0 notas0% acharam este documento útil (0 voto) 184 visualizações16 páginasBion Tavistock - Primeiro Seminário
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Wilfred R. Bion
Seminarios na
Clinica Tavistock
Blucher KARNACPRIMEIRO SEMINARIO 1976
28 de junho
[O video mostra o vestudrio utilizado por Bion neste ano, marcado
por niimero recorde de secas e ondas de calor; substituiu suas
costumeiras camtisa de mangas compridas, gravata borboleta e
paleté por camisas de mangas curtas, abertas no pescoco.]
Bion: Levei muito tempo para me dar conta de que se submeter
a uma psicanalise constitui experiéncia realmente traumatica. A
recuperagao demanda muito tempo. Em medicina, normalmente
se passa por um periodo de convalescenga; se houver sorte, espera-
-se colher algum beneficio daquilo que é um impingir de violén-
cia fisica, Apresentaram-me uma concepgio: psicandlise nao faz
esse tipo de violéncia - e, gradualmente, no decorrer do tempo,
incrementa-se a melhora. No entanto, nao me parece que tal ideia
seja plenamente adequada. Apareceu ha muito tempo, antes que
eu pudesse sentir “onde” se encontraria tal violéncia. Que tipo de
nicho ocupava no peculiar universo, ou dominio, que chamamos
“psicandlise” — por falta de melhor palavra. Nao posso dizer que|
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10 PRIMEIRO SEMINARIO 1976
tenha ido longe nessa linha de pensamento. Parte da dificuldade
se deve ao fato de tomarmos de empréstimo muitas terminologias
para fazermos uma tentativa em formular nossa propria lingua-
gem. Advindas de ciéncias, religides e atividades estéticas, o em-
préstimo tornou-se necessario por inexistir linguagem adequada
para 0 dominio extraordinario, “psicandlise”. No entanto, estou
convencido de que existe tal dominio; realmente, é razoavel que
o chamemos de mente; ou carater; ou personalidade. No entanto,
hd um problema: temos que usar uma moeda corrompida, uma
linguagem cujo alcance foi perdido. Em grande parte, perdeu a es-
séncia - considerando-se nossa necessidade, a de que precisamos
fazer um uso muito especifico dessa linguagem.
Freud descreveu uma situagao de sofrimento: amnésia. Uma
lacuna, um espago onde deveria haver algum tipo de meméria - a
pessoa passa a preencher tal lacuna com paramnésias. Um tipo de
ideia lucrativa, de bom funcionamento. No entanto, 4 medida que
vamos nos acostumando a ouvir a respeito de psicoterapias e de
psicandlise, questiona-se sobre a possivel existéncia de ainda outra
grande lacuna —- no se trata de amnésia. Devido 4 enorme impre-
cisao no vocabulario, sequer sabemos como denominar essa outra
lacuna. De qualquer forma, quando ficamos perdidos, inventamos
alguma coisa para preencher o vacuo de nossa ignorancia - uma
drea enorme, na qual precisamos nos mover: a da@GSeHeialdoleo-
GHEE Quanto mais GSSUSAASTAMCAAAEHA, mais terrificante
sera perceber 0 quanto somos ignorantes; mesmo quando se re-
quer algo simples, elementar para sobrevivéncia, havera enorme
pressao, externa e interna, para preencher-se a lacuna. Pode-se fa-
zer isso perfeitamente bem - pode-se multiplicar teorias, em arte
religiao. A unica coisa necessdria, quando se esta totalmente perdi-
do, é perguntar a si mesmo 0 que ocorre consigo, individualmente;
qualquer um agradecera ao se engrenar a um sistema qualquer, ou
conseguir agarrar-se a seja la o que estiver disponivel para cons-WILFRED R. BION 11
truir um tipo de estrutura. A partir desse ponto de vista, parece-me
possivel argumentar de que o todo da psicanalise preenche um de-
sejo ha muito sentido, de ser um vasto sistema Dionisiacof@Uande
GHaO|SAbEMOs[o GUE OCOTTENinVENtAMOS|Essasiteorias Construimos
gloriosa estrutura, totalmenteGS@ntaldeiindamentolmalrealidade —
a unica realidade com algum fundamento é a realidade da nossa
“completa ignorancia; de nossa falta de capacidade.
No entanto, esperamos que isso nao esteja desconectado do
fato de que teorias psicanaliticas poderiam lembrar-nos da vida
real, em algum instante. Como bons romances e boas pegas de teatro
nos recordam a respeito de como nds, seres humanos, nos com-
portamos. Leonardo possuia uma capacidade: desenhar algo que
nos lembra da aparéncia dos seres humanos. Caso observemos os
cadernos desenhados por Leonardo, poderemos ver esbogos sobre
cabelos, ou sobre Aguas turbulentas: tentativas de representagao
estética do mesmo tipo de turbuléncia a qual me refiro.
Sem perder tudo isso de nossas vistas — os fatos sobre nossa ig-
norancia e de que temos de tentar fazer incursdes no universo em
que vivemos através destes varios métodos — cientificos, religiosos,
artisticos - poderemos continuar multiplicando o numero de abor-
dagens que fazemos individualmente. Constituiremos desse modo
nossa pequena contribuicao individual para @ERanHaPMMESpage)
Por menor que seja, HORHOMMEMALCHANGUSMESCORHECEMOSD
Fac¢o a hipotese de que houve permissao para bidlogos, e outros,
falarem sobre o sexo. No entanto, lembremo-nos do furor causado
pela sugestao, através de Freud, sobre a enorme parte desempe-
nhada pelo sexo. O proprio fato de que Freud tenha sido capaz de
fazer tal sugestao teve um efeito: pudemos ver que a maior parte
do desenvolvimento da psicandlise foi feito em termos de efeitos
biolégicos. Este modo de ver mostrou-se adequado para Mendel,12 PRIMEIRO SEMINARIO 1976
cujo trabalho promulgou leis de hereditariedade - uma questao
de tautologia: hoje em dia, falamos de uma “heranga mendelia-
na”. No entanto, penso que nos encontramos em uma situagao um
tanto dificil quando supomos que existe algo que denominamos,
mente; supomos que todos nés possuimos uma mente, ou alma,
ou psique, ou qualquer outro nome que se lhe dé - temos que falar
desse modo por falta de vocabuldrio mais adequado. A partir do
momento em que possamos reconhecer tal situagdo, perceberemos
haver uma lacuna, nao totalmente vazia. Empréstimos da biologia
falham, quando consideramos questées da mente e de transmissao
de ideias. Precisamos acrescentar algo além da heranga biolégi-
ca, esse mito mendeliano de propagagao aplicado ao mundo das
ideias, no qual transmite-se caracteristicas de uma gera¢ao para
a seguinte; ou para gera¢gdes subsequentes. Poderiamos dizer que
ha genotipos - heranga genética - e também fenotipos - trans-
missao das aparéncias. Ensinaram-me a crer que caracteristicas
adquiridas nao seriam transmissiveis; em outras palavras, que as
caracteristicas genéticas, mendelianas, seriam as tnicas passiveis
de transmissao. Nao penso que assim seja, nem mesmo de modo
minimo; penso haver, inequivocamente, @iiimGdolparalitransmi -
Geserdeia® Unmindividuowgera por assim dizer, Paraqoutrounde
-viduo, que agora abriga sinais ou sintomas destes fenomas ~ estou
inventando uma palavra para descrever as particulas transmitidas,
e que continuam a ser transmitidas: pode-se imaginar uma situa-
¢4o tal, em que uma nacio inglesa, afetada por Shakespeare, ob-
tém caracteristicas transmitidas, de algum modo - nao de formas
dbvias, por livros e similares, como se poderia supor. Recordo-me
de John Rickman, relatando sobre sua experiéncia na estagdo fer-
roviaria em Nova Iorque. Um soldado se aproximou, dizendo: “O
senhor esteve em Northfield, nao é?”. Frente a resposta afirmati-
va de Rickman, o soldado replicou: “Para mim, foi a experiéncia
mais extraordinaria que tive — era igual a estarmos em uma uni-WILFRED R. BION 13
versidade”. Até 0 ponto que soubéssemos, tratava-se de alguém
desesperangado em chegar a uma universidade - em fungao de
condic¢ées culturais, educacionais e financeiras; todas elas, desfa-
voraveis. Aquela experiéncia, provavelmente, foi sua tinica oportu-
nidade em termos de formago. Por motivos desconhecidos para
mim, dentre todos que estiveram em Northfield,' foi apenas para
essa pessoa na qual transmitiu-se essa ideia que mudou sua postu-
ra na vida - certamente soou como se tivesse mudado. O que quer
que tenha acontecido aos mimados de minha geragéo em Oxford
e Cambridge, permitira que pudessem passar pela universidade
sem ter a menor ideia do que era, realmente, uma universidade.
Mas um homem, que sequer teve a possibilidade de saber 0 que
era uma universidade, quase certamente 0 sabia. Somos levados a
supor que algo aconteceu a um individuo; na sequéncia, esse “algo”
foi transmitido em outro lugar; mas as leis da heranga mendeliana
nao se aplicam a isso — outras leis, sim, como a dos fendtipos e
fenomas.
Em psicanilise, pode-se ver isso de modo intimo e detalhado.
No entanto, nao estou certo de que incrementos na profundidade
de observa
co — algo possivel quando se esta intimamente em con-
tato com outra pessoa — dir-nos-4 muito sobre essa outra forma de
transmissao. Realmente, fica muito dificil saber qual efeito teria
uma andlise sobre um individuo. Algumas pessoas certamente pa-
recem capazes de levar a experiéncia a um bom fim. No entanto,
penso que, em muitos casos, trata-se de algo puramente efémero -
1 Experiences in groups, langado pela primeira vez em 1961, por ‘Tavistock Pu-
blications, e reimpresso muitas vezes, por Karnac Books. Refere-se ao tempo
(cerca de trés meses) que originou o trabalho hoje conhecido como Dinamica
de Grupos, descoberto por W. R. Bion, em conjunto com John Rickman: uma
aplicacao das teorias de Freud e Melanie Klein ao comportamento de peque-
nos grupos, em interag4o com o macrogrupo circundante. [N.T.]14 PRIMEIRO SEMINARIO 1976
parece que ocorre uma “cura”. Podemos usar este termo, “cura’, mas
nao possui realidade duradoura, nem qualquer significado parti-
cular - em contraste com as caracteristicas basicas e fundamentais
transmitidas de acordo com as leis de Mendel. Poderiamos dizer:
“A Amostra A é um ser humano; a Amostra B é um tigre, um gato,
ou uma ovelha’. Parecem existir certos aspectos fundamentais que
seguem leis de heran¢a mendeliana. As outras leis (se é que existe
alguma) ainda precisam ser descobertas. Tomando-se um grupo
de pessoas - como, por exemplo, aquelas em Northfield -
poder-se-ia detectar, através do tempo, @ualtipoMeipercursolteriay
(GeguidoMMAAeayp or alguém que pareceria ser parte do pensar.
Em fungao disto, Pesseasiquelobservam grupos podemteralopor-
_tunidade de ver alguma forma desse tipo de heranca.
Voltando ao ponto de vista psicanalitico: é util falar sobre@{eane>
‘SEGA SU CONEFATFANSHEFEHaIa? Ou, como colocou Winnicott, so-
bre um objeto transicional; que esta em transicao, na passagem de
sabe Deus onde, para sabe Deus 0 qué; do esquecimento a amnésia
— aquele pedacinho entre eles que poderia ser preenchido dizendo
“relacao transferencial” e “contratransferencial”; mas penso que tera
de ser preenchido com algo além disso. Pois nao se pode determinar
com facilidade o relacionamento entre estes trequinhos; torna-se
necessdrio adquirir a capacidade de observar uma ideia ziguezague-
ando seu proprio caminho através de um grupo. Nao sei de onde a
ideia partiu; nao sei para onde vai, mas pode-se(@BSeHvaelalde passa
@EBBE nesse ponto em que podemos retornar pratica de andlise e
de observacio de grupos.
[Alguém faz uma pergunta, de contetido inaudtvel.|
Bion: Dor, isso é um fato da existéncia - nao muito diferente de
prazer. Penso que necessitamos de uma terminologia na qual nao
haja palavras especificas e sim concrescéncias; poderiamos reunirWILFRED R. BION 15
alguns sentimentos e ideias e ordend-los de alguma maneira. Pra-
zer e dor poderiam ser assim considerados como diferentes extre-
midades do mesmo espectro.
¥ facil ver porque gostamos de obter sentimentos agradaveis e
até mesmo acreditar ser possivel ter uma sensagao agradavel por
si sd. Penso que essa ideia é inttil; temos que supor que ou temos
sentimentos, ou nao. Se nao estivermos dispostos a pagar o ine-
vitavel prego da dor, ficaremos restritos a uma situa¢éo na qual
s6 nos restard procurar 0 isolamento. Fisicamente é bem possivel:
podemos fechar as persianas, desligar a luz, cortar a linha telef6ni-
ca, parar de ler os jornais e ficarmos em uma situagao de completo
isolamento — fisicamente. Mentalmente, nao penso que seja tao
facil. Por exemplo, mesmo se fosse possivel voltar ao titero, perma-
nece como muito duvidoso imaginar se isso traria um completo
isolamento, pois continua-se vivo. O feto humano vive em ambien-
te fluido, o liquido amnistico; embriologistas descrevem fossas
opticas e auditivas. Em que ponto tornaram-se funcionais? Nao ha
nenhuma razdo para que nao sejam funcionais para um feto, visto
que mesmo 0 fluido aquoso é capaz de transmitir pressio. Penso
que, em algum momento, o feto pode estar tao submetido a essas
mudangas de pressdo, de tal modo que, antes ainda da mudanga
do fluido aquoso para o estado gasoso - 0 ar, 0 nascimento — este
mesmo feto pode tentar livrar-se de toda aquela pressio.
Penso que seria uma distorgio completa da teoria kleiniana
sugerir que fetos poderiam recorrer a clivagem de pensamentos,
ideias e fantasias, evacuando-os para o liquido amnidtico. Mesmo
assim, nao vejo por que nao poderiamos ter tais phantasias.? Freud
2 Conservamos o termo, originalmente cunhado por James Strachey, Alix Stra-
chey e Joan Riviere para a primeira verso em inglés da obra de Freud ~ a
Gnica lida ¢ autorizada por ele. © termo “phantasia” serve para assinalar a16 PRIMEIRO SEMINARIO 1976
disse: “Aprendi a controlar tendéncias especulativas, seguindo as
palavras, hoje esquecidas, de meu mestre, Charcot: observar repe-
tidamente as mesmas coisas, até que comecem a falar por si” (S. E.
14, p. 32). Tenho enorme simpatia com tal atitude, mas penso ser
um perigo que possamos fazé-lo dispensando aventuras especula-
tivas. Requer-se algum tipo de disciplina.
Parece-me haver remanescentes arcaicos, quando conside-
ramos a Curiosa progressao de uma existéncia piscosa para uma
existéncia anfibia, rumando-se a partir dai para uma existéncia
mamifera. Um cirurgiao diria: “Penso que ha um tumor na fenda
branquial”. Um resquicio, parte arcaica do corpo que pode prolife-
rar-se, torna-se perigosa. Ha uma cauda vestigial que produz um
tumor, requerendo uma operagao. Seria muito bom e sedutor, se
esta sobrevivente arcaica — a mente — pudesse ser tao facilmente
detectavel. Mas... Nao 6. Nao nos parece que estejamos capacitados
a sentir o odor de uma mente, de que possamos tocé-la, ou olhé-la;
mas estamos cientes de sua existéncia. Infelizmente, s6 podemos
dizer que talvez estejamos completamente enganados: por sermos
estimulados por isto ou aquilo, elaboramos sistemas de param-
nésias, intrincados sistemas tedricos, pois fica mais rapido e mais
bonito ficar capacitado a recair em teorias. Caso eu esteja correto,
penso que poderiamos dizer que estamos em nossa infancia, até o
ponto que toca a vida mental; simplesmente nada sabemos sobre
presenga daquilo que Freud definiu como “fantasias inconscientes”; tornou-se
til como discriminagao de meras fantasias conscientes, ou devaneios, Assim
como outros termos cunhados pelo casal Strachey e Riviere - por exemplo,
“id” - “phantasia” acabou sendo utilizada pelo proprio Freud em seus textos.
© termo “phantasia” foi respeitado em varias linguas neolatinas, inclusive no
Portugués, até pelo menos os anos de 1990. Embora essa discriminagao inicial
esteja, atualmente, sendo perdida, o termo foi utilizado por Bion neste livro €
em toda sua obra. Em favor de fidedignidade, optamos por manté-lo. [N.T.]WILFRED R. BION 17
que desenvolvimento ocorrera, nem se o desenvolvimento sera
extinto pela capacidade de nosso magnifico equipamento simiesco —
habilitado para produzir fissao nuclear que nos elimine da face da
Terra antes de obter maior desenvolvimento.
[Outra pessoa faz uma pergunta, de conteudo inaudivel.]
Bion: Fetos, vivendo em ambiente aquoso, utilizam o sen-
tido do olfato como uma, dentre outras, sondagens a distancia.
Cages e cavalas, em meio aquoso, podem detectar matéria em
decomposigao a uma consideravel distancia. Transportado para
um meio gasoso, um individuo carrega consigo certa quantidade
do meio aquoso - muco, saliva e assim por diante — podendo,
portanto, continuar a cheirar o que nado esteja completamen-
te desidratado; o meio aquoso, uma vez externo, ficou interno.
Alguns permanecem muito sensiveis a isso. Nao se gabam por
terem a capacidade de cheirar coisas que outros nao cheiram: ao
contrario, queixam-se amargamente de “catarro nasal”, falando
exatamente como se sentissem temerosos em ser afogados pelo
seu proprio catarro. Em suma, este “catarro”, que poderia ser um
bem, torna-se um revés aterrorizante.
O mesmo se aplicaria a nossos olhos: penso que expGem coisas
mesmo na auséncia do contato fisico e podem até mesmo mostrar
coisas que nao gostariamos de olhar... Talvez estejamos tocando
em medidas para o desenvolvimento da capacidade mental. Tudo
caminha bem, desde que va de modo mais ou menos inofensivo.
Mas... Suponha que se torne algo penetrante: um desenho medieval
ilustra uma pessoa enfiando a cabega dentro de uma espécie de
invélucro diamantado, capacitando-se a observar 0 universo, agora
exterior a ela mesma. Se a astronomia realmente capacitou-nos
a penetrar no espago, haveria uma objegao facil a tal afirmagao:
uma obje¢ao contra todos estes radiotelescépios ¢ similares, um18 PRIMEIRO SEMINARIO 1976
desejo para destrui-los, pois tornaram nos
fortavel - muito melhor ficar cego e surdo.
a vida muito descon-
O que isso significa? Significa, entao: vamos desdenhar X, pois “X
é terrivelmente hipocondriaco” — e pronto. Damos gracas a Deus,
sequer precisamos mais ficar incomodados em seguir adiante? Ou
precisariamos ouvir 0 que ele diz? Devemos nos expor ao que X
tenta comunicar?
Freud nos alertou para que déssemos atengao aos sonhos.
Isso tem longa histéria - muitos ja 0 haviam dito anteriormente.
No entanto, Freud levou isso muito mais adiante, sugerindo ser
necessario manter um respeito real por aquilo que vemos, ouvi-
mos e experimentamos quando baixamos a guarda: justamente 0
estado em que ficamos ao dormir. Pouquissimas pessoas, quan-
do bem acordadas, mantém qualquer respeito para com a conti-
nuidade provida pelos sonhos. A maior parte das pessoas sequer
ira admitir que sonhou: sabe que os demais irao considerar esses
sonhos como alucinag¢ées ou delirios. Sabemos da existéncia de
certas autoridades em alguns lugares que nao medem esfor¢os
para calar pessoas, enfiando-as em locais onde podem causar
pouco dano — os hospicios. E um futuro que se coloca igualmen-
te diante da psicandlise: perturbar as autoridades e ajuda-las no
aprisionamento da mente humana para manté-la em condi¢ao
inofensiva. De certa forma, sentimos que tudo isso vai bem para
pessoas como Picasso ou Soljenitsin — foram grandes homens, e
foi razoavel que eles tolerassem esse tipo de coisa. No entanto,
é estranho pensar que nos, com as nossas capacidades comuns,
precisariamos nos opor a tudo isso para apoiar um movimen-
to pré-liberdade da mente; um movimento que poderia ajudar
a desenvolver e descobrir regras para nutricgéo mental. @8mo
G@iimentaraMENte de tal modo que essa mesma mente possa se
desenvolver, nao ficar envenenada?WILFRED R. BION 19
Tudo isso fica facilmente discernivel quando se trata de adminis-
trar qualquer tipo de drogas ~ alcool, soporiferos e assim por diante.
Nao fica to facil saber quais ideias so soporiferas, QUASNAeIAORaO
venenosas, ¢ se nds, como analistas, nao estamos promovendo o de-
_ senvolvimento de métodos que tornariam o pensamento impossivel.
André Green chamou minha atengao para 0 enunciado: “La
réponse est le malheur de la question” [“A resposta é a doenga, o in-
forttinio, da pergunta”: Maurice Blanchot (1907-2003), L’Entretien
Infini]. Em outras palavras: respostas constituem-se como algo
que pode acabar com a curiosidade — de modo insuperavel. Caso
alguém fique minimamente curioso, @OdeSeenharINeninanes
@ostajgoelajabaixo ou dentro de seus ouvidos.dssouhaMeeliminar
[Outra pessoa faz uma pergunta, de contettdo inaudivel.]
Bion: Tenho uma impressao sobre a moralidade: trata-se de
algo basico. Fiquei impactado pelo fato de que, ao ter emitido um
ruido levemente desaprovador, fiz com que uma crianga tenha se
intimidado, como se algo muito terrivel tivesse acontecido. Nao
tive nenhum sentimento de que houvesse qualquer ideia conscien-
te sobre ter ocorrido algum tipo de crime; na verdade, a melhor
aproximagao que consegui ter sobre isso veio de um enunciado de
Melanie Klein: “ansiedade livremente flutuante”. Trata-se de ansie-
dade sem qualquer conceito ligado - de tal modo, que penso que
a criancinha em crescimento faz o melhor possivel para encontrar
um crime que se ajuste ao sentimento. Assim, nada ha que impeca
de fazer-se racionalizagoes; nao havera qualquer constrangimento
em se entreter com sentimentos racionais que permitam conside-
rar alguém como criminoso, ou de julgar a si mesmo como tal.
Quando o ruim fica ainda pior, a pessoa sempre podera cometer
um crime para fazer jus ao sentimento, de modo que a morali-20 = PRIMEIRO SEMINARIO 1976
dade ira realmente precipitar 0 crime, numa espécie de tentativa
terapéutica; a pessoa em questao podera pensar: “Posso me sentir
culpado, quem nao se sentiria assim? Olha o que fiz”. Na realidade,
penso que alguém pode realmente cometer um assassinato, a fim
de ser capaz de sentir que os seus sentimentos de culpa assassinos
sGo ao menos racionais. Isso significa apenas que o assim chama-
d0@EEEND nada mais é do.que algo que somos capazes
de compreender de acordo.com nossas QQ. £ uma
questao referente as limitagées humanas - nao tem nada a ver com
o universo em que vivemos. Outro problema é que o sentimento de
culpa pode ser tao grande que a pessoa em questo tentar4 livrar-se
dele, tentard adotar uma espécie de teoria ou ideia absolutamente
amoral que o abarque.
[Outra pessoa faz uma pergunta, cujo contetido também ficou
inaudivel.]
Bion: Quase todas as pessoas foram ensinadas a preocuparem-
-se ¢ interessarem-se pelos seus semelhantes. Isso também pode se
constituir como mais um estratagema aprendido no decorrer de
uma vida — Gita PESSOMAMIOLOSAL carinhosa substitui o
tornar-se amoroso e carinhoso. ‘Trata-se de uma dentre as varias
solugées que PSEMNfiMAOlerescimento e desenvolvimento.
Em anilise, temos que dar ateng4o a situagdo na qual um pa-
ciente fala de forma muito clara, muito compreensivel, sobre suas
Preocupagées para com esta ou aquela causa, ou instituigao. Em
situagées grosseiras, fica facil de perceber — sim, o paciente esta
extremamente preocupado com as pessoas infelizes que estéo em
algum lugar distante (nao ha o menor risco de sentir-se obrigado
a agir de alguma forma). E entao ficamos desconfiados de que 0
paciente age como uma pessoa preocupada, exatamente como um
médico, como um analista - e assim por diante. Mas em algumWILFRED R. BION 21
momento pode tornar-se clara certa mudanga: 0 paciente de fato
esta incomodado e preocupado com alguma coisa pela qual ele
pode fazer algo. Nesse momento, torna-se importante poder assi-
nalar esta observacao para 0 paciente: embora ele esteja falando do
mesmo jeito que falou ontem, ou na semana passada, ou no ano
passado, soa algo diferente. Claro, nao se quer fazer lisonjas, mas
o paciente provavelmente acreditara haver sugestdes de melhora
quando se diz algo desse tipo.
[Outra pessoa faz uma pergunta, de contevido inaudivel.]
Bion: No curso da experiéncia analitica, ocorre uma mudanga,
e podemos dizer: “Penso que o senhor (ou senhora), nesse mo-
mento, sente que é 0 pai (ou a mae)”. Algo que parece ser totalmen-
te plausivel para alguém que conte com cerca de vinte ou quarenta
anos, mas pode ser mais dificil enxergar uma crianga de seis ou
sete anos sentindo-se realmente uma mae - coisa que talvez sé nao
tenha ocorrido de fato por impedimento bioldgico, por imaturi-
dade sexual organica. Mais tarde, no entanto, o desenvolvimento
emocional da maturidade sexual e de sentimentos maternos reais
podem ser sentidos como tendo aparecido precocemente, fora da
s sentimentos maternais:
fase; a crianga passa, entao, a odiar ess
nao ha chance dela se tornar mae - so lhe resta seguir em frente
vivendo mais dez, doze, quinze anos, antes de ter filhos. Dessa for-
ma, no Momento em que essa pessoa realmente maternal tiver um
bebé, tera perdido a atracao pela maternidade, ficando farta dessa
condicao, @BeHhumano cumacraturamuilOlalha A dificuldade
ou o problema ¢ que GaGa iiiaiStningUennque|pOSSaAZeral gor
Tespeito, exceto nds mesmos. —
[Outra pessoa faz uma pergunta, de contetido inaudtvel.]
Bion: Um individuo tem que viver em seu proprio €6Epape seu
corpo tem que tolerar a presen¢a de umagmentevivendo dentro22 PRIMEIRO SEMINARIO 1976
dele. Em certo sentido, 0 procedimento analitico, se eficaz, pode
trazer para esses dois algum tipo de(armonia? Penso ser funda-
mental que a pessoa em questao seja capaz de@Stalemleontato>
(@onsigommesma - um bom contato no sentido de tolerante, mas
também no sentido de saber quao horrivel se pensa que se 6 ou
que seus sentimentos so, ou que tipo de pessoa se é. Deve haver
algum tipo de €olerancia Chtrelosid ois pOntOo Ge Nisa qUENIVER
juntosmommesmojcorpo, Parece-me ser precondi¢ao para uma pos-
sibilidade de s&@St@HAEPISSO|paraalQOURtEMO a nds mesmos, para
uma situa¢géo em que, se pudermos tolerar a nés mesmos, como
um pai ou uma mae, poderemos tolerar nosso par, que podera ser
© outro integrante do casal parental. Torna-se mais facil encontrar
um pai ou mae para nossos filhos, e também um marido ou esposa.
Como disse, penso ser fundamental entrar em contato consi-
go mesmo... Gastam-se muitos anos tentando ficar “moralmente”
melhor, tentando nado sermos meninos travessos ou meninas re-
voltadas ~ dificilmente alguém poderia dizer, “Estou tentando nao
ser um feto horroroso’. Assim, por mais que se tente evacuar ou
dar luz a todas estas caracteristicas horriveis para que reste apenas
a pessoa ideal, é necessdério chegar a um ponto em que se consi-
ga@Oleranalconvivenciajconsigoyproprio, um estagio preliminar a
condicgado em que se consegue tolerar viver com outra pessoa, 0 que
possibilitara alcangar uma(@OMipletade permitindo que se cumpra
a fungao bioldgica na qualg@qunidadetemmquerconstituinumycasaly
[Outra pessoa faz uma pergunta, de contetido inaudivel.]
Bion: Tivemos um programa maravilhoso em Northfield - uma
situagao magnifica — podia-se saber onde qualquer pessoa estaria,
em qualquer hora do dia, ou da noite - desde que nao se fosse dar
uma olhada. Lembro-me de reunir algumas pessoas em vestes mi-
litares, varrendo as enfermarias, e de ter-lhes dito: “Vamos la, paraWILFRED R. BION 23
dar uma olhada”, Fomos 4 carpintaria — que estava fechada. Fomos
a outro lugar — que também nao estava funcionando, pois 0 pessoal
estava em vestes militares. Nao havia sequer um tinico departamento
nesse maravilhoso programa que estivesse funcionando.
A tendéncia sera eliminar todas essas fases intermediadrias, es-
tabelecendo uma posigdo de autoridade. Em seguida, conformar
essa autoridade, a guisa de acréscimo para um tipo de invélucro
invulneravel. Nenhuma ideia podera penetrar em tal autoridade:
nenhuma ideia pode penetrar em tal invélucro cercando uma per-
sonalidade; ou um grupo; ou uma comunidade. Nada menos do
que uma revolucio, nada menos do que violéncia poderia quebrar
0 invélucro, liberando as pessoas dentro dele. Em fungio disto,
por vezes afirmo que G@iStitWiGGES|SAO[algONMIOKto: pode-se sem-
pre obedecer a regras e procedimentos; pode-se flexibilizar regras,
alterando-as para acomodar o crescimento interno 4 instituigao.
Mas instituigdes sao sempre compostas por pessoas — aqui reside
um problema: o invélucro pode ser tao espesso que ninguém po-
derd desenvolve-se dentro dele.