o chamou de menino
enquanto o segurou contra

o peito, uma palavra tão amorosa


quanto qualquer nome poderia ser.

Nahara reuniu a placenta em um


pano. Ela iria enterrá-la no pomar,

como era o nosso costume, debaixo


das árvores em declínio, permitindo

que a essência dessa nova vida


revigorasse a terra arruinada. Ela
parou ao
meu lado, a túnica branca salpicada
de sangue. Ela sempre parecera mais
velha para sua idade e agora tinha os
ares de uma mulher adulta. Avaliou

friamente o amuleto que a mãe


prendera ao pescoço de Yael.

– Aquilo seria um presente para uma


filha – ela me disse em relação ao

colar, a voz indiferente. – Ela quis


me dizer que não o guardou para
mim. –

Havia uma boa dose de dor na sua


voz, juntamente com o desprezo.
Nahara não usava adornos, a
exemplo das mulheres essênias, os
pés

estavam descalços sobre as pedras


chatas e frias. Desfizera-se das
pulseiras

e dos adornos que usava antes. Eu


vira as crianças brincando com eles
no

jardim empoeirado ao lado da casa


de pedra, como se fossem
brinquedos.

– Aceitaria o presente se ela lhe


oferecesse? – aventurei-me a
perguntar,

pois fora Nahara quem virara as


costas aos costumes da mãe.

A jovem deu de ombros, sabendo


que eu estava certa. Não se dá um

presente a alguém que seja obrigado


a negá-lo. Nahara agora passava os
dias cuidando das cabras dos
essênios, alimentando-as distraída
com ervas

daninhas, como se tivesse sido uma


pastora de cabras a vida toda. Eu a
vira

com as mulheres piedosas,


enxugando a água da cabeça antes de
uma

refeição, oscilando em oração, de


olhos fechados no êxtase pela graça
do Todo-Poderoso. Nós, que
trabalhávamos nos pombais, não
discutíamos o

que era evidente: ela não voltaria


para nós.

– O que faria com o ouro? –


continuei, porque ouvira dizer que
as

pessoas com quem ela se alinhara


não valorizavam os bens materiais,

considerando que pertenciam apenas


a este mundo. – Pensei que o que

pertencesse a um essênio pertenceria


a todos.

Naquela noite, Nahara fora uma


parceira como qualquer outra de
Shirah

no nascimento do filho de Yael, no


entanto pareceu consumida pelo
ciúme

da criança quando olhou para Yael.

– Isso não inclui compartilhar a mãe


– ela comentou em tom magoado,

como se fosse ela a enjeitada no dia


da chuva de sal, quando fora ela
quem

fizera a sua escolha.

OITO DIAS depois, acompanhei


Yael à sinagoga, quando ela levou o
filho para pedir o ritual pelo qual
toda criança do sexo masculino
deveria passar em

razão da sua fé no nosso Deus.


Desde o tempo de Abraão fora
assim, e assim continuava, muitos
acreditando que os nossos meninos
eram

considerados tamim, aperfeiçoados,


por esse ritual. Dizia-se que Domah,
o anjo da sepultura, não queimava
nem assediava nenhum homem

circuncidado que entrasse no Mundo


Vindouro; dizia-se que o sofrimento

aqui e agora evitaria o sofrimento


por toda a eternidade.

Passamos pelas portas da sinagoga,


mas não nos autorizaram a

prosseguir. Os anciãos não


realizariam o ritual. Era o pai da
criança que providenciava essa
aliança entre o filho e Deus e, caso
não houvesse pai, não lhes
interessava. Yael apertou o bebê
contra o peito, receosa de que
nenhum homem respondesse por seu
filho em razão das circunstâncias do

seu nascimento e que talvez ela, a


exemplo da mulher de Moisés,
Zipora, teria de perpetrar o ato. Eu
sabia que Yael carregava uma faca,
mas ela recuou da ideia de cortar o
próprio filho, jurando que a sua mão
fraquejaria

pela sua devoção e seu amor.

Por fim o irmão dela chegou,


justificando-se, os ombros
envolvidos pelo

xale de oração. Amram mostrou-se


claramente incomodado com a tarefa

não familiar de cuidar de um bebê.


Perguntei-me como administraria o
ritual da aliança uma vez que se
encolheu quando Yael acomodou o
recém-

nascido nos seus braços. O bebê


encontrou o olhar do guerreiro e

sustentou-o com os olhos cor de


brasa arregalados. Ele tinha um sinal
vermelho no lado esquerdo do rosto,
que todos esperávamos que

desaparecesse.

– Não pensei que ele parecesse


assim – desabafou Amram.
– Ele se parece com um bebê –
comentei com naturalidade. Não
havia

nenhum motivo para essa criança ser


considerada um mamzerim, um
bastardo sem nenhum direito, nem
mesmo o da circuncisão, embora

certamente seria vista como o que


chamavam de shetuki, silenciosa,
qualquer criança que não conhecesse
o pai.

Amram riu.

– Isso ele parece. – Ele inclinou a


cabeça para Yael em aprovação. – E

parece forte.

Não notei a presença de nenhuma


outra pessoa até Yael dar um passo

para trás.

O velho assassino estava lá, nas


sombras. Estivera ali o tempo todo,
o olhar frio pousado no bebê.

– Ele vai realizar o ritual – Amram


referiu-se ao seu pai.

Yael segurou o bebê contra si,


insegura, confusa pelo pai ter
concordado

em participar. O último contato que


tivera com ele fora quando brigaram
amargamente sobre o seu estado, e
ele lhe batera, expulsando-a de casa.

– Acha que não me lembro de como


usar uma faca? – o assassino

perguntou ao notar a sua hesitação.

Yael ergueu o olhar para ele.

– Ah, não. Tenho certeza de que


sabe.
Esse, sem dúvida, era o seu medo.

– Não sou o seu pai? – disse o


assassino.

Yael fitou-o, insegura.

– Essa criança não é o meu neto?

Calmamente, o irmão de Yael pediu-


lhe para ter fé. Fora ele quem

convencera o pai a vir à sinagoga, e


os dois, que haviam se afastado
antes,

tinham feito as pazes por causa do


nascimento do menino.

– Essa criança nos pertence, e nós a


ela, muito mais que apenas neste dia.
Ele não é um fardo, pois nos uniu.

Apenas os parentes do sexo


masculino eram autorizados a estar

presentes na cerimônia em que se


atribuía um nome ao menino. Ele
estava

pronto para a aliança, tinha vida e


fôlego suficientes para protegê-lo,
de modo que Lilith e seus demônios
não pudessem chamá-lo tão
facilmente

como poderiam ter feito nas


primeiras horas após o nascimento.
Até aquele

dia, ele ainda tinha um pé no mundo


deles e o outro no nosso; agora
estava

enraizado, alimentado pelo leite da


mãe. Aquele ritual definiria o
caminho

de toda a sua vida futura.

O assassino manteve a cabeça baixa


enquanto esperava pela decisão de

Yael, um sinal de respeito que nunca


mostrara pela filha no passado.

– Leve-o – disse Yael. – Mas,


mesmo que eu não esteja vendo,
Deus

estará lá.

Esperamos nervosamente ao lado da


muralha ocidental. O rosto de Yael

estava branco. Ela se recusou a


sentar-se em um banco próximo e em
vez
disso ficou andando de um lado para
o outro. Quando o bebê chorou, ela
segurou o meu braço.

– O choro é uma coisa boa – lembrei


a ela, repetindo as palavras de
Shirah. – É o silêncio que devemos
temer.

O próprio Amram estava pálido


quando finalmente devolveu o bebê
à

mãe. A expressão preocupada de


Yael rompeu-se em um sorriso ao
ver o semblante do irmão, a sua
arrogância habitual substituída pelo
peso da imensa responsabilidade
pelo recém-nascido.

– Você parece pior que ele –


brincou ela.

– Acho que doeu mais em mim –


Amram concordou.

Yael abriu as cobertas da criança. O


corte fora perfeito, deixando apenas

um leve rubor de sangue. O bebê já


cochilava nos braços da mãe,
exausto

pelos próprios gritos e pelo súbito


lampejo de dor que conhecera, bem
como pelo vinho que recebera para
amenizar a dor. O velho assassino

esperava na soleira da porta. Yael,


ainda insegura com a presença do
pai, por fim acenou com gratidão,
mas Yosef bar Elhanan já
desaparecera, como

se nunca tivesse estado presente.


Olhei para a praça. Não havia nem
mesmo

uma sombra para ser vista.

– Ele falou com a criança? – Yael


perguntou ao irmão, curiosa apesar
de

tudo.

– Ele a abençoou – Amram disse. –


Já é o bastante.

MANTIVEMOS a ferida limpa,


aplicando um cataplasma de
bálsamo e mel que promoveria a
cura mais depressa. Mas havia mais
coisas a serem feitas para anunciar a
chegada dessa criança ao nosso
mundo, mais tarde, e em segredo.

Levamos o bebê ao campo uma


noite, com a lua minguante. Shirah
nos

esperava. Nós três paramos onde a


placenta fora enterrada, para
realizar a

nossa própria cerimônia de nomeá-


lo. Estava uma noite estrelada, mas

evitamos a luz e nos reunimos nas


sombras, para não sermos vistas
pelos

guardas e questionadas. Shirah


quebrara uma casca de ovo em duas
metades, em que escrevera o santo
nome de Deus tantas vezes pudessem

caber em pequenas letras pretas, a


tinta produzida com amoras
esmagadas.

Ehyeh Asher Ehyeh.

Acendemos uma pequena fogueira


de madeira verde. Yael depositou o

bebê na grama. Ele choramingou,


depois cochilou. Ela tirou o lenço da
cabeça e o roupão, para permanecer
diante de Deus como estivera no dia
em que a mãe morrera, no dia em
que nascera, naquele mesmo mês de
Av.

Shirah começou a entoar palavras de


proteção em uma nuvem de fumaça.

Redimi esta criança e salvai-a de


todas as aflições. Permiti que se
torne um homem e entoe canções
gloriosas de louvor ao nosso
Senhor e Rei, o poderoso

Deus que nos criou. Amém. Amém.


Selah, que Deus o guarde de todo o
mal e
que Ele permita que viva em
Jerusalém e em toda a santidade.

Concluído o hino, Shirah enterrou as


cascas de ovo debaixo da árvore. O

luar varria o campo com uma luz


amarelada. A placenta já
desaparecera, alimentando a terra,
dando graças ao Todo-Poderoso.
Yael pegou o seu xale

e vestiu a túnica. Pegou a criança e


nomeou-a sob o céu aberto, como
fora

nomeado naquela manhã pelos


homens na sinagoga. Ela o chamou
de

Arieh, a palavra para leão, muito


embora ele dormisse, perante a
nossa alegria, como se fosse um
cordeiro.

QUANDO os nossos guerreiros


voltaram ao deserto na vez seguinte,
não foi para lutar, mas para caçar,
fazendo o melhor que podiam para
saciar a nossa fome. Os romanos
haviam voltado ao lugar que tinham
marcado com
as pedras e os nossos homens foram
obrigados a recuar, a sua incursão
foi

interrompida. Não tiveram escolha


senão fugir do inimigo, que retornara
para nos espionar. Com esse
problema em mãos, os nossos
guerreiros

trouxeram consigo perdizes que


eram mais ossos que carne e um
filhote de

íbex extraviado, deixado para trás


pelo rebanho. Era Tishri, a época da
estação de crescimento, e
deveríamos estar nos regozijando.
Em vez disso,

a montanha foi tomada pelo silêncio,


por um sentimento de mau presságio.

Nos pombais, todas sentíamos a


falta de Nahara. Aziza,
especialmente,

ansiava pela irmã. Ela costumava se


dirigir ao campo próximo ao

acampamento dos essênios, onde


permanecia sentada de pernas
cruzadas
sobre a grama por muitas horas, mas
Nahara nunca se aproximou para

cumprimentá-la. Quando Aziza


acompanhava as cabras de que a
irmã

cuidava, Nahara apressava-se em


levá-las embora. Magoada com as
recusas

da irmã, Aziza começou a fazer


flechas para preencher o tempo e
manter as

mãos ocupadas. Todos tinham sido


solicitados a ajudar com o
armamento e

muitas mulheres se reuniam à noite


para moldar pedras para os

estilingues. No entanto, Aziza


escondia seu trabalho de Shirah.

– Ela poderia considerá-lo


inadequado para mim – ela
confidenciava.

Aziza demonstrou que tinha um


toque leve. As pontas das flechas
que

ela produzia eram finas, muito


benfeitas. Cada uma delas era presa
a uma

haste de madeira por um fio de


linho. A filha mais velha de Shirah
era surpreendentemente bem
inclinada para esse trabalho, pois o
metal era

para ela o que o tecido e a linha


representavam nas mãos de outras

mulheres. Observei nela o que vira


no padeiro todas as manhãs da sua
vida,

o amor de dar forma a algo a partir


de ingredientes que não seriam nada

sem o toque humano, fosse o sal, o


trigo ou o ferro que eram

transformados.

O Homem do Norte revelou que, no


país em que nascera, as flechas de

cada guerreiro eram decoradas com


a insígnia da sua tribo, no seu caso
um

veado macho, uma criatura de que


havia nos falado, mas não
acreditáramos, pois ele dissera que
os ombros desse cervo eram tão
altos

quanto os de um homem, seus chifres


eram mais abertos que a

envergadura das asas de um abutre.


Desde que era menino, ele nos

assegurou, todas as flechas que


fizera eram gravadas com a imagem

daquela criatura milagrosa.

– Amarre penas na outra


extremidade da haste – o escravo
disse a Aziza

enquanto ela fabricava suas armas. –


Isso é o que faz as flechas voarem.

Como Amram era comparado à


Fênix, saindo de todas as batalhas

pronto para lutar de novo, Aziza


procurava preparar flechas que
fossem dignas dele, adornando-as
com penas de falcão tingidas em um
banho de raiz de garança. Logo as
suas mãos estavam avermelhadas;
ouvi Yael

provocá-la, sugerindo que estava tão


consumida pela paixão que o calor
subia pela sua pele em ondas
escarlates.

Quando chegou o momento de testar


a obra de Aziza, ela enviou Adir à

guarnição para lhe trazer um arco.


Adir voltou logo, rindo, brincando e
fazendo comentários rudes,
sugerindo que era melhor a irmã não
tocar no

arco ou poderia atirar em si mesma


acidentalmente. Aziza sorriu e

mandou-o embora com um


empurrão.

Sentei-me com Yael, que trazia seu


bebê descansando em uma tipoia

feita de lã finamente tecida. Arieh


era um menino quieto, de olhos
escuros e

cristalinos, calmo como a ovelha


que parecera se assemelhar na noite
em que recebera o seu nome. Apesar
de ter apenas algumas semanas de
idade,

ele dormia a noite toda, segurando o


quadrado de tecido azul que Yael
deixava que segurasse para
sossegar. Ele ainda exibia a marca
de nascença

vermelha na bochecha, apesar de


essa ter sido tratada com uma
pomada de

trigo, mel e aloé misturados, e ter


começado a se desvanecer.
Imaginamos

que a juba de cabelo grosso e preto


fosse um sinal da sua virilidade,
maravilhando-nos com o tamanho
das mãos e dos pés, e seu pênis
pequeno,
viril, sugerindo que ele seria capaz
de erguer um burro acima da cabeça
aos

dez anos de idade.

– Talvez devêssemos deixar Arieh


testar as flechas como se já fosse um

guerreiro – caçoávamos, pois não


tínhamos nenhum homem entre nós.

Aziza entregou o arco ao Homem do


Norte, apesar de ser um crime pôr

uma arma nas mãos de um escravo.


Ele o segurou, grato pela confiança.
Todas as setas de Aziza atingiam o
alvo quando o escravo apontava a
sua

meta – um nó no tronco da velha


oliveira atrás do pombal. Ele se

posicionara no batente da porta para


que ninguém mais o visse. Quando
fazíamos os elogios, ele se curvava.
Então reparou na expressão intensa
do

rosto de Aziza, o olhar fixo no arco


em suas mãos.

– Deixe-me ensiná-la – sugeriu ele.


– Assim poderá apreciar por si

mesma o valor do que produziu.


Essas flechas estão entre as
melhores que

já usei.

Aziza recuou, sacudindo a cabeça,


seus olhos dissimulados. Ainda
assim,

notava-se algo semelhante ao desejo


gravado em seu rosto.

As mulheres não deviam tocar em


armas, tal era a nossa lei, mas nós já
havíamos desrespeitado a lei
entregando o arco a um escravo.
Nós, que já

havíamos pecado, não


questionaríamos ou condenaríamos.
Encarávamos a

quem sussurrasse sobre Yael e o seu


bebê até obrigar essas pessoas a
baixarem os olhos.

– Experimente o que fez – insisti,


nem que fosse só para a nossa

diversão.
– Tudo bem – Aziza assentiu. – Mas
só para agradar vocês.

O escravo mostrou-lhe o que


deveria fazer e ela o acompanhou

atentamente. Segurava o arco com


facilidade, um largo sorriso
iluminando

seu rosto. A primeira flecha acertou


o alvo. Pude ver a surpresa no rosto
do

escravo.

– Você tem uma guerreira dentro de


si! – comentou ele.

– Pura sorte. – Aziza soltou o arco e


foi recolher as flechas caídas,
admirando o seu trabalho,
assegurando-se de que cada pena
estivesse no lugar. – A Fênix triunfa
sempre – ela disse. – Não importa
quem ataque, Amram sempre
vencerá.

Shirah permanecera dentro do


pombal. Nesse momento, ela
assomou à

porta. Exibia uma expressão


distante, difícil de interpretar. Ela
havia mudado desde a partida de
Nahara, tornando-se mais
circunspecta e

reservada. Algumas pessoas


sussurravam que ela possuía a
capacidade de

ver o outro mundo além do nosso. Se


isso fosse realmente verdade, então

para Shirah o futuro não era um


lugar distante. Nós, que não
fazíamos ideia

do que viria a acontecer,


permanecíamos no pátio nos
divertindo,

aplaudindo Aziza enquanto ela


acertava o alvo várias vezes
seguidas, sua agilidade e graça uma
revelação para todas nós.

Quanto a Shirah, ela só observava,


da mesma maneira que se mantém o

olhar atento sobre um enxame de


abelhas já em voo, momento em que

era tarde demais para mudar o seu


curso ou fazer com que voltassem à
colmeia. Quando o dano já fora
feito.

NÃO DEMOROU muito tempo e o


novo ano chegava para nós, um
momento de

celebração. Mas comemoramos o


feriado de Rosh Hashanah de
maneira frugal e sem alegria. As
mesas foram montadas com coisas
simples,

abóboras e alho-poró, algumas


perdizes descarnadas, saladas de
lentilha e
iogurte. Yael levou um pouco desse
banquete magro à amiga Tamar. A

mulher essênia mostrou-se grata e,


em troca, seu filho, Yehuda, um
garoto

sonhador que estava sempre subindo


em árvores no pomar quando
deveria

dedicar-se aos estudos, surpreendeu


meus netos com um pião que ele

mesmo esculpira. Os meninos


ficaram encantados com o presente;
para
ficarem alegres não era preciso
muito. Eles não haviam notado que
Yehuda

os observava, curioso depois que


descobrira que não tinham a
capacidade

de falar. Noé e Levi, porém,


pareciam conformados com sua
condição. Eles

aproveitavam a vida como podiam,


indiferentes aos olhares de
curiosidade

que os acompanhavam na praça, com


muitas pessoas tentando adivinhar o

que lhes causara a perda da voz. Os


meninos adoravam o novo bebê em
casa, passando horas divertindo
Arieh com seu chocalho, ou com
flautas feitas de cabaças, e agora
com o pião interessante que Yehuda
lhes fizera.

Arieh parecia atraído pelo


agradável silêncio dos meus netos,
seguindo-

os com os olhos pelo alojamento.


Nós alimentávamos nosso leãozinho,
que
jogava a cabeça para trás rindo
quando meus netos faziam as
sombras

dançarem sobre a parede. Já quando


brincavam com ele de esconder,

esquivando-se atrás de uma peça de


tecido, ele os chamava gritando,
rindo

e arrulhando até meus netos


reaparecerem silenciosos, como se
fossem de

fato sombras em vez de meninos de


carne e osso.
Esse novo ano foi especialmente
amargo para mim. Cada fruta que eu

cortava pela metade possuía um


sabor que eu não conseguia suportar.
O

que era doce passei a considerar


intolerável. Comia verduras amargas
e me

acostumara com o gosto de sal na


língua. Ia à sinagoga e permanecia
com as

mulheres ao fundo. Os homens não


deviam se distrair com as mulheres,
mas e quanto às mulheres que eram
distraídas pelos próprios

pensamentos? Recitava as orações


que sabia de cor, mas a minha voz
era hesitante, apática.

Tornara-me tão pálida que Yael me


perguntou se adoecera. Disse que

não, mas já não conseguia me dirigir


aos pombais pela manhã. Em vez

disso, preferia permanecer na cama,


o rosto voltado para a parede. Via
as
sombras dos meus netos quando
entravam e saíam pela soleira da
porta.

Via tudo o que acontecera no deserto


todas as vezes que fechava os olhos.

Um ano se passara desde que


tiraram a vida da minha filha. No
Dia da

Expiação, fui à sinagoga para as


orações de lamentação, mas a perda
era como uma flecha me
atravessando e os rituais não foram
suficientes para
aliviar a dor. A melancolia me
envolvia como uma mortalha, a
tristeza costurada em mim com os
fios pretos que, segundo se dizia,
eram usados

pelos demônios. Quando voltei à


praça, as pessoas me evitaram. Era

possível que vissem as trevas que


carregava. Até mesmo os meus netos

fugiram de mim, preferindo sentar-se


com Yael para ouvir suas histórias.

Somente uma pessoa seria capaz de


me entender, alguém que trilhara o
mesmo caminho e vivera sob o
mesmo céu.

Com certeza Yoav estaria em algum


canto escuro, sofrendo como eu.

ERA NOITE quando me dirigi ao


quartel. Não deixava o meu quarto
havia vários dias, a não ser para ir
rezar na sinagoga. Quando não se sai
da cama,

perde-se o costume de caminhar.


Quando não se perdoa a si mesmo,
não se

é capaz de perdoar ninguém. Eu dera


fim àquelas bestas humanas no oásis,

mas elas também deram cabo de


mim. A mulher que eu fora um dia,
aquela

que acordava com o aroma do pão,


que varria a escada todas as manhãs,
com toda a certeza de que o novo
dia seria como qualquer outro,

desaparecera. Eu era uma concha,


um besouro, um feixe de carne
costurado

com a linha do demônio.


Os guerreiros achavam-se em
oração naquela noite. Reparei em
uma

enorme pilha de pedras esculpidas


na forma de bolas desbastadas e
duras,

para serem usadas nas catapultas


caso viéssemos a ser atacados.
Aquelas pedras estavam empilhadas
onde antes havia toras de madeira. A
madeira

fora toda usada e restara pouco dela


a ser encontrado nos penhascos ao
redor, apenas alguns arbustos
perdidos e crestados pelo sol, com a
casca branqueada e escamosa que se
enfumaçava e não queimava quando
atirada

ao fogo. Era a época do plantio, mas


o ar cheirava como um forno em que
o

pão queimara durante dias. Ninguém


trabalhava nos campos; todos só nos

ocupávamos em nos proteger contra


os elementos e contra nossos

inimigos. Eu me perguntava o que


pensaria meu marido de um mundo
quente demais para o pão,
demasiado brutal para a bondade
humana.

Esperei sob os restos de uma


amoreira não muito distante do
quartel. As

folhas farfalhavam no escuro. O som


ecoava como um chocalho, ou talvez
fosse mais como uma pele de cobra
agitada pelo vento. Sentei-me sobre
o

tronco de uma árvore cuja


generosidade alimentara um rei.
Logo os jovens
guerreiros voltaram das orações.
Eles se ocupavam do seu trabalho
até

mesmo naquele que era o mais


sagrado dos dias. Avistei o grande
assassino

de Jerusalém, Bar Elhanan, ocupado


na limpeza das lâminas planas de

bronze das lanças com trapos e areia


como se fosse um escravo. Ele vinha
à

minha casa várias vezes, apenas


murmurando-me uma saudação, mas
iluminando-se à visão de Arieh, a
quem sentava em cima dos joelhos.

Vislumbrei também o irmão de Yael,


ocupado no campo em uma disputa

com os amigos para ver quem tinha


os melhores olhos e a melhor
pontaria,

e quem dentre eles dispararia uma


flecha através de uma das janelas

estreitas abertas na pedra, feitas


para despejar óleo quente e água
fervente
sobre os inimigos que fossem tolos o
bastante para tentar fender a

muralha.

Esperei por tanto tempo que


comecei a ouvir os ecos das corujas
nas

cavernas. Os guerreiros retiraram-se


aos seus alojamentos. Quando o

assassino atravessou a praça, vi a


idade nos seus passos, o peso do seu
fardo, pois carregava nos ombros
todas as iniquidades de que
participara.
Eu me ressentia do seu desejo de vir
ao meu alojamento porque era
levado

a visitar o neto, mas naquele


momento senti que não poderia
julgar suas ações neste mundo, não
depois de tudo o que eu mesma
fizera.

A lua estava no centro do céu


velando por mim, solitária, fria.
Ainda assim fiquei. Por fim meu
genro atravessou a praça, o machado
na mão, a

expressão contrita. Ainda era jovem,


apesar do cabelo branco. Trazia os
braços nus por baixo do xale de
oração. Vi que envolvera vários

comprimentos de tiras afiadas de


bronze em torno dos braços
musculosos;

as torções ferozes, ensanguentadas,


eram feitas para transformar cada

movimento que fazia em uma


excruciante autopunição. Tal abuso
não era

permitido; tratava-se de um costume


lúgubre praticado entre nômades e
bárbaros enlutados. Ainda assim, ele
fazia o que lhe apetecia,

desrespeitando as nossas leis. Viam-


se listras de cicatrizes
sanguinolentas

onde ele cortara diretamente sua


carne com uma faca, uma fileira de
lesões

estabelecidas acima das suas veias


azul-escuras. As marcas
autoinfligidas eram como o azul do
hissopo quando florescia, a flor
predileta da minha filha. Em torno
delas emergiam hematomas que
eram da cor saturada de

ameixas, a fruta preferida dela.

Chamei seu nome e Yoav estreitou


os olhos como se eu tivesse
proferido

uma maldição. Mas acenei-lhe, ele


me reconheceu e se aproximou.
Parou

embaixo das folhas secas da


amoreira, semivestido com sua
armadura

prateada. Imaginei se dormia com


ela, se sonhava com batalhas e
sangue, ou com o belo rosto da
minha filha.

– É o dia da tristeza – lembrei-lhe,


pensando que poderíamos orar
juntos

ou acender uma lâmpada em


memória de Zara.

Ele bufou. Pensei nos cavalos


vendados do rei, forçados a
percorrer um

caminho que não podiam ver. Alguns


deviam ter protestado; deviam ter
refugado, furiosos por serem
impedidos de enxergar no caminho
brutal da

serpente que levava até o alto da


montanha.

– Todo dia é – disse o Homem do


Vale, que ainda era o meu genro,

embora eu não tivesse filha. – Por


que devo orar?

Ele parecia ao mesmo tempo


envergonhado e furioso; havia
desprezo na
sua voz à menção da oração. É claro
que ele sabia que dia era. Contara
cada

momento desde que a encontrara


debaixo das pedras com que eu a
cobrira

para protegê-la de quaisquer outras


criaturas de rapina.

– Você tem dois filhos – lembrei-


lhe. – Eles têm os olhos escuros da
sua

esposa.
Yoav surpreendeu-me com um
rugido de pesar. Recuei, incerta de
quem

estava à minha frente, aquele


Homem do Vale que não confiava
em

ninguém e dormia de costas para a


parede, o machado na mão, pronto
para

lutar até mesmo quando sonhava.

– Disse-lhe para não falar nela – ele


me advertiu.
– Ou nos meninos?

Ele me encarou, desafiador.

– Este mundo não significa nada


para mim. Por que acha que me

importo com essas coisas?

– Procurei-o porque você a carrega


consigo – disse, lembrando-lhe de

que lhe oferecera o seu último


suspiro. Ele o tomara e agora ela lhe
pertencia. Em troca dessa grande
dádiva, ele ainda precisava me
respeitar,
não importava o quanto se
amargurasse.

Ele inclinou a cabeça, reconhecendo


o vínculo entre nós e o sacrifício
que eu fizera. Conteve o seu
temperamento e ouviu a razão. O
homem que

ainda era o meu genro veio sentar-se


ao meu lado, sob a amoreira preta.
Ele

nunca perguntou como eu conseguira


matar aquelas bestas humanas, como

os atraíra para a morte com pão.


Talvez se ressentisse de mim, por
ter cometido o ato de vingança de
que provavelmente se envergonhava
por

não ter executado. Mas na ocasião


ele era um homem que só sabia orar,
ao

passo que eu já me tornara uma


torrente furiosa.

– Ainda deve haver alguma coisa


aqui para você – insisti, tentando
falar

ao homem que ele fora, não com o


violento guerreiro que só pensava
em se

torturar. – O ar que você respira, a


água que bebe, acordando a cada dia
para ver o sol. Deve haver alguma
coisa que ainda queira neste mundo.

Restava tão pouco do que ele fora,


mas, quando baixei o olhar para a
poeira,

a sua sombra parecia a mesma.

Yoav riu e balançou a cabeça.


– Está me perguntando o que quero?

Por um momento vi o estudioso que


procurara o padeiro para pedir a

mão da nossa filha, o jovem noivo


tão assoberbado no dia do
casamento que, mesmo depois de
elaborado e acordado o contrato
legal, a ketubah, ainda parecia
atordoado demais para compreender
que Zara era realmente

sua. Quando vira a beleza da noiva


ficara sem palavras, e os amigos

caçoaram dele, assegurando que fora


hipnotizado.

– As vozes deles – ele disse.

Ouvíamos os guerreiros que tinham


saído para a refeição da noite,

quebrando o jejum, a conversa


barulhenta dos jovens, alguns jovens
demais

para conhecer os horrores que


encontrariam quando se arriscassem
pelo

deserto para nos defender. A


maioria desses jovens guerreiros
desviava o

olhar ao ver o Homem do Vale, com


suas cicatrizes e faixas metálicas,
imediatamente convencidos de que
jamais seriam como ele, um matador

enlouquecido pela guerra.

– Pode me dar só uma coisa? –


Yoav perguntou. – Quero que os
meus

filhos falem como qualquer pessoa.


O seu Deus é capaz disso?

Isso era o mesmo que eu queria,


pelo que rezara inutilmente. Éramos

tão iguais que chegava a doer, duas


pessoas afogadas no mesmo lago.

Observamos em silêncio a noite e as


estrelas sobre nós. Não poderia

prometer-lhe que a graça de Deus


triunfaria.

Yoav deu de ombros quando não lhe


respondi.

– Exatamente – disse ele. – Só me


procure quando eles voltarem a
falar.
Quando os inocentes não carregarem
mais a maldição, volte a me

encontrar. Até esse momento, não


terei fé. Se alguma vez houve um
Deus,

Ele nos abandonou e não existe


mais.

Continuamos sentados com esse


pensamento terrível e imprudente. A

luz fria da lua que se punha filtrava-


se no ar.

– Lutarei até não haver mais


ninguém a quem enfrentar. Depois
me

deitarei, sabendo que não tive Deus.

Mais tarde, quando parti, Yoav


permaneceu no mesmo lugar,
debaixo da

velha árvore com os galhos


descorados pelo sol. Durante todo o
tempo em

que viajamos em direção àquela


montanha, ele mantivera inalterado o

semblante contraído de um homem


perseguido pela dor. Agora o seu

objetivo era a morte, querendo


confrontá-la e ficar quite com este
mundo.

Eu sabia com o que ele sonhava, e


não era com a minha filha. Sonhar
com

ela o quebraria de mil maneiras.


Uma visão de Zara seria
infinitamente mais dolorosa que as
faixas afiadas com que se amarrava
em autopunição.

Não olhei para trás quando me


afastei da guarnição, nem prestei
atenção

às corujas que deslizavam no céu


àquela hora. Tinha uma missão a
cumprir

e não me atrevia a demorar. Fizera


um voto solene de proporcionar
àquele

homem a única coisa no mundo que


ainda queria: o som das vozes dos
seus

filhos, um motivo para crer.


*

FUI À SINAGOGA em busca de um


amuleto que curasse os meus netos.

Humilhei-me, os olhos no chão, a


voz suplicante. Mas o grande
homem,

Menachem ben Arrat, apenas me


fitou e balançou a cabeça. Lembrou-
me de

que seu destino era fazer nosso povo


orar e, portanto, não poderia se
preocupar com os problemas de dois
meninos pequenos. Dispensou-me
como se a condição deles fosse
insignificante, como talvez a
considerasse, e

acompanhou-me à saída.

No entanto, apesar da negação do


sacerdote, um dos estudiosos deu-
me

um amuleto que trazia enrolada uma


oração pelo perdão. Enterrei-o junto

àquele templo, como era o costume,


mas, enquanto limpava a sujeira das
mãos, não estava convencida de que
o encantamento de um estudioso
fosse

forte o bastante para as minhas


necessidades. Já me encaminhava
em outra

direção.

A noite caía e as mulheres


trabalhavam nos teares da praça. Os
homens

vinham para a oração, atraídos pelo


chamado estridente soprado no
chifre

de carneiro que soava desde a base


da muralha, passando por mim

enquanto me encaminhava à
extremidade oposta da fortaleza.
Aproximei-

me do quartel, onde avistei Aziza


assistindo pacientemente ao irmão,
que

praticava com um arco, e lhe


mostrando tudo o que aprendera.
Adir

tornara-se o favorito entre alguns


guerreiros mais jovens. Embora
fosse um
aluno bastante bom, não fazia ideia
de que fora a irmã quem se revelara
uma exímia atiradora. Não lhe
contáramos por que essas coisas
eram

proibidas; Adir poderia não


entender se soubesse que
ignorávamos as leis.

Qualquer arma tocada por uma


mulher, mesmo que por acidente,
deveria

ser purificada com água e orações


para que a essência feminina não
perdurasse, distraindo o próximo
guerreiro a usá-la, pois até mesmo o

menor contato atrairia a luxúria para


o coração daquele homem. Quem

sabe isso significasse que uma


mulher bem-treinada em armas seria
uma

guerreira superior, nunca desviando


a atenção da sua tarefa. Aziza tinha
os

ombros e o rosto queimados de sol


pelas horas de prática atrás do
pombal
sob a orientação do escravo, o
corpo esguio belamente musculoso
pelo

esforço de operar o arco. Ainda


assim, ela aplaudia o irmão quando
suas flechas subiam, para depois
cair com estrépito sobre as pedras.

CONTINUEI a atravessar a Praça


Ocidental à procura de Shirah,
aliviada por pensar que poderia
encontrá-la sozinha. Quando cheguei
à sua porta, no entanto, não obtive
resposta. Olhei para o interior,
vendo que o alojamento

achava-se à meia-luz. Uma névoa de


fumaça pairava no ar, resultante do
incenso queimado diante do altar.
Em cima da mesa havia um pote de
tinta

para os olhos feita com lápis-lazúli


moído, uma paleta de uma mistura
de tintas e ruge feito de uma concha
plana, opalescente e branca, trazida
do Mar Vermelho. Um pequeno
frasco de cerâmica de óleo
perfumado com

essência de lírio estava aberto,


como se alguém tivesse saído com
grande pressa. O lírio era associado
a Shechinah, que alguns chamavam
a Morada Divina. Era o aspecto
feminino de Deus, que era oculto e
tocado apenas pelos mais
verdadeiros dos crentes em um véu
de conhecimento e êxtase.

Era a compaixão de Deus, e dizia-se


que os que morriam nos braços de
Shechinah eram favorecidos pelos
anjos.

Eu mesma ouvira apenas


comentários sobre esses assuntos; no
entanto,
reconhecia o odor do divino,
extremamente feminino na sua
essência, uma

mistura de pureza e impureza,


doçura e acidez atraídas em um só
fôlego.

Saí do alojamento de Shirah, pois o


cheiro me conduzia para a praça.

Atravessei-a em direção à muralha


ocidental. Olhei o palácio abaixo de
mim. Àquela hora, sob o céu
começando a escurecer, o Palácio
do Norte em
ruínas, atrelado aos penhascos, era
cercado por uma névoa de luz lilás.
A fragrância do perfume era fraca,
mas mais forte que o odor amargo
do vale

estéril abaixo de nós.

As lojas estavam fechadas, o


curtume e a adega trancados, a
padaria às

escuras. Vários homens fortes


trabalhavam na padaria; até então os
fornos

enormes eram abastecidos com


madeira de corte, mas, agora que
ficáramos

sem toras, as chamas passaram a ser


alimentadas com as tábuas

arrancadas do piso dos alojamentos


internos do palácio. Eu evitara
aqueles

fornos desde que passara uma manhã


e vira os homens trabalhando, o

peito nu coberto pelos aventais


brancos, transpirando com o calor

emanado dos fornos. Sentia-me


covarde, sem coragem de ver os
padeiros.

Por um momento, imaginei que via


meu marido entre eles.

Antes de desmaiar, percebi que era


alguém completamente diferente,

alguém que não se parecia


absolutamente com meu marido. O
homem que

trabalhava na padaria me acenou


quando me viu olhando. Corri para
longe.
Desde aquele momento, passara a
assar meu pão sírio, temperado com
o

resto de coentro do meu marido.


Não queria ir àquele lugar e entrar
na fila

com as outras mulheres, esperando


pelos pães frescos, lembrando-me
do

cheiro da minha casa no Vale dos


Ciprestes.

Agora, no escuro, vi uma sombra


atravessar o piso da padaria. Um
rato.

Continuei a procurar Shirah,


chegando à passagem que levava à
terra.

Segui em frente, embora me


atordoasse o modo que o caminho
descia por

centenas de degraus inclinados,


muitos desfazendo-se, arruinados.
Os

cortesãos do rei desciam por essas


escadas e, não muito tempo depois,
os
soldados romanos tinham patrulhado
o lugar antes que os nossos

guerreiros o tomassem para


reivindicar a fortaleza para si.
Entranhei-me tão profundamente na
terra que parecia estar penetrando
em outro mundo,

um lugar escuro e úmido, apesar da


paisagem árida em cima.

Embora não tivéssemos chuva havia


vários meses, e o mundo ao redor

estivesse seco e dolorido, ouvi o


ruído de água. No início a promessa
de água foi como um sonho, como
fora quando chegáramos ao oásis.
Senti-me

chocada com o som alegre do seu


eco, pela própria noção de que
havia muito eu me esquecera de
como era a água, como poderia ser
tão fria e doce, com pétalas brancas
flutuando na superfície, como
poderia facilmente

atrair alguém, atrair o banhista


desavisado para o círculo dos seus
braços

claros e incansáveis.
Continuei em frente, atraída pela
promessa inesperada de água, assim

como os ratos são atraídos para os


grãos da padaria, a mão apoiada
contra

a parede de pedra fria para me


ajudar a manter o equilíbrio na
escada retorcida. Os degraus
tornaram-se menores à medida que
descia, cada um

menor que o anterior. Precisava


andar de lado para não cair.
Finalmente, percebi onde estava.
Dirigia-me à cisterna maior, um
poço tão enorme que

cinquenta homens poderiam lhe dar


a volta ombro a ombro e ainda

sobraria espaço para se esticar. No


inverno aquele poço era enchido
com os

aquedutos de Herodes, até tornar-se


um lago usado para abastecer as

nossas casas de banhos e os barris


de água. Agora, no entanto, o nível
estava perigosamente baixo. Havia
apenas uma pequena piscina verde
concentrada no meio do poço,
orlada de pedras afiadas. Uma única
lâmpada

fora colocada sobre uma pedra e o


azeite em fusão flutuava como um

líquido ambarino. Olhei através do


que era sombra e luz bruxuleante em
igual medida. Sentia um frio tão
forte que era como se tivesse me

transportado para a terra de gelo que


o Homem do Norte tantas vezes

mencionara, um lugar onde um


guerreiro poderia congelar até os
ossos em

instantes.

Via-se o brilho de carne na água e


os movimentos convulsivos de um

frenesi sexual. Estremeci e pensei


em monstros, pois quem senão os

crocodilos escorregariam na água


assim por prazer? Mas, certamente,

monstros não se abraçavam com


tanta paixão, nem se beijavam na
boca,
nem usavam a carne de homens e
mulheres. Os dois na água eram os
dois

escuros, as suas trevas se juntando


quando se tornaram um. Quando se

separaram um do outro só pude ver


as costas e os ombros largos do

homem, mas notei que a mulher


usava um amuleto de ouro em torno
do

pescoço e que seus olhos, tão


escuros na água, eram semeados
com o pó de
lápis-lazúli, uma sombra que
algumas pessoas juravam ser a cor
do céu.

Permaneci parada contra a parede e


tentei não respirar. Acabara de

tropeçar em algo que era melhor


deixar em paz. Agora tropeçava
ainda

mais enquanto me atirava pelos


degraus em uma tentativa de fugir.
Uma pedra deslocou-se e caiu na
água. As ondulações formaram um
círculo
brilhante quando a pedra foi
engolida pela piscina. A mulher na
cisterna atraiu o seu amado para si.
Nesse instante vi sua garganta e os
seios. Ela era

marcada por tatuagens de hena, uma


prática não permitida entre o nosso

povo, a menos que a mulher fosse


uma kedeshah, uma não ungida,
disposta

a oferecer seu corpo como um


sacrifício e como uma bênção aos

sacerdotes.
O nadador virou-se e olhou na minha
direção, vendo através das

sombras. Nossos olhares se


cruzaram, como uma gazela olhando
nos olhos

do caçador, embora quem fosse a


presa e quem o caçador eu não
pudesse

dizer. Rapidamente recuei mais uma


curva. Meus netos haviam me

ensinado a linguagem do silêncio.


Não precisava de palavras que me
dissessem que a Bruxa de Moabe
era como qualquer outra mulher. Ela

puxou o amante mais para perto,


envolvendo-o com braços
protetores,

para garantir que eu não visse seu


rosto. Não importava. Eu sabia
quem ele

era pela forma que a luz caía nas


suas costas, como se ela tivesse sido
atraída para a luz no interior dele,
que brilhava e fazia que os homens o
seguissem, como se não tivessem
escolha.
Eu gostaria de poder apagar o que
vira. Só queria pedir um favor a

Shirah e descobrira muito mais do


que esperava. Subi pela escada o
mais rápido que pude. Embora já
não fosse nova, fugi como uma
jovem. Passou-me pelo pensamento
correr por todo o caminho de volta
para casa, mas os

nossos olhares haviam se


encontrado; não haveria como
esconder esse fato

uma da outra depois do encontro. Se


não enfrentamos algo, isso nos
perseguirá, seja como for. Se
aprendera alguma coisa no tempo
que passara

no deserto, era que, depois de


começar a correr, nunca mais se
consegue parar.

Esperei na porta dela, ansiosa pelo


que aconteceria em seguida.
Inimigos

se criavam por razões muito


menores do que eu chegara a
conhecer, e uma

mulher que praticava o keshaphim


não era uma inimiga fácil de
enfrentar.

Eu sabia demais, mas não sabia


nada. Talvez aquilo me fizesse a
mais perigosa das duas no momento.
Se eu tivesse algum dom afinal, era
a

capacidade de ver as sombras.


Avistei uma naquele momento
cruzando a

praça; se semicerrasse os olhos


veria um corvo querendo voar, mas
preso
em uma armadilha, impedido de
deixar a terra.

Seu cabelo preto comprido pendia-


lhe às costas, molhado e solto,

perfumado com a fragrância do lírio.


Nós nos enfrentamos à meia-luz

lançada pela lua. Notei que até


mesmo uma bruxa poderia corar,

especialmente uma que fora


descoberta nas profundezas de um
poço. Um

tremor passou pelo semblante escuro


de Shirah, não exatamente de

vergonha, mas de rendição.

– O que é que você quer de mim? –


perguntou ela, resignada.

Pensei nas pombas, como nunca nos


encaravam e sempre desviavam o

olhar para baixo. Ao contrário


dessas criaturas tímidas, Shirah
olhava para

mim, os olhos em chamas,


convencida, ao que parecia, de que
eu pudesse
usar contra ela o que acabara de
descobrir.

– O que você faz é da sua conta –


assegurei-lhe. – Nem sequer me

lembrarei desta noite.

Viera em busca de um favor e foi


isso o que pedi. Abaixei a cabeça e
inspirei a fragrância do lírio
enquanto implorava a única coisa
que o meu

genro queria neste mundo. A


devolução da voz aos meus netos.
– O que a faz pensar que eu possa
fazer a obra de Deus?

Shirah era destemida, mesmo agora


que eu sabia o suficiente para

destruir sua reputação e sua vida. As


mulheres que cometiam adultério na

maior parte das vezes eram


expulsas, tinham o cabelo cortado
rente ao crânio, os bens confiscados,
os filhos arrancados da sua guarda.
Não era sua

bravura prova suficiente da sua


força? Ela era a razão pela qual o
conselho

deixara Yael em paz. Haviam


aparecido uma vez, com perguntas
sobre o

nascimento de Arieh. Shirah fechara


a porta do pombal e entoara uma

oração até que fossem embora. Se


era capaz de trazer as crianças ao

mundo, lutando contra Lilith quando


a deusa tentava reclamá-las, então

certamente poderia ajudar dois


meninos pequenos a recuperar a voz.
Para

convencê-la, eu teria de romper o


silêncio. Fiz isso curvando a cabeça
enquanto contava a minha história,
tendo em mente a imagem do
Homem

do Vale envolto em tiras de metal e


marcado pelo próprio sangue.

Enquanto falava, o passado


envolveu-nos como as trevas se
acumulavam

nos cantos do mundo. Mencionei o


jasmim que crescia na borda do lago
e

as marcas de queimadura na pele da


minha filha. Seguiu-se o anjo que me

sussurrara na padaria, então o


demônio que me permeara quando
tomei da

faca do soldado contra a minha


natureza em carne e sangue, por fim
o fantasma do meu marido,
assegurando-me de que teríamos no
caminho

todo o pão de que precisássemos


para nos alimentar.
Shirah recuou, o rosto pálido. Agora
apenas ela e Deus sabiam como eu

matara aquelas bestas que se


abateram sobre nós, a alegria com
que os vira

beber até a morte, o prazer terrível


que sentira ao cortar suas gargantas.

Tirei a túnica para que me visse


melhor e soubesse em que havia me

tornado. Não era a esposa do


padeiro, a avó ou a mulher que
cuidava das
pombas, alimentando as aves
enfermas com colheradas de água de
cevada,

protegendo-as durante a noite. Era


uma assassina. Segurei a lâmpada
sobre

a palma da mão para que Shirah


visse exatamente o que estava à sua
frente.

A marca da morte.

Sentia-me desgastada e exausta. As


palavras tinham feito isso comigo,
torcendo meu coração enquanto se
derramavam, caindo como pedras

sobre o calçamento. Talvez meus


netos tivessem a sorte de ser mudos,

protegidos contra as histórias da


própria vida. Shirah puxou-me para
perto

e em seu abraço senti-me como uma


criança que vira demais, observando

através da cachoeira, horrorizada, o


que um animal era capaz de fazer a
um
ser humano e no que um ser humano
poderia então se tornar.

– Para todo mal há uma cura – disse


Shirah suavemente. – Qualquer mãe

defenderia a filha. Seria um pecado


não fazer isso, um crime além de
tudo o

que foi escrito. O que você fez foi


por amor.

Contra minha pele febril, sua carne


era deliciosamente fresca. Ela me

confidenciou que a água era o seu


elemento e fora assim desde que era
criança, por isso eu a encontrara na
cisterna. Sua mãe a levara a um rio e

ela descobrira que sabia nadar sem


nunca ter aprendido. O que era

perigoso para uma pessoa era a


misericórdia para outra. O desejo do
meu

genro não era uma tarefa impossível,


assegurou-me, mas seu preço era a
paciência. Esperar e ter fé, ela
insistiu. Capture um demônio e
quebrará o
encantamento. Ofereça a gratidão a
um anjo e ele devolverá as vozes
que foram tiradas para impedir que
as crianças gritassem quando
estavam

escondidas atrás da cachoeira. Era


para eu rezar todas as noites para
Beree,

o anjo da chuva. Esse anjo era


calado, assim como meus netos, por
isso não

deveria esperar resposta, pelo


menos imediatamente.
– Sei o que seu genro deseja – disse
Shirah então. – Mas e quanto a
você?

– O desejo dele é o meu – assegurei-


lhe.

– Não. – Ela não estava convencida.


Fitou-me bem e senti a garganta

apertar, talvez para conter a


verdade. – Há algo mais.

Shirah levou a minha mão à boca.


Antes que pudesse pensar em me

afastar, ela beijou o centro da minha


palma. Naquele instante deixei sair a

verdade, o que escondera dela, de


Deus e de mim mesma. Rompi com
um

soluço trêmulo. Os soldados tinham


agido como animais e fora um prazer

para mim matá-los, mas eles também


eram homens. Haviam caminhado

sobre a terra e sob o céu. Aquele


que me implorara fora o único que
permanecera comigo, pois pedira
algo que agora eu desejava também.
Eu queria ser perdoada.

– Sempre foi assim aos olhos de


Deus – Shirah me disse.

Ela deixou que o manto escorregasse


dos ombros para que eu pudesse

avaliar em sua pele todas as


tatuagens vermelhas proibidas que
antes

espionara na cisterna. Eu sabia o


que representavam: lealdade à
deusa, uma vida dedicada ao
serviço, o mais profundo sacrifício
de uma mulher, desprezada pelo
próprio povo.

– Eu deveria me julgar? – arriscou-


se a perguntar. – Ou deixar isso ao
Todo-Poderoso, que perdoa todos
nós por sermos o que Ele nos fez?

Debaixo da amoreira, ao lado do


meu genro, eu quase chegara a

renunciar à minha fé. Quem estaria


em posição de avaliar as minhas

provações e transgressões? Quem


teria o dom de curar uma ferida

impossível de ser cicatrizada?


Shirah provara a minha tristeza e
confiara em mim o bastante para se
revelar em troca. Se ela pudesse, e
Deus

permitisse, seria atendido o desejo


que meu genro trazia no coração.

Talvez então eu conseguisse me


perdoar.

PRATIQUEI a paciência durante


todo o mês de Tishri, pois não
manifestava essa virtude com
facilidade. Na verdade, a paciência
nunca me fora
suficiente no passado. Se tivesse
paciência, meus netos teriam ficado
ao lado do lago de água verde
quando os renegados nos
encontraram,

esperando como ovelhas para serem


abatidas. Se tivesse paciência, os

assassinos da minha filha ainda


estariam andando sobre a terra.
Pensei no

meu marido e em como ele esperava


a massa crescer, sem nunca se

apressar para colocar os pães no


forno. Ele sabia o momento exato de
tirar

as coberturas de linho dos pães


crescidos, quando introduzir a tábua
de madeira no forno em brasa. Era
como se fosse tanto a challah como
o criador, e, portanto,
compreendesse seu mistério de
dentro para fora.

Comecei a observar o escravo mais


atentamente. Ele também era um

homem profundamente paciente.


Esperava sem reclamar todas as
noites,
acomodado sobre as pedras do
pombal, aguardando pelo retorno de
Yael

no dia seguinte, tão calmo como as


pombas que esperavam pelo nosso

retorno. Mas eu reparava no calor


dos seus olhos claros; ele não
conseguia

esconder isso. Até mesmo a sua


paciência tinha limite.

A estação do ano era inclemente e o


calor não se dissipara. Eu tinha
dificuldade para pegar no sono,
embora as outras pessoas sob o meu
teto

dormissem bem, incluindo Arieh, já


com mais de dois meses de idade,
um

menininho saudável e tranquilo. Uma


noite em que arrumava o nosso

alojamento, colocando palha nova


nos estrados de dormir, olhei para
fora,

atraída por um movimento ao lado


da porta. Notei uma sombra, como
fizera no oásis quando as manchas
sombrias dos soldados projetaram-
se

sobre a areia. Esse era o meu


talento. Era capaz de observar o que
mal começara a se manifestar aos
olhos: os homens ferozes no alto da

montanha, um rato em um canto, a


mulher encontrando-se com seu

amante, o frasco de veneno atrás dos


potes de especiarias, a forma fugidia

de um homem esgueirando-se no
lado de fora do nosso alojamento.
Pensei

que se tratasse de um espírito


ressurgido que caminhasse entre nós,
depois

de ter abandonado o corpo


entorpecido. Mas, não, era uma
pessoa de carne

e osso.

QUANDO o reconheci, entendi que o


Homem do Norte não era tão
paciente quanto eu imaginara. Quem
sabe isso se aplicasse a todos os
homens. Então
me lembrei de que realmente havia
dias em que o padeiro amaldiçoava
os

fornos por serem lentos, quando


tirava os pães das prateleiras antes
de estarem totalmente resfriados.
Até mesmo a pessoa mais paciente
entre

nós tem um ponto de limite. Nessa


noite, quando vi a figura
esgueirando-se

ao longo da parede, concluí que


chegara esse momento para o
escravo. Ele
usava um lenço na cabeça para se
disfarçar, mas qualquer um diria que
não

era um de nós. Seu cabelo louro


brilhava. Podia-se pensar que um
homem

do mundo do gelo tivesse pouco


sentimento, mas esse não era o caso.

Quando lhe batesse a impaciência,


era como o gelo aquecido, pronto
para

derreter.
O Homem do Norte teve a sorte de
só ser visto por mim. Qualquer outra

pessoa que o descobrisse cairia


sobre ele imediatamente e, mesmo
que se

rendesse no mesmo instante, se a


pessoa decidisse matá-lo o teria
feito sob

seus direitos legais. Acenei-lhe para


que se fosse, batendo palmas, como
faria para afugentar ratos. Ele se
colou contra a parede, mergulhando
na escuridão, desaparecendo, como
se fosse o personagem de um sonho.
Mas,

ao contrário de um sonho, ele deixou


sua marca. Quando à meia-luz me
aproximei da parede e passei a mão
sobre as pedras, encontrei-as
quentes

ao toque no lugar em que ele


esperara, motivado pela impaciência

perceptível em todo homem


apaixonado.

Na manhã seguinte, enquanto


acompanhava Yael pelo campo, ela
seguia
com a atenção voltada para o
pombal, onde a sombra que a
espreitava

habitava. Eu andava em um ritmo


mais lento que o dela e notei sua

impaciência quando me pediu que


me apressasse.
– As pombas não podem esperar? –
perguntei.

Ela corou e começou a mexer com o


bebê que carregava no quadril.

– Meu querido – disse ela,


cobrindo-lhe os olhos e esfregando a
pele macia sob o queixo de Arieh.

– Existe uma razão para você estar


tão impaciente? – insisti com ela.

Yael fitou-me hesitante. Percebi a


mentira se formando antes mesmo de

ser declarada.
– Não estou com pressa – ela
respondeu, mas seu olhar dizia o
contrário.

Foi então que entendi que fora ela a


pessoa que deixara as correntes do

escravo destrancadas.

Ela o estava tratando como um


homem.

Eu falei que tinha uma pedra presa


na sandália. Parei para tirá-la,

dizendo que não poderia andar com


uma pedra na sandália mais que um
escravo poderia tornar-se um de
nós. Olhei para Yael, que me
pareceu

nervosa, irritada com o comentário.

– Acha mesmo que ele vale menos


que nós? Que não é nada mais que

uma pedra?

Dizia-se que os anjos procuravam os


seres humanos para confortá-los.

Como deveriam ser solitários,


trancados no silêncio de seu mundo.
Mas um
ser humano ardia entre seus braços,
com o corpo em chamas, e a
bondade

de tais criaturas poderia tornar-se


maldição. Ali naquela montanha a

indiscrição de Yael seria


considerada traição.

– Se o encontrarem solto, vão matá-


lo – avisei. – Se você soltá-lo,
estará

facilitando a morte dele. Acha


mesmo que ele fará o que
mandarmos se estiver sem as
correntes? Ele vai querer mais,
como qualquer outro

homem.

Yael admitiu em voz baixa que o


Homem do Norte comentara sobre
os

seus planos de fuga. Ele sabia de


outros que conseguiram escapar.
Vários de seus companheiros
recrutas tinham abandonado a legião
e depois

atravessaram o Grande Mar, no


entanto muitos haviam desaparecido
depois de chegar a Jerusalém.
Fiquei em silêncio, imaginando se
ele poderia

ter conhecido os animais que nos


atacaram, talvez os tivesse
considerado amigos.

Quando o Homem do Norte fazia


seus discursos inflamados sobre a

liberdade, eu desconfiava que ele


estivesse tentando convencer Yael a
fugir

também. Ele insistia em que os


romanos logo cairiam em cima de
nós – e

era verdade que avistávamos cada


vez mais espiões na região. Em
pouco tempo seríamos escravos, o
Homem do Norte afirmava. Mas
talvez ele

tivesse esquecido que, se Yael


deixasse o pombal, não estaria
sozinha. Ela

me dissera que jamais voltaria ao


deserto, onde havia deixado ossos
sob pilhas de pedras, brilhando
muito brancos no calor, restos do
homem que
amava.

Eu sabia sobre o leão que a mordera


e possuíra. Ela divagara sobre ele

quando parara nos degraus da


escada para respirar na noite em que
dera à

luz seu filho. Embora nunca mais


voltasse a falar sobre isso, eu sabia
que ela não pretendia levar outro
leão ao deserto. Se o Homem do
Norte

estivesse planejando fugir, teria de


fazê-lo sozinho.
Não fiz mais nenhum comentário
quando os vi trabalhando juntos.
Virei-

me quando ele lhe entregou um


cobertor e um saco de pele de cabra
com

água. Ela não era minha filha,


embora lhe tivesse permitido usar os
bens do

padeiro, os frascos de coentro e de


cominho, as colheres de madeira, o
avental que ele amarrava na cintura.
Eu chorara sobre essas coisas antes
e
o faria de novo, não importando se
Yael arruinasse ou não o que restara
de

sua vida servindo ao escravo. Ela


devia tratá-lo como uma simples
pedra na

sandália. Em vez disso, ela o via


como homem.

Quando eles saíram para ir ao que


restava dos pomares, árvores que
não

tinham sido cortadas para lenha e


ainda davam frutos, o falcão os
acompanhou, dedicado, não se
desviando do topo da montanha.
Observei

suas sombras se estenderem por


todo o campo e depois
desaparecerem

quando uma nuvem passou no alto.


Tive certeza de que esse era o sinal
da

infelicidade próxima. Talvez já não


acreditasse na bondade e
desconfiasse

dela. Passara a considerar a


compaixão como uma faca nas mãos
dos anjos

do infortúnio.

EM UMA NOITE de shabat, o


conselho anunciou que não traria
mais recrutas ou escravos para a
fortaleza depois de uma batalha,
mas, em vez disso, os mataria,
juntamente com seus senhores.
Vários recrutas romanos tinham

sido capturados e já trabalhavam


com os burros que carregavam os
barris
de água. Mal havia comida
suficiente para os moradores, não
podíamos

alimentar mais bocas. O que era um


escravo senão uma pedra?, o povo

murmurava. Exatamente como eu


dissera. Observei Yael atentamente
após

a proclamação; ela franziu a testa e


olhou para o conselho alarmada,

enquanto os escravos entre nós eram


denunciados.
– É um pecado manter as pessoas
assim – disse-me ela, em um
evidente

impulso de emoção, quando saímos


da praça.

– Imagino que não vai ouvir a minha


recomendação – murmurei.

Ela riu e enlaçou o braço no meu.

– Vou ouvir – ela me garantiu.

– E depois vai fazer o que quiser –


observei.
Rimos juntas, então me mantive em
silêncio, porque percebi o quanto

temia por ela naquele mundo


perverso. Embora não fosse minha
filha, eu me preocupava como se
fosse.

NA MANHÃ seguinte, vi que Yael


trouxera um arco e várias flechas
para o Homem do Norte, uma para
cada uma das sete irmãs que se
reuniam como

estrelas no céu. Ela escondera tudo


sob a túnica, mas reconheci a forma
da
arma pela sua sombra quando ela a
guardou debaixo de um monte de

palha. O arco era um que o irmão


dela carregara. Quando ele desse
por falta

dele, questionaria os amigos no


quartel e nenhum se lembraria de tê-
lo visto desde sua visita recente à
irmã. Essa fora a sombra que eu vira
sobre

o campo enquanto o gavião pairava


acima deles. Ela se dispunha a fazer
demais por um homem que não
significava nada nessa montanha e
não

deveria significar nada para ela


também.

– Não me diga quando vai acontecer


– ouvi-a dizer quando estava ao

lado dele. – Chegarei uma manhã e


você terá ido embora.

O Homem do Norte estava ciente de


que tinha um rival, mas, ao

contrário da maioria dos


pretendentes, não estava com ciúme.
Ao
contrário, adorava o concorrente,
nosso pequeno leão. Poderia ter-se

ressentido de Arieh pela alegrias


que proporcionava à sua mãe em
seus braços, mas em vez disso
ficava feliz em ajudá-la a divertir o
filho, levantando-o para ver o falcão
acima de nós. Ele assobiava de um
modo que

fazia o pássaro mergulhar, o que


levava o bebê a jogar a cabeça para
trás e

rir. Com frequência, o escravo


relacionava os nomes das coisas em
sua própria língua áspera, tentando
ensinar Arieh como dizer pomba e
falcão, e também mãe e neve, como
se convencido de que a criança
pudesse um dia viver naquela terra
fria de onde viera e falar como ele.

– Está desperdiçando seu tempo –


avisei enquanto ele apertava Arieh

nos braços e, em seguida, jogava-o


no ar, até que a criança se derretesse
de

tanto rir.

Então um dia ele disse à criança o


seu nome. Trabalhávamos tão

próximos uns dos outros que todos


entreouviram. Era Wynn, uma
palavra

áspera que ficava presa na garganta.


Shirah e Aziza trocaram um olhar,
surpresas com o fato de o escravo se
revelar assim. Ele se dirigira a
Arieh

da maneira que um homem falaria ao


próprio filho. Eu sabia que o

momento de sua partida chegara. Um


escravo nunca pronunciava o
próprio

nome em voz alta; depois de ser


capturado, não deveria dizê-lo
enquanto não entrasse no outro
mundo. Seu nome era para ser uma
palavra

conhecida apenas pelos parentes que


o esperavam e por fosse qual fosse o

Deus que ele venerava.

Apenas um homem livre correria


esse risco.

Todas as noites eu esperava,


segurando o bebê, enquanto Yael se

abaixava dentro do pombal e abria


as correntes. Era um cadeado
simples; a

chave ficava pendurada em um


gancho martelado na parede do
pombal. E

ainda assim demorava algum tempo


antes de Yael surgir, alisando o
cabelo.

Ninguém mais espionaria sua


sombra, nem saberia como era
atraída para
aquele homem, mas as sombras eram
o meu dom. Porque ela não era

minha filha, eu ficava com o bebê,


zangava-me, mas não dizia nada.

Essa era a época do ano em que a


noite chegava mais cedo, lavando
todo

o céu para inundar os cantos do


horizonte. Todas as noites em que
Yael deixava o escravo, sua
expressão era sombria.

Ela explodiu na noite em que se


divulgou um decreto informando que
as

rações seriam reduzidas a metade e


que não haveria mais água pura para

os animais ou escravos.

– Ninguém deveria ser tratado dessa


maneira.

– Seria melhor se o matassem? –


perguntei.

– Quando os homens agem como


animais, se tornam como eles – ela

respondeu.
Eu não poderia negar isso, então
deixei passar.

– Este é o mundo em que vivemos –


murmurei, e ela pegou a minha mão,

como se fosse realmente minha filha.

YAEL NÃO ESTAVA sozinha na sua


infelicidade. Todos sentimos as
limitações da montanha, a falta de
alimentos, a inveja por ninharias.
Muitas das ovelhas e

cabras valorizadas pelo leite foram


mortas por necessidade. As pessoas
estavam passando fome. Os brotos
das videiras murchavam com as
rajadas

de calor, transformando-se em
cinzas, como se dizia que as frutas
se

tornaram na cidade arruinada de


Sodoma.

O conselho permitiu que um grupo


de viajantes se instalasse no campo

distante, para além da casa dos


essênios no celeiro de cabras. Eram
nômades que tingiam as mãos de
azul e falavam em sua língua, mas

trouxeram consigo seus animais para


compartilhar conosco, embora não

tivéssemos nada a ver com os


porcos que criavam. Eles também
tinham

sido expulsos pelos romanos.


Algumas de suas mulheres, as que
haviam

sido violadas pelos soldados,


tinham aberto talhos profundos nas
palmas das mãos e nas solas dos
pés, para que a tristeza lhes saísse
do corpo.

Quando partiram de volta ao


deserto, pois seus rebanhos
necessitavam

de pastagens, encontramos um bebê


que resultara da união forçada de um

soldado romano com uma de suas


mulheres. O bebê fora sufocado,
depois

deixado embaixo de uma


amendoeira, os joelhos contra o
peito, os
bracinhos dobrados, como se
dormisse em paz, resgatado da
dureza do

mundo. Yael ficou ao meu lado e


chorou. Ela vira duas filhas-noivas
da mesma tribo enterradas em seu
caminho no deserto. Disse que
estavam de

mãos dadas, para poderem seguir


juntas para qualquer que fosse o
mundo

que as esperava.

Muitos dentre nós desejavam que


pudéssemos fugir e encontrar um

caminho de volta para as cidades e


vilas. Mas não havia nada para onde
voltar. Nossas casas tinham sido
queimadas, nossas cidades,
destruídas.

Imaginei se Yael queria poder


escapar e atravessar o deserto, o
Grande Mar, em direção ao mundo
em que a neve era uma ocorrência
diária em vez

de um milagre.

Vi meus netos brincando perto da


muralha como sombras filtradas

através da escuridão crescente.


Minha garganta se fechou como
sempre

acontecia quando os observava.


Pensei no bebê sufocado e depois
deixado

ali, com cuidado e carinho, para


descansar. Yael enroscou o braço no
meu,

pois passávamos todas as noites


juntas. A primeira estrela apareceu
acima
de nós, aquela que diziam ser a
lanterna de Astarte, que arde com
tamanho

brilho que lhe permite cruzar o céu


quando todos os outros estão presos
na

escuridão.

AS SENTINELAS o capturaram em
uma noite do mês de Cheshvan,
quando o ar estava vitrificado de
frio. Era o início da estação
chuvosa, a época do ano em que
vivíamos sob o signo do escorpião,
que trazia transtorno e tristeza,

o período das inundações. No


entanto, o céu pairava sobre nós
como uma

tigela vazia, deixando cair as trevas


e nada mais. Não houvera chuva e
todos sabíamos que isso era um
sinal de que o nosso povo não
contava com

o favor de Deus.

Os guardas caíram sobre ele quando


atravessava o campo em que as
árvores erguiam seus ramos para o
alto, desesperadas de sede. Estava

próximo da parte da muralha que


contornava o alojamento, o local
onde deixara sua marca de calor
sobre as pedras na noite em que o
vira

esperando, talvez com paciência,


certamente com desejo.

Não falamos sobre isso, mas todas


sabíamos que, caso estivesse se

dirigindo para o Portão da Serpente


a fim de tentar a fuga, não teria
vindo

naquela direção. Só havia uma razão


para ser preso no jardim das
cebolas,

onde morava o escorpião, e essa


razão era Yael. Talvez ele tivesse se
convencido de que, se lhe falasse
mais uma vez, e se as palavras
fossem fortes o bastante, conseguiria
que penetrassem sua determinação e
ela,

quem sabe, se dispusesse a nos


deixar.
Só viemos a saber que fora
capturado pela manhã. Soprava uma
brisa

forte que trazia o cheiro da mirra e


também do perfume do cipreste,

lembrando-me do vale em que


vivera no passado. Costumávamos
ter chuva

nesse mês, mas até agora nenhuma


gota caíra, embora os sacerdotes

orassem por tal ocorrência três


vezes ao dia. As pessoas se
lembravam das
histórias da grande seca, quando um
sábio chamado Honi atraíra a chuva
e

salvara o nosso povo. A situação


justificava um milagre e pedia a voz
de alguém que pudesse ser ouvido
ao clamar a Deus.

Ao saber da notícia da prisão do


escravo, Yael apoiou-se contra a
parede

do pombal, como se tivesse levado


um golpe, e não fosse capaz de ir
adiante. O bebê, que estava
amarrado a ela, remexeu-se no sono
e fez menção de choramingar.
Rapidamente, Yael acariciou-lhe o
cabelo escuro

para acalmá-lo. Qual seria um sonho


de criança? Leite e amor, a
linguagem

dos cuidados da mãe, a voz de um


homem que nasceu na neve? Esse é o
tipo de sonho que nunca se terá
novamente. Nosso descanso é
formado

pela vida que levamos em vigília e a


vida em vigília é formada pelas
nossas
tristezas.

Ninguém nos disse onde o escravo


estava, mas, quando vimos o falcão

circulando o alto de uma torre,


soubemos que era para lá que o
tinham levado. Teriam acabado com
sua vida, mas não valeria a pena o
esforço. Se

o deixassem em paz, trancado e


esquecido, morreria por conta
própria. Vi o

olhar de Shirah voar na direção de


Yael, que naquele momento se
esforçava

para não revelar nenhuma expressão.


Nenhum estranho diria que ela

sentia mais do que todas nós, a não


ser que percebesse que ela se
tornara

tão pálida que as sardas de sua pele


se destacavam como uma tela

respingada de sangue.

Mantivemo-nos reservadas naquele


dia, lamentando a ausência do
escravo, com os nervos à flor da
pele e à espera da pior notícia. Eu
mesma

não esperava sentir a falta dele com


tanta intensidade como senti. Ele era

um homem corpulento e ocupava


tanto espaço que o pombal agora
parecia

completamente vazio sem a sua


presença. As aves mostravam-se
instáveis;

haviam poucos ovos a ser


encontrados e os que descobrimos
na palha

tinham manchas escuras tingindo a


casca azul-acinzentada, um mau

presságio. Fizemos a nossa refeição


do meio-dia juntas no jardim atrás
do

pombal, em silêncio, dando


pequenas mordidas nos bolos de
cevada frios com azeite de oliva,
enquanto esperávamos pelo que
aconteceria em

seguida. Era como se uma pedra


tivesse caído na água e cada círculo
que se

espalhava mudasse a maré da nossa


sina ao longo do curso de um destino

inevitável. O dia de hoje não era


como o que viera antes; amanhã
seríamos

levadas para ainda mais longe do


mundo cotidiano com que nos

acostumáramos.

Quando os guardas chegaram para


nos interrogar, como sabíamos que
viriam, dissemos que ficáramos
chocadas com o desaparecimento do

escravo. Não tínhamos ideia de que


ele aprendera o truque de destravar
as

correntes ou que soubesse como


abrir o ferrolho da porta. Shirah

encontrara uma lingueta de aço


torcido que rapidamente curvou para
que

se parecesse com uma chave.


Entregou-a aos guardas, sugerindo
que talvez
fosse dessa maneira que o escravo
conseguira escapar. Olhou
rapidamente

para Yael, a quem se esforçava para


proteger contra a investigação. De
novo, o rosto de Yael estava em
branco.

Fomos em frente, dizendo mais,


cacarejando como galinhas,
insistindo

que pensávamos que homens do


norte eram obstinados e estúpidos,

incapazes de planejar uma fuga.


– Mas vejam como ele foi
inteligente – Shirah disse aos
guardas,

balançando a cabeça – para fazer


uma chave de quase nada.

– Ele vai morrer de fome em breve –


disse um dos guardas, talvez

acreditando que fosse a notícia que


quiséssemos ouvir.

Shirah perguntou se uma de nós


poderia falar com o prisioneiro,

dizendo que ele inventara um


ancinho que era útil e que queríamos

aprender os seus métodos para


poder fazer uso da ferramenta por
nossa conta. Yael fitou-a com
gratidão, ciente de que essa
disposição seria uma oportunidade
de levar comida e água para a torre.
Havia apenas uma

pessoa que poderia permitir esse


encontro, o nosso líder, Ben Ya’ir.

– Informem-lhe do nosso desejo –


disse Shirah sem hesitação. – Ele
será
generoso conosco.

Mas Ben Ya’ir partira para o


deserto com seus guerreiros, não
deixando

um segundo em comando a não ser


os anciãos, e eles certamente não

ouviriam os apelos de Shirah ou


mesmo permitiriam que passasse por
suas

portas.

Fomos informadas de que somente


uma pessoa seria capaz de
convencer as autoridades de que o
Homem do Norte merecia receber
um

visitante – a esposa de Ben Ya’ir,


Channa, a mulher morena que
morava na

área inferior do Palácio Ocidental,


uma casa com afrescos criados
pelos pintores de Roma. Ela detinha
parte da autoridade do marido
quando se tratasse de assuntos
domésticos, ouvindo queixas sobre a
distribuição de espaço ou de
trabalho entre as mulheres. Ela era
respeitada ainda que se mantivesse
distante de todos os outros. Durante
alguns dias, em

determinadas ocasiões, ela se


recusava a abrir a porta; sua ração
de comida

era levada até ela e então deixada no


lado de fora da sua porta, a água que

lhe cabia disponível ao lado de seu


jardim, em baldes e recipientes de
pele

de cabra. Ela se aventurava a sair à


noite e às vezes era vista na Praça
Ocidental, os lenços esvoaçantes
enrolados em volta do corpo

assemelhando-se a uma mortalha, o


rosto afilado contrito como se

estivesse de luto, embora não


tivesse perdido ninguém. Ela era um
mistério

e uma sombra, mas mais que tudo eu


entendia de sombras.

Quando dissemos o que queríamos,


o guarda perguntou qual de nós

visitaria a esposa de Ben Ya’ir.


Senti a hesitação das outras, e até
mesmo Shirah virou-se para o lado,
com medo de tal encontro. Vi-me
oferecendo-me para ir. Era a mais
velha e por isso era o meu dever.
Mas havia mais que

isso. Eu era a adivinha das sombras


que tinha aprendido a não mostrar o
que ia por dentro. Poderia fingir ser
viúva de um padeiro, uma mulher
simples, e tinha talento para o
disfarce que poderia ajudar nessa
tarefa. As

outras mulheres me fitaram, gratas


pela minha oferta, cada uma com
seus
próprios motivos para não querer ir
ao palácio.

No momento de sair, por impulso,


decidi levar Arieh comigo. Tive
uma

premonição. Pensei ter ouvido uma


voz dizer o seu nome. Talvez o anjo
que

me visitara na padaria estivesse ao


meu lado novamente. Talvez o
mesmo

que me instruíra a pegar o frasco de


veneno agora murmurasse que essa
criança poderia ser a chave para
destrancar a porta da prisão.

– Quem negaria um sorriso a Arieh?


– disse a Yael. – Que mal pode
fazer?

A esposa de Ben Ya’ir poderia ter


interesse no bem-estar dos pombais
se

também tivesse uma queda pelo


bebê. Se assim fosse, quem sabe nos

permitisse visitar um homem que


nada mais era que uma pedra, mas
que
mesmo assim nos confiara seu nome.

QUANDO BATI na porta do palácio,


a esposa do grande homem foi
rápida em gritar Vá embora. Voltei
a bater. Muitas vezes precisava ir
cobrar clientes que se esqueciam de
pagar ao padeiro e não desistia
facilmente quando diziam para eu ir
embora. A porta da casa grandiosa
era feita de cipreste vermelho, o que
considerei um bom presságio.
Diziam que a nossa cidade

no Vale dos Ciprestes fora


abençoada pelo anjo Miguel; talvez
a madeira usada na porta tivesse
vindo da nossa floresta e, portanto,
também fora abençoada. A bisavó
da minha mãe poderia ter caminhado
embaixo dos

ramos daquela árvore muito antes de


ser cortada pelos construtores do rei

Herodes.

Arieh contorceu-se nos meus braços.


Um vento soprou e em um instante

senti um calafrio. Talvez tivesse


cometido um erro em trazer o bebê,
pois
ele era sempre tão bem-humorado e
calmo. Agora, com a luz do dia

diminuindo, ele se remexia como


nunca. Pensei que uma mulher
jamais

poderia saber se fora um anjo que


lhe pedira ou se um dos demônios de
Lilith lhe sussurrara ao ouvido.

Apesar de insegura e preocupada de


que tivesse cometido um erro, bati

novamente. Não havia sombras


porque as nuvens passavam
correndo;
talvez fosse isso que tinha me
levado ao erro. Eu era capaz de
interpretar

muito melhor as sombras do que a


carne e o sangue.

A esposa de Eleazar ben Ya’ir abriu


uma fresta da porta, suficiente para

espreitar o lado de fora. Ela era


magra e morena, e tinha uma
expressão aborrecida.

– Não tenho tempo para você – me


disse ela.
Ela teria partido com a desculpa, e
talvez conseguido me mandar

embora, mas seu olhar recaiu sobre


o bebê nos meus braços. Ele sorriu
para ela, a marca afogueada na sua
bochecha dificilmente perceptível na
penumbra da porta. Parecia a marca
de um beijo.

– Quem é esse que veio me chamar?


– a esposa de Ben Ya’ir perguntou,

seu interesse despertado.

– Esta é uma criança cuja mãe


precisa de um favor seu – respondi.
Channa estava distante novamente.

– Não tenho nenhum favor a


conceder. É meu marido quem você
quer,

não eu.

Quando ela respirou, ouvi um som


áspero. Perguntei-me se a
dificuldade

de inspirar o ar era a razão pela qual


muitas vezes ela se fechava e
raramente era vista entre as outras
mulheres. Ela se virou e tossiu,
expelindo sangue, que escondeu de
mim em seu lenço. Mas eu vira a

sombra da mancha. Era evidente que


ela sofria de uma doença
respiratória,

do tipo que forçava a pessoa a


abandonar o ar livre. Cada
respiração ficava

retida dentro da gaiola das suas


costelas e não podia ser liberada.

Permanecia ali, chacoalhando, como


pães secos presos em uma rede.
– Talvez eu tenha um favor a lhe
conceder – eu disse.

Meu marido muitas vezes convencia


os fregueses a comprar mais pães

do que inicialmente pensavam ser


necessários. Você nunca passará
fome, dizia-lhes. A sua mesa será
invejada por todos. Sempre era
possível chegar a um acordo. Se na
padaria era sempre assim, por que
não na porta do

palácio?

A esposa magra e morena de Ben


Ya’ir me fitou, desconfiada. Seus
lábios

estavam brilhantes de sangue.

– Ninguém pode me ajudar.

Assegurei-lhe que alguém poderia.


Gostaria de oferecer a prova de que,

para cada doença, havia realmente


uma cura. Quando me virei para
sair, Channa disse-me para trazer o
bebê se fosse voltar. A minha
previsão

estava correta. Ele era a chave da


porta que permitiria ao Homem do
Norte

escapar daquela situação.

ENCAMINHEI-ME diretamente ao
alojamento de Shirah e sentei-me à
sua mesa.

Compartilhamos um chá feito da raiz


seca do hissopo. A água fervida
tingiu-

se de azul-celeste. Havia um prato


de frutas secas, passas e figos. Os
meus
netos ficaram no pátio com Adir, o
filho de Shirah, juntamente com o
menino dos essênios, Yehuda, o
filho de Tamar que se tornara grande

amigo de Adir, embora seu povo


ordenasse que mantivesse distância
e se

concentrasse nos estudos. Todos se


revezavam para rodar o pião,
portanto

tivemos privacidade.

– Ela falou com você? – Shirah


tentava parecer desinteressada do
assunto, mas seu olhar era intenso. –
Ela tranca a porta para a maioria.

Perguntei-me como era possível que


os outros não vissem a verdade

como eu via. Será que não tinham


reparado na cor incomum dos olhos
de

Aziza? A sombra não era diferente


do Mar de Sal, mudando com o seu

humor, uma hora cinza, outra verde,


depois escura como pedra. Apenas

outra pessoa tinha esses olhos. Ante


a menção da esposa de Ben Ya’ir,
Shirah foi atingida pela dor. Quando
mencionei a doença de Channa, no
entanto, ela não pareceu surpresa.

– Quando o hissopo floresce, ela só


pode sair à noite, momento em que

as flores se fecham e seu perfume


evapora – Shirah informou-me. –
Ela tem

os mesmos horários que os ratos.

Shirah tomou um gole de chá, feito


da flor que causava o mal da esposa
de Ben Ya’ir. Ela me pareceu gostar
muito do sabor acentuado.

– Não sabia que você a conhecia.

Shirah riu sombriamente.

– Nunca estive com ela.

Pensei em como era possível Shirah


não conhecer essa mulher, mas

ainda assim estar familiarizada com


os detalhes mais íntimos de sua
vida.

No nosso mundo, um homem casado


podia deitar-se com uma mulher

solteira e ninguém pensaria o pior a


seu respeito por isso; ele poderia
ser

obrigado a pagar à família da mulher


pela sua vergonha. Mas a mulher que

se entregasse a um homem não teria


direitos legais. Até mesmo seus
ossos

seriam condenados a jazer sozinhos


se ela fosse condenada por qualquer
crime; ela seria expulsa e deixada
insepulta, para que nunca
encontrasse descanso entre os da
própria espécie.

– Channa tem o poder de abrir a


porta da prisão – lembrei a Shirah. –
Ela

poderia estar disposta a fazê-lo em


troca de um remédio.

– Então pagamos o carcereiro –


Shirah disse de mau humor. – É isso
que

você quer de mim?

– É isso que ela é? – Quando a


esposa de Eleazar ben Ya’ir me
espiara por trás da porta, ela me
parecera mais prisioneira que
carcereira. – Tenho

pena dela.

– Não se deixe enganar – Shirah


advertiu-me. – O que vemos na terra
é

tudo o que existe? Você compreende


que existe um mundo de sombras.

Será que não consegue reconhecer


um demônio mesmo que não possa
vê-
lo ou sentir a respiração dele em sua
pele?

Shirah convenceu-se a encontrar um


remédio, pois não havia outro

recurso. Foi até a prateleira em que


guardava as ervas. Havia feixes

castanhos atados por um cordão e


recipientes com pós, cardo e alho,

absinto e canela. Quando voltou,


estendeu-me uma bolsa de couro
com

mirra esmagada. Suas instruções


eram simples: não devia deixar a
chama

do fogo muito brilhante ou adicionar


outros ingredientes à mistura quando

a presenteasse à esposa do nosso


líder. Medicamentos como esse
eram

fortes e, portanto, perigosos.


Poderia ocorrer a morte caso não se
tivesse cuidado.

– Se ela inspirar faíscas, pode ser


que nunca mais volte a respirar –
comentou Shirah enquanto fechava o
cordão da bolsa. Havia certo deleite
em seu tom de voz.

Estendi a minha mão para a de


Shirah, a fim de contemplar a sua
palma.

Eu não era muito educada em tais


questões, no entanto havia um sinal
que

conhecia muito bem. A marca que eu


mesma carregava, que denunciava

assassinos, uma marca que se


gravara na minha carne no dia que
me

tornara o que era agora. Fiquei


aliviada ao descobrir que a mão de
Shirah

era livre de tal abominação.

– Achou que veria o sangue dela nas


minhas mãos? – indagou Shirah,

recuando. Ela riu, bem consciente do


que eu estava procurando. – Se

quisesse fazer isso, poderia ter feito


quando era menina.
A informação era inesperada.

– Você a conhecia naquela época?

– Não a conhecia mais do que


conheço agora. – Shirah guiou-me
até a porta. – Se quer que ela aceite
este remédio – murmurou,
entregando-me a

erva preciosa –, não lhe diga onde o


encontrou. Se ela tivesse a minha
vida e

eu a dela, ela faria exatamente o que


você pensou que eu faria. Se quer
olhar a mão de alguém em busca da
marca da morte, olhe na dela. –
Shirah

acenou para Arieh, que agora


cochilava nos meus braços. – Leve-
o para Yael antes de voltar ao
palácio.

– Por que acordá-lo? Vou levá-lo


comigo.

Shirah fitou-me. Era capaz de ver


dentro de mim e sabia que havia
algo

mais por trás da minha desculpa.


Admiti que Channa me pedira para
voltar

com ele.

– Quem não se encantaria com ele?


– disse, pois o nosso leão iluminara
a

nossa vida.

Shirah pareceu incomodada.


Normalmente ela parecia ser uma
garota,

não mais velha que Aziza, mas


naquele momento ostentava sua
verdadeira
idade, uma mulher que atravessara o
deserto não uma vez, mas duas, que

trouxera três filhos ao mundo e fora


marcada com as tatuagens proibidas

quando era pouco mais que uma


menina.

– Leve-o, se necessário. Mas, não


importa o que fizer – alertou Shirah,
e

nisso foi muito clara –, não a deixe


segurá-lo.

RETORNEI AO PALÁCIO e parei


em frente à porta finamente
trabalhada. Dessa vez, Channa abriu
a fechadura antes de eu bater na
madeira, já esperando,

curiosa, os olhos brilhantes. Sua


respiração estava rouca e ela
agarrou o peito, sob os efeitos da
sua doença. Ainda assim, animou-se
com a visão da

criança adormecida e apressou-se a


me convidar para entrar.

Atravessei o umbral da casa do


nosso líder com humildade. Sentia-
me
aliviada por Ben Ya’ir encontrar-se
no deserto com seus homens, para
não

ter de me curvar diante da sua


grandeza ou arriscar-me a, na sua
sabedoria,

ele me reconhecer como uma


assassina.

Acompanhei a minha anfitriã


passando pelos afrescos, muito
elogiados

por todos que os viam, e por boas


razões. Tinham sido pintados sobre
o gesso com tons gloriosos de
laranja, vermelho e dourado. Apesar
de

desbotados, sem dúvida nenhuma


eram obra de um mestre. As sete
irmãs

que os gregos acreditavam mover-se


através do céu em uma explosão de

estrelas tinham sido pintadas no alto


da parede, realistas na sua forma
humana, juntamente com a Lua, a
mulher mais bela de todas, com um

vestido prateado com fios dourados


correndo por todo o seu traje; tão
real

que os fios pareciam ter sido


costurados no tecido pintado.
Lampiões

iluminavam o corredor escuro e o


cheiro era de puro azeite de oliva

queimando. O aposento em que


entramos era bem-decorado,
mobiliado

com mesas e bancos deixados pela


casa real. Lembrei-me das nossas
esteiras de palha, dos nossos
cobertores de pano grosso, dos
nosso pisos sujos.

Pedi à minha anfitriã que buscasse


um prato e alguns gravetos. Depois

que ela trouxe o que pedira, retirei a


mirra que Shirah me dera. Arieh
ainda

cochilava, por isso o acomodei em


cima de um tapetinho tecido. Depois
disso, acendi os gravetos com a
pedra que trazia. Quando o fogo
pegou, disse a Channa o que deveria
fazer. Deveria inclinar a cabeça
sobre a fumaça e eu ia cobri-la com
um xale, de modo que a fumaça não
escapasse.

Deveria respirar profundamente e


manter a fumaça dentro de si pelo

tempo que conseguisse reter o


fôlego.

Channa recuou, com medo de


sufocar até a morte com a fumaça.
Parecia

ter medo de mim, quem sabe em


função dos crimes que eu cometera.
Mas
eu não estava ali para fazer o mal.
Trouxe Arieh de volta aos meus
braços e

escondi a marca do meu pecado


enfiando a mão por dentro da túnica
do bebê adormecido, esperando não
o manchar simplesmente por tocá-lo.

– Inspire e o caminho ficará


desimpedido – prometi.

A esposa de Ben Ya’ir fitou-me com


reprovação, em seguida fez o que
lhe

dissera. Embora não confiasse em


mim, estava desesperada por ar,

dispondo-se a aproveitar a
oportunidade de que a cura não
poderia ser pior

do que a doença. Quando ela se


inclinou para a frente, cobri sua
cabeça com

um xale de tecido bonito e sentei-me


para observar. Seus suspiros e

tremores diminuíram enquanto ela


respirava a fumaça. Depois que a
mirra
se reduzira a cinzas, removi o xale
de sua cabeça. Channa inspirou
grande

quantidade de ar sem nenhum


bloqueio. Sua cor se transformara de
pálida

para rósea. O cheiro de mirra


prendia-se a tudo, uma fragrância
amarga na

sua forma mais pura. Examinamos


uma à outra até que o bebê acordou
e começou a brincar, feliz, com um
galho que caíra da pilha de gravetos.
– Falarei com os guardas sobre a
visita – disse Channa, pensativa.
Tive a

impressão, no entanto, de que seus


pensamentos estavam
verdadeiramente

em outros assuntos. – Farei o


possível pelo seu escravo.

Ela me conduziu de volta pelo


corredor, passando pelas luzes

alaranjadas e pelas sete irmãs na


parede. Quando a deixei, ela me
pediu a
promessa de que lhe traria mais
erva, para que pudesse ter acesso ao
medicamento antes de outro ataque
começar. Eu disse que faria o
possível

para conseguir o que ela precisava.

– Acho que você sabe onde


encontrá-lo – ela comentou. Depois
sorriu

tristemente, sem dúvida nenhuma


ciente de que não era eu quem
possuía o

conhecimento sobre tais recursos. E


acrescentou: – Diga à bruxa que sou
grata.

YAEL FOI AUTORIZADA a visitar o


Homem do Norte, levando uma cesta
de comida e um odre de água.
Mandaram-lhe falar com ele através
da porta, mas ela teve um vislumbre
dele quando abriram a cela para
empurrar as provisões para dentro.
Viu que tinham cortado sua barba e
seu cabelo e que

cordas e correntes haviam deixado


marcas de açoite sobre ele.

– Volte ao palácio – Yael insistiu


depois de retornar de sua visita
terrível.

Seu rosto estava inchado de raiva. –


Fale de novo com a esposa de Ben
Ya’ir.

Convença-a a insistir para que os


guardas permitam outra visita. Vão
matá-

lo em breve. O mínimo que posso


fazer é levar comida e água, e ver se
poderia curar as suas feridas.

Disse que teria mais sorte com a


esposa de Ben Ya’ir se levasse o
bebê

comigo.

Yael mostrou-se cautelosa. Nesse


sentido, ela era muito mais sábia que

eu.

– Por que ela se preocuparia com


um bebê cujo nome nem conhece?

– Ela é solitária, sem amigos. Não


precisa se preocupar. Parece que ela

gostou dele. Quem poderia culpá-la?

Yael aceitou o elogio. Correu a mão


sobre o cabelo preto de Arieh e o
abraçou com força. Mal conseguia
deixá-lo ir, mesmo que por algumas

horas.

– É difícil dizer não a um rostinho


como o dele – lembrei a ela.

– Por uma hora – disse ela. – Não


mais.

No dia seguinte, Yael ficou


cuidando dos meus netos enquanto
fui à casa

de Shirah a fim de conseguir mais


remédio para a respiração. Shirah e
Aziza

já tinham começado a preparar a


refeição da noite, mas Shirah
levantou-se

e encaminhou-se para a sua coleção


de ervas. Dessa vez, ela me deu
tanto

mirra quanto incenso – queimados


juntos, o remédio seria dobrado.
Quem

sabe, se a cura durasse mais tempo,


Channa não pedisse mais. Seria
melhor

manter distância dessa mulher,


Shirah murmurou. A esposa de um
homem

no poder poderia tornar-se ela


própria faminta de poder.

– Ela disse alguma coisa a meu


respeito? – Shirah perguntou.

Pensei que o melhor seria não


revelar a amargura dentro da
verdade.

– Nada. Só enviou a sua gratidão.


Shirah riu, mas seus olhos escuros
revelavam preocupação.

– A gratidão dela é uma maldição.


Lembre-se disso.

ENCAMINHEI-ME diretamente à
casa de Eleazar ben Ya’ir. De onde
me encontrava, podia ouvir os
homens trabalhando nos campos,
muito embora

a luz estivesse se desvanecendo em


faixas rosadas que chegavam até a

terra branca e empoeirada, tingindo-


a de vermelho. Os homens tinham
levado baldes de água das cisternas
na tentativa de salvar a colheita de
trigo, pois ainda não chovera. As
abelhas nas colmeias geralmente

fervilhavam nessa época do ano;


elas mergulhavam no ar em busca de

flores de narciso branco e ciclâmen


rosado. Mas nessa estação não

encontravam nada. Channa deixou-


me entrar quando cheguei e sem

demora arrebatou o medicamento de


mim. Eu lhe disse que não deveria
nunca acrescentar nada à mistura e
que as chamas deveriam ser
mantidas

constantes; demasiado calor tiraria a


força do remédio. Em troca, ela

prometeu que falaria com os


guardas. Então, ela hesitou.

– O escravo é o pai da criança? –


quis saber.

– Esta criança não tem pai – eu


disse.

Ela fez sinal para que eu pusesse a


criança em seus braços, mas segurei
o

bebê com força enquanto


permanecia no corredor cujo piso
era estampado

com azulejos pretos e brancos.


Vozes ecoavam. Irritada, Channa
acenou de

novo para mim. Eu sabia o que ela


queria. Pensei na advertência de
Shirah,

mas sabia o que era sentir a falta de


uma criança. Como Channa poderia
enfeitiçar-nos ou prejudicar-nos?
Ela era uma mulher magra e fraca
que vivia sob uma nuvem de doença.
Achei que não faria mal agradá-la
por um

instante. Pus Arieh em seus braços.


Imediatamente, ela foi dominada
pelo

seu encanto.

– Talvez ele precise de um pai –


disse ela sonhadora.

Rapidamente tomei-o dela, trazendo-


o de volta para meus braços.
– Ele tem uma mãe – informei. –
Não precisa de mais nada.

Channa sorriu.

– Todo mundo precisa de mais.

EMBORA nós todas nos uníssemos


para reunir o pouco de comida que
conseguíamos poupar, ficou
decidido que Yael seria a única a
continuar a visitar o Homem do
Norte.

– Ele sempre foi o seu escravo –


Aziza declarou.
Yael ergueu os olhos para ela,
magoada.

– Nenhum homem deveria ser


escravo.

Na volta de Yael à torre, abriram a


porta e permitiram que ela se

sentasse ao lado dele. Ela estava


tomada pela raiva, estarrecida com
as péssimas e brutais condições de
sua prisão, mas não diria nada.
Quando ele

inclinou a cabeça sobre o seu colo, e


ela acariciou o local em que o
cabelo

fora rapado de forma tão cruel,


percebeu que ainda havia gotas de
sangue

ao longo do couro cabeludo. Ela


levara um cataplasma de babosa e
mel, o

mesmo remédio que usara para a


marca de Arieh, e, se a pomada não

aliviava a dor, pelo menos dava a


impressão de que alguém tivera a

intenção de fazê-lo.
Channa cumprira a sua parte no
acordo, nisso fora honesta o
bastante.

Eu esperava que o bem-estar do


escravo valesse o preço que estava
sendo

pago, pois, a cada vez que Yael o ia


ver o escravo naquele mês de
escorpião,

eu levava o bebê à casa de Ben


Ya’ir e deixava Channa segurá-lo
em seus braços. Eu estava
desconfiada e preocupada. Nunca o
deixava fora da vista.
Todas as vezes lembrava à esposa
de Ben Ya’ir que a criança tinha
mãe.

Eu me convencia de que ela me


ouvia mas, na verdade, não escutava

uma palavra.

O NOSSO MUNDO foi punido com


a sede. Nessa época do ano, no mês
de Kislev, esperávamos que a terra
recuperasse a cobertura verde,
depois que os
campos haviam sido semeados e
regados, melões e abóboras já
crescendo

nas parreiras, os figos polinizados


pelas vespas egípcias. Essa
temporada foi diferente. Não haveria
cominho ou coentro nem alho-poró
ou anis. As árvores frutíferas
estavam nuas e pretas.

Embora os dias fossem sombrios e


usássemos as nossas túnicas, não

havia nenhum sinal da chuva muito


necessária. Era o momento de
espalhar
as sementes para a primavera,
depois arar os campos para enterrá-
las, os

burros puxarem as lâminas de metal


por toda a terra. Os homens

normalmente reduziam a cevada, que


era então amarrada em feixes e

espalhada pelo campo, para que o


gado pudesse andar sobre os talos e
debulhá-los. Mas, sem chuva, que
bem faria isso? Para joeirar a
cevada, era

necessário que o vento soltasse o


grão da palha, e o ar agora estava
sem vida e sem brilho. As sementes
deveriam ser plantadas em épocas
de chuva

para ficarem presas à terra, em vez


de secar e murchar antes de criar
raízes.

Os homens da sinagoga convocaram


a expiação pública e o jejum, na

esperança de que seu sacrifício


pudesse fazer a chuva cair. Fomos

chamados à praça para rezar por


perdão. As mulheres ficaram na
parte de

trás, para cuidar das crianças e dos


animais, se necessário. Os homens
se reuniram, abandonando suas
funções e tarefas, um mar de orações
sob o céu implacável. O sumo
sacerdote, Menachem ben Arrat,
geralmente

enclausurado no interior da
sinagoga, onde estudava e distribuía
conselhos,

apareceu para se postar sobre a


muralha e conduzir os homens nas
orações. Mas, por mais culto que
fosse, ele não foi capaz de fazer
chover, nem mesmo quando enterrou
doze frascos de chumbo com tampa
de

cerâmica sob os muros da sinagoga


para impedir que os demônios se

imiscuíssem em nosso meio.

Foi decidido que nosso povo


jejuaria até que Deus nos enviasse
algum

alívio. A seca tornara-se um martelo


e a sede do nosso povo era um prego
sob ele. No segundo dia do jejum,
alguns homens mais velhos estavam
tão

enfraquecidos pela fome que caíram


de joelhos, mas continuaram a orar

mesmo assim, os xales sobre os


ombros, cantando para um céu que
não

atenderia às suas orações, mas que


em troca dava-lhes apenas pó.

O jejum foi cancelado depois de três


dias. Nada mudara. Não tivemos
nenhuma escolha a não ser esperar
que Deus visse a nossa situação. As
folhas das videiras se enrolavam. As
azeitonas cresciam brancas e em

seguida caíam das árvores, fazendo


barulho sobre as pedras. As pessoas
começaram a murmurar sobre a água
que os essênios utilizavam para seus

rituais. Guardas foram postados


próximo ao celeiro das cabras para
ver que

ritos ali realizados poderiam


requerer água. Então, para não
chamar a
atenção sobre si, os hóspedes não
pediram mais água. Em vez disso,

passaram a reutilizar a água até que


as gotas derramadas sobre suas

cabeças para se purificar tornaram-


se negras como as penas dos corvos.

Quando Yael pensou que ninguém


perceberia, furtou um pouco da água

que separávamos para as pombas.


Um pouco ela deu para o escravo, o

restante ajudei-a a levar para a casa


de pedra, a fim de deixar nas mãos
de

sua amiga Tamar. Levamos também


algumas frutas e azeitonas murchas.

Nahara aproximou-se de nós


timidamente. A filha mais nova de
Shirah

parecia ter-se tornado uma mulher


adulta, séria, vestida de branco, com
as

mãos endurecidas pelo trabalho.


Perguntou sobre a irmã, mas não
disse
nada sobre a mãe. Notei que ela
olhava para o amuleto de ouro que
Yael usava no pescoço, depois
rapidamente desviou o olhar.

Em troca dos presentes de sustento


que leváramos, Tamar deu-nos uma

peça de tecido de puro linho que


suas mulheres haviam tecido.
Cobrimos a

mesa no shabat com o tecido quando


acendemos a lâmpada e proferimos
as

orações. Depois de termos estendido


o tecido de linho sobre a mesa,
quase

podíamos acreditar que o


alojamento era uma casa como
qualquer outra.

UMA NOITE, enquanto me


encaminhava aos teares, vi Ben
Ya’ir andando no pomar através de
uma miragem branca de poeira
esvoaçante. Ele retornara

das suas viagens ao deserto, seus


guerreiros trazendo consigo nada
além de
aves selvagens que tinham capturado
com redes, como faziam as meninas.

As provisões estavam menores que


nunca, nosso povo, profundamente

perturbado. Pude ver o peso que


nosso líder carregava nos ombros
pela sua

postura, o destino de todos nós


dependendo de suas palavras e atos.

Onde outro poderia ver apenas


escuridão, notei a sombra da esposa
de
Ben Ya’ir, observando. Começara a
conhecê-la em minhas visitas com
Arieh,

quando nos sentávamos juntas


exclamando sobre seus encantos. Ela
fazia o

bebê rir com uma demonstração de


caretas enquanto o balançava sobre
os

joelhos. Viera a entender que


Channa erguera uma parede ao seu
redor

para manter os outros afastados. No


entanto, de vez em quando,

surpreendia um sorriso que ondulava


seus lábios. Quando ela pronunciava

o nome de Eleazar ben Ya’ir, seu


rosto se transformava, e eu podia
imaginá-

la como a menina que fora um dia.


Seu amor pelo marido era evidente,
embora ela parecesse tão distante
dele quanto o restante de nós.

Percebi que, enquanto caminhava,


Ben Ya’ir olhava na direção da casa
de Shirah. Ele se sentia atraído por
aquele lugar como os falcões pelos
pombais. Parecia que havia
chamado por ela, pois Shirah saiu
para o calor

líquido da noite. Não estava usando


o véu e levantou o cabelo como que
para se refrescar. Quando Ben Ya’ir
se aproximou, pousou a mão em seu
pescoço, pois ela claramente lhe
pertencia. Eles permaneceram na
mais

profunda confiança, as cabeças


juntas.
Se eu podia ver o que existia entre
eles, certamente Channa também

podia. Virei-me para ela, mas, no


instante em que desviei o olhar, ela
desaparecera da praça. Ela correra
tão rapidamente que deixara sua

sombra para trás. Segui-a como uma


sombra perseguindo sua senhora,

esgueirando-me sobre as pedras do


calçamento. Por fim, avistei a
esposa do

nosso líder no caminho de volta aos


seus aposentos, no palácio em que o
filho de Herodes vivera um dia, um
filho que o rei assassinara quando
lhe

conviera fazê-lo, quando pusera suas


necessidades acima de todos os

outros, como fazem muitas vezes os


homens no poder.

Chegando a um ponto mais elevado,


vi Channa olhar de volta à casa de

Shirah. Seus olhos estavam escuros


e amargos. Ela mantinha uma das
mãos
sobre o peito, pois mais uma vez não
conseguia respirar. No entanto,

permaneceu ali, ainda que fosse a


época em que costumava trancar-se

longe de todos, pois o hissopo


estava florescendo – a única flor
capaz de sobreviver a uma estação
sem água. Nesse instante, quando
sua sombra

regressou à sua carne, percebi que


Channa era o tipo de mulher
disposta a

qualquer coisa para manter o


marido.

Ocorreu-me que, de todos os feitiços


conhecidos na terra, uma criança

era o único ingrediente capaz de


vincular um homem a uma mulher de
um

modo que somente os anjos


poderiam compreender.

AO VOLTAR a visitar a esposa de


Ben Ya’ir, não levei Arieh.
Repensara a nossa barganha e
percebi meu erro. Channa não
escondeu a decepção. Seus olhos
brilharam da mesma maneira que a
vira à noite, sem a sombra.

– Ele estava irritadiço – disse a ela.


– É um dente chegando.

Se houve alguma diferença nela, foi


que a notícia a deixou ainda mais
ansiosa para vê-lo.

– Coitadinho – sussurrou ela. – Se


pudesse segurá-lo, quem sabe
aliviaria

a dor.

Senti um calafrio ante a sua


expressão. Eu me questionei se o
pacto que

fizera com ela adiantara alguma


coisa no sentido de ajudar o Homem
do Norte. Na visita seguinte eu lhe
disse que Arieh estava muito pesado
para

ser carregado, que estava crescendo


muito depressa e por isso eu não

poderia mais trazê-lo comigo. Ela


não disse nada. Nem mesmo na

despedida. Indicou-me a porta e


fechou-a atrás de mim. Ouvi o ruído
do ferrolho sendo fechado.

Não muito tempo depois, vi que


rondava a muralha perto do nosso

alojamento. Estava escuro, mas eu a


reconheci. Fiquei surpresa ao vê-la
ali,

ela que se mantinha reservada e


geralmente evitava a praça. Mas
essas coisas costumam acontecer; o
que é doce tira o que é azedo, assim
como o

bem, com toda a sua inocência, atrai


os ímpios. Dizem que Lilith tem
treze

demônios para ajudá-la quando quer


roubar um bebê. Um deles é a
própria

Noite, envolta em preto estrelado,


capaz de desaparecer em um instante
ao

romper da luz do dia, mas ainda


assim persistindo sem uma sombra
no

lado de fora da porta.

POR FIM, Shirah acabou de


preparar o encantamento para meus
netos. Eu fora paciente, e a minha
paciência foi recompensada. Agora
que chegara a

hora, estava ansiosa, pois essa era


minha última esperança. Além dessa
esperança, havia um precipício e
depois nada mais que o ar
implacável. O

feitiço era uma bacia encantada, uma


peça bonita e delicada de cerâmica,
cuja confecção Shirah aprendera
com uma mulher da antiga
Babilônia.
Sobre a argila seca, haviam sido
escritos os nomes de Deus em
aramaico e

em hebraico. No centro da bacia


via-se a imagem de um demônio
negro, com cabeça de cobra e asas,
algemado com cordas trançadas com
as letras

do nome de Deus.

Este amuleto deve reunir as vozes,


prender os demônios e libertar os
anjos

para que façam o que devem fazer.


Em louvor de Deus. Amém. Amém.
Selah.

Ela escrevera essas palavras dentro


de um círculo de anjos, suas asas
totalmente pretas, as penas de
corvos.

Para proteger e curar, devolver o


que pertence às crianças, para
reverter o

efeito e deixar o demônio sem voz e


sem poder.

– Coloque isto embaixo da cama e


espere. Tenha mais um pouco de
paciência – ela me instruiu. – Está
faltando um ingrediente. Por causa
disso,

esta bacia é impotente. Eu mesma


não posso dizer o que está faltando,
mas,

quando aparecer, você saberá. Seja


rápida em acrescentá-lo à bacia e
seu genro terá o desejo atendido.

Eu nada mais era que uma esposa de


padeiro, uma mãe sem filha, uma

tola que pusera um bebê nas mãos de


uma mulher invejosa. Como poderia
reconhecer o ingrediente mais
importante de todos?

– Você saberá porque ele virá no


dia em que eu for posta a ferros –

Shirah me disse.

OS HOMENS que praticavam magia


ocuparam a praça em um dia
poeirento. O

inverno estava no fim e a seca


continuava. Nosso povo parecia
amaldiçoado. O sacerdote e os
rabinos tinham falhado e agora os
minim que praticavam magia fora
das leis do Templo afirmavam que,
lançando flechas,

eles poderiam adivinhar a causa da


seca. As pessoas acreditaram neles

porque havia pouco mais em que


acreditar. Estavam todos
ressequidos,

abatidos, desesperados por água.


Certamente, alguém era culpado
pelo
nosso martírio. A multidão reuniu-se
em torno daqueles praticantes que

afirmavam ter acesso à verdade de


Deus. Os homens circularam mais

próximos aos minim, atrás deles


vinham as mulheres e, em seguida,
as crianças, com paus e pedras nas
mãos. Uma linha de fúria se
desenhava no

chão, resvalando para todos os


lados. Alguém seria culpado, todos
nós

sentíamos isso. O nosso povo queria


mais que um demônio. Todos
queriam

a carne e o sangue, alguém contra


quem se voltar, qualquer um na
terra.

Muitos diziam que o anjo da chuva


aparece às mulheres em seus sonhos.

É Beree, que as faz chorar quando


sentem que não têm mais nada dentro
de

si, nem alma, nem lágrimas. Talvez


fosse por isso que Shirah não
aparecera
no pombal naquele dia. Beree a
visitara e agora voltava para
sussurrar que

ela deveria se preparar. A manhã


veio e se foi, no entanto Shirah
continuou

em seu quarto. Ela trançou o cabelo,


vestiu a capa preta e os véus,
adornou-

se com os amuletos. Descalça, não


comeu, não bebeu, não falou durante
todo aquele dia. Sentou-se à mesa
preparando-se para a visão que lhe
aparecera quando chegara à
fortaleza. Ela se vira posta a ferros,
em uma época em que a chuva se
recusava a cair.

As flechas lançadas pelos minim


apontaram diretamente para o que
fora

antes a cozinha do rei. A casa da


Bruxa de Moabe. Ela esperava pelos
adivinhos no umbral da porta, o
manto apertado contra o corpo.

Exatamente como previra, ela foi


algemada e levada embora.
Eu soube que esse era o dia em que
a bacia encantada seria terminada,

pois Shirah afirmara que o


ingrediente que faltava só seria
acrescentado quando ela fosse posta
a ferros. Entretanto, não pude cuidar
da magia. Fugi

do pombal com Yael e Aziza quando


ouvimos a notícia do cativeiro de

Shirah. Juntas, corremos para a


praça. Havia uma multidão de
pessoas e o

surto de raiva superaquecido


rasgava o ar. As pessoas queriam
uma razão

para explicar por que Deus se


voltara contra nós, por que as folhas
das árvores estavam chamuscadas,
por que as azeitonas estavam
brancas e não

amadureciam, por que sentíamos


sede até ficarmos ofegantes, como o
peixe

na praia. Todos acreditaram que


naquele momento contemplavam
esse
motivo.

Observando a multidão engolir sua


mãe, Aziza precisou ser contida para

impedir que corresse para o lado de


Shirah e talvez também recebesse

parte da culpa. Yael segurou-a por


um dos braços e eu pelo outro. Ela
era

mais forte do que eu jamais teria


imaginado, mas Yael conseguiu
acalmá-la.

– Tenha fé – ela pediu, sussurrando


a Aziza de modo que ninguém

ouvisse e as acusasse de
conspiração. O talismã de ouro
brilhava no

pescoço de Yael e seu rosto estava


sereno, apesar de todo aquele caos.

Dizem que os inimigos de uma bruxa


devem segurá-la no ar e separá-la

da terra para conseguir minar seu


poder, mas, quando os minim
tentaram

fazê-lo, Shirah riu deles. Os homens


a baixaram e recuaram, confusos.
Não

faziam ideia de que a água, não a


terra, era o seu elemento.

– Não existe nada acima de Adonai


– Shirah declarou para aqueles que a

acusavam de atrair a ira de Deus


sobre nós. Sua voz era imponente.
Nós que viéramos do pombal a
encaramos e nos convencemos de
que ela falava

diretamente para nós. As crianças da


multidão se aquietaram. Várias
mulheres que Shirah ajudara em um
momento de necessidade desviaram
o

olhar, envergonhadas por não


oferecer sua ajuda em troca. As
pessoas

cochicharam que Menachem ben


Arrat, o sumo sacerdote, chegara à
sua

porta, mas temera os poderes da


bruxa, de modo que não fora além
disso,

nem condenara nem entrara na


contenda. Ao meu lado Aziza
estremeceu,

mas seus olhos brilharam com


orgulho.

Eleazar ben Ya’ir apareceu no meio


da multidão, a caminho do quartel. A

princípio ficou intrigado com a cena


à sua frente, então compreendeu

quando viu Shirah posta a ferros.


Ordenou que a libertassem

imediatamente. Quando os homens


que a mantinham presa hesitaram,
ele

gritou:

– Como é que têm a coragem de


atacar um dos nossos? Uma mulher
da

minha própria família? Temos


inimigos reais que gostariam mais
que tudo

de que nos matássemos uns aos


outros.

Houve um momento em que pareceu


que a multidão não cumpriria sua
ordem. Esse momento passou e por
fim os anciãos adiantaram-se com a

chave, mas a ameaça de caos


permaneceu presente, pairando no
ar, aquele

instante em que nosso povo poderia


ter-se voltado contra seu líder. Uma
multidão enfurecida não podia ser
controlada facilmente e uma
serpente

enviada pelos manifestantes oferecia


uma mordida para a qual não havia
cura.
Aquela fortaleza teria caído pela
febre desse instante desonroso não

fosse ele encerrado como o fogo de


carvão é apagado pela água. Nossos
inimigos não teriam mais
necessidade de nos destruir não
tivesse a

multidão se afastado, pois teríamos


nos destruído a nós mesmos.
Soldados

romanos foram vistos algumas vezes


nas proximidades nas últimas

semanas. A legião sabia que


estávamos ali e bem-defendidos,
naquele local

protegido. Mas os romanos não


faziam ideia de que poderíamos
facilmente

nos lançar uns contra os outros e que


a vontade de Ben Ya’ir era tudo o
que

nos mantinha juntos e unidos.

Vi a esposa do grande homem


assistindo à cena de onde se
encontrava,
ao lado do hissopo. Fora Channa
quem orientara os minim contra a
bruxa.

Se estava perturbada por ver que seu


marido agia como protetor de
Shirah,

não deixou transparecer. Seu


semblante estava sombrio e
impassível.

Talvez tivesse esperado demais. A


respiração, geralmente tão irregular,

estava perfeitamente constante e via-


se mesmo um rubor de saúde em seu
rosto. Imaginei que ela olhava para
aquela que a curara, mas ela
enxergava

além de Shirah, além do marido, na


direção da criança nos braços de
Yael.

Senti um arrepio subir pela coluna.

Depois que as algemas foram soltas


e ela foi libertada, Shirah pegou um

pedaço de pau e desenhou um


círculo no pó.

– Você me queria aqui – ouvi-a


dizer a Ben Ya’ir. – Não foi por
isso, primo?

Ela se postou dentro do círculo, em


seguida enfiou a mão sob a túnica,
de

onde tirou um punhado de cinzas que


espargiu sobre a própria cabeça,

entoando um cântico, como


costumava fazer, em um tom baixo e
contínuo.

A multidão esforçava-se para ouvir


e teve medo daquela língua
incompreensível. Muitos
acreditaram que ela estava atraindo
uma

maldição sobre nós e recuaram,


puxando os filhos para junto de si, a
fim de

protegê-los do mal.

Aconteceu tudo de uma vez, antes


que entendêssemos o que estava

acontecendo. O céu empalideceu e


tornou-se incandescente. A chuva
veio
de diferentes sentidos, mas na forma
de uma torrente sem igual. Em um
instante a terra era pó e no seguinte
formavam-se lagos. O mundo
tornara-se úmido e luminoso,
tomado por lençóis de água. Eu
nunca notara que a chuva continha
todas as cores dentro de si, o verde
dos campos, o azul do

céu, o branco de um cordeiro, o


amarelo do cabelo da minha filha.

Os homens caíram de joelhos,


levantando as franjas dos xales de
oração
para os lábios e depois para o céu,
em louvor a Deus e ao mistério da
vida.

Ouvíamos as cabras e as ovelhas


nos seus cercados. Diante dos
nossos

olhos, a cerca viva de espinhos que


continha o gado começou a exibir
brotos e depois, como comandados
pelo Todo-Poderoso, esse mesmos

botões se desfraldaram,
transformando-se em folhas.

As pessoas cochichavam que era por


esse motivo que a Bruxa de Moabe

fora capaz de atravessar o Mar de


Sal sem se afogar. Ela, que descera
os mil

degraus da cisterna para banhar-se


no escuro, foi a nossa salvação.

Abençoei-a por isso enquanto corria


através das rajadas de vento,

apressando-me em direção ao nosso


alojamento para pegar a bacia

encantada que ela preparara. Eu era


apenas uma mulher simples, mas
reconheci o ingrediente que faltava
exatamente como Shirah me
garantira

que eu faria.

Levei a bacia para fora e a segurei


acima da cabeça, cantando para o
Todo-Poderoso, entoando louvores
embora tivesse o rosto fustigado
pelo

vento e os ouvidos tomados pelo seu


rugido. A bacia transbordou e
também

o meu coração. Podia ouvir meus


netos chamando um ao outro
enquanto

eu me regozijava ali, sob os pingos


da chuva, com uma alegria que
nunca experimentara. Suas vozes
permaneceram guardadas na
cachoeira durante

todo aquele tempo, armazenadas em


um vaso pelo anjo que os protegera

do mal. Agora essas vozes tinham


sido libertadas, atraídas para as
orações

da bacia enquanto o anjo Beree fazia


chover sobre nós. Mais tarde eu os
levaria perante o pai e, apesar de as
crianças recuarem diante de sua
postura feroz, quando os mandasse
expressar uma saudação veria o

Homem do Vale chorar de gratidão.


Talvez sua fé se restaurasse com
essa

dádiva, assim como eu recuperara a


minha.

Ouvi a voz de Deus ao meu redor,


mas não tive medo. Deveria ter

tremido perante o Todo-Poderoso e


me escondido. Deveria ter levado
uma

faca à minha carne para cortar a


marca dos meus atos passados. Mas
agora

entendia que, embora as palavras


fossem a primeira criação de Deus,
o silêncio era mais próximo do seu
espírito divino, e as orações feitas
em silêncio eram infinitamente mais
poderosas que os milhares de
palavras

que os seres humanos pudessem


dirigir ao céu.
Ouvi o vento que subira no deserto
para nos seguir até ali.

Ouvi o que tinha a dizer.

Inverno, 71 d.C.

TERCEIRA PARTE

Primavera, 72 d.C.

A Amada do Guerreiro

Tu és a minha armadura e a minha


espada, a minha fé

e o meu tesouro, tudo por que estou


lutando.
MINHA IRMÃ, VOCÊ É COMO
UMA POMBA, tão bonita e tão
distante, uma criança que vi nascer
neste mundo, agachada ao lado da
nossa mãe. Você é a razão de

eu me recusar a testemunhar outro


nascimento. O cordão da vida estava
enrolado em seu pescoço e nos seus
olhos vi naquele momento o Mundo

Vindouro, um lugar tão distante e


vasto que nenhuma pessoa viva
deveria

ver os seus confins. Você estava


ofegante, começava a tornar-se
azulada, um pequeno ser frágil
atraído para nosso frágil mundo. Eu
mesma não

passava de uma criança, indesejada,


trazida para o casamento entre a
nossa

mãe e o seu pai na terra de Moabe,


onde as mulheres usavam véus azuis
e

ninguém sabia quem fora a nossa


mãe, ou em que se tornaria, embora
a temessem do mesmo jeito.
Por ser a nossa mãe estrangeira,
nenhuma das mulheres que viviam
nas

redondezas apareceu para ajudá-la


na hora do parto. Elas vinham em

outros momentos, quando as


próprias necessidades as levavam a
chegar no

escuro, em busca de maldições ou


remédios. Traziam iguarias de carne
de

cordeiro, ervas e azeitonas em belos


pratos de cerâmica, tigelas de barro
decoradas com desenhos vermelho-
escuros. As mulheres chegavam a

implorar pela magia da nossa mãe


quando dela precisavam. Ela era

bondosa o bastante para oferecer às


estéreis as maçãs do amor, o fruto
amarelo da mandrágora que
amadurece com o trigo, para que
pudessem

conceber. Dava-lhes cataplasmas de


cura feitos com figos para erupções
e

furúnculos e, nos casos mais


aflitivos, proporcionava-lhes os
seus

conhecimentos do tzari, o antigo


medicamento sírio utilizado contra a
lepra, a doença em que a carne é
consumida por demônios e se afasta
dos

ossos. No entanto, quando foi sua


vez de precisar de ajuda, as
mulheres do

campo esconderam-se, sumiram de


vista, com medo de que a nossa mãe

pudesse trazer outra bruxa para o


mundo e que seu poder fosse
dobrado.

Então, apesar da aversão por ela e


do ciúme inchado de má vontade,
todas

seriam forçadas a cair de joelhos


diante dela.

Fui a única a testemunhar o evento


do seu nascimento e, verdade seja
dita, também quis correr para a luz
do dia, temendo menos a bruxaria
que o

sangue. Ele se acumulava em poças


e o calor que emanava dele me

aterrorizou. Aquele líquido estava


vivo, pulsando com o poder da
criação.

Eu era muito jovem, inocente demais


para ser de alguma valia. Mas a
nossa

mãe gritou Salve-a, e suas palavras


foram como estrelas, brilhantes e
pungentes.

Fiz o que pude. Desenrolei o


cordão. Mas isso não foi o bastante,
então
respirei na sua boca e tirei o líquido
que a afogava. Provei o gosto de
sangue e de sal, tudo de que a vida é
feita, e cuspi o líquido no chão. É
um

milagre quando se sabe o que se


deve fazer, sem nenhuma instrução, e
foi

isso o que me aconteceu no instante


do seu nascimento. Esse
conhecimento

misterioso foi-me outorgado por


Deus na hora do desespero e por ele
sempre serei grata. Guardei a sua
morte e a sua vida no meu íntimo.

Naquele instante, tornamo-nos um só


ser, irmãs sustentadas pela mesma

força. Por isso sempre cuidarei de


você. Mesmo que tente fugir,
descobrirá

que não será possível deixar-me.

Nesse dias você se afasta de mim


nos campos em que as amêndoas

florescerão em breve. Insiste em


pertencer a outro lugar, mas não a
abandonarei. Vejo-a vestida com
linho branco, no campo rochoso,
cuidando

de seis cabras pretas, a cabeça


inclinada, os pés descalços, e choro
ao vê-la

tirada de mim no seu fervor e no seu


desejo por um homem que talvez
nunca a conheça como eu a conheço.
Talvez você não deseje que ele a
conheça. Você me dá as costas e não
me dirige a palavra, nem mesmo

quando bato na porta de madeira


áspera do galpão de cabras onde
você vive, ao lado das pessoas que
escolheu como sua gente. Elas são
pobres, cujo único desejo é louvar o
Todo-Poderoso com orações pela
paz, muito embora no outro lado dos
limites da nossa fortaleza o mundo
rugisse com a

guerra. Você não se senta à nossa


mesa, pois nossos costumes não são
tão

rigorosos como os que agora você


reverencia, e nosso modo de viver é
impuro aos seus olhos.

Enviei-lhe uma pomba, toda branca


e pura, uma das favoritas da nossa

mãe, pensando que essa criatura a


encheria de remorso e quisesse
segui-la,

mas o pássaro regressou ao pombal


com a minha mensagem não lida.

Dentro do tubo que prendera à perna


da ave escrevera o seu nome e o
meu

entrelaçados, como o nosso destino


entrelaçara-se no instante do seu

nascimento. Não consigo imaginar a


quem pudesse amar mais neste
mundo

em que vivemos.

Quando a vejo na muralha, em


oração com as mulheres essênias na
hora

em que o dia se torna noite, você


não me olha, embora a minha
respiração

esteja em você e a sua seja parte de


mim. Não importa o quanto me
recuse,
os nossos espíritos se combinam
para formar um único fio. Mesmo
que

nunca mais fale comigo, ou levante


os olhos para mim, mesmo que se

envergonhe de mim e do nosso


passado.

Você é minha e só minha.

SEU PAI era um homem rico e sabia


o que queria. Não fosse assim, não
tivesse ele viajado a Jerusalém
desde a outra margem do Mar de
Sal, a nossa mãe e

eu pereceríamos, expulsas no dia em


que nasci. Eu não tinha uma irmã
para

me confortar, como você teve no dia


da sua chegada a este mundo, tinha
apenas o gosto de sangue na minha
boca.

O homem que viria a ser o seu pai


fora muito longe para mercadejar as

riquezas que acumulara, pilhas de


mirra e bálsamo preto, especiarias
em montes ocres e vermelhos, cestas
de incenso da alva flor estrelada de
Edom, sal marinho, calcário dos
penhascos. Talvez um anjo o tivesse
detido

na rua e sussurrado em seu ouvido,


sugerindo que voltasse a cabeça. Ele
usava um lenço comprido e as vestes
azuis do seu povo, tingidas com a
raiz

do gengibre. Embora estivesse longe


de ser jovem, a sua visão era mais
aguda que a de um falcão e ele
percebeu a grande beleza da minha
mãe.
Entre os homens que o
acompanhavam nas viagens, ele era
famoso por ver

o que os outros não viam. Talvez


por isso tenha nos avistado dentro
de uma

carroça que trouxera cabras ao


açougueiro enquanto éramos levadas
para

o deserto. O Anjo da Morte nos


esperava – Mal’ach ha-Mavet, o
que tem mil olhos brilhantes –, mas
foi derrotado quando seu pai nos
seguiu.
Seu pai entregou ao condutor um
punhado de moedas que ele mesmo

considerava inúteis. Ele era um


homem que acreditava que o que

importava vinha da terra, não dos


tesouros de um templo ou das
oficinas dos homens. Naquele
mesmo dia ele nos levou consigo,
com destino ao

Oriente, a terra antiga no outro lado


do Mar de Sal, onde a montanha é
feita

de ferro e os montes de asfalto


flutuam ao longo da costa, tornando-
se incendiados quando o calor
aumenta. O povo do seu pai coletava
redes

cheias de asfalto para vender por


alto preço à legião, para que os
soldados

pudessem forjar estradas


pavimentadas em Alexandria e em
Roma.

A nossa mãe confidenciou que,


quando viu aquele mar negro, não
sabia
se fora resgatada ou abandonada por
aquele homem feroz e silencioso,

cujos braços eram envolvidos por


tatuagens azuis e que marcava o
próprio

rosto com cicatrizes que cortava


com uma faca afiada, para
comemorar

suas inúmeras batalhas. Ela temeu


que ele a levasse para o Gehennom,
o vale do inferno. Na verdade,
viajamos da Judeia para Moabe, um
reino que
fora arruinado e abandonado mais
de uma vez, mas que no momento

achava-se em pleno florescimento.


Muitas das tribos dessa terra

recusavam-se a permanecer em um
único lugar, mas em vez disso

chamavam de lar a cada canto da sua


terra. Essa era a terra a que Ruth
chegara quando seguira Naomi para
a Judeia, embora seu povo tivesse

amaldiçoado o nosso. Da sua


linhagem nasceu o grande rei Davi,
uma
dádiva para seu povo e para o
mundo. A terra ali era verde, o solo
vivia salpicado pela chuva mesmo
quando os outros países se
incendiavam com

o calor, os campos gramados


oferecendo paisagens exuberantes.
Viam-se

acácias em flor, a árvore de que


Deus pedira que fosse feita a Arca
da Aliança, para que a Sua palavra à
humanidade permanecesse abrigada
em

sua madeira forte e perfumada.


Arbustos de murta cresciam bem
alto em Moabe e via-se cassis
silvestre em profusão. E as inúmeras
florações

espontâneas do íris amarelo faziam


parecer que a luz solar se derramava
sobre a terra como uma bênção.

Seu pai e os parentes viviam nas


colinas, enriquecidos não só pela
venda

do asfalto, mas também pelos


tesouros que apreendiam de
caravanas que
viajavam pela Estrada do Rei, que
ligava Damasco ao Egito. Diriam
tratar-se

de bens roubados, mas, aos olhos


dos homens das tribos, aqueles
tesouros

eram simples pagamento, de que se


apossavam como algo devido, pois a

sua pátria era a rota de ligação entre


as duas nações. Seu pai acreditava
que

um ladrão é um rei na sua terra, o


senhor da própria montanha. Dizia-
se que todo homem dessa região
nascia com uma faca na mão, um
cavalo já escolhido para ele e uma
oração para oferecer ao seu Deus.

Minha mãe ainda sangrava em razão


do meu nascimento quando eles

pararam para montar acampamento


na primeira noite. Ainda assim, ela
me

envolveu em panos e deitou-me em


uma cavidade, para que seu pai
fizesse

dela a sua esposa naquela noite.


Para comemorar o casamento, ele
lhe deu

um par de brincos de rubi. Qualquer


pessoa em Jerusalém saberia por
que

ela era marcada com tatuagens, um


redemoinho de tinta vermelha de
hena

sobre a sua carne. Desde que era


apenas uma criança, ela fora
treinada no

Egito para ser uma kedeshah, uma


mulher destinada ao uso sagrado
pelos

sacerdotes, como a sua mãe fora


antes dela. Mas coisas dessa
natureza tornaram-se secretas e
foram proscritas. Nossa mãe foi
mandada para fora

de Alexandria, para ser criada pelos


parentes em Jerusalém. Ela nunca

conseguiu voltar à cidade onde a


mãe desejava vê-la novamente,
esperando

ao lado do portão pelo retorno da


única filha.
A nossa avó, a quem nunca
conhecemos, deu à nossa mãe dois
amuletos

de ouro para proteção. Em um via-se


a inscrição Chayei ‘olam le-‘olam –

Vida eterna, para sempre –


impressa sobre o ouro com as
imagens do sol e da lua. No outro
estavam inscritas as palavras
Sempre pus o eterno adiante

de mim; no verso do medalhão fora


gravado um peixe, para garantir que
o
usuário sempre estivesse perto da
água, o elemento mais precioso, o

doador da vida.

Embora a nossa mãe tivesse sido


enviada a Jerusalém para a sua

segurança, lá ela foi repudiada pelos


seus pecados, acusada de seduzir um

homem casado. Alegou-se que se


casara tanto com ele como com um

demônio. Quando a família do


homem levou o caso aos sacerdotes,
ela se recusou a admitir qualquer
mau procedimento. Realizou-se
então a

cerimônia do sotah, em que o nome


de Deus foi escrito em papiro e
mergulhado em um tambor usado
para lavar e amolecer couro. Depois
de

dissolvido na água, foi misturado à


poeira do chão do Templo para ser
consumido por ela, uma mulher
suspeita de adultério. A minha mãe
bebeu

o nome de Deus e não vacilou; no


entanto, seus opositores ainda
consideraram que ela mantinha
conluio com os demônios. Ela podia
negar

o seu pecado, mas eu era uma


evidência, segura pelos calcanhares
perante

três juízes. Talvez, quando me


examinaram, buscassem provas de
que ela realmente dormira com um
demônio procurando por chifres, ou
por asas,

para verificar se eu era uma shedah,


filha de um observador, um anjo que
fora atraído à terra pela beleza da
minha mãe, ou se eu simplesmente
nascera mesmo da carne.

O homem tribal de Moabe que viria


a ser seu pai não se importava com

essas questões. Os julgamentos


feitos pelos nossos conselhos não
faziam sentido para ele. Nosso Deus
não era seu Deus. O pecado da
nossa mãe não

era do seu interesse. Ele sabia o que


queria. Era simples nesse sentido,
ainda que fosse complicado também.
Quanto a mim, era pouco mais que
um
camundongo preso em uma
armadilha, uma criatura que ele
permitiu que a

nossa mãe mantivesse como um


animal de estimação quando
partiram na

manhã seguinte e ela se recusou a me


deixar para trás. O mundo ainda
estava escuro no dia em que eles
partiram da Judeia, assim como do
mar,

mas diante deles o horizonte estava


radiante como uma pérola. A nossa
mãe disse-me que, depois que
passaram pelos montes negros de
asfalto

ardente no Mar de Sal, sentiu-se


grata por não termos caído nas
chamas do

inferno. Ela sentiu o coração se


enlevar ao ver as montanhas, que

permanecem verdes mesmo quando


o restante do mundo morre de sede.

Os lírios que crescem lá são


vermelhos e ela ainda usa o seu
perfume; um
frasco de cerâmica com perfume foi
um dos poucos pertences que trouxe
conosco ao vir para essa fortaleza.

Talvez, quando usa o perfume dos


lírios, ela se lembre da manhã em
que

nos foi concedida outra vida.

O NOSSO POVO acredita que o


mundo está dividido em dois. No
lado do bem estão os malachim, os
mil anjos de luz. No lado do mal há
os mazzikim, demônios que são
incontáveis e incognoscíveis, não
controlados até mesmo
pela vontade do Todo-Poderoso. O
seu pai era uma combinação dos
dois.

Acampamos nas montanhas, com


uma visão privilegiada do
desfiladeiro

por onde passava a Estrada do Rei,


proveniente de Damasco. O seu pai
não

pensava duas vezes antes de descer


com seus homens para atacar uma

caravana e levar o que quisesse, mas


era tímido com crianças e amável
com

a nossa mãe. Embora fosse um


guerreiro, ele poderia tornar-se
perturbado

na presença da nossa mãe e mal


sabia o que lhe dizer. Seus olhos
ardiam quando a olhava e muitas
vezes mandava que todos saíssem da
nossa tenda

para poder ficar a sós com ela,


mesmo durante o dia. Ele tinha
outras esposas que viviam em um
vale distante, mulheres cujos nomes
nunca
ouvimos pronunciados em voz alta.
Talvez também as amasse.
Certamente

ele não as olhava do mesmo modo


que fitava nossa mãe. Ela era sua

favorita. Por esse motivo, estávamos


seguras em sua companhia.

Então, em uma noite da qual mal


posso me lembrar, antes de você

nascer, bandidos entraram em nossa


tenda, nômades sem lei e sem
deuses.
Vieram como ladrões, mas, quando
viram a nossa mãe, seu propósito

mudou. Ela era linda com seu cabelo


preto comprido, ainda muito jovem,
e

havia quem dissesse que possuía a


capacidade de hipnotizar um homem

com um olhar, assim como era capaz


de curar uma pessoa doente com
uma

única palavra de oração. Ela me


disse que, quando a deitaram à
força, um
dos invasores apoderou-se de mim e
arrancou a minha túnica com a ideia

de que me possuiria também, apesar


de eu ainda ser uma criança. Não me

lembro dos gritos que ela jura que


dei, gemidos furiosos que
lembravam os

gritos estridentes de um camundongo


quando é aprisionado e se debate em

uma armadilha, mas a minha


garganta doeu de novo quando ela
me contou
a história daquela noite. Ela me fez
esse relato apenas uma vez, quando
saímos de Moabe para viajar a
Massada. Tentei me lembrar de cada
palavra

que ela disse. Sabia que não me


contaria de novo.

Assim como sabia que aquela noite


era a razão do meu destino e em que

havia me tornado.

O SEU PAI, alertado pelos


companheiros sobre a presença dos
intrusos, retornou antes do esperado,
com o rosto escuro, cheio de
cicatrizes,

encoberto pelo lenço azul. Ele foi


como um redemoinho. Nossa mãe
me

segurou junto de si, escondida nas


suas vestes, enquanto seu pai matava
os

ladrões um por um. O sons brutais e


pungentes que ele emitia eram

terríveis, como o vento quando se


abate sobre nós. Disseram que era
possível ouvi-lo ao longe, no sul,
onde havia uma cidade que se
projetava da

rocha vermelha, seu grande templo e


suas colunas esculpidas uma

maravilha a ser vista. Muitos entre


nós juravam que ele possuía o grito
de

um mazzik, um demônio de outro


mundo.

Depois que a luta acabou, seu pai


era o único homem vivo na nossa
tenda. Minha mãe me confidenciou
que as pessoas de fora muitas vezes

sussurravam que o sangue que corria


no povo do seu pai era azul, e na
verdade a sua tribo era tão temível
que até mesmo os romanos a
evitavam.

Lembro que ele se ajoelhou ao lado


da nossa mãe com grande ternura,

ainda lustroso de sangue. Quando


ele o fez, parecia um dos mil que

observam o nosso mundo, um anjo


que nos resgatara do deserto.
Depois daquela noite, nossa mãe
amaldiçoou o que significava ser

mulher. A vida dela se moldara por


tudo o que não podia fazer e por
tudo

aquilo que nunca seria. Mas ainda


assim ela tinha um dom, que homem

nenhum jamais entenderia. A mãe


dela lhe dera um livro de

encantamentos, receitas mágicas que


lhe trariam proteção enquanto

estivessem separadas. Ela carregava


o manuscrito consigo, o mais
precioso

dos seus pertences, juntamente com


os amuletos de ouro que usava em

torno do pescoço, preferindo-os a


todas as outras joias que lhe
pudessem

oferecer. Nenhuma outra proteção


contra o mal seria mais forte.

Mas o que era a magia naquela


noite? Minha mãe tentara sujeitar os
vis
intrusos recitando um encantamento,
mas necessitávamos de outro tipo de

proteção, feita de ferro, um homem,


uma espada, um salvador. Nossa
mãe

rendeu graças à Rainha do Céu pela


nossa salvação. Ainda assim, seu

sangue estava quente e ela se sentia


insatisfeita. Queria ter sido quem
empunhava a faca para matar os
ladrões, em vez de simplesmente

permanecer calada enquanto


observava seu pai fazê-lo.
Foi nessa noite que nossa mãe
decidiu mudar quem eu era. Ela me
levou

consigo enquanto todos estavam


dormindo. Até mesmo os cavalos
estavam

sonhando, montarias rápidas e


possantes mantidas no lugar sem a

necessidade de cordas, leais aos


seus cavaleiros até o dia em que não
pudessem mais correr. As pessoas
de Moabe em geral têm camelos
para
montaria, mas o povo do seu pai
possuía os mais belos e ferozes
cavalos, que recebiam água apenas a
cada três dias para que pudessem ter
as

ótimas qualidades dos camelos e


acostumar-se com a sede, superando
em

força qualquer cavalo dos nossos


inimigos. Nossa mãe entoou a
canção de

proteção, depois iniciou os ritos de


atribuição do nome perante Astarte.
Quando muda o seu nome, você
muda também o seu destino. A
pessoa que

você foi desaparece e nem mesmo


os anjos podem encontrá-la.
Estávamos

sobre a Montanha de Ferro, sob uma


lua vermelha. Não havia placenta
para

marcar essa ocasião, nenhum


sacrifício para devolver à terra.
Desse modo,

nossa mãe enterrou seu próprio


sangue mensal. Em seguida, cortou
meu

braço e deixou que três gotas


caíssem sobre a terra, como uma
oferenda à

Rainha do Céu.

O meu braço ardia e eu poderia ter


chorado, mas meu coração estava

pleno quando a nossa mãe, muito


orgulhosa, disse que eu não seria
como

nenhuma outra pessoa. Desde aquele


momento, somente ela e Deus

saberiam sobre a minha vida


passada. O meu nome havia sido
Rebeca, mas

esse nome desapareceu na noite do


nosso sangue. Nunca mais o ouvi de
novo. Quanto ao seu pai, ele
concedeu à nossa mãe o que ela
desejava, permitindo que me levasse
com eles através do deserto.

Dali por diante eu era um menino.

ELA ME CHAMOU de Aziza, um


nome do povo do seu pai. Pode
significar uma pessoa que é amada,
mas também aquele que é poderoso
e feroz. Há quem

acredite que o nome é uma antiga


palavra para arqueiro, aquele que
nunca

está sem uma arma, nunca à mercê


de ninguém. Era isso o que a nossa
mãe

desejava para mim. O povo que


vivia na Montanha de Ferro adorava
uma

grande deusa entre os seus deuses;


esse povo também considerava a
força

das suas mulheres. Agora, quando


vejo a minha irmã trabalhando no
campo

entre os essênios, seguindo os


costumes rígidos, cantando para as
cabras que apascenta, uma serva
calmamente à espera do Fim dos
Dias como se ela mesma nada mais
fosse que uma ovelha passiva e bela,
acho que a carne

e a grama são a mesma coisa, tão


fugaz, mudando diante dos nossos
olhos.

Minha irmã foi concebida no país


em que o céu brilhava prateado e os
homens eram ferozes. Se o seu pai a
visse caminhando na poeira atrás
dos

homens essênios, de cabeça baixa,


ele teria sido envergonhado. Mas
não importa o quanto você se curve
diante dos outros, minha irmã, o
vínculo que nos une durará por toda
a eternidade, até nos reencontrarmos
em um

lugar onde nada possa nos separar,


como na noite em que você nasceu,
na

tenda do seu pai, com a minha


respiração dentro de você e a minha
vida, o

fio que a manteve neste mundo.

DURANTE O PERÍODO em que


você crescia, eu era o seu irmão.
Você me seguia como uma pomba
segue os campos de cereais. Eu
usava trajes azuis, trazia
o cabelo preso, depois bem-
trançado à moda dos meninos. O seu
pai

ensinou-me a montar um cavalo, a


usar a funda e a lança. Eu era um
guerreiro nato, feito de ferro. Esse
era meu elemento desde o início. Em
vez

de me amedrontar, trazia-me
conforto. O metal era frio, pesado e
confiável.

Fazia o que eu pedisse. Em troca, eu


era dedicada; nunca houve um dia
em
que não expressasse a minha
gratidão à espada que carregava e
ao cavalo

que montava.

Os espíritos malignos têm aversão


ao metal e dizem que o nome do
ferro

ao ser invocado perante o Todo-


Poderoso é Barzel, que alguns
acreditam ser uma combinação de
letras tirada dos nomes das mães
dos filhos de Jacó,

Léa, Raquel, Bilá e Zilpá. A armas


são vedadas às mulheres, mas esse
nome

sugere que talvez os homens temam


tanto os nossos talentos na guerra

quanto nosso desejo de paz. Eu era


assistida pela graça das
antepassadas da nossa tribo, Raquel
e Léa, mas não trilhei o mesmo
caminho que haviam

percorrido. Nunca soube o que


significava ser uma esposa. Nunca
trabalhei

em um tear. Não andava na


companhia das meninas para receber
os

nascimentos e por isso era


especialmente grata. O seu
nascimento fora o bastante para
mim.

Eu preferia ser o filho do seu pai,


esperando em silêncio com os
cavalos

enquanto os homens faziam seus


ataques. Segurava as rédeas
enquanto os

guerreiros desciam a pé ao longo da


passagem estreita para atacar as

caravanas que viajavam para o oeste


em direção ao Egito, as carroças e
os

cavalos destemidos carregados de


mercadorias do Oriente. Eu ajudava
a

carregar as pilhas de incenso, as


fieiras de lápis-lazúli, coral e jade,
as cestas de cardamomo e cássia, as
bolsas cheias de barras e moedas de
ouro. Via mais sangue no chão que
qualquer uma das meninas
presenciava nos
partos. Sabia coisas que elas não
podiam sequer entender: como era

cavalgar durante a noite quente com


uma lança às costas. Como era

precipitar-se pela Montanha de


Ferro, uma só criatura, um só
coração,

bradando gritos de guerra, brilhante


de suor, correndo sob a lua. Nessas
ocasiões, era possível imaginar que
tinha asas e era livre como qualquer
ave de rapina, feroz como qualquer
homem.
O meu segredo tornou-se a minha
vida diária. Nossa mãe certificava-
se

de que eu me banhasse sozinha.


Quando meus seios começaram a

despontar, ela os amarrou com uma


faixa de linho. Essa ligadura fazia-
me

ficar ereta, em toda a minha altura,


como se fosse feita de ferro e não de
carne. Era capaz de bater mais forte
que os meninos. Era mais rápida
também, e mais ágil com a espada.
Com o tempo seu pai ficou
orgulhoso de

mim, quase como se eu fosse seu


filho, como se a nossa mentira fosse
verdade. À noite a nossa mãe me
ensinava a ler e a escrever. Aprendi
grego,

aramaico e hebraico. Havia garotas


que caçoavam de mim e me

perseguiam, como faziam com todos


os meninos que admiravam. Uma me

beijou durante essas brincadeiras e


eu ri, pensando em como ela era
tola.
Eu estava acima de tais interesses. E
ainda me sentia confusa porque,
quando meu amigo Nouri me
empurrou para podermos fugir das
meninas,

meu sangue disparou. Quando ele me


agarrou, seus dedos deixaram meu

braço pulsando, como se ele tivesse


me queimado sem querer.

Procurei a nossa mãe e chorei, como


qualquer menina boba, quando lhe

contei o que acontecera. Lutei contra


o impulso de me aproximar de
Nouri,

mas ele me atraía, como o aço


chama o aço. Nossa mãe disse que
era o momento de eu entender que
nunca poderia ser como as meninas

desatentas que perseguiam os


rapazes. Disse que vira meu destino.
O amor

seria a minha ruína. Ela sussurrou


que não me dissera isso por
crueldade,

mas por preocupação. Lançara as


pedras no dia do meu nascimento e a
minha sorte aparecera no chão à sua
frente, um aviso que agora

compartilhava comigo, como a sua


mãe compartilhara a adivinhação do
seu

futuro com ela. Não devia olhar para


os meninos ou considerá-los outra
coisa que não irmãos. No dia em que
fizesse isso, meu destino e minha
ruína me reclamariam. Nossa mãe
tinha lágrimas nos olhos enquanto
me

instruía. Eu sabia que ela queria o


melhor para mim e não duvidei dela.
Ainda não.

Foi fácil dar-lhe a minha promessa


naquele dia. Ela me abraçou e me

chamou de filha, um deslize


perigoso com relação ao que eu fora
e não era mais.

DEPOIS DISSO, passei a evitar


Nouri, embora ele se mostrasse
claramente magoado por eu tê-lo
abandonado. Evitei pensar nas suas
belas feições, na

maneira que seu rosto se abria de


repente em um sorriso. Ele não era
um

cavaleiro tão bom como eu, afinal;


nunca conseguiria me alcançar. Eu
era a

melhor entre os meninos da minha


idade, destemida. Quando soltava os

seios para tomar banho, sentia as


asas sobre os ombros, entrelaçando-
se através dos ossos, o segredo dos
meus dons, um legado de quem era o
meu

pai, quem e o que quer que ele


pudesse ser. Eu quase acreditava
que ele poderia ser mesmo um anjo,
pois existiam essas criaturas divinas

luminosas, aladas, mensageiros


esvoaçantes de Deus, que segundo
se dizia

extasiavam-se com as mulheres da


terra e as visitavam durante a noite,
unindo-se à carne humana.

Eu cavalgava com o grito do seu


povo na garganta quando perseguia

coelhos e o tímido hírax que se


entoca nas rochas e ronda os
matagais.
Praticava a minha habilidade para
impressionar seu pai, vindo a matar
o meu primeiro íbex quando tinha
dez anos. Ele não disse nada quando
o íbex tropeçou e caiu, mas notei o
que ele sentia na sua expressão
enquanto

ajudava a esfolar o animal. Era


Adar, o mês em que se encontravam
íbex jovens nos campos, mas eu
matara um macho enorme. Seu pai
tocou minha

testa em uma bênção para a minha


habilidade. Vindo de um homem tão
silencioso, isso foi um grande
elogio.

Senti-me feliz por ser um menino


naquele mundo de homens e por ter

recebido uma grande honraria


quando seu pai me permitiu cavalgar
ao

lado dele. Eu vivia intensamente


cada dia, o cabelo preto trançado, o
manto

azul índigo do povo do seu pai. Mas


nosso irmão havia nascido e, quando
ele cresceu, tudo mudou. Era para
Adir que nosso pai olhava com
orgulho.

Talvez ele realmente tivesse se


esquecido de quem eu era durante
todos aqueles anos e só então se
lembrasse de que era uma menina
que a minha

mãe se recusara a deixar para trás na


primeira noite do seu casamento,
antes de chegarmos à terra de
Moabe e mudarmos quem eu me
destinava a

ser.
*

NA ESTAÇÃO das chuvas, quando


não havia caravanas, os homens
voltavam para as outras aldeias,
para as outras esposas. Seu pai e os
companheiros

nunca paravam em um único lugar,


mas em vez disso enrolavam suas

tendas e partiam por toda a terra,


deixando a família na Montanha de
Ferro

para ir visitar as outras esposas e


seus filhos em lugares distantes do
nosso

acampamento. Eles cavalgavam para


tão longe que suas sombras

dificilmente poderiam ser vistas


pela humanidade. Nós ficávamos
para trás

com as cabras e as ovelhas brancas


tosquiadas. Havia centenas no
rebanho,

todas aumentando a riqueza do seu


pai, e elas precisavam de cuidados.
As
acácias desabrochavam em flores
amarelas e os gramados no campo
eram

tão altos que podíamos desaparecer


e nunca ser vistos quando corríamos

pelo prado. À noite, os morcegos


voavam juntos em uma nuvem
escura,

caindo sobre as árvores para beber


o suco de figos. O ar era leve e a
chuva

tornava o ar do mesmo tom de azul


que as túnicas que seu povo usava.
Nossa mãe não reclamou por termos
ficado para trás na Montanha de

Ferro quando seu pai partiu. Ela


tinha outros afazeres. Quando a
nossa mãe

foi expulsa de Jerusalém, eu não era


seu único animal de estimação. Ela
também trouxera duas pombas e era
dedicada a elas. As pombas ficavam

dentro de uma gaiola de madeira e


eram alimentadas com grãos e
tâmaras.

Quando bebiam água, levantavam a


cabeça como se louvassem a Deus.
A

nossa mãe as soltava uma de cada


vez, prendendo mensagens nos tubos
de

bronze presos às suas pernas. As


pombas levantavam-se no céu
ocidental

quando ela as atirava para cima,


desaparecendo em um piscar de
olhos.

Elas sempre voltavam. Com o


tempo, seus filhos e netos também o
faziam,

seguindo a mesma rota misteriosa.

Nossa mãe esperava pelo retorno


das pombas enquanto o anoitecer
caía

entre as montanhas em faixas azuis.


Ela dizia que a cor do céu a fazia se
lembrar de água e da terra em que
ela passara a infância, antes de ser
mandada para Jerusalém. Ela sentia
saudade da cidade de Alexandria,
um

lugar onde os rios estavam cheios de


criaturas milagrosas e monstros

semelhantes, onde a sua mãe entoara


canções para ela dormir, as mesmas

que nos cantava agora. Durante


todos os anos em que estivemos em
Moabe,

ela permaneceu solitária. Talvez


estivesse pensando na cidade do seu

nascimento. Talvez por isso muitas


vezes eu a visse chorando.

Quando uma das pombas reaparecia,


nossa mãe tornava-se totalmente
absorta. Se a chamasse, ela não
ouviria. Se uma abelha pousasse em
sua mão, ela não tomaria
conhecimento. Ao contrário do seu
pai, que vivia satisfeito, percebi que
nossa mãe ansiava por algo mais.
No entanto, não conseguia decifrar
sua expressão, não enquanto
permanecesse ali com os

pés descalços, vestida como um


menino. Somente agora entendo. Ela
era

uma mulher apaixonada.

Durante os anos em que vivemos


com seu pai, ela enviava mensagens

para outro homem, aquele que era o


meu pai. Uma vez encontrei uma
carta

que ele lhe enviara de volta, escrita


em um pequeno pedaço de
pergaminho,

menor que a unha do polegar.


Entendi então que não havia um anjo

envolvido na questão do meu


nascimento, pois os anjos nos
procuram em
sonhos e visões, não em um
pergaminho. Nossa mãe pensou que
tinha

dobrado o bilhete e guardado no seu


livro de encantamentos, mas em vez

disso a mensagem caíra no meu


caminho. Talvez fossem mesmo os
anjos

que tivessem provocado isso, para


eu ficar sabendo a verdade sobre as
minhas origens, ou talvez um
demônio o tenha arrancado de entre
as
páginas. Minha verdadeira esposa
estava escrito. Minha mãe me
ensinara a língua dos estudiosos e,
porque eu sabia ler em hebraico,
conheci a traição

ao seu pai, o homem que me


ensinara tudo o que eu sabia, como
cavalgar e

caçar, e como ser leal às pessoas a


quem amamos.

Joguei o pergaminho na fogueira


naquela noite. Quando o fiz, ele
voou como uma vespa para me
picar. Existe uma marca embaixo do
meu olho

esquerdo, o que restou dessa


ocasião. Por isso nunca pude
esquecer o que

descobri. Às vezes as pessoas


pensam que estou chorando,
acreditam que

viram uma lágrima, mas estão


enganadas. Passei a primeira parte
da minha

vida sem lágrimas, a exemplo de


qualquer rapaz. A marca embaixo do
meu
olho foi feita pelo fogo. É o único
elemento capaz de vencer o ferro.

PERMANECEMOS até o verão em


que completei catorze anos. Eu sabia
que sangrava muito, embora os
meninos com quem eu corresse não
o fizessem,

mas isso não mudava quem eu era, a


mais feroz dentre eles, o cavaleiro
com asas, Aziza, que carregava a
compaixão e o poder em seu íntimo.

Simplesmente precisava manter meu


sangue em segredo, assim como

ocultava o corpo da vista de todos.


As mulheres ali não eram
consideradas

niddah quando sangravam, então eu


não cometia nenhum pecado de

verdade ao guardar meu segredo e


permanecia entre as pessoas durante

essa época do mês. Nas viagens de


caça, eu insistia que tinha o sono
agitado

e precisava acampar sozinha.


Quando os outros se aliviavam, eu
brincava que era um camelo e podia
reter a minha água por dias,
esperando até o momento em que
poderia passar despercebida.

Nessa época seu pai dera a Adir um


lindo cavalo, no qual eu treinara mas

que não era mais meu. Àquela altura


eu cavalgava um velho garanhão

branco, cujo tempo passara e nunca


mais venceria uma corrida, por mais
que o açoitasse. O povo do seu pai
estava se mudando para o sul, para
Petra, abandonando o costume de
viajar. A cidade que surgira das
rochas vermelhas, tiradas da borda
da ravina profunda, quase infinita,
começara a

atraí-los com sua grande beleza e a


vida sedentária que lá poderiam

encontrar. Havia uma piscina com a


fama de ser maior que qualquer lago
e

jardins incomparáveis. Dizia-se que


os peregrinos sentiam-se em casa

nesse lugar e que até mesmo esses


homens indomáveis que ansiavam
pela

liberdade, tendo passado a vida em


busca de campos abertos, não

conseguiam ignorar o chamado de


Petra. E havia outra razão – os
romanos

poderiam atacar nosso


acampamento, apesar da promessa
de paz e do

temor da coragem lendária dos


homens da tribo. Corria um boato de
que,
se todo o sangue fosse derramado
sobre as falésias de ferro de Moabe,
uma

dezena de homens surgiriam do


sangue do primeiro. Talvez os
homens

estivessem cansados de se mudar


sempre de casa, das inúmeras
esposas, e

ansiassem por uma única residência


e uma vida tranquila.

Minha mãe implorou ao seu pai que


permanecêssemos nas montanhas
quando ele, seus irmãos e os tios
atenderam ao chamado de Petra.

Poderíamos acampar com aqueles


que estavam estacionados de guarda

contra a legião, caso os romanos


mudassem de paz com as tribos para

guerra. Ela disse que seu espírito


não podia ser contido em uma
cidade, mesmo em uma tão gloriosa.
Contou ao marido que se acostumara
à tenda

e às estrelas, mas eu sabia que não


era verdade. Era mais que isso.
Algo que

seu pai não vira, apesar de ter a


visão aguçada de um falcão. Algo
que somente uma mulher notaria.
Desse modo, eu ainda era mulher o
bastante.

No dia em que as mulheres


começaram a desfazer o
acampamento,

desmontando as tendas, reunindo


suas chaleiras e seus tapetes, uma

pomba chegou. Vi-a descer


flutuando entre nós como se fosse
uma parte arrancada do céu caindo
sobre a terra. O ar violeta estava
frio e ergui os olhos alarmada,
perturbada com a chegada da
pomba. Tive a sensação de que tudo
estava prestes a mudar e que o
passado já se consumia em cinzas.

Nossa mãe pedira para ficar, mas


seu pai recusara o pedido. Ele a
queria consigo. Disse-lhe para levar
todos os pertences que lhe
importassem,

porque talvez nunca mais


regressasse à Montanha de Ferro.
Nossa mãe foi até o topo da
montanha com a ave em uma cesta,
para

poder ler sozinha a mensagem


recebida. Não sei o que dizia, mas
ela voltou

ao acampamento com uma expressão


definida.

A bagagem estava pronta e parecia


que partiríamos para Petra pela

manhã, mas minha mãe não esperou


o sol nascer. Ela me acordou no
instante em que seu pai partiu com
os irmãos para garantir que a rota
até a

cidade estivesse segura para as


mulheres e crianças que seguiriam
depois.

Assim que ele se foi, preparamos o


cavalo rápido de Adir. Tínhamos

também o grande cavalo de corrida


do meu pai, pois ele levara uma das
éguas, deixando sua montaria para a
minha mãe, um sinal da devoção que

lhe dedicava. O cavalo chamava-se


Leba, um nome que significa
coração.

Era um animal tão leal que jamais


teria ido conosco, não fosse por me
conhecer bem, por eu tê-lo
alimentado e hidratado muitas vezes.
Sempre desejei que ele fosse meu
um dia, embora soubesse que seu pai
nunca me

daria Leba. Adir era o verdadeiro


filho.

Levamos apenas as pombas na


gaiola de madeira e uma única
sacola de
tecido com nossos pertences,
juntamente com uma bolsa de couro
com

água e outra sacola com iogurte e


queijo. Vi a minha mãe pegar o livro
de

encantamentos da mãe dela e a caixa


de pau-ferro em que guardava o

diário. Usava os amuletos de ouro


que ganhara em Alexandria, quando
era

improvável que o destino a


trouxesse a Moabe, e os brincos que
o seu pai

lhe dera no dia do casamento. Ela


deixou para trás todo o resto, uma
grande quantidade de joias com que
seu pai lhe presenteara. Entre elas
havia colares de jade, pulseiras de
ouro e turquesa, contas de prata e
pérolas, anéis de ouro adornados
com pedras preciosas como nunca

víramos, alguns dos quais com raras


opalas que mudavam de cor,

incandescentes, contendo água e


fogo dentro das pedras. Ela estendeu
as joias com ternura e gratidão sobre
o estrado em que tinham dormido,
mas

não mostrou nenhum


arrependimento. Seu pai era o
homem que nos

salvara, mas não aquele a quem ela


amava.

O SEMBLANTE da nossa mãe foi se


transformando pelo caminho
enquanto seguíamos para o oeste,
como se ela fosse recuperando a
juventude. Eu passara a vida toda ao
lado dela; era como se ela se
tornasse totalmente desconhecida de
um modo que eu não conseguia
definir.

É verdade que você e nosso irmão


não queriam ir. Adir ficou amuado e

lamentou-se e você chamava pelo


seu pai. Poderia ter nos matado com
seus

gritos, mas cavalgávamos tão


rapidamente que o vento levou a sua
voz para

o céu. Deixamos os cavalos junto ao


Mar de Sal para que pudessem
retornar
ao seu legítimo proprietário. Não
éramos ladrões. O cavalo do seu pai
virou-se e correu de volta pelo
mesmo caminho por onde viéramos.
O

cavalo de Adir o acompanhou. Em


um instante eles tinham
desaparecido.

Restaram somente as marcas dos


seus cascos sobre a areia, e até
mesmo elas desapareceram enquanto
as observávamos, por isso naquele
momento

pareceu que nossa vida nas tendas


fora um sonho. Se voltássemos pelo

caminho por onde viéramos,


certamente não encontraríamos nada
na

montanha onde vivêramos por tanto


tempo, nem mesmo cinzas.

O único sinal daquele período era a


cicatriz embaixo do meu olho.

AS PESSOAS dizem que nossa mãe


caminhou sobre a água e que os treze
demônios de Lilith a sustiveram pela
bainha do vestido mas, na verdade,
encontramos um homem com uma
embarcação de fundo chato. Um
homem

simples mas ganancioso, que queria


um alto preço para nos levar pela
água.

Olhou para minha mãe, com seus


olhos negros, contentando-se por tê-
la

como pagamento. Em vez disso, ela


trocou as primeiras joias que seu pai
lhe dera, os brincos que usava
sempre. Eram de rubis da Índia,
capturados
de uma caravana de homens que
falavam uma língua que ninguém
nunca

ouvira. Os rubis faziam que me


lembrasse do seu pai, tão puros eles
eram,

tão elementares, tão brilhantes e


vermelhos que pareciam quentes ao

toque. Virei-me, incapaz de assistir


àquela troca. Já vira sangue
derramado

do seu pai em muitas ocasiões.


Apesar dos rumores nas histórias
dos

romanos, de maneira alguma ele era


azul.

Antes de partir coletamos figos,


juntamente com um feixe de ramos
de

acácia. Uma tempestade se formava


e o mar estava cheio de corcovas

negras. Pareciam pedras colocadas


para bloquear o caminho. Nossa mãe

disse para não nos preocuparmos.


Ela jurou que a água se aplacaria e
nos

protegeria; vira isso como seu


próprio destino. O barco balançava
e o homem que remava proferia
maldições e lutava com o mar.
Ainda assim, a

minha mãe continuava serena. A


água salgada respingava nos nossos
rostos

e ameaçava nos cegar, mas na outra


metade do percurso o mar se
acalmou,

tornando-se azul, depois acinzentado


e, por fim, prateado e calmo. As

montanhas da Judeia refletiam-se na


água, flutuando à nossa frente. A
visão

fez parecer que já chegáramos ao


nosso destino, embora ainda restasse

uma longa jornada. Senti o cheiro de


fogo e metal. Os meus elementos. A
minha vida dupla.

Quando chegamos ao outro lado do


Mar de Sal, o barqueiro nos deixou.

No silêncio à nossa volta, senti que


poderia ouvir o coração pulsante do
mundo em Jerusalém, lev ha-olam, o
centro da criação. Acampamos onde
o

barqueiro nos deixara, exaustos


pelas viagens. À noite, depois de
você e Adir terem adormecido sobre
a areia úmida, nossa mãe fez sinal
para que

eu a seguisse. Acendemos uma


fogueira com a madeira de acácia
que

coletáramos na outra margem, a


última acácia que eu veria com
raízes

fincadas em Moabe. Minha mãe


soltou suas pombas de estimação.
Depois

que desapareceram, lançou a gaiola


ao fogo e a deixou queimar em um

borrão de chamas.

Ali naquele vazio eu não conseguia


parar de pensar na Montanha de

Ferro e na vida que levara lá, como


imaginava estar voando quando
cavalgava à noite com a tropa de
bandidos destemidos, como
tomávamos

tudo com o que nos deparávamos.


Eu estava com catorze anos, mas já

matara vários homens. Depois de


fazê-lo, queimava as flores da
acácia em

um tributo a cada um deles, como


era o costume. Seu pai muitas vezes
trazia ramos carregados de centenas
de flores para nossa mãe. Ela

agradecia, mas não se interessava


por aqueles ramos bonitos. Não

apreciava a natureza adocicada das


flores e o modo que atraíam as
abelhas.

Aquelas criaturas aladas


compreendiam a verdadeira
essência da acácia, a

razão pela qual as queimávamos em


homenagem às almas. Quando as

flores da acácia queimavam, subiam


para o alto, em homenagem ao nosso

Deus, que as criara.


A única vegetação que crescia nesse
lado do Mar de Sal era o bálsamo
de

Jericó, uma árvore que o povo dizia


brotar do submundo, contendo uma

chama dentro de uma fruta


comestível. Nossa mãe pegou três
dessas frutas

e as lançou ao fogo, e as chamas


tornaram-se amarelas como o ouro.
Ela então me disse para tirar toda a
roupa. Porque eu não ousava
desobedecer,
fiz o que ela pedira.

Tirei as calças e a túnica, depois a


capa, juntamente com o lenço de
cabeça que fora tingido com a cor
azul do povo do seu pai. A nossa
mãe queimou tudo. O tecido enviava
faíscas escuras para o céu. Ela
soltou meu

cabelo e desfez os nós com os


dedos. Não reclamei, embora
doesse. Não disse nada e sufoquei
as lágrimas. Contaram-me que no
início, quando

chegamos, o povo do seu pai


sussurrava que ele trouxera uma
bruxa de Jerusalém e que nossa mãe
teria o poder de hipnotizá-lo. Era
melhor não olhar nos olhos dela,
diziam as mulheres do nosso
acampamento, ou

contrariá-la. Naquele momento eu


me perguntei se não estariam certas.

Temi a minha própria mãe naquela


noite. Fiquei parada ali, nua sobre o
sal,

os pés ardendo, enquanto ela


cantava em uma língua
incompreensível, os
braços, o pescoço e o rosto cobertos
pela lama do Mar de Sal, parecendo
um

demônio. Senti-me desmascarada, os


seios soltos, o cabelo tão comprido

que passava da cintura, como um


lençol preto.

Nossa mãe levara consigo a pequena


sacola de tecido com nossos

pertences. Quando ela remexeu no


seu interior, temi pelo que poderia
ser
revelado. Talvez uma cobra ou um
escorpião, ou uma faca com a
finalidade

de me marcar em um sacrifício,
como Abraão recebera a ordem de
levar seu único filho, Isaac, perante
Deus. Demorou um pouco para eu
entender o

que ela pretendia, mesmo depois de


revelar o que trouxera consigo de

Moabe. Era uma saia e uma capa


feitas com seda que seu pai lhe dera,
um
tesouro da Índia, contornadas por
borboletas. Vesti-me, enfiando-me
nas

roupas estranhas, depois calcei um


par de sandálias finas de couro.
Estava

escuro naquela noite, o que era uma


coisa boa. Não teria sido capaz de
olhar para mim mesma. Tornara-me
uma estranha em minha própria pele.

Ainda sentia as asas acima dos


ombros, mas elas pareciam presas
de um modo diferente de quando
havia uma folha de linho enrolada
em torno de

mim, escondendo-as.

Nossa mãe e eu dissemos as orações


em conjunto, aquelas que são

recitadas quando nasce uma criança


e uma alma humana entrou no nosso

mundo. Aquela foi a noite em que


me tornei mulher, embora
mantivesse

meu nome. Aziza, a piedosa, a


poderosa. Aziza, a mulher que sabia
o que era
ser homem.

Durante a manhã chegou um


mensageiro de Massada. Ele fora

informado de onde exatamente


estaríamos esperando. Deu-nos água

potável e alimentos, então disse que


iria nos levar em segurança. Ele me
fitou de um modo que nenhum
homem me fitara antes.

Foi a primeira vez na vida que


entendi o que era para o resto do
mundo.
Fiz questão de baixar os olhos.

MESMO AGORA sinto-me atraída


para o meu antigo estilo de vida.
Passo o menor tempo possível
dentro dos pombais. As pombas não
me interessam,

assim como nenhum outro trabalho


feminino. Não consigo tecer ou

costurar sem picar os dedos. Quando


cozinho, deixo queimar o pão sírio.
O
meu guisado é insípido, não importa
quantos ingredientes acrescente à

panela. Não há sal ou cominho


suficientes no mundo para satisfazer
às minhas tentativas de temperar os
alimentos. Sou desajeitada em
tarefas

que minha irmã terminava com


facilidade quando tinha apenas oito
anos

de idade.

Inúmeras vezes me encontro ao lado


do quartel, atraída para lá,
especialmente nas noites que
assinalam o novo mês, Rosh
Chodesh, quando

as mulheres se reúnem para


comemorar, pois não é na
companhia delas

que me identifico, mas ali, ao lado


dos guerreiros. Quando encontro
pontas

de flechas, guardo-as na palma da


mão, como talismãs do meu passado.
As

lâminas encaixam-se perfeitamente


no meu punho. O peso do material,
frio

e plano, é o que mais anseio.


Somente o metal alcança o centro de
quem sou.

Estou nessa fortaleza há muito


tempo, mas ainda sonho com a outra

época, embora não tenha dito a


ninguém, nem mesmo a Amram, a
quem me

prometi, apesar das advertências da


minha mãe. Algumas coisas devem
ser
mantidas em segredo, aprendi isso
ainda jovem, e tenho mantido bem

guardado o nosso segredo. A minha


mãe pode ser tomada pelas dúvidas,

mas não tem nenhuma prova de que a


tenha desobedecido. Ela espalhou
sal

na soleira da nossa porta, para eu


deixar as minhas pegadas, mas pulo
por

cima do sal, sem deixar rastros. Ela


amarrou um fio do seu cabelo na
porta,
mas eu simplesmente me esgueiro
por baixo dele. Posso enganá-la em

algumas coisas; ainda assim, penso


na sua profecia todas as vezes que
me

encontro com Amram. Sou dele, mas


sei que me desonro escondendo a

verdade da minha mãe, que me deu a


vida, não uma, mas três vezes.

Desde o início minha irmã foi minha


cúmplice. Estávamos havia quase

um ano trabalhando com nossa mãe


nos pombais quando Amram chegou.

Passávamos os dias dedicadas à


labuta. Os três pombais eram como
uma

família de cabras – o pai, construído


como uma torre, depois a mãe e o
filho,

quadrados e atarracados, um
pequeno e o outro menor ainda. Até
então

eles eram o meu mundo, uma vez que


evitava os vizinhos e me mantinha
afastada das outras mulheres,
temendo que, de algum modo, elas

percebessem nossas diferenças.

Quando Amram chegou de Jerusalém


no início do verão, no ano da

queda do Templo, ele era apenas


mais um rapaz fugindo dos inimigos,

condenado tanto pela sua origem


como pelas suas ações, um matador
que

poderia ser visto como um assassino


ou como um herói, dependendo de
quem você era e a que local o
destino o levara. Aconteceu de eu
estar lá, atravessando a praça.
Estava com quase dezesseis anos,
mas ainda me

guardava para mim mesma. Não me


importara com nenhum homem, até

que vi Amram subir pelo caminho da


serpente. Ele caminhava com

facilidade, como se as escarpas


fossem pouco mais que um campo. O
que era íngreme e difícil para os
outros, para Amram não era
diferente que o ar
para a cotovia. Estava claro que
poderia vencer o que aparecesse à
sua frente, homem ou animal, até
mesmo a própria terra.

Observando-o, quase me vergonhei


de achá-lo tão bonito. Ele era o

guerreiro que gostaria de ter-me


tornado, esguio e magro, seguro de
si.

Invejei-o e quis possuí-lo, e a tudo o


que ele tinha. Lembrei-me do modo
que a noite caía no outro lado do
Mar de Sal, em ondas de azul
profundo, no
dia em que minha mãe me advertiu
da profecia de que deveria evitar o
amor a todo custo. Mas eu nasci
para desobedecê-la. Soube disso
quando descobri que não conseguia
desviar o olhar de Amram. Tentei e
não

consegui, embora fosse mais forte


que ferro e mais ainda em tais
assuntos.

Aziza, a poderosa, de algum modo


se desmanchou. Será que havia
algum

anjo ou demônio que se lembrava de


qual fora o meu nome e agora me
chamava Rebeca dos confins do
céu? Fiquei lá como qualquer outra
mulher

no Portão da Serpente, ao lado de


todos os demais que ali se reuniram,
encantada e seduzida por Amram,
antes mesmo de ele chegar até nós.

Quem sabe o momento pudesse ter


passado, e eu me virado e retomado

os meus deveres, se ele não me


tivesse visto também, se nós não nos
tivéssemos transformado por um
simples olhar que trocamos.
Compreendi

que fora capturada no instante em


que me rendera ao impulso de ficar
em

cima da muralha para aplaudir a sua


chegada. Minha intenção era outra.

Apenas ver o tipo de homem que


poderia ter sido na minha segunda
vida.

Em vez disso, tornei-me uma mulher


naquele instante. Através do calor

bruxuleante, enquanto ele subia pelo


caminho da serpente, vi seu destino

entrelaçar-se ao meu.

SENTIA-ME CURIOSA, atraída por


ele. Quando as chuvas vieram,
ficava ao lado do arsenal, toda
molhada, na esperança de ter um
vislumbre daquele homem

no quartel. Dava a volta na muralha


em busca de sinais de sua passagem:

uma ponta de flecha, uma pegada,


um fio de cabelo. Quando a poeira

levantava eu pensava nele; quando


olhava para o céu, lembrava-me
dele; quando ia buscar água, comia o
jantar, trabalhava entre os pombos,
tudo, não importava quão trivial,
trazia-o à minha lembrança. Não o
teria

perseguido, mas um dia ele cruzou


meu caminho quando minha irmã e
eu

seguíamos apressadas para o


pombal. Levantei a mão em proteção
aos

olhos, não só para poder vê-lo, mas


também para esconder a marca
embaixo do olho. Naquele instante
fui pretendida mais uma vez. Ele
sorriu,

convencido de que me conhecia, e


eu retribuí o sorriso, sabendo que
não.

Nossa mãe nos esperava. Se


estivesse junto a nós, ela me
obrigaria a me

virar de lado. Quem sabe tudo que


se seguiu tivesse sido diferente, mas,
como o destino quis que ela não
estivesse lá, senti-me imensamente
grata
por isso. Nahara lançou-me um olhar
quando lhe disse para prosseguir,

mas fez o que pedi.

– Você faz esse caminho todos os


dias – comentou Amram depois que
a

minha irmã se afastou.

– Como você sabe? – falei-lhe como


me dirigia a Nouri, como se fosse
um

igual, não me curvando diante dele.


– Porque a observei.

Senti-me como era quando estava


nas montanhas, eu mesma outra vez.

– Não tanto quanto observo você –


disse, o meu sorriso se alargando.

Por ter crescido entre os meninos,


não tinha a malícia da mulher.

Amram riu, surpreso com a minha


franqueza. Acho que, quando o
beijei

pela primeira vez, sem esconder


nada, fiz como um homem o faria,
desenvolto pelo ardor. Se ele ficou
surpreso com isso, pelo menos não
se decepcionou.

AS MULHERES nos campos


fofocavam sobre nós. Eu ouvia as
palavras, mas tais comentários não
eram nada para mim, picadas de
vespa, grãos de areia no

meu sapato. Deixava as fagulhas do


seu ciúme rude caírem no chão.

Nenhuma delas teve a coragem de


procurar minha mãe e arriscar-se a

enfrentar a sua raiva com as


histórias sobre o meu mau
comportamento.

Começamos a nos encontrar no


escuro, ao lado da fonte da Praça

Ocidental. Sempre que estava com


Amram, a minha irmã jurava que eu

estava com ela. Ela era o meu


escudo, a minha chave para a
liberdade, a pombinha que levava as
palavras que eu escrevia para ela
dizer quando fosse contar a Amram
a hora em que poderíamos nos
encontrar em
segurança. Eu salvara a minha irmã
uma vez, agora ela me pagava.
Muitas

vezes ela cruzou a praça comigo à


noite. Dávamos as mãos e
sussurrávamos

como crianças, mas, quando nos


aproximávamos da fonte, em
determinado

momento ela cobria os olhos e eu


seguia sozinha. Se ela não
testemunhasse

nosso encontro, não seria obrigada a


dizer uma mentira deslavada quando

assegurasse à nossa mãe que não me


vira com nenhum homem.

Encontrávamos lugares para ficar


sozinhos, depósitos, jardins, o
campo

à noite. Uma vez mais, como quando


dera a vida à minha irmã, a
respiração

de alguém me pertencia e a minha à


dele. Amram prometeu que
esconderia
o nosso segredo da minha mãe, e ele
era um homem de palavra. Havia

quem jurasse que em Jerusalém ele


fora o mais ousado dos assassinos,

capaz de se transformar. Dizia-se


que seu pai, o grande e temível
assassino

Bar Elhanan, possuía a capacidade


de desaparecer à vista de todos.
Talvez

ele tivesse herdado esse truque da


invisibilidade, pois Amram era
capaz de
passar sem ser notado pela minha
mãe, a sua presença pouco mais que
uma

nuvem. Tornamo-nos tão corajosos


que nos atrevemos a nos encontrar
no

porão embaixo do nosso alojamento,


pois havia uma escada secreta no
chão

da velha cozinha, e ainda outra que


dava acesso ao porão a partir da
praça.

Despíamos as capas sob o assoalho


que a minha mãe pisava. Talvez
tenha

feito isso para ofendê-la, para


reivindicar a minha própria vida e
refutar a

sua profecia de que o amor só me


traria angústia.

No nosso porão secreto eu tentava


ao máximo espionar Amram no

tecido escuro das sombras antes que


ele pudesse me ver. Conseguia

identificar os ratos do campo em


busca de grãos e as formas
modorrentas

dos morcegos pendurados no teto,


mas Amram me enganava todas as

vezes, segurando-me antes que


soubesse que ele estava lá,
deslizando a mão sobre a minha
boca para eu não gritar. Poderia
escapar dele

facilmente e levar uma faca ao seu


pescoço antes que ele piscasse, mas
dizia

a mim mesma que esse era o nosso


jogo, esconder a nossa verdadeira

natureza. Embora ele não me visse


por quem eu era, mas eu deveria
saber

bem disso, nunca lhe negava nada. E


ainda assim não me sentia satisfeita.

Ele não enxergava através de meus


véus e não lhe revelava o meu eu

mais profundo. Talvez fosse apenas


para desafiar a minha mãe, mas na

época que Revka chegou para


trabalhar conosco nos pombais, eu
tinha me

prometido a ele. Não muito tempo


depois que a irmã dele, Yael,
chegou para trabalhar conosco, eu
era dele.

TALVEZ ALGUNS segredos sejam


impossíveis de manter, pois parecia
que os meus pecados estavam
escritos em mim. Eu era solteira,
embora soubesse

o que as noivas sabiam, como os


homens gemiam de paixão, como
eles às
vezes choravam por tudo o que
sentiam, como o desejo os vinculava
tão firmemente como as roupas que
eu usava na vida – xales, véus e
mantos –

ligando-me ao que havia me tornado.


Os homens me olhavam rudemente

no mercado quando entrava na fila


para receber as rações de trigo e de
milho. Eles observavam como eu
carregava as cestas de esterco para
o

campo e faziam sugestões que eu


ignorava. Não era submissa,
disposta a assumir o ônus dos seus
desejos. Gritava-lhes para voltarem
para casa, para

as suas esposas ou mães. A própria


ideia de que me submeteria a
qualquer

homem que decidisse me falar desse


modo revivia o guerreiro que havia
em mim. Deixava o xale deslizar do
meu cabelo e dos meus ombros,

permitindo que meus braços


brilhassem nus à luz do sol. As
outras
mulheres começaram então a
sussurrar que era uma sheydim, uma
criatura

que ninguém podia controlar. Nisso


elas estavam certas. Eu fazia o que
queria, mesmo que minha mãe me
proibisse de fazê-lo, mesmo que
fosse

um pecado.

Comecei a me perguntar se não


havia algum sentido nas histórias
das

mulheres do campo a meu respeito,


talvez o que me separasse de todas
as

outras não fosse a vida que levara


antes de chegar ali, mas antes se
devesse

a quem poderia ser meu pai de


verdade. Embora ele não fosse um
anjo ou

um íncubo, mas um homem que


escrevia em pergaminhos, eu me
confundia

cada vez mais sobre a sua


identidade com o passar do tempo.
Pensei que era estranho que o
mensageiro soubesse exatamente
onde nos encontrar

na costa do Mar de Sal e que ele


inclinara a cabeça para minha mãe,
como

se ela fosse a esposa de um homem


importante. Imaginava por que,
dentre

todos os lugares a que poderíamos


ter ido neste mundo, tivéssemos de

chegar a essa fortaleza e não a outra.


Minha mãe não me dizia nada. Ela
se recusava a revelar para onde

enviara as pombas do alto da


Montanha de Ferro. Negava ter
alguma vez recebido respostas,
embora as palavras que lhe
enviaram tivessem me

queimado e eu ainda carregava a


cicatriz. Somente disse que havia
sido uma menina que seguiu o
caminho determinado para ela pelo
Todo-Poderoso.

– Seria eu tão grosseira e


presunçosa a ponto de perguntar a
Deus por

que me pôs em um caminho e não em


outro?

Quando ela disse isso, seu rosto


estava jovem e inocente. Pela
primeira

vez ela, que sempre fora tão


destemida, parecia vulnerável.
Minha mãe me

ensinara muito. Graças a ela eu


sabia ler mais idiomas que a maioria
dos homens cultos, ainda que
soubesse muito pouco a seu respeito
ou sobre mim. Desde Moabe, nossos
segredos pareciam uma teia de
aranha, um fio

sustentando o seguinte. As palavras


que não dizíamos tornaram-se as

únicas coisas que realmente


importavam. Nós nos movíamos
como

aranhas, circulando uma ao redor da


outra, desconfiadas, esperando pelo
que viria em seguida.

– Será que eu também não tenho um


caminho? – perguntei, encorajada
quando disse que não questionara a
direção a que Deus a conduzira.

Ela me olhou pensativa.

– Um deles você deve evitar a todo


custo.

Essa observação foi suficiente para


me convencer de que eu precisava

encontrar meu próprio caminho.

COMO OS NOSSOS segredos nos


forçavam a nos afastar, eu me isolei.
Seguindo o exemplo da minha mãe,
não contava nada. Ficava no nosso
alojamento

quando ela saía para ajudar no


trabalho das mulheres ou para
assistir pessoas afligidas por febres,
levando o cântaro e a tigela, além de
um sabão

feito de gordura e cinzas, insistindo


que os doentes lavassem as mãos
para

se purificar. Não a acompanhava


quando saía à noite para a sinagoga,
onde

cavava a terra a fim de enterrar


amuletos em lugares santos, para a

proteção de quem a procurasse em


uma necessidade. Quando a minha
mãe

me pedia para aventurar-me com ela


além do portão e coletar arruda,

manjerona e as maçãs amarelas da


mandrágora, utilizadas na
pharmaka, restava-me pouca
escolha a não ser obedecer. Mas,
mesmo quando tentava

atender aos seus desejos, não tinha


utilidade para ela. As minhas mãos
não

eram ágeis. Rasgava as folhas, e os


frutos se desfaziam. Não tinha o
toque

da feitiçaria. Não dominava


nenhuma das habilidades que uma
mulher

deveria possuir.

Não foi de admirar que Yael


tomasse meu lugar. Minha mãe a
escolhera

para se juntar a nós no momento em


que ela entrou pelo portão, enquanto

Yael seguia atrás do pai, a cabeça


inclinada, o cabelo vermelho
grudado com o sal. Talvez minha
mãe tivesse ficado tocada com sua
condição, que

adivinhou tão logo observou o modo


de andar de Yael e o cuidado com
que

ela cobria o corpo com o xale.


Minha mãe também estava sozinha
quando

trouxera o primeiro filho a este


mundo.

Quando Yael revelou o nome do seu


irmão no pombal, senti o sangue

correr mais forte, com medo de que


a minha vida oculta pudesse ser

percebida pela minha expressão. Ali


estava Yaya, a irmã de que Amram

falara muitas vezes, a sua protetora e


amiga na infância. Eu deveria tê-la
puxado de lado para pedir que
contasse histórias da sua infância,
mas me
mantive distante. Não tinha nenhuma
razão para acreditar nela ou confiar-

lhe os meus segredos. Quando ela


me viu com Amram no nosso ponto
de encontro, esperei pela sua
traição, imaginando que fosse
revelar a verdade

à minha mãe, com quem trocava


tantas confidências. Mas ela nunca

mencionou nada. Em vez disso,


chamou-me de lado para cochichar
que o

irmão era um homem bom. Que


quem eu amasse não era da sua
conta.

Ainda assim, apesar da sua bondade


com relação a mim, ela se tornou a

minha rival. No dia brutal em que a


minha mãe foi levada para a praça e
posta a ferros, acusada de bruxaria,
Yael foi a única que a assistiu, não
eu.

Ela correu para a minha mãe, usando


um dos amuletos de ouro da nossa
família, um presente que sempre fora
passado de mãe para filha. Pude vê-
las de braços dados através das
cortinas de chuva. Virei-me e não
disse nada, engolindo o amargor do
meu próprio ciúme.

Não pude deixar de pensar no que


mais a minha mãe vira no dia em que

nasci, se acaso foi um presságio que


a levou a me deixar de lado,
preferindo

uma estranha à própria filha.

DURANTE TODO o belo e suave


mês de Adar, Yael vinha todas as
noites ao nosso alojamento na antiga
cozinha do palácio. Aprendia os
encantamentos

que minha mãe conhecera em


Alexandria, juntamente com letras
gregas e

hebraicas. Elas se sentavam à mesa,


as cabeças próximas, as vozes
baixas,

para não acordar Arieh, agora com


quase oito meses de idade, que
dormia

no estrado em que minha irmã antes


passava as noites. Não me ofendi
por

não pensarem em me incluir. Não


tinha interesse em tais assuntos. O

keshaphim não era nada mais que


um ofício de mulheres aos meus
olhos, com suas receitas e seus
remédios de ervas, não diferente da
limpeza das

pombas, ou da fiação da lã, ou de


manter as panelas fervendo no
fogão. Eu

usara um encantamento para proteger


Amram uma vez, quando ele
liderara a primeira incursão a partir
dessa montanha. Mas depois me
senti

impura e fui à mikvah para me


purificar.

E ainda assim, enquanto as


observava nos seus estudos, pensava
como

seria mais fácil se pudesse fazer o


que a minha mãe me pedia, se fosse
capaz de acompanhá-la, se já não
tivesse sido escrito que eu era
fadada a desobedecer.
*

QUANDO NAHARA nos deixou,


estava convencida de que ela
voltaria. Era eu a rebelde e ela era a
boa filha, a minha querida irmã de
confiança. Com o tempo, tive certeza
de que os rígidos costumes dos
essênios a cansariam.

Então ela se lembraria de que me


pertencia.

Mas a estação mudou, o trigo


cresceu e não houve nenhuma notícia
dela.
Houve Yael em seu lugar à mesa.
Houve Arieh, arrulhando, brincando
com

os dedinhos do pé ou com seu


chocalho na cama. Minha irmã
baixava os olhos quando nos
cruzávamos, como se não
tivéssemos atravessado o Mar

de Sal juntas e dormido uma nos


braços da outra. Ela parecia não
ouvir quando a chamava na praça.
Pensei que me procuraria no devido
momento,

mas me enganei. Devia ter entendido


que a ovelha não sai pela porta
aberta

quando todo o seu mundo consiste


do cercado em que vive. Depois que

uma criatura assim memoriza a cerca


de espinhos, não mais atravessa esse

marcador, nem mesmo depois de


derrubada, pois ela ainda governa os

limites da sua visão e da sua vida.

Quando avistei Nahara no campo,


pastoreando as cabras pretas,
incitando-as com um pedaço de pau
torto, seguindo os homens da tribo,
os

olhos submissos a Malaquias,


perguntei-me se minha mãe se
enganara na

profecia ao dizer que o amor traria a


minha ruína.

Talvez tivesse visto o destino da


minha irmã no meu lugar.

NO DIA da Festa dos Pães Ázimos,


quando comemoramos a libertação
do nosso povo da escravidão, o
kadim começou a soprar de Edom.
Nada de bom podia vir disso, pois
se dizia que, uma vez que começa, o
vento permanece por semanas. Não
havia como escapar do seu calor
brutal ou se

esconder da sua fúria. Durante


semanas as aves não subiriam ao
céu, as asas repelidas pela força das
rajadas e pela vontade do nosso
Deus,

lembrando-nos de que devíamos nos


curvar perante Ele e render graças à

nossa vida na terra. A confusão


reinava quando os homens tentavam
se

falar e as intenções das mulheres


eram mal interpretadas.

No pombal, as aves estavam


agitadas e recusavam-se a deitar. A
minha

mãe desenhou o sinal dos quatro


ventos sobre o chão de terra, depois
queimou incenso, uma pequena pilha
de mirra que fez com que as pombas

se acalmassem, embora ainda


tremessem. Yael pegava os pássaros
no

regaço e eles se consolavam, mas,


no momento em que ela saía pela
porta,

eles começavam a se agitar e a


chamar.

Quando a Festa dos Pães Ázimos


terminou e os padeiros voltaram a

trabalhar nos fornos, usando os


poucos grãos que tinham para os
pães, o vento ainda estava conosco,
tão feroz como antes. As pétalas
choviam das
amendoeiras em saraivadas capazes
de cegar. Formavam-se filas nos

armazéns, onde os vizinhos


aguardavam sua porção de
alimentos. As

pessoas tinham de gritar para serem


ouvidas; no fim, elas muitas vezes se

afastavam umas das outras,


abanando as cabeças. O kadim
trouxera um turbilhão; a poeira e a
areia se acumulavam nos locais em
que dormíamos e

comíamos, e nas costuras das nossas


roupas.

Felizmente havia um momento em


que o vento diminuía e trazia

tranquilidade, pela qual éramos


todos gratos. Ocorria no momento
em que

a luz azul da noite começava a cair.


A cor do horizonte era tão
maravilhosa

que até mesmo os cegos juravam que


conseguiam enxergar. Era o beyn
ha’arbayim, um momento em que
não é nem dia nem noite, quando o
véu

da ilusão é mais fino e podemos ver


as coisas à luz lilás que não é vista
em

nenhuma outra hora. Esse era o


momento em que os demônios ou
anjos

podiam aparecer, quando os


sheydim passaram a existir.

Uma noite Yael não apareceu


sozinha no nosso alojamento para
sua
visita à minha mãe. Trouxera
consigo a amiga essênia naquele
momento

em que o vento kadim silenciava. A


túnica branca de Tamar parecia
azulada em torno dela. As mulheres
se aproximaram de nós, os olhos
baixos.

Estremeci na luz e no vento. Quanto


à minha mãe, seu rosto estava

desfigurado. Ela vira um escorpião


em um canto naquela manhã. Desde

aquele momento, esperava que o


desastre chegasse à nossa porta.

– Não culpe Tamar pelo que está


prestes a lhe dizer – Yael
aconselhou à

minha mãe, a voz tomada de


preocupação. O seu cabelo escarlate
brilhava

na luz fraca. – Ela me procurou,


como faz agora com você, para
oferecer a

verdade, não para lhe causar algum


mal.
O menino de Tamar, Yehuda,
tornara-se amigo do meu irmão.

Pensáramos que ela talvez tivesse


vindo à procura dele, como
acontecia com frequência. Mas
Tamar não viera por causa do filho.
Era a minha mãe

que ela queria, mas estranhamente


não se aproximou muito de nós.

Estávamos de pé ao lado da porta


com Yael, que se juntara a nós,
enquanto

Tamar permanecera no outro lado,


como se cruzar o umbral pudesse lhe

trazer alguma maldição.

Era um mau presságio ficarmos


divididas, mas ninguém se moveu.

– Quando chega o shabat, não há


com voltar atrás a outro dia –

comentou Tamar, os olhos baixos.


Ela era uma mulher gentil, que
sofrera muito, e claramente doía-lhe
dizer mais.

Yael pediu que continuasse, então


finalmente ela nos contou.
– Eles procuraram Abba para ter a
sua bênção.

A minha mãe deixou escapar um


soluço ao ouvir a notícia. Ela sabia
que

o shabat representava uma noiva,


pois era o sétimo dia da criação e o
mais bonito de todos. A noiva em
questão era a minha irmã, que
acabara de se

tornar uma mulher. Ela se casara


sem o conhecimento ou a permissão
da minha mãe.
– Você não poderia ter feito nada –
Yael sugeriu. – Eles se casaram esta

manhã.

Tamar murmurava um pedido de


desculpas pelo modo que seu povo
nos

desrespeitara. Por não termos um


homem na nossa família, Abba dera
seu

consentimento, com a graça de Deus.


Minha mãe não ouvia mais nada. Ela

correu para o armário em que


guardava os talismãs e as ervas,
desesperada

por um encantamento que


consertasse as coisas. O óleo do
lírio, aquele aroma santo e precioso,
derramado sobre o altar, foi o que
ela fez. Por um

instante pareceu que retornara aos


campos de Moabe, era verão e as
flores,

vermelhas. Vi que minha mãe


chorava. Só isso já era aterrorizante.
Não conseguia me lembrar de tê-la
visto chorar antes, nem mesmo na
noite em

que os ladrões foram à nossa tenda,


quando ela mudara meu nome e,
assim,
o meu destino.

Desejei ainda ser um menino, saindo


para atacar as caravanas com os

homens, mandado com os guerreiros


para procurar provisões, deixando
os

desgostos daquela natureza para as


mulheres resolverem. Fiquei ali em

silêncio, incapaz de lidar com a dor


da minha mãe. Foi Yael quem se
adiantou para abraçá-la. Qualquer
um pensaria que ela era a filha e eu
não
mais que uma convidada, confusa
demais para fazer algo além de
assistir à

minha mãe lamentar a drástica


decisão da minha irmã.

– Está feito – Yael a acalmou. – Ela


pertence a eles.

Minha mãe balançou a cabeça,


indignada. O cabelo preto
derramava-se

pelas suas costas.

– Você sabe tão bem quanto eu. O


que é feito pode ser desfeito.

Ela deixou às pressas o nosso


alojamento. Agarrei Yael pelo braço

quando ela fez menção de segui-la.


Pelo menos uma vez, eu seria a filha
da

minha mãe.

– Nahara é minha irmã – disse


friamente. – Isso não diz respeito a
você.

Yael fitou-me surpresa e depois


recuou.
– É claro.

Persegui minha mãe até o outro lado


da praça, o coração batendo forte

no peito. Ouvia o ruído dos seus


passos sobre as pedras. Ela andava

depressa, mas alcancei-a na borda


do pomar. A nossa respiração estava

áspera enquanto paramos por lá. O


vento retornara. Balançou os ramos
e levantou demônios de poeira. O
momento da luz azulada findara e a

escuridão começara a descer em


espiral. Minha mãe não se mostrou

surpresa em me ver. Sabia que


minha irmã me pertencia.

– Ela voltará para nós – eu disse.

Ela balançou a cabeça.

– Seu pai mandou isso como uma


punição para mim. Esse é o modo
que

ele busca a vingança.

Eu não acreditei que o homem que


me ensinara tudo o que sabia
pudesse ser tão cruel.

– Ele não faria uma coisa dessas –


arrisquei, sentindo amargura pelo

modo que o traíramos, sumindo com


as rajadas do Ruach Kadim. – Ao
contrário do seu, o amor dele era
verdadeiro.

Minha mãe me fuzilou com o olhar.


Apertou mais a capa ao redor do

corpo.

– Se não é um homem o responsável,


então é a vontade de Deus. Assim
sendo, não podemos desfazer o que
está destinado a ser. Portanto, reze
para que tenha sido uma maldição
do pai dela.

Além do campo, via-se uma


lâmpada acesa sobre a tosca mesa
dos

essênios, iluminando o grupo


desorganizado que se reunira para a
refeição

compartilhada da noite. Em vez dos


pergaminhos que geralmente eram

desenrolados para os homens se


ocuparem, vimos um banquete de

casamento com tâmaras e vinho,


coalhada e figos de sicômoro. Uma
tenda

fora montada sobre a mesa, como


proteção contra os redemoinhos de

poeira.

O olhar da minha mãe fixou-se no


líder dos essênios.

– Veremos se é a mão de Deus em


ação ou simplesmente a ganância
dos
homens – me disse ela. – Se
soubessem quem é o pai dela, nem
mesmo considerariam que ela fosse
da nossa fé.

Ela se encaminhou na direção de


Abba, o homem santo que não

conseguia mais andar. Até mesmo os


não crentes curvavam-se diante dele

em respeito à sua idade avançada e


à sua distinção perante o Todo-

Poderoso, mas minha mãe não


estava lá para oferecer seu respeito.
Notei que ela levava algo na mão,
que segurava firmemente com o
punho

fechado. Os homens essênios


também haviam notado e tentaram
bloquear

a passagem, para impedi-la de


causar qualquer mal a Abba. Pensei
em

como ela subia sozinha a Montanha


de Ferro para esperar as pombas.

Entendi por que as mulheres de


Moabe sentiam medo de encará-la.
Como
me ocorrera na costa do Mar de Sal,
descobri que também a temia.

– Elohim me protegerá – garantiu


Abba aos seus seguidores.

– Será que vai? – A minha mãe


levantou os olhos para Abba. Com a

cabeça descoberta, ela parecia


perigosa. – A única coisa que quero
é a minha filha.

Não era uma arma o que minha mãe


carregava, mas um punhado de sal.

E no entanto podia ser mais fatal que


um punhal, pois continha uma

maldição que ela pretendia lançar


sobre aquelas pessoas, uma maneira
de

prender o mal para que não pudesse


oferecer-lhe perigo.

Os homens protegeram os olhos,


para não serem encantados e

transformados por ela em monstros


ou cabras. Murmuraram orações,

invocando a misericórdia de Deus.


Minha mãe não prestou atenção. Ela
invocou os anjos do céu e os
espíritos da ira, implorando ao
Criador do universo que trouxesse
aflição sobre seus inimigos. Pensei
na maneira com

que os ladrões que o pai de Nahara


assassinara caíram entre nós, como
ramos de acácia, o sangue como
seiva, tão grosso que minha mãe
levou dias

para lavá-lo. Enquanto fazia isso,


ela amaldiçoara cada um deles, as

mesmas maldições que proferia


naquele momento.
O vento rasgou em tiras as roupas
que as mulheres essênias tinham

amarrado em um varal; sacudiu a


tenda do casamento. Minha mãe
ergueu

os braços e pareceu atrair o kadim


para si. Ela invocou as quatro
direções do universo. Quando o
lançou, o punhado de sal se elevou
como uma coluna

de fumaça, como se atendesse ao seu


comando.

O céu ficou preto e não conseguimos


ver uma única estrela no

firmamento; parecia que minha mãe


conseguira fechar a cortina do céu,

escondendo o Trono da Glória. Vi


uma expressão de espanto e medo
cruzar

o semblante de Abba. Ele percebera


que minha mãe era uma mulher culta,

não uma ovelha para ser conduzida


no campo. Ela não seria contida por
uma cerca de espinhos ou pela
indignação de um homem virtuoso.
Os essênios ficaram imobilizados,
como um rato permanece imóvel

perante uma víbora negra. Uma de


suas mulheres, uma velha avó,
pensou

em correr para um balde de água


suja a fim de lavar o sal lançado
pela minha mãe aos pés de Abba.
Mas não havia água suficiente para
lavá-lo completamente, e o que
restou formou um desenho que se
assemelhava a

uma serpente, que ficou preta


enquanto se filtrava na areia.
Abba, que mal conseguia andar,
levantou-se da cadeira. Ele
reconhecia

os sinais, mas os interpretava em seu


próprio benefício. Acreditava que
seu

povo fora escolhido por Deus e que


a paz era o único modo de venerar o
Todo-Poderoso. O fim do mundo
recaía sobre nós e o que fora escrito
não

poderia ser apagado ou desfeito.

– Não se pode enfrentar o que é para


ser com armas ou maldições. –

Enquanto ele falava, seus seguidores


circularam ao redor para protegê-lo.

– Eu a quero agora – minha mãe lhe


disse. – Você não pode tirar o que

pertence a outro.

– Ela não é sua filha – Abba disse à


minha mãe. – Ela é filha de Deus.

– É isso o que você acha? – disse


minha mãe.

Malaquias saiu da casa que antes


fora um celeiro de cabras, local em
que

seu povo vivia, todos juntos,


comendo dos mesmos pratos,
derramando

água sobre suas cabeças antes de


cada refeição, vivendo uma vida de

oração e de glorificação a Deus.

Abba indicou-o quando ele se


aproximou.

– Ela pertence a este homem.


O rapaz que a minha mãe expulsara
do pombal ouvira o conflito

crescente e o tumulto no campo e


deixara o leito conjugal. Lá estava
ele. O

noivo.

Minha mãe o encarou, entoando as


maldições do livro de
encantamentos

que sua mãe lhe legara, o livro que


viera de Alexandria e que viajara
para a
Montanha de Ferro e através do Mar
de Sal. Se o que acontecera pudesse
ser desfeito, seria desencadeado
naquele momento. O vento mudou de

direção, para fora dali, levantando


folhas e chacoalhando galhos. O
noivo entendeu o que minha mãe
tentava fazer, desmanchando os
pontos do

destino.

– Ela já é minha mulher – lhe disse


ele.

– Veremos se ela é sua esposa ou


minha filha.

Ninguém se atreveu a interferir


quando minha mãe passou por

Malaquias. Sua capa raspou nele e


ele se encolheu, temeroso do pecado
de

tocar em outra mulher a não ser sua


esposa. Quando a segui, mantive os
olhos baixos, embora Malaquias me
suplicasse ajuda.

Nahara fez o possível para manter a


porta fechada, mas não era páreo
para nós. Por fim, ela recuou. Por
um instante, quando a porta se abriu,
pensei que minha mãe se tornara
como os ladrões de Moabe,
reivindicando

o que pertencia aos outros. Senti a


garganta arder; cada respiração

queimava como fogo. Era muito


parecido com o que senti quando
tirara o

líquido quente da boca da minha


irmã no dia em que ela nascera, para
que

pudesse respirar pela primeira vez.


Talvez meu erro tivesse sido cuspir
o sangue aguado no chão em vez de
engolir a essência de sua alma.
Talvez ela

nunca tivesse me pertencido, pois eu


nos desligara naquele momento.

A minha irmã usava uma simples


túnica branca. O cabelo, geralmente

trançado e coberto por um xale,


estava desfeito e solto, negro como
o cabelo da minha mãe, tanto quanto
o meu. Eu a salvara somente para
vê-la
casar-se com Malaquias e viver
naquela casa de cabras. Mas onde
quer que

ela estivesse, por mais distante que


fosse, seria sempre a minha irmã.

– Venha conosco agora – nossa mãe


implorou. – Antes de pertencer a
ele.

– Antes? – Nahara ergueu o queixo


desafiadoramente.

O quarto estava quente, impregnado


com o cheiro persistente de suor e
sexo. Havia sangue no estrado em
que as mulheres daquela seita tinham
desenrolado um lençol de linho
branco para capturar a prova da
pureza da

minha irmã.

– Se ele soubesse que seu pai não é


do nosso povo, não quereria você –

eu disse.

– Mas ela não lhe dirá. – Nahara


acenou para a minha mãe. – É tarde
demais. Ele me possuiu e pertenço a
ele. – Ela parecia dominada pelo
seu

poder de nos magoar. Tinha as mãos


nos quadris, como se fosse a rainha
daquela casa malcheirosa de cabras.
– Se quer salvar alguém, salve-a.

Ela inclinou a cabeça na minha


direção, a minha irmã, a quem eu
amava

como a ninguém mais, que agora se


tornara a minha traidora. Pensei em
como cuidara dela com tanto carinho
quando morávamos na tenda da

Montanha de Ferro. Sempre que


nossa mãe era chamada pelo marido,
eu

cantava para minha irmã dormir. Ela


sempre dormira bem, o polegar na

boca, sonolenta assim que


começavam os primeiros versos de
uma canção

que lhe dizia que as estrelas estavam


acima dela, velando por ela.
Prometia

levar folhas de tamarindo e usá-las


como uma vassoura para varrer toda
a
noite, para que a manhã pudesse
retornar.

– Você não enxerga tudo o que ela


faz – agora Nahara falava de mim.
Ela

encarava a minha mãe sem nenhuma


tentativa de respeito. – Ela se

encontrou com Amram uma centena


de vezes e você não percebeu nada.

Abra os olhos agora.

A minha mãe voltou-se para mim.


– O que você esperava? – minha
irmã continuou. – Uma prostituta

aprende o ofício com aquela que


sabe melhor que todas.

Quando a nossa mãe estendeu a mão,


pensei que fosse pegar Nahara e

forçá-la a sair conosco. Em vez


disso, ela a esbofeteou. Nossa mãe,
que nunca fizera outra coisa senão
nos abraçar, fora levada a isso.

Ouvi Nahara engolir o ar com força.


Ela levantou a mão para a bochecha
avermelhada, mas não chorou. Ela
sorriu, mais composta que antes,
mais certa do que queria, pelo
menos naquilo a filha do seu pai,
destemida e obstinada.

– Pode tentar silenciar-me, mas não


pode negá-lo – ela disse à pessoa
que a trouxera à vida.

Lá fora, o vento do deserto subira


uma vez mais, a porta da casa de
cabras abriu-se com tanta força que
as madeiras se separaram. Era tarde
demais, como Yael avisara. O vento
continuaria conosco por dias,
obrigando-nos a cobrir a cabeça, a
comer os grãos de areia com a
comida, a

ouvir os seus lamentos até tarde da


noite. Eu, que só conhecia o ferro,
senti

as lágrimas arderem nos olhos.


Embora estivesse à minha frente,
minha

irmã não era mais minha.

Nossa mãe abaixou a cabeça,


desonrada. Pensei em como ela
labutara
para trazer minha irmã para este
mundo, pois fora sua testemunha
naquele

dia.

Salve-a, ela me ordenara.

Nem uma única vez Salve-me.

NA NOITE em que deixamos os


essênios, minha mãe rasgou seu
manto como

as mulheres faziam quando entravam


em luto. Há aqueles que dizem que a
nossa palavra para sepultura, kever,
também é usada para representar o
local em que o filho mora dentro da
mãe, pois a vida e a morte são
entrelaçadas. A filha que minha mãe
gerara para trazer a este mundo

morrera para ela agora. Ela nunca


confessaria qual era o verdadeiro
povo

de Nahara, pois então Nahara seria


uma mulher desonrada. Em vez
disso,

ela desistiu da filha. Não voltamos a


falar sobre minha irmã, embora
minha

mãe cantasse por ela durante sete


dias, como se cantava pelas almas
dos mortos, pois esse é o tempo que
o espírito permanece próximo do
corpo, incapaz de se separar da sua
forma terrena.

Dessa época em diante, vivendo


juntas no nosso alojamento, mesmo

com o passar do tempo, raramente


nos falávamos. Éramos somente nós

duas, pois meu irmão se mudara


para uma tenda perto do quartel, a
fim de

melhor servir os guerreiros, mas


também para evitar o silêncio entre
mim e

minha mãe. Um grande poço de


desconfiança formara-se entre nós,
um

lugar para se afogar. Qualquer um


com bom-senso ficaria longe de
tamanha

amargura, e Adir era um menino


prático.
Passei a trabalhar no pombal menor,
separada das outras. Não era

possível fazermos as pazes. Mentira


para minha mãe e a enganara.
Estivera

com um homem antes do casamento.


O que fora feito não poderia ser

desfeito, pois, mesmo nas mãos de


uma bruxa, uma mulher arruinada
não

voltaria a ser pura.

NO ENTANTO, quando me deitava


para dormir, era uma pessoa
diferente da mulher em que me
tornara. Sempre sonhava que andava
por entre os pés

de acácia. Pensava no meu antigo


amigo Nouri e em como o traíra,
fingindo

ser algo que não era, um ser formado


de nervos e músculos em vez de uma

mulher de carne e osso. Não fingira


tal coisa com Amram, mas talvez
tenha

ocultado dele o mais importante.


Nunca lhe disse o nome que me fora
dado.

Por isso, ele não me conhecia e


nunca poderia me conhecer, não
importava

quantas vezes me possuísse, ou


quanto lhe oferecesse o meu amor
em

troca.

Por esse motivo, mesmo quando


estava ao lado dele, eu estava
sozinha.
Ele não era o único para mim, pois
nunca aceitaria a minha parte

escondida. Ele me chamava de sua


ovelha, sua pomba, a sua menina

querida, mas eu não era nenhuma


dessas coisas. Comecei a evitar o
nosso

ponto de encontro. Ele, que me


conhecera como um marido,
esperava ao

lado da fonte, ardendo por mim. Mas


eu o observava das sombras, como
os
anjos observavam a nossa espécie
da sua distância solitária. Eu
ansiava por

aquilo com que sonhava, a liberdade


que já tivera. Nos meus sonhos,

perguntava ao pai da minha irmã se


ele vira a pessoa que eu era no meu
âmago. Ele me olhava com tristeza e
não respondia, pois perdera todos
nós

e não poderia nos acompanhar ou


responder, nem mesmo em sonho.

Comecei a usar uma velha túnica


que pertencera ao meu irmão. Era

marrom, tingida com cascas de noz,


macia pelo desgaste. Imediatamente

sentia-me confortável. Trançava meu


cabelo, depois prendia com uma

fivela de latão por baixo de um


lenço de cabeça, para que pudesse
passear

pela fortaleza, um menino sem nome


que se sentia muito grato por ser
ignorado.

Pela primeira vez, desde que


chegara ali, era eu mesma.

NO POMBAL, preocupávamo-nos
com o Homem do Norte no seu

confinamento. Entráramos no mês de


Iyar e nos aproximávamos do verão,

o mês de Sivan, quando o calor


subia do centro da terra e caía do
céu. O

Homem do Norte não era nada para


nós, um prisioneiro em uma torre,
um
homem que mal falava a nossa
língua, que era feito de gelo e nunca
fora destinado a viver no nosso
meio. Mais que seis meses haviam
se passado.

Outro homem teria morrido de fome,


mas outro homem não teria Yael e o

restante de nós para cuidar de suas


necessidades. Talvez tivéssemos nos
esquecido de que ele era um
escravo. A sua contenção tranquila
levara-nos

a fazer amizade com ele, pois, para


nós, ele não era como os outros
homens.

Não temíamos nem sua força nem


seu julgamento. De muitas maneiras
ele

nos surpreendera, ainda mais quando


pronunciara seu nome antes de ser

preso. Outros ficariam chocados


com a intimidade dessa revelação,
mas eu

entendia por que ele poderia ter


anunciado um detalhe tão privado.

Conheça o nome de um homem e ele


lhe pertencerá. Em troca, não
importa

o quanto negue, você será dele


também.

A primeira vez que Wynn me viu


empunhar o arco, no mês anterior à

sua prisão, ele percebeu que eu era


mais um rapaz que uma mulher. Ele
era

um guerreiro forte e reconheceu o


mesmo em mim. Eu deveria ter sido

mais cautelosa, mas estava tão


acostumada a lidar com armas que
não

poderia esconder a minha alegria ou


a minha habilidade. Percebi pela

expressão do Homem do Norte que


ele via em mim um irmão, alguém
com

quem poderia ter caçado em outro


mundo e outro tempo.

– Bom trabalho – me disse ele,


depois de ter testado as flechas que
fizera
para Amram.

As mulheres haviam retornado ao


pombal. Eu estava recolhendo as

flechas, puxando cada uma delas do


alvo na oliveira.

– Sim, excelente – disse


educadamente. Em seguida, riu.
Tinha um jeito

estranho com nossas palavras, que


pareciam frias quando as
pronunciava,

para ser mais precisa. – Excelente?


Estava me referindo à sua pontaria.

Quantos homens você matou?

Baixei os olhos para que ele não


notasse o brilho da verdade.

– Você acha que ataco as minhas


vítimas quando estou no tear à noite?

Ele pegou minha mão e examinou os


calos.

– Estes aqui não são de tear.

Ele me ensinou o modo de preparar


o armamento do seu povo como
faria com um irmão mais novo. Os
escravos não traem um ao outro e,

embora eu não estivesse a ferros,


era uma escrava da verdade de quem
nascera. Aquele homem chamado
Wynn era um bom professor,
paciente,

mais que disposto a compartilhar os


segredos sobre a guerra. Quando

amarrei as penas às hastes das


flechas, prendendo-as à maneira do
seu povo, elas voaram com maior
velocidade. Passava horas
praticando atrás
do pombal. Uma vez, derrubei uma
de nossas pombas; a ave achava-se
tão

distante que poderia ser confundida


com um rabicho de nuvem.

Wynn instruiu-me na arte do arco,


como tomar fôlego antes de puxar a

corda, depois esperar mais um


batimento do coração antes de soltá-
la. A espera daquele batimento a
mais revelou-se um milagre,
conferindo à

flecha vida, alento e velocidade. Ele


me falou de uma criatura do seu país
que era parecida com um cervo, só
que mais rápida que o vento, mais
até

que os leopardos no deserto, tão


rápida que somente as aves

acompanhavam o seu ritmo. Era isso


que desejávamos para as nossas

armas: as penas transformavam as


flechas em pássaros que fendiam o
ar. O

instante adicional antes do tiro era


comparado à maneira que a ave
mergulha, contendo o poder das
asas, antes de subir novamente em

disparada pelo céu.

QUANDO MEUS DEDOS


sangraram por causa da prática com
o arco, disse a Amram que os
perfurara nos teares. Ao contrário
do escravo, ele acreditou

em mim. Estava cego para quem eu


era. Era como se eu fosse uma
pessoa

que possuísse a capa de


invisibilidade que seu pai dizia ter
usado nos pátios do Templo quando
atacava os inimigos. Amram pediu-
me para tecer-lhe uma capa na sua
tonalidade favorita de azul, como
prova do meu amor.

Concordei, embora soubesse que


esse era um dom que jamais poderia
lhe

dar. Não sabia trabalhar no tear.

Meus braços ficaram mais fortes


depois de tantas horas de prática
com o

arco, tão musculosos como os de um


guerreiro, mas insisti que

desenvolvera a minha força de tanto


levantar as cestas que entregávamos

no campo. Durante semanas depois


disso, Amram veio ajudar-me a

carregar as cestas, imaginando que o


trabalho fosse uma carga muito

pesada para mim. Atrás dele, Wynn


sorriu, e eu retribuí o gesto, pois
alguns

segredos nos aproximam quando os


temos, assim como outros nos
separam.

EU NÃO queria saber o que havia


entre Yael e o escravo, embora
pudesse dizer que ele ardia por ela.
Uma vez Yael me dissera que a
pessoa a quem

eu amava era apenas da minha conta,


então dei-lhe o respeito que
merecia.

Ainda assim, via a maneira que ele a


olhava e sabia que ela deixava os
seus

ferros destrancados.
– Você já perguntou quantos homens
ela matou? – indaguei a Wynn um

dia. As palavras tinham saído em


tom de brincadeira, mas ele ficou
olhando

para Yael, sentido.

– Um, com certeza – disse ele.

Eu devia ter percebido então que ele


pareceria um tolo aos olhos dela,

por tentar convencê-la a fugir em sua


companhia. Ele era o tipo de homem
aberto que não podia se esconder,
mesmo se isso significasse ser posto
a ferros.

Era Yael quem lhe levava as parcas


provisões durante o tempo em que

ele permaneceu trancado. Ela nos


disse que mal conseguia ouvir o que

falava. Estava tão debilitado que


não conseguia se levantar do leito,
um catre áspero feito da palha do
trigo. A cela era fétida, tornada mais
imunda

pelos próprios dejetos. Ainda assim,


Wynn não reclamava ou
amaldiçoava

os seus captores, mas falava da terra


de gelo em que nascera. Era como se
a

estivesse vendo diante dos olhos. O


calor se dissipava quando ele falava
do

seu país, e ele estremecia como se


andasse na neve. Seu povo
acreditava que um homem voltava
para casa após deixar esta vida. No
outro mundo,
ele caminharia sob as grandes
árvores de teixo da sua pátria e
voltaria a se

reunir com aqueles que tinham


partido antes dele.

Um dia, ele insistiu que podia ver


um veado no lado de fora da janela.

Era o animal mais difícil de caçar,


pois voava pela grama como os
pássaros

voam acima de nós.

– É uma bela criatura – sussurrou


ele.

Yael chorou quando nos contou isso,


pois não havia veados no nosso

país, e nenhuma janela na sua cela.

Foi uma época sombria. Tínhamos


consciência de que nossas vidas

estavam ali, tão apartadas do resto


do mundo que bem poderíamos estar
no Mundo Vindouro. Em breve
celebraríamos o Shavuot, a Festa
das Semanas, em memória do dia em
que Moisés recebeu a Torá. No
passado, o
nosso povo fazia uma peregrinação
ao Templo de Jerusalém, com

sacrifícios de bikkurim, os
primeiros frutos produzidos depois
de sete semanas de trabalho no
campo, ofertando as sete espécies de
colheita:

trigo, cevada, uvas, figos, romãs,


azeitonas e tâmaras.

Essa era a nossa tradição e a nossa


lei, mas não havia mais Templo para

onde viajar, tínhamos pouco a


comemorar e nenhum lugar em que
oferecer

um sacrifício. Nossos pomares não


produziam, apesar da chuva que
minha

mãe chamara. Havia tão poucos


grãos que muitos dos vasos de

armazenamento achavam-se apenas


pela metade. As pessoas se

perguntavam se isso era obra dos


demônios. Na verdade, quando
chovia

agora o céu formava-se sobre nós


tão densamente que a chuva em si

parecia feita de pedra.

Apesar de ter sido dito que Massada


nunca poderia cair, e que Deus

fizera essa montanha com o


propósito da nossa rebelião,
permitindo-nos

continuar a glorificá-lo, imaginei


por quanto tempo poderíamos
aguentar o

cerco dos romanos. Os armazéns do


rei não nos sustentariam para
sempre.

O azeite, o vinho e as lentilhas de


Herodes tinham nos alimentado, e
dependêramos disso, mas eles não
existiam mais. Tínhamos uma grande

prensa de azeite, mas as azeitonas


nas árvores eram poucas e o azeite
produzido mal enchia frascos
pequenos. Os ratos mandavam nos
depósitos.

Dizia-se que haviam sido trazidos


pelos romanos, propositadamente

deixados para trás para o caso de o


nosso povo retomar essa fortaleza,
para

que nos transmitissem doenças,


devorando o pouco que nos restasse.

CORRIA A NOTÍCIA de que a


guarnição romana capturara outro
reduto zelote no deserto. A fortaleza
de Maqueronte, a leste do Mar de
Sal, na fronteira de Moabe, caíra
perante a décima legião, comandada
por Lucilius Bassus, um

general que alguns diziam ser


impossível derrotar. Um oráculo
declarara que ele seria sempre
favorecido e assim parecia ser.
Embora o nome

Maqueronte significasse espada,


talvez a sua derrota inevitável tenha
sido

causada pelas mãos do próprio


povo. Havia uma história sangrenta
sobre aquele lugar, e corriam
rumores de que um grande professor
chamado João

fora preso e decapitado ali quando


se recusara a renunciar aos seus

ensinamentos.
Também se contava que, quando os
rebeldes de Maqueronte chegaram à

fortaleza, quiseram destruir tudo o


que pertencia ao cruel Herodes e
seus

filhos. Por zelo, eles cortaram um


arruda enorme que era cultivada
havia centenas de anos, uma planta
mais alta que qualquer figueira, um
talismã

que, segundo se dizia, guardaria o


segredo da liberdade e do sucesso
do nosso povo. Com aquela ação
impulsiva, tinham destruído suas
chances de

vitória. A arruda pode poupá-lo ou


arruiná-lo, ela pode trazer sorte ou
agonia. Dizia-se que diversos
guerreiros ficaram tão assombrados
por esse

ato que tentaram plantar outra erva


no mesmo local, mas as raízes
sempre

murchavam e se recusavam a pegar.

Quando os romanos os cercaram, um


de seus guerreiros mais queridos
foi preso. Ele foi torturado em
público, para que todos pudessem
ver como

era horrível o procedimento, brutal


demais para que a maioria dos
homens

decentes pudessem imaginá-lo. Seus


amigos e entes queridos foram

forçados a assistir ao modo que os


romanos cortavam pedaços da sua
carne

e o enchiam com plantas espinhosas


queimadas ainda acesas, separando
a

pele coberta de bolhas da alma. Os


companheiros guerreiros pediram a
sua

liberdade e a promessa da sua


segurança, dispostos a se entregar
em troca

da vida do irmão. A barganha foi


feita e os rebeldes desceram a
montanha.

A segurança fora assegurada, mas


nunca concedida. Não foi nenhuma
surpresa para o nosso povo ouvir
que Lucilius Bassus era mentiroso.

Quando os nossos guerreiros


pensavam em demônios, imaginavam
o seu

nome. Todos os homens de


Maqueronte foram mortos, seu
sangue

tornando o chão preto.

Os romanos fizeram piras altas com


os corpos empilhados – não apenas

os mortos foram lançados às


chamas, também os fracos e os
doentes,

aqueles que não eram dignos de ser


escravos. Os sons de seus gritos

ecoaram por toda a Judeia. Algumas


mulheres nos nossos campos
juravam

que caiu uma chuva de pedras nesse


dia e, quando o último dos figos foi
amassado no chão, viram-se
formigas dentro da fruta pegajosa,
destruindo-a de dentro para fora.

Houve uma reunião de oração na


sinagoga e os homens que lá estavam

foram atingidos pelo horror da


notícia. Naquela noite ouvimos não
apenas

orações, mas também discussões.


Como poderíamos evitar o mesmo

destino de Maqueronte? Ouvimos a


voz de Ben Ya’ir, baixa e constante.

Sabíamos que era ele porque,


quando falou, todos os outros
ficaram em silêncio.

– Nunca deixaremos nossas


mulheres e crianças morrerem em
piras –

ele disse aos seus guerreiros.

Não havia escolha para nós,


advertiu, não haveria retirada. Era
evidente

que a nossa força nascia de sua


coragem; ainda assim, quando fui
aos campos vi que os figos tinham
realmente caído; na que deveria ser
a época

mais verde do ano, o fruto dourado


jazia enegrecido no chão.
*

YAEL PREOCUPAVA-SE não só


com Wynn, mas também com o seu
filho. Arieh servira como a chave
com a qual fora aberta a porta
trancada da torre. Ele

fora apresentado à esposa do nosso


líder para a sua diversão em troca
da

permissão de levar provisões ao


escravo. Mas algumas chaves podem
ser

usadas para muitos tipos de


fechaduras e nunca devem ser
emprestadas ou

cedidas. A esposa do nosso líder


tomara um gosto perigoso por Arieh
e uma

nova prisão se criara, feita dos seus


braços e da rede dos seus desejos.

Eu observara essa mulher morena


sozinha à noite, caminhando ao lado

da muralha que nos cercava, como


se ela fosse uma sombra em busca
da substância para trazê-la à vida.
Talvez a criança fosse a cura para a
doença

que a esposa do nosso líder


carregava dentro de si, a
esterilidade e o desespero.

A esposa de Ben Ya’ir começara a


reter Arieh quando Revka a
procurava

no fim do dia, insistindo em ficar


com o bebê durante a noite,
balançando-o

como se ele fosse seu filho. Ela


proferiu a ameaça de que, se não
pudesse
manter Arieh consigo, não poderia
mais oferecer proteção ao escravo.
Por

que o bárbaro poderia viver e ela


não ter nada em troca pelos seus

esforços? Ela chegou ao ponto de ir


ao sacerdote para escolher um dia
auspicioso para a morte de Wynn.

Yael foi pessoalmente ao palacete


quando soube disso. Ela curvou a

cabeça para Channa, mas disse-lhe,


em termos inequívocos, que aquela
deveria ser a última visita de Arieh
em troca da vida do escravo.
Quando naquela noite regressou para
recuperar a criança, a porta estava
trancada.

Um guarda postava-se no lado de


fora a pedido de Channa. Ele era o
amigo

de Amram, Uri, que trouxera Yael


para a fortaleza, um jovem de boa
índole

que era apreciado por todos. No


entanto, ele negou sua entrada.
– Fazemos o que nos mandam –
disse ele, desculpando-se. – Ela fala
pelo

marido, assim como por ela mesma.


Você entende. Não tenho escolha
neste

assunto.

Yael passou a rondar em volta do


palácio, como os mendigos vagam

pelos mercados com as mãos


estendidas. Nas noites em que Revka

mantinha vigília ao lado de Yael,


era a mulher mais velha que
chorava, culpando-se pelo que
acontecera, pois fora ela quem fizera
o acordo com Channa. Minha mãe
avisara que nada de bom poderia vir
de um acordo com

a esposa de Ben Ya’ir. Ela era


perigosa, dissera a minha mãe. Mais
do que

aparentava. Eu ouvira Revka


insistindo em que o interesse de
Channa pelo

bebê era apenas capricho de uma


mulher solitária.
Minha mãe rira friamente em
resposta.

– Então, talvez devêssemos dizer


que uma cobra tem capricho por uma

pomba quando falamos da sua fome.


Espere e verá o quanto Channa está
disposta a devorar.

Yael procurou a minha mãe,


chorando, desesperada por um
feitiço que a

ajudasse a recuperar o filho.

– Deve haver algo que você possa


fazer – pediu ela.

Eu tinha certeza de que a minha mãe


ajudaria a sua favorita. Em vez
disso, ela balançou a cabeça
tristemente.

– Não devia ter deixado que ela o


tocasse. Agora ela o tem em suas
garras.

– Dê-me algo para derrotar o


demônio – Yael implorou.

– Ela não é um demônio, é uma


mulher – disse a minha mãe com
tristeza.
– Nesse caso, é pior.

COMECEI a vigiar com os outros.


Nós todos chegáramos a desprezar
Channa pelas liberdades que
tomava, exibindo o menino,
vestindo-o com uma

túnica que tecera para ele. Aquela


mulher, que se afastara de todos por
tanto tempo, a quem os criados
serviam no jardim e na cozinha
enquanto o

restante de nós passava fome,


mostrava-se orgulhosa exibindo-se
na praça
às tardes com ele no colo, como se o
bebê fosse seu, conversando com as
outras mulheres, que se apressavam
em admirá-lo, dizendo como era

bonito, como sorria com facilidade.

Os netos de Revka agiam como


nossos espiões, acompanhando a
esposa

de Ben Ya’ir todos os dias,


relatando-nos suas atividades. Noé e
Levi tinham

a capacidade de desaparecer nas


sombras, embora tivessem
recuperado a

voz plenamente. Dizem que quando


perdemos alguma coisa, e ela
retorna a

nós, é duplamente agradável, e


assim foi com os netos de Revka.
Quando tornaram a falar, suas
palavras cativavam os ouvintes.
Parecia que as

conversas que haviam sido


silenciadas por tanto tempo agora
eram

travadas com doçura, e o que


comentavam era trazido de forma
artística, seus relatos se
materializando à nossa frente como
escritos no ar.

– Ela vai até onde a víbora negra


vive sobre as rochas e faz uma
oferenda

– eles nos confidenciaram. – Ela


alimenta o bebê com os próprios
dedos, enchendo-o de figos, romãs e
bolos de cevada, como se ele fosse
uma

pomba. Ela diz que ele é tão doce


que as abelhas o perseguem.
O menino mais velho, Noé, parecia
muito com o pai, o Homem do Vale,
o

guerreiro solitário, um lutador sobre


quem eu tinha curiosidade. Amram

contara-me que era impossível


afastar esse homem de uma
carnificina,

permanecendo em combate quando


os demais teriam recuado, e com

habilidade. Ele corria riscos que


somente um louco assumiria,
cortejando o
Anjo da Morte, chamando-o,
desafiando Mal’ach ha-Mavet a
aparecer quando empunhava o
machado tosco, a única arma de que
tinha

necessidade. Seus companheiros de


batalha o admiravam, mencionando-
o

com respeito, e até mesmo


admiração, mas não lutavam ao seu
lado.

Sabiam que um homem que não tem


medo da morte é o mais perigoso de
todos.

O que torna uma mulher perigosa, no


entanto, nem sempre é tão

evidente, pois o que é imperceptível


ao olho humano muitas vezes é o
atributo mais fatídico. O que está
escondido pode destruí-lo. Os
demônios

aparecem no escuro, quando você


menos espera traição, quando seus
olhos

estão fechados. Quando a minha mãe


se recusou a enfrentar Channa,
perguntei-me qual poderia ser o
poder daquela mulher escura sobre
ela.

Examinei Channa atentamente e


continuei vendo uma criatura fraca,
mas

que tecera uma teia forte.

– A esposa do nosso líder sussurra a


Arieh que somente ela o protege –

disseram-nos os netos de Revka. –


Ela o adverte contra as mulheres que
espreitavam junto à muralha. Diz
que ele nunca deve acatar uma delas
chamada Yael, pois ela lhe contará
mentiras e rogará que acredite que
ele

lhe pertence.

Yael empalideceu ao ouvir essas


palavras caluniosas, as sardas do
seu

rosto destacando-se como se


tivessem sido feitas de sangue.
Ainda assim,

mandou os meninos descobrirem


mais. Eles rastejaram pelo jardim ao
lado
do palácio, esgueirando-se pelos
canteiros de hortelã, manjerona e
sálvia, chegando o mais próximo
que ousaram. Os meninos
espionaram Channa à

espera do marido, à porta com o


bebê nos braços, como se Arieh
tivesse sido uma prenda.

– E o que o marido dela diz sobre


isso? – Yael quis saber quando os
netos

de Revka retrataram a situação, a


voz afiada.
– Ele passa por ela – comentou Noé.
– Nunca a olha.

Ao ouvir isso, Yael balançou a


cabeça, satisfeita. Estava magra e
inquieta,

mas fazia o possível para se


convencer de que o filho lhe seria
devolvido.

– O que está feito pode ser desfeito


– disse-nos.

Não dei minha opinião, mas ouvira


minha mãe dizer a mesma coisa no
dia do casamento da minha irmã, e
Nahara continuava ligada ao marido.

Não estava certa de que nossas


vidas fossem tão semelhantes a fios,

podendo ser separados, depois


novamente entrelaçados.

UMA NOITE, enquanto continuava a


observar, juntamente com Revka e
Yael, vimos o grande homem entrar
no seu alojamento. A minha mãe
recusara-se

a nos acompanhar, tendo feito uma


advertência que fora ignorada. Notei
que ela empalidecera à menção do
nome de Channa. Ela não estava
entre

nós quando reconhecemos os


ombros largos de Ben Ya’ir e seu
manto de oração, e como ele andava
empertigado, à maneira de um rei,
embora na verdade não se
importasse em ter propriedade sobre
o que quer que fosse

naquela terra e tivesse se desfeito


dos bens que possuía quando
observara

a ganância dos ricos em Jerusalém.


Sua esposa podia dormir no palácio,
mas Eleazar ben Ya’ir permanecia
fora, sob as estrelas, ou ia ao quartel
passar as noites ali, para que seus
guerreiros soubessem que não era

diferente daqueles que comandava.

Decidimos que seria melhor


procurá-lo, para informá-lo da
situação de

Yael. Ele era conhecido por ser


justo; quem sabe fizesse um
julgamento a favor da mãe
verdadeira. Mas, quando chegou a
hora, as outras sentiram-se
nervosas demais para enfrentá-lo,
em razão da carga do nosso povo
que ele

suportava. O peso daquela fortaleza


em cima de um único homem era tão

imenso que Revka e Yael temeram


parecer tolas ao pleitear Arieh.
Como ousávamos envolver o nosso
líder em problemas tão mesquinhos
quando

Jerusalém caíra e havia demônios à


espera de todos nós?

Éramos então a única fortaleza de


rebeldes na Judeia. Todas as outras
tinham sido conquistadas e isso
aumentara o interesse de Roma em
nós, restávamos apenas nós. A
princípio nos exaltamos, orgulhosos
por mostrar

que não fôramos vencidos e


mantínhamo-nos firmes na nossa

determinação. Mas pouco a pouco


fomos ficando mais temerosos da
reação

da legião, agora que percebiam que


somente nós conseguíramos
sobreviver.

Até mesmo Revka, conhecida pela


língua afiada, recusava-se a abordar
o

nosso líder com a preocupação


sobre uma única criança, ainda que
se

tratasse do nosso amado Arieh. Ben


Ya’ir era um homem muito
importante,

com inúmeras preocupações. Eu, no


entanto, não tinha tais temores.
Eleazar ben Ya’ir era um guerreiro
como qualquer outro. Um homem era

apenas um homem, e eu matara a


parte deles que me coubera na outra

vida. Vira que todos entregavam a


vida a Deus da mesma maneira.

Ofereci para ir ter com ele.

Yael estava tão surpresa quanto


agradecida.

– Vejo a sua beleza assim como o


meu irmão – ela disse com
simplicidade.

Ultimamente, eu chegara a acreditar


que Amram via apenas a beleza de

uma mulher, nada mais. Tudo o que


eu era se escondia atrás da cabeleira

preta, a mulher que eu aparentava


ser. Nada comentei com Yael,
limitando-

me a aceitar sua gratidão, depois


rumei para os muros do palácio com
a escuridão já se instalando. Segui
em silêncio, sabendo como espreitar
a presa e como envolver-me nas
sombras.

Quando cheguei a uma janela, subi


em uma pilha de gravetos e alcei-me

até o peitoril, para espiar lá dentro.


O aposento continha poucos móveis,
a

maioria já quebrada e usada como


lenha. Mas o piso de mármore e os

afrescos me surpreenderam. Por um


momento senti-me subjugada,

pensando na realeza que ali vivera,


sem medo nem pobreza. Entendi por
que se dizia que a rainha do Egito
implorara a Roma a posse dessa

fortaleza. Então observei Channa e a


cautela apoderou-se de mim. Ela

estava sentada em um banco perto da


lareira, sussurrando para o menino,

segurando-o junto a si. A alegria que


ela sentia por ele era tão evidente
que

agradeci por Yael não estar ali ao


meu lado para vê-la.

Junto ao fogão havia um berço de


acácia trabalhada, feito por um
mestre

marceneiro de Jerusalém. Via-se um


amuleto de proteção amarrado acima

de onde a criança descansaria a


cabeça. O colchão em si era
opulento, forrado com finos lençóis
de linho, e viam-se sinos de bronze
amarrados aos balanços, para que o
som expulsasse os demônios. Quanto
a Arieh,

usava uma túnica roxa, como se


fosse o filho de um rei. Parecia que
a criança não tinha outra casa além
daquele alojamento e que todas as
suas

necessidades eram atendidas.


Naquele momento entendi que
aquela

mulher não tinha a intenção de


devolvê-lo.

Pensei no pai da minha irmã, como


ele era capaz de se transformar em

um furacão contra os inimigos, e


como eu poderia tornar-me
igualmente
temível caso desejasse. Mas
precisava esconder essa parte de
mim, como fizera com Amram. Não
poderia subir pela janela ou
alcançar a faca deixada

sobre a mesa para pegar o que


queria. Em vez disso, bati na porta

educadamente.

Não esperava que o grande homem


atendesse.

– Estou aqui para buscar a criança –


disse suavemente, apresentando-
me como uma mulher bonita e nada
mais. Queimara meia dúzia de ramos

de acácia em memória das almas


que libertara. Cobrira-me com o
sangue das cabras e sentira o seu
calor. Naquele momento, baixei os
olhos. Ainda

assim tive um vislumbre do nosso


líder, que me olhou com tal
intensidade

que entendi por que Yael e Revka


tiveram medo de falar diretamente
com
ele.

– A criança? – disse ele, confuso


com a minha presença e com o meu
pedido.

Ele parecia mais imponente que a


maioria dos homens e senti-me

desaparecer quando abaixei a


cabeça. Obriguei-me a me lembrar
da pessoa

que fora um dia, dos homens que


matara, das noites que me
pertenceram.
Ergui os olhos para ele.

– A mãe a espera.

Ben Ya’ir virou-se para ver Yael,


ao lado de Revka e dos netos, que
esperavam junto ao muro. Não eram
diferentes das sombras

remanescentes sobre a terra quando


os que eram injustamente
condenados

à morte se mostravam incapazes de


encontrar descanso.

– Ela tem uma mãe? – A sua


surpresa me fez perceber que a
esposa lhe

dissera o contrário.

– Todas não têm?

O rosto do homem grande torceu-se


em um sorriso. Fiquei aliviada.

Talvez tenha sorrido também.

– E um pai? – perguntou ele.

– Nem todo mundo tem – apressei-


me a dizer.

– Todo mundo tem – me assegurou


ele.

Ele me disse para esperar, então


fechou a porta. Olhei para o jardim
que

era cuidado pelos escravos. Havia


uma fonte de pedra da época do rei,
agora seca, a borda rachada, os
remates quebrados em pedaços
sobre o

chão. Uma variedade de ervas e


hortelã cresciam em fileiras, e o
odor que

se desprendia delas era verdejante e


doce. Ouvi o canto de pássaros,

embora estivesse escuro e os


pássaros não voassem depois do
crepúsculo,

apenas as corujas silenciosas que


viviam nas cavernas da montanha.
Ainda

assim, eles cantavam, um sinal


estranho àquela hora.

Dei a volta por trás da fonte. Mais


adiante, abaixo da treliça de uma
trepadeira de pepino, com suas
folhas verde-escuras, via-se uma
gaiola de

madeira. No interior dela havia duas


pombas aconchegadas, arrulhando.

Senti a faísca embaixo do meu olho,


como se a mensagem que

encontrara uma vez no chão ainda


me queimasse. Meu coração pesou,
a tal

ponto que duvidei que fosse capaz


de fugir, embora quisesse fazê-lo

naquele momento. Gostaria de saber


se essa gaiola de pombos continha
os

mensageiros para a Montanha de


Ferro e se fora por isso que a minha
mãe

se recusara a vir a essa casa e


arriscar-se à ira de Channa.

Ben Ya’ir reapareceu à porta, o


bebê em seus braços. Eu podia ouvir
o choro ecoando no aposento atrás
dele. Eu voltara pelo mesmo
caminho

através do jardim, o aroma de


hortelã apegado às minhas vestes, o
ruído das pombas uma música que
carreguei comigo e que me
acompanhava

desde o outro lado do Mar de Sal,


onde as pombas engaioladas comiam

cereais na minha mão enquanto


esperavam que a minha mãe as
libertasse.

– Foi isso que veio buscar? – ele me


perguntou, estendendo-me a

criança.

Quando ele falou, entendi por que os


homens o seguiriam mesmo que

pudessem morrer e nunca mais


voltar, e por que acreditavam nele.
Embora

quisesse lhe dizer que encontrara as


pombas, percebi que não diria outra
palavra na sua presença. Ele pôs o
bebê em meus braços. Eu deveria
ter-lhe

agradecido, mas não consegui falar.


Ele esperou por tanto tempo que eu
o

fizesse que o próprio silêncio foi


eloquente sobre o que havia entre
nós.

Antes de voltar para seus aposentos,


Eleazar ben Ya’ir pôs a mão sobre a

minha testa, suavemente, como se


cumprimentasse uma filha. Naquele

momento eu soube que era ele o


homem por quem a minha mãe fizera

tantos sacrifícios, a razão pela qual


fora expulsa de Jerusalém, o motivo
pelo qual esperara dia após dia na
Montanha de Ferro, até que a pomba
regressasse com a mensagem para ir
procurá-lo, enfim.

NAQUELA NOITE, quando regressei


ao alojamento, não pedi à minha mãe
para pronunciar o nome do meu pai
em voz alta. Fiquei observando-a
enquanto

penteava o longo cabelo negro com


um pente feito com a madeira da
acácia

das florestas de Moabe. Vi as


tatuagens sobre a sua pele. Ela era a
mesma, a

mulher que jamais se dispusera a me


dizer quem eu era, que não
ofereceria

ajuda a Yael se isso significasse ser


forçada a se postar diante do
inimigo que me usara como prova
para nos expulsar para o deserto.

Vi o meu rosto refletido em uma


bacia de água e reconheci os olhos
do

meu pai me fitando de volta. Agora,


quando as pessoas dissessem o seu
nome, estariam dizendo o meu
também. Caminhei sozinha pela
noite,
vestida com a túnica e o manto de
Adir, procurando aqueles que
falavam do

meu pai, querendo ouvir sobre seus


feitos no campo de batalha e sobre
sua

magnanimidade com relação aos


necessitados. Ele insistia que todos
os

homens eram iguais, fossem servos


ou sacerdotes, e assegurava-se de
que

todos seguissem a lei segundo a qual


não devíamos colher a fruta dos
quatro cantos do nosso pomar, como
Deus ordenara, para garantir que até

mesmo os mais pobres entre nós


encontrassem misericórdia ao passar

fome.

Tive ímpeto de ir falar com ele, algo


de que fora incapaz enquanto

estivera na sua presença. Quando


soube que haveria uma competição
de

arqueiros entre os guerreiros,


apresentei-me, como o rapaz que
fora um dia, o rosto coberto por um
lenço, com o arco que usara para
testar as minhas flechas preso às
costas. Quem sabe visse meu pai e
ele me

reconhecesse por quem eu era, como


agora o conhecia. Esperei passar o
dia, observando os homens, com os
braços fortes e as costas distendidas
enquanto puxavam os arcos. Eles
lançavam brados fraternais e

competitivos, culpando o vento por


errar o alvo, elogiando os
companheiros de melhor pontaria.

Quando chegou a vez de Amram,


notei a admiração evidente entre os

companheiros de armas pela sua


habilidade. Também quis elogiá-lo,
mas

sentia algo além disso. Sentia a


picada do ciúme, uma ferroada de
vespa no

coração. Ben Ya’ir estava entre os


guerreiros que aplaudiam os jovens
e elogiou Amram com sinceridade.
Pensei no modo que ele me
abençoara e

me perguntei se não seria essa a


razão de ter nascido sob o signo do
metal,

a razão de querer mais que as outras


meninas. Mesmo naquele momento,

ao avistar a multidão de jovens


mulheres nas laterais, soube que
jamais poderia assistir ao lado delas
sem arder de vontade de estar entre
os homens.

Poderia ter-me retirado


silenciosamente para o alojamento,
mas nas

horas obscuras do dia em declínio vi


pairar sobre nós o falcão cujas
penas

usara para fazer as flechas para


Amram. Lembrei-me das manchas de
tinta

vermelha das raízes de garança nas


mãos quando as preparara

cuidadosamente. Fizera as flechas


como um presente, mas nunca as

entregara. Finalmente entendi que o


tempo todo queria as flechas para

mim. Fizera-as não em honra da


Fênix que significava o meu amado,
mas em memória do lírio vermelho
que crescia nos campos em Moabe,
como

uma lembrança da pessoa que eu


fora.

Levava-as agora, escondidas sob a


capa.

Encontrei-me na fila dos arqueiros,


empurrado até ali por um demônio,
ou talvez pelo meu orgulho, um
rapaz desconhecido autorizado a
competir,

embora claramente ninguém me


visse como concorrente. Ninguém se

preocupou em prestar atenção


quando a minha primeira flecha
atingiu a

marca do alvo. Talvez a segunda


flecha os tenha convencido a se
virar e observar. Quem sabe tenha
sido a terceira. Eu me concentrava
em uma
única coisa: o exato momento em
que recuava o arco, esperando,
como

Wynn me instruíra, de modo que a


flecha pudesse mergulhar e depois
subir

como os pássaros. Não dedicava um


único pensamento à garota que fingia

ser. Ouvia o vento e nenhuma outra


voz. Pensava nos meus dois pais,

aquele que me ensinara tudo o que


sabia e o outro com quem queria
aprender naquele momento.

Quando estreitei os olhos, vi meu


caminho à frente, em linha reta como
o

ferro.

As minhas flechas cortaram as que


já estavam no alvo, lançando as dos

outros guerreiros ao chão. Os


guerreiros observavam naquele
momento. O

vermelho das penas era impossível


de ignorar, um campo de lírios. No
instante em que terminei, instalou-se
o silêncio.

Vi Ben Ya’ir ficar de pé quando a


multidão soltou um grito. Os meus
ouvidos zumbiam, como se uma
tempestade tivesse se abatido sobre
mim,

um turbilhão no outro lado do Mar


de Sal. Murmurei um sussurro de

gratidão para o pai da minha irmã e


para os homens com quem montara,
e

para Nouri, a quem sempre superara.


Fiquei parada por um instante, a

minha felicidade completa,


desejando poder manter essa visão
diante de

mim para sempre. Mas uma visão é


como um sonho, que se dissipa logo
que

se tenta prendê-lo, e a minha visão


levantou-se para ser reclamada por
Ele,

que nunca deve ser esquecido. De


uma só vez, pude ouvir a verdade
daquele momento. Meus olhos e
ouvidos eram meus uma vez mais. A

multidão clamava por Adir,


proclamando-o o herói do dia.

Todos pensaram que eu era o meu


irmão, convencidos de que era ele o

mestre arqueiro. Todos aplaudiram,


mas eu me virei. Os guerreiros e os
presentes continuaram a chamar
Adir para homenageá-lo, mas
apressei o

passo para a Praça Ocidental,


subindo os degraus rapidamente,
saltando

como se a minha vida estivesse em


risco. O mundo estava ali diante de
mim,

as escarpas e o vale abaixo delas,


mas aquele mundo já não me
pertencia.

Dera-o ao meu irmão.

Encaminhei-me a um jardim
abandonado atrás do Palácio do
Norte, uma

área murada a que as mulheres iam


procurar alho e ervas que haviam
sido

plantados havia muito tempo e


esquecidos. Viam-se cotovias ali,
bicando a

vegetação, mas todas elas se


agitaram quando me aproximei, a
respiração

quente e irregular. Tirei as roupas


de Adir. Não passavam de um
disfarce idiota. No local em que
parei crescia o alecrim, considerado
a erva da lembrança, uma porta para
o passado. Meu coração batia forte
contra o peito e meus membros
tremiam. Enrolei-me no meu lenço
enquanto

chorava por quem era.

O falcão me seguira. Talvez fosse o


que Wynn treinara para vir à janela

do pombal, uma ave de rapina


destemida, capaz de abaixar a
cabeça e tirar

migalhas da mão de Yael. Ergui os


olhos para o céu. Vê-lo pairando no
ar acima de mim fazia-me lembrar
do que era a liberdade. Quisesse ou
não, o

passado me acompanharia. Seria


sempre eu mesma por mais que
tentasse

fugir da verdade.

Sob meu manto, ainda trazia o arco


apoiado nas costas.

DO ALTO DA NOSSA montanha, os


moradores muitas vezes avistaram
soldados da legião durante o calor
crescente de Sivan. Cada vez mais
enviavam seus exploradores para
observar a nossa montanha, os quais
se reuniam na base

rochosa lá embaixo. Eram os


soldados de reconhecimento, cuja
única

missão era procurar inimigos e


informar aos seus generais. Havia
muito os

romanos tinham conhecimento da


nossa presença ali, assim como
tinham

se informado sobre Maqueronte e


sobre as outras fortalezas mantidas

pelos zelotes. Estávamos longe de


Jerusalém e portanto eles nos
ignoraram,

mas nossa fama crescera e as


histórias sobre nossas glórias
chegaram aos

ouvidos romanos. Nossa rebelião


era cada vez mais comentada nos

mercados das cidades de toda a


região. Shir tishbohot, cânticos de
louvor, eram entoados em nosso
nome, e aqueles que comemoravam
nos

denunciavam a Roma em sussurros e


depois em tons mais altos. As
pessoas

diziam que a nossa montanha era


invisível e que os sicários usavam o
alfabeto hebraico para criar uma
cortina ao nosso redor, um tecido

construído de ar e vapor do céu que


se separava da terra. Diziam que era

possível avistar o trono do nosso


Senhor do alto das nossas torres. O
homem que governasse esse lugar
governaria o mundo.

Os soldados da legião podiam vir


nos investigar, mas tudo o que
veriam

era a impossibilidade de preparar


um ataque. Ben Ya’ir fez circular um
comunicado dizendo que, quando
viessem os exploradores,
deveríamos

ficar nos nossos alojamentos, de


modo que não pudessem contar
quantos
éramos. Quem sabe nos
considerassem mais fortes do que de
fato éramos, e

que possuíssemos milhares de


guerreiros, e não uma aldeia deixada
aos

cuidados de homens e mulheres


idosos e crianças todas as vezes que
os homens saíam para realizar
ataques. Deixássemos olhar tudo o
que

quisessem. Tudo o que veriam seria


uma montanha à qual a glória de
Deus
nos enviara, um rochedo tão
impenetrável que eles nunca nos
derrotariam.

Alguns dos nossos meninos


empurravam pedras pelas encostas,
que

desciam escorregando como um


aviso, e riam quando os soldados se

espalhavam lá embaixo.

Eu não ria ao ver as túnicas brancas


da décima legião ou o estandarte do

javali. Sentia um calafrio correr


pelas costas. Na verdade, o nosso
povo não

era páreo para os soldados romanos,


que haviam sido treinados com uma

única finalidade, ser uma máquina


mortífera. Nossos guerreiros eram
os

melhores quando se esgueiravam


como lobos, atacando os inimigos no

escuro. A única esperança de


sucesso dos rebeldes era um ataque

inesperado, quando, com a graça de


Deus, a rapidez e a ferocidade

prevaleciam sobre a potência.


Contra as tropas bem-organizadas e

blindadas, que tinham tanta


experiência de guerra, o nosso povo
estava lamentavelmente
despreparado. Nossos pais e irmãos
eram combatentes

da liberdade, não soldados


treinados. Ao contrário do pai da
minha irmã, os

homens de Massada não eram


guerreiros desde que nasciam, cada
um com

um cavalo já escolhido e uma faca


na mão. Eles haviam sido
sacerdotes, padeiros e estudiosos, as
suas armas eram as facas, as flechas
e as pedras,

não o bronze e o ferro. Não éramos


nada contra o poder implacável do
Império Romano.

QUANDO NOSSOS GUERREIROS


decidiram acompanhar um grupo de
exploradores para descobrir o
quanto a legião estava próxima da
nossa montanha, Yael
deu-me um presente para entregar a
Amram, um pedaço de tecido azul,
da

cor do céu, da glória de Deus e do


Seu trono.

Amram riu e guardou o tecido junto


ao seu coração.

– Não vamos nos separar por muito


tempo – disse ele, reconhecendo o

encantamento. – A minha irmã viu


isso.

Ele me disse que o tecido o levaria


a mim, não importava para quão

longe viajasse. Pôs as mãos em


volta do meu rosto e me beijou. Em
seus braços senti um ímpeto de
medo, pois o que havia entre nós já
acabara, apesar da lembrança. Fui
até a muralha para vê-lo descer com
os

guerreiros. Não fazia ideia de que


meu irmão planejava partir com eles
até

que encontrei a minha mãe ali, fora


de si de preocupação.
– Ele não passa de um menino – ela
me disse, preocupada. Vinha

parecendo doente ultimamente,


recusando suas refeições, fechada
em si

mesma. Agora estava pálida. – Por


que fariam isso? Por que ele iria?

Eu me sentia muito culpada para


responder. Os guerreiros
acreditavam

que Adir fora o arqueiro no


concurso e, portanto, o levavam
como
companheiro. Era por isso que ele
agora caminhava ao lado deles, por

causa das minhas flechas vermelhas.


Seu destino era meu fardo, porque
os

fizera olhar para ele com estima. A


minha mãe pensava em Adir como o
seu

bebê e ainda amarrava amuletos às


suas vestes para protegê-lo do mal.
Ele

rasgava essas coisas da túnica,


rindo, dizendo que a nossa mãe não
fazia ideia do que significava ser um
homem.

Adir completara treze anos de idade,


mas ainda não estava pronto. Eu

matara meu primeiro íbex quando


tinha apenas dez anos, mas fora

preparada para o sangue. Cavalgara


com homens que eram destemidos.

Aprendera a queimar os ramos da


acácia para homenagear os espíritos
dos

mortos. O meu irmão pensava que


ser homem significasse seguir

cegamente o caminho dos guerreiros,


apesar da sua falta de habilidade.

Pensava em grandes glórias, não em


poças de sangue, certamente não

imaginava a brutalidade de que seria


testemunha quando seus

companheiros fossem retalhados à


sua frente.

Rezei com minha mãe no nosso altar


enquanto ela cantava e queimava
óleo pelo retorno seguro de Adir.
Amaldiçoei-me por isso, porque
deveria

ter sido eu a ir no seu lugar. Minha


mãe escreveu os nomes de Deus em
seus braços e depois nos meus, para
sermos ouvidas no céu, embora as
mulheres não tivessem permissão
para essa prática. Somente os
sacerdotes

podiam fazer essas súplicas ao


Todo-Poderoso, mas minha mãe não
temia

desrespeitar a lei. Sacrificamos uma


pomba e escrevemos com seu sangue

sobre as penas, prendendo todos os


demônios que pudessem seguir o
meu

irmão ao vale. Cantamos baixinho


para ninguém ouvir, pois não nos

atrevíamos a revelar o que fazíamos


no nosso alojamento mais do que eu

me atrevia a revelar a verdade sobre


o meu irmão que estava partindo.

Proclamo a majestade do Vosso


esplendor, para assustar todos os
espíritos

dos anjos da destruição e daqueles


que atacam de repente e nos
desviam do

caminho. Destruí os seus corações


maus na vigência do governo da
maldade.

Eu proferi essas palavras com minha


mãe, mas não proclamei que fora a

maldade que enviara o meu irmão


para a batalha, e que era eu quem

deveria me corrigir.
*

EM UMA MANHÃ clara e tórrida,


as pombas caíram dos ninhos sem
explicação.

Reunimos todas elas e as deixamos


juntas, tentando aquietar seus corpos
trêmulos até que revivessem. Várias
morreram naquele dia, sem motivo

aparente. Embora estivéssemos com


fome, não poderíamos prepará-las

como uma refeição para nós mesmas


ou para os nossos guerreiros quando
retornassem em segurança, porque
as pombas haviam morrido de
alguma

doença.

Talvez a hora em que as pombas


caíram assinalasse o momento em
que

Channa retornara ao sacerdote para


escolher um dia para a morte do

escravo. Certamente, todas nós


sentimos a morte por perto; ela
passou
como uma sombra lançada pelas
nuvens e sentimos frio. A minha mãe

levou as pombas para o altar em seu


quarto, cobriu a cabeça e murmurou

uma prece para manter afastado o


Anjo da Morte, mas o sacrifício não
foi

suficiente. No mesmo dia foi


publicado um anúncio. Na tarde
seguinte a guarda iria até a torre e o
mundo ficaria livre do escravo. Nós
não éramos

selvagens como os romanos, que


crucificavam seus inimigos para
causar a

maior dor que um ser humano


poderia suportar, estendendo sua
morte o

máximo de tempo possível enquanto


o homem permanecia esticado em

cima de uma cruz de madeira para


que a agonia perdurasse. Em vez
disso, o

escravo teria a garganta cortada, a


morte mais gentil, a que dávamos até
ao
mais humilde dos animais, de modo
que sua respiração o deixasse de um
único ímpeto.

Quando a noite caiu, Channa


esperava junto à muralha, próximo
ao

alojamento de Revka. Usava uma


capa, mas os netos de Revka a

identificaram instantaneamente,
como se acreditava que fossem
capaz de

perceber os demônios. A esposa do


nosso líder não tinha medo, apenas o
calor do seu desejo, que ardia com
mais fervor que o ar à nossa volta.
Arieh

logo completaria um ano de idade;


era uma criança sossegada e
querida, já

tentando andar. Channa atreveu-se a


procurar Yael; ela foi negligente,

como são muitas vezes os


desesperados, mais que disposta a
desobedecer o

marido, que a advertira a manter


distância. Mas nessa ocasião Ben
Ya’ir achava-se entre os guerreiros
em perseguição aos romanos e,
portanto, não

poderia julgá-la ou puni-la por seus


atos. Ela estava mais forte que antes,
graças ao remédio da minha mãe,
forte o bastante para causar danos.
Ela carregava um ramo de hissopo,
como se insultasse a flor que lhe
causara tanto sofrimento.

Revka chorou ao vê-la.

– Isso é culpa minha. Atraí um


demônio sobre nós.
– Não. – Yael trazia o rosto
mascarado, mas parecia segura de
si. – É meu

castigo.

– Você não fez nada – Revka


insistiu.

– Um ladrão conhece outro – Yael


murmurou, resolvida.

Arrumou todos os pertences de


Arieh, depois encaminhou-se à
muralha,

o bebê em seus braços.


– Negócio é negócio – disse Channa.
– Não estou sendo muito exigente,

só quero o que me devem.

Elas estavam próximas do jardim em


que Yael soltara o escorpião. Ele

não aparecera naquela noite, mas


ainda estava lá. As crianças o viram
e sabiam que o que não se vê pode
ser mais perigoso do que o que está
visível. A batalha que travávamos
era apenas para nos manter
alimentados;

talvez o escorpião passasse fome


como nós. Quanto a Channa, era a
esposa

de um homem rico: apesar da


insistência de seu marido de que
todos

éramos dignos das dádivas de Deus,


ela recebia mais que a sua parte.

– Você cuidou bem dele – ela disse


com aprovação a Yael, pois notou
que

a mancha afogueada na bochecha do


bebê desaparecera. Yael banhara o
filho em óleos e esfregara um
bálsamo na sua pele. – Tenho
certeza de que

podemos chegar a um acordo como


mulheres razoáveis. – Quando
Channa

acariciou o rosto do menino com


carinho, Arieh sorriu-lhe. – Ele fica
melhor

comigo.

YAEL NÃO SE FEZ DE ROGADA,


como seria o caso de algumas
mulheres. Não tinha tempo para tais
favores. O escravo tivera permissão
de viver. O acordo fora

mantido; ainda assim, qualquer um


que confie em uma serpente merece
a

sua mordida. O sábio julga uma


criatura pelo que ela é, não pelo que
diz que

pode ser.

Depois de terminar as tarefas no


pombal, Yael saía para buscar
lenha.
Fazia isso com tanta frequência que
as sentinelas já a conheciam. A filha
de

cabelo vermelho do assassino. Ela


saía no fim do dia, quando o sol
estava se

pondo. Na penumbra, encontrava os


galhos que serviriam para acender o

fogo e mantê-lo queimando. E


retornava somente quando o
crepúsculo

tingia de escuro o céu claro. Às


vezes, ela se sentava sobre a
muralha sob a

luz âmbar, a cesta de galhos ao seu


lado, o lenço tecido sobre o cabelo
escorregando um pouco, de modo
que mechas do seu cabelo brilhavam
na

cor escarlate. Ela sabia que os


guardas a observavam, demorando
os

olhares sobre a sua pele. Por isso,


permitiam que fizesse o que
quisesse.

Todos os dias ela ia mais para baixo


na montanha, encontrando

caminhos pelos quais poucos


ousavam seguir, a não ser o íbex,
que não temia o desmoronamento
dos penhascos. O lenço que usava
fora tecido

com o desenho do país do norte que


nenhum de nós jamais veria, uma
terra

em que o gelo era tão profundo


como um rio, onde um homem
poderia

congelar em instantes, onde as


flechas de cada guerreiro eram
marcadas com o sinal do veado.

Quando Yael pediu a minha ajuda,


acompanhei-a de boa vontade,

embora no momento tivéssemos


mais madeira empilhada na nossa
porta

que qualquer um na montanha.

– Estou surpresa que não tenha


pedido à minha mãe – eu disse.

– A sua mãe os deixaria


desconfiados. Os guardas confiam
em você.

Ao nos aproximarmos das


sentinelas, Yael disse para eu puxar
o xale da

cabeça, para que os guardas vissem


o meu cabelo preto comprido.
Éramos

duas jovens recolhendo madeira,


alegres e bonitas. Acenamos com
uma

saudação. Todos os dias fazíamos


essa viagem. Os guardas nunca se
preocuparam em nos questionar,
apenas nos olhavam, elogiando os
nossos

braços nus, que lhes permitíamos


ver e apreciar.

Yael dizia uma oração todas as


vezes que passávamos por uma
pequena

caverna. Ela segredou que um leão


vivia ali dentro, mas jurou que
olhava por nós. Às vezes ela
deixava uma pomba como oferenda;
às vezes, alguns
fios do seu cabelo. Parecia
convencida de que ele era o seu
guardião. Ao mesmo tempo, eu me
sentia aliviada por levar uma lâmina
comigo, para o

caso de a criatura de que ela falava


decidir se voltar contra nós.

O ar fresco da noite tornava


perfeitamente compreensível que
nos

avolumássemos sob as nossas capas.


Eu usava um xale extra, o que
tornava
a minha aparência mais volumosa.
Meu lenço de cabeça ia bem
amarrado,

quase cobrindo o rosto. Um dia,


Yael levou-me um manto
acinzentado.

Pertencia ao seu pai, ela me disse.


Pensei no talento do seu pai e em
como

ele instruíra Amram nos segredos da


invisibilidade. Sabia que era
possível

um homem tornar-se uma nuvem ou


uma névoa aos olhos do inimigo;
vira

Amram fazê-lo quando queria


desafiar minha mãe, para me
encontrar em

segredo.

Assim que vesti a capa do assassino,


os guardas já não me notaram.

Desapareci na frente deles, como se


me tornasse algo que não valesse a
pena olhar. Eles gritaram uma
saudação a Yael, cujo cabelo
vermelho
brilhante tanto admiravam, mas
ignoraram-me enquanto segui logo
atrás

dela, carregando um feixe de lenha


seca.

No dia em que estava para


acontecer, fui à torre na hora que
Yael

escolhera. Após a refeição, o guarda


postado ali muitas vezes adormecia
em

seu banco, o estômago inchado da


sua ração de lentilhas e feijões. No
bolso,

eu levava a chave de metal retorcido


que minha mãe fizera para mostrar
como seria fácil o escravo fugir do
pombal, de modo que os
funcionários não desconfiassem que
Yael destrancara as correntes.
Mantive a capa do assassino sobre a
cabeça. Ninguém me perguntou
quando passei pelo longo

corredor e depois cheguei à escada.


No fim do corredor o guarda
cochilava,

como Yael me garantira. Entrei na


cela do escravo, sentindo-me
atordoada

com a sujeira e o mau cheiro com


que me deparei. O ar estava escuro,
mas

pude ver o pobre Wynn no seu leito


de trapos. Ele estava tão sujo que
ninguém imaginaria que os tufos do
seu cabelo raspado fossem claros
como

o gelo ou que a sua pele fosse da cor


do leite, como quando chegara para

trabalhar conosco.
Apesar da escuridão, Wynn
reconheceu-me, pondo-se de pé para
me

cumprimentar.

– A guerreira – disse ele com


carinho.

A sua voz estava fraca,


desmanchando-se na garganta. O seu
corpo já

não era forte, debilitado pela falta


de ar e de alimento.

– Sou outra pessoa hoje – informei.


– Quem seria essa? – ele estava
completamente confuso.

Sorri, depois tirei a minha capa e me


pus diante dele.

– Sou você.

NENHUMA das sentinelas tomou


conhecimento quando as duas
mulheres passaram pelo portão, uma
delas pouco perceptível, envolta em
uma capa

acinzentada. Estavam acostumadas a


nos ver deixar a fortaleza àquela
hora,
quando a escuridão se avizinhava no
céu, quando a cortina entre o dia e a

noite se abria para anjos e


demônios. Deixaram de notar que
Yael chegou

com os gravetos e agora voltava


sozinha, demorando-se na muralha
para

olhar por cima das montanhas, onde


o falcão pairava, circulando de volta
como se pudesse retornar, antes de
desaparecer na escuridão crescente.

Na torre, esperei até entender que


Wynn estava livre, repetindo o
salmo

de proteção. Shivitti Adonai l’negdi


tamid. Sempre pus o Senhor adiante
de mim. Fiquei contente de saber
que era a estação em que cresciam
as cebolas silvestres, quando os
coelhos se aventurariam a comer a
grama

nova. Talvez ele conseguisse


sobreviver no deserto para encontrar
seu

caminho de volta ao país do veado.


Nenhum guarda apareceu à porta que
eu destrancara para a fuga. Saí

despercebida, usando a túnica que


levara para passar mais uma vez por
um

rapaz, facilmente considerado um


daqueles que ajudavam a guarda da

torre.

A GUERRA chegou mais perto no


mês cintilante de Tammuz, quando
cuidávamos das videiras e o próprio
ar tinha um cheiro doce. Grandes

bandos de aves nos sobrevoaram,


voltando dos campos do sul,
pelicanos e

cegonhas, andorinhas e falcões.


Viam-se multidões de pessoas
também,

atravessando o deserto antes de ser


capturadas, uma maré correndo à

frente da décima legião. Alguns dos


andarilhos nos procuraram. Quando

imploravam misericórdia, eram


autorizados a montar as suas tendas
nos

nossos pomares, e as frutas que


caíssem nos quatro cantos eram-lhes

concedidas, como ordenava a nossa


lei comum. Os retardatários não
eram

os únicos que estavam famintos. As


frutas caídas e o pão sírio mal eram
suficientes para saciar a nossa fome.
Eu saía para além da muralha e
capturava pássaros em redes feitas
de cordões. Quando me cansei de
caçar
como uma menina, levei o meu arco
e atirei em faisões para pôr sobre a
mesa.

Ninguém dizia uma palavra quando


me via andando na praça com o arco

nas costas; talvez as pessoas


acreditassem que a arma fosse do
meu irmão

e que, na sua ausência, eu cuidasse


de algo que justamente lhe pertencia.
O

mais provável era que pensassem


que eu servia somente para limpar
as

flechas que carregava, pois as


pontas seguiam manchadas de
sangue.

Apesar do fato de a minha mãe ter


estado de luto pela minha irmã, e
agora a considerasse entre os
mortos, eu levava faisões aos
essênios

sempre que podia. Nahara não


estava morta para mim. Eu sempre a

observava entre as mulheres simples


e trabalhadoras. Lembrava-me de
como ela me acompanhava pela
grama na nossa outra vida, como a

mandava voltar correndo para a


nossa tenda, mergulhando atrás dela
como

uma coruja, fazendo-a rir. Pensei


nos anos em que dormíamos no
mesmo

estrado, muitas vezes sonhando o


mesmo sonho, de modo que mesmo
com

os olhos abertos conversávamos


sobre as nossas visões durante a
noite. Eu

sempre ansiara que o pai dela fosse


o meu pai, para poder ser a sua irmã

em todos os sentidos. Agora temia


que ela corresse se me atrevesse a
lhe falar, pedindo que voltasse.

Depois de presentear as aves de


caça, eu ia me sentar ao lado de
Nahara

em um banco de madeira no lado de


fora da casa das cabras. Juntas,

depenávamos os faisões. Em pouco


tempo formava-se um círculo
cintilante

de penas marrons e verdes aos


nossos pés.

– Você ainda pode caçar – minha


irmã observou significativamente.
Os

essênios acreditavam que uma


mulher não deveria tocar uma arma
ou tirar

uma vida.

– Quando ninguém está observando.


– Sorri, esperando que ela

participasse da brincadeira de quem


eu costumava ser. Em vez disso, ela
balançou a cabeça. Minha irmã, com
quem dividira os sonhos, cujo sopro
de

vida era o mesmo que o meu, cujo


verdadeiro pai era um segredo para
o seu povo, considerava as minhas
ações vergonhosas.

– O Todo-Poderoso observa.

Senti a estocada do seu julgamento.


– Eu me curvo para dirigir as minhas
orações a Ele. Isso também é

observado.

– Estamos no limiar do fim, mas


você age como se os dias fossem
durar

para sempre, um igual ao outro.

Era como se a minha irmã tivesse se


tornado a minha mestra e eu não

conseguisse progredir nos meus


estudos. Nahara estava convencida
de que
nos aproximávamos do Fim dos
Dias e, assim como os seus
professores

essênios, acreditava que era tolice


deixar-se consumir pelas minúcias
da vida cotidiana. Aqueles que se
recusavam a aceitar a verdade de
que o mundo como conhecíamos em
breve não mais existiria seriam
informados

do contrário.

O tecido da túnica e do xale da


minha irmã estava esfarrapado, por
não
ter havido tempo para consertar a
tecelagem e, pelo que ela me disse,
não

haveria nenhum propósito em fazer


isso. Se fosse o Fim dos Dias, então
a

túnica da minha irmã seria o seu


traje mortuário. Ela me confidenciou
que

seu povo já não dormia. Havia muito


trabalho a ser concluído nos

pergaminhos, revelando a verdade


de Deus, e muito pouco tempo para
fazê-lo. Talvez esse fosse o motivo
por ela estar tão pálida. Estava tão
magra que os ossos abaixo da
garganta destacavam-se através da
pele. Ela

me disse que seu povo muitas vezes


rezava durante toda a noite,
esperando

para ver se o sol se levantaria


novamente e se haveria de fato outra
manhã.

Estávamos sujas de sangue pelo


preparo dos faisões. As aves seriam
penduradas em um cordão para que
o restante do sangue fosse drenado
do

corpo antes de serem salgadas e


cozidas. O nosso povo nunca
consumia

sangue. Essa era uma das mais


rigorosas leis de Deus. No entanto,
tínhamos

as mãos manchadas com o sangue


dos faisões. Peguei a mão da minha
irmã

na minha. Ela me traíra perante a


nossa mãe, mas eu não seria capaz
de abandoná-la.

– O que essas pessoas têm para lhe


oferecer?

– Tudo. – Nahara retirou a mão da


minha, balançando a cabeça,

desapontada comigo. – Eles me


oferecem um mundo de paz, Aziza.

Ela olhou para o quartel e para o


estoque de armas guardado ali. As
crianças tinham sido destacadas
para preparar as rochas,
transformando-as em pedras
arredondadas, para que fossem
lançadas contra o nosso

inimigo com grande força caso se


mostrassem temerários o bastante
para

nos atacar. Nahara voltou-se para


mim, os olhos úmidos. Ela sempre
tivera

o coração mole nas horas de


matança. Fechava os olhos quando
nos

deparávamos com um coelho em


uma armadilha. O nosso povo não
comia

coelhos, que eram considerados


impuros, mas o povo do pai de
Nahara não

tinha tais leis. Você faz isso, ela me


dizia enquanto a pobre criatura se
debatia na armadilha. Eu pegava o
coelho e cortava sua garganta

rapidamente, para que ela não


tivesse de assistir. Fazia tudo o que
ela pedia.

– Você não pode achar que essa seja


a resposta – ela disse sobre os
montes de armas.

– O que o seu povo quer que você


faça se formos atacados? – quis
saber.

– Confiar em Abba. – As suas mãos


estavam cruzadas sobre o colo. Ela
parecia calma e bela, aparentando
ser mais velha que a sua idade.
Pensei que ela se referisse ao líder
do seu povo, então percebi que
queria dizer Deus. Ela, a exemplo
dos outros essênios, alegava ter uma
relação pessoal

com o Todo-Poderoso. Falava de


Deus como se fosse de fato Sua
filha.

– E se isso significar que devemos


morrer? E então? Deitar-se e deixar
que Roma nos pisoteie?

Nahara olhou-me cheia de


compaixão, como se eu fosse a irmã
mais

nova, singela demais para entender.

– Depois ressuscitaremos.

– O seu pai era um homem de


coragem. A paz era algo que ele
lutava para manter.

Ela sorriu gentilmente da minha


observação. Vi nela um pouco da

menina que um dia ela fora antes de


nos deixar.

– Não se luta pela paz, irmã –


Nahara me disse. – A paz é algo que
se acolhe.

– Não no mundo do seu pai –


lembrei-lhe.

Nahara riu abertamente, pois isso


era inegavelmente verdade.
– Isso foi há muito tempo. Você era
outra pessoa então. Assim como eu.

– Você chorou por causa dele


quando partimos. Pensamos que ele
iria

ouvi-la em Petra, tão alto você


chamava por ele.

– Eu era uma criança. – Nahara


encolheu os ombros estreitos. – Meu
pai

era o único homem que eu conhecia.


Agora… – ela inclinou a cabeça
para a
comprida mesa sobre cavaletes, na
qual Malaquias trabalhava em um
texto

– ... pertenço a ele.

Eu ouvira dizer que Malaquias


escrevia tão bem que os anjos
vinham ver

o seu trabalho, porque as palavras


foram a primeira coisa que Deus
criou

do silêncio e ainda era a mais bela


de todas as Suas criações.
– Então ficarei feliz por você –
disse.

Fui embora, deixando os faisões


com minha irmã, incapaz de lhe
dizer a

verdade. Não importava o que ela


fizesse ou a quem ela amasse, fora
eu quem lhe dera a vida neste
mundo, um mundo que ela estava
ansiosa e pronta para deixar, em que
havia acácias que atraíam as abelhas
para as suas flores, em que havia
campos infinitos de grama e cassis.

Não importava o que dissesse, ela


ainda me pertencia.

ESTAVA CAMINHANDO à noite,


como passara a fazer para poder
apreciar a minha liberdade como um
rapaz, quando me deparei com os
essênios escavando

próximo da sinagoga. A terra era


rochosa, branca como as estrelas
acima de

nós. Era tarde da noite e havia


nuvens de morcegos no céu, em
busca dos

últimos frutos de sicômoro nas


ravinas áridas abaixo. O ponto alto
da época

mais quente logo se abateria sobre


nós e o ar estava pesado com o
calor, grosso como uma cortina.

Aproximei-me furtivamente,
escondendo-me atrás de uma
cidreira que

já não dava o fruto do etrog.


Embora a árvore estivesse atrofiada
e sem folhas, a casca ainda
rescendia a uma fragrância peculiar,
aguda e doce ao
mesmo tempo.

Vi que os homens seguravam uma


grande urna, constituída de uma

simples peça de cerâmica de cor


castanho-acinzentada, do tipo em
que

guardavam os seus pergaminhos.


Enterraram-na com cuidado,
cantando

suavemente, em seguida apressaram-


se a repor a terra santificada. Os
seus
cantos os levaram a um tipo de
êxtase e eles se balançaram para a
frente e

para trás, levantando os fios atados


dos seus xales de oração para o céu,
para que Deus pudesse ouvi-los e
alegrar-se com as orações.

Pensei nas estranhas atividades dos


essênios pelo restante daquela

noite. Na noite seguinte voltei a me


infiltrar nas sombras. Novamente

encontrei-os trabalhando, enterrando


secretamente outra urna.
De manhã perguntei à minha mãe o
que poderia significar para os

homens piedosos perturbar a terra


santa de forma secreta e temerária.

Minha mãe estivera doente por


alguns dias, apática e pálida,
deixando os assuntos do pombal
para mim, Yael e Revka, incapaz de
comer outra coisa

senão sopa e água. Fizera um chá de


ervilhaca amarga e pepino, de cor
verde, muito forte, que bebia durante
o dia. Não podia suportar o calor
subindo e derramava água sobre a
cabeça, trançando o cabelo molhado

para que permanecesse úmido contra


o couro cabeludo.

– Eles estão enterrando os seus


pergaminhos, pois estão de partida.

Tinha certeza disso, pois estudara os


costumes dos essênios quando eles
chegaram. Os pergaminhos eram
tudo para eles, os documentos da sua
fé. –

Querem se certificar de que sua


palavra sobreviva caso pereçam e
não

confiam em nenhum de nós para


mantê-los seguros. É a sua maneira
de

fazer as malas antes de partir.

– Temos de detê-la – chorei,


pensando apenas na minha irmã.

O assunto era urgente; precisávamos


resgatá-la agora. Gostaria de ter

uma corda para atá-la e um lenço


para cobrir a sua boca para que ela
não
gritasse como fizera quando fugimos
do seu pai. Pediria a Yael a capa da
invisibilidade, que ela usara para
levar embora o Homem do Norte,
para cobrir a minha irmã da cabeça
aos pés. Se o marido de Nahara
chegasse para procurá-la, veria
apenas o orvalho sobre a grama.

A minha mãe balançou a cabeça


tristemente quando sugeri as
medidas a

serem tomadas.

– Não podemos fazer isso. Acha que


não vi o destino dela assim como o
seu?

O cabelo úmido da minha mãe


brilhava no escuro. Ultimamente, ela
não

conseguia beber água suficiente e


estava seca durante todo o dia.
Passara a

usar um xale preto. As suas mãos e


pernas estavam inchadas e a sua
pele

perdera o brilho, mas ainda assim


continuava linda. Alguns homens
diziam
que o céu empalidecia diante dela e
que no Mundo Vindouro os anjos se
atreveriam a chamá-la para o seu
lado com medo de que a sua beleza
os cegasse.

– No instante em que conheci o


essênio, soube que ele era a pessoa
que

iria tentá-la com o caminho que ela


não deveria trilhar. Vi a destruição
dela

como vi a sua. Por que você acha


que o expulsei do pombal?
– Não consigo entender.

Sentia uma espécie de fúria dentro


de mim. O tempo todo a minha mãe

me dizia que eu seria a única a ser


desajustada pelo amor, não Nahara.
Eu

mudara o rumo da minha vida, não


uma, mas duas vezes, simplesmente

porque ela me dissera para fazer


isso. Fizera o que mandara sem

questionar, sem duvidar. Lembrei-


me de como queimáramos as minhas
roupas na costa do Mar de Sal,
como negara quem era, disposta a
fazer qualquer coisa para agradá-la.
Afastara-me de Amram. Incapaz de
revelar a

minha verdadeira natureza, agora


sentia pouco por ele.

– Segundo me disse, era eu quem


deveria ficar longe do amor. Agora
está

dizendo que esse é também o destino


de Nahara? E quanto ao de Adir, já
foi
escrito também?

A minha mãe olhou para longe, mas


segurei seu braço. Ela estremeceu e

virou-se para mim. Percebi que


estava mais forte. Já não tinha medo
dos seus poderes. Não tinha o dever
de manter as promessas de uma
mulher que me dissera apenas
mentiras.

– Diga-me a verdade de Deus, não a


sua. É esse o destino de todos os
seus filhos?

– Foi o meu – a minha mãe admitiu.


Sua voz estava rouca, ela parecia
frágil e aturdida. – Foi o meu
destino. Quem quer que eu amasse
estaria condenado. – O ar estava
denso e sombrio dentro do nosso
alojamento,

como se estivéssemos debaixo da


água. – Tentei não amar você.

As lágrimas corriam pelo rosto da


minha mãe quando ela disse isso,
mas

eu não tive piedade. Ela destruíra a


pessoa que eu poderia ter sido se
não
tivesse interferido no meu destino.
Toda a minha vida baseava-se nas
suas

mentiras.

– Você conseguiu – eu disse


friamente.

– Quis proteger você. Do amor e


também de mim.

Pensei que, embora ela estivesse


chorando, eu não me importava.

– E tentou não amar Ben Ya’ir? –


comentei rudemente.
– Ah, não – disse ela. – Nesse
assunto não tive escolha. – Ela
levantou os

olhos para mim. Pela primeira vez,


ela me apresentava a verdade. – Eu
o amava demais.

A CASA DAS CABRAS estava vazia


quando cheguei. O campo tinha
pouco mais que pedras; os nacos de
grama que restaram haviam secado,
tufos

amarelados sem valor. Ao contrário


do dia do casamento de Nahara,
quando ela apoiara o corpo contra o
umbral da porta para impedir o
nosso

caminho, agora a porta abria-se sem


oferecer resistência. Aquelas
pessoas

não acreditavam em trancas, pois a


única chave que lhes importava era
a que Moisés usara para revelar as
inúmeras verdades de Adonai.

Eles tinham muito pouca coisa


consigo, algumas cabras, as roupas
que
usavam, os utensílios de escrita,
para poder continuar a louvar a
Deus enquanto o mundo ao redor
desmoronava. No interior, o chão
fora varrido.

Gostaria de saber se a vassoura


encostada na parede estivera nas
mãos de

Nahara. Peguei-a nas mãos por essa


razão, mas a madeira estava fria.
Não

restava uma migalha a ser vista, até


mesmo os ratos que recentemente
haviam caído em cima de nós teriam
pouca razão para procurar nos
cantos

desse alojamento ou debaixo das


camas de palha bem-arrumadas. No

quintal, o varal continuava amarrado


entre duas tamareiras, uma corda

grossa feita de pelo de cabra que eu


poderia ter usado para amarrar a
minha irmã, mantendo-a conosco se
tivesse sido rápida o bastante para

salvá-la pela segunda vez.


Pelo canto do olho, vi um menino
atrás de uma árvore. Era o filho de
Tamar, Yehuda, que estava chorando
no chão.

– Ela não me deixou ir junto – me


disse ele.

Vi que ele fora amarrado a uma das


palmeiras. A mãe dele fizera o que

eu tivera a intenção de fazer para


prender Nahara. Yehuda fora
forçado a

permanecer conosco, onde Tamara


esperava que estaria seguro.
Abba decidira que o seu povo não
poderia participar da nossa guerra.

Não importava que não se


envolvessem diretamente na batalha.
Seus olhos

não deveriam testemunhar nosso


depósito de armas. Eles não
poderiam

permanecer ali de bom grado


sabendo da nossa intenção de
enfrentar a

legião caso fôssemos atacados. E


assim fora decretado, uma
mensagem

enviada de cima por Deus. Eles já


não podiam comer as frutas dos
nossos

pomares, beber a água das nossas


cisternas ou nos aprovar de qualquer
maneira. Se existissem filhos das
trevas e filhos da luz, e se houvesse
uma

batalha constante entre os dois,


então teriam traçado uma linha entre
nós,

muito embora suas antepassadas,


Raquel, Sara, Rebeca e Léa, serem
as

nossas também, ainda que orássemos


ao mesmo Deus, Ele que não tinha

outro equivalente. Não podíamos


reivindicar o mesmo mundo.

Desamarrei Yehuda e levei-o à casa


de Revka. Os seus braços

apresentavam queimaduras de corda,


pois tentara desesperadamente

escapar dos laços que o prendiam.


Perguntei a Revka se poderia cuidar
dele

naquele momento de infortúnio. Ele


era um menino de cabelo escuro,
olhos

claros e cabeça grande e resoluta, já


se esforçando para ser um homem,
humilhado pela decisão da mãe de
deixá-lo para trás. Os netos de
Revka conheciam-no bem e Yehuda
pareceu se conformar na companhia
deles,

embora continuasse com os olhos


marejados.
Dirigi-me à muralha, para descobrir
qual caminho traiçoeiro os essênios

haviam escolhido. Eles seguiam em


direção a uma caverna situada em
uma

das faces da montanha em que era


impossível escalar os penhascos. As

hienas a habitavam e ela seria


imunda por dentro, repleta de
dejetos e de

ossos espalhados. Um rebanho de


íbex assustou-se quando os essênios
se
aproximaram. As cabras selvagens
correram para os lados em um
esforço

para fugir, lançando pedras com


seus cascos, uma cortina de poeira
se elevando enquanto os
pedregulhos rolavam para o vale
abaixo.

No redemoinho de poeira podia


jurar que vira Domah, o anjo da

sepultura, cujo nome significa


silêncio, aquele que visita os mortos
para perguntar o nome verdadeiro da
alma antes que o espírito parta em
sua viagem. Mas quando o ar
clareou vi apenas os essênios com
suas vestes brancas, descalços,
apesar da rudeza da terra, ignorando
os espinheiros que ali cresciam e os
escorpiões que repousavam sob as
rochas. Pensei ter

visto Nahara atrás dos homens, a


cabeça coberta por um xale, os
olhos voltados para o alto, como se
confiasse totalmente no caminho e
não

temesse uma queda.

Mas era outra mulher, cujo nome


nunca soube, não a minha irmã.

NO PRIMEIRO dia do mês de Av,


Yael veio à nossa mesa. Era a época
do ano que nos trazia pouco mais
que lágrimas e sal. Éramos todos
cautelosos no mês

em que os dois Templos haviam


caído, a mesma data em que se dizia
que

Moisés quebrara as tábuas recebidas


de Deus quando se deparara com o
seu povo adorando um ídolo, o nove
de Av, o Dia da Calamidade, quando
o

mal era liberado sobre nós. Se ha-


olam é o mundo e le-olam é para
sempre, então os dois estão
interligados. No entanto, no mês de
Av o mundo que deveria durar para
sempre parecia algo bem frágil. A
pedra se

desintegrava, a morte nos perseguia,


cidades caíam.

Não comentamos sobre o


desaparecimento do escravo. Ainda
sentíamos

a sua presença, pois o falcão voltara


a pousar no peitoril do pombal à
espera da amante que tão
gentilmente o alimentaria com grãos
em sua mão

por algum tempo depois. Mas essa


bondade o prendia e ele era uma

criatura selvagem. Yael afugentou-o.


Fez isso vezes seguidas até que ele
também desaparecesse, voando para
o norte. No dia em que ele se foi,
Yael
deixou a porta do pombal aberta, do
modo que fazemos quando alguém

morre, para permitir que o espírito


se liberte.

Agora que o escravo se fora, Yael


apelava para a ajuda da minha mãe,
porque ela acreditava ser possível
trazer Arieh de volta para a sua
legítima

casa sem medo de represálias. Yael


trazia o cabelo coberto por um véu,
o tecido apertado no pescoço. Notei
que o brilho do amuleto dourado, a
preciosa dádiva da minha mãe para
ela, desaparecera.

– Você continua a fazer negócios


com as mulheres mortas – a minha
mãe

disse tristemente. – Não aprendeu


com o primeiro fantasma?

– Channa não está morta – eu


argumentei, confusa.

Vira-a naquela mesma tarde,


caminhando na praça com Arieh nos

braços, e ela estava muito viva. As


pessoas cochichavam que
convencera o

marido de que Deus a destinara a ter


aquela criança, mesmo sendo estéril

desde o dia do casamento. Ela


dissera a Ben Ya’ir que aquela que
o parira a

procurara implorando para ficar


com ele. O menino fora um presente
e

uma bênção de Adonai.

– Ela está morta para mim – a minha


mãe comentou com frieza.

– Farei tudo para reavê-lo – Yael


prometeu. – Pensei que o preço seria

pequeno, alguns dias de separação.


Não fazia ideia do que ela pretendia.

A minha mãe balançou a cabeça


tristemente.

– Se eu for contra ela, deixarei meu


filho em perigo. É isso o que espera

de mim, em nome da nossa amizade?

– Eu não tenho medo dela – disse eu.


A minha mãe me fitou, depois
rapidamente desviou o olhar. Então
soube

que não falava a meu respeito. Não


era o filho que ela queria proteger.

Entendi o que deveria ter ficado


evidente havia algum tempo.
Houvera

sinais de que a minha mãe estava


com um filho, mas eu simplesmente
não

percebi o que não queria ver. É


claro que sabia quem era o pai. O
homem

que ainda guardava as pombas que


lhe enviava na Montanha de Ferro.
Ela

ainda lhe pertencia.

– Você pensou que eu fosse uma


bruxa e não uma mulher? – minha
mãe

aventurou-se a perguntar.

Magoada além da conta, dei de


ombros.
– Mais um para você destruir com o
seu amor.

Yael lançou-me um olhar de


advertência, depois foi se ajoelhar
ao lado

da minha mãe, implorando por sua


ajuda.

– Nunca pedirei mais nada. Juro.

– Ela já lhe deu um presente


precioso – eu disse, referindo-me ao

amuleto. A ausência do
encantamento passara despercebida
à minha mãe.

Gostaria de saber o que ela pensaria


se descobrisse que Yael abrira mão
do

presente.

Yael expôs o pescoço para revelar


que não trazia o amuleto. Quando ela

admitiu que dera o talismã a Wynn


para a sua proteção, envergonhei-me
de

tê-la confrontado.
– Perdoe-me. – Yael inclinou a
cabeça diante da minha mãe. – Ele

precisava mais que eu. Se me ajudar


agora, não pedirei mais nada – ela
prometeu.

– Mas eu a procurarei em troca de


uma coisa – minha mãe confessou. –
A

confiança é mais valiosa que o ouro,


a lealdade é a melhor proteção. Se
fizer

isso por você, quando chegar a hora,


você me dará qualquer coisa que
pedir?

– Qualquer coisa – Yael prometeu.

– Channa não é como a outra mulher


que queria seu filho – minha mãe

avisou. – Aquela mulher tinha um


coração, embora pertencesse ao pó.
Esta

não tem nenhum. Acredite em mim,


ela preferiria ver o seu filho

assassinado a devolvê-lo a você. E


vai lançar uma maldição sobre mim.
Lembre-se disso quando a procurar
para lhe pedir o que for preciso.

Elas pegaram a faca que Yael


carregava consigo o tempo todo e
cortaram

as suas carnes, depois deixaram


gotas de sangue caírem em um copo
de óleo para ser queimado perante a
imagem de Astarte no nosso altar.
Depois

a minha mãe trouxe uma tigela de


samtar, o emplastro que curava as
feridas causadas por flechas. Ela
revestiu o seu corpo como um
guerreiro o

faria antes da batalha. Pegou um


monte de cinzas e outro de sal, e o
bálsamo precioso de Gileade, feito
da goma da árvore do aguarrás.
Quando

Yael fez menção de imitá-la, minha


mãe a deteve.

Yael pareceu intrigada.

– Você pode precisar de mim.

Minha mãe balançou a cabeça.


– Não de você. – Ela me olhou,
depois assentiu. – Você.

Embora já não tivesse nenhuma


obrigação com aquela mulher, a mãe

que mentira para mim e me traíra, o


destino de uma criança estava em
risco. E havia algo mais, algo que eu
não admitiria em voz alta.

Apesar de ela ter-me traído de


muitas maneiras, eu ansiava por ser
a escolhida por ela.

Cobri-me com o samtar, como a


minha mãe o fizera, e depois com o
óleo.

Trancei o cabelo e deixei sete nós


amarrados dentro da minha capa, o
número convencionado para repelir
o mal quando se fosse alvo de uma

bruxaria.

– Acha que ela é uma bruxa? – eu


perguntei.

A minha mãe riu.

– Eu sei que ela é.

SAÍMOS ao anoitecer, o momento


em que a escuridão e a luz são
difíceis de precisar e todas as coisas
são possíveis. A minha mãe
pretendia realizar um

exorcismo. Às vezes, o próprio


Rafael aparecia para ajudar nesse
processo e

havia rumores de que ficara radiante


uma vez que instruíra um exorcista a

queimar o coração e o fígado de um


peixe para expulsar os demônios. A
minha mãe levava esses ingredientes
consigo naquele momento, os órgãos
secos de um peixe que
milagrosamente aparecera em um
nachal na nossa

viagem àquela montanha, com o


único propósito de exorcizar o mal.

Estremeci quando percebi que era


isso que a minha mãe pretendia
fazer, pois era um ato
verdadeiramente perigoso. Uma vez
aberto aquele mundo,

o próprio exorcista poderia ser


vítima dos maus espíritos. Havia
histórias
de exorcistas que nunca mais
falaram, que perderam o coração em

consequência da tentativa,
encontrados sem nada deles que
pudesse ser

salvo, somente uma pilha de ossos


secos.

Caminhamos ao longo da muralha,


passando pelo jardim. O aroma de

hortelã estava no ar. Podíamos ouvir


as pombas cantando. A minha mãe

não hesitou quando as ouviu. Um


sorriso cruzou o seu rosto quando
foi se

ajoelhar ao lado da gaiola. Abriu a


porta e pensei que pretendesse
acariciar

suas penas, como muitas vezes


acariciara as pombas que criava
quando

estávamos em Moabe. Em vez disso,


ela balançou a gaiola para que
saíssem.

Pegou uma em cada mão e levantou-


as bem alto. No instante em que as
deixou ir, elas alçaram voo para o
céu.

– Não tinham mais nenhuma


utilidade – ela murmurou
observando-as

desaparecer, como fazíamos anos


antes, naquela que agora parecia
outra

vida.

Não foi nenhuma surpresa quando


vimos que Yael nos seguira e

esperava junto à muralha. Ela usava


um véu escuro, para se disfarçar,
mas a

reconhecemos imediatamente e
entendíamos por que não conseguia
ficar

de fora. Talvez a sua presença no


lado de fora do palácio aumentasse
a nossa força.

Aproximamo-nos da porta feita da


madeira do cipreste. A minha mãe

inclinou-se para a frente para que


pudesse sussurrar. Eu sentia o calor
do
seu corpo e o cheiro do óleo que
esfregara no pescoço e nos pulsos.
Quando

o demônio fosse expulso da mulher


que estávamos prestes a enfrentar,

precisaríamos pegar a criança.


Naquele momento, e só então, a
nossa

inimiga estaria impotente.

– Ela tentará aterrorizá-la com seus


argumentos, não dê ouvidos. Ela

lançará um monte de desgraças


contra você, não tenha medo. Existe
um

ingrediente a mais de que ela


precisa para os poderes. É algo que
somente

nós temos.

Entendi qual era esse ingrediente. O


meu pai.

Havíamos nos certificado de manter


as nossas tranças bem apertadas

junto da cabeça, para que o demônio


que estávamos prestes a enfrentar
não fosse capaz de agarrar-nos pelo
cabelo. Tínhamos esfregado óleo de
romã nos braços e nas pernas para
que pudéssemos escorregar
facilmente

das suas garras. Entoamos: Abra


k’dabra. Criarei algo do nada.
Amém.

Amém. Selah. Porque a palavra do


nosso Deus era o que nos guiaria e
nos protegeria do mal. Sua canção
seria o nosso único caminho, a
despeito de

quaisquer pecados que pudéssemos


ter cometido e de quaisquer
punições

que pudéssemos merecer. Aquilo em


que acreditávamos, e com aquilo
que

dissemos em voz alta, poderíamos


criar diante dos Seus olhos e à Sua
imagem.

A minha mãe tinha raiado as suas


pálpebras com lápis e se perfumara

com murta e lírios. Ela ergueu o xale


sobre a cabeça, talvez para parecer
modesta aos olhos da rival. Channa
ficaria ainda mais perplexa quando

descobrisse quem viera chamar.

Minha mãe bateu na porta


levemente, como faria se tivesse
uma cesta de

legumes para oferecer, verduras,


quem sabe, ou dentes de alho.
Ouvimos um ruído abafado, mas não
houve resposta. Minha mãe bateu
novamente,

com mais força dessa vez.

Ninguém apareceu à porta, e não se


ouviu mais nenhum som vindo de

dentro.

Subi na pilha de lenha e estiquei o


pescoço. Em um canto, avistei o
berço

vazio. Só havia sombras. Mas o fogo


estava aceso. Acima das chamas
via-se

um pote pendurado, preso a uma


haste de metal, com a refeição ainda

cozinhando. Pude sentir o cheiro das


lentilhas e da carne cozida.
Tirei da capa a chave feita de um
pedaço de arame de metal. Ela

funcionara para destrancar a porta


da torre, para que Wynn fosse
libertado,

talvez funcionasse de novo. Minha


mãe se afastou para eu tentar. Ela se
encaixou na fechadura perfeitamente.
A porta se abriu com um clique. Nós

nos dirigimos para o aposento em


que a refeição da noite posta sobre o
fogo em breve estaria queimando e
ficaria preta, pois estava
borbulhando,
mais do que pronta. Minha mãe
lançou as entranhas do peixe naquele

guisado e subiu uma fumaça verde-


clara, a cor da inveja e da traição.

Através da névoa da fumaça


avistamos uma lâmpada, e, embora
seu

brilho fosse fraco, era o bastante


para que pudéssemos encontrar o
nosso

caminho. Seguimos pelo vestíbulo,


saindo no corredor em que os
afrescos
das sete irmãs haviam sido pintados
pelos mestres de Roma. Cada uma
das

irmãs era mais bonita que a outra,


mas nenhuma tanto quanto a minha

mãe, nem mesmo a lua prateada. Ela


me chamou para junto de si e
paramos

lado a lado sob amostras de ocre,


ametista e verde da cor do mar. Ela
inclinou a cabeça na direção de uma
porta, pedindo-me para ouvir. Ela
fazia
isso quando éramos crianças, para
aprendermos a identificar a
diferença entre o ruído dos cascos
do grande corcel do seu marido,
Leba, se

aproximando e os ruídos do cavalo


de qualquer outro homem. Quando o

pai da minha irmã se surpreendia


que nós, crianças, aparecíamos para

cumprimentá-lo muito antes de ele


chegar, dizíamos que Leba se

comunicava conosco e que a língua


dos cavalos era fácil de adivinhar.
Agora, na casa de Ben Ya’ir, ouvi o
que me pareceu ser um besouro, do

tipo que dizem que procura os


mortos. Depois de um instante
percebi que

era o som ritmado da respiração de


alguém. Bati no meu pescoço e
minha

mãe concordou. Encontráramos o


que procurávamos.

Seguimos o som, parando quando


ele se tornou mais abafado,
prosseguindo quando recomeçou. A
respiração nos levou a uma pequena

câmara em que eram armazenados


azeite e vinho, os vasos altos
incluídos

entre os últimos pertencentes ao rei


Herodes. O aposento estava às
escuras,

mas a lâmpada que carregávamos


lançou luz suficiente para identificar

sulcos compridos de sombras. Uma


sombra era como um tanque de água
vazando na nossa direção no meio
da escuridão. Ela se agachara atrás
da porta, um corvo em uma túnica
escura, curvada para baixo, como se

pudesse escapar de nós tão


facilmente como o anoitecer
desvanecendo um

campo de árvores enegrecidas.

Como se enfeitiçado, Arieh nos


chamou. Talvez soubesse que sua

verdadeira mãe esperava por perto.


O corvo rapidamente cobriu sua
boca,
mas ele gritou de novo. Havia nos
reconhecido e consideramos isso um

bom presságio. Deus velava por nós.

– Vocês não têm o direito de estar


aqui – disse Channa quando não teve

escolha senão nos encarar. Ela se


levantou orgulhosamente, como se
não tivesse se encolhido no escuro
com os besouros, uma sombra atrás
de uma

porta. – Quando chamar as


sentinelas, vocês serão encerradas
na torre. Ou
talvez expulsas para o deserto. Onde
é o seu lugar. Vocês foram

condenadas, ainda que pensem que


podem vir a esta casa e tratá-la
como

sua.

Channa olhava para a minha mãe


como se ela fosse um demônio que

surgira através de uma janela aberta.


Minha mãe não lhe deu resposta.
Não

discutiu ou retrucou a essas palavras


malignas. Ficou parada na porta
para

que Channa não tentasse fugir. Era


tarde demais para se esconder ou
gritar.

Minha mãe já começara o


exorcismo. Ela espalhara dois
círculos de cinzas,

depois fez sinal para mim. Entramos


nos círculos quando ela começou a
Canção dos Aflitos. A voz da minha
mãe era linda, pura e etérea. A
princípio, Channa apenas ouvia, sob
o efeito do encantamento. Talvez
pensasse que estava sendo elogiada,
ou se convencera de que a minha
mãe viera prestar-lhe homenagem,
admitir os erros cometidos e comer
o sal que agora atirava

em direção à sua rival, como alguns


diziam para comer os seus pecados.

Mas os olhos da esposa do nosso


líder se arregalaram quando ouviu
as palavras recitadas pela minha
mãe.

Aquele que habita o esconderijo do


Altíssimo deve permanecer à
sombra
do Todo-Poderoso. Direi do
Senhor: Ele é o meu refúgio e a
minha fortaleza, o meu Deus, em
quem confio. Certamente, Ele te
livrará do laço do

passarinheiro, e da peste
perniciosa. Ele te cobrirá com as
suas penas, e debaixo das suas asas
te deves confiança. Sua confiança
será o teu escudo e

broquel.

Talvez as asas que sempre imaginei


sobre as minhas costas tivessem
sido postas ali para a minha
proteção pelo Todo-Poderoso, pois
me sentia

protegida, livre de redes e


armadilhas. O que quer que a minha
mãe

dissesse, eu repetia com ela.


Quaisquer que fossem os seus
pecados, eu a perdoava.

À nossa frente, Channa segurava o


bebê com mais força enquanto
olhava

para a minha mãe, alarmada.


– Você tomou o que deveria ter sido
meu. Era para ele dar uma criança

para mim, não para você! Os ladrões


são mortos pelos seus atos, não

perdoados. Você não pode lançar


uma maldição em mim.

Minha mãe continuou a canção do


Todo-Poderoso, louvando-O e

pedindo a Sua luz.

Tu não deverás ter medo do terror


à noite, nem da flecha que voa de
dia.
Nem da peste que anda na
escuridão, nem da mortandade que
assola ao meio-dia. Mil cairão ao
teu lado, e dez mil à tua direita,
mas não chegará a ti.

Somente com os teus olhos tu


contemplarás e verás a recompensa
dos ímpios.

Eu escutava, encantada. Amém.


Amém. Selah. A minha voz soou,
fazendo

eco à da minha mãe. Channa virou-


se para mim. Quando olhou nos
meus
olhos, viu o marido no meu olhar.
Dei um passo para trás quando

confrontada com a mesquinhez do


espírito.

– Permaneça no círculo – avisou


minha mãe.

Agora Channa me conhecia por


quem eu era. Ela se aproximou para
me

ver melhor. Ali estava eu, a criança


que ela mandara para o deserto, para
ser bicada pelos corvos e devorada
no banquete dos chacais.
– Você deveria ter sido minha – ela
me disse. Lançou à minha mãe um

olhar brutal. Sua respiração estava


tão entrecortada que era difícil ouvi-
la,

mas eu o pude fazer. – Você é a


destruidora e o pecado perante o
nome de

Deus.

Sua voz estava rouca, arrancada de


dentro dela. As palavras
perfuraram-
me como nenhuma arma seria capaz;
ainda assim, fiz como a minha mãe

aconselhara e me mantive dentro do


círculo. Recusei-me a ouvir o
veneno

lançado sobre mim pela sua inveja.


Ouvia apenas a canção da minha
mãe.

Podia ver as palavras que ela


pronunciava tornando-se visíveis no
ar entre

nós, incandescentes, escritas pela fé.


Porque fizeste do Senhor, que é o
meu refúgio, e do Altíssimo a tua
habitação, nenhum mal te sucederá,
nem praga alguma chegará da tua
habitação vizinha. Pois Ele dará os
seus anjos a teu respeito, para te
guardarem em todos os teus
caminhos. Eles te sustentarão nas
suas mãos, para que não tropeces
com o teu pé em pedra. Tu pisarás
sobre o leão e a cobra: o leão e o
dragão hás tu de calcar aos teus
pés.

Channa estava começando a revelar


quem ela era e que maldade estaria
disposta a empreender.

– Arieh pertence a mim! Fiz um


acordo com a mãe, diante de Deus!

Ela, que nos mandara para o deserto,


para sermos tomadas nos braços

da Morte quando a minha mãe tinha


treze anos de idade e eu era apenas
recém-nascida, pegou uma faca e
segurou-a contra a garganta de
Arieh. Fiz

menção de me aproximar da criança


mas, novamente, a minha mãe
agarrou
o meu braço.

– Ainda não – sussurrou ela.

Channa segurava Arieh com tanta


força que ele soltou um grito
sentido.

Eu estava grata por Yael não estar


presente e não poder ver o demônio
se

revelando diante de nós. Logo


chegaria o momento em que ela não
teria poder algum.

– Não tomou o bastante de mim para


precisar tomar esta criança

também? Prefiro vê-lo no Mundo


Vindouro a vê-lo com você.

O suor cobria a testa da minha mãe.


Seus lábios se moviam enquanto ela

repetia a canção. Não era de


admirar que os homens ficassem
paralisados

por ela e os anjos viessem lhe falar.


Não era de admirar que a chuva
atendesse ao seu comando e até
mesmo a filha a quem traíra fizesse
qualquer coisa que pedisse.

O manto negro da minha mãe abriu-


se. Esse foi o momento em que

todos nos tornamos quem éramos


aos olhos de Adonai. Channa
indignou-se

ao ver que a minha mãe carregava


uma criança. A sua respiração
piorava,

áspera, como se uma mão lhe


prendesse o pescoço, retendo-lhe o
ar como
ela guardara o meu pai de nós. Um
som emanava dela, que estava sem

palavras, um grito ferido e


sangrento. Era o demônio. Nesse
momento eu me adiantei, para o bem
da criança roubada, arrebatando-a
dela com tanta

força que ela cambaleou,


escorregando no lugar em que minha
mãe

empilhara o sal para conter o mal


dentro dela. A minha mãe exibia
medo em seu semblante quando viu
o inimigo vacilar.
Porque ele depositou o seu amor
em mim, por isso o livrarei: vou
elevá-lo

bem alto, porque conheceu o meu


nome.

– Sua bruxa – a esposa do nosso


líder gritou.

Ele me invocará, e o atenderei:


estarei ao seu lado na angústia; eu
o livrarei e honrarei. Com longa
vida o satisfarei, e lhe mostrarei a
minha salvação.

– Leve-o – disse Channa sobre


Arieh, derrotada à nossa frente. –
Faça o

que quiser com ele. Mas você não


poderá ter o meu marido.

Peguei a criança e corri com ela


para que sua verdadeira mãe
pudesse se

alegrar com ele no pátio do palácio.


Mais tarde faríamos uma festa para
celebrar e cantar louvores, mas
agora apenas uma voz se elevava
enquanto

eu ouvia a minha mãe dispensar o


nosso inimigo. Pois foi ela, não um
anjo

ou uma bruxa, mas uma mulher que


não tinha mais medo de falar, que

enfrentou a sua rival e proclamou:

– Eu o tive o tempo todo.

OS COMERCIANTES chegaram até


nós provenientes do outro lado do
Mar de Sal, trazendo especiarias e
incensos, ervas e sementes.
Estávamos
desesperados pelos seus produtos,
regateamos chicória e azeda,

negociando moedas de prata e


pedras semipreciosas em troca
desses

condimentos. Um dos comerciantes


trazia consigo um enorme cão preto,

um mastim da Ásia. Essa criatura


encaminhou-se para o lugar onde o
meu

irmão muitas vezes acampava ao


lado do quartel, quando era um
garoto de
recados dos guerreiros, fascinado
pela sua coragem e pelos seus feitos.

Agora Adir estava entre os homens,


afastara-se de nós, mas algo da sua
essência devia ter permanecido ali
para que o enorme cão peludo se

recusasse a ser removido. Ele


jogava a cabeça para trás e uivava.
O cão era

um presságio, isso era evidente, se


bom ou ruim eu não sabia.

Enrolei uma corda em volta de sua


grande cabeça, para que parasse de
uivar, em seguida levei-o ao nosso
alojamento, onde o amarrei no lado
de

fora. O cão me observou, latindo


enquanto não voltei para lhe
oferecer água. Quando o
comerciante a quem ele pertencia o
procurou, o cão negro

recusou-se a ir com ele. Correu e


mordeu o seu dono, depois se
escondeu

atrás das minhas pernas, olhando por


entre elas, inclinando o focinho
enorme e a cabeça, choramingando.

– Você estragou o meu animal –


gritou o comerciante. – Ele era
feroz, agora parece uma ovelha.

O comerciante provinha do lado


oriental do Mar de Sal. Eu conhecia
as

entonações com que ele falava, o


sotaque do meu primeiro pai. A voz
de Moabe era linda de ouvir, mesmo
que o comerciante me amaldiçoasse.

Quando respondi a ele no mesmo


tom, sugerindo que o cão fizera a sua
escolha e talvez tivesse sido
maltratado, o viajante ficou
atordoado por eu

conhecer a sua língua. Ele aceitou


algumas moedas em troca da
criatura.

Eu não gostaria de ter um cachorro,


mas ele sempre me acompanhava

até a muralha à noite, enquanto


vigiava o vale com as outras
mulheres à espera do regresso dos
guerreiros. Chamei-o Eran, que
significa vigilante, pois o nome se
ajustava àquela criatura enorme e
silenciosa. Quando

estalava a língua, como fazia para o


meu cavalo em outro mundo e em
outra

época, ele me seguia. Ele não latia


nem rosnava, também não pedia
comida

à nossa mesa. Achei que ele nos


traria sorte; quem sabe o seu destino
e o do

meu irmão estivessem unidos. Como


a minha mãe não insistisse em se
livrar dele, embora não gostasse de
cães, pois os considerava um pouco
melhor que os chacais, quando ela
colocou para ele uma tigela com pão
e leite, a comida favorita do meu
irmão, percebi que ela concordara.

Uma noite Eran começou a latir e


não se deixou consolar, não
importava

o quanto tentasse silenciá-lo. Logo a


minha mãe acordou. Nós duas
tivemos

a mesma sensação de pavor e,


juntas, fomos no escuro até a
muralha.

Outras mulheres já se encontravam


lá, muitas delas em lágrimas, pois

também tinham experimentado


presságios. Uma acordara de um
sonho

enviado pelo anjo Gabriel, em que o


seu pai já falecido lhe ordenava
para se

postar ao lado do portão. Outra


ouvira um morcego, um sinal de
vigilância e
de invisibilidade, voando no seu
alojamento.

Perto do amanhecer, conseguimos


avistar os guerreiros retornando;

vimos a poeira se levantar do chão


antes de enxergarmos as suas
imagens.

Quando eles começaram a subir pelo


caminho da serpente, nossos
corações

dispararam, depois quase pararam.


Fiquei aliviada ao ver Amram, mas
a
figura delgada que ele carregava ao
ombro era o meu irmão. Reconheci a
túnica e o manto.

Nossos homens tinham seguido os


romanos. Houve um confronto e

nossos guerreiros superaram a


pequena tropa de exploradores, que
era

menos numerosa, obrigando-a a


recuar. Vários soldados
despreparados da

legião foram mortos, apesar da


proteção da sua armadura de malha
e dos

capacetes de bronze. Os rebeldes


saíram-se bem, mas Adir fora
derrubado

por uma lança e o seu ferimento era


profundo; ele ardia de febre. Seu
cabelo escuro estava emplastrado, e
os olhos, duas chamas amarelas,
assim

como os do seu pai e de Nahara, que


eram bem claros.

Nós o levamos para nosso quarto,


onde a minha mãe banhou seu corpo
inerte. A febre o deixara frio, como
se Shalgiel, o anjo da neve, o
houvesse

abraçado e trazido para baixo.


Minha mãe me disse para queimar

rapidamente as vestes de Adir.


Fizemos isso para nos proteger dos

demônios que poderiam transmitir


doenças, mas também queimávamos
as

túnicas dos mortos dessa maneira.


Talvez tenha sido por isso que não
fiz o
que ela me dissera. Em vez disso,
lavei a túnica e a capa do meu irmão
em

um balde, depois as pendurei no


varal atrás da casa de cabras, antes
ocupada pelos essênios.

O nosso povo lavava as mãos antes


de cada refeição, antes de cada taça

de vinho, antes de cortar um pão em


dois. Fazíamos isso por uma boa
razão. Os demônios poderiam entrar
em um indivíduo que estivesse sujo
e
o fogo de um demônio se
manifestava como febre. Minha mãe
instruiu-me a

usar um lenço sobre o rosto quando


cuidasse do meu irmão. Lavávamos
as

mãos com um sabonete feito de soda


cáustica e cinzas até que a pele
ficasse

totalmente limpa. Todas as manhãs


minha mãe preparava uma chá de

folhas de louro, óleo de rosas e


pimenta. Embora meu irmão fizesse
cara feia depois de um gole da
bebida, obedecia ao que lhe era
ordenado e bebia

tudo. Um cataplasma de samtar,


misturado com reita, o remédio feito
de trigo, era colocado na sua ferida
limpa.

Minha mãe queimava óleo no altar


de Astarte. Ela encontrou um único

lírio crescendo em um jardim


abandonado, o bulbo raro plantado
ali uma

centena de anos antes pelos


jardineiros do rei para que as
pétalas e os caules pudessem ser
queimados, liberando uma chama
verde para a glória

de Deus.

Resgatai esta criança e salvai-a de


todas as aflições.

Minha mãe tirou do ninho duas


pombas tão bonitas, que elas
próprias

sabiam da sua beleza e


orgulhosamente se pavoneavam
perante a sua
espécie. Sacrificou-as à Rainha do
Céu, embora o nosso povo já não
fizesse

sacrifícios, até mesmo a Adonai,


agora que o Templo fora destruído.
Ela limpou cuidadosamente o sangue
das mãos, até ter certeza de que não

restasse uma única mancha.

Permiti que se torne um homem e


cante canções gloriosas de louvor
ao nosso Senhor e rei, o nosso Deus
poderoso. Amém. Amém. Selah.
Que Ele o proteja de todo o mal e
permita que viva em Jerusalém, na
santidade e na paz.

Adir sempre fora um menino ansioso


pela guerra; o que descobrira

havia sido uma surpresa


desagradável. Ele voltou para nós
calmo e

melancólico. Mesmo depois que a


febre baixou, sua perna continuou

afetada pela ferida. Ele não


conseguia manter-se em pé por
muito tempo e

isso, em especial, o entristeceu. O


único capaz de animá-lo era o cão
enorme

que mandei ficar ao seu lado. Por


isso, minha mãe insistiu para que eu
lavasse a criatura, de modo que sua
sujeira não trouxesse demônios para
o

meu irmão no seu atual estado


debilitado. Levei Eran para a praça
e atirei

punhados de água sobre ele, depois


cobri-o com soda cáustica, enquanto
ele permanecia quieto, impassível,
embora pudesse facilmente ter
fugido

do meu alcance.

– Foi esse que tomou o meu lugar?

Amram apareceu atrás de mim e me


surpreendeu com seu abraço.

Deixei que me envolvesse com seus


braços, mas senti uma reserva

estranha. Enquanto estávamos juntos,


o cachorro latiu e rosnou.

– Pare – disse a Eran, mas ele não


silenciou, e isso me preocupou, pois
ele nunca parecera tão feroz antes.
Fosse qual fosse a razão, ele não
gostara

do homem à sua frente.

– Meu rival – Amram brincou. – Se


ele me morder, vou ter de retribuir a

mordida.

Amarrei o cão no toco de uma


tamareira, depois puxei Amram de
lado

para termos alguma privacidade.


– Você deve dizer aos guerreiros
que meu irmão não poderá sair de

novo.

Amram riu.

– Todos os guerreiros devem ir


quando são convocados. Você sabe
disso.

Ele é um de nós agora. – Amram


então tirou da sua túnica o quadrado
azul

de tecido que era o seu amuleto da


sorte. – Pelo menos comigo você
não precisa se preocupar. Quando
sair de novo, encontrarei o caminho
de volta.

Quis lhe dar uma ordem, mas sabia


que Amram não era um homem que

obedeceria a uma ordem dada por


uma mulher. Era eu quem deveria
cuidar

para que o meu irmão permanecesse


em segurança. Fiz uma promessa a

mim mesma enquanto me encontrava


ali na praça, mas não disse nada a
Amram. Adir não estaria entre eles
quando o novo grupo de ataque

partisse. Eu me asseguraria disso.

Quando Amram partisse para a luta,


outro guerreiro seguiria atrás dele.

PEDI O FAVOR e Yael não o negou


a mim, pois fora eu quem lhe
devolvera o filho aos seus braços.
Eu o arrebatara da mulher sinistra
que desejava tão

desesperadamente ser a mãe dele,


que se convencera de que o era.
Yael esperava por mim na praça,
onde o calor subia da terra em
ondas, o bebê

em seu quadril. Desde que


recuperara Arieh, ela se recusava a
deixá-lo fora

da vista por muito tempo. Se


precisasse ajudar e Revka e eu
estivéssemos

trabalhando no pombal, às vezes ela


o deixava com seu pai, que tomara
gosto pela criança. Ele fizera as
pazes com Yael de tanto que amava
o neto.

Talvez pensasse que tinha uma


segunda chance de forjar outro
guerreiro.

Eu ouvira Revka perguntar a Yael


por que permitia que aquele homem
se

intrometesse na vida do seu filho


depois de ter sido tão cruel com ela.
Yael

disse que ele era um homem mudado


agora, derrotado pelo deserto e pela
idade.

– Quando o vejo com Arieh – Yael


admitiu –, vejo o homem que ele

poderia ter sido se não tivesse


perdido o que mais amava no
mundo.

A segurança de Arieh estava


assegurada enquanto permanecesse
sob os

cuidados do avô, que fora um dos


principais sicários de Jerusalém,
pois o assassino continuava com a
faca escondida sob a capa, apesar
de agora estar relegado a limpar as
armas. Era ele que eu queria ver e
pedi a Yael para me levar ao seu
alojamento. O assassino me
reprovara como indigna

do seu filho. Talvez Yael imaginasse


que eu desejava conquistá-lo. Mas
um

homem como ele não seria


facilmente convencido, e na verdade
eu não

queria tal coisa.

– Lembra-se de Aziza? – Yael


perguntou ao pai.

Yosef bar Elhanan ergueu os olhos,


avaliando-me com um olhar frio.

Gostaria de saber quantos homens


ele assassinara, se o sangue
derramado

já havia sido suficiente para deixá-


lo mais humilde ou fazê-lo buscar o
perdão. Ele pôs o bebê no colo,
depois assentiu.

– A shedah – disse.

Ele queria me insultar, mas sorri


encantada. Um sorriso poderia ser
uma

arma também.

Yael foi preparar chá, embora


temesse deixar-me à mercê de seu
pai.

– Estou acostumado com esse tipo


de homem – assegurei a ela, pois na

verdade sabia que entre os homens


as palavras não eram tão perigosas

quanto as pronunciadas pelas


mulheres.
O assassino ignorou-me, brincando
com a criança com um carinho

inesperado. Inclinei-me de modo


que somente Bar Elhanan ouvisse,
pois o

que estava prestes a dizer era um


pedido íntimo demais para qualquer

outra pessoa ouvir.

– Quero que me ensine a ser


invisível – disse-lhe.

O velho brincava com Arieh sobre


os joelhos, para a alegria do bebê.
Eu

já esperava que fingisse surdez


quando o informasse do que queria,
mas ele

se mostrou curioso quando fiz o


pedido e não resistiu a saber mais.
Fitou-

me rudemente, não me concedendo


mais respeito do que faria com uma

zonah comum.

– Por que faria isso? – perguntou


ele.
– Para eu poder proteger o seu filho
e meu irmão.

– Meu filho está perdido para mim


por sua causa.

Eu sabia que ainda havia uma


distância entre Bar Elhanan e seu
filho, mas não receava retrucar-lhe e
defender minha posição. Se recuasse
ante o

ardor das suas palavras, ele nunca


me respeitaria.

– Se ele está perdido para você, é


porque você é preguiçoso demais
para

encontrá-lo.

O assassino riu e balançou a cabeça


tristemente.

– É verdade. Fechei a porta para ele


e agora me pergunto por que ele não

a atravessa.

Eu atingira seu coração, pois ele


mostrava que o tinha, então me
atrevi a

continuar.
– Quero tomar o lugar do meu irmão,
por que esse deveria ter sido o meu
lugar antes de tudo.

O assassino deu uma risada


desdenhosa. Seu rosto curtido
mostrava

apenas diversão. Ele parecia


acreditar que eu estivesse ali para
entretê-lo

com tolices. Ele teria começado a


advertir-me a me ocupar do trabalho
das

mulheres não tivesse eu aprendido o


que o pai da minha irmã me
ensinara.

Só se é digno do que se demonstra


ser capaz. Antes que o assassino me
dispensasse, peguei a lâmina que
carregava. Pulei para o lado dele,

pousando a faca em seu pescoço.


Apesar de ser proibido tocar em
mim, Bar

Elhanan cometera pecados muito


piores. Ele habilmente agarrou meu

braço e torceu-o para trás, quase o


quebrando, sem abalar o bebê em
seu

colo. Nós dois respirávamos com


dificuldade.

– Por que motivo você veio me


matar? – ele exigiu saber.

– Não era esse o meu objetivo.

Ele me soltou e o enfrentei de novo.


Ele me fitou, confuso.

– Você não é uma mulher? – ele


disse, pensativo, impressionado e

intrigado com a minha rapidez com


uma arma.

– A maior parte do tempo –


respondi.

Felizmente, ele riu.

– Não sou nada aqui – ele me disse


–, mas se você quiser aprender a
limpar as lanças e armaduras, então
sou o seu homem.

– Não. Quero mais – disse eu. –


Quero ser invisível.

No momento em que Yael retornou


com o chá, seu pai já decidira que
me

permitiria tomar o seu manto


emprestado. Quando saímos, ele
sugeriu que

o visitasse no dia seguinte. Eu


estava interessada em limpar as
armas, ele

disse a Yael quando ela o fitou


interrogativamente, e ele tinha muito
a me

ensinar.

*
NO DIA da nossa partida, entramos
no mês de Elul, um período de
introspecção antes dos dias mais
sagrados para nós. Acordei no
escuro

enquanto meu irmão, ainda em


processo de cura, com a perna
enfaixada, cochilava em seu estrado.
Corri para a casa das cabras e me
vesti com suas

roupas, enterrando as minhas


debaixo de um monte de palha.
Vinha

praticando o uso das armas


diariamente com o velho assassino,
um

professor intransigente. Eu era um


enigma para ele, mas ele estava
grato por alguém, mesmo que fosse
eu, pedir para ver a sua grande
habilidade.

Não se incomodava nem um pouco


se eu me ferisse durante os
exercícios. A

sua postura era distante, os métodos,


cruéis, mas ele me instruiu bem.

O cão seguiu-me enquanto eu pegava


a túnica e a capa do meu irmão,

esperando pacientemente. Pensei


que talvez ele estivesse ao meu lado

porque imaginasse que eu fosse


Adir, ou talvez achasse que estaria
lhe preparando uma refeição. No
entanto, quando o enxotei, ele
insistiu em perambular junto ao
quartel. No escuro, vesti a armadura,
uma folha de escamas prateadas.
Usava o lenço amarrado baixo na
testa, de modo que o

meu rosto ficava encoberto e podia


parecer meu irmão aos olhos dos
outros guerreiros. Prova disso foi
um sujeito chamado Uri aproximar-
se e

me dizer quais lanças recolher para


os outros. Fiz isso de bom grado.

Trouxera apenas um pequeno pacote


contendo figos, um pouco de

pistache e queijo duro, juntamente


com a capa acinzentada. O velho

assassino ensinou-me os truques da


invisibilidade, como andar na
sombra,
como dar um passo sem produzir
ruído, como escapar do ataque de
um

adversário em um sopro de neblina.


No fim do período que passamos

juntos, ele me proclamara uma aluna


digna, embora me assegurasse que

não daria uma boa esposa para


Amram.

– Podem dizer que você é mulher,


mas você é outra coisa. – O
assassino
estava envelhecendo, mas ainda
tinha uma visão clara e um olhar

penetrante.
– Uma shedah? – tentei fazer uma
piada sobre isso.

Ele poderia ter rido, mas não o fez.

– Um guerreiro – disse ele.

Curvei-me com gratidão e deixei-o


lá, para limpar as armas dos outros
homens.

SESSENTA DE NÓS partimos


naquele dia, um grupo de ataque
liderado pessoalmente por Ben
Ya’ir. Meu coração disparou ao
pensar que agora
seria um dos homens do meu pai,
que o seguiria e talvez lhe desse
algum

orgulho. Amarrei Eran a um poste,


mas ele arrancou a corda e correu
atrás

de mim. Uma vez que ele se


recusava a sair do meu lado, usei o
enorme cão

como um burro para carregar os


meus pertences, trançando sobre ele
uma

corda grossa para poder amarrar


lanças de cada lado do seu corpo.
Sem dúvida, o animal era tão forte e
quase tão teimoso quanto um
jumento.

Quando passamos pelo portão, eu


seguia na retaguarda da coluna.

Conseguia ver o homem que era meu


pai na liderança e, atrás dele,
Amram

e seus amigos. Identificava Amram


mesmo de uma longa distância,
porque

ele prendera o quadrado azul à


armadura. Vi-o o tempo todo
enquanto

descíamos pelo caminho retorcido


na encosta da montanha.

O calor era escaldante e o céu


brilhava quase branco. Eu não
estava

acostumada com a armadura que


usava no momento e seu peso me
fazia

andar desajeitada. O povo do pai da


minha irmã nunca usara nada que
pudesse aumentar o peso. Quanto
mais leve estivessem, mais rápido

corriam, entrando e saindo como


uma flecha na batalha; apenas os
cavalos

eram protegidos por máscaras de


metal e peças peitorais, pois os
homens

da tribo sabiam o valor dessas


criaturas. Eu sonhava com o cavalo
que fora

dado ao meu irmão, ou com Leba, o


grande cavalo de batalha sempre
capaz

de encontrar o caminho de volta


para casa e sem necessidade de
freio. A cavalo, estaria voando;
naquele momento eu marchava.

A trilha era traiçoeira para os


descuidados. A poeira subia até a
altura do

rosto e as rochas deslizavam


debaixo dos pés. Segui calada, com
Eran ao meu lado, e deixei que os
outros guerreiros interpretassem o
meu
comportamento como timidez. À
medida que prosseguíamos, vários

homens me cumprimentaram pela


disposição de participar logo após o

ferimento. Também elogiaram Eran,


dizendo que um homem cujo cão lhe

fosse leal era do tipo que se queria


ao lado em uma batalha. Inclinei a
cabeça em sinal de gratidão,
agradecendo em silêncio. Aquele
que muito fala acaba se entregando.

Seguíamos na direção de Ein Gedi.


Dizia-se que a oeste daquele lugar
encontravam-se viajantes que
haviam se estabelecido entre os
habitantes

locais e estavam de posse de ouro e


joias, azeite e incenso. Na montanha
sofríamos com uma grande pobreza.
Quando nossas muralhas caíam, nós
as

reparávamos com lama e palha;


quando as lâmpadas ficavam sem
azeite,

permanecíamos no escuro; quando


não havia madeira suficiente,
usávamos
os excrementos dos burros para as
fogueiras. Comíamos não ensopados
ou

cozidos de carne, mas mingau, uma


mistura rala de cevada temperada
com

a carne das poucas pombas que


tínhamos de sobra para as refeições.
Os guerreiros não tinham escolha
senão tomar o alimento de que

necessitavam nas aldeias e nos


campos, pois o povo precisava
viver. Não era diferente do que o
que eu fizera ao lado do pai de
Nahara. Aquela era a

nossa terra e éramos seus reis; os


que entrassem seriam sensatos para
entender que estavam à nossa mercê.

Caminhamos até nos cansar,


dormindo ao relento. A noite estava
fresca

e me senti feliz com a presença do


cão, pois ao lado dele podia me
aquecer.

Observei Amram embaixo da


camuflagem da minha capa e da
minha
armadura, mas tive o cuidado de não
me revelar. Mantive a cabeça baixa
para ele não poder ver a cicatriz que
dizia se parecer com uma lágrima.

Usei os truques que aperfeiçoara em


Moabe, indo sozinha me aliviar,
nunca

me esquivando dos meus deveres,


falando raramente e, quando o fazia,

apenas com uma voz surda. Todos


terminaram por admitir-me como
Adir.

Assim que pude, saí para caçar.


Acertei um íbex jovem e, quando ele

tropeçou ao ser atingido pela minha


flecha, aproximei-me e cortei sua

garganta, para que o espírito subisse


sem dor e com dignidade. Quando
trouxe a minha presa de volta ao
acampamento, estendida sobre os

ombros, Amram dispôs-se


pessoalmente a talhar a criatura
comigo.

– Tem boa pontaria, irmãozinho –


disse para mim.
Meu coração batia forte no peito.
Não sabia o que mais temia: que ele
me

reconhecesse ou não. Engoli as


palavras e simplesmente assenti em

resposta. As minhas mãos tremiam


por causa da sua proximidade de
mim e

do meu fingimento. Naquele


momento, sentia-me tão claramente
uma

mulher que me denunciava a cada


respiração. Mas não fui
desmascarada.

Ele bateu no meu ombro com força e


ainda assim não percebeu o quanto
meu coração estava descontrolado.

Não podia culpar Amram por não


me reconhecer, uma vez que tomara

tamanho cuidado para me disfarçar.


O velho assassino ensinara-me que
os

homens nunca veem o que está bem


diante dos olhos. Eles olham para

todos os lados e procuram o que


talvez esteja escondido, mas, se
você permanecer em pé na frente
deles, eles o deixarão escapar
acreditando que

não seja mais que uma oliveira, uma


parte da paisagem e nada mais. Bar
Elhanan aprendera isso enquanto
perambulava pelos pátios do
Templo,

procurando seus inimigos.


Desapareça como outra coisa, ele
me instruiu.

Torne-se não o que você é, mas o


que está ao seu redor. Uma pedra,
uma

sombra, um arqueiro entre muitos.


Os ratos são invisíveis porque se

escondem na escuridão tão


frequentemente que, quando saem à
sua frente,

aparecem como sombras. Uma


sombra é vista com a mente e não
com os

olhos, ele me disse. É assim que


você convence as pessoas ao seu
redor a
vê-lo como deseja ser visto.

Eu passara a usar a capa do


assassino à noite, quando saía para
passear

com o cachorro. Nas imediações


vivia o hírax, em tocas nas rochas, e
viam-

se rastros de cascos de íbex, que


perambulavam por ali em busca das

cachoeiras próximas, um lugar em


que se dizia que o rei Davi uma vez
fizera um acampamento. Era ali que
podia ser encontrada a Moringa
Peregrina, a orquídea de flores
róseo-esbranquiçadas que aparecia
a cada primavera. Dizia-se que Davi
compusera mais de trezentas
músicas, uma

para cada dia do ano. Não encontrei


orquídeas por onde andei; somente a

mirra silvestre brotava nos


penhascos de calcário. Arranquei
alguns ramos

que guardei sob a capa, como as


mulheres costumavam fazer pelo
encanto
do seu aroma fresco, procurando
evitar as hastes afiadas.

Os outros me deixavam em paz,


compreendendo o meu
comportamento

reservado, enquanto se preparavam


para a batalha, testando suas armas,

bebendo o pouco vinho que haviam


trazido para se sustentar. Eu não era
a

única pessoa que vivia retirada.


Outro guerreiro permanecia nas
bordas do
campo, recusando-se a comer do
íbex que eu trouxera, preferindo
jejuar.

Encontrei-o quando fui me aliviar


longe do acampamento, como fazia
todas

as noites. Aquele guerreiro afastava-


se do contato humano; não precisava

de conforto, nem de capa para se


aquecer, nem de companheiros de
armas.

O cão não rosnou quando nos


deparamos com aquele a quem
chamavam

de o Homem do Vale, que feria a


própria carne com metal. Embora
isso fosse contra as nossas leis,
ninguém se atrevia a condená-lo
pelos seus modos selvagens. As
tranças de cabelo branco
desmentiam sua juventude e

eram tão compridas que


ultrapassavam suas costas. Os outros
guerreiros

diziam que, durante as batalhas,


Deus talvez o levantasse pelo cabelo
para
deixá-lo fora de perigo, a fim de
evitar o pior. Era por isso que ele
conseguia

atravessar os conflitos mais


violentos e voltar são e salvo,
quando qualquer

outro homem teria perecido. Seu


corpo estava coberto de cicatrizes,
muitas

abandonadas e não curadas. O metal


escavava os braços musculosos e

deixava listras de feridas azuis e


roxas.
Quando o encontrei, ele estava
ajoelhado ao lado de um espinheiro,

cantando a canção de luto pelos


mortos. Segurava-se nos ramos
afiados, que perfuravam sua pele e
causavam mais dor a si mesmo.
Nunca vira um

homem tão exposto em sua agonia.


Achei que fosse chorar só de vê-lo,
em

vez disso eu fugi.

Peguei Eran pelo pescoço e nos


afastamos depressa daquele lugar,
correndo como se fôssemos cavalos.
A poeira subiu do chão e o hírax

escondeu-se de nós em sua toca. As


corujas-do-campo voaram para o
alto

dos penhascos; os morcegos de


cauda voaram assustados das
jujubeiras em

uma nuvem de asas de pele,


abandonando os frutos alaranjados
nos ramos.

No dia seguinte, o homem com quem


me deparara me observava. Eu
sabia que nenhum guerreiro desejava
lutar ao lado dele, pois ele não dava
a

mínima para a própria vida. Ele


brandia o machado e mais nenhuma
arma,

mas dizia-se que o machado fora


abençoado e nunca errava o alvo.
Desviei

o olhar do dele, não querendo


revelar a minha verdadeira natureza,
ou de

algum modo provocar o fogo da sua


ira temível, que diziam ser tão
violento

e inextinguível que os próprios


companheiros diziam em voz baixa
que ele

lutava ao lado direito de Gabriel, o


mais destemido e feroz de todos os
anjos.

No fim da tarde nos preparamos


para o ataque daquela noite. Eu me

sentia atordoada com o calor e


cansada do meu ardil para me
disfarçar, além do peso
desconfortável da armadura de
escamas prateadas. Sob a

dureza do sol poente, fizemos fila


para receber a ração de água.
Quando pedi uma parcela para meu
cachorro, o homem encarregado das
nossas

rações balançou a cabeça.

– Ele terá de beber a urina – ele me


disse. – Não há o bastante para dar

uma parte ao animal.

Afastei-me aturdida. Dividia as


provisões que trouxera com o meu
cão e

atirara-lhe os ossos do íbex. O pai


de Nahara ensinara-me que se deve
alimentar o cavalo antes de se
alimentar, mas tinha água suficiente
apenas

para a minha própria garganta


ressecada. Viera para ser um
guerreiro,

agora me via preocupada com uma


criatura que, antes de tudo, não
queria
ter trazido. Enquanto eu pensava
sobre o que fazer, o Homem do Vale
se aproximou. De novo, o cão
deixou de rosnar. O guerreiro
despejou a sua parte de água na cuia
dele. Inclinou a cabeça para Eran.

– Ele ficará com sede – disse.

Eu murmurei algumas palavras de


agradecimento, então perguntei: ele

não precisaria beber água?

– A água não mata a minha sede –


disse o Homem do Vale. E depois,
sem
nenhuma razão aparente,
acrescentou: – Não vá esta noite.

Era evidente que ele pensava que eu


era um garoto inexperiente; para

ele, eu era o meu irmão, Adir, que


fora ferido e tinha pouca experiência
em

batalha. Ele não precisava ter-se


preocupado comigo.

– Muitas vezes lutei contra homens –


assegurei-lhe. – E eles sofreram por
causa disso.
Ele abanou a cabeça. Seu olhar não
encontrou o meu.

– Mas esta é a sua primeira vez


entre nós. Você não esteve na
guerra.

Não invadiu uma aldeia.

Isso era verdade, o derramamento de


sangue que conhecera no lado

oriental do Mar de Sal fora sobre as


pastagens, ao longo da Estrada do
Rei.

– É meu dever ir – disse


simplesmente.

Senti seu olhar sobre mim, mas


então desviei o meu, para esconder

quem eu era de verdade.

– Quando chegar a hora – o


guerreiro que todos os outros
evitavam

aconselhou-me –, fique ao meu lado.

UMA NÉVOA aparecera para cobrir


o chão enquanto eu me envolvia com
a capa acinzentada. Isso foi
considerado um presságio de boa
sorte, pois nos

permitiria surpreender os inimigos.


O meu arco estava preparado para

descermos à aldeia em que os


viajantes se encontravam. O ar tinha

esfriado, mas o chão ainda queimava


com o calor do dia. A própria terra
parecia ter um coração batendo e a
minha pulsação acompanhou o ritmo.

Avistei Eleazar ben Ya’ir no escuro.


Ele dizia uma prece e usava seu xale
de
oração, pois lutava pela glória de
Deus. Ele nos reuniu pela última
vez.

Diante dele, deliberamos ser um


único corpo na batalha. Juramos não
fazer

escravos.

– Não queremos nossas mulheres e


crianças escravizadas – Ben Ya’ir

disse. – Fazemos o mesmo por


aqueles que encontramos na batalha.

As pessoas diziam que nosso líder


vira pessoas queridas crucificadas
em

Jerusalém, irmãos e amigos,


morrendo em agonia à sua frente.
Mais tarde,

os romanos cortavam a cabeça dos


corpos e as jogavam na estrada para
os

enlutados, mas sem os corpos não


poderia haver lamentações, nem

enterros, nem paz. Ben Ya’ir falou


as palavras do nosso Deus.
Quem estiver desanimado deve
voltar para casa, pois poderá fazer
com

que o coração dos companheiros


amoleça como o seu.

Mas nossa casa era Jerusalém, o


Sião sucumbira e nem um único

guerreiro deu as costas à batalha


diante de nós. Vi Amram levantar a
lança

juntamente com os outros para


aplaudir e honrar as palavras do
nosso
líder. Apenas o Homem do Vale não
os acompanhou na oração ou nos
seus

gritos febris. Talvez já tivesse dito


suas próprias orações. Talvez a
única oração que recitasse fosse
uma canção pelos mortos. Ele não
usava o xale

de oração, nem mesmo um roupão,


apenas uma túnica e o metal
enrolado

ao redor dos braços. Ele queria a


dor, eu via isso nele, e o que um
homem
quer muitas vezes consegue
encontrar.

Seguimos em silêncio quando a lua


começou a subir no céu. Eu ia perto

de Amram, para ficar de olho nele, o


cão nos meus calcanhares, o grande
animal tão silencioso quanto nós. O
coração da terra latejava. O mundo
estava envolto em silêncio, até que
nos deparamos com os guardas.
Então

se ouviu um grito selvagem e


instantaneamente os chamados
frenéticos
dos homens na aldeia. A gritaria
rapidamente tornou-se
ensurdecedora e

começou a luta. Apoiei-me sobre um


joelho e comecei a usar o meu arco,
fazendo o melhor que pude para
garantir a segurança daqueles que

seguiram antes de mim. Matei dois


homens imediatamente e eles caíram

diante de Amram. Talvez ele tenha


pensado que havia um anjo ao seu
lado,

pois deu graças a Deus no mesmo


instante.

Meu cão latia sempre que o inimigo


se aproximava. A advertência

permitia-me saber em que direção


procurar, pois havia homens se

aproximando de todos os ângulos e


caos ao redor. Eu poderia ter
entrado

em pânico não fosse por Eran, e


decidi mantê-lo junto de mim dali
por diante.

Não demorou muito para que nossos


guerreiros levassem a melhor na

luta com os moradores da aldeia; os


corpos dos mortos espalhavam-se
por

toda parte. Avistei o Homem do


Vale, um vendaval com o machado.
Cercado

por quatro inimigos, ele derrubou


um atrás do outro, então parou entre
os

cadáveres, parecendo desafiá-los a


se levantar novamente para guerrear.
Quando ainda outro morador se
aproximou dele, saltando sobre suas

costas, ele calmamente tirou o


inimigo de cima de si e abriu-o ao
meio com

o machado. O Homem do Vale saiu


em busca do próximo a ser morto,

mergulhando no caos com uma


intensidade que desmentia o perigo
ao

redor, a arma preparada. Pude sentir


o sangue correr pelo corpo e um tipo
de alegria crescente dentro de mim
quando alvejei um homem que corria

em direção a ele. Pensei que, se meu


pai soubesse quantos haviam caído
sob as minhas flechas, ficaria
orgulhoso de me levar consigo como
um filho

seu.

A noite ficou quente com o sangue e


a terra, escorregadia, cheiro de
morte por toda parte. Havia
gafanhotos no ar, cantando e voando
à nossa
frente. Por usar a armadura de
escamas prateadas sob o manto,
meus

membros doíam, pesados, e eu


estava encharcada de suor. Usei o
lenço

para limpar o suor dos olhos,


levantando-me da posição
ajoelhada.

Naquele instante em que abaixei o


arco, foi como se tivesse me posto
fora da batalha. Talvez eu tivesse
assistido como os anjos, recuada e
distante, mas mantendo a capacidade
de observar muito mais que os

homens que se envolveram na luta.


Minha visão turva me fez
desacreditar o

que via diante de mim. Tínhamos


abatido homens que estavam ali para

defender a si mesmos, juntamente


com os viajantes nas suas capas
azuis, homens de Moabe que tinham
viajado até a aldeia para negociar

especiarias e frutas secas. Não havia


ramos de acácia para queimar em
sua
homenagem, portanto seus espíritos
não quereriam deixar seus corpos.

Senti-me aflita por saber que eles


ficariam presos em um submundo,
longe

da Montanha de Ferro, pois nenhum


homem se elevaria do sangue que
fora

derramado, o sangue que era


vermelho como o nosso até
enegrecer

empoçado na terra.
A noite se tornara um sonho. A
batalha agora era forçar-me a
acordar do

que estava diante de mim, pois além


das pilhas de mortos havia algo
muito

mais terrível que os cadáveres dos


guerreiros. Nossos homens tinham

começado a matar as mulheres que


corriam de suas casas. Era
impossível,

não acreditávamos em tal crueldade,


mas eu sabia que era verdade
porque

ouvia as vozes dos moradores que


eram abatidos. Deles vinham os
gritos das mulheres e no entanto
havia coisa ainda pior. Entre eles
ouvi os berros

das crianças. Quando avistei


Amram, ele se tornou parte do
sonho,

transformando-se diante de mim em


um demônio, o seu semblante era a

feição de um demônio, os seus atos,


os feitos de um demônio.
Nosso líder dissera que não
deveríamos fazer escravos. Eu
entendera

que isso significava que deixaríamos


as mulheres e as crianças vivas, mas

não era assim que se praticava a


guerra neste mundo triste. O cão
estava enlouquecendo, latindo sem
parar, perturbado como nenhum
animal

deveria ficar. Segurei-o pela corda


no pescoço e ordenei-lhe que
parasse, quebrando minhas unhas na
sua pele áspera. Senti-me
enlouquecida, assim

como ele, com as visões diante de


mim e com os gritos selvagens da
morte

dos inocentes. Quase me lancei, não


contra os inimigos, mas contra meu
próprio povo. Tive vontade de lutar
contra os homens com quem viera

como irmãos. Confusa em meio ao


crescente derramamento de sangue,
de

repente não fazia ideia de por que


acreditávamos ter o direito de tomar
o

que pertencia àquelas pessoas, além


do fato de que queríamos e

presumíamos ter direito ao que lhes


pertencia, como os ladrões uma vez
nos quiseram, minha mãe e eu, além
de tudo o que possuíamos.

Fiquei ali, cercada pela destruição,


escapando da morte pela graça de

Deus. Já não me importava lutar,


nem tinha estômago para isso.
Fechei os
olhos e esperei que Mal’ach ha-
Mavet me arrebatasse, como era
para ter sido feito quando minha mãe
e eu fomos mandadas para o deserto.
Talvez

nunca pretendesse viver depois


daquele dia em que a esposa de
Eleazar nos expulsara e me enganara
para iludir o meu destino.

Nunca soube se o Anjo da Morte


pretendeu se aproximar naquela
noite

de batalha, pois o Homem do Vale


agarrou-me pela capa e puxou-me
atrás

de si, para fora do alcance da Morte.


Eran e eu fomos com ele, mesmo que

eu mal pudesse respirar, o coração


pesado dentro de mim, batendo
muito

depressa. Mordi o lábio até que não


houvesse mais sangue, até que fosse
somente o meu a brotar dele. Queria
provar seu gosto. Eu merecia.

O guerreiro conduziu-me a um cume


onde a neblina da noite se
dissipara. Ele tinha muitos
ferimentos dessa batalha, mas não
lhes deu atenção, assim como não
fez nenhuma menção ao fato de eu
ter chorado.

Dali podíamos ver o massacre. As


casas da aldeia eram feitas de pedra;
logo

elas foram completamente


esvaziadas. Tudo o que essas
pessoas possuíam

nos pertenceriam. Tirei o capacete e


a capa manchada de sangue. Entendi
então por que o Homem do Vale me
dissera para não ir, ele sabia o que
aconteceria. Ele não mataria
mulheres e crianças e se recusara a
ver seu sangue derramado. Percebeu
que eu era uma mulher, mas não
disse nada.

Embora soubesse o que seu


comandante queria dele, ele pusera a
vontade

de Deus em seu lugar.

De todos os que foram comigo, ele


era o único de quem eu queria estar
ao lado.

DEIXARAM OS BURROS vivos,


amontoando-os com os bens que
agora nos pertenciam, o gengibre e a
pimenta, as abóboras e o alho-poró,
todos os tipos de vinho, azeite e
trigo, pequenas quantidades de ouro,
brincos e anéis retirados das casas e
dos cadáveres, montes de canela
preciosa,

lâmpadas, pilhas de armas. Levaram


as cabras, as ovelhas e as galinhas
mortas. Eles encheram recipientes
de couro com água e queijo. Tudo
cheirava a sangue.

Voltei à aldeia para recolher minhas


flechas. Foi fácil encontrá-las entre

os mortos, um campo de lírios


vermelhos que deixara para trás.
Tudo o que

precisava era arrancá-las uma a


uma, do peito e das costas dos
caídos. Não

levei nada mais que isso. Enquanto


outros tiravam os anéis dos dedos
frios,
o vinho dos depósitos, lavei as
lâminas das flechas em uma bacia de
água

tirada de um barril de chuva,


recitando uma oração enquanto o
fazia,

pedindo a Adonai para não causar


àqueles que tinham morrido naquela
noite nenhum outro tormento,
pedindo a Ele para mantê-los a
salvo das três portas do Gehennom,
o vale do inferno. Não conseguia
olhar para o rosto das mulheres e
das crianças mortas, mas comecei a
procurar entre os
homens de Moabe aqueles que eu
poderia conhecer.

Amram aproximou-se, coberto de


suor e sangue seco.

– Não se preocupe – ele me disse


quando virei os corpos do povo do
pai

da minha irmã. – São todos iguais.

BEN YA’IR dirigiu-se aos guerreiros


enquanto o fim da noite transcorria
sobre nós. Não pude suportar a
permanência entre eles. As pessoas
diziam que ele agradecia a Deus, em
seguida elogiava seus homens pela
bravura. Ele instruiu seus guerreiros
a rezar pelas almas dos mortos e
disse-lhes que, em outro tempo e
lugar, se nossos inimigos de Roma
não nos tivessem

obrigado à fome e à pobreza,


teríamos chamado as vítimas de
irmãos.

Por essa hora, já nos


encaminháramos para o deserto,
apressando-nos

para não ser encontrados por algum


dos habitantes da aldeia que pudesse
ter se ausentado durante o ataque,
retornando com a vingança no
coração.

Os guerreiros rezaram a Deus e


depois mataram uma cabra para a
ceia.

Para mim, os gritos da cabra soaram


como os de uma mulher. Encolhi-me

ao lado do meu cão, cobrindo as


orelhas, balançando para a frente e
para trás sobre os quadris. O
esplendor da Shechinah, a luz e a
compaixão do Todo-Poderoso, não
estava nem perto daquele
acampamento. Ali

estávamos cercados pelo que alguns


chamavam de o outro lado, o reino

sombrio, pois naquela noite


tínhamos passado para o lado do
mal do

mundo, que também nascia da


criação, ou aquela região terrível
que pode

ser encontrada no lado esquerdo de


Deus e alimentada pelos pecados

humanos.
Eu planejara deitar-me ao lado de
Amram naquela noite após a vitória,

para conduzir-lhe as mãos sob a


minha capa e finalmente mostrar-lhe

quem eu era e me entregar a ele, mas


não fiz nada disso. Estava mal do
estômago e do coração. Fui para o
deserto e devolvi tudo o que comera
desde que saíra da casa da minha
mãe. O gosto era amargo, como se
tivesse

cuspido um demônio. Estava feliz


pelo meu irmão não se encontrar
entre nós. Adir, que tinha um
espírito tão gentil, e no entanto não
queria nada mais do que estar entre
os guerreiros, fora poupado da visão
dos atos covardes daqueles a quem
tanto admirava.

Os penhascos brancos eram


invisíveis no escuro. Tudo estava
escondido.

Agora eu entendia que era nosso


dever como seres humanos olhar por
trás

do véu para o interior do mundo,


para o coração das coisas.
Avistei o Homem do Vale e fui ficar
ao lado dele. Ali crescia um círculo

de arbustos espinhosos e as cotovias


refugiavam-se nas copas e nos
ramos.

Ouvimos as vozes dos outros


cantando, mas suas músicas não
significavam

nada para nós. Cada pedaço de terra


manchada sobre o qual pisávamos

parecia uma parte de um território


de transgressão, onde os inimigos
eram
subjugados a qualquer custo.
Nenhuma acácia crescia ali. Não
havia como

ajudar as almas dos mortos a


encontrar a paz.

Nesse dia vira meu amado matar


uma criança que não teria mais de

quatro anos. Parecia que não custava


nada para ele fazê-lo, mas custava
tudo para mim. Além das estrelas no
céu, eu não era capaz de ver
nenhuma

outra imagem serão o rosto da


criança assassinada, pois ele agora
viveria

atrás dos meus olhos e faria parte da


minha visão para sempre. Todas as
vezes que olhava para Amram, era
aquela criança que eu via.

Desejei ser uma mulher e ter ficado


em casa.

– Achava que o mundo não fosse


assim? – disse o Homem do Vale.

Meu cachorro estava aos meus pés.


Havia sangue no seu pelo. À luz do
dia, as moscas pululariam sobre seu
pelo e ele pareceria monstruoso.
Eran

nunca me abandonara no tumulto


sangrento, investira contra qualquer
um

que se aproximasse de mim,


atacando e arreganhando os dentes.

Nunca me senti tão vulnerável, ou


tão dominada pela vergonha.
Perdera

algo tão completamente que acho


que não poderia recuperar a partir
de nada que fora criado sobre a
terra. Precisava olhar para o céu. A
essa altura,

a neblina desaparecera e as estrelas


brilhavam. Vimos algumas pairar na
escuridão em explosões de luz, para
em seguida desaparecerem,
invisíveis

aos nossos olhos. Fiquei paralisada


por essa visão, encantada ao pensar
na

bondade daquele animal irracional


que em nenhum momento cogitara
fugir de mim e no fato de tanto eu
como o guerreiro ao meu lado

continuarmos vivos.

– Não é lindo? – eu disse sobre o


mundo que nos rodeava.

– Não é terrível? – retrucou o


Homem do Vale.

Ele olhou para mim e rapidamente


entendi que era uma pergunta e que

ele precisava de uma resposta.


Peguei-lhe a mão e puxei-o para
mim,
fazendo-o deitar-se ao meu lado.
Assim como ele me salvara, fiz o
mesmo

por ele. Por uma noite, ainda


sentindo o cheiro de sangue um do
outro, enquanto o ar estava negro e
todo o mundo parecia invisível, não
estivemos

sozinhos.

A FERIDA DE ADIR sarara e sua


febre se extinguira, mas meu irmão
mancava e parecia frágil. Minha mãe
preocupava-se com ele e
experimentou um

remédio após outro, vasculhando


suas pilhas de ervas e suas receitas
de pharmaka. Ainda assim, ele
estava fraco. Embora tivesse
reprovado as minhas ações no
passado, ela concordou que eu
deveria voltar a ocupar o

lugar de Adir quando chegou a hora


de ele ser novamente chamado para
lutar. Era assim que deveria ser. Eu
era melhor guerreira que ele, com
maior probabilidade de retornar.
Mais uma vez, minha mãe e eu
compartilhamos segredos. Era um
vínculo que não negávamos, algo
que

tinha de acontecer, pois nosso


destino sempre fora entrelaçado.
Qualquer amargura preexistente
entre nós havia se dissipado.

Talvez meu pai esperasse um filho, a


exemplo do pai de Adir, pois Ben

Ya’ir tornara-se cada vez mais


imprudente no que se referia à minha
mãe,

passando a encontrar-se com ela na


cisterna quase todas as noites,

encantado tanto com ela como com a


criança que viria a nascer. Sua
esposa

permanecia confinada, longe da


vista de todos. As pessoas
cochichavam

que Channa voltara a adoecer, mas


eu me perguntava se não fora o
marido

que a proibira de aparecer entre as


outras mulheres. Ele não tolerava
mais
a sua interferência, depois de lhe
dedicar a maior parte da vida. O
pouco que lhe restara para um
relacionamento ele agora
reivindicava para si

mesmo.

Desde a nossa chegada, ele vinha


praticando sua própria modalidade
de

invisibilidade, não muito diferente


das habilidades que o velho
assassino me ensinara. Ele mantinha
o seu anseio pela minha mãe
escondido bem
diante dos olhos das outras pessoas.
Na verdade, elas olhavam além do
que

era mais evidente e não viam nada.


Ele tinha o direito de reclamar outra
mulher quando a sua se revelara
estéril; ainda assim, Channa lutara
por ele

e fizera o possível para enganá-lo,


insistindo que Deus lhe dera a
criança que ela roubara de Yael.

Agora, quando parecia que cada dia


era uma dádiva e que outro talvez
não sobreviesse, como os essênios
haviam assegurado que aconteceria,
o

meu pai já não se preocupava com


subterfúgios. Eu o vira com a minha
mãe

à nossa porta, entregues a um abraço


tão apertado que parecia que

estavam se afogando. Havia noites


em que ele se sentava à nossa mesa,
participando da refeição escassa.
Nessas ocasiões, eu ficava no lado
de fora,
levando o meu irmão comigo para o
quintal, embora ele precisasse se

apoiar no meu ombro até para andar.


Nós nos sentávamos no lado de fora
e

comíamos frutas secas e pão sírio


com a mão. Talvez meu irmão
achasse que eu acreditava que
nenhum de nós dois tinha o direito
de permanecer

na presença do grande homem. Mas


eu não podia ver Ben Ya’ir sem que
a
minha cabeça fosse tomada pelos
gritos que ouvira durante a invasão
da aldeia. Sentia que falhara com ele
de alguma forma e que ele, por sua
vez,

falhara comigo. Talvez tivesse sido


melhor vê-lo a distância, de modo
que

suas falhas permanecessem


invisíveis. Quisera que ele me
conhecesse em

batalha e me reconhecesse como


filha; agora eu achava que a
invisibilidade
me agradava.

E no entanto uma noite, quando saiu


da câmara da nossa mãe, Ben Ya’ir

parou diante de nós. Eu advertira


meu irmão sobre o que fazer se tal
ocasião viesse a se concretizar. Era
para nós dois baixarmos os olhos na
presença do nosso líder.

– Quando for novamente para a


batalha, poderá precisar disto –
disse

Ben Ya’ir.
Ele estendeu uma faca diante de nós.
Observei que o cabo era feito de
bronze, lindamente decorado com
um pavilhão de folhas. Perac lavan

estava gravado sobre ele. Flor alva.


Ele carregava a faca em homenagem
à minha mãe e aos lírios que ela
amava quando menina em
Alexandria. Eu não concordava com
tudo o que ele fazia, nem com seus
modos no campo

de batalha, mas ele era meu pai. O


presente era para um guerreiro, por
isso
dei uma cotovelada no meu irmão.
Adir murmurou palavras de

agradecimento, mas, quando Ben


Ya’ir nos deixou, fui eu quem ficou
com a

faca.

COM FREQUÊNCIA cada vez


maior, fazíamos nossas refeições no
quintal, para que minha mãe e Ben
Ya’ir tivessem privacidade. Não
éramos os únicos que

sabiam que o nosso líder ia ao


alojamento da minha mãe todas as
noites.

Minha mãe era perseguida pelo


ciúme, e a desconfiança se imiscuíra
por toda a montanha. Ela era uma
mulher que estivera a ferros, que
podia invocar os demônios e atrair o
kadim para si. Em uma meia-noite,
deixaram uma pomba desmembrada
no lado de fora do nosso alojamento,
o bico e os

pés decepados, as penas brancas


polvilhadas de preto com uma
cobertura

de fuligem. Depois disso, dei à


minha mãe a faca de Ben Ya’ir, para
que pudesse se precaver contra as
más intenções de quem quer que
fosse. Fora

um presente do seu amado e,


portanto, pertencia justamente a ela
pois, embora eu devesse à minha
mãe a minha primeira vida, a
segunda vida

devia ao Homem do Vale, não a Ben


Ya’ir. Agora me achava tola em
pensar

que meu pai fora um dos anjos; o


meu verdadeiro pai fora o homem da
Montanha de Ferro, o único que nos
salvara e me ensinara tudo o que
precisava saber.

Minha mãe pegou a faca, o símbolo


de proteção de Eleazar. Aconselhei-
a

a fechar a porta quando eu estivesse


fora e que fosse mais discreta, para
não ser a causa da própria profecia
e acabar sendo levada à ruína por
amor.

UM GRUPO de exploradores
romanos nos surpreendeu quando
montou
acampamento no vale. Isso
aconteceu no mês mais sagrado,
Tishri, quando

celebrávamos o ano-novo e
expiávamos nossos pecados, aqueles
pelos

quais éramos responsáveis e os que


estariam por vir.

Quando os observadores chegaram,


pensamos que seriam como todos

os outros, surpreendendo-se com a


posição da nossa fortaleza e, em
seguida, passando a informação de
que não poderia ser conquistada.
Mas esse grupo era diferente. Esses
soldados tinham a intenção de ficar.
Haviam

trazido urnas de vinho e azeite,


rebanhos de camelos e, o mais
revelador de

tudo, padeiros, que se estabeleceram


no acampamento. Podíamos sentir o

aroma do pão fresco assando em


seus fornos abobadados.

Ficou evidente que esses soldados


eram apenas os primeiros do que

logo seria uma legião. Roma vinha


acumulando um exército de dez mil

soldados nas imediações de Jericó,


juntamente com mais mil judeus que

haviam sido escravizados e


enviados para servir ao imperador.
Nosso

conselho proclamou que as mulheres


não teriam mais permissão de se

aventurar além dos portões por


nenhum motivo, para assegurar que
não

caíssem nas mãos dos inimigos. Os


homens que viajassem para longe da

montanha o fariam por seu próprio


risco. Os guerreiros ainda saíam,

embora mais sorrateiramente,


tomando o caminho da serpente, sob
a

cobertura da escuridão ou descendo


pela parte traseira da montanha, uma

escarpa tão traiçoeira que vários


perderam a vida tentando retornar
por ali. Apesar do perigo, eu vivia
para essas noites em que as corujas
voavam

mansamente acima de nós.


Passávamos pelos inimigos como se
fôssemos

névoa, livres das nossas formas


terrenas.

À noite, eu andava de um lado para


outro no alojamento, não querendo

outra coisa senão ir além dos


portões. As únicas pequenas
alegrias que tínhamos eram ao
comemorar os inúmeros progressos
de Arieh. Ele estava

com catorze meses de idade. Até


mesmo aqueles que o
menosprezavam

como uma criança órfã admitiam que


era incomum, bonito, forte e

admirável. Ele era tão querido entre


as mulheres no pombal que todas as

vezes que corria sobre as pedras do


calçamento ou falava o nome immah
para a sua querida mãe, aplaudíamos
como se tivesse escalado uma
montanha.

À noite, eu me sentava entre as


mulheres nos teares. Embora não

soubesse tecer, ajudava a girar o


pouco de lã que havia. Ao lado, meu
cachorro repousava a cabeça sobre
meu joelho. Eran e eu queríamos a

mesma coisa, a liberdade do


deserto, mas precisávamos ter
paciência. Eu queria ser como o
Homem do Vale, que dormia além
dos campos. Não o via,

nem procurava por ele, mas sabia


que estava lá. Sempre que éramos

convocados para descer a montanha


em ataques, esgueirando-nos entre
os

observadores romanos, eu nunca


deixava de andar ao lado dele, pois
com

ele não precisava fingir ser alguém


diferente do que era.

AMRAM enviara uma menina para


me perguntar por que já não o
encontrava

na fonte. Ele esperava por mim à


noite, mas eu não aparecia. Decidira
então

correr um risco e envolvera aquela


criança para fazer a sua vontade. A
menina, que não deveria ter mais de
quatro ou cinco anos, era filha de um

dos guerreiros, um amigo em que ele


confiava do seu tempo em
Jerusalém.

A criança usava uma trança grossa e


preta e pareceu muito amigável. Ela
me lembrou de Nahara, com seus
olhos brilhantes e inteligentes.
Falei-lhe

para dizer ao homem que a mandara


que eu estava com febre. Corei sob
o

peso da minha mentira, e talvez


parecesse estar mesmo em chamas,

verdadeiramente tomada por uma


doença, pois a criança pareceu
acreditar

em mim. Ela se afastou rapidamente,


depois correu para transmitir a
mensagem.

Era a época do Rosh Chodesh e o


sacerdote que observava a lua que
nascia soou o chamado do chifre de
carneiro para que nos reuníssemos

para a Bênção da Lua Nova,


Kiddush levanah, uma oração que
nos concedia

o favor de Deus e atraía a


Shechinah, tudo o que era
compaixão e sabedoria, para o
nosso meio. Nosso povo
permaneceu sob a lua nova para
ouvir os sacerdotes e os homens
cultos. Rejubilamo-nos,
comemorando a passagem

do tempo com a dança, os músicos


tocando chocalhos, címbalos e sinos
em

desafio aos romanos estacionados


no vale. Rezamos e dançamos
juntos,

mas somente as mulheres não


trabalhariam pela manhã, pois eram
ligadas

à lua de maneiras que os homens não


entenderiam, mais próximas do
núcleo feminino da criação.

Mantive-me nas sombras, para que


Amram não me visse, porque o

avistara entre seus irmãos. Ao vê-lo,


não enxergava suas belas feições,
mas

o rosto da criança assassinada na


aldeia, ainda mais nova que a
menina que

me mandara com a mensagem. Não


havia ninguém ali com quem pudesse

compartilhar a alegria do novo mês.


Senti a falta da minha irmã e de
como

dançávamos juntas na terra do seu


pai, apesar de o seu povo não contar
os

dias como fazíamos. Nossa mãe nos


ensinara que, quando a lua estava

branca, reaparecendo depois de uma


ausência, era para nos mostrar que o

que estivera oculto poderia


facilmente tornar-se visível outra
vez.
Naquela noite, durante o sono, talvez
tenha me tornado febril,

adoentada pela ausência da minha


irmã. Ansiava por ela, a menina que

trouxera a este mundo. Sonhei que


havia sete lobos na montanha e que
cada um trouxera uma pomba na
boca, cada uma das pombas tinha
sete

asas e podia voar mais longe que


quaisquer outras. Sete era o número
mais

poderoso de todos. As primeiras


palavras da Torá eram em número
de sete

e o shabat era o sétimo dia, o mais


sagrado de todos. Tive o sonho com
números sete. Isso me pareceu uma
bênção e um chamado, que eu não

poderia ignorar.

Fui até a muralha para observar


minha irmã.

Permaneci ali por grande parte do


dia, convencida de que meu sonho

fora um caminho, um sinal de que


Deus sabia que a minha irmã ainda
me

pertencia e que nunca poderíamos


verdadeiramente viver separadas.
Ao

crepúsculo, a hora entre os dois


mundos, quando os olhos nos
pregam

peças e é fácil enxergar o que


desejamos ver, e não o que está à
nossa frente, pensei ter visto Nahara.
Ela seguia as magras cabras pretas,
como se
procurassem em vão por tufos de
grama sobre a falésia de rocha nua.

Abaixo de nós, no seu acampamento,


logo os romanos também a

perceberiam se ela continuasse na


borda da montanha enquanto
houvesse

luz. Depois que os soldados haviam


montado acampamento, os essênios

não saíam da caverna durante o dia.


Mas as provisões durariam por
pouco
tempo se ninguém saísse em seu
auxílio. Se não tivessem uma fonte
ou um

poço, logo morreriam de sede.

Apenas metade das pombas nos


restavam, apesar de minha mãe ter

implorado para que as deixassem


viver. Em vez disso, elas foram
levadas por causa da sua carne.
Tínhamos apenas algumas cestas dos
seus

excrementos para adubar a terra, e


essa nos retribuíra na mesma medida
pela falta de gratidão. Nos pomares,
as folhas que vingavam eram raras;
as

frutas nos chegavam já secas.


Durante a colheita, juntei o que pude
para a

minha irmã. Não podia olhar para o


vale e vê-la morrer de fome
enquanto

ainda conseguíamos nos alimentar,


ainda que escassamente. Embalei um

pouco de feijão e milho, um pequeno


jarro de azeite a que tivéramos
direito. Estava disposta a ser uma
ladra, como estivera disposta a ser
uma

mentirosa, uma impostora e uma


assassina. Mas havia uma falta que
não poderia cometer. Eu, que matara
homens e provara o gosto do sangue,
não

seria capaz de matar as pombas de


que cuidávamos. Procurei Yael e
apelei

por sua ajuda, que ela me deu sem


questionar.
Fomos juntas ao pombal. A lua nova
nos observava do alto e nos

permitiu nos esgueirar pela praça


como nada mais que sombras.
Entramos,

depois nos agachamos sobre a palha.


Observei enquanto Yael chamava as

pombas para junto de si. Ela


levantou a mão e elas se
aproximaram. À

medida que cada uma se aproximava


dela, Yael sentava-se com ela
calmamente e depois lhe quebrava o
pescoço. Ela chorava enquanto o
fazia,

tamanho era o sacrifício que fazia


em meu benefício. Ela então
dispunha seus corpos flácidos sobre
o colo, acariciando as penas antes
de me

entregá-las.

Ela me acompanhou de volta aos


meus aposentos, ajudando-me a

carregar as provisões que pretendia


levar para a minha irmã. Como eu a
havia ajudado nos momentos de
necessidade, agora ela estava ao
meu lado.

Eu nunca teria imaginado que ela,


que um dia fora a minha rival, viesse
a se

mostrar uma irmã para mim. No


máximo eu imaginava que ela
poderia se

tornar minha irmã pelas leis do


casamento. Amram e eu sempre

planejáramos incluí-la na cerimônia,


mas esse tempo acabara. No dia
seguinte ao que a menina mensageira
dissera-lhe que eu estava doente,

Amram veio ao nosso alojamento e


bateu na porta. Minha mãe ficou

surpresa ao ver que, tão logo avistei


quem batia à porta, saíra
furtivamente

para o jardim. Ouvi-o perguntar


sobre a febre e receber a resposta de
que

era meu irmão que estava doente,


não eu. Talvez Amram tivesse
reclamado
com a irmã pois, quando nos
aproximamos do quartel, Yael
murmurou:

– Meu irmão disse que raramente a


vê. Ele ainda usa o lenço azul.

– Ele faz isso por você. – Mantive


os olhos baixos. – Não por mim.

– Todo homem muda na guerra.

Pelo seu tom de voz, entendi que


sabia que alguma parte do seu irmão
se

perdera.
VESTI A TÚNICA do meu irmão e
coloquei sobre as costas a mochila
pesada que levaria para minha irmã.
Adir ainda estava em seu leito por
causa da dificuldade de andar. Ficou
surpreso quando me viu vestida
como ele.

Garantiu que ele mesmo pensaria


que eu era Adir se não soubesse que
era

eu. Ele ainda não entendera muito


bem como conseguia ser um
guerreiro

mesmo estando em um canto escuro


do nosso alojamento.

– Todos acreditam que sou você –


admiti.

Meu irmão aceitou que eu tomasse o


seu lugar e que honrasse o seu

nome. Esse era o motivo de os


guerreiros deixarem presentes de
azeite e mirra à porta e de as
pessoas virem felicitá-lo pela
bravura de seus atos.

Meu irmão levantou-se sobre um


cotovelo para me examinar melhor.
O
cão postou-se ao meu lado, um
pacote amarrado às costas, pois ele
era meu

quando deveria ser do meu irmão.

– Eu me saí bem como um


guerreiro? – Adir quis saber.

Balancei a cabeça, envergonhada


por ter tirado tanto dele. Mas ele

parecia aliviado.

– Matei muitos inimigos?

– Só quando precisou.
Todas as vezes que os guerreiros
saíram em ataques, meu irmão, você

estava entre eles. Atacamos à noite,


divididos em quatro grupos,
atingindo

os inimigos no escuro, vindo dos


quatro cantos do mundo. Fomos
mostrar

aos romanos que eles não haviam


nos destruído e que não

desaparecêramos, apesar da sua


presença no nosso vale. Fomos a fim
de pegar o que precisávamos para
sobreviver e porque nosso povo não
pode

ser contido nem privado do seu


direito ao Sião.

Durante as noites, enquanto você,


meu querido irmão, descansava no

seu estrado, eu me embrenhara entre


os espinheiros e tivera o homem que

não temia o metal, que ansiava por


ele, a exemplo de mim mesma, como
fora durante toda a minha vida.
Embora não fôssemos mais que
metade de
pessoas, embora tivéssemos perdido
a nós mesmos, juntos éramos um e

sentíamo-nos completos. Era por


isso que me achava tão impaciente

sempre que precisava permanecer na


montanha. Ele era a única pessoa
que

me conhecia. Ele me disse que, se eu


fosse uma mulher, não poderia

possuir-me, pois jurara nunca


permanecer com uma mulher que não
fosse
sua esposa. Mas eu era outra coisa,
um guerreiro, assim como ele. Nós
não

precisávamos falar, como aqueles


que lutam lado a lado não precisam
de palavras, mas, em vez disso,
conhecem-se em silêncio. Dessa
forma, era possível cada um de nós
prever o que o outro queria, fosse
algo brutal ou

delicado, fosse para durar a noite


toda ou em uma breve explosão de
tempo

roubado.
No dia em que nos arrependemos
dos nossos pecados, eu deixara esse

homem entregue à dor do passado.


Na véspera do Yom Kippur, ele
desapareceu no deserto. Não pedi
para compartilhar suas dores, pois
isso

não teria sido possível. Esperei na


noite azul, sozinha, como qualquer
companheiro faria. Quando ele
voltou para mim, havia carreiras de

espinhos enfiadas no seu peito.


Ofereci-lhe água e uma parte do meu
jantar,
e não fiz nenhuma pergunta nem
apresentei exigências. Tínhamos

adversários suficientes, não


precisávamos desafiar um ao outro.

Eu me sentia grata, meu irmão, por


você não poder ver como era o

mundo além desses portões, assim


como me sentia grata por poder
fechar

os olhos sob a copa dos espinheiros,


por poder gemer e me debater como

nunca fiz em batalha, pois em


batalha, meu irmão, a sua reputação
era a do

silêncio. Você nunca gritava durante


a noite, tendo apenas o cão para
ouvir

enquanto você se agarrava ao


guerreiro ao seu lado. Você era
jovem, o mais

leve entre eles, mas era um arqueiro


bom, talvez o melhor de todos,

conhecido pelas penas vermelhas


nas suas flechas, que aceleravam
cada
tiro, as armas tornando-se aves à
procura dos nossos inimigos para
levá-los

à morte. Nenhuma cabra selvagem


lhe fugia, nenhum coelho era rápido
o bastante.

Na maior parte das vezes, você


permanecia na retaguarda de uma

escaramuça, porque dali a visão


seria mais clara, observando os
atacantes a

distância e abatendo-os antes que se


apoderassem dos nossos homens.
Por

causa da sua habilidade, vários


guerreiros que poderiam ter sido
mortos viviam. Uma vez Amram foi
surpreendido por uma pedra atirada
contra si

por uma funda, e você, meu irmão,


adiantou-se para matar o atacante de
cima do morro onde se posicionara,
a sua armadura ardendo ao sol,

deixando marcas vermelhas na sua


pele macia.

Depois disso, Amram veio lhe


agradecer. Chamou-o de irmãozinho
e

ofereceu-lhe a sua lealdade. Você


simplesmente baixou os olhos, como
se estivesse muito impressionado
com a honra que ele lhe concedia
por lhe dirigir a palavra, quando a
verdade era que não queria que
visse a cor dos

seus olhos, ou adivinhasse o que


estava por baixo das escamas de
metal prateado que usava. No
entanto, você aceitou como presente
o amuleto, um
disco de prata de Salomão lutando
contra um demônio no piso do
Templo,

para não ofendê-lo.

– Devo-lhe a proteção – disse ele no


dia em que você, mais jovem e mais

leve, salvou-o do Anjo da Morte que


pairara tão perto. – A minha vida é
sua.

Você usou o amuleto dele para não o


ofender no campo de batalha, mas

escondeu-o debaixo de um lenço em


todas as outras ocasiões. Não teve

coragem de lhe dizer que não era a


vida dele que queria. Tudo o que
você

desejava era a sua própria vida, as


noites nos espinheiros, os dias com
os

guerreiros.

Meu irmão, seu cão esteve sempre


ao seu lado, tão calado quanto você,

com um silêncio que poderia muito


bem ter aprendido com o leopardo.
Quando uma batalha começava, ele
rompia o silêncio e rugia ao seu
lado, pois não tinha medo do sangue
nem do metal nem da morte. Ele era
seu companheiro e dormia com
você, estivesse você sozinho ou com
o homem

que sabia quem você era,


entendendo por que você se isolava
sob as

estrelas. Embora fosse zeloso o


bastante quando era necessário,
disposto a

carregar as espadas de dois gumes


dos outros guerreiros, as suas
fundas, as

suas lanças, você não se misturava


com eles.

Quando você saía da sua túnica,


desaparecia sob a lua. Você
evaporava

no ar e ali descansava, entre os


mundos.

Foi assim que vim a tomar seu lugar.

*
SAÍ FURTIVAMENTE pelo Portão
da Água do Sul, juntamente com o
cão, para me encontrar com a minha
irmã. Enrolara-me em xales, pois o
frio da noite logo se abateria sobre
nós. Trouxera a minha irmã à vida
uma vez e faria isso novamente.
Nenhum guarda me impediria, pois
eu era o bravo Adir, o

mesmo nome de reis do povo de seu


pai, e os guardas postados no portão

apenas balançaram a cabeça em


cumprimento a um companheiro

guerreiro. Levava o arco amarrado


às costas. A escuridão começava a
se estender no horizonte. A luz
esmaecente tornara as falésias
vermelhas a distância. As cotovias e
as brilhantes aves canoras azuis
cruzavam o céu, pegando os
mosquitos que enxameavam à noite.
Procurei pisar com

cuidado, pois uma única rocha


poderia fazer com que os romanos
me

notassem na perigosa travessia para


a caverna dos essênios.

Estava tão concentrada no


acampamento romano que jamais
pensei que

poderia estar sendo seguida. Não


estava preparada quando me
agarraram e

me tiraram do caminho. Gostaria de


ter a faca que meu pai me dera. Na
batalha corpo a corpo, o arco era
inútil. Virei-me para lutar, mas o
homem

que me segurava não se intimidou,


como se dizia dos anjos e dos
demônios.
Lutei com ele até que me venceu.
Talvez aquele não fosse um homem
afinal,

mas um dos sete lobos do meu


sonho. Se assim fosse, o sonho
profetizara a

minha derrota. Lamentei a minha


fraqueza. Eu, que sempre fora tão

destemida, entreguei-me a ele,


esperando ser consumida pela luz ou
pelas

chamas.
Reconheci-o quando Eran deitou-se
como se estivesse aos pés do dono.

Vi meu seguidor por quem ele era, o


homem que nada possuía além do

machado que carregava. Disse que


me acompanharia e que, se caísse do

penhasco que descíamos, então


estava destinado a isso, pois ansiava
pela morte e não tinha escolha a não
ser cortejá-la. Se Mal’ach ha-
Mavet o procurasse, isso seria
apenas o que desejava o tempo todo.

Não queria pô-lo em risco por causa


da minha irmã, mas em batalha não

se pode dizer ao outro quando é a


hora de entrar no Mundo Vindouro,
nem

é possível manter qualquer homem


neste mundo quando deseja deixá-lo

para trás. Eu não podia discutir com


o Homem do Vale, pois isso era uma

coisa que uma mulher faria, e ele


jurara nunca ficar com uma mulher
que

não fosse sua esposa. Eu era seu


companheiro e, como tal, devia
respeitar

seu desejo. Não poderia me agarrar


a ele, pois isso também me
mostraria

como uma mulher. Eu usava a túnica


de Adir e levava o seu arco,
portanto

deveria desistir de lutar.

Amarramos o cão a um espinheiro,


depois prosseguimos, o ruído da

nossa respiração produzindo ecos. A


lua nova brilhava com uma luz

delgada e fraca, mas logo as nuvens


a encobriram e pudemos escapulir

através da escuridão. Eu não


precisava ver o Homem do Vale
para saber que se encontrava ali,
pois estávamos ligados por algo
mais forte que a visão e, assim como
os cavalos do rei, não tropeçamos
no penhasco.

Cheguei a imaginar que poderia


capturar a minha irmã, amarrá-la
com
cordas e levá-la de volta para a
fortaleza. Mas, se fizesse isso, ela
gritaria, como chamara pelo pai
quando deixamos a Montanha de
Ferro. Seus gritos

atrairiam os romanos para cima de


nós e eu não queria ser a causa da
morte da minha irmã.

Sabia que precisava deixar que ela


mesma causasse isso.

Uma vez, enquanto olhava para a


escuridão, meu pé escorregou e meu

companheiro me agarrou e me
abraçou até eu recuperar o
equilíbrio.

Pedras rolaram em direção ao vale,


mas, no escuro, poderíamos muito
bem

ter sido dois íbex pretendendo


escalar o precipício. Quando
prosseguimos,

pudemos distinguir três cavernas,


uma para as cabras, uma usada como

depósito, ao lado de outra caverna


maior, na qual os essênios
acampavam.
Não tivemos medo de que pudessem
nos atacar para se proteger, pois não

tinham armas e nenhum desejo de


outra defesa que não fosse a

misericórdia de Deus. O fedor da


caverna nos alcançou primeiro e
ficamos

surpresos por ser pior que o de


qualquer curral. Quando olhei
através da escuridão, mal pude
suportar a visão do modo que
viviam. As fogueiras no

interior da caverna enegreceram


suas peles e as roupas de linho
estavam salpicadas de cinzas. Dois
homens vieram ao nosso encontro,
franzindo a testa, claramente se
ressentindo da nossa intromissão em
seu meio. Eles estavam sujos, muito
magros, com uma expressão
arrebatada de fome em

seus olhos. Reconheci Malaquias,


embora ele não me reconhecesse e,
vendo

a minha túnica, me tomasse por um


menino.

– Trouxemos provisões para vocês –


disse o Homem do Vale. Colocamos

os fardos no chão, algumas frutas, as


pombas, o pão sírio, os grãos, as
bolsas de água.

– Das mãos de assassinos? – disse o


essênio mais velho, avaliando as
provisões que trouxéramos com
grande perigo.

– Das mãos dos seus irmãos –


observou o Homem do Vale. Ele
estava

sendo polido, mas seu tom de voz


carregava uma nota de reprovação.
Dei alguns passos para a frente,
enquanto os homens continuavam a

falar. Através da escuridão avistei o


perfil de Abba; o louvado mestre
dos essênios estava encostado a uma
rocha, tão fraco que parecia que já

passara para o outro mundo, embora


ainda respirasse. Vi as mulheres

reunidas, olhando para nós com


desconfiança, mas não distingui a
minha irmã das outras, nem ela me
reconheceu. Tirei o lenço da cabeça
e deixei o
cabelo cair sobre as costas para que
ela visse quem eu era, a irmã a quem

pertencia. Malaquias imediatamente


aproximou-se de mim depois de me

notar, tão rapidamente que poderia


ter sido uma víbora negra, do tipo
que

se enrola em torno da presa em um


aperto implacável.

– Vá agora – ele me disse, apesar de


eu ter arriscado a minha vida e a
vida do meu companheiro para
trazer-lhes provisões e água. – Ela
não pode

ver você ou pensar naquela outra


vida.

Avistei-a, então, uma mulher em


trapos, a minha irmã linda, cercada

pelas outras mulheres, ovelhas em


um cercado, não mais uma parente
para

mim que as ovelhas por trás das


nossas cercas escamosas feitas de
ramos

de arbustos espinhosos. No entanto,


entendi o medo de Malaquias. Ele

sabia o que eu pretendia fazer antes


que o fizesse. Pois nesse momento
chamei Nahara, a minha voz tão
melancólica e miserável que mal a

reconheci como minha.

– Venha comigo – supliquei, com a


intenção de atraí-la para mim. –
Você

não pertence a eles. Parta comigo e


a protegerei como fazia antes de
você
ter vindo para esse lugar ou de ter
conhecido esse povo.

Não houve resposta além do som


dos meus próprios gritos, pois
minhas

palavras caíram como pedras, que


arrancaram lágrimas de mim. O
Homem

do Vale postou-se ao meu lado.


Esperava que ele me censurasse
pelos meus

atos, porque não estava sendo nada


mais que uma mulher. Em vez disso,
ele se inclinou para perto de mim,
sem julgamento.

– Deixe-me tentar falar com ela –


sugeriu ele.

Esperei na entrada da caverna. Notei


que havia um charco raso de água

parada. Certamente os essênios


bebiam dessa poça, embora não
fosse

adequada para a sede humana. Na


terra enlameada havia crescido um

pezinho de acácia. Pouco mais que


um galho, mas estava florescido. Mil
abelhas vinham aos ramos. Fechei
os olhos e ouvi o zumbido. Por um

momento, estava em outro mundo, na


rotina da minha outra vida,

cavalgando sobre as pradarias.


Sonhei que fazia uma fogueira e
queimava

uma centena de ramos, e que as


faíscas voavam para o céu e
permaneciam

lá no alto para se tornar estrelas.


Levantei-me quando o Homem do
Vale se aproximou. Sentia-me
sedenta

pela nossa viagem, mas ao vê-lo me


senti como se algo tivesse sido
saciado.

Permaneci ao seu lado quando me


disse que os essênios tinham

concordado em aceitar as provisões.


Ele fora levado perante Abba para
que

uma oração pudesse ser oferecida


em seu nome. O antigo mestre mal
podia

falar, pois estava tão fraco que o fio


que o prendia a este mundo se
desgastava. Minha irmã conseguira
se aproximar. Depois que Abba
acabou

de cantar, ela sussurrou ao Homem


do Vale para que só ele ouvisse.
Pediu

que me dissesse que se lembrava de


mim, o cavaleiro mais veloz, o filho
favorito do seu pai, a irmã a quem
um dia pertencera, em outro tempo e
outro mundo.
CAMINHAMOS em silêncio, como
sempre fazíamos. Nossa carga
estava mais leve, pois já não
carregávamos frutas, água e grãos,
assim como eu já não

carregava o destino da minha irmã


nas mãos. Eu a deixara lá. Se fosse
para

nos encontrarmos novamente nesta


vida, não cabia a mim decidir. Ela

renunciara à menina que eu trouxera


para a vida e por isso não estávamos

mais ligadas uma à outra. No


entanto, pensaria nela não como uma
mulher

encolhida em uma caverna, os olhos


baixos, esperando pelo Fim dos
Dias,

mas como o único nascimento que


presenciara na vida, a grande glória
eo

milagre de Deus.

ERAN esperava por nós. Paramos


antes de subirmos em direção ao
portão.
Como camaradas, concordamos em
prosseguir sem dizer uma palavra.

Sabíamos que Roma se aproximava


e entendíamos o que isso
significaria.

Dedicamos aquela noite a nós


mesmos, no caso de não haver outra.
Fomos

para a caverna em que Yael me


dissera uma vez que vivia um leão.
Dentro

não encontramos nenhum leão.


Fizemos uma fogueira longe da boca
da

caverna. Soubemos que outros


tinham feito o mesmo antes de nós,
pois

encontramos montes de cinzas e


fuligem. Talvez quem tivesse estado
ali antes de nós ansiasse por
libertar-se do topo da montanha,
como fizemos.

Talvez tivesse desejado outros


mundos e outra época.

Passei os braços em volta do meu


guerreiro, chamei-o para perto de
mim e me entreguei a ele. Não tinha
mais forças para a batalha. Queria
um

mundo que fosse bonito e naquela


noite ele foi terno comigo de um
modo

que não fora antes, talvez porque


tivesse me visto chorar na frente da
minha irmã. Ele me tratou não como
um guerreiro, mas como uma mulher.

Entendi que essa era a sua maneira


de me dizer que o mundo era terrível
e
que deveria me preparar para o que
estava por vir. Mas eu decidira
ignorar

esses temores, assim como me


desfizera da advertência da minha
mãe

sobre os malefícios do meu amor.


Nada disso importava agora.
Éramos dois

feridos, descrentes de tudo o que já


víramos e conhecêramos. Tínhamos

matado juntos, enterrado os caídos


juntos e entoado orações criadas
apenas para os homens recitarem.
Estivemos juntos como os animais,

desesperados e impulsionados por


uma necessidade feroz, e como
amantes

para quem o resto do mundo


inexistia.

Quando saímos da caverna, a manhã


abrira os cantos mais distantes do

céu. A poeira se levantava enquanto


a legião romana se aproximava. Uma

coluna procedia do norte e outra do


leste. Quando as tropas se reuniram,
as

nuvens ascendentes tomaram não a


forma do javali, o símbolo que

carregavam em seus estandartes,


mas a figura de um leão, ícone da
antiga

tribo de Judá e do deserto em torno


de nós.

– O meu nome é Rebeca – disse a


ele enquanto permanecemos juntos
ali.
E ele era Yoav, o Homem do Vale, o
amor da minha vida.

Outono, 72 d.C.

QUARTA PARTE

Inverno, 73 d.C.

A Bruxa de Moabe

Não éramos diferentes das pombas


acima de nós.

Não podíamos falar ou chorar,


mas, quando não houve

escolha, descobrimos que podíamos


voar. Se você

quer um motivo, considere este: nós


ansiávamos pela

nossa porção de céu.

A MINHA MÃE ME ENSINOU tudo


o que uma mulher deveria saber
neste mundo e tudo o que era
necessário para levar ao Mundo
Vindouro. Com a idade de

oito anos, eu aprendera que a folha


da tamareira fervida em água era
remédio para a picada do escorpião,
que o néctar da espetada flor azul do
hissopo presa ao punho servia para
afastar o perigo, que a pele de cobra
queimada e moída era uma proteção
contra o mal. Eu tinha um dente de
cachorro preto amarrado em volta
do pescoço como proteção contra os

animais selvagens e tinha o cuidado


de recitar um encantamento quando

escavava as raízes do meimendro, a


planta sagrada, porque muitas vezes
enterrava os amuletos da minha mãe
como oferendas a Astarte, a deusa

que nos vigiava em momentos de


dificuldade.
Minha mãe me instruíra na
preparação de encantos contra a
febre e

encantos pela vitória, embora ela se


recusasse a lidar com feitiços de
ódio,

usados para prejudicar rivais, algo


que faltava no meu livro de receitas.
Eu

sabia como lançar encantos que


dissolviam um feitiço e os que
curariam mordidas de répteis. Ela
costurava pedaços de pergaminho
prateado e
escaravelhos nas bainhas das minhas
vestes com seus dedos rápidos e

incansáveis. Sua grande beleza era


eclipsada somente pelo grande

conhecimento. Seu nome era Nisa e


eu o considerava a palavra mais
bela em qualquer idioma. A palavra
em si era como o brotar de uma
fonte, o ritmo da chuva.

Ao crepúsculo, quando o ar em
Alexandria tingia-se suavemente de
azul,

ela me instruía no nosso jardim,


ensinando-me hebraico, aramaico e
grego,

formando as letras na poeira com


algumas estocadas da borda pontuda
de

uma vara. Ninguém via o que


fazíamos durante essas aulas, pois
não

morávamos entre os habitantes da


cidade, mas na casa das mulheres
santas

que estavam disponíveis para os


sacerdotes. Desse modo, éramos
também

abençoadas, pois as leis que se


aplicavam às outras mulheres não se

aplicavam à minha mãe. As orações


não eram proibidas para ela, assim

como não foi a educação, nem a


liberdade de admitir a entrada de
homens

na sua câmara privada.

A entrada da nossa casa era ladeada


por sebes estreitas de arbustos de
jasmim e de rosas perfumadas. À
noite, a própria cidade parecia
tornar-se

azulada, como se mergulhasse o


nosso mundo sob as águas. Sombras

compridas estendiam-se sobre os


tijolos de terracota do caminho da

entrada, de modo que ninguém visse


quem entrasse pela nossa porta e

quem saísse por ela no meio da noite


escura e perfumada. Essas sombras

também me ajudavam pois, embora


fosse solitária, era igualmente

independente. As únicas testemunhas


da minha instrução e da minha

educação foram as lagartas e os


besouros. Ainda muito criança
entendi que

as mulheres guardavam segredos e


que alguns deles deviam ser

transmitidos somente às filhas.


Desse modo, permanecíamos unidas
pela

eternidade.
No jardim, onde aprendia as letras,
crescia uma variedade rara de lírio-

d’água branco que à noite exalava


uma fragrância perfumada. Essas
flores

tornaram-se as minhas favoritas


desde essa época. Uma só delas vale
um barril de bálsamo ou de mirra.
Os lírios vermelhos de Moabe, por
mais gloriosos que sejam, são ervas
daninhas quando comparados a
essas flores,

seu perfume o simples ar quando


comparado ao dos lírios de
Alexandria. A

minha mãe esfregava o perfume nos


punhos e por isso nenhum homem

poderia repudiá-la.

Enquanto as outras mulheres


mantinham-se dentro dos pátios
murados

das casas, não se aventurando além


do mercado – e então apenas

acompanhadas de servos ou parentas


–, minha mãe era autorizada a fazer
o
que quisesse. Toda primavera ela
viajava para visitar a família em

Jerusalém, durante a Festa dos Pães


Ázimos. Era lá naquela cidade que
meu

destino me aguardava.

DIZ-SE QUE, após a expulsão de


Adão e Eva do Éden, dois anjos se
ofereceram para entrar no nosso
mundo para ensinar aos humanos o
conhecimento

permitido por Deus. Esses anjos


faziam as refeições com os humanos,
apaixonaram-se por eles, tiveram
relações sexuais com eles, viram
seus

filhos nascer. Por causa disso, nunca


mais puderam voltar ao mundo

espiritual. Eles continuam na terra


em nossos dias, ensinando a
sabedoria

da feitiçaria àqueles que desejam


aprender. Minha mãe provinha de
uma

linhagem de mulheres que se


dispunham a ouvir quando os anjos
começavam a falar. Ela guardava
seus bens mais pessoais em uma
caixa de

pau-ferro esculpido, cuja chave


trazia ao pescoço, presa a um fio de
crina de

cavalo trançado. A chave tinha o


formato de uma cobra. Quando eu
era criança, ela me parecia uma
coisa viva. Sempre que a minha mãe
me

permitia pegá-la na mão, eu sentia


como se ela rastejasse friamente
sobre a
minha palma.

Dentro da caixa trancada, havia um


caderno de pergaminho em que

minha mãe anotara os inúmeros


segredos que acumulara ao longo
dos

anos. Era um livro de receitas para o


coração humano, pois nosso povo
acreditava que tudo o que sabemos e
tudo o que vivemos está contido ali.

HAVIA ENCANTAMENTOS em cada


página do diário da minha mãe:
Para a Cegueira Noturna. Para
Capturar um Ladrão. Para a Dor
de Cabeça. Para a

Febre. Para a Fidelidade. Para o


Amor. Enquanto as outras meninas
brincavam de corda ou com animais
esculpidos em madeira, eu aprendia
o

que fora escrito pela minha mãe,


segredos que ela me transmitia e que
um

dia eu confiaria a uma filha minha.


Os feitiços em si eram transcritos
em código, para que nenhum
estranho pudesse entendê-los ou
avaliar

plenamente a sua eficácia.

Sempre existiram antigos livros de


mistérios. Os homens que

praticavam a magia eram os mestres


chamados abba, pais abençoados
pelo

conhecimento d’ O Livro dos


Mistérios. Diz-se que o próprio
Moisés tinha o que os mágicos e
grandes mestres chamam de O Livro
da Lua, uma coletânea de magias tão
eficazes que nenhum outro ser
humano jamais

ousou folhear suas páginas, para não


ser queimado vivo pelo calor das
palavras que continha. Houve quem
dissesse que Moisés seria capaz de

fazer o mar desaparecer e que


poderia ter destruído o mundo
inteiro se quisesse, ou se Deus o
mandasse fazê-lo. Noé também tinha
um livro de encantamentos. A voz de
um anjo em O Livro dos Jubileus
relata que os próprios anjos
ensinaram a Noé todos os tipos de
segredos, para que
pudesse usar as ervas da terra a fim
de curar seus filhos. Entre os
homens,

houve rumores sobre a existência de


um tesouro inestimável chamado O

Livro dos Vigilantes, com


instruções diretas do Todo-
Poderoso, um tratado místico tão
complicado, ocultista e envolto em
enigmas, que apenas o

iluminado mais sábio poderia tentar


entender seu significado.

Esse era um trabalho de homens,


estudiosos e sacerdotes. Existiam
duas

escolas de magia de que os homens


eram conhecedores, a que os

sacerdotes praticavam publicamente,


os exorcismos, maldições e bênçãos,

e os trabalhos menores produzidos


pelos minim, todos homens, fossem
eles sábios ou magos, que ofereciam
a magia em troca de pagamento no
lado de

fora das sinagogas. Além disso, em


segredo, no escuro, existia a magia
que

as mulheres praticavam por trás de


portas fechadas, com os livros de

receita de pharmaka, os
medicamentos e philtrons, as
poções do amor. As mulheres tinham
usos secretos para as cinzas, folhas
de louro verdes,

sangue, mirra, enxofre, almíscar,


mel, azeite e flores, juntamente com
as raízes de plantas, tais como as da
mandrágora, as da yavrucha e as
dos ba’aras, muitas vezes chamadas
de “fulgor prodigioso”, de um
vermelho incendiado quando
retiradas da terra. No Templo fora
decretado que

ninguém deveria tolerar feitiçaria,


pois se dizia que esse tipo de magia
era

praticado por prostitutas, cuja


maldade era disfarçada por um
manto de sabedoria que não deveria
ser permitido. Existiam dez
variedades de

homens sábios conhecidos, mas


apenas dois tipos de mulheres que
poderiam ouvir a voz do Todo-
Poderoso: as profetisas e as bruxas.

Para as mulheres que praticavam a


magia em segredo, não havia

ninguém a não ser Ele, o nosso


Deus, o radiante, muito maior que
qualquer

mago. Mas nós não concordávamos


com as regras dos homens e

ignorávamos certos decretos,


embora o tipo de magia que
mulheres como a
minha mãe praticavam fosse
conhecido como fora da lei e,
portanto,

considerado pecado.

Nós sabíamos por que isso


acontecia, e por que a nossa grande
deusa, Astarte, meio guerreira e
meio vidente, fora profanada e alvo
de censura nos escritos que se
seguiram aos profetas. A presença
de Astarte nos foi negada, as
imagens da sua forma foram
derretidas, transformadas em

piscinas de prata e bronze, os bolos


que fazíamos com sua figura eram
considerados ilegais, as árvores que
decorávamos em sua homenagem

tinham sido derrubadas havia muito


tempo. A expulsão da Rainha do Céu

ocorrera pela mesma razão pela qual


Sansão perdera toda a força; a razão

pela qual homens queimavam o


cabelo e as unhas, para que esses
símbolos

não fossem usados contra eles nos


feitiços de qualquer mulher. As
mulheres que praticavam o
keshaphim foram consideradas
bruxas e

punidas como tais, expulsas,


queimadas, desonradas. Elas eram
poderosas

e perigosas e ninguém queria uma


criatura dessas por perto, exceto,
talvez,

em sua cama por uma noite, antes de


livrar o mundo da sua existência.

Certamente foi por causa disso que


as mulheres se acostumaram a não
tomar notas dos seus conhecimentos,
para que eles não fossem

descobertos e usados contra elas


mesmas. Contávamos umas às outras
as

nossas receitas mágicas, assim como


confidenciávamos as melhores

maneiras de fazer um bolo de figos,


um caldo de ossos, um ensopado de
maçãs e mel que fosse mais doce
que qualquer outro. Não discutíamos

métodos, nem tornávamos nossos


talentos públicos, mas as outras
mulheres sabiam. A verdade fora
escrita em nós, como diziam que os

pecados dos homens estavam


marcados em seus ossos, para que,
quando

morressem, seus atos perversos


pudessem ser lidos como se
estivessem

gravados em pergaminho.

Podíamos oferecer às mulheres o


que elas mais quisessem, um
remédio
para as doenças mais comuns do
mundo. Quando um casamento não
fosse

abençoado e os demônios se
apegassem a uma casa, a dissolução
do

matrimônio poderia ser encontrada


em um feitiço, que é um documento

legal de divórcio. Eu te conduzo


para fora da casa dela e não
deverás aparecer para ela, nem
mesmo em sonhos, porque te
dispenso e liberto pelo
ato do divórcio, uma carta de
rejeição de acordo com a lei das
mulheres de

Israel.

Quando as crianças estivessem


doentes ou os bebês se recusassem a

nascer, quando os homens fossem


infiéis, quando o céu estivesse

desprovido de chuva, quando os


amuletos enterrados sob os muros
santos

por instruções dos minim não


oferecessem consolo e todas as
súplicas aos sacerdotes por
orientação falhassem, quando os
rituais que oferecessem

não trouxessem conforto e consolo,


elas viriam até nós.

AINDA MENINA, em Alexandria,


muitas vezes observava minha mãe
folhear seu caderno quando deveria
estar dormindo no estrado, ao pé da
cama, que era

digna de uma rainha, acima do piso


e coberta por um tecido de linho
fino,

bordado com fios roxos e dourados.


Minha mãe parecia ameaçadora a

meia-luz, o cabelo negro caindo


pelas costas. À noite ela queimava
bálsamo

em uma tigela de barro. A fumaça


que espiralava em direção ao teto
era clara, muito parecida com as
penas de dentro da asa de uma
pomba. O

aroma era de terras distantes, onde


os campos estavam sempre verdes e
os

pés de acácia se desenvolviam.


Minha mãe fora escolhida para ir a

Alexandria e viver entre uma seita


de gregos e judeus porque era muito
bonita e culta. Por causa disso, ela
tinha tatuagens secretas gravadas
sobre

a pele, desenhos intrincados feitos


com canas afiadas mergulhadas em

hena. Esses desenhos atestavam a


condição de kedeshah. Após a
iniciação, muitas vezes ela se
mantivera escondida pois, embora
sua posição fosse reverenciada entre
muitos círculos em Alexandria, o
Templo de Jerusalém

proibia essas práticas.

As mulheres que se entregavam a


esse estilo de vida acreditavam que

poucas estivessem mais próximas de


Shechinah que uma kedeshah. Elas
se dedicavam ao aspecto feminino
de Deus, a Habitação, a extensão
espiritual
em que reinava a inspiração, pois
nas palavras escritas de Deus a

compaixão e o conhecimento sempre


foram do sexo feminino. Era por
isso

que cresciam lírios no jardim da


minha mãe e por isso fora-lhe
permitido

ter acesso ao conhecimento do grego


e do hebraico, o que a habilitava a
conversar com qualquer homem.

Quando os sacerdotes nos visitavam,


eu ficava fora de casa, ia para o
jardim. Entre as sebes brotavam as
flores muito alvas da hena, que

produziam uma nuance escura de


vermelho, misteriosa e sagrada,
quando

preparadas como um corante.


Geralmente, passava o tempo ao
lado de uma

pequena fonte decorada com


azulejos azuis e brancos. Não
gostava de ser

separada da minha mãe, mas


mantinha-me ocupada, uma
habilidade

aprendida por crianças que às vezes


tinham de agir como mais velhas que

sua idade. Os lírios-d’água


descansavam sobre rechonchudas
esponjas

verde-claras que arrastavam


tentáculos carnosos abaixo deles nas
águas da

fonte. Os pássaros vinham beber


água, oferecendo suas canções em
troca de saciar a sede. Minha mãe
me dizia para permanecer em
silêncio e

sempre a obedecia. Pratiquei até ser


capaz de me sentar quieta, até me
tornar invisível para os pássaros que
voavam por baixo dos pinheiros.

Muitas vezes eles pousavam nos


meus ombros e joelhos. Podia sentir
seu coraçãozinho batendo rápido
enquanto cantavam de pura gratidão
pela

sombra e pelo conforto do nosso


jardim.

Uma vez, quando tinha pouco mais


de quatro anos, fui mandada por

várias horas para o sol ardente.


Senti tanta raiva por ter sido expulsa
do nosso quarto para o calor brutal
do meio-dia que me atirei na fonte.
Os azulejos pareceram frios e
escorregadios sob meus pés. Na
minha fúria

infantil, pulei sem pensar nas


consequências. No instante em que o
fiz, o calor do dia desapareceu.
Prendi a respiração quando afundei.
Com a água

verde ao meu redor, imediatamente


senti que encontrara um lar. Esse era
o

elemento a que era destinada. O


próprio mundo virou de cabeça para
baixo

e ainda assim parecia mais meu que


qualquer outro lugar. Quis fechar os
olhos e permanecer flutuando ali
para sempre. Vi as bolhas que se

formavam com minha própria


respiração. Nesse instante, alguém
me

agarrou com força. O sacerdote


arrancou-me para fora da água. Ele
me

sacudiu e disse que as meninas que


brincavam com água se afogavam e
que

ninguém se apiedaria de mim se esse


fosse o meu destino.

Mas eu não me afogara e olhei para


ele, desafiadora e respingando água.

Senti um poder inusitado em meu


íntimo, que me deu coragem para

encarar aquele homem santo. No


umbral da porta em que se
encontrava, vi

minha mãe me olhar de uma maneira


estranha, demorando-se em observar

minha roupa encharcada. Trazia o


cabelo solto e vestia apenas um xale
branco enrolado em torno do corpo
nu. As tatuagens de hena que se

enrodilhavam pelo pescoço, seios e


braços haviam sido desenhadas em

padrões melífluos, como se ela fosse


uma flor e não uma mulher.
Não muito tempo depois do meu
mergulho na fonte, minha mãe me

levou ao Nilo. Fora ali, à margem


do rio mais poderoso, que Moisés

inscrevera o nome de Deus em ouro,


jogando-o nas águas, implorando ao
Todo-Poderoso para que tivesse
início o Êxodo do nosso povo. Era
uma

longa jornada a empreender, mas


minha mãe insistiu que devíamos ir.

Nossos servos nos levaram até lá em


um carro puxado por burros.
Viajamos embaixo de uma tenda
erguida sobre as cabeças, para
proteger a

pele de queimaduras. Partimos no


meio da noite, para que a viagem
fosse

mais fresca. Descansamos durante o


calor do dia seguinte, depois
tornamos

a partir. Enquanto cochilava, ouvia


as rodas do nosso carro e os
murmúrios

dos servos conversando em grego, a


língua que todos falavam

publicamente, fôssemos judeus ou


egípcios, pagãos ou gregos. Os
burros

eram brancos e bem-escovados, a


marcha era rápida e constante.
Tínhamos

frutas em uma cesta para comer


sempre que sentíssemos fome,
juntamente

com bolos feitos de tâmaras e figos.


Eu me perguntava se era uma
princesa
e a minha mãe, uma rainha. O ar
cintilava com o calor, mas, à medida
que

nos aproximávamos do rio, a brisa


tornava-se mais fresca.

A manhã avançava e as pessoas já


se ocupavam com o trabalho
cotidiano

ao redor. Na estrada para o rio, a


vida fervilhava em atividade, o ar
perfumado com canela e
cardamomo. Ali cresciam as mais
altas
pimenteiras e tamareiras que eu já
vira antes. Sentia-me excitada e

satisfeita por estar sozinha com


minha mãe. Pela primeira vez na
vida, eu

não precisava dividi-la com


ninguém. Ela me deixava brincar
com os dois amuletos dourados que
usava ao pescoço e com a chave
sinuosa como uma

serpente que brilhava à luz do sol.

Minha mãe usava uma túnica branca


e sandálias. Ela untara o cabelo
com azeite e o trançara, assim como
o meu, como fazíamos quando íamos

participar de um ritual para fazer


uma oferenda. Quando nos
aproximamos

ainda mais do rio, o dia amanhecia,


o céu estava tingido de rosado.
Pairava

um odor penetrante de lama e lírios.


As mulheres carregavam cestos de
roupa para lavar e secar nas
margens, e os homens partiam para a
pesca em barcos de madeira
estreitos e de fundo chato, girando
os remos

enquanto chamavam uns aos outros,


as redes intrincadas luzindo no ar

quando as lançavam para a captura.

Minha mãe se inclinou para


sussurrar que chegáramos ao nosso
destino.

Ela me disse que, se a água fosse


realmente meu elemento, precisava

aprender a nadar com os olhos


abertos. Devia controlá-la ou ela me
controlaria. Para comandar uma
substância tão poderosa, era preciso
antes

entregar-se a ela, fundir-se em


comunhão com ela, para então
triunfar.

Passamos pelos juncos, que eram


afiados e nos vergastavam, deixando

pequenas marcas serrilhadas


cruzando as pernas em um desenho
em

forma de “X”. Vi garças e cegonhas


pescando o desjejum. Nossos pés
afundaram na lama e, quando
entramos mais fundo, as túnicas
flutuaram

ao redor.

O Nilo sempre inchava depois da


lua cheia no verão, suas águas uma

grande dádiva em uma época de


calor brutal. Pude sentir como era

refrescante e doce. Nunca conhecera


o sentido do verdadeiro deleite,
como

o prazer intenso percorria o corpo


lentamente e depois, de repente, em
um

assomo de sensações. A um só
tempo, possuíamos o rio enquanto
ele

igualmente nos possuía. Tive a


sensação de pertencer àquelas águas
e de sempre ter pertencido.

– Agora descobriremos quem você


será – minha mãe me disse, ansiosa

para ver em que a sua filha poderia


se tornar.
Eu afundei, os olhos bem abertos.
Teria piscado se minha mãe não me

dissesse para permanecer vigilante.


Confiava nela e sempre fazia o que
dizia. Procurei manter os olhos
abertos. Graças a isso, tive uma
visão que carregaria comigo por
toda a vida. Apareceu um peixe tão
grande quanto um homem. Ele
parecia luminoso na escuridão da
água turva. Era enorme,

uma criatura que não precisava nem


de ar, nem de terra, como eu

precisava, e ainda assim não tive


medo dele. Em vez disso, um
assomo de

ternura apoderou-se de mim. Senti


como se ele fosse o meu amado.
Estendi

a mão e ele se aventurou perto o


suficiente para eu correr a mão
sobre as

escamas frias e prateadas.

Levantei-me do rio com um


sentimento de alegria, mas também
com
uma melancolia que não conhecera
antes. Não era normal uma criança

sentir tanta tristeza quando nada


mudara e o mundo ao redor ainda
era o

mesmo. No entanto, eu
experimentava um sentimento de
perda extrema.

Quando contei à minha mãe sobre o


peixe, ela disse que eu vira o meu

destino. Ela não parecia surpresa.

– Ele a mordeu? – perguntou ela.


Neguei com a cabeça. O peixe
parecia muito gentil.

– Bem, ele morderá – a minha mãe


me disse. – Eis o enigma do amor:
tudo o que lhe dá, ele tira.

Não sabia o que isso significava,


mas sabia que o mundo era um lugar
perigoso para uma mulher. Ainda
assim, não entendia como uma
pessoa

cujo elemento era a água podia viver


longe dos peixes.

DIZEM QUE a mulher que pratica a


magia é uma bruxa e que toda bruxa
tira seu poder da terra. Um grande
vidente advertiu um dia que, se um
homem

segurasse uma bruxa no ar, poderia


assim eliminar seus poderes,

tornando-a inofensiva. Mas essa


tentativa não teria nenhum efeito
sobre mim. Minha força provinha da
água, meus dons eram motivados
pelo rio.

No dia em que nadei no rio Nilo, e


vi o meu destino escrito nas
profundezas
com tinta azul, minha mãe me disse
que teria meus próprios poderes,
como

se dava com ela. Mas ao mesmo


tempo me advertiu: se me afastasse
demais

da água, perderia o poder e a vida.


Deveria manter a cabeça no lugar e
não

ceder ao desejo, pois isso era o que


fazia com que as mulheres se

afogassem.
*

NO DESERTO, o ar queima. Respire


e ele o incendeia por dentro, pois é
forte como o ferro, tão implacável
quanto o turbilhão de poeira que
sobe em uma

tempestade. Nossa água vem da


chuva e dos aquedutos construídos

muito tempo pelos escravos de


Herodes, tubos largos de cerâmica
que

carregam as águas correntes dos


nechalim para nós quando enchem
em vazantes repentinas nos meses de
inverno. Ainda assim, isso não é

suficiente para mim. O deserto me


sobrecarrega, minha força se esvai.
Na

água eu flutuo, mas no inferno seco


do deserto mal consigo manter o
fôlego.

Sonho com rios e peixes prateados.


Há quem diga que no nosso povo as
pessoas são como os peixes do mar,
alimentadas pelas águas do
conhecimento que fluem da Torá, e é
por isso que conseguimos
sobreviver

em uma terra tão brutal e inclemente.

Costumo acordar do sono ofegante,


afogando nas piscinas de luz branca

que rompem o céu todas as manhãs.


As mulheres com uma nova vida

dentro de si são especialmente


suscetíveis ao calor. Senti-me tão
aflita nas

minhas três vezes. Uma vez, em


Jerusalém, quando tinha apenas treze
anos

de idade, mal tendo me tornado uma


mulher. Duas vezes na Montanha de

Ferro, que foi pouco mais que um


exílio para mim. E agora aqui, mais
uma

vez, no lugar em que encontrei meu


destino.

À noite vou às cisternas, guiada pelo


cheiro de água. Para mim, esse odor

é mais pungente que a mirra ou o


incenso. A única fragrância capaz de
rivalizar com ele é o perfume do
lírio branco, que só pode ser
encontrado

em Alexandria. As pessoas dizem


que posso chamar a chuva e que a
água é

atraída para mim, mas estão erradas.


Eu é que estou em busca dela, como

sempre estive. Quando sonho,


enxergo o Nilo naquela manhã
rosada e a

minha mãe, a quem não vejo faz


tanto tempo que ela não mais me

reconheceria, se é que já não partiu


para o Mundo Vindouro.

As estrelas se refletem na água negra


da cisterna. Encontro conforto no

presságio que vislumbro ali: a luz na


escuridão, a verdade quando parece
que não existe nenhuma. Esse é o
único lugar em que posso ser eu
mesma,

a menina que caiu na fonte, que não


tinha medo de monstros, nem de
água
profunda, nem de afogamento. Desço
os cem degraus de pedra, o granito
frio contra os pés. Sei aonde o amor
me levará pois, no dia em que
viajamos

para o Nilo, minha mãe me disse que


ele me levaria à ruína e que a pessoa
a

quem me atrevesse a amar seria


atraída para baixo comigo. Mas,
mesmo

enquanto falava, ela sabia, eu não


teria escolha a não ser seguir meu
destino.
Paro à beira da cisterna, onde as
pedras foram recobertas por uma

camada fina de gesso. O pó do gesso


branco apega-se à minha pele. Vejo
o

brilho do calor sobre a água. Diz-se


que o espírito de Deus paira sobre
as

águas, como aconteceu no primeiro


dia da criação. Estou diante da
glória de

tudo o que Ele criou. Dispo o manto,


as sandálias, a túnica. Outras
mulheres

se purificam na mikvah, mas preciso


de águas mais profundas. Mergulho.

Algumas pessoas dizem que essa, a


maior das cisternas construídas

pelos pedreiros de Herodes, não tem


fundo, e que se alguma vez virmos o

fundo desse poço também veremos a


nossa sina. Essa piscina é profunda,
mas não é infinita. Sei disso com
certeza. Todas as coisas terminam.

Costumo mergulhar para atingir as


profundezas, depois me impeço de

subir de volta segurando as rochas


empilhadas na base. Elas são

escorregadias contra a minha mão,


alisadas pela interminável lapidação
da

água contra a pedra. Mantenho os


olhos abertos mesmo que a água seja
preta. Não há peixes, nem lampejos
de luz, mas, quando volto à
superfície,

meu primo Eleazar está esperando.


Foi ele que vi na água do Nilo
quando avistei o peixe ao meu lado.

Desde o início até agora, essa foi a


única coisa que nunca mudou.

Ele é o meu destino.

OS SOLDADOS da décima legião


eram liderados através do deserto
por Flavius Silva, o procurador de
toda a Judeia, o governador romano
recém-nomeado. As tropas
levantavam uma tempestade de
poeira tão grande que
certamente poderia ser vista de tão
longe quanto a Montanha de Ferro,
onde passei muitos anos na
companhia de um marido que tinha o
dobro da

minha idade e sabia que eu não o


amava, mas ainda assim me
protegeu. Ele

nunca me maltratou, embora tivesse


a indiferença de pedra de muitas das

pessoas destemidas de Moabe,


juntamente com uma ternura

surpreendente com relação aos seus


filhos. Seu nome era Sa’adallos,

embora eu nunca o chamasse assim.


Se o fizesse, poderia tê-lo amado.

Poderia estar em Petra, em vez de


nessa fortaleza, quando os romanos

chegaram. Poderia estar andando


por aquela cidade vermelha, com
suas

milagrosas colunas esculpidas com


elefantes e camelos, desfrutando da
sua

piscina, que diziam ser do tamanho


de um lago, e dos jardins que
pendiam

dos penhascos, fazendo com que os


homens elevassem o olhar para as

montanhas com assombro,


espantados por ver tamareiras onde
em outra

terra haveria apenas nuvens.

Se o amasse, meus filhos viveriam


em segurança, meu futuro estaria

assegurado. Em vez disso, eu os


trouxera para viver presos a esse
poleiro

do qual não há libertação. Embora


os anjos possam nos ouvir chamá-
los, jamais nos alcançariam aqui na
periferia do mundo, mesmo se
quisessem

nos salvar. Entendi isso quando


joguei os ossos dos pombos, pois
eles profetizaram que, assim como
não havia como escapar do que já
fora

escrito, não haveria fuga dessa


fortaleza.
Nosso povo reuniu-se para assistir à
aproximação dos seis mil homens

da legião, acompanhados por mais


de mil escravos e seguidores.
Trememos

em silêncio. O que mais nos


aterrorizou não foi o número, mas
sua absoluta

determinação. Eles vinham em nosso


encalço desde Jerusalém, embora
não

passássemos de algumas centenas.


Encontravam-nos como os chacais
encontram suas presas, cercando a
fraqueza das vítimas, ganhando
tempo,

prontos para saltar quando chegasse


o momento certo.

Na tempestade de poeira que


levantaram, pássaros caíram do céu,

incapazes de levantar voo nas


explosões de areia turbilhonante. Em
pouco

tempo o chão estava juncado de


corvos, mais numerosos que os
soldados.
As aves que não voavam
transformaram a terra em uma
superfície

desolada e enegrecida, e de repente


pareceu que a extensão do Mundo

Vindouro nos alcançara como uma


estrada de carne e penas.

– Já vi isso antes – Revka murmurou


para mim, o rosto pálido. – Não
podemos escapar do perigo.

Havia apenas uma razão pela qual


Roma devia ter vindo para tentar nos
derrotar, quando éramos tão poucos
e seu império tão grande. Temia que

nós, rebeldes, pudéssemos servir


como uma brasa para reacender a
chama

da liberdade. A desonra arde, ela


queima quando menos se espera que

possa se inflamar. Os romanos não


podiam permitir isso. Éramos como

peixes em uma rede, já recolhidos


sobre o costão rochoso; tudo o que
precisavam fazer era cortar a água
que nos sustentava. Àquela altura,
em Roma, já tinham sido cunhadas
moedas em comemoração à queda
da

Judeia. A imagem de um legionário


romano e de uma mulher judia

prisioneira, humilhada e escravizada


debaixo de uma palmeira, fora

impressa em prata. Assim como


tinha sido impresso, eles queriam
que

acontecesse, como se eles, e não


somente Deus, pudessem criar
matéria a
partir de palavras e da vontade.

Em uma terra em que a rebelião foi


esmagada, não pode restar um único

guerreiro.

ERA INVERNO e o ar estava seco.


Usávamos nossas capas puxadas
contra o corpo como uma armadura,
tremendo ao vento, assistindo à
aproximação

do destino. As chuvas vieram,


enchendo os vales com torrentes de
água. O
peixe que desaparecera no solo
profundo durante os meses áridos

reapareceu, enfeitiçado para a vida.


Por todas as colinas viam-se flores
silvestres e abelhas. Os troncos das
árvores mortas murmuravam como
se

tivessem recobrado vida. Havia


pasto verdejante para o íbex, carne
para o

leopardo. O deserto proporcionara à


décima legião as condições mais

favoráveis para uma travessia. Com


certeza, nossos inimigos
consideraram

isso como um presságio de que


seriam os vencedores. Se estivessem
com fome, eram alimentados. Se
estivessem com sede, não
precisavam procurar

mais longe que os córregos, que


haviam se transformado em
cachoeiras.

Talvez aqueles que fossem novos na


Judeia se perguntassem como era

possível que o deserto tivesse


dizimado tantos que os haviam
precedido, como a brutalidade do
seu calor feroz transformara aqueles
que haviam

lutado para se manter vivos no seu


abraço. Pois aquele era o momento
misericordioso do ano, quando as
aves começavam a voltar da África
e do

Egito, quando havia garças em vez


de urubus, quando a terra era

abundante. O exército que veio ao


nosso vale era composto de homens
de
uma dezena de diferentes regiões,
todos falando latim, cada um deles

recompensado por Roma com as


provisões com que não se
atreveriam a

sonhar na pobreza da sua terra de


origem, pois viajavam com camelos
e burros carregados de carne,
tâmaras e barris de couro com água
suficiente

para encher dez cisternas.

Eles se aproximaram da nossa


fortaleza com força intacta, enquanto
comíamos grama e pombas,
sacrificando as ovelhas para as
quais não

tínhamos mais grãos, cortando as


gargantas das cabras que já não
davam leite. Tínhamos água, o que
sempre desejáramos, e as cisternas
se

encontravam cheias, mas estávamos


pobres e nossa fome pulsava e nos

recordava da pobreza. Tantas


pombas haviam sido levadas para
servir de
alimento ou sacrifícios que seus
excrementos já não enchiam as
cestas nem

adubavam os campos. Os pomares


não produziam, os jardins achavam-
se

vazios, os armazéns já não nos


sustentavam. Agora, quando
entrávamos

nos pombais, havia silêncio em


lugar do canto das pombas, ouvia-se
apenas

um leve arrulho.
Os guerreiros estavam exaustos.
Haviam lutado por muito tempo, sem

alívio ou descanso, muitos deles


jovens e destreinados, apenas
garotos de

dez e onze anos de idade


convocados para ocupar o lugar dos
caídos. Ainda

assim, eles escondiam seu medo.


Bradavam que a legião poderia
trazer

toda Roma e ainda assim jamais


escalaria a montanha para chegar até
nós.

Mas aquele era um exército que


assassinara vinte mil pessoas do
nosso

povo na Cesareia, de modo que não


restasse sobreviventes. Destruíra os
outros dois redutos judeus,
Herodium e Maqueronte, onde
executara

aqueles a quem dera uma promessa


de indulto. Informada de que alguns

haviam conseguido escapar e


permaneciam escondidos, a décima
legião

derrubara completamente a floresta


de Jardes, para que não restasse uma

única árvore atrás da qual os


rebeldes fugitivos pudessem se
esconder. Ali

mesmo mataram mais três mil, os


corpos deixados espalhados pelo
campo

para as aves de rapina, sem sequer


um fragmento de tecido para cobrir
sua
nudez.

Depois disso, Flavius Silva voltara


o olhar na nossa direção. Dizia-se
que

era um homem impiedoso, de humor


e temperamento violentos, mas com
o

dom da lógica pura quando


precisasse avançar contra o inimigo.
Postei-me

em cima da muralha com o restante


do povo e vi o vale ser preenchido
pelas colunas de combatentes. A
seguir vinham os que assavam o pão
dos

soldados e cozinhavam suas


refeições e consertavam suas capas,

juntamente com as zonnoth,


mulheres que eram mantidas em
tendas para o

deleite dos soldados, e os escravos


que montaram os acampamentos,

arrastando madeiras enormes do


norte através do deserto, juntamente
com
os ferreiros com suas carroças de
armamento – lanças, escudos e
milhares

de flechas. No entanto, algo mais


temível chegou com a legião, o sinal
do nosso destino, pois os romanos
trouxeram consigo um leão preso
por uma

corrente. Desfalecemos de pesar ao


ver aquele animal feroz. Ele, que um
dia

fora livre no deserto e governara as


planícies da sua caverna, o símbolo
da
força da antiga tribo da Judeia,
agora atendia às ordens dos seus
guardiães.

Ele nos fitou e nos seus olhos vimos


o desejo dos romanos.

Eles queriam nos devorar.

Prenderam a pobre criatura a um


poste de metal, erguido bem em
frente

ao palácio que pertencera ao rei


Herodes. Aquele era o lugar em que
se montariam os acampamentos de
Silva, um local destinado a
representar

um insulto e um desafio todas as


vezes que olhássemos na sua
direção.

Enquanto montavam os
acampamentos, ouvíamos o rugido
da fera

subjugada.

Yael confidenciara-me que sonhava


com um leão. Ao mesmo tempo que

temia essa criatura, sentia-se atraída


por ela. Ela chorou quando me
contou

isso e entendi por que se sentia


dilacerada pelo significado dos seus
sonhos. Um leão poderia
permanecer ao lado de um íbex na
sombra, se o seu apetite estivesse
saciado, poderiam até dormir juntos,
as costas de um

descansando na do outro, mas no dia


seguinte, se o leão acordasse com
fome, então ele deveria servir-se do
íbex.

Agora, o sonho de Yael aparecera


diante de nós. Ela ficou ao meu lado
e

chorou ao ver o leão dominado por


sua corrente, preso como nós,

escravizado por aqueles cuja


brutalidade era uma afronta à
natureza, ao nosso povo e a Deus.
Depois que a poeira baixou,
pudemos observá-lo

claramente, pois havia somente o ar


azul-claro de inverno à nossa frente
e

o dia estava luminoso, o vento


fresco. Muitos disseram que era
possível ver

o céu daquela nossa montanha, mas


agora parecíamos muito mais

próximos do primeiro portão do


inferno. O que ouvíamos e que nos

esperava não provinha dos confins


de Deus. Vinha de baixo de nós, do
rugido do leão.

EM BREVE, os escravos que


montaram os acampamentos
construíram uma aldeia, com tendas
e barracas erguidas durante a noite.
O cheiro de comida
pairava sobre o vale, carne cozida,
pão, especiarias. A tudo
assistíamos, na

miséria, famintos, como fantasmas


diante da mesa posta de um grande

banquete. A construção continuou


sem cessar, os escravos trabalhando

durante a noite. Aquele era um


empreendimento feito para durar; os

romanos estavam se estabelecendo.


Não iriam embora e não admitiriam
a
derrota. Começaram a construir doze
torres, dispostas a uma centena de
metros de distância, subindo tão
depressa que parecia que surgiam
diante

dos nossos olhos. Depois que as


torres foram construídas, qualquer
homem

que desejasse partir para o vale


oriental representaria uma ameaça,

denunciada pelos guardas no topo


dos postos de observação. Eles
nunca
passariam para o outro lado.

Quando os acampamentos estavam


quase terminados, mais escravos

foram trazidos do norte para erguer


um muro de pedras. Esse muro não
chegou a nos preocupar até que
começou a ziguezaguear em direção
às

montanhas, com um desenho


estranho. Não entendemos as
intenções os

romanos, pois parecia uma empresa


idiota designar mil escravos judeus
para o trabalho, dia e noite
carregando pedras tão pesadas que
muitos dos

trabalhadores caíam prostrados no


chão. Quando esse miseráveis não

conseguiam mais se erguer, eram


mortos e deixados no chão, pois era
mais

fácil eliminá-los que curá-los. Os


romanos levavam a sério a
construção daquele muro.
Imaginamos que queriam cercar seus
acampamentos, para
se proteger de nós. Certamente
nossos guerreiros tinham planos
para

ataques, que, apesar de perigosos, já


estavam sendo elaborados.

Assim que foi informado do muro,


Ben Ya’ir veio apreciá-lo do alto.

Quando notou que as pedras eram


amontoadas na direção dos
penhascos,

concluiu era aquele muro destinava-


se a nos cercar. Ele cercava não só
os
acampamentos romanos, mas toda a
montanha. Era um muro de cerco,
com

quase dois metros de espessura. O


nosso líder compreendeu

imediatamente que o objetivo não


era o de proteger os acampamentos

romanos, mas nos manter cercados.

Alguns guerreiros riram disso, pois


o muro não era tão alto que um

homem não pudesse escalá-lo sob a


proteção da noite. Ainda não tinham
percebido que havia outro objetivo
para esse empreendimento. Os

romanos visavam a uma crucificação


da terra que nos pertencia, cada
pedra

do muro servindo como um prego na


nossa carne. Estavam nos dizendo

que lhes pertencíamos, assim como


o leão acorrentado, assim como os

escravos sob as suas ordens, assim


como os seiscentos mil que haviam

dizimado em sua guerra contra os


judeus.

Eles queriam nosso medo e foi isso


que tiveram. O medo tomou conta da

fortaleza como uma febre. De


repente, o ar azul pareceu difícil de
respirar.

Havíamos construído um mundo ali,


um mundo que representava as

aldeias em que conhecêramos a


liberdade e a cidade que amávamos
e para

a qual esperávamos voltar.


Cunhávamos as próprias moedas, o
bronze

despejado em moldes nas oficinas


do palácio, impressas com o nosso

sonho: Pela Libertação do Sião.


Tínhamos nosso mercado, nossos
padeiros e os comerciantes de
vinho, os oleiros que faziam jarros e
vasos de cozinha

com a argila encontrada abaixo, no


nachal. Assim como Adonai nos
criara à Sua imagem, assim também
havíamos criado Massada à imagem
da nossa
vida passada e da vida que
esperávamos viver novamente,
quando

fôssemos livres.

Mas então, diante daquele muro de


cerco à vista, as pessoas entraram

em pânico, com medo de que o Sião


nunca mais ressurgisse. Elas
correram

aos depósitos, cobiçosas no seu


medo, pensando apenas na
sobrevivência,
como o chacal faz no meio da noite,
quando a manhã parece um lugar

distante. Mas até mesmo o chacal


divide a presa com os da sua
espécie, e

não os atropela, nem os abandona.


Nosso povo enlouqueceu com as
obras

dos romanos e com o medo do que


estava por vir durante um cerco que
poderia durar meses.

Eleazar postou-se sobre a fonte para


deter o caos. Seus seguidores
haviam lhe dado um peitoral
dourado em que sobressaíam quatro
pedras

preciosas de grande valor. Apesar


de ter aceitado o presente, ele nunca
o usara em batalha, preferindo
envergar a mesma malha de ferro
usada pelos

seus homens. Agora, com a chegada


dos romanos, passara a exibir o

peitoral de ouro para mostrar à


legião, mesmo a distância, que
éramos fortes e destemidos, e que
fôramos escolhidos pelo Todo-
Poderoso para

derrotar Roma.

– Nós temos somente um inimigo –


gritou ele.

As pessoas voltaram-se para ele


como poderiam se voltar para um

profeta. Ele era a pessoa que as


guiara até ali, que acreditava nessa
fortaleza como salvação. A
montanha que defendera Herodes na
época em

que Cleópatra procurara lhe tomar


essa terra agora também nos

defenderia. Nesse ponto ele nunca


vacilara.

– O muro é apenas um muro, feito de


pedras. Mas as pedras são as

pedras da Judeia. Elas nos


pertencem e o inimigo só nos dá o
que já é nosso.

Não morreremos de fome, pois


ainda há vinho e azeite suficientes
para nos

sustentar. Mesmo durante um


período de sítio, teremos o
necessário para

comer. As cisternas estão cheias de


água. Nosso Deus está em toda
parte, de

ambos os lados do muro.

Os que entraram em pânico, e que


pretendiam atropelar-se por medo,

recuaram. Já não ouvíamos os


soldados no vale pois, como um
milagre, o vento mudara de direção
e as vozes ásperas haviam
desaparecido, para que
pudéssemos escutar nosso líder. A
multidão aproximou-se para ouvir o

salmo que Eleazar agora recitava, as


palavras de Davi, nosso grande rei
do

passado, um guerreiro que, como


qualquer outro homem, sentira medo,

como sentíamos agora, como todos


os homens sentiriam.

– Por causa do clamor do inimigo e


da opressão do ímpio; pois sobre
mim
lançam calamidade e furiosamente
me hostilizam. Estremece-me no
peito o coração, terrores de morte
me salteiam; temor e tremor me
sobrevêm, e o horror se apodera de
mim.

Permaneci na treliça de sombra que


se projetava dos galhos da oliveira

do meu jardim, mas meu coração se


enlevou ao ouvir a voz do meu
amado.

Sua voz era pelo que mais ansiara


quando fora expulsa de Jerusalém,
pois o
modo que ele falava era um milagre.
Com as palavras, ele aproximava a
alma do seu lugar de origem, uma
glória a Deus, pois as palavras
foram a

primeira criação do Todo-Poderoso,


depois do silêncio do mundo, e eram
também um dom de Eleazar ben
Ya’ir.

Fechei os olhos como se


estivéssemos sozinhos e como se
aqueles que se

achavam entre nós já não se


interpusessem no nosso caminho. O
mundo

era um rio, e eu fora trazida para cá


nas suas correntezas, não em busca
de

esperança, mas porque era esse o


meu destino.

QUANDO O VI pela primeira vez,


em Jerusalém, eu me encontrava de
pé junto a um poço, com um jarro de
água nas mãos. Fora enviada a
parentes da
minha mãe porque não tinha pai nem
beit avi, família da linhagem do meu

pai. Embora tivesse de implorar


para que me aceitassem, minha mãe
queria

que eu fosse retirada com segurança


de Alexandria, onde as kedeshah
estavam sendo expulsas de suas
casas. Não haveria mais mulheres
santas

para os sacerdotes, pois as antigas


leis de Jerusalém tinham se
infiltrado no
Egito. Minha mãe e as outras
mulheres que eu sempre conhecera
como tias

eram agora chamadas de vadias e


prostitutas, a exemplo daquelas nas
ruas

que tinham seus preços gravados nas


solas das sandálias para que os

homens que as seguissem soubessem


o quanto deveriam pagar por seus

favores. De uma só vez, o que antes


era honrado agora era injuriado. As
tatuagens de hena que as declaravam
como mulheres de valor agora as

assinalavam como indignas, e os


sacerdotes a quem haviam se
sacrificado

foram os primeiros a acusá-las de


seus pecados.

Antes da minha partida, minha mãe


prendera seus preciosos amuletos

dourados ao meu pescoço,


sussurrando que apenas as minhas
filhas

deveriam recebê-los. Ela tirou o


livro de encantamentos da caixa de
pau-ferro, enrolou as folhas de
pergaminho em linho para disfarçá-
las, depois as

entregou a mim, enchendo a caixa


com ervas de que eu pudesse
precisar:

cominho preto, folhas de louro,


mirra. Nesse momento percebi que
ela

poderia não sobreviver à virada


contra quem ela era. Ela, que antes
fora exaltada, era agora forçada a
percorrer a cidade sob uma capa
escura, escondendo o redemoinho de
marcas que já haviam me
convencido de que

ela era uma rainha, as tatuagens que


agora levavam as pessoas a
desprezá-

la, assobiando, como se fossem


cobras e ela uma pomba, pronta para
ser capturada. Antes de ser mandada
embora, eu já fora iniciada no ritual
doloroso e tedioso de me tornar
tatuada, felizmente só nas costas e
no peito, não no rosto ou nos braços
e pernas, como a minha mãe fora
marcada. Ninguém veria o que
estava predestinada a me tornar.

Eu estava com doze anos de idade


no último dia em que a vi, parada à

minha frente, os olhos banhados em


lágrimas. Essa era a minha idade

quando fui ao poço em Jerusalém.


Fui atraída para lá pela minha

necessidade de água e porque me


lembrei do que vira no Nilo. O meu

parente aproximou-se de mim,


encontrando-me, pois eu não tinha
permissão para ir ao mercado
desacompanhada. Vi que seus olhos
eram

prateados, a cor do peixe. Ele tirou


o balde de água da minha mão.
Quando

a sua mão roçou na minha, ele me


garantiu que isso não importava,
pois éramos do mesmo sangue e
primos. Portanto, era como um
irmão que

tocasse uma irmã, o que não era


pecado.
Ouvi-o e senti-me enfeitiçada, pois
já naquele momento ele me pareceu

ter o jeito de Deus na criação, e suas


palavras se derramaram sobre mim
como água. No entanto, eu também o
enfeitiçara. Ele era um marido, um
jovem de dezoito anos, e eu apenas
uma menina. Ao mesmo tempo, senti
a

mesma força que experimentara


quando o peixe se aproximara de
mim por

vontade própria. Ele não tinha


escolha, pois fora escrito que meu
primo e

eu nos encontraríamos, e que nosso


amor me arruinaria, e que eu não me

importaria com isso.

AGORA, enquanto o ouvia proferir


as palavras do rei Davi no dia da
loucura, quando o nosso povo se
transformara em chacais por medo,
senti-me

novamente em transe. Como


qualquer outra pessoa na montanha,
estava
influenciada pelo esplendor da sua
voz. Mas os outros não o conheciam
como eu. Quando ele recitou a
canção de David, senti como se
falasse diretamente para mim, pois
eu era a sua amada, e o fora durante
todo aquele tempo.

– Quem me dera ter asas como as


das pombas! Voaria e acharia
pouso. Eis

que fugiria para longe e ficaria no


deserto. Selah. Dar-me-ia pressa
em abrigar-me do vento e da
tempestade.
Daquela montanha não haveria mais
fuga para o deserto. Os seis

acampamentos romanos com suas


torres altas bloqueavam todas as

passagens pelas ravinas, ou pela


descida pelo caminho da serpente,
ou ao

longo do percurso traiçoeiro pela


rota sul das falésias na parte traseira
da

montanha. A fortaleza era o único


lugar em que poderíamos
permanecer.
Assim como o leão na sua corrente,
não tínhamos como fugir das forças
do

inimigo. Estava escrito que


tomaríamos posição ali e seríamos
os últimos a

fazê-lo. O resultado permaneceria


desconhecido até se abater sobre
nós e

tudo o que poderíamos esperar era


seguir o caminho de Deus.

– Eu, porém, invocarei a Deus, e o


SENHOR me salvará. À tarde, pela
manhã e ao meio-dia, farei as
minhas queixas e lamentarei; e Ele
ouvirá a minha voz. Livra-me a
alma, em paz, dos que me
perseguem; pois são muitos

contra mim.

Depois, quando as pessoas tinham se


acalmado e a sua fé havia sido

restaurada, as mulheres e as crianças


foram recolher pedras para

transformá-las em armas. Essas


eram então atiradas em uma
saraivada,
como uma tempestade de granizo
que se precipitava sobre os

trabalhadores abaixo. Mas os


romanos pareciam preocupar-se
pouco com

as pedras que eram catapultadas na


direção deles. A construção
continuou

enquanto eles levantavam as suas


guarnições feitas de pedra. Se um

escravo trabalhando no muro


chegasse a morrer, haveria outro
para
substituí-lo. Se um soldado se
ferisse e vacilasse, um companheiro
ocuparia

seu lugar.

No silêncio do crepúsculo,
ouvíamos o eco das rochas que eram

levantadas sobre o muro e


tremíamos, apesar das palavras do
rei Davi e da

ardente confiança de Eleazar. Esse


era o método dos romanos para nos

intimidar e aterrorizar. Naquela


noite, quando alimentaram o leão,
deram-

lhe um burro para que pudesse matar


sua própria refeição. Podíamos
ouvir

os gritos do burro acima do tilintar


infinito das pás e picaretas e das
vozes

ásperas dos homens gritando abaixo


de nós. Houve um grande eco no
vale

e pareceu que os soldados estavam


falando diretamente para nós, como
se

fôssemos aqueles que o leão tinha


em suas mandíbulas.

Olhei para o precipício onde a


minha filha se encontrava, escondida
na

caverna com o povo que escolhera


como seu. Parecia uma caverna
como

qualquer outra, utilizada pelo íbex


selvagem como abrigo. Se a
presença dos essênios permanecesse
desconhecida para os romanos,
talvez ela

estivesse de fato mais segura ali.


Projetou-se um clarão brilhante,
alguém na escuridão da sua caverna
levantara uma tigela de bronze, que
brilhava

no escuro. Considerei aquilo como


uma mensagem. Imaginei que fosse
seu

coração alcançando o meu. Apesar


de tudo, ela ainda era a filha que eu
labutara para trazer a este mundo.

*
NO MÊS de Shevat choveu
torrencialmente. Nosso povo não
plantou trigo, cevada ou linho, nem
se aventurou à praça para celebrar o
Rosh Chodesh, mas em vez disso
ergueu os olhos para o céu inchado
desde a porta de casa,

incapaz de ver a lua nova e,


portanto, de registrar o verdadeiro
mês, que começava com a lua.

Meus vizinhos permaneceram dentro


de casa, observaram a inundação e

respiraram o ar frio. Eles se


protegeram da chuva, tanto quanto eu
era atraída por ela. Fui para o
jardim e fiquei lá até estar
encharcada. Agradeci

a Beree, o anjo da chuva, que se


aproximou de mim quando o
procurei, pois

o havia chamado na esperança de


que os romanos parassem a
construção

se a última das chuvas violentas da


temporada os perturbasse. Quem
sabe

as poças de lama, profundas o


bastante para as mulas e os homens
se afogarem, servissem para atrasá-
los.

Mas, ao contrário, os romanos


empenharam-se com mais afinco na

tarefa. Seu mundo estava se


patenteando diante de nós. Assim
como os

anjos, inclinamo-nos para ver o que


estavam criando acima da areia.
Mais

escravos judeus haviam sido


trazidos para o vale, amarrados com
tiras de

couro, tratados como pouco mais


que ovelhas ou cabras. Só podíamos

observar nossos irmãos que tinham


sido escravizados nos chamar para

salvá-los enquanto eram maltratados


e espancados. Ouvíamos seu choro,

mas não podíamos fazer nada para


aliviar o sofrimento. Eles dormiam
em

cercados, como as ovelhas, sem


abrigo da chuva, enquanto os
soldados

residiam com comodidade em


grandes tendas armadas sobre as
fundações

de pedra, protegidas por muros, com


guardas postados em cada um dos

quatro portões que davam acesso


aos acampamentos.

Uma vez eu acreditara que fosse


capaz de controlar a chuva tanto

quanto de invocá-la, mas agora,


contemplando os inimigos, vi que
estava enganada. Somente o anjo
Beree era capaz de deter a chuva e
fazê-la servi-lo, e assim mesmo pela
graça de Deus. O que eu invocara só
favorecera os

nossos inimigos. Os romanos


banhavam-se na água da chuva e
davam

graças aos deuses. A murta floresceu


e seu perfume enchia o ar. Rebanhos

de íbex vinham deitar-se diante dos


acampamentos dos romanos para

beber das poças, embora isso


significasse que seriam abatidos,
parecendo

ser também uma dádiva do céu.

EMBORA ele estivesse doente,


deixei meu filho aos cuidados da
irmã e pedi a Yael para me
acompanhar até o auguratorium.
Vinha guardando os ossos de
pombos sacrificados, secando-os ao
sol, para depois usar para prever o

futuro.

Subimos a escada em direção à


torre. O mês de Adar estava
começando,

a época da floração das


amendoeiras, e o ar estava
perfumado. Do nosso ponto
privilegiado, pudemos ver os
acampamentos romanos na sua

totalidade, um círculo de
brutalidade. Os ossos que leváramos
conosco em

um saco de seda haviam se tornado


tão brancos que pareciam

incandescentes na escuridão
crescente. Pensei nas pombas que
tinham nos

dado suas vidas, como eram bonitas,


como eram leais entre si, como não
nos temiam, as suas guardiãs, mesmo
quando deviam ser sacrificadas.

Yael limpou a areia, em seguida


despejou um círculo de cinzas que

conteria o futuro, para que ele não se


derramasse no presente. Ela alisou
as

cinzas com a faca que sempre


carregava sob a túnica. Enquanto o
fazia, recitou um hino ao rei
Salomão. Tinha uma bela voz; cada
canto que eu lhe

ensinara era muito mais melodioso


na sua boca do que na minha. A
pureza

da canção dissipou-se através do


vale e por um momento nossos
irmãos, que eram escravos
labutando lá embaixo, olharam para
cima, como se

chamados pelo nome.

Eu ensinara bem a Yael, como sabia


que ensinaria no momento em que a
vi entrar pelo Portão da Serpente.
Embora ela não se lembrasse de
mim, conhecera-a havia muito
tempo. Por essa razão insistira que
aceitasse o amuleto de ouro que
minha mãe me dera. Antes de dar à
luz minha

primeira filha e de ser expulsa de


Jerusalém, antes de ser levada para
a Montanha de Ferro por um homem
a quem nunca chamei pelo nome,
antes

de Nahara chegar a este mundo,


antes de ter um filho chamado Adir,
um nome que o seu pai me permitira
usar, pois significava nobre para o
meu povo, antes que os pombos me
trouxessem para cá, Yael fora a
minha filha,

embora não tivesse nascido de mim,


e eu tinha sido a sua immah, a sua
amada mãe, ainda que não passasse
de uma menina na época.

Em Jerusalém, muito antes de


qualquer uma de nós ouvir falar
dessa

fortaleza, eu lhe sussurrara as


canções da minha mãe. Penteara seu
cabelo,
alimentara-a e cuidara dela, ainda
que seu pai me instruísse para deixar
seu

cabelo despenteado e não lhe dar


nada além de crostas, pois seu
desejo era

que ela nunca tivesse entrado neste


mundo e a culpava por seu luto.

Chegara até a casa deles como uma


serva, uma garota simples, de longos

cabelos negros, tão inútil que o


assassino nunca me fitara o rosto,
não notara os meus traços, nem a
minha história. Se minha mãe
soubesse da minha condição, ficaria
chocada ao descobrir que me tornara
uma

empregada doméstica, embora


soubesse ler aramaico, hebraico e
grego, e

fora educada para conversar com os


homens mais cultos de Alexandria.
Na

verdade, sentia-me aliviada por ter


ido embora da casa dos parentes
dela,
que tinham passado a me desprezar.
Fora a mãe de Eleazar ben Ya’ir que

me mandara embora para ser uma


criada. No dia em que cheguei à sua

casa, ela me levou à mikvah com a


sensação de que me achasse tamé,
impura. Quando despi a túnica,
procurei ficar nas sombras, mas ela
me viu

por quem eu era. Respirou fundo ao


ver as minhas tatuagens, então

rapidamente murmurou uma prece.


Depois desse momento, a minha tia
não perdeu o filho de vista, pois

desconfiava da minha educação. Em


breve seu medo se concretizaria.
Pelos

olhares que compartilhávamos, ela


descobriu o que se passava entre nós
dois e rapidamente adivinhou por
que o filho não se voltava mais para
a esposa, apesar de estarem casados
havia pouco tempo. Assim, minha
tia, que prometera à minha mãe que
eu estaria segura em sua casa,
mandou-me logo embora, planejando
tudo às pressas, sem o conhecimento
de

Eleazar, para que eu fosse servir em


uma casa cuja dona morrera. Era um

lugar de má sorte, onde ninguém


queria trabalhar. Por isso fui aceita
para a

função, apesar de ser uma garota


com pouco conhecimento das tarefas

domésticas, tão jovem e inexperiente


que muitas vezes dormia chorando
de

saudade da minha mãe.


Antes de me mandar embora, a mãe
de Eleazar atou um amuleto de

ervas à minha capa e disse-me que


era para dar sorte. Sorri e agradeci,
mas

sabia que não era nada disso. Ela


procurara uma praticante de
keshaphim

para conseguir um encantamento que


me vinculasse à solidão e me

mantivesse longe do seu filho.


Minha mãe me ensinara sobre essas
coisas e
reconheci a raiz de meimendro.
Assim que cheguei à rua, arranquei a
peça

costurada à capa. Deixei o amuleto


em uma calha em que corria o
esgoto,

pois era o lugar a que pertencia.


Recitei a oração de proteção, Amém.
Amém.

Selah, de modo que Ele, o nosso


Senhor, bendito seja o Seu nome, me
livrasse da maldade da minha tia.

FUI MANDADA para a casa de


Yosef bar Elhanan, onde dormia no
corredor ao lado da criança de que
devia cuidar. Ela era pouco mais
que um bebê, esquecida no seu
estrado, enquanto o irmão recebia
todas as atenções do pai e tinha a
própria babá. Enxuguei suas
lágrimas quando ela chamava pela
mãe, assim como eu o fizera quando
acordava no meio da noite e me

surpreendia ao descobrir que não


estava mais em Alexandria e que
não

havia mais pátio nem fonte, nem


lírios brancos rebrilhando na água
escura.

Sensibilizada pela tristeza da minha


protegida, eu sussurrava que ela

podia me chamar de sua immah,


muito embora tivesse apenas doze
anos e

faria melhor em me considerar a sua


irmã. Sabia que neste mundo toda
menina devia ter um protetor, pois a
minha mãe assim me dissera e eu
acreditava em tudo o que dizia.
Embora tivesse saudade da
sabedoria da minha mãe e dos seus
conselhos, agora precisava tomar as
minhas próprias

decisões. Assim, resolvi cuidar da


pobre criança sem mãe. Prometi a
mim mesma protegê-la enquanto
dormisse no corredor, que varria
todas as

noites para garantir que os


escorpiões ficassem nos cantos.

Quando o pai dessa família mandou


a cozinheira deixar apenas as

crostas para nós, pouco mais que o


alimento para os ratos, mesmo sendo
a
véspera do shabat, resolvi a
situação com as mãos. Encontrei um
cálice de bênção prateado e guardei-
o sob meu manto. Embora soubesse
que o

roubo me atrairia uma maldição,


levei o cálice ao mercado para
trocá-lo por

uma túnica e uma capa novas para a


criança, juntamente com caquis,
romãs

e uvas, bem como uma roupa de


cama para o corredor e uma pomba
que
planejava assar.

A minha pequena protegida chorou,


agarrando-se a mim, quando

percebeu que pretendia matar a


pomba, implorando-me para libertá-
la.

Embora ela fosse calada, também


era destemida quando precisava ser.

– Se eu fizer o que me pede –


adverti antes de soltar o pássaro –,
então

você em troca deve atender aos


meus pedidos.

Essa era uma barganha que minha


mãe frequentemente fazia comigo

quando pedia os seus favores. Yael


deu-me sua promessa e soltei a
pomba.

Ela desapareceu no céu acima de


Jerusalém e, ao fazê-lo, uniu-nos
para toda

a eternidade.

Não tivemos carne para a refeição


naquela noite, mas Yael ficou
contente. Eu também me senti
satisfeita por cuidar dela, ainda mais
ao descobrir que ela dormia bem.
Nunca acordava à noite quando eu
saía para

ir ao poço onde vira meu primo pela


primeira vez, para poder ser sua.
Ele

falava comigo e eu o escutava – foi


assim que começamos. Ele contava
da

sua raiva contra os costumes dos


sacerdotes do Templo, onde havia
discordâncias sobre quem
representaria o verdadeiro Israel.
Dizia que não

podia suportar que a Arca da


Aliança, a palavra de Deus a
Moisés, fosse guardada atrás de
paredes de ouro, uma vez que fora
concebida para ser colocada em uma
tenda simples, como Adonai
instruíra inicialmente. Não era de
admirar que desaparecera da vista
dos homens.

A casa do nosso povo era a palavra


de Deus, insistia Eleazar, não um
prédio construído de pedra ou de
ouro. Eu o ouvia e sabia que um dia
outros o ouviriam também e o
seguiriam, e eu gostaria de estar
entre eles.

Ele era culto e cantava os salmos de


David, ansiando por incorrer na
glória

de Deus. Eu era tanto sua discípula


como prima. Acreditava nele e em
nenhum outro, e logo lhe pertencia.
Entreguei-me a ele, como a minha
mãe

previra que faria.


Quando a esposa de Eleazar viajou
para visitar a família no norte, perto

da costa da Galileia, meu primo


levou-me à presença de um homem
culto

para nos casarmos em segredo.


Depois, conduziu-me à sua câmara,
onde

realizamos em atos o matrimônio. Eu


ardia quando estava ao seu lado.

Esquecia-me de Alexandria e do
jardim em que estudara com minha
mãe.
Nunca revelei que era instruída em
muitas línguas, pois era apenas a voz
dele que queria ouvir, não a minha.
Outro homem poderia ter
questionado

as tatuagens desenhadas no meu


corpo e dado as costas a mim ao vê-
las. Eu

lhe disse que as marcas eram o mapa


que me levara até ele e isso lhe
bastou.

Ele me aceitava como eu era.

*
COMO UMA serva na casa do meu
senhor, era de esperar que não
soubesse nada. Poderia nunca ter
recebido nenhuma instrução, meu
conhecimento

transformava-se em cinzas. Tudo o


que precisava era varrer o chão e
cuidar

da criança. Isso não era um


problema para mim. Era carinhosa
com Yael.

Aprendi a ser mãe cuidando dela.


Talvez me sentisse como se ela
fosse a minha filha, o que contribuiu
para aumentar a minha ternura por
ela.

Eleazar prometera que informaria à


família sobre seu amor por mim,
mas

não conseguiu chegar a fazer isso.


Disse que o pai era um tirano, mas
eu sabia que era à mãe que ele
temia. Uma noite meu coração
disparou e meu

sangue não veio com a lua. Senti-me


quente e afogueada, sofrendo de uma

sede constante, como me senti todas


as vezes que esperava uma criança,
pois cada vida que se desenvolvia
em mim era como uma fogueira
contra a

qual não havia outro recurso senão


carregar e deixar queimar.

Quando me tornei tão grande que


não podia mais esconder meu

tamanho, Bar Elhanan mandou-me


embora da sua casa. A menina
querida

que fora minha filha agarrou minha


capa e chorou. Assegurei-lhe que o
seu

irmão cuidaria dela, advertindo-o de


que fizesse isso sempre. Yael correu
atrás de mim, levando-me água. Era
tudo o que tinha para oferecer, mas
para mim, na minha solidão, parecia
um grande presente. Chorei ao
deixá-

la para trás. Disse-lhe que, se Deus


quisesse, voltaríamos a nos
encontrar neste mundo, antes de
passarmos para o Mundo Vindouro.

A ÚLTIMA VEZ que me encontrei


com Eleazar em Jerusalém estava
chovendo.

Tal acontecimento foi uma alegria,


inesperada e necessária. A poeira

assentou, os ramos das árvores


ergueram os braços para o céu.
Tornei-me

viva de novo, a garota na fonte, a


nadadora no rio, aquela sem medo
de se

afogar. Permaneci na rua, em frente


à casa da minha tia, até ficar

encharcada. Por fim eu o vi,


passando pelo pátio, fluido nos seus

movimentos, tornando-se parte da


torrente que se precipitava sobre
nós, inundando as ruas, forçando as
pessoas a permanecer dentro de
casa.

Somente ele podia saciar a minha


sede.

Eu o chamara para mim como


aprendera a chamar a chuva. Não
fora

preciso nem um sussurro e ainda


assim ele me ouvira. Eu acreditava
que ele se divorciaria da esposa e
me traria para sua casa, convencida
de que,

ao contrário de outras mulheres que


procuravam desesperadas as

praticantes do keshaphim, dispostas


a pagar qualquer preço por um
encantamento, eu nunca teria
necessidade de feitiços de amor.

Mas Eleazar veio me dizer que a


esposa insistira que tinha provas de
que

eu estivera em sua cama. Ela jurara


que o estrado em que dormiam
estava

manchado com o vermelho da hena


da minha pele. A minha tia, que me

desprezava, contara-lhe sobre as


minhas tatuagens, para preveni-la, e

portanto ela olhara debaixo do


cobertor que tecera para o marido e

encontrara a minha marca. O meu


amado me prometera que eu era
tanto

sua esposa quanto ela, mas então vi


a verdade em seu semblante, seu

desejo por mim entrelaçava-se com


a tristeza. Se elas encontraram a cor
vermelha no local em que ficáramos
juntos, então essa era uma previsão
do

meu destino e na realidade era o


meu sangue, pois meu coração
começara a

chorar.

Fui dominada por um tipo de medo


que não sentira antes, nem mesmo
quando deixara a minha mãe.
Lembrei-me do que ela previra no
dia em que

vi o futuro. Havia uma parte de mim


que desejara ter ficado ao seu lado,
embora tivessem tirado de nós a
casa. Novos inquilinos certamente

usufruíam da fonte em que cresciam


os lírios brancos. Eu chorava sobre
aquelas flores raras quando queria
lamentar o meu destino. Disse que
não

poderia viver sem elas. Tornei-me


frenética, incontrolável. Meu primo
aturdiu-se, preocupado; pediu-me
para esperar, enquanto corria ao

mercado, de onde me trouxe um


frasco de perfume. O presente
deveria me

agradar, pois transmitia o cheiro de


lírios, mas a fragrância viera dos
lírios

vermelhos dos campos de Moabe e


não dos que conhecera na infância.

Chorei ainda mais, pois entendia


agora a perda que sentira quando era
apenas uma menininha, não mais
velha que Yael, e vira o meu futuro
no Nilo.

Eleazar prometeu que pleitearia com


os anciãos da família para que eu

fosse aceita no seu lar como a


segunda esposa. Tais arranjos eram
bastante

comuns, especialmente entre as


famílias ricas das cidades em que
havia poucos homens, ou se a
primeira esposa fosse incapaz de
gerar um filho. O

meu amado era um homem honrado,


mas jovem, e ainda não se atrevera a

enfrentar os pais. Ele aprenderia


bem essa lição quando se juntasse
aos zelotes que desafiavam os
sacerdotes do Templo, mas por
enquanto estava

à mercê da família.

Garanti ao meu primo que esperaria


até que fosse me procurar, mesmo

sabendo que não o faria. As marcas


que sua esposa jurava terem
manchado
o leito nupcial foram a minha ruína,
e nenhum homem de algum valor me

tomaria como esposa. Sua família


não permitiria.

ENCONTREI um alojamento onde


poderia me hospedar atrás da casa
de uma keshaphim. Havia reparado
na minúscula choupana quando fora
ao

mercado, pois minha mãe costumava


ir a esses lugares em Alexandria e
eu

não me esquecera disso. Ela me


instruíra que, em momentos de
privação,

poderia encontrar refúgio entre as


mulheres praticantes da magia. Três

velhas que eram irmãs moravam lá.


Eram todas solteiras, que se diziam
ser

bruxas que se transformavam em


dragões à noite. Na verdade, eram

pessoas de bom coração, pobres,


mas experientes nos procedimentos
da
magia. Em troca da permissão de
dormir lá, eu preparava as refeições
e aprendi a fazer pão no pequeno
forno de barro, nunca me
esquecendo de

separar os queimados como


oferenda em sacrifício a Deus para
que Ele não

me abandonasse. Meu primo não


retornou. Sonhei com ele durante
noites a

fio e depois ele desapareceu dos


meus sonhos. Então, quando
acordava do
sono, estava ofegante, pois me
afogava nos sonhos, eu me afogava
no rio a

que a minha mãe me levara. Pela


primeira vez percebi que, apesar de
o peixe se aproximar de mim, ele
também nadara para longe. Essa fora
a razão pela qual me sentira
desamparada enquanto permanecera
atolada no

Nilo.

Implorei às irmãs por um


encantamento de amor, pois não se
pode fazer
um amuleto desses para si mesma.
Elas moldaram uma taça encantada
com

a argila branca de Jerusalém, que


diziam ser a mais pura do mundo.
Antes

de a taça ser levada ao fogo, eu


deveria escrever em torno dela com
uma cana afiada. Santos anjos, eu
vos suplico que, assim como esse
barro é queimado, o coração de
Eleazar ben Ya’ir queime por mim.

Mas, ao ser queimada, a taça se


quebrou. Reunimos os pedaços,
embora

eles nos queimassem os dedos. Era


um mau presságio, mas peguei os
cacos,

enrolei-os em linho e os embebi com


as minhas lágrimas.

Quando chegou a hora de eu trazer


uma vida a este mundo, as irmãs

foram minhas parteiras. O primeiro


parto foi difícil. Eu era jovem e
estava

assustada. Desde aquele momento,


tenho assistido a uma centena de

nascimentos, mas meu sangue me


aterrorizou, e o calor dilacerante
dentro

de mim quase me fez em pedaços.


Quis desistir e deixar que o Anjo da
Morte me levasse, mas uma das
irmãs inclinou-se sobre mim para
me

exortar.

Ehyeh Asher Ehyeh. Em nome do


que sou o que sou, o nome de Deus,
saia.
Você concluiu a jornada e agora
chegou. Amém. Amém. Selah.

Chamei a minha filha de Rebeca e vi


que tinha os olhos do pai. Isso foi

tudo que recebi dele. Esse foi o


castigo de Deus.

FUI CHAMADA à presença dos


anciãos que me julgariam na
cerimônia do sotah, na tentativa de
provar a minha culpa como adúltera.
A situação tornara-se

uma questão legal, pois a mãe e a


esposa de Eleazar me acusavam de
adultério e de ter relações sexuais
com demônios. Eles destrançaram o
meu

cabelo e deixaram-no cair


desgrenhado, para envergonhar-me e
exibir-me

como uma das discípulas de Lilith.


Pareciam se esquecer de que eu era
apenas uma criança, pois completara
treze anos poucos dias antes.

Escreveram o nome de Deus em


pergaminho e o mergulharam em um
copo
de água, para que a palavra se
apagasse no líquido. Eu fui forçada
a beber o

nome do Todo-Poderoso. Se
vomitasse, isso significaria que a
minha

impureza não aceitaria o que era


puro. Então, eu seria revelada como

adúltera.

Mas a água era meu elemento e não


me abandonou. Bebi-a toda,

permanecendo diante deles ilesa e


impenitente. Declarei que não
cometera

adultério, e isso era verdade.


Somente Eleazar ben Ya’ir era meu
marido.

Eles ergueram a minha filha para


examiná-la. Ela era um ser pequeno,

com uma cabeleira escura. Parecia


exatamente como eu quando nasci, a

minha imagem em muitos sentidos.


Aqueles que nos julgaram quase se

convenceram de que não havia


prova nenhuma de qualquer
irregularidade.

A criança morena era minha. Não


havia sinal do pai, fosse ele humano
ou uma criatura indescritível, nem
asas, nem chifres, nem nenhuma
marca do

demônio. Eles quase nos deixaram


ir. Até que encontraram a prova na
cor

dos olhos dela.

– Os olhos de um demônio –
testemunhou a esposa de Eleazar, e
talvez

naquele momento ela acreditasse


que isso fosse verdade.

O pai de Eleazar o confinara, para


que não viesse ter comigo. Naquela
noite ele conseguiu enviar um criado
com uma gaiola de madeira
contendo

dois pombos, treinados para retornar


a ele, dedicados um ao outro como
nós. Levei os pombos e a minha
filha na carroça que usaram para me

expulsar da sua vista. Deixei o meu


amado para trás, mas no xale
mantive o

que restava da taça encantada. Levei


os pedaços de cerâmica para a

Montanha de Ferro quando


acompanhei o homem que pagou
algumas

moedas por mim. Usei goma de


terebintina para colar os cacos
quebrados

no lugar. Então esperei. Passaram-se


anos na espera, toda uma vida.
Quando finalmente meu amado me
chamou, quebrei a taça

deliberadamente, certa de não


precisar mais de tais encantamentos.

Mas, quando joguei os ossos dos


pombos na torre para ler o que
estava

por vir, entendi que me enganara.

NOSSOS GUERREIROS saíam em


pequenos grupos, com lanças, em
silêncio, invisíveis e mortais.
Atacavam os escravos que
construíam o muro nos

penhascos atrás de nós e os


soldados que os supervisionavam.
Mas, assim

que os inimigos caíam, outros os


substituíam, como se não fossem
carne e
osso, apenas talos de trigo.

Quando o nosso povo roubava


armas, no entanto, elas não eram tão

facilmente substituídas. A raiva dos


romanos era brutal contra esse tipo
de

ofensa, a retaliação tornava-se feroz.


Mostravam que não tolerariam tais
procedimentos, capturando os
guerreiros que invadissem seus
depósitos,

aglomerando-se em torno deles em


tão grande número que os nossos
desapareciam sob o ataque.

Os escravos romanos haviam


fincado madeiras profundamente na
terra

e erguido uma plataforma para que


todos pudessem ver. Eles
crucificavam

o nosso povo no nosso próprio vale,


depois cortavam a cabeça dos
corpos,

de modo que o espírito dos nossos


entes queridos permanecessem
vagando. Atiravam as cabeças ao
chão e rolavam-nas para o leão. Mas
o animal se recusava a pegá-las.
Deitava-se e não tocava nelas.

Ainda era Adar, o mês das


amêndoas e da boa sorte, a época
em que Yael

viera pela primeira vez ao pombal.


Talvez o nosso povo ainda fosse de
algum modo afortunado. Um
sussurro espalhou-se entre nós, de
que a

besta que fora aprisionada era o


nosso leão, estava do nosso lado.
Entre os

guerreiros formou-se uma aposta:


quem libertasse o leão daria a maior

glória a Deus. Aquele que o fizesse


seria abençoado e traria a bênção de
Deus para o nosso povo.

NÃO IMPORTAVA como


pudéssemos rasgar as vestes e
entoar lamentações, não haveria fim
à nossa dor, pois sem os corpos ou
sem os ossos não

poderíamos homenagear nosso povo.


As famílias dos assassinados davam
gritos alucinados e procuravam os
sacerdotes, pedindo vingança. Não
havia

um só homem entre nós que não


daria a vida em troca da liberdade
do nosso povo, mas uma vida não
era nada para os inimigos. Éramos
como os

gafanhotos que eles podiam matar


sem esforço, com um único tapa.

Meu filho tentou arrastar-se para


fora da cama, usando uma muleta
que
fizera com um galho caído da árvore
que crescia atrás do alojamento.

Queria lutar ao lado dos


companheiros, mas Aziza pediu-lhe
que a deixasse

ir no seu lugar. Ela se sentou à mesa


e cortou o cabelo comprido, depois
trançou com força o pouco que
restara junto da cabeça. Ela instruiu
o cão

para ficar de guarda e não deixar


que Adir deixasse o alojamento. Ao
seu comando, o enorme mastim
permaneceu ao lado do menino,
rosnando,

formando uma espuma nos cantos da


boca.

– Estou prisioneiro? – o pobre Adir


quis saber.

Ele ainda era uma criança aos meus


olhos, mesmo que tivesse a minha

idade ao ser expulsa de Jerusalém


para encontrar o meu caminho no

deserto, quando fora julgada como


uma mulher e já abdicara da
inocência.
Yehuda viria fazer companhia a
Adir, cuidando para que não fugisse,

pois o menino essênio não lutaria ao


lado do nosso povo e, embora

permanecesse conosco e Revka


cuidasse dele como se fosse seu
filho, ele se

mantinha à parte com as suas


crenças.

– Você é o meu carcereiro também?


– Adir perguntou ao amigo.

– Isso eu nunca seria – Yehuda


respondeu.

O menino essênio levantou-se e


abriu a porta para Adir sair, caso
fosse

esse realmente o seu desejo. Mas


Adir estava cansado das nossas

discussões; ele se reclinou para trás


no estrado, o rosto acinzentado. A
sua

vida de guerreiro fora-lhe tirada;


dele próprio restava apenas uma
parte.
Embora eu sentisse compaixão,
também estava aliviada.
Egoisticamente,

não queria arriscar a vida do meu


filho.

A minha filha era outra questão. Ela


fora forjada do ferro.

NO LADO DE FORA havia uma


loucura crescente. Os romanos
tinham começado

um ataque com flechas incendiárias


que caíam sobre nós em uma chuva
incandescente. Uma parte do pomar
se incendiou e, mesmo quando as

chamas eram apagadas, nosso povo


correndo a extingui-las com jarros
de

água preciosa, o perfume das frutas


queimadas espalhava-se por toda

parte. Enquanto nossas árvores eram


destruídas, enquanto nossos filhos

respiravam a fumaça, enquanto


nossas roupas eram chamuscadas e

ficavam pretas com a fuligem, os


romanos montavam uma arena para

brigas de galos, de modo que


pudessem ter alguma diversão à
noite.

Quando se entediavam disso, eles


incitavam os escravos uns contra os

outros com lanças e correntes, pois,


para os romanos, a vida dos
escravos

não valia mais que a dos galos.

Demos-lhes as costas e não olhamos


para eles lá embaixo. Cobrimos as
orelhas para não ouvir os escravos
clamar por suas mães, suas esposas
e pelo seu Deus, que parecia tê-los
abandonado.

NO DIA em que meu filho foi


chamado ao dever, a exemplo dos
demais guerreiros, fui ao quintal
com Aziza. Alguns diriam que eu
estava errada em

deixá-la ir tão facilmente e permitir


que lutasse entre os homens, mas o
seu

destino já fora escrito. Talvez


pudesse ter evitado a convocação
para a guerra se não tivesse mudado
seu nome, ou talvez fosse esse seu
destino,

não importava por que nome fosse


chamada. Ela seguia o caminho do
seu

elemento. Sempre escolhera o metal,


um elemento frio e afiado. Isso lhe
convinha, como lhe conviera
cavalgar pelas pastagens.

Antes que partisse, ofereci-lhe o


segundo amuleto de ouro para
proteção
que usava ao pescoço, mas ela
balançou a cabeça.

– Estou protegida – ela me


assegurou. – Não tenha medo.

Quando ela levantou o lenço,


observei o medalhão prateado com a

imagem de Salomão atacando um


demônio feminino. Nenhuma mulher

teria permissão de usar tal amuleto.


Sua coragem deixou-me orgulhosa,

assim como atraiu uma nuvem de


pesar.
– Deveríamos ter ficado onde
estávamos – eu disse com tristeza.

Começara a sonhar com a Montanha


de Ferro. Nos meus sonhos havia

quarenta árvores de acácia e, em


cada uma delas, quarenta pássaros
pretos.

Eu me encontrava sob os galhos e


descobria que não conseguia me
mover.

Meus pés haviam se entrelaçado


com as raízes de uma árvore, os
braços eram ramos cobertos de
flores amarelas. As abelhas eram
atraídas para

mim e se aglomeravam ao meu


redor, e eu chorava por não poder
provar a

doçura do seu mel, embora ele


estivesse por toda parte.

Eu fizera tudo o que pudera para


evitar que minhas filhas seguissem o

meu destino. Nada disso impedira o


que a minha mãe me dissera ter sido

escrito antes de elas nascerem, antes


de eu ir para Jerusalém e parar junto

ao poço, e de fazer o que mais me


agradasse, mesmo sabendo aonde
me levaria. O amor seria a causa da
minha ruína. Por essa razão fizera o
possível para não amar as minhas
filhas, para não atrair sobre elas a
minha

maldição. Nisso, eu fracassara.

– Aqui é o lugar onde deveríamos


estar – Aziza me assegurou.

Sua pele estava queimada pelo sol.


Notei que a cicatriz embaixo do seu
olho brilhava muito branca em
contraste com o rosto bronzeado.
Ela

poderia ter sido uma bela mulher,


em vez disso era um guerreiro. Ela
poderia ter sido um menino
caminhando pelas ruas da cidade
vermelha de

Petra, em vez disso era a minha


filha, que me seguira a essa
fortaleza, e a

quem eu amava, apesar das muitas


maneiras pelas quais tentara não
fazê-
lo.

Quando ela foi para o quartel pensei


na minha mãe, que ficara no pátio

ao lado da fonte para me ver deixar


Alexandria. Agora entendia que ela
sabia que não me veria novamente.
O meu coração falhou, porque eu
vira o

futuro e o que estava por vir nos


ossos que jogara no chão da torre.

Eu perderia tudo o que possuía.

Algo estava terminando, mas


também começando. Podia sentir a
vida

dentro de mim se mover e mudar de


posição. A criação começara no
monte

do Templo e talvez recomeçasse


outra vez se o restante
desaparecesse. Já

havia homens falando de um terceiro


Templo, que surgiria no futuro, mais

glorioso que qualquer outro. Da


destruição sucederia a luz, e as
primeiras
palavras seriam novamente
pronunciadas em um silêncio
sagrado, pois o

início é sempre assim.

Caminhei até a muralha, a capa


apertada em torno de mim.
Descansei a

mão sobre a barriga e sobre a minha


filha que ainda não era nascida. O
meu

amado desejava um filho, todos os


homens desejam, mas eu sabia que
teria
outra filha. Sempre carregava uma
menina do mesmo modo, no alto,

embaixo do coração. Queria outro


mundo para ela, não aquele caos
abaixo

de nós. Ainda se viam poças de


chuva no fundo do vale. Em
qualquer outro

momento, eu seria grata. As cabras


selvagens e os cervos viriam beber.
Os

falcões e as garças cairiam do céu


para se banhar, e os corvos, que
haviam

alimentado Elias no deserto, viriam


até nós com ameixas nos bicos.

Agora só havia o leão, cuja corrente


permitia-lhe rolar na água. Estava
coberto de lama, as patas enormes
deixando marcas fendidas na terra

úmida. Obriguei-me a desviar o


olhar do grande animal, pois não
suportava

vê-lo tão aviltado e domesticado.


Lembrei-me dos ursos sírios
treinados que podiam ser vistos nas
ruas de Alexandria e de Jerusalém,
mas o que via

agora era muito pior, pois o leão


fora humilhado na sua própria terra,
despossuído como nós, senhor de
nada, a não ser de pedras.

Em meio à minha tristeza, reclinei-


me sobre o penhasco e, quando o fiz,

avistei uma cabra preta ao lado da


montanha. Por certo fugira da
caverna

dos essênios. O animal descarnado


cambaleava entre as pedras, perdida
e

abandonada, incapaz de encontrar o


restante do rebanho.

Era um sinal das trevas que se


avizinhavam.

UM SOLDADO romano percebeu a


cabra, mas um foi tudo o que bastou.
Ele chamou os companheiros e
rapidamente saíram todos atrás da
criatura,

primeiro por diversão, depois com o


fervor implacável dos caçadores.
Ao fazerem isso, depararam-se com
o acampamento daqueles que só
queriam

a paz. Yehuda aproximou-se da


muralha ao meu lado quando os
romanos

começaram a subir para as cavernas


de calcário abaixo de nós. Era como
se

sua mãe, ainda entre seu povo, o


tivesse chamado ali, assim como me

chamara o coração da minha filha.


Éramos impotentes para fazer outra
coisa senão assistir, enquanto os
soldados escalavam o penhasco. Um
deles

caiu e eu me apressei a louvar a


Deus, perguntando-me o que fora
feito de

mim para rezar pela morte de um


homem sobre as rochas,
regozijando-me

com o som de seus gritos.

Os soldados que conseguiram atingir


um patamar no penhasco depois
lançaram cordas para garantir que
aqueles que os seguissem tivessem
mais

facilidade em escalar a encosta.


Como se diz dos anjos, podíamos
ver o que

estava para acontecer antes de


acontecer, mas, a exemplo deles,
não

éramos capazes de alterar o


resultado. Se era isso o que os anjos

observavam quando contemplavam o


nosso mundo, enquanto nos
matávamos uns aos outros e nos
torturávamos sem descanso, então
senti

pena deles como não sentira de mais


ninguém.

Os nossos guerreiros apareceram


para lançar uma saraivada de
flechas,

mas essas caíram sobre as pedras


como se fossem pássaros caindo do
céu.

Aziza também acorrera à muralha,


mas estava vestida como mulher e,
portanto, era impotente, embora não
pudesse ser impedida de atirar

pedras, e ouvi o grito de guerra de


Moabe escapar de seus lábios. Os
soldados romanos tinham entrado na
caverna e lá nossas armas não

podiam alcançá-los. Vários dos


nossos guerreiros puxaram Aziza de
volta quando ela subiu na muralha,
em uma tentativa de saltar para a
briga abaixo de nós, pois um
guerreiro como a minha filha não
podia ficar de braços cruzados, e ela
foi, portanto, contida por cordas.
Embora os assassinatos ocorressem
fora do alcance da nossa vista, não

estavam longe dos nossos ouvidos, e


fomos obrigados a escutar o som da
morte, tão terrível de ouvir, ainda
pior quando o que vemos está dentro
de

si mesmo, as mil crueldades


praticadas sobre aqueles que
amamos.

Aziza e eu ficamos juntas e


choramos, sem saber se os gritos
que
ouvíamos eram as vozes daqueles
que amávamos ou dos impiedosos

gaviões acima de nós. Poderíamos


segurar as mãos sobre as orelhas,

poderíamos nos virar, mas isso não


acabaria com o horror. O lamento
dos

mortos pode ser ouvido em todos os


cantos deste mundo e no Mundo

Vindouro. Ele não para quando o


som acaba, ele permanece dentro de
nós,
uma parte eterna do nosso ser.

POR ELA NÃO poder ser enterrada


e seus ossos permanecerem
espalhados, a alma da minha filha
ficaria ao lado do seu corpo,
perdida, tentando

desesperadamente reinserir-se e
tornar-se viva mais uma vez. Os
chacais a

encontrariam, mas a alma


permaneceria na caverna, mesmo
quando a

levassem em suas mandíbulas; ela


veria quando os animais a
sacudissem

em pedaços para devorá-la. Ela


sofreria todas as agonias da carne
em

espírito. Não haveria taharah, a


purificação que prepara o corpo
para o outro mundo, nem a água ou
os óleos abençoados, nem o aloé
para lavar os

pecados da vida na terra. Ainda que


os puros de coração, segundo se
dizia,
fossem capazes de ver a Shechinah
enquanto morriam, eles erguiam os
olhos para a face mais radiante e
piedosa de Deus. Era o que eu
poderia esperar. Que no momento da
sua morte ela visse a luz de Deus e
nada mais.

Desejei que a mentira contada pelos


romanos sobre o povo do pai de

Nahara fosse de fato verdadeira e


que seu sangue corresse azul, de
modo que, quando a cortassem, mais
mil surgissem em seu lugar. Eu
quase
morrera no nascimento dela, e teria
morrido não fosse por Aziza ter sido
uma criança tão destemida. Toda
aquela agonia passou somente a fim
de que eu pudesse viver para entoar
lamentações para ela durante todo o
dia e

toda a noite. Rasguei minhas vestes


até as mãos sangrarem, lamentando

como fizera antes. Embora a tivesse


perdido quando ela me desafiara e
se

casara com Malaquias, lamentei-me


amargamente por ela agora. O
sangue

dela estava em minhas mãos. Não


culpei Malaquias nem os essênios,
pois fora eu quem a levara à
perdição, exatamente como a minha
mãe previra que faria, arruinando
todos os que amasse e alguém que
pudesse me amar.

Quando a filha de Moabe nasceu, o


pai esperou dez dias para vê-la,
como

era o costume do seu povo. Ele


queria um filho, mas, quando entrou
na tenda, o rosto se abriu em um
sorriso. Era bom que um homem não

pudesse ver o filho imediatamente,


quando a criança ainda estava
abalada

pelo nascimento, inchada e azul pelo


fardo de vir à vida. Aos olhos do
pai,

essa menina era um ser radiante. Ele


era um homem que não escondia o
que sentia. Ele escolheu o nome para
ela e concordei com a decisão, pois
Nahara significava a luz que
brilhava sobre uma grande beleza.
Concordamos em muitas coisas, mas
nessa mais que tudo. Gostaria de

saber se, do outro lado do Mar de


Sal, o pai da minha filha sabia que
ela estava perdida, se esperara por
todo aquele tempo que voltássemos.

Gostaria de saber se, quando ele me


encontrou no deserto e levou-me

consigo, agi errado por não o amar.


No mínimo, deveria ter sido grata o
bastante para oferecer-lhe em troca
a minha lealdade.

*
NOSSO POVO saiu para ver a lua
nova por ocasião do Rosh Chodesh.
Elevamos a Deus as nossas orações,
mas não nos rejubilamos. Não houve
dança. O

muro romano fora concluído,


cercando-nos como uma víbora. Os

acampamentos tinham sido erguidos,


vários deles maiores que a maioria

das aldeias. Aqueles de nós que não


tinham vindo de Jerusalém ficaram
surpresos com o que a legião
realizara; abaixo deles, havia mais
pessoas do
que muitos tinham visto na vida,
todos os seis mil usando as túnicas
brancas da legião e milhares mais
escravizados para ajudá-los em suas

tarefas brutais.

O acampamento principal dos


romanos, montado diretamente à
frente

do Palácio do Norte, ostentava uma


torre que rivalizava com a de
qualquer

guarnição. Houve outro grande


acampamento atrás de nós,
guardando a

traiçoeira encosta oriental, e mais


seis acampamentos menores
dispostos

em um círculo. Além do
acampamento de Silva, ficava a
aldeia de

seguidores da legião, onde as


pessoas cuidavam das suas
necessidades

cotidianas, criando galinhas,


levando as mulheres para o seu
prazer,
rezando para seus deuses.
Considerei cada um deles como o
assassino da minha filha.

Saí à noite para a muralha, local em


que produzira feitiços

anteriormente, e lá proferi um
terrível juramento.

Invoco e suplico a Deus, o


Altíssimo, o Senhor de todos os
espíritos e da carne, contra aqueles
que traiçoeiramente assassinaram
ou mataram, que derramaram o
sangue inocente de uma forma
injusta. Senhor, que
supervisionais todos os anjos,
diante de quem toda alma se
humilha, vingai o sangue inocente e
buscai justiça.

Escrevi essas palavras em um


pergaminho, depois as queimei para
que

subissem ao Todo-Poderoso.
Invoquei os anjos de Chimah, os
mensageiros

da ira e da vingança. Também se diz


que Chimah é o nome das estrelas
do
céu que são as sete irmãs, que velam
por nós nos momentos de dor.

Enquanto implorava aos anjos,


encostei uma faca sobre a minha
pele e fiz

um corte ao longo da palma da mão


esquerda, embora o nosso povo não
estivesse autorizado a cortar a si
mesmo ou promover dano ao que
fora criado por Deus. Cortei
profundamente enquanto me oferecia
em troca de

manter meus filhos sobreviventes a


salvo de todos os seres vivos, dos
demônios que estavam tão próximos
e do leão abaixo de nós.

OS INIMIGOS estudaram
atentamente nossos costumes. Para
eles, nada mais éramos que um
escorpião preso sob uma peça de
vidro. Eles queriam

avaliar quando seria a nossa


próxima ferroada. Todas as vezes
que

tentaram escalar o caminho da


serpente, derramamos óleo fervente
sobre
seus homens. Nossos arqueiros
empoleiravam-se nas oliveiras e ao
longo

da muralha, prontos para abater


quem quer que tentasse passar. O

caminho era estreito e havia muitos


na legião, os romanos se tornavam
um

alvo fácil quando começavam a


escalar a montanha.

Achamos que eles veriam o quanto


um escorpião podia ser perigoso,
apesar do tamanho diminuto. Mas,
ao que tudo indicava, os romanos

pareciam ter concluído que a melhor


maneira de pegar um escorpião era
esmagando-o no próprio jardim.
Para nos destruir, eles precisavam
chegar

até nós. Então começaram a fazer


seu próprio caminho, uma rampa
larga construída na encosta oeste
que subia na direção do Portão
Norte. Barril após barril de terra
foram trazidos para levantar essa
rampa, que tomou a
forma de uma montanha branca.
Pensamos que eles eram loucos para

tentar criar o que só Deus poderia


formar, um penhasco que se elevava
a cem metros do vale e por onde
poderiam nos perseguir. Mas havia
tantos

escravos, o trabalho era tão


incessante, que diante dos nossos
olhos o penhasco apareceu, tão
branco que seu brilho queimava. À
noite parecia que o mundo virara de
cabeça para baixo e as estrelas
brilhavam abaixo de
nós, subindo em nossa direção,
ameaçando nos queimar com sua luz.

Os homens que estavam na sinagoga


se reuniram para discutir se era ou

não realmente possível que aquela


rampa chegasse à nossa muralha.
Mas,

durante o tempo gasto para debater


esse assunto, a rampa subiu tanto
que

podíamos ouvir claramente os


trabalhadores. Os soldados romanos
foram
capazes de lançar dardos e lanças,
que tiraram várias vidas. Estávamos
atordoados com o que os nossos
inimigos tinham conseguido e como,
a

exemplo do nosso Criador, haviam


construído uma montanha da noite
para

o dia.

EM JERUSALÉM, eu vira minha


rival apenas uma vez, quando subia
na carroça no dia em que fui expulsa
da cidade. Eu tinha na mão a gaiola
de madeira

com os pombos e carregava nos


braços a minha filha, que chorava.
Eles me

forçaram a ir com os pés descalços,


como era o costume; quando meus
pés

sangrassem, mais uma tristeza seria


adicionada ao castigo. Lembro-me
de

que a esposa de Ben Ya’ir estava


usando sandálias finas, feitas de
couro de

cabra, entrelaçadas com fivelas de


metal. Ela usava colares de lápis-
lazúli,

cornalina e turquesa e pulseiras de


ouro nos braços. Eu tinha apenas um
lenço preto ao redor do corpo.
Enquanto a minha inimiga me via
subir na

carroça que transportava ovelhas


para o açougueiro, não pensei nos

tormentos do deserto, nem nos


abutres e nos corvos que nos
acompanhariam. Não estava
preocupada com o calor que se
abateria sobre

nós nem com os chacais que não se


contentariam em esperar nossa morte

para ter sua refeição. Em vez disso,


tinha vergonha dos meus pés
descalços.

Agora, depois de todo esse tempo,


ela veio à minha porta no dia em que

a rampa romana foi concluída. A


rampa não atingira o objetivo e por
isso agradecíamos. Mas
estremecíamos ao pensar que os
romanos corrigiriam

isso e que estavam determinados a


nos alcançar, mesmo que isso

significasse flutuar no ar.

O cão que vigiava meu filho latiu


quando Channa se aproximou, como
se

ela pudesse ser o Anjo da Morte


batendo à nossa porta. Dizem que os
cães

sabem distinguir essas visitas. Em


Alexandria, eu testemunhara o cão
de um padre uivar no momento da
morte do seu dono; a criatura
chorosa foi

depois sacrificada para que o corpo


pudesse ser enterrado ao lado do seu

senhor. Segurei nosso cão de guarda


pelo pescoço e abri a porta para
encarar a minha interlocutora com
ódio. Já a enfrentara uma vez nessa
montanha e ela não tinha mais
nenhum poder sobre mim.

Pelo menos ela foi esperta o


bastante para não cruzar o umbral da
porta.

Observei a minha rival, o rosto


contraído, os olhos tristes, e por sua
vez ela

me fitou. Nesse momento não


procurei disfarçar que logo traria
outra

criança a este mundo. No entanto,


era um mundo dilacerado. Para mim,
o

nascimento parecia menos uma


dádiva para a alma que eu carregava
que
uma maldição.

O cão arregaçou os lábios e exibiu


os dentes para a visitante.

– Só quero um minuto – disse


Channa apressadamente.

Afrouxei o meu domínio sobre o cão


e ele estalou os maxilares. Talvez
Eleazar tivesse mencionado que ela
tinha medo de cães. Talvez isso me
agradasse.

– Pensei que quisesse a minha vida


– comentei.
– Não. – Ela balançou a cabeça. –
Queria o meu marido.

– Então vá procurá-lo – sugeri.

Ela pareceu hesitante. Somente


quando comecei a fechar a porta, ela

falou, disparando as palavras.

– Só você pode me conceder a


proteção da vida dele.

Olhamos uma para a outra no umbral


da porta. Perguntei-me se era

possível que, mesmo naquele


momento, enquanto Roma nos
cercava,

Channa pudesse estar tentando me


atrair para uma armadilha, na

esperança de me levar perante o


conselho para ser julgada como
bruxa.

Ainda assim a escutei, pois aquela


mulher e eu estávamos vinculadas
uma à

outra como a noite está ligada ao


dia, sem nunca nos conhecer e, no
entanto, sem nunca nos iludir uma
com a outra.

Talvez quisesse vê-la implorar por


alguma coisa. A tentação dos seus

apelos consternados e do seu


remorso era irresistível. Mandei o
cão para dentro, depois saí para o
pátio. Em qualquer outro ano, essa
temporada teria significado o início
do plantio, mas os campos estavam
em pousio. Não

havia sementes, nem homens para o


trabalho com o arado, tampouco

animais para ajudá-los.


– Não sou mágica – disse à minha
rival. – Não posso conceder-lhe
nada.

As amendoeiras estavam em plena


floração e o hissopo também

florescia. Channa terminara o


remédio que lhe mandara e
novamente

estava propensa a ter dificuldade


quando respirava fundo. Não
mencionei

que o hissopo crescia ali perto, ao


longo do meu muro. Deixei que
ofegasse.

– Hoje à noite os guerreiros sairão


para tentar impedir a construção da

rampa. Nem todos voltarão.

Eu estava decidida a não deixar que


ela visse o quanto essa notícia me

afetava. Se ela pensasse que eu era


indiferente, não teria o poder de me
magoar.

Channa continuou em face do meu


silêncio.
– Sonhei que ele só voltaria com a
ajuda de um pássaro preto.

– Não sou um pássaro – eu disse,


embora estivesse alarmada com a

notícia, pois também sonhara com


um pássaro preto, um corvo, como o
que

visitou Elias e o alimentou quando


ele se perdeu no deserto e não tinha
sustento. – Por que veio me
procurar?

Ela olhava para a criança dentro de


mim.
– É um filho? – Sua voz soou
melancólica.

– Agora você acha que sou uma


bruxa e capaz de adivinhar a
vontade de

Deus. Acha que sou muitas coisas,


ao que parece. Já pensou que eu era
uma

menina quando fui mandada para o


deserto? Viu que meus pés estavam

descalços, que os abutres me


seguiam e que estava sozinha,
enviada para morrer? Talvez seja
por isso que teve esse sonho. Talvez
esteja destinada a

engasgar com as penas.

– Salve-o, mesmo que seja para si


mesma – Channa disse-me então.

Ela levantou os olhos e vi a


verdade, que ele era o seu marido e
que ela

estava disposta a fazer qualquer


coisa para salvá-lo. Dei um passo
para trás.

Sabia que ela ainda tinha poder


sobre mim e que esse derivava do
fato de

que o amava.

– Eu devia ter levado você para


nossa casa – continuou ela. – Então,
seus

filhos seriam meus como o meu


marido era seu. Poderíamos ter
carregado

nossos fardos e nossas alegrias


juntas, como irmãs.

Fiquei maravilhada por sua coragem


de me falar dessa maneira, por não

ter medo de cortejar o meu ódio e o


meu despeito. Em vista disso,
amoleci

de uma maneira que não pensara ser


possível. Talvez estivesse escrito
que

ela arruinaria a vida dela e a minha.


Talvez ela também não tivesse
escolha

a não ser seguir o destino.

– Não faça para mim – insistiu


Channa. – Faça pela pessoa que
você ama.

O nosso marido.

Observei-a enquanto se afastava,


ligeira, acompanhando a muralha,

embora voassem flechas por perto,


algumas delas incendiárias. Ela não

tinha medo delas; talvez não se


importasse mais com questões como
a

própria segurança. Notei que seus


pés estavam nus, que tinha um lenço
preto enrolado ao redor dos ombros,
que era ela quem estava agora no
deserto e que tudo o que dissera era
verdade.

FUI ATÉ o Portão da Serpente e


pedi ao guarda que me deixasse
passar.

Entendi por que sonhara com


quarenta acácias cercadas por
abelhas. O

sonho fora-me inspirado pelos anjos


e pelo Todo-Poderoso. O que
parecia
ser um quebra-cabeça agora ganhava
a forma de um caminho.

O guarda poderia ter me barrado,


mas Amram passava perto e voltei-
me

para pedir ajuda. Ele parecia


arrogante e impaciente, parcialmente
vestido

com sua armadura prateada. Trazia o


cabelo comprido trançado, pronto

para a guerra.

– Nenhuma mulher passa pelo portão


– ele me disse friamente, já se

preparando para a noite seguinte,


quando os guerreiros pretendiam
atacar

os escravos que construíam a rampa.

Ele não fazia ideia de que o


conhecera como uma criança
mimada e doce,

favorecida aos olhos do pai. Seu


comportamento agora era agressivo
e vi algo sombrio dentro dele, uma
escuridão de espírito que não existia
antes.
Alguns sussurravam que os ataques
do nosso povo tinham incluído o

assassinato de mulheres e crianças.


Juravam que os guerreiros não
tiveram

escolha, que era tudo pela causa do


verdadeiro Israel e daquele cujo
nome

nunca pode ser pronunciado em voz


alta, Eu sou eu. Mas a guerra
provocava essas mudanças em
todos, e essas eram acompanhadas
da perda
de lev, o coração verdadeiro,
especialmente naqueles que traíam
as leis de Deus, que sabiam o que
haviam feito e que diziam a si
mesmos que agiam

como deviam agir.

– Por acaso veio porque sua filha


tem uma mensagem para mim? –

perguntou ele.

Aziza rejeitara esse guerreiro, sem


conceder-lhe uma razão para seu

desagrado, e a dor que ele sentia era


evidente. Ela não falaria com ele e
parecia não ter interesse por ele.

– Você é a mensageira dela? – o


guerreiro quis saber.

Ele usara a palavra mal’ach que,


embora pudesse significar
mensageiro,

também poderia significar anjo.


Talvez essa fosse sua maneira de
chamá-la

de shedah, como muitos a haviam


chamado antes dele, ou talvez
acreditasse que eu tivesse invocado
os anjos de ira sobre ele, que fora a
minha desaprovação que fizera
Aziza se afastar dele.

Yael observara-nos da praça. Ela


usava um manto cinzento
esfarrapado

que era muito grande para seu corpo.


Adiantou-se, preocupada, ao

perceber a amargura do irmão.

– Shirah não é a causa das ações da


filha – Yael lembrou suavemente.

– Ou sou eu, ao que parece – disse


Amram em um tom acalorado. – Ela

não pode nem me ver.

– Seja paciente – Yael sugeriu. –


Ela pode voltar para você.

Amram estendeu a mão para fazer


uma varredura rápida do caos
abaixo

de nós.

– Não tenho tempo para esperar.

Yael notara a cesta que eu


carregava. Ela me lançou um olhar
rápido, em

seguida pediu ao irmão se


poderíamos apanhar ervas na
encosta.

Amram balançou a cabeça, pois isso


não era permitido.

– Não neste dia.

– Meu irmão – Yael brincou –, devo


recordar-lhe que me lembro de

quando dormia com o polegar na


boca e temia o escorpião no
corredor?
– Yaya – disse ele, balançando a
cabeça e sorrindo, apesar de tudo. –
Não

posso deixar você ir.

– Teremos cuidado – ela prometeu.


– O que tiver de ser, será – ouvi-a
sussurrar em seguida. – Vou
procurar uma erva que lhe trará
sorte.

Amram ainda era seu irmão,


disposto a ouvir seus pedidos. Ele
falou

com o guarda, que nos franqueou a


saída pelo portão. A luz do dia

estendera-se em longas sombras, o


que nos permitiu sair coladas aos

penhascos sem sermos vistas. Tivera


a intenção de ficar sozinha, mas
agora

não tinha escolha quanto a isso.


Talvez fosse conveniente Yael

acompanhar-me, pois ela aprendera


as magias que minha mãe me
ensinara

e não teria medo do que deveríamos


realizar.

Caminhamos juntas ao longo da


encosta, depois descemos nos

equilibrando em direção a um
barranco úmido entre duas cavernas.
Uma

vez, juntando gravetos ali por perto,


observara cachos de flores cor-de-
rosa

perfumadas brotando de arbustos


altos e esguios. Eram primos
silvestres do rododendro, uma flor
para a qual a minha mãe apontara em
Alexandria

a fim de me advertir dos seus


perigos. Assim como a raiz dos
ba’aras, que tinham o pendão de
tirar a alma do inimigo, as folhas e
as raízes do rododendro eram
proibidas, embora muitas vezes
fossem usadas para

pharmaka em matéria de amor e de


vingança. De todas as partes dessa
planta tóxica, as flores eram as mais
potentes.

Agachamo-nos e ouvimos
atentamente a lama do nachal
escorregando sob os nossos pés
descalços. Estávamos protegidas do
vento. Parecia que nos
encontrávamos em outro mundo, em
que conseguíamos nos lembrar

de como o deserto podia ser belo.


Estávamos nos aproximando da
Festa

dos Pães Ázimos e o sol seria forte


na ocasião. A flor do rododendro
era a

poção que viera encontrar, eu não


teria necessidade de inventar ou
criar, pois ela já era parte da
criação. Os feitiços e encantamentos
não eram suficientes para proteger
meu amado. Era de veneno que eu
precisava.

Levantei a mão para que Yael


dobrasse a atenção em direção ao
eco que

ressoava perto. Sob o barulho


incessante dos romanos, elevando-se

enquanto eles trabalhavam com pás


e picaretas, ouvia-se o som de
abelhas.

Na primavera, muitas vezes elas


invadiam aquelas montanhas,
viajando

para cá provenientes do Egito para o


último florescimento do deserto
antes

da chegada do calor. Seguimos o


zumbido até um tronco caído, de
onde escorria o mel amarelado, que
alguns entre nós chamavam debas e
outros

referiam como maná. A comida das


abelhas muitas vezes era a salvação

para quem se encontrasse no


deserto, apreciada igualmente por
homens e

animais. Mas esse mel era como


nenhum outro, pois fora produzido a
partir

das fatídicas flores cor-de-rosa que


desabrochavam na ravina; apenas
uma

pequena amostra deixaria um homem


enlouquecido durante horas, talvez

dias.

Encolhi os ombros da minha capa e


insisti para que Yael ficasse para
trás. Somente eu estaria a salvo das
picadas das abelhas iradas, pois
derramara sal sobre a minha pele, de
modo que elas não viessem para
cima

de mim quando alcançasse o interior


do tronco para tirar um favo de mel.

Antes que os nossos guerreiros


partissem para destruir a rampa dos

romanos, os soldados da legião que


partilhassem desse mel contaminado

ficariam enlouquecidos. Quando a


noite chegasse, eles não seriam
capazes

de saber se estavam sonhando ou se


realmente nossos homens haviam

caído sobre eles. Na confusão, com


os homens embriagados, eles não

conseguiriam sacar as espadas.

Yael e eu encolhemo-nos ao lado de


um penhasco enquanto as abelhas

circulavam em torno do favo de mel.


Polvilhei sal sobre o favo, forçando
as
abelhas a voltar para as mortais
flores cor-de-rosa, de onde
coletariam mais néctar. Quando
expus minhas intenções, Yael não
pareceu surpresa.

Admitiu que saíra em busca de mim


porque ouvira uma voz chamando-a,

dizendo-lhe o que deveria fazer.


Seria ela a pessoa que levaria o
veneno para os inimigos. Fora essa a
razão pela qual decidira deixar
Arieh com seu

pai e por ter vestido a capa do


assassino, tirando-a de um gancho
no seu alojamento para servir como
armadura, por mais frágil e fina que
fosse.

Quando a puxou sobre a cabeça, ela


desapareceu diante de mim. O pano
era

da cor do céu claro, das pedras e da


fraca luz do sol que se projetava
sobre

nós. Até mesmo o cabelo escarlate


desaparecera sob a cobertura; seu
rosto

se ocultou, tornando-se uma névoa.


Eu planejara depositar o maná
contaminado para os romanos, mas
Yael

insistiu que a voz lhe falara por uma


razão. Eu não queria deixá-la ir, ou
ser

a causa de qualquer mal que pudesse


lhe acontecer. Cheguei a implorar,
mas ela não quis ouvir. Acreditava
que fora chamada para tirar o mel
das

minhas mãos. Na verdade eu


entendi, pois no meu sonho ela
estava ao lado
das acácias. Ela levantava os braços
para o céu enquanto tomava o meu
lugar.

Gostei de Yael ter dado ao escravo


o amuleto de ouro para proteção;

todas ficáramos consoladas ao


imaginá-lo encontrando o caminho
para a

sua terra, onde a neve descia em


espirais. Ainda assim, ela precisava
de proteção. Prendi o segundo
amuleto de ouro em volta do seu
pescoço,
apesar das suas alegações de que
não era digna dele. Sabia que ela
deveria

ser protegida pelo signo do peixe,


pela promessa de água e pela graça
do Todo-Poderoso.

ESPEREI NA LUZ minguante do dia


enquanto Yael ia sozinha. Tínhamos
entrado na hora que o firmamento se
abria à nossa visão, um momento em
que os

homens santos insistiam que


conseguiam enxergar o trono de
Deus. Eu via
apenas os penhascos à nossa frente.
Não ousava erguer os olhos para a
caverna na encosta onde se dera a
matança dos essênios, pois o
espírito da

minha filha permanecia ali, frio e


sozinho. A maldade do mundo era
parte

da criação, eu sabia disso, e o Anjo


da Morte fora criado no dia do
surgimento da vida, mas ainda assim
sentia-me amargurada. Chorei pelo

que perdera, pelo que o mundo


perdera e pelo que ainda seria
perdido.

Yael seguiu rapidamente pelo


caminho que descia a montanha. Mal

consegui avistar a sua forma sob o


manto enquanto se aproximava da

rampa branca que levava ao inferno,


como passáramos a chamar o vale
que

fora nosso e se tornara parte de


Roma. Quando se aproximou do
local da construção, ela
imediatamente deixou o favo de mel
sobre uma saliência na
pedra, depositou-o com cuidado,
para que os soldados que

supervisionavam os escravos com


certeza o encontrassem. O doce
aroma

os atrairia e eles devorariam o


veneno como o nosso povo
apreciara o maná depois de se
libertar da escravidão no Egito.
Então os nossos

guerreiros teriam certa dose de


segurança quando atacassem.

A cortina da noite em breve se


fecharia sobre nós, o favo de mel
estaria

no lugar, e no entanto Yael


demorava a voltar. Senti frio
enquanto

observava as estrelas aparecerem e


ainda assim ela não vinha. Comecei
a me preocupar e a andar de um lado
para o outro, pois ela parecia ter
desaparecido. Embora usasse o
amuleto de ouro para proteção,
somente

Deus poderia protegê-la naquele


vale. Começou a ficar tarde e tornei-
me frenética, quase dominada pelo
medo do que pudesse ter-lhe
acontecido.

Então vislumbrei uma névoa a


distância.

No escuro, Yael conseguira agachar-


se ao lado de uma pedra e

permanecer escondida enquanto os


romanos exercitavam-se no campo

para a guerra que se aproximava,


lutando com as espadas e as lanças
que
usariam contra nós quando a rampa
branca estivesse concluída.

Finalmente, quando os soldados


retornaram aos seus quartéis, Yael

levantou-se de trás da rocha. Eu não


conseguia entender o significado dos

seus movimentos quando ela deixou


a segurança do seu esconderijo e

continuou a seguir adiante.


Perguntei-me se ela teria provado do
mel e enlouquecido a ponto de
pensar que poderia entrar no vale
dos romanos e
sobreviver. Ainda assim, ela
continuava a seguir em frente.

Diante dela estendia-se o charco de


lama e, além dela, estava o leão.

Em todo o vale, somente a fera a


observara, ou talvez tivesse sentido
o

seu perfume. Yael fora à mikvah


naquele dia e, quando o fedor está
por toda parte, o cheiro do que é
puro destaca-se de tudo. O leão
ergueu a cabeça e

olhou através do charco enquanto


Yael seguia seu caminho, pisando
com

cuidado. Eu não podia suportar a


ideia de vê-la dilacerada, devastada
e devorada enquanto a observava, a
menina a quem amava como se fosse

minha filha, desde quando eu mesma


era uma menina. O meu pesar era

enorme ali sozinha na escuridão


crescente, chorando por tudo o que
fizera

no mundo e pelas inúmeras pessoas


que magoara. Pensei que talvez
estivesse testemunhando o Fim dos
Dias e que os essênios tivessem
razão o

tempo todo e nós fôssemos


simplesmente imprudentes demais
para ouvi-

los. Pensei no que os ossos que


jogara tinham revelado, no futuro
que vira e

em tudo que ainda tinha a perder


neste mundo.

Yael postou-se diante do leão. Ele


poderia facilmente alcançá-la e
atacá-

la, mas não se mexeu. A cauda


mexeu-se, nada além. Yael
aproximou-se

ainda mais. Eu os via através de uma


camada de névoa. Uma criatura
feroz,

uma poça de água, uma mulher que


não sentia medo. Talvez porque já
fora

mordida por um leão, ela imaginasse


que seria imune a quaisquer outras
mordidas, como alguns que são
atacados por abelhas nunca mais
reagem às

picadas.

Ninguém no acampamento romano


prestara atenção ao leão por algum

tempo, ou sequer pensara em


alimentá-lo desde a sua chegada. Um
burro

fora tudo que lhe coubera. Ele fora


maltratado, quase morto de fome,

deixado para ficar exposto ao sol


ardente, incapaz de fugir das
torrentes de

chuva quando caíram. Ele servia ao


seu propósito, amedrontar-nos, e
agora

estava abandonado. Os corvos se


aproximavam, mas ele não
conseguia

alcançá-los. Os íbex, os cervos e as


ovelhas eram assados nas fogueiras
dos

romanos, mas ao leão não coubera


nem uma lasca da carne ou dos
ossos.
Ele não se moveu quando Yael se
aproximou, nem recuou diante dela.

Talvez não a atacasse porque fora


humilhado, tirado da sua terra,
sofrera maus-tratos, e agora era
incapaz de agir como um leão. Ou
talvez estivesse

apenas esperando por um


mensageiro de Deus, como
esperávamos por

Gabriel.

Yael então se aproximou o bastante


para soltar a fivela de latão que
prendia a coleira da criatura à sua
corrente. Eu não conseguia respirar
nem

me mover. Imaginei que o animal se


voltaria contra ela e então eu veria a

sua morte diante dos olhos. Em vez


disso, o leão levantou-se e parou
diante

dela. Ele olhou para Yael com os


olhos amarelos, mais curiosos que
ferozes.

Pode ser que a tenha reconhecido


como uma da sua espécie e se
perguntado se queria acompanhá-lo.
Pode ser que acreditasse que ela
fosse

um sonho, pois se os leões


sonhassem certamente seria assim, a
liberdade

no meio da noite, mãos que os


soltam das correntes, montanhas
elevando-

se à frente.

Yael levantou os braços, como


fazíamos para permitir que as
pombas
levantassem voo. O leão virou-se
para correr através do vale,

desaparecendo nas falésias, a sua


cor pardacenta como manto que lhe

permitia desaparecer diante dos


nossos olhos.

Eu soube então que havia


testemunhado um milagre. Esperei
no lugar

em que estava, rezando, dando


graças ao Todo-Poderoso, a minha

renovada, enquanto no fundo do vale
o mais valente guerreiro entre nós
regressava para a nossa montanha,
invisível a todos os homens sob o

manto acinzentado, mas radiante na


escuridão, uma estrela brilhante aos
olhos de Deus.

NOSSOS GUERREIROS saíram


naquela noite para encontrar os
soldados da legião inebriados,
enlouquecidos e meio adormecidos,
pois tinham misturado o

mel tóxico com vinho para fazer


hidromel, e muitos tinham bebido o
veneno. Os nossos homens mataram
tantos quantos puderam antes que os

gritos dos abatidos trouxessem


centenas de outros soldados
correndo.

Nesse momento, os guerreiros de


Massada voltavam, haviam
começado a

escalar o precipício. Vários se


perderam na luta e foram trazidos
nos ombros dos seus companheiros.
Pelo menos teríamos seus corpos e

poderíamos preparar suas formas


terrenas para o enterro. Em
Jerusalém,

teríamos levado os mortos para as


cavernas dos ancestrais, e depois de
um

ano recolheríamos seus restos para


serem armazenados em ossuários de

pedra. Ali não havia tempo para tais


práticas. Embora os romanos

retaliassem com uma tempestade de


flechas incendiárias, nos reunimos
na
praça para entoar lamentações,
rasgar nossas vestes e estender os
mortos

para descansar.

Durante o luto, alguns dentre nós


olharam para o vale. Viram que o
leão

fora libertado das correntes de


Roma para retornar aos penhascos
da

Judeia. Houve gritos e orações.


Multidões se reuniram, aturdidas,
perguntando se fora Gabriel, o mais
destemido dos anjos, que produzira
aquele presságio para nós, pois
certamente nenhum homem teria a

coragem de se aproximar de um
leão.

AINDA ASSIM, os romanos


construíram a sua rampa branca,
ainda assim ela subiu mais alto.
Embora despejássemos óleo quente,
lançássemos pedras,

atirássemos flechas, eles


continuaram, uma máquina mortífera

concentrada na vitória. Em semanas,


a rampa achava-se a uma distância
da

nossa muralha igual ao comprimento


de algumas armas, e os danos que

seus soldados podiam provocar


agora eram grandes. Tivemos muitas

perdas e incêndios ocorriam todos


os dias. O que quer que destruíssem
com pedras, e chamas nós
reconstruíamos, mas não tínhamos
mãos
suficientes e aumentavam as ruínas
ao redor. Agora, ninguém se atrevia
a

sair da fortaleza, ou até mesmo se


aproximar da muralha. Nós nos

amontoávamos ao vento. Um grande


silêncio se abatera sobre nós. Era o
desespero, e ele passava de um para
o outro mais rapidamente que a
febre.

Quando à noite Eleazar me


procurou, não falou nada. Embora as

palavras sempre nos unissem, não


eram suficientes para nos salvar
agora.

Abaixo de nós havia um borrão de


movimentos, cada vez mais agitados,

mais determinados e mais brutais.


Éramos lembrados de como as
abelhas

podiam criar cidades inteiras da


noite para o dia nas colmeias. Assim
também a legião era capaz. Onde
houvera seis mil, agora havia dez
mil diante de nós. Os romanos eram
como um enxame interminável. Não
seria
possível superá-los em batalha ou
fugir deles. A única opção seria
passar sal na pele, por mais que
doesse fazer isso, e cobrir-se com
um manto para

poder desaparecer.

Meu amado primo dissera ao nosso


povo que os romanos seguiriam em

frente quando entendessem que não


seríamos vencidos por um cerco.

Tínhamos o bastante para nos


sustentar, poderíamos passar fome,
mas
seria possível viver na pobreza e
sobreviver por um ano com rações,
talvez

dois. Certamente Roma se cansaria


de nós e decidiria usar o poder da
legião

para um propósito melhor. Agora


que a rampa subira tão alto na
encosta ocidental, meu primo já não
falava dessas coisas nem nos dava
nenhuma falsa esperança. O Anjo da
Morte tem mil olhos e nenhum
homem o deixa

para trás. Contavam-se histórias de


homens que tinham cavalgado a
noite

toda para escapar ao seu destino,


apenas para chegar a uma aldeia

longínqua em que o Anjo os


esperava, conhecendo o destino das
suas

vítimas antes que elas próprias o


soubessem. Mal’ach ha-Mavet
realizaria seu propósito, não
importava com que rapidez fosse
capaz de cavalgar,

mesmo que o cavalo fosse tão


rápido quanto era o do meu marido,
o grande

Leba, que guardava o coração de mil


cavalos.

Eleazar e eu fomos à cisterna depois


do escurecer, já não nos

importando com quem pudesse nos


acusar de pecado. A Morte nos
vigiava

tanto quanto nós a ela, mesmo de


olhos fechados. Na água, abracei
meu amado em silêncio; ele
estremeceu, pois acabara de ser
ferido e eu não prestara atenção à
sua lesão. Quis cobrir o corte com
samtar, mas ele me disse que não
havia tempo. Quando ele disse isso,
comecei a chorar, como

fizera naquele dia em Jerusalém


quando chovia e ele fora ao mercado
para

me trazer um frasco de perfume com


a fragrância de lírios. Fora a última
vez que nos víramos, até ele me
chamar a essa montanha. Agora, eu o
perdia novamente.

– Não faça isso – ele me disse


enquanto eu chorava. – Não há
tempo para

isso também.

Ele fora endurecido pelos anos de


luta. Quando o conheci, ele não era
muito mais que um menino, agora
matara tantos que suas mãos estavam

manchadas. No entanto, as lágrimas


não podiam desfazer o que realizara
nem lembrá-lo de quanto éramos
humanos. O sofrimento do mundo
pesava

sobre ele. Sequei os olhos, porque


ele me pediu para fazê-lo. Sempre
fizera

o que pedia, não porque era


obrigada a fazê-lo, mas porque via
no fundo quem ele era e como ele
mesmo sofrera. Quando o olhava,
não via a face brutal que os inimigos
enxergavam, ou os braços e as
costas fortes de um

guerreiro que envergava uma


armadura de aço, mas o rapaz do
poço que vira muito além das
tatuagens de hena que eu usava. Ele
sempre soube quem eu era.
Eleazar segurou meu cabelo e
levantou-o para beijar-me o
pescoço. Sem

os amuletos, eu estava desprotegida.


Senti-me arder. Acreditava estar

segura em sua companhia. Ele, que


se mostrava tão cruel no campo de

batalha, ainda era o menino que fora


um dia, tão ansioso por mim que a
sua

esposa, o seu pai e todas as leis de


Jerusalém não puderam afastá-lo de
mim. Ele sussurrou que preferia
gastar o pouco tempo que nos
restava nos

braços um do outro. Não falemos,


nem nos lembremos dos nossos
problemas,

vamos nos deitar juntos e esquecer


o mundo, lembrando-nos apenas um
do outro.

Os romanos nos encontrariam como


abelhas; cairiam como um enxame

sobre nós e o sal cairia da nossa


pele, que ficaria nua e indefesa
perante eles, como agora estávamos
um com o outro.

QUANDO SAÍMOS do nosso sono


agitado, descobrimos que a rampa
no lado ocidental da montanha já
estava concluída. Fazia um tempo
frio, nublado e

azul. Já era o mês de Nissan, em que


nosso povo celebrava a liberdade.

Quando abrimos os olhos, foi como


se a rampa sempre tivesse estado lá,
existindo como por mágica, mais
real que as montanhas, que existiam
desde que Deus as criara.

Naquele mesmo dia a poeira se


levantou sobre o chão do deserto

quando um grupo de viajantes


chegou do Oriente. Vi que muitos
dos

mantos eram azuis. Eles pertenciam


ao povo do pai de Nahara e Adir,

nômades das montanhas de Moabe.


Traziam todos os tipos de
especiarias e

tesouros de Petra e vinham oferecer


sua ajuda aos romanos, com quem

tinham um tratado de paz. Quando


pensei naqueles homens, meu
coração

afundou, porque sabia que eram


ferozes e difíceis de derrotar.

Meu cabelo estava úmido depois da


noite na cisterna, os braços doíam

de tanto abraçar um homem que


sempre me deixava enquanto
dormia. Eu

acordava na beira do poço, ao lado


da água profunda, uma cobertura de

de gesso manchando a pele, e estaria


sozinha. Apesar da minha barriga
inchada, eu tinha emagrecido. O
homem que fora o meu marido em
Moabe

teria notado, teria procurado me


alimentar com tâmaras e figos,
porque acreditava que uma mulher
magra era como um cavalo magro,
fraca demais

para as montanhas da sua terra. Ele


me amava, embora nunca o dissesse.
Ficava me olhando durante todo o
tempo que permanecíamos juntos,
como

se os seus olhos nunca se cansassem


das minhas formas.

Eleazar não notara que as minhas


costelas estavam visíveis, ou que os
ossos dos ombros e da coluna
destacavam-se contra a pele. Não
vira que a

dieta insuficiente de raízes e feijão


deixara meu cabelo menos brilhante,
porque eu o trançava e depois
prendia acima da cabeça com dois
pinos feitos de chifre. Para ele, eu
era a garota com longos cabelos
pretos no poço

de Jerusalém, assim como ele era o


meu amado, o homem que ficara
comigo

na chuva e me tomara para si; aquele


a quem eu fora prometida o tempo
todo.

JÁ NÃO tomávamos conhecimento


das leis dos homens, apenas das leis
de Deus. Rezávamos dia e noite sem
parar. Os anciãos reuniam-se na
sinagoga
e, pela luz bruxuleante do pouco
azeite que nos restava, pediam
perdão a

Deus e sua graça. Os romanos


haviam colocado toras de madeira
sobre a rampa para receber os barris
de terra branca que os escravos
continuavam

a derramar sobre ela. A rampa


estava agora tão próxima que os
romanos podiam nos falar, e Silva
em pessoa aproximou-se para gritar
o nome de Ben Ya’ir. Alguns dos
nossos homens responderam que
nosso líder nunca
falaria com demônios, pois um
demônio era capaz de tirar a alma de

alguém por meio de palavras. Era


verdade, sabíamos, pois quando

ouvíamos o demônio que comandava


a décima legião ele nos trazia
nuvens

de terror. Cobrimos as orelhas, mas


ainda assim podíamos identificar as
palavras de Silva. Rendam-se agora
e deixaremos que partam em
liberdade.

Exatamente o que haviam dito aos


guerreiros da fortaleza de

Maqueronte antes de assassinar cada


um deles, deixando-os para os

chacais, de modo que os ossos


fossem espalhados pela floresta,
como se nunca tivessem sido homens
um dia, mas vindo a este mundo
como pedras.

BEN YA’IR não deu nenhuma


resposta a Silva, em vez disso
enviou uma chuva de flechas
incendiárias. Vi os melhores
arqueiros em cima da muralha, a
minha filha entre eles. Ela usou
tantas flechas que em pouco tempo
não tinha mais nenhuma. Naquela
noite, ela ensinou Adir a fabricar
aquelas armas, como manter o sílex
em linha reta para não raspar as
mãos nuas enquanto esfregasse a
ponta fina de metal contra a pedra,
como amarrar a

ponta afiada à haste de madeira com


uma tira fina de couro. Como
Yehuda

não pudesse, pela sua fé, tocar um


instrumento de guerra, ele recolhia
as penas dos pombos para prender
às flechas, para que elas voassem
em linha

reta das mãos da minha filha até o


coração do inimigo.

Aziza chamou-me de lado antes de


voltar à muralha com a cesta de

flechas recém-acabadas. Ela parecia


muito forte, com os músculos

retesados, o rosto bonito, contraído


e bronzeado. Minha filha me disse
que

aplicaria todas as táticas para salvar


nosso povo, com exceção de uma.
Não

atiraria em nenhum homem de manto


azul. Um deles poderia ser o que
fora

o pai de Nahara e Adir, o meu


marido um dia, que havia muito
tempo se esquecera de que Aziza
não era sua filha verdadeira por
nascimento.

Dei-lhe a minha bênção, lançando


pó de cobra sobre seu cabelo curto e

preto para a proteção. Senti o meu


amor por ela no fundo da garganta.
Não

o revelaria em voz alta, temendo que


lhe trouxesse desgraça, mas abracei-
a

e ela entendeu o que ela significava


para mim, como sabia que eu

dependera dela para me ajudar a


trazer Nahara para este mundo,
como

tivera fé suficiente para permitir que


andasse na companhia dos homens
de
Moabe. Uma vez eu lhe dera um
nome que a ajudaria a ser destemida
em

um mundo dominado pelo medo.


Esse fora o meu maior presente a
ela.

FELIZMENTE, ainda havia um


espaço entre o penhasco e a rampa
branca.

Todas as vezes que os trabalhadores


lançavam mais terra ali, o fim da
rampa desabava em um deslizamento
de terra. Embora os escravos

tivessem trazido enormes aríetes, tão


grandes como os troncos de

palmeiras, aqueles últimos metros


não puderam ser acabados e,
portanto,

não podiam romper a muralha.


Embora o rei Herodes tivesse sido
mau de

muitas maneiras, sentimo-nos gratos


pela muralha que ele construíra e

pelas pedras que levavam a sua


marca. Pensamos que a
incapacidade da

legião de construir a rampa para


atingir a muralha do rei fosse um

presságio do nosso sucesso


garantido e oramos para agradecer
ao Todo-

Poderoso.

Logo seria a véspera da Festa dos


Pães Ázimos, o dia em que o nosso
povo fora libertado da escravidão
no Egito. Pensamos em Moisés no
deserto e como houvera fé mesmo
quando não havia esperança, como
ele

conduzira seu povo apesar dos


infortúnios. Pensamos que a
comemoração

nos trouxesse sorte no futuro. Não


entendemos que, assim como o nono
dia

de Av, quando os dois Templos


caíram, quando Moisés quebrara as
tábuas

recebidas de Deus, quando a tristeza


imperara no nosso mundo, alguns
dias

foram feitos para nos fazer lembrar


que o passado continuava conosco.

Os romanos eram implacáveis, e a


muralha de um rei não significava

nada para eles quando trabalhavam


pela glória do imperador. Eles se

lançariam de uma plataforma


enorme, que se elevava a mais de
cem

metros. Toda a madeira fora trazida


da Grécia, transportada pelo mar,

puxada até ali nas costas dos


escravos; as madeiras carregavam o
aroma da

floresta. Revka disse que haviam


sido feitas de ciprestes e ela chorou
com

essa lembrança. Ficamos


observando enquanto a plataforma
era concluída

e os soldados subiam em cima dela


e gritavam maldições, lançando
rapidamente rajadas de tochas
acesas. O cheiro do fogo tomou
conta de tudo; o doce aroma do
cipreste foi como um sonho que um
dia pairara no

ar.

Como a plataforma ainda não fosse


suficiente para vencer a distância

entre a rampa e a imponente muralha


de Herodes, a legião a ampliou com

enormes pedras encaixadas. Depois


veio a pior criação que jamais
havíamos visto, inventada por
Vespasiano, posteriormente usada
por Tito e

agora por Silva. Parecia que aquela


obra bélica fora fabricada no mundo
dos demônios e milhares de
espíritos malignos a haviam
construído.

Observamos assombrados e em
desespero. Até mesmo os homens

crescidos tinham lágrimas


escorrendo pelo rosto. Uma torre
forrada de
metal de quase cem metros de altura
foi encaixada em cima da plataforma

de madeira, para que os romanos


pudessem nos atacar ao mesmo
tempo

que permaneciam protegidos das


nossas fundas, flechas e dardos.
Dessa

torre, eles eram capazes de lançar


pedras enormes, golpeando a
muralha do rei que fora feita para
durar por toda a eternidade.

Assim foi que tudo começou. A


montanha tremeu e os pássaros

levantaram voo, os corvos e as


cotovias, os pardais e os gaviões,
todas as criaturas aladas fugiram de
nós, exceto as pombas dos pombais,
que não tinham outra escolha senão
permanecer. Senti a criança dentro
de mim

mudar de posição quando me sentei


sobre a borda da fonte. Tudo ao meu

redor era uma loucura. Crianças de


três e quatro anos de idade
raspavam o
sangue das lanças que haviam sido
jogadas em uma pilha, puxadas dos

corpos dos mortos. Os nossos


falecidos eram tantos que foram
levados ao

campo onde as amendoeiras


floresciam em botões cor-de-rosa e
brancos.

Ali os cadáveres eram lavados com


a água da chuva e óleo, depois

enrolados em lençóis de linho.

Quando o linho acabou e chegaram


mais mortos, usamos os nossos

próprios xales para enrolá-los. Dois


dos nossos jovens guerreiros,
apenas garotos de armadura, saíram
pelo portão para lutar contra os
soldados por

conta própria. Tiveram a cabeça


cortada do corpo e foram lançados
sobre

nós por catapulta, os olhos ainda


abertos. As mães desses meninos

rasgaram a própria pele,


horrorizadas, presas ao pesadelo
que era a vida de

vigília.

Revka e os netos vieram ficar


comigo, juntamente com Yael e
Arieh, pois

seu alojamento era muito próximo da


muralha. Seus vizinhos haviam sido

mortos enquanto dormiam, quando


uma flecha entrara por uma fenda na

pedra que servia de janela,


incendiando os estrados. Tínhamos
espaço
suficiente. A minha filha Aziza
montara uma tenda no nosso quintal.
Ela já

não queria dormir dentro de casa e,


como um guerreiro que era,

permanecia sob as estrelas. O


Homem do Vale veio fazer as
refeições com

ela e eles sentavam-se ali como


irmãos, sem falar nada, mas
precisavam de

conforto. Os filhos desse homem,


Noé e Levi, observavam o guerreiro
sério,

pois ele se tornara mais uma lenda


do que um homem para eles. Uma
vez vi

seu olhar relancear sobre eles. A sua


expressão se suavizou e algo
pareceu

agitar-se em seu íntimo, mas ele se


virou, concentrando-se na refeição
escassa de feijões e lentilhas que
Aziza preparara para
compartilharem.

Revka confidenciara-me que, no dia


da morte da sua amada filha, o

genro prometera duas coisas:


enquanto estivesse no mundo não
levaria

outra mulher à sua cama e nunca


mais cortaria o cabelo. Mas uma
noite, quando ele veio para a
refeição, Revka gemeu ao vê-lo,
depois saiu

correndo. Ela ficou de costas para


nós, abalada. O genro cortara o
cabelo, depois raspara a cabeça.
Aproximei-me de Revka e tomei a
sua mão na
minha enquanto ela chorava. Estava
acabada, ela me disse, aquela nossa
vida sobre a terra. O seu genro
rapara o cabelo porque chegara a
hora de

deixar este mundo para trás.

Naquela mesma noite, vi a minha


filha abraçar esse guerreiro no nosso

jardim. Ele parecia um ser brutal,


coberto de cicatrizes, fios de metal
embutidos na carne, as roupas
apenas feitas de escamas de metal.
No
entanto, naquele único abraço, notei
o que nunca vira entre a minha filha
e

Amram. Percebi que o amor a levara


não à ruína, mas ao seu próprio

destino. Eu nunca poderia ter


esperado impedir o caminho que ela
deveria

seguir. O Homem do Vale jurara não


amar uma mulher, mas nunca fizera
esse juramento com relação a outro
guerreiro. Ao tornar-se um rapaz,

Aziza o permitira que a amasse.


Era por isso que muitos acreditavam
que minha filha fosse uma shedah,

pois quando passava os braços ao


redor desse homem, que se cingia
com tiras de metal afiado, era como
se ela fosse um dos milhares de

mensageiros que nos guardavam,


enviado para tomá-lo nas suas asas.

Virei-me quando o vi chorar, porque


sabia que o que Revka dissera era
verdade. Aquele mundo estava se
desfazendo.

Isso já estava escrito.


*

QUEM PODE dizer em que hora a


muralha de Herodes foi violada, o
momento

infeliz em que a primeira pedra


caiu? Tinha chovido, mas, quando a
chuva

parou, continuou a ouvir-se um


trovão. Então, de repente,
percebemos que

não era um trovão, mas o aríete


batendo continuamente contra a
muralha.
Ficamos observando enquanto Deus
nos abandonava e depois fizemos o

melhor que pudemos. Houve caos,


os homens correram para a praça, a
fim

de construir outro muro de forma


rápida, com fúria louca. O meu
primo queria um muro que ficasse
atrás da muralha de pedra que a
legião

quebrara, feito de barro e grama


para poder balançar com o aríete,
em vez
de se quebrar. Em uma tempestade,
uma folha de grama pode suportar a
fúria dos ventos que levam os
palácios dos reis à ruína. Não houve
uma pessoa que não ajudasse na
construção desse segundo muro, pois
o terror

mantinha todos agitados. Até mesmo


Yehuda, o menino dos essênios, e o
meu filho, Adir, de muleta, estavam
lá, ansiosos por ajudar.

Fora a vontade de Deus que


tivéssemos chuva e, portanto, não
faltaria lama, havia poças, que
endureciam rapidamente depois que
o sol saiu,

formando o segundo muro. As


crianças estavam todas cobertas de
barro,

trabalhando entre nós, apesar das


flechas em chamas que pousavam

chamuscando as nossas capas e


ateavam fogo aos nossos telhados e
jardins.

Cada ação nossa parecia ocorrer em


um sonho que se precipitava. Vi

uma criança pegar fogo e morrer nos


braços da própria mãe e homens que

deram a vida sem se queixar. Vi a


legião saltar como um animal feito
de metal, sem coração ou espírito,
quando o muro de lama foi abalado,
mas não caiu, pois era mais forte
que a muralha de Herodes, muito
embora tivesse sido construído por
anciãos e crianças. Vi o Anjo da
Morte

empoleirado ao lado da minha filha


quando ela ergueu seu arco,
passando a

mão sobre sua carne radiante. Vi os


fantasmas dos que haviam sido

assassinados na caverna dos


essênios trilharem os caminhos das
falésias como cabras pretas, suas
almas elevando-se à sua frente. Meu
primo se separou da multidão
quando percebeu que muitos haviam
morrido e

deveriam ser estendidos no campo.


Quando o segui, encontrei-o
chorando

no meu jardim.

Naquele instante, vi a profecia que


se anunciara quando jogara os ossos

na torre. Eles haviam profetizado


que eu me afogaria, exatamente
como o

sacerdote avisara que me


aconteceria quando era criança e
saltara para dentro da fonte no
jardim da minha mãe. Não na água,
mas no meu próprio

sangue.

POR NOITES a fio sonhara com a


criança que carregava. No meu
sonho, ela estava imersa em água,
com os olhos abertos, pois a água
era seu elemento,

como fora o meu. Se todos


devêssemos ser abatidos, e se fosse
para estar

entre os mortos, queria garantir que


essa criança saísse antes de entrar
no

Mundo Vindouro. Essa era a única


maneira de eu poder assegurar que

carregasse um nome, que lhe


permitisse ser chamada por Deus
para junto

de Si, ao contrário dos nascituros,


almas sem nome que deveriam vagar
sem direção pelo resto do tempo.

Eu sabia que era a hora de a minha


filha vir ao mundo, pois logo não
restaria tempo suficiente para nada.

Preparei um chá de arruda,


destinado a provocar o aborto, e
bebi

rapidamente um copo cheio. Essa


mistura traria minha filha antes do
tempo. Andei sobre o chão do meu
aposento enquanto Adir, Yehuda e
todos

os outros, com alguma força,


trabalhavam febrilmente para
restaurar os

danos feitos à segunda muralha.


Chamei Yael para junto de mim,
pois ela prometeu me ajudar no
momento em que tivesse
necessidade. Ela deixou

Arieh aos cuidados de Revka e


trouxe-me uma cesta de excrementos
do
pombal para colocar sobre o fogo.
Como lhe ensinara como conduzir
um

parto, ela agora traria minha filha à


vida.

Parei em cima da fumaça, para que


ela abrisse meu útero. Yael
agachou-

se de cócoras, entoando o nome do


infinito para a frente e para trás até
que

formassem uma única letra em sua


boca, subindo e descendo, um som
tão

antigo que ninguém podia entender o


significado. Concentrei-me na

imagem de Astarte no altar.


Trouxera-a dos aposentos da minha
mãe,

envolta em linho, juntamente com


seu livro de receitas mágicas,
escondida

debaixo de um punhado de palha na


gaiola das pombas.

Tudo o que eu precisava me fora


dado pela minha mãe. Tudo o que

sabia, sabia graças a ela. Mas tudo o


que sacrifiquei foi pela minha filha.

Eu derramara uma oferenda de


azeite perante Astarte e cobri-me
com o

óleo de romã e com o perfume de


lírio em sua homenagem. Essa era a
última fragrância em meu poder.
Sabia que não haveria mais.
Imaginei os

lírios ao lado da fonte no jardim da


minha mãe. Eles pareciam crescer
entre

os mosaicos pretos e brancos que


azulejavam o chão do meu
alojamento.

Concentrei-me neles até ver apenas


aquelas flores invisíveis e o resto do
mundo desaparecer. Dediquei-me
com afinco para não fazer barulho,
para

que ninguém fosse atraído para nós.


Mordi meu braço e tirei sangue.

Apesar da hora e das circunstâncias,


eu estava viva, ainda capaz de dar a
vida.

Conforme o tempo passava e a


criança não aparecia, tive medo de
que a

filha que estava prestes a dar à luz


fosse fraca por ser muito prematura.
O

pânico martelava em minha garganta


como um tambor. O conselho
poderia

decidir lançá-la para fora da


muralha a fim de morrer antes de
receber um
nome. Jurei que isso jamais
aconteceria. Não haveria deserto
para essa criança, nem corvos, nem
ossos insepultos, nenhum soldado da
legião, nem

chacais cobiçando-a com fome. Seu


espírito não ficaria aprisionado em
uma

caverna nem vagaria pelo vale, em


vez disso permaneceria nas mãos de

Deus e sob Seu olhar cuidadoso. Era


por isso que iria trazê-la ao mundo
antes do tempo, para que pudesse
conhecer mais do que a tristeza e
aquecer-se no esplendor do Todo-
Poderoso, na Sua graça e na Sua

sabedoria, mesmo que fosse por


apenas uma hora ou um dia.

Minha filha veio ao amanhecer,


depois de muitas horas e de muito

sangue. Sangue demais saindo de


mim, mas era o preço a ser pago
pelo seu

nascimento. Embora fosse


prematura, ela não era fraca. Ela
gritou e o meu
coração se abriu. Seus olhos eram
acinzentados, como os do pai. O
cabelo

era claro, muito parecido com as


penas das pombas. Nós a levamos
ao

campo, a fim de enterrar a placenta,


embora a última das amendoeiras

tivesse sido derrubada para fornecer


a madeira para a construção do
muro.

Agradecemos a Astarte e a Adonai.


Tirei a capa e fiquei nua diante
deles, embora estivesse exausta e
não tivessem se passado sete dias.
Não

sabíamos quantos dias nos restavam


e por isso eu não podia esperar para

lhe dar um nome.

Chamei-a Yonah, porque ela viera


ao mundo por causa de uma

mensagem trazida por uma pomba.

Minha esposa, minha amada, minha


filha, meu mundo.
*

DURANTE TODA a noite, o nosso


povo reforçou o segundo muro, a
nossa única defesa contra o abismo.
Nossos homens amarraram os ramos
das

amendoeiras que haviam sido


lavrados apressadamente,
preenchendo os

vãos abertos com lama, para que o


novo muro fosse flexível, movendo-
se aos impulsos do aríete. A Festa
dos Pães Ázimos seria comemorada
no dia
seguinte. Em todos os outros
festivais dessa natureza, nosso povo
se reunia

a fim de dar graças pela nossa


libertação do Egito. Agora não
tínhamos tempo para nada, a não ser
as orações que carregávamos em
nosso íntimo.

Mas o muro que não podia ser


rompido podia ser queimado. O
cheiro de

amêndoas subiu em uma nuvem


amarga. Os romanos atearam fogo ao
muro e logo estávamos envolvidos
por um anel incendiário.

À porta, contemplei minha filha nos


meus braços enquanto ouvia os

homens cantarem, pois os cânticos


elevavam-se acima dos sons da
guerra.

Ouvi as mulheres chorando.


Enquanto contemplava a nossa
desgraça, virei-

me para observar uma sombra no


jardim, um corvo agachado entre as
fileiras de ervas que haviam
crescido, todas queimadas e em
cinzas naquele

momento, a hortelã e a arruda, o


coentro e os ramos do hissopo.
Entrei no

jardim que não mais existia.

Channa viera ver a criança. Ela


estava magra, como todos
estávamos,

mas seu rosto se iluminou quando


viu o bebê nos meus braços. Jurou
que
não contara a ninguém sobre o
nascimento, nem mesmo ao nosso
líder,

para não distraí-lo. Sussurrou que as


pombas que eu soltara haviam

retornado para lhe contar sobre o


nascimento, aquelas da gaiola atrás
da sua casa que haviam me visitado
na terra de Moabe.

Fiz sinal para ela, que se aproximou


como um cão dócil, a passos largos,

a cabeça baixa. Ficou cativada


instantaneamente, o semblante
ansioso

quando levantei a criança para que


visse. Observei enquanto a minha

inimiga permanecia ali chorando,


não de tristeza, mas de alegria.

Ela me mandara para o deserto, mas


eu não me lembrava de como os

meus pés descalços haviam se


queimado sobre as pedras. Ela me
rebaixara

e arruinara, mas eu não me


recordava das palavras que haviam
sido usadas

contra mim nem dos anos que


passara em Moabe. O jardim ardia,
o ar

impregnado de faíscas de fogo,


como dizem que seria no Mundo
Vindouro

quando caminhamos ao lado dos


anjos e não tememos sua iluminação
ou

seu poder.

Deixei-a segurar a nossa filha.


Rejubilamo-nos juntas pela beleza
da filha

do nosso marido, pois ela era como


um lago de água calma e bela.

Estávamos submersas, a nossa sede


saciada, embora houvesse incêndios
e

explosões de fogo em todos os


lugares, em folhas e telhados, caindo
sobre

nós como chuva. Ficamos ali, as


cabeças unidas, enquanto os outros
se escondiam nos alojamentos ou
labutavam arduamente para apagar
as

chamas. Já não tínhamos sede e não


mais necessidade de fúria ou
vingança,

pois não éramos mais inimigas.

HORAS MAIS TARDE, todo o muro


pegou fogo. Ele nos cercava como
uma cobra, como se pretendesse nos
devorar. Acreditamos que nossa
hora havia

chegado, mas então Deus nos enviou


o vento do norte e soprou as chamas
na direção dos romanos. Elas
queimaram os soldados ainda vivos
e

incendiaram os aríetes. Nosso povo


veio assistir e todos caíram de
joelhos

em sinal de gratidão.

Mas o que nos é dado também é


tirado, para que saibamos que a
glória

de Deus nos alcança apenas pela


Sua vontade. O salvamento foi
temporário.
O vento tornou a mudar de direção,
soprando então do sul, e passou a
ser

de novo nosso inimigo. Nosso povo


correu, temendo por suas vidas. As

pessoas que puderam encharcaram-


se com o pouco de água que

encontraram, em uma tentativa de


suportar a explosão de calor. Todo

mundo ouviu a torcida dos romanos


e seus gritos sanguinários. Eles

posicionaram uns mil guardas no


vale, para que ninguém do nosso
povo

pudesse tentar se esgueirar sobre a


muralha de Herodes e fugir.

Reunimo-nos todos nos meus


aposentos, cobertos de fuligem. O
menino

de Yael, com seus olhos escuros e


belos, estava quieto; ele parecia
sentir o

terror que se abatia sobre nós e não


se atrevia a chorar. Derramamos a
água de um jarro sobre nossas
cabeças, na esperança de não
sermos

incendiados pelas centelhas


flamejantes. Amamentei minha filha
e pensei

em como o pai de Nahara e Adir não


vira os filhos por dez dias depois
que

nasceram, seguindo um costume do


seu povo. Somente agora percebia
que

essa lei não era apenas para impedir


o pai de ver a criança em uma
condição de ferido, o preço da
viagem para nascer. Pelo contrário,
era para

garantir que o pai esperasse até que


estivesse bem certo de que o filho
viveria. Não fazia sentido para as
pessoas destemidas de Moabe
vincular-se

a alguém que estivesse fadado a


perecer, pois eles cavalgavam na

companhia da morte e armavam as


tendas com a sua companhia. Eles

sabiam que a carne não durava muito


neste mundo.

Eu seguiria a sua lei agora e


manteria a minha filha longe dos
olhos do

pai, para que ele não tivesse de


amar alguém que seria obrigado a
perder.

Enquanto a embalava dentro da


minha capa, dois corações bateram
contra

o meu peito. Mas nenhuma criatura


poderia conter mais de um coração.
Eu
sabia que uma de nós viveria e a
outra morreria. Chorei ao pensar que
não

ouviria minha filha me chamar de


mãe.

O SEGUNDO MURO fora violado.


Essa construção tosca, que
construíramos até nossas mãos
ficarem em frangalhos e sangrando,
até já não haver mais uma

única árvore no campo, rachara sob


os impactos sucessivos do aríete,
seus
pedaços espalhados por todo lado,
os ramos maleáveis das
amendoeiras

destroçados, reduzidos a farelos.


Nosso povo fizera tudo o que fora
possível

para lutar contra a maré do que


estava por vir, os soldados que
entrariam e

nos encontrariam, o derramamento


de sangue, a tortura e o assassinato
no

dia da nossa maior festa. Eleazar


apareceu na praça. Fomos atraídos
para lá

pelo som do chifre de carneiro,


usado para nos chamar para a
oração. Abri

caminho entre o povo, embora ainda


estivesse enfraquecida pelo parto, o
bebê escondido sob o manto. Deixei
um rastro de sangue sobre as pedras,

que foi se enegrecendo à medida que


se distanciava de mim, um
presságio,

eu bem entendia.
Do meu lugar na borda da multidão,
podia ver as mulheres cujos filhos

eu ajudara a trazer ao mundo. Vi a


minha filha com o seu arco, os
braços e

as pernas listrados de lama; o meu


filho, arruinado pela guerra antes de
ter

se tornado um homem; o meu povo


no auge da infortúnio; e o homem a
quem amava desde que vira pela
primeira vez e soubera que seria
meu.
– Resolvemos não obedecer aos
romanos, e sim apenas a Deus.
Agora

chegou a hora de provarmos a nossa


fé. Não podemos cair em desgraça
aos

olhos do nosso Senhor, nem nos


submeter à escravidão. Se cairmos
nas

mãos dos romanos, será o fim de


tudo, não só das nossas vidas, mas
da vida

do Sião. Temos o privilégio de ser a


última fortaleza e, como Deus nos
favoreceu com isso, retribuiremos o
favor morrendo nobremente como

seres humanos livres.

As pessoas começaram a entrar em


pânico ante as palavras de Ben
Ya’ir.

Pareceu que alguns tentariam fugir.


Mas também houve um ímpeto entre

os mais leais, aqueles que ansiavam


fervorosamente pela liberdade e
agora
não poderiam voltar atrás.

– Ao amanhecer, o inimigo cairá


sobre nós e não mais poderemos
detê-

los, mas somos livres para optar por


morrer com honra, nos braços de
quem amamos. Não podemos
derrotar os romanos em uma batalha
aqui na

terra, mas podemos negar-lhes a


vitória.

Mulheres choravam por todos os


lados. Tive pena de Eleazar por ter
de

proferir aquelas palavras.

– Fizemos tudo para reivindicar a


liberdade e não podemos parar
agora.

Não sabemos por que Deus deixou a


cidade ser destruída pelo fogo, por
que

Ele deixou o nosso povo ser


perseguido até a extinção, por que
devemos morrer hoje. A liberdade é
a nossa mortalha e é mais gloriosa
que qualquer
outra. Não deixaremos nada para os
nossos inimigos e o gosto da vitória
será amargo; eles não poderão
cortar as cabeças dos nossos corpos
e deixá-

los para o corvos.

As mulheres lamuriavam-se e alguns


homens as acompanharam. As

chamas ao nosso redor foram uma


bênção, pois rugiam e impediam que

fossem ouvidos os clamores de


agonia e de dor.
– Que as nossas esposas morram
ilesas, os nossos filhos sem o manto

amargo da escravidão. Querem que


eles sejam devorados por animais

selvagens, torturados pelo fogo e


chicoteados, escravizados?
Apressemo-

nos. Evitemos as desventuras da


humanidade. Preferimos a morte a
essas

misérias. Sairemos do mundo com


as nossas esposas e nossos filhos em
liberdade. Que a nossa história seja
um testemunho de que perecemos
por

nossa escolha, uma escolha que


fizemos no início, pois escolhemos a
morte

em vez da escravidão.

Os guerreiros foram enviados para


incendiar os depósitos. O calor se

agravou a ponto de tornar-se um


inferno. Parecíamos ter caído de
cabeça no mês de Av, a época em
que as aflições do nosso povo
ardiam, quando Deus testava a nossa
fé, o nosso respeito e a nossa crença
na Sua grandeza.

OUVIMOS Eleazar, como


poderíamos ouvir um sonho, um
sonho que não terminaria, um sonho
do qual não acordaríamos. Senti meu
amor por ele tão profundamente que
pensei que poderia me desfazer
como acontecera

aos ramos das amendoeiras, o meu


ardor era a faca que me perfurava.
As
pessoas começaram a correr para as
casas, não para fugir, mas para
reunir

seus bens materiais para que


pudessem ser destruídos em vez de
cair nas

mãos dos romanos. Foi erguida uma


grande fogueira e tudo o que

possuíamos era lançado sobre ela,


roupas e sandálias, bacias de
madeira e

peças de lã. As cabras e as ovelhas


que restaram tiveram a garganta
cortada

e os corpos colocados sobre o fogo,


como oferendas queimadas
sacrificadas

a Deus, pois não haveria mais


necessidade de carne ou de leite,
somente da

graça Dele. Não restava mais


nenhum Templo e esse seria o nosso
último

sacrifício.

Os homens de Eleazar, os favoritos,


guerreiros que haviam lutado ao seu

lado, os homens marcados pelas


batalhas que tinham viajado desde

Jerusalém para tornar-se falcões


naquele deserto, aproximaram-se

formando um círculo em torno dele.


Alguns soluçavam e eram
consumidos

pela dor, outros já não sentiam as


dores do mundo, pois se
encontravam em um estado de
sacrifício, como era comum entre os
guerreiros antes de
entrar em batalha. Eram uns
cinquenta ou mais, Amram entre
eles, e esses

homens traziam pedaços de


cerâmica quebrada, ostraca, nos
quais tinham

sido inscritos seus nomes ou


iniciais. O choro tornou-se mais
furioso

quando a loteria teve início. O


sacerdote e os homens cultos
começaram a

rezar e a cantar, balançando-se para


a frente e para trás com a paixão das

orações.

Dez homens seriam escolhidos entre


eles. Esses se incumbiriam da

tarefa e despachariam o restante de


nós. Eles suportariam o fardo do

carrasco, para que não tivéssemos


de carregar o pecado de cometer o
mal

contra nós mesmos, o que era


proibido. Quando chegasse o
momento, eles
matariam um ao outro, até que
restasse apenas um. Esse homem
suportaria

o peso de todos os pecados e


receberia a ordem de entrar pelos
três portões do Gehennom, o vale do
inferno, onde sofreria os tormentos
dos demônios por toda a eternidade.

– Por que devemos temer a morte


quando não tememos o sono? –

Eleazar gritou em frenesi, em


tamanho êxtase que ninguém
conseguiu
desviar o olhar. Eu o vi como ele
fora no poço, furioso com todos os
delitos

dos homens, certo de que poderia


consertar as coisas em nome de
Deus. – A

morte permite a liberdade da alma.


É preciso a verdadeira coragem
para encontrar a verdadeira
liberdade e ser chamado para o lado
de Deus. Teria

sido melhor se tivéssemos morrido


antes de ver Jerusalém destruída.
Agora, a nossa esperança nos
abandonou, mas podemos nos vingar
contra

os inimigos da cidade santa e ser


benevolentes com aqueles que
amamos,

não vê-los serem levados à


escravidão e ser testemunhas da
tortura e da violência que aguardam
nossas mulheres, nossas crianças e
nossos

queridos amigos.

Maridos e esposas abraçaram-se,


mães carregaram os filhos, filhos

correram em busca dos pais para


morrerem lado a lado. Os dez
homens

foram escolhidos, os nossos


salvadores e os nossos verdugos.
Ben Ya’ir pegou a espada para fazer
um juramento sobre a arma que
usara para lutar

por Deus, pela nação e por nós.

– Nós nascemos para morrer, assim


como todos os que são trazidos ao
mundo. Isso até mesmo os mais
afortunados de nós devem enfrentar.
Esse

é o nosso destino e o nosso destino


está agora diante de nós.

O meu destino estava diante de mim


também.

Rapidamente fiz sinal para Yael e


Revka. Voltamos ao meu
alojamento,

puxando pela mão o neto mais novo


de Revka, Levi, para que não fosse
arrastado pela multidão, com Noé
seguindo atrás. A própria Revka por

pouco não desmaiou no empurra-


empurra.

Yehuda estava no meu quarto,


envolto em seu manto branco,
recitando a

oração pelas almas dos mortos. Adir


estava em algum lugar fora da vista.

– Onde ele está? – eu estava tão


perturbada que puxei o pobre
menino

essênio pelo xale de oração.


Revka, que passara a considerar
Yehuda como seu filho, aproximou-
se

para persuadir o menino assustado a


falar.

– Ele estava preocupado com Aziza.


Disse que ela tinha ido no seu lugar

e pretendia encontrá-la e trazê-la de


volta.

Corri até o armário para pegar o


livro de magias da minha mãe, os
meus
dois corações palpitando dentro de
mim. Gritos ecoavam na praça, pois
os

algozes haviam começado o trabalho


e alguns dos moribundos não podiam

suportar a visão da sua família


abatida, mesmo nas mãos dos nossos

próprios homens, anjos de


misericórdia, os mensageiros do
nosso destino.

As minhas mãos tremiam. Talvez


tivesse sido escrito que eu seria
resgatada. Talvez o amor não fosse a
minha ruína, mas a salvação.

Deixei o livro da minha mãe nas


mãos de Yael e insisti para que o

guardasse em segurança. Notei que


ela usava o colar do leão enrolado
no braço e então compreendi que
acertara ao escolhê-la, pois ela era
tão destemida quanto leal.

Revka estava encolhida com seus


netos, segurando Arieh no colo. Ele
se

fazia pouco mais que um bebê, mas


era sensível e sabia quando o
silêncio

se fazia necessário. Revka levou um


dedo aos lábios e ele silenciou,

inclinou-se contra ela. Ela então deu


um tapinha no ombro de Yehuda

quando ele chorou, sentindo-se


culpado por ter permitido que Adir
saísse.

Ele era apenas um menino, e a mãe o


deixara aos nossos cuidados para
protegê-lo do mal. Todos se
amontoaram sobre o chão de
ladrilhos

adaptado para a cozinha de um rei,


um aposento que se tornara fétido,
extremamente quente, como um
túmulo na areia.

A criança que era o meu coração


chorava. Tirei-a de baixo da minha
capa

e a pus nas mãos de Yael, como lhe


dera o livro de encantamentos. Fui
até a

caixa de pau-ferro, que viera comigo


do Egito, aquela que minha mãe
trancava com a chave em formato de
cobra, uma cobra que eu pensava
que

adquiria vida e rastejava na palma


da minha mão quando era apenas
uma

menina. Abrindo a caixa, encontrei


ali dentro os ingredientes que viera
armazenando para o pior dos
momentos: pele de cobra para a
serpente

negra que dormia entre as rochas,


cinzas da fogueira de um pombo
sacrificado, lápis-lazúli moído, a
pedra que é a mais forte entre todas
as outras, cordões amarrados em nós
precisos, destinados a tecer uma
rede de

proteção. Peguei o que precisava.


Iria me encontrar com meus filhos na
praça, e então procuraria Eleazar. O
pânico latejava dentro de mim
porque

sabia que, não importava o que


fizesse, realmente me afogaria nesse
dia.

Esse era o destino revelado pelos


ossos que lançara na torre.

Yael pousou a mão no meu braço,


tentando impedir-me quando fui para

a porta, insistindo que era tarde


demais para ir.

– O que você não faria por aqueles


que ama? – perguntei a ela.

– Estou fazendo isso agora – ela


respondeu, como se fosse realmente
a

minha filha. – Não vá para ele.


Ela me prometera uma vez que faria
o que pedisse. Lembrei-lhe disso

quando lhe dei a última fruta que


conseguira salvar, uma romã, a
mesma fruta que lhe dera no nosso
último adeus. Ela me reconheceu
então como a

menina que cuidara dela em


Jerusalém. Jogou os braços ao meu
redor e poderíamos ter chorado
juntas se houvesse tempo. Em vez
disso, afastei-me e disse-lhe o que
deveria fazer. Esperava que ela me
obedecesse como
quando era criança. Se visse um
sinal das pombas, devia perguntar a
Revka

onde ela me vira como eu era. E


depois encaminhar-se para lá, sem

hesitação.

O CAOS estava por toda parte. Fiz o


que pude para seguir o meu caminho.

Aqueles que dizem que não é


possível ver Mal’ach ha-Mavet não
poderiam

estar mais errados. Vi-o de pé bem à


frente, as doze asas enegrecidas pelo

fogo, os mil olhos vendo tudo o que


somos e tudo o que fazemos. Eu
estava

presa nas garras da sua escuridão,


uma violação do esplendor de Deus
e da

Sua glória. Devemos sofrer na sua


presença, devemos parar diante
dele, mas eu não estaria pronta para
enfrentá-lo enquanto não encontrasse
meus

filhos.
Os romanos já tinham começado a
colocar tábuas para poder atravessar

a nossa muralha pela manhã. Era a


noite que antecedia a da fuga dos
nossos

antepassados do Egito, a noite em


que começou a nossa morte. Viam-se

maridos e esposas deitados lado a


lado sobre as pedras do calçamento,
encharcadas de sangue, para que
pudessem encontrar a morte juntos;

crianças em fila, lamuriando-se. Os


dez executores dedicavam-se ao
trabalho doloroso, indo de casa em
casa, como o Todo-Poderoso fizera
na

noite de Páscoa, quando os judeus


pintaram suas portas com flores de

hissopo manchadas de sangue,


permitindo que Adonai os
identificasse como verdadeiros
crentes e passasse por eles para que
pudessem viver.

Atravessei a Praça Ocidental,


depois desci a escada em direção ao

Palácio do Norte. Meu peito doía e


gotas de sangue pingavam de mim,
mas

continuei. Acima do caos ouvi os


latidos do cachorro da minha filha.
Corri,

seguindo o eco do animal


desesperado, evitando todos os
homens,

avançando pelas sombras até que


avistei vultos próximo à entrada de
uma

pequena piscina em que o rei se


banhava em água fria, cercado por
lírios brancos de lótus que trouxera
de Alexandria. Ali, sobre os
degraus, Amram

viera encontrar-se com minha filha.


As flechas caíram ao seu redor
quando

ele a agarrou pela cintura e cortou


sua garganta. Ao fazer isso, ele a
teve para si afinal, mas, enquanto ela
ofegava em seus braços, ele vira o
medalhão prateado em seu pescoço.
Quando o avistei, ele a puxara para
junto de si, a tristeza enorme, pois a
conheceu por quem ela era pela
primeira vez, o guerreiro que lutara
ao seu lado e o salvara. Ele gritou
pelo

que fizera, lamentando-se por tudo o


que morrera com ela.

Adir aproximou-se correndo de


Amram enquanto eu observava. O
meu

filho não tinha uma lança ou uma


espada, somente a muleta, e a usou
para

bater em Amram por ter visto a irmã


assassinada e pisar em seu sangue.
Amram virou-se e o trespassou,
depois terminou o trabalho com um
corte

rápido na garganta do meu filho. Ele


usava o xale de oração, como o
faziam

os demais carrascos, a peça de


vestuário que era sempre feita de
linho com

um único fio de lã azul, para que o


portador se lembrasse do céu e dos
mandamentos de Deus. Mas o xale
de oração de Amram estava
manchado e
parecia marrom com o sangue
grudado ao linho.

Assisti a tudo aquilo como em um


sonho, como se tivesse visto antes e

vindo ali como testemunha para que


os meus filhos não estivessem

sozinhos na hora da morte. Orei a


Deus para que fossem recebidos por
Shechinah, a morada do Senhor.

O meu filho não era um guerreiro,


apenas um menino. O meu guerreiro

era uma mulher que não esperava o


ataque de alguém que tanto a amara.

O cão estava enlouquecido em vista


do ferimento causado à sua dona,

lamuriando-se como se fosse um


homem e não um animal. Ele não se
calou

quando Amram virou-se para gritar


com ele; montou sobre o corpo
caído

de Aziza, protegendo-lhe as formas


inertes, as mandíbulas salpicadas de
espuma. Amram chutou-o, depois o
atacou, mas o cão manteve-se firme.
Era um animal que desejava
vingança, mais leal que o guerreiro
que então o

esfaqueou uma vez atrás da outra.

O mastim recusou-se a morrer, o


guardião da minha filha, que na sua

morte revelou-se ser apenas uma


mulher jovem que rapara o cabelo e

usava roupas de homem. As flechas


de penas vermelhas estavam caídas
ao

seu redor, seu campo de flores, o


último adeus. Apesar de
mortalmente ferido, o cão agarrou-se
a Amram e recusou-se a deixá-lo ir,
enterrando os

dentes na carne do inimigo. Assisti à


luta em meio a uma névoa de
tristeza,

até que tanto o cão como o homem


estivessem tão feridos que não

conseguiam continuar nem morrer.

O Homem do Vale deveria estar à


disposição do seu líder, pois fora
um
dos dez escolhidos. Em vez disso,
ele viera ao encontro de Aziza.
Quando viu o que acontecera, ele
cortou o pescoço do cachorro para
que o animal

pudesse morrer com honra,


liberando-o, assim, da dor e dos
deveres neste

mundo. Mas o guerreiro se deteve


sobre Amram e observou-o nos seus

estertores, sem oferecer consolo


nem assistência. O homem que fora
o
genro de Revka, quando o seu nome
era Yoav, quando ainda tinha

compaixão e fé, deixou que o


assassino da minha filha morresse
em

angústia.

Depois que Amram se foi, o Homem


do Vale cortou a armadura do

homem morto para aumentar a


desonra, de modo que o chão ficasse

coberto de escamas prateadas e era


dado a conhecer a Deus que ali
estava

um covarde indigno de ser chamado


de guerreiro. Em seguida, o Homem
do

Vale tirou o próprio xale de oração


e cobriu Aziza, como se ela fosse
um homem, um guerreiro caído em
batalha. Talvez fosse nisso que
quisesse

acreditar. Ele não suportava como


uma mulher a quem amara, uma
menina

feita de carne, não de ferro, que


retribuíra seu amor.

Depois que esse guerreiro


enlouquecido retornou ao turbilhão
da praça,

corri até meus filhos. Fechei seus


olhos e rezei pelos seus espíritos.
Lavei os

seus pés e mãos com a água da


piscina, apesar de as cinzas terem
deixado a

água preta. Atei os encantamentos


que levara comigo aos fios dos seus
cabelos para que fossem protegidos,
ainda que não neste mundo, mas pelo

menos no Mundo Vindouro. Pensei


nos momentos dos seus nascimentos:
o

de Aziza, em um quarto em
Jerusalém, onde as mulheres que
praticavam o

keshaphim me ajudaram a trazê-la à


vida. O de Adir, em uma barraca na
Montanha de Ferro, onde esperei
que o meu marido viesse em seu
cavalo

desde os confins orientais de Moabe


para poder estar lá no décimo dia,
para ver o filho e dar-lhe o nome de
um rei do seu povo.

OS DEZ seguiram em frente com a


fúria assassina, pela nossa honra e
pela glória de Deus, e nisso foram
bem-sucedidos. Quando subi a
escada até a esplanada no topo da
montanha, viam-se corpos por toda
parte, os que se

amavam, os que se desprezavam, os


que acreditavam que haveria
liberdade

no Sião, os que haviam


acompanhado um marido ou um
irmão, os que

haviam nascido nessa montanha, os


que haviam sonhado que morreriam

ali, todos em uma total confusão


sobre as pedras. Vi o corvo que me
mandara para o deserto com um xale
negro, curvada em seu jardim, e

chorei pelo seu espírito. Vi o pai de


Yael, o assassino que matara tantos
nos

pátios do Templo de Jerusalém,


esparramado nas imediações do
quartel, o

seu sangue tão vivo como qualquer


flor.

Fui aos pombais e abri as portas dos


dois primeiros, finalmente

chegando ao columbarium de pedra


que tinha o formato de uma torre, o
lugar onde minhas filhas
trabalhavam ao meu lado com mais
frequência,

onde Revka chegara durante o luto,


onde Yael atraíra as aves para si
sem emitir uma única palavra, como
eu soubera que faria quando fomos
juntas

ao mercado em Jerusalém e ela


implorara pela libertação de uma
pomba, e

em troca dera a promessa de fazer o


que quer que eu pedisse.

Afugentei as pombas para fora,


agitando o xale, assobiando como o

falcão, forçando-as a sair dos


poleiros. Elas subiram ao céu
enegrecido todas de uma só vez,
manchando a treva com seu
esplendor, apregoando a

mensagem de que havia um tempo


para morrer e um tempo para

ressuscitar.

O HOMEM a quem eu amava me


encontrou na porta do meu aposento.
Não havia ninguém lá, somente nós
dois, como no dia em que ele me
levara para

a cama, quando deixei uma camada


de vermelho nas roupas de cama,
não
da hena, mas de sangue. Os outros
haviam fugido. Yael mantivera a sua
promessa. Ela fizera o que eu
pedira.

Deixei de lado tudo, a não ser o meu


amado. Não me importava que ele

estivesse coberto de sangue. Não


queria saber quantos matara, ou se

estivera abraçado à sua mulher antes


de ser rápido na morte dela, ou até
mesmo se lhe pedira perdão depois
de todo aquele tempo.

– A morte caminha ao nosso lado,


mas não conosco – me disse ele

enquanto me tomava nos braços.

Fiquei feliz por ele não ter visto sua


nova filha. Se o tivesse feito, teria
sido muito doloroso para ele deixá-
la e eu nunca quis ser a causa da sua
dor, como sabia que ele nunca
quisera me causar nenhuma. A minha
mãe

me avisara o que o amor faria


comigo. Eu não me importara na
época e não

me importava agora.
Os olhos dele eram acinzentados,
como as pombas, como a névoa que
se

desfez quando o mundo começou no


dia em que Deus nos deu a palavra e

pudemos falar, e as nossas palavras


transformaram o mundo no que ele

veio a ser. Eu poderia ter clamado


contra o destino e ter coberto a
cabeça.

Poderia ter implorado por mais


tempo, insistido com ele para fugir
comigo.
Mas talvez me tivesse sido
concedido tudo o que precisara
nesta vida. O

meu amado era um homem teimoso,


um verdadeiro crente. Ele era mais

complicado que qualquer outro


homem que eu já conhecera e o
único que

poderia ter-me chamado para


atravessar o Mar de Sal e deixar
para trás o

meu marido e as colinas verdes de


Moabe.
Era isso o que a minha mãe queria
dizer quando me advertiu que o
amor

seria a minha perdição. O amor fazia


você se entregar, prendia você a este

mundo e ao destino de outro. Deitei-


me ao lado de Eleazar. Estávamos

juntos como fazíamos mesmo quando


separados, pois éramos uma só

pessoa, casados por mais do que


nosso desejo.

Tivemos os últimos momentos de


vida neste mundo, mas eu morreria

uma centena de vezes para ter seu


amor. Beijei-o de um modo que
nunca

beijaria outro homem. O seu espírito


entrelaçou-se ao meu quando ele me

penetrou e me tornou toda sua. Se


chorei, foi apenas porque a água era
o

meu elemento, o que mais ansiava e


o que precisava acima de tudo.
Quando
ele acabou, eu ainda chorava por
perdê-lo, apesar de estar escrito que
deveria acontecer. Amei-o mesmo
nesse momento, em que ele levou
uma

faca à minha garganta, em que me


afoguei em sangue, em que sussurrei:
Primo, você estava errado. Nós
nascemos para viver.

15 de Nissan, 73 d.C.

ALEXANDRIA

77 d.C.
Eles me chamam a Bruxa de
Moabe.

Assim estava escrito no Livro da


Vida. Antes de eu nascer de uma
mulher

que já estava morta, antes de


deixar Jerusalém e ser mordida por
um leão, antes de os romanos virem
para nos destruir, já fora decidido
que isso viria a acontecer.

Um dia eu soube com certeza que


nunca mais conheceria o prazer
das coisas
mais simples: um tear, uma mesa,
um pente para o cabelo. Pensei que
a minha vida tivesse acabado e que
o anjo de mil olhos se achasse à
minha porta. Mas estava errada.
Tenho uma casa feita de pedras
brancas. Os operários trabalharam
para construir a fonte no centro do
pátio no fundo de

um jardim murado, onde há


tamareiras e vasos de jasmins e
lírios brancos que não se
encontram em nenhuma outra terra,
exceto, talvez, nos campos do

mundo além do nosso.


Quando Mal’ach ha-Mavet me
procurou, salpicado pelo sangue do
meu povo, eu usava o manto da
invisibilidade. Embrenhara-me tão

profundamente no interior da terra


que ele precisaria ter descido uma
centena de degraus antes de poder
me avistar, ainda que possuísse a
visão de um exército. A despeito do
seu dom da visão, eu ainda estaria
escondida de sua vista, pois se diz
que a Morte deve fechar os olhos
ao entrar na água e eu estava
submersa em uma cisterna, um
poço tão profundo que há quem
acredite que não tenha fundo, que
chega até o centro da terra, de
volta à primeira pedra de
Jerusalém, onde começou a
criação.

Foi a água que nos salvou,


protegendo-nos das chamas que
tremulavam e

das mãos gananciosas da Morte.


Tínhamos nos apressado a descer
pelos degraus de pedra, perdendo o
fôlego na escuridão, enquanto a
Morte assomava sobre nós, antes
de mergulharmos na água como se
fôssemos peixes, pois os homens e
as mulheres do nosso povo são
irmãos e irmãs de tais criaturas, e
é por isso que conseguimos
subsistir onde outros estão fadados
a perecer.

Em Alexandria as manhãs são


claras, o ar tão úmido que parece
um mundo

de água, até que o sol surge em


faixas amarelas de luz. Posso ver o
porto enquanto preparo xícaras de
chá-preto, doces de gergelim,
laranjas cortadas

em quartos. Há três cabras pretas


no celeiro, uma dezena de ovelhas
detrás

do muro, um burro branco que é


tão rápido que levanta nuvens de
pó vermelho quando corre. O nosso
povo sofreu restrições na cidade,
mas conseguimos permanecer.

Arieh e Yonah brincam no jardim


depois das aulas, escondendo-se
entre os

juncos ao lado de uma lagoa em


que as garças vêm se alimentar. Há
um íbis

branco que se apossou da nossa


fonte. Ele se equilibra sobre uma
perna fina e bebe água, levantando
a cabeça para o céu. Talvez o que
deixamos para trás

tenha vindo a nós na forma dessa


criatura, pois ela nos observa

cuidadosamente e cheia de
compaixão.

Os netos de Revka não são mais


crianças, mas homens cujas
sombras são

tão altas que fico surpresa que


pertençam àqueles que já foram os
meninos a

quem contava histórias para que


pudessem dormir a noite toda.
Agora somos

Revka e eu que nos remexemos e


viramos na cama enquanto
sonhamos com

os homens que se recusaram a se


render e com as mulheres que eram
guiadas

pela devoção. Lembramo-nos de


tudo pelo que lutaram, de todos a
quem amaram e foram leais.
Lembramo-nos de como era o
mundo quando a terra

era governada pela guerra.

No entardecer em que uma diáfana


luz escarlate se esparrama pelo
céu, na hora em que o espaço entre
os mundos se abre antes que a noite
peneire

sobre a terra o seu azul intenso, as


mulheres aparecem no portão dos
fundos

para perguntar pela Bruxa de


Moabe. Elas vêm com as melhores
roupas, sandálias de couro que lhes
deixam os passos silenciosos, anéis
com sinete e pulseiras de ouro
adornando-lhes os dedos e punhos
esguios, kohl preto em torno dos
olhos. Elas me oferecem moedas de
ouro e prata, fios de pérolas. Em
troca, pedem que jogue os ossos de
aves para adivinhar o futuro.
Suplicam manjerona e arruda,
amuletos e poções, uma boa saúde,
o parto de um filho e

o sumiço de inimigos. Elas pedem


amor, sempre. Abro o livro em que
essas receitas estão escritas, a
tinta ainda fresca, embora o
pergaminho tenha ficado marrom,
como se segurasse um maço de
folhas em minhas mãos.

As mulheres que chegam me


chamam de inteligente, esperta,
bonita, sábia.

Contam-me seus segredos e falam


de violações e de sonhos. Confiam-
me o que

jamais admitiriam a outra, ainda


que eu seja uma estranha. Faço o
melhor que posso por elas. Aprendi
a adivinhação com uma mulher
sábia, mas aprendi a escutar com
um fantasma.

Muitas vezes tomo a estrada


sinuosa de pedras até o porto para
ver a grande lanterna que é acesa
todas as noites no farol na ilha de
Faros, uma das sete maravilhas do
mundo. Espero pelos navios que
vêm da Grécia, soprados sobre o
mar, as enormes velas brancas
cheias pelo vento dos quatro

cantos da terra. A água nos


circunda. Quando o Nilo
transborda, os campos

ficam verdes e há grandes


comemorações, lanternas
penduradas em árvores,

tambores retumbando a noite toda,


dançarinas com véus e saias
compridas.

O rio exibe todos os tons de azul


conhecidos pela humanidade:
marinho, turquesa e lápis-lazúli,
índigo, esverdeado, cerúleo e
ultramarino. No entanto, é do
deserto que mais tenho saudade.
Marfim, alabastro, as rochas que
faziam meus pés sangrar, a faca
para marcar os dias, o homem a
quem amava. Ao entardecer, o
cheiro de terra árida chega através
da Judeia e me

lembra de quem eu era. Meu cabelo


é perfumado e trançado, mas à
noite retiro os pinos e deixo-o cair
solto às minhas costas.

Quando me sento no escuro, as


aves se aproximam. Eles ainda me

conhecem por quem sou.

Sou a garota do deserto, mesmo


que esteja tão longe.

Sou a mulher que foi salva pelas


pombas pois, quando as vi se
elevarem em

uma nuvem acima de Massada, à


hora em que reinava a escuridão,
soube que

devíamos fugir.

Estávamos na cozinha do palácio,


esperando que Mal’ach ha-Mavet
entrasse pela porta na forma de um
dos dez verdugos que viriam nos
cortar a garganta. Revka e as
crianças amontoavam-se em um
canto, inertes, com a
perplexidade das ovelhas
empurradas para o açougueiro
quando chamadas e conduzidas por
sinos. Eu andava para lá e para cá
sobre o piso de mosaico preto e
branco, depois fui até a porta,
examinando ansiosamente a
multidão.

Tinha esperança de que logo


Shirah apareceria, retornando com
Aziza e Adir,

resgatados em segurança do caos.


Mas, quanto mais observava, mais
eu tremia, pois os corpos eram
empilhados na praça e o sangue
corria como um

rio, uma maré que alimentava as


oliveiras, as tamareiras e o jardim
reduzido a cinzas. As lamúrias
eram incessantes, mas logo os
gritos ecoantes deram lugar a um
silêncio estranho. Shirah uma vez
me dissera que a única coisa que
deveríamos temer era o silêncio.
Esse era o nosso verdadeiro
inimigo pois significava, como as
pegadas apagadas pela tempestade,
que havíamos

desaparecido da vista de Deus.


Yonah gritou de repente, quebrando
o silêncio com a voz doce de
alguém

que pede para ser alimentado. Eu


ainda amamentava Arieh e, quando
a recém-nascida chorou, senti meu
leite brotar. Naquele instante
compreendi que, apesar da morte
que nos cercava, eu ainda vivia.

A fortaleza queimava de dentro


para fora, devastada pelo nosso
próprio povo. Todas as casas
haviam sido incendiadas, todos os
bens lançados sobre
uma fogueira que se avivou com o
vento e rapidamente se alastrou
fora de controle, as faíscas ateando
fogo aos telhados e às folhagens
das poucas árvores que não tinham
sido cortadas para a construção do
muro interior.

Muitos corpos já haviam queimado


até as cinzas que se elevavam para
produzir uma noite que era a mais
escura já vista. Era a véspera da
Páscoa,

mas não houve um maná como o


nosso povo conhecera na fuga da
escravidão
do Egito, apenas o céu preto e uma
cortina de fumaça. Respirávamos
os ossos

do nosso povo – os desejos, as


diferenças mesquinhas, a fé –,
todos martirizados, desaparecendo
no sombrio ar assassino.

Não se viam estrelas e a escuridão


reinava absoluta, como fora antes
do

primeiro dia da criação. Mas então


as pombas elevaram-se através da
fumaça, como se elas fossem
estrelas. Perguntei-me se o maná
aparecera dessa maneira enquanto
o nosso povo vagara pelo deserto
por quarenta anos, se flutuara
acima da morte com a facilidade de
uma pomba, uma mensagem para
nos informar que éramos
destinados a sobreviver.

Como as aves não voam à noite,


entendi que as pombas em voo eram
o sinal que Shirah prometera me
enviar. Ela, que cuidara de mim
quando eu era uma criança órfã de
mãe em Jerusalém, uma vez mais
me protegia. Ela

abrira as portas dos pombais, como


devíamos agora abrir as portas
para nós

mesmos.

Peguei a filha de Shirah em meus


braços e segurei-a com meu filho.
Para

mim, eles poderiam ter sido


gêmeos, uma recém-nascida, o
outro com vinte meses no mundo,
um não menos querido para mim
que a outra. Mandei Revka parar
de chorar, precisávamos fugir. Não
tínhamos tempo para a morte, disse
a ela, surpresa com a minha
certeza determinada.

Revka encarou-me, pensando que


eu enlouquecera, pois éramos
cativos

dos romanos, do nosso próprio


povo e do destino. Disseram-nos
para ficar indiferentes ao mundo
porque não tínhamos outra escolha
senão perder e abraçar a morte.
Mas as crianças nos meus braços
se mexiam, vivas, destinadas a algo
mais.

Mandaram que nos sacrificássemos


em vez de nos render, e eu poderia
ter

obedecido, não fosse pelas


crianças. Depois que me expliquei,
rapidamente Revka concordou.
Faríamos qualquer coisa para
salvar as crianças sob a nossa
guarda. Revka o fizera na
cachoeira quando a morte
espreitara seus netos. Quanto a
mim, não perderia outro leão. Não
poderia obedecer à ordem

do nosso líder. Se isso fosse


traição, então eu era uma traidora.

Mas eu já desrespeitara as leis


antes e Deus, que fora testemunha
dos meus pecados, me perdoara.

Apressei Revka e as crianças.


Yehuda hesitou, pois fora educado
para não combater a violência, mas
a aceitá-la, e ficou perturbado em
pensar que poderia desrespeitar
seu povo. Incitei-o, lembrando-lhe
que a sua mãe o confiara a nós
para que pudesse viver; essa era a
intenção dela e ele deveria honrar
a sua vontade acima de todas as
outras motivações.

Levantei um tapetinho para revelar


uma porta instalada no chão da
cozinha, idealizada para a fuga do
rei. Aziza uma vez me confidenciara
que

usava aquela saída para se


encontrar com Amram. Ninguém
sabia da

existência dessa porta, a não ser o


rei, que já se fora havia uma
centena de anos.

Entramos no espaço abaixo do


piso, abafado, esgueirando-nos nas

sombras. Puxei a porta, que se


fechou atrás de nós, impedindo a
passagem de

qualquer réstia de luz. Descemos


pela escada até o porão. De mãos
dadas, seguimos no escuro,
rapidamente e em silêncio, como
fazem os ratos. Noé e

Levi estavam acostumados ao


silêncio, pois esse se tornara parte
da sua natureza. Yehuda era
diligente e calado. Até mesmo
Yonah e Arieh

pareceram pressentir que sem o


silêncio seríamos apanhados nas
malhas da
morte. Eles não gemeram nem
choraram, em vez disso agarraram-
se a mim

sem reclamar.

Não pude deixar de pensar no meu


irmão, um dos dez que haviam sido
escolhidos pelo nosso líder.
Imaginei se ele ainda usava aquele
quadrado de

seda azul na armadura, se ele se


lembrava do dia em que o
procurara, debaixo do flamboyant ,
e lhe pedira para abandonar a
faca. Talvez a faca fosse tudo que
tivesse agora, a única coisa com
que se importava ou em que

confiava e à qual era leal. Disse


uma oração por ele. Acho que eu
sabia a resposta aos meus
questionamentos, porque a oração
que murmurei em seu nome era uma
lamentação cantada em memória
dos mortos, para que

encontrassem a paz no Mundo


Vindouro.

Atravessamos a câmara de pedra,


respirando o ar úmido, não
parando até
chegarmos a outro conjunto de
escadas, que nos levariam a uma
pesada porta de madeira. A porta,
uma vez aberta, levou-nos para o
ar livre. Lá estávamos nós, o cheiro
amargo de fumaça nos envolvendo,
o vento em lufadas transportando
faíscas das fogueiras que tinham
sido acesas,

juntamente com os espíritos dos


mortos se contorcendo.

Revka segurou meu braço e nos


entreolhamos, sem precisar de
palavras para entender o pacto
estabelecido entre nós.
Pretendíamos viver.

Enrolei a filha recém-nascida de


Shirah no meu xale, para que
pudesse permanecer em silêncio e
invisível, enquanto Arieh montava o
meu quadril, os olhinhos escuros
bem abertos, segurando-se
firmemente à minha túnica com

as duas mãos. Quando saímos para


a noite e a porta do túnel fechou-se
atrás

de nós, foi como se tivéssemos


entrado pelo primeiro portão do
Gehennom, a
porta de entrada para o vale do
inferno. A cena com que tínhamos
nos deparado dificilmente se
parecia com algo terreno, mas sim
com um mundo

em chamas, com punições para os


maus. Ou talvez esse tivesse sido
um teste

para os fiéis. Será que


conseguiríamos enfrentar o inferno
e atravessar o fogo sem hesitação,
ou cairíamos de joelhos e
desistiríamos da vida que Deus nos

concedera?
Não podíamos recuar naquele
momento. O nosso mundo estava
devastado,

desaparecera do alcance de Deus.


Revka e os meninos relutavam em

prosseguir, pois havia multidões


por toda parte e eles temiam que
fôssemos

vistos. Fiquem nas sombras, eu lhes


disse, pois era isso o que eu fazia
no deserto quando queria passar
despercebida das aves que se
aproximassem.
Perguntei a Revka onde ela vira
Shirah pela primeira vez, porque
era para

onde Shirah instruíra-me a fugir.


Imaginava que quisesse que
corrêssemos para os pombais e nos
escondêssemos lá, ou que
esperássemos por ela próximo ao
Portão da Serpente, mas Revka
referiu-se baixinho a um local que

me surpreendeu: ela vira Shirah


muitas vezes, mas só a veria
claramente por

quem ela era quando a encontrara


por acaso em uma cisterna, a maior
delas,

situada na caverna mais profunda


esculpida na montanha, centenas
de degraus de gesso abaixo,
construída no lugar mais distante.
Era para onde Shirah queria que
fôssemos.

Prosseguimos através da loucura


que nos cercava. Contornando o
quartel,

passamos pela fogueira cujas


chamas estavam fora de controle.
Viam-se corpos empilhados sobre
ela, juntamente com as provisões e
os despojos de animais, tudo o que
tínhamos nos nossos armazéns e
depósitos. Embora a fumaça fosse
acre, parei atordoada, pois fora
ali, ao lado das pilhas de armas,
que vi o meu pai pela última vez,
estendido entre os soldados mortos.

Aproximei-me dele e me ajoelhei ao


seu lado para fechar-lhe os olhos.
Pela

sua expressão entendi que estava


agora ao lado da sua amada
esposa, a mulher de cabelo cor de
fogo que também era a minha mãe.
Pelo menos tivemos isso em comum.
Ao lado dele, no chão, achava-se o
manto

acinzentado. Ele poderia ter


tentado escapar do seu destino,
mas despira o manto para ser visto
por quem ele era, o assassino Yosef
bar Elhanan, que fora o meu pai e
que permaneceria assim por toda a
eternidade.

Enquanto examinava seu rosto,


sereno pela primeira vez, lembrei-
me do que me dissera sobre seu
talento para o disfarce. Os homens
muitas vezes não conseguiam
avistar que estava diante deles.
Eles procuraram por segredos e

pelo que estava enterrado, mas o


que estava abertamente às claras à
sua frente os cegava, de modo que
não conseguiam enxergar. Um rato
que atravessasse rapidamente a
mesa teria menos probabilidade de
ser

apanhado que outro que ficasse


parado no canto de uma sala, onde
era de esperar que ratos se
amontoassem. Um assassino que
entrasse em uma sala
poderia facilmente parecer-se com
um homem comum se agisse com

confiança, com todo o direito de


fazer o que quisesse.

Peguei a capa do meu pai. Os


outros me seguiram e continuamos
juntos como se formássemos uma
nuvem, uma névoa, nada que
parecesse humano.

Rapidamente atravessamos o
pomar onde antes cresciam as
amendoeiras, onde as flores cor-
de-rosa flutuavam no ar quando o
vento kadim se levantava. Não
restara nada ali, nenhum ramo,
nenhum galho, embora o chão
estivesse coberto de faíscas que
brilhavam com a incandescência de
mariposas brancas que tivessem
surgido à nossa frente, caídas
sobre a terra.

Mais do que apenas árvores tinham


sido derrubadas nesse pomar agora
estéril, com sangue fluindo em vez
de seiva e fios de cabelo em vez de
flores.

Cadáver após cadáver se espalhava


pelo campo.
Revka disse aos netos e a Yehuda
para pensarem nas formas escuras
no chão como árvores caídas, não
como homens, mulheres e crianças
com a garganta cortada. A tarefa
dos carrascos estava quase
concluída; em breve eles cairiam
uns sobre os outros, pois tinham se
posicionado ao lado do Portão da
Água e tiravam a sorte para ver
quem seria o último guerreiro, o

homem a atrair todos os pecados


dos irmãos e pôr fim aos outros
nove antes

de virar a espada contra si mesmo.


No entanto, ainda havia entre o
nosso povo alguns para serem

despachados e a violência não


terminara. Vimos uma família com
quatro filhos esperando nos
degraus de um armazém em
chamas, silenciosas como
fantasmas, embora continuassem
no mundo dos vivos, os olhos turvos
e trêmulos. O pai da família foi o
primeiro a oferecer o pescoço a um
dos algozes, como se para ensinar
aos filhos, como se os instruísse
sobre como arrebanhar as ovelhas,
ou como atirar uma flecha, ou
como começar suas orações da
manhã com a subida do sol. Mas
essa não era uma lição de beleza

ou de conhecimento, apenas um
momento feio de horror. As
crianças

acorreram ao redor do pai


moribundo, agarrando o seu manto,
como se ao

fazê-lo pudessem reencontrar-se


com seu espírito no Mundo
Vindouro.

O algoz era Uri, o guerreiro que


nos encontrara no deserto, a mim e
ao meu pai, o menino que fora
amigo do meu irmão, um jovem
brando que ficara tão
impressionado com essa fortaleza
quanto a descrevera para mim

nos mínimos detalhes enquanto


estávamos sentados em volta de
uma

fogueira no deserto, comendo uma


refeição que eu conseguira, um
pássaro que atraíra para mim.

Ele me contara sobre os afrescos


das sete irmãs pintados pelos
melhores artistas de Roma, sobre
os banhos que eram aquecidos por
tubos de cerâmica, sobre os jardins
que se agarravam aos penhascos,
sobre o palácio

voltado para o norte, para que


qualquer pessoa que ali residisse
sempre olhasse na direção de
Jerusalém. Havíamos sentado
juntos no deserto com a

luz minguando aos poucos, o cheiro


da murta em torno de nós, olhando
para

o fogo como se observássemos um


destino que ainda não entendíamos.
Éramos jovens e o deserto abria-se
até o horizonte com sua beleza
sobrenatural, as estrelas cintilando
no firmamento no alto, tão
numerosas que ficávamos
atordoados com sua luz.

Agora as estrelas não podiam ser


vistas, escondidas pelas nuvens
crescentes

de fumaça. Uri murmurou a oração


pelos mortos para o homem que
matara.

O homem morto fora um dos


padeiros do mercado. Revka
hesitou quando viu

o avental branco sob seu manto de


oração tornar-se escarlate. Foi
como se um estandarte de
desespero fosse agitado para ela.
Segurei seu braço e obriguei-a a
me seguir, como segui as pombas
que fugiam da única morada

que conheceram. Já os filhos do


padeiro, nos degraus, eram
despachados pela

faca de Uri; eles tinham se reunido


como para facilitar a tarefa do seu
assassino, pois não havia nenhum
lugar para onde correrem.

Talvez Revka tenha soltado um


gemido ao virar-se da cena de
morte, talvez um dos meninos
tivesse tropeçado em uma pedra, ou
a filha de Shirah,

que recebera o nome que


significava pomba, tivesse
choramingado e

arrulhado dentro da minha capa.


Silenciei-a enquanto apressava os
outros a

prosseguir, mas foi tarde demais. O


eco do ruído fez com que Uri nos
avistasse através da escuridão. Ele
terminou depressa a sua função nos
degraus – eram

apenas crianças e, depois que se


foram, a mãe não resistiu, abrindo
a capa para que pudesse ser levada
desta vida.

Uri veio atrás de nós, forçado pelo


seu dever. Nós corremos,
incentivando-

nos mutuamente, os garotos


seguindo na frente. Nossa
respiração estava quente e todos
nós ofegávamos enquanto
corríamos pelas nossas vidas. Noé
e

Levi pararam quando perceberam


que a avó não se encontrava mais
entre nós. Revka caíra atrás de nós,
incapaz de nos acompanhar. Ela
gritou para continuarmos
correndo, insistindo que a
abandonássemos, pois Uri já a
alcançara, já a estava segurando,
implorando que aceitasse o que
tinha de ser enquanto ela lutava
para repeli-lo. Imaginei que ela
tivesse tropeçado de propósito,
para impedir que o jovem guerreiro
nos alcançasse.

Disse aos meninos para seguir em


frente e entreguei os bebês a
Yehuda antes de voltar correndo de
volta para junto de Revka.

– Continue – ela gritou, agitando


os braços como teria feito se uma
das pombas se recusasse a deixar o
ninho.

Ela não me tivera muito em conta


no início, quando eu chegara ao
pombal, e tinha razão para
desconfiar de mim. Eu não fora
alguém que valesse a pena. Uma
ladra que não conhecia o
significado do amor, uma tola

sem entendimento do que um leão


poderia fazer a quem se deitasse
com ele.

Eu fora uma garota do deserto,


disposta a fazer qualquer coisa
para sobreviver.

Corri na direção de Uri enquanto


ele segurava Revka com firmeza.

Disparei até ele, para alcançá-lo


com mais força, mas também para
não precisar ver o seu rosto. Trazia
a faca que pertencera a Ben Simon,
a que ele usara em nome do Sião,
que me dera para me proteger
quando se convenceu

de que morreria, que havíamos


pecado e que eu precisaria seguir
em frente

sem ele.

Usei a adaga antes de poder


considerar o peso do meu ato, antes
de poder

sentir o calor do sangue de Uri.


Quando emboscava as pombas no
deserto, sua

morte parecia um sopro de fumaça


branca, rápida e silenciosa. Essa
foi um inferno, uma explosão de
sangue e calor. Uri soltou Revka e
virou-se para mim, perplexo, o
olhar fixo em mim, como se eu fosse
a assassina e ele o pássaro na rede.
Ele avançou para me agarrar e me
levar com ele, mas, antes

que conseguisse me segurar, foi


atingido por trás e tropeçou,
caindo para a

frente. Ele parecia um tufo de mato


tirado de um sulco da terra,
cortado na

colheita. Caiu ao chão como as


amendoeiras do pomar.

O Homem do Vale viera em nossa


direção. Ele estava quase
irreconhecível,

o rosto parecendo meio humano,


meio bestial. Foi por isso que o
Todo-Poderoso nos deu a oração,
para distinguir os homens dos
animais, para deixar os animais
trancados em nós, como demônios
presos em frascos de chumbo.
Aquele guerreiro não usava nada
além das suas faixas de metal para

o seu suplício e uma túnica que


estava encharcada de sangue.

Mas não importava a sua


aparência, o Homem do Vale era de
fato

humano, embora ele mesmo


pudesse negá-lo. Quando Uri
procurou me

dominar de novo, segurando a


minha perna, o Homem do Vale
gritou para eu
me esquivar para trás. Ele fez uma
varredura rápida para completar a
morte

de Uri, tão rápida que parecia que


seu machado era feito de luz.
Talvez Gabriel, que era o senhor do
fogo e da vingança, de fato
caminhasse ao lado

dele.

Depois de matar o jovem guerreiro,


o Homem do Vale ajoelhou-se para
entoar a canção para os mortos,
que muitos diziam ser a única
oração que ele oferecia a Deus. Ele
cantou como se estivesse em transe.
Quando se levantou, vi que fora
marcado com as letras do nome do
Todo-Poderoso no peito e nos
braços, pois era o último dos dez, o
que deveria matar todos os
carrascos e, em seguida, causar a
própria morte.

Um dia ele fora um homem culto e


estudioso, fora um homem de fé.
Agora,

participara de um sorteio para ver


quem seria o último homem e Deus
o escolhera para essa terrível
tarefa derradeira. De todos os
verdugos, ele era o mais feroz, pois
a sua indignação elevava-se acima
da condição da sua espécie e o
deixava sem medo. Ele estava
acostumado à violência; fosse
infligida contra si mesmo ou contra
outro, não fazia nenhuma
diferença.

Naquele momento, não tive certeza


se ele seria nosso assassino ou
nossa salvação. As crianças haviam
parado em seu caminho, olhando
com horror.

Os meninos conheciam o pai e o


chamaram, mas ele não respondeu.
Em vez

disso ele olhou para mim,


inofensivo, e nesse momento vi o
homem que ele fora, o que voltaria
a ser quando entrasse no Mundo
Vindouro e se inclinasse diante do
Criador de todas as coisas.

– Deixo meus filhos para você – ele


disse, a voz rouca. – Aonde quer
que forem, a minha esposa estará
com eles.

Nem mesmo nesse momento ele


conseguia se esquecer dela, ou
perdê-la para os animais que a
subjugaram. Se ele tivesse sido
outro homem, poderia

ter vindo conosco para se esconder


daquele caos, pois murmurei que
estávamos fugindo. Mas ele
procurara a morte por tanto tempo
que não poderia permanecer entre
nós agora. Finalmente estava
prestes a encontrar

aquele por quem sempre esperara,


o machado pronto para desferir o
golpe,

perante Mal’ach ha-Mavet , da


única maneira que poderia vencer
essa batalha, contra si mesmo.

Ele soprou na sua mão, em seguida


pegou a minha e disse-me o que
deveria fazer.

Corri para aqueles que me


aguardavam. Corremos para a
cisterna e

descemos pelos degraus o mais


rápido que pudemos. A escuridão
era densa diante de nós e ouvia-se
o eco da água abaixo. Na entrada
da caverna parei para dizer a
Revka que ela deveria beijar a
minha mão, pois fora isso que o
Homem do Vale me ordenara a
fazer. Ela o fez e eu lhe revelei o
presente do seu genro. Neshamah, o
sopro da alma da sua filha, era-lhe
devolvido, para guardar por toda a
eternidade e para levar conosco,
aonde quer que fôssemos.

Nossos passos ecoavam enquanto


nos aprofundávamos na terra, mas

apenas para nossos ouvidos, pois


não restara mais ninguém para
ouvi-los.

Podíamos sentir o silêncio dos


mortos, mas ele não nos seguiu.
Ouvia-se apenas o eco lânguido da
água parada, espirrando quando
caíam pedras sob

a ação dos nossos passos. Quando


chegamos ao fundo do poço, a
borda de gesso branco brilhou e
indicou o caminho. Parecia que as
estrelas tinham caído no
subterrâneo.

Entramos na água e foi ali que nos


escondemos da morte. Chegamos lá
no

dia dezesseis de Nissan , quando


amanhecia o dia da Páscoa.
O calor das fogueiras acima da
cisterna passou sobre nós. Assim
como o nosso povo foi salvo
quando o Anjo da Morte passou
sobre ele enquanto era escravo

no Egito, nós também escapamos


dele. Dormimos na boca do poço,
pois estávamos exaustos e
havíamos passado horas na água,
batendo os pés, segurando-nos na
borda afiada de gesso até os dedos
sangrarem. Então saíramos da
cisterna para descansar ao lado da
boca do poço e não nos afogar pelo
nosso estado de exaustão. Lá
ficáramos, extenuados, o cabelo
arrastando na água, os dedos em
carne viva, as túnicas encharcadas.

Talvez sonhássemos que os que


tinham morrido permaneciam nas

proximidades, pois eles nos


sussurraram durante a noite.
Estávamos tão perto dos mortos
que podíamos ouvi-los do mesmo
modo que é possível ouvir

o vento em uma tempestade, mesmo


quando se está escondido em
segurança.

Quando acordamos, ficamos


maravilhados por ainda estarmos
vivos. A cinza

negra fora lavada de nós durante


as horas passadas na cisterna e
pudemos

ver as réstias de luz filtrando-se de


cima, pois era de manhã e outro dia
chegara.

Erguemos os olhos alarmados


quando ouvimos vozes abafadas.
Pensamos

que fossem as vozes dos mortos e


que talvez estivéssemos entre eles e
não reconhecêramos o Mundo
Vindouro, tomando-o pelo mundo
que sempre

conhecêramos antes daquela noite


assassina. Por tudo o que
sabíamos, pensamos que nós
também estávamos entre os mortos
e ainda não

percebêramos que deixáramos o


corpo, demorando-nos como os
falecidos sempre fazem antes de
seguir em frente. Desanimados,
abaixamos a cabeça.

Levi e Noé temeram que os


demônios nos aguardassem, pois
tinham visto

tais seres em ação. Eles se


abraçaram, preparando-se para
quais fossem os próximos terrores
a serem infligidos sobre eles.
Yehuda insistiu que o Fim dos Dias
chegara e que o seu povo
ressuscitara do túmulo e da
montanha onde os

ossos haviam sido espalhados pelos


chacais e logo viriam juntar-se a
nós. Ele começou a rezar, postado
na direção de Jerusalém, pois
embora estivéssemos
sob a terra ele conseguia indicar a
localização da cidade santa pela
posição dos raios de luz, enquanto
o sol subia acima da cisterna.

Passos soaram ruidosamente na


escada, descendo pela terra, onde

esperávamos o que estava por vir.


Os ruídos me fizeram pensar nos
cavalos

do rei, como haviam galgado o


estreito caminho da serpente
porque não tinham outra opção,
estavam de olhos vendados para os
perigos ao redor.
Quatro soldados da legião
aproximaram-se de nós, exibindo
nos rostos o choque por nos
avistar. Um agarrou Yehuda e
obrigou-o a ficar de pé.

Levantei-me com um grito. O meu


cabelo era da cor do sangue e eu
estava salpicada com manchas em
tons de sangue que sempre me
marcaram e pela

matança sangrenta do meu povo.

O soldado recuou. Talvez


acreditasse em fantasmas.
O que é você?, disse ele. Falava em
latim.

Fingi não entender.

Você está viva?, perguntou.

E então compreendemos que


estávamos vivos, pois ele podia nos
ver e era

feito de carne e osso, vestido com a


túnica branca da legião,
carregando uma lança que fora
preparada para usar contra nós.
Mas a lança pendia folgada
em sua mão, pois ele não sabia o
que éramos, e os fantasmas não
podem ser

mortos com armas feitas pelos


homens.

Se as circunstâncias fossem
diferentes, certamente teríamos
sido todos mortos, mas agora a
expressão dos soldados era de
confusão, pois estavam nervosos
pelo que tinham testemunhado na
montanha acima de nós, as
centenas de corpos carbonizados, a
queima de tudo o que tínhamos sido
e de
tudo o que possuíamos.

O que é feito de todos os outros?,


disse o mesmo soldado.

Eu presumira que haviam


capturado mais sobreviventes,
aqueles que

tinham se escondido em seus


alojamentos, ou tinham se
agachado ao lado da

muralha.

Procuramos em todos os lugares e


não encontramos nada além de
mortos,

prosseguiu ele.

Nós percebemos que éramos os


únicos e que tínhamos somente uma

história para contar.

Eles nos puseram em fila e nos


examinaram, com medo de que
fôssemos realmente fantasmas, e
nos trataram como tal, com um
respeito moldado pelo medo. Havia
sangue nas solas dos nossos pés e
nas palmas das nossas mãos. Um
dos soldados trouxera uma corda
para nos amarrar, mas o que falara
conosco primeiro jogou a corda
para longe.

Para onde é que eles vão?, disse


ele. Como poderiam fugir?

Nós seguimos os soldados, os olhos


baixos. O dia estava claro e seco,
mas

ainda estávamos encharcados pelo


tempo que passáramos na cisterna,
a água pingando dos cabelos e as
túnicas molhadas. Parecíamos
criaturas que
tinham sido trazidas do fundo de
um rio por um peixe reluzente que
emergira

das águas do inferno.

O cheiro de carne queimada nos


provocou tontura e fraqueza.
Muitos soldados cobriam a boca e
o nariz, vários estavam pálidos. As
moscas pululavam por toda parte e
acima de nós pairavam nuvens de
corvos e aves

de rapina. Os romanos tinham se


preparado para uma batalha,
nunca
imaginando que teriam de
atravessar um campo de martírio.
Novecentos queimados, chacinados.
Pior eram as crianças, as mulheres
e os bebês nos braços de suas mães,
seus corpinhos jovens e pálidos
envolvidos em sangue, as abelhas
circulando em volta, como se seus
restos mortais fossem adoçados
com o mel de sua juventude. Essas
mortes foram uma desgraça para a
legião,

e os soldados não tiveram nenhuma


alegria nessa rendição. Os homens
que temiam espíritos e fantasmas
ficaram na periferia quando eles
foram trazidos para a praça. Os
homens que temiam seus deuses
imaginaram que era um pecado
pisar naquela terra.

Abaixei a cabeça diante da legião,


não em respeito aos seus
integrantes, não como sua
prisioneira, simplesmente porque
não era capaz de contemplar

os rostos daqueles que conduziram


a batalha contra nós. As crianças
fizeram

como eu e depois de um momento


Revka também me imitou, embora
soubesse que era uma violação
para ela curvar-se diante dos
romanos.

Esperei que ela não me julgasse.


Certamente, não julgo a mim
mesma. Deixei

isso para o Todo-Poderoso.


Tínhamos um motivo para
prosseguir e muito a

proteger. Ainda estávamos neste


mundo, aquele que conhecíamos, a
que nos

prendemos, embora estivesse cheio


de tristeza, o mundo que nossos
pais tinham criado.

Silva, o grande general, postou-se


à nossa frente. O soldado que nos
encontrara deu um grito e caímos
de joelhos.

Baixamos os olhos para o pó. Ainda


víamos a sombra de Silva; ele era a
força por trás do cerco, o
comandante que construíra o muro
e a rampa, aquele que assassinara
nosso povo. Era impossível
interpretar seu

comportamento, se pretendia nos


trespassar ele mesmo ou ordenar a
nossa crucificação, ou então nos
deixar para os chacais. O pânico
latejava na minha garganta. Senti o
ar fresco esquentar, manchado de
sangue, movendo-se em

ondas vermelhas enquanto o sol


subia.

Meus olhos velados pestanejaram


sobre a forma de Silva. Ele era um
homem alto, de pele morena, de
aspecto sério. Mas ele era mais que
músculos

e tendões. Era um monstro sem


piedade. No entanto, quanto mais
tempo ele

se demorava a nos examinar, mais


passei a acreditar que, se tivesse a
intenção de nos matar, já teria feito
isso. O general não era visto
frequentemente por pessoas comuns
e o fato de ter vindo nos avaliar
fez-me

ter uma ideia de que poderíamos


ser mais importantes do que ousara
imaginar. Talvez tivéssemos algo
que ele queria.

Revka segurava Arieh e eu


carregava Yonah em meus braços.
O

comandante podia muito bem ter


pensado que a menina recém-
nascida fosse um anjo, a causa da
nossa sobrevivência, pois nos
mandou ficar de pé para que
pudesse vê-la mais de perto. Ela
tinha apenas dias de vida, não era
um mensageiro alado, somente uma
criança humana com uma pequena

cabeleira loira platinada. Em


seguida, os olhos de Silva
voltaram-se para mim, para as
manchas vermelhas na minha pele,
o meu cabelo da cor da flor

do flamboyant , escurecido pela


água da cisterna a ponto de os fios
parecerem sangue escorrido.

Retribuí o olhar de Silva. Ele me


lembrava do leopardo que vira uma
vez

no deserto, o que poderia ter me


matado e devorado se não tivesse
subido em

uma rocha e me tornado maior do


que era, acenando com o xale no
ar, rosnando como se fosse um
animal também.

Ouvi um dos homens Silva sugerir


que não éramos nada, prostitutas e
seus

filhotes, que mereciam qualquer


morte que nos dessem. O homem do
general

disse que, embora meu cabelo fosse


da cor da rosa, eu era uma erva
daninha

a ser arrancada e queimada. Ele


cuspiu após essa palavra e sua
saliva caiu sobre mim. Ele falava
em grego. Eu sabia disso porque
Shirah me ensinara a

língua durante nossas aulas.


Aquele soldado sugeriu que seus
homens cuidassem de nós, sem se
preocupar em perder pregos e
madeira para nos crucificar,
apenas nos trespassando com a
espada. Ele cuidaria disso
pessoalmente, um servo do seu
general.

Há sempre um momento em que


algo começa e algo termina. Eu
sentia o
peso da filha de Shirah em meus
braços, um presente e um fardo,
minha filha

agora.

Uma erva daninha alimenta a


ovelha muito melhor que uma flor,
eu disse

em grego.

A minha voz trespassou a discussão


dos homens. Silva virou-se para
mim,

surpreso com o meu conhecimento


dessa língua e com a minha
coragem de

falar diante dele.

Continuei em latim, pois Shirah


também me ensinara a língua do
império.

Uma flor dura um instante, uma


erva daninha pode ser uma praga
por toda a

eternidade.

O que aconteceu com seu povo?,


Silva perguntou. Onde está o
homem que

os liderava?

Ergui o queixo e examinei o


general que nos destruíra. Ele era
apenas um

homem como qualquer outro. O que


faria se tivesse de ficar diante de
um leão sem lança ou espada com
que se proteger? Aí estava o meu
segredo e a minha

força: falara com o leão e essa era


a razão de ter vivido quando o
enfrentara.
Dissera que lhe pertencia. Dera-lhe
o meu nome e em troca ele era meu.

Ele foi assassinado, eu disse.


Deitado entre os mortos do nosso
povo.

Como poderia ser assassinado?,


Silva exigiu saber. Ainda não
havíamos passado o muro e havia
mortos por toda parte.

Ela não sabe nada, comentou


grosseiramente o seu segundo em
comando.

O que ela sabe do seu líder ou dos


seus planos?

Aquele soldado lançou os olhos


sobre mim. Vi que ele tinha uma
ideia do

que poderia fazer antes de me


matar.

Peguei a faca de Ben Simon. Ela


brilhou ao cortar a minha carne.
Segurei

o braço estendido e deixei o sangue


gotejar sobre a areia, manchando-
a, reclamando-a para mim. Um
murmúrio subiu entre os soldados.
Sempre

acreditei que, se fosse para ser


ferida, preferiria que fosse por mim
mesma.

Agora percebi que, quando me


cortara no deserto, eu o fizera não
apenas para marcar os dias que
passei ali, mas para lembrar a mim
mesma que estava viva.

Eleazar ben Ya’ir era meu parente,


anunciei. Conheci-o como a
nenhum outro, porque sou sua
prima. Sou Shirah, sua
companheira mais próxima.
Somente eu posso contar a história
desta fortaleza.

No instante em que mudei de nome,


mudei de destino.

Vou narrar-lhe a história, prometi.


Será a verdade e você será capaz
de dizer em Roma tudo o que
aconteceu aqui hoje. Só peço um
favor em troca.

Ouviram-se risos entre os homens.


Pude sentir a Morte rondando,
olhando

para mim com seus inúmeros olhos.


Posso dizer com certeza que seus
olhos

são frios e que seu olhar pode


congelar o coração. Puxei a capa
do assassino ao meu redor para
que pudesse desaparecer de vista
de Mal’ach ha-Mavet .

Pensei no leopardo que afugentara


quando eu era apenas uma garota
no deserto, no leão que ficara ao
meu lado e naquele que libertara
quando estava acorrentado sem
misericórdia. Desde aquela época,
eu usava a coleira
do animal em torno do meu braço,
como uma pulseira e uma
lembrança.

Havia quem jurasse que o sangue


do leão concedia o poder de
persuasão sobre príncipes e reis.
Tirei a coleira do braço e segurei-
a, pois o leão lutara no cativeiro e
seu sangue estava sobre ele.

Você não reconhece isto?

Vários dos homens conheciam


realmente a coleira e a
identificaram,
recuando, atordoados. Desde o dia
em que o leão fora liberado, vinha-
se falando de bruxaria.

Silva aproximou-se de mim e pegou


a coleira, depois voltou para onde
estivera sobre a plataforma de
madeira. Examinou a coleira e
descobriu que

fora marcada com a insígnia da


décima legião. Vi que estava
confuso, embora

com uma expressão velada. Ele fez


sinal para eu me aproximar.
Reconheci o
gesto, o mesmo que meu pai usara
quando queria que o seguisse,
como chamaria a um cão. Mas um
cão é muitas vezes espancado
depois de ter cumprido sua tarefa,
então permaneci no lugar, ainda
não disposta a ceder e

me aproximar do general.

Tenho necessidade do seu favor, eu


disse. E você do meu.

Os olhos de Silva voaram sobre a


minha forma. Um favor, ele
concordou,
talvez imaginando que eu fosse
apenas uma mulher simples, com
desejos simples, e que gostaria de
pedir pão ou água. Apenas um, me
advertiu ele.

Pedi-lhe para nos deixar ter as


nossas vidas.

Ele me fitou e disse que gostaria de


saber quem eu pensava que era
para

pedir tal adiamento.

Eu disse que era a Bruxa de Moabe


e que estava escrito que deveria
estar

ali para contar a história do que


aconteceu nesse dia no mundo que
Adonai

criara, enquanto as pombas


voavam acima de nós. Disse-lhe
que, sem a história que eu contasse,
ninguém saberia como Roma nos
alcançara e como

tremêramos diante do leão


escravizado em sua corrente.

Você dirá que era destemida, ele


respondeu, pensando em como a
minha

história difamaria o seu império.


Você vai contar como se aproximou
do leão

e ele se curvou à sua frente.

Somente um tolo não teme um leão,


assegurei a ele, lembrando o
homem

que escapara de um leão que


matara nove homens antes dele. Eu
era simplesmente demasiado
amarga para o seu gosto, disse.
Silva acenou com a cabeça, ansioso
por ouvir mais. Por que lhe
concederia

o que quer?

Embora fôssemos apenas mulheres


e crianças, éramos os únicos

sobreviventes daquela maré de


morte. Ouvíramos Eleazar ben
Ya’ir falar aos

seus seguidores e memorizáramos


suas palavras. Somente nós
teríamos
crédito quando se falasse daquela
noite, pois éramos as únicas
testemunhas.

Ouvíramos os gritos dos que


sabiam que não teriam chance de
vitória contra

Roma.

Abaixei a cabeça, pois dissera o


bastante. Uma história pode ser
muitas coisas para muitas pessoas.
Eu lhe daria a história que ele
queria, mas, a exemplo do
escorpião que está escondido em
um canto, a minha história doeria
como uma ferroada. Eu soube não
falar sobre como o nosso povo
escolhera a morte em vez de ser
escravizado. Nem sugeri que
seríamos fortalecidos pela minha
história se eu vivesse para contá-
la, e que Roma seria assombrada
pelos fantasmas do nosso povo, e
que um fantasma pode ser mais
forte que um império, pois poderia
levar as pessoas não só às
lágrimas, mas também à ação.

O general me observou. Eu sabia


que ele queria ouvir mais sobre o
que acontecera. Como pudera o
nosso povo matar a si próprio,
matar todos que

amava? Isso era um enigma, e até


mesmo os homens ferozes podem
ser intrigados por um enigma, mas,
uma vez as peças unidas, elas
poderiam servir para desafiá-los.

Quando ele concordou com a minha


barganha, aproximei-me dele.

Ele me disse para falar e fiz


exatamente o que pediu. Disse-lhe
o que ele queria ouvir.

Viemos para Alexandria porque era


o lugar a que a Bruxa de Moabe
pertencia, a cidade pela qual ela
ansiara quando sonhava com o
grande rio,

com a sua mãe e com os lírios


brancos que cresciam nos jardins
dessa cidade.

Fomos levados perante a legião em


Jerusalém para que a nossa
história fosse

registrada, transcrita e enviada a


Roma. Nós a contamos muitas vezes
e, embora nos curvássemos à força
do império, todas as vezes que a
contávamos
mais milhares de pessoas
aprendiam sobre aquela noite,
quando nos

recusáramos a ser derrotados. A


história tornou-se uma nuvem, a
nuvem uma

cortina de chuva, e a chuva caiu


por todo o império.

Fomos libertados para fora dos


muros de Jerusalém. A cidade
tornara-se

algo que não mais reconhecíamos e


o nosso povo não tinha permissão
de entrar pelos seus portões. Vendi
o amuleto de ouro do peixe para
pagar a viagem. Ele nos protegera,
livrando-nos dos nossos inimigos, e
com isso servira ao seu propósito.
Pensei no escravo do norte e rezei
para que seu amuleto lhe tivesse
servido bem, para que houvesse
encontrado o caminho de

volta à sua terra, onde a neve


durava a maior parte do ano, onde
os veados

eram tão rápidos quanto o


leopardo nas pastagens, onde ele
poderia ser livre.
Yehuda viajou conosco e viveu na
nossa casa durante vários anos,
mas, quando se fez homem, atendeu
ao chamado do seu povo. Os
essênios haviam

se reunido no norte, perto da


Galileia. Muitos dos que restaram
do seu povo

ainda acreditavam na paz e nos


princípios da pura devoção ao
Todo-Poderoso. No dia em que ele
nos deixou, Revka chorou, pois o
amava como se

fosse seu filho.


Noé e Levi logo se tornaram
homens jovens. Ambos tinham a
pele cor de

mel e olhos escuros; eram bonitos,


dedicados à avó enquanto ela
envelhecia.

Poderiam ter-se tornado


estudiosos, como fora o seu pai
antes que o destino o mudasse, em
vez disso aprenderam o ofício do
avô. Todas as manhãs éramos

despertados pelo cheiro de pão


assando no forno de cúpula em um
galpão a
um canto do jardim. Houve
ocasiões em que encontrei pessoas
no portão no

início da manhã, chorando,


atraídas ali pelo cheiro de pão que
lhes lembrava do pão da sua
juventude, quando Jerusalém era
nossa. Agora, somos cidadãos

do mundo, e o pão dos irmãos


reflete isso: o mel é coletado das
abelhas egípcias, o coentro e o
cominho de Moabe, o sal das
margens do mar que a Bruxa de
Moabe atravessou porque estava
destinada a fazê-lo.
Quanto ao meu filho, ele é calmo e
destemido. É um aluno excelente e
fala

quatro idiomas, mas é atormentado


por pesadelos. Era de esperar isso,
depois de tudo que presenciou,
embora nunca reclame dessas
coisas. Descobri sua dificuldade
para dormir porque há noites em
que me levanto e o encontro
sentado no escuro. O sono é ainda
um território desconhecido para
mim, como é para o meu filho.
Talvez o pai fale com ele nos
sonhos, assim como o
meu me procura. Ainda possuo a
capa do assassino, a que se diz ter
sido tecida com teias de aranha que
o ocultavam de todos os olhos.
Perdoei-o, como espero que, no
Mundo Vindouro, ele tenha me
perdoado, porque eu não

fui irrepreensível. Se fosse levada


diante dele, gostaria de
homenageá-lo, pois ele me deu a
minha vida e por isso serei sempre
grata.

Todos os anos, no aniversário da


queda da fortaleza, eu conto a
parte da história que não disse a
Silva, embora meus filhos a
conheçam de cor. Como

os soldados capturaram o leão,


mantiveram-no acorrentado e o

atormentaram, como ele esperou a


sua hora, deitado na lama, até ser
libertado, saindo livre para o
deserto, e como está lá ainda,
sozinho e solitário.

Digo que esse leão não é o rei de


outra coisa senão da própria
liberdade.

Quer o terceiro Templo seja


erguido ou não, que os homens
construam palácios ou arruínem
cidades, é o leão que terá de lutar
por uma terra de pedras. Todas as
coisas mudam, pois assim é o
mundo em que vivemos. Mas

algumas coisas permanecem


constantes, mesmo depois de terem
passado.

Digo aos meus filhos que um dia


tivemos milhares de pombas e que
depois as

libertamos, mas se olharmos para o


céu ainda poderemos vê-las, mesmo
que

estejamos muito longe.

Todos os anos, no mês de Nissan ,


Yonah e eu vamos ao rio na noite
anterior à festa que registra a
jornada do nosso povo para fora do
Egito, uma viagem que esperamos
fazer novamente algum dia, quando
Jerusalém nos pertencer outra vez.
É uma longa viagem que nos
propomos. Neste ano comemoramos
a Bênção do Sol, pois que o orbe
glorioso está exatamente no

mesmo lugar que ocupou durante a


Criação, quando Deus criou o bem
e o mal, imbuindo o nosso mundo
com ambos à mesma hora, quando
criou a palavra e nos tirou do
silêncio, para que pudéssemos
fazer as nossas próprias escolhas.
Montamos o burro branco que
mantemos no galpão. Revka e eu
nos

asseguramos de que essa criatura


seja bem tratada, pronta para o
caso de precisarmos partir de
repente. O nosso povo nunca sabe
quando terá de fugir.

Tudo o que é importante nós


carregamos conosco, esteja ou não
escrito.

Yonah é uma criança linda, embora


com o cabelo claro e os olhos

cinzentos não se pareça nada com a


mãe. Ainda assim, ela é atraída
para a

água. Eu não poderia mantê-la


afastada desse elemento mesmo que
tentasse.

Um dia, encontrei-a mergulhando


na nossa fonte do pátio onde
criamos peixes. Eles não fogem
dela, em vez disso reúnem-se ao seu
redor, assim como as pombas me
procuravam. Esse é o seu elemento,
que ela divide com Shirah,

que fez o possível para trazer essa


menina ao mundo, mesmo que
ainda não

fosse o momento, muito cedo para


fazê-lo com qualquer garantia de

segurança. Shirah sangrou tanto


que, após o parto, não teria
sobrevivido mesmo que o Anjo da
Morte não andasse entre nós
naquela noite terrível. Nós
duas sabíamos disso quando ela
bebeu a arruda e postou-se sobre a
fumaça

para provocar o nascimento. Ela


deu a vida para que Yonah tivesse a
dela.

Para aqueles que dizem que a


Bruxa de Moabe nunca amou
ninguém, que era

egoísta, preocupada apenas com o


próprio destino, só posso dizer que
se arruinou por amor, que se
entregou a ele e que deixou algo
glorioso para o
mundo, um criança que gosta de
ficar na chuva.

Nossos pés descalços afundam na


lama enquanto caminhamos por
entre

as águas do Nilo. O rio está azul-


escuro. Na margem crescem
caniços verdes e
abundantes, e um aroma de
bálsamo flutua no ar. As mulheres
lavam suas roupas e as deixam
para secar sobre rochas ao longo
da margem. Os homens

já saíram em seus barcos e os


carregam sobre os ombros, subindo
com eles pelos caminhos de areia.
Avançamos até avistar as sombras
de peixes prateados pairando por
perto. Enquanto o crepúsculo se
adensa, depositamos

uma vela sobre uma folha de lótus


que flutua na corrente e
observamos enquanto desaparece
no escuro. Essa é a razão de
estarmos aqui, para dar graças às
nossas mães, que estão cuidando de
nós no lugar onde nos juntaremos a
elas um dia, no Mundo Vindouro.

FIM

ALICE HOFFMAN nasceu em Nova


Iorque, em 1952. Autora de mais de

vinte obras de ficção, teve alguns de


seus títulos adaptados para o
cinema,

em filmes como Da magia à


sedução. Muitos de seus romances
receberam a

distinção “livro do ano” por


importantes veículos, como The New
York

Times, Entertainment Weekly, The


Los Angeles Times e revista People.
De sua autoria, a Planeta publicou
em 2011 O terceiro anjo.
Atualmente, Hoffman

divide seu tempo entre Nova Iorque


e Boston. Para mais informações
sobre

a autora, visite seu site:


www.alicehoffman.com.
Document
Outline
Epígrafe
Mapa
ÿþP
A Filha do Assassino
ÿþS
A Esposa do Padeiro
ÿþT
A Amada do Guerreiro
ÿþQ
A Bruxa de Moabe
Alexandria
A Autora

Você também pode gostar