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LEONTINO FARIAS DOS SANTOS
O ANTIGO TESTAMENTO – FUNDAMENTOS PARA A
PSICANÁLISE HUMANISTA DE ERICH FROMM
Sumário da Tese de Doutorado sobre o humanismo subjacente na obra
de Erich Fromm O Antigo Testamento – Uma interpretação radical e sua
tradição.
São Paulo, outono de 2019
2
O homem conquistou a liberdade das autoridades
seculares e clericais, ergueu-se sozinho com sua razão e
sua consciência como seus únicos juízes, mas revelou-se
temeroso de sua liberdade recém-conquistada; atingiu a
“liberdade de”, tudo isso sem ter ainda atingido a
“liberdade para” tornar-se ele próprio, ser produtivo,
tornar-se inteiramente desperto. E assim tentou fugir à
liberdade. A sua própria realização, o domínio da
Natureza, abriu os caminhos para a sua fuga.
Erich Fromm
3
DEDICATÓRIA
Ao Professor e Mestre, Marcos Oliveira, presidente da Sociedade
Brasileira de Psicanálise Holística (SBPH), como reconhecimento pelo
incentivo que recebemos na formação em Psicanálise e no entusiasmo com
que nos motivou na busca de aprofundamento nesta ciência diferenciada
que nos possibilita ver a vida com maturidade e discernimento.
Ao Professor e Mestre, Dr. Plácido Salézio, pelas recorrentes e
brilhantes abordagens sobre o trabalho de Erich Fromm, inspirando-nos a
continuar na pesquisa sobre a Psicanálise Humanista.
À minha esposa, Veronica Guedes Rocha dos Santos, pelo respeito e
gestos de carinho na cansativa e silenciosa pesquisa e produção do
presente texto, sem o que não teria condições de refletir em busca dos
objetivos aqui alcançados.
4
Sumário
Introdução ..................................................................... 06
Capítulo 1
A obra de Erich Fromm: O Antigo Testamento – Uma
interpretação radical e sua tradição ....................................... 09
1.1 – Informações gerais sobre o texto e o contexto
1.2 – Informações sobre o autor
1.3 – Resumo do conteúdo
- Sobre a introdução e o conteúdo do texto
- O conceito de “Deus”
- O conceito de “Homem”
- O conceito da História
- O conceito do pecado e do arrependimento
- O caminho: Halakhah
- Os Salmos
- O Salmo 22 e a Paixão
Capítulo 2
O humanismo de Erich Fromm ............................................. 16
2.1 Origem e desenvolvimento do humanismo em Fromm –
As ideias centrais que caracterizam o humanismo
frommiano
Capítulo 3
O humanismo de Erich Fromm em O Antigo Testamento –
Uma interpretação radical e sua tradição............................. 26
3.1 O judaísmo da Antiguidade como contexto que dá origem
ao Antigo Testamento
3.2 A composição formal/tradicional do Antigo Testamento
3.3 O A. Testamento numa visão humanista frommiana
3.4 O humanismo frommiano por uma leitura crítica e radical do
Antigo Testamento
3.5 – A desconstrução do conceito ortodoxo de “Deus”
3.6 – O conceito do ser humano
3.7 – O conceito radical da História
3.8 – Conceito humanista de pecado e arrependimento
5
3.9 – A Halakhah numa visão humanista
3.10 – Os Salmos: “um documento humano” – provedor de
esperanças
Capítulo 4
Fromm e a defesa de uma Religião Humanista ..........................77
4.1 A religião que temos
- O Deus da religião que temos
– A religião como mal necessário para a sobrevivência
humana
- A religião autoritária
– O dogma como aparelho ideológico do poder dominante
na religião autoritária
4.2 A proposta de uma nova religião
– Fromm e a natureza de uma religião humanista
– A razão como instrumento fundamental na religião
humanista
– O risco da fé irracional
– A plausibilidade da fé racional
– Quando a fé mística pode incluir a racionalidade
- Os profetas como mensageiros da paz para o “tempo
messiânico”
– A esperança no contexto da religião humanista
– “Esperança messiânica”: dinâmica, revolucionária
– O caráter utópico da religião humanista
4.3 – Síntese dos aspectos humanistas destacados por Erich
Fromm, subjacentes em sua obra O Antigo Testamento –
Uma interpretação radical e sua tradição
Considerações finais................................................................. 119
Críticas ao humanismo de Erich Fromm
Por uma releitura de Erich Fromm no século XXI
A relevância do humanismo de Erich Fromm
Referências bibliográficas......................................................... 130
6
Introdução
O presente trabalho, é uma versão ligeiramente resumida da tese que
defendemos no curso de pós-graduação para obtenção de grau no
Programa de Doutorado em Psicanálise Humanista da Humanistic
University of the Americas, e resulta de análise do pensamento de Erich
Fromm, em especial sobre o humanismo subjacente em sua obra O Antigo
Testamento – Uma interpretação radical e sua tradição. Trata-se de esforço
no sentido de tornar conhecido o humanismo de Erich Fromm também a
partir do que escreveu nessa obra, tendo como título original You shall Be as
gods – A radical interpretation of the Old Testament and its tradition,
publicada em 1966, em New York. Em 1991, houve uma reimpressão do
texto, revisado pela Editora H. Holtt e, em 2005, a publicação em língua
portuguesa, pela Editora Novo Século/Fonte Editorial, em São Paulo/SP,
com 336 páginas.
O Antigo Testamento – Uma interpretação radical e sua tradição é um
trabalho pouco divulgado, até mesmo entre estudiosos na área da
Psicanálise, no Brasil, apesar de sua importância no contexto das mais de
40 produções de Erich Fromm. O autor aborda o texto do Antigo
Testamento, considerado a Escritura Sagrada na tradição judaica, embora
interpretado por diversos grupos, “muitas vezes antagônicos, entre eles
conservadores praticantes, humanistas místicos e socialistas modernos”,
conforme afirmam os editores. Nesse trabalho Fromm explora a evolução do
conceito básico de Deus, do ser humano, da história, do pecado e
arrependimento, ao mesmo tempo em que demonstra a relevância da fé
tradicional no mundo contemporâneo.
Fromm dá ênfase em seu texto, a um humanismo radical tendo em
vista a capacidade do ser humano desenvolver suas potencialidades “e
alcançar uma harmonia interior e o estabelecimento de uma paz mundial”.
Ele compara grandes pensadores do passado como Sócrates, Kant, Marx e
Schweitzer, dentre outros, com os profetas vétero-testamentários (Isaías,
Amós, Oséias e Miqueias, em particular), por considerá-los defensores do
7
“humanismo radical” e comprometidos com valores morais como o amor, a
justiça e a paz, por vezes redescoberto em meio ao sofrimento e ao
desespero.
Chama-nos a atenção a necessidade de explorar, no contexto da
sociedade contemporânea, de maneira construtiva, as manifestações
humanistas de Erich Fromm nessa obra, que tem também no Antigo
Testamento e sua tradição, as bases para o conceito de humanismo que
desenvolveu ao longo de sua trajetória. Nosso objetivo é mostrar a coerência
de seu pensamento como humanista que, de modo dialético, permite-nos,
nesta análise, crescer no enfoque de tão pertinente tema – o humanismo.
Este estudo também tem como objetivo tornar-se uma contribuição, ainda
que de maneira singela, para a área de estudos teológicos. A obra de
Fromm tornou-se um “novo olhar”, vindo de fora do campo da Teologia
sistematizada, especializada, que estuda o Antigo Testamento, por ser um
livro que tem sido referência não apenas para a cultura judaica como
também para a Teologia Cristã. A interpretação de Fromm sob a perspectiva
humanista, a partir da cultura judaica, de maneira mais racional e neutra,
apresenta-se como um trabalho sério, de caráter científico. Segundo Jaime
dos Reis Sant’Anna, que escreveu o Prefácio da edição brasileira...
...diversos estudiosos consideram que qualquer pessoa que se
apresente com o propósito de estudar determinado assunto,
deve fazê-lo com o “distanciamento” científico necessário para
garantir uma atitude que imprima racionalidade e neutralidade.
Longe de determinar qual postura é a mais adequada para o
desenvolvimento dos estudos teológicos, acredito ser
extremamente valioso poder considerar estudos oriundos de
ambas procedências, a fim de estabelecer uma visão dialética,
despojada de confessionalismos e comprometida com a
pluralidade e a diversidade do conhecimento humano
(SANT’ANNA, 2005, p. 9).
8
Vale observar que a Teologia Cristã, quando considerada de maneira
séria e sempre em busca da racionalidade para expressar seus
pressupostos fundamentais, nunca deixa de lado contribuições valiosas
como as de Erich Fromm. Fromm, embora não possua uma relação tão
pessoal com o Deus da tradição judaico-cristã, empreendeu uma pesquisa
séria sobre a pessoa de Deus e de sua inserção na História da humanidade,
com o devido respeito que demonstra em relação aos autores vétero-
testamentários. Trata-se, portanto, de uma análise do Antigo Testamento e
de documentos que lhe dizem respeito, uma releitura crítica, com um
impressionante exemplo de humanismo radical; um trabalho não bem
entendido por muitos, apesar de cuidadosamente escrito.
9
Capítulo 1
A obra de Erich Fromm: O Antigo Testamento –
Uma interpretação radical e sua tradição
1.1– Informações gerais sobre o texto e o contexto
O livro, objeto deste estudo, é uma abordagem pertinente sobre as
Escrituras Sagradas, com enfoque básico sobre os textos que compõem o
Antigo Testamento, tendo como retaguarda cultural a tradição judaica, sob a
qual o autor, Erich Fromm, foi educado em sua infância. É um trabalho que
chama a atenção por sua preocupação com estudos sobre as Escrituras
judaicas que, graças ao seu trabalho, torna-se “o resgate do humanismo
radical, o compromisso com a ética do amor”, 1 como afirma Sant’Anna em
seu prefácio nessa obra.
Do ponto de vista formal o livro escrito por Fromm está dividido
praticamente em seis capítulos, além da introdução e do epílogo. Esta
edição de 2005, cujo texto serve de base para este nosso trabalho, carece
de uma revisão com mais qualidade, uma vez que nele constatamos muitas
falhas referentes a problemas ortográficos, pontuação, omissão de palavras,
o que pode comprometer o entendimento de seu conteúdo. Também há
frases que poderiam ter sido melhor elaboradas, o que deixa claro que os
editores descuidaram-se ou cometeram equívocos em relação a certos
detalhes e aspectos metodológicos que em muito ajudariam o leitor numa
melhor compreensão da obra.
Quanto ao contexto, o livro de Fromm foi escrito e publicado
originalmente e aproximadamente na mesma época em que escreveu A
revolução da esperança (1968), O coração do homem (1964), O dogma de
Cristo (1963) e Meu encontro com Marx (1962), período no qual o autor se
encontrava nos Estados Unidos, em contato com os psicanalistas Harry Stak
Sullivan e Karen Horney. Não temos maiores informações a respeito de suas
1
?
FROMM, Erich, 2005, p. 14.
10
experiências pessoais ou acadêmicas que teriam exercido alguma influência
sobre Fromm, levando-o a produzir tal obra, cujo conteúdo nos leva a
entender que suas preocupações na década de 60 giravam em torno de
questões sobre problemas humanos relacionados à religiosidade,
espiritualidade, assuntos afins.
1.2- Informações sobre o autor
Erich Seligmann Fromm está entre os melhores escritores do século
XX. Ele era judeu, nascido na cidade alemã de Frankfurt, em 1900, tendo
falecido em 1980, na cidade de Muralto, na Suiça. Era proveniente de família
de judeus ortodoxos que lhe proporcionou uma formação fundamentada nos
rígidos princípios da tradição talmúdica. Até 1925, dedicou parte de seu
tempo no estudo do Talmude2, com o rabino Rabinkow. Apesar desse tipo
de educação, converteu-se em “místico ateu”, como ele mesmo declarou em
sua autobiografia.
Fromm foi membro do Instituto de Investigações Sociais da
Universidade de Frankfurt, na Alemanha, tendo sido, inclusive, seu diretor
por algum tempo. Participou ativamente na primeira fase das investigações
interdisciplinares da Escola de Frankfurt, até aproximadamente os anos 40,
quando rompeu com essa academia, em virtude de considerá-la, naquele
momento, heterodoxa na interpretação da teoria freudiana. Fromm chegou a
ser considerado um “revisionista” neofreudiano por intelectuais dessa
Escola, e tornou-se pivô do chamado “debate sobre o culturalismo”, que
causou a primeira grande cisão na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.
Entre os principais críticos dessa posição de Fromm estão Theodor Adorno e
Herbert Marcuse, sendo este um adversário contumaz dentro do movimento
frankfurtiano. Nessa época sua intenção era sintetizar em uma só disciplina
a Psicanálise e os postulados do marxismo.
2
?
Talmude é a coletânea de textos sagrados dos judeus, com registro das discussões
rabínicas sobre a lei, ética, costumes e história do judaísmo, composto do Mishnah – a lei oral que já
existia pelos fins do século II d. C., e pelo Gemara, comentário dos rabinos que viveram de 200 a 500
d. C., que envolve uma discussão rabínica sobre a Mishnah.
11
Ao transferir-se para os Estados Unidos, no período em que o
nazismo (1934) assume o poder na Alemanha, Fromm exerceu a função de
diretor clínico do William Alanson White Institute de New York e trabalhou na
Columbia University; lecionou na Michigan State University, e na Universidad
Nacional Autônoma do México (UNAM), onde fundou o Instituto Mexicano de
Psicanálise.
Tendo tido uma carreira controversa e polêmica, Fromm estudou
principalmente a influência da sociedade e da cultura no indivíduo. Doutor
em Filosofia, tentou estabelecer um relacionamento entre o marxismo e a
Psicanálise. Em suas principais obras, expõe um conceito completo e
sistemático da psicanálise humanista, nas quais discute a responsabilidade
do ser humano moderno em uma sociedade cujo interesse principal está na
produção econômica e não no aprimoramento do valor da criatura humana,
em uma sociedade na qual o ser humano perdeu seu lugar de figura
dominante. Entre suas principais obras vale ressaltar O Medo à Liberdade
(1941), Análise do Homem (1947), Psicanálise e religião (1959), A
Descoberta do Inconsciente Social (1990), Psicanálise da Sociedade
Contemporânea (1963), sendo esta última a que melhor fundamenta a
“Psicanálise Humanista”.
Além de professor universitário, nos Estados Unidos e no México,
Fromm foi psicanalista e membro da Sociedade Berlinense de Psicanálise.
Divergiu da psicanálise individualista de Freud e dedicou-se ao estudo da
influência da sociedade como elemento formador da personalidade. A partir
de seu trabalho nos Estados Unidos e México, suas obras passaram a
enfocar questões humanistas que atraíram a atenção de vários estudiosos
em várias áreas de conhecimento, entre elas a Sociologia, a Filosofia e a
Teologia.
No texto aqui analisado, Fromm considera que alguns dos grandes
nomes da Filosofia ao longo de sua história e, de igual modo, alguns dos
profetas vétero-testamentários, na literatura bíblica, foram expoentes de um
semelhante “humanismo radical”, comprometidos com valores básicos da
vida humana.
12
Perturbado por muitos questionamentos que marcaram a sua vida
desde a adolescência, encontrou nos escritos de Freud e Marx desafios que
o fizeram crescer no estudo do indivíduo e da sociedade. De maneira
dialética procurou conciliar esses dois pensadores, conforme se percebe em
toda a sua obra. E não é diferente o que tenta fazer ao abordar as Escrituras
do Antigo Testamento. Apesar dessa influência, Fromm sempre procurou
manter-se independente em suas teorias, sempre voltado para questões
humanistas, ou eco-ético-humanistas, conforme a preferência de muitos.
Neste trabalho que ora analisamos, tendo em vista destacar a partir
dele a preocupação humanista de Fromm, constatamos que o autor ressalta
o valor literário do Antigo Testamento, com a preocupação de entender
melhor a Bíblia Hebraica como a expressão do talento do povo judeu na luta
pela vida e pela liberdade em toda a sua história.
1. 3 – Sobre a Introdução e o conteúdo do texto
Na Introdução de seu trabalho Fromm destaca a importância do
Antigo Testamento com uma questão que lhe parece pertinente: “A Bíblia
hebraica, o Antigo Testamento, é mais do que uma relíquia religiosa a ser
reverenciada por ser a origem das três grandes religiões ocidentais?” – Ao
levantar esta questão ele chama a atenção do leitor ao dizer que “Parece
difícil acreditar que a Bíblia hebraica ainda seja relevante”. 3 Considera sua
importância quando reconhece que os livros do Antigo Testamento foram
escritos para pessoas que viveram em uma sociedade que não tinha
qualquer semelhança cultural ou social com o povo europeu ou Norte
Americano, num país situado na rota entre a África e a Ásia. Contudo, seu
grande valor histórico está no fato de ter sido uma inspiração não só para o
Judaismo mas também para o Cristianismo, para o Islamismo e para o
Oriente Próximo com fortes repercussões na Europa e toda a América.
?
Ibidem, p. 17.
13
Merecem destaque nas páginas introdutórias deste trabalho de
Fromm, além de ressaltar a importância do Antigo Testamento, alguns
aspectos que nos parecem relevantes para a prática humanista, conforme
observações que o próprio autor faz nos seguintes termos:
...acredita-se que o Antigo Testamento tenha sido escrito
exclusivamente com um espírito de nacionalismo mesquinho e não
contenha nada de universalismo supranacional tão característico
do Novo.
O Antigo Testamento ...contém em si uma evolução notável do
autoritarismo primitivo e de seus clãs até o conceito de liberdade
radical do indivíduo e fraternidade entre os homens.
O Antigo Testamento é um livro revolucionário; seu tema é a
libertação do homem dos laços incestuosos do sangue e da terra,
da submissão dos ídolos, da escravidão, dos senhores poderosos
para a liberdade do indivíduo, da nação e de toda a humanidade.
Este é o caráter revolucionário do Antigo Testamento que o
transforma em um manual para os partidos revolucionários
cristãos antes e depois da Reforma.
O Antigo Testamento é um livro que proclama uma visão para o
homem que ainda é uma realização válida e esperançosa. Não foi
escrito por apenas um homem, nem ditado por Deus; ele expressa
o talento de um povo lutando pela vida e liberdade por muitas
gerações.
A interpretação bíblica proposta neste livro é a do humanismo
radical. Refiro-me ao humanismo radical como a uma filosofia
global que enfatiza a unicidade da raça humana, a capacidade do
homem de desenvolver seus poderes e alcançar uma harmonia
interior e o estabelecimento de uma paz mundial. O humanismo
radical considera que o objetivo do homem deve ser a
independência plena, e isto implica em atravessar por entre as
ficções e ilusões à consciência máxima da realidade.
Só é possível reconhecer as sementes do humanismo radical nas
fontes mais remotas da Bíblia, porque conhecemos o humanismo
14
radical de Sócrates, dos humanistas da Renascença, do
Iluminismo, de Kant, de Herder, Lessing, Goethe, Marx e
Schweitzer.4
Como se percebe, Fromm faz uma tentativa de abordagem do Antigo
Testamento a partir de uma interpretação na qual reconhece nesse texto
hebraico, escrituras revolucionárias, que tratam dos seres humanos como
pessoas chamadas para usufruírem a libertação dos poderes dominantes,
que escravizam homens e nações, a humanidade toda. O estudo do autor,
portanto, visa o resgate radical do que chamou de “escrituras da revolução”.
Fromm também chama a atenção para a relevância do Antigo
Testamento no contexto da cultura judaica; um texto considerado por uns,
mais lido pelos judeus do que pelos cristãos. Apesar da ênfase que é dada
em relação aos textos do Antigo Testamento, reconhece ser um livro, escrito
a partir de muitas fontes, com contradições que não devem ser ignoradas,
graças ao desenvolvimento dos judeus. Reconhece que a história dos
judeus não terminou quando os “vinte quatro livros das Escrituras” foram
escritos. Mais do que isso, considerou que tanto a tradição oral quanto a
Bíblia escrita contêm registros de ideias que não podem ser deixadas de
lado, chegando a declarar que “Se pudéssemos imaginar que uma segunda
Bíblia judaica seria escrita, ela conteria o Talmude e os escritos de Moisés
?
Ibid., pp. 17-34.
15
Maimonides5, a Kabala6, bem como as declarações dos mestres hassídicos” 7
(p. 26) e mais do que isso, acrescenta Fromm:
Se pudéssemos visualizar uma compilação de escritos, ela
cobriria apenas mais alguns séculos além do Antigo
Testamento, seria composta por muitos autores que viveram
em circunstâncias diferentes e apresentaria tantas ideias e
ensinos contraditórios quanto a Bíblia (p. 26).
Enfim, o texto de Fromm explora a evolução dos conceitos básicos
sobre Deus, sobre o ser humano, sobre a história, sobre o pecado e sobre o
arrependimento, e considera importante reconhecer nos Salmos, uma
literatura voltada para a esperança, com ênfase sobre a relevância da fé
tradicional no mundo contemporâneo.
?
Moisés Maimonides (1135-1204): Foi um filósofo judeu e eminente estudioso da tradição
rabínica no período da Idade Média. Sua principal obra foi The Guide for theperplexed, escrita em
árabe, na qual desenvolve o que Fromm chamou de “teologia negativa”, que declara ser inadmissível
o uso de atributos positivos para descrever a essência de Deus (existência, vida, poder, unidade,
sabedoria, vontade), embora seja possível empregar atributos referentes a ações relacionadas a
Deus.
6
?
Kabala: Também conhecida como “Cabala”, conforme aqui mencionada por Fromm, é um
método esotérico que se originou no judaísmo. Seus adeptos são também chamados de Makubalim
ou maskilim, isto é, os iniciados.
7
?
Hassídico: É o adepto de um movimento que surgiu no interior do judaísmo ortodoxo, que
promove a espiritualidade, de caráter místico e que está relacionado a toda a história judaica.
16
Capítulo 2
O humanismo de Erich Fromm
O que pode ser dito sobre humanismo no pensamento de Erich
Fromm?
A partir de seu ambiente familiar, existem experiências durante sua
formação que merecem ser consideradas, uma vez que podem ter
influenciado sua vida emocional e intelectual na defesa de um humanismo
radical, como o fez durante toda a sua vida, em algumas situações em
contextos diferenciados de polêmicas e adversidades. Essas experiências
no contexto social e político no qual cresceu, certamente foram marcantes
para a formação do caráter e perfil de Erich Fromm como cidadão,
intelectual, e cientista capaz de desenvolver uma coerente e sólida teoria
crítica de nossa neurótica sociedade, enferma desde o seu tempo e que
17
assim também continua na sociedade contemporânea. Daí as nossas
considerações iniciais.
De modo geral o pensamento humanista de Fromm leva em
consideração os vários aspectos de “ser humano” que encontramos nas
diversas vertentes do humanismo desenvolvidas ao longo da história do
pensamento, naturalmente consideradas por ele com ênfase na valorização
do ser humano, a partir do pensamento de Sócrates, Platão e dos profetas
na Antiguidade, durante o tempo da Idade Moderna e na Idade
Contemporânea, com exceção, porém, da Idade Média, na qual prevaleceu,
por influência do pensamento da Igreja, a ideia de supremacia de “Deus
sobre todas as coisas”.
Fromm herda aspectos dos vários tipos de humanismo historicamente
reconhecidos, mas ressalta com ênfase especial o que realmente entende
por “humanismo” como ideal a ser praticado numa sociedade industrial.
Principalmente foi influenciado pelo humanismo marxista e pelo humanismo
existencialista, nos quais percebe que Deus deve perder lugar para o ser
humano, porque nestes humanismos não há lugar para Deus. Fromm
observa que tanto para Marx quanto para Sartre, Deus não existe, ou ainda,
mesmo que existisse, não poderia fazer nada pelo ser humano diante dos
grandes desafios da sociedade industrial.
Fromm não é tão radical em relação a Deus, quanto Marx e Sartre,
que o influenciaram em suas considerações humanistas, porque ainda O
(Deus) considera como um ser capaz de ter influência sobre a obra criada.
Contudo, não mantém o mesmo conceito sobre Deus conforme lhe foi
ensinado pelos seus pais na sua infância, preferindo basicamente a ideia de
“ser humano” como agente da história, do que o princípio de que “Deus é o
Senhor da História”, conforme defendido pela tradição judeu-cristã. Como diz
Jaime dos Reis Sant’ Anna, que prefaciou seu livro, objeto deste estudo,
Fromm “converteu-se em místico ateu, como ele mesmo declarou em sua
autobiografia, intitulada Beyond the Chains off Illusion”.8
?
FROMM, Erich, 2005, p. 11.
18
2.1 - Origem e desenvolvimento do humanismo em Erich
Fromm
A biografia de Erich Fromm faz referências a duas experiências
relacionadas à vida familiar e pessoal de Fromm: a primeira fez parte de sua
convivência com seus pais. Sendo filho único, de família de judeus
ortodoxos, muito religiosos, Fromm tinha em seu pai um homem
afetivamente distante, austero, colérico, que estava quase sempre mal
humorado; quanto a sua mãe, também tem sido considerada vítima da
austeridade do esposo e que assim se tornara uma mulher frequentemente
deprimida, conforme a narrativa de Rainer Funk:
Esta falta de afetividade, afetou principalmente a sua mãe;
“Sempre me sentia como el defensor de mi madre, que lloraba
mucho, de modo que yo creia que debia defender-la contra mi
padre (...). Él hubiera que yo siguiera siendo um niño de três
años” (FUNK, 1987), p.20, apud PEREIRA, 2006, p. 18).
Em meio a esse contexto em sua adolescência, com 12 anos de
idade, Fromm também viveu uma experiência que marcou profundamente
esse momento. Uma jovem de 25 anos de idade, aproximadamente, bonita,
atrativa, especializada em pintura, havia rompido um namoro e estava muito
ligada ao seu pai, um homem já de idade avançada. Com a morte de seu
genitor, Naphali Fromm, a moça se suicidou e deixou um pedido que dizia
que queria ser sepultada ao seu lado, isso é, ao lado de seu genitor. Com 12
anos de idade, Fromm ficou muito chocado e impressionado e se perguntou:
“Por que?”
O segundo fato que marcou a vida de Fromm foi a Primeira Guerra
Mundial, quando estava com 14 anos. Este foi o segundo grande choque em
sua vida como adolescente, num momento em que eram frequentes as
mensagens nacionalistas que diziam: “Nós (o melhor dos alemães cristãos)
19
somos grandes; eles (os ingleses e aliados) são mercenários baratos”. Essa
grande histeria de guerra o deixou assustado, levando-o a interessar-se pela
situação, diante de tão grande irracionalidade do ser humano, através de
estudos e pesquisas a partir de uma visão mais contextualizada, levando em
consideração aspectos sociais, políticos e econômicos de maneira mais
crítica e sistematizada. No futuro, ao ter contato com as obras de Freud e
Marx, imaginou ter encontrado respostas para esses dois momentos de sua
história de vida.9
Além desses dois fatos relacionados à adolescência de Fromm,
registramos aqui um outro aspecto ligado à sua formação sócio-política,
antes de seu encontro intelectual com Freud e Marx. Um empregado de seu
pai, que era um pequeno comerciante de vinhos, Oswald Susmann, 10 tinha
formação socialista e exerceu forte influência sobre o caráter de Fromm
durante um longo período de sua juventude, contribuindo assim para sua
conscientização humanitária e política, num contexto de grande convulsão
social.
De acordo com o Prof. Salézio, em seu trabalho Considerações sobre
a psicanálise humanista de Erich Fromm (2006), faz sentido imaginarmos
que o pensamento humanista de Fromm é o resultado de fatos que lhe
ocorreram desde a infância na experiência com seus pais:
Sabemos da importância do afeto e do amor entre um casal,
como isto não aconteceu, deslocava este afeto como uma
espécie de superproteção ao seu filho. Esta ambivalência de
amor e ódio ao seu pai, provocou uma aliança com os mais
fracos, optava por defender qualquer pessoa que sofresse
alguma injustiça frente a autoridades, sempre se comovia com
as brigas contínuas; o distanciamento afetivo, a submissão de
?
FROMM, E., Meu encontro com Marx e Freud, 1962, pp. 10-11.
10
?
FUNK, Rainer. Erich Fromm, El amor a La vida, 1999, p. 31.
20
sua mãe, a falta da liberdade de expressão, principalmente no
que se refere ao diálogo, levaram este futuro garoto a assumir
diante de sua existência, a alguns valores fundamentais por
toda a sua vida (PEREIRA, 2006, p. 18).
O Prof. Salézio faz uma outra observação ao destacar que além
dessas experiências de Fromm, um outro fator contribuiu para que ele
ampliasse sua luta pelo humanismo de caráter libertador. Ele se refere à
influência de dois rabinos em sua formação judaica-cristã, o Dr. Nehemia
Anton Nobel (1871-1922), da Sinagoga da Borneplatz de Frankfurt, seu
primeiro orientador e, a partir de 1920, o Dr. Salman Baruch Rabinkow,
professor de Talmude, que colaborou na ruptura de Fromm com a práxis
vital judia-ortodoxa (PEREIRA, 2006, p. 20). Esses rabinos são apontados
como grandes responsáveis pelo amadurecimento de Fromm em relação à
vida humana, numa sociedade capitalista, industrializada, de injustiças e
violências.
Posteriormente, Fromm sofreu a influência da Escola de Frankfurt,
fundada em 1924 por um jovem marxista, Félix Weil. Essa escola de
pesquisas, propunha como modelo de análise um marxismo independente
de forças partidárias, enriquecido com conceitos oriundos da psicanálise.
Objetivamente, tratava-se de um pensamento crítico, defendido por
pensadores que organizavam as ideias no âmbito desse Instituto, que tinha
em seu horizonte de metas a emancipação do ser humano. Desta forma a
Escola de Frankfurt enfrenta a sociologia empírica, acusada de aceitar os
fatos sociais como quase neutros, análogos às ciências naturais, isto é,
semelhantes às ciências naturais.
A princípio os pensadores dessa escola eram marxistas dissidentes,
que diziam que os marxistas mais ortodoxos tornaram-se repetidores de
uma limitada seleção de ideias de Marx, com a finalidade de defender os
partidos comunistas ortodoxos. Esses dissidentes afirmavam que a teoria
marxista original não conseguiria explicar de maneira apropriada o
desenvolvimento de sociedades capitalistas no século XX. Por isso
21
tornaram-se críticos, tanto do capitalismo como do socialismo da União
Soviética, razão porque buscavam um caminho alternativo.
Entre os principais nomes que a Escola de Frankfurt reuniu para
estudos e pesquisas, estão: Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Hebert
Marcuse, Erich Fromm, Walter Benjamin, Otto Kirchkeimer, Friedrick Pollock,
Karl Wittfogel, e Jurgen Harbemas. As ideias principais desses pensadores
eram publicadas na Revista de Pesquisa Social, considerada um dos
documentos mais importantes para a compreensão do pensamento crítico
europeu do século XX. Tais intelectuais eram críticos especializados sobre
os principais aspectos da economia, da sociedade e da cultura de seu
tempo. Alguns chegaram a desempenhar funções na militância política. Daí
a razão de serem perseguidos pelos responsáveis pela ascensão e apogeu
dos regimes totalitários europeus da época.
A Escola de Frankfurt desenvolveu o que chamou de “Teoria Crítica
da Sociedade”, isto é, o conjunto dos trabalhos dessa Escola, que se tornou
uma expressão de crise teórica e política do século XX, com reflexos sobre
seus problemas, de maneira radical. Entenda-se, portanto, como sendo a
corrente de pensamento fundamentada numa crítica social interdisciplinar,
com o aprofundamento de estudos em temas diversos da vida social nas
áreas da Antropologia, Psicologia, História, Economia, Política, dentre
outras. As obras produzidas pelos adeptos dessa Escola exerceram grande
influência, direta ou indiretamente, sobre os movimentos estudantis, tanto na
Alemanha, como nos Estados Unidos, no final da década de 60.
Erich Fromm tornou-se, a princípio, um dos membros da Escola de
Frankfurt, tendo sido, inclusive, um de seus diretores. Fez parte do grupo de
pesquisadores, e sua contribuição esteve voltada para a área da psicanálise
humanista, tendo em vista as contradições e os dramas que denunciava
existentes na sociedade industrializada. Seus textos estão voltados, por um
lado, para a pesquisa sobre a crescente alienação do ser humano e na
análise das possíveis alternativas para as quais foi levado.
Embora assim engajado no trabalho de pesquisas em função de uma
psicanálise humanista, Fromm tornou-se o primeiro causador de uma
22
dissidência no movimento da Teoria Critica, ao ser considerado um
revisionista neofreudiano pelos intelectuais da Escola de Frankfurt, tornando-
se assim o causador do chamado “debate sobre o culturalismo”. A Teoria
Crítica da Sociedade, constituída na Escola de Frankfurt, sempre lutou
contra qualquer orientação revisionista, em nome de uma rigorosa reflexão
histórico-marxista. De maneira radical, a Teoria Crítica, porém, não renuncia
aos conceitos quase-biológicos de Freud, mas os desenvolve até de maneira
mais convincente do que o próprio Freud.
Por outro lado, Fromm e outros considerados revisionistas introduzem
a história e a dinâmica social na psicanálise, através dos valores, das
normas e das metas sociais. Em suas observações em relação ao
pensamento ou teorias de Freud, Fromm se afasta de sua concepção
biologista, de natureza humana e retoma a concepção de Marx, entendendo
a produtividade como característica fundamental da natureza humana
(FROMM, 1978). Por conta dessa postura de Fromm, resultou a primeira
grande cisão na Teoria Crítica (1939), por se considerar nesse
posicionamento um tipo de revisionismo freudiano.
O “culturalismo”, objeto do debate que causou a primeira dissidência
no movimento da Teoria Crítica, considerado, a princípio um ramo da
antropologia, nascido nos Estados Unidos, faz uma descrição da sociedade
sob a perspectiva combinada da antropologia e da psicanálise. Tornou-se
um dos ramos da sociologia que, como tal, dominou o pensamento norte-
americano nessa área de 1930 a 1950. Entre seus fundamentos, está a
defesa da tese de que os aspectos culturais, sociais e políticos são
determinantes das possibilidades de realização humana e, portanto, de
estruturação da personalidade.
Como se percebe, o culturalismo também exerceu grande influência
no desenvolvimento do pensamento humanista de Fromm. Ao transferir-se
para os Estados Unidos, Fromm relacionou-se e foi influenciado diretamente
pelos psicanalistas adeptos do culturalismo, principalmente com Karen
Horney e Haary Stak Sullivan, cujas ideias levam em consideração cinco
aspectos que bem caracterizam o movimento: as relações entre o ser
humano e a sociedade; a redução ou negação da libido; a criação de
23
técnicas adequadas para a análise do caráter; o esforço por aclarar tanto
quanto possível os pontos obscuros na situação analítica; o esforço por
estender a psicanálise aos psicóticos.
Acrescente-se, portanto, a tudo aqui mencionado, para a formação do
conceito de humanismo em Erich Fromm, a importância que teve em seus
estudos o Antigo Testamento, que era leitura obrigatória dos judeus mais
ortodoxos, como eram os seus pais e que certamente tornou-se referência
em sua vida desde a infância, conforme já observamos.
2.2 – As ideias centrais que caracterizam o humanismo
frommiano
As ideias centrais que caracterizam o humanismo de Fromm giram
em torno de dois pontos que nos parecem fundamentais em seu
pensamento, isto é, buscam pesquisar a crescente alienação humana na
sociedade contemporânea e analisar as possíveis alternativas para essa
desumanização. Seu pensamento trabalha com a ideia de isolamento e
destrutividade do ser humano diante de si mesmo, do semelhante e da
natureza, bem como diante de suas necessidades de relação, de
transcendência, de enraizamento, de um sentimento autônomo de
identidade e de uma estrutura de orientação racional, na qual se encontra. 11
Fromm encara em todo seu trabalho, a questão do significado do
humano na sociedade tecnológica tendo em vista desafios como a liberdade,
a religião, o amor, a destrutividade, o gregarismo, a irracionalidade, dentre
outros. Ele sente-se comprometido com o ideal de transformar a sociedade,
econômica, social e culturalmente e procura em suas obras contribuir no
sentido de torná-la um lugar feito à medida do ser humano diante dos
fenômenos do capitalismo e da industrialização.
11
?
FROMM, E. Psicanálise da sociedade contemporânea, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1955,
pp. 35-75.
24
Onde Fromm consegue encontrar fontes de inspiração para seu
trabalho de transformação e humanismo social? - Contribuiu desde o início
de seu trabalho intelectual, decisivamente, para o desenvolvimento de um
humanismo prático, através da psicanálise da “práxis”, o pensamento
marxista. Leva em consideração a necessidade de uma teoria prática capaz
de ser entendida e seguida por todos os interessados em conhecer mais e
melhor sobre o ser humano. De uma leitura marxista dos relacionamentos
humanos em sociedade é que Fromm não apenas sustenta seu humanismo,
como vê o ser humano como ponto central de toda objetivação
epistemológica psicanalítica, como afirma o Prof. Marcos Oliveira Silva 12:
Todo o edifício teórico frommiano se sustenta nos alicerces de
uma filosofia humanística que privilegia o “homem” como
centro nervoso de toda objetivação epistemológica
psicanalítica. Para Fromm, o homem individual é uma porta de
acesso ao “homem coletivo”, portanto, ao psicanalisarmos o
homem particular, devemos nos ater aos vários fenômenos
sociais e culturais que o formam, por isso, suas teorias não se
restringem à análise parcial do sujeito individual; elas
possibilitam um diagnóstico muito mais abrangente; ele foi o
primeiro psicanalista a tentar organizar a audaciosa proposta
de uma sócio-análise (SILVA, Marcos Oliveira, 2015 p. 274).
O humanismo de Erich Fromm aparece nitidamente em suas obras
Análise do homem (1947/1960), O medo à liberdade (1941) e Psicanálise da
sociedade contemporânea (1955), consideradas entre as mais importantes
no campo da Psicanálise no século XX. Sua tentativa de unir psicanálise e
marxismo aparece também em outras obras que produziu, nas quais aborda
questões relacionadas com aldeia camponesa, destrutividade humana,
12
?
O Prof. Marcos de Oliveira Silva é Mestre e Doutor em Ciências da Religião, Presidente da
Sociedade Brasileira de Psicanálise Holística, autor de Autópsia do Sagrado (2012) e Revisitando
Freud (2015).
25
história da Psicanálise, pensamento de Marx, pensamento de Freud,
religião, amor, contos de fada, etc, onde se percebe um fio condutor que
perpassa toda a sua obra. A base de seu pensamento de modo geral, é um
humanismo radical que se inspira e se fundamenta nas teses de Marx e
Freud, portanto.
Fromm parte da ideia de natureza humana para unir Marx e Freud e
elaborar sua concepção de psicanálise. Em O conceito marxista do homem
(1961/2004), Fromm abre a discussão em torno da alienação e natureza
humana exposta nos Manuscritos de Paris, escritos por Marx, onde em
resumo fica claro que a sociedade de classes produz a alienação e esta é
uma negação da natureza humana. Mas é em sua obra Psicanálise da
sociedade contemporânea que Fromm fundamenta o que chama de
psicanálise humanista.
Nas várias versões do humanismo ao longo da história do
pensamento, o ser humano foi visto diferentemente, de acordo com as
circunstâncias, ideologias, instituições e tipos de sociedade humana. O ser
humano, contudo, sempre foi visto como o centro das atenções, como
ocorreu na Antiguidade no pensamento dos primeiros filósofos gregos,
considerados os pioneiros do pensamento racional. Considerando que assim
foi na Antiguidade, que na Idade Média “Deus” ocupou o lugar central e que
na Idade Moderna o ser humano tornou-se o objeto do pensamento
humanista, Erich Fromm, sob o impacto da industrialização da sociedade e
do avanço do capitalismo moderno, traz à tona a necessidade de
reconhecermos que esse “ser humano” vem deixando de ser o principal
indivíduo que caracteriza a sociedade humana no século XX, graças ao
desenvolvimento da tecnologia e da economia na sociedade .
Fromm chama-nos a atenção, através de suas obras, Fromm para a
situação humana, na qual o ser humano torna-se biologicamente débil e vive
em estado de “danação”, com problemas de adaptação ao mundo no qual
está inserido, sem harmonia em relação à natureza. Também nos chama
atenção para o problema da condição humana numa sociedade na qual o
ser humano, com o triunfo do capitalismo liberal no século XX, perdeu o seu
lugar central, transformando-se apenas em mercadoria, sendo influenciado
26
pelos avanços da tecnologia e assim manipulado como coisa (coisificação)
em função do lucro e não mais em função da satisfação inteligente de suas
necessidades. Vale também considerar a ênfase que Fromm dá em relação
à questão da natureza humana, sob a inspiração de Marx, quando afirma
que esta é o resultado das influências da cultura e, como tal, reconhece que
não há como falar da natureza humana como inata, mas como resultado da
produção das sociedade de classes que produz a alienação, tornando-se ao
mesmo tempo a negação da “natureza humana”. Como podemos, então,
entender o humanismo de Fromm, levando em consideração esses aspectos
da sociedade industrializada? – Em sua obra sobre o Antigo Testamento
podemos conhecer e analisar também a origem e natureza de seu
humanismo.
Capítulo 3
O humanismo de Erich Fromm em O Antigo
Testamento – Uma interpretação radical e sua
tradição
3.1 - O judaísmo da Antiguidade como contexto que dá
origem ao Antigo Testamento
Aspectos gerais do judaísmo ortodoxo
27
O judaísmo ortodoxo, visto sob a ótica de um especialista
contemporâneo, tem algumas características que nos parecem importantes
descrever a fim de podermos entender melhor o lugar do Antigo Testamento
no conjunto do texto produzido por Erich Fromm. Entre essas características,
de acordo com Guershon Kwasniewski 13, da Sociedade Israelita Brasileira de
Cultura e Beneficência, em texto publicado no Dicionário Brasileiro de
Teologia, vale destacar, inicialmente, a observação que faz sobre o
monoteísmo, praticado pelo judaísmo, considerado a primeira religião que se
esforçou por adorar um único Deus, sendo Abraão reconhecido como um
dos primeiros monoteístas a deixar o politeísmo (Gn 12).
Em seguida Kwasniewski cita a Torá, também conhecida como “Lei”
ou Antigo Testamento, revelada por Moisés na experiência do Monte Sinal
durante a fuga do Egito para a Terra Prometida por Deus para o seu povo
(Ex 19). Outra característica é o Shabat, isto é, o Sétimo Dia, considerado o
primeiro dia de repouso ou Dia de Descanso a ser observado pelo povo de
Deus (Gn 2.1-3; Êx 20.8-11). Finalmente a outra característica destacada é a
Profecia, meio pelo qual Deus se comunicava com o seu povo, através dos
Profetas.
Para um melhor entendimento do judaísmo alguns aspectos ainda
são fundamentais: entender que “Deus” é considerado o criador do mundo,
do ser humano e de todas as coisas; entender que no contexto desta religião
o “Homem” é tido como o parceiro de Deus na obra da criação, tendo como
missão completar a obra criada e cuidar dela; entender que o ser humano foi
criado “à imagem e semelhança de Deus”, com a finalidade de “crescer e
multiplicar” (Gn 1.27-28).
Merece destaque especial no judaísmo os “Preceitos”, isto é,
“Mandamentos” (Mitzvot) que têm servido de base para o povo de Israel,
conforme se encontra na Torá, o Pentateuco na Bíblia Hebraica, formada
pelos cinco primeiros livros (Gênesis, Êxodo, Levítico, Número e
Deuteronômio). Acrescente-se ainda que, de acordo com o filósofo judeu
13
?
Kwasniewski, Guershon, In: Dicionário Brasileiro de Teologia, São Paulo: ASTE, 2008, p.
551-554.
28
Maimônides (século XII), “o judeu deve observar 613 mandamentos durante
a sua vida. 365 se referem àquilo que não deve ser feito (ex. Não matarás);
248 se referem àquilo que deve ser feito” (ex. Respeitarás o teu pai e a tua
mãe) (KWASNIEWSKI, 2008, p. 551).
Kwasniewski assim descreve um dos principais livros do judaísmo, o
Talmude (século III, era comum):
Lei Oral recebida por Moisés no Sinai e passada de uma
geração a outra, foi compilada pelo Rabino Yehuda Hanassi da
escola dos Tanaítas. Este livro está constituído de duas partes
chamadas Mishná e Guemará. São 63 tratados sobre assuntos
variados divididos em seis ordens (natureza, festividades,
mulheres, prejuízos, santificação, purificação) e comentários
sobre as interpretações da Lei Judaica, conhecidos como
Halachá. A Guemará – comentário da Mischná – foi escrita por
Amoraitas. Existe o Talmude da Babilônia e o de Jerusalém
(KWASNIEWSKI,2008, pp. 552-553).
A moralidade hebraica
Além da contribuição acima de Kwasniewski, entendemos ser
importante para o nosso estudo, em busca de embasamento para uma
compreensão melhor do humanismo implícito no Antigo Testamento, ainda
que de maneira indireta, acrescentar os característicos da moralidade
hebraica, os quais se identificam com aspectos do humanismo da Idade
Moderna e Contemporânea. De acordo com estudos de Gardner em sua
obra Fé bíblica e ética social (1965), alguns destaques nos parecem
pertinentes fazer: vale reconhecer que no contexto do Antigo Testamento
produzido na Antiguidade, a moralidade dos profetas estava centralizada em
Deus e não no ser humano. Deus é considerado a fonte de toda a exigência
moral e ao mesmo tempo o Supremo Bem. Toda a preocupação com o bem-
estar do ser humano se apoia em Deus. Contudo, a literatura do Antigo
29
Testamento aponta para a ideia de que é de Deus que procede toda a
orientação para o relacionamento humano de maneira igualitária:
Os hebreus se impressionavam mais com a igualdade
fundamental entre os homens do que com suas diferenças.
Deus fez tudo; Ele cuida de tudo e procura redimir tudo. Por
conseguinte o escravo, a viúva e o órfão devem merecer
cuidado; devem ser tratados com justiça e misericórdia, pois é
assim que Deus lida com todos os homens, e esta é a espécie
de conduta que Ele requer dos homens em seus
relacionamentos mútuos (GARDNER, 1965, p. 45).
Além do caráter teocêntrico da moralidade hebraica, do princípio de
igualdade que deve haver entre os seres humanos em suas comunidades,
também foi mais estimulada a preocupação com as pessoas e comunidades
de pessoas, do que com ideais e padrões de modo abstrato. A ênfase, neste
caso, é dada “àqueles atos que atingem o próximo e Israel, não à justiça e
ao amor como virtudes em si mesmas” (GARDNER, p. 45). Gardner ao
concluir sua descrição dos característicos da moralidade hebraica chama
novamente a atenção para o caráter teocêntrico desta moralidade ao
ressaltar que a esperança de Israel estava centrada em Deus e não no ser
humano, “em sua ênfase à salvação do mal e não à aspiração do bem”
(GARDNER, 1965, p 46). Isto significa que os princípios de um possível
humanismo na tradição judaica, que tinham sua fonte em Deus, um ser
sobrenatural e invisível, eram a referência para procedimentos humanos
dignos em sociedade.
O movimento profético na história de Israel
Finalmente queremos nos referir à liderança reconhecidamente aceita
no judaísmo, que bem atende à perspectiva atual de nosso estudo. Vale
observar que o povo de Israel foi guiado pelos Profetas, Juízes, Reis,
30
Sacerdotes. Moisés tem sido considerado o maior líder, por incorporar as
características de líder político, militar, libertador, profeta, mestre, rabino,
humildade e carisma para conduzir o povo durante a travessia do deserto,
depois da libertação do cativeiro e da saída do Egito.
Chama-nos especial atenção neste contexto, a necessidade de uma
abordagem um pouco mais abrangente sobre o comportamento dos profetas
no Antigo Testamento, aspecto este explorado por Fromm em sua obra
sobre o Antigo Testamento. Para uma devida exploração do tema frommiano
em relação aos profetas, considerados semelhantes aos filósofos da
Antiguidade, Sócrates, Kant e Marx, por exemplo, e a pensadores
contemporâneos como Schweitzer, dentre outros, destacamos alguns
aspectos para uma interpretação radical do Antigo Testamento e sua
tradição, considerados expoentes de um semelhante “humanismo radical”.
Na atualidade, em relação às atividades dos profetas, fala-se em
“movimento profético” como fenômeno surpreendente na história de Israel,
podendo ser identificados entre eles Isaías, Jeremias, Ezequiel e o chamado
“Livro dos Doze”. A história dos profetas encontra-se na própria literatura do
Antigo Testamento, nos livros dos Juízes, Samuel e Reis, que juntamente
com Josué estão reunidos no cânon hebreu, que inclui os chamados
“profetas anteriores”. Entre as características dos profetas, que geralmente
surgiam em tempos de crises na vida do povo, constata-se sua consciência
diante da realidade social em sua visão de futuro em relação à situação e
condição do povo; o fato de ser visto como uma pessoa de contrastes; a
coragem para desafiar os poderes instituídos, tanto do judaísmo quanto da
política de Estado.
As mensagens proféticas estavam voltadas para as diversas
situações da vida em sua totalidade, dirigidas ao povo e aos poderes
instituídos nas mais variadas circunstâncias, com a autoridade que lhe era
atribuída por Deus, embora nem sempre assim reconhecida. Vale repetir o
que Wolff14 escreve: “Quando um pequeno e provinciano criador de gado
14
?
WOLFF, H. W., Bíblia: Antigo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1978, p. 75.
31
como Amós usa uma forma típica da corte real (instruções dadas a um
diplomata – Am 3.9), tal fato demonstra sua liberdade”.
Em sua mensagem os profetas incluíam uma crítica de caráter social
que envolvia o Direito, o Culto, a Política. As críticas à sociedade estavam
voltadas à necessidade de justiça para todos, tendo por base a lembrança
de que assim como Deus os tirou do cativeiro e lhes deu liberdade, era
necessário que de igual modo considerassem o Seu exemplo como fio
condutor para os relacionamentos sociais. Entre os profetas destacamos:
Amós, foi contundente com críticas à religião, porque esta servia de
fachada para a injustiça social, acoberta um sistema social iníquo e viciado
desde a raiz. Foi severo ao referir-se à desonestidade, às práticas
comerciais que iludem compradores com balanças alteradas, mercadorias
de qualidade inferior e preços exorbitantes (Am 8.4-6). Ainda comentando as
práticas condenadas por Amós assim observa Wolff:
As classes poderosas nadam no luxo às custas daqueles que
são por ela explorados. Realizam festas rumorosas (Am 6.1-3)
e vivem na mais pretensiosa vaidade (Is 3.16ss). Assim, um
grande número dos abusos de uma sociedade capitalista
incipiente era colocado (WOLFF, 1978, p. 78).
Amós caracterizou-se, portanto, na denúncia das injustiças da
sociedade de seu tempo. Defendeu os órfãos e as viúvas e até proferiu
palavras contra os juízes, acusando-os de oprimirem, extorquirem e
rejeitarem a causa a favor dos pobres (Am 5.12). Na mesma direção temos o
profeta Isaías que diz que “Todos são ávidos de proveitos e correm aos
presentes. Não dão direito ao órfão, e a causa da viúva jamais é lembrada”
(Is 1.23).
Wolff acrescenta que a motivação da crítica social dos profetas estava
em Deus e lembra que:
32
Quando aqueles que, libertados e ricamente abençoados, não
mais se lembram daquele que os libertou e os ensinou a
proceder dentro do direito, tornam-se opressores e
aproveitadores porque desejam libertar e enriquecer a si
próprios. A sociedade humana entra em colapso quando Deus
é esquecido. O homem autônomo pode, no máximo, inverter os
papéis de opressor e oprimido, mas não pode escapar da
opressão como tal. Em sua mensagem, os profetas exprimiram
concretamente esta verdade (WOLFF, H. W., 1978, p.83).
Com Amós e Isaías outros profetas também se destacaram
explorando problemas sociais de seu tempo, como ocorreu com Oséias, que
em nome de Deus recorre a duros veredictos e denuncia a formalidade do
culto que o povo oferecia.
O profeta Oséias nos coloca em contato com os oprimidos e
marginalizados pelo sistema que controlava Israel em seu tempo. Um tempo
de muita turbulência com pressões internas e externas na sociedade. Por
um lado, pressão do Império Assírio. Por outro, as guerras internas de
disputa pelo poder e violência generalizada. Em sua mensagem em nome de
Deus, Oséias diz que Deus quer que haja amor e misericórdia entre o seu
povo, e não sacrifício (Os 6.6). Nisso ele também condena as elites que
promoviam a violência e viviam à custa do sangue do povo, até com a
exploração da fé em Deus. O livro de Oséias nos permite captar o seu
verdadeiro sentido em relação à experiência com o povo sofrido. Nesse texto
ele critica a exploração dos camponeses e camponesas e o desvirtuamento
de suas festas populares, e mostra que as mulheres se destacaram nas
lutas de resistência. Desta forma Oséias se tornou o porta-voz dos
marginalizados contra as estruturas de opressão. E deixa claro que “Quando
a carga de opressão é muito pesada, o povo se torna criativo no modo de
resistir”.15
15
?
PEDRO, E. P. e NAKANOSE, S., Como ler o livro de Oséias, 1995, p. 44.
33
Jeremias, foi mal interpretado pelo povo e até condenado à prisão;
Ezequiel, condenou as falsas esperanças alimentadas pelo povo; Miquéias,
foi considerado um profeta contra o latifúndio e a exploração da cidade sobre
o campo. A crítica social dos profetas e de sua mensagem escatológica
pressupõe um conhecimento das formas de vida comunitária em Israel, com
orientações voltadas para a comunidade matrimonial e para a estrutura
familiar, com novos conceitos de vida social envolvendo a posição da mulher
e sua importância na vida política e social, ainda que em termos bem
inferiores em relação aos tempos modernos.
Como se percebe nessa abordagem sobre o desempenho dos
profetas em seu tempo, aspectos de um humanismo, ainda que incipiente,
podem ser apontados, uma vez que aparecem comprometidos com o amor,
a justiça social e a paz, em meio a circunstâncias de crise com sofrimento,
desespero e ameaças de morte.
3.2 - A composição formal e tradicional do Antigo
Testamento
O próprio Erich Fromm na Introdução de seu livro, objeto deste
estudo, ao chamar a atenção para a relevância do Antigo Testamento na
atualidade, diz acreditar que a Bíblia Hebraica merece ser objeto de respeito
quando afirma:
O Antigo Testamento (incluindo os textos apócrifos) é uma
coleção de escritos de muitos autores, compilados durante
mais de um milênio (cerca de 1200 a 100 a. C.). Contém uma
coleção de leis, relatos históricos, poemas, profecias e apenas
uma parte da extensa literatura produzida pelos judeus durante
estes 1.100 anos. Estes livros foram escritos para homens que
viveram em uma sociedade que não tinha qualquer
semelhança cultural ou social conosco em um pequeno país
34
situado na rota entre a África e a Ásia (FROMM, 2005, pp. 17-
18).
Apesar dessa relevância Fromm considera que se trata de um livro
pouco lido em comparação ao Novo Testamento e que, lamentavelmente,
muito do que tem sido lido tem sido distorcido por causa do preconceito.
Na atualidade tem sido fundamental para quem estuda o Antigo
Testamento, compreender o seu significado em relação ao seu conteúdo, a
partir da literatura e do material desenvolvido pela tradição oral. Nessa
tradição escrita e oral, há documentos que nos proporcionaram o texto do
Antigo Testamento.
A partir de estudo publicado por Guershon Kwasniewski, no Dicionário
Brasileiro de Teologia (ASTE), sobre Judaísmo, da Sociedade Israelita
Brasileira de Cultura e Beneficência, podemos considerar alguns aspectos
que estão ligados ao Antigo Testamento. Segundo Kwasniewsk, em sua
versão hebraica, temos o Tanach, isto é, o cânon que data do ano 100,
aproximadamente, que está divido em três livros: A Torá, incluindo o
Pentateuco, formado pelos livros Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio; o Neviim: Profetas (Josué, Juízes, Samuel I, Samuel II, Reis
I, Reis II, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas,
Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias; o
Netuvim: Escritos: Salmos, Provérbios, Job, Cantar dos Cantares, Ruth,
Lamentações, Eclesiastes, Esther, Daniel, Esdras, Neemias, Crônicas I,
Crônicas II). 16
Várias outras versões tornaram-se possíveis do ponto de vista
histórico. O hebraísta Rudolf Kittel publicou na Alemanha, duas edições da
Bíblia Hebraica. A primeira em 1906; e a segunda com poucas revisões, em
1913. Uma outra versão é a chamada Bíblia Hebraica Stuttartensia, ou BHS.
Trata-se de uma edição do Texto Massorético da Bíblia Hebraica, no idioma
hebraico, totalmente baseada no Códice de Leningrado, publicada pela
16
?
Versão apresentada por KWASNIEWSKI, 2008, p. 552.
35
Sociedade Bíblica Alemã, em Stuttgart. Na atualidade também usa-se uma
revisão da terceira edição da Bíblia Hebraica editada por Rudolf Kittel, sendo
que a primeira foi baseada no Códice de Leningrado. Nesta, as notas de
rodapé têm sido revisadas. Originalmente estas notas foram acrescentadas
paulatinamente desde 1968 a 1976, chegando a um só volume em 1977.
Desde essa época esta edição tem sido reimpressa várias vezes.
O “Antigo Testamento”, na atualidade, tornou-se um tema teológico,
embora haja quem considere que ele assim tem sido considerado desde os
primórdios do cristianismo. Já no II século da era cristã a Igreja defendeu a
validade e a sua importância contra Marcião e contra os gnósticos. 17
Reconhece-se que sua influência na atualidade se estendeu não só no
mundo do judaísmo, mas também sobre o cristianismo, islamismo e até
mesmo sobre o marxismo ateu.
Robert Martin-Achard18, professor da Universidade de Genebra e
Neuchâtel, na Suiça, em sua obra Como ler o Antigo Testamento, faz um
resumo sobre a maneira como tem sido concebido o Antigo Testamento na
atualidade, em três diferentes contextos religiosos:
O Antigo Testamento é, pois, uma espécie de biblioteca com
vinte e dois livros segundo a tradição judaica, trinta e nove
segundo protestantes e quarenta e cinco para a Igreja romana,
pois os primeiros elementos remontam muito além da época de
Davi (cerca de 1.000 anos antes de Jesus Cristo) e os últimos
datam do segundo ou do primeiro séculos antes da era cristã
(MARTIN-ACHARD, 1970, p.13).
De modo geral especialistas têm dito que o Antigo Testamento é
orientado para este mundo, e suscita influxos para possíveis progressos.
17
?
WOLFF, H. W., A Bíblia – Antigo Testamento, São Paulo: Edições Paulinas, 1978.
18
?
MARTIN-ACHARD, Robert, Como ler o Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1970.
36
Tomando esta afirmação como legítima para as aspirações da humanidade,
sem dúvidas, podemos constatar que o seu conteúdo tem influenciado o ser
humano ao longo da história, com contribuições significativas para a
formação do pensamento humanista que emergiu desde fins do século XIV.
Em função do humanismo, consideremos, entre outros, para a
atualidade, e como destaque, a importância dos profetas que, de maneira
prospectiva, apontam para o futuro e se dão conta de que um “reino
messiânico” há de vir para que haja justiça, paz, segurança, conforme
destacados por Fromm em sua obra, como fator que diferencia o valor do
Antigo Testamento na Idade Contemporânea, em especial no século XX. Por
isso é importante que consideremos a vocação, linguagem, estilo, crítica
social, sociedade, política, expectativas, preocupações em relação ao
desempenho dos profetas no contexto do Antigo Testamento.
3.3 - O Antigo Testamento numa visão humanista frommiana
Como se percebe, o Antigo Testamento é o texto principal do
judaísmo, a base de uma religião que tem atravessado milhares de anos.
Fromm, apesar de sua posição crítica em relação ao Judaísmo e em defesa
de uma religião humanista em relação às demandas da sociedade
tecnológica, dedica tempo na abordagem que fez sobre o Antigo Testamento
ao procurar destacar aspectos humanistas nele subjacentes.
Sob vários aspectos Fromm dedica tempo às várias possibilidades de
leituras do Antigo Testamento. Desta forma ele o percebe e aborda nessa
literatura básica do judaísmo que:
O Antigo Testamento não é um livro sagrado 19
Porque para Fromm a Bíblia como um todo, não é um livro sagrado;
ele considera que ao longo da investigação histórica está mostrado que ela
não é “palavra de Deus”, mas um livro escrito por diferentes seres humanos
19
?
FROMM, Erich, 2005, pp. 22-23.
37
que viveram em diferentes épocas. Nesse momento ele também declara não
ser um teísta. Com isso Fromm também delimita seu trabalho, que considera
de caráter científico. Ele vê na Bíblia e no Antigo Testamento, em particular,
a expressão do talento de um povo que luta pela vida e pela liberdade ao
longo de sua história.
O Antigo Testamento mostra a possibilidade do ser humano
praticar o bem e o mal20
Fromm parte do princípio de que diante do ser humano está a
possibilidade de escolha entre o bem e o mal; entre a bênção e a maldição;
entre a vida e a morte. E assim ele argumenta:
Mesmo Deus não interfere na escolha dele; ajuda enviando
mensageiros, os profetas, para ensinar as normas que
conduzem à concretização da bondade, para identificar o mal,
e para advertir e protestar. Mas uma vez isso feito, o homem é
deixado sozinho com seus dois anelos, para o bem e para o
mal, e a decisão é dele só (FROMM, 1965, p. 21)
O Antigo Testamento é uma elaboração do princípio
patriarcal21
Ele estabelece uma hierarquia paterna em um Estado
teocrático, e uma organização familiar estritamente patriarcal. Sobre
este tema, assim escreve Fromm:
Na estrutura da família conforme a descreve o Antigo
Testamento, encontramos sempre a figura do filho “favorito”:
20
?
FROMM, Erich, O coração do homem, 1965, pp. 20-21.
21
?
FROMM, Erich, Psicanálise da sociedade contemporânea, 1963, p. 62.
38
Abel contra Caim; Jacó contra Esaú; José contra seus irmãos;
e, em sentido mais amplo, o povo de Israel como um filho
favorito de Deus. Em vez de igualdade de todos os filhos aos
olhos maternos, nós encontramos o favorito, e, portanto, pela
herança, os irmãos se tornam inimigos, a igualdade cede lugar
à hierarquia (FROMM, 1963, p.62)
O Antigo Testamento é um livro de contradições
Fromm considera que tanto o Antigo Testamento quanto a tradição
oral apresentam grandes contradições em virtude do desenvolvimento dos
judeus que, ao saírem de uma tribo nômade a um povo que viveu na
Babilônia e posteriormente foi influenciado pela cultura helenista, passou por
uma evolução civilizatória; porém, mais do que isso, tal passagem deu lugar
às contradições na divisão constante entre as tendências opostas que
surgiram na história do judaísmo, desde a destruição do templo até a
destruição dos centros da cultura tradicional judaica por Hitler, já no século
XX. Sobre essas contradições e divisões Fromm descreve:
Esta divisão se dá entre o nacionalismo e o universalismo, o
conservadorismo e o radicalismo, o fanatismo e a tolerância.
As forças dos dois grupos respectivos – e dentre muitos outros
setores – têm, naturalmente, suas razões. Tais motivos podem
ser encontrados nas condições específicas dos países em que
o Judaísmo desenvolveu-se (Palestina, Babilônia, Norte da
África Islâmica, Espanha, Europa Medieval Cristã, Rússia) e
nas classes sociais específicas que deram origem aos
estudiosos (FROMM, 2005, pp. 27-28).
Apesar dessa constatação em relação às contradições, Fromm afirma
que elas não devem ser ignoradas, mas vistas por sua representatividade,
levando-se em consideração o fato de que fazem parte de um todo que
39
permite a coexistência de padrões contraditórios de pensamento lado a lado
com o que ele enfatiza no seu livro.
O Antigo Testamento postula um tabu estrito de incesto e uma
proibição de fixação ao solo22
Aqui Fromm argumenta com a narrativa vétero-testamentária,
segundo a qual a “história humana” começa com a expulsão de Adão e Eva
do Paraíso, isto é, do solo ao qual o primeiro casal estava muito ligado e
com o qual ele se sentia uno. Continuando Fromm argumenta que também a
“história judaica” começa com uma atitude de Deus em relação a Abraão,
para que deixe a terra em que nascera, e ir “para um país que não
conheceis”. De igual modo, da Palestina o povo também migra, como tribo,
para o Egito e, daí, volta novamente para a Palestina, embora essa fixação
não seja definitiva. Entra aqui em cena, na argumentação de Fromm, a
participação dos profetas. Diz ele que os ensinamentos proféticos são
contrários ao envolvimento incestuoso com o solo e a Natureza, conforme se
apresentava na idolatria cananita:
Eles proclamaram o princípio de que um povo que voltou dos
princípios da razão e justiça aos do vínculo incestuoso com o
solo será afastado do seu solo e vagará pelo mundo, sem
pátria e sem solo, até que tenha desenvolvido plenamente os
princípios da razão, até que tenha superado a ligação
incestuosa com o solo e com a Natureza; somente então
poderá o povo voltar à sua pátria “humana” livre da maldição
do incesto (FROMM, 1963, p. 63).
Fromm considera que a coroação e o conceito central do sentido
patriarcal do Antigo Testamento estão concentrados no conceito de Deus,
22
?
Ibid., p. 62.
40
que para ele é o princípio unificador que está escondido por trás da
diversidade de fenômenos.
O Antigo Testamento contém em si uma evolução notável do
autoritarismo primitivo e de seus clãs23
O Antigo Testamento evolui do autoritarismo primitivo e de seus clãs
“até o conceito de liberdade radical do indivíduo e fraternidade entre todos
os homens”. Por isso, diz Fromm, “seu tema é a libertação do homem dos
laços incestuosos do sangue e da terra, da submissão dos ídolos, da
escravidão, dos senhores poderosos para a liberdade do indivíduo, da nação
e de toda a humanidade”.24
O Antigo Testamento é composto de escrituras revolucionárias 25
O Antigo Testamento é assim considerado porque se refere à
libertação de pessoas que são chamadas para usufruírem a libertação dos
poderes dominantes que escravizam seres humanos e nações e, com isso, a
humanidade inteira, diz Fromm em sua obra.
A pertinência em relação ao estudo do Antigo Testamento do ponto
de vista de Fromm, está no fato de ver nessa literatura seu caráter
revolucionário, para muitos considerado um manual para partidos
revolucionários cristãos antes e depois da Reforma Religiosa do século XVI.
Fromm vê no Antigo Testamento um texto que merece uma interpretação
bíblica em função de um humanismo radical como “a filosofia global que
enfatiza a unicidade da raça humana, a capacidade do homem de
desenvolver seus poderes e alcançar uma harmonia interior e o
estabelecimento de uma paz mundial”. E completa Fromm:
23
?
FROMM, Erich, 2005, p. 22
24
?
Ibid., p. 22.
25
?
Ibid., p. 22.
41
O humanismo radical considera que o objetivo do homem deve
ser a independência plena, e isto implica em atravessar por
entre as ficções e ilusões à consciência máxima da realidade.
Isto implica, ademais, numa atitude cética em relação ao uso
da força, precisamente porque durante a história do homem ela
foi, e ainda é, - força – geradora de medo – que tornou o
homem pronto para transformar a ficção em realidade, ilusões
em verdade. Só é possível reconhecer as sementes do
humanismo radical nas fontes mais remotas da Bíblia, porque
conhecemos o humanismo radical de Amós, Sócrates, dos
humanistas da Renascença, do Iluminismo, de Kant, de
Herder, Lessing, Goethe, Marx e Schweitzer (FROMM, 2005,
pp. 31-32).
É em cima dessa postura por um humanismo radical que Fromm vê
no Antigo Testamento uma rica possibilidade de trabalhar o caráter humano
do ser humano, ao destacar aspectos que lhe parecem relevantes para a
definição de um humanismo radical.
3.4 - O humanismo frommiano por uma leitura crítica e
radical do Antigo Testamento
A desconstrução do conceito ortodoxo de Deus:
Do ponto de vista de Fromm, em sua obra O Antigo Testamento –
Uma interpretação radical e sua tradição, no primeiro capítulo “Deus” é o
tema; Deus é visto como um déspota absoluto que evolui dessa condição a
um Deus de monarquia constitucional a um Deus indizível, sem nome.
Afirma que até entende o que as pessoas genuinamente religiosas querem
dizer quando se referem a Deus, embora não compartilhe de seus conceitos
42
e pensamentos, por achar que o conceito de “Deus” foi condicionado pela
presença de uma estrutura sociopolítica na qual os chefes tribais ou reis têm
o poder supremo. É desta forma que tenta destacar seu conceito sobre Deus
quando diz:
“Deus” é uma entre muitas e diferentes expressões poéticas de
mais alto valor no humanismo, não uma realidade em si
mesmo. É inevitável que, portanto, ao falar a respeito do
pensamento do sistema monoteísta, uso a palavra “Deus”
frequentemente; e seria estranho incluir minha qualificação
própria todas as vezes que a ele me referisse. Portanto, quero
deixar clara a minha posição desde o princípio. Se eu pudesse
definir minha posição, a denominaria como misticismo
monoteísta (FROMM, 2005, pp. 37-38).
Fromm trabalha com a tese de que o conceito sobre Deus que está na
tradição judaica torna-se substância para transformar-se em ideologia, para
fundamentar razões que envolvem não apenas o temor humano quanto o
comprometimento da relação entre a experiência e a natureza da própria
experiência do relacionamento entre experiência e ideia, o que contribui para
o desenvolvimento da alienação e “ideologização”. Trata-se de uma
tendência natural para criar ideologias que competem e lutam entre si.
O grande problema que Fromm imagina na evolução do conceito de
Deus, é que nesse processo ele aparece como um legislador absoluto, que
cria a natureza e o ser humano e deixa claro para este que, se não estiver
satisfeito com o seu poder como legislador, ele pode destruí-los.
A desconstrução do conceito judaico de Deus como um ser
poderoso e arbitrário
43
Fromm trabalha com a ideia de que o poder de Deus como legislador
absoluto sobre o ser humano, após a criação, é contrabalançado com a ideia
de que ele se torna um rival potencial do próprio Criador:
O homem poderia tornar-se Deus se apenas comesse da
árvore do conhecimento e da árvore da vida. O fruto da árvore
do conhecimento dá ao homem sabedoria divina; o fruto da
árvore da vida daria ao homem a imortalidade de Deus
(FROMM, 2005, p. 43).
O ser humano ao ser considerado um concorrente e rival de Deus, é
visto por Fromm como uma ameaça iminente na obra da criação. Falta-lhe
apenas um incentivo para que tal fenômeno ocorra. E é com a ajuda da
“serpente” que a ameaça se torna realidade, a partir de um processo no qual
o ser humano pode realizar seu desejo de conhecer o “bem” e o “mal” e
tornar-se igual a Deus. E é assim que Adão e Eva procedem ao comer da
“árvore do conhecimento”, o que levou Deus a declarar: “Agora o homem se
tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois,
permitir que ele tome também da árvore da vida e coma, e viva para
sempre” (Gênesis 3.22). A fim de que o ser humano não avance em seu
desejo de mais vida e liberdade, Deus o expulsa do Paraíso e, diz Fromm
repetindo o texto sagrado, “limita a sua idade a não mais que cem e cento e
vinte anos” (FROMM, 2005, p. 43).
O princípio da história humana em busca de libertação em
relação a Deus
O castigo de Deus por causa da “rebelião humana” é vista por Fromm
como uma atitude de quem não quer perder sua supremacia sobre a obra
criada. É um ato de força, de proteção de seu poder, de sua superioridade.
Por outro lado, Fromm considera que tal ato praticado pelo ser humano, é o
princípio da história humana em busca de sua libertação. Com isso, “quanto
44
mais o ser humano se desenvolve na história, mais se liberta da supremacia
divina e mais consegue tornar-se como Deus”.26
Ao referir-se ao fenômeno do dilúvio, descrito no Antigo Testamento,
Fromm afirma que Deus após determinar a matança dos seres humanos,
como castigo pela desobediência obstinada, veio a arrepender-se diante dos
estragos causados; assim, resolveu salvar Noé, sua família e cada espécie
de animal e faz com ele uma aliança no sentido de nunca mais tirar a vida do
mundo através de um dilúvio.
Com a atitude brusca de expulsão do ser humano do Paraíso e com o
arrependimento divino diante do castigo contra a humanidade com o dilúvio,
prevalece no pensamento frommiano a ideia de que Deus perdeu sua
liberdade por ser arbitrário, e o ser humano a conquistou por ser capaz de
desafiar Deus diante de suas promessas e dos princípios lançados na
Aliança. Nessa aliança, Deus não apenas inclui o povo hebreu mas toda a
humanidade e todo o ser vivente, ao referir-se à vocação de Abraão:
Em Gênesis 12.1-3 a aliança já está indicada: “Saia da sua
terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá
para a terra que eu lhe mostrarei. Farei de você um grande
povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você
será uma bênção. Abençoarei os que o abençoarem e
amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e por meio de você todos
os povos da terra serão abençoados”. Nestas últimas palavras
descobrimos uma expressão do universalismo. A bênção não
será apenas restrita à tribo de Abraão; é expandida a toda a
família humana (FROMM, Erich, 2005, p. 48).
O próprio Abraão a quem Deus vocaciona no sentido de deixar a sua
própria terra, é visto por Fromm como aquele que, orgulhosamente, se sente
26
?
Ibid., 2005, p. 44.
45
no direito de exigir que Deus concorde e aprove princípios de justiça, numa
linguagem quase formal mas ao mesmo tempo rebelde, ao usar a terceira
pessoa do singular (“Não agirá com justiça o Juiz...) e a segunda pessoa
(“Destruirás a cidade por causa dos cinco”?) 27.Fromm entende que Deus,
com esse tipo de abordagem de Abraão está limitado pelas normas de
justiça e amor e que o ser humano não é mais o seu escravo. Agora as
possibilidades de um ou outro desafiar são iguais. Tanto o ser humano pode
desafiar Deus como Deus pode desafiar o ser humano. Por isso Abraão tem
o direito de pedir, e Deus não tem o direito de recusar-se.
Ainda em seu esforço de mostrar que é possível desconstruir o
conceito de poder absoluto de Deus, Fromm cita como exemplo um outro
expoente da tradição judaica: Moisés. Este é visto como aquele a quem
Deus faz repetidas concessões diante de seus apelos. Uma das concessões
está relacionada à pergunta de Moisés pelo “nome” de Deus. Moisés
demonstra ter dificuldades para se apresentar diante dos israelitas em nome
de um Deus sem “nome”, o que seria considerado uma contradição em si
mesmo, pois até as “coisas” têm nome por serem completas no tempo e no
espaço. Fromm considera que Deus faz uma concessão e se autodenomina
apresentando-se a Moisés como o “Eu Sou o que Sou” (Êx 3.14), que pode
significar, frequentemente em hebraico, “Eu sei tudo”, “eu entendo
totalmente”, com variações. Desta forma, adianta Fromm, um Deus vivo não
pode ter um nome, e assim pode apresentar-se como o “Deus
desconhecido”, escondido. Textualmente Fromm assim se posiciona sobre
essa manifestação de Deus como o Eheyeh:
Em nome de Eheyeh descobrimos um compromisso irônico
entre a concessão divina à ignorância das pessoas e sua
insistência que ele deve ser um Deus desconhecido. Este Deus
que se manifesta na história não pode ser representado por
nenhum tipo de imagem, nem por um tipo de som – isto é; um
nome – nem por uma imagem de pedra ou madeira. Esta
27
?
Ibid, p. 50.
46
proibição de qualquer tipo de representação divina está
claramente expressa nos Dez Mandamentos que proíbem o
homem de curvar-se diante de qualquer “imagem de escultura,
ou de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da
terra” (Êx 20.4).
De modo geral Fromm considera que o conceito de Deus passou por
um processo de evolução que começa com sua manifestação de ciúme, por
um “deus desconhecido” e prossegue com o Deus de Maimonides, um
filósofo judeu, estudioso da tradição rabínica, para quem o ser humano
consegue saber apenas o que ele não é, expressão de uma teologia
negativa, portanto.
O mais importante para Fromm é que Deus, na Bíblia e
posteriormente na tradição, permite que o ser humano seja livre; por revelar
o objetivo da vida humana, o caminho pelo qual ele pode alcançar este
objetivo. Contudo, reconhece que o mais difícil para o desenvolvimento do
ser humano é a liberdade e, em perspectiva, vê que ele pode ser levado à
idolatria, que exige submissão, isto é, ao culto a Deus, mas que ao mesmo
tempo pode ser considerada independência. Isto porque o próprio Deus
transformou-se em um dos ídolos, o mais importante, que dá sua bênção
aos outros ídolos. Lidar com a idolatria, e Deus como o mais importante dos
ídolos, é sempre uma situação complexa e perigosa, que pode levar o ser
humano à alienação, porque se torna empobrecido ao transferir seus
poderes para coisas fora de si a fim de manter seu senso de identidade. Por
isso, observa Fromm:
A tradição bíblica e posteriormente a judaica elevou a proibição
da idolatria para um lugar tão importante quanto, ou talvez mais
importante que, a adoração a Deus. Está bem claro nesta
tradição que Deus pode ser adorado somente se e quando
todo vestígio de idolatria for anulado, não apenas no sentido
que não houver ídolos visíveis e conhecidos, mas também a
47
atitude idólatra, a submissão e a alienação têm de ser banidas
(FROMM, 2005, p. 80).
Mais adiante Fromm afirma que “Para a humanidade ser salva não é
necessário que se adore a Deus. O imprescindível é não blasfemar contra
Deus e não adorar ídolos”,28 principalmente quando esse ídolo é o próprio
Deus assim transformado. Nessa atitude humana na qual Deus está
envolvido, vale considerar os conceitos de ética, partindo do pressuposto de
que há uma “ética autoritária” e uma “ética humanista”.
A “ética autoritária” é a que incorpora uma consciência autoritária, no
mesmo sentido empregado por Freud (o superego), que inclui os pais, o
Estado, a religião e o próprio Deus idolatrado, a quem se deve obedecer
como se estivesse obedecendo a si mesmo, percebendo respectivamente as
regras e proibições como se através de uma voz internalizada na própria
consciência de cada indivíduo; uma consciência heterônoma, que acha que
seu dever é condescender com as ordens das autoridades às quais é
submissa, sem levar em consideração seu teor. Trata-se de uma ética que
produz alienação, diz Fromm.
A “ética humanista”, bem diferente da anterior, não equivale à voz
internalizada de uma autoridade que queremos agradar e tememos
desagradar, mas é a voz de nossa própria personalidade expressando as
exigências da vida e do crescimento.
A “ética humanista”: é propiciadora da libertação humana em
relação a Deus.
No princípio humanista, Fromm considera que o “bom” é tudo que
promove vida; e o “mal” é tudo que prende e sufoca a vida. A ética
humanista, neste caso, equivale à negação da alienação e da idolatria.
Desta forma, enquanto Deus for adorado de maneira idolátrica, teremos um
28
?
Ibid., p. 84.
48
Deus autoritário. Mas quando for adorado sem essas características, será o
Deus apto a merecer culto, sem os atributos de um chefe ou rei tribal; e o ser
humano torna-se cada vez mais capaz de completar sua independência,
inclusive, sua independência do próprio Deus.
Somente através de uma “ética humanista” seremos capazes de um
reencontro com Deus, no misticismo, “no qual descobrimos o mesmo espírito
revolucionário da liberdade que caracterizava o Deus da revolução contra o
Egito”.29
Assim escreve Fromm sobre a validade de uma “ética humanista” em
lugar de uma “ética autoritária”:
...em contraste com a ética autoritária, pode distinguir-se tanto
por um critério formal, como por outro material. Formalmente se
baseia no princípio de que só o homem por si mesmo pode
determinar o critério sobre a virtude e pecado, e não uma
autoridade que o transcenda. Materialmente se baseia mo
princípio de que o “bom” é aquilo que é bom para o homem e
“mal” o que é nocivo, sendo o único critério de valor ético o
bem-estar do homem (FROMM, 1947, p. 24).
Para ilustrar essa sua convicção sobre a “ética humanista”, Fromm
cita o Mestre Eckart num poema, em fragmentos, livremente assim
traduzido:
Como homem que sou
Tenho em comum
O ver, o ouvir,
O comer, o beber,
Com todos os animais.
29
?
Ibid., p .99.
49
Mas como pessoa, sou exclusivo.
Sou meu e de ninguém mais
De nenhum outro homem,
Nem mesmo de um anjo ou de Deus,
Pois sou de Deus a imagem.30
Deus como ser autoritário e a perda de seus fundamentos
filosóficos e sociais
No final de sua obra Fromm levanta a questão sobre o problema de
“Deus” no mundo contemporâneo, reconhecendo que agora já não
prevalece o pensamento sistemático de Aristóteles, a ideia de monarquia ou
o velho conceito de Deus na Antiguidade, na Idade Média nem mesmo na
Idade Moderna. E assim ele levanta a questão sobre o que devemos
perguntar em relação a Deus e ao ser humano, afinal, quem está morto:
Deus ou o ser humano? – Fromm considera que este parece ser o problema
central do ser humano na sociedade industrial do século XX. Qualquer que
seja a resposta a ser dada a uma das questões acima, Fromm entende que
o “conceito de Deus perdeu seus fundamentos filosóficos e sociais”. 31
Direta ou indiretamente esse pensamento de Erich Fromm exerceu e
sofre influências, ao lado de outros pensadores de seu tempo como Friedrich
Nietzsche (1844-1900), Soren Kierkegard (1813-1885), Karl Marx (1818-
1883), Sigmund Freud (1856-1939), Martin Heidegger (1889-1976), Jean-
Paul Sartre (1905-1980), Albert Schweitzer (1875-1965), e outros que foram
teólogos no século XX como Dietrich Bonhoeffer, Rudolf Bultmann, Paul
Tillich, Thomas J. J. Altizer, William Hamilton, John A. T. Robinson, que
chegaram à conclusão de que o Deus do judaísmo e do cristianismo
tradicional, de uma forma ou de outra perdeu sua função na sociedade
industrializada, porque “Deus morreu em nosso tempo” e em “nosso mundo”.
30
?
Ibid., p. 99.
31
?
Ibid., p. 326.
50
Em outras palavras, Fromm esforça-se por deixar claro que não há
mais lugar para o conceito tradicional de Deus, numa sociedade
industrializada, secularizada, livre. Isto porque agora é o tempo do ser
humano e não há mais lugar para a tese de um “Deus” para ser seguido,
como antes. Dietrich Bonhoeffer32 escreveu: “Comprova-se que tudo também
funciona sem ‘Deus’ e em certo sentido tão bem como antes. Assim como no
terreno científico expulsa-se dia a dia mais a ‘Deus’ do âmbito da existência
humana e Ele perde terreno”.
Altizer e Hamilton,33 dois dos principais nomes do movimento em
torno da “morte de Deus”, assim escrevem com observações sobre a obra
de Bonhoeffer:
O ponto mais importante da teologia de Bonhoeffer sobre a
morte de Deus é prestarmos ajuda para o problema da falta de
religião. Religião não é a tentativa arrogante feita pelo homem
para se apossar de Deus (Barth) nem as diversas atividades
sabáticas realizadas em geral por elementos do sexo
masculino que receberam ordenação (os radicais moderados).
Refiro-me à religião como qualquer sistema de pensamento ou
de ação no qual Deus ou os deuses sejam provedores de
necessidades ou solucionadores de problemas. Assim, como
Bonhoeffer, atesto o colapso a priori da ordem religiosa e o
advento da idade do homem (ALTIZER & HAMILTON, 1968,
pp. 58-59).
Embora essa problemática sobre Deus, seja como conceito ou como
símbolo poético de algum valor, seja de difícil definição pelo ser humano,
32
?
BONHOEFFER, Dietrich, Resistência e submissão. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1968,
p. 155.
33
?
Thomas J. J. Altizer e William Hamilton, estão entre os principais articuladores da Teologia
da Morte de Deus, no século XX.
51
Fromm assim mesmo considera que “Se o espírito e as esperanças dos
Profetas hão de prevalecer, dependerá da força e da vitalidade deste novo
humanismo”.34 Mais adiante, ele questiona, em nome dos ateístas: “o que
poderia tomar lugar da religião num mundo em que o conceito de Deus pode
estar morto, mas que a realidade empírica por trás dele deve viver”
(FROMM, Erich, 2005, p. 327)?
Do Deus autoritário ao Deus revolucionário e libertador
Para Fromm o Deus autoritário, conforme descreve o Antigo
Testamento no começo, caracteriza-se, em primeiro lugar, pela sua
arbitrariedade diante da desobediência humana em relação a atitude de
comer do “fruto da Árvore do conhecimento do Bem e do Mal”. O segundo
momento de arbitrariedade e autoritarismo está na decisão de destruir os
seres humanos, por causa de sua maldade, com o dilúvio e a salvação de
Noé e sua família. Diante do horror diante da morte de tantos seres
humanos e destruição, Fromm reconhece que ao arrepender-se do que fez,
Deus firmou um Pacto com o ser humano, no qual demonstra sua profunda
transformação, quando diz que não mais traria um dilúvio sobre a
humanidade. Ocorre nesse momento a grande mudança em Deus, ao
renunciar o autoritarismo de antes e tornar-se revolucionário e libertador.
Nesse trajeto sobre Deus em relação ao ser humano, percebemos
que Fromm chega a trabalhar de maneira diversificada com várias ideias a
respeito de Deus. Em determinados momentos dessa trajetória ele chega a
parecer contraditório e confuso. É verdade, contudo, que ele nunca chega a
dizer que “Deus não existe”, como declarou Nietzsche:
Já não estamos ouvindo o barulho dos coveiros que estão
enterrando Deus? Não sentimos o cheiro de sua
decomposição? Deuses também entram em decomposição.
34
?
FROMM, Erich, 2005, p. 327.
52
Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos.
Como poderemos nós, os assassinos dos assassinos,
confortar-nos a nós mesmos? Aquilo que era mais santo e mais
poderoso que tudo o que o mundo já conheceu sangrou até a
morte sob os nossos punhais. Quem nos limpará deste sangue
(NIETZSCHE, 1965, pp. 95-96)?
Fromm também não expressa que Deus não existe, a exemplo de
Sartre, ao expor seu pensamento existencialista. 35 Mas o próprio Sartre que
nega a existência de Deus, também declara que se esse Deus existisse não
seria capaz de ajudar o ser humano em meio à sua crise existencial, agora
condenado a ser livre; para Sartre, a luta maior do ser humano no momento
é a busca pura da “existência”. Fromm, pelo contrário, ainda nos parece
concordar com a tradição bíblica e pós-bíblica, que afirma que “não há
dúvida quanto a existência de Deus”. 36 Contudo, chega a declarar que “No
século XIX o problema era o de Deus estar morto; no século XX, é o do
homem estar morto”.37
Ao mesmo tempo em que Fromm não chega a negar a existência de
Deus, o considera um ser sobrenatural quando aceita que Ele criou o ser
humano, o mundo e tudo o que nele há. Contudo, o ser humano se liberta
desse Deus, e se habilita a viver independentemente dele no mundo, em
meio ao processo social com seus desafios e tendências, com ou sem a
parceria do divino. Quando Deus deixa o ser humano desamparado no
mundo, começa aqui o processo de sua humanização.
O conceito de ser humano
35
?
SARTRE, Jean-Paul, O existencialismo é um humanismo, 1978, pp. 4-7.
36
?
FROMM, Erich, 2005, p. 85.
37
?
FROMM, Erich, Psicanálise da sociedade contemporânea, 1963, p. 344.
53
No segundo capítulo de seu livro Erich Fromm parte do conceito de
“ser humano” como “imagem e semelhança de Deus” com a missão de
domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes
animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem
rente ao chão.38 Ele chama a atenção para o que se quer dizer por “imagem
e semelhança de Deus” e a possibilidade do ser humano vir a ser
considerado igual a Deus ou transformar-se no próprio Deus, o que suscita o
temor divino diante dessa possibilidade, conforme aparece no texto de
Gênesis 3.22-23 “ Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor
do bem e do mal...” Por isso, o expulsou do Paraíso. Embora esse temor de
Deus o tenha levado a agir de maneira tão abrupta, o fato é que o ser
humano tornou-se “como” Deus, mas “não” tornou-se Deus.
O desenvolvimento da individualidade e o processo de
individualização
O processo de libertação do ser humano, que tem início com sua
rebelião e desobediência em relação a Deus, dá início ao que Fromm chama
de “individualização”, quando ao mesmo tempo ele corta os seus laços com
a Natureza:
De fato, ele e a natureza transformam-se em inimigos, não se
reconciliam até o homem tornar-se totalmente humano. A
história – e a alienação – começa com este primeiro passo de
rompimento dos laços entre o homem e a natureza. Como
vimos, esta não é uma história da “queda” do homem, mas do
seu despertar e, portanto, do início da sua ascensão (FROMM,
2005, p. 111).
38
?
FROMM, Erich, 2005, p. 101.
54
É interessante considerarmos o sentido de “individualização” que
marca o pensamento de Fromm. Ele considera que os “laços primários”, isto
é, os sentimentos de unicidade e dependência em relação à autoridade
paterna ou a qualquer outra autoridade, no caso, Deus, que davam
anteriormente alguma sensação de segurança e de pertencer, agora estão
rompidos. Retomando aqui o que abordamos sobre a “situação humana” no
pensamento de Fromm, é a partir desse momento que começa a solidão,
diante de um mundo esmagadoramente forte e poderoso, e muitas vezes
ameaçador e perigoso, gerando assim um sentimento de impotência,
ansiedade e responsabilidade. Embora o ser humano ainda se veja parte da
natureza, é ao mesmo tempo um ser “saído” dela e já não há mais harmonia
entre ambos, restando-lhe um enorme sentimento de desamparo e fraqueza.
Para Fromm trata-se de um processo que não é reversível.
Na Teologia, Lesslie Newbigin corroborando com este pensamento de
Fromm, assim resume o que se diz sobre o ser humano em estado de
“danação”, ao se referir sobre as contradições que o envolvem a partir de
sua desobediência diante de Deus, isto é, o ser humano “caiu em
contradição com o mundo natural; caiu em contradição com o seu próximo;
caiu em contradição íntima consigo mesmo; e está em contradição com
Deus”.39 Desta forma, o ser humano tornou-se escravizado e contradito.
Não sendo a individualização reversível, o ser humano então se vê
confrontado com a necessidade de escolher entre diversas linhas de ação
no mundo. Enquanto com os animais existe uma cadeia ininterrupta de
reações que começam com o estímulo, com a fome, e terminam por uma
linha de ação mais ou menos rigidamente determinada, que põe fim à tensão
gerada pelo estímulo, no ser humano, porém, essa cadeia é interrompida: o
estímulo está presente, mas a espécie de satisfação é “aberta”, isto é, ele
tem de escolher entre diferentes linhas e ação. Ao invés de uma ação
instintiva e predeterminada, o ser humano tem de ponderar mentalmente as
várias linhas de ação possíveis. É aqui que ele começa a pensar e a partir
39
?
NEWBIGIN, Lesslie, Pecado e salvação. Rio de Janeiro: Junta Geral de Educação Cristã,
1956, pp. 17-21.
55
daí modifica o seu papel, diante da Natureza, de uma adaptação puramente
passiva para ações que o levem a produzir: ferramentas, por exemplo. Desta
forma, progressivamente ele se afasta da Natureza e torna-se consciente de
si mesmo. Essa consciência o faz pensar que ainda que seja parte da
Natureza, precisa transcendê-la.
Toda essa divagação nos parece oportuna para podermos penetrar
melhor no pensamento de Fromm quando afirma que “o conhecimento”
adquirido com a desobediência em relação a Deus significa também a
quebra da harmonia original do ser humano com a Natureza e, desta forma,
“começa o processo de individualização”. 40 Logo, “lançando mão de uma
linguagem não simbólica”, o texto bíblico proclama a necessidade de cortar
os laços com o pai e a mãe: “Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e
se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gênesis 2.24).
A emancipação evolutiva dos “laços primários”
Fromm aponta mais um aspecto que lhe parece marcar o processo de
libertação do ser humano em relação aos laços incestuosos que se
encontram no início da história nacional dos judeus. Quando Deus ordena
que Abraão deixe a sua parentela para ir para um lugar que ele lhe
mostraria. Mais adiante ele lembra que em várias ações de Deus o ser
humano é desafiado a cortar os laços sociais que o tornam escravo. Isto
significa, para Fromm, que a grande tarefa do ser humano é investir na
emancipação evolutiva dos “laços primários” da ligação incestuosa, que
também estão expressas em símbolos religiosos e cultos da tradição
judaica.
Em relação a esses símbolos e cultos da tradição judaica que
expressam a libertação humana do povo judeu no processo histórico, Fromm
assim os descreve:
40
?
FROMM, Erich, 2005, p. 111.
56
...na Páscoa, no Sukkot e no Sábado. A Páscoa é a celebração
da libertação da escravidão, e como Haggadah diz, toda a
pessoa deve sentir-se como se tivesse sido um escravo no
Egito e de lá ter sido liberta. O matzot, ou pão asmo, comido
durante a semana da Páscoa, é um símbolo da peregrinação; é
o pão que os judeus faziam quando não tinham tempo de usar
fermento. O sukkah (o tabernáculo) tem o mesmo significado
simbólico. É uma “habitação temporária” em vez de
“permanente”; por morar (ou pelo menos comer) na “habitação
temporária” o judeu novamente tornou-se um peregrino, quer
more na terra da Palestina, ou seja, da Diáspora. Tanto o
mazot quanto o sukkah simbolizam o rompimento do cordão
umbilical que prendiam os judeus à terra (FROMM, 2005, p.
113).
Soren Kierkegaard (1813-1885),41 ao referir-se à história de Abraão
diante do sacrifício exigido por Deus, com a oferta do próprio filho, no monte
Moriah, faz referência a um desafio semelhante ao apontado por Fromm, isto
é, ao fenômeno do “desmame”, que incluía a separação entre pais e filho
(Isaque), de maneira terrível e humanamente tenebrosa. Uma experiência
tradicionalmente conhecida na Antiguidade. Essa separação entre Abraão,
Sara e Isaque, conforme a narrativa de Gênesis (22.1-19) é apontada por
Kierkegaard como uma prova de maturidade em relação à fidelidade dessa
família ao próprio Deus que os criou. Mas o “desmame” se faz necessário e
há época em que isso deve ocorrer na vida do ser humano:
Quando vem a época do desmame, a mãe se entristece
refletindo que ela e o filho terão de se separar; que o infante,
no princípio sob o seu coração e depois embalado ao seio,
41
?
KIERKEGARRD, Soren, foi teólogo e filósofo dinamarquês, considerado o precursor do
existencialismo moderno. Entre suas principais obras estão O conceito de angústia (1968) e Temor e
tremor.
57
nunca mais estará tão próximo dela. E juntos sofrerão esta
curta pena. Venturoso aquele que manteve o filho tão próximo
de seu coração e não teve outro motivo de desventura
(KIERKEGAARD, s/d, p. 9).
Com o “desmame”, repete-se o conceito de quebra de “laços
primários”, de ligação incestuosa, ao qual recorre Fromm ao referir-se ao
processo de libertação do ser humano em relação a Deus. Do ponto de vista
da tradição judeu-cristã, o ser humano quebra os “laços primários” e uma
vez assim “desmamado”, conforme a linguagem de Kierkegaard, fica à
mercê do que naturalmente possa acontecer à sua vida.
Ainda em cima dessa temática, o próprio Fromm assim se refere à
quebra dos “vínculos incestuosos”:
A tendência para permanecer preso à pessoa maternal e seus
equivalentes – sangue, família, tribo – é inerente a todos os
homens e mulheres. Ela se acha em conflito constante com a
tendência oposta – a de nascer, crescer, progredir. No caso da
evolução normal, a tendência para crescer vence (FROMM,
1965, p. 119).
Fromm aplica, desta forma, esse conceito freudiano, não só para
justificar a necessidade de individualização, de busca de autonomia do ser
humano, como para a efetivação da liberdade necessária dentro do
processo de humanização do indivíduo. Mas observa que o conceito de
Freud a respeito dos anseios incestuosos encontrados em qualquer criança,
ainda que correto, deve ser visto sob outro significado:
Desejos incestuosos não são primordialmente um resultado de
desejos sexuais, mas constituem uma das mais fundamentais
58
tendências do homem: o desejo de permanecer ligado ao lugar
de onde veio, o medo de ser livre, e o medo de ser destruído
pela própria figura em relação à qual ele se tornou inerme,
renunciando a qualquer independência (FROMM, 1965, p.
119).
Portanto, o ser humano quando se emancipa dos laços primários ou
dos “vínculos incestuosos”, como aqui enfatizados, encontra-se diante do
medo, mas precisa encarar essa nova situação num processo contínuo de
efetivação de sua liberdade.
A produtividade interior como desafio à superação do desamparo
e da solidão
Tem sido marcante como Fromm ao insistir em mostrar que o ser
humano torna-se humano à medida em que consolida a sua libertação dos
poderes sobrenaturais de Deus; ele enfatiza repetidamente em sua obra que
a independência humana “significa o corte do cordão umbilical e a
capacidade de dever a própria existência apenas a si mesmo”. 42
Ao mesmo tempo em que Fromm pensa sobre a maturidade e
liberdade humana, questiona se a independência radical é absolutamente
possível ao ser humano, isto é, se lhe é possível enfrentar a solidão à qual
nos referimos acima, sozinho, sem desfalecer diante do terror, da angústia,
da ansiedade. Afirma que o ser humano está consciente dos riscos e perigos
de sua existência no mundo e reconhece, contudo, que é diante das grandes
dificuldades, as mais difíceis, que ele deve superar sua obsessão ao sangue
e a terra, à mãe e ao clã, a outros poderes, aos quais se prende, e que lhe
proporciona segurança e certeza. Mas, esse ser humano em meio a essa
nova experiência é desafiado a chegar ao estágio de completa atividade e
produtividade interior, tendo em vista um humanismo radical.
42
?
FROMM, 2005, p. 118.
59
Quando Fromm se refere à produtividade interior, tem em mente um
dos mecanismos ou uma das formas de adaptação do ser humano diante da
solidão, porque ele não consegue viver sozinho; logo, deve procurar
associar-se ao próximo a fim de “defender-se, trabalhar, encontrar satisfação
sexual, divertimento, criação de filhos, transmissão de conhecimentos e de
posses materiais. Deve fazer parte de um grupo social. Ele pode amar ou
odiar, competir ou cooperar; pode construir um sistema social baseado na
igualdade ou na autoridade, na liberdade ou na opressão, mas tem de
relacionar-se de alguma forma...”43
Desse relacionamento necessário ao ser humano, várias tendências
têm sido desenvolvidas que se expressam em termos de caráter. Contudo,
nessa busca da produtividade interior e necessária, deve-se considerar a
postura humana que se expresse em termos de atitudes do ser, através de
um modo do indivíduo relacionar-se em todos os campos da experiência
humana. Aqui se incluem as respostas emocionais, mentais e sensoriais em
relação aos outros, às coisas e ao próprio indivíduo. É, pois, um modo de
relacionar-se com o mundo. Desta forma, aquele que desenvolve um caráter
produtivo, também inclui a capacidade para desenvolver e utilizar as
potencialidades do ser humano, ficando implícito que ele deve ser livre e
racional; livre e não dependente de alguém; livre e não dependente de algo
que controle os seus poderes. Como diz o próprio Fromm, “é uma atitude da
qual é capaz todo o ser humano, a menos que esteja mental ou
emocionalmente impedido”.44
A atividade produtiva, segundo Fromm, manifesta-se no ser humano
em relação a si mesmo, como uma personificação de suas faculdades e
como o “fator”, que se sente unificado às suas potencialidades e ao mesmo
tempo que estas não estão alienadas dele próprio. A atividade produtiva que
deve fazer parte do ser humano que reage livremente diante de sua situação
de desamparo e solidão, não mais aceita qualquer tipo de submissão ou
43
?
FROMM, Erich, 1947, p. 58.
44
?
FROMM, Erich, 1947, p. 93.
60
dependência que tenham como implicação a produção de algo porque
“alguém quer”, nem mesmo que esse alguém seja Deus, o dever, o passado,
entre outros, sem que o sujeito o deseje realmente. 45
Da produtividade interior devem brotar o amor e pensamentos
produtivos. Por “amor produtivo” Fromm considera o “amor genuíno”, cuja
essência é o amor de mãe pelo filho, isto é, um amor voltado para os
semelhantes e no amor erótico entre duas pessoas. Estes são considerados
elementos básicos, característicos de todas as formas de amor produtivo
como o desvelo, a responsabilidade, o respeito e o conhecimento.
No Antigo Testamento o ser humano carrega naturalmente em si
uma convicção humanista
Esta é uma constatação que faz Fromm quando finalmente retoma o
ato da criação de Deus ao considerar os seres humanos como sua “imagem
e semelhança”. Com este enfoque, ele assim escreve:
O conceito de que o homem foi criado à imagem de Deus leva,
não apenas ao conceito da igualdade entre o homem e Deus,
ou mesmo da liberdade de Deus, como também a uma
convicção humanista central: todo o homem carrega dentro de
si nada menos do que a humanidade (FROMM, 2005, p. 126).
Com esta afirmação Fromm não apenas ressalta o caráter humanista
que lhe parece intrínseco à natureza humana, como também chama a
atenção para a questão do universalismo. Com isso ele quer dizer que as
promessas de Deus não são destinadas apenas para o povo de Israel, mas
que em Abraão Ele deseja alcançar a todos os povos da terra. E chama a
45
?
Ibid., pp. 94-95.
61
atenção para isso, a importante contribuição dos profetas do Antigo
Testamento e, com eles, judeus, filósofos, socialistas, que nem sempre
tiveram qualquer ligação pessoal com o judaísmo.
O ser humano no processo de humanização e suas
características
Diante do que vimos em relação ao conceito de ser humano em busca
de sua humanização, algumas características são aqui pontuadas a partir do
Antigo Testamento, conforme a análise de Fromm:
a) A “rebelião” contra Deus deu início ao processo de
individualização do ser humano. Logo, a “história da queda” com
a desobediência a Deus, deve ser vista como o início do processo
de libertação do ser humano;
b) A emancipação dos “laços primários”, faz parte do processo de
libertação diante da possibilidade de humanização do ser humano;
c) A produtividade interior é o estágio de completa atividade humana,
como reação à situação de desamparo e solidão do ser humano,
capaz de garantir a independência e liberdade num mundo de
ameaças e terror, como expressão do humanismo que se deseja
na sociedade, apesar das diversidades.
d) O ser humano criado como “imagem e semelhança” de Deus, tem
“uma convicção humanista central de que todo ser humano
carrega dentro de si nada menos do que a humanidade”. 46 Com
esta afirmação deve-se pensar que as promessas divinas também
têm caráter universalista e não exclusivista em função do povo de
Israel.
O conceito radical de História em Erich Fromm
46
?
FROMM, Erich, 2005, p. 126.
62
Como vimos acima, para Fromm a história começa com a “queda” de
Adão e Eva no Paraíso. Essa experiência humana determina o conflito e a
luta e, por isso, o ser humano sofre com a perda da singularidade. Está
sozinho e separado de si mesmo e da natureza, como afirma Newbigin. 47
Nessa situação ele é desafiado a criar a si mesmo no processo histórico,
cujo início se deu com o seu ato em busca da liberdade, com a
desobediência a Deus. Agora ele busca uma nova harmonia e tornar-se a
nova unidade com a natureza. Nessa nova ordem, conforme descrita na
literatura considerada profética e rabínica chamada de “final dos tempos” ou
“tempo messiânico” o que há de acontecer não será pela providência divina,
mas pelo esforço humano. Como diz o próprio Fromm: “O tempo messiânico
é a resposta histórica à existência humana. Ele consegue destruir a si
mesmo ou avançar em direção à realização da nova harmonia”. 48
Fromm afirma que Deus não interfere no processo histórico, porque
cabe ao ser humano fazer sua própria história; se fosse o contrário, Deus
teria que mudar a natureza humana. Com essa convicção, ele aborda os
diversos movimentos da história dos judeus, entre eles, mais uma vez a
saída de Abraão de sua terra, caracterizada como o início da história dos
judeus, com a “quebra dos laços primários” do patriarca em relação à sua
parentela; o chamado de Moisés, por Deus, que se apresenta como o Deus
da história; as ações de Deus com atos milagrosos para convencer o Faraó
do Egito a deixar o povo hebreu voltar para a sua própria terra; o sofrimento
do povo diante dos 40 anos peregrinando pelo deserto; a desobediência dos
judeus na peregrinação, ao fazerem para si um “bezerro de ouro”, a ponto de
ser chamado um povo “monolátrico”, por abandonar a Deus e adorar um
ídolo no deserto; o surgimento do sacerdócio com o chamado de Arão para
essa função; o início do profetismo, entre outros. O próprio Fromm tenta
caracterizar os principais aspectos dessa história dos hebreus quando
afirma:
47
?
NEWBIGIN, Lesslie, 1963, pp. 17-21.
48
?
FROMM, Erich, 2005, p. 135.
63
Se tentarmos resumir a análise dos aspectos essenciais desta
história, poderemos esclarecer diversas questões. A
possibilidade de libertação existe apenas porque as pessoas
sofrem e, na linguagem bíblica, porque Deus “compreende” o
sofrimento, ele então tenta aliviá-lo. Na verdade, não há nada
mais humano do que o sofrimento, e não há nada que una
mais o homem que o sofrimento. Somente a minoria, em toda a
história, teve mais do que um vislumbre da felicidade durante a
vida, mas todos já experimentaram o sofrimento: o insensível e
o mais sensível dentre todos os homens. Entretanto, o
sofrimento humano não significa que o homem saiba para onde
ir e o que fazer. Ele produz apenas o desejo do fim do
sofrimento, e este desejo é o impulso primeiro e necessário
para a libertação (FROMM, 2005, pp. 160-161).
Ao referir-se à história do povo judeu, Fromm torna-se repetitivo e até
cansativo com a descrição dos fatos anteriormente narrados, que envolvem
a trajetória do povo como nação e depois como Estado politicamente
organizado. Vale observar que o trabalho de Fromm sobre o “conceito de
história” está quase todo baseado no processo histórico no qual está
envolvido o povo judeu. Mesmo assim alguns aspectos do conceito de
história que ele desenvolve, precisam ser ressaltados:
De Moisés aos profetas
Fromm faz uma constatação interessante, ao observar que Moisés, a
princípio, o grande líder de seu povo não foi um visionário, tendo em vista
sua reação diante do episódio da água que não brotou no deserto de Zin
(Deuteronômio 32.48-52) por causa de sua prevaricação, isto é, abuso de
poder, sendo infiel diante de Deus na condução do povo pelo deserto. Aqui
64
Moisés fracassa e mostra que não é um visionário no processo de
libertação.
Considerando que Moisés não é o visionário, Deus chamou outros, os
profetas, para alcançar o seu objetivo inteiramente humano, os quais foram
confirmados pela história. Com isso Deus não chama os que detinham o
poder mas os que se tornaram comoventes diante da sociedade e que
geralmente aparecem em tempos de crise.
No Antigo Testamento o ser humano torna-se o protagonista de
sua própria história
À medida em que o ser humano torna-se o criador da história, Deus
não interfere, diz Fromm. Nem por um ato gracioso nem por coerção; não
muda sua natureza nem seu coração. Agora o ser humano é livre para
escolher o seu caminho e ainda deve aceitar as consequências de sua
escolha.
Desta forma, a afirmação de Fromm vai ao encontro dessa nova
realidade, que ele assim considera:
O papel de Deus na história é enviar seus mensageiros, os
profetas; que têm uma quádrupla função: 1) Anunciam ao
homem que há Deus, aquele que revelou-se a eles, e o
objetivo do homem é tornar-se completamente humano; e isso
significa tornar-se como Deus. 2) Mostram alternativas
humanas para as escolhas do homem e as consequências
destas alternativas. Geralmente expressam esta alternativa em
termos de recompensas e punições divinas, mas é sempre o
homem que, por seus próprios atos, faz sua escolha. 3)
Discordam e protestam quando o homem toma o caminho
errado. Mas, não abandonam o povo, são sua consciência,
falando quando todos se silenciam. 4) Não pensam em termos
de salvação individual apenas, mas creem que a salvação
65
individual tem estreita ligação com a salvação da sociedade.
Sua preocupação é o estabelecimento de uma sociedade
governada pelo amor, justiça e verdade; insistem que os
políticos devem ser julgados por valores morais, e que a função
da vida política é a realização destes valores (FROMM, 2005,
pp. 176-177).
Quando Fromm assim se posiciona, trabalha com a ideia de que a
história tem suas próprias leis, e Deus já não interfere nelas, ainda que ao
mesmo tempo existam as leis divinas; mas ao entender as leis da história o
ser humano também entende a Deus. Isto faz com que a ação política se
torne uma ação religiosa. Por isso, o líder espiritual é um líder político,
conclui Fromm.
O ser humano e o “tempo messiânico”
Fromm vislumbra no Antigo Testamento o futuro da história tendo em
vista o chamado “tempo messiânico”, que se assemelha ao “tempo do
Paraíso”, pois inclui um novo estado de harmonia, com a pressuposição e
possibilidade de um messias coletivo e não individual, nunca absolutamente
humano, conforme anunciado por alguns profetas, entre eles Naum,
Sofonias, Habacuque, Malaquias, Joel e Daniel. Esses profetas e outros
como Isaías, Amós e Oséias, tentam mostrar que a paz desse novo tempo
transcende o campo das relações humanas, significa a harmonia entre o ser
humano e a Natureza. Este já não se sente ameaçado por ela e cessa a sua
luta para dominá-la. Já não se tornam oponentes, mas uma unidade, uma
parte do mundo humano. Essa paz e harmonia é prevista pelo profeta Isaías
nos seguintes termos:
O lobo viverá com o cordeiro, o leopardo se deitará com o
bode, o bezerro, o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e
uma criança os guiará. A vaca se alimentará com o urso, seus
filhotes se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi. A
66
criancinha brincará perto do esconderijo da cobra, a criança
colocará a mão no ninho da vibra. Ninguém terá nenhum mal,
nem destruirá coisa alguma em todo o meu santo monte, pois a
terra se encherá do conhecimento do SENHOR como as águas
cobrem o mar (Isaías 11.6-9).
Embora Fromm pareça tão místico em relação ao “tempo messiânico”,
dando a impressão de que os profetas teriam espiritualizado em demasia a
participação humana no desenvolvimento da história, em determinado
momento de sua análise ele faz questão de dizer que o messias desse novo
tempo nunca será “o salvador”, porque ele não transforma o ser humano
nem muda a sua essência. Mas será um símbolo, o rei ungido da casa de
Davi, que aparecerá no porvir. E assim ele lembra que o messias, de acordo
com o Talmude, será um ser de origem puramente humana.
Uma questão é levantada por Fromm, tendo por base o Talmude:
“Quais são as previsões para o tempo messiânico”? E para responder a esta
questão, duas hipóteses são por ele levantadas: a primeira, a de que o
messias virá somente quando o sofrimento e o mal alcançarem um grau que
levem os seres humanos ao arrependimento. A outra hipótese, prevê que o
messias virá, não após catástrofes, mas como resultado do progresso
contínuo do próprio ser humano. A princípio nenhuma das hipóteses parece
resolver a questão. Por isso Fromm afirma que:
A história insiste que o messias não traz salvação, e que a
salvação não depende da ‘angústia mortal do messias’, mas da
prontidão do povo, contanto que façam sua escolha e
consequentemente o messias talvez apareça a qualquer
minuto (FROMM, 2005, p. 209).
67
Historicamente vale considerar que surgiu entre os judeus um
movimento chamado “hassídico”, no início do século XVII, quando a situação
do povo começou a melhorar na parte ocidental. Foi um movimento que
trouxe um certo reavivamento, de caráter religioso, que renovou as
esperanças messiânicas. Tal movimento, que brotou entre pobres e
analfabetos na Polônia e Galácia durante a segunda metade do século XVIII,
trouxe esperança, alegrias e ardente desejo pelo messias.
De maneira enfática Fromm, depois de uma série de arrazoados
sobre a questão do messias e do “tempo messiânico”, afirma:
...que o messias é, sem dúvida nenhuma, Deus, mais
totalmente humano; e que sua vinda é o resultado da perfeição
crescente do povo: ‘Disse Streitner: ‘cada judeu tem dentro de
si um elemento do messias que é necessário para a purificação
e maturidade. O Messias virá quando Israel adquirir dele a
perfeição e pureza no seu interior’.” (FROMM, 2005, p. 222).
A observação final de Fromm sobre a questão do “tempo messiânico”,
mostra que houve uma certa impaciência e ansiedade do povo judeu por um
messias, o que possibilitou o surgimento de falsos messias, equívocos,
paradoxos que conturbaram a maneira de esperar. Ele alega que a miséria
política, social e econômica que durante séculos os judeus enfrentaram são
responsáveis por essa impaciência e desejo intenso pela vinda de um
messias. Tal situação deteriorou e ameaçou a esperança. Mas lembra que
até Marx e Engels na metade do século XIX também criam que o “reino do
céu” com a grande revolução mundial, estava próxima.
O conceito judeu-cristão de História no Antigo
Testamento
Podemos concluir essa abordagem sobre a História, recorrendo ao
que o próprio Fromm escreveu em Psicanálise da sociedade contemporânea
68
(1963), no qual afirma que “o conceito judeu-cristão de História se
caracterizou pela ideia de que o seu significado inerente era a salvação do
homem”.49 Aqui Fromm retoma a questão do Messias, que considera
simbolicamente capaz de salvar o ser humano, no “tempo messiânico”.
Depois de mostrar mais uma vez que o ser humano após a desobediência
em relação a Deus tornou-se livre, e assim tem início a história humana,
essa liberdade adquirida custou-lhe um alto preço, uma vez que ao mesmo
tempo se viu desamparado. Em busca de seu futuro, o ser humano já não
contou com atos de graça da parte de Deus, mas, como o próprio Fromm
afirma:
O homem tem de abrir caminho através de muitos erros, tem
de pecar e sofrer as consequências. Deus não resolve os
problemas para ele, ajudando-o apenas com a revelação dos
objetivos da vida. O homem tem de conquistar a sua própria
salvação, tem de dar-se a luz, e, no fim dos tempos, a nova
harmonia, a nova paz será estabelecida; a maldição
pronunciada contra Adão e Eva será desfeita pela auto-
revelação do homem através do processo histórico (FROMM,
1963, pp. 228-229).
Fromm, chama a atenção para teses sobre o fim da História, que,
conforme se diz, se dará com a “Segunda Vinda de Cristo”, conforme dogma
que marca fundamentalmente a tradição cristã mais ortodoxa. Tal doutrina
afirma que esse fenômeno será um acontecimento sobrenatural e não um
acontecimento histórico, nos termos concebidos pela tradição católica e
protestante. Reconhece, contudo, que a Era do Iluminismo, caracterizada
por sua luta contra a Igreja e o clericalismo, alimentou dúvidas sobre essa
tradição até sua negação total. Mas também chama a atenção para o que
considera em Marx, um messiânico-religioso, do ponto de vista secular, na
49
?
FROMM, Erich, 1963, p. 228.
69
medida em que afirma que “Toda a História passada é apenas ‘Pré-História’,
é a História da auto-alienação; com o socialismo, surgirá o reino da História
humana, de liberdade humana”, em termos realistas. 50
Conceito humanista de pecado e de arrependimento
A liberdade humana em relação ao livre arbítrio
No capítulo no qual Fromm trabalha o conceito de pecado e
arrependimento, desenvolve a tese vétero-testamentária, de acordo com a
tradição judaica, sobre o ser humano diante do bem e do mal. Afirma que
este não é nem bom nem mau, mas tem a possibilidade de pecar, isto é, de
praticar o mal; isto surge quando ele usa a imaginação. Ele usa o termo
hebraico yetzer com o significado de “imaginações” (boas ou más), para
indicar os impulsos humanos. Desta forma o ser humano pode tornar-se
bom ou mau, pior ou melhor, quando alimenta sua imaginação com
pensamentos bons ou ruins. Isto significa “que não há nada que seja
inerentemente mal na natureza humana que a impediria de escolher o bem
que existe potencialmente nela, exatamente como o mal”. 51
Essa discussão empreendida por Fromm envolvendo questões com
os conceitos de “bem” e “mal” é para mostrar que a vontade do ser humano
é livre e que Deus não o torna bom ou ruim. O que resta, então, é
reconhecer que o ser humano é dotado de livre arbítrio, conforme é a
posição bíblica e pós-bíblica. Para fundamentar essa sua posição, Fromm
trabalha com conceitos de Maimonides, cuja autoridade sobre este tema é
por ele reconhecida quando faz sua clássica codificação da lei judaica e que
resume a questão nos seguintes termos:
50
?
Ibid., p. 230.
51
?
FROMM, Erich, 2005, p. 235.
70
O livre arbítrio foi conferido ao ser humano. Se alguém desejar
seguir o caminho bom, ele tem o poder de assim fazê-lo. Se
alguém optar pelo mau caminho ou ser pecaminoso, ele tem
liberdade para tal... Não permita que a noção expressa pelos
gentios insensatos e pela maioria das pessoas insensíveis
dentre os israelitas entrem na sua mente bem como sua
opinião quanto a origem da existência humana; para eles o
Todo-Poderoso decretou que o homem deveria ser ou justo ou
perverso; isto não funciona desta maneira: todo o ser humano
pode tornar-se justo como Moisés: nosso professor, ou
perverso como Jeroboão; sábio ou tolo, misericordioso ou
cruel; mesquinho ou generoso; e assim por diante em relação
às outras qualidades. Não há quem o constranja ou ordene o
que ele deve fazer ou o leve para ambos os caminhos; mas
cada pessoa se vira para o caminho que deseja,
espontaneamente” (FROMM, 2005, pp. 237-238).
Fromm considera este arrazoado de Maimonides suficiente para
esclarecer a questão do livre arbítrio conferido ao ser humano. Ao mesmo
tempo reconhece nos profetas autoridade para mostrar às pessoas as
alternativas e consequências em relação às suas escolhas. Reconhece que
em determinados momentos os profetas chegaram a observar que o ser
humano foi tão longe no uso de seu livre arbítrio que chegou a perder a sua
liberdade de escolha. Contudo, a possibilidade de arrependimento é real,
sem que o faltoso precise considerar-se um “pecador submisso”, e acusar a
si mesmo e prostrar-se, porque o ser humano é livre e independente,
inclusive de Deus. Logo, não há necessidade de contrição ou auto-
acusação. Com isso Fromm reconhece que “há um pouco de superego
sádico ou de ego masoquista no conceito judeu de “pecado ou
arrependimento”.52
52
?
Ibid., p. 245.
71
O arrependimento como caminho presente no Antigo Testamento
para recuperação da dignidade humana
Ao referir-se ao “arrependimento”, de maneira mais apropriada para
esclarecer sua tese sobre tal fenômeno, Fromm observa que este contém
valores preciosos para a retomada da dignidade humana diante do pecado
na tradição judaica, mas que é necessário depurá-lo de equívocos que foram
incorporados também na tradição cristã. Considerando que “pecar é
humano”, é importante que se leve em consideração o fato de que “o
significado de pecado no sentido de “errar o caminho” corresponde ao termo
para arrepender-se, shwv, que significa “voltar”.53 Nesse caso, que essa
volta seja vista conforme o Talmude quando se refere ao pecador
arrependido, nos termos de baalteshuvah, isto é, “o mestre da volta”, no qual
“Voltar é um ato independente do homem, não uma submissão passiva”. 54
Um outro aspecto a ser considerado no arrependimento pela
retomada da dignidade humana, que Fromm destaca, nesse caminho de
“volta”, é a necessidade de eliminar a tristeza e a depressão nesse
processo. Em outros termos, tristeza e depressão não devem acompanhar a
experiência do arrependimento. Ele traz como argumento a experiência do
povo judeu em relação ao “Dia da Expiação”. É um dia de jejum, mas não é
um dia de tristeza, que poderia ser reproduzido por um “superego” cruel e
acusador. Trata-se de “um dia de profunda seriedade e auto-exame, mas
cheio de alegria em vez de tristeza”.55 O próprio Fromm assim escreve sobre
a experiência do pecado e arrependimento como resgate da dignidade
humana:
Com o objetivo de compreender esta atitude em relação ao
pecado e ao arrependimento devemos nos lembrar que na
53
?
Ibid., p. 247.
54
?
Ibid., p. 249.
55
?
Ibid., p. 251.
72
tradição judaica, pecado e imaginação pecaminosa fazem parte
de todo o homem (com exceção daqueles excepcionais que
nunca foram tentados). Este conceito não é o conceito de
“culpa coletiva” ou do “pecado original”, mas está baseado no
conceito humanista de que todos compartilhamos da mesma
natureza, consequentemente “pecamos, roubamos, matamos”
e etc., como no culto do Dia da Expiação. Pois todos
compartilhamos da mesma humanidade, não há nada de
desumano no pecado, por isso nada deve ser motivo de
vergonha ou de desprezo. Nossa inclinação para o pecado é
tão humana quanto nossa inclinação para fazer o bem e quanto
nossa capacidade de “voltar” (FROMM, 2005, p. 254).
Considerando o que vimos, os destaques de Fromm em relação ao
conceito de “pecado e de arrependimento” estão relacionados às questões
que envolvem a necessidade de atitudes humanistas a serem observadas,
com interpelações que envolvem a tradição judaica e sua relevância para um
melhor entendimento do texto do Antigo Testamento. Em suas observações,
a partir de uma interpretação radical, rigorosa e profunda deste texto, com
uma reflexão de conjunto, relacionando-se as questões levantadas com
demais aspectos do contexto de sua produção, fica claro que essa reflexão
nos proporciona valores significativos para uma prática humanista que
resgate a dignidade humana.
A Halakhah numa visão humanista
Halakhah é o penúltimo capítulo da obra de Fromm, que se refere ao
que se chama de “caminho certo” tendo em vista a vida e seus valores. Por
Halakhah deve-se entender, “o modo como alguém anda” ou “o caminho que
se percorre” e que nos leva à crescente aproximação das ações de Deus.
Halakhah é um conjunto de crenças e práticas judaicas; de modo geral inclui
as Leis (mitsvá) encontradas na Torá (mitsvoth d’oraita), na lei rabínica
73
(mitsvoth d’rabbanan) e na tradição venerada (minhag). Enfim, a tradição
pós-bíblica ampliou e desenvolveu a lei bíblica. Ela criou a Halakhah, que
cobre todo aspecto da atividade humana. No judaísmo, o que se diz é que
esses escritos fornecem o “caminho para um andar”.
Fromm começa este capítulo destacando alguns valores que fazem
parte da tradição bíblica e pós-judaica, tais como a afirmação da vida, amor,
justiça, liberdade e verdade. Essas crenças sobre Deus, o ser humano e
todo o universo, de maneira mais abrangente, no judaísmo, afetam um modo
de vida em todos os seus aspectos e práticas, desde o momento em que o
indivíduo acorda de manhã, sobre o que pode e não pode comer, o que
pode e o que não pode vestir, como conduzir negócios, como deve ou não
casar, como observar as festas e o Shabat, e como lidar com Deus, com
outras pessoas e com os animais. A observância desse conjunto de crenças
e práticas no judaísmo é considerada como capaz de aumentar a
espiritualidade e a influência do judaísmo na vida de cada pessoa.
O que podemos apurar como marcas do humanismo do ponto de
vista de Fromm, neste tema relacionado ao Antigo Testamento?
A Halakhah valoriza a vida humana
A princípio Fromm chama a atenção para os valores centrais da
Halakhah: a afirmação da vida, amor, justiça, liberdade e verdade. Ele os
considera pertinentes e afirma que “formam uma valorosa síndrome”. 56 Ele
parte da premissa de que Deus quando criou o ser humano viu que ele era
“muito bom”, com capacidade para escolher entre as alternativas básicas da
vida e da morte: “Agora escolham a vida, para que vocês e os seus filhos
vivam” (Deuteronômio 30.19). “Escolher a vida é a condição necessária para
o amor, liberdade e verdade. E também a condição para amar a Deus,
porque os mortos não louvam o Senhor...” 57 Com essa afirmação Fromm
também condena os que põem a vida em perigo, como forças estrangeiras
56
?
Ibid., p. 260.
57
?
Ibid., p.262.
74
quando tentam forçar os judeus a práticas dolorosas com derramamento de
sangue, prática do incesto, etc.58
A Halakhah valoriza o amor a si próprio, ao ser humano em geral
e a Deus
Fromm traz à tona para discussão a respeito dessa prática o texto de
Levítico 19.18: “ame cada um o seu próximo como a si mesmo”. A respeito
deste texto, sobre o qual pairam algumas dúvidas na tradição judaica:
Há dúvidas se o mandamento, em Levítico, do amor ao
próximo, refere-se a um membro da mesma religião ou
nacionalidade (no caso outros hebreus) ou refere-se a qualquer
pessoa, a qualquer ser humano. Alguns estudiosos do Velho
Testamento reivindicam que a palavra rea (traduzida como
“próximo”) refere-se somente a um membro da mesma
nacionalidade; outros reivindicam que refere-se a qualquer ser
humano. Considerando todos os prós e contras, me parece
muito difícil chegar a uma decisão definitiva, já que a palavra
rea é usada no sentido de “amigo”, “cidadão”, como também
“outro”, alguém com quem se tem qualquer relação recíproca.
A frase pode ser traduzida, então, referindo-se a outro ser
humano como também a outro cidadão. Entretanto, o fato da
frase dizer na primeira parte: “Não procurem vingança, nem
guardem rancor contra alguém do seu povo...” e então
continua: “... mas ame cada um o seu próximo como a si
mesmo.” Parece que a frase tem mais sentido em relação a
palavra “cidadão” (FROMM, 2005, p.264).
58
?
Ibid., p. 262-263.
75
Com esta argumentação Fromm é de parecer que o amor ao qual se
refere o texto bíblico é abrangente, e deve ser praticado também ao
estrangeiro, ao hóspede, ao morador temporário e a todo o ser humano que
esteja na condição de impotente diante da realidade social. Que se leve em
consideração o amor divino como paradigma para todo o ser humano,
porque é assim que Deus se apresenta na Bíblia, como o “Deus da justiça e
compaixão”.
A Halakhah valoriza a justiça social
A justiça social, como um valor natural do processo de humanização,
está incluido no Halakhah, como princípio que, ao levar em consideração
todas as esferas da atividade humana, inclui, portanto, a condição da viúva,
do órfão, do pobre e do estrangeiro, geralmente marginalizados na
sociedade de ontem e de hoje. Tal princípio está pressuposto no Pentateuco
e nos escritos dos Profetas.
A Halakhah valoriza a liberdade e a independência do ser
humano
Aqui Fromm trabalha com a ideia de que o amor é inseparavelmente
relacionado ao valor da liberdade e da independência. E este também é um
dos princípios da Halakhah em função da realização do ser humano. Ele
retoma o tema do corte do “cordão umbilical” que o conecta à sua mãe e à
sua família e origem, com o rompimento necessário de seus lações
incestuosos. Mas Fromm lembra que apenas isso não é suficiente porque
não o torna totalmente humano, isto é, o ser humano precisa libertar-se
totalmente do “ser humano”. Fromm fundamenta seu pensamento referindo-
se novamente à história dos judeus, ao mostrar que a libertação do Egito, de
acordo com o sistema bíblico, foi um evento fundamental da tradição judaica
e que a Lei entregue no Monte Sinai é precedida por uma revolução social
realizada por pessoas que se tornaram livres, pois a Torá não poderia ser
entregue a escravos.
O sistema Halakhah, de acordo com Maimonides, que sistematizou
toda a lei pós-bíblica no Mishená Torá, as “Leis concernentes ao sábado e
os dias santos”, são vistas por Fromm como “a ideia de liberdade; a ideia da
76
completa harmonia entre o homem e a natureza, homem e homem; a ideia
da esperança do tempo messiânico e da derrota do homem pelo tempo,
tristeza e morte”.59 Ele considera que se trata da antecipação do “tempo
messiânico”, de descanso, que não deve ser entendido como tempo de
“não-trabalho”, mas no qual o ser humano se torna completo, “com nenhuma
outra tarefa a não ser a de “ser humano”. 60
A Halakhah valoriza a verdade
Esta é valor fundamental para que se garanta ao ser humano
dignidade, cidadania, humanismo. É com a verdade que a vida humana é
valorizada; é com a verdade que o verdadeiro amor acontece
produtivamente; é com a verdade que se torna possível a justiça social em
toda e qualquer situação; é com a verdade que a verdadeira libertação
humana se torna realidade, não como dádiva dos deuses ou de Deus, mas
com a coragem humana de romper com os antigos padrões e tradições e
assumir a nova vida, com a “força e a vitalidade do novo humanismo”. 61
Os Salmos: “um documento humano” – provedor de
esperança
Fromm parte do princípio de que os Salmos do Antigo Testamento
constituem um documento humano, expressão de esperança e temor, com
suas alegrias e sofrimentos, que foram cantados pelos levitas, tendo,
inclusive, sido chamado de “hinário do Templo”. Através dos Salmos o povo
cantava sentimentos de tristeza e sofrimento, medo e aflição, conflito e
desespero, mas também de vitória da esperança sobre o desespero.
59
?
Ibd., p. 279.
60
?
Ibid., p. 284.
61
?
Ibid., p. 327.
77
Os Salmos nos propõem uma questão existencial – o que é o
homem?62
Este tipo de questionamento, de preocupação humanista, revela a
existência de inquietações à procura do lugar do ser humano no universo.
Fromm procura mostrar que a resposta do próprio poeta indica que o ser
humano é o mestre de toda a natureza, mas que, apesar de ter sido criado
“... um pouco menor do que os seres celestiais”, não pode esquecer que sua
vida é transitória e que somente Deus é eterno (Salmo 90).
A questão acima levantada pode ter outras conotações além de situar
o ser humano em relação a natureza e tudo que está ao seu redor. Ela
também pode ser revestida de um sentido existencial em relação ao
presente, na sociedade contemporânea. Por isso, ao mesmo tempo em que
Fromm levanta esta questão em relação aos Salmos do passado, também
trabalha com a ideia de que o ser humano, seja ou não o servo obediente a
Deus, é também aquele que pode se tornar livre, como também o faz
através dos Salmos ao “escrever a sua própria história sem a interferência
de Deus e guiado somente por intermédio de sua mensagem profética, que
pode ser aceita ou rejeitada”. 63
Os Salmos também são cânticos de esperança “messiânica”
Em sua obra O dogma de Cristo (1963/1964), Fromm faz referência
ao que chamou de “tempo messiânico”, considerado o fim da história de luta
e conflito e o começo de uma nova história de harmonia e união. É o que
considera o tempo do Messias, que não é o salvador nem foi enviado por
Deus para salvar o seu povo ou modificar sua substância corrupta; mas
como sendo Aquele que é um símbolo da própria realização humana. O
Messias, neste caso, não é mais Filho de Deus do que qualquer outro ser
62
?
Ibid., p.304.
63
?
Ibid., p.322.
78
humano: “é o rei ungido que representa a nova época da história”. 64 Sobre
essa nova era, “messiânica”, assim escreve Fromm:
A interpretação messiânica do tempo é a de harmonia entre
homem e homem, entre homem e mulher, entre homem e
Natureza. A nova harmonia é diferente do paraíso, só pode ser
obtida se o homem desenvolver-se plenamente, para se tornar
realmente humano, se for capaz de amar, se conhecer a
verdade e fizer a justiça, se desenvolver seu poder de razão a
um ponto em que o liberte da servidão do homem e da
servidão das paixões irracionais (FROMM, 1963/1964, pp. 157-
158).
Chamamos assim a atenção para um dos destaques importantes que
Fromm faz no livro de Salmos, que é a referência aos “Salmos messiânicos”.
Nestes, prevalecem os sentimentos de fé e salvação da humanidade, como
“salmos de esperança” de um povo em relação ao seu futuro, como se
percebe no Salmo 96, que estimula o povo a cantar “diante do Senhor,
porque ele vem, vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos,
com sua fidelidade” (Salmo 96.13).
Os “Salmos messiânicos” apontam para a superação do desespero
pela esperança. Fromm lembra que após a destruição do Templo de
Jerusalém, os Salmos tornaram-se o livro de orações de maior popularidade
entre os judeus. Eles se tornaram “um documento humano, a expressão de
esperança e temor, suas alegrias e seus sofrimentos”. 65 Prevalecem,
contudo, em vários destes Salmos, palavras proféticas que apontam, como
já dissemos, para a superação do desespero pela esperança.
64
?
FROMM, Erich, 1963/1964, p. 157.
65
?
FROMM, Erich, 2005, pp. 290-291.
79
CAPÍTULO IV
Fromm e a defesa de uma religião humanista
No Epílogo de sua obra sobre o Antigo Testamento, Fromm chama a
atenção para o fato de que a maioria dos seres humanos na sociedade
industrial, apesar de seus protestos em relação aos valores e conceitos
fundamentais (sobre Deus, vida, amor, justiça, humanismo, etc) das
principais religiões contemporaneamente conhecidas (Judaísmo,
Cristianismo, Islamismo, Budismo), existe um esforço por um melhor
entendimento sobre o amor a si mesmo e ao próximo. Sobre “humanismo”,
por exemplo, ele pensa que isso ainda seria possível através da religião,
mesmo para os ateístas:
Para os ateístas humanistas uma questão mais profunda é
levantada: o que poderia tomar o lugar da religião num mundo
em que o conceito de Deus pode estar morto, mas que a
realidade empírica por trás dele deve viver? (FROMM, 2005, p.
327).
Como vimos nas diversas descrições de Fromm sobre os complexos
problemas da sociedade contemporânea, que envolvem o ser humano com
ameaças de morte, há uma proposta implícita do autor no sentido de que se
possa ter uma sociedade sadia, com fundamentos tão humanistas quanto
possíveis. Mas ele considera que nenhuma sociedade sadia pode ser
80
construída sobre conhecimentos puramente intelectuais, mas que também
levem em consideração experiências de caráter espiritual, artísticas
compartilhadas, em bases que ele chama “não-clericais”, com características
que, dentre outras, permita que as pessoas cantem, dancem, passeiem,
juntas, e assim também admirem juntamente as coisas, a natureza, os
fenômenos em geral, e não como membros de uma “multidão
solitária”.66Aqui, enquanto Fromm dá especial ênfase às manifestações
artísticas compartilhadas e à necessidade da criação da arte e do ritual
coletivos, também reconhece que há uma distância considerável entre esse
ideal e a realidade.
Ao fazer essa constatação, Fromm reconhece que alguns esforços
nesse sentido já foram feitos para ressuscitar o ritual e a arte coletivos, e
que não trouxeram resultados significativos e suficientes para uma
sociedade sadia. Ele lembra a “Religião da Razão”, criada pela Revolução
Francesa, com a tentativa de trazer de volta os sentimentos nacionalistas
com alguns rituais novos. Corrobora com o pensamento de Fromm o que
escreveu Émile Durkheim em As formas elementares de vida religiosa:
Já vimos como a Revolução Francesa instituiu todo um ciclo de
festas para manter em estado de perpétua juventude os
princípios nos quais se inspirava. Se a instituição desapareceu
rapidamente foi porque a fé revolucionária durou pouco; foi
porque as decepções e o desânimo substituíram rapidamente o
primeiro momento de entusiasmo (DURKHEIM, 1960, p. 506).
Fromm lembra também o socialismo, que criou o ritual das
celebrações do “Primeiro de Maio”. Ele reconhece que todo o ritual moderno
por uma sociedade sadia, tem sido pobre, e não atende à necessidade
humana, tanto do ponto de vista de quantidade quanto de qualidade em
relação à vida digna, realmente humana. E conclui: “Nós estamos de tal
66
?
FROMM, Erich, Psicanálise da sociedade contemporânea, 1963, p. 334.
81
forma atomatizados, alienados e destituídos de qualquer sentido genuíno de
comunidade que não poderemos criar novas formas de arte e ritual
coletivos”.67
Considerando que o caminho da ressurreição da arte ou mesmo a
“Religião da Razão”, entre outras possibilidades deste gênero, não são
capazes de tornar a sociedade mais humana e sadia, Fromm trabalha com a
ideia de transformação espiritual da sociedade, mas não vê como trabalhar
essa hipótese sem a religião. A razão para tal possibilidade está no fato de
reconhecer que os ensinamentos das grandes religiões monoteístas
acentuam os mesmos objetivos humanistas com base na “orientação
produtiva”.68 Por “orientação produtiva” Fromm quer dizer tudo que se refere
a uma atitude fundamental da personalidade, “...a um modo de relacionar-se
em todos os campos da experiência”. Objetivamente, assim escreve Fromm
sobre este tema:
Inclui as respostas mentais, emocionais e sensoriais para
outros, para si mesmo e para as coisas. Produtividade é a
capacidade do homem para empregar suas forças e realizar
suas potencialidades congênitas. Se dizemos “ele” deve
empregar “suas” forças, consideramos que ele deve ser livre e
não dependente de alguém que controla seus poderes
(FROMM, 1947, p. 92).
Com a afirmação acima, Fromm acredita, a princípio, que tanto o
judaísmo quanto o cristianismo, apesar de seus vícios históricos, têm ideais
dignos do ser humano, como um objetivo e um fim em si mesmo, quando
pregam o amor fraternal e a supremacia dos valores espirituais sobre os
valores materiais. Reconhece, porém, que esses valores éticos diferem em
67
?
FROMM, Erich, 1963, p. 335.
68
?
FROMM, Erich, Ética e psicanálise, 1947, p
82
relação a certos conceitos de Deus que envolvem milhões de fiéis em várias
religiões. Mas em Análise do homem (1970), chega a declarar que “A
religião do sucesso está-se desmoronando e tornando-se, por sua vez, uma
fachada”.69 De maneira mais enfática declara, citado por Schaar:
É provável que dentro dos próximos séculos uma nova religião
humanística e universalista se tenha desenvolvido. Até lá,
podemos unir-nos numa negação firme das idolatrias do
Estado, do poder, da máquina e do sucesso. Nessa negação
encontraremos mais elementos de uma fé comum do que em
quaisquer “declarações afirmativas sobre Deus”(SCHAAR,
1965, p. 222).
Contudo, continua Fromm, com o desenvolvimento da sociedade
industrializada, conceitos deístas desaparecerão. Por isso, considera não
ser audacioso pensar no surgimento de uma nova religião que corresponda
ao desenvolvimento da raça humana, de caráter universalista, que
corresponda à unificação da humanidade, fiel aos princípios humanistas. E
assim descreve o que seria a nova religião:
Essa religião criaria novos rituais e formas de expressão
artística conducentes ao espírito de reverência para com a vida
e a solidariedade humana. A religião é coisa que não pode ser
inventada. Ela surgirá com o aparecimento de um novo grande
mestre, como as religiões apareceram nos séculos anteriores,
sempre que oportuno. Entrementes, os que acreditam em Deus
deveriam expressar a sua fé vivendo-a; os que não acreditam,
vivendo dentro dos preceitos de amor e justiça – e esperando
(FROMM, 1963, p. 337).
69
?
FROMM, Erich, 1970, p. 124.
83
Apesar de toda essa crítica de Fromm à religião tradicional, em
especial ao judaísmo e ao cristianismo, e de suas contribuições positivas
nessas religiões, parece haver razões para que ele projete a possibilidade
de uma religião humanista e universalista. Mesmo a partir da principal
literatura do judaísmo, o Antigo Testamento, e dos valores humanistas
presentes nessas religiões, ele sugere que determinados princípios, normas
e conceitos sejam revistos e adequados à situação do ser humano numa
sociedade capitalista e industrializada. Nesse sentido Fromm parece
concordar com Durkheim quando afirma que:
Quanto a saber quais serão os símbolos em que se exprimirá a
nova fé, se se assemelharão ou não aos do passado, se serão
mais adequados à realidade que deverão traduzir, essa é uma
questão que supera as faculdades humanas de precisão e,
aliás, não diz respeito à substância das coisas (DURKHEIM,
1960, p. 506).
Do ponto de vista de Durkheim, apesar das críticas que até mesmo a
ciência tem à religião, esta, como fenômeno, como um sistema de fatos
dados, não pode ser ignorada, é uma realidade, porque nela há algo de
eterno, como o culto e a fé, certamente em um ou mais deuses ou espíritos.
Por isso, deve ser considerado fenômeno religioso quando for possível
reconhecer que
...há na religião algo de eterno destinado a sobreviver a todos
os símbolos particulares nos quais o pensamento religioso se
envolveu sucessivamente. Não pode haver sociedade que não
sinta necessidade de conservar e reafirmar, a intervalos
regulares, os sentimentos coletivos e as ideias coletivas que
84
constituem a sua unidade e a sua personalidade (DURKHEIM,
1960, p. 505).
A questão que se coloca diante da afirmação de Durkheim, é saber
até que ponto a proposta de Fromm, de uma nova religião, contemplaria a
necessidade desse “algo eterno destinado a sobreviver”, considerando o
modelo a ser adotado, se estaria voltado para um tempo novo, a ser
experimentado pela sociedade contemporânea com os seus novos deuses e
símbolos particulares, sem deixar de conservar os sentimentos e ideias
coletivas...
Apesar de tudo que se possa imaginar, parecem proféticas as
palavras de Durkheim quando assim escreve sobre a possibilidade de
revivificação dos sentimentos religiosos, sem, contudo, imaginar a
possibilidade de uma nova religião para a sociedade contemporânea:
Virá um dia em que as nossas sociedades conhecerão
novamente horas de efervescência criadora, durante as quais
novos ideais surgirão, novas fórmulas aparecerão e, por certo
tempo , servirão de guia para a humanidade; e essas horas,
uma vez vividas, os homens sentirão espontaneamente a
necessidade de revivê-las de tempos em tempos, pelo
pensamento, ou seja, de conservar a sua lembrança por meio
de festas que revivifiquem regularmente os seus frutos
(DURKHEIM, 1960, pp. 505-506).
Fromm avalia criticamente, referindo-se às Igrejas, que há razões que
explicam, na sociedade contemporânea, o valor da religião, partindo do
pressuposto de que, se são ou foram outros os motivos de sua validade
entre os povos, no atual momento ela serve para entorpecer e tranquilizar o
ser humano:
85
...todas as Igrejas pertencem essencialmente a forças
conservadoras da sociedade moderna e empregam a religião
para manter o homem tranquilo e satisfeito com um regime
profundamente irreligioso. A maioria deles parece não se
aperceber de que esse tipo de religião degenerará finalmente
em idolatria ostensiva, a menos que eles próprios comecem
por definir e depois a combater a idolatria moderna, em vez de
emitir juízos sobre Deus, empregando assim um santo nome
em vão – em mais de um sentido (FROMM, 1963, p. 176).
Uma vez que a religião tornou-se desta forma um instrumento
fundamental para a sociedade humana, apesar de todos os seus equívocos
e defeitos, que seja, então, uma Religião Humanista, é o que conclui Fromm.
Para justificar seu ponto de vista Fromm levanta questões sobre a religião
que temos.
4.1 A religião que temos
O Deus da religião que temos
De acordo com Fromm a religião que temos, de modo geral e em
sentido mais amplo, o ser humano adora a mais de um deus: “a máquina e a
ideia de eficácia, tendo em vista que o sentido de nossa vida é avançar,
prosperar, chegar o mais perto do cume”. 70 Todavia, se o ser humano se
apega a um só deus (monoteísmo), diz ele que desta forma a nossa religião
não é mais do que uma das mercadorias expostas em nossas vitrines.
Segundo Fromm, o Deus das religiões monoteístas, que se
transformaram em ídolos, “...foi transformado em um remoto Diretor-Geral do
Universo, S. A.; você sabe que Ele está lá, que Ele dirige o espetáculo
(conquanto provavelmente o espetáculo também funcionaria sem Ele), você
70
?
FROMM, Erich, 1955, p. 175.
86
jamais O vê, mas percebe a Sua direção enquanto você está
‘desempenhando o seu papel”. 71 Ele não tem esperança no que se tem
chamado de “renascimento religioso”, que o considera como um golpe
contra o monoteísmo. E assim completa Fromm:
Haverá maior sacrilégio do que referir-se a Deus como “o
homem que está lá no sobrado”, do que ensinar a rezar para
que Deus se torne um sócio nos negócios do que “‘vender” a
religião com os métodos e a propaganda usados para vender
sabonetes? (FROMM, 1963, p. 176)
De modo geral Fromm também reafirma que as Igrejas cristãs estão
ligadas às forças conservadoras da sociedade industrializada e fazem da
religião um meio de manter o ser humano tranquilo e satisfeito com um
regime profundamente irreligioso, isto é, idolátrico, como vimos.
A religião como mal necessário para a sobrevivência humana
Mesmo com essas críticas que Fromm faz à religião, admite que ela é
necessária à sobrevivência do ser humana no mundo. Por isso declara:
Entendo por religião qualquer sistema de pensamento e ação
seguido por um grupo, e capaz de conferir ao indivíduo uma
linha de orientação e um objeto de devoção. Não existe, na
verdade, qualquer cultura do passado, e parece-nos que não
existirá no futuro, de que a religião, no sentido extenso da
nossa definição, deixe de ser parte integrante (FROMM, 1950).
Fromm reconhece, portanto, que quando se estuda o ser humano de
maneira mais profunda, percebe-se que ele tem necessidade de um sistema
71
?
FROMM, Erich, 1963, p.175.
87
comum de orientação e de um objeto de devoção, algo que está
profundamente enraizado nas condições da existência humana. Não se
trata, portanto, de poder escolher entre ter e não ter certos ideais, mas, em
se tratando de culto e devoção, é algo que se impõe naturalmente sobre o
ser humano. Contudo, esse mesmo ser humano pode escolher devotar-se
ao culto de uma força exterior autoritária ou cultivar livremente a razão e o
desenvolvimento de sua vida interior. A partir disso, Fromm esclarece que o
problema não está em ter ou não uma religião, mas sim o tipo de religião
que temos que seguir.
Contudo, acrescenta Fromm, com mais um argumento, que mesmo
não sendo compatível com o seu pensamento humanista na defesa da
liberdade humana, que a religião, até de maneira contraditória, tem papel tão
relevante na vida pessoal de alguém e na sociedade, que já na infância
exerce significativa influência na vida psicológica de servidão infantil, e que
assim contribui para a estabilidade social:
Tem ela a tarefa de impedir qualquer independência psíquica
da parte do povo, de intimidar intelectualmente, de provocar
uma docilidade infantil, socialmente necessária, para com as
autoridades. Ao mesmo tempo, tem outra função essencial:
oferece às massas certa satisfação que torna a vida
suficientemente tolerável e impede que elas procurem
modificar sua posição, passando de filho obediente a filho
rebelde (FROMM, 1963/1964, p. 21).
Mais adiante Fromm resume esta sua posição, mostrando que a
religião exerce, afinal, três funções fundamentais na sociedade:
... para toda a humanidade, serve de consolo às privações
impostas pela vida; para a grande maioria dos homens, é um
estímulo à aceitação emocional de sua situação de classe; e
88
para a minoria dominante, é um alívio dos sentimentos de
culpa provocados pelo sofrimento daqueles a quem oprime
(FROMM, 1963/1964, p. 24).
Naturalmente que ideias sobre a natureza e lugar da religião na
sociedade contemporânea são muitas e variadas. Contudo, no contexto do
nosso estudo e em busca de uma nova religião, Fromm pretende que, uma
vez que o fenômeno religioso é um “mal necessário”, que a religião se liberte
das forças conservadoras dessa sociedade, para que não continue sendo
um braço estendido da ideologia das classes dominantes, que dela se
utilizam como ópio para tranquilizar e deixar satisfeitos os indivíduos, ainda
que de forma profundamente irreligiosa. Daí a necessidade que temos de,
dentre outras alternativas, fugir do que se tem chamado de “religião
autoritária”.
A religião autoritária
Mais do que admitir o fato de que a religião transformou Deus em um
ídolo, ela também se tornou autoritária. Desta forma, o problema da religião
não se resume ao problema de “Deus”, mas principalmente ao problema do
“ser humano”, em suas relações consigo mesmo e com os outros. Quando a
religião admite a idolatria de um Deus a ser adorado, torna o ser humano
uma vítima da alienação e do aniquilamento da sua própria individualidade,
apesar de forças externas às suas.
A religião autoritária pode estar ligada a um deus-ídolo, autoritário,
poderoso, capaz de lidar com o ser humano sob um poder exterior, também
capaz de controlá-lo e dirigi-lo. Tal poder, de um deus autoritário, exige de
cada indivíduo atitudes de obediência, reverência e devoção de seus fiéis,
aos quais controla, sendo que a falta dessas atitudes é transformada em
pecado. Para Fromm o elemento essencial na religião autoritária e das
experiências de tal natureza é a submissão a um poder transcendental,
considerado divino, onipotente, onisciente e onipresente, o que faz com que
o indivíduo se sinta forte quando amparado por esse tipo de divindade.
89
Quando Fromm alega que nas religiões tradicionais existem
dificuldades a serem superadas, ele reconhece, por exemplo, em João
Calvino, um dos mais evidentes pensadores da Reforma Religiosa do século
XVI, um teólogo que, como teísta, trabalha com um sentimento autoritário ao
ressaltar, por exemplo, quando se refere ao conceito de “humildade” , a
considera como uma “{...} submissão sistemática de quem se sente
dominado por uma profunda certeza da sua miséria; pois esta é a definição
uniforme de humildade, nas palavras do próprio Deus”. Segundo Fromm, ao
criticar Calvino, aqui está o desprezo da personalidade do ser humano e
torna-se um excepcional símbolo de todas as religiões autoritárias, uma vez
que também faz de Deus símbolo de poder e força, monopolizador da razão
humana, enquanto o ser humano torna-se ao mesmo tempo infinitamente
fraco e dependente.72
Ainda em sua obra Psicanálise e religião, Fromm assim escreve sobre
a religião autoritária:
Frequentemente, a religião autoritária postula um ideal tão
abstrato e distante, que perde as conexões com a vida real do
povo, como este se apresenta. O bem-estar pessoal é
sacrificado a ideais como, por exemplo, “a vida eterna”, ou “o
futuro da espécie humana”; os fins justificam todos os meios, e
tornam-se símbolos, em nome dos quais as elites religiosas ou
seculares controlam os seus semelhantes (FROMM, 1966, p.
47).
Fromm reconhece que a primeira parte do Antigo Testamento foi
escrita sob o princípio ou espírito da religião autoritária, que descreve Deus
como chefe absoluto de um grupo patriarcal, e que a criação do ser humano
foi efetivada com a convicção de que a qualquer momento poderia destruí-lo.
Daí as proibições arbitrárias em relação às possibilidades do ser humano, no
72
?
FROMM, Erich, Psicanálise e religião, 1966, pp. 46-47.
90
sentido de que ele não poderia comer frutos da “Árvore do Conhecimento do
Bem e do Mal”, com ameaças de morte no caso de haver desobediência.
Fromm também reconhece no Antigo Testamento, um texto que serve
à religião autoritária, quando narra a violenta história do dilúvio, com a
destruição do ser humano e a salvação de Noé. Ele os considera como “atos
arbitrários de Deus, que age caprichosamente, como um legítimo chefe de
tribo”.73 Contudo, esse mesmo Deus passa por uma profunda transformação,
quando faz um Pacto solene com o ser humano, ao prometer “que não será
mais destruída toda a carne pelas águas do dilúvio” (Gênesis 9.11). Esse
Pacto faz parte da grande mudança nas relações entre o ser humano e
Deus, que deixa de ser senhor absoluto e, a partir desse momento, permite
que esse mesmo ser humano possa agir de acordo com a sua vontade.
Esse segundo momento da escrita vétero-testamentária, já atende às
demandas de uma religião humanista, segundo Fromm.
O dogma como aparelho ideológico do poder dominante na
religião autoritária
A questão do dogma no campo religioso, é vista por Fromm como um
elemento que precisa ser cuidadosamente observado porque ele tem servido
à religião autoritária. Daí que o problema da ideologia, que está diretamente
relacionado à questão do poder ou de quem exerce a autoridade, na visão
marxista mais ortodoxa, tem servido a quem está ligado ao poder e não quer
perder o domínio sobre a massa de fiéis seguidores de uma determinada
religião. Marilena Chauí,74 interpretando com fidelidade o pensamento de
Marx sobre ideologia afirma que ela é:
...um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações
(ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que
indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que
73
?
FROMM, Erich, 1966, p. 55.
74
?
CHAUÍ, Marilena, O que é ideologia. 5ª. edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
91
devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e
o que devem valorizar, o que devem sentir e como devem
sentir, o que devem fazer e como devem fazer (CHAUÍ, 1980,
p. 113).
Até que ponto, nos termos em que Chauí se coloca, o dogma não tem
sido na religião, um importante instrumento ideológico de dominação,
preservação e consolidação de ideais a serviço de determinados grupos que
exercem o poder em uma determinada sociedade? Embora a teoria de
Althusser sobre “aparelhos ideológicos de Estado” 75 esteja voltada para
questões políticas que estão relacionadas ao poder da ideologia na
sociedade, parece-nos oportuno lembrar, mutatis mutandis, com base neste
autor, que a religião e seus dogmas tornou-se “aparelho ideológico de
Estado” durante a Idade Média, especificamente através das atuações da
Igreja na época. Neste caso, a Igreja seria um instrumento utilizado pelas
classes dominantes para agir através de seus dogmas, no mesmo sentido
da ideologia, quando aplicado à sociedade contemporânea, conforme acima
descrita por Chauí.
Em O dogma de Cristo Fromm observa que o dogma é possuidor de
função orgânica na sociedade, tem significação social, é fantasioso (o que
satisfaz às exigências dos crentes) e funciona como uma satisfação real.
Textualmente, ele assim escreve:
Como as satisfações simbólicas são condensadas em forma de
um dogma em que as massas devem acreditar, de acordo com
a autoridade dos sacerdotes e governantes, parece-nos que o
dogma deve ser comparado a uma sugestão poderosa,
experimentada subjetivamente como uma realidade, devido ao
consenso entre os crentes. Para que o dogma atinja o
inconsciente, o conteúdo que não é capaz de ser percebido
75
?
ALTUSSER, Louis, Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal,1983.
92
conscientemente deve ser eliminado e apresentado em formas
racionalizadas e aceitáveis (FROMM, Erich, 1963/1964, p. 78).
Fromm considera que os ideólogos das classes dominantes
conservaram determinadas situações sociais no passado, convencendo as
massas com fantasias cristãs primitivas, mantendo esperanças na derrubada
de governantes, por exemplo, como ocorreu na Idade Média, quando
dogmas católicos atenderam às expectativas dessas massas. Neste caso,
as satisfações simbólicas guiaram a agressividade das massas para canais
socialmente inofensivos.
Tal postura é própria de religiões autoritárias, segundo Fromm.
4.2 - A proposta de uma nova religião
Diante de tudo que foi visto, Fromm trabalha com a possibilidade de
uma nova religião, de caráter humanista. Em Psicanálise da sociedade
contemporânea, ele chega a ser bem explícito quando imagina que nela os
conceitos deístas desaparecerão no futuro da humanidade. Como seria
possível essa nova religião?76
Fromm e a natureza da Religião Humanista
Conforme vimos, Fromm ignora o que se tem dito sobre a religião
numa época em que, como diz Rubem Alves, “Com o nascimento do
cientista Deus começa a morrer...{...} Embora os cientistas frequentemente
se recusem a confessar...”77 num tempo em que não mais deveria haver
lugar para a ilusão. Por isso Freud, de quem Fromm é discípulo, ainda que
divergindo do mestre em vários aspectos de suas teorias, publicou sua obra
O futuro de uma ilusão, deixa claro que a religião precisa ser destruída, por
ser uma ilusão psíquica, criada pela capacidade humana de imaginar uma
76
?
FROMM, Erich, 1963, p. 337.
77
?
ALVES, Rubem, O enigma da religião. 2ª. edição, Petrópolis, 1979, p.39.
93
situação na qual os desejos se realizariam. Seria este, então, o caminho
para a alienação, uma fuga da realidade à qual o ser humano insiste em não
ter dela, consciência. Fromm também não leva em consideração as ideias
de Marx ou de Feuerbach sobre a religião, para os quais ela é “o ópio do
povo”.
Fromm, apesar de admirador das ideias marxistas, considera ser
normal a possibilidade de surgimento de uma nova religião nos próximos
anos, com a real capacidade de corresponder ao desenvolvimento da raça
humana, de caráter universalista, capaz de corresponder à unificação da
humanidade. Ela compreenderia, tendo em vista os ensinamentos
humanistas comuns e presentes nas grandes religiões do Oriente e do
Ocidente, doutrinas coerentes em relação ao discernimento racional da
humanidade neste tipo de sociedade, com ênfase sobre as práticas da vida
cotidiana e sem crenças sobre dogmas historicamente cristalizados.
Desta forma, a nova religião deveria negar firmemente qualquer tipo
de idolatria, seja do Estado, do poder, da máquina e do sucesso, sem deixar
de levar a sério os ensinamentos éticos do judaísmo e do cristianismo sobre
a dignidade humana, sobre o amor, a valorização da razão e a supremacia
dos valores materiais. Com isso, o ser humano teria conseguido “organizar
uma sociedade em que o interesse da ‘sociedade’ se tenha tornado idêntico
ao de todos os seus membros”,78 conforme acredita Rousseau.
Por uma “religião humanista” Fromm chama a atenção para a
importância da razão, da liberdade e do amor como ideais a serem seguidos
sem a possibilidade de Deus como suporte ético. Em termos práticos, neste
tipo de religião, o ser humano tem condições de desenvolver suas
potencialidades, incluindo a força de sua razão, para que possa entender a
si próprio, suas relações com os seus semelhantes e o lugar que ocupa no
universo. Neste tipo de religião torna-se possível a realização pessoal e
negação da obediência passiva, o que deve acontecer somente com o uso
da razão.
78
?
FROMM, Erich, Análise do homem, 1963,p. 215.
94
Não é de se estranhar a possibilidade de uma religião sem Deus,
imaginada por Fromm, uma vez que, antes dele, Émile Durkheim, em sua
obra clássica As formas elementares de vida religiosa, em 1912, a partir da
análise que fez sobre “o sistema totêmico na Austrália”, já havia constatado
tal fato. Dessa análise, ele deduz que uma religião não começa
necessariamente como uma crença em divindades, mas a partir do
sentimento de continuidade da vida. Isto porque a principal prerrogativa da
religião é a organização da existência social, a partir de uma realidade
essencialmente coletiva.
Pode-se agregar a tudo isso, o fato de que já a partir do século XX, há
pessoas que se apresentam no meio social, dizendo-se confortáveis, mesmo
sem crença religiosa, sem dogmas para seguir, sem líderes religiosos para
obedecer ou ser por eles molestados. Há os que afirmam que são capazes
de alimentar a sua espiritualidade sem precisar frequentar templos ou
acreditar em um deus ou mesmo sendo capazes de viver sem apelar pela
ajuda de forças invisíveis e sobrenaturais.
Vale considerar, contudo, que ainda que tudo isso tenha sido possível
para alguns, ou mesmo que reconheçamos o fato da religião ter sido
legitimadora de diversas forças de poder arbitrário ao longo de toda a
história da humanidade, não se pode anular seu potencial criador, seu
impulso para a ação coletiva de maneira produtiva. Por isso o próprio
Durkheim79 compreendia que, em última instância, a religião ensina as
pessoas a viverem melhor e fornece, especialmente para a sociedade
contemporânea a base para a estabilidade das relações sociais.
Não é diferente, em relação a Durkheim, o que o próprio Fromm
reconhece, isto é, que a validade da religião deve ser reconhecida, desde
que ela desenvolva entre e nos seres humanos, suas potencialidades,
tornando-os capazes, produtivos, livres, amáveis, verdadeiramente
humanos.
79
?
DURKHEIM, 1960, p. 505.
95
A razão como instrumento fundamental na religião humanista
Na prática da religião humanista, o uso da razão é fundamental. De
seu desenvolvimento completo depende a obtenção da liberdade plena, o
que certamente faz do ser humano, uma pessoa independente. Fromm se
apoia no conceito de Marx quando se refere à independência do ser humano
e afirma que...
...o homem só é independente se afirma a sua individualidade
como homem total em todas as suas relações com o mundo,
na visão, audição, olfato, paladar, sentimento, pensamento,
desejo, amor – suma, se afirma e expressa, todos os órgãos de
sua individualidade’. A independência e a liberdade são a
realização da individualidade, não somente a emancipação da
coação, nem a liberdade em questões comerciais (FROMM,
1963/1964, p. 123-124).
O risco da “fé irracional”
Fromm ao discutir a respeito da importância da razão no exercício da
fé religiosa, chama a atenção para o perigo da irracionalidade da fé. Sobre
este tema ele assim escreve:
Por fé irracional entendo a crença em uma pessoa, ideia ou
símbolo, que não resulta da experiência própria da pessoa, de
pensamento ou sentimento, mas se funda na sua submissão
emocional a uma autoridade irracional (FROMM, 1970, p. 173).
Com esta observação sobre a fé irracional, Fromm quer esclarecer
melhor a conexão que há entre a submissão do crente e os processos
intelectuais e emocionais. Com isso prevalece a afirmação de que quem
renuncia à sua independência interior e se submete a uma determinada
autoridade tem a tendência de substituir sua experiência própria pela da
96
autoridade. Como exemplo dessa possível situação, Fromm cita o que
acontece com um indivíduo em uma situação hipnótica, quando uma pessoa
se rende à autoridade de outra e, durante o estado hipnótico torna-se
vulnerável a ponto de “pensar e sentir o que o hipnotizador ‘a faz pensar e
sentir’. E mesmo depois de haver despertado do sono hipnótico, obedecerá
a sugestões que lhe foram dadas pelo hipnotizador, conquanto pense que
está obedecendo a seu próprio juízo e iniciativa”. 80
Fromm dá alguns exemplos do que ele chama de “fé irracional”: o
relato bíblico da libertação dos judeus do jugo egípcio, quando estes são
descritos como um povo que, apesar do sofrimento provocado pela
escravidão, teme rebelar-se e assim correr o risco de perder a segurança
que tem como escravo; a fé nos chefes ditatoriais, quando muitos adeptos
de ditadores fanaticamente revelam-se prontos a morrer por eles sem
maiores questionamentos sobre essa necessidade; a fé cega de pessoas, na
defesa de autoridades, líderes políticos ou religiosos, ou mesmo de uma
causa, inclusive com a disposição de dar a vida em relação ao que creem ou
aceitam. Esse tipo de fé pode também incluir os que defendem causas como
a liberdade, a paz, etc. A diferença está no tipo de objeto pelo qual se luta.
A plausibilidade da fé racional
A fé racional, em contraste com a fé irracional, está alicerçada na
convicção obtida através das experiências produtivas, intelectuais e
emocionais. Essa fé basicamente racional, é a adequada para ser praticada
numa sociedade que está enferma. Nesse sentido Fromm entende que se
trata de um fenômeno, isto é,
No pensamento racional, em que se supõe não haver lugar
para ela, a fé racional é um componente importante. Como o
80
?
FROMM, 1970, p.173.
97
cientista chega a uma nova descoberta? Será que começa a
fazer experiência após experiência, reunindo fato sobre fato,
sem ter uma visão do que espera encontrar? Raramente foi
realizada qualquer descoberta importante em qualquer campo
dessa maneira; tampouco houve quem chegasse a conclusões
valiosas quando estava apenas perseguindo fantasias. O
processo do pensamento criador em qualquer campo do
esforço humano muitas vezes principia pelo que pode ser
chamado uma “visão racional”, ela mesma um resultado de
considerável estudo, reflexão e observação anteriores
(FROMM, 1963/1964, p. 176).
A partir deste princípio de fé racional, Fromm trabalha com algumas
possibilidades que fazem parte de uma religião humanista. Procura mostrar
que essa fé surge dentro do ser humano, pois somente quem tem fé em si
mesmo é capaz de ser fiel a outras pessoas; trata-se de uma fé que é
provável e plausível, parte de uma convicção independente baseada na
observação e pensamento produtivos da própria pessoa; leva em
consideração as potencialidades dos outros, de si e da humanidade.
Para Fromm a base da fé racional é a produtividade, pois “viver por
nossa fé significa viver produtivamente e ter a única certeza que existe: a
certeza que germina da atividade produtiva e da experiência de cada um de
nós é o sujeito ativo de quem essas atividades constituem o prejudicado”. 81
Mais adiante, completa Fromm, se a fé racional “radica na experiência de
sua própria produtividade, a pessoa não pode ser passiva, e sim deve ter
uma atividade interior autêntica”.82
De modo geral o ser humano não pode viver sem fé. Aqui Fromm
observa que “A questão crucial para nossa geração e as seguintes é saber
se essa fé será uma fé irracional em chefes, máquinas, sucesso, ou a fé
81
?
FROMM, Erich, 1963/1964, p. 178.
82
?
Ibid., p. 178.
98
racional no homem fundada na experiência de nossa própria atividade
produtiva”.83
Quando a fé mística pode incluir a racionalidade
Fromm entende que ao considerarmos a fé racional como um valor
próprio da experiência produtiva do ser humano, nada pode ser seu objeto
que transcenda essa experiência do ser humano. Consequentemente, não
se pode falar de fé racional quando alguém crê em ideias de amor, razão e
justiça, porque não são produtos de sua experiência. Esses valores são
parte de um processo de aprendizagem que são determinantes para que
creia ou aceite nesses valores.
Para Fromm não se pode menosprezar o fato de que há aspectos
místicos da religião que salientam a capacidade do ser humano amar seu
semelhante e a Deus, por exemplo, que cultivaram a atitude da fé racional
no simbolismo religioso. Inclua-se aqui, de igual modo, a fé em sua forma
secular, particularmente em relação às ideias sociais e políticas. Por isso,
“Há muito menos diferença entre uma fé mística em Deus e a fé racional de
um ateu na humanidade, do que entre aquela primeira fé e a de um
calvinista cuja fé em Deus se alicerça na convicção de sua própria
impotência e em seu temor do poder de Deus” (FROMM, 1963).
Os profetas na religião humanista como mensageiros da paz para
o “tempo messiânico”
Os profetas contam com a atenção especial de Fromm em seu
trabalho sobre o Antigo Testamento. São vistos como expoentes de um
semelhante humanismo radical capazes de promover a unicidade da raça
humana, a capacidade do ser humano no desenvolvimento de seus poderes
e alcançar uma harmonia interior com o estabelecimento de uma paz
mundial, comparáveis aos grandes filósofos da humanidade.
83
?
Ibid.,p. 179.
99
Ao se referir ao conceito profético da paz em sua obra O dogma de
Cristo, Fromm chama a atenção para o fato de que os profetas ao
aparecerem sempre na história dos judeus em momentos de crise (em meio
a lutas e conflitos), tornaram-se portadores de mensagens para a reflexão,
para a consciência da realidade, possibilidade de castigos, possibilidades de
uma nova harmonia, de um “tempo messiânico” de paz. A paz, na visão
profética, é considerada possível:
Quando o homem tiver superado a divisão que o separa do seu
próximo e da Natureza, então estará realmente em paz com
aqueles de quem estava separado. Para isso, o homem tem de
encontrar a “expiação”; a paz é o resultado da transformação
do homem, na qual a união substitui a alienação (FROMM,
1963/1964, p. 158).
Essa paz à qual Fromm se refere está aliada à realização da
humanidade do ser humano; é mais do que ausência de guerra, inclui a
harmonia e união entre todos os seres humanos e supera a divisão e a
alienação. Ao incluir a Natureza como objeto da paz, não significa que o ser
humano a dominará, mas que será humanizada, parte do mundo humano.
Na linguagem profética essa paz, shalom (palavra hebraica que significa
“paz”), é mais do que comumente a consideramos, mas pode e deve ser
traduzida como “totalidade”. Desta forma, o “tempo messiânico” se reveste
de um sentido novo, conforme descrito pelo profeta Isaías, lembra Fromm:
Os olhos dos cegos se abrirão, os ouvidos dos surdos ouvirão.
O coxo saltará como um cervo, e a língua do mudo cantará de
alegria. Pois as águas irromperão nos descampados, e as
correntes no deserto. A areia candente se tornará como um
poço, e o chão sedento minará água; o aprisco dos chacais se
transformará em pântano, a grama se transformará em caniço
100
e juncos. E não haverá nela leões, nem animais de rapina;
estas não se encontrarão ali, mas os redimidos trilharão por
essa estrada. E os resgatados do Senhor voltarão, e irão a
Sião cantando; a alegria perene estará em suas cabeças, terão
alegria e contentamento, as dores e suspiros desaparecerão
(Isaías 35.5-10).
Outro texto de Isaías é citado por Fromm para mostrar a possibilidade
da mensagem profética num mundo em transformação:
Vede, faço algo de novo: fontes surgem, não percebeis? Elas
abrirão caminho pela desolação e rios no deserto. Os animais
selvagens me honrarão, os chacais e os avestruzes; pois eu
dei água à desolação, rios ao deserto, dei de beber ao meu
povo escolhido (Isaías 54.19-20).
Ainda ressaltando que o tempo messiânico trará nova união entre os
seres humanos, no qual o sentimento de ser estranho desaparecerá, Fromm
cita uma mensagem do profeta Miquéias:
Ele julgará entre muitos povos e decidirá pelas nações fortes e
distantes; e elas transformarão suas espadas em arados, suas
lanças em ancinhos; nenhuma nação levantará a espada
contra a outra, nem aprenderá mais a guerra. Mas cada qual se
sentará sob sua vinha e sua figueira, e nada as fará ter medo;
pois a boca do Senhor das hostes falou. Pois todos os povos
caminham em nome de seu deus, mas nós caminhamos em
nome do Senhor nosso Deus para sempre e sempre (Miquéias
4.3-5).
101
Fromm faz um destaque interessante, sobre a universalidade do
fenômeno da salvação, ou melhor, do “tempo messiânico”, quando procura
mostrar que essa nova época não é exclusivamente destinada para os
judeus, mas igualmente uma possibilidade para todos os seres humanos,
uma vez que, para ele, nesse novo tempo, todos igualmente são amados por
Deus; não há para Ele “filho favorito”, conforme destaca o profeta Isaías:
Nesse dia, haverá uma estrada do Egito à Assíria, e os assírios
virão ao Egito, os egípcios à Assíria, e os egípcios adorarão
junto com os assírios. Nesse dia Israel será o terceiro com o
Egito e Assíria, uma bênção em meio da terra, a quem o
Senhor das hostes bendisse, dizendo: - Abençoado seja o
Egito meu povo, a Assíria, obra de minhas mãos, e Israel, meu
legado (Isaías 19.23-24).
Essa ideia profética de paz, na abordagem de Fromm, nos faz pensar
sobre a possibilidade histórica de tais fenômenos se tornarem concretos. Na
verdade, ele escreve para a sociedade contemporânea, no século XX, com
suas transformações rápidas e profundas, num mundo acentuadamente
pragmático, no qual, é verdade, o transcendental ainda persiste nas
fantasias do ser humano. Quando se dará esse momento histórico (“tempo
messiânico”), profetizado pelos profetas radicais e humanistas aos quais se
refere, considerados semelhantes aos nomes por ele citados que
transformaram a história em seu tempo e lugar como “Sócrates, Immanuel
Kant, Karl Marx, Albert Schweitzer, dentre outros”?
O lugar da esperança no contexto da religião humanista
É importante lembrar que toda obra produzida por Fromm na defesa
do humanismo e, em especial, neste caso, de uma religião humanista, leva
em consideração a saúde e bem-estar do ser humano numa sociedade
industrializada, capitalista e enferma. Diante de tudo que vimos até aqui, há
102
um pressuposto claro em suas teses, que é o de incluir a esperança como
aspecto fundamental diante da situação e condição do ser humano no
mundo. Quando ele se refere à mensagem de paz a ser veiculada pelos
profetas, a “esperança messiânica” deve ser encarada como um “constante
vir-a-ser”, conforme Heráclito usava esta terminologia ao referir-se à
importância do movimento para a transformação do ser humano e da
sociedade.
Por uma Teologia da Esperança
Na Teologia cristã, Jurgen Moltmann enfatizou a possibilidade de uma
“Teologia da Esperança” ao publicar sua obra com o mesmo título, em 1964,
na mesma década em que Fromm no auge de sua carreira, publicava suas
obras com ênfase na situação e condição humanas numa sociedade
industrializada, capitalista e enferma. Em sua obra Moltmann não apenas se
lança a uma nova reflexão numa perspectiva escatológica do ponto de vista
da fé cristã, como também desafia seus leitores à responsabilidade
decorrente para o pensamento e ações no mundo contemporâneo.
Ao relacionar a esperança à escatologia ou, em outras palavras, à
“doutrina do eschaton” ou “doutrina das últimas coisas”, do final dos tempos
ou ainda do final do mundo e da humanidade, Moltmann assim escreve:
Mas como falar de um futuro que ainda não existe, e de
acontecimentos vindouros aos quais ainda ninguém assistiu?
Não se trata de sonhos, especulações, desejos e temores, que
todos necessariamente permanecem vagos e indecisos, já que
ninguém os pode comprovar? A expressão “Escato-logia” é
falsa. Uma “doutrina” sobre as últimas coisas não pode existir,
se com “doutrina” se entende uma coleção e de afirmações
doutrinárias que se conhecem a partir de experiências que
podem ser repetidas e feitas para todos (MOLTMANN, 1971,
p.3).
103
Obviamente que como teólogo protestante, Moltmann enfatiza a
questão da esperança e da escatologia a partir da fé cristã. Nessa ênfase vê
a esperança cristã, em particular, como uma esperança de ressurreição na
qual está implícita sua verdade de maneira contraditória na relação entre o
presente e o futuro, tendo em vista o futuro de justiça contra o pecado, de
vida contra a morte, de glória contra o sofrimento, de paz contra a divisão.
Mas, diz Moltmann, “É nessa contradição que a esperança deve mostrar sua
força”.
O que faz a diferença nessa ênfase de Moltmann, é a fé, partindo do
pressuposto de que é ela que se apoia sobre a esperança e “se lança para
fora do mundo”, conforme Calvino. Nesse caso, crer significa transpor
fronteiras, transcender a realidade na qual está incluída a possibilidade de
morte, sofrimento, corrupção. Pela fé essas realidades serão ultrapassadas
não se refugiando no céu ou na utopia, nem sonhando estar em outra
realidade. “Ela pode passar os limites da vida humana, murados por
sofrimentos, pecados e morte, mas com a aceitação do Cristo ressuscitado
do sofrimento, da morte, do abandono de Deus e do túmulo...” 84 Como se
percebe, somente com a crença numa divindade, Cristo, pode-se ter
esperança e ultrapassar limites. Por isso, o existencialismo ateu, sem Deus
e sem Cristo, por exemplo, pode nos levar a pensar que “Não há mais
esperança nem Deus. Só existe ainda o pensar claro e nada esperar...” 85
Por uma Sociologia da Esperança
Em várias outras áreas do conhecimento humano a esperança vem
sendo abordada, inclusive na Sociologia, até então inimaginável. Uma
questão era, “como falar de uma sociologia da esperança”, na sociedade
contemporânea, tema sempre considerado como parte do rol das
vacuidades e fantasias próprias de épocas pré-científicas? Vale ressaltar,
84
?
MOLTMANN, 1971, p. 6.
85
?
Ibid.,, p. 13.
104
porém, a contribuição de Henri Desroche86 em sua obra Sociologia da
esperança (1985) na qual aborda a esperança como um tema científico,
capaz de ser submetido ao rigor que a ciência exige na abordagem de seus
objetos.
Em seu trabalho sobre a esperança Desroche considera que existem
várias maneiras de concebê-la. A princípio, ele procura mostrar que a
esperança, desde os primórdios da humanidade, foi sempre objeto da
Teologia, mas que na atualidade ela pode servir de ponte para o diálogo
fecundo entre Teologia e Sociologia, sob o rigor do método científico.
Desroche a considera como “força que sustenta aspirações, energia que
move montanhas, ação política que coloca a imaginação no poder. E
empurra a sociedade para além de si mesmo”, dizem seus editores em
1985.
Desroche trabalha com a ideia de que o fenômeno da esperança
pode ser visto sob vários aspectos, a princípio tendo como referência a obra
de Durkheim, As formas elementares de vida religiosa (1960), e as
contribuições de Roger Bastide. Confessa que quando nos referimos a
“representações imaginárias” temos dificuldades de concebê-las
adequadamente, conforme assim escreve:
...talvez por termos sido contaminados pelas populações
destes fenômenos, tornamo-nos céticos sobre a validade do
axioma segundo o qual tas “representações” – oníricas,
cultuais, culturais, “utopiananas”, ideológicas, em suma, de
maneira ou outra “imaginárias” – seriam explicáveis “em última
instância” por, e finalmente redutíveis a “situações” da
realidade social, econômica, tecnológica ou demográfica
(DESROCHE, 1985, p. 9).
86
?
DESROCHE, Henri, segundo seus editores, foi professor e orientador de pesquisas na
“École pratique des Hautes Études”, de Paris, e fundador e diretor dos “Archives internationales de
sociologie de la cooperación et du développement”.
105
A partir da observação acima, Desroche procura mostrar que é
possível identificarmos vários tipos de esperança, com ou sem a inclusão de
valores ligados a fenômenos religiosos. Como ele afirma: “Tais fenômenos
serão os da imaginação coletiva em suas expressões utópicas, milenaristas
ou utópico-milenaristas”.87
Entre as vertentes da esperança Desroche reconhece:
“A esperança como ‘sonho em vigília”
Seria o sonho comprometido com a realidade, que precedem,
comandam e finalmente constituem uma realidade que sem eles só teria
sido um possível definitivamente sepultado. Isto, apesar da suspeita de que
o sonho seria vazio e talvez inútil para a vida humana, embora em muitas
situações os sonhos não estejam longe da esperança. F. Dumont chegou a
afirmar que “A sociologia só se interessa pelo homem acordado como se o
homem adormecido fosse um homem morto”.88 Roger Bastide chegou a
afirmar, ao rejeitar a função social do sonho, que “nossa civilização
contemporânea na qual seu ersatz - o recurso à ‘chave dos sonhos’ – é
considerado somente como resíduo que não pertence a uma sociologia que
se preza mas a uma espécie de serviço de limpeza pública social...”. 89 Vale
lembrar que o “sonho” (estado de vigília ou diurnos, ou durante o sono)
como fenômeno da mente humana, é visto na Psicanálise como a
“realização de desejos”, tendo como pressuposto que a satisfação que é
procurada nele, é possível, graças ao desconhecimento do sentido latente.
Considerando a possibilidade de acolhermos a ideia da esperança como
“um sonho em vigília”, completa Desroche: “Se a esperança é um sonho em
vigília como já o queriam Aristóteles ou Platão, este sonho em vigília coletivo
deve ser paradoxalmente um de seus momentos de ‘plenitude’. Cabe à
87
?
DESROCHE, 1985, p. 11.
88
?
F. Dumont, la Vigile du Québec, (s/e), Montreal, 1971, pp. 180s.
89
?
DESROCHE, 1985, p. 21.
106
sociologia esclarecer este sonho ‘da mesma maneira e pelas mesmas
razões que o sonho esclarece o social’. 90
A esperança como “ideação coletiva”
Partindo do pensamento de Durkheim quando se refere ao lugar e a
função da ideação coletiva, Desroche procura mostrar que a esperança
quando ligada ao fenômeno religioso, no ambiente da ideação coletiva,
pressupõe a influência de um sistema de forças que vão além das ideias que
dominam o ser humano, e ao mesmo tempo o sustenta e o eleva acima de si
mesmo. Tudo isso se realiza sob a influência da religião que, segundo
Durkheim, citado por Desroche, indica que “a verdadeira função da religião
não é fazer-nos pensar, enriquecer o nosso conhecimento, acrescentar às
representações , que devemos à ciência, representações de outra origem e
de outro caráter, mas a de fazer-nos agir, auxiliar-nos a viver”. 91
A esperança como espera efervescente
Levando em consideração o pensamento de Marcel Mauss e de Jean
Lacroix, Desroche desenvolve suas ideias destacando a importância da
“aspiração”, ou de espera de um ideal desejável e desejado; e da
“expectação” ou da espera de uma realização possível como aparece
circunscrita por capacidades. Desta forma, reconhece a dialética da
esperança entre o que se deve fazer para responder à solicitação subjetiva
dos desejos e o que se pode fazer para responder à situação objetiva das
possibilidades. E assim sintetiza o pensamento de Lacroix:
Assemelha-se então à fé da qual está escrito que “remove
montanhas”. A vontade gera capacidades. O desejável
exorciza o impossível. A aspiração dilata a expectativa. As
“representações” da esperança metamorfoseiam as “situações”
desesperadas. Finalmente, e para retomar um axioma famoso,
90
?
Ibid.,, p. 22.
91
?
Ibid., p. 24.
107
se a existência social determina a consciência, a consciência
determina tão bem, se não melhor, a existência social. A
imaginação toma o poder (DESROCHE, 1985, p. 28).
Desroche ainda chama a atenção para o fato da esperança poder
identificar-se com a efervescência, isto é, faz-se necessário distinguir a
diferença entre a “espera inibidora” e a “espera exaltante”. E assim ele
escreve a respeito dessa diferença:
Pois há casos – e são inúmeros – em que a espera é exultante,
mobilizadora, motivante, criadora de “coalescências”,
unificadora, desagregadora, , fomentadora de energias, de
novos impulsos, de resistências, êxodos e hégiras, revoltas e
cruzadas, influente no despertar, determinante no caminhar de
etnias, grupos sociais, nações ou Igrejas, corporações ou
seitas que ela ergue acima de si mesmos numa criatividade
cultural inédita. Mas há também casos – e não são poucos –
em que a espera é inibidora, desmobilizadora, multiplicadora,
por vírus anebiante, das fragilidades de uma sociedade
anêmica, desintegradora, prenhe de renúncias e derrotas,
idealizadora das degenerescências ou distensões de uma
trama social, postuladora e sacralizadora de uma eutanásia
(DESROCHE, 1985, p. 28).
A esperança como utopia generalizada
Finalmente Desroche descreve a esperança como utopia, e tem como
referência o pensamento do sociólogo italiano Antônio Gramsci. Com
Gramsci temos a retomada do termo “utopia”, que nos faz lembrar dos
“sonhos em vigília”. Para Gramsci a “utopia” tem valor filosófico e político e a
religião ele a considera como a mais gigantesca utopia que apareceu na
história com a tentativa de conciliar sob uma forma mitológica as
contradições reais da vida do ponto de vista histórico. Gramsci postula,
108
assim, que a religião é uma utopia generalizante e generalizada. Desta
forma, Desroche chega à conclusão de que a utopia também pode ser vista
como uma religião secularizante e a religião como uma utopia sacralizante.
Embora a obra de Desroche tenha uma abordagem mais extensa
sobre a esperança, sob vários outros aspectos, parece-nos ser parcialmente,
embora suficiente, considerar suas ponderações como adequadas para a
sustentação do fenômeno da “esperança”, como fenômeno possível para a
vida social e para a religião humanista, proposta por Fromm.
A “esperança messiânica”: dinâmica e revolucionária
Fromm nos chama a atenção para a esperança como valor
fundamental para a vida dos judeus no Antigo Testamento, e em particular
para a ”esperança messiânica” a ser permanentemente sustentada e
buscada por todos. E ainda dedicou uma obra a este tema, A revolução da
esperança (1968). Nessa obra ele nos desafia a pensar a esperança como
sendo própria para uma sociedade saudável tendo em perspectiva, com a
esperança, o “tempo messiânico”.
Do ponto de vista de Erich Fromm “a fé, a esperança e a ressurreição
neste mundo encontraram sua expressão clássica na visão messiânica dos
profetas”.92 Os profetas não são por ele considerados como os que são
capazes de predizer o futuro, mas como aqueles que veem a “realidade
presente”, sem terem os olhos fechados em relação ao que ocorre ao redor,
na realidade social. Claramente, Fromm afirma que os profetas “...não
querem ser profetas, mas são compelidos a expressar a voz da sua
consciência – do seu ‘conhecer-com’ – para dizer quais as possibilidades
que veem e mostrar às pessoas as alternativas e avisá-las. Isso é tudo o que
aspiram a fazer”.93 Alguns pressupostos fazem parte da esperança como
proposta de revolução para a vida do ser humano:
A “esperança messiânica” pressupõe a linguagem profética
92
?
FROMM, Erich, 1968, p. 31.
93
?
Ibid.,, p. 31.
109
Segundo Fromm, a “esperança messiânica” considera sempre a
linguagem das alternativas, da escolha e da liberdade; jamais a do
determinismo, para melhor ou para pior.
A “esperança messiânica” pressupõe iniciativa e dinamismo
Nesse tipo de esperança não há lugar para a passividade, como
espera pelo “tempo”. Como diz o próprio Fromm, trata-se de uma idolatria do
futuro, da história e da posteridade, como acreditava Robespierre, que
adorava o futuro como a um deus:
...não faço nada; permaneço passivo porque nada sou; e sou
impotente; mas o futuro, a projeção do tempo, levará a cabo o
que não posso realizar. Esse culto do futuro, que é um aspecto
diferente do culto do ‘progresso’ na burguesia moderna, é
precisamente a alienação da esperança. Em vez de algo que
faço ou no qual me torno, os ídolos, o futuro e a posteridade
realizam alguma coisa sem que eu nada faço (FROMM, 1968,
pp. 20-21).
Fromm considera que essa espera passiva seria uma forma de
desesperança e impotência, uma outra forma de desesperança e desespero.
A “esperança messiânica” pressupõe a sustentação da fé
Fé como convicção forte de crença e conhecimento. Não é a fé nisto
ou naquilo; mas como a convicção sobre o que ainda não foi provado, o
conhecimento da possibilidade real, a consciência da gravidez; fé racional
que se refere ao conhecimento real que ainda não nasceu; “ela é baseada
na capacidade de conhecimento e compreensão, que penetra a superfície e
vê o âmago. A fé, como a esperança, não é a previsão do futuro; é a visão
110
do futuro; é a visão do presente num estado de gravidez”. 94
Em outras
palavras, diz Fromm, “...faz referência à esperança como um elemento
intrínseco da estrutura da vida, relacionada à dinâmica da vida, trabalha com
a ideia de que a fé é paradoxal, por isso, esta é a “certeza do incerto”.
A “esperança messiânica” pressupõe a ideia de ressurreição
Fromm valoriza as possibilidades de transformação pessoal ou social
a partir da redefinição do significado de ressurreição, à semelhança da
abordagem de Moltmann. A respeito deste fenômeno, Fromm assim
escreve:
A ressurreição em seu novo significado – para o qual o
significado cristão seria uma das possíveis expressões
simbólicas – não é a criação de “outra realidade” segundo a
realidade “desta” vida, mas a transformação desta realidade
rumo à maior vivência. O homem e a sociedade são
ressuscitados a cada momento no ato de esperança e de fé no
momento presente; todo ato de amor, de estado de ser
consciente, de compaixão, é ressurreição; todo ato de
preguiça, de cobiça, de egoísmo, é morte (FROMM, Erich,
1968, p. 31).
Segundo Fromm, a cada momento da existência, damos uma
resposta que nos coloca em confronto com diversas alternativas de
ressurreição ou de morte. Estas não têm relação com o que dizemos ou
pensamos, mas no que somos, na maneira como agimos e para onde
estamos nos dirigindo.
O risco de destruição da esperança
94
?
Ibid.,, p. 27.
111
Fromm nos alerta sobre a possibilidade de destruição da esperança.
Ele trabalha com a ideia de que muitos, apesar da fé e da firmeza como
acompanhamentos da vida, há os que amam sua servidão e dependência.
Embora a realidade indique que a esperança, a fé e a firmeza sejam
“qualidades inconscientes de ‘não-pensamento’ do espermatozoide e do
óvulo, da sua união, do crescimento do feto e do seu nascimento. Mas,
quando a vida começa, as vicissitudes do ambiente e do acidente principiam
a incrementar ou bloquear o potencial da esperança”. 95
A destruição da esperança, de modo geral, está relacionada a vários
fatores, conforme as circunstâncias: históricos, pessoais, psicológicos,
constitucionais, dentre outros. Isto porque as reações de cada um são
diferenciadas, e dependem dos desapontamentos de cada dia e gerados em
diversas situações, quando estamos sujeitos tanto a acontecimentos bons
quanto a acontecimentos ruins.
Fromm também considera que a destruição da esperança pode estar
ligada a um espírito destruidor e à violência que nos rodeia. Todos
precisamos viver com esperança, tanto o indivíduo, em particular, quanto a
sociedade. O contrário, isto é, os que tiveram sua esperança destruída,
odeiam a vida e, como não conseguem criar a vida, lutam por destruí-la,
quer vingar-se pela sua vida não-vivida e desta forma lançam-se à
destruição total, ainda que tal atitude atinja a destruição de outros, isto é, de
terceiros.
A esperança como uma possibilidade real
Pelo que vimos, a esperança em vários segmentos da sociedade,
aparece como uma possibilidade real, com variações, tendo em vista os
ideais de um “tempo messiânico”. Com ou sem os expedientes apontados
pela Sociologia, pela Teologia, ou pelo humanismo frommiano, o “princípio-
esperança” tem sido visto com otimismo, como “o possível ainda não
realizado”, de caráter político e social através de atos históricos libertadores
dentro de princípios humanistas.
95
?
Ibid., p. 34.
112
O caráter utópico da religião humanista
Questiona-se a respeito das teorias defendidas por Fromm no campo
da Psicanálise e suas tendências humanistas em relação aos problemas
próprios de uma sociedade industrializada, capitalista, em rápido processo
de mudanças e profundas transformações. Uns o consideram um
revisionista em relação às teorias de Freud, como os críticos da Escola de
Frankfurt que também o consideraram um culturalista, influenciado por
pensadores norte-americanos; outros o têm como um romântico, quando
criticam sua obra A arte de amar; outros ainda o têm como um utópico, não
só em relação à sua proposta de uma nova sociedade, como também
quando se refere à possibilidade de esperança em um “tempo messiânico” e
de uma nova religião, de caráter humanista.
Seria Erich Fromm, um utópico?
Karl Mannheim (1893-1947), em sua obra Ideologia e utopia (1960),
faz menção à “mentalidade utópica”, em um dos capítulos, quando a
considera que “Um estado de espírito é utópico quando está em
incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre”. 96 Desta
forma ele considera que tal incongruência é sempre evidente pelo fato de
que este estado de espírito que se manifesta na experiência, no pensamento
e na prática, se orientem para objetos, situações que ainda não existem na
situação real. Tal posição nos permite encontrar em Mannheim, inclinações
que apontam para orientações que transcendam à realidade, com
tendências para a transformação em conduta dos seres humanos em
sociedade, capaz de abalar, parcial ou totalmente, a ordem de coisas que
prevaleça no momento. Trata-se, portanto, de um posicionamento que nos
leva a acreditar em algo plausível que possa acontecer no processo
histórico. Neste caso, a mentalidade utópica, ao transcender à realidade
pode resultar em transformações, rompe as amarras da ordem existente e
“...estabelece-se numa distinção entre os estados de espírito utópicos e os
96
?
MANNHEIM, Karl, Ideologia e utopia, 3ª. edição, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1960, p.
216.
113
ideológicos”. Isto porque nos estados de espírito “ideológicos” há uma certa
incongruência com a realidade.
Mannheim chama a atenção, como visto acima, para o risco de
confundirmos a utopia com a ideologia, quando declara que “todas as ideias
que não caibam na ordem em curso são ‘situacionalmente transcendentes’
ou irreais. As ideias que correspondem à ordem ‘de facto’, concretamente
existentes, são designadas como ‘adequadas’ e situacionalmente
congruentes”. Por outro lado, completa Mannheim, “As ideologias são as
ideias situacionalmente transcendentes que jamais conseguem de ‘facto’ a
realização de seus conteúdos pretendidos”. 97
Tendo em vista a possibilidade de melhor identificarmos o
pensamento e a postura de Fromm em relação a possíveis utopias em seu
projeto por um humanismo capaz de promover a dignidade humana,
passando desta forma também pelo seu sonho de uma religião de caráter
humanista, vale a pena observar o que nos ensina Mannheim quando se
refere à “mentalidade utópica”, que nos parece presente na obra frommiana.
Com isso, consideramos pertinente retomar o que se pode entender por
“utopia”.
Ao referir-se à utopia, no contexto das ciências sociais, Teixeira
Coelho, em seu livro O que é utopia (1981), inicialmente mostra que um
traço característico do ser humano é a esperança, um tipo de utopia, tendo
em vista sua fraqueza diante da realidade e as contradições que o
envolvem. E como ele mesmo escreve: “esperança de que aquilo que não é,
não existe, pode vir a ser; uma espera, no sonho, de que algo se mova para
a frente, para o futuro, tornando realidade aquilo que tem de passar a
existir”.98
Do ponto de vista etimológico podemos usar o termo “utopia” como
“nenhum lugar”, palavra derivada do grego, “topos” (lugar, localidade), “u-
97
?
Ibid.,p. 218.
98
?
COELHO, Teixeira, O que é utopia, São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 7.
114
topos” (não+lugar). Dito de uma outra forma, equivale, de maneira mais
abrangente, ao “possível ainda não realizado”; o “possível sem lugar
concreto”, aqui e agora.
A utopia, apesar de situações históricas descritas e consideradas
como algo irrealizável, sinônimo de ilusão ou fuga da realidade presente,
não deve ser assim considerada, mas conforme entendida pelas ciências
sociais, no sentido político do termo. Ela nasce do princípio-esperança,
responsável pelos modelos de aperfeiçoamento de nossa realidade que não
se deixam estagnar ou absolutizar ideologicamente, mas o mantém em
permanente abertura para uma transformação constante, principalmente em
uma sociedade caracterizada por profunda e rápida mudança.
Do ponto de vista do fenômeno da utopia, essa mudança dá lugar a
um outro fenômeno social que é a “imaginação utópica”. Esta, segundo
Teixeira Coelho, não é a imaginação comum que se alimenta apenas da
vontade subjetiva de uma pessoa e se volta unicamente para seu restrito
campo individual, detendo-se exclusivamente para propor coisas como
“montanhas de ouro e cristal”. Não se trata de uma imaginação delirante
nem fantástica, mas parte de fatores subjetivos produzidos, primeiramente
pelo indivíduo, mas que a seguir se nutre dos fatores objetivos produzidos
pela tendência social de uma determinada época. Logo, não é uma fantasia
inconsequente, mas que tem sequência, na realidade plausível que existe. 99
Quando nos referimos à “paz profética” como possibilidade apontada
por Fromm em relação ao “tempo messiânico”, somos confrontados pelo
“princípio-esperança”, de caráter utópico, que está previsto como uma das
características da religião humanista, com o pensamento de Coelho quando
se refere às profecias por ele consideradas como visualização do não
sabido, do desconhecido. Para ele a imaginação utópica é:
...a projeção do sabido, do consciente. A imaginação utópica
luta pela materialização de um desejo que estivera antes,
99
?
Ibid.,, p. 9.
115
talvez e no máximo, ao nível do inconsciente; a profecia
extravasa os limites do desejado pelo homem para ir remexer
naquela zona de passividades e conformismos que é o destino,
isto é, o sabido não pelo homem mas por um hipotético super-
homem, frequentemente um deus. A profecia, a adivinhação
são antecipativas: as coisas acontecerão da maneira prevista.
A imaginação utópica é propositiva: as coisas que devem
acontecer daquela maneira, poderão acontecer se o homem
quiser; o homem necessita querer, mas pode não fazê-lo. Pode
nutrir hostilidade contra os desejos orientados para e pelo
futuro, por temer esse futuro, por estar inseguro das coisas em
geral e, no fundo, de si mesmo; por ser um conservador, em
suma, - e neste caso a imaginação utópica não se concretiza.
{...} A imaginação utópica não se esgota com a realização de
seu objetivo (COELHO, 1981, pp. 10-12).
Ao que nos parece, o conceito de “utopia” ao nos possibilitar a
idealização do “possível ainda não realizado”, permite-nos pensar que o
pensamento de Fromm não estaria completamente fora de propósitos em
relação a uma religião humanista e às mensagens proféticas de paz, ainda
que soem como alvos ideais, projeção do futuro para uma “sociedade
enferma”. Contudo, nem sempre haveria como pensar qualquer desejo de
mudança do ponto de vista da imaginação utópica, como concebida
inicialmente por Coelho, uma vez que seu conceito sempre esteve atrelado
às sociedades históricas, sob a forma de um excedente utópico, de lendas e
crenças que apontam para um lugar melhor, neste ou num outro mundo,
onde seria possível encontrar uma vida melhor.
Mas Coelho, apesar das críticas que faz às previsões de profetas
desprovidos de conhecimento e consciência da realidade, também nos
chama a atenção para as possibilidades do pensamento religioso como fonte
de imaginação utópica. Segundo ele, muitas das propostas vinculadas ao
pensamento religioso dirigem-se para objetivos tão concretos e realizáveis
quanto os defendidos pelas grandes utopias nascidas posteriormente entre
116
as sociedades consideradas civilizadas, como ocorreu na Grécia, no seu
apogeu; na Europa no período da Renascença ou da Revolução Industrial.
O próprio Coelho reconhece em seu livro que há textos bíblicos que
descrevem situações utópicas que seriam “tranquilamente encampadas por
todas as utopias, tanto as mais tímidas quanto as mais revolucionárias,
como a dos anarquistas”. 100 Tal constatação nos leva a concluir que é
possível que encontremos na literatura bíblica profetas diferenciados,
comprometidos com o status quo em relação ao mundo em que viviam. Os
que apenas se referem à visualização do “não sabido, do desconhecido” e
profetas capazes de diagnosticar a realidade, julgá-la e agir sobre o status
quo, uma vez que o conceito de “profeta” na literatura bíblica extrapola as
possibilidades de mensagens apenas sobre o desconhecido e previsões do
futuro, como bem assinala Fromm. É em relação a esses (Amós, Isaías,
Miquéias, outros) que ele chama a atenção, ao considerá-los capazes de
promover um humanismo radical no contexto de uma religião humanista.
Em síntese, quando Fromm acredita que “a crença na bondade
natural do ser humano, na fé na força da razão e defesa do princípio de
progresso simultâneo, elementos estes considerados por Schaar como “em
si mesmo uma definição suficiente de certo estilo de utopia”, 101 podemos
considerá-lo um utópico, possuidor de uma “mentalidade utópica”, que faz
abordagem ‘adequada’ e situacionalmente congruente em relação à
realidade?
4.3 Síntese dos aspectos humanistas destacados por Fromm
subjacentes em sua obra sobre O Antigo Testamento – Uma
interpretação radical e sua tradição
100
?
Ibid., pp. 15-16.
101
?
SCHAAR, John H. 1965, p. 217.
117
Considerando as análises de Erich Fromm em seu trabalho O Antigo
Testamento – Uma interpretação radical e sua tradição, sintetizamos aqui os
aspectos humanistas que constatamos em seu trabalho:
Sobre o Antigo Testamento
Que o Antigo Testamento não é um livro sagrado, mas uma
escritura humana, que conta a história da tradição judaica,
produzida para uma sociedade de tipo patriarcal. A Bíblia não foi
ditada por Deus nem é a “palavra de Deus”.
Que o Antigo Testamento contém em si a evolução do
autoritarismo primitivo para conceitos de liberdade radical do
indivíduo e fraternidade entre todos os seres humanos.
Que o Antigo Testamento contém mensagens humanizadoras,
para o bem-estar do ser humano, a princípio do povo judeu, mas
também de caráter universalista. Tem sido um livro distorcido,
como se fosse escrito em função de um nacionalismo mesquinho.
Que o Antigo Testamento é um livro de grandes contradições,
originadas na destruição do Templo de Jerusalém até a destruição
dos centros da cultura tradicional judaica por Hitler.
A história dos judeus vai além dos livros do Antigo Testamento.
Sobre o conceito de Deus
O Deus do Antigo Testamento evoluiu de seu autoritarismo para
tornar-se revolucionário e libertador.
O conceito sobre Deus transformou-se em ideologia e
desenvolveu-se alienando o ser humano, ao fundamentar razões
que resultaram em exacerbado temor e submissão.
Deus foi transformado num ídolo onisciente e onipotente aliado
aos que detêm o poder na terra, mas evoluiu, humanizando-se.
O Antigo Testamento, do Pentateuco até Isaías e Jeremias insiste
no combate à idolatria. A idolatria é combatida porque exige
submissão – o culto a Deus. Somente uma “idologia” pode
exterminar os ídolos verdadeiros.
118
Deus revela-se a Moisés como um “Deus” sem nome, porque
somente “ídolos”, que são coisas, têm nome; ao mesmo tempo, tal
atitude de Deus transforma-se numa “contradição em si mesmo”.
A “idologia” pode mostrar que um ser humano alienado é
necessariamente um adorador de ídolos, empobrecendo-se a si
mesmo, transferindo seus poderes para coisas fora de si.
Quando Deus é transformado em um dos ídolos torna-se o mais
importante e dá a sua bênção aos demais.
Que o primeiro ato de desobediência humana em relação a Deus
constitui o princípio da história e liberdade do ser humano.
Que Deus ao criar o ser humano, potencialmente o fez seu rival.
Que Deus perdeu sua liberdade, por ser arbitrário, e o ser humano
tornou-se livre por ser capaz de desafiar a Deus.
A primeira aliança que Deus fez com o ser humano é mais do que
uma aliança com tribos dos hebreus, mas com toda a humanidade.
Que a segunda aliança que Deus fez com o ser humano (Gênesis
12.1-3) expressa seu caráter universalista, ao dizer a Abraão “sai
da tua terra...”; uma ordem expandida a toda a família humana.
Que Deus na história humana, pode estar vivo ou morto,
dependendo de como seja concebido ou conceituado na história
ou na sociedade contemporânea, capitalista e industrializada.
Sobre o conceito de ser humano
O ser humano, ao ser criado “à imagem e semelhança de Deus”,
carrega naturalmente em si uma convicção humanista.
A “queda” do ser humano no Paraíso é o começo de sua
libertação, ao desobedecer ao “Deus arbitrário” e autoritário.
A “queda” do ser humano no Paraíso é o começo de sua
individualização em busca de sua autonomia e vida independente.
A “quebra dos laços primários”, é a emancipação evolutiva do ser
humano, marcada com a determinação de Deus, no mesmo
sentido em que é considerado o imperativo divino “Abraão saia de
sua terra”.
119
O ser humano pode tornar-se como Deus, mas não pode tornar-se
Deus.
Quando começa o processo de individualização, o ser humano
corta seus laços com a Natureza.
A história e a alienação humana começa com o rompimento dos
laços do ser humano com a Natureza.
O processo de libertação dos laços incestuosos do povo judeu,
encontra-se no início de sua história, a partir da ordem para que
Abraão deixe a “sua casa”.
A completa independência e liberdade do ser humano somente se
torna possível quando ele atinge o estágio de completa atividade e
produtividade interior.
Sobre o conceito de História
Considerando que a história começa com a desobediência do ser
humano em relação a Deus, ele também se torna “senhor” e
“protagonizador” de sua própria história.
O ser humano cria-se a si mesmo no processo histórico, no uso de
sua liberdade conquistada com a “corrupção” inerente à própria
natureza da existência humana.
Passando pelo processo de alienação, o ser humano consegue
superá-la e alcançar uma nova harmonia, também chamada na
literatura profética de “final dos tempos” ou “tempo messiânico”, como
resposta histórica à existência humana.
O início da libertação está na capacidade humana de sofrer; o
indivíduo sofre se for oprimido, fisicamente e espiritualmente.
O sofrimento produz rebelião; rebelião produz liberdade da
escravidão; a liberdade da revolução pode, eventualmente, levar à
liberdade para uma nova vida sem idolatria.
O “tempo messiânico” será o tempo quando o ser humano nascerá
completamente, encontrando novas soluções para seus conflitos,
120
nova harmonia com a Natureza, sob a liderança de um Messias
verdadeiramente humano e não enviado por Deus.
O “tempo messiânico” trará paz nas relações humanas e nas relações
com a Natureza, conforme a descrição de Isaías, Oséias, Miquéias.
A história indica que o messias não traz salvação e que a salvação
não depende da “angústia mortal do ‘messias’, mas da prontidão do
povo.
A esperança, dentro do processo histórico, tem caráter paradoxal. É
uma posição de fé, com base na experiência interior do indivíduo, sem
basear-se numa espera passiva, mas na dinâmica do processo
histórico.
Sobre o sistema Halakhah
O sistema Halakhah, como um conjunto de normas e regras para a
vida humana, é o documento básico da fé judaica, válido para toda
a humanidade, com princípios humanísticos porque:
Valoriza a afirmação da vida
Valoriza o amor ao próximo como amor ao cidadão, incluindo a
viúva, o órfão, o pobre, o estrangeiro
Valoriza a justiça social
Valoriza a liberdade
Valoriza a verdade
Sobre pecado e arrependimento
O pecado é humano; um direito humano. Graças ao livre arbítrio, o
ser humano pode escolher entre o bem e o mal ou perder a
capacidade de escolha.
O arrependimento não é símbolo de submissão e passividade.
Arrependimento como um gesto de quem deseja “voltar” é um ato
independente do ser humano, não uma submissão passiva.
O arrependimento é caminho para uma nova vida, com dignidade
e possibilidade de ressignificação; pode ser, ao mesmo tempo, um
121
dia de jejum, mas não de tristeza, mas de profunda seriedade e
auto-exame, cheio de alegria.
Sobre os Salmos
Os Salmos expressam preocupação pelo ser humano: “O que é o
homem”? – Uma questão existencial no sentido concebido por
Sartre, no qual o ser humano é o seu projeto, que se faz no
processo histórico.
Expressam “esperança messiânica” com cânticos que celebram
vitórias sobre o mal e esperança de um tempo melhor, com um
Messias não enviado por Deus, mas humano.
Sobre a religião humanista
As religiões monoteístas (o judaísmo e o cristianismo) podem
transformar Deus ou deuses em ídolos arbitrários e autoritários.
As religiões autoritárias tornaram-se a negação da humanidade do
ser humano.
A religião humanista é o ideal a ser buscado para uma sociedade
enferma: pressupõe a valorização da fé racional; a valorização de
profetas da “esperança messiânica”; a esperança de caráter
utópico como “o possível ainda não-realizado”; a superação da
angústia, da ansiedade, dos conflitos, do desespero, e ameaças
de morte.
122
Considerações finais
Críticas ao humanismo de Erich Fromm
De modo geral todos os grandes pensadores da humanidade sempre
estiveram sujeitos a críticas. Desde a Antiguidade encontramos filósofos que
no seu tempo e ao longo de toda a história foram considerados notáveis.
Contudo, à medida em que o conhecimento se torna mais exposto e
facilmente compartilhado universalmente, as críticas também vão sendo
expandidas em várias áreas de conhecimentos afins, e os pensamentos vão
sendo refinados sob diferentes enfoques. Foi o que aconteceu com Platão
em relação ao seu idealismo exacerbado; com Aristóteles com sua
pretensão de ser, mais do que um pensador, um cientista, com afirmações
123
lógicas; com Santo Agostinho, e sua doutrina sobre o pecado; com Tomás
de Aquino e as “cinco provas irrefutáveis da existência de Deus”; com Freud
e a teoria da sexualidade humana, entre outros. Em relação a Erich Fromm,
as críticas se tornaram naturais, uma vez que ele foi um dos escritores de
seu tempo cujas obras, em grande quantidade, tiveram sucessivas edições
em diferentes idiomas.
Por tudo que dissemos, é correto reconhecer que nem todos aceitam
sem dúvidas as teorias de Fromm. Há críticas que não podem ser
esquecidas ou negligenciadas.
Os críticos da Escola de Frankfurt - Há a crítica dos antigos
companheiros de Fromm na Escola de Frankfurt, entre eles Horkheimer,
Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, que consideraram Erich Fromm
um revisionista. Os frankfurtianos através da Teoria Crítica da Sociedade,
lutaram desde o início contra o que chamavam de orientação “revisionista”,
ao defenderem uma rigorosa reflexão histórico-materialista. Esta tornou-se o
ponto central do “debate sobre o culturalismo”, que provocou a primeira
grande cisão na chamada Teoria Crítica, afetando assim a carreira de
Fromm.
Entre os críticos mais radicais em relação ao considerado
revisionismo neofreudiano de Fromm, são sempre lembrados Marcuse e
Adorno, que chegaram a afirmar que ele negligenciou a dessublimação
repressiva. Os marxistas da Escola de Frankfurt o consideraram pouco
revolucionário. E os freudianos clássicos, por sua vez, declararam que
Fromm permaneceria um utópico. Assim considerado um revisionista
neofreudiano, Fromm sofreu ataques devastadores. Marcuse, em especial,
acusava Fromm e os demais neofreudianos da América do Norte,
representados por Horney e Sullivan, por achar que eles confundiam
ideologia com realidade e minimizavam a esfera biológica.
A crítica de John H. Schaar - Um grande e respeitado crítico de
Fromm, é John H. Schaar, conforme sua obra O mundo de Erich Fromm
(1961).102 “Não se trata de um livro polêmico ou de refutação pura e simples
102
124
das teorias de Fromm, mas de um exame profundo do corpo de ideias por
ele desenvolvidas em sua volumosa obra...”, como dizem seus editores. Em
suas críticas Schaar diz que Fromm se torna plausível e atraente, a
princípio, mas que a um exame mais concentrado suas ideias se tornam
surpreendentes em suas premissas e desconcertantes em suas implicações,
com princípios e conceitos contraditórios. Desta forma, Fromm deixa para o
leitor de suas obras a reconciliação dos opostos, desafiando-o a fazer as
complicadas escolhas às quais ele próprio foge.
Schaar considera que as críticas radicais que Fromm faz à sociedade
industrial, é o resultado de serem grandes as suas esperanças, no sentido
de não apenas compreender este mundo, mas transformá-lo, como
pensavam os marxistas em sua crítica à Filosofia. Contudo, ele lhe parece
ambivalente, o que tem enfraquecido e dificultado a crítica que se queira
fazer à sua obra. Segue uma abordagem de Schaar quando se refere às
críticas que têm sido feitas a Fromm:
Fromm foi classificado de muitas formas, e tido como
representante de muitas coisas: revisionista freudiano,
socialista marxista humanitário, idealista burguês, cientista
social, liberal humanista. É tudo isso e não é nada disso: os
rótulos não são úteis, e o rótulo mais enganoso é o mais
comum, o de revisionista freudiano. É certo que Fromm vem
travando com Freud um debate unilateral (...) mas um debate
que compreende coisas desprezadas por Freud... esse debate
deve ser chamado pelo que realmente é – oposição, e não
revisão, revolta, e não reforma (SCHAAR, 1965, pp. 16-17).
Desta forma Schaar não valoriza as várias críticas às quais se refere,
reconhecendo em Fromm, porém, um crítico de Freud em relação a ideias
?
John H. Schaar, com a ajuda financeira da Fundação Rockfeller, escreveu O mundo de Erich
Fromm, cujo título no original é Escape from Authority – The Perspectives of Erich Fromm, no qual faz
uma análise crítica do mundo frommiano. A primeira edição foi realizada por Basic Books, Inc. em
1961.
125
que ele desprezou ou se equivocou em suas teorias, como por exemplo a
teoria da libido em relação à formação do caráter, sem levar em
consideração o aspecto social que envolve o ser humano. Destacamos
dentre as críticas de Schaar a Fromm, alguns temas que nos parecem
pertinentes em relação ao texto que escreveu sobre o Antigo Testamento,
como a questão da liberdade, do ser humano e sua capacidade produtiva, o
problema da alienação e da religião, da utopia.
Em relação à “liberdade”, a crítica inicial de Schaar está descrita nos
seguintes termos:
Fromm comete o primeiro tipo de erro. Define a liberdade como
a expansão da vida, o desdobramento de toda a nossa
capacidade, o viver plenamente a vida. A vida torna-se seu
próprio fim e produto, a meta e o bem em si mesma. Indiquei
que Fromm adota essa concepção do bem e dos motivos
dignos – um ódio a todas as autoridades irracionais e injustas,
e aos fins impostos aos homens – mas as consequências da
posição são as mesmas, a despeito dos motivos que levaram à
sua aceitação (SCHAAR, 1961, p. 259).
Para Schaar, toda a vida dirigida exige uma meta, que não significa
viver por viver à sua própria volta, pois assim estaria perdida. Mas toda a
vida deve ter uma finalidade fora do eu, e para qual se dirige o movimento.
Do contrário, toda a vida se torna ôca, sem nada a ocupá-la, a não ser com
frivolidades, como se isso fosse suficiente para encher o vazio existencial
deixado pela falta de objetivo. Ele entende que Fromm propõe uma
experiência pessoal do indivíduo, de auto-satisfação na vida humana, como
expressão de realização e sentido da liberdade. Com isso, completa Schaar:
“...a liberdade raramente é uma questão exclusivamente pessoal. Quase
sempre envolve outras pessoas...”. 103
103
?
SCHAAR, 1961, p. 260.
126
Sobre o “ser humano”, considerado por Fromm como aquele que é
capaz de ser produtivo por “não viver por viver”, porque vive para
determinadas finalidades, para objetivos fora de si mesmo (para seu
trabalho, para a sua família, para o cultivo de si mesmo, repudiando toda a
ideia autoritária), Schaar faz a seguinte crítica:
Minha crítica do homem primitivo não se baseia no homem que
Fromm tem em mente, mas no homem que naturalmente
surgirá das premissas morais por ele lançadas. A ênfase que
Fromm dá à vida como sua finalidade mesma deve ser
explicada pelo seu ódio ao autoritarismo, que postula um fim
fora do homem e a ele imposto. A força motora, no caso, é a
repulsão, e não a atração. O que leva Fromm à posição de que
a vida é sua própria finalidade não é tato a força de atração do
“viver por viver”, mas o poder de repulsão da ideia autoritária
(SCHAAR, 1965, p. 110).
Nesta crítica de Schaar fica claro que Fromm tropeça porque sua
formulação não permite que o ser humano tenha alguma finalidade. Desta
forma Fromm expõe-se à crítica por não encontrar uma explicação plausível
em relação ao que deve ser a vida humana, embora qualquer crítica que se
queira fazer ao seu pensamento, deve levar em consideração sua coragem
em recomendar conscientemente uma solução para o problema, ainda que
desgastada.
Ainda sobre o ser humano produtivo, Schaar faz duas observações
em relação ao pensamento de Fromm: quanto a relação do ser humano com
o seu estilo de religião; e quanto ao estilo de amor.
Sobre a relação do ser humano produtivo com a “religião”, Schaar diz
que a característica fundamental que Fromm tem da religião é totalmente
pragmática. Neste caso, a religião é vista em função de sua utilidade para o
ser humano, independentemente de sua verdade ou da certeza da
127
existência de Deus. “Para o homem produtivo, Deus é um símbolo ‘cuja
significação é essencialmente histórica”. 104 Praticamente seria uma religião
sem deus, isto é, “qualquer sistema de pensamento e ação partilhado por
um grupo que dá ao indivíduo uma estrutura de orientação e um objeto de
vinculação”.105 Tal afirmação frommiana indica que a religião, neste caso,
seria “uma ideologia política, tão facilmente quanto as doutrinas e
instituições ordinariamente incluídas na religião”. 106
Desta forma, convém
admitir que quando Fromm fala de religião, ele está se referindo a ética; está
reduzindo a religião à ética.
Quanto ao conceito de “amor” de Fromm, Schaar faz inicialmente o
seguinte comentário:
Vamos partir da concepção central, a ideia que Fromm tem
sobre a universalidade do amor: “O amor a uma pessoa implica
o amor do homem como tal”. As implicações disso podem ser
resumidas na fórmula “todos são capazes de amar e todo o
que ama, ama a todos”. Em seguida ele acrescenta uma
formulação manifestamente incoerente com a primeira, e surge
o problema: o amor erótico “é pela sua natureza mesma
exclusivo e não universal...” Essas duas concepções não
podem ser reunidas, a menos que forcemos totalmente uma
palavra. O amor é universal ou exclusivo? A resposta a esta
pergunta decide todas as outras. Fromm não tolerará a
exclusividade: o círculo mágico do amor deve ser aberto.
Assim, no fim, ele nega a exclusividade essencial do amor
erótico e o funde com o amor universal. “O amor erótico é
exclusivo, mas ama na outra pessoa toda a humanidade, tudo
104
?
FROMM, Erich, 1968, p. 114.
105
?
FROMM, Erich, 1968, p. 21.
106
?
SCHAAR, 1968, p. 116.
128
o que está vivo...” Considera todos os homens como iguais
(SCHAAR, 1965, 118).
Schaar considera que Fromm baseia-se numa confusão quanto à sua
concepção em relação ao amor. Entende que ele confunde amor com suas
consequências. Isto porque a maioria dos seres humanos nunca ama
verdadeiramente o outro. Por isso, a concepção democrática do amor, em
Fromm está equivocada, porque ignora as dimensões essenciais do sentido
do amor, tanto em si como em suas consequências em nossa época.
Em relação ao problema da “alienação”, tendo em vista as várias
formas como tal fenômeno vem sendo abordado, por muitos pensadores,
dentre eles, Hegel e Marx, Schaar entende que Fromm simplesmente acatou
as posições marxistas sobre este fenômeno, não as modificando
basicamente. Ele teria apenas atualizado as posições de Marx, “aplicando-
as aos fenômenos modernos e dando-lhes sustentáculos psicológicos mais
firmes”.107 Neste caso, Fromm prejudica o pensamento de Marx sobre o
tema, na medida em que perde a precisão e a utilidade analítica da
formulação marxista. Contudo, Fromm não perde com este tipo de
abordagem, porque com essa compreensão do fenômeno da alienação,
facilita a assimilação do tema da idolatria por ele também discutido. É desta
forma, por exemplo, que ele considera o cristianismo protestante uma
regressão a uma forma de idolatria, na medida em que, com a teologia de
Lutero e Calvino o ser humano recebe ordem de transferir seus poderes
para Deus e em seguida confiar na graça de que tais poderes lhe seriam
devolvidos.
O último destaque que fazemos, é em relação às “utopias” de Fromm,
conforme as críticas de Schaar. Este as caracteriza sob três aspectos: sua
crença de que a destrutividade e o mal não são inerentes ao ser humano,
resultando disso a escassez econômica ou de más instituições e relações
sociais; a opinião de Fromm de que é possível aos seres humanos
107
?
SCHAAR, 1965, pp. 172-173.
129
alcançarem o conhecimento necessário para a construção da sociedade
perfeita; e as atitudes radicais que Fromm assume diante dos problemas do
aperfeiçoamento social. Schaar considera que esses três elementos tornam
“Fromm, o reformador, que abandona a linguagem de Marx e Freud e fala no
tom do século XVIII, de maneira nostálgica, dando assim a medida de como
estamos longe da época áurea”.108
Outras críticas - O Prof. Nildo Viana, sociólogo, da Universidade
Nacional de Brasília , considera que embora as críticas de Fromm, a Freud,
por exemplo, sejam corretas em quase todos os seus aspectos, destaca que
ele não aprofunda sua avaliação à metodologia de Freud (talvez em virtude
de suas próprias deficiências metodológicas); entende que a ênfase que ele
faz à cultura seja demasiada, uma vez que retira da análise o processo
orgânico (isto é, biológico), bem como as energias psíquicas, a ponto de
poder confundir repressão cultural com recalcamento psíquico (Viana,
2002)109.
Outra crítica que faz, o professor Viana, diz respeito ao fato de que o
culturalismo de Fromm não seja suficiente para explicar determinados
fenômenos nem para compreender o universo psíquico de forma mais
ampla. Observa que Fromm, a exemplo de Freud, não teve a perspectiva da
totalidade no sentido dialético materialista, como algo concreto, talvez, por
conta de sua formação psicanalítica especializada, apesar da leitura que fez
de Marx. Considera ainda, Viana, que apesar de sua brilhante exposição
dos vários aspectos fundamentais da sociabilidade capitalista e da
mentalidade burguesa, com suas análises das relações sociais e do que
chamou de “caráter social”, faltou a Fromm a percepção dinâmica da
sociedade capitalista e, desta forma, das lutas de classe e do processo de
acumulação de capital e suas consequências.
108
?
Ibid., p. 217.
109
?
Nildo da Silva Viana é professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal
de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. As crítica de Viana está em
seu artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico, número 110, pp. 41-50.
130
Continua também em aberto, por exemplo, na teoria frommiana, em
relação à Psicologia contemporânea, sua afirmação de que o caráter
determina o pensamento, o sentimento e a ação nos indivíduos. Esta
afirmação é o oposto em relação ao que se diz e sustenta entre psicólogos
contemporâneos. Estes dizem que os pensamentos, os sentimentos e as
ações são parte integrante do caráter. Continua sendo um desafio para os
estudiosos nesta área, encontrar uma saída para esta questão e outras
talvez não bem esclarecidas.
Quaisquer que sejam, contudo, as ideias contrárias ao pensamento
de Fromm, seus argumentos continuam sólidos. Ele é um dos mais lúcidos
pensadores da história da humanidade no campo das ciências psicossociais.
Poucos, como ele, demonstraram correta compreensão do ser humano
como uma unidade psicossocial.
Por uma releitura de Erich Fromm no século XXI:
Considerando o contexto no qual estamos inseridos no século XXI, é
possível que encontremos novos fatores na sociedade industrializada que
certamente comprometam e exerçam grande influência sobre a situação
humana e sua condição de vida, e que não chegaram a ser identificadas por
Erich Fromm na época em que viveu. É verdade que na década de 60, no
século passado, já se falava em crise de identidade, anonimato, violência
urbana, e a necessidade de um novo humanismo, dentre outras, e que se
tornaram objeto de suas observações.
A constatação de que vivemos, sobretudo, em um mundo globalizado,
certamente muda, em alguns aspectos nossa visão em relação ao ser
humano. Neste mundo, algumas situações na vida social tornam-se
determinantes para o futuro do ser humano. Em decorrência da
globalização, a falsa noção de poder num mundo de fantasias, é cada vez
mais gritante. Cresce mais e mais a ideia de que o “mundo melhor” é aquele
em que se deve “ter para ser”. Somos a geração das fantasias, das “super-
ofertas e liquidações” e, usando a linguagem de Émile Durkeim, “uma chuva
de novos deuses” cai sobre nós. Rubem Alves, ao referir-se a esse
131
fenômeno, e citar Durkheim repete o que este pensador, segundo ele,
profetizou:
Os velhos deuses estão ficando velhos ou já morreram e outros
ainda não nasceram... Um dia virá quando as nossas
sociedades conhecerão de novo horas de efervescência
criadora, no transcorrer das quais novas ideias emergem e
novas fórmulas são encontradas, que servem, por um pouco,
como guias da humanidade.110
Esses deuses não são sobrenaturais como é considerado o Deus dos
israelitas ou dos cristãos, mas não deixam de ser pragmaticamente
poderosos para fazer valer a ideologia do consumo, não só de bens
materiais quanto políticas, econômicas, religiosas, usos e costumes, novas
concepções de trabalho, lucro, capital. Até a espiritualidade, nesse contexto,
deixa de ser algo tão-somente própria de discursos religiosos, mas também
tema considerado como capital para garantia de rendimento e estabilidade
para empreendedoristas (veja-se artigo publicado pela Revista “Pequenas
Empresas Grandes Negócios”, publicada pela Editora Globo).
Em relação ao Antigo Testamento, faz-se necessário uma frequente
releitura desse texto, uma vez que a cada dia determinados valores de sua
cultura têm sido repensados, entre eles novos conceitos sobre deus/deusa;
novos deuses/novas deusas; homem/mulher; pecado;
liberdade/autonomia/individuação; fim dos tempos/messianismo/escatologia;
dentre outros.
Por tudo isso cremos que faz sentido uma releitura de Erich Fromm,
nesse contexto de globalização, caracterizado por rápidas e profundas
transformações sociais, no qual suas teorias não só podem ser enriquecidas
como validadas; esquecidas, nunca.
110
?
ALVES, Rubem, Misticismo: a emigração dos que não têm poder, Revista Vozes, no. 7, 1974,
ano 68, pp. 12-13 (516-517).
132
A relevância do humanismo de Erich Fromm
A relevância do texto de Erich Fromm sobre o Antigo Testamento está
no fato de não ser apenas uma retomada da história dos judeus e suas
influências em relação ao cristianismo, mas principalmente na tentativa que
o autor faz de mostrar que há um humanismo subjacente nessa Escritura
Sagrada. O texto sistematizado com as preocupações religiosas de Fromm
através de sua interpretação radical do Antigo Testamento, vai em busca de
situações que caracterizam o fenômeno do humanismo necessário que deve
prevalecer na sociedade industrializada. Embora perceba-se uma certa
irreverência do autor nessa busca, seu trabalho caracteriza-se, a princípio,
pelo expressivo desejo de ser neutro, como bem caracteriza o pesquisador
quando age dentro de normas científicas. Por isso, trata-se de uma leitura
não-teísta do Antigo Testamento, mas com base na tradição judaica na qual
o autor foi educado desde a sua infância.
As Escrituras do Antigo Testamento não são vistas por Fromm como
um livro sagrado, mas como um conjunto de experiências religiosas, sociais
e culturais dos judeus, formalizadas durante mais de 1.200 anos. Essas
experiências são representadas pelo “Deus da vida”, que age concretamente
na história e que oferece condições favoráveis de vida de um povo concreto.
Deus, em Fromm e de acordo com a tradição judaica por ele interpretada,
evolui de um déspota absoluto a um Deus de monarquia constitucional e um
Deus indizível, sem nome (Ex 3). Trata-se, para Fromm, de um Deus
ciumento, que lamenta a “queda” de Adão, que progride e cresce em sua
desobediência, o que constitui o seu primeiro ato da liberdade humana.
O papel dos profetas, ressaltado nesse processo de busca de uma
interpretação radical por um humanismo relevante, é a recordação crítica,
viva, contra todas as outras promessas sedutoras, ainda que algumas sejam
consideradas falsas, enganosas. O “tempo messiânico” anunciado pelos
profetas, fica evidente no texto de Fromm, não cairá do céu nem será um ato
da graça divina, mas será o resultado do processo histórico, que se dará
com a realização de feitos humanos, quando o ser humano se tornará
completamente humano, com justiça, liberdade, razão e amor. Desse
133
processo virá a verdadeira paz mundial, a superação das adversidades, a
harmonia, conforme prevista pelo profeta Isaías, acima de qualquer
imaginação.
Sem deixar de acreditar nas possibilidades da religião, Fromm
idealiza uma religião humanista, de maneira ousada, projeto este sujeito a
críticas, na medida em que seus conceitos de Deus, fé, esperança, futuro
deixam de ser vistos de forma nem sempre transcendental, mas retomados
do ponto de vista das necessidades humanas num processo histórico no
qual em nenhum momento o ser humano “tira os pés do chão”, isto é, da
realidade na qual está inserida. Trata-se de uma provocação, portanto.
Talvez, como dizem os críticos de Fromm, seu trabalho, embora
pareça uma utopia, dá-nos a oportunidade de refletir sobre a situação e
condição do ser humano numa sociedade industrializada, neste caso, a
partir de uma interpretação radical do Antigo Testamento em busca de
humanismo que resulte em favor da dignidade do ser humano.
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