A FUNDAÇAO DA
-
LITERATURA BRASILEIRA
Regina Zilberman
E pois se é impossível falar do Brasil, sem que
se recorde tudo quanto a natureza tem mais belo,
mais fecundo, mais precioso como diz Freycinet;
se é impossível falar deste país, sem que se observe
que o ouro e os diamantes saem de seu seio, ao
mesmo tempo, que nele prosperam todas as cultu-
ras, como confessa Beauchamp; é também impos-
sível falar dos brasileiros como pondera o Sr.
Eugene de Monglave, sem que se recorde que são
eles os únicos povos da América que possuem a sua
literatura nacional.
JOAQUIM NORBERTO'
1. SOUSA SILVA, Joaquim
Norberto de. "Introdução his-
tórica sobre a literatura brasi-
leira". Revista popular. Ano Com Suspiros poéticos e saudade, publicado em 1836, Do-
I, tomo 4, oul.-dez. 1859, p. mingos José Gonçalves de Magalhães espera apresentar a estética
358.
romântica ao público brasileiro_ Com o "Ensaio sobre a história da
literatura do Brasil", do mesmo ano e editado no primeiro número de
2. Este estudo foi republicado
em 1865, com novo título, Niterói,2 almeja lançar as bases para a constituição da história da
"Discurso sobre a história da literatura brasileira. Introdutor do Romantismo no país, Gonçalves
I iteratura do Brasil", de onde
provêm as citações.
de Magalhães inaugura, simultaneamente, a historiografia nacional.
Para obter esse resultado, precisa rejeitar possíveis precurso-
3. Gonçalves de Magalhães
não menciona Almeida Gar- res; neste sentido, desacredita os estrangeiros Friedrich Bouterwek,
rett autor do "Bosquejo da Sismonde de Simondi e Ferdinand Denis que, antes dele, se dedica-
história da poesia e língua
portuguesa", de 1826. ram à matéria,3 queixando-se de que a trataram indevidamente; e
60 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2
observa que "nenhum nacional, que o saibamos, ocupado se tem até
4. GONÇALVES DE MA-
de tal objeto".4
GALHÃES, Domingos José.
Para dar conta do recado, Magalhães deve responder à própria "Discurso sobre a história da
pergunta: "qual é a origem da literatura brasileira? Qual o seu caráter, literatura no Brasil." In:
Opúsculos hist6ricos e literá-
seus progressos, e que fases tem tido?" (p. 244). Ao fazê-la, ele indica rios. 2. ed. Rio de Janeiro:
o objeto - a literatura de uma dada nação; o método - rastrear as Garnier, 1865, p. 245.
origens, pesquisar os progressos e verificar as fases dessa literatura;
e a finalidade - definir seu caráter - da história da literatura.
A perspectiva com que Magalhães encara o modo de fazer
história da literatura sugere que ele acompanhava as tendências da
historiografia romântica. Este afinamento garante ao autor a premissa
com que abre o estudo - cada nação tem uma literatura própria e
característica, reveladora do caráter do povo que a produz:
A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem
de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamen-
to, de mais heróico na moral, e de mais belo na natureza; é o
quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o desper-
tador de sua glória, e o reflexo progressivo de sua inteligên-
cia. (p. 241).
Para Magalhães, a literatura é o "único representante" de um
povo, seu "espírito" (p. 241), confundindo-se com ele, razão por que
se deixa acompanhar do adjetivo gentílico que a localiza geografica-
mente. A tarefa encaminhada aos historiadores da literatura não
deveria oferecer dificuldades: cabia tão-somente apontar a origem e
acompanhar os progressos alcançados desde então pela literatura
produzida na nação que se chamava Brasil.
O que parecia fácil, contudo, revelou-se quase impossível:
Magalhães reconhece que "mesquinhos e esparsos são os documen-
tos que sobre ela se podem consultar" (p. 245); à ausência de textos,
soma-se a falta de material qualificado, porque, para ele, as obras
escritas por brasileiros até aquela época mostravam-se servis aos
padrões europeus e clássicos, a quem procuravam docilmente imitar,
legando uma arte inautêntica e artificial:
A poesia brasileira não é uma indígena civilizada; é uma
grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no
Brasil; é uma virgem do Helicon que, peregrinando pelo
mundo, estragou seu manto, talhado pelas mãos de Homero,
e sentada à sombra das palmeiras da América, se apraz ainda
com as reminiscências da pátria, cuida ouvir o doce murmú-
rio da castália, o trépido sussurro do Lodon e do Ismeno, e
A Fundação da Literatura Brasileira - 61
toma por um rouxinol o sabiá que gorgeia entre os galhos da
laranjeira. (pp. 256-257)
Originalmente um estudo de pendor historiográfico, o Ensaio
acaba desmascarando sua faceta reformista, esperável, aliás, num
autor que anunciava ao Brasil e boa nova romântica, enquanto o
livrava da poética neoclássica até então hegemônica nas letras locais.
Ao mesmo tempo, Magalhães esclarece como entende o modelo de
literatura a ser qualificada de verdadeiramente brasileira: deveria
apresentar caráter nacional e liberar-se da imitação européia. O poeta
desenha o perfil do fundador, esperando que contemporâneos e
pósteros reconheçam nele o seu rosto, no que é bem sucedido,
conforme sugerem, sobretudo, os ensaios de Joaquim Norberto, de-
dicados a pontar o decisivo papel exercido pelo autor dos Suspiros
5. "O Sr. Magalhães SÓ, sem poéticos e saudade na constituição da literatura brasileira. 5
auxílio de outrem, efetuou a A história da literatura, contudo, não vive de valorizar os
tão desej ada reforma da poe-
sia brasileira, lenbrada há contemporâneos, antes de eles virarem passado. Compete-lhe, ao
anos por Mr. Ferdinand De- contrário da mulher de Lot, voltar os olhos para trás, à procura
nis, que estusiasta do Brasil
lha profetizara uma época de
daquela origem remota de que o presente é a melhor e superior
esplendor e glória Iiterária;- expressão. Sua tarefa é descrever a trajetória que redunda na atuali-
profecia que vai realizando-
se; - época que principia a
dade, de modo que os românticos, mesmo se a contragosto, precisa-
raiar!". In: SOUSA SILVA, ram sair em busca do ancestral, aquele que anunciou por vez primeira
Joaquim Norberto de. Modu-
lações poéticas. Precedidas
o padrão de que os coetâneos se tornaram a manifestação ideal.
de um bosquejo da paesia A pesquisa ocupou os historiadores da literatura ativos entre
brasileira. Rio de Janeiro: Ti- 1840 e 1870, durante o auge do Romantismo no Brasil. Obrigados a
pografia Francesa, 1841, p.
47. garimpar, entre os remanescentes dos escritos produzidos desde o
descobrimento até seu tempo, a quem caberia o galardão de fundador,
optam, na maioria das vezes, por Basílio da Gama, em alguns casos,
por Santa Rita Durão, conforme um percurso que se acompanha a
seguir.
Almeida Garrett, no "Bosquejo da história da poesia e da
língua portuguesa", antecipa a sugestão de que Basílio da Gama era
merecedor dessa láurea:
Justo elogio merece o sensível cantor da infeliz Lindóia, que
mais nacional foi que nenhum de seus compatriotas brasilei-
ros. O Uruguai de José Basílio da Gama é o moderno poema
que mais mérito tem na minha opinião. Cenas naturais mui
bem pintadas, de grande e bela execução descritiva; frase
pura e sem afetação, versos naturais sem ser prosaicos, e
quando cumpre sublimes sem ser guindados; não são quali-
dades comuns. Os brasileiros principalmente lhe devem a
62 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2
melhor coroa de sua poesia, que nele é verdadeiramente
nacional, e legítima americana. 6 6. GARRETI, Almeida, "Bos-
quejo da história da poesia e
língua portuguesa". In: Obras
Ferdinand Denis, na mesma época, não tem o poema em tão Completas. V. 2. Lisboa: Em-
presa da História de Portugal,
alta estima: 1904, p. 357.
o Uruguai não se distingue tanto pela originalidade da con-
cepção, como pela correção do estilo. É mais interessante
pelas particularidades poéticas do que pela impressão que
possa causar. Nele se nos depara, todavia, hábil descrição do
Novo Mundo, onde vastas planícies se distendem, onde a
natureza é tão regular na produtividade e opulenta nas provi-
sões, cobrindo de pastagens o espaço que não reserva às
florestas.? 7. DENIS, Ferdinand. Resu-
mo da história do Brasil. Por-
to Alegre: Lima, 1968, p. 65.
A preferência do historiador francês recai sobre o poema de
Santa Rita Durão, Caramuru, porque a obra "reveste caráter nacional,
apesar de suas imperfeições, e assinala claramente o objetivo a que
deve dirigir-se a poesia americana" (p. 62).
Ambos os críticos avaliam as epopéias de modo divergente;
coincidem, contudo, no critério que os leva a valorizar o poema
preferido. Denis destaca o "caráter nacional" do Caramuru, enquanto
que Garrett julga O Uruguai poesia "verdadeiramente nacional, e
legítima americana", razão por que Basílio é "mais racional [... ] que
nenhum de seus compatriotas brasileiros". Por sua vez, as avaliações,
embora discordantes, sanam parte notável dos problemas dos histo-
riadores da literatura brasileira, pois, desde um prisma externo,
distante, pois, dos interesses imediatos dos intelectuais nativos, apon-
tam-se criações que respondem positivamente às exigências de qua-
lidade para as obras escritas no país. O valor não dependeria apenas
do estilo e da naturalidade dos versos, mas também do índice de
nacionalidade que carregam consigo, fator de ordem prioritária e
presente nos textos de Basílio e/ou Santa Rita Durão.
Eis por que essas avaliações e a valorização das obras que as
suscitam são retomadas, às vezes quase literalmente, pelos historia-
dores românticos da literatura do Brasil.
Pereira da Silva, contemporâneo de Gonçalves de Magalhães
e coparticipante do número inaugural de Niterói, considera O Uru-
guai "admirável", concluindo que, "de todos [é] o mais nacional".8 8. PEREIRA DA SILVA, J.
M. "Introdução". In: Parnaso
Joaquim Norberto também destaca as virtudes do poema de Basílio Brasileiro ou Seleção de poe-
em seus estudo. Na introdução às Modulações poéticas, enfatiza os sias dos melhores poetas bra-
sileiros desde o descobrimento
méritos estilísticos, reprisando afirmações de Almeida Garrett e do Brasil. Tomo I. Rio de Ja-
Ferdinand Denis: neiro: Laemmert, 1843, p.43.
A Fundação da Literatura Brasileira - 63
o Uruguai é a melhor de suas produções; o estilo é correto,
a dicção, ainda que pobre, adequada e os versos, ora simples,
ora sublimes e sempre apropriados ao objeto de que tratam.
Os episódios da embaixada de Sepé e Cacambo ao general
Gomes Freire; da batalha de S. Tecla, em que os índios das
missões sofrem completa derrota, da visão de Cacambo, do
incêndio das tendas do exército luso-hispano-brasílico, da
morte da saudosa Lindóia, de descrição da pintura do templo
das missões, tão engenhosa e delicadamente interrompida no
9. SOUSA SILVA, Joaquim quarto canto e continuada no quinto, são excelentes. ~
Norberto de. Op. cit., p. 31.
No ensaio que antecede o Mosaico poético, a observação
reaparece: "Basílio da Gama imortaliza-se com o seu Uruguai, a
melhor de sua produções: o estilo é correto, a dicção adequada, e os
versos ora simples, ora sublimes e sempre apropriados ao objeto de
10. ADÊT, Emflio & SOUSA que tratam".1II Nas "Introdução histórica sobre a literatura brasileira",
SILVA, Joaquim Norberto
de. Mosaico poético. Poesias
sublinha o caráter nacional da obra, revestindo-o de um fator suple-
brasileiras antigas e moder- mentar - seu patriotismo. Norberto reconhece em Basílio da Gama e
nas, raras e inéditas acomp-
em Santa Rita Durão "entusiasmo patriótico", graças ao qual "abri-
nhadas de notas, notícias
biográficas e críticas, e de ram exemplo, com a publicação de seus imortais e sublimes poemas,
uma introdução sobre a litera- ricos de pinturas e episódios verdadeiramente brasileiros" .11
tura nacional. Rio de Janeiro:
s.e., 1844. Ao considerar patrióticas as obras de Gama e Durão, Joaquim
11. SOUSA SILVA, Joaquim
Norberto leva adiante o processo de nacionalização encetado pelos
Norberto de. "Introdução his- românticos. Garrett e Denis, antes de Magalhães, reconheciam nos
tórica sobre a literatura brasi-
poemas "caráter nacional", o que os associava à terra de nascença dos
leira". Revista Popular. Ano
lI, tomo 5, jan.-mar. 1860. autores e conferia-lhes valor por concretizarem o postulado român-
tico relativo à necessidade de a criação literária inspi.rar-se na natu-
reza circundante, que acabava por representar e traduzir. Quanto mais
embebida pela paisagem natural, aquela vivenciada pelo artista, mais
original, pessoal, logo, nacional, era o resultado obtido.
Norberto vai além: descobre "entusiasmo patriótico" nos poe-
mas de Gama e Durão, atribuindo indiretamente ardores nativistas a
dois escritores que viveram poucos anos na terra natal e acataram
com gosto a política dominante na Metrópole, a pombalina no caso
de Basílio, a de oposição ao Marquês, no caso de Santa Rita. Ao
historiador da literatura convinha, contudo, que os poetas tivessem
sido patriotas e que esse sentimento tivesse transitado aos textos,
pois, assim, consolidava-se a expectativa de que a literatura do
passado tinha antecipado e preparado, de um lado, a estética da época,
fundada no nacionalismo, corporificado na natureza americana, de
outro, a ideologia vigente, valorizadora das expressões separatistas
que diferenciavam a ex-colônia e a velha metrópole.
Varnhagen, na introdução ao Florilégio da poesia brasileira,
64 - Rev. Brasil. Lit. Comparada, nº 2
é dos poucos que não enfatiza o elemento nativista que estaria
encrustrado naquelas obras. Sua preferência recai sobre o poema de
Santa Rita Durão, julgado o Caramuru "poema mais acabado", "de
fácil e natural metrificação, e dicção clara e elegante"Y 12. VARNHAGEN, Fransico
Os estudos de Pereira da Silva, Joaquim Norberto e Varnha- A. de. "Ensaio histórico sobre
as letras no Brasil". In: Flori-
gen, oriundo das décadas de 40 e 50 do século XIX, são introduções 16gio da poesia brasileira ou
a coletâneas de poemas escritos por autores nascidos ou vividos no Coleção das mais notáveis
composições dos poetas bra-
Brasil, a quem cabia responder pelo catálogo corrente da literatura sileiros falecidos, contendo
local. A preocupação maior dos ensaístas era garantir um elenco de as biografias de muitos deles.
Tomo I. Rio de Janeiro: Aca-
obras redigidas em língua portuguesa e produzidas por homens demia Brasileira, 1946, p. 35.
associados de alguma maneira ao país. Nos anos 60 e 70, aparecem
os livros do Cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro. Curso
elementar de literatura nacional e Resumo de história literária, e
Sotero dos Reis, Curso de literatura portuguesa e brasileira, com
outro feitio, por se destinarem ao uso escolar. A alteração do destino
das obras, no entanto, não modifica os critérios de avaliação, como
sugere a observação de Fernandes Pinheiro, que valoriza a figura de
Cacambo, em O Uruguai, por seu "caráter ousado e generoso, o
sentimento de amor pátrio que o anima [que] dão-lhe um colorido
original, um americanismo, que devera ser mais tarde interpretado
pelos delicadíssimos pincéis de Cooper, Irving e Longfellow"Y 13. FERNANDES PINHEI-
As mesmas razões levam Sotero dos Reis a considerar Basílio, RO, Cônego Joaquim Caeta-
no. Resumo de história
"se deixarmos de atender à data, o verdadeiro fundador da poesia literária. Tomo 11. Rio de Ja-
brasileira, porque soube empregar a cor local com mais arte, que neiro: Gamier, 1873, p. 373.
[Grifo do autor. J
Durão que precedeu na ordem cronológica [sic], ou aquele a quem
na frase de Almeida Garrett os brasileiros devem a melhor coroa de
sua poesia". 14 14. SOTERO DOS REIS,
Sotero dos Reis responde, com essa anotação, a pergunta de Francisco. Curso de literatu-
ra portuguesa e brasileira.
Gonçalves de Magalhães. Basílio constitui a origem, trazendo en- Tomo IV. Maranhão: s. e.,
cumbada em sua epopéia os principais elementos desenvolvidos pela 1868, p. 209.
literatura brasileira posterior e resumidos numa noção cunhada e
exigida pelo Romantismo: cor local, expressão que conjuga natureza
enquanto espaço e nacionalidade enquanto terra e que se eleva à
condição de critério de medição do tanto de qualidade e diferença
verificável numa dada produção literária de um país. Basílio, com O
Uruguai, respondeu positivamente a essas exigências, habilitando-se
a posição de fundador, inaugurando a história da literatura e permi-
tindo que ela fosse contada.
Tanto a pergunta de Gonçalves de Magalhães, quanto as res-
postas de Pereira da Silva, Joaquim Norberto, Fernandes Pinheiro e
Sotero do Reis, entre outros, apresentam significado particular para
uma teoria da história da literatura. Elas conjugam dois tópicos
sucessivamente retomados pelos historiadores da literatura: o primei-
A Fundação da Literatura Brasileira - 65
ro diz respeito ao "por onde começar", base, conforme Barthes, de
15. BARTHES, Roland. "Par todas estrutura narrativa;!S o segundo, mais específico, refere-se ao
ou commencer?". Poétique 1.
Paris: Seuil, 1970.
"que incluir".
Contemporânea ao aparecimento da história e, seguidamente,
julgada parte daquela, a história da literatura não poderia deixar de
conter os elementos narrativos que Hayden White, por exemplo,
reconhece naquela ciência. Devido à presença inevitável de traços
estilísticos próprios às formas ficcionais, White propõe que a meta-
história analise, no texto dos historiadores, as diferentes maneiras de
contar, porque essas sinalizam suas distintas visões de mundo. Os
historiadores escolhem seu modo de narrar, e essas singularidades,
situadas no plano lingüístico, definem a perspectiva com que inter-
pretam os fato passados. Segundo White, não há histórias mais
"corretas" que outras ou versões mais verídicas: a diversidade situa-
se no plano do discurso, valendo o arranjo e a óptica que o historiador
16. WHlTE, Hayden. Tro- - agora narrador - utiliza.!6
pics of Discourse. Essays in Parte da história ou modo paralelo de se fazer história, a
Cultural Criticism. Baltimore
& London: The lohos Hop- história da literatura recorre igualmente às estratégias narrativas
kins University Press, 1986. próprias aos gêneros ficcionais. Talvez, no caso dela, o processo
WHITE, Hayden. Meta-His-
tória. A imaginação histórica aconteça de modo mais evidente, pois, conforme ocorreu a Maga-
do século XIX. São Paulo: lhães, tudo parte da pergunta pela origem, a que sinaliza o início da
Edusp, 1992.
narrativa, a ponta do novelo. O teor da pergunta, bem como das
respostas, especialmente a de Sotero dos Reis, sugere também que a
história da literatura constitui uma modalidade de narrativa mítica,
com a função de revelar a origem por meio de um relato, que conta
como, graças às façanhas de seres sobrenaturais, as coisas vieram à
17. ELIADE, Mircea. Mito y luz pela primeira vez.!7
realidad. Madrid: Guadarra- A história da literatura vale-se, pois, e muito, de estratégias
ma, 1968.
narrativas próprias aos gêneros ficcionais, e isso para se constituir
em ciência e conquistar credibilidade. Só assim dá conta tanto da
origem, respondendo à questão que foi também de Gonçalves de
Magalhães- "por onde começar" -, quanto da continuação, conforme
um arranjo verossímil e coerente, acatando então os preceitos de
18. Hayden White destaca Aristóteles quando se referia à mímese nas artes poéticas. 18
igualmente a "plot structure" A resposta dada à questão da origem, todavia, não esgota o rol
empregada pela história,
obrigando o intérprete a en- das tarefas atribuídas à história da literatura. Cabe-lhe igualmente
tender a seqüência de eventos definir seu objeto, para isso pesquisando "o que incluir". Na busca
apresentada pelo historiador
enquanto uma"stary ofa par- de solução para esse problema, recorre a novos parceiros, originários
ticular kind". WHITE, Hay- da estética e da política.
den. Tropics of discourse, p.
58.
A estética é chamada a colaborar, porque a história da litera-
tura precisa selecionar, entre o material existente, formado de escri-
tores e suas obras, aqueles que merecem constar da narrativa. Ela
dispõe de vários personagens; mas, ao contrário da história, que lida
66 - Rev. Brasil. Li!. Comparada, nº 2
com eventos, estes determinando a distribuição dos papéis entre
protagonistas e figurantes, a história da literatura depara-se com um
grande número de atores a quem deve atribuir a execução de fatos
notáveis, dignos de serem contados.
É a estética que executa previamente essa tarefa, oferecendo
ao historiador da literatura a relação dos escritores e das obras que
atuaram sobre o público leitor e provocaram impacto, permanecendo
ativas no tempo. Hans-Robert Jauss chama a atenção para o fato de
que os autores e os textos que fizeram história são os que marcaram
sua época, com repercussões no(s) período(s) seguinte(s).19 O histo- 19. JAUSS, Hans-Robert. "Li-
riador da literatura recolhe esses dados acumulados e ordena-os, teraturgeschichte ais Provoka-
tion der Iiteraturwissenchaft".
valendo-se de ferramentas agora transportadas da política: o arranjo In: WARNING, Rainer. Re-
dos fatos sociais e econômicos vividos por uma dada nação conforme zeptionsaesthetik. Müchen:
Fink, 1975. ZILBERMAN,
uma cronologia elaborada pela história. Regina. Estética da recepção c
A política interfere principalmente quando obriga a literatura história da literatura. São Pau-
lo: Ática, 1989.
a se definir, como queria Gonçalves de Magalhães, enquanto expres-
são de uma dada nação. Esse processo começa a ocorrer no século
XVIII, intensificando-se no século seguinte, porque a burguesia,
solidamente instalada no poder, vai buscar na literatura a repre-
sentação do Estado nacional que dirige e administra. Essa repre-
sentação pode se fazer de uma ou várias destas maneiras:
• a língua literária converte-se em língua nacional, e os escri-
tores transformam-se em paradigmas a serem imitados por
todos os falantes; este processo obtém êxito graças aosocor-
ro da escola, que difunde, entre os usuários de todas as
classes sociais, e torna obrigatório por intermédio do ensino,
o padrão lingüístico escolhido;
• os ficcionistas formulam e desenham um tipo nacional que
sintetiza as propriedades atribuídas ao ser local;
• os artistas louvam a natureza nativa, exaltando suas virtudes
e singularidades, sinônimas das qualidades da terra que as
abriga.
Os historiadores da literatura do Brasil raramente preferem a
primeira alternativa, pois a língua portuguesa era patrimônio da
metrópole européia de que o país acabava de se independendizar.
Esse critério, em certo sentido, corria na contramão, ao obrigar os
historiadores a reconhecer o débito dos brasileiros para com a litera-
tura portuguesa. Melhor era ignorá-lo, e preferir os outros dois, que
reforçavam a tese de que a literatura era expressão de um povo e
formadora do espírito nacional. Nesse caso, Basílio da Gama foi uma
boa opção: a epopéia tem valor estilístico, é marcante a presença da
A Fundação da Literatura Brasileira - 67
cor local, valoriza-se o mundo americano, e o poeta influenciou
coetâneos, como o depois concorrente Santa Rita Durão, os árcades
Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga e Alvarenga Peixoto e até
o português Almeida Garrett, admirador confesso do ex-jesuíta.
Com Basílio, podia-se dizer que a literatura brasileira "come-
çava"; o poeta apresentava-se como a baliza, necessária para ordenar
o "inc1uível", separar o "antes" e o "depois", diferenciar o "superior"
e o "inferior". Essa baliza valeu por um tempo, porque, descobertas,
depois de muitas e proveitosas pesquisas, obras mais antigas ou
importantes e em alta outros princípios estéticos, novos fundadores
foram chamados à cena, começos distintos foram propostos. Mas um
fato ficou e permanece até agora inalterável: a história da literatura
brasileira, realizando a aspiração de Gonçalves de Magalhães, estava
fundada, com origem estabelecida e eleito um elenco de atores,
concorrendo na disputa pelos melhores papéis.