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Blaser e Cadena

1) O documento discute a noção de "incomuns" e como ela desafia as ideias convencionais sobre comunidades e recursos compartilhados. 2) É debatido em que escala os limites de um "comum" devem ser traçados e quem deveria tomar decisões sobre seu uso - comunidades locais, governos nacionais ou a comunidade global? 3) Os autores argumentam que os "comuns" devem ser entendidos como práticas sociais, não apenas recursos, e envolvem relacionamentos entre humanos e não-humanos.

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Blaser e Cadena

1) O documento discute a noção de "incomuns" e como ela desafia as ideias convencionais sobre comunidades e recursos compartilhados. 2) É debatido em que escala os limites de um "comum" devem ser traçados e quem deveria tomar decisões sobre seu uso - comunidades locais, governos nacionais ou a comunidade global? 3) Os autores argumentam que os "comuns" devem ser entendidos como práticas sociais, não apenas recursos, e envolvem relacionamentos entre humanos e não-humanos.

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Jabuti preto Ngreiboi

Cuia Rika

74
Cobra Nhakairereti
Quem deveria decidir como tratar e usar um bem comum, como,
por exemplo, um rio? As comunidades que vivem às margens
desse rio, os cidadãos do país que ele atravessa ou a comunidade
global que cuida de sua função em sistemas planetários?

OS INCOMUNS
Texto de Mario Blaser e Marisol de la Cadena
Fome de resistência - A mão Kayapó Menkragnoti, série de Jonathas de Andrade em colaboração
com a comunidade Kayapó Menkragnoti

A ideia dos “incomuns” impôs-se num momento muito


particular da história da América do Sul, quando se
tornavam evidentes os conflitos socioambientais que
conflitos que não foram apenas locais, mas, pelo contrário,
tornaram-se endêmicos onde quer que se implementassem
projetos extrativistas.
acompanharam o neoextrativismo. Como modelo de Duas coisas nos chamaram a atenção nesse contexto.
desenvolvimento baseado sobretudo na extração em Primeiro, o paradoxo da convergência conceitual entre
grande escala de recursos naturais para exportação, o neo- as justificativas de governos extrativistas e as justifi-
extrativismo foi implementado tanto sob governos conser- cativas de justiça social e ambiental usadas na defesa
vadores quanto progressistas. Os primeiros aprofundaram dos comuns. Depois, a maneira como essa convergência
as tendências de privatização das receitas geradas pelas paradoxal faz ressaltar os limites dos termos usados na
exportações, enquanto os segundos geralmente usaram discussão. Mesmo que “cercamento'' e “comuns'' se ins-
estas receitas para reduzir a pobreza, aumentar a partici- crevam na economia política como termos opostos – um
pação social e garantir a estabilidade política. As figuras destruindo o outro à medida que o capitalismo avança,
paradigmáticas do neoextrativismo são a mineração a céu embora sempre diante da possibilidade de que tudo pode
aberto, a expansão das fronteiras dos combustíveis fósseis, mudar –, ambos os termos, articulados por uma série de
a construção de grandes hidrelétricas e o agronegócio em binários (individual e coletivo, privado e público, sub-
larga escala. sistência e lucro), acabam convergindo.
Como essas atividades frequentemente envolvem a des- Essa convergência está na suposta continuidade ontoló-
truição e/ou o cercamento dos “comuns", não é raro ver gica entre humanos e na descontinuidade ontológica entre
governos descrevendo-os como “bens comuns" a serem humanos e não humanos, o que permite uma relação que
apropriados por corporações ou pelo Estado na busca do objetifica os não humanos como recursos naturais. A dis-
“bem comum” nacional. No entanto, tais alusões ao bem tribuição, o acesso e o uso desses recursos podem, então,
comum não impediram o surgimento de contestações e tornar-se pontos de discórdia entre os humanos.

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E ntretanto, isso contrasta fortemente com as expres-
sões que ouvimos nos contextos de conflito, quando
os defensores dos comuns diziam que o que os mobi-
unidas por interesses exclusivos que as separam de outras”.
É assim que devemos entender o slogan “não há comuns
sem comunidade''.
lizava não era apenas o interesse em preservar seus No entanto, a ideia de comunidade implica um domínio
comuns, mas também um sentimento de obrigação – e compartilhado que, diante da existência de incomunali-
receio sobre as potenciais consequências se não a cum- dades, levanta questões de escala, escopo e relações. Até
prissem – com o que chamaríamos de florestas, animais, onde se estende o domínio compartilhado constituinte da
rios e montanhas, e que eles descrevem como poderosas comunidade? Que tipo de coisas ele inclui e que responsabi-
pessoas não humanas. lidades essas coisas exigem? Quais são as possíveis relações
O que os defensores dos comuns nos diziam trazia entre os comuns e os incomuns? Em suma, quais seriam
à tona algo que ultrapassava os conceitos baseados na as implicações de fazer comuns (os objetos, as identidades,
descontinuidade ontológica entre humanos e não huma- os conceitos, as ideias e assim por diante), especialmente
nos, sem, no entanto, deixar de lidar com estes concei- quando essas coisas podem (também) ser incomuns?
tos. Por exemplo, quando eles, seus aliados e oponentes,
traduziam para formas hegemônicas de reconhecimento
as pessoas não humanas: por meio dos idiomas da reli-
gião – uma montanha sagrada – ou da cultura – as ditas
O s apelos governamentais ao bem comum nacional para
justificar o confisco de comuns, embora muitas vezes
retóricos, têm alguma reverberação, porque lidam com
crenças tradicionais. uma questão nunca resolvida: em que escala a fronteira
Processos coloniais desse tipo efetivam, em parte, o de um comum (e a comunidade associada a ele) deve
que John Law chama de “Mundo de Um Mundo" – “uma ser traçada? Quem deveria decidir como tratar e usar um
grande caixa de espaço-tempo que existe por si só” e onde comum, como, por exemplo, um rio? As comunidades
vivem “pessoas com crenças diferentes”. Vidas heterogê- que vivem às margens desse rio, os cidadãos do país que
neas às quais pode não se aplicar a divisão entre humanos ele atravessa, ou a comunidade global que cuida de sua
e não humanos (e vidas que não se dão apenas por meio função em sistemas planetários?
destas entidades) são forçadas a caber nesta distinção, mas Frequentemente fala-se dos comuns a partir de uma
continuam a existir excedendo-a. Chamamos esse excesso imaginação convencional das escalas, com a grande escala
emaranhado de “os incomuns”, uma condição que perturba, englobando domínios menores (ou seja, o global engloba
embora não substitua, a ideia do “mundo” como terreno o nacional, que engloba o regional, que engloba o local).
compartilhado. Uma ideia que aparece como condição para Assim, as decisões devem ser delegadas à menor unidade
o bem comum e para os comuns. jurisdicional capaz de lidar com elas em benefício do
Nos últimos anos, o entendimento dos comuns como comum, a menos que isto gere conflito entre “unidades".
reservatórios compartilhados de recursos sofreu duras crí- Nesse caso, a tomada de decisões deve ser ‘‘repassada’’ a
ticas. Como afirma Peter Linebaugh, “falar dos comuns uma unidade de nível superior.
como se fossem recursos naturais é enganoso, na melhor No entanto parece haver um problema que escapa a
das hipóteses, e perigoso, na pior delas – os comuns são essa imaginação de escala, como mostra Casper Bruun
uma prática e, no mínimo, expressam relacionamentos Jensen: quando examinadas de perto, as relações entre
sociais inseparáveis das relações com a natureza. Talvez as escalas envolvem não apenas conflitos potenciais, mas
fosse melhor pensar a palavra como verbo, como prática e também uma proliferação de incomuns. Jensen contrasta
não como um substantivo”. o significado convencional dos comuns como conjuntos
Assim, alguns críticos preferem falar de “fazer comum”: de recursos acessíveis com as “pressuposições comparti-
uma prática de construção e nutrição da comunidade que lhadas sobre os significados das práticas ou dos mundos”,
inclui os não humanos como agentes ativos, se distan- já que o “fazer comum” inevitavelmente envolve esboçar
ciando da descontinuidade ontológica entre humanos e não um domínio compartilhado.
humanos. O “fazer comum” rejeita, embora nem sempre Um rio como o Mekong, por exemplo, pode ser domí-
consiga superar a descontinuidade, que os não humanos nio de comunidades ribeirinhas como fonte comum de seu
sejam transformados em recursos e que sejam desvincula- sustento, de governos que supostamente representam os
dos das comunidades humanas que os utilizam e que deles cidadãos dos países que ele atravessa como fonte potencial
dependem. Em outras palavras, os comuns são concebidos de energia e de organizações ambientais transnacionais
como totalidades indissolúveis de humanos e não humanos como um componente-chave dos comuns da biodiversi-
sempre em construção, sempre em processo de vir a ser. dade. Cada uma dessas perspectivas constitui diferentes
Como se costuma dizer nos círculos de discussão sobre os projetos de “fazer domínio” (ou de fazer comum), e suas
comuns, “não há comuns sem comunidade”. escalas podem ser um efeito do modo como são conduzidos.
O que está implicado na construção dessas “totalida- Jensen propõe que a compreensão dos comuns a partir
des”? “Se o fazer comum tem algum significado, está na das práticas de “fazer domínio” permite enxergá-los como
produção de nós mesmos como um sujeito comum'', diz projetos que precisam ser constantemente concretizados,
Silvia Federici. Sua ideia de comunidade se refere à “qua- pois não existem a priori.
lidade das relações, um princípio de cooperação e respon- Ao contrário do que poderíamos acreditar, os comuns de
sabilidade uns com os outros e com a terra, as florestas, os pequena escala não estão encaixados em comuns maiores e
mares, os animais", e não a “um agrupamento de pessoas assim por diante, até constituírem uma “totalidade" comum.

76
Morcego Panhkangra

Lagarta Kokowati

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Cobra de filhote Ngreiboi
Na verdade, os comuns se tornam grandes ou pequenos Na história da construção do “Mundo de Um Mundo”,
dependendo da forma como os domínios se relacionam. A a comunalidade universal da “natureza" foi estabelecida
preservação global de um comum de biodiversidade pode por meio da extensão das práticas científicas a uma mul-
precisar estar ligada à fonte comum de sustento de comu- tiplicidade de locais geográficos. Atsuro Morita aborda um
nidades ribeirinhas por meio de projetos de manejo florestal momento específico dessa história: o encontro entre o pro-
ou ecoturismo, facilitando o uso do rio para a pesca, e jeto humboldtiano de um “retrato abrangente do universo"
tornando-se assim uma versão “local” de um “comum glo- e a adesão do rei Mongkut, do Sião, a esse projeto para os
bal”. Uma das questões cruciais levantadas por Jensen, no próprios fins. O evento paradigmático é uma expedição à
entanto, é que, independentemente da escala, os domínios selva organizada pelo rei para testemunhar um eclipse solar
constituem lugares onde abundam os incomuns. total, previsto por ele. Morita nos conta que a expedição
Em um projeto de manejo florestal, por exemplo, reuniu “a família real siamesa, nobres, eminentes astrólo-
enquanto os moradores locais tentam impedir a extração gos da corte, astrônomos franceses, diplomatas de vários
de madeira ou a invasão das monoculturas ou mesmo bus- países europeus [...], o governador de Cingapura” e, claro,
car recursos para os próprios fins (fazer oferendas para os “instrumentos de observação astronômica”.
espíritos, inclusive), a ONG nacional pode estar interessada Poderíamos interpretar o evento como uma expansão
em melhorar os meios de subsistência e a ONG transnacio- das práticas científicas, o que daria ainda mais credibili-
nal estará preocupada com a biodiversidade. Como o fazer dade à suposição de Humboldt sobre a existência de um
comum (ou o fazer domínio) precisa ser constantemente universo organizado composto por “coisas'' e leis a serem
performatizado, sobretudo por meio do alinhamento de estudadas de acordo com um método específico. Tal inter-
diferentes projetos de domínio, os incomuns proliferam o pretação não estaria errada, mas o que Morita mostra é
tempo todo. Os incomuns são constitutivos dos comuns. que havia algo mais: a tentativa do rei de administrar a
Os festejos para os espíritos realizados hoje com recursos relação entre o Sião e as potências coloniais, com base no
de um projeto de manejo florestal não equivalem, porém, conhecimento “comum” siamês sobre como um universo
exatamente aos festejos do passado. E participar do projeto de “milhares de maravilhosos mundos elevados à milésima
para aproveitar seus recursos para festejar os espíritos é potência” se mantém unido!
diferente de participar deste mesmo projeto para proteger a As ações do rei estavam em consonância com a gover-
biodiversidade. Em outras palavras, embora novas relações nança de um “corpo político em mandala” – que, seguindo
entre domínios (por exemplo, “festejar os espíritos'' e “con- os arranjos cosmológicos hindu-budistas, era concebido
servar a biodiversidade''), possibilitadas pela formação de como uma série de círculos concêntricos de influência e
um novo domínio (o projeto de manejo florestal), possam poder, em meio a uma multiplicidade de corpos políticos
alterar os primeiros (fazendo-os divergir de si mesmos), isto configurados de forma semelhante. A astrologia desem-
não significa que passam a convergir, tornando-se a mesma penhava um papel central nas tecnologias políticas e
coisa. Sem que sejam imutáveis, cada domínio traz as pró- diplomáticas das mandalas, e a astronomia e a geodesia
prias “coisas" incomuns para o processo de fazer comum, foram adotadas pelo rei nesta mesma linha. No entanto
como enfatizam Judith Farquhar, Lili Lai e Marshall Kramer. não devemos interpretar que o rei estava simplesmente
Os incomuns não devem ser pensados como expressão de incorporando elementos da prática científica à astrologia e
diferenças fossilizadas e preexistentes (“coisas'' que sempre à administração política tradicionais. Como no exemplo do
existiram, iguais para si e diferentes umas das outras), mas manejo florestal que descrevemos antes, o rei estava dando
como um processo de divergência contínuo. forma a um novo domínio no âmbito daquilo que Morita
chama de um espaço intersticial, “entre múltiplas práticas

O “Mundo de Um Mundo” pode ser pensado como um


projeto de fazer comum em escala universal, como a
construção de um domínio compartilhado no qual todas as
de conhecimento e gerenciamento do mundo”.
Ao mesmo tempo que as práticas implicadas nesse novo
domínio divergiam de suas “raízes", elas se conectavam com
diferenças existem. O que Jensen dizia sobre a criação de elas (a astrologia, a astronomia, a geodesia, a diplomacia).
domínios se aplica também a esse domínio universal: ele Divergiam porque foram tecidas junto a um novo conjunto
é um efeito de práticas que pressupõem que o domínio já de práticas, mas, por outro lado, também se conectavam
existe. No entanto a biodiversidade global só é um domí- porque podiam ser perfeitamente reconhecidas como perten-
nio plausível se suas variadas versões locais se conectarem centes a protocolos estabelecidos. Tal simultaneidade entre
com sucesso umas às outras. conexão e divergência nas práticas do rei eventualmente
O exemplo do sistema ferroviário utilizado por Bruno permitiu que os cientistas percebessem a expedição como
Latour é apropriado aqui. Um sistema “global” que existe um símbolo “da vitória da ciência moderna e do monarca
apenas na medida em que estações, faixas, sinais e máqui- esclarecido sobre a superstição", mas também permitiu que
nas de bilhetes “localizados” se conectam e se mantêm astrólogos tailandeses a vissem como “o marco do início da
interligados. Conexões e ligações são obviamente centrais astrologia tailandesa moderna”. Em outras palavras, o fazer
para a constituição de domínios (ou de comuns), mas não comum ou fazer domínio estabelecido pelo rei no espaço
menos central é se os elementos incomuns serão flexíveis intersticial apagava apenas tenuamente o incomum em que
o suficiente para se manterem juntos, delimitando assim o estava alicerçado. Como um campo de equívocos, esse novo
âmbito possível de um comum – mas sob quais condições domínio permitiu que a ciência moderna e a astrologia tai-
os incomuns sustentam os comuns? landesa existissem em comum, mesmo que divergindo.

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Borboleta Nhako

Jabuti Panhba

Borboleta Kokowati
Jabuti Ngrei-e

Caramujo Nhakairereti

Cobra Ngrei-e
O s equívocos desempenham um papel fundamental
em manter os incomuns como comuns. Os equívo-
cos, noção proposta pelo antropólogo Eduardo Viveiros
uma cremação adequada. Para responder plenamente às
suas demandas, porém, seria necessário remover os hotéis
construídos sobre as valas comuns. Além dos problemas
de Castro, acontecem quando não há a compreensão de práticos e políticos que isso implica, a publicidade em torno
que, ao usar um mesmo termo, dois ou mais interlocuto- do assunto prejudicaria uma indústria da qual muitos bali-
res estão se referindo a coisas diferentes. O domínio de neses dependem. Como afirma Wiener, a situação traz à
práticas comuns estabelecido pelo rei do Sião constituiu tona choques entre diferentes formas de prosperidade,
um campo de equívocos porque aquelas práticas tinham mesmo para os balineses: aquelas que mantêm adequadas
diferentes referentes para diferentes interlocutores. Para os as relações entre os vivos e os mortos, entre as forças
cientistas, elas se referiam à ordem universal do cosmos humanas e não humanas, e aquelas associadas à força
humboldtiano; para os astrólogos tailandeses, elas se refe- econômica do fazer comum conhecida como capitalismo.
riam à ordem universal dos milhares de mundos elevados à Os dois exemplos produzem equívocos na constituição
milésima potência. Podemos imaginar esses interlocutores dos comuns, permitindo que práticas divergentes perma-
parabenizando uns aos outros pelo sucesso da expedição, neçam articuladas com o mínimo de interrupção mútua.
sem perceber que se referiam a coisas distintas. Os incomuns se tornam visíveis quando essas práticas se
As incomunalidades surgem também durante o des- chocam ou quando os equívocos sobre os quais o comum
locamento das relíquias nacionais do Museu Nacional de está construído são enfatizados. Qual seria o significado
Jacarta ao palácio Klungkung, em Bali, para uma come- político de tornar visível o incomum ou de “tornar inco-
moração de Estado. Margaret Wiener mostra como a visita mum”? Os equívocos desempenham um papel importante
dos punhais-relíquias indonésios, conhecidos como kris, no sucesso do fazer comum, mas o que não podemos perder
constitui um campo de equívocos em que uma comemora- de vista é que, na maioria das vezes, os campos de equívo-
ção de Estado e um ritual balinês acontecem em paralelo e cos são assimétricos. O papel fundamental dos incomuns
se sobrepõem. A incomunalidade torna-se imediatamente na constituição dos comuns acaba sendo renegado, e os
visível quando as relíquias não são utilizadas exatamente comuns acabam não cumprindo as promessas de democra-
como prescrevem os protocolos de preservação museoló- cia, igualdade e justiça.
gica, por um lado, e os ritualísticos, por outro. Isso ocorre, Num futuro próximo, o provável desdobramento do
por exemplo, quando os “objetos de museu” são manipu- incomum nas praias balinesas indica que o turismo pre-
lados por um sacerdote sem luvas, diferentemente do que valecerá, sufocando as possibilidades de um tratamento
determinariam as práticas de preservação, ou quando um adequado aos mortos. Nesse exemplo, parece não haver
membro da equipe do museu que acompanha as relíquias possibilidades de um equívoco produtivo que torne as
preocupa-se com os riscos à saúde daqueles que bebem a praias um comum para ambos os conjuntos de práticas.
água benta produzida durante os ritos. A visibilidade do A atual assimetria de poder faz com que o desacordo seja
incomum, porém, não dura muito: uma pequena modi- resolvido de forma unívoca. Podemos, entretanto, sempre
ficação no protocolo (os sacerdotes param de tocar as nos perguntar o que aconteceria se as assombrações proli-
relíquias com as mãos nuas) e um recurso à “linguagem ferassem a tal ponto que para a indústria do turismo fosse
ecumênica” (o membro da equipe do museu, muçulmano, conveniente fazer algo a respeito.
é informado de que Deus removeu todas as bactérias da Voltando à expedição do rei Mongkut: para os cientistas,
água) trazem de volta os dois conjuntos de práticas para a expedição do rei representava uma coisa e para os astró-
o terreno do comum. logos tailandeses, outra – mas, enquanto algo muda para a
O silenciamento dos incomuns, entretanto, nem sempre astrologia tailandesa (sua requalificação como “moderna''),
é possível. É o que Wiener argumenta ao contar sobre o a ciência moderna é apenas reconfirmada. Somos tentados
incomum evidenciado nas praias de Bali. Junto com ravinas a dizer que, embora a astrologia tailandesa veja a ciência
e cemitérios, praias são locais que os balineses chamam moderna como conhecimento, o inverso não é o caso.
de tenget: perigosos ou assombrados. Nos anos de 1965 No caso do trânsito dos kris ao museu, uma assimetria
e 1966, entre 80 e 150 mil pessoas morreram nas mãos semelhante fica evidente, e o trabalho para manter em
de grupos paramilitares anticomunistas, de vizinhos e até funcionamento o equívoco é realizado por aqueles que
mesmo de parentes, numa onda de violência disseminada abordam as relíquias como agentes não humanos. Eles
pelo regime da Nova Ordem do general Suharto. A maio- cobrem as mãos para acomodar as práticas de preserva-
ria das mortes ocorreu em lugares tenget, onde os corpos ção museológica e recorrem a uma “linguagem ecumênica"
foram enterrados. Com exceção dos cemitérios, esses são para apaziguar as preocupações dos agentes do Estado.
lugares de grande atração para os euro-americanos e para Em outras palavras, o fazer comum se dá ali ao custo de
investidores da indústria do turismo, muitos deles políticos subordinar um conjunto de práticas a outro por meio do
e generais promotores dos massacres. “Foi construída uma “tornar igual” – isto é, proclama-se uma equivalência onde
indústria sobre os corpos daqueles cujas mortes permitiram há divergência operante. E, como, consequência, as práticas
que quem lucrava com ela chegasse ao poder”, diz Wiener. dominantes podem operar como se as práticas subordinadas
No entanto, desde a queda da Nova Ordem, crescem fossem irrelevantes para a constituição do comum.
movimentos para exumar as valas comuns. Em alguns O “tornar incomum”, porém, vai contra essa possibili-
casos, o movimento parte dos próprios mortos, que, por dade. Enfatiza que as práticas ditas comuns são tanto dife-
meio de possessões, visões paranormais e suicídios, exigem rentes (o oposto do igual) quanto divergentes, como explica a

81
Parte da série Infindável Mapa da Fome, Fome de Resistência – A mão Kayapó Menkragnoti foi
>

concebida em 2019 pelo artista Jonathas de Andrade em colaboração com as mulheres Kayapó
da aldeia Pukany, território Menkragnoti, sul do Pará, e em parceria com Instituto Kabu, A Gente
Transforma e Marcelo Rosenbaum. As artistas Bekwyikai, Bekwyiket, Bekwyiky, Bekwyitexo, Djapa,
Ireranti, Iretynh, Kakjana, Kokowati, Negreinome, Ngreiboi, Ngreidje, Ngreiê, Ngreipangri, Ngreita,
Nhako, Papoi, Pykwyiky e Rika foram convidadas a intervir sobre mapas históricos do território
Kayapó demarcado e protegido por lei, realizados pela Sudene entre 1970 e 1990. Ao lado de cada
mapa, coberto com os grafismos Kayapó, figuram fotografias das mãos em riste das pintoras. As
fotografias são de Emanuel da Costa (mapas) e Cleber Oliveira e Jonathas de Andrade (mãos).

filósofa Isabelle Stengers a partir do que chama de “ecologia o repertório conceitual e o entendimento dos taonga. A
das práticas”. As práticas são constituídas pela própria diver- partir de uma “nova” compreensão das “relações”, os
gência positiva, já que se juntam simbioticamente – como desenvolvedores do banco de dados puderam estruturar
em um sistema ecológico –, embora permaneçam distintas: uma arquitetura digital apropriada; e a partir da noção
o que as aproxima é um interesse em comum que não é o de que as relações precedem as entidades, o repositório
mesmo interesse. Assim, o “tornar incomum” não é excluir digital pode gerar taongas de formas que não existiam
a possibilidade de fazer comum, mas, antes, procurar sempre antes. Nesse caso, a etnografia altera aquilo que estuda,
que possível maneiras de basear o fazer comum nos funda- transformando-se a um só tempo.
mentos sólidos das divergências produtivas reconhecidas. Em oposição à expectativa habitual de que a tradução
deve se empenhar em estabelecer uma equivalência entre

C omo esses “fundamentos sólidos” podem ser agenciados?


Amiria Salmond e outros etnógrafos e experts em ban-
cos de dados juntaram-se a um grupo Maori para construir
dois termos por meio de um referente comum, Viveiros
de Castro propõe a tradução como “equivocação con-
trolada”, empenhando-se em não perder de vista que os
um repositório digital para os taonga, seus tesouros ances- termos são diferentes, e que esta diferença é um efeito
trais, que podem incluir uma variedade de coisas, músicas da comparação, ou seja, do “tornar incomum”. Assim,
e objetos. Os taonga são incomuns quando comparados aos em vez de se satisfazer com a “semelhança" de uma tra-
padrões euro-americanos modernos, na medida em que são, dução, o etnógrafo reconhece seu caráter contingente;
como os kri, eles próprios agentes, entidades, pessoas não a tradução funciona desde que a relação mantenha o
humanas. Enfatizamos a palavra pessoas para indicar o vínculo entre os dois termos.
trabalho de “fazer comum” realizado por versões anteriores O “fazer comum” muitas vezes se baseia em equívocos
da tradução etnográfica que tornaram os taonga comuns que renegam as incomunalidades, entrincheirando assime-
por meio da equivalência com um conceito familiar aos trias entre os elementos do comum. Em tais situações, o
euro-americanos. Se tal tradução foi inicialmente conside- “tornar incomum” sob a “equivocação controlada” pode
rada como o terreno comum compartilhado com os Maori ajudar o “fazer comum” a cumprir sua promessa democrá-
para discutir como o repositório funcionaria, os problemas tica e igualitária, mantendo os envolvidos alertas para os
encontrados no desenrolar do trabalho tornaram evidente incomuns que sustentam o comum, criando uma consciên-
que, para os Maori, o que tornava uma coisa um taonga cia da natureza contingente e pragmática da viabilidade da
não era uma qualidade intrínseca a ela, mas a qualidade tradução e comprometendo-se com a transformação mútua
de seus relacionamentos. E a noção de relações não era tão sem que a igualdade ou a equivalência sejam seu horizonte
simples: as relações, para os Maori, precedem e constituem final. Para constituir o comum dessa maneira deveremos,
as entidades, e não o contrário. paradoxalmente, como aponta Helen Verran, aprender a
“A incomunalidade dessas coisas em relação ao reper- recusar a redução colonizadora das práticas às categorias
tório conceitual da antropologia e da tecnologia digital compartilhadas e a aceitar que não estamos metafisicamente
foi produtiva, gerando um imperativo para a inovação comprometidos a fazer um mundo comum, mas, em vez
metodológica", conta Salmond, o que acabou renovando
*
disso, a seguir juntos em divergência.

82
Jabuti Panhkangra

Jabuti Ngreikanhe

Jabuti Papoi

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