DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS:
DIVERSIDADE E DESAFIOS
PEMBROKE COLLINS
CONSELHO EDITORIAL
PRESIDÊNCIA Felipe Dutra Asensi
CONSELHEIROS Adolfo Mamoru Nishiyama (UNIP, São Paulo)
Adriano Moura da Fonseca Pinto (UNESA, Rio de Janeiro)
Adriano Rosa (USU, Rio de Janeiro)
Alessandra T. Bentes Vivas (DPRJ, Rio de Janeiro)
Arthur Bezerra de Souza Junior (UNINOVE, São Paulo)
Aura Helena Peñas Felizzola (Universidad de Santo Tomás, Colômbia)
Carlos Mourão (PGM, São Paulo)
Claudio Joel B. Lossio (Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal)
Coriolano de Almeida Camargo (UPM, São Paulo)
Daniel Giotti de Paula (INTEJUR, Juiz de Fora)
Danielle Medeiro da Silva de Araújo (UFSB, Porto Seguro)
Denise Mercedes N. N. Lopes Salles (UNILASSALE, Niterói)
Diogo de Castro Ferreira (IDT, Juiz de Fora)
Douglas Castro (Foundation for Law and International Affairs, Estados Unidos)
Elaine Teixeira Rabello (UERJ, Rio de Janeiro)
Glaucia Ribeiro (UEA, Manaus)
Isabelle Dias Carneiro Santos (UFMS, Campo Grande)
Jonathan Regis (UNIVALI, Itajaí)
Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura. Espanha)
Leila Aparecida Chevchuk de Oliveira (TRT 2ª Região, São Paulo)
Luciano Nascimento (UEPB, João Pessoa)
Luiz Renato Telles Otaviano (UFMS, Três Lagoas)
Marcelo Pereira de Almeida (UFF, Niterói)
Marcia Cavalcanti (USU, Rio de Janeiro)
Marcio de Oliveira Caldas (FBT, Porto Alegre)
Matheus Marapodi dos Passos (Universidade de Coimbra, Portugal)
Omar Toledo Toríbio (Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru)
Ricardo Medeiros Pimenta (IBICT, Rio de Janeiro)
Rogério Borba (UVA, Rio de Janeiro)
Rosangela Tremel (UNISUL, Florianópolis)
Roseni Pinheiro (UERJ, Rio de Janeiro)
Sergio de Souza Salles (UCP, Petrópolis)
Telson Pires (Faculdade Lusófona, Brasil)
Thiago Rodrigues Pereira (Novo Liceu, Portugal)
Vania Siciliano Aieta (UERJ, Rio de Janeiro)
ORGANIZADORES
ARTHUR BEZERRA ORGANIZADORES:
DE SOUZA JUNIOR, DANIEL GIOTTI DE
CRISTIANO ANUNCIAÇÃO, DANIEL MACHADO GOMES,
PAULA, EDUARDO KLAUSNER, ROGERIO RENATO JOSÉDA
BORBA DE MORAES,
SILVA
SERGIO DE SOUZA SALLES
DIREITOS HUMANOS
JURIDICIDADE E EFETIVIDADE
DIREITOS HUMANOS E
FUNDAMENTAIS: DIVERSIDADE
E DESAFIOS
G RU PO M U LT I FO CO
Rio de Janeiro, 2019
PEMBROKE COLLINS
Rio de Janeiro, 2021
Copyright © 2021 Cristiano Anunciação, Daniel Machado Gomes, Renato José de Moraes,
Sergio de Souza Salles (org.)
DIREÇÃO EDITORIALFelipe Asensi
EDIÇÃO E EDITORAÇÃO Felipe Asensi
REVISÃO Coordenação Editorial Pembroke Collins
PROJETO GRÁFICO E CAPA Diniz Gomes
DIAGRAMAÇÃO Diniz Gomes
DIREITOS RESERVADOS A
PEMBROKE COLLINS
Rua Pedro Primeiro, 07/606
20060-050 / Rio de Janeiro, RJ
[email protected]
www.pembrokecollins.com
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes
sem autorização por escrito da Editora.
FINANCIAMENTO
Este livro foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, pelo
Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), pelo Conselho Internacional de Altos
Estudos em Educação (CAEduca) e pela Pembroke Collins.
Todas as obras são submetidas ao processo de peer view em formato double blind pela Editora e, no caso
de Coletânea, também pelos Organizadores.
D598
Direitos humanos e fundamentais: diversidade e desafios /
Cristiano Anunciação, Daniel Machado Gomes, Renato José de
Moraes e Sergio de Souza Salles (organizadores). – Rio de Janeiro:
Pembroke Collins, 2021.
948 p.
ISBN 978-65-87489-97-1
1. Direitos fundamentais. 2. Direitos humanos. 3. Direitos civis.
I. Anunciação, Cristiano (org.). II. Gomes, Daniel Machado (org.). III.
Moraes, Renato José de (org.). IV. Salles, Sergio de Souza (org).
CDD 342.7
Bibliotecária: Aneli Beloni CRB7 075/19.
SUMÁRIO
ARTIGOS – CRIANÇA E ADOLESCENTE 19
OS DIREITOS DA INFÂNCIA: REPENSANDO ESTRUTURAS BÁSICAS DO
SER CRIANÇA 21
Bruno Gabriel Gomes Cardoso
QUANDO A CASA É O ABRIGO: EXPERIÊNCIAS DE ADOLESCENTES
INSTITUCIONALIZADAS 33
Keila Renata de Brito Frederichi
REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL COMO FOCO DA CRISE
DE SEGURANÇA PÚBLICA E O HABEAS CORPUS COLETIVO SOBRE A
SUPERLOTAÇÃO DAS UNIDADES SOCIOEDUCATIVAS. 50
Isadora Warken Collet
OS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES: UM DIREITO
FUNDAMENTAL 56
Maria Leonildes Boavista Gomes Castelo Branco Marques
Ney Fayet de Souza Júnior
Thania Maria Bastos Lima Ferro
Maria Isabel Boavista Gomes Castelo Branco
ROSA É COR DE MENINA: A IMPOSIÇÃO DE ESTEREÓTIPOS PELA
ENTIDADE FAMILIAR NA EDUCAÇÃO DO MENOR 74
Larissa Lassance Grandidier
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
DURANTE A PANDEMIA 85
Heloísa Izabel Alves D’Assunção
Isabela Stephanie Freitas Leles
POSSIBILIDADE DE DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE À LUZ DO
PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 103
Júlia de Magalhães Medeiros Fernandes
A INCONVENCIONALIDADE DO INSTITUTO DA OITIVA INFORMAL NA
JUSTIÇA PENAL JUVENIL 120
Lucas Bécsi Valiengo
A EFICÁCIA DA LEI SINASE NA APLICABILIDADE DAS MEDIDAS
SOCIOEDUCATIVAS 133
Maria Lenir Rodrigues Pinheiro
Nina Soraya Pinheiro de Jesus
DIREITO À VISITA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM ESPAÇOS DE
PRIVAÇÃO DA LIBERDADE 151
Islene Gomes Mateus Castelo Branco
Thaywane do Nascimento Gomes
A AUDIÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DO ADOLESCENTE: A BANDEIRA DAS
GARANTIAS E A ANALOGIA AO DIREITO PENAL APENAS QUANDO CONVÉM 166
Jenifer Natasha Sodré Rodrigues
VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – INFÂNCIA E JUVENTUDE 184
Filiciana Ferreira Silva
CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INTRAFAMILIAR: REPRODUÇÃO E INTERVENÇÃO SOCIAL NO CONTEXTO
ESCOLAR 196
Thamira Freitas dos Santos
UMA PROPOSTA PARA A PROTEÇÃO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE: POR
MEIO DE DOAÇÕES DO IMPOSTO SOBRE AS RENDAS 214
Julio Ferreira de Andrades
EFETIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA:
URGÊNCIA DA PRIMEIRA INFÂNCIA 231
Michel Ernesto Flumian
ARTIGOS – DIREITO DOS ANIMAIS 249
FAMÍLIA MULTIESPÉCIE E ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: A
QUEM CABE A GUARDA DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO NOS CASOS DE
DIVÓRCIO 251
Jamile Mann
Ana Paula Torres
A INTEGRIDADE (?) NAS DECISÕES DO STF ENVOLVENDO VEDAÇÃO DE
CRUELDADE AOS ANIMAIS 266
Poliana Riquele R. S. Lemos
EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO DIREITO ANIMAL NO BRASIL: RUMO AO
RECONHECIMENTO DA DIGNIDADE ANIMAL? 283
Luiz Roclayton Nogueira Bastos
ARTIGOS – DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO 303
DIREITO DE PERSONALIDADE DOS TRANSGÊNEROS 305
Dália Oliveira dos Santos
Guilherme Henrich Benek Vieira
MULHERES NA PANDEMIA: VIOLÊNCIAS CONTÍNUAS E CRESCENTES 316
Andréa Kelmer de Barros
A COISIFICAÇÃO E INFERIORIZAÇÃO DA MULHER NA PORNOGRAFIA E A
VIOLÊNCIA DE GÊNERO 332
Ana Carolina Lima Silva
SOBRE EDUCAÇÃO E ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 350
Amanda Stafanato Verediano
A POTESTADE DA HETERONORMATIVIDADE NA HISTÓRIA PORTUGUESA:
UMA ANÁLISE DAS CULPAS DE SOLICITAÇÃO E SODOMIA NO TRIBUNAL
DA INQUISIÇÃO DE LISBOA 365
Camila Franco Henriques
A SITUAÇÃO ATUAL DA COMUNIDADE LGBTQI+ NA POLÔNIA: ANÁLISE
LEGISLATIVA COMPARATIVA COM O BRASIL 382
Ana Carolina Menezes de Oliveira
Luciana Costa Ferreira. Advogada
Mariana Rocha Barreto
Sarah Stefanie Santana Rabelo
ARTIGO – CIDADES E CAMPOS 397
EDUCAÇÃO E TRABALHO: UMA LEITURA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A PARTIR DO JOVEM SERTANEJO NO ESTADO DE SERGIPE 399
Isabela Gonçalves de Menezes
João Claudio da Conceição
ARTIGO – IMIGRAÇÃO 419
INTEMPÉRIES NA VIDA DAS MULHERES MIGRANTES: A ENTREGA
FORÇADA DOS FILHOS PARA ADOÇÃO 421
Odisséia Aparecida Paludo Fontana
Sílvia Ozelame Rigo Moschetta
Thaís de Conto
ARTIGOS – INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL 439
O USO DESREGULAMENTADO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL GERANDO
A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E DO PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE HUMANA. 441
Ayla Santana Soares
Any Ávilla Assunção
Antônio Marcos Melo Guedes
O SISTEMA WATSON NA ADVOCACIA 4.0 452
Dieimes Laerte De Souza
Ligia Bueno Asperti
Nelson Rodrigues
Priscilla Hiroko Shimada Pito
ENSINO JURÍDICO NO BRASIL – CONTEXTO ATUAL E ALTERNATIVAS DE
MODERNIZAÇÃO COM O USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL 470
Cristina Dal Sasso
ARTIGOS – MINORIAS 483
DESCONTINUIDADE DE AÇÕES PÚBLICAS NA SAÚDE INDÍGENA: O
PODER JUDICIÁRIO E AS CHAGAS INSTITUCIONALIZADAS 485
Déborah Crysttina Pereira da Silva
ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DO BPC-NA ESCOLA NA CIDADE DE
ARAGUAÍNA-TOCANTINS 504
Nagila Maria Pereira Silva
Geraldo Alves Lima (Or.)
RELIGIÃO E RESILIÊNCIA EM PRESÍDIO FEMININO DE FRONTEIRA BRASIL-
BOLÍVIA 525
Marciene Rita da Silva de Amorim
Claúdia Araújo de Lima
ONDE ESTÁ O ESTADO LAICO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A
DIVERSIDADE? UM ESTUDO DE CASO DA POLÊMICA EM TORNO DO “KIT
ANTIHOMOFOBIA” 542
Marcus Alberto Moura Maciel
POVOS INDÍGENAS: A DEMARCAÇÃO DE TERRAS COMO DIREITO
FUNDAMENTAL 562
Carlos Augusto Almeida de Jesus
DESAFIOS ENFRENTADOS PELA COMUNIDADE LGBTQIA+ NO ACESSO À
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL 576
Anna Luiza Fragoso Guimarães Costa
Ana Gabriela Gomes de Miranda Linhares
Emílio Pires Diniz Neto
Denise Mota Araripe Pereira Fernandes
BRASIL: O AUTORITARISMO BOLSONARISTA E O ESVAZIAMENTO
DEMOCRÁTICO 587
Débora Monteiro Soroldani
UM DIÁLOGO ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E AS REDES
SOCIAIS: A TUTELA DAS MINORIAS DIANTE DAS NOVAS FORMAS DE
HUMOR VIRTUAL 603
Taís Mota Vaz
A PRODUÇÃO DE VIDA NUA NO DISCURSO MÍDIATICO: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA A PARTIR DO SUJEITO DESABRIGADO 621
Daniel Fernandes Soares
A IGUALDADE ESCULPIDA NO MICROSSISTEMA DO ESTATUTO DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA 637
Jamile Sumaia Serea Kassem
ARTIGOS – MOVIMENTOS SOCIAIS 649
O OLHAR PARA O AGRESSOR NA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
TRABALHANDO PARA A NÃO REINCIDÊNCIA E A NÃO REPRODUÇÃO
VIOLENTA. 651
Andréa de Sousa Galliza Mitchell de Morais
LUTAS SOCIAIS NO BRASIL EM TEMPOS DE CRISE DO CAPITAL E CRISE
SANITÁRIA 663
Bruna Almeida Cabral
Bruna Menezes Guedes
Pollyanna Labeta Iack
Gilsa Helena Barcellos
ARTIGO – NACIONALIDADE 679
ENTENDIMENTO DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
SOBRE UMA DAS EXCEÇÕES PARA A PERDA DA NACIONALIDADE:
ANÁLISE DE DECISÃO 681
Mariana Moron Saes Braga
Maria Carolina Cisotto Bozzo
Victoria Mossini Augusto
ARTIGOS – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 697
JOÃO SALDANHA: UM COMUNISTA NA SELEÇÃO BRASILEIRA
DE FUTEBOL DURANTE O GOVERNO MILITAR: DA DITADURA A
REDEMOCRATIZAÇÃO. FUTEBOL NA SOCIEDADE COMO FATOR
DEMOCRATICO (1966 – 1990) 699
Marcelo de Azevedo Zanotti
OS CONSELHOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO PERÍODO PANDÊMICO:
SEGMENTO SANITÁRIO, EDUCACIONAL E INFANTOJUVENIL 714
Marcos Vinicius de Sousa Rocha Gomes
A DEMANDA E ATUAÇÃO DAS ENTIDADES DE REPRESENTAÇÃO DOS
FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS FEDERAIS NA COMISSÃO DE LEGISLAÇÃO
PARTICIPATIVA. 731
Thiago Gonçalves do Carmo
O ABUSO DE PODER RELIGIOSO NA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL 746
Raíssa Paula Martins
ARTIGOS – REFUGIADOS 763
PROTEÇÃO, INSERÇÃO E INTEGRAÇÃO LOCAL DOS REFUGIADOS NO
BRASIL 765
Thiago Augusto Lima Alves
DIREITOS HUMANOS E AS NOVAS QUESTÕES SOCIAIS: EM BUSCA DA
PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS 783
João Moreira Júnior
Angela Maria Pelizer de Arruda
ARTIGOS – RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E MULTICULTURALISMO 795
O ENCARCERAMENTO DE MULHERES NEGRAS NO BRASIL E NO
ESPÍRITO SANTO E A POLÍTICA SOBRE DROGAS 797
Bruno Lopes da Silva
Dilelcia de Freitas Reis
Gilsa Helena Barcellos
Jônatas Corrêa Nery
PRÁTICA PEDAGÓGICA ANTIRRACISTA COMO GARANTIA DE DIREITOS
DOS ALUNOS AFRO-BRASILEIROS 811
Rosangela Coêlho Costa
A CULTURA COMO PERSPECTIVA FUNDAMENTAL PARA A
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS 823
Belisa Carvalho Nader
ARTIGOS – TECNOLOGIA 837
CHAT EDUCACIONAL: UMA FERRAMENTA POTENCIAL PARA O
PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM 839
José Batista de Souza
Manoel Rodrigues de Abreu Matos
TECNOLOGIAS DIGITAIS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UMA ANÁLISE
DO CURSO FORMAÇÃO DOCENTE: APLICABILIDADE DO G SUITE FOR
EDUCATION – MÓDULO 2 853
José Batista de Souza
Manoel Rodrigues de Abreu Matos
RESUMOS 871
ECA 30 ANOS: AS CONQUISTAS E OS DESAFIOS ENFRENTADOS EM
TEMPOS DE PANDEMIA. 873
Higor da Silva Gomes
A (DES)PROTEÇÃO DE CRIANÇAS QUE COMETEM ATOS INFRACIONAIS:
DEBATES INICIAIS 877
Islene Gomes Mateus Castelo Branco
Thaywane do Nascimento Gomes
ADOÇÃO TARDIA NO BRASIL: O DESAFIO DA REINSERÇÃO FAMILIAR. 881
Aline Mariano da Silva
MICROCEFALIA E COVID-19: IMPORTÂNCIA FAMILIAR NO DIREITO À
SAÚDE DE CRIANÇAS DURANTE A PANDEMIA 886
Davi Lima Matos
Maria Clara Mascarenhas Alguz
A PROTEÇÃO ANIMAL COMO DEVER DE FRATERNIDADE: EMPATIA
ENTRE ESPÉCIES 892
Alexandra Fonseca Rodrigues
FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS E SUA REPRESENTATIVIDADE NA SOCIEDADE
BRASILEIRA 897
Eloiza Alessandra Gomes de Lima
DIREITOS LGBTI NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS:
ABORDAGEM BASEADA NO CASO "ATALA RIFFO E MENINAS VERSUS CHILE” 901
Gabriel Araújo Monteles
Josanne Cristina Ribeiro Ferreira Façanha
COLONIALIDADE DO DIREITO: PROPRIEDADE PRIVADA E GÊNERO NA
SOCIEDADE PATRIARCAL. 907
Isabele Auguso Vilaça
Laura Loureiro Gomes
RECRIMINAÇÃO DO HOMOSSEXUAL NEGRO: IMPACTO PSICOSSOCIAL
EM SUA CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADE. 913
Adriano José Lopes
PROCESSO, TECNOLOGIA E RISCOS 917
Katiusce Pereira Alves Rocha
A FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS AOS INDÍGENAS: A NECROPOLÍTICA E
A PREVENÇÃO AO EXTERMÍNIO ÉTNICO CULTURAL. 922
Robson Martins
Érika Silvana Saquetti Martins
DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA DE GÊNERO: BREVES CONCEITUAÇÕES 927
Ana Paula Mafia Policarpo Pereira
A IMPORTÂNCIA DA INFLUÊNCIA SÓCIO-POLÍTICA DOS MOVIMENTOS
SOCIAIS EM FACE DA ATUAL CRISE DE DEMOCRACIA NO BRASIL 933
Fernanda Lima Alves
A INSERÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO SISTEMA DE
GARANTIA DOS DIREITOS NA AMÉRICA DO SUL 937
Marcos Vinicius de Sousa Rocha Gomes
A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA FEMININA E A LUTA POR IGUALDADE DE
GÊNEROS 942
Stéfany Maria Perez de Oliveira
CONSELHO CIENTÍFICO DO CAED-JUS
Adriano Rosa (Universidade Santa Úrsula, Brasil)
Alexandre Bahia (Universidade Federal de Ouro Preto,
Brasil)
Alfredo Freitas (Ambra College, Estados Unidos)
Antonio Santoro (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil)
Arthur Bezerra de Souza Junior (Universidade Nove de Julho, Brasil)
Bruno Zanotti (PCES, Brasil)
Claudia Nunes (Universidade Veiga de Almeida, Brasil)
Daniel Giotti de Paula (PFN, Brasil)
Danielle Ferreira Medeiro da (Universidade Federal do Sul da Bahia,
Silva de Araújo Brasil)
Denise Salles (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Edgar Contreras (Universidad Jorge Tadeo Lozano,
Colômbia)
Eduardo Val (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Felipe Asensi (Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil)
Fernando Bentes (Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Brasil)
Glaucia Ribeiro (Universidade do Estado do Amazonas,
Brasil)
Gunter Frankenberg (Johann Wolfgang Goethe-Universität -
Frankfurt am Main, Alemanha)
15
João Mendes (Universidade de Coimbra, Portugal)
Jose Buzanello (Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil)
Klever Filpo (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Luciana Souza (Faculdade Milton Campos, Brasil)
Marcello Mello (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Maria do Carmo Rebouças dos (Universidade Federal do Sul da Bahia,
Santos Brasil)
Nikolas Rose (King’s College London, Reino Unido)
Oton Vasconcelos (Universidade de Pernambuco, Brasil)
Paula Arévalo Mutiz (Fundación Universitária Los Libertadores,
Colômbia)
Pedro Ivo Sousa (Universidade Federal do Espírito Santo,
Brasil)
Santiago Polop (Universidad Nacional de Río Cuarto,
Argentina)
Siddharta Legale (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil)
Saul Tourinho Leal (Instituto Brasiliense de Direito Público,
Brasil)
Sergio Salles (Universidade Católica de Petrópolis,
Brasil)
Susanna Pozzolo (Università degli Studi di Brescia, Itália)
Thiago Pereira (Centro Universitário Lassale, Brasil)
Tiago Gagliano (Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, Brasil)
Walkyria Chagas da Silva Santos (Universidade de Brasília, Brasil)
16
APRESENTAÇÃO - SOBRE O CAED-Jus
O Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito (CAE-
D-Jus) é iniciativa consolidada e reconhecida de uma rede de acadêmicos
para o desenvolvimento de pesquisas jurídicas e reflexões interdisciplina-
res de alta qualidade.
O CAED-Jus desenvolve-se via internet, sendo a tecnologia par-
te importante para o sucesso das discussões e para a interação entre os
participantes através de diversos recursos multimídia. O evento é um dos
principais congressos acadêmicos do mundo e conta com os seguintes di-
ferenciais:
• Abertura a uma visão multidisciplinar e multiprofissional sobre o
direito, sendo bem-vindos os trabalhos de acadêmicos de diversas
formações;
• Democratização da divulgação e produção científica;
• Publicação dos artigos em livro impresso no Brasil (com ISBN),
com envio da versão ebook aos participantes;
• Galeria com os selecionados do Prêmio CAED-Jus de cada edição;
• Interação efetiva entre os participantes através de ferramentas via
internet;
• Exposição permanente do trabalho e do vídeo do autor no site
para os participantes;
• Coordenadores de GTs são organizadores dos livros publicados.
O Conselho Científico do CAED-Jus é composto por acadêmicos
de alta qualidade no campo do direito em nível nacional e internacional,
17
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
tendo membros do Brasil, Estados Unidos, Colômbia, Argentina, Portu-
gal, Reino Unido, Itália e Alemanha.
Em 2020, o CAED-Jus organizou o Congresso Interdisciplinar
de Direitos Humanos e Fundamentais (CDHF 2020), que ocorreu
entre os dias 02 a 04 de dezembro de 2020 e contou com 60 Áreas Te-
máticas e mais de 380 artigos e resumos expandidos de 62 universidades
e 34 programas de pós-graduação stricto sensu. A seleção dos trabalhos
apresentados ocorreu através do processo de peer review com double blind, o
que resultou na publicação dos livros do evento.
Esta publicação é financiada por recursos da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), do Conselho Interna-
cional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), do Conselho Interna-
cional de Altos Estudos em Educação (CAEduca) e da Editora Pembroke
Collins e cumpre os diversos critérios de avaliação de livros com excelên-
cia acadêmica nacionais e internacionais.
18
ARTIGOS – CRIANÇA E
ADOLESCENTE
19
OS DIREITOS DA INFÂNCIA:
REPENSANDO ESTRUTURAS BÁSICAS
DO SER CRIANÇA
Bruno Gabriel Gomes Cardoso1
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos a educação infantil ganhou um olhar muito sensível
e composto por pensamentos pontes que visavam e visam construir uma
estrutura básica da educação; tivemos em 2012 a homologação da BNCC2
com um espaço bastante potente quanto a educação infantil, componentes
curriculares que contribuíram para nortear a educação e seus pensamentos
pedagógicos dos professores e professoras. É importante ressaltar que a
BNCC ganha um espaço caridoso no olhar da educação infantil e neste
olhar singular ganha uma característica importante que é a da solidificação
1 Atualmente é professor de educação infantil da Associação Clube de Mães. Tem experiên-
cia na área de Educação Pré-Escolar. Formado pelo Curso Normal/Habilitação Profissional
Plena para o Magistério, como Professor de Educação Básica - Anos Iniciais e Educação In-
fantil. Graduando no curso de Licenciatura em Pedagogia, IFRS- Campus Alvorada e membro
do Grupo de Estudo de Paulo Freire do IFRS - Campus Alvorada. Estudioso sobre a repre-
sentatividade de homens na Educação Infantil; Pesquisador Autônomo sobre a Formação
Continuada e Permanente - Humanística e pesquisador crítico da Pedagogia com a temática
do educar em Biofilia. Hodiernamente integrante do grupo de pesquisadores e estudantes
de Grupo de Estudos PAULO FREIRE, AS CRIANÇAS E O CHÃO DO MUNDO!
2 A Base Nacional Comum Curricular define os direitos de aprendizagens de todos os alunos
do Brasil.
21
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
de políticas que tentam empreitar e qualificar uma educação sistêmica e
potente para as nossas crianças.
Por isso o artigo assume esse papel de dialogar sobre os diretos da
criança a partir daquilo que chamamos de infância, infância que é nada
mais e nada menos parte natural das crianças nossas. No entanto, a re-
flexão a seguir não tem intuito nenhum de concluir uma análise, mas de
contrapor esse pensamento definidor da função da criança (como criança
só sabe brincar), descaracterizando todo e qualquer tipo de reflexão autô-
noma que os pequenos e pequenas vão nos demonstrando a partir do seu
jeito de ser.
Busca-se aqui, teoricamente com alguns pensadores, identificar que
a identidade da criança se dá na infância e por isso assegurar o seu direito
de expressar-se - e todos os verbos de ação que vão sendo colocados neste
texto vão dar a compreensão da garantia desse direito.
Este texto analisa as experiências vivenciadas empiricamente e refle-
tidas pelo escritor, que também é professor de crianças de quatro/cinco
anos em uma instituição filantrópica de educação infantil. Todas as rela-
ções que se estabelecem são para criar novos pensares sobre o que é direito
da criança, o qual necessita ser debatido e conversado em todas as rodas de
forma bem espiral, crescente e que potencialize criticamente a compreen-
são de todos os educadores e adultos. São três títulos enraizados como
árvores antigas que teçam por baixo da terra, dessa maneira também o
texto se enraíza nas didáticas da escuta e proporciona um diálogo consigo
mesmo para que todos e todas possam ter uma experiência de ressignificar
as estruturas da infância.
1. OLHAR CRÍTICO SOBRE A FUNÇÃO DA CRIANÇA
Por muito tempo se pensava que a criança era alguém que se resu-
mia apenas em brincar, ser cuidada e ser simplesmente ensinada por um
adulto, esse que tinha a peculiar função como dono e responsável da vida
desse indivíduo. Pensar na criança é lembrar de alguns marcos históricos
que olhavam a criança como alguém que não sabia de nada, que era uma
superfície, ou melhor, um receptáculo vazio e que se exigia a necessidade
de ser preenchida e essa necessidade logo era sujeitada ao ensinar da mãe,
ou à educadora.
22
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Nos deparamos com essas reflexões de que a criança simplesmente
só brinca e esse “achismo” acaba desvalorizando o brincar, pois é muito
pouco, como é algo muito cru; cru no sentido de que resume a infância
no brincar, esse resumidor não está preparado para uma reflexão e dar
uma assertiva resposta. Por isso repito: é muito pouco definir a criança
como reprodutora e brincante. Vale aqui dizer que a criança é sim uma
bela brincante, mas é importante revelar o que esse brincar proporciona,
portanto, ao lermos teóricos, estudos sobre a importância, ouvirmos pro-
fessoras que debruçam os estudo sobre a criança e seu jeito de ser, vamos
abrindo as caixinhas do saber, para ir compreendendo essa essência que é
da infância, que é o brincar.
Entretanto, nos vale alinhar o pensamento de que a criança é um ser
único e plural, ou seja, está em diversos lugares, sob diversas realidades,
de diversas cores, formas, gostos etc., porém ela é singular porque não
encontramos outra igual, pode nos parecer clichê, mas é importante re-
conhecer a potencialidade única de cada ser. E a partir disso é importante
discutir aquilo que Dallari e Korczac (1986), nos desvelaram sobre a im-
portância do adulto na vida da criança, dizendo que:
“A preocupação com a proteção da criança não deve servir de pre-
texto para anulação de sua criatividade, assim como a indiferença
pela criança não pode ser confundida com o respeito por sua liber-
dade. É preciso que se conjuguem ambos, a proteção e o respeito,
para que a criança possa exercer em toda plenitude, o seu direto
de viver. E viver é participar da vida, é acrescentar alguma coisa à
criação, é imprimir sua marca no mundo criado. Desse modo, o
exercício do direito à vida deve ser constante prática do pensar, do
falar e do agir, da expressão livre do diálogo” [...] (DALLARI E
KORCZAC, 1986, p. 53)
É muito interessante esse alerta que Dallari e Korczac nos levam a
pensar sobre a nossa importância na vida das crianças e na sua vivência da
infância, a preocupação está em se nós, adultos, proporcionamos meios e
condições potentes e possíveis para que a criança cresça e evolua, para que
possa ter experiências reais e concretas a partir de suas interações ao viver
23
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
o mundo, ou seja, desse indivíduo poder realizar aquilo que é próprio de
sua infância e de ser criança.
O curioso aqui está na não anulação da criatividade e da experimen-
tação, é não olhar com indiferença, mas potencializar aquilo que a criança
está nos demostrando, por isso zelar por sua liberdade de ser, de criar e
construir é importante. Como disse em parágrafos anteriores, é muito
pouco, é muito insignificante afirmarmos que a criança é uma reprodu-
tora, pois elas e eles não só reproduzem, mas produzem a realidade, elas e
eles recriam, recontam, contam três vezes a mesmíssima coisa, mas com
novidade e potencialidade, a fim de nos educar, Borba (2007) já nos dizia:
[...] o brincar é um dos pilares da constituição de culturas da in-
fância, compreendidas como significações e formas de ação social
específicas que estruturam as relações das crianças entre si, bem
como, os modos pelos quais interpretam, representam e agem
sobre o mundo. Essas duas perspectivas configuram o brincar ao
mesmo tempo como produto e prática cultural, ou seja, como pa-
trimônio cultural, fruto das ações humanas transmitidas de modo
inter intrageracional, e como forma de ação que cria e transforma
significados sobre o mundo. (BORBA, 2007, p.33).
Então é mais do que necessário compreender essa potencialidade do
produzir e do brincar, pois como Borba menciona, este é o PILAR, que
conta história e constitui as narrativas culturais. Neste trecho compreen-
de-se que as relações são fundantes para representar o mundo.
Esse olhar crítico que convido cada uma e cada um a fazer é na di-
mensionalidade que nos compete como adultos no que diz respeito aos
pequenos e pequenas, isto é, o nosso olhar deve ser de compreensão de
que ambas realidades são diferentes, no entanto dialogam uns com os ou-
tros: adultos com crianças, crianças com adultos.
Por isso é muito preocupante definirmos a função como certa, exata
do que é e o que significa a criança e sua infância; qual o papel então da
criança? Pois bem, perguntemos a ela! Façamos o exercício de ouvir o que
elas e eles têm a nos dizer. Como dizia Corsino e Santos (2007):
É no processo de apreensão da palavra do outro que vamos cons-
tituindo a nossa consciência. Neste processo, os enunciados – que
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
ouvimos e que proferimos – não só falam de nós, como também
exprimem e alimentam a ideologia do cotidiano. Nas interações
entre crianças e adultos e entre as próprias crianças no interior das
instituições estudadas a palavra do outro é constituinte. O que a
palavra do outro revela? O que o outro se diz a partir dela? No co-
tidiano das turmas de Educação Infantil há um intenso processo de
trocas verbas e não-verbais. A materialidade e a estética dos espaços
também funcionam como signo ideológico e se somam às intera-
ções. O cotidiano é diverso e polifônico. São muitas as vozes que
se confrontam, muitos são os significados apreendidos no campo
(CORSINO; SANTOS, 2007, p.6)
São nos processos de escuta sensível que vamos compreendendo a
criança e o que é a realidade da infância de cada um e cada uma, porém
é um ato mais que político, é um ato humanístico de conhecimento
biofílico das infâncias, ou seja, compreende por elas o que é essencial.
Corsino e Santos ousam afirmar com potencialidade que são vozes que
se confrontam e essas vozes dão sentido e significado naquele meio, na-
quele campo.
E Fernandes (2004) vais completar dizendo que:
[...] se a história da criança não é possível de ser narrada em pri-
meira pessoa, se a criança não é nunca biógrafa de si própria, na
medida em que não toma posse de sua história e não aparece
como sujeito dela, sendo o adulto quem organiza e dimensiona
tal narrativa, talvez a forma mais direta de percepcionar a criança,
individualmente ou em grupo, seja precisamente tentar captá-la
com base nas significações atribuídas aos diversos discursos que
tentam definir historicamente o que é ser criança (FERNAN-
DES, 2004, p.15).
Encaixa-se muito bem, pois toda fala é carregada de historicidade que
é impossível ser narrada. Então, volto aqui dizer que é muito pouco uma
definição da função da criança, pensando que esse resumidor estereotipa-
do faz dar má compreensão das coisas, porém é importante entender que
sua primazia infantil é direito.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
1.1. OS DIREITOS DAS INFÂNCIAS
Pois bem, por que iniciei problematizando ou contextualizando a
função da infância? Porque queria iniciar que nos remetemos às estruturas
que estabelecem a criança, que é o brincar, comer e dormir, e nesse meio
a criança vais sendo educada, cuidada, zelada, etc.
A primeira infância é uma idade essencial para nosso desenvolvimen-
to social e humano, pois é nesse período que as interações estão mais hipe-
rativas, ou seja, estão, mas aguçadas em buscar se relacionar com o mundo
e a criança está querendo ir além dos seus limites, está amadurecendo.
Garantir a sua integridade, sua liberdade de experimentar as coisas
é uma fase muito importante. E o que gostaria de alertar é que propor a
liberdade e deixar ela experimentar oportuniza que a criança faça e sinta-
-se evoluindo; é um processo de testagem, e esse processo se dá no querer
pular, no pular e cair, no cair e se machucar, etc., porém nós, adultos,
estamos muito preocupados com a aparência do zelo, ou seja, estamos as-
soberbados de zelo, e não deixamos as crianças se machucarem, testarem,
ou melhor, viverem o que é próprio da sua realidade atual/fase/período.
A infância é importante pois é o momento onde os campos físicos,
psíquicos, lógicos e outras tantas variáveis estruturais estão se desenvol-
vendo e sendo formadas, por isso cabe aqui dizer que é DIREITO da
criança: BRINCAR, PULAR, GRITAR, CAIR, CHORAR, SOR-
RIR, DANÇAR, DORMIR, COMER, TENTAR, EXPERIMEN-
TAR, SONHAR, CONTRUIR, PRODUZIR E REPETIR. Tantos
verbos lindos, ativos e potentes que garantem o direito da infância. Na
carta da Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, nos diz
que:
Princípio 7. A criança terá direito a receber educação, que será
gratuita e compulsória pelo menos no grau primário. Ser-lhe-á
propiciada uma educação capaz de promover a sua cultura geral e
capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver
as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de res-
ponsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da so-
ciedade. Os melhores interesses da criança serão a diretriz a nortear
os responsáveis pela sua educação e orientação; esta responsabilida-
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de cabe, em primeiro lugar, aos pais. A criança terá ampla oportu-
nidade para brincar e divertir-se, visando os propósitos mesmos da
sua educação; a sociedade e as autoridades públicas empenhar-se-
-ão em promover o gozo deste direito. (Declaração Universal dos
Direitos da Criança, 1959, p.1)
Mas é importante assegurar o direito da criança de brincar, ser cuida-
da e ter tantos outros direitos que estão garantidos no próprio Estatuto da
Criança e do Adolescente/ECA (2016), nos afirmando que:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fun-
damentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por
outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes fa-
cultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,
em condições de liberdade e de dignidade.Parágrafo único. Os di-
reitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adoles-
centes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade,
sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição
pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica,
ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que
diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.
(Estatuto da Criança e do Adolescente incluído pela Lei nº 13.257,
de 2016, p.15)
Tanto a Declaração Universal quanto o ECA nos ajudam a perceber
que a criança (e o adolescente) precisa ser vista como um ser de direito,
direito que é de SER! De TER! E direito ao que é mais importante para
este indivíduo que é o BRINCAR, aquela característica simples, porém
profunda, promovendo o direito da infância. É importantíssimo destacar
uma reflexão: “O BRINCAR NÃO É PREPARAÇÃO PARA NADA,
MAS PARA VIVER BEM E BEM VIVER”3, como dizia a professora
Rita Morais na IIIº Jornada de Amor às Infâncias (ano de 2020).
3 Frase retirada da 3º jornada de amor as infâncias: frase cuja dita pela professora Rita Mo-
rais, bióloga e professora de educação infantil.
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O BRINCAR não tem tempo, não tem elaboração, não tem re-
gra, ordem; mas tem um jeito único que nós adultos não conse-
guimos narrar, mas observar e admirar, por isso é tão importante
observarmos nossas estruturas de pensamentos e repensá-las, para
que não mudemos a infância, mas permitamos a liberdade necessá-
ria que é para toda criança, pois é mais que essência, é DIREITO!
1.1.1. REPENSANDO ESTRUTURAS BÁSICAS DO SER
CRIANÇA
Quando olhamos para o filme da invenção da infância, vemos uma
realidade totalmente dura, totalmente cruel, uma esfera desumana que
tira todo e qualquer encantamento que temos sobre o que seria crianças
vivendo sua infância. Porém nos põe em xeque a demarcação de ques-
tionamento do que é ter infância? Qual o direito da criança? Pois o que
vemos são crianças na extrema miséria, extrema desigualdade e na inser-
ção da mão de obra barata. Já em outra esfera, vamos ver crianças sadias,
crianças sem necessidades físicas, e com uma estruturação razoavelmente
boa. No entanto, são crianças cheias de compromissos, lotada de afazeres
diários e com responsabilidades de adultos.
O que vemos das nossas crianças é o que vemos das nossas infâncias?
O direito que eu tinha é o mesmo direto que todas as crianças têm? São
dificílimas reflexões, pois como vivi minha infância e provavelmente foi
bem diferente de todas as outras crianças, pois as realidades conjugam-
-se diferentes. Cada infância toma o seu caminho, diante das condições
e realidades distintas. Mas quando comento sobre o filme da invenção
da infância, quero trazer aqui que nem sempre as crianças foram pensa-
das como seres que necessitavam ter infância, essa infância que todos nós
defendemos, principalmente os educadores que defendem a garantia da
criança brincar. Mas, muito mais antigamente do que atualmente; essas
crianças eram filhas e filhos de pais e mães que tinham mais de dois, ou
três filhos, e que viam essas crianças como trabalhadoras que ajudariam
nas questões financeiras da casa.
Será que esse era o pensamentos dos pais e mães? Bem provável que
não, mas fica na incerteza, porque somos incapazes de saber verdadeira-
mente o que cada um pensa, mas voltando a ideia de que provavelmente
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esse não deveria ser o sonho daquele ou daquela, cujo pai/mãe necessita
que o filho trabalhe na roça para sustentar a família. Mas provavelmente
esse era o único meio, única condição que lhe cabia. É interessante ressal-
tar que essa condição era tão somada ao desvalor humano que as famílias
perdiam mais de um, dois filhos por questões de doenças e de falta de as-
sistência de saúde pública, e essa peculiaridade que traço aqui não é só de
uma região, mas de muitas outras e de muitos outros países.
Mas essa estrutura mudou, está mudando aos poucos, em alguns lu-
gares retrocedendo, são tantas tentativas de potencializar a educação, a
qualidade de saúde pública, o mercado de trabalho e tantas outras necessi-
dades específicas do povo brasileiro e até mesmo outras realidades. Porém,
o pensar na infância ainda é tão escasso, ainda podemos observar alguns
relatos, como o site de Brasil de Fato4 revela que: “Somente em 2019,
das mais de 159 mil denúncias de violações a direitos humanos recebidas
pelo Disque 100, mais de 4,2 mil desses registros eram relacionados ao
trabalho ilegal de crianças e adolescentes”. Quão perigoso é ainda afir-
mar que os direitos das crianças e do adolescente estão garantidos depois
da lei do ECA? Se afirmamos isso, estamos vedando nossos olhos para a
realidade.
Por isso é crucial repensarmos nas estruturas básicas das infâncias, nas
garantias de escola, na assistência educacional, numa secretaria potente,
nos conselhos tutelares e tantos outros órgãos que trabalham arduamente
para atender essas denúncias. Freire (2015) nos prova elucidando que:
Jamais me senti inclinado, mesmo quando me era ainda impossível
compreender a origem de nossas dificuldades, a pensar que a vida
era assim mesma, que o melhor a fazer diante dos obstáculos seria
simplesmente aceitá-los como eram. Pelo contrário, em tenra ida-
de, já pensava que o mundo teria de ser mudado. Que havia algo
errado no mundo que não podia nem devia continuar. (FREIRE,
2015, p. 41)
4 Acessado em: 14/10/2020, às 12h45min. Disponível no link: <https://www.brasildefato.
com.br/2020/06/12/crescimento-da-exploracao-do-trabalho-infantil-e-risco-iminente-du-
rante-pandemia>.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Freire demonstra que há uma inquietude dentro dele que deseja re-
pensar, refazer e dar nova forma a vida e tudo que perpassa por ela. Coloca
ainda que é preciso superar obstáculos, pois o que fica a nossa frente é a di-
ficuldade dicotômica de fazer realmente aquilo que é necessário. Por isso,
diante de tantas realidades que o filme da invenção da infância nos traz e a
nossa realidade atual em 2020, vemos que ainda há muito o que repensar
nessa estrutura básica da infância, a partir da reflexão: por que as escolas
infantis, ou melhor, as creches, necessitam retornar às aulas e as escolas
públicas e pré escolas não?5 Porque os educandos e as educandas crian-
cinhas da creche, as professoras e professores podem se colocar em risco?
Em meados de outubro, entre ir e vir os munícios vão se colocando, ou
melhor, colocando a vida de tantas famílias em risco, pois se uma criança
se infecta pelo vírus, a sala é infectada, as famílias são infectadas. O que
vale mais, a vida ou dinheiro? Será que as crianças são imunes? Pois bem,
tantos questionamentos mas uma única resposta: as crianças precisam por
si só se salvarem, ou terem a sorte de se salvar.
É um crime pensarmos que as crianças pequenas e bem pequenas são
manuseadas pelos direitos dos quais o adulto é definidor; será que uma
criança não tem capacidade de dizer se quer ou não voltar às aulas, se quer
ou não fazer isso ou aquilo, ser ou não comer isso ou aquilo. Sabemos
que temos milhares de peculiaridades e de realidades de vida, mas infeliz-
mente os pequenos estão a partir da fala do adulto e o seu protagonismo/
autonomia está sob sobra de quem zela por ela.
E a pensar do direito que a criança tem e no direito que o adulto pen-
sa que tem sobre a criança, me obrigo a falar que é uma covardia sermos
definidores, darmos a última palavra, mas fico esperançoso do dia que
reconheceremos o valor da voz da infância e a necessidade de reestrutu-
ramos nosso olhar sobre todos os aspectos. Freire e Faundez (1985) são
catedráticos em dizer que:
5 Pois já estamos a oito meses de isolamento social e o vírus continua assombrar, o vírus
conhecido como Covid-19. O vírus que está sendo expresso nesta nota, é o responsável pela
paralisação do mundo, pela grande pandemia mundial, conhecido como “Covid-19”. Ataca
principalmente pessoas com problemas respiratórios e demais fragilidades físicas, levando
a óbito.
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Uma das exigências que sempre fizemos, Elza e eu, a nós mesmos
em face de nossas relações com as filhas e filhos era a de jamais
negar-lhes respostas às suas perguntas. Não importa com quem es-
tivéssemos, parávamos a conversa para atender à curiosidade de um
deles ou de uma delas. Só depois de testemunhar o nosso respeito
a seu direito de perguntar é que chamávamos a atenção necessá-
ria para a presença da pessoa ou das pessoas com quem falávamos.
Creio que, na tenra idade, começamos a negação autoritária da
curiosidade com os ‘mas que tanta pergunta, menino’; ‘cale-se,
seu pai está ocupado’; ‘vá dormir, deixe a pergunta pra amanhã’.
(FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 46-47)
Como é importante e transformador dar a atenção necessária como
Freire e Faundez nos mostram, quanto é necessário experimentar dessa
escuta e desse diálogo que acrescenta e fortifica este futuro adulto. Aqui
está um ato de Biofilia Freiriana, escuta e responde com amor as curio-
sidades das infâncias, e muda as estruturas radicais do arcaísmo e dá um
novo horizonte para tudo e todos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sonho com um dia em que não necessitaremos exigir os diretos nos-
sos e dos outros que são silenciados. Porém, até lá ficamos aqui estudando
e refletindo sobre a importância do repensar estruturalmente o olhar das
infâncias. Por isso é importante reafirmar que é injusto a criança não po-
der se definir, ou melhor, o adulto não escutar a criança. Ela sempre será
a melhor pessoa para dizer o que é importante, o que lhe faz feliz, do que
necessita e o que gostaria de aprender.
A infância, mais que deduções e conclusões científicas, está embasada
na experimentação concreta, na prática vivencial, em que cada criança
revoluciona o seu espaço a partir da presença sua e do brincar, com o
conjunto de verbos de ação que enunciei aqui neste artigo como direito
da criança.
Acima de tudo, se conclui na potente escolha de criarmos um olhar
mais crítico sobre o nosso pensar, consolidar com as crianças esse diálogo
sensível de escuta, ação e reação, onde faremos aquilo que o próprio Paulo
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Freire nos ensinou que é a práxis. É importante dizer que a garantia do di-
reito da criança está a partir da biofilia(r), ou seja, do amar a sua existência
e deixar que ela seja o que é.
E por fim compreendemos que a criança é um ser cheio de direitos,
os quais nós, adultos, antes de qualquer pensamento definidor, devería-
mos garantir esse suporte de assistência e deixar que as crianças domi-
nem a sua infância, sem interrupções, sem descaso e muito menos sem
os “NÃO(S)” dos adultos. Para que elas possam viver e bem viver, com a
liberdade que é seu direito e colocando a experimentação com o mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei Federal n. 8069, de 13 de julho de 1990. ECA _ Estatuto da
Criança e do Adolescente.
CORSINO, P.; SANTOS, N. de O. Olhares, gestos e falas nas relações
de adultos e crianças no cotidiano da escola de educação infantil. In:
GT: Educação de Crianças de 0 a 6 anos / n.07 Agência Financiado-
ra: Sem Financiamento. São Paulo, 2007.
DALLARI, D.A.; KORCZAC, J. O direito da criança ao respeito. 2. ed.
São Paulo: Summus, 1986.
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA. Principio 7. 20 de
novembro de 1959. Disponível:http://www.direitoshumanos.usp.
br/index.php/Crian%C3%A7a/declaracao-dos-direitos-da-crianca.
html Acessado em: 17.10.2020
FREIRE, P. Cartas a Cristina. Reflexões sobre minha vida e minha prá-
xis. São Paulo Paz e Terra, 2ª ed., 2015.
FREIRE, P.; FAUNDEZ, A. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985
KUHLMANN JR, M.; FERNANDES, R. Sobre a história da Infância.
In: FILHO, L. M. F. (Org.). A infância e sua educação: materiais,
práticas e representações. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 22 a
37.
32
QUANDO A CASA É O ABRIGO:
EXPERIÊNCIAS DE ADOLESCENTES
INSTITUCIONALIZADAS
Keila Renata de Brito Frederichi6
INTRODUÇÃO
No Brasil, a assistência à população infanto juvenil remonta ao perío-
do da colonização. As crianças e adolescentes estavam entre a população
desprivilegiada e excluída, principalmente entre os pobres e marginaliza-
dos. As Políticas Públicas de Assistência ofertadas neste processo passou
por distintas fases, a saber: a Caritativa, a da Filantropia, a do Bem-Estar
Social e a da Doutrina de Proteção Integral.
Inicialmente o Brasil seguiu práticas importadas da Europa, mas com
o tempo conseguiu alcançar avanços nos dispositivos legais, contudo ainda
com alguns equívocos e ambiguidades. Em se tratando de institucionali-
zação de crianças e adolescentes, que é uma medida de proteção social de
alta complexidade no âmbito da Política de Assistência Social, os serviços
podem ser de diferentes modalidades como os Abrigos Institucionais, Ca-
sas Lares, Famílias Acolhedoras e Repúblicas.
O abrigo institucional é uma modalidade ainda muito utilizada que
oferece acolhimento provisório em casos de abandono, negligência, maus
tratos ou quando as famílias ou responsáveis encontram-se temporaria-
mente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção, até
que seja viabilizado o retorno à família de origem ou extensa, ou adoção.
6 Mestre em Psicologia. Psicóloga das Casas de Acolhimento de Ariquemes-RO.
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Neste contexto, toda situação de afastamento familiar deve ser tratada
como excepcional e provisória, devendo recorrer ao acolhimento institu-
cional quando esgotados todos os recursos para a manutenção da criança
ou adolescente na família de origem ou extensa (BRASIL, 2009).
Passar pelo acolhimento institucional, sobretudo na adolescência, im-
plica em demandas emocionais ainda mais ampliadas. O objetivo deste tra-
balho foi de procurar compreender a experiência de adolescer em abrigo.
1. CONHECENDO UM POUCO SOBRE O ABRIGO
A institucionalização de crianças e adolescentes sempre esteve pre-
sente na história criando uma verdadeira cultura construída e consolidada
até o final do século XX. Deste modo, crianças nascidas em situação de
pobreza ou em famílias com dificuldades para criarem seus filhos, ao bus-
carem o apoio do Estado tinha como solução a institucionalização (RIZ-
ZINI, 2004; BOESMANS, 2015).
Com a Constituição Federal (1988) e o Estatuto da Criança e do
Adolescente (1990) a responsabilidade para o pleno desenvolvimento in-
fanto-juvenil passou a ser da família, da sociedade e do Estado consideran-
do primordial o direito à convivência familiar e comunitária.
De acordo com Silva (2003) os principais motivos do abrigamento
são: carência de recursos materiais; o abandono; a violência doméstica;
a dependência química de pais ou responsáveis; o abuso sexual praticado
pelos pais ou responsáveis; a orfandade e vivências de rua.
Glens (2010) ao analisar as políticas públicas existentes no Brasil, re-
vela que a situação se apresenta paradoxal, uma vez que o abrigamento
acontece devido à ocorrência de algum tipo de violência, mas ao mesmo
tempo este tipo de intervenção contribui para outro problema.
“[...] para haver abrigamento, é preciso que haja violência. É claro
que a pobreza em si mesma pode ser considerada uma violência:
uma violência da sociedade em geral contra o pobre. Mas é uma
violência necessária em alguns casos. É por isso que, mesmo quan-
do ela é necessária, deve ser excepcional e provisória. O abriga-
mento é, na verdade, um cálculo de violências” (GLENS, 2010,
p.205).
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Ainda sobre a violência que pode representar o abrigamento, Pineda
(2012, p. 107) esclarece que ela só é “necessária” quando é usada para
romper com a repetição de outras violências consideradas mais graves e
prejudiciais a vítima.
Logo, ser uma criança ou adolescente abrigada foge ao padrão da
maioria da população e torna-se um grupo restrito e diferente. Conforme
Arpini (2003) ser reconhecido como alguém que vive em instituição de
abrigo evoca forte estigma social porque as pessoas julgam que estes apre-
sentam algum problema e são por isso marginalizados.
Diversos autores como Marzol (2009), Salinas-Brandão e Williams
(2008), Dalbem e Dell’Aglio (2008), Dalbem (2005) assinalam que em
contexto institucional existem indicadores que mostram a presença ou
ausência de fatores de proteção institucionais que podem facilitar ou difi-
cultar o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Não sendo possível
estabelecer, a priori, o abrigo como essencialmente negativo ou positi-
vo. Dependendo da qualidade das interações e disponibilidade emocional
entre as pessoas, notadamente entre os funcionários da instituição e sua
clientela.
Contudo, vale ressaltar que certas famílias possuem um ambiente tão
caótico que o abrigo passa a ser visto como um ambiente com melhores
condições de promover a saúde física e mental desses atores (CARLOS
et al, 2013). Além disso, por apresentarem histórias de vida marcadas por
eventos traumáticos e vivenciarem o acolhimento institucional como uma
situação estressante para muitas adolescentes, faz-se necessário interven-
ções em saúde mental dirigidas à essa população (CALCING; BENET-
TI, 2014).
Diante do exposto, entende-se que há muitas crianças e adolescentes
que se encontram abrigados e que as repercussões emocionais do “ser de
abrigo” marcarão para sempre suas vidas tanto de forma positiva ou ne-
gativa.
2. A ADOLESCÊNCIA
Apesar das peculiaridades e mudanças que ocorrem intimamente e
externamente na adolescência, e pelas diferentes correntes teóricas que a
classificam por idades; não há um consenso ou uma rigidez em defini-las
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por idades específicas uma vez que diversos fatores podem apressar ou
retardar este período, tornando-o singular para cada sujeito.
Diversos autores são unânimes em afirmar que a adolescência se inicia
pelas transformações físicas – nomeadas de puberdade (ABERASTURY;
KNOBEL, 1981; RAPPAPORT 1993, D’ANDREA, 2003). Sendo
uma importante fase da vida, marcada por transformações não somente
físicas como sociais, cognitivas e psicológicas.
Não podemos negar que a sexualidade e as mudanças corporais sejam
visíveis e ganham destaque na pubescência, contudo para diversos autores
o que chama a atenção na adolescência é o período denominado de crise
(ERIKSON, 1976; RAPPAPORT 1993; RASSIAL 1997; 1999, FIORI,
2003, MATHEUS, 2010). Crise essa entendida como desequilíbrio, sin-
toma, trabalho psíquico e luto.
Na sociedade moderna, entre a passagem do mundo infantil para o
adulto existe um período denominado de moratória. A esse respeito, au-
tores como Erikson (1976), Jeammet (2007) e Calligaris (2011), definem
moratória como um tempo de suspensão, de adiamento e incertezas sobre
o modo de vida futuro.
É importante ressaltar que o período de crise não significa necessa-
riamente problema, tumulto. Pode, muitas vezes, vir acompanhado de
um sentimento de liberdade, entusiasmo frente às novas possibilidades e
novos prazeres como amizades e relações amorosas (JEAMMET, 2007).
Ou seja, todos devem passar por esta crise que é necessária para o cresci-
mento emocional do sujeito e que o remete à compreensão da privação e
castração a que estamos submetidos.
Conforme Aberastury; Knobel (1981, p. 9) todo sujeito passa pela
“síndrome normal da adolescência” processo que consiste no desenvol-
vimento da identidade e passagem para o mundo adulto. Neste período,
o adolescente deve realizar três lutos fundamentais: o luto pelo corpo in-
fantil no qual se encontra impotente frente às mudanças que ocorrem em
seu próprio organismo; o luto pelo papel e identidade infantil que o coloca
frente à renúncia da dependência e das responsabilidades que desconhe-
ce; e o luto pelos pais da infância que representava o refúgio e a proteção
e que a partir deste momento tem que aceitar o seu envelhecimento e o
amadurecimento dos filhos.
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As contínuas e profundas transformações que o adolescente enfrenta
nessa fase, gera intenso sofrimento por residir em um “novo corpo que
clama por uma nova identidade” e que marca a sua passagem do âmbito
familiar para o social (BIAZUS; RAMIRES, 2012, p.81).
Diante desse cenário, indaga-se como acontece a passagem da adoles-
cência dentro de uma instituição de acolhimento? Como se reconhecem,
que relações estabelecem com outras pessoas, o que dizem sobre o abrigo
e o que esperam do futuro?
2.1 A PESQUISA
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica com teóricos da Psicologia
e de campo de abordagem qualitativa. O objetivo foi analisar os aspectos
subjetivos de adolescentes que vivem em um abrigo de Rondônia. A partir
disso, buscou-se investigar como adolescentes veem o abrigo e o modo
como vivenciam a adolescência dentro de um contexto institucional.
A pesquisa foi realizada em um abrigo misto no Estado de Rondônia,
que atendia crianças e adolescentes de sete a dezoito anos incompletos.
Tratava-se de uma entidade não governamental, filantrópica e religiosa
mantida por doações da sociedade civil e de repasse financeiro da esfera
municipal e federal.
Participaram da pesquisa três adolescentes do sexo feminino na faixa
etária entre catorze e quinze anos que se encontravam abrigadas. A esco-
lha por adolescentes do sexo feminino justificou-se pelo pouco referencial
teórico na área e também pela predominância (demanda espontânea) deste
abrigo em acolher mais adolescente do sexo feminino. Deste modo, as três
adolescentes da pesquisa foram escolhidas pelos critérios: 1) maior tempo
de abrigamento; 2) estar entre catorze e quinze anos e 3) disponibilidade
em participar. Às adolescentes foi proposto que escolhessem um nome
fictício para representar cada uma na pesquisa, deste modo, chegou-se aos
nomes: Camila, Bianca e Yasmim.
Foi obtida autorização da Direção do Abrigo, do Juizado da Infância
e Juventude e das três adolescentes. A todos os envolvidos na pesquisa
foram explicados os objetivos da mesma e entregue o Termo de Con-
sentimento Livre e Esclarecido- TCLE. Também foi esclarecido sobre o
sigilo profissional das informações obtidas pelas colaboradas, bem como
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da liberdade em desistirem a qualquer tempo, se desejassem. O projeto de
pesquisa foi encaminhado e aprovado pelo Comitê de Ética da Universi-
dade Federal de Rondônia- UNIR.
Ficou acordado que as entrevistas seriam gravadas em áudio para a
transcrição dos dados e posteriormente apagadas. As entrevistas indivi-
duais ocorreram em dias e horários combinados previamente na sala de
psicologia da instituição. As entrevistas foram iniciadas com uma ques-
tão disparadora quanto à experiência de viver em um abrigo, no qual as
adolescentes falavam livremente e a pesquisadora intervinha com questões
quando necessário, até o momento da saturação das informações. Para a
análise de dados foi utilizado o método de análise de conteúdo de Bardin
(2011) com o levantamento de categorias temáticas.
2.2 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS7
SOBRE BIANCA – Ela tinha catorze anos e já estava no abrigo há
dois anos, juntamente com sua irmã mais nova. Foram realizadas seis en-
trevistas com a adolescente. Antes do abrigo, residiam com a família na
zona rural de outro município, onde realizava trabalhos pesados na lavou-
ra e passava necessidades financeiras. Foram institucionalizadas devido a
conflitos familiares especificamente com a mãe e o padrasto. Além disso,
o padrasto havia tentado abusar sexualmente de sua irmã.
Para Bianca a permanência na instituição, por tempo indeterminado,
sugeria-lhe ficar até completar dezoito anos. E isto lhe pareceu um fato
positivo, uma vez que o abrigo representava para ela um ambiente melhor
do que a sua casa. Logo tratou de interagir com as outras crianças e ado-
lescentes abrigados e com as funcionárias também.
Antes de vir para o abrigo Bianca morou na casa de pessoas desconhe-
cidas, no qual trabalhava fazendo serviços domésticos em troca de comida
e de um lugar para dormir. O que demonstrava também que desde muito
cedo, precisava buscar fora de casa o seu sustento e sobrevivência.
Através dos relatos podemos supor que Bianca não encontrou na
figura materna, uma mãe suficientemente boa. Sua história de vida foi
7 É importante ressaltar que à época da realização da pesquisa com as adolescentes insti-
tucionalizadas, ainda não existia a Lei nº 13.509/2017 que trata sobre a adoção e sobre o
tempo máximo de institucionalização que não pode ultrapassar dois anos.
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marcada pela luta por sobrevivência. Embora talvez a genitora até tentasse
oferecer um suporte, um holding, esta não conseguiu oferecer de maneira
satisfatória (WINNICOTT, 2005).
Bianca e sua irmã foram institucionalizadas várias vezes. Diante dos
problemas de convivência com sua mãe e com o padrasto, ela sentia muita
raiva e era agressiva com as pessoas. A raiva e a agressividade que a ado-
lescente dizia sentir, principalmente no período em que morava com sua
família, era compreensível, uma vez que de acordo com Bowlby (2006a,
2006b) a raiva representa uma reação a perda, logo, a função da raiva pa-
rece ser de empenhar-se para reaver a pessoa perdida.
Em uma das entrevistas Bianca expressou o sentimento de ser prete-
rida pela mãe e pelos irmãos e ressaltou as diferenças físicas entre ela e os
outros membros da família, pois ela era filha de outro homem. O senti-
mento de ser preterida e não amada lhe causava grande sofrimento. Em
relação ao pai, Bianca teve pouco tempo de convivência. Ressentia-se por
saber que o pai não a registrou e não lhe deu seu sobrenome.
A esse respeito Winnicott (2005) pontua que os pais apresentam sen-
timentos e condutas diferentes em relação a cada um dos filhos. A qualida-
de da relação pode ser influenciada pelo relacionamento dos pais na época
da concepção, da gravidez, do nascimento e posteriormente. Contudo
para Winnicott (2005) a figura materna é que desempenha importante
papel nos primeiros anos do desenvolvimento emocional, exercendo o pai
um papel secundário. É através da identificação do bebê com sua mãe que
se desenvolve o self verdadeiro. Se o apoio do ego da mãe não existe ou
é fraco, o desenvolvimento psíquico fica restrito a sucessões de colapsos
ambientais. É o que Bowlby (2006b) vai dizer sobre figuras de ligação ou
uma base segura.
Bianca relatou também que sua mãe e o padrasto eram evangélicos e
que, por isso, ela esperava que eles a tratassem melhor e a seus irmãos. A
adolescente sentia que sua mãe nunca lutou pelos filhos, e que “tentando
acertar sua mãe errou muito” (sic).
Também ficava evidente no discurso da adolescente, a existência de
rivalidade entre os irmãos, algo que possivelmente era reforçado pela con-
duta da mãe em demonstrar preferência pela irmã mais nova de Bianca.
Na época das entrevistas, o Centro de Referência da Assistência So-
cial- CRAS do município da genitora, interviu buscando uma aproxi-
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mação da genitora com as filhas, de modo que a irmã mais nova resolveu
voltar para a casa, mas Bianca quis permanecer no abrigo. De acordo com
Albornoz (2006) os traumas contaminam as novas experiências fazendo
repetir a lógica das experiências anteriores.
Já sobre a experiência de viver no abrigo ela demonstrava gostar, mas
enfatizava sua preocupação com seu futuro, principalmente quando com-
pletasse dezoito anos, pois teria que sair do abrigo. A preocupação com
o futuro era constante. Esperava ansiosamente sobre a decisão que outras
pessoas (como por exemplo, o juiz, a sua família) tomariam sobre a vida
dela, indicando total falta de autonomia em conduzir a sua própria vida.
Cabe explicitar que esse receio era real, uma vez que a permanência
na modalidade de abrigo ocorre até a idade de dezoito anos. Bianca não
tinha expectativas de retornar à sua família. O sentimento de insegurança
provinha da falta de autonomia, pois os outros é que decidiam a sua vida.
O ponto negativo de viver em um abrigo para Bianca era a falta de
privacidade, pois tudo era coletivo e comum. Como também as fofocas e
a existência das “queridinhas da diretora” (sic). Mais uma vez evidencia-
va-se a figura da mãe / diretora como aquela que tem filhos preferidos e
outros preteridos. Já em relação ao ponto positivo de viver em um abrigo,
Bianca relatava que era “ter um monte de mãe cuidando de você” (sic),
referindo-se a ter várias cuidadoras/ funcionárias na instituição.
Antes de morar no abrigo, a escola era “horrivelmente horrível”
(sic). Com seus problemas familiares era compreensível que a escola não
fosse atrativa. Após sua vinda ao abrigo, fez rapidamente amizade com
as colegas da escola, tornou-se líder de classe, participava da equipe de
handebol e alcançou bom desempenho escolar de forma que recebeu
elogios da escola.
É como se agora estivesse num ambiente mais acolhedor ou propício
para se dedicar aos estudos, aos jogos esportivos e ao curso de manicure.
A escola que era “horrivelmente horrível” passou a não ser um ambiente
tão assustador assim. Possivelmente neste caso, o abrigo foi para ela um
ambiente facilitador para tal processo.
Seus sonhos estavam relacionados a terminar o ensino médio, arru-
mar um emprego, ter uma casa e fazer faculdade. Ela dizia que “queria
levar uma vida normal” como das outras pessoas, mas que não era normal
para ela até aquele momento. Podemos concluir que para Bianca “ser de
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abrigo” teve seus aspectos positivos e foi de certa forma, um ambiente
mais tranquilo que sua casa.
SOBRE CAMILA – No período em que foram realizadas as cinco
entrevistas, a adolescente encontrava-se com quinze anos. Vivia no abrigo
desde os oito anos de idade, juntamente com seus cinco irmãos. Agora
restava apenas Camila no abrigo, pois sua irmã mais velha havia ficado
grávida8 e foi morar com o namorado.
Na época, Camila tinha um namorado de dezenove anos e soube-
ra recentemente que também estava grávida, fazendo planos de sair do
abrigo. Havia reprovado o oitavo ano e parou os estudos. Seus pais eram
separados, e sua mãe tinha esquizofrenia, e seu pai era alcóolatra. Camila
parecia uma adolescente que não estava muito preocupada com sua vida,
com os estudos, com responsabilidades. Basicamente, sua preocupação era
com a aparência física e em “ficar” com alguns garotos que conhecia na
escola ou no curso que fazia no SENAI. Morava no abrigo há oito anos.
Seus irmãos em número de cinco tinham as idades de (18), (17), (13), (12)
e (9) anos.
Destes, dois irmãos mais velhos fugiram do abrigo porque não se
adaptaram e foram morar com um tio em outra cidade, porém o tio nunca
requereu a guarda deles. A irmã de dezessete anos quando ficou grávida
foi morar com o namorado. A irmã de doze anos, foi adotada e posterior-
mente devolvida à instituição. O irmão caçula também foi adotado por
uma família de outro município, porém os pais adotivos evitavam que ele
tivesse contato com os irmãos.
Winnicott (2005) em sua obra “A família e o desenvolvimento indi-
vidual” aborda as consequências da família afetada por patologias psiquiá-
tricas para o desenvolvimento emocional dos filhos. Deste modo, os pais
dotados desses problemas tendem a fracassar no cuidado de seus filhos.
Destacava-se também que viver em abrigo representava forte estigma
social no sentido de carregarem experiências traumáticas. Além disso, ser
adolescente e passar por uma instituição de abrigo causava vergonha de
sua condição.
8 Este foi o primeiro caso de adolescente institucionalizada que engravidou no período que
viveu no abrigo. Vale ressaltar que as adolescentes podem sair da instituição quando dese-
jarem desde que tenha autorização da diretora.
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A adolescente evitava dizer às pessoas onde morava, ou ser reconhe-
cida como “do abrigo”. Uma forma encontrada por Camila para lidar
com o estigma social de ser uma adolescente abrigada e com o próprio
preconceito, era a evitação. Evitava falar sobre que o abrigo era sua casa.
Porém, mesmo evitando sentia como se tivesse uma “marca” que a definia
como alguém institucionalizada.
Para Camila os anos no abrigo traziam sentimentos ambivalentes e
contraditórios. Falava que era ruim, ao mesmo tempo falava que não se
via em outro lugar. Podemos compreender esta ambivalência sob a ótica
da própria experiência do abrigamento como um lugar bom e ruim. Tam-
bém de acordo com Knobel (1981), o processo de luto do adolescer ins-
taura reestruturações permanentes externas e internas vividas com muita
intensidade.
Reconhecia no abrigo um lugar no qual teve suas necessidades bá-
sicas supridas e que aprendeu coisas novas e diferentes e pode vincular-se
afetivamente com a diretora do abrigo e com a psicóloga. De acordo com
Winnicott (2005), quando a adolescente consegue afastar-se dos vínculos
parentais e caminhar rumo a um círculo social mais amplo, como a dire-
tora e a psicóloga, ocorre um movimento em busca de uma integração da
personalidade.
Por outro lado, para Bowlby (1984) na ausência dos pais como figuras
de apego, a tendência é buscar figuras substitutas estáveis e autoconfiantes
e assim desenvolver a capacidade de ampliar o comportamento de apego
para outros grupos e pessoas.
Sobre seu pai, demonstrava que sempre houve um distanciamento
afetivo entre eles e enfatizava a agressividade do pai. Já em relação à sua
mãe, Camila comentava com carinho, demonstrando maior proximidade
afetiva. Conforme Bowlby (2006a), os efeitos prejudiciais da privação de-
pendem da idade da criança, do tempo em que fica privada dos cuidados
e do grau em que eles lhe faltaram.
Quando comentou sobre a gravidez, disse que levou um susto e ficou
muito preocupada como ficaria sua situação. Frente ao relato de Camila
que ficou atordoada pela notícia, podemos pensar nas palavras de Outeiral
(2008) quando pontua que na adolescência o sujeito assiste a um turbilhão
de transformações que ocorrem em seu corpo e em sua personalidade.
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Frente à mudança ora desejada ora temida, refugia-se em seu mundo in-
terno.
Entretanto, apesar de Camila dizer que a gravidez não foi planejada,
após sua irmã mais velha engravidar do namorado e sair do abrigo, logo
ocorreu a descoberta da sua gravidez. Ao que parece, a única forma da
adolescente sair do abrigo seria desta forma, pois do contrário ficaria lá até
completar dezoito anos.
Em relação ao filho que ia nascer, ela dizia que iria dar muito amor e
carinho e queria o melhor para ele. Neste discurso aparece a ideia de que
pretendia dar ao filho que ia nascer o que dela foi privado, que era o amor
de seus pais.
Com respeito aos irmãos, a adolescente comentou que nunca foram
próximos. Desta forma tinha pouco a dizer sobre os irmãos. Ao falar sobre
seus sonhos, Camila comentou que não pensava no futuro. Expressou que
odiava estudar, mas mesmo assim, pretendia terminar seus estudos para
conseguir um bom emprego.
SOBRE YASMIM – A adolescente tinha quinze anos e fora insti-
tucionalizada pela segunda vez por ter sofrido abuso sexual praticado por
seu genitor no período dos oito aos doze anos de idade. Depois foi morar
com uma tia materna, no qual o tio, também abusou sexualmente da ado-
lescente e que veio a engravidar. Foram realizadas cinco entrevistas com
Yasmim. Estava no abrigo há seis meses e grávida por igual período. Parou
de estudar no sexto ano, mas pretendia retomar os estudos.
Ela se referia ao abuso sexual praticado por seu pai como um “impre-
visto” indicando um tempo antes e depois. O termo “imprevisto” usado
pela adolescente deixava implícito o quanto o abuso sexual foi traumático
e que a deixou em “estado de choque”, pois seu pai que era responsável
por cuidar e protegê-la agiu de forma tão imprevista! Segundo Albornoz
(2006) o sentimento vivenciado de choque e vazio é originado pela ausên-
cia de figuras continentes.
Faimam (2004) explica que no abuso sexual há uma assimetria quanto
ao poder e em casos intrafamiliar, essas experiências podem ser produtos
de uma sedução praticada entre os pais e a criança. Para Goldfeder (2000),
o abuso sexual é sempre uma transgressão de uma ordem estabelecida,
logo podemos entender que há uma intenção em transgredir por parte do
adulto ou da pessoa mais velha. Conforme Pinheiro (2005), em se tra-
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tando de abuso sexual intrafamiliar dependendo do tempo em que ocorre
pode gerar entre a vítima e o agressor, um complô do silêncio e segredo.
O abuso sexual praticado por seu pai durante anos, provavelmente
levou Yasmim a sentir-se vinculada com o agressor, com sentimentos de
amor e ódio. Após ter sofrido violência sexual, Yasmim começou a ma-
nifestar agressividade como tentativa de chamar atenção das pessoas na
escola. Foi a partir das constantes reclamações da escola que o Conselho
Tutelar foi acionado e a adolescente contou sobre o abuso sexual sofrido e
consequentemente foi encaminhada ao abrigo.
A vivência de traumas na infância repercutiu em todas as áreas de sua
vida. Conforme Albornoz (2006), situações de traumas como o abuso
sexual pode levar a criança ou adolescente a uma obstaculização do pensa-
mento. Em outras palavras, é preferível não pensar para não lembrar. Não
pensar funciona como um mecanismo de defesa.
A respeito de sua mãe demonstrou ter pouca convivência. Relatou
que quando morou com ela, “passava fome e comia comida do lixo” (sic).
Também informou que a mãe era usuária de drogas e que fazia programas
sexuais para pagar o vício. Conforme Bowlby (1990) quando a criança pe-
quena é retirada da figura materna sofre um luto pela separação e uma das
características que se manifesta é o protesto, o desespero e o desligamento.
É possível perceber reedições de violências. Além da separação e in-
diferença da mãe, do abuso sexual praticado pelo pai e pelo tio, todas essas
situações ocasionaram conforme Albornoz (2006), um senso de antecipa-
ção e de medo. Via o abrigo como um lugar de violência também, uma
vez que havia conflitos entre ela e outras adolescentes e funcionárias.
Com a confirmação da gravidez, Yasmim sentiu que seus sonhos se
modificaram. Percebeu que algumas mudanças ocorreriam e teria que se
adaptar. Ficava muito ansiosa, mas com o tempo foi se tranquilizando.
Yasmim falou também das suas dificuldades em lidar com sua sexua-
lidade dentro da instituição. Comentou que os abusos sexuais sofridos
pelo pai e pelo tio, afloraram o desejo para o sexo, mas não encontrava
liberdade, espaço e privacidade. Parecia ser difícil, tanto para as adoles-
centes viverem a sexualidade plenamente com liberdade, privacidade e
sem culpa quanto para as funcionárias da instituição lidarem com estas
questões.
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Podemos pensar que a falta de diálogo sobre sexualidade, a rotina
rígida e a falta de atividades físicas, esportivas e artísticas colaboravam
para esse estado de tensão. Além disso, muitos abrigados já vivencia-
ram situações de violência, principalmente sexual, o que tornava muito
complexo abordar a temática da sexualidade. A manifestação da agres-
sividade e da sexualidade pareciam ser as maneiras encontradas de obter
alívio das tensões.
Em relação a sonhos para o futuro, Yasmim estava mais voltada para a
gravidez e “Fazer minha faculdade de biologia, cuidar do meu filho... ter
minha casa, meu marido” (sic). Deste modo podemos concluir que “ser
de abrigo” para ela representava ser uma pessoa que passou por traumas e
estava num lugar onde também havia violência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através dos relatos das adolescentes pode-se observar que: 1) viver em
abrigo causava vergonha e estigma; 2) as histórias de vida eram marcadas
por abandonos e violências e 3) o abrigo era visto de formas diferentes por
cada adolescente.
A experiência do abrigo significou para Bianca um lugar melhor do
que a sua casa, para Yasmim o abrigo era também um lugar de violência
e para Camila, um lugar bom e ruim ao mesmo tempo. Contudo vale
ressaltar, que mesmo com as histórias de vida marcadas por abandono, de-
samparo e violências, as adolescentes da pesquisa encontraram cada uma
do seu jeito, resiliência para seguir em frente.
Apesar dos direitos das crianças e adolescentes conquistados, há ainda
muito por fazer. Culpabilizar as famílias sem dar condições de estrutu-
ra-las não resolve o problema. É necessário dar auxílio específico à cada
caso, priorizar ações preventivas, inserir as famílias em programas sociais,
capacitá-los profissionalmente para alcançarem melhores condições de
vida, de modo a não se tornarem dependentes dos programas sociais. Es-
sas ações parecem ser um caminho. Como também ampliar a oferta de
repúblicas para os jovens que já alcançaram a maioridade e não apresentam
vínculos afetivos e nem condições de retorno à sua família ou a adoção.
Por fim, criar espaços de escuta para que crianças e adolescentes possam
re-significar suas histórias de vida.
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NO BRASIL COMO FOCO DA CRISE
DE SEGURANÇA PÚBLICA E O
HABEAS CORPUS COLETIVO SOBRE
A SUPERLOTAÇÃO DAS UNIDADES
SOCIOEDUCATIVAS.
Isadora Warken Collet 9
I. A PSIQUE FRUEDIANA NA CONSTRUÇÃO DO PAPEL
SOCIAL DO INDIVÍDUO
Ao tratarmos da psique humana estudada por Freud – pai da psicaná-
lise - podemos concluir que esta é desenvolvida ao longo da infância, deste
modo, todas as nossas ações, pensamentos e personalidade são estimu-
lados pelas pessoas que estão em nosso âmbito familiar enquanto somos
crianças. Nesse cenário, podemos analisar que o papel da família se torna
fundamental para o desenvolvimento humano tendo em vista que suas
relações pessoais e/ou sociais serão refletidas por suas relações familiares
e ao grau de contribuição que essas possuíram na formação da psique do
indivíduo. Ao analisarmos o Estatuto da Criança e do Adolescente, po-
demos observar que ao tratar de matérias que prezem o cuidado, a segu-
rança, a integridade, a dignidade daquele menor visando garantia de seus
direitos fundamentais presentes na Constituição Federal, o primeiro ente
9 Graduanda em direito pela Universidade Candido Mendes no Rio de Janeiro e estagiária na
Defensoria Pública do Rio de Janeiro na Vara da Infância e Juventude – matéria infracional -.
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a ser explicitado de maneira a orientar o menor e ampará-lo é a família.
Desse modo, ao tratarmos de um seio familiar que seja sólido como fator
de formação da índole, dos valores e premissas que um indivíduo carrega
consigo, podemos concluir que a estrutura familiar é um dos pilares mais
importantes para a construção do papel social que um indivíduo irá de-
sempenhar perante à sociedade.
Quando analisamos o Estatuto da Criança e do Adolescente po-
demos encontrar uma linearidade entre os entes que devem proteger
os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, no entanto, se
algum deles ou todos eles não promovem tal seguridade, a quem estes
indivíduos devem recorrer? Vemos que logo no início do Estatuto,
em seu artigo 4°, caput, se encontra de maneira hierárquica a família,
a comunidade, a sociedade e o poder público como os membros que
devem promover a segurança dos direitos fundamentais das crianças
e adolescentes, nos pautando na questão acima abordada, se a família
- como já explicitado acima, é a maior base de formação da psique
do ser humano tendo por ela elaboradas as concepções básicas de
certo e errado, maneiras a se viver em sociedade e condutas a serem
produzidas em relação à seu dever social – é considerada instável,
seu seio familiar é frágil, consta-se que este menor terá sua formação
fragilizada podendo aceitar – de maneira hierárquica - que seus di-
reitos fundamentais sejam sub-rogados ao Estado que por vezes não
promove sua segurança.
II. A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL COMO
PREMISSA PARA VIOLAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL.
Nesse presente ano de 2020, o Estatuto da Criança e do Adolescente
completa 30 anos de criação exaltando a necessidade da proteção desses
menores por uma legislação especial. Ao tratarmos da redução da maio-
ridade penal, tema demasiadamente discutido no viés da insegurança pú-
blica, não tratamos somente do texto que consta em lei, mas, sim, na al-
teração de diversos paradigmas e cenários. Nesse viés, podemos explicitar
dois pontos de extrema importância: a inserção do menor no regime do
Código Penal e a mudança da medida aplicada em sua pena, ora, se antes
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era uma medida socioeducativa, agora o cenário se altera para sua privação
de liberdade em uma unidade carcerária comum.
Uma das premissas do ECA, desde sua criação, é proteger crianças e
adolescentes e garantir seus direitos fundamentais presentes na Constituição.
Com base nisso, o Supremo Tribunal Federal, em 21/08/2020 no Habeas
Corpus Coletivo de número 143.988/ES, entendeu que se fazia necessário
reduzir a ocupação das unidades socioeducativas brasileiras na medida em
que todas constavam com mais de 112% de ocupação, nesse viés, entenden-
do que a adolescência é o ponto crucial para a formação da psique humana,
assim como entendeu Freud em seus estudos psicanalíticos, o STF adota em
sua decisão o favorecimento de manter o menor em seu convívio familiar
e social para que não haja prejuízo em sua formação psicológica. Com base
nesse exposto, tratando sobre o prisma da redução da maioridade penal,
podemos analisar que ao adotarmos tal medida as unidades carcerárias que
já estão com superlotação de 165,72% - dados fornecidos pelo Conselho
Nacional do Ministério Público no ano de 2019 - irão, consequentemente,
apresentar um inchaço na população penitenciária, ora, uma vez analisando
que os direitos fundamentais dos reclusos em um sistema penitenciário co-
mum já são extremamente negligenciados no que cerne à dignidade huma-
na – premissa dos direitos fundamentais elencados na Constituição Federal
de 1988 -, ao analisarmos de forma dedutiva, podemos concluir que os ado-
lescentes que subsequentemente irão estar inseridos naquele regime, terão
seus direitos igualmente negligenciados. O art. 5° do Estatuto da Criança e
do Adolescente nos apresenta a premissa de que nenhuma criança ou ado-
lescente será tratado de forma negligente, não devendo haver omissão de
seus direitos fundamentais; desse modo, se a redução da maioridade penal
for aprovada, estará indo contra uma das premissas fundamentais do ECA,
além de, evidentemente, ir contra a Constituição em seu art. 5° que prevê a
inviolabilidade da dignidade humana.
III. A ALTERAÇÃO DO PARADIGMA ESTRUTURAL:
RESOLUÇÃO DA CRISE DE SEGURANÇA PÚBLICA E A
ECLOSÃO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO.
A questão da redução da maioridade penal surgiu a partir de um dos
crimes mais bárbaros que o Brasil já presenciou, o caso de Roberto Apa-
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recido Alves Cardoso, popularmente conhecido como Champinha. O
presente caso trouxe à sociedade extrema comoção social e relevante va-
lor moral no âmbito em que se criou este presente projeto em discussão,
surgindo com o âmbito de “punir” os menores elencados no Estatuto da
Criança e do Adolescente.
A partir dessa síntese, podemos analisar que – na verdade – a redução
da maioridade penal nasce no cenário de promover justiça social fazendo
com que menores conflitantes com a lei recebam uma espécie de punição.
No entanto, ao analisarmos as finalidades das unidades socioeducativas
brasileiras e das unidades carcerárias, ambas se encontram no objetivo de
ressocializar aquele indivíduo para que este não retorne a praticar delitos
ou atos infracionais, no entanto, se ambas possuem as mesmas caracte-
rísticas mas a unidade socioeducativa possui o viés de inserir a família, a
comunidade, a sociedade – entes listados como primordiais no que cerne
as garantias dos direitos fundamentais da criança e do adolescente – e o Es-
tado, por que seria mais vantajoso introduzir o menor em um sistema pe-
nitenciário demasiadamente negligenciado, com todos seus direitos supri-
midos e vulnerabilizando sua formação psíquica? A partir dessa pergunta
podemos concluir que, de fato, as premissas percursoras desse projeto que
visa diminuir a maioridade penal são carregadas de valores e comoções
sociais a partir de “injustiças” presentes na sociedade, no entanto, con-
cluímos, também, que tal projeto surge apenas para alterar o paradigma
problemático que o Brasil enfrenta há anos, a crise de segurança pública.
A crise de segurança pública permeia pelo território brasileiro desde
nossa criação sendo o Código Penal de 1830 um dos primeiros ramos do
direito a ser criado de forma a ordenar o Império do Brasil. Nesse viés,
quando discutimos sobre a crise na segurança pública não estamos falando
de um tema recente, algo que é fácil de se resolver, mas, sim, de algo que
precisa ser reformulado, algo que precisa ser alterado de maneira gradual
tendo em vista que não será de um dia para o outro que a crise da seguran-
ça pública será resolvida. No entanto, ao elaborar o projeto da redução da
maioridade penal, se foi feita diversas propagandas alegando que as taxas
de delitos cometidos iriam cair ou que a sociedade estaria mais segura com
esses menores em um sistema penitenciário comum visando, novamente,
a ideia de castigo, de punição; por isso, a adesão ao favoritismo desse pro-
jeto foi enorme, inúmeras pessoas com a vontade de resolver o sistema de
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segurança pública e de se fazer “justiça” lutaram para que o projeto fosse
votado de maneira favorável. No que cerne tal discussão, conforme todos
os ideais expostos acima, fica de maneira evidente que ao promovermos
um projeto que prevê a redução da maioridade penal, não estamos resol-
vendo de maneira eficaz a crise no sistema de segurança pública, mas, na
verdade, estamos alterando o foco da crise; se por um lado a população irá
expor um sentimento de justiça e segurança, por outro, estarão encarce-
rando indivíduos em massa em um sistema que já se encontra eclodido,
desse modo só iremos provocar cada vez mais o inchaço de um sistema
que já se encontra inchado com base nos dados apresentados do Conselho
Nacional do Ministério Público.
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base em todo o exposto acima, se torna evidente que a família,
a comunidade e o Estado são os entes principais na proteção de Crianças
e Adolescentes prevista no art. 4° do Estatuto da Criança e do Adolescen-
te – ECA -. Desse modo, a família como primeiro ente a ser listado é o
principal pilar na formação psicológica do indivíduo formando sua índole,
seus valores morais e tudo aquilo que compõe seu desempenho em socie-
dade. Ao tratarmos da redução da maioridade penal e do Habeas Corpus
Coletivo, falamos sobre a tentativa do Estado em proteger a integridade e
os direitos fundamentais desses jovens na tentativa de reinseri-los em so-
ciedade e no convívio de seu seio familiar. Por fim, concluímos que a re-
dução da maioridade penal nada mais é do que uma tentativa da sociedade
em punir os jovens conflitantes com a lei tendo em vista que a descredibi-
lização das unidades socioeducativas os levaram a crer que não há justiça
efetiva em nosso país, buscando alternativas bruscas e desumanas para que
suas vontades individuais sejam atendidas, desse modo, é mais viável que
haja uma eclosão do sistema penitenciário do que alterar toda a estrutura
judiciária para promover efetiva ressocialização dos menores infratores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANGELO, Tiago. Não pode haver superlotação em unidades socioedu-
cativas, define STF. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.
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cioeducativas. Acesso em: 03/11/20.
CRIMINAIS, Ciências. Caso Liana Friedenbach e Felipe Caffé: vítimas
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dos presídios brasileiros é de 165%, mostra projeto “Sistema
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PLANALTO. Constituição Federal, 1988.
PLANALTO. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990.
SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
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OS DIREITOS DAS CRIANÇAS E
DOS ADOLESCENTES: UM DIREITO
FUNDAMENTAL
Maria Leonildes Boavista Gomes Castelo Branco Marques10
Ney Fayet de Souza Júnior11
Thania Maria Bastos Lima Ferro12
Maria Isabel Boavista Gomes Castelo Branco13
Introdução
As crianças e os adolescentes são o patrimônio do nosso (e de qual-
quer outro) país; todavia, muitas vezes, são submetidas a graves ofensas
ou se encontram em altíssimo risco, e isso dentro de suas próprias casas.
Para crescerem e se desenvolver sadiamente, crianças e adolescentes pre-
cisam de um ambiente emocionalmente estável, acolhedor e de respeito à
10 Professora de Direito da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Doutoranda em Ciências
Criminais – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Mestre em Direi-
to – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
11 Advogado. Pós-Doutorado em Criminologia pela Universitat Pompeu Fabra (Barcelona)
e em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor de Direito Penal e
Criminologia (graduação, mestrado e doutorado) na Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
12 Juíza da 1ª Vara do Tribunal Regional do Piauí – TRT 22 Região. Doutoranda em Ciências
Criminais – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Mestre em Direi-
to – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
13 Advogada. Especialista em Direito Público e Privado – Escola Superior da Magistratura
do Piauí – ESMEPI.
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sua condição peculiar de sujeito em formação, amparados pela Doutrina
da Proteção Integral e da Prioridade absoluta, conforme o artigo 227 da
Constituição Federal brasileira e de acordo com o que preceitua o Esta-
tuto da Criança e do Adolescente, nenhuma criança ou adolescente será
objeto de qualquer forma de violência, e os atos praticados contra eles
serão punidos na forma da lei.
A temática deste artigo nos leva a refletir sobre a trajetória dos di-
reitos das crianças e adolescentes, passando pelas principais fases, desde
os períodos antigos até as mais recentes leis que visam a garantir direitos
fundamentais das crianças e dos adolescentes.
O artigo é dividido em duas partes: na primeira, abordaremos a evo-
lução histórica dos direitos da criança e do adolescente e o surgimento da
necessidade da proteção integral; e, na segunda, trataremos de um impor-
tante detalhamento do período pós Constituição Federal de 1988, no qual
se normatizou a proteção integral e, para finalizar, destacaremos a impor-
tância da Lei 13.431/17 enquanto um microssistema principiológico de
proteção e garantia dos direitos fundamentais.
Demonstraremos o desafio de investigar a violência quando envolve
criança e adolescentes, bem como buscaremos contextualizar as dificul-
dades de garantir a proteção das crianças e dos adolescentes para enfrentar
a violência, especialmente àqueles que se sofrem com a violência, muitas
vezes, na condição de vítima. A propósito, nesta condição é que se pode
verificar, com frequência, o fenômeno da vimitização secundária14, em
decorrência do qual o ofendido irá reviver o fato uma ou mais vezes; e o
14 “La dinámica judicial desempeña un papel importante en relación con las consecuencias
emocionales sufridas por las víctimas. La victimización primaria deriva directamente de la
agresión sexual; la secundaria, de la relación posterior establecida entre la víctima y el sis-
tema jurídico-penal (policía o sistema judicial). Es decir, el maltrato institucional, en el caso
de que lo haya, puede contribuir a agravar el daño psicológico de la víctima o a cronificar
las secuelas psicopatológicas” (ECHEBURÚA ODRIOZOLA, Enrique; GUERRAICAECHEVARRIA,
Cristina, 2006, p. 157). A literatura vitimológica ainda não se pacificou sobre o que se deve
entender pelo termo; aqui, quisemos expressar tão somente o submetimento a uma nova
vitimização agora produzida pelas agências estatais persecutórias. Em sentido mais amplo,
os estudos têm descrito as seguintes categorias: estilo de vida vitimal; revitimização longi-
tudinal; revitimização específica; múltipla revitimização; carreira vitimal; vítima potencial;
entre outras. Com mais detalhes: HERRERA MORENO, Myriam, 2006, p. 112 e segs.
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desafio que se coloca é o de garantir o respeito aos direitos fundamentais e
não gerar maiores traumas.
1. Evolução histórica do direito da criança
1.1 A desproteção e a evolução dos direitos
No plano abstrato das construções legais, o direito das crianças vive
uma das melhores fases, na medida em que crianças e adolescentes ultra-
passam a esfera de meros objetos de “proteção” e alcançam a posição de
sujeitos de direitos, beneficiários e destinatários de proteção integral.
Após a promulgação da Constituição Federal do Brasil em 1988, a
sociedade jurídica elegeu a dignidade da pessoa humana como um dos
principais fundamentos da nossa República, reconhecendo cada indiví-
duo como centro autônomo e independente de direitos e valores essen-
ciais à sua realização plena como pessoa. No geral, pode-se assinalar que se
configura uma verdadeira “cláusula geral de tutela e promoção da pessoa
humana” (TEPEDINO, 2001 p. 41-42), significa dizer que é um direito
irrevogável e irrenunciável e, por óbvio, também abrangendo os mais ne-
cessitados de cuidados e proteção: as crianças e os adolescentes.
Nas antigas civilizações, os laços familiares eram estabelecidos pelo
culto à religião e não pelas relações afetivas ou consanguíneas (AMIM,
2019). A família romana era fundada pelo poder paterno (pater familiae)
marital, ficando a cargo do chefe da família o cumprimento dos deveres
religiosos e consequentemente os deveres relacionados ao convívio social.
O pai era, portanto, a autoridade familiar e religiosa. Importante destacar
que a religião não formava a família, mas ditava suas regras e não uma as-
sociação natural (AMIM, 2019).
Na função de autoridade, o pai exercia poder absoluto sobre os mem-
bros da família. Importante destacar que os filhos se mantinham sob a
autoridade paterna enquanto vivessem na casa do pai, independentemente
da idade que tinham. Outro importante dado, é que, naquela época, não
se distinguiam maiores e menores de idade. A relação era que os filhos
não eram sujeitos de direitos, mas sim objetos de relação jurídica, sobre
quais o pai exercia um direito de proprietário. Assim, era-lhe conferido o
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poder de decidir, inclusive, sobre a vida e a morte dos seus descendentes
(COULAGES, 2003).
Os gregos tinham uma ideologia mais cruel. Eles mantinham vi-
vas apenas as crianças saudáveis e fortes. Em Esparta, cidade grega mais
famosa por seus guerreiros, lendas e toda mitologia que circunda, o pai
transferia para um tribunal do Estado o poder sobre a vida e a criação dos
filhos, com o objetivo de preparar novos guerreiros. As crianças eram,
portanto, “patrimônio” do Estado, o que gera uma grande diferença no
poder exercido antigamente. No Oriente, era comum o sacrifício religio-
so de crianças, em razão de sua pureza. Também era corrente, entre os
antigos, sacrificarem crianças doentes, deficientes, malformadas, jogan-
do-as de despenhadeiros; desfazia-se de um peso morto para a sociedade.
Desfazia-se de uma “pessoa” que não seria útil para os fins da época: a
guerra. A exceção ficava a cargo dos hebreus, que proibiam o aborto ou
o sacrifício dos filhos; entretanto, eles permitiam que as crianças fossem
vendidas como escravos. Por este motivo eles não eram de todo o que
podemos chamar de defensor dos direitos das crianças, mas já era uma
evolução (AMIM, 2019).
Outro detalhe importante a ser observado é que o tratamento entre
os filhos não era isonômico. Os direitos sucessórios, por exemplo, limita-
vam-se ao primogênito e desde que fosse do sexo masculino. Segundo o
Código de Manu, o primogênito era o filho gerado para o cumprimento
do dever religioso, por isso era tratado de forma tão privilegiada (ZAVA-
TTARO, 2019).
Em um segundo momento, alguns povos indiretamente procura-
ram resguardar interesse da população infanto-juvenil. Mais uma vez foi
importante a contribuição romana, que distinguiu menores impúberes e
púberes, muito próxima das incapacidades absolutas e relativas que usa-
mos hoje em dia. Essa distinção refletiu em um abrandamento nas sanções
pela prática de ilícito por menores púberes e impúberes ou órfãos. Outros
povos, como os lombardos e visigodos, proibiram o infanticídio, enquanto
os frísios restringiram o direito do pai sobre a vida dos filhos (TAVARES,
2001).
A idade Média foi marcada pelo crescimento da religião Cristã com
seu grande poder de influenciar sobre os sistemas jurídicos da época. O
homem não era um ser racional, mas sim um pecador e, portanto, preci-
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sava seguir as determinações da autoridade religiosa, que era autoridade
suprema, e, a única opção para quem buscava que sua alma fosse salva.
O cristianismo trouxe uma grande contribuição para o início do re-
conhecimento de direitos para as crianças: defendeu o direito à dignidade
para todos, inclusive para os menores. E isso foi um dos maiores marcos
para a mudança e a garantia de direitos aos menores.
Como reflexo, atenuou a severidade de tratamento na relação pai e
filho, pregando, contudo, o dever de respeito, aplicação prática do quarto
mandamento do catolicismo: “honrar pai e mãe”.
Por meio de diversos concílios, a Igreja foi outorgando certa proteção
aos menores, prevendo e aplicando penas corporais e espirituais para os
pais que abandonavam ou expunham os filhos. Em contrapartida, os filhos
nascidos fora do manto sagrado do matrimônio (um dos sete sacramentos
do catolicismo) eram discriminados, pois indiretamente atentavam contra
a instituição sagrada, àquela época única forma de se constituir família,
base de toda sociedade. Segundo doutrina traçada no Concílio de Treno,
a filiação natural ou ilegítima — filhos espúrios, adulterinos ou sacríle-
gos- deveria permanecer à margem do Direito, já que era a prova viva da
violação do modelo moral determinado à época (AMIM, 2019).
1.2 Primeiro momento de proteção à infância no Brasil
No Brasil colônia, as Ordenações do Reino tiveram larga aplicação.
Mantinha-se o respeito ao pai como autoridade máxima no seio familiar.
Contudo, em relação aos índios que aqui viviam e cujos costumes eram
de todo próprio, havia uma inversão de valores. Essa inversão de valor é
justificada dada a dificuldade que os jesuítas encontraram para catequizar
os índios adultos, que já tinham seus costumes e suas crenças, e, perceben-
do que era muito mais simples educarem crianças, utilizaram-nas como
forma de atingir os pais. Em outras palavras, os filhos passaram a educar e
adequar os pais à nova ordem moral (ZAVATTARO, 2019).
Vigentes as Ordenações Filipinas, a imputabilidade penal era alcan-
çada aos 7 anos de idade. Dos 7 aos 17 anos, o tratamento era similar ao
do adulto com certa atenuação na aplicação da pena. Dos 17 aos 21 anos
de idade, eram considerados jovens adultos e, por conseguinte, já pode-
riam sofrer a pena de morte natural, que no caso seria de enforcamento. A
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exceção era o crime de falsificação de moeda, para o qual se autorizava a
pena de morte natural para maiores de 14 anos (TAVARES, 2001).
Uma pequena alteração do quadro com o Código Penal do Império,
de 1830, que introduziu o exame da capacidade de discernimento para
aplicação da pena15. Menores de 14 anos eram inimputáveis. Contudo, se
houvesse discernimento para os empreendidos na faixa dos 7 aos 14 anos,
poderiam ser encaminhados para casas de correção, onde poderiam per-
manecer até os 17 anos de idade.
No Brasil, o primeiro Código Penal, manteve a mesma linha do có-
digo anterior, com pequenas modificações. Neste código, os menores de
9 anos eram inimputáveis. Aos adolescentes, que possuíam idade entre os
9 e 14 anos, tinham a verificação do discernimento garantida. Até os 17
anos seriam apenados com 2/3 da pena que corresponderia à do adulto
(ZAVATTARO, 2019).
O Estado tinha um grande aliado: a Igreja. Essa instituição agia em
paralelo, no campo não infracional. No primeiro ano após o descobrimen-
to do Brasil, mais precisamente no ano 1551, foi fundada a primeira casa
de recolhimento de crianças no Brasil, gerida pelos jesuítas que buscavam
isolar crianças índias e negras da má influência dos pais, com seus costume
“bárbaros” e que na grande maioria das vezes ia contra os padrões da Igre-
ja, a grande aliada do Estado em “defesa dos bons costumes”. Considera-
va-se assim o início da política de recolhimento (AMIM, 2019).
No século XVIII, foi constatado um aumento na preocupação do
Estado com órfãos e expostos, pois era comum a prática do abandono
de crianças (crianças ilegítimas e filhos de escravos, principalmente) nas
portas das igrejas, conventos, residências ou mesmo pelas ruas. Como so-
lução, resolveu-se importar da Europa a Roda dos Expostos16, que eram
mantidas pelas Santas Casas de Misericórdia17.
15 Esse sistema foi mantido até 1921, ano em que a Lei 4.242 substituiu o subjetivismo do
sistema biopsicológico pelo critério objetivo de imputabilidade de acordo com a idade
16 Era formada por uma caixa dupla de formato cilíndrico, a roda foi adaptada no muro das
instituições caridosas. Com a janela aberta para o lado externo, um espaço dentro da caixa
recebia a criança após rodar o cilindro para o interior dos muros, desaparecendo assim a
criança aos olhos externos; dentro da edificação a criança era recolhida, cuidada e criada
até se fazer independente.
17 Com inspiração na Roda dos Expostos, alguns países Europeu resgataram este instituto,
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O início do período republicano foi marcado por um aumento da
população do Rio de Janeiro e de São Paulo, em razão, principalmente,
da intensa migração dos escravos recém-libertos. O que eram denomina-
dos males sociais (doenças, sem-teto, analfabetos, etc.) exigiram medidas
sociais urgentes, uma vez que era um momento de construção da imagem
da nova república e, com isso, uma ótima oportunidade para ganharem
direitos. Assim, foram fundadas entidades assistenciais que passaram a
adotar práticas de caridade ou medidas higienistas18.
O pensamento social era bem oscilante entre assegurar direitos ou
“se defender” dos menores. Casas de recolhimentos foram inauguradas
em 1906, onde eram dividas em escolas de prevenção, destinadas a educar
menores em abandono, escolas de reforma e colônias correcionais19, cujo
objetivo era regenerar menores em conflito com a lei.
Em 1912, o então deputado João Chaves, tendo como base a influên-
cia externa20, resolve apresentar um projeto de lei alterando a perspecti-
va do direito de crianças e adolescentes, afastando — o da área penal e
propondo a especialização de tribunais e juízes, na linha, por tanto, dos
movimentos internacionais da época.
As discussões internas ocasionadas pela proposta e principalmente
pelo que se propunha a discutir no exterior, levaram à construção de uma
doutrina do Direito do Menor, fundada no binômio carência–delinquên-
cia. Era a fase da criminalização da infância pobre. Havia na época, uma
consciência geral de que o Estado teria o dever de proteger os menores,
designando-o como “parto anônimo”. No lugar da roda, os hospitais disporiam de um berço
aquecido, acessível por meio da janela do hospital e equipado com sensores que avisariam
os profissionais de saúde, no momento em que fosse ocupado. A criança não saberia do seu
vínculo biológico e seria colocada em família substituta (AMIM, 2019).
18 Foi um movimento que também surgiu na Europa que, teoricamente, se fundamentava
em noções de eugenia e degenerescência.
19 Foram criadas em 1908, pela Lei 6.994, para cumprimento dos casos de internação, de
menores e maiores, estes de acordo com o tipo penal e a situação processual.
20 No âmbito internacional, destacavam-se o Congresso Internacional de Menores, que foi
realizado em Paris, no ano de 1911, e a Declaração de Gênova de Direitos da Criança, que
me 1924, veio a ser adotada pela Liga das Nações, reconhecendo – se, pela primeira vez, a
existência de um Direito da Criança.
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mesmo que suprimindo suas garantias. Desenhava-se assim a Doutrina da
Situação Irregular21.
Em 1926, inevitavelmente, foi publicado o Decreto n. 5.083, o pri-
meiro Código de Menores do Brasil que cuidava dos infantes expostos
e menores abandonados. Cerca de um ano depois, em 12 de outubro de
1927, veio a ser substituído pelo Decreto n. 17.943-A, mais conhecido
como Código Mello Matos. De acordo com a nova lei, caberia ao Juiz de
Menores decidir-lhes o destino. A família, independentemente da situa-
ção econômica, tinha o dever de suprir adequadamente as necessidades
básicas das crianças e dos jovens, de acordo com o modelo idealizado pelo
Estado. Medidas assistenciais22 e preventivas foram previstas com o objeti-
vo de minimizar a infância de rua.
Já no que se refere ao campo infracional, crianças e adolescentes até
14 anos eram objeto de medidas punitivas com finalidade educacional.
Já os jovens, entre 14 e 18 anos, eram passíveis de punição, mas com res-
ponsabilidade atenuada. Foi uma lei que uniu justiça e assistência, união
extremamente necessária para que o Juiz de Menores exercesse toda sua
autoridade centralizadora, controladora e protecionista sobre a infância
pobre, potencialmente perigosa. Estava construída a categoria Menor,
conceito estigmatizante que acompanha crianças e adolescentes até a Lei
8.069/90 (AMIM, 2019).
Em 1937, a Constituição da República do Brasil, permeável às lutas
pelos direitos humanos de maneira mais eficaz, buscou, além do aspecto
jurídico, ampliar o horizonte social da infância e juventude, bem como
dos setores mais carentes da população. O serviço social passa a integrar
programas de bem-estar, valendo destacar o Decreto-Lei 3.799/41, que
criou o Serviço de Assistência do Menor (SAM), que atendia menores
delinquentes e desvalidos, redefinido em 1944 pelo Decreto-Lei 6.865.
21 Diferentemente da doutrina da situação irregular, onde o adolescente era estigmatizado
como um mero objeto de direitos, na doutrina da proteção integral, o adolescente ganha status
de sujeito de direitos. A Doutrina da Proteção Integral se caracteriza pela amplitude de sua
proteção.
22 Em 1923, por meio do Decreto 16.272, foram publicadas as primeiras normas de as-
sistência social visando proteção dos menores abandonados e delinquentes, após ampla
discussão no I Congresso Brasileiro de Proteção à Infância.
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A tutela da infância, nesse momento histórico, caracterizava-se pelo
regime de internações com quebra dos vínculos familiares, substituídos
por vínculos institucionais. O objetivo era recuperar o menor, adequan-
do-o ao comportamento ditado pelo Estado, mesmo que o afastasse por
completo da família. A preocupação era correcional e não afetiva.
Em 1943, foi instalada uma Comissão Revisora do Código Mello
Mattos. Esta comissão diagnosticou que o problema das crianças era prin-
cipalmente social, a comissão trabalhou no propósito de elaborar um có-
digo misto, com aspectos social e jurídico (AMARO, 2014).
No projeto, percebia-se claramente a influência dos movimentos pós
Segunda Grande Guerra em prol dos Direitos Humanos que levaram a
ONU, em 1948, a elaborar a Declaração Universal dos Direitos do Ho-
mem e, em 20 de novembro de 1959, a publicar a Declaração dos Direitos
da Criança, cuja a evolução originou a doutrina da Proteção Integral.
Entretanto, após o golpe militar, a comissão foi desfeita e os trabalhos,
interrompidos.
A década de 1960 foi marcada por severas críticas ao SAM, que não
cumpria e até se distanciava do seu objetivo inicial. Desvio de verbas,
superlotação, ensino precário, incapacidade de recuperação dos internos
foram alguns dos muitos problemas que levaram a sua extinção em no-
vembro de 1964, pela Lei 4.513, que criou a Fundação Nacional do Bem-
-Estar do Menor (FUNABEM).
A atuação da nova entidade era baseada na Política Nacional do Bem-
-Estar do Menor (PNBEM) com gestão centralizadora e verticalizada.
Nítida a contradição entre o técnico e a prática. Legalmente, a Funabem
apresentava uma proposta pedagógico-assistencial progressista. Na prática,
era mais um instrumento de controle do regime político autoritário exer-
cido pelos militares. Em nome da segurança nacional, buscava-se reduzir
ou anular ameaças ou pressões antagônicas de qualquer origem, mesmo se
tratando de menores, elevados, naquele momento histórico, à categoria de
“problema de segurança nacional” (AMARO, 2014).
Com o retrocesso do regime militar, foi publicado o Decreto-Lei
1004, de 21 de outubro de 1969, que instituiu o Código Penal e redu-
ziu a responsabilidade penal para 16 anos se comprovada a capacidade de
discernimento acerca da ilicitude do fato. Na hipótese, a pena poderia ser
diminuída de um terço até a metade. O referido dispositivo só foi revoga-
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do pela Lei 6016 de 31 de dezembro de 1973, que restabeleceu a idade de
18 anos para alcance da imputabilidade penal.23
No final dos anos 1960 e começo de 1970 iniciam-se debates para
reforma ou criação de uma legislação menorista. Em 10 de outubro de
1979 foi publicada a Lei 6.697, novo Código de Menores, que, sem pre-
tender surpreender ou verdadeiramente inovar, consolidou a doutrina da
Situação Irregular.
Durante todo esse período, a cultura da internação, para carentes ou
delinquentes, foi a tônica. A segregação era vista, na maioria dos casos,
como única solução.
Em 1990, já completamente desgastada pelos mesmos sintomas que
levaram à extinção do SAM, a Funabem foi substituída pelo Centro Brasi-
leiro para infância e Adolescência (CBIA). Percebe-se, desde logo, a mu-
dança terminológica, não mais se utilizando o estigma menor, mas, sim,
“criança e adolescente”, expressão consagrada na Constituição da Repú-
blica de 1988 e nos documentos internacionais (AMIM, 2019).
2. Período pós constituição de 1988
2.1 Doutrina da Proteção Integral
A Constituição de 1988 trouxe significativas mudanças em nosso or-
denamento jurídico, estabelecendo novos paradigmas.
Do ponto de vista político, houve uma necessidade de reorganização
e de reafirmar valores caros que nos foram ceifados durante o regime mi-
litar. No campo das relações privadas se fazia imprescindível atender aos
anseios de uma sociedade mais justa e fraterna, menos patrimonialista e
liberal. Diversos movimentos europeus pós-guerra influenciaram o legis-
lador constituinte na busca de um direito funcional, pro-sociedade. De
um sistema normativo garantidor do patrimônio do indivíduo passamos
23 Decreto-Lei 1004, de 21 de outubro de 1969, instituiu o Código Penas e em seu art. 33
estabeleceu: “O menor de dezoito anos é inimputável salvo se, já tendo completado dezes-
seis anos, revela suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e
determinar-se de acôrdo com êste entendimento. Neste caso, a pena aplicável é diminuída de
um terço até a metade. (Menores).” Lei 6.016, de 31 de dezembro de 1973, deu nova redação
ao art. 33 do CP: “O menor de dezoito anos é inimputável.
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para um novo modelo que prima pelo resguardo da dignidade da pessoa
humana. O binômio individual-patrimonial é substituído pelo coletivo-
-social (CANTALI, 2009).
De certo, o novo perfil social almejado pelo legislador constitucional
não poderia deixar intocado o sistema jurídico da criança e do adolescen-
te, restrito aos menores em abandono ou estado de delinquência. E, de
fato, não o fez.
A intensa mobilização de organização populares nacionais e de atores
da área da infância e juventude, acrescida da pressão ode organismos inter-
nacionais, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), foi
essencial para que o legislador constituinte se tornasse sensível a uma causa
já reconhecida como primordial em diversos documentos internacionais,
como a Declaração de Genebra, de 1924; a Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos das Nações Unidas (Paris, 1948); a Declaração dos Di-
reitos das Crianças , de 1959; a Convenção Americana sobre os Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, 1969) e Regras Mínimas das
Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude
– Regras Mínimas de Beijing (Res. 40/33 da Assembleia Geral, de 29 de
novembro de 1985). A nova ordem rompe, assim, com o já consolidado
modelo da situação irregular e adotou a doutrina da proteção integral.
No caminho da ruptura, merece destaque a atuação do Movimento
Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), resultado do 1°
Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, realizado em 1984,
cujo objetivo era discutir e sensibilizar a sociedade para a questão das
crianças e adolescentes rotulados como “menores abandonados” ou “me-
ninos de rua”.
O MNMMR foi um dos mais importantes polos de mobilização na-
cional na busca de uma participação ativa de diversos segmentos da socie-
dade atuantes na área da infância e juventude. O objetivo a ser alcançado
era uma Constituição que garantisse e ampliasse os direitos sociais e indi-
viduais de nossas crianças e adolescentes.
Coroando a revolução constitucional que colocou o Brasil no sele-
to rol das nações mais avançadas na defesa dos interesses infanto-juvenis,
para as quais crianças e jovens são sujeitos de direito, titulares de direi-
tos fundamentais, foi datado o sistema garantista da doutrina da proteção
integral. Objetivando regulamentar e implementar o novo sistema, foi
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promulgado a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, de autoria do Senador
Ronan Tito, que incorporou em seu texto os compromissos expostos na
Convenção Sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989, da
qual o Brasil e signatário.
O Estatuto da Criança e do Adolescente resultou da articulação de
três vertentes: o movimento social, os agentes do campo jurídico e as po-
líticas públicas.
Coube ao movimento social reivindicar e pressionar. Aos agentes ju-
rídicos (estudiosos e aplicadores) traduzirem tecnicamente os anseios da
sociedade civil desejosa de mudança do arcabouço jurídico-institucional
das décadas anteriores. Embalados pelo ambiente extremamente propí-
cio de retomada democrática pós ditadura militar e promulgação de uma
nova ordem constitucional, coube ao Poder Público, por meio das Casas
legislativas, efetivar os anseios sociais e a determinação constitucional.
O termo “estatuto” foi de todo próprio, porque traduz o conjunto
de direitos fundamentais indispensáveis à formação integral de crianças e
adolescentes, mas longe está de ser apenas uma lei que se limita a enunciar
regras de direito material. Trata-se de um verdadeiro microssistema que
cuida de todo o arcabouço necessário para efetivar o ditame constitucional
de ampla tutela do público infanto-juvenil. É norma especial com extenso
campo de abrangência, enumerando regras processuais instituindo tipos
penais, estabelecendo normas de direito administrativo, princípios de in-
terpretação, política legislativa, em suma, todo o instrumental necessário
e indispensável para efetivar a norma constitucional.
A adoção da Doutrina da Proteção Integral, constitui uma revolução
copernicana. Com ela, constrói-se um novo paradigma para o direito in-
fanto-juvenil. Formalmente, sai de cena a Doutrina da Situação Irregular,
de caráter filantrópico e assistencial, com gestão centralizadora do Poder
Judiciário, a quem cabia a execução de qualquer medida referente aos me-
nores que integravam o binômio abandono–delinquência.
Com a Doutrina da Proteção Integral, crianças e adolescentes deixam
de ser objeto de proteção assistencial e passam a titulares de direitos subje-
tivos. Para assegura-los é estabelecido um sistema de garantia de direitos,
que se materializa no Município, a quem cabe estabelecer a política de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente, por meio do Conse-
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lho Municipal de Direito da Criança e do Adolescente (CMDCA), bem
como, numa congestão com a sociedade civil, executá-la.
Trata-se de um novo modelo, universal, democrático e participativo,
no qual família, sociedade e Estado são partícipes e cogestores do sistema
de garantias que não se restringe à infância e juventude pobres, prota-
gonistas da doutrina da situação irregular, mas sim a todas as crianças e
adolescentes, pobres ou ricos, lesados em seus direitos fundamentais de
pessoas em desenvolvimento.
Neste momento, novos atores entram em cena com papel fundamen-
tal: a comunidade local, por meio dos Conselhos Municipal e Tutelar; a
sociedade civil através dos organismos não governamentais que integram
a rede de atendimento; a família, cumprindo os deveres inerentes ao po-
der familiar; o judiciário, exercendo precipuamente a função judicante: o
Ministério Público, como um grande agente garantidor de toda rede, fis-
calizando seu funcionamento, exigindo resultados, assegurando o respeito
prioritário aos direitos fundamentais infanto-juvenis estabelecidos na Lei
Maior; sem esquecer a Defensoria Pública, os advogados, os comissários e
os serviços auxiliares, por meio das equipes interprofissionais imprescin-
díveis ao cotidiano das varas da infância e da juventude.
Implantar o sistema de garantias é o grande desafio dos que figuram
na área da infância e juventude. Inicialmente, faz-se indispensável romper
com a dogmática anterior, não apenas no aspecto formal, como já o fize-
ram a Constituição da República e a Lei 8.069/90, mas e principalmente
no plano prático. Trata-se de uma tarefa árdua, pois exige conhecer, en-
tender e aplicar uma nova sistemática, completamente diferente da preté-
rita, entranhada em nossa sociedade há quase um século.
2.2 A Lei 13.431/17 enquanto um microssistema
principiológico de proteção e garantia dos direitos
fundamentais
Ao conferir um rol de direitos em favor à pessoa humana, o Esta-
do tem alguns mecanismos para fazer com que esses direitos sejam efeti-
vamente cumpridos pelos particulares. Um desses mecanismos, e o que
possui maior aparato, é o processo penal. A condenação criminal, no en-
tanto, depende de coleta mínima de provas, oferecimento de denúncia e
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de instrução processual, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa do
acusado.
Se uma pessoa é acusada de abuso sexual infantil, a prova apta para a
condenação é particularmente complexa. Os crimes contra a dignidade
sexual infantil, infelizmente, não são raros, não deixam quaisquer vestí-
gios nas crianças, vítimas de tamanha agressão. Resta, em muitos casos,
apenas a prova testemunhal. É a oitiva da vítima, no caso, da criança, que
proporcionará a punição do agressor e a demonstração de controle estatal.
Submeter uma criança ao aparato estatal, para fins de produção proba-
tória, no entanto, pode ocasionar danos psíquicos ainda mais gravosos do
que aqueles já causados pelo abuso sexual em si. Os órgãos de persecução
penal são conhecidos pela revitimização consistente no constrangimento
da vítima24. Afinal, o processo penal espera dela a contribuição para uma
possível punição do agressor.
Surge, então, o projeto “depoimento sem dano”, atualmente conhe-
cido como “depoimento especial”, nele é proposto, na esfera judicial, a
oitiva da criança de maneira humanizada, acolhedora, com redução de
danos, como a primeira nomenclatura surge. De acordo com o projeto,
a intervenção de profissionais da área de saúde, na oitiva da criança, seria
apta a afastar a vitimização secundária.
De outro lado, não deve se falar em ausência de danos da submissão
do vulnerável ao Poder Judiciário, mas apenas em uma amenização, seja
qual for a técnica aplicada para tal. A oitiva da criança, como testemu-
nha, em juízo, é mesmo necessária? Outros meios de prova não serão
suficientes, sem que a criança tenha que ser submetida à uma função de
um adulto?
A Convenção sobre os direitos da criança positiva, em seu Artigo
12, o direito especial, em ser ouvida em todos os processos de seu inte-
resse. É com base neste dispositivo, que a implementação do depoimen-
to especial vem se justificando. Cabe-nos definir qual a dimensão desse
direto de oitiva, e se a submissão da criança à escuta judicial é uma forma
de sua efetivação.
24 Pode ser consultado: FAYET JÚNIOR, Ney, “A prova testemunhal infantil.” In Revista da
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 16, p.
131-7, 2000.
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O artigo 227 da Constituição Federal fixa a doutrina da proteção in-
tegral e da prioridade absoluta como diretrizes a serem seguidas na inter-
pretação dos direitos da criança. É necessário averiguar, portanto, se o de-
poimento especial está em consonância com as disposições constitucionais
ou se trata de mais uma maneira de sua violação.
A memória das crianças detém peculiaridades, que levam muitas ve-
zes, ao descrédito de suas declarações pelo Poder Judiciário e, consequen-
temente, à absolvição do responsável por eventuais agressões. Deve-se,
assim, estudar as metodologias aptas a maximizar a qualidade das infor-
mações colhidas, ao longo da instrução.
Atualmente, a legislação reconhece a criança como uma pessoa em
especial situação de desenvolvimento, e por isso merece proteção especí-
fica. A consolidação dos direitos desse grupo de pessoas vulneráveis ainda
se faz presente nos dias atuais.
Quando se está a tratar da vulnerabilidade de determinada categoria
na seara do Direito, há a referência necessária aos direitos específicos, a
fim de garantir a isonomia de tratamento aos sujeitos. E isso decorre exa-
tamente pelo significado da palavra vulnerável25.
A conquista de direitos é perseguida de acordo com a necessidade de
cada sociedade, sendo que, o indivíduo busca a proteção quando há viola-
ção desses direitos. Dente os direitos essenciais à condição do ser humano,
fala-se em direitos fundamentais. Esses direitos são tidos como mínimos
para o existencial humano, não influenciam em seu conteúdo, uma vez
que a doutrina e os diversos ramos do Direito lhe conferem diversas clas-
sificações, entretanto, possuem o mesmo significado.
O núcleo desses direitos básicos à existência digna pode, por exemplo
ser referido por direitos naturais, por serem inerentes à condição de ser
humano, o termo direitos humanos é utilizado por tratados internacio-
nais, os direitos individuais são utilizados ao mencionar o direito do indi-
víduo isolado ou de um grupo de direitos fundamentais.
Os direitos da personalidade refletem o princípio da dignidade da
pessoa humana, possibilitando que ela seja exercida pelo individuo (BOR-
GES, 2007). Quando se coloca a dignidade da pessoa humana como parâ-
metro e limitador do exercício de outros direitos fundamentais, deve-se
25 Que pode ser vulnerado: “Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desampara-
dos e vulneráveis como crianças” (ZAVATTARO,2019).
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ter em vista que, supostamente, não existem direitos absolutos, no sentido
de “uma total imunidade a qualquer espécie de restrição (SARLET,2009).
Importante ressaltar que o processo penal, conforme formulado no
direito brasileiro, apenas espera da vítima sua cooperação para a persecu-
ção penal e para a identificação do ofensor, não se preocupando com ela
como um sujeito de direitos, com sua vontade ou aversão em participar da
ação e da condenação do indivíduo. Assim sendo, os direitos fundamen-
tais desses indivíduos, que acabam rotulados como vítima no processo pe-
nal, nem sempre são respeitados.
Quando a criança é vítima de um fato criminoso, sua oitiva será es-
sencial para o esclarecimento e a responsabilização do ofensor no âmbito
penal. Todavia, em figurando uma criança no papel do ofendido, em ca-
sos de abuso, sua oitiva se torna mais delicada, inclusive tendo em vista
o elevado número de casos em que o agressor é uma pessoa próxima da
criança, e, em muitos casos faz parte da família, o que torna, as coisas in-
finitamente mais difíceis.
Neste sentido, a socióloga francesa Irène Thèry (THÈRY, 1992)
considera que ao exercer o direito de testemunhar, mesmo com cautelas
na sua escuta, a criança perde o direito à infância, exercendo funções que
são de responsabilidade dos adultos. A autora alega que essa prática afasta a
proteção da criança como uma forma moderna de opressão.
Conclui-se que o direito da criança, em ser ouvida e conceder sua
opinião diante da positivação antes mencionada, deve ser classificado
como um direito da personalidade da criança. Com isso, os direitos de
personalidade podem ser referidos como um conjunto de atributos que
garantem o exercício da própria condição humana. Abrange a necessi-
dade do ofendido em reconstruir sua autoestima e expressar sua emoção,
garantindo que possa superar o ocorrido e reduzir os danos que lhe foram
causados. Faz parte, portanto, do processo de cura da ofensa sofrida.
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ROSA É COR DE MENINA: A
IMPOSIÇÃO DE ESTEREÓTIPOS PELA
ENTIDADE FAMILIAR NA EDUCAÇÃO
DO MENOR
Larissa Lassance Grandidier26
INTRODUÇÃO
Os movimentos feministas existem desde a sociedade antiga até o pre-
sente momento, uma vez que a mulher ainda vivencia uma realidade oposta
da que lhe é devida. Apesar da luta pelo direito de votar e ser votada, do direi-
to de utilizar transportes públicos e o direito de praticar determinadas profis-
sões, a mulher ainda não possui o seu principal objetivo: o direito à igualdade.
A existência da mulher é representada por diversas fases, tendo todas
um aspecto em comum: a imposição. A imposição de brincar com uma
boneca, de vestir roupas cor de rosa, de aprender a cozinhar, casar, cuidar
da casa e dos filhos, todas ilustrando a restrição de liberdade, restrição esta
que o homem não sofre.
As imposições tornam-se mais agravantes quando trata-se de crian-
ça e adolescente, que recebem proteção jurídica nacional e internacional
com o fito de promover os seus direitos. O menor faz parte dos gru-
pos vulneráveis, uma vez que ainda não possuem discernimento integral
para distinguir o que são e o que querem, motivo pelo qual sofrem a
26 Pós-graduada em Direito Processual Civil e Direito Processual do Trabalho em Centro
Universitário do Pará. Advogada.
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primeira imposição de suas vidas: os estereótipos criados por seus pró-
prios genitores.
Ocorre que o patriarcalismo, instituto obsoleto em nosso Ordena-
mento Jurídico, acaba por ressurgir dentro da própria entidade familiar,
de modo que o genitor acaba influenciando, negativamente, nas escolhas
do menor, sejam estas materiais ou sentimentais.
Nesse sentido, o objetivo geral deste artigo é a análise da imposição
de estereótipos pela entidade familiar na criação de sua prole. Por sua vez,
os objetivos específicos serão a análise sucinta da evolução histórica dos
movimentos feministas, os estereótipos impostos pela sociedade com a in-
fluência do patriarcalismo, analisar a importância da família e o seu dever
constitucional de proteger a criança e o adolescente e a necessidade de
superação destes estereótipos como defesa do direito do infante. Por fim,
a metodologia utilizada foi o método de pesquisa bibliográfica.
Dito isto, no primeiro momento serão analisados momentos históri-
cos e locais em que se obteve resultados de movimentos feministas, posi-
tivos e negativos. Posteriormente, será analisada a imposição desses este-
reótipos e de que modo o patriarcalismo influencia no núcleo familiar e,
por fim, far-se-á uma breve análise de dispositivos do Estatuto da Criança
e do Adolescente e a necessidade da intervenção estatal para a superação
de certos dogmas sociais.
O feminismo busca uma realidade social em que não tenha que se
adaptar a uma hierarquia inconstitucional como a atual. O que se busca é a
igualdade de gênero, a mulher e o homem possuindo todos os direitos a eles
devidos, e ambos na extensão que o Ordenamento garante. O que se busca
é uma realidade social em que ascendentes apresentem opções ao menor
para que este possua a liberdade de se conhecer e de fazer suas próprias esco-
lhas do que vestir, do que brincar e do que é de homem e o que é de mulher.
1 AS IMPOSIÇÕES HISTÓRICO-SOCIAIS DO SISTEMA
PATRIARCAL
1.1 Os movimentos feministas
Os movimentos feministas são representados pela luta constante da
mulher em busca da igualdade de gênero e diretamente interligados entre
si, uma vez que a discriminação não ocorre em apenas um momento ou
contra uma mulher. Nesse sentido, os movimentos feministas buscaram
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
“superar as formas de organização tradicionais, permeadas pela assimetria
e pelo autoritarismo” (ALVES; PITANGUY, 1985, p. 8).
Na Grécia, as mulheres ocupavam condição equivalente à de escra-
vo, onde trabalhavam na agricultura com trabalhos pesados e não tinham
acesso à educação. A imagem feminina era sinônimo de um objeto para
realizar determinado trabalho. Além disso, em Roma vigorava o instituto
do paterfamilias, no qual o homem detinha o poder sobre toda sua família,
inclusive sua esposa, a qual não possuía poder decisório (ALVES, PITAN-
GUY, 1985).
Em contrapartida, sociedades tribais como a Gália e a Germânia
detinham maior reconhecimento da mulher: a mesma era vista igual ao
homem, pois ambos participavam de guerras, trabalhavam na agricultu-
ra, construíam suas casas e participavam das discussões da cidade. Neste
sentido, a mulher e o homem possuíam os mesmos subsídios, sejam estes
bons ou ruins, mas eram tratados da mesma maneira no que diz respeito às
suas responsabilidades como cidadãs (ALVES, PITANGUY, 1985).
Verifica-se que o processo histórico desses movimentos é representa-
do por altos e baixos onde a mulher pleiteava direitos equivalentes, e não
uma sociedade hierarquizada: algumas vezes obtinha sucesso, e em outros
momentos era repreendida justamente em razão de seu gênero. A título
exemplificativo, podem ser citados dois momentos extremamente delica-
dos para a mulher durante a história: a mulher no mercado de trabalho e a
chamada caça às bruxas.
O primeiro exemplo é cristalino na realidade do mercado de trabalho,
tendo em vista que o trabalho feminino sempre recebeu rebaixamento sa-
larial, mesmo quando realizado nas mesmas condições que o trabalho mas-
culino. Sob outra ótica, também é reincidente a mão-de-obra da mulher ser
menos valorizada, não apenas financeiramente, mas também socialmente.
Em relação aos rendimentos médios do trabalho, as mulheres se-
guem recebendo, em média, cerca de ¾ do que os homens recebem.
Em 2016, enquanto o rendimento médio mensal dos homens era de
R$2.306, o das mulheres era de R$1.764 (IBGE,online, 2018).
Trata-se, nesta senda, de um problema histórico-social, uma vez que
a problemática em tela ocorre desde o século XIX até a realidade atual.
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As oportunidades vangloriadas no mercado reiteram a invisibilidade da
competência feminina, e não versa apenas sobre o salário inferior, mas
também à redução de oportunidades, uma vez que a rotulação ocorre in-
clusive no momento da escolha da profissão.
No que diz respeito ao fato conhecido como caça às bruxas, ou feminicí-
dio em massa, representou o momento em que mulheres foram perseguidas e
mortas por serem mulheres e eram queimadas, nos diversos países, represen-
tando inúmeras violações de Direitos Humanos deste grupo. Ademais, fora
registrado àquela época o número de dez mulheres mortas para um homem
morto, totalmente irrazoável e desproporcional, especialmente no que diz
respeito à justificativa de sua ocorrência (ALVES, PITANGUY, 1985).
Nesse diapasão, a finalidade é demonstrar alguns dos inúmeros mo-
vimentos que ocorreram nos diversos países pleiteando a igualdade de gê-
nero. “O que se procura, em suma, é denunciar, desvendar e transformar
a construção social da imagem da mulher” (ALVES, PITANDUY; 1985,
p. 64), uma vez que não foi apenas no Século XIX ou XX que ocorreram
as discriminações. Hoje, 2020, ainda se tem a supressão do direito em
razão do gênero. Neste sentido, grande parte de estudos voltados ao femi-
nismo descrevem uma nova caça às bruxas.
Hoje, nós encontramos novas formas de caças às bruxas em muitas
partes do mundo. Na África, na Índia, mulheres estão novamente
sendo acusadas [de bruxaria] e são torturadas e mortas. Milhares
de mulheres foram mortas em diversos países africanos – na Re-
pública Centro-Africana, no Quênia, na África do Sul – em di-
ferentes tempos, nos últimos 30 anos – na Zâmbia, na Tanzânia;
[também] em diferentes regiões da Índia. (...) Porque, novamente,
atacar mulheres enquanto bruxas está conectado com os desenvol-
vimentos que emergem das novas formas de acumulação capitalis-
ta, as novas formas de trabalho, a privatização da terra, o ataque a
relações comunitárias (MARTINELLI, online, 2019).
Dentre as supressões, podemos citar, como uma das principais, aquela
realizada dentro do próprio âmbito familiar: a imposição do estereótipo na
menor que não possui discernimento suficiente para fazer escolhas. Por
ser vulnerável, o núcleo familiar responsável acaba por apresentar opções
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
pessoais e muitas vezes equivocadas e impõe ao menor a escolha destas,
como a cor de vestimentas ou seus brinquedos.
Com isso, surge mais um movimento feminista à procura da igual-
dade de gênero em sua essência: a luta pela extinção destes estereótipos
patriarcais dentro de uma entidade familiar.
Ocorre que “as pessoas vão usar a ‘tradição’ seletivamente para justi-
ficar qualquer coisa” (ADICHIE, 2017, p. 15), mas é cediço que os cos-
tumes patriarcais devem ser extintos, cabendo à própria sociedade primar
pelas mudanças de dogmas e realidade social, com o fim de alcançar a
igualdade de gênero, independente da discriminação sofrida.
1.2 A imposição de estereótipos pela entidade familiar
e a ofensa de direitos do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
É cediço que o infante não possui discernimento ou capacidade de
fazer escolhas na infância, motivo pelo qual a Carta Constitucional esta-
belece, em seu artigo 227, o dever da família, da sociedade e do Estado em
assegurar a este grupo o mínimo existencial.
Ademais, a entidade familiar possui acesso direto ao menor, tendo em
vista a convivência diária e o poder familiar, razão pela qual os genitores
devem dispor de todos os subsídios necessários para aprender a viver em
sociedade, falar, brincar e se cuidar. Ocorre que o desenvolvimento inte-
gral do infante, quando não estimulado, gera efeitos negativos e irreversí-
veis em seu crescimento e formação.
O primeiro momento que a mulher sofre restrição de gênero é na
infância. Durante a vivência e aprendizado, é corriqueiro que o genitor
apresente ao menor opções a ele confortáveis em razão de costumes pa-
triarcais originados pela própria sociedade.
Ocorre que o genitor utiliza estereótipos criados pela ideia patriarcal
enraizada na sociedade: a imposição ao menor de que rosa é cor de meni-
na, azul é cor de menino; boneca é brinquedo de menina, carrinho é brin-
quedo de menino; dentre outras rotulações decorrentes da característica
patriarcal na criação do infante.
Fico imaginando quem foi o gênio do marketing que inventou essa
dualidade rosa-azul. Havia também uma seção de “gênero neu-
tro”, com aquela infinidade de cinzas sem graça. “gênero neutro”
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é uma bobagem, porque tem como premissa a ideia do masculi-
no como azul e do feminino como rosa, sendo o “gênero neutro”
uma categoria própria. Por que não organizar as roupas infantis por
idade e expô-las em todas a cores? Afinal, todo os bebês têm corpo
parecido (ADICHIE, 2017, p. 24).
Os estereótipos são tão incutidos na sociedade como um todo que o
indivíduo acaba por segui-los mesmo quando vão contra sua verdadeira pre-
missa, logo, a problemática em tela não diz respeito apenas ao núcleo fami-
liar responsável pela criação do infante, mas também para a atual e próximas
gerações. É senso comum comprar roupas rosas e bonecas para meninas. É
comum em chás de bebês presentear a genitora com uma roupa rosa por ser
menina. Essa prática se torna tão frequente que o indivíduo sequer percebe
que se trata de uma restrição de direitos que o próprio menor sofrerá.
Essa imposição de escolhas ao menor ofende não apenas este, mas
a toda a sociedade, uma vez que se trata de uma adoção patriarcal e que
não condiz com o Estado Democrático de Direito e todos os direitos
fundamentais ao cidadão garantidos. Além disso, resta enumerar demais
responsáveis pela imposição desses estereótipos além do núcleo familiar,
como as fontes midiáticas e a própria sociedade.
É indiscutível a responsabilidade da mídia por esta imposição. São
corriqueiras campanhas publicitárias de produtos infantis que impõem
estes estereótipos: bonecas e cozinha infantil, como o site da empresa Lo-
jas Americanas, que possui a opção específica “brinquedos de menina”
(AMERICANAS, online, 2020).
Ademais, resta esclarecer que o termo imposição é adequado para
tratar dessa discriminação, havendo a imposição de estereótipos pelos ge-
nitores por serem obrigatoriamente adotados pelo menor. O mesmo não
possui opções ou escolhas a serem tomadas, pelo contrário, o estereótipo
de gênero é exatamente representado pelos genitores mostrando “o cor-
reto” para o menor, apresentando apenas a opção a eles satisfativa e ofen-
dendo o direito à informação daquele.
É corriqueiro uma menina pegar um carrinho para brincar e sua mãe
reprimi-la informando que é brinquedo de menino; ou escolha uma rou-
pa rosa e o pai reprimi-lo afirmando que rosa é coisa de menina. Papéis de
gênero são inaceitáveis, não se pode deixar de fazer algo por ser menina.
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Sob essa análise, o filósofo Michel Foucault defende a idéia que a
identidade não se trata de uma simples classificação, sendo necessário vi-
ver determinada forma para identificar qual a sua identidade. Deve-se,
antes de qualquer imposição de escolha, criar um modo de vida, marcado
pelo “tornar”, e não pelo “ser”.
O gênero, assim como o sexo, não é um ‘ser’, e sim um ‘fazer’,
no sentido de que é produzido, determinado, por uma estrutura
heteronormativa de poder preexistente. Assim, o sujeito nos possui
uma livre escolha sobre o gênero o qual vai representar, uma vez
que se criou e determinou os possíveis gêneros a serem adotados
(AZEVEDO, 2015, p. 188).
Os genitores devem pleitear a extinção desses estereótipos, e não a sua
imposição, uma vez que deve ser associada “a maneira de se vestir como
uma questão de gosto ou de beleza, e não de moral” (ADICHIE, 2017,
p. 56).
Nos momentos em que os homens têm de dizer ao filho o que é
“certo” e o que é “errado”, ou seja, quando atuam como agen-
tes responsáveis pela socialização, dois mapas interpõem-se na sua
ação: um identificado com o modelo no qual ele foi socializado
e qualificado como tradicional, outro, incorporado ao longo dos
anos, por intermédio do encontro com outras visões de mundo e
das terapias (BENTO, 2015, p. 109).
Nesse sentido, é incontestável a culpa dos genitores na educação do
menor, que teve sua personalidade restringida em razão do estereótipo
implantado pelo patriarcalismo adotado pelo núcleo familiar: brincar de
casinha, vestir roupa rosa, cruzar as pernas. São esses, dentre muitos este-
reótipos que influenciam no crescimento e escolhas do infante, bem como
causam consequências psicossociais a este, razão pela qual é fundamental
que os genitores se desvirtuem do patriarcado e garantam o direito de
personalidade e liberdade do menor.
“Como negar que a mãe exerce cotidianamente seu quantum maior
de poder sobre o filho? Ela é, em parte, responsável pela constituição mo-
ral da criança” (BENTO, 2015, p. 70). É exatamente esta a necessidade
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
de afastar os preceitos pessoais e superados e adotar uma atitude com a
perspectiva no futuro deste menor, que aprende e cresce com aquilo que
é apresentado a ele.
A genitora exerce o papel de mãe e professora, transmitindo valo-
res essenciais para o crescimento e formação do menor: se os genitores
restringem sua liberdade de brincar ou de vestir, ter-se-á mais uma vez
a desigualdade de gênero, descriminando um menor que sequer possui
subsídios de se manifestar sobre o direito de escolha.
Culturalmente, a família brasileira ainda é patriarcal, e este patriar-
calismo é representado sob três espécies de desigualdade: o homem tem
mais valor que a mulher; os genitores possuem maior importância e prio-
ridade que seus descendentes; e os heterossexuais possuem mais direitos
que os homossexuais (MORAES, 2014). E em que pese a existência de
alterações de entendimento jurisprudencial e da própria legislação, como,
por exemplo, o artigo 226 da Constituição Federal, ainda há a manuten-
ção de estereótipos de gênero em crianças pelo próprio núcleo familiar.
Por sua vez, os preceitos pessoais e (não) superados são frutos do pró-
prio instituto do patriarcalismo que ainda está presente nas opiniões pes-
soais. Em que pese a ideia patriarcal em uma entidade familiar fazer parte
do Código Civil de 1916, desde 2002, em tese, a sociedade brasileira vive-
ria uma nova fase, de direitos iguais e na mesma proporção, não havendo
mais a submissão da esposa em prol do pater famílias. Inclusive, o Estatuto
da Criança e do Adolescente adotava o chamado pátrio poder, alterado
pela lei 12.010, de 03 de agosto de 2009 para o chamado poder familiar.
Todavia, o sistema patriarcal é um sistema que se implantou nos pró-
prios costumes da sociedade brasileira, razão pela qual é necessária a mu-
dança da própria sociedade em superar a existência desses estereótipos que
impõem uma definição equivocada do indivíduo.
O capítulo II do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069,
de 13 de julho de 1990) trata do direito à liberdade, ao respeito e à dig-
nidade do menor. Por sua vez, o artigo 16 traz um rol exemplificativo
do que consiste o direito à liberdade do menor. Sob esta análise, resta
fundamental a alteração da legislação para que acrescente um inciso para
garantir a igualdade de gênero.
Nesse sentido, a igualdade de gênero a ser tratada não diz respeito ape-
nas a tratar meninos e meninas da mesma forma. Essa igualdade diz respeito
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
a sanar, desde a infância, a ideia da inferioridade da mulher no âmbito pro-
fissional, familiar e social, bem como extinguir os estereótipos de gênero
que limitam a liberdade deste menor, de modo a não impor o que o mesmo
deve usar e escolher, mas a apresentar as predileções a ele. A discriminação
ocorre desde o nascimento e é desde este momento que esta deve ser sanada.
O menor que for criado sem a imposição desses estereótipos poderá
contrapô-los, de modo a expandir para os demais indivíduos que aquela
posição é indevida e deve ser extinta dos costumes sociais: que aquela ati-
tude restringe o direito daquele menor que sequer tem discernimento do
que está sofrendo; e que cozinha não é lugar de mulher, e sim que cozinha
é lugar para todos.
Além disso, o artigo 17 deste Estatuto trata da inviolabilidade da inte-
gridade física, psíquica e moral do menor, abrangendo a identidade deste.
A discriminação em razão do gênero nada mais é que a inviolabilidade do
menor, uma vez que esse possui o cerceamento de escolha e liberdade,
assim como poderá arcar com consequências psicossociais, presentes e fu-
turas, em razão da imposição de um estereótipo diverso da personalidade
do menor.
Ante o exposto, conclui-se que existem diversos dispositivos que pro-
tegem o mínimo existencial deste grupo vulnerável. Dentro deste míni-
mo, deve-se incluir a igualdade de gênero e a proteção do desenvolvimen-
to integral do menor como medida a ser garantida por toda a sociedade,
incluindo o núcleo familiar que é responsável pela imposição de estereóti-
pos de gênero no menor.
Resta, desse modo, as diversas formas de família promoverem ao menor
o direito de escolha e de ser livre, independente de seus pré-conceitos acerca
de cores, brinquedos e atitudes que o menor deve ter, conforme o sexo.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse sentido, resta evidente a necessidade de uma reeducação social.
É cediço que a mesma não é simples, uma vez que, se assim fosse, não
teríamos a adoção de estereótipos patriarcais em nossa sociedade.
A adoção do patriarcalismo na sociedade brasileira não é incomum,
uma vez que versa sobre uma espécie de costume adotar teorias que em
tese seriam tradicionais. Ocorre que a sociedade vive em constante su-
peração e formação de novos institutos, razão pela qual há necessidade
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
de atualização de nosso Ordenamento Jurídico e de garantir a proteção
devida à criança, grupo reconhecidamente vulnerável.
Dito isto, identifica-se a necessidade do movimento feminista em prol
do menor incapaz, uma vez que sempre que houver uma desigualdade em
razão do gênero, ter-se-á a necessidade do movimento feminista, buscan-
do direitos iguais aos garantidos ao homem. Se a sociedade primasse pela
igualdade de direitos a todos os gêneros, não haveria a necessidade da luta
constante da mulher para obter os mesmos brinquedos, o mesmo salário,
as mesmas oportunidades ou o mesmo direito.
O feminismo é um movimento que pensa no presente, mas também
no futuro, de modo que lutam para que um dia seja alcançada a igualdade
de gênero. Logo, é necessária a alteração legislativa do Estatuto da Criança
e do Adolescente com a finalidade de assegurar a liberdade do infante em
promover suas próprias escolhas.
Além disso, há necessidade de realização de políticas públicas ca-
pazes de explanar à sociedade a necessidade de superação de estereó-
tipos, como a produção de cartilhas e realização de palestras gratuitas
direcionadas às entidades familiares e toda a sociedade. O que se busca,
com isso, é extinguir o costume patriarcal de implementar estereótipos
de gênero nos menores que não possuem capacidade de discernir o seu
cerceamento de escolha.
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83
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84
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
DURANTE A PANDEMIA
Heloísa Izabel Alves D’Assunção27
Isabela Stephanie Freitas Leles28
INTRODUÇÃO
Desde a sua confirmação em dezembro de 2019, a doença infecciosa
Covid-19, que teve início em Wuhan, na China, atingiu grande parcela
da população mundial, levando a Organização Mundial da Saúde a de-
clarar uma pandemia mundial em março de 2020. Desde então, medidas
protetivas a fim de evitar a propagação do vírus no mundo inteiro foram
tomadas.
A principal medida de contenção adotada fora o isolamento social, e
a consequente redução do funcionamento de diversos setores de trabalho.
Logo, esse isolamento “causa um maior convívio entre familiares, assim
como, entre pessoas que residem no mesmo domicílio. Esta situação pode
culminar em problemas de relacionamento, dentre estes a violência do-
méstica” (MARTINS et al., 2020).
A violência doméstica contra crianças e adolescentes, no Brasil, é con-
siderada um grande problema desde a década de 1970, quando, segundo
Brito et. al (2005), tornou-se “uma das principais causas de morbi-morta-
lidade, despertando, no setor da saúde, uma grande preocupação com essa
27 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
28 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
85
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
temática que, progressivamente, deixa de ser considerada um problema
exclusivo da área social e jurídica para ser também incluída no universo
da saúde pública”. Nesse contexto, fez-se necessária a regulamentação de
normas que visem proteger a criança e adolescente, já que são pessoas em
uma posição mais vulnerável.
A proteção exclusiva contra a violência infantojuvenil passou a fazer
parte das leis somente a partir da Constituição Federal de 1988 e do Es-
tatuto da Criança e Adolescente. Antes disso, o Código de Menores de
1927 e o Código de 1979 serviam como uma proteção para esses indiví-
duos que, no entanto, acontecia de maneira simplista e restrita. Tem-se,
portanto, que a proteção contra a violência não era um assunto de grande
preocupação dos legisladores na época.
Desse modo, atualmente falamos de uma proteção integral à criança
e ao adolescente, porém a violência permanece sendo um grande tópico
de discussão, já que índices demonstram que não está ocorrendo nenhum
tipo de atenuação nos casos. Isso, agora somado ao fato de que as crianças
e adolescentes estão mais expostas à violência intrafamiliar no contexto
da pandemia, visto que agora elas e o seu agressor estão em casa por um
período integral, é um grave problema que deve ser solucionado.
Ademais, durante este período de isolamento social “há uma ausência
de qualquer tipo de supervisão exterior. Sem o acesso regular de profis-
sionais como professores, médicos ou trabalhadores sociais, oportunida-
des rotineiras de se identificar sinais ou narrativas de preocupação pela
proteção da criança ou adolescente são perdidas” (GREEN, 2020, tradu-
ção minha). Por esse motivo, busca-se, com o presente artigo, identificar
como ocorre a violência contra a criança e o adolescente, e, na conjuntura
da pandemia mundial, a maneira pela qual ela está se manifestando.
1. A VIOLAÇÃO DO DIREITO À LIBERDADE, AO
RESPEITO E À DIGNIDADE INFANTOJUVENIL
O Estatuto da Criança e do Adolescente surgiu após anos de luta
pela proteção integral das crianças e adolescentes. Foi somente em um
período pós-ditadura militar, quando houve uma necessidade de se re-
gular e praticar de forma efetiva os direitos humanos, que surgiu o refe-
rido Estatuto.
86
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
O objetivo do Estatuto foi regulamentar o artigo 227 CR/88 que es-
tabelece, in verbis:
Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à pro-
fissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão. (BRASIL, 2010)
A criança e o adolescente, que antes eram vistos como “mini-adul-
tos” e, portanto, seres que mereciam o mesmo tratamento que os adultos,
passaram a ser vistos com um olhar mais apurado, pois eles “têm formas
próprias de ver, pensar, sentir, e, particularmente sua própria forma de
raciocínio, sensível, pueril, diferentemente da razão “intelectual” ou “hu-
mana” do adulto. Os muitos jovens não deveriam ter o encargo da distin-
ção entre Bem e Mal” (ROUSSEAU apud HEYWOOD, 2004, p. 38).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 13 de julho
de 1990, trouxe, então, ao longo de seus diversos artigos, uma série de
princípios e direitos inerentes à criança e ao adolescente e a proteção que
deve ser garantida pelo Estado em conjunto com a sociedade e a família
deles. É o que o art. 3º do Estatuto estabelece:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fun-
damentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por
outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes fa-
cultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,
em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, 1990)
A Lei 8.069/90 então, determina cinco direitos fundamentais a se-
rem respeitados e, para o presente artigo, será abordado o segundo di-
reito fundamental: o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade. Isso
porque é exatamente a violação desse direito fundamental que preten-
de-se estudar aqui.
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O Estatuto estabelece que as crianças e os adolescentes merecem
respeito e dignidade, como pessoas humanas em processo de desenvol-
vimento e como sujeitos com direitos civis, humanos e sociais garantidos
na Constituição Federal (BRASIL, 1990, Art. 15). Nesse viés, o direito
à liberdade “é a faculdade de agir como melhor lhe aprouver, exceto pe-
las restrições referentes aos direitos dos demais membros da sociedade”
(BARROS, 2019, p. 38). Volta-se então a constragimentos por parte de
autoridade públicas e de terceiros em relação à criança ou ao adolescente.
O artigo 16 do ECA estabelece um rol de direitos que devem ser se-
guidos e que, se desrespeitados, violam o referido direito à liberdade:
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários,
ressalvadas as restrições legais;
II - opinião e expressão;
III - crença e culto religioso;
IV - brincar, praticar esportes e divertir-se;
V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI - participar da vida política, na forma da lei;
VII - buscar refúgio, auxílio e orientação. (BRASIL, 1990)
O direito ao respeito, por sua vez, “consiste na inviolabilidade da in-
tegridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo
a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias
e crenças, dos espaços e objetos pessoais” (BRASIL, 1990, Art. 17). Logo,
é um direito da criança e do adolescente ter o seu desenvolvimento físico
respeitado, sendo dever do Estado, sociedade e família garantir o seu de-
vido cumprimento.
Ressalta-se, aqui, que esse direito está intrinsicamente relacionado
com os direitos da personalidade, ao determinar a preservação da criança
e do adolescente enquanto pessoas. E esse é exatamente o resquício dos
anos de luta pelos direitos desses seres que é de extrema importância: a
criança e o adolescente são seres detentores de direitos como qualquer
outra pessoa, seja adulto ou idoso, e por esse motivo os artigos seja de qual
ordenação, valerá para todos. Porém, as crianças e adolescentes, conforme
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visto, são seres em desenvolvimento, que não são capazes de exercer em
plenitude todos os atos que outros fariam; por esse motivo cabe uma pro-
teção mais séria e particular a eles.
Por fim, o direito à dignidade fundamenta-se nos princípios de igual-
dade e de acesso às condições de cidadania, “sendo dever todos velar pela
dignidade das crianças e adolescentes e colocá-los a salvo de qualquer tra-
tamento desumano, violento, vexatório ou constrangedor” (BRASIL,
1990, Art. 18). É um direito fundamental que possui fundamento consti-
tucional e que, segundo Custódio (2009, p. 48):
no contexto do Estado Democrático e de Direito não deve ser re-
duzido a apenas uma ampla categoria de direitos humanos, mas,
antes de tudo, como um conjunto mais amplo de direitos atual-
mente denominados de direitos da vida.
As violações a esses direitos assegurados podem ser compreendidas
dentro de um contexto de violência infantojuvenil, seja ela de qual forma
for. O ECA é bem claro ao estabelecer nos artigos 17 e 18 os tipos de vio-
lência que podem ser cometidas à criança e ao adolescente.
1.1. Formas de violência
Violência é o uso de força ou poder contra si mesmo ou contra ou-
tras pessoas, de forma a provocar perdas, mortes, lesões físicas, entre ou-
tras consequências. A violência doméstica contra a criança ou adolescente
pode ser provocada por qualquer parente que abuse deles.
A Lei 8.069/90 determina 3 (três) tipos de violência: a violência física,
psicológica e sexual. A primeira forma de violência resulta em agressões
ao corpo da criança ou adolescente, ou seja, violações à integridade física.
Por outro lado, na violência psicológica não há esse contato direto; esse
tipo de violência ocorre através de “danos à saúde mental da criança e do
adolescente, ferindo sua integridade psíquica” (BRASIL, 1990, Art. 18).
Para Malta (2002, p. 47), esse tipo de violência é definido como:
a atitude do adulto em depreciar e inferiorizar de modo constan-
te a criança ou o adolescente, causando-lhe sofrimento psíquico
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e interferindo negativamente no processo de construção da sua
identidade.
Nesse contexto, a violência psicológica apresenta-se de diversas for-
mas, como: ameaças de mortes, humilhação pública ou privada, tortura
psicológica, exposição indevida da imagem da criança ou adolescente, en-
tre outras.
Já a violência sexual, segundo o artigo 17 do ECA:
São atos que violam a integridade física, moral ou psicológica da
criança ou do adolescente, com finalidade sexual. (BRASIL, 1990)
Para Azevedo e Guerra (1989), a violência sexual se configura como
todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual, entre um ou
mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular
sexualmente esta criança ou adolescente ou utilizá-los para obter uma es-
timulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa.
Ainda para as autoras Azevedo e Guerra (1989), o abuso sexual “ca-
racteriza-se como sendo o abuso que envolve um perpetrador da família
da criança, alguém que usualmente, quando não sempre, vive na mesma
casa que a vítima, ou seja, pais, pais adotivos, padrastos, mãe, madastras,
ambos os genitores, irmão, meio-irmão, meia-irmã, tios, avós, primos e
cunhados” (apud BRAUN, 2002, p. 28). Ou seja, a violência sexual é
qualquer interação ou envolvimento da criança ou adolescente em uma
atividade sexual que ela não compreende, nem consente, e pela qual o
abusador, devido à sua idade ou grau de desenvolvimento, está em uma
relação de confiança, poder e coação e sedução com a criança abusada. 29
Existe também uma forma de violência conhecida como “negligên-
cia”, que é caracterizada quando os responsáveis não cuidam da criança
ou adolescente, abandonando-os ou omitindo a responsabilidade que
eles devem ter pela saúde, alimentação, educação e lazer da criança ou
adolescente. Por consequência, esse ato pode causar danos físicos, emo-
29 LOBATO, Camila. A Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes: (In)Eficácia da pena
aplicada ao agressor sexual infantil. In: Âmbito Jurídico. Disponível em: www.ambitojuridi-
co.com.br/cadernos/direito-penal/a-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-inefi-
cacia-da-pena-aplicada-ao-agressor-sexual -infantil/. Acesso em: 27/10/2020
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cionais e intelectuais a esses seres, sendo tão prejudicial quanto os outros
tipos de violência.
Destarte, são esses os quatro tipos de violência infantojuvenil que a
Organização Mundial de Saúde (OMS)30 classifica, afirmando que podem
resultar em danos físicos e psicológicos, além de prejuízo ao crescimento,
ao desenvolvimento e à maturação das crianças. Ademais, a violência está
ligada a uma visão desvalorizada que os abusadores têm sobre as crianças
e adolescentes, tirando o protagonismo infantil, que reconhece esses seres
como autores sociais detentores de direitos e capacidades, sendo partici-
pantes de seus próprios atos. Essa visão existia há anos, conforme já estu-
dado aqui, mas que fora superada após décadas de busca por melhorias e
evolução dos direitos humanos, não cabendo mais, portanto, este pensa-
mento ultrapassado na atualidade.
Entretanto, a violência infantojuvenil continua a crescer. O relatório
do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) de 2017 afirmou
que “três quartos das crianças entre as idades de 2 a 4 anos no mundo in-
teiro – próximo de 300 milhões – estão regularmente sujeitos a uma vio-
lência disciplinar (punições física e/ou agressão psicológica) pelos próprios
pais ou cuidadores em casa, e cerca de 6 em 10 (250 milhões) estão sujeitas
a punições físicas” (UNICEF, 2017, p. 7, tradução minha).
No Brasil, dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos (MMFDH) – antes da pandemia - afirmam que, ao longo de
2019, dos 159 mil registros feitos pelo Disque Direitos Humanos, 86,8
mil são de violações de direitos de criança ou adolescente. Dentre este nú-
mero, a violência sexual figura em 11% das denúncias, o que corresponde
a 17 mil ocorrências. Além disso, de acordo com o 13º Anuário Brasileiro
de Segurança Pública, em 2018, 53,8% das vítimas de violência sexual
foram meninas de até 13 anos.
Mas como essa violência é combatida em “tempos normais”, fora do
período da pandemia? O objetivo do Estatuto da Criança e do Adolescen-
te não é de apenas demonstrar os direitos da criança e adolescente, mas
de estabelecer também as medidas e quem será responsável para garantir
o devido cumprimento destes direitos. Desse modo, o artigo 13 do ECA
determina que, em suspeita de algum tipo de violência é dever das pessoas
30 World Health Organization (WHO). World report on violence and health. Geneva: WHO, 2002.
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– sejam quem forem – de notificar ao Conselho Tutelar desta ocorrência,
para que as medidas cabíveis sejam tomadas:
Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de
tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança
ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho
Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providên-
cias legais. (BRASIL, 1990)
Esse mesmo artigo, em seu §2º, também fala do papel do setor de
saúde na prevenção, no diagnóstico e na notificação de casos de violência,
“criando, assim, um espaço privilegiado para a identificação, acolhimento
e atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência, bem
como a orientação às famílias” (MAGALHÃES; NETTO, 2009).
É como dispõe no ECA:
2 o Os serviços de saúde em suas diferentes portas de entrada, os
serviços de assistência social em seu componente especializado, o
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas)
e os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança
e do Adolescente deverão conferir máxima prioridade ao atendi-
mento das crianças na faixa etária da primeira infância com suspei-
ta ou confirmação de violência de qualquer natureza, formulando
projeto terapêutico singular que inclua intervenção em rede e, se
necessário, acompanhamento domiciliar. (BRASIL, 2016)
Além disso, os profissionais de educação são de extrema relevância
para o combate à violência infantil, a partir do momento em que a criança
ou adolescente, vítima de algum tipo de violência, fora de casa, pode de-
monstrar algum comportamento anormal e suspeito. Logo, é importante
a atenção desses profissionais a esses comportamentos.
Nesse contexto, a Lei 8.069/90 impõe, no artigo 245, multa de até
20 salários de referência para o médico, professor ou responsável por es-
tabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou
creche que não comunicar à autoridade competente os casos de suspeita
ou confirmação de maus-tratos contra a criança ou adolescente.
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Desse modo, todos possuem um dever de assegurar o melhor para a
criança ou adolescente, mas o papel de maior dimensão dentre todos é,
sem sombra de dúvidas, do Conselho Tutelar. Esse órgão é de suma im-
portância para garantir a proteção das crianças e adolescente, reforçando
a necessidade de denúncias, e sendo um arcabouço institucional para a
proteção infantojuvenil.
Pode-se observar, então, que em tempos sem a pandemia os números
são alarmantes mesmo com uma constante “vigia” na criança e adoles-
cente, já que há o funcionamento normal de todos os setores de trabalho.
Porém, durante a pandemia, em que todas as pessoas estão em casa, como
está a ocorrência dessas violências?
2. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DURANTE O
ISOLAMENTO
Com a pandemia da Covid-19, o governo precisou adotar medidas
de distanciamento social para mitigar o alastramento do vírus entre a po-
pulação. O conselho é de que as pessoas permaneçam em casa e evitem ao
máximo sair e, para tanto, vários setores estão sem funcionar ou operam
em menor escala.
Dentre eles, o setor da educação foi um dos que sofreu grande altera-
ção, já que as escolas pararam de funcionar presencialmente. Conforme já
visto, as escolas são um dos maiores notificadores da violência que ocorre
com a criança e adolescente, uma vez que os profissionais da área - que
estão presentes com a criança e adolescente durante uma parte do dia -
terão um contato bem educacional com eles, podendo notar marcas ou
mudanças de comportamento.
A saúde física e mental da criança ou adolescente depende da saúde
física e mental dos pais; um ambiente agressivo e desequilibrado facilita a
ocorrência de violência e adoecimento. À vista disso, Magalhães e Netto
(2009) afirmam que a violência pode gerar problemas sociais, emocio-
nais e psicológicos cognitivos durante toda a vida desses indivíduos, que
podem apresentar comportamentos prejudiciais à saúde. Algumas dessas
consequências podem ser a incapacidade de aprender, o que leva a um
rendimento acadêmico inferior ao dos filhos de não vítimas (BARROS;
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FREITAS, 2015, p. 107), comportamentos agressivos e violentos, abuso
de substâncias psicoativas, do álcool e drogas, entre outras.
Dessa forma, são inúmeras as consequências para a criança e o adoles-
cente, e, esses indivíduos, estando presentes em um ambiente fora de casa,
as terão de formas mais percetíveis. Daí entra o papel dos profissionais da
educação no combate a essas violências, conforme já visto.
Entretanto, este ambiente escolar foi perdido com o isolamento. Da-
dos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO) estimam que 1.38 bilhões de crianças no mundo
inteiro estão fora das escolas, e isso traz sérias implicações. Isso porque:
Evidências demonstram que a violência e vulnerabilidade aumen-
tam para crianças durante períodos em que as escolas estão fechadas
por causa de emergências de saúde. As denúncias crescem durante
o período em que as escolas estão fechadas. Pais e crianças estão
vivendo com um aumento do estresse, de informações midiáticas,
e medo, todos desafiando nossa capacidade de tolerância e pensa-
mentos a longo prazo. Para muitos, o impacto da economia duran-
te a crise aumenta o estresse, abuso, e violência contra as crianças.
(CLUVER et al., 2020, p. 64, tradução minha)
Além disso, com a pandemia, houve uma diminuição na frequên-
cia de pessoas que não estão tratando doenças infectocontagiosas, como a
Covid-19, a hospitais. Informações da Confederação Nacional de Saúde
(CNSAÚDE) apresentam que, enquanto os hospitais que tratam dessas
doenças estão cheios, a demanda por leitos clínicos em outras especiali-
dades teve queda de 50% no Brasil.31 Ora, se houve essa diminuição em
outros atendimentos, houve por consequência uma diminuição na ob-
servação dos profissionais de saúde às crianças e aos adolescentes, o que
prejudica também a notificação de violências que estejam acontecendo
com eles.
31 MARINHO, K. Pandemia provoca diminuição de pacientes com outras doenças em hos-
pitais. In: Camara Municipal de São Paulo. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.leg.br/
coronavirus/blog/pandemia-provoca-diminuicao-de-pacientes-com-outras-doencas-em-
-hospitais/ Acesso em: 30/10/2020.
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Nesse viés, a diretora executiva do UNICEF, Henrietta Fore, publi-
cou uma declaração demonstrando preocupação com as consequências
do isolamento das crianças e adolescentes em um ambiente de violência.
Além disso, ela afirma ser responsabilidade de todos a proteção a esses
indivíduos, e que é essencial um movimento social para acabar com a vio-
lência e abuso contra crianças, espelhando-se no movimento para acabar
com a violência sofrida pelas mulheres.32
Em vista disso, alguns fatores de risco para a violência contra a criança
e o adolescente estão cada vez mais presentes no dia a dia das famílias du-
rante o isolamento. Marques et al. (2020) determinam que “o aumento do
nível de estresse do agressor gerado pelo medo de adoecer, a incerteza so-
bre o futuro, a impossibilidade de convívio social, a iminência de redução
de renda – especialmente nas classes menos favorecidas, em que há grande
parcela que sobrevive às custas do trabalho informal - agravam a violência,
quando somados a um convívio contínuo com a criança e adolescente”.
Além disso, índices divulgados pela Associação Brasileira de Estudos
do Álcool e outras Drogas (Abead) apontam um crescimento de 38% nas
vendas de bebidas alcoólicas nas distribuidoras desde o início do isolamen-
to social. Outra pesquisa, realizada em parceria pela Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), UFMG e Unicamp, indicou que 18% dos brasileiros au-
mentaram o consumo de álcool neste período.
E temos ainda um aumento significativo no consumo de pornografia,
com um crescimento de 13.1% no Brasil desde março33, quando o isola-
mento se iniciou. A criança e o adolescente, estando expostos também a
esses fatores, tornam-se mais suscetíveis ao sofrimento de algum tipo de
violência, especialmente estando confinadas em casa com seus agressores.
Entretanto, mesmo com a apresentação de dados e fatores que evi-
denciam a possibilidade do aumento da violência infantil, levantamentos
realizados pelo Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos
32 Não permitam que crianças sejam as vítimas ocultas da pandemia de Covid-19. In: Unicef.
Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/nao-permitam-
-que-criancas-sejam-vitimas-ocultas-da-pandemia-de-covid-19 Acesso em: 30/10/2020.
33 ELORZA, T. Aumento do consumo de pornografia durante a pandemia: o que isto importa
para a saúde mental?. In: O Londrinense. Disponível em: http://olondrinense.com.br/au-
mento-do-consumo-de-pornografia-durante-a-pandemia-o-que-isto-importa-para-a-sau-
de-mental/ Acesso em: 30/10/2020.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
apontam uma queda no registro de denúncias de violência contra crianças
e adolescente durante a pandemia. Isso faz com que surjam dúvidas em
relação a essa queda. Houve mesmo uma diminuição da violência infan-
tojuvenil ou essa queda está associada à subnotificação dos casos?
2.1. Diminuição ou Subnotificação?
Subnotificar, segundo o dicionário, é o ato ou efeito de notificar me-
nos do que seria esperado ou devido. No contexto da violência na pan-
demia, a subnotificação pode ocorrer quando os casos notificados oficial-
mente não refletem a realidade.
A subnotificação, para Arpini et al. (2008, p. 98):
é um problema grave, sobretudo quando se sabe que em dados epi-
demiológicos baseiam-se as ações e políticas públicas para o en-
frentamento da questão. Ao se revelar como uma realidade pouco
ou mal conhecida, essa situação acaba por configurar-se invisível,
operando, em nível estrutural, como mais uma forma de violência.
Essa é uma situação que existia antes da pandemia, e que sempre foi
discutida. Isso porque, conforme abordado, para que que o governo pos-
sa realizar ações com o objetivo de impedir a ocorrência da violência, é
necessário que dados concretos e que realmente mostrem a realidade exis-
tam. Para o presente artigo, no entanto, não se busca discutir os motivos
e a ocorrência da subnotificação em outra época que não a do isolamento
social causado pela pandemia da Covid-19.
Entre março de 2020 - quando o isolamento social no Brasil teve
início -, e junho, foram registradas 26.416 denúncias, segundo dados do
Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Este número repre-
senta uma queda de 12% em relação a dados do mesmo período em 2019,
sendo até mesmo o segundo menor índice de denúncias desde 2011, es-
tando atrás somente dos dados de 2018, que apontaram 24.188 denúncias
de violência contra crianças e adolescentes.
Todavia, não houve motivos para essa diminuição repentina no regis-
tro de denúncias, principalmente no período em que, como já determina-
do anteriormente, há mais motivos para que a violência aumente do que
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diminua. Por essa razão, acredita-se que está ocorrendo uma subnotifica-
ção dos casos de violência durante a quarentena. A partir disso, torna-se
necessário realizar uma análise acerca das causas que levaram a essa falta
de notificações sobre as ações violentas contra as crianças e adolescentes.
De acordo com o Ministério da Saúde, dentre os registros de denúncias
de violência infantojuvenil, mais de 70% são de violências cometidas dentro
da própria casa da criança ou adolescente. Com a presença do abusador e
esses indivíduos dentro de casa por períodos longos, a denúncia é dificul-
tada. Ademais, muitas vezes, a criança ou o adolescente sente medo e por
isso não realiza a denúncia, ou, assim como ocorre com crimes sexuais, por
exemplo, a criança pode não entender exatamente o que está ocorrendo e o
que está sendo feito com ele ou ela, e acaba não falando nada.
Outrossim, o isolamento social restringe o contato com uma rede so-
cial de apoio, como amigos, familiares e vizinhos, que poderiam ser fonte
de proteção, apoio e ajuda para fugir da situação de violência. Isso “amplia
a margem de ação para mais eventos violentos e manipulação psicológica”
(MARTINS et al., 2020, p. 6). Sem ter ninguém para ajudar esses indi-
víduos, observando e apontando que há algo de errado com eles, e então
realizando a denúncia, seja por qual canal for, eles estarão sozinhos e sem
proteção.
Outro fator que pode ter contribuído para esta subnotificação é o de
que, com a necessidade das pessoas de permanecerem em casa para evitar
o alastramento do vírus, e com o medo do contágio, muitos deixaram de
ir à delegacia para registrar denúncias. Aliás, sem o funcionamento das
escolas, que possuem profissionais que podem relatar ocorrências ao Con-
selho Tutelar, que atua de forma reduzida durante o isolamento, não há a
procura das delegacias da mesma forma.
Além disso, há uma inter-relação entre a violência contra as mulheres
e a violência contra as crianças e adolescentes, o que pode levar à omis-
são, por parte da mulher, em relação às violências sofridas entre ela e as
crianças e adolescentes. A potencialização da violência doméstica é um
problema de saúde pública que precisa ser combatido de todas as formas,
principalmente diante do fato de que o governo não está conseguindo
mostrar verdadeiramente as notificações da violência.
Logo, a articulação entre vários tipos de profissionais, de serviços e
de setores é uma condição necessária para o desenvolvimento de ações de
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
proteção integral das crianças e adolescentes (EGRY; APOSTOLICO;
MORAIS, 2018, p. 84). Daí a importância do trabalho em conjunto entre
todas as pessoas para ajudar esses indivíduos, conforme determina o Esta-
tuto da Criança e do Adolescente.
Para facilitar as denúncias de violência durante a pandemia, foi criado
o Projeto de Lei nº 1796 de 2020, que permite os registros de ocorrência
por meio da internet ou de número de telefone de emergência. Em 7 de
julho de 2020, foi sancionada a Lei 14.022/2020 que dispõe sobre medi-
das de enfrentamento à violência durante a pandemia, incluindo, ainda, a
seguinte medida em seu art. 8º:
Art. 8º O poder público promoverá campanha informativa sobre
prevenção à violência e acesso a mecanismos de denúncia durante
a vigência da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, ou durante
a vigência do estado de emergência de caráter humanitário e sani-
tário. (BRASIL, 2020)
Ademais, a lei inclui medidas que facilitam os processos no judiciário
diante do trabalho reduzido que está sendo realizado nos tribunais. Outra
importante medida a ser destacada é a possibilidade da realização de co-
municação virtual das violências, facultando ao Poder Judiciário, Ministé-
rio Público, Defensoria Pública e aos demais órgãos do Poder Executivo,
a adoção desta medida (BRASIL, 2020, Art. 4).
Tendo em vista que a lei não é suficiente para mitigar essa proble-
mática, medidas que efetivem as políticas de proteção às crianças e ado-
lescentes devem ser realizadas. Logo, é de suma importância “aproveitar
as experiências já existentes e reforçar o que já vem sendo realizado por
instituições governamentais e não governamentais no Brasil, adaptando
estas iniciativas à situação específica que é vivida no cenário da Covid-19”
(MARQUES et al., 2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O isolamento social, até então, demonstra-se como uma das estraté-
gias mais eficientes para o combate ao coronavírus, mas infelizmente ele
traz alguns malefícios. A violência infantojuvenil, na maioria dos casos,
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
ocorre dentro da própria casa da criança ou adolescente e, diante desta
medida de contenção do vírus, esses indivíduos permanecem com o seu
agressor por um período maior.
Constatou-se com o artigo que, o cenário estressante causado pela
pandemia, em que: não há o funcionamento - ou há um funcionamento
moderado -, de várias redes que servem de apoio; há um medo constante
do contágio pelo vírus; houve diminuição do contato da criança ou ado-
lescente com a rede socioafetiva; o aumento do desemprego e do consumo
de bebidas alcoólicas, drogas e pornografia, colocam esses seres em uma
posição mais vulnerável, possuindo uma relação direta com o aumento das
violências.
Por esse motivo, é essencial uma maior atenção a esse problema vi-
vido por esses indivíduos, e que não seja algo que provenha somente do
Estado ou da família, mas também de todos os indivíduos da sociedade.
Desse modo, o Estatuto da Criança e Adolescente determina que a socie-
dade tem uma grande responsabilidade na defesa da criança e adolescente,
então cabe a eles também estarem atentos e realizarem denúncias quando
necessário.
Para tanto, é mister o trabalho multidisciplinar acerca da conscienti-
zação à população de que a violência traz prejuízo não somente às crian-
ças, mas também à família e à sociedade. Deve-se criar uma cultura de
cuidado para que todos se sintam responsáveis pela juventude do país, uti-
lizando-se de ações direcionadas aos municípios que desenvolvam novas
formas de prevenção e atendimento à violência doméstica.
Por fim, é necessário se adaptar ao momento atípico vivido e proteger
a vida e o futuro das crianças e dos adolescentes. Não há como ser omisso
nesta situação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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102
POSSIBILIDADE DE
DESCONSTITUIÇÃO DA
PATERNIDADE À LUZ DO PRINCÍPIO
DO MELHOR INTERESSE DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Júlia de Magalhães Medeiros Fernandes34
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa analisar a possibilidade de desconstituição do
vínculo paterno-filial à luz do princípio do melhor interesse da criança
e do adolescente, tendo como base o conflito existente entre o vício de
consentimento e a paternidade socioafetiva.
O tema foi escolhido devido às importantes mudanças ocorridas no
Direito de Família brasileiro nos últimos anos. A alteração do conceito de
família com o reconhecimento de novos arranjos familiares, o protagonis-
mo da socioafetividade em detrimento da consanguinidade e a multipa-
rentalidade acarretaram no surgimento de novos conflitos que merecem
ser estudados.
O estudo realizado não pretende esgotar os questionamentos existen-
tes sobre a matéria nem chegar a uma resposta exata de como tal conflito
deve ser resolvido em todos os casos concretos, visto que envolvem ques-
tões delicadas e complexas, não existindo uma única solução aplicável a
34 Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-graduanda em
Direito Privado pela Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (AMPERJ).
103
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
todas as situações. Busca-se, através de um olhar crítico, entender quais
critérios devem ser utilizados quando o judiciário se depara com essa dis-
puta e, principalmente, investigar no que consiste assegurar o princípio do
melhor interesse da criança e do adolescente nesses casos.
1. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA
O Brasil por questões históricas sofreu forte influência do Direito
Português, que no Direito de Família estava atrelado ao Direito Canôni-
co, que, por sua vez, baseava-se no Direito Romano. Assim, no Brasil
aplicava-se o modelo romano de família (reproduzido no Código Civil de
1916) pautado nos laços de sangue. O elemento caracterizador da família
era o componente consanguíneo e o matrimônio era o único instituto
jurídico formador da família.
Havia uma nítida proteção da instituição da família e do vínculo
biológico pela legislação brasileira, como forma de assegurar a estrutura
patriarcal existente, dificultando o rompimento do vínculo matrimonial
e não concedendo nenhum direito à relação de união estável e de con-
cubinato. Além disso, apenas se reconhecia a família legítima, os filhos
concebidos fora do casamento e os havidos por adoção possuíam um tra-
tamento discriminatório, eram considerados ilegítimos e não recebiam
tutela jurídica.
Contudo, com a promulgação da Constituição da República Fede-
rativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) foi reservado um capítulo próprio
para o Direito de Família (Capítulo VII do Título VIII), o que evidencia
o tratamento especial dado à matéria, que passou por profundas transfor-
mações. O princípio maior da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no
art. 1º, III, passou a ser visto como fundamento de todas as relações. A
família tutelada pela Constituição visa o desenvolvimento da dignidade
das pessoas que a integra, permitindo seu pleno e livre crescimento (PER-
LINGIERI, 2002).
Desse modo, há o rompimento com o sistema único de família, atra-
vés da ampliação do conceito de entidade familiar que passou a dar pro-
teção jurídica a outros modelos de família, como a família monoparental
(formada por qualquer dos pais e sua prole, na forma do art. 226, §4º da
104
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
CRFB/88), a formada pela união estável (art. 226, §3º CRFB/88) e a ad-
vinda da união homoafetiva.
Da mesma forma, o art. 226, §5º da CRFB/88 rompe com o instituto
do pátrio poder (como era tratado no Código Civil de 1916), exercido
exclusivamente pela figura paterna, e dá lugar ao instituto do poder fami-
liar, que consiste no conjunto de direitos e deveres relativo à pessoa e aos
bens dos filhos menores de idade, cuja titularidade para seu exercício é de
ambos os pais, em patamar de igualdade. Assim, enquanto o pátrio poder
existia em razão da figura paterna, o poder familiar existe em função e no
interesse do filho (LÔBO, 2011).
Também merece destaque o princípio da Igualdade Absoluta de Direi-
tos entre os Filhos, previsto no art. 227, §6º da CRFB/88. Diante dele, não
existe mais qualquer tipo de diferenciação entre os filhos, não importa se
proveniente do casamento ou não, possuem iguais direitos e qualificações.
O Princípio da Paternidade Responsável, previsto no art. 226, §7º da
CRFB/88, estatui que a paternidade consciente deve ser exercida desde a
concepção do filho, a fim de que o pai, seja ele biológico ou afetivo, res-
ponsabilize-se pelas obrigações e direitos daí decorrentes.
O Princípio da Prioridade Absoluta, disposto no art. 227 da CFRB/88
também possui importante papel quanto à preferência dos direitos das
crianças e adolescentes, de forma a garanti-los na prática, levando em
consideração suas necessidades e interesses. Ademais, eles se tornaram
verdadeiros protagonistas, titulares de direitos fundamentais, de maneira
que seus interesses devem ser assegurados pela família, sociedade e Estado,
conjuntamente.
A doutrina garantista da proteção integral, presente no art. 227, caput,
da CRFB/88, que incorpora os valores existentes na Convenção dos Di-
reitos da Criança aprovada em 1989, na Assembleia Geral das Nações
Unidas (ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 99.710/90), afastou
a doutrina tradicional da situação irregular, estabelecida pelo Código de
Menores de 1979, que não enunciava direitos, apenas predefinia situações
e estabelecia uma atuação de resultados, bem como restringia o âmbito
de proteção àqueles que estariam em situação de vulnerabilidade. Não se
enxergava a criança como indivíduo, mas como objeto de manipulação
dos adultos (AMIN, 2018).
105
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Esse novo sistema da proteção integral foi regulamentado pelo Esta-
tuto da Criança e do Adolescente (ECA), considerado um microssistema
que trata da estrutura essencial para efetivar o preceito constitucional da
ampla tutela da criança e do adolescente, traz uma série de direitos funda-
mentais imprescindíveis à sua formação integral e estabelece que, é preciso
levar em conta, sobretudo, a condição particular em se encontram, como
pessoas em desenvolvimento.
Outra relevante mudança introduzida pelo ECA foi a substituição da
expressão “menor”, (muito utilizada no Código de Menores de 1979) -
que possui uma carga discriminatória, de forma que por não terem atin-
gido a maioridade civil não possuiriam direitos – por “criança e adoles-
cente”, que enfatiza as competências e capacidades que possuem, como
sujeito de direitos.
Não se pode deixar de lado, ainda, o Princípio da Solidariedade Fa-
miliar que não apenas retrata a afetividade necessária que une os mem-
bros da família, mas, principalmente, concretiza uma especial forma de
responsabilidade social aplicada à relação familiar, de onde se extrai uma
série de deveres recíprocos e pressupõe o respeito e a consideração mútua
entre os integrantes da família. O próprio dever dos pais de assistência
aos filhos (art. 229 da CRFB/88) decorre desse princípio (GAGLIANO,
PAMPLONA FILHO, 2017).
A Constituição da República trouxe outra importante inovação ao
identificar e igualar o afeto como elemento formador da família. Embo-
ra a palavra “afeto” não esteja expressa no texto constitucional, integra
seu âmbito de proteção. Dessa forma, extrai-se o princípio da afetividade,
amparado pelo art. 226, §4º, e pelo art. 227, caput, §5º c/c §6º, todos da
CRFB/88, que deve nortear todas as relações familiares. Neste passo, a
Constituição alçou tal princípio valor extremo, na medida em que per-
mitiu o reconhecimento legal e jurídico às relações de parentesco funda-
mentadas na afetividade, o que leva a uma relativização da imperatividade
do vínculo biológico.
Vale consignar que o Código Civil de 2002 também não prevê ex-
plicitamente em seu texto a filiação socioafetiva, contudo, faz menção em
vários dispositivos, como nos artigos 1.593, 1.596, 1.597, V e 1.605, inci-
sos I e II, o que deixa claro a opção do legislador pelo vínculo socioafetivo.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Portanto, é imperioso reconhecer o atual protagonismo da socioafeti-
vidade como elemento formador da família.
1.1. A filiação Socioafetiva como paradigma
A noção jurídica de filiação seria o agrupamento de regras que defi-
nem quem é pai e quem é filho, quais os procedimentos utilizados para se
chegar a essa determinação e localiza cada um em sua posição simbólica.
A paternidade se traduz, pois, como meio apto a concretizar uma série de
direitos, dentre os quais o conhecimento acerca da origem, o que aproxi-
ma o indivíduo da sua história pessoal (BRITO, 2008).
Para se chegar ao relevo da genealogia na vida de uma pessoa é preciso
conhecer os eixos que se conjugam no estabelecimento da paternidade: o
genealógico, biológico e doméstico. O genealógico seria aquele em que o
Estado se encarrega de identificar os pais e as regras sobre o exercício da
parentalidade, cujo sistema simbólico o Direito é responsável por garantir.
Já o biológico está ligado à procriação, enquanto o doméstico (ou afeti-
vo) engloba as modalidades de educador e provedor. Entretanto, se ante-
riormente era frequente que um mesmo homem fosse responsável pelos
três fundamentos da filiação, hoje não é raro se defrontar com casos em
que esses componentes são concedidos a três homens distintos (THÉRY,
2002, apud TORRACA, 2008).
A filiação biológica, que sempre possuiu papel importante na relação
paterno-filial, baseia-se na consanguinidade, valoriza os laços de sangue
existentes entre pais e filhos, nascidos na constância do casamento ou não,
como parâmetro definidor da paternidade.
Ocorre que diante das mencionadas mudanças trazidas pela Consti-
tuição Federal de 1988 e das constantes transformações ocorridas na so-
ciedade, o estado de filiação rompeu com a ideia de verdade genética, di-
minuindo a influência da origem biológica nos vínculos de parentalidade.
O surgimento de técnicas de reprodução assistida alteraram os referenciais
sobre a concepção do parentesco, relativizando as presunções de paterni-
dade, maternidade e filiação; a gravidez por substituição e a descoberta dos
marcadores genéticos, que possibilitou a constatação da filiação biológica
através do exame de DNA (deoxyribonucleic acid); facilitaram a descoberta
da verdade biológica, porém, tal verdade perdeu importância em relação
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
à verdade afetiva. Como resultado da evolução alcançada pela biotecnolo-
gia, é possível distinguir a procriação da filiação, de maneira a privilegiar o
aspecto socioafetivo desta (DIAS, 2015).
Dessa forma, nota-se que a certeza acerca da origem genética não
é capaz de sozinha sustentar a filiação, pois a atribuição da paternidade
biológica não substitui a convivência, a formação de vínculo afetivo. O pa-
rentesco não se limita aos laços de sangue e a coincidência genética deixou
de ser fundamental. É preciso reconhecer o parentesco oriundo de outras
formas de relacionamento como a adoção e o afeto. Torna-se necessário,
então, separar a noção de filiação da noção de parentalidade, tendo em
vista a possiblidade de uma criança ter diferentes pessoas desempenhando
funções parentais.
Prosseguindo, a filiação socioafetiva é estabelecida através dos laços de
carinho e amor construídos entre pai e filho, em que o convívio familiar
é imprescindível para a formação dos valores, identidade e personalidade
deste. Essa relação não se inicia com o nascimento, mas por um ato de
vontade, que possui como base o afeto e acaba por gerar dúvidas acer-
ca da importância da certeza científica no estabelecimento da filiação. A
paternidade se baseia nos valores construídos e na promoção dos direitos
fundamentais do ser humano em crescimento, dos deveres elencados no
art. 227 da CFRB/88, formados através dessa convivência familiar entre
pai e filho, independentemente daquele ter sido o genitor (LÔBO, 2018).
Outrossim, constata-se que utilizar o critério da socioafetividade
como base é mais inclusivo, uma vez que não abrange somente a origem
biológica e, ao mesmo tempo, complexo, pois leva em conta diversos ele-
mentos sociais e afetivos, definidos como direitos e deveres, ultrapassando
a simples equação entre origem biológica e dever de prestar alimentos e
participação hereditária.
Destaca-se que o pai biológico não está isento de suas responsabili-
dades com o filho, meramente pelo fato de outros poderem compartilhar
com ele essa responsabilidade. Todos os pais, biológico e afetivo, devem
assumir os encargos decorrentes do poder familiar. Reconhece-se, pois,
a existência de múltiplos vínculos de filiação e a necessária proteção ju-
rídica, sendo preciso adotar critérios favoráveis à consagração da filiação
socioafetiva e, por via de consequência, à multiparentalidade.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Deve-se levar em consideração, ainda, a diferença existente entre a
noção de pai e genitor, como bem exposto por Paulo Lôbo (1999) “Pai
é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos,
enquanto houve primazia da função biológica da família”.
Também é importante dissociar a questão relativa à conjugalidade da
filiação. Muitas vezes, confunde-se o fim do relacionamento, relativo à
conjugalidade, com a definição de quem é pai ou mãe, que se relaciona
com a filiação, o que implica em prejuízos para os filhos (TORRACA,
2008).
Ante o exposto, é forçoso reconhecer que atualmente, no Brasil, o
paradigma é a socioafetividade e esse deve ser o critério, tanto para atri-
buir a paternidade como quando se discute a sua exclusão. A procura pela
verdade real não se funda mais na verdade biológica, visto que a verdade
social advinda da paternidade socioafetiva também é real, podendo ser
constatada por todos os meios probatórios admitidos em direito. Destarte,
parte-se da paternidade socioafetiva como paradigma para se buscar a ver-
dade real, que pode ser distinta da verdade genética (LÔBO, 2018).
A partir daí, restaram válidos novos critérios para a determinação da
paternidade na resolução de conflitos que anteriormente não existiam,
oriundos das transformações familiares e das diversas possibilidades de
filiação, resultante das inovações científicas, culturais e sociais, sobre os
quais urge que os operadores do Direito se debrucem de maneira porme-
norizada.
2. POSSIBILIDADE DE ROMPIMENTO DA RELAÇÃO
PATERNO-FILIAL
No âmbito da filiação, sobressai o princípio da aparência, de modo
que caso não haja registro ou ele possua algum defeito, deve preponderar
a posse do estado de filho. O vínculo de paternidade não se rompe apenas
pela inexistência de herança genética e é indispensável a prova de vício de
consentimento ou fraude. Logo, tão somente a ausência de ligação entre a
paternidade declarada no assento de nascimento e a paternidade biológica
não implica na invalidação do registro, nos termos dos artigos 1.601 c/c
1.604 Código Civil de 2002.
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Vale consignar que o reconhecimento à filiação constitui direito per-
sonalíssimo, indisponível e imprescritível, na forma do art. 27 do ECA,
resguardado, ainda, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que
traz em seu cerne o direito à identidade biológica e pessoal, que pode
ser efetivado em face dos pais ou de seus herdeiros. Assim, o filho não
reconhecido de forma voluntária pode ajuizar ação de investigação de pa-
ternidade, com o intuito de obrigar o suposto genitor a reconhecê-lo de
maneira formal.
Já a ação negatória de paternidade tem por finalidade anular o registro
civil baseado na inexistência de vínculo biológico, cabendo privativamen-
te ao pai contestar a relação paterno-filial da criança de modo a rompê-la,
sendo vedado o arrependimento e a impugnação sem a comprovação do
falso juízo. Além disso, exige-se a comprovação da existência de vício de
consentimento.
Ressalta-se que em muitos casos, o indivíduo realiza o registro do
filho de boa-fé, acreditando realmente ser o pai biológico daquela crian-
ça. Porém, posteriormente, descobre-se que a paternidade fora oficiali-
zada amparada em uma situação que não condiz com a realidade, não
conhecida por quem fizera o registro, sendo juridicamente possível a
propositura da ação negatória de paternidade, mesmo que tenha decor-
rido lapso temporal considerável de convivência entre pai registral e fi-
lho (SOUZA, 2007).
2.1. Do conflito entre vínculo biológico e socioafetivo
Inicialmente, destaca-se que não basta a configuração da existência
de vício de consentimento para ensejar a desconstituição da paternidade.
Quando o pai registral ajuíza ação negatória de paternidade com suporte
em uma das hipóteses que autorizam a contestação da paternidade, o des-
fazimento do vínculo paterno-filial não é automático. É preciso analisar
a questão biológica e socioafetiva e decidir qual delas deve prevalecer no
caso concreto, tendo em vista que nesses casos não coincidem.
Não há dúvida de que a descoberta do exame de DNA revolucionou
o entendimento do instituto da filiação, possibilitando a existência de uma
certeza científica acerca da paternidade, marcada pela convergência entre
paternidade e origem genética. Contudo, a maior facilidade de acesso ao
110
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
exame de DNA induziu muitos homens, que assumiram a paternidade
por anos, a recorrer ao Poder Judiciário para anulá-la, baseados na inexis-
tência de vínculo biológico, muitas vezes imbuído do desejo de fugir da
obrigação de pagar alimentos.
Ocorre que no caso de se privilegiar a verdade biológica, na hipótese
do exame de DNA comprovar que o indivíduo não é o pai biológico,
torna-se irrelevante considerar se ele cuidou da criança como seu filho
durante anos e se identificou ante a sociedade e o filho como seu pai e os
impactos disso sobre aquele. O único fundamento importante é a falta de
correspondência entre a verdade do registro e a verdade biológica.
Entretanto, se atualmente o paradigma é a socioafetividade tal crité-
rio deve prevalecer também nas ações negatórias de paternidade. Assim,
o desfazimento do vínculo paterno-filial está atrelado à comprovação da
existência ou não de uma relação de afeto entre pai e filho, independente-
mente da realidade biológica.
Nesse sentido, Julie Cristine Delinsk (1997) entende que “a paterni-
dade biológica, em determinados casos, coincide com a paternidade so-
cioafetiva. Porém, confrontando-se as duas, esta pode preponderar sobre
aquela, tendo em vista que revela muito mais do que laços de sangue,
revelam laços de afeto entre pai e filho”.
Portanto, percebe-se que caso não reste comprovada a existência da
relação de afeto entre pai e filho, a ligação poderá ser desfeita. No en-
tanto, a presença do vínculo socioafetivo não garante que a paternidade
será mantida, visto que é necessário identificar, ainda, (i) a influência do
vínculo de afeto criado entre o suposto pai e a criança na prevalência da
socioafetividade, (ii) a importância da vontade do suposto pai ser reconhe-
cido com tal e (iii) se a possível desconstituição da paternidade no registro
de nascimento do filho atende ao princípio do melhor interesse da criança
e do adolescente.
2.2. Argumentos pró e contra o desfazimento do
vínculo paterno
A controvérsia gira em torno de compreender se a paternidade re-
gistral em conflito com a verdade biológica, efetivada e manifestada por
111
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indivíduo que pensava, realmente, ser o pai biológico e constituiu vínculo
afetivo com a criança, pode ser desconstituída ou não.
Um primeiro argumento a favor do desfazimento da relação paterno-
-filial consiste em analisar a vontade do pai em continuar exercendo essa
função. Não seria possível impor ao pai registral, submetido a erro subs-
tancial, suportar uma relação de afeto também construída a partir do vício
de consentimento originário, com os deveres decorrentes desse vínculo,
sem que, de maneira voluntária e consciente, deseje.
Percebe-se, nessas situações, que o direito do pai à desconstituição
decorre do fato do reconhecimento da paternidade ter decorrido de ver-
dadeiro engano, constatando-se que, uma vez conhecida a realidade, não
teria o pai realizado o registro. O próprio fato de ingressar com a ação
negatória de paternidade já provaria a inexistência de laços de afeto. Deste
modo, a prevalência da filiação socioafetiva decorre, necessariamente, da
escolha do suposto pai, ao despender afeto, ser reconhecido como tal.
Outro argumento utilizado funda-se na necessidade da relação de
afeto entre o pai registral e a criança estar presente no momento em que é
discutida a filiação em juízo, bem como ser levada em consideração para
fins de solução da lide. Baseia-se na possibilidade do genitor no instante
em que obtêm o pleno conhecimento acerca da verdade dos fatos, romper,
em definitivo, a relação estabelecida com o filho e não desistir de anular o
registro de nascimento, caracterizando uma verdadeira renúncia à pater-
nidade.
Nesse diapasão, Katia Regina Maciel (2018) sustenta que apesar de
em um primeiro momento a desconstituição de paternidade aparentar
possuir efeito negativo à identidade do filho, na verdade, tal decisão res-
peita o melhor interesse da criança, visto que cria um espaço para a for-
mação de uma nova identidade familiar estabelecida pelo real afeto e não
sustentada por uma relação falsa de parentesco.
Vale dizer que o vínculo de afeto e a paternidade se apoiam em bases
frágeis, eis que fruto de um engano. Uma vez descoberta a verdade dos
fatos, pode parecer difícil manter tal afeto que não restou fundado na
verdade. Assim, obrigar o pai registral à assumir os encargos decorrentes
da filiação não seria apropriado, pois poderia gerar uma relação confli-
tuosa entre pai e filho e acarretar prejuízos ainda maiores à criança, que
já sofreu tanto.
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Por outro lado, para os que defendem a manutenção da paternidade,
é imprescindível refletir acerca dos efeitos resultantes da desconstituição
da paternidade, de modo a considerar os interesses e os vínculos familiares
formados entre as partes envolvidas.
Em primeiro lugar, no que tange à utilização do critério biológico
como fundamento para desconstituir a paternidade, sustenta-se que por
meio do DNA se afere o material genético e não a paternidade.
Em segundo lugar, quanto ao argumento da prevalência da vontade
do suposto pai em continuar a desempenhar tal papel, entende-se que essa
situação não parece se compatibilizar com o princípio da proteção integral
e com todo o microssistema trazido pelo ECA, considerando o atual pro-
tagonismo da criança e do adolescente, como sujeito de direitos.
Em terceiro lugar, ao se defender que preservar a paternidade seria
manter uma relação falsa de parentesco entre a criança e aquele que não
deseja mais conviver com ela, privilegiar-se-ia a existência ou não do vín-
culo biológico em detrimento do vínculo socioafetivo formado, na con-
tramão de tudo que a Constituição Federal de 1988 assegura.
Ressalta-se que o reconhecimento de paternidade gera uma série de
deveres emocionais e patrimoniais para o pai afetivo e o filho assim re-
conhecido e, uma vez perdido o interesse em exercer essa paternidade,
muitos acabam por recorrer à alegação do vício do consentimento, para
tentar anular o registro de nascimento e se ver livre de tais responsabilida-
des. Ocorre que essa situação se mostra muito complexa para suportar um
desfecho dogmático que atenda, prioritariamente, a perspectiva do pai, e
não do filho, pessoa em desenvolvimento, protegida com prioridade pelo
ordenamento jurídico pátrio.
Em quarto lugar, a definição da figura paterna durante a formação
pessoal da criança é de suma importância, pois auxilia na construção de
sua personalidade, não sendo conveniente que esta relação seja afastada
por qualquer motivo. Desconstituir uma situação juridicamente estabele-
cida, excluindo o nome paterno e rompendo o vínculo criado com o pai,
pode gerar efeitos ainda mais nocivos à criança.
Por último, entende-se que em face dos corolários constitucional-
mente garantidos, não se pode privilegiar a razão do pai, de maneira egoís-
tica, em detrimento do bem estar psíquico da prole, ainda incapaz, de
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
maneira a gerar consequências ao seu desenvolvimento. Assim, juridica-
mente, a estabilidade da filiação deve se sobrepor à busca da verdade.
2.3. Princípio do melhor interesse da criança e do
adolescente
No contexto da sociedade contemporânea, em que os relacionamen-
tos conjugais se revelam mais instáveis e as crianças se inserem em diversas
organizações familiares, surge, com frequência, conflitos, sendo necessá-
rio garantir segurança às relações de parentesco.
O Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, previsto
no art. 227, caput, da CRFB/88 e nos art. 4º, 5º, 6º e 100, parágrafo único,
IV do ECA, foi alçado pela Constituição da República de 1988 com status
de direito fundamental, devendo ser observado por toda sociedade, como
princípio norteador tanto para o legislador quanto para o magistrado, esta-
belecendo a referência das necessidades da criança e do adolescente como
critério de interpretação da lei, solução de lides e até mesmo elaboração de
novas regras. Destaca-se que tal princípio pressupõe a ideia de prioridade
e não de exclusão de outros direitos e interesses.
Deve-se ter em mente que assegurar o melhor interesse da criança
e do adolescente não consiste no que o Juiz entende ser o melhor, mas
o que objetivamente satisfaz aos seus direitos fundamentais em maior
grau possível, à sua dignidade como pessoa em desenvolvimento, atra-
vés da ponderação de interesses e aplicação do princípio da razoabilida-
de, visto que seus direitos prioritariamente gozam de proteção consti-
tucional, quando colidentes com o direito dos pais. Contudo, isso não
que dizer que o Julgador possa sob esse fundamento ignorar a lei no
caso concreto.
Salienta-se, que as crianças e adolescentes devem ser entendidas como
sujeitos de direitos, titulares de direitos juridicamente garantidos. Daí de-
corre a importância de serem ouvidas, nas ações negatórias de paternida-
des, já que podem ter o nome de seus pais modificado em seu registro de
nascimento.
Também é necessário atentar para o fato de que a ordem de priorida-
de de interesse foi invertida. Antes, no momento em que os pais se separa-
vam, o interesse do filho era considerado secundário ou irrelevante; hoje,
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contudo, as decisões devem ser tomadas levando em consideração suas
necessidades. Assim, cabe aos operadores de Direito, ao tratar da filiação,
conferir o valor merecido aos interesses da criança e do adolescente e aten-
der ao que, de fato, é melhor para eles, tendo vista o favorecimento de sua
realização pessoal, independentemente da relação biológica que haja com
os pais (LÔBO, 2011).
Portanto, é imprescindível estabelecer no caso concreto qual solução
que melhor assegurará o superior interesse da criança, tendo em vista to-
dos os princípios constitucionais analisados.
2.4. Análise de casos
A partir de uma análise da jurisprudência na matéria, verifica-se que
inicialmente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se posicionou no sen-
tido da prevalência do vínculo consanguíneo de parentesco, nos casos de
conflito familiar. No julgamento do Recurso Especial nº 300.084, por
exemplo, admitiu-se a possibilidade de anular a decisão transitada em
julgado se porventura surgisse prova que determinantemente afastasse a
paternidade, favorecendo a verdade biológica sobre a meramente jurídica.
Todavia, percebe-se que gradativamente, o STJ tem proferido deci-
sões no sentido de privilegiar o vínculo socioafetivo em detrimento do
biológico, ainda que comprovada a existência de vício de consentimento.
No entanto, isso não significa que haja uma clara inclinação pela manu-
tenção da paternidade, uma vez que o STJ tem se posicionado de forma
a valorizar a vontade do pai em permanecer desempenhando tal função.
No julgamento do Recurso Especial nº 1.059.214 os ministros en-
tenderam que quando se busca contestar a paternidade o fundamento re-
lacionado somente à origem genética em claro conflito com a paternidade
socioafetiva não merece prosperar. Ademais, restou demonstrado, através
do estudo psicossocial realizado nos autos, a intenção do pai de continuar
a relação de afeto estabelecida com as filhas.
Entretanto, no Recurso Especial nº 1.330.404, o STJ decidiu por
unanimidade prover o recurso e julgar procedente a ação negatória de
paternidade, baseado na constatação da ruptura da convivência entre pai
e filho, após o resultado do exame de DNA, em que foi requerido, inclu-
sive, a exoneração de alimentos, visto que a paternidade constituída em
115
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
erro, não se conservou de maneira voluntária quando do conhecimento
da verdade.
Assim, é inevitável reconhecer que quando houver conflito entre as
verdades biológica e socioafetiva, caberá ao direito escolher uma delas. Con-
forme verificado pela Ministra Nancy Andrighi, no Resp. 878.941/DF, o
STJ tem conferido prevalência ao critério sanguíneo nas situações em que
ocorreu rompimento ou não restou comprovada a existência de relação de
afeto, uma vez que não se pode compelir alguém que não seja pai biológico
e também não queria ser pai socioafetivo, a assumir os deveres de cuidado e
sustento. A contrário sensu, nos casos do afeto persistir em uma relação de
mútuo auxílio, respeito e amparo, acaba-se por privilegiar a existência de
filiação jurídica e desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo.
Portanto, a partir da análise da jurisprudência na matéria e conside-
rando que atualmente o paradigma é a socioafetividade, mostra-se impres-
cindível inverter a lógica como as ações que versam sobre a contestação
da paternidade transcorrem no judiciário, já que na prática acabam por
privilegiar a paternidade biológica. Isso porque, normalmente, a produção
de provas no processo se inicia pela realização do exame de DNA para
averiguar a existência de ligação genética. Uma vez afastado o vínculo
consanguíneo, analisa-se a possibilidade de elaboração de um estudo psi-
cossocial para apurar a presença de relação socioafetiva entre pai e filho.
Caso o resultado do DNA seja positivo e comprove que o Autor realmen-
te é o pai biológico da criança ou adolescente será o suficiente para não
desconstituir a paternidade, sem que se discuta a socioafetividade.
Dessa forma, defende-se que a primeira prova a ser produzida nos au-
tos, para auxiliar o juiz na resolução da lide, deve ser a realização do estudo
psicossocial do caso, pela equipe técnica do juízo, através de entrevistas
com a criança/adolescente e o genitor, no intuito de verificar a existência
de paternidade socioafetiva. Se confirmada a relação de afeto entre pai e
filho, a paternidade poderá ser mantida, já que é preciso analisar, ainda,
se a manutenção desta no registro de nascimento do filho atenderá ao
princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. No entanto, se
não restar confirmado o vínculo socioafetivo, parte-se para realização do
exame de DNA, como forma de atestar a existência de vínculo biológico,
que caso provado também não ensejará a desconstituição da paternidade.
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Igualmente, não resta dúvida que uma vez demonstrada à inexistência
de vínculo socioafetivo e biológico não há porque manter a relação pater-
no-filial. Com bem assevera Maria Berenice Dias (2015) “quem não é pai,
nem afetivo, nem biológico, não é pai”.
CONCLUSÃO
A partir da evolução do conceito de família, das alterações promovi-
das pela Constituição Federal de 1988 e dos princípios constitucionais que
regem as relações jurídicas de família, reconhece-se o atual protagonismo
da socioafetividade em face da consanguinidade, que deve ser o critério
quando se atribui a paternidade ou se discute a sua exclusão.
Nota-se que no contexto marcado por relações conjugais mais frá-
geis e efêmeras, em que as crianças são colocadas em diferentes arranjos
familiares, desponta, com frequência, litígios envolvendo a filiação. Dessa
forma, torna-se necessário criar parâmetros que forneçam segurança às
relações de parentesco.
A paternidade é uma referência permanente por meio do qual a crian-
ça constrói sua identidade e busca seu lugar no grupo familiar. E para des-
fazer esse vínculo é imprescindível avaliar primeiro a existência de relação
de afeto entre pai registral e filho para depois partir para análise acerca da
coincidência genética. Dessa maneira, estará se privilegiando verdadeira-
mente a socioafetividade em detrimento da consanguinidade.
Além disso, é natural que o pai registral induzido a erro, imbuído
do desejo de desconstituir a paternidade que não condiz com a verdade
biológica, queira ajuizar uma ação negatória de paternidade. Entretanto,
considerando o atual protagonismo da criança e do adolescente como su-
jeitos de direitos, pessoas em desenvolvimento que necessitam de especial
atenção, é necessário garantir sua integridade psíquica, de forma a evitar
ao máximo as disputas judiciais, que normalmente geram graves prejuízos.
Hoje, quando conflitantes, os interesses dos filhos prevalecem sobre os
interesses dos pais, de maneira que se deve atribuir o valor merecido às neces-
sidades das crianças e adolescentes, com o objetivo de favorecer sua realização
pessoal, independentemente da relação biológica que haja com os pais.
Portanto, é forçoso reconhecer que não existe uma resposta correta
que possa ser aplicada a todas as situações que envolvam o desfazimento do
117
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vínculo paterno-filial. Obrigar o pai registral a continuar desempenhando
tal função mesmo que não queira não parece adequado. Ao mesmo tem-
po, é preciso levar em consideração os efeitos decorrentes da exclusão do
nome paterno e do rompimento do vínculo criado com o pai e com seus
parentes, ao se desconstituir uma relação juridicamente amparada.
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contestadas: a definição da paternidade como um impasse contem-
porâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
119
A INCONVENCIONALIDADE DO
INSTITUTO DA OITIVA INFORMAL NA
JUSTIÇA PENAL JUVENIL
Lucas Bécsi Valiengo35
O objeto da presente pesquisa são as chamadas oitivas informais, pre-
vistas expressamente no artigo 179 do Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (ECA), e sua compatibilidade com os tratados internacionais de
direitos humanos, concernentes aos adolescentes em conflito com a lei,
em especial a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). A
hipótese com que se trabalha, a partir de uma análise de um caso julgado
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e da própria Convenção,
se contrapondo ao que prevê o art. 179 do ECA, é a de que, dentro de uma
lógica de Justiça Penal Juvenil ao qual está inserido o adolescente em con-
flito com a lei, referida previsão legal seria inconvencional, dentro do que
a doutrina internacional dos direitos humanos e a jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos chama de doutrina do controle de
convencionalidade.
Nessa toada, o objetivo do trabalho é um só: verificar a compatibilidade
de um procedimento legal previsto em lei, amplamente aceito pela dou-
trina e tribunais nacionais, diante da lógica do direito internacional dos
direitos humanos.
35 Pós graduando em Diretos Humanos e Direito Processual Penal pelo Círculo de Estudos
pela Internet (CEI). Especialista em Direito Penal e Criminologia – ICPC. Bacharel em Direito
– PUC-SP. Advogado.
120
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Como metodologia de pesquisa, utilizou-se a pesquisa bibliográfica
como fonte de conceitos essenciais para a construção de um conheci-
mento capaz de promover uma análise crítica acerca do tema proposto.
Assim, buscaram-se fontes secundárias, especialmente publicações, como
livros, estudos acadêmicos e artigos que abarquem a questão. Para tanto,
foi utilizado o método dedutivo, o qual “[...] tem o propósito de explicar
o conteúdo das premissas [...] os argumentos dedutivos ou estão corretos
ou incorretos [...]” (LAKATOS & MARCONI, 2003, p. 74). Na meto-
dologia adotada, extrai-se uma conclusão lógica a partir de uma premissa
menor e de uma premissa maior. Ou seja, utiliza-se a dedução a fim de se
chegar a uma conclusão por meio de premissas.
No primeiro capítulo, será verificada a questão pertinente a chamada
Justiça Penal Juvenil, destacando-se os argumentos contra e a favor, de-
fendidos pela doutrina nacional, e uma possível visão trazida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos. No segundo capítulo, será tratado
e discutido a chamada doutrina do controle de convencionalidade, sua
previsão na jurisprudência internacional e aplicabilidade no Brasil. No
terceiro capítulo, será tratado especificamente o art. 179, do ECA, e sua
compatibilidade com a normativa internacional dos direitos humanos,
bem como com a jusrisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Finalmente, concluir-se-á a tese, demonstrando cabalmente o
ponto defendido no início do presente artigo.
Para isso, foram eleitos como marcos teóricos do direito internacional
dos direitos humanos os autores Caio Paiva e Thimotie Aragon Hee-
mann; em relação a justiça penal juvenil, destaca-se Hamilton Gonçal-
ves Ferraz. Eventualmente, outros aportes aparecem para complementar
as análises, como Válter Kenji Ishida e Siddharta Kegale, mas a pesquisa
é modestamente limitada ao que os marcos principais colocam sobre o
assunto trazido para cotejamento.
1. A JUSTIÇA PENAL JUVENIL
O termo “justiça penal juvenil” não possui conceito pacífico na dou-
trina nacional, nem mesmo é aceito por boa parte dos estudiosos e da
jurisprudência pátria. De maneira simples, poder-se-ia definir o direito
penal juvenil como “a categorização do Direito relativo a intervenção
121
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
punitiva sobre adolescentes como um subsistema do Direito Penal (…)”
(FERRAZ, 2017, p. 48).
Ou seja, o termo Justiça Penal Juvenil traria os adolescentes para a
baila do Direito Penal clássico, com as peculiaridades próprias do siste-
ma relativo ao adolescente em conflito com a lei, previsto no ECA. Po-
rém, referida categorização está longe de não possuir adeptos e opositores.
Além disso, é possível se verificar uma posição pela adoção do referido
termo pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a partir de um de
seus julgados, o que se passa a demonstrar.
1.1 Os adeptos ao termo Justiça Penal Juvenil
Para aqueles que são a favor de uma adoção de uma Justiça Penal Ju-
venil, o principal motivo seria a possibilidade de garantir aos adolescentes
em conflito com a lei todos os direitos e garantias tipicamente previstos no
direito penal e processual penal. Para João Batista Costa Saraiva (SARAI-
VA, 2010, p. 88)
‘abandonar um Direito Penal Juvenil equivaleria a abandonar os con-
ceitos introduzidos pelas normas do ECA, desconsiderar a norma-
tiva internacional na matéria e significaria duas opções: ou o apego
a dogmas do menorismo ou um discurso de abolicionismo penal’.
Já para Karyna Sposato (SPOSATO, 2006, p. 67)
‘ Diz-se “novo Direito Penal Juvenil” porque este se vê vinculado aos
mesmos objetivos e à mesma missão do direito penal moderno, como
a proteção do cidadão diante do arbítrio público. Por isso vincula-se à
Constituição Federal, aos direitos fundamentais e à lei e assume alguns
dos postulados de Ferrajoli no que tange à minimização de brutalida-
des seja de intervenções sociais sejas das intervenções jurídicos-penais.
O fundamento central é a concepção de crianças e adolescentes como
pessoas humanas e, assim, também sujeitos de direitos’.
Em âmbito internacional, destaca-se a posição semelhante de Claus
Roxin (ROXIN, 1997, p. 46). Contudo, nesse ponto, mister informar
que na Alemanha, da onde o autor produz, a própria legislação denomina
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a sistemática aplicável aos adolescentes em conflito com a lei de “Direito
Penal Juvenil”.
Em suma, para os adeptos da adoção de um “Direito Penal Juvenil”,
a principal razão seria a possibilidade de garantir aos adolescentes em con-
flito com a lei, além dos direitos e garantias específicos do ECA, também
aqueles referentes aos Direito Penal e Processual Penal clássicos.
1.2 Os contrários ao termo Justiça Penal Juvenil
Em contraposição aos argumentos trazidos acima, os contrários a uma
concepção de Direito Penal Juvenil o justificam de maneira, primordial-
mente, principiológica.
Para Alexandre Morais da Rosa (ROSA, 2011, p. 27)
‘As garantias precisam ser trabalhadas a partir da autonomia do Di-
reito Infracional e não de um ilusório Direito Penal Juvenil. Res-
peitar a diferença pressupõe que o discurso seja sério e enfrente
algumas questões que são, de fato, omitidas, como, por exemplo, o
fundamento da medida socioeducativa’.
Além do supracitado, Morais da Rosa afirma que referido modelo
legitimaria um poder punitivo estatal. Ainda, segundo Josiane Veronese
(VERONESE, 1, p. 260)
‘(…) não seria necessário o recurso ao Direito Penal e seu conjunto
de punições uma vez que o ECA prevê um sistema próprio não
punitivo, mas protetivo e responsabilizador’.
Em resumo, os contrários a uma sistemática de Direito Penal Juvenil
afirmam que sua aplicabilidade seria, em parte, legitimadora de um dis-
curso punitivo, e em parte desnecessária, vista que o ECA preveria um
sistema mais “brando” que o do sistema penal clássico.
Nesse momento, contudo, é necessário um apontamento. No habeas
corpus coletivo número 143.98836, do Espírito Santo, impetrado pela De-
36 Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143988li-
minar.pdf.
123
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fensoria Pública do referido estado, o Supremo Tribunal (STF) reconhe-
ceu que, de 27 Estados da Federação, 9 deles, ou seja, 1/3, possuíam su-
perlotação nas suas unidades de internação dedicadas a adolescentes em
conflito com a lei, chegando a patamares de 183% no estado de Sergipe e
175% no estado do Rio de Janeiro.
Ou seja, ou existe uma enorme quantidade de adolescentes cometen-
do atos infracionais que demandam internação no país, ou a lógica puniti-
vista que os contrários a adoção de um Direito Penal Juvenil já se encontra
em vigor, e o caráter “mais protetivo” do ECA é sumariamente ignorado
por grande parte dos magistrados Brasil afora.
1.3 A posição da Corte Interamericana de Direitos
Humanos
Apesar da Corte Interamericana de Direitos Humanos não possuir
uma visão sobre qual sistema de justiça, penal ou não, é o determinante
de cada país, ou mesmo ideal, uma vez que essa não é a sua função institu-
cional, através de algumas decisões em casos concretos, é possível verificar
sinais de qual sistema a Corte cotejaria.
O principal caso a ser analisado é o Caso dos Meninos de Rua (Villagrán
Morales e Outros) vs. Guatemala37. De maneira sucinta, referido caso “se
relaciona com a denúncia apresentada pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos sobre o sequestro seguido de tortura e assassinato de
cinco jovens, dentro os quais Villagran Morales. Os fatos não foram inves-
tigados adequadamente pelo Estado demandado, que tampouco garantiu
o direito de acesso à justiça” (PAIVA, HEEMANN, 2020, p. 79).
Ainda, “estabeleceu a Corte Interamericana que o Estado descum-
priu com seu dever de investigar e punir os responsáveis pela violação de
direitos humanos, determinando, então, que realizasse uma investigação
real e efetiva” (idem, ibidem).
Nos comentários da referida decisão, os autores Caio Paiva e Thi-
motie Aragon destacam que “os demais jovens assassinados foram presos
sem ordem judicial ou situação de flagrância e não foram conduzidos
sem demora à presença de uma autoridade judicial, conforme determi-
37 Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_63_esp.pdf.
1 24
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na o art. 7.5 da CADH” (idem, p. 80). Ademais, “a Corte obviamente
reprovou esse comportamento da Guatemala, advertindo sobre o des-
cumprimento da – assim chamada no Brasil – audiência de custódia”
(idem, ibidem).
Finalmente, concluem os autores que “a audiência de custódia deve
ser aplicada na apreensão de adolescentes infratores ou em conflito com a
lei, quando a sua realização deverá ocorrer em prazo ainda mais rápido”
(idem, ibidem).
Em resumo, é a visão da Corte Interamericana de Direitos Humanos
que seja aplicada à adolescentes em conflito com a lei o direito a audiência
de custódia, ou seja, um direito que, no Brasil, é garantido somente aos
réus do chamado processo penal clássico ou da justiça criminal adulta.
A audiência de custódia no Brasil teve seu início em 2015, através da
Resolução nº 213 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que contudo
não previu sua aplicabilidade aos adolescentes, sendo recentemente incor-
porada ao Código de Processo Penal, no art. 287, pelo chamado Pacote
Ancticrime (Lei nº 13.964/2019).
Entretanto, conforme verificado acima, pode-se notar que a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, de maneira reiterada, entende que
referido instituto tipicamente processual penal deve ser aplicado a chama-
da Justiça Juvenil. Diante disso, não é forçoso concluir que a Corte esten-
de os direitos e garantias dos adultos aos adolescentes em conflito com a
lei, conforme igualmente defendem os adeptos de um sistema de Justiça
Penal Juvenil.
2. A DOUTRINA DO CONTROLE DE
CONVENCIONALIDADE
Para que seja possível definir o conceito referente a doutrina do con-
trole de convencionalidade, é necessário primeiro verificar sua origem nos
casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e o que esta entende
como sendo o referido conceito.
A chamada doutrina do controle de convencionalidade foi primeira-
mente introduzida no Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile38. De ma-
38 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/04/7172fb59c130058b-
c5a96931e41d04e2.pdf.
125
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
neira sucinta, o referido caso versa sobre “a execução extrajudicial do Sr.
Luis Alfredo Almonacid Arellano, militante de esquerda e integrante do
Partido Comunista, por agentes do Estado do Chile no período ditato-
rial” (PAIVA, HEEMANN, 2020, p. 181). Após a falta de investigação e
punição dos responsáveis, a Corte fora acionada, declarando a responsabi-
lidade do Estado chileno, estipulando indenização a ser paga, e o dever de
investigar e eventualmente punir os responsáveis pelo assassinato, além de
declarar a inconvencionalidade da lei de anistia chilena.
Segundo os professores Caio Paiva e Thimotie Heemann, em sua
obra Jurisprudência Internacional dos Direitos Humanos, o controle de conven-
cionalidade seria o (PAIVA, HEEMANN, 2020, p. 181)
‘processo de verificação da compatibilidade de uma norma ou
prática interna em face das normas internacionais de proteção dos
direitos humanos, sendo a expressão “normas” empregada aqui
num sentido mais amplo, abrangendo não apenas os tratados, mas
também a jurisprudência internacional e em alguns casos até mes-
mo outras fontes do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
como o costume internacional e as normas soft law.’
Ainda, nas palavras da própria Corte, na decisão do Caso Almonacid
Arellano (Exceções preliminares, mérito, reparações e custas, §126)
‘Em outras palavras, o Poder Judiciário deve exercer uma espé-
cia de “controle de convencionalidade” entre as normas jurídicas
internas aplicadas a casos concretos e a Convenção Americana so-
bre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve levar
em conta não apenas o tratado, mas também a interpretação que a
Corte Interamericana, intérprete última da Convenção America-
na, fez do mesmo’.
Em decorrência do referido julgado, os autores supracitados, em sua
obra, destacam os princípios reitores do controle de convencionalidade,
quais sejam: princípio da presunção relativa da convencionalidade dos atos
normativos internos; princípio da interpretação conforme os direitos hu-
manos; princípio da progressividade, que buscaria “o desenvolvimento e
a extensão da proteção dos direitos humanos, e em nenhum momento
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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a interpretação realizada no exercício do controle de convencionalidade
pode ser restritiva ou aplicada de forma a amesquinhar a proteção que já
vinha sendo previamente aplicada” (PAIVA, HEEMANN, 2020, p. 184).
Ainda, existem o princípio da interpretação internacionalista, deven-
do, na interpretação dos tratados internacionais, serem considerados os
precedentes internacionais dos direitos humanos; princípio da atipicidade
dos meios de controle de convencionalidade, não havendo modelo especí-
fico para a realização do referido controle; e princípio da interpretação pro
persona, devendo a interpretação sempre ser a mais favorável ao indivíduo.
Acerca de seus efeitos, destacam os autores (PAIVA, HEEMANN,
2020, pp. 185-186)
‘(…) nos casos de inconvencionalidade de determinada norma,
além do efeito de afastamento, no qual a norma permanece “viva”,
porém sem ser aplicada, irradia-se também o chamado efeito parali-
sante, no qual se “paralisa” a eficácia da norma declarada inconven-
cional, embora ela continue existindo no ordenamento jurídico’.
Em resumo, o controle de convencionalidade seria para o direito in-
ternacional dos direitos humanos o que o controle de constitucionalidade
é para o direito constitucional: um método de controle dos atos norma-
tivos do Estado, em face de um tratado, costume ou fonte de direito in-
ternacional dos direitos humanos, determinando sua validade e aplicabi-
lidade, sendo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso do
Brasil, como detentora da palavra final acerca do tema, mesmo os juízes e
tribunais nacionais poderem realizar referido controle, como o de consti-
tucionalidade.
E somente a título de curiosidade, percebe-se que o STF já agira com
controle de convencionalidade, no HC número 96.772, que editou a Sú-
mula Vinculante número 2539, uma vez que a própria norma constitu-
cional previa a possibilidade de prisão de depositário infiel, e uma norma
constitucional originária não pode ser alvo de controle de constituciona-
lidade; porém, mesmo assim, o STF entendeu pela não aplicabilidade de
39 Súmula Vinculante nº 25: É ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a
modalidade do depósito.
127
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
uma norma constitucional originária, num legítimo controle de conven-
cionalidade.
3. A OITIVA INFORMAL DO ADOLESCENTE E O
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE
A oitiva informal é um procedimento específico previsto no ECA,
no artigo 17940, aplicado diariamente, sem maiores reflexões ou questio-
namentos. Contudo, diante dos apontamentos destacados acima acerca da
doutrina do controle de convencionalidade, é necessário verificar a ade-
quação de referido procedimento as regras do direito internacional dos di-
reitos humanos. Contudo, primeiramente, necessário conceituar a oitiva
informal e suas consequências e determinações jurisprudenciais.
3.1 A oitiva informal
A oitiva informal, conforme supracitado, é previsto no art. 179, do
ECA. Segundo o STJ, “a audiência informal, frisa-se, tem caráter ex-
trajudicial, visando a formar a convicção do representante do Ministério
Público, o qual decidirá sobre dever, ou não, representar o adolescente, a
teor do art. 180, do ECA” (HC nº 121.733 – SP, DJE 23-3-2009)41.
Ou seja, através da oitiva informal, o Ministério Público decidirá se
apresenta ou não representação por ato infracional em relação ao adoles-
cente em conflito com a lei.
Ainda, há na doutrina a discussão acerca da necessidade da realização
da referida oitiva, como direito subjetivo do adolescente. Para Válter Kenji
Ishida, “tem-se que a ausência da oitiva informal não pode constituir-se
em fator impeditivo da remissão ou representação. Isso porque a razão
40 Art. 179, ECA: Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no
mesmo dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, devi-
damente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do ado-
lescente, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus
pais ou responsável, vítima e testemunhas.
41 Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/3984468/habeas-corpus-hc-
-121733-sp-2008-0260141-4.
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
desse ato administrativo e informal é a formação da convicção do Parquet”
(ISHIDA, 2019, p. 568).
Finalmente, entende o STJ que é necessária a presença dos pais du-
rante o ato (STJ – HC nº 9.650-RJ- Diário de Justiça de 18-10-99 – p.
244 – Rel. Min. Felix Fischer – Decisão de 16-9-99 – 5ª Turma), sen-
do sua ausência nulidade relativa (HC nº 108.432/SP, 5ª Turma, Rel.
Min. Felix Fischer, DJe de 10-11-2008). Ainda, a presença de advogado
ou defensor não é obrigatória, uma vez que o procedimento não se amol-
da às exigências do devido processo legal (STJ, HC nº 109.242/SP, Rel.
Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, 5ª TURMA, j. 4-3-2010, DJe
5-4-2010).
Entretanto, é no mínimo contraditório que um procedimento que
pode levar a formação de um processo por ato infracional, e possível pos-
terior condenação do adolescente, não ter como necessária a presença de
defesa técnica, simplesmente por se tratar de um procedimento adminis-
trativo, e nestes o direito a ampla defesa e contraditório estariam, em tese,
mitigados.
3.2 Da inconvencionalidade da oitiva informal
Conforme demonstrado acima, através de suas decisões, pode-se in-
ferir que a Corte Interamericana de Direitos Humanos vislumbra a Justiça
Juvenil como de caráter penal. Tanto é que, por diversas vezes, já deter-
minou que as audiências de custódia devem ser aplicadas aos adolescentes
em conflito com a lei.
Contudo, referida determinação vai de direto encontro com as determi-
nações do art. 179, do ECA. Isso porque, diante de um quadro de flagrante,
deverá o adolescente ser apresentado, o mais breve possível, ao representante
do Ministério Público, que formará sua convicção acerca de possível prosse-
guimento de uma ação de caráter penal contra o entrevistado. Em contrapar-
tida, a Corte Interamericana entende que o adolescente deveria passar pelo
procedimento da audiência de custódia, sendo apresentado a devida autorida-
de judicial para decisão. Importante aqui frisarmos que o Ministério Público,
na visão da Corte, não corresponde a autoridade judicial.
Ou seja, sob a correta lente do Direito Penal Juvenil, o ato correspon-
dente a oitiva informal seria o mesmo que encaminhar o acusado adulto,
129
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
quando em flagrante, ao Ministério Público, para um tipo de “interro-
gatório informal”, sem sequer haver necessidade da presença da defesa
técnica, o que seria completamente inadmissível diante dos princípios e
ditames do direito processual penal moderno.
Em suma, como a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê
a necessidade da realização da audiência de custódia, posição essa reforçada
em diversos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, po-
de-se concluir que o procedimento da oitiva informal, prevista no art. 179,
do ECA, não se adéqua aos ditames do direito internacional dos direitos
humanos, pois, além de substituir, de certa maneira, o direito a audiência de
custódia do adolescente em conflito com a lei, concede ao Ministério Pú-
blico, órgão responsável pela acusação e posterior ingresso da ação contra o
acusado, uma vantagem indevida e desproporcional, vista que permite que
entreviste, sem a presença de defesa, o acusado, ato esse que diretamente ira
informar sua convicção acerca da necessidade de sua atuação junto ao Poder
Judiciário, sendo tais determinações claramente inconvencionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme exposto no primeiro capítulo, a realidade brasileira, re-
presentada pelo recente julgado do STF acerca das unidades de interna-
ção Brasil afora, e sua superlotação, no HC 143.988/ES, demonstra que
a lógica punitivista tipicamente aplicada ao direito penal e processual pe-
nal clássico já permeia a justiça juvenil. Com isso, ao tratarmos a justiça
juvenil como justiça penal juvenil, estaríamos não somente adequando a
legislação existente a realidade concreta dos fatos, mas também asseguran-
do aos adolescentes em conflito com a lei direitos e garantias tipicamente
reservadas ao direito penal dos adultos, como a audiência de custódia.
Ainda, verificamos que o referido direito a audiência de custódia já foi, há
muito, apontado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como
essencial a toda e qualquer pessoa, adulto ou adolescente.
No segundo capítulo, definimos o conceito da doutrina do controle
de convencionalidade, através de uma breve análise de caso da Corte In-
teramericana de Direitos Humanos, e como referido controle é exercido,
seus princípios, efeitos e aplicabilidade no direito brasileiro.
130
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Finalmente, no terceiro capítulo, foi definido o conceito de oitiva in-
formal, segundo a jurisprudência já pacificada do STJ, e como referido
procedimento não encontraria respaldo convencional diante do direito
internacional dos direitos humanos, seja porque, de certa forma, substitui
a audiência de custódia, que, reiterando, é direito do adolescente em con-
flito com a lei, seja porque concede ao Ministério Público, órgão acusador
e detentor da prerrogativa de apresentar ou não ação contra o adolescente
em conflito com a lei, uma vantagem desproporcional, que não se coadu-
na com os princípios e garantias tipicamente processuais penais, como a
ampla defesa e o contraditório.
Em suma, diante dos argumentos apresentados, pode-se concluir que
a proposta inicial do presente artigo fora plenamente alcançada, demons-
trando-se que o procedimento da oitiva informal não se coaduna com as
regras do direito internacional dos direitos humanos, nem mesmo a juris-
prudência já pacificada da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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132
A EFICÁCIA DA LEI SINASE NA
APLICABILIDADE DAS MEDIDAS
SOCIOEDUCATIVAS
Maria Lenir Rodrigues Pinheiro42
Nina Soraya Pinheiro de Jesus43
INTRODUÇÃO
O presente estudo vem fomentar a eficácia da Lei SINASE, Lei nº
12.594/12 na implementação das medidas socioeducativas. A temática
faz jus ao grande índice de crimes de atos infracionais no Brasil, fazendo
menções do descaso do Estado e da sociedade no que tange a efetivação
dos direitos de adolescentes diante do agravamento estrutural em torno
das desigualdades sociais.
A base da pesquisa traz em pauta o contexto da legislação diante das
medidas socioeducativas, considerando seu avanço na proposta de aten-
dimento aos adolescentes, trazendo em seu bojo propostas de mudanças
democráticas e procedimentos mais justos, evitando-se assim, a arbitrarie-
dade dentro dessas medidas atuais.
42 Doutoranda e Mestra em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI;
docente do Centro Universitário de Ensino Suiperir do Amazonas – CIESA; assessora jurídica
da Universidade do Estado do Amazonas; pesquisadora do Grupo de Estudos de Direito de
Águas – GEDA. Manaus/AM/BR.
43 Especialista em Neuropsicologia pelo Instituto de Psicologia Aplicada e Formação – IPAF;
Psicóloga pelo Centro Universitário do Norte – UNINORTE; tutora dos cursos EAD no Instituo
Federal do Amazonas – IFAM e Universidade Feeral do Amazonas – UFAM. Manaus/AM.
133
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Destarte, o objetivo do presente estudo visa analisar a Lei SINASE
em complementação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a partir da
vigência da Lei n. 12.594/12, assim como as medidas de enfrentamento ao
ato infracional referente ao Sinase e como ela se relaciona com os demais
ramos do direito.
Demonstrar-se-á como a nova legislação regula os procedimentos,
atribuições e providências legais para o acompanhamento das medidas
protetivas ou socioeducativas e se estas em questão são eficientes para di-
minuir a prática dos atos infracionais com ensejo de se chegar a um estado
de direito mais justos no que tange aos adolescentes em situação irregular
perante Lei.
A metodologia utilizada na pesquisa é de cunho bibliográfico, tendo
com método indutivo, dando subsídio no arcabouço teórico por meio da
leitura intensiva de artigos científicos, livros e demais insumos que abor-
dam o direcionamento deste estudo.
1. O ADOLESCENTE INFRATOR NO CONTEXTO DA
LEGISLAÇÃO
Observamos que a criança e o adolescente no Brasil representam a
parcela mais exposta de violação de direitos pela família, pelo Estado e
pela sociedade.
Segundo Volpi (2005, p. 08) informa:
Ao contrario do que define a constituição federal e suas Leis comple-
mentares, os maus tratos, abusos, exploração sexual, exploração do
trabalho infantil, adoções irregulares, desaparecimentos, tráfico, tor-
tura, fome. Contrapõem o cenário por onde desfilam nossas crianças
e adolescentes. Observa-se que, a sociedade tem maior facilidade de
mobilizar-se do que defender as vitimas de passiveis agressores.
No que discerne o referido autor a respeito de adolescentes em confli-
tos com a Lei é que embora sejam componentes das mesmas características
supracitadas acima, não encontram eco para a defesa de seus direitos, pois
pela condição de terem praticado um ato infracional, são desqualificados
enquanto adolescentes. A segurança é entendida como fórmula mágica de
134
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
“proteger a sociedade (entenda-se as pessoas e o patrimônio) da violência
produzida por desajustados sociais que precisam ser afastados do convívio
social, ser recuperados e reintegrados a sociedade”.
Assim podemos compreender que neste contexto o autor enfatiza o
quanto nossa sociedade é preconceituosa, usando-se de informações con-
traditórias para informar que no fundo não passa de uma estratégia para a
criminalização da pobreza e das demais mazelas imposta pela sociedade.
Na perspectiva de construir um sistema de atendimento a este públi-
co excludente, “adolescentes” que tenha como fundamento o respeito aos
direitos humanos e cidadania, o autor nos dará sua contribuição no que
tange um entendimento claro do adolescente em conflito com a Lei. Diante
do exposto se faz esclarecer primeiramente quem são esses adolescentes em
conflitos com a Lei, bem como conhecer sua realidade (VOLPI, 2005)
O contexto dos adolescentes infratores é similar a do sistema prisional
para maiores de 18 anos. A maioria é composta da classe baixa, em péssi-
mas condições de assistência familiar, com pouca ou nenhuma perspectiva
de futuro promissor, foram apreendidos na prática de atos infracionais,
correspondentes a crimes contra o patrimônio e possuem baixa escolari-
dade. Além da influencia no ambiente familiar, social, grande parte en-
contram nas periferias das grandes cidades e tem uma historia de vida
atrelada a situações de conflitos que o levaram a cometer atos infracionais.
Embora seja assegurado o direito da criança e do adolescente à con-
vivência familiar e comunitária saudável muitas vezes o menor infrator é
referido como produto de um meio no qual impera a carência de recursos
e de estrutura familiar e social.
É a partir desse cenário que permeia o adolescente em conflito com a
Lei diante da violência sofrida no ambiente familiar e naquelas impostas pela
sociedade especialmente no que se refere à imputabilidade penal, o aumento
do tempo de internação e ao rigor das punições. (OLIVEIRA, 2003).
1.1 A NATUREZA DO ATO INFRACIONAL
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no seu artigo 103,
define taxativamente como ato infracional aquela conduta prevista em Lei
como contravenção ou crime. A responsabilidade pela conduta descrita
começa aos 12 anos.
135
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Ao assim definir o ato infracional em correspondência absoluta com
a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, o ECA considera o
adolescente infrator como uma categoria jurídica, passando ser sujeito dos
direitos estabelecidos na Doutrina da Proteção Integral, inclusive do de-
vido processo legal.
Segundo Volpi (2005, p. 95) essa conceituação rompe a concepção do
adolescente infrator, como categoria sociológica, vaga implícita no antigo
código de menores, concepção que amparando-se numa falsa ideologia
tutelar aceitava reclusões despidas de todas as garantias que uma medida
de tal natureza deve necessariamente incluir e que implicavam numa ver-
dadeira privação da liberdade. Conforme transcrição do artigo 2º da lei
revogada:
Art. 2º Para os efeitos deste Código considera-se em situação ir-
regular o menor: I - privado de condições essenciais à sua sub-
sistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente,
em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b)
manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il
- vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais
ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se,
de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b)
exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado
de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais
ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave
inadaptação familiar ou comunitária. (OLIVEIRA, 2015, p.26)
O sentido político do termo “menor” residiria também em torno
de sua associação apenas às crianças e adolescentes que estavam em situa-
ção de pobreza, vítimas de maus-tratos ou que tivessem praticado alguma
conduta ilícita. Essa era a perspectiva da chamada doutrina da situação
irregular: enquadrar todo o segmento da infância e adolescência que es-
tivesse em situação de violação de direitos como menores, estabelecendo
uma distinção entre estes e a parcela do segmento infanto-juvenil que es-
tava em pleno gozo dos direitos.
A reflexão de Silva (2006, p.51), nos ajuda a compreender como atua-
va o Estado na vigência da doutrina da situação irregular:
136
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
No Brasil, por exemplo, existia uma Delegacia de Polícia de “Pro-
teção ao Menor”, onde meninos pobres eram encarcerados “para
serem diagnosticados e tratados”. A “situação irregular” abrangia
do abandono e vitimização do “menor” aos “atos anti-sociais” por
ele praticados. A “tutela” e os bons propósitos do superior interesse
do “menor” não permitiam falar em delinqüência juvenil. Não se
admitia que o “menor” fosse estigmatizado pela sentença penal.
Exorcizava-se o juízo criminal pelos aspectos “retributivo” e “pu-
nitivo”, mas “encaminhavam-se” crianças e adolescentes a celas
iguais às da pior carceragem, sem garantir um dos mais elementares
direitos da pessoa humana, o devido processo legal.
A compreensão do fenômeno do ato infracional impõe uma reflexão
acerca do contexto social, do modelo de sociedade em que estes jovens
estão inseridos, assim como da fase de desenvolvimento em que se en-
contram, qual seja: a adolescência, por um lado, os adolescentes vivem em
uma sociedade capitalista, com forte apelo consumista, na qual o valor das
pessoas é dimensionado em razão do que elas possuem ou ostentam pos-
suir e, por outro, encontram-se em uma fase da vida marcada por intensas
transformações biopsíquicas.
Nesse contexto, a análise do ato infracional praticado por um ado-
lescente não deve se resumir a uma operação de confronto do fato com
a prescrição legal, ou seja, um exercício de mera objetivação deve, sobre-
tudo, considerar a história de vida do autor da infração. De acordo com
Teixeira (2006, p. 427) a abordagem do ato infracional implica analisar:
[...] as variáveis relativas às intensas mudanças físicas, biológicas,
psicológicas; variáveis relativas a seus grupos de pertencimento, a
seu meio social e a seu trânsito no mundo da cultura, nestes tem-
pos de ausência de fronteiras geográficas e novas tecnologias de
informação que vão construindo outros padrões de sociabilidade.
Segundo a referida a autora, a biografia pessoal se organiza a partir de
inúmeros acontecimentos, vivências objetivas e subjetivas, e o delito que
é um dos acontecimentos na vida do adolescente. Assim, o apelo para o
consumo, característica da era em que vivemos, embora seja um fenôme-
no que perpassa todas as classes sociais, produz efeitos nefastos junto aos
137
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
jovens de baixa renda, dada a impossibilidade de acesso aos bens desejados
pela carência de recursos financeiros.
Por outro lado, a sociedade do consumo caracteriza-se pela constante
produção de necessidades, às quais são efêmeras à medida que constante-
mente se produzem novos objetos de desejo. Outro fator que contribuiu
para que a maioria dos atos infracionais praticados sejam crimes contra o
patrimônio, reside no envolvimento dos adolescentes com o consumo de
drogas, situação que os leva a buscarem meios de angariar recursos para a
compra da droga.
Portanto falar de ato infracional, é falar de internação, significa refe-
rir-se de privação de liberdade, o qual pó definição implica a contenção
do adolescente, autor de ato infracional num sistema de segurança eficaz.
Assim sendo os que forem submetidos a privação da liberdade só o serão
porque sua contenção e submissão a um sistema de segurança para o cum-
primento de medidas socioeducativas, de outro modo ainda a restrição da
liberdade deve significar apenas limitações do exercício pleno do direito
de ir e vir e não de outros direitos constitucionais, condição para sua in-
clusão na perspectiva cidadão.
2. O PAPEL DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
Para entendermos o papel das medidas socioeducativas se faz necessá-
rio conhecer seu conceito, as medidas socioeducativas podem ser concei-
tuadas como: “aquelas atividades impostas aos adolescentes quando considerados
autores de ato infracional. Destinam-se a formação do tratamento tutelar empreen-
dido, a fim de reestruturar o adolescente para atingir a normalidade da integração
social”( LIBERATI, 2003)
Destarte, o conceito das medidas socioeducativas é considerado tam-
bém como fator de prevenção, pois em se tratando de uma “pessoa” em
processo de desenvolvimento físico, moral, intelectual e espiritual, a san-
ção pedagógica, adequadamente aplicada que determinará o futuro do jo-
vem em conflito com a lei, constituindo em verdadeiro divisor de águas,
no sentido de evitar que o adolescente se transforme em um delinquente.
Diante do exposto, deve-se ressaltar que as medidas socioeducativas
impostas aos jovens infratores têm o caráter reparador, com o objetivo
de ressocializar e reeducar os mesmos, fazendo com que o adolescente se
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
afaste do mundo do crime, tornando-se um adulto de bem. Salienta-se
que estas medidas estão expostas no artigo 112 do Estatuto da Criança e
do Adolescente, que dispõe:
Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente
poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I - advertência;
II - obrigação de reparar o dano;
III - prestação de serviços à comunidade;
IV - liberdade assistida;
V - inserção em regime de semi-liberdade;
VI - internação em estabelecimento educacional; [...]
Todavia a aplicação destas medidas ficará a cargo do Juiz da Vara da
Infância e Juventude, que irá impor a medida de acordo com a gravidade
do delito e com o grau de participação do menor. Também serão ana-
lisadas as consequências geradas pelo ato infracional e a personalidade,
condições físicas e psicológicas do jovem para cumprir a sanção, sempre
verificando a possibilidade de mudança dos infratores (SPOSATO, 2012).
No entanto, ENGEL (2006), sustenta que as medidas socioeducati-
vas “têm cunho unicamente educativo e ressocializador com o propósito de reabilitar
o adolescente, enquanto outras correntes sustentam que muito embora visem à reedu-
cação, guardam também caráter punitivo e retributivo”, entre elas citam as que
restringem a liberdade, tal como a semiliberdade e a internação.
Para o contexto dessas medidas os autores colocam como essencial o
envolvimento familiar e comunitário, no sentido de estarem presentes no
processo de ressocialização desses adolescentes.
É importante ressaltar que segundo o ECA a medida de privação
de liberdade deve ser utilizada como último recurso. “Nenhum ado-
lescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infra-
cional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente” (ECA, art. 106). É com base no Estatuto da Criança e do
Adolescente que iremos enfatizar com mais detalhes as medidas referi-
das ao ato infracional:
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
A advertência é executada pelo juiz da infância e da juventude,
deve envolver os responsáveis é de caráter informativo, formativo
e imediato.
Na medida de obrigação de reparação do dano esta se faz a partir
da restituição do bem, compensação da vítima.
Na prestação de serviços à comunidade é priorizada a experiência
de vida comunitária e de valores sociais, com apelo educativo, além
de tornar a própria comunidade parte da formação daquele jovem,
sem esquecer que é importante o acompanhamento do órgão exe-
cutor.
A liberdade assistida é uma medida limitativa em que há o acom-
panhamento da vida social do adolescente, também se acha im-
portante o envolvimento com a comunidade, o acompanhamento
personalizado e uma equipe de orientadores sociais.
No caso da aplicação da semiliberdade é também limitativo, porém
distancia o jovem do convívio familiar e da comunidade, mas não total-
mente. Os autores colocam esta medida como uma probabilidade de subs-
tituir a medida de internação, que priva totalmente o adolescente do con-
vívio externo. Falam também que esta medida pode ser utilizada como
intermediária entre a internação e a liberdade.
Apesar da privação de liberdade as medidas socioeducativas defendem
que deve haver o envolvimento da família e da sociedade, inclusive defen-
dem uma questão interessante, mas que não se sabe se é cumprida. Se o
adolescente estiver impossibilitado de frequentar a escola a solução seria
ter uma escola da rede pública dentro da instituição.
Portanto o papel das medidas socioeducativas é reabilitar o adolescen-
te ou também reeducá-los, guardam também o caráter punitivo e retri-
buitivo. Além do suporte diante de princípios pedagógicos para organizar
a vida na instituição onde estes serão inseridos estão: as regras de con-
vivência, trabalhos em equipes interdisciplinares, métodos de contenção
não violentos, atividades lúdicas, culturais e esportivas, respeitar a priva-
cidade mínima, os jovens devem ser separados por idade e gravidade da
infração e todos estes princípios devem estar organizados de maneira a
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
oferecer um ambiente propício para o adolescente refletir sobre os motivos
que o levaram a cometer o ato infracional.
Contudo as medidas socioeducativas, devem pautar-se fundamental-
mente, na adoção pedagógica de mecanismos de inclusão social, que seja
capaz de introjetar, no jovem ainda em formação, valores que penetrem
na sua centelha divina, aumentando a sua auto-estima, ampliando os seus
horizontes e a sua condição de sonhar com a grande possibilidade que é
a vida. Sonhar que é capaz de ser um cidadão respeitado e capaz de de-
senvolver todas as suas potencialidades que ficaram esquecidas diante da
vida dura e desumana que o fez esquecer de “ser” e o obrigou a lutar para
sobreviver.
3. LEI SINASE EM COMPLEMENTO AO ESTATUTO DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da Re-
pública e o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente
apresentam em comemoração aos dezesseis anos do Estatuto da Criança
e do Adolescente, em 2006 o Sistema Nacional de Atendimento Sócio
Educativo (SINASE).
Tal documento envolveu em sua construção, de diversas áreas de go-
verno, representantes de entidades, especialistas na área, e uma série de
debates sobre garantia de direitos. Dessa forma, o projeto da construção
o do SINASE, concentrou-se num tema que tem mobilizado a opinião,
pública, a mídia e diversos segmentos da sociedade brasileira, ou seja, o
que deve ser feito para enfrentar as situações de violência que envolvem os
adolescentes enquanto autores de ato infracional, ou até mesmo vitimas de
violação, de direitos no cumprimento das medidas sócioeducativas.
Assim, esta nova diretriz, trouxe avanços e desafios envolvendo mui-
tas polêmicas, bem como a necessidade do envolvimento e articulação,
dos níveis de governo e da responsabilidade da família, do Estado e da
sociedade baseados na Constituição Federal, promulgada em 05 de Outu-
bro de 1988, que é aquela que mais se aproxima do conceito de república
pertencente a comunidade. Nesse sentido, o SINASE reafirma a diretriz
do Estatuto, sobre a natureza pedagógica da medida socio educativa, e
para isso o sistema tem como inspiração os acordos internacionais dos di-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
reitos humanos, os quais o Brasil se incorporou, principalmente na área
dos direitos da criança e do adolescente, e sua implementação objetiva
primordialmente, o desenvolvimento de uma ação sócioeducativa sus-
tentada no principio dos direitos humanos recorrendo ainda a ideia dos
alinhamentos conceitual, estratégico e operacional, estruturado em bases
éticas e pedagógicas.
Portanto, alguns órgãos envolvidos na elaboração do documento são
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONAN-
DA), Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH/SPDCA), Asso-
ciação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e da Juventude
(ABMP), Fórum Nacional de Organizações Governamentais de Atendi-
mento da Criança e ao Adolescente (FONACRIAD), Fundo das Nações
Unidas para a Infância (UNICEF), além da Constituição Federal de 1988,
Estatuto da Criança e do Adolescente e seus documentos de base como
Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, Sistema Global e Sis-
tema Interamericano dos Direitos Humanos: Regras mínimas das Nações
Unidas para Administração da Justiça Juvenil - Regras de Beijing, Regras
mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Li-
berdade.
Desta forma, o SINASE reafirma que:
(...) A diretriz do Estatuto sobre a natureza pedagógica da medida
socioeducativa. Para tanto, este sistema tem como plataforma ins-
piradora os acordos internacionais sob direitos humanos dos quais
o Brasil é signatário, em especial na área dos direitos da criança e
do adolescente. (SINASE, 2006, p. 13)
Em contrapartida, o ECA não exige que esses serviços aconteçam
num mesmo local condição esta que pelo SINASE È preferencial, caben-
do aos órgãos os envolvidos conveniência e oportunidade. Por essa razão
da especificidade, limite de tempo e natureza desse atendimento inicial, os
parâmetros pedagógicos caberão apenas a internação provisória e as medi-
das socioeducativas. Contudo ressalta-se que:
(...) Os procedimentos e ações desenvolvidas no Atendimento Ini-
cial realizado até a decisão judicial da aplicação da medida de inter-
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
nação provisória estão devidamente fundamentados nos princípios
dos direitos humanos, e, sobretudo, esta assegurado e descrito de-
talhadamente neste documento no (capitulo 3) e em especial des-
taques nos princípios gerais do SINASE. î (SINASE, 2006. p. 52)
Portanto, algumas das complementações que o SINASE veio trazer
ao Estatuto é a importância da definição do número de adolescentes por
unidade de internação, pois estes necessitam de um nível de atenção mais
complexo dentro das garantias e direitos, bem como, bons aspectos físicos
com condições de higiene, limpeza, ventilação, iluminação, segurança,
lugar para repouso dos adolescentes, pois se percebeu que isso não vinha
ocorrendo mesmo estando implícito no Estatuto, levando em conta que
nas medidas não privativas de liberdade essas condições são as mesmas,
para os locais onde se realizam as inserções.
3.1 Relação do SINASE nos demais ramos do Direito
Em qualquer área que atuamos, relacionada direta ou indiretamente
à socioeducação, o objetivo primeiro é contribuir para que sejam assegu-
rados aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, com
absoluta prioridade, os direitos previstos no art. 227 da Constituição Fe-
deral de 1988.
Diante do exposto se faz necessário entender a base do da Lei Sinase
em outros ramos do direito atrelado a área da infância. Tendo por base a
teoria dos sistemas, foi desenvolvido o Sistema Nacional de Atendimen-
to Socioeducativo (Sinase), como um subsistema do Sistema de Garantia
de Direitos (SGD) que, como tal, deve se comunicar e interagir com os
demais subsistemas do SGD (tais como o da Saúde, Educação, Assistên-
cia Social, Justiça e Segurança Pública). Dentro do sistema maior que é
o SGD, o Sinase destina-se a reunir princípios, regras e critérios a se-
rem aplicados à execução das medidas socioeducativas. Segundo Oliveira
(2002, p. 35), Sistema é um conjunto de partes interagentes e interdepen-
dentes que, conjuntamente, forma um todo unitário com determinado
objetivo e efetuam determinada função.
Como base para pesquisa cabe ressaltar que em julho de 1990, foi pu-
blicada a Lei nº 8.069/90, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adoles-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
cente, atendendo aos comandos dos arts. 227 e 228 da Constituição Federal
e à ratificação do Brasil à Convenção das Nações Unidas de Direitos da
Criança. O Estatuto da Criança e do Adolescente representou uma enorme
mudança no paradigma e transformou completamente o tratamento legal
dispensado à criança e ao adolescente, instituindo a Doutrina da Proteção
Integral em substituição à Doutrina da Situação Irregular. Especificamente,
no que diz respeito ao adolescente em conflito com a lei, foram resguar-
dados diversos direitos e garantias que também já se aplicavam aos adultos
sujeitos a processos penais, tais como o direito ao devido processo legal, à
ampla defesa e a anterioridade (consideração dos atos infracionais como as
condutas descritas como crimes ou contravenções penais previamente).
Além desses, foram asseguradas a esses adolescentes algumas garantias
específicas, como a de serem julgados por ramo específico do Poder Judi-
ciário, de estarem sujeitos a um procedimento diverso do penal e, em caso
de ser comprovada a prática da infração, de serem-lhes aplicadas medidas
socioeducativas distintas das penas aplicadas aos adultos. Entretanto, o Es-
tatuto da Criança e do Adolescente foi insuficiente na regulamentação
das medidas socioeducativas, pois, embora tratasse de forma relativamente
completa do procedimento para sua aplicação, era omisso no que dizia
respeito ao procedimento para a execução das medidas socioeducativas,
bem como sobre a organização do serviço.
Em 1998, iniciou-se um debate sobre a proposta de uma lei de exe-
cução das medidas socioeducativas, que apenas veio a se concretizar com a
sanção da Lei nº 12.594, em janeiro de 2012. Antes do advento desta Lei,
porém, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda) já havia expedido a Resolução nº 119, de 11 de setembro de
2006, aprovando o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Si-
nase), documento elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos da Pre-
sidência da República e pelo próprio Conanda, em conjunto com diversas
outras áreas de governo, representantes de entidades e especialistas na área.
Diante disto o Sinase possuía como premissa básica a necessidade de
se constituir parâmetros mais objetivos e procedimentos mais justos que
limitassem a discricionariedade e de reafirmar a natureza pedagógica da
medida socioeducativa. A Lei nº 12.594/12 promoveu os ditames desse
documento ao status de lei, garantindo importante avanço na promoção e
na defesa dos adolescentes autores de ato infracional, e estabeleceu o pro-
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cedimento legal para a execução das medidas socioeducativas, suprindo a
lacuna deixada pelo ECA.
Enuncia Brandão (2013, p. 123) que:
A prática restaurativa tem como premissa maior reparar o mal cau-
sado pela prática do ilícito, que não é visto, a priori, como um fato
jurídico contrário á norma positiva imposta pelo Estado, mas sim
como um fato ofensivo à pessoa da vítima e que quebra o pacto de
cidadania reinante na comunidade.
Brandão complementa que essa opção de responsabilização do ado-
lescente revela que o legislador o reconhece como sujeito de direitos e
deveres, protagonista de sua história, devendo, portanto, responder pelos
atos infracionais que vier a cometer. O objetivo de levar o adolescente à
compreensão da ilicitude do seu ato e, portanto, à responsabilização pelo
dano causado à vítima, prioriza as práticas restaurativas para a solução do
conflito, nos termos do que estabelece o art. 35, III desta Lei. Esta por sua
vez confere aos sistemas estaduais, municipais e distritais a liberdade de
organização e funcionamento. Isso significa que compete a cada estado
e município a indicação, no âmbito de sua estrutura administrativa, do
órgão da administração direta responsável pela coordenação da execução
e gestão dos Sistemas Estaduais e Municipais de Atendimento Socioe-
ducativo, desde que expressamente designados nos respectivos Planos de
Atendimento Socioeducativo (vide artigos 4º, §3º e 5º, §4º desta Lei). Na
prática, porém, verifica-se uma limitação financeira para o exercício dessa
autonomia, sobretudo para os Municípios (BRANDÃO, 2013).
Contudo o sistema constitucional brasileiro estabelece a divisão cons-
titucional de competências com base na predominância do interesse. Des-
ta forma, a abrangência do interesse institui o ente federado legitimado
para a repartição das competências constitucionais.
3.2 A inovação da lei SINASE
Sempre que uma nova lei entra em vigor, há necessidade de analisá-la
em face de todo o sistema legal, de modo a proporcionar uma interpre-
tação que melhor atenda aos seus objetivos. É o caso da Lei n° 12.594, de
145
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
18 de janeiro de 2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE).
De maneira mais específica, a referida lei tratou dos programas de
atendimento e da execução da medida socioeducativa apresentando toda
uma sistemática a ser observada para o seu cumprimento.
Sabe-se que “o Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta re-
gras para a imposição das medidas socioeducativas. Tais regras não estabe-
lecem relação direta entre o ato praticado e a medida, ou seja, a aplicação
de determinada medida não é necessariamente consequência direta da
prática de um dado delito, pois são normas de caráter geral e exigem uma
análise global da situação (delito e infrator) para verificar a adequação da
medida a ser imposta”.
Assim, as diretrizes a serem observadas quando da aplicação das me-
didas socioeducativas são: a) comprovação do ato infracional; b) aplicação
isolada ou cumulativa da medida; c) substituição da medida aplicada; d)
necessidade pedagógica e fortalecimento dos vínculos familiares; e) rela-
ção de proporcionalidade; f) proibição de trabalho forçado; g) tratamento
especial aos adolescentes com deficiência intelectual.
É importante ressaltar que a unificação das medidas socioeducativas
busca uniformizar a execução das medidas aplicadas e deve seguir algumas
regras básicas como: a) elaboração de cálculo das medidas socioeducativas
unificadas, que pode ser substituído pela apresentação de informações por
parte do órgão executor ou do Judiciário; b) oitiva do Ministério Público
e Defensor a respeito do referido cálculo; c) homologação judicial da uni-
ficação (Art. 45). É certo que a lei não discrimina o citado cálculo, con-
tudo, deixa expressamente consignada à necessidade da manifestação das
partes e posterior homologação judicial. Essa manifestação deve referir-se
ao procedimento adotado para a unificação, que se materializa com a ela-
boração de um cálculo onde fique consignado o início e o fim do prazo
estabelecido para o cumprimento da medida.
Quanto a questão da melhoria do atendimento, se deve preservar a
integridade física e segurança que abrangem aspectos variados e alguns
exemplos podem ser extraídos dos artigos 94 e 124 do ECA, que im-
põem às entidades garantir aos adolescentes o direito a instalações físicas
em condições adequadas de acessibilidade (Lei nº 10.098, de 19/12/2000),
habitabilidade, higiene, salubridade e segurança, vestuário e alimentação
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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suficientes e adequadas à faixa etária dos adolescentes e cuidados médicos,
odontológicos, farmacêuticos e saúde mental.
Todavia quanto a questão da gestão se faz necessário que os órgãos
deliberativos e gestores do SINASE sejam articuladores da atuação das
diferentes áreas da política social. Neste papel de articulador, a incomple-
tude institucional é um princípio fundamental norteador de todo o direito
da adolescência que deve permear a prática dos programas socioeducativos
e da rede de serviços. Demanda a efetiva participação dos sistemas e po-
líticas de educação, saúde, trabalho, previdência social, assistência social,
cultura, esporte, lazer, segurança pública, entre outras, para a efetivação da
proteção integral de que são destinatários todos adolescentes. (CARELLI
ET AL, 2014)
A responsabilidade pela concretização dos direitos básicos e sociais
é da pasta responsável pela política setorial, conforme a distribuição de
competências e atribuições de cada um dos entes federativos e de seus
órgãos. Contudo, é indispensável à articulação das várias áreas para maior
efetividade das ações, inclusive com a participação da sociedade civil.
Para tanto, os Conselhos Nacional, Estaduais, Distrital e Municipais
dos Direitos da Criança e do Adolescente bem como os órgãos gestores do
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, nos seus respectivos
níveis, devem articular-se com os Conselhos e órgãos responsáveis pelo
controle, gestão, supervisão e avaliação dos demais sistemas e políticas
sociais para o desenvolvimento de ações integradas e que levem em con-
sideração as peculiaridades que cercam o atendimento aos adolescentes
inseridos no SINASE (CARELLI ET AL, 2014).
Entre outras ações que podem favorecer o desenvolvimento da arti-
culação destacam-se as seguintes: estímulo à prática da intersetorialidade;
campanhas conjuntas destinadas à sociedade em geral e aos profissionais
da área, com vistas à concretização da Doutrina de Proteção Integral ado-
tada pelo ECA; promoção de discussões, encontros, seminários (gerais e
temáticos) conjuntos; respeito às competências e atribuições de cada ente
federativo e de seus órgãos, evitando-se a sobreposição de ações; discussão
e elaboração, com os demais setores do Poder Público, para expedição de
atos normativos que visem ao aprimoramento do sistema de atendimento;
expedição de resoluções conjuntas, disciplinando matérias relacionadas à
atenção a adolescentes inseridos no SINASE. (CARELLI ET AL, 2014)
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Contudo a implementação do SINASE objetiva primordialmente o
desenvolvimento de uma ação socioeducativa sustentada nos princípios
dos direitos humanos. Persegue, ainda, a ideia dos alinhamentos concei-
tual, estratégico e operacional, estruturado, principalmente, em bases éti-
cas e pedagógicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A instituição do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
pela Lei 12.594/12, SINASE sem dúvida, constitui um avanço legisla-
tivo significativo no quadro do programa de atendimento das medidas
socioeducativas, especialmente para o programa de privação de liberdade.
Espera-se que essa legislação, juntamente com as políticas públicas devi-
das, possa viabilizar e substancializar o exercício dos direitos fundamentais
sociais dos adolescentes em conflito com a lei nas redes de atendimento
socioeducativo de todo o país.
Mas, isso não significa que não se possa avançar ainda mais, pois a evolu-
ção na elaboração legislativa centrada no contexto da clareza sobre a respon-
sabilidade do adolescente, acompanhada das definições precisas da finalidade
das medidas socioeducativas e do seu conteúdo é uma questão premente.
Cumpre observar ainda, diante dos avanços que permeiam a Lei,
a necessidade de ampliar a discussão acerca dos aspectos essenciais que
compõem o conteúdo sócio pedagógico da medida, os seus objetivos, o
planejamento adequado para a intervenção socioeducativa e a regulamen-
tação uniforme do processo de execução.
É preciso compreender que o cumprimento da medida socioedu-
cativa deve ser cercado de práticas que promovam o exercício do direito
à educação, à saúde, à profissionalização, o lazer, visando a (re) educação
e (re) socialização do autor do ato infracional. Essas práticas devem estar
acentuadas na desenvoltura do adolescente para uma nova forma de en-
tender e apreender outro parâmetro comportamental, a fim de projetar
suas ações futuras diferentemente das condutas infracionais, ajudando-o,
portanto, a se comportar de acordo com esse novo entendimento quando
reinserido na sociedade.
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150
DIREITO À VISITA DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES EM ESPAÇOS DE
PRIVAÇÃO DA LIBERDADE
Islene Gomes Mateus Castelo Branco44
Thaywane do Nascimento Gomes45
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, reconhece crianças
e adolescentes como sujeitos de direitos, cuja proteção deve ser efetiva-
da com absoluta prioridade (BRASIL,1988). Inspirado nesses preceitos
constitucionais, em 1990 é promulgada a Lei nº 8.069, que cria o Estatuto
da Criança e do Adolescente- ECA, o qual, à luz da doutrina da proteção
integral (BRASIL,1990), traz um rol de direitos destinados à concretiza-
ção da dignidade humana de crianças e adolescentes.
Dentre os referidos direitos, no que tange à convivência familiar e co-
munitária, encontra-se a garantia de convívio da criança e do adolescente
com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas
promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucio-
44 Mestra em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB); Agente socioeduca-
tivo na Unidade de Internação do Recanto das Emas (UNIRE/DF); Professora de Direito da
Criança e do Adolescente na graduação em Direito do Instituto de Ensino Superior Planalto
(IESPLAN).
45 Mestranda em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de Brasília (UnB); Especialista
em Políticas Públicas e Socioeducação pela Escola Nacional de Socioeducação; Psicóloga
pela Universidade Católica de Brasília e Assistente Social pela UnB.
151
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
nal, pela entidade responsável, independentemente de autorização judi-
cial. Esse direito foi incluído no ECA por meio da Lei nº 12.962/2014,
a fim de assegurar a convivência da criança e do adolescente com os pais
privados de liberdade.
Portanto, a visita a estabelecimentos de privação de liberdade com a
finalidade de promover a convivência familiar da criança ou do adolescen-
te com o genitor ou a geratriz, quando estes estejam em cumprimento de
pena ou de medida socioeducativa de internação é um direito da infância
e da adolescência que, sequer, demanda manifestação judicial. Acontece
que, não obstante a disposição legislativa indicada, pouco é mencionado
a respeito da forma como o referido direito tem sido exercido no Brasil.
Por isso, o estudo então apresentado busca não apenas evidenciar a
ausência de levantamentos a respeito da situação em questão, mas, prin-
cipalmente, prescrutar razões que vão além daquelas habitualmente si-
nalizadas nos raros momentos em que a temática é considerada. Assim,
objetiva-se verificar como o direito de visitas em espaços de privação de
liberdade (prisões, centros de internação) tem sido exercido por crianças
e adolescentes.
Para tal feito, tratou-se de uma construção teórica reflexiva acerca do
direito à visitação de crianças e adolescentes em estabelecimentos privati-
vos de liberdade, partindo da análise de documentos, legislações infancis-
tas nacionais e regras internacionais acerca dos pârametros para visita no
cárcere. Vislumbrando entender como as premissas de proteção e priori-
dade absoluta compõem a acolhida de crianças e adolescentes enquanto
visitadoras/es de genitores e/ou familiares privados de liberdade. Ressal-
ta-se que o levantamento documental foi construído com as percepções
e anseios destas autoras que atuam no sistema socioeducativo do Distrito
Federal, e acompanham rotineiramente a entrada de crianças e adolescen-
tes para visitar os seus parentes.
A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL NO DIREITO
BRASILEIRO
Com a redemocratização do Brasil, foi promulgada a Constituição
Federal de 1988, que influenciada pela Declaração dos Direitos da Crian-
ça (1959), documento internacional que especifica a Declaração Universal
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dos Direitos Humanos (1948), conferindo proteção especial à criança, a
partir da observância de vários princípios dado o cunho programático da
norma em apreço (SEABRA, 2020), reconheceu crianças e adolescentes
como sujeitos de direitos, observada a prioridade absoluta no tratamento
protetivo estabelecido na CF/88, nos termos do art. 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionaliza-
ção, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão (BRASIL, 1988).
A partir do regramento Constitucional indicado, no ano de 1990,
entrou em vigência o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que
consolidou a condição de crianças e adolescentes como sujeitos de direi-
tos, sob a doutrina da proteção integral, adotada, também, na Convenção
sobre Direitos da Criança (1989), norma incorporada ao ordenamen-
to jurídico brasileiro. Essas legislações representam grandes avanços no
que concerne à proteção dos direitos humanos de crianças (ROSSATO,
LÉPORE & CUNHA, 2017) e rompem com a antiga doutrina da situa-
ção irregular, que era observada no Brasil antes da Constituição. Diversa-
mente da proteção integral, esta doutrina tratava crianças e adolescentes
como objetos, criminalizando a pobreza, e negava direitos a esses vulne-
ráveis (SARAIVA, 2016).
Assim, ao adentrar o ordenamento jurídico brasileiro, a doutrina da
proteção integral reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de direi-
tos cujas políticas públicas protetivas possuem prioridade, e entre os vários
direitos previstos, deu-se atenção para a convivência familiar e comunitária,
fazendo com que a sua relevância não cesse ainda que o pai ou a mãe, ou
ambos, venham a cumprir pena ou medida socioeducativa de internação,
ocasião em que crianças e adolescentes exercerão o direito de visitas aden-
trando ambientes nos quais a privação de liberdade é característica.
É importante ressaltar que todos os direitos encontrados nas norma-
tivas infancistas vigentes no Brasil devem ser efetivados conforme os dita-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
mes da doutrina da proteção integral. Por tudo isso, quando uma criança
ou um adolescente adentra um espaço de privação de liberdade como vi-
sitante, sua condição de sujeito de direitos também precisa ser respeitada,
o que demanda a exposição do tema para que seja verificada a forma como
esse direito tem sido efetivado, ou ainda, tendo em vista a ausência de re-
gistros sobre o assunto, que sejam incentivadas novas investigações sobre
o assunto, com a finalidade de promover a proteção integral também no
exercício do referido direito.
O DIREITO À VISITA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
O ECA, considerando a relevância da convivência familiar e comu-
nitária, elenca tal direito como fundamental, por depreender que:
A criança e o adolescente têm direito a ser criado por uma famí-
lia, pois esta é o pilar de construção de todas as sociedades de que
temos notícia na História humana. É através da família que o in-
divíduo nasce, cresce e se desenvolve, é a família que lhe presta
assistência, que preserva a estrutura social que temos hoje. O di-
reito à família é, pois, um direito natural, inato à própria existência
humana (BARROS, 2017, p. 41).
Ante a importância da família, por intermédio da Lei nº 12.962/2014,
foi inserido, no art. 19 do ECA, que versa sobre o direito à convivência
familiar e comunitário, o § 4º, segundo o qual:
Será garantida a convivência da criança e do adolescente com a
mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas
promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento ins-
titucional, pela entidade responsável, independentemente de auto-
rização judicial (BRASIL, 1990).
Todavia, pouco se fala a respeito de como se dá o exercício de tal di-
reito, por isso é necessário conferir visibilidade à questão, para que crian-
ças e adolescentes continuem respeitados, ainda mais ante um direito tão
delicado, porquanto, se os ambientes destinados ao cumprimento de pri-
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sões ou medidas socioeducativas de internação, não são recomendáveis
para adultos, jovens ou adolescentes, de que forma isso se concretiza de
modo apropriado para crianças e adolescentes quando visitantes.
As Regras de Bangkok, estabelecidas pela ONU, e observadas pelo
Brasil, determinam que: “visitas [na privação de liberdade] que envolvam
crianças devem ser realizadas em um ambiente propício a uma experiência
positiva, incluindo no que se refere ao comportamento dos funcionários/
as, e deverá permitir o contato direto entre mães e filhos/as” (CNJ, 2016a,
p. 27).
Perante essa prescrição trazida pelas Regras de Bangkok, indaga-se:
há ambientes adequados para que as visitas aconteçam? Apesar da ausên-
cia de registros sobre o assunto, pode-se afirmar que não, o que expõe
crianças e adolescentes aos riscos inerentes aos espaços caracterizados pela
privação de liberdade. Inclusive, em raro estudo sobre o assunto em apre-
ço, relata-se que:
[…] uma criança de 11 anos de idade foi abusada sexualmente
dentro da Casa de Privação Provisória de Liberdade (CPPL V),
no complexo prisional de Itaitinga, na Região Metropolitana de
Fortaleza. Durante a visita ao pai, a menina foi violentada por um
outro detento do estabelecimento.
Outro fato alarmante ocorreu na Colônia Agrícola Major César de
Oliveira, localizada no município de Altos, região metropolitana
de Teresina, onde um adolescente de 13 anos foi encontrado den-
tro da cela com um preso acusado de estupro de vulnerável, que
consiste no ato praticado contra menor de 14 anos.
O garoto havia sido levado pelos pais para visitar um amigo do
casal que se encontrava cumprindo pena por estupro de vulnerável
e, durante a visita, foi deixado pelos genitores para que dormisse
com o detento, posteriormente sendo encontrado pelos agentes de
baixo da cama sem camisa (JESUS, 2019, online).
Outro aspecto relevante a respeito das visitas de crianças e adolescen-
tes em espaços de privação de liberdade reside no procedimento de revis-
ta realizado nos estabelecimentos prisionais e socioeducativos, momento
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em que os visitantes são submetidos, muitas vezes, a situações vexatórias
(CARVALHO, 2018, Online).
Atento a isso, em 2018, o Ministério Público do Rio Grande do Sul
(MPRS, 2018), proibiu a revista íntima a menores de 18 anos, permitindo,
apenas, o uso de scanner, raio X e detector de metais. Quanto às revistas, as
Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Re-
gras de Nelson Mandela), também observadas pelo Brasil, orientam que:
“os procedimentos de entrada e revista de visitantes não devem ser degra-
dantes e devem ser regidos por princípios tão protetivos como os delineados
nas Regras 50 a 52. As revistas feitas a partes íntimas do corpo devem ser
evitadas e não devem ser aplicadas a crianças” (CNJ, 2016, p.33).
Considerando esses pontos, é comum encontrar posições contrárias
ao direito à visita de crianças e adolescentes, visto que embora as normas
indicadas orientem para um tratamento digno, na prática, os poucos re-
gistros sobre o tema levam à inferência de que a proteção integral não tem
sido efetivada.
As complexidades envolvendo o direito à visita de crianças e adoles-
centes em espaços de privação de liberdade, assim como todo o direito
à convivência familiar e comunitária, deve ser norteado pelo princípio
do interesse superior da criança e do adolescente ou do melhor interesse,
compreendido como:
princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador,
determinando a primazia das necessidades da criança e do adoles-
cente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos,
ou mesmo para elaboração de futuras regras (AMIN, 2019, p. 81).
Portanto, deve-se ponderar o direito às visitas com o princípio indi-
cado, a fim de promover a convivência familiar e comunitária, e não para
submeter crianças e adolescentes a violações de direito tal qual aquelas que
foram expostas aqui. Ainda sobre o direito à visita no contexto apresen-
tado, é importante ressaltar que a criança e o adolescente filhos de pai(s)
encarcerados estão invisibilidados, pois poucos estudos e/ou profissionais
se debruçaram sobre essa situação (SANTOS, 2006).
Também é possível observar que, para algumas crianças e adoles-
centes, a prisão ou a apreensão dos genitores, pode representar a inserção
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na política de acolhimento institucional, ou seja, há uma dupla institu-
cionalização que dimensiona o tamanho da problemática. Tal situação,
certamente, impacta as vivências e vínculos familiares dessas crianças e
adolescentes.
Ademais, essas crianças e adolescentes são estigmatizadas em razão
dos delitos cometidos por seus pais, o que torna ainda mais dura a con-
dição das visitas, já que passam a depositar nos genitores, os motivos dos
sofrimentos então suportados, estabelecendo-se um dilema entre o papel
de cuidar que não é realizado e o fato de ser fonte das humilhações en-
frentadas. Assim, não pode-se esquecer os atravessamentos subjetivos e
desenvolvimentais de ser visitar as figuras parentais no cárcere.
Outrossim, é necessário destacar que, para algumas crianças e adoles-
centes, o encarceramento de seus genitores, seja em prisões ou em centros
de internação, não é uma situação que acontece em suas vidas em curso,
mas algo que as integra desde a gestação, porquanto a concepção se deu
em relações ocorridas em visitas íntimas.
Para as aludidas crianças e adolescentes, o espaço privativo de liberda-
de possui uma normalidade que pode fomentar uma postura inerte ante as
violações ocorridas no exercício do direito de visitas, fazendo parecer que
em tais locais não é necessário exigir o cumprimento da proteção inte-
gral ou do melhor interesse previstos nas regras que orientam o direito da
criança e do adolescente. Salienta-se que não foram encontrados registros
sobre as percepções expostas neste parágrafo, elas são trazidas aqui a partir
de observações profissionais destas autoras.
A temática referente ao direito de visita de crianças e adolescente em
ambientes caracterizados pela privação da liberdade requer, com urgência,
visibilidade, porquanto, consoante todos os conhecimentos apresentados,
o silenciamento instalado sobre o assunto tem corroborado com violações
que não coadunam com os direitos destinados às crianças e aos adolescentes.
É preciso lidar com o assunto de maneira específica, pois a maioria
das poucas menções encontradas são feitas de forma acessória, olhando
para o direito de terceiros, que acaba alcançando crianças e adolescentes.
A postura ora recomendada não se trata de mitigar a relevância de outros
aspectos, tais como o encarceramento de mulheres com seus filhos, ou
ainda dos reflexos positivos que a manutenção da relação familiar tem ante
aqueles que cumprem pena ou medida socioeducativa de internação, mas
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de olhar para a questão sob a orientação da prioridade absoluta, ou seja, do
impacto que o direito à visita em espaços de privação de liberdade tem na
vida de crianças e adolescentes visitadores.
Ressalta-se que a necessidade de desenvolver estudos sobre o tema
proposto não é apenas uma inquietação acadêmica que surge nos infancis-
tas cujos olhares estão constamente voltados às problemáticas que envol-
vem crianças, adolescentes e jovens, mas por imposição legal e internacio-
nal, visto que as Regras de Bangkok (CNJ, 2016a, p. 36), observadas no
Brasil, determinam que:
Regra 68: Serão envidados esforços para organizar e promover pes-
quisa sobre o número de crianças afetadas pelo conflito de suas
mães com o sistema de justiça criminal, e o encarceramento em
particular, e o impacto disso nas crianças, com o intuito de con-
tribuir para a formulação de políticas e a elaboração de programas,
considerando o melhor interesse das crianças.
Embora as Regras de Bangkok (CNJ, 2016a) sejam destinadas ao tra-
tamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para
mulheres infratoras, o próprio texto em referência estabelece que algumas
de suas regras se aplicam igualmente aos homens presos que são pais. Por-
tanto, não obstante o recorte de gênero da norma invocada, verifica-se
que alguns de seus dispositivos, incluindo o que versa sobre o cuidado
relacionado às crianças e adolescentes que realizam visitas em presídios, e
a indispensabilidade de estudos sobre esta condição, a fim de que políticas
públicas sejam formuladas e implementadas, é medida que se impõe.
O presente estudo é feito, também, em decorrência da responsa-
bilidade inserta na Constituição Federal, quando o Estado, a família e a
sociedade foram designados como agentes promotores dos direitos infan-
cistas e por cada criança e adolescente invisibilizado por sua filiação com
encarcerados nas prisões e nas unidades de internação, quando o direito
à visita tem sido realizado sem observar a condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento que alcança os sujeitos de direitos postos em evidência.
Há um apelo individual em toda criança e adolescente submetido ao sis-
tema prisional e ao sistema socioeducativo no momento da visita que não
pode mais ser ignorado.
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Direito à visita: condenado x criança e adolescente
Entre os aspectos relacionados à visita de crianças e adolescentes nos
estabelecimentos prisionais e socioeducativos, alguns autores afirmam
existir um conflito, porquanto, segundo a Lei de Execuções Penais- nº
7.210/1984 (BRASIL, 1984) são direitos do preso, a visita do cônjuge,
da companheira, de parentes e amigos em dias determinados. Em con-
sonância, conforme a Lei do Sinase- nº 12.594/2012 (BRASIL, 2012)
é garantida aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa
de internação a visita do cônjuge, companheiro, pais ou responsáveis, pa-
rentes e amigos observando os dias e os horários próprios definidos pela
direção do programa de atendimento, bem como o de receber visita dos
filhos, independentemente da idade desses.
Ressalta-se que o direito à visita não é apenas das crianças e dos
adolescente em relação aos seus genitores, mas destes. Logo, esta neces-
sidade também deve ser considerada. Nesse sentido, Nucci (2020, p. 39)
leciona que:
o condenado não pode privar-se do contato com sua família, um
elemento de ressocialização indispensável no cumprimento da
pena. Não importa a idade do jovem, no caso 16 anos; poderiam
ser crianças e teriam o direito de visitar o pai preso, assim como
este de receber os filhos.
Embora a visita tenha a dimensão de ressocializar tanto o pai quanto
a mãe em cumprimento de pena ou de medida socioeducativa de interna-
ção, o propósito ressocializador não pode se sobrepor ao melhor interesse
da criança e do adolescente. Portanto, quando o exercício do direito à
visita não for favorável aos sujeitos de direito que têm prioridade absoluta,
é inconcebível que ele permaneça para atender apenas aos condenados,
ainda que genitores das crianças e adolescentes envolvidos.
Inexistindo condições adequadas para as visitas de crianças e adoles-
centes, tendo em vista a doutrina da proteção integral, deve-se optar por
afastar a infância e a adolescência de ambientes tão inóspitos como cadeias
e unidades de internação, ainda que a convivência familiar e comunitária
seja um direito fundamental consoante determina o ECA.
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Em um dos poucos textos que enfrentam diretamente a temática,
Machado (2014, Online) assinala:
[...] a autorização de entrada de crianças e adolescentes em estabe-
lecimentos provisionais deve ser analisada, levando-se em consi-
deração a condição peculiar dos menores como pessoas em desen-
volvimento.
E neste caso, a concessão de alvará autorizativo para que os meno-
res sejam expostos a um ambiente hostil, muitas vezes com instala-
ções carcerárias precárias, é extremamente prejudicial aos interes-
ses de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, uma vez
que viola frontalmente as suas dignidades.
Saliente-se, inclusive, que, muito provavelmente, o estabelecimen-
to prisional não tem condições de garantir a integridade física e a
necessária segurança dos menores, caso aconteça alguma irregu-
laridade disciplinar ou algum movimento subversivo dos presos.
Posicionando-se de maneira semelhante, Digiácomo (Online) pres-
creve:
mesmo em relação ao exercício de direito de visitas a familiares
privados de liberdade, aplica-se o princípio constitucional da prio-
ridade absoluta à criança e ao adolescente, pelo que, nestas oca-
siões, crianças e adolescentes deverão ter preferência de acesso a
seus familiares em detrimento dos demais (adultos) que compare-
çam ao local para mesma finalidade.
Em razão disso, tem-se verificado que, em algumas situações, os Tri-
bunais têm optado por impedir o ingresso de crianças e de adolescentes
em ambientes prisionais, ainda que esse pedido seja formulado pelo con-
denado (TJRS, 2013 apud FARIAS & SOUZA, 2019, p. 10):
A análise da conveniência do ingresso de crianças e adolescentes no
interior de estabelecimentos prisionais deve ser realizada caso a caso,
diante das peculiaridades de cada situação, com o intuito de verificar
a que ponto os choques oriundos do contato com aquela realidade
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podem afetar o desenvolvimento do menor. In concreto, é evidente
que o deferimento de tal medida é por demais prejudicial à criança,
na medida em que o agravante postula que uma menina de apenas
um ano de idade, sua neta, seja exposta a um ambiente hostil e pe-
rante inúmeros outros apenados, sendo de conhecimento público
as precárias instalações carcerárias e ausência de recintos adequados
para as visitas nos presídios. [...] AGRAVO DESPROVIDO. (Agra-
vo Nº 70053980009, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justi-
ça do RS, Relator: Isabel de Borba Lucas, Julgado em 15/05/2013)
(TJ-RS - AGV: 70053980009 RS, Relator: Isabel de Borba Lucas,
Data de Julgamento: 15/05/2013, Oitava Câmara Criminal, Data de
Publicação: Diário da Justiça do dia 14/06/2013)
Recentemente, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
(TJDFT) restringiu o direito de visita apenas aos genitores. Na ocasião, o
apenado requereu visitas do irmão, com 12 anos, mediante o argumento
de que o exercício de tal direito é garantido pela Constituição, além de
colaborar para o processo de ressocialização do preso, havendo benefícios
também para o visitante. Todavia, o TJDFT entendeu que o direito de
visitas do preso não é absoluto e ilimitado, muito menos recomendável
dadas as condições precárias do sistema carcerário. Além disso, a 2ª Turma
Criminal, responsável pelo julgamento, assentou que o direito de visita,
neste caso, é restrito, apenas, aos pais (DUTRA, 2020).
Ademais, devido à pandemia gerada pelo coronavírus, inclusive
por recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), as visitas
de crianças e adolescentes acabaram substituídas por televisitas (HO-
ROWITZ, CARDOSO & DALLEMOLE, 2020), apresentando um
modelo que pode ser uma possibilidade melhor do que o compareci-
mento a locais não recomendáveis, como são as cadeias e as unidades de
internação.
Acrescenta-se que as visitas de crianças e adolescentes não ocorrem
quando o apenado está inserido no Regime Disciplinar Diferenciado
(RDD), ou mesmo nos presídios federais, mediante resolução, o que tem
sido alvo de críticas (INSTITUTO ANJOS DA LIBERDADE, 2019)
por alguns grupos, os quais identificam tal postura como violadora de di-
reitos do condenado.
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Em síntese, por tudo o que foi apresentado, o conflito existente entre
o direito à visita do condenado à pena ou ao cumprimento de medida so-
cioeducativa de internação e o direito à visita da criança e do adolescente
merece ponderação, em cada caso concreto, à luz da doutrina da proteção
integral e do melhor interesse, pois a infância e a adolescência é que pos-
suem a prioridade absoluta e a necessidade de condições favoráveis ao seu
desenvolvimento.
Além disso, partindo do campo de pesquisa, muitas vezes as visitas
de crianças e de adolescentes são apenas instrumentalizadas por aqueles
que estão acautelados em prisões ou em unidades de internação, sem que,
de fato, exista uma repercussão positiva na conduta do condenado, que
expõe a criança ou o adolescente ao ambiente de privação de liberdade
apenas por ser um direito seu como preso ou socioeducando.
Por tudo isso, é imperioso que o direito à visita seja exercido con-
soante a proteção integral, visto que um tratamento adequado à criança
e ao adolescente submetida à condição de visitante já alcança, de modo
satisfatório, o apenado que, de fato, reconhece seu papel como genitor
ou genitora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, considerando as exposições feitas aqui, as quais sinalizam
problemáticas inseridas no contexto referente à condição de crianças e
adolescentes que exercem o direito de visitas em espaços caracterizados
pela privação de liberdade, é urgente olhar para esses sujeitos de direitos a
fim de que a proteção integral inerente aos direitos de crianças e adoles-
centes prevaleçam mesmo ante o desafio de estar em um ambiente, que
em si, não é adequado para crianças.
Os apontamentos ora apresentados ainda são tímidos dada a relevân-
cia do assunto, mas já refletem a dimensão do problema, e visam ecoar
voz aqueles que ainda estão silenciados, suportando institucionalizações,
situações vexatórias, violações em sua integridade física e psicológica,
e uma posição ainda acessória, embora a legislação apresente a absoluta
prioridade e a proteção integral como orientadores de todas as ações no
campo da infância e da juventude.
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Nessa seara, reitera-se a urgência de construção de pesquisas, deba-
tes e políticas públicas que propiciem que o direito aqui expresso possa
ocorrer de maneira respeitosa, acolhedora e cuidadosa. Afinal de contas,
a infração do(s) pais ou parentes não pode penalizar por tabela a criança e
o adolescente que deseje manter a convivência familiar e os laços afetivos.
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165
A AUDIÊNCIA DE APRESENTAÇÃO
DO ADOLESCENTE: A BANDEIRA
DAS GARANTIAS E A ANALOGIA AO
DIREITO PENAL APENAS QUANDO
CONVÉM
Jenifer Natasha Sodré Rodrigues46
O presente artigo debate as implicações da oitiva do adolescente na
audiência de apresentação para aplicação dos princípios da ampla defesa e
do contraditório, valendo-se da comparação com as garantias já aplicadas
no âmbito do Direito Penal brasileiro.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 atribui à
tríade: família, sociedade e Estado o dever de assegurar os direitos funda-
mentais das crianças e adolescentes. Nessa esteira, em vista das fortes co-
branças internacionais e inovação da Constituição pautada em uma nova
ótica que prioriza os direitos e garantias dos indivíduos, conhecida como
a “constituição cidadã”, fez-se necessária a normatização específica para
questões relativas as crianças e adolescentes, sendo criado o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) para sanar tais cobranças, completando
em 13 julho de 2020 trinta anos de vigência.
46 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará –UFPA. Pós-graduanda em Di-
reito Penal e Processo Penal pela Faculdade Legale. Atualmente trabalha como Assessora
Jurídica no Tribunal de Justiça do Estado do Pará-TJPA.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
O Estatuto trouxe uma série de normativas que versam sobre as
crianças e adolescentes em situações diversas, sejam direitos e garantias
mínimas, antes negligenciadas, sejam normativas de cunho protecionista
por tratar-se de pessoa em desenvolvimento, ou até mesmo normativas
acerca do procedimento de apuração em casos de o adolescente incorrer
em ato infracional, similar aos crimes e/ou contravenções penais aplicáveis
aos maiores de 18 (dezoito) anos.
Ao observar na prática questões acerca de atos infracionais e, pro-
pondo comparativos aos procedimentos criminais, foi possível perceber
contradições entre o véu de garantias constitucionais e a real aplicação, de
maneira específica no que diz respeito a ampla defesa e contraditório na
audiência de apresentação do adolescente.
1. A AUDIÊNCIA DE APRESENTAÇÃO E O DEPOIMENTO
DO ADOLESCENTE
A Constituição Federal de 1988, inspirada na ascensão do paradigma
democrático e das normas internacionais, consagrou a proteção integral47
da criança e do adolescente. Como norma específica, o Estatuto da Crian-
ça e do Adolescente-ECA (Lei 8.069/90) buscou pautar seus elementos
essenciais de forma a garantir o delineado pela constituinte de 1988.
A responsabilização de adolescentes em conflito com a lei, no Brasil,
está sujeita a um procedimento próprio – regulado pelo ECA – o qual
pressupõe o zelo pelo indivíduo, buscando a afirmação do devido pro-
cesso legal, bem como do contraditório e da ampla defesa da forma mais
universal possível. Tal procedimento previsto no ECA é resultado de uma
sucessão de normas e princípios advindos de diversas fontes do Direito e
afirmadas com a potencialização dessas, o que só foi possível pela constan-
te evolução do olhar dado às crianças e adolescentes, sob a ótica de normas
cada vez mais especializadas e moldadas à realidade do Brasil.
No cenário internacional acerca da responsabilização juvenil, bem
como das medidas tutelares como um todo, o avanço se deu em passos
47 Para Cavalcante (2008) trata-se de perspectiva que oferece para crianças e adolescentes
além da garantia dos direitos, em função de sua condição de seres humanos, também a pro-
teção dos direitos a ela pertinentes em virtude de sua condição de indivíduo em processo
de desenvolvimento.
167
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
curtos, sendo inicialmente delineado de forma geral com a internaciona-
lização dos direitos humanos.
Em 1924, a International Save the Children Union48 elaborou a De-
claração de Genebra dos Direitos da Criança, depois adotada pela Assem-
bleia da Liga das Nações.Tal declaração, contudo, não obteve o pleno re-
conhecimento internacional dos direitos da criança, pois não se tratou de
uma declaração de países, mas de indivíduos (SOUZA; ALBUQUER-
QUE; ABOIM, 2019).
A percepção da importância dos direitos humanos propriamente di-
tos teve seu primeiro ponto de afirmação com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos - DUDH (1948), em um contexto pós-segunda guer-
ra, em resposta as atrocidades desta, que traçou o novo panorama acerca
das necessidades humanas eminentes.
Posteriormente, surge a Declaração dos Direitos da Criança (1959),
pela Organização das Nações Unidas (ONU). Neste documento se rea-
firma a importância da garantia à universalidade, objetividade e igualdade
de direitos, colocando as crianças como sujeitos de direitos e detentores
de prioridade absoluta.
Ulteriormente, as Regras Mínimas das Nações Unidas para admi-
nistração da justiça e da juventude, também conhecidas como Regras de
Beijing (1985), apesar de não ratificadas pelo Brasil, foram de suma im-
portância para a ascensão do ECA. Tais regras surgiram para resguardar
os direitos humanos fundamentais das crianças e adolescentes em come-
timento de atos infracionais, trazendo um panorama de tutela e garantias
básicas no decorrer do procedimento, tal qual se daria no processo penal
aplicado aos maiores de idade.
Nesse viés, adentramos no documento mais importante do reconhe-
cimento internacional dos direitos das crianças, qual seja a Convenção
Internacional sobre os Direitos das Crianças (1989). Tal dispositivo foi
ratificado por 196 (cento e noventa e seis) países, tornando-se o instru-
mento mais aceito da história.
A Convenção fez com que vários dos países que a ratificaram incor-
porassem na sua legislação nacional estatutos sobre o tema e efetuassem
reformas jurídicas baseadas em seus dispositivos. Reconhecendo em seu
48 Organização não governamental inglesa.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
preâmbulo a importância da cooperação internacional para a melhoria das
condições de vida da criança e acaba por reunir todos os avanços anteriores
em um mesmo documento. Dessa forma, as crianças passam a ser vistas
como titulares de direitos universalmente reconhecidos que devem ser ga-
rantidos tanto pelo Estado, como pela família ou, ainda, pela sociedade
como um todo (MACIEL, 2018).
Todos esses instrumentos serviram como base ao Estatuto da Criança
e do Adolescente da forma que vemos hoje (MACIEL, 2018). É possível a
percepção de que a evolução histórica internacional e nacional caminha-
ram paralelamente a ascensão garantista49 como se apresenta atualmente.
Paralelamente ao desenvolvimento internacional o Brasil perfi-
lhou por uma linha histórico-normativa que levou o direito da infân-
cia e juventude à ascensão de uma nova ordem de proteção dos direitos
da criança e do adolescente. Para Ishida (2019, p.23) “O Estatuto da
Criança e do Adolescente perfilha a “doutrina da proteção integral”
baseada no reconhecimento de direitos especiais e específicos de todas
as crianças e adolescentes”, assim, rompendo a anterior ordem meno-
rista que vigia, ou seja, quando estes eram observados não como deten-
tores de direitos e de tratamentos especializados, “a categoria ‘menor’
é construída então para designar a criança objeto da justiça e da as-
sistência, tornando-se o alvo das políticas de internação” (RIZZINI;
RIZZINI, 2004, p. 68).
A Constituição Federal de 1988, no contexto nacional, contribuiu
de forma essencial à nova configuração do direito da infância e juventu-
de. Sposato (2013) considera que na CF/88 foi adotada a roupagem de
bem-estar social, que reconfigura toda a ordem normativa a ser criada,
tendo em vista que se verifica a necessidade de acompanhar a modernida-
de da constituição, a fim de esta ser hierarquicamente o topo da pirâmide
normativa, servindo como espelho para as demais normas. Assim, resta
entender que o ECA deverá guiar-se de acordo com as normas constitu-
cionais já adotadas.
49 Para Ferrajoli (2002) a teoria garantista se pauta em um modelo normativo de direito
dotado de garantias que lhe tragam racionalidade, rompendo vícios teoricos e práticos do
sistema.
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1.1. A audiência de apresentação enquanto inovação
A audiência de apresentação no âmbito do Direito da infância e
juventude faz jus a um estudo mais aprofundado em vista de suas sin-
gularidades enquanto instituto jurídico moderno na legislação brasi-
leira como um todo. Tal ato procedimental adveio de uma construção
internacional e nacional que buscou formas para adequar a questão
processual ao indivíduo em desenvolvimento que goza de garantias e
direitos singulares. Esse instituto é uma inovação no ordenamento ju-
rídico brasileiro, havendo minúcias a serem analisadas acerca desta e
merece uma análise acurada.
Diante do oferecimento da representação pelo Ministério Público,
bem como o seu devido recebimento, o juízo deverá designar audiência
de apresentação desde logo. Neste momento o adolescente e seus respon-
sáveis serão cientificados do procedimento de apuração do ato, bem como
da data da audiência de apresentação, onde deverão comparecer acompa-
nhados de advogado ou defensor público.
Em caso da não localização dos responsáveis, deverá o juiz nomear
curador especial e, caso o adolescente também não seja localizado, de-
verá haver a expedição de mandado de busca e apreensão deste. No
caso de adolescente em medida de internação, será requisitada a pre-
sença à instituição na qual se encontra. Em caso de ciência da data de
audiência e não comparecimento, o juiz deverá redesignar a audiência,
e proceder a determinação da condução coercitiva, expedindo-se o
mandado respectivo.
O ECA adotou a socioeducação como forma sancionatória do proce-
dimento do ato infracional, a prima face, a audiência de apresentação do
adolescente visa a análise célere do ocorrido, para dispor sobre as medidas
que serão tomadas acerca deste, vislumbrando sempre o melhor interesse
do tutelado.
Outro ponto importante e peculiar da audiência de apresentação se
mostra na possibilidade de remissão judicial nos casos em que a autorida-
de judiciária assim entender, ouvindo também o entendimento do repre-
sentante do Ministério Público. Esta se difere da remissão oferecida pelo
Ministério Público.
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A remissão se apresenta como uma espécie de “supressão do processo
de conhecimento com instauração de um processo de execução, quando
composta medida socioeducativa, ou a suspensão do processo de conhe-
cimento, até que cumpra a medida aplicada, se já instaurado aquele” (SA-
RAIVA, 2007, p. 26), desta feita, retorna-se nesse ponto a possibilidade
de efetuar a remissão, sendo solução preferencial nos moldes do disposto
no item 1150, das Regras de Beijing.
1.2. A oitiva das partes no CPP e no ECA
1.2.1. Da inquirição das testemunhas e do réu no
processo penal
O Código de Processo Penal - CPP, ao tratar da instrução criminal,
apresenta como regra a audiência de instrução (audiência una, em con-
traste ao procedimento do ato infracional). Diante da reforma no CPP
ocorrida em 2008, levou-se em consideração a necessidade de se proceder
a oitiva do acusado em último ato.
Dessa forma, o art. 40051 do CPP dispõe sobre a ordem que serão pro-
cedidas as oitivas das partes, sendo de forma inicial coletada as declarações
do ofendido, posteriormente a inquirição das testemunhas arroladas pela
acusação e pela defesa, respectivamente, bem como esclarecimentos de
peritos, em caso de necessidade, acareações e reconhecimento de pessoas
e/ou coisas e, por fim, o interrogatório do acusado.
A ordem disposta no art. 400 do CPP importa ao acusado forma de
garantir sua defesa no ato processual em questão, acerca disso Lewan-
dowski (2011 apud HAIDAR, 2011, n.p.) dispõe:
Possibilitar que o réu seja interrogado ao final da instrução, depois
de ouvidas as testemunhas arroladas, bem como após a produção
50 Item que trata sobre os aspectos da remissão.
51 Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de
60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das
testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no
art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reco-
nhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
de outras provas, como eventuais perícias, a meu juízo, mostra-se
mais benéfico à defesa, na medida em que, no mínimo, conferirá
ao acusado a oportunidade para esclarecer divergências e incon-
gruências que, não raramente, afloraram durante a edificação do
conjunto probatório.
Assim, a obediência a uma ordenação lógica garante ao réu utilizar-se
de sua garantia ao contraditório, bem como esgotar suas formas de defesa
diante do que lhe foi disponível, reforçando o princípio da ampla defesa
no processo penal.
1.2.2. Da oitiva das partes no procedimento de
apuração do ato infracional
No procedimento de apuração do ato infracional na fase judicial, a
oitiva das partes é realizada em dois momentos diferentes. Desta forma,
a primeira etapa consiste na audiência de apresentação do adolescente em
conflito com a lei que, em síntese, começa a se delinear após o recebimen-
to da representação pelo juiz da infância e juventude.
Neste ato do procedimento, em caso de internação provisória do ado-
lescente, deverá o juiz decidir acerca da manutenção ou não da internação.
No ato de comparecimento do adolescente e seus responsáveis o juiz ini-
ciará as oitivas destes para assim efetivar sua decisão preliminar, podendo
até chamar ao feito profissionais da equipe especializada e/os técnicos da
unidade em caso de internação provisória.
Percebe-se assim a relevância do instituto. Rezende (2012) aduz
que a primeira importância a tratar é o encontro entre o adolescente em
conflito com a lei e o juiz que a partir de sua análise irá decidir sobre o
ocorrido, atribuindo a este o caráter de “momento singular” na vida
deste adolescente.
A segunda etapa dessa oitiva dá-se após a audiência de apresentação.
Essa, sendo de continuação, que, em analogia ao processo civil, corres-
ponderia a audiência de instrução e julgamento (ISHIDA, 2019). Nesse
momento, serão ouvidas as testemunhas arroladas na representação e pela
defesa, respectivamente, bem como a juntada do relatório psicossocial da
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
equipe multidisciplinar e, em seguida, aberto o momento de apresentação
das alegações finais orais pelo parquet e defesa.
1.3. A audiência de apresentação e o direito à ampla
defesa e ao contraditório
Nesse panorama, faz-se importante questionar se a audiência de
apresentação do adolescente corresponde aos princípios constitucionais
e se este ato garante ao adolescente o devido processo legal e o acesso
ao contraditório e a ampla defesa tal qual o aplicável aos imputáveis no
processo penal.
Em que pese não poder ser julgado em audiência una, em vista da
Súmula 34252 do STJ, deve-se atentar a outras violações que podem in-
cidir na audiência de apresentação, qual seja a oitiva do adolescente e seu
concreto interrogatório sem que lhe sejam dados os direitos de ouvir as
testemunhas e vítimas do processo.
Devemos, assim, fazer o paralelo com o processo penal adotante do
mesmo sistema acusatório que baseia o estatuto em pauta: a ordenação das
oitivas.
1.3.1. Do momento processual da oitiva do adolescente
Enquanto no processo penal o acusado apenas presta suas declarações
perante o juízo em último ato da instrução, no procedimento de apuração
do ato infracional este se faz como ato primeiro. O adolescente acusado de
incorrer em ato infracional presta suas declarações antes mesmo de qual-
quer outra oitiva, recaindo em uma clara violação do princípio do contra-
ditório, tendo em vista que mesmo que este possa contrariar as provas que
virão a ser produzidas no futuro, neste primeiro momento não temos de
forma objetiva todo o arcabouço probatório do procedimento.
A produção acadêmica acerca do procedimento do ato infracional é
bem escassa em comparação a outras áreas do Direito, por esse motivo,
pouco se fala das particularidades da audiência de apresentação. Durante
a pesquisa foram observadas diferentes perspectivas acerca do momento
52 “No procedimento para aplicação de medida socioeducativa, é nula a desistência de
outras provas em face da confissão do adolescente.”
173
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
processual em que se realiza a oitiva do adolescente. A primeira linha se
sustenta na necessidade para fins de conhecimento do acontecido e prová-
vel remissão, sendo o entendimento de Liberati (2011, p. 189) que:
A audiência de apresentação é momento de defesa do adolescente
e de fundamental importância para que o juiz possa aferir as carac-
terísticas da personalidade do adolescente, sua situação familiar e
social, a extensão e a gravidade do ato infracional praticado.
Na mesma linha, Ishida (2019, p. 590) pontua a realização da oitiva do
adolescente em momento anterior as testemunhas, entendendo que “nota-
-se a imprescindibilidade da oitiva do adolescente ser ato inicial em razão da
possibilidade do §1º do artigo 186. Nesse caso, procedida a oitiva, é possível
a concessão de remissão judicial”, entendimento este que sobrepõe a possi-
bilidade de remissão judicial as garantias constitucionais previstas.
De outra ótica, observa-se como prioridade as garantias constitucio-
nais do adolescente de um modo mais amplo, a serem observadas no pro-
cedimento de apuração em análise, “no momento processual da autodefe-
sa do adolescente, impera destacar ponto-chave no processo penal juvenil,
o qual merece especial atenção no que tange à ampla defesa – o direito à
última palavra” (GIACOMOLLI; SCHNEIDER, 2017, p. 278). Ainda
sob a perspectiva de Giacomolli e Schneider (2017, p. 279) acerca da oitiva
do adolescente em ato primeiro:
Ao adolescente é negado o direito de exercer a sua autodefesa, vez
que a efetividade da defesa pessoal exige o deslocamento do in-
terrogatório ao último ato da instrução processual, independente-
mente de sua previsão em outro momento processual, em leis es-
peciais (como o Estatuto da Criança e do Adolescente), anteriores
à reforma processual de 2008, em face da concretude atingida pelo
interrogatório do réu, na previsão legislativa ordinária.
A possibilidade de depor em momento posterior ao acesso de todas
as provas colhidas fornece ao acusado respaldo de um processo dotado de
garantias constitucionais em sua plenitude. Mello (2011, p. 03) no HC n°
107.795/SP, aduz que:
1 74
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Sabemos que a reforma processual penal estabelecida por legisla-
ção editada em 2008 revelou-se mais consentânea com as novas
exigências estabelecidas pelo moderno processo penal de perfil de-
mocrático, cuja natureza põe em perspectiva a essencialidade do
direito à plenitude de defesa e ao efetivo respeito, pelo Estado, da
prerrogativa ineliminável do contraditório.
Logo, a questão da oitiva do acusado no processo penal em último ato
pode ser caracterizada como uma conquista de valor legal incomparável.
A Lei nº 11.719/2008, conhecida como a “Reforma do Código de Pro-
cesso Penal”, ao reformular o ritual nos procedimentos penais, absorve
para si questões essenciais ao processo, positivando garantias que ao tempo
da primeira redação do Código de Processo Penal (1941) não eram leva-
das em consideração “instauração de contraditório prévio, apto ensejar,
ao acusado, a possibilidade de arguir questões formais e de alegar tudo o
que possa interessar à sua defesa (...) sem prejuízo de outras medidas ou
providências que repute imprescindíveis” (MELLO, 2011, p.03).
Pode-se inferir que a oitiva do adolescente em último ato, tal qual se
procede no processo penal, obtém status de garantia constitucional, que,
contudo, não fora acolhida pelo Estatuto. Por esse motivo, faz-se necessá-
rio olhar o procedimento de apuração do ato infracional pelo plano cons-
titucional, adequando as impropriedades deste de forma que mantenha e
reafirme sua característica principal como norma: a proteção de direitos e
garantias ao indivíduo em desenvolvimento.
Nesse contexto, para justificar a aproximação das regras processuais
do Direito Processual Penal e do Direito da Infância e Juventude, Kon-
zen (2003) invoca o “princípio da discriminação positiva” 53, colocando-o
como medida necessária para delimitar e ao mesmo tempo aproximar o
sistema de responsabilidade penal destinado ao adolescente e o sistema de
responsabilidade penal destinado ao adulto.
Nessa mesma esteira, Saraiva (in ILANUD, 2006, p. 183), ao con-
siderar que os adolescentes “têm todos os direitos dos adultos que sejam
compatíveis com a condição de peculiar pessoa em desenvolvimento que
53 Tratamento diferenciado para aqueles que, por motivos étnicos, sociais ou históricos não
gozam das mesmas prerrogativas que os demais, necessitando de um tratamento diferen-
ciado, sem prejudicar terceiros, para que dessa forma seja atingida a igualdade plena.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
ostentam”, reforça o entendimento de que, ao privar ou relativizar as ga-
rantias que já foram conquistadas no âmbito do direito penal e processual
penal causa-se prejuízo e não faz jus ao sistema garantista adotado pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ao apresentar o paralelo ao processo penal, observa-se a relativização
dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório em face
do adolescente.
O Ministério da Justiça realizou pesquisa quantitativa dos processos e
audiências nas Varas da Infância e da Juventude em Porto Alegre, São Pau-
lo, Salvador e Recife acerca da confissão do adolescente na audiência de
apresentação, concluindo que “É expressivo e impressionante o número
de adolescentes que confessam por ocasião da audiência de apresentação,
88,89%, em Recife, 80%; em Salvador, 64,29%, em São Paulo, mas ape-
nas 9,09% em Porto Alegre” (BRASIL, 2010).
Dessa forma, mesmo diante Súmula 342, o caráter do contraditório e
da ampla defesa ainda se mantem em contraste ao ato procedimental. Não
são consideradas as condições nas quais este adolescente realizou a confis-
são, em vista do próprio arcabouço probatório restar insipiente no momen-
to procedimental de sua oitiva. Ademais, cabe revisitar Rezende (2012, p.
198) “pode confessar por insegurança, por medo, diante das autoridades às
quais ele se apresenta. Uma das maiores violências que se podem cometer
com o adolescente é responsabilizá-lo pelo que não fez”. Considera-se a
confissão como um território tormentoso e que necessita de ampla observa-
ção. Vale salientar que, como aponta Giacomolli e Schneider (2017, p. 283):
Não se busca, de forma alguma, afastar o caráter especial da nor-
mativa estatutária, com mera apropriação de preceitos do direito
penal tradicional. Os princípios da proteção integral, do superior
interesse da criança e da condição peculiar de desenvolvimento de-
vem sempre guiar a construção do direito penal juvenil.
Tal entendimento refutado por Giacomolli e Schneider (2017) con-
trasta a tese de que a absorção de preceitos penais atingiria a “legitimida-
de” do ECA como norma específica. De Paula (in ILANUD, 2006, p.
35) defende que “um sistema diverso não prescinde da incorporação das
conquistas e resultados positivos de outros, mais antigos”.
176
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
No procedimento de apuração do ato infracional, por vezes, percebe-
-se a influência do Direito Penal de forma subsidiária, seja para especificar
analogias do tipo infracional e a própria conceituação de infração, seja para
determinar questões procedimentais, por exemplo o tempo prescricional
que é aplicado tal qual demonstrado no Código Penal, não havendo mo-
tivos que afastem outras garantias sob a alegação de afastamento do viés
punitivista.
Diante de todo o percurso da pesquisa, houve a tentativa de mostrar
a disparidade entre o tratamento, no que diz respeito as garantias, do im-
putável e do adolescente em conflito com a lei, o que vai de encontro com
o disposto na Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
– Sinase54 –, no inciso I de seu artigo 35: “legalidade, não podendo o ado-
lescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto”.
Gonçalves (2017, p. 58) pontua acerca dessa supressão de garantias:
Esse direito é negado ao adolescente sob a frágil alegação de que o
procedimento de apuração de ato infracional é legislação especial
e por isso deve ser respeitado o seu rito. No entanto, é preciso
recordar que o adolescente tem direito a proteção integral de seus
interesses e concretização de todos seus direitos fundamentais, por
força de norma constitucional.
Diante do demonstrado, denota-se que há um conjunto de garantias
ímpares fornecidos à criança e ao adolescente, contudo, mesmo diante dos
avanços normativos, doutrinários e jurisprudenciais, ainda se observam
evidências de que o adolescente está sendo submetido a consequências
mais severas do que se adulto fosse (KONZEN, 2003).
Assim sendo, torna-se necessário questionar a forma que está sendo
procedida a oitiva no procedimento do ato infracional, levantado o de-
54 Lei que regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente
que pratique ato infracional; e altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da
Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de
1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14
de setembro de 1993, os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de
janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
177
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
monstrado conflito com as garantias e princípios constitucionais já apli-
cadas ao CPP.
As alegações que pautam a imprescindibilidade da oitiva do adoles-
cente em ato inaugural da audiência de apresentação em vista da possibili-
dade da remissão pelo juízo da infância podem ser rebatidas por considerar
apenas perspectiva de uma possível concessão em detrimento de condições
processuais principiológicas acerca da ampla defesa e do contraditório.
Por mais que haja tal possibilidade, sustentar esse ato na frágil alega-
ção de possibilidades se faz absurdamente inconcebível. Resgata-se o fato
de em ato de apresentação ao MP houvera a mesma oitiva acerca dos fatos
ocorridos e mesmo diante da possibilidade não houve o convencimento
do membro ministerial, que atua como tutor de direitos desse adolescen-
te, recaindo assim na fase judicial.
É necessário adequar o procedimento aos princípios e conquistas ga-
rantistas. Inferir uma “solução milagrosa” no momento levaria a presente
pesquisa a um campo de argumentos falaciosos – podendo se estender
a futuros estudos – contudo, na produção acadêmica que versa sobre o
procedimento do ato infracional, podemos encontrar críticos de partes do
modelo que estendem a possibilidade de outras formas de delinear esse ato
procedimental.
Carvalho (2018) aponta que há a possibilidade de remissão a qual-
quer momento anterior a sentença, mesmo assim, como “solução” ao
questionamento da imperiosa necessidade pela remissão, diante do prin-
cípio do melhor interesse da criança e do adolescente, poderia ocorrer
em momento primeiro uma oitiva que se restringe a questões pessoais
do adolescente, ou seja, afastando o mérito desse ato inicial, garantindo
a possibilidade de inversão das oitivas, sem afastar a remissão desse mo-
mento processual.
Ainda, considerando a remissão como ato importante do processo,
podemos “importar” uma recente configuração do Direito Processual
Penal – o que sugere a forma embrionária da mudança, não tendo assim
pesquisas concretas a serem apontadas no Direito da Infância e Juventude
– o chamado “Juiz de Garantias”, que de acordo com Maya (2018, p.76):
A figura do juiz das garantias, sob essa perspectiva, ao estabelecer a
competência para julgamento a magistrado distinto do que atuou
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na investigação, contribui à maximização da garantia da imparcia-
lidade, proporcionando que a fase processual destinada à produção
probatória se desenvolva perante um juiz isento de “pré-juízos”,
em condições de assegurar às partes tratamento igualitário e, ao
réu, compatível com a presunção de inocência.
Esse instituto, no que diz respeito ao procedimento de apuração do
ato infracional, traria a possibilidade de, em primeiro momento, a oitiva
do adolescente ser efetuada por um juiz diverso do que guiará o processo,
criando-se uma nova etapa/ato procedimental a garantir a possibilidade de
remissão no início da fase judicial.
Outra possibilidade abordada por Barbosa (2009) e Orthmann (2015)
é adoção da audiência una no procedimento de apuração, deixando de
haver a segregação dos atos e concentrando-os em um ato único. Adotar
a audiência de forma una sanaria os questionamentos dos defensores da
necessidade, mesmo que levante novos debates, o que se espera em vista
do viés dialético da pesquisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A audiência de apresentação do adolescente ao realizar a oitiva deste
em ato primeiro contrasta os princípios e garantias constitucionais já con-
sagrados, não garantindo a possibilidade da ampla defesa e contraditório
em vista de ocorrer antes mesmo da reunião de todas as provas do pro-
cesso, indo de encontro com o já balizado pelo entendimento relativo ao
tratamento dispensado aos adultos que gozam da prerrogativa de ter sua
oitiva em último ato processual, de forma a garantir pleno conhecimento
das provas, bem como a possibilidade de refutá-las.
Vale resgatar que, conforme pontuado na pesquisa, o fator “parale-
lo ao Direito Processual Penal” não apareceu para sobressair a legislação
específica da infância e juventude, mas com intuito de demonstrar que o
CPP necessitou de modificações de forma a (re)moldar suas normativas
para atingir o viés garantista trazido pela constituinte de 1988, resgatando,
nesse ponto, a citação de Paula (in ILANUD, 2006, p. 35) reforçando
que “um sistema diverso não prescinde da incorporação das conquistas e
resultados positivos de outros, mais antigos”.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
O procedimento do ato infracional peca a não se atentar às minú-
cias do procedimentais de forma a ser o mais benéfico possível diante do
tratamento de um sujeito de direitos e garantias em condição peculiar de
desenvolvimento. Devemos reconhecer os avanços normativos no campo
da infância e juventude, contudo, faz-se imprescindível a readequação dos
pontos ainda negligenciados pela legislação, apenas assim poderemos atin-
gir o mais próximo do ideal garantista.
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VIOLAÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS – INFÂNCIA E
JUVENTUDE
Filiciana Ferreira Silva
INTRODUÇÃO
A violação de direitos fundamentais de crianças e adolescentes é um
problema presente desde o início da civilização humana, mesmo antes de
tais questões serem entendidas como direitos, sendo experenciada em de-
terminados momentos, até mesmo, como aceitável pela sociedade.
Essas violações de direitos envolvem viol ência física e psicológica,
tanto em ambientes familiares como fora desses contextos, exposição à
trabalho infantil, abandono, abuso sexual, infanticídio, negligência, vio-
lência patrimonial, Bullying, tortura e violência institucional.
É observado que violências sofridas por crianças e adolescentes par-
tem da família, sociedade e Estado, e vai adquirindo novas formas confor-
me as mudanças sociais e culturais vão ocorrendo.
Historicamente, a violação de direitos de crianças e adolescentes, so-
bretudo a violência, sempre esteve relacionada com o processo de edu-
cação, um problema histórico-cultural que vem percorrendo todas as
décadas até o século atual, entretanto, as manifestações desses processos
ocorrem de diferentes formas de expressão, adaptando-se de acordo com
os conceitos sociais e suas transformações.
Atualmente, vive-se o século em que mais a criança possui visibilida-
de se comparado com épocas anteriores, no entanto, apesar dessa valoriza-
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
ção da criança pela sociedade e da criação de políticas públicas de proteção
e cuidado, a violência e os maus-tratos infantil permanecem presentes em
várias culturas, perpetuada de geração em geração como símbolo de edu-
cação, reparação e realização de impulsos perversos, como, por exemplo,
a violência sexual.
1. VIOLAÇÃO DE DIREITOS À CRIANÇAS E
ADOLESCENTE – UMA RETOMADA HISTÓRICA
Os abusos contra a população infanto-juvenil possuem registros nos
livros mais antigos da história da humanidade, como, por exemplo, a Bí-
blia e o Alcorão, que relatam histórias em que crianças eram oferecidas em
nome da fé como sacrifício para agradar a Deus.
Nas civilizações antigas, era natural os maus-tratos contra crianças
e, por muitas vezes, visto como necessário a algumas crenças que regiam
àquelas sociedades culturais. Crianças que nasciam com deficiências físi-
cas eram assassinadas em virtude dos defeitos físicos que apresentavam, se
fazendo presente o infanticídio, em algumas regiões eram considerados
como enviados do diabo.
Veyne (1989), discorrendo sobre a Roma antiga, complementa que o
infanticídio e o abando de crianças era algo comum, cabia ao pai aceitar ou
não o filho, as crianças que fossem rejeitadas ao nascerem eram deixadas
nas frentes de suas casas para serem descartadas ou acolhidas por quem
tivesse interesse, esse processo é semelhante ao descarte de lixo que ocorre
na sociedade atual. As causas dos abandonos eram diversas.
No Brasil, por volta do século XVII, o abandono de crianças ocorria
através de diversas formas, sendo a mais comum delas por meio da Roda
dos Expostos. Esse método era originário da Europa e foi instalado pelo
Jesuítas para prevenir que as crianças continuassem a serem abandonadas
nas ruas, suscetíveis a morrerem de diversas formas, inclusive sendo devo-
radas por animais.
A Roda dos Expostos foi instalada na frente de conventos e orfanatos,
garantindo o anonimato para quem estivesse abandonando a criança, o
aviso era dado através de um sino que deveria ser acionado como sinal de
aviso se que chegara mais uma criança. Esse método foi implantado na
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Bahia, em 1726, no Rio de Janeiro, em 1738 e em São Paulo, em 1825,
tendo sido utilizado até o final do século XIX (TRINDADE, 1999).
Em uma matéria publicada no jornal “O Globo”, em junho de 2015,
noticia a respeito de uma descoberta arqueológica de várias ossadas de
crianças encontradas em um poço localizado na cidade de Atenas, indi-
cando serem de crianças ainda recém-nascidas, na época da antiguidade
clássica, as causas das mortes foram apontadas como sendo de origem na-
tural e algumas sendo por maus-tratos.
Desde os primórdios da história da civilização humana, as violências
cometidas contra crianças e adolescentes acontecem no ambiente familiar,
contrariando o entendimento de que a família protege e zela pelo o bem-
-estar desse público.
Philippe Ariès (1981) em suas pesquisas sobre as concepções do que
era a infância no século XII, conclui que essa fase do desenvolvimento
humano não possuía lugar naquela sociedade pela falta de representações
de imagens de crianças, tendo em vista que a alta taxa de mortalidade da
época dificultava o vínculo entre adultos e crianças.
Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tives-
se sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena.
No primeiro caso, a infância era apenas uma fase sem importância,
que não fazia sentido fixar na lembrança; no segundo, o da criança
morta, não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo
fosse digna de lembrança: havia tantas crianças, cuja sobrevivência
era tão problemática. O sentimento de que faziam várias crianças
para conservar apenas algumas era e durante muito tempo perma-
neceu forte [...] As pessoas não podiam se apegar muito a algo que
era considerado uma perda eventual (ARIÈS, 1981, p. 21-22).
O autor ressalta, ainda, que nesse período as diferenças entre adultos
e crianças eram somente em relação ao tamanho e força física, pois com o
mínimo de independência adquira já eram postas ao trabalho, como forma
de garantirem o sustento da família.
As representações da figura de ser criança sofreram várias metamorfo-
ses ao longo dos séculos. No século XV, passou a representar esperança de
dias melhores através do reconhecimento da inocência e da ingenuidade
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presentes na criança. No entanto, os maus-tratos continuam a ocorrerem,
sobretudo nos colégios que abrigavam crianças pobres, sem famílias e in-
desejadas pela sociedade.
O século XVI foi marcado por agressões e violências contra crianças
e adolescentes, em virtude da criação dos “colégios” que tinham como
fim abrigar e acolher o público infantil pobre e sem família, crianças que
eram rejeitadas pela sociedade e foram submetidas a todos os tipos de vio-
lências e humilhações. No século XVII, a imagem da criança passou a ser
simbolizada como uma força do mal, um ser imperfeito ligada ao pecado
original.
No final do século XIX, na Inglaterra, surge o início da exploração
da força de trabalho infantil, com crianças de idades entre quatro e oito
anos, sendo exploradas em jornadas de trabalho de até 16 horas diárias, os
trabalhos eram divididos entre as fábricas e as minas de carvão, de acordo
com a idade e o porte físico de cada criança.
Essa exploração do trabalho infantil, esteve muito presente nas fábri-
cas, no período da revolução industrial, as crianças eram alugadas pelas
fábricas desde os nove anos de idade para produzirem e, para que não fu-
gissem tinham suas pernas acorrentadas às máquinas. Eram tratadas como
se fossem objetos, sem subjetividade, desejo, singularidade e sem necessi-
dades físicas e emocionais.
Somente no século XX, a criança passa a ser vista e exaltada como
sujeito humano, de desejo e direitos, que careciam de cuidados maternos,
sendo atribuída à família o cuidado e o zelo físico e emocional com este
público e, nesse período, a família passa a ser responsável por eventuais
malfeitos que acontecessem à criança. Nesse período a sociedade passa a
enxergar a infância como o período essencial do desenvolvimento huma-
no e a contribuição desse período na vida adulta, embora nunca tenham
cessado os maus-tratos.
Segundo Ariès (1981), nesse período surge o denominado “senti-
mento da infância”, que segundo o autor faz referência com o afagar da
criança, passando a serem vistas como dóceis e afetuosas, transformando-
-se em entretenimento para os adultos.
Neto (2010) pontua que na época colonial, o Brasil teve suas primei-
ras concepções sobre o que configurava a infância trazidas pelos missioná-
rios Jesuítas. Os missionários atribuíam às crianças a pureza da figura do
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menino Jesus, no entanto suscetíveis a serem corrompidas com as ações
dos adultos, e por isso as crianças deveriam, antes de atingirem a idade
adulta, passarem pelos os ensinamentos da catequese.
A puberdade era entendida como o momento da passagem da ino-
cência original da infância à idade perigosa do conhecimento do
bem e do mal, em que a criança assumiria o comportamento do
adulto (NETO, 2010, p. 105).
Em 1924, ocorreu o primeiro ato internacional em defesa dos direitos
da criança e do adolescente, a Declaração de Genebra que, foi aprovada
pela Assembleia da Liga das Nações com a finalidade de promover ações
de proteção à criança e a abolição do trabalho escravo, o que não teve
efetividade.
Em 1927 foi criado o Código de Menores no Brasil, foi a primeira lei
direcionada para a infância e juventude, com um aspecto bastante negati-
vo e que está presente até os dias atuais, esse código tratava como “menor”
crianças e adolescentes pobres que viviam em situação de abandono, de
miséria e de infração. Essas crianças e adolescentes eram estigmatizadas
como suscetíveis a se tornarem marginais e por isso o Estado era o respon-
sável por cuidar para que isso não ocorresse.
Frota (2007) realiza diversas críticas ao Código de Menores, pon-
tuando os maus-tratos e os diversos tipos de violência que essas crianças e
adolescentes sofriam com a permissão e através do Estado.
O “menor” foi entregue à alçada do Estado, que tratou de cuidar
dele, institucionalizando-o, submetendo-o a tratamentos e cuida-
dos massificantes, cruéis e preconceituosos. Por entender o “me-
nor” como uma situação de perigo social e individual, o primeiro
código de menores, datado de 1927, acabou por construir uma ca-
tegoria de crianças menos humanas, menos crianças do que as ou-
tras crianças, quase uma ameaça à sociedade (FROTA, 2007, p.2).
É bem comum, ainda nos dias atuais, serem feitas referências à ado-
lescentes em conflito com a lei como “de menores”, termo que é inapro-
priado desde a concepção do ECA, em virtude de ser um modo de estig-
matização com esse público.
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Em 1940, o Código de Menores sofreu alterações e foi substituído
pelo o Código Penal da época, determinado a maioridade penal para 18
anos. Em 1942 é criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), com o
propósito de acolher crianças e adolescentes pobres, abandonados e infra-
tores, recebendo ensinamentos repressivos (PAES, 2013).
O SAM atuava com os mesmos propósitos de um sistema penitenciá-
rio, separando os adolescentes abandonados dos que haviam cometidos al-
gum tipo de infração, esse sistema possuía um caráter opressor e arbitrário,
era mais uma forma de violência cometida pelo o Estado contra crianças
e adolescentes.
O SAM foi extinguido em 1964 e foi substituído pela Fundação Na-
cional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), resultando, mais tarde,
na criação da Fundação Estadual para o Bem- estar do Menor (FEBEM),
embora essas instituições tenham sofrido mudanças nas referências, a fi-
nalidade autoritária e opressora permeava desde sempre, resultando em
maus-tratos e em ações repressivas moralistas permitidas e aprovadas pela
sociedade da época.
É necessário destacar: no RPM, desde a década de 60 [...] os meni-
nos chegavam na recepção e ficavam em jaulas/gaiolas/ “espécie de
engradado”; o que também ocorria no Hospital Psiquiátrico Vera
Cruz em SP na década de 70 para onde eram encaminhados me-
ninos da FEBEM considerados portadores de distúrbios psiquiá-
tricos. A PM fazia todo o serviço (administrativo e de vigilância),
a disciplina era de quartel, a recepção dos meninos era através de
“bolos” e surras de fio de telefone; os espancamentos eram com
borracha de pneu de caminhão. Nas palavras do Luiz “o ato dos
PMs era tão conscientemente e criminoso, que procuravam bater
apenas onde não ficassem marcas duradouras. As palmas das mãos
e as plantas dos pés. Só quando a vítima não se submetia àquele
tipo de tortura é que eles batiam às queimas. E, tínhamos pavor das
surras às queimas...só hoje (30 anos depois) sei que é muito mais
fácil suportar uma surra geral do que sofrer tortura”. Quando ba-
tiam demais e deixavam marcas, escondiam da família no castigo –
cela forte – e só saía quando as marcas sumiam. ... e, também tinha
a violência, pricipalente sexual dos mais velhos com os mais novos;
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as roupas sujas e rasgadas, as muquiranas, a coceira (TEIXEIRA,
2005, p. 109-128).
Somente, mais tardiamente, em 1959, é que foi criada uma política
mais efetiva de proteção, a Declaração Universal dos Direitos da Criança,
proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, com o objetivo de
garantir o bem-estar e o cuidado com a infância, assegurando o direito da
criança se desenvolver de forma saudável, tanto física, como emocional e
social, desfrutando dos direitos à alimentação, afeto da família, da socie-
dade, amparo, moradia e assistência à saúde.
A criança passou a ser vista como um ser incapaz, físico e psiquica-
mente, de desenvolver atividades de adultos, como o trabalho escravo a
que foram submetidos por muito tempo.
No Brasil, com a promulgação da Constituição Federal, ficou estabe-
lecido em seu Artigo 227 que:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comu-
nitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, ex-
ploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988, p. 128).
Em 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) foi transformado na Lei nº 8.069, onde é dado prioridade total aos
direitos da criança e do adolescente, atribuindo a responsabilidade por esse
zelo ao Estado, família e sociedade e “vem garantir que, nenhuma crian-
ça ou adolescente, seja objeto de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão” (MELLO, 1999, apud BRAMBILLA e
AVOGLIA, 2010, p. 110).
O ECA surgiu como efeito do processo de redemocratização em que
o país vivia, tendo em vista que anterior a esse regime o país vivia um
período de ditadura militar, que facilitava todos esses atos de tortura nar-
rados por adolescentes da época.
Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os dieretios
fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da prote-
190
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
ção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por
outros meios todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes fa-
cultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social,
e condições de liberdade e de dignidade (BRASIL, 1990, p. 181).
Para Frota (2007) o período da infância nos dias atuais é visto social-
mente como o mundo das brincadeiras e da fantasia, onde o sujeito vive
livre de obrigações e preocupações, conta com o acolhimento e o afeto
familiar. E a adolescência, por sua vez, é vista como o período em que o
sujeito entra em contato com as turbulências emocionais, sendo marcada
por conflitos psíquicos.
No entanto, sabe-se, e o próprio autor pontua, que isso é o que deve-
ria ocorrer na prática, principalmente após ser instituído o ECA, contudo
essa teorização se aplica somente à algumas crianças, especialmente as per-
tencentes as classes médias.
Nem todas as crianças, contudo, podem viver no país da infância.
Existem aquelas que, nascidas e criadas nos cinturões de miséria que
hoje rodeiam as grandes cidades, descobrem muito cedo que seu
chão é o asfalto hostil, onde são caçadas pelos automóveis e onde
se iniciam na rotina da criminalidade. Para estas crianças, a infância
é um lugar mítico, que podem apenas imaginar, quando olham as
vitrinas das lojas de brinquedos, quando veem TV ou quando olham
passar, nos carros dos pais, garotos da classe média. Quando pedem
num tom súplice – tem um trocadinho aí, tio? – não é só dinheiro
que querem; é uma oportunidade para visitar, por momentos que
seja, o país que sonham. (FROTA, 2007, p. 145).
O Conselho Tutelar é o órgão instituído pelo o ECA como o en-
carregado de proteger os direitos das crianças e dos adolescentes, sendo o
primeiro a acionar o Ministério Público e o Poder Judiciário.
Além desse órgão, existem outros meios responsáveis por essa garantia
de direitos, juntos formam o Sistema de Garantia de Direitos da Criança
e do Adolescente (SGDA). Essa sigla é constituída pela promotoria, tribu-
nal de justiça, conselho tutelar, defensoria pública, unidades de ensinos,
mídia e instituições ligadas a justiça, todos os responsáveis pela garantia de
direitos da criança e do adolescente.
191
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
1. ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI E A
INTERFACE COM A VIOLAÇÃO DE DIREITOS
Frequentemente, é associado ao adolescente que entra em conflito
com a lei fatores e condições relacionados à problemas de comportamen-
to, como uma falha na absorção do que é aceitável ou não socialmente.
Tais comportamentos são listados no manual de diagnósticos pu-
blicado pela Associação Americana de Psiquiatria (DSM – V; AMERI-
CAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013) como relacionados ao
Transtorno Desafiador Opositivo, Transtorno de Conduta e Transtorno
do Comportamento Disruptivo sem outra Especificação, marcados por
comportamentos hostis, impulsivos, agressivos, desafiadores, falta da in-
ternalização da lei, retraimento, que violam os direitos do outro e as nor-
mas sociais.
Oliveira e Assis (1999) revelam em estudo levantado no Brasil, se-
mente na cidade do Rio de Janeiro, que adolescentes em conflito com a
lei são responsáveis por uma porcentagem de homicídios que equivale ao
dobro do que ocorre na Colômbia e nos Estados Unidos, isso sem contar
os demais atos infracionais.
Para Straus (1994), um dos principais fatores que contribuem para
os atos infracionais é a vulnerabilidade no vínculo familiar, que, em sua
maioria, são rompidos por conta da violência que ocorre nesses ambientes.
Pais e cuidadores que praticam violência física, psicológica e sexual
tendem a comprometer as funções psíquicas dos filhos que se encontram
em fase de desenvolvimento e de entendimento do que é o mundo, a so-
ciedade e as maneiras de se relacionarem.
Estudos evidenciam, através de relatos de adolescentes presos que a vio-
lência física, abandono, negligência e punições aplicadas pelos cuidadores fo-
ram fatores que contribuíram para o ato infracional cometido pelos os mes-
mos (LOEBER; STOUTHAMER-LOEBER, 1998; STRAUS, 1994).
Cicchetti (2004), afirma que um dos fatores causadores de violências
físicas cometidas pelos cuidadores à crianças e adolescentes é a pobreza,
tendo em vista a potência estressora que exerce sobre estes, tendo em vista
que a classe pobre encontra-se em constate contato com a possibilidade
de uma gravidez indesejada, estresse emocional, transtorno mental e pela
dificuldade em prover o sustento familiar.
192
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2. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Historicamente, a violação de direitos às crianças e adolescentes
possuem relação direta com o âmbito familiar, quem deveria proteger é,
pontualmente, quem acaba violando esses direitos. Paralelamente a isso,
a resposta do Estado às crianças pobres e em situação de vulnerabilidade,
também, é arbitrária, valendo-se do confinamento e de estratégias repres-
sivas, pois embora as intuições responsáveis por acolherem esses jovens
mudem o nome, sabe-se que o modo de funcionar é o mesmo.
Embora a violação de direitos de crianças e adolescentes iniciem no
âmbito familiar, o Estado e a sociedade também contribuem para que essas
arbitrariedades ocorram. A sociedade, através da omissão e de crenças pa-
triarcais de que a educação se dá por meio da punição, ainda nos dias atuais,
mas é interessante observar que essas concepções continuam a serem inves-
tidas somente em direção a população infanto-juvenil pobre e periférica.
Do Estado, por não dispor de políticas públicas efetivas que garantam o
acesso a educação, a saúde, moradia, alimentação e direitos básicos, que, na
falta desses, são os disparadores para os atos infracionais, é importante pon-
derar que antes de violar um direito e entrar em conflito com a Lei, o ado-
lescente teve um, senão, vários direitos violados, seja pela família ou Estado.
É fundamental investigar os fatores que contribuem para o crescente
aumento da violação de direitos de crianças e adolescentes, pensar na ela-
boração de políticas públicas de prevenção efetivas, para que seja possível
resguardar e garantir o bom desenvolvimento físico, psicológico e social
desse público, e de maneira evidente, serão reduzidos, também, os atos in-
fracionais, e o envolvimento com a criminalidade na vida adulta, levando
em conta que uma ocorrência é resultante de outra, o crescente aumento
da reincidência criminal no Brasil mostra isso.
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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195
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA INTRAFAMILIAR:
REPRODUÇÃO E INTERVENÇÃO
SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR55
Thamira Freitas dos Santos56
1- INTRODUÇÃO
O fenômeno da violência doméstica é uma temática que provoca diver-
sos sentimentos no imaginário social e na opinião pública, desde uma apatia
frente às situações de violência às estratégias de superação desse gargalo so-
cial. Se outrora era justificado e legitimado pelas principais instituições so-
ciais – Estado, Igreja e Família, na atualidade provoca mal-estar social, des-
pertando nos atores sociais anseio de enfrentamento deste problema social.
O percurso histórico brasileiro aponta uma realidade de predominância
de violação dos direitos humanos, agravando sua incidência, aos segmentos
considerados mais vulneráveis da sociedade – crianças e adolescentes, mu-
lheres, idosos, negros e indígenas. Sendo a violência doméstica intrafamiliar
um fenômeno inefável, devido à sua complexidade, sua incidência ainda é
55 Orientador: Carlos Eduardo Batista Costa. Doutorando em Administração pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG. Mestre em Ciências Sociais - PUC/MG.
Assistente Social – PUC/MG. Professor Orientador de Trabalho de Conclusão de Curso - TCC
da Unidade de Ensino e Aprendizagem de Viçosa UNESAV.
56 Assistente Social graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
196
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
subnotificada no país, por diversos fatores. Fatores esses, que envolvem
desde a desigualdade e indiferença advinda pela condição de pobreza à
ineficiência de respostas das políticas públicas. O uso da violência na dinâ-
mica doméstica passa a ser repensado, com as mudanças do entendimento
da instituição família – em seu papel e função social - e a regularização de
dogmas jurídicos que corroboram para o acesso à justiça social.
Nesta perspectiva, sendo por inferência o núcleo familiar o principal
fomentador dos vínculos afetivos, a incidência da violência doméstica intra-
familiar, marcante no âmbito privado, passa a ser manifestado em institui-
ções de convivência secundárias das crianças e adolescentes, como escolas,
serviços de saúde, socioassistenciais e religiosos. Por se a escola o segundo
local de maior permanência das crianças e adolescentes após o domicílio,
as evidências de violência doméstica intrafamiliar, em algum momento no
percurso escolar, poderão ser manifestadas, reproduzidas e denunciadas.
No processo de violação dos direitos das crianças e adolescentes é ne-
cessário considerar que estes estão sujeitos a danos irreparáveis no desen-
volvimento físico e psíquico. Diante desta realidade, a proposta deste arti-
go é analisar as reproduções sociais da violência doméstica intrafamiliar no
contexto escolar, fomentando perspectivas de intervenções do (a) assistente
social junto à comunidade acadêmica e técnica. Metodologicamente, a pes-
quisa realizada se caracteriza qualitativa, pautada em revisão bibliográfica
sobre as principais temáticas que dialogam sobre o corpus de estudo.
O trabalho está estruturado em cinco partes. A introdução sendo a
primeira; a segunda com a definição de conceitos sobre a violência do-
méstica intrafamiliar e interlocução com os direitos das crianças e adoles-
centes no Brasil. A terceira, análise sobre o contexto escolar partindo de
possíveis reflexos da violência contra crianças e adolescentes no ambiente
familiar. A quarta, percepções sobre a intervenção do (a) assistente social
no ambiente escolar, e ao que competiria o enfrentamento do fenômeno
da violência doméstica intrafamiliar. E a última, as considerações finais.
2 - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA INTRAFAMILIAR versus
DIREITOS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO
BRASIL
A Violência doméstica intrafamiliar contra crianças e adolescentes
(VDCA) é um fenômeno que está intrinsecamente associado à existência
humana, ora como meio de sobrevivência e preservação ou, de domínio e
197
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
subjugação pelo poder, conhecimento e temor. Elsen et al. (2011) corro-
bora essa afirmativa apontando que estudos das civilizações revelou que,
desde a idade do fogo aos dias atuais, há relatos de maus-tratos contra
segmentos mais vulneráveis. É um fenômeno que pode ocorrer em todas
as classes sociais, culturas, etnias, religiões e raças. A questão da violência
doméstica passa ser objeto de estudo somente no século XX, quando na
modernidade são atribuídos novos valores à criança e a família.
Segundo Filho (2009) apud Moreira e Sousa (2012) dentre as várias
classificações de violência, destaca-se dois tipos: A violência doméstica
intrafamiliar, que se subdivide em física, psicológica, sexual, negligência
e entre outras; e a violência extrafamiliar, que se expressa nos tipos insti-
tucional, social, urbana ou macro violência. Devido à complexidade de
sua manifestação nas relações sociais, não se pode delimitar sua definição,
mas, de um modo geral, pode ser definida como a ação intencional que
causa dano físico, psíquico, emocional, social a um sujeito, grupo ou co-
munidade. Ampliando o entendimento sobre a violência intrafamiliar e
violência doméstica, Domith e Lourenço (2015) apontam uma distinção
entre estes dois termos:
A violência intrafamiliar é toda ação ou omissão que prejudique o
bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o di-
reito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode
ser cometida, dentro ou fora de casa por algum membro da família,
incluindo pessoas que passam a assumir função parental ainda que
sem laços de consanguinidade e em relação de poder em detri-
mento da outra. Já a violência doméstica distingue-se da violên-
cia intrafamiliar por incluir outros membros do grupo sem função
parental que conviviam no espaço doméstico e inclui-se ai em-
pregados (as), pessoas que convivem esporadicamente e agregados.
(Ministério da Saúde, 2011 apud Domith e Lourenço 2015, p. 3).
Desde a antiguidade, em passagens bíblicas, rituais de iniciação para
fase adulta e na mitologia ocidental, há relatos de filicídios, maus-tratos,
negligências, abandonos e de abusos sexuais fazendo parte da história e
identidade cultural das famílias. A princípio pode causar estranheza pelo
fato do ambiente familiar por inferência, ser a primeira fonte de afeto e
198
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
cuidado das crianças e adolescentes. Quando analisamos o papel social da
infância na trajetória da humanidade, marcada pela falta de representação
e valor no contexto sociocultural, é possível observar que algumas atitudes
são justificadas e reiteradas como medida disciplinar, visando à obediência
e ordem na dinâmica familiar. Minayo (2001) apud Domith e Lourenço
(2015) apontam que além do caráter arbitrário dos pais de decidirem sobre
sua vida, a VDCA sempre esteve vinculada ao processo educativo, sendo
considerada, em todos os tempos, como um instrumento de socialização e
como respostas automáticas aos comportamentos considerados inadequa-
dos pelos adultos cuidadores e educadores.
Quando se discute acerca do fenômeno VDCA é importante ter a
compreensão de que uma questão desta magnitude e complexidade, de
acordo com Silva (2002), não pode ser concebida e tratada apenas a partir
de uma visão unilinear de causa e efeito, em que, de um lado, está o agres-
sor motivado por sua “má índole” e do outro, sua vítima, “esperando e/
ou provocando” o ataque. É um resultado multicausal e interativo de uma
dinâmica sociocultural e política que repercute em todo tecido social, fa-
zendo suas vítimas de maneira indiscriminada.
Outro fator a ser considerado nesta discussão é a ruptura do entendi-
mento de que a questão da violência doméstica intrafamiliar é problema
e responsabilidade apenas daqueles que atuam na área social e jurídica,
desresponsabilizando profissionais de outras áreas a pensar e intervir na
questão. Atualmente a VDCA é uma questão interdisciplinar que necessi-
ta o envolvendo de profissionais de diversas áreas de atuação na prevenção,
detecção e intervenção.
Nesta perspectiva, conforme elucida Neumann (2000), a violência
doméstica por ser um fenômeno complexo e apresentar conceituações em
diversas áreas científicas, tem uma dificuldade na sua definição. O concei-
to apresentado por Azevedo & Guerra (1989) é o mais utilizado nas revi-
sões literárias da área social. É definido como sendo "todo ato ou omissão
praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adoles-
centes que - sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico a
vítima - implica de um lado, numa transgressão do direito que crianças
e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição
peculiar de desenvolvimento".
199
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Quanto aos tipos de VDCA, Azevedo & Guerra (2005) descrevem os
principais identificados:
Violência física: toda ação que causa dor física numa criança, des-
de um simples tapa até o espancamento fatal. Violência sexual:
configura-se como todo ato ou jogo sexual, relação hétero ou ho-
mossexual, entre um ou mais adultos (parentes de sangue ou afi-
nidade e/ou responsáveis) e uma criança ou adolescente, tendo por
finalidade estimular sexualmente uma criança ou adolescente ou
utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou
outra pessoa. Ressalta-se que em ocorrências desse tipo a criança
é sempre vítima e não poderá ser transformada em ré. Violência
fatal: atos e/ou omissões praticados por pais, parentes ou respon-
sáveis em relação à criança e/ou adolescente que, sendo capazes de
causar-lhes dano físico, sexual e/ou psicológico podem ser consi-
derados condicionantes (únicos ou não) de sua morte. Negligên-
cia: representa uma omissão em termos de prover as necessidades
físicas e emocionais de uma criança ou adolescente. Configura-se
quando os pais (ou responsáveis) falham em termos de alimentar,
de vestir adequadamente seus filhos etc. e quando tal falha não é o
resultado de condições de vida além do seu controle. A negligência
pode se apresentar como moderada ou severa. (Azevedo & Guerra,
2005, p. 16).
Segundo a Associação dos Municípios do Alto Vale do Itajaí (AMA-
VI), este fenômeno já foi interpretado por estudiosos da área sob diferentes
óticas, relacionando a fatores sociológicos dos pais e a fatores psicológi-
cos. Uma das explicações apresentadas a este fenômeno é definida por um
modelo sócio-psico-intencionista, que considera que a violência contra a
criança e adolescente acontece dada a existência de um Padrão Abusivo
de Interação Familiar. Este modelo apresenta como indicadores a posição
sociocultural da família, experiências de socialização, características pa-
tológicas e particulares da criança, fatores situacionais de stress, além de
indicadores ligados aos aspectos socioeconômicos e políticos.
A questão da violência doméstica intrafamiliar também é contempla-
da nos ordenamentos jurídicos internacionais e nacionais. A Convenção
Internacional dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade na As-
200
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
sembleia Geral das Nações Unidas em 1989, proclama a infância como
momento do desenvolvimento cuja assistência e cuidados devem ser es-
peciais. Ratificada por 193 países, destaca a importância do comprometi-
mento dos Estados nacionais na proteção de todas as formas de violência
doméstica.
Art. 34 Os Estados Partes comprometem-se a proteger a criança
contra todas as formas de exploração e abuso sexual. Nesse sentido,
os Estados Partes tomarão, em especial, todas as medidas de cará-
ter nacional, bilateral e multilateral necessárias para impedir: a) o
incentivo ou a coação para que uma criança se dedique a qualquer
atividade sexual ilegal; b) a exploração da criança na prostituição
ou outras práticas sexuais ilegais; c) a exploração da criança em
espetáculos ou materiais pornográficos. (ONU, Convenção inter-
nacional sobre os direitos da criança, 1989).
Segundo Berlini (2009), a Constituição Brasileira de 1988 é um mar-
co na história social e jurídica em relação aos direitos da criança e do ado-
lescente, pois representa, de forma decisiva, os anseios sociais, consolidan-
do ainda, o sistema de proteção integral, fundamental à compreensão do
atual paradigma a que estão sujeitas. Na Constituição brasileira, há artigos
que elucidam esta garantia:
Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à pro-
fissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde
da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de
entidades não governamentais, mediante políticas específicas.
§ 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração
sexual da criança e adolescente. (Brasil, Constituição Federal Bra-
sileira, 1988).
201
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Corroborando, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, Lei
nº 8.069/1990 reitera os direitos da população infanto-juvenil brasileira,
bem como os responsáveis por garanti-los. A violação desses direitos cons-
titui-se, pois, em violência delituosa, definida no Código Penal.
Estudos sistemáticos sobre incidência e prevalência do fenômeno da
VDCA no Brasil são deficitários, o que dificulta a leitura do problema e o
aprimoramento da análise. Ainda é presente o “tradicional complô de silên-
cio” nesta modalidade de violência. Desde 1996, o Laboratório de Estudos
da Criança (LACRI), ligado ao Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo, começou a investigar tal fenômeno de modo mais sistemático.
Conforme apresenta O LACRI, a escassez de dados empíricos pode expli-
car a veiculação em publicações internacionais de informações questioná-
veis, como a que considera ser a violência doméstica sexual a mais notificada
em nosso país. Devido às dimensões continentais, o Instituto de pesquisa
identificou dificuldades estratégicas de realizar levantamentos probabilísti-
cos representativos no Brasil, pontuando a necessidade da construção de
séries estatísticas cumulativas que permitam ir desvelando, aos poucos, as
muitas facetas da VDCA no Brasil, algo ainda não publicizado.
3- O CONTEXTO ESCOLAR: REFLEXOS DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇA E
ADOLESCENTE
Dentre os problemas desafiadores enfrentados no Brasil estão às di-
versas formas de violência doméstica intrafamiliar contra crianças e adoles-
centes e seus impactos na sociedade. Enquanto sujeitos em fase de desen-
volvimento, a criança e o adolescente precisam ter um ambiente familiar
que propicie condições saudáveis para que isto aconteça de maneira inte-
gral. Na dinâmica de uma família disfuncional o desenvolvimento tende a
ser inibido e influenciado negativamente, agravando dificuldades nas rela-
ções interpessoais. A presença de estímulos positivos, vínculos familiares
e afetivos fortalecidos, diálogo e acesso à convivência comunitária; entre
outros, favorecem para que isso aconteça de uma forma potencializadora.
Contrariando as expectativas sociais em relação ao seu papel de apoio
e de proteção, Ristum (2010) aponta que a casa e a família têm se confi-
gurado como cenário de violência para inúmeras crianças e adolescentes.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Práticas educativas violentas, soluções violentas para os conflitos
familiares, uso indiscriminado de poder físico, social ou psicológi-
co, violências sexuais de diversos tipos, negligência ou abandono
da criança, privando-a de condições necessárias ao seu desenvol-
vimento, ainda permanecem fortemente presentes no cotidiano
familiar. (Ristum, 2010, p. 231-232)
Vagostello (2003) destaca a correlação entre VDCA e o baixo de-
sempenho escolar, resultantes de uma agressividade, indisciplina, falta de
concentração e falta de motivação de alunos (as) que vivenciam uma situa-
ção de violência. Crianças e adolescentes oriundos de famílias em que há
ausência de diálogo, vínculos afetivos fragilizados e constante exposição à
violência, consequentemente, toda bagagem de comportamento que estes
receberam em sua família, ou seja, tudo aquilo que absorveram em sua
convivência familiar e comunitária, tende a emergir no ambiente escolar.
A instituição escolar se constitui um espaço privilegiado para a cons-
trução da cidadania, onde um convívio harmonioso entre todos os atores
envolvidos deve ser capaz de garantir o respeito aos direitos humanos. Se-
gundo Ponce e Neri (2015), a escola tem como função social preconizada
pelo artigo 205 da Constituição Federal Brasileira, a promoção do pleno
desenvolvimento da pessoa. Neste sentido, as instituições escolares devem
contemplar em seu cotidiano experiências que proporcionem o exercício
da cidadania.
Ratificam este pensamento Bolzan, Faé e Tedesco (2016):
A educação deve ser vista como um meio de modificação, de de-
mocratização e consciência de direitos, isto inclui certamente em
se ter uma vida digna na sociedade em que está inserido, iniciando
pelo ambiente familiar, onde se processa o primeiro estágio educa-
cional do indivíduo, elo relevante na corrente da formação e estru-
turação pessoal. (Bolzan, Faé e Tedesco, 2016, p. 405).
Atualmente, se tem presenciado o aumento de situações de violência
envolvendo diversos atores que fazem parte da dinâmica escolar. Cada vez
mais tem sido comum ameaças, agressões, vandalismo, insubordinações,
bullings, entre outras ocorrências na relação entre os atores que convivem
203
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
nesse espaço social. Esses episódios são agravados pelo distanciamento e
ou ausência da família no percurso educativo.
Outro aspecto importante que agrava estes episódios é a precarização
da abordagem da temática violência doméstica intrafamiliar na formação
pedagógica do professor (bem como de outros profissionais). Bolzan, Faé
e Tedesco (2016) pontuam a necessidade do professor se qualificar e traba-
lhar com alunos que sofrem violência doméstica intrafamiliar. Constantes
conflitos nas relações entre os alunos, família, profissionais e comunidade
têm sido indicadores deste fenômeno social de extensas e complexas di-
mensões.
A criança e o adolescente em situação de violência doméstica intra-
familiar deixam transparecer na dinâmica escolar sinais que devem servir
de alerta. Segundo Elsen et al. (2011), a escola pode desempenhar um
papel fundamental na detecção dos casos de VDCA pela proximidade e
convivência com os alunos. Dentre as diversas funções desempenhadas
pelo educador está a necessidade de ter um olhar atento aos seus alunos,
observar suas demandas e condições de vida. Pois, diante das ameaças,
do medo e da insegurança, a ausência da fala tende a predominar no co-
tidiano de vida das vítimas. Os educadores não podem ignorar a ausência
destes “sons” e os sinais das atitudes representadas na convivência escolar.
Determinados comportamentos observados no cotidiano escolar neces-
sitam de imediatos cuidados e intervenções. Abrapia (1992) e Deslandes
(1994) apud Elsen et al. (2011) apontam outras mudanças no comporta-
mento de crianças que favorecem a identificação de violência doméstica
intrafamiliar:
[...] lesões físicas (hematomas, queimaduras, cortes, fraturas); doen-
ça sexualmente transmissível; aparência descuidada e suja; desnutri-
ção; doenças que não são tratadas; distúrbios de alimentação (perda
ou excesso de apetite); distúrbios no aprendizado; comportamento
sexualmente explícito. Também são comuns: relutância em voltar
para casa; faltas frequentes à escola; ausência de participação nas ati-
vidades; poucos amigos; falta de confiança em adultos; ideias e ten-
tativas de suicídio; autoflagelo; dificuldade de concentração; hipera-
tividade; choro sem causa; comportamento rebelde. (Abrapia (1992)
e Deslandes (1994) apud Elsen et al. 2011, p. 309).
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O educador ao perceber qualquer mudança de comportamento, pro-
blemas de relacionamento com colegas e profissionais, baixo desempenho
pedagógico e sinais que indicam violência doméstica intrafamiliar neces-
sita dialogar com o envolvido e entender sua dinâmica familiar. É impres-
cindível construir um ambiente de acolhimento e confiança com o sujeito
em situação de vítima.
A violência expressa no contexto escolar necessita ser vista como um
processo multicausal. Pela complexidade do fenômeno se percebe a in-
tenção de tratar a VDCA como produto indesejável, portanto não discu-
tido. Devido à problemática, esta temática tem tomado uma proporção
significativa no espaço em que deveria ser um lugar privilegiado para o
ensino-aprendizagem. E, como hipóteses sobre o aumento da violência
nas escolas há a dimensão e a notoriedade dada à violência doméstica in-
trafamiliar contra criança e adolescente na atual conjuntura.
O que se observa no cotidiano escolar e em pesquisas recentes con-
forme aponta Ristum (2010) é de que os profissionais da escola têm pouca
informação a respeito da VDCA, das alterações que ela produz em suas
vítimas e, dessa forma, não atentam para os indícios dados pelos alunos,
não identificando as violências de que são vítimas no âmbito domésti-
co. Acrescenta-se a isto o fato de que desconhecem a legislação do ECA,
a qual as obriga à comunicação das violações de direito desses sujeitos.
Mesmo que se trate apenas de suspeita, o sentimento de medo impera
nas instituições escolares, principalmente quando localizadas em áreas de
risco, tendendo a inibir o corpus educacional da realização das interven-
ções preconizadas nas legislações, com receio de retaliações da família e
comunidade local.
É importante esclarecer que não cabe à escola a função de investi-
gação quanto à veracidade e o fundamento das informações de violên-
cia, nem de punir o agressor, por isso é imprescindível à comunicação
por parte da escola para que os órgãos competentes executem esse papel.
Também não cabe aos profissionais atuar de maneira desordenada, bus-
cando aleatoriamente no corpo discente, “prováveis vítimas” de violência
doméstica intrafamiliar. É necessário resgatar no cotidiano institucional o
sentimento de cuidado, confiança e de pertencimento, para que os casos
de VDCA sejam identificados no período inicial, realizando o acolhimen-
to e as intervenções necessárias.
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No processo de intervenção social também é necessário sensibilizar a co-
munidade escolar com ações informativas e educativas, criando espaços de
discussão sobre a temática e apresentando aos alunos, seus direitos. Uma vez
que os alunos têm conhecimento das diferentes manifestações da violência
doméstica intrafamiliar e estratégias de enfrentamento, estes podem ser en-
corajados a assumirem o protagonismo de suas vidas, manifestando suas an-
gústias e violações. Se em outros tempos a violência doméstica intrafamiliar
não era objeto de discussão e confrontação, a atual conjuntura aponta para a
prevenção, intervenção e superação deste complexo fenômeno social.
Nessa perspectiva, a instituição escolar não pode mais ignorar a rea-
lidade de que VDCA está cada vez mais constante no seu cotidiano. Por
isso, é imprescindível o investimento em capacitações intersetoriais con-
tínuas e implicação dos profissionais. Corroborando, Domith e Louren-
ço (2015) apontam que a abordagem interdisciplinar e intersetorial são
identificadas como estratégia fundamental de investimento no contexto
familiar e no atendimento à criança e o adolescente.
4- A INTERVENÇÃO DO (A) ASSISTENTE SOCIAL NO
ENFRENTAMENTO AO FENÔMENO DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA INTRAFAMILIAR
Uma vez que a criança e o adolescente vítima de violência doméstica
intrafamiliar tendem a manifestar e reproduzir suas violações no cotidiano
escolar, a gestão e a comunidade escolar não podem ser neutras e descon-
siderarem a presença e incidência desta violência na conjuntura institucio-
nal. Há necessidade de uma contextualização que precisa ser considerada
quando se trata de VDCA, além da dicotomia vítima e agressor, que inclui
aspectos sociais, econômicos, culturais, políticos e familiares. Almeida et
al. (2010) faz a seguinte consideração:
[...] uma educação reprodutora que concebe o aluno apenas no
espaço escolar ou por uma Educação que compreenda o Educando
como um sujeito de direito que deve ser respeitado como um todo,
considerando que a forma com que o mesmo é tratado na família
e na sociedade trará reflexos no seu desempenho escolar e intelec-
tual. (Almeida et al. 2010, p.5 )
206
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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A importância da escola no enfrentamento da VDCA fica mais evi-
dente como aponta Ristum (2010), quando se considera o fato dos alunos
em situação de violência doméstica intrafamiliar terem contato diário e
prolongado na instituição de ensino e com seus profissionais. A escola
pode se constituir uma fonte importante de proteção, notadamente para
as crianças e adolescentes que não identificam no seu núcleo familiar e ou
família extensa a confiança e o apoio necessários para expressar e revelar
as violações sofridas.
A escola tende a se apresentar como um instrumento de controle, e a
implicação dos profissionais frente aos fenômenos sociais pode potencia-
liza-la em um espaço de construção política. Em contraponto, há a pre-
carização na formação política dos educadores, a falta de valorização dos
profissionais, as condições desfavoráveis de trabalho e as questões relacio-
nadas à violência são constantes desafios vivenciados no contexto escolar.
Almeida et al. (2010) aponta que a legislação brasileira concebe a es-
cola como um espaço de aprendizagens, liberdades e respeitos às dife-
renças, alertando aos profissionais da educação sobre suas obrigações nas
garantias dos direitos fundamentais.
Deixar o médico, professor, ou responsável por estabelecimento
de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche,
de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha co-
nhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus tratos
contra criança ou adolescente: Pena – multa de três a vinte salá-
rios de referências, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.
(BRASIL, 1990 – ECA).
A inserção do (a) assistente social na política educacional é de grande
relevância. Se outrora a inserção do Serviço Social na educação ocorreu
principalmente nas escolas privadas e/ou filantrópicas católicas, decorrente
as modificações na legislação em relação ao processo de inscrição e renova-
ção do CEBAS - Certificação às Entidades Beneficentes de Assistência So-
cial, conforme aponta Santos (2009), atualmente surge um profissional com
possibilidade de atuação que perpassa a realização de avaliação socioeconô-
mica visando à concessão de benefícios e/ou bolsas de estudos em programas
de financiamento estudantil, elaboração e execução de projetos sociais.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Embora a inserção do (a) assistente social nas escolas públicas possa
ofertar condições para fomentar o exercício da cidadania e possibilidades
de atendimento aos alunos, família e comunidade escolar, essa não é uma
realidade do processo educacional brasileiro. Há narrativas de ‘descon-
fiança’ por parte da comunidade escolar acerca da função deste profissio-
nal no ambiente educacional, justificado pelos mitos relacionados a sua
intervenção social. Xavier (2008) descreve que muitos profissionais de-
mostram o desconhecimento em relação ao que é o Serviço Social e como
seria sua inserção no espaço escolar.
Santos (2009) aponta que as várias limitações encontradas para a in-
serção do (a) assistente social na escola pública apontam principalmente
pela questão financeira que requer aos cofres públicos, mais custos. Outro
fator é a diferenciação salarial em relação aos professores, e principalmente
o próprio entendimento dos profissionais tradicionais da educação sobre
as contribuições do Serviço Social para a realidade educacional.
Há necessidade de ser estruturado pela gestão escolar o fluxo ins-
titucional para acolher os alunos e suas famílias inseridos em contextos
da VDCA. Em caso de suspeitas e/ou denúncias que envolvem violência
doméstica intrafamiliar, a notificação é compulsória conforme preconiza
as legislações brasileiras, sendo importante referenciar os profissionais que
realizam os encaminhamentos aos órgãos competentes, demonstrando a
importância da presença do (a) assistente social na instituição escolar.
É imprescindível a intervenção do (a) assistente social diante da re-
produção da violência doméstica intrafamiliar no contexto escolar. As
vítimas precisam receber auxílio diferenciado, visando sua proteção e as-
sistência necessária no processo de superação da violação sofrida. Cabe ao
profissional ter manejo técnico durante as intervenções, identificando o
contexto, as possibilidades e limites em cada situação atendida.
O (a) assistente social também pode promover em conjunto com a
gestão escolar atividades de cunho educativo, elucidando para comunida-
de escolar questões relacionadas à violência doméstica intrafamiliar, ações
de prevenção, identificação e intervenção, bem como fomentar a criação
de grupo ou rede de apoio às vítimas e suas famílias. Além disso, a capa-
citação contínua do profissional, o trabalho interdisciplinar, a capacidade
técnica de articular com a rede socioassistencial - serviços e equipamentos
208
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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ofertados pela interlocução com as políticas sociais - são de suma impor-
tância para o enfrentamento deste complexo fenômeno.
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil é um país que se implica em participar de convenções e em
assinar tratados internacionais de defesa dos direitos humanos e em prol da
redução da violência contra crianças e adolescentes.
Percebe-se que a comunidade escolar tem convivido com o grande
desafio de encarar os desdobramentos da violência doméstica intrafamiliar
contra crianças e adolescentes em seu cotidiano institucional. Principal-
mente, pelo seu histórico de registros de atenção e atendimento ao “aluno
problemático” com sanções para correção de um comportamento indese-
jado, sem a devida contextualização dos casos, e pelo fato da escola limitar
sua função social à escolarização desses sujeitos sem uma compreensão
mais sistemática do processo de desenvolvimento dos mesmos.
Observa-se que há enfraquecimento dos papéis dos atores sociais
envolvidos na comunidade escolar, convocando a gestão escolar a buscar
intervenções assertivas e articuladas visando à proteção e garantia dos di-
reitos de seus alunos. Analisar as consequências da violência doméstica in-
trafamiliar e suas reproduções no contexto escolar também evoca ruptura
de paradigmas e construções de novas estratégias de ações.
O Conselho Federal de Serviço Social pontua que a atuação do (a)
assistente social na educação não representa um cenário novo, embora seja
marcada por fortes vestígios das concepções assistencialistas e imediatistas
no enfrentamento dos problemas escolares. Contudo, é importante que o
profissional tenha um olhar atento e escuta apurada, compreendendo as
multicausalidades da VDCA para assistir qualificadamente todos os atores
envolvidos. Sendo imprescindível que o profissional atue em equipe in-
terdisciplinar, fomentando ações educativas e preventivas visando à sensi-
bilização, e implicação de toda comunidade escolar no enfrentamento das
diversas manifestações da violência doméstica intrafamiliar contra criança
e adolescente no contexto escolar.
Este artigo não visa esgotar ou responder a todas as indagações rela-
cionadas à questão da violência doméstica intrafamiliar no contexto es-
colar, mas apontar a necessidade dos educadores e demais profissionais
209
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
da política educacional serem sensibilizados e capacitados para interverem
com mais proatividade e qualificação. E principalmente, apontar cami-
nhos para novas pesquisas que possibilitem diálogos e interpretações críti-
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UMA PROPOSTA PARA A PROTEÇÃO
DA CRIANÇA E ADOLESCENTE: POR
MEIO DE DOAÇÕES DO IMPOSTO
SOBRE AS RENDAS
Julio Ferreira de Andrades 57
INTRODUÇÃO
É princípio básico da ciência contábil, quem recebe: deve, e por tanto
é debitado; e quem dá: tem haver, e assim, por sua vez na partida dobrada,
o creditado, a formar a equação da igualdade. Trata-se pelo lançamento
das operações econômico/financeiras do registro da origem e aplicação
dos recursos, e da causa e efeito dos resultados (ANDRADES, 2015).
E no seguimento haverá, segundo Andrades (2015), na forma de con-
ta corrente, a acumulação do saldo devedor pelos recebimentos ou entra-
das que ocorrerem, ou passando a saldo credor, e até acumulação deste
saldo, se de maiores valores forem às operações de saídas ou de dar. E
nesta lógica, num exercício de transposição para os atos da vida, é possível
a afirmação: quem na vida recebe algo, de alguma forma é debitado; e na
contrapartida o creditado é quem dá ou viabiliza esse algo. Porém, dife-
rente da valoração monetária das operações econômico/financeiras, nesta
transposição a valoração de tais débitos e créditos se dá por valores senti-
57 Graduação em Ciências Contábeis e graduação em Direito pela Universidade de Passo
Fundo (1987). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Tributário, Pós-
-Graduação em Metodologia do Ensino Superior na Universidade de Passo Fundo/RS (1992).
214
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mentais, afetivos, morais ou éticos, pessoais ou íntimos, e até valores espi-
rituais, conforme a felicidade ou sofrimentos que possam causar a outrem,
à humanidade e à própria natureza.
Desta forma, segundo Stamnes (2015), existem muitas evidências
que vinculam a fome à impulsividade à violência, não só das crianças, mas
também seus pais, que apesar dos grandes avanços econômicos, sociais,
tecnológicos, a falta de comida para milhares de pessoas no Brasil e no
mundo continua.
Diante dessas informações, o presente estudo tem por objetivo pro-
por um novo formato para as chamadas doações do Imposto de Renda,
visando o custeio do ensino e proteção da criança e do adolescente, des-
crevendo apontamentos, orientações e até chamamentos aos contribuintes
“chamados potenciais” desse tributo, o Imposto de Renda – as pessoas
jurídicas do lucro real e as físicas do ajuste completo -, para as suas desti-
nações anuais aos respectivos Fundos Municipais dos Direitos da Criança
e Adolescente, as chamadas doações aos Funcrianças Municipais. Frente
a isso, reflete-se sobre o que falta para acabar ou reduzir ao máximo a
quantidade de pessoas que passam fome? Será que esse problema não tem
solução? É possível, com muita gente morrendo de fome, alcançar a tão
sonhada paz? O que fazer para mudar essa triste realidade? O método
utilizado na fase de Investigação é o indutivo; na fase de tratamento dos
dados, o cartesiano, e, no relatório da pesquisa, ou seja, no presente estudo
emprega-se o método dedutivo-indutivo. nas fases da pesquisa poderão
ser acionadas as técnicas do referente, da categoria, do conceito operacio-
nal e da pesquisa bibliográfica.
1. Proposta para Minimizar a Fome das Crianças e
adolescentes
1.1. A Relação da Fome com a Violência: causa e efeito
Ao longo da história humana, o conflito tem sido uma fonte de vul-
nerabilidade à fome. Dados estatísticos da Organização das Nações Uni-
das (2019), indicam que existe atualmente um bilhão de pessoas passan-
do fome no planeta. Isto corresponde a um sexto da população mundial.
Além disso, 100 milhões vivem sem teto, há um bilhão de analfabetos,
215
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
um bilhão e meio sem água potável, 150 milhões de crianças subnutridas
com menos de cinco anos (uma para cada três no mundo), 12,9 milhões
de crianças morrem a cada ano antes de completar 5 anos de vida.
Os dados mais recentes da FAO indicam que, após quase uma dé-
cada de declínio, o número de pessoas afetadas pela fome no mundo au-
mentou novamente, com 815 milhões de habitantes sofrendo de desnu-
trição crônica em 2016. Em 2017, 124 milhões necessitaram de assistência
alimentar de emergência, em comparação com os 108 milhões de 2016
(NAÇÕES UNIDAS, 2018).
Nessa linha de pensamento, Silva e Esquível (2018) afirmam que o
difícil é entender um país onde os recordes de produção agrícola se mo-
dificam de maneira crescente no decorrer dos anos, enquanto a fome faz
parte do convívio de um número alarmante de pessoas. A monocultura
tem como objetivo a exportação, pois grande parcela da produção é desti-
nada à nutrição animal em países desenvolvidos. Mesmo com programas
sociais federais e estaduais o problema da fome não é solucionado. Adicio-
nada a essa afirmativa, entende-se que nada acontece por acaso, pois pela
falta dos devidos recursos legais das doações anuais do Imposto de Renda,
a fome e a necessária assistência se fazem presentes em pequenas, médias
e grandes cidades e também no campo, independentemente da região ou
estado brasileiro.
A solução para a questão parece distante, segundo Matos (2019), envol-
ve uma série de fatores estruturais que estão impregnados na sociedade bra-
sileira. Somente fornecer cestas básicas não resolve o problema, apenas adia
o mesmo. É preciso, criar condições para que o cidadão tenha possibilidade
de se auto sustentar por meio de seu próprio trabalho e remuneração digna.
Pois a falta de trabalho leva à pobreza, e a pobreza e a fome são dois proble-
mas que andam de mãos dadas. Ao lado do desemprego, cresce também a
miséria. Pesquisas como de Berry (2015) e Stamnes (2015), mostram que
existe uma correlação entre desnutrição infantil e uma predisposição para
comportamentos violentos. Essa conexão é incontestável quando se observa
as principais emergências globais da fome. Estima-se que 80% dos recursos
do Programa Mundial de Alimentos (PMA) sejam implantados em áreas
afetadas por conflitos (WORLD FOOD PROGRAM, 2016).
A falta de educação, a pobreza, o desemprego, e a alta mortalidade
infantil - todas exacerbadas pela escassez de alimentos - estão entre os pre-
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
ditores mais confiáveis para o aumento da violência. Investir em medidas
que melhoram os padrões de vida, melhoram as oportunidades educacio-
nais para crianças e jovens e promovem o desenvolvimento de instituições
democráticas, não apenas melhorará a segurança alimentar local em socie-
dades vulneráveis, mas também para reduzir a aceitação da violência como
meio de resolver conflitos (MARTINS; KUPERMANN, 2017).
E por aí, então, o desemprego dos pai e familiares, a consequência
maior, como já citada, a fome. E por cujas desesperadoras circunstâncias,
os pais e até familiares, ao ouvirem tais gemidos e desesperos dos filhos,
se tornam, ao natural, induzidos à busca imediata, e até pelo furto ou
roubo, de quaisquer tipos de alimentos ou de dinheiro para comprá-los.
E por aí, então, o agravamento de tais problemas, pois ao não consegui-
rem pelas formas pacíficas, ao natural tornam-se impelidos a buscá-los, e
de qualquer forma, inclusive por assaltos, vandalismos e outras formas de
violências (MARTINS; KUPERMANN, 2017; ANDRADES, 2015).
E lamentavelmente é o que vem ocorrendo. E cujas medidas para so-
lucioná-las poucas ocorrem pela prevenção, que para Saath e Fachinello
(2018), vão assim sobrecarregando a repressão, que pelas circunstâncias
se tornam outra espécie de violência, inclusive psicológica. E cujos resul-
tados somente pela repressão e enfrentamentos, ao natural, grande parte
negativos, tanto para a saúde como à própria vida das pessoas envolvidas
e também do seu entorno. Inclusive pelas perdas de ativos – no caso de
viaturas e outros bens de altos custos - danificados e até perdidos nos en-
frentamentos -.
É hora, pois, da implementação de outras formas e menos extremas,
a somarem-se às atuais ações, para a construção, mesmo que a médio e até
longo prazo, de uma efetiva segurança nacional. E para isso então, a ne-
cessidade da totalidade de promover efetivamente as doações do Imposto
de Renda, a custearem as necessárias ações preventivas, e saciar a fome das
crianças. Começando pelas aquisições ou locações das necessárias casas
assistenciais. Seguindo-se nas contratações de pessoal, compras dos in-
dispensáveis alimentos e de outras necessidades básicas (ANDRADES,
2015). Pois ao natural, somente através da alimentação diária, da educa-
ção, de esportes, de proteção das drogas e de outras necessidades básicas,
tais crianças podem crescer com segurança, saber e dignidade.
217
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
1.2 As Politicas Jurídicas e Públicas de Proteção à
Criança e ao Adolescente
Até o final do século XIX não existiu nenhum movimento de prote-
ção dos direitos das crianças, que eram vistas como bens de propriedade
e econômicos. Alguns países, que instituíram o movimento Progressista,
que possuíam uma visão humanizada, desafiaram a relutância dos tribu-
nais em interferindo nos assuntos familiares, promovendo amplas refor-
mas no bem-estar infantil. Tais ações repercutiram na seara trabalhista,
impetrando em aprovações de leis para regulamentar o trabalho infantil e
fornecer educação compulsória (VERONESE; RIBEIRO, 2019).
Também aumentou a conscientização sobre os problemas das crianças
e estabeleceu um sistema judicial juvenil. Outro impulso para os direitos
das crianças ocorreu nas décadas de 1960 e 1970, quando as crianças eram
vistas por alguns defensores como vítimas de discriminação ou como um
grupo oprimido. No contexto internacional, foi descrito algumas das dis-
posições de alguns dos principais instrumentos jurídicos internacionais
sobre os direitos das crianças como pequenos cidadãos (MAIA, 2016).
Um dos princípios-chave da Declaração dos Direitos da Criança da
Onu, é que a criança desfrute de “proteção especial”, bem como “opor-
tunidades e instalações, por lei e por outros meios”, para um desenvolvi-
mento físico, mental, moral, espiritual e social saudável e normal. “Em
condições de liberdade e dignidade”. A “consideração primordial” na
promulgação de leis para esse fim é “o melhor interesse da criança”, um
padrão ecoado em todos os instrumentos legais sobre os direitos das crian-
ças (SAATH; FACHINELLO, 2018, p. 199). Entre outros princípios, a
criança tem direito a um nome e nacionalidade; adequar à nutrição, mo-
radia, recreação e serviços médicos; para uma educação; e, para os defi-
cientes, “tratamento especial, educação e cuidado”. Outros princípios são
a proteção contra negligência, crueldade e exploração, tráfico, trabalho
infantil e discriminação (MACIEL, 2018).
A Convenção de 1973, sobre a Idade Mínima (MAC) teve por fi-
nalidade estabelecer um instrumento geral sobre o tema da idade míni-
ma de emprego, com vistas a alcançar a abolição total do trabalho infantil
(Preâmbulo). Assim, cada Estado Parte deve “seguir uma política nacional
destinada a assegurar a abolição efetiva do trabalho infantil e aumentar
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progressivamente a idade mínima para admissão no emprego a um nível
compatível com o desenvolvimento físico e mental mais pleno dos jovens”
(Artigo 1º) (MAIA, 2016).
Os Estados Partes, sob a égide da Lei: devem especificar uma idade
mínima para admissão a emprego ou trabalho, sujeita a certas exceções
estabelecidas no MAC. Esse mínimo não pode ser inferior à idade de con-
clusão da escolaridade obrigatória e, em qualquer caso, menos de quinze
anos, mas pode inicialmente ser estabelecido em 14 anos se a economia
do estado e as instalações educacionais estiverem insuficientemente de-
senvolvidas (Artigo 2º). Exceções aos limites de idade também podem
ser permitidas para trabalhos leves ou para fins de participação em perfor-
mances artísticas (Artigos 7º e 8º). Se o emprego pode ser perigoso para a
saúde, segurança ou moral de um jovem, a idade mínima geralmente não
deve ser menor que dezoito anos (Artigo 3, inciso 1º) (MACIEL, 2018).
Posteriormente, a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) foi
o documento mais abrangente sobre os direitos das crianças. Baseando-se
puramente no número de direitos substantivos que estabelece, distinto das
medidas de implementação, o mais longo tratado de direitos humanos
da ONU em vigor e incomum na medida em que não trata apenas da
concessão e implementação de direitos em tempo de paz, mas também
o tratamento de crianças em situações de conflito armado. Consagrou,
“pela primeira vez em leis internacionais vinculantes, os princípios sobre
os quais a adoção é baseada, vistos da perspectiva da criança” (SOUZA
NETO, 2000).
A CDC preocupou-se, principalmente, com quatro aspectos dos di-
reitos da criança (os quatro “P's”): participação das crianças nas decisões
que as afetam; proteção das crianças contra a discriminação e todas as for-
mas de negligência e exploração; prevenção de danos a elas; e prestação de
assistência às crianças para as suas necessidades básicas. Para os propósitos
da CDC, uma criança é definida como “todo ser humano com idade in-
ferior a dezoito anos, a menos que, de acordo com a lei aplicável à criança,
a maioria seja alcançada mais cedo” (Artigo 1º) (NASSER, 2005).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o primeiro
documento de maior importância em nível global, contém dois artigos
que se referem especificamente as crianças. O Artigo 25 declara: “a in-
fância tem direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças,
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma proteção social”
(DUDH, 1948).
O Preâmbulo do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC/1966), na medida em que reconhece a in-
divisibilidade dos direitos humanos, também é aplicável aos direitos da
criança. Assim, observa que “o reconhecimento da dignidade inerente e
dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana
é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” e que “esses
direitos derivam da dignidade inerente à pessoa humana”. Referências es-
pecíficas a crianças são encontradas nos artigos 10 e 12 (MACIEL, 2018).
Assim, o artigo 2 obriga os Estados Partes a “respeitar e garantir a todos
os indivíduos dentro de seu território e sob sua jurisdição” os direitos
reconhecidos no PIDCP, “sem distinção de qualquer tipo”, para adotar
leis para efetivar esses direitos; e fornecer remédios eficazes onde houver
violações (DEL PRIORI, 2000).
O segundo documento mais importante em nível transnacional, a
Convenção de Haia (1996) sobre Jurisdição, Lei Aplicável, Reconheci-
mento, Execução e Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental
e Medidas para a Proteção de Crianças (Convenção de 1996) abrange um
vasto leque de medidas de proteção civil de crianças, e de questões de re-
presentação para a proteção da propriedade da criança (NASSER, 2005).
O Preâmbulo confirma que “os melhores interesses da criança devem
ser uma consideração primordial”. O Artigo 2º estipula que a Convenção
é aplicável “às crianças desde o momento do seu nascimento até atingirem
a idade de 18 anos” (MAIA, 2016).
Também existem disposições sobre procedimentos de cooperação
para melhor proteger os menores não acompanhados que atravessam fron-
teiras e estão em situações vulneráveis e crianças colocadas em cuidados
alternativos através das fronteiras. O último inclui arranjos como assistên-
cia social e a instituição de lei islâmica de Kafala, um equivalente funcio-
nal de adoção fora do escopo da Convenção Internacional de Adoção de
1993 (MARTINS; KUPERMANN, 2017).
A Convenção de Haia sobre a Proteção das Crianças e Cooperação
em Matéria de Adoção Internacional (Convenção de 1993) tem três ob-
jetivos declarados: estabelecer salvaguardas para assegurar que as adoções
internacionais sejam no melhor interesse da criança e de acordo com os
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direitos fundamentais da criança; estabelecer um sistema de salvaguardas
para evitar abusos como o tráfico de crianças; e assegurar o reconheci-
mento nos Estados Partes das adoções feitas de acordo com a Convenção
(artigo 1) (DEL PRIORI, 2000).
Como pode ser verificado a Transnacionalidade ou o chamado direi-
to internacional de proteção à criança e ao adolescente, possui uma tra-
jetória expressiva em nível global. Para tanto, entendendo a preocupação
do Estrado Brasileiro sobre o tema, e sendo um Estado-Parte integrante
da ONU, aborda-se na sequência as ações políticas, jurídicas e públicas
do País.
A doutrina brasileira para a proteção integral, orientada pela Consti-
tuição Federal de 1988, robustecida pelo Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, confere as políticas públicas para a infância no Brasil, estabelecendo
direcionamentos atribuídos à fase da infância, na qual busca a proteção
integral em todas as searas da sociedade. E para isso a totalidade dos recur-
sos legais do IR para o custeio à proteção integral da criança e adolescente.
Tal inclusão, dos Direitos da Criança e do Adolescente afere o significado
jurídico-político do emponderamento desses sujeitos às respostas incom-
pletas, até então descritas na história, em consideração ao melhor inte-
resse da criança como instrumento provocador de mudanças nas políticas
públicas, sociais e jurídicas de atenção às necessidades desses pequenos
cidadãos (VERONESE; RIBEIRO, 2019).
Conveniente o que diz Siqueira et al. (2013), o princípio do melhor
interesse da criança, como força de tal, juntamente com os demais cor-
respondentes, deve ser considerado em todas as situações de litígio que
envolva uma criança ou adolescente. Trata-se de princípio de total im-
portância e necessidade, sendo uma das bases do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Nesse tema, o Brasil possui notório reconhecimento Internacional
quando possibilitou amparado na Lei, a construção efetiva das políticas
públicas determinando e fortalecendo os direitos sociais da população
infantil e juvenil, pela Lei n° 8069/90, estipulando a proteção integral à
criança e ao adolescente, e também, fundando medidas concernentes à
violação desses direitos (BRASIL, 2011).
Nessa concepção, a política de atendimento a esses sujeitos, abriu a
possibilidade de a criança e o adolescente encontrarem abertura e acesso às
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
políticas sociais básicas e aos programas assistenciais, sejam por órgão pú-
blicos ou instituições e organizações não governamentais (VERONESE;
RIBEIRO, 2019). Frente a essa argumentação, na garantia dos direitos
da criança e do adolescente existe a necessidade de uma atuação conjunta
que legitime a sociedade civil, via Conselhos dos Direitos da Criança e do
Adolescente e Conselhos Tutelares, organizações e setores públicos que
façam valer efetivamente os recursos humanos e materiais, respeitando os
princípios democráticos dessa população.
O argumento desenvolvido por Silva e Esquível (2018), dizem que a
fome produz um impacto variável e substancial na conduta das pessoas.
Assim sendo, a importância do apoio da sociedade e do Estado para ope-
rar em contingentes maiores, e em ações mais efetivas ao acesso a mais
recursos financeiros/ alimentares à capacidade de comprometer-se com
credibilidade, para trabalhar em direção a um objetivo comum: minimizar
ou até, por que não, acabar com a fome.
Proposta que, segundo Andrades (2015), os recursos captados pelas
doações do Imposto de Renda, a serem repassados às entidades assisten-
ciais, cadastradas e monitoradas pelos respectivos Conselhos Municipais
dos Direitos da Criança e Adolescentes – os chamados “Comdicas Mu-
nicipais” -, a somarem-se às efetivas doações das Igrejas, dos clubes de
serviços e demais contribuições espontâneas da sociedade, no custeio à
assistência a maior quantidade de crianças e adolescentes carentes e em si-
tuação de vulnerabilidade. Inicialmente alimentando-as e protegendo das
drogas e violações. E a partir daí viabilizar, via carinho, educação, ativida-
des esportivas, lúdicas e acesso às tecnologias, a sua inserção social e prepa-
ração para a dignidade do trabalho, como a forma mais eficaz de combater
a violência pela prevenção, na base, pela criança. Pois com a devida vênia,
a segurança de toda a obra inicia, ao natural, na solidez da sua base.
E de fato, essa é certamente uma questão premente. Embora o nú-
mero de pessoas que vivem em extrema pobreza tenha diminuído, ainda
é necessário um maior enfrentamento político nacional e entre os líde-
res mundiais. Igualmente, abordar a desigualdade de forma efetiva é uma
a solução para a pobreza, e muitas partes precisam trabalhar juntas para
que esta desapareça. Incluindo um governo, verdadeiramente democrá-
tico, assim como a sociedade civil em funcionamento, e que use a receita
tributária de maneira apropriada e instituições que ofereçam assistência
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médica, educação, água, eletricidade e serviços essenciais para uma vida
digna (SOUZA, 2015).
Neste contexto, Tisatto (2016) afirma que existem várias maneiras de
fazer uma doação e, as várias necessidades que os seres humanos enfren-
tam, como exemplos os haitianos, brasileiros, africanos, entre outros, no-
ta-se que as estruturas sociais, em sua maioria, não se preparam de forma
a atender com justiça e igualdade. Destaca-se que os Direitos Humanos,
proclamados ainda em 1948, vêm ao encontro de uma necessidade de his-
tórico-social: garantir direitos fundamentais ao homem.
Tais direitos refletem as necessidades humanas básicas; eles estabele-
cem os padrões essenciais sem os quais as pessoas não podem viver com
dignidade. Direitos humanos são sobre igualdade, dignidade, respeito, li-
berdade e justiça. Exemplos de direitos incluem a liberdade, o direito à
vida, à saúde, a liberdade de expressão, o direito ao casamento e à família
e, o direito à educação (PIOVESAN, 2016).
Nesse argumento, Antonio Enrique Pérez Luño (2013) explica que
o sistema político e jurídico será orientado para o respeito e promoção
da pessoa humana em sua dimensão individual, se for um Estado liberal,
ou coletivo, se for um Estado social de direito. Na convivência política,
os direitos fundamentais gozarão de maior proteção se houver um maior
Estado de Direito, ao contrário, um menor estado de direito, e menor
proteção dos direitos fundamentais.
Da mesma forma, toda criança deve ser tratada com dignidade, aten-
didas as suas necessidades básicas para sua proteção integral (MARTINS;
KUPERMANN, 2017). O surgimento do princípio do melhor interesse
da criança, conforme Siqueira et al. (2013), afirma seguramente que no
Brasil se consagrou por meio da ratificação da Convenção Internacional
sobre os Direitos da Criança, se deu por conta da alta valoração e preo-
cupação da lei com a criança e o adolescente, tida como célula-máter à
sociedade. Tal princípio permite o integral desenvolvimento de sua per-
sonalidade e é diretriz solucionadora de questões conflitivas advindas das
desigualdades, teoricamente.
Nesta concepção, é dever da família, da sociedade e do Estado as-
segurar à criança e ao adolescente, o direito à vida com dignidade, com-
prometendo-se a tomar ações efetivas para erradicar todas as formas de
exploração infantil, e medidas decisivas para proporcionar a concretização
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
das necessidades básicas das mesmas, como alimentação adequada, edu-
cação, saúde, entre outras, fortalecendo os sistemas formais e informais de
proteção à criança em todos os níveis.
1.3 Proposição: para Obtenção dos Recursos ao
Combate à Violência pela Prevenção – Planos A e B –
A ideia central desta proposição surgiu em meados de 1998, pela ex-
periência pessoal como Contador, Secretário Municipal da Fazenda de
Passo Fundo/RS e Auditor-Fiscal da Receita Estadual. Trata-se de uma
proposição que busca apontar a captação de recursos, com a finalidade de
investir na criança e no adolescente, entendendo que a partir da alimen-
tação adequada e diária para pais e filhos, os mesmos terão a chance para
ampliar e qualificarem-se dignamente para uma vida plena e, tais propos-
tas possibilitam a viabilizar a geração de tributos, novos empregos, e assim
o desenvolvimento econômico do país.
De Norman Borlaugh, Prêmio Nobel da Paz de 1970: “Pessoas fa-
mintas se tornam raivosas. Elas não compram alimentos, mas armas”. E
nessa tese a origem maior da violência está na fome, e forte no gemido
dos filhos. Pode se iniciar nos pequenos furtos ainda na infância pelas ne-
cessidades, e daí para as drogas e outros delitos, se não houver correção
imediata, é um passo (ANDRADES, 2015).
E nessa tese a origem maior da violência está na fome, e forte no
gemido dos filhos. Pode se iniciar nos pequenos furtos ainda na infância
pelas necessidades, e daí para as drogas e outros delitos, se não houver
correção imediata, é um passo. Na linha, inclusive, da afirmação do então
presidente Lula ao jornal “O Estadão de 17.05.2006”, quando dos atos
de extrema violência e vandalismos em São Paulo, seguindo-se no Rio,
em Santa Catarina, e hoje pelo país, “de que essas pessoas eram crianças
na década de 1980, quando não se cuidou direito delas”. E também da
afirmação ao jornal Zero Hora de 17.05.2015, do ministro do STF Marco
Aurélio Mello, de que “caso ocorra redução da maioridade penal de 18
para 16 anos, o adolescente, sairá da cadeia pior do que entrou, voltando
a delinquir”.
E, insegurança esta praticamente em todos os países. E cujo agrava-
mento, conforme as notícias diárias na imprensa, que aponta para a ne-
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cessidade, urgente, das referidas ações/doações a viabilizarem e de forma
permanente, a totalidade de tais recursos legais do IR a custearem, e por aí
sim, a construção e manutenção de uma efetiva segurança nacional. E não
somente pela repressão a altos custos e resultados discutíveis, mas também
e principalmente através da maior eficácia das ações preventivas. E estas,
de enfatizar-se, através da assistência à maior quantidade de tais crianças
e adolescentes carentes e em situação de vulnerabilidade. Inclusive, por
legislação paralela, também para assistência aos idosos carentes e à própria
cultura. E para o que, peço vênia para os planos “A e B” que seguem:
• Plano “A”: emergencial, mas temporário, até a viabilização do
plano “B”, e a ser também monitorado pelos respectivos “Com-
dicas Municipais”, na participação das populações locais, através
de doações espontâneas de pequenos valores (o equivalente, por
exemplo, a uma cerveja mensal), e indicados pelos próprios doa-
dores e assim acrescidos e pagos nas contas mensais da água, ou
da luz ou de outras possíveis, e a serem também creditados aos
respectivos “Funcriança Municipais”. E formato este, possível
sim, na mesma linha da cobrança mensal da “Taxa de Lixo” pelas
Prefeituras Municipais (em Passo Fundo/RS, através das contas
da luz). - E por aí, de tais contribuições/doações espontâneas re-
forçarem às referidas baixas doações do IR no custeio à assistência
à maior quantidade de tais crianças e adolescentes. E contribui-
ções/doações estas, na lógica e ontologia de uma Justiça Supre-
ma, como possíveis e justos créditos na contabilidade da vida de
tais doadores, conforme, inclusive, os apontamentos na matéria
“Débitos e Créditos da Vida”, no livro sobre a História da Aca-
demia de Ciências Contábeis/RS. E que por espontâneas podem
ser canceladas a qualquer momento pelos doadores, se assim de-
cidirem;
• Plano “B”: que aponta para a necessidade, urgente, de um novo
formato para que as chamadas “doações legais do IR” de até 1% e
6%, já fiquem automaticamente creditadas nas contas dos respec-
tivos Funcriança Municipais, no momento dos pagamentos des-
te tributo. – Algo semelhante no Brasil, ao pagamento do IPVA
(Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores), em que
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os percentuais de 50% pertencentes aos municípios do empla-
camento, já ficam automaticamente creditados nas respectivas
contas municipais no momento de tais pagamentos. – E sendo,
que tais doações do IR pelas pessoas jurídicas com diversas uni-
dades ou filiais, a serem creditadas automaticamente aos respec-
tivos Funcrianças municipais na proporção das respectivas bases
de cálculos nelas produzidas, conforme seus dígitos de controles
nos CNPJs.
Pois somente através de formatos nessa linha serão possíveis tais re-
cursos legais, que somados às já mencionadas doações das pessoas físicas,
a custearem essa assistência - que nas circunstâncias, como a forma mais
eficaz de reduzir a fome e as desigualdades, e assim as principais causas
da violência, na base, pela criança -. Os resultados certamente não serão
imediatos, mas há que se iniciar. E por aí, até pelo giro de tais recursos
nas respectivas economias, à geração de mais empregos e tributos locais.
Quando, então, poderá ser dispensado o plano “A”.
Assim a presente proposição, para análises pela sociedade e as próprias
autoridades sobre a sua pertinência, ajustes e/ou complementações, a plei-
tearem formato nessa linha junto à Receita Federal e ao próprio Minis-
tério da Fazenda. Inclusive, até como indicações semelhantes nos países
subdesenvolvidos, cujos imigrantes carentes vêm adentrando em nossas
cidades, e como ambulantes e outras formas, a disputarem vagas com nos-
sos irmãos brasileiros, também necessitados.
CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo objetivou propor um novo formato para as cha-
madas doações do Imposto de Renda, visando à proteção da criança e
do adolescente, descrevendo apontamentos, orientações e até chamamen-
tos aos contribuintes “chamados potenciais” do Imposto de Renda – as
pessoas jurídicas do lucro real e as físicas do ajuste completo -, para as
suas destinações anuais aos respectivos Fundos Municipais dos Direitos da
Criança e Adolescente, as chamadas doações aos Funcrianças Municipais.
Nessa perspectiva entende-se que o governo brasileiro, com o intuito
de beneficiar entidades filantrópicas, criou mecanismos dentro da lei tri-
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butária para estimular pessoas físicas e empresas a se envolverem em pro-
jetos sociais, o que, por um lado, agrega valor à imagem dessas empresas
perante a sociedade e, por outro, viabiliza recursos para o custeio desses
projetos sociais. Vellozo acrescenta: Pessoas físicas e jurídicas podem ser
beneficiadas, ao destinarem tais recursos às entidades sociais. E estes, a
custearem a necessária assistência às crianças e adolescentes carentes, in-
clusive idosos, nas respectivas comunidades.
A responsabilidade social é a conscientização posta em prática por
empresários - a execução do papel empresarial além de seus objetivos
econômicos -. E como membros da sociedade em que estão inseridas, as
organizações devem participar mais ativamente em projetos sociais e am-
bientais. E assim na prevenção das adversidades sociais. A sociedade tem
cobrado das empresas um maior envolvimento nas questões sociais e vem
dando preferência a produtos e serviços de empresas que contribuam de
certa forma para o bem-estar das comunidades.
No Brasil, a carga tributária é elevada. Sendo, entretanto, que expres-
siva parte dos recursos recebidos por meio da arrecadação de impostos é
revertida em mecanismos para permanência de poder e não retorna como
deveria, para o desenvolvimento social do povo. A proposta descrita diz
respeito ao cidadão, para que este seja coparticipante na decisão para dire-
cionar o maior percentual do Imposto de Renda para a entidade que mais
necessitar e em seu município, pois, com o rateio, fica impossível atender
à entidade que se encontra em pior estado. Mas, mesmo com essas ques-
tões a serem decididas, a lei permite a utilização desse benefício em favor
dos contribuintes.
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EFETIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO
À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA:
URGÊNCIA DA PRIMEIRA INFÂNCIA
Michel Ernesto Flumian58
INTRODUÇÃO
O estado nutricional de crianças impacta a sociedade, e, de forma
geral podem trazer uma falsa percepção da realidade, eis que o choque
com a visão de uma criança extremamente magra, em aparente situação
de desnutrição, produz comoção e revolta. Por outro lado, a imagem do
bebê com excesso de peso para a idade, resulta muitas vezes em comoção
no olhar e vontade de ter um maior vínculo e interação com a criança, a
qual no nosso imaginário seria uma representação saudável. A fragilidade
da vida é sensível à humanidade de forma geral, especialmente, quando o
envolvido é um infante, o que justifica o texto, mas longe de uma palvra
final sobre as questões adiante tratadas, objetiva-se não somente o desper-
tar para o debate, mas para a perspectiva de surgimento de novos instru-
mentos e teses que possam efetivar a execução de direitos fundamentais
com relação as crianças, em especial.
Tem ainda como escopo a análise sobre a indispensabilidade de se-
rem observados parâmetros adequados para que as crianças tenham não
58 Doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – DINTER USP/UFMS;
Mestre em Tutela Jurisdicional no Estado Democrático de Direito (UNITOLEDO) e Especia-
lista em Direito Empresarial (UFMS). Professor adjunto - UFMS, Campus de Três Lagoas.
Bolsista CAPES.
231
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
somente o acesso aos alimentos, mas os recebam com qualidade; revisa-se
a bibliografia; pondera-se sobre estudos, relatórios e a legislação. E ainda,
em certa medida, contextualiza o Direito Fundamental à Alimentação
Adequada desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem; analisa
a segurança alimentar e nutricional; investiga, no Brasil, alguns dos ins-
trumentos instituídos para minorar os efeitos da fome e da alimentação
inadequada e estrita observância da Doutrina da Proteção Integral.
Diante de todo o colacionado, versa-se ao final sobre circunstâncias
envolvendo à alimentação adequada, a primeira infância e repercussões
em algumas das órbitas jurídicas que se relacionam com o assunto e a
necessidade de compreender-se que se está diante de uma situação que
exige tratamento em rede e em patamar diferenciado, uma vez que não
somente impacta a criança, mas os atores com deveres envolvidos (Estado,
Sociedade e Família).
1. O Direito Humano à Alimentação Adequada - DHAA
Atualmente são diversos os interesses relativos à questão alimentar
e nutricional, eis que relacionadas com aos sociais, culturais, políticos e
econômicos, razão pela qual sua concepção ainda é assunto debatido por
variados segmentos da sociedade, no Brasil e no mundo.
Ainda durante a Primeira Guerra Mundial, o termo segurança ali-
mentar passou a ser utilizado na Europa e já era possível observar uma
tensão política em órgãos recém criados, eis que haviam “aqueles que en-
tendiam o acesso ao alimento de qualidade como um direito humano e
aqueles que compreendiam que a segurança alimentar seria garantida por
mecanismos de mercado” (ABRANDH, 2013, p. 11). Após a Segunda
Guerra, a questão alimentar acabou por ser tratada como uma questão
de insuficiente disponibilidade de alimentos e, basicamente, para sua so-
lução, se deveria utilizar o excedente dos países ricos eis que os países
pobres teriam dificuldades em atender os níveis necessários de produção
(ABRANDH, 2013, p. 11).
É na Conferência Mundial de Alimentação de 1974, após crise mun-
dial de alimentos, que se identifica que a garantia da segurança alimentar
passa pela necessidade de armazenamento e de oferta de alimentos, bem
como reconhece-se que a pobreza e falta de acesso aos recursos necessá-
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rios trazia insegurança alimentar às populações. Apenas no início da dé-
cada de 1990 o conceito de segurança alimentar passou a incorporar o
aspecto nutricional (ABRANDH, 2013, p. 12)
Com estas preocupações iniciais, desenvolveram-se regramentos in-
ternacionais e nacionais sobre o Direito Humano à Alimentação Adequa-
da, tal como se vê a seguir.
1.1. O DHAA na órbita internacional e nacional, metas e
objetivos. Algumas considerações
A Assembleia Geral das Nações Unidas, visando “promover o pro-
gresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais am-
pla”, menciona no preâmbulo de sua declaração mais famosa que o “reco-
nhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana
e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo”, de modo a colocar a pessoa a salvo de toda a
necessidade, a realizar-se pela “adoção de medidas progressivas de cará-
ter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua
observância universais e efetivos” (ONU, 1948) e o Direito Humano à
Alimentação Adequada não escapa de tal definição, assim como descrito
no artigo XXV:
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegu-
rar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação,
vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indis-
pensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de
subsistência fora de seu controle (ONU, 1948).
Já no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966) os Estados membros se comprometeram com progressiva efetivação
dos direitos que ali foram reconhecidos (art. 2º, §1), dentre os quais destaca-
-se o direito de toda a pessoa humana ao acesso à alimentação, vestimenta e
moradia adequadas, em um nível adequado para si e para sua família.
Em destaque, os Estados-partes “reconhecem o direito fundamen-
tal de toda pessoa estar protegida contra a fome”, de modo que indivi-
233
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
dualmente ou mediante cooperação internacional adotarão as medidas.
Consigna-se que não são apenas promessas, pois a norma internacional
dita “inclusive programas concretos”, necessários a promover melhores
métodos de produção e distribuição de gêneros alimentícios, realizar a
difusão de “princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento
ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a ex-
ploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais”, bem como
“assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais
em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos
países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios”
(§ 2º, do art. 11).
Numa interpretação mais adequada do diploma internacional não
bastava afirmar que o direito à alimentação é suprido simplesmente pelo
acesso a todo e qualquer gênero alimentício, pois a alimentação deve ser
adequada e de modo a garantir elevado nível de saúde física e mental (art.
12, 1º), porém, a relevância da segurança alimentar e nutricional só foi ob-
jeto amplo e relevante debate na Cúpula Mundial de Alimentação59, ocor-
rida em Roma, oportunidade em que os Chefes de Estado de Governo,
inclusive a União Europeia em suas áreas de competência, ratificaram a
necessidade de “todos a terem acesso a alimentos seguros e nutritivos, em
consonância com o direito a uma alimentação adequada e com o direito
fundamental de todos a não sofrer a fome”, comprometendo-se a atingir
uma segurança alimentar para todos e erradicar a fome, em todos os países.
Naquela oportunidade ainda fora firmado o compromisso “de redu-
zir, até metade do seu nível atual, o número de pessoas subalimentadas
até, ao mais tardar, o ano 2015”, considerando “(...) intolerável o fato que
mais de 800 milhões de pessoas, a nível mundial, e, particularmente, dos
países em desenvolvimento, não tenham alimentos suficientes para a satis-
fação das suas necessidades nutricionais básicas”.
Ocorre que passados aproximadamente cinco anos desde a data aci-
ma referenciada e após anos de declínio constante, a tendência da fome
no mundo, que é medida pela prevalência da desnutrição, foi revertida
em 2015. Segundo relatório lançado por cinco agências da ONU no ano
59 Gerou a Declaração de Roma Sobre a Segurança Alimentar Mundial & Plano de Ação da
Cúpula Mundial da Alimentação (13-17 de novembro 1996). A iniciativa foi da Organização
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
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de 2019. Nos últimos três anos anteriores à divulgação, as taxas perma-
neceram praticamente inalteradas em um nível ligeiramente abaixo de
11%. “No entanto, o número de pessoas atingidas pela fome aumentou
lentamente”, o que se verifica por fatos e números, uma vez que em
2018 havia 821,6 milhões de pessoas com fome no mundo; 2 bilhões
de pessoas (26,4%) em situação de insegurança alimentar moderada ou
grave; bebês que nasceram abaixo do peso: 20,5 milhões (um em sete);
crianças menores de cinco anos afetadas por estatura baixa (baixa estatu-
ra para idade): 148,9 milhões (21,9%); crianças menores de 5 anos afe-
tadas por “desperdício” (peso baixo em relação à altura): 49,5 milhões
(7,3%) (ONU, 2019).
O relatório também faz um alerta sobre o sobrepeso e a obesidade,
que continuam a aumentar em todas as regiões, particularmente entre
crianças em idade escolar e adultos, estimando que em 2018, 40 milhões
de crianças menores de cinco anos (5,9%) estavam acima do peso. Tais
números, a ausências de planos avançados de efetivação do direito aqui
tratado, bem como a ausência de especial atenção com relação aos infan-
tes e a situação pandêmica, frustrarão os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável, os quais em especial quanto ao Brasil, possuem as seguintes
metas (2. Fome Zero e Agricultura Sustentável):
Meta 2.1
Até 2030, erradicar a fome e garantir o acesso de todas as pes-
soas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis,
incluindo crianças e idosos, a alimentos seguros, culturalmente
adequados, saudáveis e suficientes durante todo o ano.
Meta 2.2
Até 2030, erradicar as formas de má-nutrição relacionadas à des-
nutrição, reduzir as formas de má-nutrição relacionadas ao sobre-
peso ou à obesidade, prevendo o alcance até 2025 das metas acor-
dadas internacionalmente sobre desnutrição crônica e desnutrição
aguda em crianças menores de cinco anos de idade, e garantir a
segurança alimentar e nutricional de meninas adolescentes, mu-
lheres grávidas e lactantes, pessoas idosas e povos e comunidades
tradicionais (IPEA, 2019).
235
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
De um modo geral, pode-se constatar que o direito fundamental em
tela há muito já faz parte de nosso ordenamento, uma vez que a constru-
ção histórica e evolutiva do conceito de saúde mostrou:
[...] a necessidade de intervenção estatal para assegurar as condi-
ções mínimas de sobrevivência digna ao homem. Tal constatação
culminou com o reconhecimento de alguns direitos por parte
do Estado, os chamados direitos sociais. Entre estes, destaca-se o
direito à saúde, de natureza pública subjetiva, exigível do Estado
(CURY, 2005, p. 38).
Assim, antes de ser objeto expresso no texto constitucional, o orde-
namento brasileiro já tratava do Direito Fundamental à Alimentação Ade-
quada como direito social de maneira indireta e também direta, tal como
ocorre na Lei 8.080/90 (Lei do SUS), que dispõe sobre as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde.
Tal norma prevê que “a saúde é um direito fundamental do ser huma-
no, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exer-
cício” (art. 2º, caput). Determina ainda que para garantir a saúde, o dever do
Estado consiste na formulação de políticas públicas que “visem à redução
de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições
que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços”, o que
não exclui o dever das pessoas, das famílias, das empresas e da sociedade
para promoção, proteção e recuperação da saúde (art. 2º, §§ 1º e 2º). As
ações que, por força do disposto no artigo 2º, da Lei do SUS, se destinam a
garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e
social, também dizem respeito à saúde (art. 3º, parágrafo único).
A alimentação é reconhecida expressamente como fator determinan-
te e condicionante da saúde, e, a organização social e econômica do país
como um dos reflexos dos níveis de saúde da população (art. 3º, caput, da
Lei 8.080/90) e antes mesmo da Lei do SUS, o Brasil já trabalhava espe-
cificamente com ações para melhorar o acesso à alimentação, tal como
a criação do salário mínimo (década de quarenta), porém, instrumentos
mais eficazes e direcionados foram produzidos posteriormente.
Considerações à parte, não se pode falar do Direito à Alimentação
Adequada sem afirmar a íntima ligação do mesmo com o Direito à Vida
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e ao Princípio da Dignidade Humana, tampouco se encontra resistência
quanto à aplicabilidade direta dos direitos fundamentais de defesa e a sua
aptidão a gerar todos os seus efeitos jurídicos, o que não ocorre com aque-
les direitos de prestação:
[...] que tem por objeto uma conduta positiva por parte do des-
tinatário, consistente, em regras, numa prestação de natureza fá-
tica ou normativa, razão pela qual a razão está com Canotilho ao
enfatizar a necessidade de ‘cimentar juridicamente’ o estatuto ju-
rídico-constitucional dos direitos sociais, econômicos e culturais
(CANOTILHO, 1998, p. 36 apud SARLET, 2006, p.293-4).
Bem assim, a consagração da alimentação adequada como direito
fundamental é uma realidade, pois não só foi mencionada diretamente
pelo texto da Constituição em capítulo próprio, mas também preenche
aspectos que lhe conferem esta relevância. A alimentação como Direito
Social reconhecido expressamente pela Constituição decorre da Emenda
Constitucional nº 64/2010, e respalda a Lei Orgânica de Segurança Ali-
mentar e Nutricional (Lei nº 11.346/2006). A LOSAN estabelece em seu
artigo 3º que a segurança alimentar e nutricional – SAN:
(...) consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e
permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente,
sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo
como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem
a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e
socialmente sustentáveis.
Já as situações de insegurança alimentar e nutricional estão associadas
a questões que envolvem a fome, a desnutrição, a obesidade, doenças as-
sociadas à má alimentação, ingestão de alimentos, inclusive água de qua-
lidade duvidosa ou prejudicial à saúde, propaganda enganosa, rotulagem
em desconformidade com normas da ANVISA – Agência Nacional de
Vigilância Sanitária, por exemplo, bem como estrutura de produção de
alimentos predatória em relação ao ambiente e bens essenciais com preços
abusivos e imposição de padrões alimentares que não respeitem a diversi-
dade cultural.
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De igual modo, cada país tem o direito de definir suas próprias polí-
ticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de ali-
mentos que garantam o direito à alimentação para toda população (sobera-
nia alimentar), respeitando as múltiplas características culturais dos povos,
garantia legal estampada no artigo 5º, da LOSAN, porém, nem todo esse
arcabouço fático e legal mostra-se suficiente para superar déficits seculares
de falta de atenção com relação aos menores de idade, em especial, com
relação aqueles ainda na primeira infância.
2. INFÂNCIA E HIPERVULNERABILIDADE: CARÊNCIA DE
EFETIVIDADE SISTÊMICA
A criança, o adolescente e o jovem são carecedores de atenção espe-
cial e destinatários de normas que lhes garantam a proteção integral, po-
rém para os fins desse trabalho, como já afirmado, promove-se um corte,
permitindo foco maior na primeira infância, a qual constitui um grupo
reconhecido por sua hipervulnerabilidade em diversos aspectos, sejam eles
biológicos, psíquicos, materiais, morais ou jurídicos.
Encontra assento constitucional no artigo 227, o princípio do me-
lhor interesse da criança e do adolescente, o qual é previsto no artigo 41
da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, determinando
que nada pode afetar as disposições que sejam mais favoráveis para a reali-
zação dos direitos da criança. Ademais, o reconhecimento da criança (de-
finição no instrumento internacional) como sujeito de direitos em desen-
volvimento, dotado de um melhor interesse e de dignidade humana, não
encontra similar no mundo, eis que 196 países assinaram a Convenção.
Inescapável, portanto, que não somente o Direito Humano à Ali-
mentação Adequada mas também a infância e adolescência, de forma ge-
ral, são dotadas da fundamentalidade que cerca o direito constitucional, em
seus aspectos formal e material como aponta J. J. Canotilho (2006, p. 378)
ao citar R. Alexy.
Uma vez que se “possa dizer que o primeiro direito fundamental do
ser humano é o de sobreviver” (RODRIGUES, 1998, p. 365) e alimen-
tação adequada, em Direito, significa muito mais do que isso, pode-se
afirmar que ela preenche os requisitos de fundamentalidade formal (constitu-
cionalização) e fundamentalidade material (relevância para o Estado onde tal
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
direito se insere), e, assim, não pode ser objeto de limitação de sua natu-
reza ou de retrocesso em sua amplitude, devendo o Estado e a Sociedade
providenciarem a sua observância e cumprimento, sem que se esqueça do
papel da Família, eis que já de algum tempo “(...) calha lançar luz sobre
a crescente percepção do cuidado como valor jurídico apreciável e sua
repercussão no âmbito da responsabilidade civil (...)”, sendo “possível se
afirmar que tanto pela concepção, quanto pela adoção, os pais assumem
obrigações jurídicas em relação à sua prole, que vão além daquelas chama-
das necessarium vitae” (BRASIL, 2012).
Destarte, não há como não se reconhecer o direito fundamental à ali-
mentação adequada e a integral proteção de crianças e adolescentes, como
resultado da “constitucionalização” de Direitos Subjetivos, ou como por
vezes discorrem, Direitos Humanos – pautas ético-políticas, direitos mo-
rais, - nos dizeres de Ruiz Miguel, citado por Willis Santiago Guerra Fi-
lho, situados em uma dimensão supra-positiva (2005, p. 43-44).
Infraconstitucionamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o
qual determina que o melhor interesse seja observado, consolidou a dou-
trina da proteção integral . Assim, nos termos do artigo 3º, do Estatuto, a
criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes
à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata o Estatu-
to, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades
e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, mo-
ral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Assevera
ainda o parágrafo único que os direitos enunciados na lei aplicam-se a
todas as crianças e adolescentes, sem qualquer discriminação.
A proteção especial surge na Declaração dos Direitos da Criança,
proclamada em 1959, e fora reafirmada no artigo 3° da Convenção sobre
os Direitos da Criança de 1989:
Artigo 3º
§1. Todas as medidas relativas às crianças, tomadas por instituições
de bem estar social públicas ou privadas, tribunais, autoridades ad-
ministrativas ou órgãos legislativos, terão como consideração pri-
mordial os interesses superiores da criança.
§2. Os Estados Membros se comprometem a assegurar à criança
a proteção e os cuidados necessários ao seu bem estar, tendo em
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conta os direitos e deveres dos pais, dos tutores ou de outras pessoas
legalmente responsáveis por ela e, para este propósito, tomarão to-
das as medidas legislativas e administrativas apropriadas.
§3. Os Estados Membros assegurarão que as instituições, serviços
e instalações responsáveis pelos cuidados ou proteção das crianças
conformar-se-ão com os padrões estabelecidos pelas autoridades
competentes, particularmente no tocante à segurança e à saúde das
crianças, ao número e à competência de seu pessoal, e à existência
de supervisão adequadas.
Na obra “Tratado de Direito de Família”, o professor emérito da
Universidade Federal de Alagoas, Paulo Lôbo, afirma que o princípio
do melhor interesse da criança e do adolescente significa que eles devem
ser tratados com prioridade, pelo Estado, pela sociedade e pela família,
seja na confecção, seja na execução de medidas que lhes digam respeito
a seus direitos, especialmente nas relações familiares e reconhecidamente
como seres humanos em desenvolvimento e dotados de dignidade (2015,
p. 123).
Emerge de todo o colacionado uma extensa gama de vulnerabilidades
as quais se sujeitam as crianças e adolescentes, com a possibilidade de se-
rem elas jurídicas, econômicas, sociais, técnicas e/ou psicológicas, sendo:
(...) inquestionável que a falta de maturidade física e intelectual da
criança a coloca em situação especial de integral proteção na defesa
dos direitos fundamentais da pessoa humana ainda em fase de de-
senvolvimento e, estando a criança e o adolescente nesta condição
especial de maior vulnerabilidade é natural que seja destinatária de
um regime especial de salvaguardas, cujas garantias são necessá-
rias para a construção de sua integral potencialidade como pessoa
(MACHADO, 2003, p. 109).
Com um papel superior e preponderante no embasamento da criação
ou reforma de toda e qualquer norma reguladora, no campo da família
e no norteamento de processos de reforma administrativa, de implanta-
ção e implementação de políticas, programas, serviços e ações públicas, a
Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 24 de
24 0
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
setembro de 1990 “assegura as duas prerrogativas maiores que a sociedade
e o Estado devem conferir à criança e ao adolescente”, com vistas a ope-
racionalizar seus Direitos Fundamentais: “cuidados e responsabilidades”
(BRASIL, 2006, p. 21).
As crianças e os adolescentes têm direitos subjetivos à liberdade, à
dignidade, à integridade física, psíquica e moral, à educação, à saú-
de, à proteção no trabalho, à assistência social, à cultura, ao lazer,
ao desporto, à habitação, a um meio ambiente de qualidade e ou-
tros direitos individuais indisponíveis, sociais, difusos e coletivos. E
consequentemente se postam, como credores desses direitos, dian-
te do Estado e da sociedade, devedores que devem garantir esses
direitos. Não apenas como atendimento de necessidades, desejos
e interesses, mas como Direitos Humanos indivisíveis, como os
qualifica a normativa internacional – como direito a um desenvol-
vimento humano, econômico e social. São pessoas que precisam
de adultos, de grupos e instituições, responsáveis pela promoção e
defesa da sua participação, proteção, desenvolvimento, sobrevivên-
cia e, em especial, por seu cuidado (BRASIL, 2006, p. 24).
Não se trata apenas de recomendações éticas, mas de obrigação de
observar a prioridade dos direitos da criança e do adolescente e imple-
mentar seus direitos, seja nas relações com seus pais ou responsáveis, com
sua família, com a sociedade e com o Estado. Luiz Edson Fachin, na obra
“Da paternidade: relação biológica e afetiva” consagra o princípio como
“critério significativo na decisão e na aplicação da lei”, os menores são
seres que gozam de prioridades. Há ainda o desafio de que as crianças e
adolescentes sejam reconhecidos como sujeitos de direitos, efetivamente,
e que essa população deixe de “ser tratada como objeto passivo, passando a
ser, como adultos, titular de direitos juridicamente protegidos”, conforme
afirma Tânia da Silva Pereira, no artigo “O princípio do “melhor interesse
da criança”: da teoria à prática” publicado na Revista Brasileira de Direito
de Família (LÔBO, 2015. p. 124).
A reforçar a necessidade de se se empreender esforços em prol daque-
les reconhecidamente vulneráveis, transcreve-se a opinião de Rolf Ma-
daleno:
24 1
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Dotados de direitos especiais, têm as crianças e adolescentes, por
sua exposição e fragilidade, prioridade em sua proteção, como fato
natural dessa etapa de suas vidas, quer fiquem expostas por ação
ou omissão da sociedade ou do Estado, ou por abuso dos pais ou
responsáveis. Crianças e adolescentes são destinatários do princí-
pio dos melhores interesses, conceito jurídico induvidosamente
indeterminado, mas que sempre haverá de prevalecer em favor do
infante quando em confronto com outros valores, pois sempre será
necessário assegurar o pleno e integral desenvolvimento físico e
mental desse adulto do futuro, sujeito de direitos.
A vulnerabilidade dos infantes é decorrência natural da dependên-
cia que eles têm dos adultos, pois podem ser pacientes das mais
variadas formas de agressão, assim como vítimas de uma violência
corporal ou sexual, ou de abandono físico, psicológico, afetivo ou
material. Qualquer ofensa à integridade física ou psíquica do in-
fante converte a sua vida em um emaranhado de consequências
devastadoras. Por isso que ao menor abalo à sua integridade física,
psicológica ou financeira, a ameaça precisa ser pronta e priorita-
riamente neutralizada, e essa proteção depende da atividade dos
adultos e de seus responsáveis diretos, pais, tutores e representan-
tes, para que os menores cresçam sem temores, sem percalços e
conquistem no devido tempo seus próprios mecanismos de defesa
e de sobrevivência, e desse modo possam gerar paulatinamente a
sua independência, em conformidade com os seus níveis de auto-
determinação, que vão mudando de acordo com o avanço de sua
idade, e assim desenvolver sua personalidade, adquirir confiança,
autoestima, e se colocar a salvo das sequelas causadas pela insensi-
bilidade dos adultos (2018, p. 106).
Em específico, as evidências científicas apontam que para o ade-
quado desenvolvimento das potencialidades humanas, é essencial a
correta nutrição nos primeiros anos de vida da criança, a qual deve ser
bem conduzida e adequada as necessidades das fases de crescimento e
desenvolvimento infantil, sob pena de favorecer o surgimento de dis-
túrbios nutricionais graves para a vida adulta (WEFFORT, 2013 apud
GALEGO, 2019, p. 455).
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Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Eco-
nômico (OCDE), nominado “O pesado fardo da obesidade: a economia
da prevenção” (OCDE, 2019) em tradução livre, indica que “nas pró-
ximas três décadas, o excesso de peso ceifará até 92 milhões de vidas na
OCDE, com a obesidade e as doenças relacionadas ao excesso de peso
reduzindo a expectativa de vida em quase 3 anos até 2050”. Fato é que o
sobrepeso e a obesidade avançam rapidamente, inclusive no Brasil, o qual
se aproxima de taxas de países ricos (FERNANDES, 2019).
Mas apesar dos indicativos, os quais avançaram nos últimos anos e de-
terminaram urgência de atuação em órgãos internacionais e governos, com a
adoção de novas normativas e metas a serem atingidas, são os mesmos estudos
que demonstram a falha na concretização de Direitos Fundamentais, sobretu-
do daqueles que pode-se afirmar hipervulneráveis, tais como crianças.
Ocorre que dentre aqueles, a legislação brasileira (Lei 13.257/16),
confere especial relevância à chamada primeira-infância60, conforme se
depreende dos termos se seu artigo primeiro, que “estabelece princípios e
diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a
primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros
anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser hu-
mano”, de modo a eleger a alimentação e a nutrição, dentre outras, como
áreas prioritárias para as políticas públicas, bem como a proteção contra
toda forma de violência e de pressão consumista e a adoção de medidas
que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica (artigo 5º,
da Lei nº 13.257/16).
Ocorre que apesar de toda a evolução científica e as facilidades de
acesso aos alimentos e às melhores informações, inclusive sobre os aspec-
tos alimentares e nutricionais, não se atingiu, e, ao que os estudos indi-
cam, não se atingirá brevemente, um patamar adequado para a satisfação
do direito humano à alimentação adequada na infância, o que colide com
o texto constitucional que determina ao Estado, Sociedade e Família o
dever de assegurar à criança, em específico, “com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação (...), além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência (...)” (Artigo 227, CF).
60 Considera-se primeira infância o período que abrange os primeiros 6 (seis) anoscomple-
tos ou 72 (setenta e dois) meses de vida da criança (art. 2º, da Lei 13.257/16)
24 3
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A par de outras nuances e circunstâncias aqui não mencionadas, uma
vez que o trabalho não esgota as hipóteses que podem incidir sobre a cor-
relação tratada, é possível mencionar algumas consequências e possíveis
aplicações.
A primeira e, provavelmente, a que exige maior sinergia de todas as
categorias de profissionais que atuam junto à infância é a de efetivar com
prioridade absoluta os direitos fundamentais dos menores. Pode-se afir-
mar que por diversas vezes o ordenamento internacional e nacional ex-
pressou essa preferência e o dever de destinar tratamento diferenciados aos
infantes. É necessário um basta quanto à divergência entre o tratamento
teórico-legislativo e a prática. A contundência da necessária mudança se
perde na ideia equivocada de que o tempo proporciona a melhor solução
ao infante ou que há, indiscutivelmente, melhores oportunidades de cor-
rigir rumos de violação de Direitos Fundamentais, em específico, o da
concretização do DHAA aqui estudado.
A necessidade de efetivação do Direito à Alimentação Adequada tem
impactos nas diversas áreas prestacionais do Estado, tais como na de as-
sistência social, na de educação e na saúde. Ainda pode-se afirmar que
subsistem outros papéis estatais, tal como ocorre quanto à rotulagem e
a correta indicação dos riscos de consumo em excesso de determinados
tipos de componentes alimentares.
Quanto à sociedade, emergem diversas responsabilidades que recaem
sobre os atores, que a par de por vezes não terem obrigações legais, devem
pautar sua atuação com ética e responsabilidade social, ao menos enquanto
não se incorporam novas melhorias legislativas nesse campo.
No que toca à família, a reincidência e a insistência na má-alimen-
tação de crianças, sobretudo quanto às mais novas, conforme aqui trata-
do, deve ser tratado com maior rigor, eis que como mencionado há forte
impacto na saúde e desenvolvimento dos menores. A visão imposta pela
ordem constitucional a todos nós atinge poderosamente as relações fami-
liares e as relações familiares com a sociedade e com o Estado, este não
podendo se escusar de garantir um patamar adequado para construção do
bem estar dos menores envolvidos.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
A alimentação, ressalta-se, é ato sobretudo de prazer para muitas pes-
soas, permite momentos de confraternização e nos informam com boas
memórias. Enfermidades tidas como controláveis, nos levam ao engano
quanto à gravidade do desrespeito voluntário do cumprimento do direito
fundamental à alimentação adequada com relação aos menores, resultan-
do em espanto quando se chama a atenção para o contrário, mas ainda
insuficiente para mudanças permanentes, eis que há uma ideia leiga de
que tudo pode ser recuperado facilmente com o passar dos anos, com a
chegada da maturidade e da vida adulta.
Por fim, o dever de cuidado, a responsabilidade pela proteção integral,
garantia do melhor interesse e da prioridade com os menores (e a primeira
infância) impõe o agir cuidadoso daqueles que possuem relações parentais
com os menores. Sua falha pode impactar, por que não, na suspensão e na
perda do Poder Familiar, na troca de guarda e ainda na responsabilidade
civil por falha no dever de cuidado imposto pela legislação civil.
A questão, exige o empenho em rede e a criação ou dotação de al-
guma autoridade ou órgão para poder gerenciar o multifacetado universo
de concretização de direitos fundamentais dos infantes, sem essa coorde-
nação continuaremos a patinar na execução das medidas, ainda que nosso
discurso reste eloquente.
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ARTIGOS – DIREITO DOS
ANIMAIS
24 9
FAMÍLIA MULTIESPÉCIE E
ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO: A QUEM CABE
A GUARDA DOS ANIMAIS DE
ESTIMAÇÃO NOS CASOS DE
DIVÓRCIO
Jamile Mann61
Ana Paula Torres62
INTRODUÇÃO
Com a evolução da família, nos dias de hoje, os animais estão cada vez
mais ativos no núcleo familiar, instaurando-se, assim, uma relação de afe-
to, cuidado e carinho entre os tutores e o animal, o qual muitas vezes passa
a ser considerado como filho e membro do grupo familiar, formando-se
assim a chamada família multiespécie.
O problema de pesquisa pretende descobrir se é possível a aplicabili-
dade das normas do direito de família, perante ao animal de estimação, e
como fica sua situação em caso de divórcio ou dissolução de união está-
vel de seus tutores. Por consequência, a pesquisa justifica-se nas diversas
dúvidas existentes sobre o modo que o animal deve ser tratado perante a
separação de seus donos, devido a falta de uma legislação específica sobre
61 Bacharelanda no curso de Direito da URCAMP – Campus São Gabriel-RS.
62 Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, área de concentração em
Direito Sociais e Políticas Públicas. Docente do Curso de Direito da Urcamp, Campus São Gabriel.
251
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
o assunto e, por tratar-se de uma discussão bastante recente em nosso or-
denamento jurídico, as decisões são julgadas mediante a perspectiva dou-
trinária e jurisprudencial.
Deste modo, objetivando alcançar resultados a esta pesquisa, bus-
car-se-á dissertar a respeito do modo que deve ser aludida a questão do
animal de estimação, apurando se este deve ser considerado membro do
grupo familiar, ou apenas como um objeto na partilha dos bens do casal,
bem como definir como o animal deve ser tratado perante a separação
de seus donos, para, então, analisar se pode ser considerado membro da
família e se há a possibilidade de aplicação do direito de família nos casos
e, consequentemente, identificar a quem caberá a sua guarda e se é cabível
o direito às visitas.
Para isso, utilizou-se como método de pesquisa uma abordagem deduti-
va, por meio da análise de informações mais amplas, partindo para gradativa-
mente, obter-se uma conclusão sobre o assunto. Os métodos de procedimen-
tos utilizados são o histórico e o analítico, utilizando-se da documentação
indireta como técnica de pesquisa, através da exploração bibliográfica com a
consulta em livros, artigos de periódicos científicos, revistas e jurisprudências.
Desta forma, o trabalho está estruturado em três partes. Na primeira, é abor-
dado as famílias multiespécie e como os animais devem ser tratados nos casos
de divórcio; a segunda parte discorrerá sobre a aplicabilidade das normas do
direito de família aos animais de estimação e; na terceira será mencionado a
respeito da guarda e o direito de visitas a estes animais.
Salienta-se que nesta pesquisa inexiste a pretensão de esgotamento
do tema, por ser um assunto recente e devido à complexidade do mes-
mo. Entretanto, almeja-se trazer algumas reflexões que possam ser úteis a
outras pessoas que possuem, da mesma forma, interesse pela temática/ ou
contribuir de alguma maneira para a sua melhor compreensão.
1. FAMÍLIAS MULTIESPÉCIE: COMO OS ANIMAIS DE
ESTIMAÇÃO DEVEM SER TRATADOS NOS CASOS DE
DIVÓRCIO
No decorrer dos anos a instituição familiar passou por inúmeras
transformações, depreende-se que estas modificações causaram relevantes
mudanças no Direito Civil Brasileiro, pois, passou a ocorrer uma valori-
252
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
zação da pessoa humana, da afetividade e, acima de tudo, uma despatri-
monialização de forma geral do Direito, ou seja, o patrimônio deixou de
ser o bem mais importante a ser tutelado. Deixando, assim, a família de ser
somente a biológica e passando a ser constituída de várias formas, através
do amor, carinho e afeto construído no dia a dia (BARONI; CABRAL;
CARVALHO, 2020).
Ao observar a atual família brasileira, verifica-se que grande parte dos
casais, no início da vida conjugal, estão prorrogando a decisão de ter fi-
lhos, pelo fato de estarem priorizando cada vez mais suas formações e
crescimento profissional, decidindo, então, adquirir ou adotar um animal
de estimação. Deste modo, através da convivência, passa a existir uma
relação de afeto, cuidado e carinho entre os tutores e o animal, sendo este,
muitas vezes considerado como filho e membro do grupo familiar.
Formando-se assim, a "família multiespécie", que pode ser conceitua-
da, como aquela formada através da interação do humano com o animal
dentro de um lar, onde os humanos reconhecem os animais de estimação
como verdadeiros membros da família. (CRUZ, 2019).
No entanto, para uma família ser classificada como multiespécie pre-
cisa seguir alguns elementos, pois o simples fato de ter um animal de es-
timação em casa não é suficiente para considerá-lo como real membro da
família. Deste modo:
pontua-se o estabelecimento de uma convivência constante entre
os membros humanos e os animais de companhia, merecendo re-
levância a convivência dentro do lar, visto que, aqueles animais que
vivem na área externa da casa somada a falta de qualquer partici-
pação na rotina dos membros, bem como utilizados para outras
funções, a exemplo da guarda, já descaracterizaria a formação de
uma família multiespécie.
Ainda sobre a convivência, nota-se a preocupação dos tutores em in-
cluir de todas as maneiras seus animais de companhia nas atividades de-
senvolvidas pela família, como viagens, fotos para os álbuns de família,
compra de presentes, e, até mesmo, a realização de festa comemorativa
pelo natalício do bichinho. Todas demonstram caráter inclusivo e reafir-
mam a condição do animal como membro da família. (DIAS, 2018, s. p.).
253
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Mas, infelizmente, alguns casamentos chegam ao fim e consequen-
temente deve ser estabelecida a divisão dos bens, a guarda dos filhos e
com quem ficará o animal de estimação. Inicialmente, pensamos que não
haverá problemas, pois a divisão de bens e o direito a guarda estão devida-
mente regulamentados na legislação. Todavia, nos resta a dúvida de como
proceder em relação aos animais, se estes devem ser tratados como coisas
ou como membros da família (GOES, 2017).
Existem duas concepções sobre o assunto supracitado. A primeira,
fundamentada no artigo 82 do Código Civil, em que os animais de es-
timação são considerados como bens semoventes, que devem ser parti-
lhados da mesma forma que qualquer outro bem na ocasião do divórcio
(BRASIL, 2002).
Analisando a premissa literal do artigo citado, depreende-se que
como bens semoventes, os animais integram o patrimônio do seu pos-
suidor. Deste modo, se considerado como bem, serão passíveis de ven-
da e troca. (DIAS, 2018). Tal posicionamento é incompatível com a
atual realidade, pois, como o animal é indivisível, ao se separar, o casal
teria que vender o animal de estimação e dividir o seu valor resultan-
te. Não sendo está, a melhor solução encontrada pelos tribunais, pois
acredita-se que ninguém vai querer vender o “animalzinho” tão ama-
do. (FRANZONI, 2017).
A outra concepção é baseada nos entendimentos do STJ, no qual diz
que mesmo o animal sendo considerado “coisa” pelo Direito Civil, ele
não é um mero objeto, pois constrói uma relação com o ser humano e, a
própria Constituição Federal pondera o vínculo afetivo entre o homem e
o animal, vedando práticas que submetam animais à crueldade, assim, eles
devem receber atenção especial e diferenciada. (BARONI; CABRAL;
CARVALHO, 2020).
Nesse sentido,
O animal, por sua vez, deixa a categoria de coisa e ingressa na espe-
cial de seres sensíveis, com capacidade suficiente para demonstrar
emoções, como o sofrimento e angústia, além de receber a tute-
la necessária de proteção à vida, à segurança e ao seu bem-estar.
(SOUSA, 2020, posição 3826).
254
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Deste modo, os animais necessitam alcançar um novo espaço dentro
do direito de família, não devendo mais serem considerados bens, como
classifica o direito civil. O correto seria analisar sob uma perspectiva que
não considera os animais nem como coisas, nem como sujeito de direito,
mas sim como uma terceira categoria, a qual deve ser examinada de acor-
do com o caso em situações específicas. Conforme:
O bicho de estimação não é nem coisa inanimada nem sujeito de
direito. Reconhece-se, assim, um terceiro gênero, em que sem-
pre deverá ser analisada a situação contida nos autos, voltado para
a proteção do ser humano, e seu vínculo afetivo com o animal.
(SOUSA, 2020, posição 2431).
Compete ao Direito, adaptar-se a essa nova modalidade familiar que
está ganhando cada vez mais espaço nos lares, sendo que, este novo mo-
delo merece a mesma proteção Estatal das demais modalidades de família
e, assim, a aplicabilidade das normas do direito de família aos animais de
estimação, conforme será especificado no próximo capítulo.
2. DA APLICABILIDADE DAS NORMAS DO DIREITO DE
FAMÍLIA AOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO
Considerando que a família multiespécie está cada vez mais presentes
no lares brasileiros, é comum que o sistema jurídico brasileiro receba de-
mandas sobre conflitos de posse, guarda e regulamentação de visitas em
casos de divórcio ou dissolução de união estável. No entanto, os referidos
conflitos devem ser solucionados mediante as varas cíveis ou pelas varas
de família?
No Brasil, ainda não há uma legislação específica, que regulamente
como resolver desavenças entre pessoas em relação a guarda de um animal
adquirido. Muitas vezes a jurisprudência vem antes da legislação, pois as
questões chegam ao Judiciário, que precisa decidir sobre tais demandas,
mesmo não havendo previsão legal específica (BARONI; CABRAL;
CARVALHO, 2020).
Devido à semelhança das disputas dos animais de estimação com as
de guarda e visitas de crianças e adolescentes, animais domesticados não
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podem mais ser classificados apenas como coisas ou objetos, devendo as-
sim, serem reconhecidos como membros do núcleo familiar. (JURÍDI-
CO, 2018).
Como base para a aplicabilidade do direito de família ao animais de
estimação, temos uma decisão do STJ sobre o assunto:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DISSOLUÇÃO
DE UNIÃO ESTÁVEL. ANIMAL DE ESTIMAÇÃO. AQUI-
SIÇÃO NA CONSTÂNCIA DO RELACIONAMENTO. IN-
TENSO AFETO DOS COMPANHEIROS PELO ANIMAL.
DIREITO DE VISITAS. POSSIBILIDADE, A DEPENDER
DO CASO CONCRETO.
1. Inicialmente, deve ser afastada qualquer alegação de que a discus-
são envolvendo a entidade familiar e o seu animal de estimação é
menor, ou se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta Corte.
Ao contrário, é cada vez mais recorrente no mundo da pós-moder-
nidade e envolve questão bastante delicada, examinada tanto pelo
ângulo da afetividade em relação ao animal, como também pela ne-
cessidade de sua preservação como mandamento constitucional (art.
225, § 1, inciso VII - "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma
da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, pro-
voquem a extinção de espécies ou submetam os animais a cruelda-
de"). 2. O Código Civil, ao definir a natureza jurídica dos animais,
tipificou-os como coisas e, por conseguinte, objetos de propriedade,
não lhes atribuindo a qualidade de pessoas, não sendo dotados de
personalidade jurídica nem podendo ser considerados sujeitos de di-
reitos. Na forma da lei civil, o só fato de o animal ser tido como de
estimação, recebendo o afeto da entidade familiar, não pode vir a
alterar sua substância, a ponto de converter a sua natureza jurídica.
3. No entanto, os animais de companhia possuem valor subjetivo
único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus
donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade
privada. Dessarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mos-
trando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa fami-
liar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão
atinente à posse e à propriedade. 4. Por sua vez, a guarda propria-
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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mente dita - inerente ao poder familiar - instituto, por essência, de
direito de família, não pode ser simples e fielmente subvertida para
definir o direito dos consortes, por meio do enquadramento de seus
animais de estimação, notadamente porque é um munus exercido
no interesse tanto dos pais quanto do filho. Não se trata de uma
faculdade, e sim de um direito, em que se impõe aos pais a observân-
cia dos deveres inerentes ao poder familiar. 5. A ordem jurídica não
pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com
seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter
como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há uma
disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de
ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar
pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais pre-
cisamente, o âmago de sua dignidade. 6. Os animais de companhia
são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como
ser senciente - dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores
e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também de-
vem ter o seu bem-estar considerado. 7. Assim, na dissolução da
entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal
de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser ado-
tada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso
em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da
sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo
com o animal. 8. Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu
que a cadela fora adquirida na constância da união estável e que es-
taria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de
estimação, reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que
deve ser mantido. 9. Recurso especial não provido.
O caso analisado diz respeito a um casal, que durante a união estável
adotou um cachorro e, após o término da relação, a mulher que ficou
com a posse do animal não permitiu ao o ex-cônjuge acesso ao animal.
Desta forma, a Defensoria Pública, sob o argumento de que atualmente
os animais adentraram no âmbito de convivência e proteção das famílias,
postulou na ação de reconhecimento e dissolução de união estável a regu-
lamentação de visitas ao cachorro, a qual foi julgada extinta pelo juízo de
primeira instância por considerar a questão estranha à vara de família. No
257
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entanto, a 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São
Paulo, reconheceu que as varas de Família são competentes para solucio-
nar questões relativas à guarda e à visita de animais de estimação.
Diante a sensibilidade necessária para as decisões sobre o assunto, o
ordenamento jurídico, urge pela necessidade de uma legislação específica,
para abordar a matéria de animais de estimação disputados em casos de di-
vórcio ou dissolução de união estável. Pelo fato de que muitos casos irão
chegar ao judiciário, e nem todos os aplicadores do direito terão a sensibili-
dade necessária para lidar com o assunto em questão, podendo assim, ocor-
rer decisões injustas em relação aos tutores e aos animais. (DIAS, 2018).
Mas enquanto permanecer a inexistência de legislação específica, para
solucionar tais conflitos, entende-se que estes devem ser resolvidos na vara
de família, seguindo os entendimentos do STJ, o qual diz que as varas de
família são competentes para solucionar questões relativas à guarda e à
visita de animais de estimação.
Após compreendermos que é possível a aplicabilidade das normas do
direito de família aos animais de estimação, passamos a entender como
deve ser estabelecida a sua guarda e regulamentação de visitas em caso de
separação dos tutores.
3. A GUARDA E O DIREITO DE VISITAS AOS ANIMAIS DE
ESTIMAÇÃO
A guarda é um aspecto do poder familiar, que determina as obriga-
ções, direitos e deveres de ambos os pais em relação aos filhos. O poder
familiar é subjetivo ao estado de pai ou mãe, decorrente da filiação natu-
ral, legal ou socioafetiva, o qual não deixa de existir nos casos que não há
relação conjugal entre os genitores, nem pela separação ou divórcio destes.
(BARONI; CABRAL; CARVALHO, 2017).
O dever de guarda,
é um dos atributos mais importantes para o exercício do poder fa-
miliar, pois é ao lado dos genitores, privando da atmosfera familiar,
que os filhos estão mais eficientemente protegidos dos males físicos
ou morais que venham afetar-lhes a vida biológica ou a consciência
moral. (NORONHA apud ALMEIDA, 2020, p. 34).
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Quanto ao animal de estimação, se houver disputa por ele entre duas
pessoas após o término do relacionamento, existirá uma semelhança com
o conflito de guarda e regulamentação de visitas de uma criança, mos-
trando-se, assim, a possibilidade de aplicação dos artigos 1.583 a 1.590 do
Código Civil. (SOUSA, 2020).
Nestes casos, alguns casais conseguem estabelecer um acordo sobre
quem deverá ficar com o animal de estimação, porém, existe muitas dis-
putas para decidir quem ficará com a guarda, quando o casal não consegue
entrar num consenso. Restando-se, assim, o questionamento sobre quem
ficará com o supracitado animal? (GOES,2017).
Alguns tribunais entendem que o animal pertence aquele que consta
na nota fiscal ou no registro do bicho. Já outros, avaliam o que é melhor
aos interesses do animal, como por exemplo, maior afinidade melhor es-
trutura física, disponibilidade e habilidade para cuidar do mesmo. Então,
quando não houver consenso entre as partes caberá ao judiciário decidir
como será a guarda, presando o equilíbrio dos interesses das partes e do
animal (GOES, 2017).
Outra solução para o conflito seria decidir por uma guarda compar-
tilhada, pois, mesmo não havendo uma legislação específica para os ani-
mais, o juiz pode estabelecer os termos desta guarda, especificando um
tempo de permanência do animal com cada uma das pessoas envolvidas.
(ARAUJO, 2016).
Para bem ilustrar a possibilidade de aplicação de guarda compartilhada
aos animais de estimação, tem-se uma decisão do TJ/SP referente ao tema:
AGRAVO DE INSTRUMENTO LIMINAR DE BUSCA E
APREENSÃO ANIMAL DE ESTIMAÇÃO AQUISIÇÃO
DURANTE NAMORO DISCUSSÃO SOBRE A PROPRIE-
DADE DO BEM ACORDO FIRMADO – POSSE COMPAR-
TILHADA
- Incabível, no presente agravo de instrumento, a discussão so-
bre a questão de fundo da demanda, isto é, a propriedade do
animal, sob pena de supressão de instância em sede de tutela de
urgência, analisa-se se tão somente a probabilidade do direito
e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (art.
300 NCPC);
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
- Muito se discute atualmente se animal deve ser considerado coisa
ou ser. A jurisprudência deste E. Tribunal tem reconhecido que o
animal integra o núcleo familiar precedentes;
- Presente demanda não deve ser tratada apenas como apreensão
de uma “coisa” - deve-se levar em conta todas as peculiaridades
do caso e os interesses das partes, que apresentam inquestionável
estima pelo animal;
- Apesar de não estar configurado o instituto da união estável, nos
termos do art. 1723 e seguintes do Código Civil no presente caso,
já que as partes apenas mantiveram namoro, não há óbice para que
seja instituída posse compartilhada do animal, nos moldes de uma
“guarda compartilhada”. RECURSO PARCIALMENTE PRO-
VIDO.
Se aplicada a guarda unilateral, como contrapartida temos o direito de
visitas, dependendo do pactuado pelos pais ou da decisão judicial. Consis-
te na principal causa de conflitos entre o ex-casal, pois é de costume que o
guardião impossibilite ou atribua dificuldades para impedir ou restringir
o acesso do outro genitor ao filho (LÔBO, 2017).
Vale ressaltar, que quando deferida a guarda unilateral ou posse para
apenas um dos tutores, o outro tutor terá o direito de visitas ao animal de
estimação, tendo em vista que:
Apesar dos animais serem classificados como coisa pelo Código
Civil, é possível estabelecer a visitação ao bicho após o fim de um
relacionamento quando o caso concreto demonstrar elementos
como a proteção do ser humano e o vínculo afetivo estabelecido.
(SOUSA, 2020, posição 2401).
Assim, considerando a afetividade e a disponibilidade, o animal de
estimação poderá manter contato com os “pais” mesmo após o fim do re-
lacionamento, seja com visitação em finais de semana ou através do com-
partilhamento da guarda. (ARAUJO, 2016).
Nesse perspectiva, para demonstrar a possibilidade de regulamenta-
ção de visitas aos animais de estimação, podemos analisar o Agravo em
Recurso Especial n° 1.174.178 – SP do STJ:
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REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS DE ANIMAL DE ES-
TIMAÇÃO - Ação ajuizada pelo ex-companheiro em face da
ex-companheira - Improcedência do pedido - Inconformismo
- Acolhimento - Omissão legislativa sobre a relação afetiva entre
pessoas e animais de estimação que permite a aplicação analógica
do instituto da guarda de menores - Interpretação dos arts. 4º e 5º
da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - Cadela
adquirida na constância do relacionamento - Relação afetiva de-
monstrada - Visitas propostas que são razoáveis - Sentença refor-
mada - Recurso provido.
Sustenta violação aos artigos 5º, inciso XXXVI, da Constituição
Federal; 82, 445, § 2º e 2.022, do CC; 140, 489, § 1º, 669 e 733,
do CPC de 2015; 1.124-A da Lei n. 11.441/2007.
2. Em face das circunstâncias que envolvem a controvérsia e para
melhor exame do objeto do recurso, com fundamento no artigo
34, inciso VII, do Regimento Interno do Superior Tribunal de
Justiça, DOU PROVIMENTO ao presente agravo para deter-
minar a sua conversão em recurso especial, sem prejuízo de novo
exame acerca de seu cabimento, a ser realizado no momento pro-
cessual oportuno.
Publique-se. Intimem-se.
Nos casos de conflito, deverão ser tomada todas as medidas almejan-
do-se priorizar o que for melhor para o animal, ou seja, este deverá ficar
com quem melhor atender seus interesses, como, afetividade, condições e
disponibilidade.
Portanto, devemos agir com bom senso para priorizar na solução do
conflito, o bem-estar do animal, sempre considerando “[...] que o mesmo
tem sentimentos, afinal animais de estimação não se partilham, mas sim
compartilham”. (GOES, 2017, s.p.).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Devido a evolução do direito de família, os animais estão cada vez
mais presentes nos lares brasileiros e, acabam por construir uma relação
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afetiva com seus donos, devido a todo cuidado, carinho e amor que rece-
bem de seus tutores, sendo muitas vezes considerados como membros do
núcleo familiar.
Percebe-se que devido a rotina do cotidiano, os casais acabam op-
tando por adotar um “animalzinho” ao invés de ter filhos, desta forma, o
animal alcança o espaço de filho na relação. Contudo, se este casal resolver
se separar, com quais normas deve ser analisado a situação desse animal?
Ele deve ser tratado como membro da família ou como uma coisa na di-
visão dos bens?
Constata-se que seguindo as regras do Código Civil, onde o animal
de estimação é tratado como coisa, ao se separar o casal teria de vende-lo
para dividir o valor resultante da venda, pois o animal é indivisível, não
existindo a possibilidade de cada um ficar com a sua parte. Sendo, isto,
contraditório a realidade, pois o casal não costuma trata-lo como coisa e
sim como filho, portanto, acredita-se que não irá aceitar vender o “bichi-
nho” que tanto ama.
Por consequência, enquanto não houver uma legislação específica
para solucionar tais conflitos, entende-se que estes devem ser resolvidos
na vara de família, a partir dos entendimentos do STJ, os quais afirmam
que as varas de família são competentes para solucionar questões relativas
à guarda e à regulamentação de visitas de animais de estimação.
Deste modo, os animais devem alcançar um novo espaço dentro do
direito de família, não devendo mais serem considerados bens, como clas-
sifica o direito civil. O correto seria analisar de acordo com decisão do
STJ, que não considera os animais nem como coisas, nem como sujeito
de direito, mas sim como uma terceira categoria, que deve ser examinada
de acordo com o caso em situações específicas.
Assim, quando o casal não entra em acordo sobre as questões relativas
ao animal de estimação na ocasião do divórcio, acaba por construir um
litígio, onde caberá ao judiciário decidir quem deve ficar com a guarda
deste e se haverá direito de visitas do outro tutor ao animal.
O sistema jurídico brasileiro tende a seguir paulatinamente a referi-
da tese, visto que está é uma discussão de extrema relevância, pelo fato
de estar cada vem mais presente nos lares brasileiros e consequentemente
alcançando aos tribunais, devendo então a justiça se posicionar a respeito
das mudanças que a sociedade vem enfrentando.
262
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
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265
A INTEGRIDADE (?) NAS DECISÕES
DO STF ENVOLVENDO VEDAÇÃO DE
CRUELDADE AOS ANIMAIS
Poliana Riquele R. S. Lemos63
INTRODUÇÃO
A doutrina Dworkiniana vislumbra o Direito como um fenômeno
dotado de integridade e completude, e pretende lançar luz sobre a impos-
sibilidade de dissociação da coerência nos julgados.
Para ilustrar sua teoria, Ronald Dworkin valeu-se, dentre outras me-
táforas, do “romance em cadeia”, cujo exemplo revela um formato ideal
a ser adotado nas resoluções dos conflitos, devendo o julgador observar a
integridade em suas decisões, guiado por um liame de coerência, que deve
ser conduzido por um ideal de Integridade no Direito.
O presente trabalho busca investigar a integridade das decisões do
Supremo Tribunal Federal sobre vedação de crueldade contra animais,
levando em conta o dever de integridade imposto pelo novo Código de
Processo Civil e a doutrina Dworkiniana como mecanismo de concreti-
zação da moralidade institucional.
A pesquisa abordará as decisões proferidas nos autos do Recurso Ex-
traordinário nº 153.531 (farra do boi), da ADI nº 1856 (rinha de galo), da
ADI nº 4983 (vaquejada), da ADPF nº 640 (sacrifício de animais apreen-
63 Mestranda em Direito pelo PPGD da UNIFG, Pós-graduada em Direito Público pela FAI-
NOR, Pesquisadora no grupo de pesquisa ANDIRA, Pesquisadora no grupo de pesquisa GEP-
DA, Bacharela em Direito pelo Centro Universitário UNIFG, Advogada autônoma.
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didos) e do Recurso Extraordinário nº 494.601 (sacrifício de animais para
fins religiosos), realizando uma análise das referidas decisões sob o prisma
interpretativo do “romance em cadeia”, investigando se há algum ponto
de integração entre as citadas decisões, que permite considerar o sacrifício
para finalidade religiosa como apenas mais um capítulo em cadeia com as
demais decisões, ou se houve, ao contrário, uma guinada interpretativa
por parte do Supremo Tribunal Federal.
A presente reflexão utilizará uma abordagem qualitativa, por meio
de um conjunto de metodologias como o estudo de casos eis que selecio-
nados quatro acórdãos e uma decisão monocrática, decorrentes de julga-
mentos da Suprema Corte, os quais dialogam sobre a vedação da cruel-
dade para com os animais, buscando analisar as informações contidas nos
referidos documentos, na legislação, na jurisprudência e nos dispositivos
constitucionais, com o objetivo de compreender criticamente o sentido
manifesto [ou oculto] por ventura existente na decisão proferida nos autos
do Recurso Extraordinário nº 494.601.
1 – A TUTELA DA FAUNA NO BRASIL
Dworkin (2001, p. 238) observa que as decisões de casos controversos
no Direito se assemelham ao estranho exercício literário do “romance em
cadeia”, destacando o fato de tal similaridade se revelar mais nítida no
sistema da common law, no qual inexiste lei ocupando posição de centra-
lidade capaz de indicar o percurso decisório e os fundamentos da decisão
judicial. Nesse sistema, os argumentos são buscados em regras ou princí-
pios de Direito subordinados às decisões pretéritas proferidas em questões
semelhantes por outros julgadores.
Embora Dworkin tenha destacado que a similaridade do “romance em
cadeira” com as decisões judiciais se revela mais nítida no sistema do common
law, sua teoria se aplica perfeitamente, e de maneira bem menos complexa,
ao sistema da civil law, cujo preceito possui um texto legal a definir o roteiro
do “romance”, como é o caso do ordenamento jurídico brasileiro.
No sistema da civil law, o constituinte originário é o romancista que
escreve o capítulo incipiente, que deverá ser seguido pelos intérpretes da
Constituição, dentre os quais indubitavelmente se encontra, por inexorá-
vel função, o Poder Judiciário.
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A constituição Federal de 1998 inaugurou um marco ambientalista
de primordial importância para a proteção da fauna e da flora, dispen-
sando um capítulo próprio de avançado tratamento jurídico, denominado
“Do meio ambiente”, e já no caput do artigo 225, estabelece o direito de
todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo ao poder
público e à coletividade o dever de defende-lo e preservá-lo para as pre-
sentes e futuras gerações.
O § 1º, VII do citado artigo, para assegurar a efetividade do direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado estabelece, como fator de-
terminante, que incumbe ao poder público o dever de proteger a fauna e
a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua
função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os ani-
mais a crueldade.
Ao analisar a gênese do texto da Constituição Federal de 1988, per-
cebe-se que a Assembleia Nacional Constituinte, substituiu de forma ex-
pressa a proposta inicial contida no anteprojeto elaborado pela comissão
de sistematização, o qual continha, em seu artigo 414, inciso XII a se-
guinte proposta de redação: “Art. 414 – Incumbe ao poder público: [...]
XII – Tutelar a fauna e a flora vedando, na forma da lei, as práticas que as
coloquem sob risco de extinção ou submetam os animais à crueldade;”
(BRASIL, 1987).
Optou, todavia, o constituinte de 1988, por substituir o vocábulo
“vedando” que direcionava a uma ideia de possibilidade de flexibiliza-
ção da regra, pelo mandamos legal “vedadas” na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submetam os animais a crueldade. In verbis as significativas
alterações sofridas pela norma constitucional que versa sobre a vedação
da crueldade para com os animais: “Proteger a fauna e a flora, [vedando]
vedadas, na forma da lei, as práticas que [as] coloquem [sob] em risco [de]
sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais
a crueldade” (BRASIL, 1987).
Destaque-se que o Constituinte originário, ao estabelecer que estão
vedadas, na forma da lei, as práticas que submetam os animais a cruel-
dade, descreveu um comportamento proibitivo específico, um comando
definitivo que desencadeia em um dever claro e imponderável, visando a
impedir que os animais sejam submetidos a tratamentos cruéis.
268
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Tal afirmação, não implica dizer que os romancistas/julgadores de-
vem ler e interpretar o texto de maneira mecânica, como se todo o sen-
tido do texto se encontrasse nele próprio, Dworkin, inclusive, rechaça a
equivocada teoria do “simplesmente ali” para o sentido dos julgamen-
tos interpretativos, todavia, é necessário que se leve em consideração o
fato de que, à exceção do primeiro romancista (que no caso brasileiro é
o constituinte originário), todos os demais devem ter consciência de que
interpretar corretamente o texto não se confunde com a iniciação de um
novo romance, desta feita, Dworkin esforça-se para enfatizar que a dis-
tinção entre interpretar e inventar nada mais é que fruto de um processo
de julgamento interpretativo em que devemos nos valer de um tipo de
convicção ou instinto interpretativo, no qual haverá uma continuidade
da história existente e não uma invenção de uma história aparentemente
melhor (DWORKIN, 2001).
Muitas discussões giram em torno da cosmovisão adotada pelo § 1º,
incisos VII do artigo 225 da Carta política de 1988, se o mesmo reve-
la uma perspectiva antropocêntrica, meramente voltado para a satisfação
das necessidades humanas, atribuindo aos animais uma proteção apenas
indireta, ou sinaliza uma cosmovisão biocêntrica e busca tutelar e efetiva-
mente preservar a vida, a integridade física e o bem-estar dos animais não
humanos, transcendendo a uma proteção meramente utilitária e instru-
mental da vida animal.
Para Carolina Medeiros Bahia (2006. p. 106-107), a Carta Magna de
1988, não segue a posição antropocêntrica tradicional, tendo se filiado à
perspectiva antropocêntrica alargada, posto que, ao tempo em que preser-
va a centralidade do homem como referência valorativa, também dispensa
importante proteção ao meio ambiente, independentemente da possibili-
dade de aproveitamento humano. Referindo-se às disposições do artigo
225 da CF/88, Bahia assim dispõe:
Se o caput do referido artigo, por um lado, estabelece o direito de
todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, dando atenção à
preservação da capacidade funcional dos sistemas ecológicos; por
outro, determina que este meio é essencial à sadia qualidade de vida,
demonstrando preocupação com a preservação das condições dig-
nas de vida para o homem. Além disso, nos diversos incisos do § 1º
269
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
do art. 225 pode-se perceber que o constituinte procura tutelar a
fauna, a flora e os processos ecológicos em si mesmos, sem vincular
este cuidado à possível utilidade que possa acarretar ao homem.
(BAHIA, 2006. p. 106-107)
Laerte Fernando Levai, (2004, p. 127) entende que a prática da cruel-
dade para com os animais, ofende um bem jurídico pré-existente, ainda
que o animal agredido não tenha condições de reivindica-lo. O autor as-
severa que o legislador constituinte desvinculou a fauna da perspectiva
ecológica para considera-la sob um enfoque predominantemente ético, e
afirma que a Constituição Federal veda comportamentos cruéis por reco-
nhecer os animais como seres sencientes e capazes de sofrer.
Fiorillo (2013, s/p.) dispõe de forma categórica que a visão adotada
pela Carta magna de 1988 é puramente antropocêntrica, pois, ao estabe-
lecer em seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa como funda-
mento destinado a interpretar todo o sistema constitucional:
Não temos dúvida em afirmar que não só existe uma visão antro-
pocêntrica do meio ambiente em sede constitucional, mas tam-
bém uma indissociável relação econômica do bem ambiental com
o lucro que pode gerar, bem como com a sobrevivência do próprio
meio ambiente. Além disso, a vida humana só será possível com a
permanência dessa visão antropocêntrica (FIORILLO, 2013, s/p).
Em sede jurisprudencial, nos autos da ADI nº 4983/CE, o Minis-
tro Luiz Roberto Barroso esclareceu que embora a norma constitucional
presente no caput do artigo 225, mantenha um aspecto nitidamente an-
tropocêntrico, em sintonia com a intensidade valorativa que foi conferida
ao meio ambiente, percebe-se em seus parágrafos e incisos um equilíbrio
com a visão biocêntrica, optando o constituinte de 1988 por uma versão
moderada que não endossa o antropocentrismo radical, “Além disso, o
fato de a Constituição Federal de 1988 ser a primeira entre as constitui-
ções brasileiras a se importar com a proteção da fauna e da flora é bastante
representativo dessa opção antropocêntrica moderada feita pelo consti-
tuinte” (BRASIL, 2016, p. 41).
No mesmo sentido, também nos autos da ADI 4983/CE a Ministra
Rosa Weber e o Ministro Lewandowski em seus votos expuseram enten-
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dimento de que o bem tutelado pelo inciso VII do § 1º do artigo 225 da
Carta Federal, possui matriz biocêntrica. Para a ministra Rosa Weber o §
1º, VII do artigo 225, confere valor intrínseco também às formas de vidas
não humanas, sendo a proibição expressa de atos cruéis e atentatórios à
integridade animal a forma eleita pela Carta da República para promover
a preservação da fauna e do bem-estar desses seres sencientes (BRASIL,
2016, p. 74).
O Ministro Celso de Melo nos autos da ADI nº 1.856, assinala que a
norma insculpida no inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição da Re-
pública, além de conter elevado significado ético-jurídico, justifica-se em
função de sua própria razão de ser, pois, é motivada pela necessidade de
impedir a ocorrência de situações que possam ameaçar ou periclitar todas
as formas de vida, não apenas a vida humana, mas, também, a própria vida
animal, cuja integridade resta comprometida pela práticas de atos aviltantes,
perversos e violentos contra os seres irracionais (BRASIL, 2011, p.18).
Percebe-se que a jurisprudência pátria vinha demonstrando uma in-
clinação ao desvelamento de uma visão biocêntrica do § 1º, VII do artigo
225 da Constituição Federal, reconhecendo os animais como seres sen-
cientes e considerando a vedação da crueldade como uma opção valora-
tiva prévia do legislador originário, todavia, tal entendimento foi deixado
de lado quando colocado em confronto com a possibilidade de sacrificar
animais em cultos e liturgias das religiões de matrizes africanas, conforme
será abordado adiante.
2 - AS DECISÕES DO STF ENVOLVENDO
CRUELDADE PARA COM OS ANIMAIS – ROMANCE
DESENCADEADO?
A primeira decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal a versar
sobre a proibição de submissão de animais a tratamento cruel, proferi-
da em 03 de setembro de 1997, nos autos do Recurso Extraordinário nº
153.531-8,64 fixou o entendimento de que a prática da denominada “farra
64 A decisão proferida nos autos do Recurso Extraordinário nº 153.531-8 contou apenas
com um voto divergente, tendo o então Ministro Maurício Corrêa, entendido ser descabida
a proibição da manifestação cultural denominada “farra do boi”, posto que a mesma tam-
bém usufrui de proteção constitucional.
271
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
do boi”, por submeter os animais à crueldade, discrepa do disposto no
artigo 225, VII da Constituição Federal.
Na oportunidade o Ministro Relator Francisco Rezek, em nítida in-
clinação favorável à vedação da crueldade, em seu voto argumentou:
Não posso ver como juridicamente correta a ideia de que em prá-
tica dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma
manifestação cultural com abusos avulsos; há uma prática aberta-
mente violenta e cruel para com os animais, e a Constituição não
deseja isso (BRASIL, 1996, p. 400).
O marco protecionista inaugurado pelo Supremo Tribunal Federal
foi repetido e arguido como precedente para concessão da liminar, nos
autos da ADI nº 1856-RJ, a qual buscava a declaração da inconstitucio-
nalidade da Lei nº 2895/98 do Estado do Rio de Janeiro, que autorizava a
realização de “rinhas de galo”, sendo determinada a suspensão, execução
e aplicabilidade da citada lei fluminense, até final do julgamento da Ação.
Na ocasião, os ministros deferiram a cautelar, posteriormente reafirmada
no mérito, consolidando entendimento de que a autorização para a reali-
zação de competições entre “galos combatentes”, autoriza e disciplina a
submissão desses animais a tratamento cruel, o que não é permitido pela a
Constituição Federal (BRASIL. 1998).
O Ministro Celso de Mello deixou assentado que o respeito pela fau-
na é condição inafastável para a subsistência e preservação do meio am-
biente, e que a prática de comportamentos predatórios e lesivos à fauna,
colocando em risco a sua função ecológica, provocando a extinção de es-
pécies ou submetendo os animais a atos de crueldade revela um impacto
altamente negativo (BRASIL, p. 295). Referindo-se à norma insculpida
no artigo 225, VII, § 1º da Carta Magna, o Ministro ainda destacou:
É importante assinalar, neste ponto, que a cláusula inscrita no
inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição da República,
além de veicular conteúdo impregnado de alto significado éti-
co-jurídico, justifica-se em função de sua própria razão de ser,
motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações
de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de
vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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animal, cuja integridade restaria comprometida por práticas avil-
tantes, perversas e violentas contra os seres irracionais (BRASIL,
p. 294-295).
Em 06 de outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal encontra-
-se diante de uma nova demanda envolvendo o direito ao livre exercício
das manifestações culturais, proteção da fauna e a obrigação do estado de
proibir as práticas que submetam os animais a crueldade, devendo, pois,
redigir mais um capítulo de um romance escrito a várias mãos, incum-
bidos de analisar, nos autos da ADI nº 4983-CE, a constitucionalidade
da lei cearense nº 15.299/2013, que pretendia regulamentar a prática da
vaquejada naquele Estado.
A questão, seria facilmente resolvida se analisada do ponto de vis-
ta dos ensinamentos de Ronald Dworkin com a propositura do gênero
artificial denominado "romance em cadeia", posto que, a teoria parte da
premissa de que a interpretação jurídica deve ser estudada como uma ati-
vidade geral de interpretação e não como uma atividade sui generis, além de
sugerir a feitura de um exercício interpretativo do direito fundamentado
na literatura, no qual os autores devem dar continuidade aos escritos da
melhor maneira possível.
Todavia, a matéria discutida na ADI nº 4983, embora tenha preva-
lecido o entendimento já consolidada nos precedentes daquele Tribunal
Superior de que a norma garantidora do pleno exercício das manifestações
culturais não prescinde da observância do artigo 225, § 1º, VII, a decisão
deu-se de forma estranhamente controversa, em votação apertada, con-
tando com seis votos favoráveis à inconstitucionalidade da lei cearense e
cinco votos contrários.
Os argumentos que embasaram a posição exitosa na Suprema Corte,
firmada a partir do voto do relator, Ministro Marco Aurélio, e acompa-
nhada pelos Ministros: Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Rosa We-
ber, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, também foram sustentados
a partir de uma ponderação entre os princípios constitucionais, de um
lado a obrigação do Estado de garantir a todos o pleno exercício dos direi-
tos culturais, e do outro a vedação de práticas que submetam os animais à
crueldade, refutando a prática da vaquejada, ante o entendimento de que
os animais envolvidos são submetidos a atos cruéis.
273
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Vale destaque o Ministro relator Marco Aurélio reconhecendo a exis-
tência de conflito entre as normas constitucionais sobre direitos funda-
mentais, afirma que se fazendo presente essa via de mão dupla, não há e
nem deve haver controvérsia, pois, o dever geral de favorecer o meio am-
biente é indisputável. Afirmou o Ministro que “O comportamento de-
cisório do Supremo diante da necessidade de ponderar o direito ao meio
ambiente com os direitos individuais de naturezas diversas tem sido o de
dar preferência ao interesse coletivo” (BRASIL, 2016, p. 10).
Assim, estando os princípios em conflito, o juiz deve ponderar, levan-
do em conta a força relativa de cada um deles, devendo-se aplicar no caso
concreto aquele que for mais adequado, como se fosse uma razão que se
inclinasse para um posicionamento e não para outro (PEDRON, 2019,
p. 89-90).
A pretendida realização abstrata do romance em cadeia a partir das
decisões do STF envolvendo crueldade para com os animais, inaugura [ou
não], um novo capítulo, narrado nos autos do Recurso Extraordinário nº
494.601, julgado em desafio aos precedentes fixados pela própria Corte
Suprema brasileira.
Vale destacar que o raciocínio ideológico e doutrinário do romance
em cadeia de Ronald Dworkin visa a evitar que haja descontinuidade e
incoerência epistemológica nas decisões judiciais, e procura evidenciar a
necessidade de se buscar uma cadência lógica na prolação científica das
decisões, evitando, principalmente, que haja uma ruptura com o romance
inaugurado pelo Constituinte originário.
Porém, entendendo não haver “crueldade” no ato de sacrificar ani-
mais para finalidade religiosa, decidiu a Suprema Corte, por unanimida-
de, ser constitucional a Lei nº 11.915/2003, que dispõe sobre o sacrifício
ritual de animais em cultos e liturgias das religiões de matrizes africanas.
Partindo-se da premissa de que a Constituição assegura a todos o di-
reito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, veda as práticas que
submetam os animais a tratamento cruel, além do entendimento já conso-
lidado na Suprema Corte de que a norma garantidora do pleno exercício
das manifestações culturais não prescinde da observância do artigo 225, §
1º, VII, fica evidente que, com a nova interpretação exarada pelo Supremo
Tribunal Federal, houve, de fato, um a ruptura com o romance iniciado
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pelo Constituinte de 1988 que, de maneira expressa, proibiu atos atenta-
tórios e cruéis aos animais.
A decisão unanime da Suprema Corte, nos autos do citado Recur-
so Extraordinário estaria assim andando na contramão, provocando um
desencadeamento total com as decisões proferidas de modo enfático pelo
próprio Supremo Tribunal Federal nas ações envolvendo vedação de
crueldade para com os animais, e em dissonância com o próprio texto da
Constituição Federal.
Note-se pontos conflituosos identificados nos votos exarados pelos
ministros no julgamento do Recurso Extraordinário nº 494.601, mere-
cendo destaque a passagem do voto do Ministro Marco Aurélio, posto
que, ao tempo em que ressalta ser vedada a prática de maus-tratos no ritual
e condiciona o abate ao consumo da carne, avulta que a Suprema Corte
deve atuar com prudência, evitando que a tutela de um valor constitucio-
nal relevante aniquile o exercício de direito fundamental, e que no caso
em tela, revela-se impróprio reconhecer a possibilidade de atividades religiosas impli-
carem sofrimento e maus tratos aos animais (...) “É necessário harmonizar a proteção
da fauna com o fato de o homem ser carnívoro” (BRASIL, 2019).
Por certo, a incerteza denotativa verificada no termo crueldade, con-
siderando a inexistência de uma regra definidora de sua constatação, pos-
sibilita o seu enquadramento como termo jurídico vago, o que não im-
plica dizer que determinada prática efetivamente cruel contra um animal,
como o sacrifício em culto religioso, realizado de forma abrupta e sem
insensibilização prévia do animal, perde sua essencialidade, deixando de
ser cruel apenas por tratar-se de conduta praticada em atividade religiosa.
O Ministro Edson Fachin, por sua vez, destaca que é preciso re-
conhecer que a prática e os rituais relacionados ao sacrifício animal são
“Patrimônio cultural imaterial”, e ressalta que essa diretriz interpretativa
decorre ainda da obrigação imposta ao estado brasileiro de defender e in-
centivar as manifestações das culturas populares participantes do processo
civilizatório nacional.
O Ministro Fachin, embora faça menção aos julgados da Suprema
Corte as quais reconhecem que “a obrigação constitucional do Estado
de assegurar a todos os cidadãos o pleno exercício de direitos culturais,
promovendo a apreciação e difusão de manifestações culturais, não exime
o Estado de observar o dispositivo constitucional que proíbe o tratamento
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
cruel de animais”(BRASIL, 2019), enfatiza a ideia de que a proteção à
cultura afro-brasileira, dada à sua estigmatização e o preconceito estrutu-
ral perpetrado ao longo dos tempos, merece uma atenção especial por par-
te do Estado, e conclui que há incertezas acerca do alcance do sofrimento
animal nos sacrifícios realizados nos rituais sob análise.
Não bastassem as dúvidas sobre a equiparação do sacrifício ao tra-
tamento cruel, é preciso reconhecer que a prática e os rituais rela-
cionados ao sacrifício animal são “patrimônio cultural imaterial”,
(...) Além disso, como dispõe o texto constitucional, elas consti-
tuem os modos de criar, fazer e viver de diversas comunidades re-
ligiosas e se confundem com a própria expressão de sua identidade
(BRASIL, 2019).
Vale destaque também a manifestação da Ministra Rosa Weber, que
embora tenha afirmado nos autos da ADI 4983 que a Constituição Federal
encampou a matriz biocêntrica, acompanhando o nível de esclarecimen-
to alcançado pela humanidade, superando as limitações antropocêntricas
em prol de reconhecimento de que os animais possuem uma dignidade
própria que deve ser respeitada, (BRASIL, 2019. p. 73), no acordão que
tratou sobre a imolação de animais, entendeu que, desde que não estejam
em vias de extinção e que não haja provocação de sofrimento exagerado
aos animais, estaria legitimada a expressão cultural.
Em suma, os Ministros realizaram a análise da querela realçando a ne-
cessidade de proteção das manifestações culturais de religiões de matrizes
africanas, tendo destaque na maioria dos votos a questão da intolerância e
do preconceito suportados pelas religiões de matriz africana, deixando de
lado a questão extremamente relevante de análise da crueldade infringida
aos animais no ato da imolação, bem como o reconhecimento de que são
seres sencientes, afinal, se um ser sofre, independente da natureza do ser,
não pode haver justificativa moral para deixar de levar em conta esse sofri-
mento (SINGER, 2013, p. 14).
Nos dizeres da professora Laura Cecília F. dos S. Braz (2019) a deci-
são em tela buscou tão somente quitar uma dívida histórica entre o Estado
e a população negra do pais:
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
O Supremo Tribunal Federal acabou adotar postura antropocen-
trista, não enfrentando o problema da crueldade imposta ao animal
nesses rituais, mas, tão-somente, garantindo um direito pleiteado
pelo povo negro, historicamente massacrado, de exercer o direito à
liberdade religiosa, mesmo o ritual de matança animal se constituin-
do em prática de crueldade, demonstrando uma negativa ao novo
paradigma, qual seja, o biocêntrico, que considera importantes todas
as formas de vida, e não só a humana. (BRAZ. 2019, p. 149).
As decisões proferidas anteriormente pela Suprema Corte pretendiam
alcançar a efetividade da norma constitucional que versa sobre a proibição
de práticas cruéis aos animais, porém, os atuais “romancistas da cadeia” res-
ponsáveis por redigirem um novo capítulo que se acrescentaria ao anterior,
optaram por renegar o fato de ser o ato sacrifical cruel. Por certo, o texto
submetido à interpretação deveria impor limites ao resultado obtido pelo
interprete, o que inexistiu quando do julgamento do Recurso Extraordi-
nário realizado pelo Supremo Tribunal Federal. É preciso que no processo
hermenêutico o texto seja levado a sério (STRECK, p. 437).
Vale salientar que a querela em análise intentava, justamente, a continui-
dade do “romance em cadeia” sob a perspectiva da preservação da vida animal
contra atos cruéis e o interesse dos animais não humanos em não sofrer, to-
davia, a Suprema Corte, no caso concreto, acabou por inverter os parâmetros
e valores para justificar a decisão, como se houvesse ali uma disputa segregada
em preconceitos e perseguições às religiões de matrizes africanas, colocando
a questão religiosa como soberana ao ponto de não permitir a avaliação de
sua legalidade e legitimidade. Há de se destacar que nenhum direito pode ser
considerado absoluto, por mais fundamental e relevante que seja.
O próprio acordão proferido nos autos do Recurso Extraordinário
sob análise deixa claro que houve uma proteção específica dos cultos de
religiões de matriz africana ante a estigmatização, fruto de um precon-
ceito estrutural, afirmando, inclusive, ser a preferência compatível com o
princípio da igualdade e merecedora de especial atenção do Estado.
Segundo Daniel Braga Lourenço (2007, p. 287) o respeito à liberdade
de crença e às manifestações culturais que delas recorrem, justamente por
não ser um valor absoluto, não pode servir para encobrir condutas que
ferem outros valores igualmente relevantes, podendo a liberdade de crença
ser limitada em determinadas situações.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
O cerne essencial da liberdade religiosa das religiões de matrizes afri-
canas não restaria atingido ou maculado caso o STF se propusesse a ob-
servar e julgar a querela de forma justa, razoável e proporcional, dando
continuidade aos precedentes já firmados, declinando favoravelmente ao
valor ambiental, afinal, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de
crença nos rituais religiosos de matrizes africanas, tais como o candomblé
e a umbanda, não se resume a sacrificar animais, portanto, não restaria
descaracterizada a liturgia das referidas religiões de matrizes africanas.
Ao decidir pela constitucionalidade da lei que permite o abate de ani-
mais em rituais religiosos, a Suprema Corte além de não enfrentar a con-
tento a questão da crueldade imposta aos animais submetidos aos rituais
cruentos, demonstra uma postura antropocentrista cujo resultado consti-
tuiu em um grande retrocesso para o movimento em prol dos direitos dos
animais (BRAZ, 2019).
Dworkin, ao equipara as decisões judiciais a um romance em cadeia,
no qual os fundamentos da decisão judicial devem ser embasados em re-
gras ou princípios, subordinado às decisões anteriormente proferidas por
outros julgadores, busca uma valoração dos precedentes, em que os novos
julgadores devem partir do material deixado por seus antecessores, daqui-
lo que ele próprio acrescentou e – dentro do possível – observando aquilo
que seus sucessores vão querer ou ser capazes de acrescentar (PEDRON,
2019, p. 97). Cada juiz deve se considerar parte de um complexo em-
preendimento em cadeia, ao lançar-se à criação e à interpretação jurispru-
dencial (TRINDADE, 2014).
A teoria de Dworkiniana visa a demonstrar a necessidade de diálogo
entre as decisões para que se possa consolidar um entendimento coeren-
te por parte da Corte. O que não implica dizer que o método requer o
engessamento do processo criativo por parte do julgador, ao contrário,
aponta para a constatação de que um Tribunal que dialoga com suas pró-
prias decisões obterá melhores resultados e consequentemente um pro-
cesso interpretativo mais consolidado no tempo.
Assim, percebe-se que a decisão proferida pelo STF na ação envol-
vendo sacrifício animal, causou um verdadeiro retrocesso animalista, im-
plicando, inclusive, em clara negação à cláusula do art. 926 do Código
de Processo Civil, segundo a qual “Os tribunais devem uniformizar sua
jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, assim, na leitura
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
da integridade, os precedentes, mesmo não possuindo caráter vinculante,
devem ser sempre observados.
Cabe ressaltar que recentemente, em 17 de março de 2020, nos autos
da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 640/2019, de rela-
toria do Ministro Gilmar Mendes, que versa sobre a interpretação conferida
pelos órgãos judiciais e administrativos, a dispositivos legais que possibilita-
riam o abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos. O Minis-
tro relator deferiu a medida cautelar determinando a suspensão de todas as
decisões administrativas ou judiciais que autorizem o sacrifício de animais
apreendidos em situação de maus-tratos, dando continuidade e consistência
aos precedentes protecionistas do romance animalista, retomando a inter-
pretação que veda a crueldade e respeita a integridade e a vida dos animais.
O Ministro Gilmar Mendes destacou que “não existe autorização le-
gal que possibilite o abate de animais nesse caso específico” (BRASIL,
2020, p. 12). De forma indelével, extrai-se da afirmativa o seguinte ques-
tionamento: Havia autorização legal para o abate de animais no caso de
sacrifício para finalidade cultural e religiosa? E a resposta só pode ser ne-
gativa! Não havia e não há norma legal permissiva e/ou autorizativa que
possibilite a imolação de animais para finalidade cultural e/ou religiosa,
houve sim uma guinada interpretativa por parte da Suprema Corte em
total descompasso com os ditames constitucionais e com os precedentes
firmados pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
CONCLUSÃO
A relação do homem com os animais não humanos, desde os primór-
dios da história, sempre se revelou conturbada. O ranço antropocêntrico
ainda tão contemporâneo e enraizado na consciência humana, dificulta a
resolução de questões que poderiam ser facilmente dirimidas, bastando
para tanto a conscientização de que os animais, assim como os humanos,
são seres sencientes, que embora, por vezes, incapazes de expressar a dor,
são, indubitavelmente, capazes de senti-la.
Por certo, elementos contraditórios identificados na evolução da
conturbada relação homem x animal não humano, possibilitaram, de
forma geral, a criação de um sistema de proteção ambíguo aos animais,
no qual determinadas espécies são tratadas com elevado apreço, tais
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
como os animais de estimação, ao tempo em que outras espécies são
submetidas a tratamentos extremamente cruéis para satisfazer aos mais
diversos interesses humanos.
Para Dworkin a integridade é uma das principais virtudes caracteriza-
doras da sociedade democrática, tanto que o autor propõe uma interpretação
construtiva do Direito, na qual a justificação das decisões deverá se atentar aos
princípios de moralidade política formadores do Direito, evitando que os juí-
zes incorram em quaisquer espécies de decisões contraditórias, incoerentes,
tendo em vista que as decisões judiciais devem ser justificadas por princípios,
e não por argumentos metajurídicos ou baseadas em subjetivismo.
O Supremo Tribunal Federal, havia traçado um percurso rumo à
evolução da tutela efetiva da fauna no Brasil, que foi inclusive retomada na
decisão monocrática proferida nos autos da ADPF 640, porém, a decisão
constante do Recurso Extraordinário nº 494.601 andou na contramão do
progresso ambiental em defesa da fauna, alçando um voou interpretativo
absolutamente contrário ao desiderato da norma constitucional que veda
as práticas cruéis para com os animais e aos capítulos anteriormente escri-
tos pela própria Corte Suprema.
O artigo 926 do Código de Processo Civil, ao dispor sobre o dever
de uniformização da jurisprudência bem como a necessidade de manter
as decisões estáveis, íntegras e coerentes, trouxe uma importante inovação
processual para a ordem jurídica brasileira, prevendo deveres gerais para os
tribunais na edificação e manutenção do sistema de precedentes persuasi-
vos e vinculantes, todavia, na presente situação, o dispositivo legal não foi
observado pela Suprema Corte.
A situação apreciada nos autos do Recurso Extraordinário nº 194.601,
não desmerecendo a importância cultural, o valor e a riqueza da história
das referidas matrizes religiosas, e tampouco empanando a necessidade de
tutela constitucional garantidora da liberdade de culto e crença, não visava
a supressão ou embaraçamento da prática religiosa, nem se consubstancia-
va em uma forma de discriminação ou preconceito, buscava tão somente
a continuidade do “romance” em coerência com a tutela efetiva da fauna
no Brasil, assegurando aos animais a vedação de práticas que os submetam
a atos cruéis, mesmo que essas práticas sejam advindas de manifestações
culturais, religiosas, de entretenimento ou afins, conforme assevera John
Rawls (2016, p. 4) “a injustiça só é tolerável quando é necessária para evi-
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tar uma injustiça ainda maior”, o que definitivamente, não se constata na
situação em tela.
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282
EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO
DIREITO ANIMAL NO BRASIL:
RUMO AO RECONHECIMENTO DA
DIGNIDADE ANIMAL?
Luiz Roclayton Nogueira Bastos65
INTRODUÇÃO
O estudo a seguir problematiza a evolução da legislação protetiva ani-
mal no Brasil, levando em consideração fatores filosóficos, históricos e
jurídicos, visando responder se tal processo legislativo ruma ao reconheci-
mento da dignidade animal no país.
Para tanto, tal pesquisa se embasa em teorias filosóficas inicialmen-
te, seguindo por uma análise da legislação brasileira acerca do tema, bem
como da eficácia dessa legislação no que tange à eficácia social.
A justificativa se fundamenta na necessidade de se discutir a respeito
do tema em comento dada a notoriedade do mesmo nas discussões sociais
e na mídia, bem como da evolução da ética e moral humanas. Em suma,
discutir sobre direito animal é responder a uma demanda social histórica
cada vez mais necessária e lógica para a maioria da sociedade, bem como
sanar problemáticas de exploração e sofrimento animal.
65 Graduado em Direito pela Universidade Estácio do Ceará. Pós-graduado em Direito Am-
biental pela FAVENI. Acadêmico do curso de Veterinária pela Universidade Federal de Cam-
pina Grande. Advogado.
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O objetivo geral fixa-se na necessidade de analisar a legislação Bra-
sileira que trata sobre maus tratos animais, verificar e discutir sua eficácia
social ou não, assim como elencar quais os fatores que interagem positiva-
mente ou negativamente neste processo.
Acerca da metodologia a ser utilizada no trabalho que segue Mi-
nayo (2001) preleciona sobre a necessidade de uma pesquisa qualita-
tiva, dada a subjetividade e complexidade da análise que se pretende
realizar, de modo que esta não pode ser quantificada com dados esta-
tísticos ou matemáticos, o que pode ser evidenciado no seguinte recor-
te da autora em comento:
A pesquisa qualitativa [...] trabalha com o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que correspon-
de a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de
variáveis (MINAYO, 2001, p. 22).
Ressalta-se que há uma preocupação não apenas com os resultados
ou hipóteses pesquisados, mas também com o processo que gera tais re-
sultados, a descrição dos conceitos e problemáticas envolvidos, a análi-
se indutiva dos dados e o significado lógico do resultado a ser alcançado
(TRIVIÑOS, 1987, p. 19).
Em consonância com Gil (2007), ainda a respeito das questões meto-
dológicas, para explorar a temática de fato e alcançar os objetivos ora colo-
cados, este estudo pretende analisar a bibliografia consultando a literatura
acerca do tema se utilizando de recursos como a consulta da legislação,
livros, revistas científicas, periódicos, jornais, dentre outras ferramentas
literárias nesse intento.
1 FILOSOFIA DO DIREITO ANIMAL E DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA
Ao discutir a problemática que segue o presente estudo irá se deparar
com conceitos filosóficos e sociológicos que vão além do âmbito jurídico,
estes precisam ser devidamente esclarecidos e servem como introdução ao
pensamento que pretende aqui ser desenvolvido.
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A exploração animal remonta a história da todas as civilizações, em
maior ou menor grau, o antropocentrismo sempre existiu, o conceito foi
apenas amadurecido com as escolas filosóficas citadas a seguir, contudo
este já podia ser percebido inclusive em religiões abraâmicas, onde o ho-
mem, mesmo sendo submisso ao criador, se sobrepunha sobre todos os
outros animais. Tal ideia é explicita no livro da criação do mundo, o Gê-
nesis, parte integrante da Bíblia Sagrada, segue recorte (BÍBLIA ONLI-
NE, 2020):
1:26 Então disse Deus: "Façamos o homem à nossa imagem, con-
forme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, so-
bre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre
todos os pequenos animais que se movem rente ao chão".
1:28 Deus os abençoou, e lhes disse: "Sejam férteis e multipli-
quem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes
do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se mo-
vem pela terra" [...]
O antropocentrismo chega a ser defendido por muitos filósofos notá-
veis, este teve seu surgimento com a derrocada de escolas de pensamento
como Teocentrismo e Escolasticismo e advento de escolas modernas de
pensamento como o Humanismo e o Iluminismo, este filosoficamente é
considerado por Kant (1985) como maioridade do pensamento humano e
se difere pela valorização da ética e da razão humana.
Ocorre que neste processo de valorização, do humano e da raciona-
lidade em detrimento do divino e transcendente, ao chegarmos no últi-
mo grande filósofo contemporâneo, este já defendia que os seres humanos
eram superiores aos seres não humanos, que apenas os humanos possuíam
dignidade em si mesmo, pela sua natureza única do cumprimento de
obrigações e racionalidade, como segue:
[...] Kant destaca que não há nenhum outro ser capaz de obriga-
ção, ativa ou passiva, entendendo-se aí, o obrigante e o obrigado,
além do próprio ser humano. Assim, não teríamos deveres para
com outros seres por estes não terem a capacidade de obrigação
ou de coação moral, pois, para que isso se dê, é necessária uma
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vontade. Em outras palavras, o ser humano não estaria na condição
de obrigado em relação a outros seres não humanos,, eles não o
obrigariam (KALSING, 2012, p.38).
Por não haver barreira filosófica, ética ou religiosa a humanidade
seguiu maltratando os animais, em um processo que se aperfeiçoa e se
expande conforme a evolução da sociedade, o homem explora todas as
outras espécies, sem exceção, quando estritamente necessário, por neces-
sidade, para auferir lucros ou por esporte.
Como se já não fosse o bastante o ser humano ser antropocentrista e
sentir-se o centro da criação ou o único ser racional e detentor da razão,
este ainda se mostra especista. Este termo foi cunhado pelo filósofo Ri-
chard Ryder (1970), posteriormente aperfeiçoado pelo teórico contem-
porâneo Pitter Singer (1975) e trabalhado por outros estudiosos do assun-
to desde então (SINGER, 1975).
Cabe colacionar a definição de Coltro e Ferreira (2011, p.78) nesse
sentido:
O especismo é uma forma de discriminação análoga ao racismo
e ao sexismo: ele consiste em não levar em conta igualmente os
interesses dos membros de outra espécie pelo simples motivo de
pertencerem a uma outra espécie [...]
Como preconceito é tudo aquilo que surge de uma ideia preconcebi-
da, os seres humanos se acostumam a tratar os seres não humanos como
coisas que podem trocadas ou vendidas de qualquer modo, como mer-
cadoria em um comércio que visa apenas lucro ou ainda como enfeite
para seus lares que podem descartados, feridos ou abandonados quando
perdem o valor de status ou a beleza. Parte deste processo acontece porque
não existe historicamente políticas ou legislação que reconheça a natureza
sensível dos animais ou preze pelo seu bem-estar.
Temporalmente em sequência, ao chegar na contemporaneidade
crescem os questionamentos acerca da senciência animal, muitas vezes
pautado pelo modo de vida contemporâneo e como o ser humano se acos-
tumou com a “coisificação” dos animais para explorá-los em seu sistema
de produção.
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Esta ideia de senciência começa a surgir desde Darwin (apud ROSA,
2017, p. 395), como pode ser evidenciado em algumas passagens desse
ilustre cientista:
Não existe nenhuma diferença fundamental entre o ser humano
e os animais superiores em termos de faculdades mentais. A dife-
rença entre a mente de um ser humano e de um animal superior
é certamente em grau e não em tipo". São sencientes, tem senti-
mentos, dor, medo, e querem preservar suas vidas tanto quanto
nós humanos.
Tal senciência animal apesar de não ser juridicamente reconhecida
ou cientificamente validada possui uma lógica genuína, pautada na em-
patia do ser humano ao perceber o sofrimento dos animais vítimas de
sua própria ação antropomórfica, a respeito disso, este reconhecimento
está vertiginosamente ligado na contemporaneidade ao aumento da preo-
cupação em estudar o assunto e nas políticas de proteção aos animais já
implementadas em diversos países, inclusive no Brasil, como preleciona
Molento (2014, p.7):
O reconhecimento da senciência nas esferas legislativas de vários
países, inclusive do Brasil, é hoje tão sólido que o número de leis
promulgadas para a proteção dos animais cresce vertiginosamente.
Práticas de pecuária intensiva, uso de animais para experimenta-
ção, uso de animais para lazer, entre outros, sofrem regulamenta-
ção cada vez mais acirrada, com base em um único princípio: os
animais são seres sencientes.
A partir dos estudiosos da Ética, falando de teorias contemporâneas,
aqui em especial Singer (1998) e seu utilitarismo e Regan (1996) e aboli-
cionismo, é possível tecer algumas ponderações a respeito de ambas cor-
rentes de pensamento (BASTOS, 2016).
A respeito do utilitarismo, ou ainda bem-estarismo, trazendo tais teo-
rias ético-filosóficas para discutir a situação animal, este na prática mos-
trou-se um subterfúgio e é utilizada pela grande indústria de exploração
animal não para defendê-los, mas para manter o processo de exploração
animal de forma mais “humanizada”, defendendo o consumidor daquele
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
produto, por exemplo, melhorar os fatores de stress de bovinos confina-
dos, ampliar seus espaços e lhes oferecer banhos de sol tem um foco no
melhoramento do carne e na diminuição de substâncias cancerígenas na
corrente sanguínea dos animais, o bem-estar animal mostra-se um fator
secundário (Ibidem).
Em outro ponto, reconhecer a senciência animal para Singer (1993)
não está atrelado à dignidade animal, mas sim a necessidade de gerar bem-
-estar na manutenção dos processos de exploração, o que de fato para uma
grande fatia da população é o bastante para que se sintam psicologicamen-
te confortáveis (ibidem).
O utilitarismo clássico, de Bentham, tem como ponto de partida a
dicotomia do prazer e da dor: defende a adoção de posições que possibili-
tem a maximização da felicidade e a minimização do sofrimento do maior
número de seres. Com autores como Peter Singer, por outro lado, tem-se
o utilitarismo consequencialista ou preferencial, uma versão um pouco
modificada do clássico (muito embora o próprio Singer não se exima de
apresentar argumentos que se aproximam da versão utilitária original e
também de outras correntes e teorias). Este utilitarismo vai além das con-
siderações sobre sofrimento: ele busca posicionamentos que permitam se
obter as melhores consequências para todos (AMORIM, 2012).
Conforme Singer apud Amorim (2012), em uma visão utilitarista e
consequencialista, encontram-se os humanos e não humanos frente a um
problema que é a exploração animal. O ser humano que deve adotar uma
postura a partir de um princípio da igual consideração de interesses, par-
tindo de um conflito de valores, esse deve avaliar logicamente qual o va-
lor (princípio) que merece guarda em detrimento do outro, por exemplo,
causar dor a um animal (cachorro) para alterar a aparência de sua orelha
por motivos meramente estéticos coloca em jogo princípios Dor X Es-
tética, logo é reprovável, ensejando a proibição da prática, como é lei no
Brasil, contudo neste jogo de análises a vida do animal (animal de corte)
não é um bem que se sobrepõe a necessidade humana de comer grandes
quantidades de proteína animal para a manutenção de seu modo de vida.
O Abolicionismo animal vai além de práticas de redução de sofri-
mento e regulação da exploração animal (para muitos o utilitarismo é uma
ferramenta com este intuito). Um dos principais representantes desta li-
nha de pensamento é o filósofo Regan (1983, p. 73) sustenta “que os ani-
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mais têm direitos com base no argumento de que humanos têm direitos.
Como principal objeção às teorias como contratualismo e utilitarismo é
que elas produzem resultados morais inaceitáveis não só para os animais,
mas para seres humanos também” (Tradução nossa).
Para Regan (1983) motivo dos animais terem direito à abolição reside
numa lógica Kantiana expandida, frise-se Kant que cunhou o princípio
da dignidade humana. Nesse sentido, uma vez que para Kant os seres hu-
manos possuem dignidade em si mesmo pelo fato de serem donos de uma
vida e sujeitos a personalidade e emoções, os seres sencientes estariam ali-
nhados nessa mesma lógica.
2 DA ANÁLISE CRONOLÓGICA DA LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA COM RELAÇÃO AO DIREITO ANIMAL
O ordenamento jurídico brasileiro historicamente é fruto de diver-
sas influências e processos históricos, dessa trajetória resultou a definição
atual dos animais não humanos.
Já na década de 30 o legislador viu necessária pela primeira vez no
Brasil asseverar juridicamente acerca dos animais e de sua guarda, como
pode ser elucidado a partir da leitura do artigo 17 do Decreto 24.645/34,
in verbis: “Art. 17 - A palavra animal, da presente Lei, compreende todo
ser irracional, quadrúpede, ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto os
daninhos”, estabelecendo por meio de Decreto a proteção da integridade
da fauna, repressão a crueldade e agindo sob questões pontuais como caça,
manejo e abate de animais.
O texto do decreto em seu Artigo 1º era enfático a respeito da tutela
dos animais aferindo “Art. 1º - Todos os animais existentes no País são
tutelados do Estado”, o que deixa claro que ao transgredir a lei neste caso
não ofende o animal, mas o Estado e a coletividade.
No que tange às penas estabelecidas pelo dispositivo em tela para
maus tratos ou vilipêndio em animais domésticos e da fauna brasileira são
punições brandas e de caráter pecuniário, baseadas em multas ou prisões
com quantitativo de pena ínfimo.
Na década de 1940, por sua vez, com o advento dos decretos do Có-
digo Penal e da Lei de contravenções penais percebe-se menções acerca
dos animais e sanções para maus tratos.
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No caso do Decreto-Lei 2.848/40, atual Código Penal, as menções
aos “animais” são relacionadas notadamente à propriedade de animais e
possíveis crimes contra os donos desses seres, a exemplo do artigo 162 que
trata da mudança de marca em grandes animais e da receptação de animais
no artigo 180-A.
O Decreto-Lei 3.688/41, por sua vez, passa a se preocupar com o
crime de maus tratos aos animais na forma do artigo 64 deste dispositivo,
in verbis:
Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho
excessivo:
Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a
quinhentos mil réis.
§ 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáti-
cos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao publico,
experiência dolorosa ou cruel em animal vivo.
§ 2º Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é sub-
metido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibi-
ção ou espetáculo público.
Fica claro que apesar da intenção do Código de punir tais maus tratos,
o interesse é de tutelar direitos dos proprietários dos animais, apontando
um viés utilitarista para esse dispositivo, que falha ao reprimir tais pela
mera menção em lei dado caráter também irrisório da sanção.
Chegando à Carta Magna de 1988 como diploma que coroou o pro-
cesso de redemocratização do país e incorporou uma série de gerações de
direitos humanos ao ordenamento jurídico pode-se apontar que a pauta
ambiental progrediu após esse diploma, contudo mantendo os animais em
seu “status” de propriedade do Estado ou de seu dono particular (BAS-
TOS, 2016).
Mesmo o artigo 23, CF/1988, que traz o princípio de proteção ao
meio ambiente, fauna e flora, o que inclusive é reconhecido como direi-
to fundamental, coloca a proteção desses institutos como máxima para
o direito da humanidade, não há dignidade em si mesmo nos animais
ou nos ecossistemas. Trata-se de uma visão antropocentrista do direito
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
ambiental materializada na Constituição, o que é confirmado pelo artigo
225, CF/88, que reitera o direito ao meio ambiente equilibrado como um
direito humano, mantendo tal viés (Ibidem).
A Lei 9.605/98, comumente conhecida como lei de crimes ambien-
tais, obviamente também discorre a respeito dos crimes contra a flora, a
fauna, poluição do meio ambiente, crimes contra o ordenamento público
e patrimônio cultural, etc. As penas estabelecidas neste dispositivo bus-
cam ser efetivas sendo aplicadas de acordo com a gravidade do crime co-
metido, atingindo pessoas físicas e jurídicas, podendo ser aumentadas (até
triplicadas) de acordo com a situação ou ainda cumuladas penas de deten-
ção e multa, mais uma vez de acordo com a gravidade do crime cometido.
No que tange à fauna (instituto que mais se aproxima deste estudo), a
Lei em estudo discorre a respeito do tipo penal da seguinte forma:
Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fau-
na silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão,
licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacor-
do com a obtida:
Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa (BRASIL, 1998).
Pasmem, apesar de décadas do primeiro diploma protecionista o
“quantum” penalizador mantém-se insignificante, levando em conside-
ração o sistema penal do país. O mesmo artigo em seu parágrafo 4º e 5º
elenca de forma taxativa os casos de aumento da pena, quando determi-
nada pessoa física ou jurídica for enquadrada no tipo penal em questão,
podendo tal pena ser aumentada pela metade ou até o triplo na fase de
dosimetria da mesma.
Nos Artigos seguintes a Lei discorre a respeito dos crimes contra a
fauna. Frise-se o Artigo 32, que segue, expressa o intuito legislativo de
demonstrar que constitui crime os maus-tratos contra animais silvestres
e domésticos, fixando a pena e aumentando-a em caso de morte do ani-
mal. O animal não humano aqui recebe a proteção do Estado sem citar
a dignidade humana como subterfúgio para tal, ou seja, entende-se nessa
passagem, em tese, a dignidade animal, mesmo que de forma indireta ao
adicionar a leitura de outros parágrafos da lei à análise.
Para ilustrar, segue o seguinte recorte:
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar ani-
mais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º. Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa
ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científi-
cos, quando existirem recursos alternativos.
§ 2º. "A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre mor-
te do animal.
Essa era a redação da lei em comento até o presente ano de 2020,
quando ocorreu a sanção da Lei 14.064/20, também conhecida como
“Lei Sansão” que evidenciou mais ainda um tímido reconhecimento da
dignidade animal, desde o modo como a mudança legislativa ocorreu,
após a violência sofrida por um cão da raça “pitbull” que teve suas patas
decepadas causando uma comoção nacional que acelerou tal trâmite legis-
lativo e sanção presidencial de modo que vários outros projetos de lei estão
engavetados há anos nas casas legislativas com intuito semelhante.
O artigo 32 após a alteração da Lei 9.605/98 passou a trazer a seguinte
redação:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar ani-
mais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa
ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científi-
cos, quando existirem recursos alternativos.
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas
descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cin-
co) anos, multa e proibição da guarda.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte
do animal.
Ao analisar a mudança legislativa e correlacioná-la com a realidade
atual do país percebe-se inicialmente que o legislador perdeu a chance de
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majorar a pena de maus tratos ou assassinato de animais silvestres no Brasil
e assim desestimular a caça e o tráfico de animais silvestres em processo
de extinção, uma pauta que tem crescido como demanda de movimentos
sociais devido ao avanço dessa problemática (RODRIGUES; SPAREM-
BERGER; CALGARO, 2017). Sem falar da defesa de outras espécies de
animais domésticos ou exóticos.
Com relação à majoração da pena no artigo em questão quando a
conduta do agente resultar em morte de cão ou gato é notável que para
muitos ativistas e entusiastas do direito animal trata-se de um avanço, pois
pela primeira vez no ordenamento pátrio há uma lei que possua aporte
suficiente para ensejar o cumprimento de pena inicial por meio de pena
privativa de liberdade, ou seja, é uma pena gravosa o bastante para repri-
mir condutas de maus tratos a cães e gatos, em consonância também com
o Artigo 7º do diploma em estudo.
Ainda de acordo com a Lei 9.605/98, em seu Artigo 26 “Nas in-
frações penais previstas nesta Lei, a ação penal é pública incondicionada”
reitera-se o interesse do Estado de proteger os bens ali tutelados e inclusive
incumbindo o Ministério Público de impetrar ações penais e intervir em
ações desta natureza como “costus legis” na busca pela efetivação da norma
ou da punição de agentes, atuando como fiscal da lei.
Por fim, ao recorrer ao direito civil para buscar o “status” dos animais
na sociedade, é possível verificar que estes ainda seguem em classificação
análoga aos bens móveis, seriam os semoventes, estando no mesmo rol de
um veículo ou uma cadeira de escritório, por exemplo.
De acordo com o artigo 82, CC/2002, in verbis: “Art. 82. São móveis
os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia,
sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”.
Os animais estão, tais como os objetos, sujeitos ao assenhoramento ou
apoderamento, como pode-se constatar na leitura do artigo 1.313, Inciso
II e artigo 1.397, CC/2002 ou inclusive à venda, como é possível verificar
ao ler o artigo 445, CC/2002 que trata de vício na vende de objeto.
Apresentada a legislação percebe-se que a depender da fonte ou códi-
go consultado o animal passa de objeto a um ente com direitos e até traços
de dignidade, demonstrando uma incoerência que se sustenta pautada nos
interesses humanos (BASTOS, 2016).
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3 DA EFICÁCIA DAS PENAS NO DIREITO ANIMAL E
AMBIENTAL
Inicialmente cabe discutir a respeito de conceitos que são comumente
utilizados para falar a respeito de eficácia, uma vez que esses não podem
ser utilizados indistintamente.
De acordo com Temer (1998, p.23) existem dois tipos de eficácia,
sendo estes a jurídica e a social que não se confundem, assim o mesmo
preleciona:
[...] eficácia social se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com
potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a
casos concretos. Eficácia jurídica, por sua vez, significa que a norma está apta
a produzir efeitos na ocorrência de relações concretas; mas já produz efeitos
jurídicos na medida em que a sua simples edição resulta na revogação de todas
as normas anteriores que com ela conflitam.
A eficácia social, mais relevante ao interesse dessa pesquisa, se aplica a
potencialidade da lei alcançar o caso concreto, aqui podemos novamente
citar o caso do Artigo 225, CF que trás guarda constitucional ao meio
ambiente como um todo, este tem eficácia jurídica, pois atinge todo or-
denamento, mas tem também eficácia social apenas parcialmente, quando
revoga leis infraconstitucionais dissonantes, mas não alcança parte signifi-
cativa dos casos concretos.
Assim, os maiores vilões no combate aos maus tratos contra animais
são a situação jurídica, a omissão legislativa no processo de implementação
de dispositivos para suprimir condutas pontuais, o conflito de princípios
constitucionais e a brandura na punição de condutas tipificadas, como
discorreremos a seguir.
O peso das penas que já foram aferidas as pessoas que maltratam ani-
mais cresce a passos lentos, mesmo que a quantidade de dias de pena tenha
passado de iniciais meros dias de reclusão e atualmente com a Lei 9.605/98
chegando até a 5 (cinco) anos de acordo com a Lei Sansão.
Reitera-se que tal potencial punitivo é insuficiente e ineficaz e con-
forme mostrado não cumpre sua função social. Conclui-se que mesmo
que punido (condenado) de acordo com enquadramento das leis ora ci-
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tadas, em quase nenhuma destas hipóteses o infrator ficaria preso, mes-
mo que reincidente, por força da jurisprudência da súmula 269 do STF
(falaremos a seguir), que na prática teria como sanção, penas restritivas de
direito ou multa.
A Lei 9.605/98 discorre a respeito das penas restritivas de direito,
ampliando o que foi exposto a respeito das penas privativas de liberdade.
Iniciando pelo Artigo 7º da Lei em questão:
Art. 7º As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem
as privativas de liberdade quando:
I - tratar-se de crime culposo ou for aplicada a pena privativa de
liberdade inferior a quatro anos;
II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a persona-
lidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias do
crime indicarem que a substituição seja suficiente para efeitos de
reprovação e prevenção do crime.
Parágrafo único. As penas restritivas de direitos a que se refere este
artigo terão a mesma duração da pena privativa de liberdade substituída.
Estas, conforme a Lei em tela, agem com um caráter substituto para
punições mais gravosas, mas nesta juntamente com as multas são quase
que a regra a ser aplicadas, de acordo com o Artigo 8º da mesma Lei, as
penas restritivas de direito são as seguintes:
Art. 8º As penas restritivas de direito são:
I - prestação de serviços à comunidade;
II - interdição temporária de direitos;
III - suspensão parcial ou total de atividades;
IV - prestação pecuniária;
V - recolhimento domiciliar.
Fica a cargo do magistrado determinar qual pena é ideal ao caso fá-
tico, verificando diversos fatores jurídicos e social para fazê-lo, apenando
pessoas naturais e jurídicas.
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No caso de crimes ambientais, o juiz deverá de acordo com Artigo
18º da Lei 9.605/98 calcular a lei segundos os critérios do Código Penal,
assim “Art. 18. A multa será calculada segundo os critérios do Código Pe-
nal; se revelar-se ineficaz, ainda que aplicada no valor máximo, poderá ser
aumentada até três vezes, tendo em vista o valor da vantagem econômica
auferida”, os que foram acima expostos. Cabe frisar que em muitos ca-
sos, quando o apenado tem alto poder aquisitivo, o que ocorre em crimes
relacionados a pessoas jurídicas e naturais que aferiam renda cometendo
tais crimes, o valor alto da multa mostra-se o limiar entre a real punição e
impunidade, uma vez que punir em pecúnia representa prejuízo para este
tipo de criminoso.
Contudo, um fator importante é que caso o apenado fique inadim-
plente com a justiça em nada isto repercute para sua liberdade, no caso do
cumprimento de regime aberto, ou seja, o que ocorrerá é que este entrará
em cobrança, levando a máquina pública novamente a desprender tempo
e recursos para buscar seus bens para satisfação da dívida, tal sistema se
mostra ineficaz muitas vezes (CAPEZ, 2019, p. 414).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dada às considerações apresentadas é válido trazer algumas reflexões
autorais acerca da pesquisa elaborada e dos resultados obtidos a partir da
análise efetuada.
Primeiramente cabe inferir que ao analisar as teorias do direito ani-
mal e posteriormente a legislação pátria percebe-se que apesar dos avanços
legislativos e jurisprudenciais observados, a letra da lei, formalmente fa-
lando, ainda reitera em seus dispositivos a ideia de que a proteção ao meio
ambiente, mais especificamente com relação à fauna e aos animais domés-
ticos está intrinsecamente ligada ao direito humano de ambiente ecolo-
gicamente equilibrado, bem como à dignidade da pessoa humana e, por
vezes, aos direitos civis humanos de posse. Em suma, quando se visa a pro-
teção animal no Brasil, apesar das menções e aspirações ao direito animal,
visa-se principalmente a proteção dos interesses humanos da coletividade
ou particular, o animal continua coadjuvante e despido de direitos reais.
O caso da Lei Sansão, como legislação mais atual comentada nessa
pesquisa, esta é um recorte válido que diz muito sobre a teoria supracita-
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da. Uma lei que passou por todo processo legislativo rapidamente, em de-
trimento de outros projetos muito mais completos engavetados há anos no
país, movida pela comoção social do trauma de um cão, com uma redação
final que contempla apenas uma majoração de pena para duas espécies de
animais domésticos, deixando de contemplar toda uma coletividade de
fauna e outras espécies domésticas, enfim, essa aparenta ter sido aprovada
para apaziguar os ânimos da sociedade e proteger a sociedade humana e
as espécies mais comuns de animais que se encontram em sua guarda de
agressões injustas e de “homicídios animais”. O impacto que essas mortes
podem causar nas pessoas se mostra um fator que foi considerado para
redação da legislação em comento.
Em sequência pôde-se perceber ainda que no decorrer do tempo vá-
rios dispositivos de proteção animal se amontoaram, muitos com uma vi-
são “utilitarista” dos animais, todos possuem o enfoque em penas brandas,
que ensejam na prática, por sua vez, penas alternativas para tais crimino-
sos. Não há política pública governamental acerca da proteção animal no
país. Tal proteção se assenta nesses dispositivos brandos que estão embasa-
dos em um viés punitivo insuficiente para desestimular tais condutas nesse
sentido, bem como sem nenhum caráter educativo ou de reconhecimento
da senciência animal tornam-se incoerentes e socialmente ineficazes.
Respondendo ao problema autoral, especificamente, acerca de que
a evolução legislativa protetiva animal poderia estar prevendo um futuro
reconhecimento da senciência desses seres, infere-se com base no exposto
que a resposta é “não”. O escopo legislativo evoluiu, sem dúvidas, mas
não no sentido de reconhecer a dignidade animal e sim de proteger inte-
resses humanos.
Esse trabalho, obviamente, não possui o escopo de esvaziar a presente
discussão que se encontra em processo de constante mudança, servindo
como uma análise científica para leitura e fomento de discussões posterio-
res no mesmo sentido.
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301
ARTIGOS – DIVERSIDADE
SEXUAL E DE GÊNERO
303
DIREITO DE PERSONALIDADE DOS
TRANSGÊNEROS
Dália Oliveira dos Santos66
Guilherme Henrich Benek Vieira67
INTRODUÇÃO
A autodeterminação das pessoas configura-se como elemento fun-
damental para a garantia de qualidade de vida. Autodeterminar-se não
significa agir irresponsavelmente, mas sim, exercer as liberdades pessoais
do modo mais amplo possível, seja produzindo escolhas, seja criando uma
identidade própria ou mesmo tomando decisões quanto ao próprio corpo.
(FACHI, 2014).
Entretanto esse direito ao corpo é também prerrogativa da persona-
lidade, essa medida não se encaixa apenas na exteriorização da essência
humana, pelo contrário, é também parte integrante dela. Nele se apresen-
tam, no palco da existência, o ser e o estar. (FACHI, 2014).
Para Judith Butler, identidade de gênero é um processo de se fazer
o corpo feminino ou masculino, de acordo com características que são
tidas como diferenças e sobre as quais se atribuem significados culturais.
(BUTLER, 2003).
66 Acadêmica de Direito da Universidade Nilton Lins. Avenida Professor Nilton Lins, 3259.
Parque das laranjeiras. CEP 69058-030, Manaus - AM.
67 Professor da Universidade Nilton Lins. Avenida Professor Nilton Lins, 3259. Parque das
laranjeiras. CEP 69058-03, Manaus – AM.
305
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Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, diz que “transexual é a pessoa na qual
há dissociação entre o seu sexo biológico e sua identidade de gênero (ou
seja, entre o seu sexo físico e seu sexo psíquico).” (VECCHIATTI, 2012,
p. 88).
Judith Butler questiona o lugar pre-discursivo que se dá ao sexo bio-
lógico, colocando-o como uma verdade imutável e conformadora de um
modo de ser e agir. (BUTLER, 2003).
Um modelo auto determinativo articulado com a gramática dos di-
reitos humanos deve levar em consideração todo o conjunto de necessida-
des sociais enfrentadas pela maioria das pessoas transgêneros, o que inclui:
acesso à saúde; retificação do registro civil e dos documentos de identifica-
ção social; proteção contra a discriminação no trabalho; casamento, ado-
ção e outros direitos decorrentes de relações familiares; regulação do uso
de lugares em que há separação segundo o gênero (de banheiros a prisões);
e, sobretudo, o enfrentamento do grave estado de marginalização social
vivido pela maioria dos transgêneros. (GARDENGHI, 2012).
Para uma pessoa transgênero, ser diagnosticada como portadora de
um transtorno de identidade sexual significa ser estigmatizada como
doente ou anormal, classificações particularmente danosas a crianças e
adolescentes, e a transgêneros de quaisquer idades vivendo em ambientes
hostis. (BUTLER, 2003).
Através de moldes padronizadores, a heteronormatividade tenta en-
quadrar os sujeitos e objetivá-los, como se guiada por uma ciência régia.
Com a posse do próprio corpo e da sexualidade, eles recorrem à resistên-
cia para destruir os moldes e alcançar a liberdade de exercer suas subjetivi-
dades. (DOMINGO et al., BARACUHY, 2018).
A partir dessas objetivações científicas, criam-se pares que antagoni-
zam a normalidade e a anormalidade, ou seja, “a extensão do domínio da
norma se realizou através de um conjunto de dispositivos de exibição do
seu contrário, de apresentação de sua imagem invertida” (COURTINE,
2006, p. 261). Assim a homossexualidade seria a imagem invertida da he-
terossexualidade.
Deste modo, reconhecer não seja apenas uma maneira de colocar-se
diante das questões, mas que possibilite a garantia de plenitude de direi-
tos e garantias fundamentais próprias e determinantes para a construção
do ser, evidenciadas nos Direitos de Personalidade, enquanto sujeito de
306
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
direitos e de formação identitária que perpassa o gênero, enquanto mascu-
lino e feminino, e que vai além dessa categorização do binarismo sexual.
(SILVA, 2017).
Assim André Duarte (2010, p. 218), declara
“o corpo mostra-se como instância privilegiada de atuação dos
micros poderes disciplinares, sendo concebido como um campo
de batalha no qual se travam conflitos cotidianos entre as exigên-
cias sociais da normatização disciplinar institucional e as linhas de
fuga da resistência. [...] os micros poderes disciplinares investem e
atuam sobre o corpo, penetram no corpo, domesticam-no, disci-
plinam-no, em suma, forjam-no em sua realidade, de modo que
os poderes disciplinares constituiriam a instância que conduziu a
própria constituição do indivíduo moderno.” (DUARTE, 2010,
p. 218).
Para reivindicar o poder político, a referência tem que parecer segura
e fixa fora de qualquer construção humana, fazendo parte da ordem natu-
ral ou divina. Desta forma, a oposição binária e o processo social das rela-
ções de gênero tornam-se, os dois, parte do sentido do poder, ele mesmo.
Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema por inteiro.
(SCOTT, 1995).
Percebe-se, portanto, que a categoria gênero é muito mais ampla
que a ideia de sexo biológico. Mais uma vez ressalta-se que não se des-
considera os elementos biológicos do corpo, pelo contrário, tal qual os
elementos sociais, culturais, históricos e psicológicos, os elementos ana-
tômicos também são constitutivos do gênero, mas não há uma decor-
rência lógica entre sexo e gênero. Importante fazer menção que as mo-
dernas teorias de gênero, principalmente aquelas ligadas à Teoria Queer.
(GORSDORF, 2014).
O artigo 16 do Código Civil Brasileiro institui que todas as pessoas
terão direito ao nome, que compreende o prenome e o sobrenome. Este
é elementar e um dos direitos de personalidade mais importantes, pois
caracteriza a identificação e individualização da pessoa humana, uma vez
que não se pode colocá-lo em situação de disformidade, vexatória e/ou de
ridicularização; como ocorre com os indivíduos de identidade transgê-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
nero que não conseguem autorização para alteração do seu registro civil.
(SILVA, 2017).
O direito de ter um nome é, na verdade, um dever ou, um misto
de direito e de obrigação, isso acontece pela força do caráter compulsó-
rio do registro de nascimento, em que ninguém pode deixar de ter um
nome como signo que o identifica no meio social. (SCHREIBER, 2013.
p. 192).
Caracterizam-se os direitos da personalidade por serem essenciais, ina-
tos e permanentes, no sentido de que, sem eles, não se configura a perso-
nalidade, nascendo com a pessoa e acompanhando-a por toda a existência.
São inerentes à pessoa, intransmissíveis, inseparáveis do titular, e por isso se
chamam, também, personalíssimos, pelo que se extinguem com a morte
do titular. Consequentemente, são absolutos, indisponíveis, irrenunciáveis,
imprescritíveis e extrapatrimoniais (AMARAL, 2002, p. 247).
Entende-se por personalíssimos os direitos à vida, à integridade física
e moral, à intimidade, direito sobre ao próprio corpo, à liberdade, à honra,
à privacidade, à imagem, direito a identidade pessoal e ao nome. O Estado
é obrigado a garantir tais direitos a todos e a cada um dos indivíduos na
perspectiva de estruturar uma sociedade livre, justa e solidária, repudian-
do qualquer forma de preconceito, principalmente no que se refere ao
sexo de cada ser. (SILVA, 2017).
A função psicológica é justamente a fusão do convencimento inter-
no, aquilo que ele pensa que é, com a sua aparência e nome, aquilo que
ele é. É pacífico que o nome é um direito da personalidade; contudo,
sempre há discussão quando há necessidade de alteração de prenome
em decorrência da readequação sexual, por questões morais e pela hete-
ronormatividade. Assim, o nome e a identidade de gênero são direitos
personalíssimos, devendo serem tutelados pelo Estado. (CARDIN et al.,
BENVENUTO, 2013)
A questão relativa ao direito do transgênero de ser tratado em con-
formidade com a sua identidade de gênero envolve uma ampla gama de
situações. (ANDRADE et al., VIDALETTI, 2017).
Uma primeira questão relevante passível de ser referida aqui concerne
ao registro civil, para fim de eventual alteração do prenome – tema que
não possui no ordenamento nacional disciplina específica. (CONGRES-
SO NACIONAL, 2013)
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Vinculado a este tema, desenvolveu-se o questionamento acerca da
possibilidade de alteração de registro civil, na situação em que ainda não
houvesse sido realizada a cirurgia. Suscitava-se a necessidade de que o
registro civil correspondesse à verdade real, razão pela qual prevalecia a
orientação de condicionar a mudança no registro civil à realização de ci-
rurgia. (CHAVES, 2015)
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, porém, decidiu-se pela
dispensabilidade da cirurgia, prevalecendo a orientação de é possível a al-
teração do registro civil, para fim de mudança da identificação do sexo do
requerente, a partir da prevalência da cláusula geral de tutela dos direitos
existenciais inerentes à personalidade. (SALOMÃO, 2015)
MATERIAIS E MÉTODOS
A pesquisa foi construída a partir de dados científicos estratificados
da Scientific Eletronic Library Online (SciELO)), local onde consegui-
mos observar todas as bases de dados nacionais e internacionais, pesquisas
bibliográficas através do Google Acadêmico, além de pesquisa feita com
base na Legislação e Jurisprudência.
Resultados E DISCUSSÃO
Utilizando-se da linguagem da jurisprudência em termos gerais iden-
tidade vem ser a individualização e a identificação da pessoa na sociedade,
o nome por exemplo, assume papel de grande importância na vida do
indivíduo, porém a identidade vai muito além da nomeação, podendo ser
encontrada através de experiências culturais, sociais, ideológicas. Partindo
de um pressuposto de que o reconhecimento é muito mais complexo que
os rótulos simplistas utilizados no campo das relações sociais.
Nesse contexto o chamado direito de personalidade acaba por se limi-
tar, agrupando-se em categorias típicas e submetendo-se a modelos patri-
monialista dos direitos subjetivos, o que por si só tendi ao fracasso já que os
modelos típicos da dignidade da pessoa humana não consegui acompanhar
as mudanças e as transformações da sociedade em que a pessoa se insere.
Sendo assim é impossível não recorrer a viés de estudos científicos da
psicologia, da antropologia e da sociologia, uma vez que se precisa enten-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
der melhor história e a evolução do ser humano, buscando ainda dentro
do direito, entender sobre o direito constitucional, filosofia do direito e,
claro, do direito civil, tendo em vista que a identidade civil se forma atra-
vés de diálogo com o outro, onde cada indivíduo constrói sua identidade
pessoal simultaneamente individual e coletivamente.
O artigo 13 do Código Civil de 2002, dispõe sobre o direito ao cor-
po “salvo por exigência medica, é defeso o ato de disposição do próprio
corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou
contrariar os bons costumes.” Analisando a lei de forma literal lógico-de-
dutiva, estaria a proibir cirurgias de natureza meramente estética, ou mes-
mo aplicações de tatuagens ou piercings no corpo humano, entende-se
que o objetivo do legislador era vedar atos de violência contra o próprio
corpo, atente-se ainda para o relevante vocábulo “bons costumes”, um
conceito jurídico indeterminado que pode servir de ensejo para as mais
infundadas restrições.
Analisando o artigo 13 na transexualidade, poderia ser utilizado para
barrar a disposição dos transexuais ao seu próprio corpo e a formação de
sua identidade e dignidade, na medida em que se vedava a possibilidade
de realização de cirurgia para redesignação de sexo. Tendo em vista que a
transexualidade ainda vem sendo considerada no rol de doenças psíquicas,
admite-se a cirurgia sob o argumento da recomendação médica, se por
um lado é interessante que a cirurgia se afaste do campo da estrita ilega-
lidade, por outro, tal discurso encontra eco em um tradicionalismo por
tratar uma dissonância entre identidade de gênero e sexo biológico como
uma doença. Não se está a defender que a/o transexual não tenha o devi-
do acompanhamento psicológico e médico, contudo, soa como um ana-
cronismo histórico assentar que discussões de gênero e sexualidade ainda
sejam tratadas no rol de doenças.
Schreiber, mais uma vez, apresenta ideia luminosa sobre a temá-
tica: Examinando a Resolução CFM 1.955/2010 em conjunto com o
artigo 13 do Código Civil, o leitor poderá facilmente perceber que a
cirurgia de mudança de sexo é lícita no Brasil, desde que um médico
ateste o estado patológico do seu paciente. Com isso, atende-se ao re-
quisito da exigência médica, pois, nas palavras do Conselho Federal
de Medicina, a cirurgia de mudança de sexo consiste em tratamento
idôneo aos casos de transexualismo. O resultado pode parecer progres-
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sista, já que se permite, ao menos nessas circunstâncias, a realização da
cirurgia. A abordagem, contudo, é a mais retrógrada possível. A opção
sexual (sic) vem tratada como doença. E o promissor debate jurídico e
ético em torno da autonomia corporal fica reduzido a uma discussão
supostamente técnica, em que o elemento determinante passa a ser um
atestado médico. (SCHREIBER, 2008).
O Código Civil de 2002 garante o direito ao nome e ao corpo, tal
garantia é de total relevância para a criação da identidade, sendo assim para
os transexuais assume um papel de grande importância. Entende- se que o
ser humano passa a ter ampla proteção jurídica, afinal a personalidade vem
ser um conjunto de experiências socias, morais, psíquicas que compõe o
ser humano.
O nome torna-se uma marca para cada indivíduo seja no núcleo fa-
miliar como dentro da sociedade. Ao terem apenas o nome social, o tran-
sexual acaba passando por constrangimentos diários,
“afinal uma pessoa com aspecto representativo social do gênero fe-
minino e que contenha documento de identificação com prenome
masculino sofre enorme constrangimento em suas relações sociais,
haja vista o nome não corresponder à identidade da pessoa, assim
como a própria sociedade passa a não conseguir êxito na identifi-
cação do sujeito” (SANCHES, 2011, p. 426-427).
Negar essa possibilidade ao transexual é violar um direito fundamen-
tal, visto que o nome, conforme já defendido, não se resume a uma no-
menclatura, apresenta uma função social importantíssima na construção
identitária do ser humano e mesmo em sua qualidade de vida.
Sendo um direito fundamental de tamanha importância, é impensá-
vel que o nome possa trazer sofrimento à pessoa. Se assim se sucede, por
evidente, que tal direito não cumpre função e é incoerente com a siste-
mática constitucional vigente a impossibilidade a alteração do prenome.
No ano de 2009, o Ministério Público Federal, por meio da Pro-
curadoria Geral da República, através de uma peça firmada pela Dou-
tora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, a qual ingressou com
Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF buscando dar ao artigo 58
da Lei nº 6.015/73 interpretações conforme a Constituição, de modo a
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reconhecer aos transexuais, independentemente da cirurgia de transge-
nitalização, o direito a substituição do prenome e sexo no registro civil.
A então petição inicial da referida ADI apresentava pressupostos teóri-
cos apresentado neste trabalho, nos quais analisava pressupostos jurídicos
que davam oportunidade de enfatizar o pedido, ao princípio fundamen-
tal da dignidade da pessoa humana. Tratava-se não só apenas da mu-
dança do nome como uma forma de reconhecimento, mas a alteração
do sexo biológico, afinal mudar o nome e manter o sexo biológico, não
deixaria de causar constrangimento. A ADI não chegou a ganhar forças,
e caiu por esquecimento.
Porém em 2013 foi apresentada pelo Deputado Federal Jean Willys
e pela Deputada Érika Kokay, o Projeto de lei João Nery, foi baseado
na Lei de Identidade e Gênero Argentina, veio para minimizar os hu-
milhantes processos necessários para a obtenção de documentos com
o nome social, laudos que afirmavam a transexualidade ou transgene-
ridade, como transtornos psicológicos. O Brasil é um dos países que
mais mata transgêneros no mundo em 2008 a 2016 chegou a ocupar
o primeiro lugar do ranking, foram 900 mortes, evidenciando assim a
situação pela qual a população trans passa, cuja a expectativa de vida
não supera os 35 anos.
O Projeto de Lei 5002/13 LEI JOÃO W NERY, aprovada em 2018,
ficou conhecida como Lei de Identidade de Gênero, dispõe sobre o di-
reito a identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei 6.015 de 1973. O
Projeto de Lei retira todo tipo de exigência (medica, psicológica, etc.) para
que as pessoas transgêneros possam retificar seus nomes e gêneros em do-
cumentos oficiais como RG, CNH, ou Carteira de Trabalho, no caso de
alteração na certidão de nascimento a Lei assegura qualquer pessoa acima
de 18 anos que apresente em cartório um pedido de retificação registral
e novas emissões de documentos com o nome e gênero escolhido pelo
qual quer ser tratado, além disso obriga o Sistema Único dessaúde (SUS)
e os planos de saúde a custear tratamentos hormonais integrais e cirurgias
de mudança de sexo para todos aqueles que se sentirem interessados sen-
do maiores de 18 anos, sem a necessidade de diagnostico, tratamento ou
autorização judicial, ou seja, pessoas trans terão o direito à sua identidade
de gênero independentemente de quererem ou não realizar cirurgias ou
terapia hormonal.
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CONCLUSÃO
O exposto trabalho vem expor de forma sucinta questões tão sensíveis
e de impacto na dogmática jurídica do Direito Civil contemporâneo. En-
tendesse que a dignidade das pessoas transexuais passa por sua capacidade
de autodeterminação e pela possibilidade de criação de uma identidade
própria, nos mostrando que ao passar dos anos o modo de se ver em so-
ciedade, força a quebra de paradigmas criados por uma cultura conserva-
dora, que ainda dita as regras sociais. Atualmente identidade não se refere
somente ao nome pelo qual a pessoa é chamada, mas principalmente pela
forma de como se reconhece e se identifica no meio em que vive.
É notório que cada indivíduo possui sua particularidade: sexo, etnia,
classe social, orientação sexual, gênero e afins que historicamente dife-
rem a raça humana. A divisão do sexo biológico feito pela sociedade ao
longo dos tempos, que considera os órgãos genitais, característica pura e
exclusivamente biológica, como determinante para definir o “ser” mu-
lher ou homem, já não condiz com as mudanças ocorridas na forma de
como os indivíduos se veem. A relação do sujeito com seu próprio corpo
é elemento fundamental da intimidade, não cabendo maiores questiona-
mentos, mas sim o devido respeito, sendo assim deve-se ser assegurado a
qualquer indivíduo o direito de felicidade, respeito e direito a dignidade.
Por tanto o reconhecimento dos transexuais do direito de nome e
sexo sem precisar da redesignação sexual é tão importante ser debatido,
a conquista da aprovação do Projeto de Lei João Nery passa a ser uma
mensagem para os LGBT’S mostrando que também são donos do próprio
corpo, além de serem donos da própria vida. O Projeto de Lei traz a voz
e visibilidade que tanto precisam, afinal somos todos iguais, mas temos o
direito de ser diferentes em nossa pluralidade e nossa forma de ser.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Fábio Siebeneichler de; VIDALETTI Leiliane Piovesani. O
direito do transgênero de ser tratado em conformidade com a
sua identidade como um direito geral de personalidade. RJLB,
Ano 3 (2017), nº 4.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
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315
MULHERES NA PANDEMIA:
VIOLÊNCIAS CONTÍNUAS E
CRESCENTES
Andréa Kelmer de Barros68
Falar em violência, ou melhor, violências contra mulheres, não é um
assunto novo. Porém, não é um tema ultrapassado. As diversas formas de
violências sofridas por mulheres ao redor do mundo justificam estudos,
ações, políticas públicas, denúncias e comprometimento não só de mu-
lheres, mas de homens, figuras públicas, pesquisadores, políticos e insti-
tuições de defesa e proteção às mulheres.
Não podemos deixar de mencionar as razões históricas que fortale-
cem as divisões de gênero, dos papéis sociais, colocando as mulheres em
condições de inferioridade aos homens. O patriarcado é parte inerente
e essencial para entender esse processo. Para Balbinotti (2018) o patriar-
cado estabelece uma relação de submissão das mulheres e autoridade
dos homens e foi responsável por consolidar a hierarquização de gênero.
Cita como exemplo a participação das mulheres na sociedade em di-
versos períodos históricos e sociedades, como na antiga Grécia, onde as
mulheres eram reclusas ao espaço doméstico, e não participavam das de-
cisões políticas. No século XVIII, tivemos a chamada “caça às bruxas”,
na qual as mulheres com conhecimento científico, com independência
financeira ou que não professavam a fé cristã, eram perseguidas e mortas,
68 Doutora em Política Social pela UFF/ Niterói.
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reforçando o estabelecimento do poder majoritário aos homens (BAL-
BINOTTI, 2018).
Saffioti (2015) apresenta sintaticamente as principais justificativas para
o uso da palavra ‘patriarcado’ nomeando-a como “o regime atual de rela-
ções homem-mulher” (SAFFIOTI, 2015, p. 59). Esta divisão de gêneros
e de papéis vai muito além da esfera privada, oferecendo direito de domí-
nio sexual do homem sobre a mulher de forma irrestrita, gerando uma
hierarquização que abrange toda a sociedade, representando uma “estru-
tura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência” (SAFFIO-
TI, 2015, p. 60). Compreende-se na análise elaborada por Saffioti (2015)
que o patriarcado é amplo, mas que exerce forte influência e determinação
sobre os direitos sexuais, dando o direito do homem sobre a vida e o corpo
da mulher, independentemente das vontades da mesma. Além o patriar-
cado disso, alcança todos os aspectos dos relacionamentos, subjugando as
mulheres nos campos econômico, moral e social, sendo uma estrutura
de poder que “não abrange apenas a família, mas atravessa a sociedade
como um todo”(SAFFIOTI, 2015, p. 49). Nos modelos patriarcais, as
mais variadas formas de violências são comuns, freqüentes e, por vezes,
sustentadas por leis, consensos morais e religiosos. Assim, consideramos
a estrutura patriarcal um poder socialmente construído que amplia e trata
como natural as violências contra as mulheres.
Mesmo frente a este quadro desolador, historicamente as mulheres
se mobilizaram e conquistaram importantes políticas de proteção às víti-
mas de violências. Uma destas grandes conquistas foi a Lei sancionada no
ano de 2006, Lei nº 11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha”, que
criou “mecanismos jurídicos para coibir e punir a violência doméstica e
familiar contra a mulher” (Lei 11.340, 2006). A Lei leva este nome como
homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, mulher vítima durante
aproximados 23 anos de violência doméstica pelo ex-marido Marco An-
tônio Herredia Viveiros, que tentou matá-la por duas vezes. Em 1983 ele
deu um tiro na vítima enquanto a mesma dormia, deixando-a paraplégica.
Após esses longos anos de agressão, Maria da Penha teve coragem para
denunciar seu agressor quando sofreu mais uma tentativa de assassinato,
começando o processo que levaria quase 20 anos para findar.
A Lei Maria da Penha classifica os tipos de violência contra a mulher,
reconhecendo as violências física, psicológica, sexual, patrimonial e mo-
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ral. A lei apresenta também medidas de prevenção, protetivas e os proce-
dimentos a serem seguidos nestas situações (Lei 11.340, 2006).
Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência domés-
tica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interame-
ricana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
e de outros tratados internacionais ratificados pela República Fe-
derativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de
assistência e proteção às mulheres em situação de violência domés-
tica e familiar. (Lei 11.340, 2006, artigo 1º)
A Lei 11.340 respondeu a histórica condição de opressão, subju-
gação e violências contra as mulheres que, como vimos, é resultado da
cultura conservadora fundamentada no patriarcalismo e padrões sexistas
que reafirmavam a desigualdade dos sexos e que naturalizava a violência
como construção sócio-cultural e econômica. Tal condição é explicitada
em dados do Instituto Maria da Penha, que lançou em agosto de 2017 o
“Relógio da Violência”. Este projeto foi criado para celebrar o aniversá-
rio de 11 anos da Lei Maria da Penha e objetiva contabilizar diariamen-
te o número de mulheres que são agredidas física e/ou verbalmente no
Brasil. Segundo dados do Observatório do Terceiro Setor (2018), este
Relógio marcou, no ano de 2018, que a cada 7.2 segundos uma mulher
era vítima de violência física.
Após a Lei Maria da Penha, também houve uma modificação no
Código Penal Brasileiro. A mesma prevê que os agressores sejam presos
em flagrante ou que tenham a prisão preventiva decretada, ao cometerem
qualquer ato de violência doméstica preestabelecida pela lei. Além disso,
foi alterada a eliminação das penas alternativas para os agressores, podendo
ser condenado a três anos de reclusão, que antes eram punidos com paga-
mento de cesta básica, ou pequenas multas. Caso o crime seja praticado
contra uma mulher portadora de deficiência física, a pena é aumentada
em um terço. No dia 2 de agosto de 2016. Ampliando ainda mais estas
medidas, o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais decidiu que as
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
promotorias do país pudessem aplicar a Lei Maria da Penha em casos de
agressões a travestis e transexuais, independentemente de a vítima ter feito
à cirurgia ou troca de nome.
Mesmo com a Lei Maria da Penha, o assassinato de mulheres vem
crescendo, em grandes proporções. Desta forma, se viu a necessidade de
realizar uma alteração ao Código Penal para regulamentar somente os ca-
sos de homicídios que envolvem as mulheres, sendo caracterizado como
feminicídio. Assim foi criada a Lei 13.104/2015, que denomina como fe-
minicídio a morte de qualquer mulher pelo motivo de sua condição de
ser mulher, ou seja, a Lei inclui o gênero como motivação específica para
o crime de homicídio. O crime passional, que justificaria “matar por
amor”, agora não pode mais ser utilizado como argumento aos homicidas
que assassinam mulheres. A aplicação da qualificadora eleva a pena míni-
ma deste crime de 6 para 12 anos e a máxima, de 20 para 30. A pena será
aumentada de 1/3 até a metade se for praticado: a) durante a gravidez ou
nos três meses posteriores ao parto; b) contra pessoa menor de 14 anos,
maior de 60 anos ou com deficiência; c) na presença de ascendente ou
descendente da vítima.
Com a nova lei, mais conquistas foram alcançadas, dando responsabi-
lidade ao agressor pelo reembolso dos custos de serviços de saúde presta-
dos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência doméstica
e familiar. No ano de 2019, uma alteração na Lei 11.340/06 (Lei Maria
da Penha), visava reforçar a proteção da mulher, e a Lei 13.880/19 passou
a prever a apreensão de arma de fogo sob posse do agressor em casos de
violência doméstica. A Lei foi sancionada em 08 de outubro de 2019. A
arma recolhida é utilizada como prova no processo.
Algo que consideramos importante destacar é que, para além das con-
quistas legais alcançadas pelas mulheres brasileiras, é importante citar, de
forma breve, a relevância do movimento feminista para abrir caminhos
e espaços de lutas às mulheres ao redor do mundo. Saffioti (1988) nos
alerta que não se pode falar em movimento feminista no singular, tendo
em vista a diversidade de posições políticas que compõe esse movimento.
São diversas as pautas, os perfis, os espaços de ocupação e as demandas das
mulheres. Porém, o que queremos destacar, é a relevância crucial que as
lutas das mulheres organizadas em seus movimentos sociais tiveram para
o despertar de conquistas e mudanças históricas que redesenharam pa-
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péis de homens e mulheres, colocando em cheque a cultura patriarcal e
machista, dando voz às mulheres, às suas dores e às suas causas. Dentre
os movimentos sociais contemporâneos, Hall (2005) destaca que o Mo-
vimento Feminista da década de 1960 foi fundamental neste processo de
questionar antigos papéis sociais representados por homens e mulheres;
questionou a estrutura familiar, a sexualidade e a política. Este movimen-
to social fortaleceu a importância de se pesquisar e conhecer, nas mais
diferentes ciências, a formação de identidades sexuais e de gênero, e as
diferenças substanciais existentes entre homens e mulheres no campo da
sexualidade, do trabalho e no contexto familiar.
Os movimentos feministas tiveram grande influência nos anos 1980 no
Brasil. Estes movimentos apresentaram importantes debates no que se refe-
re aos direitos de reprodução, salários compatíveis com suas qualificações,
participação da mulher nos espaços políticos e luta contra a violência do-
méstica. Houve questionamentos sobre conceito de gênero, família e papéis
masculinos e femininos socialmente construídos em nossa sociedade. Este
debate interferiu diretamente nas lutas das mulheres e, posteriormente in-
fluenciou sobremodo as bandeiras de lutas do movimento homossexual no
Brasil, o qual deve ser entendido como profundamente articulado à luta das
mulheres por reconhecimento, identidade e autonomia.
De acordo com Góis (2003), trabalhos recentes sobre a homosse-
xualidade têm repetidamente enfatizado e saudado a proximidade entre
o movimento feminista e o homossexual. O autor faz menção ao estudo
de Emerson Inácio sobre o desenvolvimento dos estudos gays e lésbicos,
no qual sublinha as suas vinculações genéticas com os "Estudos de Mu-
lheres/Estudos Femininos surgidos nas décadas de 1960 e 1970 nos Esta-
dos Unidos e Europa" (INÁCIO, 2002, p. 59). Tal herança proporcionou
uma forte ligação entre os atuais estudos de Gênero e LGBTs, trazendo à
tona uma abertura de leques, onde a homossexualidade e o homem foram
percebidos como novas áreas a serem exploradas (GÓIS, 2003, p. 08-09).
A luta feminista conferiu sustentação à discussão política do mo-
vimento LGBT e densidade aos estudos da diversidade sexual.
Ou seja, a passagem da discussão focada na mulher para o direi-
to e saúde sexuais significou ampliá-la, incluindo a orientação
homossexual, a bissexual, e as experiências transexual e travesti
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(...) as lutas e bandeiras do movimento feminista, principalmente
a respeito da saúde sexual e reprodutiva, estabeleceram elos de
intercessão com as demandas do movimento LGBT. (SIMÕES
NETO, 2011, p. 72)
Para Touraine (2007) aqueles que entendem que a mulher pode ser
reduzida a um mero objeto sexual, estão completamente enganados. A
chamada libertação sexual afirmou a mulher como Sujeito, derrubando
sua imagem de indivíduo submetido ao poder masculino. Esta mudança
representou uma crise do monopólio da relação heterossexual, na qual
a mulher era dominada pelos homens. Para o autor, estamos vivendo
uma “sociedade de mulheres”, pois são elas que sustentam e conduzem
as transformações culturais atuais. Elas são dotadas de uma excepcional
capacidade de combinar diversas tarefas, sendo bem sucedidas nos planos
individual, cultural e profissional. Dentre as diversas conquistas alcança-
das pelo movimento feminista, a criação, a partir dos anos de 1980, das
Delegacias de Mulheres, Conselhos e ONGs, ofereceram espaços públi-
cos e de direito que fortaleceram sobremodo sua luta.
Todo o debate acima mostra como as mulheres se organizaram histo-
ricamente, e ainda hoje lutam pela ampliação de direitos, o que significa
lutar pelo direito à vida, em suma. Mesmo mediante tantas conquistas im-
portantes, as situações de violências e assassinatos não estão superadas. No
ano de 2020, mais um desafio urgente se revelou: atender e proteger mu-
lheres que estão sendo violentadas e encarceradas por seus agressores num
período difícil de pandemia Covid 19, tema que vamos abordar a seguir.
Mulheres na Pandemia
O ano de 2020 tem sido marcado por uma época distinta das que
vínhamos vivendo nas últimas décadas. Fomos acometidos por uma pan-
demia global que alterou as relações de convívio social, política e cultural.
Queremos nos ater aos desdobramentos desta pandemia para as mulheres
brasileiras. Contudo, antes é importante explicar de que pandemia esta-
mos falando e como ela chega ao Brasil.
Segundo dados do ISaúde (2020), foi no ano de 2019, mais es-
pecificamente, em dezembro de 2019, que a Organização Mundial da
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Saúde (OMS) foi alertada sobre vários casos de pneumonia na cidade de
Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. Tratava-se
de um novo tipo de coronavírus que não havia sido identificado antes
em seres humanos até aquele momento. Uma semana depois, em 7 de
janeiro de 2020, as autoridades chinesas confirmaram que haviam iden-
tificado um novo tipo de coronavírus. Foi em 11 de março de 2020 que
a COVID-19 (doença causada pelo coronavírus) foi caracterizada pela
OMS como uma pandemia.
De acordo com o site do G1(2020), o primeiro caso confirmado de
Covid-19 no Brasil ocorreu no Estado de São Paulo no dia 26 de feverei-
ro de 2020. Desde então, os números da doença só cresceram. Segundo
informações colhidas no site do Ministério da Saúde (MS) até a data de
19 de outubro de 2020, tínhamos mais de cinco milhões de pessoas con-
taminadas e mais de cento e cinqüenta e quatro mil mortos no país. Estes
dados são atualizados diariamente pelo MS. Como dissemos acima, nosso
foco é entender como esta pandemia atinge as mulheres no Brasil. Nosso
objetivo não é verificar os números de contágios, recuperação ou mortes
pela infecção entre esse grupo. O objetivo central deste artigo é destacar
como as diversas formas de violências entre as mulheres apresentam um
acréscimo considerável, e como esta pandemia deixa estas mulheres vul-
neráveis, se tornando vítimas fáceis para seus agressores. Como os homens
(maridos, companheiros e parceiros sexuais) são os agressores, as mulhe-
res acabam por se tornar acessíveis, por estarem confinadas no mesmo
espaço privado, muitas vezes sem condições de fuga ou pedidos de aju-
da. De acordo com a publicação "Saúde mental e atenção psicossocial na
pandemia COVID-19. Violência doméstica e familiar na COVID-19", da
FIOCRUZ, estima-se que as denúncias de violência doméstica tenham
aumentado em até 50% no ano de 2020.
Segundo dados da Agência Brasil (2020), na primeira atualização de
um relatório produzido a pedido do Banco Mundial, o Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (FBSP) destaca que os casos de feminicídio (que
é o assassinato de uma mulher, cometido devido ao desprezo que o au-
tor do crime sente quanto à identidade de gênero da vítima) cresceram
22,2%,entre março e abril deste ano, em 12 estados do país, comparati-
vamente ao ano passado. Intitulado Violência Doméstica durante a Pandemia
de Covid-19, o documento demonstra que só entre os meses de março e
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abril, o número de feminicídio subiu de 117 para 143. É importante des-
tacar que se identificou uma queda na abertura de boletins de ocorrência,
evidenciando que, ao mesmo tempo em que as mulheres estão mais vul-
neráveis durante a crise sanitária, têm mais dificuldade para formalizar
queixa contra os agressores e, portanto, para se proteger. Os registros em
delegacias de mulheres tiveram uma leve queda, porque as mulheres estão
em condições desfavoráveis para a procura destas. Contudo, o número de
chamados atendidos pela Polícia Militar teve um aumento considerável.
Só no Estado de São Paulo registrou-se aumento de 44,9% em março
deste ano, em contraste com 2019. No Rio Janeiro, as chamadas para a
Polícia Militar passaram de 15.386 ligações para 15.920. O FBSP também
apresenta dados referentes a homicídio de mulheres. Dos oito estados que
encaminharam seus resultados, verificou-se que no Amapá houve 100%
de aumento de feminicídio, no Acre o aumento foi de 75%%, e no Ceará
chegou a 64,9%.
O FBSP constatou que os registros de ocorrência relacionados à vio-
lência sexual, que levam em conta os crimes de estupro e estupro de vul-
nerável, tiveram redução média de 28,2%, o que, pondera o FBSP, pode
estar relacionado à dificuldade das vítimas em registrar as ocorrências, pois
nestes casos é necessário que a vítima compareça à delegacia para realizar
o exame de corpo delito, e este comparecimento fica reduzido na pande-
mia, o que não pode ser entendido como redução nos números de casos.
Como vimos anteriormente, as violências contra as mulheres não é
um problema que emerge da pandemia, pelo contrário, é algo recorrente
no Brasil e no mundo. Segundo a Organização das Nações Unidas, em
2019, 17,8% das mulheres em todo o mundo sofreram violência física
ou sexual. Ou seja, aproximadamente 1 em cada 5 mulheres foi violen-
tada por alguém do seu vínculo afetivo. Em paralelo, no Brasil, no ano
de 2018, mais de 500 mulheres foram agredidas por hora, e 76% dos
agressores eram conhecidos da vítima, podendo ser um companheiro,
ex companheiro.
Entendendo este quadro e preocupado com o aumento de denúncias
de casos de violência doméstica no período da pandemia, medidas proteti-
vas foram consolidadas como um direito das vítimas a partir da Lei Maria
da Penha (Lei nº 11.340), e podem ser concedidas por um juiz mesmo que
não tenha sido instaurado inquérito policial ou processo cível. O Minis-
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tério da Cidadania compreendeu a necessidade de garantir a continuidade
dos serviços socioassistenciais essenciais para a prevenção de violações de
direitos e proteção de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar,
desenvolvendo novas estratégias de atuação diante do contexto atual. As-
sim, foi criado o Decreto nº 10.282, de 20 de marco de 2020, que regula-
menta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, firmado pela portaria nº
86, de 1º de junho de 2020, no qual a Assistência Social e o atendimento à
população em estado de vulnerabilidade são considerados essenciais, o que
inclui serviços destinados ao atendimento a mulheres vítimas de violência,
cuja continuidade deve ser assegurada no contexto da pandemia.
Na portaria podemos ler que o aumento do risco de as mulheres so-
frerem violência doméstica e familiar por decorrência do distanciamento
social ocorrido durante a pandemia deve-se ao aumento das tensões em
casa e também ao seu confinamento. Como vimos, elas têm mais difi-
culdade de acesso aos serviços de proteção (pelas restrições de circulação
nas cidades ou por interrupção das ofertas dos serviços) e barreiras para se
separar do parceiro violento devido ao impacto econômico na vida de suas
famílias, principalmente no caso das trabalhadoras informais ou domésti-
cas. O decreto reforça também que o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking
mundial de feminicídio, segundo o Alto Comissariado das Nações Uni-
das para os Direitos Humanos (ACNUDH).
Além do decreto supracitado, entre os meses de março e abril do ano
de 2020 foi realizado um levantamento sobre a violência doméstica, du-
rante a pandemia do covid-19 que apontaram dados no qual o feminicídio
teve um crescimento de 5% em relação o ano de 2019. Nesses dois meses,
195 mulheres foram assassinadas, enquanto em março e abril de 2019 fo-
ram 186 mortes. Entre os 20 Estados brasileiros que liberaram dados das
secretarias de segurança pública, nove registraram juntos um aumento de
54%, outros nove tiveram queda de 34%, e dois mantiveram o mesmo
índice. Nos 20 estados analisados, a média observada foi de 0,21 feminí-
cidios por 100 mil mulheres. A taxa ficou acima da média em 11 estados,
os quais detêm 40% da população feminina do total analisado e foram
responsáveis por 59% das mortes (115 feminícidios). Esse levantamento
faz parte de um monitoramento quadrimestral da série de reportagens
“Um vírus e duas guerras”, que segue sendo divulgado no decorrer de
2020. Este estudo é resultado da parceria entre as mídias independen-
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tes Amazônia Real com sede no Amazonas, Agência Eco Nordeste no
Ceará, #Colabora situada no Rio de Janeiro, Marco Zero Conteúdo, em
Pernambuco, Portal Catarinas de Santa Catarina e Ponte Jornalismo, de
São Paulo.
Desde que a pandemia de coronavírus começou, o monitoramento
mostra que 497 mulheres perderam suas vidas. Foi um feminicídio a cada
nove horas entre março e agosto, com uma média de três mortes por dia.
São Paulo, com 79 casos, Minas Gerais, com 64, e Bahia, com 49, foram
os Estados que registraram maior número absoluto de casos no período.
De março a agosto, o país registrou uma taxa de feminicídios por 100 mil
habitantes mulheres de 0,56. Doze estados, que juntos somam 49% da
população feminina do total analisado, tiveram taxas acima desta média
nacional e foram responsáveis por 67% das mortes das mortes (331 femi-
nicídios). Entre os que tiveram maiores altas estão Mato Grosso (1,72),
Acre (1,32) e Mato Grosso do Sul (1,16).
Já em Minas Gerais, o racismo mostra sua cara em forma de esta-
tística: 61% das vítimas de feminicídio são negras. A maioria, 51%, não
concluiu o ensino médio, e 70% têm de 18 a 44 anos. Os feminicídios,
no segundo quadrimestre deste ano, se mantiveram no mesmo patamar
do ano passado, mas os casos de violência doméstica aumentaram 2,7%,
e o desrespeito a medidas protetivas, de julho para agosto, cresceu 22%.
A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os
casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O
objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e
fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de
prevenção à violência de gênero no Brasil.
Desde agosto de 2003, as mulheres contam com um serviço de
utilidade pública, gratuito e confidencial, oferecido pela Secretaria
Nacional de Políticas. Referimo-nos à Central de Atendimento à Mu-
lher, mais conhecida como Disque 180, que atua como um disque-de-
núncia, com capacidade de envio de denúncias para a Segurança Públi-
ca com cópia para o Ministério Público de cada Estado. Esta Central
foi criada pela Lei nº 10.714, de 13 de agosto de 2003, e conta com o
apoio financeiro do Programa ‘Mulher, Viver sem Violência’. O Dis-
que 180 tem por objetivo receber denúncias de violência, reclamações
sobre os serviços da rede de atendimento à mulher e de orientar as
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mulheres sobre seus direitos e sobre a legislação vigente, encaminhan-
do-as para outros serviços quando necessário. A Central funciona 24
horas, todos os dias da semana, inclusive finais de semana e feriados, e
pode ser acionada de qualquer lugar do Brasil e de mais 16 países69. Ela
é a porta principal de acesso aos serviços que integram a Rede nacio-
nal de enfrentamento à violência contra a mulher, sob amparo da Lei
Maria da Penha, e base de dados privilegiada para a formulação das
políticas do governo federal nessa área.
Segundo dados apresentados pela Ouvidoria Nacional de Direitos
Humanos, através das denúncias registradas pelo Disque 180, no ano de
2020, com o surgimento do novo coronavírus, os casos de violência cres-
ceram 36% em comparação com o mesmo período do ano passado. Em
abril deste ano houve um aumento de 40% de denúncias registradas em
relação ao ano anterior, segundo o Ministério da Mulher, da Família e
dos Direitos Humanos. Porém, assim como nos casos de registros de vio-
lências doméstica em delegacias especializadas, este número está longe de
revelar a realidade, já que muitas mulheres não denunciam por conta do
isolamento social imposto pela pandemia e pelas raras condições de sair de
casa para denunciar.
Outra iniciativa criada em 2020 para proteger estas mulheres e
seus dependentes foi o Projeto de Lei 1.444/2020 que altera a Lei
13979, de 2020. Segundo o mesmo, a União, o Distrito Federal, Es-
tados e municípios têm o dever de estabelecer medidas protetivas para
o atendimento à mulher e seus dependentes em situação de violência
doméstica e familiar. É determinado o afastamento em caráter de ur-
gência do agressor, caso a mulher e seus dependentes tenham a vida ou
a integridade física ameaçadas. Se esse afastamento não for possível, as
vítimas devem ser acolhidas em centros de atendimento, casas-abri-
gos ou abrigos institucionais. Caso a violência doméstica seja cometida
durante a pandemia, a polícia deve enviar a um juiz em 24 horas um
pedido para a concessão de medidas protetivas de urgência. A validade
do prazo é de 48 horas. O Poder Judiciário também possui o mesmo
prazo para apresentar uma decisão. Entre as medidas protetivas, pode
69 Os demais países são Argentina, Bélgica, Espanha, EUA (São Francisco), França, Guiana
Francesa, Holanda, Inglaterra, Itália, Luxemburgo, Noruega, Paraguai, Portugal, Suíça, Uru-
guai e Venezuela.
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ser determinada a realização de visitas periódicas pela polícia na casa da
mulher em situação de violência. De acordo com o projeto, as Delega-
cias Especializadas em Atendimento à Mulher (Deams) devem garantir
atendimento domiciliar para o registro de ocorrências. A regra é válida
para crimes de estupro e feminicídio ou ainda para situações de risco.
O projeto também prevê a divulgação de dados sobre violência domés-
tica e abuso sexual.
Com o objetivo de oferecer apoio as vítimas de violência, e denunciar
seus agressores, O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Hu-
manos disponibilizou um novo site de Ouvidoria Nacional de Direitos
Humanos e um aplicativo chamado Direitos Humanos Brasil, disponível
para Androide e iOS, ambos com ferramenta via chat e podendo compar-
tilhar anexos como fotos e vídeos, por exemplo, seja pela vítima ou por
familiares e até mesmo desconhecidos. O Ministério possui ainda o Canal
Geral de Denúncias de Violações de Diretos Humanos (100) e da Polícia
Militar (190).
Todas as iniciativas descritas aqui revelam a urgência do cuidado às
mulheres que, antes, durante e, certamente, após a pandemia, são vítimas
de múltiplas violências. Este quadro permanece vivo e crescente, e deve
alertar a sociedade civil e os poderes constituídos no sentido de pensar
nossas estruturas sociais que reproduzem e naturalizam as violências, le-
vando mulheres a situações de vulnerabilidade diária.
Considerações Finais
Este breve trabalho teve como objetivo mostrar que a violência do-
méstica da qual são vitimas milhares de mulheres no Brasil, permanece
presente em nossos dias, e ainda sofrem um considerável aumento durante
este período de pandemia que estamos vivendo.
Compreendemos que todas as políticas e ações do governo fe-
deral e dos Estados foram e são essenciais para mudanças de com-
portamentos e proteção às mulheres e seus dependentes. Contudo,
acreditamos que para além das políticas públicas, o patriarcado e as
concepções mais radicais de cunho religioso, estão acima das Leis.
Queremos dizer com isso que há questões que são estruturais, que
fazem parte do imaginário, de concepções morais e religiosas que
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entendem as mulheres como seres inferiores, banalizando o cotidiano
de sofrimento a que estão submetidas tais mulheres. Os agressores
não podem acreditar que é natural tal violência. Não se pode aceitar
como imutável que as mulheres sejam tratadas como meros objetos
de desejos masculinos.
Atualmente podemos ver relatos de homens que estão se abrindo para
o debate sobre o tema da violência doméstica e entendendo a necessidade
de novas posturas respeitosas. Os homens são agentes indispensáveis neste
processo de mudança. Mesmo que mais e mais leis sejam formuladas, mas
não tenhamos mudanças nos comportamentos, nas ideias naturalizadas
sobre a superioridade do macho e de que a violência faz parte natural da
vida humana, teremos poucas mudanças.
No entendimento de que os governantes são aqueles que votam po-
líticas, temos a responsabilidade não só de cobrar a eficácia de leis pro-
tetivas, mas temos, antes de tudo, o compromisso de exercer com res-
ponsabilidade nosso direito ao voto, elegendo prefeito(a)s, governadore(a)
s e presidente(a)s da república que não tenham discursos homofóbicos,
machista e sexistas. As tradicionais bancadas católica e evangélica no Con-
gresso Nacional são compostas por homens e mulheres eleitos por eleito-
res. É imprescindível conhecer as pautas e posicionamentos destas pessoas
sobre temas como o da violência domestica.
Desde o início do governo do atual presidente do Brasil, eleito no
ano de 2018, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos huma-
nos70, está sob o comando de uma Ministra que tem feito declarações
que não contribuem em nada com o problema das violências sofridas
por mulheres. Logo após sua posse, declarou que é chegada uma nova
era em que meninos vestem azul e meninas vestem rosa. A Ministra
também critica a educação brasileira, acreditando haver grupos que pre-
tendem implantar uma “ideologia de gênero” e “doutrinar” as crianças
incentivando-as a se tornarem homossexuais. Ela ainda demonstra con-
70 Criado em 17 de abril de 1997 e recriado em 03 de fevereiro de 2017, este ministério do
governo federal brasileiro visa implementar, promover e assegurar os direitos humanos no
país. Busca a ampliação de espaços de cidadania para mulheres, idosos, pessoas com defi-
ciência e crianças. Com a eleição do atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, em
outubro de 2018, está à frente deste Ministério, desde o inpicio de 2019 a pastora Damares
Alves.Fonte: www.mdh.gov.br. Acesso em 30 de setembro de 2019.
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vicção ao afirmar que sexo entre duas mulheres é uma aberração71. Nos
últimos dois anos, o orçamento da Secretaria da Mulher, órgão do Mi-
nistério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foi reduzido de
R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões. Os pagamentos para atendimento
às mulheres em situação de violência diminuíram de R$ 34,7 milhões
para apenas R$ 194,7 mil. a redução drástica dos recursos públicos para
a rede de proteção pode ser vinculada diretamente ao aumento nos casos
de violência e feminicídios. A redução demonstra o escasso interesse em
investir nessas ações.
Encerramos este breve trabalho na certeza de que é urgente de-
bater, escrever, denunciar e agir para que as situações de violências
domésticas sofridas por tantas mulheres no nosso país em pleno século
XXI sejam combatidas. Homens, mulheres, poder público, ONGs e o
setor privado devem se unir nesta luta. Enfatizamos de forma convicta
que esta frente de batalha não pode ser enfrentada apenas por mulhe-
res. Todos perdem quando persistimos na existência de uma sociedade
violenta, machista, moralista e preconceituosa. Este é o desafio à nossa
frente, este é o caminho a ser trilhado. Não será um caminho fácil, e
não tem sido. Mas de nossas lutas, e nossa força social depende o futuro
de nossa humanidade.
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UM vírus e duas guerras: dados sobre violência contra a mulher são in-
completos e sem padronização. Projeto Colabora, 2020. Disponível
em: https://projetocolabora.com.br/especial/um-virus-e-duas-guer-
ras/. Acesso em: 17 de outubro de 2020.
331
A COISIFICAÇÃO E INFERIORIZAÇÃO
DA MULHER NA PORNOGRAFIA E A
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Ana Carolina Lima Silva72
INTRODUÇÃO
Neste artigo, pretende-se discutir a pornografia e seus impactos em
especial para a vida das mulheres, que muitas vezes são subjugadas e hu-
milhadas neste tipo de indústria, e as de fora do meio, também acabam
sofrendo vários tipos de violência na vida cotidiana, que segundo especia-
listas, podem ter relação com a pornografia.
As formas de violência tratadas no artigo são a exploração e a violên-
cia sexual contra menores, o estupro e a pornografia de vingança, além da
violência simbólica e da dominação masculina.
Destaque-se que a pornografia sempre se fez presente na história da
humanidade e provavelmente não será erradicada tão cedo, mas seus efei-
tos nocivos talvez possam ser mitigados com uma mudança de postura das
partes envolvidas, da sociedade.
1. A VIOLÊNCIA
Importante ao tratar sobre violência de gênero, iniciar esclarecendo
alguns conceitos que para muitos estão sedimentados no imaginário po-
72 Advogada, Especialista em Direito Penal e Processual Penal, Mestre em Direitos Funda-
mentais, bióloga e Professora.
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pular, porém, de forma equivocada, bem como tentar conceituar o termo
violência e tratá-lo como gênero, sendo “violência de gênero” uma es-
pécie. Para Dahlberg e Krung (2002), a Organização Mundial de Saúde,
define violência como:
O uso de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra
si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que
resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico,
desenvolvimento prejudicado ou privação.
Para as autoras, um dos principais elementos presentes na conduta
violenta é a intencionalidade, ou seja, a Organização Mundial de Saúde,
excluiu do conceito o incidente. Para elas, ao utilizar a palavra poder, o
conceito de violência é ampliado e passa a abranger as ações oriundas dos
“atos de poder”, que são aqueles resultantes das relações de poder, onde
os exemplos mais comuns são intimidação, ameaça, negligência, omissão
e alguns tipos de abusos.
Um desses conceitos erroneamente estabelecidos refere-se à diferen-
ça entre sexo e gênero, nas lições de Francisco Cabral e Margarida Diaz
(1998, p.124):
Sexo refere-se às características biológicas de homens e mulheres,
ou seja, às características específicas dos aparelhos reprodutores fe-
mininos e masculinos, ao seu funcionamento e aos caracteres se-
xuais secundários decorrentes dos hormônios.
O sexo seria dessa forma o responsável em determinar, que as fêmeas
têm vagina/vulva e os machos têm pênis; apenas isso. O sexo não deter-
mina por si só, a identidade de gênero, e muito menos, a orientação sexual
de uma pessoa. (KOTLINSKI, 2007, p.35)
Por gênero, pode-se entender o seguinte conceito na lição de Kelly
Kotlinski (2007, p.35):
Gênero não é um conceito biológico, é um conceito mais subje-
tivo, podemos dizer que é uma questão cultural, social. Gênero
é um empreendimento realizado pela sociedade para transformar
o ser nascido com vagina ou pênis em mulher ou homem. Nesse
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sentido, gênero é uma construção social, é preciso um investimen-
to, a influência direta da família e da sociedade para transformar
um bebê em ‘mulher’ ou ‘homem’.
Essa construção é realizada, reforçada, e também fiscalizada ao
longo do tempo, principalmente, pelas instituições sociais, são
elas: igreja, família e escola.
Para Kelly Kotlinski (2007, p.36): “Os valores sociais, morais, as
regras de uma sociedade variam de acordo com o tempo, o espaço, in-
teresses, nível de conhecimento e a liberdade de questionamento dessa
sociedade”. Na sociedade atual, gênero faz referência aos papéis sociais
diferenciados para mulheres e homens.
Neste sentido, sexo e identidade de gênero são valores ou conceitos
fechados, pré-construídos e compartilhados pelas instituições sociais, são
âmbitos distintos de expressão ou vivência social de uma pessoa. E são vá-
rias as possibilidades de entendimento e expressão dentro de cada âmbito.
Assim como o sexo não define necessariamente a identidade de gêne-
ro, a identidade de gênero não define a orientação sexual de uma pessoa.
(KOTLINSKI, 2007, p.36)
Segundo Saffioti e Almeida (1995, p.8) tem-se gênero:
Como relação social, até o presente caracterizada pela dominacão-
exploração, constitui um fenômeno em permanente transforma-
ção, pois a mutabilidade faz parte intrínseca da sociedade. Se se
conceber a instância-cultural que constrói o gênero, aí compreen-
didas as práticas sociais, como um conjunto de leis rígidas, recai-se
na antiga e combatida formula da biologia é o destino. Apenas se
coloca a cultura em lugar da biologia.
No que continuam Saffioti e Almeida (1995, p.9) “desta sorte, em-
bora o gênero não se consubstancie em um ser específico, por ser relacio-
nal, atravessa e constrói a identidade do homem e da mulher.” Ou seja,
tem-se que gênero é uma construção psicossocial, frise-se que o conceito
de gênero para as autoras, não se baseia na ideia de superioridade, de desi-
gualdade entre homens e mulheres, visto que, essa hierarquia de gêneros,
nada mais é que mera construção social, oriunda das sociedades patriar-
cais, que ainda permanece forte em algumas sociedades.
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1.1. Violência de gênero
Partindo-se da ideia de violência de gênero, no sentido lato sensu,
nos ensinamentos de Saffioti e Almeida (1995) e de Sardenberg (2011)
violência de gênero é um conceito muito maior que o de violência contra
a mulher, uma vez que, não abrange apenas as mulheres. Homens, crian-
ças e adolescentes, de ambos os sexos, bem como pessoas de qualquer
gênero, fora do binarismo homem/mulher, podem ser vítimas, embora
muitos autores, tratem violência de gênero como sinônimo de violência
contra a mulher, pois, as mulheres (biologicamente falando) constituem o
maior percentual de vítimas (estatisticamente cadastradas), muito em fun-
ção da própria ordem patriarcal, como afirma Sardenberg (2011, p.2). En-
tretanto, o que não pode jamais ser deixado de lado, seguindo os conceitos
já apresentados anteriormente, que gênero é uma construção psicossocial,
ou seja, não deve ater-se apenas a questões biológicas. A violência de gê-
nero é oriunda e se mantém das relações de poder.
A professora Cecília Sardenberg (2011, p.1), conceituou violência de
gênero como sendo:
Por “violência de gênero”, refiro-me a toda e qualquer forma de
agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocio-
nal, institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por base a
organização social dos sexos e que seja impetrada contra determi-
nados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condi-
ção de sexo ou orientação sexual.
Pierre Bourdieu (2007, p.14-15), também credita a violência às rela-
ções de poder:
O poder simbólico como poder de construir o dado pela enun-
ciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar
a visão do mundo e, desse modo, a ação sobre o mundo, por-
tanto o mundo. Poder quase mágico que permite obter o equi-
valente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)
graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto signifi-
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ca que o poder simbólico não reside nos «sistemas simbólicos»
em forma de uma «illocutionary force» mas que se define numa
relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem
o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria
estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença.
O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder
de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade
das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção
não é da competência das palavras.
E dos ensinamentos de Pierre Bourdieu, se infere que o Poder Simbóli-
co, edifica uma realidade através de uma significação imediata para o mundo
social, onde essa significação é imposta e legitimada, por meio de esquemas
de percepção, conceitos e disposições que são incorporados pelas pessoas,
exemplos de disposições, tem-se os atos de amar, subjugar, respeitar, admirar,
sujeitar, não se utiliza violência física ou qualquer outro ato que deixem mar-
cas táteis, faz-se uso do conhecimento para atingir o plano dos sentidos, dos
sentimentos e das ideias, o objetivo é transfigurar as relações para que não haja
questionamentos mas sim o reconhecimento das mesmas e da violência que é
a força que a mantém, sob o manto da pseudo– legitimidade.
Das palavras de Saffioti e Almeida (1995), bem como das lições de
Sardenberg (2011), tem-se que violência de gênero é um fenômeno social,
até mesmo cultural, se for analisada historicamente a relação entre homens
e mulheres, na sociedade patriarcal, onde os homens muitas vezes eram e
ainda são incentivados a exercer seu poder, sua dominação sobre as mu-
lheres e a sentirem-se como proprietários/possuidores das mesmas, que
automaticamente nesse contexto, não passam de objetos/coisas.
A violência em razão do gênero tem como fator desencadeante o
poder, a sensação de desigualdade, superioridade de um gênero sobre
outro. A construção social dos gêneros pelas instituições (família, es-
cola e igreja) leva a construção de estereótipos comportamentais que
ajudam a fomentar a ideia de desigualdade de gênero, trata-se de uma
herança cultural, passada de geração em geração, em que as mulheres
devem adquirir características como fragilidade, submissão e amabi-
lidade, enquanto que os homens são moldados a serem dominantes,
viris, agressivos etc. A sociedade construiu e mantém a ideia de hierar-
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quia de gêneros e muitas vezes utiliza-se da violência com o objetivo
de manter firme esse entendimento.
Cecília Sardenberg (2011, p.1) assim escreve:
Contudo, em virtude da ordem de gênero patriarcal, ‘machista’,
dominante em nossa sociedade, são, porém, as mulheres e, em me-
nor número, os homossexuais, que se vêem mais comumente na
situação de objetos/vítimas desse tipo de violência.
Pierre Bourdieu trabalhou essa questão da dominação masculina,
para ele, essa dominação era vista sob uma perspectiva simbólica, era um
tipo de violência simbólica, assim conceituada:
violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se
exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comuni-
cação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconheci-
mento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimen-
to. (BOURDIER, 2003, p.7-8)
Bourdieu e Eagleton (1996, p.270), acreditavam que esse tipo de vio-
lência é a mais difícil de reagir:
Em termos de dominação simbólica, a resistência é muito mais
difícil, pois é algo que se absorve como o ar, algo pelo qual o sujeito
não se sente pressionado; está em toda parte e em lugar nenhum, e
é muito difícil escapar dela.
Violência simbólica em outras palavras, é a manutenção de um poder que
se disfarça nas relações, que se incute no imaginário, no pensamento e nas
concepções de mundo, passando a virar realidade legitimada para os adeptos
dessa forma de pensar. Para Bourdier, essa violência se perpetua, pois ganha
força através do que ele denominou de “esquemas de pensamento impensa-
do”, que nada mais é, acreditar que se é livre para pensar, que a ideia surgiu
limpa de influências, mas que na verdade, já nasceu carregada, marcada e alta-
mente influenciada por posições e preconceitos há muito estabelecidos.
Cecília Sardenberg (2001, p.2) afirmou que a violência simbólica é a
base para todas as outras formas de violência de gênero, no caso do presen-
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te artigo, especialmente as dirigidas contra as mulheres (violência física,
psicológica, sexual, etc.). A violência simbólica é a base, pois se infiltra no
modo de pensar e agir da sociedade, perpetuando as diferenças.
De fato, a violência de gênero se expressa com força nas nossas
instituições sociais (falamos então de violência institucional de gê-
nero) e, de maneira mais sutil, embora não menos constrangedora,
na nossa vida cultural, nos atacando (ou mesmo nos bombardean-
do) por todos os lados, sem que tenhamos plena consciência disso.
Diariamente, ouvimos piadinhas, canções, poemas, ou vemo-nos
diante de contos, novelas, comerciais, anúncios, ou mesmo livros
didáticos (ditos científicos!), de toda uma produção cultural que
dissemina imagens e representações degradantes, ou que, de uma
forma ou de outra, nos diminuem enquanto mulheres. Essas ima-
gens acabam sendo interiorizadas por nós (até mesmo as feministas
“de carteirinha”), muitas vezes sem que nos demos conta disso.
Elas contribuem sobremaneira na construção de nossas identida-
des/subjetividades, diminuindo, inclusive, nossa autoestima. Isso
tudo se constitui no que chamamos de violência simbólica de gê-
nero, uma forma de violência que é, indubitavelmente, uma das
violências de gênero mais difíceis de detectarmos, analisarmos e,
por isso mesmo, combatermos. (SARDENBERG, 2001, p.5)
Para todos os autores, a violência simbólica é extremamente perigosa,
exatamente porque é sutil, dominadores e dominados podem não ter real
consciência que reproduzem e repassam às futuras gerações comporta-
mentos violentos e preconceituosos, Pierre Bourdieu, no livro Domina-
ção Masculina, chega a afirmar que os grupos dominados, de uma relação
desigual de poder, muitas vezes aceitam a dominação, a aceitação pode até
não ser consciente e deliberada nesse sentido, muitas vezes, estão apenas,
em um estágio pré-reflexivo.
2. O papel da pornografia na manutenção da ideia de
superioridade de gênero (inferiorização da mulher)
A pornografia está presente na sociedade há muito tempo, desde as
civilizações antigas, passando por vários períodos, como Idade Média, Ida-
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de Moderna, chegando à atualidade ainda como tabu. Apesar de ser um
assunto polêmico, faz parte da história da humanidade e até da arte, visto
que, muitas obras existentes, foram ou ainda são taxadas de pornográficas,
de acordo com a mentalidade da época, um exemplo, são as esculturas de
corpos desnudos da antiguidade Greco/romana e mais antigamente ainda,
algumas pinturas rupestres já mostrando nudez.
Pornografia segundo o dicionário Michaelis (1998, p.643) é definido
como “o estudo da prostituição”, que continua descrevendo como "carac-
terística do que fere o pudor; obscenidade, indecência.” A raiz etimológi-
ca da palavra, vem do grego, da junção das palavras, pórnē, que significa
prostituta ou depravada e graphein, que significa escrever.
Nas palavras de César Abreu (1996, p.15) pode-se entender porno-
grafia como sendo textos e/ou imagens que expressem ou sugerem assun-
tos obscenos, capazes de motivar o lado sexual, a libido do interlocutor.
Segundo Collete Chiland (2005, p.15) a pornografia, se divide em
dois gêneros: o softcore e hardcore, sendo a softcore o gênero pornográfi-
co que contém apenas nudez e imagens de sexo sugerido, genitálias des-
nudas são permitidas, porém os demais atos sexuais são apenas sugeridos
e/ou simulados, nunca exibidos de maneira explícita, da mesma forma,
imagens de atos referentes à relação sexual, tais como ereção, penetração
e ejaculação. Já a pornografia hardcore é literalmente mais explícita, con-
tém todos os tipos de cenas de sexo possíveis e de maneira exposta, são
detalhadas todas as ações referentes ao ato sexual, bem como há exibição
maciça de genitais.
Importante destacar, um fato que é de conhecimento geral, a indús-
tria pornográfica tem como público alvo, indivíduos do sexo masculino,
ou seja, tudo é feito de maneira a atender as vontades do público consumi-
dor, fato tão corriqueiro no ramo industrial e comercial, que visa em pri-
meiro lugar o lucro. Sendo assim, não raro se vê nos materiais pornográ-
ficos, mulheres, geralmente, nuas e em posições eróticas, como chamariz,
como atrativos para o consumo dos produtos.
2.1. A pornografia e a violência:
Na atualidade, o nome da socióloga inglesa Gail Dines, vem ga-
nhando destaque ao tratar sobre a relação entre pornografia e a violência,
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
em especial quanto às mulheres e crianças. No seu livro mais recente,
“Pornland: How porn has hijacked our sexuality73”, ainda sem tradu-
ção para o português, a autora faz uma série de críticas a pornografia e
aponta várias críticas na mudança da sexualidade do público consumidor
desses produtos.
Para Gail Dines (2010.p.7), o mundo virou um grande laboratório,
onde ocorrem os experimentos sociais sobre o tema, entretanto, os efeitos
acabam recaindo sobre pessoas, que jamais concordaram em participar de
nada. Justamente em razão das pessoas que são mais afetadas pelos danos
causados pela pornografia, nunca terem sequer assistido ou consumido
nenhum desses produtos ou até mesmo, serem contrários a eles. Em uma
analogia, pode-se colocar essas vítimas, bem próximas do que no Brasil se
conhece por Bystander ou Consumidor por equiparação, da Lei 8078/90,
onde essas pessoas são prejudicas, sem jamais terem chegado perto dos
produtos que lhe causaram prejuízos por vontade própria.
Para a autora, o gênero avançou tanto em termos de exibição de
imagens, que passou a exibir cenas muito fortes e impactantes, com um
enorme privilégio e incentivo ao hardcore, afim de, tornar os consumido-
res cada dia mais interessados, consumindo cada vez mais e dessa forma,
aumentando os lucros da indústria (DINES, 2010, p.163).
No Brasil, uma das táticas da indústria pornográfica para chamar a
atenção dos expectadores era um reality show, onde o público pode virar
“estrela pornô” por um dia, além do baixo ou nenhum custo para o aces-
so, o que facilita bastante o consumo.
No livro “Pornland: How porn has hijacked our sexuality”, a autora
durante praticamente toda a obra, alerta que um dos elementos utilizados
pela indústria do entretenimento erótico, é a violência, muito presente
no gênero Hardcore, que além da super exposição dos atos sexuais e ge-
nitálias, ainda trazem cenas de violência também explícita, um exemplo,
são os filmes que retratam o estupro, como os títulos da empresa Brasi-
leirinhas, a série de mais de dez filmes denominada de “Estupro”, a série
“Violadas”, entre tantos outros, no exterior, o site Rip Her Up74, apresen-
73 Pornland: How porn has hijacked our sexuality. Ainda não possui tradução para o portu-
guês, mas pode ser lido (em tradução livre) como: “Terra da Pornografia: Como o pornô tem
seqüestrado nossa sexualidade”.
74 Em tradução literal, Rip Her Up, pode ser lido como: “rasgá-la”.
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ta diversos filmes, sendo todos com a temática estupro. Com isso, pode-se
perceber que a violência, em especial a sexual, é utilizada por esse tipo de
entretenimento, para vender cada vez mais seus produtos, atingir o maior
número de consumidores e prender cada vez mais a atenção dos clientes.
Além disso, atuam sobre o psicológico masculino, ao colocar a mulher em
uma condição de inferioridade e submissão perante os homens, um obje-
to, sempre a espera, para satisfação pessoal de seu detentor.
A banalização da violência nesse tipo de material, segundo Gail Di-
nes, causa a “desumanização” das pessoas que trabalham para essa indús-
tria, principalmente das mulheres, que muitas vezes, são colocadas como
objeto/coisas, para atender aos desejos do público consumidor e acima de
tudo, garantir ótima lucratividade para os investidores.
Para Gail Dines, a pornografia causa graves transtornos a mentalidade
masculina, principalmente em razão da exposição dos garotos a esse mun-
do ser cada vez mais precoce e sem a devida orientação, como exemplo,
tem-se as histórias em quadrinhos japonesas (mangás), tipo Hentai, onde
basicamente as tramas são de sexo explícito, embora não seja uma revista
voltada para o público infantil, este grupo populacional, também se sente
atraído pela publicação, que pode ser adquirida facilmente, pela internet
ou bancas de revista.
A exposição desses homens às imagens de mulheres humilhadas e
subjugadas, sofrendo todo tipo de violência, incluindo a sexual, é vendida
como capaz de excitá-los, de fornecer prazer e automaticamente felicida-
de. Para a autora, essa ideia equivocada da própria sexualidade e do prazer,
acaba por construir homens violentos, agressivos e com dificuldade de
lidar com as emoções e dores das outras pessoas. (DINES, 2010, p. 170)
A deturpação dos conceitos relacionados a sexo, sexualidade, violên-
cia sexual, prazer e pornografia, poucas vezes são modificadas ao longo
da vida e tal fato, leva a (falsa) construção da ideia de que a mulher pode
gostar de ser humilhada, subjugada e agredida. Soma-se ainda ao fato de
que muitas mulheres em razão da criação, baseada na “Dominação Mas-
culina”, tem medo de se impor perante seus parceiros, perpetuando a sub-
jugação e a inferioridade feminina. Todos esses problemas causados pela
pornografia, colocam as mulheres frente a vários tipos de violência, tanto
a simbólica quanto a física, sendo que muitas vezes, o objetivo principal de
tudo isso é apenas o lucro.
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2.2. A pornografia e a violência contra os menores de
idade
Segundo a UNICEF a violência sexual contra menores de idade,
não está somente ligada à ideia de pobreza e miséria, segundo Karina Fi-
gueiredo e Shirley Bochi, a exploração sexual de menores, atinge todas
as classes sociais e está em grande parte relacionada a aspectos culturais
e relações desiguais entre homens e mulheres. Segundo as autoras, as ví-
timas da exploração sexual de menores podem ser tanto homens quanto
mulheres. (FIGUEIREDO E BOCHI, 2010, p.55)
Nesse contexto, a indústria pornográfica, em busca de grandes lu-
cros, utiliza-se da imagem de adultos, interpretando menores de idade
(vestidos como alunos colegiais e/ou outras vestimentas que sugerem tra-
tar-se de crianças) como tema de seus filmes, são inúmeros títulos com
esse tipo de personagem. O que comprova, mais uma vez, que o entrete-
nimento adulto, se aproveita de uma relação de superioridade (um adulto)
frente a uma pessoa com poucas chances de defesa (criança), uma relação
de poder, para vender seus produtos, deturpando conceitos e colocando
em risco pessoas em desenvolvimento, que deveriam ser protegidas e não
colocadas sob uma aura de erotismo.
Nas palavras de Figueiredo e Bochi (2010, p.56):
Geralmente materializada contra pessoas que estão em desvanta-
gem física, emocional e social, a violência é um fenômeno antigo,
produto de relações construídas de forma desigual. Historicamen-
te, a violência vem sendo denunciada no ambiente doméstico/fa-
miliar contra mulheres, crianças e adolescentes de ambos os se-
xos, sendo que as pesquisas têm confirmado que a incidência é
maior entre as meninas e as mulheres – daí a questão de gênero ser
compreendida como um conceito estratégico na análise desse fe-
nômeno. Mas ela também tem sido denunciada em outros lugares
socialmente construídos: na rua, no ambiente institucional e nas
redes de prostituição (tanto nas mais economicamente poderosas
quanto naquelas mais domésticas). Dada a complexidade que en-
volve a questão do abuso sexual, ela deve ser compreendida nos
seus aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos e jurídicos.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Essa violência pode ocorrer tanto no ambiente doméstico, na re-
lação de convivência familiar entre vítima e agressor, quanto no
contexto extrafamiliar, quando não há proximidade entre vítima
e agressor. Já a exploração sexual comercial ocorre em redes de
prostituição, pornografia, tráfico e turismo sexual. É importante
ressaltar que a violência intrafamiliar ou extrafamiliar não é, em si,
determinante do ingresso da criança ou do adolescente nas redes
de exploração sexual comercial, mas trata-se, sem dúvida, de um
fator de vulnerabilização. A situação de pobreza, a violência intra-
familiar e extrafamiliar têm sido, assim, condições fundamentais
para que milhares de crianças e de adolescentes se transformem
em grupos mais expostos à exploração sexual comercial e a outros
tipos de violação de seus direitos. Portanto, para combater esse fe-
nômeno, é imprescindível adotar uma política de redistribuição de
renda, bem como promover ações sociais de proteção.
Para as autoras, uma das razões que fortalecem a exploração sexual
para fins comerciais é a desigualdade estrutural da sociedade brasileira,
com suas dominações de classe, gênero e raça. Nas palavras delas, há um
“adultocentrismo” na relação entre adultos e crianças. Com destaque,
para o conceito de exploração sexual comercial, trazido por Bochi e Fi-
gueiredo (2010, p.58): “O conceito de exploração sexual comercial inclui
as diversas formas de prostituição, o tráfico e a venda de pessoas, todo tipo
de intermediação e lucro com base na oferta e na demanda de serviços
sexuais das pessoas, o turismo sexual e a pornografia infantil.”
Para Bochi e Figueiredo (2010, p.57):
Dessa forma, a criança e adolescente não têm sido considerados su-
jeitos, mas, sim, objeto da dominação dos adultos, tanto por meio
da exploração de seu corpo no trabalho quanto de seu sexo e da
sua submissão.
As relações dominantes de gênero e de raça, por sua vez, se eviden-
ciam pelo fato de que a grande maioria das vítimas é formada por
mulheres negras e pardas.
De acordo com Vicente Faleiros, no estudo “A Exploração Sexual
Comercial de Meninos, Meninas e Adolescentes na América La-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
tina e Caribe, de 1998”, a exploração sexual comercial é uma vio-
lência sexual sistemática que se apropria comercialmente do corpo
como mercadoria para auferir lucro. Mesmo inscrito como ‘autô-
nomo’ sem intermediários, o uso (abuso) do corpo, em troca de
dinheiro, configura uma mercantilização do sexo e reforça os pro-
cessos simbólicos, imaginários e culturais machistas, patriarcais,
discriminatórios e autoritários. Essa ‘imagem de marca’, parafra-
seando o marketing, não é só característica das zonas de garimpo
mas de modernas redes que oferecem nos anúncios ‘corpinho de
adolescente’, ‘cara de criança’, ‘loirinha’, ‘moreninha’”.
A indústria pornográfica, se utiliza em demasia dos padrões infanti-
lizados para vender seus produtos, homens e mulheres com padrão “co-
legial” e “ninfeta”, são estrelas de diversos tipos de filmes, revistas, jus-
tamente por retratarem um tipo de fetiche, muito comum na cabeça dos
homens mas ao mesmo tempo, extremamente perigoso. Insta ressaltar,
que a construção desses fetiches, é algo que ocorreu ao longo do tempo,
baseado na ideia de dominação masculina também. Mais uma vez, as re-
presentações sociais e a hierarquização da sociedade, construindo este-
reótipos perigosos, uma vez que, não há como comprovar que todos os
adultos, maiores e capazes, tem pleno discernimento para separar ficção
e realidade, bem como controlar seus impulsos e desejos, diante de tanta
facilidade para consumir pornografia.
A infantilização da mulher adulta, segundo Gail Dines (2010, p.330)
pode culminar em um aumento do número de casos de agressão sexual
e física contra menores e pedofilia, não se pode esquecer ainda, de dois
grandes problemas relacionados à criança e ao adolescente, muito comum
em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, a exploração sexual e a
prostituição infantil.
Frise-se que não se trata de pornografia infantil, mas sim de, adultos
com estereótipo infantil, sendo utilizado para auferir lucro na indústria
pornográfica, entretanto, tal incentivo e construção de padrões pode le-
var, a exploração e violência sexual contra menores efetivamente, visto
que, muitos podem tentar reproduzir com crianças e adolescentes, pessoas
mais vulneráveis e frágeis, o que foi massificado na indústria pornô. Um
exemplo, bastante ilustrativo, da construção desse fetiche com colegiais e
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consequentemente menores de idade, em busca do lucro, tem-se a capa
da revista Playboy, edição 318, de janeiro de 2002, onde aparece a então
dançarina do grupo “É o Tchan” e maior de idade, Sheilla Mello, usan-
do indumentária de colegial, sem blusa e a sugestiva frase de marketing
“Sheilla Mello tira o uniforme de colegial. Vai dar para passar?” Com
essa estratégia, ocorre a infantilização de mulheres adultas, com intuito
de auferir lucros, aproveitando-se de uma fantasia, um fetiche masculino.
2.3. A pornografia e outras formas de violência contra a
mulher: criação de padrões e revenge porn75
A criação de padrões estéticos e comportamentais para as mulheres
não é uma exclusividade da indústria pornográfica, a todo momento, não
só mulheres, mas também, homens e crianças são atingidos por padrões
impostos pela sociedade de consumo. Ocorre que, a indústria pornográfi-
ca, cria padrões que vão além do estético e comportamental, participando
ativamente da construção de representações sociais deturpadas.
É comum além de corpos musculosos e roupas diminutas, as mulhe-
res esboçarem pouca ou nenhuma reação, quanto a sua própria sexualida-
de, colocando-se nos papeis de submissa e subjugada, pronta para realizar
desejos e fantasias dos homens, o que contribui sobremaneira para a ma-
nutenção da ideia de hierarquização social entre os gêneros e da domi-
nação masculina, uma vez que, a pornografia também, parte da ideia do
homem como sendo viril, másculo e insensível, sempre disposto ao ato
sexual e a mulher, por outro lado, quase sempre, dócil, submissa e disposta
a satisfazer sexualmente seu parceiro. Para Gail Dines (2010, p.60), du-
rante sua pesquisa, muitas mulheres entrevistadas mencionavam o padrão
estético e comportamental dos materiais pornográficos, mulheres sempre
belas, magras, muito bem maquiadas, depiladas e felizes, tais fatos, leva-
vam as outras mulheres, que não estavam nesse padrão, a se sentir menos
desejadas ou atraentes.
No caso específico da pornografia, as mulheres ao se depararem com
o padrão imposto nos filmes, revistas e afins, interioriza imagens extre-
mamente femininas, sensuais e principalmente sexualizadas, no livro, a
75 Revenge Porn, em tradução livre, pode ser lido como: Pornô de vingança ou pornô vin-
gativo
345
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
autora rebate os defensores de que a pornografia libera a sexualidade da
mulher, de que ocorreria um empoderamento feminino, para autora, o
que ocorre, é justamente o contrário, há a “hipersexualização” da figu-
ra da mulher, com padrões estéticos e comportamentais, respectivamente
inatingíveis e obsoletos. Segundo a autora, o que de fato dá o real empo-
deramento a mulher é a igualdade, tanto política, quanto social e princi-
palmente a econômica. (DINES, 2010, p. 52)
Por si só, a criação de padrões inatingíveis e a perpetuação de este-
reótipos comportamentais, que corroboram com a inferiorização da mu-
lher, já se constituem como uma violência brutal, entretanto, nos últimos
anos, uma outra forma de violência, tão abjeta quanto, vem ganhando
espaço, principalmente com a popularização da internet, que é a Revenge
Porn ou Pornô Vingativo, onde, parceiros e ex parceiros ou até outro tipo
de pessoa com ou sem ligação com a vítima, expõe fotos e vídeos na in-
ternet ou dissemina através de mensageiros nos celulares. Nesse material,
geralmente a vítima está nua ou praticando algum tipo de ato sexual, um
caso emblemático, foi a garota estuprada por trinta e três homens, que
teve vídeos divulgados para o Brasil inteiro e até no exterior, devido a
repercussão do caso.
O fato de ter vídeos ou fotos “pornográficas” circulando na internet,
levou algumas pessoas ao estrelato, a mais célebre de todas, foi a socialite
Kim Kardashian, que ficou famosa justamente em razão disso, mas ela
não é única, Paris Hilton seguiu o mesmo caminho, no Brasil, o exemplo
é a modelo Daniella Cicarelli, todas tiveram seus sextapes76 , divulgados
na internet, supostamente sem consentimento. A maioria das já famosas
personalidades, soube aproveitar o fato e utilizar-se dele para manter-se
no estrelato, entretanto, entre as não famosas ou herdeiras milionárias, o
resultado é humilhação, dor, vergonha e sofrimento.
Na tentativa de coibir esse tipo de dano, a Lei 11.340/2006, em seu
artigo 5º, II, admite a responsabilização para casos de divulgação de vídeo
íntimo, desde que o agressor esteja dentro dos casos abrangidos pela le-
gislação, casos estes previstos no artigo 7º da lei, em especial, no inciso II.
Entretanto a pornografia de vingança não está caracterizada somente
por ser um crime praticado por companheiro, pelo contrário, não é um
76 Sextape: lido em tradução literal como vídeo de sexo.
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crime de mão de própria, um exemplo, foi o ocorrido com a atriz Caro-
lina Dickemman, que teve fotos nuas, divulgadas pelo técnico de infor-
mática que lhe prestava serviço, o fato causou tanta comoção que a atriz,
batizou a Lei 12737/2012, que trata sobre a tipificação criminal de delitos
de informática.
A utilização da pornografia como maneira de atingir as mulheres é
uma das piores formas de violência, pois pode atingir sua dignidade se-
xual, sua honra, sua imagem, sua saúde, reforça a ideia de brutalidade se-
xual praticada e cultuada por alguns homens, mas acima de tudo, reforça
padrões comportamentais tão enraizados na sociedade.
Tanto a criação de padrões, como a pornografia de vingança, são
exemplos de violência de gênero, a que as mulheres ainda estão subme-
tidas e permanecerão, se não ocorrer o real empoderamento feminino e
o fim da dominação masculina, enquanto não houver efetiva igualdade
de gênero. Frise-se como disse a atriz Emma Watson em seu discurso na
ONU, não se trata de ódio aos homens, mas fazê-los entender seu papel
na promoção da igualdade de gênero.
3. CONCLUSÕES
A pornografia sempre fez parte da história da humanidade, esteve
presente desde os remotos tempos das cavernas e suas pinturas rupestres,
chegando aos dias atuais, entretanto, na atualidade com o avanço de novas
ferramentas de mídia e de comunicação e a perpetuação de atos quase tão
antigos quanto a pornografia, como dominação masculina, inferioridade
feminina e violência de gênero, a pornografia tornou-se não apenas uma
forma de difundir conceitos, mas atingiu status de arma.
Através da pornografia, pode-se atingir a honra, a imagem de uma
pessoa, humilhá-la e subjugá-la, colocá-la tão próximo a uma coisa, um
objeto, utilizado ao bel prazer da classe dominante, no caso em tela os
homens.
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349
SOBRE EDUCAÇÃO E
ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER
Amanda Stafanato Verediano77
INTRODUÇÃO
O Brasil embora tenha tido uma série de avanços no âmbito da legis-
lação, como a promulgação da Lei Maria da Penha78 e da Lei de Feminicí-
dio79, as estatísticas demonstram a cruel realidade que, ainda hoje, ocorre.
77 Psicóloga, mestra em Ensino de Humanidades pelo Programa de Mestrado Profissional
do Instituto Federal do Espírito Santo e pós-graduada em Psicologia em Interface com a
Justiça pela Faculdade Católica Salesiana do Espírito Santo.
78 A Lei 11.340/06 conhecida como Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a vio-
lência doméstica e familiar contra a mulher. Em pesquisa realizada recentemente, Tenório
(2018) aponta contradições e limites da aplicação da Lei Maria da Penha, uma vez que,
mesmo após doze anos de sua existência, não temos sua implementação integral. De acor-
do com ela, o que vem sendo aplicado, majoritariamente, é a parcela mais limitada da lei,
aquela menos transformadora da vida das mulheres. O que nos mostra que a lei, por si
só, não garante a efetivação da política, mas aponta a necessidade da sociedade civil bem
como dos movimentos sociais , sobretudo os feministas, de fazer valer o preceito da luta
pelo enfrentamento à violência contra a mulher em seu cotidiano de lutas e manifestações.
79 De acordo com a Lei nº 13.104, feminicídio é caracterizado como homicídio de mulheres
por razões da condição de sexo feminino, envolvendo a violência doméstica e familiar ou/e
o menosprezo ou discriminação à condição de mulher (BRASIL, 2015). O termo refere-se ao
assassinato de mulheres provocado pelo fato de serem mulheres. Face mais extrema de um
continuum de violência contra a mulher, não sendo compreendido como um fato isolado,
uma vez que até chegar a esta violência fatal, a mulher já passou por violências de diversos
350
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Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil, num
grupo de 83 países, é o 5º com maiores taxas de feminicídio do mundo.
As taxas nas Unidades Federativas também são alarmantes: a exemplo do
Espírito Santo, que ocupa o 2º lugar, com uma taxa de 9,3 feminicídios a
cada 100 mil mulheres. Já Vitória, capital deste estado, foi considerada a
capital brasileira que mais mata mulheres (WAISELFISZ, 2015).
Ser mulher nesta sociedade não é tarefa fácil. Ao contrário, caracteri-
za-se enquanto fator de risco, principalmente quando se vive em um es-
tado e em uma cidade que lideram os rankings de violência e assassinatos
de mulheres. Sente-se na própria pele as contradições e opressões deste
sistema perverso e estruturalmente desigual, e por vezes, ainda se paga
com a própria vida. De acordo com o Atlas da Violência (2019), houve
um aumento dos homicídios de mulheres no Brasil no ano de 20177, ten-
do sido 4.936 mulheres assassinadas, o maior número já registrado desde
2007. O documento narra um acréscimo de 29,9% da mortalidade de
mulheres negras no período de 2007 a 2017, apontando para nós que ser
uma mulher negra é ainda mais complexo (INSTITUTO DE PESQUI-
SA APLICADA, 2019).
As páginas dos jornais escorrem sangue, todos os dias, ao expor o fe-
nômeno mundial da violência contra a mulher. Esse fenômeno é encarado
aqui como problema real na vida das mulheres do Brasil e do mundo, uma
violação dos direitos humanos e uma expressão das relações desiguais de
gênero, “[...] forma de reprodução do controle do corpo feminino e das
mulheres numa sociedade sexista e sustentada por uma cultura patriarcal”
(BRASIL, 2011, p. 22).
Para Saffioti (2004), a violência de gênero deriva de uma organização
social de gênero que privilegia o masculino em detrimento do feminino,
sendo fruto de uma construção social que perpetua as desigualdades de
gênero. Na sociedade patriarcal, existe uma forte banalização da violência,
de modo que há uma tolerância, e até certo incentivo da sociedade, para
que os homens possam exercer a virilidade baseada na força/dominação,
com sustentação na organização social de gênero.
Segundo a mesma autora, o patriarcado se apresenta como um sistema
de dominação-exploração das mulheres pelos homens que tem sua base
tipos ao longo de sua vida. É considerado um crime de ódio contra as mulheres (PASINATO,
2011).
351
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
material na divisão sexual do trabalho e na violência. Tal acepção permite
compreender a dominação não somente na esfera da família, como tam-
bém nas demais relações, como as trabalhistas e políticas. O patriarcado
orienta uma dinâmica das relações sociais que se perpetua mediante sua
naturalização na vida social, sendo reproduzido até mesmo de forma in-
consciente, porém internacionalizada para manter uma estrutura desigual
de gênero (SAFFIOTI, 2013).
A violência masculina contra a mulher é estrutural, portanto, con-
substancial à organização social de gênero. Apoiando-se em Welzer-Lang
(1991), Saffioti (1994, p. 23) afirma que:
[...] a violência é o modo fundamental de regulação das relações
sociais entre os sexos... [...] Ela regula, tanto nos espaços públicos
quanto nos espaços privados, as formas de dominação dos homens
sobre as mulheres. Seu caráter central encontra sua representação
em um conjunto de expressões simbólicas.
Para Welzer-Lang (1991), o homem potencialmente capaz de produ-
zir a violência é gestado pelo ordenamento social patriarcal, nutrindo, a
partir de suas práticas sociais, esse tipo de relação de gênero. Desmitifica,
assim, o mito do homem violento, e atribui sentido social e cultural ao
fenômeno da violência, afirmando, portanto, que o homem somente será
violento se for incentivado a tal.
Diferentemente dos homens, que vivenciam a violência, principal-
mente, em espaços públicos, as mulheres são vítimas de violência, exer-
cida por companheiros e ex-companheiros, prioritariamente nos espaços
privados. De acordo com o Atlas da Violência (2019), o domicílio é o local
onde acontecem 28,5% dos casos de homicídios de mulheres, informação
que evidencia a domesticidade da violência contra a mulher (INSTITU-
TO DE PESQUISA APLICADA, 2019).
A violência doméstica é bastante específica, afirma Saffioti (1994),
tratando-se de agressão física, psíquica ou sexual praticada no chamado
espaço privado, no qual, em nome da preservação da privacidade e do pa-
triarcado, os representantes do Estado não interferiram por décadas. Vale
lembrar a expressão popular: “Em briga de marido e mulher, não se mete
a colher”, que também contribuiu fortemente para manter o silenciamen-
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
to feminino. Sobre ela, busco dizer o contrário e afirmar que em briga de
marido e mulher, mete-se a colher, sim.
Dentre as características da violência doméstica, tem-se a rotinização,
a codependência e a relação fixada. Aquela acontece em uma relação afe-
tiva e, normalmente, sua ruptura e desvinculação necessitam de interven-
ção externa de outrem. Como retrata a autora, são frequentes as histórias
de saídas e retornos da relação violenta, o que é denominado de ciclo da
violência. As mulheres reagem e resistem ao ato da violência, ainda que
permaneçam por anos nessas relações – não significando que elas sejam
cúmplices de seus agressores ou gostem de apanhar, conforme diz Chauí
(1985) citada por Saffioti (2004).
Ainda que a violência contra a mulher seja um fato, para Delphy
(1998), citada por Saffioti (2004), a afirmação das relações de gênero
como interpessoais acarretaria a singularização dos casos e tornaria o ho-
mem inimigo das mulheres, voltando-se assim para uma análise e práti-
ca que se distanciam da estrutura social. Entendemos como necessária a
responsabilização dos sujeitos pelos atos cometidos e o seu devido reparo;
entretanto, insistimos, o problema não é individual, mas social e estrutu-
ral. O feminismo aqui defendido não representa, de forma alguma, uma
guerra contra os homens, e está muito longe de ser rancoroso, ressentido,
amargo. A rigor, é o oposto disso, visa estabelecer a igualdade entre os se-
res, possibilitar-lhes o desfrute do prazer, concebido amplamente, afirma
Saffioti (1987).
1. O PAPEL DA EDUCAÇÃO NA TRANSFORMAÇÃO DA
REALIDADE
Mesmo diante de cenário tão difícil, alicerçamo-nos na compreensão
de que a educação possui papel central na transformação dos sujeitos e do
mundo, conjecturando a construção de práticas educativas imbricadas ao
enfrentamento às desigualdades de gênero e à violência, atreladas à produ-
ção de respeito e de igualdade nas relações entre os gêneros.
Nos debruçamos, sobretudo, nas experiências que têm acontecido
na contramão da perspectiva descrente de mudanças e transformações do
cenário escolar no que tange aos trabalhos que circundam gênero, apon-
tando caminhos para uma educação feminista que, embora compreenda
353
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
os limites e dificuldades em trabalhar tais conteúdos na escola, apontam
relevantes experiências que materializam estes avanços. Como exemplos,
destacamos Gênero e educação de Faria et al. (1999), Estratégias metodológicas
para a formação em gênero: possibilidades teóricas-práticas de Alvarenga, Silva e
Nader (2012) e Os Movimentos das Professoras da Educação básica no Espírito
Santo em face às políticas públicas de gênero para a educação de Silva (2017). Este
último, fruto da tese de doutorado da pesquisadora, defende a existência
de um movimento pedagógico de gênero em curso nas escolas deste es-
tado, o qual se relaciona com o movimento feminista e de mulheres. Esse
movimento aponta que as professoras têm desenvolvido ações pedagógicas
que visam desnaturalizar as dissimetrias e as hierarquizações das relações
de gênero, tendo sido potencializado pelas políticas públicas implementa-
das pelo Governo Federal e estadual no período de 2003 a 2016.
O feminismo, ao ganhar espaço na sociedade através da luta das mu-
lheres em busca de sua libertação, corroborou a ascensão de trabalhos de
educadoras e educadores engajados na transformação das práticas educa-
tivas. Essa alteração se deu por meio de críticas ao sexismo, ao racismo
e à homofobia, apoiando-se na desconstrução das relações desiguais de
gênero, bem como na construção de uma educação que estimule o pensa-
mento crítico e libertador.
A elaboração de estudos acadêmicos e de práticas educativas que cola-
borem para repensar e questionar o modelo de educação sexista se coloca
como fundamental. Reforçamos a necessidade de formações específicas
sobre a temática com o corpo docente escolar, bem como com todos os
sujeitos envolvidos no processo educativo, a fim de que relações de res-
peito e igualdade possam ser desenvolvidas e pautadas no processo de en-
sino-aprendizagem.
Deste modo, nos desafiamos a fortalecer a articulação entre escola
e movimento social no sentido de contribuir para a formação crítica de
estudantes de ensino médio da rede estadual do município de Serra, Es-
pírito Santo, com vistas à desnaturalização da opressão de gênero e o en-
frentamento à violência contra a mulher. Realizamos rodas de conversas
que debateram a desigualdade de gênero e a violência contra a mulher,
em uma perceptiva crítica, junto aos estudantes; buscamos construir prá-
ticas educativas que contribuíssem para o fortalecimento de estratégias
de enfrentamento à violência contra a mulher nas escolas; e produzimos
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
material educativo no formato livreto que discute a temática de gênero,
a desnaturalização dessa forma de opressão e o enfrentamento à violência
contra a mulher.
A educação se apresenta como possibilidade de aprendizados, discus-
sões, embate de ideias, descobertas e produção de relações sociais. É ana-
lisada, pelo movimento feminista, enquanto campo potencial de repro-
dução e, sobretudo, de problematização das desigualdades – e de opressão
– de gênero já engendradas em nossa sociedade (FARIA, et al, 1999). A
escola, conforme nos sugere Saviani (2003), é responsável pela socializa-
ção do saber sistematizado historicamente pela humanidade. Sendo assim,
também se apresenta como espaço privilegiado para o questionamento das
violências de sexo/gênero, raça e classe vivenciadas pelos sujeitos sociais,
bem como para o fomento da igualdade entre tais segmentos.
Apostamos na educação enquanto ferramenta crucial de combate às
desigualdades sociais de gênero, classe e raça, que se articulam e se engen-
dram entre si. Interessa-nos pensá-la e utilizá-la como instrumento po-
tencial de transformação desta sociedade de classes e de busca pela eman-
cipação da humanidade.
As pedagogias feministas ancoram-se no reconhecimento da existên-
cia das desigualdades vividas por meninas e mulheres em relação aos me-
ninos e homens nas instituições escolares. Com o intuito de contrapor a
educação pensada e construída por homens, as mulheres se organizam e
propõem elas próprias a concepção de projeto de educação que almejam,
sendo essa não sexista, não homofóbica, não racista, mas transformadora.
Tais pedagogias buscam romper com o modelo androcêntrico de educa-
ção, o que significa produzir, com as próprias mãos, uma educação fe-
minista e libertadora. Proposta por mulheres para homens, mulheres e o
todo da humanidade, a educação feminista subverte a posição desigual e
inferior à qual a mulher é submetida historicamente pela pedagogia tradi-
cional (LOURO, 1997).
Destacamos que produzir uma educação feminista e libertadora, que
fomente o desenvolvimento de potencialidades de alunas e alunos, parece
o caminho a ser percorrido, assim como investir na ruptura com a com-
petição enquanto valor para estímulo à aprendizagem e buscar construir
relações de ensino e aprendizagem que perpassam a camaradagem, a par-
ceria e amizade. Deve-se, dessa maneira, fazer uso da solidariedade e do
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respeito como valores que devem cultivar educadoras e educadores, assim
como educandas e educandos.
Concordamos com Louro (1997) quando esta afirma que, a partir da
elaboração da pedagogia feminista, não temos somente um acréscimo de
temáticas a serem estudadas e pesquisadas, mas sim um outro modo de
olhar e fazer pesquisa e educação. Para ela, efetiva-se uma transformação
no modo de produzir o conhecimento e a política. O feminismo redefi-
ne o político e assume que o pessoal também é político, produzindo um
outro modo de fazer política e ciência. Destacamos, então, a crescente
produção das pesquisas feministas atrelada aos movimentos sociais e de
mulheres que evidenciam as diferentes concepções e perspectivas de femi-
nismo, uma vez que aumentam o número de pesquisadoras e estudiosas
nas universidades, pós-graduações, grupos de estudos, movimentos so-
ciais e outros.
1.1. RODA DE CONVERSA NO MUNDO QUE A GENTE
QUER, BASTA DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER!
Neste artigo, abordamos alguns dos apontamentos e aspectos enun-
ciados na roda de conversa ocorrida sobre violência contra a mulher e suas
diversas dimensões. Nela, a objetificação do corpo da mulher foi trazida
ao debate por uma aluna que pontua sobre o julgamento que a sociedade
faz da roupa que ela usa. Tal imagem, a da mulher enquanto mercadoria/
objeto, reforça-se socialmente à medida em que essa é vinculada, de forma
pejorativa, às propagandas televisivas de cerveja, à festa popular “carna-
val”, dentre outros. A estudante também comentou sobre a culpabilização
da mulher pela violência sofrida, tantas vezes exercida pela sociedade, que
se justifica pela argumentação em torno da roupa curta e insinuativa usada
por ela, do horário e do local em que ela estava ou ainda da ausência da
companhia de alguém do sexo/gênero masculino. Em uma pesquisa reali-
zada pelo Ipea no ano de 2014, a qual foi citada no encontro e na qual foi
realizada a consulta a mais de três mil domicílios no Brasil, foi apontado
que 26%80 dos entrevistados acredita que a culpa da violência contra a
80 Vale dizer que a pesquisa foi divulgada figurando que 65,1% dos entrevistados acredita-
vam que a culpa é da própria mulher pela violência sofrida. E em momento posterior, di-
vulgou reportagem fazendo correção na informação veiculada, afirmando que o percentual
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
mulher é da vítima, enquanto 58,5% das pessoas consultadas acham que,
se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros. Ainda
segundo a mesma pesquisa, 26% da amostra crê que, a depender da roupa
que a mulher estiver vestindo, ela merece ser assediada (INSTITUTO
DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2014).
Podemos constatar, portanto, que a percepção que a sociedade tem
sobre a violência sofrida pela mulher influencia diretamente em sua natu-
ralização e aceitação ou em seu enfrentamento e contestação. Justifica-se,
na maioria das vezes, esta violência por infindáveis motivos: não aceita-
ção do fim de relacionamento/casamento/namoro, ciúmes, traição… em
suma, todos figuram em uma única razão: o machismo que não admite
receber “não” como resposta.
Ameaças, desqualificações e violência são o caminho encontrado por
companheiros, ex-companheiros ou desconhecidos, que compreendem
o corpo e a vida das mulheres como propriedade privada. “Se ela não for
minha, não será de mais ninguém” é uma frase comumente ouvida em
casos de violência. É esta a chamada cultura do estupro que incentiva e
exacerba a sexualidade masculina e, de outro modo, violenta e agride a
sexualidade e a vida femininas. A ordem patriarcal vigente permeia nossas
relações sociais nas esferas política, profissional, familiar, afetiva e sexual.
Nossas ideias e maneira de ver/enxergar o mundo não estão desco-
nectadas da nossa realidade prática, em que as diversas violências, prin-
cipalmente a contra a mulher, são legitimadas. Essa legitimação ocorre
através das relações sociais desiguais às quais as mulheres são submetidas,
que envolvem seus relacionamentos, o trabalho doméstico e produtivo, a
educação, dentre outros.
Em resposta à pesquisa divulgada, que culpabiliza a mulher pela vio-
lência sofrida, feministas de diversos locais lançaram mão da campanha
virtual A culpa nunca é da vítima, que ganhou contorno e altas proporções
nas redes sociais. A campanha reafirma que a violência sofrida pela mulher
é resultado das relações de opressão engendradas pela sociedade patriarcal
na qual vivemos, que não só tolera como permite o ato da violência.
A violência contra a mulher é uma realidade alarmante no Brasil e no
mundo, realidade sobre a qual movimentos sociais, movimentos feminis-
correto seria 26% (INSTITUTO DE PESQUISA APLICADA, 2014).
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
tas, ongs, pesquisadora(e)s e acadêmica(o)s têm se debruçado para buscar
conjuntamente possíveis alternativas que conjecturem uma vida digna e
sem violência às mulheres. O tema possui destacada relevância social e se
torna cada vez mais comum um olhar atento e crítico voltado a esta área,
tão concreta para o conjunto de mulheres das diferentes raças/etnias, clas-
ses sociais, gênero e sexualidade.
Importante lembrar, não para repetir, mas para condenar, a atrocidade
de casos como aquele da jovem de 16 anos munícipe do Rio de Janeiro
que foi violentada sexualmente por mais de trinta homens, no ano de 2016
(BRASIL, 2016). Movimentos feministas e ativistas realizaram manifes-
tações nos estados de norte a sul do país com o slogan “Por todas nós”,
como forma de repúdio e contestação a essa ação inaceitável de verdadeiro
ataque à “dignidade sexual e vital” desta jovem – e a todas nós. Neste,
e em todos os outros casos, a afirmação de que o sexo deve ser exercido
somente com consentimento deve ser uma máxima dos que prezam por
respeito, prazer e um mundo sem violência.
De acordo com a Lei nº 12.015, de 200981 do código penal brasilei-
ro, o estupro é classificado enquanto ato de “constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com
ele se pratique outro ato libidinoso”, sendo considerado como crime hedion-
do (BRASIL, 2009). Desse modo, incitar discussão que problematize e
questione a violência, seja ela sexual, psicológica, patrimonial ou qualquer
outra, no ambiente escolar é condição para a formação de novos homens
e novas mulheres82, atentos e combatentes das desigualdades, comprome-
tidos com uma convivência social que não anule ou violente o/a outro/a,
81 Antes do ano de 2009, constava na lei a definição de estupro como “constranger mulher
à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça". O termo mulher foi alterado por
alguém, trazendo a mulher e o homem como possíveis autores e vítimas de tal crime. Em
diversos trechos, também o termo violência foi substituído por conduta, com intuito de
ampliar a intervenção da lei (BRASIL, 2009).
82 Termo comumente utilizado pelos movimentos sociais para designar o desafio de forjar
homens e mulheres novos, compromissados com a luta permanente pela transformação
de si mesmo, do modo de vida e das relações sociais, no exercício da construção de novos
valores, de outra sociedade e estrutura econômica. A transformação do homem e da mulher
individualistas, em solidários e conscientes. Para saber mais, ler Castro (2016) e Kollontai
(2005).
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mas que produza sentido em insistir na luta por uma escola e uma socie-
dade sem machismo.
Ainda na roda de conversa, um aluno questiona a eficácia do atendi-
mento da polícia diante das denúncias de violência doméstica. Ele conta
que, após o padrasto ter agredido sua mãe, ele chama a polícia; entretan-
to, sua solicitação de chamado não é atendida – um acontecimento nada
incomum no cenário brasileiro. Neste sentido, conversamos sobre o re-
duzido funcionamento das Delegacias Especializadas em Atendimento à
mulher (DEAM) aos finais de semana, quando ocorrem expressivos casos
de violência doméstica (CARDOSO, 2017). Ora, se uma das respostas
do Estado à violência doméstica é a polícia, e ela funciona com muitos
limites e contradições, como proceder? Como garantir condições efeti-
vas de proteção a essas mulheres? Apontamos o atendimento à mulher
em situação de violência como prioridade para a busca da resolução do
problema. Afirmamos, estudantes, pesquisadora e docentes, que a vítima
deve ser acolhida imediatamente, havendo uma rede de serviços e profis-
sionais para tal, dentre eles, promotorias, defensorias, unidades de saúde,
CREAS e hospitais.
No Espírito Santo, contamos com o Serviço de Atendimento à Vítima
em situação de Violência (SASV) e com o Programa de Atendimento a
Vítimas de Violência Sexual (PAVIVS), que funcionam, ambos, no muni-
cípio de Vitória; além da Casa-Abrigo Estadual “Maria Candida Teixeira”
(CAES), equipamento público da alta complexidade que acolhe, por perío-
do temporário, mulheres em situação de risco de morte devido à violência
doméstica. Os cuidados também precisam se voltar para os autores da vio-
lência e, por isso, contamos com outros instrumentos, como a própria Lei
Maria da Penha e o projeto “Homem que é Homem”, desenvolvido pela
Polícia Civil no intento de trabalhar com este público a reflexão e a respon-
sabilização pelo ato da violência, bem como a desconstrução do sexismo,
de modo a propiciar outras formas de resolução e conflitos. Pontuamos que
enxergamos as recorrentes falhas na rede de atendimento à mulher vítima
de violência; falhas estas que precisam ser discutidas em exaustão para que
se possa avançar na proteção dessas mulheres. As DEAMS, a Lei Maria da
Penha, o botão do pânico e os demais mecanismos, ainda que funcionem de
modo incipiente, são fruto de muita luta feminista para saírem do papel e se
consolidarem como política para as mulheres.
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Também contamos com redes de amizade e solidariedade, formadas
nas próprias comunidades, com vizinhos/as, parentes e amigos/as. Essas
redes invisíveis e não institucionalizadas de fortalecimento coletivo tam-
bém são fundamentais para cuidar e levantar as mulheres em situação de
violência. Na mesma direção, o Levante se propõe a ser uma grande famí-
lia para seus militantes, cuidando das questões políticas que dizem respei-
to ao movimento e também buscando dar apoio pessoal a cada um/uma,
sendo solidário quando preciso, conhecendo a família, o grupo de amigos
e de convivência do/a militante e demais questões que envolvem sua vida:
escola, trabalho, namoro, etc.
Outro fator potente a ser observado no encontro com as/os estudan-
tes, é que estes abarcaram a ideia da roda de conversa ao narrarem expe-
riências pessoais e familiares, demonstrando interesse e participação no
conteúdo explicitado. Junto a isso, revelavam que tais assuntos, pelo fato
de ainda serem considerados tabus, não eram discutidos no cotidiano es-
colar, familiar ou até mesmo entre amigos. Diziam: “isso, revelado ago-
ra, só contei para um amigo há muito tempo e nunca mais havia falado
sobre”. Tais narrativas esboçam a potência dos encontros, bem como os
níveis de confiança e respeito compartilhados entre os membros do gru-
po. Foi possível aprender que todos temos algo a dividir com o coletivo e
que, infelizmente, a violência doméstica não é mérito de alguns, atingindo
grande parte das famílias com as quais convivemos. Os alunos e as alunas
puderam se perceber em situações similares, ainda que desejassem não tê-
-las vivido. Nesse sentido, ao reconhecer o outro em situação semelhante,
ocupando o mesmo lugar, a empatia ganha espaço. Compartilhando so-
frimento e vivências traumáticas, enxergavam também possibilidade das
gerações futuras e atuais de pensar e fazer diferente, de estarem mais aber-
tas a ouvir o outro e a respeitar sua história e sua posição no mundo. Sem
tantos julgamentos, denuncismo e violência. O sentimento socializado era
de acolhimento, de “aqui cabe mais um/uma”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As experiências das rodas de conversa nesta escola nos trouxeram al-
gumas questões para pensarmos o modo como vem se efetivando a prática
educacional em sala de aula, principalmente no que concerne a uma edu-
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cação dialógica, feminista e antirracista. Para uma das estudantes, muitas
violações poderiam ser evitadas caso as escolas conversassem sobre isso
com os alunos – sobre independência e coragem, para as pessoas entende-
rem que não precisam viver ou aceitar violências e preconceitos, não se-
rem obrigadas a conviver com isso –, ensinando-os que violência é crime:
deve ser denunciada e combatida.
Ao avaliar os encontros, outra aluna pontuou sobre a importância da
discussão. Ela acredita que este diálogo representa a possibilidade de não
aceitação da violência por parte das mulheres, uma vez que cada um e uma
que esteve ali teve a oportunidade de aprender um pouco a esse respeito e
de se conscientizar sobre a não perpetuação da violência e a não naturali-
zação das relações violentas. “Se você pode estudar sobre essa realidade, é
mais uma chance de não se sujeitar à violência. Antigamente, não havia tal
possibilidade, ou essa era remota, e as mulheres permaneciam em relações
violentas por anos, praticamente pela vida toda, achando que aquilo era o
certo, porque tinham sido ensinadas que violência era algo normal assim
como a obediência ao marido”.
É significativo enunciar que as atividades concernentes ao enfrenta-
mento à violência contra a mulher não se iniciam nem se encerram com
nossa participação enquanto pesquisadores e movimento social na escola. O
mesmo vale para a produção de ações que combatam o racismo, a homofo-
bia e demais preconceitos, bem como intervenções que apostem não só nos
estudantes, mas em todo corpo escolar como protagonistas deste cenário.
Tal análise é viável a partir da atuação dos profissionais que encontramos
no percurso, que buscam incessantemente ensinar e aprender mutuamente
com os estudantes, desdobrando-se no exercício profissional de construção
de uma formação contínua e inacabada, que visa renovar-se e ampliar-se
sempre que possível. Ademais, coadunam com a proposta de práticas edu-
cativas feministas, antipatriarcais, anti-heterossexistas e antirracistas.
Apontamos a articulação entre movimentos sociais e escola como de-
masiado potente para fortalecer debates e estudos acerca da nossa realidade
social. Reforçamos a importância dessa articulação para o fortalecimento e
a ampliação da efetividade das intervenções relacionadas ao enfrentamen-
to à violência contra a mulher e à diversidade sexual e de gênero.
Mesmo sob larga ameaça, dado o contexto sócio-político-econômico
em que nos encontramos, a pertinência da discussão de gênero e de com-
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bate à violência contra os segmentos sociais marginalizados, como mu-
lheres, LGBT’s, negros/negras e a população pobre, é inegável. Torna-se
esse fato evidente nas avaliações realizadas pelo corpo estudantil, de que
tratavam das rodas de conversa produzidas na escola através desta pesquisa.
Nossa análise, portanto, é de que a construção de práticas educativas que
visibilizem a opressão-exploração vivenciada corrobora a não naturaliza-
ção e a não perpetuação de relações desiguais.
Sabemos que as violências de gênero, de classe e de raça são reali-
dades sociais que refletem nos diferentes âmbitos da vida dos sujeitos. O
desenvolvimento de ações de cunho formativo, relacionadas a questões de
gênero e de diversidade, permitem aos estudantes e educadores não só a
reconhecerem as relações desiguais em que estão inseridos como também
a questioná-las, buscando romper com os ciclos de violência. Estes espaços
tornam-se locais de cuidado com o outro e de escuta a suas demandas, ci-
mentando a tessitura de relações mais próximas da igualdade, do respeito
e da camaradagem.
Um grande desafio é efetivar e transversalizar essas práticas no co-
tidiano escolar. Para tanto, apostamos na implementação de políticas
públicas e educacionais que apontem as mulheres, a população LGBT e
os negros e as negras como sujeitos de direitos, que merecem viver uma
vida digna e sem violência. E para além disso, apostamos na proposição
de outro projeto educacional e de país, popular, feminista, antirracista e
anti-LGBT-fóbico, o qual só seria possível pela ruptura com o modelo de
sociedade hegemônico atual.
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A POTESTADE DA
HETERONORMATIVIDADE
NA HISTÓRIA PORTUGUESA:
UMA ANÁLISE DAS CULPAS DE
SOLICITAÇÃO E SODOMIA NO
TRIBUNAL DA INQUISIÇÃO DE
LISBOA83
Camila Franco Henriques84
INTRODUÇÃO
A inquisição portuguesa foi instituída em 1536 e extinta em 1821.
Representou um período de grande controle social e imposição da crença
católica sobre os indivíduos que eram submetidos à jurisdição da Coroa
Portuguesa. Durante sua vigência, milhares de pessoas foram delatadas,
acusadas e processadas pelo Santo Ofício. Milhares de famílias e vidas des-
truídas na busca da hegemonização forçada da fé e de padrões e compor-
tamentos sociais.
83 Artigo produzido a partir de relatório apresentado no Doutoramento na Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa na cadeira História da Justiça ministrada pela professora
Isabel Graes.
84 Graduada pelo Centro Universitário do Estado do Pará. Advogada. Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutoranda em Direito no Instituto de Teoria e
História do Direito (THD) da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).
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Produto de uma sociedade e crenças estruturadas a partir de uma
perspectiva heteronormativa, machista e sexista – baseada no binômio de
gênero homem-mulher, que repele todas as manifestações que fogem des-
sa classificação, e na divisão dos papéis com base no sexo biológico com a
valorização de características e condutas construídas como masculinas – a
Inquisição criminalizou, dentre outras condutas, aquelas que não se ade-
quavam aos seus padrões e condutas de sexualidade aceitáveis, pela culpa
de sodomia, e os que utilizavam sua posição de autoridade religiosa para
favorecimento sexual próprio, pela culpa de solicitação.
Compreender questões históricas, possibilita-nos identificar as raízes
de problemáticas atuais, pelo que se evidencia a importância de produções
acadêmicas como a presente pesquisa. Neste sentido, parte-se do pressu-
posto que questões sociais existentes no passado podem produzir reflexos
na contemporaneidade.
Assim, escolheu-se o estudo na Inquisição de Portugal, pois o Brasil
ainda fazia parte do Estado português no período de atividade desta institui-
ção e, também, porque há um encerramento relativamente recente, numa
perspectiva histórica, das atividades inquisitoriais, facilitando a compreen-
são da relação origem-consequência pela aproximação temporal.
Instigada pela constatação da problemática social, cultural e jurídica
que ainda existe envolvendo a sexualidade e a desigualdade de gênero, bem
como os ainda considerados desvios de padrões comportamentais e sexuais,
optou-se por analisar em específico as culpas de sodomia e solicitação.
Nesta senda, busca responder o seguinte problema de pesquisa: É pos-
sível verificar uma relação entre a forma que grupos – que não se inserem
ou não ocupam a posição de poder no sistema heteronormativo – eram
tratados pela Inquisição Portuguesa e as bases de problemas de desigual-
dade de gênero na sociedade contemporânea, a partir da análise dos casos
de solicitação e sodomia no Tribunal da Inquisição de Lisboa?
A partir desta pergunta, o propósito dessa pesquisa é realizar um es-
tudo investigativo sobre a forma de atuação da Inquisição portuguesa em
Lisboa no trato de homens e mulheres, suas relações de poder e sexualida-
de, e conceitual sobre as bases de problemas de desigualdade de gênero na
sociedade contemporânea. Tem, então, como objetivo geral identificar se
a postura do Tribunal da Inquisição de Lisboa nos processos de solicitação
e sodomia se relaciona com as bases de problemas de gênero contempo-
366
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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râneos. Na análise dos casos, levará em consideração fatores como: ida-
de, estado civil, ofício, origem, delito e pena; e nos problemas de gênero
contemporâneo, atentar-se-á para as (consideradas) bases de problemas
de gênero: heteronormatividade, machismo, sexismo e patriarcado. Para
tanto se dividirá em quatro partes.
A primeira parte discorrerá, sucintamente, sobre a Inquisição em Por-
tugal, com o objetivo de contextualizar a pesquisa ora apresentada a partir de
aspectos históricos, sociais e culturais. A segunda parte examinará as culpas
de sodomia e solicitação de acordo com o Regimento de 1640, com a fina-
lidade de constatar no que consistem estas duas condutas. A terceira parte,
visando compreender os processos de solicitação e sodomia no Tribunal da
Inquisição de Lisboa entre 1540 e 1680, analisará dados sistematizados pela
Jewish Historical Society of England em material em cujo consta a transcrição
de parte dos Autos da Fé de Lisboa entre 1540 e 1778, intitulado Lists of the
Portuguese Inquisition. A última parte, com objetivo de fornecer bases teóricas
e conceituais a problemas contemporâneos, conceituará: heteronormativi-
dade, machismo, sexismo e patriarcado. Para que, nas considerações finais,
se verifique se as múltiplas violências sofridas por mulheres e pela comuni-
dade LGBTQI+ na atualidade encontra relação com condutas históricas,
sociais e culturais verificadas nos julgamentos do Tribunal da Inquisição.
O presente trabalho será desenvolvido por meio de pesquisa qualitati-
va bibliográfica e documental, sobre os processos de solicitação e sodomia
no Tribunal da Inquisição de Lisboa. A perspectiva da análise que será
realizada envolve uma pesquisa com método dialético. Quanto à aborda-
gem, será histórica e jurídica, com o estudo dos processos de solicitação
e sodomia no Tribunal da Inquisição de Lisboa. Para cumprir tal finali-
dade, serão utilizadas fontes de informação como livros, artigos, legisla-
ção e documentos históricos. Os processos serão analisados em separado a
depender do gênero e das condenações por sodomia e solicitação, média
de idade, proveniência/naturalidade, ofício e penas de acordo com o sexo
biológico e as culpas.
1. A INQUIÇÃO EM PORTUGAL
A inquisição foi uma instituição implementada durante a idade mo-
derna e início da idade contemporânea, em cuja seus tribunais, que con-
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sistiam numa combinação entre os poderes reais e eclesiásticos, tinham
poderes delegados e legitimados pelo Papa para fiscalizar e oprimir here-
sias (BETHENCOURT, 1995, p. 9). Era uma instituição para controle
social e tentativa de hegemonização da doutrina católica.
A inquisição foi instituída em Portugal em 1536 (NOVINSK, 1987A,
p. 37), após ter sido requerida por D. Manuel em 1515 e por D. João III
em 1525 e 1531 (SARAIVA, 1969, p. 62-63), pela bula Cum ad nihil magis
e passou a funcionar como um pequeno conselho, tendo como inquisidor
geral D. Diogo da Silva, bispo de Ceuta (BETHENCOURT, 1987, p.
14-17), que em 1539 renunciou e foi substituído por D. Henrique (BE-
THENCOURT, 1995, p. 14-31).
Diferente da inquisição italiana, a inquisição portuguesa tinha um es-
tatuto próprio, o que lhe dava grande independência de atos em relação à
cúria romana (BETHENCOURT, 1987, p. 9). O modelo implementado
no reino de Portugal se baseou no que existia nas Coroas de Castela e
Aragão, mas com o tempo a incidência desse tribunal se distanciou da
referência inicial (RAMOS; SOUSA; MONTEIRO, 2009, p. 236).
Os éditos desempenharam papel essencial no funcionamento da in-
quisição, pois eles eram os responsáveis em publicizar as medidas toma-
das por essa instituição. Os mais difundidos em Portugal provavelmente
foram os de proibição de livros (BETHENCOURT, 1995, p. 135-154).
Os éditos da fé, por sua vez, prescreviam as definições e caracteriza-
ções dos crimes sob a jurisdição inquisitorial, sendo que a sua ordem indi-
cava sua hierarquia (BETHENCOURT, 1995, p. 144). Eram publicados
uma vez por ano, mais especificamente no primeiro domingo da Quares-
ma (SARAIVA, 1969, p. 77), colocados nas portas das igrejas paroquiais
(PAIVA, 2004, p. 174), e incentivavam os fiéis a confessarem as próprias
culpas ou denunciarem culpa alheia (SARAIVA, 1969, p. 244). Eles eram,
“os mecanismos nos quais o Tribunal do Santo Ofício confiava para obter
a maioria das denúncias que acabavam por gerar os processos que instituía,
com o escopo de proteger a pureza da fé e a ortodoxia religiosa” (PAIVA,
2004, p. 174-175), junto com as visitas inquisitoriais.
A jurisdição inicial da Inquisição incluía: atos de judaísmo e islamis-
mo, como se pode observar o excerto apresentado, opiniões heréticas,
erros luteranos, sortilégios e feitiçaria. Em 1552, a coroa reconheceu a
jurisdição inquisitorial sobre o crime de comércio ilegal com os Estados
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muçulmanos do norte da África (BETHENCOURT, 1995, p. 148-149).
Em 1562 a sodomia passa a ser de competência da jurisdição inquisitorial,
confirmada por um breve papal em 1574 (BETHENCOURT, 1987, p.
19-21). Em 1611 houve um édito da fé que incluiu a solicitação (BE-
THENCOURT, 1987, p. 148), e a jurisdição do santo ofício é ampliada
sobre os solicitantes em 1632, havendo a publicação de um monitório
pelos inquisidores de Lisboa contra os solicitantes (1634) (BETHEN-
COURT, 1987, p. 26).
Dentre os eventos promovidos pela inquisição, importantes foram os
Autos de Fé85. primeiro realizado em Lisboa em 26 de setembro de 1540
(CORREIA, 2018, p. 18). Esses autos eram minuciosamente preparados
pelos inquisidores e consistiam numa cerimônia na qual os réus selecio-
nados eram apresentados ao público, os condenados seguiam em procissão
com o hábito penitencial (o sambenito), para mostrar o arrependimento
pelos pecados, da sede do tribunal até o cadafalso (GRAZIANI, 2015, p. 2).
Este rito era marcado pela encenação, era a representação de um espe-
táculo teatral com um grande efeito moral que, após o seu enraizamento
na cultura da época, controlava a cidade, sendo proibido, por exemplo,
que as pessoas andassem armadas ou fossem transportadas por cavalos no
dia de ocorrência do Auto da fé. Foram no total 342 Autos da fé públicos
em Portugal, que normalmente ocorriam no verão ou na primavera, em
decorrência do clima. Em Lisboa o local mais usado para a celebração do
Auto da fé era o Terreiro do Paço, local no qual o rei podia acompanhar a
cerimônia de uma das janelas do palácio. Até a disposição dos lugares nos
Autos da fé tinham uma representação teatral, de um lado ficavam o rei, os
inquisidores, os agentes dos tribunais e familiares, representando a pureza,
a justiça e a divindade, do outro, ficavam os delinquentes, representando a
impureza, a heresia e o demônio (BETHENCOURT, 1995, p. 201-208).
Antônio José Saraiva (1969, p. 237) considera a Inquisição como um
Terceiro Poder, que nasceu de uma combinação do poder régio com o po-
der eclesiástico. Neste seguimento, possuía um grande poder e usava de ma-
nipulação para manter este poder, apoiando-se ora em um outro no outro, a
depender de quem estivesse interferindo (CORREIA, 2018, p. 16).
85 Os autos da fé eram as cerimônias públicas que consistiam na “procissão dos condena-
dos, a leitura pública da culpa e a penitência espiritual ou física” (TAVARES, 1987, p. 44).
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Seu Tribunal, com jurisdição criminal religiosa (FERNANDES,
2019, p. 48), funcionou por quase duzentos e cinquenta anos como “a
principal autoridade eclesiástica do reino, exercendo um poder de contro-
lo sobre a fé e de repressão da heresia, que foi se intensificando” (MAR-
COCCI, 2004, p. 247).
Este Tribunal atuou por meio da criminalização e jurisdicização dos
pecados, influenciando, assim, diretamente nos padrões sociais e verdades
de crença das sociedades nas quais foi implementado. Assim, seguindo
uma lógica advinda da Igreja medieval a “realização da justiça se confunde
com a manutenção da ordem social e política estabelecida” (FERNAN-
DES, 2019, p. 54).
A inquisição funcionava por meio de seus tribunais, que foram imple-
mentados em algumas das regiões do território português. Os tribunais do
Santo Ofício86 eram híbridos, pois, como já dito, eram simultaneamente
régios e eclesiásticos. Os membros dos tribunais pertenciam à igreja, mas
o seu funcionamento era controlado pelo rei, e sua jurisdição se estendeu
por praticamente todo território português entre 1536 e 1821.
Importa ressaltar que, “por razões de divergências diplomáticas entre
a monarquia portuguesa e a cúria romana, foi somente no dia 16 de junho
de 1547, através da bula do papa Paulo III - Meditatio Cordis - que o Tribu-
nal foi definitivamente estabelecido” (LEMAÎTRE, 2019, p. 189).
O Tribunal de Lisboa era um dos três considerados mais importantes
da inquisição portuguesa (ARQUIVO NACIONAL, 2017). Era com-
postos por uma mesa de três inquisidores e mais deputados, que não ti-
nham um número fixo. Estes eram responsáveis por votar, quando convo-
cados, acerca de importantes decisões, tomadas por maioria. Vale ressaltar
que estes tribunais eram hierarquicamente inferiores ao Conselho Geral
da Inquisição (SARAIVA, 1969, p. 239).
86 Neste sentido, “O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, [...] foi introduzido exclusiva-
mente para fiscalizar e punir os descendentes de judeus que haviam sido convertidos à
força ao catolicismo, e sob suspeita de praticar a religião judaica. Foi gradativa a ampliação
de seus objetivos até abarcar diversos tipos de comportamento e crenças. As heresias em
matéria de fé juntaram-se feitiçaria, bruxarias, sodomía, bigamia, blasfêmias, proposições,
desacatos e problemas diversos de sexualidade”. NOVINSK, Anita. O Tribunal da Inquisição
em Portugal. In: Revista da Universidade de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Pau-
lo. Nº 5, junho, 1987B. p. 91-98.
370
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Inicialmente o Tribunal do Santo Ofício foi regido pelas normas in-
quisitoriais espanholas, com a abertura dos trabalhos em 1541 a partir das
instruções ocasionadas pelo estabelecimento do tribunal em Coimbra
(ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA TORRE TO TOMBO, s/d). Em
1552, é feito o primeiro Regimento da Inquisição e o Regimento do Co-
légio da Fé (BETHENCOURT, 1987, p. 18). O Segundo Regimento é
de 1613 (ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA TORRE TO TOMBO,
s/d). Em 1640 foi publicado o novo Regimento da Inquisição, que é con-
siderado o mais completo (BETHENCOURT, 1987, p. 27). E o último
regimento do Santo Ofício foi de 1774 (ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS
DA TORRE TO TOMBO, s/d).
Além dos Regimentos e do quadro de funcionários oficiais, por assim
dizer, que abrangia os inquisidores-gerais, os membros do conselho-geral
e os inquisidores. O Tribunal do Santo Ofício contava com uma rede de
eclesiásticos, denominados comissários, e uma rede de pessoas que repre-
sentavam o tribunal e executavam os mandados de capturas, denominados
familiares do Santo Ofício, que não eram remunerados, mas gozavam de
privilégios especiais (RAMOS; SOUSA; MONTEIRO, 2009, p. 239-
240). Pelo que se percebe que a Inquisição tinha uma estrutura ampla e
complexa que facilitava o controle populacional.
Finda a breve explanação da inquisição portuguesa e do Tribunal da
Inquisição de Lisboa, passa-se para a análise das culpas escolhidas para se-
rem estudadas na presente pesquisa: solicitação e sodomia.
2. DAS CULPAS DE SOLICITAÇÃO E SODOMIA NO
TRIBUNAL DA INQUISIÇÃO DE LISBOA
As culpas, ou seja, condutas condenáveis pela Inquisição eram
regulamentadas no Regimento. As previstas no Regimento de 1640,
considerado o mais completo, são: apostasia, renegação e heresia; blas-
fêmia; desacato do santíssimo Sacramento ou imagens sagradas; feiti-
çaria, sortilégios, adivinhações, astrologia judiciária e malefícios; biga-
mia; solicitação; impedimento ou perturbação do ministério do Santo
Ofício; e sodomia (REGIMENTO DO SANTO OFFICIO, 1775).
Para a feitura do presente trabalho foram selecionados para análise a
sodomia e a solicitação.
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Analisando a regulamentação destas culpas, verifica-se que não era
explicado no regimento no que consistia o ato de sodomia, mas sabe-se
que é a prática do sexo anal, ação altamente condenável. Tanto é, que
as Ordenações Afonsinas, vigentes no início da Inquisição Portuguesa,
considerava essa prática como sendo o mais torpe, sujo e desonesto
dos pecados, uma ofensa a Deus, a natureza e ao resto da humanidade,
inclusive é considerada o motivo do dilúvio lançado por Deus (EIRA,
2016, p. 58).
A solicitação, por sua vez, consistia no ato de solicitar ou provocar
atos ilícitos ou desonestos com palavras ou toques impudicos para si ou
para outrem durante a confissão ou sob pretexto de ouvir uma confissão
(REGIMENTO DO SANTO OFFICIO, 1775, p. 127).
Debaixo da expressão solicitação para actos torpes, <<solicitatio
ad turpia>>, estão incluídas todas as situações em que um con-
fessor, valendo-se da sua autoridade, do seu ministério e do mo-
mento recatado em que ocorria a administração do sacramento
da penitência, aproveitava para satisfazer os seus desejos carnais,
ou manifestava apenas essa intenção. Sendo a legislação pontifícia
surgida ao longo do tempo, o delito de solicitação compreendia
todos os actos de natureza sexual que ocorriam entre um con-
fessor e uma penitente, e que tinham relação espácio-temporal
com o sacramento da penitência (imediatamente antes, durante e
depois da administração do sacramento, nas confissões simuladas
em locais onde era costume ouvir de confissão ou noutros previa-
mente combinados entre o confessor e a sua dirigida espiritual,
e quando o confessor consegue um encontro com a penitente a
pretexto de confissão). Umas tímidas, outras atrevidas, algumas
toscas, outras tantas – eu diria mesmo – patológicas, implicando
a conquista e vontade da penitente pela persuasão, pelo estímu-
lo, pela sedução ou, falhando a vontade, transpondo-a por via da
força ou através de ameaças várias, as solicitações clericais ainda
que levadas a cabo maioritariamente sobre as mulher penitentes,
ocorreram também com indivíduos do sexo masculino, varian-
do, naturalmente, consoante a preferência sexual dos confessores
solicitantes (GOUVEIA, 1987, p. 26).
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Assim, esta culpa consistia num contexto de abuso de poder e au-
toridade por um clérigo, que se valia de sua posição para tirar proveito
sexual de um penitente. O Regimento do Santo Officio (1775, p. 127-
129) previa que, se o clérigo era secular, faria uma abjuração de leve, seria
privado para sempre de poder confessar e degradado por 8 a 10 anos para
fora do bispado e para sempre do local do cometimento da culpa. Se o ato
solicitado foi consumando, o degredo seria para algum lugar das conquis-
tas do reino. Se o confessor fosse regular, além das penas já previstas, seria
privado de voz ativa e passiva, degradado para um convento remoto por 8
a 10 anos, sendo mantido em cárcere no primeiro ou primeiro e segundo
anos, com jejum de pão e água. Caso não houvesse confissão nem provas
suficientes para a condenação, o clérigo não era obrigado a abjurar, mas
podia ser privado de confessar e degradado do lugar do delito.
É interessante observar que o regulamento veda a pena de relaxação87
para este caso, mesmo em caso de reincidência, sendo isto justificado
“pela causa da miséria humana, que faz ver neste gravíssimo delicto muita
mais fragilidade, que malícia” (REGIMENTO DO SANTO OFFICIO,
1775, p. 134). Ademais, é estipulado no Título I do Livro II que os in-
quisidores deveriam se abster de fazer aos denunciantes mais perguntas
dos que as necessárias, além do que não era exigido que fossem escritas as
culpas, somente se a denúncia envolvesse ato de sodomia ou algum feito
mais grave (REGIMENTO DO SANTO OFFICIO, 1775, p. 44).
Superado o tópico para conhecimento da conceituação das culpas e de
como eram tratadas pela Inquisição portuguesa, passa-se para a última parte
do desenvolvimento do trabalho: a análise dos dados retirados da compila-
ção dos Autos da Fé publicada em Lists of the Portuguese Inquisition (2008).
3. ANÁLISE DAS CONDENAÇÕES DAS CULPAS DE
SOLICITAÇÃO E SODOMIA
Durante a Inquisição, milhares de homens e mulheres foram delata-
dos, acusados e condenados. Diante da diferença social significativa cons-
truída entre os gêneros feminino e masculino, que se explanará melhor no
87 A relaxação para a justiça secular era o procedimento de transferir o processo da jurisdi-
ção da Inquisição para a jurisdição do Estado, que era o único que podia executar a pena de
morte (SARAIVA, 1969).
373
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tópico seguinte, o que se pode observar já na análise do Regimente, é o
diferente tratamento entre homens e gêneros por meio de penas distintas
a depender do sexo, e também das principais culpas.
Neste sentido, o presente tópico tem como objetivo traçar o perfil dos
condenados pelas culpas de solicitação e sodomia, tendo como primeiro
classificação o gênero e, a partir de então a coleta de dados quanto à idade,
procedência, naturalidade, estado civil e ofício, entre 1540 e 1680 no Tri-
bunal da Inquisição de Lisboa, a partir dos dados coletados em Lists of the
Portuguese Inquisition (2008).
Algumas observações iniciais para interpretação dos dados devem ser
feitas. Quanto à análise do ano, verificou-se que as vezes no mesmo exis-
tia mais de um auto, sendo um público e o(s) outro(s) privado(s), mas
para fins do presente trabalho, somente se ateve ao ano, desconsiderando
a quantidade e forma de realização do auto. Quanto à procedência, os
autos indicavam a naturalidade, morada ou residência, algumas vezes os
três, algumas vezes nenhum dos três, mas no geral, indicavam um dos
três. Quando apareceu mais de uma indicação, optou-se por considerar a
morada ou residência, pois esta indicava onde a pessoa estava quando foi
delatada, acusada ou presa pelo Santo Ofício. Quanto ao ofício ou condi-
ção, optou-se por essa nomenclatura devido a existência de escravos entre
os condenados da inquisição, e não se considerou a escravidão como um
ofício, mas sim como uma condição.
Impera indicar que diante deste recorte que abrange em parte os
autos deste período, e que os próprios autos, especialmente no início
não indicavam muitas informações, como exemplo de os primeiros só
indicarem as pessoas que foram relaxadas, as conclusões ora obtidas não
podem ser consideradas como sendo verdade absoluta, mas tão somente
um indicativo.
Também, insta informar dois pontos que não se considerou para fazer
a presente análise, por não serem considerados relevantes para o objetivo
do trabalho: a indicação do percentual de cristão novo que era a pessoa e
o “papel” do sodomita no ato. Verificou-se que praticamente a totalidade
dos condenados possuíam alguma parte cristão novo, ou seja, ou era um
convertido, sendo integralmente cristão novo, ou era descendente de um.
E, quanto a sodomia, os autos indicavam se a pessoa era agente ou paciente
ou ambos.
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3.1. As culpas de sodomia e solicitação e as mulheres
Quanto às mulheres condenadas pela Inquisição Portuguesa entre
1540 e 1680, de acordo com os autos juntados no material analisado, o
número de condenações foi de 2.045. Mas para as culpas ora analisadas,
houve apenas uma condenação no ano de 1621.
Maria Machada, proveniente da Ilha Terceira, sem identificação da
idade, estado civil, ou ofício. Foi condenada por sodomia e foi penalizada
com açoites, confisco de bens e degredo de dez anos para a Ilha do Prínci-
pe. Nenhuma mulher foi, por óbvio, por solicitação, tendo em vista que a
solicitação era conduta imputada somente à clérigos no exercício do ofício.
3.2. As culpas de sodomia e solicitação e os homens
No que diz respeito aos homens, ressalta-se desde logo que, os resul-
tados apresentados não espelham o número total de condenados por soli-
citação ou sodomia do período, tendo em vista que o material analisado
não abrange todos os autos da fé. Indica-se que, a média das idades foi feita
pela soma de todas as idades fornecidas dividida pelo número de números
dos condenados por solicitação e sodomia. Portanto, o cálculo foi feito
somente com base nas pessoas das quais foi dada a idade.
Pela análise dos dados, observou-se que a sodomia ficou em segundo
lugar no ranking de condenações, com 117 casos, ficando atrás somente
da heresia com 381. Enquanto isso, a solicitação ficou em último lugar,
totalizando 7 condenações.
Para os que foram condenados por sodomia, a média de idade era de
33,75 anos. Destes, presume-se que 44 eram casados, 40 eram solteiros.
Os principais ofícios eram o de cavaleiro e soldado, que somam 7 e o exer-
cício de ordens, que somam 21 religiosos.
Ao analisar o perfil dos condenados por solicitação, verificou-se que
não foi fornecida a idade de nenhum dos culpados. Dos dados fornecidos
o que se pode concluir é que dos 7, 5 eram padres e que as penas para a
solicitação eram mais brandas do que as penas por sodomia, pois normal-
mente a proibição se dava no exercício de tomar confissões, enquanto que
para a sodomia, os clérigos eram suspensos e privados de exercer as ordens
em caráter perpétuo.
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Com os dados dos casos da Inquisição de Lisboa analisados, parte-se
para o estudo dos conceitos do que se considera as bases da desigualdade
de gênero na contemporaneidade.
4. CONCEITUAÇÃO DAS (CONSIDERADAS) BASES DA
DESIGUALDADE DE GÊNERO CONTEMPORÂNEA
A desigualdade de gênero é um grave problema da sociedade con-
temporânea que gera consequências, em especial, para os grupos que que
não se inserem ou não ocupam a posição de poder no sistema hetero-
normativo. Sobre esta problemática, o presente trabalho considera quatro
principais fenômenos basilares: heteronormatividade, machismo, sexismo
e patriarcado. Que serão conceituados.
A heteronormatividade é uma ideologia social que afirma que a única
forma válida de expressão de sexualidade e afetividade, assim como da
própria identidade, é a heterossexual. É a noção que a heterossexualidade
é a única condição que deve ser aceita (ACUÑA, 2019).
Mas por que falar de sexualidade? “We talk about sexuality because
there's an assumption in the power structure of the society that people
are basically heterosexual. Unless people designate themselves, the default
category, the norm is always thought of as heterosexual” (APTHEKER,
[20--]). Neste sentido, ocorre, além da invisibilidade de outras formas
de sexualidade, a condenação de quem se mostra como desviante desses
padrões de sexualidade.
Para além dos sujeitos desviantes dos comportamentos sexuais
aceitos, ao se falar de sexualidade, importa destacar que a métrica da
sexualidade mulher sempre foi pensada a partir do homem. “Nesse
imaginário sexual, a mulher não é senão o suporte, mais ou menos
complacente, da atuação das fantasias do homem” (IRIGARAY, 2017,
p. 35). A mulher é dotada de um “não-sexo”, é reprimida na sua cons-
trução, tem sua sexualidade, vontades e linguagem violadas, é ensi-
nada a ser passiva e submissa, tomada pelo homem, dominador, dono
de suas vontades, e das vontades das mulheres também (IRIGARAY,
2017, p. 33-43). Tudo isto se insere numa sociedade que tem como
elementos estruturais e estruturantes convicções pautadas no machis-
mo, no sexismo e no patriarcado.
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O machismo pode ser definido como o fenômeno cultural que en-
fatiza características masculinas e a difunde a crença da superioridade dos
homens. Inclui outras características como uso da violência, crença que
mulheres são propriedades dos homens, exacerbação da virilidade e a he-
teronormatividade. Assim, é um conjunto de práticas que promovem a
superioridade masculina, a coisificação das mulheres e negação das mu-
lheres e dos desviantes em sexualidade como sujeitos. Se perpetua em vá-
rias esferas como a violência, abuso sexual, menosprezo de capacidade das
mulheres e da comunidade LGBTQI+, leis e outros (ACUÑA, 2019).
O sexismo, por sua vez, refere-se a todas as práticas e atitudes que
promovem um tratamento diferenciado a pessoas em razão do seu sexo
biológico, a partir do qual se assumem características e comportamen-
tos cotidianos que se esperam a depender do sexo, baseado no binarismo
homem-mulher. Dentro desta lógica binária, as práticas sexistas afetam
em maior medida as mulheres diante do quadro de crenças sociais de que
elas são inferiores ou desiguais aos homens por natureza. E a forma como
essas crenças de refletem na linguagem e práticas cotidianas dão lugar ao
sexismo (ACUÑA, 2019).
No que tange ao patriarcado88, pensadoras feministas no século XX
adotaram esse termo no sentido de indicar o sistema social de domina-
ção masculina sobre as mulheres. Esse termo traz diferentes discussões e
tem três principais vertentes: o patriarcado se expressa na organização da
família com a divisão sexual do trabalho; o patriarcado se expressa pelo
88 Esse conceito enfrentou críticas na década de 80, não tanto pela sua definição, mas sim
pelo seu uso. Primeiro pelo seu caráter universalista, por explicar a subordinação das mu-
lheres em todo o tipo de sociedade, tanto as mais industrialmente desenvolvidas, como eu-
ropeias e a americana, quanto as em desenvolvimento e as que sofrem influências coloniais
diretas. Segundo pelo seu caráter atemporal, pois o conceito homologava a discriminação
de mulheres e subordinação destas em sociedades de períodos históricos significantemente
diferentes. Terceiro por seu caráter reducionista, já que reduz o problema de subordinação
das mulheres a uma só dimensão, qual seja a relação de poder entre homens e mulheres,
sem integrar fatores que atualmente são considerados importantes. Na atualidade, a teoria
mais aceita é a dual, pautada na díade Capitalismo-Patriarcado, compreendidos como dois
sistemas de opressão que se beneficiam da subordinação das mulheres, por meio da divisão
sexual do trabalho que legitima as relações de poder, com os homens na posição de tomada
de decisão e as mulheres em posição subordinada (ACUÑA, 2019).
377
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controle dos homens sobre os corpos femininos através da violência; o
patriarcado se produz com o capitalismo (ACUÑA, 2019).
Verifica-se, que muitas formas de discriminação de mulheres e de
todos que não se inserem no sistema heteronormativo e patriarcal estão
naturalizadas, seja por meio de argumentos biológicos, seja por meio de
outras fontes que gozam de legitimidade a depender do grupo no qual
estão inseridos (ACUÑA, 2019).
Toda essa lógica facilita a realidade ainda existente de violência con-
tra mulheres e sujeitos desviantes dos padrões de comportamento. Diante
de todo exposto, passa-se para as considerações, onde verificar-se-á se as
múltiplas violências sofridas por mulheres e pela comunidade LGBTQI+
na atualidade encontra bases históricas, sociais e culturais nos julgamentos
do Tribunal da Inquisição supracitados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se verificar que a Inquisição fez parte de período significativo da
história de Portugal e seus territórios, como o Brasil. Vigente entre 1536
e 1821, representou uma instituição com grande poder e finalidade de ho-
mogeneização da fé. Funcionou como um mecanismo de grande controle
social e de repressão da sociedade.
O Tribunal do Santo Ofício atuou por meio da criminalização e juris-
dicização dos pecados. Gerou, assim, reflexos diretos nos padrões sociais e
verdades de crença das sociedades nas quais foi implementado, mantendo
ordem social e política católica. Dentre os pecados jurisdicizados estão as
culpas de sodomia e solicitação.
A sodomia consistia no ato de praticar sexo anal e a solicitação na de-
manda de favores ou atos sexuais de clérigos aos seus penitentes durante a
confissão. Constatou-se que de todas as mulheres condenadas entre 1540
e 1680 no Tribunal de Lisboa, somente uma foi por sodomia, pois a solici-
tação era culpa que só podia ser realizada por clérigos homens, competen-
tes para escutar confissões. Quanto aos homens, a sodomia foi a segunda
culpa mais condenada, e a solicitação foi a menos.
Para termos do presente trabalho, considerou-se como mais interes-
sante a diferença de tratamento entre as culpas de sodomia e solicitação.
Enquanto a sodomia era considerada um dos piores pecados possíveis de
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
serem cometidos, a solicitação era vista como pecado mais brando, sendo
vedada a aplicação pena mais grave, que era a de relaxação para justiça se-
cular aplicar a pena de morte.
Conclui-se, então, que a sodomia, que foge da lógica da heteronor-
matividade, e a solicitação, amenizada e até normalizada dentro da visão
da Inquisição com a ideia de fragilidade do homem em face aos pecados
terrenos e desvalorização de violações dos corpos femininos, pois era pe-
nalizada com mais rigor quando se verificava também a sodomia, guardam
estrita ligação com as bases da desigualdade de gênero na contemporanei-
dade consideradas no presente trabalho (heteronormatividade, machismo,
sexismo e patriarcado) e perpetuação de violações para as mulheres e a
comunidade LGBTQI+.
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381
A SITUAÇÃO ATUAL DA
COMUNIDADE LGBTQI+ NA
POLÔNIA: ANÁLISE LEGISLATIVA
COMPARATIVA COM O BRASIL
Ana Carolina Menezes de Oliveira89
Luciana Costa Ferreira. Advogada90
Mariana Rocha Barreto91
Sarah Stefanie Santana Rabelo92
INTRODUÇÃO
Mesmo que qualquer tipo de relação homoafetiva já tenha sido des-
criminalizada na Polônia, esse grupo ainda sofre muita represália tanto da
população, quanto do governo. Inúmeras foram as tentativas de garantir
direitos básicos que acabaram sendo vetadas, o que fez com que essas pes-
soas procurassem seus direitos nas entrelinhas de leis já existentes, que não
foram criadas com essa finalidade. E quando houve alguma manifestação
89 Graduanda em Direito na Universidade Tiradentes. Graduação sanduíche na University
of Warsaw (Polônia).
90 Mestranda em Direito em Ciências Jurídico-Criminais na Faculdade de Direito da Uni-
versidade de Coimbra ( Portugal ). Graduada em direito na Universidade Tiradentes com
Graduação sanduíche na Universidade do Porto (Portugal).
91 Graduanda em Direito na Universidade Tiradentes com Graduação sanduíche na Univer-
sity of Warsaw (Polônia).
92 Graduanda em Direito na Universidade Tiradentes.
382
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
do governo para proteger a população LGBTQI+, houve inúmeras críticas
e contra argumentos.
O Brasil, reconheceu a necessidade de defender os direitos desse gru-
po na sua legislação nos anos 90, e desde então, vem criando novas leis e
sanando as suas necessidades. Porém, a escassez de políticas públicas para
combater a violência que esse grupo sofre em pleno século 21, é eviden-
te. Mesmo com todo o avanço no âmbito jurídico para proteger pessoas
LGBTQI+ do preconceito praticado pela população, ainda é clara a neces-
sidade de avanço na conscientização dos demais.
Em ambos os países, tanto a bancada evangélica (no Brasil), como a
Igreja Católica (na Polônia) são muito presentes no âmbito jurídico, o que
torna mais difícil a discussão e aprovação de leis que garantem direitos bá-
sicos à população LGBTQI+, mesmo o Brasil sendo na teoria, um Estado
Laico. Apesar de todo o avanço da legislação em garantir os direitos da
população LGBTQI+, o Brasil ainda é considerado o país que mais ocorre
crimes de homofobia, que querendo ou não se origina do preconceito en-
raizado ensinado pela igreja católica. Já na Polônia, esses dados não podem
ser contabilizados, já que lá, homofobia ainda não é previsto em lei.
Saindo do preconceito exercido pelos legisladores, e entrando no pre-
conceito exercido pela população para com o grupo LGBTQI+, nos dois
países a violência e repressão só crescem, deixando esse grupo sem ação e
sem ter a quem recorrer. Porém, apesar de toda a dificuldade, a população
LGBTQI+ se faz ser ouvida, e luta pela garantia dos seus direitos, ao colo-
carem seus representantes em cargos políticos, e através de manifestações.
O objetivo principal do trabalho científico é apresentar a luta da po-
pulação LGBTQI+ pelos seus direitos e garantias, como eles têm que lidar
com toda a violência e repressão que sofrem tanto do governo, como do
resto da população polonesa, e fazer um comparativo dessa luta entre a
Polônia e o Brasil, como ambos em se tratando da influência religiosa e a
intolerância causada por essas instituições, têm muito em comum.
1. HISTÓRICO LEGAL
A República da Polônia, ou Terceira República, é o nome dado a
Polônia que existe hoje, surgindo em 1989, após anos de domínio Sovié-
tico. Após diversas fragmentações e divisões, o país, por fim, conseguiu
383
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
se consolidar democraticamente, promulgando em 1997, a Constituição
atual. Embora os direitos das pessoas LGBTQI+ na Polônia tenham sido
alterados durante os anos anteriores, para este trabalho, focaremos na Po-
lônia atual (1989 – presente), embora, para isso, tenhamos que tratar de
fatos anteriores à esta data.
Quando essa nova era polonesa nasceu, a atividade consesual entre
pesssoas do mesmo sexo já não era mais considerada crime no país, pois
havida sido retirada do Codigo Penal Polonês de 1932, e continuou fora
do atual Código Penal do país, constitutído em 1997, que também con-
tinuou mantendo a mesma idade de consentimento para todos os casais
(PRIDELEGAL, 2020). Entretanto, isso não significa que as relações
homossexuais eram vistas com bons olhos pelos poloneses – nos anos 60,
trinta anos depois de serem descriminalizadas, o Estado determinava que
médicos deveriam policiar comportamentos “anormais” de seus pacientes
e defini-los como sexualmente desvirtuados, bem como a Igreja Católica,
que sempre possuiu grande influência no país, denominava os homosse-
xuais de pecadores (LESINSKI, 2017).
Ao mesmo tempo, ainda nos anos 60, as Cortes polonesas já lidavam
com a Retificação de Gênero e Nome das pessoas trans, fundamentada
no art. 189 do Código de Processo Civil, de 1964, em um processo civil
que envolve o indivíduo ter que confrontar seus pais e passar por avalia-
ções médicas, para que seja confirmada e diagnosticada a transsexualida-
de, hormônios possam ser prescritos, e só então, seja prolatada sentença
retificando o gênero, podendo também, pelo mesmo motivo, ser o pedido
negado (Trans-Fuzja Foundation; Polish Society of Anti-Discrimination Law,
2014) . O artigo da lei, entretanto, não é específico para pessoas trans, sen-
do apenas uma maneira legalmente encontrada para realizar a Retificação.
Pode-se dizer que a Retificação de Gênero no país também é disci-
plinada pelo art. 156,§1ª, do já mencionado Código Penal Polonês, já que
o referido artigo criminaliza esterilizações e castrações, salvo em situações
urgentes de saúde, o que não encaixaria o caso das pessoas transgênero.
Dessa maneira, não é possível que as cortes exijam uma cirurgia de con-
firmação de gênero das pessoas trans para poder alterar seu sexo,o que
facilita o processo – nota-se, ainda, que após o sexo ser retificado em seus
documentos, é possível que as pessoas trans realizem a cirurgia, sem im-
pedimento legal.
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Em 1997, foi consolidado o Código Trabalhista Polonês, que, no art.
11³, protege os trabalhadores de discriminação trabalhista em virtude de
“gênero, idade, deficiência, raça, religição, nacionalidade, opiniões polí-
ticas, filiciação sindical, origem étnica, credo e orientação sexual...” (tra-
dução nossa) (THE LABOUR CODE, 1998), tendo sido o artigo adi-
cionado pelo Ato de Tratamento Igualitário da União Europeia em 2010
(GODZISZ, KNUT, 2018).
Nesse sentido, há um fator relevante para os direitos das pessoas LGB-
TQI+ na Polônia, que é a entrada do País na União Europeia, em 2004,
organismo que tem entre seus valores a dignidade do ser humano, a liber-
dade e a igualdade e tem como alguns dos seus objetivos promover a paz
e lutar contra a exclusão social e a discriminação (UNIÃO EUROPEIA,
2000). A União Europeia funciona a partir de Tratados, sua legislação
primária, e, como legislação secundária, possui Regulamentos, Decisões
e Diretivas.
Dessa maneira, o primeiro desses a tratar sobre os direitos das pessoas
LGBTQI+ foi o Tratado de Amsterdã de 1997, que em seu artigo 19, se
compromete em combater a discriminação baseada, entre outros, no sexo
e na orientação sexual (UNIÃO EUROPEIA, 1997). A própria Carta
dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em 2000, proíbe a discri-
minação baseada na orientação sexual e, após isso, outros Regulamentos e
Diretivas da organização continuaram a buscar a proteção dos direitos das
pesoas LGBTQI+ (ILGA-EUROPE, 2020).
Com essa influência, surgiram tentativas de que o país criasse suas
próprias leis no que diz respeito à proteção desse grupo social, que foram
encontradas com resistência dos governantes conservadores e da popu-
lação majoritariamente católica do país – em 2012, 91% dos poloneses
se identificavam como católicos (CHOJNICKA, 2019). Em 2015, por
exemplo, o “Gender Accordance Act”, uma lei que previa direitos básicos
para as pessoas trans e buscava regulamentar os procedimentos de Retifi-
cação de Nome e Gênero foi aprovada no Parlamento Polonês, porém, foi
vetada ao ser enviada para a aprovação do então Presidente André Duda.
Ainda no mesmo ano, o Parlamento Polonês rejeitou, pela quarta
vez, colocar em pauta para aprovação uma lei que regulamentasse a União
Civil entre pessoas do mesmo sexo no país, deixando, novamente, os ca-
sais do país desamparados (PRIDELEGAL,2020). Não há, na verdade,
385
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
qualquer reconhecimento à União Civil e, muito menos, ao casamento
de pessoas do mesmo sexo – o Art. 18 da Constituição da Polônia define
casamento como a “união entre um homem e uma mulher” (POLÔNIA,
1997). Além disso, entre 2012 e 2015, três projetos de emendas ao Código
Penal foram discutidas no Parlamento, para incluir orientação sexual e
identidade de gênero como motivações para o crime de ódio e de discurso
de ódio, porém, todas foram descontinuadas, e, uma proposta similar sub-
metida ao Parlamento em 2016, rejeitada (WASIK; GODZISZ, 2016).
Diante da resistência encontrada no Poder Legislativo do país, as
pessoas LGBT na Polônia tem recorrido, por vezes, ao Poder Judiciário.
Dessa forma, em 2010, em Kozak v. Poland, a Corte Europeia de Direitos
Humanos julgou que a Polônia violou os arts. 8 e 14 da Convenção Euro-
peia de Direitos Humanos ao negar direitos sucessórios para um casal do
mesmo sexo, já que o país já havia concedido direitos sucessórios a casais
do sexo oposto antes, mesmo eles não sendo casados. Já na Suprema Cor-
te Polonesa, houveram decisões proibindo que a orientação sexual fosse
usada como fundamento para recusar um serviço à alguém, bem como,
após o já mencionado Kozak v. Poland, concedendo direitos sucessórios
a casais do mesmo sexo, desde que o sobrevivente estivesse em um rela-
cionamento “emocional e físico” com o indivíduo falecido (PRIDELE-
GAL, 2020).
A gama de Direitos LGBTQI+ na Polônia é, como observado, pe-
quena. Segundo a Organização “Rainbow Europe”, em 2019, o país havia
atingido apenas 16% dos Direitos Humanos no que diz respeito a popula-
ção LGBTQI+ e, entre 49 países europeus, ficou em 42º no que se refere
aos direitos dessa população. Isso se deve ao fato de que, com algumas
poucas exceções, como a proibição da discriminação no âmbito traba-
lhista e a consideração de orientação sexual como motivo para conceder
o direito de Asilo, a legislação polenesa é proibitiva ou omissa quanto aos
direitos das pessoas LGBTQI+.
Dessa maneira, não há regulamentação para a União Civil, para a
Retificação de Gênero e Nome de pessoas transgênero, e não há crimi-
nalização dos discursos de ódio ou da violência contra as pessoas LGB-
TQI+ - o que significa que esses crimes não têm suas penas majoradas
e são denunciados como crimes comuns (WASIK; GODZISZ, 2016).
A adoção por casais do mesmo sexo é proibida e a terapia de conversão,
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
permitida. Embora alguns poucos direitos tenham sido reconhecidos
judicialmente, a proteção às pessoas LGBTQI+ no país ainda é insufi-
ciente para que a comunidade possa viver de maneira segura e digna no
território polonês.
2- SITUAÇÃO ATUAL NA POLÔNIA
Há algum tempo a Polônia vem sendo palco de muitos retrocessos, e
um dos mais preocupantes foi sobre a as zonas livres de LGBTQI+ que de-
mosntrou que a discriminação não era mais de forma velada, mas sim de
forma bem explícita. Dessa forma, dois fatores foram muito importantes
para essa discriminação: os discursos do Pis (Partido de direita nacionalis-
ta) e a Igreja Católica.
De acordo com o diretor-chefe Mariusz Kurc da Replika- única re-
vista LGBTQI+ polaca, a comunidade LGBTQI+ estava aumentando a
cada dia e o Governo LGBTQIfóbico não estava satisfeita com a situação.
Dessa forma, ele afirmou que:
Em 2017 tivemos 7 marchas do orgulho na Polónia, o que já era
muito; mas em 2018 em vez de 7, tivemos 15. E em 2019, em vez
de 15 tivemos 31. A comunidade LGBT polaca acordou e come-
çou a lutar pelos seus direitos. Depois do Presidente de Varsóvia
ter assinado a Declaração LGBT, as pessoas que já eram homofóbi-
cas ficaram enfurecidas, especialmente em meios mais pequenos, e
surgiram as LGBT free-zones. Na prática, isso não significa nada,
mas é como se dissessem ‘nós odiamos pessoas LGBT’. ( FRAN-
CO, 2020)
A situação piorou quando meios de comunicação extremamente
conservadores começaram a propagar essa ideia das LGBTQI+ free zones
nas eleições de 2019. Assim, desde esse período, mais de cem municípios
poloneses se consideraram “livres” dessa comunidade, o que significa que
cerca de um terço do país tem esse posicionamento LGBTQIfóbico ar-
gumentando que ele são a favor dos “valores da família”.Vale ressaltar de
acordo com o Centro de Pesquisa da Opinião Pública, apenas 29% dos
polacos concrodam com o casamento de pessoas do mesmo sexo.
387
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
A direita foi vencedora nas eleições deste ano com o presidente An-
drzej Duda com um que comparava a ideologia LGBTQI+ com o Comu-
nismo, e ainda disse que aquela era pior que a “doutrinação comunista”
que segundo ele, comandou o país nos últimos 40 anos. Dessa maneira,
influenciados por esses discursos, 51,2% da população ficou a favor da
direita conservadora cristã, o que piorou ainda mais a situação dos direitos
daquela comunidade.
Vale ressaltar que a maior parte da população que votou no Presiden-
te de direita pertece à região do leste e do sul da Polônia- na sua maioria,
esses municípios são mais tradicionais e antigos, pois já faziam parte do
País desde antes da Segunda Guerra Mundial. Dessa maneira, o Presiden-
te usando um discurso nacionalista discriminatório contra os estrangeiros,
conseguiu êxito nas eleições deste ano.
3- BREVE COMPARATIVO BRASIL-POLÔNIA E A
INFLUÊNCIA DO CRISTIANISMO
Segundo especialistas da ONU em direitos LGBTQI+:
“a discriminação contra as pessoas LGBT alimenta a espiral de
violência a que elas estão sujeitas diariamente e cria um ambiente
favorável à sua exclusão de oportunidades em todas as facetas da
vida, incluindo educação e participação política e cívica, contri-
buindo para a instabilidade econômica, a falta de moradia e saúde
debilitada”. (ONU. 2018)
Com toda essa discriminação, a partir dos anos 90, no Brasil, tiveram
avanços significativos no reconhecimento e na promoção dos direitos dos
LGBTQI’s, como a incorporação de ações de prevenção ao HIV e Aids,
e a inclusão da categoria “homossexual” no I Plano Nacional de Direitos
Humanos (1996).
Os anos 2000 representam o ápice do processo de cidadanização, ten-
do a criação do Programa Brasil sem Homofobia (2004) como um mar-
co, com o objetivo de promover a discriminação dessa população a partir
da equiparação dos direitos e do combate à violência homofóbica, e, em
2008, houve a realização da I Conferência de Políticas para LGBTQI+.
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Ao longo dos anos, instituíram-se regulações, como a que assegura o uso
civil do “nome social” por pessoas trans, e a implementação de políticas
públicas voltadas ao combate a discriminação em diferentes níveis de go-
verno, seja municipal, estadual ou federal.
No início do ano de 2010, ativistas e pesquisadores LGBTQI+ cla-
mavam atenção para as dificuldades de converter políticas públicas em
legislação no Brasil e mostraram como as políticas direcionadas a LGBT-
QI+ eram “fragmentárias, pontuais e periféricas”. Os primeiros avanços
importantes se deram por meio do Judiciário, que em 2010 teve reco-
nhecimento no STF, por unanimidade, o direito de casais formados por
homossexuais têm em adotar filhos. Já em 2011, através do Supremo Tri-
bunal Federal (STF), a união homoafetiva estável como entidade familiar
foi reconhecida, garantindo aos casais do mesmo sexo os direitos que até
então eram restritos a casais heterossexuais, como direito a herança, be-
nefícios da previdência e até mesmo inclusão como depedente em plano
de saúde.
Outro avanço marcante foi quando o STF entendeu ser possível a
alteração de prenome e gênero no registro civil mediante averbação no
registro original, independentemente de procedimento cirúgico de rede-
signação de sexo e sem necessidade de autorização judicial. Dessa forma,
a principal conquista e avanço na legislação brasileira a respeito dos direi-
tos e combate à violência contra essa população foi a Criminalização da
LGBTQIfobia e o enquadramento da homofobia e transfobia na Lei do
Racismo (Lei n°7.716/89),
Dessa maneira, se tornou crime o ato de praticar, induzir ou incitar
a discriminação ou preconceito em razão da orientação sexual da pessoa,
podendo cumprir pena de um a três anos de prisão, além do pagamento
de uma multa e a aplicação da pena de racismo, que valerá até o Congresso
Nacional do Brasil aprovar uma lei exclusiva para tal delito.
Assim, com essa conquista, o Brasil se tornou o 43° país a criminalizar
essas práticas, como aponta o relatório “Homofobia Patrocinada pelo Es-
tado”, elaborado pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bisse-
xuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA). A maioria dos países que crimi-
nalizam a homofobia estão presentes na Europa (23 países) e na América
(13), porém a Polônia não está incluída nessa lista.
389
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Apesar da criminalização da homofobia ter sido um grande avanço na
legislação e uma conquista para a população LGBTQI+ brasileira, há um
grande conflito e dificuldade na implementação de novas leis que comba-
tem esse crime, pois no Congresso Nacional e em todo Judiciário, apesar
do Brasil ser intitulado como Estado Laico, as bancadas religiosas têm for-
te influência no reconhecimento de leis e políticas públicas, fazendo com
que os direitos dos homossexuais sejam esquecidos e não colocados como
prioridades para a criação de uma sociedade mais inclusiva e segura para
essa população.
Enquanto o STF recebia argumentos, no processo da criminalização,
a favor da igualdade de direitos pelas AssociaçõesLGBTQI+, entidade re-
ligiosas apresentaram fundamentos em defesa da liberdade religiosa. Ten-
do como exemplo a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anaju-
re), que representa igrejas evangélicas, a qual disse que, em geral, todas as
religiões consideram a homossexualidade “ontologicamente como pecado
ou contra seus valores e princípios morais”. "É desproporcional, abusivo e
inconstitucional admitir que, se um padre, pastor ou qualquer líder reli-
gioso, nos seus sermões, sendo fiel ao texto que eles têm como regra de fé
e prática – a Bíblia, por exemplo –, assente que as práticas homossexuais
são 'pecados', estejam assim sendo homofóbicos", argumentou a entidade
representante das igrejas evangélicas, a Anajure.
Outro argumento religioso foi apresentado pela Frente Parlamentar
da Família e apoio à Vida, segundo a qual protestantes, evangélicos e ca-
tólicos se veem ameaçados como indivíduos, família e igreja, já que a ho-
mossexualidade "discrepa da vontade Divina para a humanidade, havendo
Deus criado homem e mulher". Dessa forma, fica claro que a separação
entre religião e Estado é um ideal do Estado Moderno, que no Brasil é
abstrato e ainda muito irrealizável com toda essa influência religiosa, prin-
cipalmente da Igreja Católica que teve papel de destaque na estruturação
e expansão do estado brasileiro e configurou uma moral pública marcada
por valores cristãos.
Observa-se, que a Polônia também é um país que sofre com a forte
influência da Igreja Católica na aplicação de leis que têm como objetivo
criminalizar a homofobia e que a entidade católica prejudica a socialização
das pessoas LGBTQI+, tornando a sociedade polonesa mais homofóbica
e intolerante com essa parcela da população. Enquanto muitos cidadãos
390
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
LGBTQI+ abraçaram a democratização e tentaram exercer sua liberda-
de de expressão, eles encontraram forte oposição da autoridade moral da
Igreja, que acabou se beneficiando com a transição do governo, permane-
cendo intacta após décadas de governança comunista.
Apesar de estar ao lado de uma constituição emendada, instituições
recém-formadas, nova ideologia política e novo sistema de mercado, a
sociedade e governo polonês ainda está ancorado numa base espiritual ve-
lha, estável e familiar, na qual os cidadãos buscavam consolo e força anti-
gamente. Todavia, na sociedade moderna é inadmissível uma parcela da
sociedade sofrer com tanto preconceito por sua orientação sexual, princi-
palmente causado por instituições religiosas.
É neste contexto que as lutas pelo reconhecimento LGBTQI+ devem
ser compreendidas, visto que o clima cultural foi amplamente influen-
ciado pelo tom moral que a Igreja Católica estabeleceu ao adquirir uma
eminência nacionalista muito forte e com bastante influência.
A população LGBTQI+, tanto no Brasil como na Polônia, sofrem
com a violência homofóbica e transfóbica, porém, não podemos comparar
a realidade de ambos. No Brasil, os LGBTQI’s vivem em uma sociedade
ainda preconceituosa mas possuem mais liberdade em relação a demons-
trarem sua orientação sexual ou sua identidade de gênero. Já na Polônia,
essa porcentagem da população, os indivíduos não possuem tamanha con-
fiança para expor a sua orientação ou identidade.
Com essa diferença cultural, fica claro que, com essa maior expo-
sição no Brasil, os números de casos de violência são mais altos, com
aumento expressivo a cada ano, fazendo o país se tornar um dos países
que mais mata homossexuais e transgêneros no mundo. Todavia, pouco
se sabe sobre números de vítimas por homofobia na Polônia, porém isso
não quer dizer que não existem casos de violência ou que esse número
não é significativo.
Desse modo, podemos ressaltar, que apesar de serem países com cul-
turas e governos muito distintos, há uma grande semelhança quando se
fala sobre a influência religiosa e a intolerância causada por essas institui-
ções. A bancada evangélica aqui no Brasil e a Igreja Católica na Polônia
atuam fortemente na elaboração e no reconhecimento de leis, com isso,
acabam dificultando na aceitação daquelas que têm como objetivo prote-
ger os direitos dos LGBTQI+ e na criação de legislações mais acolhedoras
391
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
e protetoras dos direitos, sem qualquer preconceito pela orientação sexual
ou identidade de gênero.
Atos de repúdio a população LGBTQI+ são agravantes, não só pelos
casos de violência contra homossexuais e transexuais, mas, principalmen-
te, pela sociedade brasileira e polonesa viverem com sistemas governa-
mentais que levam mais em consideração um preconceito religioso e con-
servador, do que ter uma sociedade em que os LGBTQI+ possam viver
sem medo de expor sua orientação sexual ou sua identidade de gênero e
que possam ser amparados perante as leis, tendo seus direitos assegurados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A comunidade LGBTQI+ sempre esteve presente, antes mesmo de
ser reconhecido por essa nomenclatura. Mas essa população sempre teve
que se manter escondida, com medo do preconceito e da violência que
podiam lhes causar, pois nunca tiveram seus direitos reconhecidos. Na
verdade, homossexualidade ja foi considerada crime, fazendo com que
esse grupo além do medo da violência que podiam sofrer do resto da po-
pulacão, não tinham a quem recorrer se algo acontecesse, pois corriam o
risco de serem presos.
Com o passar dos anos, esse grupo foi conquistando seu espaço na so-
ciedade, e conquistando alguns direitos e garantias, porém o preconceito
sempre esteve presente.
O preconceito contra o grupo LGBTQI+ é enraizado nas culturas
tanto polonesa, como brasileira, pois ambos os países possuem influên-
cia religiosa na sua história, tornando mais difícil a garantia de direitos
dessas pessoas, também tornando evidente a violência e repressão que
eles sofrem.
Diante do exposto, se torna evidente que a população LGBTQI+ so-
fre de uma escassez absurda de direitos na Polônia, deixando clara a neces-
sidade de avanço na sua legislação, para a aprovação de leis que garantam
esses direitos que o grupo LGBTQI+ busca, e também o reconhecimen-
to da homofobia como crime, para a proteção e punição devida. Deixa
evidente também que, como no Brasil, não precisa somente de criação
de leis, para que o preconceito seja extinto, é preciso a conscientização e
392
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
educação da população, tanto nas escolas, como nas escolhas dos nossos
representantes no governo.
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ARTIGO – CIDADES E CAMPOS
397
EDUCAÇÃO E TRABALHO:
UMA LEITURA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS A PARTIR DO
JOVEM SERTANEJO NO ESTADO DE
SERGIPE
Isabela Gonçalves de Menezes93
João Claudio da Conceição94
INTRODUÇÃO
Educação e trabalho são categorias que carecem de maior acessibi-
lidade à juventude. Nesse sentido, com este artigo busca-se apresentar
uma discussão acerca de questões relacionadas às expectativas escolares e
profissionais de jovens rurais estudantes do último ano do ensino médio
regular em escolas urbanas no sertão sergipano.
A primeira noção para a qual o termo juventude remete é a de tran-
sição da heteronomia infantil à, em tese, autonomia adulta, isto é, da de-
pendência ao ápice do desenvolvimento, à plena cidadania e à capacidade
de se sustentar (ABRAMO, 1997, 2005; SPOSITO, 2005). Esta fase seria
um período de vida em que ocorrem “importantes mudanças biológi-
cas, psicológicas, sociais e culturais, que variam segundo as sociedades,
93 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e professora universi-
tária (UFS).
94 Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino (Roma) e Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
399
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
as culturas, as etnias, as classes sociais e o gênero”, conceito adotado pela
Unesco (POLÍTICAS, 2004, p. 23).
O término dessa transição é sempre referido “ao fim dos estudos,
ao início da vida profissional, à saída da casa paterna, à constituição de
uma nova família ou, ainda, simplesmente a uma faixa etária” (WAN-
DERLEY, 2007, p. 22), de maneira que a juventude tem como clássicas
definições delimitadoras: faixa etária; ambiente rural ou urbano; matu-
ridade/imaturidade, através do uso de variáveis biológicas e psicológicas;
critérios socioeconômicos; estilo de vida e setor da cultura (CATANI;
GILIOLI, 2008).
Esses conceitos têm possibilitado comparações internacionais, regio-
nais, temporais e socioeconômicas, provindo sempre da acepção predomi-
nantemente etária e tendo na transitoriedade sua característica principal
(ESTEVES; ABRAMOVAY, 2007). No entanto, o primeiro obstáculo
ao se tratar de juventude(s) e sua(s) cultura(s) é justamente defini-la(s);
pois, quando se requer que o conceito seja mais preciso, começam a sur-
gir dificuldades e são revelados seus aspectos imprecisos e escorregadios
(ABRAMO, 2005; CATANI; GILIOLI, 2008; SPOSITO, 2000).
Para Wanderley (2007), os obstáculos sobrevêm tanto porque a demar-
cação dessa etapa da vida é “culturalmente determinada”, como por se tratar
de um conceito relativamente recente. Foi a partir da modernidade que essa
etapa entre puberdade e fase adulta surgiu, sendo enfatizada desde o século
XIX, mas com maior percepção como categoria social distinta a partir da
segunda metade do século XX (HOBSBAWM, 2005; SAVAGE, 2009).
De acordo com o Guia de Políticas Públicas de Juventude (2006),
no Brasil, a discussão só ganhou relevância a partir da década de 90, mas
Stropasolas (2006, p. 176) reconhece que “a quantidade e a qualidade das
obras que abordam o tema da juventude já são suficientes para formar uma
base, graças a qual se pode começar a falar de uma ‘sociologia específica’”.
Quanto à juventude rural, em debate sobre balanço e perspectivas
sobre essa categoria, Sposito (2007) destacou a superação da invisibilida-
de dos jovens rurais e a construção de um espaço de visibilidade pública
e política da diversidade juvenil. Não obstante, chamou a atenção para
que não ocorra um descompasso entre estudos acadêmicos e prática so-
cial e que o conhecimento acompanhe a realidade que é rica, dinâmica
e multifacetada.
400
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
A fim de contribuir com o debate sobre juventude rural, neste arti-
go serão discutidas questões juvenis relacionadas às categorias trabalho e
educação, com base em relatos das dificuldades encontradas pelos jovens
rurais no acesso a essas categorias.
QUESTÕES JUVENIS: EDUCAÇÃO, TRABALHO,
DIPLOMAS, SUJEITOS DE CONSUMO, SUJEITOS DE
DIREITOS
Para se apossar do sentido da categoria juventude não se pode perder
de vista discussões acerca do modelo econômico e, no caso da juventude
rural, do modelo agrário, sem relegar o fato de que essa categoria é um
produto próprio das cidades, já que foi com o fenômeno de urbanização
que passou a despertar o interesse do Estado em diversos setores, como
educação, segurança e trabalho. Do mesmo modo, tornou-se alvo na esfe-
ra do consumo e da indústria cultural, na medida em que foi incorporada
como figura principal nos mercados da moda, da música, do esporte e das
artes, entre outros (CATANI; GILIOLI, 2008).
Por intermédio da publicidade nas sociedades de consumo, a moda
tem habilmente realçado a positividade dos valores associados à juven-
tude, enunciando-a como categoria traduzida pelo prazer, pela estética,
pela audácia, pela liberdade de criação, idealizando e reificando aspectos
corporais, para construir um imaginário da juventude composto de saú-
de e felicidade, omitindo o lado negativo de se ser jovem, decorrente da
forma como a sociedade o trata, aspectos como incertezas, limitações e
solidão. Os jovens, então, viveriam uma contradição: de um lado, por
serem consumidores em potencial e valorizados esteticamente, são visados
pelas propagandas e pelo marketing; por outro, por conta do desemprego
estrutural e da precarização, sentem dificuldades de se encaixarem pro-
fissionalmente e continuam a depender financeiramente dos pais (ESTE-
VES; ABRAMOVAY, 2007).
Na busca da autonomia, as experiências adquiridas nessa fase influen-
ciarão, com maior ênfase do que em outras faixas etárias, a trajetória do
jovem, especialmente através da relação com suas redes sociais, família,
grupos, comunidades e interações na escola e no trabalho (LEON, 2007).
A escolarização passa a se conformar como espaço fundamental de sen-
401
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
tido, ao explicitar desigualdades e oportunidades limitadas que marcam
expressivos grupos de jovens, sendo, ao mesmo tempo, espaço fundamen-
tal de reflexão e luta por direitos (ANDRADE; FARAH NETO, 2007).
Branco (2005), a partir de pesquisa referente à juventude brasileira
empreendida em 2003, salienta que, se os dados forem considerados em
conjunto, para 75% dos jovens brasileiros, tanto do campo como da cida-
de, o interesse se dirige à educação (38%) e ao trabalho (37%). Em 2013,
novo retrato do jovem brasileiro é apresentado com base nos resultados da
pesquisa Agenda Juventude Brasil95. Embora, normalmente, o jovem ainda
seja visto apenas na condição de estudante, com base em pesquisa com
jovens na faixa etária entre 15 e 29 anos, em relação à sua condição de
atividade, nota-se que ela está mais presente no mundo do trabalho (74%,
sendo que 53% trabalham e 21% procuram trabalho) do que na escola
(27%). Percebe-se também que os jovens vivem conjuntamente os dois
mundos, ao conciliarem escola e trabalho (14%) ou ao procurarem traba-
lho enquanto estudam (8%). Quanto aos temas que mais os preocupam,
quando apresentaram apenas uma opção, a preocupação com segurança/
violência obteve o maior número de respostas espontâneas (24%), seguido
por emprego/profissão (19%) e educação (9%).
No entanto, quando indagados a respeito dos principais assuntos que
gostariam de discutir com os pais ou os responsáveis, em primeiro lugar,
juntos, com 43% das respostas, foram mencionados educação e futuro
profissional (SNJ, 2013). Apesar de a escola não ter importância somen-
te como um meio facilitador de acesso ao mercado de trabalho, Charlot
(2005), com base em pesquisas relacionadas com o saber, infere-se que o
interesse pela educação associa-se sempre com o trabalho, porquanto os
jovens consideram a escola imprescindível para se obter um bom emprego
no futuro.
Ao analisarem os dados de pesquisa realizada pela Unesco em 2004,
Esteves e Abramovay (2007) observam que o emprego se mostra como a
maior fonte de insatisfação da juventude com a sua vida. De acordo com
Singer, “os jovens de hoje nasceram em um tempo de crise social. Não
por acaso, quase dois quintos estão desempregados” (SINGER, 2005,
p. 28). Compartilhar o medo de “sobrar” no mundo do trabalho é uma
95 Realizada pela Secretaria Nacional de Juventude (SNJ).
402
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
das três dimensões96 selecionadas por Novaes (2007) entre os aspectos do
mundo atual que marcam a diferença da condição juvenil com gerações e
configurações sociais anteriores, afetando a juventude e definindo o que é
ser jovem, tanto na cidade quanto no campo.
Em uma conjuntura portuguesa que pode ser extrapolada ao Brasil,
Alves (2008) pontua que a relação linear entre oportunidades educacio-
nais e oportunidades sociais – ou o ajustamento entre os níveis de edu-
cação, de emprego e de salários – em grande medida alimentou o que
Sérgio Grácio denominou de demanda otimista de educação (GRÁCIO,
1986 apud ALVES, 2008). Frisa, porém, que com a crise econômica, a
massificação dos sistemas educativos coincide com o crescimento do de-
semprego e com o fim do alinhamento entre o diploma e sua rentabilidade
econômica e social.
Nas atuais circunstâncias, Alves (2008) adverte que enquanto o de-
semprego juvenil aumenta e afeta, em especial, os jovens menos titulados,
o diploma assume um valor acrescido. Embora não seja mais a garantia de
acesso instantâneo a um estável e bem remunerado emprego, segue sendo
a proteção mais eficaz contra o desemprego. O panorama tem sido de
confronto entre crescimento contínuo da demanda por educação, falta de
empregos e a difusão de um discurso que recorre ao investimento indivi-
dual e coletivo na educação e na formação. Isso tem gerado efeitos sobre
o sistema educativo e o mercado de trabalho, agora com o aumento da
procura desencantada de educação (GRÁCIO, 1986 apud ALVES, 2008).
Simultaneamente, o investimento em trajetórias escolares cada vez mais
longas tem contribuído para a desvalorização dos diplomas, portanto, o
aumento generalizado das qualificações escolares causa a desvalorização
crescente dos níveis de escolaridade mais baixos, aumentando a vulnera-
bilidade ao desemprego, à precarização e à exclusão social.
Se o jovem urbano enfrenta problemas de inserção profissional, os
jovens rurais, comumente menos escolarizados, lidam com dificuldades
ainda maiores, em especial quando preferem ingressar nos mercados ur-
banos a trabalhar no meio rural, mesmo que seja na unidade produtiva
familiar (MENEZES, 2016).
96 “Ser afetado pela existência do narcotráfico e pelos interesses da indústria bélica” e “po-
der se sentir desconectado em um mundo conectado” são as outras dimensões seleciona-
das por Novaes (2007).
403
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Assunto a ser tratado nos resultados e discussão sobre as expectativas
profissionais e os possíveis obstáculos, mas brevemente adiantado neste
ponto com o exemplo de um jovem, de apenas 15 anos, ao tangenciar
alguns questionamentos relacionados à continuidade dos seus estudos:
Muitos obstáculos pessoais. Mesmo que sejam bolsas, gasta-se
muito e eu não tenho nenhum emprego na cidade e nem moro
aqui [na cidade], tornando quase impossível de se locomover até a
universidade, pois não há aqui na cidade. E outro grande proble-
ma é que eu vejo a vontade que meus pais têm que eu continue,
mas vejo a necessidade de ficar e ajudá-los, algo que desejam não
abertamente, mas que vejo as dificuldades que irão triplicar sem a
minha presença. É algo que querem que eu fique, mas que também
desejam que eu continue. É pela minha dificuldade, pelo fato da
minha idade (Homem, 15 anos, Nossa Senhora da Glória, ques-
tionário de pesquisa).
A concretude do impasse sofrido por esse jovem rural quase não lhe
fornece a possibilidade de sonhar com a mobilidade social por intermédio
dos estudos. Ele precisa do capital para estudar, mas os problemas “irão
triplicar” com sua ausência na propriedade familiar e, consequentemente,
os pais ficariam sem recursos para lhe bancar os estudos. Diante dessa rea-
lidade, o rapaz parece questionar se vale a pena insistir na educação, pois
a ideia que associa diploma a emprego pode ser enganosa e vive a contra-
dição entre um habitus97 estabelecido sobre essa ideia e a realidade que lhe
é apresentada. Portanto, é como se percebesse que o futuro lhe reserva
ser parte do que Bourdieu denomina de geração enganada numa fase de
inflação de diplomas: “a defasagem entre as aspirações que o sistema de
ensino produz e as oportunidades que realmente oferece” (BOURDIEU,
2010, p. 161).
97 Se o habitus é a internalização das estruturas do mundo social, um sentido prático, que
guia a percepção da situação, a ação, as preferências e a visão de mundo dos indivíduos,
também é exteriorização da interioridade, este duplo movimento faz o habitus dinâmico,
sujeito à variação, modificador e sendo modificado pelas estruturas sociais (BOURDIEU;
PASSERON, 2009).
404
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
MÉTODO, CAMPO E POPULAÇÃO
Na pesquisa que embasa este artigo, buscou-se refletir acerca das fon-
tes do sentido dos sujeitos pesquisados nos contextos socioeconômico e
escolar, em um duplo processo: uma pesquisa qualiquantitativa e com-
preensiva do sentido e aprofundamento, de tipo sociológico, do contexto
em que esse sentido é construído. O universo de estudo é composto de
jovens rurais estudantes do último ano do ensino médio regular em esco-
las públicas urbanas de Nossa Senhora da Glória e Poço Redondo, muni-
cípios do território Alto Sertão Sergipano.
O território Alto Sertão Sergipano está localizado no Noroeste do
Estado de Sergipe, Brasil, na parte mais oriental da Grande Depressão
Sertaneja. Totalmente incluído no Polígono das Secas, apresenta clima
quente, do tipo semiárido e precipitação pluviométrica média anual da
ordem de 500 a 700 mm. A vegetação natural predominante da região é a
caatinga (Diagnósticos..., 2008).
Esse território abrange área de 4.900,686 km2 que corresponde a
22,4% da área total de Estado de Sergipe, com densidade demográfica de
30 hab./km2 e com 146.529 habitantes, ou seja, 7% da população total do
Estado (Sergipe em Dados, 2009; Diagnósticos..., 2008).
A coleta de dados foi realizada em três escolas – duas em Nossa
Senhora da Glória e uma em Poço Redondo – e levou dois semestres
para a execução do trabalho de campo e análise de dados. Na primeira
fase da coleta de dados, 80 jovens rurais foram pesquisados por meio de
um questionário composto por 122 perguntas fechadas e abertas. Em
uma segunda etapa, foram realizadas entrevistas e grupos focais con-
duzidos de forma semiestruturada. Os grupos focais realizados, em um
total de sete, tiveram 55 participações de jovens rurais. Quando não
houve quórum suficiente para formar um grupo focal, realizaram-se
entrevistas semiestruturadas.
Os participantes foram avisados a respeito do objetivo do trabalho,
com sigilo salvaguardado pela adoção de nomes fictícios e, informados
do termo de consentimento livre e esclarecido, solicitou-se a autorização
para a participação na pesquisa.
405
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
RESULTADOS E DISCUSSÃO
De acordo com trabalho conduzido por Seabra com famílias de dis-
tintas condições de classe, níveis de escolaridade e origens nacionais, a
condição de classe e a escolaridade dos progenitores são fatores de diferen-
ciação que estrutura as estratégias educativas familiares (SEABRA, 1999
apud SEABRA et al., 2011). Diante dos interessantes resultados obtidos
pelas referidas autoras, fez-se uso de idênticos indicadores ao questionar se
as famílias dos jovens rurais teriam modos específicos de relacionamento
com a escola; quais as expectativas depositadas na escolaridade dos filhos
e as estratégias desenvolvidas de apoio à escolarização.
Para Bourdieu (2004), os próprios interesses familiares, inclusive dos
progenitores que não desejam ver os filhos descerem abaixo de seu nível,
os interesses dos filhos que não querem ser desclassificados, pois virão a
sentir o fracasso com maior ou menor resignação ou revolta de acordo
com sua origem, vão conduzir a estratégias diversas e inventivas, cuja fi-
nalidade é a manutenção da posição.
No Brasil, com o sistema de cotas como uma política afirmativa –
neste caso, aplicam-se especialmente as cotas socioeconômicas –, os pais
dos jovens pesquisados que, em grande parte, possuem o nível fundamen-
tal incompleto, desejam que os filhos ingressem em cursos como medi-
cina. De acordo com os dados obtidos, para 70% dos jovens rurais, os
pais almejam que cursem o nível superior. Os estudantes, por sua vez,
ultrapassam o desejo dos pais, visto que o percentual atinge 87,5% na ex-
pectativa de cursar uma faculdade.
Embora os pais dos pesquisados não sejam formados nem os filhos
tenham capital cultural herdado, estes, se granjearem eles próprios o di-
ploma, obterão o capital escolar, ocorrendo o que Bourdieu denomina de
“ruptura da correspondência” (BOURDIEU, 2011, p. 124). Apesar de já
se começar a perceber o que esse sociólogo chamava a atenção, quer dizer,
certa desvalorização de algumas posições – e dos diplomas que garantem
o acesso a elas –, com o aumento considerável no número de ingressantes
das classes menos favorecidas no nível superior; mesmo assim, o diploma
universitário ainda é muito desejado.
Diante de tais expectativas escolares e profissionais, perguntou-se,
então, “se você pudesse dizer algo aos formuladores de políticas públi-
406
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
cas, o que recomendaria especificamente para os jovens rurais?”, questão
trabalhada nas entrevistas e nos grupos focais, como uma possibilidade
de que os jovens pudessem expressar suas recomendações. Esta discussão
tem sua importância porque, ao falar de seus problemas, por sua condição
paradoxal de esperança e desvio, o jovem se torna um respeitável sujeito
analítico das práticas políticas e dos modos de governo. Portanto, na luta
pela redução das desigualdades sociais, é importante que se ouça a voz dos
jovens, especialmente os das classes populares. Isso pressupõe considerar o
jovem como sujeito de uma nova condição e reconhecer a importância da
juventude (NEVES; FERRERI, 2013).
Nas respostas obtidas, destacaram-se recomendações às seguintes ca-
tegorias: educação, cursos profissionalizantes, saúde, transporte, tecnolo-
gia, melhores condições de vida, inserção profissional, cultura e que os
jovens rurais sejam ouvidos e valorizados.
Eu acho que os políticos deveriam ouvir mais os jovens para saber a
necessidade de cada um por causa que, quando você mora no inte-
rior98, você tem dificuldades além das pessoas que moram na cida-
de, então deveriam ouvir mais os alunos do interior para saber suas
necessidades, o que precisam para se deslocar para a escola. Muitas
vezes, muitos jovens desistem da escola por causa das dificuldades
que, às vezes, assolam os alunos que vêm da zona rural. (Homem,
nº. 2, grupo focal 3, Nossa Senhora da Glória).
Os jovens não só reclamaram e reivindicaram, mas houve um deles
que também elogiou avanços visíveis nos últimos anos e que, no momento
crítico em que o país atravessa, causa preocupação pensar se tais direitos
e conquistas serão extintos. Eis o relato dos estudantes que dinamiza a
presente pesquisa:
98 Neste trabalho, o uso dos termos “interior”, “sertanejo” e “sertanejo nato” pelos jovens
rurais tem uma relação com o meio rural, pois boa parte dos pesquisados possui a concep-
ção que “sertanejo” é exclusivamente aquele que enfrenta as secas e tira seu sustento da
agricultura, ao passo que “interior” seria o espaço de moradia no campo em contraposição
à cidade.
407
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
H-n.4(GF4): Eu acho [...] que a gente não pode ser hipócrita e
dizer que hoje está pior do que antigamente. Antigamente era bem
pior do que hoje, mas [...] muitos jovens do interior não estão ten-
do mais aquela vontade de ser um sertanejo nato, eles querem ter
dezoito anos para viajar, tentar ganhar a vida em outro estado, na
cidade e eu acho que o governo precisava olhar isso [...]. O ser-
tanejo não é bem valorizado. Quem é da cidade é. Se tivesse, ao
menos o mesmo nível ou no mesmo patamar, seria uma melhora
muito [...] boa para os jovens que moram no interior [meio rural].
M-n.1(GF4): Trabalho, pois os jovens do interior só pensam em
fazer dezoito anos e ir para fora. Pesquisadora: Para fora de onde?
M-n.1(GF4): Para fora do interior, de Sergipe, sabe... Só pensam
em São Paulo, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro... Só esses lu-
gares e não querem nem mais voltar para cá, não pensam nem mais
em voltar porque aqui ele tá vendo que não tá andando, não vai ter
uma oportunidade para quem vive da roça, para quem precisa de
transporte para vir para a escola, para os meninos que estudam na
escola do povoado. E aí os meninos, pequenininhos, na escola lá da
primeira à quarta série, já pensam em fazer dezoito anos para nunca
mais voltar. (Nossa Senhora da Glória, grupo focal 4). Legenda: H:
Homem / M: Mulher. GF: Grupo focal.
Observa-se no grupo focal 4 que um dos rapazes lembrou dos avanços
que ocorreram nos últimos anos no meio rural sertanejo. Porém, confor-
me complementado por sua colega, sem possibilidade de renda no campo,
os jovens só vislumbram ir embora para cidades; por isso, ao tempo que a
moça reivindica oportunidade de trabalho para a juventude do campo, o
rapaz sinaliza para um esvaziamento dos jovens no meio rural.
Questiona-se, desse modo, qual a perspectiva do jovem rural de ficar
no meio rural. Afirma-se que este “quer” sair mas, em termos concretos,
o que se está fazendo para que possa ficar? Há mais jovens rurais na escola
de ensino médio no intuito de universalizar a educação, mas, se os jovens,
até então, tinham a preocupação de entrar na escola, contudo, agora, já
começam a se preocupar sobre o que farão ao concluírem a escolarização.
Alunos do ensino médio anseiam em continuar os estudos, mas relatam
preocupações sobre de que maneira isso seria possível. Nem todos têm
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capacidade financeira e a incerteza gera ansiedade nos jovens que criam
expectativas.
Uma grande preocupação dos jovens rurais desta pesquisa é a falta
de recursos para acessarem o nível superior. Necessitam de um “pacote”
mínimo para irem à universidade que seria meio de transporte, alojamento
e alimentação; no entanto, alguns relatam que não têm esse mínimo, tal
como observado por uma jovem:
Os filhos dos sertanejos99 vão estudar na universidade e as famílias
não têm como sustentar. Certo... porque se passar no ENEM não
vai pagar, tem alojamento, mas não é só isso. Vai gastar também
com outras coisas e como é que também a família vai sustentar esse
jovem lá estudando? Se não tem os meios de produzir? É difícil
também pra o filho do sertanejo estudar também. É difícil... (Mu-
lher, nº. 1, grupo focal 4, Nossa Senhora da Glória).
Além da falta de condições financeiras, há ainda jovens rurais ser-
tanejos que relatam não terem acesso aos cursos ofertados no campus do
Sertão100 porque não obtiveram a pontuação necessária. O acesso às vagas,
mesmo com a interiorização do ensino, continua sendo desigual e isso é
frustrante quando o jovem rural tem capacidade para ingressar, mas não
de se manter estudando em nível superior. Segue um dos depoimentos
colhido na presente pesquisa:
Nós somos jovens como os do Sul, como os do Sudeste, temos
os mesmos sonhos, conhecemos as mesmas oportunidades que os
outros conhecem. Ter uma visão para eles [formuladores de polí-
ticas públicas] olharem diferente, lembrarem da gente porque so-
mos esquecidos, infelizmente. Eles investirem em profissões que a
gente tenha acesso. A gente tem um sonho de se formar e [...] ter
99 Certamente se refere aos jovens rurais filhos de agricultores porque, para boa parte dos
pesquisados, sertanejo é o homem do campo e, posteriormente, a jovem fala em “meios
de produzir”.
100 O referido campus da Universidade Federal de Sergipe (UFS) foi inaugurado em 2015.
Instalado em Nossa Senhora da Glória, inicialmente, oferta agronomia, medicina veteriná-
ria, zootecnia e agroindústria.
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a oportunidade de um emprego, ao menos de um salário mínimo.
Que a gente não precisasse sair do lugar que a gente mora ou ir
buscar [emprego] em outro lugar porque a gente gosta do lugar
onde mora [...]. Lembrar de investir nas escolas porque o melhor
lugar que o jovem tem a oportunidade diferente é pela escola [...].
Oportunidade de mostrar o que a gente sabe. Porque a gente é ca-
paz, inteligente, como qualquer jovem do Brasil. Somos tão esque-
cidos, como se a gente não fizesse parte do Brasil e a gente faz parte
e tem sonho como qualquer outra pessoa. Então, acho que falta
isso: oportunidade! Enfatizar trabalho no nosso lugar e formação
profissional [...]. Eu vejo tanto lugar com tantos cursos técnicos e
aqui tem, mas é bem raro [...]. (Mulher, nº. 3, grupo focal 2, Nossa
Senhora da Glória).
Surgiram, ainda, demandas específicas, como a necessidade de trans-
porte para que tenham acesso a cursos profissionalizantes, além da escola-
rização no ensino médio. Os jovens afirmam da seguinte maneira:
M-n.3(GF2): E outra: difícil acesso para ir, difícil transporte por-
que eles não pensam. Às vezes põem o curso, mas não pensam
como é que o jovem do interior vai chegar no lugar do curso téc-
nico se a gente não tem meio de transporte, não tem a chance de
chegar lá [...]. Se você não tem um emprego, você não tem um
salário, às vezes nossos pais não têm condições de bancar a gente
porque a vida é difícil [...]. Morar distante da cidade é uma das
questões mais difíceis do mundo. Lembrar desse termo: não só im-
plantar, mas dar o acesso para chegar lá. Todos nós sonhamos em
nos formar e ter uma coisa melhor, umas condições melhores para
nossos pais. Mas, na maioria das vezes, pelos pais não terem as con-
dições que necessitamos, aí leva o jovem a poder trabalhar. [Ele] vê
a condição do pai e [pensa]: “Eu não vou deixar meu pai assim”.
[Vai] buscar um trabalho, acaba desistindo dos estudos, indo tra-
balhar, trazendo dinheiro para casa. “Meus pais me sustentaram,
agora é minha vez de sustentar. Eu tou sendo capaz”, entendeu?
Aí acaba criando uma falta de esperança para os jovens se ele é
esquecido. H-n.2(GF2): Bom, o que está precisando aqui é que
haja mais [...] um olhar direcionado às pessoas que moram aqui.
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Que tornem mais acessível o transporte, [além de] deixar o colégio
mais adequado com tecnologia. Que todos tenham oportunidade
de estudar, fazer cursos mais acessíveis, com o preço acessível para
todos. Porque, na maioria das vezes, vêm os cursos, mas a maioria
dos jovens não tem como pagar esses cursos e acaba não fazendo.
Pesquisadora: Que cursos são esses que você está falando? H-n.2(-
GF2): Profissionalizantes. Tem alguns, mas não são muito aces-
síveis. São na cidade e não são muito acessíveis financeiramente,
não é todo mundo que consegue fazer. M-n.3(GF2): Nem todos
conseguem o transporte porque como os pais alguns são pobres,
aí não tem o transporte, o único transporte é o da escola, aí não
tem condições porque a maioria desses cursos profissionalizantes é
[nos] finais de semana. H-n.2(GF2): Falta um pouco de divulga-
ção também. Quem é do interior, quando fica sabendo de algum
curso que tem na cidade, na verdade todo mundo já está inscrito e
você não tem mais oportunidade. H-n.4(GF2): Os órgãos públi-
cos deveriam investir mais no sertão porque, apesar de você morar
no interior no sertão, tem muitos talentos e muitas vezes não são
reconhecidos pela sociedade. Eu acho que deveriam investir mais
em jovens e, quem sabe, gerar grandes pessoas importantes na so-
ciedade contemporânea. Valorizar o jovem sertanejo. (Grupo focal
2, Nossa Senhora da Glória). Legenda: M: Mulher / H: Homem.
GF: Grupo focal.
O que se observa, finalmente, é que esses jovens, mais do que rurais
ou sertanejos, são apenas jovens. Isso reforça a proposta de Sposito (2007)
que ao se tratar da “juventude” não se enfatize apenas as “juventudes”,
mas sim a convergência entre as questões expostas pela juventude com a
singularidade em uma chave mais geral. Os jovens rurais apresentam seus
sonhos, mas não querem ficar apenas sonhando, de modo que reivindicam
a acessibilidade para que não percam a esperança. Conforme ponderações
de uma moça, a oportunidade é tão importante quanto o acesso a ela,
além da necessidade da valorização de talentos locais.
A educação tem um apelo muito forte para os jovens rurais pesqui-
sados e foi muito comentada devido ao recente fechamento de escolas
de ensino fundamental e à ausência de escolas de ensino médio no meio
rural. Um dos participantes considera que talvez falte “aos governantes
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perceberem o poder que a educação tem” e que “investir mais e mais na
educação é a solução para vários problemas” (Homem, nº. 9, grupo focal
1, Nossa Senhora da Glória).
M-n.10(GF3): Bom, eu sinto falta de escolas de ensino médio no
interior [meio rural]. Eu acho que deveria ter porque é difícil se lo-
comover do interior para a cidade e necessitar também de ônibus.
É difícil. [Os ônibus] às vezes quebram, às vezes o motorista é ir-
responsável... A gente sofre muito com isso. Eu sinto falta de escola
de ensino médio [no meio rural]. H-n.1(GF3): Eu acho que deve-
riam melhorar as estradas e ouvir os alunos que, muitas vezes, an-
dam muitos quilômetros, tipo eu, ando um quilômetro para pegar
o ônibus, um quilômetro e meio e, muitas vezes, chego no ponto
e ele [motorista do ônibus] não espera se passar mais cedo [...] e
muitas vezes deixa nós na estrada. (Grupo focal 3, Nossa Senhora
da Glória). Legenda: M: Mulher / H: Homem. GF: Grupo focal.
Por fim, uma jovem de Nossa Senhora da Glória, ao ser entrevistada,
observou que se deveria ter “mais afeto” com o jovem rural. Para a jovem,
“mais afeto” seria criar cursos “especialistas, não só na área do campo”.
Assim como um jovem de Poço Redondo que criticou o fato de só serem
ofertados no Campus do Sertão cursos voltados para agropecuária, essa
moça observou que “nem todos os jovens que vivem e gostam de deter-
minada localidade querem se formar para trabalhar com a terra. Muitos
querem se formar em medicina, em engenharia, em tudo mais. Então,
“deveriam trazer mais cursos profissionalizantes de graça e dar direito a
todos”. Um rapaz, por sua vez, teceu as seguintes críticas à situação vivida
pelos sertanejos hoje:
Primeiro, eu gostaria de falar que não tenho preferência por parti-
do nenhum, só que eu acho que a precariedade do governo, hoje,
no Brasil, tá refletindo muito forte entre os jovens [...]. Segundo,
os estudos: hoje, pra você entrar numa faculdade, certo, você tem
que estudar pra ter a sabedoria de chegar lá já sabendo mais ou
menos o que é que você vai querer, mas eu acho que mesmo assim
ainda está precário o sistema educacional. [...] Eu acho que de-
veria, sim, repensar em novos modelos de planejamento pra essas
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áreas, né, que o jovem hoje se quer trabalhar no campo não tem
como. É o que eu posso falar: o apoio devido do governo. Se quer
ir pra uma escola não tem apoio do governo. Você vai ter o quê:
um livro pra estudar, só, e tchau. O governo não vai te apoiar em
nada. Eu acho que deveria ter programas de incentivo ao estudo
que hoje no Brasil é coisa quase rara (Homem, nº. 4, grupo focal 4,
Nossa Senhora da Glória).
Depreende-se, a partir dessas falas, a força que a escola tem na for-
mação dos projetos juvenis – sempre relacionada à expectativa de inserção
no mercado de trabalho – e o quanto o país precisa avançar em educação.
Já houve ampliação de oferta do ensino médio e, com acesso a transporte
escolar, os jovens rurais aproveitam as oportunidades para estudar e, desse
modo, avançar até o ensino superior. Já não é raro encontrar jovens ru-
rais cursando faculdades, alguns até no mestrado, sobretudo quando têm
o apoio financeiro dos pais, mas ainda se faz necessária a ampliação dos
direitos dos jovens rurais para que se tenha um país mais justo para todos.
CONCLUSÃO
A palavra educação é formada a partir de dois vocábulos latinos “ex”
e “ducere” que, juntos, significam “conduzir para fora”. A pesquisa reve-
lou esta expectativa presente nos jovens que vivem no ambiente rural, de
serem conduzidos de modo que possam alcançar os seus objetivos.
Conduzidos por um itinerário de formação que traduz a finalidade
da educação qual instrumento de transformação, não apenas de si mesmo,
mas também da realidade circunstante na qual cada jovem está inserido.
Como visto ao longo da pesquisa, educação e trabalho são lados da mesma
moeda. A educação precária gera um trabalho precário. O trabalho que
visa usurpar a educação é sempre um aliado da insegurança e das diversas
precariedades que o distanciam da dignidade da pessoa humana.
Esta pesquisa salientou uma das características mais marcantes do
Brasil contemporâneo: o desemprego. Os jovens conhecem tal realidade
desde cedo, com os pais que sofrem para suprir as necessidades básicas da
família. Os jovens sabem que o trabalho precário torna a educação um
luxo distante. Experimentando esta realidade no próprio núcleo familiar,
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
enxergam na educação a possibilidade real para a superação desta situação
de negação dos direitos para uma progressiva afirmação dos direitos ante-
riormente distantes, repercutindo drasticamente sobre o próprio exercício
da cidadania, que se torna passiva e até amordaçada.
É notório que nem sempre a conclusão dos percursos acadêmicos traz
consigo todos os resultados esperados, seja por mudanças ocorridas no
mercado de trabalho pressionado pelas economias internacionais, nacio-
nais e regionais, seja por motivos contidos nas várias esferas interpessoais.
Contudo, a educação é sempre libertadora, uma vez que faz enxergar
além, tornando-nos mais capazes de transformar o meio e não apenas de
ser por este transformado. A educação torna as pessoa mais conscientes de
seus direitos e, portanto, mais preparadas para exigi-los e reivindicá-los.
O discurso acerca dos direitos humanos deve ultrapassar a mera eru-
dição para se tornar, cada vez mais, compreensível e aplicável, como pro-
posto nesta presente pesquisa, sobretudo a partir de políticas públicas ca-
pazes de ouvir as pessoas e, particularmente, os seus reais destinatários.
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ARTIGO – IMIGRAÇÃO
419
INTEMPÉRIES NA VIDA DAS
MULHERES MIGRANTES: A ENTREGA
FORÇADA DOS FILHOS PARA
ADOÇÃO
Odisséia Aparecida Paludo Fontana101
Sílvia Ozelame Rigo Moschetta102
Thaís de Conto103
INTRODUÇÃO
A migração é um fenômeno recorrente, estampa-se no contexto
mundial por inúmeras razões e ocasiona, mesmo que involuntariamente,
transformações socioespaciais. Em suma, a sobrevivência humana é a seiva
que percorre a motivação migracional e, no caso das mulheres, categoria
analisada neste artigo, sob dois sentidos: migração em busca de ascensão
profissional – migrantes econômicos, na maioria voluntariamente; migra-
ção em busca de condições dignas de mantença familiar. As duas situações
se imbricam, indubitavelmente, porém a delimitação do tema se instala
101 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestra em Di-
reito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro. Professora
permanente do Programa de Mestrado Acadêmico em Direito UNOCHAPECÓ.
102 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestra em Di-
reito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro. Professora
permanente do Programa de Mestrado Acadêmico em Direito UNOCHAPECÓ.
103 Mestranda em Direito pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó – UNO-
CHAPECÓ.
421
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em especial nas mulheres migrantes que são forçadas a interromper um
projeto familiar de parentalidade por razões de vulnerabilidade social.
Num mundo globalizado e em constante evolução, pode-se dizer
que diversos são os fatores que influenciam o deslocamento da população:
econômicos, culturais e religiosos, políticos e naturais; ou seja, conforme
as transformações mundiais, o reflexo se espraia para o cotidiano das pes-
soas, que sempre estão à procura de melhores condições de vida para si,
suas famílias e filhos.
O tema será analisado a partir do viés sociojurídico sobre situações
que forçam as mulheres migrantes a entregar os filhos para a adoção, in
casu, de nacionais.
Será utilizada a pesquisa qualitativa, com método dedutivo, partindo-
-se de premissas já conhecidas e pontuadas para se propor uma conclusão;
analisa-se do geral ao particular. Possui cunho bibliográfico, sendo seu
desenvolvimento realizado com pesquisa indireta, de caráter exploratório,
utilizando-se consulta a livros, sites, artigos, pesquisa em revistas jurídicas
e órgãos oficiais referentes ao tema proposto.
1 DIREITO DE FAMÍLIA E AS MIGRAÇÕES
A abrangência do Direito de “todas” as Famílias, expressão pós-mo-
derna, importa em reconhecer direitos pertencentes ao âmago das pes-
soas, sua originalidade, ancestralidade, seu projeto de vida. Refuta-se a
definição baseada em matrimonialidade, herança canônica simbolizando
a Sagrada Família, e biologicidade como elementos constituidores, pois
a família representa uma interação de indivíduos na qual cada um exerce
determinados papéis e funções socialmente relevantes, sem que, necessa-
riamente, estejam ligados biologicamente (FACHIN, 2006, p. 315; PE-
REIRA, 2003, p. 13). A gênese da família possui caráter multicultural,
pessoal, patrimonial, sociológico e bioético; é de relevante importância,
pois, “[...] desde o nascimento, torna-se membro de uma família e a ela
permanece unido por toda a sua existência, mesmo que venha a formar
outra [...]” (MALUF; MALUF, 2018, p. 24).
A proteção se consolida no dispositivo constitucional – art. 226, caput
–, afirmando-se que “a família é a base da sociedade e, constitucional e le-
galmente, tem especial proteção do Estado” (MORAES, 2011, p. 1990),
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destoando, de certa forma, das premissas pretéritas que não valorizavam
“afeto e felicidade das pessoas que formavam seu principal núcleo, pois
eram os interesses de ordem econômica que gravitavam em torno daquelas
instâncias de núcleos familiares construídos com suporte na aquisição de
patrimônio” (MADALENO, 2018, p. 6).
Venceram-se as amarras da patrimonialidade, e a “família tem o seu
quadro evolutivo atrelado ao próprio avanço do homem e da sociedade”
(FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 36), mudando conforme as novas
descobertas científicas e conquistas que envolvem a humanidade, assim
não sendo crível, nem admissível, que esteja submetida a ideias estáticas,
presa a valores pertencentes a um passado distante; é realidade viva, adap-
tada aos valores vigentes.
Ademais, a família caracteriza uma realidade presente, busca uma di-
mensão mais ampla, fundada na realização pessoal de seus membros; com
isso, surge a família pós-moderna, embasada no “afeto, na ética, na soli-
dariedade recíproca entre os seus membros e na preservação da dignidade
deles” (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 37).
Considerando a família como parte da construção da sociedade e me-
recedora de proteção do Estado, adentrar-se-á também o assunto das mi-
grações, fenômeno social individual ou familiar que auxilia na mudança e
no crescimento das diversas sociedades contemporâneas.
Conforme informações do Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados, a palavra “migrante” designa aquele que se desloca
dentro de seu próprio país e também internacionalmente. A migração faz
parte da construção da humanidade, existindo desde o início das civili-
zações, dando à sociedade novas dimensões sociais, culturais e humanas
(ACNUR, 2019).
Há muitos anos, o ser humano, sozinho ou por meio de grupos e até
comunidades, viaja em busca de novas e melhores oportunidades, para fu-
gir de conflitos, por condições climáticas desfavoráveis, guerras ou outras
violências. A migração também pode ser vista como um direito huma-
no: além de ser instalado como um fenômeno social, pode ser analisada
pelo segmento da economia, política, esporte, tecnologia, saúde, relações
internacionais, educação, habitação, dentre outros aspectos (ACNUR,
2019).
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Pode-se ver esse movimento vivo até hoje: dados recentes divulgados
pela Organização das Nações Unidas (ONU) indicam que o mundo tem
cerca de 272 milhões de migrantes internacionais, ou seja, pessoas que
vivem em países distintos daqueles em que nasceram. Desse total, milhões
de migrantes encontram-se em situação de deslocamento forçado, ou seja,
a migração ainda é um fenômeno atual e iminente (ONU, 2019).
Ademais, a migração não é somente vista como um fenômeno social,
mas como um problema, até mesmo uma ameaça, para a soberania nacio-
nal dos países. E muito desse pensamento é distorcido, advém de políticas
migratórias muito restritivas em diversos países, tornando os fluxos mi-
gratórios perigosos e mais acessíveis à exploração, em vez de reduzi-los
(ACNUR, 2019).
Ressalta-se que a Lei de Migração, n. 13.445/2017, vinda para substi-
tuir o Estatuto do Estrangeiro como legislação migratória no Brasil, esta-
belece, no seu artigo 1º, “os direitos e os deveres do migrante” (BRASIL,
2017c); assim, o migrante é visto como um sujeito de direitos, mas tam-
bém de deveres, e o artigo 1º, inciso I do Decreto n. 9.199/2017 denomina
que migrante é a “[...] pessoa que se desloque de país ou região geográfica
ao território de outro país ou região geográfica, em que estão incluídos o
imigrante, o emigrante e o apátrida.” (BRASIL, 2017a).
A Lei de Migração está em consonância com a Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil de 1988, e atribui aos migrantes direitos como
“acesso à saúde, educação, justiça e programas sociais [...], é também a
primeira legislação migratória brasileira que contempla o tema dos cida-
dãos brasileiros que vivem no exterior”. Ainda, são expostos no artigo 3º
e seus incisos os princípios e garantias que fazem parte da política migra-
tória, podendo citar-se entre eles a interdependência dos direitos huma-
nos, a não criminalização da migração, a acolhida humanitária (BRASIL,
2017c).
A convergência entre Direito de “todas” as Famílias e migrações é
justamente no alcance da união: estrangeiros constituem famílias em solo
nacional, contribuindo com o aumento ou a formação de novas famílias
nas sociedades.
Existem diversas razões para a migração acontecer, por isso faz-se ne-
cessária a proteção dos direitos humanos de pessoas nessa situação. Os
migrantes são protegidos pela Declaração Universal dos Direitos Huma-
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nos, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, bem como
por outros tratados internacionais e regionais que reconhecem que todas
as pessoas, incluindo migrantes e refugiados, possuem direitos humanos
(ACNUR, 2016).
Ora, a proteção garantida pela lei aos migrantes se faz fundamen-
tal, caso contrário, poderão ocorrer violações aos direitos humanos, com
discriminações, prisão arbitrária ou detenção, condições exploratórias e
forçadas no ambiente de trabalho (ACNUR, 2016). Nesse meio, mani-
festa-se a necessidade da proteção das famílias migrantes também em um
contexto de dificuldades, podendo haver, conforme será exposto adiante,
circunstâncias em que as mulheres migrantes, de forma voluntária ou for-
çada, diante de situações de vulnerabilidade, entregam seus filhos.
2 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O
DIREITO À ENTREGA VOLUNTÁRIA DOS FILHOS PARA
ADOÇÃO
A ocorrência da migração é um fenômeno muldimensional e, no to-
cante aos fatores da entrega de um filho para adoção pelas mulheres mi-
grantes envolvem situações complexas, necessitando dissecar a “função
social” da adoção no ordenamento jurídico brasileiro. No Brasil, a pauta
legislativa referente à adoção é vasta: Código Civil, Lei n. 8.069/90 (Esta-
tuto da Criança e do Adolescente), Lei n. 12.010 (Lei de Adoção) – cujo
teor não é outro senão o amparo legal visando aos interesses e direitos
das crianças e adolescentes de serem criados em um ambiente familiar.
A entrega voluntária dos filhos para adoção é resultado de mudanças pa-
radigmáticas voltadas para a doutrina da proteção integral, cuja proposta
[...] veio para romper definitivamente com a doutrina da situa-
ção irregular estabelecida pelo Código de Menores (Lei 6.697,
de 10/10/1979), e definir a doutrina da proteção integral como a
grande diretriz no que se refere ao atendimento de crianças e ado-
lescentes, estando em consonância com o texto constitucional de
1988 e com documentos internacionais aprovados amplamente na
maioria das nações. (COLLET, 2014, p. 9).
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
O Estatuto da Criança e do Adolescente surgiu para disciplinar a ado-
ção do adotando que já tinha, no máximo, dezoito anos na data do pedido
de adoção, bem como a efetivação da adoção por pretendentes nacionais
ou estrangeiros que residam no Brasil – também pode participar da sele-
ção o brasileiro domiciliado e residente no exterior, estando sob os mes-
mos direitos.
Ainda, importante destacar o artigo 51 da Lei n. 8.069/90, que con-
sidera “adoção internacional” a situação em que o pretendente tenha re-
sidência habitual em país que faça parte da Convenção de Haia de 1993, a
qual trata da Proteção das Crianças e Cooperação quanto à adoção inter-
nacional, promulgada pelo Decreto n. 3.087 de 1999, e que tenha o dese-
jo de adotar uma criança em outro país também membro da Convenção.
Já no artigo 52 da mesma lei, obtêm-se as informações sobre a adoção
internacional por estrangeiros, ou seja, que tenham domicílio e residam
fora de solo brasileiro; nela, observar-se-ão os procedimentos para efetiva-
ção da adoção. Os interessados estrangeiros que pretendem adotar criança
ou adolescente de origem brasileira deverão se habilitar na Autoridade
Central em matéria de adoção internacional no local de sua residência
habitual; caso habilitados, um relatório com informações e documenta-
ção necessária para aptidão de adoção internacional dos solicitantes será
emitido. A Autoridade Central do país de acolhida mandará o relatório
à Autoridade Central Estadual, com cópia à Autoridade Central Federal
Brasileira.
Após estudo e confirmação, pela Autoridade Central Estadual, de
que os requisitos do procedimento foram atendidos, será expedido laudo
de habilitação à adoção internacional validado por, no máximo, um ano.
Com isso, o interessado poderá formalizar o pedido de adoção no Juízo
da Infância e da Juventude do local em que se encontra a criança ou ado-
lescente, podendo esse pedido ser intermediado por organismos creden-
ciados se a lei do país de acolhida autorizar, sendo observadas regras para
que isso aconteça; tal credenciamento para adoção nacional ou estrangeira
terá validade de dois anos, podendo ser renovado mediante requerimento.
A saída do adotando do território nacional será possível após o trânsi-
to em julgado da sentença que concedeu adoção internacional, podendo,
então, haver a expedição de alvará com autorização de viagem, obtenção
de passaporte com informações e características da criança ou adolescente
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adotado; e a autoridade Central Federal Brasileira poderá, a qualquer mo-
mento, solicitar informações acerca das crianças e adolescentes adotados.
O processo de adoção é visto como uma medida de exceção, con-
forme artigo 39, parágrafo primeiro da Lei 8.069/1990: “[...] a adoção é
medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando
esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na famí-
lia natural ou extensa [...]” (BRASIL, 1990). Desta forma, diante de sua
excepcionalidade, prima-se pela permanência na família de origem ou ex-
tensa, caso não seja possível, utiliza-se a adoção como um último recurso
que visa contemplar a ambiência familiar para crianças e adolescentes.
A Lei n. 8.069/1990 teve a preocupação de zelar pela dignidade da
pessoa humana quanto a crianças e adolescentes, blindando-os de quais-
quer situações prejudiciais que possam comprometer sua saúde física e
mental, priorizando um tratamento igualitário a eles. No parágrafo do
artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, estão expostas as polí-
ticas públicas aplicadas a crianças e adolescentes, exaltando-se o dever da
família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público para se
alcançar os objetivos de prioridade absoluta.
A Lei n. 13.509/2017 previu a entrega voluntária de bebês para ado-
ção, sendo lecionada pelo artigo 19-A do Estatuto da Criança e do Ado-
lescente: “A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu fi-
lho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à
Justiça da Infância e da Juventude. ” (BRASIL, 1990).
Ressalta-se que a entrega voluntária do filho para adoção não é con-
figurada como crime; é um direito da gestante, ou de mulheres que es-
tejam em estado puerperal, conforme parágrafo 1º do artigo 19-A da lei
8.069/1990. Assim, a grávida poderá procurar o órgão responsável para
que receba as informações precisas. Tendo seus direitos de entrega dos
filhos garantidos pela lei, as mães serão encaminhadas à Justiça da Infância
e Juventude, que as acompanhará nos procedimentos devidos, bem como
para realização do processo de busca da “família extensa”, termo de que a
justiça se utiliza para nominar familiares ou parentes mais próximos.
Conforme parágrafo 4º do artigo 19-A da Lei n. 8.069/90, se não
houver familiares aptos ao recebimento da guarda, ou nenhum outro
representante, a autoridade judiciária deverá determinar a colocação da
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
criança sob a guarda provisória de alguém que estiver apto a adotá-la ou
de entidade que tenha programa de acolhimento familiar ou institucional.
Ademais, expõe o artigo 13, parágrafo 1º do Estatuto da Criança e
do Adolescente: “As gestantes ou mães que manifestem interesse em en-
tregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem
constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude [...]”. Assim, é um
dever do Estado não constranger a entrega voluntária dessas mães, não as
criticando ou julgando-as. De outra maneira, caso haja alguma omissão
quanto ao encaminhamento pela parte de pessoa que integre a rede de
proteção (hospitais, CRAS, conselho tutelar, posto de saúde, etc.), é cons-
tituída uma falta administrativa, podendo-se aplicar multa de R$1.000,00
a R$3.000,00, conforme artigo 258-B da lei n. 8.069/90.
Diante disso, destaca-se que, pelos artigos 19-A, parágrafo 5º, e artigo
166, parágrafo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, mesmo que a
vontade seja expressa pela genitora desde a gestação, a entrega efetiva será
válida e poderá apenas acontecer após o nascimento da criança. A entrega
do filho deverá ser sempre ancorada pelo Poder Judiciário, através de pro-
cesso judicial previsto na lei n. 8.069/90, não podendo ser de forma verbal
ou por documento escrito, conforme art. 166, parágrafo 4º do referido
estatuto.
Nesse procedimento, também é de extrema importância que seja
resguardado o sigilo das informações; o sigilo para a genitora também é
garantido quanto ao nascimento, assim ela não tem a obrigação de co-
municá-lo a seus familiares, nem de dizer quem é o pai da criança, con-
forme artigo 19-A, parágrafos 4º e 8º, e artigo 166, parágrafo 3º da Lei n.
8.069/1990.
Após a mãe manifestar o interesse de entrega voluntária do filho para
adoção, instaura-se o procedimento judicial, visando atendimento, pri-
meiramente, da genitora pela equipe interprofissional da Justiça da Infân-
cia e da Juventude: é feito um relatório do atendimento para ser entregue
ao Juiz competente, podendo este, caso seja necessário atendimento psi-
cológico para suprir as dificuldades da entrega, encaminhar a genitora,
com a sua concordância, à assistência social ou rede pública de saúde, ten-
do em vista o exposto nos parágrafos 1º e 2º do artigo 19-A do Estatuto da
Criança e do Adolescente.
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A equipe interprofissional, no atendimento especializado, deverá ave-
riguar o estado psicológico da mãe e quais são seus motivos, bem como
informá-la da irrevogabilidade de sua entrega, tendo como entendimen-
to o parágrafo 2º, artigo 166. Caso haja constatação do real interesse, de
forma consciente, de entrega voluntária à adoção, dá-se prosseguimento
ao processo. Se houver informações de quem é o pai da criança pela ge-
nitora, ele também receberá atendimento pela equipe especializada, bem
como deverá ser questionado sobre se tem interesse em receber a guarda
da criança caso não concorde com a adoção.
Pelo artigo 19-A, parágrafo 5º da Lei 8.069/1990, após relatório ana-
lisado, o juízo competente marcará audiência e, na oportunidade, serão
ouvidos a mãe e o pai, se identificado, esclarecendo-se a eles as conse-
quências do ato e para verificar sua concordância com a adoção, conforme
artigo 166, inciso I, parágrafo 1º. A lei também esclarece, no parágrafo 5º,
do artigo 166 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que “o consen-
timento é retratável até a data da realização da audiência especificada no
parágrafo 1º deste artigo, e os pais podem exercer o arrependimento no
prazo de 10 (dez) dias, contado da data de prolação da sentença de extin-
ção do poder familiar” (BRASIL, 1990).
Assim, a genitora e, se conhecido, o pai poderão manifestar desistên-
cia da entrega voluntária até a data da audiência exposta no art. 19-A, pa-
rágrafo 1º da Lei 8.069/1990, podendo, dessa forma, a criança ser restituí-
da em sua família biológica, sendo acompanhados pelo prazo de 180 dias
pela Vara da Infância e da Juventude, conforme o parágrafo 8º do art. 19-A
da lei mencionada. Do contrário, pelo parágrafo 4º do referido artigo e
pelo parágrafo 1º, II do artigo 166 da mesma lei, se confirmada a entrega
para adoção, é extinto, através de sentença, o poder familiar da genitora
em relação à criança, e do pai, caso conhecido e conforme já informado;
caso não ocorra retratação, a entrega se torna irrevogável.
Pelo acompanhado na lei, a adoção é possível se não houver a existên-
cia da família extensa, e destaca-se, neste termo, conforme artigo 25, pa-
rágrafo único do Estatuto da Criança e do Adolescente, que “entende-se
por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da uni-
dade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos
com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afi-
nidade e afetividade” (BRASIL, 1990). Assim há o requisito de os fami-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
liares serem próximos e terem vínculos afetivos, e não quaisquer pessoas
– tudo isso, visando à proteção integral e ao melhor interesse da criança.
Ressalta-se, também, que os pais, conforme artigo 197-A e seguintes
do Estatuto da Criança e do Adolescente, não poderão escolher para quem
será efetivada a adoção; isso é proibido, pois ela é sempre encaminhada
para as pessoas, ou casais, que possuem habilitação prévia na Vara da In-
fância e da Juventude com fins de adoção. Pelo ensinamento do artigo 48
da mesma lei, e parágrafo único, o filho poderá, somente quando com-
pletar a maioridade civil, procurar sua família de origem e ter acesso aos
autos de sua adoção, podendo-se esse acesso ao processo também ser de
conhecimento ao menor adotado através de sua expressa vontade, tendo,
para isso, orientação e acompanhamento jurídico e psicológico.
Assim, observa-se que a lei está de acordo com a entrega voluntária
dos filhos para adoção desde que feita pelos motivos certos e de acordo
com as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente; nesses casos,
não há punição.
3 INTEMPÉRIES NA VIDA DE MULHERES MIGRANTES:
ENTREGA FORÇADA DE FILHOS PARA ADOÇÃO
A entrega de um filho para adoção é sempre uma questão complexa,
pois trata-se de uma vida, aliás, de várias vidas: envolve mãe, pai, filhos,
uma história, uma família que, muitas vezes, se forma a partir de situa-
ções precárias. Por isso, deve-se ter todo o cuidado e afago para adentrar
nas razões motivadoras da entrega dessas crianças; é preciso refletir suas
nuances nos aspectos psicológicos, socioculturais e legais, pois esse tipo de
situação, em alguns casos, vem acompanhado de violências que eviden-
ciam a falta de estrutura material e assistência pública para evitar a entrega.
Questiona-se: quais são as situações que forçam as mulheres migran-
tes a entregar os filhos para adoção? Como resposta, a análise recai sobre
dados da ONU, que prevê um protagonismo feminino nas migrações, ou
seja, há um número muito elevado de mulheres migrantes nos últimos
anos (SOUZA, 2020). A questão feminina das migrações só começou a
ser vista a partir do ano de 1980, quando a igualdade de gênero despertou
interesses acadêmicos.
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Afirma-se que os movimentos sociais para promoção da igualdade
de gênero, o aumento das migrações por mulheres, bem como sua in-
serção no mercado de trabalho, são fatores que ocasionam uma mudança
de paradigma (SOUZA, 2020). Com isso, pode-se dizer que, conforme
informações da ONU, 48% das migrações internacionais são femininas,
evidenciando o crescente protagonismo das mulheres no fluxo de migra-
ção (SOUZA, 2020).
Também, Souza (2020) refere que a mulher migrante, antes de ter
essa maior visibilidade, era vista como passiva, dependente econômica e
afetivamente, frágil, e que apenas acompanhava os homens na migração ao
exterior; hoje, já há indícios de que as mulheres fazem seus próprios pro-
cessos migratórios, e isso ocorre pelas suas lutas e conquistas nos últimos
anos, pelos seus projetos individuais migratórios.
As mulheres migrantes vivem uma situação que envolve reivindicar
sua condição de direito todo dia, uma necessidade de sujeição e subjetiva-
ção em busca de sua cidadania, condição que não deveria ser questionável,
por ser sua de direito (SOUZA, 2020). E, mesmo com questões vulnerá-
veis e adversas, a migração as auxilia na busca de uma vida melhor.
Ocorre que, diante desse cenário promissor, destaca-se também uma
situação frágil e delicada: os fatores degradantes de uma sociedade que
fragiliza as oportunidades dessas mulheres migrantes, fazendo com que,
muitas vezes, forcem-nas a entregar seus filhos, na tentativa de oportu-
nizar uma vida melhor. Ou seja, o risco da feminização da migração é a
entrega dos filhos para adoção, involuntariamente.
As mulheres migrantes saem de seus países de origem, muitas vezes,
desprovidas de recursos, impulsionadas apenas pela esperança de uma vida
digna; a maioria não possui renda, dificilmente fala a língua nacional do
país acolhedor, e se vê na condição de sustentar uma criança, fruto, às ve-
zes, de atos de violência ou subserviência masculina. Não há outra decisão
senão entregar seu filho para adoção de um nacional.
Neste sentido, destaca-se que, apesar das causas elencadas, a falta de
recursos materiais não retira o direito dessas mulheres ao poder familiar,
ao exercício do seu projeto parental, pois, se assim fosse, estar-se-ia ferin-
do as premissas do Estatuto da Criança e do Adolescente, que incentiva a
entrega voluntária das crianças – diante do contexto frágil da mulher mi-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
grante, pode-se entender como entrega forçada muitas vezes, diante das
circunstâncias em que vivem e das oportunidades que lhes são negadas.
O lugar de conhecimento sobre a entrega de filhos à adoção é um
assunto muito delicado, muitas vezes minucioso, visto sob olhares pre-
conceituosos, de dor e ao mesmo tempo de compreensão; há que tentar
entender todos os motivos que envolvem cada história, individualmente,
como um caminho para o início, reinício de uma vida.
As mulheres ainda são as que mais sofrem exclusão; por mais que essa
situação tenha melhorado conforme as décadas foram passando, é notório
que permanece. Se mulheres não migrantes, quando da entrega de seus
filhos, não recebem o apoio emocional e social devido, da lei ou de suas
famílias, imagina-se como se dá com as migrantes, desprovidas de aparato
estatal, já que não se encontram em seu país de origem, muitas vezes não
têm renda, nem conhecimento da língua nacional – por isso, muitas ve-
zes, a adoção de seus filhos é a única opção que se apresenta àquelas que
foram consideradas sujeitos de direitos – as crianças.
Desta maneira, destaca-se que, diante da entrega dos filhos à adoção,
existem muitas motivações para a desistência ou até mesmo a imposição
da desistência de cuidados com o filho, diante de situações como a pobre-
za e a exclusão social.
[...] a maior parte é migrante, compõem-se de pessoas solteiras,
mulheres sós, com arranjos familiares transitórios ou instáveis, es-
tão sem trabalho, ou têm trabalho precário, têm baixa ou nenhuma
renda, instalam-se em moradias com poucas condições de habita-
bilidade ou provisórias, dentre outros. (FÁVERO, 2001, p. 75).
Apesar disso, pode-se dizer que, conforme dados das motivações que
fazem com que ocorra a migração, a pobreza não é um dos únicos motivos
que fazem com que essas mulheres entreguem suas crianças para adoção;
também outros: fatores emocionais, falta de auxílio e apoio do pai de seus
filhos, desemprego, etc. Neste mesmo sentido, no tocante à entrega de
seus filhos, Maria Antonieta Pisano Motta cita:
O fato de mulheres entregarem o filho que conceberam em adoção
cria problemas de várias ordens, sejam éticas, institucionais, socio-
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culturais. Conduz também ao questionamento que estas entregas
produzem nas teorias a respeito da relação mãe-filho, nos levando
a tentar encaixar esta atitude da mãe que entrega em quadros psi-
copatológicos. (2001, p. 33).
Ainda, pode-se afirmar que existem muitos casos de estupro, inces-
to, prostituição, o que leva à compreensão de que a entrega de seus filhos
é a melhor solução: não ficar ao lado de suas mães de sangue, de certa
forma, beneficiaria as crianças (MOTTA, 2001). A entrega dos filhos
para adoção é comparada às mães que enviam seus filhos para serem cria-
dos por avós, situação também comum às migrantes, resguardando os
interesses dos menores para que tenham a oportunidade de serem vistos
e amados como filhos, podendo sonhar, então, com um futuro melhor
(MOTTA, 2001).
Em uma visão geral, no mundo, tendo em vista toda dificuldade em
relação à divisão de classes sociais, desigualdades – poucos têm muito, e
muitos têm tão pouco –, não se torna difícil imaginar fatores que possam
levar uma mãe migrante a entregar seu filho à adoção, mesmo que, de
acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a entrega voluntária
para adoção seja de direito. Podem-se expor situações já mencionadas,
como das gravidezes frutos de violências, como estupro ou incesto, tam-
bém uma gravidez não prevista ou até não desejada, falta de apoio, do pai
da criança ou até mesmo da família em si, ou a ausência de vontade indi-
vidual da mulher em ser mãe.
Como especificidades da migração feminina internacional, ressalta
Dutra (2013) que, em todas as partes do mundo, mulheres de determina-
das origens sociais se deparam com desemprego, precariedade, discrimi-
nação, falta de reconhecimento, necessidade de se capacitar, segregação
ocupacional; e essas situações as impulsionam em busca da migração in-
ternacional.
Existem fatores que acometem mais estatisticamente as mulheres mi-
grantes do que os homens migrantes, como pobreza, falta de oportunida-
des, casos de violência e opressão dentro da própria família e comunidade,
e também a vontade e esperança de realizar seus sonhos. E isso faz com
que ocorra a feminização na migração: algumas mulheres optam por dei-
xar suas famílias, desfazer seus vínculos afetivos, em busca de novas opor-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
tunidades de uma vida melhor, tanto para elas como para suas famílias
(DUTRA, 2013).
Assim, deixam seus países em busca de preencher as lacunas exis-
tentes onde vivem, lacunas que não dizem respeito somente à falta de
bens materiais, que impede de ter uma alimentação saudável, vestimenta
adequada, moradia digna, mas também à dificuldade ou falta de acesso à
educação para os filhos e elas mesmas, escassez de mercado de trabalho
formal e informal, bem como falta no acesso aos serviços públicos como
transporte e saúde (DUTRA, 2013).
Dentre esses motivos, destaca-se a feminização da pobreza, aumen-
tada pela crescente de famílias monoparentais, pois, conforme Dutra
(2013), a preocupação de sustento à família é uma das grandes motivações
para ocorrência da migração em um todo, também na migração feminina,
tendo em vista que as mulheres são as principais garantidoras na remessa
de suas produções aos países de origem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível notar que a decisão de migrar advém de fatores comple-
xos e, muitas vezes, é vista como última escolha, visada pelos migrantes
sob a expectativa de uma vida melhor; para isso, é preciso a força de traçar
novos caminhos, que exigem coragem, pois são caminhos desconhecidos,
de muitas dúvidas, onde nada está determinado.
Na esperança de uma vida melhor, ocorre também o crescimento da
feminização da migração, e o risco, muitas vezes, da entrega dos filhos
para adoção, situação que, por mais que esteja de acordo com a lei, pode
ocorrer de forma forçada, pelas condições de vida precárias que levam as
migrantes nos países para os quais migram: muitas não trabalham, não
falam a língua local, não possuem renda formal, nem informal – por isso,
muitas vezes, é tirado os direitos das mulheres migrantes à parentalidade.
A migração possui proteção especial pela lei, ocorre que diversos são
os fatores que podem levar as mulheres migrantes à entrega de seus filhos
para adoção: a vida nem sempre é fácil, e a necessidade de uma vida mais
digna e com melhores condições gera o poder de escolha dessas mulheres
migrantes por novos rumos; tais decisões, muitas vezes, são difíceis de
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serem tomadas, porém tornam-se necessárias haja vista não existir a ex-
pectativa de outra saída.
A migração ainda é um fenômeno constante e ativo, que transforma
os espaços e as vidas das pessoas que optam por seguir esse caminho. Es-
ses deslocamentos ocorrem pelas mais variadas circunstâncias, as quais,
geralmente, possuem caráter de dificuldades, necessidades de busca por
uma vida melhor e mais digna para si e suas famílias; para tanto, as mo-
dificações de vida e estruturas familiares se fazem necessárias em um
mundo de constantes desigualdades e falta de oportunidade de se ter o
mínimo para viver.
Todas as pessoas merecem oportunidades e, para minimizar tal si-
tuação, seriam necessários a efetivação de políticas públicas e trabalhos de
integração das mulheres migrantes e de suas famílias na sociedade, auxi-
liando-as social e emocionalmente, através do conhecimento e educação,
para que possam se sentir pessoas dignas e respeitadas na busca de inserção
no mercado de trabalho e também quanto a seus direitos, até que possam
encontrar espaço que lhes proporcione autonomia em suas vidas.
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437
ARTIGOS – INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL
439
O USO DESREGULAMENTADO DA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL GERANDO
A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA
PERSONALIDADE E DO PRINCÍPIO
DA DIGNIDADE HUMANA.
Ayla Santana Soares104
Any Ávilla Assunção105
Antônio Marcos Melo Guedes106
INTRODUÇÃO
O presente artigo versa sobre a capacidade tecnológica, atual e futura,
dos sistemas de inteligências artificias (I.A.S); sobre o uso irrestrito que a
sociedade tem feito de tecnologias inteligentes, e as consequências sociais
e jurídicas vindouras das relações, cada vez mais intensas, entre o homem
e a tecnologia inteligente.
As I.A.S são tão influentes na sociedade, vida humana, que estão rea-
lizando a chama quarta revolução industrial. Uma quarta revolução in-
dustrial significa uma mudança no agir, pensar, produzir, executar e viver.
É exatamente o que as I.A.S já estão fazendo, porém, quando elas geram
104 Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário IESB.
105 Professora e Pesquisadora do Centro Universitário IESB. Advogada e Doutora em Socio-
logia Jurídica.
106 Professor do Centro Universitário IESB. Corregedor-Geral Substituto no Instituto de Co-
lonização e Reforma Agrária e Mestrado em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios.
441
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
um dano, quem é o responsável? Esse questionamento que abre a discus-
são da necessidade ou não de atribuição de uma personalidade eletrônica
a tecnologias inteligentes.
Para se abrir a discursão quanto a atribuição ou não de uma persona-
lidade eletrônica deve-se questionar primeiramente quem são os sujeitos
de uma relação jurídica quando em um dos polos tem-se uma tecnologia
Inteligente. Em seguida tem que se trazer a lucidez do debate o porquê
alguns autores almejam e defendem a passagem da responsabilidade dos
danos causados por I.A.S para o programador, consumidor, empresa ou
qualquer outro já detentor de personalidade, em contra partida outros au-
tores já defendem um responsabilização da própria tecnologia por meio da
criação de uma e-personality.
É válido refletir também quais são os efeitos jurídicos, tanto no cam-
po abstrato quanto no campo concreto do direito, decorrentes dessa atri-
buição ou não de personalidade eletrônica. Em síntese o que pode ser afir-
mado, quanto a possível criação de uma personalidade eletrônica para às
inteligências artificiais e robôs, é a capacidade dessa discussão de perpassar
os campos científicos ligados ao desenvolvimento tecnológico e à ciência
do direito; atingindo a ética, moral e até a espiritualidade.
Ocorrerá a elucidação quanto a importância dos direitos humanos no
desenvolvimento de I.A.S; a necessidade de se estabelecer princípios nor-
teadores para a criação de lesgislações regulamentadoras de Inteligências
Artificiais (I.A.S); o desenvolvimento legislativo em outros países, e a in-
fluência humana na reprodução de preconceitos e esteríotipos praticados
por I.A.S, gerando a violação dos direitos da personalidade e da dignidade
humana. Apesar dos pesares que a tecnologia trouxe a ciência do Direito
acredita-se que a mesma será, dentre as ciências, a principal responsável
por potencializar a produção segura de Inteligêncas Artifícias, e criar ins-
titutos jurídicos capazes de abarcar as novas realidades.
1. Modelos de aprendizagem das inteligências artificias
e violaçao aos direitos da personalidade e dignidade
humana
As inteligências artificias são diferenciadas de outras tecnologias de-
vido a sua capacidade de aprendizado, que se dá pela alta capacidade de
442
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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processamento e armazenamento.Para a sua elaboração exige-se a arti-
culação de diversas áreas do conhecimento computacional, sistêmico e,
a depender da máquina a ser elaborada, de um conhecimento robôtico.
São tecnologias desenvolvidas para finalidades múltiplas, programadas
por logarítmos. A produção de Inteligências Artificias pode ser voltada
para reproduzir o intelecto humano, como a forma a qual raciocinamos e
pensamos; ou para buscar reproduzir através do entendimento o compor-
tamento humano. Ambas possuem a capacidade de gerar danos severos
aos direitos da personalidade, e por conseguinte a dignidade humana e
direitos humanos.
As I.A.S são divididas em categorias, as categorias são estabelecidas de
acordo com o grau de aprendizado das máquinas, portanto, saber a cate-
goria da inteligência artificial é essencial para introjetar a discussão quan-
to a atribuição/ criação ou não de uma personalidade eletrônica. Quanto
maior a autonomia menor a influência humana sobe a ação.
Os meio de aprendizado se dão por reinforcement learning, que consiste
em observar se o algoritmo precisa de supervisão humana total, parcial
ou nula. Tem-se também o aprendizado em batch ou online, que seria a
capacidade da máquina de aprender em tempo real; o aprendizado em
deep learning e, por fim, o aprendizado em machine learning (logaritmos que
aprendem com o meio a qual interaje. Seguindona abordagem quanto ao
aprendizado das máquinas inteligentes a autora traz um adendo:
[...] ele entende um padrão a partir de dados de treino e cria um
modelo preditivo ou simplesmente compara dados novos com os
dados conhecidos – aprendizado baseado em instância ou em mo-
delos – e até se é um aprendizado estatístico ou neuronal – como
regressão linear ou deep learning. (BIGONHA,2018, P.3).
Portanto, há a divisão entre inteligências artificiais fortes (strong) e fra-
cas (weak). Sendo as fortes aquelas capazes de se utilizarem da tecnologia
deep learning e machine learning. Dessarte, quanto maior for a capacidade e
acessibilidade de processamento e armazenamento de dados, maior será a
habilidade da inteligência artificial em tomar decisão complexas em tem-
po hábil.Por isso, alguns pesquisadores defendem a necessida de criação
de uma e- personality (personalidade eletrônica) para reparação de danos
443
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
gerados por inteligências artificiais fortes. Os pesquisadores que defendem
esse pocisionamento vão além, eles fazem a prognose de uma socieda-
de transhumanista, que corresponderia ao máximo de interação entre o
homem e a tecnologia. Visualizam uma sociedade futura composta por
vários cyborgs sendo impossível a dissociação entre o que é extritamente
humano e o que é a máquina, como bem exemplifica o autor :
No momento em que se atingir um nível de inteligência artifi-
cial forte – como o autor o designa –, existirá uma nova forma
de o homem se alimentar, o sistema digestivo será redesenhado,
o sangue será reprogramado, dispensar-se-á o coração, pela utili-
zação de nano partículas que o tornam despiciendo na sua função
de bombear o sangue, poderá ser redesenhado o cérebro humano,
designadamente através da introdução de implantes para substi-
tuir retinas danificadas, para resolver problemas cerebrais, ou de
sensores que garantam a mobilidade de pessoas paralisadas, chips
que viabilizem a leitura de pensamentos entre humanos. (KUR-
ZWEIL apud BARBOSA, Malfada, 2017,p.1489.)
Á vista disso fica demonstrado que as I.A.S possuem uma dimensão
ainda desconhecida, mas com seu potencial de, em breve, moldar uma
sociedade a qual os humanos irão possuir poucas ou nenhuma limitação
reconhecido. Ou seja, a junção da ciência e tecnologia promete con-
cretizar o pós-humanismo e para não atingir a extinção do ser humano
deve-se, desde já, priorizar um desenvolvimento tecnológico pautado
na ética.(CASTANHEIRA, NEVES, 2008 apud BARBOSA,2017, P.
1493) em sua obra “Pessoa, direito e responsabilidade” exalta que a par
da condição mundano-social e da condição humano-existencial, o di-
reito só o é verdadeiramente se der resposta a uma terceira condição, a
condição ética.
No que tange a ética há nos dias atuais a ética de dados. A data ethics
foi definida como um novo ramo da ética, que estuda e avalia proble-
mas morais relacionados aos dados (incluindo geração, registro, curadoria,
processamento, disseminação, partilha e uso dos dados); aos algoritmos
(incluindo IA, agentes artificiais, machine learning e robôs) e à práticas
correspondentes (incluindo inovação responsável, programação, hacking
444
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e códigos profissionais). Ademais, essa nova ética pode ser o único cami-
nho para evitar que os preconceitos humanos se reproduzam em escalas
alarmantes por meio da má escolha de dados aplicados.
Os preconceito e desigualdades foram muito bem explanados pelos
os pesquisadores (BUOLAMWINI, Joy; GEBRU, Timnit apud BIGO-
NHA, 2018, P.5) que fizeram uma análise em um programa de reco-
nhecimento facial e foi registrado, portanto, que esse programa recebia
70% de imagens masculinas para parâmetro, a qual 80% eram brancos.
Dessa maneira o logaritmo pouco reconhece homens negros, mulheres
e tem zero ou quase nenhuma possibilidade de reconhecer uma mu-
lher negra. Em outro sistema inteligente, de uso Norte Amreciano, os
rostos negros foram,de forma tendenciosa, extremamente mapeados. O
sistema age fazendo um mapeamento com dados sociodemográficos,
isto significa, analisando atributos como idade, sexo, local de residência,
etnia, nível de escolaridade e renda, para traçar uma predição de perfil
de futuros criminosos. A análise desses dados levou o sistema a genera-
lização e consideração de pessoas negras como criminosos em potencial.
Cabe salientar que nos Estado Unidos da América mais de 60 departa-
mentos de polícia, atualmente, implementam algum tipo de sistema de
policiamento preditivo baseado em I.As. É crescente também o número
de jurisdições que tem adotado o escores de risco, gerados por sistemas
de I.As, para ajudar os juízes atuantes no sistema de justiça criminal em
vários pontos ligados as decisões criminais, entre eles: as decisões de
regime inicial de cumprimento de pena, pré-julgamento, sentença, pós-
-condenação e liberdade condicional (SMITH, SARA,2018 apud BI-
GONHA,2018. P. 11).
No parágrafo supracitado ficou evidente a constante violação por tec-
nologias inteligentes aos direitos da personalidade, da dignidade humana
e aos direitos humanos dedivo a utilização de dados ruins em sua base
sistêmica, por isso, deve-se criar princípios pautados na finalidade para
regulamentar o uso de dados. Deve haver um desenvolvimento consciente
da legislação regulamentadora das I.As; que seja fruto da conexão entre
tecnologia e ciências humanas, tecnologia e especialidades, tecnologia e
sociedade; como muito bem salientou (BIGONHA,2018,P.9). Ademias,
o autor a seguir destaca como um erro no logaritmo é capaz de gerar uma
grande problemática social:
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(...) Dessa forma, uma eventual representação equivocada em de-
terminados contextos sociais – por meio de um equívoco do algo-
ritmo ou dos dados em que o algoritmo se baseou – afetaria tanto a
forma como o indivíduo se percebe como também o modo como
a sociedade o enxerga e o avalia, afetando a sua integridade moral e
a sua personalidade (BRITZ, 2008, p. 179). (DONEDA; MEN-
DES et al, 2018, P.4)
Resta demonstrada a capacidade da tecnologia inteligente de gerar
danos morais e materiais,e até mesmo danos irreparáveis como a morte.
É dessa capacidade danosa que nasce a discussão quanto à quem se deve
atribuira responsabilidade pelos eventuais danos causados, nessa mesma
discussão se chega ao amplo debate jurídico no que diz respeito a possibi-
lidade de se criar um novo tipo de personalidade ( personalidade eletrôni-
ca). Sendo esse o tema a ser explanado no próximo tópico.
1.1 Irresponsabilidade distribuída e personalidade
eletrônica.
A irresponsabilidade distribuída nasce da incerteza de como distri-
buir responsabilidade civil quando não se puder determinar quem foi o
responsável pelo dano, ou até mesmo quando houver no resultado a atua-
ção de diversos agentes. O cenário que as I.A.S estão inseridas é exata-
mente um cenário de irresponsabilidade distribuída porque não se tem
estabelecido em lei quem se responsabilizará pelas I.AS quando ocorrer
um dano; ou pouco se sabe quais são as chances dessas I.AS serem influen-
ciadas e utilizadas como meio de cometimento de crimes; e ainda paira o
questionamento de como deve se aplicar a responsabilidade objetiva se na
maioria dos casos concretos há o rompimento do nexo causal devido o
desconhecimento do agente.
As problemáticas supracitadas foram debatidas na Comissão da União
Europeia. Na comissão houve uma divergências de posicionamento entre
os ciêntistas, mas consolidou-se que os responsáveis pelas tecnologias in-
teligentes atuais devem ser as pessoas jurídicas ou física que se utilizam da
tecnologia. Aqui no Brasil poderia haver a responsabilização dos fornece-
dores, tendo aqui como fornecedor aqueles descritos no código de defesa
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do consumidor pátrio porque, como bem foi ressaltado na comissão da
União Europeia, o mundo ainda não está diante de tecnologias cem por
cento autônomas ou tecnologias capazes de criar uma nova espécie ou raça
humana (transhumanismo ou pós-humanismo) para justificar a criação de
uma personalidade eletrônica mas sim de tecnologias que apesar de inteli-
gentes são só mais um instrumentos de meios de produção. Isso quer dizer
que por traz da utilização de uma tecnologia inteligente tem-se uma pes-
soa física ou jurídica que está usufruindo e lucrando com essa tecnologia e,
portanto, deve ser o responsável pelos danos gerados. Esse entendimento
tem sido o adotado pelos Estados Unidos e a União Europeia e possui total
capacidade e adaptabilidade para o código civil pátrio.
Alguns autores, entre eles (ALBIN, 2019,P.7) analisaram a possibi-
lidade de aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (C.D.C)
pátrio as relações de consumo das I.AS. A autora sugeriu o artigo 8º do
CDC como respaldo para garantir a saúde e segurança das IAS a serem
disponibilizadas para consumo. Ocorre que na segunda parte do artigo a
lei diz “exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de
sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipó-
tese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.”. Por-
tanto, esse artigo 8º do CDC para se aplicar ás I.AS deve sofrer primeira-
mente uma adaptação ou ser utilizado como um mero espelho sugestivo
para uma futura legislação.Ora, conforme os pesquisadores há um risco de
“erro” intrínseco a inteligência artificial, ou seja, previsível e normal em
decorrência da natureza inteligente da tecnologia e seu desenvolvimento
de auto aprendizagem. Essas características das IAS quando analisadas em
conjunto com o artigo 8º do C.D.C, deixa concluir que seria o forne-
cedor eximido da obrigação de reparação de danos, nos termos da lei, e
chegaríamos mais uma vez a um cenário de irresponsabilidade.
A saber, o risco de erro, segundo a maioria dos pesquisadores, não é
um erro sistêmico, de programação ou da máquina. Logo, se considera
como erro uma atitude causadora de dano tomada pela tecnologia por
uso do método de autoaprendizagem. Sendo assim, nenhum programa-
dor, criador ou fornecedor introjetou logaritmos capazes de criar a atitude
exteriorizada pela máquina inteligente. Sabendo disso criou-se o concei-
to de Risco do desenvolvimento. O Risco do Desenvolvimento consiste
em estabelecer regras consumeristas aos fornecedores e sendo essas regras
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estritamente seguidas, caso algo saia do esperado, o consumidor seria o
responsável pelo risco. Entende a teoria que por se tratar de uma tecnolo-
gia em desenvolvimento não se pode atribuir todo o risco ao fornecedor
que terá uma tendência a para de investir em tecnologias inteligentes caso
observe que os danos (gastos) ultrapassam os lucros. Porém, a propos-
ta de retirada da responsabilidade de reparação de danos do fornecedor,
com argumento na impossível previsão do dano, após seguido todos os
protocolos legais estabelecidos, gera um questionamento: nessa situação,
não há na verdade um fomento e legalização de um cenário de irrespon-
sabilidade igual ou pior a qual o país vem vivenciando?! Pôs entende –se
que nas relações consumeristas a parte menos instruída de saber técnico é
o consumidor.
Por fim, a Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de
2017, com recomendações à Comissão de Direito Civil sobre Robótica
estabeleceu regras básicas para responsabilidade civil, não se importando
muito em discutir e entender a tecnologia inteligente pelo que é mas sim
pelo dano que causa e sua reparação. As recomendações foram “duas ini-
ciativas relacionadas ao desenvolvimento de robôs inteligentes: (i) a ado-
ção de um registro obrigatório desses robôs e (ii) a criação de um seguro
que possa então fazer frente às hipóteses de danos causados pelos mesmos.
(DONEDA; MENDES et al, 2018, P.9).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluí-se que a atribuição de personalidade eletrônica vem sen-
do interpretada não como incessária mas como não urgente pelos países
desenvolvidos. Que as medidas tomadas atualmente no âmbito jurídico,
principalmente pela União Europeia que são os pioneiros no debate ao
tema, são direcionadas única e exclusivamente para reparar danos . A
Comissão de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu em 2015/2013
trouxe soluções que envolveram, principalmente, a criação de um sistema
de registro de tecnologias , criação de seguros obrigatórios, bem como,
de um fundo compensatório para robôs inteligentes. Contudo, importa
ressalvar a necessidade de haver diferentes institutos de reparação de danos
para diferentes modalidades de Inteligências Artificiais. Apesar disso, os
membros da comissão jurídica supracitada discutem se a melhor alternati-
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
va de reparação do dano se faz por meio de um fundo geral, para todos os
robôs autônomos inteligentes, ou a criação de um fundo individual para
toda e qualquer categoria de robôs. Observda essa situação fica evidente
que as respostas encontradas pelo palarmaento europeu são, na verdade,
estopins para novos debates e discussões; e não uma solução absoluta.
Quanto a violação dos direitos da personalidade e ao princípio da dig-
nidade humana fica claro que deve-se elaborar uma lesgislação capaz de
regulamentar as IAS para assegurar um desenvolvimento seguro, pautado
em princípios éticos, dignos e que tenha o ser humano como uma espécie
capaz de evoluir mas incapaz de permitir sua aniquilação por excesso de tec-
nologia. A responsabilidade civil deve ser no sentido de compatibilizar a re-
paração do dano injusto, como forma de promoção da dignidade humana.
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451
O SISTEMA WATSON NA
ADVOCACIA 4.0
Dieimes Laerte De Souza107
Ligia Bueno Asperti108
Nelson Rodrigues109
Priscilla Hiroko Shimada Pito110
INTRODUÇÃO
Com o advento da era da informação e da tecnologia o mundo passou
e passa por grandes transformações, tanto em áreas da vida humana, como
na ciência do conhecimento. Todos serão impactados com a expansão da
tecnologia no dia a dia, cotidiano da vida humana e na sociedade.
107 Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, do
Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM. Graduação em Direito pelo Centro
Universitário Euripedes de Marília
108 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, do Cen-
tro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM. Possui graduação em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (2011) e especialização em Ministério Público - estado de-
mocrático de direito pelo fundação escola do Ministério Público do Estado do Paraná (2013).
atualmente é assistente judiciário da Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
109 Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Pós
Graduado em Direto Constitucional pela Faculdade Damásio. Bacharel em direito pelas Fa-
culdades Integradas de Jaú – FIJ.
110 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, do
Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM. Graduação em Direito pelo Centro
Universitário Euripedes de Marília (2015) e especialização em Direito Tributário pela Facul-
dade Damasio (2018).
452
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
A tecnologia se desenvolve de forma exponencial no mundo e traz
a sociedade não somente a solução de problemas da vida moderna, mais
também aquilo que é muito almejado pelo ser humano que é a comodida-
de, facilidade e o ganho de tempo.
Na área das ciências jurídicas a tecnologia trouxe inúmeras trans-
formações, passando pela digitalização do próprio ensino jurídico e seu
conteúdo bem como pela virtualização de toda atividade dos agentes do
Direito, como o Poder Judiciário e suas cortes de justiça, o Ministério Pú-
blico, a atuação da advocacia pública e principalmente a advocacia privada.
O reflexo das novas tecnologias na advocacia será o objeto central
dessa pesquisa, especialmente a tecnologia criada pela International Business
Machines Corporation – IBM denominada plataforma Watson, uma tecno-
logia de inteligência artificial cognitiva que vem servindo como platafor-
ma para desenvolvimento de outras tecnologias voltadas a diversas áreas da
ciência do conhecimento.
Diante dessa nova realidade que se impõe existe a necessidade de des-
cobrir quais são essas novas tecnologias à disposição da advocacia e de seus
profissionais, bem como quais as vantagens e auxílios que tais ferramentas
tem a oferecer nas atividades profissionais diárias do advogado.
O presente trabalho irá se utilizar da metodologia de pesquisa biblio-
gráfica e da análise empírica de algumas dessas novas tecnologias desen-
volvidas para o auxílio da advocacia na era da tecnologia.
A pesquisa tem como objetivo a conceituação, definição e menção da
utilidade prática dessas novas tecnologias para a melhor produtividade e
otimização de tempo na advocacia privada.
O trabalho busca ainda levantar algumas informações especificas das
inovações tecnológicas que permitem afirmar que a atividade da advo-
cacia privada está realmente ao patamar do que podemos denominar de
advocacia 4.0 e entender e descrever um pouco dessas novas tecnologias
que vem para auxiliar a advocacia e o advogado na solução de problemas,
otimização de tempo em tarefas e no aumento da produtividade técnica e
de conhecimento de seu trabalho.
Iremos conceituar e definir essa nova ferramenta tecnológica disponí-
vel ao mercado da área jurídica analisando se está realmente aprimora e/ou
torna mais eficientes a prestação de serviço do advogado.
453
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
1. A JURIMETRIA E ANALYTICS NA INTELIGENCIA
ARTIFICIAL
O exercício da atividade jurídica depende da capacidade do profissio-
nal de identificar legislações aplicáveis ao caso em análise, bem como de
realizar pesquisas acerca de posicionamentos prevalentes, jurisprudência,
precedentes, etc. Para refinar essas pesquisas e agilizar a análise das mes-
mas, além de reduzir custos e o tempo despendido, cresce a automatização
desse trabalho, pela adoção da inteligência artificial, em especial pelas téc-
nicas de jurimetria e analytics.
A jurimetria é a “aplicação das análises baseadas em Ciência de Dados
no ramo do Direito (...), aplicação de métodos quantitativos que descendem
da análise estatística, uma vez que propicia uma visão probabilística de fenô-
menos de interação no contexto jurídico” (ANDRADE; ROSA; PINTO;
2020, on-line). Através dela, são identificados os fatores que influenciam a
tomada de decisão pelo magistrado, uma vez que possibilitam não só a iden-
tificação de padrões decisórios, mas também de comportamento legal.
A expressão jurimetria foi calcada por Lee Loevinger, jurista norte
americano, sendo que, a fim de definir o significado dessa nova expressão,
afirma Nunes tratar-se de “disciplina do conhecimento que utiliza me-
todologia estatística para investigar o funcionamento de uma nova ordem
jurídica” (NUNES; 2016; p. 103, on-line), devendo ser analisada sob duas
perspectivas diversas:
De uma perspectiva objetiva, o objeto da Jurimetria não é a norma
jurídica isoladamente considerada, mas sim a norma jurídica, de
um lado, como resultado (efeito) do comportamento dos regula-
dores e, de outro, como estímulo (causa) no comportamento de
seus destinatários. De uma perspectiva metodológica, a Jurimetria
usa a estatística para restabelecer um elemento de causalidade e
investigar os múltiplos fatores (sociais, econômicos, geográficos,
éticos, etc.) que influenciam no comportamento dos agentes jurí-
dicos (NUNES; 2016; p.115/116).
Já a analytics “é um campo abrangente e multidimensional que se
utiliza de técnicas matemáticas, estatísticas, de modelagem preditiva e
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
machine learning para encontrar padrões e conhecimento significativos em
dados” (SAS, 2019, onli-ne), podendo ser definida como análise jurídica
com base em mecanismos econométricos, “para, em seguida, reunir es-
ses dados para fornecer insights anteriormente desconhecimentos sobre o
comportamento dos indivíduos (juízes, desembargadores e advogados),
organizações (...), e assuntos de ações judiciais que preencham o sistema
de litígio” (ANDRADE; ROSA; PINTO; 2020, on-line).
Assim, a adoção dessas tecnologias facilita e complementa a atuação
do operador do direito. Através da aplicação de softwares de jurimetria e
analytics, ou seja, do emprego da tecnologia na análise empírica de dados,
tais como julgamentos anteriores e entendimentos dominantes, é possí-
vel não só a identificação de doutrinas e jurisprudências mais alinhadas
com o órgão julgador, como também uma análise mais segura acerca do
risco de propositura de eventual demanda, das chances do seu êxito e da
possibilidade de maior eficiência na eleição de um método consensual de
resolução de conflito.
Assim, torna-se possível a obtenção de dados concretos, em tempo
muito reduzido, para substanciar respostas às perguntas de clientes e às
questões práticas do dia a dia jurídico, além de se obter maior previsibili-
dade quanto às decisões judiciais. Nas palavras de NUNES e DUARTE,
apresenta a:
(...) possibilidade de o profissional do Direito se utilizar do método
estatístico em sua atuação cotidiana de modo a favorecer a des-
judicialização de determinadas demandas ou mesmo o emprego
de novas formas, em especial aquelas que empregam ferramentas
tecnológicas, como a ODR (online dispute resolution) para seu
dimensionamento (NUNES; DUARTE, 2020, p. 409).
Assim, através do emprego dessas tecnologias, busca-se analisar, com
o estabelecimento de premissas objetivas, decisões proferidas em proces-
sos similares, obtendo-se, assim, dados estatísticos como a probabilidade
de julgamento procedente e a frequência com que determinado argumen-
to foi utilizado como fundamento da decisão. De posse desses dados, o
advogado é capaz de identificar, com maior segurança, a probabilidade de
ganho de causa em favor de seu cliente, de apresentar uma demanda mais
455
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
bem fundamentada e completa ou mesmo de aconselhar a busca de so-
luções consensuais, indicando, inclusive, a propensão da outra parte para
realização de acordo.
Atualmente, com o desenvolvimento da tecnologia, essa análise esta-
tística não precisa mais ser feita de forma manual pelo operador do Direi-
to, sendo possível a previsão do resultado potencial de um caso, por meio
da análise de decisões anteriores, pelo emprego de jurimetria e analyti-
cs, ou seja, pela estruturação de informações por meio de algoritmos que
analisem julgados e precedentes. “O poder computacional permite que
dados substanciais sejam coletados e organizados” (MCGINNIS; PEAR-
CE; 2014, p. 3046), possibilitando o encontro de padrões decisórios no
âmbito dos bancos de dados dos Tribunais nacionais.
Assim, é a técnica da jurimetria e analytics um mecanismo por meio
do qual é possível a obtenção, análise e sistematização de um grande vo-
lume de dados, como, por exemplo, todas as sentenças proferidas por de-
terminado juiz em determinado ano, a fim de nele identificar padrões e
indicar o possível resultado de certa demanda. “As novas tecnologias apli-
cadas aos departamentos jurídicos auxiliam a análise do comportamento
do Direito da prática e a leitura completa de tudo o que compõe o negó-
cio, o que possibilita agir de maneira mais centrada e certeira” (ADENA;
2019, on-line).
No contexto das decisões judiciais, há processos com característi-
cas similares, o que sugere a inegável possibilidade de uma verifi-
cação de padrão de comportamento dos tribunais e dos julgadores
a partir da verificação de julgados, da análise de conteúdo com a
utilização de termos-chave, da diferenciação de teses e argumenta-
ções jurídicas recepcionadas com êxito e de indicadores de deferi-
mento e indeferimento para demandas com causas de pedir seme-
lhantes (ANDRADE; ROSA; PINTO; 2020, on-line).
É importante salientar, que o emprego da análise empírica de dados,
no âmbito da ciência do Direito, de maneira alguma tem como finalidade
a substituição da atividade humana, seja do advogado, ao desenvolver e
fundamentar suas teses, seja do magistrado, quando da tomada de suas de-
cisões. O que se pretende, em última análise, é “a otimização das funções
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
pelo auxílio de mecanismos econométricos de mensuração e consulta”
(ANDRADE; ROSA; PINTO; 2020, on-line), facilitando, assim, a ob-
tenção de decisões mais coerentes e efetivas.
A adoção da jurimetria e analytics tem o condão de facilitar o tra-
balho jurídico daqueles profissionais que se adaptarem à nova realidade
tecnológica, uma vez que, além de possibilitar uma análise mais efetiva
do risco da propositura de eventual demanda e das chances de obtenção
de um resultado mais positivo ao optar por um método de resolução
consensual de conflito, ao invés do ingresso perante o Poder Judiciário,
possibilita, ainda, a delegação de tarefas repetitivas e demoradas, como a
elaboração de petições padronizadas e busca de jurisprudências, a apli-
cativos e algoritmos.
2. SISTEMA WATSON
2.1 Definição
A plataforma Watson é um é um programa de inteligência artificial
cognitiva desenvolvido pela empresa de tecnologia da Internacional Business
Machines – “IBM” para atuação em diversas áreas dos negócios.
O seu sistema é alimentado com a inserção de dados e informações,
sendo que essas informações são processadas em questão de segundos e
apresentadas em um quadro analítico, quantitativo e estatísticos sobre di-
versas possibilidades de informações e dados de interesse do usuário ou
serviços a qual a plataforma está sendo utilizada.
Uma das áreas de importante atuação do sistema Watson é na área da
saúde e da biomedicina; a tecnologia de inteligência artificial do Watson
tem auxiliado as farmacêuticas e cientistas na produção de vacinas e me-
dicamentos.
Para criação e aprovação de um medicamento se faz necessário uma
análise de um vasto acervo de documentos de milhares de livros, artigos
científicos, analise de patentes visando buscar informação sobre experi-
mentos já realizados, estudos já feitos sobre o que se pretende formular,
analise dos resultados positivos e negativos.
Essa analise extensa de bibliografias e análise de dados que geralmente
pode levar meses ou anos, quando feitos por humanos, com a plataforma
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Watson leva minutos, o que economiza tempo e recursos no desenvolvi-
mento desses medicamentos.
O Watson realiza um verdadeiro trabalho de mineração de dados e
informação da literatura médica, e sugere hipóteses, analises de dados,
dados estatísticos referentes aos estudos feitos, com a descoberta de novos
medicamentos, tratamentos médicos e sugerindo o tratamento de doenças
com medicamentos já existente.
2.2 Utilização da Plataforma do Watson IBM nas Ciência
Social Jurídica
Na área das ciências sociais, mais precisamente na área das ciências
sociais jurídicas, ou do Direito, a aplicação da plataforma Watson vem
ganhando cada dia mais espaço, especialmente na advocacia.
A mais famosa aplicação da plataforma Watson na área do Direito é
programa desenvolvido por aluno da Universidade de Toronto no Cana-
dá, denominado ROSS. ROSS é uma tecnologia de inteligência artificial
que se utiliza da plataforma do Watson para criação de uma tecnologia
voltada aos escritórios de advocacia.
O ROSS tem a capacidade de, utilizando da plataforma do Watson, de
processar e analisar milhões de dados e informações, gerando uma capaci-
dade de “raciocino” ao sugerir a resposta à pergunta e sugerindo literatura e
jurisprudência a serem estudadas para o tema e a questão formulada.
Em razão da capacidade cognitiva de inteligência artificial cognitiva
do Watson garante ao ROSS uma capacidade de aprendizagem infinita de
acordo com a utilização do sistema e o armazenamento de mais dados e
informações.
Para seus criadores o ROSS é o melhor pesquisador jurídico do mun-
do, sendo capaz de fazer em segundos o que advogados levariam horas ou
dias para serem feitos.
Essa capacidade de aprendizagem e de análise de grande volume de
dados e informações em questão de seguindo deve-se a tecnologia inse-
rida na plataforma denominada de Analytics, esse se refere à técnica de
se utilizar o processamento e analise de grande quantidade de dados e
raciocínio sistemático para dar seguimento a um processo de tomada de
decisão mais eficiente.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Atualmente é possível analisar grandes volumes de dados de maneira
muito veloz, em diferentes fontes. A essas análises de dados, em muitos
casos se dá o nome também de Big Data Analytics.
Outra ferramenta importante trazida e utilizada na plataforma do
Watson IBM é análise de dados específicos e estatísticas dos processos, e
com a inteligência artificial cognitiva o oferecimento de sugestões e hipó-
teses para os resultados esperados pelo profissional da área jurídica.
A esse trabalho esse trabalho desenvolvido de mineração e análise de
dados e sugestão é denominado de Jurimetria.
Essa capacidade de processar a analisar as informações confere o poder
ao sistema do Watson a possibilidade prever resultados do processo em ra-
zão da avançada análise de dados e estatísticas de julgados realizados sobre
o mesmo tema proferidos pelo mesmo julgador e Tribunal.
A Jurimetria é a estatística aplicada ao Direito, é análise de dados na
busca de projeções, probabilidade com base em análise de dados.
3. SISTEMA WATSON: COMO ELA FUNCIONA NA
PRATICA, COMO OS ESCRITÓRIOS TEM SE UTILIZADO
DELA
A inteligência artificial tem a capacidade de analisar bilhões de infor-
mações e estabelecimento de conexões lógicas entre elas. Esse é o caso do
programa Watson, da IBM. Que veio com o intuito de facilitar o dia a dia
dos escritórios de advocacia.
Mas como se dará esse método facilitador? Um bom exemplo prático
é a assistente pessoal que usa a inteligência artificial do Watson no escritó-
rio Urbano Vitalino, do Recife (PE). Ela é uma I.A. personalizada através
da plataforma Watson, e se chamada Carol. Ela ajuda a empresa a entender
a complexidade do processo e se a ação é corriqueira ou estratégica para
o escritório.
Devemos nos atentar para o fato de que a Watson, a Carol e outras in-
teligências artificiais na linha de atuação jurídica, não criam nenhum con-
teúdo, elas analisam e organizam dados, cruzam informações e apresenta
os melhores resultados a partir desta análise. Atheniense (2017, on-line) nos
dá outros exemplos:
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
1) Contract Intelligence ou COIN: tecnologia com capacidade
para analisar contratos financeiros de empréstimos comercial por
meio da análise de padrões e relacionamentos. Com essa tecnolo-
gia, é possível economizar tempo na atividade laboral dos advoga-
dos, além de permitir que os bancos reduzam erros de manutenção
de empréstimos;
2) LawGessx: tecnologia com capacidade de revisar contratos. É
um sistema que providencia análise detalhada das cláusulas que
precisam de revisão a partir dos interesses dos clientes;
3) Assistente Digital do Promotor, que é um software desenvolvi-
do pela empresa Softplan. É uma tecnologia que ajuda a organizar
o volume de processos e fornece análises eficientes e objetivas que
auxiliam no trabalho dos promotores.
Como podemos ver, a inteligência artificial, até mesmo a do mundo
jurídico, já está muito mais presente do que a maior parte dos juristas acre-
dita. E sua existência é assistencialista. Elas analisam uma grande quanti-
dade de dados e se especializam em determinada área, afim de trazer um
melhor resultado. Uma maior eficiência.
“A diferença entre os sistemas tradicionais e os Sistemas Especialis-
tas na forma de leitura de regras, é a ordem em que essas regras são
lidas. Nos sistemas tradicionais as regras são lidas de forma sequen-
cial, ou seja, na ordem em que são inseridas no código fonte. Nos
Sistemas Especialistas a ordem de leitura das regras é determinada
pela Máquina de Inferência, que busca na Base de Conhecimentos
fatos e regras e compara estes fatos e regras com a informação for-
necida pelo usuário buscando combinações, e assim vai filtrando as
informações até chegar ao resultado desejável, ou seja, até retornar
o diagnóstico. (BALDIN, Cleison et al. 2018, on-line)
A Watson, assim como a Carol, passou por um “estágio probatório”,
no qual elas analisam um banco de dados da área na qual iram trabalhar,
afim de maximizar a eficiência em alguma área deficiente no escritório.
Por exemplo, se um escritório gasta muito tempo procurando jurispru-
dências ou tem muita dificuldade em conseguir decisões favoráveis na pri-
460
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
meira instância do tribunal federal de Santa Catarina, a Inteligência artifi-
cial personalizada para aquele escritório, terá que, em seu estágio analisar
as decisões do tribunal de santa Catarina e apresentar as teses com maior
probabilidade de procedência. Assim como, também precisará, passar por
um estágio em um banco de jurisprudências, para poder apresentar as me-
lhores jurisprudências para cada caso concreto.
O estágio probatório do qual falamos, é o que molda a inteligência
artificial as necessidades do escritório. Porem esse programa tem que estar
em constante atualização para que se torne útil. Afim de resolver esse pro-
blema, a IBM, faz com que o sistema Watson esteja disponível em nuvem.
Tudo funciona a partir de um conjunto de ferramentas de inteli-
gência artificial (especialmente processamento de linguagem natu-
ral e machine learning, ou aprendizagem de máquina) que podem
gerar mais insights de seus dados, automatizar tarefas repetitivas
com mais qualidade e até criar programas capazes de realizar tra-
balhos que normalmente não são esperados de uma máquina. Da
maneira como funciona, o IBM Watson exige um volume inicial
de dados para começar a ser “treinado”. Uma vez que isso tenha
sido feito, o sistema é capaz de realizar uma tarefa. (FERREIRA,
2019, p. 2)
Toda essa informação, sendo atualizada constantemente e com o pro-
grama Watson em constante evolução, trouxe inúmeras vantagens para
aqueles que a utilizam. Principalmente na otimização do tempo. Ela ajuda
de forma especializada cada um de seus clientes. Trazendo apenas vanta-
gens para os escritórios de advocacia.
4. AS VANTAGENS E DESVANTAGENS DA
PADRONIZAÇÃO DE PETIÇÕES E DECISÕES JUDICIAIS
Dentre os três Poderes com toda certeza o que detém uma força de
interferência maior na vida social é o Poder Judiciário, “tutelando direitos
individuais e coletivos e decidindo conflitos por meio de julgamentos pro-
feridos por seus juízes e tribunais” (Júnior, p. 87).
Desse modo, esta tutela jurídica possibilita, ou ao menos deveria pos-
sibilitar ao Estado oferecer segurança aos cidadãos, de modo que estes sa-
461
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
bem que podem se socorrer do poder judiciário para que o mesmo decida
o que é mais justo em relação à demanda especifica.
Em contrapartida, esse Poder, na sua função de resolver conflitos,
depara-se frequentemente com o desafio de prestar ao jurisdicio-
nado rápida resposta para os seus anseios, uma vez que é altamente
demandado e muitas vezes não possui recursos humanos e tecno-
lógicos que possam remediar o desgosto social causado pelo tempo
que o cidadão tem de esperar para retomar o status quo ante (Jú-
nior, 2008, p. 88).
Sendo que cada vez mais os recursos tecnológicos têm quem ser uti-
lizados para que essa determinada lesão de um direito não seja prolongada
e que todo e qualquer conflito seja resolvido o quanto antes para que desta
maneira as pessoas que necessitam de tal tutela possam seguir com suas
vidas da melhor maneira possível.
Os recursos tecnológicos existentes na atualidade são capazes de ga-
rantir uma celeridade jamais vista, onde uma máquina pode realizar o
trabalho de dezenas, centenas de pessoas, em poucos segundos e com uma
taxa de erro muito menor que a humana.
Sem sombra de dúvidas essa revolução tecnológica já está presente e não
há nada que possamos fazer, senão nos adaptarmos a essa nova realidade, onde
a máquina tem e terá um papel importante, trazendo um avanço épico, onde
em uma realidade próxima as filas de processos simplesmente se acabarão,
graças ao conjunto homem tecnologia sendo devidamente aplicados.
Chegando há um tempo em que a tecnologia não auxiliará apenas
em soluções litigiosas, mas também em soluções consensuais de conflitos
onde as partes não precisarão sequer acionar o poder judiciário para terem
seus direitos resguardados.
Obviamente que esse nível de complexidade e interação talvez esteja
um pouco distante, não pelo fator tecnológico, mas sim por depender uma
mudança de pensamento e posicionamento da sociedade sobre o próprio
acesso à justiça como um todo, uma vez que muitas questões poderiam ser
resolvidas apenas com o consenso e bom senso.
Para tanto se faz necessário entre outras coisas, ter uma total e com-
pleta mudança de paradigma em que devemos levar em conta sim toda
462
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
a experiência e expertise do magistrado, sem que isso se torne algo gri-
tante e dessa forma tenha uma influência e interferência forte sobre todo
o processo.
Dito de outra forma: a categoria do “convencimento judicial” não
pode, de forma alguma, tornar-se uma pedra-de-toque episte-
mológica, a ponto de justificar uma decisão tomada com base nas
convicções de quem julga. E é exatamente isso o que acontece nas
hipóteses de decisões mal fundamentadas: com exceção de quem
as profere, ninguém mais tem condições racionais de saber se há
razões jurídicas para o que foi decidido, ou se a motivação é uma
máscara para legitimar preferências pessoais. E, se a razão de ser do
dever de motivar é justamente permitir o controle da legalidade
e da legitimidade da jurisdição estamos diante de uma não-fun-
damentação, da qual é inclusive impossível, se não muito difícil,
recorrer adequadamente (Schmitz, 2016, p.10).
Diante do exposto fica evidente que antes de qualquer hipótese ou
fundamento, ter em mente que deve sim e é extremamente necessário o
julgador se posicionar perante o caso concreto, no entanto sempre respei-
tando o ordenamento jurídico. Mesmo que por vezes as emoções deve-
riam e necessitariam estar presentes, utilizar apenas das mesmas seria no
mínimo temerário.
Não podendo assim de maneira deliberada julgar apenas com base
em seu conhecimento ou qualquer tipo de achismo, visto que tratamos
justamente de segurança jurídica, algo que deveria ser padrão. Justamente
por isso tornasse muito perigoso sujeitar-se a certos tipos de sentenças e
julgadores.
Aceitar esse tipo de prática como legítima, queremos crer, é de-
corrência de uma concepção por nós tida como inadequada, de
que a decisão judicial seja o resultado de um ato de “vontade”,
oriunda daquilo que o intérprete julgou ser mais conveniente para
o caso. Assim, é equivocadamente assentado na doutrina que “a
peça processual pela qual o juiz julga se chama ‘sentença’, que vem
de ‘sentir’, de sentimento, e não de razão”, afastando a racionali-
dade como critério da decisão. Se a decisão for um ato de vontade,
463
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
estaremos aceitando a discricionariedade como parte do ato deci-
sório (SCHMITZ, 2016, p. 11).
Deste modo, chegamos ao ambicioso ponto, em que as novas tecno-
logias já existentes no mercado, podem de maneira célere e muito precisa
fazer esse papel de julgador dentro da maior equidade possível e inimagi-
nável para o ser humano.
Uma vez que a máquina poderia de maneira objetiva analisar o fato e
sem qualquer tipo de interferência externa, somente com base na legisla-
ção aplicada ao caso concreto, proferir uma sentença realmente justa onde
verdadeiramente a imparcialidade imperaria soberana.
Claro que estaríamos falando em pôr vidas humanas para serem ge-
renciadas por sistemas. O que seria impensável tanto hoje quanto em um
futuro próximo, mesmo que os erros por parte dos julgadores sejam altos
e recorrentes, pensar na hipótese de uma máquina proferir uma sentença
de reclusão, por exemplo, seria totalmente inimaginável.
Mas se utilizar de tal mecanismo para do início ao fim proferir uma
sentença seria impensável do ponto jurídico, uma solução que poderia e
até certo ponto, mesmo que com algumas limitações já vem sendo im-
plantada é a junção entre máquina e julgador.
Deste modo o sistema ficaria com toda parte pesada onde na maioria
das vezes o julgador tem que perder muito tempo, invés de estar focado na
decisão em si ou em partes processuais relevantes.
Sem essa carga de trabalho, onde o mesmo poderia lidar apenas com
o resumo dos fatos mais relevantes e até mesmo uma possível “indicação”
sentença. O mesmo dentro aí sim, dentro dos padrões normativos e seu
próprio convencimento poderia enfim de modo muito mais célere e efi-
caz proferir uma sentença aprova de falhas, onde até mesmo para possíveis
apelações ficaria difícil, pelo tamanho e robustez do julgado.
Claro que como toda mudança, ainda existirá uma série de desa-
fios a serem ultrapassados, seja pela própria mentalidade a ser modifi-
cada aos poucos, seja por questões de como garantir a eficácia e julga-
mento correto vindos de um sistema que julgaria através de algoritmos
preestabelecidos.
Visto que é inegável o avanço vislumbrado com a implementação
dessas novas tecnologias, cogitando até mesmo em questão de pouco tem-
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
po num pensamento quase que utópico, finalmente por fim as longas e
demoradas filas processuais que enfrentamos há décadas.
Deste modo finalmente seria possível que a justiça realmente fosse
feita e que cada pessoa tenha o que é seu de direito, sem que haja sofri-
mento com um logo e arrastado processo, que no caso dos mais necessi-
tados é algo que por vezes não deixa sequer que tais pessoas tenham uma
vida plena.
CONCLUSÃO
Por fim, concluímos que de acordo com os nossos estudos, a plata-
forma Watson, trouxe soluções de problemas e comodidades para a área
da advocacia 4.0. E que a absorção desse novo tipo de tecnologia pelos
profissionais da área jurídica a essa nova fase do desenvolvimento social e
humano é uma questão de sobrevivência no mercado econômico da área.
As técnicas de Jurimetria e Analitics são utilizadas pela plataforma Wa-
tson, afim de identificar os padrões decisórios e o comportamento legal
dos magistrados. Esta tecnologia disruptiva utiliza metodologia de análise
empírica de dados, tais como julgamentos anteriores e entendimentos do-
minantes. Sendo possível através disso, não só a identificação de doutrinas
e jurisprudências mais alinhadas com o órgão julgador, como também
uma análise mais segura acerca do risco de propositura de eventual de-
manda, das chances do seu êxito e da possibilidade de maior eficiência na
eleição de um método consensual de resolução de conflito.
Já temos no Brasil, plataformas derivadas do Sistema Watson, que es-
tão em pleno e bom funcionamento, como é o caso da Plataforma Carol.
Que passou por um estágio probatório e foi personalizada especialmente
para um escritório de Recife.
No tocante a padronização de petições e julgamentos, que podem
ocorrer em decorrência da Jurimetria e analitics, entendemos que a tec-
nologia tem um papel positivo, no sentido de julgar de forma equalitaria
as demandas repetitivas, enquanto o juiz pode assim, dar uma atenção
especial aos casos de maior complexidade. Desafogando um pouco o ju-
diciário brasileiro.
Claro que como toda mudança, ainda existirá uma série de desafios
a serem ultrapassados, seja pela quebra do preconceito do mundo jurídico
465
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
com a utilização da Inteligência artificial, seja pela segurança jurídica e
efetividade da justiça que precisam ser asseguradas, mediante essas padro-
nizações.
Por todo o exposto concluímos que a utilização da Plataforma
Watson, traz inúmeras vantagens para os advogados e empresas de ad-
vocacia. E que ela possui um papel facilitador e assistencial para os
advogados, não tendo por finalidade de substituir o Advogado e sim
auxilia-lo.
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469
ENSINO JURÍDICO NO BRASIL –
CONTEXTO ATUAL E ALTERNATIVAS
DE MODERNIZAÇÃO COM O USO DA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Cristina Dal Sasso
HISTÓRICO DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
O ensino jurídico no Brasil data de 1828, criado por força da Carta
Lei de 11 de agosto de 1827, promulgada por D. Pedro I. Foi nessa época
que surgiram os principais juristas brasileiros da nossa história, tais como
Rui Barbosa (1849-1923), Tobias Barreto (1839-1889), Clóvis Beviláqua
(1859-1944), Teixeira de Freitas (1816-1883) e Pontes de Miranda (1893-
1979).
Ocorre que, passados quase 200 anos, do início da criação dos cursos
jurídicos no Brasil, o país nunca presenciou uma crise no ensino como a
que se tem desvendado neste século XXI. De fato, a educação jurídica
brasileira[3] enfrenta uma grave crise de conflitos acadêmicos, no sentido
de que o Brasil ainda adota o velho discurso da teoria versus prática como
corolário dos debates sobre o ensino jurídico.
A mencionada crise é cristalinamente vista diante de alguns fatores
simples, tais como os baixos índices de aprovação no Exame da Ordem
(se se considerar o Exame de Ordem Unificado, do II ao XIII, a média de
aprovação é de apenas 17,5%), o desinteresse dos alunos pelas aulas (ma-
gistrais em sua quase totalidade), a quantidade de cursos de Direito que
são reprovados em avaliações feitas pela Ordem dos Advogados do Brasil,
470
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
através da Comissão Nacional de Educação Jurídica, e ainda pelas críticas
constantes feitas por juristas, tanto no tangente à abordagem dogmáti-
co-jurídica tradicional quanto à mudança paradigmática da filosofia da
consciência para a filosofia da linguagem, e ainda considerando o foco que
se tem dado nos cursos de ensino jurídico à preparação dos alunos para a
realização de concursos públicos.
“Os cursos jurídicos no Brasil possuem em sua quase totalidade uma
grade curricular arcaica (tradicional-ortodoxa), que apenas informa um
conteúdo muito mais voltado à parte teórica do que ao exercício prático
e a formação de profissionais completos. Ainda encontram-se nos dias
atuais metodologias de ensino arcaicas e desestimulantes (baseadas em au-
las magistrais), que não se adequam mais às inovações tecnológicas e a
melhor forma de ensinar as chamadas gerações Y e Z.”
A evolução e desenvolvimento humano, nos fizeram chegar aos di-
reitos de 4ª geração, que envolve dentre outros direitos o direito a infor-
mação, que perpassa, automaticamente pela Tecnologia da Informação e
Comunicação – TIC.
Surge o computador, a internet, Big Datas, busca por velocidades
cada vez mais ágeis de processamento, processadores quânticos, como o
processador quântico lançado recentemente pela google, e outros concor-
rentes que buscam a mesma tecnologia, como IBM, Microsoft e tantas
outras.
Nesse avanço tecnológico, passou-se a buscar soluções cada vez mais
avançadas, e as tecnologias desenvolvidas passaram a criar sistemas, com-
putadores cada vez mais rápidos e potentes, chegando à última e mais
avançada tecnologia atual a inteligência artificial.
O que a inteligência artificial busca é reproduzir a atividade mental do
homem em tarefas como a compreensão da linguagem, a aprendizagem
e o raciocínio. Essas tarefas estão associadas à ciência da informação e à
ciência cognitiva no padrão de representação e nas atividades de processa-
mento da informação, estabelecendo limites nos modelos de construção
da representação do conhecimento.
A necessidade de velocidade na busca e consequentemente resposta
da informação, tem influenciado todos os setores da sociedade, escolas,
empresas, pessoas, de pequenos a grandes comércios, a vida em geral tem
sido influenciada pela velocidade da informação.
471
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Nesse sentido, a elevada qualidade do ensino jurídico nacional
tem sido um dos principais desafios enfrentados pelo Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil, instituição incumbida pela Lei n.
8.906/1994 de promover, com exclusividade, a seleção e a disciplina dos
profissionais da advocacia no País.
O nosso País não deve ser conhecido como a República dos Bacha-
réis, mas sim como a república do desenvolvimento e do conhecimento,
para isso, a Comissão Nacional de Educação Jurídica, vem trabalhando
fortemente, não contra tudo e todos, mas contra o uso indevido do Ensino
Superior como moeda de troca política.
Diante desse cenário, a regulação da Educação Superior brasileira
precisa ser avaliada e reformulada de forma a permitir que realmente haja
uma superação entre as instituições que são precárias para que possam
adquirir qualidade.
O Brasil possui hoje aproximadamente 1.259 cursos de graduação em
Direito em funcionamento, com a possibilidade de preenchimento de 200
mil vagas por ano. Esse número crescente de cursos em Direito demonstra
a fragilidade do sistema de regulação do ensino superior. O que pode ser
notado pelas palavras da secretária executiva do Ministério da Educação
(MEC), Maria Helena Guimarães de Castro, a 2ª pessoa na linha de co-
mando do Ministério da Educação, que afirmou “o sistema de avaliação
do ensino superior do Brasil é falho.”
Isso é nítido ao percebermos que temos cursos de Direito com uma
precariedade imensa, com bacharéis que não conseguem passar no Exame
de Ordem da OAB, o qual cobra minimamente 50% de acertos em uma
prova de oitenta questões na primeira fase e 60% de conhecimento na
segunda fase para alcançar a tão sonhada carteira de advogado.
Os alunos buscam essencialmente a qualidade do Ensino preconizada
nos princípios constitucionais, porém, o MEC não prioriza essa garantia
legal a partir do momento em que permite a criação de cursos como o
Tecnólogo em Serviços Jurídicos, um curso, que, além de impossibilitar o
exercício profissional, entra em rota de colisão direta com os profissionais
e bacharéis do mercado que atuam em diversas áreas jurídicas.
Esse cenário precisa ser mudado e repensado realmente no futuro dos
estudantes do curso de direito do Brasil. O conhecimento é fundamental
para o desenvolvimento do país, bem como, a sua precarização seria a ruí-
na da nação, uma vez que bons advogados precisam de ensino jurídico de
472
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
qualidade. Não exite mérito em ter “números de primeiro mundo com
uma qualidade de terceiro mundo”. Precisamos ter qualidade e isso não
está sendo atingido nos cursos de direito, tendo em vista os números que
mostram as estatísticas.
Temos hoje uma educação jurídica de impacto, gerada em favor de
grandes números. Contudo, não temos nesse panorama a visão futurista
de uma provável mudança na oferta dos cursos existentes, além de um
estudo pormenorizado por parte do órgão Ministerial sobre a forma de
avaliação dessas Instituições de Ensino Superior.
O atual cenário da educação nacional vem sofrendo mudanças cons-
tantes que em nada tem favorecido a população brasileira. O Ministério
da Educação tem trilhado um caminho na contramão da qualidade do
ensino superior. Diante disso, o que fica é a incerteza da educação jurídica
de qualidade e em razão disso, é necessário frear a proliferação dos cursos
jurídicos e demais cursos sem a avaliação da qualidade.
É PRECISO REPENSAR O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
Ainda existe no Brasil a ilusão de que há trabalho e emprego para
todos os advogados, independentemente do mérito da qualificação. Ledo
engano, uma concepção que só se concebe em um país que ainda não
atingiu o nível de maturidade necessário para compreender a importância
de uma formação de base, dogmática e principiológica, fundada em valo-
res que têm o condão de penetrar no ser e efetivamente transformá-lo. E
o mercado de trabalho dos profissionais produtivos está repleto de desem-
pregados (mal) graduados.
Nesse diapasão, não é difícil afirmar a necessidade de que o ensino
jurídico brasileiro necessita ser reformulado. Na hipótese, porém, o refor-
mular não significa encontrar um forma de apagar o que já existe, mas an-
tes transformar. Reformular o ensino jurídico é tratar do futuro do país, é
preparar pessoas para a pós-modernidade, para enfrentar os novos desafios
que estão no dia a dia de uma sociedade cada vez mais complexa e global.
CONTEXTO ATUAL DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL
Entre janeiro e setembro de 2018, o Ministério da Educação auto-
rizou a abertura de 200 novos cursos de Direito no Brasil, com aproxi-
473
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
madamente 28 mil vagas. De acordo com o sistema E-MEC, outros 468
pedidos aguardam manifestação e análise, e 49 solicitações de cursos na
modalidade à distância aguardam avaliação. Nesta última modalidade ain-
da não existe nenhum curso autorizado pelo MEC no Brasil.
O Paraná é o estado da Região Sul com mais cursos criados desde o
começo do ano. Foram autorizados 16 novos cursos, com a oferta de 1.740
vagas – o dobro dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nes-
tes estados foram criados 16 novos cursos, oito em cada um. No cenário
nacional, Minas Gerais é o estado com mais cursos criados: 31 no total.
Na sequência, estão os estados de São Paulo (27) e Bahia (21). O Paraná
ocupa a 4ª posição.
Os números da criação desenfreada de cursos direito chamam a aten-
ção e têm sido foco de manifestações e pareceres emitidos pelo Conselho
Federal da OAB.
“O CFOAB, a OAB Paraná e as demais seccionais iniciaram um
combate contra a abertura indiscriminada de cursos de graduação em Di-
reito em todo o país. Chama a atenção a precariedade dos cursos e a forma
de avaliação: o MEC vem concedendo a autorização desses cursos ba-
seando-se apenas nos instrumentos de avaliação criados por ele via INEP
(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira)
e num padrão decisório estabelecido por ele, criando, assim, um direito
líquido incerto para as instituições”, frisa o advogado Tarcizo Roberto
Nascimento, gerente de assessoramento das Comissões do Conselho Fe-
deral da OAB.
“O Conselho Federal vem emitindo pareceres contrários à aber-
tura de cursos, fundamentados em falhas extremamente graves,
bem como na necessidade social inserida na Instrução Normativa
01/2008.
(...)
“Existem localidades com menos de 20 mil habitantes, para uma
oferta de um curso de graduação de direito, sem nenhuma estrutu-
ra do judiciário capaz de receber os futuros estudantes em estágios,
e os egressos em profissões do mundo jurídico, criando uma ver-
dadeira farsa do ensino”, lembra. (Tarcizio Roberto Nascimento)
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A formação ofertada nas faculdades de Direito necessita urgentemente
de modernização. Afinal, a última atualização ocorreu há mais de 15 anos,
por meio da Resolução n. 9/2004 do Conselho Nacional de Educação/
Câmara de Educação Superior, que instituiu as Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Direito vigentes. A esse respeito,
o CFOAB, contando com os valorosos esforços de sua Comissão Nacio-
nal de Educação Jurídica, presidida pelo Conselheiro Federal Marisvaldo
Cortez Amado, conquistou importante vitória em outubro de 2018. Tra-
ta-se da edição do Parecer CNE/CES n. 635/2018, que promove a revisão
da matriz curricular das graduações em Direito, a fim de corresponder às
demandas presentes da sociedade e da advocacia. Por essa razão, matérias
imprescindíveis à realidade jurídica contemporânea estavam ausentes da
grade, a exemplo de Direito da Tecnologia da Informação, Direito Am-
biental e Mediação, Conciliação e Arbitragem.
Por outro lado, o ensino jurídico é vítima do processo de mercan-
tilização da educação. Em detrimento dos interesses dos cidadãos, que
precisam de profissionais qualificados para velar por seus direitos, são fa-
vorecidas as demandas de grupos específicos, que, despreocupados com
a qualidade da formação, promovem a abertura indiscriminada de cursos
na área. Como resultado, entre 1995 e 2018, esse número elevou-se em
inacreditáveis 539%, saltando de 235 para 1.502 no período de apenas 23
anos. Não por acaso, o Censo da Educação Superior aponta que, desde
2014, Direito é o curso com o maior número de estudantes matriculados
no País.
O Conselho Federal da OAB tem atuado de maneira incansável junto
às autoridades competentes para impedir a continuidade dessa escalada.
Paralelamente, tem implementado diversas medidas destinadas a promo-
ver a qualidade da educação jurídica brasileira, entre as quais se destaca
o Exame de Ordem. Criado pela Lei n. 4.215/1963, esse instrumento
tornou-se absolutamente relevante, sobretudo, a partir de 1994, quando a
aprovação na prova passou a ser requisito para a inscrição como advogado.
Tendo sua constitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal
em 2001, no âmbito do RE 603.583, o Exame exerce função imprescin-
dível na salvaguarda contra o estelionato educacional no País, garantindo
que advogadas e advogados possuam a capacitação esperada.
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Nesse contexto, também se insere o Selo OAB Recomenda, insti-
tuído em 2001 e que, em 2018, chegou à sua sexta edição, na esteira dos
dedicados trabalhos da Comissão Especial para Elaboração do Selo OAB
Recomenda – Gestão 2016/2019, presidida pelo eminente Conselheiro
Federal Felipe Sarmento Cordeiro, Secretário-Geral do Conselho Fede-
ral.(grifei)
Combinando dois critérios – o desempenho no Exame Nacional de
Desempenho dos Estudantes (ENADE/INEP) e o índice de aprovação no
Exame de Ordem –, representa um reconhecimento público da qualidade
de graduações em Direito no Brasil. Nesta edição, dos 1.212 cursos que
atenderam às exigências para participar da pesquisa, foram somente 161
os premiados com o Selo, evidenciando os efeitos deletérios da referida
abertura indiscriminada.
“O Selo, por conseguinte, constitui um verdadeiro serviço público
prestado à sociedade pela OAB. É, acima de tudo, um manifesto
em defesa da cidadania brasileira, que será mais fortalecida na pro-
porção em que mais capacitados forem os profissionais encarrega-
dos de defender seus direitos. (Advogado e Presidente Nacional da
OAB, Gestão 2016-2019.)”
MODERNIZAÇÃO DO ENSINO JURIDICO NO BRASIL –
ALTERNATIVAS – O USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
A Inteligência Artificial, citada apenas como IA (ou AI, de artificial
intelligence) é um avanço tecnológico que permite que sistemas simu-
lem uma inteligência similar à humana — indo além da programação de
ordens específicas para tomar decisões de forma autônoma, baseadas em
padrões de enormes bancos de dados.
A inteligência artificial no ensino do Direito será apenas o resultado
da evolução gradual das tecnologias da informática.
MOTIVOS PARA ADOTAR A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
NO ENSINO JURÍDICO BRASILEIRO
A inteligência artificial é a tecnologia com maior potencial de trans-
formar a sociedade. Incontáveis são os seus benefícios e ainda indefinidos
476
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
são todos os riscos que ela pode causar. Fato é que nenhuma pessoa física
ou jurídica, pública ou privada, escapará dos reflexos dessa inovação.
O ensino jurídico precisará ser atualizado. Cada vez mais o profis-
sional que atua na área jurídica será multidisciplinar. Advogados, juízes
e demais operadores do Direito precisarão conhecer as leis materiais e
processuais, lógica de programação e as inovações tecnológicas e, nessa
conjuntura específica, o ensino jurídico é fundamental para o futuro pro-
fissional estar adaptado a era moderna.
Certo é que a aplicação da inteligência artificial no ensino do Direito,
assim como em qualquer outro segmento, é inevitável. A comunidade
jurídica será responsável por criar um ambiente propício à inovação, esta-
belecendo como padrão a participação conjunta do homem e da máquina,
superando, assim, os limites humanos.
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA AO ENSINO DO
DIREITO - A SALA DE AULA DO FUTURO
Repensar o ensino jurídico no Direito significa se adequar às novas
ferramentas tecnológicas para implantar um novo sistema de aprendizado
tecnológico e mais eficaz no ensino moderno, trazer aos alunos um novo
método de aprendizado com a inteligência artificial.
Aliar a inteligência artificial a outras tecnologias e ferramentas mo-
dernas, como Big Data e a gramificação, pode reinventar o ambiente edu-
cacional. As salas de aulas se tornarão inovadoras, sendo equipadas com
câmeras e microfones que permitem a identificação do nível de engaja-
mento da classe. Os professores precisarão repensar como podem aprovei-
tar todo o potencial da inteligência artificial para otimizar seus métodos
de ensino e metodologias utilizadas para adaptar sua técnica pedagógica.
Dessa forma, eles poderão melhorar o aproveitamento das aulas, persona-
lizando o ensino de acordo com o perfil de seus estudantes.
O uso efetivo de plataformas de inteligência artificial integradas à sala
de aula oferece ainda uma série de relatórios aos professores para que eles
acompanhem sua turma durante todo o ano letivo. Com esses dados em
mãos, o docente pode identificar se seus alunos estão próximos ou distan-
tes dos objetivos previstos para aquele período. A partir de suas análises, os
professores conseguem propor novas trilhas de aprendizagem, tanto para
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
os estudantes que precisam de apoio, quanto para aqueles que já demons-
tram domínio do assunto e podem enfrentar novos desafios.
Para os alunos, as plataformas inteligência artificial podem ser um
verdadeiro parceiro de estudo que irá acompanhá-los na jornada escolar.
Por meio de apps inteligentes, eles podem se comunicar com o professor
e a escola, o que torna o processo de troca de informação mais ágil e efi-
ciente. Os estudantes podem ainda acessar a rede para assistir vídeo-aulas,
conversar com tutores virtuais para tirar dúvidas ou revisar algum con-
teúdo. Tudo passa a estar à disposição com maior facilidade, o que poderá
ampliar a exploração do conhecimento a níveis mais profundos. Por meio
de chatbots e outras aplicações de inteligência artificial, os alunos do ensi-
no superior, por exemplo, podem contar com consultorias sob demanda
e serviços de planejamento para uma possível graduação. A inteligência
artificial é capaz de resolver uma série de tarefas administrativa, ajudando
os estudantes até a buscarem oportunidades de carreira.
O futuro da educação já começou e está presente em diversas ini-
ciativas de instituições de ensino que saíram na frente e começaram a se
adaptar a essas evoluções tecnológicas. As plataformas de aprendizagem
adaptativas podem auxiliar as escolas a venceram barreiras importantes no
ensino, como a grande diversidade de alunos em uma mesma sala de aula.
A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL IRÁ SUBSTITUIR OS
FUTUROS ADVOGADOS?
Esta é uma pergunta que surge em todas as áreas da economia nas
quais a inteligência artificial tem avançado. Mais do que uma dúvida, é,
para muitos, um medo. O temor de seu trabalho se tornar dispensável,
desnecessário. Se você é um dos que têm esse receio, fique tranquilo. O
uso da inteligência artificial no Direito não vai acabar com a profissão de
advogado.
Basta lembrar que esse sentimento não é novidade. Quando surgiram
os softwares jurídicos e até ferramentas mais básicas, como os programas
de edição de documentos e planilhas, muitos profissionais também fica-
ram temerosos.
E, como você já sabe, a função de advogado continua firme e forte.
O Direito não se trata apenas de análises frias e objetivas da lei. Há que
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
se observar questões éticas e interpretar a subjetividade de cada caso. Um
raciocínio que as máquinas não são capazes de conduzir.
CONCLUSÃO
Conforme inúmeros dados coletados, verifica-se que a educação ju-
rídica no Brasil passa por uma crise histórica emblemática. De um lado
opera-se nas academias a dogmática do ensino do antigo modo de ensino,
ou seja, as aulas magistrais. De outro lado a sociedade passa por mudanças
tecnológicas inseridas na 4ª geração de direitos, dentre os quais, a tecno-
logia da informação está inserida nesse rol.
Diante do paradoxo acima, verifica-se que urge uma necessidade
proeminente de o ensino jurídico adequar-se às novas tecnologias que en-
contram-se atualmente à disposição da sociedade e, nesse contexto, uma
das alternativas que se aponta é o uso da inteligência artificial dentro do
âmbito do ensino jurídico.
A inteligência artificial busca reproduzir a atividade mental do ho-
mem em tarefas como a compreensão da linguagem, a aprendizagem e o
raciocínio. Essas tarefas estão associadas à ciência da informação e à ciên-
cia cognitiva no padrão de representação e nas atividades de processamen-
to da informação, estabelecendo limites nos modelos de construção da
representação do conhecimento.
O mundo moderno no qual estamos inseridos requer uma capacidade
técnica de ensino diferenciada daquelas em que vivenciamos, uma peda-
gogia que quase não se modificou há mais de 200 anos da instituição de
cursos jurídicos no Brasil.
A sala de aula não poderá ser mais a mesma a partir da era tecnológica e
os conteúdos, conforme o tempo passa, também devem se adaptar aos novos
rumos que a sociedade impõem. O uso de metodologias à distância, de apli-
cativos e outras formas modernas de ensino deverão estar disponíveis para que
os alunos consigam obter sempre os melhores desempenhos acadêmicos.
BIBLIOGRAFIA
COMO A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PODE COLABORAR
COM SUA AULA OS MOVIMENTOS PARA CRIAR UM
479
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ENSINO MAIS PERSONALIZADO, FLEXÍVEL, INCLUSI-
VO E INTERATIVO PASSAM PELA APLICAÇÃO DA IN-
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-tem-criado-robos-da-dogmatica-juridica
ENSINO DO DIREITO EM DEBATE REFLEXÕES A PARTIR
DO 1º SEMINÁRIO ENSINO JURÍDICO E FORMAÇÃO
DOCENTE ENSINO DO DIREITO EM DEBATE REFLE-
XÕES A PARTIR DO 1º SEMINÁRIO ENSINO JURÍDICO
E FORMAÇÃO DOCENTE JOSÉ GARCEZ GHIRARDI E
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DE DIREITO NO PAÍS ESCRITO EM: 24 DE SETEMBRO
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da-de-novos-cursos-de-direito-no-pais/#:~:text=entre%20ja-
neiro%20e%20setembro%20de,modalidade%20%c3%a0%20
dist%c3%a2ncia%20aguardam%20avalia%c3%a7%c3%a3o. -
acesso em 07 de junho de 2020
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
SERVIÇOS / OAB RECOMENDA – CLAUDIO LAMACHIA - DIS-
PONÍVEL EM: https://www.oab.org.br/servicos/oabrecomenda –
acesso em 07 de junho de 2020
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADO AO DIREITO –
ROSYANE FLORISBELLA DA SILVA ALVES - DISPONÍVEL
EM: https://www.conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/53827/
inteligncia-artificial-aplicado-ao-direito – acesso em 08 de junho de
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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO DIREITO: O QUE É E PRIN-
CIPAIS IMPACTOS - DISPONÍVEL EM: https://fia.com.br/blog/
inteligencia-artificial-no-direito/ - acesso em 10 de junho de 2020
481
ARTIGOS – MINORIAS
483
DESCONTINUIDADE DE AÇÕES
PÚBLICAS NA SAÚDE INDÍGENA: O
PODER JUDICIÁRIO E AS CHAGAS
INSTITUCIONALIZADAS
Déborah Crysttina Pereira da Silva111
1 INTRODUÇÃO
A luta indígena pela preservação de suas culturas, terras e sobrevivên-
cia persiste há séculos. Não são raros os casos da história em que ficaram
evidentes atitudes genocidas por parte do Estado, o que levou os povos
originários à uma busca intensa por seus direitos.
Não obstante, tanto no século XX quanto agora no século XXI,
vários são os casos em que os povos indígenas ainda foram verdadeiras
vítimas do poder público, ora por ação (como na ditadura, em que vá-
rias aldeias foram dizimadas em razão da proposta de “modernização” e
expansão econômica do país), ora por omissão (como a atual estrutura da
FUNAI, que vem deixando de prestar serviços básicos de sua competên-
cia). Uma das principais áreas em que a violência estatal se destaca é a da
saúde, que apesar de contar com uma grande estrutura normativa, não
vem sendo adequadamente executada nas comunidades indígenas.
A presente pesquisa parte da hipótese de que os direitos indigenistas
(mormente à saúde) vêm sendo há muito tempo inobservados, o que ca-
111 Advogada, especialista em Direito Constitucional e pós graduanda em Direitos Huma-
nos, Responsabiliade Social e Cidadania Global.
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racteriza risco às instituições democráticas brasileiras. Alto índice de mor-
talidade infantil, unidades de saúde sem equipamentos e medicamentos,
além da falta de profissionais são alguns dos vários problemas identificados
nas comunidades e aldeias.
A partir da análise de alguns institutos peculiares do Estado Demo-
crático de Direito, o objetivo básico do trabalho é analisar a atual situação
da saúde indígena no Brasil, bem como o tratamento jurídico dado aos
inúmeros casos de omissão administrativa e desassistências gerais. Além
disso, visa examinar o problema estrutural que assola a questão indige-
nista, sobretudo a visão patrimonialista baseada em um desenvolvimento
econômico altamente nocivo a esse grupo.
A relevância do tema é inquestionável, pois o assunto apresenta um
grande perigo para as tribos indígenas, que hoje já estão em números bem
reduzidos. Ainda, trata-se de tema que afronta diretamente o respeito aos
Direitos Humanos, fora questões como proteção do meio ambiente, da
cultura, do respeito às tradições e tantos outros.
Parte-se da premissa de que o ordenamento jurídico deve denunciar
os problemas aqui abordados, delineando um tratamento mais incisivo dos
demais poderes relativo às garantias dessas comunidades.
Um melhor tratamento do tema evitaria que tantos índios estivessem
enfrentando as graves consequências da expansão do novo Coronavírus,
doença que vem sendo agravada em razão da entrada de garimpeiros nas
aldeias. Para que haja a prestação de um serviço mais eficaz de saúde é
necessária uma reformulação do sistema, e isso depende de uma nova pos-
tura política, da renovação da visão assistencialista em relação aos grupos
minoritários, o fim do empreendedorismo sem limites e priorizando a
dignidade da pessoa humana, antes que as chagas institucionalizadas se
tornem irreversíveis.
2. A SAÚDE INDÍGENA NO BRASIL
2.1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS E UM BREVE
HISTÓRICO DAS LUTAS E DIREITOS INDÍGENAS
A história indígena é parte constitutiva da história do próprio Brasil.
Mesmo antes do descobrimento, em 1500, a população indígena se en-
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contrava nos vastos territórios da América, e até hoje se empenham para
manter e perpetuar as suas tradições e rituais.
Ainda hoje muitos ignoram a enorme diversidade de povos que vi-
vem em território brasileiro. As estimativas indicam que na época da
chegada dos europeus, os povos totalizavam 04 milhões de pessoas. Já o
último censo realizado pelo IBGE em 2010 indicou que os indígenas so-
mam 896.917 pessoas, sendo que 324.834 vivem em cidades e 572.083
no campo.112
Fato é que a história indigenista brasileira tem sido marcada pela bru-
talidade, escravidão, violência, doenças e genocídio. Exemplo disso foram
os ataques sofridos no período da ditadura militar, que após muita luta deu
origem ao processo de redemocratização no país.
Depois do período ditatorial em que houve um massacre silencioso
de centenas de vítimas por governantes, militares, madeireiros, fazendei-
ros, e tantos outros, a Constituição veio como a renovação da esperança,
assegurando aos povos indígenas o direito a suas culturas, organizações
próprias, e, em resumo, um modelo não mais pautado na ótica integra-
cionista e meramente assistencialista, como previa o Estatuto do índio de
1973.
Como explica Carlos Frederico Marés (2013), embora a legislação
indigenista seja farta, até 1988 ela era voltada para a integração, com um
viés intervencionista, mas a Constituição trouxe uma visão nova.
2.2 SAÚDE INDÍGENA
O trabalho se pauta no aspecto da saúde indigenista, por ser esse um
dos direitos mais importantes e responsáveis por garantir a perpetuação
desses povos, além do respeito à sua dignidade e autonomia.
112 Informações do Portal “Povos Indígenas no Brasil”. A pesquisa ainda indica que: “Atual-
mente encontramos no território brasileiro 256 povos, falantes de mais de 150 línguas di-
ferentes. A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no
interior de 724 Terras Indígenas, de norte a sul do território nacional.“.
Existem diferenças nos números encontrados nas pesquisas, pois o contagem é feita por
declaração e abrange índios não aldeados ou moradores individuais das cidades. O portal
do Ministério da Saúde, pelo Plano Distrital de Saúde Indígena (quadriênio 2020 – 2023),
aponta um total de 760.350 indígenas, 416 etnias e 6.238 aldeias.
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Sem dúvidas, a saúde para os índios é diretamente ligada à proteção
da terra sagrada, e como explicam Iara Tatiana Bonin e Tiago Miotto
(“Um olhar sobre a saúde dos povos indígenas”, 2015), e para ser efetiva é
preciso respeitar as formas tradicionais de explicar o adoecimento, a cura,
a manutenção da vida.
Os autores ainda explicam que desde os tempos mais remotos, os
povos originários possuem sistemas tradicionais de saúde, de forma que
se articulam os aspectos culturais com a organização social, mediante o
uso de plantas específicas, rituais de cura e outras formas de promoção
da saúde.
Portanto é necessário investimento na formação de profissionais, de
modo que haja tanto a valorização dos saberes tradicionais da medicina
indígena, como a capacitação de novos conhecimentos para ações de pre-
venção, informação e tratamento nas comunidades;
É importante entendermos como a saúde indígena realmente é um
forte componente da autonomia e perpetuação desses povos, a partir da
integridade de seus ecossistemas e a preservação de seus territórios tradi-
cionais. Em razão disso, a militância indigenista se mobiliza há anos com
o objetivo de exigir do Estado a efetivação de programas que sejam com-
patíveis com as demandas dos povos e que estruture a política diferenciada
que a saúde merece.
Muitos são os diplomas normativos infralegais relacionados à saúde
indigenista, esta que foi se modificando por diversas vezes no decorrer dos
anos. Em resumo, a partir de 1999, com a Lei nº 9.836/99 (“Lei Arou-
ca”), a Lei Orgânica da Saúde sofre alteração em seu texto e foi incluído
o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, contemplados pelos artigos
19A ao 19H, trazendo de forma clara a Saúde Indígena como responsa-
bilidade do SUS.
Com base nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), o sub-
sistema tem a participação indígena como premissa para melhor contro-
lar e planejar os serviços dispostos, além de ser uma forma de reforçar a
autodeterminação e autonomia dos povos.
Existem no cenário internacional alguns dispositivos relacionados aos
povos indígenas. Apesar de existirem, muitas organizações e os próprios
destinatários desses tratados desconhecem os instrumentos internacionais
que os protegem, assim como os mecanismos existentes para exercê- los.
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Os principais instrumentos internacionais que tratam exclusivamente
dos direitos dos povos indígenas, são: (a) a Convenção nº 169 da OIT
sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, adotada pela
Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho em 1989 e;
(b) a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indíge-
nas, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2007.
3. A DESCONTINUIDADE DA POLÍTICA INDIGENISTA
DE SAÚDE
3.1 SITUAÇÃO ATUAL DAS COMUNIDADES – OS
PRINCIPAIS PROBLEMAS IDENTIFICADOS
Embora exista um conjunto de leis que assegurem um atendimento
distinto aos povos indígenas, o que as comunidades vivenciam na prá-
tica é má utilização dos “volumosos” recursos financeiros, altos índices
de mortalidade infantil, propagação rápida de epidemias graves, falta de
saneamento básico e muitos casos de desassistência dos poderes públicos.
Tem ocorrido um verdadeiro retrocesso na saúde: frágeis são as ações
de vacinação, a capacitação de agentes, o controle de dados, sem mencio-
nar que algumas comunidades vivem sem água potável e recorrem a ca-
sas de saúde sem medicamentos, com infraestrutura totalmente precária.
Não bastasse tudo isso, vem ocorrendo a diminuição e até a suspensão no
repasse de recursos financeiros para os Distritos Sanitários por parte do
governo federal.
Fato é que não há uma política orgânica, que respeite os preceitos
constitucionais e permita que os povos indígenas recebam uma atenção
diferenciada, eficaz e respeitosa para com seus modelos e concepções de
cura. Evidência disso são os exemplos abaixo mencionados.
Um dos maiores problemas é a mortalidade infantil. O CIMI (Con-
selho Indigenista Missionário) teve acesso aos dados da Secretária Especial
da Saúde Indígena (Sesai) para formulação do Relatório de Violência de
2018, e sem dúvidas a mortalidade na infância indígena é grave. O índice
se liga diretamente á fragilidade dos acompanhamentos de pré e pós-na-
tal. Além disso, há a contribuição das precariedades ambientais e falta de
saneamento básico.
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Já é conhecida também a denúncia reiterada dos povos indígenas do
Vale do Javari (AM), em que 87% da população apresenta algum tipo de
hepatite, o que tem provocado uma mortalidade incessável. Entretanto
não é só a hepatite que assola o Vale do Javari: ainda hoje são registrados
altos índices de doenças endêmicas e epidêmicas como a dengue, desnu-
trição, malária, tuberculose, hanseníase e tantas outras.
O atendimento no Vale era feito por médicos cubanos do progra-
ma Mais Médicos, e mais de seis mil indígenas eram atendidos, até que
houve no estado do Amazonas o fim da cooperação entre a Organização
Pan-Americana de Saúde (Opas) e Cuba, não havendo reposição desses
profissionais e quaisquer esclarecimentos às comunidades até dezembro
de 2018.
Há, ainda, o número alarmante de desassistência no estado do Mato
Grosso do Sul, que é um dos entes federativos que mais recebe repasses
destinados à saúde. Os Guarani-Kaiowá são as principais vítimas, viven-
ciando a falta de medicamentos e até água potável.
Outro famoso caso que envolve o mesmo estado é a omissão do poder
público em relação à saúde indígena que ocorre no tekoha Kurusu Ambá,
localizado no município de Coronel Sapucaia. A situação de descaso e de
violência que os indígenas acampados no interior da tekoha enfrentam
cotidianamente são extremamente cruéis e responsáveis por um amplo
histórico de óbitos infantis. No local são comuns casos de diarreia, vômi-
to e desnutrição, principalmente entre crianças, pois os indígenas vivem
cercados por plantações de soja e o veneno utilizado pelo agronegócio
provoca uma série de problemas de saúde.
Tem se noticiado bastante a questão dos suicídios nas tribos indíge-
nas, e de acordo com o Ministério da Saúde, o registro de óbitos entre os
índios é maior se comparado a brancos e negros neste aspecto. Conflitos
interpessoais, transtornos mentais, problemas familiares, abuso de sustân-
cias, os contextos social e cultural em que se encontra o indivíduo
e/ou a população, a não demarcação de terra, o preconceito e a intercul-
turalidade são alguns dos aspectos que devem se levados em conta para a
ocorrência de suicídio.
Por fim, tem-se a reclamação constante envolvendo a denúncia de
que as equipes multidisciplinares de saúde não vêm realizando a preven-
ção às doenças sexualmente transmissíveis e exames para diagnóstico de
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
câncer do colo de útero. Esse é um dos principais problemas que os po-
vos do Maranhão enfrentam, mormente os povos Memortunré, Krikati e
Pyhcop Cati Ji.
3.2 FUNDAMENTOS DE UMA POLÍTICA DEFICITÁRIA
Por certo os principais problemas relacionados á saúde identificados
entre as populações indígenas têm ligação direta com a questão do or-
çamento público, que há alguns anos vem sendo “enxugado” na presta-
ção de vários serviços. Prova disso, como explica Cleber César Buzatto
(2018), é que em 2015 existiam vinte e nove ações com dotação financeira
diretamente direcionada aos índios, e em 2018 foram encontrados somen-
te dois programas no mesmo sentido.
O repasse de verbas também é alvo de corrupção e de negociações
ilegais com grileiros e garimpeiros, o que causa danos irreversíveis. Por
exemplo, a aldeia Munduruku foi dizimada pelo garimpo e não existe
mais: um comunicado do Movimento Munduruku Ipereg Avu declarou
que o garimpo invadiu tudo, com doenças e corrupção, matando a flores-
ta, levando para o povo prostituição, drogas, e mortes. A pista de pouso
que servia para atendimento de saúde mudou de lugar porque atrapalhava
o garimpo, e os garimpeiros ainda estavam dando armas de fogo para os
indígenas.
Além dos problemas com orçamento, às vezes a saúde dos povos ori-
ginários é ameaçada por empreendimentos do próprio estado, como ocor-
re com a terra indígena Xikrin do Rio Cateté, no sudeste do Pará. Há
anos o povo Xikrin relata que a poluição no Rio Cateté por metais – ferro,
cobre e níquel – vem persistindo sem medida de contenção pela Usina
Onça-Puma, da Vale, companhia Mineradora.
Sem dúvidas existe um cenário de descontinuidade na saúde indi-
genista extremamente maléfico. A não renovação de convênios, o esva-
ziamento de unidades gestoras, falta do repasse de verbas, mudanças es-
truturais, ausência de participação dos povos nas decisões, a insegurança
legislativa com alterações constantes de portarias e decretos, tudo isso co-
labora com retrocessos e até mesmo um plano macro de genocídio em
curso, como será visto no próximo capítulo.
491
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
4. O DIREITO À SAÚDE NO PODER JUDICIÁRIO E AS
CHAGAS INSTITUCIONALIZADAS
4.1 ANÁLISE DE CASOS E OS PRINCIPAIS
ARGUMENTOS DOS ENTES FEDERATIVOS
Em razão da morosidade e negligência que o poder público costuma
apresentar nessas questões, muitas vezes os povos indígenas buscam solu-
ções efetivas no Poder Judiciário, através de ações coletivas amparadas pelo
Ministério Público.
Um dos casos que merece destaque é o das Terras Indígenas Jeju e
Areal/PA, habitadas por 300 pessoas da etnia Tembém Tenetehara, que
resistiram bravamente à colonização, mas que não tiveram conclusão nos
processos demarcatórios até hoje. Em razão disso, a União se furtava a fa-
zer o atendimento através do DSEI (Distritos Sanitário Especial Indígena)
invocando os princípios da reserva do possível e da separação dos poderes.
Confira-se trecho do julgamento:
O Poder Público é o responsável por fornecer condições para a
garantia do direito à vida e à saúde da comunidade indígena. É,
portanto, responsabilidade constitucional da União garantir os di-
reitos pleiteados na presente ação civil pública. Não há que se falar
em litisconsórcio passivo necessário. Qualquer um dos entes da
federação tem legitimidade para figurar no polo passivo das lides
que visam assegurar às populações indígenas o acesso à saúde.
3. O Estado não pode eximir-se de cumprir seus deveres
institucionais sob a alegação de violação ao princípio da "re-
serva do possível".
4. Inexiste afronta à separação dos Poderes. Cabe ao Judi-
ciário exercer o controle da legalidade dos atos dos entes
públicos. (AC 0032816-87.2012.4.01.3900, DESEMBARGA-
DOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, TRF1 – QUINTA
TURMA, e-DJF1 DATA:15/10/2018 PAGINA).
Já na população indígena não aldeada do Município de Paulo Afonso/
BA, foram constatadas graves falhas na prestação do serviço de saúde. O
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Ministério Público Federal (MPF) promoveu uma ação civil pública para
garantir acesso aos serviços básicos, a partir do cadastramento de todos os
indígenas no SIASI (Sistema de Informação da Atenção á Saúde Indíge-
na), bem como a manutenção em estoque de medicamentos aos indígenas
que estivessem ou não em terra com processo de demarcação terminado.
A propósito:
I - A saúde, como garantia fundamental assegurada em nossa
Carta Magna, é direito de todos e dever do Estado, garantido me-
diante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (artigo
196, da Constituição Federal). Nesse mesmo sentido, a Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas afirma
que "os povos indígenas têm direito a suas próprias medicinas tra-
dicionais e a manter suas práticas de saúde, bem como desfrutar do
nível mais alto possível de saúde, e os Estados devem tomar as me-
didas necessárias para atingir progressivamente a plena realização
deste direito" (artigo 24).
II - Nesse contexto, mostra-se totalmente inadmissível a
protelação administrativa em operacionalizar o acesso dos
referidos indígenas ao Sistema Universal de Saúde - SUS,
considerando se a essencialidade do bem jurídico pretendi-
do, impondo-se, na espécie, a intervenção do Poder Judi-
ciário Republicano, para assegurar o direito à saúde e à vida
das comunidades indígenas, que se encontram constitucio-
nalmente tuteladas (CF, arts. 5º, XXXV e 231, caput e res-
pectivo parágrafo 3º), não havendo que se falar em afronta
à separação de poderes. Por outro lado, a simples existência
de política pública especial voltada para a atenção à saúde
da população indígena não exime a ora agravante de efeti-
vamente proporcionar o exercício do direito constitucional
à saúde integral, gratuito e incondicional.
(AG 0004093-50.2014.4.01.0000, DESEMBARGADOR FE-
DERAL SOUZA PRUDENTE, TRF1 - QUINTA TURMA,
e-DJF1 DATA:18/10/2018) (grifos nossos).
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Ainda, convém mencionar o caso em que a FUNASA (Fundação
Nacional de Saíde) foi levada a juízo em razão de problemas na prestação
de seus serviços no município de Manicoré/MA, e alegou ter consciên-
cia da situação das CASAIs (Casas de Saúde do Índio), mas não possuir
recursos para reformá-las, incidindo a cláusula da “reserva do possível” a
impedir que o Judiciário, a pretexto de fazer justiça, adentre no mérito de
políticas públicas. Assim foi julgado:
1. O art. 6º da Constituição Federal de 1988 assegura a todos o
direito à saúde e lhe dispensa o status de direito social fundamen-
tal, devendo ser garantido pelo Estado, "mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação." (art. 196 da CF/88).
4. A Administração deve adotar medidas para a prestação dos ser-
viços de saúde, que consubstanciam direito fundamental da popu-
lação indígena.
[...].
7. O Estado não pode recorrer à discricionariedade admi-
nistrativa para justificar o não cumprimento de seus encar-
gos, comprometendo direitos fundamentais.
A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo de
instrumento. (AG 0050757-52.2008.4.01.0000, DESEMBAR-
GADOR FEDERAL CARLOS MOREIRA ALVES, TRF1 –
QUINTA TURMA, e-DJF1 DATA:05/10/2017).
Inicialmente, observamos que muito se fala na violação da separa-
ção dos poderes, mas não há ingerência do Judiciário nos outros poderes
quando ele exerce o monopólio da jurisdição, e como atribuição possui
inclusive o dever de controle sobre a legalidade de atos emanados pelos
entes públicos.
Em relação à insurgência de não ser possível concretizar as presta-
ções relativas à saúde em razão do princípio da reserva do possível, este
argumento é frequentemente utilizado nestas questões, mas não prospe-
ra. Como ensina o constitucionalista Ingo Sarlet (2012), o princípio não
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pode ser dado como obstáculo intransponível à realização dos direitos so-
cials pela esfera judicial.
Na maioria das ações, por fim, o Estado apresenta a tese de que pode
recorrer à discricionariedade. Para o jurista Lênio Streck (2013), discriciona-
riedade não pode ser sinônimo de liberdade total, sem parâmetros e balizas.
4.2 AS AÇÕES JUDICIAIS COMO DENÚNCIA À
POSTURA ESTATAL: UMA POLÍTICA GENOCIDA
Desde 1988 o Poder Judiciário atua constantemente nas pautas indí-
genas, mormente nas questões da Justiça de Transição e na demarcação de
terras. O tópico anterior mostrou que essa atuação vem ganhando força
no campo da saúde nos últimos anos, diante da execução não eficiente por
parte do Estado.
O objetivo do trabalho não é tratar a justiça como solução de todos
os problemas dos direitos indígenas, pois sabemos que há muitas ques-
tões controversas e um problema nacional de morosidade, o que não se
compatibiliza com as demandas geralmente urgentes. Porém, é notório
que diante de um movimento perigoso do Executivo e Legislativo contra
direitos fundamentais, o Judiciário tem sim um papel importante de evitar
o retrocesso.
O que o alto número de notícias e ações judiciais evidencia é a verda-
deira negligência estrutural que o Brasil sempre mostrou em relação aos
povos indígenas. Por mais de 500 anos esses povos enfrentam o racismo,
roubo de terras, integração forçada e violência genocida; sempre foram
vítimas do estado, que através de diversas instituições e ações, quase sem-
pre colocou em superioridade seus interesses evidentemente econômicos
e desenvolvimentistas.
É evidente o fracasso das políticas públicas de saúde, e como a questão
indígena não é demanda que preocupa o estado, mas sim algo do qual se
busca distanciamento. Prova disso é que por muito tempo as políticas de
extermínio foram implementadas com o viés de integração indígena em
favor de uma identidade nacional.
O governo ao longo dos anos atrelou com frequência a gestão da po-
lítica indigenista estatal à exploração dos bens e recursos das terras, o que
levou a uma grande pressão parlamentar a fim de liberar áreas para pro-
dução de soja, criação de gado, execução de empreendimentos e outros.
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Para Lucia Helena Rangel e Roberto Antonio Liebgott (2018, página
11):
As violências ambientais, sociais, econômicas e contra a vida foram
práticas comuns e pouco enfrentadas e combatidas ao longo dos
últimos anos. Ao contrário, o governo instigou a exploração eco-
nômica das terras indígenas através de arrendamentos e introduziu,
junto com a bancada ruralista, a ideia de transformar essas práticas
ilegais, que são os arrendamentos, em parcerias rurais ou agríco-
las, aderindo, desse modo a uma lógica empresarial para pensar a
gestão de bens públicos. (“Violações tornaram-se a regra, e não
exceção no Brasil” – Relatório de violência: CIMI, 2018)
Nessas parcerias as terras são entregues aos especuladores, e os ar-
gumentos perpassam questões discriminatórias, alegando que índios não
sabem produzir, que a cultura é obsoleta, e que são entraves ao desenvol-
vimento da nação.
Quando os povos indígenas começaram a reivindicar seus direitos,
mormente a demarcação de terras, eles passaram a ser vistos como verdadei-
ros alvos. O próprio discurso do Presidente da República, Jair Bolsonaro,
impulsiona invasões e até mesmo discurso de ódio contra esses povos.
A partir de discursos como estes, que já existiam ainda que em pro-
porções menores, as comunidades ficaram mais suscetíveis a ataques e in-
vasões. E o estímulo estatal à violência atingiu até a execução da política
indigenista voltada aos povos em situação de isolamento e risco, tanto na
área da saúde, quanto na educação e na fiscalização das terras, como é
visto com frequência na Amazônia.
Exemplos de que invasões de aldeias têm sido informalmente tolera-
das não faltam: líderes dos Guarani vêm sendo mortos por milícias con-
tratadas por fazendeiros; Paulo Guajajara, guardião da floresta, foi morto a
tiros numa emboscada por madeireiros na Terra Indígena Araribóia.
Temos uma gestão pública parcial, que amplia a relevância da pro-
priedade privada, contrapondo- se à vida, ao bem-estar e à dignidade hu-
mana. Como explica Dom Roque (2018), a violência contra os indígenas
tem estado vinculada aos incentivos dados pelo governo a grupos políticos
associados aos conglomerados econômicos transnacionais que buscam o
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lucro. Há um alinhamento do poder público a uma gestão empresarial por
meio do qual se estabelecem bases para a desregulamentação de leis que
protegem as pessoas e o meio ambiente.
E o extermínio não para aí: existe o confinamento de povos em terras
insuficientes e improdutivas; morosidade do governo nos procedimentos
demarcatórios; descaso com a saúde, educação e as agressões realizadas
por madeireiros, grileiros, fazendeiros e etc. Portanto, as ameaças não são
menores do que foram em outros tempos da história, e possivelmente este
é um dos piores períodos desde a ditadura.
Prova de que a exploração e práticas genocidas vêm sendo referenda-
das pelo Estado são as mudanças legislativas e administrativas feitas pelo
governo atual.113 Essas mudanças no modelo de gestão da política de saúde
deixaram o movimento indigenista brasileiro em alerta, principalmente
quando houve a ameaça de se extinguir a Secretaria Nacional de Saúde
Indígena (Sesai), o que não foi levado adiante.
A Funai também vem sendo sistematicamente desmantelada. Como
prova disso, apontamos a suspensão, pelo órgão, de atendimento à co-
munidades indígenas que não vivem em áreas completamente demarca-
das: em fevereiro de 2020, mais de 64 famílias da etnia Guarani-Kaiowá
pararam de receber cestas de alimentos entregues com auxílio direto da
FUNAI, que alegou não ser sua obrigação.
Não só as mudanças legislativas constatam o descaso governamental:
a destinação e execução orçamentárias também estão sendo usadas como
instrumentos de ataque e violência contra os povos no Brasil. Para Cleber
César Buzatto (2018), é necessário que eles estejam cada vez mais vigi-
lantes, preocupados e atuantes, para que cortes e casos de corrupção não
sejam tolerados nos próximos anos.
O resultado de todas essas mazelas é quase sempre o acionamento do
poder Judiciário, como foi elaborado no tópico anterior. A impressão que
113 Embora sempre tenha havido problemas na efetivação dos diretos fundamentais aos
povos indígenas, em governos anteriores as demandas foram mais intensas nas questões
territoriais. Até por isso o recorte da pesquisa diz respeito à saúde, pois as falhas na execu-
ção aumentaram exponencialmente nos últimos três anos. Mesmo depois da Constituição
de 1988 a saúde continuou sendo problemática, mas muitos avanços foram feitos até 2014,
2015, com as Conferências de Saúde Indígena. A 6ª Conferência, prevista para acontecer em
2019, foi adiada pelo Ministério da Saúde, com argumento de inviabilidade do processo.
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se tem é de que a eficácia dos direitos dos povos indígenas ficou condicio-
nada à prestação jurisdicional, bem como à ação do terceiro setor.
O que se pode extrair de todo o exposto é que vem ocorrendo um
desmanche do Estado, trazendo mais vulnerabilidade para a população in-
dígena, e isso se dá em várias searas. O que os dados da saúde apontam é
uma verdadeira violência contra os povos originários, por isso afirmamos
que as chagas estão sendo institucionalizadas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho se propôs a relacionar o poder Judiciário com a saúde in-
digenista, a fim de abordar como o Brasil tem adotado uma política geno-
cida sobre a população originária.
Não obstante um enorme aparato legal abordando os direitos e aspec-
tos estruturais da saúde indígena, o que se vê na prática é um desmanche
desse sistema, com índices alarmantes de mortalidade, precariedade das
instituições e até problemas como a falta de saneamento básico.
O alto número de ações judiciais envolvendo o descaso com a saú-
de indígena aponta justamente como há uma descontinuidade da política
pública, e os motivos por trás desses dados não são simples: se relacionam
frontalmente com institucionalização da violência.
Existem componentes de crise econômica no país atualmente, mas
isso por si só não explica como essa política se tornou deficitária. É uma
questão de vontade política do governo: se essa existisse, as demandas in-
dígenas seriam prioridades, ainda com um orçamento reduzido, seria pos-
sível reestruturar alguns serviços da Funai, aumentar a fiscalização sobre
o garimpo, investir na capacitação dos profissionais, e tantas outras saídas.
Mas o caminho tem sido oposto, e a política prefere incentivar o de-
senvolvimento econômico ainda que isso custe vidas. Prova recente disso
é a expansão do novo Coronavírus, situação na qual a omissão estatal vem
sendo tão grande, que as aldeias estão se fechando sozinhas, tentando se
afastar da circulação de garimpeiros e extrativistas.
Em uma análise prática no aspecto da saúde, os estudos aqui men-
cionados e as notícias indicam que novos horizontes devem ser buscados.
Será necessário um novo modelo de gestão da saúde indigenista, um que
transforme os Dseis em unidades gestoras, subordinadas a uma secretaria
especial empenhada, além da criação de uma carreira para profissionais de
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saúde indígena, com boas condições trabalhistas e treinamento adequado
respeitando as particularidades culturais dos povos.
É muito importante que estejamos atentos com propostas como as de
municipalização da saúde, pois há riscos sérios de desassistência aumentar
na medida em que possam existir ligações de grupos predatórios com as
políticas locais. Ainda, a questão do orçamento, do repasse de verbas e da
fiscalização dessas ações também deve receber mais atenção.
Se este ciclo não for contido, as florestas serão completamente de-
vastadas, as terras ocupadas por grandes empreendimentos industriais e
exploratórios, e não restará outro cenário a não ser a extinção dos povos
originários. Inicialmente eles terão que se adaptar a vida às margens de
fazendas e beiras de estradas, ou terão que abandonar todas as suas tradi-
ções e buscarem serviço braçal no meio urbano, até que simplesmente eles
desapareçam. O que esperamos é que a violência não seja patrocinada e
incentivada por aqueles que devem combatê-la.
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ANÁLISE JURÍDICA ACERCA DO
BPC-NA ESCOLA NA CIDADE DE
ARAGUAÍNA-TOCANTINS
Nagila Maria Pereira Silva114
Geraldo Alves Lima (Or.)115
1 INTRODUÇÃO
O BPC na Escola deriva do Benefício de Prestação Continuada pre-
sente na Lei Orgânica de Assistência Social. Ele possui intersetorialidade
de ações voltadas às pessoas com deficiências beneficiárias do BPC, de
zero a dezoito anos, em idade escolar, e possuiu objetivo de eliminar bar-
reiras encontradas por pessoas com deficiência. O objetivo foi analisar a
aplicação ou não do programa BPC na Escola na rede pública de ensino na
cidade de Araguaína-Tocantins, através do Mapeamento junto às institui-
ções de ensino da rede pública que utilizam o programa, por meio da bus-
ca junto à Secretaria Municipal de Ensino, relacionar leis correlatas, que
tange ao direito das pessoas com deficiência, identificar a aplicabilidade
do BPC na Escola na rede pública de ensino na cidade de Araguaína, por
meio do contato com os gestores de escolas e a submissão do presente arti-
go ao comitê de ética e pesquisa com seres humanos. O método utilizado
foi exploratório com análise bibliográfica e comparação dos resultados ob-
114 Graduanda em Direito pela Faculdade Católica Dom Orione
115 Graduado em Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará
(1995). Mestre em Educação, Administração e Comunicação pela Universidade São Marcos
(2002). Professor da Faculdade Católica Dom Orione.
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tidos. Deste modo, observou-se ausência de informações dos responsáveis
pelas escolas acerca do programa trabalhado.
2 BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DO PAPEL DA PESSOA
COM DEFICIÊNCIA
A partir das pesquisas realizadas a respeito da participação social das
pessoas com deficiência na história presente nas variadas religiões e cultu-
ras, constatou-se que há uma ausência de informação muito grande que
gera uma fragilidade no processo de desenvolvimento social em relação à
diversidade e em especial, diante de pessoas com deficiência.
Essa abstenção alimenta o capacitismo e em razão disso, há uma sig-
nificativa singularidade em relação à fonte deste tópico, o que em contra-
partida, aumenta a necessidade do mesmo ser abordado.
Considerando as pinturas rupestres encontradas durante diversas
pesquisas arqueológicas, fica comprovado que as pessoas com deficiên-
cias sempre existiram e contribuíram significativamente para a evolução
humana em diversos aspectos, tanto culturais e tecnológicos quanto bio-
lógicos e religiosos.
Em Esparta, pelas leis vigentes, os pais eram obrigados a levar seus
filhos (a) ainda recém-nascidos para um grupo de anciãos de reconhecida
autoridade, que se reunia para examinar e tomar conhecimento oficial do
novo cidadão, caso o bebê fosse considerado feio, disforme ou franzino,
os próprios anciãos se encarregavam do sacrifício, que consistia em jogá-
-las em um abismo de mais de dois mil e quatrocentos (2.400) metros de
altura, num local de nome Apothetai, que significava “depósitos”, situado
na Cadeia de Montanhas chamada Taygetos, próximo à Esparta (SILVA,
2009 apud DICHER; TREVISAM, 2014).
Considerando a hipótese de a criança vir a nascer com deficiência
nessa sociedade, cabia ao pai o poder de matar o próprio filho, e apesar
desse direito, alguns pais abriam mão, e abandonavam os filhos às margens
do rio Tibre, que em alguns casos eram acolhidos por exploradores, que
mais tarde obrigavam-lhes a pedir esmolas e ou se prostituir (SILVA, 2009
apud DICHER; TREVISAM, 2014, p. 7).
Somente a partir do advento do Cristianismo foi conferida uma nova
roupagem em relação ao tratamento conferido às pessoas com deficiência,
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esta doutrina, já naquela época, condenava de forma veemente a prática de
extermínio e abandono em razão da deficiência e pregava em sua essência
a compaixão, e ainda a prática de atos assistencialistas, e este novo com-
portamento disseminado influenciou principalmente a sociedade romana,
alcançando a edição das leis pelo Imperador Constantino (MARANHÃO
apud DICHER; TREVISAM, 2014).
Não obstante, a nova perspectiva em relação à deficiência empregada
pelo cristianismo não se perpetuou na Idade Média, período compreendi-
do com o fim do Império Romano (Século V, ano 476).
As condições sociais daquela época faziam com que a população ti-
vesse precárias condições de saúde, de modo que, ensejasse o pensamento
de que o nascimento de uma criança com deficiência representasse um
“castigo de Deus”. Acreditava-se também que um corpo malformado
era morada de uma mente também malformada, supostamente objetos
de feitiçaria, mesmo assim, as pessoas com deficiência recebiam mais vi-
sibilidade, expressamente um resquício do cristianismo, de modo que, se
fomentou a criação de abrigos e casas de caridade e acolhimento, confe-
rindo-lhes um olhar com mais compaixão.
Diante disso, leciona Maranhão (2005, p. 25 apud DICHER; TRE-
VISAM, 2014, p. 9): “[...] casos de doenças e de deformações começaram
a receber mais atenção e isto ficou demonstrado com a criação de hospitais
e abrigos para doentes e pessoas portadoras de deficiências, por senhores
feudais e por governantes com a ajuda da Igreja”.
O trabalho de Ponce de León serviu como fonte de inspiração para
outros educadores ao explorarem a área da educação de crianças com de-
ficiência, entre eles e de igual importância pode ser citado Charles-Mi-
chael L’ Epée, que segundo Guedes (2010, p. 39): “Elaborou um méto-
do denominado “signos metódicos”, combinando o francês à Língua de
Sinais. Foi o fundador do Instituto Nacional de Surdos-Mudos em Paris
em 1775”.
Nesse período ocorre o reconhecimento da Língua de Sinais no pro-
cesso pedagógico”. Sendo também o primeiro educador a reconhecer que
os surdos têm uma língua, não necessitando da língua oral, deixando de
ser o foco principal da educação.
Partindo então dos estudos do médico Philippe Pinel, as doenças
mentais ganharam destaque, uma vez que, o mesmo buscou tratamentos
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mais científicos e humanizados. Segundo ele, “a causa de tais enfermida-
des eram alterações patológicas no cérebro, decorrentes de fatores here-
ditários, lesões fisiológicas ou excesso de pressões sociais e psicológicas”.
Seu trabalho buscou a desmistificação e a mudança comportamental da
sociedade que constantemente acorrentava pessoas tidas como loucas por
considerarem serem “possuídas”.
No Brasil, partindo de influências europeias, o Imperador Dom Pedro
II fundou o Instituto dos Meninos Cegos em 1854 (atualmente chamado de
Instituto Benjamim Constant) e o Imperial Instituto dos Surdos Mudos em
1857 (hoje denominado Instituto Nacional de Educação de Surdos).
3 LINGUAGEM E TERMINOLOGIA APLICADA
A língua possui um caráter social e diante disso, convém compreen-
der os fundamentos da filosofia da linguagem desenvolvida pelo Círculo
de Bakhtin, que equivale no estudo da função social ou a constituição
social, tendo como objeto central a linguagem.
Observa-se então que a língua é apenas uma parte da linguagem e,
ao mesmo tempo um produto social de que dispõe a linguagem, ou seja,
Bakhtin (1988, p. 13-70 apud RECH, 2015) enfatiza que as pequenas ou
grandes mudanças na linguagem são sintomas de mudanças na sociedade.
Assim sendo, utilizar o termo correto ao se referir às pessoas com de-
ficiência, não se trata apenas de uma questão semântica, mas sim, evita-se
o capacitismo, estigmas e estereótipos corriqueiramente empregados.
Para melhor compreensão do exposto é necessário um breve esclare-
cimento das expressões comumente utilizadas ao se referir às pessoas com
deficiência, que são consideradas incorretas e a melhor maneira de aplicá-
-las no cotidiano, visto que, como explanado no tópico anterior, o com-
portamento social nas mais variadas culturas era predominantemente de
abandono, sacrifício e descaso, não reconhecendo as características huma-
nas dessas pessoas, tampouco a necessidade de terminologias adequadas.
Alguns exemplos aqui mencionados são os termos dados por Sas-
saki (2003) “Aleijado” e “Defeituoso” foram utilizados principalmente
nas décadas de 70 e 80, ressaltava a deficiência da pessoa. Já os termos
“Incapacitado” ou “Inválido” relacionado às deficiências física e mental
tinham também o condão de julgamento da capacidade da pessoa por sua
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deficiência. A palavra “Inválida (o) ” por sua vez era empregada às pessoas
com deficiência física ou mental, termo este que era usado desde o fim da
Segunda Guerra Mundial.
Segundo o autor supramencionado, com o Ano Internacional das
Pessoas Deficientes começou-se a escrever e falar pela primeira vez no
termo “pessoa deficiente”, ressaltando a característica humana das pes-
soas, essa adição trouxe reações de surpresa e espanto diante da palavra
(SASSAKI, 2003). Aos poucos, foi usada a expressão “pessoa portadora
de deficiência”, termo bastante comum no Brasil, principalmente entre
1986 e 1996, que dá ideia de “porte”, ou seja, poderia a pessoa carregar a
própria deficiência. Somente no início dos anos 90 a expressão foi dimi-
nuída para “pessoas com deficiência”, que permanece até os dias de hoje.
Considerando a quantidade espantosa de termos preconceituosos em-
pregados corriqueiramente observa-se que, são construções históricas de
uma sociedade que outrora era completamente despreocupada com a qua-
lidade de vida, e enraizada em estereótipos equivocados, que a partir disso
surgiram essas e muitas outras expressões que desqualificam e desrespei-
tam as pessoas com deficiência pelo simples fato de serem pronunciadas.
Assim sendo, enfatiza-se a necessidade de maior visibilidade à ter-
minologia correta empregada às pessoas com deficiência com o objetivo
primordial de proteger e evitar termos discriminatórios a este grupo mi-
noritário, fomentando assim sua inclusão social, maior aproximação às
legislações correlacionadas e à cidadania.
Apesar da autora supracitada não delimitar seu posicionamento dire-
tamente às pessoas com deficiência, suas palavras não os deixam de fora,
considerando que, trata-se também de um grupo de minorias e vulnerá-
veis, que buscam apenas reconhecimento de sua cidadania e efetividade
dos direitos a eles conferidos.
4 ASCENÇÃO DE DIREITOS
O início do reconhecimento de direitos das pessoas com deficiência
se entrelaça com a própria criação da Organização das Nações Unidas
(ONU), no dia 24 de outubro de 1945, pois os objetivos que levaram à
criação desta organização se basearam em preservar as gerações futuras das
atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial.
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Ocorre que, as pessoas com deficiências físicas, mentais sensoriais,
bem como as que possuíam deficiência intelectual, também foram alvos
da política nazista, de modo que a eles eram conferidos o programa de
“eutanásia” de Hitler, denominado “AKTION T4” (Tiergartenstrasse
4), este programa surgiu oficialmente em 1939 e consistia no extermínio
dessas pessoas, por serem consideradas pessoas indignas da vida, acarretan-
do na morte de aproximadamente 300 mil pessoas (BBC NEWS, 2017).
Um dos frutos da Carta das Nações Unidas foi um importante do-
cumento que reconheceu em âmbito internacional os direitos das pes-
soas com deficiência, sendo assinada no dia 30/03/2017, aprovada pelo
Congresso Nacional Brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 186,
de 9 de julho de 2008 e promulgada pelo então Presidente da Repúbli-
ca Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 25 de agosto de 2009 por meio do
Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, passou então a ter o status
de Emenda Constitucional por força do § 3º art. 5º da Carta de 1988
que reforça a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com
Deficiência.
Esse conjunto de normas trata das mais variadas questões, desde a
proteção dos direitos e garantias fundamentais à sua participação social,
como também sua inserção no mercado de trabalho.
4.1 Direitos das Pessoas Com Deficiência
No ano de 1991 foi promulgada a Lei Brasileira n° 8213 que daria
maior visibilidade aos direitos das pessoas com deficiência, essa lei dispõe
sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, que em seu artigo 93
determina que:
A partir da repercussão dada ao artigo supracitado deu-se origem à lei
de cotas (Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012). Esse importante instru-
mento normativo nacional dispõe em seu Art. 3º que as instituições fede-
rais de ensino superior terão 5% das vagas preenchidas por curso e turno,
por pessoas que se autodeclararem pretos, pardos, indígenas e pessoas com
deficiência (BRASIL, 2012).
Assim sendo, há garantia legal de vagas para pessoas com deficiência
no ensino superior, a fim de conferir a elas maior qualificação profissional
para as que optarem dar continuidade aos seus estudos.
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Outra importante norma jurídica brasileira voltada à inclusão da pes-
soa com deficiência é a Lei nº 10.098/2000, que tem por objetivo estabe-
lecer normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade
para pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, por meio da
exclusão de barreiras e obstáculos em vias e espaços públicos. A própria lei
conceitua acessibilidade em seu art. 3º, sendo a “possibilidade e condição
de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços [...]”
(BRASIL, 2000).
Desta forma, nota-se que a acessibilidade tem por objetivo a promo-
ção de maior autonomia da pessoa com deficiência, essa acessibilidade a
qual se refere o artigo supracitado foi objeto de pesquisa do estudioso Sas-
saki (2009), segundo ele, existem setes tipos de acessibilidade, abordando
como dimensões podem ser classificadas como: Arquitetônica, Comuni-
cacional, Metodológica Instrumental, Programática e Atitudinal, conten-
do cada uma sua atuação efetiva em diversos campos.
A primeira dimensão é a Acessibilidade Arquitetônica, que se refere
às normas estruturais, que eliminam os obstáculos existentes que venham
interferir na locomoção de pessoas com deficiência, como a necessidade
de rampas padronizadas, barras de apoio, entre outros. Volta-se a atenção
ao ambiente educacional, no qual é necessário toda uma estrutura no am-
biente escolar que facilite o acesso dos alunos com deficiência, não só a
alunos cadeirantes, por meio da construção de rampas, portas largas, etc.,
mas também observar elementos como iluminação, local das carteiras e
demais manifestações.
No que tange à Dimensão Comunicacional, o autor cita a importân-
cia da linguagem escrita de maneira a facilitar a compreensão de todos,
em especial, pessoas com deficiência visual e com baixa visão. Essa co-
municação a qual se refere também aborda a linguem não escrita, como
semáforos sonoros e a adequação de outros tipos de sinalizações presentes
no cotidiano social.
A Dimensão Instrumental analisa a adequação em aparelhos, equi-
pamentos e ferramentas que fazem parte dos locais de lazer abertos ao
público, que podem ser compreendidos como áreas de lazer e recreação
(comunitária, turística, esportiva, etc.).
A Acessibilidade Metodológica aborda os procedimentos e técnicas
comumente utilizados no dia a dia que não incluem a diversidade de pes-
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soas com deficiência, mobilidade reduzida, etc., cabe então citar como
exemplo, os empresários, que durante entrevistas de emprego podem ser
surpreendidos ao se depararem com candidatos com deficiência.
No campo educacional, sua importância é fundamental ao educa-
dor que deve aprimorar suas técnicas diante da necessidade particular do
aluno com deficiência e ao ambiente no qual se insere, ensinando todo o
corpo discente sobre a diversidade e inclusão.
Neste momento, o aluno com deficiência aprenderá o conteúdo
transmitido e terão interações sociais, os demais alunos terão convívio
com a diversidade e inclusão, ou seja, a acessibilidade metodológica na
educação é uma importante ferramenta no combate ao capacitismo.
A Acessibilidade Programática relaciona-se a textos de leis, decretos,
regulamentos e outras peças escritas que emanadas pelo poder público ex-
primem barreiras implícitas e dificultam o acesso à informação de pessoas
com deficiência.
Apesar da importância da todas as dimensões de acessibilidade aqui
mencionadas, destaca-se a Acessibilidade Atitudinal que aborda os com-
portamentos sociais de inclusão da pessoa com deficiência, ela serve como
“chave mestra” para todas as outras dimensões por fomentar a quebra de
estereótipos, estigmas e preconceitos sobre a pessoa com deficiência. Com
ela, frisa-se que, a pessoa com deficiência é uma pessoa, e precisa ser res-
peitada com tal, desta forma, nas relações interpessoais leva-se em conta a
opinião da pessoa e suas necessidades de lazer, bem como as necessidades
que sua deficiência exige.
Para que exista um ambiente educacional com Acessibilidade Atitu-
dinal, sugere-se que sejam realizadas palestras que abordem a temática, a
presença de pessoas com deficiência, a utilização de exemplos didáticos
que insiram essas pessoas, bem como imagens, gravuras, retratando sua
realidade.
Deste modo, mesmo que na escola não haja alunos com deficiência,
deve-se ensinar os alunos sobre o respeito a essas pessoas, sem vitimização,
mostrando-os em um cotidiano que as inclua nos mais diversos campos,
desde ensinar a importância de rampas de acesso a fomentar o relaciona-
mento social. É importante também esclarecer aos educadores que não
devem ter receios diante do assunto, mesmo que na sala de aula tenha
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algum aluno com deficiência, pelo contrário, incluí-los em assuntos com
essa temática é enriquecedor não só para ele, mas como todos ao redor.
4.2 Lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência)
Tal instrumento legislativo atribui conceitos relativos à pessoa com
deficiência, direitos e garantias fundamentais, e a nomenclatura adequada
atribuída por meio de uma classificação biopsicossocial. Em relação aos
direitos, o Estatuto da Pessoa com Deficiência aborda dez direitos fun-
damentais, são eles: direito à vida, habilitação e à reabilitação, à saúde, à
moradia, ao trabalho, à educação, à assistência social, à previdência social,
à cultura, esporte, ao turismo e lazer, direito ao transporte e à mobilidade
(BRASIL, 2015).
Diferente das demais atribuições tendo como agente transformador
somente o poder público, para a garantia do direito à educação em todos
os níveis, exige-se a atuação de quatro figuras, sendo eles: o Estado, a fa-
mília, a comunidade escolar e a sociedade, nos termos do art. 27 da Lei
(BRASIL, 2015).
Assim, a educação proporcionará à pessoa com deficiência o direito à
matrícula em instituição educacional representando a efetividade de um
direito fundamental.
É indispensável mencionar o direito à Assistência Social, que tem por
objetivo estabelecido a garantia da segurança da renda, da acolhida, do de-
senvolvimento da autonomia para seu pleno exercício da cidadania, nesses
termos dispõem os artigos 30 e 40 do Estatuto (BRASIL, 2015).
Extrai-se dos dispositivos a intenção do Legislador de conferir às pessoas
com deficiência maior proteção no que tange ao ambiente socioeconômico,
retirando aqueles que não possuam meios de prover a própria subsistência
de situações de vulnerabilidade. Ocorre que, o supracitado ordenamento
regulamenta somente a existência do programa, deixando a outra norma
disciplinar, mais precisamente como funcionará este benefício.
4.3 Declaração de Salamanca
Durante a Conferência Mundial Sobre Educação Especial realizada en-
tre os dias 7 e 10 de junho de 1994 foi elaborada a Declaração de Salamanca,
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que contou com a participação de 88 países e 25 organizações, com o obje-
tivo de orientar os governantes acerca de políticas públicas governamentais
que incluam pessoas com deficiência na rede básica de ensino.
Considerada por muitos um documento bastante inovador, a decla-
ração é um dos principais documentos mundiais com vistas à inclusão
social. Seus princípios basilares são a inclusão da pessoa com deficiência
no ambiente escolar, providenciar a mesma educação para todos, promo-
vendo apoio especializado às crianças que assim requerer. Deste modo,
orienta aos governantes que promovam estrutura propícia a acomodar to-
das as crianças independentemente da existência de deficiência.
A proposta principal é a de que todas as crianças devem aprender jun-
tas sempre que possível, para que assim haja maior inserção da pessoa com
deficiência na sociedade, eliminando qualquer forma de segregação.
Importante mencionar também, que se ampliou o significado de “neces-
sidades educacionais especiais”, que abarca também crianças com dificulda-
des de aprendizagem, mesmo que de modo temporário, pois muitas daquelas
que estão estudando repetem frequentemente os anos escolares, existem as
que são forçadas a trabalhar, as que são marginalizadas, as que moram distan-
tes de escolas, aquelas que foram vítimas de guerra ou conflitos armados, que
sofrem de abusos contínuos de natureza física, emocional e sexual, ou as que
simplesmente estão fora da escola por qualquer motivo que seja.
Segundo o documento, o encaminhamento de crianças para escolas
especiais ou para sessões especiais dentro da escola em caráter permanen-
te deve ser aplicado em casos excepcionais, sendo recomendado somente
quando ficar claramente demonstrado que o aprendizado na classe regu-
lar for incapaz de atender as necessidades educacionais da criança. Sendo
priorizado que as escolas sejam capazes de proporcionar a todos a educa-
ção básica e de qualidade, de forma a proporcionar até mesmo ao corpo
docente da escola constante aperfeiçoamento e aprimoramento pra que
possam desenvolver ações de inclusão.
5 BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA – LOAS
Amparado pelo art. 203, V da Constituição Federal, que prevê o di-
reito à Assistência Social, em especial, a garantia de um salário mínimo
mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que se encaixar no critério
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socioeconômico estabelecido pela Lei Orgânica de Assistência Social nº
8.742/93 segundo as alterações trazidas pela Lei nº 13.982/20.
Para adquirir esse benefício assistencialista é necessário o preenchi-
mento de alguns quesitos, são eles: ser brasileiro (a) nato ou naturalizado;
as pessoas de nacionalidade portuguesa devem comprovar residência fixa
no Brasil; possuir renda por pessoa do grupo familiar inferior a ¼ de salá-
rio mínimo atual. Caso o solicitante seja a própria pessoa com deficiência,
deve apresentar também documentação que comprove impedimento de
longo prazo (mínimo de dois anos), cuja natureza seja física, mental, in-
telectual ou sensorial que impeçam a plena participação em igualdade de
condições com as demais pessoas.
Considerando tratar-se de um Benefício Assistencialista e não de
uma forma de aposentadoria, não é necessário para sua aquisição que o
beneficiário tenha contribuído para Seguridade Social e não haverá o pa-
gamento de 13º.
Entende-se que o objetivo da seguridade social à pessoa com defi-
ciência tem caráter protecionista, pois garantia apresentada tende a pre-
servar o exercício à cidadania a pessoas que não possuem condições de
proverem, através da atividade laboral, seu próprio sustento.
Assim, a doutrina majoritária como direitos sociais de segunda di-
mensão ou geração, tem consolidado entendimento que a seguridade
social é uma garantia que surgiu no final da primeira metade do século
XIX, graças às reivindicações dos movimentos socialistas, em vista disso a
Constituição da República Federativa do Brasil em sua Sessão IV, art. 203
adere em seu texto (BRASIL, 1988).
6 BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA NA
ESCOLA (BPC NA ESCOLA)
Instituído através da Portaria Interministerial nº 18 de 24 de abril de
2007, o BPC na Escola é uma política pública com o objetivo de ampliar a
proteção dos beneficiários do BPC (LOAS), por meio do monitoramen-
to, acompanhamento e fomento da pessoa com deficiência de 0 a 18 anos
na rede de ensino.
A atuação do programa se dará com identificação de barreiras e obs-
táculos que impeçam os beneficiários do BPC de terem pleno acesso à
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educação, podendo ser: arquitetônica, ecológica, cultural atitudinal, me-
todológicas, e o acompanhamento familiar do beneficiário, no que tange
aos serviços socioassistenciais, sendo organizado intersetorialmente, en-
volvendo os Municípios, Estados e o Distrito Federal.
As ações são desenvolvidas de maneira articulada envolvendo todos os
Ministérios, quais sejam: Ministério do Desenvolvimento Social e Agrá-
rio (MDSA), Ministério da Educação (MEC), Ministério da Saúde (MS)
e o Ministério da Justiça e Cidadania (MJC), inclusive os entes federativos
mencionados.
Para o funcionamento do programa será necessária a cooperação dos
Estados, Distrito Federal e dos Municípios no Programa BPC na Escola,
firmados por meio de Termo de Adesão. A União fica responsável por
Instituir o Grupo Gestor Interministerial – GGI, encarregado de Coor-
denar o Programa em âmbito Nacional, disponibilizar orientações aos
Gestores e Equipes Técnicas, identificar os beneficiários do BPC entre 0 e
18 anos matriculados na escola ou não, prestar apoio técnico e financeiro
ao desenvolvimento das ações do Programa, desenvolver e disponibilizar
sistema informatizado de acompanhamento do programa, promover a ar-
ticulação intersetorial e a integração do BPC na Escola com outras ações
no âmbito federal.
O Estado, por sua vez, deve designar o Grupo Gestor Estadual –
GGE; Gerir e coordenar o programa em âmbito estadual, garantir que os
beneficiários do BPC estejam regularmente matriculados na rede pública
de ensino, devendo prestar apoio aos municípios, incluindo a realização
das capacitações dos agentes envolvidos com o Programa no âmbito do
seu território, como professores e assistentes sociais, realizar o monitora-
mento das ações desenvolvidas pelos municípios para superação das bar-
reiras identificadas pelo questionário considerando o caso concreto, pro-
mover a articulação intersetorial e apoiar os municípios na superação das
eventuais dificuldades quanto ao exercício da intersetorialidade de ações.
Já o Município será responsável pela instituição do Grupo Gestor Lo-
cal (GGL), que vai gerir e coordenar o programa em âmbito local, garantir
a matrícula dos beneficiários do BPC na rede regular de ensino, insti-
tuir a equipe técnica local, sendo responsável também pela aplicação do
Questionário de Identificação de Barreiras, inserção de informações do
questionário no Sistema BPC na Escola, além de promover o acompanha-
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mento dos beneficiários e de suas famílias; desenvolver ações intersetoriais
para a superação das barreiras vivenciadas pelas pessoas com deficiência.
A efetiva adesão do município ao programa é crucial e extrema-
mente próxima à pessoa com deficiência, pois a constituição do GGL
e a aplicação do questionário aproxima o poder público às necessidades
dos beneficiários que se encontram em situação de vulnerabilidade, já
que o mesmo possui mecanismo para sanar as dificuldades encontradas
e planeja ações que solucionam as dificuldades dos beneficiários em um
convívio social.
Cabe ressaltar que, a funcionalidade específica do programa, ou seja,
como as barreiras serão eliminadas, depende de cada caso concreto, uma
vez que se adequará à necessidade de cada criança ou adolescente.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome, os recursos para implementação das ações previstas no BPC na Es-
cola deverão ocorrer por conta das dotações orçamentárias que devem
ser consignadas anualmente aos Ministérios e Secretarias envolvidas na
própria execução do programa, cabendo ao próprio MDS o repasse dos
recursos financeiro aos Municípios e ao Distrito Federal para custear as
visitas domiciliares (BRASIL, 2012).
7 ARAGUAÍNA-TOCANTINS
Compreendido na região entre os rios Lontra e Andorinhas, o terri-
tório de Araguaína foi ocupado, primeiramente, por tribos da etnia Ca-
rajás. Somente no ano de 1876 que os primeiros migrantes chegaram ao
norte tocantinense, vindos das pequenas cidades do Estado do Piauí fixa-
ram moradia na margem direita do Rio Lontra. A formação administra-
tiva se deu com a denominação de Araguaína através da Lei Municipal nº
86, de 30-09-1953.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE
(2010), o Município conta atualmente com 150.484 pessoas, contando
com a Densidade Demográfica de 37.62 hab.km²d, cujo salário Médio dos
Trabalhadores formais é de 2,1 salários mínimos, contando com 36,571
pessoas ocupadas no ano de 2018 cerca de 20,06% com o percentual da
população com rendimento nominal mensal per capita de até 1/2 salário
mínimo no ano de 2010 é de 34,4%.
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No ano de 2017 o PIB correspondia a R$ 22.809,80. Na Educação, a
Taxa de escolarização de 6 a 14 anos de idade no ano de 2010 era de 97,5
%, sendo 25.739 matrículas no ensino fundamental no ano de 2018 e
6.733 matrículas no ensino médio no mesmo ano, possuindo 101 escolas
de nível Fundamental e 25 escolas de ensino médio.
A saúde conta com mortalidade infantil em 2017 de 11,30 óbitos por mil
nascidos vivos, e 41 estabelecimentos de saúde pública SUS no ano de 2009.
8 PROGRAMA BPC NA ESCOLA NA REDE PÚBLICA DE
ENSINO NA CIDADE DE ARAGUAÍNA – TOCANTINS
A pesquisa baseou-se na coleta de dados, tendo como objeto principal
os alunos (as) beneficiários do BPC-LOAS em algumas escolas públicas
de ensino em Araguaína-Tocantins, tendo como critério de escolha, es-
colas municipais, estaduais e creches, que em seu corpo discente conta
com a presença de crianças e adolescentes de 0 (zero) a 18 (dezoito) anos
de idade, independentemente do tipo de deficiência. Assim, a pesquisa
teve cunho exploratório juntamente com a revisão bibliográfica.
Foram coletadas as informações das Escolas durante os meses de fe-
vereiro e março de 2020, anterior à pandemia ocasionada pelo Coronaví-
rus, em que as mesmas apenas expressaram consentimento em fornecer as
informações necessárias para o presente trabalho, não assinando o termo
de Livre Consentimento. Portanto, os dados aqui discriminados não con-
terão o nome do local, endereço ou telefone, a fim de preservar o interesse
de terceiros.
Objetivando saber quais escolas aderem ao BPC na Escola, foi feito
contato por meio de telefone com a Delegacia Regional de Ensino no dia
06 de março, por meio do número (63) 3411-5030 disponível na internet,
que orientaram a telefonar no número (63) 3411-5003, ramal responsável
pela educação especial. Sem êxito em nenhuma das tentativas realizadas.
Em outro momento foi realizado contato com a Secretaria Municipal
de Educação por meio do número (63) 3411-5606, recebendo então a
orientação para encaminhar ofício ao responsável pelo órgão. Feita a re-
comendação sugerida, foi elaborado um ofício na data de 12 de fevereiro
de 2020, na qual entraram em contato informando a imprescindibilidade
de assinatura do coordenador do Núcleo de Trabalho de Conclusão de
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Curso da instituição de ensino que faço parte (FACDO) e do professor
orientador. Tão logo possível, foi elaborado novo ofício, solicitando assim
os mesmos dados, não obtendo resposta até a presente data.
No dia 12 (doze) de fevereiro de 2020, foi realizada visita in loco
na Escola “X” constatando-se que: “A instituição possui 27 (vinte e
sete) alunos com deficiência, sendo elas múltiplas; que esses alunos estão
espalhados em diversas turmas e séries; que a escola não participa do
programa BPC – Na Escola; que não sabe infirmar se são beneficiários
do BPC; que não têm conhecimento do que se trata o programa; que
o corpo docente não tem nenhuma especialização pedagógica para os
alunos com deficiência”.
Na data de 13 (treze) de fevereiro por telefone, foi realizado levanta-
mento da pesquisa na Escola “Y”, em entrevista com a responsável, ob-
teve-se também a informação de que: “A Escola possui 8 (oito) alunos
com deficiência, com diferentes níveis; que os profissionais não têm espe-
cialização na área da educação especial; que acredita que o programa tem
relação com o BPC –LOAS, mas nunca tinha ciência do que se tratava o
BPC na Escola”.
No mesmo dia, foi estabelecido contato com uma Creche, “W”, na
qual afirmou “não conhecer o programa BPC na Escola; que possui 08
alunos com deficiência, sendo estas físicas e intelectuais. ”
Após diversas tentativas por telefone, no dia 17 (dezessete) de feverei-
ro de 2020, foi estabelecido contato com a Escola “Z”, após ter ciência do
objeto da pesquisa, informou que: “A Escola possuía alunos com deficiên-
cia, não sabendo precisar a quantidade exata; que não tinha conhecimento
do programa BPC – na Escola; que não sabia informar se o corpo docente
possuía qualificação específica para atuar na educação especial”.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise dos
direitos da Pessoa com deficiência, especialmente no campo educacional,
por meio do estudo do programa BPC na Escola, que se apresentou como
uma grande ferramenta de fomento e permanência de alunos de zero a
dezoito anos, beneficiários do programa BPC da Lei Orgânica de Assis-
tência Social. Além disso, o BPC na Escola também permite aos benefi-
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
ciários uma intersetorialidade de serviços para si e para a sua família, o que
aumenta significativamente a qualidade de suas vidas.
Infelizmente, não foram obtidos resultados satisfatórios, dada a au-
sência de conhecimento do programa pelos gestores educacionais e au-
sência de dados quantitativos de crianças de zero a dezoito anos em Ara-
guaína Tocantins, bem como ausência de dados qualificativos de crianças
e adolescentes beneficiários do programa que se encontram matriculados
na rede pública de ensino.
Desta forma, o objetivo geral do trabalho que visava analisar a aplica-
ção do BPC na Escola na rede pública de ensino na cidade de Araguaí-
na-Tocantins não foi atingido, visto que não há sequer conhecimento do
programa.
Os objetivos específicos por sua vez, que consistiam no mapeamento
das instituições de ensino público que utilizavam o BPC na Escola consta-
taram prejudicados, dada a carência de informações por meio da Secretaria
Municipal de Ensino, em vista disso, não haverá necessidade de submissão
do presente artigo pelo comitê de ética na pesquisa com seres humanos.
Contudo, houve êxito em relacionar as normas adotadas pelo Brasil
em relação às pessoas com deficiência através da análise das leis correlatas,
que identificou políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência, por
meio das leis instituídas pelo próprio Estatuto da Pessoa com deficiência
e a Lei de Cotas.
Apesar de que os resultados obtidos não foram satisfatórios, nota-
damente contribui de forma significativa à sociedade nos mais variados
campos. A relevância jurídica do BPC na Escola é nítida, considerando
tratar-se de uma política pública instituída por meio de uma portaria que
visa maior garantia de um direito fundamental a um grupo de minorias,
e que dada à própria natureza particular de cada deficiência, por vezes,
inevitavelmente afasta essas pessoas de leis que as protegem.
Por sua vez, a relevância política do programa e a obtenção dos seus
resultados geram uma necessidade de maior conhecimento das vertentes
do programa BPC, que constantemente se torna controverso quanto à
sua necessidade, fazendo com que muitas vezes falem da sua retirada ou
mitigação no que tange à previdência social.
A relevância social é evidente entre a comunidade, pois é um direito
que assiste às pessoas com deficiência e que é pouco disseminado, afas-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
tando consequentemente inúmeras crianças e adolescentes do ambiente
escolar, unicamente pela ausência de informações, de modo com que os
pais, responsáveis ou cuidadores não cobram do poder público a aplicabi-
lidade do programa.
Ante o exposto, é preciso enfatizar também que há necessidade de
adesão ao programa, considerando os surpreendentes números de crianças
matriculadas nas escolas públicas de ensino, que representa apenas uma pe-
quena porcentagem de alunos desassistidos e com baixo acesso à educação.
Ademais, é possível destacar que, no atual cenário mundial de pande-
mia com as aulas da rede pública de ensino suspensas presencialmente, fica
ainda mais evidente a fragilidade das pessoas com deficiência no acesso à
educação, que muitas vezes não possuem condições de arcar com tecnolo-
gias assistivas e têm dificuldades de transmitir o conteúdo para jovens em
idade escolar. O que demanda do poder público uma atuação mais efetiva
que poderia ser proporcionada e sanada tais dificuldades com a aplicação
do BPC na escola.
Apesar do programa BPC na Escola mostrar infinitos benefícios edu-
cacionais e sociais às pessoas com deficiência, critica-se a necessidade da
inserção no programa assistencialista, pois só o fato da existência de uma
deficiência, por si só, na maioria das vezes acarreta a dificuldade de livre
acesso nos mais variados campos que não é ocasionada unicamente em
razão da deficiência, mas sim de toda uma estruturação social que não
foi construída observando as necessidades singulares de cada deficiência.
Em vista disso, sugere-se a maior abertura do BPC na Escola para todas as
pessoas com deficiência, independentemente do seu caráter de vulnerabi-
lidade socioeconômica.
Por fim, considerando a presença de leis correlatas às pessoas com
deficiência, constata-se que não há ausência normativa e sim, uma ausên-
cia de informações por parte da sociedade, o que prejudica a busca pela
efetividade dos direitos.
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caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de ele-
gibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece
medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o
período de enfrentamento da emergência de saúde pública de impor-
tância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) respon-
sável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de feve-
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5 24
RELIGIÃO E RESILIÊNCIA EM
PRESÍDIO FEMININO DE FRONTEIRA
BRASIL-BOLÍVIA
Marciene Rita da Silva de Amorim116
Claúdia Araújo de Lima117
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas cresce no Brasil o número de mulheres aprisio-
nadas. Nas prisões, dentre os instrumentos de ressocialização, a religião
tem sido um mecanismo que possibilita que detentas possam refletir so-
bre o momento em que estão passando, e, consequentemente favorece
movimentos de resiliência como forma de retomarem, após vivência nas
grades, seus projetos de vida. Na situação de encarceradas vivenciam al-
guns sintomas da prisionização. O objetivo desta pesquisa foi apresentar
uma análise da representação social de detentas sobre religiões e resiliên-
cias no Estabelecimento Penal Feminino “Carlos Alberto Jonas Giorda-
no” de Corumbá/MS, situado na fronteira Brasil-Bolívia. Trata-se de
uma pesquisa qualitativa, organizada como um estudo de caso, com per-
curso metodológico baseado em levantamentos bibliográficos, entrevistas
semiestruturadas e observação de campo, numa amostragem de detentas
brasileiras e bolivianas observando-se a preservação de suas identidades.
116 Mestre em estudos fronteiriços, psicóloga, bacharel em Direito.
117 Pedagoga. Mestre e Doutora em Saúde Pública. Professora da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal no curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação.
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Ao longo de toda uma evolução histórica da pena e do nascimen-
to da prisão o sistema carcerário brasileiro depara-se atualmente com
um número crescente de aprisionamentos. Segundo dados do Levanta-
mento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2018) do
Departamento Penitenciário (DEPEN), o Brasil é considerado o quarto
país no mundo com a maior população carcerária e segundo Nascimen-
to (2017) o crime que mais tem superlotado as celas brasileiras é o tráfico
ilícito de entorpecentes. Dessa crescente população carcerária brasileira
destaca-se o crescimento de mulheres encarceradas estando o Brasil si-
tuado no quarto lugar de aprisionamento feminino segundo dados do
Infopen (2018).
Estudos sobre prisões de mulheres no Brasil começaram a ter visibi-
lidade e serem discutidos no século XIX segundo Angotti (2018) e Ar-
tur(2016), e somente nas décadas de 1930-1940 que surgiram os primeiros
estabelecimentos penais, porém ainda com escassez de uma bibliografia
prévia sobre história de mulheres nas prisões.
Destacar a realidade prisional de mulheres segundo Diniz (2016) e
Varela (2017), trata-se de elucidar um mundo de exclusão, abandono,
solidão envolvendo não somente a questão de gênero, mas que reflete
em termos familiares, políticos e acima de tudo subjetivos, pois neste
ponto, conforme leciona Bitencourt (2011), que as pessoas em estado de
prisão sofrerão algum tipo de reação carcerária podendo vir a sofrer graves
perturbações psíquicas. Esses autores mencionam os efeitos que ocasiona
a dinâmica carcerária para as pessoas em privação de liberdade e como
bem retrata Sá (2010) que na vivência carcerária não tem como o detento
(a) sucumbir à cultura da prisão, que são os efeitos da prisionização, que
dentre outros há que se mencionar: perda de identidade, regressão, infan-
tilização, busca de proteção, sentimento de culpa levando até mesmo à
desorganização da personalidade.
Vislumbrando as necessidades, especificamente psicológicas, em que
as detentas vivenciam em decorrência da prisão, a assistência religiosa é
um dos instrumentos de ressocialização conforme elencado na Lei de
Execução Penal Nº 7.210 de 1984 (Brasil, 1984) e que na visão de Qui-
roga, Conrado e Cunha (2012), alude sobre a importância desta nas pri-
sões, em que sua presença torna-se um momento de acolhimento em um
espaço ameaçador.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Nas prisões, a religião tem sido um mecanismo que possibilita um
contato das detentas com o meio externo, momento em que possibilita
a reflexão sobre suas realidades, consequentemente favorece o processo
de resiliência como forma de retomarem, após vivência nas grades, seus
projetos de vida.
Segundo Yunes (2003) a palavra resiliência é utilizada para se referir
à capacidade que as pessoas apresentam em situação difícil, diante de fatos
reversíveis e irreversíveis, vindo a superá-la e até mesmo sendo transfor-
mados em decorrência das adversidades. No caso a prisão, segundo Ri-
beiro (2006) trata-se de um fato reversível na vida das detentas, haja vista
que um dia cumprirão suas penas até extinção da punibilidade e a situação
de ser e estar no cárcere dependerá como cada detenta reagirá a essa situa-
ção de adversidade.
O objetivo desta pesquisa, portanto foi analisar a representação social
da religião para detentas brasileiras e bolivianas num presídio em região de
fronteira Brasil-Bolívia, sob a ótica do fortalecimento da resiliência. Com
base na teoria de Moscovici (1978) das representações sociais foi, por-
tanto, construir nesta pesquisa um conjunto de conceitos diante de um
fenômeno social, no caso a religião e sua relação com a resiliência onde
se busca as representações cotidianas das relações sociais que ocorrem
nessa inter-relação sujeito e objeto, sujeito e sociedade na construção do
conhecimento. A proposta de Moscovici (1978) configura-se à proposta
de Sá (1998) de que toda representação é uma representação de alguém
(sujeito) e de alguma coisa (objeto) demonstrando a ligação do objeto de
representação a um determinado sujeito.
1. PRISÕES FEMININAS NO BRASIL
No período colonial as mulheres eram encarceradas juntamente em
locais destinados a prisioneiros, sendo elas prostitutas ou escravas e rara-
mente era destinado local diferenciado para cumprimento de suas penas
segundo Angotti (2018). Já no século XIX a situação prisional brasileira
passou a ser mais discutida, e é quando então que se coloca em pauta a
situação das mulheres encarceradas. Sobre o assunto há relatos esparsos
e poucos relatórios se referindo à situação de mulheres nas prisões e nas
casas de correção brasileira enfocando a situação precária em que se en-
527
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
contravam as mulheres e também se ressaltando o pequeno número de
condenadas e processadas (ANGOTTI, 2018, p.17).
No relatório intitulado “As Mulheres Criminosas no Centro mais
Populoso do Brasil” de 1928 do penitenciarista Cândido Mendes de Al-
meida Filho, do Distrito Federal, mencionava dados de mulheres encar-
ceradas de julho de 1926 a outubro de 1927. No referido relatório já se
pronunciava a abandono da situação prisional feminina assim preleciona
Angotti (2018).
Uma pesquisa realizada pelo Conselho Penitenciário do Distrito Fe-
deral em 1934 encontrou, no universo de todos os presos das capitais dos
estados, 46 mulheres presas para 4633 sentenciados do sexo masculino,
ou seja, 1% da população carcerária das capitais era formada por mulheres
relata Angotti (2018) em sua obra “Entre as leis da Ciência, do Estado e de
Deus: o surgimento dos presídios femininos no Brasil”.
Desde as últimas décadas do século XIX os debates sobre o encar-
ceramento feminino foram tomando visibilidade devido descaso e aban-
dono às mulheres em situação de privação de liberdade, porém somente
nas décadas de 1930 e 1940, aduz Ronchi (2017), que surgiram os pri-
meiros estabelecimentos prisionais femininos. Vale ressaltar que em 1921
fora criado o Patronato das Presas cuja missão era solucionar problemas
oriundos das criminosas, inclusive criando um local de prisão especializa-
do para mulheres.
De dados bibliográficos sobre Instituições prisionais femininas datam
de 1937 no Rio Grande do Sul “O Instituto Feminino de Readaptação
Social”; em 1941 “O Presídio de Mulheres de São Paulo”, e 1942 em
Bangu/RJ foi inaugurada “A Penitenciária Feminina no Distrito Fede-
ral”, sendo esta última construída para tal finalidade e as demais adap-
tadas, descreve Angotti (2018), em espaços prisionais que já existiam.
No ano de 1939 foi criado o Reformatório para mulheres criminosas na
Bahia funcionando nos dois primeiros pavilhões da própria penitenciária
da Bahia devido ao baixo número de presas e falta de recursos para cons-
trução de um presídio. Em 1941 inaugurado no presídio de Pernambuco
um pavilhão destinado às mulheres nominado “Prisão de Mulheres”; em
1940 a Penitenciária para mulheres em Santa Catarina. A criação de uni-
dades prisionais femininas foi inicialmente aos poucos lenta devido baixo
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número de presas, porém denota a preocupação em ter um local destinado
somente para mulheres em privação de liberdade.
Queiroz (2017) aborda que o primeiro presídio feminino do Brasil
fundado em 1937 foi fundado por freiras católicas, era a Penitenciária Ma-
dre Pelletier, em Porto Alegre Rio Grande do Sul e fora denominado
Instituto Feminino de Readaptação Social.
As prisões femininas tiveram seus primórdios no Brasil na década de
1930 a 1940 através de uma parceria, (PICOLLI e CUELLAR, 2017), do
Estado com a Congregação de Nossa Senhora do Bom Pastor D’Anger,
ordem francesa fundada em 1835 por Maria Eufrásia Pelletier, com sede
em Angers na França e conforme relatam Picolli e Cuellar (2017), com
a incumbência de cuidar de mulheres em descaminho no mundo todo e
responsável pela administração dos primeiros presídios femininos no Bra-
sil. Antes desse período não existia nenhuma norma legal que regulamen-
tasse essa prática ou existisse um local apropriado para tal fim. Podiam ser
separadas ou não de homens e dependeria das autoridades responsáveis no
ato da prisão à forma como iriam proceder.
A norma legal para criação de prisão feminina foi determinada pelo
Código Penal e pelo Código de Processo Penal de 1940 (BRASIL, 1940)
e pela Lei de Contravenção Penal de 1941. (BRASIL, 1941). No 2º pa-
rágrafo do artigo 29 do Código Penal de 1940 estava assim determinado
que: “as mulheres cumprem pena em estabelecimento especial, ou, à falta,
em secção adequada de penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a
trabalho interno”. (BRASIL, 1940).
A prisão de mulheres tinha uma missão correcional, com a mulher
que desviasse do padrão de boa mulher, boa mãe, boa esposa, boa funcio-
nária. Nos postulados da origem das prisões femininas brasileiras a gestão
prisional buscava-se na mulher criminosa transformá-las em mulheres
perfeitas e que retomassem os bons costumes no retorno à vivência social.
Conforme preleciona Soares e Ilgenfritz (2002) que a mulher deveria se
ater ao mundo dos afazeres domésticos quando nas prisões para então re-
tornar ao convívio social.
Da evolução dos presídios para mulheres, ao longo desses anos, houve
o crescimento, por outro lado, do número de mulheres encarceradas. O
Brasil contava com 41.087 mulheres em privação de liberdade no sistema
penitenciário, dados esses conforme informações do INFOPEN Mulhe-
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res até 30 de junho de 2016. (BRASIL, 2018). Até essa data foi consi-
derado um aumento de 656% comparado aos dados do ano 2000 e essa
situação de encarceramento resulta segundo Salim (2016), em várias con-
sequências não somente para a detenta, como para o próprio Estado que
passa a ter diversas obrigações em relação a ela.
É cediço que o objetivo primordial da prisão é a ressocialização e a
readequação da pessoa para que não volte a reincidir. Pesquisas tais como
a realizada por Constantino (2016), intitulada “O impacto da prisão na
saúde mental dos presos do estado do Rio de Janeiro, Brasil” apontam
que o aprisionamento a princípio traz muitas consequências no âmbito
psicológico do indivíduo. Um dos fenômenos que constantemente ocor-
re é a desindividualização pontua Salim (2016) que consiste na perda da
autocontenção e do autoconhecimento quando a pessoa se encontra inte-
grada em um grupo. Na vivência do cárcere as pessoas sofrem até certo
ponto um abalo psicológico haja vista que não estão mais em suas rotinas
diárias quando em liberdade podendo ocorrer até mesmo a perda de suas
identidades.
Goffman (1992) em sua obra “Manicômios, Prisões e Conventos”
define o que vem a ser uma instituição total como um espaço em que um
número de pessoas em situação semelhantes e separadas da sociedade e
por um período de tempo encontram-se nesse local levando uma rotina
fechada e administrada e a exemplo menciona as prisões. Referido autor
expõe que as pessoas que adentram a instituição total chegam com uma
“cultura aparente” derivada de um “mundo da família” e que trata - se de
um repertório de experiências de seu ambiente externo que o mantinha
numa concepção tolerável do eu permitindo-lhes um conjunto de defesas.
A pessoa presa muda, progressivamente, as crenças em si mesma e
também a respeito de outros significativos para ela. Dessa forma, aos pou-
cos, a prisão ocasiona uma mudança interna para adaptar à nova realidade
e, consequentemente, superação da identidade anterior ao momento do
aprisionamento.
A ocorrência de inúmeras transformações que a vivência carcerária
possa ocasionar para as detentas, especificamente no âmbito emocional,
há que se mencionar que muitas conseguem através das inúmeras alterna-
tivas que contribuem para a ressocialização, e dentre essas, a religião, que
dentro dos presídios, pode propiciar o resgate da autoestima, tornando-se
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um dos instrumentos de fortalecimento da capacidade de resiliência, para
superar a condição temporária de estar atrás das grades.
A religião serve, segundo Vargas (2005), para sair do ócio, ouvir pa-
lavras de conforto, é um momento em que a detenta tem a possibilidade
de ter contato com pessoas de fora da instituição penal. Além disso, “ofe-
rece sentido, finalidade e transcendência à vida intramuros”. (VARGAS,
2005, p. 27).
Lobo (2012) relata que nas prisões do Rio de Janeiro a presença de
agentes religiosos provoca mudanças no ambiente prisional e possibilita a
transformação de líderes religiosos em parceiros num momento de geren-
ciamento de crises. Depreende-se desse discurso que os movimentos re-
ligiosos poderão colaborar com as transformações da pessoa que vivencia
o encarceramento.
Num mundo de isolamento em que se priva a liberdade do ser hu-
mano, em se tratando de detentas com suas peculiaridades diferentes em
situação de prisão pontuada quando se trata da história de prisões femini-
nas, a presença de um instrumento de ressocialização, no caso a religião,
aliada a esse afastamento do mundo externo poderá suscitar que nesse mo-
mento de solidão a mesma torne-se um instrumento positivo de reforma
e conforme aduz Focault:
Não é, portanto um respeito exterior pela lei ou apenas o receio da
punição que vai agir sobre o detento, mas o próprio trabalho de sua
consciência. Antes uma submissão profunda que um treinamento
superficial; uma mudança de moralidade e não de atitude. (FO-
CAULT, 2014, p. 231).
A religião poderá ser esse instrumento que possa auxiliar nesse traba-
lho de reflexão e de reforma num cárcere feminino haja vista que na rea-
lidade prisional feminina o que mais chama a atenção é o abandono. De
todos os tormentos do cárcere, o abandono é o que mais aflige as detentas.
(VARELLA, 2017, p.38). Referido autor em sua obra “Prisioneiras” pon-
tua que as mulheres em comparação com a figura masculina em situação
de prisão são abandonadas.
Partindo do conhecimento da realidade das prisões femininas no
Brasil e de suas características preponderantes e se atendo ao tema desta
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pesquisa, inferiu - se que a presença das religiões e suas respectivas reli-
giosidades ocorridas no interior de um presídio feminino de Corumbá/
MS pudesse operar quanto à transformação das detentas, porém como
suportam os movimentos religiosos ocorridos na unidade prisional de for-
ma positiva em que ocorra fortalecimento de suas capacidades resilientes
ou de forma negativa que não contribuísse para esse fortalecimento, esse
foi um viés que coube analisar haja vista que cada realidade torna-se única
e imprevisível em cada unidade prisional quanto aos fatores que ocorrem
em seu interior que poderão ser de mudanças ou não.
2. RELIGIÃO – FATOR EXTERNO DE PROTEÇÃO EM
PRESÍDIO FEMININO DE FRONTEIRA BRASIL/BOLÍVIA
Inicialmente, faz mister destacar, um breve percurso metodológico
para focar o tema deste capítulo. Participaram do estudo 20 detentas, sen-
do 13 de nacionalidade brasileira e 7 de nacionalidade boliviana cuja idade
variou de 20 a 57 anos de idade possuindo uma média de 35,2 anos. As
participantes não foram identificadas, mas nomeadas pela letra P seguida
de numeração cardinal.
Os instrumentos para coleta de dados nos métodos utilizados foram:
observação simples; aplicação de questionário de forma individual para
uma amostra de 20 participantes num universo de 95 detentas, nos idio-
mas português e espanhol contendo questões abertas e fechadas.
O estudo foi realizado no Estabelecimento Penal Feminino “Car-
los Alberto Jonas Giordano” de Corumbá no Estado de Mato Grosso
do Sul fronteira Brasil-Bolívia, considerado um presídio de segurança
média, onde detentas cumprem pena em regime fechado, no primei-
ro semestre de 2019 e para sua execução fora solicitado autorização da
Agência Penitenciária de Mato Grosso do Sul (AGEPEN/MS) e auto-
rização da direção da unidade prisional. A pesquisa foi submetida ao
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul (UFMS) e da Plataforma Brasil obtendo parecer aprovado con-
forme nº 3.225.886.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho descritivo que se-
gundo Flick (2009) menciona que naquela, o pesquisador utiliza os insi-
ghts e as informações provenientes da literatura enquanto conhecimento
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sobre o contexto, utilizando-se dele para verificar afirmações e observa-
ções a respeito de seu tema de pesquisa naqueles contextos, e neste prele-
ciona Gil (2008), que retrata as características de determinada população
ou fenômeno, ou estabelecimento de relações entre variáveis.
As participantes foram escolhidas de forma aleatória com critérios de
inclusão às detentas que se encontravam em execução de pena ou proces-
sadas, praticantes de delito pela primeira vez (primária) ou mais de uma
vez (reincidente) e critérios de exclusão às detentas que por questões de
segurança não poderiam sair de suas celas. Os nomes das participantes fo-
ram mantidos em sigilo sendo nomeadas pela letra P (participante) numa
sequência cardinal (P1, P2...) à medida que foram entrevistadas.
Mister se faz ressaltar que para os procedimentos utilizados foram
considerados: o princípio do consentimento informado das participantes
conforme enfatizado em um dos principais documentos que tratam de
pesquisa com seres humanos, no caso o Código de Nurenberg de 1947,
bem como a resolução nº 510/16 (Brasil,2016) da Comissão Nacional de
Ética em Pesquisa (CONEP). O termo de consentimento livre e esclare-
cido seguiu a resolução nº 466 de 2012 (Brasil, 2012) na versão português
e espanhol.
Na organização e análise dos dados foi utilizada a Análise de Conteú-
do à luz de Bardin (1977) que constitui-se de várias técnicas onde se busca
descrever o conteúdo emitido no processo de comunicação, seja ele por
meio de falas ou de textos e que seguiu três fases para sua consecução: pré-
-análise do material; exploração do material e tratamento dos resultados,
inferência e interpretação.
Os dados relacionados às entrevistas semiestruturadas foram anotados
em fichas avulsas e no próprio questionário sendo posteriormente trans-
critos na íntegra. A primeira etapa foi a leitura flutuante que consistiu na
análise inicial das falas buscando a identificação dos principais significados
ao tema investigado. Na fase de exploração dos materiais, o conteúdo foi
colhido, classificado pelos núcleos de sentido e posteriormente agrupado
conforme similaridade das respostas das participantes a cada pergunta re-
sultando na análise das categorias finais.
Como categorias de análise foram eleitos núcleos de sentido para
compreensão das etapas de complexidade da pesquisa, sendo estes: iden-
tidade na prisão; significado da religião em privação de liberdade; religio-
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sidade e influência da religião em privação da liberdade e religião como
forma de resiliência. Na sequência da análise, essas categorias foram eluci-
dadas e discutidas, no sentido de melhor captação das potencialidades das
falas das detentas e suas perspectivas.
Cabe destacar quanto ao tema deste capítulo sobre as categorias a in-
fluência da religião em privação de liberdade e religião como forma de
resiliência. Dos dados coletados das narrativas quatro palavras se fizeram
presentes de forma constante nas falas sobre o significado do que vem a
ser a religião: “Deus”, “fé”, “acreditar” e “encontro”. A palavra “Deus”
esteve presente em 75% dos conteúdos das falas sobre o que vem a ser o
significado da religião, seguida pela palavra “fé” mencionada em 40% das
falas e por último as palavras “encontro” e “acreditar” presentes em 15%
das narrativas. Depreende-se das narrativas que “Deus” é apresentado
como um elo de comunicação, a exemplo, quando relatam que a “religião
é o encontro com Deus espiritualmente” ou que a “religião é acreditar em
Deus e em santos”, torna-se algo que somente cada qual experiencia atra-
vés de suas vivências sendo esta intransferível. Trata-se da teoria da repre-
sentação social da qual Moscovici (1978) menciona em que algo abstrato é
transformado em algo concreto em nível de pensamento conforme a rela-
ção que a pessoa estabelece com o objeto. Não é algo que possa ser apreen-
dido ou observado diretamente, mas sim algo que possa ser experienciado.
Numa visão James (1991), experienciar o real trata-se de experienciar esse
“Deus” que não é visto, nem tocado, mas cada qual dá a sua resposta pela
vivência que tem sobre o que está sendo tratado, no caso, o significado
da religião. Falar do significado da religião não é somente mencionar a
existência de um “Deus” para detentas entrevistadas, mas também fazer
essa ligação, o “encontro” através do sentimento “fé” conforme algumas
mencionaram em seus discursos. É através dessa ‘fé” num ser que não é
tocado e nem visto, mas experienciado que possibilitará o fortalecimento
em acreditar num “Deus” que é uma realidade invisível.
Neste contexto é importante mencionar que a religião deve ser con-
siderada inerente à psique dispensando explicações racionais como bem
aduz Yung (2011). Corrobora a visão de Staudt, Santos e Bitarello (2016)
de que o ser humano em seu viver concreto busca algo que o satisfaça, que
o alimente e de certa forma a religião significa esse encontro permeado
pela “fé” a um “Deus” alimentado pelos desejos pessoais das detentas,
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podendo ser os mais diversos, tais como: proteção, dependência, perseve-
rança, fidelidade, amor, bondade.
As detentas manifestam as suas religiosidades principalmente através
das orações com uma frequência de 60% dos discursos e evidenciaram
que possuir uma religião não significa que tenham que frequentar uma
igreja, pois há pessoas que manifestam sua religião através da religiosida-
de, sem, contudo, frequentarem a religião a que fazem parte, como bem
disse Fuller (2001), ponto esse observado nos discursos em que 100 % das
detentas manifestam-se através de suas religiosidades e que independe de
frequentarem ou não a respectiva religião na unidade prisional. Depreen-
deu-se das narrativas que os termos religião e religiosidade são termos
intrinsecamente ligados e até mesmo se confundem, e que esta é a ma-
nifestação da religião compreendendo, as formas como são expressas suas
instituições religiosas.
Na categoria a religião como uma forma de resiliência ao serem in-
terrogadas se sabiam sobre o significado da palavra resiliência, 100% das
detentas responderam que não. Diante da falta de conhecimento sobre o
significado da palavra resiliência, fora então explicitado pela pesquisadora
sobre seu significado que após obterem essa informação foram então, in-
terrogadas novamente sobre se compreendiam a religião como uma forma
de resiliência. Do resultado, 100% compreenderam a religião como uma
forma de resiliência. Duas palavras foram recorrentes nos discursos das
detentas: “fortalece” e “superar”. Referem-se à religião como algo que
vem de fora da unidade prisional e que colabora para amenizar o que estão
sentindo seja uma mágoa, um ressentimento, o ódio, a revolta, a solidão,
a dor, o desamparo.
Os discursos retrataram o entendimento que na literatura, as produ-
ções científicas versam sobre o conceito de resiliência, tal como menciona
Taboada, Legal e Machado (2006) que no processo resiliente o indivíduo
consegue superar as adversidades, buscando adaptação independente do
meio em que se encontram. A religião colabora então, conforme as falas
das detentas para esse processo de fortalecimento e superação e podendo
ainda essas pessoas saírem transformadas mesmo em meio às adversidades
como bem explana Yunes (2003) em seus estudos sobre a resiliência.
A religião é um fator de proteção e como já dizia Rutter (1987) que
fatores de proteção têm como uma de suas funções reduzir os impactos
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
dos fatores de riscos. Nesta perspectiva Yung (2011) trata a religião como
uma forma inata de proteção contra o inconsciente destacando as formas
de manifestações da religiosidade como medidas de proteção.
Constatou-se que as participantes da pesquisa sejam elas, detentas
brasileiras e bolivianas, ambas vivenciam a mortificação do eu confirman-
do a teoria de Goffman (1992) sobre as “instituições totais” tornando-se
a prisão um fator de risco em potencial e em meio a esse momento de
vulnerabilidade, a presença da religião, auxilia no fortalecimento de capa-
cidades resilientes que amenizam a situação de adversidade possibilitando
atitudes de enfrentamento e superação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise de dados, a pesquisa evidenciou que as detentas
participantes possuiam representações sociais sobre as religiões ancora-
das ao encontro com um ser superior, transcendente e que possibilita um
bem-estar naquele momento de vulnerabilidade, qual seja a prisão.
No mundo do cárcere as mulheres sofrem com efeitos da prisioniza-
ção independente se são brasileiras, bolivianas ou outras nacionalidades,
haja vista se tratar de um mundo diferente do mundo particular e/ou da
cultura que trouxeram quando em liberdade. Vivenciar esse mundo dife-
rente denominado prisão afeta as fronteiras não mais somente físicas e/ou
geográficas, mas sim as fronteiras psicológicas em que o “eu” de cada pes-
soa é invadido de forma abrupta, momento em que até mesmo suas vestes
já não serão as mesmas, num espaço de coletividade de diferentes, onde os
corpos estão sujeitos às invasões internas criadas na cultura prisional e que
não há como não serem invadidos.
A religião na prisão torna-se, não somente um instrumento de res-
socialização, mas mecanismo de assistência à diversidade, um mecanismo
salutar de contato com o mundo externo num momento de suas vidas em
que a maioria se sente abandonada pela própria família, num contexto em
que as fronteiras do seu “eu” ao serem invadidas trazem a solidão, sofri-
mento, desamparo, desamor.
A religião torna-se um fator de proteção ao possibilitar o investimen-
to nas capacidades resilientes das detentas vindo a atenuar ou modificar,
portanto a situação vivenciada num determinado momento considerado
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
negativo à vida dessas mulheres na prisão, enquanto considerada fator de
proteção. Há que se mencionar que a proteção não elimina os fenômenos
ligados à situação estressante experienciada, no caso os efeitos da prisão
como uma instituição total, e nem significa falta de vulnerabilidade, o que
ocorre é a mudança na forma como as detentas enfrentam as circunstân-
cias desfavoráveis naquele momento. O fato da religião possibilitar for-
talecimento das capacidades resilientes não significa que as detentas não
poderão reincidir, mas sim que se fortalecem naquele momento prisional
de vulnerabilidade em que fatores de riscos estão presentes.
A pesquisa, portanto analisou a representação social de detentas brasi-
leiras e bolivianas sobre religião e religiosidade e suas capacidades resilien-
tes bem como conheceu os aspectos da religião e religiosidade e vivências
religiosas no estabelecimento penal feminino na região de fronteira Brasil
- Bolívia na cidade de Corumbá/MS, e de entendimento da análise e dis-
cussão dos resultados, a retratar a religião como um importante fator de
proteção no contexto prisional.
Acredita-se, que este estudo em tela potencializa o acervo da comu-
nidade científica, como um dado a mais sobre o tema, e, especificamente
quando se trata de mulheres em situação de privação de liberdade, haja
vista o número reduzido de pesquisas brasileiras nesse campo, o que per-
mite prever que não é um tema acabado, tem-se muito ainda a estudar e
contribuir. Conclui-se, portanto que a religião possibilita fortalecimento
das capacidades resilientes em detentas em situação de privação de liber-
dade do Estabelecimento Penal Feminino “Carlos Alberto Jonas Giorda-
no” de Corumbá/MS, sendo está considerada um fator externo de prote-
ção, que aliado ao fator interno de proteção de cada detenta, facilitam na
construção do processo resiliente.
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ONDE ESTÁ O ESTADO LAICO
NAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
A DIVERSIDADE? UM ESTUDO DE
CASO DA POLÊMICA EM TORNO DO
“KIT ANTIHOMOFOBIA”
Marcus Alberto Moura Maciel118
INTRODUÇÃO
Tendo como “pano de fundo” os episódios; promovidos pela "Frente
Parlamentar Evangélica" no Parlamento em 2011; que resultaram na sus-
penção pela Presidenta Dilma da distribuição de seis mil “kits antihomo-
fobia”; ferramenta do Programa “Escola sem Homofobia”, projeto apoia-
do pela militância LGBT119, com a ajuda da sociedade civil organizada;
através de ONGs e coordenado pela SECAD/MEC.
Procurando focar a problemática analisando e pesquisando a posição
daqueles que deveriam agir em nome de um Estado laico para executarem
as políticas públicas para a diversidade; em nosso caso específico a Presi-
denta Dilma e alguns Deputados Federais; e acabam ouvindo seus dogmas
118 O autor é Historiador, Geógrafo, Gestor Ambiental, Militante voluntário d’uma ONG;
que trabalha com Diversidade e Direitos Humanos, artigo apresentado para a conclusão da
Especialização em Educação para a Diversidade e Cidadania na UFG (2010-2012). Orientado
por Marcelo de Paula Pereira Perillo.
119 Neste artigo vamos usar esta sigla foi aprovada em 2008, durante 1ª Conferência Nacio-
nal GLBT, quando houve a troca do GLBT pelo LGBT.
542
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religiosos contrariando a Constituição Federal que apregoa a laicidade do
Estado.
Por se tratar de uma temática da pós-modernidade: Diversidade-Ho-
mofobia; não há autores consagrados, há sim; uma quantidade variada de
dissertações e teses de novos pesquisadores, que guardam o mérito por
estarem produzido estudos a partir de sólidas bases teóricas com a preocu-
pação em sustentar suas hipóteses a partir de uma farta e consistente base
documental.
Neste artigo partirmos da relação entre Estado Brasileiro e a socie-
dade, sabendo que a condição de Estado Laico é resultante de uma luta
política e social que constrói a Democracia. Nesta Especialização, encon-
tramos eco aos anseios e inquietações na temática “Relações de Gênero e
Homofobia na Escola”.
1. REVISITANDO A HISTÓRIA
Apesar de existir diferença entre neutralidade e imparcialidade, prin-
cipalmente quando se produz pesquisas na área das Ciências Sociais; as-
sim, este trabalho segue o que aduz Geertz:
o acesso direto ou neutro ao ponto de vista nativo é inviável pois,
o antropólogo não pode se abster de suas pré-convicções, e que a
compreensão se daria através da articulação entre conceitos dis-
tantes (os dos nativos) e conceitos próximos (os do antropólogo).
(GEERTZ, 1974, p.32)
Sustenta Ávila (2006), o instrumento fundamental de dominação dos
colonizadores sobre o povo nativo do continente foi à repressão as suas
divindades e a imposição à conversão ao catolicismo:
A intolerância ao que é diverso, do ponto de vista religioso, é parte
da nossa colonização e essa intolerância se estendeu ao campo da cultura como
um todo, criando justamente um conflito entre as culturas dos diferentes povos
e a cultura hegemônica do colonizador, totalmente apoiada na ordem
religiosa como campo de legitimação do poder econômico e po-
lítico. Dessa forma a Igreja Católica é parte do projeto colonial na
América. (ÀVILA, 2006, p.17, com grifos nossos)
543
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Esta fala de Ávila legitima as políticas públicas que em 2003 e 2008
introduziram nos curriculos escolares da Educação Básica o ensino da
História e Cultura Afro-ameríndia.
1.1 Na chegada ao Brasil
É notório que no Brasil, a Santa Madre Igreja Católica Apostólica
Romana foi uma das instituições que mais colaborou para a construção
de uma sociedade hierárquica, autoritária e intolerante com a liberdade de
religião. A supremacia religiosa do europeu em detrimento da diversidade
dos cultos indígenas e afros fez parte do nosso processo de colonização e
até hoje estão nos livros didáticos.
Para nos referir a laicidade do Estado Brasileiro se faz necessário vol-
tarmos na linha do tempo, vejamos:
[...] 22 de abril de 1500; quando as Naus e Caravelas comandadas
por Pedro Álvares Cabral avistaram o Monte Pascoal, aportaram
na Bahia de Todos os Santos e quatro dias depois Frei Henrique de
Coimbra, um franciscano; oficiou todo aparamentado a primeira
Missa, enquanto a tripulação congregava-se na praia as voltas do
altar, na Terra de Santa Cruz. Tomavam assim posse, em nome do
rei de Portugal e da santa fé católica.[...]. (Fragmentos da Carta de
Caminha a El - Rei, 1º de maio de 1500, adaptado, com pequenas
alterações de HOONAERT, 1986, p.310, com grifos nossos)
Neste texto, vemos seis informações impregnadas com o conceito
católico, comprovando que na época da colonização o Estado e a Igreja
andavam juntos.
Utilizamos a análise de conteúdo Bardin (1979) como procedimento
metodológico para a avaliação interpretativa dos recortes históricos aqui
apresentados. A análise de conteúdo pode ser definida como:
Um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando ob-
ter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do
conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que
permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção destas mensagens. (BARDIN, 1979, p. 42)
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Desta forma, temos a seguinte analise: Monte Pascoal, referente à Pás-
coa, a celebração do renascimento católico, uma vez, que Cabral aqui
aportou num domingo de páscoa; Frei, o irmão na Ordem Franciscana
que é uma ramificação da hierarquia católica; Franciscano, membro da Or-
dem dos Franciscanos; Missa, ou Celebração Eucarística, é um ato solene
com que os católicos celebram o sacrifício de Jesus Cristo na cruz, recor-
dando a Última Ceia; a primeira nas novas terras denota uma afinidade
muito grande em divulgar as crenças do Vaticano; Terra de Santa Cruz; a
nova terra descoberta, agora abençoada e não mais pagã; Santa fé católica,
a certificação que as novas terras através do ato litúrgico trariam benesses
ao rei.
Oliveira (2005) afirma que esta relação existente entre a história e o
sagrado é uma relação dialógica:
As mudanças citadas foram de suma importância para que a Igreja
do Brasil enveredasse por novos caminhos, reelaborando, assim,
seus objetivos e práticas da ação pastoral. Como mencionamos, a
religião sempre esteve presente no processo histórico do país, acre-
ditamos que este foi um dos elementos que nos ajudaram a com-
preender nossa história, bem como o presente, que é fruto de um
passado próximo. A religião como cultura universal se apresenta
como ponto de relevância para o entendimento da realidade. Vive-
mos um contexto histórico propício para isto, pois, a cada momen-
to, percebemos que os elementos do sagrado estão em plena inte-
ração com as diversas situações vigentes, tais como guerras, crise,
ideologias e mudanças políticas. Ressaltamos que, em determina-
dos momentos, houve sinais de conflito, como no caso das Con-
frarias Religiosas, por exemplo. (OLIVEIRA, 2005, p. 107-109)
Eliade (1992) explica que podemos localizar pela primeira vez esta
relação entre história e o sagrado quando expõe a visão do historiador
Heródoto:
Podemos localizar sua primeira manifestação na Grécia clássica,
sobretudo a partir do século V. Esse interesse manifesta-se, por um
lado, nas descrições dos cultos estrangeiros e nas comparações com
os fatos religiosos nacionais – intercalados nos relatos de viagens –
545
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
e, por outro lado, na crítica filosófica da religião tradicional. Heró-
doto (c. 484-c. 425 a.C.) já apresentava descrições admiravelmen-
te exatas de algumas religiões exóticas e bárbaras (Egito, Pérsia,
Trácia, Cítia etc.), e chegou até mesmo a propor hipóteses acerca
de suas origens e relações com os cultos e as mitologias da Grécia.
(ELIADE, 1992, p.6).
1.2 Na Primeira Missa de Brasília
Num texto mais recente, em plena “Era JK”, com uma Constituição
que definia o Estado Brasileiro sendo laico, encontramos os mesmos im-
bróglios da ocupação e posse pelos portugueses, ou seja, relações íntimas
com a Igreja Católica. Desta feita, a amizade de JK com Dom Eugênio
Salles, bispo auxiliar de Natal, e com o então Secretário geral da CNBB,
Dom Hélder Câmara, produziu o episódio relatado abaixo, registrado no
livro Distrito Federal: Artístico, Cultural, Histórico e Natural:
[...] 3 de maio de 1957; pela manhã, no meio do cerrado ermo, aos
pés da cruz tosca esculpida em pau-brasil; fincada em 1955; sob
uma tenda de lona verde musgo e armações de madeira no ponto
mais alto do “plano piloto” de Brasília; 1.172 metros do nível do
mar; hoje Alto do Cruzeiro – atrás do Memorial JK – foi realizada
a primeira Missa oficial de Brasília, planejada por Juscelino Kubi-
tschek para tornar-se um fato histórico e político.
[...] Missa esta celebrada, pelo arcebispo de São Paulo, Dom Carlos
Carmelo de Vasconcellos Motta, que na oportunidade em nome da
capital de São Paulo ofertou a imagem de Nossa Senhora Aparecida
à nova capital brasileira, tornando a santa também padroeira de Bra-
sília. O próprio Papa Pio XII dirigiu uma mensagem aos brasileiros.
[...] Repetia-se assim o Descobrimento celebrando a missa no
mesmo dia. A missa do Descobrimento aconteceu em 22 de abril,
mas, dada a diferença de dez dias entre o calendário juliano, utili-
zado na época, e o gregoriano, adotado atualmente. A posição do
Sol em 22 de abril de 1500 era praticamente a mesma de 3 de maio
de 1957. Estima-se que 15 mil pessoas vieram de todas as partes
do País, de ônibus e em pequenos aviões. (LOPES, 2007, p. 23 -
grifos nossos)
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A Primeira Missa oficial de Brasília assemelha-se com o evento da
primeira Missa de 1500 e faz o governo JK juntamente com a Igreja Ca-
tólica tomarem posse do cerrado brasileiro, abençoando-o. As quinze mil
pessoas deslocadas de distantes pontos para prestigiar uma celebração ecle-
siástica fizeram demonstrar um grande prestigio. JK enfrentava problemas
com a transferência da capital do Rio de Janeiro para o Centro Oeste,
nada mais justo buscar apoio com autoridades da Igreja junto ao maior
colégio eleitoral, no caso São Paulo.
Essa transferência do legado das grandes romarias a cidade de Apare-
cida do Norte a cidade que está nascendo novamente demonstra prestigio
e apoio incondicional a JK. A oferta da imagem de Nossa Senhora Apa-
recida demonstra uma arguta estratégia do representante eclesiástico do
maior colégio eleitoral brasileiro frente à futura capital. E com a mensa-
gem da maior autoridade católica, o papa Pio XII, sela-se o apoio da Igreja
ao governo JK perante o Brasil e o mundo.
No terceiro parágrafo do texto, vemos ao trabalho que se deu para
justificar perante regras católicas uma possível coincidência estrelar e fazer
do acontecimento um evento político/religioso onde o maior colégio elei-
toral, São Paulo, estaria representado e também com as benções de uma
autoridade eclesiástica que representava o nordeste, onde é publica e no-
tória a fé daquele povo inclusive com vários mártires nacionais. Assim, JK
demonstrava ter apoio político e espantava os rumores que não concluiria
seu mandato e não inaugurava Brasília.
São exemplos das relações do Estado Brasileiro com a Igreja Católi-
ca, nos levando a crer que existe uma nebulosa nesta relação de troca de
favores e benesses; fazendo com que o Estado seja laico de direito e não
de fato.
O século XIX trouxe mudanças significativas para o contexto his-
tórico brasileiro daquele período, o que se configurou a partir do ano de
1808, com a abertura dos Portos às Nações Amigas...A partir de então, a
Igreja Católica Portuguesa passa a perder espaço na evangelização e cate-
quese em terras brasileiras, uma vez que padres de diversas nacionalidades
começam a chegar ao país, sem esquecermos que os protestantes também
aqui começam a desembarcarem; as primeiras modificações desta relação
acontecem no meio do vendaval iluminista e já no segundo ano da Re-
publica é editado o Decreto 119-A/1890, separando a Igreja do Estado;
interessante, é que este Decreto está em vigor até a presente data.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Assistimos a profundas transformações na sociedade brasileira desde a
eleição do operário Luís Inácio Lula da Silva (PT/SP), em 2002, que não
podem ser ignoradas, cresceu no país a percepção da importância da edu-
cação como instrumento necessário para enfrentar situações de precon-
ceitos e discriminação e garantir oportunidades efetivas de participação de
todos nos diferentes espaços sociais.
Em um país cujo modelo de desenvolvimento excluía parcela signifi-
cativa da população de ter acesso à escola ou nela permanecer, na área da
Educação foram implantadas “Políticas Públicas no intuito de diminuir a
violência no ambiente escolar”, em julho de 2004, teem-se a criação no
MEC, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversi-
dade (SECAD) para promover a ampliação do acesso à educação através
de políticas de diversidade reunindo temáticas que inexistiam em gestões
anteriores. Atividades de formação continuada foram desenvolvidas nas
unidades da federação, com o intuito de preparar os profissionais de edu-
cação e orientação para terem condições de debater nas salas de aulas com
os estudantxs120 a temática da diversidade, discriminação e sexualidade. O
ícone maior desta política pública com apoio da sociedade civil organiza-
da, da militância LGBT, empresas e organismos internacionais é o Projeto
“Escola sem Homofobia” que será detalhado a seguir.
1.3 O Programa “Brasil Sem Homofobia”
Homofobia refere-se ao medo, a aversão ou o ódio irracional aos ho-
mossexuais: pessoas que têm atração afetiva e sexual por pessoas do mes-
mo sexo. É a causa primária da discriminação e violência contra os ho-
mossexuais. A homofobia tem sido responsável por 2.403 assassinatos de
gays, lésbicas e travestis no Brasil nos últimos 20 anos (GGB, 2011).
O Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT
e de Promoção da Cidadania de Homossexuais “Brasil sem Homofobia”
(BSH), é uma das bases fundamentais para ampliação e fortalecimento do
exercício da cidadania, um verdadeiro marco histórico na luta pelo direito
à dignidade e pelo respeito à diferença.
120 Neste trabalho entende-se que a linguagem corrente assume o masculino como padrão
hegemônico perpetuando valores sexistas e discriminatórios. Por este motivo, dentro dos
limites que a própria língua impõe, procuramos utilizar uma “linguagem inclusiva”.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Para atingir tão ampla meta, o Programa envolveu dez Ministérios e Se-
cretarias Especiais, também envolveu uma série de outros órgãos governa-
mentais, como o Conselho Nacional de Combate à Discriminação; Con-
selhos Estaduais e Municipais de Direitos Humanos; Secretarias Estaduais e
Municipais de Segurança Pública; Universidades; a Procuradoria Federal dos
Direitos do Cidadão do Ministério Público da União; o Ministério Público
do Trabalho; além do próprio o Parlamento. (BRASIL, SEDH/PR, 2004)
O Estado ao tomar a iniciativa de elaborar o BSH, reconheceu a tra-
jetória de milhares de brasileiros e brasileiras que desde os anos 80 vêm se
dedicando à luta pela garantia dos direitos humanos dos homossexuais, este
Programa é uma articulação bem sucedida e é responsável por atitudes e com-
portamentos documentados na pesquisa Juventude e sexualidade realizada pela
UNESCO em 14 capitais em 2000, com 16.422 estudantes, 3.099 educador-
xs e 4.532 pais e mães de alun@s de 241 escolas, onde: 27% d@s estudantes
não gostariam de ter homossexuais como colegas de classe; 35% dos pais e
mães de alun@s não gostariam que seus filh@s tivessem homossexuais como
colegas de classe e; 15% d@s estudantes consideram a homossexualidade uma
doença. Esta Pesquisa por si só é de suma importância para a causa GLBT,
respaldando oficialmente as reivindicações, nesse rastro em conjunto com o
MEC nasceu o kit anti-homofobia, objeto desta nossa discussão.
Em 2009, nos mesmos moldes, foi publicado o estudo Revelando Tra-
mas, Descobrindo Segredos: Violência e Convivência nas Escolas, baseado em
uma amostra de 10 mil estudantes e 1.500 professorxs do DF, apontan-
do que 63,1% dos entrevistados alegaram já ter visto pessoas que são (ou
aparentam ser) homossexuais sofrerem preconceito; mais da metade d@s
professorxs afirmam já ter presenciado cenas discriminatórias contra ho-
mossexuais nas escolas; e 44,4% dos garotos e 15% das garotas afirmaram
que não gostariam de ter colega homossexual na sala de aula.
2 O KIT ANTIHOMOFOBIA E O LOBBY POLÍTICO
RELIGIOSO
A escola brasileira foi chamada a contribuir de maneira mais eficaz no
enfrentamento do que impede ou dificulta a participação social e política
e que, ao mesmo tempo, contribui para a reprodução de lógicas perversas
de opressão e incremento das desigualdades (JUNQUEIRA, et al, 2009).
Nesse sentido, faz-se necessário rever o significado de violência que cir-
cula. Abramoway (2009, p.19) aponta que: “A violência não é um pro-
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blema novo, nem específico da contemporaneidade. A diferença histórica
no trato da questão é a visibilidade dada à violência nos últimos tempos,
especialmente pela imprensa [...].”
Inserida nesse contexto a escola expõe uma realidade de despreparo
e até de apatia d@s profissionais de educação, diante de tais situações de
conflito, muitas vezes, carecendo de entendimento dessas relações.
Segundo o MEC, o Kit antihomofobia é composto de um caderno
“Escola sem Homofobia”, cinco vídeos que tratam da aceitação de colegas
LGBT, com seus respectivos guias, seis boletins (Boleshs), um cartaz e
uma carta de apresentação. (BRASIL-MEC, 2010)
Além dos vídeos; (“Medo de quê?”, “Torpedo”, “Encontrando Bian-
ca” e “Probabilidade” que se destinam especialmente @s estudantes, “Bo-
neca na mochila” é um material a ser usado não apenas para a formação
de educadorxs, mas também com mães, pais e familiares da comunidade
escolar, e estudantes em sala de aula); os professorxs receberão material
de apoio sobre diversidade sexual para ser discutido em classe, além da
questão LGBT.
O projeto foi coordenado pela SECAD, e e executado em parceria com
organizações não governamentais e principalmente da Associação Brasileira
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT.
O objetivo é diminuir os casos de bullying e intolerância nas escolas
e promover a aceitação das diferenças, o Kit recebeu apoios consideráveis,
como a aprovação total da UNESCO. Temos noticias de material seme-
lhante na Argentina, Chile, Colômbia e México.
Para o MEC, ao término dos trabalhos do projeto, os estudantxs terão
refletido sobre aceitarem as diferenças e evitar agressões e perseguições a
colegas que assumem a homossexualidade, ajudando a diminuir a forte
evasão escolar observada na parcela LGBT da população. É a educação em
direitos humanos que permite a afirmação de tais direitos e que prepara
cidadãos e cidadãs conscientes de seu papel social na luta contra as desi-
gualdades e injustiças. (TAVARES, 2006)
Atualmente, além das agremiações religiosas Católicas, Protestantes
e Pentecostais, influenciando os rumos políticos, temos assistido a pres-
são das chamadas agremiações Neopentecostais; dentre as quais destaca-
mos: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de
Deus, Igreja Renascer em Cristo, Igreja Fonte da Vida de Adoração, Igreja
Mundial do Poder de Deus, Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra,
Ministério Nova Jerusalém, Comunidade da Graça, Igreja Nacional do
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Senhor Jesus Cristo (de Valnice Milhomens) e o Ministério Internacional
da Restauração - MIR.
A diferença destas para as demais e que estas possuem uma evangeliza-
ção de massa, utilizando-se de canais de TVs, rádios, jornais, editoras, por-
tais ou sites; o que favorece a eleição de representantes em todas as esferas
do Poder Legislativo e ao tomarem posse, defendem suas convicções reli-
giosas. Em contrapartida, as lideranças de religiões mulçumanas, israelitas,
indianas, orientais e afros agem de forma mas tímida, preferindo cuidar de
assuntos sacros e do lado religioso, deixando a “Cesar o que é de Cesar”.
As bancadas conservadoras no Parlamento nunca foram tão grandes em
número e em influência. Severo (2011) teoriza que a bancada que mais tem
conseguido projeção neste mandato seja a "Frente Parlamentar Evangélica".
Já segundo dados da própria Frente, nas eleições de 2010, a bancada cresceu
de 46 para 68 Deputados, na Camara Federal; e no Senado, a bancada conta
atualmente com 3 representantes: Walter Pinheiro (PT-BA), Magno Mal-
ta (PR-ES) e o Bispo Marcelo Crivella (PR-RJ). A atual distribuição dos
membros da Bancada Evangélica por partidos é a seguinte:
Figura 1
Criação by João Victor Moura.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Com um agravante, em votações e debates que dizem existir interesse
“cristão” a "Frente Parlamentar Evangélica" se uni à Bancada Católica.
Aqui faremos algumas reflexões acerca do “kit gay” – denominação
pejorativa e mistificada amplamente noticiada pela imprensa e pela Frente
Parlamentar Evangélica e principalmente pelo Deputado Bolsonaro (PP/
RJ); que é contrário as reformas curriculares anti-homofobia, e populari-
zou o uso desta denominação.
Faz-se necessário pontuar os acontecimentos: não se trata de um “kit
gay”, mas, de um kit antihomofobia; material pedagógico, elaborado pe-
los mais diversos especialistas a fim de subsidiar nossos educadores e edu-
cadoras em todo o País.
Quem desconhece a proposta do kit antihomofobia diz que atenta
contra a família. Qual seria essa família? Recentemente, o Supremo re-
conheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo e o IBGE já no
Censo Brasileiro de 2010, ofertou várias classificações de família: a que é
comandada por uma mulher separada, por duas mulheres ou por um par
de homens. Aquele modelo de família tradicional; homem x mulher há
muito deixou de ser referência.
Segundo Gomes (2011, p.2), “o que cabe exemplificar é que desqua-
lificar a discussão em torno das violências e violações no contexto edu-
cacional é um retrocesso em um estado democrático de direito”. O kit
pedagógico antihomofobia em nenhum momento direciona jovens ado-
lescentes a serem homossexuais. O que ele busca é o respeito às diferenças
e o convívio social dentro da pluralidade. A suspensão do material por
parte da Presidenta Dilma sinaliza falta de compromisso com uma edu-
cação inclusiva, e no reconhecimento das diferenças e a necessidade do
respeito às mesmas, e é fruto de um bem montado e caro lobby religioso,
que é o mesmo que demanda contra os direitos sexuais e reprodutivos, a
liberdade de expressão e promove a “guerra santa” em nome de um Deus
para suas benesses e vaidades, e isso não pode nem deve pautar uma polí-
tica de Estado.
A Presidenta Dilma mostrou que a politicagem e a possibilidade de
salvar quem devia esclarecer atos ilícitos, se sobrepõe a vida da população
homossexual e usou isso como moeda de troca.
Segundo o militante, Carlos da Costa Souza Gomes (2011, p.3), “vá-
rios LGBTs são marginalizados, estigmatizados e excluídos do âmbito do
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
direito e da cidadania, os índices de evasão escolar por conta da discrimi-
nação sexual” vê-se um contraditório em um Estado que se propõe a fazer
inclusão social e a garantir direitos. A sociedade brasileira possui uma dívi-
da histórica a ser reparada com as mulheres, os negros, os índios e com os
homossexuais. Por muitos anos tivemos a heteronormalidade difundindo
a homossexualidade como: pecado, posteriormente como: crime e por
fim como: doença. Aqui, discutimos a educação e uma das mais brutais
formas de violência vivenciada no processo educacional: a homofobia. É
no ambiente escolar que construímos o futuro, a cidadania, o respeito, o
amor ao próximo, a valorização dos direitos fundamentais e a dignidade
humana, ou seja a Democracia.
Realizamos no presente trabalho a analise dos pronunciamentos ofi-
ciais realizados na tribuna do Parlamento; através das notas taquigráficas
da Câmara Federal, disponiveis no site oficial; por Deputados Federais
quem compõem a “Frente Parlamentar Evangélica”.
Em um primeiro momento foram ouvidos, transcritos e analisados
145 pronunciamentos de parlamentares, sendo que após filtragem só trin-
ta e sete deles diziam diretamente sobre as Políticas Públicas para a Di-
versidade, (reconhecimento de Direitos da população LGBT, União Ho-
moafetiva, Estatuto da Juventude, modificação de Currículos do Ensino
Fundamental, etc).
Num segundo corte, chegamos a 19 pronunciamentos, que estavam
diretamente ligados a discussão do material pedagógico antihomofobia e
incluiam pronunciamentos dos parlamentares: Jair Bolsonaro (PP/RJ),
João Campos (PSDB/GO) e Ronaldo Fonseca (PR/DF).
A pesquisa é um diálogo inteligente e crítico com a realidade. (DEMO
2001).
Conforme Martinelli;
Não se trata, portanto, de uma pesquisa com um grande número
de sujeitos, pois é preciso aprofundar o conhecimento em relação
àquele sujeito com o qual estamos dialogando. À base de todas
essas análises podemos reafirmar que a pesquisa qualitativa, não é a
quantidade de pessoas que irão prestar as informações que toma importância,
mas sim, o significado que os sujeitos têm, em razão do que se
procura com a pesquisa. (Martinelli 1994, p.23, com grifos nossos)
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Esta fala nos dá suporte para apresentarmos o presente estudo com
a analise dos pronunciametos de apenas um Parlamentar, no caso esco-
lheu-se aquele com oratória mais contundente; Jair Bolsonaro (PP/RJ);
optamos em trabalhar com fragmentos de seus seis pronunciamentos mais
incisivos. para não nos tornarmos longos e repetitivos.
Assim, após o acompanhamento das atividades parlamentares do pri-
meiro ano da 54ª Legislatura, (2011 a 2015), o contemplado para o pre-
sente estudo é o Deputado Jair Bolsonaro:
Ex Militar formado pela AMAN, natural de Campinas - SP,
Casado, tem 61 anos, Capitão do Exercito Brasileiro, eleito com
120.646 votos, está no seu sétimo mandato como Deputado Fede-
ral, já pertenceu ao Partido Democrata Cristão (PDC), ao Partido
Progressista Reformador (PPR), ao Partido Progressista Brasileiro
(PPR) atualmente faz parte dos quadros do Partido Progressista (PP)
do Rio de Janeiro, se diz Católico e que já pertenceu a Igreja Batista.
(CÂMARA FEDERAL, 2011)
Estes pronunciamentos são muito bem trabalhados pela oratória
e pela retórica, além de trazerem uma grande carga de fundamenta-
lismo, sofismas, falácias, sarcasmo e até mesmo teatro por parte de
seu autor.
De posse deste material, possamos iniciar as analises que confirmarão
ou não a nossa hipótese levantada: o lobby político e religioso ameaça a
laicidade do Estado Brasileiro principalmente nas Políticas Públicas para
a Diversidade.
Os fragmentos dos discursos analisados são apresentados a seguir nas
figuras 2 e 3.
Figura 2
IDENTIFICAÇÃO PRONUNCIAMENTO
PRONUNCIAMENTO A
(Em 10/02/2011 às 9:26)
(...) Eu quero que ele entregue um kit desses para cada Deputado desta Casa. Inclusive
com os filmetes: "Encontrnado Bianca". "Boneca na Mocila" e "Beijo Lésbico"... Isso
1A é uma imoralidade que o Ministério da Educação está fazendo, juntamente com os
grupos LGBT, que não têm nada a oferecer no tocante a curriculo, a bons costumes,
ética e moral para a garotada do primeiro grau.
(...) Duvido depois de distribuído esse kit gay a todos os Deputados, que esse trabalho
continuará sendo feito nas escolas públicas de primeiro grau. É inadmissível que a
2A garotada de 6, 7, 8, 9, 10 anos receba esse material de combate à homofobia. Na
verdade, esse material promove o homossexualismo e a promiscuidade.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
IDENTIFICAÇÃO PRONUNCIAMENTO
PRONUNCIAMENTO B
(Em 26/05/2011 às 9:50)
(...) Sr. Presidente, quero cumprimentar, em parte, a Presidente da República, em
que pese nossa distância ideológica, especialmente por causa de um passado próximo,
1B por ter lançado na lata do lixo o que chamamos de kit gay. Lá realmente é o lugar
desse material.
(...) Essa guerra não começou agora ou na semana passada. Mais especificamente,
começou em novembro do ano passado, quando descobrimos os filmetes que estavam
sendo passados na Comissão de Direitos Humanos. Eles não foram confecionados
pelo MEC, mas, conforme publicado no Diário Oficial da União, pela ABGLT... Eu
2B lamento que o MEC tenha feito convênio e gastado dinheiro para confeccionar este
material e, à surdina, jogá-lo nas escolas. Seria a mesma coisa de nós, se quiséssemos
combater o tráfico ou o consumo de drogas existente até dentro das escolas,
contratarmos o Comando Vermelho para fazer uma cartilha nesse sentido.
(...) Antes de agradecer à bancada católica, à bancada evangélica, entre outros
3B preocupados com a família, com os bons costumes, eu quero dizer aos meus
companheiros que o monstro ainda não está devidamente morto...
PRONUNCIAMENTO C
(Em 07/07/2011 às 10:34)
(...) Atenção o PSOL, Partido da solidariedade e homoafetividade, pode preparar
outra representação no Conselho de Ética, porque o bicho vai pegar mais grave agora!
1C Vocês têm um Deputado que se orgulha de ser gay, e há um outro que arranja milhões
para o kit gay e para movimentos LGBT.
(...) Se acham que vão me intimidar com representações sem-vergonha no Conselho
de Ética, estão enganados. A máscara de vocês está caindo. Esse é um partido que não
2C tem qualquer respeito com a família, com os bons costumes, com a religião, com a
moral.
Figura produzida pelo autor.
Esta figura registra fragmentos dos pronunciamentos do Deputa-
do Bolsonaro, realizados no primeiro semestre de 2011, inclusive com
aquele que parabeniza a Presidenta Dilma ‘por ter jogado na lata do lixo
o kit gay’.
Quem conhece o Parlamento brasileiro sabe que os setores represen-
tados pelas 'bancadas' e 'frentes parlamentares', procuram um fazer favor
ao outro em defesa de seus negócios oficiais ou 'oficiosos', e utilizando-se
de bonitas e bem vestidas recepcionistas que vão a cata de assinaturas para
suas proposituras, e a máxima do 'É dando que se recebe' é comum nas
trocas de assinaturas: fulano assina a propositura de beltrano se cicrano
também assinar...
"O Congresso é um balcão de negócios”, afirmou o Presidente Lula
em depoimento inédito gravado em 1997 e publicado por (NUNES,
2009) na Revista Veja, o Presidente afirmou ainda: "o presidente é obri-
gado a negociar com os Judas do Parlamento”.
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Figura 3
IDENTIFICAÇÃO PRONUNCIAMENTO
PRONUNCIAMENTO D
(Em 6/09/2011 às 9:50)
(...) Sr. Presidente, esperava não ter mais que tocar neste assunto, uma vez que já
sofri um desgaste muito grande e fui jogado no Conselho de Ética. Acabei sendo
1D absolvido, pois a maioria do Conselho era composta de héteros e de pessoas com
vergonha na cara. Quanto ao restante, lógico que alguns votaram para me cassar.
(...) Em decreto presidencial de 18 de maio convoca-se para a 2ª Conferência
Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos LGBT, para os dias de 15 a 18 de
2D dezembro. Qual é o objetivo disso? “Reconhecer todas as configurações familiares
protagonizadas por lésbicas, gays, bissexuais e travestis com base na reconstrução de
heteronormatividade”.
(...) Entre as questões tratadas sobre o currículo escolar, no ítem 1.4.6 – distribuição
de livros para bibliotecas escolares com a temática diversidade sexual para o público
3D infanto (até 10 anos) juvenil (10 aos 15 anos)* Para concluir. É a desconstrução
da família. Parece que é um partido que quer apoiar o ateísmo em nosso País e
esculhambar a família.
PRONUNCIAMENTO E
(Em 31/10/2011 às 14:46)
(...) Na audiência pública da 5ª feira uma deputada disse que o pai que porventura
use das mãos para dar uma palmada em seu filho ou advertí-lo drasticamente, mais
1E tarde levará esse garoto ao consumo de drogas. (Refere-se à audiência do Estatuto da
Juventude).
(...) Sr. Presidente, quero fazer um alerta. Existem passagens bíblicas, não sou
evangélicos, frequentei a Igreja Batista por 10 anos, sou católico, provérbios que
2E dizem, dentre outras coisas, que, quando um pai quando usa a vara da correção está
salvando o filho do inferno.
(...) É mais uma medida do governo para ajudar a deseducar as nossas crianças, como
3E se não bastasse o ensino homossexual que quis impor neste ano, o kit gay, que eu
denunciei aqui muito tempo sozinho.
PRONUNCIAMENTO F
(Em 24/11/2011 às 14:54)
(...) Sr. Presidente, há poucos meses, vimos pela televisão a Presidente Dilma dizer
que tinha mandado o MEC recolher o kit gay, porque ele era inadequado. Parabéns a
1F Dilma! Mas, há um detalhe. Ontem, queria presidente Dilma, o assunto voltou com
toda a carga à Comissão de Legislação Participativa, através de um subordinado seu...
(...) Os livros têm que conter a temática LGBT. De que trata essa temática LGBT?
Da inclusão de livros didáticos para as escolas públicas do 1º grau. Meu Deus do céu!
Não estou perseguindo homossexual, não quero isso dentro das escolas. Como posso
2F pagar escola para o meu filho, ele não frequenta escola pública. Mas não quero que o
filho da senhora que trabalha na minha casa ajudando a minha esposa, que frequenta
escola pública, tenha acesso à essa imoralidade.
(...) Nobre querida Presidente Dilma, o MEC e a SEDH/PR estão ignorando a
senhora! V. Exa. tem um neto, eu tenho um filho menor. Eu acho que falamos a
3F mesma linguagem. Quem tem o prazer de ter um filho gay? Agora, podem dizer:
“Oh, ele está discriminando” eu não tenho prazer e tenho uma tribuna para falar,
e vou falar.
(...) Mas, ainda, pasmem, senhores, o que eu estou falando está no site oficial da
Secretaria Nacional de Direitos Humanos: cria bolsa de estudo que qualifica
4F professionais travestis e transexuais. Para conseguir uma bolsa de estudo tem que se
transformar em travesti ou transexual. Ou é só analfabeto?
Figura produzida pelo autor.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Na figura 3, acima temos os fragmentos dos pronunciamentos do par-
lamentar durante o segundo semestre de 2011, é possivel notar uma retó-
rica, machista, conservadora, racista, miságina e excludente
Encontramos nos 17 fragmentos de pronunciamentos do Deputado
Bolsonaro uma gama de características que não condizem com o que pre-
coniza a Constituição Federal no que tange aos Direitos Individuais e a
Laicidade, para facilitar o entendimento, classificaram seus artifícios sofis-
mo e falácias em seis categorias, a saber:
O Parlamentar Preconiza a homossexualidade como sendo algo
doentio, promiscuo e ilegal, inclusive, utilizando-se do verbete “homos-
sexualismo”, há mais de vinte anos em desuso.
O orador se faz passar por pessoa do “senso comum”; ou de pouco
estudos; procurando atingir essa parcela da população que possui maior
facilidade em interpretar suas falas distorcidas da verdade, e desqualifica
os LGBTs.
O Deputado se coloca como paladino e defensor da Família, da Ética,
da Moral e dos Bons Costumes passando a mensagens que a comunidade
LGBT não possui essas mesmas qualidades e paradigmas.
O Parlamentar faz uso de citações bíblicas ou utiliza-se de chavões
invocativos á Deus, na pretensão de fazer seus ouvintes acreditarem que os
relacionamentos homoafetivos seja algo pecaminoso.
Com todo esse emaranhado de versiculos biblicos e a pressão da
"Frente Parlamentar Evangélica" com apoio da "Bancada Católica", traze-
mos a fala da Dra. Simone Coutinho (2011), procuradora em Brasília,
defende uma reforma no código eleitoral que impeça no Parlamento a
existência de representações religiosas, ainda que informais, como o lobby
católico e a bancada evangélica.
Afirma ainda, Coutinho (2011, p.3), “Num Estado laico todo poder
emana da vontade do ser humano, e não da ideia que se tenha sobre a
vontade dos deuses ou dos sacerdotes”, por fim, conclui seu artigo escre-
vendo. “Se o poder emana do ser humano, o direito do Estado também
dele emana e em seu nome há de ser exercido.”(COUTINHO, 2011, p.3)
Bolsonaro é contrário a união homoafetiva, a adoção por casais ho-
moafetivos de crianças, contra a doação de sangue por pessoas LGBTs,
contra o uso do 'nome social' de Travestis e Transsexuais em documen-
tos oficiais do governo, enfim, como ele proprio disse em entrevista a
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
revista masculina Playboy; (edição 434) de junho do corrente ano, "pre-
firo um filho morto a um herdeiro gay". Outras afirmações na mesma
entrevista foram estas: "Ser vizinho de um casal homossexual é motivo
de desvalorização do imóvel"; "Seria incapaz de amar um filho homos-
sexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu
morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim
ele vai ter morrido mesmo".
É visivel pela trajetória do Parlamentar uma visão distorcida da laici-
dade do Estado Brasileiro, pois, sempre se coloca como defensor da 'fa-
milia tradicional', e para isto utiliza-se de acordos com sua conveniência
junto a "Frente Parlamentar Evangélica" e lideranças religiosas.
Deputado Federal há 21 anos, Bolsonaro sempre foi do chamado
"baixo clero" do Congresso Nacional - nunca teve papel de liderança nos
partidos políticos a que pertenceu, nunca assumiu cargos no governo
federal ou posições de destaque na Câmara dos Deputados de mais de
uma centena de Projetos de Lei apresentados só logrou exito em dois, é
extremamente conservador e se diz o defensor da Ditadura e ser termi-
nantemente contra o comunismo que exerga que no Brasil ele se encon-
tra infiltrado no PT.
Existem rumores que poderá vir a disputar o Governo do Rio de
Janeiro nas eleições majoritárias de 2018 ou até mesmo a Presidência da
República, uma coisa é certa, os avanços que aconteceram até aqui com
relação as politicas públicas inclusivas para Indios, Negros, Idosos e a Co-
munidade LGBT tem na pessoa deste Parlamentar uma verdadeira pedra
no caminho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo não termina na sua última linha, acreditamos que seja ape-
nas a abertura de um debate a cerca da laicidade do Estado Brasileiro nas
Políticas Públicas direcionadas para a Diversidade.
Do vasto material pesquisado, lido e relido, e das analises, concluímos
que nesta relação ambígua com a Igreja Católica, por vários momentos
perdeu o povo, e mais recentemente com as relações; também interessei-
ras; das Igrejas Pentecostais e Neopentecostais, corremos o risco de nova-
mente perdermos avanços Democráticos em Direitos Humanos.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Faço minhas as palavras do professor Marlon: “a relação Igreja X
Estado, é um elemento de intensas discussões, em muitos momentos da
história nacional e foi possível se perceber uma acentuada aproximação
das duas esferas de poder, bem como também é possível se perceber uma
relação de conflitos”. (OLIVEIRA, 2005, p.12)
Salve melhor juízo, a laicidade preconizada Constitucionalmente será
verdadeira quando for colocada em prática algumas proposituras do Mi-
nistério Público Federal que proíbe o uso de símbolos religiosos em órgãos
Públicos e outra pela inconstitucionalidade do uso da palavra “cristão” na
denominação de alguns partidos políticos.
Pretendemos através, deste debate agora iniciado, incentivar as rela-
ções politicamente corretas, promovendo a aceitação da diversidade; por
aqueles que atuam em nome do Estado Laico; e trazem nas mãos a “Bí-
blia”, evitando que façam dela uma espada inquisitória; para isso tomamos
como base a Constituição Cidadã (1988) e o que preceitua a Declaração
dos Direitos Humanos; esta jovem senhora sexagenária; assim, teremos a
certeza de estarmos participando do processo de fortalecimento da nossa
jovem Democracia.
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561
POVOS INDÍGENAS: A
DEMARCAÇÃO DE TERRAS COMO
DIREITO FUNDAMENTAL
Carlos Augusto Almeida de Jesus121
INTRODUÇÃO
Os povos indígenas vivem no Brasil desde muito antes de 1500, uti-
lizando da terra para o plantio, colheita de frutos, pesca de peixes e cons-
trução de propriedade (ou melhor, aldeias), isto é, já utilizavam da terra
para diversas funcionalidades do dia a dia, assim era exercida uma função
social da terra.
Com a chegada dos portugueses e com o crescimento avassalador do
capitalismo no decorrer dos séculos, os indígenas foram perdendo cada
vez mais a terra que utilizavam anteriormente pelo fato das pessoas objeti-
varem o lucro, destruindo florestas para a agricultura. Desta feita, questio-
na-se: a demarcação de terras de povos indígenas está sendo devidamente
realizada? Este direito fundamental foi esquecido pelo poder executivo
federal?
A presente pesquisa, assim, terá a seguinte hipótese: levando em con-
sideração que a bancada ruralista no Congresso Nacional tem avançado
demasiadamente e que os presidentes tem dado prioridade a fins empre-
sariais ao invés dos povos originários, o direito fundamental a demarcação
de terras indígenas acabou sendo esquecido pelo poder executivo federal,
ainda mais em tempos bolsonaristas.
121 Acadêmico em Direito pelo Centro Universitário AGES – UniAGES.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Objetiva-se de forma geral, dessa maneira: analisar o direito fun-
damental a demarcação de povos indígenas. Especificamente, objeti-
va-se: compreender o direito à terra, juntamente com as legislações
anteriores a Constituição Federal de 1988; entender quais os direitos
dos povos nativos brasileiros com a promulgação da Carta Magna;
constatar como os governos trataram o direito a demarcação de ter-
ras, bem como demonstrar a quantidade de terras que estão em pro-
cesso de demarcação.
A presente pesquisa encontra justificativa em algumas razões, por
exemplo: a atualidade do tema, uma vez que falar sobre indígenas é falar
sobre o presente, tendo em vista a necessidade de demarcação de terras e
analisar a atualização dos processos; e a relevância do tema, tendo em vista
que os indígenas necessitam da demarcação para poder subsistir e ter um
direito adquirido.
Por fim, cabe ressaltar que, por mais que indígenas tenham maior
vivência e saibam das lutas e conquistas de forma real, torna-se necessário
que não somente o grupo social delibere do assunto, pois, como ressaltado
por Djamila Ribeiro (2017), àqueles que ocupam posições privilegiadas
devem estudar e teorizar sobre questões de outros povos para reflexão a
partir do local social que ocupam.
2 METODOLOGIA
Para efetivação da presente pesquisa, escolheu-se o método biblio-
gráfico que, segundo Antonio Carlos Gil (2008), é realizada a partir de
materiais que estão elaborados e discutidos. Desta maneira, levando em
consideração que foi utilizado artigos científicos, livros e legislações, o
método bibliográfico é o mais adequado.
Paralelo ao método bibliográfico, foi escolhida a pesquisa qualitativa,
haja vista que foi realizada a coleta os dados para a descrição dos fenô-
menos com o uso das opiniões e pontos de vistas de divergentes autores,
tornando-a mais ampla e com um rico conteúdo (GIL, 2008). Desta feita,
foram coletados dados de sites diferentes, a exemplo do Google Acadêmi-
co e a legislação do Planalto, tendo em vista a quantidade de leis utilizadas
para efetivação da presente pesquisa.
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3 A TERRA E O DIREITO INDÍGENA: CONCEITOS
INTRODUTÓRIOS
A terra é um dos bens mais importantes que existem em todo o mun-
do. A um, porque é a partir dela que o ser humano promove a plantação
e a colheita dos alimentos para que possa sobreviver com o mínimo exis-
tencial. A dois, porque é a partir da terra que a pessoa poderá construir sua
propriedade para que possa viver, por exemplo (OLINTO, 2017).
Olinto (2017) divide a função social da terra em três dimensões di-
vergentes, sendo elas: humana, ambiental e econômica, todavia, no Brasil,
tem impactado de maneira mais presente, a última dimensão, ficando o
trabalhador e o meio ambiente em segundo plano. Desta forma, a função
social da terra será devidamente efetivada quando, por exemplo: o maior
número de habitantes tenham acesso à terra, seja para trabalho ou mora-
dia; produção de alimentos; a garantia de um desenvolvimento econômi-
co sustentável.
A terra, dessa maneira, termina por ter uma grande importância e,
por conta disso, acaba sendo o motivo de muitas lutas, principalmente
quando se trata de terras indígenas, uma vez que muitas são as “violências
sofridas por indígenas em conflitos diretos com a classe burguesa de ru-
ralistas, donos do agronegócio acarretando consequências nefastas para os
povos que ainda vivem no campo” (SILVA, p. 481, 2018).
Com a chegada dos portugueses no Brasil no ano de 1500, os in-
dígenas já utilizavam da terra para plantio, colheita e moradia. No ano
de 1549, com a chegada dos primeiros jesuítas à terras brasileiras, objeti-
vou-se a realização da separação dos indígenas cristãos e que estes fossem
morar próximo dos portugueses, surgindo os primeiros aldeamentos ju-
rídicos. Desta feita, séculos depois, foi outorgada a primeira Constituição
Brasileira, em 1824, porém os indígenas foram deixados de lado da Carta,
inexistindo qualquer direito específico para estes povos (MATOS; LO-
PES, 2006).
Com a Lei de Terras de 1850 foi determinado que, levando em con-
sideração a inexistência de legislação para a propriedade, a única maneira
de uma pessoa adquirir terras devolutas (isto é, terras que pertenciam ao
Estado) seria a partir da compra e venda, assim foi revogado o regime das
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sesmarias, um sistema em que normatizava a distribuição de terras volta-
das para a agricultura (FONSECA, 2020).
A partir de tal legislação (Lei nº 601/1850) foi reservado que as terras
devolutas seriam utilizadas para colonização, aldeamento de Indígenas nos
distritos, onde existirem hordas selvagens, assim tais terras pertenceriam
ao Estado Brasileiro, não sendo passível de apropriação por particulares
(MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ, 2013).
A Constituição de 1891 não trouxe qualquer citação sobre estes po-
vos, omitindo sobre direitos pertencentes a eles (LOPES, 2014). Porém,
os direitos indígenas foram previstos e, de certa maneira, efetivados, a par-
tir da Constituição de 1934, assim era garantida a posse das terras em que
se encontravam permanentemente localizadas, não sendo pensados em
demais áreas para que fosse possível a sobrevivência quanto a reprodução
física e cultural dos indígenas (CAVALCANTE, 2016).
A Constituição Federal de 1967 promoveu que:
[...] além da posse, garantiu o usufruto exclusivo das riquezas e a
inalienabilidade das terras, dando algumas bases para a construção
do conceito jurídico de “terra indígena”. De fato, essa noção entrou
no ordenamento jurídico nacional por meio da Lei 6.001 de 1973, o
Estatuto do Índio, que regulamentou a matéria territorial indígena,
conforme previsto na Emenda Constitucional nº 1 de 1969. Foi no
Estatuto do Índio que o conceito “terra indígena” apareceu pela pri-
meira vez nas leis nacionais (CAVALCANTE, 2016, p. 3-4).
Dessa maneira, com a Constituição Federal de 1967 os índios passa-
ram a ter o usufruto exclusivo das riquezas e a inalienabilidade das terras,
provocando um salto quando comparados com as leis anteriores, sendo
necessário ainda mais. O Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973) dividiu as
terras indígenas em três tipos, sendo elas:
Art. 17. Reputam-se terras indígenas:
I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem
os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição;
II - as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;
III - as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.
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Com a divisão das terras em três tipos, tornou-se necessário que
tais terras fossem devidamente demarcadas, assim o artigo 65 da Lei nº
6.001/1973 determinou que as terras indígenas deveriam ser demarcadas
no prazo de cinco anos pelo Poder Executivo, todavia, conforme Caval-
cante (2016), o prazo não foi devidamente cumprido no Brasil, apresen-
tando tão somente pontos positivos – poucos – na Amazônia Legal, como
será analisado com maiores detalhes posteriormente.
Muitos dos direitos previstos no Estatuto do Índio foram confir-
mados/aperfeiçoados pela Constituição Federal de 1988, uma vez que
trouxe diversos dispositivos ligados a direito indígena, tentando ga-
rantir, de maneira ainda formal, os direitos destes povos. Desta forma,
serão analisados tais direitos previstos na Constituição Federal (1988)
no tópico seguinte.
4 O DIREITO INDÍGENA À TERRA NO SISTEMA ATUAL
De acordo com dados fornecidos pela FUNAI (Fundação Nacional
do Índio, datado de 2010), existia no Brasil 817.962 (oitocentos e dezes-
sete mil, novecentos e sessenta e dois) indígenas, representando, dessa for-
ma, 0,26 (zero vírgula vinte e seis por cento), da população total brasileira.
Os indígenas representam 305 etnias diferentes e sendo registradas 274
línguas divergentes indígenas.
Percebe-se, a partir de tais dados, que muitos são os povos indígenas
no Brasil e que, ao contrário do que se pensa popularmente, são de inúme-
ras etnias e falam diversas línguas divergentes e não uma única. Todavia,
ocorreu uma eliminação de grupos enormes e de várias etnias indígenas
que se deu a partir da devastação física e cultural em razão do rompimento
entre índio e terra (SILVA, 2018).
A Constituição Federal (1988) exsurge justamente para revitalizar os
grupos indígenas, principalmente no tocante à terra, assim Souza e Filho
apud Matos e Lopes (2006) considera que o direito à terra é compreen-
dido como um espeço de vida e liberdade de certo grupo de ser humano,
sendo, também, a reivindicação fundamental dos povos indígenas tanto
brasileiros como latino-americanos.
O artigo 231 da Constituição Federal prevê que:
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Art. 231, CF. São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários so-
bre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambien-
tais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se
a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das ri-
quezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
A partir da leitura do excerto dispositivo constitucional é possível cons-
tatar uma série de direitos que o constituinte originário promoveu ao povo
indígena, cabendo ressaltar que a Constituição Federal promoveu uma evo-
lução nos direitos dos indígenas, uma vez que nos diplomas anteriores o
direito era transitório e que só seriam garantidos até que eles fossem devida-
mente civilizados (CURI, 2010), pensamento um tanto quanto retrógrado,
pois o indígena, embora inserido na sociedade, ainda permanece com sua
cultura e características, sendo reconhecido isto pela nova Carta Magna.
Curi (2010) disserta que os indígenas tem o direito originário sobre a
terra, conforme dicção do artigo 231 § 2º da CF, tratando de um direito
reconhecido constitucionalmente, isto quer dizer que os indígenas tem
posse das terras, mas quem detém a propriedades destas é a própria União,
conforme disposição do artigo 20, inciso XI, da CF, sendo inalienáveis e
indisponíveis, assim as terras ocupadas pelos indígenas possibilitam que
delas eles exerçam e efetivem seus direitos.
José Afonso da Silva corrobora neste sentido:
Quando a Constituição declara que as terras tradicionalmente ocu-
padas pelos índios se destinam a sua posse permanente, isso não
significa um pressuposto do passado com ocupação efetiva, mas,
especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido que essas ter-
ras inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu
habitat. Se se destinam (destinar significa apontar para o futuro) à
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posse permanente é porque um direito sobre elas preexiste à posse
da mesma, e é o direito originário já mencionado (2003, p. 832).
Os indígenas tem garantido constitucionalmente o direito de usufru-
to exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos, isso significa dizer
que esses povos podem usar, sem restrição alguma a ser determinada, de
todos os bens e recursos naturais do local que realizam suas atividades
habituais (BRAUN; OLIVEIRA; DEL’OLMO, 2020), ainda mais pelo
fato de que os indígenas têm a cultura de preservação do meio ambiente e
de não degradar além do que é necessário para sua subsistência.
Ainda de acordo com Braun, Oliveira e Del’Olmo (2020), a Cons-
tituição Cidadã promoveu direitos culturais aos indígenas, haja vista que
foi reconhecida a organização social, bem como os costumes, crenças,
línguas e tradições, devendo ser preservadas as culturas tanto para as pre-
sentes quanto as futuras gerações. Desta feita, os direitos culturais indíge-
nas integram, atualmente, o patrimônio cultural do Brasil, sendo a União
responsável por proteger os direitos e promover o respeito, fazendo valer,
portanto, o disposto no artigo 3º da própria Carta Magna.
O parágrafo 5º do artigo 231 da Constituição Federal ainda prevê o
princípio da irremovibilidade dos indígenas das terras, isso quer dizer que:
[...] a remoção dos índios de suas terras é vedada, salvo, ad referen-
dum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que po-
nha em risco sua população, ou no interesse da soberania do país, após
deliberação do Congresso Nacional, garantindo, em qualquer hipótese, o
retorno imediato logo que cesse o risco (CURI, 2010, p. 10).
Constata-se, dessa maneira, que a população indígena tem, como de-
fesa sua, a irremovibilidade das terras, cabendo como exceção tão somente
a possibilidade de catástrofe ou epidemia e sendo necessário, ainda, um refe-
rendo do Congresso Nacional para que esse povo saía das suas terras em ra-
zão de tais circunstâncias, voltando, desde logo, caso o risco tenha cessado.
Em suma, podem ser citados como conquistas provocadas pela atual
Constituição Federal: o reconhecimento das organizações dos indígenas;
o reconhecimento das culturas indígenas, bem como cultura, costumes
e tradições; o reconhecimento do direito à terra; a irremovibilidade dos
indígenas das terras; e o direito de usufruto exclusivo das riquezas do solo,
dos rios e dos lagos por parte dos indígenas (LOPES, 2014).
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5 A DEMARCAÇÃO DE TERRAS: DIREITO
FUNDAMENTAL ESQUECIDO?
A demarcação de terras é competência privativa da União, tendo
como objetivo, em linhas gerais, identificar a extensão verdadeira da pos-
se indígena sobre as terras que eles tradicionalmente ocupam em terras
brasileiras, assim o Estado brasileiro deve proteger os bens indígenas de
maneira efetiva (BRAUN; OLIVEIRA; DEL’OLMO, 2020).
A natureza jurídica da demarcação de terras indígenas é declaratória,
ou seja, declara-se o reconhecimento das terras indígenas. Desta forma,
conforme disposição do artigo 67 da Constituição Federal, “a União con-
cluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da
promulgação da Constituição”, ou seja, deveria a União ter finalizado a
demarcação de terras no ano de 2003, porém não foi o que ocorreu.
O Estatuto do Índio, antes mesmo da Constituição Federal de 1988, já
previra em seu artigo 65 que o poder executivo demarcaria as terras indígenas
em cinco anos, todavia tal feito não fora devidamente realizado. Esta ideia
de demarcação, conforme Curi (2010) surgiu com o Serviço de Proteção ao
Índio (SPI) que demarcou, aproximadamente 54 áreas indígenas, sendo que o
artigo 19 do Estatuto do Índio ainda previa que o registro das terras demarca-
das deveria ser realizada no SPU (Serviço do Patrimônio da União).
De acordo com dados do Censo Demográfico do IBGE, no ano de
2010,
[...] foram demarcadas 505 terras indígenas, cujo processo de iden-
tificação teve a parceria da FUNAI no aperfeiçoamento da car-
tografia. Essas terras representam 12,5% do território brasileiro
(106,7 milhões de hectares), onde residiam 517,4 mil indígenas
(57,7% do total). Apenas seis terras tinham mais de 10 mil indíge-
nas, 107 tinham entre mais de mil e 10 mil, 291 tinham entre mais
de cem e mil, e em 83 residiam até cem indígenas. A terra com
maior população indígena é a Yanomami, no Amazonas e, em Ro-
raima, com 25,7 mil indígenas, 5% do total (PORTAL BRASIL
apud BRAUN; OLIVEIRA; DEL’OLMO, 2020).
Percebe-se, analisando o Censo realizado a pouco mais de uma dé-
cada após a Constituição Federal, que, somente 505 terras indígenas fo-
ram demarcadas e que ainda não fora concluído aquilo disposto no artigo
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constitucional de que as terras dos povos nativos brasileiros deveriam ser
demarcadas até 2003, sendo imprescindível analisar como os poderes exe-
cutivos efetivaram sua obrigação constitucional.
Segundo Curi (2010), a média de terras declaradas no governo Lula
foi de seis terras indígenas declaradas por ano, enquanto no governo de
Fernando Henrique Cardoso foi de 14 terras por ano de mandato, número
bastante superior. Em gráfico realizado por Bourneau (2019) é demons-
trado o número de terras homologadas, bem como superfície das terras
homologadas, veja-se:
Gráfico 1 - reconhecimento de terras indígenas em função dos governos
Fonte 1 BOURNEAU, 2010
A partir da análise do gráfico anterior, torna-se possível estabele-
cer algumas constatações, sendo: 1) após a Constituição Federal, os dois
primeiros governos (Sarney e Collor) tentaram efetivar o disposto para
demarcar as terras em cinco anos; 2) O governo de Franco foi totalmen-
te contrário à demarcação de terras; 3) No primeiro governo de FHC
existiu uma tentativa de demarcação de terras indígenas; 4) A partir do
segundo governo de Lula, a quantidade de terras indígenas demarcadas
foi reduzindo drasticamente, chegando a praticamente zero no governo
de Michel Temer.
Em tabela apresentada por Dambrós (2019), demonstra-se o proces-
so de demarcação de Terras Indígenas nos Governos Lula e Dilma, mais
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especificamente a quantidade de decretos de homologação e portaria de-
claratórias, veja-se:
Tabela 1- Processo de demarcação de Terras Indígenas nos Governos Lula e Dilma
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Decreto de
21 23 08 10 06 01 09 02 03 07 01 00
homologação122
Portarias
03 10 05 12 20 08 11 07 06 02 03 01
declaratórias123
Fonte: Machado apud Dambrós (p. 181, 2019).
Com a análise da tabela anterior, torna-se possível a constatação do
seguinte: 1) O governo Lula objetivou realizar mais demarcações de terra,
quando comparados ao governo Dilma; 2) O governo Dilma chegou a ze-
rar decretos de homologação de terra, tendo números bastante reduzidos,
quando comparados ao presidente petista anterior.
A Fundação Nacional do Índio (2020) divulga em seu site oficial as
fases do processo administrativo para demarcação de terra:
Tabela 2 – Fases do processo administrativo para demarcação de terras
FASE DO PROCESSO QUANTIDADE SUPERFÍCIE (ha)
DELIMITADA 43 2.183,990,4500
DECLARADA 75 7.612.681,3759
HOMOLOGADA 9 334.546,3127
REGULARIZADA 441 106.948.034,6108
TOTAL 568 117.079.252,7494
EM ESTUDO 119 0,0000
PORTARIA DE INTERDIÇÃO 6 1.080.740,0000
Legenda: Estudo: Feitura de estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e am-
bientais para delimitar a área; Delimitadas: Terras que o Funai aprovou os estudos e aguarda
decisão de portaria declaratória; Declaradas: Terras que obtiveram a Portaria Declaratória e
estão autorizadas para demarcação física; Homologadas: Terras que possuem limites físicos,
cuja demarcação foi homologada por decreto presidencial; Regularizadas: Terras que foram
registradas em Cartório em nome da União e na SPU; Interditadas: Terras interditadas para
proteção dos indígenas isoladas, existindo restrições de uso e ingresso de terceiros.
Fonte: FUNAI, 2020.
122 O decreto de homologação está relacionada a competência do artigo 65 da Constituição
Federal.
123 A portaria declaratória declara a posse dos indígenas na propriedade.
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A partir da análise da tabela, pode-se constatar que: 1) Terras indí-
genas foram devidamente regularizadas; 2) Terras indígenas foram decla-
radas, mas ainda necessitam da demarcação física, bem como realização
de georreferenciamento, por exemplo; 3) Grande número de terras em
estudos, bem como número de terras declaradas, sendo necessário maior
diligência quanto as fases do processo administrativo.
Muitos são os fatores que impossibilitam a demarcação de terras indí-
genas no Brasil. Machado apud Dambrós (2019) traz uma série de fatores
políticos que vão de encontro a essa demarcação, sendo eles: ampliação da
bancada ruralista em 2014; o direcionamento da estrutura política do go-
verno a partir da nomeação de Katia Abreu como ministra da Agricultura
no ano de 2015; e a diminuição de repasse de verbas à FUNAI.
A situação política piorou ainda mais com o governo de Jair Bolso-
naro que, antes mesmo de ser eleito presidente, declarou abertamente:
“não ceder mais um centímetro aos Índios”. Atualmente como Presidente
da República, Jair Bolsonaro transferiu a prerrogativa de homologação
para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, favorecendo
de maneira evidente e cristalina a bancada ruralista, porém foi posterior-
mente vetada pelo Congresso Nacional. Em seu segundo ato em face dos
indígenas, Jair Bolsonaro tentou enfraquecer a Funai, transferindo do Mi-
nistério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos (TOURNEAU, 2013). Assim, pode-se dizer que
[...] os povos indígenas do Brasil enfrentarão nos próximos anos uma
situação política bastante adversa. Tal fato não pode ser considera-
do uma surpresa. O contexto a respeito das Tis endureceu-se pro-
gressivamente desde o início dos anos 2000. O segundo governo do
presidente Lula, mas também principalmente os governos da Dilma
Roussef ou do Michel Temer já privilegiaram o imobilismo sobre
este tema, quase congelando a demarcação de novas terras para não
contrariar a bancada ruralista no Congresso e fazendo um serviço
mínimo para a proteção das TIs existentes (não excluindo, no en-
tanto, algumas ações de alta visibilidade de vez em quando). O vento
vai soprar de frente para os povos indígenas e seus aliados, mais a sua
direção já tinha mudado há tempo (TOURNEAU, 2019, p. 13).
Além do mais, um outro problema enfrentado pela FUNAI é a reti-
rada ou expulsão de pessoas não indígenas das terras, haja vista que estão
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
presentes em aproximadamente 85% destas terras e a Fundação não com-
porta recursos financeiros suficientes capazes de efetivar o dispositivo no
artigo 231 §6º da Constituição Federal, ou seja, a indenização por benfei-
torias de boa-fé realizadas (CURI, 2010).
Com isso, percebe-se que os presidentes da República mais recen-
tes não tem se preocupado com a demarcação de terras, chegando a al-
guns momentos inexistir demarcação de terras indígenas, situação deveras
preocupante, ainda mais quando os indígenas são os povos que moravam
no Brasil antes da chegada dos portugueses e que aqueles ocupam, tradi-
cionalmente, as terras brasileiras. Assim sendo, embora o direito a demar-
cação de terras seja considerado como um direito fundamental, previsto na
Carta Magna, acaba sendo esquecido pelos gestores federais que preferem
dar lugar e voz ruralistas ao invés dos povos originariamente brasileiros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A Constituição Federal traz uma série de direitos aos povos indígenas
previstos no artigo 231, a saber: demarcação de terras indígenas; direito de
usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos; reconheci-
mento do direito à posse das terras; recognição de que existem culturas
indígenas divergentes; reconhecimento das organizações indígenas.
A demarcação de terras indígenas não é um assunto novo, muito pelo
contrário é um tema já trabalhado no Estatuto do Índio, datado de 1973,
ou seja, há quarenta anos já existia uma lei que determinava a demarcação
de terras em cinco anos, todavia esta determinação não foi realizada. De
igual maneira, a Constituição Federal previra tal demarcação de terras no
mesmo lapso temporal, porém este também não fora efetivado.
A Carta Magna ainda prevê que o Poder Público Federal que de-
marcará as terras indígenas. Analisando detidamente os governos após a
promulgação da Constituição Federal é possível perceber que os gover-
nos mais próximos de tal diploma, demarcavam mais terras, enquanto os
governos mais contemporâneos têm demarcado menos terras indígenas
quando comparados, negligenciando os direitos indígenas.
Isso ocorre por algumas razões, porém a mais importante é a ques-
tão política. Explico: a ampliação cada vez maior da bancada ruralista no
Congresso Nacional e a pressão destes para com o presidente para a am-
pliação de terras para agricultura ao invés dos indígenas, promove uma
negligência séria na demarcação de terras. Tal negligência se faz ainda
573
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mais presente quando o presidente atual tenta, de diversas maneiras, afetar
tais direitos e prolongar o processo de demarcação, assim se torna ne-
cessário o cumprimento do disposto no artigo 65 e 231 da Constituição
Federal para efetivação dos direitos dos povos indígenas no Brasil.
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575
DESAFIOS ENFRENTADOS PELA
COMUNIDADE LGBTQIA+ NO
ACESSO À SAÚDE PÚBLICA DO
BRASIL
Anna Luiza Fragoso Guimarães Costa
Ana Gabriela Gomes de Miranda Linhares
Emílio Pires Diniz Neto
Denise Mota Araripe Pereira Fernandes
INTRODUÇÃO
As dimensões de acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), bem
como da qualidade dos serviços prestados, estão ameaçadas pela existência
das desigualdades sociais, a exemplo da desigualdade de gênero, que se es-
tende para além das diferenças entre as identidades opostas, considerando
também as categorias de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
(LGBT) (GOMES et al, 2018).
Na perspectiva de enfrentamento das situações remanescentes supra-
citadas e, de diminuição das barreiras impostas ao acesso e à qualidade nos
serviços de saúde, foi instituída, no âmbito do SUS, a Política Nacional
de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
(PNSI-LGBT) através da Portaria GM/MS nº 2.836, de 1º de dezembro
de 2011 (BRASIL, 2011).
Outrossim, tem-se que a diversidade de gênero se expressa na com-
plexidade do contexto de saúde da população LGBT, já que a orientação
sexual e a identidade de gênero têm fundamentação na determinação so-
576
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
cial da saúde (FERREIRA, 2017). Com isso, estão presentes conexões, as
quais por muitas vezes podem promover inclusão social, acesso e a melho-
ria do acesso à saúde no SUS, consolidando assim como sistema universal,
integral e equitativo.
O acesso da população LGBT ao SUS encontra dificuldades de ope-
racionalização, uma vez que essa população não segue um padrão hete-
ronormativo, e aquilo que os torna “diferentes” pode acabar sendo usado
contra eles nos serviços de saúde. Dessa forma, o Estado acaba por incor-
porar a população LGBT, através da lógica dos serviços que são ofertados,
enquanto comunidade de perversos, indesejáveis (FERREIRA, 2017).
As bases de dados ainda apresentam reduzido número de publicações,
mesmo diante de importantes instrumentos normativos, fortes evidências de
preconceito e negação aos direitos mais fundamentais, asseverando a baixa
permeabilidade de temas relacionados com LGBT, mesmo na atualidade pós
publicação de políticas afirmativas. Existem explicações plausíveis? Um pos-
sível caminho estreito para esse fato tão deliberadamente excludente se apoia
na ideia de que os temas referentes a essa população não foram considerados
relevantes para compor grande parte dos periódicos mais estudados e acessa-
dos, por que talvez não se alinhassem com aquilo que precisava ser dito ou
com as linhas editoriais das revistas ou será uma clara negação das produções
que abarcasse tais populações? (BEZERRA et al, 2019).
Entender tais questões é premente à boa prática médica, para além
de uma questão bioética pungente, visto que, via de regra, os pacientes
dentro da perspectiva de tal minoria estão subjugados a um menor acesso
ao serviço (CARDOSO e SILVA, 2012). Este trabalho, tem como ob-
jetivo mostrar os desafios enfrentados pela comunidade LGBTQIA+ no
que tange ao acesso à saúde pública do Brasil, visto que há necessidade de
uma melhor assistência à essa minoria, principalmente, por parte da equi-
pe multiprofissional de saúde, entretanto, sendo imprescindível também
a ação da sociedade civil em um movimento cidadão de compreensão e
apoio aos pares.
1. Desafios enfretados pela comunidade LGBTQIA+
Segundo Silva e colaboradores (2017), nas últimas décadas houve
avanços no que se refere à atenção à saúde da população LGBTQIA+,
577
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
com o advento de programas como o Programa Brasil sem Homofobia, de
2004, e da própria Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI-LGBT), em 2011, a qual: Pro-
move a saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais,
eliminando a discriminação e o preconceito institucional, contribuindo
para a redução das desigualdades e para a consolidação do SUS como sis-
tema universal, integral e equânime (SILVA et al, 2017, p. 143).
Embora esse progresso seja importante, percebe-se que muitos dos
desafios enfrentados pela população LGBTQIA+ no acesso aos serviços de
saúde estão relacionados a um processo de desconhecimento generalizado.
Esse desconhecimento vem da sociedade civil, porém é mais gravemente
deflagrado por parte dos profissionais do setor saúde (desde os agentes
comunitários de saúde até os gestores dos serviços), ou seja, a despeito de
quem será cuidado é e de quais são as demandas do grupo em questão,
àqueles que se propõem ao cuidado desconhecem os pormenores, geran-
do uma lacuna grave e falha que precisa ser revisitada e fortalecida (GO-
MES et al, 2018; GUIMARÃES et al, 2017).
A desinformação é tamanha que até mesmo o conhecimento do signi-
ficado da sigla LGBTQIA+ é limitado. Sabendo-se que o grupo é bastante
heterogêneo, o descaso se agrava quando é reconhecida uma distorção ainda
maior em relação às pessoas trans. É notória a dificuldade dos profissionais
de saúde em reconhecer quem são essas pessoas, encaradas como sujeitos
fora da normalidade. Para tanto é possível relacioná-las ao conceito de “ab-
jeção” proposto pela socióloga Judith Butler. Tal conceito estabelece uma
correlação entre aquilo que é enquadrado como fora dos padrões e o pro-
cesso histórico de maus-tratos, violência e preconceito, vivenciado na pele
pelas pessoas trans. Dentro dos serviços de saúde as pessoas trans passam por
situações vexatórias e têm dificuldades na aceitação do nome social, com-
prometendo a atenção humanizada (GOMES et al, 2018; BUTLER, 2016;
FERREIRA, PEDROSA e NASCIMENTO, 2017).
Quando o contexto em análise é o da assistência à saúde das lés-
bicas há uma situação análoga de invisibilidade. Nesse sentido, muitos
profissionais de saúde sequer questionam a orientação sexual de suas pa-
cientes, seja por vergonha ou seja por despreparo. Essa barreira encon-
trada pelos médicos, enfermeiros ou quem quer que seja fere o princí-
pio da equidade e resulta no descontentamento das lésbicas com relação
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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aos serviços prestados no âmbito do SUS (FERREIRA, PEDROSA e
NASCIMENTO, 2017).
Ainda, há a insistência de muitos profissionais da saúde de que a
fuga da heteronormatividade seja uma opção das pessoas LGBTQIA+.
Atualmente sabe-se que a ideia de “opção sexual” não possui funda-
mentos, havendo na verdade o que se chama de “orientação sexual”.
A persistência em pensar que a fuga da heteronormatividade seja uma
escolha serve para desviar a culpa da situação de marginalização da con-
juntura social heteronormativa e homofóbica para a própria comunidade
LGBTQIA+, minimizando as práticas discriminatórias. De tal maneira,
essa opressão se perpetua dentro dos espaços de saúde, sendo marcada
pela cultura de culpabilização do usuário - manifestado por vezes em
mau trato ou ausência de cuidados e acolhimento, afastando-o do setor e
contribuindo para comportamento depressivo, ansiedade e medo (GO-
MES et al, 2018; FERREIRA, PEDROSA e NASCIMENTO, 2017;
GUIMARÃES, 2017).
O estigma de que a demanda primordial do grupo são as Infecções
Sexualmente Transmissíveis (IST) prejudica o conhecimento da realidade
dessas pessoas LGBTQIA+, as reduzindo a sexualidade que performam. É
uma situação crítica e tal ignorância, a respeito das demandas da popula-
ção LGBTQIA+ perpetra uma violência que necessita de uma ruptura do
ciclo de agressões para prover o entendimento do ser humano complexo e
biopsicossocialmente diverso (GOMES et al, 2018).
Soma-se a tudo isso a fragilidade no reconhecimento dos profissionais
de saúde da sua responsabilidade pelo cuidado das pessoas LGBTQIA+,
tanto dentro do próprio setor da saúde quanto em relação a outros setores
da sociedade. Dentro do próprio setor da saúde há um estigma de que a
problemática da atenção ao grupo LGBTQIA+ é responsabilidade apenas
da atenção básica, eximindo as responsabilidades da atenção especializada.
De forma análoga, há dentro do setor da saúde profissionais que acreditam
que o papel de cuidar das pessoas LGBTQIA+ é de outros setores, como
família e educação. Essa visão é distorcida pois deixa de reconhecer o SUS
como possível articulador da garantia do bem-estar a esse grupo social.
Ao refletirmos a formação o preconceito contra a diversidade sexual e de
gênero também está presente em estudantes de Medicina, segundo Mo-
retti-Pires e colaboradores (2020), 60% dos entrevistados do primeiro ao
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
oitavo semestres, apresentaram atitude negativa frente às pessoas LGBT
com a margem desse percentual ser ainda maior em função de variáveis
como o preconceito velado (GOMES et al, 2018).
Algumas ações que devem ser ampliadas de forma a garantir o pleno
acesso das pessoas LGBTQIA+ aos serviços de saúde são a participação
no Conselho Municipal de Saúde (CMS), em grupos de discussão no
contexto das Unidades Básicas de Saúde e dentro dos espaços universitá-
rios. Nesse sentido é preciso trabalhar de forma a prezar pela escuta ativa
e o acolhimento de todas as demandas dos sujeitos sem cortes. Tendo
em vista o exposto, com ênfase nas dificuldades enfrentadas pelas pessoas
LGBTQIA+ no acesso à saúde, é marcante a situação de discriminação
e desconhecimento por parte de muitos dos profissionais da saúde, bem
como a carência de políticas efetivas que voltem a atenção a esse grupo
social (SILVA et al, 2017; GOMES, 2018).
1.1. Acesso à saúde pública
A Constituição Federal Brasileira (1988), segundo o artigo 196, es-
tabelece a saúde como um direito de todos e dever do Estado. Da carta
magna estabeleceu-se o SUS, enquanto uma exigência do povo brasileiro,
com princípios orientadores - éticos doutrinários: a Universalidade, a In-
tegralidade e a Equidade. Logo, o acesso a saúde deve ser universal e sem
distinções, oferecido a todos, em todos os níveis de complexidade de cui-
dados e com qualidade. Tal acesso precisa buscar ser ofertado de maneira
em que se reduza desigualdades em saúde (GUIMARÃES et al, 2017).
Outro direito importante, que a carta dos direitos dos usuários no
SUS garante, reiterado na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB,
2017) e na Política Nacional de Humanização (PNH), que existe desde
2003 para efetivar os princípios do SUS no cotidiano das práticas de aten-
ção e gestão, é o direito a um atendimento humanizado, acolhedor e sem
discriminações, negações ou restrições, em virtude da orientação sexual e
identidade de gênero (SILVA et al, 2017).
Apesar da crescente tentativa de promoção de equidade para a popu-
lação LGBT no SUS, ainda não é suficiente para sua efetivação (SILVA et
al, 2017). Isso ocorre porque o acesso desta comunidade à saúde pública do
Brasil sofre influência de barreiras diversas e encontra dificuldades de ope-
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racionalização (FERREIRA et al, 2017). Como explicar tal discriminação
na contemporaneidade? Um dos fatores que explica isso é a existência do
preconceito e da discriminação arraigados aos comportamentos sexuais
divergentes do padrão dentro da heteronormatividade que passa a ser en-
tendida e vivida enquanto compulsória a despeito da identidade de gênero
que os sujeitos puncionam performar, classificando a situação como um
importante determinante de saúde. (GUIMARÃES et al, 2017).
O acesso não pode ser simplificado. Uma sociedade que impede os
sujeitos de procurarem otimizar cuidados em saúde ceifa o direito à vida
(entendido enquanto fundamental e reiterado na Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948), fere a Carta Magna e também despre-
za os princípios éticos doutrinários do SUS. Ele engloba desde a entrada
formal ou informal nos equipamentos de saúde, passando pela utilização
dos serviços, até a finalização das práticas de assistência (FERREIRA,
PEDROSA, NASCIMENTO, 2018). Esse acesso integral dos LGBT-
QIA+ é comprometido e tem forte relação com a “LGBTfobia” e com
a “heteronormatividade” institucional, caracterizadas pela discriminação
constante dentro e fora dos serviços de saúde (SILVA et al, 2017).
Atualmente, o termo LGBTfobia é usado muitas vezes no lugar do
termo homofobia e se refere a intolerância e fobia a qualquer padrão que
diverge do heteronormatizado. Essa situação vai além das relações inter-
pessoais, pois também está presente em intuições como as escolas, igrejas
e serviços de saúde. (GUIMARÃES et al, 2017).
Em contrapartida, o Brasil tem crescido bastante em relação a cria-
ção de políticas públicas para combater essa discriminação, preconceito e
desigualdade, inclusive com formulação de documentos para assegurar os
direitos das Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis nos servi-
ços de saúde. Nesse sentido, no ano de 2004, foi criado o Programa “Bra-
sil sem Homofobia”, com o intuito da mudança na educação e conduta
de gestores públicos em relação à população LGBT, repudiando atos de
discriminações dentro de serviços públicos no geral, inclusive os de saúde.
(SILVA et al, 2017).
Outro exemplo é o lançamento da Política Nacional de Saúde Integral
de LGBT (PNSILGBT) pelo Ministério da Saúde (MS) em 2011, que tinha
como foco a promoção, a prevenção e a recuperação no cuidado em saúde
dessa população, reconhecendo a vulnerabilidade da comunidade. Porém,
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
embora a política já esteja instituída na maior parte do Brasil, são poucos os
profissionais de saúde que a conhecem. (GUIMARÃES et al, 2017).
Então, é notório que o Estado e a Sociedade Civil está tentando com-
bater a discriminação e o preconceito em algumas instancias da sociedade,
como ao obrigar o uso do nome social de travestir em serviços de saú-
de e a regulamentação do processo transsexualizador no SUS, mas ainda
existe uma diferença muito grande entre a teoria e a pratica, ou seja, falta
execução de planejamentos que viabilizam esse combate de fato (GUI-
MARÃES et al, 2017). Por conseguinte, é evidente que a invisibilidade e
muitas barreiras no que tange à garantia de acesso aos serviços de saúde
dessa parcela da população ainda é uma realidade. (SILVA et al, 2017).
1.1.1. Discussão na Faculdade de Medicina
No âmbito das ciências da saúde a temática de gênero e diversida-
de sexual é pouco abordada ainda nos centros de formação acadêmica.
Por exemplo, na graduação em Medicina pouco se debate sobre saúde e/
ou atenção à população LGBTQIA+, sendo isso também observado para
outros cursos como o de enfermagem (MORETTI-PIRES et al, 2020).
Como discutido anteriormente neste artigo, o desconhecimento por par-
te dos profissionais de saúde a respeito das pautas e das demandas da po-
pulação LGBTQIA+ consiste uma das principais barreiras do acesso desse
grupo à saúde pública no Brasil. Dessa forma, ao término da graduação a
visibilidade de muitos dos profissionais de saúde no que tange ao cuidado
desse grupo de pessoas é limitada, estando aquém ao que se espera de um
país cujo sistema de saúde preza pela equidade.
As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em
Medicina (DCNM) de 2012, instituídas pelo Conselho Nacional de Edu-
cação (CNE) definem em seu artigo 5º:
“Na Atenção à Saúde, o graduando será formado para considerar
sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-ra-
cial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, am-
biental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro
da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada gru-
po social”.
582
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Na verdade a maioria das faculdades de Medicina brasileiras ainda
não atingiu os ideais propostos pelo artigo 5° do DCNM. De acordo com
Rego (1994), o currículo médico é um tripé que envolve: currículo for-
mal, currículo paralelo e currículo oculto. Segundo Mathias (2011) , o
currículo formal é o que compreende as atividades regulamentares, o cur-
rículo paralelo envolve as práticas extracurriculares e o currículo ocul-
to é uma categoria implícita que envolve aspectos subjetivos, incluindo
transmissão de esperiências e contato sociocultural. Para Moretti-Pires e
colaboradores (2020), tanto o currículo formal quando o currículo oculto
dos estudantes de medicina ainda são insuficientes em promover o debate
acerca das diversidades de gênero e sexual, sendo esse um fator promotor
da persistência das desiguldades e do preconceito nas faculdades da área.
Ademais, na pesquisa desenvolvida por Moretti-Pires e colaborado-
res (2020) constatou-se que a principal demanda reconhecida pelos aca-
dêmicos de medicina em relação à saúde da população LGBTQIA+ é a
infecção pelo HIV, em detrimento de outras temáticas, como cirurgia de
redesignação de sexo e transição de gênero. Ainda, constatou-se entre os
estudantes de medicina um valor negativo a respeito das pessoas transe-
xuais. Esses dois pontos novamente corroboram o que já foi discutido nes-
te artigo, com relação à visão dos profissionais de saúde sobre a comuni-
dade LGBTQIA+. Isso confirma a estrita relação entre desconhecimento
durante a graduação e julgamento enquanto profissionais formados, com-
prometendo a adequada assistência à saúde
Experiências como as de Neto e colaboradores (2020) sinalizam no-
vos caminhos, pois demonstram possiblidade de construção ao narrarem
experiências de uma universidade no sertão do Rio Grande do Norte.
No campus em questão existia a disciplina optativa de Atenção à Saúde
da População LGBT, presencial até antes da atual pandemia pelo novo co-
ronavírus. Com a necessidade de adoção das medidas de distanciamento
social, contava com apenas 21 alunos matriculados. A pandemia motivou
velhas novas respostas, rápidas e consistentes como o momento atual. A
Educação à Distância (EaD) ressurge com toda gloria reabrindo portas de
inovação em saúde. Então com a pandemia do novo coronavírus, surgiu
a proposta de ofertar a disciplina no modelo remoto de ensino, o que, a
princípio, foi encarado como um grande desafio e com baixas expectativas
pelo corpo docente. Porém, o modelo remoto permitiu que, pela primeira
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
vez na instituição, barreiras burocráticas fossem rompidas e a matrícula de
alunos de outros campus e cursos se tornasse possível. Formou-se então
um grupo de 50 alunos de Medicina e de outros cursos, como Psicolo-
gia, Enfermagem, Educação Física e Direito. Além disso, esses estudantes
eram de cidades e orientações sexuais e de gênero diferentes.
São os relatos como esses que nos mostram que o preconceito, en-
quanto ato, entendido na perspetiva de como julgamentos levianos a algo
ou alguém antes mesmo de conhecer, é persistente hodiernamente, mas
pode ser resinificado dentro da universidade. Sabemos que o preconceito
de género é marcadamente representado por naturalizações de padrões
insaturados, que, infelizmente, são mantidos por diversas instituições, a
exemplo da Faculdade de Medicina. Sabe-se que o profissional da saúde,
tem um grande papel no que tange ao acolhimento e cuidado das pessoas,
principalmente, das minorias.
CONCLUSÕES
A problemática do acesso das pessoas LGBTQIA+ à saúde pública no
Brasil é complexa e multifatorial, arraigada na cultura heteronormativa, pou-
co receptiva ao grupo em questão. Assim, é plausível que existam dificulda-
des, mas é injustificada a morosa aproximação desse setor social ao SUS.
Os avanços importantes nos últimos anos, a exemplo da instituição
da Política Nacional, em 2011, percebem-se o desconhecimento por parte
de profissionais da saúde, incluindo os estudantes, os gestores e os traba-
lhadores, a respeito das demandas desse setor social. Portanto, é preciso
trabalhar para que de fato a equidade seja alcançada, sendo necessário um
processo de educação permanente que deve envolver a disseminação e o
conhecimento da PNSILGBT, ampliando o olhar de todos os estudantes
e profissionais da saúde. Dessa forma, tornar-se-á o SUS um equipamen-
to social importante no combate às “LGBTfobias”. O discurso médico
hegemônico não pode sustentar a patologização de identidades e práticas
sexuais socialmente discordantes da norma, visto que legitima e reproduz
processos discriminatórios eminentemente antiéticos à prática bioética. O
Brasil, ainda deixa bastante a desejar no que tange assistência à população
LGBT mesmo na presença de uma política afirmativa de tais direitos.
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Ainda é um desafio aos profissionais o desenvolvimento de cuidado
de cuidado que superem a histórica abordagem estigmatizante e opres-
sora, associada à própria construção dessas pessoas como pertencentes
ao rol de patologias pelo discurso médico-científico tacanho, medíocre
e discriminatório como nos fica claro na experiência de Paulino, Rasera
e Teixeira (2019). Assim, a academia não pode deixar de problematizar a
luz do conhecimento científico tais questões. A medicina que precisamos
é aquela que se põe a serviço das pessoas, que respeita diferenças e melhora
a qualidade de vida dos sujeitos, sem espaços ao preconceito de gênero.
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586
BRASIL: O AUTORITARISMO
BOLSONARISTA E O ESVAZIAMENTO
DEMOCRÁTICO
Débora Monteiro Soroldani124
1. Introdução
O Brasil, em decorrência das eleições de 2018, levou à presidência
Jair Messias Bolsonaro, aproximando-se da extrema direita e do autorita-
rismo. Entretanto, isto não novidade na história brasileira, que está dire-
tamente ligada a essa forma mais combativa de fazer política, mesmo que
não seja de forma clara, e, “um povo que não conhece sua história está
condenado a repeti-la” 125. Essa máxima, de certo modo, se encaixa a esse
momento. Ainda que com alguns elementos distintos, o Brasil vem repe-
tindo sua história autoritária em pleno Estado Democrático, ao afirmar
que estaria sendo repetida uma história de um Brasil “desconhecido”, o
que se dá pelo fato de não termos, necessariamente, uma história própria.
O passado dessa grande nação foi constituído após a vinda da corte por-
tuguesa, em 1803, quando aqui se instaurou uma monarquia que regia
Portugal a distância, mas também implementava toda a vida do país eu-
ropeu na colônia, trazendo na bagagem a cultura, educação, burocracias e
os tribunais portugueses.
124 Estudante do 6º período da Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim – FDCI.
125 SANTAYANA, George. The life of Reason. 1905.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
A independência política de 1822 não gerou grandes mudanças, porém,
gerou a necessidade de criar uma história “puramente” brasileira. Como
afirma Schwarcz (2019), era necessário construir uma história que elevasse
o passado e que fosse patriótica. Para essa complexa tarefa, foram recrutados
diversos estrangeiros para “criar” o passado e, assim, atribuir mais valor a
eventos e pessoas. Deslocar a verdade, como aponta Stanley (2020), é objeto
estratégico para construir hierarquias históricas, que cria um passado glorio-
so e apaga fatos inapropriados. Nessa perspectiva, percebemos a construção
desta narrativa através da dominação histórica, que acaba por ser objeto de
disputa política, que terá sérios impactos nas eleições de 2018.
No quase início do século XXI, ainda sofremos com essa herança his-
tórica. O legado deixado pela escravidão, que se expressa no racismo, falta
de representatividade e justiça social; o mandonismo e patrimonialismo, que
mantêm os clãs políticos e gera uma indefinição entre os limites do público e
do privado; a corrupção enraizada, que quebra em pedaços o Estado, que in-
terfere diretamente no bem-estar do cidadão, já que os gastos desviados para o
enriquecimento particular reduzem os recursos e investimentos públicos. Em
decorrência disto, a desigualdade social, violência e a intolerância que assolam
o país são uma resposta a essa má condução da res publica, da mesma forma que
são utilizadas para ganhar apoio na indignação e cansaço da população, que
está saturada dessas relações, procurando um salvador, um líder que possa dar
voz a essa insatisfação e representá-la.
Desta forma será apresentado os fatores que levaram a eleição do candi-
dato Jair Messias Bolsonaro, a crise da democracia brasileira e os ataques às
minorias sendo o objetivo entender os fatores e momentos que levaram ao
dualismo político e a dinâmica do “nós x eles” no brasil e como isso deve ser
considerado perigoso para a democracia. Isso será apresentado através de um
método hipotético-dedutivo, através de análise bibliográfica em uma aborda-
gem qualitativa, por meio de consultas em legislações e também a leitura de
livros e artigos científicos acerca do tema abordado, para assim inferir se a as-
censão bolsonarista afetaria os direitos das minorias e a democracia brasileira.
2. A construção democrática de 1988
O Estado democrático de direito nasce com a Constituição de 1988,
criada após um período de ditadura militar, que fica conhecida como a
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“Constituição Cidadã”. Nesta linha, Barroso (2008) pontua que ela trou-
xe novas perspectivas em relação a direitos fundamentais, tendo como
um dos objetivos centrais a integridade da pessoa humana, após se tornar
signatária da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Além de con-
solidar a federação como organização estatal, distribuiu aos três poderes
soberania e independência, o que não era notório no governo militar. Já
no aspecto de direitos individuais, foram asseguradas as liberdades do in-
divíduo de se expressar e manifestar sua opinião e vontade, entre outros
direitos fundamentais para a manutenção da democracia.
Desta forma, após 1988, o Brasil ressurge de forma democrática, e
com a intenção de restaurar a justiça social. Pode-se entender isso com a
criação de mecanismos de proteção para amenizar as desigualdades sociais
e produzir meios para que as minorias possam acessar, de forma ampla, os
direitos constitucionais. Deste modo, começam a surgir programas so-
ciais que possibilitavam que parte da população brasileira se liga a espaços
que antes eram desconhecidos. Programas de distribuição de renda, que
estiveram presentes em diferentes governos, e de acesso à educação, prin-
cipalmente em relação ao nível superior, e que possibilitaram o acesso à
moradia.
A sua maneira, a constituição cidadã foi uma forma de reconhecer o
passado ocultado durante a história e de revolucionar, com a positivação
de princípios, fundamentos e normas, que buscam reconhecer a huma-
nidade e garantir uma vida digna a todos, e protegendo-os do Estado,
que pode utilizar a “violência” (vis física) para manter a harmonia social.
Entretanto, a situação da população brasileira não mudou a partir do mo-
mento de sua entrada em vigor, e é muito importante ressaltar que o pro-
cesso de constitucionalização é lento e gradual, para algum dia englobar
toda a população, e é notório que ainda estamos vivenciando esse processo
no Brasil hodierno. Todo esse reconhecimento tentou reverter a exclusão
de parte da população e também dar visibilidade a segmentos que sofriam
com a pior forma da violência autoritária: o silêncio/invisibilidade, uma
vez que silenciar - um movimento, o racismo, a intolerância, parte da po-
pulação - é impedir a existência destes na sociedade.
Mas vale ressaltar que o Brasil ainda está na construção de um re-
gime democrático pleno e saudável, já que, para alcançar esse patamar, é
necessário que ocorra o controle da desigualdade no país. Stanley (2020)
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conclui que a extrema desigualdade econômica é maléfica para a demo-
cracia, pois disfarça a realidade, que por consequência impossibilita que se
alcance decisões conjuntas para resolver as divisões sociais. A tentativa de
reduzir a desigualdade e perpetuar a justiça social vem sendo feita através
da constituição, porém, não com a total efetividade que poderia ter, vez
que existem uma série de burocracias, as quais não devem ser entendidas
como algo maléfico, mas, sim, como uma forma de validar o processo
para a execução da atividade pública.
Como defende Weber126 , para a boa burocracia existir, deve haver
a prevalência de normas impessoais, para que não haja favorecimento de
amigos e parentes; devem existir relações de hierarquia pré-estabelecidas,
salários pré-estabelecidas de acordo com a função desempenhada; contra-
tação em virtude dos conhecimentos técnicos, e a separação entre os fun-
cionários e os instrumentos, materiais e edifícios usados na administração.
Esses são requisitos importantes dentro da construção Estatal, para que,
assim, se possa evitar ao máximo o desvio da função do Estado e deixar
bem claro que o governo é transitório, sendo o instrumento para a efetivar
as ações necessárias e a manutenção da democracia, mas que a perenidade
pertence ao Estado.
Porém, para garantir que a democracia se perpetue e amadureça, é
necessária a participação ativa da população, o diálogo e que ela enten-
da minimamente o papel fundamental que exerce nesse regime, para
não cair em tentação quando encontram com discursos “milagrosos”
de líderes autoritários, mesmo que esses discursos pareçam inócuo aos
ouvintes. Deste modo, a dinâmica da democracia se comporta de modo
a não viabilizar a criação de espaços de debates genuínos, fazendo com
que o cidadão não se engaje no debate público de maneira sólida e cons-
ciente, abrindo espaço para o crescimento do sentimento antidemocráti-
co e possibilita a ascensão de um líder salvador e anti-sistema, que apare-
cem em momentos de crise, seja ela política, econômica ou social, e, da
forma mais didática possível, mostra a fragilidade de diretos adquiridos
em uma democracia.
126 WHIMSTER, Sam. Weber. 1ª Ed. Penso. 2019.
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3. Nossos fantasmas do presente
Apesar da retomada democrática que o Brasil teve com a constituição
de 1988, momentos de instabilidade podem afetar e colocar em evidência
políticos que aparentemente utilizam táticas fascistas. Entende-se fascis-
mo, segundo a visão do autor Stanley (2020), “qualquer tipo de ultra-
nacionalismo (étnico, religioso, cultural), no qual a nação é representada
na figura de um líder autoritário que fale em seu nome”. Essa tendência
autoritária começou discreta, e teve seu ápice em 2018, com a eleição de
Jair Bolsonaro, político da extrema direita, cuja campanha foi marcada
pela semelhança com as táticas da política fascista, e escancarou todas as
características do passado brasileiro. Mas é necessário entender como che-
gamos ao momento de crise política e econômica que fez renascer todos
esses fantasmas.
Vale ressaltar que tudo isso não é um fato isolado do Brasil, o cres-
cimento da direita conservadora também aconteceu na América do Sul,
se fortaleceu, e chegou ao poder em países como o Paraguai (2012), a
Argentina (2016), o Peru (2016) e o Chile (2018). No Brasil, apesar des-
sa onda conservadora se oficializar em 2016, teve seu início discreto nas
manifestações no ano 2013. Inicialmente, os protestos estavam focados
no aumento da tarifa de transporte público em São Paulo, porém, logo
abordaram diversos outros temas, e seguiram de forma fragmentada suas
reivindicações, mas mostravam a insatisfação com a política e as lideran-
ças. Esse movimento logo ganhou um nome: “o gigante acordou”, e que
inicialmente gerou uma sensação de coletividade e fortaleceu o movimen-
to que uniu a população para escancarar suas insatisfações.
A crise socioeconômica, junto com o processo de impeachment, ge-
rou muita insegurança e instabilidade na sociedade brasileira, e abriu ain-
da mais espaço para a extrema direita e o neoconservadorismo. Essa nova
direita, segundo Lacerda (2019), gira em torno da família tradicional (he-
teronormativa), anticomunismo, militarismo e valores do livre mercado.
Seus atores, que podem ser denominados “outsiders”127, como apontam
Levitsky e Ziblatt (2018), apresentam-se como uma salvação, se conside-
ram antissistema, são denominados políticos autênticos, que falam a ver-
127 Tradução livre: estranhos.
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dade nua e crua e que possuem uma nova forma de fazer política, com
um discurso de que combaterão todo o tipo de corrupção, que contam
com propostas punitivistas, e, a partir de tudo isso, prometem reavivar os
tempos de glória da sociedade brasileira, baseando-se em uma perspectiva
irreal. Sob essa ótica a democracia brasileira vem passando o mais duro
teste de sobrevivência.
Os autores Levitsky e Ziblatt (2018) alertam que todo momento de
crise, seja na área política, econômica ou social, propicia o surgimento de
terreno fértil para esses candidatos “antissistema”. Os “outsiders” se ba-
seiam em discursos autoritários, que, por muitas vezes, não são entendidos
pelos eleitores, ou, por outro lado, gera uma identificação. Nesse sentido,
os políticos autocráticos têm uma inclinação em suspender ou restringir
as garantias e liberdades civis, principalmente de seus oponentes. Assim,
esses candidatos que não aceitam as regras da democracia se mostram in-
tolerantes aos seus oponentes, e são alertas para a república democrática e
a população, já que sua tendência é a não preservação das garantias civis e
institucionais da sociedade.
4. O neoconservadorismo brasileiro e autoritarismo
O movimento neoconservador que se instala no Brasil pode ser en-
tendido, como aponta Lacerda (2019), com um ativismo na regulação do
desejo, nos valores da família tradicional e nos ideais cristãs. Desta forma,
possuem um eixo de linguagem privatista, seja no sentido de garantir o
livre mercado, seja no sentido da manutenção do poder patriarcal. Apesar
desse ideal de estado mínimo, o pensamento neoconservador pretende
que o Estado interfira nas relações particulares para a defesa da “famí-
lia tradicional” através dos laços religiosos. Essa defesa ocorreria porque
entende-se que, ao fortalecer esta família, as pessoas não estariam tão de-
pendentes da política, e, assim, tornaria obsoleto o estado de bem-estar, e
desta forma, acaba por ir de contra a constituição brasileira.
Além dessas características, existe uma marcante desagregação social
criada a partir da relação entre os “trabalhadores” – cidadãos de bem –
que, com seu trabalho duro e de esforço próprio, conseguem alcançar o
sucesso, e os “tomadores”, que são as pessoas dependentes de políticas de
justiça social promovidas pelo Estado. Esses tomadores, segundo essa vi-
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são, seriam um mal a sociedade, pois, para eles, se o cidadão de bem con-
segue conquistar espaço e alcançar o sucesso, a outra parte não o faz por
"preguiça" e em virtude do apoio governamental. Dessa relação, vemos a
meritocracia defendida pela política neoconservadora, cada vez mais pre-
sente no Brasil. Entretanto, esse discurso esbara na extrema desigualdade
do país.
Outro ponto a ser observado é o aumento de políticas contra a popu-
lação LGBTQIA+. Um marco dessa política neoconservadora aconteceu
em maio de 2011, quando o Ministério da Educação lançou o ‘Programa
Escola Sem Homofobia’. Esse programa visava, através de uma cartilha,
efetivar o combate contra a homofobia nas escolas, e, assim, a promoção
do respeito entre os diferentes gêneros e a não discriminação nas esco-
las. A cartilha do programa consistia em apresentar o conceito de gênero,
diversidade sexual, de homofobia, entre outros tópicos, além de vídeos
educativos, como aponta Lacerda (2019). Entretanto, essa tentativa do
Governo Federal de combater a homofobia foi logo distorcida, o mate-
rial passou a ser chamado de “kit gay” pelos parlamentares, inclusive, o
primeiro a utilizar o termo foi o atual presidente, Jair Bolsonaro128. Os
argumentos utilizados para “demonizar” o programa estavam fundadas
em eventual doutrinação das crianças, que estariam sendo ensinadas sobre
homossexualidade, promiscuidade e pedofilia. Somente no ano de 2011, o
termo em questão foi utilizado em 47 discursos por parlamentares, afirma
Lacerda (2019).
A discussão sobre o Programa Escola Sem Homofobia se prolongou
e gerou muita insatisfação, um exemplo é a fala do, então deputado, Jair
Bolsonaro, no sentido de que o projeto seria a “desconstrução da hetero-
normatividade”, dizendo, também, “Qual a intenção? Desgraçar o teci-
do social, esculhambar os com os valores familiares, porque uma família
destruída é mais fácil de ser cooptada para o PT. Só posso crer que seja
isso!”. A autora Lacerda (2019) evidencia que essa fala do atual presidente
brasileiro é apenas um dos vários discursos de deputados que defendem a
família e que causam uma desconfiança generalizada, desacreditando os
atos contra a homofobia, que, uma vez desacreditados, fariam com que
a população aceite a teoria e o medo irracional da família ser destruída,
128 Atuando em seu quinto mandato como deputado federal.
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fomentando a aceitação de que as pessoas que combatem a homofobia, na
verdade, são depravados sexuais que buscam converter as crianças.
Além de marcar, de forma negativa, a reputação de projeto e das pes-
soas que o defendem, o que realmente importa é a manter a hierarquia
dentro do Estado que se dá através de uma família construída sob o pa-
triarcado e o pânico que os desvios dessa forma de construção familiar
rompe com as tradições e a moral do povo. Desta forma, como evidencia
Scruton (2020), um dos elementos-chave do neoconsevadorismo é a fa-
mília heterossexual, porque ao fortalecer essa família e o homem como o
centro dela possibilita eximir o Estado de se responsabilizar por ela com
políticas de bem-estar social, uma vez que fortalecer essa família é perpe-
tuar o papel do homem com responsável na proteção e manutenção dela,
impedindo que ocorra uma manutenção de pessoas no poder.
Lacerda (2019) afirma que ao tentar abordar questões de respeito e
igualdade de gênero nas escolas surgiu uma suposta doutrinação promo-
vida pelo Governo, apontada pela direita cristã como um outro mal a ser
combatido, que surgiu a partir do “kit gay”, uma ideologia de gênero129
que impulsionou uma forma ilegal de denunciar a doutrinação dentro das
escolas através de vídeos feitos pelos alunos durante as aulas. Para defender
as crianças e adolescentes da “homoxessualidade”, começou a ser tratado
o Projeto Escola Sem Partido, uma forma de oposição ao programa que
combateria a homofobia, que pretendia por fim na doutrinação política e
ideológica que aconteceria nas escolas e a não utilização de conteúdo ou
atividades que vão de encontro às convicções religiosas e morais dos pais
ou responsáveis. A formalização desse projeto se deu pela PL 867/2015.
Todo o projeto estava tendo como base um trecho do Pacto de São José da
Costa Rica, no art. 12, inciso 4, que trata de liberdade religiosa. Os pais
e, quando for o caso, os tutores, têm direito que seus filhos e pupilos rece-
bam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias
convicções. Utilizou-se, também, o discurso da proteção a família.
A histeria causada foi tamanha que houve iniciativas para tentar banir a
palavra gênero dos planos escolares e para criminalizar os atos que incluíssem o
129 Não possui um conceito teórico, mas é utilizado para defender a manutenção de uma
ordem hierárquica e desigual entre as pessoas em nome da defesa das crianças e dos jo-
vens, para isso persegui e tenta aniquilar os direitos e a diversidade sexual e assim deslegi-
timar as liberdades individuais.
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vocábulo em materiais didático-pedagógicos. Toda problematização foi causa-
da pela descontextualizarão das propostas, que, de forma consciente, tentaram
e conseguiram deslegitimá-las, e, como consequência, abalou a fé da população
nas instituições democráticas do país, no governo e em todos que o apoiam, já
que vincularam todos os atos à perversidade, ao pecado e o rompimento com
as tradições. Como tentativa de retomar e fortalecer a sociedade e suas tradi-
ções, foram propostos diversos projetos, que vão desde o ensino da bíblia e seus
fundamentos na educação básica e media à inserção do criacionismo nas grades
escolares públicas, chegando, ainda, ao “homeschooling”.
Tudo isso comprova que a onda neoconservadora ganhou força no
Brasil. Esse discurso cresceu em razão de: defender a família tradicional;
defender a vida, se opondo ao aborto; defender os papeis “tradicionais” de
homens e mulheres; combater a ideologia de gênero; defender os valores
cristão e anticorrupção. Ademais, foi surfando nessa onda que Jair Bolso-
naro ganhou visibilidade, com um discurso agressivo contra as minorias,
proposta de uma economia liberal e a promessa de “fuzilar a petralhada”
como forma de acabar com a corrupção brasileira.
5. Bolsonarismo: do autoritarismo velado ao
esvaziamento democrático
O cenário da eleição de 2018, que levou ao poder Jair Messias Bolso-
naro, é novo na política engessada do Brasil, que estava acostumada com
a relevâncias dos debates nas emissoras de televisão, de forma a se manter
um pouco distante dos eleitores, sendo surpreendida pela efetividade e di-
namismo da campanha de Bolsonaro. De modo modificou a dinâmica da
política brasileira, a campanha utilizou as redes sociais, comunicando-se
diretamente com o eleitor, criando, portanto, uma intimidade entre Jair e
seus eleitores, os quais foram responsáveis por disseminar notícias – mes-
mo que nem todas verdadeiras, defendendo, ferrenhamente, o candidato;
programando atos nas ruas em apoio à candidatura, e disseminando, nas
próprias redes sociais, o discurso do atual presidente.
Com a ajuda das redes sociais, Bolsonaro se elegeu com 55 milhões
de votos 130 mesmo sem ter estado presente nos debate das redes tele-
130 TRIBUNAL SUPERIRO ELEITORAL. Presidente do TSE confirma eleição de Jair Bolsona-
ro à Presidência da República. Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-
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visivas durante a fase final da campanha. O engajamento gerado pelas
mídias possibilitou que existisse um processo que dificultou a distinção
entre ficção e realidade. Dessa forma, seus apoiadores utilizaram aplica-
tivos como o whatsapp, facebook e instagram para apoiar integral ao candi-
dato. Contudo, o dinamismo das mídias sociais trouxe a possibilidade
de preencher essas lacunas com ficção de forma muito mais fácil, e ves-
tida de verdade. Essas interações levantaram as mais diferentes teorias da
conspiração, e esse ambiente foi extremamente explorado, aumentando
o apoio à candidatura de Bolsonaro.
Esse pode ser um ponto crucial que abala a democracia brasileira: a
disseminação de notícias falsas e sua repetição em grande escala, que acaba
por fazer recair uma máscara de verdade sobre elas. As pessoas, ao acredi-
tarem em fake News, que, aparentemente, são absurdas, geram uma sensa-
ção de medo e insegurança coletiva, sendo uma das melhores maneiras de
mobilizar as pessoas, canalizando o medo em ódio131. Isso impossibilita o
debate social e fragiliza a democracia, uma vez que ela só se constrói sobre
um debate amplo, em que todos participam. Entretanto, essa polaridade
afeta a escuta e nos faz enxergar no outro um inimigo a ser combatido, e
não um ser humano. Bolsonaro soube aproveitar dessa dicotomia, cana-
lizando o medo a partir das pautas de cunho moral aliadas às fake news,
para impedir o diálogo e, assim, distanciar o debate democrático, já que
só existiram dois polos possíveis, que não se conversam de forma alguma,
dando espaço para um cenário de acusações e medo.
Essa polaridade limita a formação de um tecido social plural e diver-
so, impossibilitando o reconhecimento de novas possibilidades de opi-
niões, valores e crenças. Dessa forma, tudo que emana de um lado que
é considerado como o “inimigo” é intelectualmente inferior, errado, e,
assim, alimenta estereótipos que afastam o diálogo e impossibilita a troca
que fortalece o ambiente político. Desta forma, Jair Bolsonaro ganhou
apoio com proposta vagas, como: a acabar com a corrupção, facilitar a
porte de armas para que o “cidadão de bem” possa se defender, viabilizar
-tse/2018/Outubro/presidente-do-tse-anuncia-eleicao-de-jair-bolsonaro-para-presidente-
-da-republica. Acesso em: abr 2020.
131 DELMAZO, Caroline; VALENTE, Jonas C. L.. Fake news nas redes sociais online: propa-
gação e reações à desinformação em busca de cliques. 2018. Disponível em: http://www.
scielo.mec.pt/pdf/mj/v18n32/v18n32a12.pdf. Acesso em: out 2020.
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o endurecimento de punibilidade para infratores, acabar com a ideologia
de gênero e, assim, proteger as crianças da promiscuidade, fortalecer a
família tradicional, já que existiria uma serie de “inimigos” tentando des-
truí-la, defendeu a privatização e a extinção das estatais e defender o pais
da ameaça do comunismo bolivariano. Parte dessas pautas são pertinentes,
já que são males reais sobre o estado brasileiro, como a corrupção, porém,
a propositura dos temas fora feita de forma controversa, como concluiu
Lacerda (2019).
A população brasileira, como aponta Mounk (2019), saturada da re-
lação com políticos somado ao momento de instabilidade vivido, acabou
por ver em Bolsonaro um símbolo de ruptura com a antiga política. O
candidato ficou conhecido por falar o que pensa, doa a quem doer, por
ser contra o politicamente correto e por defender o cidadão de bem dos
inimigos, esses que estariam nas minorias que reivindicam a divisão da
cidadania, para que possam ter partição e poder dentro da política; uma
visão que apresenta o cancelamento do politicamente correto, afirmando
que existe um excesso de supervisão dos discursos e que feriria a liberdade
de expressão da sociedade, tentando trazer validade em discursos machis-
tas, homofônicos, misóginos.
Segundo Stanley (2020), essa ameaça percebida pelo cidadão de bem
acontece porque, ao retificar as injustiças que desigualam as minorias,
consequentemente, trará sofrimento aqueles que se beneficiaram dessas
injustiças, ou seja, esse sofrimento será vivenciado pela parcela da popu-
lação como forma de opressão, ou, com as palavras do candidato, “vamos
fazer um Brasil para as maiorias, as minorias têm que se curvar as maio-
rias, as leis devem existir para defender as maiorias, as minorias que se
adéquem, ou, simplesmente, desaparecem”. A maior parte de suas falas
e atos durante e pós campanha corroboram para a polarização, como a
afirmação de existir um cidadão de bem que merece proteção e cuidado
e um outro que se aproveita da bondade do estado e merece ser punido.
Diversas vezes ele se posiciona menosprezando parte da população.
Segundo Bolsonaro, “[O policial] entra, resolve o problema e, se matar
10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e
não processado”132 (2018); “a sociedade brasileira não gosta de homosse-
132 Entrevista ao jornal nacional em agosto de 2018.
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xual. [...] Nós não perseguimos. [...] Não gostar não é a mesma coisa que
odiar. Você não gosta dos talibãs”133; “Não existe homofobia no Brasil.
A maioria dos que morrem, 90% dos homossexuais que morrem, morre
em locais de consumo de drogas, em local de prostituição, ou executado
pelo próprio parceiro” 134(2013); “Fui num quilombola [sic] em Eldo-
rado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não
fazem nada! Acho que nem para procriadores servem mais”135 (2017) ou
“Isso não pode continuar existindo. Tudo é coitadismo. Coitado do ne-
gro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do
piauiense. Vamos acabar com isso”136 (2018), todos esses posicionamentos
mostram que está bem longe de uma política no sentido do convívio entre
os diferentes.
Ao chegar na presidência, conseguiu efetivar ações contra direitos
conquistados pelas minorias, como a retirada do segmento de Promo-
ção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do
Conselho Nacional de Combate a Discriminação (decreto nº 9.883 em
julho de 2019), que tinha como finalidade formular e propor diretrizes de
ação governamental para o combate à discriminação e para a promoção e
defesa dos direitos de LGBTQIA+. Ou quando houve, também, a tenta-
tiva, pelo Ministério da Educação, em junho de 2020, de retirar as cotas
destinadas a negros e indígenas em cursos de mestrado e doutorado. Tudo
isso mostra que o governo não possui preocupação com as ações afirmati-
vas, contrariando todo o esforço constitucional na tentativa de promover
a justiça social.
Essa posição vai de encontro ao art. 3º da constituição, que estabelece
os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como, por
exemplo, que o Estado deve se esforçar para construir uma sociedade livre,
justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promo-
ver o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação, o que, no mínimo, leva-nos a
133 entrevista à minissérie documentário Out there, exibida pela emissora britânica BBC.
134 entrevista à minissérie documentário Out there, exibida pela emissora britânica BBC.
135 afirmação, em palestra no Clube Hebraica, no Rio.
136 entrevista à TV Cidade Verde, do Piauí.
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questionar as ações governamentais e, talvez, seja possível perceber o pa-
trimonialismo presente dentro da democracia vigente, já que o governo,
através do aparato estatal, acaba por tentar impor o seu interesse e de seus
apoiadores, ao ignorar e tentar retirar ações afirmativas conquistadas sob
muita luta por minorias da sociedade, que sofrem por não ter um grande
apoio estatal. Retirar o pouco apoio que esse segmento da população pos-
sui, apenas por não concordar com a sua existência e entender/interpretar
que é uma ameaça à família tradicional, não é motivo relevante para ser
entendido como um interesse público.
A chegada da pandemia de COVID-19 alertou ainda mais o estado
democrático de direito. Apesar das recomendações de manter o distan-
ciamento social, Jair foi visto em diferentes manifestações que pediam o
fechamento do Congresso Nacional e do STF, fazendo uma alusão ao AI-
5, implementado durante a ditadura militar que retirava todos os direitos
políticos e sociais. Apenas esse único posicionamento. vindo de um líder
democrático, já deve ser considerado extremamente perigoso e entendido
como um alerta. Mas Bolsonaro nunca escondeu a admiração pelo pe-
ríodo em questão, fazendo diversos elogios a generais que atuaram neste
período, como em seu voto no impeachment de 2016: “Pela memória do
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo
exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por
Deus acima de tudo, o meu voto é sim”.
Além do apoio a movimentos extremamente autoritários, a condução
do país durante a pandemia foi, no mínimo, conturbada, podendo ate ser
descrita, algumas vezes, como caótica. Durante diversas vezes, Bolsonaro
contraria pesquisas e posicionamentos científicos. O principal caso é do
remédio hidroxicloroquina, como afirma Priolli em o placebo eleitoral,
que apesar de não possuir nenhuma comprovação cientifica, é defendido
pelo presidente, que chegou a erguer uma caixa do remédio para uma
multidão de apoiadores, sendo, na oportunidade, ovacionado. O governo
proposto por Jair Bolsonaro, diante de todo o exposto, se mostra como
uma ameaça considerável à democracia. As rupturas causadas no cenário
social e pela falta de diálogo são cada vez mais incentivadas por falas e
posicionamentos de Jair. Esses são apenas alguns dos fatos. O Brasil vive
um momento em que polêmicas aparecem sucessivamente, o que gera a
sensação que Bolsonaro ainda está em fase de campanha.
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6. Conclusão
Após uma extensa pesquisa bibliográfica e analise dos fatos, entende-
mos, que Bolsonaro pode ser considerado um candidato outsider, tendo em
vista que se beneficiou da instabilidade econômica e política, se posicio-
nado como uma opção antissistema e seria capaz de trazer ao Brasil mo-
mentos melhores. Entretanto ao mesmo tempo que a dinâmica brasileira
influenciou a candidatura de Bolsonaro, as redes sociais foram o ponto
chave para que o apoio à candidatura aumentou cada dia.
Além disso, o presidente utilizou de técnicas que desestabilizam a de-
mocracia, principalmente o uso desenfreado de fake news, mas foi possível
observar diversas técnicas, como anti-intelecutialismo, a criação de um
passado mítico que trouxe uma nova roupagem a ditadura através de uma
propaganda criada de um passado que teria sido melhor, a dinâmica de lei
e ordem e a busca constante em defender a “família tradicional” geram
consequências que conseguem afetar o dialogo social e como resultado
sensibiliza o Estado Democrático de Direito que se consolidou com a
Constituição de 1988.
Ademais, já foi apresentado é possível afirmar que o governo bolso-
narista vem mitigando ou tentando mitigar direitos das minorias, uma
das justificativas para essa atitude se baseia na dinâmica de “tomadores” e
“trabalhadores, apresentada no corpo do texto. Desta forma fica eviden-
ciado uma tentativa de emoldurar a ditadura e traze-la para a atualidade
com novas roupagens, principalmente após as aparições do presidente em
manifestações que pediam o fechamento de Congresso Nacional e o STF,
para que assim Bolsonaro pudesse colocar suas propostas de governo em
pratica, pontuando essas duas instituições como inimigos que impediriam
o sucesso de governo bolsonarista.
Sob esses pretexto vamos cada vez mais nos distanciando de governo
plural e que pertente beneficias todos os cidadãos, mas sim se tornando
um governado para determinadas classes, ignorando a uma das maiores
características da democracia a pluralidade, assim parafraseando a Minis-
tra Carmen Lúcia: “democracia é plural, quem gosta de unanimidade é
ditadura”. Sendo assim, Constituição Federal de 1988 possui suas im-
perfeições e limitações, mas ainda é a melhor que já possuímos durante a
história das constituições no Brasil, deste modo retrocessos que ignoram
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ou mitigam direitos que estão previstos no tratado constitucional devem
ser repudiados ou impedidos, através do fortalecimento das instituições
do Estado.
7. Referências
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602
UM DIÁLOGO ENTRE A DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA E AS REDES
SOCIAIS: A TUTELA DAS MINORIAS
DIANTE DAS NOVAS FORMAS DE
HUMOR VIRTUAL
Taís Mota Vaz137
INTRODUÇÃO
Navegar pelas redes sociais, hodiernamente, é uma das atividades em
que as pessoas gastam relevante parte do seu dia. Por vezes, nesses espaços
virtuais, vislumbram-se condutas violadoras à dignidade de certos indi-
víduos, mormente no Brasil, um país marcado por preconceito e discri-
minações enraizados. Neste sentido, integrantes das minorias sociais são
diariamente satirizados, sem qualquer responsabilização, o que reforça e
estimula a desigualdade presente na sociedade brasileira.
Com base nisso, o presente trabalho busca, inicialmente, debruçar-se
sobre a dignidade da pessoa humana – sua origem, evolução e aplicabilida-
de. Para isso, foi realizada pesquisa básica, qualitativa e exploratória, pela
doutrina e jurisprudência, com vistas a introduzir os conceitos fundamen-
tais atinentes ao assunto.
137 Advogada. Graduada em Direito e Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho,
pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão. Pós-graduanda em Direito Público Aplicado na
Escola Brasileira de Direito – EBRADI.
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Ato contínuo, buscou-se contextualizar o tema com a sociedade bra-
sileira atual, por meio da análise da evolução tecnológica e alguns de seus
institutos, bem como com o retrato da desigualdade e preconceitos im-
pregnados no país. À vista disto, foram executadas pesquisas qualitativa e
quantitativa, descritiva e explicativa, inclusive, por meio da apresentação
de dados estatísticos.
Assim, este artigo é um convite a desprender outro olhar sobre as
redes sociais, no que tange ao distanciamento social, que suplanta a apro-
ximação de direitos e igualdade. Ele busca evidenciar um problema pouco
debatido – se não, despercebido –, e que serve de obstáculo à máxima
efetividade da democracia.
1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: EVOLUÇÃO E
APLICABILIDADE
No mundo jurídico, não raro, vislumbram-se decisões fundamenta-
das no instituto da dignidade da pessoa humana. Deveras, tal argumento,
praticamente, se tornou um jargão jurídico, que, em razão da sua elevada
abstrativização, serve de fundamento às mais diversas situações.
Com efeito, retira-se que a conceituação do instituto é tarefa extre-
mamente árdua, se não, impossível. Isto porque defini-lo seria limitá-lo,
objetivo que aqui não se almeja. Em verdade, repugna-se, frente à relevân-
cia da sua plasticidade e subjetivismo, como a seguir demonstrado.
De início, portanto, parecem de mais valia as análises da sua evolução
na humanidade e do seu papel atual na sociedade brasileira. Dessa forma,
serão permitidas as adequadas compreensão e reflexão sobre o tema.
A ideia central da dignidade da pessoa humana muito tem relação
com o estudo da Filosofia, especialmente por meio de Kant e Hegel, filó-
sofos tradicionais no que tange a temática. Foi esta ciência o seu berço e
onde se aflorou em direção à concepção jurídica que hoje detém.
Deveras, com Immanuel Kant, a temática ganhou mais destaque,
cujos pensamentos, até hoje, mostram-se atuais e dignos de reprodução.
Segundo o filósofo prussiano, tudo o que não pode ser precificado possui
dignidade, fato que diferencia o homem das demais coisas e impõe a má-
xima de ele ser sempre um fim em si mesmo, nunca um meio. Portanto,
seria a dignidade atributo inerente ao ser humano e que advém da capa-
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cidade de o mesmo se autodeterminar como melhor entender e agir em
conformidade com certas leis. (QUEIROZ, 2005)
Todavia, estas leis não são externas, e sim as que servem de pauta à
condução das ações de cada indivíduo no exercício da sua autonomia da
vontade. E, segundo Kant, a conduta ética é a que não se afasta do impe-
rativo categórico, ou seja: é atuar conforme as suas próprias leis. (BAR-
ROSO, 2010)
D’outro lado, nos pensamentos de Kant, as leis morais são univer-
sais, de modo que o indivíduo não se encontra totalmente livre, em uma
acepção egoística ou individualista. Do contrário, ele sempre deve se ater
à moral, esta sim, universal, e que deve ser o guia na condução das suas
ações. Destarte, a liberdade do homem não se confunde com a liberdade
de fazer e decidir sobre tudo. (MAURER, 2005, p. 76)
Ante o exposto, conclui-se que, conquanto a dignidade esteja intima-
mente relacionada à liberdade que o homem tem em se autoconduzir, ao
mesmo tempo, encontra-se limitada pela moral, sempre calcada na razão.
Assim, o comportamento individual deve obedecê-la e nunca se lastrar,
exclusivamente, em sentimentos e objetivos pessoais.
Com isso, retira-se também a natureza evolutiva do conceito. É ce-
diço que a moral é relativa e encontra-se em constante processo de re-
conformação, a depender do contexto histórico e social em que se insere.
Nesse diapasão, evidente que o conceito de dignidade da pessoa humana,
atrelado a ela, assim também o é.
Disto, também, se conclui o caráter plástico e subjetivo do conceito
de dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual reitera-se que, de modo
algum, pretende-se aqui delimitá-lo. De qualquer forma, diante do até
agora exposto, parecem corretas algumas afirmações. Primeiro, que toda
pessoa é livre para autodeterminar-se como melhor entender, dentro dos
limites impostos pelas leis morais, universais. Segundo, que a dignidade é
inerente a todos os seres humanos, sem distinção. E, por derradeiro, que o
ser humano é sempre um fim em si mesmo, nunca um meio. Nas palavras
de Carlos Ayres Britto (2012, p. 27):
o princípio jurídico da dignidade da pessoa humana decola do
pressuposto de que todo ser humano é um microcosmo. Um uni-
verso em si mesmo. Um ser absolutamente único, na medida em
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que, se é parte de um todo, é também um todo à parte; isto é, se
toda pessoa natural é parte de algo (o corpo social), é ao mesmo
tempo um algo à parte.
Outro fato decisivo ao desenvolvimento da tutela da dignidade da
pessoa humana foi o final da Segunda Guerra Mundial. Assistir às atro-
cidades da época, oriundas do fascismo e do nazismo, fez diversos do-
cumentos políticos e jurídicos conferirem proteção especial ao instituto
(FRIAS; LOPES, 2015), a exemplo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948.
No Brasil, a Constituição da República de 1988 lhe conferiu papel
de destaque, como princípio fundamental republicano, que estrutura e
serve de parâmetro à aplicação, interpretação e integração de toda ordem
jurídica e política. Por essas e outras, a exemplo do seu extenso rol de
direitos fundamentais logo ao seu início, é conhecida como “Constitui-
ção Cidadã”.
A partir de todo este cenário mundial, ficou mais clara a necessidade,
não só de respeitar, em absoluto, a dignidade da pessoa humana, mas tam-
bém de garanti-la. Assim, ela passa a ser, ao mesmo tempo, limite e tarefa
dos poderes estatais, em consagração da sua dupla dimensão: defensiva e
prestacional (SARLET, 2017, p. 28). Por isso, em observância à dignidade
da pessoa humana, também é dever estatal promover políticas públicas,
econômicas e sociais que visem à sua real concretização. (COMPARA-
TO, 2005, p. 24)
Neste tocante, relevante destacar a proximidade entre os conceitos de
dignidade da pessoa humana e de mínimo existencial. Isto porque, embo-
ra este último seja instituto muito estudado no âmbito dos direitos sociais,
há de se lembrar que a sua origem maior encontra-se na própria dignida-
de do ser humano. Por isso, o Estado deve buscar meios de ofertar esse
mínimo existencial para, assim, dar espaço a uma vida condizente com a
dignidade. (FRIAS; LOPES, 2015)
O conteúdo de mínimo existencial, todavia, não mais se adstringe
a condições básicas que garantam a simples sobrevivência. Devem, por-
tanto, ser ofertados insumos a uma existência efetivamente digna, com a
qualidade condizente com a condição de pessoa, Hoje, com a evolução
social, econômica e tecnológica, isto perpassa por diversos outros direitos,
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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que não só aqueles mais elementares, como à saúde, educação e moradia.
(SARLET, 2007, p. 101)
Ao lado deste reflexo no Direito Público, também se vislumbrou o
fenômeno da “despatrimonialização do Direito Privado”, nos termos do
Prof. Carmini Dionisi. Passou-se, então, a reconhecer que bens e direitos
patrimoniais não são fins em si mesmo, em consagração da inversão da
lógica do “ter sobre o ser” na do “ser sobre o ter”. Para isto, foi necessária
uma reinterpretação e reformulação de institutos jurídicos essencialmente
privados, para adequá-los a este novo paradigma. (SARMENTO, 2004,
p. 115)
Com efeito, o período pós-guerra trouxe questionamentos sobre até
onde vai a liberdade de autodeterminação individual. A restrição à autono-
mia da vontade foi reforçada, pela legislação e jurisprudência, por meio da
aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações particulares. Nesse
sentido, afirma Daniel Sarmento (2004, p. 116) que “o intervencionismo
estatal nas relações privadas justificar-se-á, basicamente, em duas situa-
ções: proteção da parte mais fraca nas relações jurídicas, e promoção de
interesses gerais da coletividade”.
Interessante e famosa baliza para auferir a legitimidade da intervenção
estatal, com vistas a proteger e promover a dignidade da pessoa humana,
é a denominada “fórmula do homem-objeto”, desenvolvida por Günter
Dürig, na Alemanha. Ela legitima a atuação do Estado sempre que o indi-
víduo for rebaixado a objeto, mero instrumento, sendo, portanto, a análise
casuística. (SARLET, 2005, pp. 33/35)
Neste tocante, pelas lições de Beatrice Maurer (2005, p. 79), liberda-
de e dignidade são conceitos que não devem se opor, mas coexistir. Isto
porque, segundo a autora, em que pese uma dignidade que desconsidere
a liberdade seja uma dignidade truncada, uma liberdade que se opõe à
dignidade não compreende o homem em sua totalidade.
E, nesse contexto, iniciaram-se os debates acerca da dimensão hete-
rônoma ou comunitária da dignidade da pessoa humana. Assim, algumas
reflexões surgem da dicotomia liberdade versus igualdade.
Exemplo disto é o caso de arremesso de anões, na França, no início
da década de 1990. Tal prática era uma espécie de torneio, onde se dispu-
tava quem conseguia arremessar mais distante pessoas com nanismo. O
Governo Francês passou a proibir esta conduta e, em face de tal vedação,
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os donos das casa noturnas onde ocorriam os torneios e um dos anões, Sr.
Manuel Wacknheim, acionaram o Conselho de Estado, o mais alto tribu-
nal administrativo. (CHIESSE, 2013)
No julgamento, a referida corte reconheceu a legitimidade do poder
de polícia estatal em face de tais condutas, sob o argumento da moralidade
pública, calcada também na dignidade da pessoa humana. Irresignado, o
Sr. Manuel Wackhein levou o caso à Comissão de Direitos Humanos da
ONU, a qual também afirmou a legitimidade do poder de polícia estatal
no caso. (CHIESSE, 2013)
Veja que, nesta situação, o Sr. Manuel Wackhein foi em busca da tute-
la de seus interesses por entender que o tribunal francês estava equivocado
quanto à alegada violação da sua própria dignidade. Assim, evidente que,
nos moldes do que aquele cidadão entendia por dignidade, o tribunal não
tinha razão e a sua dignidade restava incólume.
Nesse sentido, a concepção comunitária ou heterogênea da dignidade
da pessoa humana prega uma faceta social deste instituto. Dessa forma,
ele deixa de se relacionar somente com a promoção individual dos direitos
humanos e fundamentais e passa, também, a servir de instrumento à soli-
dariedade e respeito mútuo entre os indivíduos.
Tal dimensão acaba, em certa medida, por restringir a liberdade indi-
vidual em prol de determinados valores indispensáveis à sociedade, consi-
derada como a união de indivíduos igualmente dignos em direitos. Assim,
violar a dignidade de outrem implica, também, em violar a de si próprio,
enquanto ser humano, tendo em vista que o outro nada mais é do que um
semelhante e seu espelho.
Assim sendo, evidente que a dignidade da pessoa humana vincula a
todos, Estado e particulares, inclusive aquele na proteção da pessoa em
face de si mesma, em atos desta que, ainda que voluntários, atentem con-
tra a sua própria dignidade, como o ocorrido no supracitado caso de arre-
messo de anões. (SARLET, 2006, p. 113)
Vale ressaltar que, não obstante a relevância da faceta comunitária da
dignidade da pessoa humana, há juristas e filósofos que não a reconhecem,
sob o argumento de que a liberdade do homem, consubstanciada em con-
duzir a sua vida como melhor entender, seria atributo inerente ao próprio
instituto, não sendo legítima a sua restrição para “impor padrões de vida
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digna que elas não comungam”, nas palavras de Daniel Sarmento (2015).
Com efeito, não caberia qualquer limitação à autonomia individual.
Sem embargo, não merece ser esta a melhor interpretação. Justamen-
te pelo caráter plástico e subjetivo da dignidade da pessoa humana, deve
haver algum meio que permita a convivência harmônica entre todas as
pessoas de uma mesma sociedade, cada uma com sua individualidade. Até
porque permitir uma total liberdade e autonomia, neste caso, poderia vir
a ser um risco à própria dignidade do outro.
Nessa esteira, estabelecer padrões e condições mínimas do que com-
põe o conceito de dignidade da pessoa humana em determinada sociedade
parece ser uma baliza interessante à delimitação da concepção individual
de dignidade para cada um dos seus integrantes.
Todavia, na prática, esta tarefa enfrenta sérios entraves, a começar
pela própria definição de dignidade. Não há diplomas ou documentos
que tragam uma espécie de conceito mínimo de dignidade da pessoa hu-
mana, até mesmo pela sua própria plasticidade. Nesse diapasão, deve ele
ser construído com base nos direitos fundamentais assegurados em cada
ordenamento, assim como no disposto na doutrina e jurisprudência na-
cionais, além da própria cultura e costumes.
Assim, é possível ventilar concepções mínimas do seu significado em
determinada sociedade. Exemplos disto, no Brasil, são o reconhecimento
de igualdade entre gêneros, a exigência de condições minimamente dig-
nas em presídios e a vedação à pena de morte. Isto em virtude das dispo-
sições constitucionais e legislativas brasileiras, assim como da noção geral
de dignidade da pessoa humana.
Neste tocante, reitera-se que a nossa Constituição atual conferiu-lhe
status de fundamento da república federativa. Ou seja, ela configura ver-
dadeira base estruturante de toda ordem jurídica e social, considerando
a eficácia normativa e política da Constituição. Com vistas a este caráter
fundante, o Supremo Tribunal Federal, em seus julgados envolvendo a
temática, coloca a dignidade da pessoa humana como
verdadeiro valor- fonte que conforma e inspira todo o ordena-
mento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de
modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre
nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema
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de direito constitucional positivo. (BRASIL, Supremo Tribunal
Federal, 2018)
Outrossim, a Suprema Corte reconhece inúmeros outros direitos
não expressos na Constituição – como ao nome e à união homoafetiva –,
tendo em vista a abertura material dos direitos e garantias fundamentais,
fruto da máxima irradiação dos efeitos da dignidade da pessoa humana
(SARLET, 2017, pp. 35/38). Em casos difíceis, Barroso (2010) salienta,
também, o emprego da dignidade da pessoa humana como parâmetro
para suas soluções. Neste tocante, destaca a relevância do valor comuni-
tário imbuído em tais julgamentos. Por exemplo, no reconhecimento da
união homoafetiva, levou-se em consideração a ausência de risco efetivo a
direitos de terceiros, assim como na permissão de interrupção de gravidez
de fetos anencefálicos.
Dessa forma, conclui-se que a jurisprudência brasileira, acertadamen-
te, vem por reconhecer a concepção comunitária ou heterônoma da digni-
dade da pessoa humana quando diante dos casos concretos. Isto revela-se
essencial e imperioso no âmbito de um Estado Democrático de Direito.
2. A ATUAL RELEVÂNCIA DAS REDES SOCIAIS E AS
VIOLAÇÕES À DIGNIDADE DE INTEGRANTES DE
MINORIAS EM SEU ÂMBITO
O debate acerca da dignidade da pessoa humana torna-se ainda mais
valioso quando diante da crescente complexidade das relações sociais con-
temporâneas. E, ao lado disto, crescente torna-se, também, o risco de
violações a direitos fundamentais. Como exemplo, citam-se as novas for-
mas de relações de trabalho, como as de teletrabalho e de entregadores por
aplicativo. Com efeito, evidente que o Direito teve que se atualizar com
fins de regular estas noveis realidades.
Nesse mesmo diapasão, as relações interpessoais, quando trasladadas
ao meio virtual, assumem outras feições, que demandam novas regula-
mentações e interpretações no que tange os direitos fundamentais dos en-
volvidos. Nesse contexto, cada vez ganha mais espaço em debates socio-
lógicos e jurídicos a temática das redes sociais.
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Há muito, ouve-se que essas ferramentas têm o poder de aproximar e,
ao mesmo tempo, de afastar os indivíduos. Em âmbito jurídico, a máxima
se reafirma. As facilidade e velocidade de superexposição e propagação de
informações nas redes sociais é proporcional às suas facilidade e velocida-
de em violar direitos individuais.
Com efeito, atualmente, é palco de grandes discussões a questão das
fake news (notícias falsas). A temática desencadeia uma ramificação de
problemas sociais, a exemplo de violação de direitos individuais – como
o direito à honra e à imagem –, risco à democracia – especialmente, em
períodos eleitorais –, e intensificação do crescente movimento de bipola-
rização social. (O DILEMA, 2020)
Outro exemplo de grande impacto das redes sociais é o marketing
digital, cada vez mais ascendente nas políticas empresariais. Vale citar que,
em apenas cinco meses da estreia da sua plataforma de anúncios, o Insta-
gram ultrapassou a marca de duzentos mil anunciantes. (HEINE, 2016)
Nessa mesma onda, incluem-se as novas formas de humor, por meio
dos milhares de perfis humorísticos hoje existentes nas redes sociais, as-
sim como a grande, e até mesmo peculiar, quantidade de pessoas que
se autointitulam influenciadores digitais (POLITI, 2017). Com efeito,
pesquisas mostram que 67% (sessenta e sete por cento) do público mas-
culino segue alguma conta de teor humorístico e que 71% (setenta e
um por cento) dos entrevistados se consideram influenciadores digitais.
(PESQUISA, 2019)
Ao lado disso, os memes se multiplicam e viralizam a cada minuto.
São eles qualquer tipo de mídia humorística virtual, expressada por meio
de imagem, vídeo, texto, dentre outras formas, e que se alastram rapida-
mente entre os internautas (MEME, 2015). A origem do conceito reside
na obra de Richard Dawkins, O Gene Egoísta, de 1976, onde o biólogo
britânico afirma ser o meme espécie de gene social que se propaga e se
mantém na sociedade, a depender da sua aceitabilidade. (O DNA, 2016)
À vista de tudo isto, alguns perfis humorísticos, atualmente, são efe-
tivas fontes de renda dos seus criadores, por meio de contratação de pos-
tagens de publicidade por parte de empresas. Há indivíduos que chegam
a atingir uma renda mensal de mais de dez mil reais (APRIGIO, 2020),
o que gira em torno do dobro da renda média mensal da família brasileira
(IBGE, 2019).
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Paralelamente a este quadro, o uso excessivo das redes sociais e a su-
perexposição da vida pessoal fizeram crescer a necessidade individual de
autopromoção mediante postagens, bem como a valorização medida atra-
vés de curtidas e seguidores. Assim, os usuários, em busca de renda ou de
autopromoção, criam os mais diversos conteúdos digitais. E, em meio à
ambição e ao individualismo, por vezes, tornam-se cegos aos problemas
sociais escondidos por detrás de tais criações.
Nesse ínterim, não raro, vislumbram-se publicações humorísticas e
memes que têm por objeto pessoas portadoras de deficiências, físicas ou
mentais, ou, ainda, pessoas LGBTQS+, afrodescendentes, dentre outros
integrantes de minorias sociais. São postagens que visam provocar risa-
das em cima de características ou manifestações, corporais ou linguísticas,
destes indivíduos e que se alastram rapidamente pelo mundo virtual.
Deveras, a propagação, curtidas e seguidores de perfis que publicam
tais tipos de postagens apenas refletem toda a discriminação enraizada em
uma sociedade que engatinha rumo a uma realidade efetivamente iguali-
tária. Não raro, noticiam-se práticas neste sentido e os dados estatísticos
não mentem.
Em 2018, segundo o IBGE, mais de 31% (trinta e um por cento) da
população negra ou parda brasileira não possuía ensino fundamental com-
pleto enquanto que, no que tange a população branca, o índice cai para
menos de 20% (vinte por cento). Quanto ao ensino superior, nem 13%
(treze por cento) dos negros e pardos possuem diploma, conquanto quase
28% (vinte e oito por cento) dos brancos sejam graduados. (IBGE, 2018)
Quanto às pessoas com deficiência, segundo o IBGE, em 2013, ape-
nas 1% (um por cento) das pessoas com deficiência brasileiras estavam
inseridas no mercado de trabalho (IBGE, 2013), sendo que, pelo censo
demográfico de 2010, mais de quarenta e cinco milhões de brasileiros pos-
suem algum tipo de deficiência. (IBGE, 2010)
No que se refere à população LGBTQS+, estudos mostram que, entre
2011 e 2018, a cada dezesseis horas, um homicídio ocorreu por questões
LGBTFóbicas. Outrossim, que, em outubro de 2018, época eleitoral, as
denúncias de violência LGBTFóbica cresceram até 272% (duzentos e se-
tenta e dois por cento) em relação ao mesmo mês do ano anterior. (SO-
BRINHO, 2019)
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Assim, pairam vários questionamentos acerca das publicações aqui
debatidas, como os de proteção da dignidade dessas pessoas e de eventuais
regulamentação e reprimendas de condutas como estas. Como foi dito ao
início, o conceito de dignidade da pessoa humana é plástico e relativo. E,
diante da velocidade da tecnologia e mutação das relações sociais, célere
também deve ser o processo de reconformação do instituto e dos seus
mecanismos de proteção e concretização.
O descompasso, porém, é evidente. E, de fato, em um país plural,
com inúmeros problemas sociais e moras legislativas, qualquer tentativa de
regulação de determinada matéria perpassa por um grande esforço políti-
co, financeiro e da própria sociedade. Ocorre que, no que tange a temáti-
ca da dignidade destas pessoas, ainda há vários outros problemas.
Além de tudo o quanto já exposto, não há uma consciência coletiva
acerca da gravidade da situação. Postar, curtir e compartilhar tais conteú-
dos é tão natural quanto fazer o mesmo com uma publicação jornalística
ou de um amigo em viagem, por exemplo, principalmente, em postagens
onde a discriminação não é tão nítida, como de contas que pregam a ilu-
sória promoção do próprio satirizado.
Nesse sentido, parece que a sociedade brasileira faz o caminho inver-
so. Ao invés de seguir o ramo das desamarras dos preconceitos e da dis-
criminação, a criação e propagação desses conteúdos põem em evidência
as peculiaridades de tais indivíduos, em ascendência da ridicularização e
consequente discriminação em relação aos mesmos.
Com efeito, pelas lições kantianas e em aplicação da “fórmula do ho-
mem-objeto”, de Dürig, cristalina é a violação à dignidades destas obje-
tificadas pessoas, que acabam por ocupar o posto de instrumento de au-
topromoção, seja por que motivo for. Deveras, a referida fórmula deve ser
aplicada duplamente, já que as suas imagens também são utilizadas, per si,
como veículos de humor a milhares de usuários em busca de deleite.
Assim sendo, da mesma forma que foi repreendida a prática de arre-
messo de anões, na França, devem ser repreendidas tais publicações, ainda
que vestidas sob a falsa roupa de valorização dos próprios satirizados. Isto
porque deve ser levado em consideração, além do aspecto ontológico da
dignidade da pessoa humana, o seu aspecto comunitário, como já reco-
nhecido pela jurisprudência pátria e de extrema relevância social.
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Isentar condutas como estas de reprimenda e responsabilização vio-
la, além dos direitos dos próprios satirizados, a imagem e a dignidade de
todos os seus similares. Mais ainda, de toda a sociedade enquanto agrupa-
mento de indivíduos iguais em direitos e oportunidades.
A situação, ainda, se agrava quanto aos mecanismos disponíveis – e
ineficientes –, de reprimir e punir estas publicações, inseridas em um
mundo à parte, que é o das redes sociais. Sem falar que este mundo, deve-
ras, é onde as pessoas gastam relevante parte do seu dia.
Atualmente, os usuários, diante de publicações desse tipo, podem
promover a denunciação do respectivo perfil criador do conteúdo. Toda-
via, esta prática não é comumente adotada. E, ainda que fosse, improvável
que tais criadores seriam responsabilizados penalmente, ou até civilmente.
Certa e infelizmente, o resultado disto seria a mera suspensão de tais con-
tas das plataformas digitais, o que evidencia a enorme falácia de mecanis-
mos de combate e punição no que se refere à problemática.
A partir de todos os dados acima expostos, pode ser delineado o se-
guinte panorama: i) o reconhecimento, inclusive, na jurisprudência bra-
sileira, do valor comunitário da dignidade da pessoa humana; ii) uma
sociedade extremamente desigual e com preconceitos enraizados; iii) a
crescente relevância social e econômica das redes sociais; iv) a febre dos
memes; v) a existência de inúmeros conteúdos digitais que satirizam in-
tegrantes de minorias nas redes sociais; vi) inexistência de mecanismos
eficientes de combate e punição de tais condutas.
Nesse ínterim, urge a necessidade de mudança desta realidade, pro-
cesso que deve perpassar por um conjunto de ações integradas e multidis-
ciplinares, a começar por uma melhor regulação do uso e responsabilidade
no âmbito das redes sociais. O Estado, portanto, é chamado a atuar, em
legítima intervenção, nas supracitadas lições de Daniel Sarmento (2014, p.
116), haja vista a objetificação destes vulneráveis indivíduos.
Isto porque deve levar-se em conta a concepção positiva da dignida-
de da pessoa humana, no que circunda o direito de serem oportunizadas
condições a uma existência minimamente digna. Isto deve ser feito, inclu-
sive, para proteger o indivíduo de violações que perpetra voluntariamente
contra si mesmo, como anteriormente defendido, especialmente, diante
de situações onde se sustenta a falsa percepção de valorização da pessoa
satirizada, verdadeiramente ridicularizada.
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Como foi dito, em que pese a delimitação de um conceito de digni-
dade seja tarefa árdua e inacabada, evidente que, no Brasil, não deve ser
tolerado qualquer tipo de estímulo ou efetivo preconceito e discrimina-
ção, o que vem por ocorrer com a disseminação dos conteúdos ora anali-
sados. Destarte, ainda que mascaradas sob vestimentas de mero humor ou
promoção de indivíduos – dos que divulgam ou dos que são retratados –,
necessárias são as devidas e efetivas reprimendas a tais condutas.
Neste tocante, o projeto de lei das fake news (BRASIL, Projeto de
Lei PL 2.630, 2020) poderia ter sido uma excelente ferramenta a abranger
outras questões atinentes às redes sociais, que não só a propagação de falsos
conteúdos. Por isso, conquanto ainda esteja em tramitação, parece ter sido
perdida uma oportunidade para tratar do assunto aqui abordado.
De qualquer forma, esta regulação seria somente uma faísca à busca
de efetiva solução da temática. Isto porque, como foi dito, a sua origem,
em muito, perpassa pela ausência de consciência coletiva acerca dos direi-
tos de tais indivíduos e, portanto, da real percepção de solidariedade e de
igualdade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante todo o exposto, algumas conclusões são corretamente retiradas
acerca da dignidade da pessoa humana e sua aplicação nas relações moder-
nas, em especial, no âmbito dos conteúdos humorísticos disseminados nas
redes sociais. Vejamos.
Primeiramente, que a dignidade da pessoa humana possui conteúdo
plástico e evolutivo, a depender da sociedade em que se insere. Todavia,
nos pensamentos de Kant, é atributo de tudo que não pode ser precifica-
do, sendo, portanto, inerente à condição humana. Ainda, que o ser huma-
no é um fim em si mesmo, nunca um meio.
Outrossim, que, segundo este filósofo, o instituto está intrinsecamen-
te atrelado ao conceito de liberdade, de o indivíduo se autodeterminar
segundo as suas próprias leis, leis estas que são morais e, portanto, univer-
sais. Com efeito, esta liberdade não é absoluta e irrestrita, mas conforme
preceitos éticos racionais, pois, só assim, o indivíduo é realmente livre.
Ademais, tendo em vista o subjetivismo do instituto, assim como sua
relatividade quanto aos diferentes meios sociais, por vezes, identificar a sua
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violação não é tarefa simplória. Por isso, a análise deve ser casuística, como
vem por ocorrer na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Nessa esteira, foi visto que a aplicação da “fórmula do homem-ob-
jeto”, de Günter Dürig, é uma baliza a auxiliar tal tarefa. Nas lições do
jurista alemão, haveria violação à dignidade sempre que uma pessoa fosse
posta em lugar de objeto, instrumento a determinado fim, em consonân-
cia ao pensamento kantiano.
Ademais, conquanto já ventilada desde a antiguidade, mormente pelos
pensamentos de Kant e Hegel, a dignidade passou a ter papel de destaque
após a Segunda Guerra Mundial. Isto porque as atrocidades vistas em tal
época deram origem à necessidade da sua efetiva proteção e efetivação, pelo
que se passou a discutir também a sua faceta comunitária ou heterônoma.
Nesse sentido, foi reconhecida, além de uma concepção ontológica,
uma outra instrumental e humanitária do instituto, que deve ser aplicada
nas relações interpessoais, fomentada pelo processo de despatrimonializa-
ção do Direito Privado. É dizer: a liberdade passa a ser legitimamente res-
tringida pela dignidade, em prol de valores sociais e coletivos, que devem
ser concretizados por todos os agentes sociais.
Assim, passou a ser legitimada a intervenção estatal na esfera privada,
com fins de assegurar condições minimamente dignas aos cidadãos, ainda
que para limitar a voluntariedade do próprio indivíduo, como visto no
caso de arremesso de anões, na França.
Toda a discussão ganha novas ramificações quando diante da complexi-
dade das relações sociais modernas, mormente com as tecnologias virtuais,
como as redes sociais. Os desafios são, ainda, potencializados em virtude das
desigualdade e discriminação enraizadas na sociedade brasileira.
Nesse ínterim, foi abordada a febre da criação de memes – conteúdos
digitais humorísticos que se alastram rapidamente pelo meio virtual –, no-
civos quando possuem por objeto pessoas integrantes de minorias sociais,
como portadoras de deficiências, homossexuais e negras, em sátira das
suas próprias condições.
Dessa forma, com vistas às doutrinas de Kant e Dürig, bem como
pela noção de dignidade retirada da sociedade brasileira, ficou eviden-
te a violação da dignidade de tais pessoas, verdadeiramente objetificadas.
Isto porque elas são utilizadas como meio de promoção dos perfis que as
expõem, além de servirem de veículos de humor aos demais usuários,
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especialmente, pela ilusão de que tais conteúdos, por vezes, buscam a va-
lorização do próprio satirizado.
Todavia, cediço que isto, de modo algum, deve ser tolerado quando
por intermédio de condutas que estimulam ou promovem discrimina-
ções, como, nesses casos, se constata. Contrariamente, isto deve ser vee-
mentemente reprimido, para que, assim, seja efetivamente respeitada a
dignidade de tais indivíduos.
A falácia de instrumentos de combate a estas condutas, porém, é cla-
ra, em virtude da inexistência de regulamentação e de instrumentos efi-
cazes de combate. Poucas pessoas denunciam estes conteúdos e, ainda que
assim não fosse, não se vislumbrariam animadoras perspectivas de respon-
sabilização dos seus criadores.
Nesse diapasão, conclui-se que uma atuação positiva do Estado em
regular este cenário já seria um eficaz início à tarefa. Não há de se perder
de vista, entretanto, que não só ele, como todo e cada indivíduo, possuem
papel relevante nessa empreitada, que, vista a olhos nus, passa despercebi-
da, mas possui imenso tamanho aos olhos da democracia.
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620
A PRODUÇÃO DE VIDA NUA NO
DISCURSO MÍDIATICO: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA A PARTIR DO SUJEITO
DESABRIGADO138
Daniel Fernandes Soares139
INTRODUÇÃO
Atualmente, no plano jurídico, toda brasileira e todo brasileiro são re-
vestidos de direitos e garantias constitucionais. Contudo, no plano social,
percebe-se que a relação entre direito e vida humana se dá mediante crité-
rios, principalmente, de raça, gênero, classe social, origem e território. Ou
seja, apesar do texto jurídico conceber cidadãos iguais em direitos e garan-
tias, na situação de fato, observa-se que alguns indivíduos gozam de direitos
e garantias integrais enquanto outros gozam apenas parcialmente. No en-
tanto, é certo que as disparidades sociais não se limitam a essa simples dico-
tomia entre integral e parcial. Há indivíduos que vivem sob determinadas
condições que parecem não gozar de direito algum, ainda que cobertos pelo
ordenamento jurídico. É na zona de indiscernibilidade entre direito e fato
que situo a pessoa desabrigada, é dizer, pessoa em situação de rua (PSR).
Silva (2006) afirma que a situação de rua não se explica a partir de um
único determinante, pois combina fatores de ordem estrutural da sociedade
138 Este artigo se apresenta como um desdobramento do meu Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) defendido em dezembro de 2019, sob o mesmo título.
139 Mestrando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Fede-
ral de São Paulo - UNIFESP.
621
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capitalista, fatores biográficos e, por fim, fatos da natureza ou desastres de
massa. Em virtude dessa multicausalidade, são realizados inúmeros estudos
nas Ciências Sociais sobre população em situação de rua a partir de temas
como pobreza, trabalho, marginalização e exclusão social (CASTEL, 1997;
VÉRAS, 1999; PAUGAM, 1999; CARRETEIRO, 1999; MATTOS;
FERREIRA, 2004; IAMAMOTO, 2004; LIMA; OLIVEIRA, 2012;
SICARI; ZANELLA, 2018; HOLANDA, 2019; MADRIGAL, 2019).
Todas essas problemáticas circundam a situação de indivíduos que, desam-
parados social e institucionalmente, dispõem tão somente da rua, da pra-
ça, da marquise, do canteiro e do vão do viaduto como espaço para abrigo
e permanência. De modo geral, as pesquisas citadas buscam identificar os
fatores que contribuem para a manifestação do fenômeno e/ou são dedi-
cadas à sua conceituação (definição e nomenclatura). O que esses estudos
mostram através de diferentes abordagens é que, embora a vulnerabilidade
seja uma condição antropológica do ser humano, haja vista sua condição de
ser vivo, existem certos indivíduos que estão mais suscetíveis à vulneração
do que outros (AMITRANO, 2014). Portanto, são trabalhos que buscam
traçar uma linha entre a vulneração virtual e a concreta, apontando para as
implicâncias do fenômeno em seu aspecto político, econômico e social.
No entanto, nesse trabalho, o que pretendo é explorar a possibilidade
de ampliação da cartografia do fenômeno, sem fechá-lo em si mesmo,
tomando-o como um problema político-filosófico formado por relações
de poder, ou ainda, relações que se configuram na esteira de tripé saber-
-sujeito-poder. Em outras palavras, à luz dos estudos de Michel Foucault
e Giorgio Agamben, busco realizar uma reflexão teórico-discursiva a res-
peito da produção de vida nua pelas mídias digitais e online de Foz do
Iguaçu. O objetivo geral deste trabalho é, portanto, investigar se é pos-
sível afirmar que o discurso midiático produz vida nua, quer dizer, vidas
exemplares da vida do homo sacer (AGAMBEN, 2007; 2010)140. A relação
será testada através da seleção de alguns enunciados textuais no corpus da
pesquisa que possibilitem caracterizar o modo como a vida nua emerge
nos textos discursivos. Espera-se, com isso, poder mostrar como, através
da linguagem, se evidencia a produção social de vidas humanas politica-
mente desqualificadas.
140 Definiremos “homo sacer” mais adiante nesse trabalho. Por ora, vale dizer que se refere
a uma figura enigmática do direito romano arcaico, cuja vida é politicamente desqualificada.
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O método que permite tal procedimento, quer dizer, tratar o fenômeno
como paradigma, foi desenvolvido por Agamben à luz dos estudos de Michel
Foucault. No entanto, é importante dizer que “paradigma” não foi reivindi-
cado textualmente pelo filósofo francês como um conceito. Por essa razão,
o próprio Agamben assinala que o termo foi utilizado por Foucault poucas
vezes no conjunto de sua obra e sempre sem uma definição específica.
À vista disso, o que Agamben chama de paradigma não é uma lei,
nem um conjunto de regras ou princípios científicos. Também não é uma
metáfora, utilizada para tratar de fenômenos da mesma ordem semântica,
como numa certa rede estrutural. Para o filósofo, paradigma é um exem-
plo, “un caso singular que se aísla del contexto del que forma parte sólo en
la medida en que, exhibiendo su propia singularidad, vuelve inteligible un
nuevo conjunto” (AGAMBEN, 2010, p. 23). Tratar o fenômeno como
paradigma significa expô-lo na sua exemplaridade, cuja função é “la de
constituir y hacer inteligible la totalidad de un contexto histórico-proble-
mático más vasto” (AGAMBEN, 2010, p. 11). Sendo assim, o paradigma
funciona melhor como alegoria.
É nesse sentido que, em vez de um estudo sobre a população em situa-
ção de desabrigo, proponho que este seja um estudo através da população
em situação de desabrigo (ALDEIA, 2019). Em outras palavras, a analogia
entre a vida do homo sacer e a vida do indivíduo desabrigado permite aceder
ao modelo societal em que vivemos para, assim, analisar as relações de po-
der que assujeitam os indivíduos. O corpus desta pesquisa é constituído tão
somente por textos noticiosos que versam sobre a população desabrigada.
Sendo assim, saliento que farei uso da abordagem teórico-metodológica da
Análise do Discurso (AD) cuja perspectiva analítica dialoga com as concep-
ções de enunciado, discurso e história cunhadas por Michel Foucault.
CONSTITUIÇÃO DO CORPUS E PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS
Em virtude da vastidão de notícias produzidas a respeito desta popu-
lação, optei por selecionar uma revista e quatro portais de notícias digitais
e online de pequeno e médio alcance, que atuassem, principalmente, na
cidade de Foz do Iguaçu. Com esta delimitação espacial, tentei investigar
se a localização geopolítica da cidade, que faz fronteira com a Argentina
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
e o Paraguai, implicaria em alguma particularidade discursiva em relação
ao fenômeno. No que tange ao recorte temporal, como os cinco veículos
de comunicação selecionados não dispunham de buscadores eletrônicos
que permitissem funções operativas, optei por selecionar todos os resul-
tados obtidos através das seguintes palavras-chave: morador de rua; mendigo;
situação de rua; população de rua; pessoa em situação de rua e, por fim, sem-teto.
A adoção desses termos/expressões se deu devido ao fato de que, no con-
junto do corpus, foram os termos mais frequentes.
Somados os resultados obtidos com as palavras-chave até o mês de
setembro de 2019, o jornal GDia apresentou 29 resultados desde 2017; o
portal Clickfoz, 6 resultados desde 2011; o H2FOZ, 9 resultados desde
2006; o Portal da Cidade, 20 resultados desde 2014 e, por fim, a Revista
100 fronteiras, 1 resultado desde 2018. No total, foram obtidas 65 notícias
a respeito da população em situação de rua.
A seleção das sequências enunciativas analisadas no capítulo 2 se deu a
partir da análise de um conjunto de enunciados, onde foram selecionados
aqueles que apresentaram relação com aspectos econômicos da vida dos
sujeitos desabrigados.
Tabela 1: Ocorrências de notícias entre os anos de 2006 e setembro de 2019
MÍDIA 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Clickfoz - - - - - 1 1 - - - 3 1 - -
Gdia - - - - - - - - - - - 2 14 13
H2FOZ 1 - - - - - - - - - - - 4 4
Portal da
- - - - - - - - 1 5 4 5 4 1
Cidade
Revista
100 - - - - - - - - - - - - 1 -
Fronteiras
Fonte: Soares (2019)
CAPÍTULO 1: SER OU NÃO SER, EIS O PODER EM
QUESTÃO
No livro “A história da Sexualidade I: a vontade de saber” (1999) e no
curso “Em defesa da Sociedade” (2005), Foucault discorre sobre como,
a partir do século XVII, a vida biológica dos indivíduos se torna progres-
sivamente alvo do poder político. O autor chega a esta conclusão a partir
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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da análise (no nível da técnica, dos mecanismos e das tecnologias de po-
der) do direito soberano tal como formulado pela teoria político-jurídica
clássica, isto é, o direito sobre a vida e morte do súdito.
Para Foucault, a transformação da técnica, dos mecanismos e das tec-
nologias do poder a partir do século XVII marcam o “limiar de moderni-
dade biológica” de uma sociedade, ou seja, o momento de entrada da vida
biológica nos cálculos e mecanismos de poder político de uma sociedade.
É o momento em que o poder "conseguiu cobrir toda a superfície que se
estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo
duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de
regulamentação, de outra" (FOUCAULT, 2005, p. 302).
Fazendo um certo contraponto em relação ao “limiar de modernida-
de biológica” desenvolvido por Foucault, Giorgio Agamben (2007) afirma
que é o fato de a teoria foucaultiana não envolver uma análise conceitual
da soberania que leva o filósofo francês a esta conclusão. Isto porque, para
Agamben, a implicação da vida biológica na esfera política constituiria o
núcleo originário do poder soberano, logo, não poderia ser um fenômeno
exclusivo da Modernidade, mas, sim, tão antigo quanto à própria existên-
cia da soberania. Ao analisar a política e o direito sob o viés da vida huma-
na, o autor concluiu que a política sempre foi biopolítica e que, portanto,
no que tange à Modernidade, seria mais apropriado falar em radicalização
da biopolítica. Entretanto, Agamben chega a esta conclusão traçando um
caminho diferente do filósofo francês. Enquanto Foucault optou por ana-
lisar o poder no nível da técnica, dos mecanismos e das tecnologias, o
filósofo italiano tomou o modelo jurídico-institucional e o modelo bio-
político de poder em conjunto. Desse modo, propôs como objetivo fazer
emergir o ponto de intersecção entre os dois modelos.
Agamben inicia o livro “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua
I” (2007), apresentando dois termos gregos utilizados pelos filósofos clás-
sicos para se referir à vida, isto é, zoé e bíos. Ambas as palavras não possuem
um equivalente na língua portuguesa, quiçá nem mesmo em outras lín-
guas modernas. Enquanto zoé exprimia “o simples fato de viver comum a
todos os seres vivos (animais, homens ou deuses)", bíos indicava “a forma
ou a maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo (AGAM-
BEN, 2007, p. 9). Para os gregos, a zoé seria um bem da ordem da natu-
reza e a bíos seria própria dos seres com capacidade reflexiva e contempla-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
tiva. Em outras palavras, os filósofos gregos entendiam que a zoé fazia do
homem um animal vivente, logo, não marcava uma distinção substancial
frente aos demais seres vivos. A separação entre zoé e bíos marca justamente
a distinção entre a vida como tal e a sua performance, entre vida natural e
existência política. Agamben trata destas noções de zoé e bíos em termos
de vida nua e vida politicamente qualificada141.
No entanto, na Grécia Antiga estes termos não só expressavam dife-
rentes noções de vida, como também eram destinados a espaços diferen-
ciados. Citando Aristóteles, Agamben salienta que enquanto a zoé perten-
cia ao âmbito do oîkos (da casa), a bíos pertencia ao da polis (da cidade). Se
apresentada deste modo, a vida biológica teria, na política ocidental, “este
singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos
homens” (AGAMBEN, 2007, p. 15). Além disso, o autor destaca que de
maneira semelhante o filósofo grego também separava a voz da linguagem.
É dizer, enquanto a voz seria capaz de expressar dor e prazer, a linguagem
tornaria possível expressar o justo e injusto, o bem e o mal, o conveniente
e o inconveniente. A fim de evidenciar a operação realizada por meio de
todas essas dicotomias, Agamben recorre a definição aristotélica da meta
da comunidade perfeita, ou seja, aquela “nascida em vista do viver, mas
existente essencialmente em vista do viver bem” (AGAMBEN, 2007, p.
10). O que está implícito nesta definição é, não só a distinção entre zoé e
bíos, como também o uso da linguagem como aporte para a constituição
do político. Assim, o lugar por excelência da linguagem seria junto a bíos,
na polis.
Com isso, mais do que simplesmente expor a diversidade cultural e
linguística da sociedade grega, Agamben está interessado pela relação pe-
culiar que se estabelece entre vida e política. Uma vez que a zoé não é
entendida como bíos e estaria excluída da polís. No entanto, a medida em
que a bíos, por si só, não assegura sua geração, mantém uma relação de de-
pendência com a zoé. Esta última, por não ser um fim em si mesma, deve
possibilitar o viver bem na polis. Deste modo, a bíos necessita da zoé tanto
quanto esta última da primeira. Trata-se de uma relação de exterioridade
consigo mesmo. O político não se funda, portanto, numa oposição radical
141 Agamben extraiu o conceito de vida nua de um texto de Walter Benjamin chamado
"Zur Kritik der Gewalt", de 1921, traduzido no Brasil como "Crítica da violência - crítica do
poder" (1986).
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entre zoé e bíos, mas no estado de exceção em que é colocado a zoé. Em
outras palavras, a vida nua está implicada no político através de uma rela-
ção de exclusão-inclusiva, uma situação de exceptio da zoé na polis. Sendo
assim, o autor afirma que a politização da vida biológica seria, pelo menos
desde Aristóteles, a atividade metafísica por excelência. Para Agamben,
“a política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa
e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação
com ela numa exclusão inclusiva” (AGAMBEN, 2007, p.16).
Enquanto a sociedade grega possibilitou ao autor pensar a constitui-
ção do político no ocidente, o direito romano arcaico lhe serviu para de-
senvolver sua teoria a respeito da implicância da pura vida nua na esfera
política. Para tanto, o autor introduz a figura do homo sacer 142, é dizer, uma
vida humana que é incluída no ordenamento jurídico romano por meio de
sua exclusão. O autor identifica na figura do homem sacro um paradigma,
pois, embora este fosse sacralizado, quer dizer, destinado aos deuses, era
considerado impuro para o sacrifício em ritual. Mas, além disso, se o homo
sacer fosse assassinado, o responsável pelo homicídio não era considerado
homicida. Sendo assim, apesar de sacro, aquele foi destinado aos deuses
poderia ser assassinado sem que isso implicasse em alguma responsabilida-
de penal para àquele que praticou o homicídio. Nas palavras de Agamben,
a vida do homo sacer é “insacrificável e, porém, matável” (AGAMBEN,
2007, p. 17). Trata-se, portanto, de uma vida humana que é incluída no
ordenamento jurídico não para garanti-la, mas para abandoná-la. Deixá-
-la exposta a um poder absoluto de morte. Ao ser proferido como sacro,
o homem é abandonado pelo direito humano, sem passar para o direito
divino, dada “a impunidade da sua morte e o veto de sacrifício” (AGAMBEN,
2007, p. 81, grifo do autor).
Com isto, nota-se que a vida do homo sacer é marcada por contradições:
sagrado e impuro; dentro e fora; insacrificável e matável. Se retomarmos
as categorias gregas, o homo sacer estaria em uma zona de indiscernibilida-
de entre zoé e bíos, posto que não é um elemento natural nem uma forma
142 Entre outras fontes, Agamben faz uso de um verbete de Sexto Pompeu Festo, onde
este afirma que o homem sacro é “aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito
sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira
lei tribunícia se adverte que ‘se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será
considerado homicida’” (FESTO apud AGAMBEN, 2007, p. 196).
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
de vida propriamente qualificada. É o produto de um ato jurídico que
reduz a vida humana a condição de mera vida nua para, assim, abando-
ná-la em uma zona de anomia, de exceção e exposição à morte. Por isso,
não se pode afirmar literalmente que o homo sacer esteja dentro ou fora do
ordenamento, uma vez que mesmo excluído, permanece, todavia, sujeito
ao ordenamento. A lei é aplicada ao homo sacer na forma de uma suspensão,
retirando-se deste. Apesar de existir no direito, sua existência se dá fora
dele. Neste sentido, a relação de exceção na qual encontra-se o homo sacer
é uma relação de bando. O autor resgata este antigo termo germânico que
expressa “tanto a exclusão da comunidade quanto o comando e a insíg-
nia do soberano" (AGAMBEN, 2007, p. 36, grifos do autor). Em outras
palavras, o termo bando mantém unidas numa zona de indiscernibilidade
a figura do excluído e aquele que o excluiu, pois para ser abandonado
é preciso estar sujeito a uma vontade soberana. Trata-se de uma relação
atrativa e repulsiva, pois, “se por um lado o banido se encontra excluído,
por outro ele sempre se manterá incluído e ligado ao bando de origem, haja
vista sua própria exclusão. Afinal, o simples fato de abandonar não implica
o desaparecimento do Outro, o abandonado continua a existir (AMITRA-
NO, 2014, p. 83, grifos da autora). Sendo assim, não existe um indivíduo
propriamente fora da lei, mas, sim, aquele que é abandonado por esta. No
italiano, língua latina e materna do autor, as palavras in bando e a bandono
expressam em sua origem tanto "à mercê de" quanto "a seu talante, livre-
mente” (AGAMBEN, 2007, p. 36). O que significa dizer que enquanto
banido, o indivíduo está livre para agir segundo o próprio arbítrio, mas, ao
mesmo tempo, continua sujeito à vontade soberana de outrem.
Diante disso, para além do seu conteúdo histórico, Agamben reivin-
dica a função política do homo sacer no direito romano arcaico, pois a ma-
téria da exceção não é outra coisa senão a própria vida humana. O poder
sobre a vida nua é o conteúdo primeiro da soberania. Antes da relação po-
lítica ser de estraneidade entre amigo e inimigo, concidadão e estrangeiro,
ela é uma relação de bando, entre vida nua e vida politicamente qualificada.
Por meio da dupla exceção, do direito humano e do divino, o soberano
captura a vida nua implicada na esfera política. A condição do homem
sacro é de constante indiscernibilidade, nem dentro nem fora, nem zoé
nem bíos, mas tão somente vida nua exposta à morte. A técnica da exce-
ção é uma técnica de captura daquilo que, de outro modo, não poderia
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
ser legal, caso contrário não seria exceção. Sendo assim, o autor concluiu
que “soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar
um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta
esfera” (AGAMBEN, 2007, p. 91, grifos do autor). A sacralidade da vida
constituiria, assim, mais um paradigma político ocidental.
CAPÍTULO 2: A PRODUÇÃO DE VIDA NUA NO
DISCURSO MIDIÁTICO
Apresento algumas sequências enunciativas (SE) extraídas do corpus
da pesquisa para analisar a produção de vida nua. O objetivo é investigar o
que essas vozes de terceiros materializadas em texto operam e constroem
a partir de seus enunciados.
Quadro 2: Sequências enunciativas
Sequência enunciativa
Segundo o folheto, os turistas também são parte da família diocesana de Foz.
É o que eu dizia sempre: o turista também é cidadão. Ou, turista também é
SE 1
filho de Deus. Em outras palavras, sem passaporte, sem dinheiro (em caso de
roubo) o turista não passa de um sem-teto.
Eu não sou assistente social. Mas não é preciso ser um para perceber o
número de moradores de rua (ou frequentadores “indesejados” de nossa
SE 2
“cidade turística”) espalhados pela cidade e para notar que, nos últimos
anos, esse número cresceu exponencialmente.
Em muitos dos casos da nossa doação de moedinhas para os pedintes de rua,
SE 3 o destino é ruim; agora comprar doces e salgadinhos daquelas senhoras bem
vestidas é uma ótima oportunidade de fazer o bem ao próximo.
Uma ação de solidariedade e cidadania. O The Street Store, aconteceu pela
segunda vez em Foz do Iguaçu, no último sábado, 23. Em frente ao Bosque
SE 4
Guarani, no centro da cidade, “vendedores” aguardavam seus clientes
ansiosos em uma grande loja a céu aberto.
Na loja, em frente ao Bosque Guarani, em Foz do Iguaçu, as pessoas poderão
SE 5 escolher os produtos de seu interesse como se estivessem em um shopping,
podendo levá-los sem pagar nada.
Fonte: Soares (2019)
A SE 1: “Segundo o folheto, os turistas também são parte da família diocesana
de Foz. É o que eu dizia sempre: o turista também é cidadão. Ou, turista também é
filho de Deus. Em outras palavras, sem passaporte, sem dinheiro (em caso de roubo) o
turista não passa de um sem-teto” faz parte de um texto intitulado “O turismo
e a Igreja”, publicado pelo jornal H2FOZ em 1 de março de 2006. O enun-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
ciado é construído a partir de uma lógica de oposição, que se manifesta pela
forma como são construídas as posições-sujeito. Quem é o turista? O turis-
ta é aquele que faz parte da “família diocesana”, que é “cidadão” e “filho de
Deus”, mas também é aquele que deve possuir passaporte e dinheiro. Em
outras palavras, é um sujeito estrangeiro, um sujeito religioso, um sujeito
jurídico e, por fim, um sujeito capitalista.
No entanto, a posição de cidadão, membro da família diocesana e
filho de Deus está condicionada a dois critérios: ter passaporte e dinheiro.
Caso contrário, o turista “não passa de um sem-teto”. À vista disso, a
expressão restritiva “não passa de”, torna todo o enunciado inteligível por
meio da memória discursiva, pois encontra ressonância, por exemplo, na
(1) carência de direitos do indivíduo sem-teto; (2) em noções de privações
que lhe são imputadas em virtude da falta de documentos e/ou dinheiro;
(3) no histórico de descaso social e político com que são tratados os sem-
-teto e, por fim, (4) na depreciação social que implica a falta de moradia
ou trabalho nas sociedades capitalistas. Por essa razão, a expressão restriti-
va “não passa de” opera as relações de oposição e evidencia uma hierarquia
social, onde estar sem-teto é menos, mais baixo, inferior. É dizer, caso o
turista esteja sem dinheiro ou sem passaporte, seria reduzido ao patamar
de um sem-teto. Qual seria esse patamar? Surge com isso o questiona-
mento sobre com base em quais critérios é constituído um cidadão. Se,
por um lado, o turista, que é estrangeiro, portanto, não é jus solis nem
jus sanguinis, é apontado como cidadão, por outro lado, ao ser reduzido a
condição de um sem-teto, revela que este último não é entendido como
cidadão.
SE 2: “Eu não sou assistente social. Mas não é preciso ser um para perceber
o número de moradores de rua (ou frequentadores “indesejados” de nossa “cidade
turística”) espalhados pela cidade e para notar que, nos últimos anos, esse número
cresceu exponencialmente”. Essa sequência enunciativa foi recortada de um
artigo publicado pelo jornal H2FOZ, em 11 de maio de 2011, sob o
título “Ali na esquina mora um homem”. Trata-se também de uma SE que
opera uma desqualificação do sujeito desabrigado ao revelar quatro po-
sições-sujeito: a de assistente social, frequentador indesejado, frequenta-
dor legítimo e a de turista. Estes dois últimos são revelados no enunciado
pela expressão “nossa cidade turística”, referindo-se à Foz do Iguaçu.
O pronome “nossa” coloca em oposição o frequentador indesejado e
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o frequentador legítimo. Não obstante, se uma cidade é caracterizada
como turística, é porque é frequentada por turistas que, neste caso, são
incluídos como frequentadores legítimos. Nesse sentido, o “morador de
rua” apresenta-se como um problema do assistente social e novamente
é preterido em relação a um sujeito turista. O não-lugar é, portanto,
o lugar por excelência do sujeito em situação de desabrigo. Em outras
palavras, o sujeito desabrigado não foi abandonado pela sociedade, haja
vista a existência de assistentes sociais, mas também não está incluído na
sociedade porque não pode ocupar a cidade.
SE 3: “Em muitos dos casos da nossa doação de moedinhas para os pedintes
de rua, o destino é ruim; agora comprar doces e salgadinhos daquelas senhoras bem
vestidas é uma ótima oportunidade de fazer o bem ao próximo”. Trata-se de um
enunciado extraído do jornal GDIA, publicado em 2 de abril de 2019, sob
o título “Destino das moedinhas”. De acordo com Foucault (2008), uma
pergunta importante a ser realizada pelo analista de discurso é: como apa-
receu um determinado enunciado e não outro em seu lugar? À vista disso, se pen-
sarmos na forma como a SE 3 foi construída, por que o destino das moe-
dinhas seria “ruim” se doadas ao pedinte? Por que ressaltar um aspecto
estético da vestimenta das senhoras que vendem doces e salgados? Como
que a compra de doces e salgados vendidos por senhoras bem vestidas se
traduziria em bem ao próximo? Esta sequência enunciativa é composta
por uma série de não-ditos, mas que nem por isso deixa de fazer sentido.
Aliás, são esses não-ditos que possibilitam deslizamentos de sentidos e não
controle do que foi materializado na língua. Isto porque, a SE 3 opera a
atualização de enunciados anteriores, onde os pedintes são caracterizados
como alcoólatras, usuários de drogas, vagabundos, malvestidos etc. como
listei no quadro 1. Ou seja, para ocupar a posição-sujeito pedinte alvo de
práticas de caridade existem critérios que perpassam também pela ordem
da estética.
Por fim, a SE 4 e 5 tratam de um mesmo evento, porém, em anos e
jornais diferentes. Enquanto a SE 4 foi selecionada de um artigo publicado
em 25 de julho de 2016, pelo jornal Clickfoz, sob o título “The Street
Store ajuda centenas de pessoas carentes em Foz”, a SE 5 foi selecionada
de outro artigo publicado pelo H2FOZ, em 29 de junho de 2018, com
o título “‘Loja grátis’ em Foz doará roupas neste sábado”. À vista das se-
guintes sequências enunciativas, percebe-se que as expressões mobilizadas
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
tanto na concepção da ação quanto na notícia revelam a forma como nós
nos relacionamos com o Outro, neste caso, o sujeito necessitado.
SE 4: “Uma ação de solidariedade e cidadania. O The Street Store, aconteceu
pela segunda vez em Foz do Iguaçu, no último sábado, 23. Em frente ao Bosque
Guarani, no centro da cidade, ‘vendedores’ aguardavam seus clientes ansiosos em
uma grande loja a céu aberto”.
SE 5 “Na loja, em frente ao Bosque Guarani, em Foz do Iguaçu, as pessoas
poderão escolher os produtos de seu interesse como se estivessem em um shopping,
podendo levá-los sem pagar nada”.
Conforme noticiado pelo jornal H2FOZ, o projeto “The Street Sto-
re” foi criado por voluntários na África do Sul e posteriormente copiado
por voluntários em diferentes países do mundo. De forma geral, o que
os voluntários do projeto fazem é coletar peças de roupas usadas durante
um certo período para depois doá-las aos necessitados em uma “street
store”. Os elementos que as sequências enunciativas apresentam revelam
mais sobre os sujeitos enunciadores do que sobre os sujeitos acerca dos
quais se enuncia, isto é, os sujeitos para quem é feita a ação. Ao utilizar
termos mercadológicos como loja, vendedor, cliente, shopping, a reportagem
não está noticiando o fato de haver uma doação, mas, sim, noticiando a
impossibilidade de encontro entre sujeitos necessitados e sujeitos não-ne-
cessitados em shoppings e lojas. É dizer, estão noticiando a impossibilidade
destes corpos ocuparem os mesmos espaços, ainda que, a rigor, a ação só
faça sentido se se for simplesmente para atender a uma de suas necessida-
des. Ocorre que o discurso mercadológico põe em cena outro discurso, o
da necessidade do consumo, da estética e do repertório dos compradores,
vendedores e espaços de compras em centros comerciais como é o caso
dos shopping centers. O uso de termos em língua inglesa no léxico merca-
dológica evidencia a retórica da diferença entre os dois grupos de sujeitos
que, como disse, estão impossibilitados de coabitar os mesmos espaços
(i.e., the street store).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, busquei realizar uma reflexão teórico-discursiva a
respeito da produção de vida nua pelas mídias de Foz do Iguaçu. No que
tange a esse objetivo, pode-se dizer que foi alcançado de forma parcial ou
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
inicial, isto porque o conjunto do corpus demanda análises mais detalhas
e sistematizadas. Com isso, aponto que as sequencias enunciativas ana-
lisadas dão base para a hipótese, mas precisariam ser analisadas em seu
conjunto, levando em consideração, inclusive, as imagens veiculadas as
notícias. Algo que não pude analisar nesse trabalho.
Ainda em relação a esse objetivo, não se pode afirmar com base nos
dados coletados que Foz do Iguaçu apresente alguma característica parti-
cular de manifestação do fenômeno, como xenofobia, por exemplo. Ape-
nas uma notícia foi dedicada para tratar sobre uma mulher desabrigada
argentina e três notícias versaram sobre crianças paraguaias e homens em
situação de rua.
Por fim, no conjunto do corpus também foram observadas certas re-
gularidades, é dizer, dados repetíveis. O primeiro deles é apagamento das
vozes dos sujeitos desabrigados, conforme discutido no capítulo 2. O se-
gundo seria a proeminência das vozes de representes de entidades religio-
sas nas notícias. Mas, além desses, também foi possível observar que as
notícias não estabeleciam uma relação entre as práticas sociais em relação
a situação de desabrigo e a violação de direitos.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. 2.
ed. Belo Horizonte: UFMG, 2007. 194 p.
AGAMBEN, Giorgio. Qué es un paradigma. In: AGAMBEN, Gior-
gio. Signatura rerum: sobre el método. Barcelona: Anagrama,
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A IGUALDADE ESCULPIDA NO
MICROSSISTEMA DO ESTATUTO DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Jamile Sumaia Serea Kassem143
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 pode-se dizer que foi a primeira
Constituição a se preocupar com os direitos sociais, assim trouxe em seu
texto, alguns dispositivos de proteção às pessoas com deficiência, porém
as medidas trazidas foram genéricas e não foram amplamente aplicadas.
No âmbito internacional a Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência foi o responsável por diversas mudanças no que
tange as pessoas com deficiência. Destaca-se que o Brasil no ano de 2008,
assinou e ratificou tal convenção como Emenda Constitucional. E isso fez
surgir o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146/2015, ou ainda
Lei Brasileira de Inclusão.
A partir deste contexto o presente trabalho visa apresentar de forma
restrita a origem do Estatuto da pessoa com deficiência, a sua denomina-
ção como microssistema, bem como a construção da igualdade inserida
na Constituição Federal. O princípio da igualdade e esta como isonomia,
esculpida no Estatuto da pessoa com deficiência.
As alterações feitas no ordenamento jurídico civil pelo Estatuto de-
monstram de forma clara a inserção da igualdade para este grupo vulnerá-
vel em todo âmbito social, em cumprimento ao modelo social de defini-
143 Doutoranda e mestre em ciências jurídicas pela Unicesumar. Advogada.
637
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
ção da pessoa com deficiência introduzida pela Convenção Internacional
e adotado pelo Estatuto. Justifica-se o estudo na amplitude de transfor-
mação trazida pelo Estatuto ao buscar cumprir seu objeto principal de
vedar a discriminação e promover acessibilidade, o que se interliga com a
igualdade descrita no texto. Através do método dedutivo hipotético, no
que tange à coleta de dados, a pesquisa se utilizou do levantamento biblio-
gráfico, através de doutrinas e artigos jurídicos.
1. O MICROSSISTEMA DO ESTATUTO DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA
Código significa ser um sistema, um todo construído e lógico, um
conjunto de normas ordenado segundo princípios, não deve surpreen-
der o fato de a própria lei indicar ou narrar em seu texto os objetivos
por ela perseguidos, facilitando assim, a interpretação de suas normas e
esclarecendo os princípios fundamentais que a conduzem. Ainda pode-se
afirmar que quando se aplica um artigo, se aplica toda a lei, do Consumi-
dor-CDC. (BENJAMIM, 2014, p. 61)
Nestes casos se faz necessário analisar a Lei como sistema, como con-
texto construído, codificado, organizado, de identificação do sujeito be-
neficiado, dessa maneira, por ser um pequeno sistema especial, subjetiva-
mente e geral, materialmente, pode-se utilizar para o CDC a expressão
microssistema. (BENJAMIM, 2014, p. 61)
Assim, segundo a conceituação sobre o que é um microssistema,
acredito que o Estatuto da Pessoa com Deficiência possa ser assim clas-
sificado, pois tem a finalidade precípua de garantir a defesa das minorias,
entendido como o grupo vulnerável das pessoas com deficiência, motivo
pelo qual os referidos microssistemas jurídicos passam a trazer à baila prin-
cípios específicos inerentes aos temas positivados.
A Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) ou Estatuto da Pessoa
com Deficiência tem como principal princípio embasador o da dignidade
da pessoa humana, por ser esse o basilar dos direitos humanos, bem como
o princípio da igualdade. Por certo que a dignidade constitui um valor
universal, não impedindo as diversidades sócio-culturais dos povos. As
pessoas mesmo com todas as suas diferenças físicas, intelectuais, psicoló-
gicas, são detentoras de igual dignidade, embora sejam diferentes pela sua
638
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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individualidade, pela condição humana apresentam as mesmas necessida-
des e faculdades vitais. (DALLARI, 2004, p. 14)
Na última década o Brasil avançou significativamente para ampliar
os direitos das pessoas com deficiência. Inaugurou a proteção da pes-
soa com deficiência na Constituição Federal de 1988, sob o primado da
dignidade da pessoa humana e preocupação em garantir o princípio da
igualdade entre as pessoas e inclusão social, trouxe vários dispositivos
inovadores, dentre eles os artigos 7º., XXXI; 37, VIII; 203, IV, V; 224
e 227. (BRASIL, 1988). Tratam sobre a proibição de discriminação no
trabalho; a reserva de vagas em concorso público; a prestação de assis-
tência social pelo Estado; atendimento prioritário na saúde às crianças e
adolescentes com deficiência e sobre a acessibilidade física em transporte
coletivo e prédios públicos.
Sequencialmente, em 2008, o Brasil ratificou com status de emenda
constitucional a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiên-
cia, adotada pelas Nações Unidas, e seu Protocolo Facultativo, utilizando
pela primeira vez o §3º do artigo 5º do texto Constitucional. Por consa-
grar a Convenção, com força Constitucional o Estado brasileiro se com-
prometeu diante do cenário internacional e internamente. Assim deveu-
-se buscar eliminar barreiras, promover a participação plena e efetiva dos
cidadãos com deficiência na sociedade em igualdade de condições com as
demais pessoas.
Com base no tratado da ONU, o país chegou a outro importante
marco normativo: a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015), conhe-
cida também como Estatuto da Pessoa com Deficiência datada de 06 de
julho de 2015. Inovador e ousado, o Estatuto é resultado de uma cons-
trução coletiva, cujos principais objetivos, podem ser encontrados em seu
artigo 1º 144: assegurar e promover, o exercício dos direitos e das liberdades
144 Art. 1o É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da
Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o
exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à
sua inclusão social e cidadania.
Parágrafo único. Esta Lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do De-
creto Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento
previsto no § 3o do art. 5o da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para
o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados peloDecreto
639
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
fundamentais das pessoas com deficiência. Sempre visando condições de
igualdade, inclusão social e cidadania. Consolidando princípios e dire-
trizes do mais recente tratado de direitos humanos do sistema global de
proteção da ONU. Referido Estatuto pormenoriza as regras que deverão
ser observadas para a garantia do exercício dos direitos das pessoas com
deficiência no país. Organiza, em uma única lei nacional, como um ver-
dadeiro marco regulatório para as pessoas com deficiência, direitos e de-
veres que estavam dispersos em outras leis, decretos e portarias, regulam-
entando limites e condições e atribuindo responsabilidades para cada ator
na consolidação da sociedade inclusiva. (SETUBAL, 2016, p.14)
A Lei Brasileira de Inclusão Social foi elaborada visando à inclusão das
pessoas com deficiência, composta por 127 artigos, divididos em 2 livros,
o primeiro, denominado Parte Geral, possui 4 títulos e o segundo, a Parte
Especial, 3 títulos. No Título I estão as Disposições Preliminares com de-
finições e alguns princípios e diretrizes. Seguido então pelo Título II que
elenca os Direitos Fundamentais, subdividido por 10 capítulos que versam
sobre direito à vida, direito à habilitação e à reabilitação, à saúde, à educação,
à moradia, ao trabalho, à assistência social, à previdência social, à cultura,
ao esporte, ao turismo, ao lazer, ao transporte e à mobilidade. Já o Título
III é dedicado à acessibilidade, tanto em projetos arquitetônicos quanto no
acesso à informação, à comunicação, à tecnologia e à vida pública e políti-
ca. No Livro II, Parte Especial, o primeiro Título trata do acesso à justiça,
subdividindo-se em disposições gerais e reconhecimento igual perante a lei.
Enquanto no Título II é trazido os crimes e as infrações administrativas e,
por fim, no Título III as disposições finais e transitórias. O seu alcance deve
ser para toda a sociedade, trabalho conjunto entre a sociedade e o Estado,
pois assim a lei terá a sua eficácia garantida, e, as pessoas com deficiência
terão os seus direitos e garantias efetivados e cumpridos.
2. A BUSCA PELA IGUALDADE ESCULPIDA NO
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Igualdade e justiça são noções que guardam uma relação íntima, co-
nexão que pode ser reconduzida, no plano filosófico, ao pensamento gre-
no 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno.
640
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
go clássico, com destaque para o pensamento de Aristóteles, quando este
associou justiça e igualdade e sugeriu que os iguais devem ser tratados de
modo igual, ao passo que os diferentes devem ser tratados de modo desi-
gual. (ARISTÓTELES, 1992, p. 96)
Criticado por Bobbio que ao fazer uma relação entre igualdade e li-
berdade, afirmou ser a justiça a liberdade por tratar de lei e cumprimento
de lei, entretanto a igualdade não poderia estar diretamente vinculada a
ela, à medida que a igualdade é uma relação (BOBBIO, 1996, p. 7) e
para a sua identificação é necessário que se especifique com quem esta se
tratando, utilizando-se de duas perguntas: a) igualdade entre quem; e b)
igualdade em que. (BOBBIO, 1996, p. 12).
No âmbito da legislação pátria a Constituição Federal avançou signi-
ficativamente com relação ao direito da igualdade e o princípio da igual-
dade, indo de uma concepção estritamente formal para uma noção ma-
terial em que é possível identificar três fases que representam a mudança
quanto ao entendimento sobre o princípio da igualdade, quais sejam: a) a
igualdade compreendida como igualdade de todos perante a lei, em que a
igualdade também implica a afirmação da prevalência da lei; b) a igualda-
de compreendida como proibição de discriminação de qualquer natureza;
c) igualdade como igualdade da própria lei, portanto uma igualdade na lei.
(SARLET, 2013, p. 73)
Na primeira fase de reconhecimento, que equivalia à noção de que
todos os homens são iguais, compreendida no sentido de uma igualda-
de absoluta em termos jurídicos, correspondendo ao direito de toda e
qualquer pessoa estar sujeita ao mesmo tratamento previsto na lei, inde-
pendentemente do conteúdo do tratamento dispensado e das condições
e circunstâncias pessoais. Já a igualdade perante a lei, que corresponde
à igualdade formal, habitualmente veiculada pela expressão “todos são
iguais perante a lei”, é em primeira linha destinada ao legislador, estabe-
lecendo uma proibição de tratamentos diferenciados, o que, todavia, sirva
para coibir desigualdades no futuro, não é suficiente para destruir as causas
da desigualdade numa sociedade. (MIRANDA, apud SARLET, 2013, p.
74) A igualdade formal, portanto, como postulado de racionalidade práti-
ca e universal, que exige que todos que se encontram numa mesma situa-
ção recebam idêntico tratamento, passou a ser complementada pela assim
chamada igualdade material.
641
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
A atribuição de um sentido material à igualdade significa a proibição
de tratamento arbitrário, ou seja, a vedação da utilização, para efeitos de
estabelecer as relações de igualdade e de desigualdade, de critérios intrin-
secamente injustos e violadores da dignidade da pessoa humana, de sorte
que a igualdade, já agora na segunda fase de sua compreensão na seara
jurídico-constitucional, opera como exigência de critérios razoáveis e jus-
tos para determinados tratamentos desiguais. Por sua vez, na terceira fase
de reconhecimento da igualdade, caracteriza a evolução do princípio no
âmbito do constitucionalismo moderno, para um dever de compensação
das desigualdades sociais, econômicas e culturais, portanto, para o que se
convenciona chamar de igualdade social ou de fato.
No que diz respeito à aplicação do princípio da igualdade, é preciso
partir da premissa de que igualdade é um conceito relacional e comparati-
vo, pois toda afirmação de uma igualdade ou desigualdade pressupõe uma
comparação (BOBBIO, 1996, p. 13). Por mais que se considere correta a
noção aristotélica de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desi-
guais, a proposição, em si mesma, é insuficiente para que se possa respon-
der à indagação sobre quais sujeitos deverão ser tratados desigualmente
ou, em sendo o caso, de modo igual.
Assim, para que se possa alcançar a prática efetiva da igualdade, é ne-
cessário considerar que o princípio da igualdade estabelece, em primeira
linha, uma proibição de tratamento diferenciado aos cidadãos, tanto em
face do legislador quanto do aplicador da lei, o que, dito de outro modo,
é em princípio, proibida, de sorte que se torna dispensável perquirir o que
se deve ser considerado discriminação juridicamente intolerável, sobre-
tudo, porque a função precípua da própria lei, segundo o autor, é criar
tratamentos desiguais na medida das desigualdades das situações da vida e
das pessoas às quais se destina o regramento legal. (MELLO, 2004, p. 10)
Quanto à viabilização da igualdade na vida da pessoa com deficiência,
o legislador do Estatuto da pessoa com deficiência percebeu que o grupo
necessitaria, por sua própria condição, de uma proteção específica, indis-
pensável para que pudesse se integrar socialmente, leva em conta que a
igualdade material vincula o intérprete e o legislador infraconstitucional
na preservação dos valores contidos nas normas específicas de proteção
constitucional e dá igualdade material, tratando sempre diferentemente,
de forma privilegiada, dentro dos limites constitucionais, o grupo ou valor
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
protegido. O intérprete, por seu lado, não pode perder de vista a proteção
de tais bens, sempre cuidando de aplicar o direito em conformidade com
a proteção constitucional adotada.
Dessa forma, em relação ao princípio da Igualdade, importante frisar
que a promoção da igualdade de oportunidades e a proibição de discrimi-
nação das pessoas com alguma limitação funcional só foi possível a partir
da consolidação do modelo social de deficiência, trazido pelo Estatuto.
(LEITE, 2016, p. 65-66)
Deve-se destacar que o princípio da igualdade busca trazer à socieda-
de através de seu conteúdo normativo, meios que possibilitem o tratamen-
to isonômico entre as pessoas sem nenhuma discriminação que vise tolher
direitos, mas pelo contrário, ampliá-los para o fim de zelar pelos desiguais
na medida de suas desigualdades, para que haja justa igualdade em perfeita
consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana. (MELLO,
2004, p.274)
O microssistema em estudo traz nos artigos 4º a 8º, dois preceitos
centrais, quais sejam: o direito à igualdade de oportunidades e a proibição
de discriminação contra a pessoa com deficiência. Com isso, podem-se
visualizar medidas positivas a fim de propiciar a equiparação de oportu-
nidades entre as pessoas com deficiência e as demais (discriminação po-
sitiva). E a outra, a vedação expressa de discriminação negativa, qual seja,
exclusão social ou restrição de direitos.
De maneira explícita traz o direito à acessibilidade em seus artigos
53 e 54 obrigando particulares e o poder público a fazer adequações em
construções e transporte. Em seu artigo 84 elucida o direito ao exercício
de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas,
o que alterou significativamente o regime de incapacidades do código civil
brasileiro revogando os incisos do artigo 3º. e acrescentando inciso no ar-
tigo 4º. Passando a pessoa com deficiência de absolutamente incapaz para
relativamente incapaz, o que também resultou revogação do inciso I do
artigo 1.548 que trata acerca da autonomia para o casamento e o planeja-
mento familiar. E a mudança na curatela, artigos 1.767 e 1.788 do código
civil, adotando a curatela provisória e específica, bem como a tomada de
decisão apoiada no artigo 1.783-A.
A referida mudança no código civil gerou reflexos também no códi-
go eleitoral, pois antes dela a Constituição Federal em seu artigo 15º, II,
643
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
afirmava que era hipótese de suspensão dos direitos políticos a incapacida-
de civil absoluta. Assim, os absolutamente incapazes, eram impedidos de
exercer a capacidade política, direito de votar e ser votado, enquanto per-
durassem os efeitos da incapacidade. Com a entrada em vigor do Estatuto
da Pessoa com Deficiência, especificamente em seu artigo 76, as pessoas
que estavam com os direitos políticos suspensos, passaram a estar aptas ao
pleno exercício desses direitos.
Por conseguinte em seu artigo 98 o Estatuto ainda modificou a Con-
solidação das leis do trabalho, em seu artigo 428 no §6º que tornou o
contrato de aprendizagem de pessoas com deficiência mais flexível, assim
basta que a pessoa com deficiência tenha habilidades e competências com-
patíveis com o processo de profissionalização. O legislador pretende com
isso, facilitar a formação técnico-profissional e, consequentemente, o in-
gresso ou reingresso das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
Trouxe novidades no Código de defesa do consumidor, uma vez
que incluiu o parágrafo único no artigo 6º e o §6º do artigo 43 que trata
sobre o direito de informação sobre o produto adquirido o que exige do
fornecedor que todas as informações sejam realizadas de forma adequada
e clara, a fim de proporcionar ao consumidor manifestar a sua escolha de
forma consciente sobre determinado produto ou serviço. O que se pode
notar é uma clara preocupação com as pessoas com deficiência, para que
elas tenham assegurados os seus direitos também como consumidores,
principalmente no que tange a questão da acessibilidade, a qual pode ser
da pessoa com deficiência conseguir se locomover sozinha de um local
para outro, ou até mesmo, que os produtos contenham rótulos em braile,
para que as pessoas com deficiência possam exercer plenamente os seus
diretos.
Ademais, já mencionado que o Estatuto preza pela acessibilidade e
em seu artigo 46 estende o direito à acessibilidade ao serviço de transpor-
te coletivo terrestre, aquaviário e aéreo, em todas as esferas. Um ponto
importante abordado pela lei é o reconhecimento do caráter sistêmico do
serviço de transporte, ou seja, para reconhecer acessível um veículo, ele
precisa estar integrado à cidade onde ele transita ao espaço urbano como
um todo. Já o artigo 47, caput, amplia o conceito ao utilizar a expressão
“pessoa com mobilidade reduzida”, e assim, agiu bem o legislador ao con-
sagrar essa opção, pois não é o tipo de deficiência que justifica a reserva
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
de vaga, mas sim as limitações ambientais que a pessoa sofre em relação à
mobilidade.
No entanto maior inovação trazida por esse artigo exposto acima foi à
possibilidade da imposição de multa de trânsito, artigo 181, XVII, do Có-
digo de trânsito brasileiro. A útlima questão a ser apontada é o artigo 86-A
do referido dispositivo, ora incluído pelo Estatuto, assim, além da sinali-
zação vertical de regulamentação R-6b (Estacionamento regulamentado)
com informação complementar sobre a destinação da vaga (nos termos do
Anexo II do CTB e Resoluções do Contran n. 180/05 e 304/08), tam-
bém haverá a necessidade de instalação de placas informando os dados so-
bre a infração por estacionamento indevido (apesar de não haver previsão
deste tipo de placa, no conjunto de sinais de trânsito).
Assim, o conteúdo jurídico do princípio da igualdade abarca dis-
criminações legais ao admitir a existência de traços diferenciais en-
tre indivíduos já que estão contidas na própria ordem constitucional
do Estado brasileiro. O direito à igualdade está intimamente ligado
e arraigado à igualdade e a discriminação na medida em que se veda
a discriminação quando o resultado do ato gera tratamento desigual;
indica a discriminação para equilibrar desigualdades de oportunidades
e tratamento.
Neste ínterim o Estatuto da pessoa com deficiência traz eficácia para
as pessoas com deficiência ao direito à isonomia. Há um claro objetivo
em promover a inclusão das pessoas com deficiência por meios eficazes
que contrabalançam as desvantagens encontradas por estes no ambien-
te externo, seja este evidenciado na forma educacional, saúde, trabalho,
acessibilidade, transportes públicos, lazer esporte, moradia dentre outros,
e mais do que isso o Estatuto da pessoa com deficiência, é pautado nesta
construção da igualdade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em respeito aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa
humana, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015, se
propôs a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e
das liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência, visando a sua
inclusão social bem como o exercício da cidadania.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Existe um estigma cultural envolto das pessoas com deficiência, acre-
ditava-se que elas eram absolutamente incapazes e, isto podia ser observa-
do claramente no Código Civil de 2002. Assim, as pessoas com deficiêcia
eram tratadas como absolutamente incapazes para todos os atos de sua vida
civil, não tendo opnião própria e muitas vezes sendo abandonados pela
própria família.
Nesta perspectiva viu-se neste texto que se deve considerar que tal
Estatuto é um microssistema, elaborado para que a sociedade se adeque
as pessoas com deficiência. Assim é necessário por parte do Estado e por
parte da sociedade como um todo que haja conscientização para que de
fato tal lei tenha sua eficácia plena e aplicabilidade garantidas.
Por fim, após as mudanças apresentadas, pode-se entender que a Lei
Brasileira de Inclusão trouxe inúmeras melhorias e benefícios, visando à
plena inclusão das pessoas com deficiência e, para isso ser realizado, foi
necessária a alteração do sistema jurídico brasileiro, o qual se encontrava
obsoleto em relação aos direitos e efetivação destes em prol das pessoas
com deficiência. A Lei buscou com essas medidas não só, a igualdade
formal, a qual certamente acabaria virando letra morta, sem aplicação de
maneira prática, mas sim, a implantação da igualdade material, para assim
se ter um reequilíbrio estabelecido visando a efetivação dos diretos das
pessoas com deficiência.
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ARTIGOS – MOVIMENTOS
SOCIAIS
649
O OLHAR PARA O AGRESSOR
NA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
TRABALHANDO PARA A NÃO
REINCIDÊNCIA E A NÃO
REPRODUÇÃO VIOLENTA.
Andréa de Sousa Galliza Mitchell de Morais
INTRODUÇÃO
A Lei Maria da Penha, foi promulgada em 2006, onde criou novos
mecanismos legais e institucionais para prevenir e punir a violência do-
méstica e familiar contra a mulher. Ela foi um importante marco na luta
pelos direitos das mulheres no Brasil, tanto no âmbito prático – como a
maior possibilidade de acionar medidas protetivas contra o agressor, colo-
cando no debate público a problemática da violência de gênero.
Anos depois, discorre amplamente discussões sobre dispositivos de
prevenção, como a educação em todos os níveis de ensino sobre direitos
humanos e suas violações.
Hoje observa-se que não só a vítima necessita de cuidados, quando
existe um acompanhamento de forma reflexiva e reeducativa com o agres-
sor tem-se estudo de grupos que informam que a reincidência caiu de 2
a 0% evitando também a replicação da violência por filhos que assistem a
violências diárias.
Os programas de grupos reflexivos com homens autores de violência
são reconhecidos como um dos meios mais eficazes para prevenir e com-
bater a violência doméstica, bem como para reduzir sua reincidência, sen-
651
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
do esta uma prática já adotada em alguns estados e países com resultados
satisfatórios.
O acompanhamento do agressor com profissionais que levem a refle-
xão sobre vários aspectos da vida (masculinidade, sexualidade, trabalho,
família, saúde, cultura, lazer, álcool, droga, depressão, etc.), é indispensá-
vel para informá-los sobre a desigualdade de gênero, direitos e deveres en-
tre homens e mulheres e os papéis que ambos desempenham atualmente
na sociedade.
Há também a necessidade de conscientizar os homens de que deter-
minados atos normalizados e/ou banalizados pela sociedade caracterizam
violência contra a mulher e geram consequências graves, materiais e mo-
rais tanto para eles, quanto para a vítima, para a família e toda a sociedade.
Foi pensando nesse contexto que os legisladores, ao construir o tex-
to da Lei 11.340, ressaltaram a importância do trabalho realizado com
os homens autores de violência e que sua efetivação dependeria de ações
conjuntas e articuladas entre o Estado e a Sociedade Civil, conforme dis-
põe o inciso I do artigo 8o, art.29, inciso V, do art. 35 e art. 45, todos da
Lei11.340/06:
Diante também da necessidade e do dever legal de que existam pro-
gramas de acompanhamento ao agressor, pois recentemente foram inseri-
das medidas protetivas na Lei Maria da Penha dando ao Poder Judiciário
a possibilidade de obrigar o comparecimento do agressor a programas de
recuperação e reeducação, por meio de atendimento individual ou em
grupo, para evitar a reincidência de casos de violência contra a mulher.
Considerando os resultados positivos nos grupos reflexivos para esses
agressores, viu-se a necessidade de elaboração desse projeto utilizando a
Metodologia Ativa com encontros que podem ser presenciais ou presen-
ciais virtuais através do uso da internet.
Destaca-se que pesquisa nacional realizada pela Promotora de Justiça
Gabriela Mansur para o documentário “O silêncio dos homens”, veri-
ficou que 65% dos homens que não frequentaram os grupos reflexivos,
reincidiram e cometeram outra agressão. Porém, a partir do momento em
que os autores de agressões passaram a frequentar tais grupos, a reincidên-
cia caiu para 2%.
Outra pesquisa, realizada pela Universidade de Durham e a London
Metropolitan no Reino Unido no ano 2015, revelou que os programas
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
para perpetradores de violência doméstica podem desempenhar um papel
importante na busca pelo fim de tal comportamento. Foi evidenciado que
1/3 dos homens que obrigavam as mulheres à prática sexual, após partici-
pação no programa conseguiram mitigar este tipo de comportamento (30
% para zero). Da mesma forma, os casos de utilização de armas de fogo
por homens, contra a parceira, reduziram de 29% para zero.
Assim, os dados mostram que a maioria dos homens é capaz de dar
passos em direção a uma mudança positiva com a ajuda de um programa
de cuidado e educação.
Para uma ação efetiva deve-se fazer parceria com escolas públicas,
CRAS, CREA, UPAS, igrejas para que identifiquem famílias vítimas de
agressão e possa ser oferecido esse acompanhamento.
1. CULTURA E VIOLÊNCIA
1.1. Cultura sexista da sociedade brasileira
Precisamos nos ater a classe masculina que é transmitida pela cultura
sexista da sociedade brasileira, que apregoa estereótipos de força, virilida-
de e potência
1.1.2. O combate e violência e a reincidência
Para o trabalho com o agressor no combate a violência e a reincidên-
cia da violência de gênero, precisamos nos ater a classe masculina que
é transmitida pela cultura sexista da sociedade brasileira, que apregoa
estereótipos de força, virilidade e potência. Como fala Cláudia Priori
(2013. p. 1.):
É um tipo específico de violência que vai além das agressões físicas e
da fragilização moral e limita a ação feminina. É muito mais complexa do
que a violência doméstica, pois não acontece somente entre “quatro pare-
des”, mas se faz presente em todos os lugares, por alegações aparentemen-
te fúteis. Carrega uma carga de preconceitos sociais, disputas, discrimi-
nação, competições profissionais, herança cultural machista, se revelando
sobre o outro através de várias faces: física, moral, psicológica, sexual ou
simbólica.
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Segundo o texto de Alcilei da Silva Ramos e outros autores (2013. p.
3.), nas ciências sociais existe pelo menos três características que definem
o gênero:
a) aspecto relacional: entende-se que os comportamentos feminino
e masculino são definidos pela cultura, ou seja, cada sociedade, com sua
cultura, define o papel da mulher e do homem; b) relações de poder: tanto
o homem quanto a mulher exercem poder, ainda que se encontre distri-
buído de modo desigual. Em todas as sociedades conhecidas às mulheres
detém parcela de poder que lhes permitem meter cunhas na supremacia
masculina. Segundo Michel Foucault “o poder deve ser analisado como
algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca
está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um
bem”. Esses estudos foram muito importantes para o estudo sobre a vio-
lência contra as mulheres; e c) transversalidade: mostra que as diferenças
sexuais, como construções sociais, recebem influência política e social, ou
seja, dentro de uma mesma sociedade convivem diferentes experiências
sobre o que é ser homem e o que é ser mulher.
De acordo com os citados autores, “hoje o uso dessa categoria recebe
críticas, pois a palavra ‘gênero’ está sendo utilizada como sinônimo de
mulher, e devemos evitar isso, pois o mais importante é distinguir o ho-
mem da mulher dentro de uma sociedade” (grifo do original) (RAMOS,
Alcilei. 2013. p. 3.).
De acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência Contra a Mulher, Declaração sobre a Violência con-
tra a Mulher, de 1994, a violência de gênero é aquela que se refere ao ato
exercido contra a mulher pelo simples fato de ser do sexo feminino e que
tem como resultado possível ou real um dano físico, sexual, psicológico,
tanto no âmbito público como no privado:
a) que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou
em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja
convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre ou-
tros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; b) que tenha ocorrido
na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende,
entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, trá-
fico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar
de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de
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saúde ou qualquer outro lugar, e c) que seja perpetrada ou tolerada pelo
Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (artigos 1º e 2º da Conven-
ção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a
Mulher, Declaração sobre a Violência contra a Mulher, 1994).
É importante que se reconheça que foi a partir de uma concepção de
violência de gênero que se passou a visualizar a violência contra as mu-
lheres no aspecto mais amplo, além dos limites domésticos. A violência
contra a mulher sempre foi vista como uma questão pertencente à esfera
privada e, portanto, alheia ao interesse dos poderes públicos, permanecen-
do à margem da tutela jurisdicional do Estado.
O objetivo principal do artigo é fazer um trabalho com os agresso-
res onde serão identificados esses autores de agressão através de CRAS,
CREAS, Igrejas e comunidades católicas, evangélicas etc. Essas institui-
ções serão informadas que existem encontros com um Curso Reflexivo
semanal para trabalhar com os agressores de uma forma consciente e pe-
dagógica, onde estão convidados a participar caso queiram. Será informa-
da a família importância dos encontros para que elas conversem e conven-
çam os autores a participar, como também os representantes das igrejas
orientem aos mesmos por terem voz importante na orientação familiar.
O atendimento aos autores em situação de violência doméstica, se
dará por encontros em um Curso Reflexivo semanal, serão 10 encontros,
com duração de 2 horas e mediação de profissionais das áreas de: Psico-
logia, Serviço Social, Pedagogia ou Psicopedagogia. Para cada grupo de
10 participantes haverá um mediador treinado pela pedagoga da equipe.
Esses momentos estarão disponibilizados em uma plataforma on-line
e se darão tanto na forma síncrona (presencial virtual) onde todos estarão
reunidos de forma on-line no mesmo momento. E assíncronas com leitu-
ras e atividades on-line a serem feitas em momento posterior para comple-
mento do curso Reflexivo. A forma virtual dos encontros se mostra muito
eficaz no momento atual onde se enfrenta a busca pela diminuição e fim
de uma pandemia ainda sem previsão de terminar.
Esse mesmo curso poderá se dar de forma presencial, dependendo da
necessidade de cada grupo e da situação atual do país.
Inicialmente haverá uma entrevista e preenchimento de um formu-
lário para inserção nos grupos reflexivos.
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Esses encaminhamentos já existem no ordenamento jurídico por de-
terminação judicial de diferentes formas: suspensão condicional do pro-
cesso; como condição da suspensão da pena; transação penal; e como
condição de soltura durante o andamento do processo judicial. Mas é de
grande importância que exista acesso ao curso Reflexivo para toda comu-
nidade e por orientação e indicação de membros familiares, conselheiros
e demais pessoas que possam contribuir com a propagação e incentivo a
essa participação para uma reeducação cultural no combate a violência
doméstica.
Os grupos reflexivos são coordenados por profissionais e acontecem
através de 10 encontros semanais ou quinzenais com duração de duas ho-
ras cada. Na décima reunião, os participantes são convocados a retornar
após noventa dias para avaliação, os coordenadores entrarão em contato
após esse período para uma nova entrevista e preenchimento de um for-
mulário, dessa vez acompanhado pela companheira ou algum familiar que
também será entrevistado para informar o olhar deste quanto a mudança
de comportamento do avaliado.
Os princípios norteadores desses grupos são: Responsabilização (as-
pecto legal, cultural e social); Igualdade e respeito a diversidade (discussão
sobre gênero); Equidade (observância à garantia dos direitos universais);
Promoção e fortalecimento da cidadania e a discussão e reflexão sobre a
Comunicação não violenta.
Os profissionais facilitadores dos grupos, que compõem a equipe téc-
nica, utilizarão as Metodologias Ativas onde os participantes colaborarão
a todo momento nesse processo e reconstrução do pensamento social. A
proposta deste trabalho é baseada na literatura de Paulo Freire, que asso-
cia temas e conceitos com a experiência cotidiana do universo da pessoa,
favorecendo diálogos através de perguntas e dinâmicas, possibilitando a
reflexão sobre identidade de gênero e o cotidiano dos autores em situação
de violência. As perguntas são para Freire, um instrumento de diálogo e
geradora de novas questões e reflexões.
O grupo reflexivo de gênero para autores em situação de violência
doméstica permite que o usuário seja trabalhado no grupo e que o grupo
seja trabalhado pelo Facilitador, gerando assim uma ação reflexiva. O faci-
litador possui a função de propor atividades geradoras de reflexões. Assim
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
cada reunião cumpre um objetivo específico de acordo com o encadea-
mento de temas propostos.
Os temas trabalhados no grupo são previamente planejados pela equi-
pe, visando principalmente o rompimento e a prevenção da violência do-
méstica.
TEMAS DOS ENCONTROS
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA SOBRE AS CONQUISTAS E
DIREITOS DAS MULHERES;
Compreender a evolução histórica quanto ao patriarcado, a tutela e
violência a mulher desde a colonização.
2. PAPEL ATUAL DO HOMEM NA SOCIEDADE:
Entender seu papel, se desobrigando de precisar ser o provedor, de ser
o homem (macho) da casa, entender que os papéis são iguais.
3. A LEI MARIA DA PENHA:
Entender a necessidade de uma lei para defesa dos direitos das mu-
lheres; Conhecer as formas de violência; Perceber o ciclo da violência;
Entender o conceito de violência doméstica contra Mulher (Art. 5º); as
formas de violência doméstica e familiar contra a mulher (Art. 7º); renún-
cia (Art. 16); medidas protetivas de urgência (Art. 22); comparecimento
obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação - Grupo
Reflexivo (Art. 45).
4. DIFERENÇA ENTRE CONFLITO E VIOLÊNCIA;
Explicando sua diferença e como é possível passar por conflitos sem
nenhuma forma de violência, (pontuar como a violência foi sendo inse-
rida na vida de cada um; levantar reflexões sobre a responsabilização dos
fatos vivenciados e apontar formas de enfrentamento dos conflitos, sem a
utilização da violência).
5. IGUALDADE E RESPEITO DAS DIVERSIDADES, DIS-
CUSSÃO SOBRE GÊNERO, MACHISMO E MASCULINIDADE;
Propor uma reflexão sobre esses conceitos. Discussão da forma
como o masculino e o feminino são construídos socialmente, buscan-
do o questionamento da desigualdade entre os gêneros. Refletir que
características biológicas, que diferenciam os homens das mulheres,
não podem ser usadas como justificativas para promover o machis-
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mo. Refletir com o grupo os papéis cristalizados e rígidos propagados
pela nossa cultura, reproduzidos pela mídia, Igreja, escola, família e
a comunidade que podem gerar conflitos em várias esferas, inclusive
doméstica. Nesse momento usamos o aporte teórico de Saffioti, que
ressalta que "o conceito de gênero se situa na esfera social, diferente
do conceito de sexo, posicionado no plano biológico” (1995, p. 183.).
Segundo a autora, o conceito de gênero carrega uma dose apreciável
de ideologia - a patriarcal. Forjada especialmente para dar cobertura
a uma estrutura de poder que situa as mulheres muito abaixo dos ho-
mens em todas as áreas da convivência humana.
6. RELAÇÕES FAMILIARES, PATERNIDADE;
Tratar da paternidade e do cuidado com os filhos, onde se discute
alternativas não violentas para lidar com situações de conflito entre pais e
filhos, além da valorização do cuidado paterno
7. RELAÇÕES AFETIVAS, SEXUALIDADE, ASPECTO EMO-
CIONAIS (TRAIÇÃO, CIÚMES, CONFIANÇA, SEPARAÇÃO);
Resgate da história de vida de cada participante desde a infância até
a idade atual.
8. ÁLCOOL, DROGA, CONTROLE DA ANSIEDADE E IM-
PULSIVIDADE:
Entender até que ponto esses fatores podem estar contribuindo para
falta de harmonia familiar.
9. TRABALHO, MOTIVAÇÃO DIÁRIA, SAÚDE PESSOAL E
DA FAMÍLIA, QUALIDADE DE VIDA FAMILIAR;
Momentos em família a serem preservados, construídos e comparti-
lhados.
10. FALA QUE EU ESCUTO:
Será feita uma reflexão sobre os encontros, em que pode ter melhora-
do o comportamento e a forma de pensar sobre o motivo que levou eles a
estarem alí, como a contribuição da participação no grupo para a qualida-
de dos seus relacionamentos.
Se auto avaliar dando uma nota para uma mudança interior e percep-
tível ou ainda não perceptível. (abrir espaço para cada um falar sobre essa
experiência).
Avaliar no que poderia melhorar para os próximos que farão o curso.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Os participantes do grupo serão motivados para que revejam e ava-
liem os seus objetivos; reflitam sobre as metas e sobre o futuro, resgatando
sonhos e desejos; além de estimular a adesão ao pacto pela não violência.
E também é, quando se avalia o trabalho realizado e a contribuição da
participação no grupo para a qualidade dos relacionamentos e consequen-
temente para a qualidade de vida de seus membros.
CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto sobre o programa desenvolvido, é certo que a lei
Maria da Penha foi além ao prever a possibilidade de ressocialização do
agressor de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Nas experiências desenvolvidas no Núcleo de Combate à Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, em Taboão da Serra, nos anos de
2014, 2015 e 2016, e em 2017, no Grupo de Atuação Especial de Violên-
cia Doméstica do Ministério Público de SP - Região Leste 1, e Santana/
SP - o resultado foi extremamente positivo, observando-se uma queda da
reincidência de 65% para 2%.
Comparando os dados da primeira edição do projeto ( participantes
possuíam entre 18 e 63 anos de idade; 90% estão inseridos no mercado
de trabalho com renda mensal de aproximadamente R$2000,00; 80%
assumiram fazer uso de álcool e/ou droga e 50% dos envolvidos já viven-
ciaram ou presenciaram alguma situação de violência doméstica durante
a infância), com o da segunda edição ( participantes possuíam entre 23 A
58 ANOS, 76% estavam inseridos no mercado de trabalho com renda
de R$1.300,00 a R$5.000,00, 60% cometeram a violência sob efeito de
álcool e droga e 90% já vivenciaram ou presenciaram alguma situação de
violência doméstica durante a infância), um aspecto se repete: a justifica-
tiva da violência.
Houveram vários tipos de alegações do tipo: violento por estar de-
sempregado ou com problema no trabalho; ciúmes/comportamento con-
trolador/não admitem a liberdade da mulher (trabalhar, chegar tarde em
casa, sair com amigas, se comunicar/postar fotos em redes sociais, usar
roupas curtas, justas e decotadas e maquiagem exagerada), são comuns em
todas as falas da defesa dos homens, o que demonstra ainda mais a necessi-
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dade de uma verdadeira mudança de comportamento daquele que pratica
o crime, em benefício das próprias mulheres e das próximas gerações.
É importante frisar que durante o desenvolvimento programa, é pos-
sível ver os dois lados da violência contra a mulher: o sofrimento e a culpa-
bilização das mulheres; e do outro, e a resistência dos homens em admitir
que cometeram um crime.
Porém, esse comportamento dos participantes e tentativas de justi-
ficação de suas condutas foram se modificando no decorrer dos grupos
reflexivos, podendo se observar o início da tão almejada transformação
comportamental:
É possível afirmar, sem sombras e dúvidas, que trabalhos que envol-
vem a reeducação do autor de violência contra a mulher, previnem fe-
minicídios, já que na maioria dos casos, a morte violenta de mulheres é
resultado da evolução de violência moral, psicológica e física. Ademais,
com esses programas há a possibilidade de acompanhar tanto os autores
de violência como as vitimas, atendendo ao que preleciona a Lei Maria da
Penha: Acolhimento e Proteção da Vítima, bem como Punição e Resso-
cialização do Agressor.
Por fim, destaca-se que o projetos do tipo torna-se fator de transfor-
mação cultural e uma garantia penal, que deve ser observada nos crimes
contra a mulher, não só para romper o ciclo da violência, como também
para prevenir novos crimes e inserir as vítimas na rede protetiva dos direi-
tos das mulheres.
Como disse o respeitável jurista italiano Luigi Ferrajoli, autor da Teoria do Ga-
rantismo Penal, durante o curso Diritto Penale e Violenta Domestica, em Roma,
outubro/2016: “ o Direito Penal não é onipotente e nem uma varinha de cristal”.
Cuidar do agressor para que haja reflexão e reeducação quanto a sua con-
duta para não reincidência nem replicação do seu comportamento por filhos
que presenciem tais violências tem sido a forma mais eficaz dessa causa.
Reduzindo assim a reincidência de atos de violência contra a mulher e
o surgimento de novas vítimas, por meio de implementação do programa
de reeducação dos agressores em temas relacionados a gênero, masculini-
dade e resolução de conflitos.
Disponibilizar esse acompanhamento em Plataforma Digital, utili-
zando-se de Metodologias Ativas e mentores no formato presencial di-
gital síncrono e assíncrono para atender a todos principalmente durante a
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
pandemia. É uma forma de chegar a muitos e enfrentar as expressões da
violência doméstica e familiar contra a mulher através do atendimento aos
autores das situações de violência.
A Redução de reincidência e dos atos de violência contra a mulher
diminuem consideravelmente quando esses trabalhos são realizados por
meio desse tipo de programa de reeducação dos agressores em temas rela-
cionados a gênero, masculinidade e resolução de conflitos.
Os cumprimentos da legislação, cumprimento da decisão judicial que
estabelece a medida protetiva de frequência em programa de reeducação,
recém inseridas na Lei Maria da Penha e não reincidência do agressor
com sua sensibilização e conscientização de que determinados atos carac-
terizam violência contra a mulher, geram consequências graves, materiais
e morais tanto para eles, quanto para a vítima, para a família e toda a so-
ciedade e haver sistemas de ação para esse fim é algo que traz resultados
concretos e as mudanças sociais vão acontecendo nas famílias e na socie-
dade com um trabalho continuado e permanente de modo que haja uma
conscientização e educação transformadora para combatermos a educação
patriarcal que ainda persiste hoje em dia em muitos lares.
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662
LUTAS SOCIAIS NO BRASIL EM
TEMPOS DE CRISE DO CAPITAL E
CRISE SANITÁRIA
Bruna Almeida Cabral145
Bruna Menezes Guedes146
Pollyanna Labeta Iack147
Gilsa Helena Barcellos148
INTRODUÇÃO
O Brasil enfrenta um cenário desafiador, onde a crise sanitária traz à
tona as profundas consequências advindas da crise do capital, agudizando
as expressões da questão social, sobretudo, para a população negra, reve-
145 Graduanda do Curso de Serviço Social na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Vinculada ao Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão Pesquisa sobre Violência, Segurança
Pública e Direitos Humanos (NEVI/UFES).
146 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Política Social na Universidade Federal
do Espírito Santo. Vinculada ao Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão Pesquisa sobre Vio-
lência, Segurança Pública e Direitos Humanos (NEVI/UFES).
147 Assistente Social, Mestranda do Programa de Pós Graduação em Política Social na Uni-
versidade Federal do Espírito Santo (UFES). Especialista em: Políticas Públicas para Infância
e Juventude (FACREDENTOR); Educação em Direitos Humanos (UFES), Políticas Públicas e
Socioeducação (Unb). Vinculada ao Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão Pesquisa sobre
Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos (NEVI/UFES).
148 Assistente Social, professora do Departamento do Serviço Social/UFES. Vinculada ao
Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão Pesquisa sobre Violência, Segurança Pública e Di-
reitos Humanos (NEVI/UFES).
663
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
lando o racismo estrutural. No entanto, cenários de crises podem desper-
tar lutas sociais, e é sobre essa conjuntura que artigo abordará.
Assim, num primeiro momento, apresentam-se algumas notas intro-
dutórias sobre as atuais dificuldades impostas aos movimentos dos trabalha-
dores pela “nova” dinâmica da reestruturação produtiva do capital ocasio-
nada pela crise estrutural capitalista a partir da década de 1970, agravada pela
crise financeira de 2008 e aprofundada pela atual crise sanitária de 2020.
Esta primeira reflexão servirá para nos aproximarmos do “giro” que
os atuais movimentos sociais estão sendo condicionados a dar, visto que
suas manifestações históricas são dinamizadas sob o modo de produção e
reprodução capitalista, sendo por isso, também determinadas pelas altera-
ções no processo de produção.
Em seguida, problematizamos os limites e as possibilidades que os
movimentos sociais apresentam dentro do marco da sociabilidade bur-
guesa com base no pensamento marxista de crítica da economia política.
Assim, apresentamos os conceitos de emancipação política e emancipação
humana em conformidade com o pensamento do autor e apontamos nos-
sas breves considerações sobre a discussão levantada, utilizando-se como
estratégia metodológica a revisão de literatura.
1. APONTAMENTOS SOBRE A DETERIORAÇÃO DAS
CONDIÇÕES DE VIDA E DE TRABALHO A PARTIR DA
CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL
Como assinalam Netto e Braz (2006, p. 162), “as crises expressan-
do a contraditoriedade inerente ao modo de produção capitalista, são elas
mesmas contraditórias [...]”. Se de um lado “[...] trazem à luz as contra-
dições do modo de produção capitalista; de outro, criam as condições de
uma reanimação e um novo auge, isto é, para um novo ciclo”. Por isso, de
acordo Gomes (2017, p. 1),
O momento de crise é o momento em que o capital se torna mais
violento. Ele tem que recuperar instrumentos de acumulação que estavam
no passado, e o principal deles é aproximar mais a relação de produção das
formas de servidão e do escravismo do que do trabalho assalariado. O ca-
pital na crise não mede esforços e vai se utilizar de todos os instrumentos
que tem para acumular.
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Experimentando essa face voraz do capital, a classe trabalhadora no
Brasil, desde os anos de 1990, enfrenta um processo de reestruturação
produtiva e de flexibilização das relações de trabalho de um lado; de outro,
a implementação de um programa neoliberal que leva à redução substan-
cial de investimento no campo das políticas sociais. O Estado conduz um
processo que permitiu a demissão em massa, a formação de um robusto
exército industrial de reserva e o aumento da exploração sobre a força de
trabalho que consegue se manter em empregos formais. Presencia-se uma
expansão de empregos informais e precarizados.
No entanto, com as incertezas que marcam a trajetória do mercado, as
medidas vão se revelando insuficientes, exigindo que outras mais radicais
sejam implementadas. No Brasil, a aprovação da reforma trabalhista insti-
tuída pela Lei nº 13.467 de 13 de julho de 2017, que altera a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT), aprofunda o processo de desregulamentação,
incorporando a modalidade do trabalho intermitente, no seu art 443. Ao
mesmo tempo, surge o discurso de que o trabalhador é um colaborador
na relação empresarial, encobrindo a relação contraditória e fundamental
entre trabalho e capital. Também o discurso da “parceria” do empreen-
dedorismo ganhou estímulo nesses tempos. Em síntese, as empresas que
empregam sob a forma da uberização, não garantem acesso aos direitos
básicos, como exemplo: seguro saúde, remuneração, férias, entre outros.
De acordo com Abílio (s/d, p. 1), a uberização “[...] refere-se a um
novo estágio da exploração do trabalho, que traz mudanças qualitativas
ao estatuto do trabalhador, à configuração das empresas, assim como às
formas de controle, gerenciamento e expropriação do trabalho”. Ainda,
segundo a autora, “consolida a passagem do estatuto de trabalhador para
o de um nanoempresário-de-si permanentemente disponível ao trabalho;
retira-lhe garantias mínimas ao mesmo tempo em que mantém sua su-
bordinação”. (ABÍLIO, s/d, p. 1). Num tom temerário, a autora anuncia
que “Este parece ser um futuro provável e generalizável para o mundo do
trabalho”.
É nesse cenário de precarização que nos deparamos com a emergência
sanitária da Covid-19. A crise sanitária expõe ainda mais a questão social
no Brasil. As desigualdades se expressam na ausência de saneamento bá-
sico, no não acesso à água potável, na ausência ou nas péssimas condições
habitacionais, no desemprego estrutural, na fragilidade das políticas sociais
665
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
e na violência policial nas favelas e bairros periféricos. Nesse contexto, a
população negra é a mais afetada e a que mais morre em decorrência da
COVID-19, segundo dados do IBGE, repercutidos Soares (2020): “[...] o
inquérito epidemiológico do IBGE revelou um abismo racial no alcance
da doença. Entre aqueles que disseram ter tido mais de um sintoma de
síndrome respiratória, 68,3% são pretos ou pardos, ante apenas 30,3% de
brancos”. Quando se analisam os índices de mortalidade, também são os
negros que mais morrem.
Em uma pandemia em que o isolamento social é a maior forma de
autoproteção, as condições de emprego e salário dos trabalhadores não são
asseguradas, não podendo abrir mão de trabalhos formais ou informais
para complementar sua renda básica mensal, dentre outras condições de
precarização. Impossibilitando a ele o isolamento social.
A pandemia do novo coronavírus expõe de várias maneiras as con-
tradições entre as relações sociais de produção de tipo capitalista e o de-
senvolvimento das forças produtivas. A reprodução da vida no capitalismo
está sobredeterminada pela mercantilização [...] As relações de produção
capitalista inviabilizam a priorização da vida no contingenciamento da
COVID e explicitam a dimensão ética-estética da crise, ao colocar em
xeque os valores da nossa época histórica, sempre condicionados ao va-
lor de troca como finalidade teleológica sobredeterminante (GOUVÊA,
2020, p. 21).
Como já explicitado por Netto e Braz, quando uma crise chega, o
capital corre para se reestruturar produtivamente para que o ciclo de acu-
mulação se reinicie. A economia não pode se manter em depressão, a vida
humana só serve ao capital com o propósito de produzir mais valor. É
a mercantilização da vida na sua forma mais aprofundada, de controle e
alienação.
É a dialética entre exploração e opressão do capitalismo, evidenciada
com a crise sanitária. Giovanni Alves, em seu artigo intitulado “O novo
coronavírus e a catástrofe do capitalismo global”, aponta que “o que a co-
vid-19 fez foi revelar a natureza necrófila do Estado neoliberal que opera
a lógica da dessubstancialização do capital e a desvalorização generalizada
do trabalho vivo [...]” (ALVES, 2020).
O aprofundamento da precarização do trabalho com a uberização di-
ficulta a tomada de consciência dos sujeitos enquanto classe, que tendem
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a não enxergar a si mesmos e nem aos outros que estão nas mesmas con-
dições, como a classe que produz toda a riqueza social.
Ao capitalismo, a competitividade entre os trabalhadores é vantajosa,
a sua organização não. Por isso, a importância dos processos de aliena-
ção que impedem que o trabalhador se reconheça enquanto pertencente a
uma classe social. Recuperando o posto por Marx, “o modo de produção
da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e
intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o
seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência
(MARX citado por DURIGUETTO; MONTAÑO, 2011, p. 99). Ou
seja, as condições de vida material são imprescindíveis para a passagem da
“consciência em si” à consciência revolucionária, ou, à “classe para si”.
Todavia, romper com os processos de alienação ideo-política por meio dos
processo de participação e organização da luta social é fundamental para se
compreender criticamente o mundo e transformá-lo.
No entanto, as condições objetivas da vida social e a correlação de
forças desfavorável ao trabalho, o capital, aliado ao Estado, prossegue na
sua estratégia de dar continuidade ao seu processo de acumulação. O Es-
tado burguês vai atuar naturalizando as condições que desregulam as re-
lações de trabalho. Em um contexto pós pandemia, é possível que essas
condições já naturalizadas, impostas idealmente aos trabalhadores, man-
tenham-se e se aprofundem. “O Estado, assim, se revela como um aparato
necessário à reprodução capitalista, assegurando a troca das mercadorias e
a própria exploração da força de trabalho sob a forma assalariada”. (MAS-
CARO, 2013, p. 18).
2. LIMITES E POSSIBILIDADES DOS MOVIMENTOS
SOCIAIS NO CONTEXTO DA CRISE DO CAPITAL
Maria da Glória Gohn é uma autora brasileira importante na dis-
cussão dos movimentos sociais. Ela tem se debruçado não só sobre a sua
conceituação mas sobre as diferentes formas organizativas que marcam a
construção dos movimentos sociais no Brasil. Segundo ela, os movimen-
tos sociais constituem-se “[...] ações sociais coletivas de caráter sociopo-
lítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se organi-
zar e expressar suas demandas [...]”, (GOHN, 2011, p. 335). Tais formas
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
adotam diferentes estratégias para intervir na realidade social que vão des-
de a “[...] simples denúncia, passando pela pressão direta (mobilizações,
marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de
desobediência civil, negociações etc.) até as pressões indiretas” (GOHN,
2011, p. 335). Ela chama a atenção para uma das novas formas de arti-
culação da luta social que dá por meio de redes sociais, locais, regionais.
Algumas, inclusive, chegam a romper as fronteiras nacionais assumindo
dimensão internacional, a exemplo da Via Campesina. A ampliação da
escala no nível de articulação dos movimentos sociais tem relação direta
com os processos internacionalização e mundialização do capital (CHES-
NAIS, 1996), na medida em que seu processo de expansão/ reprodução
vai deixando rastros de destruição que afetam a vida em todas as suas di-
mensões, particularmente no chamado capitalismo dependente.
Outra autora que nos apresenta contribuições importantes acerca dos
movimentos sociais é Lívia Cotrim, De acordo com a autora, os processos
de organização social que surgem são expressões de resistência, na grande
maioria das vezes, dos que estão em condição de desvantagem, por isso,
buscam, por meio de lutas sociais, alterar a realidade social seja de forma
mais imediata e/ou transitória seja de forma permanente. Ressalta que a
importância das lutas sociais independe do seu resultado:
Assim, seja o desenvolvimento das relações capitalistas, sejam as ba-
talhas travadas, ainda que perdidas – e várias vezes, como foi visto, graças
a essa derrota – desnudam tanto as contradições do capital quanto a alter-
nativa de sua supressão, pela revolução social, em favor da emancipação
humana geral (COTRIM, 2007, p. 512).
O grau de impacto da luta na realidade social dependerá da conjun-
tura, do nível de organização, da capacidade de mobilização dos sujeitos
implicados e, sobretudo, do caráter e da estratégia do movimento. Como
afirma Marx em 0 18 de Brumário de Luís Bonaparte, “os homens [e as
mulheres] fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e
espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias
sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se
encontram” (MARX, 2011, p. 25).
Ao discutirmos os processos de resistência das diversas frações da
classe trabalhadora ao processo de reestruturação produtiva e ao avanço
do neoliberalismo, importante enfatizar que eles ocorrem em várias di-
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
mensões da vida social: do chão da fábrica às suas formas virtuais mais
criativas, por meio das redes sociais, apresentando características distintas
das lutas que ocorreram no século XIX na Europa e que foram exausti-
vamente discutidas por Marx e Engels. No entanto, se as lutas no período
contemporâneo apresentam características distintas tanto no seu campo
organizativo quanto nas pautas149, a sua função político-pedagógica per-
manece a mesma: elevar o nível de consciência da massa trabalhadora de
consciência em si para consciência para si.
A classe em si nos remete à mera existência enquanto classe, não
sendo esse pertencimento mediado por uma compreensão crítica: “Na
medida em que milhões de famílias vivem em condições econômicas de
existência que as separam pelo seu modo de viver, pelos seus interesses
e pela sua cultura dos das outras classes e as opõem a estas de um modo
hostil, aquelas formam uma classe”. (MARX, 2011, p. 142-143), mas não
atuam como classe, por isso, constituem a classe em si. Já a classe para si
estabelece uma relação imediata com a tomada de consciência da condi-
ção de classe: “Na luta, [...] essa massa se une e forma uma classe para si”.
(DURIGUETTO; MONTAÑO, 2011, p. 97).
Para Ricardo Antunes (apud DURIGUETTO; MONTAÑO, 2011,
p. 99), é impossível compreender a “[...] questão da consciência de classe
[...] se não se considerar que trabalho, vida cotidiana e consciência do ser
social se inter-relacionam e se articulam de maneira insolúvel”. Para ele,
“a vida cotidiana é intrínseca da vida de homens e mulheres. Sem ela, é
impossível pensar a existência do ser social”. Se é na vida cotidiana que se
reproduzem os processos de alienação da vida social, é também nela que
se apresentam as possibilidades de rupturas e transformação.
2.1 A relação entre emancipação política e
emancipação humana, segundo MARX
Marx, na obra Sobre a Questão Judaica, apresenta dois conceitos-
-chave para a luta social contemporânea: emancipação política e emanci-
149 Aqui nos referimos ao fato de que as lutas sociais apresentam outras demandas dife-
rentes das pautas apresentadas pelo proletariado no século XIX. Na atualidade, mesmo o
movimento sindical, ou parte dele, tem, além da agenda anticapitalista, a luta antirracista
e antipatriarcal.
669
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
pação humana. Esses dois conceitos nos permitem entender os limites e
potencialidades da luta social no contexto da sociedade burguesa. Para o
autor, a emancipação humana constitui uma fase anterior ulterior à eman-
cipação política, por isso, reconhece a importância desta última, particu-
larmente pelo seu caráter político-pedagógico: quando as organizações
que representam as diversas frações da classe trabalhadora reivindicam
melhores condições de trabalho e de salário estão lutando para reduzir o
nível de exploração sobre a força de trabalho. Lenin exemplifica o caráter
pedagógico da luta: o seu sentido mais imediato pode direcionar para ru-
mos mais estratégicos.
A greve ensina os operários a compreenderem onde repousa a força
dos patrões e onde a dos operários, ensina a pensarem não só em seu pa-
trão e em seus companheiros mais próximos, mas em todos os patrões, em
toda a classe capitalista e em toda a classe operária. Quando um patrão que
acumulou milhões a custa do trabalho de várias gerações de operários não
concede o mais modesto aumento de salário e inclusive tenta reduzi-lo
ainda mais e, no caso de os operários oferecerem resistência, põe na rua
milhares de famílias famintas, então os operários vêem com clareza que
toda a classe capitalista é inimiga de toda a classe operária e que os operá-
rios só podem confiar em si mesmos e em sua união (LÊNIN, 1961, p. 5)
Como apontado por Lenin (1961), essas lutas, se conduzidas corre-
tamente, permitirão acumular forças para processos mais longos e defi-
nitivos. Ou seja, os processos que levam à emancipação política são im-
prescindíveis à emancipação humana, mas não são automáticos. E ficar
no limite da emancipação política interessa ao capital, porque se ela é
responsável por atenuar o nível de exploração sobre a força de trabalho,
encerrada em si mesma, permite a continuidade da sociedade sustentada
na exploração do trabalho.
A emancipação política nos remete ao Estado burguês. Mesmo reco-
nhecendo, efetivamente, que políticas públicas e sociais ocasionam me-
lhorias reais na realidade material concreta é importante ressaltar que tais
estratégias apresentam determinados limites na ordem social burguesa e,
muitas vezes, podem ser apropriadas como forma de legitimação do capital,
resultando, então, as lutas sociais, ao que Marx (2010) denominou como
sendo “emancipação política”, considerando-a importante e de grande
progresso, contudo, apresentando suas limitações dentro da organização do
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capital. Sendo assim, apesar de imprescindível, a emancipação política não
se constitui como a emancipação real, ou seja, emancipação humana, onde
possamos terminar com toda forma de opressão e exploração.
A emancipação política é passível de ser alcançada na sociedade bur-
guesa porque, dentre os variados elementos, as contradições que se mani-
festam na esfera pública e que demandam respostas do Estado “devem”
ser atendidas. Isto posto, o Estado é aparentemente considerado como um
agente externo e neutro, acima dos interesses individuais em prol do bem
coletivo. Nas palavras do próprio autor, Marx (2010, p. 41), “A emanci-
pação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a
forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma
definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até
aqui”. Todavia, mais à frente, o autor atenta que, “Toda emancipação é
redução do mundo humano e suas relações ao próprio homem. A eman-
cipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da so-
ciedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro lado,
a cidadão, a pessoa moral” (MARX, 2010, p. 54, grifos do autor). Ou
seja, “[...] o homem como membro da sociedade burguesa, [...], como
indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e
separado da comunidade (MARX, 2010. p. 50)”. Dando prosseguimento
as ideias do autor, consentimos que
A emancipação humana só estará plenamente realizada quando o ho-
mem [e a mulher] individual real tiver recuperado para si o cidadão abs-
trato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua
vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais,
quando o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” [for-
ças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de
si mesmo a força social na forma de força política (MARX, 2010, p. 54,
grifos do autor).
Estrategicamente, a ideia de igualdade – formal – na sociedade de
classes, imprescindível à ordem do capital, legitima-se pela ação do Esta-
do, que faz com que o indivíduo reconheça a si próprio e aos seus seme-
lhantes a partir desse agente externo. Logo,
A genericidade abstrata tornada possível apenas através do Estado
composto por seres desiguais, seres que se tornam desiguais por meio das
relações materiais e espirituais, é a expressão mais que adequada das rela-
671
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
ções de mercado. Na verdade, neste, como em outros aspectos, o Estado
é a expressão política do mercado da mesma maneira que os interesses do
Estado costumam ser os interesses do capital (IASI, 2007, p. 54-55).
Nota-se, de acordo com a passagem acima, como que conquistas
políticas por intermédio do Estado podem significar a cooptação e ade-
quação em prol da reprodução dos interesses do capital. Pois, “o caráter
genérico do ser humano na mediação do Estado, na sociedade atual, é a
expressão da universalidade do capital” (IASI, 2007, p. 56). Mais adiante,
completa o autor que, “essa universalidade esconde o fato de a igualdade
exigir que alguns assumam o papel de acumuladores de valor e mais-valia,
enquanto outros se transformam na mercadoria”.
Importante frisar que não se trata de uma simples alteração da forma
Estado e, sim, a superação das mediações: mercadoria, capital e Estado.
Para que só então, se possa produzir relações sociais baseadas em outra
forma de produção, onde os seres humanos se reconheçam diretamente
entre si sem a mediação de agentes externos, fetichizados e estranho a
eles. Logo, a luta contra a opressão em perspectiva anticapitalista é uma
luta imprescindível.
2.2 A luta social no Brasil nas crises: financeira e
sanitária
A Europa registra, na sua história de organização da classe trabalha-
dora, as revoluções de 1848, a constituição da Associação Internacional
dos Trabalhadores, em 1864 e, em 1872, a Comuna de Paris – um movi-
mento revolucionário que, para Engels (2011, p 199), materializou a di-
tadura do proletariado: “Olhai para a Comuna. Tal foi a ditadura do pro-
letariado”. No século XX, destacamos os movimentos de 1968, quando
os movimentos de rua: marcha de mulheres, ambientalistas, estudantes,
gays e lésbicas, entre outros ocuparam as ruas de Paris. Estes movimentos
deflagraram o que alguns autores denominaram de “novos movimentos
sociais”. Se no início foram vistos como concorrentes da luta sindical,
como o passar dos anos, os processos de alianças construídos, influencia-
ram a pautas da luta sindical em toda a Europa, incorporando bandeiras
até então estranhas ao movimento sindical. O debate da relação intrín-
seca entre exploração e opressões se expandiu e afirmou a necessidade
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
da construção de alianças permanentes entre os diversos sujeitos coletivos
que se organizaram e travam lutas de perfil anticapitalistas, antirracistas e
antipatriarcais.
No Brasil, as péssimas condições de trabalho e de vida da classe ope-
rária foram importantes motores para a organização sindical. Escreve Vito
Giannotti (2007), que “Em 1910, nas fábricas de São Paulo, a idade média
de vida do trabalhador chegava a 19 anos”, exatamente iguais às de cem
anos atrás na Inglaterra (GIANNOTTI, 2007, p. 53).
Até os anos de 1980, a centralidade do movimento sindical na luta
social era inquestionável, no entanto, com o passar dos anos e surgimen-
to de outros movimentos sociais, inclusive, a sua presença na luta sindi-
cal, trouxe outros sujeitos coletivos para o centro. O movimento sindi-
cal também se atualizou construindo novas centrais sindicais. Também a
luta camponesa demonstrou força: se as ligas camponesas das décadas de
1950 e 1960 foram dispersadas pela ação dos governos militares, temos,
em 1984, a criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
No entanto, influenciado pelo movimento sindical europeu, durante
muito tempo a luta operária resistiu à ampliação da sua pauta. Mas com
os processos externos e internos que apontavam para a necessidade de re-
conhecimento das particularidades que atravessam a classe trabalhadora e
com o avanço do movimento feminista, movimento negro e LGBTQIA+,
hoje, parcela expressiva da luta sindical compreende que sem aliança entre
os sujeitos explorados e oprimidos, pouco se avançará.
A mudança do perfil da luta social no Brasil acontece no contexto da
crise estrutural do capital, porque foi possível observar que além da classe
trabalhadora não ser homogênea, os impactos da reestruturação produti-
va, dos programas neoliberais e da flexibilização e desregulamentação das
relações de trabalho recaíram mais sobre uma parcela da classe: negros e
mulheres. Por isso, esses sujeitos foram provocados e provocaram mudan-
ças nas estratégias de luta para o enfrentamento dos seus processos de ex-
ploração e opressão, por isso, a luta por políticas sociais de caráter universal
tem a sua importância, já que essa parcela não consegue garantir o mínimo
para a sua subsistência. Ou seja, se o capital não dá as condições, o Estado
precisa oferecê-las por meio da renda indireta.
Na crise sanitária, como já mencionada acima, a questão social fica
mais explícita, trazendo à tona as precárias condições de vida de uma par-
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cela expressiva da classe trabalhadora. Diante da ausência do Estado, ob-
servam-se ações de solidariedade no interior das favelas e bairros perifé-
ricos. Movimentos sociais assumem o papel do Estado, entendendo que a
realidade exige uma atuação imediata, para o que o vírus não se propague
entre aqueles (as) que possuem menos condições para o seu enfrentamen-
to. Essa crise também revela a importância não somente da luta sindical
pela manutenção do emprego, mas da luta pela Reforma Agrária, já que
milhares de pessoas vivem aglomeradas nos centros urbanos, enquanto
o grande latifúndio e o agronegócio, numa ação articulada, garantem o
monopólio da terra. Ao mesmo tempo, revela a importância do Movi-
mento Nacional de Luta Pela Moradia, porque, enquanto famílias imensas
se aglutinam em pequenos cômodos, a especulação imobiliária atua de
forma livre e subsidiada pelo Estado, reafirmando a habitação, um bem
fundamental, como uma mercadoria.
Se os movimentos negros e antirracistas denunciam que a Covid-19
tem sido implacável com os seus, devido às suas péssimas condições de
vida; os movimentos feministas, em tempos de pandemia, lutam para o
enfrentamento da violência doméstica e do feminicídio, que se intensifi-
caram sobremaneira. A pandemia revela que as lutas, que parecem frag-
mentadas, possuem uma forte conexão entre si, no entanto, a capacidade
de se potencializarem mutuamente depende da capacidade e da concep-
ção política que as suas direções têm. Como já assinalado neste texto: a
luta que produz emancipação política é importante, mas insuficiente. Ela
precisa indicar horizontes mais largos e estratégicos e isso não ocorre de
forma espontânea: depende de muito esforço, reflexão e disposição dos/as
dela participam.
No mais, é importante afirmar que a luta social, em tempos de ca-
pital mundializado (CHESNAIS, 1996), necessita ser internacionalizada.
Não há nada mais atual do que o apelo marxiano: trabalhadores e traba-
lhadoras do mundo (países) uni-vos!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na história, em momentos onde há retrocessos e perda de direitos
sociais e políticos, também é momento para reorganização da classe ex-
plorada. Exemplo disso foram as greves dos trabalhadores de aplicativo,
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que em meio a crise sanitária da Covid-19, conseguiram se organizar para
reivindicar e expor suas condições precarizadas de trabalho.
O posicionamento abertamente genocida da classe dominante expõe
as contradições do sistema e a incompatibilidade da acumulação capitalista
com o bem estar da classe trabalhadora, abrindo brechas para avançar na
perspectiva da superação e rompimento da ordem vigente.
Para a superação da percepção imediata da realidade, da alienação co-
tidiana pela hegemonia do capital, é preciso desenvolver uma consciência
de classe, que é inseparável da organização e luta de classes. Que com-
preende as contradições e desmistifica o modo de produção capitalista,
desenvolver a consciência universal que resulta na passagem da classe em
si em uma classe para si.
Mais do que reivindicar por melhores condições, são os sujeitos
conscientes querendo a superação daquilo que ordena e dita essas condi-
ções, ou seja, o próprio capitalismo. Uma emancipação humana, livre de
todas as formas de opressão e exploração, livre da propriedade privada e
sua principal forma de alienação que é o trabalho assalariado do sistema
capitalista.
Ante ao exposto, verifica-se que os movimentos sociais que possuem
uma perspectiva verdadeiramente emancipatória, por mais que se con-
sidere e compreenda a relevância das concessões, tais como as políticas
sociais através do Estado, deve-se almejar a construção de uma sociedade
anticapitalista, antipatriarcal e antirracista.
Assim, concordamos com Davis (2018, p. 19) que “As lutas pro-
gressivas – centradas no racismo, na repressão, na pobreza ou em outras
questões – estão fadadas ao fracasso se não tentarem desenvolver uma
consciência sobre a insidiosa promoção do individualismo capitalista”. E,
concluímos que o cerne da questão diz respeito a mudança sistêmica e,
não, a ações individuais. Por isso, buscamos no decorrer deste artigo, ins-
tigar sobre o horizonte almejado pelos movimentos sociais, pois, apresen-
tamos aqui sujeitos coletivos que aqui se encontram como centrais na luta
de sobrevivência política e corpórea dentro de um Estado racista, sexista
e capitalista. E, tendo em vista o atual contexto histórico brasileiro, assim
como em toda a América Latina – com governos de ultradireita–, resgatar,
reafirmar, disputar os espaços políticos, a produção de conhecimento e
outros locais, é necessário e estratégico.
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677
ARTIGO – NACIONALIDADE
679
ENTENDIMENTO DOS MINISTROS
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
SOBRE UMA DAS EXCEÇÕES PARA
A PERDA DA NACIONALIDADE:
ANÁLISE DE DECISÃO
Mariana Moron Saes Braga150
Maria Carolina Cisotto Bozzo151
Victoria Mossini Augusto 152
INTRODUÇÃO
Em 2016, quase trinta anos após a entrada em vigor da Constituição
Federal o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão inédita: consi-
derou legítima a decretação da perda da nacionalidade de Claudia Cristina
Sobral, uma brasileira nata.
A perda da nacionalidade brasileira está regulada, constitucionalmen-
te, pelo § 4º do artigo 12 da Magna Carta, que estabelece sua ocorrên-
cia caso o brasileiro, nato ou naturalizado, adquira outra nacionalidade.
Há duas exceções, entretanto, elencadas nas alíneas a e b do inciso 2⁰ do
referido parágrafo. A primeira diz respeito ao reconhecimento da nacio-
nalidade originária pela lei estrangeira. A segunda, à imposição de natura-
150 Docente do Departamento de Sociologia e Antropologia da UNESP – Campus de Marí-
lia/SP. Coordenadora do GEMIIN - Grupo de Estudos em Migrações Internacionais.
151 Graduanda do curso de Relações Internacionais da UNESP – Campus de Marília/SP.
152 Graduanda do curso de Relações Internacionais da UNESP – Campus de Marília/SP.
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lização, pela norma estrangeira, como condição para permanência em seu
território ou para o exercício de direitos civis153.
Isto posto, o objetivo do presente artigo é analisar o teor da decisão
proferida pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal no Mandado de
Segurança nº 33.864 em 19 de abril de 2016. Desta análise pretende-se
inferir qual a compreensão de direitos civis ali explicitada, tendo em vista
que o referido Tribunal entendeu que a situação da impetrante não se en-
caixa na alínea b da norma supracitada.
Para tanto, inicialmente, apresenta-se uma descrição do caso envol-
vendo Cláudia Cristina Sobral (ou Cláudia Hoerig, em seu nome de casa-
da). Em seguida, apresenta-se uma definição do green card norte ameri-
cano, com o intuito de explicitar quais são os direitos e deveres inerentes à
sua concessão e identificar em que condições vive um estrangeiro quando
em posse do documento. Por fim, realiza-se uma análise da decisão do
Supremo Tribunal Federal de modo a inferir qual a interpretação dada
pelos Ministros neste caso.
1- BREVE DESCRIÇÃO DO CASO CLÁUDIA SOBRAL
HOERIG
O caso da carioca Cláudia Cristina Hoerig, a primeira pessoa a per-
der a nacionalidade brasileira e ser extraditada gerou um debate sobre as
circunstâncias em que brasileiros com outras nacionalidades podem en-
frentar a mesma situação.
Em 1989, Cláudia Sobral migrou para os Estados Unidos da América.
Em 1994, ela se casou com Thomas Bolte e em virtude do matrimônio
passou a ter direito ao visto permanente, conhecido como green card.
Depois de dez anos em solo norte-americano, ela se naturalizou es-
tadunidense. Nesse período, ela se divorciou e anos mais tarde contraiu
novo matrimônio, com Karl Hoerig, um Oficial da Força Aérea dos Es-
tados Unidos154.
Em 2007, Karl Hoerig foi assassinado em sua residência no Estado de
Ohio e na mesma data Cláudia Hoerig retornou ao Brasil. Alguns fatos
153 BRASIL. Art. 12, § 4º. Constituição Federal (1988).
154 A partir de então passou a assinar Claudia Cristina Hoerig.
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como a compra de um revólver e testemunhos de vizinhos que alegaram
terem visto Cláudia praticando tiro, tornaram-na a principal suspeita. Um
pedido de prisão foi expedido e a Interpol a incluiu na lista de procurados.
O Estado americano entrou com um processo no Brasil para que ela fosse
devolvida para julgamento (RAMOS, 2017).
Á época, Cláudia Hoerig alegou ser vítima de agressões e abusos por
parte do marido, circunstâncias que a teriam levado a cometer o crime,
em momento de fúria durante uma briga conjugal. Segundo seu advoga-
do, ela não desejava eximir-se de responder à acusação, mas que fosse em
seu país de origem (DEL´OLMO, 2016).
No Brasil, as autoridades, ao tomarem conhecimento dos fatos, ins-
tauraram um processo administrativo que culminou em uma Portaria155
editada pelo Ministro da Justiça que decretou a perda da nacionalidade de
Claúdia Hoerig em virtude de sua naturalização como norte-americana.
Irresignada com a decisão ministerial, Claudia impetrou um man-
dado de segurança perante o Superior Tribunal de Justiça. A impetrante
argumentava que a decretação da perda de sua nacionalidade brasileira se-
ria desproporcional, uma vez que se naturalizou nos Estados Unidos a fim
de garantir sua permanência no território norte-americano e para exercer
seus direitos civis.
Em decisão monocrática, o Ministro Relator deferiu a liminar so-
licitada, mandando suspender provisoriamente a eficácia da Portaria
Ministerial até o julgamento do mérito. Em seguida, o STJ declinou da
competência, considerando pendente o pedido de extradição, cabendo ao
Supremo Tribunal Federal a decisão final sobre essa lide.
Assim, o mandado de segurança ficou sob a relatoria do Ministro
Luís Roberto Barroso e foi incluído em pauta para julgamento da Primei-
ra Turma, havendo decisão em 19 de abril de 2016. Por maioria de votos,
a Primeira Turma denegou a segurança e revogou a liminar deferida pelo
Superior Tribunal de Justiça. Participaram do julgamento, o Ministro Re-
lator, Luís Roberto Barroso, a Ministra Rosa Weber, Ministro Luiz Fux,
Ministro Marco Aurélio Melo e o Ministro Edson Fachin. Os dois últi-
mos foram os vencidos (RAMOS, 2017).
155 Portaria nº 2.465, de 3 de julho de 2013.
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Ao denegar a ordem, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Fede-
ral, convalidou a decisão do Ministério da Justiça que declarou a perda da
nacionalidade da impetrante. Essa decisão transitou em julgado em outu-
bro de 2017. Em janeiro de 2018, Cláudia Sobral Hoerig foi extraditada
para os Estados Unidos.
Um ano após ser extraditada, Cláudia foi julgada e condenada por homi-
cídio qualificado. Ela foi condenada à prisão perpétua, com direito à liberdade
condicional após 28 anos. O juiz, ao pronunciar a sentença, e o promotor, ao
propor a pena, afirmaram que estavam conformando a sentença aos parâme-
tros brasileiros, uma vez que a Lei de Migração brasileira proíbe extradições
para que réus sejam condenados a penas que não existem no Brasil.
O total de 28 anos é a soma de 25 anos pelo homicídio qualificado de
Karl Hoerig, em 2007, e mais três anos pelo uso de arma de fogo na prática de
um crime. O tempo que Cláudia esteve presa enquanto respondia ao proces-
so, quase três anos, será descontado dos 28 anos até a concessão da liberdade
condicional. Portanto, ela terá cerca de 80 anos quando puder sair da prisão156.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública em sua página virtual
confirma a informação de que a efetivação da extradição só ocorreu
após as autoridades dos Estados Unidos da América terem formalmente
apresentado ao Brasil o compromisso, conforme o artigo 96 da Lei nº
13.445/2017, de a extraditada não ser condenada a pena de morte ou de
prisão perpétua (penas possíveis segundo a legislação do Estado de Ohio,
onde o crime foi cometido e julgado)157.
Como afirmado anteriormente, o ineditismo do caso bem como sua
importância, pois a nacionalidade é um direito fundamental, motivaram a
realização da presente pesquisa. É a primeira vez, desde a Proclamação da
República, que o governo brasileiro extradita um nacional para responder
a processo em outro país. Há reflexões importantes a serem feitas, pois o
caso Cláudia Sobral Hoerig poderá tornar-se um divisor de águas no tra-
tamento do tema da nacionalidade brasileira.
156 Esta notícia pode ser lida em https://www.conjur.com.br/2019-fev-10/ex-brasileira-
-condenada-prisao-perpetua-pena-comutada. Acesso em 17/jan/2020.
157 Esta informação pode ser encontrada em https://www.justica.gov.br/news/pela-pri-
meira-vez-brasileira-que-perdeu-nacionalidade-e-extraditada. Acesso em 17/jan/2020.
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2- ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DIREITOS
INERENTES À CONCESSÃO DO GREEN CARD
O Green Card (nome popular) é um documento de identidade que
comprova a situação regular para permanência no país de um estrangei-
ro nos Estados Unidos. Segundo a Embaixada dos Estados Unidos da
América no Brasil, um portador deste documento, ou seja, um residente
permanente, é alguém que recebeu autorização para viver e trabalhar nos
Estados Unidos em caráter duradouro. Segundo a cartilha “Guia para
Novos Imigrantes”, disponibilizada pelo Governo Americano em mais
de dez línguas, obter um Green Card é visto como um privilégio, não
como um direito158.
Após ser admitido como residente permanente no país, deve ser paga
uma taxa de imigrante ao Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA159.
Este cartão passa a ser válido por dez anos, sendo renovado próximo a data
de validade ou em caso de troca de nome ou sobrenome. Caso o imigrante
se mantenha na situação de residente permanente por cinco anos ou por
três, em caso de casamento com um nacional americano, ele tem a opção
de requerer a naturalização. Para tanto, sua conduta deve ser considerada
impecável durante todos os anos vividos no país com o Green Card.
Ainda segundo a cartilha, alguns direitos são adquiridos pela aqui-
sição do documento. O estrangeiro passa a ter o direito de residir conti-
nuadamente em qualquer local dos Estados Unidos da América, de tirar
carteira de motorista e de trabalhar. Adquire também o benefício de fre-
quentar escolas públicas e possuir propriedades no país. Além disso, pode
obter o Green Card para seu cônjuge e filhos, caso estes ainda não sejam
casados, e passa a ser permitido ingressar em determinados setores das
forças armadas americanas. Além disso, pode-se beneficiar da previdência
social, de renda suplementar e de uma assistência médica básica. Para a en-
trada e saída do país durante os anos com o visto de permanência existem
algumas restrições.
158 Disponível em https://www.uscis.gov/sites/default/files/files/nativedocuments/M-
-618_p.pdf. Acesso em 20/02/2020.
159 No idioma original: USCIS - United States Citizenship and Immigration Services.
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Com relação aos deveres de um residente, este deve pagar impostos e
obedecer às leis federais, estaduais e locais, e, registrar-se obrigatoriamen-
te no serviço de seleção das forças armadas, caso seja do sexo masculino
e tiver entre 18 e 26 anos. Além disso, deve sempre portar o Green Card
e ao mudar de residência deve comunicar o serviço de cidadania e imi-
gração dos EUA por meio da internet ou por cartas, com o prazo de dez
dias contados a partir da data de mudança, e, por fim, manter o status
imigratório.
Para entender melhor sobre o assunto, é interessante analisar a di-
ferença entre o cidadão que possui o cartão de residência permanente e
o que possui a nacionalidade americana, pois alguns pontos essenciais se
destacam.
O Green Card apresenta algumas restrições. Por exemplo, caso o es-
trangeiro residente queira sair do país por mais de um ano, é necessário
notificar a Imigração Americana. Se isso não for feito, o imigrante corre
o risco de perder seu cartão. Além disso, ele não concede direito ao voto,
nem de se eleger a cargos públicos, e também não é disponibilizado um
passaporte americano.
A nacionalidade americana, por via da naturalização, outorga os mes-
mos direitos e deveres de uma pessoa nascida no país, com a exceção de
não poder disputar o cargo de Presidente. Ela não precisa ser renovada e
não pode ser retirada do portador. Ao nacional é permitido entrar e sair do
país quando quiser, além de poder votar, ter maior acesso à cargos públicos
e obter maior assistência do governo federal.
Dessa forma, conclui-se que a obtenção do direito de viver nos Estados
Unidos pode se dar pela obtenção do Green Card, pela naturalização ou pelo
nascimento em país estrangeiro, sendo um dos pais, ou ambos, nacionais nor-
te americanos. Essas diferentes situações jurídicas em relação à permanência
possuem suas especificidades, ou seja, diferentes direitos e deveres.
3- MANIFESTAÇÃO DOS MINISTROS DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL ACERCA DOS DIREITOS CIVIS EM
RELAÇÃO À PERDA DA NACIONALIDADE
Conforme mencionado, a Emenda Constitucional de Revisão n° 3
acrescentou as duas alíneas existentes ao inciso II, § 4º do art. 12, con-
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
templando situações que, uma vez verificadas, não acarretarão a perda da
nacionalidade brasileira: o reconhecimento da nacionalidade estrangeira
originária e a imposição de naturalização, pela norma estrangeira, como
condição para permanência em seu território ou para o exercício de di-
reitos civis160.
À época, a defesa de Cláudia Sobral Hoerig argumentou que seu caso
recai justamente na exceção contemplada na alínea b, uma vez que adquiriu
a nacionalidade americana para exercer a totalidade de seus direitos civis em
um país onde há enorme preconceito contra latinos. Ainda para a defesa,
nesse caso, o ato que declarou a perda de sua nacionalidade brasileira viola
seu direito líquido e certo de conservar a nacionalidade brasileira.
Del´Olmo (2016) pondera que as situações descritas na alínea b não
podem ser verificadas de maneira tão objetiva, dando margem à interpre-
tação do aplicador do direito e fazendo surgir alguns questionamentos.
Ao tratar da perda da nacionalidade, a grande maioria dos constitucio-
nalistas apenas explicita o teor do § 4º do artigo 12, mas não se posiciona
em relação ao sentido da expressão direitos civis utilizada pelo poder cons-
tituinte revisional de 1994 (PAULO; ALEXANDRINO, 2014; SILVA,
2012; MENDES; BRANCO, 2013; LENZA, 2011; CARVALHO, 2011).
Entretanto, Del´Olmo (2016) esclarece que tendo em vista o amplo
sentido social dessa norma, ela deve ser considerada em favor da pessoa,
pois na maioria das vezes não se evidencia vontade de abrir mão da na-
cionalidade originária. Assim, não caberia retirar a condição de nacional
perante aquisição de outra nacionalidade, o que se caracterizaria como
severa punição a quem não apresentou menosprezo ao país. Para o autor
(2016, p.784),
“Se o brasileiro se naturaliza para exercer direitos civis que ele não usu-
fruía como estrangeiro, tais como ocupar certos cargos, obter salários mais
160 De acordo com o § 4º do inciso II, do art. 12 da Constituição Federal de 1988:
Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que:
I - tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva
ao interesse nacional;
II - adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos:
a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira;
b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em esta-
do estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de
direitos civis.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
elevados, ter o direito de herdar, adquirir direitos para seus dependentes,
como acesso ao serviço público de saúde e de educação, pode-se depreender
que há uma imposição, ainda que tácita, da legislação estrangeira”.
Como aludido, o mandado de segurança número 33.864, impetrado
por Cláudia Sobral, foi julgado pela Primeira Turma em 19 de abril de
2016. Da análise da decisão, em relação aos votos vencedores, não é pos-
sível extrair muitos argumentos de modo que fique claro qual deva ser o
sentido e o alcance da expressão direitos civis utilizada na segunda parte
da alínea b.
O relator Ministro Luís Roberto Barroso expôs que, ao se casar em
1990 com um cidadão norte americano, Cláudia Sobral pôde obter o
Green Card, visto permanente de residência, permitindo sua permanên-
cia e direito ao trabalho nos Estados Unidos. Para o Ministro, com o visto
permanente, a naturalização era desnecessária, a não ser para fins de inte-
gração àquela pátria, o que constitui entendimento à perda da nacionali-
dade. Em suas palavras (2016, p. 4):
“Como se vê do que admitido na própria impetração, tendo a impe-
trante se casado com nacional norte americano em 1990, (...), foi-lhe con-
cedida, naquele país, autorização para permanência, trabalho, e gozo de
direitos civis, tornando-se, assim, absolutamente desnecessária a obtenção
da nacionalidade norte americana, requerida em 1999.”
A impetrante alegou que ao postular outra cidadania, nunca dese-
jou perder sua nacionalidade brasileira, tanto que sempre cumpriu com
suas responsabilidades eleitorais e fiscais no Brasil. O Ministro Barroso
também refutou esta alegação. Para ele, a Constituição Federal não cuida
da hipótese de quem, não se enquadrando nas exceções, adquire outra
nacionalidade sem que desejasse fazê-lo como se estivesse a tratar de uma
reserva mental.
Em seguida, a Ministra Rosa Weber e o Ministro Luiz Fux se ma-
nifestaram no sentido de acompanhar o voto do Ministro Barroso sem
oferecer novos argumentos para tal posicionamento. O Ministro Luiz Fux
apenas ressalta que a perda da nacionalidade em razão da aquisição de
outra voluntariamente foi regulada em todas as constituições anteriores.
Já o Ministro Edson Fachin divergiu do entendimento do Minis-
tro relator. Em seu voto ele aponta o disposto no inciso LI do art. 5º da
Constituição Brasileira estatuindo que nenhum brasileiro será extradita-
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do, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da
naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de en-
torpecentes e drogas afins, na forma da lei.
O Ministro Fachin alertou que o assunto permeia os direitos e ga-
rantias fundamentais implicando em uma posição destacada na ambiên-
cia da Constituição. Argumentou ainda que o caso se refere justamente a
uma brasileira nata que optou por outra nacionalidade, e que a Corte já se
pronunciou a este respeito em outros momentos, mencionando exemplos
concretos para reforçar seu argumento.
O segundo e último voto vencido foi do Ministro Marco Aurélio
Melo. Este votou pelo deferimento da ordem por entender que o direito
à condição de brasileiro nato é indisponível e, em razão disso, a perda da
nacionalidade brasileira não deveria ficar submetida à legislação estrangei-
ra. Ele se refere ao argumento de que a alínea "a" versa sobre a possibilidade
de perda da nacionalidade, a qual ele entende indisponível pelo brasileiro
nato, se não houver o reconhecimento da mesma, no país amigo.
Sobre isto, o Ministro Barroso mencionou que em 1999, quando ain-
da casada com norte americano, a impetrante requereu segunda naciona-
lidade, em que declarou “renunciar e abjurar fidelidade a qualquer Estado
ou soberania.” (BRASIL, 2016, p. 7)
Entretanto, para o Ministro Marco Aurélio, a perda da nacionalidade
brasileira nata não fica submetida ao fato de uma lei estrangeira deixar de
reconhecer essa mesma nacionalidade. Sobre isto, o Ministro questiona e
ironiza: “será que a ordem jurídica constitucional brasileira se submete,
em termos de eficácia, a uma legislação estrangeira? É o que falta nes-
ses tempos muito estranhos que estamos vivenciando! Não se submete.”
(BRASIL, 2016, p. 23)
Da análise da decisão é possível depreender que apenas do voto do
Ministro Barroso é possível retirar um trecho que se relaciona ao disposto
na alínea “b”, ou seja, que poderia indicar o sentido da expressão direitos
civis utilizada pelo legislador.
Para o Ministro Barroso, cujo voto foi seguido pela Ministra Rosa
Weber e pelo Ministro Fux, de posse do Green Card, Cláudia Sobral podia
permanecer e trabalhar nos Estados Unidos sendo desnecessária a natura-
lização. Pode-se então inferir que no entendimento do referido Ministro,
se alguém tem a permissão para permanecer e trabalhar em determinado
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território estrangeiro, esta pessoa estaria apta a gozar plenamente dos seus
direitos civis. Nesse sentido, os direitos civis estariam relacionados à per-
manência e ao trabalho na acepção dos Ministros citados acima.
Como o caso é recente, há escassa literatura acadêmica comentando
a decisão. Porém, nos textos existentes há um entendimento comum de
que a decisão dos Ministros vencedores foi acertada. Por exemplo, Gomes
e Almeida (2018, p. 99) explicitamente manifestam “Veja-se, portanto,
que, no caso em questão, acertada a decisão do Supremo Tribunal Fe-
deral, vez que se trata de uma situação objetiva em que o brasileiro nato
adquiriu voluntariamente outra nacionalidade, estando fora das hipóteses
que permitem tal condição”.
Ao analisar a decisão, Favaro também foi favorável:
“Conquanto as divergências apostas pelos Ministros Edson Fachin
e Marco Aurélio no julgamento travado na 1ª Turma do STF, pre-
valeceu, acertadamente, a decisão do Ministro Barroso para quem
a norma constitucional é cristalina ao dispor que o direito à na-
cionalidade é livre podendo determinada pessoa optar por outra
nacionalidade.” (2017, p.173)
Del´Olmo (2016) relembra que costumeiramente, o Ministério da
Justiça não seguia postura ativa sobre essa matéria, de modo que, o proce-
dimento administrativo de perda de nacionalidade era instaurado apenas
mediante solicitação do interessado. No caso Cláudia Sobral, o Ministério
agiu de ofício, baseado no entendimento de que essa naturalização não se
classifica nas exceções previstas na Constituição Federal, tendo sido ins-
taurado procedimento do qual resultou a portaria de declaração de perda
de nacionalidade da brasileira.
Por fim e ante a tudo o que foi exposto anteriormente é preciso pon-
derar que o fato de Claudia Sobral ter se estabelecido nos Estados Unidos
e se naturalizado, talvez não tenha sido tratado considerando-se a comple-
xidade que lhe é inerente.
A seguir, alguns apontamentos apenas sobre o caráter voluntário/in-
voluntário que pode ser relacionado tanto ao ato de migrar quanto ao ato
de se naturalizar serão apresentados. O intuito é evidenciar que a análise
em relação à voluntariedade relacionada à migração e à naturalização en-
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volve diferentes aspectos não considerados na decisão do Supremo e nem
na literatura que julgou acertada a referida decisão.
Em relação à decisão de migrar, Jubilut e Apolinário (2010, p.781)
arriscam-se a distinguir o que seria uma migração voluntária de uma mi-
gração forçada:
“As voluntárias abrangem todos os casos em que a decisão de mi-
grar é tomada livremente pelo indivíduo, por razões de conveniên-
cia pessoal e sem a intervenção de um fator externo. Aplicam-se,
portanto, a pessoas, e membros de sua família, que se mudam para
outro país em busca de melhores condições sociais e materiais de
vida para si e seus familiares. (...) Já as migrações forçadas ocor-
rem quando o elemento volitivo do deslocamento é inexistente ou
minimizado e abrangem uma vasta gama de situações. A situação
clássica de migração forçada é o refúgio que protege as pessoas as
quais tiveram ou têm de deixar seu país de origem ou de residência
habitual em razão de bem-fundado temor de perseguição.”
Em diversas áreas do direito, quando um assunto envolve a declaração
de vontade é preciso cautela. No direito civil, por exemplo, há uma série
de controvérsias em torno da apuração do elemento volitivo na realização
de um negócio jurídico justamente porque nem sempre aquilo que se ex-
terioriza coincide com a vontade interna.
O mesmo vale para as migrações. É preciso indagar se as pessoas mi-
grariam se vivessem em outras condições que não àquelas que as fizeram
tomar a decisão de migrar. Quando distinguem as migrações voluntárias
das migrações forçadas, Jubilut e Apolinário (2010) têm a pretensão de
enfatizar que o fenômeno migratório é complexo e que dentro da catego-
ria de migrantes existem situações distintas, que necessitam de proteções
jurídicas também distintas, sob o risco de tratarmos igualmente pessoas
que se encontram em situações desiguais. É o caso dos refugiados que
migram em virtude de uma perseguição ou fundado temor de perseguição
em situações definidas pela legislação.
Ainda que se compreenda que a categoria dos migrantes é bastante
abrangente, é possível afirmar que apenas uma pequena parcela destes po-
deria ser considerado como migrante voluntário. A maioria das pessoas
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migra por situações econômicas, condições de extrema pobreza ou em
razão de conflitos bélicos. Em última instância, as pessoas migram em
virtude de uma omissão estatal, pelo fato do Estado não cumprir com sua
função primordial de proteger os seus cidadãos e oferecer-lhes adequados
meios de subsistência.
Assim como que não é simples distinguir uma migração forçada de
uma voluntária, é de se questionar quais razões levam alguém a se natu-
ralizar. Na decisão analisada, o Ministro relator, para denegar a ordem do
Mandado de Segurança contra a Portaria Ministerial 2.465/2013, apon-
tou que a impetrante requereu a nacionalidade, ou seja, que esta não lhe
foi imposta.
O Procurador-Geral da República anexou aos autos do Processo o
termo de naturalização assinado pela impetrante. Embasando-se nesse do-
cumento, o Ministro relator concluiu tratar-se de “manifestação de von-
tade inequívoca de adquirir outra nacionalidade, vazada por meio de ato
jurídico personalíssimo”, não havendo imposição à concessão de naturali-
zação pelos Estados Unidos (FAVARO, 2017, p.168).
A literatura também aponta o caráter voluntário da naturalização
enfatizando que esta não se deu através de uma imposição. Para Ramos
(2017) é imperiosa a voluntariedade da pessoa em adquirir a nacionalidade
de país estrangeiro através de naturalização. Ele assinala que a naturaliza-
ção voluntária é designada também como perda-mudança porque se dá
pela escolha livre, espontânea e voluntária do nacional pela aquisição de
outra nacionalidade.
Sobre isto, segundo Mazzuoli (2015) não importariam os motivos
pelos quais tenha se adquirido a nacionalidade secundária, bastando, tão
somente, que seja comprovada a escolha de forma verdadeiramente volun-
tária, livre de qualquer tipo de coação. Conforme Ramos (2017), a con-
duta ativa e específica que a conduziu à aquisição da nacionalidade norte
americana foi, precisamente, a declaração por ela dada, sob juramento,
como uma etapa do processo de aquisição da referida nacionalidade. Para
o autor (2017), é indubitável o caráter ativo e específico da conduta da Sra.
Cláudia, quando sob juramento declara lealdade e fidelidade aos Estados
Unidos.
É preciso considerar que a definição de nacionalidade é complexa,
pois não existem critérios lógicos ou naturais para decidir sobre a sua
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composição. Para Reis (2004), a ligação entre Estado e nação, construída
na modernidade, implica na formação de um laço entre nacionalidade e
cidadania, isto é, à medida que o Estado-nação é generalizado como a for-
ma de organizar politicamente o mundo, a cidadania passa a ser atribuída
em função da nacionalidade. Entre outras coisas, isso significa que o aces-
so aos direitos de cidadania está condicionado à posse da nacionalidade.
Este vínculo é tão forte que, no senso comum, as pessoas tratam os dois
termos como sinônimos. Frequentemente ouvimos alguém relatar que vai
requerer ‘a cidadania italiana’ ou ‘a cidadania portuguesa’ quando, efetiva-
mente, vai requerer a nacionalidade.
Com o aumento dos fluxos migratórios em praticamente todas as
partes do mundo, esta ideia de a cidadania absorver o conceito de na-
cionalidade tornou-se problemática. Em relação ao acesso a direitos, o
estrangeiro vive em uma situação precária em outra localidades, ou seja,
de exclusão em relação ao nacional.
Apenas os nacionais gozam de um direito incondicional de perma-
nência e residência no território e podem planejar suas vidas de acordo
com esses direitos. A entrada e a residência de não-cidadãos nunca são
incondicionais. Alguns estrangeiros, aqueles que entram clandestinamen-
te, por exemplo, ou pessoas ao final do seu período de residência legal,
não têm esses direitos. Mas mesmo não-cidadãos privilegiados, aqueles
aceitos formalmente como imigrantes ou colonos, continuam residentes
probatórios, suscetíveis à exclusão ou à deportação em certas circunstân-
cias (BRUBAKER, 1992).
Na contemporaneidade, uma série de estudos têm sugerido uma mo-
dificação nas relações entre nacionalidade/cidadania e soberania/imigra-
ção. O fortalecimento de um regime internacional de direitos humanos,
segundo essas pesquisas, obrigaria os Estados a redefinirem suas fronteiras,
tanto a interna como a externa, em função da universalidade dos direitos
individuais. Tais teorias sugerem, à grosso modo, uma espécie de quadro
de transferência de direitos do nacional para o indivíduo, uma espécie de
cidadania pós-nacional ou transnacional161 (REIS, 2004).
161 Dentre as várias produções teóricas que tratam da problemática da cidadania pós-na-
cional, vale destacar a obra de Habermas. Para conhecer a análise do mesmo sobre o as-
sunto, cabe leitura das obras: A constelação pós-nacional: ensaios políticos, e A inclusão do
outro: estudos de teoria política.
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Porém, é preciso ressaltar que estas teorias mencionadas são teorias
ideais. A situação atual ainda é a descrita por Reis (2004) em que o acesso
pleno aos direitos está condicionado à nacionalidade. Nesse caso, é de se
questionar se Cláudia Sobral se naturalizou porque, de fato, gostaria de
deixar de ser brasileira e se tornar nacional norte americana ou porque
pretendeu ter acesso a direitos até então endereçados apenas aos nacionais
daquele país.
Para concluir, é preciso ainda destacar que, além de restrições ao
acesso a direitos endereçados aos nacionais, os imigrantes estão sujeitos
à xenofobia. Nos Estados Unidos, sobretudo após os atentados de 11 de
setembro, a questão da imigração passou a ser considerada um problema
de segurança nacional. A xenofobia denota um comportamento especi-
ficamente baseado na percepção de que o outro é estranho ou se origina
de fora da comunidade. É uma orientação atitudinal de hostilidade contra
os não nativos em uma dada população162. Pela definição de dicionário,
a xenofobia é “a intensa antipatia ou medo de estranhos ou pessoas de
outros países.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente estudo foi analisar a decisão do Supremo
Tribunal Federal no mandado de segurança 33.864. Assim, procurou-
-se identificar qual a compreensão dos Ministros participantes da decisão
em relação à perda da nacionalidade regulada constitucionalmente e, mais
precisamente, qual o posicionamento do Supremo em relação às situações
que se enquadram na exceção descrita na alínea b do artigo 12, § 4º, inciso
II da Constituição Federal.
Não fica claro, entretanto, qual o posicionamento dos Ministros so-
bre a referida alínea e a tomada de decisão foi feita por meio de poucos
argumentos. Uma causa que verse sobre o direito à nacionalidade, princi-
palmente relacionada à sua perda, deve ser tratada com a cautela e profun-
didade devidas a todo e qualquer direito fundamental.
Considerando os estudos sobre xenofobia e securitização, bem como
as notícias jornalísticas sobre o tratamento dado aos estrangeiros nos Es-
162 A esse respeito: BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar,
2017, 117 p.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
tados Unidos da América pode-se supor que os Ministros do Supremo
talvez tenham desconsiderado as exclusões vivenciadas por estrangeiros
em países receptores de migrantes e não tenham analisado o caso tendo
em conta a sua complexidade.
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696
ARTIGOS – PARTICIPAÇÃO
POLÍTICA
697
JOÃO SALDANHA: UM COMUNISTA
NA SELEÇÃO BRASILEIRA DE
FUTEBOL DURANTE O GOVERNO
MILITAR: DA DITADURA A
REDEMOCRATIZAÇÃO. FUTEBOL
NA SOCIEDADE COMO FATOR
DEMOCRATICO (1966 – 1990)
Marcelo de Azevedo Zanotti163
1. JOÃO E A SELEÇÃO BRASILEIRA
1.1. Saldanha e a Copa de 1966.
A Copa do Mundo de 1966 reviveu a presença do autoritário e da
clientela no futebol brasileiro, ainda que, desta vez sem interferência direta
do regime militar. Os responsáveis pela seleção, sob o comando de Vi-
cente Feola, convocaram 44 jogadores, escalaram quatro times, rodando
todo o país na fase preparatória. A seleção chegou à Inglaterra sem uma
formação definida. Resultado: eliminação na primeira etapa.
Para se ter uma ideia, na última lista de jogadores para a Copa, es-
tavam: Pelé, Jairzinho, Brito, Gérson, Tostão e Edu, todos campeões em
1970. Este grupo, com Silva, Rildo e mais três, entrosados, certamente
chegaria mais longe na competição. Afinal, tínhamos a base da seleção
163 Orientadora: Profª Drª Marluza Marques Harres.
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em 1970, quatro anos mais jovem, além de craques consagrados. Faltou
definição e comando, com a comissão técnica apostando em nomes já em
fim de carreira, como Mané Garrincha e Gilmar dos Santos Neves, em
detrimento a novos talentos como Jairzinho e Manga.
Uma vitória de 2 a 0 sobre a Bulgária e duas derrotas contra Hun-
gria e Portugal. As crônicas de João Saldanha conseguiram captar, desde
a fase preparatória de treinamentos da seleção, com precisão, o que viria a
acontecer. Denunciou, com veemência, o circo montado pela Comissão
Técnica. O seu trabalho no jornal Última Hora e na Rádio Guanabara re-
percutiu amplamente. Em “Missa de mês”, crônica publicada pelo jornal
Última Hora no dia 22 de agosto de 1966, João faz um balanço da Copa
da Inglaterra, batendo na tecla da indefinição do time. Da necessidade do
conjunto no futebol. Era uma prévia de 1969, quando assumiu a seleção e
escalou de saída os 22. (SALDANHA, 1966, pg. 09).
1.2 Pós-copa e convite inesperado.
Após o fracasso da seleção brasileira na Copa de 1966, o regime mi-
litar entra em atrito com a Confederação Brasileira de Desportos (CBD).
João Havelange, presidente da entidade, monta uma estrutura artesanal,
através da criação da Comissão Selecionadora Nacional (Cosena), dele-
gando a Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação brasileira nas
copas de 1958 e 1962, seu comando.
Paulo Machado de Carvalho define Aimoré Moreira, técnico cam-
peão em 1962, como técnico de campo, montando uma comissão técnica
provisória, que, longe de ser militarizada (apenas no discurso), não tinha
sequer atribuições estabelecidas. A Cosena reproduz em uma excursão
da seleção à Europa os mesmos equívocos da Copa da Inglaterra. Com
resultados negativos, Havelange, pressionado por todos os lados, desmon-
ta a Cosena e propõe, como forma de desafio, a João Saldanha, o maior
crítico da CBD, assumir o lugar de Aimoré Moreira. Editorial publicado
no jornal Ultima Hora em 07 de fevereiro de 1969, escrito pelo jornalista
Jacinto de Thormes:
João Havelange, no olho do furacão de uma crise que estava pon-
do em risco seu próprio cargo, diante de “uma ausência de hegemonia
técnica” no futebol brasileiro, ausência de credibilidade, espécie de bo-
700
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napartismo cultural-futebolístico, aposta alto e arriscado, conversa com
Antônio do Passo (seu braço direito) e, batendo o martelo, lhe diz: "con-
vida o João". Obediente, Passo cumpre a missão prontamente e escuta
um “topo” como resposta. Saldanha define os times, titular e reserva, no
momento em que é anunciada sua escolha.Os onze titulares: Félix, Carlos
Alberto, Djalma Dias, Brito, Rildo, Wilson Piazza, Gérson, Jairzinho,
Dirceu Lopes, Pelé e Tostão. Os 11 reservas: Cláudio, Zé Maria, Scalla,
Joel, Everaldo, Clodoaldo, Paulo César, Paulo Borges, Toninho, Rivelino
e Edu. (THORMES, 1969, pg. 09)
Com a necessidade de resgatar a autoestima dos jogadores e da torcida
brasileira, Saldanha criou a figura das feras. Afirmou que era preciso “desa-
frescalhar” aquela história de “seleção canarinho” e que gostaria de ter em
campo 11 craques, 11 feras. "De todas as feras", dizia, "o homem é a mais
perigosa, portanto, eu não quero nenhum mocinho no meu time. Convoco
o jogador para defender a seleção, não para casar com a minha filha". (SAL-
DANHA, 1969, pg 09) Seguindo esta pista, o povo e a imprensa cunharam
a expressão e batizaram o time como "As feras do Saldanha".
1.3. A comissão técnica militar de João Saldanha
Depois do pioneirismo da Comissão Técnica de 1958, é montada,
pela primeira vez na História do Futebol brasileiro, uma delegação, de
fato, profissional: Cláudio Coutinho (capitão do Exército), Admildo Chi-
rol e Carlos Alberto Parreira, formados na escola superior do exército, na
preparação física, os médicos Lídio Toledo e Mário Pompeu,
O planejamento e adaptação à altitude, tanto nas eliminatórias (jogo
contra a Colômbia em Bogotá), quanto para a Copa do Mundo, foi mon-
tado pelo professor Lamartine Pereira da Costa, oficial da Marinha Bra-
sileira, um estudo inovador que veio a ser um dos principais trunfos da
seleção na conquista do tricampeonato.
Na seleção brasileira, da mesma forma que fez no Botafogo em 1957,
nas atividades clandestinas do Partido Comunista Brasileiro, Saldanha não
titubeou em escolher os profissionais mais capacitados para a composição
da comissão técnica, mesmo que alguns deles fossem claramente vincula-
dos ao regime militar. Errou apenas em não reforçar sua retaguarda com
profissionais de sua confiança pessoal.
701
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Os opositores internos, articulados a pressões externas, minavam por
todos os lados o relacionamento do técnico João Saldanha com quem quer
que fosse. O professor Lamartine Pereira da Costa é bastante claro quando,
em entrevista à Revista da PUC –RS, nº 129 , maio/junho de 2006, afirma:
Fui contatado para planejar a adaptação aos sítios de altitude no Mé-
xico. Nas Olimpíadas de 1968 pertenci a um grupo de pesquisadores na
Cidade do México e conhecia o tema. João Saldanha, que assumiu o trei-
namento da seleção antes do Zagallo, procurou-me. Pela primeira vez no
futebol brasileiro houve essa dimensão. Acredita-se muito nos jogadores
do País. Pensa-se que eles são absolutos. Naquela Seleção havia até o Pelé.
Contribuí nos aspectos da radiação solar e rarefação do ar para que a per-
formance melhorasse. Fiz algumas simulações por computador, o que não
era muito comum. Também sugeri aclimatação de 21 dias no México.
O Zagallo quis acabar com isso, mas o Saldanha disse que iria nos levar à
derrota. Ficaram com medo e mantiveram o programa. Ganhamos todos
os jogos no segundo tempo. Os jogadores falavam nas entrevistas que se
sentiram melhor. Era efeito da preparação. (COSTA, 2006, pg. 24)
Havia também a disposição do selecionado, Lamartine Pereira da
Costa, Claudio Coutinho, Chirol, Parreira, toda uma equipe voltada para
uma avaliação e planejamento da preparação física da seleção brasileira.
Antes do jogo contra a Colômbia, em Bogotá, na primeira rodada das
eliminatórias, João Saldanha, atento às ponderações de Lamartine, planeja
junto com a comissão técnica para chegar à capital colombiana três sema-
nas antes da partida. Para a adaptação à altitude. Deu certo, o time voou
em campo e venceu por 2 a 0, dois gols de Tostão.
Preparação à altitude e novos métodos de educação física dentro da
escola do professor Mauricio Rocha, pesquisador emérito vinculado ao
Centro de Educação Física do Exército no Rio de Janeiro. Vários pesqui-
sadores da área da história do futebol associam este planejamento à entrada
de Zagallo na seleção. Mas, após uma leitura rápida nos jornais da época,
para entender o que aconteceu.
Saldanha, nas pegadas de Dori Kürschner, não mediu esforços e nem
se prendeu a mesquinharias, chamando pessoas que não conhecia, por
exclusivo mérito e competência profissional. Depois dessa experiência,
em diversas ocasiões exaltou a competência de Lamartine e da comissão
técnica. Escreveu inúmeras crônicas a este respeito. A recíproca nunca foi
702
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
verdadeira. Após seu falecimento, começaram a chegar críticas de todos os
lados, inclusive de seu sucessor, Zagallo.
1.4. Trajetória de João Saldanha na seleção.
No quesito defesa, desde os primeiros amistosos, Saldanha procura
fugir da linha de quatro zagueiros, adotando o líbero flexível em contra-
posição ao líbero italiano. “Djalma Dias ou Brito podem desempenhar
essa posição”, dizia João. “Outro que é versátil e é um grande craque é o
Piazza, jogando o fino no meio campo, podendo ser escalado até de za-
gueiro plantado. No meio campo e no ataque, temos o que há de melhor
no mundo, é só esperar e ver”. (SALDANHA, 1969, pg. 09)
O primeiro amistoso no Brasil foi contra o Peru, no dia 7 de abril
de 1969, em Porto Alegre, no estádio Beira Rio. Saldanha escala o time
de feras que anunciara em sua primeira coletiva como técnico. Vitória do
Brasil por 2 a 1, gols de Jairzinho e Gérson, e um de Gallardo para o Peru.
Em 7 de abril de 1969, o jornal Folha de São Paulo circula com a matéria
“Teoria de Saldanha vai entrar em campo”, analisando o esquema tático
para os dois primeiros jogos contra o Peru. (LAURENCE, 1969, pg. 21)
O jornal mostra que a seleção formará um 4-3-3 diferenciado, fle-
xível. Na defesa, Brito atuará como “zagueiro de espera”, uma espécie
de líbero, só que sem função estática, podendo ser exercido por outro
jogador, dependendo da jogada. No meio de campo, Piazza ficará encar-
regado de dar cobertura à defesa e, quando tiver a posse de bola, terá que
encostar nos armadores Gérson e Dirceu, a não ser que um dos laterais
esteja avançando.
No ataque, Pelé vai jogar como sempre e os pontas Tostão e Jair vão
cair pelo meio em determinadas jogadas. A chave do Brasil para as elimi-
natórias apontava como adversários: Colômbia, Venezuela e Paraguai, em
jogos de ida e volta. Foram seis jogos e seis vitórias, em que o Brasil mar-
cou 23 gols e sofreu dois. Uma consagradora média de 3,83 gols a favor
e 0,33 contra, por partida. Tostão foi o artilheiro do Brasil, com dez gols.
Saldanha manteve praticamente o mesmo time durante os seis jogos
das eliminatórias. As substituições obedeceram a variações do desenvol-
vimento tático dos jogos e a pequenas contusões. Mudanças mais impor-
tantes, somente no início de 1970. O segundo jogo contra a Venezuela, no
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dia 10 de agosto, em Caracas, foi fácil: 5 a 0. Três gols de Tostão e dois de
Pelé. Nesta partida, durante o primeiro tempo, o time passeou em campo
de sapato alto. Indo para o intervalo com o placar em branco.
A diferença técnica entre as duas Seleções era muito grande, o que
apontava para uma vitória de goleada do Brasil. Só que o time não con-
seguiu se encontrar no primeiro tempo, jogou um futebol abaixo de suas
possibilidades, e por isso a expectativa de muitos gols se viu frustrada no
0 a 0 com que o jogo se encerrou no primeiro tempo. À beira do campo,
furioso com a atuação da equipe, João Saldanha esperava impaciente que
os jogadores se dirigissem ao vestiário. Quando isso aconteceu, encontra-
ram a porta fechada, as chaves estavam nas mãos de Saldanha, que foi logo
gritando: “Não vou dar instrução nenhuma. Para jogar esse futebolzinho
que vocês jogaram, nem adianta. Voltem lá e façam o que vocês sabem! ”
Os jogadores reagiram. Argumentando que precisavam beber água,
utilizar o banheiro, insistiram para Saldanha abrir o vestiário, no que o
mesmo foi enfático: “Não tem água, não tem nada! No vestiário ninguém
entra, ninguém sai até a volta.”
O time voltou direto para o campo, como confirmou o capitão Car-
los Alberto Torres em entrevista ao programa “Zico na área” da TV Es-
porte Interativo: “Ele não abriu mesmo, apesar dos pedidos. Ainda disse
que os venezuelanos não jogavam nada e que a gente tinha obrigação de
vencer por goleada.” Gerson complementou dizendo: “Pois é, fomos lá e
fizemos cinco nos caras.”164
1.5. A queda de João Saldanha
Encerradas as eliminatórias, com o Brasil classificado, no início de
1970 a seleção brasileira retoma a sua preparação. Dando continuidade
aos treinamentos para a Copa do Mundo, Saldanha dirige o time em dois
amistosos contra a Argentina. No primeiro, em 04 de março de 1970,
no Estádio Beira-Rio em Porto Alegre, a seleção brasileira esteve irreco-
nhecível, perdendo por 2 a 0. João, em declaração no dia seguinte para o
jornal O Globo, foi taxativo:
164 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=UpsqLI207Wg>. Acessado em 12
de setembro de 2019.
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Penso que a vantagem de dois gols foi normal numa partida de do-
mínio nítido. Fica secundária a maneira como os gols aconteceram. De
qualquer maneira deve ter sido grata aos torcedores brasileiros a atuação
de dois estreantes: Ado (goleiro) e Marco Antônio (lateral esquerdo), exa-
tamente em duas posições que há muito vem preocupando todos nós. O
mais importante é que eles apareceram bem, numa partida desfavorável.
Finalizando, acrescento que com 4-2-4 (que me desculpem os senhores
Abílio de Almeida, Zezé Desiderati e demais dirigentes do clube), não dá
para ganhar nem do São Cristóvão. (SALDANHA, 1970, pg. 18)
Na véspera do jogo contra a Argentina em Porto Alegre, um repórter
da então TV Gaúcha, atual RBS TV, de microfone em punho, pergunta a
Saldanha se ele sabia que o general Emilio Médici pediria a convocação de
Dario, centroavante então no Atlético-MG, ou melhor, que o Presidente
exigia a convocação de Dario. A resposta de João Saldanha se tornou uma
das maiores pérolas de todos os tempos da história do futebol nacional:
Eu e o presidente temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos,
somos gremistas, e ele não escala a seleção nem eu escalo ministério. Para
você ver como a gente se entende. (SALDANHA, 1970)165
No segundo jogo contra a Argentina no dia 08 de março de 1970,
Maracanã, vitória do Brasil por 2 a 1. Após o jogo, destacando a atuação
do time, Saldanha declarou que o Brasil vencera facilmente por 2 a 1.
Em crônica publicada no O Globo, João realçou as atuações de Brito e
Fontana, Carlos Alberto e Gérson, destacando o fato de Pelé ter jogado
debilitado por uma gripe e ainda assim, com a marca do gênio, feito um
golaço, o gol da vitória. (SALDANHA, 1970, pg. 22)
Percebendo que após a resistência na convocação de Dario, sua de-
missão era questão de dias, João aceita convite das Organizações Globo
para voltar à imprensa esportiva. Rádio, jornal e televisão. Essa decisão
motivou reações, pois o técnico quando assumira a seleção se desligou
de seus empregos na imprensa. “Quando vi que o prato estava fervendo,
e recebi o convite da Globo, não pude deixar de aceitar, pois não posso
viver sem trabalhar.” (SALDANHA, 1970, pg. 22)
Neste meio tempo, com os nervos à flor da pele devido a pressão que
faziam em cima de sua figura, pavio curto como era, mordeu a isca do
165 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=X3gRDhJYX2w>. Acessado em 12
de agosto de 2017.
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então técnico do Flamengo, o rabugento Yustrich, que o agredira verbal-
mente em diversas ocasiões pelos meios de comunicação. João, de revólver
em punho, invade a concentração do Flamengo para tomar satisfações,
sem encontrar o desafeto. (SILVA, 1970, pg. 22)
1.5.1. A miopia de Pelé: ponto final na carreira de
treinador de João Saldanha.
No início de 1970, João Saldanha afirmou, que Pelé deveria ser mío-
pe, solicitando uma ampla bateria de exames para o jogador aos médicos
da Seleção. Chegou a afirmar que em alguns lances Pelé errara por pro-
blemas de visão. O mundo caiu sobre a cabeça do técnico. É preciso nesse
ponto esclarecer outro fato, João nunca pretendeu barrar Pelé.
Segundo entrevista que deu para o programa Roda Viva da TV Cul-
tura de São Paulo,166 ao contrário do que muitos afirmam, nunca disse
que o atleta estava cego. Pretendia, apenas, melhorar a condição física do
grande craque.
Em 24 de abril de 2004, o jornal O Globo publicou uma matéria
com o título “A miopia que João Saldanha anteviu: Médicos confirmam
que Pelé tinha problema de vista. Ídolo deixa o hospital”. (FIGUEIRE-
DO, 2004, pg. 30)
Pressionado por todos os lados, João desmentiu o que havia dito so-
bre a miopia de Pelé, fez a história tomar proporções de boicote contra o
rei do futebol e forneceu ao regime o pretexto final tão desejado para sua
demissão. Afinal, era inadmissível um comunista insubordinável no co-
mando da seleção. Mas essa é uma questão menor, que vem sendo ao lon-
go dos anos utilizada como o motivo principal da demissão de Saldanha,
jogando uma cortina de fumaça nos desmandos da ditadura militar, trans-
formando Médici em simpatizante do técnico comunista, escondendo os
porões da ditadura, onde foram torturados e assassinados companheiros
e amigos de João, que mesmo na seleção, não deixou de fazer reuniões
do PCB em seu apartamento e em todas as viagens internacionais, fazia
denúncias seríssimas contra o governo brasileiro.167
166 Roda Viva (TV Cultura) – Entrevista de João Saldanha em 1988. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=fBjcJUskjRw>. Acessado dia 01 de agosto de 2019. (Entrevista)
167 Idem.
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Dia 17 de março, logo após o treino no Rio de Janeiro, Saldanha
anunciava a escalação de seu time para o próximo amistoso, desta vez con-
tra o Chile, no Morumbi. O desfecho foi o seguinte: João Havelange con-
vida toda a comissão técnica para uma reunião na sede da CBD, quando
anunciou que a comissão técnica estava dissolvida. Saldanha protestou,
“não sou sorvete para ser dissolvido, o senhor quer dizer que eu estou de-
mitido? ” (SALDANHA, 1970, pg. 18). Estava. Na verdade, apenas João
e Russo foram mandados embora, enquanto os demais foram poupados.
Após isso, publica a crônica “A fala do ministro”, no Jornal O Globo, no
dia 24 de março de 1970. (SALDANHA, 1970, pg. 19)
2. ATUAÇÃO POLÍTICA DE JOÃO SALDANHA PÓS 1970.
Em março de 1971, quando quase todo o Comitê estadual do PCB
do então estado da Guanabara já havia sido preso, Luiz Carlos Prestes,
presidente nacional da sigla clandestina, exilou-se na União das Repúbli-
cas Socialistas Soviéticas (URSS) por determinação do Comitê Central
(CC) do partido.168 Em 1973, pelas mesmas razões de segurança, um ter-
ço dos membros do CC deixou o Brasil. O Exército iniciou a Operação
Radar, visando o extermínio do Partido. (SALDANHA, 1987, pg. 217)
Em 1975, toda a Comissão Executiva do CC foi para o exílio. Neste
período, em várias ocasiões, Saldanha aproveitou as viagens ao exterior,
no exercício da profissão, para servir como elemento de ligação. (SAL-
DANHA, 1987, pg. 220) Em maio de 1978, o PCB fundou uma entidade
legal com a finalidade de apoiar as várias frentes de luta contra a ditadura
- chamou-se Centro Brasil Democrático (Cebrade), presidido por Os-
car Niemeyer. Saldanha integrou sua primeira diretoria. (SALDANHA,
1987, pg. 225)
Em julho de 1979, João atuou no famoso programa “Abertura”, da
TV Tupi. Logo na estreia, ele provocou reações ao defender a anistia, con-
quistada no mês seguinte. Os exilados não tardariam a retornar. Em outu-
bro, o Cebrade formou uma comissão de recepção que mobilizou delega-
ções do PCB de vários Estados. Saldanha foi o encarregado de organizar
o “esquema de segurança” de Prestes. Em 20 de outubro, desembarcaram
168 SALDANHA, João. Meus amigos. Rio de Janeiro: Mitavaí, 1987. Disponível em: <https://
www.ludopedio.com.br/biblioteca/meus-amigos-js/>. Acessado em 14 de outubro de 2018.
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no Galeão, procedentes de Paris, Prestes, Anita Leocádia (filha de Prestes
e Olga Benário) e Gregório Bezerra (consagrado dirigente comunista e
participante da Aliança Nacional Libertadora, ANL, durante a intentona
de 1935). Por algum tempo, Prestes residiu no apartamento de Saldanha,
na Rua Almirante Guilheme. (SALDANHA, 1987, pg. 227)
De fato, o apartamento revelou-se inadequado para servir de residên-
cia e base de atuação de um secretário-geral recém-chegado de um exílio
de oito anos e sem um centavo no bolso. Saldanha soube que havia vagado
um apartamento na Rua Francisco Otaviano, em frente ao Parque Garota
de Ipanema. Então, decidiu se mudar, mas alegou para Prestes que era
para ele ficar mais à vontade. Entretanto, em novembro, João convidou
Gregório Bezerra para morar com ele e sua mulher. (SALDANHA, 1987,
pg. 225)
Em 30 de abril de 1981, o Cebrade promoveu no Riocentro o “Show
do 1° de Maio”, de cuja organização Saldanha participou, a ditadura vinha
empreendendo ações terroristas desde janeiro de 1980. Essa escalada cul-
minou precisamente no show, quando falhou o atentado organizado pelo
DOI I. (MANNARINO, 2006, pg. 56)
O I Exército atribuiu a morte do terrorista a “um atentado terroris-
ta” da esquerda. No dia seguinte, no Campo de São Cristóvão, os sindi-
catos, com o apoio dos partidos legais (PT, PDT, PMDB e PTB)169 e de
muitas outras organizações, capitanearam o Ato do 1° de Maio. Saldanha
foi quem discursou em nome do Cebrade. 170
Em janeiro de 1985, o candidato da oposição liberal, Tancredo Ne-
ves (PMDB-PFL), derrotou Paulo Maluf (PDS) no Colégio Eleitoral. Em
fins de maio, Saldanha foi sondado pelo Comitê Central para se candida-
tar a vice-prefeito do Rio de Janeiro. Dois meses antes, ele coordenara um
ato pela legalidade do PCB, na capital paulista. (SALDANHA 1987, 205)
A possibilidade de uma atuação aberta do PCB abrira-se no princípio
de maio. Aceitou ser vice de Marcelo Cerqueira (PSB). Muitos o prefe-
riam na cabeça da chapa, mas ele já não tinha boa saúde. Saldanha con-
tribuiu para a obtenção de uma expressiva votação da Frente Democrá-
169 Democracia em preto e branco, de Pedro Asbeg. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=sxQ-6wxN308>. Acessado dia 12 de setembro de 2019. (Documentário)
170 Tancredo, a Travessia, de Miguel Barbieri Jr. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=BDmpIoadSPc>. Acessado em 12 de setembro de 2019. (Documentário).
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tica Rio (PSB-PCB-PC do B): pouco mais de 188 mil votos, ou 6,97%.
(SALDANHA, 1987, 205)
2.1. Vida não segue mais: O fim de João Saldanha
Em toda a sua carreira jornalística, Saldanha jamais adotou uma pos-
tura de neutralidade, tão inutilmente buscada por alguns jornalistas, ele
sempre defendeu o seu ponto de vista e explicitava claramente o seu po-
sicionamento. Por isso mesmo deixava muito claro que o sucesso do se-
lecionado brasileiro estaria sempre intimamente ligado à prática, até às
últimas consequências, do futebol-arte e que, mesmo sendo derrotada, a
seleção brasileira continuaria a ser uma das melhores seleções do mundo.
Só uma coisa me preocupa logo após a Copa de 82: os destinos do
futebol brasileiro. Tenho posição definida sobre o nosso futebol com vi-
tória ou com derrota. Para mim, é o mesmo. A vitória ocasionará, por
certo, uma grande euforia, mas nosso futebol não vai mudar e continuará
a ser um dos melhores do mundo. Ganhe ou perca. Claro que em caso de
derrota haverá uma certa recessão, mas depois a coisa volta a seu lugar.
(AGOSTINO, 2002, pg. 54)
Saldanha foi um verdadeiro amante do futebol. Em 1990, ano da
Copa do Mundo da Itália, ele estava com a saúde bastante fragilizada,
passou inclusive o mês de maio internado, com graves problemas respira-
tórios, no Hospital São Lucas, Rio de Janeiro. Porém, apesar dos apelos
dos médicos, amigos e da sua quinta mulher, insistiu que iria para a Itália
assistir e acompanhar mais uma Copa do Mundo. Assim o fez.
Nessa Copa, viu a Seleção Brasileira, jogando em um estilo euro-
peu, ser eliminada ainda na segunda fase da competição pela Seleção Ar-
gentina, conduzida em campo pelo genial Diego Armando Maradona.
Saldanha, apesar dos problemas de saúde, mesmo no sacrifício, ainda co-
mentou alguns jogos e participou de algumas mesas-redondas. Porém,
sua estadia na Itália foi bastante dolorosa. O próprio esforço da viagem
fez com que Saldanha agravasse sua situação respiratória (enfisema cau-
sada por uma vida de fumante) (MANNARINO, 2006, pg. 58) e ele
acabou tendo que ficar sob os cuidados do médico Franco Sebastiani,
um jovem especialista em doenças respiratórias. Dias depois de iniciar o
tratamento com o Dr. Sebastiani, a saúde de Saldanha apresentou me-
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lhoras consideráveis e ele voltou a se animar, discutir e até se indignar
com a Seleção Brasileira.
Passou a datilografar pessoalmente a sua coluna diária para os jornais
brasileiros e a participar dos programas da TV Manchete (onde trabalhava
desde 1985), além de ser visto regularmente na International Broadcasting
Center (centro de televisão que distribuia as imagens da copa para todo
o mundo). No dia 03 de julho Saldanha completou 73 anos e além de ter
participado da longa transmissão do jogo Argentina contra Itália171 ainda
esteve presente da mesa-redonda que discutiu o aquele jogo.
Saldanha parecia aparentemente recuperado, inclusive ele e os seus
colegas da Manchete festejaram a data com um bolo de aniversário. No
dia 04 de julho, acordou extremamente cansado e nem mesmo se levan-
tou da cama e, no dia 05 de julho teve que ser, mais uma e pela última vez,
internado na UTI do Hospital Santo Eugenio, em Roma, vindo a falecer
na noite de 12 de julho de 1990. (MANNARINO, 2006, pg. 59)
É possível que a paixão pelo futebol, mais que o edema, tenha mata-
do João Saldanha na noite romana de 12 de julho de 1990. Não há como
calcular o quanto mais ele teria vivido, se tivesse poupado da viagem à Itá-
lia. Mas é certo que enfrentaria infeliz, triste, frustrado, como um soldado
vencido, os dias que lhes restasse. Para ele, era vital presenciar sua décima
quarta Copa do Mundo.
A final da Copa de 90 foi disputada entre Alemanha e Argentina, a
mesma de 1986 e foi, pela primeira vez nas histórias das Copas do Mundo
que uma final se repetiria e ainda de maneira consecutiva. Porém, em
90 a sorte mudou de lado e a Alemanha acabou por se sagrar campeã do
mundo ao derrotar o selecionado platino com um gol de pênalti aos 34
minutos do segundo tempo, convertido por Brehme. Cabe ainda ressaltar
que o técnico alemão, Franz Beckenbauer, igualou naquele momento um
feito do brasileiro Zagallo, ter sido campeão do mundo como jogador e
como técnico.
171 Esse jogo foi uma das semi-finais da Copa da Itália. A seleção anfitriã foi eliminada pela
Argentina nos pênaltis. No tempo normal houve um empate em 1x1 e 0X0 na prorrogação.
Na disputa de pênaltis, os argentinos venceram por 4X3, com Goycochea, goleiro argentino,
defendendo duas cobranças dos italianos, Donadoni e Serena.
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3. CONCLUSÃO
A redução de indivíduos, potencialmente criadores, à condição de
expectadores, realça a importância do mundo visual e sonoro, de outras
formas da linguagem. Como pensava Augusto Boal, “uma forma de pen-
sar não verbal”. O futebol inclui, na pauta do cotidiano da cultura, novas
formas de linguagem: a oral, a escrita e a gestual. Porém, em sua prática a
linguagem não verbal perpassa todas as demais.
Pensado que no momento em que na sociedade contemporânea qua-
se tudo se reduz ao valor de troca, a guerra de posição adquire uma im-
portância ainda maior. Na medida em que, diante das crises das utopias
(socialismo real e neoliberalismo), vitórias parciais, grandes golpes e pe-
quenas conquistas povoam o universo da política.
A ponte entre novas formas de cultura popular, como foi o futebol no
início do século XX no Brasil, e permanece até hoje, tem nos intelectuais
orgânicos e narradores pontos de convergência para outras formas de or-
ganização do consentimento. E, como vimos, personagens João Saldanha
e, principalmente, os grandes solistas do futebol, alcançam, através de suas
atividades, este intento de abrir novos canais de diálogo político por meio
da cultura.
Portanto, é possível associar, nas conclusões desta pesquisa, que o
principal motivo para a queda de Saldanha fica claro: o futebol e seu po-
tencial de realização e sedimentação da autoestima popular com a história
e seu ensino, entendidos como instrumentos de controle social para os
presidentes militares, não toleraria Saldanha no comando. Saldanha caiu
porque não se omitiu. Saldanha caiu porque além de comunista, era a re-
presentação equânime do que esperava o povo: liberdade.
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2006. Disponível em: <https://www.ludopedio.com.br/biblioteca/
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Tancredo, a Travessia, de Miguel Barbieri Jr. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=BDmpIoadSPc>. Acessado em 12 de
setembro de 2019. (Documentário)
713
OS CONSELHOS DE POLÍTICAS
PÚBLICAS NO PERÍODO
PANDÊMICO: SEGMENTO
SANITÁRIO, EDUCACIONAL E
INFANTOJUVENIL
Marcos Vinicius de Sousa Rocha Gomes172
INTRODUÇÃO
O presente trabalho acadêmico é sobre a participação popular junto
aos conselhos de políticas públicos no atual período pandêmico que assola
o Brasil e o mundo no ano de 2020. O seu objetivo é analisar como os
conselhos e agências possibilitaram a participação, e como transcorreu as
adaptações para o formato virtual. É importante destacar que a partici-
pação institucional da população civil é um pilar basilar da democracia e
garantido pela Constituição de 1988, quando é expresso que a população
deve participar de maneira direta na forma da lei.
A pesquisa sobre a participação popular, mesmo em tempos em que
a população civil não pode participar presencialmente, é de extrema im-
portância para analisar a eficacia democrática de um país e para garantir o
controle de políticas públicas por parte da sociedade, uma vez que o arca-
bouço jurídico brasileiro em diferentes normas garante a publicidade dos
atos públicos e a participação da população na forma da lei. Garantir que
172 Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Bacharelando em Ciên-
cia Política pelo Centro Universitário Internacional
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o povo participe e colabore com o governo é garantir a normalidade de-
mocrática de um país. É digno de nota que uma parte da máquina pública
utilizava o ambiente digital para divulgação de informações.
Foram selecionados para compor essa pequena análise três segmentos
de políticas públicas: a educação, a saúde e os direitos da criança e dos ado-
lescentes. Escolheu-se a área educacional, pois a mesma é uma das áreas
mais afetadas com o período pandêmico e a mesma possui competência
comum entre os federativos. A área sanitária também é de fundamental
importância, haja vista que é o cerne da questão e teoricamente deve gerir
as diretrizes de segurança sanitária para as demais áreas e servir como ins-
trumento de assessoramento para o conjunto do Sistema Único de Saúde.
Por fim, os conselhos de direitos da criança e do adolescente se prepara-
vam para a realização da XI Conferência Nacional dos Direitos da Crian-
ça e do Adolescente, tendo que adaptar toda sua estrutura de reuniões, de
plenárias, de assembleias e pioneiramente organizar um ambiente de tal
porte digitalmente.
Para o desenvolvimento desse estudo foi utilizada a análise de docu-
mentos primários infralegais expedidos pelos órgãos em questão, como
as resoluções e pareceres dos conselhos de políticas públicas nos direitos
níveis. Também foi usado como meio de obtenção de informações o con-
junto de informações secundárias, disponíveis na referência bibliográfica,
como notícias de portais oficiais, portais de notícia e publicações de pes-
soas engajadas na política pública analisada. Através da análise dessas in-
formações foi possível fazer uma reflexão sobre a situação da participação
dos indivíduos junto a essas instituições organizadas de políticas públicas e
ter um panorama geral de como o governo se adaptou nesse período para
obter a participação popular e consolidar uma ciberdemocracia.
METODOLOGIA
Para executar o presente estudo, recorreu-se, a quatro principais
instrumentos metodológicos: 1)pesquisa bibliográfica com os principais
autores que estudam a temática da virtualização das políticas públicas;
2) observação e monitoramento dos principais portais governamentais
que são de interesse do controle social de políticas públicas; 3) seleção
de casos e notícias que ocorreram e ganharam grande repercussão dentro
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do meio público, selecionando notícias das mais variadas fontes, bem
como análise dos instrumentos supralegais expedidos pelos conselhos de
políticas públicas; 4) análise qualitativa e crítica do conjunto de dados e
notícias observadas.
1. A PARTICIPAÇÃO SOCIAL COMO PILAR DA
DEMOCRACIA E A INFORMATIZAÇÃO
Diversos cientistas políticos e acadêmicos ao longo das últimas déca-
das pesquisam e teorizam acerca da democracia contemporânea e da par-
ticipação política. No livro “Dicionário da Política” do filósofo italiano
Norberto Bobbio, o autor conceitua a participação política como:
Na terminologia corrente da Ciência Política, a expressão Participação
política é geralmente usada para designar uma variada série de atividades: o
ato do voto, a militância num partido político, a participação em manifes-
tações, a contribuição para uma agremiação política, a discussão de aconte-
cimentos políticos, a participação num comício ou numa reunião de seção,
o apoio a um determinado candidato no decorrer da campanha eleitoral, a
pressão exercida sobre um dirigente político, a difusão de informações polí-
ticas e por aí além (BOBBIO et al., 2000, 888-8;90; grifo meu).
Todavia, a depender da escola de pensamento em que o autor está
vinculado, a participação política popular recebe um grau de importância
distinto. Para os elitistas, a participação civil deve se a ter somente aos perío-
dos eleitorais, no processo de escolha dos melhores líderes173. Já os autores da
teoria democrática participativa defendem que a participação da população
é uma engrenagem do sistema democrático de extrema importância, con-
tudo, os autores dessa corrente de pensamento defendem que a população
só participará efetivamente caso haja o sentimento de que suas opiniões são
levadas em consideração no processo de formulação de políticas públicas.
Nas últimas décadas, sobretudo no momento após ditadura civil-mi-
litar de 1964, a participação civil entrou em voga em diferentes cenários da
sociedade brasileira, como em movimentos sociais e nas instituições estatais
173 Tal pensamento da teoria elitista da democracia, é no mínimo questionável, uma vez
que, segundo um dos principais signatários Schumpeter, a população não está preparada
para intervir diretamente no sistema político, mas está preparada para eleger os melhores
líderes.
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brasileiras. Os legisladores deram grande importância à participação popu-
lar no ordenamento jurídico brasileiro, instituindo direitos e garantias. Foi
garantido mecanismos como a criação de Conselhos Consultivos e outros
instrumentos de participação direta da sociedade civil organizada.
Logo, no Brasil adotou-se um sistema político semelhante ao modelo
democrático participativo, onde há a criação de espaços de participação
popular na formulação, implementação e fiscalização de políticas públi-
cas. Resumidamente, criou-se nas últimas décadas espaços permanentes e
temporários para a participação popular, como os Conselhos Consultivos
de Políticas Públicas, onde a sociedade civil organizada ocupa assentos, e
a população civil organizada e o povo em geral pode acompanhar as reu-
niões, plenárias e assembleias. No âmbito legislativo, nos últimos períodos
houve a efetivação de consultas populares e audiências públicas para ouvir
os diferentes atores que serão afetados com a criação ou revogação de de-
terminada norma jurídica.
Por fim, a informatização e a presença digital do governo entrou em
voga com a ascensão da Internet. Nos últimos períodos debateu-se bas-
tante acerca da relação entre o governo e o povo pelas vias digitais. Pois
segundo Spinelli (p.20,2015), a informatização traz consigo “uma possi-
bilidade se aperfeiçoar as práticas democráticas, sobretudo no que se refere
ao provimento de informações e em relação às oportunidades de parti-
cipação”. Nas últimas décadas percebeu-se uma enorme movimentação
da máquina pública em oferecer as informações das contas públicas por
meio dos portais de transparência, após a Lei de Acesso à Informação. Mas
pouco se foi feito, com exceção do Poder Legislativo nacional, em relação
a participação e ao engajamento popular de forma direta, construindo e
opinando sobre as políticas públicas.
2. A PARTICIPAÇÃO CIVIL NOS CONSELHOS DE
POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS
2.1. O CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
O Conselho Nacional de Educação – CNE – é um importante ins-
trumento de controle social das políticas sociais, mas é também um im-
portante órgão deliberativo acerca da temática. Nesse período pandêmico,
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o CNE ocupou um importante espaço na normatização das diretrizes e
da produção de orientações infralegais para as secretárias de educação es-
taduais e as instituições de ensino federal, uma vez que o Ministério da
Educação – MEC – agiu de maneira discreta e paliativa no período em
que estivemos em isolamento social.
No parecer em que o CNE elaborou uma série de recomendações e
diretrizes, o CNE recomenda que no eixo da avaliação da situação edu-
cacional no âmbito nacional e estadual, os entes “considerem as ações de
reorganização dos calendários de cada sistema de ensino antes de realizar o
estabelecimento dos novos cronogramas das avaliações em larga escala de
alcance nacional ou estadual. É importante garantir uma avaliação equili-
brada dos estudantes em função das diferentes situações que serão enfren-
tadas em cada sistema de ensino, assegurando as mesmas oportunidades
a todos que participam das avaliações em âmbitos municipal, estadual e
nacional”(grifo meu). Decisão importantíssima, pois considera e orienta
que os estudantes secundaristas e universitários sejam considerados para a
avaliação das atividades escolares e para a formulação de políticas públicas
educacionais nesse período pandêmico. É válido mencionar que para a
construção das recomendações e diretrizes foram ouvidas entidades que
atuam na área, como o Fórum dos Conselhos Estaduais e a União Nacio-
nal dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME). Ainda houve a
possibilidade da participação da sociedade civil não organizada através de
uma consulta pública.
O CNE ainda possibilita a participação da sociedade civil através da
reunião de conselheiros do CNE com indivíduos através de um agenda-
mento no próprio site. Através dessa reunião individualizada, a população
civil organizada ou não, pode apresentar o conjunto de suas demandas
para os conselheiros para que os mesmos possam apresentar nas reuniões,
plenárias e audiências. Desse modo, mesmo que de forma não presen-
cial, o povo conseguiu ter acesso direto a esse importante instrumento de
participação política apartidário. Segue o formulário para a solicitação de
reunião, um modelo pouco burocrático:
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Figura 1 – Formulário de solicitação de reunião com conselheiros do CNE
Fonte: http://portal.mec.gov.br/ (captura realizada no dia 10 de outubro de 2020)
É válido destacar que o CNE fez consulta pública acerca das princi-
pais temáticas discutidas durante o período pandêmico do coranavírus. As
consultas foram sobre: Reorganização dos Calendários Escolares – Pan-
demia da COVID-19, Diretrizes Operacionais para Qualidade das Es-
colas Quilombolas, Diretrizes Operacionais para Qualidade das Escolas
Indígenas, Regulamentação da Pedagogia da Alternância, Diretrizes para
a Educação Bilíngue, entre outras, como as audiências públicas sobre Di-
reito, Medicina e Educação Especial.
2.2. O CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DO
CEARÁ
O Conselho Estadual de Educação do estado do Ceará – CEE-CE,
atuou no período pandêmico principalmente através da divulgação das
orientações do CNE, e a divulgação das decisões deliberadas pelo conjun-
to dos conselheiros estaduais. Contudo, pouco ação se teve para inserir a
comunidade escolar e a sociedade civil organizada no conjunto dos deba-
tes que trataram sobre as orientações e diretrizes para as secretárias muni-
cipais de educação e para as instituições de ensino vinculadas ao governo
do estado do Ceará.
A participação do povo ou das organizações da sociedade civil so-
mente é possibilitada – de forma mais direta – através de todo o processo
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burocrático, comumente, usado em períodos de normalidade. Para ser
solicitado uma informação ou requerer alguma ação sobre determinada
situação, é necessário que o indivíduo ou instituição solicite através de
um ofício direcionado ao CEE-CE. Tal processo dificulta a participação
da população civil junto a esse importante instrumento deliberativo, con-
sultivo e normativo. Também é digno de nota, que no site oficial do su-
pracitado conselho não foi possível, no período compreendido de março
de 2020 a outubro de 2020, localizar nenhuma informação acerca nem de
eventuais reuniões com a participação pública, nem consultas públicas e
muito menos de audiências públicas com os atores interessados na temáti-
ca educacionais, estudantes, pais e professores.
Contudo, no dia 23 de setembro de 2020, entidades estudantis e la-
borais, como a União Estadual dos Estudantes, a União Estudantil de For-
taleza, a Associação Cearense dos Estudantes Secundaristas – ACES e o
Sindicato dos Servidores da Secretária de Educação do Estado do Ceará
– APEOC, reuniram-se com a secretária de educação do estado e alguns
integrantes do CEE-CE, fazendo ecoar as vozes dos diferentes atores da
comunidade escolar, mesmo tendo que passar por toda a morosidade do
processo burocrático, com a solicitação de reunião por meio de ofício,
passo esse muito importante para a consolidação da democracia educa-
cional e para o controle de políticas públicas por parte da sociedade civil
organizada.
2.3. CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE
FORTALEZA
O Conselho Municipal de Educação de Fortaleza – CME Fortaleza,
atuou minimamente durante o período pandêmico na capital cearense.
Não se tem notícias públicas acerca de eventos, consultas públicas, au-
diências ou até orientações para a participação da sociedade civil enquanto
ouvintes nas reuniões do supracitado conselho. A última resolução pu-
blicizada do CME Fortaleza foi no dia 2 de abril de 2020, data essa que
completou mais de seis meses quando o dia de encerramento da presente
pesquisa. Logo, houve pouco esforço do CME e da Secretária Municipal
de Educação de Fortaleza de realizar um debate sobre a situação com di-
ferentes integrantes das instituições de ensino, como os estudantes secun-
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daristas, os professores, os pais e responsáveis, os funcionários das escolas
e a quem mais pudesse interessar o teor das ações do referido conselho.
2.4. CONSELHO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE
CAUCAIA
O Conselho Municipal de Educação de Caucaia – CMEC – atuou
de forma mínima, igual ao CME Fortaleza. O CMEC não disponibilizou
em suas mídias sociais nenhuma informação acerca do calendário de reu-
niões do referido conselho, inviabilizando a participação popular em um
período anterior da deliberação. Contudo, o mesmo possibilitou o aten-
dimento a população por meio de diferentes mídias sociais, como “Wha-
tsApp”, telefones e e-mail, conforme nota pública do próprio conselho.
Essa atitude de disponibilização de meios alternativos para comunicação
era para ser uma regra para a estrutura administrativa, uma vez que o canal
de diálogo com a população não pode ser findado por completo. Ademais,
as informações deviam ser disponibilizadas sem a prévia solicitação, como
preconiza a Lei n° 12.527, Lei de Acesso à Informação, através do artigo
3, inciso II: “divulgação de informações de interesse público, indepen-
dentemente de solicitações;”
3. A PARTICIPAÇÃO CIVIL NOS CONSELHOS DE
POLÍTICAS PÚBLICAS SANITÁRIAS: O CONSELHO
NACIONAL DE SAÚDE
O Conselho Nacional de Saúde – CNS – é órgão colegiado, deli-
berativo e permanente do Sistema Único de Saúde – SUS – e faz parte
da estrutura organizacional do Ministério da Saúde. Durante o período
pandêmico, o CNS ocupou um espaço de destaque e de vanguarda na
tratativa das orientações e diretrizes do SUS, agindo com destaque frente
ao negacionismo científico de setores do Ministério da Saúde e de setores
do Governo Bolsonaro.
O CNS tem tratado com seriedade e transparência com a atuação
do mesmo, divulgando amplamente o calendário de reuniões, divulgan-
do previamente a pauta que tratará a referida reunião agenda. Com essa
divulgação sem morosidade e de fácil acesso ao portal oficial, é possível
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que o povo ou organizações da sociedade civil organizada consultem, e se
necessário, entrem em contato com conselheiros ou enviando até mesmo
ponderações que devem ser feitas naquela temática. É necessário ressal-
tar que o CNS é um instrumento de controle social de políticas, pois
contém dentro da composição do conselho, representantes da sociedade
civil, contudo, tais entidades representadas possuem uma atuação na área
sanitária e baseiam sua atuação em um conhecimento notório e técnico.
Também é importante destacar a parceria entre a Fundação Oswal-
do Cruz - FIOCRUZ - e o CNS. A FIOCRUZ fez uma série de le-
vantamentos com a população para traçar o perfil das pessoas afetadas e
compreender a questão social, para assim elaborar uma pesquisa técnica
alicerçada na realidade social do povo. A Fiocruz também fez uma pes-
quisa virtual para analisar os efeitos que o isolamento social fez sobre as
crianças, adolescentes e jovens, pesquisa essa que contribuiu para funda-
mentar decisões do Conselho Nacional da Juventude, Conselho Nacional
da Educação e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e dos Adoles-
centes. Ademais, é importante rememorar que o assessoramento técnico é
de extrema importância para a construção de políticas públicas eficientes
e o controle social dar-se através do espaço de escuta entre o povo e as
instituições pesquisadoras, coordenadoras e deliberativas.
O SUS, em conjunto com a CNS, criou o portal de dados interativos
sobre o COVID no Brasil. Segundo descrição do próprio site, ele tem
como objetivo fornecer “informações estratégicas e conheça tudo sobre a
COVID-19 de forma transparente e analítica.”. Tal divulgação de infor-
mações é de extrema importância, até mesmo que é obrigatório a divul-
gação de dados de entes que manejam a coisa pública. Nesse contexto, as
pessoas que desejassem conhecer acerca do avanço da pandemia em nosso
país, tinha diversos meios de obter acesso a esses dados, fosse por meio do
portal coronavírus Brasil, seja pelo SUS analítico. Desse modo, o CNS
faz cumprir o artigo 10 do Regimento Interno do CNS, inciso IX, que
define como uma das competências do CNS: “fortalecer a participação e
o controle social no SUS.”.
É importante ressaltar a postura combativa e de vanguarda que o
Conselho Nacional de Saúde assumiu em defesa do SUS durante esse pe-
ríodo pandêmico. O CNS conclama a população a pressionar o Congresso
Nacional por meio de uma petição virtual, tendo em vista que o Congres-
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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so Nacional está pautando a Emenda Constitucional 95/2016, emenda
essa que retorna o congelamento de gastos para a Saúde. No site oficial
do CNS, o mesmo anuncia “não podemos permitir, pois aprofundam o
desfinanciamento progressivo do direito à saúde garantido na Constitui-
ção Federal de 1988.”. Essa mobilização por meio de uma petição perpassa
os meios de participação cidadão usual, uma vez que chama a população
civil para se juntar ao CNS para pressionar o Congresso Nacional e fazer
valer o controle social do SUS, como preconiza o próprio regimento do
CNS. Vale destacar que o CNS ainda faz uma constante divulgação em
seus portais oficiais:
Figura 2 – Banner no site do CNS
Fonte: http://conselho.saude.gov.br/ (captura realizada no dia 10 de outubro de 2020)
Outrossim, o CNS atuou, novamente, na vanguarda em defesa do
SUS, elaborando uma carta direcionada a população e aos candidatos ao
pleito eleitoral dos municípios de 2020, o CNS conclama “que a popu-
lação só dedique seu voto aos que tiverem comprometimento real com
as pautas que seguem.”. Tal chamada é de extrema importância e vai ao
encontro das competências do CNS, uma vez que o mesmo é um impor-
tante instrumento para a garantia de um sistema de saúde universal, plural,
democrático e eficiente. Tal nota somada a iniciativa da petição pública,
demonstra o real interesse do CNS em somar a população junto as temá-
ticas de interesse da saúde pública. Inclusive, o mesmo atua não somente
através do chamado a população a pressionar o Congresso Nacional, mas
também move uma ação no Supremo Tribunal Federal que pede a decla-
ração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 95/2016 que
provoca um verdadeiro desmonte no orçamento sanitário brasileiro. Ao
final da carta, o CNS ainda faz um chamado: “o CNS conclama as(os)
elegíveis a se comprometerem com o SUS, ainda mais neste momento de
desfinanciamento em meio a uma pandemia, que vem mudando a histó-
ria da humanidade. Os impactos desta situação ainda serão descobertos e
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os cuidados com a saúde passam por valorizar o SUS e proteger a vida.”.
Tudo isso demonstra uma série de tentativas de aproximar as massas do
Controle Social de Políticas Públicas.
Figura 3 – Banner da nota pública no site do CNS
Fonte: http://conselho.saude.gov.br/ (captura realizada no dia 10 de outubro de 2020)
4. A PARTICIPAÇÃO CIVIL NOS CONSELHOS
DE POLÍTICAS PÚBLICAS DA INFÂNCIA E DA
ADOLESCÊNCIA: O CASO DO CONSELHO NACIONAL
DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente –
CONANDA – é um conselho consultivo, deliberativo e responsável pelo
Fundo Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Após o em-
possamento do atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, o
referido conselho, em conjunto com outros conselhos, sofreu uma série
de ataques e desmontes por parte do poder executivo, através de resolu-
ções. Para o corrente ano estava previsto a realização da XI Conferência
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – XI CNDCA – em
formato presencial, inclusive já havia ocorrido as etapas municipais, regio-
nais e estaduais.
É digno de destaque que o CONANDA tem um portal digital de
participação dos adolescentes, o “Participa Adolescente”. Segundo o pró-
prio site: “A plataforma digital é uma iniciativa conjunta do CONANDA
e do governo federal para ampliar a participação na defesa de direitos das
crianças e adolescentes. Nela é possível propor e votar em ideias em con-
versas criadas pelo Comitê de Participação do Adolescentes - CPA, bem
como se engajar em grupos de debate sobre temas específicos, que servi-
rão para ampliar o contato entre participantes e construir ações coletivas.”
Contudo, tal plataforma pouco foi utilizada no corrente ano para inserir
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os adolescentes e a população civil junto ao CONANDA. É um típico
exemplo de que pode-se criar meios para a participação, mas pouco se vale
se não houver uma ampla divulgação e esforços para a implementação.
Contudo, após um conjunto de reuniões e a realização da assembleia
geral ocorrida no segundo semestre do ano de 2020, os conselheiros do
CONANDA deliberaram que a XI CNDCA fosse realizada em formato
digital, em meio a pandemia. Tal decisão foi vista como negativa por parte
da sociedade civil organizada e pelos adolescentes que atuam na área, uma
vez que o formato virtual poderia reduzir a participação, principalmente,
dos adolescentes, uma vez que ainda há resquícios do adultocentrismo na
nossa sociedade. Na assembleia geral ocorrida no segundo semestre, os
adolescentes do Comitê de Participação dos Adolescentes – CPA – parti-
ciparam de forma mínima, haja vista que houve uma série de dificuldades
com a questão da infraestrutura física e de rede, culminando na dificul-
dade até mesmo dos adolescentes falarem, como é assegurado o direito
através da resolução 217/2017 do CONANDA. Ademais, foi inobservado
o artigo 28 do Regimento Interno do CONANDA que diz “II - elabo-
rar a pauta das reuniões ordinárias e extraordinárias a partir de insumos
trazidos pelos Conselheiros, pelos membros do Comité de Participação
de Adolescente (CPA), pelas Comissões Permanentes e Pelos Grupos
Temáticos;”, tal dispositivo descumprido, pois não houve a inserção do
representante do CPA na mesa diretora, prejudicando o pareamento dos
adolescentes e dos conselheiros instituídos.
É valido destacar que nesse período pandêmico, uma parte dos con-
selheiros em conjunto com a sociedade civil organizada propôs uma ação
de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, denun-
ciando o desmonte iniciado através do Decreto Federal nº 9.759/2019,
que extingue e cria regras pouco democráticas para o funcionamento de
conselhos na administração pública federal. Outrossim, uma parte dos in-
tegrantes do Comitê de Participação dos Adolescentes solicitou ao Mi-
nistério Público Federal a instauração de um inquérito civil que a apure
a negligência do CONANDA e do Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos junto aos adolescentes. Uma vez que segundo
o Estatuto da Criança e do Adolescentes, os indivíduos com idade infe-
rior aos dezoito anos tem prioridade absoluta na formulação de políti-
cas públicas. Em adição, o CONANDA convocou, no dia 30 de setem-
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bro, por meio do edital 0001/2020, em conformidade com o art. 4°, II,
da Resolução nº 191 de 7 de junho de 2017, as entidades do Sistema de
Garantia de Direitos da Criança e Adolescente a indicarem adolescen-
tes para a escolha de novos integrantes do Comitê de Participação dos
Adolescentes. Todo esse processo foi realizado por meio de um ambiente
virtual, pelo qual as Organizações da Sociedade Civil enviam a documen-
tação e o trâmite de escolha também ocorre de forma remota e digital.
CONCLUSÃO
Ao longo da análise das notícias, pesquisas e normas supralegais,
pode-se observar uma enorme diferença entre os conselhos de políticas
públicas a depender do ente federativo e da política pública a que está
afeto. No caso do controle social de políticas educacionais, percebeu-se
uma atuação forte do Conselho Nacional de Educação na construção de
orientações e diretrizes para as secretarias de educação e instituições de
ensino, houve também a possibilidade de avaliação das propostas antes de
serem discutidas pelo conjunto de conselheiros, também houve a possi-
bilidade de agendar reuniões individuais com os conselheiros instituídos.
Já no Conselho Estadual de Educação do Ceará houve bem menos ações,
tendo a concentração das ações nas informações e diretrizes informadas
pelo CNE. Já no Conselho Municipal de Educação de Caucaia e Fortale-
za houve pouquíssimas ações, resumindo-se em edição de resoluções que
orientam de modo genérico as atividades da educação básica. Contudo,
pouco se teve na relação de diálogo entre os CME's e o povo, não foi di-
vulgado o calendário de reuniões, pautas e atividades internas.
Outrossim, o Conselho Nacional de Saúde assumiu uma posição de
destaque no controle de políticas públicas e orientação ao Sistema Único
de Saúde. Pode-se perceber um largo esforço em oferecer o máximo de
informações possíveis para o conjunto da população, oferecendo diferen-
tes meios de acesso às informações, inclusive com portais interativos. O
CMS também divulgou, de modo transparente, o calendário de reuniões
e atividades do referido conselho. Além disso, ainda buscou-se estabelecer
um intenso diálogo com a população, inclusive com a criação de uma pe-
tição online com convite do povo para juntar esforços junto ao conselho
para pressionar o Congresso Nacional contra a pec 95/2017 que estabelece
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cortes no sistema único de saúde, além de desestabilizar o conjunto do
SUS, uma vez que haverá uma redução do orçamento com o tempo. É
válido destacar que o CNS conseguiu reunir mais de 600 mil pessoas na
defesa do SUS. Ainda houve a edição de uma nota conclamando os can-
didatos a prefeito e vereadores a agirem em defesa do SUS e pedindo uma
atenção em algumas políticas públicas sanitárias. Por fim, o CNS solicitou
ao Supremo Tribunal Federal a sua inserção como amicus curiae nas ações
de direta de inconstitucionalidades 5715, 5658 e 5680.
Ademais, o CONANDA também teve uma atuação relevante na
temática da infância e da adolescência. Apesar de ter pouco inserido as
crianças e os adolescentes em suas reuniões, percebeu-se um esforço de
convocar os integrantes do Comitê de Participação dos Adolescentes,
mesmo não fazendo cumprir o direito dos adolescentes comporem a mesa
diretora, direito esse garantido pelo próprio regimento interno do referido
do conselho como na resolução 191/2017 do CONANDA. Além disso,
percebeu-se uma movimentação nas vias judiciais pela estabilização do
conselho, uma vez que o mesmo sofreu uma grande desestruturalização
do governo federal, com a revogação de mandatos e com a redução da
autonomia financeira. Também houve a deliberação da realização da XI
CNDCA no formato digital, pioneirismo na realização de conferências
dos Direitos da Criança e do Adolescente, é importante salientar que tal
decisão teve repúdio por parte de organizações da sociedade civil, mas
possibilitou um aceno da realização de eventos que promovam o diálogo
com a população no formato digital, rompendo com a antiga prática de
somente oferecer informações no ambiente digital e não estabelecer espa-
ços de escuta da população. Por fim, o CONANDA convocou as entida-
des não governamentais a indicarem adolescentes para os novos membros
do Comitê de Participação dos Adolescentes, seleção essa que ocorrerá
totalmente em formato digital.
Em suma, percebeu-se um grande esforço, principalmente das organi-
zações não governamentais que compõem os conselhos de políticas públicas.
Tais entidades não mediram esforços para planejar e efetivar ações concre-
tas nos conselhos. O CNS como órgão consultivo e deliberativo no Sistema
Único de Saúde ocupou um espaço de vanguarda e destaque diante todo o
cenário pandêmico em que se vive. Contudo, o conjunto de conselhos e ór-
gãos públicos precisam agir, ainda mais, para expandir a participação popular
727
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
por meios digitais, oferecendo um maior número de informações, consultas
públicas e até mesmo reuniões que possibilitem o povo questionar, propor e
fazer um controle social efetivo junto a máquina pública.
Por fim, conclui-se, com base nas informações analisadas, que é
necessário a inserção de novos instrumentos e métodos digitais para a
aproximação dos conselhos de políticas públicas da população em geral,
fazendo com que a população participe de forma mais direta, obtendo
informações e sugerindo proposições para os conselhos, dessa maneira,
os conselhos de políticas públicas conseguirão realizar um controle de
políticas sociais, alinhado-se com o povo que acessa as mídias digitais,
expandindo quantitativamente o número de indivíduos. Contudo, nesse
ínterim é urgente e necessário que se avalie as condições dos usuários di-
gitais de acessar tais mecanismos.
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730
A DEMANDA E ATUAÇÃO DAS
ENTIDADES DE REPRESENTAÇÃO
DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS
FEDERAIS NA COMISSÃO DE
LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA.
Thiago Gonçalves do Carmo174
INTRODUÇÃO
A análise da atuação de grupos de pressões no Poder Legislativo, no
processo de elaboração de leis e de políticas públicas de têm sido objetos
de inúmeros trabalhos acadêmicos no mundo. No Brasil não é diferen-
te, o nosso legislativo, principalmente o Congresso Nacional, também é
objetivo de centenas de trabalhos acadêmicos, seja pela natureza do nosso
sistema de democracia representativa.
Para BONAVIDES (2003):
Os grupos de pressão, segundo J. H. Kaiser, são organizações da
esfera intermediária entre o indivíduo e o Estado, nas quais um
interesse se incorporou e se tornou politicamente relevante. Ou
são grupos que procuram fazer com que as decisões dos poderes
públicos sejam conformes aos interesses e as ideias de uma deter-
minada categoria social.
174 Graduado em Ciência Política pelo Centro Universitário Do Distrito Federal. Graduando
em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.
731
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Para TOLEDO (1985), citado por ZAMPIERI (2003), os objeti-
vos dos grupos de pressão são de influírem no processo decisório, agindo
primordialmente na decisão política, variando algumas opiniões quanto
à extensão dessa influência e quanto à forma sobre a qual ela é exercida.
A democracia representativa ou semidireta, presente no nosso orde-
nado constitucional, é definida na própria Constituição Federal de 1988
(CF/88), no texto do Artigo 1º, Parágrafo único que traz:
Art. 1º, Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos ter-
mos desta Constituição.
No decorrer do texto da CF/88, no Artigo 14, traz definido alguns
mecanismos de exercício direto da soberania popular que são:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal
e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos ter-
mos da lei, mediante:
I – plebiscito;
II – referendo;
III – iniciativa popular.
Mesmo diante de um sistema de democracia representativa, que há
realização de eleições regulares e periódicas, dos vários mecanismos dire-
tos de participação popular no processo político, o Brasil e outros países
que adotam esse sistema de democracia, vem enfrentando uma crescente
crise de representatividade por parte da população com o sistema políti-
co, podendo isso ser facilmente verificado pelo aumento dos índices de
abstenções de comparecimento nos processos eleitorais. Nesse contexto,
nasceu no ano de 2011, dentro da Câmara dos Deputados, a Comissão de
legislação Participativa (CLP).
A Comissão de Legislativa Participativa (CLP) constitui-se como um
mecanismo importante no qual a sociedade pode atuar diretamente no
processo legislativo, e consequentemente, no próprio processo democrá-
tico. Por meio dela, organizações não-governamentais (ONGs), associa-
ções e órgãos de classe, sindicatos, entidades da sociedade civil - exceto
732
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
partidos políticos, órgãos e entidades de administração direta e indireta
(desde que tenham participação paritária da sociedade civil).
Através da Sugestão Legislativa (SUG) podem ser propostas suges-
tões de: Sugestões de Projeto de Lei Complementar; Sugestão de Projeto
de Lei Ordinária, Sugestão de Projeto de Decreto Legislativo; Sugestão
de Projeto de Resolução da Câmara dos Deputados; Sugestão de Proje-
to de Consolidação; Sugestão de Requerimento; Sugestão de Indicação;
Sugestão de Emenda; Sugestão de Proposta de Emenda à Constituição;
Sugestão de Requerimento de Convocação; Sugestão de Requerimento
de Criação de Comissão Parlamentar de Inquérito. Todas essas formas
sugestões seguem de acordo com os ordenamentos jurídicos que regem o
processo legislativo no âmbito federal, no tocante a temática das matérias,
área de atuação, limites de legislação, dentre outros aspectos legais.
Desde sua criação, A CLP recebeu 920 Sugestões Legislativas das
quais 136 encontram-se em tramitação e o restante, 784, tiveram a trami-
tação encerrada, conforme informação disponível no endereço eletrônico
de busca da Câmara dos Deputados.
No tocante a análise realizada por este trabalho, será considerado as
sugestões legislativas que visem criar, alterar ou extinguir leis, solicitar
a realização de audiência e seminário, apresentadas no período de fun-
cionamento da 55º legislatura no Congresso Nacional (01/02/2015 a
17/07/2018), propostas por entidades175 de representação de funcionário
público em sentido lato sensu, abrangendo desse modo servidores públicos
civis e militares, empregados públicos e agentes políticos (membros da
Magistratura e do Ministério Público).
No período que compreende a abrangência de análise deste trabalho
foram apresentadas 162 sugestões legislativas176, sendo 28 por entidades de
representação de funcionários públicos.
Tendo como objetivo analisar a demanda e atuação direta das asso-
ciações de funcionários públicos federais, como grupos de pressão, na
175 O termo entidade de representação foi usado neste trabalho como forma de designar
as seguintes organizações de representação de funcionários públicos: Associação, Federa-
ção, Sindicato, Confederação.
176 As pesquisas das Sugestões Legislativas usadas nesta pesquisa, foram realizadas usando
o endereço eletrônico da Câmara dos Deputados, aba Atividade Legislativa, Projetos de lei e
outras preposições, pesquisa avançada.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Comissão de Legislação Participativa na Câmara dos Deputados na atual
legislatura (2015-2018), essa atuação dar-se por meio da sugestão legislati-
va apresentadas na Comissão e resposta institucional dada pelos parlamen-
tares aos projetos apresentados.
A pesquisa tem a pretensão de analisar qualitativamente as sugestões
apresentadas visando obter uma compreensão de como se dar a atuação
e os objetivos requeridos, considerando apenas as que propõem criar ou
alterar legislação e que solicitam audiências públicas
Metodologia de Pesquisa
Para SARTORI (1981): “Não há ciência propriamente dita sem mé-
todo científico”.
A metodologia científica constitui-se como a núcleo central de qual-
quer pesquisa científica independente da área de conhecimento.
Gil (2002) define a pesquisa científica como procedimento racional e
sistemático que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas
que são propostos. Sendo desenvolvida por meio de inúmeras fases, com
base no conhecimento científico disponível e a utilização dos procedi-
mentos técnicos existentes, abrangendo desde a formulação do problema
até conclusão dos resultados.
Tendo como base que os conceitos descritos, a utilização correta do
método científico e da metodologia de pesquisa faz-se necessário para a
qualquer pesquisa acadêmica a ser realizada, não importando se esta trata-
-se de pesquisa na área de ciências exatas, ou de ciências humanas ou de
ciências da saúde.
Para esse trabalho, tendo em vista a necessidade de analisar os docu-
mentos e dados presentes do endereço eletrônico da Câmara dos Deputa-
dos, principalmente na página da Comissão. Nesse contexto, essa pesqui-
sa dar-se na forma de uma pesquisa documental.
Segundo Gil (2008), a pesquisa documental utiliza de materiais que
não tiveram nenhum tratamento ou refinamento de dados no nível analí-
tico. Possuindo certa semelhança com a pesquisa bibliográfica, mas dife-
renciando essencialmente na das fontes.
Na realização da pesquisa, serão utilizadas técnicas de análise qualita-
tiva e quantitativa dos dados disponibilizados nas páginas eletrônico e nos
textos das sugestões legislativas.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
1. Referencial Teórico
O Poder legislativa brasileiro desde sua criação é alvo da atuação de
grupos de pressão na defesa dos seus interesses, conforme o trabalho de
Mário Augusto Santos (1991), citado por ARAÇÃO (1996), no qual ana-
lisa a atuação da Associação Comercial da Bahia (ACB), provavelmente a
mais antiga em atividade no país — funcionando desde 1811 —, aponta
diversos casos em que a entidade atuou em defesa dos interesses de seus
associados perante o Congresso Nacional da Primeira República.
Em seu trabalho sobre a atuação de grupos de pressão na Constituinte
de 1988 e processos de Revisão e Reforma Constitucional na década de
90, ARAGÃO (1996), destaque certos pontos importantes ao analisar a
atuação de grupos de pressão e interesses na Constituinte de 88. Havendo
a atuação de mais de 400 grupos de pressão e interesse oriundos de diver-
sos setores (trabalhadores, empresários, governo e demais setores da socie-
dade), tais grupos muitos decorrentes da intensa organização de interesses
por meio de associações civis decorrentes da década de 70, como forma
alternativa ao maior controle estatal sobre os sindicatos. Destaque que
nesse processo, a agenda constitucional tinha característica ampla e irres-
trita, tais grupos usavam a seu favor um variado número de instrumentos
e táticas perante os parlamentares constituintes, tais como manifestações
públicas, audiências, anúncios na mídia entre outros. Tal atuação, ocorreu
da mesma forma na década de 90, quando chegou os processos de Revisão
Constitucional e de Reforma Constitucional.
FARHAT (2003), citado por OLIVEIRA (2004), ao analisar esse pe-
ríodo, por sua vez constatou que na Constituinte havia mais lobistas do
que congressistas durante os debates da Assembleia Constituinte Nacio-
nal. Nesse período a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados credenciou
383 grupos de pressão e entidades atuantes na defesa de interesses.
Por fim, ARAGÃO (1996) conclui que: 1) A participação de gru-
pos de pressão nos processos constitucionais recentes é algo expressivo,
de fácil identificação e verificação; 2) O grosso da sociedade tem pouco
interesse e participação no debate de questões nacionais, enquanto o setor
organizado tem participação ativa no processo decisório; 3) O Congresso
Nacional do Brasil, entre todo os do América do Sul, é o mais submetido
às pressões de grupos de pressão; 4) Devido essa falta de mobilização da
maioria da população, o governa torna-se o mais forte grupo de pressão.
735
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Para ARAGÃO (1994), citado por ZAMPIERI (2003), a ação dos
grupos de pressão é realizada com mais facilidade durante essa fase deci-
sória da comissão permanente, pois é o momento de apresentar ao relator
o posicionamento dos grupos sob determinada proposição. Essa atividade
de pressão é concretizada por meio da elaboração de justificativas sob a
forma de petições, memoriais ou pareceres que são empregados junto aos
deputados federais, na tentativa de adequar o texto da proposição aos in-
teresses defendidos pelos grupos de pressão
Por sua vez, ZAMPIERI (2003), ao estudar a atuação de grupos de
pressão focou-se a análise deste no processo decisório das Comissões Per-
manentes do Congresso Nacional, tendo como base os modelos distribu-
tivista, informacional e partidário; chegou à conclusão que grupos agem
como mecanismo de diminuição das incertezas dos parlamentares sobre
os assuntos debatidos ao diminuírem os conflitos entre os membros das
comissões, tomando-se uma ferramenta necessária no processo decisório
e auxiliando na construções das políticas públicas ao Estado e a sociedade
brasileira.
Com base nas conclusões apresentadas por outros pesquisadores em
trabalhos anteriores, ao analisarem a atuação de grupos de pressões diver-
sos, em momentos históricos ou em contextos diferentes, essa pesquisa
analisar a atuação de associações de servidores e empregados, por meio
das sugestões legislativas na Comissão de Legislação participativa, visando
obter uma visão dos objetivos requeridos e da dinâmica de funcionamento
da Comissão na distribuição das materiais para deputados atuarem como
relator.
1.1 Análise
Antes de entrar na análise propriamente dita das Sugestões Legislati-
vas, tocante a resumir de forma breve e sucinta o processo legislativo.
Ao ser encaminhada e recebida a sugestão legislativa na Comissão
de Legislação Participativa, será realizada a numeração e identificação dos
dados contido no texto, após isso será designado, pela presidência da Co-
missão, de um parlamentar membro para ser o relator da proposição. Esse
deputado relator ficará responsável pela elaboração do parecer da propo-
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
sição, podendo ser pela aprovação – na forma do texto, ou com emenda
– ou pela rejeição.
No parecer, caso seja pela aprovação o parecer, o relator deverá pro-
mover a adequação do texto apresentação na forma da lei, conforme as
técnicas legislativas vigentes, sendo aprovada em votação no plenário da
comissão, a sugestão legislativa é transformada projeto de lei e será conti-
nuada a tramitação legislativa, conforme normas da Câmara dos Deputa-
dos e Congresso Nacional.
Caso o parecer for pela rejeição, sendo aprovada em votação pela Co-
missão, a sugestão será rejeitada e arquivada.
Se a sugestão legislativa aprovada for para sugerir a realização de au-
diência pública, seminário ou ciclo de debates, será marcado a data do
evento e liberados a lista de convidados e ou o cronograma.
1.1.1 Dos Projetos Apresentados
No período de análise teve trabalho, de 01/02/2015 à 17/07/2018,
foram apresentados na CLP 162 SUGs, sendo 28 oriundas de entidades
representativas de funcionários públicos num sentido lato sensu. Para a
análise desse trabalho será considerada apenas 27, pois SUG nº 58/2016,
da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), foi solicita-
da a retirada de tramitação pelo próprio autor e arquivada pela Comissão.
Na análise dos dados será feita por partes, separando os dados em te-
mas específicos com base nos pontos presentes na tramitação legislativa177
que possuem maior relevância.
1.1.2 O Autor da Sugestão Legislativa
O primeiro quesito análise é o autor da Sugestão Legislativa, nesse
tópico de estudo foi realizado a divisão entre Poderes da União (Poder
177 Os dados referentes ao status da tramitação da Sugestão Legislativa (em trâmite, aguar-
dando parecer, esperando deliberação na Comissão), parlamentar designado relator, parti-
do do relator, teor do parecer (favorável ou contrário), foram retirados dos dados disponí-
veis na página de acompanhamento do projeto de lei, no site da Câmara dos Deputados, até
a data de 27 de novembro de 2018. Devido a dinâmica da Câmara dos deputados, podem
ocorrer mudanças em tais informações.
737
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Legislativo, Poder Executivo e o Poder Judiciário) e a Defensoria Pública
da União.
Nessa classificação, houve a maior prevalência de matérias propostas
por entidades ligadas funcionários públicos do Poder Executivo, que pro-
puseram 20 de sugestões legislativas, do Poder Judiciário foram propostas
3, do Poder Legislativo 2 e pela Defensoria Pública foram 2 matérias.
Dentro do Poder Executivo pode ser realizada outra classificação, essa
foi de acordo com o Regime Jurídico que rege os funcionários da entidade
representativa. Nesse ponto, podem ser classificadas em: Celetistas para os
regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), estatutários para
os que são regidos pela Lei 8.112/1992 e militar aos que são regidos pelo
Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/1980).
Sendo que nesse quesito, houve, por sua, houve a prevalência de su-
gestões apresentadas por regime Celetistas apresentaram, seguidos pelo
regime Estatutário, e, em último regime Militar.
O maior número de sugestões legislativas oriundas de entidades re-
presentativas ligadas ao Poder Executivo, e consequentemente aos Cele-
tistas, pode ser explicado por dois fatores: o primeiro fator é que o Execu-
tivo possuem um maior número funcionários públicos, de carreiras e de
órgãos públicos, assim, possuem, logo uma maior quantidade de entidades
que podem propor sugestões; o segundo fator é que no sistema político
brasileiro sindicatos sempre possuíram atuação e influência no processo
decisório dentro do Legislativo, isso pode ser compreendido pelo fato que
o surgimento de alguns partidos no Brasil estão ligados diretamente a luta
dos movimentos sindicais, ou que um número considerável de políticos
são oriundos de sindicatos ou associações de trabalhadores.
1.1.3 Do Tipo de Matéria Apresentada
No tipo de matéria apresentada na sugestão, foram apresentados 10
projetos de lei, 14 solicitações de realização de audiência pública, 2 soli-
citações de realização de seminários e 1 solicitação de ciclo de debates.
Dentro dos projetos de lei, foram encaminhados 8 destinadas a alterar Lei
Ordinário por meio da sugestão de proposta de lei ordinária (PL), e 2
visam criar ou alterar o texto Constituição Federal de 1998 por meio da
sugestão de Proposta de Emenda Constitucional (PEC)
738
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
No quesito tipo de matéria houve a preferência de sugestão para a
realização de audiência pública. Isso pode ser explicado devido a audiência
pública permitir a realização de debates públicos, no qual são convidados
especialistas de diversas áreas e setores da sociedade civil para discutir so-
bre qualquer tema ou assunto, podendo até ser realizado sobre outros pro-
jetos de lei em tramitação nas casas do Congresso Nacional, ou Portaria
ou Decreto emitido por outro órgão público.
Isso é comprovado pelo encaminhado da SUG n.º 81/2016, do Sin-
dicato dos Servidores Públicos Federais no Distrito Federal (SINDSEP-
-DF) - Coordenação da Seção Sindical de Base INCRA/DF/Sede, que
solicitava a realização de Audiência Pública para que sejam debatidos os
efeitos da Portaria Normativa n.º 5, de 31 de agosto, do Ministério do
Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPOG); ou ainda, da SUG
n.º 158/2018, da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais
(ANADEF), que, por sua vez, solicita audiência pública para debater mu-
danças no texto da Emenda Constitucional n.º 95/2016.
Outro ponto percebido na análise foi que em alguns casos a entidade
propunha uma sugestão para realizar audiência pública ou seminário, e em
seguida encaminha uma sugestão para criar uma lei ou modificar uma lei
existente. Nesse caso, pode-se citar dois exemplos: o primeiro do envio
da SUG n.º 19/2015, da Federação Nacional dos Policiais Federais (FE-
NAPEF), que sugere a realização de seminário sobre assédio moral, e logo
em seguida enviou a SUG n.º 30/2018, sugerindo a criação de projeto de
lei que trata do assédio moral nas relações de trabalho no Serviço Públi-
co Federal; ou o segundo o encaminhamento da SUG n.º 158/2018, da
Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF), que
sugere a realização de audiência pública para debater mudanças no texto
da Emenda Constitucional n.º 95/2016, e em seguida protocolou a SUG
n.º 159/2018, que sugere Proposta de Emenda Constitucional para alterar
o texto da Emenda Constitucional n.º 95/2016.
1.1.4 Interesse da Sugestão
Outro ponto abordado neste trabalho, é de que a sugestão legislativa
enviada trata de matéria ou tema diretamente ligado a área de atuação do
órgão ou empresa pública, da carreira do funcionário público da entida-
739
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
de representativa que a enviou. Para tal análise, foi realizado a leitura da
ementa, do interior teor do texto e da justificativa apresentava, para ser
realizado o procedimento.
Nesse tópico, nota-se que das 27 sugestões apresentadas, 19 possuem
ligação direta com a entidade que a apresentou; e 8 não possuem ligação
direta, se tratando de sugestão que afetam áreas ou atividades gerais.
O maior número de sugestões na área de interesse da entidade repre-
sentativa, era algo já esperado. Uma vez que o objetivo da Comissão de
Legislação Participativa é ser um mecanismo de aproximação e participa-
ção da sociedade civil com o processo legislativo.
Essa conclusão pode ser constatadas pela SUG n.º 42/2015, da As-
sociação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), que propunha a criação
de Projeto de Lei que dispõe sobre a manutenção de proteção policial aos
integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Órgãos de
Segurança Pública; ou ainda pelas SUGs n.º 119,120,121,122 e 130 de
2018, da Associação dos Funcionários do Banco do Nordeste do Brasil
(AFBNB), que sugere a realização de audiências públicas ligadas ao tema
do desenvolvimento e desigualdade regional.
1.1.5 Do Relator e Parecer
A escolha do relator da matéria e, posteriormente, a formulação do
parecer, constituem a fase mais importante e crítica do processo legislativo
para qualquer projeto de lei em tramitação.
O relator é quem, em tese, possui maior poder dentre os membros da
comissão, uma vez que ele é quem no relatório pode expressar o voto pela
aprovação ou pela rejeição da proposta legislativa.
Nesse ponto, independente de qual seja comissão ou a Casa Legisla-
tiva, a atuação do grupo de pressão é limitada. Normalmente tal ação fica
restrita ao contato com um parlamentar que tenha alinhamento com a te-
mática da matéria ou com o grupão de interesse, e este solicitar a relatório
do projeto para si.
Ao analisar as sugestões constata-se que das 27 sugestões, todas pos-
suem relator definido pela Mesa da Comissão. A maior designação foi
para parlamentares membros de partidos de esquerda do que ligado aos
centro ou de direita, sendo que o Partido Democrático Trabalhista (PDT)
74 0
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ficou 7 relatorias, o Partido dos Trabalhadores (PT) ficou com 6 relato-
rias, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) ficou com 5 relatorias, o
Partido Republicano (PR) ficou com 5 relatorias, o Partido Socialismo e
Liberdade (PSOL) ficou 3 relatorias e o Movimento Democrático Brasi-
leiro (MDB) ficou apenas com 1 relatoria.
Ao comparar o número de relatoria por parlamentar, nota-se houve
uma divergência, os dois deputados com maior relatoria, Deputado Chico
Lopes (PCdoB) e Deputado Lincon Portela (PR), ambos com 5 sugestões
para relatoria, pertencem a partidos de espectro político distintos e perfil
socioeconômico diferentes.
O Deputado Chico Lopes membro do PSOL, um partido de esquer-
da, tendo como profissão de professor e auditor-fiscal; o Deputado Lin-
con Portela membro do PR, um partido de centro-direita, tendo como
profissão de radialista, apresentador de televisão, conferencista e pastor
evangélico.
Por sua vez, a formulação do parecer pelo relator é um dos pontos
mais críticos da tramitação de projetos de lei.
Nesse ponto, o grupo de pressão demanda da sugestão atua fornecen-
do materiais – notas técnicas, petições, laudos, relatórios entre outros – ou
ainda solicitando reuniões e ou visitas ao relator, para que assim possam
influenciar e auxiliar na construção do parecer de acordo com seu interesse.
Nesse ponto da tramitação, dependendo da matéria, um ou mais gru-
pos de pressões podem atuar sobre o relator, cada um com posicionamen-
tos divergentes sobre o tema.
Ao analisar as sugestões legislativas apresentadas, 27 sugestões apre-
sentadas, 21 tiveram pareceres emitidos pelos relatores, e desde 20 foram
pareceres favoráveis
A alta taxa de pareceres favoráveis das sugestões legislativas na Co-
missão de Legislação Participativa, pode ser explicado por dois eixos. O
primeiro que as sugestões apresentadas são na sua grande maioria na área
de atuação da entidade que a propôs, esse fato reduz o número de grupos
de pressões que podem ter interesse de atuar sobre o relator no momen-
to de elaboração do parecer; e ainda devida o número elevado sugestões
que sugerem a realização de audiências públicas, que permite que até os
grupos contrários àquela temática podem participar e expressarem seus
pontos de vistas.
74 1
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
1.1.6 O Situação da Tramitação
A fase final da tramitação da Sugestão Legislativa dentro da Comissão
de Legislação Participativa, será analisado a relação de processos em trâmi-
te e da aprovação ou rejeição.
Nesse ponto, das 27 sugestões analisadas; 19 encontram-se com o
trâmite encerrado, sendo que 18 foram aprovadas e 1 rejeitada; das 8 que
estão em trâmite, 7 encontrasse aguardando o parecer do relator e um 1
aguardando a votação na Comissão.
Nesse ponto analisado mostra que as Sugestões Legislativas oriundas
de grupo de representação de funcionários públicos, independente do Po-
der da União ou do regime jurídico os regem, possuem uma grande taxa
de aprovação na sua tramitação na Comissão de Legislação Participativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo buscou analisar de forma sucinta a demanda e a atuação das
entidades de representação de funcionários públicos dentro da Comissão
de Legislação Participativa, dentro de um determinado período de tempo,
e o sucesso que obtêm como grupo de pressão no processo legislativo.
A comissão Legislação Participativa já está consolidada dentro estru-
tura da Câmara dos Deputados, e a Sugestão Legislativa tornou-se um
mecanismo de participação e atuação direta da sociedade civil processo
legislativo.
Ao se analisar apenas a quantidade de sugestões legislativas apre-
sentadas, independentes do autor, desde a sua criação da Comissão
com o número de projetos de leis - nesse caso apenas projetos de leis
ordinárias - apresentados nesse período proposto apenas por deputa-
dos, percebe-se o número de sugestões apresentadas é extremamente
pequena e do ponto de vista estatístico desprezível, conforme expresso
no gráfico n.º 2.
O baixo uso da sugestão legislativas por entidades da sociedade civil,
e consequentemente, por entidades de representação de servidores públi-
cos, mesmo estas possuindo uma alta taxa de aprovação leva a formular
três linhas de raciocínio e conclusão.
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A primeira linha de pensamento leva a considerar que as entidades da
sociedade civil que possuem capacidade em usar a sugestão, não a fazem
por desconhecem sua existência e a alta taxa de sucesso.
A segunda linha, por sua vez, leva à conclusão que mesmo conhecen-
do tais informações, não fazem uso por considerar uma ferramenta pouco
prática, uma vez que a sugestão legislativa para criar ou alterar uma lei
precisa ser aprovada na Comissão para possa tramitar nas outras comissões
como proposta de lei. Nessa linha, as entidades preferem agir por intermé-
dio de um parlamentar na proposição de alguma matéria de seu interesse.
A terceira linha leve a considerar que a principal falta de interesse por
parte das entidades de representação de funcionários públicos seja impos-
sibilidade de propor uma SUG que vise aumenta a remuneração da sua
categoria, uma vez que a iniciativa desse tipo de preposição legislativa é
competência exclusiva, conforme expressa na CF/88.
Na perspetiva da democracia participativa, percebe-se que em am-
bas as casas do Congresso Nacional, Câmara dos Deputados e Senado
Federal, existem vários mecanismos que visam permite a participação da
sociedade civil no processo legislativo e político.
Sendo que o próprio Senado Federal possui sua própria versão da Co-
missão de Legislação Participativa e de Sugestão Legislativa178, além de
realizar audiências públicas interativas com a possibilidade da participação
digital do público, pesquisas de opiniões sobre projetos de lei em trami-
tação.
Essa experiência nas casas do Congresso Nacional inspirou a criação
de comissões de legislação participativa e da sugestão legislativas nas As-
sembleias Legislativas e Câmara dos Vereadores pelo Brasil. Atualmente
as Assembleia Legislativa dos seguintes Acre, Assembleia Legislativa de
Alagoas, Assembleia Legislativa do Amazonas, Assembleia Legislativa de
Goiás, Assembleia Legislativa do Maranhão, Assembleia Legislativa de
Mato Grosso do Sul, Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Assembleia
178 A Comissão de Legislação Participativa no Senado Federal, foi criada dentro da Comis-
são de Direitos Humanas e Legislação Participativa (CDH), sendo que nela a sugestão pode
ser apresentar por qualquer cidadão, sendo necessário para sua tramitação que a sugestão
receba um número x de votos num determinado período de tempo. Caso ocorra isso, a Su-
gestão é encaminhada a tramitação, seguindo as normas estipuladas no Regimento Interno
do Senado Federal (RISF).
74 3
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Legislativa da Paraíba, Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, As-
sembleia Legislativa de Santa Catarina, Assembleia Legislativa de Sergipe,
Assembleia Legislativa de São Paulo e as principais Câmara Municipal de
Belém/PA, Câmara Municipal de Belo Horizonte/MG, Câmara Muni-
cipal de Curitiba/PR, Câmara Municipal de Goiânia/GO, Câmara Mu-
nicipal de João Pessoa/PB, Câmara Municipal de Manaus/AM, Câmara
Municipal de Natal/RN, Câmara Municipal de São Luís/MA, Câmara
Municipal de São Paulo/SP, Câmara Municipal de Teresina/PI possuem
na sua estrutura a Comissão de Legislação Participativa.
Isso serve para provar que de certa forma, os parlamentares e o Poder
Legislativo, estão cientes da crise de representatividade da população geral
com o sistema político brasileiro e formularam alguns mecanismos que
permitem a maior participação no trabalho por eles desempenhados, mes-
mo que esta ocorra de forma tímida pela sociedade civil.
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dos, 2013.
74 5
O ABUSO DE PODER RELIGIOSO NA
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL
Raíssa Paula Martins179
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vem se debru-
çando sobre a figura do abuso de poder religioso. A temática foi tratada
no Recurso Ordinário n. 265308, em 2017; no Recurso Ordinário n.
537004, em 2018; e, mais recentemente, no Recurso Especial Eleitoral n.
8285, em 2020.
O assunto ganhou proeminência na Corte ao mesmo tempo em que
a presença evangélica avançou no território brasileiro. Segundo dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o referido segmento é o que
mais cresceu no Brasil no período intercensitário. De 26,2 milhões de
pessoas, em 2000, o grupo passou a contar com 42,3 milhões, em 2010,
passando de 15,4% da população brasileira para 22,2% (IBGE, 2012).
Pesquisa Datafolha realizada em 2020, por sua vez, indicou que os evan-
gélicos chegaram à porcentagem de 31% da população brasileira (G1,
2020), havendo, ainda, estudos de demografia que indicam a tendência de
que os evangélicos ultrapassem a quantidade de católicos no ano de 2032
(ZYLBERKAN, 2020).
179 Pós-graduada em Curso de Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Uni-
versidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Ári-
do. Advogada.
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Essa expansão naturalmente se refletiu, também, na seara política, re-
sultando num crescimento significativo da bancada evangélica no Con-
gresso Nacional. Atualmente, há 107 deputados federais evangélicos e 15
senadores, o que corresponde, respectivamente, a 21% da Câmara dos
Deputados e 18,5% do Senado (BALLOUSSIER, 2020). Observe-se
que, em ambos os casos, as cifras são inferiores à porcentagem de evangé-
licos que compõe a população brasileira. Ainda assim, o cenário exposto
tem suscitado debates sobre a presença dos religiosos na esfera pública,
sobretudo a respeito dos limites de atuação dos líderes eclesiásticos duran-
te as campanhas políticas, pois se questiona o quanto a influência dessas
autoridades impacta o equilíbrio e a normalidade do pleito.
Nesse contexto, surge a proposta de regulamentação da figura do
abuso de poder religioso, apreciada recentemente pelo TSE no Recurso
Especial Eleitoral n. 8285. No presente trabalho, partiremos de uma pes-
quisa teórica, bibliográfica e documental, utilizando doutrina jurídica e a
legislação pátria, para aferir se o referido julgado se amolda aos preceitos
constitucionais da laicidade estatal e da liberdade religiosa.
1. ABUSO DE PODER NO CONTEXTO ELEITORAL
A regulamentação do abuso de poder religioso demanda a análise das
hipóteses de abuso já regulamentadas no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, desenvolveremos neste tópico elucidações iniciais acerca de
conceitos básicos para este debate, introduzindo, a seguir, os argumentos
desenvolvidos no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral em julgamentos
anteriores ao Recurso Especial Eleitoral n. 8285, os quais impulsionaram
as reflexões sobre o abuso de poder religioso.
1.1. Noções conceituais introdutórias
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)
prevê o estabelecimento de casos de inelegibilidade em lei complementar,
de modo a se proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exer-
cício do mandato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a in-
fluência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou
emprego na Administração Pública, conforme fixa seu art. 14, § 9º.
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Como decorrência, foi editada a Lei Complementar n. 64/1990, na
qual são instituídas hipóteses de inelegibilidade, sendo previstas, dentre
elas, as circunstâncias em que configurados os abusos de poder político180,
econômico ou dos meios de comunicação (art. 1º, inciso I, alínea ‘d’, c/c
art. 22, inciso XIV, da LC n. 64/1990). O uso, por si só, da influência
política, de recursos econômicos ou dos meios de comunicação não repre-
senta uma ilicitude eleitoral. O combate, quando existente, volta-se para
os casos em que configurados abusos. Quanto a isso, tendência recente
manifesta na seara jurídica tem dado cada vez mais relevo à concepção de
função social, de modo que o gozo de direitos deve ser norteado não por
interesses egoístas, mas pela persecução de fins legítimos que se harmoni-
zem com os interesses da coletividade (GOMES, 2015). Nesse contexto,
o abuso de poder, na seara eleitoral, teria lugar quando identificada a má
utilização de recursos motivada pelo intuito de interferir no curso do cer-
tame eleitoral (GOMES, 2015).
O gênero “abuso de poder” abrange espécies previstas na legislação,
como os já mencionados abuso de poder econômico, abuso de poder po-
lítico e o abuso dos meios de comunicação. No caso do abuso de poder
econômico, é o modo como os recursos financeiros são utilizados que
desequilibra o pleito eleitoral. O abuso de poder político, por sua vez, é
identificado pela jurisprudência do TSE quando o agente público “(...)
valendo-se de sua condição funcional e em manifesto desvio de finali-
dade, compromete a igualdade da disputa e a legitimidade do pleito em
benefício de sua candidatura ou de terceiros (...)” (BRASIL, 2014, online).
Sobre isso, José Jairo (2015, p. 262) explica que “é intuitivo que a má-
quina administrativa não possa ser colocada a serviço de candidaturas no
processo eleitoral, já que isso desvirtuaria completamente a ação estatal,
além de desequilibrar o pleito (...) e fustigar o princípio republicano”. No
tocante à utilização indevida dos meios de comunicação, entende-se que
se configura nas hipóteses em que há desrespeito às normas da propaganda
eleitoral, com nítido benefício a candidato ou partido, ou quando há uti-
lização do veículo em tempo ou ambiente vedados (MEDEIROS, 2017).
Quando se fala de abuso de poder, tais são as hipóteses postas pelo or-
denamento brasileiro, seja na Constituição, seja na Lei Complementar n.
180 No art. 22, inciso XIV, a lei menciona o abuso de poder de autoridade.
74 8
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64/1990, não havendo menção à figura do abuso de poder religioso. Como
surge, então, o debate sobre essa espécie de abuso no cenário jurídico? A
celeuma é eminentemente jurisprudencial, conforme veremos a seguir.
1.2. Abuso de poder religioso em debate no Tribunal
Superior Eleitoral
Em 2017, no Recurso Ordinário n. 2653, de relatoria do Ministro
Henrique Neves da Silva, o TSE firmou o entendimento de que não há
previsão referente ao abuso de poder religioso nem na Constituição nem
na legislação eleitoral. Na ocasião, ainda que a Corte tenha sustentado
que a liberdade religiosa não implica em prerrogativas ilimitadas para os
ministros eclesiásticos e para os fiéis, foi assentado o entendimento de que
as restrições aplicáveis aos religiosos devem ser aquelas dispostas em lei,
inexistindo previsão legal relativa ao abuso de poder religioso como fi-
gura autônoma (BRASIL, 2017). Por tais razões, a análise do Tribunal
se voltou para a aferição da ocorrência de abuso de poder econômico ou
uso indevido dos meios de comunicação, evidenciando que, não obstante
inexista abuso de poder religioso, não se eximem os pertencentes a uma
confissão de fé da observância das regras contidas na legislação eleitoral.
No ano seguinte, no bojo do Recurso Ordinário n. 5370, relatado pela
Ministra Rosa Weber, o Tribunal analisou outro caso relacionado aos limi-
tes de interação entre fé e política. Na época, a Corte deu indícios da pos-
sibilidade de mudança do entendimento expresso no RO n. 2653, embora
não tenha sacramentado a alteração. Na ementa, afirmou-se tais termos:
A utilização do discurso religioso como elemento propulsor de can-
didaturas, infundindo a orientação política adotada por líderes religiosos
– personagens centrais carismáticos que exercem fascinação e imprimem
confiança em seus seguidores –, a tutelar a escolha política dos fiéis, indu-
zindo o voto não somente pela consciência pública, mas, primordialmen-
te, pelo temor reverencial, não se coaduna com a própria laicidade que
informa o Estado brasileiro (BRASIL, 2018, online).
Observe-se que, distintamente do ocorrido no RO n. 5370, não
houve menção aos limites postos pela legislação eleitoral à atividade de
líderes religiosos como únicos parâmetros capazes de restringir a atuação
dos ministros. Na verdade, a ênfase se voltou à influência exercida por
74 9
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eles, falando-se, por exemplo, em temor reverencial e em indução de voto.
Aqui, temos uma tendência de desvinculação dos parâmetros legais e de
progressiva valorização de elementos interpretativos. Nessa linha, ainda
no referido julgado, destaca-se que “a modificação do prisma histórico-
-social em que se concretiza a aplicação da norma torna imperiosa uma
releitura do conceito de ‘autoridade’” (BRASIL, 2018, online, grifo nos-
so). O intuito manifestado era de que o conceito de abuso de autorida-
de tomasse novo significado, passando a abranger, assim, não somente a
autoridade pública, mas, também, a autoridade religiosa. Não obstante
tais considerações, a Corte entendeu, naquele momento, por solucionar a
controvérsia voltando o juízo apenas para a ocorrência de abuso de poder
econômico, sem definir os contornos do abuso de poder religioso.
Em 2020, o Ministro Fachin, Relator do Recurso Especial Eleitoral
n. 8285, propôs à Corte que se analisasse a viabilidade do exame do abuso
de poder religioso nas ações de investigação judicial eleitoral. Antes de
passar ao debate instalado no REspe n. 8285, importa tecer algumas con-
siderações a respeito da laicidade estatal e da liberdade religiosa.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A LAICIDADE ESTATAL E A
LIBERDADE RELIGIOSA
A controvérsia referente ao abuso de poder religioso guarda algumas
interfaces com as noções de laicidade estatal e liberdade religiosa, visto
que lida diretamente com a influência exercida pelos líderes eclesiásticos
por meio de manifestações e discursos relativos a questões políticas. As-
sim, importa averiguar se o modelo de laicidade adotado no Brasil afasta
ou garante a presença religiosa na esfera pública, especialmente, na seara
eleitoral e se os limites pretendidos por meio da instituição do abuso de
poder religioso se compatibilizam com a liberdade religiosa.
2.1. Laicidade estatal na conjuntura brasileira
A perspectiva de um Estado laico figurou na maior parte das Consti-
tuições brasileiras, constando no ordenamento jurídico pela primeira vez
através do Decreto 119-A/1890, que estabeleceu às autoridades públicas a
proibição de estabelecer, vedar ou criar distinções entre os habitantes do
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
país por motivos religiosos. Depois disso, todas as Constituições seguintes
passaram a conter previsões semelhantes. A Constituição de 1934 inovou
na temática ao permitir, de modo expresso, a colaboração em prol do in-
teresse coletivo (art. 17, inciso III). A mudança não foi preservada no texto
constitucional de 1937, tornando a aparecer na Constituição de 1946, de
1967 e, hodiernamente, na Carta de 1988. No texto atual, o princípio da
laicidade aparece estampado no art. 19, inciso I, por meio do qual se veda:
“estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes
o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de
dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de inte-
resse público” (BRASIL, 1988, online).
Do exposto acima, é possível extrair algumas conclusões. Primeira-
mente, temos a laicidade como uma tradição do ordenamento jurídico
brasileiro. Em segundo lugar, há mais de 70 anos, temos a admissão da
colaboração de interesse público entre a Administração e as igrejas.
A aceitação e, mais do que isso, a garantia de que colaborações entre
entidades estatais e eclesiásticas podem ser firmadas nos conferem alguns
indícios sobre a natureza da laicidade adotada no território brasileiro. Por
ocasião do julgamento da ADI 4439, o Ministro Gilmar Mendes elucidou
que “ser um Estado laico não significa que o Estado é antirreligioso, só
que há separação entre Clero e Estado e que não há adoção de uma reli-
gião oficial” (BRASIL, 2017, online). Assim, o que temos no Brasil não se
configura como um laicismo, contexto no qual se produz um ambiente de
“hostilidade diante da religião” e se “tende a resvalar para posições auto-
ritárias, de restrição a liberdades religiosas individuais” (CNMP, 2014, p.
22). Prevalece em nosso país a perspectiva de laicidade, na qual o Estado
não assume tarefas religiosas, mantendo-se neutro, sem, todavia, obstruir
o reconhecimento do papel da crença e de suas manifestações (MIRAN-
DA, 2013). Nessa conjuntura, aceita-se “a influência das igrejas na vida
pública, contanto que esta influência seja decorrente de seu autônomo
peso social e não de privilégios concedidos pelo Estado” (ZANONE,
1998, p. 673).
Quanto a isso, no RO n. 5370, mesmo havendo inclinação da Corte
pela admissão da figura do abuso de poder religioso, houve a ressalva ex-
pressa de que “a influência da religião na política e, na linha inversa, da
política na religião, é via de mão dupla que se retroalimenta, reconheci-
751
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
damente indissociável em diversas culturas” (BRASIL, 2018, online). Ou
seja, a consagração de um Estado laico não implica numa vedação absoluta
à interação entre fé e política. Em sentido semelhante, o Ministro Fachin,
no seu voto prolatado no REspe n. 8285, ainda que favorável à constitui-
ção do abuso de poder religioso, expressamente salientou que a laicidade
não elimina o aspecto religioso da experiência política:
Dentro dessa perspectiva, a Constituição da República concebe uma
forma de organização política que, a despeito de ser ideológica e religio-
samente neutra, será sempre uma organização embalada pelo princípio de
absorção do pensamento variado. Como consectário, a impossibilidade de
assunção de uma crença oficial por parte das instituições públicas, somada
à proibição da intolerância e da imposição de discriminações ou privilé-
gios instituídos em razões religiosas não acarretam, como consequência,
que as deliberações pré-políticas estejam depuradas de leituras espiritua-
lizadas a respeito dos grandes dilemas coletivos (BRASIL, 2020a, online,
grifo nosso).
Portanto, longe de termos um Estado que se posiciona de modo hos-
til perante manifestações religiosas, o que se vislumbra é a possibilidade de
interação entre as duas esferas, inclusive no âmbito dos debates públicos.
2.2. A proteção à liberdade religiosa
A proteção à liberdade religiosa é imprescindível quando há preten-
sões de salvaguarda do pluralismo e do regime democrático. Conforme
assevera Alexandre de Moraes (2012, p. 147), “o constrangimento à pessoa
humana de forma a renunciar sua fé representa o desrespeito à diversidade
democrática de ideias, filosofias e a própria diversidade espiritual”. Diante
da importância basilar do exercício da religiosidade, a proteção à liberdade
de consciência e de crença foi mencionada, desde cedo, nas Constituições
brasileiras, ainda que, em alguns contextos, com avanços a conquistar.
A liberdade religiosa começou a ser prevista no âmbito constitucional
pátrio, ainda de modo incipiente, na Carta de 1824. O art. 179, inciso V,
previu que ninguém poderia ser perseguido por motivo de religião, sendo
necessário, no entanto, respeitar a religião oficial e não ofender a moral
pública. Depois disso, a Constituição de 1891 permitiu o livre exercício
de culto (art. 72, § 3º), direito mantido até a Carta de 1988, na qual se
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firma que: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo as-
segurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da
lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, inciso VI).
No âmbito internacional, a liberdade religiosa encontra guarida em diplo-
mas como a Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948 (art. 18),
o Pacto dos Direitos Civis e Políticos/1966 (art. 18), o Pacto de San José
da Costa Rica/1969 (art. 12) e a Convenção Europeia de Direitos Huma-
nos/1950 (art. 9º).
Importa salientar que a tutela desse direito não tem como enfoque uni-
camente a possibilidade de mudança de religião. Nesse sentido, a Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos, de 1948, dispôs, no art. 18, que:
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência
e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e
a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática,
pelo culto e pela observância, em público ou em particular (ONU, 1948,
online).
Logo, constatamos que a liberdade religiosa também abrange mani-
festações de espiritualidade que vão além do âmbito da consciência, como
o ensino, o discurso, a prática e o culto, em público ou em particular.
Assim, inclusive, entendeu o Tribunal Europeu de Direitos Humanos
(TEDH) no caso Kokkinakis v. Grécia, relativo ao exercício do proselitis-
mo religioso, assentando que “a liberdade religiosa é primariamente uma
questão de consciência individual”, mas “também implica, dentre outros
aspectos, na liberdade de manifestar a própria religião” (EUROPA, 1993,
online). Na mesma linha, José Afonso da Silva (2014, p. 251) explica que a
crença vai além de mero sentimento, pois, “ao lado de um corpo de dou-
trina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto,
com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidades aos hábitos, às
tradições, na forma indicada pela religião escolhida”.
Ademais, no julgado do TEDH citado, reconheceu-se a liberdade
de consciência e de crença como “(...) um dos elementos mais vitais que
compõem a identidade dos crentes e suas concepções de vida”, ao passo
que também é “um bem precioso para ateus, agnósticos, céticos e indife-
rentes” (EUROPA, 1993, online). Silva Junior (2019, p. 62) explica que a
fé “trata-se de algo que mexe com o mais íntimo do ser humano, que faz
parte da sua constituição enquanto indivíduo”. Estamos diante, portanto,
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de um aspecto identitário, conectado ao âmago do indivíduo. Por isso, fa-
lar de abuso de poder religioso e de eventuais sanções às práticas e discur-
sos de ordem espiritual demanda uma série de cautelas, de forma que não
se tolha ou restrinja indevidamente elemento central da pessoa humana.
3. O ABUSO DE PODER RELIGIOSO EM DIÁLOGO COM
A LAICIDADE ESTATAL E A LIBERDADE RELIGIOSA
Inserir no debate a proteção constitucional à laicidade e à liberdade
religiosa não deve se confundir com um intuito de isentar as instituições
eclesiásticas e seus líderes de quaisquer espécies de restrições durante o
pleito eleitoral. Na verdade, tais preceitos são trazidos para o diálogo com
a finalidade de que, a partir deles, tenhamos balizas para a delimitação dos
limites a serem aplicados aos religiosos em meio ao contexto de campanha
política, conforme desenvolveremos a seguir.
3.1. Restrições à liberdade religiosa no contexto
eleitoral expressamente previstas no ordenamento
jurídico brasileiro
No Informativo n. 960, do STF, asseverou-se que “os direitos funda-
mentais não podem servir como escudo protetivo à prática de atividades
ilícitas, de atividades criminosas” (BRASIL, 2019, online). Não se pre-
tende, portanto, utilizar a liberdade religiosa como escudo para justificar
ilegalidades no campo político. Assim, realçaremos neste tópico as veda-
ções constantes na legislação vigente aplicáveis aos religiosos no contexto
eleitoral.
Primeiramente, cumpre mencionar que, nos termos do disposto no
art. 24, inciso VIII, da Lei n. 9.504/1997, veda-se a partidos e candida-
tos o recebimento de doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, in-
clusive por meio de publicidade, procedente de entidades beneficentes e
religiosas. A lei retrocitada também proíbe a utilização de bens de uso
comum para fins de propaganda eleitoral, o que abrange os templos re-
ligiosos, conforme seu § 4º do art. 37. A respeito disso, o TSE, de modo
elucidativo, trouxe, na decisão prolatada no RO n. 2653, que a prote-
ção à liberdade religiosa “não atinge situações em que o culto religioso é
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transformado em ato ostensivo ou indireto de propaganda eleitoral, com
pedido de voto em favor dos candidatos” (BRASIL, 2017, p. 9). Adicio-
ne-se, ainda, que as igrejas e seus líderes não se eximem de se afastarem de
condutas que configurem abuso de poder político, de poder econômico e
de uso indevido dos meios de comunicação. Essa compreensão restou ex-
pressamente prevista no julgamento do RO n. 2653, em vista da aptidão
que tais abusos possuem para desequilibrar o pleito, afetando sua norma-
lidade e legitimidade.
No tocante à aplicação de tais restrições não há grandes divergên-
cias, uma vez que constam na legislação eleitoral. As controvérsias surgem
quando se fala sobre a ampliação do campo de abrangência do abuso de
poder político para que se contemplem, nas autoridades por ele previs-
tas, aquelas de natureza religiosa. O tema é problemático em virtude da
ausência de disposição legal nesse sentido, demandando-se a admissão de
um alargamento do significado do texto da lei e, até mesmo, da Consti-
tuição por meio de mecanismos interpretativos. Sobre isso, discorreremos
a seguir.
3.2. Proposta de criação da figura do abuso de poder
religioso e a posição firmada no REspe 8285
No tópico 1 deste trabalho, indicamos que a Lei n. 64/1990 inclui,
na lista de inelegibilidade, as hipóteses de abuso de poder político, econô-
mico e de uso indevido dos meios de comunicação. Explique-se, quanto
a isso, que a inelegibilidade “consiste no impedimento temporário à ca-
pacidade eleitoral passiva” (MEDEIROS, 2017, p. 167, grifo nosso). A
inelegibilidade representa, portanto, uma restrição aos direitos políticos,
razão pela qual a jurisprudência pátria tem explicitado que a sua fixação
não pode ser feita por meio de interpretação extensiva in malam partem, de-
mandando-se, necessariamente, a existência de dispositivo constitucional
ou de lei complementar que estabeleça a limitação181. Em sentido seme-
lhante, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que definiçõeno-
vos casos de inelegibilidade “dependem, exclusivamente, da edição de lei
181 Nesse sentido, os seguintes precedentes: Respe n. 4932, rel. Min. Luciana Ióssio, RO n.
140804, rel. Min. Maria Thereza, RO n. 38023, rel. Min. João Otávio de Norona.
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complementar, cuja ausência não pode ser suprida mediante interpretação
judicial” (STF, 2008).
Nesse ponto, encontramos um óbice à criação da figura do abuso de
poder religioso. Se a referida circunstância será responsável por instituir
nova hipótese de inelegibilidade, é imprescindível, em virtude do texto
constitucional e do próprio entendimento sedimentado na jurisprudên-
cia, que haja lei complementar trazendo a inovação. Fora disso, mais do
que um vício normativo, temos uma violação ao princípio da separação
dos poderes.
No entanto, conforme já exposto até aqui, não há, no ordenamen-
to jurídico, a previsão explícita do abuso de poder religioso. Ciente dis-
so, o Ministro Edson Fachin, em seu voto no REspe n. 8285, explicou
sua posição favorável ao exame do abuso de poder religioso no contexto
eleitoral aduzindo que “a ausência de previsão legal expressa não figura
como obstáculo à necessária tutela da legitimidade dos pleitos por parte
das autoridades jurisdicionais constitucionalmente encarregadas dessa no-
bre tarefa” (BRASIL, 2020a, p. 32). Parte do argumento se fundamenta
na concepção de que o conceito de autoridade presente no art. 22, caput,
da Lei Complementar n. 64/1990182, numa leitura teleológica, englobaria
também os atos emanados de dirigentes eclesiásticos. Para corroborar o
seu ponto, o eminente Ministro alegou que o fim da lei infraconstitucio-
nal, no combate do abuso de autoridade, seria assegurar a normalidade
das eleições, preservando-se a liberdade e a independência de opinião e
de escolha dos cidadãos. Logo, considerando a influência exercida pelos
líderes religiosos sobre os fiéis e a possibilidade de, em alguns casos, essa
autoridade resultar no cerceamento da autodeterminação dos indivíduos
e, também, no desequilíbrio do certame, seria preciso admitir que a previ-
são referente ao abuso de autoridade incluiria os ministros eclesiásticos. A
conclusão se extrairia, portanto, pela via de uma interpretação teleológica.
182 O referido artigo dispõe que “qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministé-
rio Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral
ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura
de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou
do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social,
em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:”.
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As alegações do jurista se aproximam consideravelmente do que já
havia sido exposto pela Ministra Rosa Weber em seu voto, no RO n.
5370. Partindo de perspectiva idêntica, Weber se posicionou nos seguin-
tes termos:
Porque insofismável o poder de influência e persuasão dos membros
de comunidades religiosas – sejam eles sacerdotes, diáconos, pastores, pa-
dres etc –, a extrapolação dessa ascendência sobre os fiéis pode, sim, na
minha visão, ser enquadrada como abuso de autoridade – tipificado nos
termos do art. 22, inciso XII, da LC nº64/1990, que veio regulamentar o
art. 14, § 9º, da CF – e ser sancionado como tal (BRASIL, 2018, p. 28).
Esse, contudo, não foi o entendimento prevalecente quando do jul-
gamento do REspe n. 8285. Na ocasião, após o voto proferido pelo Mi-
nistro Relator Edson Fachin, o Ministro Alexandre de Moraes inaugurou
a divergência, sendo seguido pelos demais. Moraes advertiu que não seria
razoável atribuir às diversas concepções de pensamento filosófico, político
e ideológico uma régua mais elástica do que a atribuída às perspectivas
religiosas, o que se configuraria por meio da criação da figura do abuso de
poder religioso. Nesse sentido, alertou que, caso assim se procedesse, seria
necessário regulamentar, igualmente, o abuso de poder sindical, associati-
vo, empresarial, corporativo, dentre outros (BRASIL, 2020c).
Em síntese, a defesa do Ministro se firmou na linha de que não se
pode conferir parâmetros diferenciados para lideranças religiosas e autori-
dades de outros segmentos, sob pena afronta à liberdade religiosa, diante
do tratamento desigual aplicado. Além disso, Moraes ressaltou a ausência
de dispositivo legal que delimite o abuso de poder religioso, o que não
significa, todavia, que eventuais abusos de poder político ou econômico
passarão impunes. Se configurados tais abusos no âmbito eclesiástico, os
líderes e demais envolvidos responderão pelos impactos causados sobre o
equilíbrio e a normalidade do pleito eleitoral, nos termos da legislação.
Ou seja, como bem disse o Ministro, não se pode impor às igrejas nem
mais nem menos em comparação aos outros setores da sociedade (BRA-
SIL, 2020c). Mais do que a liberdade religiosa, protege-se, desse modo, a
laicidade, a isonomia e o pluralismo.
Outro aspecto relevante da presente discussão se conecta ao concei-
to de autoridade. O Ministro Fachin, no REspe n. 8285, e a Ministra
Weber, no RO n. 5370, sustentaram uma interpretação extensiva da ter-
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minologia, de modo que nela se englobassem os líderes religiosos. Nesse
ponto, saliente-se que a LC n. 64/1990 faz referência, no art. 1º, inciso I,
alínea d, ao abuso de poder político e no art. 22, caput, ao abuso de poder
de autoridade. A Constituição, no art. 14, § 9º, fala sobre o combate do
abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta
ou indireta. Aqui, percebemos que o texto da Carta Magna vincula, ni-
tidamente, o abuso de poder político à atuação dos agentes públicos. A
ideia é de enfrentamento do mau uso da máquina administrativa, o que
envolve, por consequência, aqueles responsáveis pelo manejamento dos
recursos públicos. Sobre isso, as palavras do Min. Tarcisio Vieira de Car-
valho durante o julgamento do Respe n. 8285 foram elucidativas:
Perceba-se, portanto, ao que interessa aos autos, que o constituinte foi
expresso ao delimitar a possibilidade de cominação da inelegibilidade no
“abuso do exercício de função ou emprego na administração direta ou indireta”, de
forma que a terminologia legal do “abuso de poder de autoridade” não pode se
distanciar da densidade expressamente delimitada na norma hierarquica-
mente superior (BRASIL, 2020b, p. 8).
Ou seja, se a Constituição faz clara referência aos abusos perpetrados
por agentes no exercício de função, cargo ou emprego na Administração
Pública, não é possível ampliar o escopo do constituinte a partir de inter-
pretação extensiva de norma hierarquicamente inferior, a qual, na verda-
de, deve se sujeitar aos ditames constitucionais.
Por todos os argumentos expostos, a análise do REspe n. 8285 culmi-
nou na rejeição da proposta de ampliação do significado do termo “auto-
ridade”, constante no art. 22 da LC n. 64/1990, e, logo, da criação juris-
prudencial da figura do abuso de poder religioso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme visto, a proteção constitucional à liberdade religiosa e à
laicidade estatal redunda na salvaguarda do discurso religioso na esfera
pública. Liberdade de consciência e de crença não significa, apenas, ter a
possibilidade de adotar determinadas convicções. Diz respeito, também,
a manifestá-las e pautar a própria vida em consonância com a visão de
mundo elegida. O Estado Laico, em harmonia com essa perspectiva, pro-
tege o funcionamento das atividades religiosas de embaraços. Não prote-
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ge, contudo, de abusos. Rejeitar, porém, a consagração do abuso de poder
religioso não significa legitimar violações, mas afastar o entendimento que
atribuiria exclusivamente à autoridade religiosa o cometimento de abusos,
quando lideranças sindicais, esportivas, corporativas e de outros setores
não lidariam com restrições semelhantes.
Seguindo essa linha, naquilo que os demais segmentos se sujeitam, as
igrejas também se sujeitarão. As referidas instituições, como demonstra-
do, estão proibidas de efetuar doações a partidos e candidatos em dinheiro
ou estimáveis em dinheiro. Do mesmo modo, não podem atuar de modo
a recair em abuso de poder econômico e de poder político (na acepção
que conecta o abuso de autoridade à atuação de agente público). Ademais,
não podem os templos, sendo bens de uso comum, serem utilizados para
a divulgação de propaganda política.
Depreende-se, portanto, que a Corte eleitoral, mesmo diante de tema
complexo, obteve êxito na difícil missão de conciliar a proteção da nor-
malidade das campanhas políticas com a liberdade religiosa e a laicidade.
Essa harmonização foi possível por meio da aplicação dos mecanismos le-
gais de combate aos abusos perpetrados no âmbito eclesiástico, sem ex-
trapolação dos contornos instituídos pela Carta Magna e pelo legislador
infraconstitucional, bem como através da preservação dos grupos religio-
sos da imposição de tratamento diferenciado, até mesmo, discriminatório.
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ARTIGOS – REFUGIADOS
763
PROTEÇÃO, INSERÇÃO E
INTEGRAÇÃO LOCAL DOS
REFUGIADOS NO BRASIL
Thiago Augusto Lima Alves183
INTRODUÇÃO
A história do Brasil é marcada por fluxos migratórios. Desde o iní-
cio do processo de constituição do Estado-nação, migrantes chegavam de
outros países, de forma voluntária ou não. Esses estrangeiros, assim como
a população autóctone, trabalharam na construção do País. Ao final do
século XIX e início do século XX, o Brasil recebeu importantes fluxos
migratórios, como os de japoneses que fugiam da crise econômica; de
europeus que escapavam das guerras e crises que assolaram sua região; e,
mais tarde, de chilenos que buscavam refúgio da ditadura militar. Durante
o século XXI, diversos grupos de refugiados procuraram o Brasil para fu-
gir de instabilidades políticas (angolanos, congoleses, sírios) e econômicas
(bolivianos, senegaleses, bengaleses) e de desastres naturais (haitianos).
No decorrer do século XX, devido ao grande número de refugia-
dos gerados pela Segunda Guerra Mundial, a internacionalização dos
direitos inerentes aos seres humanos e a reflexão/revisão sobre o tema
dos refugiados originaram acordos internacionais direcionados para esse
grupo de pessoas. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a ra-
tificar, no ano de 1960, a Convenção Internacional de 1951, relativa ao
183 Mestrando em Relações Internacionais (UNILA). Especialista em Direito Constitucional
(URCA) e Graduado em Direito (UNIFOR).
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Estatuto do Refugiado. Em razão das limitações, temporal e geográfica,
evidenciadas na Convenção Internacional de 1951, foi estabelecido, em
1967, o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, que propositava a
ampliação do alcance da definição do termo. Tal documento foi assinado
pelo Brasil no ano de 1972. Posteriormente, o País assinou a Declaração
de Cartagena de 1984, um documento regional que influenciou a asso-
ciação da questão do refúgio à temática dos direitos humanos e ao direito
humanitário na América Latina.
O relatório World Migration Report 2020, publicado pela Organiza-
ção Internacional para as Migrações – OIM (2020), estimou 272 milhões
de migrantes internacionais no mundo em 2019, o que corresponde a
3,5% da população mundial. Ainda de acordo com o documento, 41 mi-
lhões de pessoas estão internamente deslocadas e outras quase 26 milhões
são refugiadas. Já o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugia-
dos – ACNUR (2020) divulgou que existem 41,3 milhões de deslocados
internos, 25,9 milhões de refugiados e 3,5 milhões de solicitantes de refú-
gio. O ACNUR concluiu ainda que o número de refugiados cresceu mais
de 50% nos últimos 10 anos e que mais da metade são crianças (as quais
representam 52% da população refugiada).
Assim, o objetivo geral do trabalho é analisar a construção histórica
das atuais legislações nacionais sobre direitos dos refugiados e propor uma
reflexão sobre o processo de integração local dos que chegam ao Brasil.
A incursão metodológica que possibilita a realização desta investigação é
direcionada por abordagens de pesquisa qualitativa, pois apresenta o in-
tuito de aprofundar os entendimentos referentes à construção da legis-
lação nacional sobre refugiados, bem como de compreender o processo
internacional do fluxo de refugiados venezuelanos que chegam ao Brasil.
O método indutivo também é usado, já que se parte de uma hipótese e
o propósito é o de confirmá-la ou de refutá-la, para que, por meio da
indução, chegue-se a conclusões que são apenas prováveis. O procedi-
mento metodológico é bibliográfico e documental, uma vez que é realiza-
do a partir do levantamento de referências teóricas e documentos oficiais
já analisados e publicados. A pesquisa é de natureza básica, pois objetiva
gerar novos conhecimentos que serão úteis para o avanço das discussões
sobre o tema. A busca por esses dados e informações foi estabelecida a
partir, principalmente, dos últimos anais do Congresso Brasileiro de Di-
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reito Internacional, do Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Inter-
nacional, de repositórios institucionais, das bases/plataformas de conteúdo
científico (Portal de Periódicos da CAPES, SCOPUS e SCIELO), como
também por meio de órgãos governamentais nacionais, como o CONA-
RE e a Polícia Federal, e internacionais, como o ACNUR e a OIM.
1. O CONCEITO DE REFUGIADO E A LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA SOBRE O TEMA
Os refugiados são considerados migrantes internacionais forçados,
que cruzam as fronteiras nacionais de seus países de origem em busca de
proteção. De acordo com a definição do ACNUR, são aqueles que estão
fora de seu país de origem devido a temores bem fundamentados em um
histórico de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, per-
tencimento a um determinado grupo social ou a opinião política, como
também devido à violência generalizada, grave violação dos direitos hu-
manos e conflitos internos; não podem ou não querem, portanto, voltar a
seu país de origem porque não contam com proteção estatal.
No Brasil, de acordo com a Lei nº 9.474/97, que estabeleceu o Es-
tatuto dos Refugiados, o entendimento sobre o indivíduo refugiado se
apresenta da seguinte maneira:
Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I -
devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu
país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de
tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes
teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em
função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave
e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país
de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
O debate sobre os movimentos de refugiados impacta não apenas os
Estados-nação, como também as relações internacionais, considerando
que as migrações internacionais se desenvolvem entre Estados soberanos,
organizados em um sistema internacional. Esses deslocamentos operam
a transferência de um indivíduo sob a jurisdição de um Estado para a de
outro, o que gera mudança no pertencimento a uma comunidade política,
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conforme Emma Haddad (2008). É em função desses impactos que este se
torna um tema fundamental para as relações internacionais e para o estudo
de nossas sociedades contemporâneas.
Haddad (2008) entende que a categoria dos refugiados se define com
referência ao Estado e não existiria sem o conceito de soberania e sem a
relação entre Estado, cidadania e território. De um lado, a existência do
sistema estatal, assentada na soberania, é o que torna inteligível a categoria
dos refugiados; de outro, a prática de proteger, solucionar, incluir e excluir
os refugiados é o que contribui para reafirmar a soberania e o sistema es-
tatal, reproduzindo essa relação.
A construção da definição jurídica e política de refugiado remonta ao
contexto da Europa do pós-guerra. A partir da Convenção Relativa ao Es-
tatuto dos Refugiados de 1951, cunhou-se o termo refugiado como aque-
le que possui fundado temor de perseguição por razões de raça, religião,
nacionalidade, filiação em certo grupo social ou por opiniões políticas.
A explicação jurídica e política de refugiado remonta ao contexto da
Europa do pós-guerra. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a
ratificar, no ano de 1960, a Convenção Internacional de 1951, relativa ao
Estatuto do Refugiado. Em razão das limitações, temporais e geográficas,
evidenciadas na referida Convenção, foi estabelecido, em 1967, o Proto-
colo sobre o Estatuto dos Refugiados, que propositava alcance mais amplo
à definição do termo “refugiado”. Tal documento foi assinado pelo Brasil
no ano de 1972.
Posteriormente, o País assinou a Declaração de Cartagena, de 1984,
um documento regional que influenciou a associação entre o conceito de
refúgio e o de direitos humanos, especificamente o de direito humanitá-
rio na América Latina. É fundamental ressaltar que essa discussão nasce
no ordenamento jurídico brasileiro em meio ao regime ditatorial, quando
milhares de cidadãos e cidadãs brasileiros saíram do país em busca de asilo
político, exilando-se no exterior por razões político-ideológicas.
O passo decisivo aconteceu sob um regime democrático, conside-
rando-se que o marco migratório brasileiro se baseia, essencialmente, na
Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) e nas Leis nº
9.474, de 1997, e nº 13.445, de 2017. A legislação brasileira foi considera-
da importante pelo ACNUR por tratar da proteção aos refugiados e por
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ser referência para os demais países da América do Sul. Sobre o assunto,
Antônio de Aguiar Patriota (2017, p. 173, tradução nossa184) explica que:
O Brasil atribui grande prioridade à proteção de migrantes, refugia-
dos e pessoas impedidas de receber dinheiro. É parte da Convenção sobre
Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967, da Convenção de Apátridas
de 1954 e da Convenção de 1961 sobre a Redução da Apatridia, e subme-
teu a adesão à Convenção sobre os Direitos dos Trabalhadores Migrantes
para Aprovação do Congresso.
A CRFB/88, em seu artigo 1º, aborda os fundamentos que consti-
tuem o Estado Democrático de Direito, como a dignidade da pessoa hu-
mana. Já o artigo 3º revela que, entre os objetivos fundamentais do Brasil,
estão os de “[...] construir uma sociedade livre, justa e solidária” e de “[...]
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação”. O artigo 4º idealiza a
existência de um país integrado com a comunidade internacional, o qual
colabore para o desenvolvimento das outras nações e para o fortalecimen-
to dos direitos humanos.
O texto da CRFB/88 não discorre expressamente sobre os refugia-
dos, mas estes estão inseridos no princípio da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, inciso III, CRFB/88), na prevalência dos direitos humanos e na
concessão de asilo político (art. 4º, incisos II e X, CRFB/88). Além desses
dispositivos, existe o artigo 5º, o qual assegura que “[...] todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos bra-
sileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Segundo
Jubilut (2007, p. 181),
Com base nesses princípios, pode-se afirmar que os alicerces da con-
cessão do refúgio, vertente dos direitos humanos e espécie do direito de
asilo, são expressamente assegurados pela Constituição Federal de 1988,
sendo ainda elevados à categoria de princípios de nossa ordem jurídica.
184 Texto original: “Brazil attaches great priority to the protection of migrants, refugees
and stateless persons. It is party to the 1951 Refugee Convention and its 1967 Protocol, to
the 1954 Convention on Stateless Persons and to the 1961 Convention on the Reduction of
Statelessness, and has submitted the accession to the Convention on the Rights of Migrant
Workers for Congressional approval”.
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Sendo assim, a Constituição Federal de 1988 estabelece, ainda que indi-
retamente, os fundamentos legais para a aplicação do instituto do refúgio
pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, além de obrigar o Brasil a zelar pelos direitos humanos
e a respeitá-los, a concessão do refúgio seria uma forma de efetivação dos
dispositivos constitucionais, de modo que os princípios estariam sendo
cumpridos e a igualdade estaria assegurada, o que gera segurança jurídica
sobre o tema. É importante salientar que o refugiado, uma vez reconhe-
cido pelo País, goza de igualdade perante os brasileiros natos e naturaliza-
dos, uma vez que é detentor dos direitos sociais preceituados pelo artigo
6º da CRFB/88, mas não tem direito de votar nem de ser votado, o que
incita uma complexa e necessária discussão sobre sua cidadania.
O Brasil, em 1997, estabeleceu uma lei específica para os refugiados:
a Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, que estabeleceu os critérios para se
atribuir o status de refugiado e que também determinou o procedimento
para o devido reconhecimento dessa condição. A lei é responsável pela
criação do CONARE, órgão administrativo que trata do tema no país.
A Lei nº 9.474/97 foi produzida a partir do Programa Nacional de
Direitos Humanos, de 1996, e elaborada pelo governo brasileiro em con-
junto com o ACNUR (PNDH, 1996). A referida legislação é conhecida
como umas das mais avançadas do mundo e é pioneira na América Latina,
“[...] sendo usada como parâmetro para inúmeros outros países, pois traz
uma ampla abordagem de situações que caracterizam o status de refugia-
do” (PEREIRA, 2004, p. 36).
Apesar de ser considerada uma legislação importante em âmbito in-
ternacional, ainda não é tão avançada quanto legislações como a do Mé-
xico e a da Argentina, pois nesses países a legislação específica para os
refugiados abrange a questão de gênero como fundamento de perseguição
e de concessão do refúgio. Para Helisane Mahlke (2017, p. 01),
A anacrônica estrutura de proteção ainda continua a mesma do perío-
do que sucedeu as duas Guerras Mundiais, caracterizada pela fragmenta-
ção da interpretação normativa; pela fraca institucionalização; e pela apro-
priação do direito ao refúgio pela agenda de política externa dos Estados.
[...] Tem-se um modelo de proteção aos refugiados totalmente dependen-
te de iniciativas nacionais. Com essa estrutura, o poder de decisão sobre o
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status do refugiado acaba por se converter em domínio do Estado e segue,
previsivelmente, os interesses por ele definidos, frequentemente em detri-
mento dos direitos daqueles aos quais deveria proteger.
Em relação às causas que motivam a fuga, estas são de difícil solução
e podem se perpetuar por anos, por isso foram estabelecidas as soluções
duradoras, capazes de conferir ao refugiado(a) a possibilidade de viver
dignamente e em segurança, mesmo em situações de vulnerabilidades.
O ACNUR conceitua as soluções duradouras como três iniciativas – re-
patriação voluntária, reassentamento solidário e integração local –, que
fazem parte do compromisso assumido pelo Brasil ao assinar a Convenção
de 1951, positivado pela Lei nº 9474/97.
O Brasil tem sido um país bastante procurado por indivíduos em
situação de refúgio. Sempre considerado por sua diversidade cultural e
composição multiétnica, o país foi edificando sua identidade a partir de
ideias como “democracia racial” e “homem cordial”, presentes nos de-
bates propostos, respectivamente, pelos antropólogos Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque de Holanda, pensadores do Brasil e da formação da socie-
dade brasileira.
A sociedade brasileira, contudo, também é uma das mais violentas
do mundo, e essa violência é parte inerente do nosso processo de coloni-
zação, o qual gerou práticas e dinâmicas excludentes, elitistas e pautadas
na construção do projeto colonial e modernizador europeu que incluía a
escravidão e, dessa forma, a sujeição de outros indivíduos e povos, cuja
cultura foi sublimada e cujos corpos foram objetificados.
Ao passo que o Brasil se negava enquanto fruto da diáspora africana
e do genocídio indígena, construía para si, como projeto de nação insur-
gente e de república recém-fundada, a ideia de uma nação mestiça, fruto
do encontro de raças originais que levariam à construção de uma espécie
de nova raça cósmica, debate bastante consolidado nas ciências sociais bra-
sileiras.
Os imigrantes europeus foram aos poucos se adaptando às paisagens
e construindo novas comunidades no Sul do país. Os que migraram do
Japão foram garantindo sua integração no Paraná e em São Paulo e os ára-
bes já se faziam presentes até no imaginário popular, por meio da figura
do mascate, o comerciante. Estes dominaram a península ibérica e sua
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presença e influência cultural e gastronômica foi sendo paulatinamente
sentida e naturalizada.
O movimento migratório recente, que marca as primeiras décadas do
século XX, no entanto, revela conotações e elementos distintos. Haitia-
nos(as), venezuelanos(as), sírios(as), entre outros povos passaram a solicitar
o visto de refugiado(a) ao Brasil.
Essas comunidades são recentes, sem histórico passado, estigmatiza-
das pela imagem internacionalmente construída de seus países, elementos
que as fazem enfrentar as barreiras religiosas e linguísticas em um país
que viu emergir, justamente ao longo da última década, o crescimento
das forças conservadoras e da simpatia a movimentos protofascistas, que
consistem em uma menor adesão ao regime democrático, ao Estado de-
mocrático de direito e à defesa dos direitos humanos.
Os elementos e dinâmicas sociopolíticas que marcam a sociedade bra-
sileira na atualidade também respondem a aspectos econômicos, como a
crise mundial de 2008. A partir de então, como um fenômeno global,
em meio a um período de recessão econômica e de aumento do desem-
prego, os nacionais de diferentes países passaram a ressentir a entrada de
migrantes, temendo perderem postos de trabalho e considerando, através
das visões estigmatizadas, xenófobas e racistas, o potencial aumento da
violência e pressão sobre serviços públicos já escassos e de baixa qualidade
e a possibilidade de verem sua qualidade de vida diminuir pelo imaginário
da competição com aquele que chega.
Outro aspecto fundamental desse fenômeno é também seu compo-
nente cultural e moral, já que em termos valorativos a emergência da ex-
trema direita e de forças conservadoras implica menos tolerância com o
diferente, por questões de orientação sexual, questões linguísticas, cultu-
rais, raciais e religiosas.
O Brasil apresentou avanços em termos legais e jurídicos para o re-
cebimento de migrantes e, em especial, refugiados, mas, na última déca-
da, sofreu um considerável retrocesso democrático que não se reflete tão
somente no posicionamento político-ideológico de governantes, mas em
uma cultura democrática que se deteriorou consideravelmente, contri-
buindo para um ambiente mais hostil, menos cordial, mais individualista,
tribal, polarizado e radicalizado.
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2. A INSERÇÃO E A INTEGRAÇÃO DOS REFUGIADOS
NA SOCIEDADE BRASILEIRA
A integração é uma das formas de solucionar o problema do refugiado
e, para Karen Jacobsen (2001), a integração local pode ser mais ou menos
difícil a depender da situação política e/ou econômica do país de acolhi-
mento. O termo “integração local” é considerado vago. Para a literatura, a
expressão faz referência ao processo que se desenvolve quando o refugiado
passa a interagir em novo contexto no país receptivo. O Estatuto do Refu-
giado, no capítulo sobre integração, apresenta a seguinte redação:
Art. 43. No exercício de seus direitos e deveres, a condição atí-
pica dos refugiados deverá ser considerada quando da necessida-
de da apresentação de documentos emitidos por seus países de
origem ou por suas representações diplomáticas e consulares.
Art. 44. O reconhecimento de certificados e diplomas, os re-
quisitos para a obtenção da condição de residente e o ingresso
em instituições acadêmicas de todos os níveis deverão ser faci-
litados, levando-se em consideração a situação desfavorável vi-
venciada pelos refugiados.
O “conceito” referido no Estatuto do Refugiado em nada esclarece
e/ou ajuda a resolver o problema de integrar esses indivíduos. O Estatuto
também não menciona políticas públicas de integração e não aborda os
elementos necessários para efetivar tal termo. Esse assunto fica sem pre-
visão legal adequada e por isso sua execução fica dependente de políticas
específicas de governos, os quais não garantem organicidade.
O conceito de integração, portanto, fica a cargo da literatura. Jeff
Crisp (2004) entende que o refugiado não precisa abandonar sua própria
cultura. A ideia é que nacionais e estrangeiros possam ajustar seus com-
portamentos e atitudes entre si, demandando esforço dos nacionais para
entender o diferente e o direito do refugiado de preservar seu repertório
cultural de origem. O autor destaca a multidimensionalidade da integra-
ção local que, para ele, possui três dimensões: dimensão legal, que serve
para garantir direitos no país acolhedor; dimensão econômica, para que o
refugiado possa ter uma vida economicamente viável e autônoma; e di-
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mensão sociocultural, por meio da qual se preserva a tranquilidade do
refugiado de viver em uma sociedade sem o risco/temor de sofrer discri-
minação ou exploração (CRISP, 2004).
Mahlke (2017, p. 244) adverte que a “integração não deve ser con-
fundida com ‘assimilação’, uma vez que ao refugiado não deve ser exigi-
do que abandone sua cultura e identidade para compor indistintamente
a sociedade local”, mas que seja permitido viver em um ambiente plural.
Para Tom Kuhlman (1991), a integração é o processo mediante o qual
os(as) refugiados(as) mantêm sua própria identidade, mas se tornam parte
da sociedade acolhedora à medida que podem conviver com a população
local de modo aceitável.
Os autores Ager e Strang (2008) concebem a integração como um
processo dialético entre refugiados(as) e sociedade receptora. Para eles, os
elementos centrais desse grupo se referem à aquisição e acesso a emprego,
moradia, educação e saúde; à cidadania e a direitos; e a processos de re-
lações sociais com grupos dentro da comunidade receptora, tornando-se
crucial identificar também as barreiras estruturais a essas relações em fun-
ção da língua, da cultura e do ambiente local.
Tal abordagem concebe a integração como via de mão dupla, a qual
supõe adaptação não apenas do recém-chegado, como também da so-
ciedade receptora. Isso implica mudança em termos de valores, normas,
comportamentos tanto para os refugiados quanto para os membros da co-
munidade local. Ao mesmo tempo, faz-se necessário propiciar o acesso
a serviços e oportunidades de empregos, assim como a aceitação dos re-
fugiados em termos de interação social e aquisição de direitos, inclusive
políticos. Essa visão se opõe àquela voltada para assimilação, mediante a
qual se espera que os refugiados descartem sua cultura, tradição, língua de
origem, devendo se integrar na sociedade receptora sem qualquer acomo-
dação recíproca (MOREIRA, 2014).
No caso do Brasil, é necessário vencer a falta de estrutura para o aco-
lhimento. O recente aumento do fluxo de refugiados gerou uma demanda
de ampliação ou criação de infraestrutura. Atualmente, esse problema fica
sob a responsabilidade dos municípios, mas nem todos têm condições de
arcar com essas políticas de acolhimento sem a ajuda dos Estados e da
União. A cidade de São Paulo, de acordo com Silva e Fernandes (2018),
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foi a precursora do ato de criar instituições para acolher os refugiados.
Porém, outras cidades – que também recebem muitos refugiados –, como
Belo Horizonte, Brasília, Criciúma e Caxias de Sul, não possuem um
serviço exclusivo para recepção desses indivíduos.
Os refugiados podem solicitar que um albergue público os receba,
no entanto, esses locais estão atendendo a população em situação de
rua. São duas populações com vulnerabilidade, mas que necessitam de
cuidados diferenciados, tendo em vista suas características peculiares.
Como o poder público não tem estrutura para acolhimento nem pla-
nos arrojados de integração para os refugiados, fica sob a responsabili-
dade da sociedade civil, de instituições religiosas, ONGs e associações
de refugiados fazer esse trabalho. Em pesquisa realizada pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2015), em parceria com o
Ministério da Justiça, alguns gargalos sobre o processo de integração
foram revelados:
No contexto nacional, e conjugando-se os dados obtidos em
todas as entrevistas e questionários, conseguiu-se traçar um
perfil geral dos imigrantes no Brasil, bem como verificar que: a)
há violações de seus direitos humanos, b) há vários obstáculos
de acesso a direitos e serviços, c) não há diretrizes centralizadas
de atendimento a imigrantes, e d) que os imigrantes não têm
conhecimento de ações para a melhoria de sua proteção no Bra-
sil (IPEA, 2015).
Apesar da Lei nº 9.474/97 determinar que os refugiados em solo bra-
sileiro devem estar sujeitos aos mesmos direitos e deveres dos nacionais,
várias dificuldades são percebidas, como a barreira do idioma, a falta de
documentação solicitada, a existência de requisitos e exigências para a in-
clusão em programas sociais e/ou de créditos, conforme afirma Mahlke
(2017). Os gráficos abaixo foram feitos pelo IPEA (2015) e demonstram
os problemas vivenciados pelos grupos de refugiados:
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Ainda de acordo com a pesquisa do IPEA (2015), a partir da perspec-
tiva das instituições, as dificuldades dos imigrantes são maiores do que as
da população nacional, o que pode ser entendido como discriminação e/
ou vulnerabilidade específica dos(as) imigrantes.
185 IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Migrantes, apátridas e refugiados: sub-
sídios para o aperfeiçoamento de acesso a serviços, direitos e políticas públicas no Brasil.
Brasília. Série Pensando o Direito, n. 57, 2015. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/
wp-content/uploads/2015/12/PoD_57_Liliana_web3.pdf.
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A pesquisa realizada pelo IPEA (2015) é uma comprovação de que a
integração enfrenta dificuldades para ser efetivada. Não obstante, como
explica Mahlke (2017, p. 244), “todos esses obstáculos podem ser resu-
midos em um único problema: a falta de uma estrutura de acolhimento
adequada, acompanhada de políticas públicas direcionadas para a popu-
lação refugiada”. A igualdade para todos(as) apresentada pela CRFB/88
refere-se à igualdade de direitos e oportunidades e, para isso ocorrer, é
necessário considerar a condição especial dos(as) refugiados(as) e promov-
er ações para que essa igualdade seja atingida (Mahlke, 2017).
A população migrante e, em especial, refugiada já enfrenta as barrei-
ras linguísticas e, muitas vezes, não conta com uma rede de apoio em seu
novo país. Seu ponto de partida já é consideravelmente mais desafiador.
Constata-se a existência de novas e distintas fronteiras para uma efetiva
integração em uma nova sociedade. Os desafios culturais impostos pelo
idioma e a dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e a serviços, con-
forme vislumbrado no gráfico 1, também podem ser considerados efeitos
186 IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Migrantes, apátridas e refugiados: sub-
sídios para o aperfeiçoamento de acesso a serviços, direitos e políticas públicas no Brasil.
Brasília. Série Pensando o Direito, n. 57, 2015. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/
wp-content/uploads/2015/12/PoD_57_Liliana_web3.pdf.
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de uma investida discriminatória, segregacionista, que impede a inte-
gração de refugiados à sociedade brasileira.
A Operação Acolhida é um programa criado pelo Governo Federal.
Este programa atua no ordenamento da fronteira (preparação da fron-
teira para receber os refugiados), no abrigo (para acomodação em abri-
gos com alimentação, educação, cuidados em saúde e proteção) e na
interiorização (transporte dos refugiados para diferentes regiões do Bra-
sil). A interiorização é a principal estratégia do governo brasileiro para
promover a inclusão socioeconômica dos refugiados. Segundo dados do
Governo Federal (2020), desde abril de 2018 – início dos trabalhos – até
janeiro de 2020, mais de 27,2 mil pessoas foram interiorizadas para 376
cidades, em 24 estados.
O país que mais apresenta solicitações de refúgio ao Brasil é a Ve-
nezuela, com 61.681 mil, representando 77% do total do número de so-
licitações de reconhecimento de refugiado. Os estados brasileiros onde
mais há solicitações do reconhecimento da condição de refúgio são Ro-
raima (com 50.770 mil – 63% do total), Amazonas (10.500 mil – 13% do
total), São Paulo (9.977 mil – 12% do total) e Paraná (1.408 mil – 2% do
total). Apesar de existirem programas para levar os refugiados a outros lu-
gares, com intuito de realizar a integração local, ao chegarem nas cidades
eles continuam enfrentando constantes problemas para serem incluídos na
sociedade, uma vez que fica a cargo do município o acolhimento e muitos
municípios não conta com planos estratégicos para isso.
Simões et al. (2017, p. 21-48), no Relatório sobre o Perfil Socio-
demográfico e Laboral da Imigração no Brasil, evidenciou que somente
38,9% dos venezuelanos tiveram acesso aos serviços de saúde, 10,4%
aos serviços educacionais e 2,2% aos serviços de assistência social. So-
bre os que têm certificado de ensino superior, a pesquisa evidencia que
90,48% não conseguem a revalidação dos diplomas, fator que impacta
negativamente o sucesso de conseguirem emprego nas suas áreas de for-
mação. O percentual de refugiados que frequentou ou frequenta curso
de português no País é de 53,66%, um índice baixo, porque mais de
48% dos entrevistados falam outro idioma além daqueles perguntados
(português, francês, inglês, espanhol e árabe). Além disso, salienta-se
que 7,1% estão sem documentação no Brasil, 22,8% possuem carteira
778
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
de trabalho e 29%, Cadastro de Pessoa Física. Patriota (2017, p. 174,
tradução nossa187) defende:
O exercício da responsabilidade para com os migrantes, refugiados
e apátridas não deve se limitar a oferecer reassentamento. Deve também
implicar esforços destinados a assegurar a sua plena integração nas socie-
dades de acolhimento. Isso inclui o fornecimento de condições de vida
decentes, a proteção de migrantes e refugiados contra a discriminação e a
deportação arbitrária e o combate ao discurso xenófobo.
Para haver uma plenitude da dignidade humana e uma possível inte-
gração desses refugiados no Brasil, é necessário mais do que oferecer abri-
gos, alimentação e operações de acolhimentos. Os refugiados que chegam
ao País querem recomeçar suas vidas e construir um futuro com perspec-
tivas reais, tanto para eles, quanto para os filhos, e para isso é necessário
que haja documentos de identificação para todos, que seja permitida sua
entrada formal no mercado de trabalho, que consigam estudar e dominar
o idioma e que estejam participando da sociedade de forma segura, sem
preconceitos e violências, portanto, não sendo permitido visualizar a hu-
manidade como sujeito de Direito a partir da ótica do Estado; impõe-se
reconhecer os limites do Estado a partir da ótica da humanidade (TRIN-
DADE; ROBLES, 2003).
CONCLUSÃO
Apesar de os fluxos migratórios sempre existirem na história da hu-
manidade, somente a partir do século XX se discute a proteção daqueles
que foram forçados a fugir em busca de refúgio. Mesmo com a interna-
cionalização dos direitos humanos e a ampliação do conceito de refugiado
realizada pelos documentos de direitos humanos e, consequentemente,
com a ratificação da maioria dos Estados, a efetivação desses direitos é sen-
sível à vontade política dos países. Neles se exercem as proteções interna-
cionais, por isso é importante a ratificação de documentos internacionais,
187 Texto original: “The exercise of responsibility towards migrants, refugees and stateless
persons should not be limited to offering resettlement. It should also entail efforts aimed
at ensuring their full integration into host societies. This includes providing decent living
conditions, protecting migrants and refugees from discrimination and arbitrary deportation,
and combating xenophobic discourse”.
779
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
fundamentais para a elaboração de leis nacionais e de políticas públicas
mais eficazes.
No Brasil, a legislação migratória revelou, sem dúvidas, muitos avan-
ços. Apesar dos erros e da inoperância administrativa, o País mostrou-se
assertivo ao assinar os acordos internacionais para proteção dos refugiados.
Internamente, no período democrático, houve a criação de um sistema
jurídico migratório audacioso, porque garantiu a pluralidade de direitos
aos refugiados, mas ainda com resquícios da ideologia da segurança nacio-
nal, timidamente mascarada por políticas públicas pouco eficientes, que se
traduz na dificuldade de realizar a integração local dos refugiados.
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782
DIREITOS HUMANOS E AS NOVAS
QUESTÕES SOCIAIS: EM BUSCA DA
PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS
João Moreira Júnior188
Angela Maria Pelizer de Arruda189
INTRODUÇÃO
A Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 10 de dezem-
bro de 1948 proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH), tendo em vista um ideal comum a ser atingido por todos os
povos e nações, e que trouxe consigo um grande desafio aos Estados-
-membros, que se vêem provocados a garantir a defesa de todos os seres
humanos. Deste modo, após a publicação os países buscaram promover e
adotar medidas para que os seus cidadãos pudessem usufruir dos direitos
e liberdades elucidados na Declaração, entretanto ao se passarem os anos
erigiram-se algumas crises pelo globo e os interesses particulares ficaram
em evidência desencadeando em atos bárbaros que ultrajaram o pacto se-
lado em favor da dignidade do ser humano, da justiça e da paz.
Nesse contexto, observa-se que nos últimos anos muito se têm discu-
tido acerca da crise dos refugiados, um grande desafio da contemporanei-
dade, que devido a um fundado temor de perseguição, desastres naturais,
entre outros motivos, pessoas são forçadas a se descolarem pela grave vio-
188 Mestrando em Bioética pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Bacha-
rel em Teologia e Licenciatura em Ciências Sociais.
189 Professora do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
783
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
lação dos Direitos Humanos. Isto é alarmante, pois indica que o mundo
está passando por uma gravíssima crise ética e moral, sendo esta marca-
da por conflitos que estão associados a aspectos socioculturais, tais como,
raça, religião, opinião política e por pertencimento a determinados grupos
sociais, impedindo que esses indivíduos gozem dos direitos e liberdades
previstos nos Artigos da DUDH.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugia-
dos (ACNUR), o deslocamento forçado atingiu recorde global em 2017
afetando 68,5 milhões de pessoas, esse parecer demonstra que não houve
a promoção de medidas para assegurar a observância dos elementos eluci-
dados na DUDH e desse modo pessoas tem enfrentado ondas de terror,
se vendo totalmente desamparadas, gerando um aumento no fluxo migra-
tório em busca de amparo.
Neste sentido, observa-se que aquelas pessoas que conseguem fugir
das perseguições percebem que o sofrimento não acabou, e em meio a
essa polarização encontram-se contrabandistas ilegais, que visam locuple-
tar-se à custa do sofrimento alheio, realizando deslocamentos marítimos
e terrestres, geralmente em barcos precários sem nenhuma segurança, vi-
timando milhares de pessoas. Toma-se como exemplo a repercussão do
caso marcante que chocou o mundo em 2015 de um menino sírio Aylan
Kurdi com apenas três anos de idade, que foi encontrado morto em uma
praia turca e que estampou a capa dos principais jornais do mundo e se
tornou um símbolo da crise migratória, instigando a reflexão sobre a crise
dos refugiados.
Com efeito, essa intensa movimentação gera um colapso nos países
em conflito através dos deslocados internos dentro de seu próprio país, e
também naqueles que com eles fazem fronteira, pela sobrecarga de pessoas
que adentram ao território vizinho, haja vista que este geralmente não está
preparado para atender adequadamente as necessidades deste número tão
expressivo de pessoas. Diante da emergência de tantas famílias chegando
por mar e terra nos últimos anos, verifica-se o desespero em que elas se
encontram, vivendo de forma improvisada em acampamentos, dormin-
do em barracas sem nenhuma estrutura para alimentação, higiene e sa-
neamento. Estão totalmente vulneráveis, a mercê da ajuda dos moradores
locais.
784
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
A migração é perturbadora, pois o destino é incerto, estes são mar-
cados pelo exílio prolongado e extrema pobreza. É mister destacar que,
quando o ser humano está exposto a um contingenciamento altamente
caótico, com possibilidade de terem suas vidas ceifadas, em decorrên-
cia dos conflitos armados, está também potencialmente sujeito a grandes
problemas de saúde física e mental, pois estão expostos a grande tensão.
O comportamento destes indivíduos está intrinsecamente ligado às suas
vivências, de acordo com seu ambiente, e por sua vez, devido às feridas
emocionais, desencadeiam graves problemas de convívio com o outro.
Pessoas chegam traumatizadas, estão mentalmente abaladas pelas sequelas
psicológicas.
Dessa forma, inegavelmente é preciso estruturar Políticas globais para
essa população tão marcada, e observar o ser humano que está por trás
daquele refúgio, ajudá-los a superar as feridas que os conflitos foram dei-
xando, e restaurar sua dignidade que estava perdida, assim, analisando,
debatendo e refletindo esse fenômeno buscando desenvolver melhores
sistemas de refúgio, mantendo-os a salvo do temor e realizando uma for-
ça-tarefa entre nações, organizações não governamentais e civis buscando
a observância da DUDH para que todos sem distinção possam gozar dos
direitos nela previstos.
MUNDO PÓS-MODERNO: A CRISE DOS REFUGIADOS
O mundo passa pela maior crise humanitária da história, diariamente
milhares de pessoas são forçadas a se deslocarem pela grave violação dos
Direitos Humanos, um drama global que gera um expressivo fluxo migra-
tório, que obriga famílias a fugirem por motivos justos, que se vêem diante
do perigo, e arriscam suas vidas na busca de oportunidade de sobrevivên-
cia, e na tentativa de reconstruir suas vidas de forma digna e segura.
Ao longo da história ocorreram inúmeras crises, motivadas por di-
versos fatores nos quais se envidaram esforços na tentativa de resguardar
grupos sociais contra injustiças e torturas, e impeliu a formulação de do-
cumentos para nortear condutas a serem seguidas, e que segundo o pes-
quisador Rosa (1978, p. 226-227), esta data da mais remota antiguidade:
O Código de Hamurabi, famoso imperador que reinou entre 2067-
2025 a.C., consolidando o primeiro Império Babilônico e longrado ce-
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lebridade como legislador: em 250 artigos abrange leis civis, políticas,
militares e comerciais; o Decálogo, considerado o instrumento da reve-
lação divina, composto no Monte Sinai por Moisés, o maior legislador e
profeta judeu: ordena honrar pai e mãe, respeitar a mulher e os bens do
próximo, não furtar, não matar, não dizer falso testemunho; a filosofia
de Mêncio (c. 371-289 a.C), na China, e, antes dele a de Confúcio (551-
479 a.C); as doutrinas de Buda, na Índia (Sissharta Gautama ou Sáquia-
-Múni, 563-483 a.C.), em cuja Senda das Oito Trilhas deparamos com
mandamentos semelhantes aos do Decálogo, e de Platão (c. 427-347
a.C.), que trata longamente dos direitos do homem em sua República;
a doutrina de Jesus, o Messias, o Filho de Deus, consubstanciada no
célebre Sermão da Montanha (Mateus, 5, 6 e 7; Lucas, 6: 17-49), sín-
tese divina do respeito e amor ao próximo, e que complementaria, na
legislação sobre a afirmação dos direitos humanos, as bases estabelecidas
pelo Direito Romano, também um dos marcos de extraordinária im-
portância na marcha da humanidade para a conscientização de suas res-
ponsabilidades em relação à pessoa humana; a Magna Carta (Inglaterra,
1215), o Bill of Rights (Inglaterra, 1689), a Declaração da Independên-
cia dos Estados Unidos (1776), a Declaração Francesa dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789), estatuindo uma dilatada esfera de direitos
individuais em face dos abusos do poder político; a Doutrina das Quatro
Liberdades, enunciada em 1941 pelo Presidente Franklin Delano Roo-
sevelt: liberdade de palavra e expressão; liberdade de culto; liberdade
de não passar necessidade; liberdade de não passar medo. Incluidos e
ampliados esses princípios na Carta do Atlântico (1941), na Declaração
das Nações Unidas (Washington, 1942), nas Conferências de Moscou
(1943), Dumbarton Oaks (1944) e São Francisco (1945), passaram eles a
integrara Carta das Nações Unidas.
Por conseguinte, em 10 de dezembro de 1948, a ONU proclamou a
magnânima DUDH, cujos trinta artigos, embora não se revistam de força
jurídica coativa, constituem um termo de responsabilidade assumido pelas
nações integrantes da ONU, que em seu preâmbulo os estados se com-
prometem em conjunto a sua população, a tomarem providências visando
o reconhecimento e efetivo cumprimento dos direitos humanos nos quais
são elucidados na Declaração.
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
E em meio a este longo contexto histórico de lutas para a imple-
mentação de instrumentos que visam à garantia dos Direitos Humanos, é
inadmissível que o mundo pós-moderno seja marcado lamentavelmente
por uma intensa crise humanitária, como o drama dos refugiados que vi-
venciam um fundado temor de perseguição. As nações não podem ficar
estáticas e compactuar com esse cenário, pois pessoas são atacadas, feridas,
violentadas e mortas, e os números são alarmantes. É preciso atuar em
prol da dignidade da pessoa humana, prestar assistência que garanta a to-
dos, sem distinção, dignidade e qualidade de vida que todo o ser humano
merece.
Contudo, é importante destacar que em meio a esse drama global de
grande magnitude, nos últimos anos, segundo o levantamento dos relató-
rios do ACNUR, os números estão em ascensão, e como consequência
desencadeando várias complicações neste campo.
Refugiados que deixaram seus países para escapar de conflitos e perse-
guições correspondem a 25,4 milhões de pessoas (do total de 68,5 milhões
de deslocados). Isso corresponde a 2,9 milhões a mais do que em 2016 e é
o maior aumento que o ACNUR já registrou em um único ano. Solici-
tantes de refúgio, que ainda esperavam o resultado de seus pedidos em 31
de dezembro de 2017, totalizam 3,1 milhões de pessoas (um aumento de
300 mil em comparação ao ano anterior). As pessoas deslocadas dentro do
seu próprio país representaram 40 milhões do total, um pouco menos que
os 40,3 milhões em 2016 (ACNUR, 2018).
Estes números representam histórias angustiantes de indivíduos que
vivem em meio a um paradoxo de coragem, esperança, fuga e medo. Nes-
te contexto de perseguição consta-se que essa tomada de decisão de deixar
seu país é por desespero, na busca por abrigo, proteção, e na tentativa de
sobrevivência. Muitos deles perdem o contato com amigos e familiares,
e não sabem se eles estão vivos ou mortos, além de que, diante de seus
olhos, veem pessoas morrendo, e o medo paira sobre eles.
Infelizmente, nada indica que a tendência deste fluxo diminua, pau-
tando-se na observação dos relatórios expostos anualmente pelos órgãos
competentes. Salienta-se que isso se deve por uma série de mudanças,
como a instauração da polarização política que entre extremos ideológi-
cos desencadeia conflitos e perseguições, o poderio bélico para proteção
dos interesses de estados e grupos que fomenta as guerras, a consolidação
787
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
do capitalismo rompendo-se valores, a facilidade na comunicação utili-
zando-a para promover perseguições aos diferentes, e a degradação dos
relacionamentos interpessoais, e na defesa da superioridade de grupos,
ideologias, raça e religião.
Esta movimentação desesperada para encontrar segurança está sobre-
carregando os países de destino, principalmente aos que fazem fronteira,
gerando inúmeros impactos. Com efeito, alguns países já sofrem tanto que
precisam de ajuda, pois são sabem mais como abrigar tantas pessoas. Ou-
tro aspecto que merece destaque são as dificuldades enfrentadas em terra
estranha, como por exemplo, acesso aos ambientes, dificuldade de comu-
nicação, choque de cultura, desemprego, fome, intempéries. Vale ressaltar
outra necessidade importante é proteger as pessoas contra o discurso de
ódio, o racismo populista e a xenofobia, sendo que este vêm atrelado por
diferentes tipos de discriminação, seja ela social, étnico-cultural e religio-
sa, e esta rejeição direcionados a essa população geram inúmeros traumas
as vitimas, e diante disso, são amparados pela Lei 7.716, de 05 de Janeiro
de 1989, visando o impedimento do crime de preconceito e discrimina-
ção em razão de procedência nacional.
. Segundo a (ONU/BR), o relatório de Tendências Globais apresen-
tou que a maioria dos refugiados vive em áreas urbanas - 58%, e a popu-
lação deslocada global é jovem – 53% são crianças, incluindo muitas que
estão desacompanhadas ou separadas de suas famílias e que precisam de
uma atenção especial, pois elas são naturalmente mais vulneráveis, e isso
gera um despertar da fraternidade entre os refugiados.
Em meio a esse fenômeno, o ACNUR atua na assistência e na prote-
ção dos refugiados, auxiliando dezenas de milhares de pessoas a recomeça-
rem suas vidas, por meio de parcerias, resgatando sua dignidade, e fazendo
valer seus direitos. Bem como, trabalha a fim de se assegurar que qualquer
pessoa, em caso de necessidade, possa exercer o direito de buscar e receber
refúgio em outro país e, caso deseje, regressar ao seu país de origem, e na
contemporaneidade o ACNUR tem um grande desafio para a proteção
dos refugiados pelo globo.
Além disso, países erguem barreiras para impedir que refugiados bus-
quem auxílio, como a insistência do Presidente Norte-Americano Do-
nald John Trump em construir um muro entre Estados Unidos e México,
ameaçando declarar emergência nacional e impulsionando uma paralisa-
788
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
ção. Em consonância, países europeus erguem barreiras e dividem frontei-
ras tais como a Áustria e Itália, Bulgária e Turquia, Espanha e Marrocos,
França e Reino Unido, Grécia e Macedônia, Hungria e Sérvia, Mace-
dônia e Turquia, entre outros que também aderiram a essa construção de
barreiras para impedir o ingresso de refugiados provenientes do Oriente
Médio, se não bastasse também existem às barreiras sociais, no qual im-
pede aos que já se encontram em outros países de poderem ter acesso aos
ambientes e o contato com a população local, deixando-os às margens
padecendo sem o amparo necessário.
Em detrimento a essa crise humanitária, é primordial assumir um
compromisso principalmente com os países membros da ONU retoman-
do as premissas da DUDH, compartilhando as responsabilidades, tendo
como foco atenuar os impactos gerados nos países que recebem os refu-
giados, acompanhá-los e garantindo-lhes dignidade, qualidade de vida e
acesso aos mecanismos de amparo, impedindo a eclosão de novos conflitos
nos países de origem, adotando medidas para assegurar a observância dos
elementos elucidados nos documentos de defesa dos direitos humanos.
O PANORAMA DA INCLUSÃO E PROTEÇÃO DOS
REFUGIADOS: CENÁRIO NACIONAL E REGIONAL DA
CIDADE DE LONDRINA
Segundo o (ACNUR-BRASIL, 2018), o Brasil reconheceu até o
final de 2017, 10.145 refugiados de diversas nacionalidades. Vale destacar
que nos últimos cinco anos, as solicitações de refúgio cresceram 2.868%
- em 2010 eram 966 e em 2015 saltou para 28.670. Os sírios ocupam
a maior comunidade de refugiados reconhecidos em solo brasileiro, eles
representam 2.298 pessoas, seguidos dos angolanos 1.420, colombianos
1.100, congoleses 968 e palestinos 376.
Além disso, outro grupo que merece destaque é o drama do fluxo
migratório de venezuelanos em solo brasileiro, desencadeada por uma cri-
se econômica, humanitária e política que se instaurou desde 2013 quando
Nicolás Maduro assumiu a presidência da Venezuela. É mister destacar
que a porta de entrada de venezuelanos se faz pelo estado brasileiro fron-
teiriço de Roraima, sendo que o mesmo não possui infraestrutura ne-
cessária para atender adequadamente essa população gerando um colapso
789
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
que impele o governo brasileiro a realizar um plano de emergência para
responder esse cenário, de modo a gerar um aumento na solicitação de
refúgio:
O ano de 2017 foi o maior em número de pedidos de refúgio, descon-
siderando a chegada dos venezuelanos e dos haitianos. Foram 13.639 pe-
didos no ano passado, 6.287 em 2016, 13.383 em 2015 e 11.405 em 2014.
No total, 33.866 pessoas solicitaram o reconhecimento da condição de
refugiado no Brasil em 2017. Os venezuelanos representam mais da meta-
de dos pedidos realizados, com 17.865 solicitações. Na sequência estão os
cubanos (2.373), os haitianos (2.362) e os angolanos (2.036). Os estados
com mais pedidos de refúgio são Roraima (15.955), São Paulo (9.591) e
Amazonas (2.864), segundo dados da Polícia Federal (ACNUR-BRA-
SIL, 2018).
Estes números indicam que o regime implementado pelo então pre-
sidente está fazendo com que os venezuelanos busquem recursos para so-
breviver de forma digna, sendo que estes estão literalmente na miséria pela
hiperinflação e escassez de alimentos, medicamentos e produtos de higie-
ne pessoal. Contudo, destaca-se que eles não são reconhecidos como refu-
giados, pois refugiados são pessoas que escaparam de conflitos armados ou
perseguições, isso não quer dizer que eles não necessitam de atenção, pelo
contrário, diante dessa situação é preciso intervir com ações efetivas para
banir os rastros de miséria causados pela negligência do governo.
No processo histórico, ao se tratar do tema refugiados, o Brasil teve
papel vanguardista em relação à proteção internacional dos refugiados. É
importante destacar que em 1960, o Brasil foi primeiro país do Cone Sul
a ratificar a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (AC-
NUR, 2019), além de ser um dos primeiros países a integrar o Comitê
Executivo do ACNUR, e pertencer ao Protocolo de 1967. A saber, a Lei
Nº 9.474, de 22 de Julho de 1997 é a primeira lei do ordenamento jurídico
a estabelecer um tratado do Direito Internacional dos Direitos Huma-
nos, que define mecanismos para a efetivação do Estatuto dos Refugiados
de 1951, e determina outras providências específicas para essa população,
como a criação do Comitê Nacional para os Refugiados - CONARE.
Do mesmo modo, se fazem presentes outras instituições e organiza-
ções não governamentais que contribuem na promoção do acolhimento
a essas pessoas vítimas de crises e que buscam fazer valer a DUDH e a
790
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Constituição Federal, de modo a auxiliar esses indivíduos a reconstruí-
rem suas vidas em solo brasileiro, atentando as necessidades próprias deste
grupo, além de promover inclusão social para coibir casos de xenofobia.
Em vista desta conjuntura, existem algumas frentes de trabalho, tais
como, projetos que fomentam a inclusão junto à sociedade brasileira, uni-
do forças em esfera federal, estadual e municipal, paralelamente com asso-
ciações, fundações, instituições religiosas, entre outras com o propósito de
contribuir com a qualidade de vida destes indivíduos.
A Migrafix, por exemplo, com o Projeto Meu Amigo Refugiado,
tem como finalidade promover encontros entre famílias brasileiras e re-
fugiados, visando construir novas amizades e produzindo troca cultural
entre os participantes.
No ano de 2017, mais de 33 mil pessoas haviam pedido refúgio no
Brasil, mas apenas 10 mil já possuem o registro dado pelas autoridades
brasileiras. Esses números vêm crescendo ano a ano por conta das crises na
Síria, Venezuela, República Democrática do Congo, entre outros países.
O Projeto Meu Amigo Refugiado quer aproximar pessoas, conectando
famílias de refugiados e brasileiros em datas especiais, nas casas, em volta
da mesa. É um jeito de ajudar os novos brasileiros a criarem vínculos com
famílias locais, conhecendo mais sobre nossa cultura ao mesmo tempo
em que compartilham suas histórias de vida e a cultura de seus países de
origem (MIGRAFIX, 2018).
Este projeto ilustra muito bem a importância da fraternidade e como
ela contribui para o fomento dos Direitos Humanos, assim como eluci-
da o Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os
homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e de
consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Observam-se também as ações do Instituto de Migrações e Direitos
Humanos (IMDH), que é uma entidade filantrópica, cuja missão é pro-
mover o reconhecimento da cidadania plena de migrantes e refugiados,
atuando na defesa de seus direitos, na assistência sócio-jurídica e huma-
nitária.
Através de uma parceria entre o Ministério da Justiça e com o Mi-
nistério da Educação foram ofertados cursos de Língua Portuguesa através
do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – PRO-
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
NATEC. Estes cursos ocorreram em São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito
Federal.
Outro projeto desenvolvido que merece destaque, é o curso de em-
preendedorismo promovido em parceria com o Serviço Brasileiro de
Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE. Nele foi exposto como
formalizar um empreendimento e como transformar suas ideias em reali-
dade, pois muitos destes refugiados possuem formações acadêmicas e tem
muito a contribuir para o crescimento e desenvolvimento de nossa pátria,
além de ser fonte de renda e sustento de famílias. E no Rio de Janeiro,
segundo a (CÁRITAS-RJ, 2018) o projeto Coletivo de Refugiados Em-
preendedores - CORES realizaram quase 150 horas de capacitação em
empreendedorismo ao longo de seis meses em 2017.
A Cáritas Brasileira é um organismo da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), que atua na promoção de desenvolvimento co-
munitário, social e na defesa dos Direitos Humanos. A Cáritas Arquidio-
cesana de Londrina, com o apoio de outras instituições, vem trabalhando
paulatinamente na garantia da defesa dos Direitos Humanos de pessoas e
grupos que se encontram em situação de vulnerabilidade, que infelizmen-
te são esquecidos ou negligenciados. Seu trabalho tem como carisma o
Evangelho, atuando com os migrantes e refugiados.
Os grupos atendidos pela Cáritas são haitianos em sua maioria – que
residem em Londrina que se dividem na zona norte, oeste e centro, e
nos municípios vizinhos Cambé e Rolândia -, bengaleses - que trabalham
em frigoríficos, no abate religioso de frangos voltado em direção à cidade
Sagrada de Meca -, os senegaleses - que trabalham no comércio em sua
maioria -, e em menor número bolivianos, colombianos e paraguaios que
ocupam diversos postos de trabalho.
Toda ajuda é bem-vinda e necessária, espera-se unir forças criando
ambiência através do compartilhamento de responsabilidades e atuar em
conjunto, acolhendo, promovendo dignidade, qualidade de vida e geran-
do independência, pois eles têm muito a contribuir para nossa sociedade.
CONCLUSÃO
A crise dos refugiados elucida claramente que ainda há muito a ser
feito, em virtude dos dramas vivenciados por essas pessoas, neste sentido
792
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faz-se necessário realizar ações específicas a essa população em conjunto
com a comunidade internacional, a fim de assegurar o compromisso com
a proteção e a integração dessas populações vulneráveis.
Em meio a esta situação, é inconcebível que os países permaneçam
estáticos em detrimento desta crise que anualmente vem crescendo ex-
ponencialmente. Esses números representam pessoas que estão sofrendo
gravemente pela violação dos Direitos Humanos, e encontram-se à mercê
do contingenciamento do local em que buscam abrigo.
Salienta-se ainda que, ao invés de desenvolver melhores instrumentos
de refúgio, alguns países erigem mais barreiras dificultando ainda mais a
vida daqueles que enfrentam tantos problemas, gerando maiores adversi-
dades e as consequências desta situação são cada vez mais graves. Certa-
mente, isso indica que não está havendo a promoção das medidas elucida-
das na Declaração Universal dos Direitos Humanos, pois a mesma não faz
distinção de ninguém.
É preciso buscar soluções sustentáveis, com o compartilhamento de
responsabilidades, pois se continuarem nesta situação qual será o futuro da
humanidade? É preciso quebrar paradigmas e buscar ações efetivas, para
um mundo mais fraterno, como visa a Cáritas, o CONARE, o IMDH, a
Migrafix, entre outras instituições que realizam forças-tarefas em prol da
dignidade da pessoa humana.
Ressalta-se que existem alguns pontos que precisam ser analisados e
observados de acordo com a realidade de cada localidade, e através dos ele-
mentos encontrados ir à fonte do problema, buscar prevenir e solucionar
as crises existentes, adotar estratégias específicas para que se possa trazer
um fim para os conflitos que geram tantos sofrimentos.
Em vista disso, conclui-se que se faz necessário a observância da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, um instrumento magnâ-
nimo que visa salvaguardar a vida humana e preservar sua dignidade.
Além de se estruturar medidas que possam estabelecer um fim para os
conflitos, que fomentam tantas migrações, através de Políticas Humani-
tárias Internacionais com todas as nações integrantes da ONU, para que
todas as pessoas sem distinção possam efetivamente usufruir daquilo que
mais se almeja, o fim de conflitos que geram perseguições e o estabele-
cimento da paz.
793
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ROSA, Ubiratan. Enciclopédia Brasileira de Direitos Humanos,
Educação, sociologia, Moral e Civilismo. Vol. 1. São Paulo-SP:
Novo Brasil Editora, 1978.
794
ARTIGOS – RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS E
MULTICULTURALISMO
795
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
796
O ENCARCERAMENTO DE
MULHERES NEGRAS NO BRASIL E
NO ESPÍRITO SANTO E A POLÍTICA
SOBRE DROGAS
Bruno Lopes da Silva190
Dilelcia de Freitas Reis191
Gilsa Helena Barcellos192
Jônatas Corrêa Nery193
INTRODUÇÃO
O Espírito Santo é um estado que tem se destacado nacionalmente
quando se trata de violência doméstica, feminicídios e encarceramento de
mulheres. Lamentavelmente, possui uma das maiores taxas de homicí-
dios de mulheres por 100 mil habitantes do Brasil, estando na 8ª posição
com uma taxa de 7,5%. Quando se tratam de mulheres negras essa taxa é
ainda maior. Em 2017, o estado capixaba alcançou uma taxa de 9,5% de
homicídios de mulheres negras por 100 mil habitantes, estando entre os
190 Graduando do curso de Serviço Social da UFES e orientando PIIC/Fapes da presente
pesquisa.
191 Graduanda do curso de Serviço Social da UFES.
192 Professora do Departamento de Serviço Social da UFES e orientadora PIIC/Fapes da
presente pesquisa.
193 Possui Graduação em Ciências Econômicas, Mestrado em Política Social (PPGPS) e Gra-
duando do curso de Serviço Social, ambos pela UFES. É pesquisador do Núcleo de Estudos,
Pesquisa e Extensão sobre Direitos Humanos, Violência e Segurança Pública (NEVI-UFES).
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
cinco estados brasileiros com mais casos de feminicídio de negras. A rea-
lidade da mulher negra – sobrecarregada pela sua condição no tripé raça/
gênero/classe social – provoca a realização de pesquisa nas diversas áreas da
ciência. Este artigo busca contribuir na análise acerca do encarceramento
da mulher negra, entendendo que o seu aprisionamento tem uma relação
direta com o tripe acima mencionado, configurando o Estado como um
dos principais violadores dos seus direitos humanos.
O presente artigo é resultante de uma pesquisa, no campo das ciên-
cias sociais aplicadas, realizada entre julho de 2019 e setembro de 2020,
registrada junto à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Univer-
sidade Federal do Espírito Santo (PRPPG) e que contou com uma bolsa
de iniciação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa e à Inovação do
Espírito Santo (FAPES). Os objetivos que norteram a investigação foram:
estudar a relação entre encarceramento e a política sobre drogas no Brasil;
analisar os dados referentes ao encarceramento de mulheres negras; levan-
tar dados comparativos segundo gênero/sexo e raça/etnia da população
encarcerada no Brasil e no Espírito Santo.
Os procedimentos metodológicos adotados foram: pesquisa biblio-
gráfica e a pesquisa documental em fontes de acesso público. A relevância
deste trabalho está no fato de se buscar ampliar os estudos e pesquisas acer-
ca dos determinantes do encarceramento de mulheres negras no Brasil e
Espírito Santo, assim como contribuir para o debate no âmbito acadêmico
acerca da relação entre racismo, gênero/sexo, classe social, política sobre
drogas e encarceramento.
1. O ENCARCERAMENTO NEOLIBERAL E A POLÍTICA
SOBRE DROGAS
Nos anos de 1970, o autor crítico latino-americano Eduardo Galea-
no publicou seu livro “Veias Abertas da América Latina”. Na introdu-
ção da obra, escreveu: “Quanto mais liberdade se concede aos negócios,
mais cárceres precisam ser construídos para aqueles que padecem com os
negócios” (GALEANO, 2014, p. 17). O seu diagnóstico ocorreu num
momento de crise estrutural do capital que resultou na implementação do
projeto neoliberal, no desmonte do Estado de bem-estar social na Europa
e na restruturação produtiva, significando um ataque mais intenso da clas-
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se dominante aos interesses da classe trabalhadora. Como assinalado por
Giovanni Alves (2012, p. 1), a crise estrutural do capital “[...] inaugurou
uma nova temporalidade histórica do desenvolvimento civilizatório, ca-
racterizada por um conjunto de fenomenos sociais qualitativamente novos
que compõem a fenomenologia do capitalismo global com seus “trinta
anos perversos”” (1980-2010).
No que se refere ao processo de reestruturação produtiva do capital,
Alves (2012, p. 1) infere que este exigiu “[...] um complexo de inova-
ções organizacionais, tecnológicas e sociometabolicas nas grandes empre-
sas e na sociedade em geral sob a direção moral-intelectual do “espírito
do toyotismo””. Mais ainda, “a manipulação reflexiva ou a “captura” da
subjetividade tornou-se efetivamente o modo de operar do controle so-
ciometabolico do capital.” (ALVES, 2012, p.1).
A saída para a superação da crise foi a demissão em massa de traba-
lhadoras e trabalhadores, o que levou ao aumento expressivo do exército
industrial de reserva e aprofundou o processo de exploração da força de
trabalho empregada, processo necessário à acumulação e concentração de
riquezas pelos capitalistas. Para conter os insatisfeitos, o Estado ampliou o
uso de seus instrumentos coercitivos. A saída para enfrentar as manifesta-
çãoes da questão social que se apresentavam naquele momento foi a cri-
minalização dos trabalhadores(as) e dos movimentos sociais que reagiam
ao desmonte das políticas sociais e ao desemprego em massa. A postura
coercita dos Estados – expressa na ação da polícia e da Justica – contribuiu
para o aumento substancial da população carcarária em nível mundial.
Se Margaret Thatcher, a Primeira Ministra inglesa entre os anos de
1979 a 1990, conhecida como a dama de Ferro, inaugurou as políticas
neoliberais na Europa, nos Estados Unidos, Ronald Reager, presidente
estadunidense entre os anos de 1981 e 1989, foi considerado o precursor
na implementação das ações de perfil neoliberal em seu país. No entanto,
diferentemente de Thatcher, que assumiu um governo com tradição de
políticas sociais amplas e, em sua maioria, de caráter universal, por isso, o
seu desmonte enfrentou uma reação mais incisiva da classe trabalhadora,
nos Estados Unidos, em função do alto investimento na indústria bélica,
os antecessores de Reagar já vinham desenvolvendo uma política austera
em relação às políticas sociais. Ou seja, já estavam em curso no país ações
de contenção das insatisfações dos(das) trabalhadores(as). Soma-se a isso
799
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
o fato de os Estados Unidos investirem ideo-política e logísticamente na
implantação das ditaduras civil-militares na América Latina. Todas essas
ações, dispendiosas economicamente, visavam ao fortalecimento do polo
anticomunista na chamada Guerra Fria na disputa de dois principais pro-
jetos “Socialismo x Capitalismo”.
Dentre as táticas adotadas naquele período que tiveram repercussão
interna e externa194 foi o combate intransigente ao uso e ao tráfico de
drogas. Entre as décadas de 1970 e 2000, os Estados Unidos registraram
uma elevação vertiginosa do encarceramento, saindo, nos anos de 1970, de
100 presos por 100 mil habitantes para, nos anos 2000, 500 presos por 100
mil habitantes, de acordo com Vogel (2003). Essa elevação contou com
a política do presidente Richard Nixon (1969-1974), que adotou como
lema “Guerra às Drogas”. Num discurso proferido em 1971, Nixon disse
que a droga era o inimigo número um dos Estados Unidos, e que para
derrotar esse inimigo era necessária uma batalha ofensiva, que essa batalha
tinha que ser mundial (NIXON, 2016). Essa postura objetivava afirmar
o país como potência dominante no cenário mundial, por isso, a guerra
às drogas tornaria-se uma justificativa política e ética para os processos de
invasões territoriais, golpes de Estado e guerras, principalmente em torno
da América Latina, atacando os povos latinos, nativos, negros, considera-
dos “classes perigosas”.
A edição da Lei brasileira nº 6.368, de 1976, conhecida com a lei
antidrogas, seguiu as Convenções Internacionais sobre drogas coman-
dadas pelos Estados Unidos e sua matriz proibicionista, o que resultou
num crescimento intenso do encarceramento no Brasil. Uma política útil
à estratégia dos governos militares, que a utilizavam para criminalizar não
apenas usuários e traficantes, mas militantes de organizações políticas que
faziam o enfrentamento à ditadura. Com o passar do tempo, devido à sua
formação social capitalista-racista, foi utilizada para aprisionar, preferen-
cialmente, negros(as) e pobres.
No final da década de 1980, com a implementação do projeto neo-
liberal proposto pelo Consenso de Washington195, o Brasil, inserido na
194 A influência externa se registra de inúmeras formas, entre elas a instituição de tratados
e convenções internacionais relacionados ao combate as drogas.
195 Iniciativa dos países capitalistas centrais em determinar uma série de políticas neolibe-
rais voltadas para os países subdesenvolvidos da América Latina.
800
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
realidade dos países periféricos latino-americanos, passou a realizar a rees-
truturação produtiva juntamente com a adoção de políticas neoliberais,
porém com formas e conteúdos próprios, dado o seu passado escravagista
e colonial.
Insta registrar que a transição para o capitalismo sem um processo
revolucionário (FERNANDES, 1968) e sua posição na geoeconomia,
configurando-se como um país de economia dependente dos países do
centro capitalista, não permitiu que o Brasil rompesse com o seu passado,
ficando preso a um processo de modernização conservadora, marcada pela
superexploração do trabalho, racismo e o patriarcado.
O Estado penal foi uma característica marcante do Estado neoliberal
brasileiro. A atuação criminalizadora e coercitiva do Estado brasileiro foi
implacável particularmente com jovens negros e pobres. No início dos
anos de 1990, quando as políticas neoliberais começaram a ser implemen-
tadas, a população carceraria era de 90 mil presos(as), no fim dos anos de
1990, o número de presos(as) já chegava a 194 mil, 100 mil a mais em
praticamente uma década, um aumento de 115,6%, permanecendo a ele-
vação nos anos 2000 (BRASIL, 2014).
Dos anos de 1990 a 2014, o Brasil teve um aumento de 575% de sua
população carcerária (BRASIL, 2014), chegando a 607,7 mil encarcerados/
as, permanecendo a tendência de aumento, o que demonstra uma política
do encarceramento como resposta às expressões da “Questão Social”.
Avançando três anos na história (2014 a 2017), o Brasil ultrapassou
a Rússia em número de encarcerados (as), segundo o relatório sobre en-
carceramento da Universidade de Londres (2018), tornando-se o terceiro
país do mundo em números absolutos de pessoas aprisionadas, ficando
atrás somente dos Estados Unidos, com mais de 2 milhões, e China, com
mais de 1,6 milhões de aprisionados/as (UNIVERSIDADE DE LON-
DRES, 2018).
Em três anos, o país aumentou, aproximadamente, 120 mil aprisiona-
dos(as) atingindo a marca de 726 mil encarcerados(as), desse quantitativo
63,64% eram negros(as) (pretos(as) + pardos(as)), 35,48% de brancos(as),
0,67% de amarelos(as) e 0,22% de indígenas (BRASIL, 2017). No ano de
2018 o país atingia 744 mil encarcerados(as), sendo que mais de 399 mil
eram negros(as) (pretos(as) + pardos(as)), mais de 527 mil não tinham a
educação básica (fundamental e médio) concluída, mais de 537 mil enqua-
801
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
drados(as) no grupo de crime contra o patrimônio e crimes relacionados às
drogas, sendo mais de 178 mil enquadrados(as) no artigo 12º da Lei nº 1976
e artigo 2º da Lei nº 11.343/2006 (BRASIL, 1976; BRASIL, 2006).
Os dados revelam que o encarceramento aumenta cada vez mais no
Brasil, que tem fundamento na crise neoliberal, como necessidade de os
capitalistas defenderem sua propriedade privada e controlarem a popula-
ção trabalhadora, principalmente a população negra, estabelecendo uma
relação direta com a política de drogas. Hoje, quando analisadas as prin-
cipais causas do encarceramento no Brasil, as drogas aparecem no topo.
Apesar de o País ter descriminalizado o porte para o uso, as mediações
são complexas entre o que está na lei e a forma como os agentes públicos a
aplicam, por isso, muitos(as) usuários(as) estão presos(as), enquadrados(as)
como traficantes.
1.1 Política de Drogas
A droga é uma substância química psicoativa, o Direito divide as
substâncias psicoativas em dois tipos: ilícitas e licita. Abordaremos aqui
a droga ilícita, que é a novidade histórica recente, que assumiu a forma
mercadoria e é “alvo de uma guerra” que se relaciona com o fenômeno do
encarceramento. A chamada “Guerra às Drogas” surgiu como estratégia
dos Estados Unidos em se tornar país dominante em escala mundial, o que
partiu de uma disputa com os britânicos meados do século XVIII e início
do século XIX, essa disputa é marcada pelas Guerras do Ópio (1839-
1842 e 1856-1860) que colocou chineses e ingleses em confronto direto,
os ingleses na defesa do comércio do ópio e os chineses na defesa de sua
economia e na defesa da questão sanitária.
Interessados em se aproximar da China, os estadunidenses avançaram
na construção da matriz proibicionista, construção que passou principal-
mente pelas convenções internacionais196 que reúnem diversos países com
o objetivo de fazer um acordo internacional em torno das drogas.
O Brasil, em posição subordinada como país de economia dependen-
te, vai reproduzir em suas leis sobre drogas a matriz proibicionista estadu-
nidense da “Guerra às Drogas”. De 2003 a 2018 uma nova lei sobre dro-
196 As principais delas: Psicotrópicas (1971) e a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entor-
pecentes e Substâncias Psicotrópicas (1988).
802
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
gas foi aprovada, a Lei Nº 11.343/2006, que “[...] estabelece normas para
repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define
crimes” (BRASIL, 2006, p. 1). Essa lei instituiu o Sistema Nacional de
Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). Um documento da Sisnad dis-
ponibilizado pela Câmara dos Deputados apresenta uma introdução com
o título “O Brasil na Luta para Vencer as Drogas”, no qual a droga é con-
siderada “uma das mais graves ameaças ao desenvolvimento socioeconô-
mico das nações” (BRASIL, 2012, p. 7), o que tem acordo com a política
de guerra às drogas do presidente Nixon, tratada como uma inimiga a ser
combatida pelas nações de todo o mundo.
A novidade é que em tese essa nova lei elimina a pena de prisão para
os(as) usuários(as) de drogas.
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar
ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das
drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida edu-
cativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1º Às
mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, se-
meia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena
quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência
física ou psíquica (BRASIL/Lei nº 11.343/2006).
No entanto, no parágrafo seguinte, temos que:
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o
juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida,
ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circuns-
tâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes
do agente (BRASIL/Lei nº 11.343/2006).
O que permite a criminalização da população pobre e negra, já que a
construção social brasileira é racista-capitalista, com um passado escravista,
um passado que não foi eliminado completamente e aparece no presente na
forma da superexploração dos(as) trabalhadores(as), do controle social e da
violência. Portanto, julgar a localidade, o contexto, a ação, às circunstâncias
803
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
sociais e pessoais é julgar com base na construção social racista-capitalista,
ou seja, o julgamento não é neutro, ele acompanha a relação social histórica
que determina quem é o(a) criminoso(a) no Brasil. Orlando Zaccone, dele-
gado da Polícia Civil, relatou em sua dissertação de mestrado:
Lembro-me da passagem em que um delegado do meu concurso, lo-
tado na 14 DP (Leblon), autuou, em flagrante, dois jovens residentes da
zona sul pela conduta descrita para o usuário, porte de droga para uso
próprio, por estarem transportando, em um veículo importado, 280 gra-
mas de maconha. Para se ter uma idéia do que isso representa em ter-
mos quantitativos, um bom cigarro de maconha tem um grama, segun-
do Bob Marley, o que equivaleria a 280 "baseados" do estilo jamaicano.
O meu amigo se convenceu de que a quantidade não era determinante
para prendê-los no tráfico, uma vez que a forma com que a droga estava
condicionada, dois volumes prensa dos, bem como o fato de os rapazes
serem estudantes universitários e terem emprego fixo, além da folha de
antecedentes criminais limpa, era indiciário de que o depoimento deles,
segundo o qual traziam a droga para uso próprio, era pertinente (D'ELIA
FILHO, 2007, p.7).
Enquanto:
Em dezembro de 2017, Eliane foi condenada por tráfico de drogas.
Mulher negra, seu crime, enquadrado no artigo 33 da Lei de Drogas,
foi carregar no cós da calça 1,4 grama de maconha. Eliane visitava o
filho, que cumpria pena na Fundação Casa, em São Paulo, quando
foi flagrada na revista íntima (BARCELOS; DOMENICI, 2019, p.1).
Esses exemplos mostram o falso rompimento com o conservadorismo
das leis sobre drogas, a penalização da população negra e pobre continua,
melhor, ela avança, pois a outra novidade da nova lei de drogas é o aumen-
to do tempo mínimo de prisão para aqueles enquadrados pelo crime de
tráfico de drogas, que de 3 anos de prisão foi para 5 anos.
Como trouxe Pachukanis, “[...] a riqueza da sociedade capitalista assu-
me a forma de uma enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se
apresenta como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas” (2017, p.97).
Expressando a forma mercadoria, a lei vai penalizar quem não realizar a troca
dos “direitos e deveres”, de um lado o Estado e de outro o indivíduo cidadão.
A população negra, marcada pela violência histórica, não pode cumprir com
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o “contrato social” estabelecido de obedecer à constituição burguesa, dessa
forma, vai ser alvo da punição do Estado, do controle à eliminação.
2 O ENCARCERAMENTO DE MULHERES NEGRAS NO
BRASIL E NO ESPÍRITO SANTO
2.1. O encarceramento de mulheres no Brasil
No ano de 2016, o Brasil atingiu a marca de 42,3 mil mulheres pre-
sas, só que esse dado pode ser ainda maior, já que 12 estados, inclusive o
Espírito Santo, não informaram o número de mulheres custodiadas197 em
carceragens de delegacias em Junho de 2016 (BRASIL, 2018).
No Gráfico 1 podemos observar a evolução do encarceramento de
mulheres no Brasil.
Fonte: BRASIL (2018, p.15).
O crescimento do encarceramento feminino de 2000 a 2016 foi de
656%, já o crescimento do encarceramento masculino nesse mesmo pe-
ríodo foi de 293%, ou seja, o aumento do encarceramento de mulheres
foi, em termos percentuais, mais que o dobro do encarceramento de ho-
mens. A taxa de encarceramento de mulheres no país é de 40,6% a cada
100 mil habitantes. Do total de 42,3 mil mulheres presas, 19,2 mil não
197 Prisão preventiva.
805
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haviam sido julgadas, significando 45% de mulheres presas sem condena-
ção (BRASIL, 2018).
A metade das encarceradas é jovem (de 18 a 29 anos). Os outros 50%
são compostos por 48% de adultas e 2% de idosas. Apenas 15% finaliza-
ram o Ensino Médio; 62% das mulheres são solteiras; 74% das mulheres
têm filhos; 41% das mulheres foram condenadas pelo período entre 4 anos
e 8 anos de prisão; 62% das mulheres respondem por crime ligado à dro-
gas, número maior que o dobro quando comparamos com o dado geral
(homens e mulheres) que é de 24,04% (BRASIL, 2018).
No Gráfico 2 é possível ver a relação de raça/etnia/cor de mulheres
presas no Brasil em 2016.
Fonte: BRASIL (2018, p.40)
A raça/etnia que se destaca é de mulheres negras (pardas + pretas): são
62%, enquanto mulheres brancas 37%. Observando em números brutos,
temos uma melhor dimensão da desigualdade racial, pois, 25,5 mil pre-
sas são negras, enquanto 15 mil são brancas, uma diferença de 10,5 mil
(BRASIL, 2018).
2.2. O encarceramento de mulheres negras: o caso
espírito-santense
No Espírito Santo (ES), em 2018, o número de presos(as) totalizava
23 mil, sendo 8.299 jovens (de 18 a 29 anos), 11.594 negros(as) (pardos(as)
806
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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+ pretos(as)), 2.934 brancos(as) (a cor/etnia/raça de 8.214 presos(as) não
foi informado), uma taxa de 74,7% de negros(as) encarcerados(as), 11.924
não finalizaram ensino básico (infantil, fundamental e médio), 6.629 foram
condenados(as) a mais de 4 anos de prisão. Os dois tipos de crimes que se
destacam são aqueles relacionados à política de drogas, com 5.150 presos(as),
e aqueles contra o patrimônio, com 4.734 presos(as) (BRASIL, 2018).
Em relação ao encarceramento de mulheres, é possível observar no
Gráfico 3 a evolução de 2003 a 2018.
Fonte: BRASIL (2018, p. 19)
No ano de 2003, eram menos de 400 mulheres aprisionadas. De 2003
até 2009, houve um aumento sem oscilações superando o número de 1000
aprisionadas. De 2009 a 2016, houve algumas oscilações, mas se manteve
acima de 800 aprisionadas, sendo que, no ano de 2012, foram mais de
1200 encarceradas. De 2016 a 2018, ocorreu uma elevação chegando, em
2018, a 1200 encarceradas outra vez.
O Espírito Santo está entre os 10 estados brasileiros com maiores ta-
xas de encarceramento feminino, é o 8º da lista, com 55,1 mulheres presas
para cada grupo de 100 mil mulheres, tendo uma taxa maior que a brasi-
leira, que é de 40,6. Em números absolutos, o estado capixaba se encontra
na 11º posição.
Esse número de 1200 mulheres encarceradas em 2018 pode ser maior,
já que o encarceramento de mulheres custodiadas em delegacias não foi
contabilizado. A maioria dessas mulheres é adulta, somando 472.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
No Gráfico 4 temos a relação de raça/cor/etnia.
Fonte: BRASIL (2018, p. 45)
A maioria das mulheres presas no Espírito Santo é negra (pardas +
pretas) totalizando 622 negras, o que quer dizer que 74,8%das mulheres
encarceradas no ES são negras, 157 mulheres são brancas. Comparando
com o número nacional de 62%, proporcionalmente o Espírito Santo en-
carcera mais mulheres negras que o Brasil. A maioria das mulheres encar-
ceradas no estado capixaba é solteira, totalizando 548. Somando o núme-
ro das que não tiveram o ensino básico (infantil, fundamental e médio)
concluído temos 537 mulheres. 40% das mulheres encarceradas foram
condenadas entre 8 anos e 15 anos de prisão, enquanto a nível nacional
a maior taxa, de 41%, está no tempo de condenação “mais de 4 anos até
8 anos”. Isso significa que a maioria das mulheres aprisionadas no estado
começa no regime fechado, pois a pena ultrapassa os 8 anos. 619 mulhe-
res foram aprisionadas com base na política de drogas (BRASIL, 2018).
Em 2016, 71% das mulheres foram enquadradas pelo crime de tráfico de
drogas, enquanto a taxa nacional era de 62%. Na relação entre os estados
o Espírito Santo fica na 8ª posição, figurando, então, entre os 10 estados
brasileiros que mais encarceram mulheres pelo crime de tráfico de drogas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados e as discussões exibidas na presente pesquisa constatam a
existência do sistema de opressão e exploração racista-patriarcal-capita-
lista no fenômeno do encarceramento de mulheres negras no Brasil e no
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Espírito Santo, assim como confirma a relação direta entre a política de
drogas e a intensificação do controle sobre as mulheres negras. A maioria
das mulheres presas no Brasil e no Espírito Santo é negra e condenada
pelo crime de tráfico de drogas, apesar dessa preferência não estar evidên-
ciada nas leis, ela decorre do elemento objetivo da realidade e subjetivo
de quem julga, que se baseia na formação social brasileira que assimila o
arcaico, escravista colonial, e o moderno, capitalista.
O presente diagnóstico revela que a eliminação da problemática do
encarceramento de mulheres negras não pode ocorrer sem que se enfren-
te o racismo, o partriarcado e a ordem capitalista, sendo necessária uma
disputa pela superação não só do Estado penal, mas do Estado como um
todo, instaurando uma nova sociedade sem classes e opressões.
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810
PRÁTICA PEDAGÓGICA
ANTIRRACISTA COMO GARANTIA
DE DIREITOS DOS ALUNOS AFRO-
BRASILEIROS
Rosangela Coêlho Costa198
1 INTRODUÇÃO
A educação brasileira vem passando por importantes reformas visando
a aprimoração da prática pedagógica e a qualidade do ensino aos discentes.
Repensar em inovações no sistema de ensino brasileiro requer uma análise
na reestruturação das formas de oferecimento dos serviços públicos edu-
cacionais e no processo histórico da educação. E analisar como a educação
brasileira acolheu a população negra nas suas instituições de ensino. A
evolução histórica educacional brasileira organizada desde a colonização
até a fase da República tem a sua história arranhada pela omissão e pelo
descaso com a educação da população negra, da qual foi tirado o direito de
ocupar o seu espaço na escola.
Com base no Decreto n.º 1.331, datado de 17 de fevereiro de 1854,
era oficialmente negada aos negros escravizados a admissão em escolas
públicas brasileiras, enquanto que para os negros em fase adulta existia
uma previsão para a sua instrução, caso houvesse disponilbidade do
198 Mestra em Educação. Gestão de Ensino da Educação Básica (UFMA). Membro do Grupo
de Pesquisa Grupo de Estudo e Pesquisa Investigação Pedagógica de Estudos Afro-brasilei-
ros (Gipeab/UFMA). Docente da Educação Básica (SEMED/São Luís - MA; SEMED/São José
de Ribamar – MA).
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professor. Seguindo a ordem de um novo decreto – n.º 7.031-A, de 06
de fevereiro de 1878 , o negro poderia estudar somente no turno da
noite. A partir daí surgiram infinitas vias que impossibilitaram o negro
de ter acesso à escola, ou seja, o direito à educação foi-lhe subtraído
(PEREIRA, 2007).
Salientamos que a política educacional brasileira sempre foi pensada
para satisfazer às necessidades de uma classe social favorecida, elitizada, e
privilegiada: a branquitude. Nos moldes da educação primitiva, as rela-
ções de privilégios já coexistiam, a apropriação do conhecimento era para
poucos e muitos ficavam desprovidos de quaisquer meios de instrução, ou
seja, a existência humana subalterna era negada pela sociedade que pode-
ria custear e oportunizar os meios educativos a essa parte dos indivíduos
que viviam na exclusão social.
A pesquisa em foco discorre sobre a forma como se organizou o
descaso com a educação da população negra, fazendo uma análise da
trajetória educacional na conjuntura política e social, da projeção do
racismo institucional recorrente na atualidade brasileira, fazendo rela-
ção com a prática pedagógica antirracista como forma de rompimento
com a visão eurocêntrica e desigual de ensino. A referida investigação
é produto de estudos bibliográficos sobre a educação para as relações
étnico-raciais. A pesquisa bibliográfica faz parte da nossa escolha por
nos proporcionar o contato com diversaras pesquisas já realizadas nesse
campo investigativo (MARCONI; LAKATOS, 2003). Faz parte tam-
bém da nossa trajetória enquanto pesquisadora do Grupo de Estudo e
Pesquisa Investigações Pedagógicas de Estudos Afro-brasileiros (GI-
PEAB) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Os instru-
mentos de coletas de dados foram análises documental e bibliográfica
de estudos feitos sobre a educação da população negra brasileira e prá-
tica pedagógica antirracista.
Desse modo, o referido trabalho consiste em duas partes distintas
dissertadas. Na primeira parte fazemos um recorte histórico da edu-
cação brasileira e a negação de direitos do negro na sala de aula. Na
segunda parte discutimos as práticas pedagógicas antirracistas na imi-
nência da garantia de direitos dos discentes afro-brasieiros, e por fim,
as considerações finais com nossas percepções a respeito das discussões
aqui tratadas.
812
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2 RECORTE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA: a
negação de direito do negro à sala de aula
“Todos nos, homens e mulheres somos feitos de diversidade. Esta ,
embora esconda também a semelhança, é geralmente traduzida em dife-
renças de raças, de culturas, de classe, de sexo ou de gênero, de religião, de
idade,etc. A diferença está na base de diversos fenômenos que atormentam
as sociedades humanas. As construções racistas, machistas, classistas e tan-
tas outras não teriam outro embasamento material, a não ser as diferenças
e as relações diferenciais entre seres e grupos humanos.” (Kabengele Mu-
nanga).
A escravização dos negros africanos no Brasil torna negativa a cida-
dania. O processo escravizatório no Brasil ocorreu em meados do sécu-
lo XVI tendo continuidade e um número maciço de negros, aproxima-
damente 3 milhões de escravizados faziam parte da população brasileira
oriunda do tráfico dos negros africanos pelo ano de 1882. Vale ressaltar
que o processo de importação ilegal dos negros escravizados ocorreu de
forma contínua até o ano de 1850. Esse período da história brasileira é
marcado pela conjuntura negativa da construção da cidadania do povo
brasileiro, que se estruturou em decorrência da escravização dos negros
(CARVALHO, 2012).
A cultura político-educacional brasileira se desenvolve no berço de
um ensino de exclusão racial e social. A forma como se estabeleceu a orga-
nização educacional na sociedade brasileira perpassou por ações políticas
de extrema segregação racial que se instrumentalizaram em racismo ins-
titucional. Historicamente a negação de direitos do negro a frequentar a
escola, perdurou por séculos; os afro-brasileiros permaneciam renegados
e em condição de subalternidade severa. Partindo dessa premissa, a ex-
clusão do negro da sala de aula é oficialmente percebida desde o Decreto
do período Colonial de 1824; tal documento já registrava que a educação
primária e gratuita era garantida a todos os cidadãos brasileiros, menos aos
negros, que eram proibidos de frequentar os estabelecimentos de ensino,
salvo os negros libertos que tinham a concessão de fazer uso da escola
(PEREIRA, 2007).
A educação brasileira inicialmente foi introduzida pelos ensinamen-
tos dos jesuítas, que desempenhavam o importante papel de educadores.
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Foi montado um plano de ensino elaborado para a educação de indígenas
e filhos de colonos portugueses, que logo depois ganhou notoriedade. Os
jesuítas desenvolveram o papel de educadores até meados do século XVII,
quando teve fim com a expulsão articulada pelo primeiro-ministro do Rei
de Portugal D. José I, O Marquês de Pombal.
A história da educação brasileira se inicia quando:
O Brasil entra para a história da “Chamada civilização Ocidental”
exatamente ao abrir-se ao século XVI. Sua história coincide, pois,
com o período caracterizado pelo surgimento e desenvolvimento
da educação pública. As relações entre Estado e Educação no Brasil
remontam às origens de nossa colonização. Quando os primeiros
jesuítas aqui chegaram em 1549, chefiados pelo padre Manoel da
Nóbrega, eles cumpriam mandato do Rei de Portugal, D. João III,
que formulara, nos “Regimentos”, aquilo que poderia ser conside-
rado a nossa primeira política educacional (SAVIANI, 2015, p. 4).
A partir desse processo foram estabelecidas outras formas de políticas
educacionais brasileiras. Exemplificamos as aulas mantidas pela Coroa no
ano de 1772, logo após o fechamento das escolas jesuítas, ocorrido ofi-
cialmente pelo Alvará de 28 de junho de 1759. Salientamos que a partir
daí instalou-se uma reforma educacional que era contrária à prática de
ensino religioso dos jesuítas, ficando conhecida como reforma pombali-
na, originada do nome do Marquês de Pombal. A educação pensada para
a população negra nem era cogitada, pois a existência humana do negro
era despercebida, desvalorizada e eram negados seus principíos e valores
morais e sociais. Na visão eurocêntrica do escravista a:
Escravidão e grande propriedade não constituiam ambiente favorá-
vel à formação de futuros cidadãos civis básicos à integridade física
(podiam ser espancados), à liberdade e em casos extremo, à própria
vida, já que a lei os considerava propriedade do senhor, equiparan-
do-os a animais. Entre escravos e senhores, existia uma população
legalmente livre, mas a que faltavam quase todas as condições para
o exercício dos direitos civis, sobretudo a educação (CARVA-
LHO, 2012, p. 21).
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Em 1878 foi instaurado o decreto de n.° 1.331, datado de 17 de feve-
reiro, o qual determinava que os negros poderiam ter acesso aos estudos
no turno noturno, porém, houve várias restrições por parte dos coloniza-
dores, que dificultaram o acesso dos negros à escola.
Percebemos que a base histórica da educação brasileira era construída
por políticas educacionais que segregavam pessoas da etnia negra, povo
que contribuiu para a formação populacional e econômica do país com a
sua força de trabalho explorada por séculos, porém não houve nenhuma
retribuição ou reparação social aos descendentes de africanos nesse con-
texto histórico aqui tratado. Era notório que “entre os escravos e senho-
res existia uma população legalmente livre, mas a que faltava quase todas
as condições para o exercício dos direitos civis, sobretudo a educação”
(CARVALHO, 2012).
Nesse conjunto de ideias que formalizou o processo excludente do
negro à educação, notamos que foram vários momentos distintos que ca-
tegorizaram por efeito ilegal a sua proibição ao espaço educativo. O Brasil
passou por várias reformas educacionais; a cada passo evolutivo ainda é
perceptível a falta de uma política educacional compromissada a atender a
toda a sociedade de forma igualitária. Assim, na era do Brasil República
nasce a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de n.º 4.024, de 20 de
dezembro de 1961. Em sequência, a LDB n.º 5.540/68 e a n.º 5692/71,
ambas as reformas educacionais perpassaram pelo momento histórico da
ditadura; posteriormente necessitaram de novas reformulações na pers-
pectiva de garantia de direitos a todos.
Nasce, então, em 1988 a Constituição Brasileira em vigor, que insti-
tui o Estado democrático de prerrogativas para assegurar os direitos sociais
e civis do cidadão brasileiro. Portanto, quando se trata da Educação, é ga-
rantida na forma da Lei como direitos de todos, sem distinção, conforme
o artigo 205 que expõe: “A educação, direito de todos e dever do Estado e
da Família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 2012, p. 121).
Com bases na Constituição Brasileira de 1988, a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação – LDB foi pensada com parâmetros educacionais que
garantissem direitos, oportunidades e qualidade de ensino aos cidadãos
brasileiros de forma igualitária. Desse modo, a nova LDB, n.º 9394/1996,
815
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se consagra pelas importantes reformulações educacionais estabelecidas e
como a que mais contempla interesses comuns no sentido de qualidade e
igualdade na política educacional brasileira.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), importante ferra-
menta que trouxe propostas curriculares necessárias a se fazer no campo
pedagógico, sugerem que os conteúdos de história africana sejam inseri-
dos nos conteúdos de forma transversal no contexto da pluralidade cul-
tural, apontando novos desafios aos (às) professores (as). Logo a LDB n.º
9.394/1996 sofre alteração com a inclusão de artigos que introduzem o
desenvolvimento e a preparação dos (das) alunos (as) à reflexão sobre o
processo histórico-social, cultural, econômico, político e de identidade
étnico-racial na visão positiva em relação à contribuição da população ne-
gra nesses aspectos apontados.
A Lei n.º 10.639/2003 foi sancionada pelo então Presidente da Repú-
blica Luís Inácio Lula da Silva no dia 09 de janeiro de 2003. A nova legis-
lação contribuiu para a organização das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de História e
cultura afro-brasileira e africana. Desse processo em diante, a nova LDB
passa a ter o complemento de novos artigos:
Art. 1º A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar
26-A, 79-A e 79-B:
“Art. 26-A. Nos estabelicimentos de ensino fundamentale médio,
oficiais e particulare, torna-se obrigatório o ensino sobre História
e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º O contepudo programático a que se refer o caput deste artifo
incluirá o estudo da Históriada Áfricae dosafricanos, a luta dos
negros noBrasil,a culturanegra brasileira e o negro na formação-
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas sociais, econômica, e política pertinetes à História do
Brasil.
§2º Os conteúdos referentes à História e cultura Afro-Brasileira
serão ministraddos noâmbito de todo o currículo escolar, em es-
pecial nas áreas de Educação Artísitica e de Literaturae História
Brasileiras.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
§ 3º (VETADO)”
Art. 79-A. (VETADO)”
“Art. 79-B. O calendário escoalr incluirá o dia 20 de novembro
como ‘ Dia Nacional da Consciência Negra’.”
Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de suapublicação.(BRASIL,
2003, p. 75-76).
No que tange à Lei n.º 10.639/2003, esta se consagra como um im-
portante marco legal no contexto político-educacional, pois trata da re-
levância do reconhecimento da contribuição do povo negro para a cons-
trução da sociedade brasileira e que deve ser inserida no currículo escolar.
Como parte dessa legislação foi sancionada a Lei n.º 11.645/2008, incluín-
do os indígenas nessa nova redação nos conteúdos de ensino de História e
Cultura na formação da população brasileira.
Vale ressaltar que foi criada no ano de 2008 a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) pela Lei n.º 10.678,
de 23 de maio de 2003, com o objetivo de combater o racismo em suas
múltiplas faces (BRASIL, 2018). Assim, a democratização do ensino bra-
sileiro se concretiza com essas bases legais e que definem tarefas a serem
executadas em todos os âmbitos institucionais de ensino. Nesse contexto,
compreendemos que o conhecimento desses conjuntos de leis é o cami-
nho para a legitimação de combate ao racismo e à ruptura do epistemicídio
educacional. Nesse contexto, foram traçadas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana pautadas em um conjunto
de ações antirracistas no âmbito escolar.
3 PRÁTICA PEDAGÓGICA ANTIRRACISTA: intervenções
desafiadoras como garantia de direitos na sala de aula
“Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores
serão sempre os heróis das narrativas de caça” (Provérbio Africano).
A escola se constitui como espaço de poder, pois nela podemos cons-
truir e descontruir relações de empoderamento e o discurso que remete
aos princípios norteadores de formação do indivíduo como cidadão re-
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flexivo. Repensar sobre a prática pedagógica se faz necessário quando há
um propósito de garantir a aprendizagem significativa e transformadora
aos (às) alunos (as). Tratando-se de uma proposta pedagógica com práticas
antirracistas, é preciso entender o caminho da educação para as relações
étnico-raciais para compreender o propósito e entender a razão pela qual
devemos trilhar por esse terreno.
A prática antirracista na sala de aula é um dever moral que nós, en-
quanto professores (as), devemos adotar perante a população negra; tra-
ta-se de um conjunto de ações pedagógicas que deve ser aplicado com o
resguardo de direitos a todos e a todas de forma igualitária, baseado no
respeito à etnia, à diversidade, à cultura, e campos religiosos que configu-
ram em políticas de reparação constituídas legalmente.
É importante salientar que o espaço escolar se coloca também como
reprodutor do racismo e da intolerância em todos os aspectos quando se
propõe a exercer o papel de pensamentos e posturas uniformes que silen-
ciam o grupo étnico desfavorecido, quando muitas vezes deixa de cumprir
com a sua função social: promover a educação transformadora e libertado-
ra. Assim, aprender, ensinar para a educação das relações étnico-raciais é
um dos pontos de partida que deve ser compreendido pelos (as) professo-
res (as) para se desenvolverem práticas antirracistas como garantia de direi-
tos na sala de aula com base nas Leis n.º 10.639/2003 e n.º 11.645/2008.
Enveredar por esse caminho de proposições didáticas de ensino com
foco nas práticas antirracistas é promover o auto-respeito, o reconheci-
mento do pertencimento identitário étnico-racial e a cultura da popula-
ção negra. É compreender que o processo educativo deixa de ser de um
ponto vista único, ou seja, eurocêntrico, para nos remeter à essência do
saber multicultural na perspectiva de introjetar na sala de aula interven-
ções pedagógicas desafiadoras com possibilidades à percepção das relações
que se organizam na sala de aula através do currículo oculto.
Nesse sentido:
[...] precisamos, antes de mais nada, prestar atenção às formas e
meios que nossos alunos utilizam para aprender. Se atentarmos
para a experiências educativas entre povos indígenas, quilombo-
las e habitantes de outros territórios negros, veremos que não é
somente com a inteligência que se tem acesso a conhecimentos.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Que o corpo inteiro – o físico, a inteligência, os sentimento, as
emoções, a espiritualidade – que ensinamos e aprendemos que
descobrimos o mundo. Corpos negros, brancos, indígenas, mes-
tiço, doentes, sadios, gordos, magros, com deficiências, produzem
conhecimentos distintos. Todos igualmente humanos, por isso,
ricos em significados. Produzem também conhecimentos cien-
tíficos, quando decidem realizar pesquisas desse cunho, que tem
em conta as circunstâncias e suas condições de ser e viver (SILVA,
2011, p. 31).
O planejamento educacional organizado com propostas educativas
referendando as relações étnico-raciais possibilita a execução de interven-
ções pedagógicas estabelecidas na Lei n.º 10. 639/2003 e conduz peda-
gogicamente o (a) professor (a) a exercer o seu papel no contexto escolar
e a contribuir com a política de reparação social ao povo negro que ficou
invisibilizado na sociedade brasileira por muito tempo. Promover uma
educação emancipatória faz parte do conjunto de práticas de ensino an-
tirracistas, contribui com o apagamento do ilusório pensamento de igual-
dade e emerge para a inserção de políticas educacionais com vistas à pe-
dagogia da diversidade. Logo, “na pedagogia da diversidade, a educação é
uma pedagogia da emancipação. Ela tensiona a pedagogia tradicional que
ainda ocupa um lugar hegemônico no campo científico, configurando-se
em uma pedagogia de regulação” (GOMES, 2017, p. 136).
Desse modo, o conjunto de práticas educativas nesse prospecto se
contextualiza como garantia de direitos por um ensino transformador,
igualitário que oportuniza o conhecimento pela diversidade étnica. Uma
educação centrada nas práticas antirracistas como forma de romper com
a permissividade colonizadora ao racismo institucional e estrutural, e a
invisibilidade da contribuição do negro para a sociedade brasileira nos as-
pectos socioeconômicos, culturais e políticos.
Enfatizamos, ainda, que é relevante e necessária a formação dos (as) pro-
fessores (as) sobre as relações étnicos-raciais. O conhecimento epistemológico
desse campo de saberes se constitui nas formas variadas de compreender, de
fazer, de aprender e de ensinar as relações étnico-raciais. São processos contri-
buitivos no campo do saber epistêmico e didático do docente. A formação do
(a) professor (a) é uma condição para a mudança da prática pedagógiga e para
a inserção de intervenções antirracistas na sala de aula.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória da educação da população negra no Brasil foi longa e
árdua. O pensamento colonizador permitiu a exclusão social dos negros
por séculos em toda a esfera da sociedade. A escola foi uma das institui-
ções mais excludentes do processo social dos afrodescendentes. A entrada
tardia dessa parte da população na escola contribuiu para o retrocesso e
a permanência dos afro-brasileiros no estado de ignorância por séculos.
Esses fatos ajudaram a construir o imaginário do negro como indíviduo
subalterno, destituído de competências e habilidades que impediram de
projetá-lo como um cidadão ativo, participativo e reflexivo na sociedade.
O silenciamento sobre a condição humana do negro na sociedade
brasileira contribuiu para a perpetuação do racismo e da discriminação
racial. A ideologia pautada no eurocentrismo criou terreno fértil para um
conjunto de práticas e organização do racismo institucional e estrutural,
os quais impedem a ascenção do negro em qualquer instância social, que
é evidenciado no cotidiano, mas podemos neutralizar pela resistência de
lutas antirracistas. Em síntese, compreendemos que o racismo como pro-
cesso histórico se engloba no viés de racismo estrutural determinado pelas
subjetividades da formação social (ALMEIDA, 2019).
Assim, as práticas antirracistas na sala de aula têm o poder de desnatu-
ralizar o pensamento hegemônico por meio de intervenções e pedagogias
emancipatórias que tratem de competências e saberes subjetivos do (a)
aluno (a) como garantia de direitos dos afro-brasileiros à aprendizagem
significativa e transformadora na sala de aula. Repensar a sua práxis pe-
dagógica é um potencial para se adotar práticas de ensino que garantam
os direitos aos alunos afro-brasileiros e que valorizem a sua identidade
étnico-racial, história e sua contribuição na construção socioeconômica
da sociedade brasileira.
À vista disso, pensar em uma prática antirracista na sala de aula na
perpesctiva de contribuir com a população negra brasileira é colaborar
com a política de reparação social, promover a igualdade de oportunida-
des, desconstruir o mito da democracia racial forjado pelo conjunto de
ideias dos colonizadores e desnaturalizar o racismo. Esses são conjuntos
de práticas que podem ser convertidos em intervenções pedagógicas no
chão da escola. Garantir os direitos fundamentais e a aprendizagem na
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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concepção de uma educação transformadora e emancipatória são grandes
desafios na política educacional brasileira.
Portanto, compreendemos que o uso de metodologias de ensino en-
capadas na aplicabilidade das Leis n.º 10.639/2003 e n.º 11. 645/2008 são
o alicerce para o desenvolvimento e a legitimação de práticas antirracistas
na sala de aula, pois possibilitam a construção epistemológica da estrutura-
ção do racismo na sociedade e as possibilidades de coibir a sua reprodução
no contexto escolar. Ou seja, a mobilização pedagógica na perspectiva de
ensinar para a educação das relações étnico-raciais contribuirá com um
modelo de ensino inovador e transformador na lógica de tornar visível o
protagonismo dos (as) alunos (as) afro-brasileiro (as) no espaço educativo
na perspectiva da garantia de direitos a educação igualitária e emancipató-
ria provida pelo sistema público educacional.
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822
A CULTURA COMO PERSPECTIVA
FUNDAMENTAL PARA A
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS
Belisa Carvalho Nader199
INTRODUÇÃO
As sociedades contemporâneas são fortemente marcadas por con-
trastes, por diferenças e por uma incrível diversidade, seja em razão de
questões geográficas e históricas próprias, seja, já mais recentemente, em
razão dos grandes movimentos migratórios globais (BONEU, 2003). Essa
diversidade é resultante da interação e da convivência de uma multipli-
cidade de povos e comunidades, de línguas, de religiões e de tradições,
enfim, de uma infinita riqueza de identidades culturais, cada uma delas
transportando as suas especificidades.
Tal realidade, por sua vez, nos posiciona diante da análise acerca da
incorporação e da acomodação de toda essa diversidade no seio social. Isso
porque as sociedades contemporâneas já despertaram para a necessidade
de proteger as suas mais variadas identidades culturais, uma vez que, assim
não agindo, enfrentam sérias e, até mesmo, perversas consequências. De-
vemos destacar que as manifestações de racismo, xenofobia e intolerância
199 Mestre em Ciências Jurídico-Políticas – Subdivisão de Direito Constitucional pela Fa-
culdade de Direito da Universidade de Coimbra/Portugal. Advogada. Professora do Ensino
Superior. Pesquisadora de Direito Internacional e Direitos Humanos.
823
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
se mostram cada vez mais presentes, corriqueiras e, acima de tudo, peri-
gosas nas sociedades marcadas por esse pluralismo (BIDELEUX, 2003).
Como não poderia ser diferente, essa preocupação com o reconhe-
cimento e com a proteção das diversas identidades culturais deve estar
profunda e fundamentalmente presente, também, nas discussões jurídicas.
Devemos esclarecer, contudo, que a proteção jurídica da identidade cul-
tural não é isenta de dificuldades e questionamentos, uma vez que exige,
desde o início, o reconhecimento de uma diferença – neste caso, cultural
– em relação a uma suposta – vale dizer, irreal – homogeneidade social
pré-definida (BECK, 2007, p. 35)200.
No entanto, para além de qualquer dificuldade conceitual primária,
não há como dissociar as temáticas referentes à proteção cultural dos dis-
cursos inerentes aos direitos humanos, uma vez que ambos estão intrin-
sicamente ligados à dignidade humana. Por esta razão, vislumbramos a
importância de buscar e alcançar a proteção das identidades culturais atra-
vés, justamente, da concretização dos próprios direitos humanos já con-
sagrados.
Para tanto, neste estudo, partimos da apresentação e da evolução das
concepções de cultura, apontando as suas importantes repercussões para
o direito. Em seguida, desenvolvemos a fundamentalidade da identidade
cultural, entendendo-a como um valor a ser protegido juridicamente, uma
vez subjacente aos direitos humanos consagrados. Por fim, analisamos o
reconhecimento e a tutela jurídica das identidades culturais, através do
chamado “direito à diferença”, o qual exige a concretização dos direitos
humanos agora em sua perspectiva cultural.
1. A(S) CONCEPÇÃO(ÕES) DE CULTURA
1.1. CULTURA
Cultura é um termo polissêmico e de difícil definição, motivo pelo
qual seus conceitos são considerados insuficientes ao enquadramento de
toda a realidade que ela representa. Ainda hoje, diversos significados lhe
200 O autor, em sua precisa análise, deixa claro que “a presunção de homogeneidade cultu-
ral é na verdade uma negação da realidade.”
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são atribuídos, todos eles comumente aceitos e utilizados, não havendo
um consenso em relação à sua definição, até mesmo juridicamente.201
Tradicionalmente, a cultura é compreendida como a acumulação de
conhecimento pelos indivíduos ao longo do tempo, especialmente me-
diante a educação. Ainda muito corrente é a referência à cultura como
um processo de criação artística ou científica, diretamente ligada às artes
e à ciência. Não bastasse, já numa abordagem mais abrangente, a cultura
é compreendida como um conjunto de elementos manifestáveis e carac-
terizadores de uma determinada sociedade, tais como suas crenças, seus
costumes, seus valores, seus conhecimentos, suas percepções, enfim, seu
“estilo de vida”.202
No âmbito do direito, a cultura é compreendida através do tripé
“educação-ciência-arte” (HABERLE, 2000, p. 24)203, correspondendo,
exatamente, às primeiras definições acima expostas, ou seja, referindo-se
à acumulação de conhecimento e ao processo de criação científica e ar-
tística. Sob tal perspectiva – diga-se, hoje preponderante nos textos legais
que cuidam do tema –, a atuação do direito, no que concerne à prote-
ção da cultura, alcança o que chamamos de “bens culturais”, estando aí
incluídos tanto a produção como o acesso aos referidos bens. Todavia,
consoante verificamos, essa concepção não basta. Complementarmente,
acompanhando as contribuições interdisciplinares, deve o direito lançar-
-se à proteção da cultura compreendida como o conjunto de elementos
caracterizadores de uma sociedade.
Neste sentido, PEDRO (1993, p. 36) identifica essa adaptação do
direito e reconhece que este passa não apenas a atuar sobre a cultura en-
201 Dada a impossibilidade de apresentarmos todos os conceitos imputados à cultura, limi-
tamo-nos às suas apresentações mais modernas e correntes, assim como mais significativas
às problemáticas jurídicas. PEDRO, 1993, em sua profunda investigação sobre o significado
do termo cultura na Constituição Espanhola, chama a atenção para as mais de 250 noções
já encontradas.
202 A cultura, apresentando-se como um termo bastante fecundo, consiste em objeto de
estudo de diversas ciências. Para nós mostram-se de extrema relevância as contribuições
advindas da antropologia e da sociologia, nomeadamente no que se refere à definição de
cultura a ser considerada em sede jurídica.
203 O autor reconhece que o direito, geralmente, parte desse sentido bastante restrito de
cultura. Ressaltamos, contudo, que o autor é um dos que adota, mediante dados sociológi-
cos e antropológicos, o conceito mais amplo de cultura.
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tendida como o “conjunto cumulativo de bens e de valores do espírito
criados pelo homem através de sua genuína faculdade de simbolização”
mas, de maneira complementar, também atua sobre a cultura entendida
como “concretas manifestações sócio-históricas” influenciadoras das ati-
vidades humanas. Portanto, a cultura, agora compreendendo um sistema
de conteúdos, valores e significados, também é objeto de reconhecimento
e tutela jurídica.
Embora tenhamos identificado duas noções jurídicas da cultura –
como “bens culturais” e “estilo de vida” –, estas, bem como seus res-
pectivos tratamentos, não representam entendimentos isolados e indepen-
dentes, pelo contrário, mostram-se, apenas, como dois ângulos ou pontos
de observação da cultura, profundamente imbricados. Na verdade, para
além de ângulos distintos, podemos entendê-los como momentos de um
mesmo fenômeno, isto é, seja como produto da atividade humana, seja
como elemento condicionante, estruturante e significativo de toda essa
atividade.
Dadas as finalidades a que nos propomos, limitamo-nos à noção
mais abrangente de cultura, entendida como o conjunto de características
identificadoras de uma sociedade, englobando as crenças, os costumes, as
tradições, os valores, os conhecimentos, as percepções, enfim, todo um
“estilo de vida” formador de uma verdadeira identidade cultural.204
1.2. As “culturas”
O entendimento amplo de cultura ao qual nos referimos, e por con-
seguinte adotamos, é proveniente da definição formulada por TYLOR
(1920, p. 1), segundo o qual cultura consiste num “conjunto complexo
que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes e quaisquer
outras capacidades e hábitos adquiridos pelos indivíduos como membros
da sociedade”.
Quando formulada, tal definição refletia uma concepção marcada-
mente universalista – ou evolucionista – da cultura, ou seja, entendia-se
haver nada mais do que uma única cultura, um único conjunto de ele-
mentos culturais. As diversas sociedades, por sua vez, não apresentavam
204 Esta definição corresponde, justamente, àquela encontrada no preâmbulo da Declara-
ção Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, adotada em 2001.
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uma cultura própria e separada, senão uma maior ou menor participação
no desenvolvimento da cultura geral criada pela humanidade como um
todo. Com efeito, quando se referia à cultura de uma sociedade específica,
referia-se ao seu estágio cultural ou ao seu grau de desenvolvimento e de
evolução.
Contrariamente a essa concepção universalista, BOAS (1938, p. 159 e
ss.) começou a utilizar o termo cultura quando das referências ao conjunto
diferenciado de costumes, crenças e instituições sociais que pareciam ca-
racterizar cada sociedade isoladamente. Assim, em oposição à ideia de que
as distintas sociedades apresentavam diferentes estágios de uma mesma
cultura, agora, entendia-se que cada uma delas apresentava uma cultura
própria, a qual deveria ser, igualmente, valorizada.
Iniciava-se, nesse momento, uma mudança de concepção e uma rea-
ção à teoria do universalismo, mediante as novas considerações apontadas
pela chamada teoria do relativismo cultural. Percebemos que o termo cul-
tura passa, agora, a ser utilizado em sua forma plural, isto é, como “cultu-
ras”, referindo-se às diversas culturas ou “estilos de vida” identificados e
identificadores das respectivas sociedades.
A principal crítica dirigida à teoria do universalismo tinha – e ainda
tem – como suporte o entendimento de que os chamados “standards uni-
versais” são basicamente produto de uma cultura específica. Conforme
aponta SEMPRINI (2000, p. 66), os proponentes do relativismo cultural
entendem não ser o universalismo, para além do nome, uma verdadeira
teoria universalista, mas, sim, uma imposição e uma violência às demais
culturas.
Por sua vez, a teoria do relativismo cultural foi – e ainda é – alvo de
enormes críticas, principalmente, porque, uma vez defendendo a tolerân-
cia de toda e qualquer diversidade cultural, resta por reconhecer práticas
consideradas deficientes, como por exemplo, comportamentos agressivos
e atentatórios à dignidade humana e, também, intolerantes em relação aos
demais.205
205 Dada a complexidade da discussão, os limites ao reconhecimento da diversidade cultu-
ral não serão abordados, uma vez que constituem tema merecedor de um estudo próprio e
aprofundado. Importa-nos esclarecer, todavia, que nem toda e qualquer diversidade deve
– ou pode – ser tolerada sob o manto do respeito ao relativismo cultural, o qual não é ili-
mitado. Assim, nem mesmo tal respeito pode levar ao reconhecimento jurídico de práticas
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Devemos reconhecer que tais teorias – embora dicotômicas – refle-
tem a própria evolução do pensamento acerca da dimensão da cultura e,
principalmente, contribuem fundamentalmente às discussões atuais sobre
o fenômeno da diversidade cultural e o seu consequente reconhecimento
– inclusive jurídico. Consoante já postulam HOFFMANN e RINGE-
LHEIM (2004, p. 110), podemos entender que a dicotomia estrita entre
as duas teorias, “repousa numa concepção redutora tanto da noção de
cultura como da própria noção de direitos, na medida em que tais concei-
tos são, na verdade, muito mais complexos e dinâmicos do que uma visão
simplificada pode sugerir”.
Por esta razão, a superação desse embate entre as teorias não é apenas
possível mas necessária. Ainda nas palavras dos autores (2004, p. 115-116),
“a tensão entre elas não se apresenta mais em vigor como um conflito ir-
redutível demandante de uma solução em favor de um ou do outro, mas
como um elemento inerente ao discurso dos direitos humanos”. 206
2. A FUNDAMENTALIDADE DA PERSPECTIVA CULTURAL
2.1. A identidade cultural
A extrema importância da cultura foi, uma vez, demonstrada através
da seguinte afirmação: “cultura, existência, identidade e dignidade são
termos muito entrelaçados” (MANNENS, 1999, p. 186). Desde logo,
não nos parece tão difícil procedermos à inter-relação de todos esses ter-
mos, especialmente quando nosso marco referencial é o indivíduo.
Primeiramente, entendendo a cultura como o conjunto de elementos
condicionantes, estruturantes e significativos de toda conduta humana,
apenas aquela possibilita ao indivíduo uma existência devidamente en-
quadrada e orientada. Em seguida, já no que diz respeito à identidade,
essa mesma cultura se reflete, de maneira direta, na personalidade do indi-
víduo, moldando seus valores, seus comportamentos e seus sentimentos.
Por fim, relativamente à dignidade, apenas a cultura, entendida como esse
violadoras da dignidade humana, esta universalmente garantida.
206 Para um quadro histórico e evolutivo das teorias do universalismo e do relativismo
cultural, em especial no que diz respeito à sua influência e incorporação ao sistema de pro-
teção dos direitos humanos, remetemos a IOVANE, 2007.
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complexo aporte referencial do indivíduo, proporciona-lhe um sentido de
integridade. Por esta razão, podemos concluir que a identidade cultural é
elemento essencial da dignidade humana (EGRET, 2005, p. 7).
De maneira geral, a identidade cultural pode ser entendida como a
“personificação da cultura”. De forma análoga a esta, é refletida e percebi-
da em diversos aspectos, tais como – numa dimensão objetiva – nas artes,
na literatura, na educação, na língua, na herança cultural, na religião, mas,
também e acima de tudo – agora numa dimensão subjetiva –, nos hábitos,
nas tradições, nas crenças, nos costumes e nos comportamentos específi-
cos dos indivíduos.
Ora, a identidade cultural transporta os elementos da cultura através
dos quais os indivíduos se definem e se expressam, contribuindo, assim,
para a sua integridade. Consequentemente, apenas por meio deste enqua-
dramento – merecedor, portanto, de proteção jurídica – a sua existência
faz realmente sentido.
2.2. O valor da identidade cultural
No intuito de aprofundarmos a discussão acerca da proteção jurídica
da identidade cultural, uma importante questão que devemos esclarecer
diz respeito à existência de um direito específico à identidade cultural.207
De início, apresentamos algumas das diversas formulações propostas
à proteção jurídica da identidade cultural encontradas na literatura, quais
sejam, “direito à identidade cultural”, “direito à identificação cultural”,
“direito à proteção e ao desenvolvimento da identidade cultural”, “direito
de preservação da identidade cultural”, “direito à liberdade de identidade
cultural”, dentre tantas outras (DONDERS, 2002, p. 5-6). No entanto,
apesar de todas elas – por mais interessantes e apelativas que pareçam ser
–, é possível concluirmos que não existe um direito específico relacionado
à identidade cultural.
Formalmente, ainda que sem qualquer definição estabelecida, o con-
ceito de identidade cultural já se mostra utilizado em diversos documentos
207 Aproveitamo-nos, neste momento, da obra de DONDERS, 2002, a qual busca verificar a
existência ou não do direito à identidade cultural bem como a necessidade de desenvolvê-lo
no quadro dos direitos humanos.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
de direitos humanos208, embora, explicitamente, não se lhe tenha atribuí-
do a forma de direito. Aliás, podemos dizer que os diversos documentos
que tendem a tratar da identidade cultural o fazem mediante as suas várias
perspectivas, ou – a como nos referimos anteriormente – os seus aspectos
ou elementos, tais como a etnia, a língua, a religião, a educação, etc.
Ainda que seja verdade que a proteção da identidade cultural – como
um valor importante e elemento da dignidade humana – se enquadras-
se perfeitamente no quadro dos direitos humanos, essa sua transposição
como um direito separado não se apresenta desejável ou necessária, e
mais, pode até mesmo se mostrar temerária e perigosa. Tal direito es-
pecífico não satisfaz a ideia de alargamento dos direitos humanos; pelo
contrário, como nos alerta DONNELLY (2003, 221), a sua “proliferação
desnecessária apenas ameaça a desvalorização da sua própria ideia e, con-
sequentemente, os enfraquece”.
Sendo assim, podemos alertar que tal como a identidade cultural é
manifestada através de determinados aspectos – língua, etnia, religião,
educação, etc. – também o suposto direito à identidade cultural implicaria
outros direitos relativamente a esses mesmos aspectos. Ora, uma vez que
os direitos humanos já cuidam de muitas dessas questões – por exemplo,
através dos direitos de liberdade de religião, de liberdade de associação, do
direito à educação, do direito à família, etc. – um novo direito, engloban-
do todas essas vertentes, não seria necessário.
Podemos verificar, portanto, que o quadro dos direitos humanos já
oferece diversas oportunidades à proteção da identidade cultural, median-
te tanto os direitos civis e políticos, como os sociais, econômicos e cultu-
rais – inclusive aqueles já direcionados a algumas comunidades minoritá-
rias. Dessa maneira, ao proteger e promover tais direitos, está-se, por meio
deles, também protegendo e promovendo a identidade cultural.
Tal posicionamento não significa, todavia, que a proteção encontra-
da para a identidade cultural seja completa e perfeita. Contrariamente,
consoante aponta DONNELLY (2003, p. 221), “nossa atenção e nosso
208 Encontramos referências diretas na Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações
Unidas; na Convenção concernente aos Povos Indígenas e Tribais nos Países Independentes
da Organização Internacional do Trabalho; na Convenção Internacional sobre a Proteção dos
Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias; e na Convenção-
-Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais do Conselho da Europa.
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esforço têm que ser direcionados à implementação e à proteção dos di-
reitos humanos já reconhecidos”, agora enfatizando e promovendo a sua
perspectiva cultural.
Nesse mesmo sentido, conclui DONDERS (2002, p. 339-340), uma
vez consistindo num importante elemento da dignidade dos indivíduos,
a identidade cultural deve ser utilizada como um valor ou princípio de
direitos humanos, justamente mobilizável na interpretação, no desenvol-
vimento e na concretização de todos eles.
3. A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
3.1. O reconhecimento do “direito à diferença”
Consoante já exposto, a identidade cultural funciona como um im-
portante valor subjacente aos direitos humanos consagrados, os quais de-
vem ser concretizados mediante a consideração de tal perspectiva. Neste
momento, portanto, avançamos no sentido de identificarmos de que for-
ma aquela deve ser considerada, respeitada e, consequentemente, reco-
nhecida e protegida pela ordem jurídica.
Ora, a identidade cultural reflete e transporta os elementos da cultura
através dos quais os indivíduos se definem, se expressam e, acima de tudo, se
identificam. Isso significa que aquela só é construída e percebida quando em
relação com as demais características e identidades culturais encontradas nas
sociedades, uma vez que, por definição, a identidade não se presta a tornar
todos iguais mas, justamente, distinguir cada individualidade.
Em termos jurídicos, podemos dizer, então, que o reconhecimento
e, por conseguinte, a proteção da identidade cultural – como importante
elemento da dignidade humana – se mostra alicerçada tanto no direito à
igualdade como, principalmente, no “direito à diferença”.
Inicialmente, pode parecer que a proteção da identidade cultural
seja insuficientemente abarcada e, até mesmo, contraditória ao princípio
fundamental da igualdade, uma vez que aquela se fundamenta, como já
mencionamos, no reconhecimento da própria diferença manifestada e en-
contrada entre os indivíduos. Todavia, podemos afirmar que a igualdade
também incorpora o reconhecimento das diferenças e do direito de ser
diferente culturalmente.
831
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Do mesmo modo, conforme nos expõe CHÉROT (2003, p. 25), o
chamado “direito à diferença” também pode ser compreendido sob duas
dimensões, uma vez que abarca tanto o princípio da igualdade e da não
discriminação – em relação à raça, religião, língua, ou quaisquer outras
características culturais e identitárias – como o direito de conservar e de-
senvolver uma identidade cultural específica.
Aproveitando-nos, mais uma vez, das palavras do autor (2003, p. 27-
29), impossível é concebermos, frente às sociedades caracterizadas pela
diversidade cultural, a lógica da neutralidade frente às tantas diferentes
culturas nele manifestadas. Isso porque, o reconhecimento da diferença
cultural não se mostra contrário ao ideal de igualdade, pelo contrário, tor-
na substancial a igual dignidade de todos, principalmente dessas identida-
des culturais diminuídas no reencontro com uma cultura majoritária.209
No mesmo sentido, nos alerta JERÓNIMO (2001, p. 69-70), enten-
dermos a igualdade como sinônimo de homogeneidade cultural significa
desconsiderarmos, de forma injusta e até grosseira, as diferenças que, inevi-
tavelmente, marcam e identificam os indivíduos e a importância que o res-
peito por essas mesma diferenças tem que assumir em qualquer ordem jurí-
dica que se apresente comprometida com a proteção da dignidade humana.
Portanto, fundamental é reconhecermos o “direito à diferença” cul-
tural, principalmente quando nos defrontamos com a diversidade funda-
mental das sociedades contemporâneas. E para tanto, o sistema de pro-
teção dos direitos humanos deve redefinir seus princípios elementares de
igualdade e, principalmente, de neutralidade, no intuito de se ver verda-
deiramente concretizado.
CONCLUSÕES
Após todas as considerações expostas, é tempo de avaliarmos a fun-
damentalidade da perspectiva cultural para a concretização dos direitos
humanos.
209 Coadunando desse pensamento, TAYLOR (1998, p. 58), considerado um dos maiores
defensores do reconhecimento das diferenças culturais, explica-nos a necessidade de uma
verdadeira “política da diferença”, a qual exige o reconhecimento das diversas identidades
culturais e das suas singularidades, estas tão ignoradas, disfarçadas e assimiladas a uma
identidade dominante ou de maioria.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Conforme verificamos, a identidade cultural transporta os elementos
da cultura através dos quais os indivíduos se definem e se expressam, apre-
sentando-se como um essencial viés da dignidade humana. Por esta razão,
a identidade cultural deve ser objeto de grande atenção, de reconhecimen-
to e, ainda, de efetiva proteção pela ordem jurídica.
Embora não positivada mediante um direito específico, a identidade
cultural permeia todos os direitos humanos já consagrados, funcionando
como um verdadeiro valor subjacente a todos eles, devendo ser mobiliza-
da, justamente, na sua interpretação, no seu desenvolvimento e, principal-
mente, na sua concretização.
O reconhecimento das diversas identidades culturais, num primeiro
momento, pode até não parecer uma tarefa fácil, uma vez que enfrenta
alguns entraves tradicionalmente enraizados, nomeadamente uma pre-
sunção de uniformidade, fundamentada numa suposta homogeneidade
cultural existente nas sociedades. Diante de tais premissas, qualquer reco-
nhecimento das diferenças apresenta-se como incompatível com as con-
cepções de igualdade e neutralidade. É por esta razão, exatamente, que a
questão cultural vem sendo, há muito, negligenciada pelo direito.
Todavia, podemos afirmar, conforme visto, que as ordens jurídicas
alicerçadas nos direitos humanos já se apresentam moldadas para propor-
cionar uma resposta às pretensões de ordem cultural, o que significa dizer
que já estão preparadas para reconhecer e, consequentemente, garantir a
tutela efetiva das diversas identidade culturais.
Como não poderia ser diferente, somente mediante a devida consi-
deração dessa fundamental perspectiva cultural é que alcançaremos uma
verdadeira concretização dos direitos humanos.
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835
ARTIGOS – TECNOLOGIA
837
CHAT EDUCACIONAL: UMA
FERRAMENTA POTENCIAL PARA
O PROCESSO DE ENSINO-
APRENDIZAGEM
José Batista de Souza210
Manoel Rodrigues de Abreu Matos211
INTRODUÇÃO
Como sabemos, os gêneros do discurso têm se apresentado na so-
ciedade sob as mais diversas formas, mesclando-se entre gêneros orais,
impressos e digitais, ampliando, dessa forma, as possibilidades de interação
discursiva entre os falantes. No contexto dessa ampliação, apresentamos o
Chat212 educacional como uma ferramenta potencial no processo de ensi-
no-aprendizagem, tendo em vista que, devido às possibilidades oferecidas
pelas Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação – TDIC, das
quais o chat faz parte, os professores têm a oportunidade de dinamizar suas
aulas e oferecer aos alunos novas possibilidades de usos das TDIC.
210 Mestre em Letras – Profletras pela Universidade Federal de Sergipe. Professor da Edu-
cação Básica da rede municipal de Coronel João Sá - BA, e da rede estadual de Antas – BA.
211 Mestre em Letras – Profletras pela Universidade Federal de Sergipe. Professor da Rede
Municipal de Olindina – BA, e coordenador pedagógico na rede estadual da Bahia.
212 Toda vez que usarmos a expressão Chat educacional, a palavra Chat será destacada com
inicial maiúscula, como uma forma de destacar o gênero em discussão. Nas outras situa-
ções, será grafada com letra minúscula.
839
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Os gêneros do discurso são parte da nossa vida, pois, como assinala
Bakhtin (2011, p. 282), “nós falamos por gêneros diversos sem suspeitar
de sua existência”, razão pela qual precisamos compreender como usá-los
adequadamente nas diferentes esferas da comunicação cotidiana. Nesse
contexto, precisamos conhecer um pouco mais sobre o chat e suas possi-
bilidades educativas, tendo em vista que, a depender da forma como ele é
usado, os resultados podem ser bastante satisfatórios.
É preciso assinalar que o chat é um gênero digital inicialmente usado
para conversas sobre diversos assuntos do interesse de determinado grupo,
no entanto, no contexto educacional, ele tem sido uma das ferramentas
utilizadas nos cursos de educação a distância, entre professores tutores e
alunos e entre professores formadores e professores tutores. Também tem
sido usado como ferramenta de formação continuada docente, devido
às facilidades propiciadas pelas tecnologias digitais, que possibilitam que
várias pessoas, em diferentes lugares, participem da mesma sala de aula
virtual – a chamada ubiquidade das coisas, isto é, a capacidade de estar
em lugares diferentes sem se deslocar fisicamente (SANTAELLA, 2013).
Além disso, ele também tem sido usado no ensino médio, por professores
que querem dinamizar seu trabalho e se aproximar mais dos alunos, como
se pode notar no artigo Análise de interações de estudantes do Ensino Médio213.
Nesse contexto, ao realizarmos uma pesquisa no Banco de Dados de
Teses e Dissertações - BDTD nacional, percebemos que ainda são poucos
os trabalhos voltados ao chat educacional. Em nossa busca, encontramos
49 trabalhos que, direta ou indiretamente abordam esse gênero digital, no
entanto, ao delimitarmos nossa busca para chat educacional, nos depara-
mos apenas com 18 trabalhos entre teses e dissertações, entre os anos de
2003 e 2017.
Em outras pesquisas realizadas no Google, encontramos mais alguns
artigos sobre a temática, algo que pode ser visto positivamente, já que,
ora ou outra, alguém tem percebido o chat como um gênero potencial
para ensinar e aprender, para trocar e ampliar conhecimentos dos mais
diferentes tipos.
Assim, neste trabalho, discutimos acerca da importância do gênero
Chat educacional para o processo de ensino-aprendizagem, pois, ao opor-
213 Neste artigo, Bairral, Powell e Santos analisam interações realizadas em chats por alu-
nos de ensino médio.
840
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
tunizar aos alunos momentos de aprendizagem digital síncronos, os pro-
fessores estão contribuindo para a formação de alunos mais adeptos das
tecnologias digitais, o que mais tarde contribuirá para a formação de um
cidadão letrado digitalmente.
Partindo do princípio de que o gênero Chat é uma possibilidade bas-
tante dinâmica de construção de conhecimento, neste trabalho, objetiva-
mos discutir, à luz da teoria, o potencial desse gênero digital, que pode
ser usado com finalidades pedagógicas, basta que o professor elabore seu
planejamento e inclua entre suas estratégias metodológicas o uso do chat.
O trabalho está configurado em 2 partes. Na primeira, trazemos uma
discussão acerca dos gêneros do discurso, amparados em Bakhtin (2011)
e Marcuschi (2005; 2006), e apresentamos também o Chat Educacional
como gênero digital discursivo e sua importância no contexto educacio-
nal, com base em Araújo (2005). Na segunda, discutimos sobre a questão
da construção colaborativa do conhecimento a partir do Chat Educacional,
com base em Palloff e Pratt (2002).
1 OS GÊNEROS DO DISCURSO
O ensino de Língua Portuguesa, nos últimos anos, tem sido pautado
pelo trabalho com gêneros discursivos dos mais diversos, pois, os mesmos
fazem parte do nosso dia a dia e estão presentes em todas as nossas intera-
ções comunicativas, uma vez que, devido a sua variedade, eles possibilitam
ao professor mais mobilidade na comunicação.
Convivemos, cotidianamente, com uma grande variedade de gêne-
ros, sejam eles orais ou escritos, e eles são o pressuposto para que a inte-
ração e a comunicação aconteça nos nossos processos de interação social
mediados pelo uso da linguagem. Nessa ótica, segundo Bakhtin:
Falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é,
todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típi-
cas de construção do todo. Dispomos de um rico repertório de gêneros
de discurso orais (e escritos). Em termos práticos, nós os empregamos de
forma segura e habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconhecer
inteiramente a sua existência. [...] nós falamos por gêneros diversos sem
suspeitar da sua existência. Até mesmo no bate-papo mais descontraído e
livre nós moldamos o nosso discurso por determinadas formas de gêneros,
841
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
às vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e
criativas [...]. Esses gêneros do discurso nos são dados quase da mesma
forma que nos é dada a língua materna, a qual dominamos livremente até
começarmos o estudo teórico da gramática (BAKHTIN, 2011, p. 282).
De fato, como sinaliza o autor, não há comunicação que não seja
realizada através de gêneros do discurso, pois, durante todo o nosso dia,
em todas as nossas relações, eles estão presentes, uns atravessando outros,
substituindo-os ou complementando-os, numa tessitura tão bem feita
para estabelecer a comunicação, que nem sequer nos damos conta de sua
presença constante. Numa simples conversa, podemos transmitir uma no-
tícia para o nosso interlocutor, fazer-lhe um convite, um interrogatório,
dar-lhe um sermão, um aviso, conceder-lhe uma entrevista, etc. Ou seja,
sem nos darmos conta, utilizamos vários gêneros discursivos, mas não por
acaso, simplesmente porque, como sinalizou Bakhtin (2011), nós falamos
através de gêneros do discurso e nossa comunicação não existiria sem eles.
Os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados (BAHK-
TIN, 2011), por isso, eles se repetem a todo momento no nosso dia a dia,
alguns mantendo suas principais características, outros recebendo carac-
terísticas novas e ampliando suas possibilidades no contexto da comuni-
cação.
De fato, os gêneros do discurso não existem isoladamente, pelo con-
trário, eles só existem porque há falantes (locutores e interlocutores), si-
tuação comunicativa, língua, linguagem, discurso e interação social. É a
partir da existência desses itens que eles se materializam e ditam o tom das
relações sociodiscursivas estabelecidas diariamente entre as pessoas.
Nos últimos tempos, temos percebido com frequência uma ampliação
dos gêneros do discurso, ampliação essa que não tem surgido por acaso,
mas, devido aos avanços possibilitados pelas novas tecnologias da infor-
mação e comunicação. Como a comunicação humana tem sido realizada
com bastante frequência através de aparatos tecnológicos, a exemplo do
computador, em muitos casos necessitando do auxílio da internet, novos
gêneros foram surgindo – os gêneros digitais, possibilitando ao sujeito no-
vas formas discursivas e celeridade nos processos comunicativos, uma vez
que, pela sua rapidez, os gêneros digitais acabam transformando as rela-
ções espaço-temporais presentes na comunicação humana.
Nesse contexto, de acordo com Araújo (2005, p. 97):
842
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Xavier (2002), em sua tese de doutoramento, apresenta as várias mí-
dias (mineral, animal, vegetal e digital), sobre as quais a escrita se ma-
terializou como tecnologia enunciativa. O autor mostra que, da argila à
tela digital, é possível constatar uma explosão de novos gêneros [...] pois
a escrita imputa o surgimento de vários gêneros do discurso, criados para
organizar materialmente as necessidades enunciativas do homem.
No contexto da explosão de gêneros acima mencionado, podemos
citar alguns exemplos de gêneros digitais: vlog, wiki, chat etc. Esses gê-
neros são classificados como digitais devido ao fato de dependerem de
aparelhos tecnológicos para existir, no entanto, eles apresentam caracte-
rísticas relativamente estáveis a de outros gêneros já existentes, a exemplo
do e-mail, que tem traços da carta, e do blog, que tem traços do diário, o
que confirma o pensamento de Marcuschi (2006), quando aponta que os
gêneros, para manter sua identidade funcional com inovação organizacio-
nal, mudam, fundem-se e misturam-se, adequando-se às novas demandas
exigidas pela comunicação. Ou seja, para um novo gênero surgir ele não
precisa ser inédito, pode surgir diferentes gêneros a partir de gêneros já
conhecidos, mas, com ampliação de possibilidade por parte do usuário.
[...] os gêneros desenvolvem-se de maneira dinâmica e novos gêneros
surgem como desmembramento de outros, de acordo com as necessidades
ou as novas tecnologias como o telefone, o rádio, a televisão e a internet.
Um gênero dá origem a outro [da configuração geral para a especificida-
de] e assim se consolidam novas formas com novas funções de acordo com
as atividades que vão surgindo. Nem sempre temos algo essencialmente
novo, mas derivado como, por exemplo, os chats surgindo como uma for-
ma de conversação por meios eletrônicos, ou blogs surgindo dos diários de
bordo” (MARCUSCHI, 2005, p. 22 -23).
Assim, no contexto deste trabalho, focamos especificamente no gê-
nero Chat, um gênero que tem sua origem no gênero tradicional oral ou
impresso conversa/bate papo, e que, devido à necessidade enunciativa do
homem moderno, adepto das novas tecnologias da informação e comu-
nicação, não mais dá conta de atender a todas as suas necessidades, prin-
cipalmente aquelas relacionadas ao tempo, uma vez que o chat, pelo seu
caráter digital, possibilita ao sujeito dialogar dos lugares mais longínquos,
sem precisar se deslocar. Dessa maneira, a tecnologia, propiciada pelo
computador conectado à internet desconstrói as relações espaço-tempo-
843
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
rais, permitindo que diálogos antes impossíveis tornem-se possíveis, gra-
ças à ubiquidade propiciada pela tecnologia.
Devemos lembrar que o chat pode ser utilizado para diferentes propó-
sitos e por grupos de tamanhos diversos, apesar de ser preferível um chat
com no máximo 8 pessoas, para que todos consigam participar da discussão.
Num chat aberto, por exemplo, pode ser mais complicado, inicialmente, o
controle da discussão, já que todos falam ao mesmo tempo. Já num chat edu-
cacional, esse controle é mais facilmente administrado, uma vez que há um
professor no comando, orientando sobre os tópicos de discussão e fazendo
as intervenções necessárias, como veremos no tópico a seguir.
1.1 O Chat Educacional
Chat é uma palavra da língua inglesa que pode ser traduzida para a
Língua Portuguesa como conversa ou bate-papo. Trata-se de um gênero
discursivo digital que possibilita duas ou mais pessoas se comunicarem
por escrito de forma síncrona, viabilizada pela internet. Os chats podem ser
organizados de diversas formas, com base em tema, idade ou grupo de
interesse, por exemplo.
Figura 1: Representação do chat educacional
Fonte: Google imagens
844
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Como se pode notar na imagem acima, o Chat educacional acontece
com um professor mediando a discussão e os alunos atuando de forma
interativa. Não há limite em relação à participação. Cada aluno pode par-
ticipar quantas vezes quiser, seja perguntando, comentando, discordando
ou complementando a fala dos colegas. Ao professor, cabe mediar todo o
processo, a partir de um planejamento prévio e fazer as devidas interferên-
cias quando necessário.
Marcuschi (2005, p. 27) ratifica a definição acima ao defender que
o chat pode ser entendido como os “ambientes em salas de bate‑papo
entre várias pessoas simultaneamente, de forma aberta ou em ambiente
reservado”.
Partindo desse pressuposto, compreende-se que os chats são gêneros
discursivos da esfera virtual que se concretizam por meio de bate‑papos
on-line. Dessa forma, eles se constituem em uma conversão do diálogo face
a face para o diálogo virtual em meios eletrônicos.
Segundo Araújo (2005, p. 94), o chat carrega em si as impressões de
um diálogo face a face, mas faz “gerar uma nova formatação ao diálogo
cotidiano”. Para esse autor, o chat se configura como um gênero emergen-
te. Numa visão complementar, conforme Abreu, (2005), o chat constitui-
-se em um gênero recente dentro do contexto da Internet. Assim, o chat é:
Um gênero do discurso eletrônico, o qual se forma através do fenô-
meno da transmutação. Este fenômeno consiste basicamente no fato de
um determinado gênero simples se deslocar de uma esfera de comunica-
ção para outra, passando a ser absorvido por um gênero mais complexo,
sendo o primeiro reinterpretado pelo segundo (ARAÚJO, 2005, p. 98).
Como já foi sinalizado anteriormente, o chat é um gênero discursivo
de que a sociedade tem feito uso, seja no âmbito geral ou especificamente
no educacional. Segundo Marcuschi (2008, p. 201), chats educacionais
“são interações síncronas no estilo de chats com finalidade educacional,
geralmente para tirar dúvidas, dar atendimento pessoal ou em grupos e
com temas prévios”. Trata-se de um gênero multimodal oriundo do gê-
nero tradicional conversa/bate-papo. No entanto, o novo gênero, faz uso
das características do gênero que lhe deu origem, mas, graças às possibi-
lidades oferecidas pela tecnologia (computador e internet), novas caracte-
rísticas são observadas e exploradas, e o leitor passa a ter novas formas de
construção e recepção de sentidos. Nesse contexto:
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[...] as mídias, especialmente as audiovisuais e as que advêm do
desenvolvimento da informática, provocam uma verdadeira revo-
lução na linguagem, alterando sensivelmente a maneira pela qual se
produz e se recepciona o discurso, posto que o modo de transporte
e de recepção do enunciado condiciona a própria constituição do
texto, modela o gênero do discurso (MAINGENEAU, 2001, p.
71 apud ARAÚJO, 2005, p. 98).
Ou seja, um mesmo discurso, a depender do contexto discursivo,
pode ser modelado pelas diferentes mídias para se adequar a esse contex-
to. Tomemos como exemplo um discurso de um presidente sindical da
categoria de professores. Numa assembleia com a categoria, na sede da
instituição, ele terá um modelo de discurso, um discurso mais acalorado,
mais aberto, fazendo o uso de um tom de voz alto, chamando todos à luta
pelos seus direitos. Não há a necessidade da utilização de variados opera-
dores argumentativos, devido à proximidade do público e aos interesses
ali presentes, sendo permitida uma linguagem mais informal, mesmo se
tratando de um assunto importante e de pessoas de nível superior. Nesse
contexto, o locutor tem certo controle sobre os interlocutores, sob a for-
ma como estes vão recepcionar seu discurso, tendo em vista que sua fala
representa a todos, uma vez que os interesses tendem a ser os mesmos.
Já numa entrevista a uma rádio local, cujo objetivo é demonstrar para
a sociedade o motivo das paralisações e greves da categoria, por exemplo,
ele não precisa fazer esforço na emissão da voz, uma vez que os técnicos
da rádio cuidarão para que sua voz saia o mais apropriada possível para
os ouvintes. Nesse ambiente, o discurso passa a ser mais intimista, pois o
locutor tenta persuadir os ouvintes, fazendo-os entender os motivos das
reivindicações, paralisações e greves, para que estes não vejam os professo-
res como arruaceiros e propagadores da desordem pública. Assim, mesmo
sem o contato face a face, as pessoas podem receber bem o discurso e
aceitá-lo como verdadeiro.
Numa terceira situação, num programa de televisão, o discurso do
presidente em questão vai ganhar novos contornos, pois o mesmo vai usar
toda a multimodalidade de que a linguagem é constituída (gestos, expres-
sões faciais, tom de voz) e todo o poder de retórica, afinal, estando diante
de um público maior, todas as estratégias argumentativas/persuasivas são
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
fundamentais para o convencimento dos telespectadores em relação à ne-
cessidade de paralisações e greves da categoria. Mais do que isso, busca-se,
nesse contexto e por meio de uma situação discursiva bem planejada, ob-
ter a aprovação da sociedade, distanciando-se do rótulo de arruaceiros e
ganhando o apoio da mesma, fazendo com que esse apoio seja uma forma
de mudar a visão do gestor, de modo que ele passe a atender às reivindica-
ções da categoria.
Frente ao exposto, nota-se claramente no contexto supracitado a pre-
sença das categorias do discurso de Pêcheux, quais sejam: condições de
produção, relação entre os interlocutores e contexto social. Ou seja, ao
pensar em seu discurso nos diferentes ambientes, o presidente do sindicato
dos professores, explicitado acima, pensou antecipadamente nas condi-
ções de produção desse discurso (como este deveria ser feito); nas relações
entre os interlocutores (o público receptor desse discurso e como este seria
aceito); e no contexto social (o lócus no qual o discurso seria feito).
Dessa forma, ao recuperar de Pêcheux (1969) categorias importantes,
como condições de produção, relação entre os interlocutores e contexto
social, Orlandi (1996) assume a definição de discurso como linguagem
em interação, uma vez que os referidos índices são partes constitutivas de
todo e qualquer discurso (ARAÚJO, 2005, p. 99).
Da mesma forma, no Chat educacional, isto é, aquele realizado por
professores e alunos em benefício da aprendizagem, algumas dessas cate-
gorias também estão presentes e devem ser analisadas com todo o cuida-
do, para que os objetivos propostos sejam alcançados.
Considerando sua importância para o processo da comunicação entre
os indivíduos em um contexto digital, como o momento ao que estamos
presenciando, no qual o virtual já faz parte das práticas cotidianas, o chat
deve ser adotado como mais uma ferramenta do processo pedagógico,
numa tentativa de facilitar a aprendizagem. Todavia, para a inserção de
um novo elemento no processo de ensino, urge repensar a prática docente
para envolver no dia a dia escolar o contexto de vida dos alunos.
O chat é um gênero discursivo que pode ser utilizado para o processo
de ensino, pois conta com algumas especificidades que, ao serem cuida-
dosamente submetidas ao processo pedagógico, podem tornar a aula mais
atraente e rica. Características próprias do gênero chat, como o diálogo por
escrito em horário previamente determinado, a discussão em torno de um
847
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
determinado tema com a participação de muitas ou poucas pessoas, de um
mesmo grupo de estudo ou de membros de outros contextos culturais,
por exemplo, são especificidades que enriquecem a aula.
2 CONSTRUÇÃO COLABORATIVA DO
CONHECIMENTO A PARTIR DO CHAT EDUCACIONAL
A formação docente é algo de fundamental importância para a sua
atuação como profissional. É constituída da formação inicial (graduação),
da formação continuada (pós-graduação) e da formação em serviço (os
cursos de atualização e extensão), sem contar os eventos acadêmicos que
são de grande valia para essa formação, a exemplo de seminários, con-
gressos, simpósios, colóquios, jornadas, entre outros. Também existem
as experiências práticas, tendo em vista que é na prática que a teoria se
concretiza. Nesse viés, a formação docente é plural, isto é, é constituída
de diversos saberes (TARDIF, 2002).
No contexto dessa formação, o chat pode ser utilizado para discussão
de assuntos do interesse do grupo, para a socialização de respostas a um
desafio, para orientação sobre um trabalho, entre outras possibilidades.
Trata-se de um espaço com um controle maior por parte do mediador e
que exige disciplina por parte de todos os integrantes. Por ser síncrono,
todos os participantes precisam entrar no chat no horário combinado com
o mediador, para que não se perca tempo com espera. Isso não quer dizer
que o mediador tem o controle de tudo, afinal, um chat não é uma imi-
tação da aula tradicional. Nele, todos os participantes podem se colocar,
questionar e responder uns aos outros. O papel do mediador é lançar o
tópico da discussão e fazer as intervenções necessárias.
O chat tem um grande potencial interativo e, para que ele funcione de
forma eficaz, “[...] é necessário o estabelecimento de relações profissionais
fundamentadas no respeito e na cumplicidade profissional, e que vão além
da simples elaboração e execução de tarefas” (BAIRRAL, 2004, p. 08).
Segundo Pallof e Pratt (2002, p. 42), “para obter sucesso com as aulas
e as reuniões [...] conduzidas em um ambiente virtual on-line, deve ser
criado um campo de jogo em que haja igualdade [...] entre as interações
participante-facilitador e participante-participante”. Ou seja, como o
foco é a colaboração, todos devem ter uma participação ativa, seja respon-
848
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
dendo às indagações colocadas pelo grupo, seja levantando questões para
enriquecer a discussão. Além disso, segundo as autoras, o facilitador214
deve estar atento à discussão e modelar a metodologia, contribuindo para
a aprendizagem do grupo, tendo o cuidado de controlar para que a dis-
cussão não saia do foco. Nesse contexto, o chat passa a ser um meio eficaz
para a aprendizagem discente, uma vez que se trata de um espaço da troca
de saberes e competências.
Ao ser adotado como mecanismo pedagógico, o chat se configura
como mecanismo de construção do conhecimento, pois auxilia no de-
senvolvimento de pesquisas e troca de informações de forma instantânea
entre indivíduos de diversos lugares e culturas afins ou mesmo diferentes.
Segundo Cruz (2005, p. 08), no Chat educacional, por se tratar de
uma comunicação síncrona, “os participantes trocam mensagens em tem-
po real, ou seja, o que é digitado na tela é visto simultaneamente pelos
outros participantes”.
Vale salientar que, no ambiente do chat, por estarem longe da pre-
sença física dos outros participantes, muitos integrantes sentem-se mais
confortáveis para participar da discussão, demonstrando um potencial que
geralmente no ambiente presencial eles não têm coragem de expor.
Algumas características fazem com que os alunos tenham melhor de-
sempenho on-line do que na sala de aula tradicional. [...]. Uma pesquisa
conduzida por um dos autores indica que uma pessoa introvertida prova-
velmente terá melhor desempenho on-line, dada à ausência das pressões
sociais que existem nas situações presenciais. Em contrapartida, as pessoas
extrovertidas podem ter mais dificuldade de se fazerem notar em um am-
biente on-line, algo que fazem mais facilmente quando o contato é direto
(PALLOFF; PRATT, 2002, p. 30).
De fato, ao observarmos alguns alunos tímidos, notamos uma grande
dificuldade deles no contexto da comunicação verbal espontânea. Muitos
214 Nota-se, a partir da escolha lexical facilitador, a tentativa do professor de se distanciar
do ambiente da sala de aula tradicional, cujo formato é outro e cujos autores exercem pa-
peis diferentes. Enquanto na sala de aula tradicional o professor tem um controle maior
sobre a turma, sobre os turnos de fala e sobre os tópicos a serem discutidos, na aula rea-
lizada via Chat, sua posição discursiva deve ser outra, isto é, deve ser de alguém que tenta
mediar o máximo possível da discussão, sendo um estimulador do grupo, dando ao mesmo
oportunidades de posicionamento.
849
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
não se mostram na sala de aula, revelando muito do seu potencial quando
escrevem. Sendo assim, o chat é uma possibilidade interessante para todos
os alunos, principalmente para esses.
Dessa forma, frente à era da interatividade moldada pelas tecnolo-
gias digitais da informação e comunicação, o professor assume o per-
fil de mediador do conhecimento, corroborando para que os alunos
tenham novas possibilidades de construção de conhecimento. Essa
mediação deve ser bem realizada, para que os alunos sintam-se prota-
gonistas de sua própria aprendizagem, comportando-se cada vez mais
de forma ativa e responsiva, rumo à construção de sua autonomia dis-
cente, pois, como sinaliza Bairral (2004, p. 18), “[...] não é apenas a
discussão no chat que contribui com o processo formativo, senão um
conjunto de tarefas de provocação e o processo teleinterativo que é
gerado com contribuição e idiossincrasia discursiva de cada espaço co-
municativo do contexto virtual”.
Portanto, compreender o potencial do chat como ferramenta peda-
gógica é importante para o professor, tendo em vista que ele terá novas
possibilidades de ajudar os alunos na construção do conhecimento, prin-
cipalmente neste cenário atual, no qual as tecnologias digitais têm alcan-
çado cada vez mais espaço.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, nos propomos a discutir acerca do gênero chat como
uma ferramenta potencial para o processo de ensino-aprendizagem, tendo
em vista que, neste cenário notadamente tecnológico no qual vivemos,
pensar em possibilidades mais dinâmicas de aprendizagem é fundamental
para que professores e alunos consigam novas formas de diálogo e de cons-
trução de conhecimento.
O chat possibilita ao professor dinamizar suas aulas e oportuniza aos
alunos uma participação mais interativa, tendo em vista que, na sala de
aula comum, os alunos mais tímidos geralmente não participam da aula,
modificando esse comportamento no chat justamente por não estar sendo
visto e por participar nos momentos em que se sentirem mais confortá-
veis, como demonstraram Palloff e Pratt (2002) em uma de suas pesquisas
acerca deste assunto.
850
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Discutimos também acerca dos gêneros do discurso e de como esses
gêneros têm crescido no contexto social, principalmente com a dissemi-
nação cada vez mais rápida das tecnologias digitais da informação e comu-
nicação. Neste contexto tecnológico, alguns gêneros têm suas caracterís-
ticas modificadas, ampliadas e, às vezes, dois gêneros se fundem em um só
para dar conta das necessidades do indivíduo deste novo século, cada vez
mais antenado e adepto das tecnologias digitais.
Portanto, valorizar todos as potencialidades das tecnologias digitais,
a exemplo do gênero chat é fundamental para aulas mais dinâmicas, inte-
rativas e condizentes com o momento atual, no qual o estreitamento das
relações espaço-temporais tem sido algo muito frequente.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Júlio César. Chat Educacional: o discurso pedagógico na in-
ternet. In: COSTA, Nelson Barros da (Org.). Práticas Discursi-
vas: exercícios analíticos. São Paulo: Pontes, 2005.
ARAÚJO, J. C. A conversa na web: o estudo da transmutação em um
gênero textual. In: MARCUSCHI, L. A.; XAVIER, A. C. (Org.).
Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do
sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
BAIRRAL, Marcelo Almeida. Compartilhando e construindo conheci-
mento matemático: análise do discurso nos chats. Bolema, v. 17,
n.22, p. 37-61, 2004).
BAKTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2011.
CRUZ, Wladia Bessa. Experiência utilizando ferramenta síncrona no
processo de aprendizagem. Disponível em: http://colombiaapren-
de.edu.co/html/mediateca/1607/articles108372_archivo.pdf. Acesso
em 17 de julho de 2018.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais emergentes no contexto da tec-
nologia digital. In: XAVIER, A. C. (Org.). Hipertexto e gêneros
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
digitais: novas formas de construção do sentido. Rio de Janeiro: Lu-
cerna, 2005.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: configuração, dinami-
cidade e circulação. In: KARWOSKI, Acir Mário; GAYDECZKA,
Beatriz & BRITO Karim Siebeneicher (Orgs.) Gêneros textuais:
reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.
PALLOFF, Rena M.; PRATT, Keith. Construindo Comunidades de
Aprendizagem no Ciberespaço: estratégias eficientes para aulas
on-line. Porto Alegre: Atmed, 2002.
SANTAELLA, Lúcia. Comunicação Ubíqua: representação na cultura
e na educação. São Paulo: Paulus, 2013.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Rio
de Janeiro: Vozes, 2002.
852
TECNOLOGIAS DIGITAIS E
FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UMA
ANÁLISE DO CURSO FORMAÇÃO
DOCENTE: APLICABILIDADE DO G
SUITE FOR EDUCATION – MÓDULO 2
José Batista de Souza215
Manoel Rodrigues de Abreu Matos216
INTRODUÇÃO
As tecnologias digitais já vêm sendo exploradas, há muito tempo, no
contexto educacional, como recursos didático-pedagógicos para a dina-
mização das aulas. No entanto, em meio ao uso dessas tecnologias, por
parte de um grupo significativo de professores, e à resistência, por parte
de outros, o que se tem concluído com as experiências cotidianas é que,
não há mais motivo para negar o potencial das tecnologias digitais para o
ensino, uma vez que, na sociedade da informação, deixar de fazer uso de
tais tecnologias é ficar obsoleto e contribuir ainda mais para o fracasso da
educação.
215 Mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe. Professor das Redes Municipal
e Estadual da Bahia e da Faculdade do Nordeste da Bahia. Membro dos Grupos de Estudos
e Pesquisa Educon – UFS e Paidéia – FANEB.
216 Mestre em Letras – Profletras pela Universidade Federal de Sergipe. Professor da Rede
Municipal de Olindina – BA, e coordenador pedagógico na rede estadual da Bahia.
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Entretanto, é preciso que, quando discutirmos acerca deste assunto,
não esqueçamos que as tecnologias digitais não podem mais ser vistas,
nos dias de hoje, como meros recursos didático-pedagógicos para auxi-
liar o professor e motivar os alunos, pois isso diminuiria sobremaneira o
valor que elas têm que, por sinal, é imensurável. Essas tecnologias devem
ser vistas como uma extensão do processo de ensino-aprendizagem, isto
é, como ferramentas necessárias para a construção do processo. Por isso,
pensar na formação de professores para o uso das tecnologias digitais é o
caminho a ser seguido para mudarmos essa concepção de uso das tecnolo-
gias digitais como simples recursos.
Nesse contexto, o objetivo do presente trabalho é analisar um curso
de extensão ofertado pela Universidade Federal de Sergipe – UFS, a pro-
fessores da educação básica e superior - o curso Formação Docente: aplicabi-
lidade do G Suite for Education – Módulo 2, a fim de perceber suas contribui-
ções para a formação dos professores cursistas.
Assim, o trabalho será configurado da seguinte forma: na primeira
seção, logo após esta introdução, trazemos uma discussão acerca de tec-
nologias digitais e formação de professores, discutindo um pouco sobre a
importância dessas tecnologias para o processo de ensino-aprendizagem
e sobre aceitação e resistência dos professores em relação ao uso/não uso
dessas tecnologias. Na segunda seção, apresentamos o curso de extensão
em questão, seguido de uma análise do seu objetivo, cronograma, ativida-
des desenvolvidas e contribuições para a formação de professores.
1. TECNOLOGIAS DIGITAIS E FORMAÇÃO DE
PROFESSORES
Diversos autores têm apontado as tecnologias digitais como ferra-
mentas de grande potencialidade para a melhoria do processo de ensi-
no-aprendizagem e para práticas docentes mais diversificadas, a exemplo
de Carvalho e Ivanoff (2010), Braga (2013), Almeida et al. (2015), entre
outros).
Essas tecnologias têm sido, nos últimos tempos, ferramentas impres-
cindíveis para o processo de ensino-aprendizagem, pois através delas, os
professores têm encontrado formas diferentes de ministrar suas aulas e de
engajar os alunos, além de encontrar nelas um caminho fecundo para sua
854
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
formação profissional que, como se sabe, é fundamental para a composição
de aulas mais dinâmicas e contextualizadas, condizentes com o público que
se tem hoje, geralmente mais antenado às tecnologias digitais e mais exi-
gente em relação à forma de ministração das aulas por parte dos professores.
A importância das tecnologias digitais na educação é tão grande,
que esse assunto tem amparo em dois dos principais documentos legais
da educação: a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2017), e os
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (1998). Esses documentos si-
nalizam que, no contexto contemporâneo, o computador deve fazer parte
do processo de ensino-aprendizagem do educando, de modo que ele possa
fazer uso dessa tecnologia para diversas finalidades, como por exemplo, se
comunicar, realizar tarefas escolares e resolver problemas práticos do dia
a dia, que exigem conhecimentos de ferramentas tecnológicas como o
computador, conectado à internet. Nesse viés,
Precisa-se quebrar alguns paradigmas e reconhecer a necessidade de
trazer a tecnologia digital para dentro da sala de aula para promover uma
educação de qualidade que atenda a demanda do atual contexto que vive-
mos. A escola precisa assumir postura didática de comprometimento ofere-
cendo ao aluno diversas possibilidades de aprendizagem. De encontro com
essa necessidade nos deparamos com as possibilidades que a Era Digital ofe-
rece, atendendo à diversidade cultural e as necessidades de uma sociedade
em constante e intensa mudança (HESS; ASSIS, VIANA, 2019, p. 120).
De fato, promover uma educação de qualidade não é algo fácil, tendo
em vista todos os problemas que permeiam a educação, mas, a valorização
das tecnologias digitais dentro do contexto escolar é essencial para que a
escola alcance essa qualidade almejada e atenda a essa nova demanda de
alunos que se tem hoje, a chamada geração digital, expressão popularizada
por Prensky (2010) para se referir àqueles que nasceram imersos no mun-
do tecnológico digital.
Assim, apesar de já haver uma preocupação anterior por parte da es-
cola quanto ao uso de aparatos tecnológicos no ensino, no cenário atual,
marcado pela pandemia da Covid-19, a necessidade de uso das tecnologias
digitais aumentou exponencialmente, uma vez que as aulas presenciais fo-
ram suspensas em todo o país, a partir de algumas portarias do Ministério
da Educação – MEC, e todos os envolvidos na educação precisaram se
reinventar para seguir adiante com suas funções. Esse fator, colocou uma
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
grande pressão nas escolas, que precisaram encontrar formas de seguir o
processo educativo a partir da utilização de tecnologias digitais, por meio
do ensino remoto, colocando em jogo a capacidade do professor de utili-
zar as tecnologias digitais em favor do ensino.
Apesar da necessidade de adesão da massa representativa dos professo-
res ao uso de tecnologias digitais nas aulas remotas, o cenário pandêmico
evidenciou o quanto ainda precisa ser feito em relação à formação docente
para o uso de tecnologias digitais atreladas ao ensino, pois, enquanto al-
guns professores estão tentando de diferentes maneiras se adequar ao mo-
mento e aprender a usar tecnologias digitais diversas, a partir da inserção
em cursos de formação continuada em tecnologias digitais, outros, devido
ao ceticismo e desencanto com a educação, acabam resistindo e levando o
processo de ensino-aprendizagem de qualquer jeito, prejudicando sobre-
maneira a formação do estudante.
[...] a familiaridade com as tecnologias facilita ao professor utilizar
determinado recurso. O domínio da ferramenta [...] faz com que
o professor fique à vontade para fazer uma avaliação crítica do po-
tencial desses recursos para poder definir, criar ou adotar práticas
pedagógicas para trabalhar com seus alunos. Sendo assim, a forma-
ção para o uso de TDs é a base para as mudanças nas práticas peda-
gógicas desenvolvidas pelos docentes (MODELSKI; AZEREDO;
GIRAFFA, 2018, p. 121).
Essa familiaridade de que fala os autores não se alcança do dia para
a noite, mas pouco a pouco, através dos cursos de formação continuada
ou de extensão universitária disponíveis, muitos dos quais gratuitamente,
necessitando apenas da boa vontade do professor para aprender a utili-
zar as tecnologias digitais na educação. Assim, é preciso que os docentes
compreendam o valor da formação para o uso de TDs e que façam de suas
aulas espaços de interatividade, oportunizando aos alunos aprenderem de
forma mais condizente com o seu tempo.
Quando falamos em tecnologias digitais estamos nos referindo
não só aos equipamentos, à internet e aos programas, mas também
aos usos que as pessoas fazem desses equipamentos, da internet e
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
dos programas e o espaço que isso ocupa em nossa estrutura social
(SCHLINDWEIN; BOA SORTE, 2016, p. 14).
Os autores querem chamar a atenção, no trecho acima, para a com-
preensão acerca do que são tecnologias digitais, pois, numa análise rápida,
dá a impressão que se trata apenas de determinadas ferramentas tecnoló-
gicas, mas elas extrapolam a parte física/técnica. Ou seja, o sentido delas
é bem maior do que a ideia de equipamentos. Elas são hoje uma extensão
do nosso corpo, pois não conseguimos mais viver sem elas, seja no âmbito
pessoal, seja no acadêmico ou profissional, uma vez que nossas atividades
cotidianas, de diferentes formas, exigem que façamos o uso dessas tecno-
logias.
A presença das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação
(TDIC) em contextos de ensino e aprendizagem exige que os professores
dominem não somente um novo instrumento ou um novo sistema de
representação do conhecimento, mas uma nova cultura de aprendizagem
(BOA SORTE, 2017, p. 121).
As tecnologias digitais, de diferentes formas, têm permeado o ce-
nário educacional, exigindo dos professores diferentes habilidades para
fazerem uso delas cotidianamente, de modo a tornar o seu trabalho mais
contextualizado e adequado aos novos tempos, oportunizando ao aluno
participar ativamente do processo de ensino-aprendizagem, algo funda-
mental para a conquista de sua autonomia. Nessa linha de raciocínio,
Nosso desafio como docentes é não nos distanciarmos, confron-
tarmos ou resistirmos aos recursos tecnológicos. Precisamos nos
aproximar e compreender que as novas tecnologias digitais ofere-
cem um desafio viável, visto que a aprendizagem pode acontecer
em qualquer hora e qualquer lugar e de diferentes modos. Assim,
a tecnologia digital pode ser uma grande aliada no processo de en-
sino e aprendizagem escolar (MENDES; CHAMPAOSKI, 2017,
p. 428).
De fato, apesar dos desafios, que não são poucos quando o assunto
é a inserção das tecnologias digitais na educação, não é uma atitude sábia
do professor ignorá-las e resistir a elas, afinal, elas estão em toda parte,
em todos os setores da sociedade, nos auxiliando de diferentes formas. A
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
atitude deve ser totalmente contrária – o professor precisa aceitá-las e tirar
todo o proveito delas, pois elas têm grandes potencialidades para a edu-
cação, quando são bem utilizadas. Assim, numa sociedade cada vez mais
tecnológica, o professor se vê diante de três escolhas quanto às tecnologias
digitais: ignorá-las, temê-las ou aceitá-las (JENKINS, 2009).
Com base nas opções apontadas por Jenkins (2009), a decisão mais
acertada por parte do professor é aceitá-las, porque essa atitude demonstra
o quão aberto ele é para o novo, o quanto se preocupa em oferecer ao alu-
no um ensino condizente com sua realidade, que é permeada por tecno-
logias digitais. Mas não basta ele simplesmente aceitar. É preciso formação
para o uso correto de tais tecnologias, para que elas não virem um pretexto
para a inovação.
Um dos desafios da formação dos professores para o uso das novas
tecnologias é desenvolver nos professores a capacidade de perceber
a potencialidade dos recursos educacionais digitais. Essa concepção
vai além daquela predominante nos cursos de formação docente,
da qual põe em evidência o treinamento para o manuseio corre-
to do computador, deixando de lado o potencial metodológico da
ferramenta. Esse foi o principal aspecto a ser apontado pelos pro-
fessores no processo de formação docente: a falta de aporte me-
todológico para a utilização dos recursos digitais no processo de
ensino aprendizagem (MARTINS; MASCHIO, 2014, p. 17).
Fazer uso das tecnologias digitais na educação, aparentemente, parece
ser algo simples. Usar tecnologias digitais no ensino requer do professor
diferentes habilidades que vão além do conhecimento técnico de uso de
tais tecnologias. É preciso que o professor tenha um bom planejamento e
observe de que forma o uso de determinada tecnologia vai contribuir com
a melhoria da aula. Mais do que isso, é preciso que ele olhe para a tecno-
logia e perceba suas diferentes potencialidades e, munido do seu planeja-
mento cotidiano, saiba tirar o máximo proveito delas, não como meros
recursos didático-pedagógicos, mas como parte importante do processo
de ensino-aprendizagem.
Nessa perspectiva, para além de um endeusamento das tecnologias
digitais a serviço do processo educativo, é preciso que fique claro que:
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
[...] a inserção e mesmo a “integração” das tecnologias em qual-
quer nível de ensino não significa mudanças nas práticas e meto-
dologias. Essa perspectiva aponta os professores como o centro da
inovação da prática com o uso de tecnologias, pois a tecnologia
(como ferramenta) por si só é vazia. É o professor, com base em
sua formação, que tem a possibilidade de propor mudanças meto-
dológicas e transformar o uso de tecnologias numa prática social e
cultural (RIEDNER; PISCHETOLA, 2016, p. 38).
Ou seja, por mais que defendamos o uso constante das tecnologias
digitais no processo de ensino-aprendizagem, elas não devem ser vistas
como os elementos mais importantes da aula, como a grande novidade.
Pelo contrário, em se tratando dos processos de ensinar e aprender, o pro-
fessor ainda continua com o seu lugar assegurado, e continuará por muito
mais tempo, tendo em vista que tecnologia nenhuma substitui o professor.
Assim, independentemente dos aparatos tecnológicos utilizados no
processo de ensino-aprendizagem, o professor continua tendo o seu papel
essencial – o de mediador do conhecimento. Nesse viés, ao descobrir o
potencial das tecnologias digitais para a inovação de suas aulas, ele de-
monstra mais uma faceta do seu papel enquanto professor, que é buscar
novas alternativas para melhorar as formas de ensinar e aprender.
2. Curso de Extensão Formação docente: aplicabilidade
do g suite for education – Módulo 2
O curso de extensão Formação Docente: aplicabilidade do g suite for educa-
tion – módulo 2, foi planejado e executado durante a pandemia, como uma
das estratégias das professoras formadoras para diminuir as dificuldades
dos professores da educação básica e superior do estado de Sergipe em
relação ao uso de tecnologias digitais no ensino.
O curso faz parte da pesquisa desenvolvida pela professora e pesquisa-
dora, Anne Alilma Silva Souza Ferrete na Universidade Federal de Sergipe,
intitulada “FORMAÇÃO DOCENTE E AS TECNOLOGIAS DIGI-
TAIS NA EDUCAÇÃO”, inserida no Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGED), e tem como objetivo principal analisar a aplicabilidade
da tecnologia integrada ao processo de ensino e aprendizagem e à formação
859
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
docente. É um projeto amplo que engloba e incorpora os demais projetos
dos orientandos que retratam as diversas possibilidades e potencialidades de
incorporar as tecnologias ao processo de ensino e aprendizagem e à for-
mação docente, seja inicial ou continuada. No caso específico do referido
curso, faz parte do produto elaborado pela orientadora e pela orientanda
Rosana M.S. Torres Marcondes, a partir do projeto intitulado “TECNO-
LOGIA DIGITAL DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA
EDUCAÇÃO BÁSICA: A PARTIR DA PLATAFORMA G SUITE
FOR EDUCATION”, que identifica na realização da referida pesquisa a
necessidade de formação continuada destinada aos docentes217.
O curso foi ofertado para 35 professores cursistas da educação básica
e superior, teve início em 06 de agosto de 2020 e finalizou-se em 10 de
setembro de 2020, com uma carga-horária de 20 horas, dividida em seis
encontros on-line através do Google Meet, equivalente a 10 horas, e 10 horas
de atividades assíncronas. A figura abaixo traz um desenho de como o
curso foi organizado.
Figura 5: Organização do curso
Fonte: Fonte: Autoria própria, baseado na proposta do curso
217 Disponível em https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/public/departamento/extensao.jsf;jsessio-
nid=35FFA7694CB243D661F65AC3E3CB81CD.bigua2. Acesso em 08 Nov. 2020.
860
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
A figura acima mostra a ordem de como o curso foi desenvolvido. Fo-
ram sete aplicativos/ferramentas trabalhadas durante este curso. Em cada
encontro, focava-se em um ou dois aplicativos, restando o último dia do
curso para as apresentações finais dos alunos, que consistia na produção de
uma simulação de aula envolvendo o maior número possível de aplicativos
trabalhados durante o curso. No quadro abaixo podemos ter uma visão
clara do cronograma do referido curso.
Quadro 1: Cronograma do Curso
DATA HORÁRIO PROGRAMAÇÃO ATIVIDADE
06/08 13:30 às Apresentação do curso • Acesse o Google Sala
16:00H e criação do Google de Aula. Se este for seu
Classroom primeiro acesso, entre como
“professor”.
• Crie uma turma chamada
“Professor/a (seu nome)” e,
na opção Seção, escreva o
nome de sua disciplina.
• Explore o ambiente tente
explorar todas as guias, e
anote eventuais dúvidas que
precise esclarecer com as
professoras.
• Volte para o Google Sala
de Aula e crie um aviso de
boas-vindas para seus alunos
na aba intitulada “mural”.
13/08 14: 30 às Criação de mapas Elaborar um Mapa Mental
16:00h mentais com os com uma breve apresentação,
aplicativos Canva e com características pessoais,
Goconqr propósito, formação e atuação
profissional, entre outras
características.
Prazo para entrega: 12.08.2020.
Anexar a atividade no
Classroom.
Sugestão de sites para elaborar o
mapa:
https://www.canva.com/pt_br/
graficos/mapa-conceitual/ -
https://www.goconqr.com/
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
DATA HORÁRIO PROGRAMAÇÃO ATIVIDADE
20/08 14: 30 às Atividades avaliativasCriar uma atividade no Google
16:00h com o Google Formulários. (Tente colocar
Formulário imagem em uma das questões).
• Elabore uma questão de
alternativas onde os alunos
só tenham uma única opção
de resposta correta (múltipla
escolha).
• Crie uma questão de
alternativas onde os alunos
tenham mais de uma opção
de resposta correta (caixas de
seleção).
• Crie uma questão dissertativa
(resposta curta ou parágrafo).
• Nas configurações, limite a
uma única resposta.
• Configure o gabarito do
Formulário (chave de
respostas).
• Insira pontuação nas questões.
Prazo para entrega: 19.08.2020.
Anexar a atividade no
Classroom.
27/08 14: 30 às Google Arts Baixar o Google Arts e planejar
16:00h uma aula a partir dele.
Google Apresentações Criar um cenário interativo no
como criar cenários Google Apresentações.
interativos clicáveis • Insira um vídeo e um
arquivo em pdf no cenário.
Prazo para entrega: 26.08.2020.
Anexar a atividade no
Classroom.
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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DATA HORÁRIO PROGRAMAÇÃO ATIVIDADE
04/09 14: 30 às Como criar murais Escolha um dos aplicativos ou
16:00h interativos com o sites abordados nas oficinas e
Padlet elabore o planejamento de uma
aula, caso não seja professor,
imagine que você precisará
ministrar uma aula ou um curso.
Ao finalizar o planejamento
compartilhe com a turma
publicando no mural Padlet.
SUGESTÃO DE
PLANEJAMENTO:
Avaliação do curso.
10/09 14: 30 às Finalização do curso Entrega e apresentação da
16:00h atividade final do curso.
Acesse o Padlet e publique a
atividade: https://padlet.com/
rosanatorres/yruls9ay1l2jo049
Fonte: Adaptado do cronograma das professoras formadoras
Como se pode notar no cronograma acima, o referido curso de ex-
tensão possibilitou aos professores cursistas um leque de possibilidades
muito grande de aprender a utilizar as tecnologias digitais, e o melhor
de tudo, cada uma delas demonstrada na prática, para mostrar que, em
muitas situações, aprender fazendo faz muito mais efeito do que apenas
ouvindo uma explicação voltada para a parte técnica.
Em relação ao primeiro encontro, este teve como foco ensinar os
cursistas a criarem turmas no Google Classroom para, posteriormente, utili-
zarem esse conhecimento em seus locais de trabalho, criando turmas para
prosseguir o processo educativo durante a pandemia. Além disso, um dos
propósitos do curso em relação à criação dessa turma era ter um lócus vir-
tual onde os cursistas poderiam postar suas produções, ao longo do curso,
para acompanhamento e avaliação por parte das professoras formadoras.
863
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Figura 2: Google Classroom
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Google_Classroom
Trata-se de um aplicativo de fácil utilização por parte de professores e
alunos. Pode ser baixado tanto em computadores quanto em smartphones e
dinamizam bastante o processo de ensino-aprendizagem ao permitir que
professores e alunos interajam neste ambiente de aprendizagem. Nele o
professor pode postar conteúdos, atividades e avaliações, programando o
próprio sistema para avisar sobre a entrega de atividades, para fazer cor-
reções automáticas e elaborar planilhas com o desempenho dos alunos,
algo que ajuda bastante o professor no acompanhamento e evolução dos
discentes, inclusive podendo fazer intervenções em relação aos alunos que
apresentarem maiores dificuldades, demonstradas pelo próprio aplicativo.
Para os professores cursistas, conhecer este aplicativo neste curso e
poder utilizá-lo com suas turmas de educação básica e/ou superior foi,
sem sombra de dúvidas, um ganho inestimável neste curso de extensão,
principalmente pela aproximação deste aplicativo com uma sala de aula e
por sua possibilidade de interação entre o ensino presencial e o ensino on-
line, isto é, o hibridismo no ensino, algo já defendido por muitos teóricos,
a exemplo de Moran (2013), mesmo antes da pandemia.
No segundo encontro, foram apresentados aos cursistas dois aplicati-
vos: Canva e Goconqr, ambos voltados para a construção de mapas mentais,
apesar de o Canva também ter outras utilidades que não foram exploradas
neste curso.
Conhecer estes dois aplicativos foi de grande valia para a formação
dos professores cursistas que, muitas vezes, pelo desconhecimento des-
ses aplicativos, acabavam pagando a terceiros para colocar em prática seus
rascunhos de mapas mentais ou faziam sem muito esmero. A partir destes
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
aplicativos, os cursistas demonstraram um grande entusiasmo para traba-
lhar com mapas mentais, dadas as facilidades apresentadas pelos aplicati-
vos, que oferecem diversos modelos prontos editáveis, diminuindo signi-
ficativamente o tempo gasto pelo docente na preparação de suas aulas e
oferecendo ao mesmo designs218 profissionais que, sozinho, dificilmente ele
conseguiria montar.
No terceiro encontro, foi apresentado aos cursistas o Google Forms
(Google Formulários), um recurso bastante útil para os professores ela-
borarem suas atividades e provas. Este recurso é de suma importância nos
dias de hoje, principalmente para a coleta de dados de pesquisa, uma vez
que o pesquisador pode aplicar um questionário e enviá-lo para pessoas
em diversos lugares, ou seja, dá para se fazer uma pesquisa online sem a ne-
cessidade de se encontrar com os informantes da pesquisa, algo que ajuda
o pesquisador quanto às dificuldades espaço-temporais. Além disso, este
recurso pode ser interligado ao Google Classroom e o professor pode aplicar
uma avaliação e programar a correção automática desta avaliação pelo sis-
tema, economizando tempo e facilitando todo o processo.
No quarto encontro, foram apresentados o Google Arts e o Google Apre-
sentações. Abaixo, podemos visualizar o ícone representativo do Google Arts.
Figura 3: Google Arts
Fonte: https://play.google.com/store/apps/details?id=com.google.android.apps.cultu-
ral&hl=pt
218 A figura 1 é um exemplo do quanto este curso contribuiu para a formação docente em
tecnologias digitais, pois foi criado por um dos cursistas e autores do presente trabalho a
partir do Canva.
865
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Foi uma grande novidade para os cursistas se depararem com o Google
Arts e suas possibilidades. Ter a oportunidade de visitar qualquer museu
no mundo e ver as principais obras dos pintores mais famosos do mundo
como se estivesse dentro do museu, foi uma possibilidade que encantou
os cursistas. Outra possibilidade foi projetar na lousa da sala de aula um
quadro de um artista presente em algum conteúdo e explorar suas carac-
terísticas, algo tido como impossível pelos cursistas antes de conhecer o
referido aplicativo e todas as suas possibilidades de uso no processo de
ensino-aprendizagem.
Acerca do Google Apresentações, o segundo aplicativo utilizado nes-
te encontro, também se mostrou uma novidade para os cursistas e encan-
tou a todos, estimulando-os para utilizarem em suas aulas.
Figura 4: Google Apresentações
Fonte:https://slidesgo.com/pt/slidesgo-school/tutoriais-do-google-slides/como-imprimir-
-apresentacoes-do-google-slides
Aplicativo similar ao powerpoint, o Google Apresentações é uma novida-
de para muitos docentes e, apesar de ele ser uma apresentação de slides, ele
tem um grande diferencial – a possibilidade de o professor montar uma
apresentação clicável, tornando-a mais dinâmica e economizando o tama-
nho da apresentação. Foi fascinante saber que neste aplicativo é possível
colocar links e vídeos e tornar uma simples apresentação em um momento
de muita criatividade. Todos os cursistas amaram este aplicativo e foram
muito criativos em suas criações com este aplicativo.
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
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Figura 5: Google Apresentações
Fonte: Autoria própria
Aprender a utilizar o Google Apresentações foi algo fantástico para os
cursistas, pois oportunizou aos mesmos planejar aulas mais dinâmicas e
interativas e fazer uso das tecnologias digitais a serviço do ensino, algo que
antes eles achavam que era algo muito difícil de fazer.
No quinto encontro, foi apresentado aos cursistas a ferramenta Padlet,
uma mural virtual utilizado para a exposição de trabalhos dos cursistas.
Mais uma ferramenta incrível que encantou os cursistas.
Figura 6: Padlet com apresentações de memes dos cursistas
Fonte: https://padlet.com/rosanatorres/pbwy7xrmoija7zng
O mural virtual acima foi composto com as atividades realizadas em
um dos encontros pelos cursistas. Foi solicitada a produção de um meme
a cada um deles. Ao final, cada um postou sua criação no padlet (mural
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D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
virtual) da turma. Foi muito bacana esta atividade porque os cursistas pu-
deram exercitar sua criatividade e domínio acerca das tecnologias digitais
necessárias tanto para a produção do meme quanto do padlet.
No sexto e último encontro, os cursistas foram orientados a produzir
uma simulação de aula utilizando o máximo de aplicativos trabalhados
durante o curso. Saíram produções belíssimas que encheram de orgulho
as professoras cursistas e a eles mesmos, que se descobriram usando as tec-
nologias digitais na educação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, nos propusemos a tratar de uma temática de grande
relevância para o processo de ensino-aprendizagem – as tecnologias digi-
tais atreladas à formação de professores, a partir da análise e um curso de
extensão oferecido pela Universidade Federal de Sergipe a professores da
educação básica e superior do estado de Sergipe durante a pandemia da
Covid-19.
Discutimos um pouco acerca das tecnologias digitais e de sua impor-
tância em todos os setores sociais, principalmente o educacional, eviden-
ciando que, num mundo notadamente tecnológico, não há motivo para
os professores negarem o potencial das tecnologias digitais, pelo contrário,
é preciso que eles tenham consciência de que vivem num contexto dife-
rente, na sociedade da informação, necessitando se antenarem para não
ficarem obsoletos em relação à própria profissão.
Chamamos a atenção também para a importância da formação do-
cente para o uso de tecnologias digitais no ensino, explicando que o sim-
ples destas não é sinônimo de inovação das práticas pedagógicas, pois, a
depender da forma como elas são usadas, não passam de mero pretexto
para a inovação, cabendo um planejamento consciente, que dê conta de
entender como cada tecnologia serve para cada conteúdo trabalhado, ou
seja, as tecnologias são importantes, mas, mais importante do que elas é a
forma como o professor faz uso delas em prol de uma aprendizagem mais
significativa.
Por fim, fizemos uma análise pormenorizada do curso de extensão
Formação Docente: aplicabilidade do g suite for education – módulo 2, mostrando
como se deu a apresentação dos diferentes aplicativos aos cursistas e como
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
foi o aprendizado deles em relação às ferramentas apresentadas. Assim,
concluímos que foi um curso riquíssimo, que oportunizou aos cursistas
momentos de formação para as TDs que certamente os ajudarão em suas
práticas pedagógicas daqui por diante.
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SCHLINDWEIN, Ana Flora; BOA SORTE, Paulo Roberto. Tecnolo-
gias no Ensino de Língua Inglesa. São Cristóvão: Editora UFS,
2016.
870
RESUMOS
871
ECA 30 ANOS: AS CONQUISTAS E
OS DESAFIOS ENFRENTADOS EM
TEMPOS DE PANDEMIA.
Higor da Silva Gomes219
INTRODUÇÃO
Em 2020 o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº
8.069 de 1990, completou em 13 de julho 30 anos na luta pelos direitos
das crianças e dos adolescentes com inúmeras conquistas como a redução
de mortalidade infantil, ampliação do acesso às escolas, a diminuição do
trabalho infantil, a proteção contra quaisquer tipos de violência e a afluên-
cia à condições dignas de saúde e lazer, dentre outros aspectos positivos,
como a criação dos conselhos tutelares presentes na grande maioria dos
municípios brasileiros, concretizando-se que crianças e adolescentes são
sujeitos de direitos e garantias fundamentais as quais devem ser coloca-
das em prioridade visando o desenvolvimento psicológico e social destes,
conforme preconizado pela Constituição Federal brasileira e vinculado
ao princípio da proteção integral. Entretanto, é notório nos depararmos
com os desafios e problemas que ainda devem ser enfrentados e dizima-
dos como o trabalho infantil e as exposições a riscos, principalmente nos
tempos atuais.
219 Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pós Graduado em
Direito e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário União das Américas. Pós Graduan-
do em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá. Pós Graduando em Direito de
Família e Sucessões pelo Centro Universitário União das Américas.
873
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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O estudo tem por base um referencial teórico baseado primeiramente na
Constituição Federal de 1998 (BRASIL, 1998); que indica os princípios aos
quais se baseia os direitos discutidos como o da melhor interesse da criança e
do adolescente e o da parentalidade responsável. Ainda no ambto legal, apli-
case o ECA (BRASIL, 1990), que posiciona os agentes de direitos discutidos,
sendo as crinaças e adolescentes, como sujeitos de direitos e garantias as quais
devem ser efetivadas. Por fim, busca complemetar a pesquisa com dados e
informações obtidos por orgãos jurisdicionais, sendo o Ministério Público
do Paraná que apresenta discussões e conclusões obtidas por ONG´s especia-
lizadas no tema (MPPR, 2020), para um aprimoramento e incentivação do
debate e aplicação de tal problemática em nossa sociedade civil.
METODOLOGIA
O presente artigo traz a tona os 30 anos do ECA, sendo utilizado para
tanto o método lógico dedutivo e lógico indutivo, com base em princí-
pios constitucionais, estatisticas de ONG´s, bem como dados de orgãos
governamentais.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A comemoração dos 30 anos de ECA coincidiu com o surgimento
de um dos maiores desafios enfrentados por todo o planeta, a pandemia
da Covid-19 (Corona-Vírus), o que resultou em uma agravante dos pro-
blemas enfrentados por crianças e adolescentes. Pode se analisar primei-
ramente a questão educacional, aspecto basilar do ECA, que em razão da
pandemia sofreu enorme desafio em relação as aulas online, enfrentado
não só pelos alunos, mas também pelos pais.
Porém, dentre os desafios enfrentados, a violência contra crianças e
adolescentes incluindo maus tratos, abuso sexual entre outras formas de
violência, se mostra como um problema maior e mais grave que se po-
tencializa em razão do isolamento social. É o que informa o Ministério
Público do Paraná, nos dizeres da advogada Marta Tonin que cita um
relatório da organização não-governamental (ONG) World Vision, esti-
8 74
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
mando que até 85 milhões de crianças e adolescentes com idade entre 2 e
17 anos poderão se somar às vítimas de violência física, emocional e sexual
em todo o planeta, sendo a principal causa do aumento o confinamento
em casa. Segundo a supracitada ONG, no Brasil, a projeção é de um au-
mento de 18% no número de denúncias de violência doméstica, sendo
este crescimento também esperado pelo Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF). (MPPR, 2020).
Em contrapartida a estimativa acima, houve queda de 12% nas de-
núncias contra crianças e adolescentes em comparação com o ano passado
neste período, segundo dados do Ministério da Mulher, Família e Direi-
tos Humanos. Todavia, cabe analisar que tal diminuição é consequências
dos fechamentos das escolas, se observarmos que as denúncias geralmente,
são feitas pelos menores nos ambientes escolares, razão pela qual o comba-
te e prevenção da violência se mostra de extrema importância. (VIEIRA,
PINHONI, MATARAZZO, 2020).
Ao analisarmos as formas de combate e prevenção à violência, é in-
questionável que, baseado no princípio do respeito à condição peculiar da
pessoa em desenvolvimento estabelecido na Constituição Federal, e no
princípio da corresponsabilidade, cumpre ao estado, à família e à socie-
dade civil tem o dever de proteção, sendo dever do poder público criar e
efetivar políticas públicas de repressão bem contra qualquer tipo de vio-
lência, como por exemplo o afastamento de crianças e adolescentes ao
álcool, drogas, armas; facilitar e gerar melhoria nos meios de denúncias,
bem como no atendimento e amparo as vítimas; o acesso dos interessados
a uma educação mais eficaz e equitativa. Uma importante iniciativa to-
mada recentemente foi a criação, pelo Ministério Público do Paraná, de
um documento contendo parâmetros de atuação do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) no sistema de garantia de direitos da criança e
do adolescente vítima ou testemunha de violência, importantíssimo no
auxilio a luta na defesa das garantias ao menores. (MPPR, 2020).
É responsabilidade também dos pais e responsáveis a formação moral,
psicológica e social desses indivíduos, garantindo, assim, uma geração de
cidadãos íntegros. Já a sociedade civil por meio das instituições que a integra
como as igrejas, ONGs, escolas, devem auxiliar na evolução socioemocio-
nal; a imprensa com intuito de esclarecer e expor denúncias contra todos os
tipos de violência; bem como atuação de pessoas próximas como familiares
875
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
e vizinhos que podem cumprir papel protetor dos menores realizando de-
núncias por meio do “Disque 181 ou 100”. Ressalta-se a importância das
empresas em assegurar a formação de habilidades dos futuros profissionais,
bem como dar oportunidades de emprego a eles. (MPPR, 2020).
CONCLUSÕES
Portanto, é clara a importância do ECA nesses 30 anos de existência
e luta, bem como os avanços e conquistas já conquistados em favor das
crianças e adolescentes. Porém, não se pode ignorar as lutas e desafios
presentes e futuros, sendo necessário para o enfretamento destas a união
de forças por parte daqueles que legalmente são legitimados a garantir aos
menores a proteção de todos os seus direitos, de modo a agir coordenada
e conjuntamente, objetivando conquistas ainda maiores na garantia dos
direitos das crianças e adolescentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.
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VIEIRA, Barbara M; PINHONI, Marina; MATARAZZO, Renata.
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no Brasil durante a pandemia. G1. Disponível em: https://g1.globo.
com/sp/sao-paulo/noticia/2020/09/10/denuncias-de-violencia-con-
tra-criancas-e-adolescentes-caem-12percent-no-brasil-durante-a-
-pandemia.ghtml. Acesso em 17/10/2020.
876
A (DES)PROTEÇÃO DE
CRIANÇAS QUE COMETEM ATOS
INFRACIONAIS: DEBATES INICIAIS
Islene Gomes Mateus Castelo Branco220
Thaywane do Nascimento Gomes221
No Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, as crianças passa-
ram a ocupar o lugar de portadoras de direitos com prioridade absoluta
no bojo social e político. Em termos etários, o ECA define como sendo
criança, as pessoas com idade entre 0 e 12 anos incompletos (BRASIL,
1990). Contudo, é sabido que não são todas as crianças brasileiras que
conseguem acessar os direitos básicos, haja vista que muitas são afetadas
diretamente pelas disparidades sociais e econômicas.
Assim, é importante pensarmos na diversidade de infâncias e como a
proteção integral recai (ou não) sobre as crianças brasileiras. Neste resu-
mo, o foco será as crianças a quem se atribui a autoria de atos infracionais.
Entendendo que o fato de empreender uma conduta infracional não pode,
em hipótese alguma, significar perda do status de proteção, cuidados e
220 Mestra em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB); Agente socioeduca-
tivo na Unidade de Internação do Recanto das Emas (UNIRE/DF); Professora de Direito da
Criança e do Adolescente na graduação em Direito do Instituto de Ensino Superior Planalto
(IESPLAN).
221 Mestranda em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de Brasília (UnB); Especialis-
ta em Políticas Públicas e Socioeducação pela Escola Nacional de Socioeducação; Psicóloga
pela Universidade Católica de Brasília e Assistente Social pela UnB.
877
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
prioridade. Pelo contrário, o olhar cauteloso e de promoção dos direitos
fundamentais poderá ser protetivo e preventivo em relação a novas infra-
ções e as possibilidades futuras.
No caso das crianças que cometem atos infracionais, apenas o ECA
traz breves apontamentos sobre a condução dessas situações, porém, ficam
várias lacunas, que, infelizmente, acabam sendo preenchidas por interven-
ções moralistas e reducionistas. Em linhas gerais, a nossa principal legisla-
ção infancista aponta que no caso de crianças autoras de atos infracionais
serão aplicadas, exclusivamente, as medidas de proteção e não as medidas
socioeducativas, porquanto essas crianças têm direito ao cuidado e à pro-
teção.
As medidas de proteção são preconizadas pelo ECA e voltadas para a
atenção especial a crianças e adolescentes que tenha os seus direitos amea-
çados ou violados, seja por ação ou omissão da família, da sociedade, do
Estado ou em razão da própria conduta (BRASIL, 1990; SOUZA, 2008;
SOUZA & COSTA, 2013), esta última situação abarca o ato infracional.
O Estatuto apresenta um rol exemplificativo das medidas de prote-
ção, assim, o poder judiciário e/ou o Conselho Tutelar podem desenhar
ou combinar medidas que melhor se adequem à trajetória da criança e
da sua família, priorizando os vínculos comunitários, educacionais e de
saúde.
Partindo do exposto, objetiva-se investigar como acontece a prote-
ção, o acolhimento e as intervenções psicossociais junto a crianças que
cometem atos infracionais. Vislumbrando verificar se os princípios de
proteção integral e prioridade absoluta também incidem sobre essas crian-
ças. Para tal feito, metodologicamente, realizou-se análises documental e
bibliográfica, com o intuito de costurar uma pesquisa exploratória acerca
da temática aqui tratada.
Notou-se que existem ínfimos trabalhos acerca das crianças que co-
metem atos infracionais, inexistindo informações acerca do perfil, medi-
das de proteção mais aplicadas ou período do acompanhamento. Tal cená-
rio de invisibilidade e desinformações impacta diretamente na construção
de políticas públicas, programas e ações que sejam efetivas e protejam essas
crianças.
Parte das pesquisas ou produções técnicas acerca das crianças que
cometem ato infracional direcionam as suas reflexões sobre como proce-
878
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
der nesses casos (DIGIÁCOMO, online; HAMOY, 2005) ou para o pa-
pel do Conselho Tutelar na condução das medidas de proteção para essas
crianças (KAMINSKI, 2002; SANTOS, 2018). Quase nada se fala sobre
as crianças e suas histórias de vidas, a centralidade é dada ao Conselho
Tutelar e ao que não fazer quando uma criança infraciona, como se não
houvesse uma pessoa detentora de direitos em cena.
Portanto, apreende-se que há um total silenciamento acadêmico, le-
gal e político acerca dos fluxos de atendimento e cuidados com as crianças
que infracionam, ficando à cargo dos conselheiros tutelares delimitarem as
medidas de proteção e a condução dos atendimentos. Por não haver uma
unicidade no manejo com essas crianças, hipotetiza-se que elas podem
estar desprotegidas, tendo os seus direitos fundamentais desrespeitados e
não sendo atendidas com a prioridade absoluta estabelecida inclusive na
Constituição.
Por fim, reforça-se a urgência de construir políticas públicas para as
infâncias que passam ao ato infracional e pesquisas que levantem infor-
mações sobre quem são essas crianças e como elas têm sido protegidas ou
não, haja vista que não é possível sequer fiscalizar, enquanto sociedade,
os desdobramentos das trajetórias dessas crianças e ações realizadas no in-
terior dos Conselhos Tutelares, pois, as informações não aparecem em
dados nacionais, relatórios ou debates. Desse modo, enfatiza-se que essa
invisibilidade não corresponde à lógica de proteção e ao lugar de sujeitos
de direitos ocupado pelas crianças em nosso ordenamento.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069 de 13
de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente e outras providências. Brasília, 1990.
DIGIÁCOMO, Murilo José. Criança acusada da prática de ato infra-
cional: como proceder. Ministério Público do Paraná. Disponível
em: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/politica_socioeduca-
tiva/doutrina/Crianca_acusada_da_pratica_de_ato_infracional.pdf.
Acesso em 30 de out. 2020.
879
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
HAMOY, Ana Celina Bentes. Apuração do ato infracional quando prati-
cado por criança. In: FRASSETO, Flávio (Org.). Apuração de ato
infracional e execução de medida sócio-educativa: conside-
rações sobre a defesa técnica de adolescentes. São Paulo: Asso-
ciação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente,
2005, p. 12-24.
KAMINSKI, André Karst. O Conselho Tutelar, a Criança e o Ato
Infracional: Proteção ou punição? Canoas: Editora ULBRA,
2002.
SANTOS, Diessica Luana Cavalheiro dos. A atuação do Conselho
Tutelar na prática do ato infracional cometido por crianças
e adolescentes. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
Direito)- Centro Universitário UNIFACVEST, Lages, 2018.
SOUZA, Luana Alves de. Fiscalização da execução de medidas pro-
tetivas quando cumuladas com medidas socioeducativas:
a experiência da vara da infância e da juventude do Distrito
Federal. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Serviço
Social)- Universidade de Brasília, Brasília, 2008.
SOUZA, Luana Alves de & COSTA, Liana Fortunato. A significação das
medidas socioeducativas para as famílias de adolescentes privados de
liberdade. Psico-USF, Bragança Paulista, n. 18, n. 2, p. 277-288,
2013.
880
ADOÇÃO TARDIA NO BRASIL: O
DESAFIO DA REINSERÇÃO FAMILIAR.
Aline Mariano da Silva222
INTRODUÇÃO
O instituto da adoção é ato irrevogável que ocorre geralmente após
a destituição do poder familiar, assim decorrido todo procedimento legal
o adotado passa ter todos os direitos e deveres inerentes aos filhos bioló-
gicos, não podendo haver nenhum tipo de discriminação. Essa temática
vem recebendo destaque nos últimos anos, sendo pauta de vários debates
e trabalhos cientificos ampliando assim o conhecimento sobre o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), conceitos de família e Direito a con-
vivência familiar e comunitária, principalmente no que se refere a crianças
e adolescentes que vivem em instituições de acolhimento.
Dentre estudos, procedimentos juridicos e um forte envolvimento
emocional têm-se uma problemática que necessita ser abordada e traba-
lhada pela sociedade civil, governantes, servidores do judiciário e equipe
do Sistema único de Assistência social: a adoção tardia. Neste sentindo
dar-se a reflexão do presente trabalho, buscando compreender os motivos,
desafios e consequências na esfera dos Direitos Humanos que envolvem
crianças e adolescentes.
222 Graduada em Serviço Social pela PUC-GO, graduanda em Direito pela Faculdade Lions.
Educadora Social efetiva do município de Goiânia. Já atuou como coordenadora do Residen-
cial Professor Niso Prego (Instituição de acolhimento municipal.).
881
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) revela que
atualmente, existem 30.877 crianças acolhidas, destas 5.143 estão dispo-
niveis para a adoção sendo que 4.274 são maiores de dois anos de idade, ou
seja, cerca de 80 % são incluidas na estatistica da adoção tardia. De acordo
com Vargas:
A adoção é considerada tardia quando a criança a ser adotada tiver
mais de dois anos. Tais crianças ou foram abandonadas tardiamente pelas
mães, que, por circunstâncias pessoais ou sócio-econômicas não puderam
continuar se encarregando delas ou foram retiradas dos pais pelo Poder ju-
diciário, ou, ainda foram “esquecidas” pelo estado desde muito pequenas
em “orfanatos” que, na realidade, abrigam uma minoria de órfãos com já
levantado anteriormente. (Vargas, 1998, p. 35)
Ainda de acordo com SNA, o Cadastro Nacional de Adoção possui
35.982 pretendentes disponiveis a adotar, o que nos leva a refletir tamanha
discrepância de números entre adotantes e crianças e adolescentes dispo-
niveis para adoção, mas nesta mesma estatistica disponibilizada pelo Con-
selho Nacional de Justiça (CNJ) pode se verificar que há uma predileção
por determinado perfil: bebê, sexo feminino, sem doenças e sem grupos
de irmãos, neste mesmo sentindo explica Weber (1996, p.02):
O perfil da criança adotada pelos entrevistados equivaleu ao conhe-
cido perfil das crianças chamadas "adotáveis": uma criança saudável (76%
dos bebês não apresentava problemas de saúde), do sexo feminino (60%),
recém-nascida (69% eram bebês até 3 meses de idade) e de pele clara
(64% dos bebês eram brancos).
Diante dos dados apresentados percebe-se que a adoção tardia é uma
grande problemática da conjuntura brasileira, tendo em vista que na reali-
dade os perfis das crianças aptas a serem adotadas divergem das preferên-
cias dos adotantes, principalmente no quesito idade, o que se verifica é
que existe um receio por trás da adoção tardia, onde os candidatos temem
que crianças mais velhas ou adolescentes não se adaptem bem no ambien-
te familiar após o tempo de institucionalização, ficando cada vez mais a
mercê do Estado a garantia e a proteção integral delas. De acordo com
Maria Berenice Dias:
882
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
À medida que o tempo passa, as crianças tornam-se “inadotáveis”,
palavra feia, quase um palavrão, que significa crianças que ninguém quer,
seja porque já não são bebês, seja porque não são brancas, ou não são per-
feitas, eis portadoras de necessidades especiais. Pelo jeito ninguém lem-
bra o porquê de as crianças estarem lá: ou foram abandonadas, ou os pais
destituídos do poder familiar por maus tratos ou por abuso sexual. Nessa
hipótese, aliás, é bem mais difícil que sejam adotadas. Portanto, o que era
para ser um simples mecanismo, um singelo instrumento agilizador de
um procedimento transformou-se em um fim em si mesmo. Em vez de
um meio libertário, passou a ser um fator inibitório e limitativo da ado-
ção. (Dias, 2010, p. 03)
Não obstante a escolha de o perfil ser um problema, paralelamente a
isso ainda nos deparamos como a morosidade burocrática no trâmite legal
da adoção, que faz com que crianças permaneçam muito tempo em ins-
tituições, dimuindo suas chances de reinserção em família substituta, fato
este explanado por Anástacio e Orselli (2010, p.08):
Além de atentar contra a dignidade humana do adotando, a possibi-
lidade de selecionar suas características físicas implica a segunda causa de
demora no trâmite da adoção. Consequência que se reflete drasticamente
na vida da criança e do adolescente, porquanto os obriga a permanecer
muito tempo, ou até mesmo toda sua menoridade, dentro de uma insti-
tuição. Crescem sob os cuidados impessoais de uma equipe profissional e
sem conhecer aquilo que a Constituição Federal assegura no artigo 227, o
direito à convivência familiar.
Muitos doutrinadores dizem que essa demora se dá pela quantidade
de demanda no judiciário, por falta de recurso material e pessoal e para
que se tenha um minimo de garantia que a adoção seja exitosa, entre ou-
tros, o fato é que tanto a morosidade quanto a escolha de perfil são fatores
preocupantes que afetam diretamente os principios fundamentais dessas
crianças e adolescentes que vivenciam uma institucionalização prolonga-
da, acarretando vários danos principalmente psicológicos.
METODOLOGIA
Para construção dessa pesquisa foram realizados levantamentos biblio-
gráficos acerca do tema, conceitos, contextos históricos e pesquisa sobre
883
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
a legislação brasileira. Nas áreas do Direito e Serviço Social, respaldando
principalmente em artigos científicos e dados estatisticos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O artigo 4° do ECA, prevê que “é dever da família, da comunidade,
da sociedade em geral e do poder público assegurar, [...] a convivência
familiar e comunitária”, ou seja, é dever de todos zelar e proteger crianças
e adolescentes e quando nos deparamos com situação que viola esses di-
reitos é porque houve uma falha de todo esse conjunto, principalmente de
politicas públicas eficazes para evitar o acolhimento desnecessário ou até
mesmo para que haja uma conscientização e desmistificação quantos aos
mitos da adoção tardia, incentivando –a através de Programas especificos,
a exemplo os programas de apadrinhamento afetivo e oferecendo o supor-
te necessário aos adotantes que optarem por fazê-la. Dessa forma haveria
uma maior rede de apoio e consequentemente segurança em um ato que
vai muito além de burocracia, um ato de afetividade.
CONCLUSÕES
Embora o ordenamento juridico tenha evoluido sobre a temática em
discussão, principalmente após a lei n° 12.010/09, denominada lei da ado-
ção e a lei n° 13.509/2017, percebe-se que na prática o que ocorre é que
muitas vezes o principio do melhor interesse da criança não é observado,
violando assim a dignidade da pessoa humana e causando efeitos preju-
diciais em quem convive com a esperança de ter uma família e por outro
lado um desânimo para aqueles que aguardam por um filho nos moldes
escolhido.
Após análises social e jurídica do contexto nacional, foram trazidas
propostas, com o objetivo de uma melhor efetivação dos direitos huma-
nos, priorizando o direito de convivência familiar e consequentemente
um desenvolvimento mais adequado para crianças e adolescentes, pois
embora as instituições de acolhimento desenvolvam excelentes trabalhos,
a família é primordial para atender as necessidades dos mesmos.
Evidenciou-se, assim, com o presente estudo, a necessidade de um
empenho por parte de todos os envolvidos no processo de adoção para
884
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
que haja uma diminuição dos desafios que implicam negativamente na
vida desses menores.
Recomenda-se, por fim, a continuidade de pesquisas e estudos mul-
tidisciplinares, no tocante a privação do direito ao convivio familiar e co-
munitário, para que em breve, realmente exista uma efetiva promoção de
direitos humanos e priorização de crianças e adolescentes em diferentes
esferas da sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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possibilidade de Escolha das Caracteristicas do Adotando
no Processo de Adoção – Análise a partir dos Fundamentos
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http://mariaberenice.com.br/uploads/1_-_ado%E7%E3o_e_a_es-
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VARGAS, M. M. Adoção tardia: da família sonhada à família pos-
sível. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
WEBER, Lidia N. D. Famílias adotivas e mitos sobre o laço de
sangue. 1996. Disponível em: http://www.nac.ufpr.br/wpcontent/
uploads/2016/07/1996_Familias_adotivas_e_mitos_sob_relacoes_
de_sangue.pdf . Acesso em: 29/10/2020.
885
MICROCEFALIA E COVID-19:
IMPORTÂNCIA FAMILIAR NO DIREITO
À SAÚDE DE CRIANÇAS DURANTE A
PANDEMIA
Davi Lima Matos223
Maria Clara Mascarenhas Alguz224
INTRODUÇÃO
A microcefalia é uma malformação congênita caracterizada por um
perímetro encefálico inferior ao esperado para a idade e sexo, podendo
ocorrer durante a gestação ou após o nascimento. Normalmente, crianças
que possuem tal condição, dependendo do grau de acometimento cere-
bral, são acompanhadas por alterações motoras e cognitivas, requerendo o
acompanhamento de profissionais e familiares, união de extrema impor-
tância para melhorar a qualidade de vida (BRASIL, 2016).
A pandemia da COVID-19 expôs vulnerabilidades a crianças porta-
doras de microcefalia congênita, a qual foi adquirida durante a epidemia
de zika vírus ocorrida entre os anos de 2015 e 2016. Durante seu período
de primeira infância, essas crianças sobrevivem a uma patologia e atual-
mente também enfrentam uma crise mundial causada pelo coronavírus,
cujas consequências afetam diretamente o seu desenvolvimento e apresen-
tam um óbice no exercício do direito à saúde. Devido às medidas de iso-
223 Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
224 Graduanda em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
886
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
lamento social, serviços prestados de maneira presencial foram suspensos,
requerendo maior participação familiar neste momento excepcional e tão
importante para a criança.
O objetivo deste trabalho é verificar como as vulnerabilidades presen-
tes na primeira infância dessas crianças se acentuaram em razão da crise da
COVID-19, correlacionando com a importância familiar para o acesso ao
direito à saúde e sua relação com o desenvolvimento infantil, a ser exposta
no marco teórico, dialogando com textos legislativos, dados, artigos cien-
tíficos e notícias jornalísticas.
Durante a parte de resultados, são expostas as vulnerabilidades clíni-
cas e socioeconômicas vividas pelas crianças com microcefalia durante o
cenário pandêmico, dentre elas, a falta de atendimento presencial e difi-
culdades no acesso à saúde.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A discussão teórica deste trabalho gira em torno de três aspectos. Em
primeiro lugar, destacam-se as vulnerabilidades de ordem médica e social
potencializadas pela pandemia da COVID-19. Terminado esse aspecto,
desenvolve-se para a identificação desse grupo sob o período da primeira
infância demarcado pela legislação brasileira, evidenciando o papel familiar.
Por fim, discute-se a importância do direito ao acesso à saúde para crianças
com microcefalia, tendo em vista que a legislação prevê condições especiais
para seu desenvolvimento e que suas vulnerabilidades foram potencializadas
em contexto pandêmico, aumentando assim a responsabilidade familiar na
estimulação precoce das crianças no período da primeira infância.
METODOLOGIA
Tendo em vista que a abordagem considerou um problema real e
generalizado de um grupo, partindo para conceitos legislativos espe-
cíficos , o método de raciocínio utilizado foi o dedutivo. Ademais, as
fontes bibliográficas e documentais foram utilizadas para a realização
de uma pesquisa com enfoque diagnóstico e descritivo de vulnerabili-
dades relacionadas a princípios contidos nos Estatutos da Criança e do
Adolescente e da Pessoa com Deficiência durante um período excep-
cional, discutindo o direito fundamental à saúde, previsto nos planos
constitucional e legislativo.
887
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Primeiramente, foram selecionados alguns artigos jornalísticos sobre
o assunto com depoimentos das famílias (ALVES, 2020; CECI, 2020)
para compreender dificuldades específicas enfrentadas durante a pande-
mia da COVID-19. Nesses materiais, foram expostas ificuldades clínicas
e obstáculos no acesso à saúde.
Em algumas reportagens foram citados problemas de ordem médi-
ca, como o aumento de produção salivar, estresse gerado por alterações
na rotina (ALVES, 2020) e perda parcial de sustentação física nas per-
nas. Apesar de haver instituições que estão funcionando de maneira online
(CECI, 2020), a falta de atendimento presencial traz regressos no processo
de desenvolvimento.
Além disso, as matérias citam dificuldades de ordem estrutural, como
a dificuldade financeira de algumas famílias em adquirir medicamentos,
que até o momento da publicação, estavam indisponíveis no Estado de
Pernambuco há dois meses (ALVES, 2020) . Vale frisar que 62,7% dos
casos confirmados entre 2015 e 2019 localizam-se na região nordesti-
na(BRASIL, 2019). Ademais, foi observado em uma reportagem que a
falta de carros das prefeituras municipais no interior dessa região afeta a
realização de consultas médicas de rotina realizadas na capital, uma vez
que grande parte da frota está sendo destinada para atender à demanda da
COVID-19 , reforçando desigualdades regionais (CECI, 2020).
Após o reconhecimento das dificuldades, foi analisado o período em
que ocorreu a epidemia do Zika Vírus. Por se tratar de um acontecimen-
to recente, entre 2015 e 2016, as crianças que nasceram nesse momento
atualmente possuem uma média de 4 a 5 anos. Por isso, a Lei nº 13.257 de
2016 foi selecionada para demarcar corretamente o período da primeira
infância, a qual consiste numa época essencial de desenvolvimento huma-
no, abrangendo os seis primeiros anos ou setenta e dois meses completos
de vida da criança (BRASIL, 2016). Após compreender o período da pri-
meira infância, o artigo “Protecting the First 1000 Days of Child's Life
and the 280 Days before” foi utilizado para explicar o que é exatamente
nesse período crítico em que ocorre o desenvolvimento e solidificação das
habilidades cognitivas, psicossociais e da linguagem(RIVKEES, 2020).
888
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
Junto com a importância desse período, o artigo científico “Early
Childhood Development and The Law” foi selecionado para tratar sobre
as consequências que a influência dos pais ou responsáveis geram nesse
período da formação da criança. Afinal, as experiências vivenciadas na
primeira infância possuem efeitos duradouros, por isso, quando ocorre
a falta de qualquer cuidado básico ou mau trato, criam-se traumas nas
crianças que acabam por replicar desigualdades estruturais da sociedade
(HUNTINGTON, 2017).
Estabelecida a relação entre zika vírus e primeira infância, o direito
à saúde foi correlacionado com as condições de sujeito em desenvolvi-
mento asseguradas pelo Art. 3º do ECA (BRASIL, 1990) e pelo Art. 14
do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Idem, 2015). Tendo em vista a
estimulação precoce de crianças com microcefalia e que a mesma advém
de tratamentos clínicos, notou-se que o acesso à saúde se relaciona com
textos legislativos que valorizam o desenvolvimento da criança.
Por fim, foi possível observar o crescimento do papel familiar em
garantir o desenvolvimento dessas crianças, dadas as situações de vul-
nerabilidade expostas no contexto pandêmico. Dessa forma, foi possível
notar a importância desse núcleo em cumprir com os deveres expostos
no Art. 227 da Constituição (Idem, 1988), no Art. 4º do ECA (Idem,
1990) e no Art. 8º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Idem, 2015)
em relação à saúde.
CONCLUSÕES
Após a análise do material contido no marco teórico, pôde-se con-
cluir que as vulnerabilidades de crianças com microcefalia potencializadas
pela pandemia da COVID-19 trouxeram novos desafios na efetivação do
direito à saúde e consequentemente, em seu desenvolvimento previsto pe-
los Estatutos da Criança e do Adolescente e da Pessoa com Deficiência.
Além disso, foi possível confirmar a importância da primeira infância e
conhecer as consequências que os acontecimentos desse período podem
causar no desenvolvimento de qualquer ser humano.
Por fim, comprovou-se a importância da participação protagonista da
família no acompanhamento da criança, passando a ser a responsável por
pelo menos tentar manter estagnada a evolução que as crianças alcançaram
889
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
em tratamento e procurando assegurar um direito fundamental em um
período tão atípico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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www.floridalawreview.com/wp-content/uploads/Rivkees_Publish.
pdf Acesso em 07/11/2020.
891
A PROTEÇÃO ANIMAL COMO DEVER
DE FRATERNIDADE: EMPATIA ENTRE
ESPÉCIES
Alexandra Fonseca Rodrigues225
INTRODUÇÃO
A proteção animal é tema que vem ganhando cada vez mais relevância
no cenário internacional e nacional. Defender o tratamento jurídico dos ani-
mais enquanto sujeitos de direitos e não mais como meras propriedades hu-
manas não é ideal novo a ser explorado, contudo, faz-se necessário um breve
mergulho nas ciências sociais diversas para entender a importância das altera-
ções jurídicas no que se refere aos direitos dos animais. A proteção de todas
as formas de vida é mais do que um dever também um direito fundamental
humano. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos e
tal garantia só poderá ser alcançada de forma plena através do exercício da fra-
ternidade entre a espécie humana e a animal. O que significa essa fraternidade
e como alcançá-la é o labor ao qual se propõe a presente pesquisa.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Apesar de a Constituição Federal afirmar em seu art.225 que o todos
os homens possuem direito fundamental ao meio ambiente equilibrado
225 Mestra em Direitos Fundamentais e Especialista em Direito Processual pela UNAMA.
Professora de graduação e Pós-graduação de Direito Penal, Processo Penal e Filosofia jurídi-
ca na UNAMA. Assessora judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
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C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
e que isso inclui a proteção de todo tipo de fauna e flora; somente num
momento muito recente do Direito Brasileiro é que uma visão biocêntri-
ca está sendo assumida, isso porque, não apenas a legislação nacional mas,
principalmente a cultura local, partem de um raciocínio antropocêntrico,
no qual o homem é o ser que está no centro do universo e o resto dos
elementos que compõem o meio ambiente existem apenas para servi-lo,
não é à toa que, comumente, denominam-se os elementos ambientais de
recursos naturais (AMADO, 2016).
Pelo novel pensamento biocêntrico os animais passam a ser vistos
como seres sencientes, capazes de entender a dor e o prazer e que, por-
tanto, possuem valor em sua própria existência, independentemente da
existência do homem (SINGER, 1975). No âmbito jurídico o biocen-
trismo ganhou uma nova vertente, chamada de abolicionismo, pela qual
os animais devem deixar de ser vistos como instrumentos, objetos ou pro-
priedades do homem, e passam a ser considerados como sujeitos dignos
de alguns direitos, especialmente os seres sencientes e auto-conscientes
(AMADO, 2016).
Em 1978, a UNESCO proclamou a Declaração Universal dos Direi-
tos dos Animais defendendo que todos os animais possuem determinados
direitos como: direito à existência, respeito, proteção e liberdade; e res-
saltando que a morte de um animal por crueldade humana e sem neces-
sidade caracteriza o delito de biocídio (UNESCO, 1978). Essa mudança
de racionalidade bioética e jurídica vem abrindo as portas para um novo
Direito dos animais no Brasil, que abarca não apenas o Direito ambiental,
mas também o Direito Civil e Criminal.
Até então, no ordenamento nacional os animais não são sujeitos, mas
propriedade, entretanto, por estarem vivos, fazem jus a tratamento jurídi-
co especial, sendo proibido que sejam vitimados por atos cruéis ou abusi-
vos. Contudo, o biocentrismo vem ganhando força e passa a refletir na le-
gislação e, sobretudo, na jurisprudência brasileira, onde já se tem decisões
judiciais concedendo a guarda compartilhada de animais de estimação,
por exemplo; assim como passaram a existir leis de caráter criminal e não
apenas ambiental para punir o abandono e os maus-tratos a estes seres.
Em princípio, as penalidades previstas eram consideradas muito bran-
das, permitindo a realização de acordos entre o infrator e o Estado e acele-
rando o tempo de prescrição de tais delitos. Contudo, a própria sociedade,
893
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
incorporando ideias mais fraternas, protestou pelo aumento das penas. O
que levou à recente aprovação da Lei Sansão ( Lei nº 14.064/2020), a qual
passou a prever sanções mais severas para delitos cometidos contra cães e
gatos, excluindo a possibilidade de acordos penais e substituição da pena
e estipulando como sanção alternativa a proibição de guarda no animal
(LEITÃO, 2020). Note-se que a própria Legislação ao utilizar o termo
“guarda” retira o animal da categoria de coisa e o coloca como sujeito,
posto que, até então, só se previa na legislação civil a guarda de pessoas.
Entretanto, em que pese os mencionados avanços no sentido de uma
racionalidade jurídica biocêntrica, as sanções brandas para os maus-tratos
não são o único problema, o abandono de animais nas ruas, em campus
universitários e mesmo em ONGS protetoras é uma realidade que precisa
ser combatida. E quem deve combatê-la? É comum olharmos para estes
seres e pensarmos: “não é problema meu!”. E o problema é de quem? Do
Estado? Sim! O problema também é do Estado, pois tem o dever consti-
tucional de zelar pela fauna e também pela saúde humana, já que a vivên-
cia desses animais nos ambientes públicos pode facilitar a proliferação de
doenças e mesmo causar temor nos transeuntes. Contudo, esse problema
é de todos nós!
Apesar de o lema da revolução francesa, corolário da luta pelos di-
reitos fundamentais mencionar “liberdade, igual e fraternidade” como
termos que seriam complementares, Edgar Morin (2019) ensina que tais
direitos não se integram automaticamente, isso porque a liberdade tende a
destruir a igualdade, uma vez que permite despontar as diferenças huma-
nas, sobretudo as sociais; assim como a imposição da igualdade, por si só,
já tolhe as liberdades. Além Disso, a fraternidade, por sua vez, não pode
ser imposta mas deve ser ato autônomo do grupo social e ela que desloca
cada indivíduo da esfera do “eu” para o âmbito do “nós”.
Numa análise biológica, Morin (2019) ensina que todas as relações
sociais que envolvem os diferentes tipos de vida são constituídas por sim-
bioses, que significam associações duráveis e proveitosas entre seres de es-
pécies diferentes. Toda a vida necessita de outra, contudo, essa relação ne-
cessária pode assumir a forma de predadorismo ou simbiótica. A simbiose
requer enveredar esforços para atingir o bem comum. Tomando, então,
a fraternidade como direito e dever, propõe-se a mudança necessária de
894
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
visão acerca da relação entre homens e animais: por que nos limitarmos ao
predadorismo quando podemos nos beneficiar muito mais da simbiose?!
METODOLOGIA
A proposta metodológica a ser utilizada propõe uma construção
dialética partindo da visão ambiental antropocêntrica para a biocêntrica
e visando, assim, construir um entendimento acerca de qual seria o para-
digma atual a ser seguido pelo Direito brasileiro no que compete à tutela
dos animais. Assim como, propõe-se a análise comparatória das práticas
brasileiras com as propostas e jurisprudências internacionais mais aproxi-
madas do biocentrismo e do ecocentrismo.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Segundo Kundera (2000, p.329): “A verdadeira bondade do homem
só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade
com aqueles que não representa força nenhuma”. Portanto, a verdadeira
evolução moral, social e jurídica do ser humano será constatada quando
mudarmos a relação ancestralmente estabelecida com quem está a nossa
mercê, ou seja, os animais. Esse progresso humano, em todos os aspectos
que englobam a humanidade – inclusive o jurídico – deve ao menos visar
diminuir os sofrimentos aos quais estão suscetíveis as outras formas de
vida, ao menos no que está a nosso alcance, no mal que podemos evitar
fazer (ARAUJO, 2003).
É dever dos cidadãos denunciar o abandono na Delegacia e na pro-
motoria de meio ambiente, para que assim o Estado seja notificado e possa
tomar providências. Ou seja, é nosso dever cobrar ao invés de fechar os
olhos. E é também nosso dever, enquanto sociedade, senão puder ajudar,
prestar apoio aos que ajudam! Muitos Estados já reconhecem o trabalho
dos protetores dos animais como profissão regulamentada e prestam au-
xílio às ONGS. O trabalho conjunto pode levar ao cenário ideal que já é
vivido em muitos países de democracia mais antiga: ruas livres de animais
abandonados! Essa é a meta para efetivar os direitos ao meio ambiente, à
saúde, à liberdade de ir e vir; e, assim, amadurecer e amplificar nossa de-
mocracia.
895
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
CONCLUSÕES
Não se trata, portanto, de um debate frívolo ou sem importância;
trata-se de um abrir de olhos e um levantar de vozes para dizer que a causa
animal é dever fraterno de todos. Do Estado sim, mas também de cada
um de nós. Efetivar direitos fundamentais vai além de garantir a liberdade
e a igualdade entre os homens, pois, requer também o exercício e aprimo-
ramento da fraternidade entre as espécies afim de que a sociedade alcance
de fato um patamar moral, ético e jurídico mais elevado e condizente com
o modelo democrático levantado pela Constituição Federal e defendido
na seara dos direitos humanos (e animais) global.
REFERÊNCIAS
AMADO, Frederico. Direito Ambiental esquematizado. 7 ed. São Paulo:
Método, 2016.
ARAUJO, Fernando. A hora dos direitos dos animais. Coimbra: Editora
Almedina, 2003.
LEITÃO JUNIOR, Joaquim. Impactos da Lei Federal n.14.064/2020 (Lei
Sansão) no ordenamento jurídico pátrio. Disponível em: https://jus.
com.br/artigos/85816/impactos-da-lei-federal-n-14-064-2020-lei-
-sansao-no-ordenamento-juridico-patrio. Acesso em: 11 nov, 2020.
MORIN, Edgar. Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo. São
Paulo: Palas Athenas, 2019.
SINGER, Peter. Libertação Animal. Rio De Janeiro: Martins Fontes,
2010.
896
FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS E
SUA REPRESENTATIVIDADE NA
SOCIEDADE BRASILEIRA
Eloiza Alessandra Gomes de Lima226
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar estudos sobre um bre-
ve levantamento a respeito da repesentatividade de famílias homoafetivas na
sociedade brasileira para pessoas que se autoconsideram parte da comunidade
LGBTQIA+, investigando os anais históricos da família nos âmbitos jurídi-
co e social, ponderando o conceito de Família de acordo com doutrinadores
do Direito e estudiosos de outras áreas, contextualizando origem, evolução
e modernização da estrutura famíliar dentro dos parâmetros legais e sociais.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Tendo em base a narrativa do livro “Entre a Cruz e o Arco-Íris”,
da jornalista brasileira Marília de Camargo César, essa pesquisa busca fa-
zer uma imagem do que representa o termo “família” diante do ponto
de vista da comunidade LGBTQIA+ brasileira, já que, embora tenhamos
constitucionalmente instituído o que se nomeia Estado Laico, a ideia de
família difundida em sociedade, trabalhada em escolas e ensinada nos lares
é essencialmente cristã.
226 Bacharela em Direito pela Unifacol (Vitória de Santo Antão – PE) e Pós Graduanda em-
Direito de Família Contemporâneo pela Unialphaville (São Paulo – SP).
897
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Os resultados obtidos foram, no mínimo, impactantes. No total de
261 participantes, 4,6% não se consideram parte da comunidade LGBT-
QIA+, mesmo afirmando ter opção sexual ou identidade de gênero inse-
ridas nesse universo. Embora sejam minoria, esses números mostram que
se considerar parte do movimento não está ligado a ideia de família, o que
é algo extremamente preocupante.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2017, p.15), em qualquer as-
pecto que é considerada, aparece a família como uma instituição necessá-
ria e sagrada, que vai merecer a mais ampla proteção do Estado.
Com a palavra família, a doutrina não tem a intenção de especificar
homem, mulher e filhos apenas. Apesar de o Art. 226, § 3º da Consti-
tuição Federal usar a expressão “homem e mulher” para tratar da regul-
mentação do instituto da União Estável, a ADPF 132 de 05/05/2011, com
maioria absoluta dos votos, aprovou o reconhecimento de união estável
entre casais homoafetivos, regulamentada pelo Art. 1.722 do Código Ci-
vil, usando os mesmos critérios definidos para casais heteroafetivos.
Embora seja considerada uma vitória entre militantes e integrantes
do Movimento LGBTQIA+, a decisão não trouxe segurança jurídica
suficiente entre os integrantes menos engajados as causas de igualdade,
chegando a não ser um realidade possível diante da provável falta de co-
nhecimento. Dentre os 261 entrevistados, 4,2% afirmaram estar vivendo
relação marital, mas só 0,8% tem a união legalmente reconhecida.
Passando duas pessoas ligadas por um vínculo afetivo a manter rela-
ção duradoura, pública e contínua, como se casadas fossem, formam um
núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo
a que pertencem. Mister identificá-la como união estável, geradoras de
efeitos jurídicos (DIAS, 2010, p. 8).
Não obstante que alguns dos outros 95,8% estejam em algum tipo de
relacionamento, o instituto da União Estável não é uma realidade palpável
que se encaixe em suas perspectivas de vida futura. Numa escala de 1 à 5
(sendo 1 pouco e 5 muito conhecimento) 29,9% dos voluntários afirmam
ter pouco conhecimento em questões que envolvem a legalização de união
entre casais homoafetivos. Entre os dados obtidos, 85 pessoas afirmaram
ser adeptas de religiões diversas, coincidentemente, 61,1% destes reco-
nhecem que suas religiões têm fundamentos cristãos, que não incluem
diversidade de modelos de família em seus ensinamentos doutrinários.
A sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que
ainda mantém uma posição discriminatória nas questões da homossexua-
898
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
lidade. Nitida é a rejeição social à livre orientação sexual. A homossexua-
lidade existe e sempre existiu, mas é marcada pelo estigma social, sendo
renegada à marginalidade por se afastar dos padrões de comportamento
convencional (DIAS, 2010, p. 5).
Apesar de ter jurisprudência regulamentadora da União Estável entre
casais homoafetivos, a comunidade LGBTQIA+ não dispõe de proteção
legislativa que assegure deu direito à busca da felicidade. Embora o direito
a sexualidade esteja inserido no Rol de Direitos Fundamentais, garantido
pelos princípios da isonomia, que tem como fundamento a proibição de
discriminaçoes injustas, e da liberdade de expressão, o conservadorismo
predominante nas casas legislativas desse país não permite avanços reais e
significativos em favor da causa, a bancada cristã insiste em não reconhe-
cer o Estado como laico, devido ao preconceito arraigado há uma tentati-
va constante de anular a homoafetividade do âmbito jurídico.
Totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com pre-
conceitos, com conceitos fixados pelo conservadorismo do passado, en-
charcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo
já totalmente ultrapassado pela história da sociedade humana. Necessário
é pensar com conceitos jurídicos atuais, que estejam a altura dos tempos
de hoje (DIAS, 2010, p. 9).
METODOLOGIA
Esse trabalho apresenta como metodologia a pesquisa survey, por
amostragem não-contabilística, com 261 formulários respondidos de for-
ma voluntária, realizada através da plataforma Google Forms no período
entre 25/08/2020 e 30/08/2020, sendo difundida através de redes sociais
como o Facebook, Instagram, Whatsapp e Twitter. Foi optado não re-
colher informações de idade, localização e email dos entrevistados, por
tratar de questões frágeis e alvo de constantes represálias sociais, a fim de
preservar a identidade dos envolvidos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Com base no breve levantamento realizado de 25/08/2020 à 30/08/2020,
foi possível averiguar o cenário de estagnação jurídica e informacional no re-
ferente aos direitos relacionados à proteção de famílias homoafetivas. A pró-
pria comunidade LGBTQIA+ desconhece os atuais dispositivos que regula-
899
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
mentam e validam suas relações afetivas, como a instituição da União Estável,
sendo assim uma barreira pra conquistas reais de direitos válidos e legítimos,
reservados todos os parâmetros legais afim de gerar verdadeira segurança jurí-
dica, não sendo suficiente apenas regulamentação via jurisprudência.
O conservadorismo cristão não pode regular o Estado, que deve ser
sem via de dúvidas laico em todos os seus meios, levando sempre como
bandeira o objetivo de quebrar o ciclo de marginalização que se destina as
minorias através dos séculos de história do Brasil. Que se finde a invisibi-
lização, a comunidade LGBTQIA+ existe e resiste.
CONCLUSÕES
A pesquisa apontou a latente falta de informação da comunidade
LGBTQIA+ sobre questões relacionadas a segurança júridica da regula-
mentação de suas relações afetivas, é também nítida a falta de autorreco-
nhecimento dentro dos padrões socialmente aceitos da ideia de família
na sociedade brasileira. Estando assim ligadas ambas razões ao cenário de
marasmo instaurado no Direito Brasileiro, que regulado pelo conservado-
rismo cristão idubitável presente nas casas legislativas desse país, atrasa o
progresso inevitável para que haja uma sociedade justa e igualitária, com
base na Isonomia e no Direito à Dignidade da Pessoa Humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Código Civil, 2002.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
CÉSAR, Marília de Camargo. Entre a cruz e o arco-íris: a complexa
relação dos cristãos com a homoafetividade. Belo Horizonte:
Editora Gutenberg, 2013.
DIAS, Maria Berenice. Família Homoafetiva. Termo In: Maria Bere-
nice Dias – Site. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.
br/manager/arq/(cod2_647)28__familia_homoafetiva.pdf . Acesso
em:25/08/20.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 6:
Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2017.
900
DIREITOS LGBTI NA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS: ABORDAGEM BASEADA
NO CASO "ATALA RIFFO E MENINAS
VERSUS CHILE”
Gabriel Araújo Monteles227
Josanne Cristina Ribeiro Ferreira Façanha228
INTRODUÇÃO
A Convenção Americana de Direitos Humanos, também concebida
como Pacto de San Jose da Costa Rica, carrega consigo uma gama de garan-
tias relativas aos direitos humanos. Não faz, entretanto, menção expressa
a direitos relativos a orientação sexual, identidade de gênero, tampouco às
liberdades sexual e de gênero.
Nesse sentido, se torna impositivo demonstrar como tal omissão é re-
dimensionada, ganhando relevância frente aos direitos humanos interna-
cionalmente compreendidos, desembocando na abordagem do caso Atala
Riffo e meninas versus Chile, que traz à tona, justificando com veemência
a temática ora apresentada, a necessidade que sejam discutidos os direitos
227 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão.
228 Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA). Doutoranda e Mestra em Políticas Pú-
blicas (UFMA). Professora do Centro de Ensino Universitário Dom Bosco, da Faculdade Pitá-
goras de São Luís e da Universidade Federal do Maranhão. Advogada militante.
901
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
LGBTI no âmbito da Convenção Americana dos Direitos Humanos e da
Corte Interamericana de Direitos Humanos.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A temática compreendida no presente contexto, então, se finca sobre
os seguintes alicerces: a omissão e a violação percebidas quanto ao trato
dos direitos humanos e, especificamente, dos direitos inerentes à diversi-
dade sexual e de gênero. Para além disso, sobre a própria expectativa de
garantia de direitos e sua efetivação que, em virtude da ausência de dis-
posições normativas a regulamentar tal pauta, vem à tona a partir de casos
concretos levados à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Nesse sentido, é importante observar que
Há um vínculo indissolúvel entre a obrigação de respeitar e ga-
rantir os direitos humanos e o princípio da igualdade. Os Estados
estão obrigados a respeitar e garantir o pleno e livre exercício dos
direitos e liberdades sem nenhuma discriminação. O descum-
primento pelo Estado, mediante qualquer tratamento discrimi-
natório, da obrigação geral de respeitar e de garantir os direitos
humanos, pode gerar a responsabilidade internacional do Estado
violador. (RIBEIRO, 2017, p. 220)
O caso que envolve a Sra. Atala Riffo e seus filhos, então, põe à pro-
va, em plano concreto, a obrigatoriedade que os Estados signatários do
Pacto de San Jose da Costa Rica respeitem, sem qualquer forma de discrimi-
nação, o pleno gozo dos direitos e liberdades inerentes às pessoas.
Mostra disso é que, no caso em comento, a orientação sexual da Sra.
Atala Riffo e sua relação homoafetiva serviram de arcabouço para que lhe
fosse negado o direito à convivência com os filhos, visto que
a Corte Suprema do Chile considerou que o comportamento pa-
rental inseria as menores em ‘situação de risco’ por estarem em
um ‘ambiente familiar excepcional’, podendo haver, por parte das
filhas, confusão sobre sua sexualidade e discriminação por colegas
no meio social. (SANTIAGO; LOPES, 2019, p. 72)
902
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
É importante mencionar, nesse sentido, que a supradita decisão foi
prolatada após o pai das meninas ter interposto recurso de apelação, no
sentido de combater sentença que havia concedido a guarda provisória das
menores à Sra. Atala Riffo. Se deve observar que o conteúdo decisório
em comento foi causa direta da chegada do caso à Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
Nessa esteira, e considerando a repercussão do caso em comento na
mídia chilena, é que, dentro do que concerne ao processo decisório acerca
da guardas das crianças,
o juiz de primeira instância concedeu preliminarmente, em favor
do pai, a guarda provisória, baseando-se nos argumentos de que
a convivência da peticionária com sua parceira no mesmo lar em
que residia suas filhas alterava a “normalidade da rotina familiar,
colocando seus interesses e bem-estar pessoal acima do bem-estar
emocional e do adequado processo de socialização das filhas (VIA-
NA, 2018, p. 125)
Ato contínuo, porém, Karen Atala, peticionária, passa a requerer a
incompatibilidade do juiz que prolatou a sentença em seu desfavor, sob a
alegação de que o magistrado utilizara de argumentos de caráter discri-
minatório para revestir a decisão que retiraria da mãe a guarda provisória
de suas filhas. Tendo sido reconhecida a suspeição do juiz que cuidava do
caso, houve substituição por uma juíza que, por sua vez, negou a guarda
das crianças ao pai.
No que concerne aos argumentos que fundamentaram a negação
da guarda provisória ao pai das crianças, as alegações por ele feitas foram
combatidas,
sobretudo por entender que as provas juntadas no processo de-
monstraram que a orientação sexual de Karen Atala não represen-
tava “impedimento para o desenvolvimento de uma maternidade
responsável”, tampouco por “patologia psiquiátrica que a impe-
disse de exercer seu ‘papel de mãe’ e que não havia indicadores
que permitissem presumir a existência de motivos de incapacidade
materna para assumir o cuidado pessoal das menores de idade”.
(VIANA, 2018, p. 125)
903
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Delineados tais aspectos, como situação ápice para que o caso alcan-
çasse patamar de discussão acerca dos Direitos Humanos e, mais preci-
samente, sobre os direitos que circundam liberdade sexual, liberdade de
gênero e sua identificação, além da família constituída homoafetivamente,
Atala Riffo, por meio de seus representantes, em novembro de
2004, apresentou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
petição inicial contra o Estado do Chile. Em dezembro de 2009, por
meio do Relatório de Mérito nº 139/09, a comissão concluiu que o
Estado do Chile violou o art. 24 da Convenção Americana, ou seja, o
direito de viver livre de discriminação. Recomendou que o Estado do
Chile reparasse integralmente a Senhora Atala Riffo e as filhas con-
siderando suas perspectivas e necessidades, bem como recomendou a
adoção de políticas públicas com vistas a erradicar a discriminação com
base na orientação sexual em todas as esferas do poder público. (SAN-
TIAGO; LOPES, 2019, p. 68)
Dessa forma, anos após a denúncia, a Corte Interamericana, sob o
entendimento de que houve violação aos direitos humanos no caso da Sra.
Atala Riffo, submeteu o Chile à primeira condenação por parte da referi-
da Corte versando sobre discriminação decorrente de orientação sexual,
ficando o país obrigado a: punir legalmente os servidores públicos
responsáveis pelas violações; ofertar tratamento psicossocial ime-
diato às vítimas nas instituições públicas de saúde especializadas,
se por elas solicitado; publicar a versão resumida oficial da sen-
tença no Diário Oficial, num jornal de ampla circulação nacio-
nal, e a sentença in totum na página oficial da internet; implementar
programas e cursos de formação para os servidores públicos (nível
regional e nacional), em especial os do Judiciário, dentre outros.
(VIANA, 2018, p. 127)
Está em voga, portanto, sobretudo a necessidade que a sociedade re-
veja suas posturas, ainda que, para tanto, a sistemática internacionalmente
compreendida dos Direitos Humanos precise intervir. Afinal, não se pode
assentir, enquanto coletividade, com atitudes tendentes a violar direitos,
tendendo a indignificar determinados grupos de pessoas dentro de deter-
minada sociedade.
904
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
METODOLOGIA
A pesquisa apresentada tem bases estritamente bibliográficas, uma
vez que todo o material investigado com o intento de fundamentar o pre-
sente trabalho é essencialmente teórico. Trata-se, pois, de uma pesqui-
sa bibliográfica que, por sua vez, coexiste frente a um estudo de caso,
trazendo suas repercussões jurídicas frente à sistemática internacional dos
Direitos Humanos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da pesquisa bibliográfica realizada com cerne à explicação
do caso “Atala Riffo e filhas vs Chile” especificamente no que diz res-
peito aos direitos humanos, se tem como resultado o degringolar de um
caso que traz à tona a sensibilidade do sistema de garantia de direitos das
pessoas, individual e coletivamente, na medida em que concepções discri-
minatórias influenciam negativamente garantias atinentes aos direitos de
genitores e sua prole.
CONCLUSÕES
A partir da presente pesquisa, nota-se o alcance do fundante objeti-
vo que alicerça o estudo da temática abordada: a demonstração do quão
frágeis são, mesmo internacionalmente, os sistemas assecuratórios dos di-
reitos humanos e as garantias relativas à vivência das pessoas, sobretudo
em âmbito intrafamiliar, consideradas as diversas nuances de famílias que
podem ser percebidas no mundo atual.
A própria atuação dos tribunais, que poderia – e deveria, até – figurar
como instância que efetivasse os direitos das pessoas, acaba, em determi-
nados contextos, por apresentar entraves direitos como, no caso abordado,
à convivência familiar e mesmo aos direitos que infantes tem a um lar e a
toda uma estrutura de vida, afetiva e materialmente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RIBEIRO, Jeancezar Ditzz de Souza. A proibição da discriminação
homoafetiva na interpretação da Corte Interamericana de Direitos
905
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
Humanos:: caso atala riffo y niñas versus chile. Revista de Direito
Constitucional Internacional e Comparado, Rio de Janeiro, v.
2, n. 2, p. 1-339, ago. 2017.
SANTIAGO, Andreia Maria; LOPES, Érica Valente. Jurisprudência da
Corte Interamericana: caso atala riffo e crianças vs. chile e a proteção
de direitos humanos no seio de famílias homoparentais. Estudios de
Derecho Iberoamericano, Porto, v. 3, n. 1, p. 66-76, abr. 2019.
VIANA, Thiago Gomes. Direito Internacional Arco-íris: o reconhe-
cimento do direito à diversidade sexual e de gênero no sistema in-
teramericano de direitos humanos. 2018. 177 f. Dissertação (Mes-
trado) - Curso de Direito, Universidade Federal do Maranhão, São
Luís, 2018.
906
COLONIALIDADE DO DIREITO:
PROPRIEDADE PRIVADA E GÊNERO
NA SOCIEDADE PATRIARCAL.
Isabele Auguso Vilaça229
Laura Loureiro Gomes230
INTRODUÇÃO
Embora o Colonialismo tenha chegado formalmente ao fim, dei-
xou seu legado da Colonialidade, que se reproduz na sociedade aliada ao
Patriarcado, e assim, influencia organizações da vida civil, como o or-
denamento jurídico, o que contraria as perspectivas de imparcialidade e
universalização pressupostas aos operadores de direito. Dito isso, obje-
tiva-se esclarecer como a Colonialidade interfere na raiz do Patriarcado,
transformando as relações de gênero e legitimando a dominação sobre o
corpo feminino.
As pesquisas realizam um recorte na temática de Direitos Humanos,
indagando-se a proporção que o modelo jurídico brasileiro no contexto
da América Latina é influenciado pela Colonialidade, oriunda do pro-
jeto epistemológico e jurídico da modernidade ocidental, bem como é
uma das raízes de complexos problemas sociais. Com efeito, foi elaborada
discussão sob a perspectiva decolonial acerca dos tópicos: Colonialidade,
229 Acadêmica de Direito (UFAM), membro do Observatório de Direito Socioambietal e
Direitos Humanos na Amazônia (ODSDH), pesquisadora PIBIC/CNPq.
230 Acadêmica de Direito (UFAM), membro do Observatório de Direito Socioambietal e
Direitos Humanos na Amazônia (ODSDH), pesquisadora PIBIC/CNPq.
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propriedade privada e gênero; bem como a análise que equipara a mulher
à propriedade.
Fundamentação teórica
Ao observar o sistema-mundo pré-intrusão, entendido como lugar
que ativa o pensamento crítico emancipador, constata-se a evidente face-
ta colonial da expansão capitalista e de seu projeto cultural. Com o Co-
lonialismo inicia-se não apenas a organização colonial do mundo, mas,
simultaneamente – a constituição colonial do saberes, das linguagens, da
memória e do imaginário (QUIJANO, 1992).
Isto posto, surge a Colonialidade como um dos elementos constitu-
tivos do padrão mundial de poder capitalista, visto que com a empreitada
europeia no “novo mundo” ocorre uma classificação racial/étnica dos po-
vos como pedra angular do dito padrão de poder, operando em cada um
dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social
cotidiana e da escala mundial, originando-se e mundializando-se a partir
da América (QUIJANO, 2000).
Nesta lógica, a colonização das Américas e do Caribe propiciou a ori-
gem de uma hierarquia dicotômica imposta sobre os colonizados, entre o
que era “humano” e o que era “não humano”. Assim, os povos indígenas
das Américas e os africanos escravizados eram classificados como espécies
não humanas, animais incontrolavelmente sexuais e selvagens (LUGO-
NES, 2014).
No mundo contemporâneo, essa mesma relação de poder se expressa
com uma nova roupagem, através do Patriarcado, com a hierarquia dico-
tômica entre homens e mulheres. Assim, a teórica do patriarcado Carole
Pateman traz à luz o Contrato Sexual, onde afirma que os Teóricos do
Contrato Social pretendem mostrar como as principais instituições polí-
ticas devem ser compreendidas, nas quais constata-se que a liberdade civil
não é universal – é um atributo masculino e depende do direito patriarcal
(PATEMAN, 1993). Assim, a diferença sexual é uma diferença política, a
diferença entre liberdade e sujeição, e o Patriarcado é o poder enraizado e
estruturado de maneira que homens tomem posse dos corpos femininos
e restringem a liberdade e direitos das mulheres. Heleieth Saffioti (2014),
em consonância com a teoria de Pateman, afirma que o patriarcado não
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
é uma relação privada, mas civil, que oferece aos homens direitos sexuais
sobre as mulheres.
Pela perspectiva decolonial, o patriarcado no mundo-intrusão era en-
tendido por Rita Maria Segato como um “patriarcado de baixa intensida-
de”, devido a uma “pré-história patriarcal da humanidade”, que obrigava
o sujeito adquirir a masculinidade como status, atravessando provações e
enfrentando a morte; impedindo a relevância da mulher no meio social,
restando para esta a lealdade às suas comunidades e, por outro lado, sua
luta interna contra a opressão que sofrem dentro de seus povos. (SEGA-
TO, 2012); por isso, com o colonialismo ocorreu o que Julieta Paredas
(2010) apontou de “entroncamento de patriarcados”.
Ademais, a colonialidade incorporada ao patriarcado apresenta a
equiparação da mulher à propriedade privada do homem. Para Kant, a
experiência jurídica surge no momento em que o indivíduo diz que tem
algo do mundo externo como sendo dele, e assim, todas as relações jurí-
dicas podem ser compreendidas a partir das relações de propriedade. Na
versão clássica do termo, a propriedade caracteriza-se como uma possível
definição de poder. À vista disso, se “poder” é a capacidade de controlar
e de impor a própria vontade em relação ao objeto sobre o qual se exerce
essa autoridade, fica claro que a definição de propriedade está contida na
de poder (BOBBIO, 1991). Dessa forma, o direito a propriedade é ter
poder sob algum bem; como o homem faz sobre a mulher, legitimado
pelo Direito.
Metodologia
Esta pesquisa é de caráter qualitativo, por meio de coleta de referen-
cial teórico e documental acerca do tema de forma descritiva dos dados,
bem como de forma analítica, proporcionando aprofundamento nas refle-
xões conceituais inerentes ao tema.
Na construção do conceito de Colonialidade, foram analisadas obras
dos autores Aníbal Quijano (1997, 2002) e Enrique Dussel (1995). Sobre
colonialidade e gênero, utilizou-se material das autoras Maria Lugones
(2014) e Rita Segato (2012), para entender a dinâmica social e de gênero
do mundo pré-intrusão, os impactos da colonização e do sistema patriar-
cal. Na melhor patriarcado, foram utilizados conceitos das obras de Carole
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Pateman (1993) e Heleieth Saffioti (2014). A propriedade privada foi ana-
lisada através da ciência do direito, por Norberto Bobbio (1991) como o
poder de controlar e impor a própria vontade em relação ao objeto sobre
o qual se exerce essa autoridade.
Resultado e Discussão
O imaginário hegemônico moderno legitimou os europeus a subju-
gar os povos pré-intrusão, através da afirmação da propriedade exclusiva
individual e a liberdade de contrato advindas dos ideais contratualistas. A
partir desse discurso, a modernidade criou um sistema-mundo moderno
onde a Europa é o centro, superior para realizar a empreitada colonial uma
mentalidade proprietária de conquista e dominação criando um processo
de ocultamento e assujeitamento do outro por serem étnicos e racialmen-
te diferentes.
Ademais, enquanto Quijano observa a colonialidade através de mar-
cadores como gênero, raça e classe, Lugones impulsiona no gênero a ideia
de interseccionalidade entre raça e colonialidade revelar um vazio, onde
mulheres racializadas são ocultadas e assujeitadas, e consequentemente
conquistadas e dominadas. O “assujeitamento do outro” promovido pela
colonialidade permite que o homem veja o corpo feminino como territó-
rio pertencente a ninguém e suscetível a sua vontade.
A colonização propiciou a perda radical do poder político das mulhe-
res, visto que os colonizadores negociaram com estruturas masculinas ou
as inventaram, com o fim de conseguir aliados e promoveram a “domes-
ticação” das mulheres e sua sujeição para facilitar a empreitada colonial.
Assim, através da violência colonial, o corpo feminino é entendido como
o primeiro “território” a ser conquistado pelo colonizador, acentuando a
vulnerabilidade feminina e construindo o imaginário de mulheres colo-
nizadas, cujos corpos são domináveis e suscetíveis a invasões, assim como
as terras virgens da América. Tal apropriação da mulher se faz consoante
a hierarquização de gênero pela diferença de poderio civil/sexual na socie-
dade patriarcal.
O Patriarcado é então somado à Colonialidade de gênero, se enraí-
zando na sociedade e permitindo a Colonialidade do Direito; visto que o
Estado legitima o poder do homem sobre a organização social, política e
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jurídica da sociedade, com elaboração de leis e suas aplicações, servindo
para mantê-lo no comando do todo.
O Código Civil de 1916, que vigorou aé 2002, trazia em seu escopo
que a mulher dependia do homem para regular sua existência, tendo em
diversos artigos previsões nesse sentido, exemplificado no Artigo 242 com
proibições como a de exercer profissão sem permissão do marido. Atual-
mente, ainda existem lacunas legislativas que implicam em casos como o
do homem que após ejacular no pescoço de uma mulher em transporte
público, teve sua prisão relaxada por falta de previsão legislativa clara, pois
segundo a Lei de Contravenções Penais, a pena era de multa de duzentos
mil réis a dois contos de réis. Com a ausência de punição, o mesmo autor,
após alguns dias, novamente esfregou seu pênis em outra mulher que se
utilizava do transporte público.
Conclusão
Na medida em que as discussões sobre a colonialidade do direito
mostram como as mulheres são tratadas como propriedades, desapropria-
das dos espaços públicos e violadas em seus direitos por conta de uma
ordem subjetiva classificatória que perpetua a dominação hegemônica,
percebe-se a importância dos estudos pós-coloniais na procura da desco-
lonialidade dos saberes e consequentemente uma retificação da operação
do direito; de forma a legitimar direitos de populações minoritárias, como
as mulheres. Por outro lado, distanciar esse tema do centro das discussões
e desconsiderar análises sobre um direito colonial moderno, pode signi-
ficar uma permanência ou até aumento das visões limitadoras no sistema
jurídico e, portanto, um fortalecimento do patriarcado.
Referências
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LUGONES, María. Colonialidade e gênero. Tabula Rsa.Bogotá.Nº 9:
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PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993
SEGATO, Rita Laura. “Gênero e colonialidade: em busca de chaves de
leitura e de um vocabulário estratégico descolonial”. E-cadernos ces,
n. 18, 2012. Disponível em: http:/ /eces.revues.org/1533.
912
RECRIMINAÇÃO DO HOMOSSEXUAL
NEGRO: IMPACTO PSICOSSOCIAL
EM SUA CONSTITUIÇÃO DE
IDENTIDADE.
Adriano José Lopes231
O trabalho versa sob a grande ótica temática do preconceito e dis-
criminação em dois aspectos integrados: de relações étnico-raciais e di-
versidade de gênero. Nesse caso, problematiza qual a condição de trata-
mento recebida pelo sujeito pertencente mutuamente à população negra
e população LGBTQIA+, alvo de um estigma pré-concebido cultural
e socialmente. O presente trabalho também irá constituir a literatura
bibliográfica de estudos para a área, com uma nova produção científi-
ca. Assim, fomentaremos o debate da interrelação entre raça e gênero,
com considerações à integridade dos membros atinentes. Outro objetivo
que se comunica com essa justifica é a reinterpretação da classificação
do conceito social de minoria, pensado nesse espectro. A discussão é
fundamentada perante as premissas éticas dos cuidados psicológicos a se
ter com os integrantes dos grupos retratados, conforme indicações de
atuação pelo Conselho Federal de Psicologia para com as políticas pú-
blicas de diversidade sexual (CFP, 2019) e também referências técnicas
com as relações raciais (CFP, 2017). Porém, enquanto foco exclusivo aos
231 Graduado em Filosofia pela UENP. Graduando em Psicologia pela UNIFIO. Pós-Graduan-
do em Educação em Direitos Humanos, Diversidade e Questões Étnico-Sociais ou Raciais e;
Pós-Graduando em Psicologia Jurídica.
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indivíduos homens cisgêneros e negros, iremos observar a performance
desejada da masculinidade (BIBIANO, 2020). Em consonância com a
atualidade, é imprescindível dialogar com as mudanças da equiparação
do crime de homofobia e transfobia com o crime de racismo (ALMEI-
DA, 2020), trazido pelo Mandado de Injunção 4733 (2013) e enqua-
drado pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu uma omissão
legislativa (STF, 2020). A pesquisa irá se desenvolver através da inves-
tigação bibliográfica em literatura temática própria e artigos científicos
que foquem no vértice que abordem o encontro desses dois grupos de
marcadores sociais. Após leitura e análise qualitativa, com interpreta-
ção elaborada, será exposto em texto uma discussão perspicaz ao tema,
com apuração dos dados obtidos e geração de novos questionamentos. A
recriminação citada no título diz respeito à censura sofrida pelos indi-
víduos que pertencem, ao mesmo tempo, como membro da população
negra e LGBTQIA+, sem sentir um pleno pertencimento às duas. A
censura notada deriva da prática de preconceitos e discriminações in-
ternalizados na estrutura social, na qual o homossexual é vítima de ho-
mofobia em um grupo enquanto sofre de racismo no outro. O impacto
desse processo gera no sujeito uma tendência a se abdicar das suas carac-
terísticas essenciais a fim de encaixar nos dois marcadores, o que levará à
supressão progressiva de seus comportamentos, até mesmo um adoeci-
mento psicológico. A criminalização da homofobia e transfobia, equipa-
rada com o crime de racismo traz um certo fôlego e ressalva aos direitos,
contudo não é suficiente para garantir uma proteção eficiente à popula-
ção LGBTQIA+ (GASTAL, 2020), pois não visa propriamente às cau-
sas existentes no tecido social que ocasionam as violências a esse grupo,
apenas às consequências devidamente registradas (CARVALHO, 2014).
Por um lado, a discriminação racial continua tendo uma certa proteção
e consegue ampliar essa cobertura para outro público também vitimado.
No entanto, essa cobertura é parcial e não se aprofunda em lidar com os
problemas já enraizados. Em comum, observamos que a recriminação
do homossexual negro se perpetua ainda com a nova equiparação da lei,
pois assim como antes, o racismo estrutural não foi derrubado da heran-
ça social, ele foi internalizado. Isso significa que a homofobia pode ser
velada em atos mais sutis ou sofisticados, permanecendo subjetivando
comportamentos no corpo social. Desenvolvendo esse pensamento, é
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possível questionar se os meios de violência psicológica e física tomarão
outra forma de se realizarem, mudando a dinâmica nas relações sociais.
Dessa articulação, então, resgatando a figura do homossexual negro, que
já possuía dificuldades em construir sua identidade, fica à dúvida se terá
mais facilidade em se garantir reconhecido ou continuará sendo um dos
constituintes de resistência contemporânea, inserido em uma nova ca-
tegoria de minoria.
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nicas para a atuação de psicólogas(os) em políticas públicas
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CFP – CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relações ra-
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GASTAL, Pedro Luís Guimarães. Criminalização da homofobia e
transfobia: proteção legislativa insuficiente. Brasília: UNI-
CEUB, 2020.
915
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
STF - MI: 4733 DF, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI,
Data de Julgamento: 23/10/2013, Data de Publicação: DJe-213 DI-
VULG 25/10/2013 PUBLIC 28/10/2013.
STF. STF enquadra homofobia e transfobia como crimes de racismo ao
reconhecer omissão legislativa. In: STF – Supremo Tribunal Fe-
deral. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoti-
ciaDetalhe.asp?idConteudo=414010>. Acesso em: 09/11/2020.
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PROCESSO, TECNOLOGIA E RISCOS
Katiusce Pereira Alves Rocha232
O presente texto tem por objetivo estudar o uso das tecnologias nos
processos judiciais brasileiros, além de analisar os riscos causados pelo uso
desorganizado e desenfreado dessa ferramenta, apontando a necessidade
de cautela quando do uso dos programas de computadores para elaboração
de decisões judiciais, vez que os viesses cognitivos podem contaminar os
algoritmos e consequentemente os julgamentos.
Assim, procurei inicialmente conceituar a jurisdição e o processo para
posteriormente falar da importância dos algoritmos na alimentação dos
programas de computares utilizados no processo de automação do judi-
ciário, apresentando os riscos e sugerindo possíveis soluções para o uso
inevitável das tecnologias.
Para a elaboração do presente resumo foram utilizados artigos de
científicos, livros dos autores Flávio Quinaud Pedron, Dierlle Nunes,
Laura Mendes e Nuria Belosso Martini que tratam tanto do uso das novas
tecnologias no judiciário como da teoria geral do processo.
A jurisdição é um poder e também um dever que decorre do direito
constitucional de ação – art. 5º, XXXV, o qual confere as partes o direito
a solução integral dos seus litígios aplicando-se a norma jurídica de forma
imparcial (NUNES; BAHIA; PEDRON, 2020, p 129-130). Considera-
-se, portanto, que a Jurisdição é uma das funções do Estado, mediante a
232 Graduanda do 5º Semestre do Curso de Direito do Centro Universitário UNIFG, Membro
do Grupo de Pesquisa – CAJU.
917
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
qual este se substitui aos titulares dos interesses em disputa para, impar-
cialmente, buscar a acertar posições de licitude acerca do conflito.
O direito vem se renovando e as discusões não são mais exclusiva-
mente de conflitos particulares ou patrimoniais, novos direitos e novas
situações judiciais, demandam do direito processual civil uma inovação,
no intuito de tutelar essas situações (NUNES, 2019, p.79), neste contex-
to a jurisdição deve se modernizar e o uso de tecnologias e de inteligência
artificial é cada vez mais latente.
O processo deve ser pensado tendo como ator principal o cidadão e
seus direitos contidos no modelo constitucional de processo (NUNES,
2019, p.80), em outras palavras é necessário compreender o processo num
contexto no qual o mecanicismo não pode estar presente.
Neste diapasão, o desafio estar em analisar formas de contingenciar
o problema do extenso número de litígios que abarrotam o Judiciário,
evitando julgamentos irracionais e sobrecarregados de viesses cognitivos.
Em alguns países do mundo e também no Brasil, estão sendo testados
programas de computador que tem por objetivo acelerar – e até substituir
- o processo decisório humano e desobstruir o judiciário da quantidade
de demandas. Será que estes tipos de programas são realmente capazes de
entregar ao jurisdicionado e melhor e mais efetiva prestação jurisdicional?
É o que pretendemos discutir no decorrer deste texto.
Segundo Dierle Nunes (2019) o uso de tecnologia em decisões públi-
cas vai muito além do processo jurisdicional, envolve risco à própria de-
mocracia vez que possibilita à indução de pensamentos, a coleta de dados
pessoais e sensíveis, disseminação de Fake News, ou seja, o uso da tecnolo-
gia pode conduzir a um caos ainda maior vez que passa a impressão de falsa
efetividade e possibilitada a quem está no poder o controle e manipulação
de dados.
Para melhor entender esse controle e manipulação dos dados é preciso
compreender como funciona a inteligência artificial (artificial intelligen-
ce – A.I.) e o processo e de aprendizagem dos programas. A inteligência
artificial funciona com base em respostas programadas previamente e adi-
cionadas ao programa denominadas de algoritmo233 - são formulas que
233 Segundo Mendes e Mattiuzzo (2011), Algoritmo computacional consiste em uma série
de etapas para completar uma tarefa que é descrita de maneira precisa o bastante para que
um computador possa realizá-la. (Cormen, apud Mendes, 2011).
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alimentam um sistema de atividades e instruções de forma organizada e
sequencial para um resultado específico (MENDES; MATTIUZO,2011
p. 42).
É possível afirmar que a finalidade dos algoritmos é com base em
probabilidades com as quais o sistema é alimentado, prever situações e
atitudes individuais. Para tanto, necessita que o sistema seja nutrido por
um input – informações – básico que lhe permita realizar o máximo de
correlações possíveis, para que seja obtido o output com maior confiabili-
dade e precisão transformando estas informações em dados. A esta gama
de dados denominou-se big data, relevante em virtude de sua utilidade
para a vida cotidiana, como por exemplo a previsão do tempo, previsão de
desastres, crises econômicas.
Este sistema apesar de útil, é falho visto que os algoritmos se baseiam
em correlações e não em casualidade, assim a possibilidade de gerar dados
discriminatórios é gigantesca, podendo afetar de modo substancial a vida
de um indivíduo.
Isto se dá devido ao fato de que a máquina é alimentada por seres hu-
manos, que trazem consigo os seus conhecimentos, seus viesses cognitivos
tornando quase impossível a contaminação ainda que de forma indireta.
Além disso, informações baseadas em estatísticas, excluem os pormenores
e as peculiaridades individuais, incorrendo na generalização que também
é uma forma de discriminação.
Mendes e Mattiuzzo (2011) , trazem em seu textos 04 tipos de dis-
criminações que podem ocorrer com este tipo de processo e afetar o pro-
cesso decisório, (1) discriminação por erro estatístico – é aquela em que
os responsáveis por alimentar ou ensinar o sistema comete ao desenhar os
algoritmos; (2) discriminação por generalização – como o próprio nome
já diz essa discriminação ocorre em virtude da tendência de generalização
na análise com base em big data, (3) discriminação pelo uso de informa-
ções sensíveis – decorre do fato de se basear em informações ou proxies
legalmente protegidos protegidas somados a dados que são característicos
de grupos historicamente discriminados, (4) discriminação do exercício
do direito – a utilização de um direito em busca de informação pode ser
entendida como resposta negativa para o algoritmo.
A utilização de inteligência artificial no meio jurídico está cada vez
mais constante, utiliza-se a A.I. para triagem de processos, para decisões
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definitivas ou interlocutórias, de forma que as previsões obtidas pela má-
quina servem de provas para que magistrados decidam em processos judi-
ciais. No entanto, como dito acima o risco de generalizações pode afetar
de forma definitiva a vida de um cidadão.
Nuria Belloso Matin (2019), alerta para o perigo da utilização de al-
goritmos preditivos, especialmente no sistema criminal, pois estes tendem
a gerar discriminações e, especialmente, raciais, visto que baseados em
estatísticas e correlações não levam em consideração a causa ou as particu-
laridades do provável agente criminoso.
A inteligência artificial. é fundamentalmente importante para a evolu-
ção do direito processual e da jurisdição como um todo, afinal no mundo
atual não pode imaginar vida sem tecnologia, no entanto ver-se necessário
a utilização consciente, que objetiva a qualidade da prestação jurisdicional
em detrimento da quantidade.
Hoje em dia, percebe-se uma corrida dos tribunais no sentido de
comprovar que estão trabalhando, mas esta mesma preocupação não é
sentida quando se vislumbra a aplicação dos princípios constitucionais,
especialmente a dignidade da pessoa humana.
Faz-se necessário, portanto humanizar o processo tecnológico, dan-
do-lhe maior responsabilidade – é preciso ter em mente que as pessoas
serão afetadas pelos sistemas algoritmos, explicabilidade – os resultados
obtidos com os algoritmos precisam ser explicados e compreendidos, pre-
cisão - é preciso conhecer onde está o erro do processo para poder mi-
tiga-lo, auditabilidade – um terceiro deve perfeitamente compreender o
processo de input e output que conduziu o algoritmo a conclusão obti-
da234, e a justiça esta é a principal observação e característica que deve ser
observada tanto pelo programados da A.I., quando por aquele que a opera,
visto que é fundamental evitar resultados que conduzem a discriminação.
Por fim, entendo que é necessário e útil o uso da tecnologia na busca
de um Judiciário célere e de qualidade; contudo é preciso fomentar estu-
dos que viabilizem formas de alimentar os sistemas com informações mais
humanizadas, livres de viesses cognitivos e discriminatórios.
234 MENDES, ScherteL Laura, MATTIUZZO, Marcela, op cit.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
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OLIVEIRA, Pedro Miranda (Coordenadores). Panorama Atual do
Novo CPC, Volume 03, 1 edições, São Paulo: Empório do Direito
com: Tirant Lo Blanc, 2019.
921
A FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS
AOS INDÍGENAS: A NECROPOLÍTICA
E A PREVENÇÃO AO EXTERMÍNIO
ÉTNICO CULTURAL.
Robson Martins235
Érika Silvana Saquetti Martins236
O resumo proposto tem como finalidade estudar a necessidade da
promoção da transmissão permanente da cultura e das tradições dos povos
indígenas e às crianças e adolescentes descendentes das etnias, por inter-
médio de políticas públicas que levem em consideração as memórias dos
grupos étnicos sobreviventes a verdadeiros massacres, em especial prote-
gendo-os de uma verdadeira necropolítica dirigida à extinção de vários
povos e etnias na América Latina.
A problemática guarda pertinência com o sistemático descumpri-
mento das disposições constitucionais de proteção aos povos indígenas
latinos, especificamente quanto à preservação de sua cultura e das terras
tradicionalmente ocupadas por eles, que acabou por permitir o extermí-
nio de diversos povos nativos, numa verdadeira imposição de necropolíti-
ca dos povos tradicionais.
235 Doutorando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino. Mestre em Direito pela Uni-
versidade Paranaense. Especialista em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil pela
Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduado em Direito pela Universidade Paranaense.
Procurador da República em Curitiba. Professor da Pós Graduação em Direito da Uninter.
236 Mestranda em Direito pela UNINTER. Especialista em Direito Público, Direito do Trabalho e
Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Graduada em Direito pela Univer-
sidade Paranaense. Advogada em Curitiba. Professora da Pós Graduação em Direito da Uninter.
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SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
O Brasil, antes do processo de conquista portuguesa, era, há milê-
nios, habitado por civilizações nativas. Para que fosse possível explorar
o seu território, iniciou-se o processo denominado colonização, voltado,
especialmente, à substituição da cultura aborígene pela europeia, numa
espécie de monismo.
A colonização é um processo, simultaneamente, tempo material e
simbólico, por meio do qual as práticas econômicas dos seus agentes se
vinculam “[...] aos seus meios de sobrevivência, memória, modos de re-
presentação de si e dos outros, desejos e esperanças” (BOSI, 1992, p. 377).
Desse mesmo modo, a colonização se dirige não a entronizar os pres-
supostos e hábitos culturais do povo nativo, mas, sim, a extirpá-los e fazê-
-los desaparecer, de maneira a permitir que suas terras fossem ocupadas e
seus recursos naturais explorados sem qualquer resistência efetiva.
As diversas ações dirigidas à dominação plena dos povos nativos, resul-
tando no desaparecimento de sua cultura e de sua memória, na sua expulsão
de suas terras e, especificamente, em seu extermínio, fazendo com que se
submetam, forçosamente, aos pressupostos jurídicos e políticos da metrópole.
Em que pese alguns povos disporem, hoje, de extensões de terras de-
marcadas como seu habitat ou de uma quantidade significativa de sobre-
viventes diretos da etnia, são necessárias políticas públicas sérias voltadas
à preservação de sua cultua, especificamente por intermédio do procedi-
mento denominado transfiguração étnica.
Trata-se do processo por meio do qual os povos indígenas mediante
“[...] sua persistência como entidades étnicas, mediante sucessivas alte-
rações em seu substrato biológico, em sua cultura e em suas formas de
relação com a sociedade envolvente” (RIBEIRO, 1970, p. 13).
Para que esse processo seja efetivo no que se relaciona à preservação
das etnias dos povos tradicionais, bem como a evitar que seu genocídio seja
completo e definitivo na América Latina, a utilização das memórias dos so-
breviventes e sua propagação aos descendentes desse povo, especialmente às
crianças e adolescentes é verdadeiramente indispensável às nações.
É inconcebível o problema da evocação e localização das lembranças se
não se toma como ponto de aplicação os quadros sociais reais que servem
como pontos de referência na reconstrução da memória, inclusive “[...] por
meio de uma definição do tempo, que não é mais o meio homogêneo e uni-
forme onde se desenrolam os fenômenos” (HALBWACHS, 1990, p. 10).
923
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
A memória coletiva dos sobreviventes dos massacres deve ser propa-
gada aos descendentes das etnias, em relação aos seus hábitos, suas crenças
e sua cultura, assim como no que se relaciona às narrativas da história do
massacre enfrentado por esses povos, que deve ser construída tendo como
base a memória coletiva dos povos, numa simultânea sinergia.
Na primeira fase do Brasil Colônia, a escolarização dos índios esteve
a cargo de missionários católicos, especialmente dos jesuítas. Na segunda,
foi criado o SPI, em 1910, estendendo-se à política de ensino da Funai e à
sua articulação com o Summer Institute of Linguistics (SIL) e outras missões
religiosas (FERREIRA, 2001, p. 62). Nos demais países de origem espa-
nhola, há notícias de verdadeira dizimação de povos tradicionais, como o
Império Inca, que habitavam vários Países, em especial o Peru.
A terceira fase é caracterizada pelo surgimento das organizações indi-
genistas não governamentais e a formação do movimento indígena, entre
o final da década de 1960 e o início da década de 1970, ainda durante a
ditadura militar e “[...] A quarta fase se iniciou pelos próprios povos indí-
genas, a partir da década de 1980” (FERREIRA, 2001, p. 62).
As populações então, decidiram “[...] definir e auto gerir os processos
de educação formal” (FERREIRA, 2001, p. 62). Ocorre que o Estado,
desde o início do extermínio, tem sido omisso quanto à sua proteção, si-
tuação que impossibilita aos sobreviventes e a seus descendentes a gestão
acerca da conservação e da propagação da memória coletiva desse povo.
Neste viés, a temática da Educação Escolar Indígena ganhando espaço
em muitos debates no Brasil e na América Latina, refletindo a necessidade
de melhorar essa realidade social, por meio da “[...] definição de políticas
públicas educacionais que sejam frutos de uma construção coletiva” (SIL-
VA, 2019, p. 3).
É mister, “[...] contar com representantes de cada etnia como forma
de elaborar modelos educacionais distintos que superem os desafios que
a diversidade cultural nos tem trazido” (SILVA, 2019, p. 3-5), e por isso,
teóricos buscam analisar do campo das políticas públicas debatem e sinte-
tizam questões teórico-metodológicas relacionadas.
A pesquisa das políticas educacionais é campo relativamente novo e
ainda não consolidado analiticamente de forma consistente, mas, é possí-
vel afirmar, “[...] a partir das discussões na área das políticas que se trata de
um campo em permanente construção e expansão” (SILVA, 2019, p. 5).
9 24
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
A política cultural e educacional indígena “[...] implica na existência
de diretrizes claras sobre a formação em magistério, com sua dimensão
contextual e operacional fundamentadas e discutidas com a participação
dos beneficiários e instituições governamentais e não governamentais
atuantes na Educação Escolar Indígena” (SILVA, 2019, p. 12).
Neste ínterim, a construção de políticas públicas totalmente destina-
das à conservação e à propagação da memória coletiva dos povos indígenas
corrobora o sistema constitucional de proteção às populações indígenas,
tornando-se indispensável, inclusive, a evitar o extermínio cultural pleno
e irreversível das etnias, com a destruição da própria história dos povos.
Caso as memórias, a cultura, os mitos e os hábitos dos povos nativos
não sejam transmitidos rapidamente aos seus descendentes diretos e indire-
tos, seu extermínio poderá ser completo, fazendo com que as etnias desapa-
reçam completamente da história brasileira, numa verdadeira necropolítica.
Neste ponto, verifica-se que os indígenas foram vítimas de um mas-
sacre, um genocídio, uma verdadeira necropolítica voltada aos povos in-
dígenas da América Latina, inclusive, em sentido cultural, que deixou
vários povos deixou à beira da extinção, em decorrência de uma série de
omissões estatais.
Os sobreviventes dos massacres, assim como seus descendentes dire-
tos e indiretos, lutam para preservar suas tradições e sua cultura, especial-
mente por meio das memórias coletivas dos povos.
Assim, imprescindível a construção de políticas públicas hialinas da
União, dos Estados e dos Municípios, voltadas à preservação e à propa-
gação da memória cultural das etnias indígenas de tais povos, até por se
tratar de um pressuposto para evitar sua extinção. No mesmo sentido, o
entendimento da cultura nativa é um direito natural das pessoas que des-
cendem desses povos e etnias.
REFERÊNCIAS:
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
CARVALHO, Ieda Marques de. Diversidade étnica e educação indígena:
políticas públicas no Brasil. INTERAÇÕES: Revista Internacional
de Desenvolvimento Local, v. 4, n. 6, p. 85-93, mar., 2003.
925
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
DAVI, Mike. Planeta Favela. São Paulo : Boitempo, 2006
FERREIRA, Mariana Kawall. A educação escolar indígena: um diagnós-
tico crítico da situação no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da Silva e
Ferreira, Mariana Kawall (orgs) Antropologia, História e Educação:
A questão indígena e a escola. São Paulo: FAPESP/GLOBAL/
MARI, 2001, p. 44-70.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice
1990.
LAVILLE, Christian; DOINNE, Jean. A construção do saber: manual
de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre:
Artmed, 1999.
MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamen-
tos de metodologia científica. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
80 p.
RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das popula-
ções indígenas no Brasil moderno. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 1970.
ROTH, Isabel. Genocídios invisíveis do Brasil: reflexão sobre o extermí-
nio dos povos indígenas. Liberdades, n. 22, p. 56-76, maio-ago.,
2016.
SILVA, José Alessandro Cândido da. Educação escolar indígena: o cenário
das políticas públicas no extremo ocidente do Brasil. Jornal de Polí-
ticas Educacionais, v. 13, n. 41, p. 1-19, nov., 2019.
SVAMPA, Maristela. As Fronteiras do Neoextrativismo na América
Latina. São Paulo: Elefante, 2019.
926
DIREITOS HUMANOS E
VIOLÊNCIA DE GÊNERO: BREVES
CONCEITUAÇÕES
Ana Paula Mafia Policarpo Pereira237
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Quando se fala em “violência” rapidamente entende-se que pode e
afeta a todos os seres humanos em algum momento da vida. Mas o con-
ceito de “violência de gênero” ainda causa dúvida de sua existência na
vida do ser humano em pleno século XXI e perpetua-se até mesmo na
linguagem cotidiana de discriminação irrefletida.
A violência de gênero constitui violação dos direitos humanos e não
atinge apenas mulheres como se propaga facilmente no senso comum,
mas atinge em maior número e grau as mulheres devido a assimetria de
poder que permanece vigente culturalmente apesar da normatividade in-
ternacional e local.
É nesse contexto a necessidade de refletir e analisar sobre formas de
aprendizado e reprodução da violência, de forma a prevenir, corrigir e (re)
criar uma sociabilidade justa e igualitária em que não seja mais necessário
discutir a violência como violação dos Direitos Humanos, de gênero ou
de qualquer outra espécie, pois ela deixará de existir. Da mesma forma
que construímos a forma violenta nas relações sociais podemos apren-
237 Assistente social do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Mestre em Ciências
Sociais pela Universidad Nacional de La Matanza/Argentina. Autora e organizadora de livros,
artigos e textos sobre atuação do Serviço Social no campo sociojurídico e docência.
927
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
der a forma não violenta, simplesmente por ser humano e ter-se plena
consciência de que os papéis são construídos, objetiva e simbolicamente
(BOURDIEU, 2014) e deve-se evitar uma naturalização de tais processos
sociais históricos.
Esse texto é fruto de revisão bibliográfica e da reflexão a partir do
trabalho cotidiano com processos judiciais que envolvem a Lei Maria da
Penha e outros tipos de processos judiciais em que a violência de gênero
torna-se perceptível e/ou disfarçada em outras lides. portanto, o objetivo
desse texto é elencar alguns conceitos de Direitos Humanos e Violência
de Gênero de modo a relacioná-los.
Para tanto, segue um breve histórico e conceituação de ambos termos
fundamentais do presente texto, quais sejam, violência de gênero e Direi-
tos humanos. Em seguida procurou-se estabelecer a conexão de ambos,
de forma prática na vida cotidiana e a conexão com os ordenamentos ju-
rídicos que interferem no Brasil.
2 BREVE HISTÓRICO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS
Dentro do contexto do tema proposto muitos poderiam ser os con-
ceitos a nortear tal discussão, como o patriarcado, o feminicídio, o assédio
moral, a opressão machista nas relações afetivas, o aborto, a entrega de
filhos em adoção, esteotipações étnos-raciais e de classe social, ecofemi-
nismo, enfim.
É certo que essa discussão tem a ver com homens e mulheres pois não
é possível mudar a situação de submissão feminina sem alterar a relação
de assimetria e poder dos homens. E não se trata, tão pouco, de pensar
as relações de gênero apenas considerando o feminino e o masculino, ig-
norando outras possibilidade de identidade de gênero como bem analisa
Smith e Santos (2017).
Cada momento histórico apresenta demandas que se perpetuam pois
não foram superadas e novas expressões que se modernizam com novos
contextos. Por isso, não se pode analisar o momento atual descontextuali-
zado de seu processo histórico que engendrou as demandas atuais.
Não há uma definição e concepção única para falar de Direitos Hu-
manos. De acordo com Dornelles (1993) há pelo menos três concepções,
928
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
são elas: 1) concepção idealista, 2) concepção positivista e; 3) concepção
crítico-materialista.
A concepção idealista fundamenta os direitos humanos a partir da vi-
são metafísica e abstrata tendo como principal escola o Direito Natural,
considerando as hierarquias baseadas em diferenças sexuais naturalizadas
e inatas.
A concepção positivista exige o reconhecimento dos direitos pelo Es-
tado através da ordem jurídica e sua efetividade depende do reconheci-
mento legal/formal pelo poder público.
A concepção crítico-materialista surge como crítica ao direito liberal
no século XIX entendendo-os como expressões formais no campo ideo-
lógico e político-social a partir da ascensão burguesa. Inspirada em Karl
Marx, que defende a liberdade como direito de todos e não privilégio de
alguns.
Essas correntes de pensamento integram gerações de direitos huma-
nos que tem contexto histórico e social específico a partir de lutas de clas-
ses que se desenvolveram de formas peculiares nos territórios nacionais.
Os direitos humanos correspondem a fundamental existência do ser
humano, e é importante sua normatização internacional, principalmente
para o Brasil que foi o último país da América Latina a aprovar regula-
mento jurídico específico de prevenção e coibição/punição da violência
de gênero, e não devem ser desconsideradas por responderem a demandas
emergentes.
O gênero, por sua vez, é uma categoria histórica de análise. E essa
categoria destampa análises antes ignoradas e simplistas - homens de um
lado e mulheres de outro - para ampliar para uma análise de raça, cor da
pele, classe, cultura, tempo e espaço históricos e papéis socialmente cons-
truídos e muitas vezes confundido com sexualidade e sexo, demarcam e
fragmentam a totalidade e os complexos dos quais participam.
A violência manifesta as relações desiguais de poder nas relações hu-
manas e historicamente prejudicam ou anulam os direitos para grupos mi-
noritários. Estudos feministas, principalmente a partir da década de 1970
- apesar de desde o século XIX quando tiveram início os movimentos
feministas, questões como a violência contra as mulheres começaram a ser
discutidas nos âmbitos acadêmicos e governamentais de um modo geral -,
passaram a estudar os atributos culturalmente construídos para delimitar
929
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
as experiências do feminino e masculino em contraposição aos caracte-
res biológicos e a problematizar a violência contra a mulher (AMARO &
DURAND, 2017).
O Brasil tornou-se signatário de vários tratados internacionais ao lon-
go do século XX que versam sobre a prevenção, punição e atendimento
de mulheres vítimas de violência, porém, o direito internacional possui
maior caráter moral e não coercitivo chamando a atenção pública do Es-
tado infrator.
Somente com a Constituição Federal de 1988 o Brasil identifica a
igualdade como um dos fundamentos da República e como pressuposto
de todos os direitos e garantias individuais e coletivas fundamentais e dos
demais direitos que delas são derivados.
Como reforça Silva (2009, p. 18) “[...] o grau de civilidade alcançado
por uma sociedade determinada se relaciona diretamente com o estágio
de garantia efetiva conferida aos direitos humanos”. Posteriormente, em
2006 a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) entra em vigor para organi-
zar as políticas públicas de prevenção, punição e atendimento de mulheres
vítimas de violência doméstica e familiar.
3 INTERRELAÇÃO ENTRE VIOLÊNCIA DE GÊNERO E
DIREITOS HUMANOS
Qualquer tipo de violência é uma violação dos direitos humanos,
desse modo, a violência baseada em gênero constitui violação de direitos
humanos, que pode se mostrar nos níveis privado, coletivo e institucional.
A violência contra a mulher transgride o princípio constitucional da
dignidade humana, obstaculiza a realização da democracia e impede a rea-
lização dos direitos sociais, portanto, não pode ser tratado apenas como
um delito de menor potencial ofensivo. Neste sentido a violência de gê-
nero, termo considerado mais adequado para analisar as relações violentas
de gênero, é praticada geralmente por aquele que possui a maior parcela de
poder numa relação e resulta da dita superioridade masculina transmitida
pela cultura sexista da sociedade (SILVA, 2009, p. 14).
Pode ser considerado um tipo específico de violência que transcende
agressões físicas, da fragilização moral, pois além disso limita a ação femi-
nina como reforça Silva (2009). É mais abrangente e complexa do que a
930
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
violência doméstica, excedendo o âmbito privado e adquirindo personifi-
cação nos âmbitos coletivo e institucional manifesta em preconceitos so-
ciais, disputas, discriminação, competições profissionais, herança cultural
machista.
As relações de gênero são moldadas por fatores históricos, ideológi-
cos, religiosos, econômicos e sociais. À primeira vista, esses padrões cultu-
rais em relação ao gênero podem parecer fixos, seja porque sua modifica-
ção é lenta, mas sendo uma construção social, e não uma expressão direta
da natureza, eles são passíveis de modificação.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência de gênero constitui violação dos direitos humanos e não
atinge apenas mulheres, mas atinge em maior número e grau as mulheres
devido a assimetria de poder que permanece vigente culturalmente apesar
da normatividade internacional e regional.
Os Direitos Humanos no Brasil ganham reconhecimento jurídico a
partir da Constituição Federal de 1988 como implementação dos tratados
internacionais a que se comprometeu. Independente de normas interna-
cionais e locais é preciso planejar e executar políticas públicas que atuem
na prevenção de violência de gênero para uma sociedade acolhedora das
diferenças humanas.
No cotidiano, a atenção deve estar atenta a toda forma de violência
de gênero praticada desde expressões linguísticas como reproduções de
violência e discriminações de gênero perpetuando violências simbólicas
devendo obrigar-nos a refletir sobre os modos estratificados e estereoti-
pados e nos provocar a sair do lugar-comum de perpetuação de violência
de gênero e cuidando para que as próximas gerações avancem no processo
de desenvolvimento da humanização do humano, visto serem processos
mutáveis como verificamos neste texto.
REFERÊNCIAS
AMARO, Sarita. DURAND, Véronique. Veias feministas: desafios e
perspectivas para as mulheres do século 21. Rio de Janeiro: Bone-
cker, 2017.
931
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e
a violência simbólica. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014.
DORNELLES, João Ricardo W. (Org.). O que são Direitos Huma-
nos? Ed. Brasiliense, 1993.
SILVA, Juliana Franchi da. COPETTI, Francieli Venturini. BORGES,
Zulmira Newlands. Uma discussão sobre os direitos humanos
e a violência de gênero na sociedade contemporânea. Revis-
ta Sociais e Humanas, CCSH/UFSM, v. 22, n. 2, 2009. Disponí-
vel em: https://periodicos.ufsm.br/sociaisehumanas/article/viewFi-
le/1183/698. Acesso em: 02/02/2020.
SMITH, Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira. SANTOS, Jorge Luiz
Oliveira dos. Corpos, identidades e violência: o gênero e os di-
reitos humanos. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N.
2, 2017, p. 1083-1112.
932
A IMPORTÂNCIA DA INFLUÊNCIA
SÓCIO-POLÍTICA DOS
MOVIMENTOS SOCIAIS EM FACE DA
ATUAL CRISE DE DEMOCRACIA NO
BRASIL
Fernanda Lima Alves238
INTRODUÇÃO
O presente resumo visa fazer uma abordagem sobre a influência só-
cio-política dos movimentos sociais para efetividade do estado demo-
crático de direito, principalmente no âmbito de um cenário de crise da
democracia representativa no Brasil, bem como realizar uma análise do
desafio atual de projeção destas organizações sociais diante de um gover-
no nitidamente populista autoritário, que possui dificuldade em tolerar
a oposição e apoiar organizações que defendam os direitos fundamentais
das minorias.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A presente pesquisa trará reflexões sobre o cenário de crise de demo-
cracia representativa, ao analisar alguns fatores como o distanciamento do
envolvimento do cidadão nos espaços institucionais, apesar do processo
238 Advogada. Membro efetivo da Comissão de Gestão Jurídica Estratégica da OAB - CE.
933
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
eleitoral, a atuação popular nas tomadas de decisão do governo ainda se
dá de forma limitada e com uma cultura política baixa. (XAVIER, 2020)
Procurar-se-á analisar no aspecto político brasileiro, a importância
da influência sócio-política dos movimentos sociais visando o funciona-
mento dos mecanismos que compõem o estado democrático de direito
e as dificuldades que surgem para que se mantenham sob uma ótica de
governança populista autoritária que por sí só tenta enfraquecer organi-
zações sociais cujo objetivo visa garantir os direitos individuais de grupos
minoritários, causando impacto para o declínio da democracia. As diver-
sas formas de participação popular são necessárias para que a representação
política de fato seja efetiva.
METODOLOGIA
Trata-se, inicialmente, de uma pesquisa bibliográfica, documental,
com abordagem qualitativa e caráter exploratório. Livros que versam so-
bre a ciência política, livros sobre a crise da democracia representativa,
serão estudados.
Os livros e publicações científicas concernentes a movimentos sociais,
especificamente, artigos acadêmicos (dissertações de mestrado e teses de
doutorado) que versem sobre a influência dos movimentos sociais na po-
lítica também integrarão a pesquisa.
Artigos e obras estrangeiras que alertam para uma crise da democracia
representativa, os riscos da falta de implementação de participação políti-
ca, serão estudados, a fim de se averiguar sob o aspecto de inclusão social
que podem impactar na concepção de participação no sistema político.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Movimentos sociais são marcados por força e resistência, contribuem,
de forma incisiva no campo político, para a construção de uma sociedade
mais justa e legitimidade da democracia, visam em suas pautas a garan-
tia dos direitos fundamentais e possuem forte influência sócio-política.
Dentro da perspectiva de ascensão do populismo autoritário faz surgir o
desafio para que continuem a ter voz política efetiva, com seus direitos de
liberdade de expressão e de reunião assegurados, direitos fundamentais
934
C R I S T I A N O A N U N C I A Ç Ã O, D A N I E L M A C H A D O G O M E S , R E N ATO J O S É D E M O R A E S ,
SERGIO DE SOUZA SALLES (ORG.)
que possuem o pressuposto necessário para funcionamento do regime de-
mocrático.
Conforme demonstra Yascha Mounk (2018) no livro o povo contra a
democracia, a longo prazo, a tendência nos governos populistas autoritá-
rios é uma recessão democrática. (MOUNK, 2018). Vejamos:
Embora haja um elemento genuinamente democrático no populis-
mo, ele também é, no longo prazo, muito mais desfavorável à vontade po-
pular do que alegam seus defensores. Como sabe muito bem quem quer
que já tenha estudado a Turquia, a Rússia ou a Venezuela, a ascensão dos
déspotas iliberais pode muitas vezes ser o prelúdio de um governo auto-
crático: depois que a mídia foi amordaçada e as instituições independentes
foram abolidas, é fácil para os governantes iliberais fazer a transição do
populismo para a ditadura. (MOUNK, 2018, p.33)
Como forma de manifestação popular por meio da atuação derivada
de processos que resultam de lutas sociais, os movimentos sociais trans-
formam os espaços institucionais, mais efetivamente no campo político
através de ações reinvindicativas. Realizam, através de suas pautas reinvin-
dicatórias, influência política-social por intermédio de conscientização,
contribuindo com suas lutas sociais para a garantia dos direitos funda-
mentais.
A garantia da preservação do lugar de fala de lideranças de diversos
movimentos sociais no espaço político e a fomentação da participação po-
pular se faz estritamente necessária para que se mantenha viva a demo-
cracia, porém, observa-se no atual governo ataques contra lideranças de
movimentos sociais de diversos segmentos.
CONCLUSÕES
Frente a atual crise de democracia representativa no governo brasi-
leiro com a ascensão do populismo autoritário, estamos diante de uma
recessão democrática na qual organizações sociais que possuem em suas
pautas a luta por direitos para grupos minoritários, sofrem com ataques e
falta de apoio por parte do governo.
Os movimentos sociais contribuem de forma efetiva nos espaços ins-
titucionais, derivando de suas lutas marcadas sobretudo por forte resistên-
cia, políticas públicas necessárias para a manutenção do estado democráti-
935
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
co de direito. Reconhecer e assegurar a manutenção de voz política efetiva
de lideranças de diversos segmentos sociais, principalmente na atual fase
de governo, se faz mais do que nunca, necessárias para o ecercício correto
da democracia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 2019.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2018.
XAVIER, Sandy. Mandato coletivo: uma nova forma de compor um ga-
binete. In: Politize. Disponível em < https://www.politize.com.br/
mandato-coletivo/>. Acesso em 05/11/20.
936
A INSERÇÃO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE NO SISTEMA DE
GARANTIA DOS DIREITOS NA
AMÉRICA DO SUL
Marcos Vinicius de Sousa Rocha Gomes239
INTRODUÇÃO
Desde o limiar do século XX, discute-se acerca dos direitos das crian-
ças e dos adolescentes, uma vez que esses indivíduos – sendo, no Brasil,
aqueles em idade inferior a 18 anos tinham uma série de injustiças sociais,
como carga horária de trabalho semelhante aqueles considerados maiores
de idade, perante a sociedade e a lei civil, que na época chegava a jornadas
de 14 horas por dia. Na década de 70, a Organização Internacional do Tra-
balho desenvolveu a Convenção 138, acordo ratificado por ampla maioria
dos países da América do Sul, a qual regulamentou a situação do trabalho,
em especial a proibição de trabalho infantil. Com isso, entre outras coisas,
direitos essenciais da infância e adolescência foram teoricamente incluídos
na legislação de cada país, através da constituição de sistemas de proteção
nacionais.
Ampliando-se, a partir de então, o debate sobre os direitos da criança
e do adolescente a nível mundial. No final da década de 80, a Organização
das Nações Unidas pôs em pauta os eventuais direitos a serem atribuídos a
239 Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Bacharelando em Ciên-
cia Política pela Centro Universitário Internacional.
937
D I R E I TO S H U M A N O S E F U N D A M E N TA I S : D I V E R S I D A D E E D E S A F I O S
criança e do adolescente, resultando na criação da Convenção sobre os Di-
reitos da Criança, dispositivo aceito difundidamente no âmbito interna-
cional até a contemporaneidade. Entre as conquistas firmadas nesse pacto,
garantiu-se a participação efetiva da criança na elaboração de proposições
referentes a realidade do seu segmento etário.
Entretanto, países subdesenvolvidos como os países sul-americanos
têm diversos empecilhos jurídicos e culturais para a implementação efe-
tiva dos direitos essenciais da criança e do adolescente, bem como a par-
ticipação na construção do sistema de garantia dos direitos da criança e
dos adolescentes nos diversos âmbitos do Estado. Com isso, organismos
internacionais como a Red de Corresponsales Infantiles y Adolescentes (Red
CORIA), o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Organização dos
Estados Americanos (OEA) organizam-se em parceria com o UNICEF
para o incentivo da renovação dos Sistemas Nacionais de Garantias de
Direito da Criança e do Adolescentes com a inclusão das crianças e dos
adolescentes como atores, e não somente como objetos.
OBJETIVO
Analisar de forma sucinta a efetivação da inserção da criança e do
adolescente no sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente
na América do Sul;
Descrever um panorama da participação infantojuvenil nos países do
MERCOSUL.
METODOLOGIA
O método de pesquisa pretendido é a análise e a comparação de le-
gislações e acordos através do direito comparado, além da utilização de
análise sociológica de autores que analisam a América do Sul.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Como resultado de intensos anos de discussões acerca do papel da
criança e do adolescente no desenvolvimento de políticas públicas referen-
te ao seu segmento, a Convenção dos Direitos da Criança conclamou os
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Estados aderentes a criação de meios para a efetiva participação da criança
e do adolescente. Como pode-se observar nos seguintes trechos:
Artigo 12:
1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a
formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões
livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, le-
vando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função
da idade e maturidade da criança.
2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a
oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou adminis-
trativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio
de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com
as regras processuais da legislação nacional.
Seguindo recomendações da Convenção, países sul-americanos se-
guem o processo de regulamentação da participação da criança e do ado-
lescente na formulação de políticas públicas. Como no Brasil e Uruguai.
Ambos os Estados nacionais criaram Conselhos Consultivos constitu-
ídos por adolescentes eleitos democraticamente por seus pares, no caso
brasileiro, apesar de existir a forte cultura de silenciamento da criança e
do adolescente, e na crença que os mesmos devem ficar calados diantes
aos adultos, em 2018, os adolescentes através do Comitê de Participação
dos Adolescentes do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente auxiliam os conselheiros do CONANDA na formulação de
orientações ao Sistema de Garantia dos Direitos, enquanto no Uruguai,
em 2019, os adolescentes conquistaram espaço na formulação de políti-
cas públicas através do Consejo Asesor y Consultivo del Directorio del Instituto
del Niño y Adolescente del Uruguay, comissão que participa ativamente na
construção de ações nacionais e internacionais referentes aos indivíduos
com idade inferior aos 18 anos. Ambos os casos foram avanços jurisdi-
cionais na temática referente ao direito a participação das crianças e dos
adolescentes no âmbito local, municipal, estadual, federal e internacional,
já que garantiram com força de lei a participação dos menores no processo
de formulação de políticas públicas como garantido na Convenção dos
Direitos da Criança.
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Evidentemente, alguns Estados e movimentos não governamentais
organizam ações envolta da efetiva participação, como a Red de Correspon-
sales Infantiles y Adolescentes que organiza atividades que congregam adoles-
centes de diversos países latino-americanos para a discussão de assuntos
de interesse da infância, contudo, é necessário a criação de mecanismos
internacionais que estimulem aos Estados o desenvolvimento e efetiva-
ção de meios para a participação concreta. Com vista nisso, O Mercado
Comum do Sul (MERCOSUL) em conjunto com a Organização dos
Estados Americanos (OEA), organizou o Nin@sur com a participação de
adolescentes de Estados-membros e Estados-convidados, a fim de fomen-
tar o debate acerca do papel do jovem na formulação de políticas públicas,
nesse encontro discutiu-se acerca dos Direitos Sexuais e Reprodutivos dos
Adolescentes, do Direito à Participação e o Direito à Educação. Ao final,
os Adolescentes em conjunto com o corpo diplomático presente, discutiu
um acordo que garantia o direito à participação permanente dos adoles-
centes no âmbito desse fórum e estabelecia que todos os Estados-mem-
bros deveriam mandar uma delegação composta de ao menos dois (2)
adolescentes, respeitando a igualdade de gênero na indicação dos mesmos.
O tema central ecoado ao final do encontro foi "Nada sobre nós, sem nós",
frase, comumente, utilizada pelos representantes das crianças e dos adoles-
centes em ações que se debatem os direitos a participação.
Todavia, é necessário a formulação de fóruns permanentes para a co-
municação entre os adolescentes latino-americanos para o alinhamento
de proposições conforme a realidade nacional, pois a depender da con-
juntura política de cada nação, os adolescentes podem ter a sua participa-
ção cerceada devido à entraves políticas, como há exemplo da Argentina
que não levou uma delegação de adolescentes para o encontro supracitado
do Nin@sur ocorrido em 2017 por desentendimento ministerial. Logo, a
partir dessa sequência de fatos é necessário esmiuçar a legislação nacional
de cada país, e quiçá propor uma legislação supranacional como ocorre na
União Europeia por meio do Parlamento do Mercosul.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONANDA. Resolução nº Nº. 197, de 03 de agosto de 2017. Brasil,
03 ago. 2017.
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participação. 2019. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/
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uy/legal/2019/leyes/08/mides_434.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2020.
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A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
FEMININA E A LUTA POR IGUALDADE
DE GÊNEROS
Stéfany Maria Perez de Oliveira240
INTRODUÇÃO
A discriminação social entre os gêneros não é restrita a contempora-
neidade, pelo contrário, o tratamento diferenciado é encontrado desde a
Roma e Grécia antigas.
A partir do aspecto histórico, que muito influenciou o jurídico, par-
te-se para a análise do direito romano, que previa como fundamento da
família o poder do pai ou do marido, sendo exercido pela superioridade
de força sobre esposa e filhos, ocasionando o distanciamento da mulher da
liderança familiar.
No direito antigo, a mulher renunciava a sua própria família quando
se casava, passando a ser representada pelo marido. Tal fato foi recepciona-
do pela legislação civil brasileira de 1916. Por Maria Berenice Dias (2010,
s/p.):
O Código Civil de 1916 era uma codificação do século XIX, pois foi
no ano de 1899 que Clóvis Beviláqua recebeu o encarrego de elaborá-lo.
Retratava a sociedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal.
Assim, só podia consagrar a superioridade masculina. Transformou a for-
ça física do homem em poder pessoal, em autoridade, outorgando-lhe o
comando exclusivo da família. Por isso, a mulher ao casar perdia sua plena
240 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Central Paulista (UNICEP).
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capacidade, tornando-se relativamente capaz, como os índios, os pródigos
e os menores. Para trabalhar precisava da autorização do marido.
As raízes sociais do código civil de 1916 esclarecem muito a ideologia
nele inscrita. É possível observar quem eram as pessoas munidas de poder
político na época e que foram representadas legislativamente. Se apresen-
tava claramente como um sistema de clientela eleitoral, que moldava o
Estado de acordo com seus interesses e deturpava o sistema representativo;
era a burguesia rural que praticamente nomeava os seus representantes,
sendo ela uma pequena fração de toda a população brasileira (GOMES,
2003). Entre os detentores do poder da época, os quais eram representados
no âmbito político, não figurava nenhuma mulher, apenas os homens, os
quais contabilizavam suas esposas e filhas como parte de sua propriedade.
O tratamento político desigual acarreta disparidades entre os gêneros
por outras esferas sociais, demonstrando-se como consequência da escassa
representação feminina principalmente no âmbito legislativo, ocasionan-
do uma atenção minoritária aos temas relacionados ao referido público.
Entretanto, vale reconhecer breve avanço jurídico no tratamento à mu-
lher, como evidenciado pelo Código Civil de 2002 que se apresenta como
uma inovação em relação a interpretação dos institutos que regulam a vida
privada, isso devido ao surgimento do Direito Civil Constitucional, que
instituiu a releitura das normas de direito privado à luz dos preceitos cons-
titucionais (GONÇALVES, 2013).
Diante desse cenário, justifica-se a análise mais profunda do tema
quando nos atentamos as situações discriminatórias que ainda permane-
cem em nossa sociedade mesmo com a evolução da legislação civil. Um
exemplo claro é a disparidade salarial entre homens e mulheres, que ainda
encontra como base argumentativa as ideologias patriarcais de anos atrás
e põe em situação de ineficácia o previsto pelo Art. 5º, caput, da Consti-
tuição Federal, que prevê a igualdade entre todos os cidadãos brasileiros e
extermina qualquer discriminação de gênero. (CONSTITUIÇÃO FE-
DERAL, 1988).
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Conforme exposto por Stuart Mill (2006), o princípio que subordi-
na legalmente um gênero ao outro, se apresenta como um dos principais
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obstáculos do progresso humano e deveria ser substituído pelo princípio
de perfeita igualdade - o que é atualmente recepcionado pela Constitui-
ção Federal - que não reconhecesse poder ou privilégio de um lado nem
inferioridade de outro. Outra autora pertinente ao assunto aqui narrado é
Judith Butler, que apresenta em sua obra “Problemas de Gênero” (2003),
a necessidade de desierarquização do espaço em que estão inseridos os
grupos sociais, étnicos e sexuais, de modo a se tornarem mais libertários
- e igualitários - possibilitando a entrada das multiplicidades e de novas
subjetividades.
Ainda nas palavras de Judith Butler (2009), infere-se que, a represen-
tação serve como termo operacional no seio de um processo político que
busca estender visibilidade e legitimidade, ressaltando a visão de Foucault
em relação aos sistemas jurídicos de poder produzirem os sujeitos que
subsequentemente passam a representar. Diante disso, a análise da efeti-
va representação político-jurídica se demonstra nitidamente necessária, a
ponto de averiguar se as mudanças legislativas ocorridas transformaram o
espaço social em que as mulheres estão inseridas, promovendo uma real
inclusão e posição igualitária.
METODOLOGIA
O método utilizado para construção deste debate se pauta no levan-
tamento bibliográfico de produções acadêmicas que tratam como objetivo
principal compreender a relação entre o distanciamento da mulher com
o âmbito legislativo e a ocorrência de discriminações oriundas dessa se-
paração. A investigação tem seu enfoque em aspectos teóricos e históri-
cos, a fim de expor como o problema se apresenta enraizado na sociedade
brasileira. Dessa forma, será possível evidenciar como a sociedade atual se
encontra distante dos padrões mínimos de equiparidade entre os cidadãos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Diante dos argumentos arguidos, observa-se que a autoridade familiar
se transportava para a importância social do indivíduo, possibilitando que
este participasse efetivamente das decisões políticas. Mesmo após o pe-
ríodo de conquista do voto feminino, o Estado resolveu que não violaria
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a autoridade do marido frente à sua esposa, fazendo necessário que esta
obtivesse a concessão do cônjuge para registrar sua vontade eleitoral. Tal
pensamento se embasava em ideologias patriarcais que determinavam um
local específico de atuação da mulher na sociedade.
Como também já apresentado, atesta-se que os avanços legislativos
civis e constitucionais não produzem total eficácia na vida prática dos in-
divíduos, sendo recorrente situações que colocam os gêneros em posi-
ções díspares. De modo geral, infere-se que a ideologia patriarcal adotada
como base pela sociedade, faz com que a mulher seja vista como sujeito de
menor capacidade frente ao fato de que toda a atividade produtiva é - de
modo ilusório - colocado nas mãos do homem (RAGO, 2012); trans-
porta-se assim a mulher para posição de baixa aptidão e a impedem de
participar de posições de liderança e decisões políticas.
CONCLUSÕES
Por fim, infere-se que apesar dos avanços históricos e legislativos, a
ideologia que inferioriza as mulheres ainda se encontra muito presente e
se impõe como obstáculo a estas. Expõe-se que se faz de extrema neces-
sidade a promoção de maior aplicação social dos ditames fundamentais do
Art. 5º, caput, da Constituição Federal, a fim de se fazer valer a igualda-
de de gêneros. O aumento da representação política feminina e o acesso
das mulheres às posições de liderança nesse mesmo âmbito seria capaz de
transformar nosso cenário atual; seria então possível a vigência de políti-
cas públicas e legislações focadas na validação dos direitos sociais voltados
para o gênero feminino. A entrada em vigor desses mecanismos jurídicos
instaurariam uma sociedade que não discrimina e que promove a vivên-
cia pautada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana,
por isso se faz de grande importância o desenvolvimento de estudos que
evidenciem tais questões, a fim de alcançar o objetivo social aqui narrado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição Federal. Vade Mecum. 27ª ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2019.
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BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização
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DIAS, Maria Berenice. A Mulher no Código Civil. Disponí-
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GOMES, O. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil
Brasileiro. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GONÇALVES, B. F. F. Série Aperfeiçoamento de Magistrados 13:
10 Anos do Código Civil de 2002 e Seus Avanços À Luz da
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MILL, John Stuart. A sujeição das mulheres. Revista Gênero, v. 7, n.
1, 2006.
RAGO, Margareth. Género e História. CNT-Compostela, 2012.
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DIREITOS HUMANOS E
FUNDAMENTAIS: DIVERSIDADE E
DESAFIOS
Cristiano Anunciação, Daniel Machado Gomes,
Renato José de Moraes, Sergio de Souza Salles
(orgs.)
Tipografias utilizadas:
Família Museo Sans (títulos e subtítulos)
Bergamo Std (corpo de texto)
Papel: Offset 75 g/m2
Impresso na gráfica Trio Studio
Abril de 2021