100% acharam este documento útil (1 voto)
197 visualizações27 páginas

Texto 4 - Negacionismo e Revisionismo Histórico

Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF ou leia on-line no Scribd
100% acharam este documento útil (1 voto)
197 visualizações27 páginas

Texto 4 - Negacionismo e Revisionismo Histórico

Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 27
Negacionismo e revisionismo histérico no século XXI m 30 de julho de 2018, o entao deputado Jair Bolsonaro, que seria eleito presidente do Brasil no final daquele ano, fez uma afirma- cdo polémica sobre o nosso passado escravista: “Se for ver a hist6ria realmente, o portugués nem pisava na Africa, foram os proprios negros que entregavam os escravos”. A frase foi proferida em um tradicio- nal programa de entrevistas na TV (Roda Viva, TV Cultura, 30/07/2018), quando o candidato foi ques- tionado sobre a necessidade de cotas raciais como for- ma de reparacao histérica aos afrodescendentes pela “divida da escravidao”. A intengao aqui, ao citar esse episédio, nao é discutir a opiniao do entao candidato sobre a politica de cotas, mas tomar como exemplo a frase que nega a responsabilidade histérica portu- guesa sobre a escravidao e, por associagao, a dos bra- sileiros depois da Independéncia que continuaram a manter o trafico atlantico e o sistema escravista. 85 NOVOS COMBATES PELA HISTORIA A afirmacao provocou, obviamente, grande polémica na opiniao publica, entre os historiadores em particular. Ao negar a responsabilidade portuguesa, o candidato negava que os descendentes de escravizados fossem viti- mas desse fardo histérico, a ser reparado, sugerindo um passado longinquo ja superado pela nossa suposta “de- mocracia racial”. Mas 9 que importa para o tema deste texto é que o argumento utilizado continha uma menti- ra apoiada em uma meia verdade, Se é historicamente comprovado que “negros cacavam negros” no interior do continente africano para vendé-los aos europeus, nao se pode dissociar o aumento dessa pratica por conta das. demandas crescentes do trafico atlantico entre os sécu- los XVI e XIX. Por outro lado, também é historicamente comprovado que os portugueses “pisavam” na Africa para comercializar, inclusive escravizados, desde a fun- daco das feitorias de Arguim, em uma ilha na costa da atual Mauritania (1448), e do Castelo de Sado Jorge da Mina, atual Gana (1452). Esse tipo de estratégia de argumentacao nos revela uma dupla distorgao no conhecimento do passado, qua- se sempre mobilizada como parte das lutas politicas do presente. Esse aspecto é inevitavel, e faz parte das inte- rag6es complexas entre memoria, identidades sociopoli- ticas e conhecimento histdrico. A primeira distorgdo é o recurso a mentira pura e simples sobre um evento ou fato histérico comprovado. por fontes e por consenso de historiadores (indepen- dentemente das interpretagdes que se possa fazer sobre suas causas ou desdobramentos), conhecido pelo nome de megacionismo. A segunda distorgao ¢ a apropriagao se- letiva de fatos igualmente comprovados, sem a devida Bb NIGACIONISNO 6 REVISIONISMO IISTORICO No SiCULO XT complementacdo de informagées, para reforcar a tese ne- gacionista, A isso chamaremos de revisionismo ideoldgico, A polémica declaracao do entao candidato a presidéncia da Reptiblica sobre a escravidio foi apenas uma caixa de ressonancia, muito potente, para um conjunto de opinides negacionistas e revisionistas que ja circulavam nas redes sociais e em grupos politicos, sobretudo ligados a extrema direita. A ela, devemos somar outras visdes negacionistas e revisionistas sobre temas hist6ricos diversos: ditadura militar, conflitos com os indigenas no periodo colonial, processos politicos diversos da historia do Brasil (como Independéncia e Proclamacgio da Republica), Idade Média, Holocausto judeu e outros tantos temas. Diante da explosao de opinides negacionistas e da (falsa) visao de que o conhecimento histérico é uma mera questdo de opinido, tentaremos apontar alguns caminhos, sobretudo para o professor de Historia li- dar com esses temas em sala de aula. Para tal, parti- mos de muitas perguntas. Qual o papel do historiador e do professor de Histéria diante do negacionismo e do revisionismo ideolégico? Como conciliar em sala de aula a necessaria e saucavel critica as narrativas histo- riograficas consagradas, as “Histérias oficiais”, quase sempre colocadas em xeque por nowas pesquisas, com a manutencaéo da “verdade histérica’? O que significa “verdade histérica” diante de tantas possibilidades de interpretacdo historiografica do passado? Como sepa- rar andlise histérica de opinido pessoal sobre um fato ou personagem do passado? Como diferenciar uma 87 NOVOS CONBATES PELA HISTORIA revisdo historiografica legitima, que faz avancar 0 co- nhecimento diante de novas descobertas documentais e perspectivas tedricas, da impostura de correntes de opinido negacionistas e revisionistas, cujo objetivo é jo- gar uma cortina de fumaga sobre passados incémodos em prol de lutas politicas da atualidade? Para tentar responder a essas questdes, ainda que parcialmente, precisamos, a principio, compreender muito bem o que significam os conceitos de negacionismo e revisionisma ideolégico e a quem essas praticas tém ser- vido nas tltimas décadas. MUDANCAS DE PERSPECTIVA NO CONHECIMENTO SOBRE O PASSADO HISTORICO: O IMPACTO DO HOLOCAUSTO A Histéria sempre foi um campo de acirrada disputa em torno de suas fungoes sociais e ideolégicas. Vale lem- brar que a Historia, como “disciplina cientifica”, surgiu no sécullo XIX sob a demanda das novas elites politicas dos Estados nacionais recém-criados. Ela serviu para justificar fronteiras, uniformizar as memorias sociais dispersas de grupos, estamentos, regides e etnias dentro de um mes- mo Estado-nacao, justificar o porqué de uma determinada elite estar no poder, além de criar um sentimento de pa- triotismo e nacionalismo que nao raro acabou caindo na xenofobia € no racismo. Ao mesmo tempo que tinha esses. objetivos abertamente ideologicos, a historiografia desco- briu e sistematizou fontes primdrias, aperfeigoou ferra- mentas de pesquisa, delimitou conceitos e estabeleceu for- mas aceitaveis de defender pontos de vista interpretativos. 88 NIGACIONISMO f REVISIONISMO HESTORICO NO SECULO XXI Os historiadores do século XIX, ainda que comprometidos com suas nagdes e com um conceito eurocéntrico de “civi- lizagao", coroldrio ao imperialismo sobre povos ndo bran- cos, tinham obsessio pelos “fatos concretos” e pela manei- ta mais ponderada possivel de organiza-los em uma nar- rativa idealmente “neutra”, sustentada por uma argumen- tagao l6gico-causal e fundamentada em fontes primérias. Essa contradicao esta no DNA da Histéria como disciplina cientifica e ainda hoje faz com que o historiador busque um equilibrio, nem sempre facil, entre engajamento em uma causa e objetividade cientifica. Ja era assim com os historiadores tradicionais do século XIX, na Europa e nas Américas, ainda que suas Histérias estivessem preocupa- das mais com herdis nacionais, instituicbes hegembnicas, Progresso material e elites politicas, civis e militares. Mas esse tipo de narrativa historica era criticado desde 0 fim do século XIX, abrindo espaco para historiografias mais interessadas em pesquisar as massas andnimas, o cotidiano do homem comum, as lutas sociais que expu- seram as contradicoes das sociedades ao longo do tempo. Sua hegemonia nos meios universitarios e escolares foi abalada severamente depois da Segunda Guerra Mundial edo Holocausto, frutos dos nacionalismos e racismos que, nao raro, haviam sido estimulados pelas Historias oficiais nacionalistas e elitistas. O resultado é que a pesquisa e a narrativa historiograficas se abriram definitivamente as vitimas coletivas das violéncias, e ndo apenas aos herdis nacionais, que muitas vezes eram, na verdade, perpetra- dores. Na mesma época, fortaleceram-se narrativas his- téricas, ancoradas em sélidas pesquisas historiograficas, visando a afirmagao dos direitos e das lutas dos explora- dos, das minorias oprimidas e das vitimas de genocidios. 84 NOVYOS COMBATES TELA HISTORIA Para esta tiltima corrente, era importante denunciar as omissoes e os apagamentos a que foram submetidos esses grupos sociais nas Historias oficiais conservadoras. Claro, estas continuaram existindo, mas perderam sua posigdo privilegiada, sobretudo na pesquisa universitaria, dando lugar a outros temas, abordagens e métodos, mais preo- cupados com agendas mais amplas, criticas e inclusivas. A principal novidade da historiografia académica e cien- tifica do segundo pés-guerra era o grande interesse pe- las vitimas de opressdo e genocidios do passado, e seus herdeiros diretos e indiretos no presente. Para analisar o lugar desses grupos no passado, muitas vezes era ne- cessdrio criticar as bases da historiografia tradicional, tais como 0 culto aos fatos politicos estritos, o predominio das fontes escritas oficiais que informavam a pesquisa (fontes institucionais, diplomaticas, legais) e a preocupagao ex- cessiva com a biografia individual dos “grandes herdis” formadores da naga. A medida que essas novas historiografias se afirma- vam, disputando espago com as tradicionais Historias factuais, era preciso descobrir novos métodos, novas fontes e novos temas, mais coletivos e mais processuais. Um evento, em particular, consagrou este outro olhar sobre a historia; o Holocausto, As pesquisas sobre o Holocausto exigiam o afastamento das fontes oficiais do Estado nazista (abertamente omissas ou mentirosas sobre aquele crime massivo), a valorizacao do testemunho indi- vidual da vitima sobrevivente como acesso a verdade fac- tual, a critica aos valores racistas que muitas vezes eram. propagados em nome da civilizagio e da gloria nacional. O leitor poderia se perguntar o porqué da centrali- dade do Holocausto e dos crimes nazistas, dentre tantos 90 NIGACIONISMO I REVISIONISMO HISTORICO NO SECULO Nxt crimes cometidos por varios Estados. Afinal de contas, nao faltam crimes de massa contra a humanidade ao lon- go da historia: contra opositores politicos (como no caso do stalinismo na Unido Soviética), contra povos subme- tidos ao colonialismo (como no caso das poténcias eu- ropeias na Africa e na Asia) ou o genocidio interno dos poves origindrios (como no caso dos poves indigenas nas Américas). A resposta é que o Holocausto foi o ca- talisador de uma nova consciéncia sobre esse outros cri- mes, pela sua natureza hedionda (cometida contra uma populacao civil que sequer era opositora do Estado per- petrador ou representava qualquer tipo de vida alterna- tivo ao dominante), pela sua forma (planejada, sistema- tizada, industrializada nos campos de exterminio), pela sua amplitude (com a morte de milhdes de pessoas em relativamente pouco tempo e a intengao explicita de li- quidar todo © povo judeu). Mas o tema do Holocausto também incentivou e deu nove sentido a uma pratica antiga nas disputas sobre o passado: a negacdo (ou a atenuacdo em alguns casos) de crimes coletivos cometidos por Estados e acobertados por uma parte de suas elites civis e militares. Essa pratica recebeu o nome de negacionismo. Aconsciéncia desencadeada pelos testemunhos e pe- los estudas histéricos sobre o Holocausto, seguida das lutas anticoloniais dos anos 1950 e 1960 na Asia e na Africa, exigiu da opinido publica internacional, dos sis- temas universitarios e escolares, uma nova perspectiva sobre todos os outros genocidios e crimes de massa ao longo da histéria. Mas este novo contexto também am- pliou e sofisticou os discursos negacionistas que, 4 guisa de denunciar os crimes nazistas como uma mera versdo 91 NOVOS COMBATES ILA HiSTOIIA dos “vencedores da Segunda Guerra” (ou seja, as demo- cracias liberais e a Uniao Soviética), sempre almejaram a ocultacdo do projeto de exterminio dos judeus e de ou- tros povos considerados inferiores, inaceitaveis e injusti- ficdveis diante dos novos valores e da ordem internacio- nal construida no segundo pos-guerra. No caso especifico do Holocausto, conforme o histo- riador Pierre Vidal-Naquet em sua obra Os assassinos da memoria, o negacionismo adquiriu dois sentidos: 1. Negar o “carater Gnico” do Holocausto judeu (di- Iuindo-o como um efeito colateral da guerra ou um excesso cometido por poucos). 2. Negar oassassinato em massa como uma operagdo intencional dos nazistas, uma politica sistematica de Estado. Nao se trata de um fenémeno ideo- logicamente uniforme, embora mais comumente associado a extrema direita e ao neonazismo, Ainda conforme Pierre Vidal-Naquet, 0 negacionis- mo se utiliza de um conjunto de procedimentos e es- tratégias discursivas para questionar o consenso histo- riografico sobre o tema e negar os crimes de massa dos nazistas. Sao eles: 1. Qualquer testemunho direto do Holocausto trazi- do por um judeu é uma mentira ou uma invencdo. 2. Qualquer testemunho ou qualquer documento antes da liberacao dos campos é falso ou ¢ ignora- do ou tratado como “boato”. 3. Qualquer documento, em geral, que nos fale em primeira mao sobre os métodos dos nazistas é uma invengado ou um documento falsificado. 92 NIGACIONISMO f REVISIONISMO HISTORICO NO BEEULO Xx 4. Qualquer documento nazista que fornega teste- munho direto é considerado pelo valor de face se for escrito em linguagem codificada, mas ignora- do (ou subinterpretado) se for escrito em lingua- gem direta, Por outro lado, qualquer manifestagao de racismo de guerra nos campos aliados (e eles nao faltaram, como se pode imaginar) ¢ tomada em seu sentido mais forte. 5, Todo testemunho nazista apés o final da guer- ra, levado a julgamento no Leste Europeu ou no Ocidente, em Varsévia ou em Colénia, em Jerusalém ou em Nuremberg, em 1945 ou em 1963, é considerado obtido por tortura ou intimidagao. 6. Todo umarsenal pseudotéenico é mobilizade para mostrar a impossibilidade material de gaseamen- to em massa. O histariador e o professor de Historia devem ficar atentos a esses procedimentos e discursos, pois a rigor eles podem ser adaptados para qualquer postura nega- cionista sabre qualquer tema polémico, com uma sim- ples mudanga de contetido, mas mantendo-se a mesma estrutura argumentativa: desqualificar os testemunhos das vitimas; acusar de falsidade documentos histéricos reconhecidos pelos historiadores; acusar a inexisténcia de provas materiais do crime; supervalorizar qualquer docu- mento que comprove sua tese negacionista sem a devida critica documental, © tema do Holocausto remete as relacdes entre me- mdria e Histdéria, lembrando que ha uma fronteira porosa entre ambas, sendo Historia uma operacao intelectual- analitica, chancelada por um método objetivo, e memdria 93 NOVOS COMBATES PELA HISTORIA uma construcao identitéria levada a cabo por grupos so- ciais e suas instituicdes. As interacGes entre ambas, ob- viamente, existem 4 medida que essas duas vertentes se ocupam do passado de uma sociedade, A memoria pode construir pautas e pontos de vista para a historiografia, pode estimular a critica as Historias oficiais que apagam sujeitos e conflitos indesejaveis, mas ha também fronteiras. O historiador nao pode ser o dono da meméria social; valores e ideologias das memérias s0- ciais de determinados grupos nao devem condicionar a pesquisa histérica. A memoria social é sempre “enqua- drada” na forma de discursos e pela acao de instituicdes ® agentes sociais reconhecidos e legitimados no campo cultural, politico e cientifico. A “memoria enquadrada”, conforme o sociélogo Michael Pollak no artigo “Memoria, esquecimento, siléncio”, é articulada a partir de um con- junto de operagdes: testemunhos autorizados, documen- tos-monumentos, historiadores profissionais, arquivistas e instituigdes (oficiais ou nao) e grupos informais que fun- cionam como guardides do passado. Nessa perspectiva, os historiadores também atuam no enquadramento da meméria, sobretudo quando tratam de temas sensiveis, ligados a violéncias de massa como o Holocausto. Outro ponto de “porosidade” entre Histéria e me- méria que foi potencializado pelo Holocausto: o lugar da subjetividade na Historia e o lugar do testemunho, um dos pontos mais atacados pelos negacionistas. Para Paul Ricoeur, em seu A memoria, a historia, 0 esquecimento, o “testemunho” é parte da primeira fase das trés opera- ces historiograficas - que sao arquivamento, explicagao, Tepresentacao -, estando essa fase especifica intimamente ligada a constituigao de arquivos, sendo o “testemunho” o4 NIGACIONISMO MEVISIONISMO HISTORICO NO STCULD XXI constitutivo do documento histérico enquanto “memdria declarativa”, Para o filésofo, a confiabilidade do teste- munho esta diretamente relacionada ao seu estatuto de “veracidade", a partir do “confronta de testemunhas”, Portanto, toda prova decumental tem como base um tes- temunho, transformado muitas vezes em documentos escritos. No caso do Holocausto, bem como dos teste- munhos ligados a outros crimes de massa que deixaram traumas e cicatrizes sociais (como nas ditaduras), 0 teste- munho se torna “instituigao” quando sua confiabilidade é certificada pelos agentes sociais, entre eles historiadores. Muitas vezes, os negacionistas apelam para o “direi- to 4 livre expressdo” para propagar suas ideias nefastas. A defesa do direito de opinido e de “liberdade de ex- pressio”, sem davida um dos principios basilares da de- mocracia moderna, é frequentemente reivindicada por negacionistas para expressarem suas ideias em piblico e buscarem reconhecimento no meio cientifico. Também no debate brasileiro, essa estratégia calcada na defesa de uma suposta “pluralidade de ideias” 6 brandida por ne- gacionistas das ditaduras ou da escravidao. Mas lembre- mos da adverténcia de Pierre Vidal-Naquet sobre a con- fusdo entre direito 4 opinido e estratégia negacionista: E possivel sustentar que cada qual tem o direito de promover mentiras e farsas, e que a liberdade indi- vidual contenha esse direito, reoonhecido na traci- do liberal francesa, em prol da defesa do acusado. Mas 0 direito que o falsario demanda nao deve ser concedido em nome da verdade.' Portanto, nao se trata de cercear o direito de opiniao so- bre um fato histérico, ainda que seja uma opiniao frequen- temente mal-intencionada e que vise acobertar crimes de 95 NOWOS COMBATES PLA HisTonis massa. O problema é que quem emite tal opiniao quer vé- la reconhecida como legitima e verdadeira, sob 0 ponto de vista do conhecimento histérico. Além disso, nenhum. direito de opinido e de expressio pode incitar o 6dio ou a injuria racial, colocando-se acima de um crime tipificado, Finalmente, nao se trata de impedir o debate sobre um fato historico, ainda que marcado por temas sensiveis e complexos, que envolvem crimes, vitimas e perpetrado- res. No caso do Holocausto, ha muitas vertentes inter- pretativas legitimadas no debate historiografico, como, por exemplo, se havia uma cadeia de comande clara ¢ intencional na diregéo do assassinato em massa desde o comeco da perseguicao antissemita na Alemanha nazista ou se havia uma pluralidade de estruturas que se com- binaram e culminaram nos campos de exterminio. O que nao é legitimo é inocentar a ciipula nazista da responsa- bilidade final pelos crimes de massa ou negar a existén- cia de “cémaras de gas” ou de uma politica de extermi- nio em massa nao apenas de judeus, mas de ciganos e eslavos, entre outros grupos sociais e étnicos. Qs debates em torno do Holocausto judeu consagra- ram o termo negacionismo, mas sua amplitude acabou extrapolando este campo de estudos histéricos, Assim, € preciso ampliar o proprio conceito de negacionismo ¢ seu corolario, o revisionisme ideoldgico, para compreender seu uso em outros contextos e debates. NEGACIONISMO E REVISIONISMO: CONCEITOS E ABORDAGENS O “negacionismo histérico” pode ser incluido na grande familia dos negacionismos cientificos, das fake 06 NEGACIONISMO T REVISIONISMO HISTORICO NO SECULD XNI news e da fake History, com o agravante de ser utilizado, normalmente, para ocultar crimes de Estado, diluir suas responsabilidades e lutar contra a “justica reparativa” a vitimas e seus herdeiros diretos ou indiretos. Os discur- sos négacionistas na Historia se alimentam dos mesmos prineipios da “ma ciéncia”, ou seja, discursos que querem se passar por cientificos, mas na verdade sao falseado- res da critica, da descoberta da verdade e da reflexao. Dentre estas caracteristicas estao:* Titulos sensacionalistas (muito utilizadosem pseudo- documentarios e videos de divulgacao em redes so- ciais, mas também em artigos ¢ livros de divulgacao), Resultados distorcidos e manipulados extraidos de outras pesquisas. Conflitos de interesse entre o pesquisador e os ob- jetivos da pesquisa. Confusao proposital entre correlagao ecausalidade. Linguagem especulativa em excesso, sem uma argumentacao baseada em evidencias ou resul- tados aferidos. Amostra documental muito pequena para conclu- s6es muito amplas. Generalizacao de casos particulares ¢ excecdes. Pesquisas sem controle dos pares (outros cien- tistas) ou de instituicdes cientificas creditadas e reconhecidas. Seletividade nas fontes ou nos resultados, ocul- tando o que nao confirma a hipotese inicial. Impedimento de acesso livre de outros pesquisa- dores aos materiais (fontes) e.a criagdo de obstacu- los 4 reprodutibilidade nas anilises. 97 NOVOS COMBATES FELA HimTentrs A partir dessa caracteristica geral da grande familia da “ma ciéncia”, podemos definir os conceitos dos seus membros mais notérios no campo da ciéncia histérica: 0 negacionisme e 0 revisionismo, © negacionismo poderia ser definido como a negagao a priori de um processo, evento ou fato histérico estabeleci- do pela comunidade de historiadores como efetivamente ocorride no passado, em que pese varias possibilidades de interpretacio validadas pelo debate historiogrifico, Em outras palavras, o negacionista rejeita o conhecimento hist6rico estabelecido em bases cientificas e metodoldégicas reconhecidas, em nome de uma suposta “verdade oculta- da” pelas instituigdes académicas, cientificas e escolares por causa de supostos “interesses politicos ligados ao sis- tema”. Assim, os negacionistas alimentam e séo alimen- tados pelas diversas “teorias da conspiragdo” que sempre existiram, mas que nos primeiros anos do século XXI tém sido canalizadas por interesses politicos, sobretudo de par- tidos e lideres de extrema direita, para combater os valores progressistas e democraticos. Em muitos casos, uma opi- nido negacionista tem sua origem em varias andlises “revi- sionistas” do passado, que se propdem a revisar as teses @ os estudos mais aceitos na comunidade cientifica, Mas todo revisionismo historico seria a antessala do negacionismo? Obviamente, nao, pois a natureza do co- nhecimento histérico exige a revisdo constante das inter- pretagdes dominantes sobre o passado. Em linhas gerais, podemos definir 0 revisionismo como um processo de revisdo do conhecimento factual e das interpretagdes historiograficas dominantes, com base em novas questées tedricas, novas hipéteses, novos métodos de andlise e novas fontes primarias. Assim, ha 98 NIGACIONISMO I REVISIONISMG HISTORICO NO SECULO XXE a revisio historiogratica como procedimento que é fruto do avanco do conhecimento, da mudanga de perspecti- vas e do surgimento de novas fontes. Este é oxigénio da area de Histéria, mesmo quando remexe em passados sensiveis e explicagdes aceitas, Portanto, oconceito de revisionismo pode englobar um fenédmeno mais complexo do que o negacionisme puro & simples. O sentido amplo dessa palavra pode incluir 0 legitimo e necessario trabalho da historiografia, que é 0 de buscar novas perspectivas e novas fontes para am- pliar o conhecimento sobre o passado. Por outro lado, pode incluir a estratégia de muitos autores politicamente interessados que partem de uma perspectiva ideoldégica sobre o passado, simulam um método critico e direcio- nam a conclusao das suas reflexOes para questionar a consciéncia critica da Historia como parte da luta pela democratizacao geral da sociedade. O revisionismo propriamente historiografico, ou seja, aquele calcado em argumentacao légica, novas fontes e métodos, ainda que coloque em xeque perspectivas do- minantes na opinido publica, progressista ou conserva- dora, nao pode ser descartado. Ele faz parte do debate historiografico e como tal deve ser encarado. Mas ha um revisionisimo de matriz ideoldgica, que par- te unicamente de demandas ideolégicas e valorativas e colige fontes e autores para confirmar uma visdo pré- construida acerca de um tema histérico, quase sempre polémico, Esse tipo de revisionismo é refém de objetivos meramente ideolégicos, da falta de método e da ética da pesquisa historiografica. Trata-se daquele revisionismo calcado na manchete sensacionalista sobre um tema his- térico, na apropriacgdo descontextualizada de trabalhos 99 NOVOS COMBATRS PTLA HISTORIA historiograficos, no anacronismo, no uso acritico de fon- tes primdrias (tomadas como “prova factual” a partir de uma leitura superficial, sem critica ou contextualizacao), sempre com o intuito de defender uma tese dada a priori sobre o passado incémodo e sensivel. Nao é raro que os dois revisionismos se entrecruzem, com autores revisionistas de “viés ideolégico”, como se costuma dizer hoje em dia, se apropriando de revises historiograficas sérias, elaboradas por historiadores re- conhecidos na comunidade cientifica, com 0 objetivo de desconstruir as pautas progressistas e de inclusdo social apoiadas na critica a crimes e injusticas do passado. O re- visionismo ideolégico se pauta no anacronismo (projetar no passado os valores do presente) e na seletividade in- tencional de fontes primarias e de excertos retirados do seu contexto argumentativo. Essa é a raiz da distorcao, mesmo quando os revisionistas colocam questées insti- gantes e criticas, muito sedutoras principalmente aos lei- tores leigos e 4s correntes de opiniao conservadora. OQ importante é demarcar que tanto o negacionismo como © revisionismo ideolégico nio querem revisar ampliar o conhecimento sobre 0 passado, mas destruir esse conhecimento, pela tatica da mentira eda explicagao- enviesada sobre fatos e processes historicos polémicos, Conforme o historiador Luis Edmundo Moraes (no artigo “O negacionismo e o problema da legitimidade da escrita sobre o passado"), as principais armadilhas argu- mentativas dos negacionistas sao: a. Reivindicar o reconhecimento de procedimentos metodolégicos de andlise semelhantes aos dos his- toriadores nao revisionistas. 100 NIGACIONISMO fl REVISIONISMO HISTORICO NO SECULO NI b. Defender a necessidade de outras versées sobre um evento histérico (ou de uma “outra versdo”). ¢, Denunciar a auséncia de “prova” documental que “prove” que um crime ou violéncia foi cometido no passado. d. Apontar a suposta "falta de conexdo” légica-cau- sal entre os fatos que caracterizam o evento nega- do (ex.: “Por que os nazistas se concentraram em matar os judeus, desviando recursos preciosos da frente de batalha?”; “Como a escravidao no Brasil gerou o racismo se vivemos em uma sociedade mestica?”; “Como os indios como um todo foram alvo de genocidio se eles se aliaram aos portugue- ses em varias ocasides?”). e. Tomar o fato reconhecido e chancelado pela pes- quisa histérica como “interpretacdo” e defender seu método como “factual”. Ainda para esse autor, os “argumentos” podem le- var a ideia, errénea, de que os negacionistas constituem uma “escola historiografica” e que defendem o “métoda histérico”, visées comuns fora do campo historiografico profissional. Essa ideia, muitas vezes, pode ser assimila- da por cidaddos que nfo necessariamente tém ma-fé e, de forma genuina, querem conhecer outras versGes so- bre um fato histérico. Para Luis Edmundo Moraes, |...] negacionistas nao sao historiadores, nem revisio- nistas [..,] pelo fato de que a ideia de revisao ¢ inse- pardvel do processv de construgdo de conhecimento cientifico, Fendmenos e processos descritos, teorias e interpretagGes que nao estao sujeitos a revisdo nado fazem parte do universo das ciéncias humanas, mas sim do universo das ortodoxias polfticas, do pensa- mento magico ou do pensamento teoldgico.’ 101 NOVOS COMBATES PULA HISTORIA Portanto, estamos diante ndo de um procedimento ou metodologia historiografica, de base objetiva e cientifica, mas de uma “parametodologia”, conforme expressao de Flavio Thales Ribeiro (ou seja, uma metodologia pseu- docientifica), que é diferente do método utilizado pelos historiadores. Essa “ parametodologia” é atravessada por fragilidades e imposturas de ordem tedrica, cientifica e ética. Nesse ponto, 0 revisionismo ideologico e o nega- cionismo puro e simples se encontram e compartilham as mesmas estrategias: a. b. Apropriacao distorcida e seletiva de teses histo- riograficas reconhecidas. Destaque sensacionalista para casos particulares e excepcionais do passado (personagens, valores, instituigdes), cujas peculiaridades transformam-se em regras e modelos para “demonstrar” como as teses consagradas por historiadores académicos sao “falsas”. ‘Utilizacdo de fragmentos de fontes primarias, sem a devida contextualizacdo ou critica. . Exposicdo linear de fatos e processos por relagdo direta de causa e efeito, abordagem ha muito criti- cada e superada pela historiografia. Defesa de posicdes sobre o passado que partem de um olhar ideologico, moral ou valorativo - mas devidamente ocultado -, adequando a ar- gumentagao para comprova-las (portanto, proce- dimento inverso do trabalho historiografico, no qual o ideolégico e o valorativo estao explicita- dos e devem estar limitados as perguntas coloca- das e nao as respostas obtidas), 102 NIGACIONISMO 1 REVISIONISMO HISTORICO NO SREULO AKT Qual deve ser a resposta dos historiadores e professo- res de Historia? Em linhas gerais, os estudiosos do nega- cionismo nao recomendam debater com negacionistas, sob pena de dar-Ihes reconhecimento e um forum legitimo no campo da historiografia. Mas, sem duvida, é preciso compreender e debater 0 negacionismo. Como antidoto ao negacionismo, historiadores e professores de Histéria devem sempre afirmar uma espécie de “metametodolo- gia historica” contra a “parametodologia” revisionista. O que seria essa “metametodologia da Histéria”, em tempos de uma historiografia plural e com muitas alter- nativas tedricas validas? Como evitar que, ao afirmar a existéncia de uma “verdade histérica”, o professor ndo reafirme a existéncia de uma tinica interpretagao valida sobre o passado e a “neutralidade” ideolégica do histo- riador, visdo contra a qual a historiografia contempora- nea se rebelou ha muito tempo? Como nao cruzar a fron- teira entre o revisionismo historiografico, que faz avancar © conhecimento e pode dar foco em sujeitos ocultados e silenciados nas interpretagdes dominantes, e o revisio- nismo ideolégico, que quer precisamente o oposto, reiterar siléncio a processos histéricos polémicos e sensiveis e desqualificar visGes efetivamente criticas da histria? COMO HISTORIADORES E PROFESSORES DE HISTORIA DEVEM LIDAR COM O NEGACIONISMO O historiador e o professor de Historia, que atuam em tempos de negacionismo disseminado na sociedade, devem refletir profundamente sobre seu oficio para nao cairem em armadilhas colocadas pela atuacao sistematica 103 NOVOS COMPATES FILA HISTORIA de negacionistas e revisionistas junto 4 opinido publica, sobretudo nas redes sociais. Nos dltimos anos, dada a polarizacdo politico-ideo- légica da sociedade brasileira e de outras sociedades ao redor do mundo, tém sido muito comum dais tipos de desqualificacao do trabalho de historiadores e professo- res de Historia que fazem parte deste rol de armadilhas com os seguintes argumentos: 1. Os historiadores nao sdo “neutros" e, por causa da suposta “hegemonia marxista” na area e nas uni- versidades, sao meros doutrinadores de criangas ¢ jovens inocentes. 2. Os historiadores sio meros emissores de opinido travestida de pesquisa cientifica que oculta sua vontade de doutrinar ideologicamente o estudan- te no presente ao estudar o passado. Obviamente, sempre cabe uma discussdo sobre o de- coro profissional de professores de qualquer disciplina, sobre a devida conduta diante das lutas politicas que ele vivencia, sobre seu compromisso ético e epistemolégico ao abordar um tema histérico. Mas muitas das criticas obscurantistas que sdo dirigidas a historiadores e profes- sores de Hist6ria nado tém a intencado de aprimorar esse debate, muito pelo contrério: a ideia é cercear a atuacdo do professor para impor, efetivamente, um discurso doutrindrio em sinal contrario sobre o passado. Para ser um bom profissional, nem historiadores, nem professores de Histéria precisam necessariamen- te ser “neutros ou imparciais” diante do passado. Eles precisam de objetividade analitica historiografica, o que implica o problema do distanciamento e da ética 104 NIGACIONISMO E REVISIONISMO HISTORICO NO SECULD XXI de pesquisa e ensino, da afirmacao de principios basi- cos da pesquisa historiografica (a tal “metametodolo- gia”), sem a qual nenhum trabalho historiografico, que se quer como tal, se sustenta. Em todo o trabalho historiografico, seja na pesquisa, seja no ensino, pode estar presente uma perspectiva ideo- légica. Historiadores sao cidadaos, tem paixdes politicas © perspectivas engajadas sobre o passado que estudam, A diferenca entre este e o autor estritamente panfletario (negacionista ou revisionista) é que o historiador deve explicitar suas perspectivas, politicas e metodoldgicas, nao deve se desviar do método histérico calcado no trato critico das fontes, ndo deve silenciar diante das evidén- cias de fatos e processos verificdveis através das fontes e deve manter-se na argumentacdo baseada em conceitos e categorias de andlise. Essa ¢ sua ética de trabalho, base da pesquisa e do ensino de Histdria. Isso é o que chamo de “metametodologia” da pesquisa historica. Esse desafio também inclui o professor de Historia do ensino basico, que nao é um mero repetidor da histo- riografia académica, mas que precisa manter com ela um didlogo fecundo, acessivel aos alunos que devem desen- volver um pensamento histérico e conhecer as bases da producao do conhecimento sobre o passado. Portanto, professores podem ser engajados, criticos, mas devem ter o cuidado de ser objetivos, evitar confun- dir argumentos valorativos (este ou aquele personagem foi*bom” ou foi “mau”, este ou aquele processo foi “po- sitivo” ou “negativo”) com andlise histérica. O professor e o historiador devem, sobretudo, apon- tar os desdobramentos dos processos histéricos, anali- sar as perspectivas e visoes de mundo dos personagens 105 NOVO COMBATES PELA HISTORIA histricos (escrutinar suas agdes e contradicées), exami- nar estruturas e instituic6es sociais, e suas relagdes com a producao simbdélica, e as relagdes de poder de uma época. Mas, sobretudo, os professores devem contrapor visdes, ndo para dar um tom imparcial 4 sua exposigéo didatica sobre o passado, mas para mostrar um painel historico plural e contraditorio, Seu ponto de vista pode ser engajado, critico, mas sua andlise deve levar em con- ta os valores da época, o conflito das agdes humanas, os projetos de sociedade em disputa, analisados da maneira mais objetiva possivel. Claro, o tom do professor e suas estratégias didaticas podem variar conforme a faixa eta- Tia, 0 repertério e os valores dos alunos e os abjetivos do seu trabalho. Pessoalmente, defendo que a Histdria e a historiogra- fia fagam parte da construgdo da cidadania e do Estado democratico de direito, o que significa ir além de uma his- toriografia de “esquerda” ou de “direita”. E preciso reco- nhecer que essas nuances ideolégicas existem na comuni- dade de historiadores ¢ professores de Histéria, e atuam na escolha de objetos e interpretagSes. Mas, em si mes- mas, nao sao obstaculos ao conhecimento histérico, desde que o rigor metodoldégico, a ética de pesquisa e do ensino e a objetividade sejam mantidos. O engajamento, nessa perspectiva, nado é sinénime de militancia voluntarista ou doutrinacdo politico-partidaria, como acusam movimen- tos conservadores e obscurantistas que na verdade que- rem esvaziar 0 ensino e a critica. Tampouco é incompati- vel com o conhecimento histérico objetivo, preservando 106 NIGACIONISMO E REVISIONISMO HISTORICO NO SECUL XX1 © direito 4 critica de pares, alunos e cidadios em geral, e aberto as diversas interpretacdes sobre o passado, Os pesquisadores e professores de Historia, dos quais se deve cobrar rigor, ética de pesquisa e decoro profis- sional, ndo sdo meros emissores de opiniao vazia e “neu- tra”, mas profissionais que sistematizam o conhecimen- to histérico e ajudam a sociedade a conhecer a si mesma de maneira critica, em suas virtudes e mazelas. Portanto, eles devem, antes de tudo, ter clareza da natureza da sua atuagao profissional, bem como dos seus limites. Nesse sentido, o engajamento em si nao é um problema, des- de que as bases centrais do conhecimento histérico e sua disseminagao pelo ensino sejam mantidas. Essas bases poderiam ser sintetizadas nos seguintes pontos: * Explicitar posigées tedricas e metodoldégicas ao leitor ou ao aluno, com base em literatura acadé- mica reconhecida, * Explicitar valores ideolégicos e morais que guia- ram a pesquisa, * Dialogar coma historiografia sobre o tema, valori- zando o debate entre os autores, * Partir de evidéncias documentais, devidamente criticadas e contextualizadas com base no método historiografico escolhido, sem esconder ou ocultar fontes contraditérias entre si, * Discernir: o que é andlise com base em evidéncias documentais, 0 que é argumentacao prospectiva dequem analisa eo que é mera opiniao valorativa. 107 NOWOS COMBATES FRLA HISTORIA N&o cair na armadilha do “cireito a liberdade de expressdo”, que é sagrado e inquestiondvel para qualquer democrata, mas nao deve ser confundi- do com direito de ser reconheciclo e legitimado por “negar a verdade histérica”, sobretudo para encobrir crimes contra a humanidade. Nao raro, o professor tera que lidar com situagdes e argumentos negacionistas em sala de aula e, obviamente, nao lhe caberd cercear o direito de opinido dos seus alu- nos, ainda que essa opiniao seja enviesada e, em alguns casos, com o objetivo de desqualificar o campo do conhe- cimento histérico que o professor representa. A opiniao dos alunos é importante para mobilizar os repertorias deve ser trabalhada como tal. Mas quando discutir o tema, eventualmente polémico, o professor deve ter al- gumas estratégias: Valorizar o conhecimento e a cultura histérica do aluno, mas cotejé-los com os resultados da his- toriografia, permitindo que o aluno perceba se- melhangas e diferengas, polémicas e consensos, memorias de grupos sociais e seus valores. O professor deve ser um mediador dos debates, ex- plicitando o que sao suas opinices pessoais, prin- cipalmente caso os alunos as solicitem, e 0 que é produto de consensos e debates historiograficos, baseados em fontes e pesquisa histérica, Valorizar a método historiografico construido pelo conjunto de pesquisas historiograficas, suas con- quistas, consensos, contradicdes e limites, e seus didlogos com oconjuntodo conhecimentacientifico, 108 NEGACIONISMO E REVISIONISMO HISTORICO NO SECULO XXI * A partir das premissas anteriores, enfatizar que © conhecimento historiografico nao € “opinido” sobre o passado, mas resultado de uma pesquisa com um método reconhecido pelas instituigdes cientificas em constante revisdo pelos pares e de um debate coletivo, para nos fazer refletir critica- mente sobre as estruturas, os atores e as institui- cGes sociais. Obviamente, o professor ndo precisa fazé-lo com esses termos, devendo se adaptar a faixa elaria e ao repertério da sua classe. A depender do grau do debate, o professor ainda podera refletir sobre a natureza do revisionismo ¢ do negacionismo historiograficos: a quem servem? Qual a origem das opinides revisionistas? Trata-se de uma ne- pacao de reivindicagdes contemporaneas de grupos so- ciais perseguidos ou excluidos? O debate sobre um dado tema historico foi chancelado por trabalhos historiogra- ficas reconhecidos pelos pesquisadores pares? Essa postura do professor ou do historiador nado im- plica cercear a livre circulagdo de memérias sociais sobre os diversos temas do passado ou, ainda, impedir a emis- so de opinides por alunos sobre temas polémicos. Trata- se, sobretudo, de impedir que memérias e opinides sejam impostas como uma “versdo historiografica” sobre um determinado tema, em nome da ampliacao da verdade histérica. Em ambientes escolares, essas memérias so- ciais ¢ opinides individuais devem ser problematizadas e cotejadas com a pesquisa histérica. Em resumo, o melhor antidote contra o negacionis- mo e o revisionismo é a verdade histérica, O problema é que a verdade histérica ha muito tempo deixou de 109 NOVOS COMBATES [TEA HISTORIA ser a verdade absoluta e factual que os historiadores cientificistas do passado, tipicos do século XIX, busca- vam. O conceito de verdade na historiografia dominante do segundo pds-guerra é definido como uma verdade referencial, uma perspectiva, um “ponto de fuga” iden- tificdvel em fontes e evidéncias geradas pelo passado. Além disso, a busca pela verdade histérica, ainda que no limite essa verdade seja inaleangdvel - posto que o conhecimento histérico é sempre passivel de interpre- tacdes -, deve ser um compromisso ético e ontolégico do historiador. Notas Pierre Vidal-Naquet, Los asesinos de Ja memoria, Buenos Aires, Siglo XXI, 1994, pp. 85-6 (traducdo do autor), Adaptado de um guia geral disponivel na internet, elaborado pelo site sobre ensina & histéria da Quimica Compound Interest (www.com- pundchem.com). Disponivel em portugués no site: . Acesso em: 3 out. 2020. Luis Edmundo de Souza Moraes, “O negacionismo e o problema da legitimidade da escrita sobre o passado”, em Anis do XXVI Simpisio Nacional de Historia, So Paulo, Anpuh, jul. 2011, p, 6. Disponivel em: , Acesso em: 3 out, 2020. Bibliografia KRAUSE-VILMAR, Dietfrid. A negacdo dos assassinates em massa do na- cional-socialismo: desafies para a ciéncia ¢ para a educacao politica. In: MILMAN, Luis: VIZENTINL, Paulo (coords.). Neonazisine, negacionismo e exiremisino politico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000, pp. 17-46. Disponivel em: , Acesso ems 25 set. 2020. LIPSTADT, Deborah, Negagiiy; uma histdria real. 540 Paulo; Universo dos Livros, 2017, 110 L L L “POGT ‘IXX oyfig ssauyy souang ‘vuowam v] ap soursasy so] “aad “LANOVN-TVIA 2007 ‘dwestup ep eroppy :seurduies ‘ojuandoenbsa o ‘vaopsny v ‘vuoMa Y “Ne “NAIM “6861 ‘EU Z“A ‘OMaUL| ap ory ‘SOdLO/SIF] SOpnysy *,1DUaTIS ‘oWAUTDaNbsa ‘euOWAY,, “PEYSTA “WT1Od “L60TEFUZAGOT 9SEE-FREL/ELFS OLIOP “9GEC-FRET. NSST "6007 ‘eci-z60t “dd “Zo cu “p cA ‘sasayyUy “,PLOISIY EP opSedyIsTEy & a owsuopeseu o :edysnl 3a euOWway, “elapre> UuoTIPO ‘OLAN ‘UZ0 Mo ¢ ua Osseo “ sua jaaruodsiq ‘T[9¢ Tl *yndury :omeg oes "wLo/syH ap JPUODUN orspduns TAXX op stouy * ,opessed 0 argos eyLDse ep apepniy 9] ep ewajqoid o 3 owstuoDedau O,, “ezMos ap opunuIpy si] ‘SAVAON “OZ0Z “3S CZ sla ossady “ ‘ue [aajuodsiq “F¢-GL1 “dd ‘p07 ‘SONAN ep eioyipy :aiZapy oo “ooytod owsnuaiyxa a owstmuot$au ‘ousizpucaNy ‘(spiooa) ome ‘INLLNAZIA ‘SM] ‘NVINTIW ‘UT ‘Tenyraouo3_ orp -pouas op oyuauapoauasap a aseugd :owstuopesan_ sm] ‘NVI IXX 019595 ON OSTHYOLSIH OWSINOISIATY J ONSINOIDV9SIN

Você também pode gostar