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Varandas Da Eva

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Milton Hat Copyright © 2009 by Milton Hatoum Capa Fabio Uehara sobre projeto grafico de Angelo Venosa Imagem da capa Navio em Santarém, Luiz Braga, 2007 Preparagio ‘Marcia Copola Revisdo Ana Maria Barbosa Marise Leal Os personagens ¢ as situagées desta obra sio reais apenas no universo da ficgao; nao se referem a pessoas ¢ fatos concretos, e nao emitem opinido sobre eles. Dados Internacionais de Catalogacdo na Publicagao (ci?) (Camara Brasileira do Livro, s, Brasil) Hatoum, Milton ‘A cidade ihada : ‘Companhia das Letras, 2009. ‘ontos / Milton Hatoum. — Sao Paulo : ISBN 978-B5-359°1387°3 1. Contos brasileiros 1. Titulo. cpp-869.93 08-1269 Indice para catdlogo sistemético: 1. Contos : Literatura brasileira 869.93 [2009] . Todos os direitos desta edigao reservados @ EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista 702 ¢j. 32 04532-002 — So Paulo — sP Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br Varandas da Eva Varandas da Eva: o nome do lugar. Nao era longe do porto, mas naquela época a nogao de distancia era outra. O tempo era mais longo, demorado, ninguém falava em desperdigar horas ou minutos. Despre- zavamos a velhice, ou a ideia de envelhecer; viviamos per- didos no tempo, as tardes nos sufocavam, lentas: tardes paradas no mormago. Ja conheciamos a noite: festas no Fast Clube e no antigo Barés, bailes a bordo dos navios da Booth Line, serenatas para a namorada de um inimigo e brigas na madrugada, la na calgada do bar do Sujo, na pra- ca da Saudade. As vezes entrdvamos pelos fundos do tea- tro Amazonas e espidvamos atores e cantores nos cama- rins, exibindo-se nervosamente diante do espelho, antes da primeira cena. Mas aquele lugar, Varandas da Eva, ain- da era um mistério. Ranulfo, tio Ran, o conhecia. £ um balneario lindo, e cheio de mogas lindas, dizia SS ele. Mas vocés precisam crescer um pouquinho, as res nao gostam de fedelhos. Invejavamos tio Ran, que até se enjoara de tantas no; tes dormidas no Varandas. A vida, para ele, dava reed sinais, descaia para outros caminhos. Enfastiado, sem me. ca, o queixo erguido, ele mal sorria, e 14 do alto nos olha. va, repetindo: Cresgam mais um pouco, cambada de fede. lhos. Af levo todos vocés ao balneario. Minotauro, fortaco e afoito, quis ir antes. Foi barrado no portao alto, cuspiu na terra, deu meia-volta, quase marchando para tras. Era um destemido, o corpo granda- Thao, e um jeito de encarar os outros com olho quente, de meter medo e intimidar. Mas a voz ainda hesitava: era Mulhe. aguda e grossa, de periquito rouco, e 0 rosto de moleque, assombrado, meio leso. Gerinélson era mais paciente, rapaz melindroso, sabia esperar. Ja namorava de dar beijos gulosos e acochos, e nos surpreendia em pleno domingo guiando uma lambre- ta velha, roubada do irm4o. Na garupa, uma moga desco- nhecida, de outro bairro. Ou estrangeira. A maquina pas- sava perto da gente, devagar, roncando, rodeando 0 tronco de uma 4rvore. Depois acelerava, sumindo na fumaceira. Ele sempre gostou de desaparecer, extraviar-se. Gerinél- son era e nao era da nossa turma. Eu o considerava um dos nossos. Ele, nao sei. Tinha uns segredos bem guarda- dos, era cheio de reticéncias: nao se mostrava, 0 TapaZ. O Tarso era o mais triste e envergonhado: nunca disse onde morava. Desconfidvamos que 0 teto dele era um dos ; é i eteu por barracos perto do igarapé de Manaus; um dia se mete rt ara um arrasta-Pe- mano. UM vamos ° ali e sumiu. Raro sair com a gente pi . recusava: Com esses sapatos velhos, na0 da, . . 7 agi cineminha, sim: duas moedas de cada um, € P 8 ingresso do Tarso. E 14 famos ao Eden, Guarany ou Poly- theama. Depois da matiné, ele escapulia, nao ficava para ver as meninas da Escola Normal, nem as endiabradas do Santa Dorothea. Tarso queria vender picolés e frutas na rua, queria ganhar um dinheirinho sé para entrar no Va- randas da Eva. Mas era caro, nao ia dar. Entao tio Ranulfo prometeu: Quando chegar a hora, pago pra todos vocés. Tio Ran, homem de palavra, foi generoso: espichou dinheiro para a entrada e a bebida. Depois tirou um maco de cédulas da carteira. Disse: Isso é para as mulheres. E nada de molecagem. Cada um de vocés deve ser um gen- tleman com aquelas princesas. Contamos as cédulas: dava e sobrava, era a nossa for- tuna. Compramos na Casa Colombo um par de sapatos, e tia Mira costurou uma calga ¢ uma camisa, tudo para o Tarso. Quando ele experimentou a roupa nova, parecia outro, ia chorar de alegria, mas Minotauro, maldoso, de- bochou: Deixa pra chorar depois da farra, rapaz. Quem fi- ca feliz de roupinha nova é moga. Eles ficaram cara a cara, os olhos com faiscas de ran- cor. Tia Mira se intrometeu, com stplicas de trégua e paz. Os dois olharam para minha tia, os rostos mais serenos, 0 pensamento talvez em outras searas. Marcamos a noitada para uma sexta-feira de setem- bro. Gerinélson pegou o dinheiro, quis ir sozinho, de lam- breta. Tio Ran nos levou em seu Dauphine, parou quase na porta, nos desejou boa noitada. Quando famos entrar, Tarso hesitou: deu uns passos para a frente, recuou, quis e nao quis entrar. Ficou mudo, mais e mais esquisito, fe- chou-se. Nés 0 desconhecemos: luz e danga nao o atraiam? Minotauro puxou-o pela camisa, enganchou a mao no pescoco dele, repetindo: Bora 14, seu leso. Nosso amigo concordando, mas com um salto 5 ara a escuridao. e des. Tarso, um desmancha-prazer. Deixamos 0 nosso am; A vontade nao é de cada um e em cada dia? Minotann uy um grunhido, resmungou: Nao disse? Rome abaixou 4 cabega, garrou, € correu P go. solto nova € Entra’ ao Varandas do, e no fim do ¢ resta. Era uma const desenho de oca indigen um saléo no meio, iJumina Uns casais dangavam ali, a mu: tauro apontou uma mesinha vazia Sentamos, pedimos cerveja, um C) do mato. E Gerinélson, se extraviara? Na luz vermelha, cite, Minotauro me cutucou: uma mulher sorria nem quis saber do fa com sorti- indo o indi- mas tinha ais belos, Danga- ape nsia, mimo pra mocinha. mos. Um caminho estreito e sinuoso conduzia da Eva. Aos poucos, uma sombra foi crescen- aminho uma luminosidade surgiu na flo- rugao redonda, de madeira e palha, a. Mesinhas na borda do circulo, do por lampadas vermelhas. sica era um bolero. Mino- num canto mais escuro. heiro de agucena vinha quase ni para mim. Nao vi mais o Minotauro, Gerinélson. $6 olhava para ela, que me atra’ e chamou com um aceno, gira’ para dangar. Nao era alta, do, e um rostinho dos mi go, de gata maracaja. ais outras, parados, percebeu minha 4 ‘0 ritmo lento da mu- inho me conduziu 4 as, na beira de um ha, no namoro orta, © sos; depois ela m cador, me convidando um corpo cheio e recorta' com olhos acesos, cor de fo; mos trés musicas, e dangamos mM tadinhos, de corpo molhado. Ela me apertou com gosto, € me levou, 0 sica, para fora do salao. Por outro cami ae das casinhas vermelhas, avarandad a Ficamos um tempo na varandin eae anaes Depois, 14 dentro, ela — ees entreabertas. 0 som di a avarandada. le um boler Ela me ensinou a fazer tudo, todos os carinhos, sem pressa, com o saber de mulher que j4 amou e foi amada. Passamos a noite nessa festa, sem cochilo, e muitos risos, de s6 prazer. Fez coisas que davam citime, caricias que nao se esquecem, Perguntei como ela se chamava. Ela disfar- cou, e disse, rindo: Meu nome? Tu ndo vais saber, é proi- bido, pecado. Meu nome é sé meu. Prometo. A voz e a risada bastavam, minha curiosidade dimi- nufa. Nome e sobrenome nao sao aparéncias? Nao quis me ver nem ser vista a luz do dia; quando as Aguas do igarapé ficaram mais escuras do que a noite, ela pediu que eu fosse embora. Obedeci, a contragosto. Saf no fim da madrugada, caminhando na trilha de folhas timi- das. Naquela manhi o sol teimou em aparecer no céu fe- chado. Voltei ao Varandas no mesmo dia, a fim de revé-la; vol- tei muitas vezes, sempre sozinho, nunca mais a encontrei. O Tarso disse que nao entrou no Varandas porque te- ve medo. Medo? Ele sério, e calado. Minotauro me contou sua farra, cheia de faganhas. A grande gandaia, noite e dia, ele disse com uma voz que nao tremia mais, voz bem grossa, de cachorrao. O Gerinél- son me olhou de soslaio, sorriu de fininho, desconversou. Ele nao se mostrava mesmo. Gostava das coisas s6 para ele, guardando tudo na meméria, dono sozinho de seus feitos e fracassos. Nos meses seguintes, ainda tentei ver a mulher, pula- va de um clube para outro, os lupanares de Manaus. Até hoje, sinto ansia s6 de lembrar. Tia Mira dizia que eu estava babado de amor. Estds 1. F tonto por uma mulher, ela ria, observando meu devaneig triste, meu olhar ao léu. O Tarso nao quis conversar sobre aquela noite, Foj Cy primeiro a se afastar da turma: teve de abandonar a escola, queria ser pratico de motor, ou, quem sabe, capataz numa fazenda do Careiro. Trés anos depois, meus tios Mira e Ran mudaram de bairro; os encontros com meus amigos tornaram-se fortui- tos, minha vida procurou outros rumos. O tinico que cru- zou o meu caminho foi Minotauro; cruzou por acaso, quando eu saia do bar Mocambo e ele ia visitar um amigo no quartel da Policia Militar. Estava fardado, era soldado S1 e se preparava para o exame de suboficial da Aerondu- tica. Servia na base terrestre, de guerras na selva. Nao que- ria voar. Sou homem com pés no chAo, ele foi logo dizendo. E emocionante a gente.se perder na mata, os perigos me atraem, mano. A gente entra na floresta, escuta os ruidos da noite e a noite é escura que nem o dia. E um desafio. Toda a cambada tem que caminhar naquele ziguezague escuro, dormir sem saber onde esta, matar os bichos € en- contrar a safda para a sede do comando. Falava com desembaraco, cheio de si, alisando com os dedos grossos a boina azul. O rosto continuava assombra- do, quase feroz, e a risada safa que nem uivo. Ele havia topado com o Gerinélson: iajou para S40 Paulo. Quer ser doutor, médico de mulher. Quer se aproveitar delas, riu 0 Minotau- ro, tenebroso, mostrando dentes de cavalo. Tu nem sabes... O Geri sempre foi sonso, andou pelo Varandas antes da gente, sempre foi cafdo por mulheres de todas as idades. Dei um risinho chocho, sem vontade. Minotaure ja 12 aad era meu ex-amigo? Esté em outro mundo, nossos pensa- mentos nao se encontram. Foi o que eu remoi naquele instante. E 0 Tarso? Mais pobre do que eu, ele disse. Deve estar cafdo por ai. Pobre pobre nao se levanta, mano. Nem soldado 0 coi- tado do Tarso pode ser. O Minotauro me tratou com carinho. Nao sei se na- quele dia eu tive pena ou raiva dele. Desprezo, talvez. Ele se despediu com um abrago forte, de estalar as costelas. Era socado, um monstro. Pés a boina na cabeca € saiu andando, desengongado, cumpridor de deveres. Anos depois, num fim de tarde, eu acabara de sair de uma vara civel, e passava pela avenida Sete de Setembro. Divagava. E ja nao era jovem. A gente sente isso quando as complicagées se somam, as respostas se esquivam das perguntas. Coisas ruins insinuavam-se, escondidas atras da porta. As gandaias, os gozos de nao ter fim, aquele arro- jo dissipador, tudo vai se esvaindo. E a aspereza de cada ato da vida surge como um cacto, ou planta sem perfume. Alguém que olha para tras e toma um susto: a juventude passou. Quando andava diante do Palacio do Governo, decidi descer a escadaria que termina proéxima a margem do iga- rapé; parei no meio da escada e me distraf com a visao dos passaros pousados nas plantas que flutuavam no rio cheio. Foi entaéo que vi, numa canoa, um rosto conhecido. Era Tarso. Remou lentamente até a margem e saltou; depois tirou um cesto da canoa e pés o fardo nas costas, a alca em volta da testa, como faz um indio. O corpo do meu amigo, curvado pelo peso, era o de um homem. Subiu uma esca- dinha de madeira, deixou 0 cesto na porta de uma palafita, 13 yoltou a margem e puxou a canoa até a areia enlameada, A porta apareceu uma mulher para apanhar o cesto, Rea- pareceu em seguida € acenou para Tarso. Num Telance, ela abeca e me encontrou. Estremeci. Eu ia virar ° ergueu a © d t de deixar de encaré-la. Ela me atrafa, ¢ g rosto, mas nado pu Jembranga surgiu agitada, confusa. A voz dela chamou: Meu filho! A mesma voz, meiga € firme, da moga, da mu- Ther da casinha vermelha, no balneario Varandas da Eva, Era a mae do meu amigo? Isso durou uns segundos. Por assombro, ou magia, 0 Tosto dela era 0 mesmo, nao enve- jhecera. Mal tive tempo de ver os bragos e as pernas, a memoria foi abrindo brechas, compondo 0 corpo inteiro daquela noite. Tarso escondeu a canoa entre os pilares da palafita, e entrou pela escadinha dos fundos. A mulher ja tinha su- mido. Permaneci ali mais um pouco, relembrando... Nunca mais voltei aquele lugar. 4

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