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Bion Tavistock - Primeiro Seminário

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Wilfred R. Bion Seminarios na Clinica Tavistock Blucher KARNAC PRIMEIRO SEMINARIO 1976 28 de junho [O video mostra o vestudrio utilizado por Bion neste ano, marcado por niimero recorde de secas e ondas de calor; substituiu suas costumeiras camtisa de mangas compridas, gravata borboleta e paleté por camisas de mangas curtas, abertas no pescoco.] Bion: Levei muito tempo para me dar conta de que se submeter a uma psicanalise constitui experiéncia realmente traumatica. A recuperagao demanda muito tempo. Em medicina, normalmente se passa por um periodo de convalescenga; se houver sorte, espera- -se colher algum beneficio daquilo que é um impingir de violén- cia fisica, Apresentaram-me uma concepgio: psicandlise nao faz esse tipo de violéncia - e, gradualmente, no decorrer do tempo, incrementa-se a melhora. No entanto, nao me parece que tal ideia seja plenamente adequada. Apareceu ha muito tempo, antes que eu pudesse sentir “onde” se encontraria tal violéncia. Que tipo de nicho ocupava no peculiar universo, ou dominio, que chamamos “psicandlise” — por falta de melhor palavra. Nao posso dizer que | | | | 10 PRIMEIRO SEMINARIO 1976 tenha ido longe nessa linha de pensamento. Parte da dificuldade se deve ao fato de tomarmos de empréstimo muitas terminologias para fazermos uma tentativa em formular nossa propria lingua- gem. Advindas de ciéncias, religides e atividades estéticas, o em- préstimo tornou-se necessario por inexistir linguagem adequada para 0 dominio extraordinario, “psicandlise”. No entanto, estou convencido de que existe tal dominio; realmente, é razoavel que o chamemos de mente; ou carater; ou personalidade. No entanto, hd um problema: temos que usar uma moeda corrompida, uma linguagem cujo alcance foi perdido. Em grande parte, perdeu a es- séncia - considerando-se nossa necessidade, a de que precisamos fazer um uso muito especifico dessa linguagem. Freud descreveu uma situagao de sofrimento: amnésia. Uma lacuna, um espago onde deveria haver algum tipo de meméria - a pessoa passa a preencher tal lacuna com paramnésias. Um tipo de ideia lucrativa, de bom funcionamento. No entanto, 4 medida que vamos nos acostumando a ouvir a respeito de psicoterapias e de psicandlise, questiona-se sobre a possivel existéncia de ainda outra grande lacuna —- no se trata de amnésia. Devido 4 enorme impre- cisao no vocabulario, sequer sabemos como denominar essa outra lacuna. De qualquer forma, quando ficamos perdidos, inventamos alguma coisa para preencher o vacuo de nossa ignorancia - uma drea enorme, na qual precisamos nos mover: a da@GSeHeialdoleo- GHEE Quanto mais GSSUSAASTAMCAAAEHA, mais terrificante sera perceber 0 quanto somos ignorantes; mesmo quando se re- quer algo simples, elementar para sobrevivéncia, havera enorme pressao, externa e interna, para preencher-se a lacuna. Pode-se fa- zer isso perfeitamente bem - pode-se multiplicar teorias, em arte religiao. A unica coisa necessdria, quando se esta totalmente perdi- do, é perguntar a si mesmo 0 que ocorre consigo, individualmente; qualquer um agradecera ao se engrenar a um sistema qualquer, ou conseguir agarrar-se a seja la o que estiver disponivel para cons- WILFRED R. BION 11 truir um tipo de estrutura. A partir desse ponto de vista, parece-me possivel argumentar de que o todo da psicanalise preenche um de- sejo ha muito sentido, de ser um vasto sistema Dionisiacof@Uande GHaO|SAbEMOs[o GUE OCOTTENinVENtAMOS|Essasiteorias Construimos gloriosa estrutura, totalmenteGS@ntaldeiindamentolmalrealidade — a unica realidade com algum fundamento é a realidade da nossa “completa ignorancia; de nossa falta de capacidade. No entanto, esperamos que isso nao esteja desconectado do fato de que teorias psicanaliticas poderiam lembrar-nos da vida real, em algum instante. Como bons romances e boas pegas de teatro nos recordam a respeito de como nds, seres humanos, nos com- portamos. Leonardo possuia uma capacidade: desenhar algo que nos lembra da aparéncia dos seres humanos. Caso observemos os cadernos desenhados por Leonardo, poderemos ver esbogos sobre cabelos, ou sobre Aguas turbulentas: tentativas de representagao estética do mesmo tipo de turbuléncia a qual me refiro. Sem perder tudo isso de nossas vistas — os fatos sobre nossa ig- norancia e de que temos de tentar fazer incursdes no universo em que vivemos através destes varios métodos — cientificos, religiosos, artisticos - poderemos continuar multiplicando o numero de abor- dagens que fazemos individualmente. Constituiremos desse modo nossa pequena contribuicao individual para @ERanHaPMMESpage) Por menor que seja, HORHOMMEMALCHANGUSMESCORHECEMOSD Fac¢o a hipotese de que houve permissao para bidlogos, e outros, falarem sobre o sexo. No entanto, lembremo-nos do furor causado pela sugestao, através de Freud, sobre a enorme parte desempe- nhada pelo sexo. O proprio fato de que Freud tenha sido capaz de fazer tal sugestao teve um efeito: pudemos ver que a maior parte do desenvolvimento da psicandlise foi feito em termos de efeitos biolégicos. Este modo de ver mostrou-se adequado para Mendel, 12 PRIMEIRO SEMINARIO 1976 cujo trabalho promulgou leis de hereditariedade - uma questao de tautologia: hoje em dia, falamos de uma “heranga mendelia- na”. No entanto, penso que nos encontramos em uma situagao um tanto dificil quando supomos que existe algo que denominamos, mente; supomos que todos nés possuimos uma mente, ou alma, ou psique, ou qualquer outro nome que se lhe dé - temos que falar desse modo por falta de vocabuldrio mais adequado. A partir do momento em que possamos reconhecer tal situagdo, perceberemos haver uma lacuna, nao totalmente vazia. Empréstimos da biologia falham, quando consideramos questées da mente e de transmissao de ideias. Precisamos acrescentar algo além da heranga biolégi- ca, esse mito mendeliano de propagagao aplicado ao mundo das ideias, no qual transmite-se caracteristicas de uma gera¢ao para a seguinte; ou para gera¢gdes subsequentes. Poderiamos dizer que ha genotipos - heranga genética - e também fenotipos - trans- missao das aparéncias. Ensinaram-me a crer que caracteristicas adquiridas nao seriam transmissiveis; em outras palavras, que as caracteristicas genéticas, mendelianas, seriam as tnicas passiveis de transmissao. Nao penso que assim seja, nem mesmo de modo minimo; penso haver, inequivocamente, @iiimGdolparalitransmi - Geserdeia® Unmindividuowgera por assim dizer, Paraqoutrounde -viduo, que agora abriga sinais ou sintomas destes fenomas ~ estou inventando uma palavra para descrever as particulas transmitidas, e que continuam a ser transmitidas: pode-se imaginar uma situa- ¢4o tal, em que uma nacio inglesa, afetada por Shakespeare, ob- tém caracteristicas transmitidas, de algum modo - nao de formas dbvias, por livros e similares, como se poderia supor. Recordo-me de John Rickman, relatando sobre sua experiéncia na estagdo fer- roviaria em Nova Iorque. Um soldado se aproximou, dizendo: “O senhor esteve em Northfield, nao é?”. Frente a resposta afirmati- va de Rickman, o soldado replicou: “Para mim, foi a experiéncia mais extraordinaria que tive — era igual a estarmos em uma uni- WILFRED R. BION 13 versidade”. Até 0 ponto que soubéssemos, tratava-se de alguém desesperangado em chegar a uma universidade - em fungao de condic¢ées culturais, educacionais e financeiras; todas elas, desfa- voraveis. Aquela experiéncia, provavelmente, foi sua tinica oportu- nidade em termos de formago. Por motivos desconhecidos para mim, dentre todos que estiveram em Northfield,' foi apenas para essa pessoa na qual transmitiu-se essa ideia que mudou sua postu- ra na vida - certamente soou como se tivesse mudado. O que quer que tenha acontecido aos mimados de minha geragéo em Oxford e Cambridge, permitira que pudessem passar pela universidade sem ter a menor ideia do que era, realmente, uma universidade. Mas um homem, que sequer teve a possibilidade de saber 0 que era uma universidade, quase certamente 0 sabia. Somos levados a supor que algo aconteceu a um individuo; na sequéncia, esse “algo” foi transmitido em outro lugar; mas as leis da heranga mendeliana nao se aplicam a isso — outras leis, sim, como a dos fendtipos e fenomas. Em psicanilise, pode-se ver isso de modo intimo e detalhado. No entanto, nao estou certo de que incrementos na profundidade de observa co — algo possivel quando se esta intimamente em con- tato com outra pessoa — dir-nos-4 muito sobre essa outra forma de transmissao. Realmente, fica muito dificil saber qual efeito teria uma andlise sobre um individuo. Algumas pessoas certamente pa- recem capazes de levar a experiéncia a um bom fim. No entanto, penso que, em muitos casos, trata-se de algo puramente efémero - 1 Experiences in groups, langado pela primeira vez em 1961, por ‘Tavistock Pu- blications, e reimpresso muitas vezes, por Karnac Books. Refere-se ao tempo (cerca de trés meses) que originou o trabalho hoje conhecido como Dinamica de Grupos, descoberto por W. R. Bion, em conjunto com John Rickman: uma aplicacao das teorias de Freud e Melanie Klein ao comportamento de peque- nos grupos, em interag4o com o macrogrupo circundante. [N.T.] 14 PRIMEIRO SEMINARIO 1976 parece que ocorre uma “cura”. Podemos usar este termo, “cura’, mas nao possui realidade duradoura, nem qualquer significado parti- cular - em contraste com as caracteristicas basicas e fundamentais transmitidas de acordo com as leis de Mendel. Poderiamos dizer: “A Amostra A é um ser humano; a Amostra B é um tigre, um gato, ou uma ovelha’. Parecem existir certos aspectos fundamentais que seguem leis de heran¢a mendeliana. As outras leis (se é que existe alguma) ainda precisam ser descobertas. Tomando-se um grupo de pessoas - como, por exemplo, aquelas em Northfield - poder-se-ia detectar, através do tempo, @ualtipoMeipercursolteriay (GeguidoMMAAeayp or alguém que pareceria ser parte do pensar. Em fungao disto, Pesseasiquelobservam grupos podemteralopor- _tunidade de ver alguma forma desse tipo de heranca. Voltando ao ponto de vista psicanalitico: é util falar sobre@{eane> ‘SEGA SU CONEFATFANSHEFEHaIa? Ou, como colocou Winnicott, so- bre um objeto transicional; que esta em transicao, na passagem de sabe Deus onde, para sabe Deus 0 qué; do esquecimento a amnésia — aquele pedacinho entre eles que poderia ser preenchido dizendo “relacao transferencial” e “contratransferencial”; mas penso que tera de ser preenchido com algo além disso. Pois nao se pode determinar com facilidade o relacionamento entre estes trequinhos; torna-se necessdrio adquirir a capacidade de observar uma ideia ziguezague- ando seu proprio caminho através de um grupo. Nao sei de onde a ideia partiu; nao sei para onde vai, mas pode-se(@BSeHvaelalde passa @EBBE nesse ponto em que podemos retornar pratica de andlise e de observacio de grupos. [Alguém faz uma pergunta, de contetido inaudtvel.| Bion: Dor, isso é um fato da existéncia - nao muito diferente de prazer. Penso que necessitamos de uma terminologia na qual nao haja palavras especificas e sim concrescéncias; poderiamos reunir WILFRED R. BION 15 alguns sentimentos e ideias e ordend-los de alguma maneira. Pra- zer e dor poderiam ser assim considerados como diferentes extre- midades do mesmo espectro. ¥ facil ver porque gostamos de obter sentimentos agradaveis e até mesmo acreditar ser possivel ter uma sensagao agradavel por si sd. Penso que essa ideia é inttil; temos que supor que ou temos sentimentos, ou nao. Se nao estivermos dispostos a pagar o ine- vitavel prego da dor, ficaremos restritos a uma situa¢éo na qual s6 nos restard procurar 0 isolamento. Fisicamente é bem possivel: podemos fechar as persianas, desligar a luz, cortar a linha telef6ni- ca, parar de ler os jornais e ficarmos em uma situagao de completo isolamento — fisicamente. Mentalmente, nao penso que seja tao facil. Por exemplo, mesmo se fosse possivel voltar ao titero, perma- nece como muito duvidoso imaginar se isso traria um completo isolamento, pois continua-se vivo. O feto humano vive em ambien- te fluido, o liquido amnistico; embriologistas descrevem fossas opticas e auditivas. Em que ponto tornaram-se funcionais? Nao ha nenhuma razdo para que nao sejam funcionais para um feto, visto que mesmo 0 fluido aquoso é capaz de transmitir pressio. Penso que, em algum momento, o feto pode estar tao submetido a essas mudangas de pressdo, de tal modo que, antes ainda da mudanga do fluido aquoso para o estado gasoso - 0 ar, 0 nascimento — este mesmo feto pode tentar livrar-se de toda aquela pressio. Penso que seria uma distorgio completa da teoria kleiniana sugerir que fetos poderiam recorrer a clivagem de pensamentos, ideias e fantasias, evacuando-os para o liquido amnidtico. Mesmo assim, nao vejo por que nao poderiamos ter tais phantasias.? Freud 2 Conservamos o termo, originalmente cunhado por James Strachey, Alix Stra- chey e Joan Riviere para a primeira verso em inglés da obra de Freud ~ a Gnica lida ¢ autorizada por ele. © termo “phantasia” serve para assinalar a 16 PRIMEIRO SEMINARIO 1976 disse: “Aprendi a controlar tendéncias especulativas, seguindo as palavras, hoje esquecidas, de meu mestre, Charcot: observar repe- tidamente as mesmas coisas, até que comecem a falar por si” (S. E. 14, p. 32). Tenho enorme simpatia com tal atitude, mas penso ser um perigo que possamos fazé-lo dispensando aventuras especula- tivas. Requer-se algum tipo de disciplina. Parece-me haver remanescentes arcaicos, quando conside- ramos a Curiosa progressao de uma existéncia piscosa para uma existéncia anfibia, rumando-se a partir dai para uma existéncia mamifera. Um cirurgiao diria: “Penso que ha um tumor na fenda branquial”. Um resquicio, parte arcaica do corpo que pode prolife- rar-se, torna-se perigosa. Ha uma cauda vestigial que produz um tumor, requerendo uma operagao. Seria muito bom e sedutor, se esta sobrevivente arcaica — a mente — pudesse ser tao facilmente detectavel. Mas... Nao 6. Nao nos parece que estejamos capacitados a sentir o odor de uma mente, de que possamos tocé-la, ou olhé-la; mas estamos cientes de sua existéncia. Infelizmente, s6 podemos dizer que talvez estejamos completamente enganados: por sermos estimulados por isto ou aquilo, elaboramos sistemas de param- nésias, intrincados sistemas tedricos, pois fica mais rapido e mais bonito ficar capacitado a recair em teorias. Caso eu esteja correto, penso que poderiamos dizer que estamos em nossa infancia, até o ponto que toca a vida mental; simplesmente nada sabemos sobre presenga daquilo que Freud definiu como “fantasias inconscientes”; tornou-se til como discriminagao de meras fantasias conscientes, ou devaneios, Assim como outros termos cunhados pelo casal Strachey e Riviere - por exemplo, “id” - “phantasia” acabou sendo utilizada pelo proprio Freud em seus textos. © termo “phantasia” foi respeitado em varias linguas neolatinas, inclusive no Portugués, até pelo menos os anos de 1990. Embora essa discriminagao inicial esteja, atualmente, sendo perdida, o termo foi utilizado por Bion neste livro € em toda sua obra. Em favor de fidedignidade, optamos por manté-lo. [N.T.] WILFRED R. BION 17 que desenvolvimento ocorrera, nem se o desenvolvimento sera extinto pela capacidade de nosso magnifico equipamento simiesco — habilitado para produzir fissao nuclear que nos elimine da face da Terra antes de obter maior desenvolvimento. [Outra pessoa faz uma pergunta, de conteudo inaudivel.] Bion: Fetos, vivendo em ambiente aquoso, utilizam o sen- tido do olfato como uma, dentre outras, sondagens a distancia. Cages e cavalas, em meio aquoso, podem detectar matéria em decomposigao a uma consideravel distancia. Transportado para um meio gasoso, um individuo carrega consigo certa quantidade do meio aquoso - muco, saliva e assim por diante — podendo, portanto, continuar a cheirar o que nado esteja completamen- te desidratado; o meio aquoso, uma vez externo, ficou interno. Alguns permanecem muito sensiveis a isso. Nao se gabam por terem a capacidade de cheirar coisas que outros nao cheiram: ao contrario, queixam-se amargamente de “catarro nasal”, falando exatamente como se sentissem temerosos em ser afogados pelo seu proprio catarro. Em suma, este “catarro”, que poderia ser um bem, torna-se um revés aterrorizante. O mesmo se aplicaria a nossos olhos: penso que expGem coisas mesmo na auséncia do contato fisico e podem até mesmo mostrar coisas que nao gostariamos de olhar... Talvez estejamos tocando em medidas para o desenvolvimento da capacidade mental. Tudo caminha bem, desde que va de modo mais ou menos inofensivo. Mas... Suponha que se torne algo penetrante: um desenho medieval ilustra uma pessoa enfiando a cabega dentro de uma espécie de invélucro diamantado, capacitando-se a observar 0 universo, agora exterior a ela mesma. Se a astronomia realmente capacitou-nos a penetrar no espago, haveria uma objegao facil a tal afirmagao: uma obje¢ao contra todos estes radiotelescépios ¢ similares, um 18 PRIMEIRO SEMINARIO 1976 desejo para destrui-los, pois tornaram nos fortavel - muito melhor ficar cego e surdo. a vida muito descon- O que isso significa? Significa, entao: vamos desdenhar X, pois “X é terrivelmente hipocondriaco” — e pronto. Damos gracas a Deus, sequer precisamos mais ficar incomodados em seguir adiante? Ou precisariamos ouvir 0 que ele diz? Devemos nos expor ao que X tenta comunicar? Freud nos alertou para que déssemos atengao aos sonhos. Isso tem longa histéria - muitos ja 0 haviam dito anteriormente. No entanto, Freud levou isso muito mais adiante, sugerindo ser necessario manter um respeito real por aquilo que vemos, ouvi- mos e experimentamos quando baixamos a guarda: justamente 0 estado em que ficamos ao dormir. Pouquissimas pessoas, quan- do bem acordadas, mantém qualquer respeito para com a conti- nuidade provida pelos sonhos. A maior parte das pessoas sequer ira admitir que sonhou: sabe que os demais irao considerar esses sonhos como alucinag¢ées ou delirios. Sabemos da existéncia de certas autoridades em alguns lugares que nao medem esfor¢os para calar pessoas, enfiando-as em locais onde podem causar pouco dano — os hospicios. E um futuro que se coloca igualmen- te diante da psicandlise: perturbar as autoridades e ajuda-las no aprisionamento da mente humana para manté-la em condi¢ao inofensiva. De certa forma, sentimos que tudo isso vai bem para pessoas como Picasso ou Soljenitsin — foram grandes homens, e foi razoavel que eles tolerassem esse tipo de coisa. No entanto, é estranho pensar que nos, com as nossas capacidades comuns, precisariamos nos opor a tudo isso para apoiar um movimen- to pré-liberdade da mente; um movimento que poderia ajudar a desenvolver e descobrir regras para nutricgéo mental. @8mo G@iimentaraMENte de tal modo que essa mesma mente possa se desenvolver, nao ficar envenenada? WILFRED R. BION 19 Tudo isso fica facilmente discernivel quando se trata de adminis- trar qualquer tipo de drogas ~ alcool, soporiferos e assim por diante. Nao fica to facil saber quais ideias so soporiferas, QUASNAeIAORaO venenosas, ¢ se nds, como analistas, nao estamos promovendo o de- _ senvolvimento de métodos que tornariam o pensamento impossivel. André Green chamou minha atengao para 0 enunciado: “La réponse est le malheur de la question” [“A resposta é a doenga, o in- forttinio, da pergunta”: Maurice Blanchot (1907-2003), L’Entretien Infini]. Em outras palavras: respostas constituem-se como algo que pode acabar com a curiosidade — de modo insuperavel. Caso alguém fique minimamente curioso, @OdeSeenharINeninanes @ostajgoelajabaixo ou dentro de seus ouvidos.dssouhaMeeliminar [Outra pessoa faz uma pergunta, de contettdo inaudivel.] Bion: Tenho uma impressao sobre a moralidade: trata-se de algo basico. Fiquei impactado pelo fato de que, ao ter emitido um ruido levemente desaprovador, fiz com que uma crianga tenha se intimidado, como se algo muito terrivel tivesse acontecido. Nao tive nenhum sentimento de que houvesse qualquer ideia conscien- te sobre ter ocorrido algum tipo de crime; na verdade, a melhor aproximagao que consegui ter sobre isso veio de um enunciado de Melanie Klein: “ansiedade livremente flutuante”. Trata-se de ansie- dade sem qualquer conceito ligado - de tal modo, que penso que a criancinha em crescimento faz o melhor possivel para encontrar um crime que se ajuste ao sentimento. Assim, nada ha que impeca de fazer-se racionalizagoes; nao havera qualquer constrangimento em se entreter com sentimentos racionais que permitam conside- rar alguém como criminoso, ou de julgar a si mesmo como tal. Quando o ruim fica ainda pior, a pessoa sempre podera cometer um crime para fazer jus ao sentimento, de modo que a morali- 20 = PRIMEIRO SEMINARIO 1976 dade ira realmente precipitar 0 crime, numa espécie de tentativa terapéutica; a pessoa em questao podera pensar: “Posso me sentir culpado, quem nao se sentiria assim? Olha o que fiz”. Na realidade, penso que alguém pode realmente cometer um assassinato, a fim de ser capaz de sentir que os seus sentimentos de culpa assassinos sGo ao menos racionais. Isso significa apenas que o assim chama- d0@EEEND nada mais é do.que algo que somos capazes de compreender de acordo.com nossas QQ. £ uma questao referente as limitagées humanas - nao tem nada a ver com o universo em que vivemos. Outro problema é que o sentimento de culpa pode ser tao grande que a pessoa em questo tentar4 livrar-se dele, tentard adotar uma espécie de teoria ou ideia absolutamente amoral que o abarque. [Outra pessoa faz uma pergunta, cujo contetido também ficou inaudivel.] Bion: Quase todas as pessoas foram ensinadas a preocuparem- -se ¢ interessarem-se pelos seus semelhantes. Isso também pode se constituir como mais um estratagema aprendido no decorrer de uma vida — Gita PESSOMAMIOLOSAL carinhosa substitui o tornar-se amoroso e carinhoso. ‘Trata-se de uma dentre as varias solugées que PSEMNfiMAOlerescimento e desenvolvimento. Em anilise, temos que dar ateng4o a situagdo na qual um pa- ciente fala de forma muito clara, muito compreensivel, sobre suas Preocupagées para com esta ou aquela causa, ou instituigao. Em situagées grosseiras, fica facil de perceber — sim, o paciente esta extremamente preocupado com as pessoas infelizes que estéo em algum lugar distante (nao ha o menor risco de sentir-se obrigado a agir de alguma forma). E entao ficamos desconfiados de que 0 paciente age como uma pessoa preocupada, exatamente como um médico, como um analista - e assim por diante. Mas em algum WILFRED R. BION 21 momento pode tornar-se clara certa mudanga: 0 paciente de fato esta incomodado e preocupado com alguma coisa pela qual ele pode fazer algo. Nesse momento, torna-se importante poder assi- nalar esta observacao para 0 paciente: embora ele esteja falando do mesmo jeito que falou ontem, ou na semana passada, ou no ano passado, soa algo diferente. Claro, nao se quer fazer lisonjas, mas o paciente provavelmente acreditara haver sugestdes de melhora quando se diz algo desse tipo. [Outra pessoa faz uma pergunta, de contevido inaudivel.] Bion: No curso da experiéncia analitica, ocorre uma mudanga, e podemos dizer: “Penso que o senhor (ou senhora), nesse mo- mento, sente que é 0 pai (ou a mae)”. Algo que parece ser totalmen- te plausivel para alguém que conte com cerca de vinte ou quarenta anos, mas pode ser mais dificil enxergar uma crianga de seis ou sete anos sentindo-se realmente uma mae - coisa que talvez sé nao tenha ocorrido de fato por impedimento bioldgico, por imaturi- dade sexual organica. Mais tarde, no entanto, o desenvolvimento emocional da maturidade sexual e de sentimentos maternos reais podem ser sentidos como tendo aparecido precocemente, fora da s sentimentos maternais: fase; a crianga passa, entao, a odiar ess nao ha chance dela se tornar mae - so lhe resta seguir em frente vivendo mais dez, doze, quinze anos, antes de ter filhos. Dessa for- ma, no Momento em que essa pessoa realmente maternal tiver um bebé, tera perdido a atracao pela maternidade, ficando farta dessa condicao, @BeHhumano cumacraturamuilOlalha A dificuldade ou o problema ¢ que GaGa iiiaiStningUennque|pOSSaAZeral gor Tespeito, exceto nds mesmos. — [Outra pessoa faz uma pergunta, de contetido inaudtvel.] Bion: Um individuo tem que viver em seu proprio €6Epape seu corpo tem que tolerar a presen¢a de umagmentevivendo dentro 22 PRIMEIRO SEMINARIO 1976 dele. Em certo sentido, 0 procedimento analitico, se eficaz, pode trazer para esses dois algum tipo de(armonia? Penso ser funda- mental que a pessoa em questao seja capaz de@Stalemleontato> (@onsigommesma - um bom contato no sentido de tolerante, mas também no sentido de saber quao horrivel se pensa que se 6 ou que seus sentimentos so, ou que tipo de pessoa se é. Deve haver algum tipo de €olerancia Chtrelosid ois pOntOo Ge Nisa qUENIVER juntosmommesmojcorpo, Parece-me ser precondi¢ao para uma pos- sibilidade de s&@St@HAEPISSO|paraalQOURtEMO a nds mesmos, para uma situa¢géo em que, se pudermos tolerar a nés mesmos, como um pai ou uma mae, poderemos tolerar nosso par, que podera ser © outro integrante do casal parental. Torna-se mais facil encontrar um pai ou mae para nossos filhos, e também um marido ou esposa. Como disse, penso ser fundamental entrar em contato consi- go mesmo... Gastam-se muitos anos tentando ficar “moralmente” melhor, tentando nado sermos meninos travessos ou meninas re- voltadas ~ dificilmente alguém poderia dizer, “Estou tentando nao ser um feto horroroso’. Assim, por mais que se tente evacuar ou dar luz a todas estas caracteristicas horriveis para que reste apenas a pessoa ideal, é necessdério chegar a um ponto em que se consi- ga@Oleranalconvivenciajconsigoyproprio, um estagio preliminar a condicgado em que se consegue tolerar viver com outra pessoa, 0 que possibilitara alcangar uma(@OMipletade permitindo que se cumpra a fungao bioldgica na qualg@qunidadetemmquerconstituinumycasaly [Outra pessoa faz uma pergunta, de contetido inaudivel.] Bion: Tivemos um programa maravilhoso em Northfield - uma situagao magnifica — podia-se saber onde qualquer pessoa estaria, em qualquer hora do dia, ou da noite - desde que nao se fosse dar uma olhada. Lembro-me de reunir algumas pessoas em vestes mi- litares, varrendo as enfermarias, e de ter-lhes dito: “Vamos la, para WILFRED R. BION 23 dar uma olhada”, Fomos 4 carpintaria — que estava fechada. Fomos a outro lugar — que também nao estava funcionando, pois 0 pessoal estava em vestes militares. Nao havia sequer um tinico departamento nesse maravilhoso programa que estivesse funcionando. A tendéncia sera eliminar todas essas fases intermediadrias, es- tabelecendo uma posigdo de autoridade. Em seguida, conformar essa autoridade, a guisa de acréscimo para um tipo de invélucro invulneravel. Nenhuma ideia podera penetrar em tal autoridade: nenhuma ideia pode penetrar em tal invélucro cercando uma per- sonalidade; ou um grupo; ou uma comunidade. Nada menos do que uma revolucio, nada menos do que violéncia poderia quebrar 0 invélucro, liberando as pessoas dentro dele. Em fungio disto, por vezes afirmo que G@iStitWiGGES|SAO[algONMIOKto: pode-se sem- pre obedecer a regras e procedimentos; pode-se flexibilizar regras, alterando-as para acomodar o crescimento interno 4 instituigao. Mas instituigdes sao sempre compostas por pessoas — aqui reside um problema: o invélucro pode ser tao espesso que ninguém po- derd desenvolve-se dentro dele.

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