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Esse Espaço Entre

Livro sobre a produção recente do artista visual carioca Davi Pereira; com textos críticos de Mônica Coster e Rayssa Veríssimo, texto poético e imagens de trabalhos de Davi Pereira.
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Esse Espaço Entre

Livro sobre a produção recente do artista visual carioca Davi Pereira; com textos críticos de Mônica Coster e Rayssa Veríssimo, texto poético e imagens de trabalhos de Davi Pereira.
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esseespaço entre

Davi Pereira
Com o pulmão nas mãos 1

por Mônica Coster

Quando respiramos, o ar escala nossa


cavidade nasal como se ela fosse uma montanha.
Subida e descida para entrar, subida e descida para
sair. Esse é um caminho conhecido. O ar o percorre
todo dia, toda hora, todo segundo. Podemos pensar
na respiração como um constante subir e descer; um
ininterrupto movimento em aclive e declive; uma
repetida atividade de esforço e alívio.
Se fôssemos traçar o caminho que o ar percorre
em nosso corpo, o desenho seria parecido com um U
ao contrário. Essa é a forma que Davi Pereira usa para
transpor sua respiração para o papel: sem tirar a
caneta da folha, ele faz um risco curvo a cada
inspiração e outro a cada expiração. Num contínuo
vaivém, o artista sobe e desce a linha repetidas vezes
pelo mesmo arco acompanhando seu próprio ritmo
respiratório. Enquanto respira, ele risca. A linha se
torna o ar e o papel, o corpo.
Davi me explica que o trabalho é uma coleção
de desenhos pertencentes à Série Sísifo. O mito grego
de Sísifo conta a história do “herói absurdo” que, por
ter contrariado os deuses, foi condenado ao trabalho
inútil de rolar eternamente uma pedra até o alto de
uma montanha. Toda vez que chega ao topo, Sísifo
desce para rolar novamente a mesma pedra. Mas
a Série Sísifo incide sobre a releitura de Abert Camus
do mito. Para ele, a questão deixa de ser o trabalho
árduo e eterno de Sísifo e se torna o modo que o herói
encontra de escapar do sofrimento, dentro da
condenação. Sísifo aprende a abolir a esperança de
que a tarefa chegará ao fim e passa a viver apenas o
momento presente. Ele é dono de si a cada instante
em que trabalha, e o faz através da consciência de seu
corpo: “Mesmo se, em toda parte, a razão debate-se
com as paredes, Camus revela que há uma saída para
que o homem e a terra se encontrem. Este
encontro acontece através do corpo que, sendo
igualmente matéria, pertence mais intimamente à
terra […]”[1]. Sísifo se funde à pedra que carrega
através do que Joseph Beuys chama de “unidade
temporária” entre corpo e alma. Para Beuys, que
interpreta o texto do autor francês, o mito é uma
alegoria ao sofrimento do homem que não se vê como
pertencente à terra.
Vinculado a Sísifo através da repetição, Davi
repete com vontade: os desenhos retomam a
consciência de sua respiração e o pulmão o resgata
para o momento presente em que risca o papel.
Agora, Sísifo desce aliviado e medita no meio de seu
castigo. Pergunto: as obras de arte também são
capazes de formar “unidades temporárias” com a
terra e com o corpo? É possível um trabalho de arte
ser tão colado ao corpo (assim como Sísifo é tão
colado à pedra) a ponto de dispensar qualquer
resquício da razão do público e dê artista? E ainda:
diante do império dos objetos estéticos, das
mercadorias de arte, é possível que um trabalho seja
sempre presente, incessantemente presente (e aqui,
oponho o presente à razão), como é a respiração?
Na medida em que os gestos de respirar e
desenhar se fundem e o movimento das mãos no
papel respondem ao ritmo do pulmão, os desenhos
da Série Sísifo são registros de um tempo vivido. Ou
melhor, de um tempo respirado. Eles se mostram para
nós, público, no aqui e agora, como experiências de
quem sabe usar o aqui e agora como matéria para o
próprio trabalho. “Minha vida é o tempo da vida, o
tempo da vida é tempo da arte”[2], explica Tehching
Hsieh, quando Davi o pergunta sobre suas
performances. Da mesma forma, seus desenhos são
um atestado de que o corpo apenas vive e que viver é
ferramenta suficiente.
Em uma entrevista de 1977, intitulada Sobre
desenho, o artista norte-americano Richard Serra diz
que: “O pensamento não é o modelo. A experiência
no desenho não é obtida por meio da linguagem. […]
O desenho é uma maneira pela qual eu levo adiante
um monólogo interior com o ato de fazer no momento
exato em que é feito”[3]. Serra menciona ainda a
relação entre desenhar e se concentrar de maneira
contínua e profunda, e diz que “o desenho é uma
forma de meditação”. Para ele, o ato de desenhar está
ligado a um exercício de continuidade presentificada
com o mundo assim como, de certa forma, a
libertação de Sísifo. O desenho é entendido mais
como um momento do que como um objeto e, por isso,
desenhar pode ser uma tarefa sem fim. Ela é uma
experiência em curso através da qual o corpo pode
existir enquanto desenho, no momento justo em que
se desenha.
Diante dessa ferramenta de “fazer no momento
exato em que é feito”, Davi libera sua respiração para
que ela e o desenho sejam indistintos no momento do
traço. Mas, isso seria o bastante para dizermos que o
desenho é vivo? Posso pensar então que é a
respiração de Davi que acompanha o desenho, e não
o contrário. O desenho que dá ritmo ao corpo, é ele
que manda no pulmão e, por isso, manter a caneta no
papel se torna essencial. Tirá-la significaria morrer
(sucumbir ao sofrimento eterno). Com o pulmão
controlado pelas mãos, o artista delega sua respiração
ao trabalho, deixa-se controlar por ele. “We all begin
in life because someone once breathed for us”[4],
escreve NourbeSe Philip no ensaio Ga(s)p. Ela diz que
a respiração é circular e passível de ser transmitida: “I
can’t breath; I will breath for you”. Um trabalho de
arte pode respirar por mim? Os desenhos da Série
Sísifo se parecem com mapas para a respiração. Eles
dão o comando do ar, eles dizem: “Respire! Respire
comigo![5]”, e demonstram, no papel, o mesmo exato
movimento que o corpo faz enquanto os observa, no
aqui e agora.

[1] Retirado do ensaio Camus – O mito de Sísifo, de


Joseph Beuys (tradução de Alexandre Sá e Davi
Pereira), publicado em 2019 na Revista Concinnitas:
https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/concinnitas/article/v
iew/47983, Acessado em 27 ago. 2021.
[2] Retirado de Entrevista com Tehching
Hsieh, realizada por Davi Pereira, publicada em 2021
na Revista Concinnitas:
https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/concinnitas/article/v
iew/58535/38079, acessado em 27 ago. 2021.
[3] Retirado de Sobre desenho: uma entrevista, com
Richard Serra, realizada por Lizzie Borden, publicada
no livro Richard Serra: escritos e entrevistas 1967-
2013, São Paulo: IMS, 2014, p. 50.
[4] Retirado do ensaio Ga(s)p, de M. NourbeSe Philip.
Publicado em 2020
em https://www.nourbese.com/gasp/, acessado em
27 ago. 2021.
[5] Respire comigo é um trabalho de 1966 da artista
Lygia Clark, onde o público é convidado a manipular
um cano sanfonado de
borracha. https://www.moma.org/audio/playlist/18
1/2399, acessado em 27 ago. 2021.
Com o pulmão nas mãos 2

por Mônica Coster

“Moça, ele tá pagando promessa?” Foi o que


me perguntou uma estudante do 2⁰ ano do ensino
médio, sobre a performance "Série sísifo", de Davi
Pereira, realizada nas dependências do Colégio Pedro
II, Campus Engenho Novo, Rio de Janeiro, durante o
evento Efêmera – semana de arte contemporânea.
Vemos Davi, um homem descalço andando
vagarosamente durante 4h30 pelos corredores da
escola. Ele realiza um percurso circular: começa no
hall de entrada do colégio, sobre dois lances de
escada pela lateral direita até o último andar, cruza o
edifício pelo corredor superior e desce dois lances de
escada pela lateral esquerda, passando novamente
pelo hall de entrada e reiniciando o trajeto. No total,
são quatro lances de escada, subida e descida,
percorridos sem pausa. Vemos seu corpo se mover
incessantemente pelo colégio, calado e constante, em
meio aos estudantes, que entram e saem das salas na
troca das aulas, entre as vozes dos professores,
inspetores e faxineiros.
Talvez, o que tenha despertado a associação
da estudante com o pagamento de uma promessa
tenha sido seus pés descalços subindo as escadas.
Talvez, tenha sido sua figura um tanto fantasmagórica,
vagando compenetrada pelos corredores, alheia ao
fluxo da escola. Ou mesmo, o estado exaurido de seu
corpo – quem se moveria até a total exaustão, até as
pernas falharem, senão por agradecimento ou
obrigação?
Obrigação, aliás, é o que faz Sísifo,
personagem da mitologia grega, subir e descer sem
pausa uma mesma montanha. Castigado por ter
mentido para os deuses, Sísifo é obrigado a carregar
uma pedra para o alto de uma montanha por toda a
eternidade. Seu esforço não tem outro objetivo além
da realização do trabalho em si mesmo. A referência
ao mito, que dá nome à performance, nos instiga a
pensar na ação de Davi como uma forma de encarnar
o personagem grego, ou mesmo experimentar no
corpo sua punição. O artista, porém, não obedece aos
deuses, mas à liturgia de sua própria performance,
como se essa lhe fosse a verdadeira ordem superior
divina:

O artista subirá as escadas do prédio principal que


dá acesso às salas de aula, começando pela direita,
até o último andar, atravessando todo corredor e
descendo pelo outro lado até o térreo, reiniciando
a subida. A performance deve terminar com a
exaustão física do artista e, obrigatoriamente, na
descida das escadas. Não haverá pausa no
percurso, podendo apenas ocorrer aumento ou
diminuição do ritmo. [1]

Sua promessa está em não trair a si mesmo,


em ser comprometido com a caminhada a qual se
propôs realizar. Contudo, essa tarefa é impossível pois,
diferente de Sísifo, Davi tem um corpo e este
invariavelmente falhará. Seu corpo físico – seu pulmão
e suas pernas – são o limite que o impede de chegar à
eternidade. O que se quer alcançar aqui é a repetição,
mas também seu fim. Repetir até o corpo falhar, até
ser impossível repetir.
Guiar-se por uma partitura (uma norma) e
assumir estados físicos extenuantes são estratégias
performáticas que assinalam os protocolos corporais
subliminares aos quais estamos cotidianamente
submetidos. Aqui, precisamos fornecer um dado
importante: Davi estudou nesse mesmo Colégio
durante toda sua vida escolar. Morador do engenho
novo, ele subiu e desceu aquelas mesmas escadas
durante mais de dez anos. Vinte anos depois, de volta
à escola na condição de artista, ele refaz o caminho
tantas vezes percorrido por ele no passado e por
tantos outros estudantes. Subir e descer as escadas
como memória corporal do tempo vivido ou como
marca do automatismo da rotina escolar. O colégio
afinal também tem suas normas e protocolos, sinais,
horários e uniforme. E a vivência escolar também tem
suas raízes na repetição e na obediência.
Mas, é também curiosa a relação proposta
entre a exaustão física do corpo e o ambiente escolar.
"Admite-se facilmente que há perigo nos exercícios
físicos extremos, mas o pensamento também é um
exercício extremo [...]" [2]. E se a escola é um dos
lugares onde pode se praticar o exercício extremo e
perigoso do pensamento, é talvez na exaustão física
do corpo do performer – quando sua performance
finalmente se encerra – que acontece o perigo de
deixar de ser Sísifo, de não mais estar preso
repetidamente às mesmas formas de pensar, de
liberar-se da condenação de refletir eternamente
sobre as mesmas coisas e questões.
As possibilidades de ser Sísifo e de deixar de
ser Sísifo exprimem os estados de confinamento e ao
mesmo tempo de leveza dentro do confinamento,
presentes no trabalho de Davi Pereira. Por meio da
repetição e do esforço – talvez suas principais
ferramentas de trabalho – ele vai nos revelando as
possibilidades de existência dentro de sistemas
viciados de pensamento e trabalho. Colocando seu
corpo à prova, sua promessa consigo mesmo talvez
seja a de nunca deixar de correr os riscos necessários
para manter-se vivo.

[1] Texto fornecido pelo artista.


[2] DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1990 (p. 129).
O imperceptível sensível

Por Rayssa Veríssimo

Davi Pereira se interessa pelo ordinário, logo


as substâncias mais elementares são sua principal
matéria, como a respiração. Um movimento
naturalmente autônomo e condição da vitalidade que
se revela em contrastes. Subindo e descendo;
entrando e saindo; comprimindo e dilatando, o ar está
em constante refluxo dentro do nosso corpo. Isso,
“refluxo”: algo que não denota um simples retrocesso.
Existe o retorno, quando podemos voltar no caminho
e existe o refluxo, algo como um retorno pelo
esgotamento, ou seja, um movimento desgastante em
constante reprodução de si. Para o dicionário,
“refluxo” seria um movimento de oposição. O que
proponho aqui é que olhemos para Davi como aquele
que, assim como o refluxo, opera o esgotamento,
através do contraste e da repetição, como
procedimento para esgarçar o ordinário e dele tornar
sensível o imperceptível.
São diversas as suas formas de explorar esse
esgotamento. Em A nona parte de um ovo ou beba
água com açúcar e vá dormir (2011), Davi limita sua
alimentação a curtas frações de quantidade por um
período de 24 horas, como quem desafia a própria
função vital. Em Utopias possíveis, paz (2010), ele
torna o símbolo da paz elemento de flagelação do seu
próprio corpo. São pequenas ações do tamanho do
absurdo, como se o elemento mínimo pudesse
provocar o limite: uma pequena fração de comida para
um longo tempo; o esforço máximo para a
consequência mínima; o gesto mínimo para a utopia.
Sabemos que Davi não vai consumir a vida nem
encontrar a paz, porque o limite só o interessa
enquanto possibilidade, ou seja, enquanto a ação está
em seu estado de momento. É no esgarçamento, no
desenvolvimento da ação (o processo), em que
acontecem os fenômenos de Davi, como o contraste
e a repetição que provocam o esgotamento.
Na Série Sísifo, desenvolvida entre 2019 e
2021, Davi desenha conforme sua respiração. Em um
único traço, ele repete consciente e continuamente os
momentos de inspiração e expiração, entrada e saída
do ar. São movimentos contrastantes e repetitivos.
Davi pode até cessar o movimento pendular
respiratório, mas sua linha parece estar condenada à
eterna repetição, assim como os passos de Sísifo. O
desenho ganha uma forma montanhosa, com subida
e descida; ida e vinda, como uma onda que não tem
vale, mas apenas crista. É um movimento que se
esgota em si através da repetição, uma caminhada que
aproveita as antípodas montanhosas para nunca
chegar, mas estar sempre a continuar. O encontro
entre as linhas faz com que seu vértice seja sempre a
continuação do movimento, embora Davi não esteja
mais ali respirando. Em outras palavras, é como o
movimento de refluxo do ar, do qual o artista
aproveita o contraste como dispositivo para provocar
a repetição e esgotar sua própria matéria, a
respiração. É nesse sentido que o ordinário toma seu
estado de esgotamento, pois a repetição e os
contrastes permitem esgarçar o sensível. É durante
esse processo que notamos uma propriedade de Davi:
o ritmo.
Em Desvio respiratório (2020), ele desloca
repetidamente sua traqueia. Sua expressão é fria, os
olhos permanecem fechados e a agonia prevalece em
quem assiste. Suas mãos alternam a traqueia entre a
esquerda e a direita, formando laterais semicirculares.
Os movimentos executados repetidamente tornam o
vídeo quase um looping: ele chega ao fim, mas o
movimento é contínuo como se desejasse a eterna
reprodução de si. As mãos são precisas e se movem
em um ritmo compassado, tanto quanto as linhas que
acompanham sua respiração na Série Sísifo.
Se analisarmos as pausas, encontraremos os
compassos de Davi. Na Série Sísifo, por exemplo,
percebemos os espaços entre as linhas e a distância
entre os arcos, como se o diâmetro fosse do tamanho
do tempo. Em Desvio respiratório, o intervalo marca o
ritmo do movimento, como se a caminhada sem
chegada tivesse o tempo como trajetória. Em seus
trabalhos que alçam o balão até o céu, o ritmo
também aparece como propriedade: Davi dá corda à
linha em compassos de pausas para que ela resista ao
vento. Nesse sentido, seu ritmo corresponde a um
intervalo de duração, como um estado de momento,
algo que não se pode mensurar, mas apenas intuir.
Em Respirar no topo da montanha (2021),
Davi imerge um balão de gás hélio no oxigênio
atmosférico. É uma outra propriedade da sua obra: a
invisibilidade. São 200 metros de invisibilidade que
nos põem a fraturar o horizonte: linha branca, balão
transparente, ar capturado em meio ao ar livre. Davi
não quer aparecer porque sua matéria é o ordinário.
São 200 metros que desafiam a vontade de respirar
para crescer em direção à altitude rarefeita. Enquanto
estende a linha, ele sente a vibração do ar e fratura o
vento. Sua mão dá corda ao balão e o ar passa pela
linha em vibrações de refluxo, uma intermitência
entre o ir e o voltar. Quase como um desejo da utopia
de encostar no céu, não vemos o retorno do balão, ou
seja, o céu não precisa ser tocado, mas o voo precisa
acontecer. Em seus registros, permanece apenas a
vontade de partir para o impossível.
Inspirando e expirando, descendo e subindo
escadas, caindo e levantando. Não importa qual ação,
Davi transforma o processo em uma repetição de
contrastes desgastantes (o refluxo). O processo é o
próprio o esgotamento de si, assim como Francis Alÿs
percorre as ruas do México com um bloco de gelo por
quase dez horas consecutivas. O caminho para Alÿs
pouco importava, mas ele tirou do ordinário o esforço
máximo para a consequência mínima, como indica o
título do trabalho Algumas vezes fazer algo não leva a
nada, de 1997, da série Paradoxos da prática. Apesar
das diferenças entre seus trabalhos, Alÿs e Davi se
encontram nesse caminho do refluxo do ordinário.
Seja a água ou o ar, o material é ordinário.
Apesar do gesto mínimo, eles se esforçam como se
desejassem a utopia, aquilo que é impossível: assim
como a utilidade é para Alÿs, o céu é para Davi. Eles
sabem que não podem alcançar o utópico, pois é o
processo que permite tornar o imperceptível sensível.
O limite para eles só interessa enquanto uma
possibilidade, por isso a falência é aceita, como quem
sonhou e acordou ou como “escravos cardíacos das
estrelas”, nas palavras de Álvaro de Campos, em
Tabacaria. Alÿs reconhece a inutilidade de seus
passos e Davi sabe que nunca vai alcançar o céu.
Apesar disso, ele insiste em alçar seu balão à altura,
como se a altitude pudesse desafiar a respiração.
Aqui a utopia é um limite que não precisa ser
superado, mas sim esgarçado. Chegar a um resultado
seria propor uma compreensão ou uma completude,
por isso Davi explora o processo que, é claro, só existe
em função da possibilidade do resultado. É pela
suspensão do limite que ele se põe em refluxo: o limite
não é alcançado porque a repetição da ação faz com
que o esgotamento anteceda o resultado, provocado
através dos contrastes. O esgarçamento é então o
desenvolvimento desse processo, em outras palavras,
é a ação em seu estado de momento. É a duração do
respirar, do desenhar, do mover a traqueia, do alçar o
balão: Davi suspende o resultado para esgarçar o
ordinário.
Esse estado de momento se alarga em
espaços de tempo onde a repetição e o esgotamento
acontecem. É nesse intervalo onde o trabalho de Davi
se realiza, como um momento alargado onde o limite
inexiste, assim como o caminho sem chegada que só
possui trajetória. Isso é o entre, aquilo que dá nome
ao trabalho esse espaço entre (2022). O entre é o
espaço do acontecimento e do processo, é aqui que
Davi respira, desenha, alça e desloca. É o entre que
permite o ordinário ser explorado. O entre é a mínima
distância do limite, é a unidade infinitesimal da
possibilidade, logo é onde o imperceptível se percebe,
tal como a respiração se revela em Davi.
.
Esse Espaço Entre

Por Davi Pereira

Exú pediu à menina que escrevesse todos os


seus desejos, da forma mais específica possível, em
uma folha de papel e que, dentro de um vaso de
plantas, colocasse o papel dobrado entre duas
camadas de terra; o vaso, uma camada de terra preta
adubada, o papel dobrado, outra camada de terra. No
mesmo vaso a menina deveria plantar sua flor
favorita, nesse caso uma orquídea, e, juntamente com
a orquídea, uma espada de São Jorge e uma espada
de Santa Bárbara, preenchendo todo o vaso com a
terra preta adubada; em cima da terra, formando um
círculo, sete moedas douradas. A partir dali a menina
deveria cuidar das plantas diariamente, com todo
carinho, como se fosse um filho seu.
Esse espaço entre.

Os dois estavam na sala a uma certa


distância. Ele a olhava com um sorriso quase
imperceptível, enquanto ela, encostada em uma
pilastra, cruzava os braços envergonhada, como sem
saber como agir. Ele se aproximou aos poucos, passos
curtos, até que o espaço entre eles fosse o menor
possível. Ela continuava de braços cruzados; fecharam
os olhos e sentiram a presença um do outro, ainda
sem se tocar, da mesma maneira que fazíamos quando
crianças, aproximando o braço da TV recém
desligada e vendo os pelinhos se eriçarem. Ela
descruzou os braços, tocaram de leve as bochechas,
lado direito com lado direito, depois lado esquerdo
com lado esquerdo; era boa a sensação de sentir a
pele um do outro. Por um segundo entrelaçaram as
mãos, por um segundo ela se afastou e novamente
cruzou os braços. Ele se reaproximou, ela sorriu;
ainda dava para sentir o leve hálito de cachaça em
suas bocas. Ele tentou tocar seus lábios, ela virou o
rosto. Permaneceram juntos de pé e abraçados por
alguns minutos; a textura e o cheiro de seus cabelos
traziam, ao mesmo tempo, conforto e desejo. Ela
desenlaçou o abraço, segurou o maxilar dele com a
mão esquerda de maneira firme e, olhando nos olhos,
lambeu seu rosto passando a língua bem próxima ao
canto da boca. Sorriram, ele foi em direção à porta,
ela se apressou para abri-la, ele saiu, ela fechou.
Esse espaço entre.

Último conserto de Milton Nascimento no


Rio de Janeiro. Ele canta: "há um menino, há um
moleque, morando sempre no meu coração, toda vez
que o adulto balança, ele vem para me dar a mão" [1].
Quando termina a frase, lembro de uma carta
recebida há dezoito anos com os mesmos versos.
Esse espaço entre.

Agosto de 2021: começamos a tratar


Sigmund de uma grave doença de nome
micobacteriose; ele pesava três quilos e tinha bolas de
pus e sangue que estouravam por todo corpo. Seu
tratamento era de vinte e quatro horas por dia; de
uma em uma hora lhe dávamos comida na seringa; de
uma em uma hora água, também na seringa; de
manhã dois antibióticos, antes deles omeprazol para
o estômago e um remédio para o fígado do qual não
me recordo o nome; de noite a mesma coisa; duas
vezes por dia, curativos. Outubro de 2022: levamos
Sig à veterinária; ele está pesando oito quilos e está
curado.
Esse espaço entre.

Estávamos todos sentados ao redor da mesa


de jantar do apartamento no Flamengo. Discutíamos,
num misto de dor excruciante e revolta odiosa, os
casos de abuso e assédio sexual de nossa antiga casa
espiritual, dominada por uma lógica elitista-branca-
patriarcal-racista-misógina, e de onde fomos
expulsos. Thiago se levantou, foi à cozinha e voltou
com uma garrafa de tequila Cazadores Reposado:
“minha mãe me trouxe do México”. Abrimos a garrafa,
dispusemos alguns limões cortados em um pote de
cerâmica esmaltada e um punhado de sal em outro.
Uma dose, duas doses, três doses. Fernanda tira da
bolsa um cigarro fino, muito bem apertado: “é um
puro da Califórnia”; cada um de nós traga um pouco.
Rodrigo vai ao quarto e volta com dois refletores de
luz colorida e outro que reproduz um céu estrelado.
Na televisão toca a música Radar da cantora brasileira
Glória Groove. Nesse momento estamos todos no
centro da sala dançando ao som de Glória, alguns
choram, outros sorriem; no sofá as gatas Marie e
Zelda cochilam em posição de atenção; embaixo de
nossos pés um tapete de pelúcia imenso, em forma de
tigre.
Esse espaço entre.

O escaravelho de uma espécie popularmente


conhecida como rola-bosta passa a vida empurrando
bolas de fezes de antílopes das quais se alimenta e
onde deposita seus ovos. No mesmo ecossistema,
devido às condições extremas de calor, a planta
africana Ceratocaryum argenteum precisa enterrar suas
sementes para que possam germinar. A planta, então,
produz sementes com o mesmo aspecto e odor das
fezes dos antílopes; os escaravelhos, ao se depararem
com as sementes, giram as bolas e as enterram,
garantindo a reprodução do vegetal.
Esse espaço entre.

Em janeiro de 2023 voltei a sonhar. Não falo


de sonhos acordados, aqueles cheios de esperança
que por vezes nos acometem; falo dos sonhos que
temos enquanto dormimos. Estava há mais de seis
meses sem sonhar ou sem lembrar de que houve
algum sonho durante a noite; de repente, numa noite
quente e sem ar-condicionado, eles ressurgiram, com
toda potência que os sonhos podem ter, arrebatadores
de tal modo que tenho acordado exausto na manhã
seguinte.
Esse espaço entre.

Dulce, de 90 anos, foi esposa de meu falecido


avô materno. 2023, domingo de Páscoa; ela acordou
pela manhã em seu apartamento em Copacabana,
notável pela imensa coleção de corujas, de todas as
partes do mundo, conservada em uma cristaleira. Foi
ao banheiro e sentou-se no banquinho em frente à
penteadeira, como de costume; começou a se
maquiar, como todos os dias após acordar; se
maquiou detalhadamente, como sempre; passou a
última pincelada de rímel, respirou fundo e
desencarnou.
Esse espaço entre.

Ainda bebê, meus pais me colocaram numa


creche, pois precisavam voltar a trabalhar. Escola
Vagalume, Grajaú, Rio de Janeiro; minha primeira
lembrança de vida. Eu com oito meses, de fralda, sem
camisa, ao lado de uma menina de cachinhos loiros –
não sei o nome -, também de fralda e sem camisa,
brincando no chão de um pátio externo; pegamos um
graveto e começamos a cutucar uma lagarta, que
infelizmente não teve a chance de se tornar borboleta;
uma professora vê a cena, corre espantada em nossa
direção e nos pega no colo, um em cada braço.
Esse espaço entre.

No princípio da orelha do livro Não pisar


descalça em tapete [2], de Maria Isabel Iorio, o
professor, diretor teatral, artista pesquisador e
performer Caio Riscado escreve:

É possível ensaiar um livro? Certa vez, um ator que


gosto disse: “ensaiar é preparar para nascer”. Por
isso os ensaios são espaços, e tempos, de cuidado
e atenção. Preparar uma vida requer generosidade
e prontidão. É preciso se doar para o que está
sendo gestado, mas sem perder de vista a
crueldade que nos salva da entrega cega.
Esse espaço entre.
[1] Bola de meia, bola de gude; Composição de
Fernando Brant e Milton Nascimento, 1988.
[2] IORIO. Maria Isabel. Não pisar descalça em tapete
de Maria Isabel Iorio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2022.
Nicole Barpp
Design

Publicado
Setembro /2023
O entre é o espaço do acontecimento e do
processo, é aqui que Davi respira, desenha, alça
e desloca. É o entre que permite o ordinário ser
explorado. O entre é a mínima distância do
limite, é a unidade infinitesimal da
possibilidade, logo é onde o imperceptível se
percebe, tal como a respiração se revela em
Davi.

Rayssa Veríssimo

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