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Cibercultura - Pierre Lévi

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Pierre Levy CIBERCULTURA editorali34 DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: ‘A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros ¢ seus diversos parceiros, como objetivo de oferecer contetido para uso parcial em pesquisas ¢ estudos académicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusive de compra futura. E expressamente proibida e totalmente repudiavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente contetido Sobre nés: O Le Livros ¢ seus parceiros disponibilizam contetido de dominio publico ¢ propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educagéio devem ser acessiveis ¢ livres a toda e qualquer pessoa. Vocé pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.Net ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e néo mais lutando por dinheiro e poder, entéo nossa sociedade poderd enfim evoluir a um novo nivel. Livros 1 Pierre Lévy CIBERCULTURA Tradugao de Carlos Irineu da Costa 2 EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455000 Sao Paulo SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777 [email protected] Este livro é resultado de um relatério apresentado ao Conselho Europeu no Ambito do projeto "Novas tecnologias: cooperagao cultural e comunicagiio" Copyright © Editora 34 Ltda. (edigGo brasileira), 1999 Cyberculture Editions Odile Jacob, 1997 A FOTOCOPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO E ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIACAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. Titulo original: Cyberculture Capa, projeto grafico e editoragdo eletrénica: Bracher & Malta Produgio Grafica Revisao: Alexandre Barbosa de Souza Magnolia Costa I* Edigdo 1999, 1° Reimpressao 1999 Catalogagao na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundagdo Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) Lévy, Pierre L668c Cibercultura / Pierre Lévy; tradugdo de Carlos Trineu da Costa.— Sao Paulo: Ed. 34, 1999 264 p. (Colegio TRANS) ISBN 8573261269 Tradugao de: Cyberculture 1. Computadores ¢ civilizagao. 2, Realidade virtual. 3. Comunicagdo Aspectos sociais. Commnicagao Inovagées tecnoldgicas. Ciberespago. L Titulo. II. Série. CDD 303.483 A METAFORA DO IMPACTO E INADEQUADA.........00..00 00 ee ee ee 19 oN A TECNOLOGIA E DETERMINANTE OU CONDICIONANTE? .2 3 A ACELERACAO DAS ALTERAGOES TECNICAS E A A INTELIGENCIA COLETIVA, VENENO E REMEDIO DA Cc TBERCULTURA .. 00.06 coe cee erent e eee etn t net e eee IL A INFRAESTRUTURA TECNICA DO VIRTUAL... 2.00000. 0 cree eee 30 A EMERGENCIA DO CIBERESPAGO........ 0.0000 c cece e cence eee eee eee 30 oO TRATAMENTO .... 1... ce nnn nnn tenet e eee : oO S PROGRAMAS .... 2... cece nett nett eens beeen’ 42 D O COMPUTADOR AO CIBERESPAGO .. 0.2.0... e cece eee eee eee AS II. O DIGITAL OU A VIRTUALIZACAO DA INFORMACAO........... + 46 Ss PROCESSAMEI AUTOMATICO, RAPIDO, P RECISO, EM GRANDE ESCALA ... 020.0002 0 0 eee eee eeeeeveneeeeeeerened 53 D ULTIMIDIA OU UNIMIDIA?.............- vee de eee e eee eeveeerteetereeereres = 63 Ss 00) ee . 68 E SCALA DOS MUNDOS VIRTUAIS .... 6.00600 e ee cee cette eee eee! 72 A virtualidade informatica (sentido ainda mais fraco)................. 75 NAVEGACOES NA WORLD WIDE WEB OU A CACADA E A P ILHAGEM 93 A CESSO A DISTANCIA E TRANSFERENCIA DE ARQUIVOS .9 4 ° CORREIO ELETRONICO «2... 0.0 o cece cece eee cent ne eee eteneneee neces 96 A S CONFERENCIAS ELETRONICAS ... 00.20.00 00200 cece cece este eee ee ees 101 D A CONFERENCIA ELETRONICA AO GROUPWARE ........... 102 A COMUNICAGAO ATRAVES DE MUNDOS VIRTUAIS c OMPARTILHADOS ..... 0.0.6 nee nents 107 N A ESCRITA E O UNIVERSAL TOTALIZANTE ........02 02 000e0e0e eevee 114 M {DIAS DE, MASSA E TOTALIDADE.........0.0.02000c0e0eeeeeveeenee sees 116 c OMPLEXIDADE DOS MODOS DE TOTALIZAGAO........... 2+. 118 A CIBERCULTURA OU O UNIVERSAL SEM TOTALIDADE.. . .1 18 oO UNIVERSAL NAO EF; O PLANETARIO..... 00.2000 0000 eee ee eee eee ene ee 120 Q UANTO MAIS UNIVERSAL, MENOS TOTALIZAVEL 3 Vv TI. O MOVIMENTO SOCIAL DA CIBERCULTURA .......-0 6000s eee 1 23 TECNICA E DESEJO COLETIVO: O EXEMPLO DO VEICULO A IBERESPACO E MOVIMENTO SOCIAL... 20.06.00 sce e cece eee 125 ° PROGRAMA DA CIBERCULTURA: A INTERCONEXAO. .. .1 27 O PROGRAMA DA CIBERCULTURA: AS COMUNIDADES, Vv IRTUAIS . 128 O PROGRAMA DA CIBERCULTURA: A INTELIGENCIA Vv Ill. O SOM DA CIBERCULTURA. 00.660 c eee cee eee eee 135 A S ARTES DO VIRTUAL... 20.0606 cece een teen nen eee ee . 135 A GLOBALIZACAO DA MUSICA ..... 2.00 eee eee eee eee eee eee ee ee 137 M USICA ORAL, ESCRITA, GRAVADA . . 1.40 A SLOSS (07, 0 (© bese 141 TX. A ARTE DA CIBERCULTURA .. 0.6.0 c eee nce nce ence tenet e teens .. 145 A ADEQUAGAO ENTRE AS FORMAS ESTETICAS DA Cc IBERCULTURA E SEUS DISPOSITIVOS TECNOSOCIAIS 1 45 O UNIVERSAL SEM TOTALIDADE: TEXTO, MUSICA E I MAGEM AUTOR EM QUESTAO .... 0.0.0 c ccc cecee nent eevee ee tee tent tteeneeeeenen ees 152 o DECLINIO DA GRAVAGAO .. 2... n cece cece en eeeane 1 55 X. ANOVA RELACAO COM O SABER EDUCACAO E Cc ARTICULACAO DE NUMEROSOS PONTOS DE VISTA . oO SEGUNDO DILUVIO E A INACESSIBILIDADE DO TODO. .1 61 Q UEM SABE? A REENCARNAGAO DO SABER . . 6 A SIMULACAO, UM MODO DE CONHECIMENTO PROPRIO DA Cc IBERCULTURA . 0... nee een nee nee e ete e teen ene e nes 166 DA INTERCONEXAO CAOTICA A INTELIGENCIA COLETIVA. A APRENDIZAGEM ABERTA E A DISTANCIA.......0 0.000000 eee 170 A APRENDIZAGEM COLETIVA E O NOVO PAPEL DOS P RUMO A UMA REGULAMENTAGAO PUBLICA DA ECONOMIA D O CONHECIMENTO.. «+173 Ss ABERFLUXO E DISSOLUCAO DAS SEPARAGOES .......... 174 oO RECONHECIMENTO DAS AQUISICOES .........0 000000 c cece eee 176 XII. AS ARVORES DE CONHECIMENTOS, UM INSTRUMENTO NECTAR: UM EXEMPLO DE USO INTERNACIONAL DAS. A RVORES DE CONHECIMENTOS ..... 20.0000 cece cece cette tenn ences 183 U M SISTEMA UNIVERSAL SEM TOTALIDADE ..........6.0000500005 185 XIII. O CIBERESPACO, A CIDADE E A DEMOCRACIA E LETRONICA A ARTICULAGAO 1... e cece ee ce eet reese ee eet nett nett tener neee eee es ceed 98 XIV. CONFLITOS DE INTERESSE E DIVERSIDADE DOS PONTOS DE VISTA. . . 202 A BERTURA DO DEVIR TECNOLOGICO ..... 00... 00 cece c eee eee ee eee 203 7 O PONTO DE VISTA DOS COMERCIANTES E O ADVENTO DO M ERCADO ABSOLUTO ..... 6.6 oe cee nent ete teen eee 204 O PONTO DE VISTA DAS MIDIAS: COMO FAZER Ss O PONTO DE VISTA DOS ESTADOS: CONTROLE DOS FLUXOS TRANSFRONTEIRICOS, CRIPTOGRAFIA, DEFESA D x V., CRITICA DA SUBSTITUICAO . 20... eee cece e cee ee ee ee tent ee et entrees 215 Ss UBSTITUIGAO OU COMPLEXIFICAGAO? CRESCIMENTOS PARALELOS DAS TELECOMUNICACOES E. D OTRANSPORTE........ Sa sees 217 AUMENTO DOS UNIVERSOS DE ESCOLHA: A ASCENSAO. D O VIRTUAL PROVOCA A DO ATUAL.... 00.0. 00c ccc cee ec eee eeeee een eees 219 N OVOS PLANOS DE EXISTENCIA ...... 0.00000 00ccec ee eeeeeeteeeeeeeees 221 D APERDA.........0..0000 cece eee eee beeen eee eee e eee e eee beeteee eevee 223 x VI. CRITICA DA DOMINAGAO «0.0. eee eee ee ec nent nets nent ee eenee eens 2.225 I MPOTENCIA DOS ATORES "MIDIATICOS" ....... 06.0. 00c cece eee ee 225 DEVEMOS TEMER O DOMINIO DE UMA NOVA "CLASSE D IALETICA DA UTOPIA E DOS NEGOCIOS ........0.0.02 020000000 230 x VII. CRITICA DA CRITICA ... . ceeeee 233 FE UNGOES DO PENSAMENTO CRITICO... 0.0.0. o.oo eee eee ed 233 CRITICA DO TOTALITARISMO OU TEMOR DA D A CRITICA ERA PROGRESSISTA. ESTARIA TORNANDOSE Cc ONSERVADORA? . seas 237 MBIVALENCIA DA POTENCIA........ 0000000 cece cece eee e eee tee eeeeeeeed 2 38 8 x ‘VIII. RESPOSTAS A ALGUMAS PERGUNTAS FREQUENTES 2 40 A A CIBERCULTURA NAO E SINONIMO DE CAOS E DE c ONFUSAO? . A CIBERCULTURA ENCONTRASE EM RUPTURA COM OS. VALORES FUNDADORES DA MODERNIDADE EUROPEIA? Cc CIBERCULTURA OU A TRADIGAO SIMULTANEA ...........+- 254 9 Introdugao DILUVIOS Pensar a cibercultura: esta é a proposta deste livro. Em geral me consideram um otimista. Estéo certos. Meu otimismo, contudo, nao promete que a Internet resolvera, em um passe de magica, todos os problemas culturais e sociais do planeta. Consiste apenas em reconhecer dois fatos. Em primeiro lugar, que 0 crescimento do ciberespago resulta de um movimento internacional de jovens Avidos para experimentar, coletivamente, formas de comunicagiio diferentes daquelas que as midias classicas nos propdem. Em segundo lugar, que estamos vivendo a abertura de um novo espago de comunicagiio, ¢ cabe apenas a nds explorar as potencialidades mais positivas deste espaco nos planos econémico, politico, cultural ¢ humano. Aqueles que denunciam a cibercultura hoje tém uma estranha semelhanga com aqueles que desprezavam o rock nos anos 50 ou 60. 0 rock era angloamericano, ¢ tornouse uma industria. Isso ndo o impediu, contudo, de ser o portavoz das aspiragdes de uma enorme parcela da juventude mundial. Também nao impediu que muitos de nés nos divertissemos ouvindo ou tocando juntos essa musica, A misica pop dos anos 70 deu uma consciéncia a uma ou duas geracdes ¢ contribuiu para o fim da Guerra do Vietnd. E bem verdade que nem 0 rock nem a miisica pop resolveram o problema da miséria ou da fome no mundo. Mas isso seria razo para "ser contra"? Durante uma dessas mesas redondas que tém se multiplicado sobre os "impacts" das novas redes de comunicagdo, tive a oportunidade de ouvir um cineasta, que se tornou um funciondrio europeu, denunciar a "barbarie" encarnada pelos videogames, os mundos virtuais e os foruns eletrénicos, Respondilhe que aquele era um discurso muito estranho vindo de um representante da sétima arte, Pois, ao nascer, 0 cinema foi desprezado como um meio de embotamento mecanico das massas por quase todos os intelectuais bempensantes, assim como pelos portavozes oficiais da cultura. Hoje, no entanto, o 10 cinema é reconhecido como uma arte completa, investido de todas as legitimidades culturais possiveis. Parece contudo que passado ndo & capaz de nos iluminar. O mesmo fenémeno pelo qual o cinema passou se reproduz hoje com as praticas sociais artisticas baseadas nas técnicas contemporneas. Estas fio denunciadas como "estrangeiras" (americanas), inumanas, embotantes, desrcalizantes ete. Nao quero de forma alguma dar a impressiio de que tudo o que é feito com as redes digitais seja "bom". Isso seria tio absurdo quanto supor que todos os filmes sejam excelentes. Peco apenas que permanegamos abertos, benevolentes, receptivos em relagio A novidade. Que tentemos compreendéla, pois a verdadeira questdo nao é ser contra ou a favor, mas sim reconhecer as mudangas qualitativas na ecologia dos signos, o ambiente inédito que resulta da extensdo das novas redes de comunicagao para a vida social ¢ cultural. Apenas dessa forma seremos capazes de desenvolver estas novas tecnologias dentro de uma perspectiva humanista. Mas falar de humanismo nao é justamente uma caracteristica dos sonhadores? A questo parece estar definida, os jornais e a televisio jé decidiram: o ciberespago entrou na era comercial — "Os vendedores invadem a Internet, segundo a manchete do Le Monde Diplomatique. Tornouse uma questio de dinheiro envolvendo os pesos pesados. O tempo dos ativistas e dos utopistas j4 terminou. Se vocé tentar explicar o desenvolvimento de novas formas de comunicagdo transversais, interativas e cooperativas, ouvir como resposta um discurso sobre os ganhos fabulosos de Bil Gates, presidente da Microsoft. Os servicos online sero pagos, restritos aos mais ricos. O crescimento do ciberespago servira apenas para aumentar ainda mais 0 abismo entre os bemnascidos ¢ os excluidos, entre os paises do Norte ¢ as regides pobres nas quais a maioria dos habitantes nem mesmo tem telefone. Qualquer esforgo para apreciar a cibercultura coloca vocé automaticamente no lado da IBM, do capitalismo financeiro internacional, do governo americano, tornandoo um apéstolo do neoliberalismo selvagem e duro com os pobres, um arauto da globalizagiio escondido sob uma mascara de humanismo! Devo portanto enunciar aqui alguns argumentos sensatos. O fato de que o cinema ou a misica também sejam industrias ¢ parte de um comércio nao nos impede de aprecidlos, nem de falar deles em uma 1 perspectiva cultural ou estética. O telefone gerou e continua a gerar verdadeiras fortunas para as companhias de telecomunicagdo. Isso nao altera o fato de que as redes de telefonia permitem uma comunicagao planetaria e interativa. Ainda que apenas um quarto da humanidade tenha acesso ao telefone, isso ndo constitui um argumento "contra" cle. Por isso ndo vejo por que a exploragdo econémica da Internet ou o fato de que atualmente nem todos tém acesso a ela constituiriam, por si mesmos, uma condenagdo da cibercultura ou nos impediriam de pensdla de qualquer forma que nao a critica. E verdade que ha cada vez mais servigos pagos. E tudo indica que essa tendéncia vai continuar e até crescer nos préximos anos. Ainda assim, também é preciso notar que os servigos gratuitos proliferam ainda mais rapidamente. Estes servigos gratuitos vém das universidades, dos orgios publicos, das associagées sem fins lucrativos, dos individuos, de grupos de interesse diversos ¢ das proprias empresas. Nao ha sentido em opor 0 comércio de um lado ea dinamica libertaria e comunitaéria que comandou o crescimento da Internet de outro. Os dois sao complementares, para desgosto dos maniqueistas. ‘A questio da exclusao é, evidentemente, crucial, e seré abordada no ultimo capitulo deste livro. Gostaria apenas de observar, nesta introdugdo, que essa questo nao deve nos impedir de contemplar as implicagées culturais da cibercultura cm todas as suas dimensdes, Alias, nio so os pobres que se opdem a Internet — so aqueles cujas posigdes de poder, os privilégios (sobretudo os privilégios culturais) ¢ os monopélios encontramse ameagados pela emergéncia dessa nova configuragiio de comunicagao. Durante uma entrevista nos anos 50, Albert Einstein declarou que trés grandes bombas haviam explodido durante 0 século XX: a bomba demografica, a bomba atémica e a bomba das telecomunicagdes. Aquilo que Einstein chamou de bomba das telecomunicag6 s foi chamado, por meu amigo Roy Ascott (um dos pionciros e principais teéricos da arte em rede), de "segundo dilavio", o das informagées. As telecomunicagées geram esse novo dilivio por conta da natureza exponencial, explosiva e caética de seu crescimento. A quantidade bruta de dados disponiveis se multiplica e se acelera. A densidade dos links entre as informagées aumenta vertiginosamente nos bancos de dados, nos hipertextos e nas redes. Os contatos transversais entre os individuos proliferam de forma andrquica. E 0 transbordamento cadtico das informagdes, a inundagao de dados, as aguas tumultuosas e os turbilhdes da comunicagao, a 12 cacofonia ¢ o psitacismo ensurdecedor das midias, a guerra das imagens, as propagandas ¢ as contrapropagandas, a confuso dos espiritos. A bomba demografica também representa uma espécie de dilivio, um crescimento demogrifico espantoso. Havia pouco mais de um bilhiio e meio de homens na Terra em 1900, mas serao mais de seis bilhdes no ano 2000. Os homens. inundam a Terra. Esse crescimento global tao acelerado no tem nenhum precedente histérico. Frente a irresistivel inundagao humana, ha duas solugées opostas. Uma delas é a guerra, 0 exterminio do dilivio atémico, no importando qual seja sua forma, com o desprezo que isto implica em relagdo as pessoas. Nesse caso, a vida humana perde seu valor. © humano é reduzido ao nivel das bestas ou das formigas, esfomeado, aterrorizado, explorado, deportado, massacrado. A outra é a exaltagdo do individuo, o humano considerado como o maior valor, recurso maravilhoso ¢ sem prego. Para valorizar o valor, faremos um grande esforgo a fim de tecer incansavelmente relagdes entre as idades, os sexos, as nagdes e as culturas, apesar das dificuldades e dos conflitos. A segunda solugao, simbolizada pelas telecomunicagées, implica o reconhecimento do outro, a aceitagéo e ajuda miitua, a cooperaciio, a associagao, a negociacao, para além das diferengas de pontos de vista e de interesses, As telecomunicagées so de fato responsdveis por estender de uma ponta a outra do mundo as possibilidades de contato amigavel, de transagdes contratuais, de transmissées de saber, de trocas de conhecimentos, de descoberta pacifica das diferengas. O fino enredamento dos humanos de todos os horizontes em um tinico e imenso tecido aberto ¢ interativo gera uma situacao absolutamente inédita e portadora de esperanea, j4 que ¢ uma resposta positiva ao crescimento demogrifico, embora também crie novos problemas. Gostaria de abordar alguns deles neste livro, especialmente aqueles que esto ligados a cultura: a arte, a educagiio ou a cidade a mercé da comunicagio interativa generalizada. Na aurora do diluvio informacional, talvez uma meditagao sobre o dilivio biblico possa nos ajudar a compreender melhor os novos tempos. Onde esta Nog? O que colocar na ar No meio do caos, Noé construiu um pequeno mundo bem 13 organizado. Face ao desencadeamento dos dados, protegeu uma selegéio. Quando tudo vai por dgua abaixo, ele est’ preocupado em transmitir. Apesar do salvese quem puder geral, recolhe pensando no futuro. "E Jeova fechou a porta por fora" (Génesis 7, 16). A arca foi fechada. Ela simboliza a totalidade reconstituida. Quando o universo esta desenfreado, 0 microcosmo organizado reflete a ordem de um macrocosmo que esta por vir. Mas 0 multiplo nao se deixa esquecer. O dilavio informacional jamais cessaré. A arca nao repousaré no topo do monte Ararat. O segundo dilivio nao tera fim. Ndo ha nenhum fundo sélido sob 0 oceano das informagées. Devemos aceitalo como nossa nova condi¢do. Temos que ensinar nossos filhos a nadar, a flutuar, talvez a navegar. Quando Noé, ou seja, cada um de nds, olha através da escotilha de sua arca, vé outras arcas, a perder de vista, no oceano agitado da comunicagio digital. E cada uma dessas arcas contém uma selegdo diferente. Cada uma quer preservar a diversidade. Cada uma quer transmitir. Estas arcas estardo cternamente 4 deriva na superficie das aguas. Umas das principais hipoteses deste livro é a de que a cibercultura expressa 0 surgimento de um novo universal, diferente das formas culturais que vieram antes dele no sentido de que ele se constréi sobre a indeterminagdo de um sentido global qualquer. Precisamos, de fato, colocdla dentro da perspectiva das mutagGes anteriores da comunicagao. Nas sociedades orais, as mensagens discursivas so sempre recebidas no mesmo contexto em que sao produzidas. Mas, apés o surgimento da escrita, os textos se separam do contexto vivo em que foram produzidos. E possivel ler uma mensagem escrita cinco séculos antes ou redigida a cinco mil quilémetros de distancia — 0 que muitas vezes gera problemas de recepgdo e de interpretag&o. Para vencer essas dificuldades, algumas mensagens foram entio concebidas para preservar 0 mesmo sentido, qualquer que seja o contexto (o lugar, a época) de recep: sfio as mensagens “universais" (ciéncia, religides do livro, direitos do homem etc.). Esta universalidade, adquirida gragas a escrita estitica, s6 pode ser construida, portanto, ao custo de uma certa redugdo ou fixagao do sentido: é um universal "totalizante". A hipdtese que levanto é a de que a cibercultura leva a copresenga das mensagens de volta a 14 seu contexto como ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala, em uma érbita completamente diferente. A nova universalidade no depende mais da autosuficiéncia dos textos, de uma fixagiio ¢ de uma independéncia das significagdes. Ela se constrdi e se estende por meio da interconexio das mensagens entre si, por meio de sua vinculagao permanente com as comunidades virtuais em criag%io, que Ihe dao sentidos variados em uma renovagao permanente, Aaarca do primeiro dilivio era tnica, estanque, fechada, totalizante. As arcas do segundo dilivio dangam entre si. Trocam sinais. Fecundamse mutuamente. Abrigam pequenas totalidades, mas sem nenhuma pretensdo ao universal. Apenas o diltivio é universal. Mas cle ¢ intotalizdvel. E preciso imaginar um Noé modesto. "Eles foram extintos da Terra; ficou somente Noé ¢ os que estavam com ele na barca" (Génesis 7, 23). A operagio de salvamento de Nog parece complementar, quase ctimplice de um exterminio. A totalidade com pretensdes universais afoga tudo aquilo que nao pode reter. E desta forma que as civilizagdes so fundadas, que o universal imperial se instaura. Na China, © imperador amarelo mandou destruir quase todos os textos anteriores a seu regime. Qual César, qual conquistador barbaro deu ordens para deixar queimar a biblioteca de Alexandria a fim de terminar com a desordem helenistica? A Inquisi¢o espanhola colocava fogo em autosdefé de onde esvaiamse em fumaga o Cordo, o Talmude ¢ tantas outras paginas inspiradas ou meditadas. Horriveis foguciras hitlerianas, fogos de livros nas pragas curopéias, em que ardiam a inteligéncia ¢ a cultura! Talvez a primeira de todas essas tentativas de aniquilagdo tenha sido a do império mais antigo, na Mesopotamia, de onde nos vém tanto a versio oral como a escrita do dilivio, muito antes da Biblia. Pois foi Sargio de Agadé, rei dos quatro paises, primeiro imperador da historia, que mandou jogar no Eufrates milhares de tabulas de argila, nas quais estavam gravadas lendas de tempos imemoriais, preceitos de sabedoria, manuais de medicina ou de magia, secretados por varias geragées de escribas. Os signos permanecem legiveis por alguns instantes sob a Agua corrente, depois se apagam, Levadas pelos turbilhées, polidas pela correnteza, as tabulas amolecem aos poucos, voltam a ser seixos de argila lisa que em pouco tempo se fundem como lodo do rio ¢ vao se acrescentar ao lodo das inundagdes. Muitas vozes foram caladas para sempre. Nao suscitardo mais nenhum eco, nenhuma resposta. 15 Mas 0 novo diliivio nao apaga as marcas do espirito, Carregaas todas juntas. Fluida, virtual, ao mesmo tempo reunida e dispersa, essa biblioteca de Babel nao pode ser queimada. As inimeras vozes que ressoam no ciberespago continuarao a se fazer ouvir ¢ a gerar respostas. As Aguas deste dilivio nao apagardo os signos gravados: so inundagdes de signos. Sim, a tecnociéncia produziu tanto 0 fogo nuclear como as redes interativas. Mas o telefone e a Internet "apenas" comunicam. Tanto uma como os outros construiram, pela primeira vez neste século de ferro ¢ loucura, a unidade concreta do género humano. Ameaga de morte enquanto espécie em relagao 4 bomba atémica, didlogo planetario em relacdo as telecomunicagées. Nem a salvagdo nem a perdigfo residem na técnica, Sempre ambivalentes, as técnicas projetam no mundo material nossas emogées, intengSes e projetos. Os instrumentos que construimos nos dao poderes mas, coletivamente responsaveis, a escolha est em nossas mios. eae Este livro, fruto de um relatério encomendado pelo Conselho Europeu, aborda as implicagdes culturais do desenvolvimento das tecnologias digitais de informago e de conmmicagao. Encontramse fora do campo deste estudo as questées econémicas e industriais, os problemas relacionados ao emprego e as questdes juridicas, Enfatizamos a atitude geral frente ao progresso das novas tecnologias, a virtualizagao da informagiio que se encontra em andamento ea mutago global da civilizagio que dela resulta, Em particular, abordamos as novas formas artisticas, as transformagdes na relagdo com o saber, as questdes relativas a educagdo ¢ formagao, a cidade e democracia, a manutengdo da diversidade das linguas e das culturas, os problemas da exclusio ¢ da desigualdade. Como uso diversas vezes os termos "ciberespago" ¢ “cibercultura", pareceme adequado definilos brevemente aqui. O ciberespaco (que também chamarei de "rede") & 0 novo meio de comunicagiio que surge da interconexio mundial dos computadores. O termo especifica nio apenas a infraestrutura material da comunicagao digital, mas também o universo ocednico de informagdes que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao neologismo 16 "cibercultura", especifica aqui 0 conjunto de técnicas (materiais ¢ intelectuais), de praticas, de atitudes, de modos de pensamento ¢ de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespago. A primeira parte, onde comego colocando 0 problema do impacto social e cultural de todas as novas tecnologias, fornece uma descrig&o sintética dos grandes conceitos técnicos que exprimem e sustentam a cibercultura. Ao ler esta primeira parte, o leitor tera em mente que essas técnicas criam novas condigées ¢ possibilitam ocasides inesperadas para o desenvolvimento das pessoas ¢ das sociedades, mas que elas nao determinam automaticamente nem as trevas nem a iluminagiio para 0 futuro humano. Esforceime para dar definigdes bastante claras, pois ainda que este dominio seja cada vez mais conhecido pelo grande piblico, muitas vezes isso ocorre de modo fragmentado, sem a preciso e a clareza que sdo indispensdveis 4 compreensio das grandes questées da sociedade. Apresento, portanto, de forma acessivel aos ndoespecialistas, conceitos como a digitalizagdo da informagao, os hipertextos c hipermidias, as simulagdes em computadores, as realidades virtuais, as grandes fungdes das redes interativas e particularmente as da Internet. A segunda parte trata mais especificamente das implicagées culturais do desenvolvimento do ciberespago. Esboga o retrato da cibercultura: a nova forma de universalidade que inventa, 0 movimento social que a fez nascer, seus géneros artisticos ¢ musicais, as perturbagdes que suscita na relago com o saber, as reformas educacionais necessdrias que ela pede, sua contribuig&o para o urbanismo e o pensamento da cidade, as questdes que coloca para a filosofia politica. Aterceira parte, por fim, explora 0 lado negativo da cibercultura, por meio dos conflitos e das criticas que sempre provoca. Nesta parte, trato dos conflitos de interesses e das lutas de poder que se desenrolam em torno do ciberespago, as deniincias por vezes muito virulentas contra o virtual, as sérias questées da exclusio e da manutengdo da diversidade cultural frente aos imperialismos politicos, econdmicos ou midiaticos. 7 Primeira Parte Definigdes 18 I. AS TECNOLOGIAS TEM UM IMPACTO? A METAFORA DO IMPACTO E INADEQUADA Nos textos que anunciam coléquios, nos resumos dos estudos oficiais ou nos artigos da imprensa sobre o desenvolvimento da multimidia, falase muitas vezes no “impacto” das novas tecnologias da informago sobre a sociedade ou a cultura. A tecnologia seria algo compardvel a um projétil (pedra, obus, missil?) e a cultura ou a sociedade a um alvo vivo... Esta metifora bélica ¢ criticével em varios sentidos. A questo nio é tanto avaliar a pertinéncia estilistica de uma figura de retorica, mas sim esclarecer o esquema de leitura dos fendmenos — a meu ver, inadequado — que a metifora do impactol nos revela. As técnicas viriam de outro planeta, do mundo das maquinas, frio, sem emogio, estranho a toda significagao e qualquer valor humano, como uma certa tradigao de pensamento tende a sugerir?2 Pareceme, pelo contrario, que ndo somente as técnicas siio imaginadas, fabricadas ¢ reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é 0 proprio uso intensivo de ferramentas que constitui a humanidade enquanto tal (junto com a linguagem e as instituigdes sociais complexas). 5 0 mesmo homem que fala, enterra seus mortos ¢ talha o silex. Propagandose até nés, 0 fogo de Prometeu cozinha os alimentos, endurece a argila, funde os metais, alimenta a maquina a vapor, corre nos cabos de altatensio, queima nas centrais nucleares, explode nas armas ¢ engenhos de destruigao. Com a arquitetura que o abriga, retine e inscreve sobre a Terra; com a roda e a navegagao que abriram seus horizontes; coma escrita, o telefone e o cinema que 0 infiltram de signos; com o texto e o téxtil que, entretecendo a variedade das matérias, das cores e dos sentidos, desenrolam ao infinito as superficies onduladas, luxuosamente redobradas, de suas intrigas, seus tecidos e seus véus, 0 mundo humano é, ao mesmo tempo, técnico. 1 Ver Mark Johnson, Gerge Lakoff, Les métaphores dans la vie quotid enne, Pari: 1985. , Minuit, 2 E, por exemplo, a tese (que exponho de forma caricatural aqui) de Gilbert Hottois em Le signe et la technique, Paris, AubierMontaigne, 1984. 19 Seria a tecnologia um ator auténomo, separado da sociedade e da cultura, que seriam apenas entidades passivas percutidas por um agente exterior? Defendo, ao contrario, que a técnica é um Angulo de andlise dos sistemas séciotécnicos globais, um ponto de vista que enfatiza a parte material ¢ artificial dos fenémenos humanos, e no uma entidade real, que cxistiria independentemente do resto, que teria efeitos distintos e agiria por vontade propria. As atividades humanas abrangem, de maneira indissoltivel, interagées entre: 1 pessoas vivas e pensantes, entidades materiais naturais e artificiais, idéias e representagdes. E impossivel separar o humano de seu ambiente material, assim como dos signos ¢ das imagens por meio dos quais cle atribui sentido a vida ¢ ao mundo. Da mesma forma, nao podemos separar 0 mundo material — ¢ menos ainda sua parte artificial — das idéias por meio das quais os objetos técnicos sio concebidos e utilizados, nem dos humanos que os inventam, produzem e utilizam. Acrescentemos, enfim, que as imagens, as palavras, as construges de linguagem entranhamse nas almas humanas, fornecem meios e razdes de viver aos homens e suas instituigdes, so recicladas por grupos organizados e instrumentalizados, como também por circuitos de comunicagao e memorias artificiais.3 Mesmo supondo que realmente existam trés entidades — técnica, cultura e sociedade —, em vez de enfatizar o impacto das tecnologias, poderiamos igualmente pensar que as tecnologias sao produtos de uma sociedade e de uma cultura. Mas a distingdo tragada entre cultura (a dindmica das representagdes), sociedade (as pessoas, seus lagos, suas trocas, suas relagdes de forga) & técnica (artefatos eficazes) sé pode ser conceitual. Nao ha nenhum ator, nenhuma "causa" realmente independente que corresponda a ela. Encaramos as tendéncias intelectuais como atores porque ha grupos bastante reais que se organizam ao redor destes recortes verb: (ministérios, disciplinas 3 Como ¢ possivel que formas institucionais ¢ técnicas materiais transmitam idéias... e viceversa? Esta ¢ uma das principais linhas de pesquisa do emprecndimento midialégico iniciado por Régis Debray. Ver, por exemplo, scu Cours de médiologie générale, Paris, Gallimard, 1991, Transmettre, Paris, Odile Jacob, 1997, ¢ a bela revista Les Cahiers de Médiologie. 20 cientificas, departamentos de universidades, laboratérios de pesquisa) ou entéo porque certas forgas esto interessadas em nos fazer crer que determinado problema é "puramente técnico" ou "puramente cultural" ou ainda "puramente econémico". As verdadeiras relagdes, portanto, nao so criadas entre "a" tecnologia (que seria da ordem da causa) e "a" cultura (que sofreria 08 efeitos), mas sim entre um grande nimero de atores humanos que inventam, produzem, utilizam e interpretam de diferentes formas as técnicas.4 "A TECNICA" OU "AS TECNICAS"? De fato, as técnicas carregam consigo projetos, esquemas imagindrios, implicagdes sociais ¢ culturais bastante variados. Sua presenga ¢ uso em lugar ¢ época determinados cristalizam relagdes de forca sempre diferentes entre seres humanos. As méquinas a vapor escravizaram os operdrios das indistrias téxteis do século XIX, enquanto os computadores pessoais aumentaram a capacidade de agir de comunicar dos individuos durante os anos 80 de nosso século. O que equivale a dizer que nao podemos falar dos efeitos sécioculturais ou do sentido da técnica em geral, como tendem a fazer os discipulos de HeideggerS, ou mesmo a tradig&o saida da escola de Frankfurt.6 Por exemplo, ser legitimo colocar no mesmo plano a energia nuclear ¢ a cletrénica? A primeira leva em geral a organizagées centralizadas, controladas por especialistas, impée normas de seguranca bastante estritas, requer escolhas a prazo muito longo etc. Por outro lado, a eletrénica, muito mais versdtil, serve tio bem a organizagées piramidais quanto 4 distribuicdo mais ampla do poder, obedece a ciclos tecnocconémicos muito menores etc.7 4 Desenvolvemos longamente este assunto em nossa obra As tecnologias da inteligéncia, Sao Paulo, Editora 34, 1993. Ver também os trabalhos da nova antropologia das ciéncias ¢ das técnicas, por exemplo, Bruno Latour, La science en action, Paris, La Découverte, 1989. 5 Ver o famoso artigo de Heidegger, "O sentido da t descendéncia intelectual entre fildsofos ¢ socidlogos da técnic entre os pensadores criticos do mundo contemporaneo em geral. , que gerou uma numerosa em particular, bem como 6 A técnica encontrase sempre do lado da "razio instrumental"? 7 O paralelo entre a eletrénica e a energia nuclear foi desenvolvido sobretudo por Derrick De Kerckove em The Skin of Culture, Toronto, Sommerville Press, 1995. 21 Por tras das técnicas agem e reagem idéias, projetos sociais, utopias, interesses econdmicos, estratégias de poder, toda a gama dos jogos dos homens em sociedade. Portanto, qualquer atribuig&io de um sentido tnico a técnica sé pode ser dibia. A ambivaléncia ou a multiplicidade das significagdes e dos projetos que envolvem as técnicas sao particularmente evidentes no caso do digital. O desenvolvimento das cibertecnologias é encorajado por Estados que perseguem a poténcia, em geral, ¢ a supremacia militar em particular. E também uma das grandes questdes da competi¢o econémica mundial entre as firmas gigantes da eletr6nica e do software, entre 0s grandes conjuntos geopoliticos. Mas também responde aos propésitos de desenvolvedores ¢ usuarios que procuram aumentar a autonomia dos individuos ¢ multiplicar suas faculdades cognitivas. Encarna, por fim, 0 ideal de cientistas, de artistas, de gerentes ou de ativistas da rede que desejam melhorar a colaboragdo entre as pessoas, que exploram ¢ dio vida a diferentes formas de inteligéncia coletiva e distribuida. Esses projetos heterogéneos diversas vezes entram em conflito uns com os outros, mas com maior freqiiéncia —e voltarei a falar nisso mais tarde — alimentamse e reforgamse mutuamente. A dificuldade de analisar concretamente as implicagées sociais e culturais da informatica ou da multimidia é multiplicada pela auséncia radical de estabilidade neste dominio. Com excegao dos principios légicos que fundamentam o funcionamento dos computadores, 0 que podemos encontrar de comum entre os monstros informaticos dos anos 50, reservados para cdlculos cientificos ¢ estatisticos, ocupando andares inteiros, muito caros, sem telas nem teclados e, em contrapartida, as mAquinas pessoais dos anos 80, que podem ser compradas ¢ manuseadas facilmente por pessoas sem qualquer formagio cientifica para escrever, desenhar, tocar musica e planejar o orgamento? Estamos falando de computadores em ambos os casos, mas as implicagdes cognitivas, culturais, econémicas ¢ sociais sio, evidentemente, muito diferentes. Ora, o digital encontrase ainda no inicio de sua trajetéria. A interconexio mundial de computadores (a extensfio do ciberespago) continua em ritmo acelerado, Discutese a respeito dos préximos padrées de comunicagao multimodal. Tacteis, auditivas, permitindo uma visualizagao tridimensional interativa, as novas interfaces com 0 universo dos dados digitais so cada vez mais comuns. Para ajudar a navegar em meio a informagao, os laboratérios travam uma disputa de criatividade ao 22 conceber mapas dindmicos do fluxo de dados ¢ ao desenvolver agentes de software inteligentes, ou knowbots. Todos esses so fenémenos que transformam as significagdes culturais ¢ sociais das cibertecnologias no fim dos anos 90. Dados a amplitude ¢ o ritmo das transformagées ocorridas, ainda nos é impossivel prever as mutagdes que afetardo o universo digital apds 0 ano 2000. Quando as capacidades de memoria ¢ de transmissio aumentam, quando sao inventadas novas interfaces com 0 corpo e 0 sistema cognitive humano (a "realidade virtual", por cxemplo), quando se traduz o contetido das antigas midias para o ciberespaco (0 telefone, a televisio, os jornais, os livros etc.), quando o digital comunica e coloca em um ciclo de retroalimentag’io processos fisicos, econdmicos ou industriais anteriormente estanques, suas implicagdes culturais e sociais devem ser reavaliadas sempre. A TECNOLOGIA E DETERMINANTE OU CONDICIONANTE As técnicas determinam a sociedade ou a cultura? Se aceitarmos a ficgdo de uma relagdo, ela é muito mais complexa do que uma relagdo de determinagdo. A emergéncia do ciberespago acompanha, traduz e favorece uma evolugao geral da civilizagao. Uma técnica é produzida dentro de uma cultura, e uma sociedade encontrase condicionada por suas técnicas. E digo condicionada, nio determinada. Essa diferenga é fundamental. A invengGo do estribo permitiu 0 desenvolvimento de uma nova forma de cavalaria pesada, a partir da qual foram construidos o imagindrio da cavalaria e as estruturas politicas e sociais do feudalismo. No entanto, 0 estribo, enquanto dispositivo material, nao é a "causa" do feudalismo europeu. Nao hd uma "causa" identificdvel para um estado de fato social ou cultural, mas sim um conjunto infinitamente complexo e parcialmente indeterminado de processos em interag&io que se autosustentam ou se inibem. Podemos dizer em contrapartida que, sem o estribo, é dificil conceber como cavaleiros com armaduras ficariam sobre seus cavalos de batalha e atacariam com a langa em riste... O estribo condiciona efetivamente toda a cavalaria e, indiretamente, todo o feudalismo, mas ndo os determina, Dizer que a técnica condiciona significa dizer que abre algumas possibilidades, que algumas opgdes 23 culturais ou sociais nio poderiam ser pensadas a sério sem sua presenga. Mas muitas possibilidades sdo abertas, e nem todas sero aproveitadas. As mesmas técnicas podem integrarse a conjuntos culturais bastante diferentes. A agricultura irrigada em grande escala talvez tenha favorecido o "despotismo oriental" na Mesopotamia, no Egito e na China mas, por um lado, essas so civilizagdes bastante diferentes e, por outro, a agricultura irrigada por vezes encontrou um lugar em formas séciopoliticas cooperativas (no Magreb medieval, por exemplo). Confiscada pelo Estado na China, atividade industrial que escapou aos poderes politicos na Europa, a impressio niio teve as mesmas conseqiiéncias no Oriente ¢ no Ocidente. A prensa de Gutenberg nao determinou a crise da Reforma, nem o desenvolvimento da moderna ciéncia curopéia, tampouco o crescimento dos ideais iluministas a forga crescente da opinido piblica no século XVIII — apenas condicionouas. Contentouse em fornecer uma parte indispensdvel do ambiente global no qual essas formas culturais surgiram. Se, para uma filosofia mecanicista intransigente, um efeito é determinado por suas causas ¢ poderia ser deduzido a partir delas, o simples bom senso sugere que os fendmenos culturais ¢ sociais ndo obedecem a esse esquema. A multiplicidade dos fatores dos agentes proibe qualquer cdlculo de efeitos deterministas Além disso, todos os fatores “objetivos" nunca sio nada além de condigdes a serem interpretadas, vindas de pessoas ¢ de coletivos capazes de uma invengio radical. Uma técnica nao é nem boa, nem mi (isto depende dos contextos, dos usos ¢ dos pontos de vista), tampouco neutra (j4 que é condicionante ou restritiva, j4 que de um lado abre e de outro fecha o espectro de possibilidades). Nao se trata de avaliar seus “impactos", mas de situar as irreversibilidades As quais um de seus usos nos levaria, de formular os projetos que explorariam as virtualidades que cla transporta ¢ de decidir 0 que fazer dela. Contudo, acreditar em uma disponibilidade total das técnicas e de seu potencial para individuos ou coletivos supostamente livres, esclarecidos e racionais seria nutrirse de ilusGes. Muitas vezes, enquanto discutimos sobre os possiveis usos de uma dada tecnologia, algumas formas de usar ja se impuseram. Antes de nossa conscientizagao, a dindmica coletiva escavou seus atratores. Quando finalmente prestamos atencdo, ¢ demasiado tarde... Enquanto ainda questionamos, outras tecnologias emergem na fronteira nebulosa onde so inventadas as 24 idéias, as coisas e as praticas. Elas ainda estio invisiveis, talvez prestes a desaparecer, talvez fadadas ao sucesso. Nestas zonas de indeterminagao onde o futuro é decidido, grupos de criadores marginais, apaixonados, empreendedores audaciosos tentam, com todas as suas forgas, direcionar o devir. Nenhum dos principais atores institucionais — Estado ou empresas — planejou deliberadamente, nenhum grande érgio de midia previu, tampouco anunciou, 0 desenvolvimento da informitica pessoal, o das interfaces gréficas interativas para todos, o dos BBS8 ou dos programas que sustentam as comunidades virtuais9, dos hipertextos10 ou da World Wide Webl1, ou ainda dos programas de criptografia pessoal inviolavel.12 Essas tecnologias, todas impregnadas de seus primeiros usos e dos projetos de seus criadores, nascidas no espirito de visiondrios, transmitidas pela efervescéncia de movimentos sociais praticas de base, vieram de lugares inesperados para qualquer "tomador de decisdes" A ACELERAGAO DAS ALTERAGOES TECNICAS E A. INTELIGENCIA COLETIVA Se nos interessarmos sobretudo por seu significado para os homens, parece que, como sugeri anteriormente, 0 digital, fluido, em constante mutagiio, seja desprovido de qualquer esséncia estavel. Mas, justamente, a velocidade de transformagio é em si mesma uma constante — paradoxal — da cibercultura. Ela explica parcialmente a 8 BBS (Bulletin Board System) é um sistema de comunicagdes do tipo comunitario, baseado em computadores conectados através da rede telefénica, 9 Comunidade virtual 6 um grupo de pessoas se correspondendo mutuamente por meio de computadores interconectados. 10 Hipertexto & um texto em formato digital, reconfiguravel ¢ fluido. Ele é composto por blocos elementares ligados por links que podem ser explorados em tempo real na tela. A nogao de hiperdocumento generaliza, para todas as categorias de signos (imagens, animagées, sons etc.), 0 prinefpio da mensagem em rede mével que caracteriza o hipertexto. 11 A World Wide Web é uma fungao da Internet que junta, em um unico e imenso hipertexto ou hiperdocumento (compreendendo imagens e sons), todos os documentos e hipertextos que a alimentam. 12 Para uma explicag’o mais detalhada sobre as questées relacionadas a criptografia, consultar, no capitulo XIV, sobre o conflito de interesses e as interpretagées, a segdo sobre 0 ponto de vista dos Estados. 25 sensagdo de impacto, de exterioridade, de estranheza que nos toma sempre que tentamos apreender 0 movimento contempordneo das técnicas. Para o individuo cujos métodos de trabalho foram subitamente alterados, para determinada profissdo tocada bruscamente por uma revolugdo tecnolégica que torna obsoletos seus conhecimentos e savoirfaire tradicionais (tipdgrafo, bancério, piloto de aviio) — ou mesmo a existéncia de sua profissio —, para as classes sociais ou regides do mundo que no participam da efervescéncia da criagdo, produgdo ¢ apropriago htidica dos novos instrumentos digitais, para todos esses a evolugdo técnica parece ser a manifestagdo de um "outro" ameagador. Para dizer a verdade, cada um de nés se encontra em maior ou menor grau nesse estado de desapossamento. A aceleragao ¢ tao forte e tao generalizada que até mesmo os mais "ligados" encontramse, em graus diversos, ultrapassados pela mudanga, j4 que ninguém pode participar ativamente da criagdo das transformagdes do conjunto de especialidades técnicas, nem mesmo seguir essas transformagdes de perto. Aquilo que identificamos, de forma grosseira, como "novas tecnologias" recobre na verdade a atividade multiforme de grupos humanos, um devir coletivo complexo que se cristaliza sobretudo em volta de objetos materiais, de programas de computador ¢ de dispositivos de comunicagio. E 0 processo social em toda sua opacidade, ¢ a atividade dos outros, que retorna para o individuo sob a mAscara estrangeira, inumana, da técnica. Quando os “impactos" so negativos, seria preciso na verdade incriminar a organizagio do trabalho ou as relagdes de dominagao, ou ainda a indeslindével complexidade dos fendmenos sociais. Da mesma forma, quando os "impactos" sao tidos como positivos, evidentemente a técnica nao é a responsdvel pelo sucesso, mas sim aqueles que conceberam, executaram e usaram determinados instrumentos. Neste caso, a qualidade do processo de apropriagdio (ou seja, no fundo, a qualidade das relagdes humanas) em geral é mais importante do que as particularidades sistémicas das ferramentas, supondo que os dois aspectos sejam separaveis. Resumindo, quanto mais répida é a alterago técnica, mais nos parece vir do exterior. Além disso, o sentimento de estranheza cresce com a separagdo das atividades ¢ a opacidade dos processos sociais. E aqui que intervém o papel principal da inteligéncia coletival3, que é um 13 Ver Pierre Lévy, A inteligéncia coletiva, Sao Paulo, Edigdes Loyola, 1998. 26 dos principais motores da cibercultura. De fato, 0 estabelecimento de uma sinergia entre competéncias, recursos e projetos, a constitui¢do ¢ manutengiio dindmicas de memérias em comum, a ativagdo de modos de cooperagao flexiveis ¢ transversais, a distribuigdo coordenada dos centros de decisio opdemse A separagdo estanque entre as atividades, as compartimentalizagdes, a opacidade da organizagao social. Quanto mais os processos de inteligéncia coletiva se desenvolvem — 0 que pressupde, obviamente, o questionamento de diversos poderes —, melhor & a apropriagao, por individuos e por grupos, das alteragdes técnicas, e menores so os efeitos de exclusio ou de destruigdo humana resultantes da aceleragio do movimento tecnosocial. O ciberespago, dispositivo de comumicagio interativo ¢ comunitirio, apresenta se justamente como um dos instrumentos privilegiados da inteligéncia coletiva. E assim, por exemplo, que os organismos de formagao profissional ou de ensino 4 distincia desenvolvem sistemas de aprendizagem cooperativa em rede. Grandes empresas instalam dispositivos informatizados de auxilio 4 colaboragio ¢ & coordenagio descentralizada (os "groupwares"). Os pesquisadores e estudantes do mundo inteiro trocam idéias, artigos, imagens, experiéncias ou observagées em conferéncias eletrénicas organizadas de acordo com os interesses especificos. Informatas de todas as partes do planeta ajudamse mutuamente para resolver problemas de programagiio. O especialista de uma tecnologia ajuda um novato enquanto um outro especialista 0 inicia, por sua vez, em um campo no qual ele tem menos conhecimentes.... A INTELIGENCIA COLETIVA, VENENO E REMEDIO DA. CIBERCULTURA O ciberespago como suporte da inteligéncia coletiva é uma das principais condigées de seu proprio desenvolvimento. Toda a histéria da cibercultura testemunha largamente sobre esse processo de retroagio positiva, ou seja, sobre a automanutengiio da revolugfo das redes digitais.14 Este é um fendmeno complexo e ambivalente. 14 Podese encontrar urna boa descrigdo desses processos retroativos em Joel de Rosnay, L’homme symbiotique, Paris, Senil, 1995. 27 Em primeiro lugar, © crescimento do ciberespago ndo determina automaticamente o desenvolvimento da inteligéneia coletiva, apenas fornece a esta inteligéncia um ambiente propicio. De fato, também vemos surgir na érbita das redes digitais interativas diversos tipos de formas novas... — de isolamento e de sobrecarga cognitiva (estresse pela comunicagdo e pelo trabalho diante da tela), — de dependéncia (vicio na navegagiio ou em jogos em mundos virtuais), — de dominagao (refor¢o dos centros de decisao e de controle, dominio quase monopolista de algumas poténcias econémicas sobre fungdes importantes da rede etc.), — de exploragao (em alguns casos de teletrabalho vigiado ou de deslocalizagao de atividades no terceiro mundo), — e mesmo de bobagem coletiva (rumores, conformismo em rede ouem comunidades virtuais, actimulo de dados sem qualquer informagao, "televisdo interativa"). Além disso, nos casos em que processos de inteligéncia coletiva desenvolvemse de forma eficaz gracas ao ciberespago, um de seus principais efeitos é o de acelerar cada vez mais 0 ritmo da alteragao tecnosocial, 0 que torna ainda mais necessdria a participagao ativa na cibercultura, se no quisermos ficar para tras, e tende a excluir de maneira mais radical ainda aqueles que nao entraram no ciclo positive da alteragéo, de sua compreensao e apropriagao. Devido a seu aspecto participativo, socializante, descompartimentalizante, emancipador, a inteligéncia coletiva proposta pela cibercultura constitui um dos melhores remédios para o ritmo desestabilizante, por vezes excludente, da mutacdo técnica. Mas, neste mesmo movimento, a inteligéncia coletiva trabalha ativamente para a aceleragdo dessa mutagao. Em grego arcaico, a palavra "pharmakon" (que originou "pharmacie", em francés) significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Novo pharmakon, a inteligéncia coletiva que favorece a cibercultura é ao mesmo tempo um veneno para aqueles que dela no participam (e ninguém pode participar completamente dela, de tio vasta e multiforme que é) ¢ um remédio para aqueles que mergulham em seus 28 turbilhdes e conseguem controlar a propria deriva no meio de suas correntes. 29 I. A INFRAESTRUTURA TECNICA DO. VIRTUAL A EMERGENCIA DO CIBERESPACO Os primeiros computadores (calculadoras programaveis capazes de armazenar os programas) surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos em 1945. Por muito tempo reservados aos militares para célculos cientificos, seu uso civil disseminouse durante os anos 60. Jé nessa época era previsivel que o desempenho do hardware aumentaria constantemente. Mas que haveria um movimento geral de virtualizagao da informagdo e da comunicagdo, afetando profundamente os dados elementares da vida social, ninguém, com a excegdo de alguns visionarios, poderia prever naquele momento. Os computadores ainda eram grandes mdquinas de calcular, frageis, isoladas em salas reftigeradas, que cientistas em uniformes brancos alimentavam com cartées perfurados e que de tempos em tempos cuspiam listagens ilegiveis. A informatica servia aos calculos cientificos, as estatisticas dos Estados e das grandes empresas ou a tarefas pesadas de gerenciamento (folhas de pagamento etc.). A virada fundamental data, talvez, dos anos 70. O desenvolvimento © a comercializagdo do microprocessador (unidade de clculo aritmético ¢ légico localizada em um pequeno chip eletrénico) dispararam diversos processos econémicos e sociais de grande amplitude. Eles abriram uma nova fase na automagdo da produgdo industrial: robética, linhas de produgao flexiveis, maquinas industriais com controles digitais etc. Presenciaram também o principio da automagdo de alguns setores do tercidrio (bancos, seguradoras). Desde ento, a busca sistematica de ganhos de produtividade por meio de varias formas de uso de aparelhos eletrénicos, computadores e redes de comunicacdo de dados aos poucos foi tomando conta do conjunto das atividades econémicas. Esta tendéncia continua em nossos dias. 30 Por outro lado, um verdadciro movimento social nascido na California na efervescéncia da contracultura" apossouse das novas possibilidades técnicas ¢ inventou 0 computador pessoal. Desde entio, 0 computador iria escapar progressivamente dos servigos de processamento de dados das grandes empresas e dos programadores profissionais para tornarse um instrumento de criagio (de textos, de imagens, de misicas), de organizagao (bancos de dados, planilhas), de simulagao (planilhas, ferramentas de apoio a deciso, programas para pesquisa) e de diversdo (jogos) nas mos de uma proporgao crescente da populaciio dos paises desenvolvidos. Os anos 80 viram o prenincio do horizonte contempordneo da multimidia. A informitica perdcu, pouco a pouco, scu status de técnica ¢ de setor industrial particular para comegar a fundirse com as telecomunicagdes, a editoracio, o cinema e a televisdo. A digitalizago penetrou primeiro na produg&o ¢ gravacdo de misicas, mas os microprocessadores ¢ as membrias digitais tendiama tornarse a infra estrutura de produgio de todo o dominio da comunicagio. Novas formas de mensagens “interativas" apareceram: este decénio viu a invastio dos videogames, o triunfo da informatica “amigavel" (interfaces grdficas e interagdes sensériomotoras) e o surgimento dos hiperdocumentos (hipertextos, CDROM). No final dos anos 80 ¢ inicio dos anos 90, um novo movimento sociocultural originado pelos jovens profissionais das grandes metropoles ¢ dos campus americanos tomou rapidamente uma dimensao mundial. Sem que nenhuma instancia dirigisse esse proceso, as diferentes redes de computadores que se formaram desde o final dos anos 70 se juntaram umas as outras enquanto 0 nimero de pessoas e de computadores conectados interrede comegou a crescer de forma exponencial. Como no caso da invengo do computador pessoal, uma corrente cultural espontinea e imprevisivel impés um novo curso ao desenvolvimento tecnoecondmico. As tecnologias digitais surgiram, entio, como a infraestrutura do ciberespago, novo espaco de comunicagao, de sociabilidade, de organizagao ¢ de transag%io, mas também novo mercado da informagiio e do conhecimento. Neste estudo, nio nos interessa a técnica om si. Contudo, ¢ necessdrio expor as grandes tendéncias da evolugio técnica 31 contemporanea para abordar as mutagdes sociais e culturais que as acompanham, A esse respeito, 0 primeiro dado a levar em conta é 0 aumento exponencial das performances dos equipamentos (velocidade de calculo, capacidade de memoria, taxas de transmissdo) combinado com uma baixa continua nos pregos. Em paralelo, no dominio do software tém havido melhorias conceituais e teéricas que exploram o aumento de poténcia do hardware. Os produtores de programas tém se dedicado construgéio de um espago de trabalho e de comunicagao cada vez mais “transparente" ¢ "amigavel". As projegdes sobre os usos sociais do virtual devem integrar esse movimento permanente de crescimento de poténcia, de redugdo nos custos ¢ de descompartimentalizagao. Tudo nos leva a crer que estas trés tendéncias irdo continuar no futuro. Em contrapartida, é impossivel prever as mutacdes qualitativas que se aproveitario desta onda, bem como a maneira pela qual a sociedade ira apropriarse delas ¢ alterdlas. E neste ponto que projetos divergentes podem confrontar se, projetos indissoluvelmente técnicos, econdmicos e sociais. O TRATAMENTO. Do ponto de vista do equipamento, a informatica retine técnicas que permitem digitalizar a informacao (entrada), armazendla (memoria), tratdla automaticamente, transportala e colocdla a disposi¢&o de um usuario final, humano ou mecanico (saida). Estas distingdes s4o conceituais. Os aparelhos ou componentes concretos quase sempre misturam diversas fungdes, Os érgios de tratamento de informacdo ou "processadores", que hoje se encontram em chips, efetuam calculos aritméticos e légicos sobre os dados. Eles executam em grande velocidade e de forma extremamente repetitiva um pequeno nimero de operagdes muito simples sobre informagées codificadas digitalmente. Das lampadas aos transistores, dos transistores aos circuitos integrados, dos circuitos integrados aos microprocessadores, os avangos muito rapidos no tratamento da informagao beneficiaramse de melhorias na arquitetura 32 dos circuitos, dos progressos em cletrénica ¢ fisica, das pesquisas aplicadas sobre materiais etc. Os processadores disponiveis tornamse, a cada ano, menores, mais potentes15, mai: confidveis e mais baratos. Estes progressos, como no caso das memérias, tém caracteristicas exponenciais. Por exemplo, a lei de GordonMoore (que tem se mostrado cxata nos tltimos 25 anos) prevé que, a cada dezoito meses, a evolugdo técnica permite dobrar a densidade dos microprocessadores em termos do mimero de operadores Iégicos elementares. Ora, essa densidade traduzse quase linearmente em velocidade e poténcia de calculo. Podemos ainda ilustrar essa rapidez de evolugio dizendo que a poténcia dos maiores supercomputadores de hoje estaré disponivel em um computador pessoal ao alcance da maior parte dos bolsos em dez anos. A MEMORIA. Os suportes de gravagio ¢ leitura automiticas de informagées sio geralmente chamados de "meméria". A informagao digital pode ser armazenada em cartdes perfurados, fitas magnéticas, discos magnéticos, discos dticos, circuitos eletrénicos, cartes com chips, suportes biolégicos etc. Desde o inicio da informatica, as memérias tm evoluido sempre cm diregfo a uma maior capacidade de armazenamento, maior miniaturizagiio, maior rapidez de acesso e confiabilidade, enquanto seu custo cai constantemente, Os avangos das memérias sao, assim como os das unidades de processamento, exponenciais: no interior do volume ocupado por um disco rigido de microcomputador de 10 megabytes16 em 1983, podia se armazenar 10 gigabytes de informago em 1993 — ou seja, mil vezes mais. Temos visto essa taxa de crescimento h4 trinta anos, e aparentemente ir4 continuar pelo menos até 2010 (quer dizer, até onde é 15 A poténcia de célculo é geralmente medida em milhdes de instrugdes por segundo (MIPS). 16 As capacidades de armazenamento dos suportes de meméria sdio medidas em bits (unidade de codificagiio elementar: 0 ou 1) ou em bytes (8 bits). O byte corresponde ao espago de meméria necessario para codificar um caracter alfabético. Um kilobyte (Kb) = 1,000 bytes. Um megabyte (Mb) = 1.000.000 bytes. Um gigabyte (Gb) = 1.000.000.000 bytes. 33 possivel prever). De 1956 a 1996, os discos rigidos dos computadores multiplicaram por 600 sua capacidade de armazenamento e por 720 mil a densidade da informagao armazenada. Em contrapartida, 0 custo do megabyte passou, no mesmo periodo, de 50 mil a 2 francos.17 A tecnologias de meméria usam materiais ¢ processos bastante variados. Futuras descobertas em fisica ou em biotecnologia, perseguidas ativamente em varios laboratérios, provavelmente levardo a progressos hoje inimaginaveis. A TRANSMISSAO A transmissio de informagées digitais pode ser feita por todas as vias de comunicagdo imaginaveis. Podese transportar fisicamente os suportes (discos, disquetes etc.) por estrada, trem, barco ou avido. Mas a conexio direta, ou seja, em rede ou online ("em linha") é evidentemente mais rapida. A informagdo pode usar a rede telefonica classica, contanto que seja modulada (codificada analogicamente de forma adequada) ao entrar na rede telefonica e desmodulada (redigitalizada) quando chegar a um computador ou outro equipamento digital na outra ponta do cabo. O aparelho que permite a modulagtio ¢ desmodulagao da informagao digital, e que portanto permite a comunicagao de dois computadores via telefone, chamase "modem". Volumosos, caros e lentos nos anos 70, os modems passaram a ter, na metade dos anos 90, uma capacidade de transmissio superior 4 da linha telefSnica de um usuario médio. De uso comum, os modems sio hoje dispositivos miniaturizados e muitas vezes encontramse integrados aos computadores na forma de placa ou circuito impresso. As informagées podem viajar diretamente em sua forma digital, através de cabos coaxiais de cobre, por fibras éticas ou por via hertziana (ondas cletromagnéticas) ¢ portanto, como ocorre quando usam a rede telefSnica, passar por satélites de telecomunicagaio Os progressos da fungdo de transmissao (taxa de transferéncia, 17 Fonte: IBM. 34 confiabilidade) dependem de diversos fatores. O primeiro destes ¢ a capacidade de transmissio bruta. Neste campo, esperamse melhorias sensacionais nas fibras éticas. Estio sendo feitas pesquisas atualmente, em varios laboratérios, sobre uma "fibra negra", canal ético do qual um iinico fio, tao fino quanto um fio de cabelo, poderia conter todo o fluxo de mensagens telefénicas dos Estados Unidos no Dia das Maes (data em que ha o maior tréfego na rede). Um equipamento minimo com esta fibra negra teria mil vezes a capacidade de transmissdo hertziana em todo o espectro de freqiiéncias. O segundo fator de melhoria reside nas capacidades de compressio e de descompressio das mensagens. De fato, s4o os sons e as imagens em movimento que mais consomem capacidade de armazenamento e de transmissdo. Alguns programas ou circuitos especializados em compressiio podem analisar as imagens ou os sons para produzir simplificagées ou descrigées sintéticas dos mesmos, que chegam a ser milhares de vezes menos volumosas que sua codificagao digital integral. Na outra ponta do canal de transmissio, um médulo de descompressio reconstréi a imagem ou o som a partir da descrigdo recebida, minimizando a perda de informagdo. Ao comprimir e descomprimir as mensagens, transferese uma parte das dificuldades de transmissio (¢ de gravagao) para o tratamento que esta se tornando, como acabo de dizer, cada vez mais barato ¢ mais rapido. O terceiro fator de melhoria na transmissao reside nos avangos em matéria de arquitetura global de sistemas de comunicagdo. Neste campo, o principal progresso é sem diivida a generalizagiio da comutagdo por pacotes. Esta arquitetura descentralizada, na qual cada né da rede é “inteligente", foi concebida no final dos anos 50 em resposta a cendrios de guerra nuclear, mas 86 comegou a ser experimentada em escala natural no final dos anos 60, nos Estados Unidos. Neste sistema, as mensagens sfio recortadas cm pequenas unidades do mesmo tamanho, 08 pacotes, cada um dos quais munidos de seu enderego de partida, seu enderego de destino e sua posig%io na mensagem completa, da qual representam apenas uma parte. Computadores roteadores, distribuidos por toda a rede, sabem ler essas informagdes. A rede pode ser materialmente heterogénea (cabos, via hertziana, satélites etc.), basta que os roteadores saibam ler os enderegos dos pacotes ¢ que falem uma 35 “linguagem" em comum. Se, em determinado ponto da transmissao, algumas informagdes desaparecerem, os roteadores podem pedir que remetente as envie novamente. Os roteadores mantémse mutuamente informados, em intervalos regulares, sobre o estado da rede, Os pacotes podem, entdo, tomar caminhos diferentes de acordo com problemas de destruigdo, pane ou engarrafamento, mas scrdo finalmente reagrupados antes de chegarem a seu destinatario. Esse sistema é particularmente resistente a incidentes, porque é decentralizado e sua inteligéncia é “distribuida", Em 1997, esté funcionando apenas em algumas redes especializadas (entre as quais aquela que suporta a espinha dorsal da Internet), mas 0 padrdo de comunicagdo ATM (Asynchronous Transfer Mode), que funciona de acordo com a comutago por pacotes, foi adotado pela Unido internacional das telecomunicagdes. No futuro, deve ser aplicado ao conjunto das redes de telecomunicago e prevé uma comunicago digital multimidia de alta capacidade. Alguns nimeros dardo uma idéia dos progressos feitos no dominio das taxas de transmissio de informagdes. Nos anos 70, a rede Arpanet (ancestral da Internet), nos Estados Unidos, possuia nés que suportavam 56 mil bits por segundo. Nos anos 80, as linhas da rede que conectava os cientistas americanos podiam transportar 1,5 milhées de bits por segundo. Em 1992, as linhas da mesma rede podiam transmitir 45 milhdes de bits por segundo (uma enciclopédia por minuto). Os projetos ¢ pesquisas em desenvolvimento prevéem a construg&o de linhas coma capacidade de muitas centenas de milhares de bits por segundo (uma grande biblioteca por minuto). AST FACES Usamos aqui 0 termo "interfaces" para todos os aparatos materiais que permitem a interagao entre o universo da informagao digital e o mundo ordinario. Os dispositivos de entrada capturam e digitalizam a informagdo para possibilitar os processamentos computacionais. Até os anos 70, boa parte dos computadores eram alimentados com dados por meio de cartdes 36 perfurados. Desde entio, o espectro de agées corporais ou de qualidades fisicas que podem ser diretamente captadas por dispositivos computacionais aumentou: teclados que permitem a entrada de textos e o fornecimento de instrugdes aos computadores, 0 mouse por meio do qual 6 possivel manipular "com a mio" as informagées na tela, superficies sensiveis 4 pressaio dos dedos (tela sensivel ao toque), digitalizadores automaticos de som (samplers), médulos de software capazes de interpretar a palavra falada, digitalizadores (ou scanners) de imagens e de textos, leitores dticos (de cédigo de barras ou outras informagées), sensores automatics de movimentos do corpo (datagloves ou datasuits), dos olhos, das ondas cerebrais, de influxos nervosos (usados em algumas proteses), sensores de todos os tipos de grandezas fisicas: calor, umidade, luz, peso, propriedades quimicas etc. Apés serem armazenados, tratados ¢ transmitidos sob a forma de nameros, os modelos abstratos so tornados visiveis, as descrigdes de imagens tornamse de novo formas ¢ cores, os sons ecoam no ar, os textos so impressos sobre papel ou exibidos na tela, as ordens dadas a autématos so efetuadas por acionadores etc. A qualidade dos suportes de exibigdo ou de saida da informag&o ¢ evidentemente determinante para os usuarios dos sistemas de computadores ¢ condiciona cm grande parte scu sucesso pratico ¢ comercial. Até os anos 60, a maior parte dos computadores simplesmente nio tinha monitores. As primeiras telas exibiam apenas caracteres (Ietras e nimeros). Hoje ja dispomos de telas planas a cores em cristal liquido, ¢ estiio sendo feitos estudos para a comercializagio de sistemas de exibic&o estereoscépica de imagens. A evolugo das interfaces de saida deuse no sentido de uma melhoria da definigfio e de uma diversificacio dos modos de comunicagdo da informagdo. No dominio visual, além das imagens na tela, a qualidade dos documentos impressos a partir de textos ou de imagens digitalizadas passou, em menos de dez anos, por um avango considerdvel que, ao apagar a distingdo entre impresso ¢ manuscrito, transformou a relagio com o documento escrito. No dominio sonoro, basta lembrar que a maioria dos altofalantes difunde uma misica armazenada (c muitas vezes produzida) digitalmente. Além disso, a sintese de voz a partir de textos progride rapidamente. No dominio das 37 modalidades tacteis e proprioceptivas, 0 retorno de forgal8 aplicado a manches, joysticks e outros controles manuais, ou mesmo a sensagdo de lisura ou rugosidade, ampliam a ilustio de realidade na interagdo com mundos virtuais. Em termos de interfaces, hd duas linhas paralelas de pesquisa ¢ desenvolvimento em andamento. Uma delas visa a imersao através dos cinco sentidos em mundos virtuais cada vez mais realistas. A "realidade virtual" é usada, em particular, nos dominios militar, industrial, médico e urbanistico. Nesta abordagem das interfaces, o humano é convidado a passar para 0 outro lado da tela ¢ a interagir de forma sensériomotora com modelos digitais19. Em outra diregdo de pesquisa20, chamada de “realidade ampliada", nosso ambiente fisico natural é coalhado de sensores, cameras, projetores de video, médulos inteligentes, que se comunicam e esto interconectados a nosso servigo. Nao estamos mais nos relacionando com um computador por meio de uma interface, ¢ sim executamos diversas tarefas em um ambiente "natural" que nos fornece sob demanda os diferentes recursos de criagdo, informagao e comunicagao dos quais precisamos. A maioria dos aparelhos de comunicagao (telefone, televistio, copiadoras, fax etc.) trardio, de uma forma ou de outra, interfaces com o mundo digital e estardo interconectadas. Poderiamos dizer 0 mesmo de um niimero crescente de mAquinas, de aparelhos de medigdo, de objetos “némades" (PDAs — assistentes pessoais digitais —, telefones celulares etc.), de veiculos de transporte individual etc. A diversificagao ¢ a simplificagdo das interfaces, combinadas com os progressos da digitalizagiio, convergem para uma extensiio e uma multiplicagtio dos pontos de entrada no ciberespaco. Osmose de Char Davies Setembro de 1995, Vocé participa do simpésio internacional das artes eletrénicas, que neste ano acontece em Montreal. A reserva para a visita foi feita com muitos dias de antecedéncia, para 18 No Brasil, usamos com mais freqiiéncia o termo force feedback, (N. do T.) 19 Jaron Lanier é o principal expoente desta linha de pesquisa. 20 Representada sobretudo por Bill Buxton. 38 que fosse possivel explorar Osmose, 0 mundo virtual de Char Davies, uma artista canadense. No momento marcado, chegando & cabine especialmente equipada no primeiro andar do Museu de Arte Contemporanea, vocé encontra uma pequena sala cheia de computadores, cabos e aparelhos eletrénicos de todos os tipos, onde um assistente o convida a subir em uma plataforma onde hé um dispositivo infravermelho para captar seus movimentos. Ligeiramente assustado, uma paraferndlia razoavelmente pesada é colocada ao redor de seu peito. Depois, colocam em sua cabega um capacete contendo éculostelas estereoscépicos ¢ fones de ouvido. "Para subir, inspire. Para descer, expire." O deslocamento através da respiragdo foi descoberto por Char Davies através do mergulho submarino, do qual cla é adepta fervorosa. "Para avancar, incline 0 corpo para frente, Para recuar, inclineo para trés. Vocé tem vinte minutos. Entendeu? Nao est apertado demais?" Ainda que nio se sinta exatamente confortavel, vocé faz um sinal coma cabega dizendo que esta tudo bem. Agora vocé se encontra langado no espago sideral. Uma misica suave, flutuante, césmica, acompanha a gravitacao trangiiila, © lento movimento giratorio que o leva em direcdo ao planeta brilhante, bem abaixo, que ¢ 0 seu destino. Vocé parece ter se tornado o feto que retorna a Terra no final de 2001, Uma Odis: ia no Espaco de Stanley Kubrick. Em cdmera lenta, entra no mundo em que ¢ chamado a nascer, atravessando camadas de cédigos de computador parecidas com nuvens, depois ventos de palavras e frases, para finalmente aterrissar no centro de uma clareira. A partir de agora, vocé controla seus movimentos. Primeiro sem jeito, depois com mais seguranga, experimenta uma maneira estranha de deslocarse. Inspirando profundamente, sobe acima da clareira. Animais parecidos com vagalumes, que dangavam nas proximidades da floresta, vém escoltilo. Um Pantano coberto por vit6riasrégias ¢ estranhas plantas aquaticas brilha sob seus olhos. Esse mundo é doce, orginico, dominado por uma vegetagio onipresente. Ao inclinarse para frente, vocé vai em diregiio a uma grande arvore que parece constituir o cixo da clareira sagrada. Surpresa: ao entrar em contato coma casca da arvore, penetra no 39 alburno e, como se fosse uma molécula dotada de sensagdes, toma os canais que carregam a sciva. Concentrandose para inspirar profundamente, sobe pelo interior da arvore até chegar folhagem. Cercado por capsulas de clorofila de verde tenro, chega agora a uma folha onde assiste 4 complicada danga da fotossintese, Saindo da folha, voa novamente sobre a clareira. Desce rumo ao pantano com profundas expiragdes, No caminho, cruza novamente uma revoada de vagalumes (ou seriam espiritos?) da qual emanam estranhos sons de sininhos distantes. Virando a cabega, ¢ possivel vélos afastaremse rumo A floresta enquanto chegam, atenuados pela distancia, os tiltimos ecos das sinetas celestiais, Agora vocé se encontra bem proximo a superficie do pantano, onde os reflexos e jogos de luz fazem com que permanega algum tempo. Depois cruza a superficie da agua. Um peixe com nadadeiras ondulantes 0 recebe no mundo aquatico... ‘Apés visitar o pAntano, atravessa 0 mundo da floresta, 0 mundo mineral, ¢ depois um espago estranho, listrado com linhas de escrita, que deve ser percorrido através de sua respiragiio e dos movimentos do peito para decifrar frases de fildsofos: englobando a natureza, este ¢ o mundo do discurso humano. Por fim, chega ao mundo da informatica, povoado apenas por linhas de cédigo. Pensa ter tempo de voltar para estes diferentes mundos, mas ja est’ tomado por um movimento ascendente que o leva de forma calma, mas firme, a deixar o planeta Osmose. A vida neste universo possui apenas um tempo. Enquanto 0 globo no qual vocé existiu e sentiu, por um curto instante, afastase agora no fundo do espago sideral, vocé lamenta nao ter usado satisfatoriamente o periodo de imersao. Onde vocé ira reencarnar agor Os principios que nortearam a concepgdo de Osmose so opostos aos que governam os videogames. Nao ¢ possivel agir com as mos. A postura de apreender, manipular ou combater encontrase necessariamente contrariada. Ao contrario, para evoluir neste mundo vegetal e meditativo, vocé & levado a concentrarse na respiragdo e nas sensagées cinestésicas. E preciso estar em osmose com esta realidade virtual para conhecéla. Movimentos 40 bruscos ou répidos nao sao eficazes. Por outro lado, comportamentos suaves e a atitude contemplativa sao "recompensados", Em vez de cores fortes, os mundos da arvore, do pantano, da clareira e da floresta oferecem a vista um camafeu sutil de verdes ¢ marrons que evocam mais as tinturas vegetais do que o cintilamento tecnolégico das imagens geradas por computador. Osmose marca a saida das artes virtuais de sua matriz original de simulagao "realista" e geométrica. Este obra apresenta um desmentido marcante para aqueles que querem ver no virtual apenas a busca do "projeto ocidental c/ou machista de dominio da natureza e manipulagao do mundo". Aqui, o virtual foi explicitamente concebido para incitar ao retiro, 4 autoconsciéncia, ao respeito 4 natureza, a uma forma "osmotica" de conhecimento e de relacionamento com o mundo. A PROGRAMAGAO O ciberespago nao compreende apenas materiais, informagdes ¢ seres humanos, é também constituido e povoado por seres estranhos, meio textos meio maquinas, meio atores, meio cenarios: os programas. Um programa, ou software, é uma lista bastante organizada de instrugdes codificadas, destinadas a fazer com que um ou mais processadores executem uma tarefa. Através dos circuitos que comandam, os programas interpretam dados, agem sobre informagdes, transformam outros programas, fazem funcionar computadores e redes, acionam miquinas fisicas, viajam, reproduzemse etc. Os programas sio escritos com o auxilio de linguagens de programagio, cédigos especializados para escrever instrugdes para processadores de computadores. Ha um grande niimero de linguagens de programagdo com maior ou menor grau de especializagiio em determinadas tarefas. Desde © inicio da informatica, engenheiros, matemdticos ¢ lingiiistas trabalham para tornar as linguagens de programagio 0 mais proximas possivel da linguagem natural. Podemos distinguir entre as linguagens de programagio herméticas ¢ muito préximas da estrutura material do computador (linguagens de maquina, 41 assemblers) ¢ as linguagens de programagdo "avangadas", menos dependentes da estrutura do hardware ¢ mais proximas do inglés, tais como Fortran, Lisp, Pascal, Prolog, C etc. Hoje ha algumas linguagens de “quarta gerac&o", que permitem a criagdo de programas por meio do desenho de esquemas e manipulagdo de icones na tela. Sao criados ambientes de programagaéo que fornecem "blocos" basicos de software prontos para montagem. O programador passa, portanto, menos tempo codificando ¢ dedica a maior parte de scu esforgo & concepedo da arquitetura do software. Ha “linguagens de autoria” que permitem que pessoas niioespecializadas criem por conta propria alguns programas simples, bases de dados multimidia ou programas pedagégicos. OS PROGRAMAS Os programas aplicativos permitem ao computador prestar servigos especificos a seus usuarios, Vamos mostrar alguns exemplos classicos. Alguns programas calculam automaticamente o pagamento dos empregados de uma empresa, outros emitem faturas para clientes ou permitem o gerenciamento de estoques, enquanto outros ainda sao capazes de comandar mAquinas em tempo real de acordo com informagées fornecidas por sensores. Ha sistemas especializados que permitem detectar a origem de panes ou dar conselhos financeiros. Como 0 préprio nome ja diz, um editor de textos permite a redagio, modificagdio ¢ organizagdo de textos. Uma planilha mostra uma tabela com niimeros, mantém a contabilidade, ajuda a tomar decisées de ordem financeira ou monetaria. Um gerenciador de bancos de dados permite a criagdo de um ou mais bancos de dados, a localizagéo rapida da informagio pertinente segundo diversas chaves de pesquisa, bem como a apresentagdo da informagéio de varios angulos de acordo com as necessidades. Um programa grafico possibilita que graficos impecaveis sejam produzidos de forma simples. Um programa de comunicagdo permite o envio de mensagens e 0 acesso a informagées armazenadas em outros computadores etc. Os programas aplicativos esto cada vez mais abertos a personalizagdo evolutiva das fungées, sem que seus usuarios sejam obrigados a aprender a programar. 42 Os sistemas operacionais sao programas que gerenciam os recursos dos computadores (meméria, entrada e saida etc.) e organizam a mediagio entre o hardware e 0 software aplicativo. O software aplicativo no se encontra, portanto, em contato direto com o hardware. E por isso que um mesmo aplicativo pode funcionar em diferentes tipos de hardware, desde que tenham 0 mesmo sistema operacional. Se nem todos os dados sao programas, por outro lado, todos os programas podem ser considerados como dados: devem ser acessados, arquivados ¢ lidos pelos computadores. Sobretudo, eles mesmos podem ser objeto de calculos, tradugdes, modificagdes ou simulagdes por parte de outros programas. Como um programa pode fazer 0 papel de uma colegio de dados a serem traduzidos ou tratados por outro programa, ¢ possivel colocar diversas camadas de programas entre o hardware ¢ 0 usuirio final. Este s6 se comunica diretamente com a tltima camada ¢ nfio precisa conhecer a complexidade subjacente ao aplicativo que esté manipulando ou a heterogencidade da rede que percorre. Via de regra, quanto mais espesso for o "mil folhas" de programas que usamos, mais as redes serio transparentes ¢ mais facilmente serdio executadas as tarefas humanas. DO COMPUTADOR AO CIBERESPACO, E desta forma que hoje navegamos livremente entre programas ¢ hardware que antes eram incompativeis. De fato, gragas a adogao de padrdes para programas ¢ hardware, a tendéncia geral ¢ 0 estabelecimento de espagos virtuais de trabalho e de comunicagdo descompartimentalizados, cada vez mais independentes de seus suportes, Note se também o uso crescente de padrées descritivos da estrutura de documentos textuais (SGML)21 ou multimidia (HTML22, Hi Time23), os quais permitem conservar intacta toda a informagao, apesar das mudangas de suportes de programas e hardware. O padrao VRML24 21 Standard Generalised Mark up Language. 22 Hypertext Mark up Language. 23 Hypermedia Timebased Structuring Language. 24 Virtual Reality Modeling Language. Notese que o padrio VRML, atualmente usado na 43 permite a exploragdo de imagens tridimensionais interativas na World Wide Web, por intermédio de qualquer mdquina ligada a rede. O uso crescente do padrio VRML deixa prever a interconexio de mundos virtuais disponiveis na Internet e projeta o horizonte de um ciberespago parecido com um imenso metamundo virtual heterogéneo, em transformagao permanente, que conteria todos os mundos virtuais. Durante muito tempo polarizada pela "maquina", anteriormente fragmentada pelos programas, a informatica contemporanea — programas e hardware — esti desconstruindo o computador em beneficio de um espaco de comunicagiio navegavel e transparente, centrado na informagao. Um computador é uma montagem particular de unidades de processamento, de transmissio, de memoria ¢ de interfaces para entrada ¢ saida de informagdes. Mas computadores de marcas diferentes podem ser montados a partir de componentes quase idénticos, e computadores da mesma marca contém pegas de origens muito diferentes. Além disso, os componentes do hardware (sensores, memérias, processadores etc.) podem ser encontrados em outros lugares que ndo os computadores propriamente ditos: cartdes inteligentes, terminais de bancos, robés, motores, eletrodomésticos, automéveis, copiadoras, fax, cameras de video, telefones, radios, televisée comunicagao... em qualquer lugar onde a informagao digital seja processada automaticamente. Por ultimo, ¢ mais importante, um computador conectado ao ciberespago pode recorrer as capacidades de mem@ria ¢ de cdlculo de outros computadores da rede (que, por sua vez, fazem o mesmo), ¢ também a diversos aparelhos distantes de leitura e exibigdo de informagdes. Todas as fungdes da informatica so distribuiveis e, cada vez mais, distribuidas. O computador nio é mais um centro, e sim um né, um terminal, um componente da rede universal calculante. Suas fungdes pulverizadas infiltram cada elemento do tecnocosmos. No limite, hd apenas um nico computador, mas é impossivel tragar seus limites, definir seu contorno, E um computador cujo centro esta em toda parte e a circunferéncia em lugar algum, um computador hipertextual, disperso, vivo, fervilhante, inacabado: ciberespago em si. Web, organiza a exploragdo de modelos tridimensionais com o uso de um mouse, ¢ no pela imersio com visores estereoscopicos e datagloves. 44 45 Ill. O DIGITAL OU A VIRTUALIZAGAO DA INFORMAGAO O Bezerro de Ouro Nao muito longe da basilica onde se encontram os monumentos funerarios dos antigos reis da Franga, em Saint Denis, ocorre a cada dois anos uma manifestag’o consagrada as artes digitais: Artifices. Em Novembro de 1996, o principal artista convidado era Jeffrey Shaw, pioneiro das artes do virtual e diretor, na Alemanha, de um importante instituto destinado a criagdo nas "novas midias". Ao entrar na exposigdo, a primeira coisa que vocé veria seria a instalago "Bezerro de Ouro". No meio da primeira sala, um pedestal claramente feito para receber uma estatua nao sustenta nada além do vazio. A estatua esta ausente. Um tela plana se encontra sobre uma mesa ao lado do pedestal. Ao pegila, vocé descobre que esta tela de cristal liquido comportase como uma "janela" para a sala: ao direciondla para as paredes ou teto, vocé vé uma imagem digital das paredes ou do teto. Ao apontéla para a porta de entrada, aparece um modelo digital da porta. E quando a tela é virada na dirego do pedestal, vocé & surpreendido por uma maravilhosa estatua, brilhante, magnificamente esculpida, do bezerro de ouro, o qual sé "existe" virtualmente. Ao andar em volta do pedestal, mantendo a tela direcionada para o vazio acima dele, ¢ possivel admirar todos os Angulos do bezerro de ouro. Aproximandose, ele aumenta; afastandose, diminui. Se vocé levar a tela bem para cima do pedestal, entraré dentro do bezerro de ouro ¢ descobrira seu segredo: o interior 6 vazio. S6 existe enquanto aparéncia, sobre a face externa, sem reverso, sem interioridade. Qual 0 propésito desta instalagéo? Em primeiro lugar, é critica: 46 0 virtual ¢ o novo bezerro de ouro, 0 novo idolo de nossos tempos. Mas também é classica, pois a obra nos traz a percepgdio concreta da natureza de todos os idolos: uma entidade que nao estd realmente presente, uma aparéncia sem consisténcia, sem interioridade. Aqui, o que se busca nao é tanto a auséncia de plenitude material, e sim o vazio de presenca ¢ de interioridade viva, subjetiva. O idolo ndo tem existéncia por si mesmo, somente a que Ihe ¢ atribuida por seus adoradores. A relagdo com o idolo é gerada pelo préprio dispositivo da instalagdo, uma vez que o bezerro de ouro s6 aparece gracas a atividade do visitante. Em um plano no qual os problemas estéticos juntam se as interrogagdes espirituais, a instalagio de Jeffrey Shaw questiona a nogiio de representagdo, Na verdade, o bezerro de ouro obviamente remete ao Segundo Mandamento, que proibe nio sé a idolatria mas também a fabricacdo de imagens ¢ estétuas "que tenham a forma daquilo que se encontra no céu, na terra ou nas aguas". Podemos dizer que Jeffrey Shaw esculpiu uma estatua ou desenhou uma imagem? Seu bezerro de ouro & uma representagao? Mas nao ha nada sobre o pedestal! A vida ¢ a interioridade sensivel daquilo que voa nos ares ou corre pelo solo no foram captadas por uma forma morta, Nao é um bezerro, exaltado por uma matéria tida como preciosa, que a instalagdo coloca em cena, mas sim o préprio processo da representagao, No lugar onde, em sentido estrito, ha apenas o nada, a atividade mental c sensériomotora do visitante faz surgir uma imagem que, quando suficientemente explorada, acaba por revelar sua nulidade. Este capitulo é dedicado as nova: pécies de mensagens que proliferam nos computadores ¢ nas redes de computadores, tais como hipertextos, hiperdocumentos, simulagées interativas e mundos virtuais. Como vou tentar mostrar, a virtualidade, compreendida de forma muito geral, constitui 0 trago distintivo da nova face da informagao. Uma vez que a digitalizagéo é o fundamento técnico da virtualidade, uma explicagdo de seus principios e fungdes vird apés a apresentagdo da nogdo de virtual que inicia este capitulo. 47 SOBRE O VIRTUAL EM GERAL, A universalizagio da cibercultura propaga a copresenga e a interagdo de quaisquer pontos do espaco fisico, social ou informacional. Neste sentido, ela é complementar a uma segunda tendéncia fundamental, a virtualizagao.25 A palavra "virtual" pode ser entendida cm ao menos trés sentidos: 0 primeiro, técnico, ligado 4 informatica, um segundo corrente ¢ um terceiro filoséfico26. O fascinio suscitado pela “realidade virtual" decorre em boa parte da confusio entre esses trés sentidos. Na acepgio filoséfica, é virtual aquilo que existe apenas em poténcia ¢ no em ato, o campo de forgas ¢ de problemas que tende a resolverse em uma atualizagio. O virtual encontrase antes da concretizacao efetiva ou formal (a drvore esta virtualmente presente no grao). No sentido filosdfico, o virtual é obviamente uma dimenséo muito importante da realidade. Mas no uso corrente, a palavra virtual é muitas vezes empregada para significar a irrealidade — enquanto a “realidade" pressupde uma efetivagdo material, uma presenga tangivel. A expresso "realidade virtual" soa entio como um oximoro, um passe de magica misterioso. Em geral acreditase que uma coisa deva ser ou real ou virtual, que ela nio pode, portanto, possuir as duas qualidades a0 mesmo tempo. Contudo, a rigor, em filosofia o virtual nao se opde ao real mas sim ao atual: virtualidade e atualidade sao apenas dois modos diferentes da realidade. Se a produgdo da drvore esta na esséncia do gro, entio a virtualidade da drvore é bastante real (sem que seja, ainda, atual). E virtual toda entidade "desterritorializada", capaz de gerar diversas manifestagées concretas em diferentes momentos ¢ locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular. Para usar um exemplo fora da esfera técnica, uma palavra é uma entidade virtual. O vocdbulo “arvore" esta sempre sendo pronunciado em um local ou outro, em determinado dia numa certa hora. Chamaremos a 25 Neste ponto, gostaria de remeter o leitor a minha obra O que é 0 virtual, Sao Paulo, Editora 34, 1997, que aborda a questdo de um ponto de vista filosdfico e antropolégico. 26 Ainda ha outros sentidos para esta palavra em otica, mecnica etc. Assinalo, além de meu livro O que é 0 virtual?, op. cit., as fascinantes andlises de René Berger em L'origine du futur, Paris, Le Rocher, 1996, sobretudo no capitulo "Le virtuel jubilatoire", além da obra de JeanClet Martin, L'image virtuelle, Paris, Rime, 1996. 48 enunciagiio deste elemento lexical de “atualizagio". Mas a palavra em si, aquela que é pronunciada ou atualizada em certo lugar, nao est4 em lugar nenhum e no se encontra vinculada a nenhum momento em particular (ainda que ela nio tenha existido desde sempre). Repetindo, ainda que nio possamos fixélo em nenhuma coordenada esplacotemporal, o virtual é real. Uma palavra existe de fato.

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