Hotel
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VINCENT NO OCEANO
Dezembro de 2018
1
Começar pelo fim: cair da amurada do navio em plena escuridão
feroz da tempestade, a respiração cortada pelo choque da queda, a
minha câmara de vídeo a voar pela chuva...
2
Arrebata-me. Palavras escrevinhadas numa janela quando eu
tinha treze anos. Recuei e deixei o marcador cair-me da mão, e
ainda recordo a exuberância desse instante, a sensação no peito
como luz cintilando em vidro esmagado...
3
Terei vindo à superfície? O frio é aniquilador, o frio é tudo o que
existe...
4
Uma estranha recordação: parada à beira-mar em Caiette,
quando tinha treze anos, a câmara de vídeo novinha em folha, fria e
estranha nas minhas mãos, filmando as ondas em intervalos de
cinco minutos, e enquanto filmo ouço a minha própria voz sussurrar:
«Quero ir para casa, quero ir para casa, quero ir para casa.» Mas
onde é a minha casa senão aí?
5
Onde estou? Nem dentro nem fora do oceano, já não sinto o frio,
aliás, já não sinto nada, estou ciente da existência de uma fronteira,
mas não sei de que lado estou e pelos vistos consigo deslocar-me
entre recordações como se passasse de uma divisão à seguinte...
6
«Bem-vinda a bordo», disse o terceiro-imediato da primeira vez
que subi a bordo do Neptune Cumberland. Assim que olhei para ele,
percebi algo e pensei: «Tu...»
7
Está a acabar-se-me o tempo...
8
Quero ver o meu irmão. Estou a ouvi-lo falar comigo, e as minhas
recordações dele provocam-me alguma agitação. Concentro-me
muito e de repente estou parada numa rua estreita, na escuridão, à
chuva, numa cidade estrangeira. Um homem está sentado meio
curvado à entrada de uma porta, mesmo à minha frente, e não vejo
o meu irmão há uma década, mas sei que é ele. O Paul ergue o
olhar, e ainda tenho tempo para reparar que está com péssimo
aspeto, magro e de rastos, e ele vê-me, mas depois a rua tremeluz
e desaparece...
2
1
No final de 1999, Paul estava a estudar Economia na
Universidade de Toronto, algo que deveria ter sentido como uma
espécie de triunfo, mas a verdade era que estava tudo errado.
Quando era mais novo, convencera-se de que se licenciaria em
Composição Musical, mas vendera o seu teclado durante uma fase
complicada há uns anos, e a mãe recusava-se a entreter a ideia de
um curso pouco prático, e, depois de uma série de desintoxicações
dispendiosas, não a podia censurar por isso, pelo que se matriculara
num curso de Economia a pretexto de que isso representava um
passo em frente prático e impressionantemente adulto — «Olhem
para mim, a aprender sobre mercados e sobre as movimentações
do dinheiro!» —, mas a única falha nesse plano brilhante era o facto
de considerar a temática fatalmente desinteressante. O século
estava a chegar ao fim, e ele tinha algumas queixas.
Esperara, no mínimo, poder introduzir-se num contexto social
decente, mas o problema de desistir do mundo é que este continua
sem nós, e, entre o tempo despendido com uma substância que nos
absorve por completo, o tempo despendido a trabalhar em lojas
desmoralizantes enquanto tentava não pensar na substância e o
tempo despendido em hospitais e clínicas de reabilitação, Paul já
estava com 23 anos e parecia mais velho. Nas primeiras semanas
de faculdade, foi a festas, mas nunca tivera muito jeito para meter
conversa com estranhos, e todos lhe pareciam incrivelmente jovens.
Os exames a meio do ano correram-lhe mal, pelo que em finais de
outubro passou o tempo inteiro ou na biblioteca — a ler, esforçando-
se por se interessar por Economia, tentando contrariar os resultados
— ou no quarto, enquanto a cidade em volta ficava cada vez mais
fria. O quarto era individual, pois uma das poucas coisas em que ele
e a mãe tinham concordado era que seria um desastre se Paul
tivesse um colega de quarto e este andasse metido em opioides, por
isso estava quase sempre sozinho. O quarto era tão pequeno que
se sentia claustrofóbico caso não se sentasse diretamente em frente
à janela. As suas interações com outras pessoas eram escassas e
superficiais. Havia uma nuvem negra de exames no horizonte
próximo, mas estudar era absolutamente escusado. Tentava
insistentemente concentrar-se na teoria da probabilidade e nas
martingalas em tempo discreto, mas os seus pensamentos
desviavam-se para uma composição para piano que sabia que
jamais iria terminar, uma coisa em Dó Maior perfeitamente básica,
mas com ligeiras flutuações de acordes menores
desestabilizadores.
No início de dezembro, deixou a biblioteca ao mesmo tempo que
Tim, que tinha duas cadeiras com ele e também preferia a última fila
do anfiteatro.
— Vais fazer alguma coisa logo à noite? — perguntou-lhe Tim.
Era a primeira vez em muito tempo que alguém lhe perguntava
alguma coisa.
— Estava com esperança de encontrar música ao vivo algures. —
Paul não pensara naquilo antes de o proferir, mas parecia-lhe a
direção certa para essa noite. O rosto de Tim iluminou-se um pouco.
A única conversa que tinham tido antes dessa fora também sobre
música.
— Gostava de ir ver uma banda chamada Baltica — disse Tim —,
mas tenho de estudar para os exames finais. Conheces?
— Os exames finais? Sim, estão prestes a lixar-me a vida.
— Não. Os Baltica. — Tim piscou os olhos, exibindo uma
expressão confusa. Paul recordou algo que notara antes, o facto de
Tim não parecer compreender humor. Era como falar com um
antropólogo de outro planeta. Paul achava que esse facto deveria
ter criado uma espécie de abertura para uma possível amizade, mas
não conseguia imaginar como começaria tal conversa — «Não pude
deixar de reparar que estás tão alienado como eu. Podemos
partilhar apontamentos?» —, e, além disso, Tim já estava a afastar-
se na direção da noite escura de outono. Paul recolheu edições dos
semanários alternativos das caixas de jornais junto ao refeitório e
regressou ao quarto, onde pôs a tocar a Quinta Sinfonia de
Beethoven para lhe fazer companhia e depois perscrutou o cartaz
de espetáculos até encontrar os Baltica, que iriam dar um concerto
no final dessa noite numa sala de que nunca ouvira falar, algures na
esquina da Queen com a Spadina. Quando fora a última vez que
ouvira música ao vivo? Paul espetou o cabelo para cima, depois
baixou-o, mudou de ideias e voltou a espetá-lo, experimentou três
camisas diferentes e deixou o quarto antes de poder fazer mais
alterações, desgostoso com a sua indecisão. A temperatura estava
a baixar, mas havia algo de purificante no ar frio, e o exercício era
uma recomendação terapêutica que andava a ignorar, pelo que
decidiu ir a pé.
A sala ficava numa cave por baixo de uma loja de roupa gótica,
ao fundo de um lanço de escadas íngreme. Permaneceu no passeio
por uns minutos assim que reparou nisso, receando poder tratar-se
de um clube gótico — todos se ririam das suas calças de ganga e
camisa polo —, mas o segurança mal pareceu reparar nele, e o
público era composto por 50% de vampiros apenas. Os Baltica eram
um trio: um tipo com um baixo, outro tipo que manuseava um sem-
fim de instrumentos eletrónicos ligados a um teclado e uma rapariga
com um violino elétrico. O que estavam a fazer em palco
assemelhava-se mais a um rádio avariado do que propriamente a
música, uma série de explosões de estática estranhas e de notas
desconexas, o tipo de música eletrónica ambiente dispersa que
Paul, toda a vida fanático de Beethoven, não compreendia de todo,
mas a rapariga era lindíssima, pelo que não se importou. Mesmo
que não gostasse da música, podia ao menos entreter-se a olhar
para ela. A rapariga aproximou-se do microfone e cantou: «Vou
sempre ter contigo.» Mas havia um eco — o tipo do teclado
carregara num pedal —, pelo que soou
Vou sempre ter contigo, ter contigo, ter contigo
e era verdadeiramente dissonante, a voz com as notas do teclado
e as explosões de estática, mas então a rapariga ergueu o violino, e
este revelou ser o elemento em falta. Assim que fez deslizar o arco,
a nota funcionou como uma ponte entre ilhas de estática, e Paul
percebeu como tudo se ligava, o violino, a estática e o suporte
indefinido do baixo; por momentos foi empolgante, mas depois a
rapariga baixou o violino, e a música reverteu para os mesmos
componentes dissonantes, e Paul deu por si a interrogar-se mais
uma vez sobre como era possível alguém ouvir aquilo.
Mais tarde, quando a banda se encontrava a beber no bar, Paul
esperou que a violinista não estivesse a conversar e aproximou-se.
— Com licença — disse-lhe —, era só para te dizer que adoro a
vossa música.
— Obrigada — replicou a violinista. Sorriu, mas da típica maneira
contida das raparigas incrivelmente belas que sabem o que vem a
seguir.
— Foi mesmo fantástico — disse Paul ao baixista, com o intuito
de baralhar as expectativas e de apanhar a rapariga desprevenida.
— Obrigado, pá. — O baixista esboçou um sorriso que fez Paul
suspeitar de que estava pedrado.
— Já agora, sou o Paul.
— Theo — retorquiu o baixista. — Aqueles são o Charlie e a
Annika.
Charlie, o teclista, acenou com a cabeça e ergueu a cerveja, e
Annika observou Paul por cima do rebordo do copo.
— Posso fazer-vos uma pergunta um pouco estranha? — Paul
queria muito voltar a ver Annika. — Sou novo aqui na cidade e não
conheço nenhum sítio onde ir dançar.
— Vai à Richmond Street e vira à esquerda — respondeu-lhe
Charlie.
— Não é isso, quero dizer, já fui a alguns sítios nessa zona, mas
é muito difícil encontrar um lugar onde a música não seja uma treta,
e queria saber se me poderiam recomendar algum...?
— Ah. Sim. — Theo bebeu o resto da cerveja de um trago. —
Experimenta o System Sound.
— Mas ao fim de semana nem pensar — disse Charlie.
— Sim, meu, não vás lá ao fim de semana. As terças à noite são
muito porreiras.
— As terças à noite são do melhor — concordou Charlie. — De
onde és?
— Dos subúrbios mais profundos — retorquiu Paul. — Terças à
noite no System. Muito obrigado, hei de experimentar. — Então
virou-se para Annika e disse: — Quem sabe encontramo-nos por lá.
— E depois deu meia-volta muito rapidamente para não ver o
desinteresse dela, que sentiu como um vento frio nas costas durante
todo o percurso até à porta da rua.
Na terça-feira após os exames — três 15 e um 14 — liberdade
condicional académica —, Paul foi ao System Soundbar e dançou
sozinho. Não gostou particularmente da música, mas sabia-lhe bem
estar no meio de uma multidão. As batidas eram complicadas, e não
tinha a certeza de como dançar ao ritmo das mesmas, pelo que se
limitou a dar passos à frente e atrás com uma cerveja na mão,
tentando não pensar em nada. Não era esse o objetivo das
discotecas? Esbater os pensamentos com álcool e música?
Esperara encontrar Annika, mas não a via na multidão, nem aos
restantes membros dos Baltica. Estava constantemente à procura
deles, e eles estavam constantemente ausentes, até que por fim
comprou uma pequena embalagem de comprimidos com um tom
azul-vivo a uma rapariga com o cabelo cor-de-rosa, porque E não
era heroína e portanto não contava, mas havia algo errado com os
comprimidos ou algo errado com Paul: com uma dentada, cortou um
ao meio e engoliu-o, apenas uma metade. Não sentiu nada, por isso
engoliu a outra metade com cerveja, mas depois a sala desatou a
rodar, ele começou a transpirar, o coração deu um salto, e por
breves instantes convenceu-se de que ia morrer. A rapariga do
cabelo cor-de-rosa desaparecera. Paul encontrou um banco
encostado a uma parede.
— Então, pá, estás bem? Estás bem? — Alguém estava
ajoelhado diante dele. Decorrera uma quantidade de tempo
considerável. A multidão desaparecera. As luzes estavam acesas, e
essa luminosidade era terrível, essa luminosidade transformara o
System numa sala rasca com pequenas poças de um líquido não
identificado a cintilarem na pista de dança. Um tipo mais velho com
um olhar mortiço e uma série de piercings andava de um lado para o
outro com um saco do lixo, a recolher garrafas e copos, e depois da
intensidade da música, o silêncio soava como um verdadeiro rugido,
um vazio. O homem ajoelhado diante de Paul era da gerência da
discoteca, envergando calças de ganga, T-shirt dos Radiohead e um
blazer típico da gerência das discotecas.
— Sim, estou bem — respondeu-lhe Paul. — Peço desculpa,
acho que bebi de mais.
— Não sei o que tomaste, pá, mas não te caiu nada bem — disse
o tipo da gerência. — Estamos a fechar, desaparece daqui. — Paul
levantou-se algo cambaleante e saiu, lembrando-se já depois de
estar na rua de que deixara o casaco no bengaleiro, mas a porta já
fora trancada atrás de si. Sentia-se envenenado. Cinco táxis vazios
passaram por ele, até que o sexto parou. O motorista era um
abstémio prosélito que lhe deu uma lição de moral sobre alcoolismo
durante todo o caminho de regresso ao campus. Paul queria tanto
enfiar-se na cama que cerrou os punhos e não abriu a boca até o
táxi parar finalmente junto ao passeio, altura em que pagou — nada
de gorjetas — e disse ao motorista que se deixasse de moralismos
de merda e voltasse para a merda da Índia.
— Ouça, quero deixar bem claro que já não sou essa pessoa —
disse Paul a um dos orientadores de uma clínica de reabilitação em
Utah, vinte anos depois. — Estou apenas a tentar ser sincero sobre
quem era nessa altura.
2
É fácil desvalorizar o histerismo do ano 2000 em retrospetiva —
quem ainda se recorda? —, mas o risco de colapso parecia real, na
altura. Ao soar a meia-noite no dia 1 de janeiro de 2000, diziam os
peritos, as centrais elétricas nucleares corriam o risco de entrar em
fusão quando a avaria informática fizesse disparar bandos de
mísseis por cima dos oceanos, a rede colapsasse e aviões caíssem
do céu. Mas, para Paul, o mundo já colapsara, pelo que, três dias
depois da morte de Charlie Wu, estava parado junto a uma cabine
telefónica pública, no terminal das chegadas no aeroporto de
Vancouver, tentando contactar a sua meia-irmã, Vincent. Tivera
dinheiro suficiente para fugir de Toronto, mas já não lhe restava
quase nada para o resto, pelo que o plano consistia em submeter-se
à misericórdia da tia Shauna, que, segundo a sua vaga memória de
infância, tinha uma casa enorme com imensos quartos de hóspedes.
Ainda que não visse Vincent há cinco anos, desde que ela tinha
treze anos e ele dezoito, logo após o falecimento da mãe dela, e
embora também não visse Shauna há uns, quê, onze anos? Todos
esses pensamentos lhe passavam pela cabeça enquanto o telefone
tocava incessantemente na casa da tia. Passou um casal que
envergava camisolas idênticas onde se lia «Party Like It’s 1999»1, e
só então lhe ocorreu que era Véspera de Ano Novo. As últimas 72
horas tinham tido algo de alucinatório. Não andava a dormir o
suficiente. Pelos vistos, a tia não tinha atendedor de chamadas.
Havia uma lista telefónica na prateleira por baixo do telefone, onde
encontrou a empresa de advocacia onde ela trabalhava.
— Paul — disse a tia, depois de ter conseguido passar pela
secretária dela. — Que bela surpresa. — O tom de voz era amável e
cauteloso. Até que ponto estaria ela a par? Calculava que o seu
nome tivesse vindo à baila ao longo dos anos. «O Paul? Ah, esse
está outra vez numa clínica de reabilitação. Sim, já é a sexta vez.»
— Peço desculpa por estar a incomodá-la no local de trabalho. —
Paul sentia um formigueiro atrás dos olhos. Estava extrema e
infinitamente arrependido de tudo. (Tentar não pensar em Charlie
Wu estendido na maca no System Soundbar, o braço a pender de
lado.)
— Oh, não incomodas nada. Estás a ligar só para dizer olá ou...?
— Estou a tentar entrar em contacto com a Vincent — retorquiu
Paul —, mas por alguma razão ela não me atende quando ligo para
casa, por isso lembrei-me de que talvez tivesse outro número ou...?
— Ela saiu de casa há um ano. — A neutralidade calculada na
voz da tia sugeria que a separação não fora amigável.
— Há um ano? Com dezasseis anos?
— Dezassete — corrigiu-o a tia, como se fizesse toda a diferença.
— Foi morar com uma amiga de Caiette, uma rapariga que tinha
acabado de se mudar para a cidade. Ficava mais perto do trabalho
dela.
— Tem o contacto dela?
A tia tinha, sim.
— Se a vires, diz-lhe olá por mim — pediu-lhe a tia.
— Não tem falado com ela?
— Infelizmente, não nos separámos de uma forma amigável.
— Pensava que ela estaria ao seu cuidado — disse ele. — Não é
a tutora legal dela?
— Ela já não tem treze anos, Paul. Não gostava de morar na
minha casa nem gostava de andar no secundário, e, se tivesses
passado mais tempo com ela, saberias que tentar convencer a
Vincent a fazer algo que ela não quer é o mesmo que discutir com
uma parede. Agora, se me dás licença, tenho de me despachar para
uma reunião. Fica bem.
Paul ficou especado a ouvir o sinal de toque, segurando na mão
um bilhete de avião com o número de telefone de Vincent
escrevinhado no verso. Alimentara fantasias sobre ser recebido num
quarto de hóspedes adicional, mas o tapete estava a ser-lhe puxado
rapidamente de baixo dos pés. Tinha os fones pendurados ao
pescoço, pelo que tornou a colocá-los, com mãos um pouco
trémulas. Premiu a tecla Play no leitor de CD e deixou que os
Concertos de Brandeburgo o acalmassem. Só ouvia Bach quando
estava desesperado por um pouco de ordem. «Esta é a música que
me levará à Vincent», pensou, saindo à procura de um autocarro
que o conduzisse à Baixa. Em que tipo de apartamento estaria
Vincent a morar e com quem? A única amiga de que se lembrava
era Melissa e apenas porque estava presente quando Vincent
escrevera o grafíti que lhe valera uma suspensão da escola:
Arrebata-me. Palavras escritas com uma pasta fluorescente numa
das janelas norte da escola, o marcador fluorescente a tremer
ligeiramente na mão enluvada de Vincent. Tinha treze anos e estava
em Port Hardy, na Colúmbia Britânica, uma cidade na ponta mais a
norte da ilha de Vancouver, que ainda assim conseguia ser menos
remota do que o sítio onde Vincent morava. Paul dobrara a esquina
da escola secundária demasiado tarde para a impedir, mas a tempo
de a ver fazê-lo, e agora os três — ele, Vincent e Melissa —
estavam momentaneamente em silêncio, vendo rastos esguios de
tinta de cor viva a escorrer de várias letras pelo vidro abaixo.
Através das palavras, a sala de aula escura era uma massa de
sombras, filas vazias de secretárias e cadeiras. Vincent usara uma
luva de cabedal masculina que encontrara ninguém sabia onde.
Agora estava a descalçá-la e a largá-la na relva de inverno calcada,
onde ficou, qual ratazana morta, enquanto Paul continuava
especado, de boca aberta. Melissa ria-se com nervosismo.
— Mas o que pensas que estás a fazer? — Paul queria parecer
severo, mas aos seus próprios ouvidos a sua voz soou estridente e
insegura.
— É só uma frase de que gosto — respondeu-lhe Vincent. Fitava
a janela com uma expressão que deixou Paul pouco à vontade. Do
outro lado da escola, o motorista do autocarro escolar tocou a
buzina.
— Falamos melhor no autocarro — disse-lhe Paul, embora
ambos soubessem que não falariam de todo, pois ele não era
propriamente convincente como figura de autoridade.
Ela não se mexeu do lugar.
— É melhor irmos andando — disse Melissa.
— Vincent — disse Paul —, se perdermos o autocarro, teremos
de regressar a Grace Harbour à boleia e pagar um táxi aquático.
— Quero lá saber — respondeu Vincent, mas seguiu o irmão até
ao autocarro escolar que os esperava. Melissa encontrava-se
sentada à frente, perto do motorista, antecipando ostensivamente a
realização dos trabalhos de casa, mas ergueu furtivamente o olhar
quando passaram por ela. Viajaram em silêncio de regresso a Grace
Harbour, onde o barco dos Correios esperava para os levar para
Caiette. A embarcação contornou a península, e Paul fitou a obra
imensa onde o novo hotel estava a ser construído, as nuvens, a
nuca de Melissa, as árvores na margem, tudo para evitar olhar para
as profundezas da água, não havia nada lá em baixo em que
quisesse pensar. Quando olhou de relance para Vincent, percebeu
que também ela estava a evitar olhar para a água. Contemplava o
céu, que escurecia. Na outra extremidade da península ficava
Caiette, um lugar que fazia Port Hardy parecer uma metrópole, em
comparação: 21 habitações entaladas entre a água e a floresta, o
total da infraestrutura local consistindo numa estrada com dois
becos sem saída, uma pequena igreja dos anos 50 do século xix,
uma sucursal dos Correios com um único posto, uma escola
primária com uma só divisão, encerrada — desde meados dos anos
80 que não havia crianças suficientes para manter a escola aberta
— e apenas um cais. Quando o barco atracou em Caiette, subiram a
colina em direção a casa e depararam com o pai e a avó sentados à
mesa da cozinha, à espera. Por norma, a avó morava em Victoria, e
Paul morava em Toronto, mas não eram tempos normais. A mãe de
Vincent desaparecera havia duas semanas. Alguém encontrara a
canoa dela vazia e à deriva na água.
— Os pais da Melissa ligaram para a escola — disse o pai. — E a
escola ligou para mim.
Vincent — há que gabar-lhe a coragem — permaneceu impávida
e serena. Sentou-se à mesa, cruzou os braços e ficou à espera,
enquanto Paul se encostou ao fogão, pouco à vontade, e ficou a
observá-los. Deveria sentar-se à mesa também? Como um irmão
mais velho responsável? Como de costume, não sabia o que fazer.
Na forma como o pai e a avó fitavam Vincent, Paul ouvia tudo o que
estavam a conter-se para não mencionar: o novo cabelo azul de
Vincent, as notas escolares a caírem a pique, o eyeliner preto, a sua
perda dolorosa.
— Por que motivo escreveste uma coisa daquelas na janela? —
perguntou-lhe o pai.
— Não sei — respondeu ela, em surdina.
— Foi ideia da Melissa?
— Não.
— Onde tinhas a cabeça?
— Não sei. Eram só palavras de que gostava. — O vento mudou
de direção, e a chuva começou a bater contra a janela da cozinha.
— Peço desculpa — disse. — Sei que foi uma estupidez.
O pai explicou a Vincent que fora suspensa da escola por toda a
semana seguinte; e que deveria ter sido uma suspensão ainda mais
longa, mas que a escola estava a ter em consideração as
circunstâncias. Ela aceitou o facto sem tecer qualquer comentário,
depois levantou-se e subiu ao quarto. Permaneceram em silêncio na
cozinha, Paul, o pai e a avó, a ouvirem os passos dela ecoar nas
escadas e a porta do quarto fechar-se silenciosamente, e depois
Paul juntou-se a eles à mesa — a mesa dos adultos, ocorreu-lhe de
repente —, e ninguém fez referência ao óbvio, isto é, ao facto de ele
ter vindo de Toronto para olhar por ela, algo que idealmente deveria
implicar não a deixar fazer grafítis permanentes nas janelas da
escola. Mas quando é que alguma vez estivera em posição de olhar
por alguém? Por que motivo julgara ser possível ajudar? Também
ninguém fizera qualquer referência a esse facto, limitando-se a
continuar em silêncio, escutando a chuva cair dentro de um balde
que o pai colocara num canto da divisão, com Vincent representada
por um respiradouro de teto que o pai e a avó não pareciam saber
tratar-se de uma conduta direta para o quarto dela.
— Bem — disse Paul por fim, ansioso por uma mudança —, é
melhor ir fazer os trabalhos de casa.
— Como é que isso está a correr? — perguntou-lhe a avó.
— A escola? Está a correr bem — replicou Paul —, está a correr
bem. — Achavam que ele fizera um sacrifício nobre, deixando os
amigos em Toronto e vindo terminar o secundário ali, para poder
acompanhar a irmã, mas, se tivessem prestado mais atenção ou
estivessem em contacto com a mãe dele, saberiam que não estava
autorizado a regressar à escola antiga e que a mãe o expulsara de
casa. Mas teria uma pessoa de ser forçosamente ou admirável ou
terrível? A vida tinha mesmo de ser tão binária? As duas coisas
podiam coexistir, disse para si mesmo. O facto de a pessoa se ter
servido da suposta morte da madrasta para recomeçar a vida não
significava que não estivesse a fazer algo benéfico também, como
acompanhar a irmã ou o que fosse. A avó olhava-o fixamente —
seria possível que tivesse falado com a mãe dele? —, mas o pai
preparava-se para dizer algo, um processo gradual que envolvia
mexer-se repetidamente na cadeira, pigarrear, levar a chávena de
chá quase à boca e voltar a pousá-la, pelo que Paul e a avó
interromperam a troca de olhares intensa e ficaram à espera de que
ele falasse. A dor conferira-lhe uma certa seriedade.
— Em breve terei de regressar ao trabalho — disse o pai. — Não
a posso levar comigo para o acampamento.
— O que estás a sugerir? — perguntou-lhe a avó.
— Estou a pensar pô-la a morar com a minha irmã.
— Nunca te deste com a tua irmã. Juro que tu e a Shauna
começaram a discutir quando tinhas dois anos e ela ainda era bebé.
— Ela dá-me cabo da cabeça às vezes, mas é boa pessoa.
— Ela trabalha cem horas por semana — replicou a avó. — Não
seria melhor para a Vincent se arranjasses um trabalho mais perto?
— Não há trabalhos perto daqui — respondeu-lhe ele. — Pelo
menos nada que nos possa sustentar.
— E o novo hotel?
— A obra do novo hotel ainda vai durar mais um ano, pelo
menos, e não percebo nada de construção. Mas, ouve, não é só...
— Calou-se por instantes, olhando fixamente para o chá. —
Questões financeiras à parte, não me parece que morar aqui seja o
melhor para a Vincent. Sempre que olha para a água... — Não
concluiu o pensamento. E Paul achava que era um ponto a seu
favor o facto de ter pensado primeiro em Vincent quando o pai o
disse, que o seu primeiro pensamento não tivesse sido o raio da
enseada assombrada que estava a tentar não ver pela janela da
cozinha, mas a rapariga lá em cima, à escuta no respiradouro.
— Vou ver como está a Vincent — anunciou Paul. Gostou da
maneira como ambos olharam para ele — «Vejam só como o Paul
amadureceu!» — e admoestou-se por ter reparado nisso. No cimo
das escadas, a coragem quase lhe faltou, mas avançou, bateu ao
de leve à porta do quarto de Vincent e entrou quando não obteve
resposta. Há tanto tempo que não entrava nessa divisão que ficou
admirado por ser tão parca e depois sentiu-se embaraçado por ter
reparado e embaraçado Vincent, embora ela talvez nem sequer
tivesse reparado. Não tinha a certeza. A cama era mais antiga do
que ela, e a cabeceira tinha a tinta a lascar; a gaveta de cima da
cómoda só se abria com a ajuda de um pedaço de corda; os
cortinados tinham sido lençóis numa vida anterior. Talvez nada disso
a incomodasse. Estava sentada de pernas cruzadas junto ao
respiradouro, tal como previra.
— Posso sentar-me aqui contigo? — perguntou-lhe. Ela assentiu
com a cabeça. «Isto talvez resulte», pensou ele. «Podia comportar-
me mais como irmão dela.»
— Não devias andar no décimo primeiro ano? — disse-lhe ela. —
Fiz as contas.
Bolas. Havia ali uma pontada de dor para ser reconhecida, o facto
de a sua meia-irmã de treze anos ter reparado em algo em que
pelos vistos o pai deles não reparara.
— Estou a repetir o ano.
— Chumbaste no décimo primeiro?
— Não. Faltei a muitas aulas. Passei algum tempo numa clínica
de reabilitação, no ano passado.
— Porquê?
— Tive um problema com drogas. — Sentia-se satisfeito por estar
a ser sincero.
— Tens um problema com drogas porque os teus pais se
separaram? — indagou ela, num tom de curiosidade genuína, e ele
sentiu uma vontade imensa de fugir dela, pelo que se pôs de pé e
sacudiu as calças de ganga. O quarto estava cheio de pó.
— Não tenho um problema com drogas, tive um problema com
drogas. Já passou.
— Mas fumas erva no teu quarto — disse ela.
— Erva não é heroína. São coisas completamente distintas.
— Heroína? — Ela arregalou os olhos.
— Bem, tenho imensos trabalhos de casa para fazer. «Não odeio
a Vincent», disse para os seus botões, «o problema nunca foi a
Vincent, nunca odiei a Vincent, o que sempre odiei foi a ideia da
existência da Vincent». Uma espécie de mantra que sentia
necessidade de repetir para si próprio em certos momentos, pois,
quando Paul era muito pequeno e os pais ainda eram casados, o pai
apaixonara-se pela jovem poetisa hippie que morava ao fundo da
rua, que num instante ficara grávida de Vincent, e no espaço de um
mês Paul e a mãe tinham deixado Caiette, «fugindo da telenovela
sórdida», como a mãe dele dizia, e Paul passara o resto da infância
nos subúrbios de Toronto, viajando até à Colúmbia Britânica no
verão e em Natais alternados, uma infância passada a sobrevoar
sozinho pradarias e montanhas, com uma etiqueta pendurada ao
pescoço onde se lia «Menor Não Acompanhado», enquanto Vincent
tivera a oportunidade de morar com ambos os pais,
permanentemente, até duas semanas atrás.
Deixou-a no quarto e regressou à divisão onde ficara a dormir —
ocupara esse mesmo quarto em criança, mas na sua ausência este
passara a ser utilizado para arrumações e agora já não parecia
pertencer-lhe — e reparou que tinha as mãos a tremer. Sentia uma
tristeza imensa. Enrolou um charro e fumou-o cautelosamente à
janela, mas o vento insistia em soprar o fumo para dentro do quarto,
até que por fim se ouviu bater à porta. Quando Paul foi abrir, do
outro lado estava o pai com uma expressão de desilusão profunda,
e no final dessa semana Paul estava de volta a Toronto.
Só tornou a ver Vincent no último dia de 1999, quando apanhou
um autocarro do aeroporto para a Baixa, com os Concertos de
Brandeburgo a tocarem no seu leitor de CD, e encontrou a casa de
Vincent no bairro mais duvidoso que alguma vez vira, um edifício
delapidado em frente a um pequeno parque onde
toxicodependentes deambulavam de um lado para o outro como
figurantes de um filme de zombies. Enquanto esperava que Vincent
viesse à porta, Paul tentou não olhar para eles e não pensar na
predileção de estar sob o efeito de heroína, não no processo sórdido
de tentar arranjar mais e adoecer, mas na coisa em si, o estado em
que tudo no mundo parece estar perfeitamente bem.
Melissa abriu a porta.
— Ah — exclamou ela. — Olá! Estás exatamente na mesma.
Entra. — Era algo animador. Sentia-se marcado, como se os
pormenores sobre a morte de Charlie Wu estivessem tatuados na
sua pele. Melissa não estava na mesma. Era óbvio que aderira
fortemente à cena das raves. Envergava calças azuis feitas de pelo
falso e uma camisola arco-íris, e o cabelo, pintado de rosa-choque,
exibia os mesmos totós que se lembrava de Vincent usar quando
tinha 5 ou 6 anos. Melissa conduziu-o por um lanço de escadas
abaixo e entraram num dos piores apartamentos em que alguma
vez entrara, uma cave semiacabada com manchas de humidade
nas paredes de cimento exposto. Vincent estava a fazer café na
minúscula kitchenette.
— Olá — cumprimentou-o ela —, é bom ver-te.
— A ti também. — A última vez que vira Vincent, ela tinha o
cabelo azul e estava a grafitar janelas, mas parecia ter abandonado
essa onda. Não parecia ser uma raver ou, se era, reservava a
indumentária para as raves. Estava vestida com calças de ganga e
uma camisola cinzenta, e o cabelo escuro e comprido caía-lhe solto
pelos ombros. Melissa estava a falar um pouco depressa de mais,
mas não teria sido sempre assim? Lembrava-se dela como uma
criança nervosa. Estudou atentamente o rosto de Vincent, em busca
de sinais de problemas, mas parecia-lhe uma pessoa equilibrada e
reservada, alguém que se comportava com cuidado e evitava as
minas da vida. Como conseguira ficar dessa maneira e Paul
continuar assim? A pergunta tinha todos os indícios do tipo de
raciocínio circular que deveria evitar — por que razão tu és tu? —,
mas não conseguia conter essa espiral. «Nunca odiaste a Vincent,
não te esqueças disso. Ela não tem culpa de não ter os mesmos
problemas que tu.» Sentaram-se numa sala de estar com montes de
cotão do tamanho de ratos, Paul e Vincent num sofá com trinta
anos, e Melissa numa cadeira de plástico de jardim completamente
imunda, tentando arranjar temas de conversa, mas esta insistia em
não fluir, por isso continuaram a beber café instantâneo, sem nunca
se entreolharem.
— Tens fome? — perguntou Vincent. — Não temos muita coisa,
mas posso preparar-te uma torrada, uma sandes de atum ou algo
assim.
— Não, estou bem. Obrigado.
— Graças a Deus — disse Melissa. — Estes são os últimos
quatro dias antes de receber o ordenado, e a renda tem de ser paga
amanhã, portanto, tem de ser literalmente pão ou atum em lata.
— Se precisas assim tanto de comida, serve-te do dinheiro para a
cerveja — disse-lhe Vincent.
— Vou fingir que não te ouvi.
— Da próxima vez que receber, não me posso esquecer de
comprar lâmpadas — disse Vincent. — Esqueço-me sempre,
quando tenho dinheiro. — A sala de estar estava iluminada por três
candeeiros de pé desirmanados, e o do canto estava a piscar.
Vincent pôs-se de pé, desligou-o e voltou para o sofá. Agora a
divisão estava quase às escuras, as sombras cercavam toda a
periferia.
— A tia Shauna pediu-me para te dizer olá — disse-lhe Paul, ao
fim de algum tempo.
— Ela não é má pessoa — disse Vincent, respondendo a uma
pergunta que ele não fizera —, só que não estava preparada para
acolher uma miúda de treze anos traumatizada.
— Deu a entender que tinhas abandonado o secundário.
— Sim, o secundário era uma seca.
— Foi por isso que te vieste embora?
— Basicamente — retorquiu ela. — Ao que parece, ter 20 a tudo
não é o mesmo que estarmos suficientemente motivados para nos
arrastarmos todas as manhãs para a escola.
Não sabia o que responder a isso. Como de costume, não sabia
muito bem qual era o seu papel. Deveria aconselhá-la a regressar à
escola? Não estava em posição de aconselhar fosse quem fosse a
fazer coisa alguma. O funeral de Charlie Wu seria nesse dia. Charlie
Wu não estava, de modo algum, parado no canto mais escuro da
sala, mas ainda assim não havia necessidade de olhar nessa
direção.
— Continuas a estudar? — disse ele olhando para Melissa.
— Vou para a Universidade da Colúmbia Britânica no outono.
— Que bom para ti. É uma boa universidade.
Melissa ergueu a caneca de café.
— Um brinde a uma vida inteira a pagar o empréstimo para
estudantes — disse ela.
— Viva! — Paul ergueu a caneca, mas não foi capaz de a
encarar. A mãe pagara-lhe os estudos universitários.
— Temos de ir dançar esta noite! — exclamou Melissa, por fim. —
Já tenho alguns sítios em mente.
— Conheço pessoas que estão enfiadas em casas de madeira
remotas com mantimentos, para o caso de a civilização entrar em
colapso — disse Vincent.
— Que trabalheira — respondeu Paul.
— Não dás por ti a desejar que a civilização entre em colapso —
perguntou Melissa —, só para que aconteça alguma coisa?
Mais tarde, nessa mesma noite, entraram no carro a cair de podre
de Melissa e foram a uma discoteca. Vincent não tinha idade para
entrar, mas o porteiro optou por não reparar, pois, quando se tem 18
anos e se é bonita, todas as portas se abrem ou pelo menos assim
parecia a Paul, vendo-a entrar à sua frente. O porteiro escrutinou a
identificação de Paul com muita atenção e olhou-o com uma
expressão desconfiada, levando Paul a ter vontade de dizer algo
espirituoso, mas depois optou por não o fazer. Decidira que o novo
século seria uma nova oportunidade. Se sobrevivessem ao ano
2000, se o mundo não acabasse, tencionava ser uma pessoa
melhor. E, se sobrevivessem ao ano 2000, esperava nunca mais
voltar a ouvir a expressão «ano 2000». No bengaleiro, Paul reparou
que Vincent envergava uma peça de roupa reluzente que não
passava de metade de uma camisa, como se a parte da frente fosse
uma camisa normal mas não tivesse costas, apenas dois pedaços
de fio presos com um laço por baixo das omoplatas expostas,
deixando-lhe as costas completamente vulneráveis.
— Preciso de um copo — disse Melissa, pelo que Paul a
acompanhou ao bar, onde pediram uma cerveja em vez de uma
bebida alcoólica mais forte, para irem com calma (adultos
responsáveis, atenção), e, quando olhou para a pista de dança,
Vincent já estava a dançar sozinha, de olhos fechados, ou talvez
estivesse a fitar o chão, só, na verdadeira aceção da palavra:
«Perdida no seu pequeno mundo» era a frase que Paul se
recordava de a mãe de Vincent empregar sempre que alguém
tentava despertar a atenção da filha enquanto ela lia um livro ou
fitava o vazio.
— É tão aérea — disse Melissa, aliás, gritou-o, pois a música
soava mais baixa junto ao bar, mas ainda assim não o suficiente
para ser possível conversar.
— Sempre foi aérea — gritou Paul em resposta.
— Bem, o que aconteceu à mãe dela é suficiente para afetar
qualquer um — gritou Melissa, possivelmente sem ter percebido. —
Uma tragédia muito... — Paul não ouviu a última palavra, mas não
precisava. Ficaram em silêncio por uns instantes, contemplando
Vincent e também a Tragédia de Vincent, uma entidade por si só.
Porém, Vincent não lhe parecia ser uma figura trágica, parecia-lhe
alguém que tinha a vida mais ou menos orientada, uma pessoa
serena com um emprego a tempo inteiro a servir à mesa no Hotel
Vancouver, e por essa razão sentia-se pouco à vontade perto dela.
Depois de duas cervejas, foi juntar-se a ela na pista de dança, e
Vincent sorriu-lhe. «Estou a tentar», queria dizer-lhe, «estou a tentar
a sério, as coisas correram mal, mas o novo século será diferente».
Bebeu apenas cerveja a noite inteira e dançou por algum tempo sob
o efeito de nada — quase nada, as cervejas não contam —, até
erguer o olhar e ver Charlie Wu entre a multidão e a noite parecer
parar de repente. Paul ficou paralisado. É claro que não era Charlie,
é claro que se tratava de um miúdo qualquer que se parecia
ligeiramente com ele, um miúdo com um penteado semelhante e
uns óculos que também refletiam as luzes, mas a visão era tão
aterradora que não foi capaz de permanecer tempo suficiente para
avisar Vincent e Melissa de que se iria embora, pelo que cambaleou
até à rua, e foi aí que elas o encontraram, meia hora depois, a
tremer debaixo de um candeeiro de rua. Não era nada, respondeu-
lhes, simplesmente não gostava da música e de repente sentira
necessidade de apanhar ar fresco, talvez não lhes tivesse dito, mas
às vezes sentia-se claustrofóbico no meio de multidões e, além
disso, estava cheio de fome. Cerca de vinte minutos depois,
encontravam-se sentados a estudar ementas num restaurante onde
todos os clientes estavam embriagados. As luzes eram tão fortes
que era possível ter a certeza de que não vira um fantasma. As
pessoas parecem-se umas com as outras sob as luzes
estroboscópicas. Há sósias por toda a parte.
— Então e por que razão vieste cá passar o Ano Novo? —
perguntou-lhe Melissa. Paul fora um pouco vago sobre o tempo que
tencionava ficar. — As discotecas em Toronto não são melhores do
que aqui?
— Na verdade, tenciono mudar-me para cá — respondeu-lhe
Paul.
Vincent ergueu o olhar da ementa.
— Porquê? — perguntou-lhe ela.
— Preciso de uma mudança de ares.
— Estás metido em sarilhos ou algo do género? — indagou
Melissa.
— Sim — replicou ele. — De certa maneira.
— Então vá — disse Melissa —, tens de nos contar.
— Andavam a circular umas pastilhas de E de má qualidade.
Achei que talvez viesse a ser responsabilizado por isso.
— Quer dizer, não havia razão para não ser mais ou menos sincero
— disse ao orientador em Utah, em 2019. — É claro que não lhes disse
mais nada, mas já sabia que me iria safar. Estava num período de
suspensão académica, portanto, não era estranho ter desistido dos
estudos. «Paul» deve ser um dos nomes mais vulgares no mundo
inteiro, e era o único que a malta dos Baltica conhecia...
O HOTEL
Primavera 2005
1
E que tal engolires pedaços de vidro? Palavras escritas em pasta
fluorescente na parede de vidro virada a oriente do Hotel Caiette,
rastos de branco a escorrerem de várias letras.
— Por que razão alguém escreveria uma coisa daquelas? — O
único hóspede que vira o ato de vandalismo, um executivo de
transportes marítimos que sofria de insónias e que chegara no dia
anterior, estava sentado numa das poltronas de couro, com o uísque
que o gerente do turno da noite lhe trouxera. Passava pouco das
02h30.
— Não deve ter sido um adulto — respondeu o gerente do turno
da noite. Chamava-se Walter, e era o primeiro grafíti que via nos
seus três anos ao serviço do hotel. A mensagem fora escrita na
parte exterior do vidro. Walter tapara-a com umas folhas e estava
agora a arrastar um rododendro envasado para encobrir o papel,
com a ajuda de Larry, o porteiro da noite. Vincent, a empregada de
bar de serviço, polia copos de vinho enquanto observava a ação
detrás do balcão do bar, na outra extremidade do átrio. Walter ainda
pusera a hipótese de a chamar para o ajudar a arrastar o vaso, pois
dava-lhe jeito mais um par de mãos e porque o empregado da
limpeza da noite estava na pausa para jantar, mas ela não lhe
parecia ser uma pessoa particularmente robusta.
— É algo perturbador, não é? — perguntou o hóspede.
— De facto. Mas estou convencido — disse Walter, num tom mais
confiante do que se sentia — de que só pode ter sido obra de um
adolescente entediado. — Na verdade, ficara profundamente
incomodado com a situação e refugiava-se na sua eficiência. Deu
um passo atrás para contemplar o rododendro. As folhas cobriam
quase totalmente o papel afixado. Olhou de relance para Larry, que
lhe respondeu com um encolher de ombros que parecia dizer «é o
melhor que se arranja», e depois saiu com um saco do lixo e um
rolo de fita-adesiva para tapar a mensagem do lado de fora.
— É a especificidade da coisa — disse o hóspede. — Inquietante,
não é?
— Lamento imenso que o tenha visto, Sr. Prevant.
— Ninguém deveria ver uma mensagem daquelas. — Um tremor
de angústia na voz de Leon Prevant, que este disfarçou bebendo
rapidamente um trago de uísque. Do outro lado da janela, Larry
dobrara o saco do lixo numa faixa direita e estava a afixá-la sobre a
mensagem.
— Completamente de acordo. — Walter olhou de relance para o
seu relógio de pulso: 03h00, faltavam ainda três horas para terminar
o turno. Larry reocupara a sua posição junto à porta. Vincent
continuava a polir copos. Walter foi falar com ela e constatou que
tinha os olhos cheios de lágrimas.
— Sentes-te bem? — perguntou-lhe, em surdina.
— É terrível — respondeu ela, sem erguer o olhar. — Não
consigo imaginar que tipo de pessoa escreveria uma coisa
daquelas.
— Eu sei — replicou ele. — Mas aposto na minha teoria do
adolescente entediado.
— Acreditas que tenha sido isso?
— Sou capaz de me convencer de que sim — retorquiu ele.
Walter foi ver se o Sr. Prevant necessitava de alguma coisa —
não era o caso — e depois retomou a sua inspeção à parede de
vidro. Apenas mais um hóspede era esperado nessa noite, um vip
cujo voo estava atrasado. Walter deixou-se ficar junto à parede de
vidro por uns minutos, contemplando o reflexo do átrio sobreposto à
escuridão, e depois regressou à receção para preencher o relatório
de ocorrências.
2
— A propriedade fica no meio do nada — dissera o diretor-geral a
Walter, na primeira reunião que tiveram em Toronto, três anos antes
—, mas a ideia é precisamente essa.
Essa primeira reunião tivera lugar num café perto do lago, o café
construído mesmo em cima do cais, as embarcações balouçando ali
perto. Raphael, o diretor-geral, morava na propriedade do Hotel
Caiette, juntamente com quase todas as pessoas que lá
trabalhavam, mas fora a Toronto participar numa conferência sobre
hospitalidade e caçar talentos de outros hotéis. O Hotel Caiette
estava aberto desde meados dos anos 1990, mas fora
recentemente remodelado no que Raphael apelidava de «Estilo da
Costa Oeste Grandioso», que parecia envolver vigas de cedro
expostas e vidraças enormes. Walter estava a estudar as fotografias
da campanha publicitária que Raphael empurrara pelo tampo da
mesa, na sua direção. O hotel era um palácio de vidro e cedro no
lusco-fusco, luzes refletidas na água, as sombras da floresta a
envolverem-no por todos os lados.
— Aquilo que disse há pouco — disse Walter — sobre não ser
possível fazer-se o acesso de carro? — Julgava ter percebido
alguma coisa mal na apresentação inicial.
— É exatamente isso. O acesso ao hotel é feito de barco. Não há
qualquer estrada. Porventura está familiarizado com a geografia da
região?
— Mais ou menos — mentiu Walter. Nunca fora tão para
ocidente. A sua ideia da Colúmbia Britânica era semelhante às
imagens dos postais ilustrados: baleias a saltarem da água azul,
margens verdejantes, barcos.
— Aqui está. — Raphael vasculhou uns papéis. — Espreite este
mapa. — A propriedade estava representada como uma estrela
branca numa enseada na extremidade norte da ilha de Vancouver. A
enseada quase dividia a ilha ao meio. — Aquilo está tudo em estado
selvagem — disse Raphael —, mas permita-me que lhe conte um
segredo sobre essas paragens.
— Faça o favor.
— Muito poucas pessoas vão para o meio da natureza selvagem
com a intenção de experienciar realmente a natureza selvagem.
Quase ninguém. — Raphael recostou-se na cadeira com um ligeiro
sorriso, presumivelmente na esperança de que Walter lhe
perguntasse o que quereria dizer, mas Walter deixou-se ficar à
espera. — Pelo menos as pessoas que se instalam em hotéis de
cinco estrelas — disse Raphael. — Os nossos hóspedes de Caiette
querem ir para a natureza selvagem, mas não querem estar na
natureza selvagem. Querem apenas vê-la, de preferência pela
janela de um hotel de luxo. Querem estar perto da natureza
selvagem. A ideia aqui — tocou na estrela branca com a ponta do
dedo, e Walter admirou a manicura do mesmo — é luxo
extraordinário num contexto inesperado. Na verdade, há um
elemento de surrealismo. Trata-se de uma experiência de cinco
estrelas num lugar onde o telemóvel nem sequer funciona.
— Como recebem os hóspedes e as provisões? — Walter estava
a ter alguma dificuldade em perceber o encanto do espaço. Era
inegavelmente belo, mas geograficamente inconveniente, e não
compreendia muito bem por que motivo o executivo típico iria querer
passar férias num sítio onde os telemóveis não funcionavam.
— Numa lancha. São 15 minutos desde a aldeia de Grace
Harbour.
— Estou a ver. Para além da inegável beleza natural — disse
Walter, tentando outra abordagem —, o Raphael diria que existe um
fator específico que distingue este hotel de propriedades
semelhantes?
— Estava com esperança de que me fizesse essa pergunta. A
resposta é sim. A sensação de estarmos do lado de fora do tempo e
do espaço.
— Do lado de fora...?
— No sentido figurado, mas não está muito longe da realidade. —
Raphael adorava o hotel, Walter percebia-o. — A verdade é que
existe um grupo demográfico definido disposto a pagar muito
dinheiro para se evadir temporariamente do mundo moderno.
Mais tarde, enquanto caminhava em direção a casa sob a noite
de outono, uma evasão temporária do mundo era um conceito que
Walter não conseguia afastar da sua mente. Nessa altura morava
num minúsculo T1 arrendado numa rua que por alguma razão
parecia estar situada entre bairros. Era o apartamento mais
deprimente que alguma vez vira, por isso o escolhera, embora se
recusasse a explicitar esses motivos. Algures na cidade, a bailarina
de quem Walter estivera noivo até há dois meses estava a montar
casa com um advogado.
Nessa noite, Walter parou no minimercado habitual a caminho de
casa, e a ideia de parar novamente nessa loja no dia seguinte, e no
dia a seguir a esse, e no outro, passeios lentos pelo corredor dos
congelados intercalados com turnos no hotel onde trabalhava há já
dez anos, cada dia que passava um dia mais velho, com a cidade a
fechar-se sobre ele, bem, na verdade, era insuportável. Colocou a
embalagem de milho congelado dentro do cesto. E se fosse essa a
última vez que o fazia, nessa loja em particular? Era um
pensamento agradável.
Vivera doze anos com a bailarina. O fim da relação apanhara-o
de surpresa. Concordara com os amigos que não deveria fazer
grandes mudanças para já. Mas nessa altura o que queria era
desaparecer e, quando por fim chegou à caixa registadora,
percebeu que já tinha tomado uma decisão. Aceitou o cargo;
fizeram-se os preparativos; no dia marcado, um mês depois,
apanhou um avião para Vancouver e depois um voo de ligação para
Nanaimo, numa pequena aeronave com 24 lugares, que, assim que
alcançou as nuvens, começou logo a descer; passou a noite num
hotel e no dia seguinte partiu em direção ao Hotel Caiette. Poderia
ter poupado muito tempo se tivesse voado para um dos pequenos
aeroportos mais a norte, mas quisera ver um pouco mais da ilha de
Vancouver.
Estava um dia frio, em novembro, e as nuvens pairavam baixas.
Conduziu rumo a norte num carro alugado cinzento, por entre uma
série de cidades cinzentas, com um mar cinzento intermitentemente
visível à sua direita, uma paisagem de árvores escuras, de
MacDrives e de lojas imensas sob um céu plúmbeo. Chegou por fim
à cidade de Port Hardy, cujas ruas pareciam sombrias sob a chuva,
onde andou perdido durante algum tempo até encontrar o local onde
deveria entregar o carro alugado. Telefonou para o único serviço de
táxis da cidade e esperou meia hora, até aparecer um idoso numa
carrinha a cair aos pedaços e a tresandar a fumo de cigarro.
— Vai para o hotel? — perguntou-lhe o motorista quando Walter
lhe pediu que o levasse a Grace Harbour.
— Vou, sim — retorquiu Walter, percebendo que não estava com
grande disposição para conversas depois de tantas horas a viajar
sozinho. Seguiram em silêncio por entre a floresta, até alcançarem a
aldeia de Grace Harbour, que fazia jus ao nome: meia dúzia de
casas aqui e ali ao longo da estrada e depois costa, barcos de
pesca no ancoradouro, uma loja junto às docas e um parque de
estacionamento com alguns carros antigos. Vislumbrou uma mulher
através da janela da loja, mas de resto não se via ninguém por
perto.
As instruções de Walter eram para ligar para o hotel a solicitar
uma embarcação. O telemóvel não funcionava ali, como já lhe fora
indicado, mas havia uma cabine telefónica junto ao cais. O hotel
prometeu enviar alguém dentro de meia hora. Walter desligou e saiu
para o ar fresco. Era o início da noite, e o mundo começava a
assumir uma tonalidade monocromática, a água pálida e vítrea sob
o céu que escurecia, sombras a acumularem-se na floresta. Foi até
à extremidade do cais, saboreando o silêncio em redor. Esse lugar
era o oposto de Toronto, e não era exatamente isso que pretendia?
O oposto da sua vida antiga? Algures na cidade ocidental, a
bailarina e o advogado estavam num restaurante ou a passear pelas
ruas de mão dada ou na cama. «Não penses nisso. Não penses
nisso.» Walter esperou, à escuta, e por algum tempo só ouviu a
água bater delicadamente contra o cais e o ocasional grito de uma
gaivota, até que na distância soou a vibração de um motor exterior.
Uns minutos depois avistou o barco, um ponto branco entre as
margens escuras de floresta, uma miniatura que foi crescendo até
parar junto ao cais, o motor obscenamente ruidoso no meio de tanto
silêncio, a esteira a embater nos pilares. A mulher na popa parecia
estar na casa dos vinte e envergava uma farda nova em folha com
um estilo vagamente náutico.
— É o Walter, certo? — Desembarcou num movimento único e
fluido, amarrando o barco à doca com gestos firmes. — Sou a
Melissa, do hotel. Posso ajudá-lo com as malas?
— Obrigado — agradeceu ele. Havia algo de inquietante nela, um
ar de aparição. Apercebeu-se de que experienciava uma certa
felicidade enquanto o barco se afastava do cais. Um vento frio
soprava-lhe no rosto, e sabia que se tratava de uma viagem de
pouco mais de 15 minutos, mas tinha a sensação absurda de estar
a embarcar numa aventura. Avançaram velozmente, a escuridão a
instalar-se em redor. Apetecia-lhe perguntar a Melissa sobre o hotel,
sobre há quanto tempo trabalhava lá, mas o motor era
proibitivamente alto. Quando olhou de relance por cima do ombro, a
esteira era um rasto prateado que se estendia até às luzes
dispersas de Grace Harbour.
Melissa contornou a península, e o hotel surgiu adiante, um
palácio iluminado improvável a contrastar com a escuridão da
floresta, e pela primeira vez Walter compreendeu o que Raphael
quisera dizer quando falara sobre um elemento de surrealismo. O
edifício seria considerado belo em qualquer parte, mas nesse
contexto era incongruente, e essa incongruência fazia parte do seu
encanto. O átrio estava exposto, qual aquário, atrás de uma parede
de vidro, todo ele pilares de cedro e pisos de ardósia. Uma fileira
dupla de luzes iluminava o caminho até ao cais, onde um porteiro —
Larry — os recebeu com um carrinho porta-malas. Walter apertou a
mão de Larry e seguiu a bagagem, subindo o caminho em direção à
grandiosa entrada do hotel, até ao balcão, onde Raphael se
encontrava à sua espera com um sorriso típico de rececionista.
Após as apresentações, o jantar e toda a papelada, Walter deu
finalmente por si numa suite no último piso do edifício reservado aos
funcionários, cujas janelas e varandas davam para o arvoredo.
Fechou as cortinas à escuridão e pensou no que Raphael lhe
dissera, sobre o hotel existir do lado de fora do tempo e do espaço.
Há muita felicidade numa fuga bem-sucedida.
No final do seu primeiro ano em Caiette, Walter percebeu que era
mais feliz ali do que alguma vez fora noutro lugar qualquer, mas nas
horas que se seguiram ao incidente com o grafíti a floresta lá fora
pareceu-lhe mais sombria do que o normal, as sombras densas e
carregadas de ameaça. Quem teria emergido da floresta para
escrever a mensagem no vidro? «A mensagem estava escrita ao
contrário no vidro», escrevera Walter no relatório de ocorrências, «o
que sugere que o intuito era que fosse lida do átrio».
— Agradeço a clareza do relatório — disse Raphael quando
Walter entrou no gabinete dele, na tarde seguinte. Raphael vivera
vinte anos na região anglófona do Canadá, mas ainda possuía uma
forte pronúncia da cidade de Quebeque. — Alguns dos seus
colegas, quando lhes peço um relatório, entregam-me uma
salganhada de erros ortográficos e especulações.
— Obrigado. — Walter valorizava esse emprego acima de tudo o
resto e ficava sempre imensamente aliviado quando Raphael
elogiava a sua prestação. — O grafíti é preocupante, não é?
— Sem dúvida. Quase a roçar a ameaça.
— Apareceu alguma coisa nas câmaras de videovigilância?
— Nada de útil. Posso mostrar-lhe, se quiser. — Raphael virou o
ecrã para Walter e premiu a tecla play num clipe de vídeo a preto e
branco. Imagens captadas pelas câmaras de segurança do terraço
dianteiro à noite, com uma luminescência fantasmagórica criada
pelo modo de visão noturna: uma figura emerge das sombras ao
fundo do terraço, vestida com calças escuras e uma camisola muito
larga com capuz. O homem tem a cabeça baixa — ou será uma
mulher? É impossível perceber — e segura algo na mão enluvada: o
marcador fluorescente que estraga o vidro. O fantasma sobe
graciosamente para um banco, escreve a mensagem e desaparece
novamente nas sombras, sem nunca erguer o olhar, com toda a
cena a dissipar-se em menos de dez segundos.
— É como se já tivesse ensaiado — comentou Walter.
— Como assim?
— Escreveu-a com uma rapidez extraordinária. E estava a
escrever ao contrário. Ele ou ela. Não se consegue perceber.
Raphael acenou com a cabeça.
— Há mais alguma coisa que me possa dizer sobre ontem à noite
— perguntou ele — e que talvez não tenha incluído no relatório?
— Como assim?
— Qualquer coisa fora do normal no átrio. Algum pormenor
estranho. Algo que talvez achasse não ser relevante.
Walter hesitou.
— Conte-me.
— Bem, não gosto de fazer queixa dos meus colegas —
respondeu-lhe Walter —, mas tive a sensação de que o empregado
da limpeza da noite estava a comportar-se de uma forma estranha.
O empregado da limpeza da noite, Paul, era irmão de Vincent —
não, Vincent explicara que era seu meio-irmão, mas Walter não
tinha a certeza de qual dos progenitores partilhavam — e estava no
hotel há três meses. Vivera em Vancouver durante cinco ou seis
anos, mas crescera em Toronto, contara ele a Walter, o que deveria
ter criado um laço entre ambos, mas não foi o caso, em parte
porque ele e Paul eram de Torontos diferentes. Tentaram comparar
discotecas e restaurantes favoritos em Toronto, mas Walter nunca
ouvira falar do System Soundbar, e Paul nunca ouvira falar do
Zelda’s. A Toronto de Paul era mais jovem, mais anárquica, uma
Toronto que dançava ao som da batida de um estilo de música de
que Walter não gostava e que não compreendia, uma Toronto que
vestia modas peculiares e consumia drogas de que Walter nunca
ouvira falar. («Bem, mas sabe por que motivo a malta das raves usa
uma chupeta ao pescoço, não sabe?», dissera-lhe Paul. «Não é só
uma moda foleira, é porque a K faz ranger os dentes.» E Walter
acenara com a cabeça num gesto entendedor, sem fazer a menor
ideia do que era «K».) Paul nunca sorria. Fazia o seu trabalho com
correção, mas tinha tendência para se entregar a pequenos
devaneios enquanto limpava o átrio à noite, fitando o vazio quando
lavava o chão ou polia os tampos das mesas. Às vezes era
necessário chamá-lo duas ou três vezes, mas um tom mais severo à
segunda ou terceira repetição provocava sempre uma expressão
magoada e reprovadora. Walter considerava-o uma presença
irritante e algo deprimente.
Na noite do grafíti, Paul regressara da pausa do jantar às 03h30.
Entrara pela porta lateral, e Walter erguera os olhos a tempo de ver
a maneira como o olhar de Paul incidira de imediato no rododendro
fora do sítio e depois em Leon Prevant, o executivo de transportes
marítimos, que por essa altura bebia o segundo uísque e lia uma
cópia com dois dias do Vancouver Sun.
— Aconteceu alguma coisa ao vidro? — perguntara Paul ao
passar pelo balcão da receção. Aos ouvidos de Walter, havia uma
descontração fingida no tom dele.
— Infelizmente, sim — respondera-lhe Walter. — Um grafíti muito
desagradável.
Paul arregalara os olhos.
— E o Sr. Alkaitis viu-o?
— Quem?
— O senhor sabe... — Paul acenara com a cabeça na direção de
Leon Prevant.
— Aquele não é o Alkaitis. — Walter observara Paul com
atenção. Estava ruborizado e parecia ainda mais infeliz do que o
habitual.
— Ah, pensava que era.
— O voo do Alkaitis atrasou-se. Por acaso não viu ninguém à
espreita lá fora?
— À espreita?
— Alguma coisa suspeita. Isto aconteceu nesta última hora.
— Ah. Não. — Paul já não estava a olhar para ele, outra
característica irritante na sua pessoa. Por que motivo desviava
sempre o olhar quando Walter estava a falar? Olhava fixamente
para Leon, que por sua vez olhava fixamente para o vidro. — Vou
ver se a Vincent precisa de mudar os barris — dissera.
— O que houve de invulgar nisso? — indagou Raphael.
— O facto de ter perguntado sobre os hóspedes. Como sabia ele
quem iria chegar nessa noite?
— Não há mal nenhum no facto de um empregado da limpeza
espreitar o registo de hóspedes, de se familiarizar com o estado de
coisas. Estou só a fazer o papel de advogado do diabo.
— Certo, até tem razão. Mas a maneira como olhou diretamente
para aquele ponto no vidro mal entrou, diretamente para o vaso com
a planta... Não me parece que o rododendro fosse assim tão óbvio
— retorquiu Walter.
— Está claramente fora do sítio, aos meus olhos.
— Mas será a primeira coisa para onde se olha? Em especial à
noite? Entra-se no átrio pela porta lateral, à noite, olha-se além da
fileira dupla de pilares, além das poltronas e das mesinhas de apoio,
para o meio da parede de vidro...
— Ele limpa o átrio — salientou Raphael. — Saberá melhor do
que ninguém onde estão as plantas envasadas.
— Não o estou a acusar de nada, quero que fique bem claro. Foi
apenas algo em que reparei.
— Compreendo. Eu falo com ele. Mais alguma coisa?
— Nada. O resto do turno decorreu dentro da normalidade.
O resto do turno:
Por volta das 04h00, Leon Prevant começou a bocejar. Paul
encontrava-se algures no coração do edifício, a lavar os pisos dos
corredores do pessoal. Walter terminara o relatório e verificara a sua
lista de reservas. Estava a fitar o átrio, tentando não pensar muito
no grafíti. (O que poderá significar «E que tal engolires pedaços de
vidro?» a não ser «Espero que morras»?) Larry estava parado junto
à porta, com os olhos entreabertos. Walter tinha vontade de ir ter
com ele para conversar, mas sabia que Larry aproveitava as horas
mortas para meditar e que, quando tinha os olhos entreabertos,
significava que estava a contar respirações. Walter pensou em ir
falar com Vincent, mas não pareceria bem aos olhos do gerente da
noite estar junto ao bar na presença de um hóspede, pelo que se
entregou a uma inspeção descontraída do átrio. Endireitou uma
fotografia emoldurada junto à lareira, passou a ponta do dedo pelas
prateleiras à procura de pó, ajustou as folhas do rododendro para
que as melhores encobrissem o papel afixado ao vidro. Saiu para o
ar frio da noite por breves instantes, tentando escutar uma
embarcação que sabia ainda não estar a caminho.
Às 04h30 Leon Prevant pôs-se de pé e dirigiu-se para o elevador,
a bocejar. Cerca de vinte minutos depois chegou Jonathan Alkaitis.
Walter ouviu o barco muito antes de o avistar, como de costume, o
motor violentamente ruidoso no silêncio da noite, e depois as luzes
na popa bailaram sobre a água, enquanto o barco contornava a
península. Larry dirigiu-se para o cais com o carrinho porta-malas.
Vincent guardou o jornal que estivera a ler, ajeitou o penteado,
retocou o batom e bebeu rapidamente duas chávenas de café.
Walter exibia o seu melhor sorriso profissional quando Jonathan
Alkaitis entrou atrás do carrinho porta-malas.
Nos últimos anos, Walter fora entrevistado três ou quatro vezes
por causa de Jonathan Alkaitis, mas os jornalistas iam-se embora
sempre desapontados. Enquanto gerente do hotel, explicava-lhes,
era uma pessoa absolutamente discreta, mas na verdade não havia
muito para contar. Alkaitis era interessante apenas em retrospetiva.
Hospedava-se no Hotel Caiette com a esposa, entretanto falecida.
Ele e a esposa tinham-se apaixonado por esse espaço, pelo que,
quando a propriedade fora posta à venda, adquirira-a e depois
arrendara-a à empresa gestora do hotel. Morava na cidade de Nova
Iorque e vinha ao hotel três ou quatro vezes por ano. Comportava-
se com a habitual confiança entediante das pessoas com dinheiro,
na suposição jovial de que nada de mal lhes poderia acontecer. Por
norma andava sempre bem vestido, exibindo o bronzeado típico das
pessoas que passam algum tempo em regiões tropicais durante o
inverno; estava razoavelmente em forma, ainda que não
espetacularmente; e era uma pessoa perfeitamente banal. Por
outras palavras, não havia nada nele que sugerisse que iria morrer
na prisão.
A melhor suite estava reservada para ele, como de costume.
Estava com um jet lag tremendo, contou a Walter, e também cheio
de fome. Seria possível um pequeno-almoço antecipado? (Com
certeza. Para Alkaitis, tudo era possível.) Lá fora ainda estava
escuro, mas na cozinha o dia nascia muito antes do amanhecer. O
turno da manhã deveria estar a chegar.
— Vou sentar-me um pouco no bar — disse Alkaitis e no espaço
de poucos minutos estava entretido à conversa com Vincent, que,
segundo parecia a Walter, estava particularmente animada e
faladora, embora não conseguisse perceber o que estavam a dizer.
3
Leon Prevant deixou o átrio às 04h30, subiu as escadas em
direção ao seu quarto e enfiou-se na cama, onde a esposa se
encontrava a dormir. Marie não acordou. Ele bebera
propositadamente mais um pouco com o intuito de conseguir
adormecer, mas era como se o grafíti tivesse aberto uma fenda na
noite, através da qual todos os seus medos estavam a entrar. Se
fosse pressionado, talvez tivesse admitido a Marie estar preocupado
com questões de dinheiro, mas «preocupado» não era a palavra
certa. Leon estava com medo.
Um colega dissera-lhe que aquele lugar era extraordinário, pelo
que reservara um quarto extremamente caro como surpresa para a
esposa no dia do aniversário de casamento de ambos. O colega
tinha toda a razão, constatara de imediato. Havia passeios de pesca
e de caiaque, caminhadas guiadas pelas florestas, música ao vivo
no átrio, comida espetacular, um trilho de madeira que
desembocava numa clareira na floresta com um bar ao ar livre e
lanternas penduradas nas árvores, além de uma piscina aquecida
com vista sobre as águas tranquilas do estreito.
— É maravilhoso — dissera-lhe Marie na primeira noite.
— Sinto-me inclinado a concordar.
Reservara um quarto com jacúzi no terraço, e nessa primeira
noite tinham passado pelo menos uma hora no exterior, a beberricar
champanhe com uma brisa fresca a soprar-lhes no rosto, o sol a
pôr-se sobre a água, como a imagem de um postal ilustrado. Beijou-
a e tentou convencer-se a si próprio de que deveria descontrair-se.
Mas era complicado, porque, uma semana depois de ter feito a
reserva desse quarto extravagante e de o ter comunicado à esposa,
começara a ouvir rumores sobre uma possível fusão de empresas.
Leon sobrevivera a duas fusões e a uma reorganização, mas,
quando ouvira os primeiros boatos sobre a mais recente
reestruturação, fora acometido por uma certeza tão forte que era
como se fosse um dado adquirido: iria perder o emprego. Tinha 58
anos. Tinha a antiguidade suficiente para ser dispendioso para a
empresa e estava suficientemente próximo da idade da reforma
para o mandarem embora sem pesar demasiado na consciência de
ninguém. Não havia nada no seu trabalho que não pudesse ser
levado a cabo por executivos mais jovens e com ordenados mais
baixos do que o dele. Desde que ouvira falar da fusão, passara
horas seguidas sem pensar no assunto, mas as noites eram mais
complicadas do que os dias. Ele e Marie tinham adquirido
recentemente uma casa no Sul da Florida, que planeavam arrendar
até ele se reformar, com o objetivo de fugirem dos invernos e dos
impostos de Nova Iorque. Sentira-o como um recomeço, mas tinham
investido mais dinheiro na casa do que o tencionado, pois ele nunca
tivera muito jeito para poupar e tinha noção de que havia muito
menos nas suas contas poupança-reforma do que pensava. Eram
06h30 da manhã quando conseguiu finalmente deixar-se levar por
um sono atribulado.
4
Quando Walter regressou ao átrio, na noite seguinte, Leon
Prevant estava a jantar no bar com Jonathan Alkaitis. Tinham-se
encontrado um pouco antes, o que na altura se afigurara como uma
coincidência, mas depois parecera tratar-se de uma armadilha. Leon
encontrava-se no bar, a comer um hambúrguer de salmão sozinho
porque Maria estava deitada no quarto, cheia de dores de cabeça.
Alkaitis, que estava a beber uma cerveja Guinness dois bancos ao
lado, metera conversa com a empregada do bar e depois estendera-
a a Leon. Estavam a conversar sobre Caiette, algo que,
curiosamente, Jonathan Alkaitis conhecia bem.
— Por acaso sou o dono desta propriedade — disse ele a Leon,
num tom quase embaraçado. — É de difícil acesso, mas é
exatamente isso que me agrada nela.
— Acho que entendo o que está a dizer — respondeu-lhe Leon.
Estava sempre à procura de conversas, e era um prazer pensar por
momentos em algo — qualquer coisa! — que não a possível
insolvência financeira e o desemprego. — E tem mais hotéis?
— Só este. Trabalho essencialmente no setor financeiro. —
Alkaitis tinha negócios em Nova Iorque, explicou, e ambos
implicavam investir o dinheiro dos outros na bolsa de valores. Não
estava a aceitar clientes novos, mas de vez em quando abria uma
exceção.
«O problema do Alkaitis», escreveu uma mulher de Filadélfia uns
anos mais tarde, numa declaração realizada na qualidade de vítima
que leu em voz alta na audiência de sentença de Alkaitis, «foi que
nos fez sentir como se estivéssemos a aderir a um clube secreto».
Leon teve de admitir, ao ler a transcrição, que havia uma certa
verdade nisso, mas por outro lado havia também o homem em si.
Alkaitis tinha uma grande presença, isso sim. Tinha uma voz típica
de programa de rádio noturno, quente e tranquilizadora. Irradiava
calma. Era um homem nada fanfarrão, confiante mas não arrogante,
de sorriso fácil perante uma piada. Uma pessoa inteligente, segura e
discreta, muito mais interessada em escutar do que em falar sobre
si próprio. Tinha essa artimanha — e era efetivamente uma
artimanha, como Leon percebeu mais tarde — de parecer
completamente indiferente ao que os outros pensavam dele, e ao
fazê-lo provocava a ansiedade contrária: «O que pensará o Alkaitis
de mim?» Mais tarde, nos anos que passou a rever essa noite em
específico na sua mente, Leon recordou um certo desejo de o
impressionar.
— É um pouco embaraçoso — disse Alkaitis nessa noite, quando
deixaram o bar e se retiraram para um canto sossegado no átrio, a
fim de discutirem investimentos —, mas o Leon disse que trabalha
em expedição, e, quando o disse, percebi que não faço a mais
pequena ideia do que se trata.
Leon sorriu.
— Não é o único. É uma indústria maioritariamente invisível, mas
quase tudo o que alguma vez comprou viajou sobre água.
— Os meus fones fabricados na China e coisas do género.
— Sim, claro, essa é óbvia, mas refiro-me mesmo a praticamente
tudo. Em nós e à nossa volta. As suas meias. Os nossos sapatos. A
minha loção para depois de barbear. Este copo que tenho na mão.
Posso continuar, mas vou poupá-lo.
— É uma vergonha admitir que nunca pensei nisso — retorquiu
Jonathan.
— Ninguém pensa. Vamos à loja, compramos uma banana e não
pensamos nos homens que trouxeram a banana de avião pelo canal
do Panamá. Por que razão haveríamos de o fazer? — «Vai com
calma», disse para os seus botões. Tinha noção da sua tendência
para discursar excessivamente sobre a sua indústria. — Tenho
colegas que se ofendem com a ignorância do público em geral em
relação à nossa indústria, mas acho que o facto de não termos de
pensar nela só prova que o sistema funciona.
— A banana chega a tempo e a horas. — Jonathan beberricou a
sua bebida. — É preciso desenvolver uma espécie de sexto sentido.
Aqui estamos nós, rodeados de todos estes objetos que vieram de
barco. Alguma vez se perde em divagações sobre todas essas rotas
de expedição, sobre todos esses pontos de origem?
— É a segunda pessoa que conheço que adivinha isso —
respondeu-lhe Leon.
A outra fora uma médium, uma colega de faculdade de Marie que
viera de Santa Fé para Toronto quando Leon ainda trabalhava na
cidade canadiana, e os três tinham ido jantar ao Saint Tropez, na
Baixa, o restaurante favorito de Marie durante os anos que
passaram em Toronto. A médium — de seu nome Clarissa, recordou
então — era simpática e calorosa. Simpatizou com ela de imediato.
Sempre imaginara que os médiuns fossem frequentemente
explorados pelos amigos e conhecidos, uma impressão em nada
contrariada pelas reminiscências de Marie sobre as inúmeras vezes
em que pedira conselhos gratuitos a Clarissa, pelo que durante o
jantar Leon fizera os possíveis para evitar perguntar-lhe fosse o que
fosse, até que, por fim, durante a sobremesa, a sua curiosidade fora
mais forte do que ele: «Não seria ensurdecedor», perguntara-lhe,
«estar numa sala cheia de gente? Seria semelhante a estar numa
sala cheia de rádios ligados em frequências sobrepostas, um clamor
de vozes a transmitir o mundano ou pormenores horrendos sobre
dezenas de vidas?» Clarissa sorrira. «É como isto», respondera ela,
fazendo um gesto para a sala em volta, «é como estar num
restaurante cheio de gente. Conseguimos ouvir a conversa da mesa
ao lado ou podemos deixar que se torne ruído de fundo. Tal como
encaras o transporte marítimo de mercadorias», dissera ela, e ficara
na memória de Leon como uma das conversas mais encantadoras
que alguma vez tivera, porque nunca falara com ninguém sobre a
maneira como conseguia ligar-se e desligar-se da expedição, como
se rodasse o botão de um rádio. Quando olhava para Marie do outro
lado da mesa, por exemplo: via a mulher que amava ou podia mudar
de frequência e ver o vestido feito no Reino Unido, os sapatos feitos
na China, a mala de couro italiana ou ir ainda mais longe e ver as
rotas de expedição Neptune-Avramidis iluminadas no mapa; o
vestido via Rota Transatlântica Leste 3, os sapatos via Transpacífica
Leste 7 ou o Expresso Leste Xangai-Los Angeles, etc. Ou mais
longe ainda, o tipo de linguagem que nunca proferira em voz alta,
nem mesmo a Marie: havia dezenas de milhares de navios
constantemente no mar, e gostava de imaginar cada um deles como
um ponto de luz, convergindo em rios de um brilho elétrico sobre os
oceanos noturnos, fluindo pelos afilados canais do Suez e do
Panamá, pelo estreito de Gibraltar, contornando os continentes e
navegando oceanos afora, uma movimentação ininterrupta que
impulsionava países, um mundo secreto que tanto adorava.
Quando Walter passou por Leon Prevant e Jonathan Alkaitis,
algum tempo depois, a conversa passara do trabalho de Leon para
o de Alkaitis, do transporte marítimo de mercadorias para as
estratégias de investimento. Walter não percebia nada disso. O
setor financeiro não era o seu mundo. Não falava essa linguagem.
Alguém do turno do dia cobrira o grafíti no vidro com fita refletora,
uma estranha faixa espelhada prateada sobre o vidro escuro. Dois
atores norte-americanos estavam a jantar no bar.
— Deixou a primeira mulher por esta — disse Larry, acenando
com a cabeça na direção deles.
— Ai sim? — respondeu-lhe Walter, sem qualquer interesse pelo
assunto. Os vinte anos durante os quais trabalhara em hotéis de
luxo tinham-no curado de toda e qualquer curiosidade em relação a
celebridades. — Queria perguntar-te uma coisa — disse ele. — Aqui
só entre nós: o tipo novo não te parece um pouco estranho?
Larry olhou por cima do ombro e pelo átrio, num gesto dramático,
mas Paul estava noutro local, a lavar o piso do corredor atrás da
receção, no coração da propriedade.
— Talvez um pouco deprimido, nada mais — respondeu-lhe Larry.
— Não é propriamente a pessoa mais animada que conheço.
— Perguntou-te alguma coisa sobre os hóspedes que estavam
para chegar ontem à noite?
— Como é que sabes? Sim, perguntou-me quando chegava o
Jonathan Alkaitis.
— E disseste-lhe...?
— Bem, sabes que não vejo muito bem, além de que tinha
acabado de chegar. Por isso disse-lhe que não tinha a certeza, mas
que achava que o tipo que estava a beber uísque no bar era o
Alkaitis. Só mais tarde percebi que me tinha enganado. Mas
porquê? — Larry era um homem razoavelmente discreto, mas, por
outro lado, os funcionários moravam todos no mesmo edifício na
floresta, e os mexericos eram uma espécie de moeda do mercado
negro.
— Por nada.
— Então?
— Conto-te noutra altura. — Walter ainda não compreendia muito
bem porquê, enquanto regressava à zona da receção, mas não
tinha qualquer dúvida de que fora Paul quem cometera o ato de
vandalismo. Olhou em volta, para o átrio, mas ninguém parecia
estar a precisar dele nesse momento, pelo que se esgueirou pela
porta dos funcionários, atrás do balcão da receção. Paul estava a
limpar o vidro escuro ao fundo do corredor.
— Paul.
O empregado da limpeza da noite parou o que estava a fazer, e,
com base na expressão que exibia, Walter teve a certeza de que
estava certo das suas suposições. Paul exibia um ar amedrontado.
— Onde arranjaste o marcador fluorescente? — perguntou-lhe
Walter. — É algo que se pode comprar numa loja de ferragens ou
tiveste de o fazer?
— Do que está a falar? — Paul era, contudo, péssimo a mentir. A
sua voz subira meia oitava.
— Por que razão querias que o Jonathan Alkaitis visse aquela
mensagem vergonhosa?
— Não faço ideia de onde quer chegar.
— Este sítio é importante para mim — disse Walter. — Vê-lo
danificado daquela maneira... — Era o «daquela maneira» que mais
o incomodava, a perversidade absoluta da mensagem no vidro, mas
não sabia como o explicar a Paul sem abrir uma porta para a sua
vida privada, e a ideia de revelar algo remotamente pessoal àquele
pulha indolente era insustentável. Não foi capaz de terminar a frase.
Pigarreou. — Vou dar-te uma oportunidade — disse. — Faz as
malas e vai-te embora no primeiro barco da manhã, e não meto a
Polícia ao barulho.
— Peço desculpa. — A voz de Paul não era mais do que um
sussurro. — Eu só...
— Pensavas que podias danificar a janela de um hotel só para
transmitir a mais cruel e demente das... — Walter transpirava. —
Porque o fizeste? — Mas Paul exibia o ar furtivo de um rapaz à
procura de uma história plausível, e Walter não estava para aturar
mais uma mentira nessa noite. — Ouve, vai-te embora e pronto —
disse-lhe. — Não quero saber porque o fizeste. Não quero ver-te
mais à frente. Arruma os produtos de limpeza, volta para o teu
quarto, faz as malas e diz à Melissa que precisas de boleia para
Grace Harbour, o mais depressa possível. Se ainda aqui estiveres
às 09h00, irei falar com o Raphael.
— Não está a compreender — respondeu-lhe Paul. — Tenho
imensas dívidas para...
— Se precisavas tanto deste emprego — replicou Walter —, não
devias ter danificado o vidro.
— Nem sequer é possível engolir pedaços de vidro.
— O quê?
— É fisicamente impossível fazê-lo.
— A sério que é essa a tua justificação?
Paul ficou muito corado e desviou o olhar.
— Por acaso pensaste na tua irmã, no meio disto tudo? —
indagou Walter. — Foi ela que te arranjou a entrevista de trabalho
aqui, não foi?
— A Vincent não teve nada que ver com isto.
— Vais-te embora ou não? Estou com uma disposição generosa
e não quero envergonhar a tua irmã, por isso estou a oferecer-te
uma saída airosa, mas, se preferes ficar com registo criminal, por
mim estás à vontade...
— Não, eu vou. — Paul baixou o olhar para os produtos de
limpeza que tinha nas mãos, como se não percebesse muito bem
como aí tinham ido parar. — Peço desculpa.
— É melhor ires fazer as malas antes que mude de ideias.
— Obrigado — disse Paul.
5
Só o horror da coisa. E que tal engolires pedaços de vidro? E que
tal morreres? E que tal mandares todos os que amas para o diabo
que os carregue? Estava novamente a pensar no seu amigo Rob,
eternamente com 16 anos, a pensar no rosto da mãe de Rob
durante o funeral. Walter cumpriu o resto do turno numa espécie de
transe e depois ficou acordado até tarde para se encontrar com
Raphael na manhã seguinte. Ao passar pelo átrio às 08h00, já
depois da hora de se deitar e cheio de sono, vislumbrou Paul ao
fundo do cais, a carregar as suas mochilas para o interior do barco.
— Bom dia — cumprimentou Raphael quando Walter deu uma
espreitadela no escritório dele. Estava animado e barbeado de
fresco. Walter e ele moravam no mesmo edifício, mas em fusos
horários diferentes.
— Acabo de ver o Paul entrar no barco com todos os seus
pertences — disse Walter.
Raphael suspirou.
— Não sei o que aconteceu. Apareceu-me aqui esta manhã com
uma história muito pouco coerente sobre as saudades que tem de
Vancouver, quando há três meses o miúdo praticamente me
suplicou por uma mudança de ares.
— Não apresentou quaisquer motivos?
— Nenhum. Temos de recomeçar a entrevistar candidatos. Mais
alguma coisa? — perguntou Raphael, e Walter, com as defesas
fragilizadas pela exaustão, compreendeu pela primeira vez que
Raphael não simpatizava muito consigo. Essa constatação atingiu-o
como um pequeno soco.
— Não — retorquiu —, obrigado. Vou deixá-lo sossegado. — No
caminho de regresso ao edifício reservado ao pessoal, deu por si a
desejar ter estado menos zangado quando falara com Paul. Tantas
horas depois, começava a perguntar-se se não teria deixado
escapar alguma coisa: quando Paul dissera que tinha dívidas,
quereria dizer que precisava do emprego no hotel ou estaria a dizer
que alguém lhe pagara para escrever a mensagem no vidro?
Porque nada daquilo fazia qualquer sentido. Parecia evidente que a
mensagem de Paul se destinava a Alkaitis, mas o que significaria
Alkaitis para ele?
Leon Prevant e a esposa partiram nessa manhã, seguidos de
Jonathan Alkaitis, dois dias mais tarde. Quando Walter iniciara o seu
turno na noite da partida de Alkaitis, Khalil estava a trabalhar no bar,
embora não fosse a sua noite: Vincent, explicara-lhe, tirara umas
férias repentinas. Um dia depois, telefonara a Raphael de
Vancouver e dissera-lhe que tinha decidido não voltar para o hotel,
pelo que alguém dos serviços de limpeza e manutenção dos quartos
empacotara os seus pertences e guardara-os na parte de trás da
lavandaria.
O painel de vidro foi substituído com um custo enorme, e o grafíti
transformou-se numa recordação. A primavera deu lugar ao verão e
depois ao caos maravilhoso da época alta: o átrio cheio todas as
noites e um quarteto de jazz temperamental que causava confusão
no edifício reservado ao pessoal quando não estava a encantar os
hóspedes; o quarteto alternando com um pianista cujo vício em
marijuana era tolerado somente porque, ao que parecia, conseguia
tocar qualquer música alguma vez composta; o hotel completamente
esgotado e o pessoal quase duplicado; Melissa a pilotar o barco
entre o hotel e Grace Harbour todo o dia e toda a noite, até muito
tarde.
O verão deu lugar ao outono e depois ao silêncio e à escuridão
dos meses de inverno, às chuvas torrenciais mais frequentes, ao
hotel meio cheio, ao edifício reservado ao pessoal mais silencioso à
medida que os empregados sazonais iam partindo. Walter dormia
durante o dia e começava o turno no início da noite — o prazer das
longas noites do átrio silencioso, Larry junto à porta, Khalil no bar, as
tempestades a chegarem e a partirem toda a noite —, e às vezes
juntava-se aos colegas para uma refeição que correspondia ao
jantar para o turno da noite e ao pequeno-almoço para o pessoal de
dia, partilhava umas bebidas com o pessoal da cozinha, ouvia jazz
sozinho no seu apartamento, fazia caminhadas dentro e fora de
Caiette e encomendava livros pelo correio, que lia quando acordava
ao final da tarde.
Numa tempestuosa noite de primavera, Ella Kaspersky deu
entrada no hotel. Tratava-se de uma hóspede habitual, uma mulher
de negócios de Chicago que gostava de fugir «da confusão», como
ela própria costumava dizer, uma hóspede digna de nota
essencialmente porque Jonathan Alkaitis deixara bem claro que não
a queria ver. Walter não fazia ideia por que razão Alkaitis andava a
evitar Kaspersky e sinceramente não lhe interessava, mas, quando
ela chegou, procedeu à sua confirmação habitual, para garantir que
Alkaitis não fizera nenhuma reserva à última hora. Alkaitis não
visitava o hotel há algum tempo, constatou, mais tempo do que o
seu intervalo habitual entre visitas. Quando o átrio ficou calmo, às
02h00, fez uma pesquisa no Google sobre Alkaitis e encontrou
imagens da recente angariação de fundos de uma instituição de
caridade, Alkaitis a sorrir, vestido de smoking e com uma mulher
nova pelo braço. Esta pareceu-lhe muito familiar.
Walter aumentou a imagem. A mulher era Vincent. Uma versão
mais polida, com um corte de cabelo caro e uma maquilhagem
profissional, mas era claramente ela. Envergava um vestido de noite
metálico que deveria ter custado o que ganhava por mês como
empregado do bar no hotel. A legenda dizia: «Jonathan Alkaitis com
a esposa, Vincent.»
Walter ergueu o olhar do ecrã e contemplou o átrio silencioso.
Nada na sua vida mudara nesse ano desde a partida de Vincent,
mas por seu próprio desígnio e vontade. Khalil, agora empregado de
bar a tempo inteiro do turno da noite, conversava com um casal que
acabara de chegar. Larry estava junto à porta, as mãos unidas atrás
das costas e os olhos semicerrados. Walter abandonou o seu posto
e saiu para a noite de abril. Esperava que Vincent fosse feliz nesse
país desconhecido, nessa estranha vida nova que arranjara para si.
Tentou imaginar o que seria viver a vida de Jonathan Alkaitis — o
dinheiro, as casas, o avião privado —, mas era tudo
incompreensível para ele. A noite estava limpa e fria, sem luar, mas
o brilho das estrelas era impressionante. Walter jamais teria
imaginado, na sua vida anterior na Baixa de Toronto, que se iria
apaixonar por um lugar onde as estrelas eram tão brilhantes que
conseguia ver a própria sombra, mesmo numa noite sem luar. Não
desejava nada que não tivesse já.
Mas, quando deu meia-volta para voltar a entrar no hotel, foi
acometido pela recordação das palavras escritas no vidro há um
ano, «E que tal engolires pedaços de vidro?», pelo inquietante
mistério do incidente. A floresta era uma massa de sombras
indiferenciadas. Cruzou os braços sobre o peito, para se proteger do
frio, e regressou ao calor e à luz do átrio.
4
UM CONTO DE FADAS
2005–2008
Mergulho do cisne
A sanidade depende da ordem. No espaço de um mês depois de
ter deixado o Hotel Caiette e de ter chegado à casa absurdamente
enorme de Jonathan Alkaitis, nos subúrbios de Connecticut, Vincent
estabelecera uma rotina da qual raramente se afastava. Levantava-
se às 05h00, meia hora antes de Jonathan, e ia correr. Quando
regressava a casa, já ele partira para Manhattan. Às 08h00 estava
pronta, de banho tomado e vestida, altura em que o motorista de
Jonathan estava disponível para a levar à estação ferroviária — este
oferecia-se repetidamente para a levar à cidade, mas ela preferia o
movimento dos comboios aos engarrafamentos de trânsito —, e,
quando subia ao terminal da estação Grand Central, gostava de
atravessar calmamente a passagem principal, contemplando as
constelações de estrelas no teto verde, o relógio Tiffany por cima do
posto de informações, as multidões. Tomava sempre o pequeno-
almoço num café perto da estação e depois seguia para sul, em
direção à baixa de Manhattan e a um café em particular, onde
gostava de tomar um café expresso e ler os jornais, indo depois às
compras ou arranjar o cabelo ou percorrer as ruas com a sua
câmara de vídeo ou algo semelhante, e, se houvesse tempo,
visitava o Museu Metropolitano de Arte antes de regressar à Grand
Central e a um comboio rumo a norte, a horas de estar em casa e
vestida com algo bonito pelas 18h00, o mais cedo que Jonathan
poderia chegar a casa, vindo do trabalho.
Passava o serão com Jonathan, mas arranjava sempre meia hora
para ir nadar antes de dormir. No reino do dinheiro, como o
encarava, havia imenso tempo livre para preencher, e tinha receio
de se deixar levar, de permitir que houvesse um dia sem um horário
ou um plano.
— Toda a gente quer morar em Manhattan — respondeu-lhe
Jonathan quando lhe perguntou por que motivo não podiam morar
no seu pied-à-terre em Columbus Circle, onde às vezes ficavam
quando tinham bilhetes para o teatro —, mas eu gosto de viver um
pouco afastado de tudo isso. — Crescera nos subúrbios e sempre
adorara a tranquilidade e o espaço inerentes aos mesmos.
— Percebo — respondeu-lhe Vincent, mas a cidade atraía-a, a
cidade era o antídoto para o verde tumultuoso das suas recordações
de infância. Desejava betão, linhas direitas e ângulos fortes, o céu
visível somente entre os arranha-céus, a luz austera.
— Seja como for, não serias feliz a morar em Manhattan — disse-
lhe Jonathan. — Pensa na falta que te faria a piscina.
Sentiria falta da piscina? Refletiu sobre isso enquanto nadava. A
sua relação com a piscina era um tanto adversa. Vincent nadava
todas as noites para fortalecer a vontade, pois tinha um pavor
imenso de morrer afogada.
Mergulhar na piscina à noite; no verão, Vincent mergulhava nas
luzes da casa, refletidas na superfície; com o tempo frio, a piscina
era aquecida, pelo que mergulhava no vapor. Deixava-se ficar
debaixo de água o máximo de tempo possível, para testar a
resistência. Quando por fim vinha à superfície, gostava de fingir que
o anel no seu dedo era verdadeiro e que tudo o que via lhe
pertencia: a casa, o jardim, o relvado, a piscina na qual nadava. Era
uma piscina infinita, criando a sensação algo desorientadora de que
a água desaparecia no relvado ou de que o relvado desaparecia na
água. Detestava olhar para esse rebordo.
Multidões
O seu contrato com Jonathan, tal como o entendia, implicava
estar disponível sempre que ele a quisesse, dentro e fora do quarto,
e estar sempre elegante e bem-vestida — «Transmites uma
graciosidade imensa a qualquer divisão», dissera-lhe ele — e em
troca tinha um cartão de crédito cujos recibos nunca via, uma vida
de casas fantásticas e viagens, por outras palavras, o oposto da sua
vida anterior. Ninguém emprega realmente a expressão «mulher
troféu» numa conversa, mas Jonathan era trinta e quatro anos mais
velho do que Vincent. Ela tinha a perfeita noção do que era.
Houvera ajustamentos a fazer. No início, morar na casa de
Jonathan Alkaitis era como um desses sonhos em que encontramos
uma porta na cozinha que nunca tínhamos visto antes, e essa porta
conduz a um corredor nas traseiras que dá para uma suite de au
pair nunca utilizada, que por sua vez dá para um quarto de criança
nunca utilizado, localizado ao fundo do corredor do quarto principal,
maior do que toda a nossa casa de infância, e mais tarde
percebemos que existe uma maneira de ir do quarto à cozinha sem
ter de entrar nas duas salas de estar ou no átrio do piso inferior.
No tempo em que trabalhava em hotéis, Vincent sempre
associara o dinheiro a privacidade — os hóspedes mais abastados
têm mais espaço à sua volta, suites em vez de quartos, terraços
privados, acesso a salas para executivos —, mas, na verdade,
quanto mais se entra no reino do dinheiro, mais apinhado este se
torna, ficamos rodeados de pessoas na nossa própria casa, a toda a
hora, e era por isso que Vincent só nadava de noite. Durante o dia,
havia o mordomo, Gil, que morava com a mulher, Anya, numa
casinha perto do caminho de acesso à casa; Anya, a cozinheira,
supervisionava três jovens locais que mantinham a casa limpa,
tratavam da roupa, recebiam as encomendas da mercearia e afins;
havia também um motorista, que tinha um apartamento por cima da
garagem, e um jardineiro silencioso, que tratava de tudo o que
existia no exterior da casa. Sempre que Vincent erguia a cabeça,
havia alguém por perto, a varrer, a limpar, a falar ao telemóvel com o
canalizador ou a aparar a vedação. Era imensa gente com quem
lidar, mas à noite os empregados retiravam-se para as suas vidas
privadas, e Vincent podia nadar em paz, sem se sentir observada de
todas as janelas.
— Ainda bem que está a tirar proveito da piscina — disse-lhe Gil.
— O consultor de design da piscina investiu muito tempo nela, e a
verdade é que nunca ninguém a utilizou antes de si.
Estava na piscina quando conheceu a filha de Jonathan, Claire.
Era uma noite fresca em abril, com o vapor a emanar da água.
Sabia que Claire viria passar o serão com eles, mas não contara
emergir da água e dar de caras com uma mulher vestida de fato a
fitá-la por entre o vapor, qual aparição diabólica, completamente
imóvel, com as mãos unidas atrás das costas. Vincent arquejou, o
que em retrospetiva não foi propriamente agradável. Claire, que
pelos vistos viera diretamente do escritório, era uma mulher na casa
dos vinte e muitos anos e com um ar bastante empresarial.
— Deves ser a Vincent. — Pegou na toalha dobrada que Vincent
deixara em cima de uma espreguiçadeira e estendeu-lha como se
lhe ordenasse que saísse da piscina, pelo que Vincent não teve
outro remédio senão subir a escada e aceitar a toalha, o que era
irritante, pois tencionara nadar por mais algum tempo.
— E tu deves ser a Claire.
Claire não dignificou a pergunta com uma resposta. Vincent
envergava um fato de banho relativamente modesto, mas ainda
assim sentiu-se extremamente despida, secando-se com a toalha.
— Vincent é um nome invulgar para rapariga — disse-lhe Claire,
com ênfase na palavra «rapariga», o que pareceu desnecessário a
Vincent. «Não sou tão nova como isso», apeteceu-lhe responder,
pois aos 24 anos não se sentia nada jovem, mas talvez Claire fosse
perigosa, e Vincent desejava paz, pelo que respondeu num tom
mais conciliador:
— Os meus pais deram-me o nome de uma poetisa. Edna St.
Vincent Millay.
O olhar de Claire incidiu no anel presente no dedo de Vincent.
— Bem — disse ela —, a verdade é que não podemos escolher
os nossos pais. Qual é a área profissional deles?
— Dos meus pais?
— Sim.
— Já não são vivos.
A expressão no rosto de Claire aligeirou um pouco.
— Lamento sabê-lo. — Entreolharam-se por mais uns instantes, e
depois Vincent pegou no roupão que deixara em cima de uma
espreguiçadeira, e Claire disse, num tom que revelava mais
conformação do que propriamente fúria: — Sabes que és cinco anos
mais nova do que eu?
— Também não podemos escolher a nossa idade — retorquiu
Vincent.
— Ah. (Não se tratava exatamente de uma gargalhada, era mais
o proferir de uma palavra: ah.) Bem, somos todos adultos. Só para
que saibas, considero esta situação um absurdo, mas não há motivo
para não sermos educadas uma com a outra. — Deu meia-volta e
regressou ao interior da casa.
Fantasmas
A mãe de Vincent lera imensa poesia, tendo também ela sido
poetisa. Quando Edna St. Vincent Millay tinha 19 anos, em 1912,
começou a escrever um poema intitulado «Renascence», que
Vincent decerto lera mil vezes durante a infância e a adolescência.
Millay escreveu o poema para um concurso. O poema não foi
vencedor, mas possuía uma carga elétrica tal que a transportou da
escravidão da pobreza de Nova Inglaterra para o Colégio Vassar, e
daí para o tipo de vida boémia com a qual sempre sonhara; um tipo
de pobreza diferente, ao estilo de Greenwich Village, pobreza, sim,
mas com leituras de poesia a horas tardias da noite e amigos
deslumbrantes.
— A questão é que passou a ter uma vida nova graças à sua
força de vontade — dissera a mãe de Vincent, e esta interrogara-se,
mesmo nessa altura (teria cerca de 11 anos), sobre o que a
afirmação poderia insinuar acerca de quão feliz seria a mãe face à
forma como a sua própria vida se revelara, essa mulher que
imaginara escrever poesia no meio da natureza selvagem, mas que
em vez disso dera por si mergulhada nas dificuldades mundanas de
criar uma filha e gerir um lar na natureza selvagem. Há o conceito
de natureza selvagem e depois há o lado prático e pouco
glamoroso, a labuta constante para encontrar lenha; o transporte de
produtos alimentares ao longo de distâncias absurdas; o cuidar da
horta e a manutenção das vedações que impedem os veados de
comer todos os legumes; a reparação do gerador; não esquecer o
combustível para o gerador; a compostagem; a escassez de água
no verão; nunca ter dinheiro suficiente porque as oportunidades de
emprego no meio da natureza selvagem são limitadas; gerir o
ressentimento em ebulição da única filha, que não compreende o
nosso amor pela natureza selvagem e que todas as semanas
pergunta por que razão não pode viver num lugar normal que não
seja em plena natureza selvagem; etc.
O que a mãe de Vincent provavelmente nunca teria imaginado:
uma vida — um acordo — em que Vincent usava uma aliança, mas
não era realmente casada.
— Quero-te por perto — dissera-lhe Jonathan, no início —, mas
não quero voltar a casar-me.
A mulher, Suzanne, morrera três anos antes. O seu nome nunca
era mencionado. Mas, embora não quisesse casar com Vincent, era
da opinião de que as alianças davam a impressão de estabilidade.
— Na minha área profissional — dissera-lhe ele —, a gestão do
dinheiro dos outros, a estabilidade, é tudo. Se te levar a jantar com
uns clientes, é preferível que sejas uma esposa bela e jovem do que
uma namorada bela e jovem.
— A Claire sabe que não somos casados? — perguntou Vincent
na noite em que Claire aparecera junto à piscina. Quando Vincent
entrara por fim em casa e tomara banho, já Claire se fora embora.
Foi dar com Jonathan sozinho na sala de estar virada a sul, com um
copo de vinho tinto e o Financial Times.
— Só duas pessoas, no mundo inteiro, sabem disso —
respondeu-lhe ele. — Tu e eu. Anda cá. — Vincent deteve-se diante
dele, sob a luz do candeeiro de pé. Jonathan deslizou as pontas dos
dedos pelo braço dela, depois virou-a de costas e abriu-lhe
lentamente o fecho do vestido.
Mas que tipo de homem mente à filha em relação ao casamento?
Havia coisas nesse conto de fadas nas quais Vincent tinha o
cuidado de não pensar demasiado na altura, e mais tarde as suas
recordações sobre esses anos eram algo abstratas, como se
pertencessem a outra pessoa.
Cúmplices
Beberam cocktails num bar no centro da cidade, com um casal
que investira milhões no fundo de Jonathan, Marc e Louise, do
Colorado. Nessa altura, Vincent estava no reino do dinheiro há
apenas três semanas, e a estranheza da sua nova vida era imensa.
— Esta é a Vincent — apresentou-a Jonathan, com a mão
pousada na base das suas costas.
— Prazer em conhecer-vos — respondeu Vincent. Marc e Louise
estavam na casa dos quarenta ou cinquenta anos, e, ao fim de mais
alguns meses com Alkaitis, passaria a reconhecê-los como um casal
típico de uma subespécie ocidental específica de gente
endinheirada: tão abastados como os seus equivalentes noutras
regiões, mas prematuramente envelhecidos pela obsessão da
prática de esqui.
— É um prazer enorme conhecê-la — responderam eles, e
Louise teve um vislumbre das alianças de Vincent e Jonathan
quando procederam aos apertos de mão.
— Oh, meu Deus, Jonathan — exclamou ela —, quer então dizer
que estão de parabéns?
— Obrigado — agradeceu ele, com uma alegria acanhada tão
convincente que por uns confusos instantes Vincent entreteve a
ideia absurda de que, de alguma maneira, eram realmente casados.
— Nesse caso, temos de fazer um brinde — disse Marc,
erguendo o copo. — Parabéns aos dois. Que notícia maravilhosa,
absolutamente maravilhosa.
— Posso perguntar...? — disse Louise. — Foi uma cerimónia
grande, pequena...?
— Se tivéssemos feito alguma coisa — respondeu-lhe Jonathan
—, teriam sido os primeiros nomes na lista de convidados.
— Dá para acreditar — disse Vincent — que nos casámos no
registo civil?
— Santo Deus... — retorquiu Marc, e Louise disse:
— Gosto do seu estilo. A Donna vai casar, a Donna é a nossa
filha, e, meu Deus, toda a logística, as complicações, o drama, as
dores de cabeça... sinto-me tentada a sugerir-lhes que sigam o
vosso exemplo e o façam às escondidas.
— Há uma certa eficiência nesse escondimento — disse
Jonathan. — Os casamentos são acontecimentos elaborados. Não
queríamos ter de lidar com todo o alarido.
— Tive de o convencer a tirar o dia de folga — disse Vincent. —
Por ele tínhamos ido na hora de almoço. — Estavam a rir-se, e
Jonathan pôs o braço à volta dos ombros dela. Percebia-se que
estava a gostar do improviso.
— Onde foi a lua de mel? — perguntou Marc.
— Vou levá-la a Nice, na próxima semana, e depois vamos
passar o fim de semana ao Dubai — respondeu-lhe Jonathan.
— Ah, sim — retorquiu Marc —, lembro-me de me ter dito que
gostava muito daquilo lá. Já lá foi, Vincent?
— Ao Dubai? Não, ainda não. Mal posso esperar. — E por aí fora.
Não queria ser mentirosa, mas as expectativas dele eram claras.
Enquanto ex-empregada de bar, estava acostumada a representar
um papel. As mentiras eram perturbadoramente fáceis. Na noite em
que Jonathan entrara no bar do Hotel Caiette, alguém escrevera um
grafíti terrível no vidro, e ela estava especada a polir copos,
contando os minutos até ao fim do turno, perguntando-se por que
motivo julgara ser boa ideia regressar àquele local, tentando
imaginar o resto da sua vida sem grande resultado porque, claro,
podia ir-se embora e começar a trabalhar noutro bar, e noutro
depois desse, e noutro ainda, e noutro, mas deixar Caiette não
mudaria a questão subjacente. Os problemas na vida de Vincent
eram os mesmos de um ano para o seguinte: tinha noção de que
era uma pessoa razoavelmente inteligente, mas havia uma
diferença entre ser inteligentes e saber o que fazer com a nossa
vida e também uma diferença entre saber que uma licenciatura
talvez mudasse a nossa vida e a vontade de nos comprometermos
efetivamente com o peso aterrador dos empréstimos a estudantes,
em especial porque trabalhara com suficientes empregados de bar
licenciados para saber que uma licenciatura talvez não mudasse
nada de nada, etc., etc., e andava às voltas nesse território familiar,
farta dos seus pensamentos e farta de si própria, quando Jonathan
entrara no bar. Na forma como falou com ela, com a riqueza visível
e o interesse evidente, Vincent viu uma passagem para uma vida
muito mais fácil, ou pelo menos uma vida diferente, a oportunidade
de viver num país estrangeiro, uma vida que fosse além de trabalhar
num bar noutro lugar que não ali, e era uma oportunidade
irresistível.
Mentir sobre o casamento era algo que lhe pesava na
consciência, mas não o suficiente para a fazer ir-se embora. «Estou
a pagar um preço por esta vida», disse para si mesma, «mas é um
preço razoável».
Variações
Jonathan nunca falava sobre Suzanne, a sua mulher verdadeira,
mas o passado não era algo que estivesse totalmente vedado. Às
vezes, quando na disposição certa, gostava de ouvir histórias sobre
a vida de Vincent. Esta racionava-as com cautela:
— Quando tinha treze anos — dissera-lhe uma vez, deitada em
cima da cama, num domingo de manhã —, pintei o cabelo de azul e
fui suspensa da escola por ter escrito um grafíti numa janela.
— Não me digas. O que escreveste?
— Acreditas que escrevi as últimas palavras de um filósofo?
Encontrei-as num livro algures e fiquei fascinada.
— Precoce, mas também algo mórbido — respondeu-lhe ele. —
Até tenho medo de perguntar.
— «Arrebata-me.» Tem uma certa beleza, não achas?
— Talvez, para uma rapariga de treze anos temperamental —
replicou, e ela atirou-lhe uma almofada. Não lhe disse que a mãe
morrera duas semanas antes, ou que o irmão ia a passar e a vira
fazê-lo, ou sequer que tinha um irmão. É possível contar uma
história deixando de fora algumas coisas.
Além do mais, não era mórbido, deu por si a pensar no comboio a
caminho da cidade, na tarde do dia seguinte. Era quase o oposto.
Nunca tivera uma visão clara de como pretendia que fosse a sua
vida, nunca tivera um rumo, mas sabia que queria ser arrebatada,
ser arrancada da multidão, e depois, quando aconteceu, quando
Jonathan lhe estendeu a mão e ela aceitou, quando no espaço de
uma semana passou dos aposentos cheios de humidade do edifício
dos funcionários do Hotel Caiette para uma casa enorme num país
estrangeiro, ficou admirada com quão desconcertante isso era e
depois ficou admirada por se sentir admirada. Desceu do comboio
na Grand Central e deixou-se levar pelo fluxo de tráfego pedestre
que descia a Lexington Avenue. «Como vim parar a este planeta
desconhecido, tão longe de casa?» Mas não era apenas o local,
nem sequer era propriamente o local. Na verdade, era o dinheiro
que tornava tudo tão desconhecido e estranho. Deambulou até à
Quinta Avenida sem qualquer destino em mente e caminhou até um
par de luvas de pele cor de manteiga lhe ter despertado a atenção,
numa montra. Era tudo lindíssimo nessa loja, mas as luvas amarelas
tinham uma luz especial. Experimentou-as e comprou-as sem olhar
para a etiqueta, porque na era do dinheiro o seu cartão de crédito
constituía uma coisa mágica e sem peso.
Deixou a loja com as luvas dentro da mala, e os seus
pensamentos divagaram enquanto caminhava. A sua vida nessa
altura era tão confusa que dava frequentemente por si a pensar em
variações da realidade, diferentes permutações de acontecimentos:
uma realidade alternativa em que deixara o emprego no Hotel
Caiette e regressara ao emprego anterior, no Hotel Vancouver, antes
de Jonathan aparecer, por exemplo; ou em que ele decidira pedir o
pequeno-almoço no quarto, nessa manhã, em vez de se sentar ao
bar para comer; ou em que se sentara no bar e pedira o pequeno-
almoço, mas não vira nada de especial em Vincent; uma realidade
alternativa em que ainda morava no edifício reservado ao pessoal
do Hotel Caiette, servindo bebidas a turistas abastados, a noite
inteira, ano após ano. Nenhum desses cenários parecia menos real
do que a vida que lhe calhara, tanto que às vezes tinha a sensação
algo desconcertante de que havia outras versões da sua vida a
serem vividas sem ela, outras Vincents ocupadas com outros
acontecimentos.
Toda a vida lera jornais, porque se sentia muito pouco instruída e
queria ser uma pessoa informada e conhecedora, mas na era do
dinheiro muitas vezes lia uma notícia e depois distraía-se com o
oposto da mesma: imaginando uma realidade alternativa em que
não havia Guerra do Iraque, por exemplo, ou em que a nova e
terrível gripe suína na República da Geórgia não fora rapidamente
contida; um mundo alternativo em que a gripe na Geórgia dava
origem a uma pandemia imparável que significasse o colapso da
civilização. Uma variação da realidade em que a Coreia do Norte
não tinha disparado mísseis de teste, em que os ataques terroristas
em Londres não tinham acontecido, em que o primeiro-ministro
israelita não sofrera um AVC. Ou ir ainda mais atrás: uma versão da
História em que a península da Coreia nunca se dividira, em que a
União Soviética nunca invadira o Afeganistão e a al-Qaeda nunca
fora fundada, em que o Ariel Sharon morria ainda jovem, em
combate. Só conseguia alimentar esse jogo até certo ponto, pois era
acometida por uma espécie de vertigem e tinha de se obrigar a
parar.
Proteção
Uma das primeiras coisas que comprou foi uma câmara de vídeo
cara, uma Canon HV10. Começara a filmar aos treze anos, uns dias
depois de a mãe ter desaparecido, quando a avó, Caroline, chegara
de Victoria para lhes dar algum apoio. Nessa primeira noite da visita
da avó, quando Vincent estava sentada à mesa, depois do jantar —
a beber chá, um hábito que adquirira da mãe, e a olhar colina
abaixo, para a água, pois com toda a certeza, a qualquer instante, a
mãe iria subir os degraus que conduziam à casa —, a avó foi buscar
uma caixa que colocou em cima da mesa.
— Tenho aqui uma coisa para ti — disse-lhe ela.
Vincent abriu-a e deparou-se com uma câmara de vídeo, uma
Panasonic. Reconheceu-a como um dos modelos novos que
aceitavam cassetes DV, mas ainda assim tinha um peso inesperado.
Não sabia bem o que deveria fazer com o aparelho.
— Quando era mais nova — explicou-lhe Caroline —, aí com uns
vinte e um, vinte e dois anos, atravessei uma fase complicada.
— Que tipo de fase complicada? — Era a primeira coisa que
Vincent dizia em muitas horas, talvez o dia inteiro. As palavras
pareceram colar-se-lhe à garganta.
— Os pormenores não são muito importantes. Uma amiga minha,
fotógrafa, deu-me uma máquina fotográfica que já não utilizava.
Disse-me: «Tira fotografias, tira fotografias todos os dias, para ver
se te sentes melhor.» Pareceu-me uma ideia disparatada, para te
ser sincera, mas experimentei e senti-me realmente melhor.
— Não me parece que... — começou por dizer Vincent, mas não
conseguiu terminar a frase. «Não me parece que uma máquina
fotográfica me devolva a minha mãe.»
— Aquilo que estou a sugerir — disse-lhe Caroline, em voz baixa
— é que a lente pode funcionar como um escudo entre ti e o mundo,
quando te sentes pouco capaz de o enfrentar. Quando não
consegues olhar o mundo diretamente, talvez seja possível olhá-lo
através do visor. Acho que o teu irmão faria troça de mim se lhe
dissesse algo do género, mas talvez tu consigas interiorizar essa
ideia.
Vincent ficou em silêncio, meditando sobre essas palavras.
— Estive para te comprar uma máquina fotográfica de 35 mm —
disse Caroline, com uma risada deliberada —, mas depois pensei:
Estamos em 1994, será que os miúdos ainda tiram fotografias? Com
certeza que uma câmara de vídeo é mais atual.
Vincent decidiu-se rapidamente por um formato que lhe agradava.
Registava segmentos de cinco minutos cada, como se fossem
pequenos retratos: cinco minutos de praia e de céu junto ao cais de
Caiette e depois clipes de cinco minutos da rua calma onde morava
com a tia, nos imensos subúrbios de Vancouver, cinco minutos da
janela do SkyTrain, a caminho do centro da cidade, cinco minutos
do fascinante e pavoroso bairro onde morara com Melissa, quando
tinha 17 anos — não incluído no filme: a ocasião em que desatara a
fugir rua abaixo porque um toxicodependente tentara roubar-lhe a
câmara — e clipes de cinco minutos da zona de lavagem de louça
no Hotel Vancouver nesse mesmo ano, a câmara enfiada dentro de
um saco de plástico e pousada numa prateleira com o temporizador
ativado, enquanto Vincent passava os pratos por água quente e os
enfiava dentro na máquina de lavar industrial. Incrementos de cinco
minutos de Caiette e mais tarde — depois de ter conhecido
Jonathan — cinco minutos da piscina infinita na casa em Greenwich,
a maneira como a água ondulava em direção ao relvado,
essencialmente porque odiava olhar para o ponto em que água e
horizonte se tocavam e estava a tentar enfrentar isso; cinco minutos
da janela do avião privado de Jonathan, da primeira vez que
atravessou o Atlântico, uns navios lá em baixo na água, de um tom
cinzento metálico, sem terra à vista.
— O que estás a fazer? — perguntara-lhe Jonathan, assustando-
a. Estivera sentado na traseira do avião com Yvette Bertolli, uma
sócia extraordinariamente elegante que viajava com eles rumo a
França; morava em Paris, pelo que Jonathan lhe daria boleia até
Nice, onde ele tinha uma casa de campo. Vincent, afundada numa
poltrona imensa junto à janela, julgara por momentos estar sozinha.
— Tem algo de belo, não tem? — perguntara-lhe Vincent.
Jonathan inclinou-se sobre ela para espreitar as ondas distantes,
lá em baixo.
— Estás a filmar o oceano?
— Toda a gente precisa de um passatempo.
— E quando julgamos que já conhecemos uma mulher... —
respondera ele, beijando-a no cimo da cabeça.
Sombras
Jonathan tinha uma sombra. Introduziu esse tópico umas horas
depois de terem chegado à casa de campo em Nice, quando
estavam sentados no terraço, ao fim da tarde. A primavera ainda
estava no início, mas já estava calor, uma brisa agradável a soprar
do mar. Vincent estava atordoada e a sofrer de jet lag, tentando
disfarçá-lo com café e com as gotas para os olhos que antes
aplicara na casa de banho. Yvette, a sócia de Jonathan, retirara-se
discretamente para um dos quartos de hóspedes, pelo que Vincent
e Jonathan estavam sozinhos. A vista era composta por palmeiras
e, adiante, pelo azul sobrenatural do oceano, estranhamente familiar
depois de tantos filmes que vira passados no Mediterrâneo, a
maioria dos quais envolvendo carros velozes, jogadores e/ou o
James Bond. Jonathan estava numa disposição contemplativa.
— Isto vai parecer uma afirmação mais do que óbvia — disse-lhe
ele —, mas o sucesso atrai um certo tipo de atenção.
— Positiva ou negativa?
— Bem, as duas — retorquiu ele —, mas estou a pensar na
negativa.
— Estás a pensar em alguém em particular? — Uma porta abriu-
se atrás deles, e Anya apareceu no terraço com duas chávenas de
café num pequeno tabuleiro de prata. Vincent assustou-se ao vê-la,
pois não se apercebera de que Anya também viera para França,
embora lhe ocorresse que não a vira na casa em Greenwich nesses
últimos dois dias. — Obrigada — agradeceu Vincent —, estava
mesmo a precisar disso. — Anya assentiu com a cabeça. Jonathan
tirou o café do tabuleiro sem dizer uma palavra, porque, para ele, o
café aparecer do ar era uma ocorrência tão banal que nem sequer
merecia reconhecimento.
— Sim — respondeu ele. — Há uma pessoa em particular. Uma
obsessiva em particular.
Conhecera Ella Kaspersky em 1999, e logo no Hotel Caiette,
entre tantos lugares. Tinham tido uma conversa sobre a
possibilidade de Kaspersky fazer uns investimentos com Jonathan,
mas esta concluíra — sem qualquer base de sustentação, claro —
que a consistência dos rendimentos de Jonathan denunciava algum
tipo de esquema fraudulento nefasto. Completamente ilógico e
injusto, paranoico até, mas que podia ele fazer? As pessoas tiravam
as suas próprias conclusões precipitadas.
— Seria de esperar que bons lucros denunciassem que és bom
naquilo que fazes — retorquiu Vincent.
— Pois, exatamente. Nunca aleguei ser um génio, mas sei o que
estou a fazer.
— Como é óbvio — respondeu-lhe Vincent, com um gesto que
pretendia englobar não só o terraço como também a casa de campo
e a respetiva proximidade ao Mediterrâneo, o avião privado que os
trouxera aí, toda essa vida impressionante.
— Tenho uma vida confortável — disse ele. — Seja como for, a
Kaspersky levou a história dela à CTC. Peço desculpa, é falta de
educação mencionar acrónimos obscuros. Estou a falar da
Comissão de Títulos e Câmbio. São as pessoas que zelam pela
minha indústria. — Vincent sabia o que era a CTC, pois fazia um
esforço para acompanhar as notícias financeiras, mas limitou-se a
acenar com a cabeça. — Investigaram-me a fundo. Como é óbvio,
não encontraram nada. Não havia nada para encontrar.
— E voltaste a ter notícias dela? Depois da investigação?
— Não diretamente. Tenho sabido por algumas pessoas com
quem ela falou.
— Se anda a espalhar rumores falsos sobre ti — perguntou-lhe
Vincent —, não a podes processar por difamação?
— Aquilo que tens de compreender — respondeu-lhe ele — é que
no meu ramo de trabalho a credibilidade é tudo. Não posso correr o
risco de isso se tornar notícia de jornal.
— Ou seja, a aparência de um escândalo seria quase tão
desastrosa como um escândalo a sério.
— És uma menina esperta. Mas depois pensei melhor, depois da
confusão com a CTC ter passado, e percebi qual era o problema.
Aquele dinheiro que ela queria investir era a fortuna do pai. Tinha
morrido há pouco tempo. E por isso às vezes há muita emoção
associada ao dinheiro. — Anya deslocava-se na periferia do terraço,
acendendo discretamente as velas para a noite. Quanto da
conversa estaria a ouvir? E isso importaria? Anya teria algum
interesse nisso? — A carta que a Ella Kaspersky me enviou
revelava um grande transtorno — disse Jonathan —, um discurso
desconexo sobre o legado do pai e por aí fora. Mas, para ser justo,
quando olho para trás, percebo que estava claramente a fazer o
luto, e a dor tem o dom de tornar as pessoas um pouco irracionais.
— O assunto inominável da falecida esposa de Jonathan pairou no
ar entre eles, como um fantasma; entreolharam-se, mas não
proferiram o nome dela. Jonathan pigarreou. — Bem, a razão por
que te estou a contar isto é porque não queria que ficasses
surpreendida caso encontrasses algo dela online ou caso alguma
vez nos cruzássemos com ela. Nunca a viste em Caiette, pois não?
— No hotel? Não me recordo muito dos outros hóspedes, para
ser sincera. Só lá estive seis ou sete meses.
— Até eu te ter arrebatado — disse-lhe ele, beijando-a. Os lábios
dele estavam frios e tinham um sabor desagradável a café velho,
mas Vincent sorriu.
— É normal existir uma certa inveja — disse ela. — Nem toda a
gente tem sucesso.
(Vincent teria tido sucesso? Sentia que era evidente que estava a
viver uma vida extraordinária, mas, por outro lado, não tinha a
certeza de qual fora o objetivo. Mais tarde, parada no terraço a
filmar o Mediterrâneo, pensou: «Talvez isto pudesse ser suficiente.
Talvez nem toda a gente necessite de uma ambição específica.
Posso ser o tipo de pessoa que se limita a visitar sítios bonitos e
que possui coisas bonitas. Podia talvez fazer vídeos de cinco
minutos de todos os mares e oceanos, e talvez esse projeto tivesse
algum significado, algum tipo de conclusão».)
O astronauta
Conheceu os funcionários de Jonathan nesse verão, na sua festa
anual do Dia da Independência, que durou até de madrugada e
envolveu uma frota de autocarros alugados. Havia um exército de
empregados de catering e uma banda de swing vestida de branco
no relvado. Os convidados eram todos funcionários de Jonathan.
Havia pouco mais de cem funcionários, cinco do grupo de gestão de
ativos e os restantes da corretora.
— O pessoal da gestão de ativos não é um pouco distante? —
perguntou Vincent. A equipa de gestão de ativos reunira-se num
pequeno grupo na periferia da festa. Um deles, Oskar, tentava fazer
malabarismo com copos de plástico, perante o olhar dos colegas.
«Não, esperem lá...», dizia Oskar. «Juro que dantes conseguia fazer
isto...»
— Foram sempre um pouco reservados — disse Jonathan. —
Trabalham num andar diferente.
Depois de todos se terem retirado, o relvado parecia imenso, uma
paisagem no lusco-fusco de mesas redondas com velas
tremeluzentes em cima de toalhas de mesa manchadas de vinho,
copos de plástico a cintilar na relva pisada.
— Estás tão composta — disse Jonathan. — Estavam sentados à
beira da piscina com os pés dentro de água, enquanto o pessoal do
catering apagava as velas com sopros, dobrava mesas e arrumava
copos sujos dentro de cestos grandes. «É esse o meu trabalho»,
não lhe respondeu Vincent. Chamar-lhe «trabalho» parecia algo
injusto, pois gostava realmente de Jonathan. Não era o romance do
século, mas também não tinha de ser; quando gostamos
genuinamente da companhia de alguém, andava ela a pensar nos
últimos tempos, quando gostamos da nossa vida com essa pessoa
e não nos importamos de ir para a cama com ela, não será mais do
que suficiente? Será mesmo preciso estarmos apaixonados para a
relação ser verdadeira, seja qual for o significado de «verdadeiro»,
desde que haja respeito e algo parecido com amizade? Passava
mais tempo a pensar nisso do que gostaria, o que sugeria que era
uma questão por resolver, mas tinha a certeza de que conseguiria
continuar assim durante muito tempo, anos até. O Dia da
Independência fora uma noite intensa no pico de uma onda de calor.
— Obrigada. Eu tento. — A transpiração escorria-lhe pelas
costas.
— Mas tentas sem dares a entender que estás a tentar —
respondeu-lhe ele. — Não fazes ideia de quão raro é.
Estava a contemplar o tremeluzir de luzes na superfície da
piscina. Quando ergueu o olhar, uma das empregadas de catering
estava a observá-la, uma mulher nova a endireitar as
espreguiçadeiras. Vincent desviou rapidamente o olhar. Estudara os
hábitos dos endinheirados com afinco. Copiava os seus modos de
vestir e falar e cultivava um ar despreocupado. Mas sentia-se pouco
à vontade perto de empregados domésticos e de catering, pois
receava que, caso alguém do seu planeta de origem a fitasse com
atenção, visse através do seu disfarce.
Mirella
No primeiro inverno que passaram juntos, partiram de avião rumo
a sul, para uma festa num clube privado em Miami Beach. Jonathan
parecia pertencer a uma quantidade impressionante de clubes.
— É um passatempo dispendioso — explicou a Vincent —, mas
sempre tive uma queda por sítios onde parece que o tempo
desacelera. — (Outra dica que Vincent achava que deveria ter
apanhado: por que razão quereria ele que o tempo desacelerasse?
Haveria algo nessa afirmação além da perceção generalizada da
mortalidade, outra inevitabilidade que ele sentia vir a correr na sua
direção?) — Alguns dos clubes têm outros prazeres — disse ele. —
Há campos de golfe, de ténis e afins, mas há um certo prazer em
tomar um café ou um copo de vinho numa sala privada. O tempo
passa de maneira diferente nesses lugares.
O Festival de Inverno em Miami Beach era uma noite de
smokings e vestidos de gala iridescentes. As mulheres eram quase
todas mais velhas do que Vincent. Os homens parecer-se-iam todos
entre si, mesmo que não estivessem vestidos como pinguins — a
curiosa uniformidade das pessoas com vidas de manutenção
dispendiosa e hábitos similares —, e a maior parte vivera sempre
nesse mundo, era por demais evidente; tinham passado toda a vida
acima de uma rede de segurança e, como tal, pertenciam a uma
espécie diferente de Vincent. Movimentou-se pela sala envergando
um vestido de noite prateado, sorrindo e dizendo às pessoas que
era um prazer conhecê-las, rindo-se de forma convincente das
piadas básicas, escutando atentamente anedotas entediantes com o
mesmo sorriso que oferecia aos clientes que deixavam boas
gorjetas quando trabalhava em bares. Jonathan conhecia as gentes
de Miami Beach há uma década ou mais. Muitas das mulheres
tinham sido amigas da mulher de Jonathan, Suzanne, e tinham
filhos da idade de Vincent e mais velhos. Várias tinham-se
submetido a operações plásticas infelizes — rostos empolados,
testas imóveis, lábios inchados que pareciam feitos de borracha —
que a levavam a arregalar os olhos quando lhe eram apresentadas.
Vincent permaneceu ao lado de Jonathan até ele se ter retirado para
uma conversa discreta com um potencial investidor, altura em que
ela se dirigiu para o bar, onde uma mulher alta com um vestido de
um fúcsia ofuscante pedia um gim tónico. Vincent reparara nela
antes, como uma das poucas mulheres presentes na sala que
aparentava ser da sua idade. Receberam as respetivas bebidas em
simultâneo, de empregados de bar posicionados lado a lado, e
quase chocaram quando se afastaram do bar.
— Oh, não — exclamou Vincent. — Não entornei vinho no seu
vestido, pois não?
— Nem uma gota — respondeu-lhe a mulher. — Sou a Mirella.
— Sou a Vincent. Olá.
— Ia agora para o terraço, quer vir?
Saíram para o terraço com apontamentos italianos. Viam-se
algumas mulheres da idade delas e mais novas, mas todas
pareciam conhecer-se e estavam ou entretidas a conversar ou
entretidas ao telemóvel. Vincent ficou satisfeita por ser possível ver
o mar desse ponto, o mesmo azul do Mediterrâneo.
— Alguma vez foi a uma festa tão entediante como esta? —
Vincent era, por norma, mais cautelosa do que isso, mas Mirella
exibia um ar de tédio que a deixou à vontade.
— Sim. A mesma festa no ano passado.
Um homem vestido com um fato escuro seguira-as para o
exterior. Deixou-se ficar a alguma distância, perscrutando o terraço.
— Ele está consigo? — indagou Vincent.
— Sempre — retorquiu Mirella, e Vincent percebeu que o homem
era proteção contratada. Mirella vivia a uma grande altitude.
— Não é um tanto opressivo? Ter alguém a segui-la a toda a
hora?
Estavam encostadas ao parapeito, contemplando o terraço. As
outras mulheres pareciam um bando de pássaros tropicais. Era a
primeira vez de Vincent na Florida, e reparara que as pessoas
usavam cores mais intensas do que em Nova Iorque ou no
Connecticut.
— Tem piada dizer isso — respondeu-lhe Mirella. — Ainda há
pouco estava a pensar no mesmo. E percebi algo ligeiramente
inquietante.
— O quê?
— Há alturas em que já nem o vejo. Não quero ser uma pessoa
para quem os outros são invisíveis, mas é o que é.
— Mas há muito tempo que... — Vincent não sabia como colocar
a pergunta, mas tinha curiosidade em saber quanto tempo
demorava para uma pessoa se tornar invisível. Ainda estava muito
consciente da presença dos empregados domésticos de Jonathan
Alkaitis, a toda a hora, e havia algo de atraente e também sedutor
na ideia de já não os conseguir ver. — Ele está consigo há muito
tempo?
— Seis anos — respondeu-lhe Mirella. — Não ele pessoalmente.
Homens diferentes no mesmo cargo. Só foi estranho nos primeiros
meses. — Olhava para a mão esquerda de Vincent. — Quem é o
seu marido?
— Não sei se o conhece, não vem muitas vezes a este clube.
Chama-se Jonathan Alkaitis.
Mirella sorriu.
— Conheço o Jonathan — replicou ela. — O meu namorado
investe com ele.
Mirella andava sempre com um guarda-costas atrás porque o
namorado, Faisal, era um príncipe árabe. A namorada de um primo
dele fora raptada em troca de um resgate, uma década antes, e o
episódio deixara-o um pouco paranoico.
— Ele vai ser rei, um dia? — Vincent perguntou a Mirella, quando
se encontraram em Manhattan na semana após a festa. Mirella e
Faisal viviam a maior parte do ano numas águas-furtadas no Soho.
Mirella sorriu.
— Nem pensar — respondeu-lhe. — Há qualquer coisa como seis
mil príncipes sauditas.
— E quantas princesas?
— Ninguém conta as princesas.
Encontraram-se para jantar algumas vezes depois disso, Faisal,
Mirella, Jonathan e Vincent. Faisal era um homem supremamente
elegante, na casa dos quarenta, que preferia fatos feitos à medida e
camisas brancas com os dois botões de cima desabotoados, nunca
gravata. Não trabalhava. Ele e Mirella tinham-se instalado na cidade
de Nova Iorque porque aí se sentia livre, explicou ele. Não que não
gostasse de Riade, a sua cidade natal, mas era francamente
agradável viver num lugar que não estivesse apinhado de familiares.
Sentia que tinha um pouco mais de espaço para respirar desse lado
do mundo. Não obstante, tinha alguma dificuldade em suportar os
invernos em Nova Iorque, pelo que numa ocasião passara o mês de
fevereiro inteiro a aprender a jogar golfe no clube de Miami Beach,
onde acabara por conhecer Jonathan.
Faisal fora sempre uma desilusão para a família. Era o filho que
só queria frequentar clubes de jazz e passar os serões na ópera,
que lia publicações literárias obscuras em francês e inglês, que se
distanciara da família indo morar para o outro lado do mundo e que
não mostrava qualquer interesse em casar, quanto mais em ter
netos. Mas depois fez uns investimentos com Alkaitis e apresentou-
o a vários elementos da sua família, cujos negócios correram tão
espetacularmente bem que o estatuto de Faisal enquanto ovelha
negra da família foi, pelo menos em parte, contrariado, e era
evidente que isso era incrivelmente importante para ele.
Mirella e Faisal tinham morado em Londres por uns anos e em
Singapura durante um curto período de tempo, antes de se terem
instalado em Nova Iorque.
— A minha vida não era muito diferente nesses lugares —
explicou Mirella quando Vincent lho perguntara, um ou dois meses
depois de se terem conhecido. Vincent levara Mirella à sua galeria
favorita no Museu Metropolitano de Arte. Vincent não tivera uma
educação formal em Arte, mas os retratos diziam-lhe muito, em
especial retratos cujas pessoas tinham um ar perfeitamente vulgar,
como alguém que pudéssemos encontrar no metro, só que com
uma indumentária fora de moda.
— Não as vejo como cidades semelhantes — disse-lhe Vincent.
— E não são, mas a minha vida nelas era a mesma. A única
coisa que mudava era a paisagem. — Olhou de relance para
Vincent. — Tu não vens de famílias ricas, pois não?
— Não.
— Eu também não. Sabes o que aprendi sobre o dinheiro?
Estava a tentar perceber por que motivo a minha vida era a mesma
em Singapura e em Londres e foi então que percebi que o dinheiro é
um país em si mesmo.
Uma das coisas em que Vincent tentava não pensar demasiado:
uma diferença entre Mirella e Vincent era que Mirella vivia nesse
país de dinheiro com um homem que amava verdadeiramente. Era
visível na maneira como olhava para Faisal, na forma como o rosto
dela se iluminava quando ele entrava na divisão.
O investidor
Se o dinheiro é um país, existiam outros cidadãos com quem
Vincent simpatizava muito menos. Ela e Jonathan jantaram com
Lenny Xavier, um produtor musical de Los Angeles. Jonathan estava
calado e distraído no caminho para o restaurante.
— É o meu investidor mais importante — disse ele baixinho,
quando entraram. Então vislumbrou Lenny e a esposa ao fundo da
sala e esboçou um sorriso. Lenny envergava um fato de aspeto caro
com ténis e tinha o cabelo propositadamente desgrenhado. A
esposa, Tiffany, era muito bela, mas não tinha muito para dizer.
— Por acaso conhecemo-nos numa audição — disse ela quando
Vincent tentou meter conversa e depois pouco mais disse. Fora
cantora, mas já não cantava. Perto do final da noite, Jonathan
conseguiu incluir Tiffany na conversa, e Lenny, que já bebera
demasiado, virou-se para Vincent e lançou-se num monólogo sobre
uma rapariga com quem trabalhara há uns anos, outra rapariga que
também queria ser cantora.
— O problema — explicou-lhe ele — é que há pessoas que não
conseguem reconhecer as oportunidades.
— Isso é bem verdade — retorquiu Vincent, mas a afirmação
deixou-a pouco à vontade. Gostava da companhia de Jonathan,
mas era inegável que, quando o vira entrar no bar do Hotel Caiette,
reconhecera a oportunidade.
— Ela tinha imenso potencial. Potencial a sério. Mas a
incapacidade de reconhecer uma oportunidade? É uma falha fatal.
— Que é feito dela? — indagou Vincent. Lenny falara sobre a
rapariga no passado, o que a Vincent soou algo alarmante.
— A Annika? Estou-me bem a cagar. Não a vejo desde 2000,
talvez 2001. — Lenny serviu-se de mais um copo de vinho tinto. —
Queres mesmo saber? Voltou para o Canadá, para tocar música
eletrónica esquisita com os amigos.
(— O problema — dizia Tiffany a Jonathan, do outro lado da
mesa — é que, quando compramos joias online, é difícil perceber
quão pesadas são.)
— Já não trabalhas com ela?
— Não, porque é uma idiota de merda. Essa miúda, a Annika, era
muito nova quando a conheci. Incrivelmente bonita, estás a ver?
Incrivelmente bonita. Não tinha um talento imenso, mas tinha o
suficiente. E um corpo do caraças. A voz não era má, mas sabes
que mais? Isso resolve-se. Escreve poesia, por isso as letras dela
são boas. Toca violino, um instrumento inútil como a merda para a
música pop, mas paciência, pelo menos tem formação musical.
Começámos a trabalhar com ela, estamos a tratar de fazer um
álbum, a fazer planos sobre como apresentá-la, como lançá-la. E,
como te disse, é linda, e digo-te mais, tem cá uma intensidade, uma
espécie de qualidade rara, tipo, é muito sensual, mas não de uma
maneira óbvia, estás a ver? Não é demasiado evidente, tem algo
misterioso.
— Misterioso?
— É algo distante, mas não distante no sentido de rainha do gelo,
é mais tipo, sei lá, um distante inteligente, o que pode ser muito
atraente em certas raparigas. — Baixou momentaneamente o olhar
para o peito de Vincent. — Bem, já íamos bem avançados,
estávamos a contratar uma banda de apoio e à procura de um
coreógrafo e tudo, mas depois ela veio ter connosco e disse: «Não
quero mais isto.» Ficámos tipo: «Desculpa? Como assim?» Ficámos
mesmo chocados, eu e os meus sócios. Tínhamo-la num programa,
estás a ver? Estávamos a pagar aulas de voz, aulas de guitarra,
compositores, um treinador pessoal. Qualquer músico, qualquer
artista de música, teria dado tudo por uma oportunidade como a que
ela estava a ter. Dissemos-lhe isso mesmo, e ela respondeu que
sim, que entendia e agradecia imenso o esforço, mas que
estávamos a violar a integridade artística dela. — Lenny fez uma
pausa para beber um trago de vinho. — É de rir, não achas?
Vincent esboçou um sorriso, sem perceber exatamente onde
estava a piada. (— Ah, essa? Essa é um topázio, se não me engano
— dizia Tiffany a Jonathan. — Com pequenos diamantes a toda a
volta.)
— Ficámos tipo: «A tua quê? A tua integridade? Tens vinte e um
anos. Tu não tens integridade, miúda.» Quer dizer, tudo bem, talvez
tivesse integridade, sim, integridade pessoal, como qualquer ser
humano, mas integridade artística? Só podem estar a gozar comigo,
porra. É uma miúda.
— E o que aconteceu depois?
— Foi como te disse, voltou para o Canadá. Ainda no outro dia
pesquisei-a no Google, e sabes o que está a fazer? A viajar pelo
Canadá na porra de uma carrinha, a tocar em clubes minúsculos e
festivais de música em cidades que ninguém conhece. Estás a ver
onde eu queria chegar? Não reconheceu uma oportunidade. Já eu,
quando conheci o teu marido... Assim que percebi como funcionava
o fundo de investimento dele... Era uma oportunidade, e agarrei-a.
— Lenny — disse Jonathan, interrompendo Tiffany a meio de
uma frase —, não entediemos as nossas esposas maravilhosas com
conversas sobre investimentos.
— Só estou a dizer que o meu investimento se revelou melhor do
que esperava. — Lenny ergueu o copo no ar. — Bem... Quanto à
Annika... É na boa, sabes porquê? Consigo prever o futuro. —
Sorriu e deu uma pancadinha na testa com a ponta do dedo. — Há
de voltar para mim.
— Não duvido — respondeu-lhe Vincent. O estranho era que
tinha a certeza de que Jonathan estava a escutar atentamente a
conversa entre ela e Lenny, apesar de estar a olhar para Tiffany e a
acenar com a cabeça em resposta ao que ela dizia. Parecia-lhe
haver algo que Jonathan não queria que Lenny revelasse.
— Qualquer dia, daqui a um ano, terei novamente notícias dela.
Era capaz de apostar dinheiro e tudo.
— Acredito... — Se ao menos a noite chegasse ao fim. O rosto de
Vincent começava a exibir algum cansaço.
— E ela vai ser, tipo: «Olá, lembras-te de mim, éramos para ter
feito algo juntos.» E eu vou ser, tipo: «Sim, éramos para ter feito
algo juntos, tu e eu, no passado. Foi há cinco anos, há seis anos,
agora já não tens vinte e um anos.»
À beira da piscina
— Fala-me sobre o sítio de onde vens — pediu-lhe Mirella, perto
do fim. A era do dinheiro durou praticamente três anos. Durante o
último verão, seis meses antes do fim, Faisal regressou a Riade a
fim de passar umas semanas com o pai, a quem recentemente fora
diagnosticado um cancro, e durante esse período Mirella adquiriu o
hábito de ir de carro até Greenwich quase todas as tardes. Vincent e
Mirella passavam lânguidas horas a nadar ou estendidas na
sombra, à beira da piscina, meio adormecidas devido ao calor, o
guarda-costas de Mirella a ler o jornal ou a fitar o telemóvel, sentado
numa cadeira, suficientemente afastado para elas falarem à
vontade.
— Cresci numa rua com dois becos sem saída — disse-lhe
Vincent. — Penso que está tudo dito.
— Pousa lá a câmara, sim? Estás a deixar-me nervosa.
— Não te estou a filmar, estou a filmar aquelas árvores ali.
— Sim, mas são árvores sem qualquer interesse. Não estão a
fazer nada.
— Tens razão — retorquiu Vincent, sorrindo enquanto guardava a
câmara de vídeo, embora lhe custasse parar de filmar aos três
minutos e 27 segundos. Tinha perfeita noção de que a sua
necessidade de filmar em intervalos precisos de cinco minutos
poderia ser um caso não diagnosticado de transtorno obsessivo-
compulsivo, mas nunca lhe parecera que fosse um problema grave.
— Como é que uma rua pode ter dois becos sem saída?
— Se os únicos acessos forem de barco ou hidroavião. Imagina
uma fileira de casas numa enseada. Com floresta a toda a volta,
água e nada mais.
— Tinhas um barco?
— Algumas pessoas tinham os seus próprios barcos. Nós, não.
Costumava apanhar o barco dos Correios para a escola, todas as
manhãs, e depois havia um autocarro à nossa espera junto ao cais,
do outro lado, que nos levava para a cidade mais próxima. E só tive
televisão aos treze anos.
— Como assim? Não tinham televisão? — Mirella olhava-a como
se tivesse acabado de anunciar ter vindo de Marte.
— Quer dizer, lá não havia sinal.
— Se ligasses o televisor, o que acontecia?
— Via-se apenas estática — respondeu-lhe Vincent.
— Em todos os canais?
(Uma recordação: treze anos, suspensa da escola por causa do
incidente com o grafíti, sentada à janela da cozinha com um livro,
depois de erguer o olhar e de ver o pai a subir a colina vindo do táxi
aquático, com uma caixa muito pesada nos braços e um sorriso nos
lábios. «Olha só o que a minha mãe comprou para nós», dissera-lhe
ele. «Ligaram-me para a ir buscar à loja de eletrónica em Port
Hardy.» A avó Caroline regressara à sua vida nessa manhã, por uns
dias, mas, ao que parecia, deixara um presente de despedida.
Um televisor! Uns meses antes, haviam instalado uma torre em
Grace Harbour, na parte mais elevada da enseada, o que significava
que, pela primeira vez na história, havia sinal em Caiette, e a mãe
jamais o teria permitido, mas já não era da conta dela, pois fora-se
embora havia três semanas. Vincent e o pai perscrutaram variações
de estática até encontrarem o melhor canal, onde se viam duas
mulheres com pronúncia norte-americana à conversa, uma com o
cabelo castanho comprido e óculos, a outra com o cabelo platinado
armado e a roupa muito justa.
— «WKRP em Cincinnati» — disse o pai. — Costumava ver isto
nos anos oitenta.
Uma das mulheres disse algo engraçado, fazendo o pai rir-se
pela primeira vez em três semanas. Onde seria Cincinnati? Na
televisão a cidade possuía um brilho esbatido, como o cabelo da
atriz loura. Mais tarde, Vincent foi buscar o atlas a uma prateleira
alta e encontrou-a, um ponto no meio do país mais próximo, a sul.
Procurou Colúmbia Britânica na página, a sudoeste, mas, claro,
Caiette era demasiado pequena para aparecer no mapa.)
Mirella tinha uma história sobre um duplex numa urbanização de
apartamentos idênticos, na zona suburbana de Cleveland, campos
de milho de um lado e uma autoestrada do outro. A mãe tinha dois
empregos, e o pai estava na prisão. Mirella e a irmã passavam
várias horas por dia sozinhas em casa, a ver televisão; percorriam a
pé o caminho da paragem do autocarro escolar até casa e
trancavam a porta atrás delas, e depois disso já não tinham
autorização para voltar a sair de casa. Aqueciam Hot Pockets para o
jantar e às vezes faziam os trabalhos de casa, outras vezes, não.
— Por acaso nem era muito mau — explicou ela. — Tive sorte.
Nunca me aconteceu nada terrível. Era só um pouco secante.
Cresceste com os dois pais?
— A minha mãe afogou-se quando eu tinha treze anos. —
Vincent sentiu-se grata pelo facto de Mirella se ter limitado a acenar
com a cabeça. Talvez a partir desse momento passasse a travar
amizade apenas com pessoas que tivessem perdido pelo menos um
dos progenitores. — O meu pai plantava árvores e passava várias
semanas seguidas em acampamentos remotos durante o ano letivo,
por isso fui viver com a minha tia em Vancouver.
A conversa foi-se afastando dos lugares de origem, o que
agradou a Vincent. Tudo o que dizia respeito a Caiette era
impossível de descrever ou demasiado difícil de discutir, e tudo o
que se seguira a Caiette era entediante ou embaraçoso. Mirella
estava a falar sobre a forma como ela e Faisal se tinham conhecido.
Mirella tentara ser modelo, mas não conseguira ir muito longe. O
problema, como a agente dela lhe explicara, estava no facto de
Mirella ser bela, mas possuir uma beleza vulgar. Não havia nada de
invulgar no rosto de Mirella, à exceção da sua beleza, e nessa
época isso não bastava para ser modelo, dissera-lhe a agente.
Também era necessário ser-se invulgar. As modelos de sucesso
dessa altura tinham os olhos invulgarmente espaçados, ou rostos
muito banais mas com uma característica fora do normal, ou orelhas
espetadas para fora como as pegas de um cântaro. Quando
conhecera Faisal, Mirella andava a tentar ser atriz porque a carreira
de modelo não estava a resultar, mas a representação também não
estava a correr particularmente bem. Tinha algum talento, mas não
o suficiente para se distinguir entre o mar de jovens bonitas
moderadamente talentosas. Na noite em que conhecera Faisal,
estava numa festa, envergando um vestido caro que pedira
emprestado à colega de casa, horas depois de um telefonema com
a assistente da sua agente — esta já não atendia as suas
chamadas —, no qual a assistente, que em tempos também quisera
ser atriz, lhe revelara cautelosamente que Mirella fora, mais uma
vez, preterida para um papel. A rejeição era extenuante. Mirella
encontrava-se junto à janela, a contemplar a vista sobre a Baixa de
Los Angeles, e percebera que começava a ficar demasiado saturada
dessa vida. Estava a pensar que talvez fosse melhor matricular-se
finalmente numa universidade, estudar algo que lhe permitisse
arranjar um bom emprego, mas a irmã fizera exatamente isso, e
agora tinha imensas dificuldades em pagar os empréstimos
concedidos aos estudantes, pelo que Mirella não tinha a certeza se
valeria a pena endividar-se dessa maneira. Estava a tentar pensar
no rumo a tomar quando Faisal surgira ao seu lado, elegantemente
vestido, com dois copos de vinho nas mãos, e ela pensara: «E
porque não tu?»
— Nós também nos conhecemos com bebidas — disse Vincent
—, só que eu era empregada de bar.
Mirella sorriu:
— Não me admira. Fazes uns cocktails fantásticos.
— Obrigada. Foi uma altura estranha na minha vida. O meu pai
tinha acabado de falecer. — Mirella arregalou os olhos. Ficar sem
um dos progenitores não era propriamente invulgar, mas perder os
dois era completamente diferente. — Tive de regressar à minha
terra natal para tratar de tudo e, como havia uma oportunidade de
emprego no hotel local, decidi ficar uns tempos por lá.
— Que lhe aconteceu?
— Teve um ataque cardíaco.
— Lamento.
— Obrigada. — Vincent não gostava de pensar nos pais.
— E era o hotel do Jonathan? Lembro-me de ele ter falado sobre
isso.
— Sim, exatamente. Pensava que morar lá significaria uma vida
mais simples, mas ao fim de um mês percebi que era um engano. A
minha melhor amiga de infância trabalhava lá, e, ao fim de uns
meses, o meu irmão apareceu e começou a trabalhar lá também, e,
sei lá, começou a ser um pouco claustrofóbico, morar no mesmo
sítio com as mesmas pessoas que conhecia desde nascença.
— Não sabia que tinhas um irmão.
— Para dizer a verdade, ele nunca fez parte da minha vida —
respondeu-lhe Vincent. — Não o vejo há anos.
— Portanto, foste para esse sítio no meio do nada e vieste-te
embora porque o teu irmão também lá estava?
— Não, eu... Aconteceu uma coisa estranha — disse-lhe ela. —
Ora bem, o átrio tinha uma parede toda em vidro, com vista para a
água. Eu estava a trabalhar no turno da noite, e havia um hóspede
no átrio, um homem com insónias, que estava sentado numa
poltrona a ler ou a trabalhar ou algo do género e depois fez um som
qualquer e deu um salto da poltrona. Olhei na direção dele, e
alguém tinha escrito uma mensagem horrível no lado de fora do
vidro.
— O que dizia?
— A mensagem? «E que tal engolires pedaços de vidro?»
— Que coisa de loucos — respondeu Mirella.
— Podes crer. E depois, uns minutos mais tarde, o meu irmão
Paul regressou da pausa para jantar, e foi absolutamente óbvio que
tinha sido ele, pois estava muito nervoso, nem sequer conseguia
olhar-me nos olhos...
— Mas por que motivo haveria ele de...?
— Não sei. Quase lhe perguntei, mas depois percebi que não
importava. Não há justificação para se escrever uma coisa tão
horrível como aquela, pois não?
— Pois, também me parece. — Mirella ficou em silêncio por
momentos. — É uma mensagem horrível, mas não sei se percebo
exatamente por que motivo te incomodou tanto.
— A questão da minha mãe — disse-lhe Vincent — é que sei que
se afogou, mas não sei por que razão se afogou. Costumava
praticar canoagem com muita frequência. E nadava muito bem.
— Achas que pode não ter sido um acidente...
— Acho que nunca hei de saber se foi ou não. — Calaram-se por
instantes, e o cantar das cigarras nas árvores na orla da
propriedade soou mais alto. — De qualquer maneira, não foi só isso.
Estava a ter um desses momentos em que olhamos para a vida e
pensamos: «A sério que é só isto? Pensava que haveria mais.»
— Estou mais do que familiarizada com esses momentos —
retorquiu Mirella. — Estavas portanto prestes a ir-te embora, e
entretanto o Jonathan apareceu no bar?
— Pouco mais de duas horas depois, talvez menos. Eram cinco
da manhã. Tive de beber dois cafés expressos só para manter os
olhos abertos.
— E viva o café. — Mirella ergueu o copo.
— Quando digo que não sei o que seria de mim sem o café,
estou a falar literalmente — disse Vincent.
Um homem solitário entra num bar e vê uma oportunidade. Uma
oportunidade entra num bar e vê uma empregada de bar. Uma
empregada de bar solitária ergue o olhar do seu trabalho, e a
mensagem no vidro dá-lhe vontade de fugir, porque a mãe da
empregada de bar desapareceu enquanto fazia canoagem, e ela
sempre disse a toda a gente que se tratara de um acidente, mas
não há maneira nenhuma de saber se é verdade ou não, e, além
disso, como é que alguém que tem a perfeita noção dessa incerteza
— como era claramente o caso de Paul — consegue escrever uma
sugestão de suicídio num vidro com essa mesma água a cintilar do
lado de fora, mas o que desespera verdadeiramente essa
empregada de bar não é o grafíti, mas o facto de, quando sair dali,
ser apenas para ir para outro bar, e para outro depois desse, e para
outro, e para outro ainda, e é nesse momento que o homem, a
oportunidade, lhe estende a mão.
— Acredita se lhe disser que cresci aqui? — dissera ela a
Jonathan, quando durante essa primeira conversa ele lhe
perguntara de onde era. Servira-lhe comida e tinham-se deixado
levar por uma conversa surpreendentemente fluida.
— Aqui mesmo, em Caiette?
— Bem, aqui e em Vancouver.
— Bela cidade — retorquira ele. — Gostaria de lá ir com mais
frequência.
Estendera-lhe uma nota dobrada antes de se retirar — ela
agradecera-lhe sem olhar para a mesma —, e tratava-se de uma
nota de cem dólares, dobrada à volta de um cartão de visita, no qual
ele escrevinhara um número de telemóvel. Uma nota de cem
dólares? Em retrospetiva, era algo embaraçoso, mas sempre lhe
agradara a clareza das intenções dele. Seria sempre um acordo
transacional. Quando fazia sinal, ela ia ter com ele. Seria sempre
muito bem recompensada.
«E porque não tu?»
Soho
Nesse último verão no reino do dinheiro, Vincent e Mirella
encontraram-se no Soho, numa tarde subtropical, onde passaram
algum tempo nas águas-furtadas de Faisal e Mirella e depois foram
às compras, não por necessidade, mas para quebrar a monotonia.
Nuvens negras enchiam o céu. No final da tarde, deambularam pela
Spring Street abaixo, sem nenhum destino particular em mente,
depois de terem gastado vários milhares de dólares em roupa e
lingerie, e Vincent estava a admirar um Lamborghini amarelo
estacionado do outro lado da rua quando Mirella disse:
— Acho que vai começar a chover...
E apressaram o passo, tarde de mais, pois o primeiro trovão
soou, e a chuva torrencial começou a cair. Mirella agarrou-lhe na
mão e desataram a correr. Vincent ria-se — adorava ser apanhada
pela chuva —, e Mirella não gostava do que a chuva lhe fazia ao
cabelo, mas, quando alcançaram finalmente a esquina, também ela
estava a sorrir, arrastando Vincent para o interior de um café onde
ficaram paradas por breves instantes, agradavelmente arrefecidas
pelo ar condicionado, afastando o cabelo molhado dos olhos e
avaliando o estrago nos sacos das compras. O guarda-costas de
Mirella entrou uns instantes depois, limpando a testa com um lenço.
— Bem — disse Mirella. — Aproveitamos e tomamos um café?
— ‘Bora. — Vincent estava na Costa Leste desse continente
havia já dois anos e meio, mas ainda assim assustava-se com a
violência das trovoadas de verão, com a maneira como o céu
assumia uma tonalidade esverdeada. Encontraram uma mesa
minúscula junto à montra e sentaram-se com os cafés expressos, os
sacos de compras molhados pousados em volta das pernas.
Instalara-se um silêncio agradável, e, enquanto observavam o
aguaceiro, Vincent percebeu que se sentia perfeitamente à vontade,
pela primeira vez nos últimos tempos. A verdade era que se sentira
extremamente sozinha no reino do dinheiro antes de ter conhecido
Mirella.
— Não achas que ir às compras é, na verdade, um tédio imenso?
— Vincent sentiu-se culpada por o ter proferido em voz alta. Apenas
o podia dizer porque Mirella também não nascera rica. Os
fantasmas das vidas anteriores de Vincent acercaram-se da mesa e
fitaram as elegantes peças de roupa que ela envergava.
— Sei que é de mau-tom admiti-lo — replicou Mirella —, mas é
incrível como deixa rapidamente de ser novidade. — Algo na
maneira como ergueu o olhar nesse instante, a forma como a luz
incidiu no seu rosto, lembrou a Vincent o verso de uma canção
infantil, o seu verso favorito no livro da «Mãe Pata» que havia na
biblioteca da escola primária, lido tantas vezes que o memorizara
por volta dos cinco ou seis anos: «Ela é bonita, ela está aperaltada,
ela é a rapariga da cidade dourada...»
— A princípio era como se fosse uma espécie de compensação
— disse Vincent. — A pessoa lembra-se das vezes em que teve de
escolher entre pagar a renda ou ir ao supermercado e pensa:
«Agora já tenho dinheiro para comprar este vestido, portanto, o
equilíbrio foi restaurado.» Mas, ao fim de algum tempo...
— Ao fim de algum tempo, chegas à conclusão de que já tens
vestidos que cheguem — retorquiu Mirella. — Se o Faisal tivesse
noção das compras que faço, o mais certo seria mandar-me
internar.
«Embora, claro, a questão não fosse a roupa», pensou Vincent
mais tarde, no comboio de regresso a Greenwich. Não eram coisas
que a mantinham nessa estranha vida nova, no reino do dinheiro;
não era a roupa, os objetos, as malas ou os sapatos. Não era a
casa maravilhosa ou as viagens; não era a companhia de Jonathan,
embora ela gostasse genuinamente dele; não era sequer a inércia.
O que a mantinha nesse reino era a condição antes inimaginável de
não ter de pensar no dinheiro, porque é isso que o dinheiro nos
proporciona: a liberdade de deixarmos de pensar no dinheiro. Se
nunca vos faltou, então não compreenderão a profundidade disto, o
quanto isso muda a nossa vida por completo.
Quando chegou a casa, Jonathan estava à espera na sala de
estar. Estivera a trabalhar, mas fechou o portátil assim que ela
entrou.
— Coitadinha... — disse-lhe ele. — Lembrei-me de ti, lá fora no
dilúvio. — Ela tremia ligeiramente, a roupa húmida no frio do ar
condicionado. Havia uma manta de caxemira nas costas do sofá,
mesmo à mão dele. Pousou o portátil em cima da mesa de apoio e
abriu a manta para a receber. — Vem cá — disse-lhe ele. — Vamos
lá aquecer-te.
5
OLIVIA
O AVESSO DA VIDA
2009
Marinheira
2008–2013
O Neptune Cumberland
Vincent deixou terra firme num dia luminoso de céu azul e nuvens
dispersas como pipocas, em agosto de 2013. A primeira vez que viu
o Neptune Cumberland foi em Port Newark. Foi acompanhada até
ao navio pela segurança do porto, onde teve de esperar junto às
escadas da prancha de embarque durante o que lhe pareceu ser
uma eternidade. Estava simultaneamente nervosa e entusiasmada.
Havia outras pessoas por perto, mas estavam longe da vista ou lá
em cima, bem alto, nas cabines das gruas ou a conduzir camiões
cheios de contentores. Sabia para onde ia, estudara a papelada e
lera os livros, mas a escala desse mundo continuava a ser
deslumbrante aos seus olhos. O casco do Neptune Cumberland era
uma parede de aço brilhante. As gruas eram do tamanho dos
arranha-céus de Manhattan. Sabia que os contentores chegavam a
pesar trinta toneladas, mas as gruas retiravam-nos dos camiões de
caixa aberta como se não pesassem nada, e havia uma
graciosidade improvável nessa ilusão de leveza. Estava parada num
ambiente de indústria não adulterada e máquinas gigantes, um porto
onde os seres humanos não pertenciam, sentindo-se cada vez mais
pequena, até que apareceram os seus anfitriões, dois homens
descendo os degraus de aço branco vindos do convés. Demoraram
imenso tempo a alcançá-la. Apresentaram-se assim que pisaram
chão firme: Geoffrey Bell e Felix Mendoza, terceiro-imediato e
despenseiro, colega e chefe dela, respetivamente.
— Bem-vinda a bordo — disse-lhe Mendoza.
— Sim, bem-vinda — acrescentou Bell. Apertaram-lhe a mão, e o
segurança do porto tornou a entrar no carro e arrancou. Mendoza foi
à frente, e Bell seguiu-o com a mala dela, embora Vincent pudesse
perfeitamente tê-la levado.
— Ainda bem que aqui está — disse-lhe Mendoza. Continuou um
monólogo fluente todo o caminho até ao cimo das escadas.
Solicitara especificamente uma assistente de cozinheiro com
experiência em mais de um restaurante, explicou, porque já estava
no mar há muito tempo e precisava sinceramente de ideias novas
para a ementa. Esperava que Vincent não se importasse de
começar nessa mesma noite. (Ela não se importava.) Estava
satisfeito por ela ser canadiana, pois vários dos seus colegas de
trabalho favoritos, ao longo dos anos, tinham sido canadianos.
Deixou-o falar, porque a única coisa que queria era interiorizar
aquele lugar, o convés muito acima do porto, e não parava de
pensar «Estou aqui, estou mesmo aqui», enquanto Mendoza a
conduzia até às acomodações, descendo um corredor industrial
estreito que a fez recordar o interior dos ferries que faziam o
percurso entre Vancouver e a ilha de Vancouver.
— Deixe-se ficar sossegada a desfazer a sua mala — disse-lhe
Mendoza — que eu venho buscá-la daqui a umas duas horas. —
Bell, que não abrira a boca desde que se oferecera para carregar a
mala dela, pousou-a imediatamente a seguir à soleira do camarote
com uma delicadeza surpreendente e sorriu ao mesmo tempo que
fechava a porta.
O camarote era mais ou menos o que Vincent esperara, pequeno
e insipidamente utilitário, móveis a imitar madeira e paredes
brancas. Havia uma cama estreita, um roupeiro, uma secretária, um
sofá, tudo encastrado numa parede ou pregado ao chão. Tinha a
sua própria casa de banho pequena. Havia uma janela, mas
manteve o cortinado fechado, pois queria que o mar fosse a primeira
coisa que visse através da mesma. Do exterior provinha o som
constante de metal a bater, de arrastar e de ranger, gruas a
baixarem contentores nos porões e a empilhá-los bem alto na zona
de amarração. Tirou os seus pertences da mala — roupa, alguns
livros, a câmara de vídeo — e deu por si a pensar em Bell. Nunca
acreditara no amor à primeira vista, mas acreditava no
reconhecimento à primeira vista, acreditava que, ao conhecermos
alguém pela primeira vez, percebíamos logo que essa pessoa iria
ser importante na nossa vida, uma sensação semelhante a
reconhecer um rosto familiar numa fotografia antiga; num mar de
rostos que não têm qualquer significado, um destacava-se. Tu.
Correu o fecho da mala vazia, guardou-a no roupeiro e virou-se
para a pilha de lençóis e cobertores, e uma almofada já com muito
uso, em cima da cama. Fez a cama e depois sentou-se nela por
momentos, acostumando-se ao camarote. Era impossível não
pensar na suite na casa de Jonathan, em Greenwich, nas extensões
imensas de alcatifas e espaço vazio. O luxo era uma fraqueza.
Fora preciso muito para ali chegar, muitas formações, estudos,
certificações e burocracias, e, quando Mendoza a veio buscar,
quando lhe foi mostrada a cozinha onde passaria a sua vida de
trabalho, pareceu-lhe quase impossível estar realmente ali, a bordo
de um navio, ter realmente deixado terra firme para trás, e foi com
algum esforço que conteve um sorriso idiota enquanto ele
continuava um monólogo sobre planos de refeição — batatas fritas
com quase todas as refeições como norma, digamos que quatro
refeições em cada cinco, porque as pessoas gostavam, e as batatas
eram baratas, por isso ajudava a manter o orçamento sob controlo;
arroz biryani duas vezes por semana pelo mesmo motivo — e o
primeiro turno foi um bombardeamento de informação e batatas
fritas tal que só se apercebeu de que o navio já partira de Newark
no final da noite, quando saiu para o convés após as limpezas,
imunda e exausta, uma constelação de minúsculas queimaduras a
arderem-lhe nos antebraços, provocadas pela fritadeira industrial, e
constatou que o ar mudara, a humidade interrompida por uma brisa
fresca que não trazia qualquer odor a terra. Estavam a navegar em
direção a sul, rumo a Charleston, a Costa Leste dos Estados
Unidos, assinalada por uma fileira de luzes no horizonte a estibordo.
Foi à outra extremidade do navio para contemplar o Atlântico, a
escuridão deste somente interrompida pelas luzes longínquas de um
navio distante e por aviões a descerem em direção às cidades da
zona leste, e nesse momento o pensamento dela foi de que jamais
queria voltar a viver em terra firme.
— Por que motivo quiseste vir para o mar? — perguntou-lhe Bell,
da primeira vez que conversaram. Nessa altura já estava no mar há
uma semana, sensivelmente. O navio acabara de deixar as
Bahamas e começara a longa travessia pelo Atlântico, rumo a Port
Elizabeth, na África do Sul. Geoffrey aparecera na cozinha no final
do seu turno e perguntara-lhe se gostaria de ir dar uma volta com
ele. Levara-a até ao seu local favorito no navio, um canto no convés
no nível C que lhe agradava porque ficava longe do alcance das
câmaras de videovigilância.
— Sei que soa um pouco sinistro — justificou-se ele —, dito
assim em voz alta, mas o problema de estarmos num navio é a falta
de privacidade, não te parece?
— Não discordo — retorquiu Vincent. — Aquilo ali é uma
churrasqueira? — Havia uma estranha engenhoca tubular com
quatro pés presa às grades com uma corrente.
— É, sim — respondeu-lhe ele —, mas há anos que não vejo
ninguém dar-lhe uso. — Os churrascos a bordo eram tristes,
explicou-lhe ele. Bastava imaginar vinte homens especados num
convés de metal, a tentarem conversar na ventania enquanto
comiam cachorros-quentes e frango assado, uma parede de
contentores a erguer-se atrás deles. Não, não o estava a explicar
bem. Não eram vinte homens, eram vinte colegas de trabalho, vinte
pessoas que estavam no mar há vários meses e que estavam mais
do que saturadas da companhia umas das outras, e não havia uma
única cerveja para efeitos de lubrificação, por causa da regra
antiálcool. Ainda assim, gostava desse convés, confessou.
Vincent também gostava. Era sossegado, à exceção do zunido
permanente dos motores. Debruçou-se na amurada para contemplar
o oceano, lá em baixo.
— É um prazer não ver terra firme em lado nenhum — disse ela.
Os horizontes eram interruptos.
— Não respondeste à minha pergunta.
— Pois, perguntaste-me por que razão vim para o mar.
— Não é a minha melhor forma de começar uma conversa —
disse ele. — Talvez seja um pouco óbvia até, uma vez que estamos
a bordo de um navio. Mas há que começar por algum lado.
— É uma história um pouco estranha — retorquiu Vincent.
— Graças a Deus, há meses que não ouço uma história decente.
— Bem — começou por dizer Vincent —, vivi com um tipo durante
uns tempos, mas a coisa acabou de uma forma complicada.
— Certo... — retorquiu ele. — Não quero intrometer-me, caso
prefiras não falar sobre o assunto.
Vincent percebeu que ele compreendia os contornos de uma
história, imediatamente abaixo da superfície, como um icebergue, e
abriram-se-lhe duas possibilidades, duas variações: poderia contar-
lhe que vivera com um criminoso e arriscar ser desprezada por ele
ou ser uma dessas pessoas exaustivamente misteriosas com quem
ninguém quer falar porque não conseguem abrir a boca sem fazer
alusões a segredos obscuros que não podem, de todo, revelar.
— Não, tudo bem. Para dizer a verdade, não foi... Não deixei a
terra para trás especificamente por causa do que ele fez — disse
ela. — Deixei-a porque estava sempre a cruzar-me com as pessoas
erradas.
— Esse é um dos problemas de estarmos em terra — respondeu-
lhe Geoffrey. — Tem demasiadas pessoas.
Geoffrey
— Tailândia — repetiu Geoffrey Bell, a bordo do Neptune
Cumberland, no outono de 2013. — Por que razão vais à Tailândia
quando tiveres folga?
— Porque nunca fui — retorquiu Vincent.
— Parece-me uma boa razão. É que a maior parte das pessoas
aproveita a folga para ir a casa.
— E onde será isso? Não o digo com dramatismo — respondeu-
lhe Vincent —, mas, por esta altura do campeonato, não sinto que
tenha uma casa para onde ir em terra.
— Não me digas que consideras o Neptune Cumberland como
sendo a tua casa? — perguntou-lhe Geoffrey. — Estás no mar há
quê, dois meses?
— Três.
Três meses a acordar no seu camarote para um duche a meio da
noite antes de ir preparar os pequenos-almoços, longas horas a
cozinhar numa divisão sem janelas que oscilava quando estava mau
tempo, passeios no convés à chuva e ao sol, dormir com Geoffrey,
horas extras, três meses de trabalho árduo e noites sem sonhos,
enquanto o navio avançava num ciclo de 68 dias de Newark a
Baltimore e depois a Charleston, de Charleston a Freeport, nas
Bahamas, de Freeport a Port Elizabeth, na África do Sul, depois até
Roterdão, nos Países Baixos, e a Bremerhaven, na Alemanha,
regressando de seguida, via Atlântico, novamente em direção a
Newark. A maioria dos homens a bordo — era a única mulher —
trabalhava durante seis meses seguidos e depois tirava três meses
de folga, e decidira fazer o mesmo.
Geoffrey sorriu, mas não ergueu o olhar. Estava a criar um
pequeno cisne de origami. Ela dissera-lhe que o camarote dele era
pouco alegre, e Geoffrey concordara, por isso estavam a fazer
pequenos cisnes e a pendurá-los no varão da cortina.
— Eu tinha uma visão muito romântica sobre trabalhar no mar —
disse-lhe ele —, em miúdo, quero dizer. Tipo «ver o mundo» e tal.
Mas, afinal, a maior parte do mundo parece uma série de portos de
contentores em constante rotação.
— E, no entanto, ainda aqui estás.
— Ainda aqui estou. A pessoa deixa-se agarrar. Leste aquele livro
que te ofereci no teu aniversário? — Ergueu um cisne no ar,
rodando-o entre os dedos, e depois entregou-o a Vincent.
— Já vou quase a meio. Estou a adorar. — Vincent furou o cisne
com a agulha (a loja vendia kits de costura) e atravessou-o com o fio
de pesca.
— Achei que irias gostar. Se já vais a meio, então já chegaste
àquela parte em que eles vão à pesca de pássaros, certo?
— Sim. Adorei essa descrição. — O livro que lhe oferecera era
uma coleção de narrativas escritas pelo comandante e pela
tripulação do Columbia Rediviva, um navio mercante norte-
americano que percorrera o globo na última década do século xviii e
continha uma descrição que jamais esqueceria: no último dia de
1790, a 370 quilómetros ao largo da costa da Argentina, o céu
enchera-se de albatrozes. A tripulação reunira-se no convés e
lançara anzóis com carne de porco salgado ao oceano, para
atraírem os pássaros que mergulhavam do céu.
— Também adorei. Li o livro quando tinha dezasseis anos e fiquei
obcecado com a ideia de vir para o mar. — Estava a ter alguma
dificuldade com o seu último cisne de origami: franziu o sobrolho,
alisou o papel e recomeçou. — Queres ouvir uma coisa um tanto ou
quanto devastadora?
— Pode ser.
— Uma vez o meu pai contou-me que o sonho dele era ser piloto
de avião. E agora perguntas tu: «Mas por que razão será isso
devastador?»
— Porque me disseste que ele era mineiro. — Vincent estava em
cima da cadeira de Geoffrey para pendurar os cisnes no varão do
cortinado, que não tinha utilização porque a janela de Geoffrey
estava constantemente bloqueada pelos contentores empilhados. —
Meu Deus, tens razão, Geoffrey, é terrível. A pessoa sonha voar e,
em vez disso...
— Não queria arrepender-me de não ter vindo para o mar.
— Faz sentido.
— Gostas? — Ergueu mais um cisne no ar, cor de laranja, um
pouco torto.
— Se gosto de quê, do teu cisne?
— Não, disto tudo. De estar no mar. Da tua vida.
— Sim. — Vincent percebeu a autenticidade das suas próprias
palavras. — Gosto de tudo. Adoro tudo. Nunca fui tão feliz.
8
O AVESSO DA VIDA
2015
UM CONTO DE FADAS
2008
A embarcação
No último setembro que Vincent e Alkaitis passaram juntos, foram
«velejar», como ele lhe chamara, o que parecia ser uma maneira
estranha de descrever uns dias de descanso numa embarcação
enorme sem velas. Convidara a amiga dele, Olivia, que Vincent
calculava que tivesse conhecido o irmão de Jonathan, e à noite os
três jantaram e depois beberam no convés, ao ar livre. Vincent, que
tentava manter-se sempre alerta, conseguia fazer um único cocktail
durar várias horas, mas gostava de preparar bebidas para as outras
pessoas.
— Estávamos mesmo agora a falar sobre ti — disse Olivia
quando Vincent regressou ao convés com uma rodada fresca que
preparara no interior.
— Espero que, pelo menos, tenham inventado uns boatos
interessantes — retorquiu Vincent.
— Não foi preciso — respondeu-lhe Jonathan. — Tu és uma
pessoa interessante. — Aceitou a bebida que Vincent lhe estendeu
com um ligeiro aceno da cabeça e passou o outro copo a Olivia.
— Fazes-me lembrar imenso eu própria, quando tinha a tua idade
— disse Olivia com o ar evidente de quem está a oferecer um
elogio.
— Ah — exclamou Vincent. — Sinto-me lisonjeada. — Olhou de
relance para Jonathan, que conteve um sorriso. Olivia beberricou a
bebida e contemplou o oceano.
— É delicioso — disse Olivia. — Obrigada.
— Ainda bem que gosta. — Vincent simpatizava imenso com
Olivia e sabia que o mesmo se poderia dizer de Jonathan, mas
havia algo nela que provocava uma certa tristeza em Vincent. O
vestido de Olivia era demasiado formal, o batom excessivamente
vivo, o cabelo fora acabado de cortar, e exagerava um pouco na
maneira como olhava para Jonathan. A combinação era forçada.
«Estás a dar demasiado nas vistas», queria dizer-lhe Vincent, «não
podes deixar que percebam o esforço que estás a fazer», mas é
claro que não havia como aconselhar uma mulher duas ou três
vezes mais velha do que ela.
— Costumam ir à Brooklyn Academy of Music? — perguntou-lhe
Olivia, ao fim de algum tempo. — Ainda no outro dia a minha irmã
me falou de um espetáculo que lá viu e ocorreu-me que não vou há
anos.
— Sabe que evito atravessar o rio sempre que posso —
respondeu-lhe Jonathan.
— Snobe — replicou Olivia.
— Pois sou. Mas ainda no outro dia pensei em Brooklyn. Estava a
ver uma casa para venda, umas águas-furtadas que um amigo meu
andava a pensar em comprar. Estava eu a olhar para aquele luxo
todo, cerca de 370 metros quadrados num bairro lindíssimo junto à
Ponte de Manhattan, e pensei: «Seja lá o que aquilo for agora, não
tem nada que ver com a Brooklyn que eu costumava conhecer.»
Parecia uma cidade diferente.
— Mas depois há a academia — disse Olivia. — A minha irmã
Monica estava a contar-me sobre esse espetáculo que viu, e dei por
mim a pensar: «Quando foi a última vez que lá estive? Em 2004?
2005?»
— Devíamos ir todos juntos — sugeriu Vincent, sem grande
intenção, mas um mês depois, de volta a terra firme, em casa, com
uma constipação numa ociosa tarde de outubro, deu por si a
perguntar-se se deveria propor a Jonathan uma atividade noturna
inesperada para o fim de semana, talvez surpreendê-lo com bilhetes
para o teatro ou algo do género, e os seus pensamentos foram dar a
essa conversa. Procurou a Brooklyn Academy of Music online e
encontrou o irmão.
Melissa na água
Ao que parecia, Paul, contra todas as previsões, obtivera algum
sucesso como compositor e intérprete. No início de dezembro,
atuaria três noites na Brooklyn Academy of Music. O programa
chamava-se «Terra Nortenha Distante: Bandas Sonoras para Filmes
Experimentais». Não o via há três anos, desde o último turno no
Hotel Caiette. Na imagem que aparecia no site da Academia,
parecia possuído: estava em cima de um palco, rodeado por
equipamento que ela não compreendia, teclados e caixas
inescrutáveis com mostradores e botões, as mãos desfocadas em
movimento, e, por cima dele, projetado numa tela, via-se uma
imagem que Vincent pareceu reconhecer como sendo a linha da
costa de Caiette, uma praia rochosa com arbustos escuros sob um
céu coberto de nuvens.
«Em Terra Nortenha Distante, o emergente compositor Paul James
Smith apresenta uma série de misteriosos vídeos caseiros, cada um
deles com exatamente cinco minutos cada, todos filmados pelo
compositor durante a sua infância na região rural ocidental do Canadá,
aqui apresentados como parte de uma impressionante composição que
mistura as linhas entre géneros musicais e interroga as nossas ideias
preconcebidas sobre vídeos caseiros, sobre a natureza selvagem,
sobre...»
Um pesadelo
Na semana que se seguiu, Jonathan trabalhou tantas horas
seguidas que quase não o via — uma pequena bênção —, pelo que
somente tinha de fingir leveza durante breves períodos de tempo.
Lia as notícias para se distrair, mas as notícias eram uma litania de
colapsos económicos. Pensou em regressar a Brooklyn e esperar
junto à porta da entrada do palco, mas a ideia de rever Paul era
repugnante.
Na quarta-feira seguinte, Vincent acordou com um pesadelo pela
terceira vez seguida em três noites. Andava a dormir mal há já
algum tempo, há semanas, mas o pesadelo era um problema
recente e inquietante. Tinha a certeza de que se tratava do mesmo
pesadelo, repetido, mas apenas retinha uma impressão vaga de
estar a cair, um pressentimento de catástrofe que persistia à luz do
dia. Fitou o teto por algum tempo, Jonathan a dormir ao seu lado, e
depois levantou-se, procurou a roupa de treinar — guardava-a
dobrada em cima de uma cadeira, junto à cama —, atou os
atacadores dos ténis às escuras e foi buscar as chaves ao gancho
perto da porta da cozinha. Gostava de sair de casa sem acender
uma única luz. Há um prazer intrínseco em não se ser visto.
No reino do dinheiro era importante ser magra, mas ela teria ido
correr de qualquer maneira. Adorava os subúrbios a essa hora do
dia, quando ainda possuía algum mistério. Era início de dezembro,
mas o tempo estivera gelado a semana inteira. Desceu rapidamente
o longo caminho de acesso que passava pela casa de Gil e Anya —
não se viam quaisquer luzes acesas —, em direção ao cul-de-sac,
onde as casas igualmente excessivas de dois vizinhos lampejaram
por entre as árvores, e desatou a correr num passo ligeiro assim
que alcançou a primeira rua a sério, a primeira rua que conduzia a
algum lado. Gostava da tranquilidade do bairro antes do amanhecer,
do secretismo de uma rua onde toda a gente estava a dormir, das
janelas às escuras. Jonathan não ficaria nada satisfeito por ela
andar sozinha na rua à noite, mas essas ruas nunca lhe tinham
parecido perigosas, e, além disso, tinha gás-pimenta no porta-
chaves. Quando por fim regressou a casa, eram 04h00 e ainda era
de noite. Deixou um bilhete a Jonathan, que só acordaria às 05h30,
depois tomou um duche, vestiu-se e chamou um táxi para a levar ao
comboio das 05h00.
Os outros passageiros no comboio a essa hora eram
essencialmente maníacos da indústria financeira, com os olhos a
cintilar na incandescência dos seus pequenos ecrãs, a enviar e a
receber mensagens de outros continentes. Vincent tinha uma fila de
lugares inteira à sua disposição. Após algum tempo, a noite deu
lugar a sombras e a uma madrugada carregada, com as cidades a
passarem de pontos de luz a silhuetas de telhados. Como fora Paul
capaz, deu por si a pensar, como fora capaz de a roubar daquela
maneira, mas sentia-se demasiado cansada para continuar essa
linha de pensamento e deixou-se arrastar para um estado suspenso
que não era sono mas também não era consciência, com as cidades
a reaparecerem e a cintilarem entre os intervalos nas árvores.
Acordou com um sobressalto enquanto o comboio dava entrada na
Grand Central.
Foi a sua última manhã no reino do dinheiro. Tomou o pequeno-
almoço no restaurante de um hotel perto da Grand Central. Seguiu-
se uma hora numa livraria, tempo passado em várias lojas e um
intervalo com jornais e café num café em Chelsea. Um momento
estranho: saiu do café e misturou-se com uma excursão turística,
um grupo de turistas que seguiam um guia com um chapéu de
chuva vermelho erguido no ar, e por breves instantes avistou a mãe
entre a multidão. Somente um vislumbre, mas não havia a mais
pequena dúvida — a longa trança castanha que lhe caía sobre as
costas, o casaco de malha vermelho que tinha vestido quando se
afogara —, e depois a multidão mexeu-se, e a mãe desapareceu.
Vincent deixou-se ficar no passeio durante imenso tempo, vendo o
grupo afastar-se. Estaria a alucinar? Manteve-se atenta a possíveis
sinais de demência enquanto atravessava a cidade cinzenta em
direção à parte alta da cidade, mas não viu nada que lhe parecesse
claramente irreal. O Central Park estava monocromático, árvores
escuras pendendo sob um céu descolorido.
Estava a subir os degraus que conduziam ao museu quando
Jonathan lhe ligou.
— Festa de Natal logo à noite — disse-lhe ele. — Queres passar
no escritório por volta das 19h30 e depois vamos a pé juntos?
— Às 19h30 está mais do que bem — retorquiu Vincent. — Estou
ansiosa. — Na verdade, esquecera-se completamente da festa de
Natal. O vestido que planeara usar estava pendurado no closet em
Greenwich, e não havia nada adequado no pied-à-terre. Mas a era
do dinheiro só terminaria dali a umas horas, pelo que não se tratava
propriamente de uma emergência, e deixou-se ficar mais um pouco
a contemplar a sua pintura favorita. Apaixonara-se por O Pensador,
de Thomas Eakins, a imagem enorme de um homem vestido com
um fato escuro, na casa dos trinta, as mãos enfiadas nos bolsos,
perdido em pensamentos. Regressara a essa galeria várias vezes
nas últimas semanas e detivera-se diante dessa pintura,
inexplicavelmente comovida pela mesma. «A mãe também teria
gostado dela», pensou.
Quando se virou para ir embora, viu um homem que reconheceu.
Estivera a contemplar a mesma pintura que ela, parado um pouco
atrás.
— Oskar — disse ela. — Trabalha com o meu marido, não é
verdade?
— No grupo de gestão de ativos. — Deram um aperto de mão. —
É um prazer voltar a vê-la.
— Juro que não é uma frase de engate — disse-lhe Vincent —,
mas costuma vir aqui com frequência?
— Não tanto quanto gostaria. Tive uma cadeira de História de
Arte na faculdade — acrescentou, como se tivesse de justificar a
sua presença ali. Cada um seguiu o seu caminho após uma breve
conversa de circunstância («Espero que venha à festa de Natal logo
à noite»), e o incidente teria passado despercebido, não fosse o
facto de ela dar por si a pensar nas limitações do seu contrato com
Jonathan. Gostava de estar com Jonathan, durante a maior parte do
tempo, não se importava nada, mas ultimamente dava por si a
pensar que seria agradável apaixonar-se ou, falhando isso, pelo
menos dormir com alguém por quem se sentisse realmente atraída
e a quem não devesse nada. Chamou um táxi e foi até à Saks, onde
passou algum tempo sob as luzes ofuscantes e emergiu uma hora
depois com um vestido de veludo azul e uns sapatos de couro de
verniz pretos. Ainda restavam tantas horas no dia. Não pensar em
Paul, provavelmente algures num estúdio a compor música nova
acompanhada do trabalho que lhe roubara. Chamou outro táxi e foi
até à zona financeira na Baixa, demorando-se num café de que
sempre gostara em particular. Esteve duas horas no Russian Café,
a beber cappuccinos e a ler o International Herald Tribune.
Por volta das 17h00, começou a ficar inquieta, pelo que reuniu os
seus pertences e saiu para a chuva lá fora. Procuraria outro café,
decidiu. Subiria até Midtown e arranjaria um sítio perto do escritório
de Jonathan, para chegar exatamente à hora certa. Mas a meio das
escadas para a estação de Bowling Green foi acometida pela
certeza de que morreria se entrasse no metropolitano. Sabia-o com
a mesma clareza com que sabia o seu próprio nome. Vincent deu
meia-volta e tornou a subir as escadas, meio a correr, meio aos
tropeções, avançando por entre um mar de pessoas em sentido
contrário, ansiosa por alcançar um banco antes de desmaiar. Nunca
desmaiara, mas com certeza a sensação era a que estava a
experienciar, a terrível sensação de leveza na cabeça, a noção de
estar à beira de um abismo. «Devia perguntar à minha mãe»,
pensou, e o pensamento igualmente irracional que se seguiu foi: «A
minha mãe está à minha espera no metro.»
Vincent alcançou o banco mais próximo, a arquejar, e decorreram
alguns minutos até ter a presença de espírito para abrir o chapéu de
chuva. Permaneceu sentada durante o que lhe pareceu uma
eternidade, segurando o chapéu de chuva suficientemente baixo
para esconder o rosto do olhar dos transeuntes, tentando recuperar
o fôlego, tentando não chorar. Se começara a ter ataques de pânico
— nunca os experienciara, mas decerto esse momento nas escadas
encaixava nessa categoria —, então já estava num estado mais
avançado que julgara, não tão coesa como antes, o sistema a
falhar-lhe. Deixou-se ficar sentada muito quieta até a respiração
abrandar, escutando a chuva que caía no chapéu de chuva e
observando os pés dos transeuntes que passavam.
O telemóvel vibrou dentro do bolso, e viu o número da
rececionista de Jonathan no ecrã.
— Está tudo bem, obrigada — disse ela, em resposta a uma
pergunta —, e consigo?
— Ouça — disse-lhe a rececionista, em vez de responder —, o
Sr. Alkaitis queria saber se pode vir ter ao escritório mais cedo. Diz
que é urgente.
— Com certeza. — A ideia de urgência de Jonathan era pedir um
conselho a Vincent sobre que gravata usar para a festa de Natal. —
Por favor, diga-lhe que vou a caminho.
Um carro é a pior maneira possível de viajar durante a hora de
ponta em Manhattan, mas tentar descer novamente a estação de
Bowling Green era um risco que Vincent não queria correr, por isso
chamou um táxi, que se dirigiu lentamente à zona alta da cidade no
meio do trânsito denso, ruas escuras a passarem em câmara lenta,
até que, a cerca de quilómetro de meio do escritório, saiu do táxi e
percorreu o resto do caminho a pé.
«Estás só muito cansada», disse para si mesma. «Não tens
problema nenhum. Qualquer pessoa poderia ter um ataque de
pânico após três noites sem dormir. Qualquer pessoa teria ficado um
pouco afetada depois do que o Paul fez.» No elevador com paredes
de vidro do Gradia Building, puxou o cabelo molhado rapidamente
para trás e tentou não olhar muito para as suas olheiras. As portas
abriram-se para o esplendor empresarial do décimo oitavo andar.
— Boa tarde, Sra. Alkaitis. Pode entrar — disse-lhe a rececionista
de Jonathan. Chamava-se Simone. Dali a uns meses, seria uma
testemunha-chave da acusação.
Quando Vincent entrou no gabinete, deparou com Jonathan
sentado à secretária, as mãos unidas em cima do tampo, e
estranhou logo a sua imobilidade. Parecia uma estátua, feita de
cera. Não estavam sozinhos. A filha dele, Claire, encontrava-se
sentada no sofá com a cabeça entre as mãos, e na outra ponta do
sofá estava um homem com cinquenta e muitos ou sessenta e
poucos anos, um pouco barrigudo, vestido com um fato caro e o
cabelo a ficar grisalho.
— Olá — disse Vincent. Não se recordava do nome do homem.
— Sra. Alkaitis. — A voz dele soou inexpressiva. — Sou o Harvey
Alexander. Trabalho com o seu marido.
— Ah, sim, claro, já nos conhecemos. — Vincent apertou-lhe a
mão. O que se passava com todos? Harvey estava com cara de
funeral. As mãos de Jonathan continuavam unidas em cima do
tampo da secretária, e Vincent reparou então que os nós dos dedos
estavam brancos. Vincent e Claire não simpatizavam
particularmente uma com a outra, mas sempre tinham conseguido
manter uma certa educação, e nunca acontecera Claire não a
cumprimentar quando Vincent entrava numa divisão.
— Alguém me explica o que se passa? — pediu Vincent.
Mantendo o tom de voz o mais leve possível, pois compreendia que
a leveza fazia parte do seu trabalho.
— Fecha a porta, por favor — disse-lhe Jonathan. Vincent
obedeceu-lhe, mas ele não voltou a falar, e ninguém na sala parecia
capaz de olhar para ela, pelo que Vincent se refugiou
temporariamente numa série de pequenas tarefas. Pousou o saco
da Saks junto ao cabide, despiu o casaco e pendurou-o, descalçou
as luvas e pousou-as em cima do saco da Saks e, por fim,
esgotadas as coisas para fazer, sentou-se numa das poltronas
reservadas às visitas, cruzou as pernas e esperou. Ficaram todos
em silêncio. Era como estar numa peça de teatro em que ninguém
conhecia a sua deixa.
— Alguém tem de lhe contar — disse Claire, e Vincent ficou
chocada ao constatar que Claire estava a chorar.
— Contar-me o quê?
— Vincent... — disse Jonathan, mas as palavras pareceram
falhar-lhe, e por momentos encostou as palmas das mãos aos
olhos. Estaria também a chorar? Vincent agarrou-se com força aos
braços da poltrona.
— Falem — pediu ela.
— Vincent, ouve, o meu negócio, não a coisa toda, não a
corretora onde a Claire trabalha, mas o grupo de gestão de ativos,
está tudo... — Não parecia capaz de continuar a falar.
— Estás falido? — Vincent acompanhava atentamente as
notícias. Eram as últimas semanas de 2008, a era da queda de
ações e dos bancos falidos.
— Oh, é muito pior do que isso! — A voz de Claire revelava um
certo histerismo. — Muito, mas muito pior, porra.
— Acho que não nos devemos esquecer — disse Harvey — de
que há uma grande probabilidade de que tudo o que dissermos aqui
hoje, nesta sala, tenha de ser repetido em tribunal. — Falava num
tom muito calmo, fitando um quadro do iate de Jonathan na parede
oposta. Parecia curiosamente dissociado da situação.
— Conta-lhe — disse Claire.
— Atenção... — lembrou Harvey, no mesmo tom de voz
desinteressado.
Após uma penosa pausa, Jonathan decidiu-se por uma pergunta:
— Vincent — disse ele —, sabes o que é um esquema Ponzi?
Terceira Parte
10
O coro do escritório
Dezembro de 2008
1
Tínhamos passado do limite, era por de mais evidente, mas mais
tarde foi difícil precisar qual era esse limite. Ou talvez todos
tivéssemos limites diferentes, ou tivéssemos passado do mesmo
limite em alturas diferentes. Simone, a nova rececionista, só tomou
conhecimento da existência desse limite no dia em que Alkaitis foi
preso, ou seja, no dia da festa de Natal de 2008, quando Enrico se
aproximara das nossas secretárias no final da manhã e nos dissera
que Alkaitis nos queria reunidos na sala de conferências do décimo
sétimo piso, às 13h00. Nunca tinha acontecido. O Acordo era algo
que levávamos a cabo, não algo que discutíssemos.
Alkaitis apareceu às 13h15, sentou-se à cabeça da mesa, sem
estabelecer contacto visual com ninguém, e disse:
— Estamos com problemas de liquidez.
A sala pareceu ficar privada de oxigénio.
— Pedi um empréstimo à corretora — disse ele. — Desviá-lo-
emos via Londres e registaremos as transferências eletrónicas como
receita da atividade comercial europeia.
— E o empréstimo será suficiente? — indagou Enrico, em voz
baixa.
— Para já, sim.
Bateram à porta nesse momento, e Simone entrou com o café.
Ninguém sabia muito bem para onde olhar. Simone estava a
trabalhar há escassas três semanas e não participava no Acordo,
mas percebeu de imediato que algo não estava bem. O ar da sala
estava carregado, como acontece nos instantes antes de uma
tempestade elétrica. Estava certa de que alguém dissera algo
terrível pouco antes de ela ter entrado. Somente Ron retribuiu o seu
sorriso. Joelle fitou-a com uma expressão vazia. Oskar olhava
fixamente para o bloco timbrado pousado à sua frente, em cima da
mesa, e pareceu a Simone que tinha lágrimas nos olhos. Enrico e
Harvey olhavam para o vazio. Alkaitis acenou com a cabeça quando
ela entrou e observou-a até se ir embora. Simone acabou de servir o
café e retirou-se, fechou a porta e esperou no corredor, em vez de
se afastar. Pareceu-lhe que ninguém falou durante um invulgar
período de tempo.
— Ouçam — disse Alkaitis, por fim —, todos sabemos o que se
faz aqui.
Mais tarde, alguns fingiriam não o ter ouvido, mas o testemunho
de Simone faria eco da descrição dos que o tinham de facto ouvido.
Alguns dos que fingiram não o ouvir também fingiriam não saber da
existência de um limite — «Sou tão vítima disto como os
investidores do Sr. Alkaitis», disse Joelle a um juiz, que discordou e
a condenou a doze anos —, mas depois, do outro lado do espectro,
havia Harvey Alexander, que concordaria totalmente com o
testemunho de Simone e que acabaria por confessar coisas de que
nem sequer fora acusado, numa espécie de acesso de culpa,
admitindo chorosamente ter exagerado as despesas e furtado
material de escritório, enquanto os investigadores, boquiabertos,
tomavam notas e tentavam desviar cuidadosamente a conversa de
volta ao crime.
Mas, para aqueles que ouviram o que Alkaitis disse nessa
reunião — aqueles que admitiram tê-lo ouvido —, essa afirmação
representava a travessia final ou talvez, mais precisamente, o
momento em que já não era possível ignorar a topografia e fingir
que o limite não fora já ultrapassado. É claro que todos sabíamos o
que ali se fazia. Não éramos parvos, à exceção de Ron.
Remexemos na nossa papelada, ou olhámos fixamente para os
nossos apontamentos, ou fitámos o vazio e imaginámos deixar o
país (Oskar), ou olhámos pela janela e fizemos planos firmes e
litigáveis para deixar o país (Enrico), ou olhámos pela janela e
decidimos de forma fatalista que era demasiado tarde para ir fosse
para onde fosse (Harvey), ou entregámo-nos à ideia fantasista de
que, de alguma maneira, as coisas iriam resolver-se (Joelle).
Ron olhou em redor, confuso. Era frequente parecer confuso,
apercebêramo-nos disso em relação a ele, e parecia que não fazia
realmente ideia do que ali se fazia, o que, em retrospetiva, era
desconcertante: o que julgaria ele que fazíamos senão gerir um
esquema Ponzi? Quando conversámos entre nós sobre o Acordo,
como passáramos a denominá-lo, o que julgaria ele que estávamos
a discutir? Ainda assim, lá estava. Olhou para o silêncio em volta,
pigarreou e disse:
— Bem, mas já temos tanta atividade financeira com o escritório
de Londres...
O silêncio que se seguiu a esse comentário foi, se possível, ainda
pior do que o silêncio que o precedera. Nunca nenhuma atividade
económica fora levada a cabo através do escritório de Londres
porque o escritório de Londres era composto por um único
funcionário com cinco endereços de e-mail cujo trabalho consistia
essencialmente em transferir fundos para Nova Iorque a fim de dar a
aparência de atividade financeira europeia.
— Excelente observação, Ron — respondeu-lhe Harvey. A sua
voz soou simpática e com uma pontada de tristeza.
A reunião terminou poucos minutos depois. Alkaitis tinha
gabinetes no 17.º e no 18.º andares do Gradia Building, e depois da
reunião deixou-nos no nosso pequeno e sombrio escritório do 17.º
andar e regressou ao Dezoito, que era um mundo à parte. Alkaitis
tinha o piso inteiro, e este reluzia. As pessoas no Dezoito faziam o
que os clientes julgavam que faziam, isto é, recomendavam e
comercializavam ações e outros valores. Uma centena de pessoas
trabalhava no Dezoito, numa empresa corretora cujas atividades,
acabou o FBI por concluir, eram completamente legais. No
Dezassete, geríamos uma empresa criminosa em vez de
investirmos o dinheiro dos nossos clientes, e essa desordem
fundamental refletia-se no nosso espaço de trabalho. Enquanto o
Dezoito era um mar de secretárias de vidro alinhadas em perfeita
simetria sobre alcatifas prateadas de pelo alto, o Dezassete tinha
uma alcatifa com trinta anos e uma cor indefinida, tinta a escamar
nas paredes, mobiliário em segunda mão e torres de caixas de
arquivo.
Quando Jonathan Alkaitis saiu do elevador no Dezoito, deparou
com Simone à conversa com um investidor. A maior parte dos
investidores não estava autorizada a aparecer sem avisar, em
especial investidores como Olivia Collins, que investira menos de
um milhão de dólares, mas Alkaitis sempre simpatizara com ela.
Conhecera o irmão dele, Lucas, há muito falecido. Assim que
Alkaitis viu Olivia, 74 anos e vestida de preto da cabeça aos pés, à
exceção de uma écharpe azul-turquesa enorme, Simone teve a
sensação de ele ter estremecido imediatamente antes de esboçar
um sorriso.
— Olá, minha querida. — Alkaitis deu-lhe dois beijos nas faces,
ao estilo francês.
— Estava aqui perto... — respondeu-lhe Olivia.
— Nesse caso, seja bem-vinda. Quer um cafezinho?
— Não digo que não.
Simone preparou o café e levou-o ao gabinete de Alkaitis, onde
Olivia descrevia uma exposição de arte qualquer, explicou mais
tarde Simone aos investigadores, ou pelo menos fora o que lhe
parecera. Simone gostava de combater o tédio levando a cabo jogos
consigo mesma: sempre que tinha de levar café a alguém, às vezes
fingia estar envolvida numa misteriosa cerimónia de café de alto
risco, um ritual em que a precisão dos seus movimentos era de
extraordinária importância. Fora esse o caso com o café de Alkaitis
e Olivia, pousando o tabuleiro exatamente no centro da mesa,
colocando as chávenas de porcelana exatamente no centro das
bases, etc., e então — isso nunca acontecera — Alkaitis levantara
um dedo para interromper o monólogo de Olivia e dirigira-se
precisamente a Simone:
— Simone... Olivia, peço imensa desculpa pela interrupção. O
que me está a contar é fascinante e quero muito ouvir o resto...
Simone, podes ficar a trabalhar até mais tarde, para ajudar com um
projeto?
— Com certeza — respondeu Simone, mas regressou à sua
secretária com uma sensação de desânimo, pois estava quase certa
de que, como empregada assalariada, não teria direito a qualquer
tipo de pagamento de horas extras, o que significava que tudo o que
fosse além do horário das nove às cinco seria serviço não
remunerado. Olivia foi-se embora uns minutos mais tarde com uma
expressão magoada — estava acostumava a ocupar uma grande
parte do tempo de Jonathan —, e a porta do gabinete deste fechou-
se atrás dela.
Ainda só tinha decorrido meia hora desde o final da reunião, mas
no piso de baixo, no Dezassete, estivéramos todos deveras
ocupados. Harvey foi ao armazém buscar um bloco timbrado novo,
levou-o para a sua secretária e começou a escrever uma confissão
completa; Joelle saiu para ir dar um breve passeio à volta do
quarteirão que em nada atenuou o seu pânico; Enrico sentou-se
diante do seu computador, comprou um bilhete de ida para a Cidade
do México, imprimiu o cartão de embarque e depois saiu pela última
vez, sem olhar para ninguém; Ron regressou à secretária dele e
passou algum tempo a ver vídeos de gatos e a pôr «Gostos» em
publicações de outras pessoas no Facebook, confuso e tentando
afastar uma sensação de terror dominante. Oskar passou noventa
minutos inteiros a estudar o preço dos imóveis em Varsóvia, depois
sete minutos a pesquisar que países tinham tratados de extradição
com os Estados Unidos da América e depois mais vinte e três
minutos a estudar o preço dos imóveis no Cazaquistão, onde tinha
uns primos, antes de desligar finalmente e deixar o escritório, com o
intuito de ir passar umas horas a outro sítio — a outro lugar qualquer
— antes da festa. Ainda estava a meio da tarde, mas ocorreu-lhe
que não se importava nada de ser despedido.
Enquanto caminhava na direção da estação de metro, pensou
inclusivamente em como justificaria a coisa: «Percebi que a
empresa estava a cometer fraude», imaginou-se a contar a um
futuro empregador, «e foi nesse dia que me vim embora. Nunca me
passaria pela cabeça abandonar um emprego daqueles, mas às
vezes é preciso traçar um limite». Apesar de esse limite, para Oskar,
já ter sido ultrapassado há onze anos, da primeira vez que lhe
tinham pedido para pré-datar uma transação. «É possível saber e ao
mesmo tempo não saber», disse ele mais tarde, quando interrogado
pelo advogado de acusação, e o Ministério Público caíra-lhe em
cima por causa disso, mas na verdade ele vociferou a opinião de
muitos de nós, muitas pessoas que andavam a pensar imenso sobre
essa duplicidade, sobre esse saber e ao mesmo tempo não saber,
sobre sermos honestos e não sermos honestos, sobre sabermos
que não éramos boas pessoas mas ainda assim tentarmos ser boas
pessoas, nas áreas limítrofes do que era considerado mau. Todos
morreríamos pela verdade nas nossas vidas secretas ou, mesmo
que não morrêssemos, pelo menos faríamos alguns telefonemas
confidenciais e tentaríamos fingir surpresa quando as autoridades
chegassem, mas no nosso dia a dia estávamos a receber uma
quantidade exorbitante de dinheiro para nos mantermos calados, e
para isso não é necessário sermos pessoas completamente
terríveis, dissemos a nós mesmos mais tarde, para fingirmos que
não vemos certas coisas — ainda que participando ativamente
nessas certas coisas — quando não somos apenas nós, porque
quem entre nós está completamente sozinho no mundo? Há sempre
outras pessoas à mistura. Os nossos salários e bónus
proporcionavam-nos o telhado por cima das nossas cabeças, as
bolachas em forma de peixinhos, as propinas, as despesas com
futuros lares, a hipoteca do apartamento da mãe de Oskar em
Varsóvia, etc.
E depois há a parte dessa equação que jamais poderia ser
mencionada em tribunal, mas que parecia ser extremamente
relevante e que é a seguinte: quando se trabalha com determinado
grupo de pessoas durante um certo período de tempo, ligar para as
autoridades implica destruir a vida dos nossos amigos. Os
advogados pedem-nos que não mencionemos nada disso no banco
dos réus, mas é real essa aversão a mandar os colegas para a
prisão. Trabalháramos juntos durante muito tempo.
Mas o dia dessa reunião foi também o dia em que passou a ser
tarde de mais para evitarmos a detenção, com a armadilha a fechar-
se rapidamente em torno de todos, à exceção de Enrico, apenas
porque este estava disposto a fazer o óbvio, isto é, partir antes de a
Polícia ter chegado, e Simone, que não tinha culpa de nada e que
não deveria estar a par de nada, ao fim do dia encontrava-se a
destruir documentos numa sala de conferências no 18.º andar.
Alkaitis abordara-a cinco minutos depois de Olivia se ter ido embora
e pedira-lhe que fosse comprar máquinas destruidoras de papel.
— Quantas?
— Três.
— Vou encomendá-las de imediato — respondeu-lhe ela.
— Não, precisamos delas já. Podes ir comprá-las à loja?
— Com muito gosto, mas não me parece que sozinha consiga
trazer três máquinas de destruir papel. Posso levar alguém comigo?
Ele hesitou.
— Eu vou contigo — disse-lhe. — Aproveito e apanho um pouco
de ar.
Foi embaraçoso, viajar no elevador e sair para a rua na
companhia do chefe. Tinha menos de metade da idade dele; tinham
preocupações distintas e moravam em Nova Iorques completamente
diferentes; não tinham nada para dizer um ao outro. Simone
perguntou-se se deveria tentar fazer conversa e estava a formular
uma observação casual sobre as condições atmosféricas quando
ele sacou do telemóvel, com o sobrolho franzido e perscrutando a
lista de contactos sem abrandar o passo.
— Joelle — disse ele —, leva todas as caixas de arquivo do
Xavier para a pequena sala de conferências no Dezoito, está bem?
Sim, a Sala de Conferências B. Podes pedir ao Oskar e ao Ron para
te ajudarem. Sim, extratos de conta, correspondência, memorandos,
tudo. Leva todas as caixas que tenham o nome dele. Obrigado.
Tornou a enfiar o telemóvel no bolso, e uns minutos depois
estavam na loja de material de escritório, a tremeluzir sob o brilho
das luzes fluorescentes.
Simone achou que Alkaitis estava com mau aspeto, apesar de, na
verdade, ninguém ter bom aspeto àquela luz. O ar estava abafado.
Empregados de escritório exaustos caminhavam devagar por entre
as prateleiras de metal altas. Alkaitis parecia estranhamente
impotente, olhando em redor como se nunca lhe tivesse ocorrido de
onde vinham as esferográficas que tinha em cima da secretária,
como se nunca tivesse imaginado que existissem tamanhos
depósitos de Post-its e dossiês neste planeta. Simone conduziu-o às
máquinas destruidoras de papel, onde fitou os vários artigos em
oferta.
— Esta parece-me boa — disse Simone por fim, apontando para
um modelo com um preço intermédio.
— Está bem — respondeu-lhe ele. — Sim.
— Três destas?
— É melhor levarmos quatro — retorquiu ele, recuperando a sua
capacidade de concentração. Levaram as máquinas até ao balcão,
onde Alkaitis as pagou em dinheiro, e saíram para a chuva lá fora.
Alkaitis caminhava rapidamente, e Simone estava a ter alguma
dificuldade em acompanhá-lo. Calçara uns sapatos com um salto
ligeiramente mais alto do que o habitual, por causa da festa de Natal
nessa noite, e começava a arrepender-se de o ter feito. No elevador,
subiram em silêncio, lado a lado.
— Obrigado por teres ficado até mais tarde — disse-lhe ele assim
que alcançaram o 18.º andar. — Na sexta-feira poderás sair mais
cedo.
— Certo. Obrigada.
Simone seguiu-o até à sala de conferências, onde alguém —
presumivelmente Joelle — deixara uma pilha de caixas de arquivo,
todas identificadas com o nome «Xavier». Alkaitis pendurou o
sobretudo molhado na parte de trás da porta e deixou-a lá com uma
das máquinas destruidoras de papel, regressando minutos depois
com uma caixa de sacos de reciclagem. Por essa altura já ela ligara
a máquina à corrente e estava a abrir as caixas.
— Aqui tens alguns sacos que poderás utilizar para o papel
destruído — disse-lhe ele. — Deixa-os aqui quando terminares, que
os empregados da limpeza levam-nos para o lixo. Mais uma vez,
obrigado por teres ficado. — Então retirou-se.
Uns minutos depois, Claire Alkaitis apareceu na entrada. Simone
ainda não falara com Claire e só no dia anterior descobrira quem ela
era, quando decidira perguntar a alguém sobre a mulher que estava
sempre a entrar e sair do gabinete de Alkaitis sem marcação prévia
e sem olhar para Simone.
— Olá, Simone — cumprimentou-a Claire. Simone ficou
surpreendida por saber o seu nome. — Disseram-me que
encontraria o meu pai aqui...?
— Esteve aqui agora mesmo — retorquiu Simone. — O
sobretudo dele ainda está pendurado na porta, portanto, calculo que
ainda volte. — Claire fitava a máquina de triturar papel e as caixas
«Xavier» com o sobrolho franzido.
— Posso saber o que está a fazer?
— Um pedido do Sr. Alkaitis. Está a tentar arranjar espaço nos
arquivos.
— Meu Deus — murmurou Claire entre dentes, e por momentos
Simone pensou que tivesse proferido um palavrão, mas o que fosse
que estivesse a preocupar Claire nada tinha que ver com Simone,
pois Claire deu meia-volta e foi-se embora sem dizer uma palavra. O
Dezoito tinha o tipo de alcatifa que abafava o som dos passos, mas
pareceu a Simone que ela se estava a afastar rapidamente. Simone
olhou para o papel que tinha na mão. Um memorando de Alkaitis
para Joelle: «Re: Conta de L. Xavier: Preciso de um ganho de
capital a longo prazo de 561 mil dólares sobre um investimento de
241 mil dólares, para uma receita de vendas de 802 mil dólares»,
dizia o memorando. Simone fitou-o por uns instantes, depois
dobrou-o e enfiou-o no bolso.
Claire foi dar com o pai de volta ao gabinete dele, sentado muito
quieto à secretária, com a cabeça entre as mãos. Harvey
encontrava-se sentado no sofá, fitando o chão com um pequeno
sorriso estranho. Nesse momento, Harvey sentia-se um pouco
zonzo, explicou mais tarde. Fora um dia importante. Sabia que os
investidores estavam a desistir. Sabia que os pedidos de
levantamento excediam o saldo que havia nas contas. Era por de
mais evidente que o fim estava próximo. Os seus olhos não
paravam de se encher de lágrimas, e, contudo, teve momentos de
uma alegria quase maníaca. A sua confissão por escrito em
progresso encontrava-se guardada debaixo de uma pasta na
prateleira superior esquerda da sua secretária, e pela primeira vez
em décadas sentia-se livre. Sentia — pediu desculpa ao tribunal por
empregar um lugar-comum, mas talvez possamos concordar,
senhoras e senhores do júri, que alguns lugares-comuns existem
por uma razão — que lhe tinham tirado um peso de cima.
Ambos ergueram o olhar assim que Claire entrou.
— Jonathan — disse ela —, porque é que a tua rececionista está
a destruir documentos na sala de conferências?
— Está só a arranjar espaço no arquivo — respondeu-lhe Alkaitis.
Harvey fez um som estranho com a garganta, como se tivesse
tentado rir, mas em vez disso se tivesse engasgado.
— Certo — retorquiu Claire, agarrando-se à normalidade como se
de uma boia de salvação se tratasse. — Bem, queria perguntar-te
sobre aquelas transferências que foram feitas ontem. Os
empréstimos da empresa corretora para o grupo de gestão de
ativos.
Ele permaneceu em silêncio.
— Quatro empréstimos — continuou ela, na tentativa de lhe
avivar a memória, mas o silêncio persistiu. — Ouve — disse ela —,
é bom que fique claro que não estou a insinuar nada. Mas foram o
oitavo, novo, décimo e décimo primeiro empréstimos este trimestre,
sem qualquer reembolso, e é o tipo de coisa que... Bem, espero que
compreendas que não estou a insinuar nada a não ser a aparência
de impropriedade.
— Essas transferências são perfeitamente rotineiras, Claire.
Estamos a expandir a operação de Londres.
— Por que razão haverias de fazer isso?
— Não estou a entender a tua pergunta...
— Está tudo a contrair — disse-lhe ela. — Na semana passada
ouvi-te a falar com o Enrico e disseste-lhe que estavas a perder
investidores, não a ganhá-los.
— Pareces cansada, Claire.
— Porque não consegui dormir nada ontem à noite, a pensar
nisto.
— Claire, querida, sei o que estou a fazer.
— Não, eu sei. Só estou a dizer que a ideia que dá, que o timing
da coisa...
— Exato — respondeu ele. — A ideia que dá. — Ele piscou os
olhos.
— Pai. — Ela não o tratava assim há mais de uma década.
— Não consigo continuar — disse ele, em surdina. — Pensava
que conseguiria cobrir as perdas.
— Como assim, «cobrir as perdas»?
2
Por que motivo estaria Simone a destruir documentos? Por que
razão Alkaitis deixaria a rececionista sozinha numa sala de
conferências com várias caixas com provas incriminatórias? No seu
depoimento, Alkaitis alegou não ter compreendido a pergunta. Por
sua vez, Harvey, no seu, ofereceu a opinião de que Alkaitis, que na
maior parte dos assuntos tinha uma capacidade impressionante de
autoilusão, compreendera finalmente que era tarde de mais para
evitar a detenção, mas possivelmente esperara proteger Lenny
Xavier, o seu investidor mais importante, que logo de início
percebera tratar-se de um esquema Ponzi e proporcionara uma ou
outra injeção de dinheiro. Talvez Simone estivesse a destruir
documentos precisamente por ser apenas uma rececionista e
Alkaitis estivesse convencido de que não compreenderia nada do
que via. Era um homem inteligente, mas sofria dessa tendência que
certos executivos mais velhos têm de julgarem que as rececionistas
fazem parte do mobiliário do escritório, não propriamente ao nível de
um armário de arquivos, mas perto. Talvez por Simone ser nova não
só no escritório como também na vida — polida dessa maneira
típica dos jovens de Midtown, mas ao fim e ao cabo com apenas 23
anos —, Alkaitis estivesse a contar com a ingenuidade dela,
convencido de que talvez não fosse alguém que percebesse
necessariamente que o pedido de ficar a trabalhar até tarde para
ajudar o chefe a «arranjar espaço no arquivo» era o possível
indicador de um encobrimento qualquer. Ou talvez a destruição dos
documentos fosse uma espécie de esforço simbólico e já
tivéssemos chegado ao ponto em que não importava quem via o
quê.
Depois de uma quantidade incalculável de tempo, Alkaitis
regressou à Sala de Conferências B. O seu comportamento mudara
consideravelmente desde a última vez que Simone o vira. Seriam
lágrimas nos seus olhos? Tinha o ar de um homem à beira do
precipício.
— Simone — disse-lhe —, quero que ligue à minha mulher, por
favor. Diga-lhe que é um assunto urgente e que quero que venha ter
comigo o mais depressa possível.
— Está bem — replicou ela —, é para já. — E, quando alcançou
a sua secretária, já ele regressara ao seu próprio gabinete, a porta
firmemente fechada. Telefonou para Vincent, transmitiu a
mensagem e voltou para a Sala de Conferências B e para a
máquina de triturar papel.
Simone ficou admirada quando Harvey apareceu com uma piza.
Aconteceu perto das 19h30. Cheirou-lhe a piza ainda antes de ele
ter entrado na sala.
— Vejam bem! — disse ele, num tom jovial. — Ainda aqui estás.
— Pensei que já te tivesses ido embora.
— Fiquei retido numa reunião demorada — retorquiu ele. —
Depois fui dar um passeio rápido e voltei com piza.
— Para me supervisionares?
— Para te substituir. Estás aqui há horas e não recebes mais por
isso, o que obviamente não está certo, e, mais importante ainda, a
festa de Natal começa dentro de meia hora. — Pousou a piza em
cima da mesa de conferências. — Tens fome? Penso que haverá
comida na festa, mas os hors d’oeuvres não contam como substituto
do jantar.
Tinha fome. Simone estava a trabalhar há quase onze horas
seguidas e sentia-se exausta, os olhos a arder um pouco devido ao
ar seco do arranha-céus. O mobiliário da sala de conferências
estava disposto em forma de L, com dois sofás num canto e um
candeeiro em cima de uma mesinha de apoio entre eles. Acabara
por apagar as luzes fluorescentes e por acender a do candeeiro,
que conferia uma luminosidade muito mais suave à divisão e a fazia
sentir-se ligeiramente melhor. Se um dia tivesse algum controlo
sobre a sua vida laboral, decidira, não trabalharia sob luzes
fluorescentes. Haveria alguma forma de poder trabalhar no exterior?
Não via como — as suas competências eram para empregos de
interior —, mas a ideia era agradável.
— Come o que quiseres — disse-lhe Harvey — e depois talvez
seja melhor ires andando para a festa. Eu fico aqui a acabar isto.
— Não vais à festa?
— Gosto de chegar tarde.
— Por que razão estamos a destruir todos estes documentos? —
Simone ia a meio da primeira fatia. Era de fiambre e de ananás, o
ananás enjoativamente doce.
— Essa é uma pergunta perfeitamente legítima — respondeu-lhe
Harvey. Observou-o, mas ele parecia não ter nada a acrescentar.
Harvey limpou os dedos num guardanapo, pensou durante uns
instantes e depois tirou mais uma fatia.
— Vais responder?
— Não — replicou ele. — Mas não é nada pessoal contra ti.
— Está certo.
— Vou levar um pouco de piza aos outros. — Saiu da sala com
duas das caixas de piza, e Simone terminou a sua fatia e saiu
também, indo buscar o casaco e a mala à receção antes de deixar o
escritório. O mais estranho era que o dia fora tão longo e entediante,
e ela ansiara tanto por esse momento, mas, agora que estava livre,
apetecia-lhe voltar para dentro. Tinha a certeza de que algo estava
prestes a acontecer. Sentia cada vez mais curiosidade em relação à
natureza da bomba-relógio no escritório e queria estar presente
quando explodisse.
3
A porta do gabinete de Alkaitis continuava fechada quando todos
os funcionários do Dezoito saíram para a festa. No Dezassete,
demorámo-nos e procrastinámos, à exceção de Enrico, que se
encontrava no aeroporto JFK à espera de embarcar num voo rumo
ao México, e de Oskar, que estava num bar ali perto, procurando
casas para venda em Astana, no telemóvel. Harvey estava na Sala
de Conferências B, a vasculhar as pastas Xavier. Ron tentava limpar
uma nódoa de sopa da gravata, na casa de banho. Joelle estava
entretida no Facebook. Mas por fim estávamos todos num
restaurante a poucos quarteirões de distância, reunidos à volta da
mesa do fondue de chocolate. Se fossemos só nós, somente o
grupo de gestão de ativos, não teríamos feito festa de Natal, ou pelo
menos foi o que dissemos a nós próprios mais tarde — não éramos
totalmente depravados —, mas não éramos apenas nós, éramos só
uma sucursal corrupta de uma operação de resto perfeitamente
legal, e a festa de Natal era um acontecimento importante,
envolvendo o grupo de gestão de ativos e a empresa de
corretagem, as cento e tal pessoas que trabalhavam no Dezoito e
que não faziam ideia de quem nós éramos.
Mais tarde, todos recordámos a festa de maneira diferente, quer
pelo bar aberto quer porque, é claro, em retrospetiva, as
recordações são sempre moldadas para se encaixarem nas
narrativas individuais. Estávamos a coscuvilhar e a beber quando
Alkaitis e a esposa chegaram, todos nós, à exceção de Ron, cientes
da nossa iminente fatalidade, tentando distrair-nos com comentários
banais sobre a comida que circulava em pequenos tabuleiros e
examinando sub-repticiamente os cônjuges dos nossos colegas,
que nos pareciam notavelmente exóticos por serem pessoas que
não víamos todos os dias. A esposa de Ron, Sheila, tinha os olhos
grandes e um ar espantado, como um veado. O marido de Joelle,
Gareth, era uma pessoa letárgica, de movimentos demorados e fato
demasiado grande, com um rosto tão desinteressante que quase
não dávamos por ele. («É uma espécie de buraco negro», disse
Oskar a Harvey, quase num tom de admiração. «Daria um excelente
agente secreto.») A esposa de Harvey, Elaine, era uma mulher
bonita, que irradiava um ressentimento mudo e que se retirou ao fim
de quarenta minutos, ostensivamente, porque estava com dor de
cabeça. E depois Alkaitis chegou com Vincent, que de imediato
ofuscava sempre qualquer cônjuge presente. Observámo-los a
entrar juntos, com duas horas de atraso; Alkaitis com sessenta e tal
anos, a esposa talvez na casa dos vinte e muitos, no máximo trinta
e poucos, uma verdadeira mulher-troféu, absurdamente linda num
vestido azul. Podiam ter-se feito umas piadas de bom gosto, mas
ninguém as tentou, embora Oskar tivesse estado próximo:
— Onde acham que aqueles dois se encaixam na Medida de
Intervalo Maio-Dezembro? — Já levava um avanço de duas bebidas
de nós.
— O quê? — perguntou Gareth.
— É a fórmula pessoal do Oskar — retorquiu Joelle. — Acha que
é razoável classificar uma relação como abjeta se a diferença de
idades exceder a idade da pessoa mais nova. — Tinha umas
olheiras profundas.
— Portanto, se ele tivesse, digamos, sessenta e três anos —
respondeu Oskar — e ela tivesse, digamos, vinte e sete anos...
— É melhor não dizermos nada — replicou Harvey, num tom
jovial e tentando mudar de conversa. A sua confissão por escrito
tinha um total de oito páginas.
— Bem, parece ser simpática — disse Oskar, sentindo-se um
pouco culpado. — Falei um bocadinho com ela no churrasco do
verão passado.
— Sempre me pareceu um pouco emproada — disse Joelle, que
Oskar reconheceu como sendo a maneira de Joelle dizer que era
«paga à hora», o que era um disparate, a não ser que não fosse tão
disparatado como isso?
— O Enrico não está cá — comentou Oskar, numa tentativa
evidente de mudar de assunto. A ausência de Enrico seria uma das
poucas coisas em que toda a gente estaria de acordo mais tarde.
Nesse preciso instante, estava a bordo de um avião rumo a sul.
Mais tarde, Ron disse aos investigadores que Jonathan Alkaitis
lhe parecera perfeitamente normal: afetuoso, prestando atenção ao
que as pessoas lhe diziam, conversando descontraidamente com os
seus empregados, de um lado para o outro na sala. Mas Oskar
lembrava-se de ter visto Alkaitis sentando sozinho no bar por vários
minutos, com um ar devastado; mais tarde, Oskar descreveu-o
como exibindo «uma espécie de expressão vazia», mas essa
descrição não lhe fazia justiça; fora mais como se a morte tivesse
entrado em Alkaitis, pensou Oskar na altura, como se a morte
tivesse entrado nele e estivesse a olhar para fora através dos olhos
dele. Alguns lembravam-se de que Alkaitis deixara a festa cedo.
— Acho que só ficaram uma hora — disse Joelle na sua primeira
entrevista com o FBI. — Não foi uma noite feliz. — Ela própria saiu
pouco depois, tal como Harvey, alegando a existência de uma
emergência inesperada no escritório. Teriam levado Oskar com eles
— afinal de contas, havia quatro máquinas destruidoras de papel —,
mas não o encontraram em lado nenhum.
Oskar encontrava-se parado junto à porta quando Jonathan e
Vincent saíram. Reparou na maneira como Vincent se retraiu
quando o marido lhe tocou na base das costas, e havia uma
intimidade tal nesse gesto que mais tarde lhe pareceu errado
mencioná-lo a alguém, mesmo quando estava a ser interrogado pela
segunda ou terceira vez sobre a maldita festa. E também não
contou a ninguém que se esgueirara logo atrás deles, em parte por
curiosidade, mas também porque estava ansioso para sair dali.
Quando saiu do elevador no átrio, Alkaitis e a esposa estavam a sair
para o passeio, lá fora. Um carro preto esperava-os na berma.
Alkaitis abriu a porta do carro à mulher. Esta abanou a cabeça.
Oskar observou-os, passando despercebido, longe do alcance da
sua audição. Vincent recusava-se a entrar no carro. Ouviu Alkaitis
dizer, com um cansaço infinito: «Pelo menos liga-me quando
chegares, por favor», perante o qual Vincent se limitara a dar uma
risada. Esta deu meia-volta e começou a caminhar rumo a norte, em
direção ao vento frio. Alkaitis ficou a vê-la afastar-se por uns
instantes e depois entrou no carro e partiu.
Oskar hesitou somente por breves instantes e depois seguiu na
direção norte também, atrás de Vincent.
4
De volta ao escritório, Harvey levou a máquina de destruir papel,
e depois as pastas rotuladas «Xavier», da sala de conferências para
o gabinete de Alkaitis. Este não iria precisar mais do gabinete, e ele
era da opinião de que alguém deveria aproveitar esse espaço
nessas últimas horas antes do fim. Harvey adorava o gabinete de
Alkaitis. Era composto por peças de mobiliário de madeira escura e
ornamentos caros, uma alcatifa espessa e pequenos candeeiros
decorativos. Nessa noite, o gabinete cintilava como um oásis, uma
piscina de luz quente no meio do caos, e por volta das 21h30 Joelle
trouxera uma máquina destruidora de papel e umas caixas com
pastas para se juntar a ele. Harvey sentou-se à secretária, Joelle
optou pelo sofá, e ambos destruíram as provas juntos. Foi quase
agradável.
— O que disseste ao teu marido? — perguntou-lhe Harvey,
decorrido algum tempo. Trocara uma série de SMS cada vez mais
secas com a esposa.
— Sobre ficar a trabalhar até tão tarde? Que havia uma
emergência no trabalho. — Joelle estivera a chorar, mas agora
parecia desligada, quase sonhadora. Harvey perguntou-se se teria
tomado alguma coisa para os nervos.
— É suficientemente genérico — respondeu-lhe Harvey. Estava a
destruir documentos a um ritmo regular, mas posicionara-se de tal
maneira que Joelle não conseguia ver que estava a guardar cada
terceira ou quarta página. Decidira salvar as páginas mais
incriminatórias porque, entretanto, lhe ocorrera um pensamento que
não deixava de ser horrendo por ser completamente irracional: E se
confessasse e ninguém acreditasse nele? E se pensassem que ele
estava louco?
— Como assim? — indagou Joelle.
— Quer dizer que é uma desculpa algo vaga.
— Mas é exatamente aí que as pessoas se atrapalham com as
desculpas que dão — retorquiu Joelle. — Ficam nervosas e incluem
uma série de pormenores excessivos, e é assim que toda a gente
fica a saber que estão a mentir. — Também estaria Joelle a guardar
documentos? Harvey não tinha a certeza. Às vezes parava para
olhar para um ou outro, mas parecia estar a destruir tudo, a não ser
que tivesse deixado alguns ficheiros importantes lá em baixo, no
Dezassete. — O meu marido nunca quer saber pormenores —
acrescentou Joelle. Harvey concluiu, a partir dessa afirmação, que o
marido de Joelle talvez andasse a ter um caso extraconjugal, mas
decidiu não partilhar essa suspeita. Harvey mexia nos papéis de
uma maneira complicada, separando os documentos mais
incriminatórios após um olhar rápido, deixando-os cair para o interior
do saco de lixo aberto atrás da secretária de Alkaitis, em vez de os
enfiar na máquina.
— A minha mulher vai querer saber pormenores — disse Harvey,
ao fim de algum tempo. — Vou chegar a casa, e ela vai dizer: «Que
tipo de emergência te obrigou a voltar para o escritório depois de
uma festa de Natal?» — Calou-se por momentos, resolvendo um
problema de encravamento de papel. — Queres tomar alguma
coisa?
— O Alkaitis tem álcool no gabinete?
— Tem, sim — retorquiu Harvey, levantando-se com alguma
dificuldade. Os joelhos estavam a incomodá-lo. A disposição do
escritório de Alkaitis implicava imensos móveis discretos, pelo que
demorou algum tempo a localizar o uísque. Harvey serviu uma
bebida a Joelle num copo de vidro e utilizou a caneca de café de
Alkaitis para si próprio. O aspeto positivo da caneca era a sua
opacidade. Joelle não conseguia ver de quão pouco Harvey se
servira, por isso podia permanecer mais ou menos sóbrio enquanto
guardava as provas dos crimes.
5
Nesse momento, Oskar encontrava-se parado junto à janela do
pied-à-terre de Alkaitis, num arranha-céus alto em Columbus Circle,
a beber vinho com Vincent. Esperara até Alkaitis se ter ido embora
antes de ir atrás dela. Vincent caminhara devagar, as mãos enfiadas
no fundo dos bolsos do sobretudo, olhando fixamente para o
passeio.
— Olá — dissera-lhe Oskar.
Vincent olhou para ele.
— Oskar. — Conseguiu esboçar um sorriso. — O que aconteceu
ao seu casaco?
Deixara-o na festa.
— Não sei onde o deixei. Posso acompanhá-la?
— Sim. — Caminharam em silêncio por algum tempo. A chuva
diminuíra de intensidade até já só restar uma morrinha que fazia o
passeio cintilar e deixava uma névoa brilhante no sobretudo e no
cabelo de Vincent, bem como nos braços cruzados de Oskar,
quando este baixou o olhar sobre si mesmo. Caminhou ao lado dela
e forçou a mente a ficar completamente vazia. «Só existe este
momento», disse para os seus botões. «Não penses em mais nada,
na prisão, por exemplo. Limita-te a subir a rua com esta mulher
lindíssima. Não importa que não seja tua.»
— Para onde vai? — perguntou-lhe, por fim.
— Para Columbus Circle — replicou ela. — Temos... o Jonathan
tem um pied-à-terre junto ao parque. Quer subir e tomar um copo?
— Com muito gosto. — Columbus Circle ainda ficava a oitocentos
metros de distância, oitocentos metros compostos por dez
quarteirões da zona alta de Manhattan, dez quarteirões de noite e
chuvinha fria e faróis, de sinais de trânsito e de montras e das
persianas dos pequenos negócios já encerrados a essa hora, vapor
a erguer-se de uma chaminé de plástico na rua, um vapor que se
tornava luminoso sob as luzes dos candeeiros de rua. Em Columbus
Circle, duas torres de vidro erguiam-se acima de um centro
comercial em forma de quarto crescente, viradas para a escuridão
do parque. Vincent deteve-se à porta da entrada do centro
comercial, fitando o coração da rotunda, o anel de bancos
iluminados em torno da estátua de Colombo.
— Está tudo bem? — Queria subir antes que ela mudasse de
ideias.
— Não vê uma mulher ali sentada? — Estava a apontar e por
momentos pareceu-lhe ver alguém, a sensação de movimento, mas
tratava-se de um efeito de luz, uma sombra entre os feixes dos
faróis, à medida que os carros entravam e saíam da rotunda. Os
bancos estavam vazios.
— Por momentos pareceu-me ver alguém, sim — respondeu ele
—, mas acho que deve ter sido um reflexo qualquer ou algo do
género.
— Estou sempre a pensar que vejo a minha mãe — retorquiu
Vincent.
— Ah — respondeu-lhe ele, sem saber qual seria a resposta
adequada para essa afirmação. A mãe dela viveria em Nova Iorque?
Teria o hábito de andar atrás de Vincent pela cidade fora? O
momento passou. Vincent exibia uma expressão vazia na luz branca
da entrada do centro comercial, mas aos olhos dele pareceria uma
pessoa que estava a passar por algo, e não queria perguntar-lhe,
mas era claro que ela sabia, tinha mesmo de saber, por que motivo
teria passado tanto tempo no gabinete de Alkaitis antes da festa, por
que razão teria recusado entrar no carro dele, não pensar nisso, não
pensar nisso. «Todos sabemos o que se faz aqui.» Estavam a subir
no elevador até ao piso do mezanino, uma altitude elitista onde as
lojas eram ainda mais caras, o olhar de Vincent fixo num ponto
indeterminado a meia-distância.
— Por aqui — disse Vincent, e Oskar achou perceber o encanto
desse lugar; quando se é uma pessoa com uma quantidade
exorbitante de dinheiro e que deseja privacidade, e se se for ali
durante as horas normais de comércio, seria perfeitamente fácil
misturar-se com a multidão até se esgueirar finalmente pela porta
discreta que conduz ao átrio superior, uma divisão elegantemente
iluminada com alcatifas abafadoras de todo o ruído, dois porteiros e
um rececionista, que acenou com a cabeça para Oskar e disse boa
noite a Vincent.
— Boa noite — respondeu-lhe ela. Teria uma ligeira pronúncia?
Nunca reparara nisso antes. Não soava como se fosse proveniente
de Nova Iorque. No elevador, Oskar olhou-a de relance (o silêncio
entre ambos começava a tornar-se uma terceira presença, como se
outra pessoa se tivesse instalado à força entre os dois e estivesse a
ocupar imenso espaço) e viu que o olhar dela estava fixo na câmara
por cima dos botões do elevador.
— Isto é sempre assim tão sossegado? — perguntou-lhe Oskar,
quando saíram para o 37.º piso. Estavam num corredor silencioso,
com portas cinzentas pesadas e uma iluminação ténue.
— Sempre. — Vincent parou diante de uma porta e começou a
vasculhar na mala. Sacou de um cartão-chave, e a porta
destrancou-se com um ligeiro bip. — O edifício está praticamente
vazio. As pessoas compram estes espaços para efeitos de
investimento e depois só aparecem uma ou duas vezes por ano, se
tanto.
— A Vincent e o seu marido compraram aqui porquê?
Conduziu-o ao interior de um apartamento agressivamente
moderno, tudo superfícies desimpedidas e ângulos fortes, com uma
cozinha imaculada na qual, calculava ele, nunca ninguém tinha
cozinhado. Uma janela que se estendia do chão ao teto dava para o
Central Park.
— Ele não é meu marido. — Descalçou os sapatos e dirigiu-se à
cozinha de colãs. — Mas, para responder à sua pergunta, e para ser
totalmente sincera, não faço a mais pequena ideia por que motivo
comprou este apartamento ou outra coisa qualquer.
— Porque podia — sugeriu Oskar. Ainda estava a tentar
compreender a primeira coisa que ela dissera, tendo em conta a
aliança que exibia no dedo. Vincent reparou que ele estava a olhar
para a aliança, tirou-a e largou-a calmamente dentro do caixote do
lixo na cozinha.
— Provavelmente. Sim, deve ter sido essa a razão. — A voz dela
denotava uma certa monotonia. — A única coisa que temos para
beber é vinho. Branco ou tinto?
— Tinto. Obrigado. — Estava virado de costas, junto à janela,
quando ela apareceu ao seu lado com dois copos, mas nunca tirou
os olhos do reflexo da mulher no vidro.
— À nossa — disse ela. — Um brinde a conseguirmos aguentar
até ao fim deste dia.
— O seu dia foi tão mau como o meu?
— Provavelmente pior.
— Duvido.
Ela sorriu.
— Hoje o Jonathan revelou-me que é um criminoso. E o seu dia,
como foi?
— Foi... foi, hum... — Como teria sido? «Todos sabemos o que se
faz aqui.» «Hoje percebi que vou para a prisão», apetecia-lhe
responder, mas era claro que não havia motivo para acreditar que
ela não estivesse a trabalhar com o FBI. Talvez Oskar pudesse
trabalhar para o FBI, se ao menos conseguisse parar de se
perguntar se todos à sua volta estariam a trabalhar para o FBI, uma
paranoia extenuante, mas era claro que isso implicaria confessar e
aceitar o seu castigo, e, se ainda houvesse saída, e se ele
conseguisse, de alguma forma, perder-se na confusão, talvez os
investigadores fossem atrás de Alkaitis e dos tipos de topo, Enrico e
Harvey, e deixassem o resto das pessoas em paz. — Sabe que
mais? — disse ele. — E se falássemos de outra coisa?
Ela sorriu.
— Não é a pior ideia que ouvi esta noite. Este vinho não é nada
de especial, pois não?
— Pensava que era de mim — respondeu-lhe ele —, mas não
percebo muito de vinhos.
— Eu percebo demasiado e sinceramente não posso dizer que
ache o assunto deveras interessante. — Pousou o copo em cima da
mesa de apoio. — E pronto. Aqui estamos.
— Aqui estamos... — Sentiu uma pequena tontura. Ela estava
demasiado perto, e o seu perfume estava a subir-lhe à cabeça.
6
— Teoricamente — disse Harvey, depois de um longo período a
destruir provas e sem falar —, não seria possível fugir do país e
levar os filhos?
— Arrancá-los de perto de todas as pessoas que conhecem,
arranjar maneira de convenceres a tua mulher a alinhar, para não
seres acusado de rapto, e depois arrastá-los para onde,
exatamente? — Joelle parou de destruir documentos por breves
instantes, para beber um trago de uísque.
— Para um sítio agradável — replicou Harvey. — Se é para fugir
do país, o melhor é ir para um paraíso tropical, certo?
— Sei lá — retorquiu Joelle. — Que tipo de educação seria essa?
— Uma educação interessante. «Onde é que cresceste?» «Ah,
andei fugido com os meus pais, a morar num paraíso tropical.»
Podia ser uma infância bem pior.
— Talvez seja melhor pararmos de falar sobre filhos — respondeu
Joelle.
— Ouve — disse-lhe Harvey, tentando poupá-la a imagens de
salas de visita de estabelecimentos prisionais —, acho que há uma
grande probabilidade de nos safarmos com uma liberdade
condicional. Na pior das hipóteses, talvez uma pulseira de
monitorização eletrónica, meia dúzia de meses em prisão
domiciliária.
— É um pouco como uma experiência fora do corpo — disse
Joelle mais tarde —, não é?
— Nunca tive uma experiência fora do corpo — retorquiu Harvey.
Mas sabia o que ela queria dizer. O momento não parecia
exatamente real.
— Eu já — respondeu-lhe ela. — Estava a destruir papel há
várias horas, e a ficar cada vez mais embriagada, e quando dei por
mim tinha morrido de tédio e estava a flutuar sobre essa cena,
vendo o meu cabelo lá de cima...
Por volta das 23h30, Joelle inseriu uma última página na máquina
destruidora de papel, sacudiu as mãos num gesto teatral e levantou-
se com cuidado.
— Vou até ao meu escritório — informou, depois deu meia-volta e
afastou-se lentamente na direção dos elevadores. Harvey foi
encontrá-la no seu gabinete, no Dezassete, aninhada debaixo da
secretária. Ressonava baixinho. Tapou-a com o seu próprio
sobretudo e voltou para o gabinete de Alkaitis. Harvey não estava
nada embriagado, mas ao fim de tantas horas havia várias zonas no
seu cérebro que pareciam ter-se desligado, e sentia cada vez mais
dificuldade em determinar que documentos guardar e quais deles
introduzir na máquina. As palavras nas páginas tinham cada vez
menos significado, letras e números a escapulirem-se diante dos
seus olhos.
À meia-noite, na cidade invernosa, Harvey estava sozinho no seu
gabinete com dez caixas de documentos contendo provas
incriminatórias. Numerara-as. Mais tarde iria vasculhá-las para se
certificar do que guardara, decidiu, e talvez inserisse umas notas de
rodapé na sua confissão: «Ver memorando pessoal na caixa #1»,
«Correspondência relevante na caixa #2», etc. Mas quanto tempo
demoraria a fazê-lo, toda essa referência cruzada? Provavelmente
demasiado. Provavelmente mais tempo do que aquele de que
dispunha. Estava cansado, mas sentia-se muito leve. Talvez
devesse pedir ajuda a Simone. Harvey estava a pensar nisso
quando saiu do edifício. Simone era má ideia, decidiu, uma vez que
era muito nova na empresa e por isso não tinha uma lealdade firme
à mesma. Não podia contar que não telefonasse para a Polícia
antes de a indexação estar concluída. Chamou um táxi e observou
as ruas que passavam rapidamente, as luzes e as pessoas que
passeavam os cães a horas tardias, as paredes íngremes dos
arranha-céus, o pessoal das entregas em bicicletas, a comida
quente balouçando em sacos pendurados nos guiadores, os jovens
em grupos ou aos pares e de mão dada. Sentia um amor imenso
pela cidade nessa noite, pela sua grandiosidade e indiferença.
Despertou com um sobressalto, com o motorista do táxi a espreitar
pela divisória:
— Acorde, amigo, acorde, já está em casa.
Às duas da manhã:
Harvey andava de um lado para o outro nas várias divisões de
sua casa, tentando memorizar cada pormenor. Adorava a casa e,
quando fosse para a prisão, queria poder voltar ali, andar de uma
divisão para a outra mentalmente.
Simone bebia vinho com as colegas de casa em Brooklyn. As três
partilhavam um T2, por isso não tinham sala de estar e reuniam-se à
volta da mesa da cozinha sempre que queriam socializar. Estavam
acordadas a essa hora porque a mais nova, Linette, fora apalpada
por um chefe do restaurante onde servia às mesas e chegara a casa
em lágrimas, e depois a conversa mudara para outros empregos, e
Simone estava a desabafar sobre a nuvem de incertezas que
pairava sobre os escritórios de Alkaitis.
— Isso soa muito suspeito — dizia-lhe Linette. — Tens a certeza
de que foi exatamente isso que ouviste?
— «Todos sabemos o que se faz aqui» — Simone tornou a citar,
enchendo os copos das colegas com vinho. — Mas digo-vos, não
foram só as palavras, foi o ar em si, como se toda a gente estivesse
perturbada por causa de algo que acontecera imediatamente antes
de eu ter entrado na sala...
No Gradia Building, Joelle dormia debaixo da secretária.
Também Oskar estava a dormir, mas nu e deitado ao lado de
Vincent.
Enrico estava num avião rumo a sul. Olhando fixamente para um
filme, mas sem o ver ou ouvir. Estivera a tentar imaginar a vida que
teria daí em diante, mas não parava de pensar em Lucia, a
namorada que deixara em Nova Iorque. Desejava ter percebido que
a amava antes de ter partido.
Jonathan Alkaitis encontrava-se sentado à secretária no escritório
de sua casa, a escrever uma carta para a filha. «Querida Claire»,
começava a missiva, mas não sabia como continuar, pelo que fitava
o vazio já há algum tempo.
7
Às três da manhã, Oskar acordou no pied-à-terre de Alkaitis.
Estava cheio de vontade de beber um copo de água. Vincent dormia
ao seu lado, respirando calmamente, e o seu cabelo mais parecia
uma mancha de tinta, sob a luz ténue do quarto.
Não sabia muito bem o que fazer. A ideia de se retirar a meio da
noite fazia-o sentir-se imoral, mas, por outro lado, como seria a
manhã se ficasse? Lera algures que o FBI gostava de prender as
pessoas de madrugada, cerca das 04h00 ou 05h00, a pretexto de
que os suspeitos são menos perigosos quando estão ensonados e
desarranjados. Tinha todos os motivos para acreditar que o Acordo
estava a desmoronar, portanto, talvez fosse detido dentro de poucas
horas, e seria com certeza menos embaraçoso para todos se não
fosse detido no apartamento de Alkaitis. Levantou-se da cama e
vestiu-se o mais silenciosamente possível.
Quando Oskar saiu para a sala de estar, ficou momentaneamente
encandeado. Oskar e Vincent tinham deixado todas as luzes acesas
na pressa de alcançarem o quarto, e o apartamento estava
demasiado luminoso, um pesadelo de iluminação de trilho e
superfícies refletoras. Levou as mãos aos olhos por uns segundos,
adaptando-se à luz, e, quando por fim olhou em torno da sala, a
primeira coisa em que reparou foi na pintura. Não a vira antes, mas
era grande, com cerca de 1,50 x 2,00 metros, o retrato de um jovem,
pendurado na parede junto à cozinha, com um foco de luz a incidir
sobre o quadro. O homem encontrava-se sentado numa cadeira
vermelha, envergando apenas calças de ganga e botas de estilo
militar. Tinha um ar demasiado pálido e magro. Havia algo de
inquietante na imagem, mas Oskar demorou algum tempo a reparar
nos traços de hematomas no braço esquerdo dele, as sombras a
acompanharem a linha das veias. Oskar aproximou-se, para tentar
decifrar a assinatura no canto inferior direito da pintura, e leu:
«Olivia Collins.»
Reconheceu o nome. Harvey mandara-o dar-lhe uma taxa de
retorno mais elevada do que o habitual, porque Alkaitis simpatizava
com ela, e era algo em que evitara cuidadosamente pensar até esse
momento. Alguns dos investidores eram instituições. Outros eram
fundos soberanos. Havia também instituições de caridade e fundos
de pensões, sindicatos e escolas. Havia indivíduos que viviam num
nível de riqueza que Oskar mal conseguia imaginar, mesmo após
tantos anos na cidade, mesmo ali parado naquele apartamento no
céu, num dos bairros mais luxuosos do mundo. Mas havia também
pessoas como Olivia Collins, pessoas que tinham herdado algum
dinheiro ou que tinham uma vida inteira de poupanças. Fazia
sentido que Jonathan Alkaitis tivesse um dos quadros de Olivia
Collins no seu pied-à-terre. Era uma amiga de longa data, tanto
quanto Oskar sabia. A questão não era ela estar prestes a perder
tudo, mas o facto de o ter perdido há muito tempo e de nem sequer
ter conhecimento disso. Oskar saiu do apartamento a correr, os
olhos cheios de lágrimas.
8
Às quatro da manhã, Joelle acordou debaixo da secretária. A sala
estava às escuras. «Fui abandonada», pensou, e sabia que ainda
estava embriagada porque esse pensamento encheu-a de uma
tristeza profunda. Mas depois percebeu que alguém a tapara com o
seu sobretudo e ficou tão sensibilizada com o gesto que teve de
piscar os olhos para conter as lágrimas. Estava quente debaixo da
secretária, debaixo do sobretudo, pelo que fechou os olhos e
deixou-se levar pelo sono.
9
Às quatro e meia da manhã, Alkaitis acordou sobressaltado com
o toque de uma campainha.
10
Por essa altura, já Oskar estava em casa, estendido em cima da
cama mas desperto, fitando um padrão complexo de sombra e luz
que entrava por uma janela de tijolos de vidro e se projetava na
parede do seu quarto. Estava a pensar no princípio, uma conversa
com Harvey que conseguia rever mentalmente como se de um filme
se tratasse. Não o princípio dos princípios, ou seja, a entrevista de
emprego em que tentara explicar a Alkaitis por que motivo o deveria
contratar, não obstante ter abandonado os estudos e não ter notas
particularmente impressionantes ou sequer um bom historial de
emprego. O outro princípio, o momento em que compreendera o
que implicava o seu trabalho. Decorrera mais de uma década desde
que Harvey entrara no seu escritório e lhe pedira para pré-datar uma
transação.
— Pré-datá-la? — perguntara Oskar. — No sentido de falsificar
um extrato de conta?
— Ele é o nosso maior investidor — dissera-lhe Harvey, como se
isso explicasse o pedido.
— Eu sei — retorquira Oskar, num tom de voz que deixava bem
claro que a explicação não fora suficiente. O investidor, Lenny
Xavier, tinha três mil milhões de dólares nas contas de Alkaitis.
— E solicitou que não houvesse perdas na sua conta daqui para
a frente. — Harvey soara extremamente tranquilo, mas decerto
estaria a transpirar. — És um tipo inteligente, Oskar. Já deves ter
visto umas coisas.
— Eu... — Sim, vira algumas coisas. Havia coisas que não faziam
sentido e outras que andava a ignorar, porque estava a ser
absurdamente bem remunerado e tinha o seu próprio gabinete.
— Ah, quase me esquecia... — disse Harvey. — Aqui tens o teu
bónus de Natal.
Poderia o suborno ter sido mais óbvio? Oskar sentira-se
embaraçado pelos dois. O envelope que Harvey fizera deslizar
sobre o tampo da secretária continha um cheque que fez Oskar
arquejar num gesto involuntário.
— Entraste num novo patamar de confiança — dissera-lhe
Harvey —, o que significa que os bónus aumentam em
conformidade. Dá uma espreitadela aos extratos de conta do Xavier
relativos ao mês anterior, lê a correspondência, antedata a
transação e depois vai comprar um barco ou algo do género.
— Um barco — replicara Oskar, meio distraído, ainda a olhar para
o cheque.
— Ou umas férias. Estás com ar de quem precisa de apanhar um
pouco de sol. — Harvey pôs-se de pé com algum esforço. Já nessa
altura havia um certo peso nele, tanto tempo antes do fim. Oskar
ficou a vê-lo retirar-se do gabinete e depois voltou a atenção para a
pasta de Lenny Xavier.
Os extratos de conta: 2,92 mil milhões de dólares.
A correspondência: uma carta de Xavier para Alkaitis, a solicitar
um levantamento de 200 milhões de dólares. Uma carta de Alkaitis a
confirmar um levantamento de 126 milhões de dólares. Uma
segunda carta de Xavier a confirmar a receção do mesmo.
A confirmação, mais ou menos, de algo sobre o qual Oskar
andava a interrogar-se há algum tempo. Havia apenas duas
explicações: ou Xavier e Alkaitis tinham tido uma conversa não
registada e teriam chegado à conclusão de que afinal Xavier mudara
de ideias e somente pretendia 126 milhões de dólares, agindo de
acordo com isso. Ou então Alkaitis enganara-o, porque não havia
dinheiro suficiente nas contas para entregar os 200 milhões a
Xavier, e, em troca da generosidade de Xavier em ficar calado, de
agora em diante as contas de Xavier não revelariam quaisquer
perdas, daí a transação antedatada. Oh, meu Deus, oh, meu Deus,
oh, meu Deus.
Numa versão fantasma da sua vida, uma versão de si na qual
pensava cada vez mais nos últimos tempos, Oskar fechara a porta
do gabinete e ligara para o FBI.
Mas na vida real não ligou para ninguém. Deixou o escritório meio
atordoado, mas, quando chegou finalmente à esquina, percebeu
que não podia fingir estar chocado e sabia que iria depositar o
cheque, porque já era cúmplice, já estava por dentro de tudo e já há
algum tempo.
— Tu já sabias — ouviu-se murmurar, falando em voz alta. —
Não há aqui surpresa nenhuma. Tu sabes o que és.
11
INVERNO
1
No dia a seguir à última festa de Natal, o tempo decorreu de uma
forma irregular no Gradia Building.
Para Oskar, as horas do dia misturaram-se com tanta rapidez que
se sentia em constante movimento, cheio de tonturas, mesmo
sentado à secretária. Ficar ou fugir? Talvez ainda houvesse tempo
para deixar o país, mas a cada hora que passava a sua posição
cimentava-se. O café não estava a ter o efeito que Oskar desejava,
e mais tarde reviu esse dia em flashes desconexos. No início da
tarde, passara pelo escritório de Harvey e vira-o a escrevinhar algo
num bloco timbrado. Oskar viu um amontoado sólido de texto, sem
espaço entre as linhas.
— O que estás a escrever?
— Ah — respondeu-lhe Harvey, olhando de relance para o texto
como se tivesse acabado de reparar nele. Como quem diz: «Esta
coisa aqui?» — Nada de mais. — Retomou a escrita, e Oskar foi até
à fotocopiadora, mas encontrou Joelle parada junto à mesma,
completamente imóvel e a fitar o vazio. Sem fazer barulho, Oskar
deu meia-volta e foi tentar usar a fotocopiadora no 18.º piso. O
Dezoito estava num rebuliço, como de costume. O mundo era mais
alegre ali em cima. Iriam ficar bem, não iriam, todas essas pessoas
do piso superior? Se a empresa de corretagem era legítima, como
de resto sempre lhe fora dado a entender, não via motivos para que
não ficassem bem. Se fosse melhor pessoa, pensou, ficaria feliz por
eles, em vez de ressentido. A escala do Acordo era absolutamente
impressionante. Sempre nutrira uma admiração secreta pelo
mistério do Dezassete, a sensação de pertencer a um círculo
restrito, de funcionar fora dos limites da sociedade, talvez mesmo
fora dos limites da própria realidade — haveria alguma diferença,
aliás, no panorama geral, entre uma transação que ocorrera
realmente e uma transação que aparentava ter ocorrido nos extratos
de conta impecavelmente formatados de Oskar? —, mas ali em
cima, nesse nível mais elevado, havia pessoas que trabalhavam em
completa inocência, pessoas cujo conceito de transgressão era
pagar um jantar de amigos com o cartão de crédito da empresa, e
sentia muitas saudades de fazer parte desse grupo.
Quando passou pelo gabinete de Alkaitis, a porta encontrava-se
aberta, mas Alkaitis não estava lá. Dois homens vestidos com fatos
escuros contemplavam algo em cima da secretária, os sobretudos
atirados para as costas de uma das cadeiras reservadas às visitas.
Um dos homens estava a falar ao telemóvel, num tom demasiado
baixo para Oskar conseguir ouvir. Simone estava sentada à sua
secretária, junto à porta do gabinete, a observá-los.
— Quem são aqueles tipos? — indagou Oskar.
Simone fez-lhe sinal para que se aproximasse.
— O Alkaitis foi preso esta manhã — sussurrou-lhe. Oskar sentiu
o odor a pastilha elástica de mentol no seu hálito.
Agarrou-se ao rebordo da secretária.
— A que propósito? — obrigou-se a perguntar.
— Dizem que se trata de fraude de ações e investimento. Sabias
— perguntou-lhe ela — que ele me mandou destruir documentos?
— Que tipo de...? — Oskar estava a ter alguma dificuldade em
respirar, mas ela não parecia notar.
— Extratos de conta — retorquiu ela. — Memorandos. Cartas.
Agora que a Polícia está aqui, tudo faz sentido. Espera aí — disse-
lhe. O telefone estava a tocar. — Gabinete de Jonathan Alkaitis. —
Ficou à escuta, de sobrolho franzido. — Não, é claro que não, não
fazia a mais pequena ideia. — Inalou profundamente e afastou o
auscultador do rosto. Uma nova chamada a chegar e depois outra,
as várias linhas todas acesas. — Chamou-me cabra e desligou —
disse a Oskar, atendendo a chamada seguinte, libertando a primeira
linha, que de imediato desatou a tocar. — Gabinete de Jonathan
Alkaitis — disse e depois: — Sei tanto como o senhor. Nós... Acabei
de tomar conhecimento, literalmente. Eu sei. Eu... — Retraiu-se e
pousou calmamente o auscultador no descanso. As seis linhas
estavam agora acesas, uma cacofonia de toques sobrepostos.
— Não atendas mais nenhuma — disse-lhe Oskar. — Não
mereces isto.
— Já deve ter dado nas notícias. — Simone levou a mão atrás do
telefone e arrancou o fio da tomada; entreolharam-se em silêncio.
— Tenho de ir — exclamou Oskar. Regressou ao Dezassete
apenas o tempo suficiente para ir buscar o sobretudo. Estava
demasiado agitado para ficar à espera do elevador, pelo que optou
pelas escadas. Deslocava-se rapidamente, não propriamente a
correr, mas um pouco mais depressa do que o passo de caminhada,
e quase tropeçou em Joelle, sentada no patamar do 12.º andar com
as pernas esticadas para a frente. Joelle tinha os olhos fechados.
— Estás morta? — perguntou-lhe Oskar.
— Talvez. — A voz de Joelle soou carregada.
— Estás bem?
— Estás mesmo a perguntar-me isso?
— Estou a perguntar se te sentaste aqui por uns minutos —
respondeu-lhe Oskar — ou se estás a ter um ataque cardíaco ou
algo do género.
— Não me parece que esteja a ter um ataque cardíaco.
— Se te deixar aqui e continuar a descer, vais atirar-te de uma
ponte?
— Ele foi preso — disse Joelle.
— Sim.
— O meu marido vai ver, isto se ainda não viu, e depois vai dizer-
me: «Oh, meu Deus, acreditas numa coisa destas?» E eu ou lhe
minto na cara, o que não vai ser plausível porque ele não é parvo,
ou respondo: «Pois, amor, por acaso até acredito.»
Oskar ficou em silêncio.
— Alguma vez te perguntaste por que motivo fomos escolhidos?
— indagou Joelle. — Para o 17.º piso? — Continuava com os olhos
fechados. Ocorreu a Oskar que talvez o FBI já a tivesse contactado,
que talvez estivesse a gravar a conversa. O que uma mãe com uma
família recente não faria para evitar a prisão? — Quer dizer, a
questão é a seguinte — disse-lhe Joelle —, e gostava mesmo de
saber o que pensas: como é que ele sabia que o faríamos? Teria
qualquer pessoa agido da mesma maneira, desde que recebesse
dinheiro suficiente, ou seremos especiais? Terá olhado para mim um
dia e pensado: «Esta mulher parece ter uma conveniente falta de
princípios, esta pessoa parece indicada para fazer parte de...»
— É melhor ir andando — disse-lhe Oskar. — Não me sinto nada
bem. — Passou por cima das pernas de Joelle e fugiu dali,
descendo piso após piso a toda a velocidade. As escadarias dos
arranha-céus têm algo de tenebroso, a repetitiva espiral
descendente de portas e patamares. Quando saiu para o átrio
através de uma porta lateral, Oskar deu por si no meio de uma
pequena multidão, pelo menos duas dezenas de pessoas a
tentarem entrar no edifício. O seu estômago deu uma volta. Eram os
investidores de Alkaitis. Vários deles choravam abertamente. Outros
discutiam com seguranças, que tinham formado um pequeno grupo
também e pareciam confusos e aflitos.
— Ouça — explicava um dos seguranças —, compreendo
perfeitamente, mas não posso deixar ninguém...
— Você aí. — Uma das mulheres avistara Oskar. — Para que
empresa trabalha?
— Para a Cantor Fitzgerald — retorquiu Oskar. Fora a primeira
empresa que lhe ocorrera.
— Não sabia que a Cantor Fitzgerald tinha um escritório aqui —
comentou alguém, mas Oskar já se encontrava no passeio, lá fora,
onde começava a reunir-se uma multidão diferente: carrinhas de
canais de notícias a estacionar junto ao passeio, a bloquear o
trânsito, homens a transportar câmaras de televisão e luzes
chocantemente brilhantes, jornalistas a acercarem-se de todos os
que emergiam do edifício.
— Trabalhava com o Jonathan Alkaitis? — perguntou alguém.
— Quem? — respondeu-lhe Oskar. — Meu Deus, claro que não.
2
Oskar passou por Olivia Collins ao sair, mas, como esta nunca
fora ao 17.º andar — Alkaitis recebia-a sempre no Dezoito —, não o
reconheceu. Estava parada no átrio com os outros investidores,
tentando compreender esse mundo alterado. Estava ali há algum
tempo, e toda a cena — os investidores chorosos, os homens das
câmaras de filmar, as carrinhas dos canais de notícias que
estacionavam lá fora — mais parecia um pesadelo.
Umas horas antes, fora acordada de uma sesta pelo som de um
telefone a tocar.
— Desculpa, Monica — disse, após uns instantes de confusão —,
apanhaste-me a dormir e ainda não estou... — Calou-se, franzindo o
sobrolho, tentando compreender o que a irmã lhe estava a dizer. —
Monica — disse —, estás a chorar? — Estava sentada na beira da
cama, a olhar para o seu pequeno e adorado apartamento, esse
espaço que pagava com os rendimentos do investimento que fizera
com Alkaitis, mas o que Monica parecia estar a dizer-lhe era que
nunca tinham existido investimentos nenhuns, e por alguma razão
ela não estava a conseguir interiorizar a situação. Olivia pôs-se
lentamente de pé — levantar-se demasiado depressa às vezes
provocava-lhe tonturas — e vasculhou o interior do roupeiro
desorganizado à procura das botas para a chuva, da mala que
tencionava sempre pendurar no cabide, mas nunca o chegava a
fazer, e do sobretudo de inverno. — Monica — disse ela,
interrompendo a irmã a meio de uma frase —, vou agora ao
escritório dele para ver se descubro alguma coisa. Ligo-te mais
tarde.
No táxi, pôs batom de cor viva e prendeu o cabelo com um lenço
de seda, para acrescentar alguma robustez. Esperara ter acesso ao
escritório de Jonathan, com o intuito de falar com alguém —
qualquer pessoa —, mas não fora a única a ter a mesma ideia. Uma
multidão começava a reunir-se no átrio do Gradia Building. «São as
minhas poupanças de uma vida inteira», gritava um homem para um
dos seguranças, «pelo menos têm de me deixar falar com alguém,
isto são todas as minhas poupanças...», mas os seguranças, quatro
deles, estavam em fila junto aos torniquetes e, ao que parecia, não
faziam qualquer tenção de deixar alguém passar. Olivia deixou-se
ficar junto às portas, deveras incomodada com a fúria da multidão.
— Não está a perceber?! — Um homem falava com um
segurança que, aos olhos de Olivia, parecia ser muito jovem,
embora atualmente quase toda a gente lhe parecesse jovem. —
Roubaram-me o dinheiro todo.
— Eu compreendo, senhor, mas...
— Tem de se acalmar — dizia um segurança a uma mulher que
falava muito perto do rosto dele.
— Qual calma, qual quê — retorquiu a mulher —, mas quem é
você para me mandar acalmar?
— Eu compreendo, minha senhora, mas...
— Mas o quê? Mas o quê?!
— O que espera que eu faça, minha senhora? Que deixe subir
uma multidão de gente furiosa ao 18.º andar? — O segurança
estava a transpirar. — Estou só a fazer o meu trabalho. Estou a
fazer o meu trabalho. Afaste-se de mim, por favor.
Olivia deu um passo em frente, ao mesmo tempo que a outra
mulher recuava.
— Sou amiga pessoal do Sr. Alkaitis — disse ela.
— Nesse caso, ligue lá para cima e peça a alguém para a vir
buscar — respondeu-lhe o segurança.
Ligou para o número de Alkaitis, várias vezes, mas ninguém
atendeu. A cobardia... Imaginava-os escondidos lá em cima, atrás
de portas trancadas, a escutar o toque dos telefones, sem fazerem
nada. Não sabia o número da extensão de ninguém. Deixou-se ficar
no átrio durante imenso tempo, de um lado para o outro, com o resto
da multidão, entrando e saindo de conversas, e a princípio sentiu
um certo consolo no facto de estar na companhia de pessoas que
também tinham sido roubadas, que também estavam em estado de
choque, mas ao fim de algum tempo o miasma de tristeza e fúria
tornou-se demasiado, por isso chamou um táxi — o último táxi que
apanharia nos próximos tempos, ocorreu-lhe, vendo os números a
crescer no contador — e regressou ao seu pequeno apartamento na
zona alta da cidade.
Em comparação com o pandemónio no átrio do Gradia Building, a
sua casa estava muita tranquila e silenciosa. Olivia fechou a porta
atrás de si e por uns minutos deixou-se ficar no silêncio. Pousou as
chaves em cima da mesa da cozinha e sentou-se por momentos,
bebendo um copo de água e tentando adaptar-se ao mundo que se
lhe apresentava. Após uma pesquisa concentrada, encontrou o seu
mais recente extrato de conta bancária e estudou-o com atenção.
Até esse dia, tivera duas fontes de rendimento: o fundo de
investimentos de Alkaitis e a Segurança Social. Se fosse cautelosa,
decidiu, olhando para os valores, poderia continuar a morar no seu
apartamento por mais dois meses.
3
A escuridão já se instalara sobre Nova Iorque, mas ainda eram só
15h00 em Las Vegas, onde Leon Prevant, o executivo de
transportes marítimos que em tempos tivera a infelicidade tremenda
de se cruzar com Alkaitis no bar do Hotel Caiette, se encontrava
retido numa reunião que já dera o que tinha para dar, mas que se
recusava a terminar. O telemóvel vibrou-lhe dentro do bolso.
— Peço desculpa — disse Leon para os outros participantes —,
mas é urgente —, apesar de provavelmente não ser. Percebeu o
seu erro assim que saiu da sala. Há quinze anos que Leon vinha a
esta conferência, e a sua fita de identificação ainda exibia o nome
da empresa, mas estava ali na qualidade de consultor, e o seu atual
contrato terminaria no mês seguinte. O chefe fora incumbido de
congelar todos os contratos de consultoria «até o panorama se
revelar um pouco mais animador», mas quando seria isso? Fora
despedido havia dois anos no seguimento de uma fusão de
empresas, e agora, no final de 2008, os navios atravessavam os
oceanos com metade da capacidade, ou menos ainda, e podiam ser
fretados por um terço do valor do ano anterior. O panorama — e a
paisagem marítima — estava nublado e sombrio. Por outras
palavras, não era a melhor altura para abandonar reuniões, mesmo
reuniões zombies que deveriam ter terminado há mais de vinte
minutos. O telefonema era da sua contabilista. Fosse por que motivo
fosse que estivesse a ligar-lhe, com certeza poderia esperar, por
isso deixou que a chamada fosse para o voice-mail, contou
lentamente até cinco e tornou a entrar na sala, desculpando-se por
se ter retirado.
— Está tudo bem? — O chefe dele, D’Ambrosio, continuava a
fitar o relatório que Leon lhe entregara com o sobrolho franzido.
— Está tudo ótimo, obrigado. Não sei se já tiveram oportunidade
de digerir os números... — Esperara que todos dessem uma vista de
olhos rápida aos números e que acordassem discuti-los mais tarde,
mas pelos vistos a reunião era imortal.
— Tivemos, sim, infelizmente — retorquiu D’Ambrosio. — É um
verdadeiro massacre, não é?
— Bem... Como pode ver, estamos com um problema
considerável de excesso de capacidade.
— Esse deve ser o eufemismo do raio do século — exclamou
alguém.
— Como é óbvio, não estamos sozinhos. Esta manhã tive uma
conversa interessante com um amigo que trabalha na CMA. Estão
com navios ancorados ao largo da costa da Malásia.
— Parados sem fazerem nada? — Miranda fora subalterna de
Leon em Toronto e depois no gabinete de Nova Iorque, nos anos
antes de o cargo daquele ter sido reestruturado para consultor.
Agora detinha o cargo anterior de Leon, o seu gabinete e a extensão
telefónica, ainda que não o salário que ele auferira antes.
— Por enquanto, sim. Estão à espera para ver no que dá.
— É uma ideia interessante — retorquiu D’Ambrosio. — E quando
digo «interessante», quero dizer que «é possivelmente a melhor de
várias opções más».
— Estaríamos a criar uma espécie de frota-fantasma. — Tratava-
se de Daniel Park, que trabalhara lado a lado com Leon nos
escritórios de Toronto e que era agora diretor de operações da Ásia.
— Não seria preferível despacharmos algumas das embarcações
mais velhas?
— Parece-me uma solução permanente para um problema
temporário — respondeu-lhe Miranda.
— Mas este declínio — contrapôs Park —, este caos ou lá o que
lhe queiram chamar...
— Este «período de incerteza permanente» — interpôs um dos
europeus, num tom irónico, citando a opinião do orador dessa
manhã. Era alemão e relativamente novo na firma. Leon não se
lembrava do seu nome.
— Certo, pois, independentemente do eufemismo que queiramos
aplicar, isto poderá durar uns anos. Estaremos preparados para nos
comprometermos com, potencialmente, vários anos de custos com
pessoal para uma frota de navios não utilizados ao largo da costa da
Malásia?
— Os custos poderiam ser mínimos — disse Leon. — Uma
equipa reduzida, apenas homens suficientes a bordo para o
manterem a funcionar.
— Se avançarmos, talvez possamos definir um limite temporal —
sugeriu o alemão. — Wilhelm, ocorreu subitamente a Leon, o nome
dele era Wilhelm, mas e o apelido? Incomodava-o não saber. Em
tempos conhecera todas as pessoas que faziam parte da alta
administração. — Podemos ancorar os navios agora e
comprometermo-nos a voltar a esta questão daqui a um ou dois
anos e, se continuarmos a não precisar deles, despachamos o
excesso.
— Parece-me uma medida sensata — disse D’Ambrosio. —
Sugestões, objeções?
— Há a questão dos novos panamax — respondeu Miranda.
Ouviu-se um suspiro coletivo. A empresa encomendara dois navios
novos nesse paraíso perdido que fora 2005, numa altura em que a
procura parecera interminável e não tinham mãos a medir, e esses
navios — encomendados, pagos, há dois anos e meio em
construção e agora extravagantemente desnecessários — seriam
entregues pelos estaleiros da Coreia do Sul dentro de seis meses.
— Sugiro que os enviemos diretamente para a frota fantasma. —
D’Ambrosio olhou de relance para o relógio de pulso. — Meus
senhores, Miranda, lamento, mas acabou-se o tempo. Amanhã
voltaremos a este assunto. Wilhelm, se nos puderes fazer uma
análise...
A reunião terminou por fim, com a sala a dividir-se em pequenos
grupos ou a afastar-se na direção de uma sessão de conferências
que entretanto começara. Leon saiu juntamente com Daniel.
— Vais à sessão sobre o panorama económico? — perguntou-lhe
Daniel.
— Acho que vou deixar passar. Ando cheio de panoramas
económicos até ao pescoço, nestes últimos quatro meses.
— Podes crer... — O corredor estava vários graus mais arrefecido
do que a sala de conferências, o frio glacial do ar condicionado de
Las Vegas. Dois jovens funcionários do hotel levantavam canecas
sujas das mesas da cafetaria. — Vou ligar à minha mulher — disse
Daniel. — Vemo-nos ao jantar?
— Com certeza.
Era um prazer passar algum tempo longe das outras pessoas,
sem ninguém a fazer proclamações óbvias sobre o colapso
económico ou a puxá-lo para conversas histéricas sobre o
panorama da indústria de afretamento. Leon serviu-se de um café
com sabor a avelã e saiu para o átrio.
Miranda saíra da reunião antes dele e encontrava-se sentada
num sofá industrial, a alguma distância, a escrever algo no seu
bloco timbrado. Não, não estava a escrever, estava a desenhar: o
bloco estava virado para longe, mas observou os movimentos do
pulso dela com interesse, enquanto se aproximava. Miranda
começara na empresa como sua secretária administrativa, o que, ao
fim destes anos, mais parecia um boato pouco credível. Ele
pigarreou e ela virou a página, pousando o bloco em cima da
mesinha de apoio feita de mármore, para que não conseguisse ver
aquilo em que estava a trabalhar. Vira-a fazer esse gesto centenas
de vezes, no mínimo, e, como de costume, fez questão de não lhe
perguntar nada. Leon tinha opiniões vincadas sobre a privacidade.
— Também faltaste à sessão sobre o panorama económico —
disse ela.
— Toda esta conferência em peso é uma sessão sobre o
panorama económico. Decidi que o café era mais importante.
— Gosto das tuas prioridades. Já agora, é uma ideia
interessante, essa de atracarmos navios ao largo da costa da
Malásia.
— Importas-te de que falemos sobre tudo menos a crise
económica? — perguntou-lhe ele.
— De todo. Estou a pensar em arranjar uma desculpa e ir-me
embora mais cedo amanhã.
— Não me digas que não estás a gostar deste ambiente de
pânico mal suprimido?
— Há algo de quase entediante na desgraça — disse Miranda. —
Não concordas? Quer dizer, a princípio é tudo dramático, estilo «Oh,
meu Deus, a economia está a colapsar, houve uma corrida ao meu
banco, e este deixou de existir durante o fim de semana e foi
engolido pela JP Morgan Chase», mas depois isso continua a
acontecer, a economia continua a colapsar, semana após semana, e
a dada altura...
— Percebo exatamente o que estás a dizer — disse-lhe Leon. —
É a surpresa que me incomoda, pessoalmente, a maneira como
todas as pessoas com quem falo parecem chocadas com a quebra
na indústria.
— Podes crer, ainda hoje um dos nossos colegas, não vou referir
nomes, chamou-me à parte e disse: «Nem acredito no que está a
acontecer à nossa indústria, e tu?» E olha que estou a tentar ser
paciente com estas pessoas, a sério que sim, mas tive de lhe
perguntar: «Mas estás surpreendido com o quê, concretamente?
Ora vamos lá a ver então: não acreditas em quê, exatamente? Que
as pessoas não querem comprar coisas porque a economia colapsa
ou que as pessoas não querem expedir coisas que ninguém
compra?»
— Resultados previsíveis e tudo o mais. — Leon recordou nesse
instante que a sua contabilista lhe ligara e, num gesto meio
distraído, espreitou o telemóvel. Tornara a ligar, há dez minutos.
— Peço desculpa — disse —, parece que vou ter de ligar a esta
pessoa.
— Se não me vires ao jantar, é sinal de que consegui escapar.
— Estarei secretamente a torcer por ti — respondeu-lhe ele, ao
mesmo tempo que se levantava e afastava dela, na direção da
parede de vidro do átrio, rumo ao telefonema que dividiria
cirurgicamente a sua vida num antes e num depois.
— Pelos vistos ainda não está ao corrente de nada — disse-lhe a
contabilista —, caso contrário, já me teria ligado.
— Ao corrente de quê? O que se passa?
— Ainda não sabe?
— É evidente que não. — Nunca simpatizara com ela. «Parece
um autómato», dissera-lhe Miranda quando lhe perguntara se
poderia recomendar-lhe um bom contabilista, «mas é a melhor com
quem já trabalhei. Olha para as coisas de todos os ângulos».
Todavia, de que servia contratar a melhor contabilista com quem já
se trabalhou se iríamos ignorar os seus conselhos e aplicar todas as
nossas poupanças para a reforma num único fundo de
investimento?
— Leon... — não soava nada como um autómato, soava como
um ser humano e profundamente abalada; estava a transmitir uma
informação, percebeu ele imediatamente antes de ela lho dizer, que
lhe custava imenso transmitir — ...o Alkaitis foi detido esta manhã.
— O quê?! — Deixou-se cair no sofá mais próximo, fitando um
talude do outro lado do vidro, gravilha vermelha enfeitada com catos
e sob um céu excessivamente azul. — Desculpe, mas... o que
disse?
— Já deu em todos os noticiários — explicou-lhe ela. — Era um
burlão. Tudo aquilo era uma fraude.
— Tudo... o quê?
— Era uma fraude — disse a contabilista.
— Como assim? Está a dizer-me que todo o dinheiro que
investi...?
— Leon — respondeu-lhe ela —, lamento, mas o seu dinheiro
não foi investido.
— Impossível. Os lucros têm sido excelentes, temos andado a
viver deles, nós...
— Leon...
— Não compreendo — disse ele. — Sinceramente não
compreendo o que me está a dizer.
— Estou a dizer-lhe que o Alkaitis tinha um esquema Ponzi —
explicou-lhe ela. — O dinheiro que o Leon lhe deu não foi investido.
Ele roubou-o. Os seus extratos de conta eram fictícios.
— O que significa isso? — perguntou, mas sabia muito bem o
que significava.
— O seu dinheiro foi-se — respondeu-lhe ela, em voz baixa.
— Todo?
— Leon, aquilo não era real. Nada daquilo era real. Aqueles
rendimentos... — Não acrescentou «que na altura eu lhe disse que
pareciam demasiado bons para serem verdade», mas também não
era necessário. Ambos se lembravam dessa conversa. Como
poderia ter sido tão estúpido? Estava a fitar o céu, inexplicavelmente
sem fôlego. Não se lembrava de ter desligado o telefone à
contabilista, mas com certeza fizera-o, pois já não estava a falar
com ela, estava a ler uma notícia no telemóvel sobre a detenção de
Jonathan Alkaitis na sua residência em Greenwich, nessa manhã,
sobre o colapso de um esquema Ponzi quando demasiados
investidores desistiram. Esperavam-se mais detenções, a CTC e o
FBI a investigarem, e algures nesse lodaçal estavam as poupanças
para a reforma de Leon, ou melhor, o fantasma das suas poupanças
para a reforma, tendo as mesmas desaparecido como que por
magia.
— Não é uma desgraça — sussurrou para si mesmo. O tempo
voltara a dar um salto; já não estava a olhar para o telemóvel,
estava parado junto à parede feita de vidro. Ao que parecia, o painel
sobre o panorama económico chegara ao fim, com os colegas a
saírem para o corredor e a reunirem-se em torno das máquinas de
café, uma onda crescente de vozes sobrepostas. Precisava de sair
dali. Atravessou as pradarias de alcatifa cinzenta e flutuou em
direção ao elevador, atravessando o átrio inferior e passando pelo
casino, para o ar rarefeito do deserto invernoso. O passeio estava
apinhado de gente, e os turistas caminhavam em câmara lenta. Por
que motivo estava uma conferência sobre transportes marítimos a
ser realizada numa cidade no deserto? Porque os quartos de hotel
em Las Vegas são mais baratos. Porque o deserto é um mar. «Não
é uma desgraça», disse para si mesmo, «não vamos ficar
desamparados». Podia dizer que fora roubado e não estaria a
mentir, mas, por outro lado, os factos eram os seguintes: conhecera
Alkaitis no bar de um hotel, Alkaitis explicara-lhe a estratégia de
investimento, Leon não compreendera e ainda assim entregara a
Alkaitis as poupanças para a sua reforma. Não insistira numa
explicação detalhada. Um dos nossos grandes defeitos enquanto
espécie: somos capazes de arriscar quase tudo para evitarmos
fazer figura de burros. A estratégia parecera ter uma certa lógica,
embora a mecânica precisa da coisa — opções de venda, opções
de compra, estratégias de investimento, conversões — estivesse um
pouco fora do seu alcance.
— Ouça — dissera-lhe Alkaitis, no seu tom mais afetuoso e
obsequioso —, podia explicar-lhe tudo ao pormenor, mas acho que
percebe o essencial da coisa, e, no fim, os lucros falam por si.
Era verdade, Leon tivera oportunidade de confirmar isso mesmo,
uma regularidade nessa coluna de números que apelava à sua
ânsia profunda por ordem no universo.
Duas bailarinas passaram por ele, 18 ou 19 anos e vestidas com
fatos iguais, levando nas mãos pesados toucados cheios de plumas,
os rostos carregados de exaustão e maquilhagem. Não eram
bailarinas a sério, apenas raparigas que recebiam gorjetas em troca
de posarem com turistas no passeio. Continuou a andar, cruzando-
se com homens de meia-idade e mulheres envergando T-shirts
vermelhas onde se lia «Raparigas ao Seu Quarto em 20 Minutos»,
distribuindo panfletos que diziam presumivelmente o mesmo. As
pessoas que distribuíam panfletos tinham um olhar inexpressivo e
um ar desgastado, sugerindo uma vida de dificuldades, ou seria
imaginação de Leon? Não lhe parecia estar a imaginá-lo. Entrou no
átrio de um hotel, sem saber exatamente qual, apenas queria sair do
passeio. Estava a pensar nas raparigas: se poderiam ir ter ao quarto
dele em vinte minutos, então estariam ali algures, na rua principal, à
espera. Visualizou a suite de hotel onde as raparigas estariam à
espera, o ar carregado de fumo de cigarro e perfume, raparigas
fitando os telemóveis, fazendo linhas de coca na casa de banho,
conversando sobre seja lá o que for que as raparigas de vinte
minutos conversam, à espera, vendo as horas passar, contando
dinheiro, rezando para que o encontro seguinte não seja com um
psicopata. A imagem deixou-o profundamente triste. Poderia viver
sem as poupanças para a sua reforma. Ninguém nesse país morria
realmente à fome. Tratava-se apenas de um futuro a desaparecer e
a ser substituído por outro. Era saudável. Poderiam vender a casa.
Encontrou um banco almofadado afastado das outras pessoas,
perto da entrada do casino do hotel, e ligou para a esposa.
— Vi as notícias — disse ela antes de Leon ter tempo de abrir a
boca. O medo na sua voz era insuportável. — É muito mau, L?
— É uma desgraça, Marie. — Percebeu que estava a chorar, pela
primeira vez em mais de uma década. — Lamento muito, minha
querida, lamento muito. É uma grande desgraça.
4
Ella Kaspersky apareceu na CNN nessa noite. Olivia e Leon
estavam a assistir, Olivia no apartamento da irmã, em Nova Iorque,
Leon num quarto de hotel, em Las Vegas.
— Bem, é claro que me ocorreu que os lucros pudessem ser
legítimos, Mark — dizia ela ao entrevistador —, mas então seria o
primeiro fundo de investimento legítimo da História em que seria
possível desenhar um gráfico dos lucros num ângulo de 45 graus
quase perfeito, por isso compreende o meu ceticismo.
Oskar e Joelle também estavam a assistir, num bar em Midtown.
Ao longo dos anos tinham-se mentalizado de que Kaspersky era
uma figura marginal, mas, por outro lado, era por de mais evidente
que estivera sempre certa em relação à natureza do grupo de
gestão de ativos de Alkaitis, além de que Oskar lera as publicações
no seu blogue, incisivas e incredulamente precisas.
— Não tiro qualquer prazer do facto de ter razão — dizia ela
agora, elegante e irrepreensível num estúdio da CNN. Estava a
contar a sua história: abordada por Alkaitis no átrio de um hotel;
fizera alguma pesquisa e concluíra que os lucros eram impossíveis;
contactara a CTC, que dera cabo da investigação de tal maneira
que agora se falava em inquéritos congressionais; tentara durante
vários anos publicar o artigo e fora sempre desvalorizada como
sendo fanática. E, embora Oskar soubesse que tudo isso era
verdade e soubesse que Kaspersky tinha razão, ainda assim
apetecia-lhe atirar o sapato ao ecrã do televisor. Por que motivo
serão os moralistas tão irritantes?
— Está nas suas sete quintas — comentou Joelle. — Adora ter
razão.
5
Na manhã seguinte, os investidores regressaram ao Gradia
Building. Harvey, que desligara o telemóvel e não falara com
ninguém, ficou admirado ao ver pessoas logo às 07h30, uma dúzia
delas com um ar amargurado na extremidade do passeio, onde
pelos vistos tinham sido banidas pela segurança do edifício. Tentou
passar despercebidamente por elas sem estabelecer contacto
visual, mas uma mulher estendeu a mão e tocou-lhe no braço.
— Harvey.
— Olivia. — Vira Olivia algumas vezes ao longo dos anos, no
gabinete de Alkaitis. Envergava um sobretudo branco e um cachecol
amarelo, e no cinzento impiedoso de Manhattan em dezembro fazia
lembrar um narciso.
— Trabalhava com ele, certo? — Outro investidor estava a
interromper a sua visão, um homem muito corado com os olhos
cheios de terror. — Com o Alkaitis?
Harvey fitou Olivia, que por sua vez fitava Harvey. Desejou poder
estar sozinho com ela, para poder confessar tudo sem aquelas
pessoas estranhas à sua volta.
— Harvey — perguntou ela —, é verdade? Tinha conhecimento
disto?
Outro investidor juntara-se a eles, não, mais dois, a cena cada
vez mais furiosa e apinhada de gente, Olivia radiante no seu
sobretudo branco, e os outros na monocromia típica do inverno em
Nova Iorque, preto e cinzento, demasiado perto dele, a tresandar a
medo e a café. Harvey temeu pela vida. Tinham todo o direito,
achava ele, de pegar nele e de o atirar para a frente de um carro. E
pareciam prestes a fazê-lo. Era um homem corpulento, mas
conseguiriam fazê-lo, os seis juntos. A estrada era mesmo ali ao
lado.
— Tenho de ir lá acima ver o que se passa — disse-lhe ele.
— Ah, você não vai a lado nenhum — respondeu um deles —,
pelo menos enquanto não nos disser...
Mas a última coisa que esperavam era que desatasse a correr
como um cavalo assustado, por isso ninguém o agarrou a tempo.
Quando fora a última vez que dera uma corrida? Há muitos anos.
Não fazia ideia de quão veloz conseguia ser. Já estava do outro lado
do átrio. Passou o cartão e transpôs o torniquete enquanto os
investidores permaneciam no passeio, fitando-o, estupefactos. Mas
a sua condição física era péssima, e agora não conseguia respirar.
Dera um mau jeito no tornozelo — não, nos dois tornozelos. Na
prisão, decidiu Harvey, iria ser um desses homens que estão
sempre a fazer exercício físico, flexões na cela, pesos e corridas no
pátio de recreio. Quando chegou ao Dezassete, constatou que a
porta dos escritórios fora arrombada. Um agente da Polícia
encontrava-se parado junto à porta. As pessoas no interior dos
escritórios pareciam, a princípio, uma mancha de sombras
indiferenciadas: fatos escuros, casacos escuros com as palavras
«FBI» ou «Fiscalização» nas costas.
Há instantes na vida que exigem alguma coragem. Harvey não
deu meia-volta, regressando aos elevadores, apanhando um táxi
rumo ao aeroporto JFK e fugindo do país, embora nesse momento
ainda estivesse na posse do seu passaporte. Em vez disso,
avançou na direção no centro da confusão e apresentou-se.
O gabinete de Harvey estava apinhado de agentes tanto do FBI
como da CTC, vários deles muito interessados em conversar com
ele.
— Porque não respira fundo e depois vamos ali sentar-nos na
sala de conferências?
— Só preciso de ir buscar uma coisa à minha secretária —
respondeu Harvey.
Ofereceram-se para a ir buscar por ele, possivelmente com receio
de que se tratasse de uma arma que até então tivesse passado
despercebida.
— Se espreitarem na gaveta de cima no lado esquerdo — disse-
lhes Harvey —, debaixo das pastas, encontrarão um bloco timbrado
escrito com a minha caligrafia. Várias páginas de escrita. Penso que
terá algum interesse para vós. — Deslizou em direção à sala de
conferências, à frente deles.
Oskar passou por ele quando ia a entrar.
— O que se passa? — perguntou, com a zona em torno da boca
muito pálida.
— Sabes muito bem o que se passa — retorquiu Harvey. Oskar
parecia prestes a vomitar, mas, curiosamente, Harvey não se sentia
assim tão mal. Nada daquilo lhe parecia real. Oskar enviara uma
mensagem a Joelle, pelo que ela nem sequer aparecera. Levou os
filhos à escola, depois foi buscá-los a meio da manhã, levou-os à
F.A.O. Schwarz e disse-lhes que poderiam escolher o que
quisessem, sempre com um sorriso nos lábios, mas o mais novo
irrompeu em lágrimas, pois era óbvio que algo estava
profundamente errado. Mais tarde, as crianças recordá-lo-iam como
um dia longo e desconfortável, às voltas no frio de Manhattan,
entrando e saindo de lojas de brinquedos, de chocolatarias e do
Museu das Crianças, com a mãe a exclamar sem parar «Isto é
mesmo divertido, não é?», mas com os olhos cheios de lágrimas,
alternando entre inundar os filhos de atenção e concentrar-se
exclusivamente no telemóvel.
— Iremos recordar este dia para sempre, não acham? —
perguntou-lhes ela no carro, no caminho para casa, em Scarsdale.
— Sim — replicaram as crianças, mas mais tarde as suas
recordações foram desestabilizadas pelas cartas que Joelle lhes
enviava da prisão: sobre o quanto se tinham divertido nesse último
dia, escreveu ela, na loja de brinquedos, a girafa de pelúcia gigante,
as canecas de chocolate quente, fico tão feliz por termos passado
esse dia juntos, lembram-se daquela exposição magnífica no
museu, e eles interrogaram-se por que motivo se recordavam de
algo diferente, pois lembravam-se essencialmente do frio, dos pés
molhados, da sensação de injustiça, do cinzento de Manhattan sob
a chuva de inverno, de que a girafa caíra dentro de uma poça de
água quando regressavam ao carro.
Quando os filhos de Joelle compraram a girafa, já Ron tinha
desaparecido. Saíra ao meio-dia, para se encontrar com um
advogado, que o aconselhara a não regressar. Harvey continuava a
ser interrogado na sala de conferências. Oskar jogava «Solitário» no
computador, depois de ter sido feita uma cópia de segurança e de o
computador ter sido desligado da Internet e da rede interna,
enquanto os investigadores vasculhavam os seus arquivos. Enrico
estava em casa da tia, na Cidade do México. Passara umas horas a
vasculhar as gavetas à procura do antigo passaporte do falecido
primo e, agora que o tinha, encontrava-se sentado com ela no pátio,
os dois a fumarem cigarro atrás de cigarro, em silêncio, Enrico a
espreitar o telemóvel de vez em quando, a acompanhar as notícias
sobre a detenção de Alkaitis, a refletir sobre quão estranho era
nunca se ter sentido menos livre em toda a sua vida.
Oskar foi o último a sair nessa noite. Passara o dia a aparentar
estar o mais confuso possível, conduzindo os investigadores às
várias pastas ao mesmo tempo, peguntando-lhes o que se passava
e tentando criar a ilusão de prestabilidade sem fornecer
absolutamente nada. Fora uma representação extenuante. As
portas do elevador abriram-se, e viu Simone, vinda do Dezoito, com
uma caixa de pastas nos braços.
— Que dia de loucos — disse Oskar ao entrar, posicionando-se
ao lado dela.
Simone acenou com a cabeça.
— O que é isso dentro da caixa?
— Alguns objetos pessoais da secretária da Claire Alkaitis. Pediu-
me que os recolhesse.
Vislumbrou uma estatueta de cristal, uma fotografia emoldurada
de Claire e da família dela e meia dúzia de livros. As crianças na
fotografia pareciam muito novas, pouco mais de seis ou sete anos.
Oskar desviou o olhar. Na versão fantasma da sua vida, a versão do
universo paralelo no qual contactara o FBI onze ou doze anos antes,
essas crianças tinham sido poupadas a tudo o que estava a
acontecer; nessa vida, Claire Alkaitis era uma adolescente quando o
pai fora detido, uma situação obviamente traumática, mas nada que
se compare com estar envolvida no assunto, nada que se compare
a ser vice-presidente numa das empresas do pai e ter o nome
arrastado na lama pela imprensa; nessa vida-fantasma, percebeu
ele, Claire Alkaitis e os filhos estavam provavelmente bem.
— Queres ir tomar um copo rápido ou algo? — perguntou a
Simone.
— Não — retorquiu Simone.
— Tens a certeza?
— És a última pessoa com quem me apeteceria ir tomar um copo
neste dia.
— Tudo bem. Podias simplesmente ter dito que não.
— Foi o que fiz. — As portas abriram-se para o átrio, e ela saiu.
As multidões de investidores estavam reduzida a seis ou sete
pessoas paradas no passeio, que já não estavam a chorar, mas que
continuavam claramente em choque, os olhos fixos no Gradia
Building, a olhar para todas as pessoas que emergiam do edifício.
Simone passou por elas sem olhar e desapareceu no interior de um
monovolume preto que se encontrava parado junto ao passeio.
Claire Alkaitis estava onde Simone a deixara, sentada no banco
de trás.
— Obrigada — disse em surdina —, fico-te muito grata. — A sua
voz não passava de um sussurro. Aceitou a caixa das mãos de
Simone, estudou a fotografia — o artefacto de uma civilização
recentemente extinta — e olhou para os livros como se nunca os
tivesse visto. Abriu ligeiramente a janela do carro, para poder enfiar
a estatueta de cristal pela abertura. O objeto tiniu agradavelmente
ao estilhaçar-se no passeio. — Foi um presente do meu pai —
justificou-se. O motorista evitou cautelosamente estabelecer
contacto visual com ela através do espelho retrovisor. — Onde
moras, Simone?
— Em East Williamsburg.
— Certo. Aaron, pode levar-nos a East Williamsburg?
— Com certeza, tem a morada?
Simone deu-lha.
— Não tem de ir para casa? — perguntou a Claire, que tornara a
fechar os olhos.
— Esse é o último sítio onde quero estar neste momento.
Seguiu-se um interlúdio de silêncio, enquanto o carro avançava
rumo a sul, na direção da Ponte de Williamsburg. Lá fora começava
a nevar. Simone estava na cidade de Nova Iorque há já seis meses
e julgava ter começado a compreender como era possível uma
pessoa ficar muito cansada aqui. Vira-as no metropolitano, essas
pessoas cansadas, as pessoas que trabalhavam demasiadas horas
e com demasiado afinco, apanhadas na trama, os olhos fechados
nos comboios da noite. Simone imaginara-as sempre como
habitantes de outra cidade, mas o intervalo entre as cidades delas e
a sua começava a fechar-se.
— Quantas pessoas estavam a par? — perguntou Simone, por
fim. Estavam a passar por East Village.
— Presumo que toda a gente no grupo de gestão de ativos.
Todos os que trabalhavam no 17.º andar. — Claire não abriu os
olhos. Simone começava a perguntar-se se Claire estaria sob o
efeito de algum calmante.
— Todos? O Oskar, o Enrico, o Harvey...?
— Ao que parece, era só isso que faziam nesse piso, geriam um
esquema fraudulento.
— Mais ninguém sabia? Lá em cima no Dezoito?
— Não faço ideia. Não me parece. As empresas foram sempre
mantidas completamente separadas. Ainda é tudo muito pouco
claro... — O carro atravessava rapidamente a Ponte Williamsburg, e
agora a neve caía numa sequência delirante que aos olhos de
Simone parecia hipnótica.
— Tens muita sorte — disse Claire.
— Não me sinto nada sortuda.
— Sabes o que és?
— Uma pessoa desempregada?
— Isso é uma condição temporária. Sabes o que é permanente?
És uma pessoa com uma história fantástica para contar em festas.
Daqui a dez, vinte anos, numa festa qualquer, estarás rodeada de
pessoas, com um martíni na mão, e vais dizer: «Já vos contei sobre
aquela vez em que trabalhei para o Jonathan Alkaitis?» — A voz de
Claire falhou-lhe quando proferiu o nome do pai. — Vais poder
safar-te sem mácula.
Simone não sabia o que responder.
— Graham Avenue, número 170 — disse o motorista.
— Certo — retorquiu Simone —, é aqui que eu moro. Fica bem?
— Não — respondeu-lhe Claire, num tom distraído.
Simone olhou de relance para o motorista, que encolheu os
ombros.
— Bem, então... obrigada pela boleia. — Deixou Claire no interior
do monovolume e transpôs o portão de ferro, depois a porta de
entrada e entrou no átrio escuro e que nunca era limpo. A luz por
cima das escadas emitia um zunido desagradável. A colega de
casa, Yasmin, estava na cozinha, a comer ramen e a ler algo no
portátil.
— Como correu? — perguntou-lhe Yasmin.
— Apanhei a boleia mais desconfortável do mundo com a Claire
Alkaitis.
— A mulher dele?
— A filha.
— Como estava ela?
— Como se tivesse tomado Ambien — replicou Simone. — E
também um pouco hostil. Disse-me: «Vais safar-te disto com uma
história para contares em festas. Daqui a vinte anos vais contar esta
histórias enquanto bebes um martíni.»
— Sim, mas ela tem razão — respondeu-lhe Yasmin. — Só estou
a ser objetiva. Daqui a vinte anos vais mesmo contar esta história
em festas.
Oskar saiu do Gradia Building para o princípio da tempestade de
neve com os primeiros flocos ligeiros a caírem lentamente. Só
reparou nos detetives quando estes já estavam quase em cima dele,
a um quarteirão do escritório. Eram dois, um homem e uma mulher,
exibindo os respetivos distintivos assim que saíram de um carro à
paisana que estacionaram silenciosamente à frente de uma boca de
incêndio.
— Oskar Novak?
Numa versão paralela dos acontecimentos, talvez tivesse
desatado a correr e, na sua vida-fantasma, a sua vida honesta, a
sua vida sem Ponzi, nunca sequer ali estivera. Mas, neste mundo,
Oskar parou de caminhar e, ali mesmo no passeio, debaixo da
primeira neve desse inverno, a instantes do seu primeiro par de
algemas, foi com alguma surpresa que constatou que se sentia
aliviado.
— FBI — disse a mulher. — Sou a detetive Davis e este é o
detetive Ihara. — Com algum distanciamento, percebeu que tinham
sido misericordiosos; com certeza estavam a segui-lo desde que
saíra do Gradia Building, mas esperaram que estivesse longe da
vista dos investidores e jornalistas reunidos no exterior.
— O senhor está detido — informou-o calmamente o detetive
Ihara. As poucas pessoas que passavam no passeio olhavam-no
sub-repticiamente ou mesmo abertamente, mas todas lhe deram
espaço. Os detetives recitavam as deixas habituais — «Tem o
direito de permanecer em silêncio. Tudo o que disser poderá e será
utilizado contra si em tribunal. Tem o direito a um advogado» —, e
Oskar permaneceu estático, aceitando as algemas sem protestar, a
neve a cair-lhe no rosto, enquanto aqui e ali, na cidade e nos
subúrbios, nós também éramos detidos.
6
Na audiência de sentença seis meses depois, o advogado de
Alkaitis apelou à clemência do juiz.
— Se formos sinceros connosco próprios — disse o advogado —,
quem de nós nunca cometeu um erro? — Mas foi uma péssima
ideia, Olivia percebeu-o de imediato. O juiz olhou para o advogado
com uma expressão de incredulidade porque, sim, claro, toda a
gente comete erros, mas esses erros costumam ser esquecermo-
nos de pagar a conta do telefone, ou deixarmos o forno ligado por
umas horas a seguir ao jantar, ou inserirmos o dígito errado numa
folha de cálculo. Perpetuar uma fraude de milhões e milhões de
dólares ao longo de várias décadas é algo completamente diferente.
Seria possível que o advogado se tivesse apercebido dessa
falha? Era difícil de dizer. Veer Sethi era uma pessoa polida que
vestia fatos dispendiosos, possuía o cabelo grisalho e uma certa
noção de representação. O homem sentado ao lado de Olivia —
outro investidor, um dentista reformado a quem só faltava vibrar de
raiva sempre que discutia a questão da fraude — dissera-lhe que o
advogado de Alkaitis era um dos advogados de defesa criminal mais
bem pagos da cidade, mas Olivia não achara Sethi uma pessoa
particularmente destacada. Cometera um erro, mas insistira na
história, qual menino enveredando por um trilho que desaparecia
numa floresta escura ao anoitecer: era uma vez uma família,
Jonathan e Suzanne e depois uma filha, Claire. (A propósito, onde
estaria Claire? Olivia assistira a três audiências e nunca a vira.)
Moravam numa pequena casa num subúrbio pouco popular, depois
numa casa ligeiramente maior, com Jonathan a trabalhar longas
horas e Suzanne a trabalhar um pouco também, férias de verão
curtas e pouco dispendiosas em lugares onde era possível ir de
carro, Natais com a família dela na Virgínia ou com a família dele no
condado de Westchester, as inevitáveis dificuldades de começar um
negócio, o sucesso como constante do negócio, Claire a entrar na
Universidade de Columbia e depois a assumir um cargo na empresa
de corretagem do pai — a empresa legítima, Sethi faz questão de
salientar, a empresa que nada tinha que ver com o crime — e
depois Suzanne a ser diagnosticada com um cancro particularmente
agressivo.
— Não estou a insinuar que estas coisas justificam os atos do
meu cliente — disse o advogado. — Mas sou casado há trinta e
cinco anos e, como marido, nem imagino o que terão sido esses
dias para esta família. — Vincent também aparecera, e Olivia
achava que isso revelava uma certa coragem da parte dela.
Encontrava-se sentada escassas filas à frente e do outro lado da
sala de audiências, sentada muito quieta e vestida com um fato
cinzento.
— E, embora não haja sofrimento que justifique os seus atos, foi
durante esse período — continuou o advogado — que a fraude
começou. — Parecia estar a tentar passar a ideia de que o esquema
Ponzi era algo que pura e simplesmente acontecera, da mesma
maneira que o clima acontece, em vez de um crime premeditado
friamente, perpetuado com a conivência de funcionários dedicados.
(Se ao menos os funcionários estivessem presentes! Olivia teria
todo o gosto em matá-los pessoalmente. Começaria por Harvey
Alexander. Esse suplicar-lhe-ia pela vida. Seria implacável.) O juiz
estava a escrever algo. Sethi continuava a falar sobre hospitais e
operações e sessões de quimioterapia, sobre a ausência de Alkaitis
do escritório durante semanas a fio, distraído e sem prestar a devida
atenção. Investira fortemente em várias empresas «ponto com» e
fora apanhado desprevenido quando elas implodiram. Houvera
indícios de que a Bolha da Internet tinha os dias contados, mas
estava distraído com a doença e com o subsequente falecimento da
esposa e não interpretara corretamente esse sinais.
— E foi nesse momento — disse o advogado — que o meu
cliente cometeu o seu erro fatal. — Quantas vezes iria introduzir a
palavra «erro» no seu discurso? A sua estratégia seria tão
transparente para o juiz como era para Olivia? Não tinha a certeza.
O juiz parecia impassível. — O meu cliente sofreu uma perda e
pensou: «Sou capaz de resolver isto». Cometeu um erro de
discernimento absolutamente terrível. Decidiu cobrir as suas perdas
com os rendimentos dos novos investidores. Sentia-se embaraçado.
Achava que conseguiria equilibrar as contas no espaço de um ou
dois meses e que ninguém iria descobrir. Por que motivo haveria de
fazer tal coisa? Por que motivo haveria de cometer um erro desses?
— Nesse momento fez uma pausa, para um efeito dramático. Veer
Sethi fora incumbido de uma tarefa impossível. Estava a dar tudo o
que tinha.
»Estou convencido, Meritíssimo, de que foi tudo uma questão de
medo. A vida de todas as pessoas contém uma certa dose de
momentos assustadores. O meu cliente tinha perdido a esposa.
Estava desolado. A única coisa que lhe restava era o trabalho, o seu
emprego. E então a fraude começou, esse erro terrível cometido por
ele, porque não suportava a ideia de perder o seu trabalho, na altura
a única coisa que lhe restava. — O que não era particularmente
lisonjeador para Claire, pensou Olivia. Talvez devesse ter seguido
os passos da sua irmã Monica e optado por Direito. Sentia que
poderia fazer um trabalho melhor do que aquele tipo. A sala de
audiências estava demasiado quente. Olivia permitiu-se divagar por
breves instantes, recordando uma tarde em particular no estúdio do
Soho, sentada no sofá com Renata durante um desses violentos
temporais de agosto, enquanto fazia um intervalo na pintura,
escutando a chuva, bebendo vinho, e Renata dissera «Não era
capaz de fazer parte do mundo laboral, mesmo que quisesse», mas
num tom que soara como se estivesse a tentar convencer-se a si
própria, e Olivia desconfiava de que era por isso que o momento lhe
ficara gravado na memória. Renata aguentara até 1972 e depois
sucumbira ao vício. Em 1973? Não, de certeza que fora em 1972,
pois Olivia lembrava-se de ter visto notícias sobre Watergate e de se
interrogar sobre o que Renata pensaria delas se ainda fosse viva,
Renata, que deixara o pai político e a mãe secretamente alcoólica
nos subúrbios de Maryland para vir para a cidade, Renata que
alegava não ter qualquer interesse por esse mundo, mas que
durante toda a vida acompanhara atentamente a política.
De volta à sala de audiências, Veer Sethi continuava a falar.
— Quando olhamos para o meu cliente — disse ele —, não
estamos a olhar para um homem mau. Estamos a olhar para um
homem profundamente imperfeito, um homem que, no momento em
que foi necessário, no momento em que percebeu que sofrera
perdas que jamais conseguiria cobrir, não descobriu a sua coragem.
Estamos a olhar para um homem decente que cometeu um erro.
Era impossível não reparar, enquanto Seth agradecia ao juiz pela
oportunidade de apresentar as suas alegações finais e retornava ao
seu lugar à mesa, que os advogados do Ministério Público sorriam e
abanavam a cabeça. Alkaitis tomava cuidadosamente apontamentos
num bloco timbrado. Seth e os seus dois advogados assistentes
conferenciavam e remexiam em papéis para evitar olhar para
alguém, em especial para o Ministério Público. Este levantava-se da
mesa da acusação, abotoava o botão do casaco, começava, com
um desdém mal disfarçado, a desmontar a cronologia que a defesa
acabara de apresentar. Era curioso, comentou o Ministério Público,
alegarem que o esquema Ponzi começara por volta da queda da
Bolha da Internet, quando um dos empregados de Alkaitis — um tal
Harvey Alexander — confessara ter participado num esquema que
começara em finais dos anos 1970. A mente de Olivia divagou. Não
andava a dormir muito bem. Deixara o apartamento e mudara-se
para casa de Monica, e a cama no quarto de hóspedes de Monica
era desconfortável. Mas de que servia continuar ali a ouvir aquilo?
Porém, Olivia deixou-se ficar até ao fim. A sentença, quando
chegou, foi como um conto de fadas: era uma vez um homem que
foi trancado num castelo durante 170 anos.
O arquejo coletivo na sala foi audível. «170 anos», repetiu alguém
perto dela. Um assobio baixo. Vivas proferidos em surdina. Olivia
permaneceu completamente imóvel e não sentiu absolutamente
nada.
Saíra de casa antes de amanhecer, com a sensação de estar a
embarcar numa missão, mas, depois de o veredito ter sido
pronunciado, quase desejou ter ficado em casa. Não poderia ter
desejado melhor sentença e, no entanto, experimentou uma curiosa
sensação de anticlímax. Demorou a abandonar a sala de audiências
e passou despercebida quando por fim saiu para a rua. Dessa vez o
seu manto de invisibilidade não a incomodava. Não estava a sentir-
se muito bem. Tempos houvera em que uma onda de calor na
cidade de Nova Iorque jamais a teria afetado, mas esses tempos já
lá iam. A imprensa cercara um grupo de investidores.
— Ouça, a verdade é que isto não muda nada — ouviu o dentista
dizer. E tinha razão. Jonathan ficaria preso para sempre, mas Olivia
continuaria a morar no quarto de hóspedes da irmã. Caminhou rumo
à zona alta da cidade, atravessando o forno que era o sistema
metropolitano, e observou a maneira como a vida na cidade
continuava à sua volta, indiferente e interrupta. Nessa manhã,
quando entrara no comboio em direção à Baixa, julgara estar a
testemunhar algo histórico, mas a história lembrar-se-ia de Jonathan
Alkaitis? Apenas mais um fato vazio numa época de colapso e
devassidão, arquiteto de um esquema embaraçosamente
rudimentar que resultara por uns tempos e depois implodira. O calor
era demasiado. O metropolitano estava cheio de gente. Quando por
fim saiu para o Upper East Side, a poucos quarteirões do
apartamento da irmã, teve de caminhar muito devagar para não
desmaiar. Um homem que caminhava na direção oposta quase
chocou com ela; franziu o sobrolho e desviou-se no último minuto,
como se a culpa fosse inteiramente dela.
— Isto é puramente teórico — dissera o juiz —, mas, por motivos
técnicos, sou obrigado a impor um período de liberdade
supervisionada após o cumprimento da sua sentença. — Ideia para
uma história sobre fantasmas: era uma vez um homem que passou
três anos em liberdade supervisionada depois de ter cumprido uma
pena de 170 anos. Ideia para uma história sobre fantasmas: era
uma vez uma mulher que deambulou completamente invisível pela
cidade de Nova Iorque até ter desaparecido na multidão e no calor.
12
O AVESSO DA VIDA
PAÍS-SOMBRA
Dezembro de 2008
1
Em dezembro de 2008, Leon Prevant trabalhava num Marriot, na
extremidade sul do estado do Colorado, não muito longe da fronteira
com o Novo México. Não era uma cidade grande, mas por alguma
razão havia dois Marriot, refletindo-se mutuamente e separados pela
rua larga e pelo parque de estacionamento. Os Marriot ficavam na
periferia da Baixa, mas a Baixa em si era uma espécie de miragem.
No primeiro dia de trabalho de Leon, fora até lá na sua hora de
almoço, passando por um mural enorme e depois subindo uma rua
onde encontrara o melhor café que vira nos últimos tempos, um
espaço amplo e escuro ligado a um negócio de torrefação de café.
Comprara um café para levar e depois continuara a subir a rua.
Havia uma loja de excedentes militares que parecia ter-se estendido
a três edifícios adjacentes, mas a maior parte das montras das
restantes lojas encontrava-se vazia. Não se viam carros a passar.
Estava parado numa esquina, com uma vista desafogada sobre
duas ruas, e mesmo assim via apenas uma pessoa, um homem
vestido com uma T-shirt laranja-néon sentado num banco a cerca de
um quarteirão de distância, a fitar o vazio. As mesas na esplanada
do café estavam vazias. Leon regressara rapidamente ao Marriot,
picara o ponto e retomara o trabalho do dia, recebendo uma nova
remessa de produtos de higiene pessoal no armazém e depois
recolhendo insetos afogados e folhas da superfície da piscina.
— Estás a ver, é assim que se vê logo que és da zona costeira —
dissera-lhe o colega de trabalho, Navarro, mais tarde, quando Leon
mencionara o vazio da Baixa. — Vocês estão convencidos de que é
preciso existir uma Baixa para a cidade ser considerada um sítio a
sério.
— Não achas que uma Baixa deveria ter pessoas?
— Acho que não é obrigatório existir uma Baixa — retorquira
Navarro.
Estava a trabalhar há seis meses quando Miranda telefonou.
Estava na autocaravana, o veículo recreativo, VR, depois do turno, a
fazer as palavras cruzadas com sacos de gelo em cima do joelho
direito e do tornozelo esquerdo, sozinho, porque Marie arranjara um
trabalho noturno a repor produtos no Walmart, do outro lado da
autoestrada, e a chamada foi tão inesperada que, quando Miranda
disse o nome, quase não o assimilou. Seguiu-se um estranho
instante de silêncio, enquanto recuperava do choque.
— Leon?
— Sim, desculpa. Que surpresa tão inesperada — disse,
sentindo-se um idiota, pois «surpresa» e «inesperada» eram
absolutamente redundantes nesse contexto, mas quem poderia
censurá-lo por isso?
— É bom ouvir a tua voz — disse ela —, ao fim de tantos anos.
Tens um bocadinho?
— Sim, claro. — O coração dele batia furiosamente. Durante
quantos anos ansiara por esta chamada? Dez. Uma década na
natureza selvagem, deu por si a pensar. Dez anos a viajar além das
fronteiras do mundo empresarial, a desejar em vão ser readmitido
nesse meio. Os sacos de gelo escorregaram para o chão quando
tentou alcançar papel e caneta.
— Infelizmente estou a ligar pelos piores motivos — disse-lhe
Miranda —, mas antes de mais, deixa-me perguntar-te se estarias
interessado em voltar como consultor. Seria uma coisa a muito curto
prazo, somente uns dias.
— Adoraria. — Sentiu vontade de chorar. — Sim. Isso seria... sim.
— OK. Está bem, então. — Pareceu um pouco surpreendida com
o fervor dele. — Houve... — Miranda pigarreou. — Ia dizer que
houve um acidente, mas na verdade não sabemos se foi um
acidente ou não. Houve um incidente. Uma mulher desapareceu de
um navio da Neptune-Avramidis. Era a cozinheira.
— Isso é terrível. Que navio?
— É mesmo terrível. Foi o Neptune Cumberland. — O nome não
soava familiar a Leon. — Escuta — continuou ela —, estou a criar
um comité para investigar a segurança da tripulação nas
embarcações da Neptune-Avramidis, em geral, e a morte de Vincent
Smith, em particular. Se estiveres interessado, dava-me jeito a tua
ajuda.
— Espera aí — disse ele —, ela chamava-se Vincent?
— Sim, porquê?
— De onde era?
— Era canadiana, sem morada permanente. A familiar mais
próxima era uma tia em Vancouver. Porquê?
— Por nada. Conheci uma mulher chamada Vincent, há muito
tempo. Quer dizer, conhecia-a mais ou menos. Não é um nome
feminino muito vulgar.
— Lá isso é verdade. Aqui o que importa é que esta é a única
investigação que alguma vez será feita à morte dela. Para ser
sincera, se tivesse orçamento para isso, solicitaria uma investigação
a uma firma de advocacia privada.
— Isso deve ser muito caro.
— Extremamente. Como tal, isto é a única coisa a que ela vai ter
direito, uma investigação interna levada a cabo pela empresa para a
qual trabalhava. E as empresas têm o hábito de se exonerarem, não
concordas?
— Queres uma pessoa de fora — retorquiu ele.
— És uma pessoa em quem confio. Quanto tempo demoras a
chegar a Nova Iorque?
— Muito pouco — respondeu. — Só preciso de deixar uns
assuntos tratados. — Já estava a calcular a distância desde o Sul
do Colorado. Conversaram mais um pouco sobre os preparativos da
viagem e, quando desligou, deixou-se ficar sentado à mesa durante
imenso tempo, a piscar os olhos. Verificou o registo de chamadas
para confirmar que não imaginara tudo. NEPTUNE-AVRA, o
indicativo 212, 21 minutos. O texto visível no ecrã parecia
perfeitamente adequado; fora realmente como receber uma
chamada de outro planeta.
2
Depois de Alkaitis, a vida passara a ser muito diferente. Leon e
Marie aguentaram meio ano em sua casa após o colapso do Ponzi,
seis meses de prestações atrasadas e um stresse desastroso. Leon
investira toda a sua indemnização compensatória e as poupanças
para a reforma de ambos no fundo de investimento de Alkaitis, e,
embora os rendimentos não os tivessem enriquecido, não era
preciso muito para viver bem no Sul da Florida. Tinham comprado a
autocaravana pouco antes de Alkaitis ter sido preso. Nos meses que
se seguiram, com Leon a tentar obter mais trabalho como consultor
para a Neptune-Avramidis, que se encontrava a passar uma fase de
despedimentos e de lay-offs dos consultores, e Marie
desempregada por causa da ansiedade e depressão, o veículo
recreativo parado no caminho de acesso à casa a princípio parecera
malevolente, uma espécie de piada terrível, como se os seus erros
financeiros tivessem assumido uma forma física e estacionado junto
à casa.
Mas no início do verão, estavam eles a comer omeletas ao jantar,
à luz das velas, as velas não como um gesto romântico mas como
forma de poupar dinheiro em eletricidade, quando Marie disse:
— Tenho conversado com a Clarissa por e-mail.
— Clarissa? — O nome era-lhe familiar, mas demorou algum
tempo a chegar lá. — Ah, a tua amiga da universidade, não é?
Aquela que é médium?
— Sim, essa Clarissa. Jantámos com ela em Toronto, há uns
anos.
— Eu lembro-me. Que é feito dela?
— Perdeu a casa, por isso agora mora na carrinha.
Leon pousou o garfo e levou a mão ao copo de água, na tentativa
de aliviar o aperto que sentiu na garganta. Há dois meses que não
conseguiam pagar as prestações da casa.
— Que chatice — retorquiu ele.
— Diz que até está a gostar.
— Pelo menos deve ter previsto a coisa — respondeu ele —,
sendo médium.
— Perguntei-lhe em relação a isso — disse Marie. — Disse-me
que tinha tido visões de autoestadas, mas que sempre julgou que
fosse fazer uma viagem.
— Uma carrinha — disse Leon. — Parece uma vida complicada.
— Sabias que há certos trabalhos que podes fazer se tiveres
mobilidade?
— Que tipo de trabalhos?
— Vender bilhetes nas feiras populares. Trabalhar em armazéns
por altura do Natal. Tarefas agrícolas. A Clarissa disse que arranjou
um trabalho agradável num parque de campismo por uns tempos, a
fazer limpezas e a dar apoio aos campistas.
— Interessante. — Tinha de responder alguma coisa.
— Leon — disse ela —, e se partíssemos na autocaravana?
A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi que se tratava de uma
ideia disparatada, mas esperou uns instantes antes de lhe
perguntar:
— Para irmos aonde, querida?
— Aonde quisermos. Podíamos ir aonde quiséssemos.
— Vamos pensar sobre o assunto — retorquiu ele.
A ideia parecera-lhe disparatada somente por umas horas, talvez
menos. Passou a noite acordado, a transpirar debaixo dos lençóis
— era difícil dormir sem ar condicionado, mas estavam a poupar nas
contas, e Marie calculara que, se ligassem o ar condicionado nessa
semana, não conseguiriam pagar os mínimos nos cartões de crédito
—, e acabou por divisar a genialidade do plano; poderiam
simplesmente partir. A casa que lhes tirava o sono de noite poderia
passar a ser problema de outra pessoa qualquer.
— Estive a pensar na tua ideia — disse ele a Marie, ao pequeno-
almoço. — Vamos a isso.
— Desculpa, mas vamos a quê? — Estava sempre cansada e
sem energia de manhã.
— Metemo-nos na autocaravana e fazemo-nos à estrada —
respondeu, e o sorriso dela foi como um bálsamo. Assim que a
decisão ficou tomada, sentiu uma urgência peculiar. Em
retrospetiva, não havia qualquer pressa, mas partiram quatro dias
depois.
Quando atravessou as divisões pela última vez, Leon percebeu
que a casa já os despachara, uma sensação de vazio a dominar o
ar. A maior parte do mobiliário continuava lá, a maioria dos
pertences, um calendário afixado na parede na cozinha, canecas no
armário e livros nas prateleiras, mas as divisões já projetavam a
ideia de abandono. Leon jamais teria imaginado que ele e a esposa
se tornariam o tipo de pessoas que abandonariam uma casa.
Imaginava que tal ato soterraria a pessoa sob camadas e camadas
de vergonha, mas ali, na autoestrada, com a luz do início do dia,
abandonar a casa pareceu-lhe inesperadamente um triunfo. Leon
saiu do caminho de acesso, virou duas vezes e depois entraram na
autoestrada, partindo para todo o sempre.
— Leon — disse Marie, com ar de quem ia partilhar com ele um
segredo maravilhoso —, reparaste que deixei a porta da frente
destrancada?
Leon sentiu uma alegria imensa quando ela o disse. E porque
não? Não havia qualquer hipótese de conseguirem vender a casa.
Todo o estado estava inundado de casas melhores e mais recentes,
empreendimentos novos ainda por comprar nos subúrbios. Deviam
mais em prestações do que a casa valia atualmente no mercado.
Havia um certo prazer em imaginar a casa destrancada, à mercê da
anarquia. Sabia que jamais regressariam ali, e havia uma imensa
beleza nesse pensamento. Já não tinha de cortar a relva nem de
podar a vedação. A humidade na casa de banho do piso de cima já
não era uma preocupação para si. Não haveria mais vizinhos. (E aí
surgiram os primeiros receios do plano, que objetivamente não era
grande plano, mas parecia ser o melhor de todas as terríveis opções
que se lhes apresentavam. Olhou de relance para Marie, sentada no
lugar do passageiro, e pensou: «Agora somos só nós. A casa era
nossa inimiga, mas mantinha-nos ligados ao mundo. Agora estamos
à deriva.»)
Marie parecera um pouco distante nos primeiros dias, enquanto
saíam da Florida e subiam rumo a sul, mas sabia que era a maneira
de ela lidar com o stresse — escapava, evitava, ausentava-se —, e
no final da semana começara a voltar para ele. Cozinhavam quase
sempre na minúscula kitchenette da autocaravana, tendo-se
habituado a ela, mas, no dia em que fez uma semana desde que
tinham partido, foram a um restaurante. Sentarem-se a comer uma
refeição que nem ele nem Marie tinham cozinhado pareceu-lhes
uma incrível extravagância. Brindaram à data com ginger ale,
porque Leon tinha de conduzir e porque um dos medicamentos que
Marie tomava fazia interação com o álcool.
— No que estás a pensar? — perguntou-lhe, enquanto comiam
frango assado com molho.
— No escritório — respondeu ela. — No tempo em que
trabalhava naquela seguradora.
— De vez em quando também penso no meu trabalho — disse
ele. — Parece que foi noutra vida, para ser sincero.
Trabalhar na área dos transportes marítimos fizera-o sentir-se
como se estivesse ligado a uma corrente elétrica que iluminava o
mundo. Era o oposto de passar os dias na autocaravana, a conduzir
sem qualquer destino em particular.
Passaram a maior parte desse primeiro verão num parque de
campismo na Califórnia, perto da cidade de Oceano, na costa
central. A sul da estrada de acesso à praia, as pessoas conduziam
moto-quatros pelas dunas, e os motores das mesmas soavam como
insetos na distância, uma espécie de zunido alto. Ambulâncias
desciam à praia para recolherem condutores de moto-quatros cerca
de três ou quatro vezes por dia. Mas, a norte da estrada, a praia era
silenciosa. Leon adorava caminhar para norte. Não havia muita
coisa entre Oceano e Pismo Beach, a cidade que se seguia na
costa. Uma solitária extensão da Califórnia, linha da costa
esquecida, areia manchada de preto. A terra aí era escura por
causa do alcatrão. À noite viam-se bandos de maçaricos a correr
pelo areal, a uma velocidade tal que davam a impressão de pairar a
escassos centímetros do chão, as patas desfocadas como os
animais nos desenhos animados do Papa-Léguas, cómico mas ao
mesmo tempo comovente na maneira como todos sabiam quando
mudar de direção em simultâneo.
Leon e Marie jantavam na praia quase todas as noites. Marie
parecia mais feliz quando contemplava o oceano, e Leon também
gostava muito desse lugar. Tentava mantê-la na praia o máximo de
tempo possível, onde o horizonte era infinito e os pássaros corriam
como desenhos animados. Não queria que ela sentisse que a sua
vida era insuficiente. Cargueiros passavam no horizonte longínquo,
e Leon gostava de imaginar as suas rotas. Gostava do caráter
infinito do Pacífico do seu ponto de vista, não havia nada além de
navios e água entre si e o Japão. Conseguiriam eles lá chegar?
Claro que não, mas gostava da ideia. Visitara esse país em
trabalho, na sua vida anterior.
— Em que estás a pensar? — perguntou Marie numa ocasião,
numa noite limpa na praia. Nessa altura estavam em Oceano há
dois meses.
— No Japão.
— Devia lá ter ido contigo — replicou ela. — Pelo menos uma
vez.
— Foram viagens entediantes, se formos objetivos. Só reuniões.
Nunca vi grande coisa do país em si. — Mas vira um pouco. E
adorara o que vira. Numa ocasião, tirara mais dois dias para visitar
Quioto na época da floração das cerejeiras.
— Ainda assim, pelo menos tinha ido e visto alguma coisa. — Um
entendimento subentendido: nenhum deles voltaria a sair do
continente onde se encontravam.
Um navio de carga estava a passar ao longe, um retângulo
escuro no lusco-fusco.
— Não era bem assim que imaginava a nossa reforma — disse
Leon —, mas podia ser pior, não é?
— Muito pior. E foi muito pior, antes de termos deixado a casa.
Esperava que alguém lhe tivesse feito o favor de queimar aquela
casa até não restar nada. A escala da catástrofe era objetivamente
enorme — «Éramos donos de uma casa e depois ficámos sem ela»
—, mas havia um alívio imenso em não ter de pensar na casa, no
pagamento das prestações exorbitantes e na manutenção constante
da mesma. Houvera aliás momentos de pura alegria nessa vida
errante. Adorava estar sentado na praia com Marie. Não obstante
tudo o que tinham perdido, sentia-se frequentemente um felizardo
por estar ali com ela, nessa vida.
Mas eram cidadãos de um país-sombra do qual, na vida anterior,
ele somente tivera uma vaga perceção, um país situado à beira de
um abismo. Sempre tivera consciência dessa terra-sombra, claro.
Vira os seus postos avançados óbvios: abrigos feitos a partir de
cartão debaixo dos viadutos, casas com portas entaipadas, mas a
luz acesa numa janela no piso superior. Sempre estivera vagamente
consciente dos seus cidadãos, pessoas que tinham escorregado
para debaixo da superfície da sociedade, para um território sem
conforto ou margem para erros; andavam à boleia nas estradas com
todos os seus pertences dentro de mochilas, recolhiam latas nas
ruas da cidade, deambulavam pela avenida principal em Las Vegas
com T-shirts onde se lia «Raparigas ao seu Quarto em 20 Minutos».
Eram as raparigas no quarto. Vira o país-sombra, os seus
arrabaldes e letreiros, só nunca imaginara vir a estar ligado a ele.
No país-sombra, era necessário ir para a cama todas as noites
com um medo tão poderoso que Leon o sentia como uma presença
física, uma criatura malevolente qualquer que absorve a luz. Deitado
ao lado de Marie, vinha-lhe à mente que nessa vida não havia
margem para qualquer tipo de erro ou azar. O que lhe aconteceria a
ela se algo lhe acontecesse a ele? Há já algum tempo que Marie
não estava bem. O medo de Leon era como um peso no peito, na
escuridão.
3
— E que tal vai essa reforma? — perguntou-lhe Miranda.
Estavam sentados no gabinete dela, que antes fora o gabinete do
chefe de Leon. Era maior do que recordava. Haviam decorrido
vários dias desde que lhe ligara para o Colorado, durante os quais
ele deixara o emprego no Marriot — um problema familiar urgente,
explicara ao chefe, na esperança de voltar a ser readmitido — e
conduzira a autocaravana rumo ao Connecticut, onde estacionaram
no caminho de acesso à casa de uma das amigas de faculdade de
Marie.
— Não me posso queixar — respondeu-lhe Leon. Miranda não
parecia estar ao corrente de que ele fora um dos investidores de
Alkaitis, embora a informação não fosse secreta. Havia uma
declaração realizada na qualidade de vítima algures online, da qual
não se arrependia propriamente, mas que talvez não tivesse escrito
se soubesse que iria estar à disposição de qualquer pessoa que
digitasse o seu nome no Google.
— Não tens queixas nenhumas?
Ele sorriu.
— Pareci-te assim tão excessivamente ansioso ao telefone?
— Digamos que não notei qualquer relutância em desistires da
tua vida de descanso para assumires um cargo de consultoria.
— Bem — retorquiu Leon. — Reforma a mais também cansa.
— Por isso não tenciono reformar-me. — Miranda folheou uma
pasta. «Eu também não planeava reformar-me», pensou Leon, mas
não o disse, pois prometera a si mesmo que não se mostraria
demasiado desesperado ou ressentido, que, se alguém lho
perguntasse, passara a última década a morar numa autocaravana
porque ele e Marie se tinham cansado das chatices inerentes a uma
propriedade e sempre tinham desejado explorar o país. Miranda
estendeu-lhe a pasta, identificada com o nome «Vincent Smith».
Teria Miranda realmente sido sua assistente em tempos ou tratar-se-
ia de uma recordação falsa? Lembrava-se vagamente da época em
que passava a vida em trânsito e Miranda tratava dos preparativos
para as viagens, mas era difícil conciliar essa jovem reservada com
a executiva sentada do outro lado da secretária, impecavelmente
vestida com um fato cinzento-aço, bebendo uma chávena de chá
que outra pessoa preparara para ela.
— Demora o tempo que for preciso com os pormenores — disse-
lhe ela. — Como é óbvio, é tudo altamente confidencial, mas podes
levar essa pasta para casa, para leres esta noite. Sei que estiveste
muito tempo afastado, por isso diz-me se surgirem algumas
questões. Imagino que alguns dos nossos procedimentos tenham
mudado desde que te foste embora.
Muito tempo afastado? «Sim», pensou, «é uma maneira de pôr a
coisa». Era algo confuso voltar ali ao fim de tanto tempo. Passara a
última hora a atravessar corredores inquietamente familiares e a
apertar a mão a pessoas que não faziam ideia de quão sortudas
eram.
Pigarreou.
— Ao telefone, disseste que alguém do gabinete de segurança irá
conduzir os interrogatórios — disse ele. — Qual é o meu papel nisto
tudo?
— Sim, o Michael Saparelli irá conduzir os interrogatórios —
respondeu-lhe Miranda. — Foi ele que falou com o comandante ao
telefone na semana passada e que anotou esses apontamentos
preliminares para nós. Quero que fique bem claro que tenho todo o
respeito por ele. É um ex-agente da Polícia de Nova Iorque. Não
que duvide de que faça um bom trabalho, mas penso que, sendo
este um assunto tão melindroso, os interrogatórios deveriam ter
mais do que uma testemunha.
— Tens receio de que haja um encobrimento?
— É mais uma questão de querer eliminar qualquer tentação para
que haja um encobrimento. — Miranda bebeu um trago do seu chá.
— Não que desconfie de que o Saparelli seja uma pessoa
desonesta, longe disso. Mas as empresas são como Estados-
Nação. Todas têm a sua própria cultura. — Leon suprimiu uma
pontada de irritação («Será que a minha antiga assistente
administrativa está a querer ensinar-me sobre cultura
empresarial?»), mas a verdade era que não estava errada. —
Dediquei a minha vida profissional a esta empresa — dizia Miranda
—, mas, se tivesse de salientar uma falha cultural, diria que já
reparei numa certa relutância em assumir a responsabilidade.
Verdade seja dita que é algo que se deve aplicar à maior parte do
mundo empresarial, mas, seja como for, é um tanto ou quanto
frustrante.
— Portanto, se o que quer que aconteceu à Menina Smith foi algo
que talvez pudesse ter sido evitado pela empresa...
— Nesse caso é algo que me interessa — respondeu-lhe
Miranda. — Ouve, este é o tipo de firma em que, se solicitar um
relatório sobre os nossos problemas de excesso de lotação, tenho a
certeza absoluta de que receberei um documento com vinte páginas
sobre o contexto económico, sem uma única palavra que sugira que
talvez pudéssemos gerir a frota de uma forma ligeiramente
diferente.
— Serei os teus olhos e ouvidos — disse ele.
— Obrigada, Leon. Continuas a poder partir amanhã?
— Com certeza. Será um prazer voltar a sair do país. — Embora
mais tarde se tivesse sentido embaraçado ao recordar ter
empregado essa expressão. Nessa noite leu todos os pormenores
do caso. Vincent Smith: 37 anos, canadiana. Cozinheira-auxiliar no
Neptune Cumberland, um navio de contentores Neopanamax com
370 metros, na rota Newark-Cidade do Cabo-Roterdão. Definira um
padrão de nove meses no mar, seguidos de três meses de folga, e
não tinha morada permanente, o que não era de todo invulgar entre
as pessoas que trabalhavam no mar e mantinham esse mesmo
plano. Vivera assim, entre mar e terra, durante cinco anos, até ter
desaparecido numa noite, ao largo da costa da Mauritânia.
Em termos de suspeitos relacionados com o seu
desaparecimento, o principal era Geoffrey Bell. Notas sobre
Geoffrey Bell: proveniente de Newcastle, um nome que na mente de
Leon Prevant invocou de imediato o continente errado e toda uma
classe de embarcações — o Newcastlemax, com 50 x 300 metros,
um dos maiores navios permitidos no porto de Newcastle, na
Austrália —, mas a Newcastle de Bell era a original, Newcastle upon
Tyne. Filho de um mineiro reformado e de uma empregada de loja,
obteve o seu certificado de primeiro-marinheiro e trabalhou alguns
anos na Maersk, tendo mudado de empresa duas vezes antes de ter
ido parar à Neptune-Avramidis, e, quando embarcou no Neptune
Cumberland, já detinha o cargo de terceiro-imediato. A sua carreira
era perfeitamente banal e teria passado despercebida se não
namorasse com Vincent na altura em que ela morreu.
Duas pessoas tinham comunicado ao comandante terem ouvido
uma discussão no camarote dela, na sua última noite a bordo.
Pouco tempo depois da discussão, as câmaras de videovigilância
captaram os seus movimentos desde que deixou o camarote,
atravessou vários corredores e desceu um lanço de escadas,
reaparecendo depois no exterior no convés C, apesar de a
tripulação ter sido alertada para permanecer no interior até que o
tempo melhorasse. Havia um ângulo morto no navio, um canto do
convés C onde não havia câmaras de videovigilância. Nas imagens
de segurança, dobrou uma esquina e desapareceu de vista. As
mesmas câmaras registaram o percurso de Geoffrey Bell, 35
minutos depois, a percorrer os mesmos corredores em direção ao
mesmo canto do convés C, desaparecendo depois no ângulo morto.
Esteve invisível durante cinco minutos, e depois as câmaras
captaram o seu reaparecimento, mas Vincent não voltara a aparecer
nas imagens de segurança, no navio ou noutro lugar qualquer na
terra. Bell disse ao comandante que fora à procura dela, mas que
não a encontrara. O comandante relatou não ter ficado convencido,
mas não havia testemunhas, corpo ou provas. A primeira paragem
após o seu desaparecimento fora Roterdão, onde Bell
desembarcara.
— Escusado será dizer — dissera-lhe Miranda aquando do
telefonema inicial — que nenhuma força policial irá investigar este
assunto.
O país mais próximo por ocasião do seu desaparecimento era a
Mauritânia, mas ela desaparecera em águas internacionais, pelo
que não era um problema da Mauritânia. Vincent era canadiana, o
comandante do navio era australiano, Geoffrey Bell era britânico, o
resto da tripulação era alemão, letão e filipino. O navio tinha a
bandeira do Panamá, o que significava que por lei era uma estrutura
flutuante de território panamanense, mas é claro que o Panamá
também não tinha o incentivo ou a mão de obra para investigar um
desaparecimento na costa ocidental de África. É possível
desaparecer no espaço entre países.
Leon só conheceu Michael Saparelli a bordo do avião com
destino à Alemanha. Dois minutos antes de as portas da cabina se
fecharem, um homem ruborizado e sem fôlego, perto da meia-idade,
entrou com os últimos passageiros e deixou-se cair pesadamente no
lugar ao seu lado.
— A segurança no aeroporto estava uma loucura — disse a Leon.
— Não digo uma loucura no sentido de dementemente rigorosa,
digo loucura na verdadeira aceção da palavra. Estavam a
inspecionar sandes manualmente. — Estendeu a mão. — Peço
desculpa. Olá. Sou o Michael Saparelli.
— Prazer em conhecê-lo. Leon Prevant.
— Foi uma espécie de guerreiro da estrada, não foi?
— Fui, sim, nos meus tempos áureos. «Quase não chegava a
reparar que tinha atravessado todo um oceano.»
— Pessoalmente, não era capaz de o fazer, pelo menos com
regularidade. Sabe qual é o meu conceito de fim de semana
perfeito? Não sair de casa. Bem. Qual lhe parece ser o seu papel
em tudo isto?
Porém, uma hospedeira de bordo surgira para assentar os
pedidos, pelo que se seguiu uma pequena pausa enquanto Saparelli
encomendava um café e Leon, um ginger ale com gelo.
— Um mero observador, em resposta à sua pergunta. O senhor
conduz os interrogatórios, e eu fico sentado a observar.
— Resposta certa — retorquiu Saparelli. — O único tipo de
parceiro que aguento é o parceiro silencioso.
— Certo — respondeu-lhe Leon, no tom mais afável possível.
Saparelli estava a vasculhar o interior da sua mala. Trazia uma
dessas sacolas de mensageiro que Leon associava a homens de
vinte e tal anos, com ténis Converse e numa carruagem de
metropolitano com destino a Brooklyn, mas depois ocorreu-lhe que
não visitava a cidade de Nova Iorque há tanto tempo que os hipsters
de vinte e tal anos que recordava seriam agora de meia-idade.
Tinham-se transformado no Saparelli.
— Fiz um pouco de pesquisa sobre o Geoffrey Bell — disse-lhe
Saparelli. Sacou de um bloco de notas cheio de uma minúscula
caligrafia em letra de imprensa. — Parece que ninguém verificou os
antecedentes dele antes de o contratar.
— A verificação dos antecedentes não é um procedimento
obrigatório?
— Sim. Deveria ser. Alguém fez asneira. Seja como for, pedi a um
contacto local que me sacasse os registos criminais, e parece que
há um historial de violência em Newcastle. Nada de terrivelmente
sinistro, mas foi preso duas vezes por rixas em bares no ano
anterior a ter embarcado.
— Parece ser algo que deveria ter sido identificado — retorquiu
Leon.
— De preferência, não é? Esperemos que seja o pior que vamos
encontrar.
Não falaram muito depois disso. Leon passou o resto do voo a
reler a pasta, como se não a tivesse já memorizado.
Estudou a fotografia da placa de identificação de Vincent Smith.
Não tinha a certeza absoluta. Parecia-lhe plausível que Vincent
Alkaitis e Vincent Smith fossem a mesma pessoa, mas a jovem
glamorosa de braço dado com Jonathan Alkaitis que aparecia em
fotografias antigas na Internet tinha uma parecença apenas ligeira
com a mulher de meia-idade, ar sério e cabelo curto que se via na
placa de identificação. Era incongruente que tivesse passado de
esposa de Alkaitis a cozinheira num navio de contentores, embora,
caso fossem a mesma pessoa, o objetivo talvez fosse exatamente
essa incongruência. Se tivesse sido casado com Alkaitis, Leon deu
por si a pensar, o mais certo seria também querer ir para o mar.
Aliás, teria desejado deixar o planeta. Depois de ter relido a pasta,
virou a atenção para as revistas que comprara no aeroporto, em
parte porque lhe tinham parecido genuinamente interessantes, em
parte porque queria que Saparelli o visse como uma pessoa séria
que lia The Economist e Foreign Policy. Podia dizer-se que se
tratava de uma representação ou de uma maneira de se apresentar
sob a melhor luz possível, em nada diferente de vestir um fato e
pentear o cabelo. Saparelli passou o resto do voo a trocar
mensagens no telemóvel e a ler Nietzsche.
Um carro preto esperava Leon e Saparelli no aeroporto de
Bremen e levou-os em direção a norte, sob céus cinzentos e baixos
e por entre os bonitos bairros de edifícios feitos de tijolo vermelho de
Bremerhaven, rumo ao sítio a que toda a gente da indústria de
transportes marítimos se referia quando dizia o nome dessa cidade:
um terminal imenso entre a cidade e o mar, não propriamente na
Alemanha, mas também não noutro lugar, um desses espaços
liminares que proliferaram nesta terra. Quando era novo, Leon
passara imenso tempo nesses lugares e agora, caminhando com
Saparelli e com a escolta de segurança em direção ao Neptune
Cumberland, experimentou a sensação estranha de estar a
assombrar uma versão anterior da sua vida. Sentia-se um impostor.
Era um choque ver o navio à sua frente, depois de uma semana a
ouvir e a ler o nome dele. Lá no alto, as gruas faziam o seu trabalho,
içando contentores de mercadorias do tamanho de salas das zonas
de amarração e dos porões. O navio estava pintado no mesmo
vermelho sensaborão típico das embarcações da Neptune-
Avramidis, elevado na água, agora que metade da sua carga fora
descarregada. Dois ajudantes de convés com um ar infeliz
receberam Leon e Saparelli em terra e acompanharam-nos à ponte
de comando.
O moral estava em baixo, confirmou o comandante. Era um
australiano na casa dos sessenta, profundamente abalado pelo
incidente. Partilhava a suspeita quase generalizada de que Geoffrey
Bell tivera algo que ver com o desaparecimento de Vincent.
— Alguma vez vos causou dissabores? — perguntou-lhe
Saparelli. Os três encontravam-se sentados à mesa do camarote de
luxo do comandante, observando as movimentações das gruas e
dos contentores através das janelas e definindo o modelo para cada
interrogatório que se seguiria: Saparelli a falar com o interrogado e
Leon a tirar apontamentos rápidos e a sentir-se incrivelmente
deslocado.
— Não, nunca nos causou dissabores. Mas era uma pessoa
invulgar, digamos assim. Um pouco antissocial. Não se dava com as
outras pessoas. Fazia bem o trabalho dele, mas era uma pessoa
reservada. Não me parece que os colegas simpatizassem muito
com ele.
— Estou a ver. Segundo sei, estava mau tempo na noite em que
ela desapareceu.
— Uma tempestade das valentes — replicou o comandante. —
Ninguém estava autorizado a andar nos conveses.
Outras entrevistas:
— Uma vez vi-os de mão dada no convés — disse o primeiro-
oficial. — Mas não aproveitavam a licença para ir a terra juntos. A
Smith gostava de ir sozinha, os três meses seguidos. Umas vezes
dava a ideia de que eram um casal, outras vezes, não.
— Eram relativamente discretos — disse o chefe das máquinas.
— Quero dizer, toda a gente sabia que eles namoravam, porque
quando estamos presos num navio toda a gente sabe tudo, mas não
exibiam a relação.
— Sabia que ela era artista? — perguntou o outro terceiro-
imediato, o que não era Geoffrey Bell. — Não sei se será a palavra
certa. Ela fez uma cena artística em vídeo que achei muito
interessante.
— Era competente — disse o despenseiro, o antigo chefe de
Vincent. Chamava-se Mendoza. — Mais do que competente, aliás.
Adorava o que fazia. Eu gostava de trabalhar com ela. Nunca se
queixava, era boa profissional, dava-se bem com toda a gente.
Talvez fosse um pouco excêntrica. Gostava de fazer vídeos de
nada.
— De nada? — indagou Saparelli, a caneta suspensa acima do
bloco de notas.
Mendoza acenou com a cabeça.
— Como, por exemplo?
— Punha-se no convés a filmar a merda do oceano — respondeu
o despenseiro. — Peço desculpa pela linguagem. Nunca tinha visto
nada assim. Apanhei-a uma vez, perguntei-lhe o que estava a fazer,
mas...
— Mas...?
— Limitou-se a encolher os ombros e continuou. — Ele ficou
calado por uns instantes, os olhos fixos no chão. — Na verdade,
respeitava isso nela. Estava a fazer uma coisa estranha e achava
que não tinha de me dar justificações.
— Alguma vez lhe pareceu deprimida? — perguntou-lhe
Saparelli. Leon ouvira essa mesma pergunta em todos os
interrogatórios nesse dia, pelo que já sabia qual iria ser a resposta.
— É difícil saber como as pessoas reagem ao stresse, mas, se
alguém lhe dissesse que ela tinha deixado o navio de livre vontade,
caso tenha saltado, isso seria plausível para si, tendo em conta o
que pôde observar do temperamento dela?
— Não, era uma pessoa feliz — respondeu-lhe Mendoza. —
Trabalhava nove meses, depois folgava três meses e, quando
regressava, vinha sempre cheia de histórias fantásticas. Quase
todos nós vamos para casa e esperamos que os nossos filhos ainda
se lembrem de nós, mas ela não tinha família, por isso viajava
imenso. Depois regressava, eu perguntava-lhe onde tinha ido, e
contava-me que tinha ido fazer caminhadas na Islândia, passear de
caiaque na Tailândia ou aprender a trabalhar o barro em Itália ou
algo do género. Costumávamos brincar com isso. Perguntava-lhe
quando tencionava casar e constituir família, e ela ria-se e
respondia-me que talvez na sua próxima encarnação. — Um
silêncio instalou-se em volta da mesa. Mendoza limpou os olhos. —
Já lhe disse que gostava de trabalhar com ela? Adorava trabalhar
com ela. Considerava-a uma amiga. Sabe quão raro é trabalhar com
alguém que adora a vida que tem?
— Sim — retorquiu Saparelli em surdina. — Sei, sim.
O camarote de Vincent estava exatamente como ela o deixara. A
cama estava por fazer. Os seus objetos pessoais eram parcos:
alguns produtos de higiene pessoal, umas quantas peças de roupa,
um portátil, alguns livros. Os livros diziam essencialmente respeito a
um navio chamado Columbia (Hail, Columbia; Voyages of the
Columbia to the Northwest Cost; entre outros). Saparelli enfiou
rapidamente os seus pertences na sua mala de viagem e mochila,
enquanto Leon folheava os livros e os sacudia por cima da cama.
Nada caiu do interior dos mesmos. Leon não sabia muito bem o que
procurava. Cartas incriminatórias da parte de Geoffrey Bell?
Anotações ameaçadoras?
— Se puder levar a mochila — disse-lhe Saparelli —, eu levo a
mala de viagem.
Leon pegou na mochila, e saíram ambos para o convés superior.
As gruas baixavam novos contentores para as zonas de amarração.
Ocorreu-lhe que talvez já tivesse lido algo sobre o Columbia. Um
navio que partira de Boston, no século xviii ou xix. Mais tarde iria
pesquisar sobre isso. Era o final da tarde, e as gruas projetavam
uma sombra complicada sobre o convés. Em retrospetiva, esses
últimos minutos a bordo assumiram uma nitidez e um peso algo
deslocado, porque foram também os últimos minutos imediatamente
antes de Mendoza ter reaparecido. Com todo o ruído ambiente, o
bater de metal e o arrastar de gruas e caixas, além da vibração
constante do motor, Leon só se apercebeu da presença do
despenseiro quando este já se encontrava muito próximo dele.
— Acompanho-vos lá abaixo — disse-lhe. Estavam perto do cimo
das escadas de embarque.
— Não há necessidade — retorquiu Saparelli, mas havia algo na
maneira como o despenseiro os fitava, pelo que Leon acenou com a
cabeça e deixou Mendoza ir à frente. Saparelli lançou um olhar
irritado a Leon.
Mendoza falou baixinho por cima do ombro, enquanto desciam:
— Uma vez vi-o bater numa mulher.
Saparelli estremeceu visivelmente.
— Quem? O Bell?
— Foi há uns anos, quando estávamos a trabalhar noutro navio.
Havia uma mulher a bordo, uma engenheira, e ela e o Bell tiveram
um caso. Uma noite estávamos a fazer um churrasco no convés e
ouvi-os discutir, por isso virei-me de costas, para lhes dar alguma
privacidade, entendem?
— Espere lá — interrompeu-o Leon —, estavam todos no
convés?
— Sim, foi antes de terem banido o consumo de álcool nos
navios. Dantes era possível beber um copo com os colegas à noite,
depois de um dia de trabalho, como adultos normais. Portanto, viro-
me de costas, finjo que estou interessado no horizonte e depois
ouço um estalo.
— Mas não o viu — disse Saparelli.
— Sei qual é o som de um estalo. Viro-me rapidamente, e é óbvio
que acabou de lhe bater. Ela está especada com a mão encostada à
face, a chorar um pouco, estão os dois a olhar um para o outro,
como se estivessem em choque ou algo do género. E eu pergunto
«Mas o que é que aconteceu aqui, o que se passa?», e ela olha
para mim e responde: «Nada. Estou bem.» Viro-me para ele e
pergunto: «Bateste-lhe?» E ela responde: «Não, ele não me bateu.»
Entretanto, tem a marca de uma mão completa na face, uma marca
vermelha cada vez mais visível.
— Certo. — Saparelli exalou. — E o que disse o Bell?
— Disse-me para não me meter onde não era chamado. Estou ali
parado, a tentar perceber o que fazer, mas, se ela insiste que não
aconteceu nada, quem sou eu para dizer alguma coisa? Nem
sequer vi. — Mendoza descia as escadas muito devagar, por isso
Leon e Saparelli também desciam devagar, esforçando-se para o
conseguirem ouvir. — Ela olha para mim — disse Mendoza por cima
do ombro —, ela olha para mim e diz: «Ninguém me bateu. Achas
mesmo que iria deixar alguém bater-me?» E eu fico meio
exasperado, ou seja, é tão óbvio, caramba, mas o que posso fazer?
Por isso deixo-os sozinhos e afasto-me um pouco, e depois ouço-a
dizer-lhe: «Voltas a fazer isso e atiro-te borda fora.»
— E depois, o que disse ele? — A voz de Saparelli soou
uniforme.
— Disse: «Só se eu não te atirar primeiro.»
Alcançaram o fim das escadas. O coração de Leon batia
demasiado depressa, e Saparelli parecia ter vontade de vomitar.
Leon já estava a imaginar o relatório: «Após investigação, veio a
lume que Geoffrey Bell tinha ameaçado anteriormente atirar uma
mulher borda fora.»
— Quando foi isso? — indagou Saparelli.
— Há uns oito anos? Nove?
— Não houve mais incidentes desde essa vez?
— Não — retorquiu Mendoza —, mas não lhe parece que um
incidente já é suficientemente mau?
— Reportou o incidente ao comandante?
— Falei com ele no dia seguinte. Disse-me que iria estar de olho
no Bell, mas, se a mulher insistia em que nada tinha acontecido, o
que podíamos nós fazer? Era um rumor, a minha palavra contra a
palavra deles, com a agravante de que nem sequer vi aquilo
acontecer.
— Certo — respondeu Saparelli. — E onde está essa mulher
agora? A engenheira com quem ele namorava?
— A última vez que soube dela estava nas Filipinas, a criar os
filhos. — Mendoza desviou o olhar. — Não refira o meu nome, está
bem? Quando incluir isto no seu relatório.
— Assim farei — retorquiu Saparelli —, mas por que motivo não
mo contou quando falámos antes?
— Porque simpatizava com o Geoffrey. Esta coisa que lhe contei
agora não significa que o Geoffrey teve alguma coisa que ver com o
que aconteceu à Vincent. Mas, depois de ter falado consigo há
pouco, não conseguia parar de pensar nisso. Achei que deveria
saber.
— Obrigado. Agradeço-lhe ter-me contado tudo.
Leon e Saparelli não olharam um para o outro no carro, mas
ambos escreveram nos seus blocos de apontamentos. Leon estava
a recontar a conversa, numa transcrição o mais fiel possível do que
recordava, e partia do princípio de que Saparelli estaria a fazer o
mesmo. No hotel junto ao aeroporto, fizeram o check-in, e Saparelli
tirou-lhe a mochila de Vincent.
— Boa noite — disse Saparelli, quando receberam as chaves dos
respetivos quartos. Foram as primeiras palavras que dirigiu a Leon
desde que tinham saído do porto.
— Boa noite. — Em vez de subir ao quarto, Leon foi até ao bar,
pois estava na casa dos setenta, não tinha dinheiro para viajar, e
esta seria possivelmente a última vez que iria tomar um copo num
bar na Alemanha, embora a influência do aeroporto ali perto
implicasse que todos estavam a conversar em inglês. Desejou que
Marie estivesse ali consigo. Terminou a bebida e subiu ao quarto,
passou a ferro a sua outra camisa e viu televisão durante algum
tempo. Tentando imaginar como essa última conversa apareceria no
relatório: «Um dos interrogados reportou que Geoffrey Bell em
tempos ameaçou atirar uma colega borda fora. Na altura, ele e essa
colega estavam envolvidos romanticamente. O interrogado reportou
o incidente ao comandante. No entanto, não há qualquer referência
ao incidente nos registos de Bell, o que leva a concluir que a
empresa não tomou qualquer medida.» Ficou acordado a noite
inteira, levantou-se da cama às 04h30 e bebeu quatro canecas de
café antes de descer ao átrio e se encontrar com Saparelli para
apanharem o carro em direção ao aeroporto.
— Esse é o mesmo fato que tinha vestido ontem? — perguntou-
lhe Saparelli. Estavam sentados lado a lado na cabina de classe
executiva, uma hora depois terem levantado voo. Saparelli tinha um
aspeto tão terrível como Leon se sentia. Apetecia-lhe perguntar se
Saparelli também passara a noite em branco, mas pareceu-lhe
demasiado intrusivo.
— A viagem é curta — respondeu-lhe Leon. — Não pensei que
fosse precisar de dois.
— Sabe no que estava aqui a pensar? — Saparelli olhava
diretamente em frente. — Na maneira como uma mensagem
desagradável projeta uma sombra no mensageiro.
— Isso é do Nietzsche?
— Não, é meu. Posso ver o seu bloco de apontamentos?
— O meu bloco de apontamentos?
— O que estava a utilizar no carro, ontem — disse-lhe Saparelli.
Leon extraiu-o do bolso da frente do saco e observou enquanto
Saparelli folheou até às últimas páginas de apontamentos, os leu
rapidamente e depois rasgou as duas últimas páginas, as dobrou e
enfiou dentro de um bolso interior do seu casaco.
— O que está a fazer?
— Por acaso até temos interesses semelhantes — respondeu
Saparelli. — Estava a pensar nisso ontem à noite.
— Em que beneficiam os seus interesses de arrancar páginas ao
meu bloco de apontamentos? — Leon sentia que deveria estar
furioso por causa do bloco, mas estava tão cansado que sentia
apenas um temor dormente.
— Sei que não está reformado — disse-lhe Saparelli.
— Desculpe?
— Sei que mora em parques de campismo e que trabalha em
armazéns de distribuição no Natal. Sei que passou o último verão a
trabalhar num parque de diversões chamado Adventureland. Onde é
que era, já não me recordo... no Indiana, certo? — Continuava a
olhar diretamente em frente.
Leon ficou em silêncio por algum tempo.
— No Iowa — respondeu, em voz baixa.
— E, no verão antes desse, sei que o Leon e a sua esposa foram
anfitriões de campismo no Norte da Califórnia. Sei que esteve há
pouco tempo empregado no Marriot, no Colorado, a fazer trabalho
subalterno. Sei que esse é o seu único fato. — Virou-se para olhar
para Leon. — Não estou a dizer que a culpa é sua. Li sobre o
esquema Ponzi quando me deparei com a sua declaração de vítima.
Como é óbvio, muitas pessoas inteligentes foram enganadas.
— Então o que está a dizer, exatamente? Não sei bem o que o
meu historial profissional tem que ver com...
— Estou a dizer que o Leon quer mais contratos de consultoria, e
eu quero poder descer o corredor sem que toda a gente pense: «Ali
vai aquele tipo que escreveu aquele relatório péssimo que foi parar
às mãos da imprensa e fez com que várias pessoas fossem
despedidas.» E o Leon também quer isso. Quer poder passar pelo
corredor sem que olhem para si como se fosse uma espécie de
avatar da desgraça ou algo assim.
— Está a pensar não incluir essa última conversa no seu
relatório.
— Tudo o que esteja fora dos interrogatórios oficiais, ou seja, é
tudo uma questão de memória, não é? Gravei os interrogatórios,
mas não gravei nada para além disso.
Leon esfregou a testa.
— Podemos, ou não, ter ouvido uma história alarmante — disse
Saparelli, em surdina. — Uma história alarmante que não prova
nada. Os factos do caso permanecem inalterados. A verdade é que
jamais saberemos o que aconteceu porque não estava ninguém
presente.
— O Geoffrey Bell estava presente.
— O Geoffrey Bell desapareceu em Roterdão. O Geoffrey Bell
vive fora do sistema.
— Não lhe parece suspeito que tenha deixado o navio na primeira
paragem depois de...?
— Não tenho como saber por que razão deixou o navio, Leon, e
ambos sabemos que nenhuma força policial alguma vez irá
interrogá-lo em relação ao incidente. Veja a coisa desta maneira —
disse Saparelli —, independentemente do que eu escrever no meu
relatório, a Vincent Smith vai continuar morta. O facto de incluir essa
última conversa não terá qualquer efeito positivo. Iria apenas causar
danos.
— Mas pretende-se um relatório fiel. — Estava tudo errado. A luz
solar que entrava pelas janelas da cabina era demasiado luminosa,
o ar estava demasiado quente, Saparelli, demasiado próximo. Os
olhos de Leon doíam da privação de sono.
— Digamos que, teoricamente, o relatório inclui todas as
conversas que tivemos naquele navio. Isso irá trazer a namorada do
Jonathan Alkaitis de volta?
Leon olhou para ele. Observando-o melhor, estava certo de que
Saparelli também não pregara olho. Tinha os olhos raiados de
sangue.
— Eu não tinha a certeza — respondeu-lhe Leon. — Não tinha a
certeza de que fosse a mesma mulher.
— Quantas mulheres conhece com o nome Vincent? Ouça, fui
detetive — disse-lhe Saparelli. — Investigo tudo e todos, é um
hábito profissional. Parece-me haver aqui um conflito de interesses,
não acha? O Leon aceitar este contrato de consultoria que envolve
a antiga companheira de um homem que roubou todo o seu
dinheiro? A Miranda sabe?
— Nunca escondi nada — retorquiu Leon. — Está tudo disponível
online...
— Disponível online não é o mesmo que recusar tomar parte de
algo. Não lhe disse, pois não?
— Ela podia ter pesquisado. Bastava escrever o meu nome no
Google...
— Porque haveria de fazer tal coisa? O Leon é um ex-colega de
confiança. Quando foi a última vez que pesquisou no Google
alguém da sua confiança?
— Meus senhores — disse a hospedeira de bordo —, posso
trazer-vos mais alguma coisa para beber?
— Café — respondeu Leon. — Com leite e açúcar, por favor.
— Para mim também, obrigado. — Saparelli recostou-se no
assento. — Se pensar bem — disse ele —, vai chegar à conclusão
de que tenho razão.
Leon estava no lugar junto à janela; contemplou o Atlântico
matinal, profundamente incomodado. Não se viam embarcações lá
em baixo, mas vislumbrou outro avião ao longe. O café chegou.
Decorreu imenso tempo até Saparelli voltar a falar.
— Vou dizer à Miranda que o Leon foi extremamente útil e que foi
ótimo tê-lo por perto e irei recomendar que passem a contratá-lo
para futuros trabalhos de consultoria.
— Obrigado — respondeu-lhe Leon. Foi tão simples como isso.
4
Depois da Alemanha, Leon recomeçou a ver o país-sombra, pela
primeira vez em algum tempo. Nos últimos anos, não reparara nele;
após o choque inicial dos primeiros meses na estrada, desaparecera
nos recônditos da sua mente. Mas uns dias depois de ter
regressado da Alemanha, numa paragem de camiões na Geórgia,
calhou Leon espreitar pela janela no mesmo instante em que uma
rapariga descia de um camião semirreboque ali perto. Estava
vestida normalmente, com calças de ganga e uma T-shirt, mas
percebeu o que ela era ao mesmo tempo que reparara no facto de
ser muito nova. Desapareceu entre os camiões.
Numa estação de serviço, nessa mesma noite, viu outra rapariga
descer de outro camião, dessa vez alguém que andava à boleia,
com uma mochila às costas. Que idade teria? Dezassete.
Dezasseis. Vinte anos, mas com um ar ainda mais jovem. Não podia
precisar. Reparou nas olheiras dela sob a luz azulada dura. Ela
apercebeu-se de que ele a olhava e avaliou-o com uma expressão
vazia. Olhamos fixamente para a rua, e a rua retribui esse olhar.
Leon sabia que ele e Marie tinham mais sorte do que a maioria dos
cidadãos do país-sombra, tinham-se um ao outro, a autocaravana e
dinheiro suficiente (à justa) para sobreviverem, mas o marcador
essencial de cidadania era o mesmo para todos: todos haviam sido
abandonados, tinham-se esgueirado sob a superfície dos Estados
Unidos, estavam à deriva.
As pessoas passavam a vida inteira a deslocar-se entre países,
ou pelo menos assim parecia a Leon. Desde o colapso do Ponzi,
muitas vezes dava por si a pensar num ensaio que lera em tempos,
escrito por um homem com uma doença terminal, um homem que
escrevera com gratidão sobre os técnicos de emergência médica
que tinham aparecido quando acordara certa manhã e constatara
estar demasiado doente para funcionar, homens bondosos que o
tinham levado delicadamente para o país dos doentes. Essa ideia
nunca mais saíra da cabeça de Leon e, depois da Alemanha,
durante as longas horas ao volante da autocaravana, começou a
formular uma filosofia sobre países sobrepostos e em camadas. Se
uma infelicidade médica nos manda para o país dos doentes — que
tem os seus próprios rituais, costumes, tradições e regras —, então
um Alkaitis manda-nos para um território instável, o país dos
enganados. Coisas que se tornaram impossíveis depois de Alkaitis:
reforma, uma casa sem rodas, confiar noutras pessoas além de
Marie. Coisas que se tornaram impossíveis depois de ter visitado a
Alemanha com Michael Saparelli: a certeza da sua própria
moralidade, continuar a acreditar que era uma pessoa
essencialmente incorruptível, telefonar a Miranda a perguntar sobre
outras oportunidades de consultoria.
Uma semana depois de ter regressado da Alemanha, recebeu um
e-mail de Saparelli com um link para um vídeo protegido com uma
palavra-passe. O e-mail dizia: «Examinámos o portátil da Menina
Smith e revimos horas de vídeos. Vários vídeos como este, outros
gravados em péssimas condições atmosféricas. Achei que deveria
vê-lo; corrobora a nossa convicção de que a morte dela muito
provavelmente terá sido acidental. Lembre-se de que estava mau
tempo na noite em que desapareceu.»
Tratava-se de uma gravação curta, mais ou menos cinco minutos,
filmada de um convés traseiro, à noite. Vincent filmara o oceano por
vários minutos, e depois o ângulo da câmara mudara: deu um passo
em frente e espreitou por cima da amurada, que nesse convés em
particular não era muito alto. Debruçou-se sobre o mesmo de uma
maneira alarmante, pelo que a imagem focava diretamente o
oceano, lá em baixo.
Leon viu o vídeo mais duas vezes e depois fechou o portátil.
Compreendia que Saparelli estava a ter uma atenção para com ele,
enviando-lhe provas a fim de aplacar a consciência de Leon e de
consolidar a narrativa do relatório. Leon e Marie encontravam-se no
estado de Washington nessa noite, num parque de campismo
privado praticamente deserto na época baixa. A noite caía lá fora, as
silhuetas dos ramos dos abetos e dos cedros negras num fundo de
céu esbatido. O vídeo não provava nada além de uma certa
imprudência, mas ajudava a compor uma narrativa: mares revoltos,
ventos fortes, uma mulher distraída num convés escorregadio, uma
amurada baixa. Talvez Bell tivesse abandonado o navio por ter
matado a namorada, mas, por outro lado, talvez tivesse abandonado
o navio porque a mulher que amava desaparecera.
— Isto aqui é tão bonito — disse Marie certa noite, um ano depois
de Leon ter regressado da Alemanha. Não tinha havido mais
trabalhos de consultoria. Tinham acabado de fazer a época pré-
Natal num armazém no Arizona, dez horas por dia de um lado para
o outro num piso de betão, com um digitalizador manual, a
baixarem-se constantemente para pegar em coisas pesadas, e
tinham-se retirado para um parque de campismo nos arredores de
Santa Fé, a fim de recuperar. Trabalho duro e que se tornava mais
duro a cada ano que passava, mas tinham ganhado dinheiro
suficiente para mandar arranjar o motor e acrescentar mais alguma
coisa ao fundo de emergência, e agora estavam a descansar no
deserto elevado. Do outro lado da estrada, via-se um pequeno
cemitério com cruzes de madeira e de cimento, com uma vedação
de madeira branca meio solta a toda a volta do perímetro.
— Podia ser bem pior — respondeu-lhe Leon. Estavam sentados
num banco de piquenique junto à autocaravana, a contemplar a
vista composta por montanhas distantes assumindo uma tonalidade
violeta ao pôr do sol, e nesse instante ele sentiu que tudo estava
bem no mundo.
— Passamos por este mundo tão ligeiros — disse Marie, citando
erradamente o verso de uma das canções favoritas de Leon, e por
um afetuoso instante julgou que estivesse a referir-se, em geral, a
toda a humanidade, a todas as vidas individuais que tocavam a
superfície do mundo deixando poucos vestígios, mas depois
compreendeu que se referia a eles em específico, a Leon e Marie, e
o arrepio que sentiu não se deveu à noite que chegava de
mansinho. Quando tinham trinta e muitos anos, decidiram não ter
filhos, o que na altura lhes parecera uma maneira sensata de evitar
complicações e desgostos desnecessários, e essa decisão conferira
um certo sossego à vida de ambos, algo pelo qual sempre fora
muito grato, a sensação de um bem-aventurado desimpedimento.
Mas um impedimento também podia ser entendido como uma
âncora, e a verdade era que nos últimos tempos dava por si a
pensar que não se importaria nada de estar mais ancorado a este
mundo.
Ficaram sentados a ver o sol desaparecer atrás das montanhas,
deixando-se ficar na rua até muito depois de ter escurecido, até o
céu se iluminar de estrelas, mas tinham de voltar para dentro, pelo
que se levantaram algo doridos e regressaram ao calor da
autocaravana, dando início a todo o ritual de se prepararem para ir
dormir e de darem um beijo de boas-noites. Marie apagou a luz e
adormeceu no espaço de poucos minutos. Leon deixou-se ficar
acordado na escuridão.
14
O CORO DO ESCRITÓRIO
Dezembro de 2029
O HOTEL
1
Numa noite no final da primavera, no Hotel Caiette, em 2005, a
noite em que o empregado da limpeza estava a varrer o átrio
quando uma hóspede lhe dirigiu a palavra.
— Falhou aquele sítio ali — informou-o ela. Paul forçou uma
espécie de sorriso e amaldiçoou a sua vida.
— Estou a brincar — disse a hóspede. — Peço desculpa, foi uma
piada parva. Mas agora a sério: pode chegar aqui um instante? — A
mulher estava parada junto à janela, com um uísque na mão. Já
tinha alguma idade, ou pelo menos assim pareceu a Paul na altura
— em retrospetiva, provavelmente tinha apenas 40 anos —, mas
havia algo de atraente nela. Passava a imagem de quem tinha a
vida completamente organizada, algo a que Paul somente poderia
aspirar. Pegou na vassoura num gesto meio desajeitado e
aproximou-se dela.
— Posso ajudá-la com alguma coisa? — Estava satisfeito consigo
próprio por se ter lembrado de o perguntar. Soava a algo que um
mordomo diria, o que era mais ou menos o que pretendia. De vez
em quando, captava um vislumbre, se não exatamente dos prazeres
da indústria da hospitalidade, pelo menos dos prazeres da
competência profissional. Percebia que podia haver uma certa
satisfação em ser-se competente no trabalho que se fazia, do
mesmo modo que Vincent era competente no seu trabalho. Fora
sempre um empregado indiferente. Nesse momento, Vincent
encontrava-se na outra extremidade do átrio, a rir-se com um
hóspede que lhe contava a história de uma viagem de pesca que
correra hilariantemente mal.
— Seria possível falar consigo em privado? — perguntou-lhe a
mulher. Paul olhou por cima do ombro para a receção, onde Walter
empregava os seus consideráveis poderes apaziguadores com um
casal norte-americano furioso porque o quarto com jacúzi pelo qual
tinham pagado revelara ser exatamente um quarto com jacúzi e não
uma suite com banheira de hidromassagem de casal. — Sou a Ella
Kaspersky — disse ela. — Como se chama?
— Paul. Prazer em conhecê-la.
— Paul, há quanto tempo trabalha aqui?
— Não muito. Uns meses.
— E tenciona continuar por muito mais tempo?
— Não. — Não pensara antes de o dizer, mas a resposta soava-
lhe verdadeira. Era claro que Paul não iria ficar ali. Deixara
Vancouver e viera com o intuito de se afastar de amigos com maus
hábitos e porque Vincent já lá estava e lhe dissera que era um sítio
agradável onde trabalhar, mas logo no final da sua primeira semana
de trabalho percebera que cometera um erro. Detestava estar de
volta a Caiette. Detestava morar no mesmo edifício que os colegas
de trabalho; parecia-lhe algo claustrofóbico. O empregado de mesa
que morava no quarto ao lado fazia sexo com uma subchefe de
cozinha todas as noites, e Paul, que era extremamente solteiro,
ouvia todos os sons que eles faziam. Não gostava do chefe, Walter,
nem do chefe de Walter, Raphael. Sentia falta do pai, que morrera
havia uns meses, mas que, por alguma razão, Paul estava sempre à
espera de ver quando ia até à aldeia. — Aliás — disse-lhe —, ando
a pensar ir-me embora em breve. Talvez muito em breve.
— O que gostaria de fazer em vez disto?
— Sou compositor. — Julgara que, ao proferi-lo em voz alta, o
tornaria mais real, mas dizê-lo em voz alta apenas o fez sentir-se
uma fraude. Andava a compor música que não mostrava a ninguém.
Situava-se algures entre a música clássica e a eletrónica, e não
tinha qualquer confiança no seu trabalho.
— Imagino que seja uma área complicada de conquistar.
— Muito — retorquiu ele. — Vou continuar a trabalhar em hotéis
ao mesmo tempo que trabalho na minha música, mas quero voltar
para a cidade.
— Uma coisa é descansar e carregar baterias no meio de
nenhures — disse Ella —, mas imagino que morar aqui seja bem
diferente.
— Exato, sim, é isso mesmo. Detesto. — Ocorreu-lhe que talvez
não devesse falar dessa maneira com um hóspede — Walter ficaria
furioso —, mas, se tencionava ir-se embora, que diferença fazia?
— Gostaria de lhe contar uma história — disse Ella —, que
acabará numa proposta de negócio, algo que implicaria o Paul
ganhar algum dinheiro. Está interessado?
— Sim.
— Deixe-se estar aí, e olhamos os dois pela janela. Se aquele
seu gerente reprimido lhe perguntar alguma coisa mais tarde, eu
estava a perguntar-lhe sobre pesca e geografia local. Combinado?
— Combinado. — O mistério era maravilhoso e consolidava a sua
vontade de partir, pois, mesmo que ela se calasse nesse instante e
não voltasse a abrir a boca, ainda assim, seria a coisa mais
interessante que acontecia em várias semanas.
— Há um homem chamado Jonathan Alkaitis que mora na cidade
de Nova Iorque — explicou ela. — Temos uma coisa em comum, ou
seja, ambos somos clientes habituais deste hotel. Ele virá para cá
dentro de dois dias.
— É detetive ou algo do género?
— Não, só dou gorjetas extravagantes a funcionários de receção
exaustos. Enfim. Quando ele chegar, quero deixar-lhe uma
mensagem.
— E quer que eu lha entregue?
— Sim, mas não estamos a falar de enfiar um envelope por baixo
de uma porta. Quero que seja entregue de uma maneira
inesquecível. Quero que ele fique abalado com a mensagem. — Os
olhos dela brilhavam. Apercebeu-se, pela primeira vez, de que
estava muito embriagada.
— Conheci uma rapariga que uma vez escreveu um grafíti numa
janela da escola com um marcador fluorescente — disse ele. —
Algo desse género?
— O Paul é perfeito — respondeu ela.
Quando Paul escreveu a mensagem, parecia que tinha estrelas a
explodirem-lhe dentro do peito. Foi como dar uma corridinha
debaixo de uma tempestade de verão. Na noite combinada, saiu
para ir jantar e contornou silenciosamente o exterior do edifício,
onde escondera uma camisola com capuz de um tamanho
excessivamente grande e com um marcador fluorescente no bolso.
De seguida, posicionou-se perto do terraço da frente, longe da poça
de luz que jorrava do interior do hotel. Havia uma brisa nessa noite,
o que permitia que os seus movimentos passassem despercebidos,
os passos abafados por todos os pequenos ruídos da floresta, o
estalar de galhos e o roçagar do vento. O porteiro da noite
permaneceu imenso tempo junto à porta, demasiado perto dele, e
Paul quase não conseguiu completar a missão, mas depois Larry
consultou o relógio de pulso e tornou a entrar, desaparecendo no
interior do átrio, caminhando na direção da sala dos funcionários.
Era a pausa para café. Uma nuvem encobriu a lua, e isso pareceu-
lhe um sinal, a noite a conspirar para o esconder. Tirou a tampa do
marcador e saiu rapidamente para o terraço, o coração a bater
furiosamente, a cabeça baixa. «E que tal engolires pedaços de
vidro?» Escreveu a mensagem ao contrário, tal como praticara no
quarto, e depois escapuliu-se novamente para a floresta, e, qual
coreografia, a nuvem descobriu a lua, e a mensagem ficou
iluminada. Contornou a parede lateral do hotel e regressou ao
edifício reservado aos funcionários. Era impossível deslocar-se sem
fazer barulho, mas a floresta noturna estava cheia de ruídos. No
edifício dos funcionários, decorria uma espécie de festa, luz e
música jorrando da suite no segundo andar, o pessoal do dia a
embriagar-se para adormecer a angústia do atendimento ao público.
Despiu a camisola com capuz e descalçou as luvas, enrolou tudo
numa bola e enfiou-a dentro dos arbustos, na base de um pedaço
de tronco. Em seguida, saiu para o caminho de acesso que ligava o
edifício dos funcionários ao hotel e emergiu da floresta para a
luminosa poça de luz proveniente do hotel, para que, caso alguém
estivesse a vê-lo do hotel, parecesse que regressara
momentaneamente ao seu quarto. Consultou o relógio de pulso e
optou por uma caminhada lenta até à porta lateral, nada fora do
normal, somente o desfrutar de um pouco de ar puro, estimulado
pelo prazer duplo da ação e do secretismo, e essa elação durou até
ao momento em que ele entrou no átrio e viu o cenário: o hóspede
parado no meio do átrio, abalado; o gerente da noite a sair de trás
do balcão da receção; a irmã a erguer o olhar do copo que estava a
polir atrás do bar; todos fitavam as palavras na janela, e a
expressão no rosto de Vincent era insuportável, um olhar de tristeza
e horror viscerais. O hóspede virou-se, e Vincent desviou o olhar, ao
mesmo tempo que Walter se aproximava numa onda de eficiência e
tranquilização — «Permita-me que lhe traga mais uma bebida, é por
conta da casa, claro, lamento imenso que tivesse de ver isto», etc.
—, enquanto Vincent olhava fixamente para o copo que estava a
polir e Paul permanecia no interior da porta, invisível. Por algum
motivo, não lhe ocorrera que outras pessoas iriam ver a mensagem.
Saiu novamente para o ar frio da noite e deixou-se ficar na rua por
algum tempo, os olhos fechados, a tentar controlar-se, antes de
fazer uma segunda e mais óbvia entrada, fechando a porta
ruidosamente atrás de si, procurando comportar-se de uma forma
descontraída, mas com o olhar a incidir de imediato sobre o
rododendro que alguém — possivelmente Larry — empurrara para a
frente da janela.
Walter observava-o detrás do balcão.
— Aconteceu alguma coisa à janela? — indagou Paul. Aos seus
próprios ouvidos, a sua voz soara errada, demasiado aguda e
desafinada.
— Infelizmente, sim — respondeu-lhe Walter. — Um grafíti
extremamente desagradável.
«Ele pensa que fui eu», pensou Paul, sentindo-se
inesperadamente ofendido.
— O Sr. Alkaitis viu-o?
— Quem?
— O Walter sabe. — Paul acenou com a cabeça na direção do
hóspede, o homem na casa dos cinquenta que fitava a própria
bebida.
— Aquele não é o Sr. Alkaitis — retorquiu Walter.
Santo Deus. Paul arranjou uma desculpa para se retirar e dirigiu-
se para o bar, onde Vincent acabara de polir os copos e passara a
limpar o pó imaginário das garrafas.
— Então? — perguntou-lhe e, quando ela ergueu o olhar, ficou
chocado por lhe ver lágrimas nos olhos. — Estás bem?
— Aquela mensagem no vidro... — sussurrou ela.
Apeteceu-lhe ir-se embora nesse preciso instante, deixar todos os
seus pertences para trás, chamar um táxi aquático do átrio,
caminhar até ao cais, apanhar uma boleia até Grace Harbour e
continuar a andar.
— Deve ter sido um miúdo com os copos.
Ela limpou sub-repticiamente as lágrimas com um guardanapo de
cocktail.
— Desculpa — disse-lhe —, mas estou demasiado perturbada
para conseguir falar.
— Claro — replicou ele, atolado nesse tipo de autodepreciação
contra o qual fora avisado aquando do processo de desintoxicação.
Apercebeu-se de uma concentração de atenção no átrio; Walter
saía detrás do balcão da receção, e Larry retirava um carrinho porta-
malas do armário discreto junto ao piano. Vincent bebia um café
rápido. Na parede de vidro do hotel, o átrio encontrava-se refletido
com a fidelidade exata de um espelho, mas agora o reflexo fora
interrompido por uma luz branca na água, um barco que se
aproximava. Jonathan Alkaitis estava a chegar.
2
Três anos depois, em dezembro de 2008, Walter leu a notícia
sobre a detenção de Alkaitis na receção, e o sangue esvaiu-se-lhe
todo da cabeça. Khalil, o empregado de bar de serviço nessa noite,
viu-o desaparecer de vista e, no espaço de segundos, estava ao seu
lado, com um copo de água fria.
— Walter, aqui tem, respire fundo...
E Walter tentou respirar, tentou beber a água, tentou não
desmaiar, com uma série de estrelas a nadarem-lhe no campo de
visão. Os colegas de Walter estavam ajoelhados à volta dele, a
perguntar-lhe o que se passava e a falar em chamar o táxi aquático
e em levá-lo para um hospital, e depois Larry reparou na notícia do
New York Times no ecrã do computador e exclamou:
— Ah...
— Eu era um dos investidores — disse Walter, tentando explicar.
— Do Alkaitis? — indagou Larry.
— Ele esteve cá no verão passado, lembras-te? — Walter tinha a
sensação de estar prestes a vomitar. — Ele e a Vincent. Conversei
com ele certa noite, começámos a falar sobre investimentos, disse-
lhe que tinha umas poupanças...
— Meu Deus — exclamou Larry. — Walter. Lamento.
— Ele agiu como se me estivesse a fazer um favor — respondeu
Walter. — Deixando-me investir no fundo dele.
Larry ajoelhou-se e pousou-lhe a mão no ombro.
— Não pode ter desaparecido — disse Walter. — Não pode ter
simplesmente desaparecido. Eram as minhas poupanças de uma
vida inteira.
Aqui, uma falha de memória: como regressou Walter ao seu
apartamento? Em retrospetiva é um pouco confuso, mas, algum
tempo depois, estava deitado em cima da cama, a fitar o teto,
completamente vestido, à exceção dos sapatos, um copo de água
em cima da mesa de cabeceira.
Foi mais ou menos por volta das 20h00 que Walter foi falar com
Raphael ao gabinete deste.
— Não sei de nada — respondeu-lhe Raphael. Fazia rodar uma
caneta nos nós dos dedos da mão esquerda, um movimento
nervoso e rápido cuja mecânica escapava a Walter. Como é que a
caneta não caía? — Temos de esperar que nos digam alguma coisa
dos Estados Unidos.
— Alguma coisa sobre o quê? — Walter olhava fixamente para a
caneta.
— Bem, alguma coisa sobre qual vai ser o nosso destino,
correndo o risco de soar um pouco melodramático. Acabei de falar
ao telefone com o escritório central, e pelos vistos há um agente de
execução em Nova Iorque, um advogado qualquer nomeado por um
juiz, para gerir toda a confusão do Alkaitis, por isso presumo que o
destino do hotel seja uma decisão desse agente.
Quis o destino que o suspense fosse de pouca dura. Perto do
final da semana seguinte, chegou a informação ao hotel de que o
agente de execução decidira vender a propriedade, de forma a
recuperar o máximo possível para os investidores no menor período
possível. Por uns tempos, houve rumores de que a empresa gestora
do hotel pudesse comprar a propriedade, mas Raphael estava algo
cético em relação a isso.
— Vou contar-te um segredo — disse Raphael a Walter. — Há
quatro anos que este hotel não tem lucro. Se houver realmente um
comprador, não será um hoteleiro.
— Quem mais o iria comprar?
— Exatamente — respondeu-lhe Raphael.
Quando o seu destino se tornou evidente — a propriedade para
venda sem perspetiva de compradores no imediato, o hotel com
encerramento de portas agendado para dali a três semanas —,
Walter foi acometido por uma ideia estranha. Toda a gente partiria,
mas isso significaria necessariamente que Walter também teria de
partir? Numa das manhãs mais calmas na receção, pouco antes da
mudança de turno, fez a quarta tentativa de contactar o agente de
execução pelo telefone, até que conseguiu finalmente passar pela
secretária de Alfred Selwyn.
— Daqui fala Selwyn.
— Sr. Selwyn, daqui Walter Lee. Espero que perdoe a minha
insistência — disse-lhe Walter —, mas esperava poder falar consigo
sobre um assunto bastante urgente, pelo menos para mim...
— Em que posso ajudá-lo, Sr. Lee?
Walter não sabia bem o que esperara. Algo saído de um drama
jurídico, pensava ele, um tubarão traiçoeiro com uma pronúncia
desagradavelmente norte-americana, mas Alfred Selwyn era cortês
e falava num tom calmo, dando a impressão de escutar atentamente
enquanto Walter vendia o seu peixe.
— Tanto quanto me é dado a entender — respondeu-lhe Selwyn
—, a propriedade fica num lugar muito remoto, não é verdade?
— Não totalmente — retorquiu Walter. — Posso estar em Grace
Harbour no espaço de uma hora, se chamar um táxi aquático.
— E Grace Harbour é um centro populacional com uma dimensão
normal? Peço desculpa, dê-me só um segundo... — Uma ligeira
agitação enquanto Selwyn tapava o bocal com a mão. — Sr.
Alexander — ouviu-o Walter dizer, a voz abafada pela mão —,
sente-se, por favor, que falo já consigo. Lorraine, traz-me um café,
por favor, para mim e para o Harvey. — Mais um roçagar, e a voz de
Selwyn recuperou a nitidez normal. — Peço desculpa. O que estou
a tentar perceber, correndo o risco de soar demasiado brusco, é se
o senhor não irá enlouquecer ficando a morar sozinho num hotel no
meio do nada.
— Compreendo a sua preocupação — replicou Walter —, mas a
verdade é que adoro morar aqui. — Ouviu-se falar sobre o prazer de
morar num sítio tranquilo e de uma beleza natural imensa e sobre a
simpatia dos habitantes da aldeia mais próxima, Caiette (um
exagero, pois a maioria detestava as pessoas de fora), e a única
coisa em que conseguia pensar era: «Por favor, por favor, por favor,
deixa-me ficar.» Seguiu-se um instante de silêncio do outro lado do
monólogo.
— Bem — disse Selwyn —, está a conseguir convencer-me.
Pode enviar-me algumas referências até ao final da semana?
Incluindo a do seu atual supervisor, se possível?
— Com certeza — retorquiu Walter. — Obrigado por ter a minha
proposta em consideração. — Quando desligou, sentia-se mais leve
do que em muito tempo, desde a noite em que lera a notícia sobre a
detenção. Olhou para o átrio e imaginou toda a gente fora dali.
— Queres fazer o quê? — perguntou Raphael quando Walter o
abordou. Tinha um dossiê aberto em cima da secretária. Walter viu
uma tabela intitulada RevPAR 2007–2008, que ocupava duas
páginas. Receita por quarto disponível. Raphael ia mudar-se para
um hotel em Edmonton e passava os dias a ler sobre a sua nova
propriedade.
— O hotel precisa de um zelador — respondeu-lhe Walter. — O
Selwyn concordou comigo que não é do interesse de ninguém
deixá-lo ficar a cair aos bocados.
— Ouve, tenho todo o gosto em dar-te uma excelente referência,
Walter, mas custa-me a acreditar que queiras ficar aqui sozinho.
Tens alguma data limite em vista?
— Oh, sim, é claro que não ficaria aqui para sempre —
respondeu-lhe Walter, de forma a tranquilizá-lo, mas não seria a pior
coisa do mundo, pensou ele no caminho de regresso ao edifício dos
funcionários. Caiette fora o primeiro lugar que alguma vez amara
verdadeiramente. Não havia outro sítio para onde preferisse ir.
«Deem-me sossego», pensou ele, «deem-me florestas e oceano e
nada de estradas. Deem-me uma caminhada até à aldeia pelo meio
dos bosques no verão, deem-me o som do vento nos ramos dos
cedros, deem-me a neblina que se ergue do mar, deem-me a vista
sobre ramos verdes da minha banheira todas as manhãs. Deem-me
um lugar sem pessoas, pois jamais voltarei a confiar
verdadeiramente em alguém».
3
Uma década depois, em Edimburgo, Paul recebeu o copo de
vinho do empregado de bar, virou-se para regressar à multidão, e lá
estava ela à sua frente.
— Tu — disse ele, porque não se lembrava do nome dela.
— Olá, Paul. — Era exatamente como a recordava: uma pessoa
pequena e esbelta, com um corte de cabelo muito preciso,
envergando um elegante fato completo e um colar que parecia
envolver um mosquito preso num pedaço de âmbar do tamanho de
uma noz. Mas quem era ela? Estava sob o efeito do jet lag e
ligeiramente embriagado e, além disso, era tão mau a recordar
rostos e nomes que ultimamente começara a interrogar-se se seria
alguma coisa ou uma sociopatia borderline («Serei tão egocêntrico
que não vejo as outras pessoas?») ou uma variação ligeira de
cegueira facial, um problema neurológico em que não
reconhecemos a nossa própria mulher se ela cortar o cabelo, não
que fosse casado. Pensou em tudo isso enquanto a mulher-mistério
esperava pacientemente, de uísque na mão.
— Não te quero apressar — disse ela, por fim —, mas ia agora
fumar um cigarro para o terraço. Talvez queiras vir comigo,
enquanto pensas mais um bocadinho?
Tinha uma pronúncia norte-americana, mas de pouco serviu para
o ajudar a identificá-la. A festa chamara uma parte do público do
Festival de Edimburgo, e uma boa percentagem dos convidados
tinha pronúncia norte-americana. Murmurou algo pouco eloquente e
seguiu-a por entre a multidão, mas a sua identidade só lhe veio à
mente quando já estavam sozinhos no terraço há algum tempo e ela
acendeu o próprio cigarro.
— Ella — disse Paul. — Ella Kaspersky. Peço imensa desculpa.
Estou com um pouco de jet lag...
Ella encolheu os ombros.
— É normal, vemos a pessoa fora do contexto... — Deixou o
resto do pensamento no ar. — Além de que já passou imenso
tempo.
— Treze anos?
— Sim.
Estava frio no terraço, e ele queria voltar para dentro. Não, para
dentro não, para o hotel. O frio não era o verdadeiro problema. Em
termos práticos, viajar na classe económica de Toronto para
Edimburgo significava que estava acordado há dois dias, o que se
incluía na categoria cada vez mais vasta de coisas que era possível
fazer aos dezoito anos, mas não agora que estava a entrar na meia-
idade. Ver Ella Kaspersky só o fazia sentir-se pior. E isso devia ser
algo percetível na sua expressão, pois Ella pareceu amansar, ainda
que ligeiramente, e tocou-lhe no braço ao de leve.
— Há treze anos que ando para te pedir desculpa — disse-lhe
ela. — Estava muito zangada em Caiette e tinha bebido de mais.
Deixei que esses sentimentos levassem a melhor. Não devia ter-te
pedido para fazeres aquilo.
— Eu podia ter recusado.
— Devias ter recusado. Mas eu é que nunca to deveria ter
pedido.
— Bem — retorquiu ele —, pelo menos tinha razão em relação ao
Alkaitis. — Nunca estivera particularmente interessado nas notícias,
mas lera um livro sobre o Ponzi que saíra uns anos depois, à
procura de notícias sobre a irmã. No livro, Vincent era uma
personagem insignificante, estando as suas citações limitadas a
excertos retirados da transcrição de um testemunho. Era evidente
que o autor não conseguira assegurar uma entrevista com ela,
embora houvesse imensa especulação sobre a opulência material
da sua vida com Alkaitis.
— Sim. Eu tinha razão.
— Sabia que ele vivia com a minha irmã? — Estava a fumar um
cigarro, embora não se lembrasse propriamente de Kaspersky lho
ter dado. Ultimamente, o tempo parecia andar aos soluços.
— Estás a falar a sério?
— Ela era empregada de bar no Hotel Caiette — explicou. — Um
homem entra num bar, uma coisa leva à outra e...
— Incrível. Vi fotografias dele com uma mulher jovem, mas nunca
a associei ao hotel.
— Lembra-se de uma empregada de bar muito bonita com o
cabelo escuro e comprido?
Ela franziu o sobrolho.
— Talvez. Não. Não, para ser sincera, não me lembro nada dela.
O que foi feito dela depois do que aconteceu?
— Não estamos em contacto — disse Paul. Para Paul, Vincent
existia numa espécie de animação suspensa. Na primeira noite da
série de concertos que dera na Brooklyn Academy of Music, em
2008, vira-a assim que entrara no palco. Estava sentada na fila da
frente, numa das extremidades; os olhos dele fixaram-se nela, e o
seu coração acelerou. Conseguiu aguentar-se durante a primeira
música e, quando tornou a olhar, cerca de dez minutos depois, ela já
lá não estava, um lugar vazio a bocejar na escuridão. Nessa noite,
procrastinou durante duas horas antes de deixar a sala de
espetáculos, mas ela não estava à sua espera na porta dos
bastidores. E também não apareceu na noite seguinte ou na outra;
todas as noites esperava vê-la à saída da sala de espetáculos, e ela
nunca lá estava, mas imaginara o confronto tantas vezes que
começou a parecer-lhe algo que de facto tinha acontecido. «Ouve,
nesses anos em que moraste em Vancouver, deixaste a caixa de
vídeos no teu quarto de infância», dir-lhe-ia. «Era óbvio que não
tencionavas fazer nada com eles. Nem sequer deste pela sua falta.»
«E achaste que isso queria dizer que podias ficar com eles?»,
responder-lhe-ia ela. «Pelo menos fiz alguma coisa com os vídeos»,
dir-lhe-ia ele e ao fim de tantos dias a imaginar essa conversa que
quase começara a ansiar por ela. Afinal, o facto de nunca ter tido
essa conversa com Vincent significava que, em certa medida,
estava condenado a ter essa conversa com Vincent para sempre.
Decorrera exatamente uma década desde os concertos no BAM, e
ele continuava a conversar com ela, a Vincent imaginária que nunca
se materializara à porta dos bastidores. «Estás a dizer-me», dir-lhe-
ia ela, «que construíste uma carreira inteira à custa dos meus
vídeos?» «Não foi a carreira inteira, Vincent, mas compor bandas
sonoras para os teus vídeos levou a colaborações com artistas de
vídeo, a atuações ao vivo em feiras de arte em Basileia e em Miami,
à série de concertos na BAM, à minha bolsa de estudos, ao meu
emprego como professor, a todo o sucesso que tive nesta vida.» «E
achas que isso é justificação?», perguntar-me-ia ela. «Não sei,
Vincent, nunca soube o que é razoável e o que não é. Mas, para
que conste, depois dos concertos na BAM, não voltei a fazer
atuações públicas com os teus vídeos.» «E achas que isso é uma
maneira de te redimires?» «Não, sei que não é. Sei que sou um
ladrão.»
— Ainda aqui estás? — perguntou-lhe Ella, e ele apercebeu-se
de que talvez estivesse a fitar o vazio há algum tempo.
— Sim, desculpe. Estou um pouco esgotado por ter viajado a
noite inteira.
— As festas são um pouco complicadas nessas condições —
retorquiu Ella. — Vamos embora daqui, pago-te um copo noutro sítio
qualquer. — Dez minutos depois, estavam num pub ao virar da
esquina, um espaço à moda antiga com uma porta vermelha-viva e
uma floresta inteira a revestir as paredes.
— Bem — disse Ella enquanto se sentavam a uma mesa. —
Desculpa dizer-te isto, mas estás com péssimo aspeto.
— Estou acordado há dois dias.
— Então deve ser por isso. — Mas estava a olhá-lo de uma certa
maneira. Ele tinha as suas limitações com nomes e rostos, mas não
tinha qualquer dificuldade em reconhecer a pergunta que ela estava
a evitar fazer-lhe.
— Como foste parar àquela festa? — perguntou ele, para a
distrair. Estava profundamente ciente do saquinho de plástico que
tinha dentro do bolso interior do casaco.
— O meu marido é encenador.
— O mundo é pequeno.
— A pequenez do mundo nunca deixa de me espantar.
Uma empregada de mesa recebeu os seus pedidos, e Paul
desculpou-se e foi à casa de banho injetar-se, não muito, apenas o
suficiente para extinguir um pouco do caos do mundo. Deixou-se
ficar muito quieto dentro do cubículo durante cinco inalações
profundas e depois regressou à mesa. Estava mais calmo agora,
com a intensidade do jet lag um pouco menos evidente. Tudo estava
bem. Não era preciso dormir todas as noites. Poderia poupar
imenso tempo daí em diante, se apenas dormisse em noites
alternadas.
— Bem — disse ela —, tens andado bastante ocupado desde a
última vez que te vi.
— Muito. Tem sido extraordinário. — Não esperara ter sucesso, e
era algo que ainda o deixava algo perplexo. — Passei para o outro
lado do espelho e entrei num mundo novo e estranho onde as
pessoas ouvem realmente a minha música — respondeu ele.
«Nunca imaginaria tal coisa», disse a Vincent na sua mente,
«simplesmente agarrei as oportunidades que se me ofereceram.
Andava aos atropelos, como toda a gente...» «As oportunidades que
se te ofereceram, como se não tivesses escolha?» «Jamais poderia
ter antecipado esta vida», disse-lhe ele, e, na verdade, por que
motivo não tentara entrar em contacto com ela depois de ambos
terem deixado o hotel? Por causa do seu sentimento de culpa por a
ter magoado com o grafíti e por lhe ter roubado os vídeos,
obviamente, mas talvez devesse tentar encontrá-la agora. Talvez já
tivesse passado tempo suficiente. Dar por si numa vida inimaginável
era algo com o qual achava que ela talvez se identificasse.
— Foi uma abordagem muito interessante, essa que arranjaste —
disse Ella. Estivera apenas meio atento enquanto ela lhe dizia que
gostava do seu trabalho. — Vê-se tanta arte audiovisual por aí, mas
essa colaboração que fizeste, a consola com a banda sonora
programável, foi altamente inovadora. — Para dois trabalhos
distintos de arte audiovisual, Paul compusera vinte e quatro horas
de música, apresentada sob a forma de uma coleção de peças com
trinta minutos cada, que podiam ser programadas para tocar pela
ordem que o comprador entendesse: um amante da noite poderia
preferir algo mais rápido e contundente às três da manhã, por
exemplo, passando para uma música calma por volta da ida para a
cama, às cinco da manhã, ao passo que os madrugadores talvez
preferissem entrar na sala de estar e ouvir algo revigorante ao
nascer do sol.
— Para ser sincero, alguns desses projetos de vídeo precisam de
uma banda sonora para serem minimamente interessantes — disse
Paul. A cerveja à sua frente era uma péssima ideia. Se a bebesse,
deitaria a cabeça em cima da mesa e adormeceria.
— Tinha alguma curiosidade em relação às tuas influências
musicais — disse ela.
— Baltica — retorquiu ele. — Tudo o que faço é parecido com o
som de um grupo de música eletrónica chamado Baltica que existiu
em Toronto, em finais dos anos noventa.
— Ah, não fazia ideia de que tinhas feito parte de uma banda.
— Tento compor coisas que tenham um som diferente —
retorquiu ele —, quero dizer, tento-o de uma forma concentrada e
depois, quando termino, ouço a gravação e por alguma razão soa-
me sempre como... — Cala-se e olha por cima do ombro para
disfarçar o desconforto. — Acha que eles aqui têm café? — Sentia-
se profundamente abalado. Nunca falara a ninguém dos Baltica e
agora acabara de desabafar tudo, sem hesitação.
— Calculo que sim. — Ella acenou com a mão, e uma empregada
de mesa aproximou-se.
— Um café, por favor.
— O nosso café é terrível — respondeu a empregada de mesa.
— Estou só a avisar.
— Ainda assim, quero.
— De certeza que não o consigo fazer mudar de ideias? — disse
ela. — Bem, se faz muita questão... Mas garanto-lhe que o vai
mandar para trás.
— Tem chá preto?
— Estamos na Escócia.
— Algo extraforte — pediu-lhe Paul. — O chá mais forte que tiver.
E muita quantidade. Quanto mais cafeína, melhor.
— Vou trazer-lhe um bule, então — respondeu a empregada de
mesa —, e poderá deixá-lo apurar o tempo que quiser. — Paul teve
a mesma sensação que costumava ter no Reino Unido, a de ter sido
subtilmente ofendido e de uma maneira tão obscura que seria
necessária demasiada energia para o analisar, além de que, como
de costume, não sabia se o insulto era real ou um caso tipicamente
canadiano de insegurança pós-colonial. «Caramba, sei como se faz
chá», apeteceu-lhe responder, mas era demasiado tarde, a
empregada de mesa já se afastara, e estava sozinho com Ella, que
o olhava novamente com a tal expressão.
— Ainda tocas com essa banda? Os Baltica, é isso? —
Entendera-o mal, mas ele também não tinha maneira de se explicar.
— Cada um seguiu a sua vida — respondeu-lhe. — Só os vejo no
Facebook. A Annika anda sempre em digressão com cerca de cinco
bandas diferentes. O Theo dedica-se à família. O hotel ainda existe?
— ouviu-se perguntar, ansioso por mudar de assunto.
— Fechou depois de o Alkaitis ter sido preso — retorquiu ela.
4
Oito fusos horários em sentido oeste, Walter encontrava-se
parado junto à janela do seu quarto, no velho edifício dos
funcionários do antigo Hotel Caiette. Continuava a não haver serviço
de telecomunicações nessa região, mas uns anos antes investira
num telefone sem fios, para poder deambular pelo apartamento
enquanto conversava com o mundo exterior.
— Nem acredito que já se passaram quase dez anos — disse a
irmã. — Santo Deus. Continuas a não te sentir sozinho?
— Não sei se «sozinho» será a palavra certa. Não, não lhe
chamaria «sozinho».
O último hóspede deixara o Hotel Caiette no início de 2009, dois
meses após a detenção de Jonathan Alkaitis, e o resto do pessoal
partira pouco tempo depois. Sem hóspedes, um hotel continuaria a
ser um hotel? Walter estava no cais quando Raphael partira.
— Vai dando notícias — disse a Walter, e os dois homens deram
um aperto de mão com o entendimento mútuo de que jamais
voltariam a falar. Raphael entrara no barco com um pequeno saco
de viagem — os seus pertences já tinham sido enviados para
Edmonton —, e a motorista, Melissa, ligou o motor. Estava a ser
paga até ao final desse dia, mas nem se dera ao trabalho de vestir a
farda. Iria deixar a embarcação em Grace Harbour e regressaria a
casa num táxi aquático.
— Para a semana dou cá um salto — disse a Walter. — Só para
ver como estás.
— Obrigado — agradeceu ele, comovido e ao mesmo tempo algo
surpreendido com o gesto. Ela desprendeu as amarras do cais, e o
barco lançou-se à água, desenhando um arco em torno da
península e desaparecendo de vista. Estava um dia algo escuro, o
mar a refletir um céu cinzento-claro, a floresta escura e a pingar com
os restos da chuva da manhã. Walter ficou no cais até deixar de
ouvir o barco e então virou-se e fitou o hotel vazio. Subiu o caminho
de acesso e abriu as portas de vidro do átrio, trancando-as atrás de
si. Raphael apagara cerimoniosamente as luzes ao sair, mas agora
Walter tornou a acendê-las. A madeira escura do balcão do bar
emanava um brilho ténue. Os seus passos faziam eco. O mobiliário
fora todo vendido, à exceção do piano de cauda, cuja deslocação
era demasiado dispendiosa. Walter tocou algumas notas, o som
estranhamente alto no silêncio. Tratava-se de um silêncio real,
percebeu, em nada semelhante a estar na floresta, que, mesmo no
dia mais silencioso, vibrava com pequenos sons. Passou pela
receção e pelo bar, em direção à escadaria.
Na suite maior, a Coast Royal, ficara sempre Jonathan Alkaitis.
Walter pensara em mudar-se para aí — tinha um esplendor que
faltava aos aposentos dos funcionários, e, como era óbvio, o zelador
do hotel deveria morar no próprio hotel —, mas a ideia de dormir na
cama onde Alkaitis dormira era repugnante, e Walter gostava do seu
apartamento. Deambulou por todos os quartos de hóspedes,
deixando as portas abertas atrás de si.
O mais estranho era não se sentir nada sozinho nesse espaço
imenso, com tantos corredores e quartos vazios. Era como se o
hotel estivesse assombrado, mas no sentido mais benigno possível:
os quartos continuavam a ter um ar de presença, uma sensação de
ocupação, como se a qualquer instante o barco pudesse chegar
com hóspedes novos, e Raphael pudesse emergir do seu gabinete,
a queixar-se dos problemas mais recentes com funcionários, Khalil e
Larry a chegarem também para o turno da noite. Saiu para o
terraço. A vista dava para o cais vazio, ensombrado no crepúsculo
do início de inverno. Deixou-se ficar por algum tempo, até que se
apercebeu de que estava à espera, por uma questão de hábito mas
agora sem lógica nenhuma, da chegada de uma embarcação.
— Até eu tenho dificuldade em acreditar — respondeu à irmã ao
telefone, em 2008 —, mas esta manhã acordei e ocorreu-me que
em fevereiro fará dez anos que estou aqui como zelador. Era difícil
de acreditar, mas assim era: dez anos a morar sozinho no edifício
dos funcionários e a fazer de guia turístico aos pouco frequentes
compradores potenciais que chegavam de táxi aquático, uma
década de viagens semanais a Port Hardy para comprar
mantimentos, de limpezas do hotel, de cortes de relva, de receber
técnicos de reparação sempre que necessário, de leituras à tarde,
de aprendizagem de piano no Steinway abandonado no átrio, de
caminhadas à aldeia de Caiette para tomar café com Melissa; dez
anos de passeios solitários na floresta, a observar as primeiras
flores pálidas a brotarem da terra escura na primavera, de banhos
junto ao cais nos dias mais quentes de verão, de leituras na varanda
debaixo de mantas, sob a luz clara do outono, de estar sozinho no
átrio com as luzes apagadas pelo prazer de assistir às trovoadas de
inverno.
— Mas pelos vistos continuas a gostar — disse-lhe ela.
— Sim. E muito.
— Isolado, mas não sozinho?
— Sim, é uma boa descrição. Quem haveria de dizer — disse ele
—, depois de ter trabalhado em hotéis toda a minha vida adulta,
mas a verdade é que me sinto mais feliz quando estou longe das
outras pessoas.
Quando desligou, saiu do edifício dos funcionários e seguiu pelo
curto trilho que atravessava a floresta em direção ao matagal atrás
do hotel. Entrou pela porta das traseiras, fazendo uma nota mental
para varrer e lavar o átrio nesse dia. Sem mobiliário, o átrio mais
parecia um salão de baile cheio de sombras, um espaço vazio
imenso com vista para a natureza selvagem do outro lado do vidro:
águas interiores, linhas de costa verdes, um cais sem barcos.
5
No pub de Edimburgo, o chá de Paul não estava a resultar muito
bem.
— Sempre fui ambicioso — ouviu-se dizer —, mas nunca pensei
que alguma vez desse frutos. — Ella acenou com a cabeça,
observando-o. Há quanto tempo estaria a falar sobre si mesmo?
Teria adormecido por breves instantes? Não tinha a certeza. Era
difícil permanecer acordado. — Os vídeos são todos ou belos ou
interessantes, mas não são suficientemente belos ou interessantes
sem a música a acompanhá-los. — Não o teria dito já?
— Pareces cansado — disse-lhe Ella. — Ficamos por aqui?
Olhou de relance para o relógio de pulso e ficou surpreendido ao
constatar que era quase uma da manhã. Ella estava a pagar a
conta.
— Bem, então boa noite — despediu-se ela — e boa sorte, Paul.
— Tenho ar de quem está a precisar de sorte? — indagou ele,
com uma curiosidade sincera, mas ela limitou-se a sorrir e tornou a
dar-lhe as boas-noites. Detestou-a nesse instante, enquanto se
levantava e a deixava sozinha no bar (a presunção insuportável dos
não viciados), mas ela não estava propriamente errada, Paul sabia
que precisava de sorte, sofrera uma sobredosagem há um mês e
acordara nos Cuidados Intensivos. («Bem-vindo sejas, Lázaro»,
dissera-lhe o médico.) Fora um viciado em heroína perfeitamente
funcional durante quase uma década, não só funcional como
também milagrosamente produtivo, era uma questão de conhecer
os seus limites e de não correr riscos, mas o problema agora era o
facto de às vezes a heroína não ser heroína, às vezes era fentanil,
infiltrando-se no mercado por correio e por navio, cinquenta vezes
mais potente do que a heroína e mais barato de produzir. Ouvira
rumores sobre carfentanil no circuito de abastecimento, o que o
aterrorizava: cem vezes mais forte do que o fentanil, aprovado para
uso exclusivo como tranquilizante de elefantes. Na outra noite, lera
sobre uma nova clínica de reabilitação em Utah e passara algum
tempo a estudar a respetiva página online, vendo fotografias de
edifícios brancos e baixos sob o céu do deserto. Valendo-se de um
certo distanciamento e lógica, sabia que voltar a fazer uma
desintoxicação não era a pior das ideias. Era fazê-lo, e pronto. Lá
fora, na rua, a chuva exibia essa característica difusa que Paul
associava tanto ao Reino Unido como também à Colúmbia Britânica,
uma certa delicadeza, vinda de todas as direções em simultâneo.
Tinha quase a certeza de que o seu hotel ficava na direção do
Royal Mile, o qual tinha quase a certeza de que ficava à esquerda,
ao fundo da próxima rua. Estava a pensar novamente no Hotel
Caiette, que por sua vez levou a pensamentos sobre Vincent. A rua
onde se encontrava parecia-lhe agora vagamente familiar, mas não
tinha a certeza se era por estar perto do hotel ou porque estava a
andar às voltas. Parou e sentou-se à entrada de uma casa, porque
estava cansado, e, no seu estado atual, a chuva não era um
problema. Sentou-se no degrau e pousou a cabeça nos braços.
Deveria tentar encontrar Vincent, entrar em contacto com ela de
alguma maneira, oferecer-se para partilhar um pouco da sua sorte?
Não, precisava do dinheiro. Todo. «Nunca percebi exatamente quais
são as minhas responsabilidades», disse-lhe ele. Às vezes, quando
falava com Vincent agora, era só ele quem falava, enquanto ela
observava e o escutava. A entrada pareceu-lhe inesperadamente
confortável. Faria uma pequena sesta, decidiu, descansaria por um
minuto e depois iria à procura do hotel e dormiria como deve ser.
Mas não estava sozinho. Sentia alguém a observá-lo. Quando
ergueu o olhar, estava uma mulher parada do outro lado da rua
estreita. Envergava uma espécie de farda, com um avental branco
comprido e um lenço a prender-lhe o cabelo. Devia ser a cozinheira
de um restaurante local, pensou, talvez alguém que saíra para fazer
uma pausa depois de ter terminado os jantares, mas, se era uma
pausa, estava a passar o tempo de uma forma muito estranha, a
olhá-lo fixamente em vez de ir buscar algo para comer ou de fumar
um cigarro. Parecia-lhe familiar. Não poderia ser Vincent, mas...
— Vincent? — perguntou, e talvez a tivesse imaginado. Fosse
como fosse, desaparecera, mas passaria o resto da vida a contar
essa história como se ela tivesse estado realmente lá, sacava dessa
história como um truque de cartas sempre que a temática dos
fantasmas vinha à baila — «Estava sentado num degrau em
Edimburgo e vi a minha meia-irmã parada do outro lado da rua, mas
depois desapareceu, como se se tivesse dissipado. Comecei a
procurá-la, e semanas mais tarde descobri que ela tinha morrido
exatamente nessa noite, talvez até nesse instante, a milhares de
quilómetros de distância...» — e contava-a como se fosse verdade,
como se não tivesse alucinado e a mulher que vira fosse realmente
Vincent, e Vincent fosse realmente um fantasma, e o fantasma
tivesse realmente estado na rua com ele — o que significa ser um
fantasma, quanto mais estar ali ou aqui? Há tantas maneiras de
assombrar alguém ou uma vida —, mas a incerteza massacrava-o,
e nunca tinha a certeza; mais tarde perguntar-se-ia se a teria
realmente visto de avental ou se teria acrescentado o avental à
recordação em retrospetiva, depois de ter descoberto que trabalhara
como cozinheira; e sempre a pergunta que não o largava, nem
mesmo nesse instante, sentado numa entrada debaixo da chuva, à
beira de adormecer: vira-a mesmo, parada na rua? Ou estaria
embriagado e pedrado, desorientado numa cidade desconhecida,
longe de casa, a delirar de cansaço e a ver coisas na escuridão?
16
VINCENT NO OCEANO
1
Começar pelo fim:
Mergulhar da amurada do navio
O horizonte a rodopiar uma vez, duas, a câmara a voar-me das
mãos
Foi como mergulhar em fragmentos de gelo.
2
Não, começar vinte minutos antes:
— Onde estiveste ontem à noite? — pergunta-lhe Geoffrey. — Fui
à tua procura no fim do meu turno. — É dezembro de 2018, e
estamos juntos há dois anos, numa relação intermitente; juntamo-
nos e depois separamo-nos. Existem algumas fricções: em tempos
queria casar comigo, mas há muito que decidi que jamais me
casarei e que jamais voltarei a estar dependente de outro ser
humano; fala de deixar o oceano e de morarmos juntos algures, mas
não tenho vontade nenhuma de voltar para terra. Esta noite estamos
juntos, embora tenhamos discutido há pouco, e ele está deitado do
meu lado na cama. Temos estado a observar a minha mala de
viagem deslizar de um lado para o outro no camarote. É a terceira
noite de temporal.
— Fui dar uma volta.
— Aonde? À casa das máquinas?
— No convés.
— Não estamos autorizados a ir ao convés — diz-lhe ele —,
sabes isso. Estamos confinados ao interior até o tempo melhorar.
— Vais dizer ao comandante, é? — Sorrio, mas depois percebo
que está zangado.
— É perigoso — diz-me. — Por favor, não voltes a fazê-lo.
— Só queria filmar o oceano.
— O quê? Vincent. Por favor, não me digas que estiveste
debruçada na amurada a filmar coisas com este temporal.
— Importas-te de não falar tão alto, Geoff? As paredes são finas.
Ouve, eu sei que ter ido ao convés foi questionável, mas valeu bem
a pena. Estava lindíssimo. — Sentira-me algo imoral, lá em cima, no
convés. Havia tanto poder e magnificência na tempestade. Apenas
na convergência de uma tempestade com o oceano poderia um
navio como o Neptune Cumberland parecer pequeno.
Ele senta-se na cama e começa a vestir a roupa, ainda a falar
demasiado alto.
— «Questionável» não é propriamente o termo que eu
empregaria, Vincent. Por amor de Deus, não voltes a fazer isso.
Se há coisa que sempre detestei na vida, de entre uma longa lista
de coisas, foi darem-me ordens. Tolero-o numa cozinha, mas não no
quarto, e digo-lhe isso mesmo.
— Não te estou a dar ordens. Estou a dizer-te para não ires lá
para fora em plena tempestade porque não quero que morras.
— Não vou morrer. Estás a ser melodramático.
— Não, estou a ser sensato e gostava que retribuísses a porra do
favor — diz, batendo com a porta ao sair do meu camarote.
Deixo-me ficar deitada durante imenso tempo, a ferver, vendo a
minha mala de viagem deslizar de um lado para o outro com o
balouçar do navio. O problema dos temporais é que é impossível
dormir, pelo menos para mim, porque é impossível estarmos
deitados na cama sem nos mexermos; quando o navio balouça,
balouço com ele, o que faz da noite uma inquietude crepuscular. Por
fim, levanto-me da cama e visto-me, pego na câmara e saio para o
corredor. Depois dirijo-me para o convés C, ao encontro da
tempestade.
O ar fresco é um bálsamo, até a chuva é maravilhosa, depois de
um dia inteiro de interiores industriais bafientos. Relâmpagos
rasgam os céus, e o navio fica iluminado. É difícil caminhar —
tropeço e vou contra a amurada —, mas sinto esse velho estímulo
que me acomete sempre que se avizinha um plano belo. Filmarei
apenas uns minutos, decido, depois voltarei para dentro. Avanço até
ao canto recuado do convés C, onde a churrasqueira bate contra as
próprias correntes. Ligo a câmara assim que ouço o trovão e gravo
a coisa mais bela que alguma vez vi, relâmpagos a desenharem-se
sobre o oceano revolto. Numa tempestade, as ondas assemelham-
se a montanhas. Chuva fria no meu rosto, e sei que está na lente
também, mas também isso é belo, será belo, o desfocado e as
gotas de chuva. Permaneço junto à amurada, mas com a mão
apoiada na amurada não consigo manter a câmara direita, por isso
largo-a — por breves instantes apenas —, e num momento de
calmaria, entre ondas grandiosas, debruço-me para que o plano
desenhe um arco do céu até à água, o plano a apontar diretamente
para o oceano.
A luz na parede atrás de mim começa a piscar. Quando olho por
cima do ombro, percebo que está ali alguém comigo, do outro lado
do convés.
— Está aí alguém? — pergunto, mas não obtenho resposta.
Não, estava enganada. Estou sozinha. De certeza que estou
sozinha, pois pareceu-me ver uma mulher, mas sou a única mulher
a bordo.
Não, ela está ali. Estou a vê-la, quase. A luz continua a piscar, o
convés intermitentemente iluminado. O estranho é que essa pessoa
também é intermitente, não tanto uma figura humana, mais uma
perturbação no ar, uma sombra que aparece na amurada e depois
desaparece, uma presença que se aproxima. Agora está muito
perto. Vejo a impressão de uma mão na amurada, uma silhueta, e
depois Olivia Collins está parada ao meu lado, na proa, a
contemplar a água lá em baixo. Parece muito mais nova do que da
última vez que a vi e também menos palpável. A chuva atravessa-a.
Continuo a segurar a câmara por cima da amurada. Não consigo
respirar. Ela vira-se como se fosse dizer algo, e a câmara
escorrega-me da mão; num gesto reflexo, tento apanhá-la,
debruçando-me demasiado, o navio dá um solavanco
Caio borda fora
Não tenho peso
a câmara a voar em direção à chuva,
o quadrado azul do visor a rodopiar na escuridão...
3
O frio é aniquilador...
4
Estou de mãos dadas com a minha mãe. Sou muito pequenina.
Estamos em Caiette, a apanhar cogumelos na floresta. Uma
recordação, mas é uma recordação tão intensa que tenho a
sensação de viajar no tempo, de visitar esse momento. Que prazer
estar aqui de novo! «Oh, olha aqui, meu amor», diz ela, baixando-se
para apanhar uma coisa cor de laranja estriada da terra escura,
«este aqui é um cantarelo».
5
É como o instante antes de adormecermos, quando já não
estamos completamente conscientes — estamos suficientemente
acordados para saber que estamos a adormecer —, mas os nossos
pensamentos e as nossas recordações começam a projetar-se
numa narrativa e percebemos que já começámos a sonhar: um
último momento desperto, a sufocar na água do mar, vindo à tona
por breves segundos num vale entre ondas, sem fôlego, sem tempo,
o navio como uma massa indistinta de sombras e luzes, e depois
Olivia chama-me à parte, para pedir desculpa. Estava a pensar em
mim, diz-me, como acontece tantas vezes, e a pensar no oceano,
na viagem no iate do Jonathan, por isso procurou-me e encontrou-
me ali no navio, a filmar a tempestade. Não pensou que eu a visse.
Chamou-me à parte para me dizer isso, mas chamou-me de onde?
Estamos num espaço intermédio qualquer, ou pelo menos assim me
parece, entre o oceano e algo em que não quero pensar...
6
Arrebata-me: palavras escritas na janela da escola quando eu
tinha treze anos, as letras pálidas no vidro...
7
Uma recordação onde gostaria de me demorar mais tempo: beijar
o Geoffrey no convés C, ao lado de uma parede de contentores de
transporte na traseira do navio. A mão dele na minha face.
— Amo-te — sussurrou-me, e eu sussurrei-lho também. Já o
dissera antes, mas parecia-me que nunca soubera o significado
dessas palavras até esse instante...
8
Mas agora o Geoffrey Bell e o Felix Mendoza estão parados no
convés junto às escadas de embarque, sob uma chuva miudinha, as
gruas cor de laranja do Porto de Roterdão lá no alto. O Geoffrey tem
a barba por fazer e umas olheiras enormes. Não é uma recordação.
— Sabes que isto te faz parecer culpado — diz-lhe o Felix.
— Juro por Deus que não sei o que lhe aconteceu. — A voz do
Geoffrey falha-lhe; engole em seco e fecha os olhos por breves
instantes, enquanto o Felix o olha fixamente. — Mas receio que,
caso fique, seja acusado de homicídio. — Felix assente com a
cabeça, dão um aperto de mão, e depois Geoffrey dá meia-volta e
desce as escadas, os ombros erguidos sob a chuva. Parece tão só
e desolado. Quem me dera poder ir ter com ele, tocar-lhe no ombro
e dizer-lhe que estou bem, que agora estou em segurança e que
nada me poderá magoar, mas há alguma confusão, alguma
distância, ele dissipa-se...
9
Estou num hotel que reconheço. Acho que é no Dubai, mas este
sítio não é como os outros lugares e recordações que tenho estado
a visitar. Tem algo de irreal. Estou parada junto a uma fonte, no
átrio.
Ouço passos e, quando ergo o olhar, vejo o Jonathan. Estamos
num não lugar, num lugar-sonho, um lugar cujos pormenores estão
em constante mudança. Não há mais ninguém. Sinto-me mais real
aí do que noutro lugar qualquer; o Jonathan consegue ver-me,
percebo-o na expressão de surpresa que exibe, e é possível falar.
— Olá, Jonathan.
— Vincent? Não te reconheci. O que fazes aqui?
— Estou de visita.
— Vens de onde?
«Venho do oceano», quase lhe respondo, mas nesse momento
distraio-me porque tenho a impressão de ver o Faisal passar junto à
janela com uma mulher que me parece vagamente familiar — será a
Yvette Bertolli? — e, seja como for, não estou propriamente no
oceano, ou se estou, também estou noutro lugar ao mesmo tempo...
10
Passou-se algum tempo. Tenho estado à deriva entre memórias.
Visito uma rua numa cidade distante onde o meu irmão se encontra
sentado à entrada de uma casa, porque o ouvi falar comigo, mas,
quando ergue o olhar e me vê, não tem nada para me dizer;
deambulo durante algum tempo por Vancouver, caminhando pelo
bairro onde morei quando tinha dezassete anos, embora
«caminhar» não seja a palavra certa para descrever a forma como
me desloco agora; procuro a Mirella e encontro-a sentada sozinha e
pensativa num interior bonito, uma espécie de águas-furtadas, a
olhar fixamente para o telemóvel; ergue o olhar e franze o sobrolho,
mas não parece ver-me...
11
Na recordação, estou de volta ao Le Veau d’Or, nesse interior
vermelho e dourado, a ouvir o investidor do Jonathan com quem
menos simpatizo falar sobre uma cantora. Não, não é uma cantora,
é um esquema Ponzi.
— Não reconheceu uma oportunidade — disse Lenny Xavier,
falando sobre a cantora. — Já eu, quando conheci o teu marido...
Assim que percebi como funcionava o fundo de investimento dele...
Era uma oportunidade, e agarrei-a.
Vi o ar alarmado do Jonathan, a maneira como se inclinou para a
frente quando falou, o seu desespero evidente para evitar que o
Lenny desse com a língua nos dentes:
— Não entediemos as nossas esposas maravilhosas com
conversas sobre investimentos.
E o esgar do Lenny quando ergueu o copo:
— Só estou a dizer que o meu investimento se revelou melhor do
que esperava.
Ele sabia, mas eu também sabia, senão os pormenores do
esquema, pelo menos a existência de um esquema, porque já
andava a fingir ser a esposa do Jonathan há vários meses,
simplesmente escolhi não compreender...
12
Procuro novamente o Paul e encontro-o no deserto, no exterior
de um edifício branco e baixo que parece cintilar no crepúsculo.
Acaba de transpor a porta e está a acender um cigarro com as mãos
trémulas. Ergue o olhar e vê-me, deixa cair o cigarro e depois
apanha-o do chão.
— Tu — diz ele. — És tu, não és? Estás mesmo aqui?
— Não sei como responder a qualquer uma dessas perguntas —
digo-lhe.
— Ainda agora falei de ti — diz-me —, na minha sessão. Estava a
contar ao meu orientador todas as coisas que nunca contei a
ninguém. — Não lhe vejo o rosto com clareza por causa da luz que
esmorece, mas parece ter estado a chorar. — Vincent, antes que
voltes a desaparecer, posso dizer-te?
— Dizer-me o quê?
— Que lamento — diz ele. — Lamento imenso, tudo.
— Eu também fui uma ladra — respondo-lhe —, ambos fomos
corrompidos. — E vejo que ele não compreende, mas não quero
ficar ali a explicar-lho, há outro lugar onde prefiro estar, por isso
afasto-me do deserto e para longe do Paul, em direção a Caiette.
Estou na praia, não muito longe do cais onde o barco dos
Correios costuma atracar, e a minha mãe está ali. Está sentada a
alguma distância, em cima de um pedaço de madeira flutuante, as
mãos cruzadas sobre o colo, com o ar de quem aguarda
pacientemente um encontro marcado. Ainda tem o cabelo
entrançado, ainda tem 36 anos, ainda enverga o casaco vermelho
que tinha vestido no dia em que desapareceu. Foi um acidente, é
claro que foi, jamais me teria deixado de propósito. Esperou tanto
tempo por mim. Esteve sempre ali. Esta foi sempre a minha casa.
Está a contemplar o oceano, as ondas na praia, e ergue o olhar em
surpresa quando digo o nome dela.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer à boa gente da Lloyd’s List, por me terem
permitido uma subscrição experimental de modo a poder ler mais
sobre expedição, e também gostaria de agradecer a Rose George,
pelo seu livro fascinante sobre essa indústria, Ninety Percent of
Everything. Embora todas as personagens deste livro sejam
totalmente fictícias, o crime financeiro na narrativa baseia-se no
esquema Ponzi de Bernard L. Madoff, que entrou em colapso em
dezembro de 2008. Devo muito a dois excelentes livros sobre o
assunto: Too Good to Be True, de Erin Arvedlund, e The Wizard of
Lies, de Diana B. Henriques.
Obrigada à minha maravilhosa agente, Katherine Fausset, e às
suas colegas da Curtis Brown, em Nova Iorque; às minhas editoras
— Jennifer Jackson, Sophie Jonathan e Jennifer Lambert — e aos
seus colegas da Knopf, em Nova Iorque, da Picador, em Londres, e
da Harper-Collins Canada, em Toronto; à Anna Weber e aos seus
colegas da United Agents, no Reino Unido; à Laurel Cerand e ao
Kevin Mandel, por terem lido os primeiros esboços do manuscrito; e
à Michelle Jones, a antiga ama da minha filha, por ter tomado tão
bem conta dela durante o tempo que demorei a escrever este livro.