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Este artigo é uma versão sintética

de trabalhos anteriores. Para visão


mais aprofundada da discussão,
ver: Brasil a Vapor. Raça, Ciência e
Viagem no XIX, tese de livre-docên-
cia inédita, FFLCH/USP, 2005.
Uma perspectiva mais ampla dessa
expedição pode ser encontrada
também na visão crítica construída
por William James, que participou
da Expedição Thayer na juventude,
no papel de coletor-voluntário. Para
tal, ver: M. H. P. T. Machado (ed.),
Brazil Through the Eyes of William
James. Letters, Diaries, and Draw-
ings, 1865-1866.

MARIA HELENA PEREIRA TOLEDO MACHADO

฀ A฀ciência฀
฀ norte-americana฀
฀ visita฀a฀Amazônia:฀
฀ entre฀o฀criacionismo฀
฀ cristão฀e฀o฀
฀ poligenismo฀
“degeneracionista”

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MARIA HELENA
PEREIRA TOLEDO
MACHADO é professora
do Departamento de
História da USP e autora
de, entre outros, Brazil
Through the Eyes of
William James. Letters,
Diaries, and Drawings,
1865-1866 (David
Rockefeller Center for
Latin American Studies/
Harvard University Press).

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uma ciência edificante e cristã, atraíam
LOUIS AGASSIZ: UMA CIÊNCIA multidões que se deliciavam em ouvir as
carismáticas apresentações do professor
CRIACIONISTA? que sempre acabavam por sublinhar o
maravilhoso papel do Criador na variedade
das formas da natureza1.
Em suas palestras Agassiz sublinhava
ntre 1865-66 percorreu o a existência de uma intenção divina que
Brasil uma das mais conhe- atuava diretamente, por meio das suces-
cidas expedições científicas, sivas catástrofes e recriações do mundo.
a Expedição Thayer, liderada Nessa visão, como ente privilegiado, ao
pelo cientista de origem suí- cientista cabia desvendar o plano divino
ça Louis Agassiz (1807-73). por meio da observação científica da natu-
Apesar de sua origem euro- reza. Destinado a esclarecer os desígnios
péia, o Agassiz que aportou divinos, o cientista deveria ler na “bíblia
no Rio de Janeiro na década da natureza” os caminhos traçados pela
de 1860 era, em realidade, onisciência divina, assim ocupando o lugar
um dos principais nomes da tradicionalmente reservado aos teólogos
ciência naturalista norte-ame- e pastores. Dessa forma, se por um lado
ricana. De fato, tendo imigra- Agassiz decididamente se alinhava no
do para os EUA na década de 1840, Louis campo daqueles que consideravam a ciência
Agassiz havia construído em terras ameri- empírica como a chave do conhecimento,
canas uma notável carreira como cientista, por outro ele imediatamente se reconciliava
professor da Lawrence School, ramo da com as visões metafísicas e religiosas que
Harvard University dedicado aos estudos buscavam interpretar, no livro da natureza,
científicos, fundador e diretor do reconhe- os desígnios divinos2.
1 Ver, por exemplo: M. H. Macha- cido Museu de Zoologia Comparada da Assim sendo, a visão de Agassiz cla-
do, “An American Adam in the
Amazonian Garden of Eden”, mesma universidade. ramente se atrelava a uma perspectiva
in Brazil Through the Eyes of Porém, além de sua carreira científica pré-moderna ou platônica da ciência, cujas
William James, pp. 25-6.
propriamente dita, Agassiz havia se tor- diretrizes se reportavam às certezas, como a
2 Edward Lurie, Louis Agassiz.
A Life in Science, Baltimore, nado um dos mais famosos divulgadores da existência de tipos ideais, e, sobretudo,
The Johns Hopkins University de uma ciência cristã, que buscava esta- na reafirmação da precedência da idéia ou,
Press, 1988, pp. 31-70; Louis
Menand, The Metaphysical belecer os laços entre o finalismo estático em outras palavras, do plano divino sobre a
Club. A Story of Ideas in
America, New York, Farrar proveniente do pensamento religioso e realidade do mundo natural. Segundo ele,
Straus and Giroux, 2001, pp. transcendentalista que animava os meios por exemplo, as espécies eram “categorias
97-116; Lorelai Kury, “A Sereia
Amazônica dos Agassiz: Zoo- intelectuais da época e os procedimentos de pensamento corporificadas em formas
logia e Racismo na Viagem ao de uma ciência naturalista moderna. Tendo de vida individuais”, sendo a tarefa do
Brasil (1865-1866)”, in Revista
Brasileira de História, vol. 21, se fixado na Nova Inglaterra, mais especi- naturalista a de desvelar os “pensamentos
no 41, 2001, pp. 157-72.
ficamente em Cambridge, Massachusetts, do Criador do Universo, manifestos nos
3 Louis Agassiz, Contributions to
the Natural History of the United
desde sua chegada, Agassiz havia incor- reinos animais e vegetais”3. Notemos que
States of America, 1857-62, porado um papel que pode explicar seu sua defesa da proeminência da interpretação
apud L. Menand, The Meta-
physical Club…, op. cit., p. retumbante sucesso, que o catapultou, em científica sobre explicações religiosas havia
128. poucos anos, ao nível de mais notável e lhe fornecido a necessária independência
4 Louis Menand, The Metaphysi- popular cientista da América do Norte: o tanto para discutir a teoria da glaciação
cal Club…, op. cit., pp. 97-
116; E. Lurie, Louis Agassiz…, de divulgador de uma ciência idealista e da Terra em termos de milhões de anos
op. cit., pp. 97-106 (sobre a cristã, que reafirmava as crenças do cria- (negando os meros 5.000 anos propostos
atuação de Agassiz no campo
da geologia, especialmente cionismo, ao mesmo tempo que empregava pela interpretação mosaica) como para
pp. 99-100). Entre a extensa
bibliografia sobre o tema, subli- uma linguagem vanguardista, recheada de assumir, em termos raciais, a teoria polige-
nho: David C. Smith, Harrold nomes técnicos e alusões a procedimentos nista, proposta pelos defensores do racismo
W. Borns Jr.,“Louis Agassiz, The
Great Deluge, and Early Maine científicos. Nessa linha, as palestras pro- científico norte-americano, e cujos preceitos
Geology”, in Northeastern feridas por Agassiz no Lowell Institute harmonizavam-se ao criacionismo, questão
Naturalist, vol. 7, n. 2, 2000,
pp. 157-77. de Boston, voltadas para a divulgação de que discutiremos à frente4.

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Reprodução
Conforme aponta Louis Menand, ao “Tableau to
abraçar a teoria da recapitulação, isto é, de
que a ontogênese recapitula a fitogênese,
Accompany Prof.
o pensamento de Agassiz também assumia Agassiz’s ‘Sketch’”,
bases profundamente hierárquicas, uma in Josiah Nott,
vez que ele acreditava que os seres mais
evoluídos, em seu evolver, haviam tran- Types of Mankind:
sitado temporariamente por estágios mais or, Ethnological
rudimentares, nos quais os seres destinados
Researches, Based
à inferioridade permaneceriam por toda
a existência. Nesse sentido, a cadeia dos Upon the Ancient
seres estava organizada segundo uma linha Monuments,
hierárquica de complexidade crescente.
Paintings,
Igualmente, ao buscar confirmar a proe-
minência do tipo ideal ou das categorias Sculptures,
fixas sobre as mudanças, o pensamento de and Crania of
Agassiz mantinha-se estático. E, finalmente,
Races, and Upon
ao negar a existência de conexões entre as
diferentes espécies em termos sincrônicos Their Natural,
e diacrônicos, seu pensamento era essen- Geographical,
cialmente não-relacional5.
Philological, and
No entanto, é preciso compreender bem
como Agassiz conectava aspectos díspares Biblical History,
em sua concepção grandiosa da ordenação Philadelphia,
e destino do mundo natural. Embora for-
mado na universidade suíça de Zurique e
Lippincott,
nas germânicas de Heidelberg e Munique, Grambo & Co.,
na década de 1820, nas quais a Natur-Phi- 1854
losophie era a tônica principal, desde logo
Agassiz se insurgiu contra o idealismo dos Baptist von Spix, companheiro de Martius
mestres, buscando na orientação de Geor- na viagem da missão austríaca ao Brasil, que
ges Cuvier, naturalista francês, os métodos havia permanecido inédita devido à morte
que lhe permitissem enfocar o estudo do inesperada de Spix em 1826. Tão preciso foi
mundo natural a partir de instrumentos o estudo desenvolvido pelo jovem estudante
analíticos empíricos, superando as visões que, em 1829, o trabalho saiu publicado com
abstratas e generalizadoras derivadas do o título Peixes do Brasil, qualificando-o
idealismo. Além disso, ao alistar-se na precocemente para vôos mais altos.
Universidade de Munique como aluno de A partir de 1832, ano em que Agassiz
botânica do famoso naturalista-viajante estagiou no Museu Nacional de Ciências
Carl Friederich von Martius, que nos anos Naturais de Paris – o conhecido Jardin des
de 1817-20 havia empreendido a primeira Plantes –, no qual atuava seu mentor, Agas-
grande viagem naturalista pelos territórios siz incorporou o esquema teórico-analítico
da então colônia portuguesa do Brasil, o de Cuvier. A visão de Cuvier negava a fluidez
jovem Louis Agassiz teve logo oportunidade e a interconexão genética das diferentes es-
de se enfronhar nos estudos da natureza e pécies entre si, propondo uma classificação
dos seres tropicais6. do mundo natural em quatro ramos estáticos
5 L. Menand, The Metaphysical
Demonstrando especial dote para o e não-inter-relacionados. Ao interpretar o Club…, op. cit., pp. 106, 108,
ofício de naturalista, já em 1829, o jovem mundo natural de forma não-dinâmica, o 127-8.

estudante alcançava seu primeiro grande esquema explicativo concebido por Cuvier 6 Sobre Martius ver: Karen Mac-
know Lisboa, A Nova Atlântida
êxito. Seguindo a autorização do mestre, pressupunha uma descrição empírica mi- de Spix e Martius: Natureza e
Agassiz estudou minuciosamente a coleção nuciosa dos seres observados, uma vez que Civilização na Viagem pelo
Brasil (1817-1820), São Paulo,
brasileira de peixes coletada por Johann cada espécie era única em si mesma e o co- Hucitec, 1997.

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Reprodução
“Head of que se colocava acima de qualquer restrição
ou crítica, agindo em termos da política
Alexandrina”,
acadêmica e científica de forma autoritária
xilogravura e exclusivista. No entanto, a década de 1860
a partir de um não o poupou. À medida que os cientistas
norte-americanos passaram a considerar hi-
desenho de
póteses derivadas do evolucionismo, levando
William James seus trabalhos a foros acadêmicos, Agassiz
(“Professor passou a reagir de maneira discricionária,
negando-se a considerar adequadamente
and Mrs. Louis
aqueles colegas que estavam explorando
Agassiz”, in A hipóteses que o contradiziam.
Journey in Brazil, A falta de disponibilidade acadêmica
de Agassiz de colocar-se em uma posição
Boston, Ticknor
menos arrogante, permitindo-se discutir
and Fields, 1868) de forma apropriada trabalhos que consi-
deravam novas hipóteses, havia começado
nhecimento de uma não autorizava qualquer a resultar em críticas do meio acadêmico
injunção sobre a estrutura de outra. Além em direção a uma figura tão eminente, mas
disso, rezava Cuvier, o mundo havia sofrido que demonstrava tão pouca disposição de
inúmeras catástrofes nas quais as espécies espírito científico. Além disso, no início
que o povoavam haviam completamente pe- da década, Agassiz havia sofrido uma re-
recido, sendo em seguida outras criadas pela volta de alunos-pesquisadores do museu,
mão divina7. Dessa forma, não só na ordem desgostosos com a política acadêmica
sincrônica, mas também na diacrônica, não encetada pelo mestre, que havia resultado
existia conexão entre os seres que viceja- em uma disputa a respeito da autoria dos
vam na face da Terra, peremptoriamente trabalhos científicos produzidos nos quadros
negando aquilo que Mayr denominou como da instituição10.
a narrativa histórica das ciências biológicas8. As crescentes dificuldades enfrentadas
Agassiz absorveu o esquema do mestre que, por Louis Agassiz no ambiente acadêmico
ao mesmo tempo, ratificava o caráter idea- norte-americano e sua saúde debilitada es-
lista-estático do mundo natural e valorizava tiveram na base de sua tempestuosa decisão
a pesquisa empírica. de empreender a viagem ao hemisfério sul.
No que concerne à pesquisa ictiológica, o
objetivo da expedição era confirmar a teo-
A EXPEDIÇÃO THAYER: 1865-66 ria criacionista, cujo princípio escorava-se
na idéia da existência de uma distribuição
Foi no contexto dos debates acadêmicos peculiar das espécies por região do globo,
norte-americanos, engendrados pela crescen- distribuição esta que espelhava os desígnios
7 Entre outros, ver: E. Lurie, Louis te difusão e aceitação de teorias dinâmicas a divinos quanto à vocação de cada região da
Agassiz…, op. cit., p. 99.
respeito da origem e evolução da vida, nas Terra. Já a comprovação da glaciação das
8 Ernst Mayr, Biologia, Ciência quais o darwinismo surge como momento áreas tropicais viria a referendar a hipótese
Única, São Paulo, Companhia
das Letras, 2005, pp. 40 e definitivo, que se organizou a Expedição de Agassiz a respeito da existência de uma
48.
Thayer9. Como notou o principal biógrafo, série de catástrofes climáticas enfrentadas
9 Para contextualizar esse mo-
mento ver, entre outros: Bert
Edward Lurie, nos anos de 1860 Agassiz pela Terra, cujas conseqüências teriam sido
James Lowenberg, “The Reac- havia incorporado em si mesmo a idéia de a destruição de todas as espécies e a recria-
tion of American Scientists to
Darwinism”, in The American uma ciência norte-americana, que, trazida ção delas pela vontade divina. A conclusão
Historical Review, vol. 38, n. da Europa, se enraizara no solo prolífico da precípua dessa teoria era a negação da teoria
4, 1933, pp. 687-701.
América do Norte, tornando-se representante da evolução.
10 Mary Winsor, Reading the
Shape of Nature.Comparative de um tipo de nacionalismo-expansionista ca- Os objetivos da expedição ao Brasil não
Zoology at Agassiz Museum, racterístico do século XIX. Como tal, Agassiz se esclarecem totalmente se não levamos
Chicago, University of Chicago
Press, 1991, pp. 43-65. havia imaginado a si próprio como alguém em conta os aspectos menos aparentes desse

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empreendimento. Por trás do discurso pú- geiros13. E ele assim o fez, conseguindo
blico do cientista-viajante tecia-se um outro do imperador a promessa de abertura da
discurso que ligava Agassiz aos interesses navegação, que foi realizada pelo decreto
norte-americanos na Amazônia, conectado a de 7 de dezembro de 186614.
duas linhas de ação diplomática e de grupos
de interesses: uma primeira, à política da
navegação fluvial e abertura do Amazonas à LOUIS AGASSIZ: UMA CIÊNCIA DA
navegação internacional, e uma segunda, aos
projetos de assentamento da população negra RAÇA?
norte-americana, como colonos ou aprendi-
zes, na várzea amazônica11. Não que Agassiz No entanto, outro grande fantasma ron-
tenha pessoalmente montado o esquema da dava Louis Agassiz, assombrando a Expe-
viagem para realizar um trabalho diplomático dição Thayer desde seus inícios. Era este o
de proselitismo dos interesses norte-ameri- crucial problema da raça e o envolvimento
canos na Amazônia. Mas, bem ao seu estilo, do líder da expedição com o racialismo em
ele não perdeu a oportunidade de colocar-se sua forma mais virulenta, caracterizado pelo
em posição de influência, tornando a viagem poligenismo, hibridismo, segregacionismo
ao Brasil, organizada no contexto da Guerra e expulsão dos afro-americanos do território
Civil, ocasião para influenciar positivamente norte-americano. Ao lado dos estudos da
Pedro II, com o qual Agassiz trocava cor- fauna marítima e da geologia, uma das preo-
respondência desde 1863, com relação aos cupações de Agassiz ligava-se ao estudo
projetos de abertura da Amazônia12. das raças humanas.
Pelo lado político, a expedição recebeu Desde sua chegada aos EUA, no meio da
apoio oficial do governo norte-americano, década de 1840, o cientista havia se envol- 11 Nícia Vilela Luz, A Amazônia
para os Negros Americanos.
que esperava utilizar da amizade epistolar de vido no debate norte-americano a respeito Origens de uma Controvérsia
Internacional, Rio de Janeiro,
Agassiz com Pedro II para contrabalançar a das raças, tendo se alinhado primeiramente Saga, 1968; Arthur Cezar
influência européia sobre a diplomacia bra- ao lado dos poligenistas (isto é, aqueles Ferreira Reis, A Amazônia e a
Cobiça Internacional, Rio de
sileira, que até ali havia conduzido a posição que acreditavam que a humanidade não era Janeiro, Limitada, 1965, pp.
do Brasil frente à Guerra Civil, redundando una, mas formada por diferentes espécies, 60-85. Ver também: Whitfield J.
Bell Jr., “The Relation of Herndon
numa posição na qual o Brasil reconhecia tendo havido mais de uma criação divina, and Gibbon’s Exploration of the
Amazon to North American
o sul confederado como parte beligerante posição a qual ele nunca abdicou) e, mais Slavery”, in Hispanic American
(e não apenas em rebelião), justificando a tarde, abraçado a teoria da degeneração, Historical Review, vol. 19, no 4,
Nov., 1939, pp. 494-503.
neutralidade brasileira. A posição diplo- que rezava que a miscigenação entre as
12 David James, “O Imperador
mática do Brasil que reconhecia a Confe- diferentes raças humanas ou o hibridismo do Brasil e Seus Amigos da
deração como parte beligerante justificava levava à degenerescência. A base dessa Nova Inglaterra”, in Separata
do Anuário do Museu Imperial,
a tolerância na entrada de navios sulistas crença era que as “raças cruzadas”, ao invés vol. XIII, 1952.
que procuravam os portos brasileiros para de carregarem as melhores características 13 Lawrence F. Hill, Diplomatic
abastecimento. O secretário de Estado dos de seus ancestrais, levavam a que traços Relations Between the United
States and Brazil…, ver cap.
EUA, William Seward, entregou aos cui- atávicos viessem à superfície, expondo os IV, “The Diplomacy of Two
New Yorkers”, pp. 146-76; ver
dados de Agassiz cartas confidenciais diri- descendentes de uniões mistas a todos os também: M. H. P. T. Machado,
gidas a James Watson Webb, representante riscos de uma progressiva degenerescên- Brasil a Vapor, op. cit., e Brazil
Through the Eyes…, op. cit.
norte-americano no Brasil, amigo pessoal cia. É importante notar que Agassiz esteve Sérgio Buarque de Holanda,
de Seward e organizador de um malogrado envolvido no debate a respeito da raça no em prefácio ao livro de Nícia
Vilela Luz (op. cit.), discute
empreendimento de assentamento de negros ambiente norte-americano, defendendo esse evento. Atualmente Maria
Clara Carneiro Sampaio realiza
norte-americanos na Amazônia. Embora a tanto o abolicionismo – sendo ele partidá- pesquisa sobre esse episódio.
expedição tenha chegado ao Rio de Janeiro rio da abolição da escravidão – quanto a A localização, nos arquivos do
Itamaraty e da Universidade
após o final da Guerra Civil, tornando essa segregação das raças. de Yale (New Haven, CT), de
faceta diplomática francamente obsoleta, O que é notável em tudo isso é que, documentação inédita resultará
em nova perspectiva histórica
Agassiz não deixou de realizar uma missão desde praticamente a sua chegada a Cam- do citado empreendimento.
política delicada, de pressionar amigavel- bridge, Agassiz havia se envolvido com os 14 Lawrence F. Hill, Diplomatic
mente o governo brasileiro para abrir a baluartes da tese da inferioridade racial. Relations Between the United
States and Brazil…, op. cit.,
navegação da Amazônia aos navios estran- Homens como Samuel George Morton e pp. 237-8.

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Josiah Nott, que publicaram o grosso dos movement. Este último, inspirado em idéias
estudos craniométricos racistas nas décadas que associavam um forte nacionalismo à
de 1840 e 1850, haviam se tornado corres- supremacia da raça branca ou anglo-saxô-
pondentes e anfitriões de Agassiz em cartas, nica nas terras norte-americanas, advogava
passeios culturais e palestras apresentadas a homogeneidade racial como condição
para públicos de senhores de escravos e para a sobrevivência nacional. Esse tipo
simpatizantes no Sul15. Mais ainda, Agas- de formulação, mais comum no Norte do
siz, não fazendo nenhum mistério de sua que no Sul (o qual, obviamente dependia
adesão ao racismo científico, havia, a partir da mão-de-obra negra e, portanto, mostra-
da influência de Morton, aderido ao poli- va-se menos inclinado a abrir mão dela),
genismo, ainda na década de 1840. A idéia embora propugnasse a abolição, via como
de que as diferentes raças humanas houves- solução final ao problema da presença da
sem sido criadas para habitar “províncias raça negra no conjunto da nação a emigração
zoológicas” específicas, estando, portanto, coletiva ou, pelo menos, a segregação dos
aptas a responder apenas aos desafios de afro-americanos em um cinturão de clima
seu meio ambiente, encontrava sua base quente e semitropical no Sul, no qual os
no poligenismo e moldava-se com perfei- negros viveriam o mais apartados possível
ção à teoria de Agassiz do criacionismo, do âmbito político nacional, sempre sob a
cuja idéia fundamental escorava-se numa tutela de uma população branca que fis-
visão estática do mundo natural. Assim, a calizaria o trabalho e a vida dos mesmos.
adesão de Agassiz tanto ao poligenismo Com isso, acreditavam os defensores da
15 Samuel George Morton, Crania quanto à teoria da degeneração das raças incompatibilidade da convivência da raça
Americana; or, A Comparative pelo hibridismo, concebida e defendida nos negra com a civilização, os negros seriam,
View of the Skulls of Various
Aboriginal Nations of North EUA por Josiah Nott, médico que atuava ao menos, impedidos de cometer danos
and South America. To Which
Is Prefixed an Essay on the em Mobile, Alabama, sob o argumento de irreparáveis ao corpo da nação, uma vez
Varieties of the Human Spe- que o cruzamento das raças produzia uma que assim se preveniria, pela proibição
cies, Philadelphia/London, J.
Dobson/Simpkin/Marshall, descendência biologicamente enfraquecida legal, o “mulatismo” (isto é, o casamento
1839; e Crania Aegyptiaca; e com acentuadas tendências à esterilidade, inter-racial) e mesmo a mera convivência
or, Observations on Egyptian
Ethnography, Derived from surgia como passo natural a referendar a entre brancos e negros18.
Anatomy, History and the
Monuments, Philadelphia, J. interpretação criacionista e hierárquica do Desde os anos de 1840, circulavam no
Penington, 1844; Josiah Clark mundo natural, desde sempre esposada pelo Sul e no Norte propostas de “repatriação” ou
Nott, Types of Mankind: or,
Ethnological Researches, Based mestre naturalista16. emigração dos negros norte-americanos para
Upon the Ancient Monuments, Agassiz não apenas aderiu à american a África, a América Latina e o Caribe. E não
Paintings, Sculptures, and
Crania of Races, and Upon school of ethnology, defensora da interpre- por acaso, Agassiz, como um dos criadores
Their Natural, Geographical,
Philological, and Biblical His- tação racialista, mas passou, nas décadas da teoria das províncias zoológicas, advogava
tory; Illustrated by Selections de 1840 e 1850, juntamente com Morton e fortemente a idéia de que a raça negra havia
from the Inedited Papers of
Samuel George Morton… and Nott, a compor o triunvirato que comandou sido criada para colonizar especificamente
by Additional Contributions a abordagem racialista-poligenista – defen- áreas tropicais, áreas estas totalmente ina-
from Prof. L. Agassiz, LL.D., W.
Usher, M.D., and Prof. H. S. Pat- sora da segregação por meio do ataque ao dequadas para a sobrevivência e o labor do
terson, Philadelphia, Lippincott
Grambo & Co., 1854. hibridismo ou mulattoism (“mulatismo”), homem branco19. Nota-se que os projetos
16 L. Menand, The Metaphysical
como os cientistas racialistas da época que visualizavam a transferência maciça
Club…, op. cit., cap. “Agas- gostavam de se referir à questão da misci- de afro-americanos para áreas coloniais ou
siz”, pp. 97-116.
genação entre brancos e negros17. periféricas corriqueiramente lançavam mão
17 George M. Fredrickson, The
Black Image in the White Mind. Entre as complexas e contraditórias do argumento da compatibilidade da raça
The Debate on Afro-American idéias, tendências e posições a respeito da negra aos trópicos para tingir iniciativas de
Character and Destiny, 1817-
1914, Hanover, NH, Wesleyan escravidão e da raça que circularam tanto expulsão dos negros do país com tons róseos
University Press, 1987, pp. no Sul quanto no Norte entre os anos que da filantropia. Argumentavam os defensores
86-7.
precederam e acompanharam a Guerra da imigração forçada ou estimulada que a
18 Idem, ibidem, pp. 130-64.
Civil americana, Agassiz parece ter se felicidade da raça negra dependia de seu
19 M. H. P. T. Machado, Brasil a Va-
por, op. cit., pp. 50-71; George identificado e contribuído para duas grandes enraizamento em seu ambiente natural, isto
M. Fredrickson, The Black Image linhas de pensamento racialistas, a já citada é, nas áreas de clima quente, pois apenas aí
in the White Mind…, op. cit.,
pp. 138-45. american school ethnology e o free soil ela poderia prosperar.

74 REVISTA USP, São Paulo, n.75, p. 68-75, setembro/novembro 2007

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Reprodução
a respeito dos perigos da degeneração, de “Mina Negress
forma que pudessem ser veiculados em
and Child”,
sua volta aos EUA. De fato, ele assim o
fez ao recolher uma expressiva coleção de xilogravura a
fotografias que documentaram as mazelas partir de uma
das raças puras e híbridas no Rio de Janeiro
fotografia de
e Manaus, coleção que permanece até hoje
praticamente inédita, dado o seu caráter Augusto Stahl
francamente racialista21. (“Professor
Frente a essas questões, vê-se que a or-
and Mrs. Louis
ganização e a partida da Expedição Thayer
para o Brasil nos anos de 1864-65 não se Agassiz”, in
deram num clima que poderíamos chamar A Journey in
apropriadamente de inocente. Passeando
Brazil, Boston,
pelo éden amazônico, a Expedição Thayer
devassaria a Amazônia, apropriando-se dos Ticknor and
peixes, das rochas e capturando imagens dos Fields, 1868)
mestiços e mestiças amazônicos, fotografa-
dos nus em poses dúbias, congelados como
exemplos da degeneração racial, em nome
20 Como afirmou o já mencionado
da construção de um inventário dos perigos J. Watson Web, plenipoten-
da miscigenação. Mais uma vez, era ao Sul ciário norte-americano no Brasil
ao tempo da estadia de Agas-
escravista que a Expedição Thayer se re- siz, para o qual este entregou
correspondência reservada
portava, didaticamente elaborando o rol dos do secretário de Estado W.
horrores do hibridismo. Além disso, o papel Seward, autor de projeto de
A EXPEDIÇÃO THAYER E SEU a que Agassiz provavelmente se prestou em
transferência da população
liberta norte-americana para a
sua volta aos EUA, de estimular a imigração Amazônia, “Os Estados Unidos

LEGADO norte-americana para o Brasil, refletiu-se na


serão abençoados pela ausên-
cia (dos negros), livrando da
maldição que por bem pouco
vinda de grupos de confederados. Em suas não o levou à destruição; o
Como se vê, a orientação científico- memórias, alguns comentaram, por exem- Brasil irá receber exatamente o
tipo de trabalhador e cidadão
filosófica do líder da Expedição Thayer plo, que as otimistas idéias divulgadas por melhor preparado para desen-
funcionava como justificativa para seu Agassiz sobre a colonização da Amazônia volver seus recursos […]” (apud
Lawrence F. Hill, Diplomatic
envolvimento nos debates político-ideoló- haviam sido o fator determinante da escolha Relations Between the United
States and Brazil…, op. cit.,
gicos de seu tempo, permitindo que se com- do país e província de destino22. pp. 161-2, tradução minha).
preenda a atuação de Agassiz e os próprios Envolta em múltiplos interesses, a 21 Uma discussão aprofundada
objetivos da expedição que veio ao Brasil Expedição Thayer esteve longe de pos- sobre aspecto específico da
expedição, a partir do ponto
de maneira bem mais ampla. suir apenas um perfil científico. Apesar de vista de William James,
Nesse sentido, a viagem de Agassiz ao disso, uma análise mais de profundidade encontra-se em meu ensaio “An
American Adam in the Amazo-
Brasil adquire novos significados. Além da das características da expedição mostra nian Garden of Eden” (op. cit.,
pp. 40-8). Entre outros projetos
antiga vinculação ideológica de Agassiz que foi a decidida adesão de seu líder ao relativos à Expedição Thayer,
aos projetos expansionistas, que na década criacionismo que justificou os aspectos estudo a possibilidade de
publicar essa coleção fotográ-
de 1850 haviam visualizado a imigração extracientíficos adquiridos pela expedição. fica em catálogo. O projeto
forçada ou voluntária de negros do Sul dos Como um Adão norte-americano, Agassiz encontra-se em negociação
com o Peabody Museum da
EUA para áreas tropicais da América Lati- percorreu o Brasil, sobretudo a Amazônia, Harvard University.
na, especialmente para a Amazônia, como acreditando possuir o poder de determinar, 22 Sobre a propaganda feita por
solução para o problema interno da raça, o em muitos sentidos, o destino do paraíso Agassiz do país como terra
prometida para imigração,
Brasil oferecia também oportunidade para tropical sul-americano. Aqui, o naturalismo ver: Louis Agassiz, “La Vallée
des Tropiques au Brésil”, in
que Agassiz, em sua estadia, recolhesse criacionista de Agassiz aparecia como mais Revue Scientifique, (2) vol. 6,
provas materiais da degeneração, provocada do que uma mera teoria sobre a origem da 1874, pp. 937-43. Sobre a
imigração dos confederados,
pelo “mulatismo”, tão comuns na popula- vida. De fato, surgia como a verdadeira ver: Eugene C. Harter, The Lost
ção brasileira, fortemente miscigenada20. expressão da verdade divina. Nada podia Colony of the Confederacy,
Texas, A&M University Press,
Essa iniciativa havia de muni-lo de dados ser mais contrário à ciência. 2000, p. 49.

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