Huizinga - Homo Ludens (PT)
Huizinga - Homo Ludens (PT)
Johan
Huizinga
Homo
Ludens
Coleção
Estudos
Dirigida
por
J.
Guinsburg
Equipe
de
realização
Tradução:
João
Paulo
Monteiro
Revisão:
Mary
Amazonas
Leite
de
Barros
Produção:
Ricardo
W.
Neves
e
Adriana
Garcia
Título
do
original:
Homo
Ludens
—
vom
Unprung
der
Kultur
im
Spiel
Copyright
©
by
Johan
Huizinga
4*
edição
—
reimpressão
Direitos
reservados
em
língua
portuguesa
à
EDITORA
PERSPECTIVA
S.A.
Av.
Brig.
Luís
Antônio,
3025
01401-000
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São
Paulo
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SP
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Brasil
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2000
Prefácio
Em
época
mais
otimista
que
a
atual,
nossa
espécie
recebeu
a
designação
de
Homo
sapiens.
Com
o
passar
do
tempo,
acabamos
por
compreender
que
afinal
de
contas
não
somos
tão
racionais
quanto
a
ingenuidade
e
o
culto
da
razão
do
século
XVIII
nos
fizeram
supor,
e
passou
a
ser
de
moda
designar
nossa
espécie
como
Homo
faber.
Embora
faber
não
seja
uma
definição
do
ser
humano
tão
inadequada
como
sapiens,
ela
é,
contudo,
ainda
menos
apropriada
do
que
esta,
visto
poder
servir
para
designar
grande
número
de
animais.
Mas
existe
uma
terceira
função,
que
se
verifica
tanto
na
vida
humana
como
na
animal,
e
é
tão
importante
como
o
raciocínio
e
o
fabrico
de
objetos:
o
jogo.
Creio
que,
depois
de
Homo
faber
e
talvez
ao
mesmo
nível
de
Homo
sapiens,
a
expressão
Homo
ludens
merece
um
lugar
em
nossa
nomenclatura.
Seria
mais
ou
menos
óbvio,
mas
também
um
pouco
fácil,
considerar
"jogo"
toda
e
qualquer
atividade
humana.
Aqueles
que
preferirem
contentar-se
com
uma
conclusão
metafísica
deste
gênero
farão
melhor
não
lerem
este
livro.
Não
vejo,
todavia,
razão
alguma
para
abandonar
a
noção
de
jogo
como
um
fator
distinto
e
fundamental,
presente
em
tudo
o
que
acontece
no
mundo.
Já
há
muitos
anos
que
vem
crescendo
em
mim
a
convicção
de
que
é
no
jogo
e
pelo
jogo
que
a
civilização
surge
e
se
desenvolve.
É
possível
encontrar
indícios
dessa
opinião
em
minhas
obras
desde
1903.
Foi
ela
o
tema
de
meu
discurso
anual
como
Reitor
da
Universidade
de
Leyden,
em
1933,
e
posteriormente
de
conferências
em
Zurique,
Viena
e
Londres,
neste
último
caso
sob
o
título
The
Play
Element
of
Culture
(O
jogo
como
elemento
da
cultura).
Em
todas
as
vezes,
meus
hóspedes
pretenderam
corrigir
o
título
para
"na" cultura,
mas
sempre
protestei
e
insisti
no
uso
do
genitivo,
pois
minha
intenção
não
era
definir
o
lugar
do
jogo
entre
todas
as
outras
manifestações
culturais,
e
sim
determinar
até
que
ponto
a
própria
cultura
possui
um
caráter
lúdico.
O
objetivo
deste
estudo
mais
desenvolvido
é
procurar
integrar
o
conceito
de
jogo
no
de
cultura.
Assim,
jogo
é
aqui
tomado
como
fenômeno
cultural
e
não
biológico,
e
é
estudado
em
uma
perspectiva
histórica,
não
propriamente
científica
em
sentido
restrito.
O
leitor
notará
que
pouca
ou
nenhuma
interpretação
psicológica
utilizei,
por
mais
importante
que
fosse,
e
que
só
raras
vezes
recorri
a
conceitos
e
explicações
antropológicos,
mesmo
nos
casos
em
que
me
refiro
a
fatos
etnológicos.
Não
se
encontrará
uma
única
vez
o
termo
maná
e
outros
semelhantes,
magia,
só
muito
pouco.
Se
eu
quisesse
resumir
meus
argumentos
sob
a
forma
de
teses,
uma
destas
seria
que
a
antropologia
e
as
ciências
a
ela
ligadas
têm,
até
hoje,
prestado
muito
pouca
atenção
ao
conceito
de
jogo
e
à
importância
fundamental
do
fator
lúdico
para
a
civilização.
O
leitor
destas
páginas
não
deve
ter
esperança
de
encontrar
uma
justificação
pormenorizada
de
todas
as
palavras
usadas.
No
exame
dos
problemas
gerais
da
cultura,
somos
constantemente
obrigados
a
efetuar
incursões
predatórias
em
regiões
que
o
atacante
ainda
não
explorou
suficientemente.
Estava
fora
de
questão,
para
mim,
preencher
previamente
todas
as
lacunas
de
meus
conhecimentos.
Tinha
que
escolher
entre
escrever
agora
ou
nunca
mais;
e
optei
pela
primeira
solução.
Leyden,
15
de
junho
de
1938
Sumário
1.
Natureza
e
Significado
do
Jogo
como
Fenômeno
Cultural
2.
A
Noção
de
Jogo
e
sua
Expressão
na
Linguagem
3.
O
Jogo
e
a
Competição
como
Funções
Culturais
4.
O
Jogo
e
o
Direito
5.
O
Jogo
e
a
Guerra
6.
O
Jogo
e
o
Conhecimento
7.
O
Jogo
e
a
Poesia
8.
A
Função
da
Forma
Poética
9.
Formas
Lúdicas
da
Filosofia
10.
Formas
Lúdicas
da
Arte
11.
Culturas
e
Períodos
sub
specie
lude
12.
O
Elemento
Lúdico
da
Cultura
Contemporânea
1.
Natureza
e
Significado
do
Jogo
como
Fenômeno
Cultural
O
jogo
é
fato
mais
antigo
que
a
cultura,
pois
esta,
mesmo
em
suas
definições
menos
rigorosas,
pressupõe
sempre
a
sociedade
humana;
mas,
os
animais
não
esperaram
que
os
homens
os
iniciassem
na
atividade
lúdica.
É-
nos
possível
afirmar
com
segurança
que
a
civilização
humana
não
acrescentou
característica
essencial
alguma
à
ideia
geral
de
jogo.
Os
animais
brincam
tal
como
os
homens1.
Bastará
que
observemos
os
cachorrinhos
para
constatar
que,
em
suas
alegres
evoluções,
encontram-se
presentes
todos
os
elementos
essenciais
do
jogo
humano.
Convidam-se
uns
aos
outros
para
brincar
mediante
um
certo
ritual
de
atitudes
e
gestos.
Respeitam
a
regra
que
os
proíbe
morderem,
ou
pelo
menos
com
violência,
a
orelha
do
próximo.
Fingem
ficar
zangados
e,
o
que
é
mais
importante,
eles,
em
tudo
isto,
experimentam
evidentemente
imenso
prazer
e
divertimento.
Essas
brincadeiras
dos
cachorrinhos
constituem
apenas
uma
das
formas
mais
simples
de
jogo
entre
os
animais.
Existem
outras
formas
muito
mais
complexas,
verdadeiras
competições,
belas
representações
destinadas
a
um
público.
Desde
já
encontramos
aqui
um
aspecto
muito
importante:
mesmo
em
suas
formas
mais
simples,
ao
nível
animal,
o
jogo
é
mais
do
que
um
fenômeno
fisiológico
ou
um
reflexo
psicológico.
Ultrapassa
os
limites
da
atividade
puramente
física
ou
biológica.
É
uma
função
significante,
isto
é,
encerra
um
determinado
sentido.
No
jogo
existe
alguma
coisa
"em
jogo"
que
transcende
as
necessidades
imediatas
da
vida
e
confere
um
sentido
à
ação.
Todo
jogo
significa
alguma
coisa.
Não
se
explica
nada
chamando
"instinto"
ao
princípio
ativo
que
constitui
a
essência
do
jogo;
chamar-lhe
"espírito"
ou
"vontade"
seria
dizer
demasiado.
Seja
qual
for
a
maneira
como
o
considerem,
o
simples
fato
de
o
jogo
encerrar
um
sentido
implica
a
presença
de
um
elemento
não
material
em
sua
própria
essência.
A
psicologia
e
a
fisiologia
procuram
observar,
descrever
e
explicar
o
jogo
dos
animais,
crianças
e
adultos.
Procuram
determinar
a
natureza
e
o
significado
do
jogo,
atribuindo-lhe
um
lugar
no
sistema
da
vida.
A
extrema
importância
deste
lugar
e
a
necessidade,
ou
pelo
menos
a
utilidade
da
função
do
jogo
são
geralmente
consideradas
coisa
assente,
constituindo
o
ponto
de
partida
de
todas
as
investigações
científicas
desse
gênero.
Há
uma
extraordinária
divergência
entre
as
numerosas
tentativas
de
definição
da
função
biológica
do
jogo.
Umas
definem
as
origens
e
fundamento
do
jogo
em
termos
de
descarga
da
energia
vital
superabundante,
outras
como
satisfação
de
um
certo
"instinto
de
imitação",
ou
ainda
simplesmente
como
uma
"necessidade"
de
distensão.
Segundo
uma
teoria,
o
jogo
constitui
uma
preparação
do
jovem
para
as
tarefas
sérias
que
mais
tarde
a
vida
dele
exigirá,
segundo
outra,
trata-se
de
um
exercício
de
autocontrole
indispensável
ao
indivíduo.
Outras
veem
o
princípio
do
jogo
como
um
impulso
inato
para
exercer
uma
certa
faculdade,
ou
como
desejo
de
dominar
ou
competir.
Teorias
há,
ainda,
que
o
consideram
uma
"ab-reação",
um
escape
para
impulsos
prejudiciais,
um
restaurador
da
energia
dispendida
por
uma
atividade
unilateral,
ou
"realização
do
desejo",
ou
uma
ficção
destinada
a
preservar
o
sentimento
do
valor
pessoal
etc.2.
Há
um
elemento
comum
a
todas
estas
hipóteses:
todas
elas
partem
do
pressuposto
de
que
o
jogo
se
acha
ligado
a
alguma
coisa
que
não
seja
o
próprio
jogo,
que
nele
deve
haver
alguma
espécie
de
finalidade
biológica.
Todas
elas
se
interrogam
sobre
o
porquê
e
os
objetivos
do
jogo.
As
diversas
respostas
tendem
mais
a
completar-se
do
que
a
excluir-se
mutuamente.
Seria
perfeitamente
possível
aceitar
quase
todas
sem
que
isso
resultasse
numa
grande
confusão
de
pensamento,
mas
nem
por
isso
nos
aproximaríamos
de
uma
verdadeira
compreensão
do
conceito
de
jogo.
Todas
as
respostas,
porém,
não
passam
de
soluções
parciais
do
problema.
Se
alguma
delas
fosse
realmente
decisiva,
ou
eliminaria
as
demais
ou
englobaria
todas
em
uma
unidade
maior.
A
grande
maioria,
contudo,
preocupa-se
apenas
superficialmente
em
saber
o
que
o
jogo
é
em
si
mesmo
e
o
que
ele
significa
para
os
jogadores.
Abordam
diretamente
o
jogo,
utilizando-se
dos
métodos
quantitativos
das
ciências
experimentais,
sem
antes
disso
prestarem
atenção
a
seu
caráter
profundamente
estético.
Por
via
de
regra,
deixam
praticamente
de
lado
a
característica
fundamental
do
jogo.
A
todas
as
"explicações"
acima
referidas
poder-se-ia
perfeitamente
objetar:
"Está
tudo
muito
bem,
mas
o
que
há
de
realmente
divertido
no
jogo?
Por
que
razão
o
bebê
grita
de
prazer?
Por
que
motivo
o
jogador
se
deixa
absorver
inteiramente
por
sua
paixão?
Por
que
uma
multidão
imensa
pode
ser
levada
até
ao
delírio
por
um
jogo
de
futebol?"
A
intensidade
do
jogo
e
seu
poder
de
fascinação
não
podem
ser
explicados
por
análises
biológicas.
E,
contudo,
é
nessa
intensidade,
nessa
fascinação,
nessa
capacidade
de
excitar
que
reside
a
própria
essência
e
a
característica
primordial
do
jogo.
O
mais
simples
raciocínio
nos
indica
que
a
natureza
poderia
igualmente
ter
oferecido
a
suas
criaturas
todas
essas
úteis
funções
de
descarga
de
energia
excessiva,
de
distensão
após
um
esforço,
de
preparação
para
as
exigências
da
vida,
de
compensação
de
desejos
insatisfeitos
etc.,
sob
a
forma
de
exercícios
e
reações
puramente
mecânicos.
Mas
não,
ela
nos
deu
a
tensão,
a
alegria
e
o
divertimento
do
jogo.
Este
último
elemento,
o
divertimento
do
jogo,
resiste
a
toda
análise
e
interpretação
lógicas.
A
palavra
holandesa
aardigheid
éextremamente
significativa
a
esse
respeito.
Sua
derivação
de
aard
(natureza,
essência)
mostra
bem
que
a
ideia
não
pode
ser
submetida
a
uma
explicação
mais
prolongada.
Essa
irredutibilidade
tem
sua
manifestação
mais
notável,
para
o
moderno
sentido
da
linguagem,
na
palavra
inglesa
fun,
cujo
significado
mais
corrente
é
ainda
bastante
recente.
É
curioso
que
o
francês
não
possua
palavra
que
lhe
corresponda
exatamente
e
que
tanto
em
holandês
(grap
e
aardigheid)
como
em
alemão
(Spass
e
Witz)
sejam
necessários
dois
termos
para
exprimir
esse
conceito3.
E
é
ele
precisamente
que
define
a
essência
do
jogo.
Encontramo-nos
aqui
perante
uma
categoria
absolutamente
primária
da
vida,
que
qualquer
um
é
capaz
de
identificar
desde
o
próprio
nível
animal.
É
legitimo
considerar
o
jogo
uma
"totalidade",
no
moderno
sentido
da
palavra,
e
é
como
totalidade
que
devemos
procurar
avaliá-lo
e
compreendê-lo.
Como
a
realidade
do
jogo
ultrapassa
a
esfera
da
vida
humana,
é
impossível
que
tenha
seu
fundamento
em
qualquer
elemento
racional,
pois
nesse
caso,
limitar-se-ia
à
humanidade.
A
existência
do
jogo
não
está
ligada
a
qualquer
grau
determinado
de
civilização,
ou
a
qualquer
concepção
do
universo.
Todo
ser
pensante
é
capaz
de
entender
à
primeira
vista
que
o
jogo
possui
uma
realidade
autônoma,
mesmo
que
sua
língua
não
possua
um
termo
próprio.
Mas
reconhecer
o
jogo
é,
forçosamente,
reconhecer
o
espírito,
pois
o
jogo,
seja
qual
for
sua
essência,
não
é
material.
Ultrapassa,
mesmo
no
mundo
animal,
os
limites
da
realidade
física.
Do
ponto
de
vista
da
concepção
determinista
de
um
mundo
regido
pela
ação
de
forças
cegas,
o
jogo
seria
inteiramente
supérfluo.
Só
se
toma
possível,
pensável
e
compreensível
quando
a
presença
do
espírito
destrói
o
determinismo
absoluto
do
cosmos.
A
própria
existência
do
jogo
é
uma
confirmação
permanente
da
natureza
supralógica
da
situação
humana.
Se
os
animais
são
capazes
de
brincar,
é
porque
são
alguma
coisa
mais
do
que
simples
seres
mecânicos.
Se
brincamos
e
jogamos,
e
temos
consciência
disso,
é
porque
somos
mais
do
que
simples
seres
racionais,
pois
o
jogo
é
irracional.
Ao
tratar
o
problema
do
jogo
diretamente
como
função
da
cultura,
e
não
tal
como
aparece
na
vida
do
animal
ou
da
criança,
estamos
iniciando
a
partir
do
momento
em
que
as
abordagens
da
biologia
e
da
psicologia
chegam
ao
seu
termo.
Encontramos
o
jogo
na
cultura,
como
um
elemento
dado
existente
antes
da
própria
cultura,
acompanhando-a
e
marcando-a
desde
as
mais
distantes
origens
até
a
fase
de
civilização
em
que
agora
nos
encontramos.
Em
toda
a
parte
encontramos
presente
o
jogo,
como
uma
qualidade
de
ação
bem
determinada
e
distinta
da
vida
"comum".
Podemos
deixar
de
lado
o
problema
de
saber
se
até
agora
a
ciência
conseguiu
reduzir
esta
qualidade
a
fatores
quantitativos.
Em
minha
opinião
não
o
conseguiu.
De
qualquer
modo,
o
que
importa
é
justamente
aquela
qualidade
que
é
característica
da
forma
de
vida
a
que
chamamos
"jogo".
O
objeto
de
nosso
estudo
é
o
jogo
como
forma
específica
de
atividade,
como
"forma
significante",
como
função
social.
Não
procuraremos
analisar
os
impulsos
e
hábitos
naturais
que
condicionam
o
jogo
em
geral,
tomando-o
em
suas
múltiplas
formas
concretas,
enquanto
estrutura
propriamente
social.
Procuraremos
considerar
o
jogo
como
o
fazem
os
próprios
jogadores,
isto
é,
em
sua
significação
primária.
Se
verificarmos
que
o
jogo
se
baseia
na
manipulação
de
certas
imagens,
numa
certa
"imaginação"
da
realidade
(ou
seja,
a
transformação
desta
em
imagens),
nossa
preocupação
fundamental
será,
então,
captar
o
valor
e
o
significado
dessas
imagens
e
dessa
"imaginação".
Observaremos
a
ação
destas
no
próprio
jogo,
procurando
assim
compreendê-lo
como
fator
cultural
da
vida
As
grandes
atividades
arquetípicas
da
sociedade
humana
são,
desde
início,
inteiramente
marcadas
pelo
jogo.
Como
por
exemplo,
no
caso
da
linguagem,
esse
primeiro
e
supremo
instrumento
que
o
homem
forjou
a
fim
de
poder
comunicar,
ensinar
e
comandar.
É
a
linguagem
que
lhe
permite
distinguir
as
coisas,
defini-las
e
constatá-las,
em
resumo,
designá-las
e
com
essa
designação
elevá-las
ao
domínio
do
espírito.
Na
criação
da
fala
e
da
linguagem,
brincando
com
essa
maravilhosa
faculdade
de
designar,
é
como
se
o
espírito
estivesse
constantemente
saltando
entre
a
matéria
e
as
coisas
pensadas.
Por
detrás
de
toda
expressão
abstrata
se
oculta
uma
metáfora,
e
toda
metáfora
é
jogo
de
palavras.
Assim,
ao
dar
expressão
à
vida,
o
homem
cria
um
outro
mundo,
um
mundo
poético,
ao
lado
do
da
natureza.
Outro
exemplo
é
o
mito,
que
é
também
uma
transformação
ou
uma
"imaginação"
do
mundo
exterior,
mas
implica
em
um
processo
mais
elaborado
e
complexo
do
que
ocorre
no
caso
das
palavras
isoladas.
O
homem
primitivo
procura,
através
do
mito,
dar
conta
do
mundo
dos
fenômenos
atribuindo
a
este
um
fundamento
divino.
Em
todas
as
caprichosas
invenções
da
mitologia,
há
um
espírito
fantasista
que
joga
no
extremo
limite
entre
a
brincadeira
e
a
seriedade.
Se,
finalmente,
observarmos
o
fenômeno
do
culto,
verificaremos
que
as
sociedades
primitivas
celebram
seus
ritos
sagrados,
seus
sacrifícios,
consagrações
e
mistérios,
destinados
a
assegurarem
a
tranquilidade
do
mundo,
dentro
de
um
espírito
de
puro
jogo,
tomando-se
aqui
o
verdadeiro
sentido
da
palavra.
Ora,
é
no
mito
e
no
culto
que
têm
origem
as
grandes
forças
instintivas
da
vida
civilizada:
o
direito
e
a
ordem,
o
comércio
e
o
lucro,
a
indústria
e
a
arte,
a
poesia,
a
sabedoria
e
a
ciência.
Todas
elas
têm
suas
raízes
no
solo
primevo4
do
jogo.
A
finalidade
deste
estudo
consiste
em
mostrar
que
o
exame
da
cultura
sub
specie
ludi
é
mais
do
que
uma
comparação
retórica.
Não
se
trata
de
modo
algum
de
uma
ideia
nova.
Houve
uma
época
em
que
era
geralmente
aceita,
embora
num
sentido
limitado
e
muito
diferente
daquele
que
aqui
se
adotou:
o
início
do
século
XVII,
quando
surgiu
o
grande
teatro
laico.
Numa
brilhante
série
de
figuras,
desde
as
de
Shakespeare
até
as
de
Calderón
e
Racine,
o
teatro
dominava
a
literatura
ocidental.
Era
costume
comparar
o
mundo
a
um
palco,
no
qual
cada
homem
desempenhava
seu
papel.
Todavia,
isto
não
significa
que
o
elemento
lúdico
da
civilização
fosse
claramente
reconhecido.
O
costume
de
comparar
a
vida
a
um
palco,
bem
analisada,
revela-se
como
pouco
mais
que
um
eco
do
neoplatonismo
então
dominante,
com
um
tom
moralista
fortemente
acentuado.
Era
uma
variante
do
velho
tema
do
caráter
vão
de
todas
as
coisas.
A
estreita
ligação
entre
o
jogo
e
a
cultura
não
era
observada
nem
expressa,
ao
passo
que
a
nós
importa
apenas
mostrar
que
o
puro
e
simples
jogo
constitui
uma
das
principais
bases
da
civilização.
Em
nossa
maneira
de
pensar,
o
jogo
é
diametralmente
oposto
à
seriedade.
À
primeira
vista,
esta
oposição
parece
tão
irredutível
a
outras
categorias
como
o
próprio
conceito
de
jogo.
Todavia,
caso
o
examinemos
mais
de
perto,
verificaremos
que
o
contraste
entre
jogo
e
seriedade
não
é
decisivo
nem
imutável.
É
lícito
dizer
que
o
jogo
é
a
não-seriedade,
mas
esta
afirmação,
além
do
fato
de
nada
nos
dizer
quanto
às
características
positivas
do
jogo,
é
extremamente
fácil
de
refutar.
Caso
pretendamos
passar
de
"o
jogo
é
a
não-seriedade"
para
"o
jogo
não
é
sério",
imediatamente
o
contraste
tornar-se-á
impossível,
pois
certas
formas
de
jogo
podem
ser
extraordinariamente
sérias.
Além
disso,
é
facílimo
designar
várias
outras
categorias
fundamentais
que
também
são
abrangidas
pela
categoria
da
"não-seriedade"
e
não
apresentam
qualquer
relação
com
o
jogo.
O
riso,
por
exemplo,
está
de
certo
modo
em
oposição
à
seriedade,
sem
de
maneira
alguma
estar
diretamente
ligado
ao
jogo.
Os
jogos
infantis,
o
futebol
e
o
xadrez
são
executados
dentro
da
mais
profunda
seriedade,
não
se
verificando
nos
jogadores
a
menor
tendência
para
o
riso.
É
curioso
notar
que
o
ato
puramente
fisiológico
de
rir
é
exclusivo
dos
homens,
ao
passo
que
a
função
significante
do
jogo
é
comum
aos
homens
e
aos
animais.
O
animal
ridens
de
Aristóteles
caracteriza
o
homem,
em
oposição
aos
animais,
de
maneira
quase
tão
absoluta
quanto
o
homo
sapiens.
O
que
vale
para
o
riso
vale
igualmente
para
o
cômico.
O
cômico
é
compreendido
pela
categoria
da
não-seriedade
e
possui
certas
afinidades
com
o
riso,
na
medida
em
que
o
provoca,
mas
sua
relação
com
o
jogo
é
perfeitamente
secundária.
Considerado
em
si
mesmo,
o
jogo
não
é
cômico
nem
para
os
jogadores
nem
para
o
público.
Os
animais
muito
jovens,
ou
as
crianças,
podem
por
vezes
ser
extremamente
cômicos
em
suas
brincadeiras,
mas
observar
cães
adultos
perseguindo-se
mutuamente
dificilmente
suscita
em
nós
o
riso.
Quando
chamamos
"cômica"
a
uma
farsa
ou
uma
comédia,
fazemo-lo
levando
em
conta
o
não
jogo
da
representação
propriamente
dito,
mas,
sim,
a
situação
e
os
pensamentos
expressos.
A
arte
mímica
do
palhaço,
cômica
e
risível,
dificilmente
pode
ser
considerada
um
verdadeiro
jogo.
A
categoria
do
cômico
está
estreitamente
ligada
à
da
loucura,
ao
mesmo
tempo
no
sentido
mais
elevado
e
no
mais
baixo
do
termo.
Mas
não
há
loucura
no
jogo,
já
que
se
situa
para
além
da
antítese
entre
a
sabedoria
e
a
loucura.
Na
baixa
Idade
Média,
os
dois
modos
fundamentais
de
vida,
o
jogo
e
a
seriedade,
eram
expressos
de
maneira
bastante
imperfeita
através
da
oposição
entre
folie
et
sem,
até
o
momento
em
que,
em
seu
Laus
stultitiae,
Erasmo
mostrou
a
improcedência
desse
contraste.
Todas
as
ideias,
aqui
vagamente
reunidas
num
mesmo
grupo
—
jogo,
riso,
loucura,
piada,
gracejo,
cômico
etc.
—
participou
daquela
mesma
característica
que
nos
vimos
obrigados
a
atribuir
ao
jogo,
isto
é,
a
de
resistir
a
qualquer
tentativa
de
redução
a
outros
termos.
Sem
dúvida,
sua
ratio
e
sua
mútua
dependência
residem
numa
camada
muito
profunda
de
nosso
ser
espiritual.
Quanto
mais
nos
esforçamos
por
estabelecer
uma
separação
entre
a
forma
a
que
chamamos
"jogo"
e
outras
formas
aparentemente
relacionadas
a
ela,
mais
se
evidencia
a
absoluta
independência
do
conceito
de
jogo.
E
sua
exclusão
do
domínio
das
grandes
oposições
entre
categorias
não
se
detém
aí.
O
jogo
não
é
compreendido
pela
antítese
entre
sabedoria
e
loucura,
ou
pelas
que
opõem
a
verdade
e
a
falsidade,
ou
o
bem
e
o
mal.
Embora
seja
uma
atividade
não
material,
não
desempenha
uma
função
moral,
sendo
impossível
aplicar-lhe
as
noções
de
vício
e
virtude.
Se,
portanto,
não
for
possível
ao
jogo
referir-se
diretamente
às
categorias
do
bem
ou
da
verdade,
não
poderia
ele
talvez
ser
incluído
no
domínio
da
estética?
Cabe
aqui
uma
dúvida
porque,
embora
a
beleza
não
seja
atributo
inseparável
do
jogo
enquanto
tal,
este
tem
tendência
a
assumir
acentuados
elementos
de
beleza.
A
vivacidade
e
a
graça
estão
originalmente
ligadas
às
formas
mais
primitivas
do
jogo.
É
neste
que
a
beleza
do
corpo
humano
em
movimento
atinge
seu
apogeu.
Em
suas
formas
mais
complexas
o
jogo
está
saturado
de
ritmo
e
de
harmonia,
que
são
os
mais
nobres
dons
de
percepção
estética
de
que
o
homem
dispõe.
São
muitos,
e
bem
íntimos,
os
laços
que
unem
o
jogo
e
a
beleza.
Apesar
disso,
não
podemos
afirmar
que
a
beleza
seja
inerente
ao
jogo
enquanto
tal.
Devemos,
portanto,
limitar--nos
ao
seguinte:
o
jogo
é
uma
função
da
vida,
mas
não
é
passível
de
definição
exata
em
termos
lógicos,
biológicos
ou
estéticos.
O
conceito
de
jogo
deve
permanecer
distinto
de
todas
as
outras
formas
de
pensamento
através
das
quais
exprimimos
a
estrutura
da
vida
espiritual
e
social.
Teremos,
portanto,
de
limitar-nos
a
descrever
suas
principais
características.
Dado
que
nosso
tema
são
as
relações
entre
o
jogo
e
a
cultura,
não
é
indispensável
fazer
referência
a
todas
as
formas
possíveis
de
jogo,
sendo
possível
limitarmo-nos
a
suas
manifestações
sociais.
Poderíamos
considerar
estas
as
formas
mais
elevadas
de
jogo.
Geralmente
são
muito
mais
fáceis
de
descrever
do
que
os
jogos
mais
primitivos
das
crianças
e
dos
animais
jovens,
por
possuírem
forma
mais
nítida
e
articulada
e
traços
mais
variados
e
visíveis,
ao
passo
que
na
interpretação
dos
jogos
primitivos
deparamos
imediatamente
com
aquela
característica
irredutível,
puramente
lúdica,
que
em
nossa
opinião
resiste
inabalavelmente
à
análise.
Faremos
referência
aos
concursos
e
às
corridas,
às
representações
e
aos
espetáculos,
à
dança
e
à
música,
às
mascaradas
e
aos
torneios.
Algumas
das
características
que
vamos
indicar
são
próprias
do
jogo
em
geral,
enquanto
outras
pertencem
aos
jogos
sociais
em
particular.
Antes
de
mais
nada,
o
jogo
é
uma
atividade
voluntária.
Sujeito
a
ordens,
deixa
de
ser
jogo,
podendo
no
máximo
ser
uma
imitação
forçada.
Basta
esta
característica
de
liberdade
para
afastá-lo
definitivamente
do
curso
da
evolução
natural.
É
um
elemento
a
esta
acrescentado,
que
a
recobre
como
um
ornamento
ou
uma
roupagem.
É
evidente
que,
aqui,
se
entende
liberdade
em
seu
sentido
mais
lato,
sem
referência
ao
problema
filosófico
do
determinismo.
Poder-se-ia
objetar
que
esta
liberdade
não
existe
para
o
animal
e
a
criança,
por
serem
estes
levados
ao
jogo
pela
força
de
seu
instinto
e
pela
necessidade
de
desenvolverem
suas
faculdades
físicas
e
seletivas.
Todavia,
o
termo
"instinto"
levanta
uma
incógnita
e,
além
disso,
a
pressuposição
inicial
da
utilidade
do
jogo
constitui
uma
petição
de
princípio.
As
crianças
e
os
animais
brincam
porque
gostam
de
brincar,
e
é
precisamente
em
tal
fato
que
reside
sua
liberdade.
Seja
como
for,
para
o
indivíduo
adulto
e
responsável
o
jogo
é
uma
função
que
facilmente
poderia
ser
dispensada,
é
algo
supérfluo.
Só
se
torna
uma
necessidade
urgente
na
medida
em
que
o
prazer
por
ele
provocado
o
transforma
numa
necessidade.
É
possível,
em
qualquer
momento,
adiar
ou
suspender
o
jogo.
Jamais
é
imposto
pela
necessidade
física
ou
pelo
dever
moral,
e
nunca
constitui
uma
tarefa,
sendo
sempre
praticado
nas
"horas
de
ócio".
Liga-se
a
noções
de
obrigação
e
dever
apenas
quando
constitui
uma
função
cultural
reconhecida,
como
no
culto
e
no
ritual.
Chegamos,
assim,
à
primeira
das
características
fundamentais
do
jogo:
o
fato
de
ser
livre,
de
ser
ele
próprio
liberdade.
Uma
segunda
característica,
intimamente
ligada
à
primeira,
é
que
o
jogo
não
é
vida
"corrente"
nem
vida
"real".
Pelo
contrário,
trata-se
de
uma
evasão
da
vida
"real"
para
uma
esfera
temporária
de
atividade
com
orientação
própria.
Toda
criança
sabe
perfeitamente
quando
está
"só
fazendo
de
conta"
ou
quando
está
"só
brincando".
A
seguinte
estória,
que
me
foi
contada
pelo
pai
de
um
menino,
constitui
um
excelente
exemplo
de
como
essa
consciência
está
profundamente
enraizada
no
espírito
das
crianças.
O
pai
foi
encontrar
seu
filhinho
de
quatro
anos
brincando
"de
trenzinho"
na
frente
de
uma
fila
de
cadeiras.
Quando
foi
beijá-lo,
disselhe
o
menino:
"Não
dê
beijo
na
máquina,
Papai,
senão
os
carros
não
vão
acreditar
que
é
de
verdade".
Esta
característica
de
"faz
de
conta"
do
jogo
exprime
um
sentimento
da
inferioridade
do
jogo
em
relação
à
"seriedade",
o
qual
parece
ser
tão
fundamental
quanto
o
próprio
jogo.
Todavia,
conforme
já
salientamos,
esta
consciência
do
fato
de
"só
fazer
de
conta"
no
jogo
não
impede
de
modo
algum
que
ele
se
processe
com
a
maior
seriedade,
com
um
enlevo
e
um
entusiasmo
que
chegam
ao
arrebatamento
e,
pelo
menos
temporariamente,
tiram
todo
o
significado
da
palavra
"só"
da
frase
acima.
Todo
jogo
é
capaz,
a
qualquer
momento,
de
absorver
inteiramente
o
jogador.
Nunca
há
um
contraste
bem
nítido
entre
ele
e
a
seriedade,
sendo
a
inferioridade
do
jogo
sempre
reduzida
pela
superioridade
de
sua
seriedade.
Ele
se
toma
seriedade
e
a
seriedade,
jogo.
É
possível
ao
jogo
alcançar
extremos
de
beleza
e
de
perfeição
que
ultrapassam
em
muito
a
seriedade.
Voltaremos
a
referir-nos
a
problemas
difíceis
deste
tipo
quando
analisarmos
mais
minuciosamente
as
relações
entre
o
jogo
e
o
culto.
No
que
diz
respeito
às
características
formais
do
jogo,
todos
os
observadores
dão
grande
ênfase
ao
fato
de
ser
ele
desinteressado.Visto
que
não
pertence
à
vida
"comum",
ele
se
situa
fora
do
mecanismo
de
satisfação
imediata
das
necessidades
e
dos
desejos
e,
pelo
contrário,
interrompe
este
mecanismo.
Ele
se
insinua
como
atividade
temporária,
que
tem
uma
finalidade
autônoma
e
se
realiza
tendo
em
vista
uma
satisfação
que
consiste
nessa
própria
realização.
É
pelo
menos
assim
que,
em
primeira
instância,
o
ele
se
nos
apresenta:
como
um
intervalo
em
nossa
vida
quotidiana.
Todavia,
em
sua
qualidade
de
distensão
regularmente
verificada,
ele
se
torna
um
acompanhamento,
um
complemento
e,
em
última
análise,
uma
parte
integrante
da
vida
em
geral.
Ornamenta
a
vida,
ampliando-a,
e
nessa
medida
toma-se
uma
necessidade
tanto
para
o
indivíduo,
como
função
vital,
quanto
para
a
sociedade,
devido
ao
sentido
que
encerra,
à
sua
significação,
a
seu
valor
expressivo,
a
suas
associações
espirituais
e
sociais,
em
resumo,
como
função
cultural.
Dá
satisfação
a
todo
o
tipo
de
ideais
comunitários.
Nesta
medida,
situa-se
numa
esfera
superior
aos
processos
estritamente
biológicos
de
alimentação,
reprodução
e
autoconservação.
Esta
afirmação
está
em
aparente
contradição
com
o
fato
de
que
os
jogos
ligados
à
atividade
sexual
se
verificam
justamente
na
época
do
cio.
Mas
seria
assim
tão
absurdo
atribuir
ao
canto,
à
dança
e
o
"paradear"
das
aves
um
lugar
exterior
ao
domínio
puramente
fisiológico,
tal
como
no
caso
do
jogo
humano?
Seja
como
for,
este
último
pertence
sempre,
em
todas
as
suas
formas
mais
elevadas,
ao
domínio
do
ritual
e
do
culto,
ao
domínio
do
sagrado.
Mas
o
fato
de
ser
necessário,
de
ser
culturalmente
útil
e,
até,
de
se
tornar
cultura
diminuirá
em
alguma
coisa
o
caráter
desinteressado
do
jogo?
Não,
porque
a
finalidade
a
que
obedece
é
exterior
aos
interesses
materiais
imediatos
e
à
satisfação
individual
das
necessidades
biológicas.
Em
sua
qualidade
de
atividade
sagrada,
o
jogo
naturalmente
contribui
para
a
prosperidade
do
grupo
social,
mas
de
outro
modo
e
através
de
meios
totalmente
diferentes
da
aquisição
de
elementos
de
subsistência.
O
jogo
distingue-se
da
vida
"comum"
tanto
pelo
lugar
quanto
pela
duração
que
ocupa.
É
esta
a
terceira
de
suas
características
principais:
o
isolamento,
a
limitação.
É
"jogado
até
ao
fim"
dentro
de
certos
limites
de
tempo
e
de
espaço.
Possui
um
caminho
e
um
sentido
próprios.
O
jogo
inicia-se
e,
em
determinado
momento,
"acabou".
Joga-se
até
que
se
chegue
a
um
certo
fim.
Enquanto
está
decorrendo
tudo
é
movimento,
mudança,
alternância,
sucessão,
associação,
separação.
E
há,
diretamente
ligada
à
sua
limitação
no
tempo,
uma
outra
característica
interessante
do
jogo,
a
de
Se
fixar
imediatamente
como
fenômeno
cultural.
Mesmo
depois
de
o
jogo
ter
chegado
ao
fim,
ele
permanece
como
uma
criação
nova
do
espírito,
um
tesouro
a
ser
conservado
pela
memória.
É
transmitido,
toma-se
tradição.
Pode
ser
repetido
a
qualquer
momento,
quer
seja
"jogo
infantil"
ou
jogo
de
xadrez,
ou
em
períodos
determinados,
como
um
mistério.
Uma
de
suas
qualidades
fundamentais
reside
nesta
capacidade
de
repetição,
que
não
se
aplica
apenas
ao
jogo
em
geral,
mas
também
à
sua
estrutura
interna.
Em
quase
todas
as
formas
mais
elevadas
de
jogo,
os
elementos
de
repetição
e
de
alternância
(como
no
refrain)
constituem
como
que
o
fio
e
a
tessitura
do
objeto.
A
limitação
no
espaço
é
ainda
mais
flagrante
do
que
a
limitação
no
tempo.
Todo
jogo
se
processa
e
existe
no
interior
de
um
campo
previamente
delimitado,
de
maneira
material
ou
imaginária,
deliberada
ou
espontânea.
Tal
como
não
há
diferença
formal
entre
o
jogo
e
o
culto,
do
mesmo
modo
o
"lugar
sagrado"
não
pode
ser
formalmente
distinguido
do
terreno
de
jogo.
A
arena,
a
mesa
de
jogo,
o
círculo
mágico,
o
templo,
o
palco,
a
tela,
o
campo
de
tênis,
o
tribunal
etc.,
têm
todos
a
forma
e
a
função
de
terrenos
de
jogo,
isto
é,
lugares
proibidos,
isolados,
fechados,
sagrados,
em
cujo
interior
se
respeitam
determinadas
regras.
Todos
eles
são
mundos
temporários
dentro
do
mundo
habitual,
dedicados
à
prática
de
uma
atividade
especial.
Reina
dentro
do
domínio
do
jogo
uma
ordem
específica
e
absoluta.
E
aqui
chegamos
a
sua
outra
característica,
mais
positiva
ainda:
ele
cria
ordem
e
é
ordem.
Introduz
na
confusão
da
vida
e
na
imperfeição
do
mundo
uma
perfeição
temporária
e
limitada,
exige
uma
ordem
suprema
e
absoluta:
a
menor
desobediência
a
esta
"estraga
o
jogo",
privando-o
de
seu
caráter
próprio
e
de
todo
e
qualquer
valor.
É
talvez
devido
a
esta
afinidade
profunda
entre
a
ordem
e
o
jogo
que
este,
como
assinalamos
de
passagem,
parece
estar
em
tão
larga
medida
ligado
ao
domínio
da
estética.
Há
nele
uma
tendência
para
ser
belo.
Talvez
este
fator
estético
seja
idêntico
aquele
impulso
de
criar
formas
ordenadas
que
penetra
o
jogo
em
todos
os
seus
aspectos.
As
palavras
que
empregamos
para
designar
seus
elementos
pertencem
quase
todas
à
estética.
São
as
mesmas
palavras
com
as
quais
procuramos
descrever
os
efeitos
da
beleza:
tensão,
equilíbrio,
compensação,
contraste,
variação,
solução,
união
e
desunião.
O
jogo
lança
sobre
nós
um
feitiço:
é
"fascinante",
"cativante".
Está
cheio
das
duas
qualidades
mais
nobres
que
somos
capazes
de
ver
nas
coisas:
o
ritmo
e
a
harmonia.
O
elemento
de
tensão,
a
que
acabamos
de
nos
referir,
desempenha
no
jogo
um
papel
especialmente
importante.
Tensão
significa
incerteza,
acaso.
Há
um
esforço
para
levar
o
jogo
até
ao
desenlace,
o
jogador
quer
que
alguma
coisa
"vá"
ou
"saia",
pretende
"ganhar"
à
custa
de
seu
próprio
esforço.
Uma
criança
estendendo
a
mão
para
um
brinquedo,
um
gatinho
brincando
com
um
novelo,
uma
garotinha
jogando
bola,
todos
eles
procuram
conseguir
alguma
coisa
difícil,
ganhar,
acabar
com
uma
tensão.
O
jogo
é
"tenso",
como
se
costuma
dizer.
É
este
elemento
de
tensão
e
solução
que
domina
em
todos
os
jogos
solitários
de
destreza
e
aplicação,
como
os
quebra-cabeças,
as
charadas,
os
jogos
de
armar,
as
paciências,
o
tiro
ao
alvo,
e
quanto
mais
estiver
presente
o
elemento
competitivo
mais
apaixonante
se
torna
o
jogo.
Esta
tensão
chega
ao
extremo
nos
jogos
de
azar
e
nas
competições
esportivas.
Embora
o
jogo
enquanto
tal
esteja
para
além
do
domínio
do
bem
e
do
mal,
o
elemento
de
tensão
lhe
confere
um
certo
valor
ético,
na
medida
em
que
são
postas
à
prova
as
qualidades
do
jogador:
sua
força
e
tenacidade,
sua
habilidade
e
coragem
e,
igualmente,
suas
capacidades
espirituais,
sua
"lealdade".
Porque,
apesar
de
seu
ardente
desejo
de
ganhar,
deve
sempre
obedecer
às
regras
do
jogo.
Por
sua
vez,
estas
regras
são
um
fator
muito
importante
para
o
conceito
de
jogo.
Todo
jogo
tem
suas
regras.
São
estas
que
determinam
aquilo
que
"vale"
dentro
do
mundo
temporário
por
ele
circunscrito.
As
regras
de
todos
os
jogos
são
absolutas
e
não
permitem
discussão.
Uma
vez,
de
passagem,
Paul
Valéry
exprimiu
uma
ideia
das
mais
importantes:
"No
que
diz
respeito
às
regras
de
um
jogo,
nenhum
ceticismo
é
possível,
pois
o
princípio
no
qual
elas
assentam
é
uma
verdade
apresentada
como
inabalável".
E
não
há
dúvida
de
que
a
desobediência
às
regras
implica
a
derrocada
do
mundo
do
jogo.
O
jogo
acaba:
O
apito
do
árbitro
quebra
o
feitiço
e
a
vida
"real"
recomeça.
O
jogador
que
desrespeita
ou
ignora
as
regras
é
um
"desmancha-
prazeres".
Este,
porém,
difere
do
jogador
desonesto,
do
batoteiro,
já
que
o
último
finge
jogar
seriamente
o
jogo
e
aparenta
reconhecer
o
círculo
mágico.
É
curioso
notar
como
os
jogadores
são
muito
mais
indulgentes
para
com
o
batoteiro
do
que
com
o
desmancha-prazeres;
o
que
se
deve
ao
fato
de
este
último
abalar
o
próprio
mundo
do
jogo.
Retirando-se
do
jogo,
denuncia
o
caráter
relativo
e
frágil
desse
mundo
no
qual,
temporariamente,
se
havia
encerrado
com
os
outros.
Priva
o
jogo
da
ilusão
—
palavra
cheia
de
sentido
que
significa
literalmente
"em
jogo"
(de
inlusio,
illudere
ou
inludere).
Torna-se,
portanto,
necessário
expulsá-lo,
pois
ele
ameaça
a
existência
da
comunidade
dos
jogadores.
A
figura
do
desmancha-prazeres
desenha-se
com
mais
nitidez
nos
jogos
infantis.
A
pequena
comunidade
não
procura
averiguar
se
o
desmancha-
prazeres
abandona
o
jogo
por
incapacidade
ou
por
imposição
alheia,
ou
melhor,
não
reconhece
sua
incapacidade
e
acusa-o
de
falta
de
audácia.
Para
ela,
o
problema
da
obediência
e
da
consciência
é
reduzido
ao
do
medo
ao
castigo.
O
desmancha-prazeres
destrói
o
mundo
mágico,
portanto,
é
um
covarde
e
precisa
ser
expulso.
Mesmo
no
universo
da
seriedade,
os
hipócritas
e
os
batoteiros
sempre
tiveram
mais
sorte
do
que
os
desmancha-
prazeres:
os
apóstatas,
os
hereges,
os
reformadores,
os
profetas
e
os
objetores
de
consciência.
Todavia,
frequentemente
acontece
que,
por
sua
vez,
os
desmancha-
prazeres
fundam
uma
nova
comunidade,
dotada
de
regras
próprias.
Os
fora
da
lei,
os
revolucionários,
os
membros
das
sociedades
secretas,
os
hereges
de
todos
os
tipos
têm
tendências
fortemente
associativas,
se
não
sociáveis,
e
todas
as
suas
ações
são
marcadas
por
um
certo
elemento
lúdico.
As
comunidades
de
jogadores
geralmente
tendem
a
tornar-se
permanentes,
mesmo
depois
de
acabado
o
jogo.
É
claro
que
nem
todos
os
jogos
de
bola
de
gude,
ou
de
bridge,
levam
à
fundação
de
um
clube.
Mas
a
sensação
de
estar
"separadamente
juntos",
numa
situação
excepcional,
de
partilhar
algo
importante,
afastando-se
do
resto
do
mundo
e
recusando
as
normas
habituais,
conserva
sua
magia
para
além
da
duração
de
cada
jogo.
O
clube
pertence
ao
jogo
tal
como
o
chapéu
pertence
à
cabeça.
Seria
demasiado
simplista
explicar
todas
as
associações
a
que
os
antropólogos
chamam
"fratrias"
(como
por
exemplo
os
clãs,
as
irmandades
etc.)
apenas
como
sociedades
lúdicas.
Mas,
mais
de
uma
vez
se
verificou
como
é
difícil
estabelecer
uma
separação
nítida
entre,
de
um
lado,
os
agrupamentos
sociais
permanentes
(sobretudo
nas
culturas
arcaicas,
com
seus
costumes
extremamente
importantes,
solenes
e
sagrados)
e,
de
outro,
o
domínio
lúdico.
O
caráter
especial
e
excepcional
do
jogo
é
ilustrado
de
maneira
flagrante
pelo
ar
de
mistério
em
que
frequentemente
se
envolve.
Desde
a
mais
tenra
infância,
o
encanto
do
jogo
é
reforçado
por
se
fazer
dele
um
segredo.
Isto
é,
para
nós,
e
não
para
os
outros.
O
que
os
outros
fazem,
"lá
fora",
é
coisa
de
momento
não
nos
importa.
Dentro
do
círculo
do
jogo,
as
leis
e
costumes
da
vida
quotidiana
perdem
validade.
Somos
diferentes
e
fazemos
coisas
diferentes.
Esta
supressão
temporária
do
mundo
habitual
é
inteiramente
manifesta
no
mundo
infantil,
mas
não
é
menos
evidente
nos
grandes
jogos
rituais
dos
povos
primitivos.
Na
grande
festa
de
iniciação
em
que
os
jovens
são
aceitos
na
comunidade
dos
homens,
não
são
apenas
os
neófitos
que
ficam
isentos
das
leis
e
regras
da
tribo;
há
uma
trégua
geral
de
todas
as
querelas
e
uma
suspensão
de
todos
os
atos
de
vingança.
Desta
suspensão
temporária
da
vida
social
normal,
durante
a
época
dos
jogos
sagrados,
existem
também
numerosos
indícios
em
civilizações
mais
evoluídas.
Todas
as
saturnais
e
costumes
carnavalescos
são
exemplos
disso.
Ainda
recentemente
entre
nós,
em
época
de
costumes
locais
mais
rudes,
privilégios
de
classe
mais
acentuados
e
uma
polícia
mais
tolerante,
aceitavam-se
as
orgias
dos
jovens
de
classe
alta
como
"estudantadas".
Estas
ainda
subsistem
nas
universidades
inglesas,
sob
o
nome
de
ragging,
o
qual
o
Oxford
English
Dictionary
define
como
an
extensive
display
of
noisy
and
disorderly
conduct
carried
out
in
defiance
of
authority
and
discipline5.
A
capacidade
de
tornar-se
outro
e
o
mistério
do
jogo
manifestara-se
de
modo
marcante
no
costume
da
mascarada.
Aqui
atinge
o
máximo
a
natureza
"extraordinária"
do
jogo.
O
indivíduo
disfarçado
ou
mascarado
desempenha
ura
papel
como
se
fosse
outra
pessoa,
ou
melhor,
é
outra
pessoa.
Os
terrores
da
infância,
a
alegria
esfuziante,
a
fantasia
mística
e
os
rituais
sagrados
encontram-se
inextricavelmente
misturados
nesse
estranho
mundo
do
disfarce
e
da
máscara.
Numa
tentativa
de
resumir
as
características
formais
do
jogo,
poderíamos
considerá-lo
uma
atividade
livre,
conscientemente
tomada
como
"não-séria"
e
exterior
à
vida
habitual,
mas
ao
mesmo
tempo
capaz
de
absorver
o
jogador
de
maneira
intensa
e
total.
É
uma
atividade
desligada
de
todo
e
qualquer
interesse
material,
com
a
qual
não
se
pode
obter
qualquer
lucro,
praticada
dentro
de
limites
espaciais
e
temporais
próprios,
segundo
uma
certa
ordem
e
certas
regras.
Promove
a
formação
de
grupos
sociais
com
tendência
a
rodearem-se
de
segredo
e
a
sublinharem
sua
diferença
em
relação
ao
resto
do
mundo
por
meio
de
disfarces
ou
outros
meios
semelhantes.
A
função
do
jogo,
nas
formas
mais
elevadas
que
aqui
nos
interessam,
pode
de
maneira
geral
ser
definida
pelos
dois
aspectos
fundamentais
que
nele
encontramos:
uma
luta
por
alguma
coisa
ou
a
representação
de
alguma
coisa.
Estas
duas
funções
podem
também
por
vezes
confundir-se,
de
tal
modo
que
o
jogo
passe
a
"representar"
uma
luta,
ou,
então,
se
torne
uma
luta
para
melhor
representação
de
alguma
coisa.
Representar
significa
mostrar,
e
isto
pode
consistir
simplesmente
na
exibição,
perante
um
público,
de
uma
característica
natural.
O
pavão
e
o
peru
limitam-se
a
mostrar
às
fêmeas
o
esplendor
de
sua
plumagem,
mas
aqui
o
aspecto
essencial
é
a
exibição
de
um
fenômeno
invulgar
destinado
a
provocar
admiração.
Se
a
ave
acompanha
essa
exibição
com
alguns
passos
de
dança
passamos
a
ter
um
espetáculo,
uma
passagem
da
realidade
vulgar
para
um
plano
mais
elevado.
Nada
sabemos
daquilo
que
o
animal
sente
durante
esses
atos,
mas
sabemos
que
as
exibições
das
crianças
mostram,
desde
a
mais
tenra
infância,
um
alto
grau
de
imaginação.
A
criança
representa
alguma
coisa
diferente,
ou
mais
bela,
ou
mais
nobre,
ou
mais
perigosa
do
que
habitualmente
é.
Finge
ser
um
príncipe,
um
papai,
uma
bruxa
malvada
ou
um
tigre.
A
criança
fica
literalmente
"transportada"
de
prazer,
superando-se
a
si
mesma
a
tal
ponto
que
quase
chega
a
acreditar
que
realmente
é
esta
ou
aquela
coisa,
sem
contudo
perder
inteiramente
o
sentido
da
"realidade
habitual".
Mais
do
que
uma
realidade
falsa,
sua
representação
é
a
realização
de
uma
aparência:
é
"imaginação",
no
sentido
original
do
termo.
Se
passarmos
agora
das
brincadeiras
infantis
para
as
representações
sagradas
das
civilizações
primitivas,
veremos
que
nestas
se
encontra
"em
jogo"
um
elemento
espiritual
diferente,
que
é
muito
difícil
de
definir.
A
representação
sagrada
é
mais
do
que
a
simples
realização
de
uma
aparência
é
até
mais
do
que
uma
realização
simbólica:
é
uma
realização
mística.
Algo
de
invisível
e
inefável
adquire
nela
uma
forma
bela,
real
e
sagrada.
Os
participantes
do
ritual
estão
certos
de
que
o
ato
concretiza
e
efetua
uma
certa
beatificação,
faz
surgir
uma
ordem
de
coisas
mais
elevada
do
que
aquela
em
que
habitualmente
vivem.
Mas
tudo
isto
não
impede
que
essa
"realização
pela
representação"
conserve,
sob
todos
os
aspectos,
as
características
formais
do
jogo.
É
executada
no
interior
de
um
espaço
circunscrito
sob
a
forma
de
festa,
isto
é,
dentro
de
um
espírito
de
alegria
e
liberdade.
Em
sua
intenção
é
delimitado
um
universo
próprio
de
valor
temporário.
Mas
seus
efeitos
não
cessam
depois
de
acabado
o
jogo;
seu
esplendor
continua
sendo
projetado
sobre
o
mundo
de
todos
os
dias,
influência
benéfica
que
garante
a
segurança,
a
ordem
e
a
prosperidade
de
todo
o
grupo
até
à
próxima
época
dos
rituais
sagrados.
Em
toda
a
parte
do
mundo
podem
encontrar-se
exemplos
disso.
Segundo
uma
velha
crença
chinesa,
a
música
e
a
dança
têm
a
finalidade
de
manter
o
mundo
em
seu
devido
curso
e
obrigar
a
natureza
a
proteger
o
homem.
A
prosperidade
de
cada
ano
depende
da
fiel
execução
de
competições
sagradas
na
época
das
festas.
Caso
essas
reuniões
não
se
realizem,
as
colheitas
não
poderão
amadurecer6.
O
ritual
é
um
dromenon,
isto
é,
uma
coisa
que
é
feita,
uma
ação.
A
matéria
desta
ação
é
um
drama,
isto
é,
uma
vez
mais,
um
ato,
uma
ação
representada
num
palco.
Esta
ação
pode
revestir
a
forma
de
um
espetáculo
ou
de
uma
competição.
O
rito,
ou
"ato
ritual",
representa
um
acontecimento
cósmico,
um
evento
dentro
do
processo
natural.
Contudo,
a
palavra
"representa"
não
exprime
o
sentido
exato
da
ação,
pelo
menos
na
conotação
mais
vaga
que
atualmente
predomina;
porque
aqui
"representação"
é
realmente
identificação,
a
repetição
mística
ou
a
representação
do
acontecimento.
O
ritual
produz
um
efeito
que,
mais
do
que
figurativamente
mostrado,
é
realmente
reproduzido
na
ação.
Portanto,
a
função
do
rito
está
longe
de
ser
simplesmente
imitativa,
leva
a
uma
verdadeira
participação
no
próprio
ato
sagrado7.
É
um
fator
helping
the
action
out8.
Para
a
ciência
da
cultura,
o
problema
não
é
determinar
como
a
psicologia
concebe
o
processo
que
se
exprime
nestes
fenômenos.
A
psicologia
poderá
tentar
arrumar
a
questão
definindo
o
ritual
como
identificação
compensadora,
uma
espécie
de
substituto,
"um
ato
representativo
devido
à
impossibilidade
de
levar
a
cabo
uma
ação
real
e
intencional"9.
O
que
é
importante
para
a
ciência
da
cultura
é
procurar
compreender
o
significado
dessas
figurações
no
espírito
dos
povos
que
as
praticam
e
nelas
creem.
Tocamos
aqui
no
próprio
âmago
da
religião
comparada:
a
natureza
e
a
essência
do
ritual
e
do
mistério.
Todos
os
antigos
sacrifícios
rituais
dos
Vedas
baseiam-se
na
ideia
de
que
a
cerimônia
—
seja
ela
sacrifício,
competição
ou
representação,
—
representando
um
certo
acontecimento
cósmico
que
se
deseja,
obriga
os
deuses
a
provocar
sua
realização
efetiva.
Há,
portanto,
um
jogo,
no
sentido
pleno
do
termo.
Deixaremos
agora
de
lado
os
aspectos
especificamente
religiosos,
concentrando-nos
na
análise
dos
elementos
lúdicos
nos
rituais
primitivos.
O
culto
é,
portanto,
um
espetáculo,
uma
representação
dramática,
uma
figuração
imaginária
de
uma
realidade
desejada.
Na
época
das
grandes
festas,
o
grupo
social
celebra
os
acontecimentos
principais
da
vida
da
natureza
levando
a
efeito
representações
sagradas,
que
representam
a
mudança
das
estações,
o
surgimento
e
o
declínio
dos
astros,
o
crescimento
e
o
amadurecimento
das
colheitas,
a
vida
e
a
morte
dos
homens
e
dos
animais.
Como
escreve
Leo
Frobenius,
a
humanidade
"joga",
representa
a
ordem
da
natureza
tal
como
ela
está
impressa
em
sua
consciência10.
Num
passado
remoto,
segundo
Frobenius,
os
homens
começaram
por
tomar
consciência
dos
fenômenos
do
mundo
vegetal
e
animal
só
depois,
adquirindo
as
ideias
de
tempo
e
espaço,
dos
meses
e
das
estações,
do
percurso
do
sol
e
da
lua.
Passaram
depois
a
representar
esta
grande
ordem
da
existência
em
cerimônias
sagradas,
nas
quais
e
através
das
quais
realizavam
de
novo,
ou
"recriavam",
os
acontecimentos
representados,
contribuindo
assim
para
a
preservação
da
ordem
cósmica.
E
há
mais.
As
formas
desse
jogo
litúrgico
deram
origem
à
ordem
da
própria
comunidade,
às
instituições
políticas
primitivas.
O
rei
é
o
sol,
e
seu
reinado
é
a
imagem
do
curso
do
sol.
Durante
toda
sua
vida
o
rei
desempenha
o
papel
do
sol,
e
no
final
sofre
o
mesmo
destino
que
o
sol:
deve
ser
morto,
de
forma
ritual,
por
seu
próprio
povo.
Podemos
deixar
de
lado
o
problema
de
saber
até
que
ponto
esta
explicação
do
regicídio
ritual
e
toda
a
concepção
em
que
ela
assenta
podem
ser
consideradas
"demonstradas".
O
problema
que
aqui
nos
interessa
é
o
seguinte:
que
devemos
pensar
desta
projeção
concreta
da
primitiva
consciência
da
natureza?
Como
devemos
encarar
um
processo
espiritual
que
se
inicia
com
uma
experiência
inexpressa
dos
fenômenos
cósmicos
e
conduz
a
sua
representação
imaginária
no
jogo?
Frobenius
tem
razão
ao
rejeitar
a
fácil
explicação
que
se
contenta
com
a
noção
de
um
"instinto
de
jogo"
inato.
Alega
ele
que
o
termo
"instinto"
é
"uma
invenção,
uma
confissão
de
impotência
perante
o
problema
da
realidade"11.
Com
idêntica
clareza,
e
com
mais
razão
ainda,
rejeita,
como
vestígio
de
uma
maneira
ultrapassada
de
pensar,
a
tendência
para
explicar
todo
progresso
cultural
em
termos
de
uma
“finalidade
especial",
de
um
"porquê"
ou
um
"por
que
razão",
como
critério
para
julgar
a
capacidade
criadora
de
cultura
de
uma
comunidade.
Ponto
de
vista
este
que
qualifica
como
"a
pior
forma
de
tirania
da
causalidade"
e
como
"utilitarismo
antiquado"12.
A
concepção
deste
processo
espiritual
defendida
por
Frobenius
é
mais
ou
menos
a
seguinte:
a
experiência,
ainda
inexpressa
da
natureza
e
da
vida,
manifesta-se
no
homem
primitivo
sob
a
forma
de
"arrebatamento"13.
"A
capacidade
criadora,
tanto
nos
povos
quanto
nas
crianças
ou
em
qualquer
indivíduo
criador,
deriva
desse
estado
de
arrebatamento.
"Os
homens
são
arrebatados
pela
revelação
do
destino".
"A
realidade
do
ritmo
natural
da
gênese
e
da
extinção
arrebata
sua
consciência
e
este
fato
leva-o
a
representar
sua
emoção
em
um
ato,
inevitável
e
como
que
reflexo"14.
Assim,
segundo
ele,
trata-se
aqui
de
um
processo
espiritual
de
transformação
que
é
absolutamente
necessário.
A
emoção,
o
arrebatamento
perante
os
fenômenos
da
vida
e
da
natureza
é
condensado
pela
ação
reflexa
e
elevado
à
expressão
poética
e
à
arte.
É
esta
a
maneira
mais
aproximada
para
dar
conta
do
processo
de
imaginação
criadora,
mas
está
longe
de
poder
ser
considerada
uma
verdadeira
explicação.
Continua
tão
obscuro
como
antes
o
caminho
que
leva
da
percepção
estética
ou
mística,
ou
pelo
menos
metalógica,
da
ordem
cósmica
até
aos
rituais
sagrados.
O
grande
estudioso
da
cultura
emprega
frequentemente
o
termo
jogo,
sem
contudo
definir
com
exatidão
qual
o
sentido
que
lhe
atribui.
Parece
até
por
vezes
aceitar
sub-repticiamente
aquilo
mesmo
que
tão
energicamente
repudia
e
que,
de
maneira
alguma,
corresponde
à
característica
essencial
do
jogo:
o
conceito
de
finalidade.
Porque
na
descrição
proposta
por
Frobenius,
o
jogo
serve
explicitamente
para
representar15
um
acontecimento
cósmico,
de
certo
modo
tornando-o
presente.
Há
um
elemento
quase
racionalista
que
irresistivelmente
se
impõe.
Afinal
de
contas,
o
jogo
e
a
representação
têm
para
Frobenius
sua
razão
de
ser
na
expressão
de
qualquer
coisa
de
diferente,
que
é
o
"arrebatamento"
por
um
acontecimento
cósmico.
Mas
o
próprio
fato
de
a
dramatização
ser
representada
parece
ter
para
ele
importância
secundária.
Pelo
menos
teoricamente,
a
emoção
poderia
ser
transmitida
de
maneira
diferente.
De
nosso
ponto
de
vista,
pelo
contrário,
o
que
é
importante
é
o
próprio
jogo.
O
ritual
não
difere
de
maneira
essencial
das
formas
superiores
dos
jogos
infantis
ou
animais,
e
dificilmente
poderia
afirmar-se,
que
estas
duas
últimas
formas
tenham
sua
origem
numa
tentativa
de
expressão
de
qualquer
emoção
cósmica.
Os
jogos
infantis
possuem
a
qualidade
lúdica
em
sua
própria
essência,
e
na
forma
mais
pura
dessa
qualidade.
Seria
talvez
possível
descrever
o
processo
que
conduz
do
"arrebatamento"
pela
natureza
até
à
realização
do
ritual
em
termos
ligeiramente
diferentes
dos
de
Frobenius,
sem
pretender
oferecer
a
explicação
de
uma
realidade
inteiramente
impenetrável,
mas
procurando
apenas
dar
conta
de
uma
situação
de
fato.
Diríamos,
então,
que,
na
sociedade
primitiva,
verifica-se
a
presença
do
jogo,
tal
como
nas
crianças
e
nos
animais,
e
que,
desde
a
origem,
nele
se
verificam
todas
as
características
lúdicas:
ordem,
tensão,
movimento,
mudança,
solenidade,
ritmo,
entusiasmo.
Só
em
fase
mais
tardia
da
sociedade
o
jogo
se
encontra
associado
à
expressão
de
alguma
coisa,
nomeadamente
aquilo
a
que
podemos
chamar
"vida"
ou
"natureza".
O
que
era
jogo
desprovido
de
expressão
verbal
adquire
agora
uma
forma
poética.
Na
forma
e
na
função
do
jogo,
que
em
si
mesmo
é
uma
entidade
independente
desprovida
de
sentido
e
de
racionalidade,
a
consciência
que
o
homem
tem
de
estar
integrado
numa
ordem
cósmica
encontra
sua
expressão
primeira,
mais
alta
e
mais
sagrada.
Pouco
a
pouco,
o
jogo
vai
adquirindo
a
significação
de
ato
sagrado.
O
culto
vem-se
juntar
ao
jogo;
foi
este,
contudo,
o
fato
inicial.
Encontramo-nos
aqui
em
regiões
difíceis
de
penetrar,
tanto
pela
psicologia
quanto
pela
filosofia.
São
questões
que
tocam
no
que
há
de
mais
profundo
em
nossa
consciência.
O
culto
é
a
forma
mais
alta
e
mais
sagrada
da
seriedade.
Como
pode
ele,
apesar
disso,
ser
jogo?
Começamos
por
dizer
que
todo
jogo,
tanto
das
crianças
como
dos
adultos,
pode
efetuar-se
dentro
do
mais
completo
espírito
de
seriedade.
Mas
irá
isto
a
ponto
de
implicar
que
o
jogo
continua
sempre
ligado
à
emoção
sagrada
do
ato
sacramentai?
Quanto
a
isto,
nossas
conclusões
são
de
certa
maneira
obstruídas
pela
rigidez
de
nossas
ideias
habituais.
Estamos
habituados
a
considerar
o
jogo
e
a
seriedade
como
constituindo
uma
antítese
absoluta.
Contudo,
parece
que
isto
não
permite
chegar
ao
nó
do
problema.
Prestemos
um
momento
de
atenção
aos
seguintes
aspectos.
A
criança
joga
e
brinca
dentro
da
mais
perfeita
seriedade,
que
a
justo
título
podemos
considerar
sagrada.
Mas
sabe
perfeitamente
que
o
que
está
fazendo
é
um
jogo.
Também
o
esportista
joga
com
o
mais
fervoroso
entusiasmo,
ao
mesmo
tempo
que
sabe
estar
jogando.
O
mesmo
verificamos
no
ator,
que,
quando
está
no
palco,
deixa-se
absorver
inteiramente
pelo
"jogo"
da
representação
teatral,
ao
mesmo
tempo
que
tem
consciência
da
natureza
desta.
O
mesmo
é
válido
para
o
violinista,
que
se
eleva
a
um
mundo
superior
ao
de
todos
os
dias,
sem
perder
a
consciência
do
caráter
lúdico
de
sua
atividade.
Portanto,
a
qualidade
lúdica
pode
ser
própria
das
ações
mais
elevadas.
Mas
permitirá
isto
que
prolonguemos
a
série
de
maneira
a
incluir
o
culto,
afirmando
ser
também
meramente
lúdica
a
atividade
do
sacerdote
que
executa
os
rituais
do
sacrifício?
À
primeira
vista
isto
parece
absurdo,
pois,
aceitá-lo
para
uma
religião
nos
obrigaria
a
aceitá-lo
para
todas.
Assim,
nossas
ideias
de
culto,
magia,
liturgia,
sacramento
e
mistério
seriam
todas
abrangidas
pelo
conceito
de
jogo.
Ora,
quando
lidamos
com
abstrações
devemos
sempre
evitar
o
exagero
de
sua
importância,
e
estender
demasiado
o
conceito
de
jogo
não
levaria
a
mais
do
que
a
um
mero
jogo
de
palavras.
Mas,
levando
em
conta
todos
os
aspectos
do
problema,
não
creio
que
seja
um
erro
definirmos
o
ritual
em
termos
lúdicos.
O
ato
de
culto
possui
todas
as
características
formais
e
essenciais
do
jogo,
que
anteriormente
enumeramos,
sobretudo
na
medida
em
que
transfere
os
participantes
para
um
mundo
diferente.
Esta
identidade
do
ritual
e
do
jogo
era
reconhecida
sem
reservas
por
Platão,
que
não
hesitava
em
incluir
o
sagrado
na
categoria
de
jogo.
"É
preciso
tratar
com
seriedade
aquilo
que
é
sério",
diz
ele16.
"Só
Deus
é
digno
da
suprema
seriedade,
e
o
homem
não
passa
de
um
joguete
de
Deus,
e
é
esse
o
melhor
aspecto
de
sua
natureza.
Portanto,
todo
homem
e
mulher
devem
viver
a
vida
de
acordo
com
essa
natureza,
jogando
os
jogos
mais
nobres,
contrariando
suas
inclinações
atuais.
Pois
eles
consideram
a
guerra
uma
coisa
séria,
embora
não
haja
na
guerra
jogo
ou
cultura
dignos
desse
nome17,
justamente
as
coisas
que
nós
consideramos
mais
sérias.
Portanto,
todos
devem
esforçar-se
ao
máximo
por
viver
em
paz.
Qual
é,
então,
a
maneira
mais
certa
de
viver?
A
vida
deve
ser
vivida
como
jogo,
jogando
certos
jogos,
fazendo
sacrifícios,
cantando
e
dançando,
e
assim
o
homem
poderá
conquistar
o
favor
dos
deuses
e
defender-se
de
seus
inimigos,
triunfando
no
combate18."
A
identificação
platônica
entre
o
jogo
e
o
sagrado
não
desqualifica
este
último,
reduzindo-o
ao
jogo,
mas,
pelo
contrário,
equivale
a
exaltar
o
primeiro,
elevando-o
às
mais
altas
regiões
do
espírito.
Dissemos
no
início
que
o
jogo
é
anterior
à
cultura;
e,
em
certo
sentido,
é
também
superior,
ou
pelo
menos
autônomo
em
relação
a
ela.
Podemos
situar--nos,
no
jogo,
abaixo
do
nível
da
seriedade,
como
faz
a
criança;
mas
podemos
também
situar-nos
acima
desse
nível,
quando
atingimos
as
regiões
do
belo
e
do
sagrado.
Adotando
este
ponto
de
vista,
podemos
agora
definir
de
maneira
mais
rigorosa
as
relações
entre
o
ritual
e
o
jogo.
A
extrema
semelhança
das
duas
formas
não
nos
deixa
mais
perplexos,
e
nossa
atenção
continua
presa
ao
problema
de
saber
até
que
ponto
todos
os
atos
de
culto
são
abrangidos
pela
categoria
do
jogo.
Verificamos
que
uma
das
características
mais
importantes
do
jogo
é
sua
separação
espacial
em
relação
à
vida
quotidiana.
É-lhe
reservado,
quer
material
ou
idealmente,
um
espaço
fechado,
isolado
do
ambiente
quotidiano,
e
é
dentro
desse
espaço
que
o
jogo
se
processa
e
que
suas
regras
têm
validade.
Ora,
a
delimitação
de
um
lugar
sagrado
é
também
a
característica
primordial
de
todo
ato
de
culto.
Esta
exigência
de
isolamento
para
o
ritual,
incluindo
a
magia
e
a
vida
jurídica,
tem
um
alcance
superior
ao
meramente
espacial
e
temporal.
Quase
todos
os
rituais
de
consagração
e
iniciação
implicam
um
certo
isolamento
artificial
tanto
dos
ministros
como
dos
neófitos.
Sempre
que
se
trata
de
proferir
um
voto,
de
ser
recebido
numa
Ordem
ou
numa
confraria,
de
fazer
um
juramento
ou
de
entrar
para
uma
sociedade
secreta,
de
uma
maneira
ou
de
outra
há
sempre
essa
delimitação
de
um
lugar
do
jogo.
O
mágico,
o
áugure
e
o
sacrificador
começam
sempre
por
circunscrever
seu
espaço
sagrado.
O
sacramento
e
o
mistério
implicam
sempre
um
lugar
santificado.
De
um
ponto
de
vista
formal,
não
existe
diferença
alguma
entre
a
delimitação
de
um
espaço
para
fins
sagrados
e
a
mesma
operação
para
fins
de
simples
jogo.
A
pista
de
corridas,
o
campo
de
tênis,
o
tabuleiro
de
xadrez
ou
o
terreno
da
amarelinha
não
se
distinguem,
formalmente,
do
templo
ou
do
círculo
mágico.
A
extrema
semelhança
que
se
verifica
entre
os
rituais
dos
sacrifícios
de
todo
o
mundo
mostra
que
esses
costumes
devem
ter
suas
raízes
em
alguma
característica
fundamental
e
essencial
do
espírito
humano.
É
costume
reduzir
esta
analogia
geral
das
formas
de
cultura
a
qualquer
causa
"racional"
ou
"lógica",
explicando
a
necessidade
de
isolamento
e
separação
pela
ânsia
de
proteger
os
indivíduos
consagrados
de
influências
maléficas,
pois
eles,
em
seu
estado
de
consagração,
são
particularmente
vulneráveis
às
práticas
dos
espíritos
malignos,
além
de
constituírem
eles
mesmos
um
perigo
para
os
que
os
rodeiam.
É
uma
explicação
que
coloca
na
origem
do
processo
cultural
em
causa
uma
reflexão
de
ordem
racional
e
uma
intenção
utilitária,
precisamente
aquilo
que
Frobenius
recomendava
evitar.
Mesmo
que
não
voltemos
aqui
a
cair
na
antiquada
teoria
da
invenção
da
religião
pela
classe
sacerdotal,
continuamos,
mesmo
assim,
a
introduzir
um
elemento
racionalista
que
deveria
ser
evitado.
Se,
por
outro
lado,
aceitarmos
a
identidade
essencial
e
original
do
jogo
e
do
ritual,
limitamo-nos
a
reconhecer
o
lugar
santificado
como
um
campo
de
jogo,
sem
chegar
a
colocar
a
ilusória
questão
do
"por
que
e
para
que".
Mesmo
estabelecida
a
identidade
formal
do
ritual
e
do
jogo,
continua
sendo
necessário
saber
se
esta
semelhança
vai
mais
longe
que
o
aspecto
puramente
formal.
É
surpreendente
que
a
antropologia
e
a
religião
comparada
tenham
prestado
tão
pouca
atenção
ao
problema
de
saber
até
que
ponto
as
práticas
rituais,
desenrolando-se
dentro
do
quadro
formal
do
jogo,
são
marcadas
também
pela
atitude
e
pela
atmosfera
do
jogo.
Mesmo
Frobenius,
que
eu
saiba,
não
colocou
este
problema.
Escusado
seria
dizer
que
a
atitude
espiritual
de
um
grupo
social,
ao
efetuar
e
experimentar
seus
ritos
sagrados,
é
da
mais
extrema
e
mais
santa
gravidade.
Mas
insistamos
uma
vez
mais:
o
jogo
autêntico
e
espontâneo
também
pode
ser
profundamente
sério.
O
jogador
pode
entregar-se
de
corpo
e
alma
ao
jogo,
e
a
consciência
de
tratar-se
"apenas"
de
um
jogo
pode
passar
para
segundo
plano.
A
alegria
que
está
indissoluvelmente
ligada
ao
jogo
pode
transformar-se,
não
só
em
tensão,
mas
também
em
arrebatamento.
A
frivolidade
e
o
êxtase
são
os
dois
pólos
que
limitam
o
âmbito
do
jogo.
O
jogo
tem,
por
natureza,
um
ambiente
instável.
A
qualquer
momento
é
possível
à
"vida
quotidiana"
reafirmar
seus
direitos,
seja
devido
a
um
impacto
exterior,
que
venha
interromper
o
jogo,
ou
devido
a
uma
quebra
das
regras,
ou
então
do
interior,
devido
ao
afrouxamento
do
espírito
do
jogo,
a
uma
desilusão,
um
desencanto.
Quais
são,
então,
a
atitude
e
o
ambiente
predominantes
nas
celebrações
sagradas?
A
palavra
celebrar
quase
diz
tudo:
o
ato
sagrado
é
celebrado,
isto
é,
serve
de
pretexto
para
uma
festa.
A
caminho
dos
santuários,
o
povo
prepara-se
para
uma
manifestação
de
alegria
coletiva.
As
consagrações,
os
sacrifícios,
as
danças
e
competições
sagradas,
as
representações,
os
mistérios,
tudo
isto
vai
constituir
parte
integrante
de
uma
festa.
Pode
acontecer
que
os
ritos
sejam
sangrentos,
que
as
provas
a
que
é
submetido
o
iniciado
sejam
cruéis,
que
as
máscaras
sejam
atemorizantes,
mas
tudo
isso
não
impede
que
o
ambiente
dominante
seja
de
festividade,
implicando
a
interrupção
da
vida
quotidiana.
A
festa
é
acompanhada,
em
toda
sua
duração,
por
banquetes,
festins
e
toda
a
espécie
de
extravagâncias.
Tanto
nas
festividades
da
Grécia
antiga
como
nas
das
religiões
da
África
atual,
seria
difícil
traçar
um
limite
preciso
entre
o
ambiente
da
festa
em
geral
e
a
santa
emoção
suscitada
pelo
mistério
central.
Quase
ao
mesmo
tempo
que
a
primeira
edição
deste
livro,
o
sábio
húngaro
Karl
Kerényi
publicou
um
estudo
sobre
a
natureza
da
festa
cuja
ligação
com
nosso
tema
é
das
mais
estreitas19.
Segundo
Kerényi,
também
as
festas
possuem
aquele
caráter
de
independência
primeira
e
absoluta
que
atribuímos
ao
jogo.
"Entre
as
realidades
psíquicas",
diz
ele,
"a
festa
é
uma
entidade
autônoma,
impossível
de
se
assimilar
a
qualquer
outra
coisa
que
exista
no
mundo20.
Tal
como
nós
em
relação
ao
conceito
de
jogo,
também
Kerényi
considera
que
a
festa
foi
tratada
de
maneira
insuficiente
pelos
estudiosos
da
cultura.
"O
fenômeno
da
festa
parece
ter
sido
inteiramente
ignorado
pelos
etnólogos21."
O
fato
real
da
festa
é
ignorado,
"como
se
não
existisse
para
a
ciência22".
Exatamente
da
mesma
maneira
que
o
jogo,
poderíamos
nós
acrescentar.
Existem
entre
a
festa
e
o
jogo,
naturalmente,
as
mais
estreitas
relações.
Ambos
implicam
uma
eliminação
da
vida
quotidiana.
Em
ambos
predominam
a
alegria,
embora
não
necessariamente,
pois
também
a
festa
pode
ser
séria.
Ambos
são
limitados
no
tempo
e
no
espaço.
Em
ambos
encontramos
uma
combinação
de
regras
estritas
com
a
mais
autêntica
liberdade.
Em
resumo,
a
festa
e
o
jogo
têm
em
comuns
suas
características
principais.
O
modo
mais
intimo
de
união
de
ambos
parece
poder
encontrar-se
na
dança.
Segundo
Kerényi,
os
índios
Cora,
da
costa
oriental
do
México,
chamam
a
suas
festas
religiosas
realizadas
por
ocasião
da
trituração
e
da
torrefação
do
milho
o
"jogo"
de
seu
deus
supremo23
.
As
ideias
de
Kerényi
sobre
a
festa
como
conceito
cultural
autônomo
consolidam
e
ampliam
as
ideias
que
servem
de
base
a
este
livro.
Não
se
pense,
todavia,
que
o
estabelecimento
de
uma
estreita
relação
entre
o
espírito
do
jogo
e
o
ritual
possa
servir
para
explicar
tudo.
O
jogo
autêntico
possui,
além
de
suas
características
formais
e
de
seu
ambiente
de
alegria,
pelo
menos
um
outro
traço
dos
mais
fundamentais,
a
saber
a
consciência,
mesmo
que
seja
latente,
de
estar
"apenas
fazendo
de
conta".
Permanece
de
pé
a
questão
de
saber
até
que
ponto
essa
consciência
é
compatível
com
os
atos
rituais
efetuados
dentro
de
um
espírito
de
devoção.
Se
nos
limitarmos
aos
ritos
sagrados
das
culturas
primitivas,
não
será
impossível
determinar
o
grau
de
seriedade
com
que
são
efetuados.
Tanto
quanto
me
consta,
os
etnólogos
e
antropólogos
concordam
todos
com
a
ideia
de
que
o
estado
de
espírito
que
preside
às
festas
religiosas
dos
povos
selvagens
não
é
de
ilusão
total.
Existe
uma
consciência
subjacente
de
que
as
coisas
"não
são
reais".
Podemos
encontrar
uma
viva
descrição
desta
atitude
no
livro
de
Ad.
E.
Jensen
sobre
as
cerimônias
de
circuncisão
e
puberdade
nas
sociedades
primitivas24
.
Os
indivíduos
parecem
não
sentir
terror
algum
em
relação
aos
espíritos
que
circulam
por
toda
a
parte
no
decorrer
da
festa
e
aparecem
perante
os
olhos
de
todos
no
ponto
culminante
desta.
Não
é
de
se
admirar,
pois
são
sempre
os
mesmos,
os
homens
encarregados
da
direção
do
conjunto
das
cerimônias;
foram
eles
mesmos
que
confeccionaram
as
máscaras
que
usam
e
que,
depois
de
tudo
terminado,
ocultam-se
dos
olhos
das
mulheres.
São
eles
que
emitem
os
ruídos
que
anunciam
o
aparecimento
dos
espíritos,
que
desenham
as
pegadas
destes
na
areia,
que
tocam
as
flautas
que
representam
as
vozes
dos
antepassados,
que
agitam
os
ruidosos
tamborins.
Em
resumo,
conclui,
Jensen,
sua
situação
assemelha-se
em
tudo
à
dos
pais
que
brincam
de
Papai
Noel
com
seus
filhos:
conhecem
a
máscara,
mas
escondem-na
deles25.
Os
homens
contam
às
mulheres
estórias
fictícias
acerca
do
que
se
passa
nos
bosques
sagrados26.
A
atitude
dos
neófitos
oscila
entre
o
êxtase,
a
loucura
fingida,
o
frêmito
de
horror
e
a
afetação
dos
garotos27
.
Além
disso,
nem
as
mulheres,
em
última
análise,
são
inteiramente
iludidas.
Elas
sabem
exatamente
quem
se
esconde
por
trás
desta
ou
daquela
máscara.
Apesar
disso,
quando
uma
máscara
se
aproxima
em
atitude
ameaçadora
apoderam-se
delas
uma
extrema
agitação
e
terror,
e
fogem
gritando
para
todas
as
direções.
Segundo
Jensen,
estas
manifestações
de
terror
são,
em
parte,
inteiramente
autênticas
e
espontâneas,
e,
apenas
em
parte,
um
papel
imposto
pela
tradição.
É
assim
que
"é
costume
fazer".
Em
resumo,
as
mulheres
desempenham
o
papel
do
coro
da
peça,
e
sabem
que
não
podem
comportar-se
como
"desmancha-
prazeres28".
É
impossível
determinar
de
maneira
rigorosa
qual
é
o
limite
mínimo
a
partir
do
qual
a
gravidade
religiosa
passa
a
ser
simples
divertimento
(fun).
Entre
nós,
um
pai
que
seja
um
tanto
ou
quanto
pueril
poderá
ficar
seriamente
zangado
se
seus
filhos
o
surpreenderem
no
exato
momento
em
que
estiver
preparando
os
presentes
de
Natal.
Na
Colômbia
Britânica,
um
pai
Kwakiutl
matou
a
filha
por
esta
o
ter
surpreendido
no
momento
em
que
talhava
os
objetos
para
uma
cerimônia
tribal29.
A
natureza
instável
do
sentimento
religioso
entre
os
negros
Loango
é
descrita
por
Pechuel-Loesche
em
termos
muito
semelhantes
aos
de
Jensen.
A
crença
desses
selvagens
nos
espetáculos
e
nas
cerimônias
sagradas
é
uma
espécie
de
semicrença,
sempre
acompanhada
por
uma
atitude
de
troça
e
de
indiferença.
O
essencial,
conclui
esse
autor,
reside
no
ambiente30.
No
capítulo
intitulado
Primitive
Credulity,
de
seu
livro
The
Threshold
of
Religion,R.
R.
Marette
expõe
a
ideia
de
que
em
todas
as
religiões
primitivas
se
encontra
um
certo
elemento
de
"faz
de
conta"
(make-believe).Tanto
o
feiticeiro
como
o
enfeitiçado
são
ao
mesmo
tempo
conscientes
e
iludidos.
Mas
um
deles
escolhe
o
papel
do
iludido31.
"O
selvagem
é
um
bom
ator,
capaz
de
deixar-
se
absorver
inteiramente
por
seu
papel,
tal
como
a
criança
quando
brinca;
e,
também
tal
como
a
criança,
é
um
bom
espectador,
capaz
de
ficar
mortalmente
assustado
com
o
rugido
de
uma
coisa
que
sabe
perfeitamente
não
ser
um
verdadeiro
leão32."
O
indígena,
diz
Malinowski,
sente
e
teme
sua
crença,
mais
do
que
a
formula
de
maneira
clara
para
si
mesmo33.
Emprega
certos
termos
e
expressões,
que
devemos
recolher
como
documentos
da
crença,
tais
como
são,
sem
procurar
integrá-los
numa
teoria
estruturada.
O
comportamento
dos
indivíduos
aos
quais
a
sociedade
primitiva
atribui
poderes
sobrenaturais
pode
frequentemente
ser
definido
como
um
playing
up
to
the
role
(manter-se
fiel
ao
papel)34.
Apesar
desta
consciência
parcial
do
caráter
fictício
das
coisas
na
magia
e
nos
fenômenos
sobrenaturais
em
geral,
os
mesmos
observadores
insistem
que
daí
não
deve
concluir-se
que
todo
o
sistema
de
crenças
e
práticas
seja
apenas
uma
fraude
inventada
por
um
grupo
de
"incrédulos",
tendo
em
vista
dominar
os
"crédulos".
É
certo
que
esta
interpretação
não
só
é
defendida
por
muitos
viajantes,
mas
aparece
até
nas
tradições
dos
próprios
indígenas,
mas,
mesmo
assim,
não
é
possível
que
ela
seja
correta.
"A
origem
de
qualquer
ato
religioso
só
pode
assentar
na
credulidade
de
todos,
e
sua
manutenção
espúria
em
defesa
dos
interesses
de
um
grupo
só
pode
ser
a
fase
final
de
uma
longa
evolução35.
Em
minha
opinião,
também
a
psicanálise
tende
a
cair
nesta
antiquada
interpretação
das
cerimônias
da
circuncisão
e
da
puberdade,
que
Jensen
com
tanta
razão
rejeita36.
De
tudo
isto
decorre
claramente,
pelo
menos
para
mim,
uma
consequência:
que
é
impossível
perder
de
vista,
por
um
momento
só
que
seja,
o
conceito
de
jogo,
em
tudo
quanto
diz
respeito
à
vida
religiosa
dos
povos
primitivos.
Somos
forçados
constantemente,
para
descrever
numerosos
fenômenos,
a
empregar
a
palavra
"jogo".
Mais
ainda:
a
unidade
e
a
indivisibilidade
da
crença
e
da
incredulidade,
a
indissolúvel
ligação
entre
a
gravidade
do
sagrado
e
o
"faz
de
conta"
e
o
divertimento,
são
melhor
compreendidas
no
interior
do
próprio
conceito
de
jogo.
Embora
admita
a
semelhança
entre
o
mundo
da
criança
e
o
do
selvagem,
Jensen
pretende
estabelecer
uma
distinção
de
princípio
entre
a
mentalidade
de
ambos.
Quando
colocada
em
presença
da
figura
de
Papai
Noel,
a
criança,
segundo
Jensen,
encontra-se
perante
um
"conceito
acabado",
no
qual
"se
encontra
imediatamente"
graças
a
seu
próprio
talento
e
lucidez.
Mas
"a
atitude
criadora
do
selvagem
em
relação
às
cerimônias
aqui
em
questão
é
algo
de
inteiramente
diferente.
Ele
não
se
encontra
perante
conceitos
acabados,
e
sim
perante
seu
meio
ambiente
natural,
o
qual
exige
uma
interpretação;
ele
capta
o
misterioso
demonismo
desse
meio
ambiente
e
procura
dar-lhe
uma
forma
representativa37''.
Reconhecemos
aqui
os
pontos
de
vista
de
Frobenius,
que
foi
professor
de
Jensen.
Há,
contudo,
duas
objeções
que
se
impõem.
Em
primeiro
lugar,
quando
afirma
que
o
processo
mental
do
selvagem
é
"algo
de
inteiramente
diferente"
do
da
criança,
Jensen
está
se
referindo,
de
um
lado,
aos
originadores
do
culto,
e,
de
outro,
à
criança
de
hoje.Mas
nada
sabemos
desses
originadores.
Tudo
aquilo
que
se
nos
oferece
como
objeto
de
estudo
é
uma
comunidade
religiosa
que
recebe
as
imagens
de
seu
culto
sob
a
forma
de
um
material
tradicional
tão
"acabado"
como
acontece
no
caso
de
criança,
e
que
reage
a
essas
imagens
de
maneira
semelhante.
Em
segundo
lugar,
e
mesmo
que
desprezemos
este
primeiro
aspecto,
continua
inteiramente
fora
do
alcance
de
nossa
observação
o
processo
de
"interpretação"
do
meio
ambiente
natural,
assim
como
o
de
sua
"captação"
e
"representação"
numa
imagem
ritual.
Só
através
de
metáforas
fantasiosas
Frobenius
e
Jensen
conseguem
forçar
a
uma
abordagem
do
problema.
Sobre
a
função
que
opera
no
processo
de
construção
de
imagens,
ou
imaginação,
o
máximo
que
podemos
afirmar
é
que
se
trata
de
uma
função
poética;
e
a
melhor
maneira
de
defini-
la
será
chamar-lhe
função
de
jogo
ou
função
lúdica.
Assim,
o
problema
aparentemente
simples
de
saber
o
que
é
na
realidade
o
jogo
nos
faz
penetrar
profundamente
no
problema
da
natureza
e
origem
dos
conceitos
religiosos.
Como
se
sabe,
esta
é
uma
das
ideias
básicas
mais
importantes
para
todo
estudioso
de
religião
comparada.
Quando
uma
certa
forma
de
religião
aceita
uma
identidade
sagrada
entre
duas
coisas
de
natureza
diferente,
como
por
exemplo
um
ser
humano
e
um
animal,
não
podemos
definir
corretamente
esta
relação
como
uma
"ligação
simbólica",
no
sentido
em
que
a
entendemos.
A
identidade
e
unidade
essencial
de
ambos
é
muito
mais
profunda
do
que
a
relação
entre
uma
substância
e
sua
imagem
simbólica.
É
uma
identidade
mística.
Um
se
tornou
o
outro.
Em
sua
dança
mágica,
o
selvagem
é
um
canguru.
Devemos
sempre
ter
o
máximo
cuidado
com
as
deficiências
e
as
diferenças
de
nossos
meios
de
expressão.
Para
formularmos
uma
ideia
mínima
dos
hábitos
mentais
do
selvagem,
somos
obrigados
a
traduzi-los
em
nossa
terminologia.
Quer
queiramos
quer
não,
sempre
transpomos
as
concepções
religiosas
do
selvagem
para
o
plano
de
exatidão
rigorosamente
lógica
de
nosso
tipo
de
pensamento.
Exprimimos
a
relação
entre
ele
e
o
animal
com
o
qual
se
identifica
como
sendo
uma
"realidade"
para
ele,
e
um
"jogo"
para
nós.
O
selvagem
diz
que
se
apoderou
da
"essência"
do
canguru,
e
nós
dizemos
que
ele
"brinca"
de
canguru.
Mas
o
selvagem
nada
sabe
das
distinções
conceptuais
entre
"ser"
e
"jogo",
nada
sabe
sobre
"identidade",
"imagem"
ou
"símbolo".
Portanto,
continua
em
aberto
a
questão
de
saber
se
a
melhor
maneira
de
apreender
o
estado
de
espírito
do.
selvagem
no
momento
em
que
celebra
seus
rituais
não
será
o
recurso
à
noção
primária
e
universalmente
compreensível
de
"jogo".
Em
nossa
concepção
do
jogo,
desaparece
a
distinção
entre
a
crença
e
o
"faz
de
conta".
A
noção
de
jogo
associa-se
naturalmente
à
de
sagrado.
Qualquer
prelúdio
de
Bach,
um
verso
de
qualquer
tragédia
é
prova
disso.
Decidindo
considerar
toda
a
esfera
da
chamada
cultura
primitiva
como
um
domínio
lúdico,
abrimos
caminho
para
uma
compreensão
mais
direta
e
mais
geral
de
sua
natureza,
de
maneira
mais
eficaz
do
que
se
recorrêssemos
a
uma
meticulosa
análise
psicológica
ou
sociológica.
O
jogo
sagrado,
pelo
fato
de
ser
indispensável
ao
bem--estar
da
comunidade
e
um
germe
de
intuição
cósmica
e
de
desenvolvimento
social,
não
deixa
de
ser
um
jogo
que,
como
dizia
Platão,
se
processa
fora
e
acima
das
austeras
necessidades
da
vida
quotidiana.
É
nos
domínios
do
jogo
sagrado
que
a
criança,
o
poeta
e
o
selvagem
encontram
um
elemento
comum.
O
homem
moderno,
graças
à
sua
sensibilidade
estética,
conseguiu
aproximar-se
desses
domínios
muito
mais
do
que
o
homem
"esclarecido"
do
século
XVIII.
Pensamos
aqui
no
encanto
especial
da
máscara,
como
objeto
artístico,
para
o
espírito
moderno.
Há
hoje
um
esforço
para
sentir
a
essência
da
vida
primitiva.
Esta
forma
de
exotismo
é
por
vezes
acompanhada
de
uma
certa
afetação,
mas
mesmo
assim
é
muito
mais
profunda
do
que
a
moda
dos
turcos,
dos
indianos
e
dos
chineses
no
século
XVIII.
O
homem
moderno
tem
uma
aguda
sensibilidade
para
tudo
quanto
é
longínquo
e
estranho.
Nada
o
ajuda
melhor
a
compreender
as
sociedades
primitivas
do
que
seu
gosto
pelas
máscaras
e
disfarces.
A
etnologia
demonstrou
a
imensa
importância
social
deste
fato,
e
por
seu
lado
todo
indivíduo
culto
sente
perante
a
máscara
uma
emoção
estética
imediata,
composta
de
beleza,
de
temor
e
de
mistério.
Mesmo
para
o
adulto
civilizado
de
hoje,
a
máscara
conserva
algo
de
seu
poder
misterioso,
inclusive
quando
a
ela
não
está
ligada
emoção
religiosa
alguma.
A
visão
de
uma
figura
mascarada,
como
pura
experiência
estética,
nos
transporta
para
além
da
vida
quotidiana,
para
um
mundo
onde
reina
algo
diferente
da
claridade
do
dia:
o
mundo
do
selvagem,
da
criança
e
do
poeta,
o
mundo
do
jogo.
Mesmo
se
pudermos
legitimamente
resumir
nossa
concepção
do
significado
dos
ritos
primitivos
a
um
irredutível
conceito
de
jogo,
continuará
de
pé
uma
questão
embaraçosa.
Poderemos
passar
das
formas
religiosas
inferiores
para
as
mais
elevadas?
Dos
estranhos
e
bárbaros
rituais
dos
indígenas
da
África,
da
América
e
da
Austrália
o
olhar
passa
naturalmente
para
os
sacrifícios
rituais
dos
Vedas,
os
quais
contêm
já,
nos
hinos
do
Rig-Veda,
toda
a
sabedoria
dos
Upanishads,
para
as
profundamente
místicas
homologias
entre
deus,
homem
e
animal
na
religião
dos
egípcios,
para
os
mistérios
de
Orfeu
ou
de
Elêusis.
Tanto
quanto
à
forma
como
quanto
à
prática,
todos
estes
estão
intimamente
ligados
às
chamadas
religiões
primitivas,
mesmo
quanto
aos
pormenores
mais
cruéis
e
bizarros.
Mas
o
elevado
grau
de
sabedoria
e
de
verdade
que
neles
vemos,
ou
julgamos
ver,
nos
impede
de
a
eles
nos
referirmos
com
aquele
ar
de
superioridade
que,
afinal
de
contas,
era
igualmente
despropositado
no
caso
das
culturas
'"primitivas".
É
preciso
determinar
se
esta
semelhança
formal
nos
autoriza
a
aplicar
a
noção
de
jogo
à
consciência
do
sagrado,
à
crença
que
essas
formas
superiores
contêm.
Se
aceitarmos
a
definição
platônica
do
jogo,
nada
haverá
de
incorreto
ou
irreverente
em
que
o
façamos.
Segundo
a
concepção
de
Platão,
a
religião
é
essencialmente
constituída
pelos
jogos
dedicados
à
divindade,
os
quais
são
para
os
homens
a
mais
elevada
atividade
possível.
Seguir
esta
concepção
não
implica
de
maneira
alguma
que
se
abandone
o
mistério
sagrado,
ou
que
se
deixe
de
considerar
este
a
mais
alta
expressão
possível
daquilo
que
escapa
às
regras
da
lógica.
Os
atos
de
culto,
pelo
menos
sob
uma
parte
importante
de
seus
aspectos,
serão
sempre
abrangidos
pela
categoria
de
jogo,
mas
esta
aparente
subordinação
em
nada
implica
o
não
reconhecimento
de
seu
caráter
sagrado.
Notas do capítulo 1
1
A
diferença
entre
as
principais
línguas
europeias
(onde
spielen,
to
play,
jouer,
jugar
significam
tanto
jogar
como
brincar)
e
a
nossa
nos
obriga
frequentemente
a
escolher
um
ou
outro
destes
dois,
sacrificando
assim
à
exatidão
da
tradução
uma
unidade
terminológica
que
só
naqueles
idiomas
seria
possível.
(N.
do
T.)
2
Sobre
estas
teorias,
consultar
H.
Zondervan,
Het
Spel
bij
Dieren,
Kinderen
en
Votwassen
Menschen
(Amsterdã,
1928)
e
F.
J.
J.
Buytendijk,
Het
Spel
van
Mensch
en
Diet
als
openbaring
van
levensdriften
(Amsterdã,
1932).
3
Também
em
português
a
palavra
divertimento
é
apenas
a
maneira
menos
inadequada
de
exprimir
esse
conceito,
que
para
o
autor
corresponde
à
própria
essência
do
jogo
(v.
infra),
e
está
ligado
também
a
noções
como
as
de
prazer,
agrado,
alegria
etc.
(N.
do
T.)
geral
capaz
de
defini-lo.
A
existência
do
jogo
é
inegável.
É
possível
negar,
se
se
quiser,
quase
todas
as
abstrações:
a
justiça,
a
beleza,
a
verdade,
o
bem,
Deus.
É
possível
negar-se
a
seriedade,
mas
não
o
jogo.
4
Primitivo.
5
Uma
intensa
manifestação
de
comportamento
barulhento
e
desordeiro,
levada
a
cabo
num
espírito
de
desrespeito
à
autoridade
e
ã
disciplina.
(N.
do
T.)
6
M.
Granet:
Fêtes
et
Chansons
anciennes
de
la
Chine,
Paris,
1914,
pp.
150,
292;
Danses
et
Legendes
de
la
Chine
ancienne,
Paris,
1926,
p.
351
e
ss.;
La
cívílisation
chinoise,
Paris,
1929,
p.231.
7
As
the
Greeks
would
say,
rathor
methectic
than
mimetic.
Jane
E.
Harrison,
Themis:
A
Study
of
the
Social
Origins
of
Greek
Religion,
Cambridge,
1912,
p.
125.
8
R.
R.
Marett,
The
Threshold
of
Religion,
Londres,
1912,
p.
48.
9
Buytendijk,
Het
Spel
van
Mensch
en
Dier
als
openbaring
van
levensdriften.
Amsterdã,
1932,
pp.
70-71.
10
Leo
Frobenius,
Kulturgeschichte
Afrikas.
Prolegomena
zu
einer
historischen
Gestaltlehre,
Phaidon
Verlag,
1933;
Schicksalskunde
in
Sine
des
Kulrurwerdens,
Leipzig,
1932.
11
Kulturgeschichte,
pp.
23,
122.
12
Ibid.,
p.
21.
13
I
bid.,
p.
122.
A
Ergriftenhein
(arrebatamento)
como
momento
dos
jogos
infantis,
p.
147;
veja-se
o
termo
de
Buytendijk,
tomado
de
Erwin
Strauss,
que
significa
"disposição
patética"
ou
"estado
de
comoção'',
como
fundamento
dos
jogos
infantis.
Obra
citada,
p.
20.
14
Schicksalskunde,
p.
142.
15
o
termo
alemão
spielen
significa
ao
mesmo
tempo
jogar
e
representar,
tanto
no
sentido
de
figurar
como
no
da
representação
teatral
(tal
como
em
inglês
to
play
e
o
francês
jouer).
(N.
do
T.)
16
Le
is.
VI
l.
803
CD
17
ουτ
ουν
παιδια
...
ουτ’
αύ
παιδεία
...
αξιόλογο.
18
Cf.
Leis,
VII,
796
B,
onde
Platão
fala
das
danças
sagradas
dos
curetas
conto
των
χουφητων
ενοπλια
παιγνια.
As
íntimas
relações
existentes
entre
o
jogo
e
os
mistérios
sagrados
são
tratadas
de
maneira
extremamente
sugestiva
por
Romano
Guanimi
no
capítulo
Die
Liiurgíe
als
Sptel
de
seu
Vom
Grisi
dês
Liturgie,
pp.
56-70
(Ecclesia
Orans,
herausg.
von
Dr.
Ildefons
Herwegen,
I,
Freiburg
i.
B.
1922).
Sem
fazer
referência
a
Platão,
aproxima
o
mais
possível
das
ideias
deste
acima
citadas.
Atribui
à
liturgia
grande
número
de
caracteres
comumente
aceitos
como
próprios
do
jogo.
Também
a
liturgia
é,
em
última
análise,
zwecklos
aber
doch
sinnvoll
sem
finalidade.
c
contudo
rica
de
sentido.
19
Vom
Wesen
des
Pestes,
Paideuma,
Mitteilungen
zur
Kulturkunde,
I,
Heft
2
(dezembro
de
1938),
pp.
59-74.
20
Loc.
cit.,
p.
63.
21
Id.,
p.
65.
22
Id.,
p.
63.
23
Id.,
p.
60,
segundo
K.
Th.
Preuss,
Die
Naiarit-Expedition,
I,
1912,
p.
106
e
seguintes.
24
Beschneidung
und
Reifezeremonien
bei
Naturvblkern,
Stuttgart,
1933.
25
Id.,
p.
151.
26
Id.,
p.
156.
27
Id.,
p.
158.
28
Id.,
p.
150.
29
F.
Boas,
The
Social
Organisation
and
the
Secret
Societies
oi
lhe
Kwakiutl
Indians,
Washington,
1897,
p.
435.
30
Volkskunde
von
Loango,
Stuttgart,
I907,
p.
345.
31
Id
.,
pp.
41-44.
32
Id.,
p.
45.
33
The
Argonauts
of
the
Western
Pacific,
London,
1922,
p.
239.
34
Id..
p.
240.
35
Jensen,
loc.
cit.,
p.
152.
36
Id..
pp.
153,
173-7.
37
Id..
p.
149
e
ss
2.
A
Noção
de
Jogo
e
sua
Expressão
na
Linguagem
Ao
falarmos
do
jogo
como
algo
que
todos
conhecem
e
ao
procurarmos
analisar
ou
definir
a
ideia
que
essa
palavra
exprime,
precisamos
ter
sempre
presente
que
essa
noção
é
definida
e
talvez
até
limitada
pela
palavra
que
usamos
para
exprimi-la.
Nem
a
palavra
nem
a
noção
tiveram
origem
num
pensamento
lógico
ou
científico,
e
sim
na
linguagem
criadora,
isto
é,
em
inúmeras
línguas,
pois
esse
ato
de
"concepção"
foi
efetuado
por
mais
do
que
uma
vez.
Não
seria
lícito
esperar
que
cada
uma
das
diferentes
línguas
encontrasse
a
mesma
ideia
e
a
mesma
palavra
ao
tentar
dar
expressão
à
noção
de
jogo,
à
semelhança
do
que
se
passa
com
as
noções
de
"pé"
ou
"mão",
para
as
quais
cada
língua
tem
uma
palavra
bem
definida.
O
problema
é
menos
simples
que
isso.
Devemos
aqui
tomar
como
ponto
de
partida
a
noção
de
jogo
em
sua
forma
familiar,
isto
é,
tal
como
é
expressa
pelas
palavras
mais
comuns
na
maior
parte
das
línguas
europeias
modernas,
com
algumas
variantes.
Parece-nos
que
essa
noção
poderá
ser
razoavelmente
bem
definida
nos
seguintes
termos:
o
jogo
é
uma
atividade
ou
ocupação
voluntária,
exercida
dentro
de
certos
e
determinados
limites
de
tempo
e
de
espaço,
segundo
regras
livremente
consentidas,
mas
absolutamente
obrigatórias,
dotado
de
um
fim
em
si
mesmo,
acompanhado
de
um
sentimento
de
tensão
e
de
alegria
e
de
uma
consciência
de
ser
diferente
da
"vida
quotidiana".
Assim
definida,
a
noção
parece
capaz
de
abranger
tudo
aquilo
a
que
chamamos
"jogo"
entre
os
animais,
as
crianças
e
os
adultos:
jogos
de
força
e
de
destreza,
jogos
de
sorte,
de
adivinhação,
exibições
de
todo
o
gênero.
Pareceu-nos
que
a
categoria
de
jogo
fosse
suscetível
de
ser
considerada
um
dos
elementos
espirituais
básicos
da
vida.
Mas
acontece
que
a
categoria
geral
de
jogo
não
foi
distinguida
com
idêntico
rigor
por
todas
as
línguas,
nem
sempre
sendo
sintetizada
em
uma
única
palavra.
Em
todos
os
povos
encontramos
o
jogo,
e
sob
formas
extremamente
semelhantes,
mas
as
línguas
desses
povos
diferem
muitíssimo,
em
sua
concepção
do
jogo,
sem
o
conceber
de
maneira
tão
distinta
e
tão
ampla
como
a
maior
parte
das
línguas
europeias
modernas.
Poderíamos,
adotando
uma
perspectiva
nominalista,
negar
a
validade
de
um
conceito
geral,
afirmando
que
em
cada
grupo
humano
o
conceito
"jogo"
encerra
apenas
o
que
é
expresso
na
palavra,
ou
antes,
nas
palavras
que
o
designam.
É
possível
que
alguma
língua
tenha
conseguido
melhor
do
que
outras
sintetizar
os
diversos
aspectos
do
jogo
em
uma
só
palavra,
e
parece
ser
esse
o
caso.
A
abstração
de
um
conceito
geral
de
jogo
penetrou
uma
cultura
muito
mais
cedo
e
de
maneira
mais
completa
do
que
outra,
com
o
curioso
resultado
de
haver
línguas
extremamente
desenvolvidas
que
conservaram
o
uso
de
palavras
inteiramente
diferentes
para
as
diferentes
formas
de
jogo,
tendo
esta
multiplicidade
de
termos
entravado
a
agregação
de
todas
as
formas
em
um
termo
único.
Este
caso
pode
ser
comparado
ao
de
em
várias
das
chamadas
línguas
primitivas
existirem
palavras
para
designar
as
diferentes
espécies
de
uma
categoria,
como
por
exemplo
"enguia"
e
"lúcio",
sem
que
haja
palavra
para
designar
a
categoria
geral
"peixe".
Há
diversos
indícios
que
mostram
que
a
abstração
de
um
conceito
geral
de
jogo
foi,
em
algumas
culturas,
tão
tardia
e
secundária
como
foi
primária
e
fundamental
a
função
do
jogo.
Quanto
a
este
aspecto,
parece-me
extremamente
significativo
que
em
nenhuma
das
mitologias
que
conheço
o
jogo
tenha
sido
encarnado
numa
figura
divina
ou
demoníaca1,
ao
passo
que,
por
outro
lado,
frequentemente
representam-se
os
deuses
entregues
a
um
jogo.
A
ausência
de
uma
palavra
indo-europeia
comum
para
o
jogo
é
outro
elemento
indicador
do
caráter
tardio
do
surgimento
de
um
conceito
geral
de
jogo.
Mesmo
o
grupo
das
línguas
germânicas
difere
muito
em
sua
designação,
dividindo-o
em
três
termos
distintos.
Provavelmente,
não
é
por
acaso
que
nos
mesmos
povos
que
possuem
um
"instinto"
de
jogo
bem
pronunciado
encontramos
diversas
expressões
distintas
para
designar
a
atividade
lúdica.
Creio
poder
afirmar
que
o
fato
se
verifica
de
maneira
mais
ou
menos
acentuada
no
grego,
no
sânscrito,
no
chinês
e
no
inglês,
O
grego
tem
na
desinência
-inda
uma
designação
extremamente
curiosa
e
específica
para
os
jogos
infantis.
Em
si
mesmas
estas
sílabas
nada
significam,
limitando-se
a
dar
a
qualquer
palavra
a
conotação
de
"jogar"
alguma
coisa".
O
sufixo
-inda
é
indeclinável
e
linguisticamente
irredutível2.
As
crianças
gregas
jogavam
sfairinda
(à
bola),
helkustinda
(à
corda),
streptinda
(jogo
de
arremesso)
ou
basilinda
(ao
reizinho).
A
completa
independência
gramatical
deste
sufixo
é
como
se
fosse
um
símbolo
da
natureza
inderivável
do
conceito
de
jogo.
Contrastando
com
esta
designação
única
dos
jogos
infantis,
a
língua
grega
possui
nada
menos
de
três
palavras
diferentes
para
designar
o
jogo
em
geral.
Antes
de
mais
temos
παιδια,
a
mais
conhecida
de
todas.
Sua
etimologia
é
evidente:
designa
aquilo
que
é
próprio
da
criança,
mas
é
imediatamente
diferenciada
de
παιδιά
(infantilidade)
pelo
acento.
Todavia,
o
uso
de
παιδιά
de
modo
algum
está
limitado
aos
jogos
infantis.
Com
seus
derivados
παίζειν
(brincar),
παίγμα
e
παίγνιον(brinquedo),
serve
para
indicar
toda
espécie
de
formas
lúdicas,
incluindo
as
mais
elevadas
e
sagradas,
conforme
vimos
no
trecho
citado
das
Leis
de
Platão,
Todo
este
grupo
de
palavras
parece
estar
associado
às
ideias
de
despreocupação
e
alegria.
Comparado
com
παιδια,
o
outro
termo
que
designa
o
jogo
—
άθύφω,
άθύφμα—
fica
numa
posição
de
segundo
plano.
Está
mais
ligado
às
ideias
de
frivolidade
e
futilidade.
Resta
ainda,
contudo,
um
domínio
muito
amplo
e
importante
que
em
nossa
terminologia
também
faz
parte
do
jogo,
e
ao
qual
não
correspondem
as
palavras
gregas
παιδιά
e
άθυφμα
:
as
competições
e
concursos.
Todo
este
domínio,
de
tão
grande
importância
para
a
vida
dos
gregos,
é
designado
pela
palavra
άγών.
Pode-se
bem
dizer
que
no
terreno
do
άγών
está
ausente
uma
parte
essencial
do
conceito
de
jogo.
Ao
mesmo
tempo,
devemos
admitir
que
os
gregos
podiam
ter
muita
razão
em
estabelecer
uma
distinção
linguística
entre
a
competição
e
o
jogo.
É
certo
que
regra
geral
o
elemento
de
“não-seriedade",
o
fator
lúdico
propriamente
dito,
não
é
claramente
expresso
pela
palavra
άγών.
Além
do
mais,
as
competições
de
todo
o
gênero
desempenhavam
um
papel
de
tal
modo
importante
na
cultura
grega
e
na
vida
quotidiana
de
todos
os
gregos
que
pode
parecer
excessiva
ousadia
a
pretensão
de
classificar
como
"jogo"
uma
parte
tão
grande
da
civilização
grega.
É
este
o
ponto
de
vista
adotado
pelo
Professor
Bolkestein,
em
sua
crítica
a
minhas
opiniões
em
sentido
contrário3.
Censura-me
ele
por
ter
"ilegitimamente
incluído
as
competições
dos
gregos,
as
quais
vão
desde
as
mais
impregnadas
de
religiosidade
até
às
mais
triviais,
na
categoria
de
jogo".
E
continua:
"Quando
falamos
dos
Jogos
Olímpicos,
inadvertidamente
fazemos
uso
de
um
termo
latino,
o
qual
exprime
a
apreciação
dos
romanos
sobre
as
competições
assim
designadas,
que
é
totalmente
diferente
da
interpretação
dos
gregos".
Depois
de
enumerar
uma
longa
série
de
atividades
agonísticas
que
mostram
até
que
ponto
toda
a
vida
dos
gregos
era
dominada
pelo
impulso
competitivo,
conclui
ele:
"Tudo
isto
nada
tem
a
ver
com
o
jogo
—
a
menos
que
se
pretenda
que
para
os
gregos
tudo
na
vida
era
jogo!"
Em
certo
sentido
é
mesmo
essa
a
tendência
deste
livro.
Apesar
de
minha
admiração
pela
sólida
e
lúcida
interpretação
da
cultura
grega
apresentada
pelo
Professor
Bolkestein,
e
apesar
do
fato
de
a
língua
grega
não
ser
a
única
a
estabelecer
uma
distinção
entre
a
competição
e
o
jogo,
estou
firmemente
convencido
da
existência
de
uma
identidade
profunda
entre
ambos.
Dado
que
teremos
que
voltar
repetidas
vezes
a
esta
distinção
conceptual,
limitar-
me-ei
aqui
a
apenas
um
argumento.
O
άγών
na
vida
dos
gregos,
ou
a
competição
em
qualquer
outra
parte
do
mundo,
possui
todas
as
características
formais
do
jogo
e,
quanto
à
sua
função,
pertence
quase
inteiramente
ao
domínio
da
festa,
isto
é,
ao
domínio
lúdico.
É
totalmente
impossível
separar
a
competição,
como
função
cultural,
do
complexo
"jogo-
festa-ritual".
As
razões
devido
às
quais
a
língua
grega
estabelece
essa
nítida
distinção
terminológica
entre
o
jogo
e
a
competição
podem,
em
minha
opinião,
ser
explicadas
da
seguinte
maneira.
A
concepção
de
uma
noção
geral
de
jogo,
universal
e
logicamente
homogênea,
é,
como
vimos,
uma
invenção
linguística
bastante
tardia.
Todavia,
desde
muito
cedo
as
competições
sagradas
e
profanas
haviam
tomado
um
lugar
tão
importante
na
vida
dos
gregos,
adquirido
um
valor
tão
excepcional,
que
as
pessoas
deixaram
de
ter
consciência
de
seu
caráter
lúdico.
Sob
todos
os
seus
aspectos
e
em
todas
as
ocasiões,
a
competição
tornara-se
uma
função
cultural
tão
intensa
que
os
gregos
a
consideravam
perfeitamente
"habitual",
como
algo
que
existia
naturalmente.
Foi
por
este
motivo
que
os
gregos,
possuindo
duas
palavras
distintas
para
designar
o
jogo
e
a
competição,
não
conseguiram
identificar
de
maneira
clara
a
presença,
no
segundo,
do
elemento
lúdico
essencial,
daí
resultando
que
a
união
conceptual
e,
portanto,
linguística,
entre
ambas,
nunca
foi
efetivamente
realizada.
Conforme
veremos,
a
língua
grega
de
maneira
alguma
é
um
caso
único
quanto
a
este
aspecto.
No
sânscrito
podemos
encontrar
pelo
menos
quatro
raízes
verbais
correspondentes
ao
conceito
de
jogo.
O
termo
mais
geral
é
kridati,
que
designa
o
jogo
entre
os
animais,
as
crianças
e
os
adultos.
Do
mesmo
modo
que
as
palavras
Spiel,
play
etc.,
nas
línguas
germânicas,
também
servem
para
designar
o
movimento
do
vento
ou
das
ondas.
Pode
ter
o
significado
de
"saltar"
ou
"dançar",
em
geral,
sem
referência
expressa
à
noção
de
jogo.
Neste
último
caso,
aproxima-se
da
raiz
nrt,
que
abrange
todo
o
domínio
da
dança
e
da
representação
dramática.
Em
seguida,
temos
divyati,
que
fundamentalmente
designa
os
jogos
de
azar,
mas
corresponde
também
a
outros
aspectos
da
esfera
lúdica,
como
brincar,
contar
piadas,
fazer
troça.
O
sentido
original
parece
ser
jogar,
no
sentido
de
"lançar",
"atirar",
mas
há
também
uma
ligação
com
a
ideia
de
brilho,
de
irradiação4.
Depois
temos
a
raiz
l
as
(da
qual
deriva
vilasa),
que
designa
ao
mesmo
tempo
brilho,
aparecimento
súbito,
ruído
súbito,
subir,
ir
e
vir,
brincar
e
"ocupar-se"
de
uma
maneira
geral,
o
que
corresponde
ao
alemão
etwas
treiben5.
Finalmente
temos
o
nome
lila,
com
seu
verbo
denominativo
lilayati
(que
provavelmente
tem
o
sentido
originário
de
"balançar"),
que
exprime
todos
os
aspectos
mais
ligeiros,
frívolos,
descuidados
e
insignificantes
do
jogo.
Mas,
o
sentido
principal
de
lila
é
o
de
"como
se",
designando
"parecer",
"imitar",
a
"aparência"
das
coisas,
tal
como
o
inglês
like,
likeness
ou
o
alemão
gleich,
Gleíchnis.
Assim,
gajalilaya
(à
letra:
"com
elefante
jogar")
significa
"como
um
elefante",
e
gajendralila
(à
letra:
elefante-homem-jogo)
significa
um
homem
que
representa
um
elefante
ou
que
brinca
de
elefante.
Em
todas
essas
designações
do
jogo,
o
ponto
de
partida
semântico
parece
ser
a
ideia
de
movimento
rápido,
relação
esta
que
se
verifica
em
muitas
outras
línguas.
Evidentemente
não
pretendo
afirmar
que
no
início
essas
palavras
denotassem
exclusivamente
o
movimento
rápido,
vindo,
só
mais
tarde,
a
ser
aplicadas
ao
jogo.
Que
eu
saiba,
nenhuma
das
palavras
que
em
sânscrito
exprimem
jogo
serve
para
designar
a
competição
enquanto
tal.
É
um
fato
singular
que
não
exista
uma
palavra
específica
correspondente
a
esta
última
noção,
apesar
de
se
encontrarem
na
vida
social
da
índia
antiga
as
mais
diversas
formas
de
competição.
A
amável
contribuição
do
professor
Duyvendak
permite-me
fazer
algumas
observações
sobre
a
maneira
de
exprimir
a
função
do
jogo
em
chinês.
Também
neste
caso,
não
se
pode
encontrar
uma
síntese
única
de
todas
as
atividades
que
julgamos
poder
classificar
como
jogo.
A
palavra
mais
importante
é
wan,
na
qual
predomina
a
ideia
de
jogo
infantil,
mas
cujo
âmbito
semântico
compreende
os
significados
específicos
seguintes:
estar
ocupado,
ter
prazer
com
alguma
coisa,
entreter-se,
recalcitrar,
dizer
piadas,
fazer
troça.
Serve
também
para
designar
a
ideia
de
manejar,
examinar,
"farejar",
dispor
pequenos
ornamentos
e,
finalmente,
apreciar
o
luar.
Portanto,
o
ponto
de
partida
semântico
parece
ser
a
ideia
de
lidar
com
alguma
coisa
com
uma
atenção
divertida,
de
se
entregar
despreocupadamente
a
uma
atividade.
A
palavra
não
se
aplica
a
jogos
de
destreza
ou
de
azar,
competições
ou
representações
teatrais.
Para
esta
última
categoria,
o
jogo
dramático
organizado,
o
chinês
possui
palavras
que
pertencem
ao
terreno
conceptual
da
"disposição",
do
"arranjo",
da
"situação".
Tudo
aquilo
que
se
relaciona
com
as
competições
é
expresso
pela
palavra
especial
tcheng,
que
é
o
exato
equivalente
do
grego
άγών.
Além
desta,
a
palavra
sai
corresponde
à
ideia
de
competição
organizada
em
vista
de
um
prêmio.
Devo
ao
professor
Uhlenbeck,
meu
antigo
colega
em
Leyden,
alguns
exemplos
de
como
o
conceito
de
jogo
é
expresso
em
uma
das
chamadas
línguas
primitivas,
o
blackfoot,
que
pertence
ao
grupo
algonkin.
A
raiz
verbal
koani
indica
os
jogos
infantis,
sem
estar
ligada
ao
nome
de
qualquer
jogo
especial:
designa
os
jogos
infantis
em
geral.
Contudo,
quando
se
trata
dos
jogos
dos
adultos
ou
mesmo
dos
adolescentes,
o
termo
koani
não
é
mais
usado,
embora
se
trate
dos
mesmos
jogos.
Por
outro
lado,
é
curioso
que
koani
volte
a
aparecer
com
um
significado
erótico,
especialmente
para
indicar
as
relações
ilícitas.
O
jogo
organizado
segundo
regras
é
chamado
kaxtsi,
palavra
que
também
se
aplica
aos
jogos
de
azar,
assim
como
aos
jogos
de
destreza
e
de
força.
Aqui
o
elemento
semântico
é
"ganhar"
e
"competir".
A
relação
entre
koani
e
kaxtsi
é,
portanto,
semelhante
àquela
que
existe
entre
παιδιά
e
άγών
em
grego,
com
a
exceção
de
que
os
termos
blackfoot
são
verbos
e
não
nomes,
e
que
os
jogos
de
azar,
que
em
grego
são
abrangidos
pela
categoria
do
παιξω,
são
em
blackfoot
abrangidos
pela
do
agonístico.
Tudo
quanto
pertence
ao
domínio
da
magia
e
da
religião,
como
por
exemplo
as
danças
e
as
cerimônias,
não
é
indicado
nem
por
koani
nem
por
kaxtsi.
O
blackfoot
tem
duas
palavras
diferentes
para
"ganhar":
amots
designa
a
vitória
numa
competição,
corrida
ou
jogo,
e
também
numa
batalha,
tendo
neste
último
caso
o
sentido
de
"carnificina";
skets,
ou
skits,
designa
exclusivamente
a
vitória
em
jogos
ou
esportes.
Segundo
parece,
há
nesta
última
palavra
uma
fusão
completa
entre
a
esfera
propriamente
lúdica
e
a
esfera
agonística.
Além
disto,
existe
uma
palavra
especial
para
"apostar":
apska.
E
um
aspecto
muito
curioso
é
a
possibilidade
de
dar
a
qualquer
verbo,
o
significado
secundário
de
"brincadeira",
de
"não
ser
a
sério",
acrescentando
o
prefixo
kip-,
que
literalmente
significa
"simplesmente"
ou
"apenas".
Assim,
por
exemplo,
aniu
significa
"ele
diz",
e
kipaniu
significa
"ele
diz
de
brincadeira"
ou
"ele
apenas
diz".
Numa
visão
global,
tudo
parece
indicar
que
a
concepção
e
expressão
do
jogo
em
blackfoot
é
aparentada
à
do
grego,
embora
não
perfeitamente
idêntica.
Já
vimos,
portanto,
três
línguas
em
que
as
palavras
que
designam
competição
são
diferentes
das
que
designam
jogo,
nomeadamente
o
grego,
o
sânscrito
e
o
chinês,
ao
passo
que
o
blackfoot
estabelece
a
separação
de
maneira
ligeiramente
diferente.
Quererá
isto
dizer
que,
afinal
de
contas,
devemos
aceitar
a
opinião
do
professor
Bolkestein
de
que
esta
divisão
linguística
corresponde
a
uma
diferença
sociológica,
psicológica
e
biológica
profundamente
arraigada,
entre
o
jogo
e
a
competição?
Não
apenas
todo
o
material
antropológico
que
adiante
será
exposto
milita
contra
esta
conclusão,
mas
também
se
lhe
opõe
um
argumento
de
ordem
linguística.
Ao
lado
das
línguas
acima
referidas
podemos
colocar
toda
uma
série
de
outras,
igualmente
variadas,
que
apresentam
uma
concepção
mais
ampla
do
jogo.
Esta
série
compreende,
além
da
maior
parte
das
línguas
europeias
modernas,
o
latim,
o
japonês
e
pelo
menos
uma
das
línguas
semíticas.
O
amável
auxílio
do
professor
Radher
permite-me
apresentar
aqui
algumas
observações
a
respeito
da
língua
japonesa.
Ao
contrário
do
chinês,
e
de
maneira
muito
semelhante
às
línguas
ocidentais
modernas,
o
japonês
designa
a
função
lúdica
com
uma
palavra
única
e
bem
definida,
e
possui
ainda,
paralelamente,
um
antônimo
que
designa
a
seriedade.
O
substantivo
asobi
e
o
verbo
asobu
significam:
jogo
em
geral,
recreação,
relaxamento,
divertimento,
passatempo,
excursão
ou
passeio,
distração,
deboche,
preguiçar,
ócio,
disponibilidade,
jogo
de
azar,
estar
desempregado.
Significam
igualmente
jogar
alguma
coisa,
representar,
imitar.
É
de
notar
o
uso
de
"jogo"
no
sentido
da
mobilidade
limitada
de
uma
roda,
um
instrumento
ou
qualquer
outra
estrutura,
do
mesmo
modo
que
em
holandês,
alemão
e
inglês6.
Asobu
significa
ainda
o
estudo
sob
a
direção
de
um
professor
ou
numa
universidade,
o
que
faz
lembrar
o
uso
da
palavra
latina
ludus
no
sentido
de
escola.
Pode
também
significar
um
combate
simulado,
mas
não
a
competição
enquanto
tal;
temos
aqui
outra
distinção,
embora
ligeira,
entre
a
competição
e
o
jogo,
E
por
último
asobu,
de
maneira
semelhante
ao
chinês
wan,
é
a
palavra
usada
para
designar
aquelas
estéticas
tea-parties,
japonesas
em
que
se
toma
chá
ao
mesmo
tempo
que
se
passam
de
mão
em
mão
objetos
de
cerâmica,
por
entre
exclamações
de
admiração.
Parece
não
se
verificar
neste
caso
qualquer
associação
com
as
ideias
de
movimento
rápido,
de
brilho
ou
de
piada.
Uma
análise
mais
cuidadosa
da
concepção
japonesa
do
jogo
levar-nos-
ia
a
um
estudo
da
cultura
japonesa
mais
profundo
do
que
o
espaço
nos
permite.
Limitemo-nos
aos
aspectos
seguintes:
a
extraordinária
seriedade
e
profunda
gravidade
do
ideal
japonês
de
vida
é
mascarada
pela
ficção
elegante
de
que
tudo
não
passa
de
jogo.
Tal
como
a
chevalerie
da
Idade
Média
cristã,
o
bushido
japonês
formou-se
quase
inteiramente
no
interior
da
esfera
do
jogo,
e
foi
consignado
em
formas
lúdicas.
A
língua
conserva
ainda
esta
concepção
no
asobase-kotoba
(à
letra:
"língua-jogo")
ou
linguagem
cortês,
aquela
que
é
empregada
por
quem
se
dirige
a
uma
pessoa
de
estirpe
mais
elevada.
A
ideia
convencional
é
que
as
classes
mais
altas
apenas
"brincam"
ou
"jogam"
em
tudo
quanto
fazem.
A
forma
cortês
equivalente
a
"você
chega
a
Tóquio"
é,
à
letra,
"você
brinca
de
chegar
a
Tóquio".
Do
mesmo
modo,
"soube
que
seu
pai
morreu"
diz-se
"soube
que
seu
pai
brincou
de
morrer".
Se
não
me
engano,
esta
expressão
aproxima-se
muito
do
holandês
U
gelieve
(se
lhe
apraz)
ou
do
alemão
Seine
Majestat
haben
geruht
(Sua
Majestade
dignou-se)7.
As
pessoas
de
alta
estirpe
são
imaginadas
como
se
vivessem
num
mundo
mais
elevado,
onde
só
o
prazer
ou
o
capricho
levassem
à
ação.
Paralelamente
a
este
disfarce
da
vida
aristocrática
por
trás
do
jogo,
existe
em
japonês
uma
noção
muito
acentuada
da
seriedade,
do
não-jogo.
A
palavra
màjime
corresponde
a
seriedade,
sobriedade,
gravidade,
honestidade,
solenidade,
e,
também,
a
tranquilidade,
decência,
retidão.
Está
relacionada
com
a
palavra
que
traduzimos
por
"face"
na
conhecida
expressão
chinesa
"perder
a
face".
No
uso
epitético,
pode
igualmente
significar
"prosaico",
"terra
a
terra',
É
usada
também
em
frases
como
"é
a
sério",
"nada
de
graças",
"levou
a
sério
o
que
era
só
piada".
Nas
línguas
semíticas,
segundo
me
informou
o
falecido
amigo
o
professor
Wensinck,
o
terreno
semântico
do
jogo
é
dominado
pela
raiz
la'ab,
que
é
evidentemente
da
mesma
família
de
Ia'aí.
Neste
caso,
contudo,
além
de
significar
jogo
em
sentido
próprio,
a
palavra
designa
também
o
riso
e
a
troça.
O
árabe
la'iba
abrange
o
jogo
em
geral,
assim
como
"fazer
troça",
"meter-se
com
alguém".
Em
aramaico
la'ab
significa
rir
e
troçar.
Além
disso,
em
árabe
e
em
sírio
a
mesma
raiz
significa
"babar-se"
(talvez
devido
ao
hábito
que
têm
as
crianças
de
formar
bolas
com
a
saliva,
o
que
pode
muito
bem
ser
interpretado
como
um
jogo).
O
hebreu
sahaq
também
associa
o
riso
e
o
jogo.
Por
último,
é
curioso
notar
que
em
árabe
la'iba
serve
para
indicar
o
"jogo"
de
um
instrumento
musical,
tal
como
em
algumas
línguas
europeias
modernas.
Portanto,
nas
línguas
semíticas
o
conceito
de
jogo
parece
possuir
um
caráter
um
tanto
ou
quanto
mais
vago
e
fluido
do
que
nas
outras
línguas
que
até
aqui
analisamos.
Conforme
veremos,
o
hebreu
apresenta
provas
cabais
da
identidade
entre
o
agonístico
e
o
lúdico.
Contrastando
fortemente
com
a
heterogeneidade
e
a
instabilidade
das
designações
da
função
lúdica
em
grego,
o
latim
cobre
todo
o
terreno
do
jogo
com
uma
única
palavra:
ludus,
de
ludere,
de
onde
deriva
diretamente
lusus.
Convém
salientar
que
jocus,
jocari,
no
sentido
especial
de
fazer
humor,
de
dizer
piadas,
não
significa
exatamente
jogo
em
latim
clássico.
Embora
ludere
possa
ser
usado
para
designar
os
saltos
dos
peixes,
o
esvoaçar
dos
pássaros
e
o
borbulhar
das
águas,
sua
etimologia
não
parece
residir
na
esfera
do
movimento
rápido,
e
sim
na
da
não-seriedade,
e
particularmente
na
da
"ilusão"
e
da
"simulação".
Ludus
abrange
os
jogos
infantis,
a
recreação,
as
competições,
as
representações
litúrgicas
e
teatrais
e
os
jogos
de
azar.
Na
expressão
lares
ludentes,
significa
"dançar".
Parece
estar
no
primeiro
plano
a
ideia
de
"simular"
ou
de
"tomar
o
aspecto
de".
Os
compostos
alludo,
colludo,
illudo
apontam
todos
na
direção
do
irreal,
do
ilusório.
Esta
base
semântica
está
oculta
em
ludi,
no
sentido
dos
grandes
jogos
públicos
que
desempenhavam
um
papel
tão
importante
na
vida
romana,
ou
então
no
sentido
de
"escolas".
No
primeiro
caso
o
ponto
de
partida
semântico
é
a
competição;
no
segundo,
é
provavelmente
a
"prática".
É
interessante
notar
que
ludus,
como
termo
equivalente
a
jogo
em
geral,
não
apenas
deixa
de
aparecer
nas
línguas
românicas
mas
igualmente,
tanto
quanto
sei,
quase
não
deixou
nelas
qualquer
vestígio.
Em
todas
essas
línguas,
desde
muito
cedo,
ludus
foi
suplantado
por
um
derivado
de
jocus,
cujo
sentido
específico
(gracejar,
troçar)
foi
ampliado
para
o
de
jogo
em
geral.
É
o
caso
do
francês
jeu,
jouer,
do
italiano
gioco,
giocare,
do
espanhol
juego,
jugar,
do
português
jogo,
jogar,
e
do
mesmo
joc,
juca8.
Deixamos
aqui
de
lado
o
problema
de
saber
se
o
desaparecimento
de
ludus
e
ludere
se
deve
a
causas
fonéticas
ou
semânticas.
Nas
línguas
europeias
modernas
a
palavra
"jogo"
abrange
um
terreno
extremamente
vasto.
Como
vimos,
tanto
nas
línguas
românicas
como
nas
germânicas
encontramo-la
distribuída
por
diversos
grupos
de
conceitos
relacionados
com
o
movimento
ou
com
a
ação,
os
quais
nada
têm
a
ver
com
o
sentido
estrito
ou
formal
do
termo.
Assim,
por
exemplo,
a
aplicação
de
"jogo"
à
mobilidade
limitada
das
peças
de
um
mecanismo
é
comum
ao
francês,
ao
italiano,
ao
inglês,
ao
espanhol,
ao
alemão
e
ao
holandês9;
e,
como
vimos,
também
é
comum
ao
japonês.
Tudo
parece
indicar
que
o
conceito
de
jogo
abrange
um
terreno
muito
mais
amplo
do
que
παιξειν
ou
mesmo
ludere;
terreno
este
onde
a
ideia
específica
de
jogo
se
dissolve
inteiramente
na
de
atividade
e
movimento
ligeiro.
Isto
é
especialmente
evidente
nas
línguas
germânicas.
Conforme
vimos
acima,
estas
não
possuem
uma
palavra
comum
para
designar
o
jogo.
Devemos,
portanto,
concluir
que
no
período
hipotético
do
germânico
primitivo
o
jogo
não
havia
ainda
sido
concebido
como
ideia
geral.
Mas
logo
que
cada
um
dos
ramos
em
que
o
germânico
se
dividiu
criou
uma
palavra
para
designar
o
jogo,
todas
estas
palavras
evoluíram
semanticamente
de
maneira
rigorosamente
idêntica,
ou
melhor,
o
mesmo
grupo
de
ideias,
extremamente
amplo
e
aparentemente
heterogêneo,
foi
concebido
como
"jogo".
Nos
textos
de
gótico
antigo
que
chegaram
até
nós,
extremamente
fragmentários,
e
que
se
reduzem
a
pouco
mais
do
que
uma
parte
do
Novo
Testamento,
não
há
nenhuma
palavra
equivalente
a
jogo;
mas,
a
tradução
de
Marcos
X,
34,
χαι
εμπαιξονονσιν
αΰτώ
("e
eles
troçarão
dele")
pelas
palavras
jah
bilaikand
ina
faz
parecer
mais
ou
menos
certo
que
o
gótico
exprimia
a
ideia
do
jogo
com
o
mesmo
laikan
que
está
na
origem
da
palavra
que
designa
o
jogo
nas
línguas
escandinavas,
e
também
aparece,
no
mesmo
sentido,
no
inglês
antigo
e
no
alto
e
baixo
alemão.
Nos
textos
góticos,
laikan
só
aparece
no
sentido
de
"saltar".
Conforme
já
vimos,
o
movimento
rápido
deve
ser
considerado
o
ponto
de
partida
concreto
de
muitos
dos
vocábulos
que
designam
o
jogo10.
Assim,
no
dicionário
de
alemão
de
Grimm
o
sentido
original
do
substantivo,
leich,
em
alto
alemão,
é
dado
como
significando
"um
vivo
movimento
rítmico",
estando
todos
os
seus
outros
sentidos
situados
no
interior
da
esfera
lúdica;
ao
passo
que
o
anglo-
saxão
lacan
serve
para
dar
a
ideia
de
to
swing,
to
wave
about11,
como
um
barco
sobre
as
ondas,
a
do
esvoaçar
dos
pássaros
ou
a
do
tremular
de
uma
chama.
Além
disso
lac
e
lacan,
tal
como
o
velho
nórdico
leikr,
leika12,
designam
todo
o
gênero
de
jogos,
danças
e
exercícios
físicos.
Nas
línguas
escandinavas
mais
recentes,
lege,
leka
estão
quase
exclusivamente
restringidos
ao
sentido
de
"jogar".
O
grande
número
de
palavras
derivadas
da
raiz
spil,
spel
nas
línguas
germânicas
é
revelada
de
modo
extremamente
minucioso
nos
verbetes
Spiel
e
spielen
do
Deutsche
Wôrter-buch
(X,
1,
1905),
da
autoria
de
M.
Heyne
e
outros.
Os
aspectos
que
aqui
nos
interessam
são
os
seguintes.
Em
primeiro
lugar,
a
ligação
entre
o
verbo
e
seu
predicado.
Pode-se
dizer
ein
Spiel
treiben
em
alemão,
ou
een
Spiel
doen
em
holandês,
assim
como
pursue
a
game
em
inglês,
mas
o
verbo
próprio
é
"jogar".
Diz-se
play
a
game,
ou
spielen
ein
Spiel13.
Em
certa
medida
este
aspecto
se
perdeu
em
inglês,
com
a
duplicação
em
play
e
game.
Permanece,
não
obstante
o
fato
de
ser
necessário,
a
fim
de
exprimir
a
natureza
da
atividade
em
questão,
que
a
ideia
contida
no
substantivo
seja
repetida
no
verbo.
Não
quererá
isto
dizer
que
o
ato
de
jogar
possua
uma
natureza
tão
peculiar
e
independente
que
se
exclui
das
categorias
usuais
da
ação?
Jogar
não
é
"fazer",
no
sentido
habitual;
não
se
"faz"
um
jogo
da
mesma
maneira
que
se
"faz"
ou
se
"vai"
pescar,
ou
caçar,
ou
dançar;
um
jogo
muito
simplesmente
"se
joga".
Outro
aspecto
significativo
é
o
que
se
segue.
Seja
qual
for
a
língua
que
tomemos
como
exemplo,
sempre
encontramos
uma
tendência
constante
para
enfraquecer
a
ideia
do
jogo,
transformando
este
em
uma
simples
atividade
geral
que
está
ligada
ao
jogo
propriamente
dito
apenas
através
de
um
de
seus
diversos
atributos,
tais
como
a
ligeireza,
a
tensão
e
a
incerteza
quanto
ao
resultado,
a
alternância
segundo
uma
certa
ordem,
a
livre
escolha
etc.
Um
exemplo
muito
antigo
desta
tendência
é
o
do
velho
nórdico
leika,
que
possui
uma
amplitude
de
significado
extraordinariamente
grande,
incluindo
"mover-se
livremente",
"causar"
ou
"provocar",
"segurar",
"distrair-se",
"passar
o
tempo",
"praticar".
Já
tratamos
do
uso
de
"jogo"
no
sentido
de
mobilidade
limitada
ou
liberdade
de
movimento.
A
este
respeito,
disse
o
presidente
do
Banco
da
Holanda,
por
ocasião
da
desvalorização
do
florim,
sem
qualquer
intenção
de
fazer
espírito
ou
poesia,
que
"no
reduzido
campo
de
ação
que
ora
lhe
restava,
o
padrão-ouro
não
podia
mais
jogar14.
Expressões
do
tipo
de
"livre
jogo",
"alguma
coisa
está
em
jogo"
etc.,
são
testemunho
dessa
atenuação
do
conceito.
Tal
fato
deve-se
menos
a
uma
transferência
metafórica
da
ideia
para
conceitos
diferentes
do
da
atividade
lúdica
propriamente
dita
do
que
a
uma
dissolução
espontânea
da
ideia
numa
ironia
inconsciente.
Provavelmente
não
foi
por
acaso
que
no
médio
alto
alemão
a
palavra
jogo
(spil)
e
seus
compostos
gozaram
de
grande
favor
na
linguagem
dos
místicos.
Certos
tipos
de
pensamento
parecem
ter
uma
inclinação
especial
para
estas
palavras.
Compare-se
com
a
evidente
predileção
de
Kant
por
expressões
como
"o
jogo
da
imaginação",
"o
jogo
das
ideias"
ou
"todo
o
jogo
dialético
das
ideias
cosmológicas".
Antes
de
passar
à
terceira
raiz
do
conceito
de
jogo
nas
línguas
germânicas,
isto
é,
o
próprio
jogo,
lembremos
de
passagem
que
o
inglês
arcaico
ou
anglo-saxão,
além
dos
termos
lac
e
plega,
possuía
também
spelian,
mas
exclusivamente
no
sentido
específico
de
"representar
o
papel
de
alguém"
ou
de
"tomar
o
lugar
de
outrem",
vicem
gerere.
É
aplicado,
por
exemplo,
ao
carneiro
que
foi
oferecido
em
sacrifício
no
lugar
de
Isaac.
Esta
significação
pode
também
caber
ao
holandês
spelen
ou
ao
inglês
playing
{playing
a
part,
"desempenhar
um
papel"),
mas
não
a
título
essencial.
Deixaremos
aqui
de
lado
o
problema
de
saber
até
que
ponto
spelian
está
gramaticalmente
ligado
ao
alemão
spielen15.
Merece
especial
interesse,
do
ponto
de
vista
semântico,
o
caso
do
inglês
play,
to
play.
Etimologicamente,
a
palavra
deriva
do
anglo-saxão
plega,
plegan,
significando
originariamente
"jogo"
ou
"jogar",
mas
indica
também
um
movimento
rápido,
um
gesto,
um
aperto
de
mãos,
bater
palmas,
tocar
instrumentos
musicais,
e
todos
os
tipos
de
exercício
físico.
O
inglês
atual
conserva,
ainda
em
grande
parte,
esta
significação
mais
ampla,
como
por
exemplo
na
segunda
cena
do
quarto
ato
de
Ricardo
III
de
Shakespeare:
Ah,
Buckingham,
now
do
I
play
the
touch
To
try
if
thou
be
current
gold
indeed.
Do
ponto
de
vista
formal,
há
uma
correspondência
total
e
indubitável
entre
o
inglês
arcaico
plegan
e
o
saxão
antigo
(continental)
plegan,
o
alto
alemão
arcaico
pflegan
e
o
frisão
antigo
plega.
Todas
estas
palavras,
das
quais
derivam
diretamente,
em
alemão,
pflegen
e,
em
holandês,
plegen,
possuem,
todavia,
um
sentido
abstrato
que
não
é
o
do
jogo.
Os
significados
mais
antigos
são:
"dar
garantia
de,
correr
um
risco,
expor-se
a
um
perigo
por
alguém
ou
alguma
coisa"16.
Seguem-se
"comprometer-se
ou
vincular-
se
(sich
verpflichten),
assistir
a,
tomar
conta
de
(verpflegen)".
O
uso
do
alemão
pflegen
está
ligado
à
ideia
da
realização
de
um
ato
sagrado,
assim
como
à
de
dar
conselhos
e
à
da
administração
da
justiça
(Rechtspflege),
e
em
outras
línguas
germânicas
é
possível
"pflegen"
homenagens,
agradecimentos,
juramentos,
pranto,
trabalho,
amor,
feitiçaria
e
até,
mas
só
raramente,
o
"jogo"17.
Portanto,
os
domínios
próprios
desta
palavra
são
principalmente
o
da
religião,
o
do
direito
e
o
da
ética.
Devido
à
evidente
diferença
de
sentido,
tem
sido
até
hoje
comumente
aceite
que
o
termo
inglês
to
play,
o
alemão
pflegen
e
seus
outros
equivalentes
germânicos
são
etimologicamente
homônimos,
sendo
derivados
de
raízes
de
som
semelhante,
mas
de
diferentes
origens.
As
observações
que
até
aqui
fizemos
nos
permitem
sustentar
a
opinião
contrária.
A
diferença
reside
mais
no
fato
de
to
play
evoluir
mais
no
sentido
do
concreto,
ao
passo
que
pflegen
tende
mais
para
o
lado
do
abstrato,
estando,
todavia,
ambos
semanticamente
ligados
a
um
domínio
muito
próximo
ao
do
jogo,
ao
qual
podemos
chamar
a
esfera
do
cerimonial.
Entre
as
mais
antigas
significações
de
pflegen
encontram-se
as
de
"celebração
de
festas"
e
de
"exibição
de
riqueza".
Pertence
a
esta
ordem
de
ideias
o
holandês
plechtig
(solene,
cerimonioso).
Formalmente,
a
palavra
alemã
Pflicht
e
a
holandesa
Plicht
correspondem
em
anglo-saxão
a
pliht
(de
onde
deriva
em
inglês
plight)18.
Enquanto
as
palavras
do
holandês
e
do
alemão
significam
"dever",
e
quase
nada
mais
do
que
isso,
pliht
significa
fundamentalmente
"perigo",
e
secundariamente
"ofensa",
"falta",
"censura",
e
finalmente
"compromisso"
(pledge).
O
verbo
plihtan
tem
o
sentido
de
"expor-se
ao
perigo",
"comprometer-se",
"empenhar-se".
Quanto
a
pledge,
o
latim
medieval
formou
a
palavra
plegium
a
partir
do
germano
plegan,
e
por
sua
vez
plegium
se
transformou
no
francês
antigo
pleige,
de
onde
deriva
o
termo
inglês
pledge.
Os
significados
mais
antigos
desta
palavra
são
"segurança",
"caução",
"refém",
significando
ainda
o
gage
af
battle,
ou
seja,
aposta,
no
sentido
de
"desafio",
e
por
último
a
cerimônia
mediante
a
qual
se
assume
um
compromisso,
o
brinde
(pledge)
à
saúde
de
alguém,
além
de
"promessa"
e
"compromisso"19.
Quem
poderia
negar
que
todos
estes
conceitos
—
desafio,
perigo,
competição
etc.
—
estão
muito
próximos
do
domínio
lúdico?
Jogo
e
perigo,
risco,
sorte,
temeridade
—
em
todos
estes
casos
trata-se
do
mesmo
campo
de
ação,
em
que
alguma
coisa
está
"em
jogo".
Somos
tentados
a
concluir
que
as
palavras
play
e
pflegen,
juntamente
com
seus
derivados,
são,
além
de
formalmente,
semanticamente
idênticas.
Isto
nos
leva
de
volta
às
relações
entre
jogo
e
competição,
sendo
a
competição
e
a
luta
tomadas
em
sentido
mais
amplo.
Em
todas
as
línguas
germânicas,
assim
como
em
muitas
outras,
os
termos
tipicamente
lúdicos
são
normalmente
aplicados
também
ao
combate
a
mão
armada.
A
poesia
anglo-saxã,
para
nos
limitarmos
a
um
único
exemplo,
está
cheia
de
tais
termos
e
frases.
O
combate
armado,
ou
batalha,
é
chamado
heado-lac
ou
beadu-lac,
o
que
significa
literalmente
"jogo
da
batalha";
ou
asc-plega,
"jogo
da
lança".
Não
há
dúvida
de
que,
no
caso
destes
compostos,
nos
encontramos
perante
metáforas
poéticas,
uma
transferência
plenamente
consciente
do
conceito
de
jogo
para
o
conceito
de
batalha.
O
mesmo
se
aplica,
embora
de
maneira
menos
evidente,
ao
Spilodun
ther
Vrankon
("Lá
jogaram
os
francos")
da
canção
em
alto
alemão
antigo
chamada
Ludwigslied,
que
celebra
a
vitória
de
Ludwig
III,
rei
dos
francos
ocidentais,
sobre
os
normandos,
em
Sancourt,
em
881.
Apesar
disto,
seria
temerário
concluir
que
todos
os
usos
de
termos
lúdicos
ligados
ao
combate
a
sério
não
passam
de
liberdades
poéticas.
É
aqui
necessário
que
nos
coloquemos
no
interior
da
esfera
do
pensamento
primitivo,
na
qual
o
combate
armado
e
toda
a
espécie
de
competições,
desde
os
jogos
mais
triviais
até
os
torneios
mais
mortíferos,
eram
incluídos
juntamente
com
o
jogo
propriamente
dito,
numa
única
ideia
fundamental,
a
de
uma
luta
com
a
sorte
limitada
por
certas
regras.
Deste
ponto
de
vista,
a
aplicação
da
palavra
"jogo"
ao
combate
dificilmente
pode
ser
considerada
uma
metáfora
consciente.
O
jogo
é
um
combate
e
o
combate
é
um
jogo.
Nenhum
exemplo
da
identidade
essencial
entre
o
jogo
e
o
combate
nas
culturas
primitivas
pode
ser
mais
decisivo
do
que
aquele
que
aparece
no
Antigo
Testamento.
No
Segundo
Livro
de
Samuel
(II,
14),
Abner
diz
a
Joab:
"Que
agora
os
jovens
se
ergam
e
joguem
perante
nós.
(Reg.
II,
2-14:
Surgant
pueri
et
ludant
coram
nobis.)
E
vieram
doze
de
cada
lado,
e
agarrou
cada
um
deles
seu
companheiro
pela
cabeça,
e
cada
um
deles
enterrou
sua
espada
no
flanco
de
seu
companheiro,
de
modo
que
caíam
juntos.
E
o
lugar
onde
caíram
se
chamou
desde
então
o
Campo
dos
Fortes."
Para
nosso
ponto
de
vista,
não
importa
saber
se
esta
estória
tem
algum
fundamento
histórico
ou
se
é
apenas
uma
lenda
etimológica
inventada
para
explicar
o
nome
de
uma
determinada
localidade.
Importa-nos
unicamente
o
fato
de
essa
ação
ser
chamada
jogo,
e
de
não
haver
referência
alguma
ao
fato
de
não
se
tratar
de
um
simples
jogo.
A
tradução
ludant
é
impecável:
"que
joguem".
O
texto
hebreu
emprega
aqui
uma
forma
do
verbo
sahaq,
que
significa
fundamentalmente
"rir",
assim
como
"fazer
algo
jocosamente",
e
também
"dançar"20.
Evidentemente
é
impossível
que
aqui
se
trate
de
liberdade
poética;
o
fato
é
que
é
possível
um
jogo
ser
mortal
sem
por
isso
deixar
de
ser
um
jogo,
o
que
constitui
mais
uma
razão
para
não
se
estabelecer
separação
entre
os
conceitos
de
jogo
e
de
competição21.
Isto
nos
conduz
a
uma
outra
conclusão:
dada
a
indivisibilidade
entre
o
jogo
e
o
combate,
no
espírito
primitivo,
segue-se
naturalmente
a
assimilação
entre
a
caça
e
o
jogo.
Esta
se
encontra
em
numerosos
aspectos
da
língua
e
da
literatura,
e
não
há
necessidade
de
nela
insistirmos.
Referindo-nos
à
raiz
da
palavra
play
(pflegen),
descobrimos
que
a
palavra
"jogo"
pode
aparecer
no
interior
do
domínio
do
cerimonial.
É
o
que
se
passa,
de
modo
muito
especial,
com
a
palavra
mais
comumente
usada
em
holandês
para
designar
o
casamento
(huwelijk),
a
qual
reflete
ainda
em
médio
baixo
holandês
huweleec
ou
huweleic
(à
letra:
"jogo
do
casamento").
Compare-se
também
com
f
eestelic
(festa,
festival)
e
vechtelic
(luta;
em
frisão
antigo,
fyuchtleek).
Todas
estas
palavras
são
compostos
da
raiz
leik,
já
referida,
que
forneceu
às
línguas
escandinavas
o
termo
geral
para
designar
o
jogo.
Em
sua
forma
anglo-saxã,
lac,
la-can,
significa,
além
de
jogo,
salto
e
movimento
rítmico,
e
também
sacrifício,
oferta,
dádiva,
favor,
e
mesmo
generosidade,
munificência.
O
ponto
de
partida
desta
curiosa
evolução
semântica
reside
provavelmente
em
palavras
como
ecgalâc
e
sveorda-lâc,
dança
do
sabre;
de
onde
provém,
segundo
Grimm,
o
conceito
de
dança
ritual,
propiciatória22.
Antes
de
concluir
o
exame
linguístico
da
noção
de
jogo,
é
necessário
fazer
ainda
referência
a
algumas
aplicações
especiais
da
palavra
"jogo",
sobretudo
em
relação
à
designação
do
manejo
dos
instrumentos
musicais.
Observamos
acima
que
o
árabe
la'iba
tem
este
sentido
em
comum
com
certo
número
de
línguas
europeias,
nomeadamente
as
línguas
germânicas
(e
algumas
das
eslavas),
as
quais,
já
em
sua
fase
medieval,
designam
a
mestria
instrumental
pela
palavra
"jogo"23.
Entre
as
línguas
românicas,
ao
que
parece,
apenas
o
francês
possui
jeu
e
jouer
neste
sentido24,
o
que
poderia
ser
tomado
como
sinal
de
influência
germânica.
Nem
em
grego
nem
em
latim
existe
essa
acepção.
O
fato
de
o
alemão
Spielmann
(em
holandês,
Speelman)
haver
adquirido
a
conotação
"músico"
não
significa
necessariamente
que
haja
aqui
uma
ligação
direta
com
a
noção
de
"tocar
instrumentos";
Spielmann
corresponde
de
maneira
exata
a
joculator,
jongleur,
cujo
sentido
amplo
original
(um
artista
ou
intérprete
de
qualquer
tipo)
foi
sendo
restringido,
até
chegar
por
um
lado
à
noção
de
poeta
cantor
e
por
outro,
à
de
músico,
para
finalmente
ser
reduzido
à
de
malabarista,
qualquer
homem
que
faz
habilidades
com
facas
ou
bolas.
É
perfeitamente
natural
que
tenhamos
tendência
a
conceber
a
música
como
pertencente
ao
domínio
do
jogo,
mesmo
sem
levar
em
conta
estes
aspectos
especificamente
linguísticos.
A
interpretação
musical
possui
desde
o
início
todas
as
características
formais
do
jogo
propriamente
dito.
É
uma
atividade
que
se
inicia
e
termina
dentro
de
estreitos
limites
de
tempo
e
de
lugar,
é
passível
de
repetição,
consiste
essencialmente
em
ordem,
ritmo
e
alternância,
transporta
tanto
o
público
como
os
intérpretes
para
fora
da
vida
quotidiana,
para
uma
região
de
alegria
e
serenidade,
conferindo
mesmo
à
música
triste
o
caráter
de
um
sublime
prazer.
Por
outras
palavras,
tem
o
poder
de
"encantar"
e
de
"arrebatar"
tanto
uns
como
outros.
Seria
em
si
mesmo
perfeitamente
compreensível,
portanto,
englobar
no
jogo
toda
espécie
de
música.
Todavia,
sabemos
que
o
jogo
é
algo
diferente,
dotado
de
uma
perfeita
autonomia.
Além
disso,
se
se
tiver
em
mente
que
o
termo
"jogo"
nunca
é
aplicado
ao
canto,
e
só
em
algumas
línguas
é
aplicado
à
música
instrumental,
considerar-se-á
provável
que
o
elo
de
ligação
entre
o
jogo
e
a
habilidade
instrumental
deva
ser
procurado
no
movimento
ágil
e
ordenado
dos
dedos.
Há
ainda
um
outro
uso
da
palavra
"jogo",
que
de
modo
algum
é
menos
fundamental
ou
menos
amplo
do
que
a
identificação
entre
o
jogo
e
o
combate
a
sério,
a
saber,
o
jogo
tomado
em
sentido
erótico.
Nas
línguas
germânicas
são
extremamente
abundantes
as
aplicações
eróticas
da
palavra,
c
pouco
necessário
se
torna
citar
grande
número
de
exemplos.
Em
alemão,
usa-se
Spielkind
(em
holandês
speelkind)
para
designar
a
criança
nascida
fora
do
casamento;
compare-se
também
com
o
holandês
aanspelen,
o
acasalamento
dos
cães,
e
minnespel,
o
ato
de
copular.
A
velha
raiz
germânica
leik,
leikan
persiste
ainda
nas
palavras
alemãs
Laich
e
laichen
(pôr
ovos,
no
caso
dos
peixes),
no
sueco
leka,
o
acasalamento
das
aves,
e
no
inglês
lechery25.
Em
sânscrito
existem
idênticas
acepções
da
palavra,
como
por
exemplo
o
uso
frequente
de
kridati
(jogo)
em
sentido
erótico
em
termos
como
kridarat-nam
(à
letra:
"a
joia
dos
jogos"),
que
significa
"copulação".
De
acordo
com
isso,
o
professor
Buytendijk
considera
o
jogo
do
amor
o
exemplo
mais
perfeito
do
jogo
em
geral,
pois
apresenta
da
forma
mais
clara
possível
todos
os
caracteres
essenciais
do
jogo26.
Mas
é
necessário
que
sejamos
mais
específicos.
Se
nos
limitarmos
às
características
formais
e
funcionais
do
jogo,
tais
como
acima
foram
resumidas,
é
evidente
que
poucas
podem
efetivamente
servir
como
exemplos
do
ato
sexual.
Aquilo
que
o
espírito
da
linguagem
tende
a
conceber
como
jogo
não
é
propriamente
o
ato
sexual
enquanto
tal,
trata-se
principalmente
do
caminho
que
a
ele
conduz,
o
prelúdio
e
preparação
do
amor,
que
frequentemente
revela
numerosas
características
lúdicas.
Isto
é
particularmente
verdadeiro
nos
casos
em
que
um
dos
sexos
necessita
conquistar
o
outro
antes
da
cópula.
Os
elementos
dinâmicos
do
jogo
referidos
por
Buytendijk,
tais
como
a
criação
deliberada
de
obstáculos,
o
adorno,
a
surpresa,
o
fingimento,
a
tensão
etc.,
pertencem
todos
eles
ao
processo
do
flirt
e
do
wooing27.
Todavia,
nenhuma
destas
funções
pode
ser
considerada
jogo
em
sentido
estrito.
O
elemento
lúdico
só
se
exprime
de
maneira
inequívoca
nos
passos
de
dança
que
precedem
a
cópula
entre
as
aves.
As
carícias
enquanto
tais
não
possuem
um
caráter
lúdico,
embora
ocasionalmente
possam
revestir-se
desse
aspecto.
E
seria
inteiramente
errôneo
incluir
o
próprio
ato
sexual,
como
jogo
de
amor,
na
categoria
de
jogo.
O
processo
biológico
da
cópula
não
corresponde
às
características
formais
do
jogo,
tais
como
as
enunciamos.
Também
a
linguagem
normalmente
estabelece
uma
distinção
entre
o
jogo
do
amor
e
a
cópula.
A
palavra
"jogo"
é
especialmente,
ou
mesmo
exclusivamente,
reservada
para
as
relações
eróticas
que
escapam
à
norma
social.
Como
vimos
no
caso
do
blackfoot,
a
mesma
palavra
koani
designa
os
jogos
infantis
em
geral
e
as
relações
sexuais
ilícitas.
Em
resumo,
portanto,
e
contrastando
acentuadamente
com
a
profundamente
arraigada
afinidade
entre
o
jogo
e
a
luta,
vemo-nos
obrigados
a
considerar
o
uso
erótico
do
termo
lúdico,
por
mais
universalmente
aceite
e
mais
evidente
que
possa
ser,
como
uma
metáfora
perfeitamente
típica
e
consciente.
O
valor
conceptual
de
uma
palavra
é
sempre
condicionado
pela
palavra
que
designa
seu
oposto.
Para
nós,
a
antítese
do
jogo
é
a
seriedade,
e
também
num
sentido
muito
especial,
o
de
trabalho,
ao
passo
que
à
seriedade
podem
também
opor-se
a
piada
e
a
brincadeira.
Todavia,
a
mais
importante
é
a
parelha
complementar
de
opostos
jogo-seriedade.
Nem
todas
as
línguas
exprimem
esse
contraste
de
maneira
tão
simples
e
completa
como
as
do
grupo
germânico,
com
o
termo
ernst
(earnest,
em
inglês),
que
corresponde
exatamente
ao
alvara
das
línguas
escandinavas.
Igualmente
definido
é,
em
grego,
o
contraste
entre
σπουδη
'
e
παιδια'.
Outras
línguas
designam
o
contrário
do
jogo
mediante
um
adjetivo,
como
por
exemplo
em
latim,
onde
não
existe
nenhum
substantivo
correspondente
a
serius.
Tal
fato
parece
indicar
que
a
abstração
do
antônimo
de
jogo
é
conceptualmente
incompleta.
Gravitas,
gravis
podem
por
vezes
designar
a
seriedade,
mas
não
correspondem
especificamente
a
essa
acepção.
As
línguas
românicas
também
precisam
resolver
o
problema
com
um
derivado
do
adjetivo,
como
a
serietà
do
italiano
ou
a
seriedad
do
espanhol.
O
francês
só
muito
relutantemente
substantiva
o
conceito
—
sériosité
é
um
termo
que
possui
uma
existência
extremamente
débil28,
do
mesmo
modo
que
o
inglês
seriousness.
O
ponto
de
partida
semântico
do
grego
σπουδη'
é
"zelo"
ou
"rapidez",
e
o
latim
serius
tem,
provavelmente,
a
ideia
de
"pesado".
A
palavra
germânica
apresenta
maiores
dificuldades.
O
sentido
original
de
ernest,
ernust,
eornost
é
geralmente
considerado
como
sendo
"combate",
"luta".
E
efetivamente
em
muitos
casos
significa
"luta".
A
dificuldade
surge
porque
no
caso
do
inglês
earnest
parece
ter
havido
coincidência
entre
duas
formas
diferentes,
uma
correspondendo
ao
inglês
antigo
(e)ornest,
e
a
outra
ao
nórdico
antigo
orrusta,
que
significa
"batalha,
combate
individual,
prélio
ou
desafio".
A
identidade
etimológica
destas
duas
palavras
constitui
uma
questão
em
aberto,
portanto
não
procuraremos
resolvê-la
e
passaremos
a
nossa
conclusão
geral.
Podemos
talvez
afirmar
que
na
linguagem
o
conceito
de
jogo
parece
ser
muito
mais
fundamental
do
que
seu
oposto.
A
necessidade
de
um
termo
amplo
capaz
de
exprimir
o
"não--jogo"
deve
ter
sido
bem
pouco
intensa,
e
as
diversas
expressões
da
"seriedade"
não
passam
de
uma
tentativa
secundária
da
linguagem
para
inventar
o
oposto
conceptual
de
"jogo".
Todas
elas
se
agrupam
em
redor
das
ideias
de
"zelo",
de
"esforço",
de
"aplicação",
apesar
do
fato
de
que,
em
si
mesmas,
todas
estas
qualidades,
podem
também
ser
encontradas
associadas
ao
jogo.
O
surgimento
de
uma
palavra
para
designar
a
"seriedade"
significa
que
os
homens
tomaram
consciência
do
conceito
de
jogo
como
entidade
independente
—
processo
este
que,
como
anteriormente
salientamos,
é
bastante
tardio.
Não
é,
portanto,
de
se
admirar
que
as
línguas
germânicas,
com
seu
conceito
de
jogo
tão
amplo
e
pronunciado,
tenham
também
acentuado
mais
fortemente
o
seu
oposto.
Deixando
de
lado
o
problema
linguístico,
e
analisando
um
pouco
mais
atentamente
a
antítese
jogo-seriedade,
verificamos
que
os
dois
termos
não
possuem
valor
idêntico:
jogo
é
positivo,
seriedade
é
negativo.
O
significado
de
"seriedade"
é
definido
de
maneira
exaustiva
pela
negação
de
"jogo"
—
seriedade
significando
ausência
de
jogo
ou
brincadeira
c
nada
mais.
Por
outro
lado,
o
significado
de
"jogo"
de
modo
algum
se
define
ou
se
esgota
se
considerado
simplesmente
como
ausência
de
seriedade.
O
jogo
é
uma
entidade
autônoma.
O
conceito
de
jogo
enquanto
tal
é
de
ordem
mais
elevada
do
que
o
de
seriedade.
Porque
a
seriedade
procura
excluir
o
jogo,
ao
passo
que
o
jogo
pode
muito
bem
incluir
a
seriedade.
Notas do capítulo 2
1
Escusado
seria
lizer
que
Luso,
filho
ou
companheiro
de
Baco
e
originador
da
raça
lusitana,
foi
uma
invenção
livresca
extremamente
tardia.
2
Quando
muito,
podemos
imaginar
alguma
afinidade
com
-ΙΓΘΟ.
Concluindo
daí
que
a
desinência
ινδα
é
de
origem
egeia
ou
pré-
indogermânica.
A
terminação
aparece
como
sufixo
verbal
em
αλινδω
e
χυλίνδω,
significando
em,
ambos
os
casos
"gabar-se",
variantes
de
αλίω
e
χυλίω.
Neste
caso
a
noção
de
"jogo"
está
muito
enfraquecida.
3
H.
Bolkestein,
De
cultuurhistoricus
en
zijn
slof,
nas
Atas
do
XVII
Congresso
Holandês
de
Filologia,
Leyden,
1937,
onde
se
refere
à
minha
conferência
sobre
Os
limites
entre
o
rogo
e
a
seriedade
na
cultura.
4
Deixamos
à
parte,
aqui,
o
problema
de
uma
possível
relação
com
dyu-céu
aberto.
5
Andar
fazendo
alguma
coisa.
6
Não
tive
a
possibilidade
de
determinar
se
neste
caso
houve
qualquer
influência
do
termo
técnico
inglês.
7
Convém
todavia
assinalar
que
a
ideia
de
ruhen
(repousar)
só
a
título
secundário
foi
aqui
associada.
Geruhen
(dignar-se)
não
tem
originariamente
nada
em
comum
com
ruhen
(repousar),
mas
é
aparentado
ao
médio-
holandês
roecken
(preocupar-se
com;
por
exemplo
rokeeloos,
despreocupado).
8
Existem
palavras
semelhantes
em
catalão,
provençal
e
reto-romano.
9
Esse
uso
também
se
encontra
em
português,
embora
com
menos
frequência
do
que,
por
exemplo,
em
francês
ou
inglês.
(N.
do
T.)
10
O
que
faz
lembrar
a
hipótese
de
Platão
segundo
a
qual
o
jogo
teve
origem
na
necessidade
de
saltar
que
se
verifica
em
todas
as
criaturas
jovens,
tanto
animais
como
humanas.
(Leis,
II
653).
11
Balançar,
oscilar.
(N.
do
T.)
12
O
velho
nórdico
leika,
do
mesmo
modo
que
o
holandês
spelen,
possui
uma
capacidade
significativa
extremamente
ampla.
É
igualmente
sinônimo
de
mover-se
livremente,
empreender,
efetuar,
manejar,
e
dedicar-se,
passar
o
tempo
a.
13
Todas
as
cinco
expressões
se
traduzem
por
jogar
um
jogo.
(N.
do
T.)
14
O
termo
jogar
não
seria
o
naturalmente
usado
em
português,
neste
caso,
onde
seria
substituído
por
expressões
como
"desempenhar
um
papel''
ou
*'ter
livre
curso".
(N.
do
T.)
15
A
terminação
-spiel,
como
no
alemão
Beispiel
ou
Kirchspiel
e
no
holandês
kerspel
ou
dingspel
é
geralmente
considerada
como
pertencente
à
raiz
spell
(da
qual
deriva
o
holandês
spellen,
soletrar),
que
dá
também
em
inglês
spell
(soletrar)
e
gospel
(evangelho),
e
como
diferente
da
raiz
.\pel-
(jogo).
16
Cf.
J.
Franck,
Etymologisch
Woordenboek
der
Nederlandsche
taal,
publicado
por
N.
van
Wijk
(Haia,
1912);
Woordenboek
der
Nederlandsche
taal,
XII
I,
publicado
por
G.
J.
Boekenoogen
e
J.
H.
van
Lesen
(Haia-
Leyden,
1931).
17
Em
uma
das
canções
de
Hadewich,
monja
de
Brabante
(século
XIII).
encontram-se
os
seguintes
versos:
Der
minnen
ghebruken,
dat
es
een
spel,
Dat
niemand
wel
ghetoenen
en
mach,
Ende
al
mocht
dies
pleget
iet
toenen
wel,
Hine
const
verstaen,
dies
noijt
en
plach.
Liedeven
van
Hadewijch,
ed.
Johanna
Snellen
(Amsterdã,
1907).
Aqui,
plegen
pode
indubitavelmente
ser
traduzido
por
"jogar".
18
Ao
lado
de
pleoh,
em
frisão
antigo
plê
(perigo).
19
Compare-se
com
estes
sentidos
de
pledge
o
anglo-saxão
beadoweg,
haedeweg
—
poculum
certaminis,
certamen.
20
Nos
Setenta
temos:
ανστητωσαν
δη
.τα
παιδαφια
χαι
Παιξατωσαν
ενωπιον
νμων.
21
Observe-se
ainda
de
passagem
que
os
combates
singulares
entre
Thor
e
Loki
em
Utgardloki,
no
Gyljaginning,
95,
recebem
a
designação
de
leika.
22
Grimm,
Deutsche
Mythologie,
ed.
E.
H.
Meyer,
1
(Göttingen,
1875,
p.
32).
Ct.
Jan
de
Vries,
Allgermanische
Religionsgeschichte,
I
(Berlim,
1934,
p.
256);
Robert
Stumpfl,
Kultsoiele
der
Germanen
als
Ursprung
des
mittelalterlichen
Dramas
(Bonn,
1936,
p.
122
e
ss.).
23
O
frisão
moderno
estabelece
uma
distinção
entre
boartsje
(jogos
infantis)
e
spytje
(tocar
instrumentos
musicais),
sendo
este
último
termo
provavelmente
uma
contribuição
holandesa.
24
O
italiano
utiliza
sonare,
e
o
espanhol
tocar.
25
Lascívia,
lubricidade.
(N
do
T.)
26
Op.
cit.,
p.
95:
cf.
p.
27
e
ss.
27
"Fazer
a
corte"
ou
"namorar".
(N.
do
T.)
28
o
autor
parece
esquecer
aqui
o
uso
tão
generalizado
de
sérieux
como
substantivo
(le
sérieux
opõe-se
bastante
rigorosamente
a
jeu),
USO
que
não
possui
equivalente
em
português,
espanhol
ou
italiano.
(N.
do
T.)
3.
O
Jogo
e
a
Competição
como
Funções
Culturais
O
fato
de
apontarmos
a
presença
de
um
elemento
lúdico
na
cultura
não
quer
dizer
que
atribuamos
aos
jogos
um
lugar
de
primeiro
plano,
entre
as
diversas
atividades
da
vida
civilizada,
nem
que
pretendamos
afirmar
que
a
civilização
teve
origem
no
jogo
através
de
qualquer
processo
evolutivo,
no
sentido
de
ter
havido
algo
que
inicialmente
era
jogo
e
depois
se
transformou
em
algo
que
não
era
mais
jogo,
sendo-lhe
possível
ser
considerado
cultura.
A
concepção
que
apresentamos
nas
páginas
que
se
seguem
é
que
a
cultura
surge
sob
a
forma
de
jogo,
que
ela
é,
desde
seus
primeiros
passos,
como
que
"jogada".
Mesmo
as
atividades
que
visam
à
satisfação
imediata
das
necessidades
vitais,
como
por
exemplo
a
caça,
tendem
a
assumir
nas
sociedades
primitivas
uma
forma
lúdica.
A
vida
social
reveste-se
de
formas
suprabiológicas,
que
lhe
conferem
uma
dignidade
superior
sob
a
forma
de
jogo,
e
é
através
deste
último
que
a
sociedade
exprime
sua
interpretação
da
vida
e
do
mundo.
Não
queremos
com
isto
dizer
que
o
jogo
se
transforma
em
cultura,
e
sim
que
em
suas
fases
mais
primitivas
a
cultura
possui
um
caráter
lúdico,
que
ela
se
processa
segundo
as
formas
e
no
ambiente
do
jogo.
Na
dupla
unidade
do
jogo
e
da
cultura,
é
ao
jogo
que
cabe
a
primazia.
Este
é
objetivamente
observável,
passível
de
definição
concreta,
ao
passo
que
a
cultura
é
apenas
um
termo
que
nossa
consciência
histórica
atribui
a
determinados
aspectos.
Esta
concepção
está
próxima
da
de
Frobenius,
que
se
refere,
em
seu
Kulturgeschichte
Afrikas1,
à
gênese
da
cultura
als
eines
aus
dem
naturlichen
"Sein" aufgestiegenen
"Spieles"
(como
um
jogo"
que
emerge
do
"ser"
natural).
Em
minha
opinião,
contudo,
Frobenius
concebe
as
relações
entre
o
jogo
e
a
cultura
de
maneira
demasiado
mística,
descrevendo-as
de
modo
excessivamente
vago.
Não
consegue
pôr
o
dedo
no
ponto
onde
a
cultura
emerge
do
jogo.
No
decurso
da
evolução
de
uma
cultura,
quer
progredindo
quer
regredindo,
a
relação
original
por
nós
definida
entre
o
jogo
e
o
não-jogo
não
permanece
imutável.
Regra
geral,
o
elemento
lúdico
vai
gradualmente
passando
para
segundo
plano,
sendo
sua
maior
parte
absorvida
pela
esfera
do
sagrado.
O
restante
cristaliza-se
sob
a
forma
de
saber:
folclore,
poesia,
filosofia,
e
as
diversas
formas
da
vida
jurídica
e
política.
Fica
assim
completamente
oculto
por
detrás
dos
fenômenos
culturais
o
elemento
lúdico
original.
Mas
ó
sempre
possível
que
a
qualquer
momento,
mesmo
nas
civilizações
mais
desenvolvidas,
o
"instinto"
lúdico
se
reafirme
em
sua
plenitude,
mergulhando
o
indivíduo
e
a
massa
na
intoxicação
de
um
jogo
gigantesco.
Como
é
natural,
a
relação
entre
cultura
e
jogo
torna-se
especialmente
evidente
nas
formas
mais
elevadas
dos
jogos
sociais,
onde
estes
consistem
na
atividade
ordenada
de
um
grupo
ou
de
dois
grupos
opostos.
O
jogo
solitário
só
dentro
de
estreitos
limites
possui
uma
capacidade
criadora
de
cultura.
Conforme
acima
assinalamos,
todos
os
fatores
básicos
do
jogo,
tanto
individuais
quanto
comunitários,
encontram-se
já
presentes
na
vida
animal
—
a
saber,
nas
competições,
exibições,
representações,
desafios,
nos
ornamentos
e
pavoneios,
nos
fingimentos
e
nas
regras
limitativas.
É
duplamente
notável
que
os
pássaros,
filogeneticamente
tão
distantes
dos
seres
humanos,
possuam
tantos
elementos
em
comum
com
estes.
Os
faisões
silvestres
executam
danças,
os
corvos
realizam
competições
de
voo,
as
aves
do
paraíso
e
outras
ornamentam
os
ninhos,
as
aves
canoras
emitem
suas
melodias.
Assim,
as
competições
e
exibições,
enquanto
divertimentos,
não
procedem
da
cultura,
mas,
pelo
contrário,
precedem-na.
Os
jogos
em
grupo
possuem
um
caráter
fundamentalmente
antitético.
Em
geral,
são
jogados
entre
duas
equipes.
Todavia,
as
danças,
cortejos
e
espetáculos
podem
ser
inteiramente
destituídos
desse
caráter
antitético.
Além
disso,
"antitético"
não
é
necessariamente
sinônimo
de
"combativo"
ou
"agonístico".
Um
canto
alternado,
as
duas
metades
de
um
coro,
um
minueto,
as
vozes
de
um
conjunto
musical,
o
jogo
da
"cama
de
gato"
(tão
interessante
para
o
antropólogo,
pois
em
alguns
povos
primitivos
implica
complicados
sistemas
de
magia),
são
exemplos
de
jogo
antitético
que
nem
sempre
são
agonísticos,
embora,
por
vezes,
neles
seja
possível
verificar
uma
certa
emulação.
É frequente
uma
atividade
possuidora
de
um
caráter
autônomo,
como
por
exemplo
a
apresentação
de
uma
peça
de
teatro
ou
de
uma
composição
musical,
passar
ocasionalmente
para
a
categoria
agonística,
por
tomar-se
pretexto
para
uma
competição,
sendo
o
prêmio
conferido
em
função
da
composição
ou
da
execução,
como
acontecia
no
teatro
grego.
Apontamos,
entre
as
características
gerais
do
jogo,
a
tensão
e
a
incerteza.
Está
sempre
presente
a
pergunta:
"dará
certo"?
Esta
condição
verifica-se
mesmo
quando
jogamos
paciência
ou
fazemos
quebra-cabeças,
acrósticos,
palavras
cruzadas,
diabolô
etc.
A
tensão
e
a
incerteza
quanto
ao
resultado
aumentam
enormemente
quando
o
elemento
antitético
se
torna
efetivamente
agonístico
nos
jogos
entre
grupos.
A
paixão
de
ganhar
ameaça
por
vezes
destruir
a
ligeireza
própria
do
jogo.
E
aqui
surge
uma
distinção
importante.
Nos
jogos
puramente
de
sorte,
a
tensão
sentida
pelo
jogador
só
muito
fracamente
é
comunicada
a
qualquer
observador.
Os
jogos
de
azar
constituem
um
curiosíssimo
objeto
de
pesquisa
cultural,
mas
devemos
considerá-los
inúteis
para
o
estudo
da
evolução
da
cultura.
São
estéreis,
nada
acrescentam
à
vida
do
espírito.
Mas
esta
situação
muda
logo
que
o
jogo
exige
aplicação,
conhecimentos,
habilidade,
coragem
e
força.
Quanto
mais
"difícil"
é
o
jogo,
maior
a
tensão
entre
os
que
a
ele
assistem.
É
possível
um
jogo
de
xadrez
fascinar
os
assistentes,
embora,
apesar
disso,
ele
seja
estéril
para
a
cultura
e
destituído
de
qualquer
encanto
visível.
E
a
partir
do
momento
em
que
um
jogo
é
um
espetáculo
belo
seu
valor
cultural
torna-se
evidente.
Mas
este
valor
estético
não
é
indispensável
para
a
cultura:
os
valores
físicos,
intelectuais,
morais
ou
espirituais
também
são
capazes
de
elevar
o
jogo
até
o
nível
cultural.
Quanto
maior
é
sua
capacidade
de
elevar
o
tom,
a
intensidade
da
vida
do
indivíduo
ou
do
grupo,
mais
rapidamente
passará
a
fazer
parte
da
civilização.
A
representação
sagrada
e
a
competição
solene
são
duas
formas
que
surgem
constantemente
na
civilização,
permitindo
a
esta
desenvolver-se
como
jogo
e
no
jogo.
Imediatamente
se
coloca
aqui
o
problema
que
afloramos
no
primeiro
capítulo2.
Será
legítimo
fazer
o
conceito
de
jogo
abranger
toda
espécie
de
competições?
Vimos
como
os
gregos
estabeleciam
uma
distinção
entre
άγών
e
παιδιά
.
Aliás,
tal
fato
poderia
ser
explicado
em
termos
etimológicos,
pois
a
palavra
παιδιά
evocava
o
aspecto
infantil
de
maneira
tão
intensa
que
dificilmente
poderia
ter
sido
aplicada
às
competições
sérias
que
constituíam
o
núcleo
central
da
vida
social
helênica.
Por
outro
lado,
a
palavra
άγων
definia
a
competição
de
um
ponto
de
vista
inteiramente
diferente.
Seu
sentido
original
parece
ter
sido
o
de
"reunião"
(compare-se
com
άγοφά,
a
praça
do
mercado,
palavra
relacionada
com
άγων);
como
termo,
portanto,
nada
tem
a
ver
com
o
jogo
propriamente
dito.
Mas
a
identidade
essencial
do
jogo
e
da
competição
nem
por
isso
deixa
de
ser
entrevista
quando,
conforme
vimos,
Platão
emprega
παίγνιον
para
designar
as
danças
rituais
armadas
dos
Curetas
(τά
άων
ουφτωι
ένόπλια
παίγνια)
e
παιδιά para
os
ritos
em
geral.
O
fato
de
a
maior
parte
das
competições
dos
gregos
serem
realizadas
com
uma
seriedade
mortal
não
é
razão
para
separar
o
agon
do
jogo,
ou
para
negar
o
caráter
lúdico
do
primeiro.
A
competição
possui todas
as
características
formais
e
a
maior
parte
das
características
funcionais
do
jogo.
Tanto
o
holandês
quanto
o
alemão
possuem
uma
palavra
que
exprime
esta
unidade
de
maneira
extremamente
clara:
respectivamente,
wedkamp
e
Wettkampf.
Esta
palavra
encerra
a
ideia
do
campo
de
jogo
(compus,
em
latim),
e
a
da
aposta
(Wette).
Além
do
mais,
é
a
palavra
normalmente
usada
nessas
línguas
para
designar
as
competições.
Cabe
aqui
uma
nova
referência
ao
notável
testemunho
do
Segundo
Livro
de
Samuel,
no
qual
uma
luta
de
morte
entre
dois
grupos
era,
apesar
disso,
chamada
"jogo",
sendo
a
palavra
extraída
da
esfera
do
riso.
Em
grande
número
de
vasos
gregos
podemos
verificar
competições
entre
homens
armados
caracterizadas
como
agon
pela
presença
dos
tocadores
de
flauta
que
as
acompanha3.
Nos
Jogos
Olímpicos
havia
duelos
que
só
terminavam
com
a
morte
de
um
dos
contendores4.
As
tremendas
proezas
de
Thor
e
seus
companheiros
na
luta
contra
o
Homem
do
Utgarda-Loki
são
chamadas
leika
(jogo).
Por
todas
estas
razões,
não
parece
excessivo
considerar
a
disparidade
terminológica
entre
a
competição
e
o
jogo
na
língua
grega
como
resultado
de
uma
incapacidade
mais
ou
menos
acidental
para
abstrair
um
conceito
geral
que
abrangesse
ambos.
Em
resumo,
quanto
a
saber
se
temos
o
direito
de
incluir
a
competição
na
categoria
de
jogo,
podemos
sem
hesitações
responder
afirmativamente.
Tal
como
todas
as
outras
formas
de
jogo,
a
competição
é
geralmente
desprovida
de
objetivo.
Quer
isto
dizer
que
a
ação
começa
e
termina
em
si
mesma,
não
tendo
o
resultado
qualquer
contribuição
para
o
processo
vital
do
grupo.
O
popular
ditado
holandês
segundo
o
qual
"o
que
importa
não
são
as
bolas
de
gude,
mas
o
jogo"
exprime
este
fato
com
grande
clareza.
Isto
significa
que
o
elemento
final
da
ação
reside
antes
de
mais
nada
no
resultado
enquanto
tal,
sem
relação
direta
com
o
que
se
segue.
O
resultado
do
jogo,
como
fato
objetivo,
é
insignificante
e
em
si
mesmo
indiferente.
Diz-se
que
o
Xá
da
Pérsia,
durante
uma
visita
à
Inglaterra,
recusou-se
a
assistir
a
uma
corrida
de
cavalos,
alegando
saber
muito
bem
que
alguns
cavalos
correm
mais
depressa
do
que
os
outros.
De
seu
ponto
de
vista
tinha
toda
a
razão:
recusava-se
a
tomar
parte
numa
esfera
lúdica
que
lhe
era
estranha,
preferindo
ficar
de
lado.
O
resultado
de
um
jogo
ou
de
uma
competição
—
excetuando-se,
evidentemente,
os
que
implicam
um
lucro
pecuniário
—
só
tem
interesse
para
aqueles
que
dele
participam
como
jogadores
ou
como
espectadores,
quer
pessoalmente
e
no
local,
quer
como
ouvintes
pelo
rádio
ou
espectadores
pela
televisão
etc.,
e
aceitam
suas
regras.
Tornaram-se
parceiros
do
jogo
e
querem
sê-lo.
Para
eles,
não
é
insignificante
nem
indiferente
que
o
vencedor
seja
"Garboso"
ou
"Destemido".
A
essência
do
lúdico
está
contida
na
frase
"há
alguma
coisa
em
jogo".
Mas
esse
"alguma
coisa"
não
é
o
resultado
material
do
jogo,
nem
o
mero
fato
de
a
bola
estar
no
buraco,
mas
o
fato
ideal
de
se
ter
acertado
ou
de
o
jogo
ter
sido
ganho.
O
êxito
dá
ao
jogador
uma
satisfação
que
dura
mais
ou
menos
tempo,
conforme
o
caso.
O sentimento
de
prazer
ou
de
satisfação
aumenta
com
a
presença
de
espectadores,
embora
esta
não
seja
essencial
para
esse
prazer.
Uma
pessoa
que
"faz"
uma
paciência
sente
um
duplo
prazer
quando
alguém
está
assistindo,
mas
sente
prazer
mesmo
sem
isso.
Em
todos
os
jogos,
é
muito
importante
que
o
jogador
possa
gabar-se
a
outros
de
seus
êxitos.
Neste
sentido,
o
pescador
constitui
um
exemplo
bem
conhecido.
Voltaremos
depois
a
este
problema
da
autoaprovação.
A
ideia
de
ganhar
está
estreitamente
relacionada
com
o
jogo.
Todavia,
para
alguém
ganhar
é
preciso
que
haja
um
parceiro
ou
adversário;
no
jogo
solitário
não
se
pode
realmente
ganhar,
não
é
este
o
termo
que
pode
ser
usado
quando
o
jogador
atinge
o
objetivo
desejado.
O
que
é
"ganhar",
e
o
que
é
que
realmente
"ganho"?
Ganhar
significa
manifestar
sua
superioridade
num
determinado
jogo.
Contudo,
a
prova
desta
superioridade
tem
tendência
para
conferir
ao
vencedor
uma
aparência
de
superioridade
em
geral.
Ele
ganha
alguma
coisa
mais
do
que
apenas
o
jogo
enquanto
tal.
Ganha
estima,
conquista
honrarias:
e
estas
honrarias
e
estima
imediatamente
concorrem
para
o
benefício
do
grupo
ao
qual
o
vencedor
pertence.
Chegamos
aqui
a
outra
característica
muito
importante
do
jogo:
o
êxito
obtido
passa
prontamente
do
indivíduo
para
o
grupo.
Mas
há
um
outro
aspecto
ainda
mais
importante:
o
"instinto"
de
competição
não
é
fundamentalmente
um
desejo
de
poder
ou
de
dominação.
O
que
é
primordial
é
o
desejo
de
ser
melhor
que
os
outros,
de
ser
o
primeiro
e
ser
festejado
por
esse
fato.
Só
secundariamente
tem
importância
o
fato
de
resultar
da
vitória
um
aumento
do
poder
do
indivíduo
ou
do
grupo.
O
principal
é
ganhar.
O
exemplo
mais
puro
de
uma
vitória
que
não
implica
nada
visível
ou
aproveitável,
a
não
ser
o
simples
fato
de
ganhar,
é
a
que
temos
no
caso
do
jogo
de
xadrez.
Jogamos
ou
competimos
"por"
alguma
coisa.
O
objetivo
pelo
qual
jogamos
e
competimos
é
antes
de
mais
nada
e
principalmente
a
vitória,
mas
a
vitória
é
acompanhada
de
diversas
maneiras
de
aproveitá-la
—
como
por
exemplo
a
celebração
do
triunfo
por
um
grupo,
com
grande
pompa,
aplausos
e
ovações.
Os
frutos
da
vitória
podem
ser
a
honra,
a
estima,
o
prestígio.
Via
de
regra,
contudo,
está
ligada
à
vitória
alguma
coisa
mais
do
que
a
honra:
uma
coisa
que
está
em
jogo,
um
prêmio,
o
qual
pode
ter
um
valor
simbólico
ou
material,
ou
então
puramente
abstrato.
Pode
ser
uma
copa
de
ouro
ou
uma
joia,
a
filha
de
um
rei
ou
uma
soma
tribo.
A
"aposta",
que
em
latim
pode
dizer-se
vadium
(em
alemão
Wette,
em
inglês
gage).
é
um
"penhor"
no
sentido
de
um
objeto
puramente
simbólico
que
é
atirado
dentro
do
campo
de
jogo
a
título
de
desafio.
Não
é
exatamente
o
mesmo
que
um
"prêmio",
o
qual
implica
a
ideia
de
algo
intrinsecamente
valioso,
como
por
exemplo
uma
quantia
em
dinheiro,
embora
possa
ser
simplesmente
uma
coroa
de
louros.
É
curioso
que
as
palavras
"prêmio",
"preço"
e
"apreço"
derivem
mais
ou
menos
diretamente
do
latim
pretium,
embora
tenham
evoluído
em
sentidos
diferentes.
Pretium
surgiu
originariamente
na
esfera
da
troca
e
da
avaliação,
e
pressupõe
um
valor.
O
pretium
justam
medieval
corresponde
aproximadamente
à
ideia
atual
de
"valor
de
mercado".
Enquanto
preço
permaneceu
limitado
à
esfera
econômica,
prêmio
passou
para
a
do
jogo
e
da
competição,
e
apreço
adquiriu
o
significado
exclusivo
do
latim
laus.
De
um
ponto
de
vista
semântico,
é
praticamente
impossível
delimitar
o
terreno
próprio
de
cada
uma
destas
três
palavras.
Igualmente
interessante
é
verificar
como
a
palavra
inglesa
wage
(salário),
que
originariamente
é
idêntica
a
gage,
no
sentido
de
um
símbolo
de
desafio,
caminhou
num
sentido
inverso
do
de
pretium,
ou
seja,
passou
da
esfera
lúdica
para
a
esfera
econômica,
tornando-se
sinônimo
de
"ordenado",
daquilo
que
se
"ganha".
Não
jogamos
para
ganhar
um
salário,
trabalhamos.
Finalmente,
a
palavra
"ganhos"
não
tem
etimologicamente
nada
a
ver
com
estas
palavras,
embora
semanticamente
pertença
tanto
ao
lúdico
quanto
ao
econômico.
O
comerciante
realiza
seus
ganhos,
e
o
jogador
também
alcança
seus
ganhos.
Poder-se-ia
dizer
que
todos
os
derivados
da
raiz
latina
vad
caracterizam-
se
por
um
determinado
sentido
de
paixão,
de
sorte,
de
audácia,
no
que
diz
respeito
tanto
à
atividade
lúdica
quanto
à
economia.
A
pura
avareza
não
comercia
nem
joga;
nunca
arrisca.
E
a
essência
do
espírito
lúdico
é
ousar,
correr
riscos,
suportar
a
incerteza
e
a
tensão.
A
tensão
aumenta
a
importância
do
jogo,
e
esta
intensificação
permite
ao
jogador
esquecer
que
está
apenas
jogando.
Alguns
linguistas
consideram
a
designação
grega
de
"prêmio"
(άθλον)
um
derivado
da
mesma
fecunda
raiz
vad
a
que
acabamos
de
nos
referir.
De
άθλον
deriva
άθλητη
,
o
atleta.
Há
aqui
uma
união
entre
as
ideias
de
competição,
luta,
exercício,
aplicação,
resistência
e
sofrimento.
Se
nos
lembrarmos
que
na
sociedade
primitiva
a
maior
parte
das
atividades
agonísticas
são
na
realidade
"agonizantes",
implicando
severas
provações
tanto
físicas
quanto
espirituais,
e
também
que
existe
uma
íntima
relação
entre
άγων
e
άγωνία
(sendo
que
esta
última
palavra
originalmente
significava
simplesmente
"competição",
passando
mais
tarde
a
significar
"luta
de
morte"
e
"medo"),
veremos
que
o
atletismo
também
pertence
ao
domínio
da
competição
séria
que
constitui
nosso
tema.
A
competição
não
se
estabelece
apenas
"por"
alguma
coisa,
mas
também
"em"
e
"com"
alguma
coisa.
Os
homens
entram
em
competição
para
serem
os
primeiros
"em"
força
ou
destreza,
em
conhecimentos
ou
riqueza,
em
esplendor,
generosidade,
ascendência
nobre,
ou
no
número
de
sua
progenitora.
Competem
"com"
a
força
do
corpo
ou
das
armas,
com
a
razão
ou
com
os
punhos,
defrontando-se
uns
aos
outros
com
demonstrações
extravagantes,
com
palavras,
fanfarronadas,
insultos,
e
finalmente
também
com
astúcia.
De
nosso
ponto
de
vista,
a
batota
tendo
em
vista
ganhar
um
jogo
priva
a
ação
de
seu
caráter
lúdico,
destruindo-a
completamente,
pois,
para
nós,
pertence
à
essência
do
jogo
que
as
regras
sejam
respeitadas,
que
o
jogo
seja
jogado
lealmente.
Contudo,
a
cultura
primitiva
não
dá
razão
a
nosso
juízo
moral
quanto
a
este
aspecto,
do
mesmo
modo
que
o
espírito
da
tradição
popular.
Na
fábula
da
lebre
e
do
ouriço
o
papel
de
herói
é
atribuído
ao
mau
jogador
que
ganha
a
corrida
graças
a
uma
fraude.
Muitos
dos
heróis
da
mitologia
conseguem
ganhar
por
meio
da
astúcia
ou
graças
a
uma
ajuda
exterior.
Pélops
suborna
o
auriga
de
Enomeu
para
que
ele
coloque
cravos
de
cera
nos
eixos
das
rodas.
Jasão
e
Teseu
passam
suas
provas
com
êxito
graças
à
ajuda
de
Medeia
e
Ariadne.
Gunther
deve
sua
vitória
a
Siegfried.
No
Mahabharata,
os
kauravas
alcançam
a
vitória
fazendo
trapaça
nos
jogos
de
dados.
Frigga
engana
Wotan
para
que
este
conceda
a
vitória
aos
lombardos.
Os
Ases
quebram
o
juramento
que
fizeram
aos
gigantes.
Em
todos
estes
casos,
o
ato
de
superar
o
outro
em
astúcia,
fraudulentamente,
tornou-se
ele
próprio
o
motivo
da
competição,
como
se
fosse
um
novo
tema
lúdico5.
A
indeterminação
das
fronteiras
entre
o
jogo
e
a
seriedade
tem
um
exemplo
perfeito
na
expressão
"jogar
na
Bolsa".
O
jogador
de
roleta
não
terá
dúvida
alguma
em
reconhecer
que
está
jogando,
mas
já
o
mesmo
não
sucederá
com
o
corretor
de
valores.
Este
último
sustentará
que
a
compra
e
venda
ao
sabor
das
altas
e
baixas
da
Bolsa
fazem
parte
das
coisas
sérias
da
vida,
ou
pelo
menos
da
vida
dos
negócios,
e
constitui
uma
função
econômica
da
sociedade.
Em
ambos
os
casos,
o
fator
operante
é
a
esperança
do
lucro.
Mas,
enquanto
no
primeiro
caso
o
caráter
puramente
fortuito
da
coisa
é
geralmente
reconhecido
(não
obstante
todos
os
"sistemas");
no
segundo,
o
jogador
ilude-se
a
si
mesmo
com
a
ideia
de
que
é
capaz
de
prever
a
tendência
futura
do
mercado.
Seja
como
for,
é
ínfima
a
diferença
de
mentalidade
entre
ambos
os
casos.
A
este
respeito,
merece
referência
o
fato
de
duas
formas
de
acordo
comercial,
baseado
na
expectativa
de
um
cumprimento
futuro,
terem
origem
direta
na
aposta,
de
tal
modo
que
continua
sendo
uma
questão
em
aberto
se
o
que
surgiu
primeiro
foi
o
espírito
lúdico
ou
o
interesse
levado
a
sério.
O
final
da
Idade
Média
assiste,
tanto
em
Gênova
como
em
Antuérpia,
ao
surgimento
do
seguro
de
vida
sob
a
forma
de
apostas
sobre
futuras
eventualidades de
caráter
não
econômico.
Apostava-se,
por
exemplo,
"sobre
a
vida
e
a
morte
de
pessoas,
o
nascimento
de
um
menino
ou
uma
menina,
o
resultado
de
viagens
e
peregrinações,
a
conquista
de
várias
terras,
praças,
fortes
ou
cidades6.
Este
tipo
de
contrato,
embora
houvesse
já
assumido
um
caráter
puramente
comercial,
foi
diversas
vezes
proibido
sob
a
alegação
de
tratar-se
de
jogo
ilegal,
entre
outros
por
Carlos
V7.
Apostava-se
sobre
a
escolha
de
um
novo
Papa
tal
como
hoje
se
aposta
em
corridas
de
cavalos8.
E
ainda
no
século
XVII
os
contratos
de
seguro
de
vida
eram
conhecidos
pelo
nome
de
"apostas".
Os
estudos
antropológicos
têm
mostrado
de
maneira
cada
vez
mais
clara
que
normalmente
a
vida
social
primitiva
assenta
na
estrutura
antagonística
e
antitética
da
própria
comunidade,
e
que
todo
o
mundo
espiritual
deste
tipo
de
comunidade
corresponde
a
esse
profundo
dualismo.
Por
todo
o
lado
encontram-se
vestígios
desse
fato.
A
tribo
é
dividida
cm
duas
metades
opostas,
chamadas
fratrias
pelos
antropólogos,
as
quais
são
separadas
pela
mais
rigorosa
exogamia.
A
distinção
entre
os
dois
grupos
é
estabelecida
também
pelo
totem
(termo
de
emprego
um
tanto
duvidoso
fora
do
terreno
específico
a
que
pertence,
mas
muito
útil
para
uso
científico).
Um
indivíduo
pode
ser
homem-corvo
ou
homem-tartaruga,
adquirindo
assim
todo
um
sistema
de
obrigações,
tabus,
costumes
e
objetos
de
veneração
próprios
da
ordem
do
corvo
ou
da
tartaruga,
conforme
for
o
caso.
Entre
as
duas
metades
da
tribo
as
relações
são
de
competição
e
rivalidade,
mas
ao
mesmo
tempo
de
ajuda
recíproca
e
mútua
prestação
de
bons
serviços.
O
conjunto
destas
relações
transforma
toda
a
vida
pública
da
tribo
numa
interminável
série
de
cerimônias,
formuladas
com
a
maior
precisão
e
cumpridas
com
o
maior
rigor.
O
dualismo
que
diversifica
as
duas
metades
se
estende
a
todo
o
mundo
conceptual
e
imaginativo
da
tribo.
Todas
as
criaturas,
todas
as
coisas
têm
seu
lugar
cm
um
ou
outro
dos
dois
lados,
de
tal
modo
que
todo
o
cosmos
é
abrangido
por
essa
classificação.
Ao
lado
desta
divisão
tribal,
surge
o
dualismo
dos
sexos,
que
pode
também
exprimir-se
num
dualismo
cósmico
de
caráter
geral,
como
entre
os
chineses
o
yin
e
o
yang,
respectivamente
o
princípio
feminino
e
o
princípio
masculino,
cuja
alternância
e
cooperação
mantêm
o
ritmo
da
vida.
Segundo
alguns
autores,
a
origem
deste
dualismo
sexual
como
sistema
filosófico
assentaria
numa
divisão
efetiva
da
tribo
em
grupos
de
rapazes
e
moças,
que
se
encontravam
por
ocasião
das
grandes
festas
das
estações,
cortejando-se
reciprocamente
em
forma
ritual,
com
cantos
alternados
e
danças.
Por
ocasião
destas
festividades,
entra
plenamente
em
jogo
o
espírito
de
competição
entre
as
duas
metades
opostas
da
tribo
ou
entre
os
dois
sexos.
Em
nenhuma
grande
cultura
a
importantíssima
influência
civilizadora
destas
competições
festivas
foi
mais
claramente
elucidada
do
que
no
caso
da
China
antiga,
graças
aos
trabalhos
de
Marcel
Granet.
Baseando
sua
reconstrução
numa
interpretação
antropológica
dos
cantos
rituais
da
China
antiga,
Granet
conseguiu
elaborar
um
estudo
das
fases
primitivas
da
cultura
chinesa,
notável
tanto
por
sua
simplicidade
quanto
por
seu
rigor
científico9.
Segundo
Granet,
na
fase
mais
primitiva
os
clãs
rurais
celebravam
as
festas
das
estações
por
meio
de
competições
destinadas
a
favorecer
a
fertilidade
e
o
amadurecimento
das
colheitas.
É
fato
bem
conhecido
que
essa
é
uma
ideia
subjacente
à
maior
parte
dos
ritos
primitivos.
No
espírito
do
homem
primitivo,
toda
cerimônia corretamente
celebrada,
todo
jogo
ou
competição
ganho
de
acordo
com
as
regras,
todo
sacrifício
devidamente
realizado,
está
intimamente
ligado
à
aquisição
pelo
grupo
de
uma
nova
prosperidade.
Se
os
sacrifícios
e
as
danças
foram
concluídos
com
sucesso,
podemos
ficar
certos
de
que
tudo
está
bem,
que
os
poderes
superiores
nos
são
propícios,
que
a
ordem
cósmica
está
salvaguardada,
que
o
bem-estar
social
está
garantido
para
nós
e
os
nossos.
Evidentemente
este
sentimento
não
deve
ser
pensado
como
o
resultado
final
de
uma
série
de
deduções
racionais.
Trata-se
mais
de
uma
consciência
da
vida,
de
um
sentimento
de
satisfação
cristalizado
em
uma
fé
mais
ou
menos
formulada
pelo
espírito.
Segundo
Granet,
a
festa
de
inverno,
celebrada
pelos
homens
na
casa
dos
homens,
possuía
um
caráter
acentuadamente
dramático.
Em
meio
a
um
fervor
e
uma
embriaguez
extática,
eram
organizadas
danças
animais
com
máscaras,
banquetes
e
festins,
apostas
e
proezas
de
toda
a
espécie.
Apesar
de
as
mulheres
serem
excluídas,
conservava-se
o
caráter
antitético
dessa
festa.
O
bom
cumprimento
do
cerimonial
implicava
a
competição
e
uma
alternância
regular,
entre
um
grupo
de
anfitriões
e
um
grupo
de
hóspedes.
Um
deles
representava
o
princípio
yang,
que
correspondia
ao
sol,
ao
calor
e
ao
verão,
e
o
outro,
o
princípio
yin,
o
qual
correspondia
à
lua,
ao
frio
e
ao
inverno.
Todavia,
as
conclusões
de
Granet
vão
muito
mais
longe
do
que
este
quadro
de
uma
existência
pastoral,
quase
idílica,
vivida
por
tribos
isoladas
e
tendo
como
pano
de
fundo
a
pura
natureza.
Com
o
surgimento
dos
chefes
e
de
reinos
regionais,
no
interior
do
imenso
território
da
China,
foi-se
desenvolvendo,
acima
e
para
além
dos
simples
dualismos
originais,
cada
um
dos
quais
correspondia
a
um
único
clã
ou
tribo,
um
sistema
de
numerosos
grupos
opostos,
abrangendo
uma
série
de
clãs
ou
tribos
reunidos,
e
continuando
a
ter
nas
competições
festivas
e
rituais
a
principal
expressão
de
sua
vida
cultural.
E
surgiu
uma
hierarquia
social
a
partir
dessas
competições
primitivas,
primeiro
entre
partes
de
uma
tribo
c
depois
entre
tribos
inteiras.
O
prestígio
adquirido
pelos
guerreiros
no
decurso
dessas
competições
sagradas
foi
o
início
de
um
processo
de
feudalização
que
dominou
a
China
durante
séculos.
"O
espírito
de
competição",
diz
Granet,
"que
animava
as
confrarias
masculinas
e,
nas
festas
de
inverno,
as
opunha
umas
às
outras
em
torneios
de
danças
e
canções,
está
na
origem
de
um
processo
evolutivo
que
conduz
às
instituições
políticas
e
ao
Estado"10.
Mesmo
que
não
se
concorde
com
todas
as
conclusões
de
Granet,
que
faz
derivar
toda
a
hierarquia
do
estado
chinês
mais
tardio
destes
costumes
primitivos,
é
forçoso
reconhecer
que
ele
mostrou
de
maneira
absolutamente
magistral
que
o
princípio
agonístico
desempenha,
na
evolução
da
civilização
chinesa,
um
papel
ainda
mais
significativo
do
que
o
agon
no
mundo
helênico,
e
se
reveste,
de
modo
muito
mais
claro
do
que
na
Grécia,
de
um
caráter
essencialmente
lúdico.
Na
China
primitiva,
quase
todas
as
atividades
assumiam
a
forma
de
uma
competição
ritual:
atravessar
um
rio,
escalar
uma
montanha,
cortar
árvores
ou
colher
flores11.
O
esquema
característico
das
lendas
chinesas
relativas
à
fundação
tios
reinos
é
o
do
herói
derrotando
seus
adversários
por
meio
de
proezas
espantosas
e
miraculosas
demonstrações
de
força,
provando,
assim,
sua
superioridade.
Regra
geral,
o
torneio
acaba
com
a
morte
dos
vencidos.
O
mais
importante
aqui
é
que
todas
estas
competições,
mesmo
quando
são
fantasiosamente
descritas
como
combates
titânicos
e
mortais,
pertencem
em
todos
os
seus
aspectos
ao
domínio
do
jogo.
É
um
fato
que
salta
aos olhos
quando
comparamos
as
competições
que
nos
foram
transmitidas
pela
tradição
chinesa
sob
forma
mítica
ou
heroica
com
as
competições
periódicas
ainda
hoje
realizadas
em
diversas
partes
do
mundo,
nomeadamente
os
torneios
de
canções
e
jogos
entre
os
rapazes
e
moças
de
um
grupo
por
ocasião
das
festas
da
primavera
e
do
outono.
Ao
tratar
deste
aspecto
da
vida
da
China
primitiva,
com
base
nos
cantos
de
amor
do
Che
King12,
Granet
faz
referência
a
festividades
semelhantes
no
Tonquim,
no
Tibete
e
no
Japão.
Um
estudioso
anamita,
Nguyen
van
Huyen,
debruçou-se
sobre
o
mesmo
tema
em
relação
ao
Anam,
onde
até
há
bem
pouco
tempo
estes
costumes
estavam
em
plena
floração,
oferecendo
uma
excelente
descrição
destes
costumes
numa
tese
defendida
em
Paris13.
Encontramo-nos
aqui
em
pleno
interior
da
esfera
lúdica:
antífonas,
jogos
de
bola,
jogos
amorosos,
adivinhações,
enigmas,
tudo
sob
a
forma
de
uma
viva
competição
entre
os
sexos.
Mesmo
as
canções
são
puramente
lúdicas,
com
regras
fixas,
uma
variada
repetição
de
palavras
ou
frases,
perguntas
e
respostas.
Para
quem
quiser
ver
um
exemplo
dos
mais
reveladores
da
relação
entre
o
jogo
e
a
cultura,
nada
melhor
do
que
a
leitura
do
livro
de
Nguyen,
com
toda
sua
riqueza
de
pormenor.
Todas
estas
formas
de
competição
atestam
repetidas
vezes
suas
relações
com
o
ritual,
pela
crença
constante
de
que
são
indispensáveis
para
a
harmoniosa
sucessão
das
estações,
o
amadurecimento
das
colheitas
e
a
prosperidade
de
todo
o
ano.
Dado
que
o
resultado
da
competição,
o
fato
de
ela
ser
concluída
com
êxito,
é
considerado
capaz
de
influenciar
o
curso
da
natureza,
segue-se
que
pouca
importância
tem
qual
o
tipo
especial
de
competição
através
do
qual
se
chega
a
esse
resultado.
O
que
importa
é
o
fato
de
ganhar,
em
si
mesmo.
Toda
vitória
representa,
isto
é,
realiza
para
o
vencedor
o
triunfo
dos
poderes
benéficos
sobre
os
maléficos,
e
ao
mesmo
tempo
a
salvação
do
grupo
que
a
obteve.
A
vitória
não
se
limita
a
representar
essa
salvação,
mas
torna-a
algo
de
efetivo.
De
onde
se
segue
que
o
resultado
benéfico
tanto
possa
vir
dos
jogos
de
pura
sorte
como
dos
jogos
cujo
resultado
é
decidido
pela
força,
a
habilidade
ou
a
esperteza.
A
sorte
pode
ter
um
significado
sagrado;
os
dados
podem
significar
e
determinar
os
desígnios
divinos;
é
um
meio
tão
eficaz
de
influenciar
os
deuses
como
qualquer
outra
forma
de
competição.
E
não
há
dúvida
que
podemos
até
ir
mais
longe,
afirmando
que
para
o
espírito
humano
as
ideias
de
felicidade,
de
sorte
e
de
destino
parecem
estar
muito
próximas
do
domínio
do
sagrado.
Para
compreender
estas
associações
mentais,
basta
ao
homem
moderno
pensar
nessa
espécie
de
fúteis
augúrios
que
todos
nós
costumamos
praticar
durante
a
infância
sem
neles
realmente
acreditar,
e
que
podem
até
perfeitamente
ocorrer
no
caso
de
um
adulto
completamente
equilibrado
e
nada
dado
a
superstições.
Regra
geral
não
lhes
atribuímos
grande
importância,
e
é
pouco
frequente
encontrar
na
literatura
exemplos
dessas
futilidades,
mas
há,
na
Ressurreição
de
Tolstoi,
um
trecho
onde
um
dos
juízes,
ao
entrar
no
tribunal,
diz
silenciosamente
de
si
para
si:
"Se
o
número
de
passos
que
eu
der
até
chegar
à
minha
cadeira
for
par,
hoje
não
terei
dores
de
estômago".
Há
muitos
povos
que
colocam
o
jogo
de
dados
no
número
das
práticas
religiosas14.
Por
vezes,
as
sociedades
divididas
em
fratrias
exprimem
sua
estrutura
dualista
nas
duas
cores
de
seus
tabuleiros
de
jogo
ou
de
seus
dados.
A
palavra
sânscrita
dyutam
significa
ao
mesmo
tempo
"lutar"
e
"jogar
aos
dados".
Existem
grandes
afinidades
entre
os dados
e
as
flechas15
.
No
Mahabharata,
o
próprio
mundo
é
concebido
como
um
jogo
de
dados
que
Siva
joga
com
sua
esposa16.
As
estações,
rtu,
são
representadas
sob
a
forma
de
seis
homens
jogando
com
dados
de
ouro
e
prata.
Também
a
mitologia
germânica
faz
referência
a
um
jogo
jogado
pelos
deuses
em
seu
tabuleiro:
quando
o
mundo
foi
ordenado,
os
deuses
reuniram-se
para
jogar
aos
dados,
e
quando
ele
renascer
de
novo
após
sua
destruição,
os
Ases
rejuvenescidos
voltarão
a
encontrar
os
tabuleiros
de
jogo
em
ouro
que
originariamente
possuíam17.
A
ação
principal
do
Mahabharata
assenta
no
jogo
de
(lados
jogados
pelo
rei
Yudhistira
contra
os
kauravas.
No
livro
acima
referido,
G.
J.
Held
tira
deste
fato
diversas
conclusões
de
caráter
etnológico.
De
nosso
ponto
de
vista,
o
mais
importante
é
o
lugar
onde
o
jogo
é
executado.
Geralmente
é
um
simples
círculo,
dyutamandalam,
traçado
no
solo.
O
círculo
enquanto
tal,
todavia,
reveste-se
de
um
significado
mágico.
É
traçado
com
o
maior
cuidado,
sendo
tomada
toda
a
espécie
de
precauções
contra
a
possibilidade
de
haver
batota.
Não
é
permitido
aos
jogadores
deixar
o
terreno
antes
de
terem
cumprido
todas
as
suas
obrigações18.
Mas,
por
vezes,
é
provisoriamente
erigido
um
recinto
especial
para
o
jogo,
e
esse
recinto
é
considerado
terreno
sagrado.
O
Mahabharata
consagra
todo
um
capítulo
à
ereção
do
recinto
dos
dados,
—
sabha
—
no
qual
os
Pandavas
deverão
defrontar
seus
adversários.
Em
conclusão,
os
jogos
de
azar
têm
o
seu
lado
sério.
Fazem
parte
integrante
do
ritual,
e
Tácito
cometeu
um
erro
ao
se
espantar
por
ver
os
germanos
jogando
dados
com
todo
o
empenho,
como
se
fosse
uma
ocupação
séria.
Mas,
quanto
à
afirmação
de
Held
de
que
deve
concluir-se
do
significado
sagrado
dos
dados
que
não
temos
o
direito
de
incluir
na
esfera
lúdica
os
jogos
das
culturas
primitivas19,
inclino-me
mais
a
rejeitá-la
formalmente.
É,
pelo
contrário,
o
caráter
lúdico
do
jogo
de
dados
que
lhe
confere
no
ritual
um
lugar
tão
importante.
Os
fundamentos
agonísticos
da
vida
cultural
da
sociedade
primitiva
só
foram
esclarecidos
a
partir
do
momento
em
que
a
etnologia
foi
enriquecida
por
uma
rigorosa
descrição
dos
curiosos
costumes
de
certas
tribos
índias
da
Colômbia
britânica,
que
se
tornaram
conhecidos
sob
o
nome
de
potlatch20.
Em
sua
forma
mais
típica,
encontrada
na
tribo
dos
Kwakiutl,
o
potlatch
é
uma
grande
festa
solene,
durante
a
qual
um
de
dois
grupos,
com
grande
pompa
e
cerimônia,
faz
ofertas
em
grande
escala
ao
outro
grupo,
com
a
finalidade
expressa
de
demonstrar
sua
superioridade.
A
única
retribuição
esperada
pelos
doadores,
e
que
é
devida
pelos
que
recebem,
consiste
na
obrigação
de
estes
últimos
darem
por
sua
vez
uma
festa,
dentro
de
um
certo
período,
se
possível
ultrapassando
a
primeira.
Este
curioso
festival
de
donativos
domina
toda
a
vida
comunitária
das
tribos
que
o
praticam:
os
rituais,
as
leis,
as
artes.
Qualquer
acontecimento
importante
pode
servir
de
pretexto
para
um
potlatch,
seja
um
nascimento,
uma
morte,
um
casamento,
uma
cerimônia
de
iniciação
ou
de
tatuagem,
a
construção
de
um
túmulo
etc.
É
costume
o
chefe
oferecer
um
potlatch
sempre
que
constrói
uma
casa
ou
um
totem.
No
potlatch,
as
famílias
ou
clãs
apresentam-se
sob
sua
forma
mais
brilhante,
cantando
suas
canções
sagradas
e
exibindo
suas
máscaras,
enquanto
os
feiticeiros,
possuídos
pelos
espíritos
do
clã,
entregam-se
a
sua
fúria.
Mas
o
principal
é
sempre
a
distribuição
de
bens.
O promotor
da
festa
dissipa
nesta
todas
as
posses
de
seu
clã.
Contudo,
o
fato
de
participarem
da
festa
dá
aos
outros
clãs
a
obrigação
de
oferecer
um
potlatch
em
escala
ainda
mais
grandiosa.
Caso
contrário,
destroem
seu
nome,
sua
honra,
seu
emblema
e
seus
totens,
e
até
seus
direitos
civis
e
religiosos.
O
resultado
de
tudo
isto
é
que
as
posses
de toda
a
tribo
vão
circulando
por
entre
as
"grandes
famílias",
ao
acaso.
Supõe-se
que,
originariamente,
o
potlatch
fosse
sempre
realizado
entre
duas
fratrias
da
mesma
tribo.
Quem
oferece
um
potlatch
demonstra
sua
superioridade,
não
apenas
devido
à
pródiga
distribuição
de
riquezas
mas
também,
e
isto
é
ainda
mais
impressionante,
pela
destruição
completa
de
seus
bens,
só
para
mostrar
que
pode
passar
sem
eles.
Além
disso,
essas
destruições
são
levadas
a
efeito
de
acordo
com
um
ritual
dramático,
e
acompanhadas
por
altivos
desafios.
A
ação
assume
sempre
a
forma
de
uma
competição:
se
um
chefe
quebra
um
pote
de
cobre,
ou
queima
uma
pilha
de
mantas,
ou
estraçalha
uma
canoa,
seu
adversário
fica
na
obrigação
de
destruir
pelo
menos
o
mesmo,
e
se
possível
mais.
Os
destroços
são
enviados
ao
rival,
como
provocação,
ou
exibidos
como
sinal
de
honra.
Conta-se
dos
Tlinkit,
tribo
aparentada
aos
Kwakiutl,
que
quando
um
chefe
queria
defrontar
um
rival
matava
um
certo
número
de
seus
escravos,
e
o
outro,
para
vingar-se,
tinha
que
matar
um
número
ainda
maior
dos
seus21.
Encontram-se
em
todo
o
mundo
vestígios
mais
ou
menos
visíveis
dessas
competições,
feitas
da
mais
desenfreada
prodigalidade,
e
tendo
sempre
como
apogeu
a
frívola
destruição
dos
bens
pessoais.
Marcel
Mauss
fala
da
presença,
na
Melanésia,
de
costumes
exatamente
idênticos
ao
potlatch.
E
m
seu
Essai
sur
le
don,
aponta
vestígios
de
costumes
semelhantes
nas
culturas
da
Grécia,
da
Roma
e
da
Germânia
da
antiguidade.
Granet
apresenta
exemplos
de
competições
tanto
de
doação
como
de
destruição
na
tradição
chinesa
primitiva22.
Na
Arábia
pagã
dos
tempos
pré-islâmicos,
essas
competições
tinham
um
nome
especial,
o
que
prova
sua
existência
como
instituição
formal.
São
chamadas
mu'aqara,
um
nomen
actionis
d
a
terceira
forma
do
verbo
'aqara,
que
nos
velhos
dicionários,
os
quais
nada
sabiam
do
pano
de
fundo
etnológico,
recebe
a
definição
de
"rivalizar
em
glória
cortando
as
patas
dos
camelos"23.
Mauss
resume
mais
ou
menos
o
tema
tratado
por
Held
da
seguinte
maneira:
"O
Mahabharata
é
a
história
de
um
gigantesco
potlatch"24.
O
potlatch,
e
tudo
quanto
com
ele
se
relaciona,
tem
como
centro
de
interesse
a
vitória,
a
afirmação
de
superioridade,
a
aquisição
de
glória
ou
prestígio
e,
pormenor
não
destituído
de
importância,
a
vingança.
Em
todos
os
casos,
mesmo
quando
é
apenas
uma
pessoa
que
oferece
a
festa,
há
dois
grupos
numa
situação
de
oposição,
mas
ligados
por
um
espírito
que
é
ao
mesmo
tempo
de
hostilidade
e
de
amizade.
Para
compreender
esta
atitude
ambivalente,
é
preciso
reconhecer
que
o
mais
importante
no
potlatch
é
ganhá-lo.
Os
grupos
adversários
não
disputam
riquezas
nem
poder,
competem
apenas
pelo
prazer
de
exibir
sua
superioridade,
em
resumo,
pela
glória.
No
casamento
de
um
chefe
Mamalekala,
descrito
por
Boas25
o
grupo
anfitrião
declara-se
"pronto
a
iniciar
o
combate",
querendo
com
isto
designar
a
cerimônia
no
fim
da
qual
o
futuro
sogro
concede
a
mão
de
sua
filha.
O potlatch
possui
também
alguma
coisa
de
um
combate,
um
elemento
de
provação
e
sacrifício.
A
solenidade
decorre
sob
a
forma
de
um
ritual
acompanhado
de
antífonas
e
danças
de
mascarados.
Esse
ritual
é
extremamente
rigoroso:
basta
a
menor
infração
para
invalidar
tudo.
A
tosse
ou
o
riso
são
castigados
com
severas
penalidades.
O
mundo
espiritual
no
interior
do
qual
se
realizam
essas
cerimônias
é
o
mundo
da
honra,
da
pompa,
da
fanfarronice
e
do
desafio.
É
um
mundo
de
cavalaria
e
de
heroísmo,
dominado
pelos
brasões
e
nomes
ilustres,
onde
prima
a
nobreza
de
linhagem.
Não
é
o
mundo
dos
cuidados
e
da
subsistência
quotidiana,
do
cálculo
das
vantagens
e da
aquisição
de
bens
úteis.
Aqui,
as
aspirações
voltam-se
para
o
prestígio
dentro
do
grupo,
para
um
lugar
de
destaque,
quaisquer
sinais
de
superioridade.
As
relações
e
obrigações
recíprocas
das
duas
fratrias
dos
Tlinkit
são
designadas
por
uma
palavra
que
significa
"manifestar
respeito".
Estas
relações
estão
constantemente
sendo
expressas
em
ações
concretas,
mediante
a
troca
de
serviços
e
presentes.
Tanto
quanto
me
consta,
a
antropologia
procura
explicar
o
potlatch
sobretudo
em
termos
de
magia
e
de
mito.
Um
excelente
exemplo
desta
tendência
é
o
livro
de
G.
W.
Locker
The
Serpent
in
Kwakiutl
Religion26.
Sem
dúvida
alguma,
o
potlatch
está
intimamente
ligado
às
concepções
religiosas
da
tribo
que
o
pratica.
Todas
as
ideias
características
relativas
à
comunicação
com
os
espíritos,
à
iniciação,
à
identificação
do
homem
com
os
animais
etc.,
manifestam-se
constantemente
no
potlatch.
Mas
tal
fato
não
nos
impede
de
compreendê-lo
enquanto
fenômeno
sociológico,
sem
quaisquer
relações
com
um
sistema
religioso
definido.
Basta
que
nos
imaginemos
integrados
numa
sociedade
inteiramente
dominada
por
aqueles
impulsos
e
incentivos
primários
que,
em
fases
mais
civilizadas,
correspondem
à
mentalidade
do
adolescente.
Uma
tal
sociedade
será
dominada
sobretudo
pela
honra
do
grupo,
a
admiração
pela
riqueza
e
a
liberalidade,
a
confiança
e
a
amizade;
dará
grande
importância
aos
desafios,
apostas
e
"proezas"
de
todo
gênero,
competições,
aventuras,
e
a
perpétua
glorificação
do
eu
mediante
a
exibição
de
uma
estudada
indiferença
pelos
valores
materiais.
Em
resumo,
o
espírito
do
potlatch
é
aparentado
aos
pensamentos
e
sentimentos
da
adolescência.
Pondo
de
lado
quaisquer
relações
que
possa
ter
com
o
potlatch
autêntico
e
tecnicamente
organizado,
como
ato
ritual,
uma
competição
que
consiste
em
distribuir
ou
destruir
sua
própria
propriedade
é
uma
coisa
psicologicamente
muito
compreensível.
É
por
isso
que
exemplos
deste
gênero,
que
não
se
baseiam
num
sistema
religioso
definido,
assumem
uma
importância
toda
especial,
como
aquele
que
é
contado
por
R.
Maunier,
e
apareceu
há
alguns
anos
num
jornal
egípcio.
Houve
uma
briga
entre
dois
ciganos.
A
fim
de
resolvê-la
solenemente,
mandaram
reunir
toda
a
tribo,
passando
então
cada
um
deles
a
matar
suas
próprias
ovelhas,
depois
do
que
queimaram
todas
as
notas
de
banco
que
possuíam.
Finalmente
um
dos
contendores,
vendo
que
ia
perder,
vendeu
imediatamente
seus
seis
burros,
e
com
o
produto
da
venda
conseguiu
levar
a
melhor.
Quando
foi
a
casa
buscar
os
burros
sua
mulher
se
opôs
à
venda,
e
por
causa
disso
ele
apunhalou-a27.
É
evidente
que
em
todo
este
triste
caso
estamos
perante
algo
inteiramente
diferente
de
uma
explosão
espontânea
da
paixão.
Trata-se
de
um
costume
estabelecido,
dotado
de
um
nome
próprio,
que
Maunier
traduz
em
francês
por
vantardise28,
nome
que
me
parece
apresentar
grandes
afinidades
com
o
mu'aqara
pré-islâmico
acima
referido.
Não
há
motivo
para
procurar
qualquer
espécie
de
fundamento
religioso
para
este
caso.
O
princípio
subjacente
a
todos
os
estranhos
costumes
relacionados
com
o
potlatch
é,
de
meu
ponto
de
vista,
pura
e
simplesmente
o
"instinto"
agonístico.
Todos
eles
devem
ser,
antes
de
mais
nada,
e
principalmente,
encarados
como
uma
expressão
violenta
da
necessidade
humana
de
lutar.
Uma
vez
admitido
este
princípio,
poderemos
chamá-los,
em
sentido
restrito,
"jogo"
—
um
jogo
sério,
funesto
e
fatal,
sangrento,
sagrado,
mas
que
mesmo
assim
continua
sendo
aquela
atividade
lúdica
que,
nas
sociedades
primitivas,
eleva
o
indivíduo
ou
a
personalidade
coletiva
a
um
plano
mais
alto.
Tanto
Mauss
como
Davy
já
há
muito
tempo
chamaram
a
atenção
para
o
caráter
lúdico
do
potlatch,
embora
o
encarassem
de
um
ponto
de
vista
inteiramente
diferente.
"Le
potlatch
est
en
effet
un
jeu
et
une épreuve",
escreve
Mauss29.
Para
Davy,
que
se
debruça
sobre
o
aspecto
jurídico
do
fenômeno
e
se
preocupa
apenas
em
mostrar
que
o
potlatch
é
um
costume
criador
de
leis,
as
sociedades
que
o
praticam
se
assemelham
a
grandes
casas
de
jogo,
onde,
como
resultado
das
diversas
apostas
e
desafios,
forja-se
a
reputação
de
cada
um
e
fortunas
inteiras
mudam
de
mãos30.
Consequentemente,
quando
Held
conclui31
que
os
jogos
de
dados
e
o
primitivo
jogo
de
xadrez
não
constituem
autênticos
jogos
de
sorte,
por
pertencerem
ao
domínio
do
sagrado
e
serem
uma
expressão
do
princípio
do
potlatch,
sinto-me
tentado
a
inverter
seu
argumento,
dizendo
que
eles
pertencem
ao
domínio
do
sagrado
precisamente
devido
ao
fato
de
serem
autênticos
jogos.
Quando
Tito
Lívio
deplora
o
luxo
extravagante
dos
ludi
publici,
que
se
transformavam
numa
competição
desenfreada32
quando
Cleópatra
leva
a
melhor
de
Marco
Antônio
dissolvendo
sua
pérola
em
vinagre,
quando
Filipe
da
Borgonha
faz
culminar
uma
série
de
banquetes
de
sua
corte
com
a
festa
dos
Voeux
du
faisan
em
Lille,
quando
os
estudantes
holandeses
se
entregam,
por
ocasião
de
certas
solenidades,
à
destruição
ritual
de
taças
e
copos,
em
todos
estes
casos
encontramo-nos,
em
diferentes
formas
adequadas
às
respectivas
épocas
e
civilizações,
perante
puras
manifestações
do
espírito
do
potlatch.
E
seria
talvez
mais
simples
e
mais
verdadeiro
considerar
o
potlatch
a
forma
mais
evoluída
e
explícita
de
j
uma
necessidade
humana,
a
qual
poderíamos
chamar
o
jogo
pela
honra
e
a
glória.
Um
termo
técnico
como
potlatch,
uma
vez
adotado
pela
linguagem
científica,
torna-se
demasiado
facilmente
um
rótulo
considerado
suficiente
para
classificar
e
arrumar
definitivamente
um
fenômeno.
O
caráter
lúdico
do
ritual
dos
dons,
encontrado
em
todas
as
partes
do
mundo,
ficou
plenamente
esclarecido
por
Malinowski,
que
nos
oferece
em
seu
magistral
Argonauts
of
the
Western
Pacific33
a
viva
e
extremamente
circunstanciada
descrição
do
chamado
sistema
kula,
observado
entre
os
indígenas
das
ilhas
Trobriand
e
seus
vizinhos
da
Melanésia.
O
kula
é
uma
expedição
marítima
ritual,
que
em
épocas
fixas
parte
de
um
dos
grupos
de
ilhas
a
leste
da
Nova
Guiné,
cm
dois
sentidos
opostos.
Sua
finalidade
é
a
troca
entre
diversas
tribos
de
determinados
objetos
destituídos
de
valor
econômico,
mas
muito
apreciados
como
ornamentos
preciosos
e
de
elevada
reputação.
Estes
ornamentos
são
colares
de
conchas
vermelhas
e
braceletes
de
conchas
brancas.
Muitos
deles
recebem
nomes,
tal
como
as
gemas
mais
famosas
da
história
do
ocidente.
Mediante
o
kula
eles
são
temporariamente
transferidos
da
posse
de
um
grupo
para
a
de
outro,
o
qual
adquire
assim
a
obrigação
de,
dentro
de
um
determinado
período,
transferi-lo
para
o
elo
seguinte
da
cadeia
do
kula.
Os
objetos
têm
um
valor
sagrado
e
são
dotados
de
virtudes
mágicas,
e
cada
um
possui
uma
história
contando
as
circunstâncias
da
primeira
vez
em
que
foi
conquistado
etc.
Alguns
deles
são
de
tal
modo
preciosos
que
sua
entrada
no
ciclo
dos
dons
causa
grande
sensação34.
Todo
o
processo
é
acompanhado
por
diversos
tipos
de
formalidades,
de
festins
e
atos
de
magia,
numa
atmosfera
de
confiança
e
de
obrigação
recíproca.
Oferece-se
a
mais
ampla
hospitalidade,
e
no
final
da
cerimônia
todos
consideram
ter
recebido
seu
quinhão
de
honra
e
de
glória.
As
viagens
são
muitas
vezes
aventurosas
e
semeadas
de
perigos.
Todo
o
tesouro
cultural
dessas
tribos
está
ligado
ao
kula,
o
qual
domina
o
entalhamento
ornamental
das
canoas,
a
poesia,
o
código
de
honra
e
de
boas
maneiras.
Por
vezes,
as
viagens
do
kula
são
acompanhadas
por
uma
pequena
medida
de
comércio
de
produtos
úteis,
mas
apenas
de
modo
acessório.
Talvez
nenhuma
outra
sociedade
primitiva
apresente
as
características
de
um
jogo
nobre
de
maneira
mais
pura
que
estes
papuas
da
Melanésia.
A
competição
exprime-se
sob
uma
forma
tão
pura
e
sem
misturas
que
parece
ser
superior
a
Iodos
os
costumes
semelhantes
praticados
por
povos
de
civilização
muito
mais
avançada.
Podemos
reconhecer,
nas
raízes
deste
ritual
sagrado,
a
imperecível
necessidade
humana
de
viver
em
beleza.
E
só
o
jogo
é
capaz
de
satisfazer
esta
necessidade.
Um
dos
mais
fortes
incentivos
para
atingir
a
perfeição,
tanto
individual
quanto
social,
e
desde
a
vida
infantil
até
aos
aspectos
mais
elevados
da
civilização,
é
o
desejo
que
cada
um
sente
de
ser
elogiado
e
homenageado
por
suas
qualidades.
Elogiando
o
outro,
cada
um
elogia
a
si
próprio.
Queremos
ser
honrados
por
nossas
virtudes,
queremos
a
satisfação
de
ter
realizado
corretamente
alguma
coisa.
Realizar
corretamente
uma
coisa
equivale
a
realizá-la
melhor
que
os
outros.
Atingir
a
perfeição
implica
que
esta
seja
mostrada
aos
outros;
para
merecer
o
reconhecimento,
o
mérito
tem
que
ser
manifesto.
A
competição
serve
para
cada
um
dar
provas
de
sua
superioridade.
E
isto
se
verifica
principalmente
na
sociedade
primitiva.
É
evidente
que,
nas
épocas
primitivas,
a
virtude
que
pode
tornar
o
indivíduo
digno
de
honra
não
é
o
ideal
abstrato
de
perfeição
moral
medido
pelos
mandamentos
de
um
poder
divino
e
supremo.
A
ideia
de
virtude,
conforme
mostra
a
palavra
que
a
designa
nas
línguas
germânicas,
continua,
em
sua
conotação
corrente,
inextricavelmente
ligada
à
idiossincrasia
de
uma
coisa.
A
alemão
Tugend
e
o
holandês
deugd
correspondem
diretamente
aos
verbos
taugen
e
deugen,
que
significam
ser
capaz
de
alguma
coisa,
ser
a
coisa
verdadeira
e
autêntica
dentro
de
sua
própria
espécie.
É
este
o
sentido
do
grego
άφετή
é
do
alto
médio
alemão
tugende.
Todas
as
coisas
possuem
uma
άφετη
que
lhes
é
específica,
que
é
própria
de
sua
espécie35.
O
cavalo,
o
cão,
o
olho,
o
machado,
o
arco
possuem
cada
um
sua
virtude
própria.
A
força
e
a
saúde
são
as
virtudes
do
corpo.
Assim
como
a
sagacidade
e
a
inteligência
são
as
do
espírito.
Do
ponto
de
vista
etimológico,
άφετή'
está
ligado
a
άφιστος:
o
melhor,
o
mais
eminente36.
A
virtude
de
um
homem
de
qualidade
consiste
numa
série
de
propriedades
que
o
tornam
capaz
de
lutar
e
de
comandar.
Entre
estas
ocupam
um
lugar
eminente
a
generosidade,
a
sabedoria
e
a
justiça.
É
perfeitamente
natural
que
em
muitas
línguas
a
palavra
que
designa
a
virtude
derive
da
ideia
de
masculinidade
ou
"virilidade",
como
por
exemplo
no
latim
virtus,
que
durante
muito
tempo
conservou
seu
sentido
de
“coragem"
—
até
ao
momento
em
que
o
pensamento
cristão
se
tornou
predominante.
O
mesmo
se
passa
com
o
árabe
muru'a,
o
qual,
do
mesmo
modo
que
o
grego
άφετη,
abrange
todo
o
complexo
semântico
da
força,
valentia,
riqueza,
direito,
boa
conduta,
moralidade,
urbanidade,
boas
maneiras,
magnanimidade,
generosidade
e
perfeição
moral.
Em
toda
sociedade
primitiva
que
seja
saudável,
baseada
na
vida
tribal
de
guerreiros
e
nobres,
floresce
um
ideal
de
cavalaria
e
conduta
cavalheiresca,
quer
seja
na
Grécia
ou
na
Arábia,
no
Japão
ou
na
Europa
cristã
da
Idade
Média.
E
o
ideal
viril
da
virtude
está
sempre
ligado
à
convicção
de
que
a
honra
para
ser
válida,
deve
ser
publicamente
reconhecida,
sendo
este
reconhecimento,
se
necessário,
imposto
pela
força.
Mesmo
em
Aristóteles
a
honra
é
ainda
chamada
"o
preço
da
virtude"37.
É
evidente
que
seu
pensamento
está
muito
acima
do
nível
da
cultura
primitiva,
Para
ele
a
honra
não
é
o
fim
nem
o
fundamento
da
virtude,
e
sim
a medida
natural
desta.
"Os
homens
aspiram
à
honra
para
se
convencerem
de
seu
próprio
valor,
de
sua
virtude.
Aspiram
a
ser
honrados
por
seu
próprio
valor
por
aqueles
que
têm
a
capacidade
de
julgar38."
Portanto,
a
virtude
e
a
honra,
a
nobreza
e
a
glória
encontram-se
desde
início
dentro
do
quadro
da
competição,
isto
é,
do
jogo.
A
vida
do
jovem
guerreiro
de
nobre
extração
é
um
permanente
exercício
de
virtude,
uma
luta
permanente
pela
honra
de
sua
posição.
Este
ideal
é
exprimido
de
maneira
perfeita
no
famoso
verso
de
Homero:
αιεν
αφιστευειν
χαι
υφειφοχον
έμεναι
αλλων
("ser
sempre
melhor,
ultrapassando
os
outros")39'.
Por
isso
o
interesse
da
epopeia
não
depende
das
proezas
militares
enquanto
tais,
e
sim
da
αφιστεια
dos
heróis
individuais.
A
formação
em
vista
da
vida
aristocrática
conduz
à
formação
para
a
vida
no
Estado
e
para
o
Estado.
Também
aqui
a
palavra
αφετη
não
possui
ainda
um
sentido
puramente
ético.
Continua
significando
antes
a
capacidade
do
cidadão
para
suas
tarefas
na
polis,
conservando
ainda
grande
parte
de
sua
importância
primitiva
a
ideia
nela
originalmente
contida
de
exercício
por
meio
de
uma
competição.
A
ideia
segundo
a
qual
a
nobreza
se
baseia
na
virtude
está
desde
o
início
implícita
em
ambos
os
conceitos,
e
permanece
sempre
através
de
sua
evolução,
mudando
apenas
o
significado
da
virtude
à
medida
que
a
civilização
vai
evoluindo.
A
ideia
de
virtude
vai
gradualmente
adquirindo
outro
conteúdo:
eleva-se
ao
nível
ético
e
religioso.
A
nobreza,
que
primitivamente
seguia
seu
ideal
de
virtude
limitando-se
a
ser
valente
e
a
reinvidicar
sua
honra,
precisa
agora,
se
pretende
continuar
à
altura
de
sua
missão
e
de
si
mesma,
ou
enriquecer
o
ideal
da
cavalaria,
assimilando
a
esta
os
padrões
mais
elevados
da
ética
e
da
religião
(tentativa
esta
que,
em
geral,
apresenta
na
prática
resultados
bastante
lamentáveis!),
ou
,
então,
limitar-se
a
cultivar
uma
aparência
exterior
de
vida
perfeita
e
honra
sem
mácula
através
da
pompa,
da
magnificência
e
das
maneiras
requintadas.
O
elemento
lúdico,
que
originalmente
foi
um
fator
autêntico
da
formação
de
sua
cultura,
é
agora
apenas
simples
exibição
sem
fundamentos.
O
nobre
demonstra
sua
"virtude"
por
meio
de
proezas
de
força,
destreza,
coragem,
engenho,
sabedoria,
riqueza
ou
generosidade.
Na
falta
destas,
pode
ainda
distinguir-se
numa
competição
de
palavras,
isto
é,
ou
ele
mesmo
louva
as
virtudes
nas
quais
deseja
superar
seus
rivais,
ou
manda
que
elas
lhe
sejam
louvadas
por
um
poeta
ou
um
arauto.
Esta
exaltação
da
própria
virtude,
como
forma
de
competição,
transforma-se
muito
naturalmente
em
depreciação
da
do
adversário,
o
que,
por
sua
vez,
passa
a
ser
um
outro
tipo
de
competição.
É
extraordinária
a
importância
do
papel
que
estas
fanfarronadas
e
ultrajes
ocupam
nas
mais
diversas
civilizações.
Seu
caráter
lúdico
é
indiscutível:
basta
lembrarmo-nos
do
comportamento
dos
garotinhos
para
classificarmos
esses
torneios
de
insultos
como
uma
forma
de
jogo.
Não
obstante,
é
preciso
estabelecer
uma
cuidadosa
distinção
entre
os
torneios
formais
de
fanfarronadas
ou
insultos
e
as
invectivas
mais
espontâneas
que
costumam
iniciar
ou
acompanhar
o
combate
armado,
embora
não
seja
nada
fácil
traçar
essa
linha
divisória.
Segundo
antigos
textos
chineses,
a
batalha
é
uma
confusa
mistura
de
fanfarronadas,
insultos,
altruísmo
e
cumprimentos.
Trata-se
mais
de
uma
competição
com
armas
morais,
um
choque
de
honras
ofendidas,
do
que
um
combate
armado40.
Há
toda
uma
série
de
atos,
alguns
dos
quais
de
caráter
bastante
extraordinário,
possuidores
de
um
significado
técnico
como
marcas
de
vergonha
ou
de
honra
para
aquele
que
os
pratica
ou
os
sofre.
Assim,
o
gesto
de
desprezo
de
Remo,
saltando
por
cima
da
muralha
de
Rômulo
na
alvorada
da
história
de
Roma,
constitui,
segundo
a
tradição
militar
chinesa,
um
desafio
obrigatório.
Uma
variante
desse
gesto
mostra
o
guerreiro
cavalgando
até
ao
portão
do
inimigo
e
calmamente
contando
as
tábuas com
seu
chicote41.
Situam-se
na
mesma
tradição
os
cidadãos
de
Meaux
que,
encontrando-se
sobre
as
muralhas,
sacudiram
o
pó
dos
chapéus
quando
os
sitiantes
dispararam
seus
canhões.
Voltaremos
mais
adiante
a
tratar
deste
tipo
de
atitude,
quando
tratarmos
do
elemento
agonístico,
ou
mesmo
lúdico,
da
guerra.
O
que
neste
momento
nos
interessa
é
a
joute
de
jactance
em
regra.
Mal
seria
necessário
assinalar
que
estas
práticas
se
relacionam
intimamente
com
o
potlatch.
Entre
os
indígenas
das
Trobriand,
conforme
relata
Malinowski,
encontram-se
formas
intermediárias
entre
os
torneios
de
jactância
e
as
competições
de
riqueza.
O
valor
atribuído
aos
alimentos
não
depende
apenas
de
sua
utilidade,
mas
também
de
suas
qualidades
como
meio
de
ostentação
da
riqueza.
As
habitações
yam
são
construídas
de
maneira
a
permitir
que
se
veja
do
exterior
tudo
o
que
encerram,
e
que
se
avalie
sua
riqueza
olhando
através
dos
largos
interstícios
das
tábuas.
Os
melhores
alimentos
são
postos
em
evidência
e
os
exemplares
especialmente
valiosos
são
emoldurados,
ornamentados
com
cores
vivas,
e
pendurados
do
lado
de
fora
da
habitação.
Nas
aldeias
onde
reside
um
grande
chefe,
os
membros
comuns
da
tribo
têm
que
cobrir
suas
habitações
com
folhas
de
coqueiro,
para
não
competirem
com
a
do
chefe42
.
Encontramos
nas
lendas
chinesas
um
eco
de
costumes
semelhantes
na
narrativa
do
festim
do
mau
rei
Cheu-Sin,
que
mandou
erguer
uma
montanha
de
alimentos
sobre
a
qual
podia
passar
um
carro,
e
mandou
escavar
um
lago
cheio
de
vinho
onde
podiam
navegar
barcos
à
vela43.
Um
letrado
chinês
descreve
o
desperdício
que
acompanha
os
torneios
populares
de
fanfarronice44.
A
competição
pela
honra
pode
também,
como
na
China,
assumir
uma
forma
invertida,
transformando-se
numa
competição
de
boas
maneiras.
A
palavra
que
designa
esta
última,
jang,
significa
à
letra
"ceder
o
lugar
a
outrem"45.
Derrota--se
o
adversário
por
ter
melhores
maneiras,
ou
por
lhe
dar
precedência.
Possivelmente
é
na
China
que
a
competição
de
cortesia
é
mais
formalizada,
mas
pode
ser
encontrada
em
toda
a
parte
do
mundo46.
Podemos
considerá-la
uma
competição
de
fanfarronice
invertida,
pois
a
razão
desta
exibição
de
delicadeza
para
com
os
outros
é
um
profundo
interesse
pela
própria
honra.
As
competições
formais
de
invectivas
e
vitupérios
eram
muito
espalhadas
na
Arábia
pré-islâmica,
e
são
especialmente
claras
suas
relações
com
as
competições
de
destruição
da
propriedade,
um
dos
aspectos
centrais
do
potlatch.
Já
fizemos
referência
ao
costume
chamado
mu'aqara,
no
qual
os
adversários
cortavam
os
tendões
de
seus
camelos.
A
forma
básica
do
verbo
ao
qual
mu'aqara
pertence
no
terceiro
grau
significa
ferir
ou
mutilar.
E
entre
os
significados
de
mu'aqara
encontramos
também:
conviciis
et
dictis
satyricis
certavit
cum
aliquo
—
lutar
com
invectivas
e
linguagem
insultuosa.
O
que
lembra
o
torneio
de
destruição
dos
ciganos
egípcios,
que
tem
o
nome
de
vantardise.
Mas
além
de
mu'aqara
os
árabes
pré-islâmicos
designavam
os
torneios
de
destruição
e
formas
aparentadas
com
dois
outros
termos
técnicos:
munafara
e
mufakhara.
Convém
assinalar
que
as
três
palavras
são
formadas
da
mesma
maneira.
São
substantivos
verbais
derivados
da
chamada
terceira
forma
do
verbo,
e
é
talvez
este
o
aspecto
mais
interessante
de
toda
a
questão.
Porque
em
árabe
existe
uma
forma
verbal
especial,
que
pode
dar
a
qualquer
raiz
o
sentido
de
competir
em
alguma
coisa,
ou
ultrapassar
alguém
em
alguma
coisa.
Quase
poderíamos
chamar-lhe
uma
espécie
de
superlativo
verbal
da
própria
raiz.
Além
disso,
a
chamada
"sexta
forma",
derivada
da
terceira,
exprime
a ideia
de
atração
recíproca.
Assim
a
raiz
hasaba
(contar,
enumerar)
dá
muhasaba,
competição
pela
boa
reputação;
e
kathara
(exceder
em
número)
dá
mukathara,
competição
em
quantidade.
Mas
voltando
a
nosso
assunto:
mujakhara
provém
de
uma
raiz
que
significa
"vangloriar-se",
ao
passo
que
munafara
deriva
do
campo
semântico
de
"derrota",
"pôr
em
fuga".
Existe
em
árabe
um
parentesco
semântico
entre
honra,
virtude,
elogio
e
glória,
exatamente
como
em
grego
as
mesmas
ideias
gravitam
em
torno
da
αφετη47".
No
árabe
a
ideia
central
é
'irá,
que
pode
ser
traduzida
por
"honra",
desde
que
seja
tomada
em
sentido
extremamente
concreto.
A
principal
exigência
de
uma
vida
nobre
é
a
obrigação
de
preservar
a
integridade
e
a
segurança
de
sua
honra.
De
outro
lado,
supõe-se
que
o
adversário
esteja
animado
por
um
ardente
desejo
de
destruir
e
degradar
nosso
'ird
com
insultos.
Tal
como
na
Grécia,
também
aqui
qualquer
superioridade
física,
social
ou
moral
constitui
um
fundamento
de
honra
e
de
glória,
sendo
portanto
um
elemento
de
virtude.
O
árabe
tira
glória
de
suas
vitórias
e
sua
coragem,
do
número
de
seus
filhos
ou
de
seu
clã,
de
sua
liberdade,
sua
autoridade,
sua
força,
a
acuidade
de
sua
vista
ou
a
beleza
de
seu
cabelo.
Tudo
isto
compõe
seu
'izz,
'izza,
ou
seja,
sua
superioridade
sobre
os
outros
e,
consequentemente,
sua
autoridade
e
seu
prestígio.
Os
ultrajes
e
insultos
dirigidos
ao
adversário
ocupam
um
lugar
importante
nesta
exaltação
do
'izz
pessoal,
e
possuem
a
designação
técnica
de
hidja'.
As
lutas
pela
honra,
os
mufakhara,
costumavam
ser
realizadas
em
datas
pré-fixadas,
ao
mesmo
tempo
que
as
feiras
anuais
e
depois
das
peregrinações.
As
competições
travavam-se
entre
tribos
ou
clãs
inteiros,
ou
entre
indivíduos.
Sempre
que
acontecia
dois
grupos
se
encontrarem,
tratava-se
entre
eles
uma
justa
de
honra.
Havia
um
porta-voz
oficial
para
cada
grupo,
o
sha'ir
(poeta
ou
orador),
que
desempenhava
um
papel
importante.
Esse
costume
possuía
um
caráter
nitidamente
ritual,
servindo
para
manter
acesas
as
poderosas
tensões
sociais
que
davam
unidade
à
cultura
árabe
pré-
islâmica.
Mas,
o
surgimento
do
Islão
veio
atenuar
este
antigo
costume,
conferindo-lhe
uma
nova
dimensão
religiosa
ou
reduzindo-o
a
um
divertimento
de
corte.
Nos
tempos
do
paganismo
era
frequente
o
mufakhara
terminar
num
massacre
e
numa
guerra
tribal.
O
munafara
é
fundamentalmente
uma
forma
de
competição
na
qual
as
duas
partes
em
presença
defendem
sua
honra
perante
um
juiz
ou
um
árbitro;
o
verbo
de
que
a
palavra
deriva
possui
as
conotações
de
decisão
e
julgamento.
Estabelece-se
um
prêmio,
ou
um
tema
de
discussão,
como
por
exemplo
saber
quem
é
de
ascendência
mais
nobre,
sendo
o
prêmio
uma
centena
de
camelos48.
Tal
como
num
tribunal,
as
partes
levantam-se
e
sentam-se
alternadamente,
e
para
tornar
o
ato
mais
impressionante
cada
uma
delas
é
defendida
por
testemunhas
ajuramentadas.
Mais
tarde,
na
época
islâmica,
era
frequente
os
juízes
recusarem-se
a
julgar:
as
partes
cm
litígio
eram
ridicularizadas,
como
"dois
loucos
cheios
de
más
intenções".
Às
vezes,
o
munafara
era
realizado
em
verso.
Formavam-se
clubes
com
o
fim
específico
de,
primeiro,
representar
um
mufakhara
(torneio
de
honra),
depois
um
munafara
(invectivas
recíprocas),
que
muitas
vezes
terminava
numa
luta
à
mão
armada49.
Na
tradição
grega,
encontram-se
numerosos
vestígios
de
torneios
de
injúrias
cerimoniais
e
solenes.
Alguns
autores
afirmam
que
a
palavra
iambos
significava
originalmente
"sarcasmo",
estando
especialmente
relacionada
com
os
cantos
públicos
de
insultos
e
sarcasmos
que
faziam
parte
das
lestas
de
Deméter
e
Dionísio.
Julga-se
que
foi
a
partir
desta
tradição
de
troça
em
público
que
surgiu
a
sátira
de
Arquíloco,
cuja
recitação,
acompanhada
por
música, era
incluída
nas
competições.
A
poesia
jâmbica
passou,
assim,
de
um
costume
imemorial
de
natureza
ritual
a
instrumento
de
crítica
pública.
Mesmo
o
tema
das
diatribes
contra
as
mulheres
parece
constituir
um
vestígio
dos
cantos
alternados
de
sarcasmo
entre
os
homens
e
as
mulheres
que
eram
realizados
no
decurso
das
festas
de
Deméter
e
Apoio.
Deve
estar
na
base
desses
costumes
um
jogo
sagrado
de
emulação
pública,
o
psogos50.
Também
a
tradição
da
antiguidade
germânica
apresenta
vestígios
muito
antigos
de
duelos
de
injúrias
na
história
de
Alboin,
na
corte
dos
gépidas,
que
foi
manifestamente
recolhida
por
Paulo,
o
Diácono,
nas
canções
épicas51.
Os
chefes
lombardos
foram
convidados
para
um
banquete
real
por
Turisindo,
rei
dos
gépidas.
Quando
o
rei
começa
a
lamentar
seu
filho
Turismundo,
morto
em
combate
contra
os
lombardos,
outro
de
seus
filhos
levanta-se
e
começa
a
cobrir
os
lombardos
de
injúrias
(iniuriis
lacessere
coepit).
Chama-Ihes
éguas
de
pés
brancos,
acrescentando
que
cheiram
mal.
Ao
que
um
dos
lombardos
responde:
"Vai
ao
campo
de
batalha
de
Asfeld,
onde
poderás
verificar
a
valentia
com
que
essas
'éguas'
de
que
falas
sabem
defender-se,
lá
onde
estão
os
ossos
de
teu
irmão,
espalhados
pelo
campo
como
os
ossos
de
uma
velha
pileca".
O
rei
evita
que
os
dois
passem
a
vias
de
fato,
"e
o
banquete
foi
levado
a
um
fim
feliz"
(laetis
animis
conviviam
peragunt).
Estas
últimas
palavras
revelam
claramente
o
caráter
lúdico
da
altercação.
Não
resta
dúvida
que
se
trata
de
um
exemplo
de
torneio
de
insultos.
Este
existe
também
na
literatura
nórdica
arcaica,
sob
uma
forma
especial
chamada
mannjafnadr,
"comparação
dos
homens".
Faz
parte
da
festa
do
Jul,
do
mesmo
modo
que
a
competição
de
juramentos.
Um
exemplo
é
a
saga
de
Orvar
Odd.
Orvar
Odd
está
incógnito
de
visita
à
corte
de
um
rei
estrangeiro
e
aposta
sua
cabeça
que
é
capaz
de
vencer
na
bebida
dois
dos
homens
do
rei.
A
cada
vez
que
um
deles
passa
o
corno
de
beber
ao
seu
rival,
vangloria-se
de
qualquer
heroico
feito
de
guerra
em
que
ele
esteve
presente,
enquanto
o
outro
se
deixa
ficar
vergonhosamente
ao
canto
do
lume,
junto
com
as
mulheres52.
À
vezes,
são
dois
reis
que
procuram
vencer
um
ao
outro
em
linguagem
jactanciosa.
Uma
das
canções
dos
Edda,
o
Harbarosljoô,
trata
de
uma
competição
deste
gênero
entre
Thor
e
Odin53.
Devemos
também
incluir
no
mesmo
gênero
as
disputas
de
Loki
com
os
Ases,
durante
uma
sessão
de
bebida54
.
O
caráter
ritual
destas
competições
é
revelado
pela
referência
expressa
ao
fato
de
o
recinto
onde
elas
se
realizavam
ser
"um
grande
lugar
de
paz"
(griaastaar
mikill),
e
de
nele
não
ser
permitido
a
ninguém
exercer
violência
contra
o
outro,
diga
este
o
que
disser.
Embora
todos
estes
exemplos
sejam
redações
literárias
de
temas
pertencentes
a
um
passado
muito
remoto,
a
existência
de
um
pano
de
fundo
ritualístico
é
demasiado
evidente
para
que
se
possa
considerá-los
apenas
o
produto
de
uma
ficção
poética
mais
tardia.
As
lendas
primitivas
irlandesas
do
porco
de
Mac
Datho
e
da
festa
de
Bricrend
apresentam
uma
"comparação
de
homens"
semelhante.
De
Vries
está
certo
da
origem
religiosa
do
Mannjafnadr55.
A
importância
que
era
atribuída
a
este
gênero
de
insultos
é
ilustrada
de
maneira
evidente
pelo
caso
de
Harald
Gormsson,
que
queria
empreender
uma
expedição
punitiva
contra
a
Islândia
por
causa
de
um
simples
epigrama
de
que
fora
vítima.
Beowulf,
na
saga
do
mesmo
nome,
é,
durante
uma
estadia
na
corte
do
rei
da
Dinamarca,
insultuosamente
desafiado
por
Unferd
que
lhe
conta
suas
proezas
passadas.
As
línguas
germânicas
antigas
possuem
uma
palavra
especial
para
designar
esta
cerimônia
de
insultos
e
fanfarronadas,
quer
ela
seja
um
prelúdio
a
um
combate
armado ligado
a
um
torneio,
quer
seja
apenas
parte
do
divertimento
de
uma
festa.
A
palavra
é
gelp,
gelpan.
Em
inglês
antigo
este
substantivo
significa
glória,
pompa,
arrogância
etc.,
e
em
médio
alto
alemão
significa
clamor,
troça,
escárnio.
O dicionário
de
inglês
ainda
tem
"aplaudir,
louvar"
como
significados
obsoletos
de
yelp,
que
hoje
está
reduzido
ao
latir
dos
cães;
e
"vanglória"
para
o
substantivo56.
O
francês
primitivo
tem
um
equivalente
aproximado
de
gelp,
gelpan
em
gab,
gaber,
de
origem
incerta.
Gab
significa
troça
e
escárnio,
especialmente
como
prelúdio
a
um
combate
ou
como
parte
de
um
banquete.
Gaber
é
considerado
uma
arte.
Em
sua
visita
ao
imperador
de
Constantinopla,
Carlos
Magno
e
seus
doze
paladinos
encontraram
doze
leitos
prontos,
após
a
refeição
e,
por
sugestão
de
Carlos
Magno,
dedicaram-se
a
gaber
antes
de
dormir.
Ele
mesmo
deu
o
exemplo,
e
veio
depois
a
vez
de
Rolando,
que
aceitou
de
bom
grado,
dizendo:
"Que
o
rei
Hugo
se
digne
emprestar-me
suas
trompas,
e
sairei
da
cidade,
tocando
com
tal
força
que
todas
as
portas
saltarão
de
seus
gonzos.
Se
ele
me
atacar,
fá-lo-ei
rodar
com
tamanha
violência
que
seu
manto
de
arminho
desaparecerá
e
seus
bigodes
pegarão
fogo57.
A
crônica
rimada
de
Geoffroi
Gaimar,
sobre
o
rei
Guilherme
o
Ruivo
da
Inglaterra,
mostra
este
empenhado
numa
competição
semelhante
com
Walter
Tyrel,
seu
futuro
assassino58.
Ao
que
parece
a
fanfarronada
e
o
escárnio
tomaram
mais
tarde,
nos
torneios,
o
papel
que
competia
aos
arautos.
Estes
glorificavam
os
feitos
de
armas
de
seus
senhores,
louvavam
sua
linhagem
e,
por
vezes,
escarneciam
das
damas.
Regra
geral
os
arautos
são
desprezados,
tratados
como
mendigos
e
vagabundos59.
No
século
XVI
o
gaber
ainda
é
encontrado
como
diversão
social,
coisa
que
no
fundo
sempre
havia
sido,
malgrado
sua
origem
ritualística.
Diz-se
que
o
duque
de
Anjou
encontrou
no
Amadis
de
Gaule
uma
referência
a
este
jogo,
e
decidiu
jogá-lo
com
os
membros
de
sua
corte.
Mas
Bussy
d'Amboise
opunha-se
a
replicar
ao
duque.
Assim,
foi
estabelecido
como
regra
que
todas
as
partes
fossem
consideradas
iguais
e
que
nenhuma
palavra
fosse
considerada
ofensa
(exatamente
como
no
recinto
de
Aegir,
no
torneio
de
insultos
de
Loki).
Apesar
disso,
esse
jogo
acabou
por
dar
origem
a
uma
intriga,
no
fim
da
qual
o
pérfido
Anjou
levou
Bussy
a
perder60.
A
noção
de
competição
como
um
dos
elementos
principais
da
vida
social
esteve
sempre
associada,
em
nosso
espírito,
à
ideia
da
civilização
grega.
Muito
antes
de
terem
a
sociologia
e
a
antropologia
se
apercebido
da
extraordinária
importância
do
fator
agonístico
em
geral,
Jacob
Burckhardt
criou
a
palavra
"agonal"
e
descreveu
sua
importância
como
uma
das
características
principais
da
cultura
helênica.
Todavia
Burckhardt
não
possuía
a
preparação
necessária
para
compreender
a
amplitude
do
pano
de
fundo
sociológico
do
fenômeno.
Pensou
que
os
hábitos
agonísticos
eram
especificamente
gregos,
e
que
sua
existência
se
limitava
ao
período
da
história
grega.
Segundo
ele,
o
tipo
mais
antigo
da
historia
da
Grécia
é
o
homem
"heroico",
que
foi
seguido
pelo
homem
"colonial" ou
"agonal",
o
qual,
por
sua
vez,
foi
sucessivamente
substituído
pelo
homem
do
século
V,
pelo
do
século
IV
(os
quais
não
possuem
nomes
específicos),
e
finalmente,
depois
de
Alexandre,
pelo
homem
"helenístico"61.
O
período "colonial"
ou
"agonal"
é,
portanto,
o
século
VI
A.
C.,
ou
seja,
a
época
da
expansão
helênica
e
dos
jogos
nacionais.
Aquilo
a
que
chama
"o
agonal"
é
"um
impulso
tal
como
nenhum
outro
povo
jamais
conheceu"62.
Não
é
de
se
espantar
que
as
concepções
de
Burckhardt
tenham
sido
limitadas
pela
filologia
clássica.
Sua
grande
obra,
publicada
postumamente
sob
o
título
de
Griechische
Kulturgeschichte,
foi
elaborada
a
partir
de
uma
série
de
conferências
proferidas
na
Universidade
de
Basileia
durante
a
década
de
1880,
numa
época
em
que
não
havia
uma
sociologia
constituída,
capaz
de
digerir
todos
os
dados
etnológicos
e
antropológicos,
muitos
dos
quais,
aliás,
só
pouco
tempo
antes
vieram
à
luz.
Todavia,
é
mais
ou
menos
desconcertante
verificar
que
as
concepções
de
Burckhardt
ainda
hoje
recebem
a
adesão
de
mais
de
um
estudioso63.
Victor
Ehrenberg
considera
ainda
o
princípio
agonístico
como
especificamente
grego.
"O
oriente
permaneceu-lhe
estranho
e
hostil",
escreve
ele;
"é
em
vão
que
procuram
na
Bíblia
provas
da
existência
de
competições
agonísticas"64.
Já
tivemos
ocasiões
suficientes
para
nos
referirmos
ao
Extremo
Oriente,
à
índia
do
Mahabharata
e
ao
mundo
dos
povos
primitivos
de
modo
que
evitaremos
perder
tempo
refutando
aqui
estas
afirmações.
E
é
precisamente
o
Velho
Testamento
que
oferece
um
dos
exemplos
mais
convincentes
das
relações
entre
o
fator
agonístico
e
o
jogo65.
Burckhardt
admitiu
a
existência
das
competições
entre
os
povos
bárbaros
e
primitivos,
mas
atribuiu
pouca
importância
a
esse
fato66.
Ehrenberg
condescende
em
reconhecer
o
caráter
universalmente
humano
do
princípio
agonístico,
mas
em
compensação
considera-o
"historicamente
desinteressante
e
sem
significado"!
Ignora
completamente
as
competições
para
fins
sagrados
ou
mágicos,
e
ataca
aquilo
a
que
chama
"a
interpretação
folclorista
dos
materiais
gregos"67.
Segundo
ele,
o
impulso
competitivo
"quase
nunca
se
tornou
uma
força
social
e
suprapessoal
fora
da
Grécia"68.
É
certo
que,
após
ter
escrito
este
livro,
deu-se
conta
pelo
menos
dos
paralelismos
entre
a
cultura
islandesa
e
a
grega,
e
declarou-se
pronto
a
conferir-lhes
uma
certa
importância69.
Ehrenberg
segue
Burckhardt
também
no
fato
de
situar
'o
agonal"
no
período
que
se
seguiu
ao
"heroico",
admitindo
ao
mesmo
tempo
que
este
último
possuía
já
certos
caracteres
agonísticos
esporádicos.
Afirma
que,
em
seu
conjunto,
a
guerra
de
Troia
foi
destituída
de
traços
agonísticos;
só
depois
da
des-heroicização
da
classe
guerreira"
(Entheroisierung
dês
Kriegertums),
surgiu
a
necessidade
de
criar
um
substituto
para
o
heroísmo,
com
"o
agonal",
o
que
foi,
portanto,
um
"produto"
de
uma
fase
cultural
mais
tardia70.
Tudo
isto
se
baseia
em
parte
na
surpreendente
máxima
de
Burckhardt:
"Um
povo
que
conhece
a
guerra
não
precisa
de
torneios"71.
É
possível
que
esta
afirmação
nos
pareça
mais
ou
menos
verossímil
mas,
no
que
diz
respeito
a
todas
as
culturas
primitivas,
provou-se
que
ela
é
absolutamente
falsa,
tanto
pela
sociologia
como
pela
etnologia.
É
certo
que
nos
poucos
séculos
da
história
grega,
em
que
a
competição
dominou
a
vida
da
sociedade,
também
presenciaram
os
grandes
jogos
sagrados
que
uniram
toda
a
Hélade
em
Olímpia,
no
Istmo.
em
Delfos
e
em
Nemeia.
Mas
nem
por
isso
deixa
de
ser
verdade
que
o
espírito
de
competição
dominou
a
cultura
helênica
tanto
antes
desses
séculos
como
depois.
Durante
todo
o
período
de
sua
existência,
os
jogos
helênicos
permaneceram
intimamente
ligados
à
religião,
mesmo
nas
épocas
mais
tardias
em
que,
à
primeira
vista,
poderiam
assumir
a
aparência
dos
esportes
nacionais
puros
e
simples.
Os
cantos
triunfais
de
Píndaro,
em
honra
das
grandes
competições,
pertencem
inteiramente
ao
quadro
de
sua
rica
poesia
sagrada,
da
qual
eles
constituem
a
única
parte
conservada
até
nossos
dias72.
O
caráter
sagrado
do
agon
manifesta-se
em
toda
a
parte.
O
zelo
competitivo
dos
jovens
espartanos
em
submeter-se
a
dolorosas
experiências
perante
o
altar
é
apenas
um
exemplo
entre
as
muitas
práticas
cruéis
relacionadas
com
a
iniciação
à
vida
adulta,
semelhantes
às
que
podem
ser
encontradas
entre
os
povos
primitivos
de
toda
a
Terra.
Píndaro
mostra
um
vencedor
dos
Jogos
Olímpicos
insuflando
uma
nova
força
vital
nos
pulmões
de
seu
velho
avô73.
A
tradição
grega
estabelece
uma
divisão
entre
as
competições:
de
um
lado
as
públicas
ou
nacionais,
militares
e
jurídicas,
e,
de
outro,
as
relacionadas
com
a
força,
a
sabedoria
e
a
riqueza.
Esta
classificação
parece
refletir
uma
fase
agonística,
mais
primitiva,
da
cultura.
O
fato
de
se
chamar
"agon"
à
disputa
perante
um
juiz
não
deve
ser
tomado,
ao
contrário
do
que
pensa
Burckhardt74,
como
uma
simples
expressão
metafórica
de
uma
época
mais
tardia
mas,
pelo
contrário,
como
prova
de
uma
imemorial
associação
de
ideias,
à
qual
mais
adiante
voltaremos
a
fazer
referência.
De
fato,
houve
um
tempo
em
que
o
julgamento
em
tribunal
foi
um
agon
no
sentido
restrito
do
termo.
Era
costume
entre
os
gregos
organizar
competições
a
propósito
de
tudo
o
que
oferecesse
a
possibilidade
de
uma
luta.
Os
concursos
de
beleza
masculina
faziam
parte
das
Panateneias
e
das
festas
de
Teseu.
Nos
simpósios
eram
organizados
concursos
de
canto,
decifração
de
enigmas,
de
resistência
em
se
conservar
acordado
e
bebendo.
Mesmo
neste
último
caso,
o
elemento
sagrado
não
está
ausente:
os
πολυποσία
e
os
αχφατοποσία
(beber
muito
e
sem
mistura)
faziam
parte
da
festa
de
Coeno.
Alexandre
celebrou
a
morte
de
Calanos
com
um
agon
ginástico
e
musical,
com
prêmios
para
os
melhores
bebedores,
tendo
daí
resultado
que
trinta
e
cinco
dos
competidores
morreram
na
hora,
e
seis
deles
mais
tarde,
entre
os
quais
o
vencedor75.
Notemos
de
passagem
que
as
competições
que
consistiam
em
absorver
grandes
quantidades
de
comida
e
bebida
estão
também
ligadas
ao
potlatch.
Sua
concepção
demasiado
estreita
do
princípio
agonístico
levou
Ehrenberg
a
negar
a
presença
deste
na
civilização
romana,
atribuindo-lhe
mesmo
um
caráter
antiagonístico76.
É
certo
que
nela
é
bastante
reduzido
o
papel
das
competições
entre
homens
livres,
mas
isto
não
significa
que
na
estrutura
da
civilização
romana
o
elemento
agonístico
estivesse
inteiramente
ausente.
Pelo
contrário,
encontramos
aqui
um
fenômeno
singular,
a
saber,
que
numa
época
bem
primitiva
o
impulso
competitivo
passou
do
protagonista
para
o
espectador,
o
qual
se
limita
a
assistir
às
lutas
de
outros,
designados
para
esse
fim.
Esta
passagem
está,
em
dúvida,
intimamente
ligada
ao
caráter
profundamente
ritualístico
dos
próprios
jogos
romanos,
dado
que
é
precisamente
no
culto
que
essa
substituição
está
em
seu
lugar
próprio,
pois
nele
os
competidores
são
considerados
representantes
dos
espectadores,
ou
seja,
como
se
lutassem
em
nome
destes.
Os
combates
de
gladiadores,
as
lutas
de
animais
selvagens,
as
corridas
de
carros
etc.,
nada
perdem
de
seu
caráter
agonístico
mesmo
quando
são
realizados
por
escravos.
Os
ludi
ou
acompanhavam
as
festas
regulares
anuais
ou
eram
ludi
votivi,
organizados
para
cumprir
um
voto
e
geralmente
para
prestar
homenagem
aos
mortos
ou,
mais
especialmente,
para
aplacar
a
ira
dos
deuses.
Toda
a
cerimônia
ficava
invalidada
pelo
menor
desrespeito
ao
ritual
ou
a
mais
acidental
perturbação.
Este
pormenor
revela
o
caráter
sagrado
da
ação.
É
da
mais
alta
importância
o
fato
de
que
estes
combates
dos
gladiadores
romanos,
apesar
de
seu
caráter
sanguinolento,
supersticioso
e
escravista,
mesmo
assim
continuem
a
ser
designados
simplesmente
pela
palavra
ludus,
com
tudo
o
que
esta
evoca
de
alegria
e
liberdade.
Como
compreender
este
fenômeno?
Temos
que
voltar
uma
vez
mais
a
fazer
referência
ao
lugar
ocupado
pelo
agon
na
civilização
grega.
Segundo
a
concepção
apresentada
por
Burckhardt
e
retomada
por
Ehrenberg77,
existe
a
seguinte
série
de
fases:
primeiro
um
período
arcaico,
também
chamado
"heroico",
que
assistiu
ao
surgimento
da
Hélade,
através
de
combates
e
guerras
a
sério,
sem
a
presença
do
fator
agonístico,
entendido
como
fator
de
natureza
social.
Posteriormente,
dado
que
a
nação
havia
consumido
suas
melhores
forças
nessas
lutas
heroicas,
e
estava
perdendo
gradualmente
seu
temperamento
heroico,
a
sociedade
grega
começou
a
deslocar-se
na
direção
do
"agonal",
o
qual
a
partir
daí
se
tornou
o
fator
dominante
da
vida
social,
permanecendo
nessa
qualidade
durante
alguns
séculos.
É
uma
transição
"da
batalha
para
o
jogo",
segundo
a
expressão
de
Ehrenberg",
e
consequentemente,
trata-se
de
um
sinal
de
decadência.
E
não
há
dúvida
que
o
predomínio
do
princípio
agonístico
efetivamente
acaba
levando
à
decadência,
a
longo
prazo.
Ehrenberg
prossegue,
afirmando
que
é
precisamente
a
futilidade
e
inutilidade
do
agon
que
conduz
finalmente
à
"abolição
de
todas
as
qualidades
sérias
da
vida,
tanto
no
pensamento
quanto
na
ação;
indiferença
a
todo
e
qualquer
impulso
vindo
do
exterior,
e
desbaratamento
de
todas
as
forças
nacionais
com
o
puro
e
simples
objetivo
de
ganhar
um
jogo"78.
Nas
últimas
palavras
desta
frase
há
muita
coisa
de
verdadeiro
mas,
mesmo
que
admitamos
que
em
certas
épocas
a
vida
social
grega
degenerou
na
pura
paixão
pela
emulação,
continua
sendo
verdade
que
a
história
da
Grécia,
em
seu
conjunto,
seguiu
um
caminho
totalmente
diferente
daquele
que
Ehrenberg
supõe.
É
necessário
exprimir
de
maneira
completamente
diferente
a
importância
do
fator
agonístico
para
a
cultura.
Na
Grécia
não
se
deu
qualquer
transição
"da
batalha
para
o
jogo",
nem
do
jogo
para
a
batalha,
o
que
se
deu
foi
o
desenvolvimento
da
cultura
dentro
de
um
contexto
lúdico.
Na
Grécia,
tal
como
em
toda
a
parte,
o
elemento
lúdico
esteve
presente
desde
o
início,
desempenhando
um
papel
extremamente
importante.
Nosso
ponto
de
partida
deve
ser
a
concepção
de
um
sentido
lúdico
de
natureza
quase
infantil,
exprimindo-se
em
muitas
e
variadas
formas
de
jogo,
algumas
delas
sérias
e
outras
de
caráter
mais
ligeiro,
mas
todas
elas
profundamente
enraizadas
no
ritual
e
dotadas
de
uma
capacidade
criadora
de
cultura,
devido
ao
fato
de
permitirem
que
se
desenvolvessem
em
toda
a
sua
plenitude
as
necessidades
humanas
inatas
de
ritmo,
harmonia,
mudança,
alternância,
contraste,
clímax
etc.
A
este
sentido
lúdico
está
inseparavelmente
ligado
um
espírito
que
aspira
à
honra,
à
dignidade,
à
superioridade
e
à
beleza.
Tanto
a
magia
como
o
mistério,
os
sonhos
de
heroísmo,
os
primeiros
passos
da
música,
da
escultura
e
da
lógica,
todos
estes
elementos
da
cultura
procuram
expressão
em
nobres
formas
lúdicas.
Uma
geração
mais
tardia
virá
a
chamar
"heroica"
à
época
que
conheceu
tais
aspirações.
Portanto,
é
desde
o
início
que
se
encontram
no
jogo
os
elementos
antitéticos
e
agonísticos
que
constituem
os
fundamentos
da
civilização,
porque
o
jogo
é
mais
antigo
e
muito
mais
original
do
que
a
civilização.
Assim,
para
voltar
a
nosso
ponto
de
partida,
os
ludi
romanos,
podemos
afirmar
que
a
língua
latina
tinha
toda
a
razão
ao
designar
as
competições
sagradas
pela
simples
palavra
"jogo",
pois
esta
palavra
exprime
da
maneira
mais
simples
possível
a
natureza
única
desta
força
civilizadora.
No
curso
do
desenvolvimento
de
toda
e
qualquer
civilização,
a
função
agonística
atinge
sua
forma
mais
bela,
que
é
também
a
mais
fácil
de
discernir,
na
fase
arcaica.
À
medida
que
uma
civilização
vai-se
tornando
mais
complexa,
vai-se
ampliando
e
revestindo-se
de
formas
mais
variadas,
e
que
as
técnicas
de
produção
e
a
própria
vida
social
vão-se
organizando
de
maneira
mais
perfeita,
o
velho
solo
cultural
vai
sendo
gradualmente
coberto
por
uma
nova
camada
de
ideias,
sistemas
de
pensamento
e
conhecimento;
doutrinas,
regras
e
regulamentos;
normas
morais
e
convenções
que
perderam
já
toda
e
qualquer
relação
direta
com
o
jogo.
Dizemos,
nesse
momento,
que
a
civilização
se
tornou
mais
séria,
devido
ao
fato
de
atribuir
ao
jogo
apenas
um
lugar
secundário.
Terminou
o
período
heroico,
e
a
fase
agonística
parece,
ela
também,
pertencer
unicamente
ao
passado.
Notas do capítulo 3
1
P.
23.
2
P.
29.
3
Pauly-Wissowa
(.Real-Encyclopadie
der
klass.
Alterlumwiss,
XII,
1860.
4
Cf.
Harrison,
Themis,
p.
221,
n.
3,
e
p.
323,
que
comete
o
erro,
em
minha
opinião,
de
dar
razão
a
Plutarco
quando
este
considera
essa
forma
de
competição
incompatível
com
a
ideia
do
agon.
5
Não
consegui
descortinar
qualquer
relação
direta
entre
o
herói
lendário
que
alcança
seu
objetivo
por
meio
da
fraude
e
da
astúcia
e
a
figura
divina
que
é
ao
mesmo
tempo
para
o
homem,
um
benfeitor
e
um
traidor.
Cf.
W.
B.
Kristensen,
De
goddelijke
beärieger,
Mededeelingen
der
K.
Akad.
van
Wetenschappen,
afd.
Let.
Nº
3;
e
J.
P.
B.
Josselin
de
Jong,
Be
oorsprong
van
den
goddeliiken
hedrieger,
ibid..
68
b.
n.
1.
1927.
6
Anthonio
van
Neulighem,
Openbaringe
van't
Italiaens
boeckhouden,
1931,
pp.
25,
26,
77,
86
e
ss.,
91
e
ss.
7
Verachter,
Inventaire
des
Chartes
d'Anvers,
nº
742
p.
215;
Coutumei
de
l
a
ville
d'Anvers,
II,
p.
400,
IV,
p.
8;
cf.
E.
Bensa,
Histoire
du
contrat
d'assurance
au
moyen
âge,
1897,
P.
84
e
ss.:
em
Barcelona
em
1435,
em
Gênova
em
1467:
decretiim
ne
asseveratio
fieri
possit
super
vita
principum
et
locorum
mutatíones.
8
R.
Ethrenberg,
Das
Zeitalter
der
fugger,
lena,
1896
(1912),
II,
p.19
e
ss.
9
M.
Granet:
Fêtes
et
Chansons
anciennes
de
la
Chine,
Paris,
1919;
D
anses
et
legendes
de
Ia
Chine
ancienne,
Paris,
1926;
La
Civilisation
chinoise.
la
vie
publique
et
la
vie
privée
(L'évolution
de
l'humanité,
nº
25),
Paris,
1929.
10
Granet,
Civilisation,
p.
204.
O
mesmo
tema
é
sucintamente
abordado
por
José
Ortega
y
Gasset
em
seu
ensaio
El
origen
deportivo
del
Estado,
1924;
El
Expectador.
VIl,
Madri,
1930,
pp.
103-143.
11
Granet,
Fêtes
et
chansons,
p.
203.
12
Fêtes
et
Chansons,
pp.
11-154
13
Nguyen
van
Huyen.
Les
chants
alternés
des
garçons
et
des
filles
en
Aniham.
Tese.
Paris.
1913.
14
Stewart
Culin,
Chess
and
Playing
Cards,
Annual
Report
of
the
Smithsonian
Institute,
1896;
G.
J.
Held,
The
Mahabharata:
an
Ethnological
Survey,
Tese,
Leyden,
1935
—
obra
interessante
para
a
compreensão
das
relações
entre
a
cultura
e
o
jogo.
15
Held,
op.
cit.,
p.
273.
16
Livro
XIII,
2368,
2381.
17
J.
de
Vries,
Altgermanische
Religionsgeschichte,
II.
p.
154.
Berlim.
1937.
18
H,
Lüders,
D
as
Würferspiel
im
alten
indlen,
Abh,
K.
Geselisch,
d.
Wissenschaften,
Gottingen
1907.
Ph,
H.
Kl.
IX,
2,
p.
9.
19
Op.
cil.,
p.
250.
20
Este
nome
foi
escolhido
de
maneira
mais
ou
menos
arbitrária,
dentre
vários
termos
de
diferentes
dialetos
índios.
Cf.
G.
Davy,
La
foi
jurée,
Tese,
Paris,
1923;
Des
Clans
aux
Empires
(L'évolutions
de
l'humanité,
nº
6),
1923;
M.
Mauss,
Essai
sur
le
Don,
forme
archique
de
l’échange
(L'
Année
socíologique,
N.
S.
I),
1923-4
21
Davy,
La
Foi
jurée,
p.
177.
22
Danses
et
legendes,
I,
p.
57;
La
civilisation
chinoise,
pp.
190,
200.
23
O.
W.
Freytag,
Lexicon
Arabico-latinum,
Halle,
1830,
i.
v.
aqara:
de
gloria
certavit
incidendis
camelorum
pedibus.
24
Essai
sur
te
don,
p.
143.
25
Citado
por
Davy,
op.
cit.,
p.
119
e
ss.
26
Leyden.
1932.
27
R.
Maunier,
Les
échanges
rituels
en
Afríque
du
Nord,
L'Année
Sociologique.
N.
S.
II,
1924-25,
p.
81,
n.
1.
28
Fanfarronice,
gabarolice.
(N.
do
T.)
29
"Com
efeito,
o
potlatch
é
um
jogo
e
uma
prova".
Essai
sur
le
don,
p.
102.
30
Davy,
op.
cil.,
p.
137.
31
Held,
op.
cit.,
pp.
252,
255.
32
Tito
Lívio.
1,
VIl,
2,
13.
33
Londres,
1922.
34
Os
objetos
do
kula
talvez
possam
ser
comparados
com
o
costume
o
que
os
etnólogos
chamam
Renommiergeld
(dinheiro
para
presumir).
35
O
mais
próximo
equivalente
do
alemão
Tugend.
Além
da
próprias
palavra
"virtude",
talvez
seja
"propriedade".
(N.
do
T.)
36
Werner
Jaeger,
Paideia,
1,
Berlim,
1934.
p
25
e
ss;
cf
R
W.
Livingstone,
G
reek
Ideais
and
Mixlern
Lite.
Oxiord,
1935,
p.
202
SS
37
Ética
a
Nicômaco,
IV,
1123
h
35
38
Ibid..
I,
1095
b
26
39
llíada.
VI,
208.
40
Granet,
La
civilisation
chinoise,
p.
317.
41
Ibid..
p.
314.
42
Malinowski,
The
Argonauts
of
the
Western
Pacific,
p.
168.
43
Granet,
op.
cit.,
p.
238.
44
Granet,
Danses
et
Legendes,
1,
p.
321.
45
Na
primeira
edição
deste
livro,
página
96,
pensei
erradamente,
poder
considerar
a
palavra
j
ang
como
um
dos
termos
ligados
à
designação
do
jogo.
O
próprio
fenômeno
apresenta,
aliás,
numerosas
características
de
um
jogo
nobre,
46
Cf.
o
meu
Declínio
da
Idade
Média,
Cap.
2.
47
Cf.
Bichr
Farès,
L'
honneur
chez
les
Árabes
avant
l'Istam,
Etude
de
sociologie,
Paris,
1933:
Encyclopédie
de
l'Islam,
s.
v.
mufakhara.
48
G.
W.
Freylag,
Einleitung
in
das
Studium
der
arabischen
Sprache
bis
Miihanimed,
Bunn,
1861,
p.
184.
49
Kilah
ai
Aghani.
Cairo.
l905-6,
IV,
8;
VIII.
109
e
ss;
XV,
52,
57.
50
Cf.
Jaeger,
Paideia,
I,
p.
168
e
ss.
51
Historia
Langobardorum
(Mon.
Germ.
Hist.
SS.
Langobard.),
I,
24.
52
Edda,
I,
Thule
I,
1928,
nº
29,
cf.
X,
pp.
298,
313.
53
Ibid..
Nº
9.
54
Ibid.,
Nº
8.
55
Altgermanische
Religionsgeschichte,
II,
p.
153.
56
Um
exemplo
de
gilp-cwida
do
século
XI
é
dado
na
Gesta
Herwardii,
publicada
por
Duffus
Hardy
e
C.
T.
Martin
(num
apêndice
a
Geffroi
Gaimar,
Lestoire
des
Engles),
Rolls
Series,
I,
1888,
p.
345.
57
Le
Pèlerinage
de
Charlemagne
(século
XI),
publicado
por
E.
Koschwitz,
Paris,
1925,
versos
471
a
481.
58
F.
Michel,
Chroniques
anglo-normandes,
1,
Rouen,
1936,
p.
52;
cf.
Wace,
Le
Roman
de
Rou,
ed.
H.
Andresen
Heibronn
1877,
versos
15
038
e
ss.,
e
Guilherme
de
Malmesbury,
De
Gestis
Regum
Anglorum,
ed
Stubbs,
Londres,
1888,
IV,
p.
320.
59
Jaques
Bretel,
Le
Tournoi
de
Chauvency,
ed.
M.
Delbouille,
versos
540,
1093-1158
etc.,
Liège,
1932;
Le
Dil
des
hérauts,
Romania
XLIIl,
1914,
p.
218
e
ss.
60
A.
de
Varilhas,
Hisroire
de
Henri
III,
I,
p.
574,
Paris,
1964,
parcialmente
reproduzido
no
Dictionnaire
de
l'ancienne
langue
française
de
Fr.
Godefroy,
Paris,
1885,
verbete
gaher
(p.
197).
61
Griechische
Kulturgeschichte,
herausgegeben
von
Rudolf
Marx.
111.
62
Ibid..
III,
p,
68.
63
H,
Schifter,
Staatsform
und
Politik,
Leipzig,
1932;
V
Ehrenberg,
Ost
und
West:
Studien
zur
geschichilichen
Problematik
der
Antike,
Schriften
der
Philos.
Fak.
der
deutschen
Univ.
Prag,
XV.
1935.
64
Ost
und
West,
pp.
93,
94.
90.
65
Cf.
acima,
pp.
58-9.
66
Gr.
Kulturg.,
III,
p.
68.
67
Ost
und
West.
pp.
65.
219.
68
Ibid.,
p.
217.
69
Ibid..
pp.
69.
218.
70
Ibid.,
pp.
71,
67,
70,
66,
72;
cf.
Burckhardt,
op.
cit.,
pp.
26.
43.
71
Gr.
Kuliurg.,
111,
p.
69;
cf.
Ehrenberg,
op.
cit.,
p.
88.
72
Jaeger,
Paideia,
1,
p.
273.
73
Píndaro,
Olympica,
VIU.
92
(70).
74
Op.
cit..
m.
p.
85.
75
Segundo
Chares,
cf.
Pauly
Wissowa,
s.
v.
Kalanos,
c.
1545.
76
Op.
cit.,
p.
91.
77
Op.
cit..
p.
80
.
78
Op.
cil..
p.
96.
4.
O
Jogo
e
o
Direito
À
primeira
vista,
o
jogo
poderia
parecer
o
mais
distante
possível
em
relação
ao
direito,
à
justiça
e
à
jurisprudência.
Toda
a
esfera
do
direito
é
dominada
pela
mais
total
e
implacável
seriedade
e
pelos
interesses
vitais
do
indivíduo
e
da
sociedade.
Os
fundamentos
etimológicos
da
maior
parte
das
palavras
que
exprimem
ideias
relacionadas
com
a
lei
e
o
direito
estão
sobretudo
ligadas
às
noções
de
estabelecer,
indicar,
ordenar
etc.
Todas
estas
ideias
parecem
oferecer
pouca
ou
nenhuma
relação
com
a
esfera
semântica
que
deu
origem
aos
termos
lúdicos,
e
até
lhe
parecem
ser
opostas.
Contudo,
e
conforme
temos
vindo
constantemente
a
lembrar,
o
caráter
sagrado
e
sério
de
uma
ação
de
maneira
alguma
impede
que
nela
se
encontrem
qualidades
lúdicas.
A
possibilidade
de
haver
um
parentesco
entre
o
direito
e
o
jogo
aparece
claramente
logo
que
compreendemos
em
que
medida
a
atual
prática
do
direito,
isto
é,
o
processo,
é
extremamente
semelhante
a
uma
competição,
e
isto
sejam
quais
forem
os
fundamentos
ideais
que
o
direito
possa
ter.
Já
fizemos
referência
à
possibilidade
de
uma
relação
entre
a
competição
e
o
surgimento
dos
sistemas
jurídicos
em
nossa
descrição
do
potlatch,
que
é
analisado
por
Davy
apenas
do
ponto
de
vista
jurídico,
como
sistema
primitivo
de
contrato
e
obrigação1.
Na
Grécia,
o
litígio
judiciário
era
considerado
um
agon,
uma
competição
de
caráter
sagrado
submetida
a
regras
fixas,
na
qual
os
dois
adversários
invocavam
a
decisão
de
um
árbitro.
Esta
concepção
do
processo
não
deve
ser
considerada
um
produto
de
uma
época
mais
tardia,
uma
simples
transferência
de
ideias
e,
muito
menos,
a
degenerescência
como
Ehrenberg
parece
pensar2.
Pelo
contrário,
toda
a
evolução
do
processo
jurídico
segue
a
direção
contrária,
pois
ele
começou
por
ser
uma
competição
e
seu
caráter
agonístico
é
conservado
até
hoje.
Quem
diz
competição,
diz
jogo.
Conforme
já
vimos,
não
há
razão
alguma
para
recusar
a
qualquer
tipo
de
competição
o
caráter
de
um
jogo.
O
lúdico
e
o
competitivo,
elevados
àquele
plano
de
seriedade
sagrada
que
toda
sociedade
exige
para
sua
justiça,
continuam
ainda
hoje
sendo
perceptíveis
em
todas
as
formas
da
vida
jurídica.
Antes
de
mais
nada,
o
tribunal
pode
também
ser
chamado
uma
"corte"
de
justiça3.
Esta
corte
é
ainda,
no
sentido
pleno
do
termo,
o
ίεφόδ
χυχλο,
o
círculo
sagrado
dentro
do
qual,
no
escudo
de
Aquiles,
aparecem
sentados
os
juízes4.
Todo
lugar
onde
se
ministra
a
justiça
é
um
verdadeiro
temenos,
um
lugar
sagrado,
separado
e
afastado
do
mundo
vulgar.
Em
flamengo
e
holandês
antigo,
a
palavra
que
o
designa
é
vierschaar,
o
que,
à
letra,
quer
dizer
um
espaço
delimitado
por
quatro
cordas
ou,
segundo
uma
outra
interpretação,
por
quatro
bancos.
Mas,
seja
quadrado
ou
redondo,
de
qualquer
forma
é
sempre
um
círculo
mágico,
um
recinto
de
jogo
no
interior
do
qual
as
habituais
diferenças
de
categoria
entre
os
homens
são
temporariamente
abolidas.
Antes
de
se
lançar
em
seu
torneio
de
insultos,
Loki
teve
o
cuidado
de
verificar
que
o
lugar
onde
este
ia
realizar-se
era
"um
grande
lugar
de
paz"5.
Na
Inglaterra,
a
Câmara
dos
Lordes
continua
ainda
a
ser
virtualmente
uma
corte
de
justiça;
e
por
isso
o
woolsack,
o
assento
do
Lorde
Chanceler,
que
na
realidade
nada
tem
lá
a
fazer,
é
considerado
como
estando
"technically
outside
the
precinctx
uf
the
House"6.
Os
juízes
que
vão
ministrar
a
justiça
saem
da
vida
"comum"
no
momento
em
que
vestem
a
toga
e
colocam
a
peruca.
Não
sei
se
essa
indumentária
tradicional
dos
juízes
e
advogados
ingleses
foi
objeto
de
alguma
investigação
etnológica.
Parece-me
que
ela
pouco
tem
a
ver
com
a
moda
da
peruca
predominante
nos
séculos
XVII
e
XVIII.
A
peruca
do
juiz
é
uma
sobrevivência
da
coifa
medieval
usada
pelos
jurisconsultos
ingleses,
a
qual
era
originalmente
uma
touca
branca
bem
apertada,
e
ainda
hoje
tem
um
vestígio
no
pequeno
rebordo
branco
da
extremidade
inferior
da
peruca.
Todavia,
a
peruca
do
juiz
é
mais
do
que
uma
relíquia
de
um
traje
oficial
antiquado.
Sua
função
tem
um
profundo
parentesco
com
a
das
máscaras
de
dança
dos
povos
primitivos.
Transforma
quem
a
usa
em
um
outro
"ser".
E
não
é
de
maneira
alguma
o
único
traço
antigo
que
o
forte
sentido
da
tradição
próprio
dos
ingleses
conservou
na
esfera
do
direito.
O
elemento
esportivo
e
humorístico,
tão
importante
na
prática
processual
inglesa,
é
um
dos
traços
fundamentais
do
direito
na
sociedade
arcaica.
É
claro
que
este
elemento
não
está
inteiramente
ausente
da
tradição
popular
de
outros
países.
Mesmo
nas
tradições
jurídicas
do
resto
da
Europa,
que
habitualmente
se
revestem
de
uma
seriedade
maior
do
que
a
da
Inglaterra,
encontram-se
vestígios
dele.
Um
antigo
juiz
escreveu-me
o
seguinte:
"O
estilo
e
o
conteúdo
das
intervenções
nos
tribunais
revelam
o
ardor
esportivo
com
que
nossos
advogados
se
atacam
uns
aos
outros
por
meio
de
argumentos
e
contra-
argumentos
(alguns
dos
quais
são
razoavelmente
sofisticados).
Sua
mentalidade
por
mais
de
uma
vez
me
fez
pensar
naqueles
oradores
dos
processos
adat7'
que,
a
cada
argumento,
espetam
na
terra
uma
vara,
sendo
considerado
vencedor
aquele
que
no
final
puder
apresentar
o
maior
número
de
varas".
O
caráter
lúdico
da
prática
judicial
foi
fielmente
observado
por
Goethe
em
sua
descrição
de
uma
sessão
do
tribunal
de
Veneza,
realizada
no
palácio
dos
Doges8.
Estas
observações
esparsas
talvez
possam
servir
de
introdução
ao
problema
muito
real
das
relações
entre
o
jogo
e
a
jurisdição.
Voltemos
mais
uma
vez
a
atenção
às
formas
primitivas
do
processo.
Em
todo
e
qualquer
processo
submetido
a
um
juiz,
sejam
quais
forem
as
circunstâncias,
cada
uma
das
partes
está
sempre
dominada
por
um
intenso
desejo
de
ganhar
sua
causa.
O
desejo
de
ganhar
é
tão
forte
que
nem
por
um
só
momento
seria
lícito
esquecer
o
fator
agonístico.
Se
isto
não
basta,
por
si
só,
para
esclarecer
as
relações
entre
a
jurisdição
e
o
jogo,
as
características
formais
da
prática
do
direito
apresentam
novos
argumentos
a
nosso
favor.
A
competição
judicial
está
sempre
submetida
a
um
sistema
de
regras
restritivas
que,
independentemente
das
limitações
de
tempo
e
de
lugar,
colocam
firme
e
inequivocamente
o
julgamento
no
interior
do
domínio
do
jogo
ordenado
e
antitético.
A
associação
ativa
entre
o
direito
e
o
jogo,
sobretudo
nas
culturas
primitivas,
pode
ser
analisada
de
três
pontos
de
vista
diferentes.
O
julgamento
pode
ser
considerado
como
um
jogo
de
azar,
como
uma
competição
ou
como
uma
batalha
verbal.
Hoje
somos
incapazes
de
conceber
a
justiça
independentemente
de
um
direito
abstrato,
por
mais
vaga
que
seja
nossa
ideia
deste
último.
Para
nós,
o
julgamento
é
antes
de
mais
nada
uma
disputa
entre
o
bem
e
o
mal,
e
ganhar
ou
perder
ocupam
apenas
um
lugar
secundário.
Ora,
é
precisamente
esta
preocupação
com
os
valores
éticos
que
devemos
abandonar,
se
quisermos
compreender
a
justiça
primitiva.
Se
fizermos
com
que
nosso
olhar
passe
da
administração
da
justiça
nas
civilizações
altamente
desenvolvidas
para
aquela
que
se
encontra
nas
fases
menos
adiantadas
da
cultura,
veremos
que
a
ideia
do
bem
e
do
mal,
a
concepção
ético-jurídica,
é
ultrapassada
pela
ideia
de
ganhar
ou
perder,
isto
é,
pela
concepção
puramente
agonística.
O
que
interessa
ao
espírito
primitivo
não
é
tanto
o
problema
abstrato
do
bem
e
do
mal,
mas
principalmente
o
problema
extremamente
concreto
de
ganhar
ou
perder.
Dada
esta
fraqueza
dos
padrões
éticos,
o
fator
agonístico
vai
ganhando
imenso
terreno
na
prática
judicial
à
medida
que
recuamos
no
tempo.
E,
à
medida
que
o
elemento
agonístico
vai
aumentando,
o
mesmo
acontece
com
o
fator
sorte,
e
daqui
resulta
que
depressa
nos
encontramos
na
esfera
lúdica.
Estamos
perante
um
mundo
espiritual
em
que
a
ideia
da
decisão
por
oráculos,
pelo
juízo
divino,
pela
sorte,
por
sortilégio
—
isto
é,
pelo
jogo
—
e
a
da
decisão
por
sentença
judicial
fundem-se
num
único
complexo
de
pensamento.
E
ainda
hoje
reconhecemos
o
caráter
absoluto
dessas
decisões
todas
as
vezes
que,
quando
não
conseguimos
ser
nós
próprios
a
decidir
qualquer
coisa,
resolvemos
"tirá-la
à
sorte".
A
vontade
divina,
o
destino
e
a
sorte
parecem
a
nossos
olhos
entidades
mais
ou
menos
distintas,
ou
pelo
menos
procurando
estabelecer
entre
elas
uma
distinção
conceptual.
Mas,
para
o
espírito
primitivo,
são
mais
ou
menos
equivalentes.
Pode-se
conhecer
o
"destino"
fazendo
que
ele
se
pronuncie.
Para
conhecer
o
oráculo,
é
preciso
recorrer
à
sorte.
Pode-se
jogar
com
paus,
com
pedras,
ou
abrir
à
sorte
as
páginas
do
livro
sagrado,
e
o
oráculo
responderá.
Assim
o
Exodus,
XXVII,
30,
ordena
a
Moisés
que
"ponha
no
peitoral
o
urim
e
o
tummin"
(sejam
estes
o
que
forem),
a
fim
de
que
Aarão
"possa
julgar
os
filhos
de
Israel
em
seu
coração
perante
o
Senhor
continuamente".
O
peitoral
é
usado
pelo
grande
sacerdote,
e
é
por
intermédio
deste
que
o
sacerdote
Eleazar
pede
conselho,
em
Números,
XXVII,
21,
em
favor
de
Josué,
"segundo
o
julgamento
de
Urim".
De
maneira
semelhante,
em
I
Samuel,
XIX,
42,
Saul
ordena
que
seja
tirada
a
sorte
entre
ele
e
seu
filho
Jônatas.
As
relações
entre
o
oráculo,
a
sorte
e
o
julgamento
são
ilustradas
de
maneira
perfeitamente
clara
nestes
exemplos.
Também
na
Arábia
pré-
islâmica,
encontra-se
este
tipo
de
sortilégio9.
E,
afinal,
não
será
fundamentalmente
o
mesmo
a
balança
sagrada
na
qual
Zeus,
na
llíada,
pesa
as
possibilidades
que
cada
homem,
antes
do
início
da
batalha,
tem
de
morrer?
"Então
o
Pai
estendeu
os
dois
pratos
de
ouro
e
colocou
neles
as
duas
porções
de
morte
amarga,
uma
para
os
troianos
domadores
de
cavalos
e
outra
para
os
aqueus
cobertos
de
bronze”10.
Esta
pesagem
ou
ponderação
de
Zeus
é
ao
mesmo
tempo
o
seu
julgamento
(διχάζειν).
Encontram-se
aqui
inextricavelmente
misturadas
as
ideias
de
vontade
divina,
destino
e
sorte.
A
balança
da
justiça,
metáfora
que
sem
dúvida
teve
origem
nesta
imagem
homérica,
é
a
da
perpétua
oscilação
da
sorte
incerta.
Nada
aqui
diz
respeito
ao
triunfo
da
verdade
moral,
nem
a
qualquer
ideia
de
que
o
bem
pese
mais
do
que
o
mal
—
esta
é
uma
noção
que
só
surge
muito
mais
tarde.
Umas
das
figuras
que
se
encontram
no
escudo
de
Aquiles,
segundo
a
descrição
do
oitavo
livro
da
llíada,
representa
um
julgamento
com
os
juízes
sentados
no
interior
do
círculo
sagrado,
estando
no
centro
da
cena
os
"dois
talentos
de
ouro"
(δνό
χφυσοίο
τάλαντα),
que
se
destinam
àquele
que
proferir
a
sentença
mais
justa11.
Em
geral,
consideram-se
esses
dois
talentos
como
a
quantia
em
dinheiro
disputada
pelas
duas
partes.
Mas,
bem
vistas
as
coisas,
eles
parecem
ser
mais
um
prêmio
que
um
objeto
de
litígio;
seriam,
portanto,
mais
adequados
a
um
jogo
do
que
a
uma
sessão
de
tribunal.
Além
disso,
convém
notar
que
originariamente
talanta
significava
"balança".
Creio,
assim,
que
o
poeta
tinha
em
mente
uma
pintura
em
vaso
que
mostrava
dois
litigantes
sentados
cada
qual
em
um
dos
pratos
de
uma
balança,
a
verdadeira
"balança
da
justiça",
na
qual
a
sentença
era
dada
mediante
uma
pesagem
segundo
o
costume
primitivo,
isto
é,
por
oráculo
ou
pela
sorte.
Este
costume
ainda
não
era
conhecido
na
época
em que
foi
composto
o
poema,
e
daí
resultou
que
talanta,
os
dois
pratos
da
balança,
foi
considerado,
devido
a
uma
transposição
de
significado,
como
dinheiro.
O
grego
δίχη
(direito,
justiça)
possui
uma
escala
de
significados
que
vai
desde
o
puramente
abstrato
até
o
mais
declaradamente
concreto.
Pode
significar
a
justiça
enquanto
conceito
abstrato,
ou
uma
divisão
equitativa,
ou
uma
indenização,
ou
mais
ainda:
as
partes
num
julgamento
dão
e
recebem
δίχη,
os
juízes
atribuem
δίχη.
Significa
também
o
próprio
processo
jurídico,
o
veredicto
e
a
punição.
Embora
se
possa
supor
que
os
significados
mais
concretos
de
uma
palavra
são
os
mais
antigos,
Werner
Jaeger
defende,
neste
caso,
o
ponto
de
vista
contrário.
Segundo
ele,
o
significado
abstrato
é
o
mais
primitivo,
e
o
concreto
deriva
dele12.
Isto
não
me
parece
compatível
com
o
fato
de
serem
precisamente
as
abstrações
—
δίχαιο,
equitativo,
e
δίχαιοσύνη],
equidade
—
formadas
em
seguida
a
partir
de
dikê.
A
relação
acima
discutida
entre
a
administração
da
justiça
e
a
prova
da
sorte
deveria,
pelo
contrário,
orientar-
nos
no
sentido
da
etimologia
expressamente
rejeitada
por
Jaeger,
a
qual
faz
derivar
δίχη
de
διχέίν,
arremessar
ou
lançar,
embora
seja
evidente
a
existência
de
uma
afinidade
entre
δίχη
e
δείχνυμι.
Em
hebraico
também
há
uma
associação
idêntica
entre
"direito"
e
"arremessar",
pois
thorah
(direito,
justiça,
lei)
possui
evidentes
afinidades
com
uma
raiz
que
significa
tirar
à
sorte,
disparar,
e
a
sentença
de
um
oráculo13.
Também
é
significativo
que,
nas
moedas,
a
figura
de
Dikê
por
vezes
se
confunda
com
a
de
Tykê,
a
deusa
do
destino
incerto.
Também
ela
segura
uma
balança.
J.
E.
Harrison
afirma
em
sua
Themis:
"Não
é
que
haja
um
'sincretismo'
tardio
entre
estas
figuras
divinas;
ambas
partem
de
uma
mesma
concepção,
e
depois
divergem"14.
Também
na
tradição
germânica
verifica-se
a
presença
.
da
associação
primitiva
entre
a
justiça,
o
destino
e
a
sorte.
A
palavra
holandesa
lot
conserva
até
hoje
o
sentido
do
destino
do
homem
—
aquilo
que
lhe
é
destinado
ou
enviado
(Schicksal
em
alemão)
—
e
designa
também
o
sinal
material
da
sorte,
como
por
exemplo
o
palito
de
fósforo
mais
comprido
ou
mais
curto,
ou
um
bilhete
de
loteria.
É
difícil
decidir
qual
dos
dois
significados
é
o
mais
original,
porque
no
pensamento
primitivo
as
duas
ideias
estão
fundidas
em
uma
só.
Zeus
segura
os
divinos
decretos
do
destino
e
da
justiça
em
uma
mesma
balança.
Os
Ases
jogam
aos
dados
o
destino
do
mundo15.
O
espírito
primitivo
não
distingue,
como
manifestações
da
Vontade
Divina,
entre
o
resultado
de
uma
prova
de
força,
ou
o
de
uma
luta
armada,
ou
a
maneira
como
cai
um
punhado
de
pedras
ou
de
pauzinhos.
A
leitura
da
sorte
através
das
cartas
é
um
costume
com
profundas
raízes
no
passado
humano,
numa
tradição
que
é
muito
mais
remota
do
que
as
próprias
cartas.
Às
vezes,
um
combate
armado
é
acompanhado
por
um
jogo
de
dados.
Enquanto
os
hérulos
lutam
contra
os
lombardos,
seu
rei
senta-se
à
mesa
de
joga,
e
disputa
uma
partida
de
dados
na
tenda
do
rei
Teodorico,
em
Quierzy16.
O
conceito
de
julgamento
(Urteil
em
alemão)
leva-nos
naturalmente
a
considerar
o
ordàlio
(Gottesurteil
—
juízo
de
Deus).
A
ligação
etimológica
é
perceptível
à
primeira
vista,
se
assim
compararmos
as
palavras
de
ambas
as
línguas.
A
palavra
"ordálio"
significa
precisamente
"juízo
divino".
Mas
não
é
nada
fácil
determinar
exatamente
o
que
o
ordálio
significa
para
o
espírito
primitivo.
A
primeira
vista,
pode
parecer
que
o
homem
primitivo
acreditava
que
os
deuses
se
manifestavam
através
do
resultado
de
uma
prova
ou
de
um
jogo,
qual
das
duas
partes
tinha
razão
ou —
o
que
vem
a
dar
no
mesmo
—
em
que
direção
orientaram
o
destino.
É
claro
que
a
ideia
de
um
milagre
provando
qual
dos
lados
tem
razão
é
apenas
uma
interpretação
cristã
secundária.
Mas
a
concepção
acima
referida
—
a
do
juízo
divino
—
por
sua
vez
é
provavelmente
uma
interpretação
proveniente
de
uma
fase
cultural
ainda
mais
antiga.
O
ponto
de
partida
original
cio
ordálio
deve
ter
sido
a
competição,
o
jogo
para
ver
quem
ganha.
Para
o
espírito
primitivo
o
fato
de
ganhar,
enquanto
tal,
é
prova
da
posse
da
verdade
e
do
direito;
o
resultado
de
qualquer
competição,
seja
uma
prova
de
força
ou
um
jogo
de
sorte,
é
uma
decisão
sagrada,
concedida
pelos
deuses.
Ainda
hoje
somos
dominados
por
este
hábito
mental
quando
aceitamos
como
regra
que
as
questões
serão
decididas
por
unanimidade,
ou
quando
aceitamos
o
voto
da
maioria.
Só
numa
fase
mais
avançada
da
experiência
religiosa
a
fórmula
será
a
seguinte:
a
competição
(ou
ordálio)
é
uma
revelação
da
verdade
e
da
justiça
porque
há
uma
divindade
que
dirige
a
queda
dos
dados
ou
o
resultado
da
batalha.
Assim,
quando
Ehrenberg
diz
que
"a
justiça
secular
nasce
do
ordálio17",
parece
estar
invertendo,
ou
pelo
menos
exagerando,
a
sequência
histórica
de
ideias.
Não
seria
mais
verdadeiro
dizer
que
o
proferimento
da
sentença
(e,
portanto,
a
própria
justiça
legal)
e
o
julgamento
por
ordálio
têm
ambos
suas
raízes
na
decisão
agonística,
na
qual
a
última
palavra
é
dada
pelo
resultado
de
uma
competição
(seja
por
sorteio,
pelo
acaso,
ou
uma
prova
de
força,
resistência
etc.)?
A
luta
pela
vitória
é
sagrada
em
si
mesma,
mas,
uma
vez
animada
por
concepções
nítidas
acerca
do
bem
e
do
mal,
a
luta
passa
a
pertencer
à
esfera
do
direito;
e,
vista
à
luz
das
concepções
positivas
do
poder
divino,
passa
a
pertencer
ao
domínio
da
fé.
Todavia,
o
fenômeno
fundamental
em
todos
estes
casos
é
o
jogo.
Por
vezes,
a
disputa
legal
assume
na
sociedade
primitiva
a
forma
de
uma
aposta,
ou
mesmo
de
uma
corrida.
A
ideia
da
aposta
sempre
se
nos
impõe
a
este
respeito,
como
vimos
no
caso
do
potlatch,
no
qual
os
desafios
recíprocos
dão
origem
a
um
sistema
primitivo
de
relações
contratuais.
O
desafio
faz
surgir
uma
convenção18.
Mas,
além
do
potlatch
e
do
ordálio
propriamente
dito,
encontramos
constantemente
nos
costumes
jurídicos
primitivos
casos
de
competição
pela
justiça,
isto
é,
por
uma
decisão
e
pelo
reconhecimento
de
uma
relação
estável
num
caso
concreto.
Otto
Gierke
coligiu
uma
grande
quantidade
de
estranhos
exemplos
desta
mistura
entre
o
jogo
e
a
justiça,
sob
o
título
de
O
humor
no
direito.
Considera-os
ele
simples
ilustrações
do
caráter
lúdico
do
"espírito
popular",
mas,
na
realidade,
só
é
possível
explicá-los
adequadamente
pela
origem
agonística
da
função
jurídica.
Não
há
dúvida
quanto
ao
caráter
lúdico
do
espírito
popular,
embora
num
sentido
mais
profundo
do
que
Gierke
supunha;
e
este
caráter
lúdico
é
prenhe
de
sentido.
Assim,
por
exemplo,
era
um
antigo
costume
jurídico
germânico
estabelecer
os
limites
de
uma
"marcha"19
ou
de
uma
propriedade
rural
em
função
do
resultado
de
uma
corrida
ou
do
lançamento
de
um
machado.
Ou,
então,
decide-se
o
vencedor
de
um
processo
fazendo
uma
pessoa
de
olhos
vendados
tocar
outra
pessoa
ou
um
objeto,
ou
por
um
ovo
a
girar.
Tudo
isto
são
exemplos
de
julgamento
através
de
uma
prova
de
força
ou
um
jogo
de
azar.
Certamente
não
é
por
acaso
que
a
competição
desempenha
um
papel
tão
importante
na
escolha
de
um
noivo
ou
uma
noiva.
A
palavra
inglesa
wedding,
tal
como
o
termo
holandês
b
ruiloft
remontam
aos
primeiros
alvores
da
história
jurídica
e
social.
Wedding
relaciona-se
com
a
wedde,
o
penhor
simbólico
mediante
o
qual
alguém
se
compromete
a
obedecer
a
uma
convenção20.
Bruilojt
(festa
de
casamento)
evoca
a
corrida
pela
esposa,
isto
é,
a
prova ou
uma
das
provas
de
que
depende
o
contrato21.
As
Danaides
eram
disputadas
mediante
uma
corrida,
e
segundo
a
tradição
foi
assim
que
Penélope
foi
conquistada22.
O
problema
não
é
saber
se
essas
ações
são
meramente
míticas
ou
lendárias,
ou
se
pode
ser
provada
sua
existência
histórica,
e
sim
o
simples
fato
de
ter
existido
a
ideia
da
corrida
pela
noiva.
O
casamento
primitivo
é
um
contrat
à
épreuves,
um
potlatch
custom,
como
dizem
os
etnólogos.
O
Mahabharata
descreve
as
provas
de
força
por
que
têm
de
passar
os
pretendentes
à
mão
de
Draupadi,
e
o
mesmo
acontece
com
a
Ramayana
em
relação
a
Sita
e
com
o
Nibelunglied
em
relação
a
Brunilde.
Mas
os
pretendentes
à
mão
de
uma
noiva
podem
ser
submetidos
a
outras
provas
além
das
de
força
e
coragem.
Por
vezes,
precisam
também
passar
por
provas
de
conhecimentos
e
prontidão
de
espírito,
tendo
que
responder
a
perguntas
difíceis.
Segundo
Nguyen
van
Huyen,
essas
competições
desempenham
um
papel
dos
mais
importantes
nas
festas
dos
jovens
no
Anam,
onde,
por
vezes,
a
moça
submete
seu
namorado
a
um
verdadeiro
exame.
Na
tradição
dos
Edas,
embora
evidentemente
sob
forma
diferente,
há
um
exemplo
de
uma
idêntica
prova
de
conhecimento
tendo
em
vista
a
obtenção
da
mão
da
noiva.
A
filha
de
Thor
é
prometida
a
Alvis,
o
sábio
anão,
com
a
condição
de
ele
ser
capaz
de
responder
a
todas
as
perguntas
que
Thor
lhe
faça
a
respeito
dos
nomes
secretos
das
coisas.
Há
ainda
uma
outra
variação
do
tema
no
Fjolsvinnsmal,
onde
é
o
jovem
empenhado
na
perigosa
conquista
de
uma
esposa
que
faz
perguntas
ao
gigante
que
guarda
a
virgem.
Passemos
agora
da
competição
para
a
aposta,
a
qual
por
sua
vez
está
intimamente
relacionada
com
a
promessa.
.A
presença
deste
elemento
no
processo
judiciário
pode
exprimir-se
de
duas
maneiras.
Em
primeiro
lugar,
a
parte
principal
do
julgamento
"empenha"
seu
direito,
isto
é,
desafia
a
outra
parte
a
disputá-lo,
pela
apresentação
de
um
"penhor"
—
vadium.
No
direito
inglês
subsistiram
até
ao
século
XIX
duas
formas
de
processo
civil
que
tinham
o
nome
de
wager
(aposta):
a
wager
of
battle
(aposta
de
batalha),
mediante
a
qual
se
propunha
a
alguém
o
duelo
judiciário;
e
a
wager
of
law
(aposta
de
lei),
na
qual
se
prometia
fazer
o
"juramento
de
purga"
num
certo
dia,
a
fim
de
atestar
inocência.
Embora
há
muito
tempo
tivessem
caído
em
desuso,
estas
formas
só
foram
oficialmente
abolidas
em
1819
e
183323.
Em
segundo
lugar,
e
independentemente
do
elemento
aposta
no
processo
jurídico
propriamente
dito,
verificamos
que
era
uma
prática
habitual,
especialmente
na
Inglaterra,
o
público
fazer,
tanto
no
recinto
do
tribunal
como
fora
dele,
verdadeiras
apostas
sobre
o
resultado
dos
julgamentos.
Quando
do
julgamento
de
Ana
Bolena
e
seus
coacusados,
apostava-se
no
Tower
Hall
dez
para
um
na
absolvição
de
seu
irmão
Rochford,
devido
ao
vigor
de
sua
defesa.
Na
Abissínia
era
prática
corrente
apostar
sobre
a
sentença
durante
o
julgamento,
entre
a
defesa
e
os
depoimentos
das
testemunhas24
.
Mesmo
sob
o
domínio
italiano,
estas
apostas
continuaram
sendo
uma
paixão
e
um
esporte
que
encantava
os
nativos.
Segundo
um
jornal
inglês,
um
juiz
recebeu
a
visita
de
um
homem
que
tinha
perdido
uma
causa
no
dia
anterior,
e
apesar
disso
dizia
satisfeito:
"Sabe,
eu
tive
um
advogado
muito
ruim,
mas
mesmo
assim
fico
contente
por
ter
tirado
bom
proveito
do
meu
dinheiro!"
Procuramos
distinguir
no
processo
jurídico
três
formas
lúdicas,
comparando-o,
sob
a
forma
que
hoje
lhe
conhecemos,
com
os
julgamentos
da
sociedade
primitiva:
jogo
de
sorte,
competição,
batalha
verbal.
O
julgamento
continua
sendo
uma
batalha
verbal,
mesmo
nos
casos
em
que
perdeu,
de
modo
total
ou
apenas
em
parte,
efetivamente
ou
só
em
aparência,
sua
qualidade
lúdica,
devido
ao
progresso
da
civilização.
Para
nosso
assunto, contudo,
interessa
apenas
a
fase
primitiva
da
batalha
verbal,
fase
em
que
é
o
fator
agonístico,
e
não
a
ideia
de
justiça,
que
é
decisivo.
O
que
predomina
não
são
os
argumentos
jurídicos,
meticulosos
e
deliberados,
e
sim
as
invectivas
mais
insultuosas
e
veementes.
Neste
caso,
o
agon
consiste
quase
exclusivamente
no
esforço
de
cada
um
dos
adversários
para
superar
o
outro
na
escolha
dos
vitupérios,
para
sempre
levar
vantagem
sobre
outrem.
Já
tratamos
dos
torneios
de
insultos
como
fenômeno
social,
em
defesa
da
honra
e
do
prestígio,
sob
a
forma
dos
iambos,
do
mufakhara,
do
mannjafnadr
etc.
Todavia,
é
difícil
determinar
rigorosamente
a
passagem
da
joute
de
jactance
propriamente
dita
para
os
concursos
de
ultrajes
como
procedimento
jurídico.
Talvez
o
problema
fique
mais
claro
se
dedicarmos
agora
nossa
atenção
a
um
dos
aspectos
mais
notáveis
da
íntima
relação
entre
a
cultura
e
o
jogo,
a
saber,
os
concursos
de
tambor
e
os
concursos
de
canto
dos
esquimós
da
Groenlândia.
Trataremos
deste
assunto
um
pouco
mais
detidamente,
porque,
neste
caso,
estamos
perante
uma
prática
ainda
existente
(ou
que
pelo
menos
ainda
recentemente
o
era),
na
qual
a
função
cultural
que
conhecemos
como
jurisdição
não
se
separou
ainda
da
esfera
do
jogo25.
Quando
um
esquimó
tem
alguma
queixa
contra
outro,
desafia-o
para
um
concurso
de
tambor
(Troinmesang,
em
dinamarquês).
O
clã
ou
tribo
se
reúne
festivamente,
todos
com
seus
melhores
trajos
e
num
ambiente
de
alegria.
Os
dois
adversários
passam
depois
a
atacar-se
sucessivamente
um
ao
outro
com
canções
insultuosas
acompanhadas
por
tambor,
nas
quais
cada
um
censura
os
malefícios
do
outro.
Não
se
estabelece
distinção
alguma
entre
acusações
com
fundamento,
ditos
de
espírito
destinados
a
divertir
o
público
e
a
calúnia
pura
e
simples.
Por
exemplo,
um
cantor
enumerou
todas
as
pessoas
que
haviam
sido
devoradas
pela
mulher
e
a
sogra
de
seu
adversário
durante
um
período
de
penúria,
o
que
levou
todo
o
público
a
desfazer-se
em
lágrimas.
Estes
cantos
insultuosos
são
acompanhados
por
toda
a
espécie
de
ofensas
físicas
ao
adversário,
como
espirrar
ou
soprar
na
cara
dele,
dar-lhe
cabeçadas,
abrir-lhe
os
maxilares,
amarrá-lo
a
uma
estaca
da
tenda
—
tendo
o
"acusado"
a
obrigação
de
suportar
sem
protestar,
permitindo-se
apenas
um
riso
de
troça.
A
maior
parte
dos
espectadores
acompanha
os
estribilhos
das
canções,
aplaudindo
e
incitando
os
adversários.
Outros
se
limitam
a
dormir
um
pouco.
Durante
as
pausas
os
contendores
conversam
em
termos
amigáveis.
As
sessões
deste
gênero
de
competição
podem
prolongar-se
por
vários
anos,
em
que
os
adversários
aproveitam
para
inventar
novas
canções
e
descobrir
novas
malfeitorias
para
denunciar.
Por
fim,
são
os
espectadores
que
decidem
quem
é
o
vencedor.
Na
maior
parte
dos
casos,
a
amizade
é
imediatamente
restabelecida,
mas,
por
vezes,
acontece
uma
família
emigrar
devido
à
vergonha
de
ter
sido
derrotada.
É
possível
a
uma
pessoa
estar
participando,
ao
mesmo
tempo,
em
diversos
concursos
de
tambor.
As
mulheres
também
podem
participar.
É
aqui
da
maior
importância
o
fato
de,
entre
as
tribos
que
as
praticam,
estas
competições
desempenharem
o
papel
de
decisões
jurídicas.
Não
existe
qualquer
forma
de
jurisdição
além
dos
concursos
de
tambor.
Estes
são
os
únicos
meios
de
resolver
as
dissensões,
e
não
existe
qualquer
outra
maneira
de
influenciar
a
opinião
pública26
.
Mesmo
os
assassinos
são
denunciados
desta
curiosa
maneira.
A
vitória
num
concurso
de
tambor
não
é
seguida
por
qualquer
espécie
de
sentença.
Essas
competições
são,
na
grande
maioria
dos
casos,
provocadas
pelos
mexericos
das
mulheres.
É
preciso
distinguir
entre
as
tribos
que
praticam
esse
costume
como
meio
de
administração
da
justiça
e aquelas
para
as
quais
ele
constitui
apenas
um
divertimento
festivo.
As
violências
autorizadas
são
estabelecidas
de
diferentes
maneiras:
permite-se
bater
ou
apenas
amarrar
etc.
Além
do
concurso
de
tambor,
os
conflitos
são,
por
vezes,
resolvidos
por
uma
luta
a
murro
ou
corpo
a
corpo.
Trata-se
aqui,
portanto,
de
um
costume
cultural
que
desempenha
a
função
judicial
sob
uma
forma
perfeitamente
agonística,
sem
contudo
deixar
de
constituir
um
jogo
no
sentido
mais
próprio
do
termo.
Tudo
decorre
no
meio
de
risos
e
da
maior
alegria,
porque
o
que
mais
importa
é
conseguir
divertir
o
público.
"Da
próxima
vez",
diz
Igsiavik27,
"vou
fazer
uma
canção
nova.
Vai
ser
muito
divertido,
e
vou
amarrar
o
outro
a
uma
estaca
da
tenda".
Não
há
dúvida
que
os
concursos
de
tambor
são
a
principal
fonte
de
diversão
para
toda
a
população.
Se
não
houver
uma
disputa
que
sirva
de
pretexto,
os
concursos
mesmo
assim
se
realizam,
pelo
puro
divertimento
que
proporcionam.
Em
certas
ocasiões,
como
demonstração
de
talento
fora
do
comum,
as
canções
assumem
a
forma
de
enigmas.
Não
há
uma
grande
diferença
entre
estes
concursos
dos
esquimós
e
as
sessões
satíricas
e
cômicas
que
costumava
haver
nos
tribunais
rurais,
sobretudo
nos
países
germânicos,
onde
eram
julgados
e
punidos
por
crimes
menores
de
toda
a
espécie,
mas
sobretudo
de
natureza
sexual.
O
mais
conhecido
é
o
Haberfeldtreiben.
A
melhor
prova
de
que
eles
se
situam
entre
o
jogo
e
a
seriedade
é
o
Saugericht28
dos
jovens
de
Rapperswill,
de
cujas
sentenças
se
podia
apelar
para
o
Pequeno
Conselho
da
cidade29.
É
evidente
que
o
concurso
de
tambor
dos
esquimós
pertence
à
mesma
esfera
que
o
potlatch,
os
torneios
pré-
islâmicos
de
fanfarronice
e
de
insultos,
o
mannjajnadr
nórdico
e
o
nidsang
(hino
de
ódio)
islandês,
assim
como
as
antigas
competições
chinesas.
É
igualmente
claro
que,
originariamente
todos
estes
costumes
pouco
tinham
em
comum
com
o
ordálio,
tomado
este
no
sentido
de
um
juízo
divino
revelado
através
de
um
milagre.
É
claro
que
é
possível
a
ideia
do
juízo
divino,
no
domínio
do
direito
abstrato,
aparecer
ligada
a
esses
costumes,
mas
apenas
de
modo
subsequente
e
secundário.
O
elemento
primordial
é
a
decisão
através
da
competição
enquanto
tal,
ou
seja,
no
jogo
e
através
dele.
O
caso
mais
próximo
do
referido
costume
esquimó
é
o
munafara
ou
nifar
árabe,
a
competição
pela
fama
e
pela
honra
na
presença
de
um
árbitro.
A
palavra
latina
iurgum
mostra
também
a
ligação
original
entre
a
invectiva
e
o
julgamento
em
tribunal.
É
uma
forma
elíptica
de
ius-
igium,
derivado
de
ius
e
agere,
que
significa
literalmente
"ato
jurídico".
Ainda
hoje,
a
palavra
objurgação
conserva
um
pálido
eco
dessa
ligação.
Compare-se
também
com
litígio
(litigium:
ato
conflituoso).
Vistas
à
luz
dos
concursos
esquimós
de
tambor,
produções
puramente
literárias
como
os
iambos
de
Arquíloco
contra
Licambo
aparecem
agora
sob
uma
perspectiva
inteiramente
nova,
e
até
as
censuras
de
Hesíodo
a
seu
irmão
Perses
podem
ser
encaradas
deste
ponto
de
vista.
Werner
Jaeger
assinala
que,
entre
os
gregos,
a
sátira
política
não
se
limitava
a
uma
função
moralizadora
ou
de
satisfação
de
rancores
pessoais,
mas
servia
originariamente
a
uma
finalidade
de
natureza
social30.
E
podemos
acrescentar
sem
receio:
de
uma
maneira
que
não
está
muito
distante
dos
concursos
de
tambor
dos
esquimós.
E
é
bem
verdade
que
na
antiguidade
grega
e
romana
ainda
não
havia
passado
completamente
a
fase
em
que
é
difícil
distinguir
entre
a
oratória
jurídica
e
os
concursos
de
ultrajes.
Nas
Atenas
de
Péricles
e
Fídias,
a
eloquência
jurídica
ainda
era
principalmente
uma
competição
de
habilidade
retórica,
na
qual
eram
permitidos
todos
os
artifícios de
persuasão
que
fossem
possíveis
de
imaginar.
Considerava-se
o
tribunal
e
a
arena
política
como
os
dois
lugares
por
excelência
onde
a
arte
podia
ser
aprendida.
Esta
arte,
juntamente
com
a
violência
militar,
o
roubo
e
a
tirania,
constitui
a
"caça
ao
homem"
definida
no
Sofista
de
Platão31.
Era
possível
aprender
com
os
sofistas
a
transformar
uma
má
causa
numa
boa
causa,
e
até
conseguir
fazê-la
prevalecer.
O
jovem
que
entrava
na
vida
política
geralmente
iniciava
sua
carreira
acusando
alguém
num
processo
escandaloso.
Também
em
Roma
durante
muito
tempo
foi
considerado
legítimo
todo
e
qualquer
meio
de
prejudicar
o
adversário
num
julgamento.
As
partes
vestiam-se
de
luto,
suspiravam,
gemiam,
invocavam
em
altas
vozes
o
bem
comum,
rodeavam-se
de
grande
número
de
testemunhas
e
clientes,
procurando
impressionar
o
tribunal32.
Em
resumo,
faziam
tudo
aquilo
que
nós
hoje
fazemos.
Basta
lembrar
o
advogado
que,
no
processo
Hauptmann,
deu
palmadas
na
Bíblia
e
fez
tremular
a
bandeira
americana,
ou
seu
colega
holandês
que,
num
sensacional
processo
criminal,
reduziu
a
pedaços
um
relatório
psiquiátrico.
Littmann
descreve
da
seguinte
maneira
um
julgamento
na
Abissínia33:
"Numa
oratória
cuidadosamente
estudada
e
extremamente
hábil
o
acusador
desenvolve
sua
argumentação.
O
humor,
a
sátira,
alusões
sutis,
provérbios
apropriados
à
circunstância,
o
escárnio
e
o
frio
desprezo,
acompanhados
de
vez
em
quando
pela
mais
viva
gesticulação
e
por
tremendos
berros,
tudo
isso
tende
a
reforçar
a
acusação
e
a
confundir
o
acusado".
Só
quando
o
estoicismo
entrou
em
moda,
envidaram-se
esforços
para
libertar
a
eloquência
jurídica
do
caráter
lúdico,
purificando-a
de
acordo
com
os
severos
padrões
de
verdade
e
dignidade
professados
pelos
estoicos.
O
primeiro
a
tentar
pôr
em
prática
esta
nova
orientação
foi
um
tal
Rutilius
Rufus.
Perdeu
a
causa,
e
foi
obrigado
a
exilar-se.
Notas do capítulo 4
1
G.
Davy,
La
foi
jurée.
2
Ost
und
West,
p.
76:
cf.
p.
71.
3
Este
argumento
do
A.
é
mais
claro
em
outras
línguas,
onde
o
duplo
sentido
corte-pátio
é
ainda
conservado
na
designação
do
lugar
onde
se
ministra
a
justiça
(
cour,
court,
Hoje,
respectivamente
em
francês,
inglês
o
alemão),
com
um
uso
mais
corrente
do
que
em
português.
(N.
T.)
4
Iliada,
XVIII,
504.
5
Cf.
Jaeger,
Paideia,
I,
p.
147:
"...
o
ideal
da
dikê
é
usado
como
modelo
de
vida
pública,
pelo
qual
os
homens,
tanto
de
alta
como
de
baixa
origem,
são
considerados
"iguais'
".
6
Tecnicamente
fora
do
recinto
da
Câmara.
(N.
T.)
7
o
direito
aplicável
aos
indígenas
nas
índias
Holandesas.
8
I
talieniscke
Reise,
3
de
out.
9
J.
Wellhausen,
Reste
arabischen
Heidemums,
2
Ausg.,
Berlim,
/1927
p.
132.
10
llíada,
VIII,
69;
cf.
XX,
209;
XVI,
658;
XIX,
223.
11
XVIIl,
497-509.
12
Paideia,
I,
p.
14.
13
A
palavra
urim,
anteriormente
referida,
talvez
possa
também
derivar
desta
raiz.
14
J.
E.
Harrison,
Themis,
p.
528.
15
Ver
acima,
p.
45.
16
Paulus
Diaconus,
Hist
.
Langoh.
1,
20;
Fredegarius,
Chromcarum
liber
Mon.
Germ.
Hist.
SS.
rer.
Merov.
II,
p.
131);
cf.
IV,
27.
Cf.
também
H.
Brunner,
Deutsche
Rechtsgeschichte,
Leipzig,
1912,
p.
75.
17
Die
Rechlsidee
im
friihen
Griechentum,
Leipzig,
1912,
p.
75.
18
Davy,
La
foi
jurée,
pp.
176,
126.
239,
ele.
19
Conjunto
de
terras
cujo
uso
pertence
a
uma
coletividade.
20
Em
holandês
médio
conhece-se
ainda
wedden
no
sentido
de
casar:
heis
beier
wedilen
dan
verbranden
(é
melhor
casar
do
que
arder).
21
o
mesmo
se
passa,
em
inglês
antigo
com
b
rydhleap;
em
nórdico
antigo,
com
b
riidhlaup
e,
em
antigo
alto
alemão,
com
bruilojt.
22
J.
E.
Harrison,
Themis,
p.
232.
Há
um
exemplo
numa
narrativa
núbia,
referida
por
Frobenius
em
seu
Kulturgeschichte
Afrikas,
p.
429.
23
W.
Blackstone,
Commentaries
on
lhe
Laws
of
England,
ed
Kerr,
III.
Londres,
1857,
p.
337
c
ss
24
Enno
Littmann,
Abe.ssinien,
Hamburfio,
1935,
p.
86.
25
Thalbitzer,
The
Ammassalik
Eskimo,
Moddelser
om
Gronland,
XXXIX,
1914;
Birket
Smith,
The
Caribou
Esquimaux,
Copenhague,
1929;
Knud
Rasmussen,
Fra
Gronland
till
Stille
Havet,
I-II,
1925-6;
The
Netsilik
Eskimo,
Re
latório
da
quinta
expedição
de
Thule,
1921-1924,
VIII,
1,
2;
Herbert
Koing,
De
r
Rechtsbruch
und
sein
Ausgleich
bei
den
Eskimos,
Anthropos
XIX-XX,
1924-5.
26
Birket
Smith,
op.
cit.,
p.
264,
parece
definir
o
"progresso
judicial"
de
maneira
demasiado
estrita,
quando
afirma
que
entre
os
esquimós
caribus
os
concursos
de
tambor
não
possuem
esse
caráter,
por
serem
apenas
"um
simples
ato
de
vingança"
ou
se
limitarem
à
finalidade
de
"garantir
a
paz
e
a
ordem".
27
Thalbitar,
V,
p.
303.
28
Tribunal
da
porca.
29
Stumpfl,
Kultspiele.
p.
16.
30
Paideia,
1,
169.
31
Platão,
O
Sofista,
222
D.
32
Cícero,
De
oratione,
I,
229
e
ss.
33
Op.
cit.,
p.
86.
5.
O
Jogo
e
a
Guerra
Chamar
"jogo"
à
guerra
é
um
hábito
tão
antigo
como
a
própria
existência
dessas
duas
palavras.
Já
colocamos
o
problema
de
saber
se
isso
deve
ser
considerado
apenas
uma
metáfora1,
e
chegamos
a
uma
conclusão
negativa.
O
mais
provável
é
que
em
toda
a
parte
a
linguagem
tenha
definido
as
coisas
dessa
maneira,
a
partir
do
momento
em
que
surgiram
palavras
para
designar
o
jogo
e
o
combate.
Muitas
vezes,
as
duas
ideias
parecem
inseparavelmente
confundidas
no
espírito
primitivo.
E
não
há
dúvida
que
toda
luta
submetida
a
regras,
devido
precisamente
a
essa
limitação,
apresenta
as
características
formais
do
jogo.
Podemos
considerar
a
luta
como
a
forma
de
jogo
mais
intensa
c
enérgica,
e
ao
mesmo
tempo
a
mais
óbvia
e
mais
primitiva.
Os
cachorros
e
os
garotinhos
lutam
"de
brincadeira",
com
regras
que
limitam
o
grau
de
violência;
apesar
disso,
nem
sempre
os
limites
da
violência
permitida
excluem
o
derramamento
de
sangue
ou
mesmo
a
morte
dos
combatentes.
Os
torneios
medievais
sempre
foram
considerados
um
combate
simulado,
e,
portanto,
um
jogo,
mas
parece
mais
ou
menos
certo
que
em
suas
formas
mais
primitivas
as
justas
se
realizavam
com
uma
seriedade
mortífera,
chegando
até
à
morte
de
um
dos
contendores,
como
o
"jogo"
dos
jovens
guerreiros
de
Abner
e
Joab.
Um
exemplo
flagrante
do
elemento
lúdico
do
combate,
extraído
de
um
período
histórico
que
não
é
dos
mais
remotos,
é
o
célebre
Combat
des
Trente,
travado
na
Bretanha
em
1351.
As
fontes
não
designam
esse
combate
expressamente
como
um
jogo,
mas
todas
as
suas
características
se
revestem
de
um
caráter
marcadamente
lúdico.
O mesmo
se
passa
com
a
igualdade
famosa
Disfida
di
Barletta,
do
ano
de
1503,
na
qual
treze
cavaleiros
italianos
se
bateram
contra
treze
cavaleiros
franceses2.
Enquanto
função
cultural,
a
luta
pressupõe
sempre
a
existência
de
regras
limitativas,
e
exige,
pelo
menos
em
certa
medida,
o
reconhecimento
de
sua
qualidade
lúdica.
Só
é
lícito
falar
da
guerra
como
função
cultural
na
medida
em
que
ela
se
desenrola
de
maneira
que
seus
participantes
se
considerem
uns
aos
outros
como
iguais,
ou
antagonistas
com
direitos
iguais.
Por
outras
palavras,
sua
função
cultural
depende
de
sua
qualidade
lúdica.
Esta
condição
modifica-se
desde
que
a
guerra
é
travada
fora
do
âmbito
dos
iguais,
contra
grupos
que
não
são
reconhecidos
como
seres
humanos
e,
portanto,
são
privados
dos
direitos
humanos
—
bárbaros,
diabos,
pagãos,
hereges
e
"raças
inferiores
destituídas
de
leis".
Nestas
circunstâncias,
a
guerra
perde
inteiramente
sua
qualidade
lúdica
e
só
pode
permanecer
dentro
dos
limites
da
civilização
na
medida
em
que
os
que
nela
participam
aceitam
certas
limitações,
a
bem
de
sua
própria
honra.
Até
há
bem
pouco
tempo
o
"direito
das
nações"
era
geralmente
considerado
como
constituindo
um
sistema
de
limitações
desse
tipo,
por
reconhecer
o
ideal
de
uma
comunidade
humana
com
direitos
iguais
para
todos,
distinguindo
expressamente
entre
o
estado
de
guerra
(pelo
fato
de
declarar
esta)
e
a
paz,
de
um
lado,
e
de
outro,
a
violência
criminosa.
Foi
a
teoria
da
"guerra
total"
que
veio
eliminar
a
função
cultural
da
guerra,
fazendo
desaparecer
dela
os
últimos
vestígios
do
elemento
lúdico.
Se
é
certo
termos
o
direito
de
considerar
a
função
lúdica
inerente
ao
agon,
pode-se
perguntar
agora
até
que
ponto
a
guerra
(que
em
nossa
concepção
é
um
subproduto
do
agon)
pode
ser
considerada
uma
função
agonística
da
sociedade.
Há
diversas
formas
de
combate
que
desde
logo
mostram
claramente
não
possuir
um
caráter
agonístico:
o
ataque
de
surpresa,
a
emboscada,
a
expedição
de
pilhagem
e"
o
massacre
total
não
podem
ser
considerados
formas
agonísticas
de
guerra,
embora
se
possa
recorrer
a
eles
numa
guerra
agonística.
Além
disso,
os
objetivos
políticos
da guerra
também
se
situam
fora
do
âmbito
da
competição
propriamente
dita:
a
conquista,
a
subjugação
ou
dominação
de
outro
povo.
O
elemento
agonístico
só
se
torna
operante
a
partir
do
momento
em
que
as
nações
em
guerra
se
consideram
reciprocamente
como
antagonistas
lutando
por
alguma
coisa
a
que
cada
uma
delas
pensa
ter
direito.
Esta
convicção
está
quase
sempre
presente,
embora,
muitas
vezes,
sirva
apenas
de
pretexto.
Mesmo
quando
uma
guerra
é
provocada
pura
e
simplesmente
pela
fome
—
fenômeno
relativamente
raro
—
os
agressores
interpretam-na,
talvez
com
plena
sinceridade,
como
uma
guerra
santa,
uma
guerra
de
honra,
de
recompensa
divina
e
sei
lá
que
mais.
A
história
e
a
sociologia
tem
tendência
a
exagerar
o
papel
desempenhado
pelos
interesses
materiais
imediatos
e
a
ânsia
do
poder
na
origem
das
guerras,
sejam
antigas
ou
modernas.
Mesmo
que
os
estadistas
que
preparam
a
guerra
considerem
esta
uma
questão
de
poder
político,
na
grande
maioria
dos
casos,
os
verdadeiros
motivos
podem
ser
encontrados
menos
nas
"necessidades"
da
expansão
econômica
etc,
do
que
no
orgulho
e
no
desejo
de
glória,
de
prestígio
e
de
todas
as
pompas
da
superioridade.
Todas
as
grandes
guerras
de
agressão
desde
a
antiguidade
até
nossos
dias
podem
ser
explicadas
de
maneira
muito
mais
essencial
Dela
ideia
de
glória,
que
todo
mundo
compreende,
do
que
por
qualquer
teoria
racional
e
intelectualista
das
forças
econômicas
e
dos
dinamismos
políticos.
As
tendências
modernas
para
exaltar
a
guerra,
que
tão
lamentavelmente
nos
são
familiares,
levam-nos
de
volta
à
concepção
babilônica
e
assíria
da
guerra
como
um
ditame
divino
para
exterminar
povos
estrangeiros,
para
maior
glória
de
Deus.
Em
certas
formas
primitivas
de
guerra,
o
elemento
lúdico
encontra
uma
expressão
mais
imediata
e,
em
termos
relativos,
mais
agradável.
Uma
vez
mais
estamos
tratando
daquela
mesma
esfera
de
pensamento
primitivo
em
que
o
acaso,
o
destino,
o
julgamento,
a
competição
e
o
jogo
são
considerados
divinos.
Nada
mais
natural
do
que
a
guerra
ser
também
abrangida
por
essa
concepção.
Dá-se
início
à
guerra
a
fim
de
obter
uma
decisão
de
valor
sagrado,
pela
prova
da
vitória
ou
da
derrota.
Em
vez
de
dar
provas
de
força
numa
competição,
de
jogar
dados,
de
consultar
um
oráculo,
ou
de
entrar
numa
feroz
disputa
de
palavras
(métodos
que
também
servem
para
invocar
a
decisão
divina),
pode-se
igualmente
recorrer
à
guerra.
Como
vimos,
a
ligação
entre
a
decisão
e
a
divindade
é
explicitada
diretamente
na
designação
alemã
de
"ordálio
(Gottesurteil),
embora
o
ordálio
seja
fundamentalmente
um
simples
juízo,
qualquer
espécie
de
juízo.
Toda
decisão
a
que
se
chega
mediante
as
fórmulas
rituais
corretas
é
um
"juízo
de
Deus".
Só
de
maneira
secundária
a
ideia
técnica
do
ordálio
é
associada
às
provas
concretas
de
poder
milagroso.
Para
compreender
estas
associações,
é
necessário
não
nos
deixarmos
limitar
por
nossa
divisão
habitual
entre
o
jurídico,
o
religioso
e
o
político.
Aquilo
que
chamamos
"direito"
pode
igualmente,
em
termos
de
pensamento
primitivo,
ser
chamado
"poder"
—
no
sentido
de
"vontade
dos
deuses"
ou
de
"superioridade
evidente".
Assim,
um
conflito
armado
é
um
modo
de
justiça,
a
igual
título
que
a
consulta
de
um
oráculo
ou
um
julgamento
em
tribunal.
E
por
último,
dado
que
a
toda
decisão
está
ligada
uma
significação
sagrada,
a
própria
guerra
pode
ser
considerada
uma
forma
de
consulta
aos
oráculos3.
O
irredutível
complexo
de
ideias
que
abrange
tudo
desde
os
jogos
de
azar
até
os
julgamentos
pode
ser
observado
de
maneira
flagrante
no
"combate
individual"
da
civilização
primitiva.
O
combate
individual
atinge
diversas
finalidades:
pode
ser
a
demonstração
da
aristeia
pessoal,
ou
o
prelúdio
a
um
conflito
geral,
ou
pode
ocorrer durante
a
batalha
como
um
episódio
desta.
É
conhecido
em
todas
as
partes
do
mundo,
e
glorificado
pelos
poetas
e
cronistas
na
historiografia
e
na
literatura
de
todas
as
épocas.
Um
exemplo
muito
característico
é
a
descrição
de
Wakidi
da
batalha
de
Badr,
na
qual
Maomé
derrotou
os
coraichitas.
Três
dos
guerreiros
de
Maomé
desafiaram
idêntico
número
de
heróis
dentre
as
hostes
do
inimigo;
fizeram
sua
apresentação
segundo
as
devidas
fórmulas,
saudando-se
reciprocamente
na
qualidade
de
valorosos
adversários4.
A
primeira
guerra
mundial
assistiu
a
uma
ressurreição
da
aristeia
nos
desafios
que
os
aviadores
dirigiam
uns
aos
outros.
O
combate
individual
pode
surgir
também
como
augúrio
da
batalha,
forma
sob
a
qual
é
conhecido
tanto
pelos
chineses
como
pela
literatura
germânica
arcaica.
Antes
do
início
da
batalha
os
mais
bravos
guerreiros
desafiam
seus
equivalentes
do
campo
adversário.
"A
batalha
é
um
teste
do
destino.
Os
primeiros
passes
de
armas
são
presságios
importantes5
.
O
combate
individual
pode
também,
contudo,
ocupar
o
lugar
da
própria
batalha.
Durante
a
guerra
entre
os
vândalos
e
os
alamanos
em
Espanha,
os
contendores
decidiram
resolver
seu
conflito
mediante
um
combate
individual6.
Não
devemos
considerar
isto
como
um
sinal
prévio,
ou
como
uma
medida
humanitária
destinada
a
evitar
o
derramamento
de
sangue,
mas
simplesmente
como
um
substituto
adequado
para
a
guerra,
uma
prova
concisa,
sob
forma
agonística,
da
superioridade
de
um
dos
adversários:
a
vitória
prova
que
a
causa
dos
vencedores
é
favorecida
pelos
deuses,
e
que,
portanto,
é
uma
causa
"justa".
Escusado
seria
dizer
que
a
concepção
primitiva
da
guerra
é
viciada
depressa
por
argumentos
especificamente
cristãos,
defendendo
o
combate
individual
como
meio
de
evitar
um
desnecessário
derramamento
de
sangue.
Já
em
Quierzy-sur-Oise,
no
caso
do
rei
merovíngio
Teodorico,
os
guerreiros
dizem:
"Mais
vale
que
caia
só
um
do
que
todo
o
exército"7.
Na
baixa
Idade
Média
era
muito
habitual
que
os
reis
ou
príncipes
em
guerra
resolvessem
sua
querela
mediante
um
duelo
entre
eles.
Este
duelo
era
preparado
com
grande
solenidade
e
grande
cópia
de
pormenores,
sendo
sempre
o
motivo
expressamente
apresentado
"pour
éviter
effusion
de
sang
chrestien
et
la
destmction
du
peuple"8.
Mas,
apesar
de
pomposamente
anunciada,
a
real
batalha
nunca
se
realizava.
Foi
durante
muito
tempo
uma
comédia
internacional,
um
cerimonial
vazio
entre
as
casas
reais.
Todavia,
a
tenacidade
com
que
os
monarcas
permaneceram
fiéis
a
este
antigo
costume
e
a
semi-seriedade
com
que
ele
foi
mantido
revela
sua
origem
na
esfera
do
ritual.
Continuava
sendo
atuante
a
concepção
primitiva
de
um
procedimento
jurídico
que
dava
desta
maneira
uma
decisão
legítima
e
até
de
valor
sagrado.
O
imperador
Carlos
V desafiou
por
duas
vezes
Francisco
I
para
um
combate
individual,
com
toda
a
devida
cerimônia,
e
este
caso
de
maneira
alguma
foi
o
derradeiro9.
É
evidente
que
o
combate
em
substituição
de
uma
batalha
é
profundamente
diferente
da
"prova
das
armas" no
sentido
restrito
da
expressão,
como
meio
legal
de
solução
de
uma
disputa.
É
bem
conhecida
a
importância
do
papel
desempenhado
no
direito
medieval
pelo
"duelo
judiciário".
Continua
em
aberto
a
questão
de
saber
se
pode
ou
não
ser
considerado
um
"ordálio".
H.
Brunner10
e
outros
autores
adotam
este
ponto
de
vista,
ao
passo
que
R. Schröder11
sustenta
que
ele
simplesmente
constitui
uma
forma
de
julgamento
como
qualquer
outra.
O
fato
de
não
se
encontrar
no
direito
anglo-saxão
a
prova
das
armas,
que
só
foi
introduzida
pelos
normandos,
parece
apontar
para a
conclusão
de
que,
subsequentemente,
não
se
situava
ao
mesmo
nível
que
o
ordálio,
que
era
muito
comum
na
Inglaterra.
Toda
a
questão
perde
grande
parte
de
sua
importância
se
encararmos
o
duelo
judiciário
propriamente
dito
como
um
agon
sagrado,
que
por
sua
própria
natureza
é
capaz
de
revelar
qual
dos
lados
tem
razão
e
para
onde
pende
o
favor
dos
deuses.
Portanto,
o
aspecto
essencial
não
é
o
apelo
consciente
para
a
divindade,
como
nas
formas
mais
tardias
do
ordálio.
O
duelo
judiciário,
embora
às
vezes
seja
levado
até
às
últimas
consequências12
acusa
desde
início
uma
tendência
para
assumir
os
caracteres
do
jogo.
É-lhe
essencial
um
certo
formalismo.
Já
o
próprio
fato
de
poder
ser
executado
por
combatentes
contratados
é
por
si
só
uma
indicação
de
seu
caráter
ritual,
porque
os
atos
rituais
sempre
permitem
a
execução
por
um
substituto.
Exemplos
desses
combatentes
profissionais
são
os
kempa
dos
antigos
tribunais
frisões.
Além
disso,
as
regras
relativas
à
escolha
das
armas
e
as
vantagens
dadas
à
parte
mais
fraca
para
igualar
as
possibilidades
—
por
exemplo,
um
homem
ficar
enterrado
até
ao
peito
numa
fossa
para
defrontar
uma
mulher
—
são
as
regras
e
vantagens
adequadas
ao
jogo
armado.
Em
fins
da
Idade
Média,
segundo
parece,
o
duelo
judiciário
geralmente
terminava
sem
que
houvesse
grande
prejuízo
para
ninguém.
Continua
em
aberto
o
problema
de
saber
se
esta
qualidade
lúdica
deve
ser
considerada
um
sinal
de
decadência
ou
deve
ser
atribuída
à
natureza
do
próprio
costume,
embora
este
não
excluísse
a
maior
seriedade
e
o
derramamento
de
sangue.
O
último
trial
by
battle
realizou-se
em
1571
perante
o
Court
of
Common
Pleas
em
Tothill
Fields,
em
Westminster,
num
campo
de
batalha
de
sessenta
pés
quadrados
especialmente
delimitado
para
o
efeito.
O
combate
foi
autorizado
a
prosseguir
desde
o
nascer
do
sol
"até
as
estrelas
serem
visíveis",
ou
até
que
um
dos
combatentes
—
cada
um
armado
de
escudo
e
maça,
conforme
ordenavam
os
capitulares
carolíngios
—
proferisse
a
"terrível
palavra"
craven,
confessando-se
derrotado.
Toda
esta
"cerimônia",
conforme
lhe
chama
Blackstone,
oferecia
"a
maior
semelhança
com
certos
divertimentos
atléticos
rurais"13.
Dado
que
tanto
o
duelo
judiciário
quanto
o
inteiramente
fictício
duelo
real
comportam
um
forte
elemento
lúdico,
não
é
de
se
admirar
que
o
duelo
vulgar,
ainda
hoje
praticado
em
muitos
países
da
Europa,
possua
o
mesmo
caráter
lúdico.
O
duelo
privado
vinga
a
honra
ofendida.
Ambas
estas
ideias
—
que
a
honra
pode
ser
ofendida
e
a
necessidade
de
vingá-la
—
pertencem
à
esfera
cultural
arcaica,
não
obstante
sua
grande
importância
psicológica
e
social
na
vida
moderna.
A
dignidade
de
um
indivíduo
deve
ser
evidente
para
todos
e,
se
este
reconhecimento
estiver
em
perigo,
ela
precisa
ser
afirmada
e
defendida
pela
ação
agonística
em
público.
Quando
está
em
jogo
o
reconhecimento
da
honra
pessoal,
pouco
importa
que
esta
seja
fundada
no
direito,
na
verdade
ou
em
qualquer
outro
princípio
ético.
O
que
está
em
jogo
é
simplesmente
a
apreciação
social
enquanto
tal.
Nem
tampouco
se
reveste
de
grande
importância
demonstrar
que
o
duelo
particular
deriva
do
duelo
judiciário.
São
essencialmente
a
mesma
coisa:
uma
luta
permanente
pelo
prestígio,
que
é
um
valor
fundamental
abrangendo
tanto
o
direito
quanto
o
poder.
A
vingança
é
a
satisfação
do
sentido
da
honra,
c
a
honra
precisa
ser
satisfeita
por
mais
perversa,
criminosa
ou
mórbida
que
seja.
Na
iconografia
grega
a
Dikê
(justiça)
muitas
vezes
se
confunde
com
a
figura
de
Nêmesis
(vingança),
do
mesmo
modo
que
com
a
Tikê
(fortuna)14.
O
duelo
revela
também
sua
profunda
identidade
com
a
decisão
judiciária
no
fato
de,
tal
como
o
próprio
duelo
judiciário,
não
impor
à
família
da
vítima
a
obrigação
de
vingá-la,
desde
que,
evidentemente,
o
duelo
se
tenha
desenrolado
nos
devidos
termos.
Em
períodos
fortemente
marcados
por
uma
poderosa
aristocracia
militar,
é
possível
ao
duelo
particular
assumir
formas
extremamente
sanguinárias.
Os
adversários
principais
e
os
que
os
secundam
podem
por
exemplo
travar
um
combate
de
grupo,
a
cavalo
e
armados
de
pistolas
—
uma
verdadeira
batalha
de
cavalaria.
Eram
estas
as
proporções
assumidas
pelo
duelo
durante
o
século
XVI
em
França.
Uma
insignificante
querela
verbal
entre
dois
nobres
podia
muito
bem
levar
a
um
combate
sangrento
entre
seis
ou
mesmo
oito
pessoas.
A
honra
proibia
a
recusa
de
secundar
os
adversários
de
um
duelo.
Montaigne
faz
referência
a
um
duelo
entre
três
dos
mignons
de
Henrique
III
e
três
nobres
da
corte
do
duque
de
Guise.
Richelieu
tentou
abolir
este
feroz
costume,
mas
continuaram
caindo
vítimas
até
à
época
de
Luís
XIV.
Por
outro
lado,
está
perfeitamente
de
acordo
com
o
caráter
ritual
subjacente
ao
duelo
particular
o
fato
de
o
combate
não
ter
como
finalidade
a
morte,
parando
quando
há
derramamento
de
sangue,
momento
a
partir
do
qual
a
honra
fica
satisfeita.
Por
isso,
o
duelo
moderno
à
moda
francesa
não
deve,
pelo
fato
de
geralmente
não
continuar
a
partir
do
momento
em
que
é
ferido
um
dos
contendores,
ser
considerado
uma
efeminação
mais
ou
menos
ridícula
de
costumes
mais
sérios.
Sendo
essencialmente
uma
forma
de
jogo,
o
duelo
é
simbólico:
o
que
importa
é
o
derramamento
de
sangue,
e
não
a
morte.
Podemos
considerá-lo
uma
forma
tardia
de
jogo
mortífero
ritual,
uma
regulamentação
do
golpe
de
morte
desferido
num
momento
de
cólera.
O
lugar
onde
se
trava
o
duelo
possui
todas
as
características
do
recinto
de
jogo;
as
armas
têm
que
ser
exatamente
idênticas,
tal
como
em
alguns
jogos;
há
um
sinal
para
começar
e
outro
para
terminar,
e
o
número
de
golpes
ou
de
tiros
é
delimitado.
E
basta
correr
sangue
para
que
a
honra
seja
vingada
e
restaurada.
É
difícil
identificar
o
elemento
agonístico
na
guerra
propriamente
dita.
Nas
fases
mais
primitivas,
este
elemento
parece
dar
lugar
a
formas
não
agonísticas,
no
decorrer
das
batalhas
entre
tribos
ou
das
lutas
entre
indivíduos.
Sempre
se
praticaram
expedições
de
pilhagem,
assassinatos,
caçadas
ao
homem
ou
mesmo
de
cabeças,
seja
devido
à
fome,
ao
medo,
à
religião
ou
à
simples
crueldade.
Estas
matanças
mal
merecem
ser
dignificadas
com
o
nome
de
guerra.
A
ideia
da
guerra
só
aparece
quando
uma
situação
especial
de
hostilidade
geral
solenemente
proclamada
é
reconhecida
como
algo
diferente
das
querelas
individuais
e
dos
conflitos
entre
famílias.
Esta
distinção
coloca
de
um
só
golpe
a
guerra
tanto
na
esfera
agonística
quanto
na
do
ritual,
elevando-a
ao
nível
das
causas
sagradas,
de
um
confronto
geral
de
forças
e
da
revelação
do
destino;
por
outras
palavras,
passa
a
fazer
parte
daquele
complexo
de
ideias
que
abrange
a
justiça,
o
destino
e
a
honra.
Como
instituição
sagrada,
passa
a
revestir-se
de
toda
a
ornamentação
espiritual
e
material
de
que
a
tribo
dispõe.
Isto
não
significa
que
a
guerra
se
desenrolará
estritamente
de
acordo
com
um
código
de
honra
e
em
forma
ritual,
porque
a
brutalidade
e
a
violência
continuarão
presentes;
quer
apenas
dizer
que
a
guerra
será
vista
como
um
dever
sagrado,
ligado
à
defesa
da
honra,
que
deve
ser
cumprido
mais
ou
menos
em
conformidade
com
esse
ideal.
É
sempre
difícil
determinar
até
que
ponto
a
guerra
foi
efetivamente
influenciada
por
essas
concepções.
A
maior
parte
das
narrativas
de
nobres
batalhas
em
belo
estilo
baseia-se
menos
nos
sóbrios
relatos
dos
analistas
e
cronistas
do
que
na
visão
literária,
tanto
dos
contemporâneos
como
de
seus
sucessores,
na
épica
e
nas
canções.
Há
em
torno
delas
uma
grande
dose
de
ficção
heroica
e
romântica.
Apesar
disso,
seria
injusto
concluir
que
o
enobrecimento
da
guerra
pela
exaltação
no
domínio
moral
e
religioso
tenha
sido
pura
ficção,
ou
que
o
embelezamento
do
combate
só
tenha
servido
para
disfarçar
sua
crueldade.
Mesmo
que
não
passe
de
uma
ficção,
esta
concepção
da
guerra
como
um
nobre
jogo
de
honra
e
virtude
desempenhou
um
papel
importante
no
desenvolvimento
da
civilização,
pois
foi
nela
que
teve
origem
a
ideia
da
cavalaria
e,
portanto,
em
última
instância,
o
direito
internacional.
A
cavalaria
foi
um
dos
grandes
estimulantes
da
civilização
medieval
e,
embora
na
prática
esse
ideal
tenha
sido
constantemente
mal
interpretado,
serviu
de
base
para
o
direito
internacional,
o
qual
constitui
uma
das
defesas
mais
necessárias
à
comunidade
mundial.
Podem-se
escolher
ao
acaso,
em
diversas
épocas
e
civilizações,
os
exemplos
da
presença
do
elemento
agonístico
ou
lúdico
na
guerra.
Vejamos
antes
de
mais
nada
dois
exemplos
tirados
da
história
grega.
Segundo
a
tradição,
a
guerra
entre
as
duas
cidades
da
Eubeia,
Calcis
e
Eretria,
no
século
VII
antes
de
Cristo,
desenrolou-se
inteiramente
sob
a
forma
de
uma
competição.
Um
pacto
solene
contendo
as
regras
estabelecidas
foi
previamente
depositado
no
templo
de
Artemisa.
Nele
eram
indicados
o
momento
e
o
local
do
combate.
Eram
proibidos
todos
os
projéteis,
dardos,
flechas,
ou
fundas,
sendo
permitidas
apenas
a
espada
e
a
lança.
Há
outro
exemplo
mais
conhecido,
embora
menos
ingênuo.
Após
a
batalha
de
Salamina,
os
gregos
vitoriosos
navegaram
para
o
Istmo,
a
fim
de
distribuir
prêmios,
aqui
chamados
aristeia,
àqueles
que
mais
se
haviam
distinguido
durante
a
batalha.
Os
chefes
deviam
depositar
seus
votos
no
altar
de
Poseidon,
indicando
um
primeiro
e
um
segundo
candidato.
Cada
um
dos
chefes
se
colocou
a
si
mesmo
em
primeiro
lugar,
e
a
maior
parte
deles
votou
em
Temístocles
para
segundo,
de
modo
que
este
último
obteve
a
maioria.
Mas
os
problemas
de
inveja
surgidos
entre
eles
impediram
a
ratificação
deste
veredicto15.
Tratando
da
batalha
de
Mycale,
Heródoto
chama
às
ilhas
e
ao
Helesponto
os
"prêmios"
(άεθλα)
da
luta
entre
os
gregos
e
os
persas,
mas
isto
talvez
seja
apenas
uma
metáfora
popular.
É
manifesto
que
o
próprio
Heródoto
tinha
certas
dúvidas
quanto
ao
valor
da
noção
de
competição
na
guerra.
Através
da
boca
de
Mardonius,
que
toma
parte
no
imaginário
conselho
de
guerra
na
corte
de
Xerxes,
desaprova
a
estupidez
dos
gregos,
que
anunciam
suas
guerras
previamente
e
com
grande
solenidade,
passando
depois
a
escolher
um
belo
campo
plano,
onde
depois
travam
a
batalha,
com
grande
prejuízo
tanto
para
os
vencidos
quanto
para
os
vencedores.
Seria
muito
melhor,
diz
ele,
que
as
disputas
fossem
resolvidas
por
intermédio
de
arautos
ou
embaixadores,
ou
então,
caso
a
luta
se
tornasse
inevitável,
que
lutassem
por
todos
os
meios,
mas
cada
um
tivesse
a
possibilidade
de
escolher
um
lugar
mais
ao
abrigo
dos
ataques16.
Parece
que,
sempre
que
a
literatura
exalta
a
guerra
nobre
e
cavalheiresca,
imediatamente
surgem
críticos
colocando
as
considerações
táticas
e
estratégicas
acima
das
questões
de
honra.
Todavia,
quanto
à
própria
honra,
é
impressionante
a
que
ponto
a
tradição
militar
chinesa
se
assemelha
à
da
Idade
Média
ocidental.
Segundo
a
descrição
da
guerra
entre
os
chineses
por
Granet,
durante
o
que
chama
a
época
feudal17
,
só
pode
haver
vitória
caso
a
honra
do
príncipe
saia
enaltecida
do
campo
de
batalha.
Isto
não
depende
das
vantagens
obtidas,
e
ainda
menos
de
aproveitá-las
ao
extremo,
e
sim
da
moderação
evidenciada.
Só
a
moderação
constitui
prova
da
virtude
heroica
do
vencedor.
Dois
nobres,
Tsin
e
Ts'in,
têm
seus
exércitos
acampados
um
defronte
do
outro,
mas
sem
travar
combate.
Chegada
a
noite,
um
mensageiro
de
Ts'in
vai
avisar
Tsin
para
se
preparar:
"Não
há
falta
de
guerreiros
nos
dois
exércitos!
Convido-vos
a
que
nos
batamos
amanhã!"
Mas
os
homens
de
Tsin
observam
que
o
mensageiro
deixa
transparecer
no
olhar
e
na
voz
uma
certa
insegurança.
"O
exército
de
Ts'in
tem
medo
de
nós!
Baterá
em
retirada!
Vamos
fazê-los
recuar
para
o
rio!
Sem
dúvida
o
derrotaremos"!
Contudo,
o
exército
de
Tsin
não
se
move, permitindo
que
o
inimigo
se
disperse
em
paz.
Bastou
que
alguém
dissesse:
"É
desumano
deixar
de
recolher
os
mortos
e
os
feridos.
É
covardia
não
esperar
pelo
momento
fixado
ou
acuar
o
inimigo18.
Há
também
o
caso
do
chefe
vitorioso
que
recusa
modestamente
que
elevem
no
campo
de
batalha
um
monumento
em
sua
honra.
"Isso
estaria
bem
nos
tempos
antigos,
quando
os
famosos
reis
resplendentes
de
todas
as
virtudes
guerreavam
os
inimigos
do
céu,
estigmatizando
os
maus.
Mas
hoje
não
há
culpados,
há
apenas
vassalos
que
afirmaram
sua
fidelidade
até
à
morte.
É
isso
razão
suficiente
para
um
monumento?"
Os
acampamentos
são
sempre
cuidadosamente
orientados
em
direção
aos
quatro
cantos
do
zodíaco.
Tudo
o
que
dizia
respeito
à
organização
de
um
acampamento
militar,
em
épocas
culturais
como
a
China
antiga,
era
prescrito
da
maneira
mais
rigorosa
e
possuía
um
significado
sagrado,
porque
o
acampamento
seguia
o
modelo
da
cidade
imperial,
e
esta
por
sua
vez
seguia
o
modelo
do
céu.
Estes
pormenores
mostram
claramente
que
tudo
isto
é
abrangido
pela
esfera
do
sagrado19.
Os
acampamentos
militares
romanos
também
apresentavam
vestígios
de
sua
origem
ritualística,
conforme
afirmam
F.
Muller
e
outros.
Embora
na
Idade
Média
cristã
esses
vestígios
tivessem
desaparecido
completamente,
a
suntuosidade
e
o
esplendor
da
decoração
do
acampamento
de
Carlos,
o
Temerário,
no
cerco
de
Neuss,
em
1475,
prova
a
estreita
relação
existente
entre
a
guerra
e
o
torneio,
e
também,
consequentemente,
o
jogo.
Um
costume
que
deriva
da
ideia
da
guerra
como
um
nobre
jogo
de
honra,
e
é
conservado
mesmo
nas
desumanas
guerras
de
nossos
dias,
é
o
da
troca
de
cumprimentos
com
o
inimigo.
Poucas
vezes
deixa
de
estar
presente
um
certo
elemento
satírico,
o
que
torna
ainda
mais
evidente
o
caráter
lúdico
desse
costume.
Os
senhores
da
guerra
da
China
antiga
costumavam
trocar
jarros
de
vinho,
que
eram
solenemente
bebidos
em
meio
a
reminiscências
de
um
passado
mais
pacífico
e
protestos
de
mútua
estima20'.
Saudavam-se
reciprocamente
com
os
mais
requintados
cumprimentos
e
reverências,
e
davam
armas
uns
aos
outros
como
presentes,
do
mesmo
modo
que
Glaucus
e
Diòmedes.
Ainda
no
assédio
de
Breda
de
163721,
quando
a
cidade
foi
recuperada
pelos
holandeses
sob
o
comando
de
Frederico
Henrique
de
Orange,
o
comandante
espanhol
ordenou
que
fosse
delicadamente
devolvida
a
seu
dono,
o
conde
de
Nassau,
uma
carruagem
que
havia
sido
capturada
pelos
habitantes
sitiados,
acompanhada
de
um
presente
de
900
florins
para
a
soldadesca.
Por
vezes,
dá-se
ao
adversário
conselhos
trocistas.
Outro
exemplo
chinês
é
o
de
um
guerreiro,
durante
uma
das
inúmeras
campanhas
de
Tsin
contra
Tch'u,
mostrando
a
um
adversário,
com
uma
paciência
exasperadora,
de
que
maneira
um
carro
deveria
ser
tirado
da
lama,
e
vendo-se
recompensado
com
esta
resposta:
"Não
temos
tanta
prática
da
arte
de
fugir
como
os
habitantes
de
vosso
grande
país"22!
No
ano
de
1400
um
certo
Conde
de
Virneburg
desafiou
a
cidade
de
Aix-
la-Chapelle
para
um
combate
em
determinado
dia
e
lugar,
aconselhando
os
habitantes
a
levar
com
eles
o
bailio
de
Jülich,
que
era
o
responsável
pelo
diferendo23.
Estas
convenções
relativas
ao
momento
e
ao
lugar
de
uma
batalha
são
da
maior
importância
no
tratamento
da
guerra
como
uma
competição
de
honra
que
é
ao
mesmo
tempo
uma
decisão
judicial.
A
delimitação
de
um
terreno
para
o
combate
é
idêntica
ao
estabelecimento
de
um
recinto
de
tribunal
(Hegen
em
alemão).
O processo
é
descrito
nas
fontes
nórdicas
antigas:
o
lugar
da
batalha
é
delimitado
por
meio
de
estacas
de
madeira
ou
ramos
de
aveleira.
Esta
ideia
perdura
ainda
na
expressão
inglesa
pitched
battle,
que
designa
uma
batalha
que
se
desenrola
segundo
todas
as
normas
da
arte
militar.
É
difícil
dizer
em
que
medida
a
delimitação
do
campo
era
realmente
praticada
nas
batalhas
a
sério;
dado
seu
caráter
eminentemente
ritualístico,
podia
ser
sempre
indicada
de
maneira
completamente
simbólica,
mediante
um
sinal
qualquer
em
substituição
de
uma
verdadeira
vedação.
Quanto
à
proposta
do
momento
e
do
local
da
batalha,
a
história
medieval
abunda
em
exemplos.
Aliás
a
regra
era
recusar
ou
ignorar
a
proposta,
o
que
prova
claramente
a
natureza
puramente
formal
desse
costume.
Carlos
de
Anjou
comunica
ao
conde
Guilherme
da
Holanda
que
"ele
e
seu
exército
esperarão
por
ele
durante
três
dias
na
charneca
de
Assche"24.
Em
1332,
o
duque
João
de
Brabante
envia
um
arauto,
levando
na
mão
uma
espada
desembainhada,
para
propor
ao
rei
João
da
Boêmia
um
determinado
lugar
para
uma
batalha
na
quarta-feira
seguinte,
solicitando
expressamente
uma
resposta
e,
se
necessário,
uma
contraproposta.
Mas
o
rei,
embora
fosse
um
paladino
da
cavalaria,
obrigou
o
duque
a
esperar
à
chuva
durante
três
dias.
A
batalha
de
Crécy
foi
precedida
por
uma
troca
de
cartas
em
que
o
rei
de
França
deixava
ao
rei
Eduardo
da
Inglaterra
a
escolha
de
dois
lugares
e
de
quatro
dias
diferentes
para
a
batalha,
ou
mais,
conforme
preferisse25.
O
rei
Eduardo
respondeu
que
não
podia
atravessar
o
Sena
e
que
já
há
três
dias
estava
esperando
o
inimigo.
Em
Najera,
na
Espanha,
Henrique
de
Trastâmara
abandonou
em
1367
sua
posição
de
batalha,
que
era
extremamente
vantajosa,
a
fim
de
dar
combate
ao
inimigo
em
campo
aberto,
e
foi
vencido.
A
agência
noticiosa
japonesa
Domei
comunicou
que,
após
a
tomada
de
Cantão
em
dezembro
de
1938,
o
comandante
japonês
propôs
a
Chang-Kai-Chek
que
se
travasse
um
combate
decisivo
nas
planícies
da
China
do
Sul,
o
que
permitiria
ao
adversário
salvar
sua
honra
de
soldado,
e
que
o
resultado
fosse
aceite
como
definitivo26
.
Há
outros
costumes
militares
medievais
que
podem
ser
colocados
no
mesmo
plano
que
a
oferta
de
um
momento
e
um
lugar
determinado,
como
por
exemplo
o
"lugar
de
honra"
na
ordem
de
batalha
e
a
exigência
de
que
o
vencedor
permaneça
no
campo
de
batalha
durante
três
dias.
O
primeiro
destes
costumes
dava
lugar
a
ferozes
disputas,
cujo
resultado
podia
chegar
a
ser
fatal.
Às
vezes,
o
direito
de
encabeçar
o
exército
era
consagrado
por
um
documento
escrito,
ou
reconhecido
como
direito
hereditário
de
certas
famílias
e
casas
nobres.
Na
célebre
batalha
de
Nicópolis,
em
1396,
quando
um
exército
de
elite
composto
por
cavaleiros
partiu
com
pompa
numa
cruzada
contra
os
turcos,
as
possibilidades
de
vitória
foram
comprometidas
por
discussões
acerca
dessas
fúteis
questões
de
precedência,
e
a
hoste
de
cavaleiros
foi
aniquilada.
Quanto
à
permanência
no
campo
de
batalha
durante
três
dias,
que
era
quase
sempre
exigida,
é
possível
ver
nela
vestígios
da
sessio
triduana
da
vida
judiciária.
De
qualquer
modo,
não
há
dúvida
que
em
todos
estes
usos
cerimoniais
e
rituais,
verificáveis
na
tradição
de
todas
as
regiões
do
mundo,
vemos
claramente
que
a
guerra
tem
origem
naquela
esfera
primitiva
de
permanente
e
acirrada
competição
onde
intimamente
se
confundem
o
jogo
e
o
combate,
a
justiça,
o
destino
e
a
sorte27.
O
ideal
primitivo
da
honra
e
da
nobreza,
que
tem
raízes
no
primeiro
de
todos
os
pecados,
que
é
a
Soberba,
é
substituído,
nas
fases
mais
adiantadas
da
civilização,
pelo
ideal
da
justiça,
ou
melhor,
este
ideal
é
ligado
ao
primeiro
e,
embora
só
raramente
seja
posto
em
prática,
torna-se
a
partir
daí
a
norma
reconhecida
e
desejada
da
sociedade
humana,
a
qual
passou
agora,
de
um
amontoado
de
clãs
e
tribos,
a
uma
associação
de
grandes
nações
e estados.
A
"lei
das
nações"
deriva
da
esfera
agonística
como
a
consciência,
ou
voz
da
consciência,
que
diz:
"Isto
é
contra
a
honra,
é
contra
as
regras".
A
partir
do
momento
em
que
se
constitui
um
sistema
integral
de
obrigações
internacionais
baseadas
na
ética,
deixou
de
haver
muito
lugar
para
a
intervenção
do
elemento
agonístico
nas
relações
entre
os
Estados,
pois
esse
sistema
procura
sublimar
o
instinto
de
luta
política
num
sentido
autentico
da
justiça
e
da
equidade.
Teoricamente,
não
há
qualquer
razão
para
ocorrerem
guerras
agonísticas
entre
os
membros
de
uma
comunidade
de
Estados
ligados
por
um
direito
internacional
universalmente
reconhecido.
Mas,
mesmo
nesse
caso,
a
comunidade
não
perde
todos
os
caracteres
de
uma
comunidade
lúdica.
O
princípio
da
reciprocidade
dos
direitos,
as
fórmulas
diplomáticas,
a
obrigação
recíproca
de
respeitar
os
tratados
e,
em
caso
de
guerra,
abolir
oficialmente
a
paz,
tudo
isto
apresenta
uma
semelhança
formal
com
as
regras
lúdicas,
na
medida
em
que
só
é
válido
enquanto
o
próprio
jogo
(isto
é,
a
necessidade
de
ordem
na
vida
dos
homens)
é
reconhecido.
Num
sentido
puramente
formal,
poderíamos
considerar
toda
a
sociedade
como
um
jogo,
sem
deixar
de
ter
presente
que
esse
jogo
é
o
princípio
vital
de
toda
civilização.
Atualmente,
as
coisas
chegaram
a
tal
ponto
que
o
sistema
de
direito
internacional
deixou
de
ser
reconhecido,
ou
respeitado,
como
a
própria
base
da
cultura
e
da
vida
civilizada.
A
partir
do
momento
em
que
um
ou
mais
membros
de
uma
comunidade
de
Estados
praticamente
negam
o
caráter
obrigatório
do
direito
internacional
e,
quer
efetivamente
quer
apenas
em
teoria,
proclamam
os
interesses
e
o
poder
de
seu
próprio
grupo
—
nação,
partido,
classe,
igreja
ou
seja
o
que
for
—
como
única
norma
de
seu
comportamento
político,
o
que
desaparece
não
é
apenas
o
derradeiro
vestígio
de
um
imemorial
espírito
lúdico,
é
também
toda
e
qualquer
pretensão
de
civilização.
A
sociedade
desce
ao
nível
da
barbárie,
e
a
violência
original
readquire
seus
velhos
direitos.
A
conclusão
de
tudo
isto
é
que
sem
espírito
lúdico
a
civilização
é
impossível.
Contudo,
mesmo
numa
sociedade
completamente
desintegrada
pelo
colapso
de
todos
os
vínculos
jurídicos
o
impulso
agonístico
não
se
perde,
pois
é
inato.
O
desejo
inato
de
ser
o
primeiro
continuará
levando
os
grupos
de
poder
a
entrar
em
competição,
podendo
até
conduzi-los
a
inacreditáveis
extremos
de
cegueira
e
megalomania
desenfreada.
Pouca
diferença
faz
que
se
adira
à
doutrina
de
ontem,
que
interpretava
a
história
como
produto
de
forças
econômicas
"inevitáveis
e
imutáveis",
ou
que
se
criem
novas
Weltanschauungen28
que
simplesmente
vão
colocar
um
rótulo
pseudocientífico
no
desejo
de
triunfar.
No
fundo,
o
problema
é
sempre
ganhar
—
embora
saibamos
muito
bem
que
esta
forma
de
"ganhar"
não
pode
dar
lucro.
Nos
inícios
da
civilização,
a
rivalidade
pelo
primeiro
lugar
era
sem
dúvida
um
fator
formativo
e
enobrecedor.
Juntamente
com
uma
autêntica
ingenuidade
de
espírito
e
um
vivo
sentido,
deu
origem
àquela
orgulhosa
coragem
pessoal
que
é
tão
fundamental
numa
cultura
jovem.
E
não
se
trata
apenas
disto:
as
próprias
formas
culturais
desenvolvem-se
nessas
constantes
competições
sagradas,
é
através
delas
também,
que
a
estrutura
da
sociedade
se
expande.
A
vida
aristocrática
é
concebida
como
um
jogo
exaltante
de
coragem
e
honra.
Infelizmente,
mesmo
num
ambiente
primitivo
é
raro
que
a
guerra,
com
sua
ferocidade
e
crueldade,
permita
que
este
nobre
jogo
se
torne
uma
realidade.
A
violência
sangrenta
só
em
pequena
medida
pode
caber
nas
formas
elevadas
da
cultura.
Daí
resulta
que
o
jogo
só
pode
ser
plenamente
sentido
e
apreciado
como
ficção
social
e
estética.
É
por
isso
que
o
espírito
da
sociedade
está
constantemente
procurando
uma
forma
de
evasão
nas
belas
imagens
de
uma
vida
heroica
que
se
realiza
na
dignidade
do
combate
e
se
situa
no
domínio
ideal
da
honra,
da
virtude
e
da
beleza.
Esse
ideal
de
uma
luta
nobre,
que
se
manifesta
através
do
mito
e
da
lenda,
é
um
dos
mais
poderosos
incentivos
da
civilização.
Por
mais
de
uma
vez
esse
ideal
deu
origem
a
um
sistema
de
atletismo
marcial
e
de
jogo
social
ritualístico,
de
exaltação
poética
das
relações
da
vida
real,
como
foi
o
caso
na
cavalaria
medieval
e
no
bushido
japonês.
Aqui,
a
própria
força
da
imaginação
determina
a
conduta
pessoal
dos
membros
da
classe
aristocrática,
reforçando
sua
coragem
e
elevando
seu
sentido
do
dever.
A
presença
do
ideal
da
competição
nobre
é
particularmente
evidente
numa
sociedade
em
que
uma
aristocracia
militar
com
uma
propriedade
rural
moderada
obedece
a
um
monarca
considerado
divino
e
sagrado,
sendo
a
lealdade
ao
chefe
o
principal
dever
da
vida.
Só
numa
sociedade
assim
feudalmente
organizada,
na
qual
o
homem
livre
não
tem
necessidade
de
trabalhar,
é
possível
florescer
a
cavalaria,
e
com
ela,
o
torneio.
Só
numa
aristocracia
feudal
fazem-se
votos
solenes
de
praticar
proezas
nunca
vistas,
os
brasões
e
bandeiras
tornam-se
objeto
de
veneração,
as
ordens
de
cavaleiros
multiplicam-se,
e
a
vida
passa
a
ser
dominada
pelas
questões
de
estirpe
e
de
precedência.
Só
uma
aristocracia
feudal
dispõe
de
tempo
para
essas
coisas.
O
caráter
fundamental
de
todo
este
complexo
de
ideais,
costumes
e
instituições
pode
ser
observado
de
maneira
mais
nítida
no
país
do
Sol
Nascente
do
que
na
Idade
Média
cristã
ou
no
Islão.
O
samurai
japonês
era
de
opinião
que
o
que
é
sério
para
o
homem
comum
não
passa
de
um
jogo
para
o
valente.
O
supremo
mandamento
de
sua
vida
é
o
nobre
autocontrole
em
face
do
perigo
e
da
morte.
A
competição
de
linguagem
insultuosa,
que
anteriormente
referimos,
pode
assumir
a
forma
de
uma
prova
de
resistência,
numa
sociedade
em
que
uma
conduta
sóbria
e
cavalheiresca
é
prova
de
um
estilo
de
vida
heroico.
Um
dos
sinais
deste
heroísmo
é
o
completo
desprezo
que
o
homem
de
espírito
nobre
professa
por
todas
as
coisas
materiais.
O
nobre
japonês
mostra
sua
educação
e
a
superioridade
de
sua
cultura
não
sabendo,
ou
pretendendo
não
saber,
o
valor
das
moedas.
Um
príncipe
japonês,
Kenshin,
que
estava
em
guerra
contra
um
outro
príncipe
chamado
Shingen,
soube
que
um
terceiro
senhor
feudal,
embora
não
estivesse
em
conflito
aberto
com
o
príncipe
Shingen,
havia
cortado
o
fornecimento
de
sal
deste
último.
Em
vista
disso,
o
príncipe
Kenshin
ordenou
a
seus
súditos
que
enviassem
sal
ao
inimigo,
exprimindo
seu
desprezo
por
essa
luta
econômica
através
das
seguintes
palavras:
"Não
combato
com
sal,
e
sim
com
a
espada”29!
Não
se
pode
pôr
em
dúvida
que
este
ideal
de
cavalaria,
lealdade,
coragem
e
autocontrole
contribuiu
de
maneira
importante
para
as
civilizações
que
o
professaram.
Apesar
de
em
grande
parte
não
passar
de
ficção
e
fantasia,
não
se
pode
negar
que
contribuiu
para
elevar
o
nível
da
vida
pública
a
imagem
histórica
dos
povos
que
professavam
esse
ideal
foi
extremamente
deformada,
levando
muitas
vezes,
mesmo
os
espíritos
mais
pacíficos
a
louvar
a
guerra,
vista
através
da
miragem
da
tradição
da
cavalaria,
com
mais
entusiasmo
do
que
ela
na
realidade
jamais
mereceu.
O
tema
da
guerra
como
principal
fonte
das
virtudes
humanas
foi
por
exemplo
defendido
por
Ruskin,
sem
dúvida
com
certo
esforço,
em
seu
discurso
aos
cadetes
de
Woolwich,
apresentando-a
como
condição
absoluta
de
todas
as
puras
e
nobres
artes
da
paz.
"Jamais
à
superfície
da
terra
surgiu
uma
grande
arte
que
não
fosse
numa
nação
de
soldados
.
.
.
Não
é
possível,
numa
nação,
qualquer
grande
arte
que
não
se
baseie
na
guerra",
etc.
"Creio
em
resumo",
continua
ele,
não
sem
um
certo
superficialismo
ingênuo
na
utilização
de
seus
argumentos
históricos,
"que
todas
as
grandes
nações
aprenderam
na
guerra
a
verdade
de
sua
palavra
e
o
vigor
de
seu
pensamento;
que
foram
nutridas
pela
guerra,
e
arruinadas
pela
paz;
educadas
pela
guerra,
e
enganadas
pela
paz;
exercitadas
pela
guerra,
e
traídas
pela
paz
—
numa
palavra,
que
nasceram
na
guerra,
e
expiraram
na
paz."
Em
tudo
isto
há
muito
de
verdade,
e
essa
verdade
é
apresentada
sob
uma
forma
extremamente
pungente.
Mas
Ruskin
imediatamente
corrige
sua
retórica
com
a
declaração
de
que
isso
não
se
aplica
a
qualquer
guerra.
O
que
verdadeiramente
tinha
em
mente,
diz
ele,
era
"a
guerra
criadora
ou
fundamental,
na
qual
a
natural
instabilidade
e
o
amor
pela
competição
dos
homens
são
disciplinados,
por
consentimento,
num
jogo
que
é
belo,
embora
possa
ser
fatal".
Para
ele,
a
humanidade
está
desde
o
início
dividida
em
"duas
raças,
uma
de
trabalhadores
e
a
outra
de
jogadores:
uma
lavrando
a
terra,
manufaturando,
construindo,
e
provendo
a
todas
as
outras
necessidades
da
vida;
a
outra,
altivamente
ociosa,
precisando,
portanto,
de
recreação
constante,
e
utilizando
as
classe
produtivas
e
laboriosas
em
parte
como
rebanho,
e
em
parte
como
fantoches
ou
peças
do
jogo
da
morte".
Há
alguma
coisa
do
super-homem
nestas
declarações
de
Ruskin,
juntamente
com
uma
certa
dose
de
superficialismo
barato.
Mas
o
que
aqui
nos
interessa
é
que
Ruskin
compreendeu
corretamente
a
presença
de
um
elemento
lúdico
na
guerra
primitiva.
Em
sua
opinião
o
ideal
da
guerra
"criadora
e
fundamental"
foi
realizado
em
Esparta
e
na
cavalaria
medieval.
No
entanto,
logo
depois
das
palavras
que
acabamos
de
citar,
sua
lealdade
e
sua
seriedade
tornam-se
dominantes,
passando
ele
a
uma
diatribe
apaixonada
contra
a
guerra
moderna
—
escrita
sob
a
impressão
da
guerra
civil
americana
de
186530
.
Entre
as
virtudes
humanas
(ou
seria
melhor
dizer
"qualidades"?)
há
uma
que
parece
provir
diretamente
da
vida
aristocrática
e
agonística
do
guerreiro
dos
tempos
antigos:
a
fidelidade.
A
fidelidade
é
a
entrega
de
si
mesmo
a
uma
pessoa,
uma
causa
ou
uma
ideia,
sem
discutir
as
razões
dessa
entrega
nem
duvidar
de
seu
valor
permanente.
Ora
esta
atitude
tem
muita
coisa
em
comum
com
o
jogo.
Não
seria
excessivo
considerar
esta
"virtude",
que
é
tão
benéfica
em
sua
forma
pura
e,
quando
pervertida,
é
um
fermento
tão
demoníaco,
como
diretamente
derivada
da
esfera
lúdica.
Seja
como
for,
não
há
dúvida
que
o
solo
que
viu
florescer
a
cavalaria
produziu
uma
rica
colheita,
os
autênticos
primeiros
frutos
da
civilização.
As
mais
nobres
formas
de
expressão
épica
e
lírica,
a
mais
brilhante
arte
decorativa,
o
mais
esplendoroso
cerimonial,
tudo
isto
deriva
da
imemorial
concepção
da
guerra
como
um
nobre
jogo.
Há
uma
linha
direta
que
I
vai
desde
o
cavaleiro
até
ao
honnête
homme
do
século
XVII
e
ao
"cavalheiro"
dos
tempos
atuais.
Os
países
latinos
do
ocidente
acrescentaram
a
este
culto
o
ideal
da
galanteria,
de
tal
modo
que
a
cavalaria
e
o
amor
cortês
se
encontram
tão
intimamente
ligados
que,
com
o
tempo,
se
tornou
impossível
dizer
onde
está
a
trama
e
onde
está
a
urdidura.
Resta
dizer
mais
uma
coisa.
Ao
falarmos
de
tudo
isto
como
"os
primeiros
frutos
da
civilização",
corremos
o
perigo
de
esquecer
sua
origem
sagrada.
Na
história,
na
arte
e
na
literatura,
tudo
aquilo
que
vemos
sob
a
forma
de
um
belo
e
nobre
jogo
começou
por
ser
um
jogo
sagrado.
Os
torneios
e
justas,
as
ordens,
os
votos,
os
títulos,
são
todos
vestígios
dos
ritos
de
iniciação
primitivos.
Já
se
perderam
os
elos
desta
longa
cadeia
evolutiva:
a
cavalaria
medieval
é
por
nós
conhecida
sobretudo
como
um
elemento
cultural
mantido
artificialmente
e,
em
parte,
propositadamente
ressuscitado.
Mas
o
suntuoso
aparato
dos
códigos
de
honra,
da
conduta
cortês,
da
heráldica,
das
ordens
de
cavalaria
e
dos
torneios
não
havia
ainda
perdido
seu
significado
mesmo
já
perto
dos
fins
da
Idade
Média.
Foi
ao
procurar
descrever
o
alcance
de
tudo
isto
em
meu
livro
anterior31
que
pela
primeira
vez
me
ocorreu
ao
espírito
a
íntima
relação
existente
entre
o
jogo
e
a
cultura.
Notas do capítulo 5
1
P.46.
2
Ver
meu
Herbst
des
Mittelalters
(O
declínio
da
Idade
Média),
4ª
edição,
Stuttgart,
1938,
p.
141.
3
A
concepção
original
da
palavra
holandesa
oorlog
(guerra)
não
é
inteiramente
clara
mas,
em
todo
o
caso,
é
provável
que
ela
pertença
ao
domínio
do
sagrado.
Os
significados
dos
antigos
termos
germânicos
correspondentes
a
oorlog
oscilam
entre
combate,
fatalidade,
aquilo
que
está
"reservado"'
a
alguém,
situação
em
que
as
obrigações
se
exprimem
através
de
um
juramento.
Todavia,
não
é
absolutamente
certo
que
em
todos
os
casos
se
trate
de
uma
palavra
idêntica.
4
Wakidi,
ed.
Wellhausen,
p.
53.
5
Granet,
La
civilisation
chinoise,
p.
313;
cf.
De
Vrles,
Altgerman.
Religionsgesch.,
I,
Berlim,
1934,
p.
258.
6
Gregório
de
Tours,
SS.
rer.
Merow.
Mon.
Germ,
Hist.,
II,
2.
7
Fredegário,
IV,
27.
8
Cf.
meu
Herbst
des
Mittlalt,
p.
134
e
ss.
9
Ver
ainda,
além
das
referências
citadas:
Erasmo
Scheis
a
Erasmo
de
Roterdã,
14,
VIII,
1528,
Erasmo,
Opus
epistolarum,
VII,
nº
2024,
38
e
ss.,
2059,
9.
10
H.
Brunner
—
C.
von
Schwerin,
Deutsche
Rechtesgeschichie,
II,
1928,
p.
555.
11
R.
Schroder,
Lehrbuch
der
deulschen
Religionsgeschichte,
5.
Auflage,
Lelpzig,
1907,
p.
89.
12
Ver
meu
Herbst
des
Mittelalters,
p.
138
e
ss.
13
Commentaries
on
the
Laws
of
England,
ed.
R.
M.
Kerr.
III,
p.
337
e
ss.
14
Harrison,
Themis,
p.
258.
15
Heródoto,
Vlll,
123-5.
16
IV,
101;
VII,
96
17
La
civilisation
chinoise,
pp.
320-1.
18
Ver
a
mesma
tentação
de
utilizar
as
vantagens,
no
combate
entre
o
rei
.Siang
e
império
Tch'u;
ibid.,
p.
320.
19
Ibid.,
p.
311.
20
Ibid.,
p.
314.
21
Não
o
que
foi
imortalizado
pelo
célebre
quadro
As
lanças
de
Velásquez,
que
ocorreu
em
1625.
22
Ibid.,
p.
316.
23
W.
Erben,
Kriegsgeschichte
des
Miltelatters,
16.
Beiheft
zur
Histotcitschrift,
Munique,
1929,
p,
95.
24
Melis
Stoke,
Rijmkroniek,
ed.
W.
V.
Brill,
III,
1387.
25
Cf.
Erben,
op.
cit.,
p.
93
e
ss.,
e
também
meu
Herhsl
des
Mittelalters,
p.
142.
26
N.
R.
C.
13,
XIII,
1938.
27
Cf.
Erben,
op.
cit.,
p.
100
e
o
meu
Herhsl
des
Millelallers,
p.
140.
28
Concepções
do
mundo.
(N.
do
T.)
29
I.
Nitobe,
The
Soul
of
Japan,
Tóquio,
1905,
pp.
35,
98.
30
The
Crown
of
Wild
Olive:
Four
Lectures
on
Industry
and
War,
III:
War.
31
O
declínio
da
Idade
Média,
Caps.
II-X.
6.
O
Jogo
e
o
Conhecimento
A
ânsia
de
ser
o
primeiro
assume
tantas
formas
de
expressão
quantas
as
oportunidades
que
a
sociedade
para
tal
oferece.
As
maneiras
segundo
as
quais
os
homens
são
capazes
de
competir
pela
superioridade
são
tão
variadas
quanto
os
prêmios
que
são
possíveis
de
se
ganhar.
A
decisão
pode
ser
dada
pela
sorte,
pela
força
física,
pela
destreza
ou
pela
luta
armada.
Também
pode
haver
competições
de
coragem
e
resistência,
habilidade,
conhecimentos,
fanfarronice
ou
astúcia.
É
possível
que
se
exija
uma
prova
de
força
ou
a
apresentação
de
uma
obra
de
arte;
ou
que
se
peça
a
forja
de
uma
espada
ou
a
invenção
de
rimas
engenhosas.
Pode-se
solicitar
resposta
a
determinadas
perguntas.
A
competição
permite-se
assumir
a
forma
de
um
oráculo,
de
uma
aposta,
de
um
julgamento,
de
um
voto
ou
de
um
enigma.
Mas,
seja
qual
for
a
forma
sob
a
qual
se
apresente,
é
sempre
de
jogo
que
se
trata,
e
é
sob
este
ponto
de
vista
que
devemos
interpretar
sua
função
cultural.
A
surpreendente
semelhança
que
caracteriza
os
costumes
agonísticos
em
todas
as
culturas
talvez
tenha
seu
exemplo
mais
impressionante
no
domínio
do
próprio
espírito
humano,
quer
dizer,
no
do
conhecimento
e
da
sabedoria.
Para
o
homem
primitivo
as
proezas
físicas
são
uma
fonte
de
poder,
mas
o
conhecimento
é
uma
fonte
de
poder
mágico.
Para
ele
lodo
saber
é
um
saber
sagrado,
uma
sabedoria
esotérica
capaz
de
obrar
milagres,
pois
todo
conhecimento
está
diretamente
ligado
à
própria
ordem
cósmica.
A
ordem
das
coisas,
decretada
pelos
deuses
e
conservada
pelo
ritual
para
a
preservação
da
vida
e
a
salvação
do
homem,
esta
ordem
universal
ou
rtam,
como
era
chamada
em
sânscrito,
tem
sua
mais
poderosa
salvaguarda
no
conhecimento
das
coisas
sagradas,
de
seus
nomes
secretos
e
da
origem
do
mundo.
É
por
isso
que
há
competições
nesse
tipo
de
conhecimento
nas
festas
sagradas,
pois
a
palavra
pronunciada
tem
uma
influência
direta
sobre
a
ordem
do
mundo.
A
competição
em
conhecimentos
esotéricos
está
profundamente
enraizada
no
ritual,
e
constitui
uma
parte
essencial
deste.
As
perguntas
que
os
sacrificadores
fazem
uns
aos
outros,
cada
um
por
sua
vez
ou
mediante
desafios,
são
enigmas
no
sentido
pleno
do
termo,
exatamente
idênticos,
salvo
em
sua
significação
sagrada,
às
adivinhas
de
salão.
É
na
tradição
védica
que
se
pode
ver
mais
claramente
a
função
dessas
competições
rituais
de
enigmas.
Nos
grandes
sacrifícios
solenes,
elas
constituíam
uma
parte
da
cerimônia
tão
essencial
como
o
sacrifício
propriamente
dito.
Os
brâmanes
competiam
em
jatavidya,
conhecimento
das
origens,
ou
em
brahmodya,
cuja
tradução
mais
aproximada
seria
"expressão
das
coisas
sagradas".
Estas
designações
mostram
claramente
que
as
perguntas
feitas
possuíam
um
caráter
predominantemente
cosmogônico.
Vários
dos
hinos
do
Rigveda
encerram
a
produção
poética
direta
dessas
competições.
No
hino
Rigveda
1,
64,
algumas
das
perguntas
dizem
respeito
a
fenômenos
cósmicos,
e
outras
às
particularidades
rituais
do
sacrifício:
"Interrogo-vos
sobre
a
extremidade
mais
longínqua
da
terra,
pergunto-vos
onde
está
o
umbigo
da
terra.
Interrogo-vos
sobre
o
esperma
do
garanhão,
pergunto-vos
qual
é
a
mais
alta
instância
da
palavra"1.
No
hino
VIII,
29,
dez
enigmas
típicos
descrevem
os
atributos
das
principais
divindades,
seguindo-se
a
cada
resposta
o
nome
de
uma
dessas
divindades2:
"Um
deles
tem
a
pele
marrom
avermelhada,
é
multiforme,
generoso,
jovem;
usa
ornamentos
de
ouro
(Soma).
Em
seu
seio
desceu
um
ser
refulgente,
o
deus
sábio
por
excelência
(Agni),
etc.".
O
elemento
predominante
destes
hinos
é
sua
forma
de
enigma,
cuja
solução
depende
do
conhecimento
do
ritual
e
-de
seus
símbolos.
Mas
esta
forma
de
enigma
encerra
a
mais
profunda
sabedoria
a
respeito
das
origens
da
existência.
Paul
Deussen,
com
uma
certa
razão,
chama
ao
Rigveda
X,
129
"provavelmente
o
mais
admirável
texto
filosófico
que
chegou
desde
os
tempos
antigos
até
nós"3.
"Então,
o
ser
não
era,
nem
o
não-ser.
O
ar
não
era,
nem
o
firmamento
acima
dele.
O
que
se
movia?
Onde?
Sob
a
guarda
de
quem?
E
a
profundeza
do
abismo
era
toda
água?
"Então,
a
morte
não
era,
nem
a
não-morte;
não
havia
distinção
entre
o
dia
e
a
noite.
Nada
respirava
salvo
Aquilo,
cm
si
mesmo
sem
vento.
Em
parte
alguma
havia
algo
além
de
Aquilo"4.
A
forma
interrogativa
do
enigma
foi
aqui
em
parte
suplantada
pela
forma
afirmativa,
mas
a
estrutura
poética
do
hino
continua
refletindo
seu
caráter
original
de
enigma.
Depois
do
verso
5
volta
a
aparecer
a
forma
interrogativa:
"Quem
sabe,
quem
dirá
aqui,
de
onde
nasceu
e
de
onde
veio
esta
Criação?"
Uma
vez
aceite
que
este
hino
deriva
da
canção-enigma
ritual,
a
qual
por
sua
vez
é
a
redação
literária
de
concursos
de
enigmas
que
efetivamente
se
realizaram,
fica
estabelecida
da
maneira
mais
convincente
possível
a
ligação
genética
entre
o
jogo
de
enigmas
e
a
filosofia
esotérica.
Em
alguns
dos
hinos
do
Atharvaveda,
como
por
exemplo
em
X,
7
e
8,
parece
haver
séries
inteiras
de
perguntas
enigmáticas,
agrupadas
sob
um
denominador
comum,
pouco
importando
que
a
questão
seja
resolvida
ou
fique
sem
resposta:
"Onde
vão
os
meios
meses,
onde
vai
o
ano
a
que
eles
se
juntam?
Onde
vão
as
estações
-—
dizei-me
qual
é
seu
skambha!5
Para
onde
correm,
em
seu
desejo,
as
duas
donzelas
de
formas
diferentes,
o
dia
e
a
noite?
Para
onde,
em
seu
desejo,
correm
as
águas?
Dizei-me
qual
é
seu
skambha!
"Como
pode
o
vento
não
parar,
nem
o
espírito
repousar?
Por
que
as
águas,
desejosas
da
verdade,
jamais
param
de
correr"6?
O
pensamento
arcaico,
arrebatado
pelos
mistérios
do
Ser,
encontra-se
aqui
situado
no
limite
entre
a
poesia
sagrada,
a
mais
profunda
sabedoria,
o
misticismo
e
a
mistificação
verbal
pura
e
simples.
Não
compete
a
nós
dar
conta
de
cada
um
dos
elementos
particulares
destas
efusões.
O
poeta-
sacerdote
está
constantemente
batendo
à
porta
do
Incognoscível,
ao
qual
nem
ele
nem
nós
podemos
ter
acesso.
Sobre
esses
veneráveis
textos,
tudo
o
que
podemos
dizer
é
que
neles
assistimos
ao
nascimento
da
filosofia,
não
em
um
jogo
inútil,
mas
no
seio
de
um
jogo
sagrado.
A
mais
alta
sabedoria
é
praticada
sob
a
forma
de
uma
prova
esotérica.
Pode-se
observar
de
passagem
que
o
problema
cosmogônico
de
saber
como
o
mundo
surgiu
constitui
uma
das
preocupações
fundamentais
do
espírito
humano.
A
psicologia
experimental
infantil
mostrou
que
uma
grande
parte
das
perguntas
feitas
pelas
crianças
de
seis
anos
possui
um
caráter
autenticamente
cosmogônico,
como
por
exemplo
o
que
faz
a
água
correr,
de
onde
vem
o
vento,
o
que
é
estar
morto
etc.7.
As
perguntas
enigmáticas
dos
hinos
védicos
conduzem
às
profundas
sentenças
dos
Upanishads.
Mas
aqui
o
que
nos
interessa
não
é
a
profundidade
filosófica
dos
enigmas
sagrados,
e
sim
seu
caráter
lúdico
e
sua
importância
para
a
civilização
enquanto
tal.
O
concurso
de
enigmas
está
longe
de
constituir
um
simples
divertimento,
constitui
um
elemento
essencial
da
cerimônia
do
sacrifício.
A
resolução
dos
enigmas
é
tão
indispensável
quanto
o
próprio
sacrifício8.
Ela
exerce
uma
certa
pressão
sobre
os
deuses.
Nas
Celebes
centrais,
entre
os
Toradja,
encontra-se
um
interessante
paralelo
com
esse
antigo
costume
védico9.
Em
suas
festas
a
parte
destinada
aos
enigmas
é
estritamente
limitada
no
tempo,
começando
no
momento
em
que
o
arroz
fica
"prenhe"
e
prolongando-se
até
à
colheita,
e
naturalmente
a
resolução
dos
enigmas
é
considerada
favorável
a
esta.
De
cada
vez
que
um
enigma
é
resolvido,
o
coro
canta:
"Sai,
arroz,
saiam,
gordas
espigas,
do
alto
da
montanha
ou
do
fundo
dos
vales!"
Durante
a
época
que
precede
imediatamente
este
período
todas
as
atividades
literárias
são
proibidas,
pois
poderiam
prejudicar
o
crescimento
do
arroz.
A
mesma
palavra
wailo
significa
tanto
"enigma"
quanto
"painço",
o
cereal
que
foi
substituído
pelo
arroz
como
alimento
popular10.
Pode-se
acrescentar
o
exemplo
exatamente
paralelo
dos
grisões
da
Suíça,
onde,
segundo
se
diz11,
"os
habitantes
se
entregam
às
mais
loucas
excentricidades
para
ajudar
o
trigo
a
crescer
melhor"
(thorechten
atentem
treiben,
dass
ihnen
das
korn
destobas
geraten
solle).
Todo
estudioso
da
literatura
védica,
especialmente
dos
Brahmanas,
sabe
bem
que
as
explicações
que
aí
se
encontram
relativas
à
origem
das
coisas
são
tão
inconsistentes
quanto
variadas,
e
tão
sutis
quanto,
muitas
vezes,
confusas.
Não
existe
um
sistema
geral,
um
fio
condutor
discernível.
Mas
quem
tiver
presente
o
caráter
fundamentalmente
lúdico
destas
especulações
cosmogônicas,
e
o
fato
de
todas
elas
derivarem
do
enigma
ritualístico,
verá
claramente
que
aquela
confusão
não
depende
tanto
de
uma
suposta
sutileza
dos
sacerdotes,
cada
um
deles
interessado
em
fazer
prevalecer
seu
sacrifício
sobre
os
dos
outros,
ou
de
uma
fantasia
arbitrária
e
caprichosa12 quanto
do
fato
de
as
inúmeras
interpretações
contraditórias
terem
começado
por
ser
outras
tantas
soluções
diferentes
dos
enigmas
ritualísticos.
O
enigma
é
uma
coisa
sagrada
cheia
de
um
poder
secreto
e,
portanto,
é
uma
coisa
perigosa.
Em
seu
contexto
mitológico
ou
ritualístico,
ele
é
quase
sempre
aquilo
que
os
filólogos
alemães
chamam
de
Halsrätel
ou
"enigma
capital",
em
que
se
arrisca
a
cabeça
caso
não
se
consiga
decifrá-lo.
A
vida
do
jogador
está
em
jogo.
Um
corolário
disto
constitui
a
formação
de
um
enigma
que
ninguém
consiga
resolver
como
sendo
considerada
a
mais
alta
manifestação
de
sabedoria.
Ambos
estes
temas
encontram-se
reunidos
na
velha
lenda
hindu
do
rei
Yanaka,
que
realizou
um
concurso
de
enigmas
teológicos
entre
os
brâmanes
que
assistiam
a
seu
sacrifício
solene,
oferecendo
um
prêmio
de
mil
vacas13.
O
sábio
Yaj-flavalkya,
considerando
certa
a
vitória,
mandou
que
as
vacas
lhe
fossem
previamente
entregues
e,
naturalmente,
derrotou
seus
adversários.
Um
destes,
Vidaghdha
Sakalya,
verificando
ser
incapaz
de
resolver
um
enigma,
perdeu
literalmente
a
cabeça,
a
qual
se
separou
de
seu
corpo
e
lhe
caiu
no
colo.
Esta
estória
é
sem
dúvida
uma
versão
pedagógica
do
tema
segundo
o
qual
a
incapacidade
de
responder
era
punida
com
a
pena
capital.
Finalmente,
quando
ninguém
mais
se
atreve
a
fazer
perguntas,
Yajnavalkya
triunfalmente
exclama:
"Reverendos
brâmanes,
se
algum
de
vós
deseja
fazer
alguma
pergunta
que
a
faça,
ou
todos
vós,
se
quiserdes;
ou
então
permiti
que
eu
faça
uma
pergunta
a
um
de
vós,
ou
a
todos,
se
quiserdes"!
É
claro
como
o
dia
o
caráter
perfeitamente
lúdico
desta
competição.
A
própria
tradição
sagrada
participa
do
jogo,
e
é
impossível
definir
o
grau
de
seriedade
com
que
a
estória
foi
aceita
no
cânon
sagrado,
grau
que
aliás
em
última
análise
é
tão
irrelevante
como
o
problema
de
saber
se
efetivamente
alguém
perdeu
a
cabeça
por
ser
incapaz
de
resolver
um
enigma.
Não
é
este
o
aspecto
mais
interessante
da
questão.
O
principal,
o
que
é
realmente
notável,
é
o
tema
lúdico
enquanto
tal.
Também
na
tradição
grega
encontra-se
o
tema
da
solução
de
enigmas
e
da
pena
de
morte
na
estória
dos
videntes
Calcas
e
Mopsos.
Alguém
vaticinou
que
Calcas
morreria
se
alguma
vez
encontrasse
um
outro
vidente
mais
sábio
do
que
ele.
Um
dia
encontra
Mopsos
e
disputa
com
ele
um
concurso
de
enigmas,
que
é
ganho
por
Mopsos.
Calcas
morre
de
desgosto,
ou
mata-se
de
despeito,
e
seus
discípulos
tornam-se
seguidores
de
Mopsos14.
Creio
ser
evidente
neste
caso
a
presença
do
tema
do
enigma
fatal,
embora
sob
forma
corrompida.
O
concurso
de
enigmas
em
que
a
vida
é
posta
em
jogo
é
um
dos
temas
principais
da
mitologia
dos
Eddas.
No
Vajthrudnismal,
Odin
mede-se
em
sabedoria
com
o
sapientíssimo
gigante
Vafthrudnir,
cada
um
fazendo
alternadamente
perguntas
ao
outro.
As
perguntas
são
de
caráter
mitológico
e
cosmogônico,
semelhantes
às
dos
textos
védicos
que
citamos:
De
onde
vieram
o
Dia
e
a
Noite,
o
Inverno
e
o
Verão,
e
o
Vento?
No
Alvissmä,
Thor
pergunta
ao
anão
Alvis
como
são
chamadas
as
diversas
coisas
entre
os
Ases,
os
Vanes
(o
panteão
secundário
dos
Eddas),
os
homens,
os
gigantes,
os
anões,
e
por
último
no
Hel;
mas
antes
de
terminar
a
competição
o
dia
nasce,
e
o
anão
é
posto
a
ferros.
O
Canto
de
Fjölsvinn
possui
forma
semelhante,
assim
como
os
Enigmas
do
rei
Heidrek,
o
qual
fez
a
promessa
de
perdoar
todo
condenado
à
morte
que
lhe
apresentasse
um
enigma
que
ele
próprio
não
pudesse
resolver.
A
maior
parte
destes
cantos
são
atribuídos
ao
período
final
dos
Eddas,
e
é
provável
que
os
especialistas
tenham
razão
quando
afirmam
que
se
trata
apenas
de
exemplos
de
um
artifício
poético
deliberado.
O
que
não
impede,
todavia,
que
sua
relação
com
os
concursos
de
enigmas
de
um
passado
remoto
seja
demasiado
evidente
para
ser
negada.
Não
é
através
da
reflexão
ou
do
raciocínio
lógico
que
se
consegue
encontrar
a
resposta
a
uma
pergunta
enigmática.
A
resposta
surge
literalmente
numa
solução
brusca
—
o
desfazer
dos
nós
em
que
o
interrogador
tem
preso
o
interrogado.
O
corolário
disto
é
que
dar
a
resposta
correta
deixa
impotente
o
primeiro.
Em
princípio,
há
apenas
uma
resposta
para
cada
pergunta.
Quando
se
conhecem
as
regras
do
jogo.
é
possível
encontrar
essa
resposta.
As
regras
são
de
ordem
gramatical,
poética
ou
ritualística,
conforme
o
caso.
É
preciso
conhecer
a
linguagem
secreta
dos
iniciados
e
saber
o
significado
de
todos
os
símbolos
—
roda,
pássaro,
vaca,
etc.
—
das
diversas
categorias
de
fenômenos.
Se
for
verificada
a
possibilidade
de
uma
segunda
resposta,
de
acordo
com
as
regras
e
na
qual
o
interrogador
não
tenha
pensado,
este
último
ficará
em
má
situação,
apanhado
em
sua
própria
armadilha.
De
outro
lado,
é
possível
uma
coisa
ser
figurativamente
representada
de
tantas
maneiras
que
pode
ser
dissimulada
num
grande
número
de
enigmas.
Muitas
vezes,
a
solução
depende
inteiramente
do
conhecimento
dos
nomes
secretos
ou
sagrados
das
coisas,
como
o
Alvissmál
acima
referido.
Não
nos
interessamos
aqui
pelo
enigma
enquanto
forma
literária,
mas
apenas
por
sua
qualidade
lúdica
e
sua
função
na
cultura.
Não
precisamos,
portanto,
investigar
em
profundidade
as
relações
etimológicas
e
semânticas
entre
os
termos
alemães
e
holandeses
Ratsel
e
raadsel
(enigma;
em
inglês,
riddle),
Rat
e
raad
(conselho),
erraten (adivinhar)
e
raden,
verbo
holandês
que
ainda
hoje
significa
ao
mesmo
tempo
"aconselhar"
e
"resolver"
(um
enigma).
Também
em
grego
existem
afinidades
entre
alvos
(sentença,
provérbio)
e
αινιγμα
(enigma).
Há
uma
estreita
interligação
cultural
entre
palavras
como
conselho,
enigma,
mito,
lenda,
provérbio
etc.
Mas
basta
lembrar
de
passagem
estes
aspectos,
para
imediatamente
passar
às
diversas
direções
seguidas
pelo
enigma
em
sua
evolução.
Podemos
concluir
que
originariamente
o
enigma
era
um
jogo
sagrado,
e
por
isso
se
encontrava
para
além
de
toda
distinção
possível
entre
o
jogo
e
a
seriedade.
Era
ambas
as
coisas
ao
mesmo
tempo:
um
elemento
ritualístico
da
mais
alta
importância,
sem
deixar
de
ser
essencialmente
um
jogo.
À
medida
que
a
civilização
vai
evoluindo,
o
enigma
bifurca-se
em
dois
sentidos
diferentes:
de
um
lado
a
filosofia
mística
e
de
outro,
o
simples
divertimento.
Mas
não
devemos
pensar
que
nesta
evolução
se
tenha
verificado
uma
decadência
da
seriedade,
passando
a
ser
jogo,
ou
uma
elevação
do
jogo
até
o
nível
da
seriedade.
Pelo
contrário,
o
que
se
passa
é
que
a
civilização
vai
gradualmente
fazendo
surgir
uma
certa
divisão
entre
dois
modos
da
vida
espiritual,
aos
quais
chamamos
"jogo"
e
"seriedade",
e
que
originariamente
constituía
um
meio
espiritual
contínuo,
do
qual
surgiu
a
própria
civilização.
O
enigma
ou,
em
termos
menos
específicos,
a
adivinhação,
é,
considerando
à
parte
seus
efeitos
mágicos,
um
elemento
importante
das
relações
sociais.
Como
forma
de
divertimento
social
se
adapta
a
toda
a
espécie
de
esquemas
literários
e
rítmicos,
como
por
exemplo
as
perguntas
em
cadeia,
onde
cada
pergunta
conduz
a
outra,
do
conhecido
tipo
"O
que
é
mais
doce
que
o
mel?"
etc.
Os
gregos
gostavam
muito
da
aporia
como
jogo
de
sociedade,
ou
seja,
de
fazer
perguntas
às
quais
era
impossível
dar
uma
resposta
definitiva.
Isto
pode
ser
considerado
uma
forma
moderada
do
enigma
fatal.
O
"enigma
da
Esfinge"
ainda
ecoa
vagamente
nas
formas
mais
tardias
do
jogo
de
enigmas,
o
tema
da
pena
de
morte
permanece
sempre
no
pano
de
fundo.
Um
dos
exemplos
mais
característicos
da
maneira
como
a
tradição
o
modificou
é
a
estória
do
encontro
de
Alexandre
o
Grande
com
os
"gimnosofistas"
indianos.
O
conquistador
tomou
uma
cidade
que
ousara
oferecer
resistência,
e
mandou
que
trouxessem
à
sua
presença
os
dez
sábios
responsáveis
por
essa
decisão.
Deviam
eles
responder
a
um
certo
número
de
perguntas
insolúveis
feitas
pelo
próprio
conquistador.
Cada
resposta
errada
significaria
a
morte,
e
o
que
respondesse
pior
morreria
primeiro.
O
juiz
deste
último
aspecto
deveria
ser
um
dos
dez
sábios.
Caso
seu
julgamento
fosse
considerado
acertado,
sua
vida
seria
poupada.
A
maior
parte
das
perguntas
são
dilemas
de
caráter
cosmológico,
variantes
dos
enigmas
védicos
sagrados.
Por
exemplo:
Quem
é
mais,
os
vivos
ou
os
mortos?
Qual
é
o
maior,
a
terra
ou
o
mar?
Qual
apareceu
primeiro,
o
dia
ou
a
noite?
As
respostas
são
artifícios
lógicos,
e
não
exemplos
de
sabedoria
mística.
Quando,
finalmente,
foi
feita
a
pergunta:
"Quem
respondeu
pior?",
o
juiz
respondeu:
"Cada
um
pior
do
que
o
outro",
inutilizando
assim
todo
o
plano,
pois
se
tornava
impossível
que
algum
deles
fosse
morto15.
A
intenção
de
"pegar"
o
adversário
é
essencial
no
dilema,
cuja
resposta,
obrigando
o
adversário
a
admitir
alguma
coisa
que
não
estava
prevista
na
formulação
original,
invariavelmente
redunda
em
desvantagem
para
ele.
O mesmo
se
verifica
no
enigma
que
comporta
duas
soluções,
a
mais
óbvia
das
quais
é
obscena.
No
Atharvaveda
encontram-se
enigmas
deste
tipo16.
Merece
especial
atenção
uma
das
formas
literárias
derivadas
do
enigma,
por
mostrar
de
modo
muito
expressivo
a
relação
entre
o
lúdico
e
o
sagrado.
Esta
forma
é
o
diálogo
interrogativo
filosófico
ou
teológico.
O
tema
é
sempre
o
mesmo:
um
sábio
que
é
interrogado
por
outro
sábio
ou
um
determinado
número
de
sábios.
Como Zaratustra,
obrigado
a
responder
às
perguntas
dos
sessenta
sábios
do
rei
Vistaspa,
ou
Salomão,
respondendo
às
perguntas
da
rainha
de
Sabá.
Na
literatura
brâmane,
um
dos
temas
mais
frequentes
é
o
do
jovem
discípulo,
o
bramatchárin,
chegando
à
corte
do
rei
e
lá
sendo
interrogado
pelos
mestres,
até
o
momento
em
que
a
sabedoria
de
suas
respostas
leva
a
uma
inversão
dos
papéis,
passando
ele
a
interrogá-los,
revelando-se
assim
como
um
mestre
e
não
um
discípulo.
Desnecessário
seria
assinalar
a
extrema
afinidade
existente
entre
este
tema
e
os
concursos
de
enigmas
rituais
da
época
arcaica.
Um
dos
contos
do
Mahabharata
é
especialmente
característico
a
este
respeito17
.
Os
Pandavas,
em
sua
peregrinação
através
das
florestas,
chegam
às
margens
de
uma
bela
lagoa.
O
espírito
que
mora
em
suas
águas
proíbe-os
de
beber
antes
de
responderem
a
algumas
perguntas.
Todos
os
que
desprezam
esta
exigência
caem
mortos
por
terra.
Ao
que
Yudhisthira
se
declara
pronto
a
responder
às
perguntas
do
espírito,
seguindo-se
um
jogo
de
perguntas
e
respostas
através
do
qual
é
exposto
quase
todo
o
sistema
ético
dos
hindus—
notável
exemplo
da
transição
entre
o
enigma
cosmológico
sagrado
e
o
jeu
d'esprit.
Uma
visão
correta
das
disputas
teológicas
da
Reforma,
com
a
de
Lutero
contra
Zwingli
em
Marburgo,
em
1529,
ou
a
de
Theodore
Beza
contra
seus
colegas
calvinistas
e
alguns
prelados
católicos
em
Poissy,
em
1561,
revelará
que
elas
não
passam
de
uma
continuação
direta
de
um
imemorial
costume
ritualístico.
Os
aspectos
literários
do
diálogo
interrogativo
são
especialmente
interessantes
no
caso
do
tratado
Fali
chamado
Milindapanha
—
as
Questões
do
rei
Menandro,
um
dos
príncipes
greco-indianos,
que
reinou
na
Bactriana
no
século
II
A.
C.
Embora
este
texto
não
fizesse
oficialmente
parte
dos
Tripitaka,
os
textos
sagrados
dos
budistas
meridionais,
era
altamente
considerado
tanto
por
estes
últimos
quanto
por
seus
irmãos
do
Norte,
e
deve
ter
sido
composto
cerca
do
início
da
era
cristã.
Mostra-nos
ele
a
disputa
entre
Menandro
e
o
grande
Arhat,
Nagasena.
A
obra
é
de
teor
puramente
filosófico
e
teológico,
mas
pela
forma
e
pelo
tom
possui
um
parentesco
com
o
concurso
de
enigmas.
Quanto
a
este
último
aspecto,
o
preâmbulo
é
um
exemplo
típico:
Disse
o
rei:
"Venerável
Nagasena,
quereis
conversar
comigo?"
Nagasena:
"Fá-lo-ei,
se
Vossa
Majestade
conversar
comigo
da
maneira
como
falam
os
sábios;
mas
não
o
farei,
se
Vossa
Majestade
conversar
comigo
da
maneira
como
falam
os
reis."
"E
qual
a
maneira
como
conversam
os
sábios,
venerável
Nagasena?"
"Ao
contrário
dos
reis,
os
sábios
não
ficam
irritados
quando
são
postos
entre
a
espada
e
a
parede."
E
o
rei
consente
em
discutir
com
ele
em
pé
de
igualdade,
tal
como
no
gaber
do
duque
de
Anjou.
Alguns
dos
sábios
da
corte
também
participam;
e
o
público
é
formado
por
quinhentos
yonakas,
isto
é,
jônios
e
gregos,
assim
como
por
oitenta
mil
monges
budistas.
Em
atitude
de
desafio,
Nagasena
propõe
um
problema
"que
implica
dois
aspectos,
muito
profundo,
difícil
de
resolver,
mais
duro
que
um
nó".
Os
sábios
do
rei
queixam-se
de
que
Nagasena
os
atormenta
com
perguntas
astuciosas
de
tendência
herética.
Muitas
delas
são
típicos
dilemas,
atirados
com
um
triunfante:
"Veja
Vossa
Majestade
se
consegue
sair
desta!"
E
assim
são
passados
em
revista
os
problemas
fundamentais
da
doutrina
budista,
expressos
numa
simples
forma
socrática.
O
tratado
inicial
da
Snorra
Edda,
conhecido
como
Gyl-fagmning,
também
pertence
ao
gênero
do
discurso
teológico
interrogativo.
Gangleri
inicia
sua
disputa
com
Har
sob
a
forma
de
uma
aposta,
depois
de
ter
começado
por
atrair
a
atenção
do
rei
Gylf
com
seus
habilidosos
malabarismos
com
sete
espadas.
O
concurso
de
enigmas
sagrado
relativo
à
origem
das
coisas
está
ligado
por
transições
graduais
ao
concurso
de
enigmas
em
que
estão
em
jogo
a
honra,
as
posses
ou
a
vida,
e
finalmente
às
discussões
filosóficas
e
teológicas.
Outras
formas
de
diálogo
se
encontram
intimamente
relacionadas
com
estas
últimas,
tais
como
a
litania
e
o
catecismo
das
doutrinas
religiosas.
Não
existe
exemplo
mais
flagrante
de
inextricável
mistura
de
todas
estas
formas
do
que
o
cânon
do
Avesta,
onde
a
doutrina
é
apresentada
sobretudo
numa
série
de
perguntas
e
respostas
trocadas
entre
Zaratustra
e
Ahura
Mazda18
.
Especialmente
os
Yasnas,
os
textos
litúrgicos
para
os
rituais
de
sacrifício,
conservam
ainda
numerosos
vestígios
da
forma
lúdica
primitiva.
Típicas
questões
teológicas,
relativas
à
doutrina,
à
ética
e
ao
ritual,
alternam
com
velhos
enigmas
cosmogônicos,
como
em
Yasna,
44.
Todos
os
versos
iniciam-se
pela
frase
de
Zaratustra:
"Isto
te
pergunto,
dá-me
a
resposta
certa,
Ahura!"
As
perguntas
iniciam-se
por:
"Quem
é
aquele
que.
.
.?"
Por
exemplo:
"Quem
é
aquele
que
sustentava
cá
em
baixo
a
terra,
e
lá
em
cima
o
céu,
para
que
não
caíssem?"
"Quem
é
aquele
que
uniu
a
rapidez
ao
vento
e
às
nuvens?"
"Quem
é
aquele
que
criou
a
bendita
luz
e
a
escuridão
...
o
sono
e
a
vigília?"
Ao
fim,
uma
passagem
notável
mostra
claramente
que
nos
encontramos
perante
vestígios
de
um
antigo
concurso
de
enigmas:
"Isto
te
pergunto,
dá-me
a
resposta
certa,
Ahura!
Conseguirei
eu
o
prêmio
de
dez
éguas,
um
garanhão
e
um
camelo
que
me
foi
prometido?"
Além
das
questões
cosmogônicas,
há
outras
de
natureza
mais
catequética,
relativas
às
origem
e
à
definição
da
piedade,
a
distinção
entre
o
bem
e
o
mal,
a
pureza
e
a
impureza,
as
melhores
maneiras
de
lutar
contra
o
espírito
do
mal
etc.
Aquele
pastor
suíço
que,
no
país
e
no
tempo
de
Pestalozzi,
escreveu
um
catecismo
para
crianças
intitulado
"Pequeno
livro
de
adivinhas"
(Ratselhüchleiit)
não
podia
saber
até
que
ponto
sua
ideia
era
próxima
da
verdadeira
fonte
de
todos
os
credos
e
catecismos.
O
diálogo
de
caráter
filosófico
e
teológico,
como
o
do
rei
Menandro,
perdura
ainda
nas
discussões
científicas
ou
escolásticas
realizadas
nas
cortes
dos
príncipes,
entre
estes
e
seus
cortesãos
ou
sábios
vindos
do
exterior.
São
conhecidas
duas
listas
de
perguntas,
escritas
pelo
imperador
Frederico
II,
da
dinastia
Hohenstaufen,
sendo
a
primeira
dirigida
ao
astrólogo
da
corte
Miguel
Escoto19
e
a
outra
ao
sábio
muçulmano
Ibn
Sabin,
de
Marrocos.
A
primeira
reveste-se
de
um
interesse
todo
especial
para
nosso
assunto,
pois
nos
mostra
uma
mistura
de
velhos
dados
cosmológicos,
de
noções
teológicas
e
do
novo
espírito
científico
tão
ardentemente
defendido
por
Frederico.
Sobre
que
assenta
a
terra?
Quantos
céus
existem?
Como
é
que
Deus
se
senta
em
seu
trono?
Qual
é
a
diferença
entre
as
almas
dos
condenados
e
os
anjos
caídos?
A
terra
é
maciça
ou
tem
partes
ocas?
Por
que
a
água
do
mar
é
salgada?
Por
que
o
vento
sopra
de
diversas
direções?
Quais
são
as
causas
das
exalações
e
erupções
vulcânicas?
Como
se
explica
que
as
almas
dos
mortos
não
desejem
regressar
à
terra?
etc.
Aqui
se
veem
as
velhas
vozes
misturadas
com
as
novas.
A
segunda
série
de
"Questões
sicilianas",
propostas
a
Ibn
Sabin,
é
de
caráter
muito
mais
puramente
filosófico,
e
de
tendência
marcadamente
cética
e
aristotélica.
Mas
nela
se
encontram
vestígios
do
velho
espírito.
O jovem
filósofo
maometano
trata
o
imperador
como
aluno;
"Vossas
questões
são
tolas,
inadequadas
e
contraditórias!"
O
imperador
aceita
estas
censuras
de
maneira
calma
e
modesta,
e
por
este
fato
um
de
seus
biógrafos
alemães,
Hampe20,
elogia
sua
"humanidade".
Mas,
o
mais
provável
é
que
Frederico
soubesse,
do
mesmo modo
que
Menandro,
que
o
jogo
das
perguntas
e
respostas
precisa
ser
jogado
em
pé
de
igualdade;
por
isso
os
jogadores
conversavam,
como
dizia
o
velho
Nagasena,
"não
como
reis,
mas
como
sábios".
Os
gregos
da
época
mais
tardia
tinham
plena
consciência
das
relações
existentes
entre
o
jogo
dos
enigmas
e
as
origens
da
filosofia.
Clearco,
um
dos
discípulos
de
Aristóteles,
escreveu
um
tratado
sobre
os
provérbios,
o
qual
encerrava
uma
teoria
dos
enigmas,
provando
que
originariamente
o
enigma
fora
um
assunto
filosófico.
Diz
ele:
"Os
antigos
usavam-no
como
prova
de
sua
educação
(παιδεια)21,
observação
que
nitidamente
se
refere
ao
jogo
de
enigmas
de
que
acima
tratamos.
E,
com
efeito,
não
seria
exagerado
considerar
os
primeiros
produtos
da
filosofia
grega
como
derivados
dos
enigmas
primitivos.
Deixando
de
lado
o
problema
de
saber
até
que
ponto
a
própria
palavra
"problema"
(πφόβλημα)
—
que
significa
à
letra
"aquilo
que
é
colocado
perante
alguém"
—
aponta
para
o
desafio
como
origem
da
proposição
filosófica,
podemos
afirmar
com
segurança
que
o
filósofo,
desde
as
épocas
mais
remotas
até
aos
últimos
sofistas
e
retores,
sempre
assumiu
todas
as
características
do
campeão.
Desafiava
seus
rivais,
submetia-os
à
crítica
mais
veemente,
afirmando
suas
próprias
opiniões
como
as
únicas
verdadeiras,
com
toda
a
autoconfiança
juvenil
própria
do
homem
arcaico.
Quanto
ao
estilo
e
quanto
à
forma,
os
exemplos
mais
antigos
de
filosofia
possuem
um
caráter
polêmico
e
agonístico.
Falam,
invariavelmente,
na
primeira
pessoa
do
singular.
Quando
Zenão
de
Eleia
ataca
seus
adversários,
fá-lo
por
meio
de
aporias
—
isto
é,
procura
ostensivamente
partir
das
premissas
deles
para
chegar
a
duas
conclusões
contraditórias
e
que
se
excluem
reciprocamente.
Esta
forma
é
a
mais
próxima
do
enigma
que
é
possível.
Zenão
pergunta:
"Se
o
espaço
é
alguma
coisa,
o
que
pode
existir
nele22?
O
enigma
não
é
difícil
de
resolver".
Para
Heráclito,
o
"filósofo
obscuro",
a
natureza
e
a
vida
são
um
griphos,
um
enigma,
e
ele
próprio
é
um
decifrador
de
enigmas23.
As
afirmações
de
Empédocles
têm
muitas
vezes
a
ressonância
da
solução
de
enigmas
místicos,
e
se
revestem
ainda
de
uma
forma
poética.
Suas
quase
grotescas
fantasias
relativas
à
origem
da
vida
animal
não
pareceriam
deslocadas
num
daqueles
cantos
dos
brâmanes
da
índia
antiga,
onde
a
imaginação
parece
completamente
desenfreada:
"Dela
(a
Natureza)
brotaram
muitas
cabeças
sem
pescoços,
braços
erravam
sem
ombros,
e
no
ar
flutuavam
olhos
separados
das
faces"24.
Os
mais
antigos
filósofos
se
exprimem
em
tom
arrebatado
e
profético.
Sua
sublime
autoconfiança
é
a
mesma
do
sacerdote
que
faz
os
sacrifícios
ou
do
mistagogo.
Os
problemas
de
que
tratam
são
os
da
origem
última
das
coisas,
de
seus
inícios
(άφχή),
da
natureza
(φύσις).
Não
chegam
a
suas
soluções
por
reflexão
ou
argumentação,
mas
por
rasgos
de
intuição.
São
sempre
as
mesmas
velhas
questões
cosmogônicas,
desde
tempos
imemoriais
apresentadas
em
forma
de
enigma
e
resolvidas
através
do
mito.
Antes
de
assumir
definitivamente
a
forma
da
filosofia
e
da
ciência,
a
especulação
sobre
a
estrutura
do
universo
teve
de
romper
com
a
imaginação
desenfreada
da
cosmologia
mítica,
como
por
exemplo
a
concepção
pitagórica
dos
183
mundos
colocados
uns
ao
lado
dos
outros,
desenhando
a
figura
de
um
triângulo
equilátero25.
Todos
estes
exemplos
do
filosofar
primitivo
estão
penetrados
por
um
vigoroso
sentido
da
estrutura
agonística
do
universo.
Os
processos
vitais
e
cósmicos
são
encarados
como
manifestações
do
eterno
conflito
entre os
opostos
que
é
o
princípio
último
da
existência,
do
mesmo
modo
que
o
yin
e
o
yang
dos
chineses.
Para
Heráclito
a
luta
era
"o
pai
de
todas
as
coisas",
e
para
Empédocles
a
φιλία
e
o
νείχοδ
—
a
atração
e
a
discórdia
—
eram
os
dois
princípios
que
regiam
o
universo,
desde
o
início
até
à
eternidade.
Não
é
certamente
por
acaso
que
a
tendência
antitética
da
filosofia
antiga
se
refletia
plenamente
na
estrutura
antitética
e
agonística
da
sociedade
arcaica.
Desde
muito
tempo
atrás
o
homem
se
habituara
a
pensar
todas
as
coisas
como
dominadas
pelo
conflito
e
por
uma
oposição
dualista.
Hesíodo
distinguia
entre
a
boa
Eris
—
tendência
benéfica
—
e
a
Eris
destrutiva.
Portanto,
está
perfeitamente
de
acordo
com
esta
concepção
o
fato
de
o
eterno
conflito
das
coisas,
o
conflito
da
physis,
ser
por
vezes
concebido
como
um
conflito
legal.
Esta
concepção
revela
claramente
a
natureza
lúdica
da
cultura
arcaica.
Segundo
Werner
Jaeger,
as
ideias
de
Kosmos,
Dikê
e
Tisis
—
ordem,
justiça
e
punição
—
inspiram-se
na
esfera
jurídica
a
que
pertenciam,
sendo
transferidas
para
o
processo
universal,
a
fim
de
poder
entender
este
último
em
termos
semelhantes
aos
de
um
processo
em
tribunal26.
Do
mesmo
modo,
diz
ainda
Jaeger,
αίτία significava
originalmente
a
culpa
perante
a
lei,
sendo
só
mais
tarde
que
passou
a
ser
o
termo
mais
geralmente
utilizado
para
designar
a
ideia
de
causalidade
natural.
Infelizmente,
chegaram
até
nós
sob
forma
extremamente
fragmentária
os
textos
em
que
Anaximandro
exprime
esta
noção
do
processo
universal
como
um
processo
legal27.
"O
mesmo
princípio
(ou
seja,
o
infinito)
que
está
na
origem
das
coisas
deve
necessariamente
ser
aquele
que
as
faz
perecer.
Pois
elas
precisam
expiar
e
compensar
reciprocamente
a
injustiça
que
fazem
umas
às
outras,
de
acordo
com
as
decisões
do
tempo."
Dificilmente
se
poderia
considerar
esta
afirmação
um
exemplo
da
mais
extrema
clareza,
mas
de
qualquer
modo
ela
encerra
a
ideia
de
que
o
cosmos
necessita
expiar
um
mal
originário.
Seja
qual
for
o
sentido
em
que
a
interpretemos,
ela
nos
deixa
entrever
um
pensamento
profundo,
de
flagrante
semelhança
com
a
doutrina
cristã.
Todavia,
cabe
aqui
que
nos
perguntemos
se
essas
frases
refletem
a
fase
de
maturidade
plena
do
pensamento
grego
relativo
ao
Estado
e
à
Justiça,
da
qual
temos
exemplos
no
século
V
A.
C,
ou
se,
pelo
contrário,
refletem
um
estrato
de
pensamento
jurídico
muito
mais
antigo,
aquele
a
que
acima
fizemos
referência,
no
qual
as
ideias
de
justiça
e
castigo
ainda
se
encontravam
misturadas
com
as
de
sortilégio
e
combate
físico,
no
qual,
em
resumo,
o
processo
jurídico
era
ainda
considerado
um
jogo
sagrado?
Um
dos
fragmentos
de
Empédocles,
relativo
à
violenta
luta
entre
os
elementos,
fala
de
um
cumprimento
do
tempo,
que
estava
destinado
a
cada
um
desses
princípios
últimos
por
"um
amplo
juramento"28.
É
impossível
compreender
plenamente
o
significado
desta
proposição
mítico-mística.
A
única
coisa
certa
é
que
o
pensamento
do
filósofo-vidente
ainda
se
movimenta
na
região
do
combate
ritual
concebido
como
prova
da
decisão
divina
a
qual,
conforme
vimos,
era
a
base
do
direito
e
da
justiça
dos
tempos
arcaicos.
Notas do capítulo 6
1
Cf.
Lieder
des
Rigveda,
Ubersetzt
v.
A.
Hillebrandt
(Quellen
zur
Religionsgesch.,
VII,
5),
Gbttingen,
1913,
p.
105
(I,
164,
34).
2
Id.,
p.
98
(vm,
29,
1-2).
3
Allgemelne
Ceschichte
der
Philosophie,
I,
Leipzig,
1894,
p.
120.
4
Lieder
des
Rigveda,
p.
133
(X,
129).
5
Atharvaveda,
X,
7,
5,
6.
Literalmente,
"pilar",
mas
tomado
aqui
no
sentido
místico
de
"fundamento
do
ser".
6
X.
7,
37.
7
Piaget,
Jean,
Le
langage
et
la
pensée
chez
Venfani,
Neuchâtel-Paris,
1930.
V.
Les
questions
d'un
enfant.
8
M.
Winternitz,
Geschichte
der
indischen
Literatur,
I,
Leipzig,
1908,
p.
160.
9
N.
Adriani
e
A.
C.
Kruyt,
De
baree-sprekende
Toradia's
van
Midden--
Celebes,
II,
Batávia,
1914,
p.
317.
10
N.
Adriani,
De
naan
der
giersl
in
Midden-Celebes,
Tijdschrift
van
het
Bataviaascli
Genootschap,
XLI,
1909,
p.
370.
11
Stumpfl,
Kultspiele
der
Germanen,
p.
31.
12
Como
ainda
parecia
pensar
H.
Holdenburg
em
seu
Die
Weltanschauung
des
Brahmantexte,
Gôttingen,
1919,
pp.
166,
182,
13
Satapatha-Brahmana,
XI,
6,
3,
3;
Brhadaranyaka-Vpanishad,
III,
1-9.
14
Estrabão
XIV,
642;
Hesiodo,
fragm.
160.
Cf.
Ohlert,
Ratsel
und
Ratseíspiele,
2,
p.
28.
15
U.
Wilcken,
Alexander
der
Grosse
und
die
indischen
Gymnosophisten,
Sitzungsberichen
der
preuss.
Akad.
d.
Wissensch.,
XXXIII,
1923,
p.
164.
As
lacunas
dos
manuscritos
que,
por
vezes,
tornam
difícil
acompanhar
a
narrativa,
em
minha
opinião,
nem
sempre
foram
preenchidas
de
maneira
convincente
pelo
editor.
16
XX,
nºs
133,
134.
17
111,
313.
18
C.
Bartholomae,
Die
Gatha's
des
Awesta,
Hal
e,
1879,
IX,
pp.
58-9
.
19
Ver
Isis.
IV,
2,
1921,
nº
II:
Harvard
History
Studies.
XXVII,
1924;
K.
Hampe.
Kaiser
Friedirich
II
als
Fragesteller,
Kultur-v.
Universelfes,
1927,
pp.
53-67.
20
Ver
a
nota
anterior.
21
C.
Prantl,
Geschichie
der
Logik
im
Abendlande,
I,
Leipzig,
1855,
p.
399.
22
Aristóteles,
Física,
IV,
3,
210
b,
22
e
ss.;
W.
Capelle,
De
Vorsokratiker:
Die
Fragmente
und
Quellenherichte,
Stuttgart,
1935,
p.
172.
23
Jaeger,
Paideia,
I,
pp.
243-4.
24
Capelle,
op.
cit.,
p.
216.
Estaria
Christian
Morgenstern
pensando
nisto
quando
escreveu
seu
poema
fantástico
"Ein
Knie
geht
einsam
durh
die
Welt"
("Um
joelho
vai
solitário
pelo
mundo")?
25
Capelle,
op.
cil.,
p.
102.
26
Paideia,
1,
p.
220.
27
Capelle,
op.
cit.,
p.
82.
28
Fragmentos,
nº
30;
et.
Capelle,
op.
cit.,
p.
200.
7.
O
Jogo
e
a
Poesia
Para
tratar
das
origens
da
filosofia
grega
e
suas
relações
com
a
competição
sagrada
nos
domínios
do
conhecimento
e
da
sabedoria,
temos
que
nos
colocar,
necessariamente,
na
imprecisa
linha
divisória
entre
a
expressão
religiosa
e
filosófica
e
a
expressão
poética.
Torna-se,
portanto,
conveniente
investigar
a
natureza
da
criação
poética.
De
certo
modo,
este
problema
toca
o
próprio
cerne
de
qualquer
discussão
das
relações
entre
o
jogo
e
a
cultura
porque,
enquanto
nas
formas
mais
complexas
da
vida
social
a
religião,
o
direito,
a
guerra
e
a
política
vão
gradualmente
perdendo
o
contato
com
o
jogo,
que
nas
fases
mais
antigas
se
revestia
da
maior
importância,
a
função
do
poeta
continua
situada
na
esfera
lúdica
em
que
nasceu.
E,
na
realidade,
a
poiesis
é
uma
função
lúdica.
Ela
se
exerce
no
interior
da
região
lúdica
do
espírito,
num
mundo
próprio
para
ela
criada
pelo
espírito,
no
qual
as
coisas
possuem
uma
fisionomia
inteiramente
diferente
da
que
apresentam
na
"vida
comum",
e
estão
ligadas
por
relações
diferentes
das
da
lógica
e
da
causalidade.
Se
a
seriedade
só
pudesse
ser
concebida
nos
termos
da
vida
real,
a
poesia
jamais
poderia
elevar-se
ao
nível
da
seriedade.
Ela
está
para
além
da
seriedade,
naquele
plano
mais
primitivo
e
originário
a
que
pertencem
a
criança,
o
animal,
o
selvagem
e
o
visionário,
na
região
do
sonho,
do
encantamento,
do
êxtase,
do
riso.
Para
compreender
a
poesia
precisamos
ser
capazes
de
envergar
a
alma
da
criança
como
se
fosse
uma
capa
mágica,
e
admitir
a
superioridade
da
sabedoria
infantil
sobre
a
do
adulto.
Não
houve
ninguém
que
soubesse
captar,
ou
exprimir
mais
claramente
a
natureza
primordial
da
poesia
e
suas
relações
com
o
jogo
do
que
Giambatista
Vico,
há
mais
de
dois
séculos1.
Poesis
doctrinae
tanquam
somnium
—
a
poesia
é
como
um
sonho
de
amor
filosófico2
segundo
a
profunda
definição
de
Francis
Bacon.
As
fantasias
míticas
dos
selvagens,
esses
filhos
da
natureza,
a
respeito
da
origem
da
existência
encerram
muitas
vezes
as
sementes
de
uma
sabedoria
que
virá
depois
a
ser
expressa
pelas
formas
lógicas
de
uma
época
mais
tardia.
A
filologia
e
a
religião
comparada
estão
penosamente
procurando
penetrar
cada
vez
mais
profundamente
nas
origens
míticas
da
crença
religiosa3.
A
civilização
da
antiguidade
começa
agora
a
ser
compreendida
de
uma
maneira
nova,
à
luz
dessa
unidade
fundamental
entre
a
poesia,
as
doutrinas
esotéricas,
a
sabedoria
e
o
ritual.
A
primeira
coisa
que
é
preciso
fazer
para
ter
acesso
a
essa
compreensão
é
rejeitar
a
ideia
de
que
a
poesia
possui
apenas
uma
função
estética
ou
só
pode
ser
explicada
através
da
estética.
Em
qualquer
civilização
viva
e
florescente,
sobretudo
nas
culturas
arcaicas,
a
poesia
desempenha
uma
função
vital
que
é
social
e
litúrgica
ao
mesmo
tempo.
Toda
a
poesia
da
antiguidade
é
simultaneamente
ritual,
divertimento,
arte,
invenção
de
enigmas,
doutrina,
persuasão,
feitiçaria,
adivinhação,
profecia
e
competição.
Praticamente,
todos
os
motivos
característicos
da
poesia
e
do
ritual
arcaicos
encontram-se
no
terceiro
Canto
da
epopeia
popular
finlandesa
Kalevala.
O
velho
e
sábio
Väinämöinen
encanta
o
jovem
presunçoso
que
se
atreve
a
desafiá-lo
para
uma
competição
de
feitiçaria.
A
primeira
competição
é
sobre
o
conhecimento
das
coisas
naturais,
a
segunda
sobre
o
conhecimento
esotérico
relativo
às
origens.
Neste
momento,
o
jovem
Joukahainen
pretende
que
parte
da
criação
se
deve
a
ele
mesmo;
ao
que
o
velho
feiticeiro
canta-o
para
dentro
da
terra,
para
dentro
do
pântano,
para
dentro
da
água,
e
a
água
sobe-lhe
até
à
cintura, até
as
axilas,
depois
até
à
boca,
até
que
finalmente
o
jovem
lhe
promete
sua
irmã
Aino.
Só
então
Väinämöinen,
sentado
na
"pedra
da
canção",
canta
durante
mais
três
horas
para
desfazer
sua
poderosa
mágica
e
libertar
o
ousado
desafiante.
Nesta
façanha
encontram-se
unidas
todas
as
formas
de
competição
a
que
anteriormente
nos
referimos:
concurso
de
insultos,
de
jactância,
a
"comparação
dos
homens",
a
competição
em
conhecimento
cosmogônico,
a
competição
pela
noiva,
o
teste
de
resistência,
o
ordálio
—
num
jacto
ao
mesmo
tempo
selvagem
e
sóbrio
de
imaginação
poética.
A
verdadeira
designação
do
poeta
arcaico
é
Vates,
o
possesso,
inspirado
por
Deus,
em
transe.
Estas
qualificações
implicam
ao
mesmo
tempo
que
ele
possui
um
conhecimento
extraordinário.
Ele
é
um
sábio,
sha’ir,
como
lhe
chamavam
os
árabes.
Na
mitologia
dos
Eddas
o
hidromel
que
é
preciso
beber
para
se
transformar
em
poeta
é
preparado
com
o
sangue
de
Kvasir,
a
mais
sábia
de
todas
as
criaturas,
que
nunca
foi
interrogada
em
vão.
O poeta-
vidente
vai
gradualmente
assumindo
as
figuras
do
profeta,
do
sacerdote,
do
adivinho,
do
mistagogo
e
do
poeta
tal
como
o
conhecemos;
e
também
o
filósofo,
o
legislador,
o
orador,
o
demagogo,
o
sofista
e
o
mestre
de
retórica
brotam
desse
tipo
compósito
primordial
que
é
o
Vates.
Todos
os
poetas
gregos
arcaicos
revelam
vestígios
de
seu
progenitor
comum.
Sua
função
é
eminentemente
social;
falam
como
educadores
e
guias
do
povo.
São
os
líderes
da
nação,
cujo
lugar
foi
mais
tarde
usurpado
pelos
sofistas4.
A
figura
do
antigo
vates
aparece
sob
muitos
de
seus
aspectos
no
thulr
da
velha
literatura
nórdica,
que
corresponde
ao
thyle
anglo-saxão.
A
moderna
filologia
alemã
traduz
essa
palavra
por
Kultredner,
que
significa
"orador
do
culto5.
O
exemplo
mais
típico
do
thulr
é
o
starkaar,
que
Saxo
Grammaticus
corretamente
traduz
por
vates.
O
thulr
aparece,
às
vezes,
como
orador
das
fórmulas
litúrgicas,
em
outras,
como
ator
de
um
drama
sagrado;
em
certas
ocasiões,
como
sacerdote
dos
sacrifícios,
e
até
como
feiticeiro.
Em
outros
casos,
parece
não
passar
de
um
poeta
e
orador
de
corte,
tendo
simplesmente
a
função
do
scurra
—
bobo
ou
jogral.
O
verbo
correspondente,
thylja,
designa
a
recitação
de
textos
religiosos,
a
prática
da
feitiçaria,
ou
simplesmente
resmungar.
O
thulr
é
o
repositório
de
todo
o
conhecimento
mitológico
e
folclore
poético.
Ele
é
o
velho
sábio
que
conhece
toda
a
história
e
tradição
de
um
povo,
que
nas
festas
desempenha
o
papel
de
orador
e
é
capaz
de
recitar
de
cor
a
genealogia
dos
heróis
e
dos
nobres.
Sua
função
específica
é
a
peroração
competitiva
e
o
concurso
de
sabedoria.
É
sob
esta
forma
que
o
encontramos
como
Unferd,
no
Beowulf.
O
mannjafnadr,
a
que
antes
nos
referimos
e
os
concursos
de
sabedoria
entre
Odin
e
os
gigantes
ou
anões
são
abrangidos
pelo
thulr.
Os
conhecidos
poemas
anglo-saxões
Widsid
e
O
vagabundo
parecem
ser
típicos
produtos
do
versátil
poeta
da
corte.
Todas
as
características
acima
referidas
entram
muito
naturalmente
em
nossa
descrição
do
poeta
arcaico,
cuja
função
foi
em
todas
as
épocas
ao
mesmo
tempo
sagrada
literária.
Mas,
fosse
sagrada
ou
profana,
sua
função
sempre
se
encontra
enraizada
numa
forma
lúdica.
Podemos
seguir
o
itinerário
do
vates
primitivo
para
além
do
thulr
da
antiguidade
germânica
e
encontrá-lo,
sem
forçarmos
demasiado
a
imaginação,
no
jongleur
do
ocidente
feudal
(joculator),
por
um
lado,
e
por
outro,
em
seus
companheiros
de
nível
inferior,
os
arautos.
Estes
últimos,
aos
quais
nos
referimos
de
passagem
a
propósito
do
concurso
de
insultos6,
apresentam
numerosos
pontos
de
contato
com
o
antigo
"orador
do
culto".
Eles
também
eram
quem
registrava
a
história,
a
tradição
e
a
genealogia,
eram
os
oradores
e
pregoeiros
nas
festas
públicas
e,
acima
de
tudo,
eram
os
desafiadores
oficiais.
Em
sua
função
original
de
fator
das
culturas
primitivas,
a
poesia
nasceu
durante
o
jogo
e
enquanto
jogo
—
jogo
sagrado,
sem
dúvida,
mas
sempre,
mesmo
em
seu
caráter
sacro,
nos
limites
da
extravagância,
da
alegria
e
do
divertimento.
Até
aqui
não
se
trata
da
satisfação
de
qualquer
espécie
de
impulso
estético.
Este
se
encontra
ainda
adormecido
na
experiência
do
ato
ritual
enquanto
tal,
do
qual
a
poesia
surgiu
,
sob
a
forma
de
hinos
e
odes
criados
num
frenesi
de
êxtase
ritualístico.
Mas
não
apenas
sob
esta
forma;
porque
a
faculdade
poética
floresce
também
nas
diversões
sociais
e
na
intensa
rivalidade
entre
clãs,
famílias
e
tribos.
Nada
contribui
mais
para
fertilizá-la
do
que
a
celebração
da
passagem
das
estações,
especialmente
a
chegada
da
primavera,
quando
os
jovens
de
ambos
os
sexos
se
encontram
dentro
da
maior
alegria
e
liberdade.
Esta
forma
de
poesia
—
como
produto
do
imemorial
jogo
de
atração
e
repulsão,
jogado
pelos
jovens
de
ambos
os
sexos
dentro
de
um
espírito
de
competição
divertida
—
é
tão
fundamental
como
a
poesia
nascida
do
cerimonial.
O
professor
de
Josselin
de
Jong,
da
Universidade
de
Leyden,
reuniu
uma
rica
coleção
de
exemplos
dessa
poesia
social-agonística,
ainda
desempenhando
sua
função
própria
de
jogo
cultural,
e
de
caráter
extremamente
requintado,
em
seu
trabalho
de
campo
nas
ilhas
de
Buru
e
Babar,
no
arquipélago
das
índias
Orientais.
Devo
aqui
agradecer
ao
autor
a
extrema
gentileza
de
permitir-me
utilizar
um
certo
número
de
exemplos
de
uma
obra
ainda
inédita7.
Os
habitantes
da
Buru
central,
também
chamada
Rana,
praticam
uma
forma
de
antífona
cerimonial
conhecida
pelo
nome
de
Inga
fuka.
Os
homens
e
as
mulheres
sentam-se
uns
em
frente
dos
outros
e
cantam
pequenas
canções,
algumas
delas
improvisadas,
acompanhados
por
um
tambor.
As
canções
são
sempre
de
troça
ou
de
desafio.
São
conhecidas
nada
menos
de
cinco
espécies
diferentes
de
Inga
fuka.
As
canções
assumem
sempre
a
forma
da
estrofe
e
da
antiestrofe,
do
ataque
e
da
réplica,
da
pergunta
e
da
resposta,
do
desafio
e
da
desforra.
Por
vezes,
assemelham-se
a
enigmas.
O
Inga
fuka
mais
típico
chama-se
'Inga
fuka
de
preceder
e
seguir";
cada
estrofe
começa
pelas
palavras
"perseguir"
ou
"seguir
uns
aos
outros",
como
em
certos
jogos
infantis.
O
elemento
poético
formal
é
constituído
pela
assonância
que,
repetindo
a
mesma
palavra
ou
uma
variação
dela,
estabelece
uma
ligação
entre
a
tese
e
a
antítese.
O
elemento
puramente
poético
é
constituído
por
uma
alusão,
por
uma
ideia
brilhante
surgida
bruscamente,
o
jogo
de
palavras
ou
simplesmente
o
som
das
próprias
palavras,
sendo
que
neste
processo
o
sentido
pode
perder-se
completamente.
Esta
forma
de
poesia
só
pode
ser
descrita
e
compreendida
em
termos
de
jogo,
embora
obedeça
a
um
complexo
sistema
de
regras
prosódicas.
Quanto
ao
conteúdo,
as
canções
são
sobretudo
de
inspiração
amorosa,
ou
pequenas
homilias
sobre
a
prudência
e
as
virtudes,
ou
ainda
de
caráter
satírico.
Embora
exista
todo
um
repertório
de
Inga
fukas
tradicionais,
a
essência
do
gênero
é
a
improvisação.
Também
acontece
que
os
versos
já
existentes
sejam
aperfeiçoados
por
adições
e
correções.
O
virtuosismo
é
grandemente
considerado,
não
faltando
a
habilidade
artística.
Quanto
ao
sentimento
e
ao
tom,
as
traduções
fazem
lembrar
o
pantun
malaio,
o
qual
deve
ter
exercido
uma
certa
influência
na
literatura
de
Buru,
e
também
o
muito
mais
remoto
hai-kai
japonês.
Além
do
Inga
fuka,
existem
em
Rana
outras
formas
de
poesia,
todas
elas
baseadas
nos
mesmos
princípios
formais,
mas
consistindo,
por
exemplo,
em
longas
altercações
entre
as
famílias
da
noiva
e
do
noivo,
durante
a
troca
cerimonial
de
presentes
que
se
realiza
por
ocasião
do
casamento.
De
Josselin
de
Jong
descobriu
um
tipo
de
poesia
completamente
diferente
na
ilha
de
Wetan,
no
grupo
Babar
de
ilhas
do
oriente
sul.
Neste
caso,
o
que
conta
é
só
a
improvisação.
Os
habitantes
de
Babar
cantam
muito
mais
do
que
os
de
Buru,
tanto
em
grupo
quanto
sozinhos,
durante
o
trabalho.
Empoleirados
no
cimo
dos coqueiros,
colhendo
o
óleo
de
palma,
os
homens
cantam
canções
tristes,
ou
então
canções
troçando
de
seus
companheiros
das
árvores
próximas.
Às
vezes,
este
último
tipo
de
canção
conduz
a
duelos
cantados
extremamente
agrestes,
que
em
tempos
mais
antigos
podiam
mesmo
levar
à
violência
e
ao
derramamento
de
sangue.
Todas
as
canções
são
constituídas
por
dois
versos,
respectivamente
chamados
"tronco"
e
"cimo"
ou
"coroa",
mas
já
não
está
presente
o
esquema
pergunta-resposta.
Uma
diferença
característica
entre
a
poesia
de
Babar
e
a
de
Buru
é
que
na
primeira
o
efeito
é
atingido
mais
por
uma
variação
lúdica
da
melodia
do
que
pelo
jogo
com
o
significado
ou
a
sonoridade
das
palavras.
O
pantun
malaio
acima
referido
é
uma
quadra
de
rima
cruzada,
com
os
dois
primeiros
versos
evocando
uma
imagem
ou
expondo
um
fato,
ao
qual
os
dois
últimos
respondem
com
uma
alusão
sutil
e
por
vezes
extremamente
remota.
O
conjunto
é
muito
semelhante
a
um
jeu
d'esprit8'.
Até
ao
século
XVI,
pantun
queria
dizer
primeiramente
parábola
ou
provérbio,
e
só
em
segundo
lugar
significava
quadra.
O
verso
final
chama-se
em
javanês
djawab,
palavra
árabe
que
significa
resposta
ou
solução.
É
evidente
que
o
pantun
começou
por
ser
um
jogo
de
perguntas
e
respostas,
antes
de
se
tornar
uma
forma
poética
determinada.
A
solução
propriamente
dita
passou
a
ser
substituída
pela
alusão
por
assonância
rimada9.
É
certamente
aparentada
com
o
pantun
a
forma
japonesa
de
poesia
vulgarmente
conhecida
como
hai-kai,
pequeno
poema
de
apenas
três
versos,
com
cinco,
sete
e
cinco
sílabas
sucessivamente,
que
evoca
uma
delicada
impressão
do
mundo
das
plantas
ou
dos
animais,
da
natureza
ou
do
homem,
às
vezes
com
um
toque
de
lirismo
melancólico
ou
de
nostalgia,
outras,
com
um
rasgo
de
ligeiro
humor.
Basta
dar
aqui
dois
exemplos:
Quantas
coisas
Em
meu
coração!
Deixa-as
flutuar
No
fremir
do
salgueiro!
Ao
sol,
secam
quimonos.
Oh,
as
pequenas
mangas
Da
criança
morta!
O
hai-kai
foi
certamente,
em
sua
origem,
um
jogo
de
rimas
em
cadeia,
iniciado
por
um
jogador
e
continuado
pelo
seguinte10.
Um
exemplo
característico
da
fusão
entre
o
jogo
e
a
poesia
é
ainda
hoje
conservado
no
método
tradicional
de
recitação
do
Kalevala
finlandês.
Lõnroth,
que
coligiu
as
canções,
encontrou
ainda
em
vigor
o
curioso
costume
de
dois
cantores
se
sentarem
num
banco
um
em
frente
do
outro,
segurando
as
mãos
um
do
outro
e
balançando-se
para
a
frente
e
para
trás
ao
mesmo
tempo
que
vão
competindo
em
conhecimentos
das
estâncias.
Ás
sagas
islandesas
descrevem
uma
forma
semelhante
de
recitação11.
Em
toda
a
parte,
e
sob
a
maior
variedade
de
formas,
encontram-se
exemplos
de
poesia
como
jogo
social,
com
pouco
ou
nenhum
significado
estético.
O
elemento
agonístico
raras
vezes
está
ausente.
Encontra-se
diretamente
presente
na
antífona,
no
poema
competitivo
e
no
concurso
de
canto,
e
está
implícito
na
versificação
de
improviso
com
o
fim
de,
por
exemplo,
quebrar
um
feitiço.
Este
último
motivo
tem
evidentes
afinidades
com
o
enigma
"fatal"
da
Esfinge.
Todas
estas
formas
tiveram
um
grande
desenvolvimento
no
extremo
oriente.
Em
sua
lúcida
interpretação
e
reconstituição
dos
textos
da
China
antiga,
Marcel
Granet
oferece-nos
um
quadro
de
todo
o
sistema
de
competições
poéticas
entre
rapazes
e
moças
que
floresceu
na
época
pastoril.
No
Anam
foi
descoberto
um
sistema
semelhante
ainda
vigente,
o
qual
foi
descrito
com
grande
exatidão
pelo
erudito
anamita
Nguyen
van
Huyen12.
Aqui,
o
"argumento"
poético,
que
pouco
encobre
o
namoro
declarado,
possui
frequentemente
um
caráter
altamente
sofisticado,
baseado
numa
série
de
provérbios
que,
aparecendo
no
final
de
cada
estância,
servem
como
testemunhos
irrefutáveis
da
causa
do
amante.
Encontra-se
uma
forma
idêntica
nos
débats
da
França
do
século
XV.
Portanto,
a
poesia
e
os
concursos
de
canto
como
jogos
sociais
vão
desde
os
ternos
lamentos
de
amor
da
China
e
do
Anam
da
antiguidade
até
os
rudes
e
violentos
concursos
de
jactância
e
de
insultos
da
Arábia
pré-islâmica
e
os
caluniosos
concursos
de
tambor
que
substituem
o
julgamento
em
tribunal
entre
os
esquimós.
É
evidente
que
o
Cours
d'amour
do
Languedoc
do
século
XII
deve
também
ser
incluído
de
alguma
maneira
nesta
categoria.
Segundo
uma
hipótese
há
muito
tempo
desmentida,
a
poesia
dos
trovadores
teve
origem
nas
cortes
amorosas
da
nobreza
provençal.
Depois
da
rejeição
desta
hipótese,
continuou
sendo
uma
questão
controvertida
em
filologia
saber
se
essas
cortes
amorosas
realmente
existiram
ou
foram
simplesmente
uma
ficção
literária.
Não
há
dúvida
que
foram
longe
demais
os
eruditos
que
tenderam
para
esta
última
hipótese.
Está
bastante
de
acordo
com
os
costumes
do
Languedoc
do
século
XII
que
as
cortes
amorosas
tenham
sido
um
jogo
de
justiça
poético
possuidor,
todavia,
de
uma
certa
validade
prática.
Em
todos
estes
domínios,
trata-se
sempre
da
esfera
da
dissertação
casuística
e
polêmica
sobre
questões
de
amor,
tratada
de
forma
lúdica.
Conforme
vimos,
os
concursos
de
tambor
dos
esquimós
eram
geralmente
provocados
pelas
intrigas
das
mulheres.
Em
ambos
os
casos,
o
tema
são
os
dilemas
do
amor,
e
a
finalidade
da
"corte"
ou
competição
é
manter
o
código
de
honra
vigente,
defendendo
as
reputações
de
queixosos
e
acusados.
Nas
cortes
de
amor,
o
habitual
era
a
imitação
mais
aproximada
possível
dos
julgamentos
verdadeiros,
com
demonstrações
por
analogia,
o
recurso
a
precedentes
etc.
Muitos
dos
gêneros
que
se
encontram
na
poesia
dos
trovadores
se
relacionam
estreitamente
com
as
queixas
de
amor,
como
por
exemplo
o
castiamen
(reprimenda13),
a
tenzone
(disputa),
o
partimen
(canção
antifonal),
o
joc
partit
(jogo
de
perguntas
e
respostas)14.
O
fundamento
último
de
todos
estes
gêneros
não
é
o
julgamento
propriamente
dito,
nem
um
impulso
poético
espontâneo,
nem
sequer
a
pura
e
simples
diversão
social,
mas
sim
a
luta
imemorial
pela
honra
em
questões
de
amor.
Todavia
há
outras
formas
de
poesia,
especialmente
no
Extremo
Oriente,
que
devem
ser
consideradas
atividades
culturais
realizadas
dentro
de
um
espírito
agonístico.
Como
por
exemplo
quando
se
impõe
a
alguém
a
tarefa
de
improvisar
um
poema
a
fim
de
quebrar
um
"feitiço"
ou
sair
de
uma
situação
difícil.
O
que
importa
aqui
não
é
que
esse
costume
tenha
ou
não
chegado
a
possuir
alguma
importância
prática
para
a
vida
quotidiana,
e
sim
que
o
espírito
humano
tenha
inúmeras
vezes
visto
neste
motivo
lúdico,
que
é
aparentado
tanto
ao
enigma
"fatal" quanto
à
aposta,
uma
maneira
de
exprimir,
e
talvez
de
resolver,
os
intrincados
problemas
da
vida,
e
que
a
arte
poética,
sem
visar
diretamente
a
um
efeito
estético,
tenha
encontrado
neste
jogo
o
mais
fértil
solo
para
seu
desenvolvimento.
Citemos
alguns
exemplos
tirados
da
obra
de
Nguyen
van
Huyen:
Os
alunos
de
um
certo
Dr.
Tan
precisavam
sempre
passar,
em
seu
caminho
para
a
escola,
pela
casa
de
uma
moça
que
morava
ao
lado
do
professor.
Quando
passavam
diziam
sempre:
"És
adorável,
és
realmente
um
amor!"
Isto
enfurecia
a
moça,
a
qual
um
dia
esperou
por
eles
e
lhes
disse:
"Bem,
se
vocês
me
amam,
vou
dar
a
vocês
uma
frase.
Se
algum
de
vocês
for
capaz
de
responder-me
a
frase
correspondente
dar-lhe-ei
meu
amor,
caso
contrário
vocês
se
comprometem
a
dar
sempre
a
volta
para
evitar
passar
diante
de
minha
porta."
Ela
recitou
a
frase,
e
nenhum
dos
estudantes
foi
capaz
de
dar
a
resposta
certa,
de
modo
que
no
futuro
viram-se
obrigados
a
dar
sempre
uma
volta
à
roda
da
casa
do
professor15.
Trata-se
de
algo
semelhante
ao
svayamvara
épico,
ou
à
corte
feita
a
Brunilde,
que
aqui
temos
sob
a
forma
de
um
idílio
aldeão
de
estudantes
anamitas.
Khanh-du,
da
dinastia
Tran,
foi
demitido
de
seu
cargo
devido
a
uma
falta
grave,
e
tornou-se
vendedor
de
carvão
em
Chi
Linh.
Quando
uma
vez,
durante
uma
de
suas
campanhas,
o
Imperador
passou
por
essa
região,
encontrou
o
antigo
mandarim
e
ordenou-lhe
que
fizesse
um
poema
sobre
o
comércio
do
carvão.
Khanh-du
fez
imediatamente
o
poema,
ao
que
o
Imperador,
profundamente
comovido,
devolveu-lhe
seus
antigos
títulos16.
A
improvisação
de
versos
em
frases
paralelas
era
um
talento
sem
o
qual
ninguém
podia
facilmente
passar
no
Extremo
Oriente.
O
sucesso
de
uma
embaixada
anamita
em
Pequim
podia
por
vezes
depender
do
talento
do
embaixador
para
a
improvisação
em
verso.
Todos
os
membros
das
embaixadas
precisavam
ser
constantemente
preparados
para
toda
a
espécie
de
perguntas,
e
saber
as
respostas
para
as
mil
e
uma
charadas
e
enigmas
que
ao
Imperador
ou
a
seus
mandarins
apetecia
perguntar17.
Era
a
diplomacia
sob
forma
lúdica.
O
jogo
de
perguntas
e
respostas
em
forma
de
verso
pode
também
ter
uma
função
de
armazenamento
de
toda
uma
massa
de
conhecimentos
úteis.
Uma
moça
acaba
de
dizer
sim
a
seu
noivo,
e
ambos
pretendem
abrir
juntos
uma
loja.
O
noivo
pede-lhe
para
lhe
dizer
os
nomes
dos
medicamentos,
e
todo
o
tesouro
da
farmacopeia
se
segue
em
verso.
A
arte
da
aritmética,
o
conhecimento
das
diversas
mercadorias
e
o
uso
do
calendário
na
agricultura
também
podem
ser
transmitidos
de
forma
extremamente
sucinta
por
este
processo.
As
vezes,
os
namorados
interrogam-se
mutuamente,
sobre
questões
de
literatura.
Fizemos
notar
acima
que
todas
as
formas
de
catecismo
se
relacionam
diretamente
com
o
jogo
dos
enigmas.
O
mesmo
é
também
o
caso
do
exame,
que
sempre
desempenhou
um
papel
extraordinariamente
importante
na
vida
social
do
Extremo
Oriente.
Toda
civilização
só
muito
lentamente
vai
abandonando
a
forma
poética
como
principal
método
de
expressão
das
coisas
importantes
para
a
vida
da
comunidade
social.
A
poesia
sempre
antecede
a
prosa;
para
a
expressão
de
coisas
solenes
ou
sagradas,
a
poesia
é
o
único
veículo
adequado.
Não
são
apenas
os
hinos
e
os
provérbios
que
são
postos
em
verso,
são
também
extensos
tratados
com
por
exemplo
os
sutras
e
sastras
da
índia
antiga,
ou
os
primeiros
produtos
da
filosofia
grega.
Empédocles
encerra
todo
seu
saber
em
um
poema,
e
ainda
Lucrécio
continua
utilizando
a
mesma
forma.
Talvez,
em
parte,
a
preferência
pelos
versos
tenha
sido
determinada
por
considerações
utilitárias:
uma
sociedade
sem
livros
acha
mais
fácil
memorizar
seus
textos
desta
maneira.
Mas
existe
uma
razão
mais
profunda,
a
saber
que
a
própria
vida
da
sociedade
arcaica
possui
como
que
uma
estrutura
métrica
e
estrófica.
A
poesia
continua
ainda
hoje
sendo
o
modo
de
expressão
mais
natural
para
as
coisas
mais
"elevadas".
Até
1868,
os
japoneses
costumavam
escrever
em
forma
poética
as
partes
mais
importantes
dos
documentos
de
Estado.
Os
historiadores
do
direito
prestaram
uma
atenção
especial
aos
vestígios
de
poesia
no
direito,
pelo
menos
na
tradição
germânica.
Todo
estudante
das
leis
germânicas
conhece
o
antigo
texto
jurídico frisão
em
que
uma
cláusula
relativa
às
diversas
"necessidades"
ou
ocasiões
de
necessidade
nas
quais
é
preciso
vender
a
herança
de
um
órfão,
passa
de
repente
a
um
estilo
lírico
aliterativo:
"A
segunda
necessidade
é
quando
o
ano
se
torna
custoso
e
a
fome
ardente
invade
a
terra,
e
a
criança
vai
morrer
de
fome.
Pode,
então,
a
mãe
pôr
à
venda
o
patrimônio
da
criança,
comprando
para
ela
uma
vaca,
trigo
etc.
A
terceira
necessidade
é
quando
a
criança
está
nua
e
sem
teto,
e
vem
o
escuro
nevoeiro
e
o
frio
inverno,
e
cada
homem
se
abriga
em
seu
lar,
num
quente
refúgio,
e
o
animal
selvagem
procura
a
árvore
oca
e
o
refúgio
das
montanhas,
para
salvar
sua
vida.
Então
a
criança
menor
chorará
e
gritará,
e
lamentará
a
nudez
de
seus
membros
e
sua
falta
de
abrigo,
e
a
ausência
de
seu
pai,
que
deveria
tê-la
defendido
contra
a
fome
e
as
frias
névoas
do
inverno,
e
que
agora
jaz
numa
funda
e
escura
cova,
sob
o
carvalho
e
a
terra,
preso
por
quatro
pregos."
Creio
que
aqui
estamos
perante
algo
que
não
é
apenas
uma
ornamentação
deliberada,
mas
sobretudo
a
circunstância
de
a
formulação
da
lei
pertencer
ainda
àquela
exaltada
esfera
do
espírito
em
que
a
forma
poética
é
o
modo
natural
de
expressão.
Devido
precisamente
à
sua
brusca
entrada
na
poesia,
este
exemplo
frisão
é
típico
de
muitos
outros;
em
certo
sentido,
é
mais
típico
do
que
o
Tryggdamal
da
antiga
Islândia
que,
numa
série
de
estrofes
aliterantes,
narra
o
restabelecimento
da
paz,
comunica
o
pagamento
de
uma
indenização,
proíbe
energicamente
novas
lutas
e
nesse
momento,
o
propósito
da
declaração
de
que
os
"perturbadores
da
paz"
serão
em
toda
a
parte
considerados
fora
da
lei,
passa
a
ampliar
este
"em
toda
a
parte"
por
meio
de
uma
série
de
imagens
poéticas:
"Onde
quer
que
os
homens
cacem
lobos,
vão
à
igreja
os
cristãos,
no
recinto
sagrado
sacrifiquem
os
pagãos,
arda
o
fogo,
reverdesça
o
campo,
a
criança
chame
pela
mãe,
a
mãe
alimente
o
filho,
se
cuide
o
fogo
da
lareira,
naveguem
os
barcos,
cintilem
os
escudos,
brilhe
o
sol,
caia
a
neve,
cresçam
os
pinheiros,
voe
o
falcão
no
longo
dia
de
primavera
(vento
forte
em
ambas
as
asas),
onde
quer
que
o
céu
se
eleve,
se
construa
a
casa,
sopre
o
vento,
corram
para
o
mar
as
águas,
semeiem
o
trigo
os
servos"
Em
contraste
com
o
exemplo
anterior,
é
evidente
que
aqui
se
trata
de
um
embelezamento
puramente
literário
de
uma
cláusula
legal
bem
definida;
dificilmente
o
poema
poderia,
na
prática,
servir
como
documento
válido.
Apesar
disso,
também
ele
dá
testemunho
da
unidade
original
entre
a
poesia
e
a
jurisdição
sagrada,
que
é
o
que
aqui
nos
importa.
Toda
poesia
tem
origem
no
jogo:
o
jogo
sagrado
do
culto,
o
jogo
festivo
da
corte
amorosa,
o
jogo
marcial
da
competição,
o
jogo
combativo
da
emulação
da
troca
e
da
invectiva,
o
jogo
ligeiro
do
humor
e
da
prontidão.
Até
que
ponto
se
mantém
esta
qualidade
lúdica
da
poesia,
à
medida
que
a
civilização
se
vai
tornando
mais
complexa?
Procuremos
antes
de
mais
nada
investigar
a
tripla
relação
existente
entre
a
poesia,
o
mito
e
o
jogo.
Seja
qual
for
a
forma
sob
a
qual
chegue
até
nós,
o
mito
é
sempre
poesia.
Trabalhando
com
imagens
e
a
ajuda
da
imaginação,
o
mito
narra
uma
série
de
coisas
que
se
supõe
terem
sucedido
em
épocas
muito
recuadas.
Pode
revestir-se
do
mais
sagrado
e
profundo
significado.
Pode
ser
que
consiga
exprimir
relações
que
jamais
poderiam
ser
descritas
mediante
um
processo
racional.
Mas,
apesar
das
características
sagradas
e
místicas
que
lhe
são
próprias
na
fase
mitopoética
da
civilização,
isto
é,
apesar
da
absoluta
sinceridade
com
que
era
aceite,
continua
de
pé
o
problema
de
saber
se
alguma
vez
o
mito
chegou
a
ser
inteiramente
sério.
Creio
que
podemos
pelo
menos
afirmar
que
o
mito
é
sério
na
mesma
medida
em
que
a
poesia
também
o
é.
Tal
como
tudo
aquilo
que
transcende
os
limites
do
juízo
lógico
e
deliberativo,
tanto
o
mito
como
a
poesia
se
situam
dentro
da
esfera
lúdica.
Não
quer
isto
dizer
que
seja
uma
esfera inferior, pois
pode
muito
bem
suceder
que
o
mito,
sob
essa
forma
lúdica,
consiga
atingir
uma
penetração
muito
além
do
alcance
da
razão.
Corretamente
compreendido,
e
não
no
sentido
corrompido
que
a
propaganda
moderna
procurou
impor
à
palavra,
o
mito
é
o
veículo
adequado
para
as
ideias
do
homem
primitivo
acerca
do
universo.
No
que
diz
respeito
ao
mito,
não
está
ainda
rigidamente
traçada
a
linha
que
separa
aquilo
que
é
apenas
concebível
e
o
que
é
nitidamente
impossível.
Para
o
selvagem,
com
sua
extremamente
limitada
capacidade
de
coordenação
lógica,
praticamente
tudo
é
possível.
Apesar
de
seus
absurdos
e
enormidades,
de
seu
exagero
sem
limites
e
ausência
de
sentido
das
proporções,
suas
descuidadas
inconsistências
e
extravagantes
variações,
o
mito
de
modo
algum
lhe
parece
ser
uma
coisa
impossível.
Mas,
apesar
de
tudo
isso,
não
gostaríamos
de
deixar
de
perguntar
se
a
crença
do
selvagem
em
seus
mitos
mais
sagrados
não
estará,
mesmo
desde
o
início,
misturada
com
uma
certa
ponta
de
humor.
Tanto
o
mito
como
a
poesia
derivam
da
esfera
lúdica;
portanto,
é
pelo
menos
provável
que
a
crença
do
selvagem
assenta
em
parte,
nessa
mesma
esfera,
do
mesmo
modo
que
sua
vida
o
faz
inteiramente.
No
mito
vivo
não
existe
qualquer
distinção
entre
o
jogo
e
a
seriedade.
Só
quando
o
mito
se
torna
mitologia,
ou
seja,
literatura,
transmitida
como
uma
forma
tradicional
por
uma
cultura
que,
entretanto,
mais
ou
menos
se
separou
da
imaginação
primitiva,
poderá
então
ser
aplicada
ao
mito
a
distinção
entre
o
jogo
e
a
seriedade,
e
isto
em
seu
detrimento.
Há
uma
curiosa
fase
intermediária,
que
foi
conhecida
pelos
gregos,
em
que
o
mito
é
ainda
sagrado
e
consequentemente
deve
ser
sério,
mas
é
por
todos
considerado
como
expressão
de
uma
linguagem
do
passado.
Todos
nós
possuímos
familiaridade
com
as
figuras
da
mitologia
grega,
e
temos
tanta
predisposição
para
aceitá-las
em
nossa
consciência
poética,
que
normalmente
não
notamos
seu
caráter
absolutamente
bárbaro.
No
caso
da
mitologia
dos
Eddas,
talvez
tenhamos
uma
certa
noção
dessa
barbárie,
a
menos
que
Wagner
nos
tenha
tornado
inteiramente
imunes,
embotando
nossos
sentidos;
mas,
de
um
modo
geral,
é
verdade
que
só
uma
mitologia
que
não
impressione
diretamente
nossa
sensibilidade
estética
nos
pode
revelar
toda
a
plenitude
de
sua
selvajaria.
Isto
fica
bem
claro
no
caso
dos
antigos
mitos
hindus
e
das
loucas
fantasmagorias
que
os
etnólogos
nos
trazem
de
todas
as
partes
do
mundo.
Mas
para
um
olhar
destituído
de
preconceitos
as
figuras
da
mitologia
grega
e
germânica
são
tão
carentes
de
consistência
e
de
bom
gosto
(para
não
falar
na
ética)
como
as
desenfreadas
fantasias
dos
hindus,
dos
africanos
e
dos
aborígenes
americanos
ou
australianos.
Julgadas
segundo
nossos
padrões
(que
evidentemente
não
são
decisivos)
as
divindades
helênicas
e
édicas
não
são
de
menos
mau
gosto,
de
comportamento
desordenado
e
depravado,
e
não
há
muito
a
escolher
entre
Hermes,
Thor
e
qualquer
deus
da
África
Central.
É
impossível
duvidar
que
todas
as
figuras
mitológicas
transmitidas
pela
tradição
são
vestígios
de
uma
sociedade
bárbara,
hoje
incompatíveis
com
o
nível
espiritual
que,
entretanto,
foi
atingido.
Portanto,
no
momento
de
sua
redação
literária
os
mitos,
a
fim
de
poderem
ocupar
um
lugar
de
honra
na
tradição
religiosa,
precisam
sofrer
uma
interpretação
mística
pelas
mãos
dos
padres
ou
ser
cultivados
como
pura
literatura.
À
medida
em
que
diminui
a
crença
na
verdade
literal
do
mito,
o
elemento
lúdico,
que
desde
o
início
havia
sido
próprio
dele,
volta
a
afirmar-se
com
redobrada
força.
Já
desde
Homero
o
palco
da
crença
é
o
passado.
Apesar
disso,
o
mito,
após
haver
perdido
seu
valor
como
instrumento
adequado
da
compreensão
do
universo
pelo
homem,
continua
desempenhando
a
função
de
exprimir
o
divino
em
linguagem
poética,
o
que
é
alguma
coisa
mais
do
que
uma
função
estética,
pois
na
realidade
é
uma
função
litúrgica.
Quando
Platão
ou
Aristóteles
pretendem
fazer-nos
chegar
ao
âmago
de
sua
filosofia
e
exprimem-se
de
maneira
mais
vigorosa,
utilizam
a
forma
do
mito:
no
caso
de
Platão
é
o
mito
da
caverna,
no
de
Aristóteles,
o
mito
do
amor
que
todas
as
coisas
dedicam
ao
imóvel
motor
do
mundo.
O
tom
lúdico,
tão
característico
do
verdadeiro
mito,
aparece
sob
sua
forma
mais
nítida
nas
páginas
iniciais
dos
escritos
édicos
primitivos,
o Gylfaginning e
o Skaldskaparmal. Trata-se,
neste
caso,
de
um
material
mítico
que
passou
completamente
para
a
cena
literária
e
se
tornou
uma
literatura
que,
embora
oficialmente
repudiada
devido
a
seu
caráter
pagão,
continuava
sendo
admirada
como
parte
da
herança
cultural,
e
por
essa
mesma
razão
continuava
a
ser
lida18.
Os
homens
que
redigiram
esses
mitos
eram
cristãos,
eram
até
sacerdotes
cristãos.
Pelo
menos
a
meu
juízo,
verifica-se
uma
evidente
nota
de
troça
e
de
humor
em
sua
narração
desses
acontecimentos
místicos.
Não
se
trata
do
tom
do
cristão,
conscientemente
superior
ao
paganismo
que
sua
fé
suplantou
e,
consequentemente,
tendendo
a
troçar
um
pouco
desse
paganismo,
e
ainda
menos,
do
tom
do
convertido
execrando
o
passado
como
uma
época
de
diabólica
escuridão;
é
mais
o
da
meia
crença,
a
meio
caminho
entre
a
brincadeira
e
a
seriedade,
desde
sempre
inerente
ao
pensamento
mítico,
que
provavelmente
não
soaria
de
modo
diferente
nos
bons
tempos
do
paganismo.
A
aparente
incongruência
entre
temas
mitológicos
absurdos
(puras
e
simples
fantasias
loucas,
como
nas
estórias
de
Hrungnir,
Groa
e
Aurwandil)
e
uma
técnica
poética
extremamente
sofisticada
está
também
perfeitamente
de
acordo
com
a
natureza
do
próprio
mito,
que,
por
maior
que
seja
a
crueza
do
assunto,
sempre
e
em
toda
a
parte
procura
a
forma
de
expressão
mais
elevada
possível.
O
nome
do
primeiro
desses
escritos, Gylfaginning (isto
é,
Gylf
enganado)
já
por
si
só
está
cheio
de
significado.
Adota
a
velha
e
bem
conhecida
forma
do
discurso
cosmogônico
interrogativo, como
no
caso
da
disputa
de
Thor
com
os
Utgardaloki.
Muito
acertadamente
G.
Neckel
aplica-lhe
a
designação
de
"jogo"19.
O
interrogador,
Gangleri,
faz
as
velhas
perguntas
sagradas
relativas
à
origem
das
coisas,
do
vento,
do
verão
e
do
inverno etc. Regra
geral,
a
única
solução
que
as
respostas
apresentam
é
uma
bizarra
figura
mitológica.
Também
os
capítulos
iniciais
do Skaldskaparmalsão
inteiramente
abrangidos
pela
esfera
lúdica:
fantasias
pré-históricas
e
sem
estilo
a
respeito
de
gigantes
pérfidos,
estúpidos
e
cabeludos
e
de
anões
malévolos
e
astuciosos;
aventuras
grosseiras
e
ridículas,
fenômenos
miraculosos
que
no
final
são
explicados
por
uma
ilusão
dos
sentidos.
Não
há
dúvida
que
aqui
se
trata
de
mitologia
no
último
grau
de
decrepitude
—
caótica,
pretensiosa,
pretensamente
imaginosa.
Todavia,
seria
exagerado
considerar
estas
características
como
uma
degenerescência,
ocorrida
em
época
mais
tardia,
de
ideias
que
em
outros
tempos
haviam
sido
grandiosas
e
heroicas.
Pelo
contrário,
a
ausência
de
estilo
é
uma
das
características
próprias
do
mito.
Os
elementos
formais
da
poesia
são
numerosos
e
variados:
estruturas
métricas
e
estróficas,
rima,
ritmo,
assonância,
aliteração,
acentuação
etc.,
e
formas
como
o
lírico,
o
dramático
e
o
épico.
Por
mais
variados
que
possam
ser
estes
fatores,
mesmo
assim
eles
se
encontram
em
toda
a
parte
do
mundo.
O
mesmo
acontece
com
os
motivos
da
poesia
que,
por
mais
numerosos
que
possam
ser
em
qualquer
língua,
aparecem
em
toda
a
parte
e
em
todas
as
épocas.
Essas
estruturas,
formas
e
motivos
são-nos
de
tal
modo
familiares
que
não
nos
interrogamos
sobre
sua
existência
e
raras
vezes
pensamos
em
inquirir
qual
é
o
denominador
comum
que
os
leva
a
ser
como
são
e
não
de
outra
maneira.
Esse
denominador
comum
a
que
se
deve
a
surpreendente
uniformidade
e
limitação
dos
modos
de
expressão
poética
em
todas
as
épocas
da
sociedade
humana,
talvez
possa
ser
encontrado
no
fato
de
a
função
criadora
a
que
chamamos
poesia
ter
suas
raízes
numa
função
ainda
mais
primordial
do
que
a
própria
cultura,
a
saber,
o
jogo.
Enumeremos
uma
vez
mais
as
características
que
consideramos
próprias
do
jogo.
É
uma
atividade
que
se
processa
dentro
de
certos
limites
temporais
e
espaciais,
segundo
uma
determinada
ordem
e
um
dado
número
de
regras
livremente
aceitas,
e
fora
da
esfera
da
necessidade
ou
da
utilidade
material.
O
ambiente
em
que
ele
se
desenrola
é
de
arrebatamento
e
entusiasmo,
e
toma-se
sagrado
ou
festivo
de
acordo
com
a
circunstância.
A
ação
é
acompanhada
por
um
sentimento
de
exaltação
e
tensão,
e
seguida
por
um
estado
de
alegria
e
de
distensão.
Ora,
dificilmente
se
poderia
negar
que
estas
qualidades
também
são
próprias
da
criação
poética.
A
verdade
é
que
esta
definição
de
jogo
que
agora
demos
também
pode
servir
como
definição
da
poesia.
A
ordenação
rítmica
ou
simétrica
da
linguagem,
a
acentuação
eficaz
pela
rima
ou
pela
assonância,
o
disfarce
deliberado
do
sentido,
a
construção
sutil
e
artificial
das
frases,
tudo
isto
poderia
consistir-se
em
outras
tantas
manifestações
do
espírito
lúdico.
Não
é
de
modo
algum
uma
metáfora
chamar
à
poesia,
como
fez
Paul
Valéry,
um
jogo
com
as
palavras
e
a
linguagem:
é
a
pura
e
mais
exata
verdade.
Não
é
apenas
exterior
a
afinidade
existente
entre
a
poesia
e
o
jogo;
ela
também
se
manifesta
na
própria
estrutura
da
imaginação
criadora.
Na
elaboração
de
uma
frase
poética,
no
desenvolvimento
de
um
tema,
na
expressão
de
um
estado
de
espírito
há
sempre
a
intervenção
de
um
elemento
lúdico.
Seja
no
mito
ou
na
lírica,
no
drama
ou
na
epopeia,
nas
lendas
de
um
passado
remoto
ou
num
romance
moderno,
a
finalidade
do
escritor,
consciente
ou
inconsciente,
é
criar
uma
tensão
que
"encante"
o
leitor
e
o
mantenha
enfeitiçado.
Subjacente
a
toda
escritura
criadora
está
sempre
alguma
situação
humana
ou
emocional
suficientemente
intensa
para
transmitir
aos outros
essa
tensão.
Mas
o
problema
é
que
não
existe
um
grande
número
dessas
situações.
Em
termos
gerais,
pode-se
dizer
que
essas
situações
surgem
do
conflito
ou
do
amor,
ou
da
conjunção
de
ambos.
Ora,
tanto
o
conflito
quanto
o
amor
implicam
rivalidade
ou
competição,
e
competição
implica
jogo.
Na
grande
maioria
dos
casos,
o
tema
central
da
poesia
e
da
literatura
é
a
luta
—
isto
é,
a
tarefa
que
o
herói
precisa
cumprir,
as
provações
por
que
ele
tem
que
passar,
os
obstáculos
que
ele
precisa
transpor.
Já
é
suficientemente
esclarecedor
o
uso
da
palavra
"herói"
para
designar
o
personagem
principal.
A
tarefa
será
extraordinariamente
difícil,
aparentemente
impossível.
Em
geral,
ela
é
empreendida
em
consequência
de
um
desafio,
de
uma
promessa
ou
de
um
capricho
da
pessoa
amada.
Todos
estes
temas
nos
conduzem
de
volta
ao
jogo
agonístico.
Uma
outra
série
de
motivos
de
tensão
assenta
no
disfarce
da
identidade
do
herói.
Ele
se
apresenta
incógnito
quer
por
estar
deliberadamente
ocultando
sua
identidade,
ou
por
ele
próprio
a
desconhecer,
ou
ainda,
porque
é
capaz
de
mudar
sua
aparência
conforme
sua
vontade.
Em
outras
palavras,
ele
usa
uma
máscara,
aparece
sob
um
disfarce,
é
portador
de
um
segredo.
Uma
vez
mais
nos
encontramos
próximo
do
velho
jogo
sagrado
do
ser
oculto
que
se
revela
apenas
aos
iniciados.
Como
forma
de
competição
propriamente
dita,
a
poesia
arcaica
mal
pode
distinguir-se
da
antiga
competição
por
enigmas.
Uma
é
criadora
de
sabedoria,
a
outra
de
palavras
belas.
Ambas
são
dominadas
por
um
sistema
de
regras
de
jogo
que
determinam
o
leque
de
ideias
e
símbolos
a
ser
utilizados,
sagrados
ou
poéticos
conforme
for
o
caso;
ambas
pressupõem
um
círculo
de
iniciados
que
compreendem
a
linguagem
utilizada.
A
validade
de
qualquer
delas
depende
unicamente
do
fato
de
se
conformarem
com
as
regras
do
jogo.
Só
aquele
que
é
capaz
de
falar
a
linguagem
da
arte
recebe
o
título
de
poeta.
A
linguagem
artística
difere
da
linguagem
vulgar
pelo
uso
de
termos,
imagens,
figuras
especiais,
que
nem
todos
serão
capazes
de
compreender,
O
eterno
abismo
entre
o
ser
e
a
ideia
só
pode
ser
franqueado
pelo
arco-íris
da
imaginação.
Os
conceitos,
prisioneiros
das
palavras,
são
sempre
inadequados
em
relação
à
torrente
da
vida;
portanto,
é
apenas
a
palavra-imagem,
a
palavra
figurativa,
que
é
capaz
de
dar
expressão
às
coisas
e
ao
mesmo
tempo
banhá-las
com
a
luminosidade
das
ideias:
ideia
e
coisa
são
unidas
na
imagem.
Mas,
enquanto
a
linguagem
vulgar,
que
em
si
mesma
é
um
instrumento
prático
e
útil,
está
constantemente
gastando
as
imagens
contidas
pelas
palavras,
e
adquirindo
uma
existência
superficial
própria
(que
só
aparentemente
é
lógica),
a
poesia
continua
cultivando
as
qualidades
figurativas,
ou
seja,
portadoras
de
imagens,
da
linguagem,
de
maneira
deliberada.
O
que
a
linguagem
poética
faz
é
essencialmente
jogar
com
as
palavras.
Ordena-as
de
maneira
harmoniosa,
e
injeta
mistério
em
cada
uma
delas,
de
modo
tal
que
cada
imagem
passa
a
encerrar
a
solução
de
um
enigma.
Na
cultura
arcaica,
a
linguagem
dos
poetas
é
o
mais
eficaz
dos
meios
de
expressão,
desempenhando
uma
função
muito
mais
ampla
e
vital
do
que
a
mera
satisfação
das
aspirações
literárias.
Põe
o
ritual
em
palavras,
é
o
árbitro
das
relações
sociais,
o
veículo
da
sabedoria,
da
justiça
e
da
moral.
E
faz
tudo
isto
sem
prejudicar
seu
caráter
lúdico,
pois
o
próprio
quadro
da
cultura
primitiva
é
um
círculo
lúdico.
Nesta
fase,
as
atividades
culturais
realizam-se
sob
a
forma
de
jogos
sociais;
mesmo
as
mais
utilitárias
gravitam
cm
torno
de
um
ou
outro
dos
grupos
lúdicos.
Mas,
à
medida
que
a
civilização
vai
ganhando
maior
amplitude
espiritual,
as
regiões
nas
quais
o
fator
lúdico
é
fraco
ou
quase
imperceptível
desenvolvem-se
à
custa
daquelas
em
que
ele
tem
livre
curso.
O
conjunto
da
civilização
torna-se
mais
sério,
e
a
lei
e
a
guerra,
o
comércio,
a
técnica
e
a
ciência
perdem
o
contato
com
o
jogo;
mesmo
o
ritual,
que
primitivamente
era
seu
campo
de
expressão
por
excelência,
parece
participar
desse
processo
de
dissociação.
Por
fim,
resta
apenas
a
poesia,
como
cidadela
do
jogo
vivo
e
nobre.
O
caráter
lúdico
da
linguagem
poética
é
tão
evidente
que
quase
se
torna
desnecessário
ilustrá-lo
com
exemplos.
Dada
a
imensa
importância
atribuída
pelas
culturas
arcaicas
à
prática
da
poesia,
não
será
surpresa
para
nós
verificar
que
nessa
fase
sua
técnica
foi
levada
ao
mais
alto
grau
de
rigor
e
de
sofisticação.
Baseia-se
num
meticuloso
código
de
regras,
absolutamente
obrigatórias,
mas
que
permitem
uma
variação
quase
infinita.
O
sistema
é
conservado
e
transmitido
como
uma
nobre
ciência.
Não
é
por
acaso
que
é
possível
observar
este
requintado
culto
da
poesia
sob
formas
muito
semelhantes
em
povos
tão
afastados
no
tempo
e
no
espaço
que
pouco
ou
nenhum
contato
podem
ter
tido
com
as
civilizações
mais
ricas
e
mais
antigas
que,
se
não
fosse
isso,
poderiam
ter
influenciado
suas
literaturas.
Isto
acontece,
por
exemplo,
com
a
Arábia
pré-islâmica
e
com
a
Islândia
dos
Eddas
e
das
sagas.
Sem
levar
em
conta
pormenores
de
métrica
e
prosódia,
limitar-nos-emos
a
um
único
exemplo,
bem
próprio
para
ilustrar
a
relação
entre
a
poesia
e
o
jogo
como
linguagem
secreta,
a
saber,
o kenningar nórdico.
Quando
o
poeta
diz
"espinho
da
linguagem"
em
vez
de
língua,
"chão
do
antro
dos
ventos"
em
vez
de
terra,
"lobo
das
árvores"
em
vez
de
vento
etc.,
está
apresentando
a
seus
auditores
enigmas
poéticos
que
são
tacitamente
resolvidos.
O poeta
e
a
audiência
precisam
conhecer
centenas
deles.
As
coisas
importantes,
como
por
exemplo
o
ouro,
têm
nomes
poéticos
às
dúzias.
Um
dos
escritos
do
primeiro
Edda,
o Skaldskaparmal ou
"Fala
dos
Poetas",
oferece
uma
longa
lista
dessas
expressões
poéticas.
Uma
das
utilizações
importantes
do kenning é
como
teste
de
conhecimento
mitológico.
Cada
um
dos
deuses
possui
uma
multiplicidade
de
pseudônimos,
os
quais
encerram
uma
referência
indireta
a
suas
aventuras,
a
sua
forma
ou
a
seu
parentesco
cósmico.
"Como
se
pode
descrever
Heimdall?"
"Pode
ser
chamado
'Filho
de
Nove
Mães'
ou
'Guardião
dos
Deuses'
ou
'Asa
branco',
'Inimigo
de
Loki,
'Buscador
do
Colar
de
Freya',
e
muitas
outras
coisas20."
Nunca
se
perderam
inteiramente
as
íntimas
relações
entre
a
poesia
e
o
enigma.
Nos skalds islandeses
o
excesso
de
clareza
é
considerado
uma
falha
técnica.
Os
gregos
também
exigiam
que
a
palavra
do
poeta
fosse
obscura.
Entre
os
trovadores,
em
cuja
arte
a
função
lúdica
é
mais
patente
do
que
em
qualquer
outra,
são
atribuídos
méritos
especiais
ao trobardus —
o
que
à
letra
significa
"poesia
hermética".
As
escolas
líricas
modernas,
que
se
movem
e
residem
em
domínios
geralmente
inacessíveis
e
gostam
de
envolver
o
sentido
numa
palavra
enigmática,
permaneceram,
portanto,
fiéis
à
essência
de
sua
arte.
Com
seu
círculo
restrito
de
leitores,
que
compreendem
ou
pelo
menos
conhecem
sua
linguagem
especial,
elas
são
grupos
culturais
fechados
de
linhagem
muito
antiga.
Todavia,
não
é
certo
que
a
civilização
que
as
rodeia
seja
capaz
de
apreciar
suficientemente
seus
objetivos
para
formar
o
terreno
em
que
a
arte
possa
exercer
a
função
vital
que
é
sua
razão
de
ser.
Notas do capítulo 7
1
Erich
Auerbach,
Giambattista
Vico
und
die
Idee
der
Philologie,
Homenaje
a
Antoni
Rubió
i
Lluch,
Barcelona,
1936,
I,
p.
297
e
ss.
2
Tradução
livre
de
Huizinga.
(N.
do
T.)
3
Penso
aqui
em
estudos
como
os
de
W.
B.
Kristensen
e
de
K.
Kerényi
no
volume
Apoio
dos
Studien
über
antike
Religion
und
Humanitat,
Viena,
1937.
4
Jaeger,
Paideia,
pp.
65,
181,
206,
303.
5
W.
H.
Vogt,
Stilgeschichte
der
eddischen
Wissensdichtung,
I:
Der
Kultredner
(Schriften
der
Baltischen
Kommission
zu
Kiel,
IX,
I,
1927).
6
Ver
ante
p.
80.
7
Foi
publicada
uma
versão
preliminar
nos
Mededeelingen
der
K
Nederl.
Akad.
van
Weienschappen,
1935.
8
Em
francês
no
texto.
(N.
do
T.)
9
Cf.
Hosein
Djajadinigrat,
De
magische
achtergrond
van
den
Maleischen
pantoen,
Batávia,
1933;
J.
Przykuski,
Le
prologue-cadre
des
Mille
et
une
nuits
et
le
thème
du
Svayamvara,
Journal
asiatique,
CCV,
1924,
p.
126.
10
Haikai
de
Bashô
et
de
ses
disciples,
tradução
de
K.
Matsus
e
Steinil-ber-
Oberlin,
Paris.
1936.
11
Cf.
W.
H.
Vogt,
Der
Kultredner,
p.
166.
12
Ver
acima,
p.
64.
13
Cf.
castigo
em
português,
châtiment
em
francês.
(N.
T.)
14
Forma
etimológica
da
palavra
inglesa
jeopardy
(N.
do
T.)
15
Op.
cit..
p.
131.
16
Op.
cit.,
p.
132.
17
Op.
cit.,
p.
134.
18
De
Josselin
de
Jong.
op.
cit.,
refere
uma
situação
semelhante
na
religião
da
ilha
de
Buru.
19
Thule,
XX,
24.
20
A
hipótese
segundo
a
qual
o
kenningar
tem
seu
fundamento
original
na
poesia
não
exclui
necessariamente
sua
relação
com
os
fenômenos
do
tabu.
Ver
Alberta
A.
Portengen,
De
Oudgermaansche
dichtertaal
in
haar
etymolcfglsch
verband,
Leyden,
1915.
8.
A
Função
da
Forma
Poética
A
partir
do
momento
em
que
uma
metáfora
deriva
seu
efeito
da
descrição
das
coisas
ou
dos
acontecimentos
em
termos
de
vida
e
de
movimento,
fica
aberto
o
caminho
para
a
personificação.
A
representação
em
forma
humana
de
coisas
incorpóreas
ou
inanimadas
é
a
essência
de
toda
formação
mítica
e
de
quase
toda
a
poesia.
Mas
o
processo
não
segue
rigorosamente
o
curso
acima
indicado.
O
que
se
passa
não
é
primeiro
a
concepção
de
alguma
coisa
como
destituída
de
vida
e
de
corpo,
e
depois
sua
expressão
como
algo
que
possui
um
corpo,
partes
e
paixões.
Não:
a
coisa
percebida
é
antes
de
mais
nada
concebida
como
dotada
de
vida
e
de
movimento,
e
é
essa
sua
expressão
primária,
que
portanto
não
é
produto
de
uma
reflexão.
Neste
sentido,
a
personificação
surge
a
partir
do
momento
em
que
alguém
sente
a
necessidade
de
comunicar
aos
outros
suas
percepções.
Assim,
as
concepções
surgem
enquanto
atos
da
imaginação.
Haverá
razões
para
chamar
a
este
hábito
inato
do
espírito,
a
esta
tendência
para
criar
um
mundo
imaginário
de
seres
vivos
(ou
talvez
um
mundo
de
ideias
animadas),
um
jogo
do
espírito
ou
um
jogo
mental?
Tomemos
como
exemplo
uma
das
formas
mais
elementares
da
personificação,
as
especulações
míticas
a
respeito
da
origem
do
mundo
e
das
coisas,
nas
quais
a
criação
é
concebida
como
obra
de
alguns
deuses
a
partir
do
corpo
de
um
gigante
universal.
Encontramos
esta
concepção
no
Rig-Veda
c
no
primeiro
Edda.
Atualmente,
a
filologia
tende
a
considerar
os
textos
onde
se
encontra
esta
lenda
como
uma
redação
literária
ocorrida
em
época
relativamente
tardia.
O
décimo
hino
do
Rig-Veda
nos
oferece
uma
paráfrase
mística
de
uma
matéria
mítica
primordial,
paráfrase
feita
pelos
sacerdotes
sacrificadores,
que
a
interpretaram
em
termos
ritualísticos.
O
Ser
primordial,
Purusha
(isto
é,
o
homem)
serviu
de
matéria
para
o
universo1.
Todas
as
coisas
foram
formadas
a
partir
deste
corpo,
"os
animais
do
ar,
e
as
florestas
e
as
aldeias";
"a
lua
veio
de
seu
espírito;
o
sol,
de
seu
olho;
de
sua
boca
vieram
Indra
e
Agni;
de
seu
hálito,
o
vento;
de
seu
umbigo,
a
atmosfera;
de
sua
cabeça,
o
céu;
de
seus
pés,
a
terra;
e
de
seus
ouvidos,
os
quatro
quadrantes
do
horizonte;
assim
eles
(os
deuses2)
fizeram
os
mundos".
Queimaram
Purusha
como
oferenda.
O
hino
é
uma
mistura
de
antigas
fantasias
míticas
e
de
especulações
místicas
de
uma
fase
mais
tardia
da
cultura
religiosa.
Note-se
de
passagem
que
num
dos
versos,
o
décimo
primeiro,
surge
repentinamente
a
nossa
já
conhecida
interrogação:
"Quando
dividiram
eles
Purusha,
em
quantas
partes
o
dividiram
eles?
Como
foi
chamada
sua
boca,
e
seus
braços,
e
suas
coxas,
e
seus
pés?"
É
de
maneira
idêntica
que
Gangleri
pergunta
no
Snorra
Edda:
"Qual
foi
o
início?
Como
começou?
O
que
havia
antes?"
E,
numa
série
de
motivos
os
mais
diversos,
segue-se
uma
descrição
da
origem
do
mundo:
antes
de
mais
nada
o
gigante
primordial
Ymir
nasce
do
choque
entre
uma
corrente
de
ar
quente
e
uma
camada
de
gelo.
Os
deuses
matam-nos
e
com
sua
carne
fazem
a
terra,
com
seu
sangue
fazem
os
mares
e
os
lagos,
com
seus
ossos
as
montanhas,
com
seu
cabelo
as
árvores,
com
seu
crânio
a
atmosfera
etc.
Nada
disto
parece
ser
um
mito
vivo,
a
primeira
fase
de
sua
expressão.
Pelo
menos
no
caso
do
exemplo
tirado
do
Edda,
trata-se
de
um
material
tradicional
que
passou
do
nível
do
ritual
para
o
da
literatura,
e
foi
conservado
como
vestígio
venerável
de
uma
antiga
cultura,
para
edificação
das
gerações
vindouras.
Conforme
já
dissemos,
o
Gylfaginning,
onde
tudo
isto
se
verifica,
parece
em
toda
sua
estrutura,
em
seu
tom
e
nas
tendências
que
manifesta,
brincar
com
os
velhos
temas
mitológicos,
de
uma
maneira
que
dificilmente
pode
ser
considerada
séria.
Devemos,
portanto,
perguntar--nos
se
a
mentalidade
responsável
por
essas
personificações
não
se
encontra
desde
o
início
comprometida
com
um
certo
espírito
lúdico.
Por
outras
palavras,
recapitulando
o
que
já
dissemos
acerca
do
mito
em
geral,
parece-nos
haver
lugar
para
duvidar
se
de
fato
os
hindus
e
os
escandinavos
primitivos
alguma
vez
realmente
chegaram
a
acreditar,
com
toda
a
força
da
convicção,
em
ficções
como
essa
da
criação
do
mundo
a
partir
dos
membros
de
um
corpo
humano.
Seja
como
for,
é
impossível
provar
a
realidade
dessa
crença.
Podemos
pelo
menos
ir
até
ao
ponto
de
afirmar
que
é
extremamente
improvável.
Normalmente
temos
tendência
para
considerar
a
personificação
de
ideias
abstratas
como
um
produto
tardio
da
invenção
literária,
como
no
caso
da
alegoria,
um
recurso
estilístico
que
a
arte
e
a
literatura
de
todas
as
épocas
usaram
até
à
exaustão.
E
não
há
dúvida
que,
a
partir
do
momento
em
que
a
metáfora
poética
deixa
de
se
situar
no
plano
do
mito
autêntico
e
original,
deixando
de
fazer
parte
de
alguma
atividade
religiosa,
torna-se
problemático,
para
não
dizer
ilusório,
o
valor
de
crença
da
personificação
que
encerra.
A
personificação
passa,
então,
a
ser
usada
de
maneira
perfeitamente
consciente,
como
material
do
poema,
mesmo
quando
as
ideias,
que
contribui
para
formular,
continuam
sendo
consideradas
sagradas.
O
mesmo
se
pode
afirmar
dos
primeiros
casos
de
personificação
que
encontramos
em
Homero,
como
por
exemplo,
Atê,
a
Ilusão,
que
se
insinua
no
coração
dos
homens,
trazendo
consigo
as
Litai,
as
feias
c
obscuras
suplicações,
todas
filhas
de
Zeus.
As
incontáveis
personificações
que
se
encontram
em
Hesíodo
são
igualmente
amorfas,
artificiais
e
incaracterísticas.
A
Teogonia
oferece
toda
uma
série
de
abstrações
na
descrição
dos
filhos
da
funesta
Eris:
Trabalho,
Esquecimento,
Fome,
Dores,
Homicídios
e
Assassinatos,
Discórdias,
Dissimulação,
Inveja
etc.
Dois
dos
filhos
nascidos
de
Styx,
a
filha
do
Oceano,
e
do
titã
Pallas,
Kratos
e
Bia
(Força
e
Violência)
residem
sempre
na
morada
de
Zeus
e
o
acompanham
por
toda
a
parte3.
Serão
todas
estas
figuras
meramente
alegóricas,
pálidos
intangíveis
do
espírito?
Talvez
não.
Há
razões
para
crer
que
essa
personificação
de
determinadas
qualidades
é
mais
própria
dos
estratos
mais
antigos
da
formulação
religiosa,
numa
época
em
que
os
poderes
e
forças
de
que
o
homem
primitivo
se
sentia
rodeado
não
haviam
ainda
assumido
forma
humana.
Antes
de
o
espírito
conceber
os
deuses
de
maneira
antropomórfica,
ele
dá
às
coisas
que
o
oprimem
ou
entusiasmam,
tomado
pela
comoção
que
nele
provocam
as
misteriosas,
tremendas
e
ameaçadoras
forças
da
vida
e
da
natureza,
nomes
vagos
e
indefinidos,
os
quais
evocam
seres
mais
ou
menos
indistintos,
mais
do
que
a
clara
visão
de
figuras
humanas4.
É
deste
nível
pré-histórico
da
atividade
espiritual
que
parecem
ter
saído
essas
estranhas
figuras,
primitivas
mas
curiosamente
literárias,
com
as
quais
Empédocles
povoa
o
mundo
subterrâneo;
"esse
lugar
sem
alegria
onde
o
Crime
e
a
Ira,
e
legiões
de
outros
deuses
funestos
vagueiam
na
escuridão
dos
prados
da
tristeza,
juntamente
com
a
devoradora
Doença
e
Podridão
e
todas
as
obras
da
Decomposição"5.
Também
lá
se
encontravam
a
Terra-Mãe
e
a
donzela
do
Sol
de
olhar
penetrante,
a
sangrenta
Luta
e
a
Harmonia
de
olhar
grave,
a
dama
Bela
e
a
dama
Feia,
a
dama
Rápida
e
a
dama
Lenta,
a
adorável
Verdade
e
a
Sombra
de
negras
tranças6.
Os
romanos,
com
sua
consciência
religiosa
singularmente
arcaica,
conservaram
esta
faculdade
primitiva
da
personificação
(que
não
é
exclusivamente
antropomórfica)
no
costume
dos
chamados
indigitamenta,
rito
oficial
que
consistia
na
criação
de
novas
divindades,
nas
épocas
de
grande
agitação
popular,
com
o
fim
de
apaziguar
estes surtos
de
emoção
coletiva,
procurando
canalizá-los
para
estas
entidades
sagradas.
Era
um
brilhante
truque
psicológico
para
desfazer
as
tensões
sociais
mais
perigosas.
Assim
surgiram
divindades
como
Pallor
e
Pavor,
o
palor
e
o
medo,
ou
Aius
Locutius,
a
voz
que
tinha
prevenido
contra
o
perigo
dos
gauleses,
ou
Rediculus,
que
havia
obrigado
Aníbal
à
retirada,
ou
Domiduca,
a
que
conduz
em
paz
até
ao
lar.
Também
no
Antigo
Testamento
encontramos
exemplos
de
personificação
no
quarteto
da
Misericórdia,
da
Verdade,
da
Justiça
e
da
Paz
no
salmo
85,
onde
elas
se
encontram
e
se
beijam;
na
figura
da
Sabedoria
do
Livro
dos
provérbios,
nos
quatro
cavaleiros
do
Apocalipse
etc.
Marcel
Mauss
faz
referência
a
uma
deusa
da
Propriedade
entre
os
índios
Haida
da
Colômbia
Britânica,
espécie
de
divindade
da
sorte,
cuja
função
é
trazer
fortuna7.
Em
todos
estes
casos
é
lícito
perguntar
até
que
ponto
a
personificação
deriva
de,
ou
resulta
numa
atitude
de
fé.
Podemos
mesmo
ir
mais
longe:
não
será
toda
personificação,
do
princípio
ao
fim,
simplesmente
um
jogo
do
espírito?
Há
exemplos
de
épocas
mais
recentes
que
levam
a
esta
conclusão.
São
Francisco
de
Assis
reverencia
a
Pobreza,
sua
noiva,
num
êxtase
sagrado
e
no
mais
piedoso
fervor.
Mas
se
nos
perguntarmos
seriamente
se
São
Francisco
realmente
acreditava
num
ser
celeste
e
espiritual
chamado
Pobreza,
que
fosse
efetivamente
a
ideia
da
pobreza,
o
resultado
será
a
maior
indecisão.
Feita
assim
a
sangue
frio,
a
pergunta
é
demasiado
direta,
equivale
a
forçar
o
conteúdo
emocional
da
ideia.
A
atitude
de
São
Francisco
era
um
misto
de
crença
e
de
descrença.
A
Igreja
não
autorizava,
pelo
menos
de
maneira
explícita,
uma
crença
como
essa.
Certamente
sua
concepção
da
Pobreza
oscilava
entre
a
imaginação
poética
e
a
convicção
dogmática,
embora
tendendo
para
esta
última.
A
maneira
mais
sucinta
de
exprimir
este
estado
de
espírito
seria
dizer
que
São
Francisco
brincava
com
a
figura
da
pobreza.
Toda
a
vida
do
santo
está
cheia
de
puras
figuras
e
fatores
lúdicos,
que
constituem
um
de
seus
aspectos
mais
interessantes.
Coisa
semelhante
se
passava
com
Henrique
Suso,
o
místico
alemão
de
um
século
depois,
que
em
suas
suaves
fantasias
místicas
e
líricas
brincava
com
a
ideia
da
Sabedoria
eterna,
à
qual
considerava
sua
amada.
O
domínio
lúdico
dos
santos
e
dos
místicos
é
mais
amplo
do
que
o
do
pensamento
racional,
é
inacessível
à
especulação
submetida
a
conceitos
lógicos.
Há
sempre
um
ponto
de
encontro
entre
o
jogo
e
a
santidade.
O
mesmo
se
verifica
com
a
imaginação
poética
e
a
fé.
Já
desenvolvi
mais
amplamente
o
problema
do
valor
ideal
das
figuras
alegóricas
em
alguns
poetas,
visionários
e
teólogos
medievais,
em
meu
ensaio
sobre
as
relações
entre
poesia
e
teologia
em
Alain
de
Lille8.
Em
minha
opinião,
é
impossível
estabelecer
qualquer
espécie
de
distinção
rígida
entre
a
personificação
poética
na
alegoria
e
a
concepção
dos
seres
celestes,
ou
infernais,
na
teologia.
Seria
cometer
grave
injustiça
para
com
um
poeta-teólogo
como
Alain
de
Lille
descrever
todo
o
tesouro
poético
de
seu
Anticlaudianus
ou
De
Planctu
Naturae,
tão
rico
em
imagens,
simplesmente
como
um
"jogo"
literário.
Há
demasiada
profundidade
em
suas
imagens,
as
quais
são
absolutamente
inseparáveis
da
profundidade
de
seu
pensamento
filosófico
e
teológico.
Por
outro
lado,
ele
mantém
sempre
plena
consciência
do
caráter
imaginário
de
suas
concepções.
Mesmo
Hildegarde
de
Bingen
não
afirma
a
realidade
metafísica
das
Virtudes
que
vê
em
suas
visões,
e
chega
mesmo
a
prevenir-nos
contra
essa
ideia9.
A
relação
entre
as
imagens
vistas
e
as
próprias
virtudes,
diz
ela,
é
de
"significação":
designare,
praetendere,
declarare,
significare,
prae-figurare.
Apesar
disso,
na
visão
essas
imagens
movem-se
como
seres
vivos.
No
fundo,
na
visão
apresentada
como,
experiência
mística
também
não
há
uma
pretensão
de
realidade
absoluta10.
Tanto
em
Hildegarde
como
em
Alain
de
Lille,
a
imaginação
poética
oscila
constantemente
entre
a
convicção
e
a
fantasia,
entre
o
jogo
e
a
seriedade.
Sob
todas
as
formas,
das
mais
sagradas
às
mais
literárias,
desde
o
Purusha
védico
até
às
encantadoras
figurinhas
de
The
Rape
of
the
Lock,
a
personificação
é
ao
mesmo
tempo
uma
função
lúdica
e
um
hábito
espiritual
da
maior
importância.
Mesmo
na
civilização
moderna,
ela
de
maneira
nenhuma
se
tomou
um
mero
artifício
literário
escolhido
arbitrariamente.
É
um
hábito
do
qual
estamos
longe
de
nos
ter
libertado,
mesmo
na
vida
quotidiana.
Qual
de
nós
não
se
viu
várias
vezes
dirigindo-se
a
um
objeto
inanimado,
por
exemplo,
um
botão
de
colarinho
recalcitrante,
com
a
maior
seriedade,
atribuindo-lhe
uma
vontade
perversa,
censurando-o
e
injuriando-
o
por
sua
diabólica
teimosia?
Quem
faz
isso
utiliza
a
personificação
no
sentido
mais
rigoroso
da
palavra.
Contudo
não
é
habitual
as
pessoas
confessarem
sua
crença
no
botão
de
colarinho
como
uma
entidade
ou
uma
ideia.
O
que
acontece
é
simplesmente
cair-se
involuntariamente
na
atitude
lúdica.
Se
esta
tendência
inata
do
espírito
para
atribuir
uma
personalidade
aos
objetos
com
que
lidamos
na
vida
quotidiana
efetivamente
tem
suas
raízes
no
jogo,
estamos
nesse
caso
perante
um
problema
dos
mais
importantes,
que
aqui
só
muito
brevemente
pode
ser
tratado.
A
atitude
lúdica
já
estava
presente
antes
da
existência
da
cultura
ou
da
linguagem
humana,
portanto
o
terreno
no
qual
se
inscrevem
a
personificação
e
a
imaginação
também
já
estava
presente
desde
o
passado
mais
remoto.
Ora,
a
antropologia
e
a
religião
comparada
dizem-nos
que
a
personificação
dos
deuses
e
dos
espíritos
sob
uma
forma
animal
é
um
dos
elementos
mais
importantes
da
vida
religiosa
primitiva.
Na
base
de
todo
o
complexo
do
totemismo
está
a
imaginação
teriomórfica.
As
duas
metades
de
uma
tribo
não
se
chamam,
elas
efetivamente
são
cangurus
e
tartarugas.
Semelhante
maneira
de
pensar
está
encerrada
na
ideia
do
versipellis,
conhecida
no
mundo
inteiro
e
que
se
refere
ao
homem
que
é
capaz
de
mudar
de
pele,
assumindo
temporariamente
a
forma
de
um
animal,
como
por
exemplo
o
lobisomem.
Está
também
implícita
nas
numerosas
metamorfoses
de
Zeus
em
benefício
de
Leda,
Europa,
Semeie,
Danae
etc.,
e
nos
amálgamas
entre
homem
e
animal
do
panteão
egípcio.
Não
pode
restar
dúvida
que,
para
o
selvagem
e
também
para
o
homem
arcaico
do
Egito
e
da
Grécia,
esta
representação
do
homem
como
animal
era
perfeitamente
"séria",
do
mesmo
modo
que
a
criança
não
distingue
muito
claramente
entre
as
duas
espécies.
No
entanto,
o
selvagem,
quando
põe
sua
terrificante
máscara
e
aparece
como
um
animal,
mostra
que
afinal
de
contas
"sabe".
A
única
interpretação
com
a
qual
nós,
que
já
não
somos
completamente
selvagens,
podemos
recriar
este
estado
de
espírito
é
supor
que
a
esfera
lúdica,
tal
com
a
observamos
na
vida
da
criança,
abarca
toda
a
vida
do
selvagem,
desde
as
mais
sagradas
emoções
até
aos
divertimentos
mais
triviais
e
mais
infantis.
Seria
excessiva
ousadia
sugerir
que
a
melhor
maneira
de
entender
a
presença
do
fator
teriomorfo
no
ritual,
na
mitologia
e
na
religião
é
em
termos
de
atitude
lúdica?
Há
outro
problema,
ainda
mais
profundo,
também
derivado
de
nossa
discussão
da
personificação
e
da
alegoria,
e
era
o
que
tínhamos
em
mente
quando
acima
nos
referimos
a
"um
problema
dos
mais
importantes".
Poderemos
ter
certeza
de
que
a
filosofia
e
a
psicologia
atuais
abandonaram
inteiramente
o
modo
de
expressão
alegórico?
Muitas
vezes
penso
que
não,
e
que
isso
nunca
será
possível.
Em
sua
terminologia,
continua
insinuando-se
o
imemorial
pensamento
alegórico,
a
personificação
continua
presente
nos
nomes
atribuídos
aos
impulsos
psíquicos
e
aos
estados
de
espírito.
A
literatura
psicanalítica
está
cheia
dela.
Mas
cabe
talvez
perguntar
se
alguma
vez
foi
possível
a
linguagem
abstrata
sem
alegoria.
Não
são
apenas
os
elementos
do
mito,
são
também
os
da
poesia
que
se
compreendem
melhor
quando
pensados
como
funções
lúdicas.
Por
que
os
homens
subordinam
as
palavras
à
métrica,
à
cadência
e
ao
ritmo?
Se
respondermos
que
é
por
causa
da
beleza
ou
da
emoção,
estaremos
deslocando
o
problema
para
um
terreno
ainda
mais
difícil.
Mas
se
respondermos
que
os
homens
fazem
poesia
porque
sentem
a
necessidade
do
jogo
social
já
estaremos
mais
próximos
do
alvo.
A
palavra
rítmica
nasce
dessa
necessidade.
Só
na
atividade
lúdica
da
comunidade
a
poesia
desempenha
uma
função
vital
e
possui
seu
pleno
valor,
e
estes
se
perdem
à
medida
em
que
os
jogos
sociais
perdem
seu
caráter
ritual
ou
festivo.
Elementos
como
a
rima
e
o
dístico
só
adquirem
sentido
dentro
das
estruturas
lúdicas
intemporais
e
onipresentes
de
que
derivam:
golpe
e
contragolpe,
ascensão
e
queda,
pergunta
e
resposta,
numa
palavra,
ritmo.
Sua
origem
está
inseparavelmente
ligada
aos
princípios
da
canção
e
da
dança,
os
quais
por
sua
vez
fazem
parte
da
imemorial
função
do
jogo.
Todas
as
qualidades
da
poesia
reconhecidas
como
próprias,
como
a
beleza,
o
caráter
sagrado,
a
magia,
são
desde
início
abrangidas
pela
qualidade
lúdica
fundamental.
Segundo
os
imortais
modelos
gregos,
distinguimos
na
poesia
três
grandes
gêneros,
o
lírico,
o
épico
e
o
dramático.
O
lírico
é
o
que
permanece
mais
próximo
da
esfera
lúdica
da
qual
todos
derivam.
Aqui,
o
lírico
deve
ser
tomado
cm
sentido
extremamente
amplo,
incluindo,
além
do
gênero
enquanto
tal,
todos
os
modos
que
exprimem
o
arrebatamento.
Na
escala
da
linguagem
poética,
a
expressão
lírica
é
a
mais
distante
da
lógica
e
a
mais
próxima
da
música
e
da
dança.
É
a
linguagem
da
contemplação
mística,
dos
oráculos
e
da
magia.
É
nela
que
o
poeta
experimenta
mais
intensamente
a
sensação
de
ser
inspirado
de
fora,
é
nela
que
se
encontra
mais
próximo
da
suprema
sabedoria,
mas
também
da
demência.
O
abandono
total
da
razão
e
da
lógica
é
característico
da
linguagem
dos
sacerdotes
e
dos
oráculos
entre
os
povos
primitivos,
chegando
muitas
vezes
a
ser
uma
algaraviada
incompreensível.
Emile
Faguet
refere-se
algures
a
"le
grain
de
sottise
nécessaire
au
lyrique
moderne".
Mas
não
é
só
o
poeta
lírico
moderno
que
precisa
dela;
todo
o
gênero
forçosamente
precisa
não
estar
submetido
às
limitações
do
intelecto.
Um
dos
traços
fundamentais
da
imaginação
lírica
é
a
tendência
para
o
exagero.
A
poesia
precisa
ser
exorbitante.
As
fantasias
cosmogônicas
e
místicas
do
Rig-Veda
e
o
gênio
sublime
de
Shakespeare
encontram-se
no
uso
das
mais
audaciosas
imagens,
porque
Shakespeare,
apesar
de
ter
passado
por
toda
a
tradição
do
classicismo,
manteve
sempre
todo
o
ímpeto
do
vates
arcaico.
Não
é
apenas
no
lírico
que
se
encontra
o
desejo
de
apresentar
as
ideias
mais
mirabolantes
possíveis.
Esta
é
uma
função
lúdica
típica,
que
se
encontra
tanto
na
vida
da
criança
como
em
certas
doenças
mentais.
Na
correspondência
entre
Shaw
e
Terry
aparece
a
estória
de
um
garotinho
que
sai
correndo
do
jardim,
gritando:
"Mamãe,
mamãe,
achei
uma
cenoura
tão
grande
.
.
.
tão
grande
como
Deus!"
E
outra
sobre
um
doente
que
diz
ao
psiquiatra
que
irão
buscá-lo
numa
carruagem.
"Certamente
não
é
uma
carruagem
vulgar,
não
é?"
"Claro
que
não,
é
uma
carruagem
de
ouro!"
"E
como
é
puxada?"
"Por
quarenta
milhões
de
veados
de
diamante!"
Estas
qualidades
e
quantidades
absurdas
são
comuns
nas
lendas
budistas.
Essa
tendência
megalomaníaca
sempre
se
verificou
entre
os
adaptadores
dos
mitos
e
das
vidas
de
santos.
A
tradição
hindu
apresenta
o
grande
asceta
Cyavana
em
seus
exercícios
de
tapas,
completamente
oculto
sob
um
monte
de
formigas,
deixando
ver
apenas
seus
olhos,
que
brilham
como
dois
carvões
em
brasa.
Visvamitra
fica
mil
anos
sobre
as
pontas
dos
dedos
dos
pés.
Este
jogo
com
o
maravilhoso
em
número
ou
grau
encontra-se
em
grande
quantidade
de
estórias
de
gigantes
ou
anões,
desde
os
mitos
primitivos
até
Gulliver.
No
Snorra
Edda,
Thor
e
seus
companheiros
encontram
uma
salinha
ligada
a
um
imenso
quarto
de
dormir,
na
qual
passam
a
noite.
Na
manhã
seguinte
descobrem
que
estiveram
dormindo
no
polegar
da
luva
do
gigante
Skrymir11.
Em
minha
opinião,
o
desejo
de
espantar
o
leitor
através
de
um
exagero
sem
limites
ou
da
confusão
das
proporções
não
deve
ser
levado
inteiramente
a
sério,
quer
o
encontremos
em
mitos
que
fazem
parte
de
um
sistema
de
crenças,
na
literatura
pura,
ou
nas
fantasias
das
crianças.
Em
todos
estes
casos
trata-se
do
mesmo
hábito
lúdico
do
espírito.
Sempre
julgamos,
involuntariamente,
a
crença
do
homem
primitivo
nos
mitos
por
ele
criados
em
função
de
nossos
padrões
científicos,
filosóficos
e
religiosos.
Há
um
elemento
semi-humorístico,
próximo
do
faz
de
conta,
que
é
inseparável
do
verdadeiro
mito.
Estamos
perante
aquele
"elemento
taumatúrgico
da
poesia"
de
que
falava
Platão12.
O
fato
de
a
poesia,
no
sentido
mais
amplo
da
poiesis
grega,
sempre
se
encontrar
dentro
da
esfera
do
jogo,
não
significa
que
seu
caráter
essencialmente
lúdico
seja
sempre
conscientemente
mantido.
A
epopeia
perde
sua
relação
com
o
jogo
a
partir
do
momento
em
que
não
se
destina
mais
a
ser
recitada
em
ocasiões
festivas,
mas
apenas
a
ser
lida.
E
também
a
lírica
deixa
de
ser
compreendida
como
função
lúdica
a
partir
do
momento
em
que
desaparece
sua
união
com
a
música.
Só
o
drama,
devido
a
seu
caráter
intrinsecamente
funcional
e
devido
ao
fato
de
constituir
uma
ação,
continua
permanentemente
ligado
ao
jogo.
A
própria
linguagem
reflete
este
laço
indissolúvel,
sobretudo
o
latim
e
línguas
aparentadas,
e
também
as
germânicas.
Nessas
línguas
o
drama
é
chamado
"jogo",
e
interpretá-lo
é
"jogar"13.
Pode
parecer
estranho,
embora
facilmente
compreensível
segundo
o
que
anteriormente
dissemos,
que
os
gregos,
os
próprios
criadores
do
teatro
em
sua
forma
mais
perfeita,
não
aplicassem
a
palavra
"jogo"
nem
ao
drama
propriamente
dito
nem
à
sua
execução.
Mas
o
fato
de
não
existir
em
grego
uma
palavra
única
para
designar
tudo
aquilo
que
é
abrangido
pela
noção
de
jogo
é
suficiente
para
explicar
esse
vazio
que
se
verifica
em
sua
terminologia.
A
sociedade
helênica
estava
de
tal
maneira
impregnada
de
espírito
lúdico
que
nunca
os
gregos
pensaram
que
esse
espírito
fosse
uma
entidade
especial
e
autônoma.
É
evidente
que
tanto
a
tragédia
como
a
comédia
tiveram
origem
no
jogo.
A
comédia
ática
deriva
do
komos
licencioso
das
festividades
dionisíacas.
Foi
só
numa
fase
posterior
que
ela
se
transformou
num
exercício
conscientemente
literário,
e
mesmo
nessa
fase,
na
época
de
Aristófanes,
conserva
numerosos
vestígios
de
seu
passado
dionisíaco.
No
decorrer
do
cortejo
do
coro
chamado
parabase,
o
coro
divide-se
em
filas
e
movimenta-se
para
trás
e
para
a
frente,
volta-se
para
o
público
e
aponta
as
vítimas,
com
frases
de
escárnio.
O
vestuário
fálico
dos
atores
assim
como
as
máscaras
animais
com
que
os
elementos
do
coro
se
disfarçam
são
vestígios
de
uma
remota
antiguidade.
Não
é
apenas
por
capricho
que
Aristófanes
usa
as
vespas,
os
pássaros
e
as
rãs
como
tema
de
suas
comédias;
o
fundamento
dessa
escolha
é
toda
a
tradição
da
personificação
teriomórfica.
Com
suas
censuras
públicas,
com
a
troça
mordente
que
utilizam,
as
"velhas
comédias"
pertencem
inteiramente
ao
domínio
daquelas
canções
antifonais,
ultrajantes
e
provocadoras
mas
sempre
festivas,
a
que
antes
fizemos
referência.
Foi
recentemente
descoberta,
com
um
alto
grau
de
plausibilidade
embora
sem
apresentar
provas
definitivas,
por
Robert
Stumpfl
em
sua
obra
Die
Kultspiele
der
Germanen
als
Ursprung
mittelaterlichen
Dramas14,
uma
linha
evolutiva
semelhante,
partindo
do
ritual
para
chegar
ao
teatro,
nas
literaturas
germânicas,
num
exato
paralelo
do
que
se
verifica
na
comédia
grega.
Do
mesmo
modo,
também
a
tragédia
não
é
em
sua
origem
uma
reprodução
voluntariamente
literária
do
destino
humano.
Originalmente
era
uma
coisa
muito
distante
da
literatura
destinada
ao
palco,
era
um
jogo
sagrado
ou
um
ritual
lúdico.
Mas,
com
a
passagem
do
tempo,
a
"representação"
dos
temas
míticos
tornou-se
uma
interpretação
teatral,
com
mímica
e
diálogos,
de
uma
série
de
acontecimentos
que
constituem
uma
estória
com
enredo.
Desde
o
início,
tanto
a
comédia
como
a
tragédia
se
apresentam
sob
o
signo
da
competição,
a
qual,
conforme
vimos,
deve
ser
considerada
um
jogo,
seja
sob
que
circunstâncias
for.
Os
dramaturgos
gregos
preparavam
suas
obras
dentro
de
um
espírito
de
competição,
para
serem
apresentadas
na
festa
de
Dionísio.
É
certo
que
o
concurso
não
é
organizado
pelo
Estado,
mas
este
participa
em
sua
direção.
Havia
sempre
uma
multidão
de
poetas
de
segunda
e
de
terceira
ordem
competindo
pelos
prêmios.
O
púbico
costumava
estabelecer
comparações,
e
as
críticas
eram
extremamente
severas.
Em
sua
totalidade,
o
público
compreendia
todas
as
alusões
e
reagia
plenamente
às
sutilezas
de
estilo
e
de
expressão,
participando
de
toda
a
tensão
do
concurso
do
mesmo
modo
que
uma
multidão
num
jogo
de
futebol.
Esperavam
ansiosamente
os
novos
coros,
para
os
quais
os
cidadãos
que
neles
participavam
haviam
ensaiado
durante
todo
o
ano.
O
conteúdo
das
peças
também
era
agonístico.
A
comédia,
por
exemplo,
discutia
um
assunto
de
interesse
público
ou
atacava
um
indivíduo
ou
um
ponto
de
vista,
como
nos
ataques
trocistas
de
Aristófanes
a
Sócrates
e
a
Eurípides15.
A
atmosfera
do
drama
era
de
êxtase
dionisíaco
e
de
arrebatamento
ditirâmbico.
O
ator,
separado
do
mundo
vulgar
pela
máscara
que
usava,
sentia-se
transformado
numa
outra
personalidade,
e
esta
era
por
ele
mais
propriamente
encarnada
do
que
simplesmente
representada.
O
público
era
arrastado
por
ele
para
o
mesmo
estado
de
espírito.
Em
Esquilo,
a
violência
de
uma
linguagem
requintada
e
as
extravagâncias
da
imaginação
e
da
expressão
estão
perfeitamente
de
acordo
com
as
origens
sagradas
do
teatro.
Na
esfera
espiritual
em
que
nasce
o
teatro
não
há
lugar
para
qualquer
distinção
entre
o
jogo
e
a
seriedade.
Nas
tragédias
de
Esquilo,
a
experiência
da
mais
tremenda
seriedade
é
apresentada
sob
uma
forma
lúdica.
Em
Eurípides,
o
tom
oscila
entre
a
seriedade
e
a
frivolidade.
O verdadeiro
poeta,
diz
Sócrates
no
Simpósio
de
Platão,
deve
ser
trágico
e
cômico
ao
mesmo
tempo,
e
toda
a
vida
humana
deve
ser
entendida
como
uma
mistura
de
tragédia
e
comédia16.
Notas do capítulo 8
1
R.
V.,
X,
90,
8,
13-14,
11.
2
Os
mitos
cosmogônicos
são
sempre
obrigados
a
postular
um
primum
agens
antes
de
toda
existência.
3
Teogonia,
227
e
ss.,
383
c
ss.
4
Cf.
Gilbert
Murray,
Anthropology
and
lhe
Classics,
ed.
R.
R.
Marett,
Oxford,
1908,
p.
75.
5
Fragmentos.
121;
cf.
Capelle,
op.
cit.,
p.
242.
6
Fragmentos,
122;
cf.
H.
Diels,
Fragmente
der
Vorsokratiker,
11,
p.
21V.
7
Essai
sur
le
don,
p.
112.
8
Mededeelingen
der
Kon.
Nederl.
Akad.
van
Wetenschappen,
afd.
Letterkunde,
LXXIV,
B,
Nº
6,
1932,
p.
82
e
ss.
9
Loc.
cit.,
p.
89
10
Loc.
cit.
p.
90.
11
Gyllaginninn,
c.
45.
Ver
também
a
captura
da
serpente
Midgard,
c.
48.
12
Sofista,
268
D:
τήδ
ποιήσεωδ
...
το
ΘΑΥΗΑΤΟΠΟΥΧΟΝ
μσφιον.
13
Neste
caso,
o
português
constitui
exceção,
entre
as
principais
línguas
europeias
(cf.
nota
da
p.
3).
(N.
do
T.)
14
Berlim,
1936.
15
Cf.
Jaeger,
Paideia,
pp.
463-474.
16
Simpósio,
223
D,
Filebo
50
B.
9.
Formas
Lúdicas
da
Filosofia
No
centro
do
círculo
que
procuramos
descrever
com
nossa
concepção
do
jogo
ergueu-se
a
figura
do
sofista
grego.
Este
pode
ser
considerado
como
um
prolongamento
da
figura
central
da
vida
cultural
da
época
arcaica,
que
sucessivamente
apareceu
sob
as
formas
do
profeta,
do
feiticeiro,
do
vidente,
do
taumaturgo
e
do
poeta,
e
cuja
melhor
designação
é
a
de
vates.
O
sofista
possui
duas
funções
muito
importantes
em
comum
com
o
tipo
mais
antigo
de
chefe
cultural:
a
de
exibir
seus
extraordinários
conhecimentos,
os
mistérios
de
sua
arte,
e
ao
mesmo
tempo
a
de
derrotar
seus
rivais
nas
competições
públicas.
Nele
estão
presentes,
portanto,
os
dois
fatores
principais
do
jogo
social
da
sociedade
arcaica:
o
exibicionismo
e
a
aspiração
agonística.
É
conveniente
lembrar
que,
antes
do
aparecimento
do
sofista
propriamente
dito.
Esquilo
designa
com
a
palavra
"sofista"
os
sábios
heróis
de
antanho,
como
Prometeu
e
Palamedes,
ambos
os
quais
enumeram
orgulhosamente
todas
as
artes
que
inventaram
para
bem
da
humanidade.
Devido
ao
fato
de
gabarem-se
de
seus
conhecimentos
assemelham-se
aos
sofistas
posteriores,
como
Hípias
Polihistor,
o
homem
das
mil
artes,
o
mnemotécnico,
o
autarca
econômico
que
se
vangloria
de
ter
fabricado
todo
o
vestuário
e
objetos
que
usa,
e
que
constantemente
aparece
em
Olímpia,
apresentando-se
como
o
gênio
universal,
sempre
pronto
para
discutir
qualquer
assunto
(preparado
de
antemão!)
e
para
responder
a
quaisquer
perguntas
que
lhe
façam,
proclamando
nunca
ter
encontrado
rival1.
Tudo
isto
se
assemelha
muito
ao
caso
de
Yajnavalkya,
o
sacerdote
solucionador
de
enigmas
dos
Brahmanas,
que
faz
cair
a
cabeça
de
seu
adversário2.
As
proezas
dos
sofistas
são
chamadas
epideixis
—
exibição.
Cada
um
deles
tem,
como
acima
sugerimos,
um
repertório,
e
recebe
honorários
por
seus
ensinamentos.
Algumas
de
suas
peças
têm
preço
fixo,
como
as
conferências
de
cinquenta
dracmas
de
Pródico.
Górgias
ganhou
tanto
dinheiro
com
sua
arte
que
pode
dedicar
uma
estátua
de
si
mesmo
ao
deus
de
Delfos,
toda
em
ouro
maciço.
O
sofista
itinerante
como
Protágoras
obtinha
êxitos
fabulosos.
Era
um
autêntico
acontecimento
quando
um
sofista
célebre
visitava
uma
cidade.
Era
admirado
como
um
ser
milagroso,
idolatrado
como
os
heróis
do
atletismo.
Em
resumo,
a
profissão
de
sofista
estava
ao
mesmo
nível
que
o
esporte.
A
cada
resposta
bem
dada
os
espectadores
riam
e
aplaudiam.
Era
um
verdadeiro
jogo
apanhar
o
adversário
numa
rede
de
argumentos3
ou
aplicar-lhe
um
golpe
devastador4.
Era
ponto
de
honra
ser
capaz
de
apresentar
apenas
perguntas
em.
forma
de
dilema,
às
quais
só
era
possível
dar
respostas
erradas.
Quando
Protágoras
chama
à
sofistica
"uma
velha
arte"
(τέχνην
παλαιαν)5,
ele
toca
no
nó
do
problema.
Trata-se
efetivamente
do
velho
jogo
de
perspicácia
que,
tendo
começado
nas
culturas
mais
remotas,
oscila
entre
o
ritual
mais
solene
e
o
divertimento
puro
e
simples,
por
vezes
elevando-se
às
alturas
da
sabedoria,
outras,
limitando-se
a
uma
simples
rivalidade.
Werner
Jaeger
critica
severamente
"a
maneira
atual
de
descrever
Pitágoras
como
uma
espécie
de
charlatão",
considerando
essa
opinião
indigna
de
resposta6.
Todavia,
esquece
que
o
charlatão
ou
o
que
se
queira
chamar-lhe,
é,
tanto
por
natureza
como
do
ponto
de
vista
histórico,
o
irmão
mais
velho
de
todos
os
filósofos
e
sofistas,
conservando
ainda
todos
estes
vestígios
desse
antigo
parentesco.
Os
próprios
sofistas
tinham
plena
consciência
do
caráter
lúdico
de
sua
arte.
Górgias
considerava
seu
Elogio
de
Helena
um
jogo
(παιγνιον)
e
seu
tratado
Da
Natureza
foi
chamado
em
retórica
um
estudo
lúdico7.
Todos
aqueles
que
se
opõem
a
uma
interpretação
desse
gênero,
como
é
o
caso
de
Capelle8,
esquecem
que
em
todo
o
campo
da
eloquência
sofistica
é
impossível
estabelecer
uma
distinção
nítida
entre
o
jogo
e
a
seriedade,
e
que
o
termo
"jogo"
se
adapta
perfeitamente
à
natureza
original
de
tudo
isso.
Além
disso,
a
opinião
segundo
a
qual
a
descrição
dos
sofistas
por
Platão
é
uma
caricatura
ou
uma
paródia9,
só
é
parcialmente
verdadeira.
É
preciso
não
esquecer
que
todos
os
aspectos
mais
frívolos
e
insinceros
do
sofista
são
elementos
essenciais
de
sua
figura,
lembrando
suas
origens.
Pertence
por
natureza
à
categoria
do
nômade,
é
de
nascença
um
pouco
vagabundo
e
parasita.
Ao
mesmo
tempo,
contudo,
os
sofistas
foram
os
criadores
do
meio
em
que
tomou
forma
a
concepção
helênica
da
educação
e
da
cultura.
A
sabedoria
e
a
ciência
dos
gregos
não
eram
produtos
da
escola,
no
sentido
que
atualmente
damos
à
palavra.
Ou
seja,
não
eram
produtos
secundários
de
um
sistema
educacional
destinado
a
preparar
os
cidadãos
para
funções
úteis
e
proveitosas.
Para
os
gregos,
os
tesouros
do
espírito
eram
frutos
do
ócio
—
σχολη'
—
e
para
o
homem
livre
todo
o
tempo
durante
o
qual
não
lhe
era
exigida
qualquer
prestação
de
serviços
ao
Estado,
à
guerra
ou
ao
ritual
era
tempo
livre,
de
modo
que
dispunha
mesmo
de
bastante
lazer10.
A
palavra
"escola"
tem
por
trás
dela
uma
história
curiosa.
Originalmente
significava
"ócio",
adquirindo
depois
o
sentido
exatamente
oposto
de
trabalho
e
preparação
sistemática,
à
medida
que
a
civilização
foi
restringindo
cada
vez
mais
a
liberdade
que
os
jovens
tinham
de
dispor
de
seu
tempo,
e
levando
estratos
cada
vez
mais
amplo
de
jovens
para
uma
vida
quotidiana
de
rigorosa
aplicação,
da
infância
em
diante.
A
sofistica,
tecnicamente
considerada
tomo
uma
forma
de
expressão,
apresenta
todas
as
semelhanças
com
o
jogo
primitivo
que
encontramos
no
caso
do
predecessor
do
sofista,
o
vates.
O
sofisma
propriamente
dito
está
intimamente
relacionado
com
o
enigma,
é
um
truque
de
combatente.
A
palavra
grega
πφβλημα,
em
seu
sentido
concreto
original,
designava
ou
qualquer
coisa
que
se
usa
para
defesa
pessoal,
como
por
exemplo
um
escudo,
ou
qualquer
coisa
que
se
joga
aos
pés
do
outro
para
ele
a
apanhar,
isto
é,
uma
aposta
ou
desafio.
Ambos
estes
significados,
tomados
abstratamente,
aplicam-se
bem
à
arte
do
sofista11.
Suas
perguntas
e
argumentos
são
outros
tantos
problemata,
precisamente
nesse
sentido.
Os
j
eux
d'esprit12,
em
que
se
procura
surpreender
os
outros
com
perguntas
ardilosas,
ocupavam
um
lugar
importante
na
conversação
entre
os
gregos.
As
diversas
espécies
em
que
se
dividiam
esses
jogos
foram
sistematizadas,
recebendo
nomes
técnicos,
entre
os
quais
o
sorites,
apophaskon,
outis,
pseudomenos,
antistrephon
etc.
Clearco,
discípulo
de
Aristóteles,
escreveu
uma
Teoria
do
Enigma,
dedicada
principalmente
à
espécie
chamada
griphos:
um
jogo
humorístico
de
perguntas
e
respostas,
recebendo-se
no
fim
uma
recompensa
ou
um
castigo.
"O
que
é
que
fica
sempre
o
mesmo
em
toda
a
parte
e
em
nenhuma?"
Resposta:
"O
tempo".
"Tu
não
és
o
que
eu
sou.
Eu
sou
um
homem,
portanto
tu
não
és
um
homem."
Ao
que
se
diz
ter
Diógenes
respondido:
"Se
queres
que
isso
seja
verdade,
é
melhor
começares
por
mim"13.
Crisipo
escreveu
um
tratado
dedicado
apenas
a
certos
sofismas.
Todas
estas
perguntas
ardilosas
assentam
na
condição
de
que
o
adversário
aceite
tacitamente
a
validade
lógica
do
jogo,
sem
estragar
tudo
com
objeções,
como
fez
Diógenes.
As
proposições
eram
às
vezes
estilisticamente
ornamentadas
com.
rimas,
repetições,
paralelismos
e
outros
artifícios.
É
sempre
extremamente
fluida
a
transição
entre
estas
brincadeiras
e
a
pomposa
peroração
do
sofista
e
do
diálogo
socrático.
O
sofisma
é
aparentado
tanto
ao
enigma
comum
quanto
ao
enigma
sagrado
e
cosmogônico.
Eutidemo,
no
diálogo
platônico
desse
nome,
às
vezes
brinca
com
truques
lógicos
e
gramaticais
perfeitamente
infantis14,
outras
vezes
toca
em
toda
a
profundidade
da
cosmologia
e
da
epistemologia15.
As
afirmações
mais
profundas
dos
filósofos
pré-socráticos,
como
por
exemplo
a
conclusão
dos
Eleatas
de
que
não
existe
"nem
gênese,
nem
movimento,
nem
pluralidade",
são
apresentadas
sob
a
forma
de
um
jogo
de
perguntas
e
respostas.
Mesmo
uma
dedução
tão
abstrata
como
aquela
que
conclui
pela
impossibilidade
de
formular
um
juízo
universalmente
válido
é
feita
a
partir
de
um
simples
sorites,
ou
cadeia
de
perguntas.
"Quando
se
abana
um
saco
de
trigo,
qual
é
o
grão
que
faz
barulho?
É
o
primeiro?"
"Não."
"É
o
segundo?"
"Não."
"É
o
terceiro
etc.?"
"Não."
"Portanto
..."
Os
gregos
tinham
plena
consciência
de
até
que
ponto
nessas
questões
se
tratava
de
um
jogo.
No
Eutidemo
Platão
apresenta
Sócrates
desdenhando
os
artifícios
da
sofistica,
como
uma
brincadeira
pueril
com
a
doutrina.
"Essas
coisas,"
diz
ele,
"nada
ensinam
sobre
a
natureza
das
coisas;
aprende-se
unicamente
a
enganar
as
pessoas
com
sutilezas
e
equívocos.
É
a
mesma
coisa
do
que
rasteirar
alguém,
ou
tirar-lhe
a
cadeira
no
momento
em
que
vai
sentar-se."
"Quando
dizes
que
queres
fazer
deste
rapaz
um
sábio,"
continua
ele,
"estás
brincando
ou
falando
a
sério"16?
No
Sofista,
Teeteto
é
obrigado
pelo
Estrangeiro
de
Eleia
a
admitir
que
o
sofista
pertence
àquela
espécie
de
pessoas
"que
se
dedicam
a
brincadeiras"
(τών
τπδ
παιδιαζ
μετεχόντών)17.
Parmênides,
instado
a
pronunciar-se
sobre
o
problema
da
existência,
chama
a
essa
tarefa
"jogar
um
jogo
difícil"
(πφαγηατειώ
παιδιάν
παιζειν)18,
e
imediatamente
penetra
nos
mais
profundos
problemas
ontológicos,
seguindo
sempre
o
modelo
do
jogo
de
perguntas
e
respostas.
"O
Um
não
pode
ter
partes,
e
é
ilimitado,
portanto
destituído
de
forma;
não
está
em
parte
alguma,
não
se
move,
é
intemporal
e
incognoscível."
Em
seguida,
o
argumento
é
invertido,
e
depois
outra
vez,
e
uma
vez
mais
ainda19.
O
argumento
anda
para
trás
e
para
a
frente
como
uma
lançadeira,
e
em
seu
movimento
a
epistemologia
assume
a
forma
de
um
nobre
jogo.
O
elemento
lúdico
não
é
próprio
apenas
dos
sofistas,
aparece
igualmente
em
Sócrates
e
Platão20
.
Segundo
Aristóteles,
Zenão
de
Eleia
foi
o
primeiro
a
escrever
um
diálogo
na
forma
interrogativa
própria
dos
filósofos
de
Megara
e
dos
sofistas.
Essa
forma
empregava
uma
técnica
destinada
a
pegar
em
falso
os
adversários.
Diz-se
que
Platão
se
inspirou
sobretudo
em
Sofron
para
a
composição
dos
diálogos.
Ora
este
Sofron
era
um
autor
de
farsas
(μιμοδ),
e
Aristóteles
chama
claramente
ao
diálogo
uma
forma
de
mimos21,
o
qual
por
sua
vez
é
uma
forma
de
comédia.
Por
isso
não
devemos
surpreender-nos
por
ver
Sócrates
Platão
classificados
entre
os
malabaristas
e
taumaturgos,
juntamente
com
os
sofistas22.
Se
tudo
isto
não
é
suficiente
para
revelar
a
presença
de
um
elemento
lúdico
na
filosofia,
há
provas
mais
do
que
suficientes
nos
próprios
diálogos
de
Platão.
O
diálogo
é uma
forma
de
arte,
uma
ficção,
dado
que
evidentemente
a
verdadeira
conversação,
por
mais
requintada
que
pudesse
ser
entre
os
gregos,
nunca
poderia
ter
correspondido
exatamente
à
forma
do
diálogo
literário.
Nas
mãos
de
Platão,
o
diálogo
é
uma
coisa
leve
e
aérea,
completamente
artificial.
A
estrutura
narrativa
do
Parmênides,
que
é
quase
igual
à
de
um
conto,
demonstra
isto
suficientemente,
assim
como
o
início
do
Crátilo
e
o
tom
descontraído
e
informal
destes
dois
diálogos
e
de
muitos
outros.
É
evidente
aqui
uma
certa
semelhança
com
o
mimos.
No
Sofista,
os
princípios
fundamentais
da
filosofia
pré-socrática
são
apresentados
em
tom
extremamente
ligeiros23
e
o
mito
de
Épimeteu
e
Prometeu
é
contado
no
Protágoras
de
maneira
francamente
humorística24
.
"Quanto
à
figura
e
aos
nomes
desses
deuses,"
diz
Sócrates
no
Crátilo,
"há
uma
explicação
ao
mesmo
tempo
cômica
e
séria,
pois
os
deuses
apreciam
o
humor"
—
φιλοπάισμονεδ
γαφ
χαι
οι
θεοι.
No
mesmo
diálogo
afirma
também:
"Se
eu
tivesse
assistido
à
conferência
de
cinquenta
dracmas
de
Pródico,
logo
o
terias
sabido,
mas
só
assisti
à
de
um
dracma!25
E
diz
ainda,
no
mesmo
evidente
tom
satírico,
pois
aqui
joga
com
etimologias
absurdas:
"Observem
agora
o
truque
especial
que
guardo
para
tudo
o
que
não
consigo
resolver!"26.
E
finalmente:
"Durante
muito
tempo
me
espantei
com
minha
própria
sabedoria,
e
não
acredito
nela."
Mas
o
que
dizer
quando
o
Protágoras
termina
com
a
inversão
dos
pontos
de
vista,
ou
quando
no
Menexeno
não
fica
bem
claro
se
o
discurso
funerário
é
proferido
a
sério
ou
não?
Os
diversos
personagens
de
Platão
consideram
suas
investigações
filosóficas
um
agradável
passatempo.
Os
jovens
gostam
de
discutir,
os
velhos
gostam
de
ser
venerados27
.
"Isso,"
diz
Cálicles
no
Górgias,
"é
a
pura
verdade,
conforme
tu
mesmo
compreenderás
se
deixares
agora
a
filosofia
e
te
voltares
para
coisas
superiores.
Porque
a
filosofia
é
muito
estimável
quando
praticada
com
moderação
na
juventude,
mas
é
perniciosa
para
aqueles
que
se
abandonam
a
ela
por
mais
tempo
do
que
é
conveniente"28.
Assim,
os
próprios
pensadores
que
lançaram
os
imperecíveis
fundamentos
da
filosofia
e
da
ciência
consideravam
sua
atividade
uma
distração
de
juventude.
A
fim
de
demonstrar
definitivamente
os
erros
fundamentais
dos
sofistas,
suas
deficiências
lógicas
e
éticas,
Platão
não
hesitou
em
adotar
seu
estilo
de
diálogo
ligeiro
e
descontraído,
pois
por
mais
que
aprofundasse
a
filosofia,
nunca
deixava
de
considerá-la
um
nobre
jogo.
Se
tanto
ele
como
Aristóteles
consideravam
os
argumentos
falaciosos
e
os
jogos
de
palavras
dos
sofistas
merecedores
de
uma
refutação
tão
séria
e
completa,
só
podia
ser
porque
seu
próprio
pensamento
filosófico
não
se
havia
ainda
desprendido
da
esfera
lúdica
arcaica.
Mas
cabe
talvez
perguntar
se
algum
dia
a
filosofia
poderá
fazê-lo.
Podemos
esboçar
grosseiramente
as
sucessivas
fases
da
filosofia
da
seguinte
maneira:
num
passado
muito
remoto,
ela
se
iniciou
a
partir
do
jogo
de
enigmas
sagrado,
o
qual
era
ao
mesmo
tempo
um
ritual
e
um
divertimento
festivo.
Do
lado
da
religião
deu
origem
à
profunda
filosofia
e
teosofia
dos
Upanishads
e
dos
pré-socráticos;
do
lado
do
jogo
produziu
o
sofista.
Não
há
uma
distinção
absoluta
entre
os
dois
lados.
Em
sua
busca
da
verdade,
Platão
eleva
a
filosofia
a
um
nível
que
só
ele
seria
capaz
de
atingir,
mas
sempre
daquela
forma
leve
que
era
e
é
o
elemento
próprio
da
filosofia.
Ao
mesmo
tempo,
ela
é
cultivada
sob
as
formas
inferiores
da
habilidade
sofistica
e
da
argúcia
intelectual.
Na
Grécia,
o
fator
agonístico
era
de
tal
modo
forte
que
permitiu
à
retórica
desenvolver-se
à
custa
da filosofia
pura,
a
qual
ficou
oculta
pela
sombra
da
sofisticação,
que
se
exibia
como
cultura
do
homem
comum.
Górgias
é
uma
figura
típica
desta
deterioração
da
cultura:
afastou-se
da
verdadeira
filosofia
para
desperdiçar
seu
espírito
no
louvor
e
no
abuso
da
palavra
brilhante
e
da
falsa
agudeza.
Depois
de
Aristóteles
caiu
o
nível
da
filosofia,
asfixiada
pelo
exagero
da
emulação
e
por
um
estreito
espírito
de
doutrina.
No
final
da
Idade
Média,
verificou-se
um
declínio
semelhante,
quando
à
época
da
grande
escolástica,
que
procurava
compreender
o
sentido
íntimo
das
coisas,
seguiu-se
uma
fase
em
que
bastavam
simplesmente
as
palavras
e
as
fórmulas
vazias.
Em
todos
estes
aspectos,
torna-se
difícil
determinar
com
um
mínimo
de
rigor
o
elemento
lúdico.
Às
vezes,
uma
brincadeira
infantil
ou
um
dito
de
espírito
superficial
só
por
muito
pouco
não
chegam
a
ser
profundos.
O célebre
tratado
de
Górgias
Sobre
o
não-ser,
no
qual
é
categoricamente
rejeitado
todo
conhecimento
sério
em
favor
de
um
niilismo
radical,
é
um
fenômeno
lúdico
tão
característico
quanto
o
Elogio
de
Helena,
o
qual
ele
mesmo
explicitamente
considera
um
jogo.
A
ausência
de
qualquer
separação
nítida
e
consciente
entre
o
jogo
e
o
conhecimento
verifica-se
no
fato
de
os
estoicos
tratarem
exatamente
da
mesma
maneira
os
sofismas
absurdos
baseados
numa
armadilha
da
linguagem
e
as
investigações,
extremamente
sérias,
da
escola
de
Megara29.
Quanto
ao
resto,
preponderavam
a
discussão
e
a
declamação,
que
constantemente
eram
objeto
de
competição
pública.
A
oratória
era
uma
forma
de
exibicionismo,
um
pretexto
para
dar
espetáculo
e
ostentar
as
palavras.
A
competição
verbal
era
para
o
grego
a
forma
literária
indicada
para
resolver
as
questões
críticas.
É
assim
que
Tucídedes
apresenta
o
dilema
da
paz
e
da
guerra
nos
discursos
de
Arquidamo
e
Stelanadas;
outras
questões
são
tratadas
por
Alcibíades,
Cléon
e
Diodotos.
É
também
assim
que
ele
apresenta
o
problema
do
poder
e
do
direito
sob
a
forma
de
um
jogo
de
perguntas
e
respostas
extremamente
sofistico,
a
propósito
da
quebra
da
neutralidade
cometida
contra
a
ilha
de
Meios.
Nas
Nuvens,
Aristófanes
satiriza
a
mania
das
discussões
públicas
pomposas
em
seu
duelo
entre
o
Logos
justo
e
o
Logo
injusto.
A
antilogia,
ou
raciocínio
duplo,
era
uma
das
preferidas
dos
sofistas.
Além
de
abrir
um
vasto
campo
para
o
jogo,
esta
forma
permitia-lhes
exprimir
a
eterna
ambiguidade
de
todos
os
juízos
formulados
pelo
espírito
humano:
tudo
pode
ser
apresentado
de
duas
maneiras
opostas.
E
efetivamente
aquilo
que
conserva
relativamente
pura
e
legítima
a
arte
de
ganhar
com
as
palavras
é
seu
caráter
lúdico.
Só
quando,
com
sua
pirotecnia
verbal,
defende
um
ponto
de
vista
intrinsecamente
imoral,
como
a
"moral
dos
chefes"
de
Cálicles30,
é
que
o
sofista
se
transforma
num
falsificador
do
saber,
a
não
ser,
evidentemente,
que
se
considere
o
próprio
hábito
agonístico
em
si
mesmo
como
falso
ou
imoral.
Todavia,
para
a
generalidade
dos
sofistas
e
mestres
de
retórica
a
finalidade
principal
não
era
a
verdade
ou
o
desejo
da
verdade,
e
sim
a
pura
satisfação
pessoal
de
ter
razão.
Eram
animados
pelo
instinto
primitivo
da
competição
e
da
luta
pela
glória.
Alguns
dos
biógrafos
de
Nietzsche31
censuram-no
por
ter
feito
reviver
a
velha
atitude
agonística
da
filosofia
mas,
se
efetivamente
ele
o
fez,
limitou-
se
a
reconduzir
a
filosofia
a
suas
origens
primitivas.
Não
pretendemos
penetrar
no
difícil
problema
de
saber
até
que
ponto
o
próprio
processo
do
raciocínio
é
marcado
por
regras
lúdicas,
ou
seja,
se
é
válido
apenas
dentro
de
uma
certa
área
na
qual
é
aceite
a
obrigatoriedade
dessas
regras.
Poder-se-á
afirmar
que
em
toda
lógica,
e
especialmente
no
silogismo,
há
sempre
um
acordo
tácito
no
sentido
de
aceitar
a
validade
dos
termos
e
conceitos,
tal
como
se
faz
com
as
peças
do
jogo
de
xadrez?
Prefiro
que sejam
outros
a
resolver
este
problema.
O
que
aqui
se
pretende
é
apenas
indicar
com
extrema
brevidade
as
indubitáveis
características
lúdicas
da
arte
da
declamação
e
da
discussão
que
se
seguiu
à
época
helênica.
Não
é
necessária
grande
cópia
de
pormenores,
pois
o
fenômeno
sempre
se
verifica
sob
as
mesmas
formas,
e
sua
evolução
no
mundo
ocidental
depende
em
grande
parte
do
exemplo
grego.
O
introdutor
da
arte
da
declamação
e
da
retórica
na
vida
e
na
literatura
romana
foi
Quintiliano.
Foi
uma
moda
que
se
espalhou
muito,
para
além
das
escolas
de
retórica
da
Roma
imperial.
Dion
Crisostom,
mestre
de
retórica,
refere-se
aos
filósofos
de
rua
que,
como
o
tipo
mais
vulgar
do
sofista,
enchiam
a
cabeça
dos
escravos
e
dos
marinheiros
com
sua
mistura
de
aforismos,
piadas
e
conversa
fiada,
que
encerrava
uma
propaganda
subversiva.
Daí
veio
o
decreto
de
Vespasiano,
banindo
de
Roma
todos
os
filósofos.
Mas
o
espírito
popular
continuava
apreciando
os
sofismas
que
estavam
em
moda.
Constantemente
os
espíritos
mais
graves
lançavam
seus
avisos;
Santo
Agostinho
adverte
contra
"a
nociva
ambição
e
os
esforços
pueris
para
apanhar
em
falso
o
adversário"32.
Piadas
como
esta:
"Você
tem
cornos,
pois
se
não
perdeu
como
algum
é
porque
ainda
os
tem!"
ecoam
através
de
toda
a
literatura
das
Escolas,
parecendo
nunca
ter
perdido
seu
sabor.
Certamente
era
difícil
para
a
maioria
detectar
a
falácia
lógica
em
que
assentavam
essas
proposições.
O
caráter
lúdico
da
filosofia
durante
a
Idade
das
Trevas
verifica-se
na
conversão
dos
visigodos
do
arianismo
ao
catolicismo
em
Toledo,
no
ano
589,
que
assumiu
a
forma
de
um
verdadeiro
torneio
teológico,
com
altos
dignitários
de
ambos
os
lados.
Outro
exemplo
igualmente
flagrante
do
caráter
esportivo
da
filosofia
durante
essa
época
é-nos
dado
pelo
cronista
Richer33
que
narra
um
episódio
da
vida
de
Gerbert,
o
qual
foi
mais
tarde
o
papa
Silvestre
II.
Um
certo
Ortric,
escolástico
da
catedral
de
Magdeburgo,
invejando
a
celebridade
da
sapiência
de
Gerbert,
envia
a
Reims
um
de
seus
subordinados,
encarregado
de
assistir
secretamente
às
lições
de
Gerbert
e
tentar
surpreendê-lo
na
enunciação
de
uma
opinião
falsa,
para
depois
poder
denunciá-lo
ao
imperador
Oton
II.
O
espião
interpreta
mal
os
ensinamentos
de
Gerbert,
e
comunica
aquilo
que
julgou
ter
ouvido.
No
ano
seguinte,
em
980,
o
imperador
arranja
maneira
de
reunir
os
dois
letrados
em
Ravena,
e
leva-os
a
discutir
perante
uma
seleta
assistência
até
que
o
sol
se
ponha
e
os
assistentes
não
possam
mais
de
cansaço.
O
ponto
culminante
da
discussão
foi
quando
Ortric
acusou
o
adversário
de
considerar
a
matemática
uma
parte
da
física34,
quando
na
realidade
Gerbert
havia
afirmado
serem
ambas
equivalentes
e
simultâneas.
Valeria
a
pena
investigar
se
não
haveria
um
caráter
lúdico
fundamental
naquilo
a
que
se
chamou
o
Renascimento
Carolíngeo,
essa
pomposa
exibição
de
erudição,
poesia
e
religiosidade
sentenciosa
cujos
principais
participantes
se
adornavam
com
nomes
clássicos
ou
bíblicos:
Alcuíno
como
Horácio,
Angilberto
como
Homero,
e
o
próprio
imperador
Carlos
Magno
como
David.
A
cultura
de
corte
tem
uma
tendência
especial
para
adotar
a
forma
de
jogo,
dado
o
fato
de
mover-se
dentro
de
um
círculo
restrito.
O
respeito
que
se
sentia
na
presença
do
imperador
era
por
si
só
suficiente
para
impor
toda
a
espécie
de
regras
e
ficções.
Na
Academia
Palatina
de
Carlos
Magno
o
objetivo
expresso
era
o
estabelecimento
de
uma
Athenae
novae,
mas
na
realidade
esta
digna
aspiração
era
suavizada
pelos
mais
elegantes
divertimentos.
Os
cortesãos
competiam
entre
si,
na
composição
de
versos
e
no
sarcasmo
recíproco.
Suas
tentativas
de
atingir
a
elegância
clássica
de
modo
algum
excluíam
a
presença
de
certos
aspectos
de
inspiração
muito
antiga.
"O
que
é
a
escrita?",
pergunta
Pepino,
filho
de
Carlos
Magno,
e
Alcuíno
responde:
"É
a guardiã
da
ciência."
"O
que
é
a
palavra?"
—
"A
traição
do
pensamento."
"Onde
se
originou
a
palavra?"
—
"Na
língua."
"O
que
é
a
língua?"
—
"Um
chicote
no
ar."
"O
que
é
o
ar?"
—
"É
o
guardião
da
vida."
"O
que
é
a
vida?"
—
"A
alegria
dos
felizes,
a
dor
dos
infelizes,
a
espera
pela
morte".
"O
que
é
o
homem?"
—
"O
escravo
da
morte,
o
hóspede
de
um
só
lugar,
um
viajante
que
passa."
Este
tom
não
é
para
nós
inteiramente
desconhecido.
Trata-se
do
velho
jogo
de
perguntas
e
respostas,
do
concurso
de
enigmas,
a
resposta
com
o
sentido
oculto
numa
fórmula.
Em
resumo,
encontramos
aqui
uma
vez
mais
todas
as
características
do
jogo
do
saber,
o
mesmo
dos
antigos
hindus,
dos
árabes
pré-islâmicos
e
dos
escandinavos.
Cerca
do
final
do
século
XI,
as
jovens
nações
do
ocidente
foram
invadidas
por
uma
sede
insaciável
de
conhecimento
da
vida
e
de
todas
as
coisas
existentes.
Essa
sede
de
conhecimento
vai
pouco
depois
receber
uma
forma
institucional
com
a
Universidade,
uma
das
maiores
criações
da
civilização
medieval,
e
vai
atingir
na
escolástica
sua
mais
elevada
expressão.
Os
inícios
desta
intensa
fermentação
espiritual
foram
marcados
por
aquela
agitação
quase
febril
que
parece
ser
inseparável
de
todas
as
renovações
fundamentais
da
cultura.
Nessas
épocas,
é
inevitável
que
o
elemento
agonístico
adquira
grande
preponderância
e
se
manifeste
ao
mesmo
tempo
das
mais
diversas
maneiras.
O
esporte
que
consistia
em
vencer
o
adversário
por
meio
da
razão
ou
do
poder
da
palavra
tornou-se
algo
comparável
à
profissão
das
armas.
O
surgimento
dos
torneios
em
sua
forma
mais
antiga
e
mais
violenta,
quer
por
grupos
de
cavaleiros
errando
pelos
campos
e
dedicando-se
à
destruição
recíproca,
quer
por
cavaleiros
solitários
em
busca
de
adversários
à
altura
(os
precursores
históricos
do
cavaleiro
errante
mais
tarde
popularizado
pela
literatura),
coincidiu
no
tempo
com
a
epidemia,
deplorada
por
Pedro
Damião,
de
controversistas
vagabundos
que
andavam
por
todo
o
lado
em
busca
de
vitórias,
tal
como
os
sofistas
gregos
de
antanho.
Nas
Escolas
do
século
XII,
reinava
a
mais
violenta
rivalidade,
que
chegava
aos
maiores
extremos
do
insulto
e
da
calúnia.
Os
autores
eclesiásticos
dão-nos
por
vezes
um
rápido
esboço
da
vida
nas
escolas
dessa
época,
onde
salta
aos
olhos
a
importância
dos
jogos
de
argúcia
e
de
argumentação.
Alunos
e
mestres
procuram
enganar-se
uns
aos
outros
com
"armadilhas
de
palavras
e
redes
de
sílabas",
com
mil
e
um
estratagemas
e
sutilezas.
Os
mestres
mais
famosos
são
idolatrados,
cada
um
se
gaba
de
tê-los
visto
ou
de
ter
estudado
sob
sua
direção35.
Alguns
deles
ganham
muito
dinheiro,
tal
como
os
sofistas
da
Grécia.
Roscelino,
em
sua
venenosa
calúnia
contra
Abelardo,
descreve
este
último
como
estando
a
contar
todas
as
noites
o
dinheiro
ganho
com
seus
falsos
ensinamentos,
e
a
gastá-lo
todos
os
dias
em
deboches.
O
próprio
Abelardo
declara
que
se
dedicou
a
seus
estudos
apenas
para
ganhar
dinheiro,
e
que
na
realidade
ganhou
muitíssimo.
Sua
brusca
passagem
do
ensino
da
física
(ou
seja,
da
filosofia)
para
a
interpretação
das
Sagradas
Escrituras
foi
o
resultado
de
uma
aposta
feita
com
seus
colegas,
que
o
haviam
desafiado
a
isso36
.
Desde
sempre
preferira
as
armas
da
dialética
às
da
guerra,
e
viajou
por
todos
os
lugares
onde
florescia
a
arte
da
eloquência
até
o
momento
em
que
"instalou
o
acampamento
de
sua
escola"
no
monte
de
Santa
Genoveva,
para
a
partir
daí
"assediar"
seu
rival,
que
ocupava
a
cátedra
de
Paris37.
Esta
mistura
de
retórica,
guerra
e
jogo
verifica-se
igualmente
nas
competições
escolásticas
entre
os
teólogos
muçulmanos38.
A
competição
pode
ser
considerada
um
dos
traços
mais
marcantes
de
toda
a
evolução
da
escolástica
e
das
universidades.
Durante
muito
tempo
a
moda
dominante
nas
discussões
filosóficas
foi
o
problema
dos
"universais", que
era
sempre
seu
tema
central
e
conduziu
a
uma
profunda
divisão
entre
realistas
e
nominalistas.
Tal
fato
foi
certamente
determinado
por
fatores
essencialmente
agonísticos,
originando-se
na
necessidade
fundamental
de
constituir
partidos
opostos
a
propósito
de
todas
as
questões
controversas.
O
espírito
de
partido
é
um
elemento
inseparável
do
desenvolvimento
cultural.
É
possível
que
muitas
vezes
o
problema
que
é
objeto
da
discussão
possua
uma
importância
relativamente
pequena,
embora
no
caso
referido
ele
fosse
absolutamente
crucial
dentro
da
problemática
filosófica,
e
a
controvérsia
a
que
deu
origem
até
hoje
não
tenha
sido
resolvida.
Todo
o
funcionamento
da
Universidade
medieval
era
eminentemente
agonístico
e
lúdico.
As
intermináveis
querelas,
correspondendo
às
atuais
discussões
científicas
e
filosóficas
em
revistas
etc.,
o
solene
cerimonial
que
ainda
hoje
é
uma
característica
tão
importante
na
vida
universitária,
o
agrupamento
dos
especialistas
em
nationes,
as
divisões
e
subdivisões,
os
cismas,
os
abismos
intransponíveis
entre
as
diversas
orientações,
todos
estes
fenômenos
são
próprios
da
esfera
da
competição
e
das
regras
lúdicas.
Erasmo
tem
plena
consciência
disso
no
momento
em
que
lamenta,
numa
carta
a
seu
adversário
Noel
Bédier,
a
estreiteza
de
espírito
das
Escolas,
que
simplesmente
se
limitam
a
trabalhar
sobre
o
material
que
lhes
foi
deixado
por
seus
predecessores,
e
nas
diversas
controvérsias
recusam
tomar
em
consideração
todo
ponto
de
vista
que
não
esteja
de
acordo
com
suas
posições
habituais.
"Em
minha
opinião",
escreve
ele,
"é
perfeitamente
desnecessário
que
vocês
procedam
nas
Escolas
exatamente
da
mesma
maneira
que
quando
jogam
cartas
ou
dados,
fazendo
que
todo
e
qualquer
desrespeito
às
regras
estabelecidas
seja
suficiente
para
estragar
o
jogo.
Na
discussão
dos
problemas
culturais,
pelo
contrário,
creio
que
não
há
nada
de
escandaloso
ou
temerário
em
apresentar
ideias
novas"39.
Toda
forma
de
conhecimento,
incluindo,
evidentemente,
a
filosofia,
é
por
natureza
profundamente
polêmica,
e
é
impossível
compreender
qualquer
polêmica
a
não
ser
em
termos
agonísticos.
As
épocas
em
que
a
humanidade
fez
as
descobertas
culturais
mais
importantes
foram
geralmente
marcadas
pelas
mais
violentas
controvérsias.
Foi
o
que
se
deu
no
século
XVII,
no
momento
em
que
as
ciências
da
natureza
passaram
por
uma
fase
de
glorioso
esplendor,
ao
mesmo
tempo
que
se
verificava
um
enfraquecimento
da
autoridade
dos
autores
antigos
e
um
acentuado
declínio
da
religiosidade.
Todos
passaram
a
ocupar
posições
bem
definidas,
cada
um
fazia
parte
de
uma
ou
outra
das
facções
em
que
se
dividia
o
campo
do
saber.
Era
preciso
ser
cartesiano
ou
anticartesiano,
contra
Newton
ou
a
favor
dele,
tomar
partido
por
les
modernes
ou
por
les
anciens40,
contra
ou
a
favor
do
achatamento
da
Terra
nos
pólos,
da
vacinação
etc.
No
século
XVIII,
verificou-se
um
intenso
comércio
intelectual
entre
os
sábios
de
diversos
países,
embora
felizmente
as
limitações
tecnológicas
dessa
época
tenham
impedido
a
exuberância
caótica
de
material
impresso
que
atualmente
é
uma
característica
tão
aflitiva.
Era
uma
época
que
se
prestava
maravilhosamente
às
lutas
intelectuais
mais
sérias
ou
mais
superficiais.
Juntamente
com
a
música,
a
peruca,
o
racionalismo
frívolo,
a
graça
do
estilo
rococó
e
o
encanto
dos
salões,
esses
combates
intelectuais
constituem
um
aspecto
essencial
dessa
ludicidade
que
todos
reconhecem
no
século
XVIII,
e
que
frequentemente
nos
sentimos
tentados
a
invejar.
Notas do capítulo 9
1
Platão,
Hípias
menor,
368-9.
2
V.
acima,
p.
121.
3
Eutidemo
303
A.
4
πληγέιδ,
ibid.,
303
B.
E.
5
Protágoras
316
D.
6
Paideia,
I,
p.
221.
7
H.
Gomperz,
Sophistik
und
Rethorik,
Leipzig,
1912,
pp.
17,
33.
8
Vorsokratiker,
p.
344.
9
Como
em
Jaeger,
ibid.,
p.
398.
10
Cf.
R.
W.
Livingstone,
Greek
Ideais
and
Modern
Life,
p.
64.
11
Cf.
Sofista,
261
B.
12
Em
francês
no
texto.
(N.
do
T.)
13
Prantl,
Geschichte
der
Logik,
I,
p.
492.
14
Eutidemo,
293
C.
15
Crátilo,
386
D
16
Eutidemo,
287
B
283
B.
17
Solista,
231
A.
18
Parmênides,
137
B.
19
Ibid..
142
B,
155
E,
165
E.
20
Cf.
Prantl,
op.
cit.,
I,
p.
9.
21
Aristóteles,
Poética,
1447
B.
22
H.
Reich,
Der
Mimux.
Berlim.
1903,
p.
354.
23
Sofista,
242
CD:
cf.
Crátilo,
440.
24
Ibid.,
406
C.
25
Ibid.,
384
B
26
Ibid.,
409
D.
27
Parmênides,
128
E.
28
Górgias
484
C;
cf.
Menexeno
234,
e
também
L.
Meridier,
Platon.
Oeinres
completei.
V,
1,
Paris,
1931.
p.
52.
29
Prantl,
op.
cit.,
p.
494.
30
Górgias
483
A
—
484
D.
31
H.
L.
Miéville.
Nietzsche
et
la
volonté
de
puissance,
Lausanne,
1934;
Charles
Andler,
Nietzsche:
sa
vie
et
sa
pensée,
Paris,
1920,
I,
p.
141;
III,
p.
162.
32
D
e
Doctrina
Christiana,
11,
p.
31.
33
Historiarum
liber
(Mon.
Germ.
Hist.
Scriptores),
IV,
111,
c.
55-65.
34
Ambas
as
palavras
devem
ser
entendidas
no
sentido
medieval.
35
Hugo
de
Sancto
Victore,
Didascalia,
Migne
P.
L.
t.
176,
772
D,
803;
De
Vanilate
Mundi,
ibid..
709;
John
of
Salisbury,
Metalogicus,
1.
C.
3:
PoHcraticus,
V,
C.
15.
36
Abelardo,
Opera,
I,
pp.
7,
9,
19;
11,
9.
3.
37
Ibid.,
I,
p.
4
38
Esta
é
uma
informação
que
devo
agradecer
ao
Professor
C.
Snouck
Hurpronje.
39
Erasmi
opus
epist..
ed.
Allen,
VI,
Nº
1581,
621
e
ss.
40
Em
francês
no
texto.
(N.
do
T.)
10.
Formas
Lúdicas
da
Arte
Conforme
vimos,
o
elemento
lúdico
é
de
tal
modo
inerente
à
poesia,
todas
as
formas
de
expressão
poética
estão
de
tal
modo
ligadas
à
estrutura
do
jogo,
que
é
forçoso
reconhecer
entre
ambos
a
existência
de
um
laço
indissolúvel.
O
mesmo
se
verifica,
e
ainda
em
mais
alto
grau,
quanto
à
ligação
entre
o
jogo
e
a
música.
Salientamos
num
capítulo
anterior
que
em
diversas
línguas
se
chama
"jogo"
à
manipulação
dos
instrumentos
musicais,
como
na
língua
árabe,
por
um
lado,
e
por
outro,
nas
línguas
germânicas
e
eslavas.
Dado
que
dificilmente
poderia
atribuir-se
a
uma
influência
ou
a
uma
simples
coincidência
esta
identidade
entre
oriente
e
ocidente,
torna-se
necessário
supor
a
existência
de
alguma
profunda
razão
psicológica,
para
explicar
esse
símbolo
tão
claro
da
afinidade
entre
a
música
e
o
jogo.
Por
mais
natural
que
nos
pareça
essa
afinidade,
está
longe
de
ser
fácil
explicá-la
de
maneira
clara,
e
o
máximo
que
podemos
fazer
é
enumerar
os
elementos
que
ambos
possuem
em
comum.
Conforme
dissemos,
o
jogo
situa-se
fora
da
sensatez
da
vida
prática,
nada
tem
a
ver
com
a
necessidade
ou
a
utilidade,
com
o
dever
ou
com
a
verdade.
Ora,
tudo
isto
pode
aplicar-se
também
à
música.
Além
disso,
as
formas
musicais
são
determinadas
por
valores
que
transcendem
as
ideias
lógicas,
que
transcendem
até
nossas
ideias
sobre
o
visível
e
o
tangível.
Esses
valores
musicais
só
podem
ser
compreendidos
através
das
designações
que
a
eles
aplicamos,
termos
específicos
como
ritmo
e
harmonia,
que
se
aplicam
igualmente
ao
jogo
e
à
poesia.
Não
resta
dúvida
que
o
ritmo
e
a
harmonia
são
fatores
comuns,
em
sentido
exatamente
idêntico,
à
poesia,
à
música
e
ao
jogo.
Mas,
enquanto
na
poesia
as
próprias
palavras
elevam
o
poema,
pelo
menos
em
parte,
do
jogo
puro
e
simples
para
a
esfera
da
ideia
e
do
juízo,
a
música
nunca
chega
a
sair
da
esfera
lúdica.
É
precisamente
devido
à
sua
íntima
relação,
ou
antes,
à
sua
indissolúvel
união
com
a
recitação
musical
que
a
poesia
desempenha
uma
função
litúrgica
e
social
tão
importante
nas
culturas
arcaicas.
Todo
ritual
autêntico
é
obra
de
canto,
dança
e
jogo.
Atualmente
perdeu-se
o
sentido
do
jogo
ritual
e
sagrado,
nossa
civilização
exaustou-se
com
a
idade,
tornando-
se
excessivamente
sofisticada.
Mas
nada
contribui
mais
para
nos
fazer
recuperar
esse
sentido
como
a
sensibilidade
musical.
Sentindo
a
música,
somos
capazes
também
de
sentir
o
ritual.
Quando
se
ouve
música,
quer
ela
se
destine
a
exprimir
ideias
religiosas
quer
não,
há
uma
fusão
entre
a
percepção
do
belo
e
o
sentimento
do
sagrado,
na
qual
é
inteiramente
dissolvida
a
distinção
entre
o
jogo
e
a
seriedade.
É
importante
compreender
exatamente
em
que
medida
e
por
que
razões
as
ideias
de
jogo,
trabalho
e
prazer
estético
possuem
relações
inteiramente
diferentes
no
pensamento
grego
e
no
nosso.
A
palavra
μουσιχη
tem
uma
amplitude
muito
maior
que
nossa
"música".
Além
de
abranger
o
canto
e
a
dança
com
acompanhamento
musical,
abrangia
também
todas
as
artes
e
habilidades
presididas
por
Apoio
e
as
Musas.
Estas
são
chamadas
artes
"musicais",
para
distingui-las
das
artes
plásticas
e
mecânicas
que
não
pertencem
ao
domínio
das
Musas.
No
pensamento
grego,
tudo
o
que
é
"musical"
se
relaciona
intimamente
com
o
ritual,
sobretudo
com
as
festas,
nas
quais,
evidentemente,
o
ritual
possui
sua
função
específica.
Talvez
não
haja
uma
descrição
mais
lúcida
das
relações
entre
o
ritual,
a
dança,
a
música
e
o
jogo
do
que
a
das
Leis
de
Platão1.
Os
deuses,
diz
ele,
cheios
de
piedade
pela
raça
humana,
condenada
ao
sofrimento,
ordenaram
que
se
realizassem
as
festas
de
ação
de
graças
como
descanso
para
suas
preocupações,
e
deram-lhes
Apoio,
as
Musas
e
Dionísio
como
companheiros
dessas
festas,
a
fim
de
que
essa
divina
comunidade festiva
restabelecesse
a
ordem
das
coisas
entre
os
homens.
A
isto
segue-se
a
tão
citada
explicação
platônica
do
jogo,
como
todas
as
criaturas
jovens
são
incapazes
de
conservar
em
repouso
seus
corpos
e
suas
vozes,
como
precisam
movimentar-se
constantemente
e
fazer
ruídos
de
alegria,
precisam
correr,
saltar,
dançar
e
emitir
toda
a
espécie
de
gritos.
Mas,
enquanto
todas
as
outras
criaturas
desconhecem
a
distinção
entre
a
ordem
e
a
desordem,
aos
homens,
os
mesmos
deuses
que
lhes
foram
dados
como
companheiros
da
dança
concederam
a
percepção
do
ritmo
e
da
harmonia,
a
qual
é
invariavelmente
acompanhada
de
prazer.
Não
seria
possível
indicar
de
maneira
mais
clara
a
existência
de
uma
relação
entre
a
música
e
o
jogo.
Mas
esta
ideia,
apesar
de
sua
importância,
tem
no
pensamento
grego
um
obstáculo
constituído
pela
peculiaridade
semântica
a
que
anteriormente
fizemos
referência,
o
fato
de
a
palavra
que
designa
o
jogo
—
παιδια
—
ser
sempre,
devido
a
sua
etimologia,
tomada
no
sentido
de
jogo
de
crianças,
de
infantilidade.
Portanto,
foi
preciso
que
as
formas
mais
elevadas
fossem
expressas
por
termos
específicos
como
άγώυ,
competição,
σχολάζειν,
tomar
o
seu
tempo,
preguiçar,
διαγώγη
(à
letra,
"passar",
mas,
de
maneira
aproximada,
podendo
ser
traduzido
como
"passatempo")2,
palavras
de
onde
se
encontra
inteiramente
ausente
o
elemento
lúdico
essencial.
Foi
assim
que
o
espírito
grego
não
conseguiu
realizar
a
unidade
fundamental
de
todas
estas
ideias
num
único
conceito
geral,
como
na
palavra
latina
ludus,
claramente
concebida,
e
nas
palavras
que
designam
o
jogo
nas
línguas
europeias
mais
modernas.
É
por
essa
razão
que
Platão
e
Aristóteles
precisam
alongar-se
tanto
sobre
o
problema
de
saber
se
e
até
que
ponto
a
música
é
mais
do
que
jogo.
O
texto
platônico
acima
referido
continua
como
segue:3
"Aquilo
que
não
encerra
utilidade,
nem
verdade,
nem
valor
simbólico,
mas
também
não
acarreta
consequências
nefastas,
pode
ser
apreciado
mediante
o
critério
do
encanto
(
xάφιδ
)
que
possui
e
pelo
prazer
que
provoca.
Esse
prazer,
dado
que
não
tem
como
consequência
um
bem
ou
um
mal
dignos
de
nota,
constitui
um
jogo
—
παιδιά."
Todavia,
convém
notar
que
Platão
se
refere
apenas
aos
recitais
de
música,
isto
é,
à
música
tal
como
hoje
a
concebemos.
Em
seguida,
acrescenta
que
devemos
procurar
na
música
coisas
mais
elevadas
do
que
este
prazer;
mas
passemos
agora
para
Aristóteles4:
"Não
é
fácil
determinar
a
natureza
da
música,
assim
como
o
proveito
que
tiramos
de
seu
conhecimento.
Talvez
seja
por
causa
do
jogo5
e
da
recreação
que
desejamos
a
música
tal
como
desejamos
dormir
e
beber,
que
também
não
são
em
si
mesmos
coisas
importantes
ou
sérias
(σπουδαια)
mas
agradáveis
e
capazes
de
afastar
as
preocupações.
É
certo
que
muitos
usam
a
música
para
este
fim
e
que
a
estas
três
coisas,
a
música,
a
bebida
e
o
sono,
acrescentam
a
dança.
Ou
deveríamos
antes
dizer
que
a
música
conduz
à
virtude
na
medida
em
que,
tal
como
a
ginástica,
é
capaz
de
exercitar
o
corpo,
alimenta
uma
certa
ética
e
nos
permite
gozar
as
coisas
de
maneira
adequada?
Ou
por
último
[o
que
é
uma
terceira
função,
segundo
Aristóteles],
não
contribuirá
ela
para
a
recreação
mental
(διαγώγη)
e
para
a
aquisição
de
conhecimentos
(φφονησι)?"
Esta
palavra
διαγώγη
é
extremamente
significativa.
À
letra,
designa
o
"passar"
ou
o
"gastar"
do
tempo,
mas
traduzi-la
por
"passatempo"
só
é
aceitável
quando
se
tem
perante
o
trabalho
e
o
ócio
a
mesma
atitude
que
Aristóteles.
"Hoje
em
dia,"
diz
ele6
a
maior
parte
das
pessoas
fazem
música
por
prazer,
mas
os
antigos
lhe
atribuíam um
lugar
na
educação
(παιδεια),
porque
a
Natureza
não
quer
apenas
que
trabalhemos
bem,
quer
igualmente
que
utilizemos
bem
o
ócio
(σχολαζειν
δανασθαι
καλω
)".
Para
Aristóteles,
a
preguiça
ou
ócio
é
o
princípio
do
universo.
É uma
coisa
preferível
ao
trabalho,
e
é,
sem
dúvida,
o
fim
(τελοδ)
de
todo
trabalho.
Esta
inversão
de
uma
relação
por
nós
bem
conhecida
pode
parecer
estranha
para
quem
não
souber
que
na
Grécia
o
homem
livre
não
precisava
trabalhar
para
ganhar
a
vida,
e
portanto
dispunha
de
tempo
para
dedicar-se
a
nobres
ocupações
de
caráter
educativo.
Para
ele,
o
problema
era
como
ocupar
seu
σχολη
,
seu
tempo
livre.
Não
deveria
ser
no
jogo,
porque
nesse
caso
o
jogo
seria
o
fim
último
da
existência
e
isso
para
Aristóteles
era
impossível,
pois
a
παιδια
pura
e
simples
não
passa
de
brincadeira
infantil.
O
jogo
pode
servir
para
descansar
do
trabalho,
como
uma
espécie
de
tônico,
na
medida
em
que
dá
repouso
à
alma.
Mas
o
lazer
não
parece
conter
toda
a
alegria
nem
todo
o
prazer
da
vida.
Ora
esta
felicidade,
ou
seja,
o
fim
da
necessidade
de
lutar
por
aquilo
que
não
se
tem,
é
o
telos.
Mas
nem
todos
os
homens
a
encontram
nas
mesmas
coisas,
e
aliás
ela
é
superior
quando
aqueles
que
a
gozam
são
melhores
e
quando
suas
aspirações
são
mais
nobres.
Portanto,
fica
claro
que
precisamos
educar-nos
para
esta
diagoguê
e
aprender
certas
coisas,
mas
não,
note-se
bem,
em
nome
do
trabalho,
e
sim
em
nome
delas
próprias.
Era
por
este
motivo
que
nossos
antepassados
recomendavam
a
música
como
paideia,
como
educação,
cultura,
como
algo
que
não
é
necessário
nem
útil,
como
ler
e
escrever,
mas
serve
simplesmente
para
gastar
o
tempo
livre.
Verificamos
nesta
exposição
uma
distinção
entre
o
jogo
e
a
seriedade
muito
diferente
da
nossa,
e
um
critério
de
avaliação
de
ambos
que
também
não
é
o
mesmo
que
o
nosso
A
diagoguê
adquire
imperceptivelmente
o
significado
daquelas
preocupações
intelectuais
e
estéticas
que
são
próprias
do
homem
livre.
As
crianças,
diz
Aristóteles7,
não
são
ainda
capazes
dela,
pois
a
diagoguê
é
um
fim
último,
uma
perfeição,
e
a
perfeição
é
inacessível
ao
que
é
imperfeito.
O
gozo
da
música
aproxima-se
desse
fim
último
da
ação,
devido
ao
fato
de
não
ser
procurado
em
função
de
um
bem
futuro,
mas
em
função
de
si
mesmo.
Esta
concepção
da
música
coloca-se
numa
situação
intermédia
entre
um
nobre
jogo
e
a
"arte
pela
arte".
Todavia,
não
podemos
com
verdade
afirmar
que
o
ponto
de
vista
de
Aristóteles
dominava
a
concepção
grega
da
natureza
e
do
significado
da
música.
Havia
um
outro
ponto
de
vista,
mais
simples
e
mais
popular,
que
atribuía
à
música
uma
função
técnica,
psicológica
e
sobretudo
moral
perfeitamente
definida.
Pertencia
às
artes
miméticas,
e
a
consequência
dessa
mimese
é
despertar
sentimentos
éticos
de
caráter
positivo
ou
negativo8
.
Cada
melodia,
cada
tom
e
cada
atitude
na
dança
representa
alguma
coisa,
revela
ou
retrata
alguma
coisa,
e
conforme
a
coisa
retratada
seja
boa
ou
má,
bela
ou
feia,
assim
também
a
música
será
qualificada.
É
nisto
que
reside
seu
valor
ético
e
educativo,
pois
a
experiência
da
mimese
desperta
os
sentimentos
imitados9.
É
assim
que
as
melodias
olímpicas
despertam
o
entusiasmo,
e
outros
ritmos
e
melodias
sugerem
a
cólera,
a
calma,
a
coragem,
a
contemplação
etc.
Enquanto
os
sentidos
do
tato
e
do
gosto
não
têm
nenhum
efeito
ético,
e
o
da
vista
só
tem
muito
pouco,
a
melodia,
por
sua
própria
natureza,
exprime
um
ethos.
Os
diversos
modos,
em
especial,
são
veículos
de
significados
éticos.
O
modo
lídio
produz
tristeza,
e
o
modo
frígido
acalma;
de
maneira
semelhante
a
flauta
excita
etc.,
tendo
cada
instrumento
uma
função
ética
diferente.
Para
Platão,
mimesis
é
um
termo
geral
que
descreve
a
atitude
espiritual
do
artista10.
O
imitador,
mimetes,
ou
seja,
tanto
o
artista
criador
como
o
executante,
não
sabe
se
a
coisa
que
imita
é
boa
ou
má.
Para
ele a
mimesis
é
um
simples
jogo,
não
é
trabalho
sério11.
Isto
acontece
mesmo
com
os
poetas
trágicos,
afirma
ele;
eles
também
são
mimetikoi,
imitadores.
Temos
que
deixar
de
lado
um
problema
pouco
claro,
o
de
saber
que
significa
realmente
esta
definição
um
tanto
depreciadora
do
trabalho
criador.
Para
nós
importa
apenas
que
Platão
entendia
a
criatividade
como
jogo.
Esperamos
que
esta
digressão
sobre
o
valor
atribuído
a
música
pelos
gregos
tenha
mostrado
claramente
como,
em
seu
esforço
para
definir
a
natureza
e
a
função
da
música,
o
pensamento
humano
sempre
caminhou
em
direção
à
esfera
do
puro
jogo.
Este
fato
fundamental,
de
que
toda
atividade
musical
possui
um
caráter
essencialmente
lúdico,
é
sempre
implicitamente
aceite,
embora
nem
sempre
seja
explicitamente
formulado.
Nas
épocas
culturalmente
mais
primitivas,
as
diversas
propriedades
da
música
eram
distinguidas
e
definidas
com
uma
certa
ingenuidade
rude.
Os
homens
exprimiam
o
arrebatamento
provocado
pela
música
sagrada
em
termos
de
coros
e
esferas
celestes
etc.
Nessas
épocas,
além
de
sua
função
religiosa,
a
música
era
louvada
sobretudo
como
um
passatempo
edificante,
como
um
artifício
sublime,
ou
simplesmente
como
um
divertimento
agradável.
Só
bem
tardiamente
a
música
passou
a
ser
apreciada
e
abertamente
reconhecida
como
algo
extremamente
pessoal,
fonte
de
algumas
das
experiências
emocionais
humanas
mais
profundas
e
uma
das
coisas
mais
belas
da
vida.
Durante
muito
tempo
teve
uma
função
puramente
social
e
lúdica
e,
embora
a
competência
técnica
dos
executantes
fosse
muito
admirada,
os
compositores
eram
pouco
considerados,
e
sua
arte
era
classificada
entre
as
tarefas
domésticas.
Aristóteles
considera-os
gente
de
baixa
extração,
e
quase
até
nossa
época
sempre
foram
uma
espécie
de
vagabundos,
juntamente
com
os
jograis,
os
acrobatas,
os
atores
etc.
No
século
XVII,
os
príncipes
tinham
seus
músicos
tal
como
tinham
seus
estábulos,
e
a
orquestra
da
corte
era
um
assunto
doméstico
entre
outros.
Sob
Luís
XIV,
a
musique
du
roi
exigia
o
cargo
de
compositor
permanente,
e
os
vingt-quatre
violons
do
rei
eram
também
atores.
Um
dos
músicos,
Bocan,
também
era
mestre
de
dança,
e
todo
mundo
sabe
que
mesmo
Haydn
ainda
usava
libre
na
corte
dos
Esterházy
e
diariamente
recebia
suas
ordens
do
príncipe.
Se
por
um
lado
o
público
aristocrático
dessa
época
era
sem
dúvida
extremamente
culto,
por
outro
lado
eram
extremamente
reduzidos
sua
reverência
pela
majestade
da
arte
e
seu
respeito
pelos
executantes.
A
atitude
atual
do
público
de
concertos,
de
silêncio
sacramental
e
respeito
mágico
pelo
maestro,
data
de
há
bem
pouco
tempo.
As
gravuras
que
retratam
concertos
no
século
XVIII
mostram
o
público
entregue
à
conversação
elegante,
e
ainda
há
trinta
anos
era
frequente
na
vida
musical
francesa
o
espetáculo
ser
interrompido
por
críticas
dirigidas
à
orquestra
ou
ao
maestro.
Á
música
era
ainda
em
grande
parte
um
divertimento,
e
o
que
nela
era
mais
admirado
era
o
virtuosismo.
De
maneira
alguma
as
criações
dos
compositores
eram
consideradas
como
sua
propriedade
sagrada,
sobre
a
qual
tinha
direitos
inalienáveis;
os
intérpretes
abusavam
de
tal
maneira
da
cadência
livre
que
tiveram
de
ser
tomadas
certas
medidas,
como
por
exemplo
no
caso
de
Frederico
o
Grande,
que
proibiu
os
cantores
de
procurarem
embelezar
as
composições
a
ponto
de
alterar
seu
caráter
original.
Poucas
são
as
atividades
humanas
tão
imbuídas
de
espírito
competitivo
como
a
música,
e
assim
foi
sempre
desde
o
duelo
entre
Marsyas
e
Apolo.
Wagner
imortalizou
estas
batalhas
vocais
em
seus
Meistersinger.
E
há
exemplos
posteriores
à
época
dos
Meistersinger,
como
a
competição
entre
Handel
e
Scarlatti
promovida
pelo
cardeal
Ottoboni
em
1709,
sendo
o
cravo
e
o
órgão
as
armas
do
duelo.
Em
1717,
Augusto
o
Forte,
rei
da
Saxônia
e
da
Polônia,
tentou
organizar
uma
competição
entre
Bach
e
um
tal
Marchand,
mas
este
último
não
compareceu.
Em 1726,
toda
a
sociedade
londrina
estava
em
alvoroço
por
causa
da
competição
entre
as
duas
cantoras
italianas
Faustina
e
Cuzzoni.
Chegou
a
haver
gente
esbofeteada,
e
as
vaias
eram
frequentes.
É
extraordinária
a
facilidade
com
que
na
vida
musical
se
formam
grupos
e
facções.
O
século
XVIII
está
cheio
de
duelos
deste
gênero,
Bononcini
contra
Handel,
Glück
contra
Piccini,
os
Bouffons
parisienses
contra
a
Ópera.
O
partidarismo
musical
chega,
às
vezes,
a
originar
uma
longa
e
violenta
querela,
como
aquela
que
se
estabeleceu
entre
wagnerianos
e
brahmsianos.
O
romantismo,
que
sob
tantos
aspectos
estimulou
nossa
consciência
estética,
foi
também
o
principal
promotor
do
reconhecimento,
em
círculos
cada
vez
mais
amplos,
da
música
como
uma
das
coisas
mais
valiosas
da
vida.
Mas
esse
reconhecimento
não
implicou
o
desaparecimento
de
qualquer
das
funções
mais
antigas
da
música,
e
o
elemento
agonístico
continua
tende
a
mesma
importância
de
sempre.
Encontrei
nos
jornais
a
notícia
de
um
concurso
internacional
que
se
realizou
pela
primeira
vez
em
Paris
em
1937:
o
prêmio,
oferecido
pelo
falecido
senador
Henry
de
Jouvenel,
se
destinava
à
melhor
interpretação
do
6º
Noturno
para
piano
de
Fauré.
Se
é
certo
que
tudo
o
que
se
relaciona
com
a
música
está
situado
no
interior
da
esfera
lúdica,
o
mesmo
se
pode
afirmar,
e
em
mais
alto
grau,
da
irmã
gêmea
da
música,
a
dança.
Quer
se
trate
das
danças
sagradas
ou
mágicas
dos
selvagens,
ou
das
danças
rituais
gregas,
ou
da
dança
do
rei
David
diante
da
arca
da
Aliança,
ou
simplesmente
da
dança
como
um
dos
aspectos
de
uma
festa,
ela
é
sempre,
em
todos
os
povos
e
em
todas
as
épocas,
a
mais
pura
e
perfeita
forma
de
jogo.
É
certo
que
nem
todas
as
formas
de
dança
apresentam
essa
qualidade
lúdica
em
toda
a
sua
plenitude.
Esta
se
verifica
mais
facilmente
na
dança
de
roda
ou
de
figura,
mas
também
está
presente
na
dança
individual,
como
aliás
acontece
em
todos
os
casos
em
que
a
dança
é
uma
exibição
de
movimento
rítmico,
como
no
minueto
ou
na
quadrilha.
A
substituição
das
danças
de
roda
e
de
figura
pela
dança
a
dois,
quer
assuma
a
forma
das
voltas
da
valsa
e
da
polca
ou
os
movimentos
para
trás
e
para
a
frente
e
mesmo
as
acrobacias
da
dança
atual,
deve
talvez
ser
considerada
um
sintoma
de
decadência
cultural.
Há
boas
razões
para
afirmar
isto.
que
podem
ser
encontradas
na
história
da
dança
e
nos
elevados
padrões
de
beleza
e
de
estilo
a
que
ela
chegou
em
épocas
mais
antigas,
e
ainda
hoje
chega
nos
casos
em
que
a
dança
assume
uma
forma
artística,
como
no
ballet.
Mas,
quanto
ao
resto,
não
há
dúvida
que
as
danças
modernas
tendem
a
fazer
desaparecer
o
elemento
lúdico.
São
tão
íntimas
as
relações
entre
o
jogo
e
a
dança
que
mal
se
torna
necessário
exemplificá-las.
Não
é
que
a
dança
tenha
alguma
coisa
de
jogo,
mas,
sim,
que
ela
é
uma
parte
integrante
do
jogo:
há
uma
relação
de
participação
direta,
quase
de
identidade
essencial.
A
dança
é
uma
forma
especial
e
especialmente
perfeita
do
próprio
jogo.
Passando
da
poesia,
da
música
e
da
dança
para
as
artes
plásticas,
verifica-se
serem
menos
evidentes
as
relações
com
o
jogo.
O
espírito
helênico
viu
com
toda
a
clareza
a
diferença
fundamental
existente
entre
os
dois
campos
da
produção
e
da
experiência
estética,
ao
colocar
algumas
das
artes
sob
a
proteção
das
musas
e
negar
essa
dignidade
a
algumas
outras,
entre
as
quais
se
contam
aquelas
que
classificamos
como
artes
plásticas.
Quando
acontecia
estas
serem
colocadas
sob
a
proteção
divina
era
sob
a
de
Hefesto
ou
da
Atena
Ergane,
a
Atena
do
trabalho.
Os
artistas
plásticos
não
recebiam
uma
admiração
e
uma
atenção
que
se
pudesse
comparar
à
que
era
dedicada
aos
poetas.
Não
quer
isto
dizer
que
as
honras
prestadas
a
um
artista
se
medissem
pelo
fato
de
ele
pertencer
a
uma
Musa
ou
não,
pois
conforme
já
vimos
o
status
social
do
músico,
regra
geral,
era
muito
baixo.
A
distinção
entre
as
artes
plásticas
e
as
artes
musicais
corresponde
grosso
modo
à
aparente
ausência
de
características
lúdicas
nas
primeiras
em
contraste
com
sua
acentuada
presença
nas
segundas.
Não
será
preciso
ir
muito
longe
para
descobrir
a
razão
deste
fato.
Para
se
tornarem
esteticamente
operantes
as
artes
das
Musas
ou
artes
"musicais"
precisam
ser
executadas
perante
um
público.
A
obra
de
arte
desse
tipo,
mesmo
estando
já
composta
ou
escrita,
só
adquire
vida
própria
quando
é
interpretada,
isto
é,
quando
é
objeto
de
uma
representação
ou
productio
no
sentido
literal
do
termo,
quando
é
apresentada
a
um
público.
As
artes
"musicais"
são
fundamentalmente
ação
e
são
apreciadas
enquanto
tais
de
cada
vez
que
a
ação
é
repetida
na
interpretação.
Aparentemente
esta
afirmação
é
desmentida
pelo
fato
de
haver
uma
Musa
especial
para
a
astronomia,
outra
para
a
epopeia
e
outra
para
a
história;
mas
convém
lembrar
que
a
atribuição
de
uma
função
específica
a
cada
uma
das
nove
Musas
foi
obra
de
uma
época
tardia,
e
que
pelo
menos
a
epopeia
e
a
história
(respectivamente
os
domínios
de
Calíope
e
Clio)
originariamente
faziam
parte
da
profissão
do
vales
e
que,
enquanto
tais,
não
se
destinavam
a
ser
lidas
ou
estudadas,
e
sim
a
ser
recitadas
em
estrofes,
com
um
solene
acompanhamento
musical.
Nelas,
a
ação
era
tão
essencial
como
na
música
e
na
dança,
e
tal
como
estas
precisavam
ser
interpretadas.
Além
disso
o
elemento
ação
não
se
perde
quando
se
passa
da
poesia
ouvida
para
a
lida.
Essa
ação,
que
é
a
alma
de
todas
as
artes
protegidas
pelas
Musas,
pode
perfeitamente
receber
o
nome
de
jogo.
O
caso
das
artes
plásticas
é
completamente
diferente.
O
próprio
fato
de
estarem
ligadas
à
matéria
e
às
limitações
formais
que
daí
decorrem
é
suficiente
para
impedir
irremediavelmente
a
liberdade
do
jogo
e
retirar-lhes
aquele
voo
pelos
espaços
de
que
a
música
e
a
poesia
são
capazes.
Quanto
a
este
aspecto
a
situação
da
dança
é
muito
especial,
pois
é
ao
mesmo
tempo
musical
e
plástica:
musical
porque
seus
elementos
principais
são
o
ritmo
e
o
movimento,
e
plástica
porque
está
inevitavelmente
ligada
à
matéria.
Sua
interpretação
depende
das
limitações
do
corpo
humano,
e
sua
beleza
é
a
do
próprio
corpo
em
movimento.
A
dança
é
uma
criação
plástica
como
a
escultura,
mas
apenas
por
um
momento.
Tem
em
comum
com
a
música,
que
a
acompanha
e
que
é
sua
condição
necessária,
o
fato
de
depender
de
sua
capacidade
de
repetição.
Além
desta
oposição
intrínseca,
há
também,
entre
as
artes
plásticas
e
as
artes
"musicais",
uma
oposição
afetiva
e
operacional.
O
arquiteto,
o
escultor,
o
pintor,
o
desenhador,
o
ceramista
e
o
artista
decorativo,
todos
eles
geralmente
gravam
na
matéria
um
certo
impulso
estético
mediante
um
trabalho
longo
e
penoso.
Sua
obra
possui
duração
e
é
constantemente
visível.
Ao
contrário
da
música,
o
efeito
emocional
de
sua
arte
não
depende
de
uma
forma
especial
de
interpretação
pelo
próprio
artista
ou
por
outros.
Uma
vez
terminada,
a
obra,
muda
e
imóvel,
produzirá
seu
efeito
enquanto
houver
olhos
para
contemplá-la.
A
ausência
de
qualquer
espécie
de
ação
pública
para
a
realização
da
obra
de
arte
plástica
parece
não
deixar
lugar
para
o
fator
lúdico.
Por
mais
possuído
que
o
artista
plástico
esteja
por
seu
impulso
criador,
é-lhe
necessário
trabalhar
como
artesão,
com
seriedade
e
atenção,
corrigindo-se
constantemente.
No
momento
da
"concepção",
sua
inspiração
pode
ser
livre
e
veemente,
mas
o
momento
da
execução
depende
da
habilidade
da
mão
doadora
de
forma.
Portanto,
se
na
execução
da
obra
de
arte
plástica
tudo
parece
indicar
a
ausência
do
elemento
lúdico,
em
sua
contemplação
não
há
qualquer
lugar
para
tal
elemento,
pois
onde
não
há
ação
visível
não
pode
haver
jogo.
Se
o
caráter
de
trabalho
produtivo,
de
artesanato
cuidadoso
e
de
indústria
já
diminui
o
fator
lúdico
nas
artes
plásticas,
tal
fato
é
ainda
mais
acentuado
pela
própria
natureza
da
coisa,
que
é
determinada
em
grande
medida
por
sua
finalidade
prática,
a
qual
não
depende
absolutamente
nada
do
impulso
estético.
A
pessoa
encarregada
de
fazer
alguma
coisa
encontra-
se
perante
uma
tarefa
séria
e
de
responsabilidade,
o
que
exclui
qualquer
ideia
de
jogo.
É preciso
construir
um
edifício,
um
templo
ou
uma
residência,
que
valha
por
sua
função
no
ritual
ou
por
sua
adequação
ao
uso
humano.
Ou
então
é
preciso
fazer
um
vaso,
uma
peça
de
vestuário,
uma
imagem,
cada
um
dos
quais
pode
não
corresponder
à
ideia
que
o
objeto
quer
reproduzir
simbolicamente
ou
por
imitação.
Portanto,
a
produção
da
arte
plástica
desenrola-se
completamente
fora
da
esfera
lúdica,
e
sua
exibição
é
necessariamente
parte
de
um
ritual,
de
uma
festividade
ou
de
um
acontecimento
social.
A
inauguração
de
estátuas,
a
colocação
de
pedras
fundamentais,
as
exposições
etc.,
não
são
por
si
mesmas
parte
integrante
do
processo
criador,
e
em
sua
maioria
são
fenômenos
recentes.
As
artes
"musicais"
prosperam
num
ambiente
de
alegria
coletiva,
mas
o
mesmo
não
acontece
com
as
artes
plásticas.
Apesar
desta
diferença
fundamental,
é
possível
encontrar
nas
artes
plásticas
vestígios
do
fator
lúdico.
Nas
culturas
arcaicas,
a
obra
de
arte
tinha
em
grande
parte
seu
lugar
e
sua
função
no
ritual,
como
objeto
dotado
de
significação
sagrada.
Tanto
edifícios
como
estátuas,
roupas
e
armas
ricamente
ornamentadas
podiam-se
relacionar
com
a
vida
religiosa.
Eram
objetos
dotados
de
poder
mágico,
carregados
de
valor
simbólico,
representando
muitas
vezes
uma
entidade
mística.
Ora
o
ritual
e
o
jogo
são
tão
estreitamente
aparentados
que
seria
muito
estranho
não
encontrarmos
as
qualidades
lúdicas
do
ritual
de
alguma
maneira
refletidas
na
produção
e
na
apreciação
das
obras
de
arte.
Não
sem
alguma
hesitação,
atrevo-me
a
sugerir
aos
especialistas
da
antiguidade
clássica
a
possível
existência
de
uma
ligação
semântica
entre
o
ritual,
a
arte
e
o
jogo,
oculta
por
detrás
da
palavra
grega
αγαλμαa.
Agalma
deriva
de
uma
raiz
verbal
de
significado
muito
complexo,
no
centro
do
qual
se
encontra
a
ideia
de
exultação
ou
jubilação,
comparável
ao
alemão
jrohlocken,
frequentemente
utilizado
em
sentido
religioso.
Na
periferia,
há
outros
sentidos
como
"celebrar",
"fazer
resplandecer",
"exibir",
"regozijar-se",
"adornar".
O
significado
central
do
substantivo
é
o
de
ornamento,
peça
de
exibição,
objeto
precioso,
em
resumo,
uma
coisa
bela
que
é
uma
alegria
para
todo
o
sempre.
A
γαλματα
αυκτς
é
um
nome
poético
atribuído
às
estrelas.
Finalmente,
já
bastante
longe
de
tudo
isto,
agalma
significa
estátua,
especialmente
a
estátua
de
um
deus.
Atrevo-me
a
sugerir
que
a
palavra
adquiriu
este
significado
através
de
um
termo
intermédio
que
significa
"dádiva
votiva".
Se
efetivamente
os
gregos
designavam
a
imagem
de
um
deus,
e
portanto
a
essência
da
arte
sacra,
com
um
termo
que
exprimia
uma
jubilosa
oferenda
(exultante
e
exaltante),
estamos
aqui
muito
perto
daquele
ambiente
de
jogo
sagrado
que
é
tão
característico
do
ritual
arcaico.
Quanto
a
tirar
desta
observação
conclusões
mais
explícitas,
é
coisa
que
não
sei
se
é
lícito
fazer.
Há
muito
tempo,
apareceu
uma
teoria
que
pretendia
explicar
a
origem
das
artes
plásticas
em
função
de
um
“instinto
lúdico"
(Spielirieb)
inato12
.
É
evidente
que
não
se
pode
negar
a
existência
de
uma
necessidade
quase
instintiva,
espontânea,
de
ornamentar
as
coisas,
e
que
seria
possível
considerá-la
uma
função
lúdica.
É
uma
necessidade
bem
conhecida
por
todos
aqueles
que,
de
lápis
na
mão,
alguma
vez
tiveram
que
assistir
a
uma
reunião
aborrecida.
Irrefletidamente,
quase
sem
ter
consciência
do
que
fazemos,
brincamos
com
linhas
e
planos,
curvas
e
massas,
e
deste
distraído
garatujar
vão
surgindo
arabescos
fantásticos,
estranhas
formas
animais
ou
humanas.
Deixemos
para
os
psicólogos
a
tarefa
de
atribuir
aos
"impulsos"
inconscientes
que
quiserem
esta
suprema
arte
do
tédio
e
da
inanição.
O
que
é
inegável
é
que
ela
é
uma
função
lúdica
de
ordem
inferior,
semelhante
às
brincadeiras
dos
primeiros
anos
da
vida
da
criança,
num
momento
em
que
a
estrutura
superior
do
jogo
organizado
ainda
não
está
plenamente
desenvolvida.
Mas
é
impossível
considerar
uma
função
psíquica
como
esta
explicação
suficiente
da
origem
dos
motivos
ornamentais
na
arte,
e
muito
menos
da
criação
plástica
em
seu
todo.
Não
se
pode
aceitar
que
as
divagações
sem
objetivo
das
mãos
pudessem
alguma
vez
ter
dado
origem
a
uma
coisa
como
o
estilo.
Além
disso,
essa
necessidade
plástica
de
maneira
alguma
se
satisfaz
com
a
simples
ornamentação
de
uma
superfície,
pois
se
orienta
em
três
direções:
a
decoração,
a
construção
e
a
imitação.
Se
considerássemos
toda
arte
derivada
de
um
hipotético
"instinto
lúdico",
evidentemente
seríamos
obrigados
a
fazer
o
mesmo
com
a
arquitetura
e
a
pintura.
Seria
absurdo
considerar
simples
rabiscos
as
pinturas
rupestres
de
Altamira,
e
atribuí-las
ao
"instinto
lúdico"
equivaleria
a
considerá-las
assim.
Quanto
à
arquitetura,
essa
hipótese
simplesmente
não
tem
cabimento
algum,
porque
nessa
arte
o
impulso
estético
está
longe
de
ser
o
impulso
dominante,
como
provam
as
construções
das
abelhas
e
dos
castores.
Embora
a
tese
central
mesmo
assim
afirmamos
que
a
origem
da
arte
não
pode
ser
explicada
em
função
de
um
"instinto"
lúdico,
por
mais
inato
que
este
seja.
É
certo
que
quando
contemplamos
certos
exemplos
dos
riquíssimos
tesouros
das
artes
plásticas
achamos
difícil
afastar
a
ideia
de
jogo
e
de
fantasia,
de
criatividade
lúdica
do
espírito
ou
das
mãos.
O
grotesco
das
máscaras
de
dança
dos
povos
selvagens,
a
monstruosa
confusão
de
figuras
dos
totens,
as
distorções
caricaturais
das
formas
humanas
e
animais,
todos
estes
exemplos
parecem
sugerir
que
o
jogo
é
a
origem
da
arte.
Mas
é
apenas
uma
sugestão.
Mas
se
no
terreno
das
artes
plásticas
o
fator
lúdico
parece
ter
uma
importância
muito
menor
do
que
nas
que
chamamos
artes
"musicais",
o
problema
muda
da
figura
quando
passamos
da
criação
das
obras
de
arte
para
a
maneira
como
elas
são
recebidas
pelo
meio
social.
Neste
caso
verificamos
imediatamente
que
a
habilidade
plástica
é
um
objeto
de
competição
tão
importante
como
qualquer
outro.
Na
apreciação
da
arte
também
está
presente
aquele
impulso
agonístico
cuja
importância
vimos
ser
imensa
em
diversos
domínios
da
cultura.
O
desejo
de
desafiar
um
rival
a
realizar
uma
difícil
e
aparentemente
impossível
proeza
de
habilidade
artística
vem
desde
as
origens
da
própria
civilização.
É
o
equivalente
das
diversas
competições
que
encontramos
nos
domínios
do
conhecimento,
da
poesia
e
da
coragem.
Mas
poderemos
afirmar
taxativamente
que
as
obras-
primas
da
habilidade
artística,
expressamente
encomendadas,
tiveram
para
a
arquitetura
a
mesma
importância
que
o
concurso
de
enigmas
teve
para
a
filosofia,
ou
os
duelos
de
canto
e
versificação
para
a
poesia?
Em
outras
palavras,
será
que
as
artes
plásticas
evoluíram
na
e
através
da
competição?
Antes
de
responder,
é
preciso
ter
bem
presente
que
é
praticamente
impossível
distinguir
absolutamente
entre
a
competição
para
produzir
alguma
coisa
a
competição
para
realizar
uma
-ação
qualquer.
As
demonstrações
de
força
e
habilidade,
como
o
feito
de
Ulisses,
atravessando
com
uma
flecha
os
buracos
de
uma
dúzia
de
achas,
pertencem
inteiramente
à
esfera
lúdica.
Essas
proezas
não
são
obras
de
arte
no
sentido
em
que
hoje
as
entendemos,
mas
ser
capaz
de
praticá-las
é
uma
arte.
Na
cultura
arcaica
e
mesmo
depois
a
palavra
"arte"
abrange
quase
todas
as
formas
de
destreza
humana,
e
não
apenas
as
que
são
criadoras.
Esta
conexão
geral
nos
permite
reencontrar
o
fator
lúdico
também
nas
obras-primas,
no
sentido
mais
restrito
do
termo,
e
não
apenas
nos
diversos
tipos
de
tour
de
force.
Ainda
hoje
continua
havendo
esse
tipo
de
competição
em
concursos
como
o
Prêmio
de
Roma,
que
são
uma
forma
especializada
da
imemorial
competição
onde
cada
um
procura
afirmar
sua
superioridade
sobre
todos
os
rivais
e
em
todos
os
domínios.
A
arte
e
a
técnica,
a
destreza
e
a
capacidade
criadora,
estavam
para
o
homem
arcaico
unidos
no
eterno
desejo
de
ganhar.
No
grau
mais
baixo
da
escala
social
da
competição
situam-se
as
κελευσματα,
ordens
jocosas
dadas
pelo
simposiarca
grego
aos
participantes
dos
festins,
semelhantes
ao
poenitet
de
uma
época
posterior.
Os
jogos
de
prendas
e
os
de
atar
e
desatar
nós
pertencem
à
mesma
categoria.
Neste
último
caso,
temos
certamente
vestígios
de
um
costume
sagrado
oculto
por
detrás
do
jogo.
Quando
Alexandre
o
Grande
cortou
o
nó
górdio
comportou-se
como
um
desmancha-prazeres
em
todos
os
sentidos,
pois
infringiu
tanto
as
regras
do
jogo
como
as
da
religião.
São
necessárias
mais
algumas
explicações
sobre
o
papel
da
competição
na
evolução
da
arte.
Praticamente
todos
os
exemplos
conhecidos
de
competições
em
que
foram
dadas
mostras
de
uma
habilidade
espantosa
pertencem
mais
à
mitologia,
à
lenda
e
à
literatura
do
que
propriamente
à
história
da
arte.
O
gosto
pelo
exorbitante
e
o
miraculoso
encontra
seu
terreno
mais
fértil
nas
estórias
fantásticas
contadas
acerca
dos
artistas
do
passado.
Os
grandes
portadores
de
cultura
dos
tempos
primitivos,
segundo
as
mitologias,
inventaram
todas
as
artes
e
ofícios
que
hoje
constituem
os
tesouros
da
civilização
em
consequência
de
uma
ou
outra
espécie
de
conquista,
muitas
vezes
com
risco
da
própria
vida.
Os
Vedas
dão
a
seu
deus
faber
um
nome
especial:
tvashtar,
ou
seja,
aquele
que
faz.
Foi
ele
que
forjou
o
raio
(vajra)
para
Indra.
Participou
de
um
concurso
de
destreza
com
os
três
rbhu
ou
artífices
divinos,
os
quais
fizeram
os
cavalos
de
Indra,
o
carro
dos
Asvins
(os
Dioscuru
dos
hindus)
e
a
vaca
milagrosa
de
Brhaspati.
Os
gregos
tinham
uma
lenda
sobre
Politecnos
e
sua
esposa
Aeden,
os
quais
se
gabavam
de
amar-se
mais
um
ao
outro
do
que
Zeus
e
Hera,
ao
que
Zeus
lhes
enviou
Eris
(a
Emulação),
que
os
induziu
a
competir
um
com
o
outro
em
toda
a
espécie
de
trabalhos
artísticos.
Os
anões
artífices
da
mitologia
nórdica
pertencem
à
mesma
tradição,
assim
como
Wieland
o
Ferreiro,
cuja
espada
era
tão
afiada
que
era
capaz
de
cortar
novelos
de
lã
flutuando
num
rio.
Assim
também
Dédalo,
que
sabia
fazer
tudo:
construiu
o
Labirinto,
fez
estátuas
que
caminhavam,
e
uma
vez,
perante
o
problema
de
fazer
passar
um
fio
pelas
sinuosidades
de
uma
concha,
resolveu-o
amarrando
o
fio
a
uma
formiga.
Aqui,
a
proeza
técnica
encontra-se
ligada
ao
enigma;
mas,
enquanto
o
bom
enigma
encontra
solução
num
contato
espiritual
inesperado
e
surpreendente,
num
espécie
de
curto-circuito
mental,
a
primeira
muitas
vezes
se
perde
no
absurdo,
como
na
lenda
da
corda
de
areia
usada
para
coser
pedaços
de
pedra13.
E
uma
análise
correta
só
pode
chegar
à
conclusão
que
os
milagres
dos
santos
do
Cristianismo
estão
na
continuação
desta
arcaica
linha
de
pensamento.
Não
é
preciso
ir
muito
longe
em
hagiografia
para
encontrar
sinais
inequívocos
das
relações
entre
os
relatos
de
milagres
e
o
espírito
lúdico.
Além
de
ser
um
tema
dos
mais
frequentes
no
mito
e
na
lenda,
o
artesanato
competitivo
desempenhou
um
papel
perfeitamente
claro
no
desenvolvimento
efetivo
das
artes
e
das
técnicas.
A
competição
em
destreza,
narrada
pelo
mito,
que
se
estabeleceu
entre
Politecnos
e
Aedon
teve
de
fato
seus
correspondentes
na
realidade
histórica,
como
a
competição
entre
Parrhasios
e
seu
rival
na
ilha
de
Samos,
para
ver
quem
era
capaz
de
executar
a
melhor
representação
da
luta
entre
Ajax
e
Ulisses,
ou
a
que
se
realizou
nas
festas
Pítias
entre
Panainos
e
Timágoras
de
Calcis.
Um
outro
exemplo
é
o
da
competição
entre
Fídias,
Policleto
e
outros
para
a
execução
da
mais
bela
estátua
de
uma
Amazona.
O
caráter
autenticamente
histórico
desses
duelos
é
comprovado
por
diversos
epigramas
e
inscrições.
No
pedestal
de
uma
estátua
de
Nice
pode
ler-se:
"Isto
foi
feito
por
Panainos
que
foi
também
o
autor
da
acrotheria
do
templo,
tendo
com
isso
ganho
o
prêmio"14.
Tudo
aquilo
que
se
relaciona
com
o
exame
e
a
disputa
pública
deriva,
em
última
análise,
das
formas
arcaicas
da
competição,
nas
quais
era
preciso
realizar
uma
obra
de
qualquer
espécie.
Esse
tipo
de
competição
técnica
era
tão
frequente
nas
corporações
medievais
como
na
universidade
do
mesmo
período.
Podiam
ser
encarregados
da
tarefa,
indiferentemente,
um
indivíduo
ou
um
grupo.
De
tal
modo
todo
o
sistema
das
corporações
estava
enraizado
nos
rituais
do
paganismo
que,
naturalmente,
se
caracterizava
pela
presença
de
um
forte
elemento
agonístico.
A
obra-prima
que
dava
ao
artesão
o
direito
de
entrar
para
a
corporação
dos
mestres
parece
só
bastante
tardiamente
ter
passado
a
constituir
um
costume
fixo
e
obrigatório,
tendo
sua
origem
em
formas
imemoriais
de
rivalidade
social.
As
próprias
corporações
só
em
parte
eram
um
produto
de
necessidades
econômicas;
só
depois
do
século
XI,
com
o
ressurgimento
da
vida
urbana,
as
corporações
de
artífices
e
comerciantes
passaram
a
predominar,
substituindo
as
velhas
formas
de
associação
baseadas
no
ritual.
O
sistema
das
corporações
conservou
até
ao
fim
numerosos
aspectos
lúdicos
de
origem
arcaica
em
formalidades
como
as
cerimônias
de
iniciação,
os
discursos,
as
insígnias,
os
banquetes
etc.
Mas
estes
foram
a
pouco
e
pouco
sendo
substituídos
pelos
interesses
puramente
econômicos.
Há
dois
exemplos
de
competição
em
arquitetura
no
famoso
livro
de
esboços
de
Villard
de
Honnecourt,
arquiteto
francês
do
século
XIII.
"Este
presbitério,"
diz
a
legenda
de
um
dos
desenhos,
"foi
criado
por
Villard
de
Honnecourt
e
Pierre
de
Corbie
em
mútua
competição"
—
invenerunt
interse
disputando.
Em
outro
desenho,
uma
tentativa
de
conseguir
o
moto
contínuo,
diz
ele:
"Maint
jor
se
sunt
maistre
despute
de
faire
torner
une
ruee
par
li
seule" (durante
longo
tempo
os
mestres
discutiram
a
maneira
de
fazer
uma
roda
girar
sozinha)15
.
Qualquer
um
que
não
possua
informação
suficiente
sobre
a
extensa
história
da
competição
em
todas
as
sociedades
poderá
ser
levado
a
pensar
que
as
formas
de
arte
competitiva
que
ainda
hoje
sobrevivem
são
inspiradas
unicamente
por
considerações
de
utilidade
e
eficiência.
Quando
se
oferece
um
prêmio
ao
melhor
projeto
de
um
edifício
público,
ou
uma
bolsa
ao
melhor
estudante
de
um
instituto
de
arte,
parece
ser
suficiente
o
desejo
de
estimular
a
criatividade,
de
descobrir
os
maiores
talentos
e
obter
o
melhor
resultado
prático.
Não
obstante,
por
detrás
de
todos
estes
objetivos
de
caráter
prático
está
sempre
subjacente
a
função
lúdica
originária
da
competição
enquanto
tal.
É
claro
que
é
impossível
determinar
até
que
ponto
o
princípio
de
utilidade
pesou
mais
do
que
a
paixão
agonística
em
certas
circunstâncias
históricas,
como
por
exemplo
quando
a
cidade
de
Florença
organizou,
em
1418,
um
concurso
para
o
projeto
da
cúpula
da
catedral,
de
cujos
catorze
concorrentes
foi
Brunelesco
o
vencedor.
Mas
essa
obra
magnífica
dificilmente
poderia
ser
atribuída
simplesmente
a
preocupações
"funcionais".
Dois
séculos
antes
a
mesma
cidade
de
Florença
possuía
sua
famosa
"floresta
de
turres",
sendo
cada
uma
delas
um
monumento
ao
orgulho
de
uma
das
casas
nobres
e
um
desafio
às
restantes.
Atualmente
os
historiadores
da
arte
e
da
guerra
concordam
em
considerar
as
torres
florentinas
mais
como
"torres
de
jactância"
(Prunktürme)
do
que
obras
seriamente
destinadas
a
uma
finalidade
defensiva.
A
cidade
medieval
oferecia
um
amplo
espaço
para
a
magnificência
em
suas
ideias
do
jogo.
Notas do capítulo 10
1
Leis,
II,
653.
2
Ver
abaixo.
3
Leis,
II,
667
E.
4
Política,
Vlll,
1399
A.
5
παιδιά:
que
aqui
poderia
traduzir-se
por
"divertimento"
ou
por
distração.
6
Ibid.,
1337
B.
7
Política,
VIII,
1339
A,
29.
8
Platão,
Leis,
II,
66S.
9
Aristóteles,
Política,
VIII,
1340
A.
10
Repiiblica.
X,
602
B.
11
ειναι
παιδιαιν
τινα
και
ον
σπουδην
την
μιμησιν
12
Schiller,
Ueher
die
aesthetische
Erziehung
des
Menschen,
1795,
14ª
13
The
Story
of
Ahikar,
ed.
F.
C.
Conybeare,
J.
Rendei
Harris
and
Agnes
Smith
Lewis,
Cambridge,
1913.
14
V.
Ehrenberg,
Osl
und
West,
p.
76.
15
Álbum
de
Villard
de
Honnecourt,
ed.
H.
Omont,
p.
XXIX,
fol.
15.
11.
Culturas
e
Períodos
"sub
specie
ludi"
Não
foi
difícil
mostrar
a
presença
extremamente
ativa
de
um
certo
fator
lúdico
em
todos
os
processos
culturais,
como
criador
de
muitas
das
formas
fundamentais
da
vida
social.
O
espírito
de
competição
lúdica,
enquanto
impulso
social,
é
mais
antigo
que
a
cultura,
e
a
própria
vida
está
toda
penetrada
por
ele,
como
por
um
verdadeiro
fermento.
O
ritual
teve
origem
no
jogo
sagrado,
a
poesia
nasceu
do
jogo
e
dele
se
nutriu,
a
música
e
a
dança
eram
puro
jogo.
O
saber
e
a
filosofia
encontraram
expressão
em
palavras
e
formas
derivadas
das
competições
religiosas.
As
regras
da
guerra
e
as
convenções
da
vida
aristocrática
eram
baseadas
em
modelos
lúdicos.
Daí
se
conclui
necessariamente
que
em
suas
fases
primitivas
a
cultura
é
um
jogo.
Não
quer
isto
dizer
que
ela
nasça
do
jogo,
como
um
recém-nascido
se
separa
do
corpo
da
mãe.
Ela
surge
no
jogo,
e
enquanto
jogo,
para
nunca
mais
perder
esse
caráter.
Aceitando
este
ponto
de
vista
como
correto,
e
parece
difícil
não
aceitá-
lo,
o
problema
que
imediatamente
se
apresenta
é
o
seguinte:
será
possível
demonstrar
esta
afirmação?
Será
que
efetivamente
a
cultura
nunca
se
separa
do
domínio
do
jogo?
Até
que
ponto
será
possível
verificar
a
presença
do
elemento
lúdico
em
épocas
culturalmente
mais
desenvolvidas,
requintadas
e
sofisticadas
do
que
os
períodos
primitivos
que
até
agora
têm
sido
o
objeto
principal
de
nossa
atenção?
Por
mais
de
uma
vez
estabelecemos
um
paralelo
entre
os
exemplos
do
elemento
lúdico
na
cultura
arcaica
e
outros
tirados
do
século
XVIII
e
de
nossa
própria
época.
Sobretudo
o
século
XVIII
nos
pareceu
ser
uma
época
cheia
de
elementos
lúdicos
e
de
ludicidade.
Ora
para
nós
este
século
é
como
se
fosse
apenas
anteontem.
Como
seria
possível
termos
perdido
toda
afinidade
espiritual
com
um
passado
tão
recente?
É
necessário
terminar
este
livro
procurando
determinar
em
que
medida
o
espírito
lúdico
continua
vivo
em
nossa
época,
nas
diferentes
partes
do
mundo.
Procuraremos
abordar
esta
questão
final
através
de
um
rápido
exame
de
certos
períodos
da
civilização
ocidental
desde
o
Império
Romano.
A
cultura
do
Império
Romano
é
merecedora
de
toda
a
atenção,
quanto
mais
não
seja
devido
ao
contraste
estabelecido
entre
ela
e
a
cultura
helênica.
À
primeira
vista,
a
sociedade
romana
parece
possuir
muito
menos
características
lúdicas
do
que
a
grega.
A
essência
da
antiguidade
latina
pode
ser
resumida
em
qualidades
como
a
sobriedade,
a
honestidade,
a
austeridade,
o
pensamento
prático
de
ordem
econômica
e
jurídica,
a
falta
de
imaginação
e
uma
superstição
completamente
destituída
de
estilo.
Suas
ingênuas
formas
de
culto
trazem
um
cheiro
de
terra
lavrada
e
de
lareira.
No
tempo
da
República,
a
atmosfera
da
cultura
ainda
é
a
de
um
clã,
de
uma
comunidade
tribal,
estágio
do
qual,
a
bem
dizer,
pouco
se
havia
distanciado.
A
extrema
preocupação
com
o
Estado
apresenta
todas
as
características
do
culto
caseiro,
da
adoração
do
genius
(o
espírito
que
habitava
o
lar).
As
concepções
religiosas
são
pouco
imaginativas
e
expressas
de
maneira
muito
pobre.
A
tendência
para
a
personificação
de
toda
e
qualquer
ideia
que
surge
no
espírito
nada
tem
a
ver
com
a
capacidade
de
abstração,
é
mais
um
modo
primitivo
de
pensamento,
muito
próximo
do
dos
jogos
infantis1.
As
figuras
como
Abundantia,
Concórdia,
Pietas,
Pax,
Virtus
etc,
não
são
cristalizações
de
um
pensamento
social
altamente
desenvolvido,
são
as
ideias
rudes
e
materialistas
de
uma
comunidade
primitiva
que
procura
proteger
seus
interesses
mediante
um
comércio
positivo
com
os
poderes
superiores.
Nada
mais
natural,
assim,
do
que
a
importância
de
que
se
revestem
as
festividades
no
seio
deste
sistema
de
garantias
religiosas.
Não
é
por
acaso
que
os
romanos
reservaram
sempre
para
estes
rituais
o
nome
de
ludi,
porque
era
exatamente
isso
que
eles
eram,
isto
é,
jogos.
A
importância
do
elemento
lúdico
na
civilização
romana
está
bem
presente
em
sua
estrutura
acentuadamente
ritualística,
só
que
aqui
os
jogos
não
se
revestiam
da
vivacidade
de
colorido
e
da
brilhante
imaginação
que
apresentam
na
civilização
grega
ou
chinesa.
Roma
foi
crescendo
até
formar
um
império
mundial.
Foi
ela
que
recebeu
o
legado
do
Velho
Mundo
que
a
havia
precedido,
a
herança
do
Egito,
do
Helenismo
e
de
metade
do
Oriente.
Foi
uma
cultura
alimentada
pela
superabundância
de
muitas
outras
culturas.
A
administração
pública
e
o
direito,
a
construção
de
estradas
e
a
arte
da
guerra
atingiram
um
estado
de
perfeição
a
que
o
mundo
ainda
não
tinha
assistido,
e
a
literatura
e
a
arte
se
enxertaram
eficazmente
no
tronco
helênico.
Mas
os
alicerces
desse
majestoso
edifício
político
continuaram
sendo
arcaicos,
a
razão
de
ser
do
Estado
continuava
assentando
no
terreno
das
obrigações
ritualísticas.
A
partir
do
momento
em
que
um
político
se
apossava
do
poder
supremo,
sua
pessoa
e
a
ideia
de
sua
autoridade
eram
imediatamente
transpostas
para
o
ritual.
Ele
se
tomava
Augusto,
o
portador
do
poder
divino,
a
encarnação
da
essência
do
sagrado,
o
salvador,
o
restaurador,
o
propiciador
da
paz
e
da
prosperidade,
o
prodigalizador
e
a
garantia
da
abundância
e
do
bem-estar.
Todos
os
ansiosos
desejos
de
prosperidade
material
e
de
preservação
da
vida
próprios
da
tribo
primitiva
eram
projetados
no
líder,
que
a
partir
daí
passava
a
ser
reconhecido
como
a
epifania
da
divindade.
Ou
seja,
ideias
arcaicas
envoltas
numa
nova
e
majestosa
roupagem.
O
herói
portador
de
cultura
das
épocas
primitivas
é
ressuscitado
através
da
identificação
do
príncipe
romano
como
Hércules
ou
Apoio.
A
sociedade
que
professava
e
propagava
estas
ideias
era
sob
muitos
aspectos
uma
sociedade
extremamente
adiantada.
Os
adoradores
da
divindade
do
imperador
eram
homens
que
haviam
passado
por
todos
os
requintes
da
filosofia,
da
ciência
e
do
gosto
da
Grécia,
para
chegar
a
uma
atitude
de
ceticismo
e
descrença.
Quando
Virgílio
e
Horácio
glorificam,
em
sua
poesia
extremamente
cultivada,
a
nova
era
que
começa,
não
podemos
impedir-nos
de
pensar
que
sua
obra
é
um
verdadeiro
jogo
cultural.
O
Estado
nunca
é
pura
e
simplesmente
uma
instituição
utilitária.
Ele
se
congela
na
superfície
do
tempo
como
as
flores
de
gelo
no
vidro
de
uma
janela,
e
é
tão
imprevisível,
tão
perecível
e
aparentemente
tão
inflexivelmente
determinado
pelo
perfil
de
sua
figura
como
elas.
O
que
na
realidade
ocorre
é
a
encarnação,
no
aglomerado
de
poder
chamado
Estado,
de
um
impulso
cultural
surgido
da
colaboração
de
energias
de
origem
completamente
diferente
umas
das
outras.
Posteriormente,
o
Estado
procura
encontrar
razões
para
sua
existência,
indo
buscá-las
na
glória
de
uma
determinada
linhagem
ou
na
excelência
de
um
determinado
povo.
Na
maneira
como
proclama
o
princípio
que
o
anima,
muitas
vezes
o
Estado
revela
sua
natureza
fantástica,
chegando
mesmo
aos
extremos
do
absurdo
e
do
comportamento
suicida.
O
Império
Romano
tinha
todos
os
traços
desta
irracionalidade
fundamental,
a
qual
procurava
disfarçar
arrogando-se
direitos
sagrados.
Sua
estrutura
social
e
econômica
era
frágil
e
estéril.
Todo
o
sistema
da
acumulação
de
reservas,
da
administração
pública
e
da
educação
estava
concentrado
nas
cidades,
e
não
nos
interesses
do
povo
ou
do
Estado
enquanto
tal,
mas
apenas
em
benefício
de
uma
minoria
vivendo
à
custa
de
um
proletariado
deserdado.
Na
antiguidade,
a
unidade
municipal
sempre
havia
sido
o
núcleo,
o
centro
ideal
de
toda
a
cultura
e
vida
social,
e
assim
continuava
sendo,
sem
que
disso
tomassem
consciência
as
classes
dirigentes
e
cultas.
Assim
os
imperadores
não
paravam
de
construir
cidades,
às
centenas,
indo
até
aos
limites
do
deserto,
e
não
surgiu
nem
uma
voz
que
perguntasse
se
esses
centros
tinham
qualquer
possibilidade
de
se
tornarem
organismos
naturais
ou
de
se
tornarem
órgãos
de
uma
vida
nacional
sadia.
Contemplando
os
eloquentes
vestígios
dessa
grandiosa
edificação
de
cidades,
surge-nos
no
espírito
uma
dúvida:
se
a
função
dessas
cidades
como
centros
culturais
jamais
teve
alguma
relação
com
seu
pomposo
esplendor.
A
julgar
pela
índole
geral
das
conquistas
culturais
da
Roma
antiga,
e
apesar
da
magnificência
do
planejamento
e
da
construção
dessas
cidades,
elas
nunca
podem
ter
sido
artérias
importantes
para
a
circulação
de
bens
e
serviços,
nem
poderiam
ter
conservado
muito
do
que
havia
de
melhor
na
cultura
da
antiguidade.
Templos
para
uma
religião
em
decadência,
petrificada
em
formas
tradicionais
e
permeada
de
superstição;
salas
e
basílicas
para
uma
administração
e
um
judiciário
que,
devido
às
circunstâncias
políticas
e
econômicas,
iam
pouco
a
pouco
degenerando,
sufocados
por
um
sistema
de
escravidão,
extorsão,
corrupção
e
nepotismo
patrocinado
pelo
Estado;
circos
e
anfiteatros
para
jogos
bárbaros
e
sanguinários,
um
teatro
libertino,
banhos
públicos
para
um
culto
do
corpo
mais
debilitante
do
que
fortificante
—
nada
disto
é
próprio
de
uma
civilização
sólida
e
duradoura.
Na
maior
parte
dos
casos
tratava-se
apenas
de
exibicionismo,
diversão
ou
fútil
glória.
O
Império
Romano
era
apenas
uma
fachada,
corroída
por
dentro.
A
riqueza
que
permitia
a
liberdade
dos
mecenas,
cujas
inscrições
jactanciosas
dão
uma
impressão
de
magnificência,
assentava
realmente
em
bases
muito
frágeis,
prontas
a
ruir
ao
primeiro
golpe
mais
forte.
A
distribuição
de
alimentos
nunca
funcionou
devidamente,
e
era
o
próprio
Estado
que
roubava
ao
organismo
sua
saúde
e
sua
riqueza.
Irradia
sobre
o
conjunto
desta
cultura
um
falso
brilho
exterior.
A
religião,
as
artes
e
as
letras
sempre
parecem
protestar,
com
uma
insistência
suspeita,
que
tudo
vai
bem
para
Roma
e
seus
filhos,
que
a
abundância
está
assegurada
e
que
a
vitória
está
garantida
para
além
de
qualquer
sombra
de
dúvida.
É
essa
a
linguagem
que
falam
os
altivos
edifícios,
as
colunas,
os
arcos
triunfais,
os
altares
com
seus
afrescos
e
frisos,
os
murais
e
os
mosaicos
das
residências.
O
sagrado
e
o
profano
estão
completamente
misturados
na
arte
decorativa
romana.
Figuras
de
deuses
caseiros
apresentados
com
certa
graça
brincalhona
e
sem
um
estilo
rígido
aparecem
rodeadas
de
alegorias
tranquilizadoras
com
sóbrios
atributos
comuns
de
luxo
e
abundância,
distribuídos
por
gênios
propícios.
Há
em
tudo
isto
uma
certa
falta
de
seriedade,
de
refúgio
no
idílico,
que
demonstra
a
decomposição
de
uma
cultura.
O elemento
lúdico
impõe-se
fortemente,
mas
não
desempenha
mais
sua
função
orgânica
na
estrutura
da
sociedade.
Também
a
política
dos
imperadores
baseia-se
nesta
constante
necessidade
de
proclamar
em
altas
vozes
o
bem-estar
do
Império
e
de
todos
os
povos
que
o
habitam.
Só
em
pequena
medida
os
objetivos
desta
política
eram
racionais
—
mas
alguma
vez
terá
sido
diferente?
É
claro
que
a
conquista
de
novos
territórios
visa
a
garantir
a
prosperidade
e
a
segurança
mediante
a
obtenção
de
novas
regiões
fornecedoras,
e
levando
as
fronteiras
do
Império
para
cada
vez
mais
longe
de
seu
vulnerável
coração.
A
defesa
da
Pax
Augusta
é
em
si
mesma
um
objetivo
definido
e
racional.
Mas
a
motivação
utilitária
está
submetida
a
um
ideal
religioso.
Os
desfiles
triunfais,
as
coroas
de
louros
e
a
glória
marcial
não
são
meios
para
atingir
um
fim,
são
uma
missão
sagrada
que
o
céu
exige
do
imperador2
.
O
triunfus
é
muito
mais
do
que
a
celebração
solene
de
uma
vitória
militar,
é
um
ritual
através
do
qual
o
Estado
se
recupera
das
tensões
da
guerra
e
consagra
o
restabelecimento
do
bem-estar.
Na
medida
em
que
a
base
de
toda
política
é
a
aquisição
e
a
conservação
do
prestígio,
este
ideal
agonístico
primitivo
permeia
toda
a
estrutura
colossal
do
Império
Romano.
Todas
as
nações
pretendem
que
as
guerras
que
empreenderam
foram
outras
tantas
gloriosas
lutas
pela
preservação
de
sua
existência.
No
que
tange
às
guerras
púnicas
e
gálicas,
a
República
poderia
justificar
essa
pretensão.
O
mesmo
se
verifica
com
o
Império,
no
momento
em
que
os
bárbaros
o
cercam
por
todos
os
lados.
Mas
o problema
importante
é
sempre
o
de
saber
se
o
impulso
bélico
não
é
em
grande
medida
agonístico,
isto
é,
mais
motivado
pelo
desejo
do
poder
e
da
glória
que
por
necessidades
defensivas.
O
exemplo
mais
claro
da
presença
do
elemento
lúdico
na
sociedade
romana
é
o
grito
por
panem
et
circenses.
Para
ouvidos
modernos,
a
tendência
dominante
é
detectar
neste
grito
pouco
mais
do
que
a
necessidade
de
uma
subvenção
e
de
entrada
livre
nos
cinemas
sentida
por
um
proletariado
desempregado.
Mas
seu
significado
é
mais
profundo
do
que
isso.
A
sociedade
romana
não
podia
viver
sem
os
jogos.
Estes
eram
tão
necessários
para
sua
existência
como
o
pão,
pois
eram
jogos
sagrados
e
o
direito
que
o
povo
a
eles
tinha
era
um
direito
sagrado.
Sua
função
essencial
não
era
a
simples
celebração
da
prosperidade
que
o
grupo
social
havia
já
conseguido,
e
sim
a
consolidação
desta
e
a
garantia
de
mais
prosperidade
no
futuro
através
do
ritual.
Os
grandes
e
sangrentos
jogos
romanos
eram
uma
sobrevivência
do
fator
lúdico
arcaico
sob
uma
forma
despotencializada.
Pouca
gente,
dentre
a
embrutecida
multidão
de
espectadores,
tinha
um
mínimo
de
consciência
das
características
religiosas
inerentes
a
esses
espetáculos,
e
a
liberalidade
do
imperador
nessas
ocasiões
se
limitava
a
uma
simples
distribuição
de
esmolas,
em
escala
gigantesca,
a
um
proletariado
miserável.
Mais
significativo
se
torna,
portanto,
da
importância
atribuída
à
função
lúdica
pela
cultura
romana,
o
fato
de
nenhuma
das
inúmeras
cidades
novas,
literalmente
construídas
sobre
a
areia,
ter
deixado
de
erigir
um
anfiteatro,
muitas
vezes
destinado
a
ser
o
único
vestígio
de
uma
brevíssima
glória
municipal
a
perdurar
através
dos
séculos.
Na
cultura
hispânica,
as
touradas
são
uma
continuação
direta
dos
ludi
romanos,
embora
tenha
sido
precedida
por
formas
mais
próximas
do
torneio
medieval
do
que
a
corrida
atual,
que
se
parece
muito
com
os
combates
de
gladiadores
da
antiguidade.
A
distribuição
de
presentes
à
população
urbana
não
era
monopólio
do
imperador.
Durante
os
primeiros
séculos
do
Império,
milhares
de
cidadãos
de
todas
as
regiões
do
país
competiam
na
fundação
e
doação
de
salas,
banhos
públicos,
teatros,
na
distribuição
de
alimentos,
na
instituição
de
novos
jogos,
sendo
tudo
isso
registrado
para
a
posteridade
através
de
orgulhosas
inscrições.
Como
qualificar
o
espírito
que
animava
toda
esta
frenética
atividade?
Deveremos
considerar
esta
munificência
à
luz
da
caridade
cristã,
como
sua
precursora?
Nada
poderia
encontrar-se
mais
longe
da
verdade.
O
objetivo
desta
liberalidade
e
as
formas
de
que
se
reveste
falam
uma
linguagem
totalmente
diferente.
Poderemos,
então,
atribuí-la
ao
espírito
público,
no
sentido
moderno?
Sem
dúvida,
o
prazer
da
dádiva
na
antiguidade
era
uma
coisa
mais
próxima
do
espírito
público
do
que
da
caridade
cristã.
Mas
o
que
mais
fielmente
corresponde
a
esta
mania
de
fazer
doações
grandiosas
é
o
espírito
do
potlatch.
Em
todos
esses
casos
o
que
se
encontra
é
apenas
a
generosidade
em
vista
da
honra
e
da
glória,
com
o
fim
de
fazer
mais
do
que
o
vizinho,
e
esta
característica
revela
claramente
o
imemorial
pano
de
fundo
ritual
e
agonístico
da
civilização
romana.
Também
na
literatura
e
na
arte
de
Roma,
o
elemento
lúdico
está
inequivocamente
presente.
A
primeira
caracteriza-se
pelo
panegírico
enfático
e
pela
retórica
vazia,
e
a
segunda,
pela
decoração
superficial
mal
ocultando
a
pesada
estrutura,
e
pelas
paredes
ornadas
de
quadrinhos
de
época,
degenerando
numa
lânguida
elegância.
São
caracteres
como
estes
que
marcam
a
última
fase
da
cultura
da
Roma
antiga
com
uma
frivolidade
inextirpável.
A
vida
tornou-se
um
jogo
cultural;
continua
presente
a
forma
ritual,
mas
desapareceu
o
espírito
religioso.
Todos
os
impulsos
espirituais
mais
profundos
abandonam
esta
cultura
superficial,
procurando
refúgio
nas
religiões
dos
mistérios.
E
quando
finalmente
o
Cristianismo
separa
a
civilização
romana
de
seu
fundamento
ritual,
este
murcha
rapidamente.
Falta
ainda
indicar
uma
prova
curiosa
da
tenacidade
do
elemento
lúdico
na
Roma
antiga,
que
é
a
sobrevivência
do
princípio
dos
ludi
no
Hipódromo
de
Bizâncio.
Na
era
cristã,
a
mania
das
corridas
de
cavalos
foi
completamente
separada
de
suas
origens
rituais,
continuando
as
corridas
a
ser
um
dos
centros
da
vida
social.
As
paixões
populares,
que
antes
eram
satisfeitas
com
sangrentos
combates
entre
homens
e
animais,
tinham
agora
que
se
contentar
com
as
corridas
de
cavalos,
que
passaram
a
ser
um
simples
prazer
profano,
já
sem
caráter
sagrado
mas
ainda
capaz
de
atrair
todo
o
interesse
do
público.
O
circo,
no
sentido
mais
literal
da
palavra,
passou
a
ser
não
apenas
o
centro
das
corridas,
mas
também
das
rivalidades
políticas
e
mesmo
religiosas.
As
Sociedades
de
Corridas,
conhecidas
pelas
quatro
cores
dos
condutores
de
carros,
eram,
mais
do
que
simplesmente
as
organizadoras
das
competições,
instituições
políticas
reconhecidas.
Os
partidos
eram
chamados
demes,
e
seus
líderes
eram
os
demarcas.
Os
generais
que
regressavam
triunfalmente
de
uma
campanha
vitoriosa
celebravam
seu
triumphus
no
Hipódromo,
ocasião
em
que
o
imperador
se
mostrava
ao
povo
e
(às
vezes)
era
administrada
a
justiça.
Esta
mistura
de
feriado
e
vida
pública
pouco
tinha
a
ver
com
a
unidade
arcaica
do
jogo
e
do
ritual,
que
dantes
era
vital
para
o
desenvolvimento
da
cultura.
Era
o
epílogo
de
uma
civilização
em
decadência.
Tratei
em
outra
obra3,
de
modo
tão
extenso,
o
problema
dos
elementos
lúdicos
na
Idade
Média
que
basta
aqui
acrescentar
algumas
palavras.
A
vida
medieval
estava
saturada
de
jogo.
Ora
são
jogos
populares
desenfreados,
permeados
de
elementos
pagãos
que
haviam
perdido
seu
significado
sagrado
para
se
transformarem
em
puro
humor
e
bufoneria,
ora
os
solenes
e
pomposos
jogos
da
cavalaria,
os
jogos
sofisticados
do
amor
cortês
etc.
Poucas
destas
formas
possuíam
ainda
alguma
força
criadora
autêntica,
a
não
ser
no
caso
do
ideal
do
amor
cortês,
que
conduziu
ao
dolce
stil
nuovo
e
à
Vita
Nuova
de
Dante.
Porque
a
Idade
Média
herdou
da
antiguidade
clássica
suas
grandes
formas
culturais
nos
domínios
da
poesia,
do
ritual,
do
saber,
da
filosofia,
da
política
e
da
guerra,
e
essas
formas
eram
fixas.
A
cultura
medieval
era
sob
muitos
aspectos
rude
e
pobre,
mas
não
pode
ser
considerada
primitiva.
Sua
tarefa
era
a
elaboração
de
material
tradicional,
cristão
ou
clássico,
e
assimilá-lo
sob
uma
forma
nova.
Só
quando
não
se
enraizava
na
antiguidade,
nem
era
alimentado
pelo
espírito
eclesiástico
ou
greco-romano,
havia
lugar
para
uma
intervenção
do
fator
lúdico
e
para
a
criação
de
alguma
coisa
inteiramente
nova.
Foi
o
que
aconteceu
sempre
que
a
civilização
medieval
se
inspirou
diretamente
em
seu
passado
celto-germânico
ou
em
camadas
ainda
mais
antigas.
O
sistema
da
cavalaria
foi
construído
desta
maneira
(embora
os
estudiosos
medievais
tenham
encontrado
exemplos
semelhantes
nos
heróis
troianos
e
outros
da
antiguidade
clássica),
assim
como
muitos
aspectos
do
feudalismo.
Na
consagração
dos
cavaleiros,
nas
cerimônias
de
investidura,
nos
torneios,
na
heráldica,
nas
ordens
de
cavalaria,
nos
votos,
isto
é,
em
todas
as
coisas
relacionadas
com
o
mundo
arcaico,
o
fator
lúdico
exerce
plenamente
sua
função,
como
autêntica
força
criadora.
Uma
análise
mais
detalhada
mostraria
sua
presença
em
outros
campos,
como
por
exemplo
no
direito
e
na
administração
da
justiça
com
seu
constante
uso
de
símbolos,
gestos
pré-
fixados,
fórmulas
rígidas,
estando
o
desenlace
de
um
julgamento
muitas
vezes
na
dependência
da
exatidão
da
pronúncia
de
uma
palavra
ou
de
uma
sílaba.
Os
casos
de
processos
contra
animais,
coisa
totalmente
incompreensível
para
o
espírito
moderno,
são
exemplos
deste
extremo
formalismo.
Em
resumo,
a
Idade
Média
conheceu
uma
influência
extraordinária
do
espírito
lúdico,
não
quanto
à
estrutura
interna
das
instituições,
que
era
de
origem
predominantemente
clássica,
mas
quanto
ao
cerimonial
através
do
qual
essa
estrutura
era
exprimida
e
ornamentada.
Passemos
agora
a
um
rápido
exame
da
época
do
Renascimento
e
do
humanismo.
Se
houve
alguma
vez
uma
minoria
plenamente
consciente
de
sua
superioridade
que
se
esforçou
por
se
separar
do
vulgo
para
viver
a
vida
como
se
fosse
um
jogo
de
perfeição
artística,
essa
minoria
foi
a
elite
cultural
do
Renascimento.
Mais
uma
vez
aqui
é
necessário
sublinhar
que
o
jogo
não
exclui
a
seriedade.
O
espírito
do
Renascimento
estava
muito
longe
de
ser
frívolo,
e
a
vida
como
imitação
da
antiguidade
era
um
jogo
levado
inteiramente
a
sério.
A
veneração
pelos
ideais
do
passado
em
matéria
de
criação
plástica
e
de
investigação
intelectual
caracterizava-se
por
uma
violência,
uma
profundidade
e
uma
pureza
que
ultrapassavam
tudo
o
que
podemos
imaginar.
Seria
difícil
dar
exemplos
de
espíritos
mais
sérios
do
que
os
de
Leonardo
da
Vinci
e
Miguel
Ângelo,
e
no
entanto
é
uma
atitude
lúdica
que
caracteriza
toda
a
atmosfera
espiritual
do
Renascimento.
Essa
busca
da
beleza
e
da
nobreza
da
forma,
ao
mesmo
tempo
sofisticada
e
espontânea,
é
um
exemplo
de
jogo
cultural.
Os
esplendores
do
Renascimento
não
são
mais
do
que
uma
mascarada
alegre
e
solene,
que
se
adorna
com
um
passado
fantástico
e
ideal.
As
figuras,
alegorias
e
emblemas
mitológicos,
encontradas
Deus
sabe
onde
e
cheias
de
todo
um
peso
de
significado
histórico
e
astrológico,
movimentam-se
como
as
peças
de
um
jogo
de
xadrez.
As
decorações
fantasiosas
da
arquitetura
e
das
artes
gráficas
renascentistas,
com
seu
uso
abundante
de
motivos
clássicos,
são
muito
mais
conscientemente
lúdicas
do
que
as
dos
miniaturistas
medievais
que
de
vez
em
quando
introduzem
uma
cena
humorística
em
suas
iluminuras.
Há
duas
idealizações
lúdicas
por
excelência,
duas
"Idades
de
Ouro
do
jogo",
como
poderíamos
chamar-lhes
nova
vida
na
literatura
e
nas
festas
públicas.
Seria
difícil
encontrar
um
poeta
que
encarnasse
o
espírito
lúdico
de
maneira
mais
pura
do
que
Ariosto,
em
cuja
obra
se
exprime
todo
o
ambiente
da
cultura
renascentista.
Houve
alguma
poesia
tão
desenvolta
e
tão
absolutamente
lúdica
como
a
de
Ariosto?
A
se
dividir
entre
o
patético-heroico
e
o
cômico,
numa
esfera
de
harmonia
quase
musical,
completamente
afastada
da
realidade,
mas,
apesar
disso,
cheia
das
figuras
mais
vivas,
e
sobretudo
com
a
alegria
constante
de
sua
linguagem
sonora,
Ariosto
constitui,
por
assim
dizer,
a
demonstração
da
identidade
entre
o
jogo
e
a
poesia.
A
palavra
"Humanismo"
desperta
imagens
menos
coloridas,
ou
mais
sérias,
se
se
quiser,
do
que
o
Renascimento.
No
entanto,
tudo
o
que
dissemos
sobre
a
ludicidade
do
Renascimento
se
aplica
também
ao
humanismo.
Era,
em
grau
ainda
maior
que
ele,
exclusivo
de
um
círculo
de
iniciados
e
pessoas
"por
dentro".
Os
humanistas
cultivavam
um
ideal
de
vida
formulado
no
mais
rigoroso
acordo
com
uma
antiguidade
imaginária.
Chegaram
até
a
conseguir
exprimir
sua
fé
cristã
em
latim
clássico,
o
que
lhe
deu
mais
do
que
um
toque
de
paganismo.
Muitas
vezes
foi
exagerada
a
importância
destas
tendências
pagãs,
mas
não
há
dúvida
que
o
cristianismo
dos
humanistas
era
mesclado
de
um
certo
artifício,
mesmo
de
um
certo
artificialismo,
algo
de
não
inteiramente
sério.
A
linguagem
dos
humanistas
nunca
chegou
a
ter
um
tom
absolutamente
cristão.
Calvino
e
Lutero
nunca
puderam
suportar
o
tom
usado
pelo
humanista
Erasmo
para
falar
das
coisas
sagradas.
Erasmo!
todo
o
seu
ser
parece
irradiar
o
espírito
lúdico.
E
não
é
apenas
nos
Colóquios
e
no
Elogio
da
loucura
que
ele
se
manifesta,
mas
também
nos
Adágios,
essa
espantosa
coleção
de
aforismos
coligidos
na
literatura
grega
e
latina
e
comentados
com
uma
levíssima
ironia
e
um
humor
incomparável.
Suas
inúmeras
cartas,
e
às
vezes
seus
mais
profundos
tratados
de
teologia,
estão
cheios
daquele
espírito
mordaz
sem
o
qual
ele
nunca
consegue
passar
inteiramente.
Quem
examinar
a
multidão
de
poetas
renascentistas
que
vão
desde
os
grands
rhétoriqueurs
como
Jean
Molinet
e
Jean
Lemaire
de
Belges
até
aos
produtos
da
plenitude
do
Renascimento
como
Sannazaro
ou
Guarino,
os
criadores
das
novas
pastorais
que
tanto
estiveram
em
moda,
não
pode
deixar
de
encontrar
em
seu
gênio
um
caráter
essencialmente
lúdico.
Não
pode
haver
mais
intensa
presença
do
jogo
do
que
na
obra
de
Rabelais,
que
é
a
própria
encarnação
do
espírito
lúdico.
O
ciclo
do
Amadis
da
Gália
reduz
a
aventura
heroica
a
pura
farsa,
ao
passo
que
Cervantes
continua
sendo
até
hoje
o
grande
mágico
do
riso
e
das
lágrimas.
No
Heptameron
de
Margarida
de
Navarra
temos
uma
estranha
mistura
de
lascívia
e
platonismo.
Mesmo
a
escola
jurídica
dos
humanistas,
em
suas
tentativas
de
dar
ao
direito
um
certo
estilo
e
beleza
estética,
dá
mostras
do
poderoso
espírito
lúdico
da
época.
Uma
coisa
que
se
tornou
moda,
ao
falar
do
século
XVII,
é
aplicar
o
termo
"barroco"
muito
fora
de
seu
campo
de
aplicação
original.
Em
vez
de
simplesmente
designar
um
estilo
arquitetônico
e
escultórico
mais
ou
menos
definido,
o
"barroco"
passou
a
abranger
um
vasto
complexo
de
ideias
mais
ou
menos
vagas
acerca
da
essência
da
civilização
do
século
XVII.
Essa
moda
teve
início
entre
os
estudiosos
alemães
e
acerca
de
quarenta
anos
atrás,
adquirindo
popularidade
sobretudo
através
do
Declínio
do
Ocidente
de
Spengler.
A
pintura,
a
poesia,
a
literatura,
e
até
a
política
e
a
teologia,
em
resumo,
todos
os
domínios
da
arte
e
do
saber
do
século
XVII
passaram
a
ser
medidos
com
uma
certa
ideia
preconcebida
do
"barroco".
Alguns
aplicam
o
termo
ao
início
da
época,
marcada
por
uma
imaginação
exuberante,
e
outros
ao
rigor
majestoso
das
fases
mais
tardias.
De
uma
maneira
geral,
esse
termo
está
associado
à
ideia
do
exagero
consciente,
de
alguma
coisa
voluntariamente
imponente,
deliberadamente
irreal.
As
formas
barrocas
são,
no
sentido
forte
da
expressão,
formas
artísticas.
Mesmo
quando
representam
temas
sagrados,
há
um
fator
estético
deliberado
que
se
impõe
de
tal
maneira
que
se
torna
difícil
para
a
posteridade
acreditar
que
o
tratamento
do
tema
tenha
derivado
de
uma
emoção
religiosa
sincera.
Esta
tendência
geral
para
o
exagero,
tão
característica
do
barroco,
encontra
sua
mais
pronta
explicação
no
conteúdo
lúdico
do
impulso
criador.
Para
apreciar
plenamente
as
obras
de
Rubens,
Bernini
ou
o
príncipe
dos
poetas
holandeses,
Joost
van
den
Vondel,
é
preciso
estarmos
prontos
para
apreciar
essa
forma
de
expressão
cum
grano
salis.
Em
relação
a
isto
há
uma
objeção
possível,
que
essa
afirmação
pode
aplicar-se
à
maior
parte
da
criação
poética
e
artística;
mas
isso
seria
mais
uma
prova
de
nossa
afirmação
central,
a
da
importância
fundamental
do
jogo.
Mas
o
elemento
lúdico
manifesta-se
no
barroco
no
mais
alto
grau.
Seria
inútil
tentarmos
averiguar
até
que
ponto
o
artista
pretende
que
sua
obra
seja
completamente
séria,
em
primeiro
lugar
porque
ninguém
seria
capaz
de
determinar
com
uma
exatidão
total
quais
são
as
intenções
de
um
artista,
e
em
segundo
lugar
porque
as
intenções
subjetivas
de
um
artista
têm
muito
pouca
importância.
Uma
obra
de
arte
é
uma
coisa
sui
generis.
É
o
que
se
verifica
no
caso
de
Hugo
Grotius,
por
exemplo.
Hugo
Grotius
era
um
homem
destituído
de
humor
e
animado
por
um
amor
sem
limites
pela
verdade.
Dedicou
sua
obra--prima,
o
imortal
monumento
de
seu
espírito,
De
jure
belli
ac
pacís,
ao
rei
de
França,
Luís
XIII.
E
a
dedicatória
é
um
exemplo
flagrante
da
mais
enfática
extravagância
barroca,
versando
sobre
a
universalmente
reconhecida
e
inestimável
justiça
do
rei,
capaz
de
eclipsar
a
grandeza
da
Roma
antiga
etc.
Será
que
Grotius
pensava
tudo
isso?
Será
que
ele
mentiu?
Não,
ele
simplesmente
escreveu
a
dedicatória
segundo
a
moda
da
época.
Seria
difícil
encontrar
outro
século
tão
marcado
pelo
espírito
do
tempo
como
o
século
XVII.
O
estilo
geral
da
maneira
de
viver,
do
pensamento
e
da
aparência
exterior
é
profundamente
marcado
pelo
que
nos
habituamos,
à
falta
de
termo
mais
adequado,
a
chamar
"barroquismo",
e
um
dos
exemplos
mais
típicos
é
o
vestuário
da
época.
Deve
salientar-se
antes
de
mais
que
esse
estilo
característico
se
verifica
mais
no
vestuário
masculino
do
que
no
feminino,
e
sobretudo
no
traje
completo
de
corte.
A
moda
masculina
apresenta
uma
ampla
margem
de
variação
ao
longo
do
século.
Esta
mostra
uma
tendência
para
afastar-se
cada
vez
mais
da
simplicidade
e
da
naturalidade
até
1665,
momento
em
que
essa
deformação
chegou
ao
auge.
O
gibão
tornou-se
tão
curto
que
não
passava
das
axilas,
ficando
três
quartos
da
camisa
aparecendo
entre
o
gibão
e
a
calça,
tendo-se
esta
última
tomado
tão
exageradamente
curta
e
larga
que
ficou
irreconhecível.
O
rhingrave
a
que
se
refere
Molière
e
outros
tinha
toda
a
aparência
de
uma
pequena
saia
e
era
geralmente
interpretado
como
tal,
até
que
há
vinte
anos
atrás
foi
descoberto
num
guarda-roupa
inglês
um
espécime
dessa
peça
de
vestuário,
verificando-se
que
afinal
de
contas
se
tratava
de
uma
calça.
Esse
traje
fantástico
era
todo
coberto
de
fitinhas,
lacinhos
e
rendinhas,
mesmo
em
volta
dos
joelhos.
Apesar
de
todo
este
ridículo,
a
elegância
e
a
dignidade
salvavam-se
graças
sobretudo
à
capa,
ao
chapéu
e
à
peruca.
A
peruca
mereceria
um
capítulo
à
parte,
não
só
na
história
do
vestuário
como
também
na
história
da
civilização.
Não
há
exemplo
mais
flagrante
do
caráter
lúdico
do
impulso
cultural
do
que
a
peruca
tal
como
era
usada
nos
séculos
XVII
e
XVIII.
Só
uma
visão
histórica
muito
imperfeita
permitiu
que
se
chamasse
ao
século
XVIII
a
idade
da
peruca,
pois,
na
realidade,
ela
era
muito
mais
característica
no
século
XVII,
e
muito
mais
curiosa.
É
uma
autêntica
ironia
que
a
seríssima
época
de
Descartes,
Pascal
e
Spinoza,
de
Rembrandt
e
de
Milton,
da
fundação
de
colônias
em
todo
o
mundo,
dos
ousados
navegadores,
dos
mercadores
aventureiros,
do
florescer
da
ciência
e
dos
grandes
moralistas,
seja
ao
mesmo
tempo
a
época
de
um
objeto
tão
cômico
como
a
peruca.
Por
volta
da
década
de
1620
podemos
seguir,
através
da
pintura,
a
passagem
dos
cabelos
curtos
às
longas
cabeleiras,
e
logo
depois
da
metade
do
século
a
peruca
passa
a
ser
obrigatória
para
todos
os
que.
pretendem
identificar-se
como
nobres,
conselheiros,
jurisconsultos,
militares,
eclesiásticos
ou
mercadores.
Até
os
almirantes
a
usam
como
último
toque
de
seu
traje
de
gala.
Na
década
de
1660
chega-se
à
forma
suntuosa
e
esquisita,
a
chamada
allonge,
peruca
de
fundo
largo,
exemplo
inultrapassável
em
esplendor,
exagero
e
ridículo
da
loucura
da
moda
da
época.
Mas
não
basta
fazer
troça
dessa
duradoura
moda
da
peruca,
que
merece'
a
maior
atenção.
O
ponto
de
partida
é,
evidentemente,
o
fato
de
as
longas
cabeleiras
usadas
nas
décadas
de
1630
e
1640
exigirem
da
maioria
dos
homens
mais
do
que
a
natureza
lhes
havia
oferecido.
A
peruca
começou
por
ser
um
substituto
para
a
falta
de
cabelo,
uma
imitação
da
natureza,
portanto.
Mas
logo
que
a
peruca
passou
a
ser
um
elemento
da
moda
corrente
ela
rapidamente
abandonou
toda
pretensão
de
imitar
as
cabeleiras
naturais,
tornando-se
um
autêntico
elemento
de
estilo.
Estamos
portanto,
quase
desde
início,
perante
uma
obra
de
arte.
A
peruca
emoldurava
o
rosto
à
maneira
de
uma
moldura
de
quadro,
e
acontece
que
o
emolduramento
das
obras
pictóricas
é
mais
ou
menos
contemporâneo
da
moda
da
peruca.
Serviu
para
isolar
o
rosto,
dando-lhe
um
ar
falsamente
nobre,
como
se
o
elevasse
a
um
poder
mais
alto.
É,
portanto,
o
apogeu
do
barroco.
No
tipo
allonge
as
dimensões
tornam-se
perfeitamente
hiperbólicas,
mas
o
conjunto
da
moda
conserva
uma
elegância,
uma
grandeza
cheia
de
naturalidade
que
quase
chega
a
ser
majestosa,
inteiramente
adequada
para
exprimir
o
estilo
e
a
época
do
jovem
Luís
XIV.
Neste
caso
é
preciso
reconhecer,
apesar
de
toda
estética,
que
é
atingido
um
efeito
de
verdadeira
beleza:
a
peruca
allonge
é
um
exemplo
de
arte
aplicada.
Mas
convém
não
esquecer,
ao
contemplar
os
retratos
da
época,
que
a
ilusão
de
beleza
por
eles
provocada
é
incomparavelmente
maior
do
que
jamais
poderá
ter
sido
para
os
contemporâneos
que
viam
os
modelos
vivos
(demasiado
vivos)
dessa
arte.
A
pintura
e
a
gravura
mostram
só
os
aspectos
mais
agradáveis,
deixando
de
lado
os
que
o
são
menos,
como
a
falta
de
limpeza.
O
que
há
de
notável
na
moda
da
peruca
não
é
somente
que,
apesar
de
antinatural,
incômoda
e
anti-higiênica,
ela
tenha
durado
um
século
e
meio,
o
que
basta
por
si
só
para
mostrar
que
ela
não
nasceu
de
um
simples
capricho,
mas
que
ela
se
tenha
pouco
a
pouco
afastado
da
forma
do
cabelo
natural,
tornando-se
cada
vez
mais
estilizada.
Esta
estilização
dá-se
de
três
maneiras:
com
pó,
caracóis
ou
laços.
No
momento
da
passagem
do
século
só
se
usava
peruca
empoada,
desaparecendo
as
perucas
pretas,
castanhas
ou
louras
para
dar
lugar
a
um
branco
ou
cinzento
uniforme.
Continua
a
ser
um
mistério
quais
as
razões
culturais
ou
psicológicas
do
hábito
de
empoar
as
perucas,
mas
não
há
dúvida
que
os
retratos
mostram
esta
moda
de
maneira
muito
favorável.
Depois,
cerca
dos
meados
do
século
XVIII,
a
peruca
passa
a
ter
caracóis
pesados
e
regulares
sobre
as
orelhas,
com
o
topete
muito
alto
e
um
laço
na
nuca.
Desapareceu
toda
e
qualquer
pretensão
de
imitar
a
natureza;
a
peruca
passou
a
ser
um
puro
e
simples
ornamento.
Falta
ainda
referir
de
passagem
dois
aspectos.
As
mulheres
só
usavam
peruca
quando
a
ocasião
assim
exigia,
mas
de
maneira
geral
seus
penteados
seguiam
a
moda
masculina,
até
o
momento
em
que,
perto
do
final
do
século
XVIII,
ultrapassou
todos
os
limites
da
extravagância
e
do
artificialismo.
O
outro
aspecto
é
que
o
domínio
da
peruca
nunca
chegou
a
ser
absoluto,
mesmo
quando
as
classes
mais
pobres
começaram
a
seguir
a
moda
com
perucas
de
algodão
ou
qualquer
outro
material.
Mas,
enquanto
os
atores
trágicos
representavam
o
teatro
clássico
usando
peruca
segundo
a
moda
da
época,
já
desde
o
início
do
século
XVIII
é
relativamente
frequente
ver
retratos
de
jovens
usando
cabelo
comprido
natural,
sobretudo
na
Inglaterra.
Em
minha
opinião,
isto
indica
a
existência
de
uma
corrente
subterrânea
de
sentido
oposto,
em
direção
à
liberdade
e
à
facilidade,
ao
à
vontade
deliberado,
que
se
afirma
com
Watteau
e
percorre
todo
o
século
XVIII
como
um
protesto
contra
o
artificialismo,
uma
desforra
de
tudo
o
que
era
natural
e
inocente.
O
que
aqui
transparece
são
as
sementes
do
rousseauismo
e
do
romantismo.
Seria
uma
tarefa
das
mais
interessantes
e
importantes
investigar
esta
mesma
tendência
em
outros
domínios
da
cultura,
e
certamente
se
estabeleceriam
numerosas
ligações
com
o
jogo.
Mas
essa
pesquisa
nos
levaria
longe
demais.
Basta
aqui
que
nossa
longa
digressão
sobre
a
peruca
mostre
que
este
fenômeno
é
um
dos
exemplos
mais
flagrantes
da
intervenção
do
elemento
lúdico
na
cultura.
A
Revolução
Francesa
pôs
fim
à
moda
da
peruca,
sem
todavia
a
ter
eliminado
bruscamente.
A
história
dos
penteados
e
das
barbas
na
época
subsequente
é
uma
mina
de
interessantes
ensinamentos,
que
até
aqui
quase
não
foi
explorada.
Mas
este
é
outro
aspecto
que
temos
de
nos
abster
de
analisar.
Se
verificamos
no
período
a
que
chamamos
barroco
a
presença
de
um
vivo
elemento
lúdico,
com
muito
mais
razão
devemos
encontrá-lo
no
período
rococó
que
se
seguiu.
Também
este
termo
sofreu
uma
ampliação
geral
de
significado,
talvez
um
pouco
menos
em
inglês,
que
tem
menos
tendência
para
abstrações
nebulosas
do
que
certas
línguas
continentais.
Mas
mesmo
que
seja
tomado
simplesmente
no
sentido
de
um
determinado
estilo
artístico,
a
palavra
rococó
possui
tantas
associações
com
o
jogo
e
com
a
ludicidade
em
geral
que
quase
poderia
servir
para
defini-los.
Não
haverá
além
disso,
na
própria
ideia
de
"estilo"
em
arte,
a
aceitação
implícita
de
um
certo
elemento
lúdico?
Não
será
o
próprio
surgimento
do
estilo
um
jogo
do
espírito
em
busca
de
novas
formas?
O
estilo
depende
dos
mesmos
elementos
que
o
jogo,
do
ritmo,
da
harmonia,
da
mudança
e
da
repetição
regular,
da
tensão
e
da
cadência.
O
estilo
e
a
moda
estão
mais
aparentados
do
que
a
estética
ortodoxa
habitualmente
admite.
Na
moda,
o
impulso
estético
é
adulterado
por
toda
espécie
de
emoções
extrínsecas,
o
desejo
de
agradar,
a
vaidade,
o
orgulho,
ao
passo
que
no
estilo
ele
é
cristalizado
numa
forma
pura.
Mas
o
estilo
e
a
moda,
e
portanto
a
arte
e
o
jogo,
poucas
vezes
foram
reunidos
tão
inseparavelmente
como
no
rococó,
exceto
talvez
na
cultura
japonesa.
Os
exemplos
podem
ir
desde
uma
peça
de
porcelana
de
Meissen
ou
um
idílio
pastoral
(tendo
este
atingido
um
requinte
de
delicadeza
só
comparável
às
obras
de
Virgílio),
ou
um
quadro
de
Watteau
ou
Lancret,
ou
um
interior
do
século
XVIII,
ou
o
ingênuo
entusiasmo
pelo
exotismo
que
introduziu
na
literatura
encantadoras
e
sentimentais
figuras
de
turcos,
indianos
e
chineses:
mas
em
toda
esta
diversidade
a
impressão
de
jogo
não
desaparece
nem
um
só
momento.
Mas
há
aspectos
mais
profundos
desta
qualidade
lúdica
da
civilização
setecentista.
A
arte
da
política
nunca
foi
tão
abertamente
um
jogo
como
nessa
época
de
cabalas
secretas,
intrigas
e
aventuras
que
produziu
figuras
como
Alberoni,
Ripperda
e
Teodoro
Neuhoff,
rei
da
Córsega.
Ministros
e
príncipes,
tão
irresponsáveis
como
onipotentes,
livres
que
estavam
de
quaisquer
incômodos
tribunais
internacionais,
podiam
a
qualquer
momento
jogar
com
os
destinos
de
seus
países,
com
um
sorriso
nos
lábios
e
termos
corteses,
como
se
estivessem
apenas
movimentando
uma
pedra
de
jogo
de
xadrez.
Foi
uma
sorte
para
a
Europa
que
as
consequências
desta
política
de
vistas
curtas
fossem
limitadas
por
outros
fatores,
como
a
lentidão
das
comunicações
e
o
poder
relativamente
reduzido
dos
instrumentos
de
destruição
de
que
dispunham.
Mas,
mesmo
assim,
os
resultados
deste
jogo
político
foram
suficientemente
desastrosos.
Quanto
ao
domínio
cultural,
em
toda
a
parte
encontramos
um
ambicioso
espírito
de
emulação,
que
se
manifesta
nos
clubes,
nas
sociedades
secretas,
nos
salões
literários,
nos
grupos
artísticos,
nas
irmandades,
círculos
e
conventículos.
Todo
interesse
ou
ocupação
que
se
possa
imaginar
servia
de
motivo
para
a
associação
voluntária.
Colecionar
coisas
raras
e
curiosidades
naturais
era
a
paixão
dominante.
Não
significa
isto
que
todos
esses
impulsos
fossem
destituídos
de
valor,
pois,
pelo
contrário,
foi
precisamente
o
abandono
total
ao
jogo
que
os
tornou
elementos
extremamente
fecundos
do
ponto
de
vista
cultural.
O
espírito
lúdico
inspira
também
as
controvérsias
literárias
e
científicas,
que
constituíam
uma
parte
importante
das
distrações
mais
elevadas
da
elite
internacional
que
as
promovia.
O
seleto
público
leitor
para
o
qual
Fontenelle
escreveu
seus
Entretiens
sur
la
pluralité
des
mondes
estava
constantemente
desagregando-se
e
reaglutinando-se
em
função
desta
ou
daquela
questão
controversa.
Toda
a
literatura
setecentista
é
feita
de
figuras
puramente
lúdicas:
abstrações,
pálidas
alegorias,
ocas
máximas
morais.
A
obra-prima
da
literatura
lúdica,
o
Rape
of
the
Lock
de
Pope,
só
poderia
ter
surgido
nessa
época.
O
nosso
século
demorou
muito
a
reconhecer
o
elevado
nível
da
arte
do
século
XVIII.
O
século
XIX
não
tinha
mais
qualquer
espécie
de
sensibilidade
para
suas
qualidades
lúdicas,
deixando
simplesmente
de
ver
a
seriedade
subjacente.
No
luxo
e
na
exuberância
da
ornamentação
rococó
a
época
vitoriana
não
soube
ver
mais
do
que
artifício
e
fraqueza,
deixando
de
apreciar
a
ornamentação
musical
que
oculta
a
linha
reta.
Não
soube
compreender
que
por
detrás
de
todo
esse
requinte
o
espírito
da
época
estava
procurando
um
caminho
para
o
regresso
à
natureza,
mas
um
caminho
dotado
de
um
estilo.
Preferiu
ignorar
o
fato
de
nas
obras-primas
da
arquitetura
desse
século
a
ornamentação
jamais
prejudicar
as
linhas
sóbrias
e
severas
dos
edifícios,
preservando
sempre
a
nobre
dignidade
de
suas
proporções
harmoniosas.
Foram
poucos
os
períodos
artísticos
que
souberam
equilibrar
o
jogo
e
a
seriedade
de
maneira
tão
graciosa
como
o
rococó,
e
conseguiram
harmonizar
tão
perfeitamente
o
elemento
plástico
e
o
elemento
musical.
A
música,
como
já
sugerimos,
é
a
expressão
mais
alta
e
mais
pura
da
facultas
ludendi.
Talvez
não
seja
ousadia
atribuir
a
suprema
importância
da
música
setecentista
ao
perfeito
equilíbrio
existente
entre
seu
conteúdo
lúdico
e
seu
conteúdo
estético.
Enquanto
fenômeno
puramente
acústico,
a
música
foi
apurada
e
enriquecida
de
diversas
maneiras.
Os
velhos
instrumentos
foram
aperfeiçoados,
novos
instrumentos
foram
inventados,
e
o
resultado
foi
a
orquestra
adquirir
maior
volume
de
som
e
maior
amplitude
de
modulação.
As
vozes
femininas
passaram
a
desempenhar
um
papel
mais
importante
nos
espetáculos
musicais.
À
medida
que
a
música
instrumental
ia
adquirindo
preponderância
sobre
a
música
simplesmente
vocal,
sua
dependência
em
relação
às
palavras
foi
diminuindo,
tornando-se
mais
sólida
sua
situação
de
arte
independente.
Também
contribuiu
para
tal
fato
a
secularização
da
vida,
que
se
tornava
cada
vez
maior.
A
prática
da
música
por
si
mesma
adquiriu
um
lugar
cada
vez
mais
importante,
embora,
dado
que
as
composições
eram
sobretudo
encomendadas
para
fins
litúrgicos
ou
festivos,
ela
estivesse
longe
de
desfrutar
da
publicidade
verificada
nos
tempos
atuais.
Tudo
isto
mostra
claramente
o
conteúdo
lúdico
da
música
do
século
XVIII,
sua
função
como
jogo
social.
Mas,
até
que
ponto
se
poderá
considerar
lúdico
seu
conteúdo
estético?
A
resposta
poderia
ser
um
desenvolvimento
da
concepção
que
já
apresentamos,
segundo
a
qual
as
próprias
formas
musicais
são
formas
lúdicas.
Tal
como
o
jogo,
a
música
assenta
na
aceitação
voluntária
e
na
rigorosa
aplicação
de
um
sistema
de
regras
convencionais:
ritmo,
tonalidade,
melodia,
harmonia
etc.
Isto
continua
sendo
verdade
mesmo
quando
são
abandonadas
todas
as
regras
por
nós
conhecidas.
O
caráter
convencional
dos
valores
musicais
é
uma
coisa
evidente
para
todos
aqueles
que
têm
conhecimento
da
imensa
diversidade
da
música
nas
várias
partes
do
mundo.
Não
há
nenhum
princípio
acústico
uniforme
que
estabeleça
uma
ligação
entre
a
música
javanesa
ou
chinesa
e
a
ocidental,
ou
entre
a
medieval
e
a
moderna.
Cada
civilização
possui
suas
convenções
musicais
próprias,
e,
regra
geral,
o
ouvido
só
aceita
as
formas
acústicas
a
que
está
habituado.
Esta
diversidade
constitui
uma
nova
demonstração
de
que
a
música
é
essencialmente
um
jogo,
um
contrato
válido
dentro
de
certos
limites
definidos,
que
não
tem
nenhuma
finalidade
útil
que
não
seja
dar
prazer,
relaxamento,
e
uma
elevação
do
espírito.
A
necessidade
de
uma
preparação
extenuante
do
intérprete
e
do
compositor,
a
exatidão
e
o
rigor
do
cânone
do
que
é
ou
não
é
permitido,
o
fato
de
cada
música
proclamar
que
é
a
única
norma
válida
de
beleza
são
todas
características
típicas
de
sua
qualidade
lúdica.
E
é
precisamente
esta
qualidade
lúdica
que
torna
suas
leis
mais
rigorosas
do
que
as
de
qualquer
outra
arte.
Toda
e
qualquer
infração
das
regras
estraga
imediatamente
o
jogo.
O
homem
das
épocas
arcaicas
tinha
plena
consciência
de
que
a
música
era
uma
força
sagrada
capaz
de
despertar
emoções
e,
além
disso,
era
um
jogo.
Só
muito
mais
tarde
ela
passou
a
ser
apreciada
como
uma
contribuição
importante
para
a
vida
e
a
expressão
da
vida,
em
resumo,
como
uma
arte
no
sentido
atual
da
palavra.
Apesar
de
sua
fecundidade
musical,
mesmo
o
século
XVIII
tinha
uma
concepção
muito
elementar
da
função
emocional
da
música,
como
se
vê
através
de
sua
banal
interpretação
por
Rousseau,
em
termos
de
sons
imitativos
da
natureza.
O
surgimento
tardio
de
uma
psicologia
da
música
é
bastante
elucidativo
quanto
à
nossa
referência
a
um
certo
equilíbrio
entre
o
conteúdo
lúdico
e
o
conteúdo
estético
na
música
do
século
XVIII.
Mesmo
Bach
e
Mozart
pouca
consciência
podiam
ter
de
estarem
praticando
algo
mais
do
que
o
mais
nobre
dos
passatempos
—
diagoguê
no
sentido
de
Aristóteles,
pura
diversão.
E
não
terá
sido
precisamente
esta
sublime
ingenuidade
que
lhes
permitiu
atingir
a
máxima
perfeição?
Poderia
parecer
inteiramente
lógico
recusar
ao
período
que
se
seguiu
ao
rococó
todo
e
qualquer
vestígio
do
elemento
lúdico.
A
época
do
neoclassicismo
e
dos
alvores
do
romantismo
está
associada
à
mais
extrema
seriedade,
a
figuras
melancólicas,
a
uma
tristeza
impenetrável,
a
uma
sociedade
lacrimejante,
enfim,
características
que
parecem
excluir
a
própria
possibilidade
do
jogo.
Mas
um
exame
mais
atento
mostra
que
se
passa
precisamente
o
contrário.
Se
jamais
um
estilo
e
um
Zeitgeist
surgiram
através
do
jogo,
isso
ocorreu
nos
meados
do
século
XVIII.
Quanto
ao
neoclassicismo,
o
espírito
europeu,
que
constantemente
recorre
à
antiguidade
como
sua
grande
fonte
de
ideais,
sempre
soube
encontrar
nos
clássicos
o
que
precisava
em
cada
época
dada.
Pompeia
ergueu-se
oportunamente
de
seu
túmulo
para
enriquecer
com
novos
temas
uma
época
que
tendia
para
uma
graciosidade
fria
e
lapidar,
para
uma
macieza
marmórea.
O
classicismo
de
Adam,
Wedgwood
e
Flaxman
nasceu
do
gosto
leve
e
lúdico
do
século
XVIII.
O
romantismo
possui
tantas
faces
quantas
eram
suas
vozes.
Considerado
como
uma
corrente
ou
um
movimento
surgido
por
volta
de
1750,
pode
ser
definido
como
uma
tendência
para
remeter
toda
a
vida
emocional
e
estética
para
um
passado
idealizado
onde
tudo
aparece
como
que
através
de
uma
névoa,
carregado
de
mistério
e
de
terror.
Ora
o
próprio
recortar
desse
espaço
ideal
para
o
pensamento
constitui
por
si
só
um
processo
lúdico.
Contudo,
há
outros
aspectos
a
considerar.
Praticamente
podemos
ver
como
o
romantismo
nasce
através
do
jogo,
como
fenômeno
literário
e
histórico.
As
cartas
de
Horace
Walpole
constituem
seu
certificado
de
nascimento.
Sua
leitura
nos
enche
da
crescente
convicção
de
que
esse
homem
notável,
que
mais
do
que
ninguém
merece
ser
considerado
o
pai
do
romantismo,
no
fundo
era
extremamente
classicista
em
suas
opiniões
e
tendências.
Para
ele,
que
mais
do
que
ninguém
contribuiu
para
dar
forma
e
substância
ao
romantismo,
este
não
passava
de
um
passatempo.
Escreveu
O
castelo
de
Otranto,
esse
primeiro
e
estranhíssimo
exemplo
de
romance
de
terror
em
ambiente
medieval,
em
parte
por
capricho
e
em
parte
por
fastio.
O
bric-à-brac
de
antiguidades
"góticas"
que
enchia
sua
casa
de
Strawberry
Hill
não
constituía
a
seus
olhos
nem
arte
nem
relíquias
sagradas,
mas
apenas
simples
"curiosidades".
Pessoalmente,
de
modo
algum
era
partidário
do
estilo
"gótico",
que
considerava
trifling,
uma
bagatela,
e
desprezava
os
que
o
eram.
Limitava-se
simplesmente
a
brincar
um
pouco
com
os
estados
de
alma.
Ao
mesmo
tempo
que
o
"goticismo",
o
sentimentalismo
vai
ganhando
terreno
na
vida
e
na
literatura
europeia.
O
reinado
desta
trêmula
condição,
que
durou
pelo
menos
um
quarto
de
século
num
mundo
cujo
pensamento
e
cuja
ação
estava
muito
longe
da
delicadeza
de
alma
de
heroínas
lacrimosas,
tem
seu
melhor
termo
de
comparação
no
ideal
do
amor
cortês
dos
séculos
XII
e
XIII.
Em
ambos
os
casos
verifica-se
que
toda
a
classe
alta
era
dominada
por
um
ideal
excêntrico
e
artificial
da
vida
e
do
amor.
É
claro
que
a
elite
do
século
XVIII
era
muito
mais
ampla
do
que
a
do
mundo
feudal
aristocrático
no
período
que
vai
de
Bertran
de
Born
até
Dante.
O sentimentalismo
é
uma
das
primeiras
rodas
literárias
em
que
o
aristocrata
é
manifestamente
substituído
pelo
burguês.
Todos
os
ideais
sociais
e
educacionais
da
época
faziam
parte
de
sua
bagagem
intelectual.
Mesmo
assim,
há
uma
flagrante
semelhança
entre
os
dois
casos.
Todas
as
emoções
pessoais,
desde
o
berço
até
ao
túmulo,
são
elaboradas
em
alguma
forma
artística.
Tudo
gira
em
tomo
do
amor
e
do
casamento,
mas
implicando
ao
mesmo
tempo
outras
condições
e
outras
relações
da
vida:
a
educação,
as
relações
entre
pais
e
filhos,
as
ideias
da
doença
e
da
cura,
da
morte
e
do
luto.
O
sentimentalismo
encontra
na
literatura
seu
elemento,
mas
a
vida
real
se
adapta
até
certo
ponto
às
exigências
do
novo
estilo
de
vida.
Mais
do
que
nunca
se
coloca
aqui
o
problema
da
seriedade.
Quem
defendia
mais
sinceramente
e
sentia
mais
profundamente
o
espírito
da
época:
os
humanistas
e
os
homens
do
barroco
ou
os
românticos
e
sentimentais
dos
séculos
XVIII
e
XIX?
Parece
óbvio
que
os
primeiros
defendiam
com
mais
convicção
os
ideais
clássicos
como
única
norma
válida
do
que
os
devotos
do
gótico
faziam
com
sua
vaga
visão
de
um
passado
de
sonho.
Apesar
disso,
o
sentimentalismo
é
em
minha
opinião
mais
profundo.
O
patrício
do
século
XVII
que
se
vestia
com
o
que
pensava
serem
trajes
"antigos"
a
fim
de
posar
para
seu
retrato
sabia
muito
bem
que
se
estava
mascarando
de
senador
romano.
Estava
fora
de
questão
a
possibilidade
de
viver
efetivamente
o
modelo
de
virtude
cívica
proclamado
por
suas
vestes.
Mas,
enquanto
há
sem
dúvida
um
elemento
lúdico
predominante
na
Totentanz
de
Goethe,
os
leitores
de
Julie
e
Werther
procuravam
muito
a
sério
viver
de
acordo
com
o
ideal
sentimentalista,
saindo-se
muitas
vezes
horrivelmente
bem.
Por
outras
palavras,
o
sentimentalismo
era
uma
imitatio
mais
autêntica
do
que
a
pose
ciceroniana
ou
platônica
dos
humanistas
e
de
seus
sucessores
do
barroco.
O
fato
de
um
espírito
livre
como
Diderot
ser
capaz
de
entusiasmar-se
com
o
exibicionismo
sentimental
da
Maldição
paterna
de
Greuze,
e
de
Goethe
e
mesmo
Napoleão
se
entusiasmarem
com
a
poesia
de
Ossian,
parece
constituir
uma
prova
de
nossa
afirmação.
E,
contudo
...
o
esforço
de
adaptação
da
vida
e
do
pensamento
ao
código
sentimental
não
pode
ter
sido
tão
profundo
como
isto
nos
levaria
naturalmente
a
supor.
O
ideal
era
constantemente
desmentido
pelos
fatos
brutais
da
vida
individual
e
da
história
contemporânea.
Sob
forma
diferente
do
puro
cultivo
literário
da
sensibilidade,
talvez
fosse
apenas
em
comoventes
cenas
da
vida
familiar
e
na
contemplação
da
natureza
(sobretudo
em
suas
formas
tempestuosas)
que
o
sentimentalismo
se
exercesse
plenamente.
Quanto
mais
nos
aproximamos
de
nossa
época,
mais
difícil
se
torna
determinar
objetivamente
o
valor
de
nossos
impulsos
culturais.
Surge
um
número
crescente
de
dúvidas
quanto
ao
caráter
lúdico
ou
sério
de
nossas
ocupações,
e
com
essas
dúvidas
aparece
uma
incômoda
sensação
de
hipocrisia,
como
se
a
única
coisa
de
que
pudéssemos
ter
certeza
fosse
o
"faz
de
conta".
Mas
convém
não
esquecer
que
este
equilíbrio
instável
entre
a
seriedade
e
o
fingimento
é
parte
integrante
da
cultura
enquanto
tal,
e
que
o
fator
lúdico
faz
parte
do
núcleo
central
de
todo
ritual
e
de
toda
religião.
Portanto,
é
inevitável
que
sempre
voltemos
a
cair
nesta
ambiguidade
fundamental,
que
só
se
torna
efetivamente
perturbadora
nos
fenômenos
culturais
de
caráter
não
ritualístico.
Assim,
não
há
nada
que
nos
impeça
de
interpretar
como
jogo
qualquer
fenômeno
cultural
que
se
apresente
como
inteiramente
sério.
Mas,
na
medida
em
que
o
romantismo
e
outros
movimentos
semelhantes
se
afastam
do
ritual,
é
inevitável
que
a
interpretação
que
deles
procuramos
fazer
seja
acompanhada
pela
mesma
incômoda
ambiguidade.
Parece
haver
pouco
lugar
para
o
jogo
no
século
XIX.
Já
no
século
XVIII
o
utilitarismo,
a
eficiência
prosaica
e
o
ideal
burguês
do
bem-estar
social
(elementos
que
foram
fatais
para
o
barroco)
haviam
deixado
uma
forte
marca
na
sociedade.
Estas
tendências
foram
exacerbadas
pela
revolução
industrial
e
suas
conquistas
no
domínio
da
tecnologia.
O
trabalho
e
a
produção
passam
a
ser
o
ideal
da
época,
e
logo
depois
o
seu
ídolo.
Toda
a
Europa
vestiu
roupa
de
trabalho.
Assim,
as
dominantes
da
civilização
passaram
a
ser
a
consciência
social,
as
aspirações
educacionais
e
o
critério
científico.
Com
o
imenso
desenvolvimento
técnico
e
industrial,
da
máquina
a
vapor
à
elétrica,
vai
ganhando
terreno
a
ilusão
de
que
o
progresso
consiste
na
exploração
da
energia
solar.
Em
consequência,
pôde
aparecer
e
mesmo
ser
acreditada
a
lamentável
concepção
marxista
segundo
a
qual
o
mundo
é
governado
por
forças
econômicas
e
interesses
materiais.
Este
grotesco
exagero
da
importância
dos
fatores
econômicos
foi
condicionado
por
nossa
adoração
do
progresso
tecnológico,
o
qual
por
sua
vez
foi
fruto
do
racionalismo
e
do
utilitarismo,
que
destruíram
os
mistérios
e
absolveram
o
homem
da
culpa
e
do
pecado.
Mas
esqueceram
de
libertá-lo
da
insensatez
e
da
miopia,
e
a
única
coisa
de
que
ele
passou
a
ser
capaz
foi
de
adaptar
o
mundo
à
sua
própria
mediocridade.
Este
é
o
aspecto
mais
negativo
do
século
XIX.
Mas
as
grandes
correntes
do
pensamento
da
época,
sob
todos
os
pontos
de
vista,
eram
adversas
ao
fator
lúdico
na
vida
social.
Nem
o
liberalismo
nem
o
socialismo
contribuíram
para
ele
em
alguma
coisa.
A
ciência
analítica
e
experimental,
a
filosofia,
o
reformismo,
a
igreja
e
o
estado,
a
economia,
tudo
no
século
XIX
se
revestia
da
mais
extrema
seriedade.
Mesmo
em
arte
e
em
literatura,
depois
de
passado
o
entusiasmo
romântico,
a
imemorial
associação
com
o
jogo
passou
a
ser
considerada
pouco
respeitável.
O
realismo,
o
naturalismo,
o
impressionismo
e
todas
as
outras
monótonas
escolas
literárias
e
artísticas
eram
mais
destituídas
de
espírito
lúdico
do
que
qualquer
dos
estilos
anteriores.
Jamais
se
tomou
uma
época
tão
a
sério,
e
a
cultura
deixou
de
ter
alguma
coisa
a
ver
com
o
jogo.
As
formas
exteriores
já
não
se
destinavam
a
criar
a
aparência,
ou
a
ficção,
se
se
quiser,
de
um
modo
de
vida
ideal
e
mais
elevado.
Não
há
sintoma
mais
flagrante
da
decadência
do
fator
lúdico
do
que
o
desaparecimento
de
todos
os
aspectos
imaginativos,
fantasiosos
e
fantásticos
do
vestuário
masculino
após
a
revolução
francesa.
As
calças
compridas,
que
eram
até
então
o
traje
típico
dos
camponeses,
pescadores
e
marinheiros
de
muitos
países
(como
se
vê
pelas
figuras
da
Commedia
dell'Arte),
passaram
de
repente
a
ser
a
moda
para
cavalheiros,
juntamente
com
uma
certa
desordem
do
cabelo
que
exprimia
o
pathos
da
revolução.
O
estilo
despenteado
também
atingiu
a
moda
feminina,
conforme
pode
ver-se
no
retrato
da
rainha
Luísa
da
Prússia
por
Schadow.
Se
a
moda
excêntrica
conheceu
ainda
uma
última
convulsão
nos
excessos
dos
incroyables
e
das
merveilleuses
e
nos
trajes
militares
da
era
napoleônica
(exibicionistas,
românticos
e
pouco
práticos),
a
fantasia
estava
condenada
a
desaparecer
inteiramente
da
moda.
A
partir
daí,
o
vestuário
masculino
tornou-se
cada
vez
mais
amorfo
e
incolor,
sujeito
a
cada
vez
menos
transformações.
O
elegante
cavalheiro
de
antanho,
resplandecente
no
traje
de
gala
que
refletia
sua
dignidade,
passa
agora
a
ser
um
cidadão
respeitável.
O
vestuário
deixou
de
permitir
que
ele
brincasse
de
herói
ou
de
guerreiro.
Com
a
cartola,
é
como
se
ele
se
coroasse
com
o
símbolo
de
sua
sobriedade.
Só
em
extravagâncias
mínimas
o
elemento
lúdico
se
afirma
no
vestuário
masculino,
em
variações
imperceptíveis
como
calças
justas,
gravata
larga
e
colarinho
alto.
Depois,
desaparece
todo
vestígio
de
elemento
decorativo,
do
qual
resta
apenas
uma
sombra
no
traje
de
cerimônia.
Desaparecem
completamente
as
cores
alegres,
e
os
tecidos
suntuosos
são
substituídos
por
tecidos
rudes
de
origem
escocesa.
A
casaca,
que
outrora
fora
elemento
indispensável
no
guarda-roupa
de
todo
cavalheiro,
terminou
sua
carreira
secular
como
traje
próprio
dos
criados
de
restaurante,
cedendo
lugar
ao
paletó.
Praticamente
deixou
de
haver
variações,
a
não
ser
na
moda
esportiva.
Se
alguém
hoje
decidisse
vestir-se
à
maneira
de
1890,
no
máximo
daria
a
impressão
de
ter
um
alfaiate
um
pouco
esquisito.
Este
nivelamento
e
democratização
da
moda
masculina
está
longe
de
ser
destituído
de
importância.
Ele
é
expressão
de
toda
a
transformação
espiritual
e
social
ocorrida
desde
a
revolução
francesa.
A
moda
feminina
não
seguiu,
evidentemente,
esta
simplificação
e
uniformização
da
moda
masculina.
Neste
caso,
o
elemento
estético
e
a
atração
sexual
são
tão
importantes
que
a
evolução
do
vestuário
feminino
se
colocou
num
plano
totalmente
diferente,
e
assim
o
fato
de
ter
seguido
um
caminho
diferente
não
tem
nenhum
significado
especial.
O
que
se
deve
salientar
é
o
fato
de,
apesar
de
todas
as
troças
de
que
foram
alvo
as
extravagâncias
e
loucuras
do
vestuário
das
senhoras
desde
a
Idade
Média,
este
tem
sofrido
muito
menos
transformações
e
dado
origem
a
muito
menos
excessos
do
que
a
dos
homens.
Basta
pensar
no
período
que
vai
de
1500
a
1700:
mudanças
violentas
e
constantes
na
moda
masculina,
e
uma
considerável
estabilidade
na
feminina.
Até
certo
ponto
é
o
que
seria
de
esperar:
o
código
da
decência
levava
a
evitar
uma
moda
muito
solta,
ou
muito
curta,
ou
muito
baixa,
impedindo
grandes
modificações
na
estrutura
fundamental
do
traje
feminino
—
saia
até
aos
pés
e
corpete.
Só
no
início
do
século
XVIII
surgiu
na
moda
feminina
um
elemento
lúdico.
Enquanto
o
período
rococó
assistia
ao
aparecimento
de
toucados
monumentais,
o
espírito
do
romantismo
se
manifesta
no
quase
négligé,
no
olhar
lânguido,
no
cabelo
solto,
nos
braços
nus
e
na
revelação
do
tornozelo
ou
mesmo
mais.
É
estranho
que
o
decote
fosse
aceite
vários
séculos
antes
dos
braços
nus,
conforme
vemos
nas
proibições
fulminantes
dos
moralistas
medievais.
A
partir
do
Diretório,
a
moda
feminina
ultrapassa
a
do
homem
tanto
na
frequência
quanto
na
extensão
das
mudanças.
Só
nos
tempos
arcaicos
se
encontra
algo
comparável
às
crinolinas
de
1860
e
às
ancas
postiças
de
1880.
Depois,
no
novo
século,
a
evolução
da
moda
seguiu
direção
oposta,
levando
o
vestuário
feminino
para
uma
simplicidade
que
já
não
se
verificava
desde
o
ano
de
1300.
Notas do capítulo 11
1
Ver
ante,
p.
151
e
ss.
2
Cf.
M.
Rostovtzeff,
Social
and
Economic
History
of
lhe
Roman
Empire.
Oxford,
1926.
3
O
declínio
da
idade
Média.
12.
O
Elemento
Lúdico
da
Cultura
Contemporânea
Evitemos
perder
tempo
discutindo
o
que
se
entende
por
"contemporâneo".
Escusado
seria
dizer
que
sempre
que
nos
referimos
a
algum
momento
do
tempo,
ele
já
se
tornou
passado
histórico,
um
passado
que
parece
desfazer-se
à
medida
que
dele
nos
afastamos.
Há
fenômenos
que
a
geração
mais
nova
considera
parte
do
"passado"
e
que
para
os
mais
velhos
continuam
fazendo
parte
de
"nosso
tempo",
não
só
porque
os
mais
velhos
ainda
recordam
pessoalmente
esses
fenômenos
mas
sobretudo
porque
eles
ainda
fazem
parte
de
sua
cultura.
Esta
diferença
quanto
ao
sentido
do
tempo
depende
menos
da
geração
a
que
se
pertence
do
que
do
conhecimento
que
se
possui
das
coisas
antigas
novas.
Um
espírito
de
formação
histórica
incluirá
em
sua
ideia
do
que
é
"moderno"
e
"contemporâneo"
uma
parte
do
passado
muito
maior
do
que
fará
um
espírito
que
miopemente
considera
apenas
o
momento
que
passa.
Assim,
nossa
concepção
da
"cultura
contemporânea"
abrange
uma
boa
parte
do
século
XIX.
O
problema
que
aqui
nos
interessa
é
o
seguinte:
em
que
medida
a
cultura
atual
continua
se
manifestando
através
de
formas
lúdicas?
Até
que
ponto
a
vida
dos
homens
que
participam
dessa
cultura
é
dominada
pelo
espírito
lúdico?
Conforme
vimos,
o
século
XIX
perdeu
grande
número
dos
elementos
lúdicos
que
caracterizavam
as
épocas
anteriores.
Terá
esta
deficiência
sido
eliminada,
ou
terá
ela
aumentado?
A
primeira
vista
poderia
parecer
que
certos
fenômenos
da
vida
social
moderna
mais
do
que
compensam
a
perda
das
formas
lúdicas.
O
esporte
e
o
atletismo,
enquanto
funções
sociais,
têm
vindo
constantemente
a
aumentar
sua
influência,
conquistando
territórios
novos
à
escala
nacional
e
internacional.
Conforme
mostramos,
as
competições
em
habilidade,
força
e
perseverança
sempre
ocuparam
um
lugar
dos
mais
importantes
em
todas
as
culturas,
quer
em
relação
ao
ritual
ou
simplesmente
como
divertimento.
A
sociedade
feudal
só
se
interessava
pelos
torneios,
sendo
o
resto
apenas
divertimento
popular
e
nada
mais.
Ora
o
torneio,
com
sua
encenação
extremamente
dramática
e
sua
pompa
aristocrática,
dificilmente
pode
ser
considerado
um
esporte.
Desempenhava
uma
das
funções
próprias
do
teatro,
sendo
que
apenas
a
classe
mais
alta,
numericamente
reduzida,
nele
tomava
parte.
Esta
unilateralidade
da
vida
esportiva
medieval
devia-se
em
grande
parte
à
influência
da
igreja:
o
ideal
cristão
não
favorecia
a
prática
organizada
do
esporte
e
o
cultivo
de
exercícios
físicos,
a
não
ser
na
medida
em
que
estes
últimos
contribuíam
para
a
educação
aristocrática.
Fato
semelhante
se
verifica
no
Renascimento,
onde
há
numerosos
exemplos
de
prática
de
exercícios
físicos
tendo
em
vista
a
perfeição,
mas
sempre
por
iniciativa
de
indivíduos
isolados,
nunca
de
grupos
ou
classes.
Aliás,
a
importância
atribuída
pelos
humanistas
ao
saber
e
à
erudição
contribuía
para
perpetuar
o
velho
desprezo
pelo
corpo,
do
mesmo
modo
que
o
zelo
moralista
e
o
severo
intelectualismo
da
Reforma
e
da
Contra-Reforma.
A
aceitação
dos
jogos
e
dos
exercícios
corporais
como
valores
culturais
importantes
só
surgiu
com
o
final
do
século
XVIII.
É
evidente
que
as
formas
básicas
da
competição
esportiva
se
mantêm
constantes
através
dos
tempos.
Em
algumas
dessas
forma
,
as
provas
de
força
e
velocidade
constituem
a
própria
essência
da
competição,
como
nas
corridas
a
pé
e
de
patins,
de
carros
e
de
cavalos,
no
levantamento
de
peso,
na
natação,
no
mergulho,
no
tiro
ao
alvo
etc.1.
Embora
os
seres
humanos
tenham
praticado
essas
atividades
desde
o
início
dos
tempos,
estas
só
em
pequena
medida
costumam
assumir
a
forma
de
jogos
organizados.
Mas
todo
aquele
que
não
esquecer
o
princípio
agonístico
que
as
anima
terá
forçosamente
de
considerá-las
jogos
no
sentido
pleno
da
palavra
—
isto
é,
atividades
que
podem
ser
extremamente
sérias.
Aliás,
há
outras
formas
de
competição
que
se
tornaram
"esportes"
sujeitos
a
um
sistema
de
regras,
como
é
o
caso
dos
jogos
de
bola.
O
que
aqui
nos
interessa
é
a
transição
do
divertimento
ocasional
para
a
existência
dos
clubes
e
da
competição
organizada.
A
pintura
holandesa
do
século
XVII
nos
mostra
citadinos
e
camponeses
entretidos
em
seu
jogo
de
kolf,
mas
tanto
quanto
eu
saiba
não
há
notícia
da
organização
desse
jogo
em
clubes
e
competições
expressamente
marcadas.
É
evidente
que
uma
organização
regular
surge
mais
facilmente
quando
há
dois
grupos
que
jogam
um
contra
o
outro.
Sobretudo
os
grandes
jogos
de
bola
exigem
a
existência
de
equipes
permanentes,
o
que
constitui
o
ponto
de
partida
do
esporte
moderno.
O
processo
se
desenvolve
espontaneamente
nos
encontros
entre
aldeias
ou
escolas
diferentes,
ou
entre
dois
bairros
de
uma
mesma
cidade
etc.
É
compreensível
até
certo
ponto
que
o
processo
se
tenha
iniciado
na
Inglaterra
do
século
XIX,
embora
seja
muito
discutível
se
as
tendências
específicas
do
espírito
anglo-saxão
podem
ou
não
ser
consideradas
sua
causa
eficiente.
Todavia,
não
há
dúvida
que
a
estrutura
da
vida
social
inglesa
lhe
foi
altamente
favorável,
com
os
governos
locais
autônomos
encorajando
o
espírito
de
associação
e
de
solidariedade,
e
a
ausência
de
serviço
militar
obrigatório
fornecendo
ocasião
para
o
exercício
físico,
além
de
impor
sua
necessidade.
As
formas
da
organização
escolar
agiam
no
mesmo
sentido,
e
finalmente
a
geografia
do
país
e
a
natureza
do
terreno,
predominantemente
plano
e
oferecendo
em
toda
a
parte
os
melhores
campos
de
jogo
nos
prados
comunitários,
os
commons,
também
tiveram
a
maior
importância.
Foi
assim
que
a
Inglaterra
se
tornou
o
berço
e
o
centro
da
moderna
vida
esportiva.
Desde
o
último
quartel
do
século
XIX
que
os
jogos,
sob
a
forma
de
esportes,
vêm
sendo
tomados
cada
vez
mais
a
sério.
As
regras
se
tornam
cada
vez
mais
rigorosas
e
complexas,
são
estabelecidos
recordes
de
altura,
de
velocidade
ou
de
resistência
superiores
a
tudo
quanto
antes
foi
conseguido.
Todo
mundo
conhece
as
deliciosas
gravuras
da
primeira
metade
do
século
XIX
que
mostram
os
jogadores
de
cricket
usando
cartola.
Este
contraste
dispensa
comentários.
Ora
esta
sistematização
e
regulamentação
cada
vez
maior
do
esporte
implica
a
perda
de
uma
parte
das
características
lúdicas
mais
puras.
Isto
se
manifesta
nitidamente
na
distinção
oficial
entre
amadores
e
profissionais
(ou
"cavalheiros
e
jogadores",
como
já
foi
hábito
dizer-se),
que
implica
uma
separação
entre
aqueles
para
quem
o
jogo
já
não
é
jogo
e
os
outros,
os
quais
por
sua
vez
são
considerados
superiores
apesar
de
sua
competência
inferior.
O
espírito
do
profissional
não
é
mais
o
espírito
lúdico,
pois
lhe
falta
a
espontaneidade,
a
despreocupação.
Isto
afeta
também
os
amadores,
que
começam
a
sofrer
de
um
complexo
de
inferioridade.
Uns
e
outros
vão
levando
o
esporte
cada
vez
mais
para
longe
da
esfera
lúdica
propriamente
dita,
a
ponto
de
transformá-lo
numa
coisa
sui
generis,
que
nem
é
jogo
nem
é
seriedade.
O
esporte
ocupa,
na
vida
social
moderna,
um
lugar
que
ao
mesmo
tempo
acompanha
o
processo
cultural
e
dele
está
separado,
ao
passo
que
nas
civilizações
arcaicas
as
grandes
competições
sempre
fizeram
parte
das
grandes
festas,
sendo
indispensáveis
para
a
saúde
e
a
felicidade
dos
que
nelas
participavam.
Esta
ligação
com
o
ritual
foi
completamente
eliminada,
o
esporte
se
tomou
profano,
foi
"dessacralizado"
sob
todos
os
aspectos
e
deixou
de
possuir
qualquer
ligação
orgânica
com
a
estrutura
da
sociedade,
sobretudo
quando
é
de
iniciativa
governamental.
A
capacidade
das
técnicas
sociais
modernas
para
organizar
manifestações
de
massa
com
um
máximo
de
efeito
exterior
no
domínio
do
atletismo
não
impediu
que
nem
as
Olimpíadas,
nem
o
esporte
organizado
das
Universidades
norte-americanas,
nem
os
campeonatos
internacionais
tenham
contribuído
um
mínimo
que
fosse
para
elevar
o
esporte
ao
nível
de
uma
atividade
culturalmente
criadora.
Seja
qual
for
sua
importância
para
os
jogadores
e
os
espectadores,
ele
é
sempre
estéril,
pois
nele
o
velho
fator
lúdico
sofreu
uma
atrofia
quase
completa.
Provavelmente
esta
opinião
é
contrária
à
atitude
popular
atualmente
dominante,
segundo
a
qual
o
esporte
constitui
a
apoteose
do
elemento
lúdico
em
nossa
civilização.
Acontece
que
esta
atitude
popular
está
errada.
E outro
exemplo
da
tendência
fatal
para
o
excesso
de
seriedade
são
os
jogos
não
atléticos
baseados
no
cálculo,
como
o
xadrez
e
os
jogos
de
cartas.
Desde
os
tempos
mais
primitivos,
a
humanidade
tem
conhecido
grande
número
de
jogos
de
mesa,
sendo
que
as
sociedades
primitivas
lhes
atribuíam
grande
importância
devido
ao
predomínio
do
fator
sorte.
Mas
quer
sejam
jogos
de
azar
ou
de
habilidade,
sempre
se
encontra
neles
um
elemento
de
seriedade.
Não
se
caracterizam
por
uma
atmosfera
de
alegria,
sobretudo
quando
o
elemento
sorte
tem
uma
importância
mínima,
como
no
xadrez,
nas
damas,
no
gamão,
no
jogo
do
assalto
etc.
Apesar
disso,
todos
estes
jogos
cabem
dentro
da
definição
do
jogo
que
apresentamos
no
primeiro
capítulo.
Foi
só
em
data
recente
que
a
publicidade
deles
tomou
conta,
anexando-os
ao
esporte
através
de
campeonatos
públicos,
torneios
mundiais,
recordes
registrados
e
noticiário
de
imprensa
caracterizado
por
um
estilo
próprio,
extremamente
ridículo
para
o
leigo
inocente.
Os
jogos
de
cartas
diferem
dos
jogos
de
tabuleiro
na
medida
em
que
jamais
chegam
a
eliminar
completamente
o
fator
sorte.
Quanto
mais
este
predomina
mais
eles
tendera
a
cair
na
categoria
dos
jogos
de
azar
e,
como
tais,
são
pouco
próprios
para
competições
públicas
ou
para
serem
praticados
em
clubes.
Por
outro
lado,
os
jogos
de
cartas
mais
intelectualizados
dão
ampla
oportunidade
para
a
manifestação
das
tendências
associativas,
e,
aliás,
é
aqui
que
se
manifesta
mais
fortemente
o
elemento
de
seriedade
ou
até
de
excesso
de
seriedade.
Desde
os
tempos
da
quadrilha
até
aos
do
uíste
e
do
bridge,
os
jogos
de
cartas
passaram
por
um
processo
de
aperfeiçoamento
cada
vez
maior,
e
só
com
o
bridge
as
técnicas
sociais
modernas
se
apoderaram
inteiramente
do
jogo.
A
proliferação
de
manuais,
de
sistemas
e
de
preparação
profissional
fez
do
bridge
um
jogo
extremamente
sério.
Um
recente
artigo
de
jornal
calculava
os
ganhos
atuais
do
casal
Gulbertson
em
mais
de
duzentos
mil
dólares.
Gasta-se
uma
quantidade
tremenda
de
energia
mental
na
paixão
universal
pelo
bridge,
sem
que
o
resultado
tangível
seja
mais
do
que
a
troca
de
quantias
em
dinheiro
relativamente
pouco
importantes.
O
todo
da
sociedade
não
recebe
desta
fútil
atividade
grande
benefício
ou
prejuízo,
e
parece
difícil
considerá-la
uma
atividade
elevada
no
sentido
da
diagoguê
aristotélica.
A
habilidade
para
o
bridge
é
um
talento
estéril,
aguçando
as
faculdades
mentais
de
maneira
muito
unilateral
e
sem
de
modo
algum
enriquecer
o
espírito,
consumindo
uma
quantidade
de
energia
intelectual
que
poderia
ter
melhor
aplicação.
Creio
que,
na
melhor
das
hipóteses,
o
que
podemos
dizer
é
que
poderia
ser
aplicada
de
maneira
pior.
Aparentemente
a
importância
do
bridge
na
sociedade
contemporânea
indica
um
imenso
fortalecimento
do
fator
lúdico.
Mas
as
aparências
iludem,
pois
no
verdadeiro
jogo
é
preciso
que
o
homem
jogue
como
uma
criança.
Poderá
isto
ser
afirmado
de
um
jogo
tão
complexo
como
o
bridge?
Caso
contrário,
esse
jogo
perdeu
suas
qualidades
essenciais.
Procurar
ver
se
há
um
conteúdo
lúdico
na
confusão
da
vida
moderna
pode
levar-nos
a
conclusões
contraditórias.
No
caso
do
esporte
temos
uma
atividade
nominalmente
classificada
como
jogo,
mas
levada
a
um
grau
tal
de
organização
técnica
e
de
complexidade
científica
que
o
verdadeiro
espírito
lúdico
se
encontra
ameaçado
de
desaparecimento.
Todavia
há
outros
fenômenos
que
parecem
apontar
no
sentido
oposto
ao
desta
tendência
para
o
excesso
de
seriedade.
Surgem
certas
atividades
cuja
razão
de
ser
depende
inteiramente
do
interesse
material
e
que
em
sua
fase
inicial
não
tinham
nada
a
ver
com
o
jogo,
nas
quais
o
elemento
lúdico
só
pode
ser
coisas
sérias
que
se
transformam
em
jogo
e
nem
por
isso
deixam
de
ser
consideradas
sérias.
Estes
dois
fenômenos
estão
ligados
pela
força
dos
hábitos
agonísticos,
ainda
universalmente
dominantes,
embora
sob
formas
diferentes
das
de
outrora.
Esse
impulso
dado
ao
princípio
agonístico,
que
parece
estar
novamente
levando
o
mundo
em
direção
do
jogo,
deriva
principalmente
de
fatores
externos
e
independentes
da
cultura
propriamente
dita,
numa
palavra,
dos
meios
de
comunicação,
que
tornaram
toda
espécie
de
relações
humanas
extraordinariamente
fáceis.
A
técnica,
a
publicidade
e
a
propaganda
contribuem
em
toda
a
parte
para
promover
o
espírito
de
competição,
oferecendo
em
escala
nunca
igualada
os
meios
necessários
para
satisfazê-lo.
É
claro
que
a
competição
comercial
não
faz
parte
das
imemoriais
formas
sagradas
do
jogo.
Ela
surge
apenas
a
partir
do
momento
em
que
o
comércio
passa
a
criar
campos
de
atividade
em
que
cada
um
precisa
esforçar-se
por
ultrapassar
o
próximo.
A
rivalidade
comercial
torna
imediatamente
necessária
a
adoção
de
regras
limitativas,
nomeadamente
as
barreiras
alfandegárias.
Conservou
um
caráter
primitivo
até
bem
tarde,
só
se
tornando
realmente
intensa
com
o
advento
dos
modernos
meios
de
comunicação,
da
propaganda
e
da
estatística.
É
claro
que
já
numa
fase
anterior
se
havia
introduzido
na
competição
comercial
um
certo
elemento
lúdico,
o
qual
veio
ser
estimulado
pela
estatística
com
uma
ideia
originária
da
vida
esportiva,
a
do
recorde
comercial.
Na
acepção
originária,
o
record
era
simplesmente
um
memorando,
uma
nota
que
o
dono
de
uma
estalagem
escrevia
numa
parede,
registrando
o
fato
de
tal
ou
tal
corredor
ou
viajante
ter
sido
o
primeiro
a
chegar
depois
de
percorrer
um
certo
número
de
quilômetros.
As
estatísticas
de
vendas
e
de
produção
não
podiam
deixar
de
introduzir
na
vida
econômica
um
certo
elemento
esportivo.
A
1
consequência
disso
é
haver
hoje
um
aspecto
esportivo
em
quase
todo
triunfo
comercial
ou
tecnológico:
o
navio
de
maior
tonelagem,
a
travessia
mais
rápida,
a
maior
altitude
j
etc.
Ao
menos
uma
vez,
houve
aqui
um
elemento
puramente
lúdico
que
conseguiu
dominar
as
preocupações
puramente
utilitárias,
pois
os
especialistas
informam-nos
que
as
unidades
menores,
como
os
navios
e
aviões
menos
monstruosos,
tornam-se
a
longo
prazo
mais
eficientes.
Os
negócios
se
transformam
em
jogo.
Este
processo
vai
ao
ponto
de
algumas
das
grandes
companhias
procurarem
deliberadamente
incutir
em
seus
operários
o
espírito
lúdico,
a
fim
de
acelerar
a
produção.
Aqui
a
tendência
se
inverte:
o
jogo
se
transforma
em
negócio.
Um
dirigente
industrial,
no
momento
de
receber
uma
distinção
honorífica
da
Academia
do
Comércio
de
Roterd
,
diz
o
seguinte:
"Desde
minha
entrada
nesta
companhia
tem
havido
uma
autêntica
corrida
entre
os
técnicos
e
o
departamento
de
vendas.
Os
primeiros
procuram
produzir
mercadoria
em
quantidade
tal
que
o
departamento
de
vendas
seja
incapaz
de
vendê-la
completamente,
enquanto
os
membros
do
segundo
procuram
vender
tanto
que
os
técnicos
se
vejam
na
impossibilidade
de
acompanhar
o
ritmo.
Esta
corrida
jamais
parou,
às
vezes
tendo
uns
à
frente,
outras,
os
outros.
Tanto
meu
irmão
como
eu
nunca
consideramos
o
negócio
como
um
trabalho
e
sim
como
um
jogo,
cujo
espírito
sempre
nos
temos
esforçado
por
incutir
no
pessoal
mais
jovem."
É
claro
que
neste
discurso
havia
um
toque
de
humorismo.
Mas
há
muitos
casos
de
grandes
empresas
que
constituem
suas
próprias
associações
esportivas,
chegando
até
a
contratar
operários
em
função
de
sua
habilidade
para
o
futebol
e
não
de
sua
competência
profissional.
Mais
uma
vez
o
processo
se
inverte.
É
mais
difícil
definir
o
elemento
lúdico
da
arte
contemporânea
do
que
o
do
comércio.
Conforme
procuramos
mostrar
no
décimo
capítulo,
é
evidente
a
presença
de
uma
certa
ludicidade
no
processo
de
criação
e
"produção"
da
obra
de
arte.
Tal
fato
era
perfeitamente
claro
nas
artes
das
Musas
ou
"musicais",
onde
sem
dúvida
há
um
certo
elemento
lúdico
essencial.
Verificamos
nas
artes
plásticas
a
existência
de
um
certo
sentido
lúdico,
inseparável
de
todas
as
formas
de
decoração,
isto
é,
vimos
que
a
função
lúdica
se
verifica
especialmente
quando
o
espírito
e
a
mão
se
movem
livremente.
E
ela
se
afirma
sobretudo
na
obra-prima
expressamente
encomendada,
o
tour
de
force,
a
prova
palpável
da
habilidade
do
artista.
O
problema
agora
é
saber
se
desde
os
finais
do
século
XVIII
o
elemento
lúdico
se
tomou
mais
ou
menos
importante
na
arte.
Através
de
um
processo
gradual
que
durou
vários
séculos,
a
arte
foi
perdendo
sua
função
vital
na
sociedade,
tornando-se
cada
vez
mais
uma
ocupação
autônoma
própria
de
certos
indivíduos
chamados
artistas.
Um
dos
marcos
desta
emancipação
foi
a
vitória
do
quadro
emoldurado
sobre
o
painel
e
o
mural,
e
da
gravura
sobre
a
miniatura
e
a
iluminura.
No
Renascimento,
deu-se
a
idêntica
passagem
do
social
ao
individual
quando
a
função
principal
do
arquiteto
passou
da
construção
de
igrejas
e
palácios
para
a
de
residências
particulares,
das
galerias
magnificentes
para
os
escritórios
e
dormitórios.
A
arte
se
tornou
mais
íntima,
e
ao
mesmo
tempo
mais
isolada,
dependendo
de
um
só
indivíduo
e
de
seu
gosto
pessoal.
E
foi
de
maneira
semelhante
que
a
canção
e
a
música
de
câmara,
destinadas
à
satisfação
de
aspirações
estéticas
pessoais,
começou
a
dominar
as
formas
artísticas
de
caráter
mais
público,
tanto
em
importância
quanto,
muitas
vezes,
em
intensidade
de
expressão.
Além
destas
transformações
formais
houve
outra,
ainda
mais
profunda,
na
função
e
na
apreciação
da
arte,
que
passou
a
ser
cada
vez
mais
amplamente
reconhecida
como
um
valor
cultural
independente
e
elevado.
Até
o
século
XVIII,
a
arte
ocupou
na
escala
dos
valores
culturais
um
lugar
inferior,
sempre
considerada
como
um
ornamento
especialmente
requintado
da
vida
dos
privilegiados.
Talvez
o
gozo
estético
fosse
tão
intenso
como
hoje,
mas
era
interpretado
em
termos
de
exaltação
religiosa
ou
como
uma
espécie
de
curiosidade
cujo
fim
último
era
o
divertimento
e
a
distração.
O
artista
era
considerado
um
artesão,
ao
passo
que
o
cientista
e
o
erudito
tinham
pelo
menos
o
status
de
membros
das
classes
abastadas.
A
grande
mudança
teve
início
em
meados
do
século
XVIII,
como
resultado
dos
novos
impulsos
estéticos,
que
assumiam
tanto
a
forma
clássica
quanto
a
romântica,
embora
a
corrente
romântica
fosse
a
mais
forte.
Ambas
contribuíram
para
produzir
uma
exaltação
sem
precedentes
da
fruição
estética,
que
mais
fervorosa
se
torna
devido
ao
fato
de
constituir
um
substituto
da
religião.
Esta
é
uma
das
fases
mais
importantes
da
história
da
cultura,
mas
não
é
possível
aqui
descrever
integralmente
essa
apoteose
da
arte,
e,
assim,
limitamo-nos
a
assinalar
que
a
linha
dos
hierofantes
da
arte
corre
ininterruptamente
de
Winckelman
a
Ruskin
e
mesmo
depois
deste.
A
apreciação
e
o
conhecimento
da
arte
eram
privilégio
de
uma
minoria;
foi
só
próximo
aos
fins
do
século
XIX,
graças
em
grande
parte
à
reprodução
fotográfica,
que
a
apreciação
da
arte
se
tornou
acessível
à
imensa
massa
das
pessoas
de
educação
média.
A
arte
tornou-se
propriedade
pública,
e
o
amor
da
arte
passou
a
ser
de
bom-tom;
a
ideia
do
artista
como
ser
superior
foi
ganhando
aceitação,
e
o
público
em
geral
foi
agitado
por
uma
tremenda
onda
de
esnobismo,
ao
mesmo
tempo
que
o
impulso
criador
era
deformado
por
uma
busca
desesperada
da
originalidade.
Essa
constante
procura
de
formas
novas
e
nunca
vistas
levou
a
arte
pela
ladeira
do
impressionismo
até
às
excrescências
do
século
XX.
A
arte
está
muito
mais
sujeita
do
que
a
ciência
à
influência
deletéria
da
técnica
moderna.
A
mecanização,
a
publicidade
e
o
desejo
de
fazer
sensação
atingem
muito
mais
fortemente
a
arte,
porque
regra
geral
esta
produz
diretamente
para
o
mercado
e
pode
escolher
livremente
entre
todas
as
técnicas
que
no
momento
se
encontram
disponíveis.
Nenhum
destes
aspectos
nos
permite
apontar
um
elemento
lúdico
na
arte
contemporânea.
Desde
o
século
XVIII,
o
próprio
fato
de
ser
reconhecida
como
um
fator
cultural
parece
ter
levado
a
arte
a
perder,
e
não
a
ganhar
alguma
coisa
em
ludicidade.
Mas,
o
resultado
final
será
um
ganho
ou
uma
perda?
A
resposta
parece
ser,
como
nos
pareceu
ser
o
caso
na
música,
que
era
altamente
benéfico
para
a
arte
não
ter
consciência
de
sua
importância
e
da
beleza
que
era
capaz
de
criar.
Quando
a
arte
se
toma
autoconsciente,
isto
é,
consciente
de
sua
própria
grandeza,
ela
se
arrisca
a
perder
uma
parte
de
sua
eterna
inocência
infantil.
É
claro
que
de
um
ponto
de
vista
diferente
poderíamos
dizer
que
o
elemento
lúdico
da
arte
foi
fortalecido
pelo
próprio
fato
de
o
artista
ser
considerado
superior
ao
comum
dos
mortais.
Na
qualidade
de
ser
superior,
ele
naturalmente
exige
uma
certa
dose
de
veneração
por
sua
obra
e,
a
fim
de
saborear
plenamente
sua
superioridade,
precisa
de
um
público
reverente
ou
de
um
círculo
de
espíritos
irmãos,
capaz
de
exprimir
a
necessária
veneração
de
maneira
mais
profunda
do
que
as
frases
vazias
do
público
em
geral.
A
arte
atual,
do
mesmo
modo
que
a
de
outrora,
precisa
de
um
certo
esoterismo,
e
todo
esoterismo
pressupõe
uma
convenção:
nós,
os
iniciados,
concordamos
em
julgar
e
compreender
esta
ou
aquela
coisa
desta
ou
daquela
maneira.
Por
outras
palavras,
o
esoterismo
implica
a
existência
de
uma
comunidade
lúdica
entrincheirada
atrás
de
seu
próprio
mistério.
Sempre
que
há
uma
palavra
chave
terminada
em
-ismo
estamos
na
pista
de
uma
comunidade
lúdica.
O
moderno
aparato
publicitário,
com
sua
crítica
ditirâmbica,
as
exposições
e
as
conferências,
tem
como
consequência
a
acentuação
do
caráter
lúdico
da
arte.
Um
problema
muito
diferente
é
procurar
determinar
o
conteúdo
lúdico
da
ciência
moderna,
pois
aí
deparamos
com
uma
dificuldade
fundamental.
No
caso
da
arte,
o
jogo
pode
ser
tomado
como
um
dado
imediato
da
experiência,
uma
quantidade
geralmente
aceite,
ao
passo
que
na
ciência
somos
constantemente
obrigados
a
pôr
em
causa
a
definição
dessa
quantidade,
procurando
formulá-la
em
termos
novos.
Se
aplicarmos
à
ciência
nossa
definição
do
jogo
como
atividade
desenvolvida
dentro
de
certos
limites
de
espaço,
tempo
e
significado,
segundo
um
sistema
de
regras
fixas,
poderemos
chegar
à
conclusão
surpreendente
e
assustadora
de
que
todos
os
ramos
da
ciência
são
outras
tantas
formas
de
jogo,
dado
que
cada
uma
se
encontra
isolada
em
seu
próprio
campo
e
é
limitada
pelo
rigor
das
regras
de
sua
própria
metodologia.
Mas
se
aplicarmos
plenamente
nossa
definição,
concluiremos
imediatamente
que
para
que
uma
atividade
possa
ser
considerada
um
jogo
é
necessário
algo
mais
do
que
limitações
e
regras.
Dissemos
que
todo
jogo
é
limitado
no
tempo,
não
tem
contato
com
qualquer
realidade
exterior
a
si
mesmo
e
contém
seu
fim
em
sua
própria
realização.
Caracteriza-se
além
disso
pela
consciência
de
se
tratar
de
uma
atividade
agradável,
que
proporciona
um
relaxamento
das
tensões
da
vida
quotidiana.
Nada
disto
pode
ser
aplicado
à
ciência,
a
qual
não
só
está
constantemente
procurando
contatar
com
a
realidade
devido
à
sua
utilidade,
isto
é,
ao
fato
de
ser
aplicada,
mas
além
disso
está
constantemente
procurando
estabelecer
um
padrão
universalmente
válido
da
realidade,
na
medida
em
que
é
ciência
pura.
Ao
contrário
das
regras
do
jogo,
as
regras
da
ciência
não
são
definitivas,
são
constantemente
desmentidas
pela
experiência,
sofrendo
modificações
de
toda
a
ordem,
ao
passo
que
a
alteração
das
regras
de
um
jogo
tem
como
consequência
estragar
o
próprio
jogo.
Portanto,
a
afirmação
de
que
a
ciência
não
passa
de
um
jogo
é
uma
afirmação
gratuita,
demasiado
fácil,
que
se
impõe
descartar
provisoriamente.
Mas
é
legítimo
perguntar
se
não
há
na
ciência
um
elemento
lúdico,
dentro
do
terreno
circunscrito
pelo
seu
método,
como
por
exemplo
na
tendência
para
sistematizar
que
todo
cientista
possui,
tendência
de
caráter
parcialmente
lúdico.
A
ciência
antiga,
devido
à
carência
de
um
sólido
fundamento
empírico,
perdeu-se
numa
estéril
sistematização
de
todos
os
conceitos
e
propriedades
possíveis
de
imaginar.
Embora
a
observação
e
o
cálculo
constituam
um
freio
para
esta
tendência,
isso
não
implica
que
na
atividade
científica
não
se
encontrem
alguns
elementos
de
capricho.
Mesmo
a
mais
minuciosa
análise
experimental
pode
ser
ludicamente
manejada
no
interesse
da
teoria
subsequente,
embora
certamente
não
possa
ser
alterada
quando
em
curso.
É
certo
que
no
final
sempre
se
detecta
a
margem
de
jogo,
mas
essa
detecção
prova
que
tal
margem
existe.
Desde
tempos
imemoriais
os
juristas
costumam
ser
acusados
de
procedimentos
semelhantes,
e
os
filólogos
também
não
estão
acima
de
crítica
a
este
respeito,
visto
que
desde
o
Antigo
Testamento
e
os
Vedas
eles
se
deliciam
com
a
busca
de
etimologias
complicadas,
o
que
ainda
hoje
é
um
dos
jogos
preferidos
pelos
que
nada
sabem
de
linguística.
E
não
é
igualmente
verdade
que
as
novas
escolas
de
psicologia
se
deixam
arrastar
por
um
uso
fácil
e
frívolo
da
terminologia
freudiana,
nas
mãos
tanto
dos
que
são
competentes
como
dos
que
o
não
são?
Além
desta
possibilidade
de
jogar
o
próprio
método,
tanto
da
parte
do
cientista
quanto
do
amador,
um
e
outro
podem
igualmente
ser
levados
ao
caminho
do
jogo
pelo
impulso
competitivo
propriamente
dito.
Embora
na
ciência
a
competição
seja
menos
diretamente
condicionada
por
fatores
econômicos
do
que
na
arte,
o
desenvolvimento
lógico
da
civilização
a
que
damos
o
nome
de
ciência
está
mais
inextricavelmente
ligado
à
dialética
do
que
acontece
no
caso
da
estética.
Tratamos
num
capítulo
anterior
das
origens
da
ciência
e
da
filosofia,
constatando
que
tanto
uma
como
outra
pertencem
à
esfera
agonística.
A
ciência,
como
com
certa
razão
alguém
afirmou,
é
polêmica.
Mas,
constitui
mau
sinal
quando
a
ânsia
de
se
antecipar
aos
outros
na
descoberta
ou
de
arrasá-los
com
argumentos
transparece
demasiado
no
resultado
final
do
trabalho
científico.
Aquele
que
realmente
procura
a
verdade
dá
pouca
importância
ao
triunfo
sobre
seus
adversários.
Como
conclusão
provisória,
poderíamos
dizer
que
a
ciência
moderna
se
arrisca
menos
a
cair
no
domínio
do
jogo,
tal
como
o
definimos,
quando
se
mantém
fiel
à
mais
radical
exigência
de
rigor
e
de
veracidade,
ao
contrário
do
que
acontecia
antigamente,
até
à
época
do
Renascimento,
quando
o
pensamento
e
o
método
científicos
mostravam
inequívocas
características
lúdicas.
É
necessário
que
nos
limitemos
aqui
a
estas
poucas
observações
sobre
o
fator
lúdico
na
arte
e
na
ciência
moderna,
embora
muito
mais
pudesse
ser
dito.
Procuramos
terminar
rapidamente,
e
falta
apenas
examinar
o
elemento
lúdico
na
vida
social
contemporânea
em
geral,
sobretudo
na
política.
Mas
convém
desde
já
chamar
a
atenção
para
dois
equívocos
possíveis.
Em
primeiro
lugar,
pode
acontecer
que
certas
formas
lúdicas
sejam
consciente
ou
inconscientemente
utilizadas
para
ocultar
determinados
desígnios
políticos
ou
sociais,
caso
em
que
não
estaríamos
mais
perante
o
eterno
elemento
lúdico
que
constitui
o
tema
deste
livro,
e
sim
com
o
falso
jogo.
Em
segundo
lugar,
é
sempre
possível
depararmos
com
fenômenos
que
uma
visão
superficial
tomará
como
jogo,
como
tendências
lúdicas
permanentes,
e
que
na
realidade
nada
têm
a
ver
com
isso.
A
vida
social
moderna
está
sendo
cada
vez
mais
fortemente
dominada
por
uma
característica
que
tem
alguma
coisa
em
comum
com
o
jogo
e
dá
a
ilusão
de
um
fator
lúdico
fortemente
desenvolvido.
Julguei
poder
dar
a
esta
característica
o
nome
de
puerilismo2,
que
me
pareceu
ser
o
mais
adequado
para
designar
essa
mistura
de
adolescência
e
barbárie
que
se
tem
vindo
a
estender
pelo
mundo
no
decorrer
das
últimas
duas
ou
três
décadas.
Tudo
se
passa
como
se
a
mentalidade
e
o
comportamento
do
adolescente
tivessem
passado
a
dominar
certas
áreas
da
vida
civilizada
que
outrora
pertenciam
aos
adultos
responsáveis.
Considerados
em
si
mesmos,
os
costumes
a
que
me
refiro
são
tão
velhos
como
o
mundo:
a
diferença
reside
no
lugar
que
passaram
a
ocupar
em nossa
civilização
e
na
brutalidade
com
que
se
manifestam.
O
gregarismo
é
talvez
o
mais
forte
e
o
mais
alarmante
desses
costumes.
Seu
resultado
é
a
mais
baixa
forma
de
puerilismo:
gritos
ou
outros
sinais
de
saudação,
o
uso
de
emblemas
e
distintivos,
a
marcha
em
ordem
unida
ou
num
passo
especial
etc.
Outro
aspecto
estreitamente
aparentado
a
este,
embora
em
nível
psicológico
ligeiramente
mais
profundo,
é
a
sede
insaciável
de
divertimentos
vulgares
e
de
sensacionalismo,
o
gosto
pelas
reuniões
e
manifestações
de
massa,
pelas
paradas
etc.
O
clube
é
uma
instituição
das
mais
antigas,
mas
é
desastroso
que
nações
inteiras
se
transformem
em
clubes,
pois
estes
não
são
apenas
propícios
ao
cultivo
de
qualidades
inestimáveis
como
a
amizade
e
a
lealdade,
são
também
fonte
de
sectarismo,
intolerância,
desconfiança,
e
da
tendência
para
aceitar
toda
e
qualquer
ilusão
que
seja
lisonjeira
para
o
orgulho
do
grupo.
Temos
visto
grandes
nações
perderem
toda
noção
da
honra,
todo
sentido
do
humor,
a
própria
ideia
da
decência
e
do
jogo
limpo.
Não
caberia
aqui
investigar
as
causas
e
a
importância
deste
abastardamento
universal
da
cultura,
mas
não
há
dúvida
que
a
participação
de
grandes
massas
semi-educadas
no
movimento
espiritual
internacional,
o
relaxamento
dos
costumes
e
a
hipertrofia
da
técnica
são
em
grande
parte
por
ele
responsáveis.
Basta
referir
aqui
um
exemplo
de
puerilismo
oficial.
Conforme
a
história
nos
ensina,
é
sinal
de
entusiasmo
revolucionário
que
os
governos
alterem
os
nomes
das
cidades,
pessoas,
instituições,
do
calendário
etc.
O
Pravda3 noticiou
que,
devido
aos
atrasos
em
importantes
fornecimentos,
três
kolkhozy
do
distrito
de
Kursk
haviam
tido
seus
nomes
mudados
de
Budenny,
Krupskaya
e
o
equivalente
de
"campo
de
trigo
vermelho"
para,
respectivamente,
Preguiçoso,
Sabotador
e
Moleza,
por
ordem
do
soviet
local.
Embora
este
excesso
de
zelo
tenha
sido
oficialmente
censurado
pelo
Comitê
Central,
com
a
retirada
dos
nomes
insultuosos,
seria
difícil
encontrar
exemplo
mais
eloquente
de
puerilismo.
Um
caso
muito
diferente
foi
o
da
grande
inovação
do
falecido
Lord
Baden-Powell,
cuja
finalidade
era
dar
uma
utilização
benfazeja
ao
poder
social
do
espírito
infantil
organizado.
Não
se
trata
de
puerilismo,
pois
assenta
numa
profunda
compreensão
dos
hábitos
e
inclinações
das
crianças,
da
qual
deriva
a
organização
em
estilo
lúdico
do
movimento
escotista.
Temos
aqui
um
dos
exemplos
mais
expressivos
de
um
jogo
que
se
aproxima
tanto
da
ludicidade
criadora
de
cultura
da
época
arcaica
quanto
é
possível
em
nossa
época.
Mas
quando
a
política
é
invadida
por
formas
deturpadas
de
escotismo
passa
a
haver
lugar
para
perguntar
se
o
puerilismo
que
domina
a
sociedade
atual
será
ou
não
uma
função
lúdica.
À
primeira
vista
parece
que
devemos
optar
pela
afirmativa,
e
foi
essa
a
minha
interpretação
desse
fenômeno
em
outros
estudos4
.
Mas
depois
cheguei
a
uma
conclusão
diferente.
Nossa
definição
do
jogo
impõe
uma
nítida
distinção
entre
o
puerilismo
e
a
ludicidade.
Os
brinquedos
das
crianças
não
são
pueris
no
sentido
pejorativo
em
que
este
termo
é
aqui
tomado.
Além
disso,
se
o
puerilismo
atual
fosse
autenticamente
lúdico
o
resultado
seria
o
regresso
da
civilização
às
grandes
formas
arcaicas
de
diversão,
nas
quais
se
verificava
uma
união
perfeita
entre
o
ritual,
o
estilo
e
a
dignidade.
O
espetáculo
de
uma
sociedade
caminhando
rapidamente
a
passo
de
ganso
para
a
escravidão
prenuncia
para
muitos
a
alvorada
de
um
novo
milênio,
mas
penso
que
esses
estão
enganados.
Cada
vez
mais
fortemente
se
nos
impõe
a
triste
conclusão
de
que
o
elemento
lúdico
da
cultura
se
encontra
em
decadência
desde
o
século
XVIII,
época
em
que
florescia
plenamente.
O
autêntico
jogo
desapareceu
da civilização
atual,
e
mesmo
onde
ele
parece
ainda
estar
presente
trata-se
de
um
falso
jogo,
de
modo
tal
que
se
toma
cada
vez
mais
difícil
dizer
onde
acaba
o
jogo
e
começa
o
não-jogo.
Isto
é
especialmente
verdadeiro
no
caso
da
política.
Ainda
não
há
muito
tempo,
a
vida
política
em
forma
democrática
parlamentar
estava
cheia
de
evidentes
características
lúdicas;
um
de
meus
discípulos
transformou
recentemente
minhas
observações
relativas
a
esse
assunto
numa
tese
sobre
a
eloquência
parlamentar
na
França
e
na
Inglaterra,
mostrando
que
desde
os
finais
do
século
XVIII
os
debates
da
Câmara
dos
Comuns
têm
geralmente
decorrido
de
acordo
com
as
regras
de
um
jogo
e
dentro
do
verdadeiro
espírito
lúdico5.
Há
uma
influência
constante
das
rivalidades
pessoais,
alimentando
um
jogo
permanente
entre
os
adversários,
cuja
finalidade
é
darem
xeque-mate
uns
aos
outros
sem
com
isso
prejudicarem
os
interesses
do
país,
ao
qual
servem
com
toda
a
seriedade.
Até
há
bem
pouco
o
ambiente
e
os
costumes
da
democracia
parlamentar
eram
dominados
por
um
autêntico
espírito
esportivo,
tanto
na
Inglaterra
como
nos
países
que
haviam
adotado
com
mais
ou
menos
sucesso
o
modelo
político
inglês.
O
espírito
de
camaradagem
fazia
que
os
mais
ferozes
adversários
pudessem
conversar
amigavelmente
mesmo
depois
do
debate
mais
violento.
Foi
de
acordo
com
este
espírito
que
surgiu
o
gentleman's
agreement,
embora
infelizmente
certos
partidos
nem
sempre
tivessem
plena
consciência
dos
deveres
implícitos
na
própria
noção
de
gentleman.
É
precisamente
esse
elemento
lúdico,
sem
dúvida
alguma,
que
mantém
vivo
o
parlamentarismo,
pelo
menos
na
Inglaterra,
apesar
dos
abusos
de
que
recentemente
tem
sido
vítima.
A
elasticidade
das
relações
humanas
subjacentes
à
máquina
política
permite
a
existência
de
um
espírito
lúdico,
possibilitando
a
redução
de
tensões
que
se
assim
não
fosse
tomar-se-
iam
insuportáveis
e
perigosas,
porque
a
perda
do
humor
é
uma
coisa
mortal.
Quase
seria
desnecessário
acrescentar
que
esse
fato
lúdico
está
presente
em
todo
o
sistema
eleitoral.
Tal
fato
é
ainda
mais
evidente
na
política
norte-americana.
Muito
tempo
antes
de
o
sistema
bipartido
se
ter
reduzido
à
oposição
de
duas
gigantescas
equipes
cujas
diferenças
políticas
o
observador
estrangeiro
tem
dificuldade
em
distinguir,
as
eleições
haviam-se
transformado
numa
espécie
de
esporte
nacional.
A
eleição
presidencial
de
1840 deu
o
tom
de
todas
as
eleições
subsequentes.
O
partido
whig
tinha
um
excelente
candidato,
célebre
desde
1812,
mas
faltava-lhe
um
programa
político.
A
sorte
mimoseou-o
com
algo
melhor,
um
símbolo
que
o
levou
à
vitória:
a
log
cabin,
a
cabana
de
madeira
que
fora
a
modesta
morada
do
velho
guerreiro
após
sua
reforma.
A
eleição
por
maioria
de
votos,
isto
é,
pela
maior
capacidade
de
fazer
barulho,
foi
inaugurada
em
1860,
com
a
vitória
de
Lincoln.
O
caráter
emocional
da
política
norte-americana
deriva
da
própria
origem
do
país:
os
norte-
americanos
sempre
se
conservaram
fiéis
ao
primitivismo
da
vida
dos
pioneiros.
Há
muitos
elementos
afetuosos
na
política
norte-americana,
uma
certa
ingenuidade
e
espontaneidade
que
em
vão
procuramos
nos
mais
recentes
movimentos
de
massa
verificados
na
vida
política
europeia.
A
abundância
de
elementos
lúdicos
na
política
interna
de
muitos
países
parece
não
implicar,
à
primeira
vista,
que
havia
muita
oportunidade
para
o
mesmo
no
campo
das
relações
internacionais.
Todavia,
o
fato
de
terem
estas
chegado
ao
auge
da
violência
e
da
periculosidade
não
basta
por
si
só
para
excluir
a
possibilidade
do
jogo.
Conforme
vimos
através
de
numerosos
exemplos,
o
jogo
pode
perfeitamente
ser
cruel
e
sangrento,
e
também
pode
muitas
vezes
ser
um
falso
jogo.
Toda
comunidade
de
Estados
respeitadora
da
lei
possui
características
que
de
uma
maneira
ou
de
outra
estabelecem
uma
ligação
entre
ela
e
uma
comunidade
lúdica.
O
direito
internacional
é
sustentado
pelo
reconhecimento,
por
parte
da
generalidade
dos
países,
de
certos
princípios
que
em
última
análise
desempenham
a função
de
regras
do
jogo,
mesmo
que
possuam
um
fundamento
metafísico.
Se
assim
não
fosse
não
teria
sido
necessário
estabelecer
o
princípio
segundo
o
qual
pacta
sunt
servanda,
que
reconhece
explicitamente
a
integridade
do
sistema
como
baseada
numa
vontade
generalizada
de
respeitar
as
regras.
A
partir
do
momento
em
que
qualquer
das
partes
desrespeita
este
acordo
tácito,
dá-se
necessariamente
o
colapso
de
todo
o
sistema
de
direito
internacional,
pelo
menos
temporariamente,
a
não
ser
que
o
resto
dos
interessados
possua
força
suficiente
para
colocar
fora
da
lei
o
"desmancha-prazeres".
Em
todas
as
épocas
a
preservação
do
direito
internacional
tem
dependido
em
grande
parte
de
princípios
exteriores
ao
domínio
jurídico
propriamente
dito,
tais
como
a
honra,
a
honestidade
e
o
bom-tom.
Não
é
completamente
destituído
de
significado
o
fato
de
as
regras
europeias
da
guerra
terem
evoluído
a
partir
do
código
de
honra
da
cavalaria.
O
direito
internacional
tem
como
pressuposto
tácito
que
todo
Estado
vencido
se
comportará
cavalheirescamente
como
bom
perdedor,
o
que
infelizmente
poucas
vezes
tem
acontecido.
As
boas
maneiras
internacionais
exigem
que
se
declare
a
guerra
antes
de
iniciá-la
efetivamente,
embora
frequentemente
os
agressores
tenham
esquecido
o
cumprimento
desta
incômoda
convenção,
começando
por
apoderar-se
de
uma
colônia
distante
ou
coisa
parecida.
Mas
nem
por
isso
deixa
de
ser
verdade
que
até
há
bem
pouco
tempo
a
guerra
era
considerada
um
nobre
jogo
(o
esporte
dos
reis),
e
que
o
caráter
absolutamente
obrigatório
de
suas
regras
assentava
em
algum
dos
elementos
lúdicos
formais
que
tiveram,
conforme
vimos,
seu
pleno
apogeu
na
guerra
dos
tempos
arcaicos.
Há
na
literatura
política
alemã
uma
frase
feita
que
chama
à
passagem
da
paz
à
guerra
das
Eintreten
des
Ernstfalles,
que
pode
traduzir-se
como
"o
surgimento
de
um
caso
sério".
É
claro
que
de
um
ponto
de
vista
estritamente
militar
essa
frase
se
justifica,
pois
os
combates
simulados
das
manobras
e
do
treinamento
militar
em
geral
estão
para
a
guerra,
sem
dúvida
alguma,
do
mesmo
modo
que
o
jogo
está
para
a
seriedade.
Mas
com
isso
os
teóricos
políticos
alemães
querem
dizer
alguma
coisa
mais.
O
termo
Ernstfall
revela
claramente
que
a
política
internacional
ainda
não
chegou
ao
mais
alto
grau
de
seriedade,
que
ela
ainda
não
atingiu
seu
objetivo
ou
deu
mostras
de
sua
eficiência
antes
de
chegado
o
momento
das
verdadeiras
hostilidades.
A
verdadeira
relação
entre
os
Estados
é
uma
relação
de
guerra,
e
todo
contato
diplomático,
na
medida
em
que
procede
através
de
negociações
e
acordos,
constitui
apenas
um
prelúdio
à
guerra
ou
um
interlúdio
entre
duas
guerras.
Esta
lamentável
convicção,
aceite
e
mesmo
professada
por
muitos,
tem
como
consequência
lógica
que
seus
seguidores,
dado
que
consideram
a
guerra
e
sua
preparação
a
única
forma
séria
da
política,
não
podem
deixar
de
negar
a
existência
de
qualquer
relação
entre
a
guerra
e
a
competição,
e
portanto
também
entre
a
guerra
e
o
jogo.
Dizem-
nos
eles
ser
possível
que
o
fator
agonístico
tenha
tido
influência
nas
fases
primitivas
da
civilização,
que
nessa
época
ele
estaria
perfeitamente
no
seu
lugar,
mas
que
atualmente
a
guerra
está
muito
acima
da
simples
competição
entre
selvagens.
Ela
se
baseia
no
princípio
do
"amigo
ou
inimigo".
Toda
"verdadeira"
relação
entre
nações
e
Estados,
afirmam
eles,
é
dominada
por
esse
princípio
inelutável6.
Todo
"outro"
grupo
é
sempre
amigo
ou
inimigo
do
nosso.
Evidentemente
que
por
inimigo
não
se
deve
entender
o
inimicus
ou
εχθφο
,
ou
seja,
uma
pessoa
que
se
odeia,
e
muito
menos
uma
pessoa
perversa,
mas
pura
e
simplesmente
o
hostis
ou
πολεμιο
,
ou
seja,
o
estranho
ou
estrangeiro
que
está
barrando
o
caminho
de
nosso
grupo.
Essa
teoria
recusa-se
a
considerar
o
inimigo
sequer
como
um
rival
ou
um
adversário:
acontece
simplesmente
que
ele
está
em
nosso
caminho
e,
portanto,
precisa
ser
destruído.
Se
alguma
vez
houve
na
história
algo
que
pudesse
corresponder
a
esta
grosseira
simplificação
da
inimizade,
que
reduz
esta
quase
que
a
uma relação
mecânica,
foi
precisamente
aquele
antagonismo
primitivo
entre
as
fratrias,
clãs
ou
tribos
onde,
conforme
vimos,
o
elemento
lúdico
era
hipertrofiado
e
distorcido.
É
de
esperar
que
a
civilização
nos
tenha
levado
para
bem
longe
dessa
fase.
Não
conheço
exemplo
mais
triste
e
mais
completo
de
insulto
à
razão
humana
que
a
bárbara
e
patética
ilusão
de
Schmitt
a
respeito
do
princípio
do
"amigo
ou
inimigo",
pois
o
que
é
sério
não
é
a
guerra,
e
sim
a
paz.
A
guerra
e
tudo
quanto
com
ela
se
relaciona
está
presa
à
rede
mágica
e
demoníaca
do
jogo.
Só
superando
essa
primária
relação
amigo-inimigo,
a
humanidade
atingirá
uma
dignidade
superior.
A
concepção
da
"seriedade"
de
Schmitt
leva-nos
muito
simplesmente
de
volta
ao
nível
do
selvagem.
Mais
uma
vez
se
apresenta
aqui
a
desconcertante
antítese
do
jogo
e
da
seriedade.
Temo-nos
gradualmente
aproximado
da
conclusão
de
que
a
civilização
tem
suas
raízes
no
jogo,
e
que
para
atingir
toda
a
plenitude
de
sua
dignidade
e
estilo
não
pode
deixar
de
levar
em
conta
o
elemento
lúdico.
Em
nenhuma
outra
instância
o
respeito
às
regras
do
jogo
é
mais
absolutamente
necessário
do
que
nas
relações
internacionais;
se
essas
regras
são
desrespeitadas
a
sociedade
cai
na
barbárie
e
no
caos.
Por
outro
lado,
é
precisamente
na
guerra
moderna
que
o
homem
volta
à
atitude
agonística
que
inspirava
o
jogo
primitivo
da
guerra
tendo
em
vista
o
prestígio
e
a
glória.
Ora
aqui
surge
uma
dificuldade:
aparentemente,
a
guerra
moderna
perdeu
todo
e
qualquer
contato
com
o
jogo.
Os
países
de
mais
elevadas
pretensões
culturais
afastam-se
da
comunidade
das
nações
e
desavergonhadamente
declaram
que
"pacta
non
sunt
servanda".
Com
essa
atitude,
rompem
com
todas
as
regras
do
jogo
do
direito
internacional.
Nessa
medida,
o
jogo
de
guerra,
conforme
lhe
chamamos,
dessas
nações,
não
é
um
verdadeiro
jogo.
Baseada
na
constante
prontidão
para
a
guerra,
quando
não
em
sua
preparação
efetiva,
a
política
contemporânea
parece
apresentar
escassos
vestígios
da
velha
atitude
lúdica.
Despreza-se
o
código
de
honra,
põem-se
de
parte
as
regras
do
jogo,
infringe-se
o
direito
internacional,
e
perdem-se
todas
as
antigas
relações
da
guerra
com
o
ritual
e
a
religião.
Todavia,
os
métodos
que
presidem
à
condução
da
política
de
guerra
e
os
preparativos
que
têm
sido
feitos
mostram
ainda
sinais
abundantes
de
uma
atitude
agonística
idêntica
à
que
encontramos
na
sociedade
primitiva.
A
política
é,
e
sempre
foi,
de
certo
modo
um
jogo
de
azar;
pense-se
nos
desafios
e
provocações,
nas
ameaças
e
denúncias,
e
compreender-se-á
que
a
guerra
e
a
política
que
a
ela
conduz
constituem
sempre
e
inevitavelmente
um
jogo,
conforme
disse
Neville
Chamberlain
nos
primeiros
dias
de
setembro
de
1939.
Portanto,
e
apesar
das
aparências
em
sentido
contrário,
a
guerra
não
se
libertou
completamente
do
círculo
mágico
do
jogo.
Significa
isto
que
a
guerra
continua
sendo
um
jogo
mesmo
para
o
agredido,
o
perseguido,
aquele
que
luta
por
seus
direitos
e
sua
liberdade?
Aqui
nossa
dúvida
quanto
à
natureza
da
guerra,
se
ela
é
um
jogo
ou
uma
coisa
séria,
recebe
uma
resposta
inequívoca.
O
que
torna
séria
uma
ação
é
seu
conteúdo
moral.
Quando
o
combate
possui
um
valor
ético
ele
deixa
de
ser
um
jogo.
Só
é
impossível
sair
deste
inquietante
dilema
para
aqueles
que
negam
o
valor
e
validade
objetivos
dos
padrões
morais.
A
aceitação
por
Carl
Schmitt
da
fórmula
segundo
a
qual
a
guerra
é
"o
surgimento
de
uma
coisa
séria"
é,
portanto,
correta,
mas
num
sentido
muito
diferente
do
que
ele
pretendia.
Seu
ponto
de
vista
é
o
do
agressor
que
não
se
sente
limitado
por
quaisquer
considerações
de
ordem
moral.
Mas
não
deixa
de
ser
verdade
que
a
política
e
a
guerra
têm
profundas
raízes
no
solo
primitivo
da
cultura
lúdica
e
competitiva.
Só
através
de
um
ethos
capaz
de
superar
a
relação
amigo-inimigo,
que
reconheça
uma
finalidade
mais
alta
do
que
a
satisfação
de
si
próprio,
de
seu
grupo
ou
de
sua
nação,
torna-se
possível
a
uma
sociedade
política
passar
do
"jogo" da
guerra
para
uma
verdadeira
seriedade.
Chegamos
portanto,
através
de
um
caminho
tortuoso,
à
seguinte
conclusão:
a
verdadeira
civilização
não
pode
existir
sem
um
certo
elemento
lúdico,
porque
a
civilização
implica
a
limitação
e
o
domínio
de
si
próprio,
a
capacidade
de
não
tomar
suas
próprias
tendências
pelo
fim
último
da
humanidade,
compreendendo
que
se
está
encerrado
dentro
de
certos
limites
livremente
aceites.
De
certo
modo,
a
civilização
sempre
será
um
jogo
governado
por
certas
regras,
e
a
verdadeira
civilização
sempre
exigirá
o
espírito
esportivo,
a
capacidade
de
fair
play.
O
fair
play
é
simplesmente
a
boa
fé
expressa
em
termos
lúdicos.
Para
ser
uma
vigorosa
força
criadora
de
cultura,
é
necessário
que
este
elemento
lúdico
seja
puro,
que
ele
não
consista
na
confusão
ou
no
esquecimento
das
normas
prescritas
pela
razão,
pela
humanidade
ou
pela
fé.
É
preciso
que
ele
não
seja
uma
máscara,
servindo
para
esconder
objetivos
políticos
por
trás
da
ilusão
de
formas
lúdicas
autênticas.
A
propaganda
é
incompatível
com
o
verdadeiro
jogo,
que
tem
seu
fim
em
si
mesmo,
e
só
numa
feliz
inspiração
encontra
seu
espírito
próprio.
Procuramos
até
agora,
no
tratamento
de
nosso
tema,
manter-nos
fiéis
a
um
conceito
do
jogo
que
tem
como
ponto
de
partida
as
características
positivas
e
universalmente
reconhecidas
do
jogo.
O
jogo
foi
tomado
em
seu
sentido
imediato
e
quotidiano,
e
procuramos
evitar
o
curto-circuito
filosófico
que
consistiria
na
afirmação
de
que
toda
ação
humana
é
um
jogo.
Torna-se
agora
necessário,
no
final
de
nossa
discussão,
levar
em
conta
este
ponto
de
vista.
"Ele
considerava
jogos
infantis
todas
as
opiniões
humanas",
diz
a
tradição
grega
mais
tardia
acerca
de
Heráclito7.
Em
oposição
a
esta
frase
lapidar,
citemos
agora
de
maneira
mais
extensa
as
profundas
palavras
de
Platão
que
apresentamos
em
nosso
primeiro
capítulo:
"Embora
as
coisas
humanas
não
se
caracterizem
por
uma
grande
seriedade,
mesmo
assim
é
necessário
ser
sério,
ainda
que
isso
não
contribua
para
nossa
felicidade
.
.
.
É
preciso
tratar
com
seriedade
aquilo
que
é
sério
e
nada
mais.
Só
Deus
é
digno
da
suprema
seriedade,
e
o
homem
não
passa
de
um
joguete
de
Deus,
e
é
esse
o
melhor
aspecto
de
sua
natureza.
Portanto,
todo
homem
e
mulher
devem
viver
a
vida
de
acordo
com
essa
natureza,
jogando
os
jogos
mais
nobres,
contrariando
suas
inclinações
atuais
.
.
.
Pois
eles
consideram
a
guerra
uma
coisa
séria,
embora
não
haja
na
guerra
jogo
ou
cultura
dignos
desse
nome,
justamente
as
coisas
que
nós
consideramos
as
mais
sérias.
Portanto,
todos
devem
esforçar-se
ao
máximo
por
viver
em
paz.
Qual
é,
então,
a
maneira
mais
certa
de
viver?
A
vida
deve
ser
vivida
como
jogo,
jogando
certos
jogos,
fazendo
sacrifícios,
cantando
e
dançando,
e
assim
o
homem
poderá
conquistar
o
favor
dos
deuses
e
defender-se
de
seus
inimigos,
triunfando
no
combate."
Assim,
"os
homens
viverão
de
acordo
com
a
natureza,
pois
sob
muitos
aspectos
eles
são
como
fantoches,
e
só
possuem
uma
pequena
parte
da
verdade".
Ao
que
o
companheiro
de
Platão
responde:
"Dizendo
isso,
meu
amigo,
pareces
concluir
que
o
gênero
humano
é
inteiramente
mau".
E
Platão
responde:
"Perdoa-me.
Foi
com
os
olhos
em
Deus
e
pensando
apenas
nele
que
assim
falei.
Admito,
se
quiseres,
que
o
gênero
humano
não
é
inteiramente
mau,
e
merece
uma
certa
consideração"8.
O
espírito
humano
só
é
capaz
de
libertar-se
do
círculo
mágico
do
jogo
erguendo
os
olhos
para
o
Supremo.
A
concepção
lógica
das
coisas
é
incapaz
de
levá-lo
muito
longe.
Quando
o
pensamento
humano
faz
uma
revisão
de
todos
os
tesouros
do
espírito
e
sente
todo
o
esplendor
de
suas
faculdades,
mesmo
assim
sempre
encontra,
no
fundo
de
todo
julgamento
sério,
um
resto
problemático.
No
fundo
de
nossa
consciência,
sabemos
que
nenhum
de
nossos
juízos
é
absolutamente
decisivo.
E
nesse
momento
em
que
nosso
julgamento
começa
a
vacilar,
juntamente
com
ele vacila
também
nossa
convicção
de
que
o
mundo
é
uma
coisa
séria.
Em
vez
do
milenar
tudo
é
vaidade,
impõe-
se
uma
fórmula
muito
mais
positiva,
que
tudo
é
jogo.
É
claro
que
isso
é
uma
metáfora
barata,
devida
apenas
à
impotência
do
espírito
humano;
mas
era
a
essa
sabedoria
que
Platão
havia
chegado,
no
momento
em
que
chamava
aos
homens
o
joguete
dos
deuses.
O
mesmo
pensamento
aparece
também,
por
estranha
fantasia,
no
Livro
dos
Provérbios,
no
qual
a
Sabedoria
Eterna
diz
que
antes
de
toda
a
criação
ela
brincava
diante
da
face
de
Deus
para
diverti-lo,
e
que
no
mundo
de
seu
reino
terrestre
ela
encontrava
seu
divertimento
na
companhia
das
crianças
humanas9.
Sempre
que
nos
sentirmos
presos
de
vertigem,
perante
a
secular
interrogação
sobre
a
diferença
entre
o
que
é
sério
e
o
que
é
jogo,
mais
uma
vez
encontraremos
no
domínio
da
ética
o
ponto
de
apoio
que
a
lógica
é
incapaz
de
oferecer-nos.
Conforme
dissemos
desde
o
início,
o
jogo
está
fora
desse
domínio
da
moral,
não
é
em
si
mesmo
nem
bom
nem
mau.
Mas
sempre
que
tivermos
de
decidir
se
qualquer
ação
a
que
somos
levados
por
nossa
vontade
é
um
dever
que
nos
é
exigido
ou
é
lícito
como
jogo,
nossa
consciência
moral
prontamente
nos
dará
a
resposta.
Sempre
que
nossa
decisão
de
agir
depende
da
verdade
ou
da
justiça,
da
compaixão
ou
da
clemência,
o
problema
deixa
de
ter
sentido.
Basta
uma
gota
de
piedade
para
colocar
nossos
atos
acima
das
distinções
intelectuais.
Em
toda
consciência
moral
baseada
no
reconhecimento
da
justiça
e
da
graça,
o
dilema
do
jogo
e
da
seriedade,
até
aqui
insolúvel,
deixará
de
poder
ser
formulado.
Notas do capítulo 12
1
No
Beowulf
encontra-se
uma
magnífica
variante
do
concurso
de
natação,
na
qual
o
fim
a
atingir
é
manter
o
rival
debaixo
da
água
até
que
se
afogue.
2
Nas
sombras
do
amanhã,
Heinemann,
1936,
Cap.
16.
3
9
de
janeiro
de
1935.
4
Sobre
as
fronteiras
entre
o
jogo
e
a
seriedade
na
cultura,
p.
25,
e
Nas
sombras
do
amanhã,
Cap.
16.
5
J.
K.
Outendijk,
Een
cultuurhistorische
vergelijking
tussen
de
Fransche
en
de
Engelsche
parlementaire
redevoering,
Utrecht,
1937.
6
Carl
Schmitt,
Der
Begriff
des
Politischen,
Hamburgo,
3*
edição,
1933
(1ª
1927).
7
Fragmentos,
70.
8
Leis,
803-4.
Esta
frase
de
Platão,
que
muitos
depois
dele
retomaram,
alquire
um
tom
mais
pessimista
em
Lutero,
quando
este
diz:
"Todas
as
criaturas
são
larvas
e
máscaras
de
Deus".
(Erlanger
Ausgabe,
XI,
p.
115).
9
VIII,
22-3,
30-1.