0 notas0% acharam este documento útil (0 voto) 42 visualizações4 páginasHeloisa e Tatuagens
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A escritora e professora Heloisa Buarque de Hollanda se orgulha da nova
geracéo de mulheres - entre negras, lésbicas, trans e indigenas - que bota a
boca no trombone (da internet), relembra os insultos que aguentava nos anos
1980 e conta-como estd atravessando a pandemia e o luto
POR DENISE MEIRA DO AMARAL.«
ICO CERCHIAROPDIVULGAGRO COMP
Foro
ENTREVISTA
embra daquele dia / que vocé passou a mio no meu peito / sem meu consentimen-
to? / eu nao reclamei / nao foi porque eu gostei / mas porque mais uma vez / o medo
paralisou minha espinha / 0 corpo inerte s6 chorou no outro dia / quando eu descia
aladeira sozinha.” © poema da jovem Luz Ribeiro, parte do livro As 29 Poetas Hoje
(Companhia das Letras), com organizagio de Heloisa Buarque de Hollanda, é um grito pul-
sante e combativo da nova geracdo de feministas.
Para a escritora, doutora, professora de teoria critica da cultura na UFRJ e coordenadora do
projeto Universidade das Quebradas ~ que propde troca de saberes com a periferia -, 0 feminis-
mo foi disseminado aos quatro cantos com as redes sociais e hoje as mulheres ja nao precisam
aguardar pela chancela da lei. Aos 81 anos, mie de Lula, André e Pedro Buarque, e avé de sete, a
paulista de Ribeirao Preto se mudou para o Rio aos 4 anos, apés seu pai, médico cardiologista,
ter sido transferido para a cidade. Foi casada com o cineasta Luiz Buarque de Holanda, morto
m1999, ¢ com o diretor de fotografia e cineasta Joao Carlos Horta, que morreu em dezembro.
Ela ainda teve uma editora por 15 anos, a Aeroplano, foi jornalista, j4 fez. cinema, radio e TV €
foi diretora do Museu da Imagem e do Som do Rio,
4.P: Como o feminismo entrou na sua vida?
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA: Me formei
em grego pela PUC-Rio e em seguida fui pa-
ra Harvard acompanhar meu primeiro marido
[Luiz Buarque de Holanda], que faria um mes-
trado la. Era anos 1960 ¢ estava tendo a Guerra
do Vietna, Janis Joplin... Descobri a politica ea
América Latina e larguei o grego porque perce-
bi que omundo era maior, Mas s6 me toquei do
feminismo ao fazer uma pés na Universidade
‘Columbia, em Nova York, nos anos 1980, ¢ co-
megava a se falar sobre teorias feministas ¢ os
niicleos de estudos de géneros foram criados.
O feminismo virou entio um campo teérico.
Fiquei totalmente fascinada. Larguei 0 curso
de sociologia da cultura e corti para os bragos
do feminismo, E uma nova forma de pensar.
Vocé comega a ler tudo com outro olho, que é
seu, mas que até ent’io nunca tinha usado.
4.P: Era dificil ser feminista nos anos 1980?
HBH: Muito. A gente era acusada de nao ligar pa-
ra 0s filhos, que eles se tornariam delinquentes,
que a gente nao ia arranjar namorado, que era
feia, mal-amada ou sapato ~ naquela época se
xingava sapato, Os homens falavam: “Deixa s6
eu te pegar para ver se no acabo com isso de
feminismo”. Uma vez 0 [antropdlogd] Darey Ri-
“A gente era acusada de néio
ligar para os filhos, que eles
se tornariam delinquentes,
que a gente nao ia arranjar
namorado, que era feia, mal-
amada”, sobre ser feminista nos
anos 1980
eiro pediu para eu fazer uma revista do Museu
da Imagem do Som. Ficou linda, levei para a
faculdade em que trabalhava e os professores
falaram na minha cara: “Aposto que vocé deu
para o Darcy”, Eu nao tinha instrumentos para
revidar. Hoje se faria um escdndalo e esses pro-
fessores seriam punidos. Mas era 1980 e nada
aconteceu. Quando prestei um concurso para
ser professora titular em 1993 na UFRJ e ganhei,
fui agredida de todos os modos. Ligavam para 0
escritério da universidade e perguntavam se era
do bordel da dona Hel6.
J.P: Qual a diferenca entre o feminismo dessa
época eo de hoje?
BH: No meu tempo, a gente tinha um projeto
politico de transformagio social a longo prazo de
MAIO 2021 LIP 29‘uma grande mudanga para o futuro. As meninas
hojeacham que isso ji mudou e querem que essas
leis agora passema valer. Elas vio para os jornais,
redes sociais e denunciam o assédio. Na minha
época, a gente ndo entendia assédio. Esses tele-
fonemas pro “meu bordel” eram assédio, mas s6
pensava: “La vém eles de novo” e nao dava no-
me ao crime, Hoje temos muito mais acdes pre-
vistas, além de mais consciéncia da violéncia dos
homens. Na época, isso tudo nao era considerado
violencia. O que é uma loucura porque é violencia
psicoldgica e é crime.
4.P: No livro Pensamento Feminista Hoje
-Sexualidades no Sul Global, vocé diz que
estamos na quarta onda feminista. 0 que
ela representa?
HBH: A primeira onda foi das sufragistas que
pediam direito ao voto. A segunda foi a revo-
lugio dos anos 1960, a liberacdo do corpo, dis-
cussiio sobre 0 aborto, liberdade sexual e dos
desejos. A terceira, que vivi nos anos 1980, foi
0 direito de reinterpretar com nossos olhos a
historia universal, o marxismo, a filosofia, a te-
ologia, as teorias vigentes ~ que até entao eram
todas masculinas. E 0 primeiro momento em
que a mulher se propée a uma epistemologia.
A quarta onda é a que surge com a internet, a
partir de 2013. As demandas das meninas sao
parecidas: aborto, violéncia doméstica, amplia-
das para assédio e estupro, mercado de traba-
Iho, meu corpo, minhas regras, mas a lingua-
gem é outra, Elas sabem que isso tudo jé é um
direito e s6 querem botar em pratica. Nao é
no, e pronto, Elas escrevem no corpo e exi-
gem que isso seja cumprido, no tem mais in-
termedidrios. Na minha época, vocé precisava
que uma lei passasse no Congreso. Agora no,
636 tocar o terror na internet. Jé vi varios ho-
mens perderem 0 emprego apés posts de redes
sociais com dentincias de assédio, Claro que is-
so também tem um problema, a internet é 4gil,
mas, as vezes, pode ser cega. Até provar 0 con-
tririo, o estrago jé esta feito, Outra diferenga é
que no meu tempo s6 tinha mulher branca no
feminismo. A quarta onda feminista apareceu
com milhares de demandas diferentes, tem 0
feminismo negro, indigena, asidtico, evangéli-
co, de prostituicao, de trans, o feminismo lés-
bico. Percebemos que cada segmento de mu-
Theres tem uma demanda especifica. Alm de
mulher, ser uma mulher negra no Brasil é uma
sobrecarga gigantesca.
4.: Isso fiaz parte do feminismo decolonial?
HBH: A gente se guiava por paises ditos cen-
trais, como os Estados Unidos, Franga e Ale-
manha, De repente, cai a ficha de que nao so-
mos europeias, mas colonizadas. Os povos que
estavam aqui foram sistematicamente silen-
ciados, as culturas indigena e africana foram
sufocadas. I! hora de abrir essa panela e deixar
que as culturas que existiam antes aflorem.
4.P: 0 corpo agora virou plataforma de luta?
HBH: No meu tempo, corpo era um problema.
30 J.P MAIO 2021ENTREVISTA
Tudo o que acontece com a mulher & no corpo,
© assédio, a maternidade compulséria, 0 abor-
to, Esta geragio de agora pegou o corpo e disse:
“Ble é meu e ninguém tasca”. Escrevem no cor-
po para mandar recado e sao lidas, so respei-
tadas. E ai de quem mexer. Pela primeira vez, 0
feminismo foi ouvido por muita gente porque é
a primeira onda que dispée de internet. f uma
alegria ter essas “netas” mandando ver (risos).
J.P: Quais lutas feministas ficaram ainda mais
evidentes na pandemia?
HBH: Fiz uma série de 34 epis6dios pandémicos
em que entrevisto mulheres rappers, mies, en-
fermeiras, grafiteiras, sambistas. Elas contaram,
por exemplo, que recebiam uns kits com sabao,
mas nio tinham Agua em casa. Apesar do femi-
nicidio ter aumentado na pandemia, esse assun-
to nem chegou a ser pauta para elas porque es-
tavam preocupadas com a policia que poderia
matar seus filhos na volta da escola. A pandemia
escancarou também que pobre e preto niio ga-
nham vacina. A politica de matar os pobres sem-
pre existiu, mas nunca ficou tao evidente.
4.P: Vocé lancou 0 livro As 29 Poetas Hoje 45
anos depois de 26 Poetas Hoje. Qual é0 grande
mérito da eserita feita por mulheres?
HBH: A mulher bota a primeira pessoa no texto,
sua biografia, coisa que o homem nao faz. E uma
visao do texto completamente diferente. A mu-
Iher registra sua experiéncia e diz de onde est
falando, Homem nio diz de onde esté falando,
porque homem é “universal”, é “a verdade”,
J.P: Qual o poder da poesia?
HBH: Sou doida por poesia. Hoje, a poesia es-
td até vendendo mais, mas nunca vendeu e
nunca teve publico. Por isso é muito mais li-
vre que a prosa. Sempre penso na poesia como
um farol que ilumina o que vem por af. Inva-
riavelmente ela acerta. Vocé vé essas meni-
nas, como esto a frente do tempo? O tempo
ainda no € assim, mas jé est tudo ld na poe-
sia. A poesia é prima-irma da filosofia e tema
poténcia da palavra condensada.
“Tudo o que acontece com a
mulher é no corpo, o assédio,
a maternidade compulséria, 0
aborto. Esta geraciio de agora
pegou o corpo e disse: Ele é
meu e ninguém tasca”
4.P: Como esté enfrentando a quarentena ¢ 0
processo do passar do tempo?
HBH: Lido de uma forma histérica, trabalhan-
do trés vezes mais. Gosto de piscina, mas como
iio est podendo, tenho feito gindstica em casa,
trés vezes por semana. Quando vocé envelhece,
no pode parar de jeito algum. Na pandemia, te-
nho tido mais vontade de comer doces e choco-
late e fico calculando se é melhor comer ou fi-
car deprimida (risos). Se vocé tem um projeto na
cabeca, segura muito mais uma velhice e uma
miio-dependéncia porque o pavor do passar da
idade ¢ a dependéncia. Ser levada de c4 para li
por alguém é um fantasma. Estou também es-
crevendo um livro chamado Feminista, Eu2, pela
Bazar do Tempo. Mesmo tendo escrito varios li-
-vros, tenho a sindrome da impostora. Toda mu-
Iher tem. A gente é contaminada por esse virus
desde que nascemos. Voc’ pode até vencer na
vida, mas vence como impostora.
4.8: Vocé perdeu seu marido, Joao Carlos Horta,
no fim do ano, Como esté tidando com o tuto?
HBH: Eu era muito apaixonada, ele morreu de
enfarte. Sabe o que eu fiz? Comprei uma gol-
den [retriever] e botei o nome de Joana. Fico
agarrada com cla o dia inteiro, ela me ajuda
muito. Meu marido foi enterrado, velado, pude
claborar isso tudo de alguma forma. Mas com a
pandemia, caixo fechado, a pessoa niio se des-
pede. O luto agora é uma coisa anormal porque
no est permitido para quem morre de Covid.
Pulam essa etapa, que é muito importante para
suportar. Depois do luto vocé costumava pas-
sar um tempo com a familia, amigos, e nada
disso € permitido agora. £ um terror. A gente
nunca conheceua morte assim, seca, =
MAIO 2021 J.P 31