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Assassinato Entre Escravos

O documento descreve o assassinato de um escravo, Sérgio, por outro escravo, Martinho, em 1888 na fazenda Tanque Novo em Bom Conselho, Bahia. Martinho desferiu um golpe de machado na cabeça de Sérgio enquanto ele dormia e foi preso. Sérgio morreu dias depois e Martinho foi condenado a 20 anos de prisão pelo crime. A dona de Martinho o libertou durante o julgamento.

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Assassinato Entre Escravos

O documento descreve o assassinato de um escravo, Sérgio, por outro escravo, Martinho, em 1888 na fazenda Tanque Novo em Bom Conselho, Bahia. Martinho desferiu um golpe de machado na cabeça de Sérgio enquanto ele dormia e foi preso. Sérgio morreu dias depois e Martinho foi condenado a 20 anos de prisão pelo crime. A dona de Martinho o libertou durante o julgamento.

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ASSASSINATO ENTRE ESCRAVOS

Era cinco de maio de 1888, na fazenda Tanque Novo, Bom Conselho. Passava das
onze horas da noite quando Martinho, escravo pertencente a Maria Francisca de Jesus, se
dirige à Fazenda Olaria, de propriedade de Raimundo Correia de Souza (Tio de Correinha
da zabumba), é noite alta e a maioria das pessoas já estavam dormindo. Martinho chega
a uma pequena casa de palha onde dorme tranquilamente Sérgio, escravo de Raimundo
Correia de Souza.

Sorrateiramente Martinho afasta duas tábuas que servem de porta ao casebre


simples e acende um fogo, provavelmente para ter visibilidade. A fraca luz produzida
pelas chamas permite que Martinho identifique com precisão o local onde Sérgio dormia,
aproxima-se portando um machado que trazia consigo e faz mira, sem piedade desfere
uma certeira pancada com o “olho do machado” na cabeça da sua vítima.

Mesmo diante da brutalidade do fato, Sérgio não morre imediatamente, geme e se


contorce de dor enquanto seu algoz se afasta, recoloca as tábuas no acesso à cabana e
caminha de volta ao Tanque Novo. No dia seguinte, para não levantar suspeitas, tenta
seguir uma rotina normal, levanta-se cedo e vai para roça trabalhar. Não demora muito
até Raimundo Correia, tenente da guarda nacional, acompanhado de José Napoleão e mais
dois escravos, chegar ao local onde Martinho trabalha e dar voz de prisão ao assassino.
Começava ali um longo julgamento, ocorrido na Vila de Bom Conselho, atual Cícero
Dantas. Sérgio morreria quatro dias depois do atentado e Martinho é indiciado em crime
de morte.

A história que você acabou de ler está detalhadamente descrita no processo crime
07/225/17, manuscrito de 198 páginas, sob a guarda do Arquivo Público do Estado da
Bahia.

No decorrer dos trâmites do processo, as testemunhas relatam que Sérgio e


Martinho tinham tido uma “alteração”, uma briga por razões desconhecidas. É provável
que a disputa pelo amor de uma escravizada tenha provocado o desentendimento entre os
dois. Ao longo das páginas amareladas pelos cento e trinta e quatro anos decorridos,
descobre-se que Martinho havia ido à casa de Sérgio outras três vezes, mas não levou a
cabo o seu plano de vingança, até consumar o fato no dia cinco de maio.
Preso pelo dono do escravo assassinado, Martinho segue para a cadeia da vila de
Bom Conselho onde é interrogado e aguarda o desenrolar dos procedimentos necessários.
Ali, relata ter entre 45 e 46 anos, ter nascido em Inhambupe e ter chegado à fazenda Olaria
30 anos antes do crime.

No dia nove a promotoria oferece denúncia contra o acusado:

Ilustríssimo senhor juiz municipal [trecho ilegível] o promotor da comarca, em


cumprimento do dever que lhe impõe a lei, vem ante o ilustríssimo denunciar a Martinho,
escravo que foi de D. Maria Francisca de Jesus, pelo fato que possa a expor [trecho
ilegível]. Tendo no mês de abril tido o denunciado uma alteração com Sérgio, escravo do
Tenente Raimundo Correia de Souza, ao ponto de se atracarem, resolveu vingar-se. Pelo
que, por mais de uma vez foi à casa do seu contendo à noite e achando-o dormindo voltou
sem nada fazer-lhe, mas no dia 5 do corrente mês, estando em um trabalho na roça do
coronel Aristides da Costa Borges, onde também se achava Sérgio e tendo esse zombado
do denunciado, talvez por não ter se saído melhor na luta, resolveu desde logo levar a
efeito o seu projeto de vingança e então, no mesmo dia, por volta da meia noite, dirigindo-
se à casa de Sérgio e achando-o dormindo, passa a dar certeiros golpes – acendeu o fogo
e pegando de um machado, descarregou-lhe sobre a cabeça, produzindo-lhe tão grande
pancada, depois a morte.

Ora, com por esse procedimento, o denunciado incorreu no sansão penal do art.
192, do código criminal, para que seja punido [trecho ilegível] o promotor público dá a
presente denúncia e apresenta como testemunha a senhora [palavra ilegível] Rodrigues
dos Santos, Pedro Francisco dos Santos, Saturnino Viana Nunes, Amâncio dos Reis de
Alcântara, José Calazans da Silva, Manoel Cardoso dos Santos, todos moradores nessa
vila. Ilmo° Promotor Público.

No dia 15 de maio, doze dias após o crime, a proprietária do escravizado concede


a esta carta de liberdade, conforme consta no processo:

Digo em aliança [trecho ilegível] D. Maria Francisca de Jesus que [trecho ilegível]
escravo de nome Martinho, de idade de 46 anos, mais ou menos, ao qual concedeu
liberdade, que, de hoje em diante, ciente do crime contra [trecho ilegível] o presente de
minha livre [trecho ilegível] porém em mão [trecho ilegível] a João Nunes da Silva, que
este por mim [trecho ilegível] em presença de duas testemunhas.
Bom Conselho, 15 de maio de 1888.

João Nunes da Silva

João Gonçalves Dias

Auriclei Augusto César.

______________________________________________________________________

Mas qual a razão da concessão da liberdade a um escravizado que tinha acabado


de ser preso por assassinar outro homem? A resposta para isso é tão dolorosa quanto pode
ser o próprio regime escravista. Em conversa com o advogado e historiador Fagner
Andrade, ele me afirmou que um escravo era visto como nada mais que um bem material,
ao qual se pode comprar e vender conforme a vontade do dono, a bem da verdade, um
escravizado não era mais que um animal aos olhos da sociedade da época e a atitude da
dona provavelmente se deu no intuito de se livrar do problema. Como um cavalo ou um
boi que invade e danifica a propriedade de outra pessoa, isso poderia trazer problemas
para ela.

Martinho foi comprado por Francisco Correia de Souza, pai de Raimundo Correia,
ainda muito jovem. Sabe-se que o escravizado nasceu em Inhambupe por volta de 1846.
O comprador, Franciso, foi homem influente em seu tempo, possuía a patente de alferes
e em 1876, foi eleito vereador na primeira legislatura da recém-criada Vila de Bom
Conselho, ao lado de Cícero Dantas Martins, o Barão de Jeremoabo.

O assassinato de Sérgio parece ter sido algo marcante para toda a comunidade,
tanto é que a história foi passada de geração em geração, gerando, inclusive, um livro
intitulado Bom Conselho dos Montes do Boqueirão, escrito por uma bisneta de Raimundo
Correia, Telma Antonieta, em 1989.

Curioso é ver como a memória é falha e muitas partes da história foram distorcidas
ao longo dos anos, o assassino é tratado no livro como Tobias e diversas passagens do
trágico incidente foram ressignificados, sendo somente esclarecido com a leitura do
processo na íntegra.

Na obra em questão, Sérgio é descrito como um negro inteligente e proativo,


sonhador e com um improvável envolvimento amoroso com a filha do seu dono.
A cronologia dos fatos dá conta de que a briga entre os dois se deu no dia 20 de
abril de 1888, onde Martinho aparentemente saiu como derrotado, no dia 05 de maio,
ambos foram mandados a trabalhar na propriedade do Coronel Aristides Borges e lá,
Sérgio teria zombado de Martinho, que resolveu ali mesmo levar a cabo a sua vingança.
Naquela mesma noite, o assassinato aconteceria.

Martinho foi réu confesso, durante o julgamento não fez questão de se defender,
apenas narrou que matou Sérgio por ele ter ele ter zombado dele e limitou-se a responder
questões pontuais. As testemunhas se revezam em breves relatos, todos contavam a
mesma versão dos fatos com pouquíssimos acréscimos.

A sentença saiu em 26 de setembro daquele mesmo ano, nela pontua o juiz:

Em vista e conformidade da decisão do juiz, julgando o réu Martinho “indiciado” no grau


mínimo do art. 192 do código criminal, o condenando à pena de vinte anos de prisão com
trabalho, que cumprirá na cadeia da capital e nas custas.

Sala de reunião do juiz da Vila de Bom Conselho, 26 de setembro de 1888.

O Juiz de Direito: Reginaldo Alves de Mello.

Martinho seria condenado a 20 anos de reclusão com trabalho, pegando uma pena
mínima, já que o código penal da época previa o enforcamento. O fato foi noticiado pelo
jornal gazeta de notícias do Rio de Janeiro, o recorte está disponível no site da hemeroteca
digital e foi encontrado pelo pesquisador cícero-dantense Marcelo Reis, que também me
cedeu um trecho do livro Bom Conselho dos Montes do Boqueirão e outras valiosos
informações que me ajudaram a compor essa história.

De acordo com as memórias narradas e descritas por Telma no livro, Martinho


teria vivido em Salvador após cumprir sua sentença e trabalhou como ambulante na
capital.

O processo crime que apura o assassinato de Sérgio, é uma boa amostra de como
se encarava a justiça por essa região no final do século XIX. De acordo com Fagner
Andrade, pouca coisa do modus openrandi mudou, alguns termos são empregados no
direito ainda hoje, contudo, a aplicação da lei mudou muito nesse último século. Para se
ter uma ideia, o código penal da época, que vigorou de 1831 a 1891, previa, no seu artigo
192, a pena de morte, a galés perpétua (trabalho forçado) e a pena de vinte anos de prisão
em seu grau mínimo para o caso de assassinato. Martinho, como se viu, foi condenado
com a pena mínima prevista no mesmo artigo.

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Moisés Reis é professor, historiador e escritor. Formado em História pela Uniages e


mestre em Ensino de História pela Universidade Federal de Sergipe.

Contato: 75 99974-2891

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