BIOÉTICA -
COM A PALAVRA O SR. CAIO FÁBIO DE ARAÚJO FILHO
Fico feliz com a possibilidade de debater tema tão amplo com vocês. E tratar
dele com um mínimo de acurácia seria tarefa de muito tempo, o que não é o
caso. Por isso, vou me ater exclusivamente, na minha perspectiva de cidadão
brasileiro e com consciência cristã, à ética aplicada à vida. O termo bioética
parece carregar com a sua própria nomenclatura uma perspectiva
reducionista, porque as palavras gregas usadas para definir vida no Novo
Testamento acabaram no mundo científico ganhando designações muito
específicas, como, por exemplo, o zôo, de zoológico e seus derivados, o bio,
de onde vem a biologia, e o psyché, que ficou contido no mundo da
subjetividade. Esses três termos constam do Novo Testamento para designar
vida. Portanto, o Novo Testamento não trataria desse assunto, vamos dizer
assim, como uma questão de biologia microscópica nem macroscópica. Do
ponto de vista do Novo Testamento vida é vida. E mesmo a interpretação que
o Novo Testamento, o original grego, dá ao termo zôo mais a aplicação da
qualidade de vida relacionada à eternidade, não contém tudo, porque há uma
quantidade enorme de outros textos em que o termo zôo aparece relacionado
à vida na sua animalidade também, e o mesmo acontece com bio e psyché.
Ou seja, há apenas propensões ou inclinações a uma determinada dimensão,
a um não confinamento da idéia da vida àquela dimensionalidade.
Dito isto, quero falar agora como enxergo a ética de preservação da vida num
mundo no qual a própria presença humana na Terra significa a maior ameaça
de devastação. É isso que, antes de qualquer debate, precisamos entender:
essa conversa só está acontecendo por causa de nós mesmos. Não haveria
essa discussão no mundo sem a presença da consciência humana conforme
ela é constituída. A Terra é velha, o mundo que é novo. A Terra é
antiqüíssima, mas o tempo de percepção da existência é muito recente,
porque esse tempo não tem o tamanho da idade cronológica da existência
medida. Por isso, encontramos fósseis de milhões de anos. Mas o mundo
não começou quando a vida teve início na Terra; o mundo começou na Terra
quando a consciência percebeu a Terra. Portanto, o mundo é produto da
nossa consciência. Antes disso a Terra é datável. Ela é objeto de
intervenção, de análise via carbono 14 e outros meios de datação, em que
nos é permitido saber que aquele elemento, criatura, fóssil, cristal, mineral,
qualquer que seja o objeto, tem uma determinada idade. O mundo, no
entanto, é filho da consciência, da auto-percepção, e essa é uma realidade
introduzida na Terra com a presença humana. O extraordinário e ao mesmo
tempo irônico e contraditório é que essa presença humana na Terra,
inteligente e auto-consciente, é a maior, e talvez seja a única, ameaça à
própria Terra e que as demais manifestações de vida na Terra conheçam.
Antes de haver o mundo, e o mundo existe como resultado da consciência
que percebe a circunscrição e o indivíduo que percebe, — isto é consciência,
é percepção de mundo — havia a Terra, o tempo, o espaço, mas ele não
podia ser medido porque não havia o ente consciente para fazer a
mensuração dessa existência. Antes disso existir, houve catástrofes naturais
na Terra, meteoros gigantescos destruíram reinos animais, a vida aconteceu
e encontrou o seu próprio caminho. Nunca antes nada foi tão ameaçador por
mais catastrófico que tenha sido do que a presença humana na Terra.
Desgraçadamente, qualquer conversa sobre bioética começa com a
pergunta que temos de fazer sobre o fato da nossa presença no meio
ambiente. O meio ambiente não tem problemas a não ser aqueles causados
por nós, porque aquilo que no meio ambiente significa problema natural já
carrega em si sua própria solução. A natureza quando se problematiza é por
que já está em processo de transformação. Temos inteligência, capacidade
de intervenção, consciência, poder de amealhar cultura, conhecimento e
saber, de fazer empilhamento de conhecimentos que se transformam em
instrumentos tecnológicos e que, de acordo com a nossa concepção de
idéias, são usados para intervir no meio ambiente concreto. São essas
intervenções que nos trazem hoje aqui para discutir bioética.
A vida não tem nenhum problema. A ética da própria vida a própria vida
conhece. A ética da vida é ser vida. Esse é o éthos dela, é a coisa em si.
A vida em si carrega o seu próprio éthos. Nós é que somos o problema. Nós
que nos reunimos para discutir a questão somos os vampiros do problema,
porque se houvesse uma supressão radical e total da humanidade no dia de
hoje, por mais que tenhamos feito acumulações de lixo, de imundices, de
dejetos e de material inaproveitável e não biodegradável, seja lá qual for a
natureza da produção, a ausência da humanidade na Terra faria com que a
própria Terra se regenerasse algum tempo depois.
Portanto, a nossa presença aqui significa o catastrofismo, o apocalipsismo, o
medo. É a nossa presença aqui que carrega em si a possibilidade da
autodestruição. Essa não é uma questão pertinente a micróbios, nem à
biodiversidade amazônica, nem a primatas, nem à camada de ozônio. Essas
coisas todas não estão em crise. O único problema dessa história toda sou
eu, é você, é quem nós somos, é como escolhemos viver, é o que chamamos
de o meu conforto, é o que chamamos de a minha segurança, é o que
ambicionamos como valor para a vida, é a nossa projeção para o lado de fora
de nós para os valores que deveriam habitar a nossa consciência e que
foram transformados, todos eles, em objetos de consumo, em conquistas a
serem realizadas e que só podem materializar os próprios objetos do nosso
desejo se a Terra for saqueada em todos os níveis possíveis.
Então, com toda honestidade, essa discussão só vai valer a pena se tivermos
coragem de nos enxergar. Do contrário, será uma masturbação intelectual
improdutiva. Vamos sair daqui e tudo vai continuar absolutamente igual; nada
é produzido, nada é gerado, porque o ser que problematiza o meio ambiente
é esse que está sentado aqui falando e esses que estão sentados aqui
ouvindo.
Antes de qualquer coisa, esse tema é um chamado à conversão da
consciência, à conversão ao discernimento dos conteúdos da vida, do
significado da nossa própria existência, não só a imediata, mas do nosso
legado; é uma questão profunda sobre os meus confortos, os meus desejos,
os meus status, as minhas alegadas questões de sobrevivência e que nada
tem a ver com a vida em si; ao contrário, fazem acumulação incomparável de
todas as coisas que significam a própria deterioração do ambiente em que
vivemos.
Depois dessa introdução bem simples, quero dizer que ninguém pode pensar
sem ser a partir de uma pressuposição. Sem alguém sentar aqui para discutir
esta questão, seja qual for e quem for a pessoa, terá de erigir o seu
pensamento a partir de uma pressuposição, ainda que a pressuposição seja
a pressuposição de que não há pressuposição, mas é uma pressuposição da
não-existência de uma pressuposição. O que nem por causa disso deixa de
estabelecer uma pressuposição sobre a qual se vai erigir um argumento. Eu
tenho a minha, simples e confessada. Para mim, esse universo é sagrado. Eu
poderia simplesmente dizer que ele é dês-criado, que ele existe por si só, que
ele é o que é, que a única coisa que existe é ele, que ele é Deus por existir
em si mesmo, por ser a causa de si próprio. É um Deus inconsciente de si
mesmo, mas poderia ser. No meu caso não. A minha pressuposição é outra.
E até para fazer ciência eu faria a partir de uma pressuposição. Ninguém
foge da pressuposição. Nós somos pressuposição. A minha é simples: esse
universo é sagrado. Antes de ser criado, ele foi objeto da sua própria
redenção. O Cordeiro de Deus foi imolado antes da fundação do mundo. E, a
meu ver, uma das razões pelas quais a teologia cristã não conseguiu produzir
uma idéia que fosse generosa para com a criação é justamente por causa
dessa idéia de onde começa a redenção. Para a teologia cristã a redenção é
uma tentativa de Deus remediar algum tipo de equívoco cometido por Ele
mesmo. É Deus tentando dar jeito num equívoco; é a redenção. No entanto,
não se percebe que a manifestação histórica da redenção em Cristo é a
concreção de algo que preexistia à própria Criação.
O Novo Testamento é claro quando afirma, por 3 vezes, que o Cordeiro de
Deus foi imolado antes da formação do átomo, do mundo, de qualquer
existência. Antes de haver luz, houve cruz; antes de haver criação, houve um
Deus assumindo responsabilidade redentora pela criação que criaria. E se de
um lado está na metafísica da Criação que o que a habita é a própria
redenção, de outro, na meta-história das nossas existências, é a mesma
coisa que está presente.
Se o Novo Testamento diz que antes de haver cosmos houve redenção, a
criação inteira é, portanto, precedida por um gesto redentor de Deus, e de
amor. Porém, quando Jesus ressuscita, fica estabelecido que homens e
tilápias têm o mesmo destino eterno. Se Ele ressuscitou no corpo, foi também
nesse corpo ressuscitado que ele comeu e bebeu com seus discípulos depois
da ressurreição; foi também nesse corpo que ele mesmo preparou peixe frito
para os discípulos que tentavam pescar uma noite inteira no mar de
Tiberíades, de modo malsucedido; foi também nesse corpo ressuscitado que
durante 40 dias Ele fez ingestão de alimentos, com seus discípulos, e a
maioria deles estava comendo tilápia do mar da Galiléia, abundante até hoje
lá. Jesus as come e atravessa paredes, o que significa dizer: se a esperança
cristã da ressurreição do corpo e da glorificação da complexidade humana
em Cristo vale para nós, vale para tilápias, vale para quem fez parte do
processo de absorção, para quem foi absorvido.
O que Cristo ressuscitado fez não foi apenas designar a esperança concreta
da minha existência como totalidade que vai ganhar sua plenificação absoluta
Nele um dia, mas também afirmar que a natureza inteira tem a mesma
destinação. Se o corpo ressuscita, esse corpo ressuscitado processa dentro
de si tilápias do mar da Galiléia. Homens e peixes têm o mesmo destino.
O sagrado habita o mundo inteiro. Isso acontece como desígnio. Isso, antes
de haver criação, acontece como afirmação desse desígnio na própria
ressurreição e se apresenta no Novo Testamento na cena final da Nova
Jerusalém, onde o acervo da produção humana é aproveitado na forma de
uma cidade que é arquitetura, que é construção, que é cultura, que é
produção e onde a natureza está presente: árvores, rio, luz. Todos os
elementos estão presentes, redimensionados numa perspectiva glorificada,
mas estão presentes, conforme o modelo estabelecido na criação e na
redenção.
Dito isso, quero dizer que a razão mais efetiva para nos relacionarmos com a
vida é a partir da sacralidade da vida. Se a existência não está carregada e
imantada com sacralidade, não tenho razões éticas para me relacionar com a
existência. Posso, no máximo, ter razões pertinentes à minha esperteza, à
minha malandragem, ao meu egoísmo auto-preservado. Ou seja, se não
tenho uma visão que sacraliza o cosmos e toda a criação, eu preciso no
mínimo fazer uma segunda reflexão. Que reflexão é essa? Não creio na
causalidade de nenhuma dessas coisas, todavia, não posso negar que existo
neste planeta e neste cosmos para o qual eu não encontramos nenhuma
causalidade. Mas já que eu não consigo identificar uma causalidade que
empreste significado à vida, não posso negar a própria vida porque estou
vivo e consciente de mim mesmo. E, se estou vivo e consciente de mim
mesmo, não me importando com quem seja o Criador, se Ele existe ou não,
tenho um problema concreto: eu e meus semelhantes, habitando o mesmo
tempo e o mesmo espaço, produzimos uma geração que criou artefatos
tecnológicos e um monte de outros progressos resultantes da nossa
capacidade de raciocínio que acabaram se transformando no nosso próprio
auto-encurralamento.
Portanto, com ou sem Deus, mundo sagrado ou não sagrado, seja ele
imantado com espiritualidade para ser objeto de reverência ou apenas
resultado da necessidade da repetição e do acaso, enfim, por que via for, a
única alternativa que se tem, a preservação do universo sem ser pela
causalidade, é pela via do egoísmo inteligente. Se não for por sacralidade,
que seja por pura malandragem. Se não for porque a vida e o olhar da vida
estão carregados daquilo que lhes empresta significado, seja por uma
questão de matemática, de contagem regressiva, de soma, de auto-
preservação. Se não for por Deus, seja pelo homem. Se não for por
reverência, seja porque existe um mínimo de inteligência. Se não for por
causa do sagrado, que pelo menos não seja por burrice. Essa é a coisa mais
simples que se pode dizer.
No entanto, a única realidade que empresta significado ético à nossa relação
com a vida — ético na essência do termo — é a visão que aprecia a
existência na perspectiva de perceber nela a sua própria sacralidade. Quem
não vê sacralidade na vida tem que assumir a própria existência como
sagrada em si mesma, até por uma questão de malandragem. E, ainda que
esse seja um pensamento completamente arbitrário, mesmo não havendo
razão na consciência, que haja pelo menos a consciência da auto-
preservação.
As sociedades menos ofensivas à existência natural nunca foram aquelas
produzidas pelo Cristianismo. O Cristianismo não conseguiu produzir uma
cosmovisão que preservasse a natureza. Por quê? Porque a cosmovisão
cristã — isso não tem nada a ver com Evangelho, estou falando em religião,
em fenômeno humano, em fenomenologia religiosa da progressão sistêmica
do pensamento cristão — criou um divórcio, desde o início, entre criação e
redenção, entre natureza e graça. Essas coisas não se comunicavam, e o
homem foi colocado como pivô da história inteira. A única coisa sagrada que
passou a existir de fato para os cristãos no mundo foi o homem, e
dependendo da sua denominação ou da sua religião. Porque fora do
Cristianismo o homem era um ser de outra categoria, um primata a ser
elevado ao estado de consciência salva para, quem sabe, poder ser tratado
como irmão, se ele, por acaso, coerentemente, aliasse a sua ideologia
religiosa à nossa.
Esse é o testemunho que a história do Cristianismo nos dá. Alguém tem algo
contrário a dizer aqui? São 2 mil anos de testemunho veemente de quem
somos e como somos. O Ocidente inteiro é o showcase da fé cristã. Quem
quiser saber o que a religião cristã pode fazer pelo planeta não fique
imaginando um admirável mundo novo, olhe para o Ocidente e veja quem
nós somos e o que o Cristianismo fez entre nós, como religião, nos últimos 2
mil anos. Não há nenhuma religião que tenha cortado tantas árvores, que
tenha tido o poder de intervir tanto na natureza quanto a nossa. O mundo
nunca sofreu o impacto de uma idéia religiosa mais devastadora do que a da
suposta consciência cristã, que divorciou natureza de graça, criação de
redenção, entronizou o homem e colocou-o nesse nicho como ser que não só
se auto-determina, mas que tem o privilégio de determinar, fazendo
intervenções, mudança radical nos processos naturais no planeta que
habitamos, e o resultado é esse que está aí.
Pode-se dizer que a Índia é um país tecnologicamente atrasado, em que há
elevadíssimo índice de pobreza, miséria, superpopulação e outras coisas
mais. Mas ela continua sendo exemplo de sociedade que olha para o cosmos
como algo sagrado, numa visão completamente diferente da nossa, que no
máximo admite que existe um Deus em algum lugar, geralmente fora de nós;
um Deus para ser acreditado, em função do esmagamento das evidências
que a criação daria como testemunho acerca da necessidade de existir um
Deus que justificasse infinita complexidade, como aquela que percebemos no
mundo criado. Nós temos o homem no centro desse pacote, com
prerrogativas, uma superioridade absoluta, desintegrado da criação — a
integração dele, redentoristicamente falando, acontece na vertical: apenas
com Deus. Se houver boa vontade maior, ele é um ser um pouco mais
generoso com o próximo. Mas a prova de que nós, no Ocidente, não estamos
nem aí para a Criação, por mais simples que pareça, é que, quando
queremos pensar em Deus, por mais que a lua esteja cheia, o céu estrelado
e o cosmos nos oferecendo espetáculo de beleza, fechamos os olhos para
orar, porque não existe sacralidade do lado de fora. O mundo lá fora nos
distrai, não nos remete a Deus — essa é nossa visão.
De modo que, quando se pensa numa ética para a vida, infelizmente não se
pode nem pensar que o Cristianismo significou algum tipo de exemplo do
significado desse valor para nós, porque não vem da religião cristã nenhuma
forma de exemplificação concreta da produção de uma sociedade, de uma
consciência coletiva na qual a criação gema, esperando o dia da redenção, e
seja tratada com o respeito e a reverência daqueles que como criaturas
convivem com ela sem um sentimento de superioridade predatória.
Por isso, estranhamente, tenho que lhes dizer que o animismo presta
serviços à bioética, de natureza muito mais prática, na hora em que,
ignorantemente ou não, vê significado espiritual na existência de todos os
entes criados. Nós não. A sociedade ocidental viu o sagrado apenas no
homem e o esvaziou de qualquer consciência de percepção do sagrado no
cosmos. O cosmos, o universo, para o homem ocidental cristão, tenha tido
ele berço católico ou, posteriormente, um berço protestante — mas é dessas
duas grandes variáveis que se formou a consciência ocidental, essa
sociedade esvaziou o homem da consciência do sagrado —, ficou
completamente oco e dessacralizado. Ele é apenas para ser vilipendiado, ele
oferece recursos, oferece riquezas, oferece materiais para serem
processados e utilizados na construção das nossas próprias tecnologias,
oferece os elementos para serem objeto da nossa intervenção e
compreensão. Isso acontece de acordo com a perspectiva do mergulho da
partícula subatômica na física quântica, entra nas engenharias genéticas
mais profundas e vai ganhando outras manifestações, cada vez mais amplas,
no macrouniverso da sociedade, até às nossas tentativas de visitar o espaço
sideral e mandar seres humanos, robôs, teleguiados ou seja lá o que for para
estudar materiais de algum outro lugar.
O que sobrou para nós, no Ocidente, foi a glorificação do homem. E essa
glorificação do homem está tão estabelecida que, ao ligarmos um canal como
o Discovery Channel, observamos o seguinte: desistiram da terra. Ali se vê
dois tipos de documentários: aquele que nos ameaça apocalipticamente
sobre o que está para acontecer, mostrando-nos como o processo se
acelera, como antes a previsão era de 100 anos e hoje o deadline está em 50
— 30 para alguns, dependendo da área ou da progressão do famigerado
status que se instalou entre nós — e que, se não houver redução no
processo, quem sabe as coisas se agravam e nossa deadline chega mais
para perto de nós mesmos em muitos aspectos que condicionam a qualidade
da vida na terra — essa é uma variável, a ameaça que encontramos lá no
Discovery Channel. O outra é a renúncia.
Faz uns 6 meses, mais ou menos, eles colocaram um documentário no ar
extremamente sintomático, interessante, onde mostravam a terra daqui a 250
milhões de anos. É uma terra de onde os humanos desertaram. Chegaram à
conclusão que não tinha saída. Tinham construído um beco sem saída e ali
se auto-encurralaram. Construíram bases para a sobrevivência humana
semi-andróide em regiões do espaço, e a terra evoluiu — os seres
sobreviventes das catástrofes humanas. Aí você fica sabendo qual a
propensão, no que a barata se tornará em 250 milhões de anos de evolução.
Qual a propensão de cada ser, qual caminho, pela lógica evolucionária, eles
tomariam. Isso pode parecer entretenimento de tevê cultural sofisticada, mas
traz consigo duas declarações. Uma afirma: abramos o olho, senão o cacete
vai cair na cabeça. A outra é mais fatídica ainda: provavelmente não dê mais
tempo, já tenha caído. Resta-nos agora fazer ficção e entretenimento sobre
uma terra sem nós, porque aqui neste lugar já não dá mais tempo de nós
mesmos conseguirmos dar a volta.
Chegamos a um ponto em que se estabeleceram para nós ironias
extraordinárias. A primeira: o Ocidente cristão, especialmente a sua versão
protestante, tornou-se a parte da humanidade que mais ofende a criação. O
homem existe num universo sem nenhuma sacralidade.
A segunda: as sociedades animistas são extremamente menos ofensivas à
criação do que nós, que confessamos ser este um cosmos criado por um
Deus que supostamente é amor, de acordo com nossa declaração.
Quando se fala em bioética, fala-se na consciência por meio da qual o
homem se relaciona com o semelhante e com a natureza. Só isso. Qualquer
ética implica, primeiro, auto-percepção; éthos e o que significa vida em mim,
para mim. O discernimento desse significado é extensivo ao meu semelhante
e aplicado ao mundo no qual habito, a todas as suas constituições naturais e
aquelas que tomam forma de relacionamentos.
De fato, tudo é relacionamento nesta vida. A visão que a Escritura oferece
acerca dessa relação tem muito mais a ver, como já disse, com uma
perspectiva negativa, em razão da própria constituição da natureza humana e
da insistência do ser humano num determinado tipo de caminho.
Senão,vejamos: os 3 primeiros capítulos do Livro de Gênesis: ou o indivíduo
parte para aquela leitura completamente literal e fundamentalista, que quer
transformar a Bíblia num manual científico de como o mundo foi formado,
algo absolutamente tolo, não é essa a sua função, ou, então, o indivíduo cai e
atribui aquilo ali simplesmente a algumas conceitualizações de natureza
mítica que projetariam o significado da fé hebraica em relação à percepção
do universo. Mas há muito mais ali do que podemos imaginar.
De fato, em Gênesis, capítulo 2, está colocada a imagem arquetípica mais
essencial e fulminante do discernimento que o homem pode possuir acerca
dele mesmo em relação ao poder. Só estamos tendo essa conversa por
causa do poder. É poder. Essa conversa é poder, o poder do fogo. Quem
consegue preservar a chama acesa na caverna? O poder, a tecnologia.
Quem sopra o veneno mais longe? Quem atira a flecha mais distante? Quem
constrói as cidadelas mais fortes? Quem escava os fossos mais
intransponíveis? Quem desenvolve a catapulta que garante maior ataque e
melhor defesa? É todo um mundo de construção, de aparatos, de tecnologia,
de poder, de supremacia, de hegemonia, de controle, de domínio, de
intervenção, de domesticação de toda a existência. Qual cenário temos em
Gênesis, capítulo 2? Uma árvore do conhecimento do bem e do mal e um
mandamento que diz: “De toda árvore do jardim podes comer livremente;
mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dessa não comerás;
porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. A advertência é
absolutamente assustadora para um indivíduo que existe sem as nossas
crises, sem os nossos conflitos, sem os nossos problemas de sobrevivência,
sem qualquer lei, ou seja, o mundo antiético, a tese do mundo para o qual
nos tornamos a antítese. Lá está tudo livre, podem comer de tudo, fiquem à
vontade. A propriedade privada é o planeta, compartilhado por todos. Só há
uma árvore da qual vocês não podem comer, porque no dia em que dela
comerem, morrerão.
A questão é a seguinte: de repente, essa árvore é associada a um upgrade
de poder. Alguém faz um upgrade nela. Trata-se de uma árvore e, quando se
diz não coma dela, dá uma curiosidade. Qual será dessa árvore? Então,
aparece uma sugestão: “por que vocês não comem dessa árvore? Ela é
maravilhosa”. “Deus disse para não comermos dela, porque se comermos
morreremos”. “Que nada. É que Deus sabe que, no dia em que comerem
dessa árvore, vai haver um upgrade de consciência em vocês. E, como Deus,
vão se tornar conhecedores do bem e do mal”. Uma vez que isso se instalou,
todas as condições tecnológicas para realizar o feito estavam presentes. A
pessoa tinha um braço que alcançava o objeto; possuía um aparato que
podia tirar o objeto da sua localização original; possuía o instrumento para
provar; além disso, possuía elementos de natureza psicológica da sua
sedução, que era boa, esteticamente agradável; geraria esse upgrade, daria
entendimento e consciência.
Se o homem descobre, percebe, discerne, penetra em qualquer coisa e ali
toma consciência de alguma forma ou de percepção ou de conhecimento ou
de poder, assim como foi lá atrás, sempre foi depois. Ou seja, se você tem os
instrumentos, você faz. Se você puder pegar, você pega; se você puder
comer, você come. Não existe a possibilidade de o ser humano tomar
conhecimento de alguma coisa por muito tempo sem penetrar nela. Essa
idéia de que chegamos num momento em que ficamos sabendo de um monte
de alternativas, de possibilidades e de realidades que habitam o interior das
coisas sentidas, percebidas e estudadas por nós, e que só discernimos aquilo
como teoria e não penetramos ali, é falaciosa. A história da civilização
humana conta de forma diferente. Tudo aquilo que nos capacitamos a fazer,
realizamos. Não existe poder humano, ou tecnologia humana, ou consciência
como poder, ou cultura como poder, ou saber como poder, ou o poder de
execução, aquilo que se sabe teoricamente, que não acabe se transformando
na execução em si. Isso acontece desde o início, e a história humana inteira
dá testemunho disso. Por isso seria utópico ficarmos aqui conversarmos
sobre assuntos de natureza religiosa do tipo que dizem: vamos saber, saber,
saber, só para saber, porque vamos saber, saber, saber e vamos escolher
praticar saber apenas a boa parte do que sabemos. A história humana não
dá testemunho dessa possibilidade. Lembrem-se, a árvore é do
conhecimento do bem e do mal. Ela é neutra, o conhecimento é neutro, a
ciência é neutra, apenas o aplicativo não é neutro. Conhecimento é
conhecimento, agora, as variáveis e os aplicativos desse conhecimento
tomam caminhos os mais diversos, de modo que a mesma descoberta
fenomenalmente maravilhosa terá aplicativos que vão salvar a vida e
aplicativos que têm o poder de destruí-la. Ninguém foge dessa realidade. Isso
está estabelecido como realidade da análise que a própria Bíblia faz da
consciência humana. Análise que recebeu corroboração histórica
esmagadora. Por isso estamos sentados hoje aqui conversando sobre
bioética. Não fosse essa evidência, não estaríamos aqui conversando sobre
o assunto. Só estamos aqui porque sabemos que o conhecimento adquirido
pode ser utilizado para o bem ou para o mal. Por isso é preciso ética para
lidar com a vida. Do contrário, essa seria uma discussão completamente
irrelevante.
Mas a visão que a Escritura tem é extremamente coincidente com o
testemunho que a história humana dá da própria civilização humana. A
Escritura começa dizendo que a árvore do conhecimento é do bem e do mal.
De modo que todo conhecimento adquirido terá esses 2 aplicativos. A ética
nasce desse conflito do conhecimento adquirível, a ética nasce para designar
o aplicativo. E como as falas dos profetas do Velho Testamento estão
carregadas disso aí. Para mim, uma das mais modernas falas do Velho
Testamento tem tudo a ver com os princípios de interconectividade que
percebemos hoje estabelecidos não apenas nas linguagens de tecnologia de
informática, mas em praticamente todas as percepções do cosmos hoje em
dia — da física quântica às macro-percepções do universo. Hoje em dia,
sabe-se da interconectividade de todos os entes criados.
O profeta Oséias faz uma afirmação de uma modernidade extraordinária
quando diz que Deus tem uma contenda com a Terra, porque a sociedade
humana só faz perjurar, mentir, enganar, roubar. E são assaltos sobre
assaltos, violência sobre violência, infidelidade sobre infidelidade, seqüestros
sobre seqüestros, homicídios sobre homicídios. E diz: “por isso, as aves dos
céus e até os peixes do mar estão a desaparecer”. O profeta Oséias está
dizendo que o modo como a sociedade humana se organiza afeta e deteriora
a criação como um todo, ou faz bem a ela a árvore do conhecimento do bem
e do mal.
O Apóstolo Paulo diz, em Romanos, capítulo 8, que a natureza geme
aguardando o dia da redenção. Ele ouve um gemido cósmico esperando por
uma redenção, por preservação. O interessante é que Paulo diz que a
natureza geme aguardando o dia da redenção porque ela foi sujeita à
vaidade do homem. Ela está gemendo porque está sob a vaidade humana.
Acho que poucas linguagens são mais poeticamente precisas para definir a
angústia da intervenção humana na Terra do que essa: nós colocamos a
natureza sob o estigma da nossa vaidade. A pessoa mata um jacaré e
pendura a pele no pescoço, pega uma lontra maravilhosa e resolve que terá
uma experiência peniana, com a genitália, às 2 horas da manhã, com um
pêlo de marta pendurado no pescoço. É tudo vaidade humana. Se formos
olhar o que fazemos com a criação, veremos que é tudo produto da nossa
vaidade. Paulo diz que a natureza geme por causa da vaidade humana.
Quando falamos em bioética, a primeira coisa que devemos fazer é olhar no
espelho para ver nosso próprio rosto. Essa nossa conversa não tem nada a
ver com protozoários. Os micróbios aqui somos nós, meus amigos.
A visão do Apocalipse corresponde também à própria realidade da civilização
humana e está carregada de um apelo bioético. Não é preciso fazer qualquer
estudo. Vejamos qual o tema prevalente em todo o livro: a natureza. Do
capítulo 6 em diante fala-se apenas em fontes de água, mares, erva verde,
animais do campo, pestes que virão, feras que enlouquecem. O caminho é
todo esse. É uma progressão de poluição e destruição do meio ambiente, de
intervenções suicidas da humanidade no meio ambiente. De modo que não é
preciso ser um expert em Apocalipse para entender como ele está carregado
de uma profecia de natureza ecológica, com apelo bioético extraordinário. O
capítulo 14 do Apocalipse diz: “E vi outro anjo voando pelo meio do céu, e
tinha um evangelho eterno para proclamar aos que habitam sobre a terra e a
toda a nação, e tribo, e língua, e povo, dizendo com grande voz: Temei a
Deus, e dai-lhe glória, porque é chegada a hora do seu juízo; e adorai aquele
que fez o céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas”. O interessante é
que no Apocalipse isso é chamado de um evangelho eterno. Diz que esse é o
evangelho eterno que esse anjo tem de pregar: “Temei a Deus, e dai-lhe
glória, porque é chegada a hora do seu juízo; e adorai aquele que fez o céu,
e a terra, e o mar, e as fontes das águas”.
Chama a toda consciência do Evangelho para uma integração dela com a
sacralidade da criação e com a reverência pela criação. Se alguém não puder
enxergar o apelo bioético, do qual está impregnado o Livro do Apocalipse,
não terá condições de enxergar mais nada na vida.
A história da civilização humana confirma o realismo da denúncia da
Escritura. Olhamos em volta e vamos vendo que praticamente para cada
grande ganho de conhecimento que temos existe o aplicativo bom e a
variável do aplicativo destrutivo.
Nós somos isso. Enquanto não tomarmos consciência mínima de que essa
não é uma questão de Estado... Essa é outra transferência facílima.
Inventamos determinadas coisas que são os bodes expiatórios e os
elementos de projeção da nossa consciência para podermos viver de
maneira mais desculpada e irresponsável como indivíduos. Criamos o
Estado, que é um cara que estou querendo encontrar. Se alguém encontrar
com ele, me apresente. Estou louco para encontrá-lo faz muitos anos. Entra
governo, sai governo, fico querendo ser apresentado a ele, e não consigo. O
social também é um cara com quem estou a fim de me encontrar faz muitos
anos. Já fiz parte de centenas de reuniões em que falamos dele, todos se
preocupam com ele, que tem enorme capacidade de amealhar interesses
comunais e coletivos, tem imenso poder abstrato de seduzir corações que se
deixam acalentar por ele, e fazem promessas de amor e confissões
românticas de solidariedade. É uma pena ninguém conseguir encontrá-lo. Ele
continua a habitar o mundo abstrato. Volta todo mundo para casa aliviado
dizendo: “Sou um sujeito que nunca se encontrou com o social, mas ele sabe
que eu o amo”.
Temos de parar com essa história. O Governo tem de receber puxão de
orelha. Governo que não quer apanhar, não pode ser governo. Ele tem de ter
coragem de apanhar e assumir responsabilidades. Tem de parar com essa
história de dizer: “Não fui eu quem fez isso”. Claro que não. Só um idiota
pega um governo que está poder há 2 anos e fica tentando cumulá-lo de
todas as desgraças existentes no país. Apenas os idiotas fazem isso. Temos
de parar com isso e saber que nós fizemos isso, a sociedade humana. Eu,
com minha falta de consciência ecológica, de respeito pela vida, com a minha
capacidade de poluir, que só consigo enxergar meu próprio umbigo, que
assumi essa mentalidade cristã religiosa que se vê como centro do universo,
que dessacralizei o mundo, que oro de olho fechado. Enfim, não acredito até
hoje que o grande lixão que polui a humanidade, conforme disse Jesus,
procede do coração. É do coração que procedem todas as poluições. Até
hoje não conseguimos perceber o impacto extraordinário que as idéias têm,
idéias que produzem resultados que não têm como não se materializar para o
bem ou para o mal. A história da civilização confirma o realismo da denúncia
que a Escritura faz, e todos nós sabemos disso.
A questão é: o que propor num ambiente como o nosso, num debate sobre
bioética no Brasil? Moro a 2 quilômetros da favela Pavão e Pavãozinho. Ouço
tiro de metralhadora todo o tempo. Desde que moro lá, já tomei arma de 3
pessoas na rua. E estamos aqui falando de bioética.
Sinto-me como Leonel Brizola, sem querer radicalizar como ele. Na Eco-92,
quando muitas pessoas discutiam questões de natureza muito mais
meticulosa, preocupadas com o mico-leão-dourado, ele disse: adoro mico-
leão-dourado, mas está cheio de menino com lombriga na barriga. Jesus
disse: “Por que vós não fazeis essas coisas sem omitir aquelas?” Estamos na
mesma situação do dízimo. Por que o senhor não dá o dízimo do endro e do
cominho sem deixar de exercer a justiça, a misericórdia e o amor?
Num país como o nosso, bioética é vida. Simplesmente, ela não se pode dar
ao luxo de se tornar microscópica ou macroscópica. Ela não pode ser
compartimentada, não tem o direito de ser nada além do que o nome diz:
vida. Essa é uma tarefa hercúlea, do ponto de vista do significado, ao menos
que se considere que podemos desenvolver um significado específico que
tenha aplicabilidade apenas na área genética, vamos supor. Isso não existe.
A consciência é tomada como um todo, ela não se deixa tomar apenas
eticamente no que diz respeito a determinado segmento da própria vida. Ou a
consciência nos possui como um todo, e aí afeta a vida como um todo, ou
apenas a lei fará com que, sob vigilância, o indivíduo não cometa
determinadas transgressões. Se o olhar vigilante for suspenso, a
transgressão será instalada.
O que propomos num debate sobre bioética no Brasil? Quero ser o mais
simples possível porque não tenho nenhuma vocação para abstracionismos
que não produzam pelo menos uma vontade individual de ir para casa e
começar a fazer alguma coisa. Primeiro, iniciar as questões da vida que
estão esmagadoramente presentes no Brasil. Se estamos falando de
bioética, estamos falando de vida, e o Brasil é um país no qual as questões
da vida se apresentam com esmagamentos caricatos de tão malvados que
são. Não preciso dizer que discutir bioética num país para o qual a vida
humana perde o significado e o valor a cada dia é chocante. Se o homem
não tem significado para nós, o que mais na criação terá significado?
Vivemos num país sujo e poluído demais.
Sou filho de uma das regiões mais importantes do planeta Terra: a Amazônia.
Sou a quarta geração de amazonenses. Toda a minha família mora lá.
Lembro-me do tempo em que o sítio do meu pai ficava apenas a 5
quilômetros do marco zero da cidade de Manaus, na Rua Recife, em frente à
fábrica do Guaraná Magistral, que está lá até hoje. Andávamos 5
quilômetros e chegávamos ao sítio, um paraíso de tucanos, quatis, macacos,
veados, jaguatiricas, gatos maracajás, rastros de onças, jacaretingas,
jacarés, curicas, pássaros em abundância. A fauna amazônica nunca
apareceu tanto quanto a do Pantanal. Por não ter flora, a fauna do Pantanal
salta aos olhos. No Amazonas, a flora é tão esmagadora que protege a
fauna. Lembro-me do tempo em que, apesar de a flora ser ainda mais densa
do que hoje, a fauna era tão mais intensamente rica que o sítio ficava
cercado de tudo aquilo. Hoje em dia, tenho de andar 200 quilômetros de
carro, passar 4 horas numa voadeira para acampar na beira de um rio e ter a
chance de ficar mais perto da natureza.
Um país que tem o Amazonas tem em si mesmo uma das maiores
responsabilidades da Terra. Não podemos simplesmente pensar que a região
é um grande tapete verde ou ficarmos apenas com esse discurso de que, de
5 pessoas que respiram na Terra, uma respira por causa do oxigênio
produzido na região amazônica. Há muito mais em questão. Nossas curas
para a vida estão lá. A biodiversidade amazônica é um acinte, um choque ,
uma aberração de fartura. Muito mais por uma questão de intuição
combinada com registros científicos que as reforçam, diria sem medo que
muito provavelmente, do ponto de vista da riqueza e do significado da
produção de curas para vida, de recursos aplicados de maneira
extraordinariamente benéfica para vida, boa parte dessa fonte e desse caldo
de riquezas habita aquela região absolutamente desguarnecida, que não é
objeto das nossas preocupações, whatsoever.
Primeiro, é preciso iniciar onde esses esmagamentos estão mais presentes.
Segundo, é preciso criar e praticar leis severas, dando ao meio ambiente
importância muito mais significativa do que tem tido até aqui. Como eu disse,
se formos depender da consciência, estamos perdidos. Esse processo inicia
com legislação e práticas severas. Para se fazer acompanhar de um
processo de conscientização, se formos esperar que a consciência preceda à
lei, a devastação será irreversível. Terceiro, é preciso fazer campanhas
maciças. Creio ser esta uma maneira de o Governo aplicar dinheiro de
maneira inteligente. Às vezes, não consigo entender por que o marketing
escolhido pelos Governos para sua autopromoção é aquele que mais
despende dinheiro e que tem resultados práticos menos efetivos para a
população. Existe uma burrice até do ponto de vista do marketing e da
mercadologia da venda política e ideológica no País.
Sinceramente, o Governo deveria começar a investir pesado na construção
de uma consciência das riquezas e tesouros do Brasil, da generosidade de
Deus para com essa terra. Deveria produzir impacto de motivação e
campanhas sérias para que o cidadão brasileiro considere o Brasil
patrimônio, dádiva, exagero da misericórdia de Deus em nosso favor. Deveria
mostrar todas as riquezas que nos cercam, as possibilidades simples. Em
vez de ficarmos transferindo o problema para o Estado e para o Governo ou
para essas potestades invisíveis, a exemplo do social, que habitam o mundo
do imponderável, a solução deveria ser chamada para a individualidade, para
as relações de comunhão em bairros, as consciências das Prefeituras como
um todo, dos Governos de Estado, do Governo Federal, das entidades, das
organizações religiosas, para se transformar em devoção.
Quem dera, em vez de acendermos vela, limpássemos lixo. Quem dera, em
vez de fazermos sacrifícios nas esquinas, limpássemos as sujeiras feitas.
Quem dera houvesse devoção, consciência e cidadania. Pode-se ir desde o
pólo da consciência espiritual até a consciência cidadã. Quem dera houvesse
convergência disso tudo no que diz respeito à defesa da vida e do meio
ambiente. No dia em que isso acontecer, vamos descobrir que, conquanto o
problema pareça insolúvel, ele só o é porque a nossa desmobilização
individual é total.
As campanhas maciças de conscientização precisam ser feitas. Pensamos
que isso é brincadeira, mas já vimos que idéias têm o poder de afetar para o
bem e para o mal nosso meio ambiente.
É preciso investir pesado em alguns segmentos. Como disse, o primeiro
deles é a conscientização da população. Segundo, iniciar campanhas sérias
de re-povoamento limpo e auto-sustentável no Brasil. Não há como se falar
de bioética com as grandes cidades que temos. São Paulo é um atentado à
vida. Rio de Janeiro também. Enquanto este País não tomar consciência de
que o solo brasileiro precisa ser descongestionado e que a grande população
concentrada em algumas geografias transformam esses lugares em regiões
completamente inóspitas, enquanto a população não for estimulada a se
espalhar de maneira auto-sustentável e limpa pelo País, continuará a existir
bolsões de câncer urbano que inviabilizam a constituição de qualquer tipo de
arquitetura social mais ampla que signifique qualidade vida.
É preciso haver investimento sério na defesa do meio ambiente. Às vezes,
fico na minha terra, andando de barquinho com motor de popa, uma semana,
duas semanas. Meu Deus, para achar um fiscal é uma luta. Às vezes, vejo no
Rio Urubu, onde mais fico, pessoas descendo com enormes troncos de pau-
rosa, toras e toras de pau-rosa. Pergunte se aquilo está autenticado,
legalizado, se há documentação. É tudo clandestino. Não conseguimos
resolver o problema do pau-rosa — não pode a pessoa sair com o pau-rosa
debaixo do braço. Se não conseguimos fiscalizar o pau-rosa, como vamos
impedir tráfico de arma, cocaína, maconha? Vamos começar pelo pau-rosa,
pela Amazônia, com coisas que significam vida e não ideologia.
Vejo que estamos coando mosquito e engolindo camelo. É a filosofia dos
fariseus. Faz-se um aparato enorme para armar uma polícia hipocritamente
para combater um monte de crimes dos quais ela é parte integrante e causa
do problema. Faz-se a gestão do crime do jeito que se quer. Quando convém
denunciá-lo, há denuncia; quando não convém, ele é incorporado ao
patrimônio do ganho imediato. E elegemos algumas causas que nos
distraem, ficamos com aquela sensação messiânica de