Artigo Jung William James
Artigo Jung William James
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ABSTRACT. C.G. Jung and William James shared several research interests. At the
conference held at Clark University in 1909, the two authors could meet and talk. The debates
were especially on topics regarding psychical research, contemporarily also called anomalistic
or psi-related experiences, which were not considered on the conference schedule. Since his
period as a medical student, Jung has been interested in anomalous phenomena of
consciousness, having researched the prominent authors associated with the spiritualism of the
18th and 19th centuries. William James was a recognized researcher of the so-called psychic
phenomena, participating in societies such as Society for Psychical Research and the American
Society for Psychical Research. Through their studies, James and Jung aspired to contribute to
dynamic psychology, also called depth psychology. This article aimed to broaden the dialogues
established at Clark University, rescuing important information about the theory of the two
authors.
Keywords: C.G. Jung; William James; psychical research.
1 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora-MG, Brasil. E-mail: [email protected]
2 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora-MG, Brasil.
3 Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei-MG, Brasil. E-mail: [email protected]
2 Diálogos entre C. G. Jung e William James
Introdução
Em 1909, a Universidade de Clark, nos Estados Unidos, sediou uma conferência que
contou com a presença de importantes nomes da ciência, pesquisadores como Franz Boas
(1858-1942), Ernest Rutherford (1871-1937) e Albert Abraham Michelson (1852-1931). A
psicologia estava representada por William James (1842-1910), Sigmund Freud (1856-
1939) e Carl Gustav Jung (1875-1961). Era a primeira vez que uma comitiva psicanalítica
vinha para a América. Além de Freud e Jung, participaram do evento, Sándor Ferenczi
(1873-1933), Ernest Jones (1879-1958) e Abraham Arden Brill (1874-1948). A conferência
sediada em Worcester, Massachusetts, foi organizada por Granville Stanley Hall (1844-
1924), presidente da instituição, com o objetivo de desenvolver o debate entre as principais
áreas de estudo da universidade. William James, na época, já era considerado um dos
mais importantes filósofos e psicólogos americanos e, a convite de Hall, compareceu a uma
das palestras de Freud e também passou algum tempo com Jung. O pensador americano
acreditava que as ideias defendidas pela psicanálise poderiam trazer importantes
esclarecimentos sobre a natureza humana, no entanto, se incomodou com as críticas de
Freud à religião3 (Barzun, 1983; James, 1920).
Em relação a Jung, James se mostrou bastante impressionado, pois os dois autores
concordavam sobre a importância do fenômeno religioso para a psique humana.
Conversaram durante algum tempo na casa de Hall, tendo como temas a parapsicologia,
as curas pela fé, o espiritualismo e a psicologia da religião. Jung estava particularmente
interessado nas pesquisas de James sobre os chamados fenômenos parapsíquicos,
especialmente os estudos do autor sobre a médium Leonora Piper (1857-1950). Esses
assuntos já ocupavam as pesquisas de James havia algum tempo e foram desenvolvidos
3Em entrevista a Albert Albrecht para o Boston Evening Transcript, em 11 de setembro de 1909, Freud criticou as formas
de terapia religiosa praticadas nos Estados Unidos, definindo-as como anticientíficas e perigosas. James (1920), em carta
a Flournoy, discorda dessa posição. Segundo Bair (2003), o filósofo americano apoiava o aconselhamento pastoral e as
curas pela fé, especialmente as práticas desenvolvidas pelo Movimento ‘Emanuel’ de Boston, como formas de
psicoterapia não médica.
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em suas conferências no Instituto Lowell em 1896 (Taylor, 1983) e em suas Gifford lectures
de 1901-1902, The varieties of religious experience (James, 2010). As impressões de Jung
foram da mesma forma positivas: em suas Cartas, afirma que James foi uma das figuras
mais impressionantes que conheceu em sua vida e demonstra admiração pela sua abertura
de visão e pela maneira como, em suas pesquisas, deixava que os fenômenos se
apresentassem espontaneamente, sem forçar uma interpretação para uma determinada
direção. Jung ainda afirma que conseguiu conversar de uma maneira descomplicada
somente com dois teóricos: Flournoy e James (Jung, 2003).
Para Bair (2003), o evento em Clark marca o início de um processo que levará Jung
a se afastar do movimento psicanalítico e buscar novas fontes teóricas, entre elas a teoria
jameseana. Por algum tempo após seu rompimento com Freud, o estudo acerca da religião
e a teoria pragmática do filósofo americano serão os norteadores de Jung (Innamorati,
2013; Shamdasani, 2012).
Nosso foco neste trabalho será, portanto, a ampliação do tema dos diálogos iniciados
em Clark, a partir dos interesses em comum de James e Jung, experiências religiosas e
espiritualismo, fenômenos designados genericamente pelo nome de psíquicos,
parapsíquicos ou anômalos.
Na ocasião da Conferência na Universidade de Clark, em 1909, Jung ficou
hospedado na casa de G. Stanley Hall. Foi nesse contexto que o psiquiatra suíço
estabeleceu seu primeiro contato com William James. O encontro com o ilustre filósofo
americano se deu após um jantar. Hall havia pedido a James que apresentasse alguns dos
resultados de suas pesquisas sobre percepção extrassensorial com Mrs. Piper. James,
então, entrega ao presidente da Clark um conjunto de papéis sobre o tema, e Jung se
mostra extremamente interessado. Após esse evento, Jung ainda teria conversado com
James na noite seguinte. “Eles se encontraram duas vezes e o assunto foi o mesmo nas
duas ocasiões: parapsicologia, espiritualismo, curas pela fé e outras aplicações não
medicinais da psicologia” (Bair, 2003, p. 222). Jung se expressa sobre essas conversas nos
seguintes termos:
Além da impressão pessoal que dele tive, devo muito a seus livros. Conversamos principalmente
sobre seus experimentos com Mrs. Piper, que já são conhecidos, e nada falamos de sua filosofia. Eu
estava particularmente interessado em conhecer a opinião dele sobre os chamados ‘fenômenos
ocultos’. Admirei a cultura européia dele e a abertura de sua natureza. Era uma personalidade distinta
e a conversa com ele foi sumamente agradável [...] De qualquer forma, foi o único espírito ilustre, além
de Th. Flournoy, com o qual pude manter uma conversação descomplicada. Cultuo, pois, sua memória
e sempre que possível me lembrarei do exemplo que ele me deu (Jung, 2003, p. 164, grifo do autor).
Como pode ser verificado pelas afirmações de Jung, não somente o tema
espiritualista pesquisado por James despertou sua atenção, mas também a obra
jameseana se tornou importante para ele. Sobre o tema dos debates em questão, o
psiquiatra suíço já demonstrava interesse pelo assunto muito tempo antes do referido
encontro. Bair (2003, p. 69) afirma que a escolha de Jung pela psiquiatria foi motivada pela
possibilidade de prosseguir “[...] com seus interesses principais: espiritualismo e teoria
religiosa”. Na época de Jung, a psiquiatria ainda estava se fundamentando como ramo da
medicina, e foram muitos os médicos que iniciaram seus estudos sobre a mente a partir de
análises de fenômenos anômalos da consciência, como o transe, a dupla personalidade e
o sonambulismo. Um campo no qual a ciência e a religião ainda estavam, de certa forma,
mescladas.
Jung destaca que o ponto comum entre essas três fontes é que a psique não é um
todo indivisível, mas passível de se fragmentar. Esses fragmentos poderiam se relacionar
com o ‘eu cotidiano’, mas alguns possuíam independência ao ponto de se apresentarem
como personalidades autônomas. Nas palavras do próprio Jung: “A estas partes da alma
chamei complexos autônomos e fundei minha teoria dos complexos da psique sobre a sua
existência” (Jung, 1975b, p. 582).
Por mais que essas experiências acerca da mediunidade tenham auxiliado o autor
suíço na construção de uma interpretação psicológica, Jung não estava satisfeito com essa
explicação para a definição da totalidade dos fenômenos parapsicológicos. Em nota
posterior à sua apresentação na SPR ele afirma:
Depois de coletar experiências psicológicas de muitas pessoas e em muitos países, durante cinquenta
anos, já não me sinto tão seguro, como em 1919, quando escrevi essa afirmação. Para ser franco,
duvido que uma abordagem exclusivamente psicológica possa fazer justiça aos fenômenos em
questão. Não apenas os achados da parapsicologia, mas minhas próprias reflexões teóricas,
delineadas em On the Nature of the Psyche, conduziram a certos postulados que se aproximam do
domínio das concepções da física nuclear, isto é, do contínuo espaço-tempo. Isso abre toda a questão
da realidade transpsíquica imediatamente subjacente à psique (Jung, 1975c, p. 600, nota 15, grifo do
autor).
Mais tarde, Jung também nomearia esses eventos como sincronicidade, nos quais
uma experiência pessoal poderia superar as leis de espaço, tempo e causalidade (Jung,
2013a). A sincronicidade é formulada por Jung a partir de dois fatores: 1) inicialmente “[...]
uma imagem inconsciente alcança a consciência de maneira direta (literalmente) ou indireta
(simbolizada ou sugerida), sob a forma de sonho, associação ou ‘premonição’; 2) uma
situação objetiva coincide com este conteúdo” (Jung, 1975d, p. 858, grifo nosso). Portanto,
a sincronicidade seria a conexão entre um fator subjetivo e um evento externo objetivo.
A partir do conjunto de suas experiências pessoais, vivências de seus pacientes e
seus estudos sobre o campo anômalo, Jung produziu dois ensaios sobre o tema: On
synchronicity, uma palestra apresentada nas Conferências de Eranos em 1951, e The
interpretation of nature and the psyche de 1952, escrito em parceria com o físico Wolfgang
Pauli (Main, 1997). Essas duas obras foram integradas na publicação expandida
Synchronicity an acausal connecting principle, de 1952.
Para Charet (1993), Jung tem histórico antigo com a temática espiritualista, enraizada
como crença comum entre alguns de seus parentes mais próximos e exaustivamente
pesquisada pelo autor suíço desde sua juventude. Sobre essas pesquisas teóricas
descreveremos a seguir alguns trabalhos que, em nosso entendimento, contribuíram para
o entendimento do autor suíço sobre a temática parapsíquica.
Um dos primeiros livros que Jung teria consultado foi Dreams of a spirit-seer (Kant,
1900), escrito por Immanuel Kant (1724-1804), no qual o filósofo descreve as experiências
do visionário sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772). Na obra, Kant faz uma leitura crítica
das visões de Swedenborg e analisa a crença de muitos indivíduos na existência de
espíritos. De modo geral, a visão de Kant no livro é racionalista, definindo muitas das
experiências como fantasiosas, mas, em carta a Fraülein Charlottevon Knobloch, ele afirma
que há algum tempo se interessava e buscava conhecer mais sobre Swedenborg (Jung,
2012a). Para Charet (1993, p. 101, grifo do autor), “[...] isso indica que, oito anos antes da
carta a von Knoblock, Kant estava especulando sobre as coisas nelas mesmas, que ele
chamaria mais tarde de ‘noumena’ na sua Crítica da razão pura”.
A partir de então, Jung passa a ler diversos autores associados ao espiritualismo dos
séculos XVIII e XIX, como Friedrich Zöllner (1834-1882), professor de física e astronomia
da Universidade de Leipzig. Dentre as principais obras de Zöllner, destaca-se
Transcendental physics (1880), na qual ele coordena uma equipe de pesquisadores na
investigação dos fenômenos apresentados pelo médium norte americano Henry Slade
(1835-1905). De acordo com Treitel (2004), a equipe de Zöllner era composta por Wilhelm
Weber (1804-1891), Gustav Fechner (1801-1887) e Wilhelm Wundt (1832-1920). Este
último travou diversos debates com a equipe por não aceitar as propostas espiritualistas de
Zöllner (Sommer, 2013).
Henry Slade havia sido julgado no tribunal Bow Street de Londres por acusação de
fraude. A denúncia partiu do professor Edwin Ray Lankester (1847-1929), que também
havia realizado pesquisas sobre os fenômenos apresentados por Slade. Inicialmente, o
médium foi condenado, sendo a sentença apelada. Por fim, o processo foi anulado por erro
insanável. Slade dizia se comunicar com espíritos, conseguindo materializar frases
espontaneamente sobre uma ardósia4. Zöllner descreve diversas experiências dessa
espécie e atesta a sinceridade de Slade, apesar de todas as acusações apontadas
anteriormente contra o médium (Zöllner, 1901).
Também são desse período as leituras de Jung sobre William Crookes (1832-1919),
químico britânico que pesquisou médiuns, como o escocês Daniel Dunglas Home (1833-
1886) e a jovem inglesa Florence Cook (1856-1904). As primeiras experiências de Crookes
sobre o tema, nos anos de 1870 a 1873, foram publicadas no Quaterly Journal of Science
de janeiro de 1874 e provocaram grande polêmica no meio científico, pois o pesquisador
britânico, membro da Royal Society de Londres, afirmava ter presenciado a aparição de
fenômenos luminosos e figuras humanas, manifestações de sons e ruídos, e movimentação
espontânea de objetos, tudo isso em um ambiente rigorosamente controlado (Crookes,
1927).
Crookes não era, inicialmente, um partidário de ideias espíritas. Em seu livro
Researches in the phenomena of the spiritualism (1874), ele afirma que aplicaria a seu
objeto de pesquisa o mesmo rigor que havia apreendido em anos de labor científico, e que
as explicações dos espiritualistas careciam de consistência, como pode ser verificado na
seguinte passagem:
O pseudo-cientista espiritualista professa saber tudo: nenhum problema de cálculo aflige sua
serenidade, não há experiências difíceis, não há leituras longas e laboriosas; nenhuma tentativa de
deixar claro em palavras o que alegra o coração e eleva a mente. Ele fala fluentemente de todas as
ciências e artes, sobrecarregando o inquiridor com termos como ‘eletro-biologia’, ‘psicologia’,
‘magnetismo animal’, etc. – Um mero jogo de palavras, mostrando ignorância em vez de
compreensão. Ciência popular como esta é pouco capaz de guiar ao descobrimento apressando um
futuro desconhecido; e os verdadeiros trabalhadores da ciência devem ser extremamente cuidadosos
para não permitir que as rédeas caiam em mãos impróprias e incompetentes (Crookes, 1927, p. 5,
grifo do autor).
4 No verbete ‘instrumentos de escrita’ do Glossário Ceale, encontramos a informação que a ardósia era um instrumento
comum no ensino no século XIX, espécie de quadro negro que exigia o uso de um giz de pedra ou lápis de ardósia para
a escrita (http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale).
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Para Jung (1960), as histórias de Kerner não provavam nada acerca da existência
post mortem, mas revelavam aspectos importantes da fenomenologia psicológica, nas
relações estabelecidas entre o consciente e o inconsciente. Segundo o autor suíço, no caso
de Hauffe, certos processos de pensamento se encontravam no nível inconsciente, de tal
forma que ela não os reconhecia como seus, exteriorizando-os em visões de formas e
aparições. Kerner, no entanto, não tinha dúvidas sobre a vidente, uma vez que ele já estava
convencido dos fatos apresentados por ela. Em relação ao trabalho de Justinus Kerner,
apesar de suas conclusões contrárias à causa espiritualista, Jung não patologiza os
fenômenos descritos por ele. Em seus seminários de 1933, intitulados Modern psychology,
Jung reserva algumas palestras para a análise da obra The seeress of Prevorst, deixando
espaço para a possibilidade da existência de percepções supranormais.
Segundo Shamdasani (2012), a leitura da referida obra em 1897 causou efeito
significativo no trabalho subsequente de Jung, sendo que suas interpretações pessoais
acerca do tema eram de caráter mais favorável do que ele expressava em suas palestras.
De acordo com Zumstein-Preiswerk (1975), Jung presenteou sua prima Helene com uma
cópia do livro The seeress of Prevorst quando iniciou sua participação nas sessões espíritas
organizadas por sua família. A forma de seu relato escrito acerca das sessões seguia o
mesmo estilo de Kerner. Mais tarde, esses escritos seriam o trabalho de conclusão do curso
de medicina do psiquiatra suíço (Jung, 2011).
Outro livro cuja temática central é a avaliação do fenômeno espiritualista é From
India to the planet Mars: a study of a case of sonambulism with glossolalia (1900). Essa
obra teve importante influência na psicologia analítica de Jung. Em 1900, o livro
rapidamente se tornou um best seller. O autor, Theodore Flournoy, médico e filósofo, havia
estudado com Wilhelm Wundt. Em 1891, Flournoy se tornou professor da Universidade de
Genebra, onde fundou um laboratório de psicologia experimental. Do final de 1894 até
1899, ele acompanhou as sessões organizadas em torno da médium Élise Catherine Müller
(1861-1929). Os fenômenos apresentados por essa mulher despertaram o interesse de
Flournoy em uma avaliação psicológica do caso, que mais tarde se transformou na obra
citada. No livro, a jovem é nomeada pelo pseudônimo Hélène Smith. Suas histórias
relatadas em estado de transe são descritas e agrupadas em três conjuntos que o autor
chamou de ciclos, respectivamente: ciclo hindu, ciclo real e ciclo marciano.
A partir de uma descrição elaborada, Hélène manifesta em estado de transe as
personalidades de suas histórias. Na primeira delas, ela é a princesa Simandini no reinado
do príncipe Sivruka na Índia. Na segunda, ela dá vida à Maria Antonieta, rainha do período
da revolução francesa. Por fim, o terceiro ciclo diz respeito às revelações de Hélène sobre
a vida em Marte, descrevendo, inclusive, a língua que seria falada no planeta. Com relação
ao último ciclo, Flournoy (2012, p. 2) afirma: “É neste sonambulismo astronômico que o
fenômeno da glossolalia aparece, que consiste na fabricação e uso de uma língua
desconhecida, e que é um dos principais objetos deste estudo”.
A parte inicial do livro é dedicada à análise de Hélène Smith. Ela é descrita como
uma jovem mulher, de cerca de 30 anos, de saúde vigorosa, diretora de um casa comercial,
muito diferente do tipo doentio e perturbado que, de acordo com Flournoy (2012), é
erroneamente associado aos médiuns. Em seguida, o livro traz a avaliação de uma das
personalidades manifestadas pela médium, Leopold, descrito por ela como seu guia
espiritual. Em seus transes, a jovem dava vida a Leopold, que afirmava ser Giuseppe
Balsamo, o conde Gagliostro, alquimista e aventureiro italiano, figura mais conhecida pela
obra de Alexandre Dumas Memórias de um médico. Posteriormente, o autor passa para a
análise dos ciclos de histórias.
5 Sobre os eventos descritos no ciclo hindu, Flournoy relata em seu livro a grande dificuldade de encontrar referências
históricas. O filósofo escreveu a professores que estudavam história da Índia: dos três inicialmente consultados, nenhum
foi capaz de confirmar os nomes e os eventos relatados por Hélène, somente mais tarde ele encontrou um livro de autoria
de De Marlès, General history of India, ancient and modern from the year 2000 B. C. to our own times, que confirmava os
nomes e os fatos mencionados. Em Genebra, Flournoy encontrou somente dois exemplares (Flournoy, 2012).
6 Frank Miller, a mulher cujas fantasias são avaliadas na obra Símbolos da transformação, inicialmente era um caso
estudado por Flournoy (Jung, 2013a).
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10 Diálogos entre C. G. Jung e William James
7 Em sua obra O segredo da flor de ouro, Jung (2013b) afirma que as personalidades masculinas manifestadas por Piper
representam o elemento masculino de sua psique inconsciente, nomeada em sua teoria como animus.
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Segundo Murphy e Ballou (1973), Leonora Piper se tornou a médium mais estudada
da história. Esses experimentos teriam importância para a ciência psicológica, pois
demonstravam as intrincadas relações entre o psíquico e o biológico. O estado hipnótico
provocava alterações significativas em certos processos involuntários do organismo,
interferindo inclusive em aspectos desconhecidos da percepção, memória, atenção e
cognição. Sobre os fenômenos estudados, James teria afirmado: “Permanecem incertas e
aguardam mais fatos, fatos que podem não apontar claramente para uma conclusão em
cinquenta ou cem anos” (Barzun, 1983, p. 239). Em nenhum momento o filósofo se
posiciona como crente espiritualista, sua posição é a do pesquisador que reconhece um
fenômeno e busca seu sentido. Ao longo de seu trabalho, James compreende porque as
performances dos médiuns são sujeitas a fraudes, mas acrescenta que, observando as
manifestações, elas possuem semelhanças, independentemente da parte do mundo em
que ocorram e das diferentes épocas: isso deveria corresponder a resíduos de fatos.
As impressões de James sobre as experiências psíquicas, alguns meses antes de
sua morte, reforçam sua posição de que o subconsciente estava envolvido nesses
processos, o que levava ao entendimento de que sentimentos, pensamentos e imagens
não se encontravam em sua totalidade na consciência de vigília. A mente deveria ser
avaliada em sua totalidade, não somente o que flutuava na superfície, mas também o
submerso. O exame atento do tema deveria ter por norte o subliminar. Essa afirmação deixa
em suspenso a negação ou a afirmação acerca das realidades espiritualistas, atesta
apenas que os eventos tinham seu surgimento e desenvolvimento pela via subconsciente
(Taylor, 1999).
Apesar de as Sociedades não terem descoberto evidências incontestáveis da
realidade da vida após a morte, elas contribuíram significativamente para a moderna
psicologia dinâmica do inconsciente ou psicologia profunda. As experiências com médiuns
sugeriam a existência de uma parcela da mente não acessível à consciência de vigília, mas
que sob certas condições, como choque, fadiga, distúrbios físicos, entre outros, poderiam
invadir a consciência, demonstrando sua existência inequívoca (Taylor, 1999). James
considerava suas experiências com Piper como a superação do reducionismo científico.
Muitos estudiosos consideravam a mediunidade como um sintoma de doenças nervosas, o
que não se aplicava ao caso em questão, uma dona de casa saudável, mãe de dois filhos,
mas que possuía a característica marcante de conseguir transitar por diferentes estados de
consciência. A mente, nessa perspectiva, não seria uma unidade monolítica, mas um
agregado de fluxos de pensamentos, emoções, memórias etc., que se desenvolveriam na
consciência normal de vigília e também no nível subliminar (Ellenberger 1970).
Considerações finais
Ellenberger (1970) destaca a importância do movimento espiritualista para a
nascente teoria psicológica do século XIX. Apesar da existência de pesquisas sobre
estados alterados de consciência em décadas anteriores, é somente entre os anos de 1840
e 1850 que o movimento espírita se expande pelos Estados Unidos e pela Europa. A partir
desse período, um número maior de cientistas passou a se interessar pelos fenômenos
apresentados pelos médiuns. Esses estudos, por mais controversos que possam parecer,
trouxeram importantes contribuições para a teoria do inconsciente. “O advento do
Espiritismo foi um acontecimento de grande importância na história, porque indiretamente
forneceu psicólogos e psicopatologistas com novas abordagens para a mente”
(Ellenberger, 1970, p. 85). A escrita automática e a manifestação do transe mediúnico,
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James foi a oportunidade de compartilhar seus interesses e encontrar estímulo para suas
pesquisas. O filósofo americano passa a ser um modelo para o psiquiatra suíço, com sua
abertura de visão e coragem de avaliar os eventos mais controversos.
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Recebido em 01/08/2019
Aceito em 26/03/2021