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Capitulo 13 AMRR

Ricardo Reis encontra Fernando Pessoa no jardim Adamastor. Eles discutem sobre a vida, a morte e o esquecimento. Ricardo Reis é abordado pelo agente Victor da polícia política por questões de vigilância.

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Maria Domingues
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Capitulo 13 AMRR

Ricardo Reis encontra Fernando Pessoa no jardim Adamastor. Eles discutem sobre a vida, a morte e o esquecimento. Ricardo Reis é abordado pelo agente Victor da polícia política por questões de vigilância.

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Fernando Pessoa apareceu duas noites depois, regressava Ricardo Reis do seu jantar,

sopa, um prato de peixe, pão, fruta, café, sobre a mesa dois copos, o último sabor que
leva na boca, como ficámos cientes, é o do vinho, mas deste freguês não há um só
criado que possa afirmar, Bebia de mais, levantava-se da mesa a cair, repare-se na
curiosa expressão, levantar-se da mesa a cair, por isso é fascinante a linguagem,
parece uma insuperável contradição, ninguém, ao mesmo tempo, se levanta e cai, e
contudo temo-lo visto abundantes vezes, ou experimentado com o nosso próprio
corpo, mas de Ricardo Reis não há testemunhas na história da embriaguez. Sempre
tem estado lúcido quando lhe aparece Fernando Pessoa, está lúcido agora quando o vê
sentado, de costas, no banco mais próximo do Adamastor, é inconfundível aquele
pescoço alto e delgado, o cabelo um pouco ralo no cimo da cabeça, além disso não
são muitas as pessoas que andam por aí sem chapéu nem gabardina, é certo que o
tempo se tornou mais ameno, mas à noite ainda refresca. Ricardo Reis sentou-se ao
lado de Fernando Pessoa, no escuro da noite sobressai a brancura da cara e das mãos,
a alvura da camisa, o resto confunde-se, mal se distingue o fato preto da sombra que a
estátua projecta, não há mais ninguém no jardim, no outro lado do rio vê-se uma fiada
de inseguras luzes rente à água, mas são como estrelas, cintilam, tremem como se
fossem apagar-se, e persistem. Julguei que nunca mais voltasse, disse Ricardo Reis,
Aqui há dias vim visitá-lo, mas quando cheguei à sua porta percebi que você estava
ocupado com a Lídia, por isso retirei-me, nunca fui grande amador de quadros vivos,
respondeu Fernando Pessoa, distinguia-se-lhe o sorriso cansado. Tinha as mãos juntas
no joelho, o ar de quem espera pacientemente a sua vez de ser chamado ou de ser
mandado embora, e entretanto fala porque o silêncio seria mais insuportável que as
palavras, O que eu não esperava era que você fosse tão persistente amante, para o
volúvel homem que poetou a três musas, Neera, Cloe e Lídia, ter-se fixado
carnalmente em uma, é obra, digame cá, nunca lhe apareceram as outras duas, Não,
nem é caso para estranhar, são nomes que não se usam hoje, E aquela rapariga
simpática, fina, a do braço paralítico, você chegou a dizer-me como ela se chamava,
Marcenda, É um gerúndio bonito, tem-na visto, Encontrei-a da última vez que esteve
em Lisboa, o mês passado, Você gosta dela, Não sei, E da Lídia, gosta, é diferente,
Mas gosta, ou não gosta, Até agora o corpo não se me negou, E isso que é que prova,
Nada, pelo menos de amores, mas deixe de fazer perguntas sobre a minha intimidade,
diga-me antes por que é que não tornou a aparecer, Usanda uma só palavra, por
enfado, De mim, Sim, também de si, não por ser você, mas por estar desse 175 lado,
Que lado, O dos vivos, é difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não será
menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido
vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes
de aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos,
sabemos que morreremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia
quando vivi, o que nós sabemos, isso sim, é que os outros morrem, Para filosofia,
parece-me insignificante, Claro que é insignificante, você nem sonha até que ponto
tudo é insignificante visto do lado da morte, Mas eu estou do lado da vida, Então deve
saber que coisas, desse lado, são significantes, se as há, Estar vivo é significante, Meu
caro Reis, cuidado com as palavras, viva está a sua Lídia, viva está a sua Marcenda, e
você não sabe nada delas, nem o saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro
que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos
mortos, Para quem assim pense, a morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a
morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida, Meu
caro Fernando, cuidado com as palavras, você arrisca-se muito, Se não dissermos as
palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias, E você, já as
sabe, Só agora comecei a ser absurdo, Um dia você escreveu Neófito, não há morte,
Estava enganado, há morte, Di-lo agora porque está morto, Não, digo-o porque estive
vivo, digo-o, sobretudo, porque nunca mais voltarei a estar vivo, se você é capaz de
imaginar o que isto significa, não voltar a estar vivo, Assim Pero Grulho ensinaria,
Nunca tivemos melhor filósofo. Ricardo Reis olhou a Outra Banda. Algumas luzes
tinham-se apagado, outras distinguiam-se mal, esmoreciam, sobre o rio começava a
pairar uma neblina leve, Você disse que deixara de aparecer por se sentir enfadado, É
verdade, De mim, De si talvez não tanto, o que me tem enfadado e cansado é este ir e
vir, este jogo entre uma memória que puxa e um esquecimento que empurra, jogo
inútil, o esquecimento acaba por ganhar sempre, Eu não o esqueço a si, Sabe uma
coisa, você, nesta balança, não pesa muito, Então que memória é essa que continua a
chamá-lo, A memória que ainda tenho do mundo, Julguei que o chamasse a memória
que o mundo tenha de si, Que ideia tola, meu caro Reis, o mundo esquece, já lhe
disse, o mundo esquece tudo, Acha que o esqueceram, O mundo esquece tanto que
nem sequer dá pela falta do que esqueceu, Há aí grande vaidade, Claro que sim, mais
vaidoso que um poeta só um poeta mais pequeno, Nesse caso, serei eu mais vaidoso
que você vMas menos bom que você, Creio que sim, Depois de estarmos ambos
mortos, se ainda então formos lembrados, ou enquanto o formos, vai ser interessante
observar para que lado se inclinará essa outra balança, Então nos darão nulo cuidado
os pesos e os 176 pesadores, Neófito, há morte, Há. Ricardo Reis aconchegou a
gabardina ao corpo, Está a arrefecer, vou para casa, se quiser vir comigo,
conversaremos mais um bocado, Hoje não espera visitas, Não, e pode lá ficar, como
no outro dia, Também se sente só esta noite, Ao ponto de implorar companhia, não, é
apenas por pensar que às vezes a um morto há-de apetecer estar sentado numa
cadeira, num sofá, debaixo de telha, confortável, Você, Ricardo, nunca foi irónico,
Nem o estou a ser agora. Levantou-se, perguntou, Então, vem, Fernando Pessoa foi
atrás dele, alcançou-o no primeiro candeeiro, o prédio ficava em baixo, do outro lado
da rua. Defronte da porta estava um homem de nariz no ar, parecia medir as janelas,
pela inclinação do corpo, em pausa instável, figurava ir de passagem, subira a
íngreme, cansativa rua, qualquer de nós diria, vendo-o, que é um simples passeante
nocturno, que os há nesta cidade de Lisboa, nem toda a gente vai para a; cama com as
galinhas, mas quando Ricardo Reis se aproximou mais deu-lhe na cara um violento
odor de cebola, era o agente Victor, reconheceu-o logo, há cheiros que são assim,
eloquentes, vale cada um por cem discursos, dos bons e dos maus, cheiros que são
como retratos de corpo inteiro, hábeis a desenhar e iluminar feições, que andará este
tipo a fazer por aqui, e talvez por estar Fernando Pessoa presente não quis fazer má
figura, tomou a iniciativa da interpelação, Por estes sítios, a umas horas destas, senhor
Victor, o outro respondeu com o que pôde improvisar, não trazia explicação
preparada, esta vigilância está na infância da arte, Calhou, senhor doutor, calhou, fui
visitar uma parenta que mora no Conde Barão, coitada, está com uma pneumonia, não
se saiu mal de todo o Victor, E então o senhor doutor já não vive no hotel, com a
inábil pergunta descobria o enredo, uma pessoa pode estar de hóspede no Hotel
Bragança e andar a passear à noite no .Alto de Santa Catarina, onde veríamos a
incompatibilidade, mas Ricardo Reis fez de contas que não tinha reparado ou não
reparou mesmo, Não, agora moro aqui, naquele segundo andar, Ah, esta exclamação
melancólica, apesar de breve, espalhou nos ares o sufocante fedor, valeu a Ricardo
Reis ter a brisa pelas costas, são as misericórdias do céu. Victor despediu-se, lançou
nova baforada, Então passe o senhor doutor muito bem, em precisando de alguma
coisa, já sabe, é só falar com o Victor, ainda no outro dia o senhor doutor-adjunto me
dizia que se toda a gente fosse como o senhor doutor Reis, tão correcto, tão educado,
até dava gosto trabalhar, ele vai ficar muito satisfeito quando eu lhe disser que o
encontrei, Boas noites, senhor Victor, menos do que isto seria indelicado responder,
além de o obrigar o seu bom nome. Ricardo Reis atravessou a rua, atrás dele foi
Fernando Pessoa, ao agente Victor pareceu ver duas sombras no chão, são efeitos de
luz reflexa, manifestações, a partir de certa idade os olhos deixam de poder separar o
visível do invisível. Victor ainda se deixou ficar no passeio, agora já tanto fazia, à
espera de que se acendesse a luz no segundo andar, 177 mera rotina, simples
confirmação, mais que sabia ele que Ricardo Reis morava ali, não tivera de caminhar
muito nem muito interrogar, com a ajuda do gerente Salvador chegou aos moços de
fretes, com a ajuda dos moços de fretes chegou a esta rua e este prédio, bem verdade é
o que se diz, quem tem boca vai a Roma, e da Cidade Eterna ao Alto de Santa
Catarina não dista mais que um passo. Acomodado, recostado no sofá do escritório,
Fernando Pessoa perguntou, traçando a perna, Quem era aquele seu amigo, Não é meu
amigo, Ainda bem, só o cheiro que ele deitava, há cinco meses ando eu com este fato
e esta camisa, sem mudar a roupa interior, e não cheiro assim, mas, se não é amigo,
quem é ele então, e o tal doutor-adjunto que tanto parece estimá-lo, São ambos da
polícia, no outro dia fui chamado a perguntas, Supunha-o homem pacífico, incapaz de
perturbar as autoridades, Sou, de facto, um homem pacífico, Alguma você terá feito
para que o chamassem, Vim do Brasil, não fiz mais nada, Querem ver que a sua Lídia
estava virgem e foi, triste e desonrada, queixar-se, Ainda que a Lídia fosse virgem e
eu a desflorasse, não seria à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado que iria levar
queixa, Foi essa que o chamou a si, Foi, E eu a imaginar que tinha sido caso para a
policia dos costumes, Os meus costumes são bons, pelo menos não ficam
desfavorecidos em comparação com a maldade das costumes gerais, Você nunca me
falou dessa história policiária, Não tive ocasião, e você deixou de aparecer, Fizeram-
lhe mal, ficou preso, vai ser julgado, Não, tive apenas de responder a umas perguntas,
que gente conheci no Brasil, por que foi que voltei, que relações criei em Portugal
desde que cá estou, Teria muita graça se lhes tivesse falado de mim, Teria muita graça
eu dizer-lhes que de vez em quando encontro o fantasma de Fernando Pessoa, Perdão,
meu caro Reis, eu não sou nenhum fantasma, Então, que é, Não lhe saberei responder,
mas fantasma não sou, um fantasma vem do outro mundo, eu limito-me a vir do
cemitério dos Prazeres, Enfim, é Fernando Pessoa morto, o mesmo que era Fernando
Pessoa vivo, De uma certa e inteligente maneira, isso é exacto, Em todo o caso, estes
nossos encontros seriam difíceis de explicar à polícia, Você sabe que eu, um dia, fiz aí
uns versos contra o Salazar, E ele, deu pela sátira, suponho que seria sátira, Que eu
saiba, não, Diga-me, Fernando, quem é, que é este Salazar que nos calhou em sorte, É
o ditador português, o protector, o pai, o professor, o poder manso, um quarto de
sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de Sidónio, o mais
apropriado possível aos nossos hábitos e índole, Alguns pês e quatro esses, Foi
coincidência, não pense que andei a procurar palavras que principiassem pela mesma
letra, Há pessoas que têm essa mania, exultam com as aliterações, com as repetições
aritméticas, cuidam que graças a elas ordenam o caos do mundo, Não devemos
censurá-las, são gente ansiosa, como os fanáticos da simetria, O gosto da simetria,
meu caro Fernando, 178 corresponde a uma necessidade vital de equilíbrio, é uma
defesa contra a queda, Como a maromba utilizada pelos equilibristas, Tal qual, mas,
voltando ao Salazar, quem diz muito bem dele é a imprensa estrangeira, Ora, são
artigos encomendados pela propaganda, pagos com o dinheiro do contribuinte,
lembro-me de ouvir dizer, Mas olhe que a imprensa de cá também se derrete em
louvações, pega-se num jornal e fica-se logo a saber que este povo português é o mais
próspero e feliz da terra, ou está para muito breve e que as outras nações só terão a
ganhar se aprenderem connosco, O vento sopra desse lado, Pelo que lhe estou a ouvir,
você não acredita muito nos jornais, Costumava lê-los, Diz essas palavras num tom
que parece de resignação, Não, é apenas o que fica de um longo cansaço, você sabe
como é, faz-se um grande esforço físico, os músculos fatigam-se, ficam lassos,
apetece fechar os olhos e dormir, Tem sono, Ainda sinto o sono que tinha em vida,
Estranha coisa é a morte, Mais estranho ainda, olhando-a do lado em que estou, é
verificar que não há duas mortes iguais, estar morto não é o mesmo para todos os
mortos, há casos em que transportamos para cá todos os fardos da vida. Fernando
Pessoa fechou os olhos, apoiou a cabeça no encosto do sofá, pareceu a Ricardo Reis
que duas lágrimas lhe assomavam entre as pálpebras, também seriam, como as duas
sombras vistas pelo Victor, efeitos de luz reflexa, é do senso comum que os mortos
não choram. Aquele rosto nu, sem óculos, com o bigode ligeiramente crescido, pêlo e
cabelo têm vida mais longa, exprimia uma grande tristeza, daquelas sem emenda,
como as da infância, que, por da infância serem, julgamos terem remédio fácil, esse é
o nosso engano. De repente, Fernando Pessoa abriu os olhos, sorriu, Imagine você que
sonhei que estava vivo, Terá sido ilusão sua, Claro que foi ilusão, como todo o sonho,
mas o que é interessante não é um morto sonhar que está vivo, afinal ele conheceu a
vida, deve saber do que sonha, interessante é um vivo sonhar que está morto, ele que
não sabe o que é a morte, Não tarda muito que você me diga que morte e vida é tudo
um, Exactamente, meu caro Reis, vida e morte é tudo um, Você já disse hoje três
coisas diferentes, que não há morte, que há morte, agora diz-me que morte e vida são
o mesmo, Não tinha outra maneira de resolver a contradição que as duas primeiras
afirmações representavam, e dizendo isto Fernando Pessoa teve um sorriso sábio, é o
mínimo que deste sorriso se poderia dizer, se tivermos em conta a gravidade e a
importância do diálogo. Ricardo Reis levantou-se, Vou aquecer café, volto já, Olhe,
Ricardo, como nós estávamos a falar de jornais, chegou-me a curiosidade de saber as
últimas notícias, será uma maneira de acabarmos o serão, Há cinco meses que você
nada sabe do mundo, muita coisa não vai perceber, Você também deve ter percebido
pouco quando aqui desembarcou depois de dezasseis anos de ausência, teve de atar as
pontas umas às outras por cima do 179 tempo, com certeza ficaram-lhe pontas sem
nós e nós sem pontas, Tenho os jornais no quarto, já vou buscá-los, disse Ricardo
Reis. Foi à cozinha, voltou daí a pouco com uma pequena cafeteira de esmalte branco,
a chávena e a colher, o açúcar, que colocou em cima da mesa baixa que separava os
sofás, saiu outra vez, regressou com os jornais, deitou o café na chávena, adoçou,
Você não bebe, claro, Se ainda me restasse uma hora de vida, talvez a trocasse agora
por um café bem quente, Daria mais do que aquele rei Henrique, que por um cavalo
só trocava um reino, Para não perder o reino, mas deixe lá a história dos ingleses e
diga-me como vai este mundo dos vivos. Ricardo Reis bebeu meia chávena, depois
abriu um dos jornais, perguntou, Você sabia que o Hitler fez anos, quarenta e sete,
Não acho que a notícia seja importante, Porque não é alemão, se a fosse seria menos
desdenhoso, E que mais, Diz aqui que passou revista a trinta e três mil soldados, num
ambiente de veneração quase religiosa, palavras textuais, se quer fazer uma ideia ouça
só esta passagem do discurso que Goebbels fez na ocasião, Leia lá, Quando Hitler fala
é como se a abóbada de um templo se fechasse sobre a cabeça do povo alemão,
Caramba, muito poético, Mas isto nada vale em comparação com as palavras de
Baldur von Schirach, Quem é esse von Schirach, não me lembro, É o chefe das
Juventudes do Reich, Que foi que ele disse, Hitler, presente, de Deus à Alemanha, foi
o homem providencial, o culto por ele está acima das divisões confessionais, Essa não
lembrava ao diabo, o culto por um homem a unir o que o culto de Deus dividiu, E von
Schirach vai mais longe, afirma que se a juventude amar Hitler, que é o seu Deus, se
se esforçar por fielmente o servir, cumprirá o preceito que recebeu do Padre Eterno,
Magnífica lógica, para a juventude Hitler é um deus, servindo-o fielmente cumpre um
preceito do Padre Eterno, portanto temos aqui um deus a agir como intermediário
doutro deus para os seus próprios fins, o Filho como árbitro e juiz da autoridade do
Pai, afinal o nacional-socialismo é uma religiosíssima empresa, Olhe que nós, por cá,
também não vamos nada mal em pontos de confusão entre o divino e o humano,
parece até que voltámos aos deuses da antiguidade, Os seus, Eu só aproveitei deles
um resto, as palavras que os diziam, Explique melhor essa tal divina e humana
confusão, É que, segundo a declaração solene de um arcebispo de Mitilene, Portugal é
Cristo e Cristo é Portugal, Está aí escrito, Com todas as letras, Que Portugal é Cristo e
Cristo é Portugal, Exactamente. Fernando Pessoa pensou alguns instantes, depois
largou a rir, um riso seco, tossicado, nada bom de ouvir, Ai esta terra, ai esta gente, e
não pôde continuar, havia agora lágrimas verdadeiras nos seus olhos, Ai esta terra,
repetiu, e não parava de rir, Eu a julgar que tinha ido longe de mais no atrevimento
quando na Mensagem chamei santo a Portugal, lá está, São Portugal, e vem um
príncipe da Igreja, com a sua arquiepiscopal autoridade, e proclama que Portugal é
Cristo, E Cristo é Portugal, não esqueça, Sendo assim, precisamos de saber, 180
urgentemente, que virgem nos pariu, que diabo nos tentou, que judas nos traiu, que
pregos nos crucificaram, que túmulo nos esconde, que ressurreição nos espera,
Esqueceu-se dos milagres, Quer você milagre maior que este simples facto de
existirmos, de continuarmos a existir, não falo por mim, claro, Pelo andar que
levamos, não sei até quando e onde existiremos, Em todo o caso, você tem de
reconhecer que estamos muito à frente da Alemanha, aqui é a própria palavra da
Igreja a estabelecer, mais do que parentescos, identificações, nem sequer
precisávamos de receber o Salazar de presente, somos nós o próprio Cristo, Você não
devia ter morrido tão novo, meu caro Fernando, foi uma pena, agora é que Portugal
vai cumprir-se, Assim acreditemos nós e o mundo no arcebispo, O que ninguém pode
é dizer que não estamos a fazer tudo para alcançar a felicidade, quer ouvir agora o que
o cardeal Cerejeira disse aos seminaristas, Não sei se serei capaz de aguentar o
choque, Você não é seminarista, Mais uma razão, mas seja o que Deus quiser, leia lá,
Sede angelicamente puros, eucaristicamente fervorosos e ardentemente zelosos, Ele
disse essas palavras, assim emparelhadas, Disse, Só me resta morrer, Já está morto,
Pobre de mim, nem isso me resta. Ricardo Reis encheu outra chávena, A beber café
dessa maneira, você não vai dormir, avisou Fernando Pessoa, Deixe, uma noite de
insónia nunca fez mal a ninguém, e às vezes ajuda, Leia-me mais notícias, Lerei, mas
antes diga-me se não acha inquietadora esta novidade portuguesa e alemã de utilizar
Deus como avalista político, Será inquietadora, mas novidade não é, desde que os
hebreus promoveram Deus ao generalato, chamando-lhe senhor dos exércitos, o mais
têm sido meras variantes do tema, É verdade, os árabes invadiram a Europa aos gritos
de Deus o quer, Os ingleses puseram Deus a guardar o rei, Os franceses juram que
Deus é francês, Mas o nosso Gil Vicente afirmou que Deus é português, Ele é que
deve ter razão, se Cristo é Portugal, Bom, leia mais um bocado, antes de me ir
embora, Não quer cá ficar, Tenho regras a cumprir, regulamentos, no outro dia
infringi três artigos com todas as suas alíneas, Faça o mesmo hoje, Não, Então ouça
lá, agora vão de enfiada, se tiver comentários a fazer guarde-os para o fim Pio XI
condena a falta de moral de certas fitas Maximino Correia declarou que Angola é
mais portuguesa que Portugal porque desde Diogo Cão não reconheceu outra
soberania que não fosse a dos portugueses Em Olhão houve uma distribuição de pão
aos pobres no pátio do quartel da Guarda Nacional Republicana Fala-se numa
associação secreta espanhola constituída por militares Na Sociedade de Geografia por
ocasião da semana das colónias senhoras da nossa melhor sociedade ocuparam lado a
lado lugares com gente modesta Segundo o jornal Pueblo Gallego refugiaram-se em
Portugal cinquenta mil espanhóis No Tavares o salmão vende-se a trinta e seis
escudos o quilo, Caríssimo, Você gosta de salmão, Detestava, E pronto, a não ser que
queira que lhe leia as desordens e 181 agressões, o jornal está lido, Que horas são,
Quase meia-noite, Ih, como o tempo passa, Vai-se embora, Vou, Quer que o
acompanhe, Para si ainda é cedo, Por isso mesmo, Não me compreendeu, o que eu
disse é que ainda é cedo para me acompanhar lá para onde eu vou, Sou apenas um ano
mais velho que você, pela ordem natural das coisas, Que é a ordem natural das coisas,
Costuma-se dizer assim, pela ordem natural das coisas eu até deveria ter morrido
primeiro, Como vê, as coisas não têm uma ordem natural. Fernando Pessoa levantou-
se do sofá, depois abotoou o casaco, ajustou o nó da gravata, pela ordem natural teria
feito ao contrário, Então cá vou, até um dia destes, e obrigado pela sua paciência, o
mundo ainda está pior do que quando o deixei, e essa Espanha, de certeza, acaba em I
guerra civil, Acha, Se os bons profetas são os que já morreram, pelo menos essa
condição está do meu lado, Evite fazer barulho quando descer a escada, por causa da
vizinhança, Descerei como uma pena, E não bata com a porta, Fique descansado, não
ecoará o som cavo da tampa do sepulcro, Boas noites, Fernando, Durma bem,
Ricardo. Fosse por efeito da grave conversação ou por abuso do café, Ricardo Reis
não dormiu bem. Acordou algumas vezes, no sono parecera-lhe ouvir bater o seu
próprio coração dentro da almofada onde descansava a cabeça, quando acordava
deitava-se de costas para deixar de o ouvir, e depois, aos poucos, tornava a senti-lo,
deste lado do peito, fechado na gaiola das costelas, então vinham lhe à lembrança as
autópsias a que assistira, e via o seu coração vivo, pulsando angustiadamente como se
cada movimento fosse o derradeiro, depois o sono voltava, difícil, enfim profundo
quando a manhã já clareava. Ainda dormia, veio o ardina atirar-lhe o jornal às
vidraças, não se levantou para abrir a janela, em casos tais o vendedor sobe a escada,
deixa as notícias sobre o capacho, estas novas por cima, que outras, doutro dia, mais
antigas, serviam agora para aparar o terriço raspado pelo esparto na sola dos sapatos,
sic transit notitia mundi, abençoado seja quem inventou o latim. Ao lado, no recanto
do vão da porta, está a leiteirinha com a metade de meio litro diária, pendurado no
puxador o saquitel do pão, Lídia trará tudo isto para dentro, quando chegar, já depois
das onze, que hoje é dia da sua folga, mas não conseguiu vir mais cedo, à última hora
ainda Salvador a mandou limpar e arrumar três quartos, gerente abusador. Não se
demorará muito, tem de ir ver a sua abandonada mãe, saber novidades do irmão que
foi ao Porto navegando no Afonso de Albuquerque e voltou, Ricardo Reis ouviu-a
entrar, chamou com voz ensonada, e ela apareceu entreportas, ainda com a chave, o
pão, o leite e o jornal nas mãos, disse, Bom dia, senhor doutor, ele respondeu, Bom
dia, Lídia, foi assim que se trataram no primeiro dia e assim irão continuar, nunca ela
será capaz de dizer, Bom dia, Ricardo, mesmo que ele lho pedisse, o que até hoje não
fez e não fará, é 182 suficiente confiança recebê-la neste preparo, despenteado, de
barba crescida e hálito nocturno. Lídia foi à cozinha deixar o leite e o pão, voltou com
o jornal, depois saiu para preparar o pequeno-almoço, enquanto Ricardo Reis
desdobrava e abria as folhas, segurando-as cuidadosamente pelas margens brancas
para não manchar os dedos, levantando-as para não sujar a dobra do lençol, são
pequenos gestos maníacos que conscientemente cultiva como quem se rodeia de
balizas, de pontos de referência, de fronteiras. Ao abrir o jornal lembrou-se do
movimento idêntico que fizera algumas horas antes, e outra vez se lhe figurou que
Fernando Pessoa estivera ali há muito mais tempo, como se memória tão recente
fosse, afinal, uma memória antiquíssima, de dias em que Fernando Pessoa, por ter
partido os óculos, lhe pedira, Ó Reis, leia-me aí as notícias, as mais importantes, As
da guerra, Não, essas não vale a pena, leio-as amanhã, que são iguais, estava-se em
Junho de mil novecentos e dezasseis, e Ricardo Reis escrevera, há poucos dias, a mais
extensa das suas odes, passadas e futuras, aquela que começa, Ouvi contar que
outrora, quando a Pérsia. Da cozinha veio O cheiro bom do pão torrado, ouviam-se
pequenos rumores de louça, depois os passos de Lídia no corredor, traz, serena desta
vez, o tabuleiro, é o mesmo gesto profissional, só não precisa de bater à porta, que
está aberta. A este hóspede de tantas semanas pode-se perguntar sem abusar da
confiança, Então hoje deixou-se dormir, Não passei bem a noite, uma insónia dos
diabos, Se calhar andou por fora, deitou-se tarde, Antes fosse, ainda não era meia-
noite quando me deitei, nem saí de casa, acreditará Lídia, não acreditará, nós sabemos
que Ricardo Reis diz a verdade. O tabuleiro está sobre os joelhos do hóspede do
duzentos e um, a criada deita o café e o leite, aproxima as torradas, a compota,
rectifica a posição do guardanapo, e então é que diz, Hoje não posso ficar muito
tempo, dou aí uma arrumação e depois vou-me, quero ver a minha mãe, ela já se
queixa de que eu nunca apareço, ou passo de fugida, até me perguntou se arranjei
namorado e se é para casar. Ricardo Reis sorri, contrafeito, não tem nada para
responder, certamente não esperaríamos que dissesse, Namorado já tu aqui tens, e
quanto ao casamento, ainda bem que falas nisso, um destes dias teremos de falar no
nosso futuro, limita-se a sorrir, a olhar para ela com uma expressão subitamente
paternal. Lídia retirou-se para a cozinha, não levava qualquer resposta, se a esperara,
saíram-lhe sem querer aquelas palavras da boca, nunca a mãe lhe falara em noivos e
namorados. Ricardo Reis acabou de comer, empurrou o tabuleiro para os pés da cama,
recostou-se a ler o jornal, A grande parada corporativa mostrou que não é difícil
realizar entre patrões e operários um entendimento honesto e bem intencionado,
prosseguiu a leitura sisudamente, dando pouca atenção ao peso dos argumentos, em
seu íntimo não sabia se estava de acordo ou duvidava, 183 O corporativismo, o
enquadramento das classes no ambiente e no espaço que a cada uma pertencer são os
meios próprios para transformar as sociedades modernas, com esta receita de um novo
paraíso terminou a leitura do artigo de fundo, depois, de olhos incertos, passou às
notícias do estrangeiro, Amanhã realiza-se em França o primeiro escrutínio das
eleições legislativas, As tropas de Badoglio preparam-se para retomar o avanço sobre
Addis-Abeba, foi neste momento que Lídia apareceu à porta do quarto, de mangas
arregaçadas, a querer saber, Viu ontem o balão, Qual balão O zepelim, passou mesmo
por cima do hotel, Não vi, mas estava vendo agora, na página aberta do jornal, o
gigantesco, adamastórico dirigível, Graf Zeppelin, do nome, o título do seu construtor,
conde Zeppelin, general e aeronauta alemão, ei-lo a sobrevoar a cidade de Lisboa, o
rio, as casas as pessoas param nos passeios, saem das lojas, debruçam-se das janelas
dos eléctricos, vêm às varandas, chamam uma pelas outras para partilharem a
maravilha, um espirituoso diz inevitavelmente, Ó patego olha o balão, em preto e
cinza retratou-o o jornal, Traz aqui a fotografia, informou Ricardo Reis, e Lídia
aproximou-se da cama, tão chegado que mal parecia não lhe cingir ele as ancas com o
braço livre, o outro segurava o jornal, ela riu, Esteja quieto depois disse, Tão grande,
aí ainda parece maior que a natural, e aquela cruz que leva atrás, Chamam-lhe gamada
ou suástica, É feia, Olha que já houve muita gente que a achava a mais bonita de
todas, Parece uma aranha, Havia religiões no oriente para quem esta cruz representava
a felicidade e a salvação, Tanto, Tudo, Então por que é que a puseram no rabo do
zepelim, O dirigível é alemão, e suástica é hoje o emblema da Alemanha, Dos nazis,
Que é que tu sabes disto, Foi o meu irmão que me contou, teu irmão marujo, Sim, o
Daniel, não tenho outro, Ele já voltou do Porto, Ainda não o vi, mas já voltou, Como
é que sabes, O barco dele está em frente do Terreiro do Paço, conheço-o bem, Não te
queres deitar, Prometi a minha mãe que ia lá almoçar, se me deito chego atrasada Só
um bocadinho, vá, depois deixo-te ir, a mão de Ricardo Reis desceu até à curva da
perna, levantou a saia, passou acima da liga, tocou e acariciou a pele nua, Lídia dizia
Não, não, mas começava a ceder, tremiam-lhe os joelhos foi então que Ricardo Reis
percebeu que o seu sexo não reagia, que não iria reagir, era a primeira vez que lhe
acontecia o temido acidente, sentiu-se tomado de pânico, lentamente retirou a mão,
murmurou, Põeme a água a correr, quero tomar banho, ela não compreendeu,
começara a desapertar o cós da saia, a desabotoar a blusa, e ele repetiu, numa voz que
de súbito se tornara estridente, Quero tomar banho, pôs-me a água a correr, atirou o
jornal para o chão, enfiou-se bruscamente pelos lençóis abaixo e voltou-se para a
parede, quase derrubou o tabuleiro do pequeno-almoço. Lídia olhava-o desconcertada,
Que foi que eu fiz, pensou, eu até me ia deitar, mas ele continuava de costas viradas,
as mãos, que ela não podia ver, tentavam 184 excitar o sexo desmaiado, mole, oco de
sangue, vazio de vontade, e inutilmente se esforçavam, agora com violência, ou raiva,
ou desespero. Retirou-se Lídia tristíssima, leva consigo o tabuleiro, vai lavar a louça,
vai-la lavar alva, mas antes acende o esquentador, põe a água a correr para a tina,
experimenta a temperatura à saída da torneira, depois passa as mãos molhadas pelos
olhos molhados, Que foi que eu lhe fiz, se eu até me ia deitar, há desencontros assim,
fatais, tivesse-lhe ele dito, Não posso, estou maldisposto, e ela não se importaria,
mesmo não sendo para aquilo talvez se deitasse, que dizemos nós, deitar-se-ia de
certeza, em silêncio o confortando naquele grande medo, porventura teria a
comovente lembrança de suavemente pousar a mão sobre o sexo dele, sem intenção
picante, apenas como se dissesse, Deixe lá, não é morte de homem, e, serenamente,
ambos adormeceriam, já esquecida ela de que a mãe estava à sua espera com o
almoço na mesa, a mãe que por fim diria ao filho marinheiro, Vamos nós almoçar,
que a tua irmã, agora, não se pode contar com ela, não parece a mesma, são assim as
contradições e injustiças da vida, aí está Ricardo Reis que não teria nenhuma razão
para pronunciar aquelas últimas e condenatórias palavras. Lídia apareceu à porta do
quarto, já pronta para sair, disse, Até para a semana, ela vai infeliz, ele infeliz fica ela
sem saber que mal terá feito, ele sabendo que mal lhe aconteceu. Ouve-se a água
correr, cheira ao vapor quente que se expande pela casa, Ricardo Reis ainda se deixa
ficar alguns minutos deitado, sabe que é imensa aquela tina, mar mediterrâneo quando
cheia, enfim levanta-se, lança o roupão pelas costas, e, arrastando os chinelos, entra
na casa de banho, olha o espelho embaciado onde felizmente não pode ver-se, essa
devia ser, em certas horas, a caridade dos espelhos, então pensou, Isto não é morte de
homem, acontece a todos, algum dia tinha de me acontecer a mim, qual é a sua
opinião, senhor doutor, Não se preocupe, vou-lhe receitar umas pílulas novas que lhe
resolverão esse pequeno problema, o que é preciso é não se pôr a empreender no caso,
saia, distraia-se, vá ao cinema, se realmente foi esta a primeira vez, até pode
considerar-se um homem de sorte. Ricardo Reis fechou a torneira, despiu-se,
temperou com alguma água fria o grande lago escaldante e deixou-se mergulhar
devagarinho, como se renunciasse ao mundo do ar. Abandonados, os membros eram
impelidos para a superfície, boiavam entre duas águas, também o sexo murcho se
movia, preso, como uma alga, pela sua raiz, acenando, agora não ousava Ricardo Reis
levar a mão até ele, tocar-lhe, olhava-o apenas, era como se não lhe pertencesse, qual
a qual, é ele meu, ou eu é que sou dele, e não procurava a resposta, perguntar já era
angústia bastante. Foi três dias depois que Marcenda apareceu no consultório. Dissera
à empregada que queria ser atendida em último lugar, aliás não vinha como doente,
Peço-lhe que diga ao 185 senhor doutor que está aqui Marcenda Sampaio, mas só
quando não houver mais doentes, e meteu-lhe no bolso uma nota de vinte escudos,
chegado o momento foi a empregada com o recado, já Ricardo Reis despira a bata
branca, hábito quase talar que mal lhe dava pelo meio da perna, por isso não era nem
seria sumo-sacerdote desta religião sanitária, apenas sacristão, para despejar e lavar as
galhetas, para acender as velas, e apagá-las, para lavrar as certidões, de óbito, claro
está, algumas vezes sentira uma difusa pena, um desgosto, de não se ter especializado
em obstetrícia, não por serem esses órgãos os mais íntimos e preciosos da mulher,
mas por neles se fazerem os filhos, dos outros, servem estes de compensação quando
os nossos faltam ou não os conhecemos. Ouviria bater os novos corações do mundo,
algumas vezes poderia receber nas mãos os sujos, peganhentos animaizinhos, entre
sangue e muco, entre lágrimas e suor, ouvir-lhes o primeiro grito, aquele que não tem
significado, ou tem-no, e não sabemos. Tornou a vestir a bata, mal atinando com as
mangas, subitamente torcidas, mal talhadas, hesitou se deveria receber Marcenda à
porta, ou esperá-la por trás da secretária, com a mão profissionalmente pousada sobre
o simpósio, fonte de toda a sabedoria, bíblia das dores, acabou por se aproximar da
janela que dava para o largo, para os olmos, para as tílias floridas, para a estátua do
mosqueteiro, ali é que gostaria de receber Marcenda, se não fosse absurdo o
comportamento, dizer-lhe, É primavera, veja que engraçado, aquele pombo em cima
da cabeça do Camões, os outros pousados nos ombros, é a única justificação e
utilidade das estátuas, servirem de poleiro aos pombos, porém as conveniências do
mundo têm mais força, Marcenda apareceu à porta, Faz favor de entrar, dizia
mesureira a empregada, subtil pessoa, muito competente na arte de distinguir posições
sociais e níveis de riqueza, Ricardo Reis esqueceu-se dos olmos, das tílias, os pombos
levantaram voo, alguma coisa os assustou ou deu-lhes o apetite de mexer as asas, de
voar, na praça de Luís de Camões a caça está proibida todo o ano, fosse esta mulher
pomba e não poderia voar, asa ferida, Como tem passado, Marcenda, muito prazer em
vê-la, e seu pai, como está, Bem, muito obrigada, senhor doutor, ele não pôde vir,
manda-lhe cumprimentos, assim instruída a empregada retirou-se, fechou a porta. As
mãos de Ricardo Reis ainda apertam a mão de Marcenda, ficaram ambos calados, ele
faz um gesto a apontar uma cadeira, ela senta-se, não tirou a mão esquerda do bolso,
até a empregada do consultório, apesar do seu agudíssimo olhar, juraria que aquela
senhora que entrou agora no gabinete do doutor Ricardo Reis é pessoa sem defeito, e
nada feia, por sinal, só um bocadinho magra, mas, sendo tão nova, até lhe fica bem,
Então, dê-me notícias da sua saúde, disse Ricardo Reis, e Marcenda respondeu, Estou
como estava, o mais provável é que não volte ao médico, pelo menos a este de Lisboa,
Não há nenhum indício de reanimação, de movimento, nenhuma alteração da 186
sensibilidade, Nada que valha o trabalho de defender a esperança, E o coração, Esse
funciona, quer ver, Não sou o seu médico, Mas agora é especialista de cardiologia,
tem outros conhecimentos, posso consultá-lo, Não lhe fica bem a ironia, limito-me a
fazer o melhor que sei, e é pouco estou apenas a substituir temporariamente um
colega, expliqueilho na minha carta, Numa das suas cartas, Faço de contas que não
recebeu a outra, que ela se perdeu no caminho, Arrependeu-se de a ter escrito, A mais
inútil coisa deste mundo é o arrependimento, em geral quem se diz arrependido quer
apenas conquistar perdão e esquecimento; no fundo, cada um de nós continua a prezar
as suas culpas, Também eu não me arrependi de ter ido a sua casa nem me arrependo
hoje, e se é culpa ter-me deixado beijar se é culpa ter beijado, prezo igualmente essa
culpa, Entre nós não houve mais que um beijo, que é um beijo, não é nenhum pecado
mortal, Foi o meu primeiro beijo, talvez seja por isso que não me arrependo, Nunca
ninguém me beijou antes, Foi o meu primeiro beijo, Daqui a pouco são horas de
fechar o consultório, não quer vir a minha casa, estaríamos mais à vontade para
conversar, Não, Entraríamos separados, com grande intervalo, não a comprometeria,
Prefiro estar aqui o tempo que puder, Eu não lhe faria mal, sou um homem sossegado,
Que quer dizer esse sorriso, Nada de especial, apenas confirma o sossego de homem,
ou, se quer que lhe fale com mais exactidão, eu diria que há em mim, presentemente,
um sossego total, as águas dormem, foi isso o que meu sorriso quis explicar. Prefiro
não ir a sua casa, prefiro estar aqui a conversar, faça de conta que sou uma sua doente,
De que se queixa então, Desse sorriso gosto mais, Também eu, do outro nem eu
próprio gostava. Marcenda retirou a mão esquerda do bolso, acomodou-a no regaço,
pôs sobre ela a outra mão, parecia que ia principiar a expor os seus males, Imagine o
senhor doutor, calhou-me em sorte este braço, já tinha na vida um coração
desacertado, porém de todas estas palavras só aproveitou três, A vida é um desacerto
de sortes, morávamos tão longe um do outro, tão diferentes as idades, os destinos,
Está a repetir o que escreveu na sua carta, É que eu gosto de si, Ricardo, só não sei
quanto, Um homem, quando chega a esta altura, fica ridículo a fazer declarações de
amor, A mim soube-me bem lê-las, e sabe-me bem ouvi-las, Não estou a fazer
nenhuma declaração de amor, Está, Estamos a trocar vénias, ramalhetes de flores, é
verdade que são bonitas, as flores, mas já vão cortadas, mortas, elas não o sabem e
nós fingimos que não sabemos, Ponho as minhas flores na água e fico a olhar para
elas enquanto lhes durarem as cores, Não terá tempo de cansar os olhos, Agora estou
a olhar para si, Não sou nenhuma flor, É um homem, sou capaz de perceber a
diferença, Um homem sossegado, alguém que se sentou na margem do rio a ver
passar o que o rio leva, talvez à espera de se ver passar a si próprio na corrente, Neste
momento, creio que é a mim que está a ver, di-lo a expressão dos seus olhos, É 187
verdade, vejo-a a afastar-se como um ramo florido e um pássaro cantando em cima
dele, Não me faça chorar. Ricardo Reis foi até à janela, entreabriu a cortina: Não
havia pombos pousados na estátua, voavam em círculos rápidos sobre a praça,
estonteantes, como um vórtice. Marcenda aproximara-se também, Quando eu para cá
vim, havia um pombo pousado no braço, junto ao coração, Fazem muito isso, é um
lugar abrigado, Daqui não se vê, Está de costas voltadas para nós. A cortina tornou a
fechar-se. Afastaram-se da janela, e Marcenda disse, Tenho de ir. Ricardo Reis
segurou-lhe a mão esquerda, levou-a aos lábios, depois bafejou-a muito devagar como
se estivesse a reanimar uma ave transida de frio, no instante seguinte era a boca de
Marcenda que ele beijava, e ela a ele, segundo e já voluntário beijo, então como uma
alta cascata, trovejando, o sangue de Ricardo Reis desce às profundas cavernas,
metafórico modo de dizer que se ergue o seu sexo, morto afinal não estava, bem que
eu lhe tinha dito que não se preocupasse. Sentiu-o Marcenda, por isso se afastou, para
tornar a senti-lo se aproximou outra vez, e juraria que não se fosse interrogada,
virgem louca, mas as bocas não se tinham separado, enfim ela gemeu, Tenho de ir,
saiu-lhe dos braços, sem forças sentou-se numa cadeira, Marcenda, case comigo, disse
Ricardo Reis, ela olhou-o, subitamente pálida, depois disse, Não, muito devagar o
disse, parecia impossível que uma palavra tão curta levasse tanto tempo a pronunciar,
muito mais tempo do que as outras que disse depois, À noite, que entra, não pertence,
Lídia,Durante alguns minutos ficaram calados, pela terceira vez Marcenda disse, Tenho
de ir, mas agora levantava-se e caminhava para a porta, ele seguiu-a, queria retê-la,
mas ela já estava. no corredor, ao fundo aparecia a empregada, então Ricardo Reis em
voz alta, Eu acompanho-a, e assim fez, despediram-se apertando as mãos, ele disse,
Os meus cumprimentos a seu pai, ela falou doutra coisa, Um dia, e não acabou a frase,
alguém a continuará sabe-se lá quando e para quê, outro a concluirá mais tarde e em
que lugar, por enquanto é isto apenas, Um dia. A porta está fechada, a empregada
pergunta, O senhor doutor ainda precisa de mim, Não, Então, se me dá licença, já toda
a gente saiu, os outros senhores doutores também, Eu ainda fico uns minutos, preciso
de arrumar uns papéis, Boas tardes, senhor doutor, Boas tardes, menina Carlota, era
este também o seu nome. Ricardo Reis voltou ao gabinete, afastou a cortina.
Marcenda ainda não chegara ao fundo da escada. A penumbra do fim da tarde cobria
o largo. Os pombos recolhiam-se aos altos ramos dos olmos, em silêncio, como
fantasmas, ou sombras doutros pombos que naqueles mesmos ramos tivessem descido
em anos passados, ou nas ruínas que neste lugar houve, antes que se limpasse o
terreno para fazer a praça e levantar a estátua. Agora Marcenda atravessa o largo na
direcção da Rua do Alecrim, volta-se para ver se o pombo ainda está pousado no
braço de Camões, e pois entre os ramos floridos das tílias distingue 188 um vulto
branco por trás das vidraças, se alguém deu por estes movimentos não terá entendido
o sentido deles, nem sequer Carlota, que aí se metera num vão de escada, à espreita,
por desconfiança de que a visitante voltará ao consultório para conversar à vontade
com o doutor, não seria mal pensado, mas Marcenda não se lembrou de tal, e Ricardo
Reis não chegou a perguntar a si mesmo se por essa razão se tinha deixado ficar.

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