REDE DE REDES1
Célio Garcia2
1. REDES
O termo rede reúne significados cruciais em tempos atuais. Interação,
conexão, interconexão estão na ordem do dia. A própria idéia de organização,
nós a pensamos em termos de rede (na sua horizontalidade), em
contraposição a organograma (e sua verticalidade e especialização) para
mencionar um estágio anterior. “Equipes em rede”, dizem os técnicos em
organização, garantem cooperação.
Os termos “rede”, “net”, “réseau” já circulam há algum tempo nas
disciplinas da Comunicação, da Computação, das Ciências da Administração,
mas também em Biologia (N. K. Jerne foi prêmio Nobel em 1984 graças a
trabalhos em Imunologia estudada a partir de redes de anticorpos em que se
constitui o sistema imunológico), sem esquecer o termo na Matemática
(“treillis”, dizem os franceses).
A II Guerra Mundial, seu após-guerra e a inadiável reconstrução
trouxeram o tema para as redes de ação pública, para o espaço público, como
bem enfatiza Juliana do Couto Benfica (Revista Plural, n.13, março 2000). Só a
rede é capaz de absorver as reestruturações que se anunciam como prováveis
e freqüentes em período de mudanças aceleradas.
Ou melhor, só ela é susceptível de explicar o que acontece com os
organismos e seres vivos, tal como o pensaram os biólogos também
imunologistas Maturana e Varela no Chile, Nelson Vaz no Brasil.
2. REDE DE ATENDIMENTO: A INSTITUIÇÃO PÚBLICA E A
PREVIDÊNCIA
O Estado Liberal propunha uma combinação de segurança e
insegurança; na base de uma insegurança considerada primitiva, natural e
irredutível, garantia ele, ao mesmo tempo, o respeito aos direitos tidos como
absolutos. A sorte sendo muitas vezes caprichosa, cabia à ordem jurídica
(obrigações e direitos) introduzir estabilidade indispensável que permitisse
algum cálculo por parte dos agentes. Sabia-se que havia desigualdade diante
da doença e da morte. Desigualdade dita natural, mesmo que refletisse em
parte diferenças sociais, ela não implicava responsáveis a serem processados,
nem danos eram a eles imputados, ou indenizações reclamadas. No máximo
dizia-se que a ordem social mantinha tal situação, ou contribuía para a sua
manutenção.
1
Texto publicado no livro: Tô fora: o adolescente fora da lei – o retorno da segregação,
2003, p.1-11.
2
Psicólogo, professor aposentado da UFMG; psicanalista, Escola Brasileira de
Psicanálise.
Nesse Estado Liberal inscreveu-se a instituição da Previdência Social,
cujo objetivo era a instituição de um regime de obrigações sociais, se possível,
sem limitações; assim o exigia a clássica noção de responsabilidade. Na
prática, constatou-se que essa socialização da relação frente à doença (A VIII
Conferência em Brasília lançou e elaborou o conceito de Saúde Coletiva; sobre
o tema dediquei-me juntamente com os colegas que organizaram o livro Saúde
Coletiva?, organizado por Sônia Fleury) era uma máquina sem freio. Na
verdade, não se tratava de uma máquina como as outras, nem de uma
empresa como as outras
Com o reconhecimento de que havia limitações, os termos do problema
vão se inverter.
Vai ser necessário decidir a partir de um critério de gestão e utilização
apropriada das técnicas. Donde um complicado problema de responsabilidade,
aqui já não mais a noção clássica a que fizemos alusão. Quem vai decidir se tal
ou tal intervenção será adotada num caso da prática médica?
Os médicos? A ética médica está direcionada no sentido de poupá-los
de tal encargo.
A escolha é social. Esse extraordinário poder passa a ser exercido no
interior do Estado do Bem-Estar e diz respeito à vida e à morte.
Quando um problema técnico é identificado como social, sua
racionalidade vai ser pensada em termos políticos. Política de saúde, no caso.
Duas políticas de saúde podem se defrontar, sem que a competência para
resolvê-las seja técnica. Por exemplo, seria a prevenção preferível à cura e
investimentos na área de tratamento e cuidados? A socialização da Saúde
passa a ser um problema econômico, e não mais médico.
No entanto, o social não suprimiu a responsabilidade. Esta, no Estado
Liberal, era individual, obedecia ao princípio da individualização; ela não
poderia ser coletiva.
Compreendemos afora que a crise do Estado Providência ultrapassa o
problema do financiamento da Previdência. Trata-se de um problema político
institucional.
Cabe à democracia inventar procedimentos que permitam decidir a cada
momento conforme a natureza das questões, situação bem diferente de
quando ela se contentava em gerir o consenso.
3. IMPREVISIBILIDADE ESTRUTURAL
Como lidar com um mundo em que a imprevisibilidade é estrutural, sem
nos afastarmos, se possível ampliando a ação implementada por conceitos do
tipo decisão, controle e participação cidadã?
A política de cuidados em Saúde Mental (internação, permanência
prolongada, lugar de recolhimento para os mais variados quadros de
desinserção social) encontra-se em mutação em países desenvolvidos.
A atual crise econômica se encarrega de invalidar soluções concebidas
em períodos mais prósperos. Cabem medidas de flexibilização do sistema.
As modificações da prática da Psiquiatria, assim como mudanças em se
tratando de Medicina Geral, transformam a oferta habitualmente colocada à
disposição dos usuários, e conseqüentemente a demanda que desses mesmos
sujeitos teria que advir. Casos recentes nos fazem crer que tais exigências são
trazidas de outro lugar que não as orientações conhecidas e reconhecidas em
matéria de Saúde Mental. Os sujeitos são submetidos à uniformização, cuja
conseqüência imediata é uma crescente segregação. Cada país, em função da
própria história, das suas tradições, assim como do jogo de forças entre as
diversas instituições concernidas no campo da saúde mental, procura solução
para o impasse trazido pelo discurso absolutista da ciência; por outro lado, as
expectativas colocadas nos medicamentos garantem o que tem sido
amplamente anunciado pelos laboratórios.
As mudanças atuais no campo das instituições atuando no campo da
inserção/desinserção (Saúde Mental, jovens em conflito com a lei, abandono
ou escolarização deficitária) terão certamente impacto sobre os sujeitos.
As questões mencionadas encontram determinações ao longo de três
eixos:
1. A distância entre a “queixa” e a codificação posta em prática por
ocasião do atendimento, diagnóstico e encaminhamento do paciente
parece determinar grandemente a resposta. Sabidamente, o código
não alcança a queixa. Um “sistema expert”, assim chamado pelos
técnicos da computação, com seus programas já existentes e
disponibilizados, parece não atender às exigências mínimas
encontradas em nosso caso.
2. A questão da “rentabilidade”, da alta em se tratando de pacientes em
psicoterapias, dos certificados de qualidade atribuídos a hospitais
gerais uma vez a solicitação feita pelo próprio hospital, estão no
nosso horizonte. Em breve, centros de atendimento para portadores
de sofrimento mental serão avaliados pelos mesmos critérios. O
reincidente aqui, mais que em outras instituições de cuidados,
constitui problema para o sistema. Um programa de desospitalização
põe às claras deficiências do atendimento. Instituição alguma admite
de bom grado o reincidente; ele é a prova do mau funcionamento do
programa de atendimento. Já o aluno repetente na escola tradicional
era motivo de discriminação, segregação, rebaixamento,
desclassificação. O preso em sua segunda condenação já não é réu
primário. Os egressos de um serviço de saúde mental, os jovens
infratores em conflito com a lei seriam classificados como casos
“perdidos”, perigosos, já que não recuperáveis.
3. O sujeito não pode ser apreendido longe das suas coordenadas
sociológicas, entretanto o inconsciente implica ser escutado em
posição singular por outro lado, novas formas de sintoma articulam-
se à estrutura.
Antes de darmos prosseguimento, vamos anotar que – a
desinserção/inserção como binário para demarcar a doença mental é
característica de dimensão “macro”, praticada pelos economistas e
planejadores; restritos a essa dimensão, deixaríamos escapar originalidade dos
quadros apresentados na clínica social e afastaríamos a clínica como
abordagem preferida.
4. REDES DE REDES
A referência trazida constitui o bastante para pensarmos em um novo
tratamento a ser dado ao sistema de atendimento e cuidados em casos de
desinserção social (Saúde Mental, jovem infrator em conflito com a lei, fraco
rendimento escolar ou abandono, criminalidade, dependência de drogas). A
experiência do funcionamento em rede já é conhecida em Belo Horizonte no
atendimento a usuários em Saúde Mental. Os CERSAMs associados aos
Centros de Convivência, e centros de saúde, o tripé com suas múltiplas
atividades, constituem uma experiência de valor inestimável. O que aqui se
propõe seria estender a idéia para além do seu circuito, Saúde Mental em seu
sentido estrito psiquiátrico.
Uma rede de redes seria a matriz para se pensar uma nova estrutura de
atendimento.
Uma rede de redes seria a dimensão que convém ao espaço publico
destinado ao atendimento e cuidados que acolhem uma faixa da população.
A integração far-se-á pouco a pouco. Mas, o princípio já seria o bastante
para repensar o que entendemos por egresso, reincidente, indivíduo
irrecuperável, caso perdido.
5. ENTRADA NA REDE
De fato, estamos admitindo que o Estado do Bem-Estar e programas
implementados pela Democracia Social não será abandonados; nem há em
nosso horizonte político-institucional nenhum sinal a indicar que mudaremos de
direção a curto ou médio prazo.
Vamos continuar, apesar do corte de verbas, de dificuldades
momentâneas, a assumir a assistência a ampla faixa da população
desfavorecida e em processo de segregação acelerada. Trata-se de dar maior
flexibilidade ao setor de atendimento.
O menor, ao receber cuidados na infância, dá entrada uma primeira vez,
inscrevendo-se em algum setor da rede. Uma segunda experiência mais tarde,
na adolescência precisamente, o leva a uma segunda tentativa de reinserção,
ainda por meio de uma malha da rede. Uma terceira entrada em nada o
caracteriza como caso “perdido”, ele será tão-somente na juventude alguém já
inscrito na rede de redes. Aliás, uma primeira vez ele foi identificado por
insuficiência escolar, uma segunda vez pro causa de infração, uma terceira por
sofrimento mental, uma quarta que fosse o caso, mas nunca caso “perdido”,
nem discriminado, ou considerado “perigoso”. Cabe ao sistema como um todo
não se apresentar sempre no mesmo lugar. O primeiro a reincidir é a instituição
na sua mesmice, no seu anacronismo, em seus hábitos quando tudo em volta
já evoluiu. Dou em exemplo: o psicótico usuário ao procurar serviço de
toxicomania quando reenviado ao atendimento em centro psiquiátrico, para em
seguida ter que voltar ao mesmo lugar de início dessa trajetória
desconcertante...
Nossa atenção esteve voltada para casos trazidos por ocasião do que
chamamos “supervisão”, atividade destinada a acompanhar desempenho de
colegas em situação de atendimento direto ao usuário. Em supervisão são
levados os casos mais difíceis. Que fazer?, indaga o jovem técnico, após
atendimento do egresso na clínica em Saúde Mental. Que encaminhamento
dar em relatório solicitado pelo Juiz empenhado em esclarecer caso do jovem
infrator? Que orientação discutir com a professora em seu último recurso no
caso de aluno carente, inadaptado, deficitário?
Não há repetente, nem egresso, nem reincidente quando pensamos o
atendimento a partir de uma rede de redes. Há sujeitos que não se sentem
bem em lugares que lhe foram atribuídos pelo sistema social, sujeitos em
processo e desinserção. Futuros marginalizados, eles passam em seguida a
integrar o contingente do crime. A eles só foi dada a linguagem da violência
como forma de expressão. A força das armas a que teve acesso graças ao
grupo (ou bando como queiram chamar) dará a ele a impressão de que “se
saiu dessa, tirando alguma vantagem”.
6. PROJETO PARA UMA VIDA
O Estado do Bem-Estar promovido pela Democracia Social recrutou os
saberes das Ciências Humanas, seus técnicos, especialmente no campo “psi”,
numa tentativa de fazer valer um saber pretendido pela Academia, pressentido
pelo sistema.
O balanço, após décadas de prática institucional, leva-nos à afirmação –
na criança (institucionalizada), no psicótico (retido em enfermaria ou abrigo em
hospital dia, ou atendido em ambulatório), no jovem infrator (internado ou
sujeito a medidas socioeducativas), está o saber que nos interessa, ainda que
este saber permaneça opaco para nós.
O “atendimento múltiplo” coloca todos os profissionais no mesmo plano
graças à destituição do saber; estou admitindo na minha hipótese que a clínica
implicada pelo social apresenta as condições para promovera tal destituição do
saber. Foi, aliás, precisamente por isso que ela veio a se implicar nas questões
aqui assinaladas. Ela não é um saber a mais, nem é resultado de uma visão
privilegiada que lhe ofereceria o fato de lidar com o inconsciente.
Os profissionais agora “destituídos do saber”, sejam ou não da mesma
orientação ou grupo, poderão cada um por sua vez dar testemunho de que não
reforçam o grande Outro enlouquecedor, mas acompanham o sujeito em suas
manobras nem sempre hábeis frente a esse grande Outro, instância de
alteridade podendo assumir características mortíferas.
Cada egresso, ou infrator, ou jovem em conflito com a lei, cada usuário
portador de sofrimento mental, será acompanhado na construção de um projeto
que o lance e relance na vida.
Aqui vamos propor um “pró-jeto” 3. A grafia “pró-jeto” distingue nossa
proposta do que chamaríamos um projeto, já conhecido na expressão projeto
pessoal quando, graças a um aconselhamento ou freqüência a um grupo de
reflexão e testemunho, um participante é levado a assumir uma posição de
integração em um modelo que lhes é proposto; ou ainda quando os técnicos da
dimensão macro se apropriam do termo para criar dispositivos de gestão do
necessário. A rede de redes a partir do acontecimento e da singularidade faz
contraponto à dimensão macro, própria do planejador, técnicos, burocrata.
Ao escrever separando as sílabas destaquei o termo “jeto” (lançar-se,
lançamento), assim como o prefixo “pró”.
Um “pró-jeto” está isento das representações habituais (escolhas de
profissões por parte de filhos em casas de classe média e alta, metas
governamentais definidas em termos de a “única política possível”). Um “pró-
jeto” produz alguma coisa sobre a qual não temos controle absoluto, já que
pensado sem insistência nas identificações encontradas na história de cada
um, pensado longe das exortações habituais fundadas nos ideais. Até hoje, as
famílias criaram em nós identificações que carregamos em nossos ombros, por
vezes, a duras penas; por causa delas nos sentimos culpados sob variados
pretextos.
Acompanhar, ou conduzir um “pró-jeto”, seria favorecer alguma
passagem na tentativa de inserção no simbólico, tais como instituições
jurídicas, justiça trabalhista, exercício do voto por ocasião de eleições,
discussão em grupo de comunidade de base, viabilidade de discurso político
que não seja necessariamente o discurso do bando e a violência; estão aqui
nomeadas as ocasiões que incluem eventualmente fazer laço social, fazer
parte da sociedade tal como ela está organizada. Não foi mencionada a
inserção na sociedade como único e principal objetivo do acompanhamento. A
inserção é resultado a que se chega por acréscimo, por conseqüência; se ela
for buscada por meio de argumentos diretos e convencimento, bastaria o que
nos ensinam a moral ou a religião.
O desastre na vida pessoal do jovem terá feito com que ele se apresente
a nós sem o pesa das tais identificações; ele ou as instituições por que passou
dirão que está “perdido”. Há uma falha na sua sociabilidade, ou no projeto (sem
3
Conversei com Fernando Otoni sobre o projeto PAI/PJ implementado pela colega,
destinado a atender egressos na Secretaria de Justiça. A idéia de rede foi aventada numa de
nossas conversas.
separação na grafia para distingui-lo do nosso “pró-jeto”) que dá ao indivíduo
autonomia conseguida por “reflexibilidade do ego”. A essa falha a psicologia
tradicional chamaria patologia da autodisciplina. Perda de identidade do ego,
dirá esta psicologia, limitando-se a constatar a ruptura para logo em seguida
operar uma sutura. Os indivíduos assujeitados ao projeto da modernidade e
seu modo de produção serão aqueles que se terão adaptado.
Pois bem, a rede de redes vai tirar partido dessa situação criando as
bases de um “pró-jeto”. Diria que diante de tal quadro, a intervenção por parte
do clínico “psi”, técnico, profissional de ciências humanas busca efetividade,
mesmo sabendo que ela será dificilmente alcançada; por isso mesmo, sem
desconhecer seus limites, o acompanhamento merece ser técnica de
intervenção apurada.
Conclusão: há circunstâncias que estão a exigir uma reformulação da
prática de atendimento e cuidados:
incômodo manifestado por alguns colegas apenas atesta que algo
está acontecendo à revelia dos interessados; a inquietação do
público diante da violência por parte de jovens em conflito com a lei
tem exacerbado a reação a autoproteção, cujo horizonte se limita ao
medo;
melhor seria tomar em mão a situação partindo de um estudo e uma
reflexão que nos levassem a fazer frente à nova situação; parece
estar em causa o saber “psi” e outros assemelhados, acumulados em
fase anterior de nossa história de formação;
em nada estaremos diminuídos se estivermos à altura da situação e
fizermos progredir nossa prática, assim como futuras elaborações;
“atendimento múltiplo” acompanhado de destituição do saber
especializado, operação posta em prática nua rede de redes; parece
a melhor via de passagem no momento atual;
Temos que implementar o desdobramento dessas noções
oportunamente surgidas no cenário de nosso pensamento político na prática de
atendimentos e cuidados.
Rede de redes não pretende ser uma metodologia geral, ela é uma
organização local para uma experiência única, singular; ela é genérica na
medida em que se forma a partir de um ponto, ela contém várias entradas, mas
não conhece centro nem periferia.