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Baleia. Vidas Secas. Graciliano Ramos

A cachorra Baleia está doente e magra, prestes a morrer. Fabiano tenta matá-la com um tiro de espingarda, mas só acerta uma de suas pernas. Ferida, Baleia foge mancando pelo terreno, até cair exausta. Nos seus últimos momentos de vida, Baleia delira sobre sua família e deveres, sem compreender que está morrendo.

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Beatriz Brantes
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Baleia. Vidas Secas. Graciliano Ramos

A cachorra Baleia está doente e magra, prestes a morrer. Fabiano tenta matá-la com um tiro de espingarda, mas só acerta uma de suas pernas. Ferida, Baleia foge mancando pelo terreno, até cair exausta. Nos seus últimos momentos de vida, Baleia delira sobre sua família e deveres, sem compreender que está morrendo.

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CURSOS DE LICENCIATURA

CONSÓRCIO CEDERJ/ CECIERJ


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CURSOS DE LICENCIATURA – LETRAS
Estágio Supervisionado 3/2023.2

Texto-base AD1

Baleia

A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em


vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras
supuravam e sangravam, cobertas de moscas . As chagas da boca e a
inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e
amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas
Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no
mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas,
agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de roscas, semelhante
a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-


a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra
não sofrer muito.

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que


adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
— Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos,
davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer
não se diferenciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia
subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a
cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a
cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do
segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou e subjugá-los,
resmungando com energia.

Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a


decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as


pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória tinha


relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:

— Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de


verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta
vermelha e na saia de ramagens.

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as crianças,


enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho
nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas
compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia
endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia
para ver se realmente a execução era indispensável.

Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os


dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às
orelhas. Como isso era impossível, levantou os braços e, sem largar o filho,
conseguiu ocultar um pedaço da cabeça.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras, açulando um


cão invisível contra animais invisíveis:

— Ecô! ecô!

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da


cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no
pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono
desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado
da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido
com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do
curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o
animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais
alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o
gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia,
que se pôs a latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os
meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da


esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um
buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar,
mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.
Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos
pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito


sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte
posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve
medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca


macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as
moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos
colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a


cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de
banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando
as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e
aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as


distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder
Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo,
tornavam-se quase imperceptíveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e


escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava


e aproximava-se.

Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco
e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha
distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade
de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos


beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se
embotava: certamente os preás tinham fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu
diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão.

Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava
surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o
rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não
poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a
cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o
gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu


os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum
tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol
desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro


espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação


dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando
distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não


atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que
estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno
coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam
andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos
dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o
cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio


completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no
poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam
Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações
familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se
tinha despovoado.

Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua


pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada
que recebera no quarto, e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio
desvaneciam-se no seu espírito.

Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe.


Antes de se deitar, Sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com
um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para
cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E,
findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de
preás invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para


trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se
arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela
doença.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria,


certamente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as
mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela,
rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria
todo cheio de preás, gordos, enormes.
Fonte: “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século” – Diversos Autores – Seleção: Ítalo
Morriconi – editora Objetiva –618 págs. – 2000.

( Disponível em https://webwritersbrasil.wordpress.com/literatura-na-web/a-arte-do-conto/um-
conto-de-graciliano-ramos-2/. Acesso em 29/05/18).

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