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Os Magros RI

Obrigado por compartilhar esta importante história. É notável o empenho do professor Vitor Hugo Fernandes Martins em divulgar e estudar a obra de Euclides Neto. A publicação deste livro é uma forma de honrar seu trabalho e legado, além de ajudar a dar mais visibilidade a um autor baiano importante. Que sua paixão pela literatura continue inspirando novas gerações de pesquisadores.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Os Magros RI

Obrigado por compartilhar esta importante história. É notável o empenho do professor Vitor Hugo Fernandes Martins em divulgar e estudar a obra de Euclides Neto. A publicação deste livro é uma forma de honrar seu trabalho e legado, além de ajudar a dar mais visibilidade a um autor baiano importante. Que sua paixão pela literatura continue inspirando novas gerações de pesquisadores.
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OS MAGROS

Universidade do Estado da Bahia - UNEB

José Bites de Carvalho


Reitor
Marcelo Duarte Dantas de Ávila
Vice-Reitor

Editora da Universidade do Estado da Bahia - EDUNEB


Diretora
Sandra Regina Soares

Conselho Editorial
Titulares Suplentes
Alan da Silva Sampaio Eduardo José Santos Borges
Cláudio Alves de Amorim Marluce Alves dos Santos
Darcy Ribeiro de Castro Maristela Casé Costa Cunha
Elizeu Clementino de Souza Minervina Joseli Espínola Reis
Gabriela Sousa Rêgo Pimentel Agripino Souza Coelho Neto
Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios Marilde Queiroz Guedes
Luiz Carlos dos Santos Nilson Roberto da Silva Gimenes
Maria das Graças de Andrade Leal Márcia Cristina Lacerda Ribeiro
Monalisa dos Reis Aguiar Pereira Andrea Betânia da Silva
Reginaldo Conceição Cerqueira Marcos Antonio Vanderlei
Rosemary Lapa de Oliveira Cesar Costa Vitorino
Rudval Souza da Silva Mônica Beltrame
Simone Leal Souza Coité Célia Tanajura Machado
Valquíria Claudete Machado Borba Elizabeth Gonzaga de Lima
Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)
Maria da Conceição Reis Teixeira
Harlle Silva Costa
Organizadores

OS MAGROS
EDIÇÃO CRÍTICA E ESTUDOS

Salvador
EDUNEB
2021
© 2021 Autores
Direitos para esta edição cedidos à Editora da Universidade do Estado da Bahia.
Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica,
resumida ou modificada, em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma.
Depósito Legal na Biblioteca Nacional.
Impresso no Brasil em 2021.

Coordenação Editorial
Fernanda de Jesus Cerqueira
Coordenação de Design
Sidney Silva
Capa, Ilustração e Diagramação
Rodrigo Caiobi Yamashita
Revisão Textual
Maísa Kawata | Tikinet
Revisão Textual de Provas
Julinara Silva Vieira Moitinho
Revisão de Diagramação de Provas
Henrique Rehem Eça
Imagem de Capa
Tburgey | FreeImages (textura de solo arado)
Andreas Krappweis | FreeImages (paisagem de fazenda)

FICHA CATALOGRÁFICA
Bibliotecária: Fernanda de Jesus Cerqueira – CRB 162-5

Os magros: edição crítica e estudos / Organizado por Vitor Hugo Fernandes Martins;
Maria da Conceição Reis Teixeira e Harlle Silva Costa. – Salvador: EDUNEB, 2021.

339 p.: il.

ISBN 978-65-89492-03-0

1. Literatura – História e crítica. 2. Memória na literatura. I. Martins, Vitor Hugo


Fernandes. II. Teixeira, Maria da Conceição Reis. III. Costa, Harlle Silva.

CDD: 801.95

Editora da Universidade do Estado da Bahia – EDUNEB


Rua Silveira Martins, 2555 – Cabula
41150-000 – Salvador – BA
[email protected]
portal.uneb.br
SUMÁRIO

Prefácio 7
Ana Valéria Fink

Apresentação 11
Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)
Maria da Conceição Reis Teixeira
Harlle Silva Costa

PARTE I

Os magros: edição crítica 19


Maria da Conceição Reis Teixeira

Texto crítico de Os magros 29


Maria da Conceição Reis Teixeira

PARTE II

A terra e o sujeito discursivo em Os magros:


uma relação de deslizamento de sentidos 221
Harlle Silva Costa
A fartura da linguagem 241
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

“Pelo buraco da fechadura”: uma leitura psicanalítica


de Os magros 265
Liz Maria Teles de Sá Almeida

Leitores e leituras de Os magros: das páginas dos jornais


à produção acadêmica 277
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

Angústia da influência: Graciliano Ramos (Vidas secas)


e Euclides Neto (Os magros) 303
Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)

Euclides Neto: um narrador das roças e dos roceiros 317


Cid Seixas Fraga Filho

O pai Euclides Neto 333


Denise Teixeira

Sobre os autores 337


PREFÁCIO

A publicação de Os magros: edição crítica e estudos é um dos últi-


mos projetos do professor Vitor Hugo Fernandes Martins. Apesar de
não ter medido esforços para preparar esta edição especial da obra
de Euclides Neto, reunindo diferentes pesquisadores e enviando o
material para editoras, a vida não lhe deu tempo para ver seu sonho
concretizado. Mas agora, graças ao empenho de amigos, colegas e
gestores da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), especialmen-
te daqueles que trabalham no Departamento de Ciências Humanas
e Tecnologias, local onde atuou como professor de literatura, o seu
objetivo de publicar o volume se realiza.
O professor Vitor Hugo, licenciado e bacharel em Letras
(Português-Literatura) pela Universidade Gama Filho, no Rio de
Janeiro, e doutor em Literatura Brasileira pela Unesp de São José do
Rio Preto, residiu e lecionou no Paraná, Pará, Rondônia, Distrito
Federal, Goiás e Tocantins. Seu ímpeto cigano não lhe dava parada,
levando-o a não permanecer por mais que um lustro em um mesmo
lugar. Mas foi na Bahia que sua alma se aquietou. Chegando à cidade
de Ipiaú para trabalhar no Campus XXI da UNEB, segundo ele
mesmo relatava, deparou-se no dia seguinte com um livro de um es-
critor grapiúna, ainda para ele desconhecido, numa banca de jornal.
Era o romance Os magros, de Euclides Neto. Foi amor à primeira
lida. E justamente esse encontro com a literatura de Euclides e, mais
tarde, com a biografia do autor, que motivou o professor a lançar
âncora em Ipiaú.
VH, como o professor era conhecido entre seus alunos, con-
tava que, ao ler Os magros, percebeu estar diante de uma literatura

7 |
Vitor Hugo Fernandes Martins | Maria da Conceição Reis Teixeira |
Harlle Silva Costa (Organizadores)

vibrante, essencialmente telúrica, que não deixava nada a desejar


frente a um Jorge Amado, um Adonias Filho, baianos já consagrados
e conhecidos do grande público leitor. A partir desse livro, buscou
outros de Euclides Neto, e sua admiração só cresceu. Impactado
também com a história de vida do autor e com sua atuação política,
pensou ser de máxima necessidade divulgar sua obra, que, à época,
ainda se fazia de modo muito tímido. Idealizou, então, a criação do
Centro de Estudos Euclides Neto (CEEN) na UNEB - Campus XXI,
com o propósito de divulgar a obra euclidiana. Com o aval, inúme-
ros trabalhos acadêmicos passaram a ser produzidos, sempre com a
orientação de VH. Também, a partir da criação do CEEN, foi possí-
vel promover eventos e estudos conjuntos com outras universidades
da região grapiúna.
Rememorando as palavras do próprio Vítor Hugo:

se, por um lado, é certo que o legado de Euclides


Neto – advogado e político – é indelével que o digam
os ipiauenses; por outro, o romancista, contista,
cronista e memorialista Euclides Neto, infelizmente,
é pouco conhecido, mesmo na Bahia, mesmo em Ipiaú.
Não há exagero, portanto, em dizermos que não existe
quem não tenha, neste município e em outros da
região do Vale do Rio de Contas, um livro de Euclides
Neto, sempre com a devida e carinhosa dedicatória;
porém, lamentavelmente, esquecido em alguma
estante, entregue à poeira e às traças, jamais lido.
Por quê? Os porquês disso são muitos e certamente
dizem respeito, entre outros, é claro, à ordem cultu-
ral do município. Ipiaú, insistimos nesse ponto, tem
vocação agrária e não literária. Todavia, revanche do
destino, em terras ipiauenses, precisamente aí, surgiria
um dos grandes ficcionistas baianos, a princípio vin-
culado ao Modernismo, depois ao Pós-modernismo,
mas injustamente desconhecido ainda hoje.

| 8
PREFÁCIO

Esta edição especial da obra foi cuidadosamente – e, sem


dúvida, carinhosamente – planejada por Vitor, que, para sua efeti-
vação, dedicou muitas horas de sua vida. Tamanho era seu desejo
de ver o trabalho concluído que, por diversas vezes, apregoou que
não se aposentaria (apesar de haver adquirido o direito há muito)
enquanto não visse a obra publicada. Não houve tempo. Mas o em-
penho incansável do professor pelo reconhecimento da excelência
da literatura telúrica de Euclides Neto foi coroado nesta publicação
de Os magros: edição crítica e estudos. Minha reverência a todos que
possibilitaram esta dupla homenagem: ao romance e seu autor, e ao
leitor e pesquisador apaixonado pela obra euclidiana, Vitor Hugo
Fernandes Martins.

Ana Valéria Fink


Escritora e revisora de textos,
viúva do organizador Prof.
Vitor Hugo Fernandes Martins

9 |
APRESENTAÇÃO

Os magros: edição crítica e estudos é fruto do esforço imensurável


do professor Vitor Hugo, leitor assíduo, apaixonado e engajado em
despertar no leitor contemporâneo o interesse pelas narrativas do
escritor baiano Euclides José Teixeira Neto (1925-2000). Imbuído
desse propósito, convidou especialistas de áreas e vertentes teóricas
diferentes para ler o romance Os magros e produzir escritos versando
sobre o homem, o romance e o conjunto da obra. Nosso saudoso
professor desejava celebrar a maturidade do romance que, em 2011,
completava 50 anos de sua primeira publicação. Era necessário dar
mais visibilidade e arregimentar leitores mais aguçados e pesquisa-
dores que se debruçassem sobre o estudo da singular criação literária
do grapiúna Euclides Neto. Acreditava que a publicação do romance
acompanhado de estudos científicos contribuiria sobremaneira para
a difusão e o estímulo da leitura da obra euclidiana.
Como não poderia ser diferente, o olhar de especialistas me-
diados por lentes da linguística e da literatura resultou em um livro
com múltiplas abordagens guiadas por um único fio condutor: a nar-
rativa do romance em tela. Em função das especificidades dos textos,
a coletânea encontra-se organizada em duas partes, que visam esta-
belecer elos de unidade temática.
Na primeira, o centro e o motivo desta coletânea, o romance
Os magros recebe tratamento filológico, com a disponibilidade de
um texto fixado criticamente a partir da última edição publicada em
vida de seu autor. Na segunda parte, temos sete textos independentes
que versam sobre a linguagem, o discurso materializado na narrativa
euclidiana e a estética da recepção. Além de apresentar suas análises

11 |
Vitor Hugo Fernandes Martins | Maria da Conceição Reis Teixeira |
Harlle Silva Costa (Organizadores)

sobre o romance, os autores revisitam conceitos de abordagens di-


versas da análise do discurso, da teoria da recepção, dos estudos cul-
turais e da crítica literária produzida quando de sua publicação,
em 1961, até os dias atuais.
Em Os magros: edição crítica, Maria da Conceição Reis
Teixeira, no início da parte I e antes do texto crítico estabelecido
do romance, apresenta sucintamente notas que dão conta do seu
labor filólogo. O modelo editorial aplicado para a fixação do texto
crítico permite, ao leitor comum, desfrutar da narrativa euclidiana e,
ao leitor especializado, adentrar no universo da história de transmis-
são da obra quando este desloca seu olhar para o aparato crítico, onde
se encontram registradas as variantes textuais substanciais (autorais
ou não autorais) identificadas nas diferentes publicações que a obra
teve ao longo dos 50 anos de sua existência.
Harlle Silva Costa abre a segunda parte da coletânea nos brin-
dando com o texto “A terra e o sujeito discursivo em Os magros: uma
relação de deslizamento de sentidos”. Ancorada em operadores de lei-
tura da análise do discurso de linha francesa, filiada a Pêcheux (1997),
a autora analisa aspectos da construção discursiva que legitimam a tes-
situra dos sentidos evocados pela narrativa. Para tanto, discute sobre o
contexto narrativo e discursivo da obra, evidenciando os enunciados
que se relacionam às formações discursivas de escassez e abundância,
opressão e submissão passiva. Aborda ainda os deslizamentos de sen-
tido, os quais demarcam os posicionamentos ideológicos dos sujeitos
em face do embate das formações discursivas.
No terceiro texto, intitulado “A fartura da linguagem”, Tereza
Cristina Damásio Cerqueira, a partir da palavra facão e suas va-
riantes empregadas por Euclides Neto, para nominar o instrumento
de trabalho utilizado por João, personagem principal do romance,
discute as implicações da língua e da literatura como moduladoras do
discurso. Para suas reflexões, as quais levaram em consideração o con-
texto de enunciação, empregou alguns operadores de leitura da análise

| 12
APRESENTAÇÃO

do discurso de linha francesa, filiada a Pêcheux (1997), e de discur-


so literário de Maingueneau (1987). Observa que o dito e o não dito
são os fios condutores da trama dos tecidos literário e social. Destaca
ainda que, em Os magros, as posições do sujeito e o jogo discursivo se
manifestam dentro e fora da narrativa, o que corrobora para torná-lo
um romance engajado socialmente.
Em “‘Pelo buraco da fechadura’: uma leitura psicanalítica de
Os magros”, Liz Maria Teles Sá Almeida, em abordagem interdisci-
plinar, operando categorias analíticas da Psicanálise e da Literatura,
discute o conceito de fantasia freudiano a partir de um olhar cuida-
doso para o drama vivido por D. Helena, personagem do romance.
O estudo evidencia quanto as fronteiras do texto literário são íngre-
mes, quando os dilemas vividos por alguns personagens são analisa-
dos, por exemplo, com o que teorizou Freud (1976) sobre a fantasia.
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo, em “Leitores e leituras
de Os magros: das páginas dos jornais à produção acadêmica”, ana-
lisa a recepção crítica do romance produzida em diferentes épocas.
A autora, em sua investigação, reúne um conjunto de crítica jorna-
lística e acadêmica para, a partir de alguns conceitos da estética da
recepção lastreada em Jauss (1994), discutir “a implicação estética” e
“a implicação histórica” como de elementos mobilizados pelos críti-
cos que se debruçaram sobre a obra de Euclides Neto.
Vitor Hugo Fernandes Martins, em “Angústia da influência:
Graciliano Ramos (Vidas secas) e Euclides Neto (Os magros)”, estabe-
lece um paralelo entre os autores a partir da bio dos dois romancistas
brasileiros e a grafia que caracteriza a tessitura da narrativa de suas
obras. Em ambos, vida e romances, são identificados similitudes que
parecem resultar de jogo, conforme denominado por Bloom (2002),
de “angústia da influência”.
“Euclides Neto: um narrador das roças e dos roceiros” é o pe-
núltimo texto da segunda parte da coletânea. Nele, Cid Seixas Fraga
Filho avalia Os magros, situando-o no conjunto da obra de seu autor.

13 |
Vitor Hugo Fernandes Martins | Maria da Conceição Reis Teixeira |
Harlle Silva Costa (Organizadores)

Em sua análise, estabelece diálogos com autores contemporâneos de


Euclides Neto que produziram narrativa ficcional na Bahia durante o
século XX. Ao tratar particularmente do romance Os magros, afirma
que constitui-se em uma obra que deve ser lida e conhecida por mi-
lhares de leitores.
“O pai Euclides Neto”, como o próprio título nos sugere, é um
depoimento de um dos filhos do autor. Nele, Denise Teixeira nos
revela detalhes do homem, do pai amoroso, do avô terno que cercava
sua família de todos os cuidados para que, indistintamente, todos
pudessem desfrutar de sua companhia e amizade, o que os faziam se
sentirem seguros afetiva e emocionalmente.
Por fim, este livro assume caráter de dupla homenagem: os 50
anos de publicação do romance e o reconhecimento pelo trabalho do
professor e escritor Vitor Hugo no incansável esforço de fazer e pro-
mover a literatura. Se a leitura desta coletânea motivar outros estudos
e reflexões sobre Os magros, Euclides Neto e o conjunto de sua obra,
os organizadores e autores terão alcançado seus objetivos.

Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)


Maria da Conceição Reis Teixeira
Harlle Silva Costa

REFERÊNCIAS

BLOOM, Harold. A angústia da influência. Tradução de Marcos


Santarrita. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios (1907).
In: “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação da
história literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

| 14
APRESENTAÇÃO

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do


discurso. Campinas: Pontes, 1987.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69)”.
In: GADET, Françoise; HAK, Tony (org.). Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra de Pêcheux. 3. ed.,
Campinas: Editora da Unicamp, 1997. p. 61-151.

15 |
PARTE I
OS MAGROS: EDIÇÃO CRÍTICA

Maria da Conceição Reis Teixeira

A preparação do texto crítico do romance Os magros nos foi sugerida


pelo professor Vitor Hugo em 2011. Ao término de uma palestra que
eu havia proferido sobre o trabalho de edição de textos veiculados
em periódicos baianos, encantado com o labor filológico, o profes-
sor me convidou à sala dos professores para falar de Euclides Neto
e do Centro de Estudos Euclides Neto (CEEN) que havia criado
no Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias, na UNEB
- Campus XXI, dedicado ao estudo da obra do autor e do referido
romance. Seus olhos brilhavam imensamente. Percebia, em sua voz,
muita paixão quando externou o seu projeto de preparar uma edição
especial do romance que, naquele ano, completaria cinquenta anos
de publicado.
Confesso que, até aquele momento, não conhecia a obra nem
o autor; mas o professor Vitor Hugo tratou de apresentar e de propor
que eu me encarregasse de um texto crítico. Poucos dias depois,
recebi em meu endereço todas as edições do romance e a definição de
um prazo para que entregasse o texto criticamente estabelecido para
ser encaminhado a uma editora, visando publicação ainda naquele
ano. Imediatamente, iniciei a leitura para conhecimento da narrativa
e fiquei impressionada pela qualidade do texto, pela singularidade e
pelo diálogo que a temática estabelecia com outros autores e obras
que eu já havia dado tratamento filológico.

19 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Ao término da leitura prazerosa, iniciei o trabalho aplicando-lhe


os procedimentos metodológicos da crítica textual moderna, que requer
o cumprimento das seguintes etapas operacionais norteadoras: recensio,
levantamento de todas as versões; collatio, exame atento das relações de
parentesco entre as versões recenseadas, a fim de eliminar as que forem
cópias, sem valor autônomo; eliminatio codicum descriptorum, elimina-
ção das versões que sejam meramente cópias; classificação estemática da
tradição, estabelecimento da cronologia das versões autônomas, selecio-
nadas após a collatio, de forma que evidencie sua genealogia; emendatio,
emenda de determinadas passagens do texto, corrigindo erros e con-
trassensos; apresentação do texto crítico, última etapa da preparação
de uma edição. Na última etapa do labor filológico, o editor oferece ao
público o texto criticamente estabelecido, acompanhado do aparato
crítico, com indicação preliminar das fontes, genealogia do texto, tra-
dição, notas e comentários.
Tradicionalmente, o objetivo de uma edição crítica consiste,
na medida do possível, em restituir um texto à sua forma genuína.
Segundo Spina (1994), qualquer edição crítica representa, sempre,
uma tentativa de restauração de um texto, provisoriamente definiti-
va, enquanto não surjam outras – baseadas em novos achados ou sob
diferentes perspectivas metodológicas – que possam lançar outras
luzes sobre o original. Nesta perspectiva, a principal tarefa do filólo-
go é o estabelecimento do texto, cabendo ao editor levar a público a
última vontade do autor, registrando, no aparato crítico, as variantes
autorais e as advindas da história da transmissão decorrentes das
sucessivas edições.
São os objetivos almejados, a quantidade e a qualidade do ma-
terial reunido sobre um texto ou conjunto, com suas características
extrínsecas e intrínsecas, que conduzirão o caminho a ser trilhado
pelo labor filológico. Isto porque existem vários tipos de edição e,
consequentemente, o resultado do labor filológico pode ser materia-
lizado, por exemplo, através de uma edição fac-similar, diplomática,

| 20
OS MAGROS: EDIÇÃO CRÍTICA

paleográfica, crítica, crítico-genética e genética, conforme for o caso.


Portanto, é o documento de que dispõe o editor e a época em que o
texto foi escrito que determinam os procedimentos metodológicos a
serem seguidos pelo editor crítico.
Na edição fac-similar ou mecânica reproduz-se, através de
procedimentos mecânicos (fotografia, digitalização ou fotocópia),
fielmente o original, preservando o formato, o papel, as ilustrações,
as margens, a cor e o tamanho. A preparação deste tipo de edição
só se justifica se o propósito do editor for o de permitir, devido ao
estado de conservação do suporte ou à inexistência de exemplares
que impossibilitem ao público ler o original, o acesso ao texto de
forma direta, conferindo-lhe liberdade e autonomia na interpretação
do testemunho.
Na edição diplomática, o editor faz uma transcrição conserva-
dora do manuscrito, preservando todos os elementos, como sinais de
pontuação, paragrafação, translineação e separação vocabular, com
o desejo de facilitar a leitura, dispensando o leitor da árdua tarefa de
decifrar as formas gráficas da escrita do manuscrito original.
A edição paleográfica, semidiplomática ou diplomático-inter-
pretativa é, modernamente, recomendada para documentos não lite-
rários, especialmente os jurídicos, e para textos literários medievais,
cujo objetivo é o estudo da história da língua em que estes textos
foram lavrados. O filólogo interfere mais no texto manuscrito que
no anterior, porque esta edição se destina a tornar o conteúdo mais
acessível a um público que teria dificuldades de decodificar os sinais
gráficos utilizados.
Na edição genética, o filólogo, à luz de uma teoria interpretati-
va, elucida o processo de criação da obra, revelando as incursões do
autor em seu processo criativo, evidenciando a sua gênese a partir
de um conjunto de operadores capazes de indicar todas as emendas
utilizadas pelo autor e as diferentes etapas de sua construção.

21 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Resumidamente, o filólogo colige, compara e edita texto dos


mais variados gêneros e épocas em que foram lavrados. A crítica
textual, uma das áreas de atuação da Filologia, visa à restituição
da forma genuína dos textos, consequentemente, contribui com a
humanidade na recuperação do patrimônio cultural escrito de de-
terminada cultura, transmitindo-o e preservando-o para as gerações
futuras, sobretudo porque fornece material confiável para todas as
áreas que utilizam o texto escrito como fonte.

NOTAS FILOLÓGICAS

Euclides José Teixeira Neto (1925-2000), em seus 75 anos de


vida, desempenhou vários papéis sociais, dentre eles, destacam-se:
agricultor, fazendeiro, político, advogado e ficcionista. Neste último
papel, publicou Birimbau (1946), Vida morta (1947), Os magros (1961),
O patrão (1978b), Comercinho do poço fundo (1979), Os genros (1981),
Machombongo (1986) e A enxada e a mulher que venceu seu próprio
destino (1996). Além dos romances, também escreveu outros gêneros
textuais, impressos em tipografias baianas ou paulistas, a saber: Porque
o homem não veio do macaco (1973), Novos contos da região cacaueira
(1987), O menino traquino: crônicas políticas e crônicas leves (1994),
Dicionareco das roças de cacau e arredores (1997, reeditado em 2002 e
2013), Trilhas da reforma agrária (1999) e O tempo é chegado (2001).
Em 2011, completou 50 anos que as oficinas gráficas da
Livraria Progresso Editora, de Aguiar e Souza, publicaram Os magros,
terceiro romance de Euclides Neto, em uma tiragem muito modesta
de, aproximadamente, 500 exemplares, que foram distribuídos entre
os seus amigos. Dentro do conjunto de sua obra édita é a única a
ser reeditada três vezes: em 1992, pela Guena & Bussius Editores;
em 2007, pela Littera, ambas as casas publicadoras localizadas em
São Paulo; e em 2014, pela Edufba – Littera.

| 22
OS MAGROS: EDIÇÃO CRÍTICA

A eleição de Os magros para ser objeto de uma nova edição


pautou-se no valor singular da obra, cujo assunto tematizado
alinha-se com os ideais do autor – seu engajamento em prol da
reforma agrária, da distribuição de renda entre a população bra-
sileira – e, sobretudo, por ter uma tradição com três testemunhos
éditos, nos quais figuram trechos variantes.
Para a elaboração da edição crítica, estabeleci a collatio levan-
do em consideração apenas as três publicações (1961, 1992 e 2007).
Não foram considerados os manuscritos e datiloscritos da obra.
Os testemunhos de 1961 e de 1992 foram publicados em vida do autor.
O terceiro testemunho foi publicado em 2007, portanto, sete anos após
a sua morte. Provavelmente, durante a preparação, tenha-se procedido
à cópia da edição de 1992, cometendo-se, no entanto, alguns saltos
bordões e pequenas intervenções no sistema de pontuação, sem que
tais modificações fossem sinalizadas no texto com a utilização do re-
curso das notas de rodapé ou as informando em notas introdutórias.
O texto utilizado como fonte, ou seja, texto-base, é a segunda
edição publicada em 1992 pela Grená & Bussius, que traz, no verso
da folha de rosto, os nomes Constantino Pereira Vilarinho, Emília
Pinheiro e Euclides Neto como responsáveis pela revisão daquela
edição. Na lista tríplice dos revisores figura o nome de Euclides Neto,
autor da obra, o que nos permite afirmar que as alterações ali cons-
tantes são autorais ou, mesmo que realizadas por terceiros, foram
aceitas e autorizadas pelo próprio autor.
Descartei as variantes textuais do testemunho de 2007, por ser
uma edição póstuma e, até o momento da fixação do texto crítico, não
dispor de documentos que comprovem que elas são autorais. As varia-
ções da primeira edição (1961) figuram no aparato de variantes, dispos-
to ao lado direito do texto que se quer crítico, em caracteres menores.
Adotei um modelo de edição conservadora, respeitando as
preferências léxicas e as variantes lexicais, mesmo quando não se en-
contravam abonadas nos dicionários correntes da língua portuguesa

23 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

ou que apresentassem duas formas variantes. Entretanto, procedi


à atualização ortográfica dos itens lexicais que não representassem
preferências estilísticas do autor ou variantes sociais ou geográficas.
O que segue é uma síntese dos critérios estabelecidos, com base nas
particularidades do texto editado e do material disponível para a
fixação do texto crítico e modelo de edição adotado.
Cabe advertir que, no aparato de variantes, constam apenas as
textuais significativas, materializadas em acréscimos, supressões, per-
muta de itens lexicais e estruturas gramaticais. Contudo, as variantes
ortográficas resultantes de adequação às regras ortográficas vigentes
de cada período em que os testemunhos foram publicados não foram
sinalizadas no aparato, bem como as intervenções do editor crítico de
simples adequação do texto às regras ortográficas vigentes atualmente,
consoante ao novo acordo celebrado entre os países lusófonos.
Entre a primeira e a segunda edição, Euclides Neto procedeu
à reestruturação de alguns parágrafos. A primeira edição é marcada
por parágrafos demasiadamente longos, muitas vezes encontramos
alguns que ultrapassam os limites de uma página, cansando o leitor.
Na segunda edição, alguns trechos foram subdivididos em dois ou
três parágrafos novos, imprimindo ao texto mais leveza e equilíbrio
entre suas partes constitutivas. Em outras passagens, dois parágrafos
breves foram agrupados, formando uma estrutura sintática maior.
As modificações de ordem estrutural e divisão do texto feitas na se-
gunda edição foram sinalizadas no aparato de variantes, utilizando-
-se, para tanto, do auxílio de sinais específicos. As intervenções do
editor ao texto crítico restringiram-se ao agrupamento do período
“Porém não tinha direito de fazer aquilo” ao parágrafo anterior.
Usos da pontuação fora do padrão foram respeitados, sempre
que neles identificamos valor estilístico. Nas falas das personagens,
ao retomar a voz narrativa, o autor usa vírgula ou travessão. Tal os-
cilação foi respeitada. Entretanto, acrescentei vírgulas para isolar o
vocativo quando não figuravam no texto de base.

| 24
OS MAGROS: EDIÇÃO CRÍTICA

O autor ainda procedeu a alterações na grafia de alguns


nomes, adequando às normas vigentes ou, quando estrangeiros,
escrevendo-os conforme a língua de origem, como, por exemplo,
tode > toddy. Conservei a grafia dos nomes conforme o testemunho
1992, contudo, para os nomes estrangeiros, usei o recurso do itá-
lico (toddy, society); para a escrita oscilante de Rose-Marie e Rose
Marie, bem como de cousa e coisa, uniformizei, respectivamente,
para Rose Marie e coisa, levando-se em consideração o número
de ocorrências das formas; para a grafia oscilante de madame
e Madame, respeitando o a maior frequência da grafia com mi-
núscula, uniformizamos para madame. A forma Rose-Marie foi
registrada três vezes contra 27 vezes de Rose Marie. A forma cousa
apareceu apenas uma vez, o que pode representar um descuido no
momento da revisão do texto.
Realizei a emenda do nome do personagem Dário para Mário.
Optei por proceder tal emenda porque o nome “Mário” figura na
narrativa pela primeira vez no capítulo XXIX, quando o personagem,
dotado de aguçada lucidez, em uma das rodas de conversa entre seus
companheiros diários de fatigantes jornadas de trabalho, aponta a
relação injusta e desumana estabelecida entre patrão e empregado,
em que este tem sempre seus direitos subtraídos e quase sempre é
obrigado a se submeter a uma relação de trabalho escravo. No capí-
tulo XXXV, quando, mais uma vez, seus companheiros são vítimas
das injustiças praticadas pelos fazendeiros, o narrador, indignado,
recorda as sensatas palavras do amigo; nessa segunda referência,
figura “Dário” em vez de “Mário”. Isso pode ter ocorrido em função
de “Mário” ser um “figurante” na história, além de a segunda refe-
rência ser alusiva, estar distante temporal e espacialmente da cena
anterior. É muito provável que a memória de Euclides Neto tenha
falhado, levando-o a grafar “Dário” por “Mário”. Há de se observar
ainda a proximidade gráfica entre os dois nomes próprios. Apenas
um fonema distingue um vocábulo do outro (M : D).

25 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

É muito provável que, no momento de datilografar a versão


manuscrita (escrever em cadernos ou papéis, à mão, fazia parte de
seu modus operandi), tenha-se cometido um equívoco, seja pela di-
ficuldade de leitura do manuscrito, seja por distração. Mesmo que
a segunda edição da obra tenha sido publicada ainda em vida do
autor – contendo passagens variantes em relação à primeira edição
– e sob os seus cuidados, enquanto revisor, é possível que Euclides
Neto não tenha percebido o engano cometido, especialmente pela
sutileza da diferença entre os dois nomes. Não levantei a hipótese
de ser outro personagem em função da pertinência e sequência
lógica do conteúdo abordado em ambos os momentos da narrativa.
Vejamos a primeira e a segunda ocorrência, respectivamente: “– Isso
não é roubo. É defesa. Mário era o nome dele. Ainda dizia que se
o rico tem direito de roubar da gente nós também podíamos fazer o
mesmo com ele.” e “Tudo isso está errado. Dário é que tinha razão,
no dia que todo trabalhador se juntar não haverá mais dessas coisas.
Nós vamos buscar o nosso... E nós que plantamos, colhemos e seca-
mos recebemos menos de cem cruzeiros. É ou não furto?”. Esses são
os únicos momentos em que figura o nome do personagem. Como
“Mário” foi a primeira opção do autor, dada a sua ocorrência ter apa-
recido 17 capítulos antes de “Dário”, optei por “Mário”. Há, ainda, de
se observar que a emenda executada se baseou também no princípio
da busca pela perfeição e do zelo pela coerência interna de seu texto,
traços característicos de Euclides Neto, considerando, sobretudo,
a realização de modificações desta natureza em outros trechos va-
riantes entre a primeira e a segunda edição.
No aparato de variantes, os testemunhos foram indicados com
o auxílio da letra A para a edição de 1961, e B para a edição de 1992.
As passagens variantes encontram-se separadas umas das outras por
ponto e vírgula (;). Ademais, utilizei alguns sinais para indicar as
variantes referentes à reestruturação dos parágrafos, conforme dis-
criminados a seguir:

| 26
OS MAGROS: EDIÇÃO CRÍTICA

§↑ Parágrafo desmembrado
do parágrafo acima.
§↓ Parágrafo desmembrado
do parágrafo abaixo.
§0 Parágrafo suprimido.

No aparato crítico, as considerações do editor foram apresen-


tadas resumidamente, para evitar marcar o texto, dificultando a sua
leitura por parte do leitor não especializado, utilizando as abreviatu-
ras a seguir:

[s.v.] Sem vírgula.


[c.v.] Com vírgula.
[c.p.] Com ponto.
[s.d.p.] Sem dois pontos.
[c.d.p.] Com dois pontos.
[s.t.] Sem travessão.
[c.p.v] Com ponto e vírgula.

Na próxima seção, apresento, a parte, o texto fixado critica-


mente em 2011, acompanhado do seu aparato crítico à esquerda.

REFERÊNCIAS

EUCLIDES NETO. A enxada e a mulher que venceu seu próprio


destino. São Paulo: Littera, 1996.
EUCLIDES NETO. Birimbau. Salvador: Saga, 1946.
EUCLIDES NETO. Comercinho do Poço Fundo. Rio de Janeiro:
Andares, 1979.

27 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

EUCLIDES NETO. Dicionareco das roças de cacau e arredores.


Ilhéus: Editus, 1997.
EUCLIDES NETO. Dicionareco das roças de cacau e arredores. 3.ed.
ver.ampli. ed. Salvador: Edufba: Littera, 2014.
EUCLIDES NETO. Machombongo. Itabuna: Letras, 1986.
EUCLIDES NETO. Novos contos da região cacaueira. Brasília-Itabuna:
Horizonte Editora, 1987.
EUCLIDES NETO. O menino traquino : crônicas políticas e
crônicas leves. São Paulo: Littera, 1994.
EUCLIDES NETO. O patrão. Salvador, 1978b.
EUCLIDES NETO. O tempo é chegado: contos. Ilhéus: Editus, 2001.
EUCLIDES NETO. Os genros. São Paulo: GRD, 1981.
EUCLIDES NETO. Os magros. Salvador: Edição do Autor, 1961.
EUCLIDES NETO. Os magros. Salvador: Edição do Autor, 1978a.
EUCLIDES NETO. Os magros. 2. ed. São Paulo: Guerra & Bussius, 1992.
EUCLIDES NETO. Porque o homem não veio do macaco. Salvador:
Edição do autor, 1973.
EUCLIDES NETO. Trilhas da reforma agrária. São Paulo: Edição
do autor, 1998.
EUCLIDES NETO. Trilhas da reforma agrária. 3. ed. São Paulo:
Littera, 1999.
EUCLIDES NETO. Vida morta. Salvador: Depósito Continental de
Livros, 1947.
SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. 2. ed. rev.
e atual. São Paulo: Ars Poética: Edusp, 1994.

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Maria da Conceição Reis Teixeira

A seguir, apresentamos o texto que se quer crítico do romance


Os magros.

I
O dia vinha rompendo. João levantou-se, A: levantou;
chamou a companheira e foi para a saída da chou- e se encami-
pana. Suspendeu as varas, que serviam de porta, nhou para a
saída
e olhou o amanhecer úmido. Galos amiudavam.
Os morros, parecendo carneiros lanzudos, con-
fundiam-se com as baixadas entupidas de neblina.
Muito frio.
Oito meninos, abaixo dos doze anos,
amontoavam-se pelo chão forrado com esteiras A: Sete
esfiapadas. Estavam quase nus. Encolhidos, tinham
os joelhos perto do queixo. As mãos procuravam
quentura entre as pernas. Com o movimento do
pai, mexeram-se na semiescuridão. Os menores
choravam ou grunhiam. Dois batiam os dentes.
Outro disse um palavrão. Havia cheiro de terra mo- A: Outro, [c.v.]
lhada com urina.

29 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Pedro, o mais velho, foi o primeiro a seguir o


exemplo do pai. Estava fora dos amontoados, num
canto, em cima das ripas de pati. Era magro, com
os joelhos grossos que pareciam nós nos cambitos
das pernas. Maquinalmente, enfiou o chapéu velho
e saiu. Chuviscava. Procurou a moita de coirana ali
no oitão. Esconde-se por algum tempo. Voltou com
os braços cruzados, tremendo de frio.
Isabel, atendendo ao chamado do marido,
pulou da camarinha, enganchou o caçula, que
dormia com o casal, e foi para a cozinha. O fogão
era armado sobre quatro forquilhas de madeira,
com o lastro de varas recobertas de barro. As quatro
pedras serviam de trempe. O fumeiro. O mocó:
pedaço de lata velha presa por dois cipós à cobertu-
ra baixa. Uma panela de barro, a chocolateira preta,
o coador e três pratos também de barro, sujos da A: o coador e
véspera. três pratos de
barro,
O caçula abriu o eco e foi posto na terra
molhada, encostado à parede. Apesar de três anos A: três anos
e meio, ainda não sentava sozinho e nem governava e meio [s.v.];
os braços e as pernas. A cabeça pendia, ora para A: outro lado,
um, ora para outro lado como boneco que perdeu a [c.v.]
borracha. Era um meninozinho terroso, todo ossos,
olhão de bicho doente. Fedia a urina e a outra coisa.
Isabel até gostaria que ele morresse. Era o último da
ninhada farta. Fazendo parte dos quinze filhos do
casal, estava no meio dos oito vivos.
Os meninos foram levantando-se. Um a um.
Saíam, vertiam água perto da palhoça ou mesmo A: mesmo da
da porta e voltavam friorentos, com as mãos fe- porta, [c.v.]
chadas juntas, debaixo do queixo, tiritando. Onde A: mãos

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

dormiram ficaram os trapos que serviam de cober- fechadas,


ta, no fundo das barrocas lisas que os corpos faziam [c.v.]; Onde
no chão batido. dormiam,
[c.v.]
Sereia, cachorra alvaçã, esquelética, pulguen-
ta, sempre andando em três pés, saiu também da
cova lisa onde procurara, à noite, quentura entre
os meninos. Espichou-se, mostrou todos os ossos. A: Sentou-se
Sentou nas traseiras. nas trazeiras.
Bordada, a galinha de pinto, que, devido
B: bruguelos
à inverneira, dormia na saleta, deu cinco passos
para a frente, marcialmente e arrastou os bugue-
los. Daí a pouco, havia muita satisfação atrás das
coiraneiras...
A casinha, coberta com indaiá, era a cozinha,
o quarto e a sala de fora. Duas portas, ou melhor:
duas aberturas como uma toca. No fundo, a lama A: o pinico de
escura esverdeada, a pimenteira, o pé de jiló e o alumínio
penico de barro encostado à parede. Na frente,
o terreiro estreito. Em volta, as matas, as capoeiras
e cacaueiros da fazenda Fartura, situada no muni-
cípio de Ipiaú.
João era agregado: magro, pálido, olhos A: cabelo cres-
afundados nas órbitas cavadas. Barbicha rala de cido [s.v.]
muito tempo, o cabelo crescido, encobrindo as
orelhas. O chapéu de palha sem fundo. As roupas
em molambos, encerotadas, mostrando a carne flá-
cida. Pés enormes, chatos, o dedão torcido para um
lado. Pés criados na lama, furados de espinhos. Pés
de bicho. Alguns dentes quebrados. O cinturão de
A: chamava
sola e o facão mostrando a ponta pela bainha velha.
para a roça
Quase não pensava. Ouvia o búzio que o chamava à
roça. Ia tocando como um boi no arrasto. Gostaria

31 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

de comer carne fresca, sangrenta. Uma rabada de


novilha gorda. Mas somente no São João pudera
comprar meio quilo de ossos frescos. Roera-os com
sofreguidão. Quanto ao mais, a mesma coisa: fari-
nha com um taco de carne assada. Malagueta ou A: Pimenta
malagueta
cumarim. Um gole d’água e pronto.

II
Na cidade do Salvador o palacete amanhe-
cia quieto e morno, entre os jardins bem trata-
A: protegido
dos, protegidos pelas mangueiras acolhedoras. pela mangueira
A frente pesada e branca denotava solidez fi-
nanceira. Dois pavimentos subdivididos em salas
amplas, dúzias de quartos, varandas preguiçosas
e desabitadas. Naquele casarão morava o dono
da fazenda Fartura, sua mulher e Rose Marie.
Ao fundo, as dependências, onde ficavam as três
empregadas, o jardineiro, o chofer particular da
patroa e o policial puro sangue. Ao lado das de-
A: ao lado das
pendências, o galinheiro, combinando com a es-
dependências
trutura da casa, coberto com telhas francesas, piso [s.v.]
de mosaicos vermelhos, porta e janela de vidros e
paredes de comongó.
Até aquela hora, sol alto, os proprietários
ainda dormiam. As empregadas já se movimenta-
vam desde cedo e o rapaz do jardim chovia pelos
canteiros. Trovão, forçando a corrente, empinava,
soltando latidos agudos. Na varanda lateral, o caná-
rio-da-alemanha abriu o bico como se não quisesse A: Na varanda
lateral [s.v.]
parar mais.
canário da
– O café está na mesa, falou a copeira. Alemanha

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Doutor Jorge desceu. Havia dormido em casa


aquela noite, contrariando seus hábitos.
A sala de jantar era ampla. Lambris muito
claros como pérolas forravam a parede até o meio.
A: como péro-
Pratos de coloridos variados cobriam a pintu- las, [c.v.]; colo-
ra creme. Uma perdigueira de cauda horizontal ridos variados
mostrava a caça pedrês que apanhara com a boca. atapetavam a
Os móveis de pau-marfim estavam forrados com pintura
serviços de cristais que cambiavam reflexos. O chão A: pau-marfim
de mosaicos miúdos era um espelho. No canto, estavam co-
o relógio alto, apoiado no piso como um armário bertos de
estreito, batia o coração, pingando segundos gordos. A: batia o
Algumas trepadeiras invadiam o ambiente e empur- coração, mar-
ravam as cortinas de pura seda. No centro, uma mesa cando segun-
e cadeiras de alto encosto. Doutor Jorge sentou-se dos gordos.;
A: o ambiente
em uma. Dona Helena em outra, e Rose Marie foi
e tangiam as
posta na terceira. Quatro bules fumegavam: café, cortinas;
leite, toddy e chá. Através de frascos bojudos, viam- A: Dona He-
se biscoitos arrepiados de açúcar cristal. O mais: lena em outra
queijeira, bananas fritas, cozidas, pão, aipim, bolos [s. v.]
recheados com ameixas, geleia e outras guloseimas.
Dona Helena puxou o prato de Rose Marie
e serviu-a.
Doutor Jorge encheu a xícara de toddy, arras-
tou para si os biscoitos e meteu mãos à obra. Dona
Helena acompanhou-o.
Ligeira conversa entabulou-se entre os dois.
– Hoje vou ao escritório, cacau subiu muito...
Preciso vender...
– É... foi a resposta evasiva. Como que ambos
estavam monologando.

33 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

III
João engoliu um trago de café ralo, quase
amargo. Jogou dois punhados de farinha na boca.
O búzio tocava, chamando os trabalhadores.
Apanhou o chapéu e seguiu para a roça.
Os meninos choramingavam agarrados à
saia rota da mãe. Pediam comida.
– Uma pedrinha de açúcar...
E como não havia, receberam a cuia com A: receberam
um punhado de farinha. Estavam na sexta-feira. cuia e engana-
Só existia o resto de farinha que mais era uma ram as tripas
crueira. No dia seguinte, João iria à rua e traria do pior modo.
o quilo de carne seca, quarenta litros de farinha,
meio quilo de açúcar, duzentos gramas de café,
meia garrafa de querosene e o destões de fumo.
A carne iria até a terça-feira. Cada um engoliria
uma isca. Os meninos ficariam a desfiar, com
pena, as fibras salgadas.
O salário de João mal dava para adquirir
aquelas mercadorias. Na semana em que tinha
trabalhado todos os dias fazia cento e vinte e cinco
cruzeiros. Espremia aí dentro suas precisões. Não
fosse a necessidade de comprar um facão, tudo se
ia arrumando. Mas o objeto indispensável custava,
com a bainha, cento e vinte cruzeiros. Dinheiro de
uma semana. E como adquiri-lo?, perguntava a si
mesmo João, ao dirigir-se para a roça. Já estava com
o seu gasto, imprestável, fino como uma língua de
teiú. A bainha andava protegida com embiras no
bocal e na ponta. E já na semana passada o gerente
lhe dissera:

| 34
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– João hoje tem serviço na roçagem, mas


como seu facão é mesmo que nada, não há serviço
pra você.
– Senhor Antônio, tenha paciência, não me
deixe perder um dia...
– Mas com esse facão você não faz nada,
homem. Por que não compra outro?
Vou comprar... mas a questão é que a comida
está pela hora da morte e não tenho podido. Nem
roupa tenho comprado. A casa cheia de menino...
O senhor quer me adiantar um dinheiro para com-
prar o facão?
João arrependeu-se do que disse. Toda fa-
zenda queria gente sem filhos. Os meninos, que já A: um burro
aguentavam puxar um burro manso, eram aprovei- manso [s.v.];
tados na condução do cacau ou para descaroçar. A: Ganhavam
Ganhavam ninharia mas ia servindo. Não devia ter ninharia mais
dito que possuía a casa cheia de meninos. ia servindo.
– Isso não. Tenho ordem para não adiantar
dinheiro. Quem manda ter muitos filhos?
Os outros trabalhadores fizeram ar de riso,
maldosamente.
– Então me arranje serviço de enxada qual-
quer que não precise de facão.
– Ora senhor João, só se eu me virasse em
serviço.
E João perdera o dia da semana. Lembrava-
-se como a farinha terminara antes da quinta-feira.
Carne não houve. Os meninos morriam de fome.
Remexiam o saco vazio como ratos à cata de um
grão. Desapareciam no mato à procura de uma fruta

35 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

qualquer. Empanzinavam-se de laranjas verdes.


Os menores ficaram na saia de Isabel choramingan-
do, catarrentos, pançudos, de barrigas necessitadas.
O caçula, que ainda mamava, puxava as pe- A: catarrentos
lancas enxutas e protestava a ausência do leite. pançudos [s.v.]
João lembrou-se de que preferiu sair pela
noite adentro, tonto de sono e cansaço, fugindo à
miséria. Longe de casa, recostou-se em uma caja-
zeira. Acomodou-se bem entre as raízes. Também
ele tinha fome. Nem o gole de café. Nem o punhado
de farinha. Afinal adormeceu e sonhou que estava A: recostou-se
ante uma tigela grande, cheia de feijão cheiro- a uma caja-
so, com um pedaço de carne fresca e toucinho. zeira
Acordou assustado, a boca amargava. O estômago A: As estrelas
beliscando e uma sensação de sofrimento. As estre- lá estavam
las lá estavam, quietas adormecidas, quase. E bem quietas, [c.v.]
longe o minguante vermelho parecia um pedaço
de carne fresca. Por ali se juntavam os cacaueiros
pesados de frutos verdes e maduros. Com algumas
daquelas frutas poderia comprar um punhado de
farinha e um taco de carne. Mas os frutos maduros
da cor da lua pertenciam ao fazendeiro. Neles era
proibido tocar a não ser para a colheita. Ai daquele
que apanhasse um coco!
Pelo caminho da roça foi remoendo a lem-
brança. Precisava mesmo de comprar o facão. Teria,
é verdade, que passar várias semanas, ou talvez
meses, com a meia ração. Mas era o jeito. Se não
adquirisse o ferro, ficaria sem trabalho. Contou
nos dedos o tempo que faltava para juntar o di-
nheiro: mais de um mês. Também quando tivesse
a banda lisa iriam ver um bicho danado no serviço.

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Satisfazia-se somente com a lembrança de ter o


instrumento à mão, amolando-o, passando o pole-
gar no corte afiado de fazer barba. Quando chegou A: Quando
ao trabalho, ainda experimentava a doce ilusão de chegou ao
possuir o objeto. trabalho [s.v.]

IV
Doutor Jorge era filho do antigo fazendeiro
senhor Jerônimo. Alto, curvado como se os ombros A: Era alto,
curvado;
estreitos não combinassem bem com a barriga vo-
A: ombros
lumosa. Seu todo dava impressão de flacidez e au- estreitos não
sência de trabalhos físicos. Os braços finos, muito se ajustassem
longos, terminados em mãos de seda. Os pulsos de bem na barri-
menino doente denotavam inutilidade. Parece que ga volumosa.;
existiam somente para suportar o charuto fino que
os dedos seguravam. Era homem viajado, afeito às A: que os
grandes rodas. Conhecia Paris de vários passeios. dedos apreen-
Já abandonara toda a rusticidade dos pais. Quem o diam.; A: Co-
conhecia não fazia ideia dos seus antepassados ro- nhecia Paris
de várias via-
bustos e acostumados ao trabalho pesado nas matas
gens.; A: tra-
brutas. Formou-se em direito. Herdou toda a fortuna balho pesado
dos pais, que morreram, um após o outro, dentro de nas florestas
seis meses. Aos vinte e oito anos viu-se diplomado e brutas.
rico. Como se a sorte fosse curta, casou-se com dona A: a fortuna
Helena, neta de arquimilionário, e as fazendas, vizi- dos pais [s.v.]
nhas, cresceram a vinte e cinco mil arrobas. Como
nada tinha a fazer, cuidava de sua coleção de brilhan-
tes verdes, vermelhos, amarelos, azeite doces, alvos,
que se guardava no cofre do gabinete. A: Dona Hele-
Dona Helena, feiosa, banhuda, com aque- na, [c.v.];
les dentes de roedor, consumia o tempo cuidando B: Helena [s.v.]

37 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

da Rose Marie. Era mesmo uma beleza a bichi-


nha. Os olhos azuis, cabelos louros, rosadinhas,
rechonchuda.
– Um amor! como dizia enternecida.
Realmente ela dizia papai e mamãe. Cho-
rava tão meigamente que era um encanto ouvi-la.
Possuía brinquedinhos variados: máquinas de cos-
tura, piano, baterias completas de cozinha, berços,
caminhas, mobílias minúsculas, bichinhos, um car-
rinho de passear pelas ruas...
Quando dona Helena se casou foi morar na- B: grã-fino
quele bairro grã-fino, teve vontade de possuir um [s.v.]
amante. Era distinto, fazia parte até da alta roda, A: Era distin-
da chamada boa sociedade. Um amante educado, to, fazia parte,
polido ou então um homem notável: deputado de até, [c.v.] da
alta roda,
renome, médico famoso. Gostaria de fazer parte da
chamada society. Julgava que em tal meio reuniam-se A: Gostaria de
fazer parte do
os casais modernos para se divertirem.
que e chama
Mas a pança e os dentes da cutia nunca dei- Café Society.;
xaram que ela fosse inteiramente feliz. Casara-se A: reuniam-se
graças às vinte arrobas de cacau e, agora, era toda os casais al-
de sua Rose Marie. Achava a sociedade fútil. tamente mo-
dernos para se
Doutor Jorge, que andava atrás de suas divertirem.
pedras, pagava uma fortuna por um brilhante
A: Mas aquela
vermelho. pança rombu-
Raramente ia às fazendas. Chagara a possuir da e os dentes
escritório de advocacia bem montado, elegante, A: §
mas nunca aparecera lá. As aranhas tomavam
conta. Preferia mirar e remirar as joias.
Naquele dia, no entanto, ia vender cacau.
Fechar uma partida de oito mil arrobas a quinhentos

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

cruzeiros: quatro milhões de cruzeiros, certos e A: o produto.


redondos. Em seguida, depositaria o dinheiro no Milhões de
banco, junto com o outro. Nem mesmo precisava cruzeiros en-
gordavam
vender o produto. Milhões engordavam nas casas
bancárias, parindo juros. Milhões que sobravam de
outras safras. Mas agora, com o preço atual, seria A: o preço
dinheiro a rodo. Não faria como os outros fazendei- atual [s.v.]
ros que todo o ano adquiriam a fazenda do vizinho.
Queria diminuir o trabalho. O que possuía, dava de
sobra.
Terminado o café, Maria, a copeira, retirou
os pratos. Levou as sobras para a cozinha. Despejou
na pia o chá. Ninguém se havia servido dele.
Doutor Jorge sentou-se na varanda, que A: sentou-se
se comunicava com a sala de jantar. Começou a na varanda
[s.v.]
chupar o seu charuto, saboreando a lembrança dos
milhões à vista.

V
Mal João havia iniciado o trabalho, apareceu
o gerente:
– Já lhe falei, João, que você não pode
trabalhar com esse facão.
– Senhor Antônio, tenha paciência... O senhor
sabe... como lá diz...
– Não posso. A fazenda está dando um
despesão. Desse modo vai tudo por água abaixo.
Intimamente o feitor sentia-se bem, apertan- A: o feitor
do o agregado. Mostrava superioridade. Que podia sentia-se bem
[s.v.]
mandar e desmandar.

39 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Valha-me Deus. Seja o que Deus quiser.


Antônio temeu a Deus e encontrou a solução:
– Há um meio. Você vai descontando toda
semana um tanto. Quando completar o preço do
facão, eu compro e lhe dou.
A: começo
– É o jeito... a descontar
– Então começo a descontar amanhã, que é amanhã [s.v.]
sábado.
– O que vou fazer... o senhor quer assim...
– E só há serviço na limpa de enxada. Você
vai para o roçado. Ligeiro... se não o dia se acaba. A: pediu o
instrumento e
João voltou para apanhar a enxada. Foi à casa saiu de trote.
do gerente, pediu o instrumento e saiu troteando. A: §
Quando chegou no roçado estava ofegante.
Teve sede, mas temeu que senhor Antônio apare-
cesse e não o encontrasse trabalhando. Teve vonta-
de de fumar. A: §
Buscou no bolso uma capa de fumo. Uma
última se escondia nas dobras dos molambos. Receou
que o gerente o visse parado, fazendo cigarro. A: é preguiçoso
– Trabalhador que faz cigarro no trabalho ou [s.v.]
é preguiçoso, ou sem vergonha, dizia ele.
A enxada cortava a terra fofa. O cacaueiro
novo, de folhas viçosas, estava indiferente ao cansaço A: Mas tarde
do homem. Cresceria ali exuberante e frondoso. Mais
tarde daria muitos frutos bonitos que tornariam o A: Jorge mais
doutor Jorge mais rico. Seria robusto e carregado. rico ainda.

Ao meio-dia, João não foi à casa. Lá não


havia o que comer. Preferiu ficar mesmo no mato.
Desculpou-se com os companheiros:

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Trouxe uma farinha e, como preciso procu-


rar um pau de lenha, só vou de tarde. A: certo es-
Sentia-se envergonhado. O fato de não ter tado de mal
estar que [s.v.]
o que comer criava nele certo mal-estar, que doía
mais que a dor no estômago. A: saiu pela
roça [s.v.]
Quando os companheiros desapareceram,
A: andavam
saiu pela roça, atrás de alguma coisa. Bateu dois na flor;
pés de jaca. Tudo verde-pepino. Lembrou-se do A: tinham
pé de bacupari. Para lá foi e a árvore estava sem bagos amare-
fruto. Tararanga não havia naqueles terrenos lados.;
bons. As laranjas andavam em flor. Somente A: O gosto
os cafezais dos aceiros tinham bagos amarelos. meio amargo
Colheu os frutos e mastigou-os. O gosto amargo encheu-lhe a
encheu-lhe a boca de saliva, provocando o estô- boca de saliva
mago. As pernas cansadas, a barriga lá dentro e provocou o
estômago.
e o suor frio amoleceram o homem. Deitou-se,
As pernas
fechou os olhos. Entrou na fraqueza. Parecia até meio cansadas;
que os braços e pernas pertenciam a outro corpo. A: homem.
Precisava de qualquer coisa de comer. Bem que Ele se deitou,;
podia colher duas cabaças de cacau de vez e sa- A: corpo. Mas
tisfazer o bucho. Mas seria furto... Se fosse visto precisava de
comendo cacau, teria que ouvir o diabo. Até qualquer de
de ladrão seria chamado. Se bem que naqueles comer.;
cantos da roça ninguém veria. Bem ao alcance A: satisfazer
estava uma cabaça boa, grande, no ponto de ser o organismo;
A: comendo
partida em duas bandas. O estômago gostaria
cacau [s.v.]
dela, daquela polpa meio azeda e gorda. Ninguém
A: O estômago
veria. Estava sozinho. Nem um ruído se ouvia.
bem que gos-
A não ser os pica-paus saltitantes que belisca- taria dela,;
vam os galhos, tudo era silêncio. Comeria o coco
A: Ninguém
ligeiro. Depois enterraria as cascas. Por cima veria. Pois es-
da terra cavada lançaria folhas secas e pronto. tava sozinho.

41 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Senhor Antônio jamais descobriria. Porém era


furto. Antes morrer, estrebuchar na agonia das
entranhas vazias que pegar no alheio.
O agregado perdia-se em tais receios quando
ouviu o búzio tocar. Rapidamente levantou-se, in- A: Como um
consciente quase, apanhou o fruto e abriu-o. Como bicho devorou
um bicho devorou-o. Estava até gostoso. o conteúdo.
Olhou para os lados, certificou-se do isola-
mento. Jogou as cascas dento de um oco jequitibá. A: § ; mas
ficou como
O estômago agradeceu, mas ficou pedindo mais.
que pedindo
João colheu outra cabaça que teve a mesma sorte mais. João foi
que a primeira. Intimamente, roía-o certo remor- a outra cabeça
so. Havia tirado o fruto. Aquilo não era direito. de cacau;
Monologando, desculpou-se: A: Intimamen-
– Foi a fome. te [s.v.]

Quase satisfeito, voltou ao trabalho. Antes,


A: Quase sa-
limpou bem a folha do facão para retirar a nódoa tisfeito [s.v.]
do cacau.
Meio receoso, como se o gerente visse o seu A: § ; Meio
crime, dirigiu-se para o canto do eito. Apanhou a receoso [s.v.]
enxada, que tinha deixado encostada a um renovo de
cedro, e começou o-meio-dia-pra-tarde. Um compa-
nheiro mais indiscreto perguntou-lhe:
– Você comeu a farinha e onde está a mochila?
– Está aqui no bolso.
– Também jaca verde não precisa de mochi-
la, não é?
João ficou vermelho, teve vontade de dizer A: João enver-
um nome feio. Calou-se. melhou, teve;
– E onde achou água pra beber? A: Calou-se
no entanto.

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Ora, moço, cuide de sua vida. Me deixe em B: Ora [s.v.];


paz. Como se gosta de arreliar os outros, assim... A: cuida da;
outros [s.v.]
As enxadas batiam descompassadas. Todos,
de dorso vergado, com a barriga chegando à coxa,
arrastavam mato misturado com terra.
À noite, João não encontrou nem farinha. A: meia dúzia
Isabel arranjou meia dúzia de taiobas, jogou dentro de taioba,
d’água, ferveu, e o marido engoliu o jantar. jogou dentro
d’água, ferveu
– Vida dura, meu Deus. Vida de cachorro.
[s.v.]
Estou mais magro. Parece que os meninos estão
aniquilando. Tudo magro. Você Isabel, está uma ca-
zumba. Esse menino termina virando assombração
mesmo. Só tem osso.
Isabel soluçou triste num canto.
A noite caiu silenciosa. Os meninos mexiam
na sala, dentro das barrocas lisas. Rangiam os
dentes, puxavam os trapos e xingavam.
– Que é isso menino?! – ralhava o pai – B: ralhava o
Se me levantar... pai. [s.t.]
E a noite rolava pesada sobre os magros.

VI
Doutor Jorge subia as escadas lentamente,
suspendendo o chambre de seda. Pensava em fazer
regime. Estava engordando demais. Também era
o excesso de apetite. Fora ao médico e ele acon-
selhara moderação. Nada de muito doce, féculas,
manteiga, gordura em geral. Porém o fazendeiro
não se continha. Comia até arrepender-se. Saía da

43 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

mesa ansiando. Às vezes sentia o estômago com-


primido, afrouxava o cinto, arrotava e pedia:
– Um sal de frutas aí, menina. Diabo! Não sei A: Não posso
por que comi tanto. Foram as bananas fritas. Não mais comer
posso comer toddy. tode.
A: Jurava
Era tão agradável quando não ficava assim,
comer pou-
cheio até às goelas. O melhor seria deixar o organis- co. Era tão
mo querendo mais. Só desse modo poderia ema- agradável;
grecer, diminuir a barriga que já pesava. A: Só assim
Ao almoço, já sabia: feijoada com pernil de poderia
porco, cozido, fatadas oleosas e muito dendê nas emagrecer,
peixadas. Em seguida, a cama, o sono pesado, sua- A: Ao almoço
rento, estafado de tanto digerir. Poder-se-ia afir- [s.v.]; A: um
sono pesado
mar que a alimentação era o único traço que ligava
o doutor Jorge aos seus rústicos antepassados. A: ligava o
granfino
Quando ele acordava era mal-humorado. doutor
Olhava-se ao espelho, via os olhos inchados e as
rugas cavando o rosto. Sentia a garganta seca. Bebia
refrigerante...
Agora, em cada degrau, lembrava-se do con-
selho médico:
– Muita cautela, senhor Jorge. Olhe o seu cora-
ção. Sua barriga está crescendo. Apesar de ser muito
dinheiro, é também excesso de comida. Veja o que faz.
Ao entrar no quarto, já encontrou dona A: Ao entrar
no quarto
Helena:
[s.v.]
– Que roupa você quer?
A mulher abriu o guarda-roupa enorme.
Vários ternos de tropical enfileiravam-se nos A: § ; Vários
cabides. Possivelmente alguns deles foram vestidos fatos de
tropical

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

uma ou duas vezes. Roupas de linho também se


alinhavam. Gavetas entupidas de camisas, meias, A: acertou
lenços e colarinhos dispunham-se de cada lado. o uniforme
[s.v.]; A: Meia
Dois capotes pesados aguardavam os dias chuvosos.
dúzia deles se
Logo que doutor Jorge acertou o uniforme, enfeileravam;
procurou o sapato que bem lhe assentava. Duas A: aprontou e
dúzias deles se arrumavam num canto, tomando saiu [s.v.];
um lado da parede. Quando se aprontou e saiu, A: Os quarenta
eram dez e meia da manhã. Trajava tropical creme, e seis anos;
camisa de lista e sapato marrom. Os quarenta anos A: pintaram ca-
fizeram crescer a barriga, pintaram cabelos por belos brancos;
cima das orelhas, engordaram as bochechas e já A: aos oitenta
tinha subido aos noventa quilos. As mãos, leves e quilos; mãos
[s.v.]; A: leves e
raquíticas, levavam sempre o anel de formatura,
raquíticas [s.v.];
graúdo, expressivo. A gravata clara, dividida pelo A: dividida por
rubi verdadeiro, pulado e curioso, combinava bem rubi
com o creme da roupa.

VII
No dia seguinte, João foi à feira. Manhãzinha A: No dia se-
ainda, meteu-se na estrada. Encontrou os compa- guinte [s.v.]
nheiros. Trazia no bolso cem cruzeiros. Ganhara A: Ademais
cento e vinte e cinco durante a semana, mas a fração [s.v]; A: para o
ficara para o instrumento de trabalho. Não sabia caçula. Mesmo
mesmo o que fazer com o dinheiro. Ademais, Isabel que ele
ficasse sem
pediria por tudo que comprasse um remédio para o
comida que
caçula. Mesmo que ela ficasse sem comida! comprasse o
Que comprasse o medicamento! O menino medicamento.
estava com a pança crescendo de meter medo. Uns A: §
diziam que eram lombrigas, outros afirmavam ser
inchação de doença do tempo que passou. O certo

45 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

é que precisava de um remédio da farmácia. Os de


casa não serviram.
João fazia mentalmente as contas. O ganho
não dava para nada. Farinha estava a dois cruzeiros
o litro. Como haveria de ser? Já na noite passada os
meninos jejuaram.
– Mas... Deus dá o frio conforme o cobertor,
consolava-se.
À beira da cidade o movimento era intenso.
Os trabalhadores formigavam em direção à feira.
Jegues, burros e bois gemiam sob os pana- A: §
cuns cheios de mercadorias para vender. Os peque-
nos fazendeiros, que moravam na roça, montados
em seus animais fogosos, iam alegres. A: Os traba-
Os agregados marchavam ligeiros. Calça arrega- lhadores mar-
chavam;
çada, limpa, chapéu de palha, paletó remedado sobre a
pele. A tiracolo pendia um bornal de alça de embira B: tira-colo;
A: e dentro
e, dentro dele, o saco para comprar farinha. Como
dele [s.v.]
que todos eles tinham em casa mulher e filhos para
dar de comer. Em todos os seus casebres a comida
acabara na véspera. E a carne já se evaporara desde
quarta-feira. A: Além de
João matutava. Além de tudo, precisava tudo [s.v.]
adquirir o remédio. Uns dez cruzeiros. Caso não
levasse a encomenda, Isabel pregaria uns sermões.
Não podia faltar. E se o menino morresse seria pior.
Compraria a droga custasse o que custasse. A: À tardinha
À tardinha voltou para casa. Depois de voltou à casa.
muita pechincha, arranjou um quilo de fato seco,
branco de sal, todo retorcido e já enfusado, farinha
e o remédio que custou quinze cruzeiros. No fim,

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

só restavam dois cruzeiros. Foi a conta do fumo e


mortalha.
Naquela semana, não haverá sabão nem
querosene. A: No fim
O dinheiro virava alcanfor. Por mais que [s.v.]
prendesse o magro salário, por mais que especulasse,
os cem cruzeiros desapareceram logo. A: §
Quando chegou em casa foi aquele alvoroço. A: §
– Oh! que demora. Estou para dar uma ôra
de fome. Trouxe a meizinha?
A: chegou à
– Trouxe, quase o dinheiro não dá. casa
João perguntou pelo filho, que tinha piorado
muito durante a noite. A: resposta –
queira Deus
– Está aí... veio a resposta.
escape.
– Queira Deus escape.

VIII
Depois que o marido saiu, dona Helena foi
à cozinha. Falou qualquer coisa com a cozinheira,
deu ordens e subiu com Rose Marie para o quarto. A: deu ordens
Num canto, estava o guarda-roupa pequenino, a Maria e
subiu; A: guar-
com dois espelhos na frente e figurinhas de passar,
da-roupa pe-
completando os enfeites caprichosos. Ao lado, quenino [s.v.];
a penteadeira, tendo mil enfeites de jarrinhos, A: figurinhas
perfumes, talcos e estojos para o bebê. No centro, de passar [s.v.]
enorme tapete quadrado apresentava uma gazela
arisca que fugia de um animal feroz. Na parede
defronte ao guarda-roupa, a casa das bonecas de
Rose Marie ia até a mesinha de cabeceira, junto à
qual estava a cama forrada com linho belga. Dona

47 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Helena pôs a filha a dormir. A menina ficou com A: a filha a


as pestanas imóveis, longas e muito pretas para o dormir. Ela
róseo do rostinho polpudo. Deliciava-se com o ficou; A: rosti-
nho polpudo.
enxoval. Vestidinhos finos e vaporosos como um
Em seguida
sonho. Flocos de cassa juntavam-se alvos como deliciou o
leite. Bordados delicados nas cambraias denota- enxoval.
vam o gosto da mãe zelosa. Dona Helena alisava
as roupinhas. Os sapatinhos caros estavam ali nas
caixas bem arrumadas. A milionária suspirava
de satisfação. Chegou a cantarolar uma modinha
qualquer e foi apanhar a Rose Marie.
– Você agora vai dormir. Suru... ru... ru...
menino mandu... A: Donata, a
Donata, a babá, foi chamada e apareceu. babá de Rose,
– Troque de roupa. Você hoje vai sair com a
Rose. Quero-a bem limpa.
– Sim, senhora. É agora?
– Não, à tardinha. Agora pode dar um passeio
para ela tomar sol da manhã, que é muito bom. Mas
pelo jardim.
Donata saiu levando Rose. Dona Helena
ainda deu os últimos retoques no camisolo que ela
vestia. Ajeitou o chapéu de verão e foi à janela.
Daí a pouco a empregada estava sob as
mangueiras.
Era mesmo uma filha amada a Rose Marie. A: durante
Comprou-a durante uma viagem ao Rio de Janeiro. uma viagem
Quando voltou, deu para fazer vestidinhos. Gostava que fez;
de mostrar as costuras às conhecidas. Depois de A: Quando
voltou [s.v.];
algum tempo, já procurava bordadeiras para os
tempo [s.v.]
pontos mais plissados. Animou-se de tal maneira

| 48
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

que adquiriu um carrinho-berço e mais outro. Foi A: adquiriu


entusiasmando-se e achou por bem dar um nome. um carro ber-
A princípio, vacilou entre Virgínia Cristina e Rose ço e depois
mais outro.
Marie. O primeiro era meio crespo. O segundo pa-
recia moderno, estrangeiro, meigo. Se tivesse uma
filha de verdade o nome seria este. Virgínia Cristina
parecia nome de rainha que já fez guerra, de mulher
imperiosa, cabeça em pé. Marco Antônio ficaria
lindo para homem. Nome forte, guerreiro. Mas não
vinha ao caso.
O certo é que Rose foi virando filha aos A: dona Helena
olhos de dona Helena, até que chegou àquele ponto. [s.v.]
Houve tempo em que procurou dissimular os cui-
dados. Se zelava da boneca era de portas fechadas,
falando baixinho, escondendo a metade dos objetos
que comprava às ocultas.
E como a fazendeira já entrava nos 20 anos A: estava nos
de casada, tendo concebido somente uma vez, 23 anos de
estava conformada. Doutor Jorge evitara a concep- casada,;
ção. Empregara todos os meios possíveis. Chegou A: estava
mesmo a provocar um aborto. Depois pensou de conformada.
outro modo e, procurou ter filhos. A coisa ficou A princípio
diferente. A mulher não dava sinal de vida. Só fazia doutor;
engordar. Recorreu a todos os médicos. Em vão. A: Depois
Sentiu-se envergonhado ao dizer-se sem herdeiros. pensou de
Parecia que todo o mundo só conversava sobre o outro modo e,
assunto para feri-lo, como que zombando da sua com a mulher,
procurou ter
masculinidade. Existiam, mesmo, os indiscretos.
filhos.
– Como é rapaz, nada? Dá um jeito, assim A: Existiam,
é feio. mesmo [s.v.]
Doutor Jorge dobrou os esforços, consul-
tou médico no estrangeiro, envelheceu, até, mas

49 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

aguentou firme. Dada a impossibilidade, procu- A: mais


rou derivativos, o mesmo acontecendo à mulher. aguentou
Já agora, viviam um ao lado do outro como se firma
fossem duas paralelas. A: Da janela
dona Helena
Da janela, dona Helena, embevecida, olhava embevecida
sua filha. À tarde vestiria uma roupinha bem bonita [s.v.]; A: À tar-
para que ela fosse passear. de iria vestir
Quando doutor Jorge voltou para o almoço, A: para o
anunciou que ia viajar com urgência. Certa pessoa almoço foi
telegrafara do Rio, convidando-o. Foi só o lufa-lufa anunciando
de arrumar as malas e dirigir-se ao aeroporto. [s.v.]

IX
A: o barrigão;
Em cima das varas de pati o caçula ansiava.
estacionado,
Os lábios roxos, orelhas roxas, a barrigona alu- duro,;
miando, esticada, dura, parecendo um tomate.
A: Aquela
Todo pança. Nada mais havia no menino. Aquela enorme de
coisa enorme de onde saíam o peito, pescocinho, onde saiam o
a caveira, as pernas e os braços secos. Revirava os pescocinho,
olhos como se a morte já o trabalhasse. A pele fina
e serosa cobria os ossos.
Isabel apanhou o saco de farinha, jogou um
punhado na boca e colocou um pouco na paneli-
nha de barro. Fez um escaldado ligeiro e levou ao A: levou para
doente. Com os dedos foi empurrando o grude e o doente
raspando a sobra com o indicador.
Os demais filhos esperavam ávidos o pre-
paro da janta e do almoço da véspera. A fome
torcia-lhes as entranhas. Durval, de tanto comer A: estava de
laranjas verdes, estava de carreirinha com dores na carreirinha
[s.v.]

| 50
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

barriga, viajando a toda hora para as coiraneiras


onde os buguelos ficavam alegres.
Isabel enfiou um pedaço de tripa seca no A: os meninos
espeto e levou ao fogo. Logo depois distribuiu a já haviam
ração de farinha com os filhos. Quando cortou em devorado mais
da metade da
pedacinhos o assado, já os meninos tinham devo-
farinha;
rado mais da metade do pirão. Mesmo assim, cada
A: A isca de
um foi para seu canto com o caco de barro na mão.
tripa preciosa
A preciosa isca de tripa dava um gostozinho, e as dava um gos-
crianças engoliram tudo num instante. tozinho [s.v.]
– Dá mais, mãe, dá... A: Come tudo
– Come tudo hoje. Amanhã está em minha hoje e amanhã
saia. Vão embora. Acabou... está em minha
saia.
– Dá, mãe...
Durval comeu a farinha e com o pedacinho
de tripa fazia figa aos irmãos.
– Olha... inteirinha. Passar no papo, concluiu
dando um piparote na goela.
Olhos cobiçosos voltaram-se para o irmão. A: dedos sujos
Em seus dedos sujos, de unhas terrosas e afiadas, [s.v.];
como garras, estava a prenda. Quatro centímetros A: estava a
de tripa torrada. preciosidade.
– Olha... inteirinha.
Lambia o sal. Estalava a língua, feliz.
– Bom!...
Todos invejavam a sorte do irmão. Cobiçavam
seu tesouro.
João foi à cozinha, apanhou a tigela grande
e falou:
– Bota aqui a farinha, Isabel.

51 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

A mulher encheu a vasilha com farinha, des-


pejou água fervendo em cima e fez o pirão. Logo
depois tomou do espeto e empurrou, com o toco do
facão, o resto da víscera para o marido. A: ferro cor-
João encostou-se à porta do fundo. Com uma tava [s.v.]
colher de ferro cortava, vagarosamente, grandes vagarosamente
bolos de angu e enchia a boca. Crescia as bochechas. [s.v.];
Trincava uma malagueta nos dentes e temperava a A: lasquinha
massa de pirão com uma lasquinha do assado. de assado.
A: meio da
A noite já se aproximava. O casebre ficava no
capoeira.
meio dos cacaueiros. As sombras amontoavam-se
pelo chão. Sombras onde as almas penadas da noite
fariam ninho. Sombras terríveis. A galinha choca
arrastou os buguelos e aninhou-se, ali mesmo,
no canto da sala, numa barroca vazia.
A: Olhos re-
João estava preocupado. Aquela noite lhe
virando [s.v.];
traria sofrimento e dor. O filho era todo uma bar- “A Era mesmo
riga. Deitado de cara para cima. Olhos revirando, que um mico
tiritando de frio. Era mesmo que um mico pelado, pelado, Deus
Deus me perdoe, pensou o pai. me perdoe,”
– Isabel, forra o canto do fogão e bota o
menino para quentar fogo um tiquinho. Está fazen-
do frio. Talvez seja bom.
A mulher afastou a panela de barro, forrou a
terra morna com uns trapos. Botou o filho a quen-
tar. Ele quase não se mexia. Talvez não houvesse
tempo de dar o remédio. Não havia. A morte vinha
escondida nas sombras. E o céu estava com as covi-
nhas de anjos.
– Será que filho de pobre também é anjo,
barrigudo assim? (filosofou João).

| 52
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Isabel engoliu um pouco de farinha e dois


goles d’água. Bem que gostaria de tomar café. Mas
o marido não teve dinheiro para nada. Em outro
tempo, podia ajudar o companheiro na roça.
Ganhava qualquer tostão, ia adjutorando. Mas A: filhos pe-
hoje, com os filhos pequenos... Ainda mais aquele quenos [c.p.]
menino assim.

X
Horas depois da saída do doutor Jorge, dona
Helena perguntou:
– Está pronta, Donata?
– Estou, sim senhora.
Rose Marie trajava um vestidinho de cambraia
azul-claro. O sapatinho da mesma cor combinava A: mesma cor
com o chapéu justo atrás e de enorme aba rendada combinava
na frente, para evitar os raios solares. O carrinho- perfeitamente;
A: redonda na
-berço também era azul e estava pronto para receber
frente [s.v.]
a Rose que choramingou fanhosa ao deitar-se.
– Vá com cuidado... olhe lá!
Pela rua fidalga, o carro saiu rangindo,
empurrado pela Donata que, de vestido alvo,
touca de linho e sapato de alvaiade, achava aquilo
muito natural.
Senhoras curiosas espiavam das janelas semi-
cerradas. Mastigavam certo riso de mofa. As meninas
cercavam a boneca. Perguntadeiras, investigavam
tudo. Buliam nos sapatinhos de pelica, fiscalizavam
as roupas internas, pediam a Donata que deixasse
empurrar o carro.

53 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Alguém deu psiu e aproximou-se. Era uma A: deu psiu,


senhora que desejava bisbilhotar as rendas, os bor- [c.v.]
dados caprichosos.
Dona Helena, sempre com as mãos no portão
e o corpo todo do lado de fora, espiava o carrinho
que desaparecia na volta da rua. Suspirava alegre.
Orgulhava-se da curiosidade das mulheres.
Ninguém veste melhor as filhas que eu, pen- A: “Ninguém
sava. Duvido que as meninas do doutor Magalhães veste melhor
tenham um enxoval daquele. as filhas que
eu, pensava.
O portão fechou-se. A fazendeira ainda Duvido que
saboreava os últimos olhares que restavam pela as meninas do
rua. Ficou cantarolando alegre, rebolando as doutor Maga-
carnes bambas. lhães tenham
Chegou mesmo a dar uma carreirinha e um um enxoval
daquele”
gritinho quando entrou em casa.
Em virtude da viagem do marido, ficaria à
vontade com a sua Rose. Levaria horas devanean-
do feliz, preenchendo o tempo que escorria sem os
marcos das horas, todo por igual. Bastava lembrar-se
da boneca, desprendia-se da realidade. Era como se
estivesse suspensa, etérea, fora de si, imaginando
situações ao seu bom prazer. Transformava o ce-
luloide em seus sentimentos. Gozava o sorriso dos
lábios duros e via sinais de amor nos olhos parados.
Sondava desejos inexistentes e amava com todo
afeto materno o fruto da sua imaginação.
Gestava mentalmente a filha, dava-lhe vida,
contornos e sofria as dores imagináveis da cria-
tura concebida. Plena das dores e alegrias, vivia
A: §
ativamente.

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

As empregadas enxergavam os atos da patroa


como mania de rica. A vizinha criava um cachorro
e para ele era todo cuidados e mimos. A moça dali
de perto afogava-se no piano dias e noites. Outra,
esperava a saída do marido para o escritório e en-
trava no automóvel com um homem que não era o
seu. A mais ingênua mesmo era dona Helena. A: § ; para cá
Só cuidava da Rose. De certo tempo para [s.v.];
cá, nem saía mais. Era às voltas com a bichinha, A: situação
dos móveis;
desvelando-se, bordando vestidinhos, arrumando
que [s.v.]
e modificando a posição dos móveis do quarto.
Parecia mesmo que, quando doutor Jorge viajava
A: longe [s.v.]
para longe, aumentava o apego à boneca.
Noitinha, já dona Helena estava à porta,
esperando. Tomara banho, estava branca de talco,
preparada para receber Rose.
Olhava a esquina de onde ela teria de apa-
recer. Conjecturava alegrias e preocupações com o
sereno e o frio da tarde.
Pela algazarra da meninada pressentiu o A: §
carrinho. Seis crianças acompanhavam Rose. Uma, A: acompa-
muito brejeira, queria apanhá-la. nhavam a
Donata aproximou-se. Dona Helena Rose.; Uma
[s.v.]; brejeira
apressou:
[s.v.]
– Ligeiro, menina. Ande logo. Não vê que A: caindo
está caindo sereno? sereno. [c. p.]
As meninas olharam admiradas. Uma curio-
sa inquiriu:
– Ela cai doente, cai?
Dona Helena fechou o portão, tomou Rose A: § ; A: to-
nos braços. mou a Rose

55 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Preocupada, correu a abrigá-la no hall do


palacete.

XI
Pela madrugada o menino suspirou forte.
Isabel velava. Já perdera cinco filhos do mesmo
jeito.
Acordou João, receosa que a morte a encon-
trasse sozinha com o filho. Os grilos cricravam nas A: § ; os filhos
vassouras do terreiro. Corujas tua-cova agouravam
nas capoeiras. Quando a rasga-mortalha passou
por cima da casa, o doente estremeceu e ali mesmo
ficou quieto. Morto. Como um animal qualquer.
Era mais um bicho morto. A: § ;
Isabel soltou algumas lágrimas, espremidas. A: § ; A: lágri-
mas. Quase;
Quase como uma obrigação. Quem já viu mãe sem
com a morte
choro pela morte do filho? do filho?
Muitas delas já padecera na vida. Agora dava Espremia as
até trabalho um bago de lágrima, que vinha duro lágrimas es-
como um caroço. Interiormente sentia certo alívio. turricadas.
Menos um na filharada. Não fazia falta. Se ainda A: § ; A: lá-
fosse dos maiores, mas aquele já ia em bom tempo. grima [s.v.];
E como um consolo, aliviou-se. como caroço.;
A: quêle
– Deus sabe o que faz.
João entristeceu. Não era propriamente
saudade, nem pena do filho. Como que uma re-
volta surda crescia dentro dele. Um ódio escon-
dido e contra alguém que ele não identificava.
Imediatamente pensou nas despesas do enterro.
Como haveria de ser? Estava puro, areado. Os vinte

| 56
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

e cinco cruzeiros de economia eram para o facão.


Logo agora o menino ia morrer. Certa amargura
apoderou-se dele, aniquilando-o. Teve vontade
de engolir quatro dedos de pinga, para clarear as
ideias, para fugir um pouco daquilo que via. Mas A: Mais teria
teria que ficar bancando o dono da casa.
Levantou-se, apanhou o pequeno cadáver,
benzeu-se e, contrito:
– Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.
– Para sempre seja louvado, respondeu a
mulher.
– Amém, disseram ambos.
Somente as labaredas do fogão iluminavam
a choupana, enchendo-a de fumaça. João saiu ao
terreiro. A noite era fria. Bacuraus choravam nas
ramagens, onde as folhas se roçavam lúbricas.
Galhos de jequitibá rangiam uns contra os outros,
enchendo o espaço de ruídos sinistros. O pai
amedrontou-se. Temeu ver a sombra da morte que
ainda andaria por ali.
– Ó João, vai chamar uma pessoa. Arranja A: – Oh João,;
um toco de vela para gente acender. pra gente
Os meninos que dormiam na sala foram
levantando-se, sonolentos, curiosos do ocorrido.
Chegavam perto do irmão e olhavam a caveirinha.
– Morreu, mãe, foi?
– Deus levou, meu filho.
Somente Aprígio ficou na barroca, enro-
lado em si mesmo, como um gongo, rangendo
os dentes, no sono inquieto. Sereia cheirou as

57 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

novidades e nada sentiu. Catou umas pulgas, foi à


porta do terreiro, olhou a escuridão e voltou para
junto de Aprígio.
João desapareceu na vereda. Levava na mão
um facho de pau-brasil. O vento perseguia-o, mas A: O vento
a chama abria buracos na escuridão, mostrando perseguia-o
o caminho. A casa mais perto era a do agregado [s.v.]
Júlio. Com ele moravam a mulher, a filharada e a
sogra, uma velha chocha, mas entendida em partos
e funerais.
Logo na porta, o cachorro Foguete deu sinal
de alarme. Ganiu de amedrontar.
– Que é isso, nego? Oxem...
O animal reconheceu o vizinho, chegou-se
com a cauda inquieta e lambiscou-lhe as mãos.
– Júlio... Ó Julio!...
– Oi, respondeu uma voz rouca de sono.
– Abre aí.
– Quem é?
– De paz. João da-roça-do-fundo.
– Que houve, João? A: – Que houve
[s.v.] João?
– O menino morreu.
– Inocência... Inocência... acorda.
– Hum...
– O menino de João morreu.
– Quando?
Júlio estava de pé, apalpando a porta de
saída. Nu, da cintura para cima, apareceu e falou ao A: Nu [s.v.]
companheiro:

| 58
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Meus sentimentos, João.


– Obrigado.
– É isso mesmo.
A velha Chiquinha, que ouvira tudo, já saiu A: com o chalé à
pronta, com o chalé na cabeça. cabeça
– Boa noite, senhor João.
A: – Benção dona
– Bênção dona Chiquinha. Chiquinha.
– Bênção minha tia, falou Júlio. B: – Boa noite,
– Deus te abençoe. Eu sabia que aquele senhor João.
menino ia morrer hoje. O céu estava cheio de covi- – Bênção minha
tia, falou Júlio.
nhas de anjo e parece que as nem-sei-que-diga das
– Deus te abençoe.
rasga-mortalhas se soltaram essa noite. – Bênção minha
– Passou lá em casa também, dona Chiquinha. tia, falou Júlio.
– E o cachorro uivou a noite inteirinha que A: <<rasga-mor-
Deus deu. Agourava de fazer medo. talha>>
– Caso sério – disse Júlio.
– O menino morreu agora? perguntou a
parteira.
– Há pouquinha hora.
– Júlio, você vai avisar aos outros, quando o B: – Caso sério
dia amanhecer. Eu preciso voltar. Isabel ficou em [c.p.v.]
casa sozinha.
O amanhecer escondia-se atrás das serras
e vinha na ponta dos pés, iluminando a mataria.
A mosca da madrugada zumbia estridente pelos
caminhos.
Furando o silêncio, de espaço em espaço, A: § ; de espaço a
um galo cantava. A cruviana cortava a carne dos espaço,
homens. E a noite fugia, esgarçando-se, diluindo-se

59 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

na claridade, deixando fiapos nos galhos das


árvores.
Isabel, em casa, encostou-se ao fogo e lem-
brou-se daquela noite em que o menino estivera A: o menino
nas últimas. João fora buscar lenha. As crianças esteve nas
últimas.
tinham ficado na casa de farinha. Quando ela veio
apressada olhar o filho, pois deixara-o sozinho
desde cedo, encontrara-o no chão, caído na tarim-
ba. Parecia morto. Estava seco, torrado de magro.
Fedia até.
Aquele resto de gente parecia coisa do
outro mundo. E, dentro da escuridão do case-
bre, Isabel teve medo do filho. Mesmo que uma
assombração! A pele franzida como barriga de
velho. Nem possuía semblante de gente viva.
Somente dois olhos enormes, que se mexiam nas
órbitas. Estava com a boca do estômago murcha e
arquejava cansado. Feito alma penada. Não cho- A: § ; E [s.v.]
dentro da
rava. Quando era apanhado da cama, os braços
escuridão do
e as pernas caíam, inertes. Mal gemia, baixinho,
casebre;
imperceptível. Um morcego flechou o ar e foi-se. A: Mesmo que
No casebre a escuridão enchia tudo. As coru- uma assom-
jas estariam ali esperando a morte do menino. bração. [c.p.];
Naquela noite, Isabel saiu apressada, olhou para A: Nem pos-
trás. Estava com medo do filho. Era pecado, suía expressão
bem verdade, mas Deus perdoa. Nem as estrelas de gente viva;
iluminavam o caminho da mulher. Ela chegou dois olhos
enormes [s.v.];
à porta de varas para o lugar, escorou-se e saiu
A: boca do
apressada. Não via que as almas do outro mundo estômago mu-
estavam ali agourando o doente? Que a noite era cho; A: Quan-
espessa, povoada de sombras que os matos mo- do apanhado
vimentavam? Por que viera sozinha? Bem que da cama [s.v.];

| 60
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

poderia ter trazido um menino de companhia A: Mal gemia


ou mandado João. Nem mesmo acertava o cami- [s.v.];
nho de volta à casa de farinha. A noite fechava A: Naquela
tudo. A picada estreita desapareceu. A lembrança noite [s.v.];
do filho apavorava-a. Certa feita, dera-lhe uma A: mas Deus
perdoava.
surra. Ele gemeu soturno e sofredor. Não via que
ele era diferente? Desde que nasceu não chorava A: Certa feita
[s.v.]
direito, mal virava o olhão esquisito no buraco
da caveira. Isabel terminou perdendo-se na roça.
Perambulou toda a noite. Vai aqui, vai ali,
cada vez embrenhava-se mais. Julgava encontrar
algum ponto de referência e, quando se orien- A: § ; A: e
tava, reconhecia que estava mais perdida ainda. [s.v.]; orienta-
va [s.v.]
Assustou-se com as sombras e os voos abafados dos
bacuraus. Rezou umas palavras que sabia, mas o
temor de encontrar almas aniquilou a própria von-
tade. Noite alta ouviu gritos e viu uma luz mortiça
de facho. Respondeu aflita. Era João que, voltando à
casa, resolveu procurá-la.
Desde aquele dia esperava a morte. Daí para
A: Daí para cá
cá, o menino veio penando até que estava ali des- [s.v.]
cansando desta vida.
Logo cedinho a notícia correu a fazenda.
– O menino que parecia assombração
morreu.
– Deus lhe dê o reino da glória. Feliz de quem A: reino da
morre anjo. Glória
– Mas o menino morreu pagão e não teve [Em A não
consta: Não
vela, acrescentou alguém. Não tem direito ao céu.
tem direito ao
A velha Chiquinha veio ajudar Isabel. Trouxe céu.]
rolinho de agulha. Os agregados foram chegando. A: e agulha

61 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Visitaram o companheiro. Um toco de vela A: § ; A: pa-


estava na parede do fogão, onde o menino morrera. rede do fogão
A cobertura de palha era forrada de fuligem negra, [s.v.]
como que oleosa, pendente em flocos.
Isabel chorava em um canto. Os grãos de lá-
grimas caiam dos olhos fundos. Oito filhos desapa- A: Oito filhos
reciam assim, minguados, como gravetos. E aquele já tinham
desaparecido
nem parecia gente. Bem que o povo dizia:
assim,
– É coisa do outro mundo. Não tem sangue.
O morcego branco chupou o sangue dele. O morce-
go branco, filho do cão.
Nem tinha nome. Era o menino. A: Era o
<<Menino>>
João pensava no batismo que o filho não re-
cebera. Bem que escolhera o padrinho, o compadre
Caboclo. Mas o compadre, coitado, era também A: caboclo
carregado de filhos e nunca lhe sobrava dinheiro
para o padre. Por duas vezes fora a igreja perguntar:
– Senhor vigário, tenho um menino para ba-
tizar, mas não posso pagar.
– Hum... gemia o padre, e continuava lendo
as notícias políticas.
– Como faço, senhor vigário? A: Como faço
[s.v.]
– Somente vinte cruzeiros.
A: Caboclo
Caboclo voltava encabulado. Sentenciava: voltava enca-
– Um dia nós batizamos. bulado e sen-
tenciava:
– Sim, compadre. Sim...
E o tempo foi correndo. O menino secando.
Desaparecendo. Até que ficou aquilo ali. Um
A: §
bicho magro, sem sangue.

| 62
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Era verdade, sim, que o morcego branco A: noites


vinha nas noites entupidas de negror chupar os me- entupidas de
ninos pagãos. negror, [c.v.]
A: todo modo
Eis o resultado: morreu sem batismo. O amigo
arranjar o
Caboclo fizera tudo, apertara o cinto, tentara por dinheiro. Mas
todo modo arranjar dinheiro. Mas os filhos nume- [s.v.] filhos nu-
rosos como uma ninhada de bacorinhos famintos lá merosos [s.v.]
estavam a reclamar mais comida, farinha, ou uma como uma
isca de tripa. E João sempre dizia: ninhada de
barcorinhos
– Somente compadre Caboclo com comadre
famintos [s.v.];
Sinhá batizam o menino. Ninguém mais. Um dia a
A: comadre
gente pode. Ele é o padrinho e tem que arranjar o
Sinhá, [c.v.];
dinheiro, mas eu trabalho e também ajudo a pagar
A: eu trabalho
o padre.
também e
Dia vai e dia vem, até que foi tarde. Compadre ajudo;
Caboclo caiu doente. Não podia mais trabalhar e foi A: Rolava por
posto fora da fazenda. Rolava por aí. aí a fora.
João ficava triste, não podia chorar. Riscava o
chão de barro solto com o dedo do pé. Apertava a
carapinha preta com as mãos. Estava nisso, quando
chegou o gerente.
– Que houve?
Antes de qualquer resposta, acrescentou a
título de conforto:
– Podia ser pior. É isso mesmo. Descansou.
Ante a morte, o gerente, apesar de ainda
crespo, amaneirou a voz e repetiu:
– Podia ser pior.
– Eu vou querer um dinheiro adiantado para
o funeral.

63 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Quanto?
– Uns cem...
– Para que tanto... sessenta dão. Tome.
João recebeu três cédulas de vinte cruzeiros,
meteu-as no bolso e acrescentou:
– Pra semana eu pago.
O gerente voltou a rédea da mula e desapa-
receu na roça de cacau. Iria aproveitar o dia para B: fiscalizar
fiscalizar alguma coisa. alguma cousa
Do mato vinham as pancadas fofas da enxada
de Júlio cavando a sepultura.
Na saleta, sobre a tarimba de pati, estava o
caixãozinho de tábuas nuas, enfeitado com man-
jericão, cravo de defunto e duas rosas. Como era A: Como era
domingo, havia muita gente conversando pelo ter- domingo [s.v.]
reiro, contando caso do passado.
De quando em vez chegava um, levantava o
pano que cobria o morto, fazia cara de nojo e saía:
– Nem parece gente...
João bem que estava compreendendo aquela
curiosidade de todos. Seu filho parecia mesmo uma
assombração.
Quando Júlio anunciou o término da cova,
a velha Chiquinha fez umas orações, ajoelhou-se,
no que foi acompanhada por todos, e sentenciou:
– Pode levar.
Os meninos de pés no chão, muito honrados A: §
com a oportunidade, pegaram o caixão e saíram.
Logo mais foram substituídos por outros que,
adiante, tiveram que ceder o defunto a terceiros.

| 64
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

A terra cobriu o menino, um resto de vela A: A terra co-


ficou derretendo-se. Todos voltaram aos casebres. briu o menino.
[c. p.]
João juntou-se à mulher, sentado na saída da
cozinha, olhando os cacaueiros em volta.
– Agora, adeus facão. Tomei sessenta cruzei-
ros para o enterro.
– Nada homem, você tem saúde que é tudo.
– Mas estou me sentindo fraco, com as pernas
moles e uma dor no espinhaço de tarar o corpo.
– Não sei onde a gente vai parar.
– Mas se Deus me der licença, eu compro o
zinco.

XII
Dona Helena fazia o papel de verdadeira
mãe.
Acordava à noite, cobria a boneca, aconche-
gava-a ao colo, cantava canções de ninar e ela ficava
com os olhos parados, envolvidos nos cobertores de
lã, insensível aos carinhos maternos.
A: viagem do
No dia seguinte ao da viagem do doutor dr. Jorge,
Jorge, algo de muito grave aconteceu em sua casa. A: § ; A: pro-
Há muito dona Helena esperava aquela ausência longada. Preci-
prolongada. sava distrair-se
Com a presença do marido não ficaria tão soltar a imagi-
nação. Com a
livre. Apesar dele sempre dizer que ela era bobinha,
presença;
uma menina grande, pois continuava brincando de A: fazer qual-
boneca, queria fazer qualquer cousa, de vivo, com a quer cousa de
Rose Marie. concreto, de
vivo

65 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Assim é que Rose amanheceu gripada.


Donata fora repreendida porque voltara tão tarde A: tarde da
da rua, já serenando. A causa do resfriado era isto. rua, já era
A fazendeira não quis tomar café, fechou-se no sereno.
quarto e dengou a filha. Agasalhou-a bem, cerrou as
duas janelas, acendeu a luz. Ficou naquele ambiente
abafado de doença. Era possuída de imensa satisfa-
ção. Rose queimava de febre. Bem que havia neces-
sidade de chamar um médico. Onde já se viu uma
criança ficar assim, à míngua? Pelo menos o doutor A: Se fosse
auscultaria. Se fosse caso de gravidade, ainda have- caso de gravi-
ria tempo para providências, antes que a doença se dade [s.v.]
agravasse. Poderia até levá-la ao consultório. Por que
não? O importante era pagar a consulta. Dinheiro, A: Dinheiro
graças a Deus, tinha. Levar, fazer todos os exames, [s.v.] graças a
Deus[s.v.]
cuidadosamente, e saber o tratamento.
Dona Helena desceu apressada, tomou
banho, vestiu-se do melhor modo e ordenou:
– Donata, você fique com a Rose. Se ela A: Se ela cho-
chorar, dê um pouquinho d’água. Muito cuidado, rar [s.v.]
não pode tomar corrente de ar. Olhe o que estou
lhe avisando.
– Sim, senhora.
Donata abriu um pouco os olhos. As outras A: da patroa e
empregadas vieram à porta, repararam o traje bisbilhotaram
sarcásticas:
bonito da patroa e bisbilhotaram:
– Neném está doente, dona Helena?
A: que a dei-
– Foi essa cabeça de vento que a deixou, coi- xou [s.v.]
tadinha, tomar sereno. A: – Oh, Do-
– Oh! Donata! Por que você fez isto? nata, por que
Acrescentou a cozinheira. você fez isto?

| 66
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Donata fez ar de riso contido e:


– Eu não pude, menina, quando menos
esperei chuviscou. Eu estava lá no jardim e vim
correndo.
Dona Helena saboreava cada expressão das
empregadas. Elas gostavam muito de agradá-la da-
quele modo.
– Chama Carlos aí.
– Senhor Carlos! gritou a copeira, dona A: –Chama
Helena está chamando. Carlos, aí [c.v.]
O chofer apareceu. Um preto baixo, cabeça
redonda, pregada no corpo, sem pescoço:
– Pronto, dona Helena.
– Você se apronte ligeiro, mas é muito ligeiro. [Em B supres-
Vamos à cidade. são de –Mas
não há de ser
– Alguma novidade? Doença? nada, não
– É a Rose que está doente. senhora. Ainda
está no come-
O chofer olhou as empregadas, engoliu o
ço.]; A: Ligeiro
riso: [s.v.]
– Ligeiro. Troque de roupa e pode tirar o
carro.
Daí a pouco a máquina trabalhava gemendo, A: a máquina
esquentando-se. Carlos, de boné branco, derreado trabalhava
no coxim, mantinha o carro em ponto morto. silenciosa,
esquentando-
Dona Helena demorou-se ao espelho, reto- -se. Carlos
cando os caprichos da natureza, mudou de traje [s.v]
duas vezes, apertou um vestido, afrouxou outro
e vestiu um terceiro. Batonizou-se, ajoujou bem
a cinta, esticou para baixo e desceu as escadas
recomendando:

67 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Olhe o que lhe disse. Não se descuide.


Daqui a pouco volto com os remédios.
Só aí dona Helena se lembrou que os médicos
só atendem à tarde. Assim mesmo desceu, mandou
botar o carro na garagem e tornou a subir.
– Esses médicos... são uns preguiçosos... A: – Esses
um caso urgente assim e eles só trabalham à tarde. médicos... são
A felicidade é que ainda pode esperar. E se não uns pregui-
pudesse? çosos... Um
caso;
Donata, que estava compreendendo pouco, A: A felicida-
inquiriu: de é que pode
– Que foi? esperar.
– Que foi? Os médicos só trabalham à tarde.
Tenho que esperar até duas horas. Só depois
do almoço.
Dona Helena chegou-se ao berço, debruçou-se A: Donata
sobre Rose e dengou: [s.v.]
– Minha rolinha... você vai ficar boa. Papai
do céu não deixa você ficar doente.
A copeira subiu, informou-se do estado da A: §
menina e desceu. Em seguida, chegou a cozinheira: A: estado da
– Licença, dona Helena. menina [c.v.];
A: Em seguida
– Entra...
[s.v]
– Melhorou?
– Nada, minha filha. Só o médico. Não deve A: Nada [s.v]
demorar. Começa assim. Depois... pneumonia. minha filha.
Com gripe ninguém deve facilitar.
A cozinheira calçava a chinela até o meio do
pé, tendo o calcanhar de fora. Vestia chita desbota-
da e muito suja na altura das cadeiras. Era gorda,

| 68
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

riso de alvorada, com aqueles olhos redondos de


velhacaria.
– Por que a senhora não faz um chazinho?
– Mas de que folhas, minha filha?
– De mel de abelha. É muito bom. Uma
conhecida minha estava com a filhinha assim, tos- A: estava com
sindo, botando catarro, fez um xarope de mel de afilhinha as-
abelha e foi uma vez só. sim [s.v]

– Aí tem mel de abelha?


– Tem, sim senhora.
– Você sabe fazer?
– Sei.
– Espere aí...
– Senhora – respondeu a preta voltando-se, B: Senhora,
pois ela já ia saindo para fazer o remédio. [c.v.]; A: -Se-
– Se fizer mal? nhora, disse a
preta voltan-
– Garanto que não faz. do-se [s.v.]
– Não era melhor esperar a opinião do
médico?
– É... mas enquanto chega a tarde, a bichinha
não fica assim, sem remédio nenhum. Se bem não
fizer, mal não faz...
– Então, faça.
– Bem...
A cozinheira desceu, foi à copa, abriu a A: garrafa
peça e tirou uma garrafa branca com o rótulo: branca com o
“Abelhas Italianas”. A copeira chegou, serviu-se rótulo [s.d. p.]
de um bocado, misturou farinha e comeu a papa A: Daí a pouco
dona Helena

69 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

açucarada. O mesmo fez a cozinheira. Daí a pouco perguntou


dona Helena perguntou, apressada: [s.v.]
– Está pronto?
B: já vai. [s.t.];
– Um momento, já vai. – E para a copeira B: estava ao
que estava ao lado – O negócio está bom hoje. Essas lado: [c.d.p.]
ricas têm cada ideia...
Quando a cozinheira levou o chá com cravo,
casca de limão e mel de abelha, a patroa falou:
– Agora você vai preparar tudo, que preciso
sair mais cedo.
O resto da manhã a fazendeira ficou ao lado
de Rose. Deu-lhe xarope três vezes e chegou a usar
o termômetro para certificar-se da febre. A: Ao meio
Ao meio-dia, não quis almoçar. Sentou-se à dia [s.v.];
A: achou o filé
mesa, sozinha, beliscou o macarrão, mastigou uma
duro.
rodela de tomate da salada e achou o bife duro.
A: Nas refei-
– Estou sem fome. ções mostrava
Mostrava preocupação e vexame. preocupação e
vexame.
As empregadas aproximaram-se e, meio en-
cabuladas, observavam a patroa. B: empregadas
aproximaram-
– Donata vai ficar com Rose. -se e [s.v.];
– Rose melhorou, dona Helena? – Quis saber A: meio enca-
a cozinheira. buladas [s.v.]
– Parece que não. A febre está alta. Diabo B: dona Hele-
na? [s.t.];
desses médicos preguiçosos.
A: Na cozinha
Na cozinha, Carlos almoçava. Estava todo [s.v.] Carlos
pronto para atender ao chamado da patroa. almoçava.
– Carlos! – exclamou ela. Estava todo
pronto para
– Senhora. atender o

| 70
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Já acabou? chamado da
patroa.;
– Falta o café – interferiu a cozinheira.
B: Carlos! [s.t.];
– Uma hora – falou a fazendeira, olhando o A: Exclamou
relógio da parede. – Quero ir cedo para conseguir B: Falta o café
ficha. Preciso estar de volta, logo. Se minha filha [s.t.]
não tiver nada, irei ao Bonfim. B: Uma hora
– Nada, dona Helena, tenha fé em Deus. [c.v]

XIII
João estava triste com a morte do filho. Ainda
mais porque ele tinha morrido pagão. Aquela an-
gústia misturada com ódio que ele não sabia de
quem, invadia toda sua alma pequena, escura, dona
de curtos anseios. E o gerente aparecia para dizer:
– Podia ser pior...
Homem frio. Coração de pedra. Não gostou A: dele desde
dele desde que o conhecera. Mas a necessidade obri- que o
gava. Lembrou-se do dia que procurou trabalho. conheceu.
Disse que tinha três filhos, sendo que um já
o ajudava em tudo, pegava no pesado. Mentia. Mas, A: §
por onde implorava serviço, perguntavam se era A: era solteiro
solteiro, e, quando respondia ser casado, com oito e [s.v.]
filhos, não adiantavam conversa. Deram-lhe um
casebre no fundo da fazenda. Naquele dia já estava
sem comer dois almoços e duas jantas. Recordava-se
que deixara a mulher e os meninos à beira do rio das
Contas, numa sombra. Como o gerente precisava de
gente para safra que entrava, aceitou-o e apontou a
vereda, finda a qual estava a choupana de indaiá,
sem portas, a cobertura furada, o mato invadindo

71 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

tudo, bem no canto da roça grande. Quando chegou


a noite, trouxe os farrapos e foi esconder a renca A: Quando
de filhos. Dificilmente senhor Antônio descobriria chegou a noite
sua mentira. [s.v.]
João ruminava lembranças quando ouviu pi- A: ruminava
aquelas lem-
sadas de animal. O gerente não pode ser. Já andara
branças
em sua casa pela manhã. Como era domingo, certa-
mente estaria pela rua tomando cerveja, dando na
mula baia ferrada dos quatros pés.
As pisadas, no entanto, aproximavam-se. A: § ; O agre-
O agregado então resolveu tomar providência para gado então
esconder os meninos. [c.v.]
– Isabel lá vem senhor Antônio, só pode ser ele.
Uma voz apressada de mulher ordenou:
– Corre... corre...
Os meninos, assustados, desapareceram do A: Os meninos
assustados
mato.
[s.v.]
Aprígio, não podendo acompanhar os A: §
irmãos, jogou-se sob a camarinha do quarto escuro.
Ficaram Durval e José.
Senhor Antônio chegou estabanado, riscou
as quatro ferraduras no terreiro estreito, deixando
quatro vincos no barro, e praguejou:
– Você me disse que só tem três filhos e me
falaram que são mais de dez. Bem que eu encontrei
cabaças de cacau comidas por aí. Em todo canto se
encontra rastro de menino. A: rápido de
– Nada, senhor Antônio, pode olhar tudo. besta. pelos
modos que os
O homem pulou rápido da besta. Pelos costumeiros
modos mais bruscos que os costumeiros, tinha [s.v.]

| 72
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

tomado cachaça. A carona muito vermelha e suada


estava mais crispada de zanga que normalmente.
As chilenas enormes e dentadas tiniam.
– Pode olhar, confirmou Isabel.
O gerente entrou e foi até a porta do fundo.
Voltou um pouco e entrou no quarto.
Abaixou-se estalando as juntas duras. Dois olhos
medrosos, como se fossem de gato no escuro, cra-
varam-se nele:
– Olha aqui. De quem é esse trem? B: esse trem.
[c.p.]
– É um sobrinho nosso que chegou ontem.
– Sobrinho, não é?
– Sim, senhor. A: – Sim [s.v.]
A taca sibilante correu debaixo da tarimba. senhor.
O garoto, tal bicho acuado, escondeu-se mais na
furna, uivando. Outra tacada certeira foi até ele.
Outro urro:
A: – Oh mãe...
– Oh mãe!... oh mãe!...
oh mãe...
– Assim que não é filho de vocês, cambada A: Cambada
de mentirosos. Cachorros. Só rua. Cambada de de ladrões
LADRÕES. Não deixam nada nas roças. Levam tudo.
Roem cacau como ratos. Vão me pagar o que A: §
devem e rua. Rua!... rua!...
João arriscou uma desculpa.
– Senhor Antônio não faça isso com a gente.
Tenha dó dos fracos. Por amor de Deus. Pelo leite
que o senhor mamou.
Isabel desatou a chorar. Correu esbaforida
ao quintal. Seu filho tinha apanhado com a taca de
bater em burro. Seu marido nem podia fazer nada.

73 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

“Aquele miserável não respeita o menino da A: §


gente que morreu hoje. Um herege.” A: estavam os
Atrás das coiranas, como um bolo de frieira, quatro meni-
estavam os outros seis restantes. Se o gerente resol- nos restantes.
Se o gerente
vesse dar uma busca seria pior.
resolvesse dar
A mulher ainda ouviu a voz engasgada de uma busca se-
ódio que vinha do casebre: ria pior. Daí a
– É capaz de ter mais por aí escondido. Ora pouco [s.v.] a
mulher ainda;
se tem...
A: § ;
– Não, senhor Antônio. Mais ninguém, A: Mais nin-
somente esses. Quando eu disse que tinha três é guém [s.v.];
porque aquele outro já estava mesmo morto – veio B: mesmo
nova desculpa. morto, [c.v.]
– Mas outro dia tive aqui e você me mostrou
os dois e o doente. A: [s. §]
– É isso mesmo.
João calou. Num relance, passou pela sua A: Num relan-
cabeça a vontade de apanhar a língua de teiú e ce [s.v.]
enterrar todinha no filé do miserável. Até o cabo.
Bem que podia fazer isso. O homem estava tonto, A: atrapalha-
calçado de botas, o que lhe atrapalhava as forças. vam as forças
E nunca poderia esperar uma vingança de sua e nunca
parte. O pensamento passou deixando certo medo
no coração do agregado.
O gerente enfurecido saiu pelas moitas. A, B: Tinia as
Tiniam as esporas, embaraçando-se nos cipós, esporas
xingando:
– Diabos!... se tem mais... corto no meio.
João acompanhava-o com os olhos. Cá do
terreiro, reparava-o caçando seus filhos como se

| 74
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

eles fossem porcos. Lá ia o infante, trôpego, bêbado,


quase inconsciente. Seria capaz, mesmo, de matar.
Não era a primeira vez que aparecia à procu- A: que parecia
ra dos meninos. Vasculhava tudo. Às vezes vinha de em procura
mansinho e chegava de supetão. Felizmente os me-
ninos já sabiam o que fazer e embiocavam-se pelo
mato como pintos quando pressentem o gavião.
Mas agora o bicho estava puxando fogo e para fazer
uma arte não custava.
Quando senhor Antônio chegou às coira- A: Antônio
neiras, esbarrou. A imundície não o deixava entrar. chegou coira-
Mesmo assim, contornou por um lado e viu os neiras [s.v.]
galhos quebrados.
Meteu a cabeça, enjoado com a morrinha, e: A: §
– Tem mais gente.
Tirou o facão afiado, cortou alguns arbustos
e penetrou o cerrado que os calumbis faziam sobre
as moitas... Abaixou-se.
Já de cócoras, foi entrando. O espinho tirou-lhe A: §
o chapéu, jogando-o ao chão.
– Diabo!
Adiante, no mais trançado, ouviu movimento.
– Olhe!... disse ele.
Avançou mais.
De fora, Isabel, ao lado do marido, tinha o A: Não podia
coração aos pulos. João envergonhava-se. Não defender os
podia defender os filhos, nem mais era homem. filhos. [c. p.]
Mal suplicava:
– Senhor Antônio, tenha pena de nós. Venha A: Venha se
embora.
embora.

75 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Pra os diabos.
O calumbi segurava o gerente de quando em A: O colum-
quando. Fazia-o parar, a fim de extrair os pequenos bi segurava
o homem;
espinhos em garra que lhe atacavam. Adiante deu
A: Fazia-o
com uma casa de marimbondos beiju. Os insetos parar[s.v.] a
levantaram as asas, assanhados. Desviou-se para fim
um lado com muita cautela, pois que tinha de A: com muita
livrar-se dos espinhos, da sujeira dos meninos que cautela [s. v.]
ia pelo chão e dos marimbondos. O ruído crescia.
O gerente assustou-se. Uma rola-caldo-de-feijão
deixou o ninho num relâmpago. Mas o que bulia na
terra e nos arbustos continuava.
– Os meninos... se pego!
Senhor Antônio abaixou-se mais, venceu a
última rama de calumbi que se estendia no chão e,
no lugar mais escondido, encontrou Bordada que
tomava banho na areia solta.
Os meninos, instintivamente, escapuliram
a tempo e sumiram no aceiro da roça. Mas senhor
Antônio, logo que saiu da moita, de longe mesmo,
viu movimento do mato que se fechava atrás de
alguém.
Desconfiou serem eles. Rápido, livre das A: Desconfiou
esporas, que foram arrancadas e postas no cami- de ser eles.;
A: §
nho, correu no encalço. Os fugitivos atravessaram
o aceiro, entraram na mata fechada e ganharam
a vereda. As perninhas bambas eram impelidas A: §
pelo medo. Desde há muito que acostumaram a
esconder-se. Já viviam de ouvidos atentos. As duas
medidas traziam vestidinhos puídos e os meninos
estavam completamente nus.

| 76
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Notaram que o gerente ia perto. As pernas


esquálidas correram mais. O menor tropeçou numa
raiz, caiu, mas, sem choro, levantou-se, para cair
novamente. Zilda, a mais velha, voltou-se, apanhou
o irmão e enganchou-o. As pisadas fortes das botas
aumentavam e como que esmagavam o próprio
chão. O homem vinha mesmo. Certamente não
faltava nem um palmo... Adiante, Zilda alcançou os
irmãos.
– Corre... vem aí.
Começaram a descer uma ladeira e ganha-
ram terreno. Se não fosse os tocos e espinhos do
arrasto avançar mais.
Senhor Antônio já tinha certeza que na frente
ia alguém. Os rastros miúdos ficavam nas barrocas
da lama. Palavras soltas de menino chegavam aos
seus ouvidos.
– Li... gei... ro
O homem já estava quase cansado. Aquelas
botas apertadas castigavam-lhe os pés. Quando ele
começou a descer, os meninos dobraram à direita
numa picada mais fechada, fazendo-o passar.
Os quatro fugitivos saíram do arrasto, mete-
ram-se bem na mata e entocaiaram-se na catana de
um pau-d’alho.
– Cambada de pestes, disse o gerente, como
se descarregasse todo seu ódio.
Em seguida, voltou, deu uma busca, meteu A: Em seguida
a cara dentro do mato e ganhou a vereda fechada. [s.v.];
Afinal descobriu a batida. Foi mais adiante, onde os A: Foi mais
galhos se adensavam. adiante [s.v.]

77 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Aqui não passou, disse o homem. Eles não


viriam aqui com tanto espinho de quitara.
Mesmo assim, seguiu e deu com as catanas A: Mesmo
do pau-d’alho. assim [s.v.]
– Estão ali. A: Estão ali,
proferiu.
As crianças ficaram apavoradas. Os olhos
como que pulavam das órbitas. Nunca tinham visto
o homem. Nem mesmo sofreram nada diretamente
dele. Mas, de tanto falar a seu respeito e terem que A: dele. Mas
fugir quando ele aparecia, já o temiam mais que se [s.v.]
realmente vivesse com ele. A mente infantil amplia- A: ampliava as
va as maldades do capataz, dando-lhe contornos de maldades do
monstro, animal muito terrível que pegava menino. homem,;
Tanto assim era que, quando aparecia no casebre, A: Tanto assim
a mãe ordenava que fugissem. E eles desapareciam que [s.v.]
no mato, quando pressentiam o inimigo. A: quando
aparecia no
Daí aquele pavor. O menor franziu os lábios, casebre [s.v.];
fez bico. Ia chorando quando Zilda amordaçou-o A: E eles, [c.v.]
com força.
Senhor Antônio chegou à catana do lado de A: §
cima, olhou de um lado, do outro. Mas as crianças
se espremiam na catana do lado de baixo, atrás de
uma pedra alta.
Bem no alto passou uma revoada de tucanos.
A: §
O gerente distraiu-se, olhou as aves. Pensou na
espingarda. Se tivesse trazido a arma, estaria com
um bom assado e teria um couro amarelo vermelho
para enfeitar a porta da frente de sua casa.
– Desgraçados, chicoteou novamente.
Em casa, João e Isabel eram presas de preo-
cupação. Receavam a cachaça do gerente. Estava

| 78
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

louco. Seria mesmo capaz de matar um menino ou


aleijar com um trompaço.
– Valha-me Deus, apegou-se a mulher.
No entanto, o álcool abriu um fosso entre
a vontade de apanhar os meninos e a de matar os
tucanos. O gerente voltou ao casebre. A cachaça já
lhe atrapalhava os sentidos. Sem dizer uma palavra,
como que desapontado, passou a perna na mula e
desapareceu por onde tinha chegado.
João foi à procura dos filhos que, certamente, A: dos filhos
estariam perdidos ou muito maltratados. Atrás dele que, certa-
ia Isabel soluçando. mente [s.v.]
No ermo da mata gritaram. Ninguém res-
pondeu. Vasculharam tudo. Nada. Tornaram a A: §
gritar.
Julgavam o pior. O gerente tinha mesmo
matado os meninos. A cara dele parecia de
criminoso.
No entanto, onde os meninos estavam, A: No entanto,
lá dentro do boqueirão, nenhuma voz se ouvia. de onde
A noite foi vindo pesada. As sombras derra-
mavam-se pelo chão como óleo.
– Sereia!... Sereia!... eco...
A cachorra modorrava nas cinzas do fogão.
Levantou a cabeça, ouviu o chamado, mas
deitou-se novamente. Ali estava tão bom!
João desceu pelo boqueirão. Lá embaixo, A: Lá em bai-
gritou. xo [s.v.]
Zilda aproximou-se, olhou, verificou por
dentro das ramagens. Respondeu:

79 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Oi!...
Os meninos chegaram-se aos pais. Estavam
trêmulos e gaguejavam.
– Onde está?... Onde está o homem?

XIV
Carlos abriu a porta do automóvel para dona
Helena entrar. Logo que a patroa acomodou-se e
puxou o vestido, perguntou:
– Vamos a que médico?
– Pode seguir para a Rua Chile.
B: A patroazi-
– A patroazinha melhorou, dona Helena?
nha melhorou
– No mesmo. [s.v.]
Dona Helena estava satisfeita. Sentia ne-
cessidade de algum motivo para encher o tempo. A: sem nada
Aquela vida oca, sem nada para preocupá-la, não para preocu-
dava certo. pá-la [s.v.]
A: §
Não sabia música e detestava a leitura. Se en-
contrasse um romance, como aquele “Mercedes”, que A: “Mercedes”
[s.v.];
conhecera na juventude, talvez se animasse. Mas
tudo o mais que começara a ler, daí pra cá, ficava A: começara
a ler [s.v.] daí
antes da quinta página. Viciou-se durante algum
pra cá [s.v.];
tempo nas novelas de rádio. Ficava horas pregada A: pegada no
no aparelho, escutando complicações de vidas in- aparelho [s.v.];
felizes. Criara cachorros. Havia Sucy, a cadelinha A: Possuiu
pequinês. Depois teve o Segredo. Chegou a manter Sucy,: manter
empregado, para cuidar deles; casinhas taqueadas, empregado
camas e colchões para o conforto dos queridos [s.v.]; deles,
animais. Enjoara de tudo. Sentia era vontade de [c.v.]
ser mãe.

| 80
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Como que o instinto alimentava aquele desejo. A: § ; A: cadei-


Não tolerava viajar. Preferia a cadeira de balanço, ra de balanço
ali na varanda, dormir cedo, acordar tarde, comer [s.v.]; dormir
bem. Quando ia a uma festa, o fazia a contragosto. [c.v.] cedo,
acordar tarde,
Há dois anos, mesmo, que não saía do palacete.
comer bem. Se
Doutor Jorge parecia mais um estranho dentro de ia a uma festa,
casa... Alguns monossílabos e pedidos de roupa. o fazia a con-
Criada no regime do interior, onde a esposa não dis- tra gosto [sic].
cute ordem e o homem é o rei do lar, fazia o que ele
mandava, cativa. Também não sentia amor profundo
por ele. Casaram-se, graças a Deus. As duas fortunas
cresceram. Mas doutor Jorge foi deixando a esposa
de lado, dando-lhe pouca importância, até que secou
o que havia no coração. A princípio sofrera muito, A: Desejara
brigara até. Desejara a morte e foi uma ciumada a morte e foi
uma enciu-
terrível. Depois, compreendera a realidade e achou
mada terrível.
melhor o caminho que tomou: deixar de mão. De Depois, com-
início, chegara a frequentar clubes. Conheceu o Rio preendera a
de Janeiro, fez estações-de-água em Araxá. Viajou realidade dos
de navio e em avião. Em seguida, cansou-se de tudo. fatos e achou
Preferia agora o sossego do lar, aquela tranquilidade melhor; A: De
morna que as mangueiras espalhavam sobre os can- início, tam-
teiros e varandas. A vida é que se tornava comprida, bém chegara;
horas longas, intermináveis. O relógio arrastava-se A: fez estações
de agua em
indolente. Quando ia ao cinema, chagava enfadada.
Araxá.; A: Em
Doutor Jorge deu para levar muito tempo fora de seguida [s.v.];
casa e o tempo foi espichando-se mais. A casa não A: Quando
tinha o que arrumar. Os quartos de hóspedes não iam ao cinema
eram utilizados. A não ser um parente que viera [s.v.]
certa vez e um colega do doutor Jorge que passara A: muito bem
do Norte, ninguém se utilizava dos três apartamen- mobiliados e
tos muito bem mobiliados, que ficavam no primeiro que

81 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

andar, na frente do palacete. Todo serviço consistia


em varrer a copa, lavar o sanitário, regar o jardim e
preparar a comida. Mas isto os empregados faziam, A: os empre-
na rotina do ofício. A vida, pois, para dona Helena, gados faziam
tornara-se horrível. [s.v.]

Andava exausta de fazer nada. Daí a Rose


Marie ter chegado na hora própria. Dava preocu- A: §
pações, alegria, trabalho. Carecia de cuidados, de
ir à costureira, de comprar nas lojas, sair, procurar
bordadeiras, escolher modelos, riscar, substituir
vestidos usados por vestidos novos, trocar de A: Então
perdia-se em
roupa, botar para dormir. Então perdia-se em deva-
devaneios,
neios, planejando o futuro, escolas, cursos de piano, planificando
educação esmerada e mil outras ideias que seriam o futuro; A:
realizadas quando a Rose crescesse. curso de piano
Certa feita, há quatro meses atrás, perde- [s.v.]
ra dois cortes de cambraia na casa da costureira. A: § ; A: Abor-
Aborrecera-se, fora várias vezes ver se conseguia recera,;
encontrar o pano. Afinal, largou de mão. A: Afinal [s.v.]
No entanto, toda aquela trabalheira amarga
alegria. O automóvel colava-se ao trilho. Ia man- A: §
samente, chiando nas curvas. Aqui e ali entrava
na contramão, passava adiante, altaneiro, como se A: para trás
fosse o dono da cidade. Era azul claro com enfeites [s.v.]; A: Pelos
rosas, estirado para trás, em linhas modernas. Pelos vidros do fun-
vidros do fundo, via-se enorme couro de onça pin- do [s.v.]
tada que enfeitava os coxins traseiros. A: –A senhora
vê [s.v.]; passa
– A senhora vê, dona Helena, como está o
[s.v.]
tráfego. Um desastre. Cada dia que passa, piora.
Dona Helena ouvia pedaços de palavras ou A: §
vagos sons. Seu pensamento andava em casa, arqui-
tetando planos para a filha.

| 82
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Faria mesmo uma promessa. A: §


Iria ao Senhor do Bonfim e compraria uma
lembrança para deixar na igreja. O carro parou ao A: §
pé do edifício onde trabalhava doutor José. Carlos
puxou o freio de mão, desligou a máquina. Rápido,
abriu a porta. Dona Helena saiu com dificuldade,
gemeu baixinho, sentindo o peso da gordura. Muito A: gemeu bai-
xinho [s.v.]
cambota, venceu os degraus que davam para o hall.
Aí olhou o indicador profissional pregado à parede
e decorou o número do andar.
A: § ; Daí a
Apertou o botão do elevador. Aguardou a che- pouco [s.v.];
gada do ascensorista. Daí a pouco, lá estava ela com olhos para
os olhos para cima, procurando o número da sala. cima [s.v.]
Encontrando-o, certificou-se: A: § ;
Encontrando-o
– Aqui é o doutor José?
[s.v.]
– Sim senhora, respondeu a mocinha clara,
lábios em sangue, com o chapeuzinho branco do
mesmo tecido que a capa.
– Ele é pediatra, não é?
– É ginecologista. Também faz clínica geral.
– Ele já chegou?
– Já está atendendo.
– Ih! Veio cedo, hoje.
– Ele quase sempre chega antes de uma hora.
Tem muito serviço nos hospitais pela manhã A: § ; pela
manhã e [s.v.];
e, depois das quatro horas da tarde, não atende
horas da tarde
mais. [s.v.]
– Quanto é a consulta?...
– Trezentos cruzeiros.

83 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Dona Helena abriu a bolsa, separou a cédula


de quinhentos cruzeiros, entregando à enfermeira.
Recebeu o troco e a ficha. Sentou-se.

XV
Logo que chegaram do mato, comeram
qualquer coisa e foram dormir. Isabel ficou algum
tempo na cozinha, acocorada no batente, lavando
os pés. O sono, o cansaço e as emoções derrubaram A: Daí há pou-
toda a família. co, o sono,
Antes da meia noite, veio o aguaceiro. Bem A: Antes da
que as baratas saíram aos caieiros dos buracos de meia noite
taipa. Centenas delas batiam as asas, caindo aqui e [s.v.]; A: ba-
tiam as asas
ali como se estivessem malucas. João temia os in-
[s.v.]; A: apa-
setos porque quando eles apareciam assim, sempre reciam assim
deixavam uma pessoa com o ouvido doente. É que [s.v.]
se metiam por qualquer orifício que encontrassem.
As baratas grandes não faziam nada de mais, porém
as pequeninas eram perigosas. E, se apareciam com A: E [s.v.] se
formiga de correição, como estava acontecendo, apareciam
seria aguaceiro pesado.
A casa de João era uma peneira. A: § ; E a casa
As folhas ressequidas abriam-se, deixando
cair goteiras no chão batido. Os meninos saíram
dos ninhos, tamborilando os queixos, impacientes, A: §
já aborrecidos com as baratas e formigas. Ficaram
todos de pé, embolados, no canto mais enxuto
como cabras no inverno.
Ninguém dormia. A noite não tinha fim. Noite
cheia de escuro, de sapos nos brejos, de enxurradas

| 84
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

histéricas. João pensara em consertar o casebre, mas


o gerente proibira:
– Não adianta...
Na realidade, o intuito do senhor Antônio A: Na realida-
era eliminar o agregado, carregado de filhos. Pô-lo de [s.v.];
na estrada o quanto antes. E se não o fizera até ali, A: fizera até ali
era devido ao aperto dos trabalhos da fazenda. [s.v.]

– Gente que não serve. Aqueles meninos gu-


losos devoram tudo. Em todo canto se encontra o
rastro dos pestes, mesmo que formigas cortadeiras.
As paredes estavam tortas, aleijadas, bambas,
escoradas por dentro e por fora com madeira que os
cupins já trabalhavam.
As águas batiam no sopapo, deixando sulcos A: § ; batiam
lamosos. O aguaceiro certamente levaria tudo, no sopapo e
deixavam
passaria por cima de todos. Não sabiam a hora
que corria. Pelos primeiros cantos dos galos, seria A: canto dos
galos [s.v.]
mais de meia-noite. Também não adiantava saber
as horas, nem os dias e muito menos o ano em que
viviam. O relógio dos trabalhadores marcava o
tempo de pegar o serviço e o de deixá-lo. O tempo A: O tempo
que fosse, que escorresse o mais depressa nas horas que se fosse
duras e que ficasse mais vagaroso nos momentos de
descanso.
Ali perto, na roça, dormia o menino morto,
enterrado naquele dia. Duas rosas murchas e galhos
de manjericão foram o enfeite. A terra preta estaria
mastigando o corpinho aniquilado. E aquele agua-
ceiro salivava as raízes ávidas que já se estiraram
para a comida farta.

85 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Sereia tremia freneticamente. Bordada ninava


os buguelos friorentos que, como os meninos, A: como os
choramingavam. meninos [s.v.]
O morto que se fora quase não deixava lem-
branças. João estava mais conformado. Sentia certo
alívio e todos procuravam defender-se contra as
goteiras.
– Isabel, não sei o que faço esta semana. A: não sei o
– Por quê? que faça esta
semana.
– Com tanta chuva não vai ter limpa de
mandioca.
– Será?
– Ora, senhor Antônio está com má-vontade
com a gente. Nem quer botar umas palhas nesta casa.
Não viu o que fez hoje à tarde?... Quem tem filhos!
Suporta tudo. Oh! Homem de cachaça enjoada. A: Homem da
cachaça
– Mas Deus é grande.
– Se senhor Antônio for para cidade amanhã, A: Do contrá-
tudo bem. Do contrário, estou com meu dia perdido. rio [s.v.]
– Limpa com chuva é mesmo que mudar mato.
– O pior é que o homem só pensa em me
botar pra fora.
Qualquer coisa é aquele converseiro. A: §
A chuva esbarrou um pouco e os meninos
voltaram aos seus lugares. Ao deitarem-se, nota- A: Ao deita-
ram as poças d’água e novamente levantaram-se. rem-se [s.v.];
A enxurrada havia furado a parede, invadindo a sala furado a pa-
rede e [s.v.];
em procura das barrocas. Juntaram-se a um canto,
A: Por isto
mãos sob o queixo, cabeça baixa, espiando vultos juntaram-se
que a escuridão criava. Os menores choravam e

| 86
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

tossiam. Uma correição buliu em Bordada e ela saiu


como bêbada, cocoricando, em seguida dos filhotes
sufocados pelo gogo. Sereia, sentada nos traseiros A: Sereia [s.v.]
sentada
ossudos, encostava-se cada vez mais ao bolo de me-
ninos que se comprimiam. De chofre, o aguaceiro
parou. Inopinadamente, outro caiu, cheio e pesado.
As folhas da cobertura, já empapadas, deixaram a
água cair, lavando todo o chão.
– Valha-me Deus! Implorou Isabel.
– Seja o que Deus quiser, completou João.
O frio cedeu ao medo. As crianças correram
para junto dos pais e formou-se um grupo único,
molhado, fétido. O cheiro de vela, que se acendera A: O cheiro de
ao anjo, estava por ali, misturado ao fartum de terra vela [s.v.]
urinada. Parecia que em volta tudo era água.
Relâmpagos retalhavam o céu em lâminas de
aço e esfaqueavam os buracos de taipa. As crian-
ças atemorizadas engoliram o soluço e calaram.
Abriram olhos medrosos na escuridão.
– Valha-me Nossa Senhora do Perpétuo A: §
Socorro! Padre Nosso que estais no céu.
Lá fora as raízes dos cacaueiros coleavam
feito cobras gulosas em procura do menino morto.
– Vai, Isabel, ver se acende o fogo, os meni-
nos estão morrendo de frio.
João tinha os braços cruzados e os molam-
bos não davam para cobrir as costas. Suspendeu
a gola do paletó velho a fim de abrigar-se melhor.
Os meninos vestiam-se somente com a blusa rota
que os protegia até a altura do umbigo. As meninas
cobriam-se de chita.

87 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Isabel passou à cozinha. Tentou fazer fogo. A: Isabel pas-


Felizmente a caixa de fósforos estava cheia e havia sou à cozinha.
lenha com fartura. Ali mesmo
tentou
A lixa, no entanto, umedecera-se e nada de
A: § ;
riscar. O primeiro palito perdeu a cabeça; o segun-
A: perdeu a
do, também e muitos foram-se.
cabeça, o se-
– Parece que é o nem-sei-que-diga, prague- gundo, e mais
jou a mulher. de uma deze-
– Não fala o nome desse traste agora, Isabel. na se foi.
– Pois não é...
– Deixa ver.
A mulher no escuro tateou a mão do marido
e entregou-lhe a caixa. Quase todos os fósforos
tinham sido gastos em vão. Afinal, a claridade
abriu-se, protegida pela mão em cova do agregado.
Passou uma rajada de vento. Não fosse o
relâmpago, que riscava o quadro-negro imenso da
noite, nenhuma luz era vista.
– Diabo! xingou João. Logo essa semana que
não temos gás.
– Seja tudo pela vontade de Deus.
Pequena chama alisou a madeira, esquen-
tando-a, juntou-se aos gravetos, cresceu estalando, A: aos grave-
e uma quentura amiga irradiou-se. Todos procura- tos, cresceu es-
vam estirar as mãos crispadas. talando [s.v.]

XVI
Dona Helena impacientava-se. Parecia preo-
cupada. O médico demorava em atendê-la. Por duas

| 88
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

vezes levantou-se, foi à janela e agora olhava as pin-


turas que enfeitavam a sala de espera.
Na alma da fazendeira algo de estranho se A: §
passava. Bem verdade que a Rose era uma filha
mesmo.
A prova é que lhe torturava a existência, dava
trabalho e caía doente. Precisava até de promessa.
No entanto, incompleto era o seu amor. Rose tinha A: No entanto
olhos parados, aquelas pestanas grudadas feito [s.v.]
goma-arábica seca. Os meninos que estavam a sua A: estavam a
volta choravam mesmo, esperneavam, até diziam sua volta [c.v.]
nomes feios. A garotinha de olhos vivos agradava o
rosto de sua mãe com tal meiguice que dona Helena
sentiu abalados os amores da filha. Lá estava ela ba-
lançando as perninhas, trêfega, deitando-se no colo
materno para levantar-se rápida.
– Lúcia, fique quieta, Lúcia, ralhou a mãe.
Se você continuar assim o doutor dá injeção aqui, A: olhe! e
olhe! E apontou os quartinhos. apontou
Lúcia perguntou assustada:
– O doutor, mãezinha, o doutor?
– Sim, o doutor, fique quietinha.
Ao lado, um menino pálido, olhar de mongol,
babava imbecilizado. Estava com os olhos mortos e
compridos como se nada visse, ao mesmo tempo
que articulava sons incompreensíveis.
Dona Helena voltou-se para o menino.
Lembrou-se de Rose. Não via que sua filha era
corada, sadia, dizia exatamente “mamã” enquanto
aquele grandalhão com seis anos, mal sabia mexer
com a língua perra?

89 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Que tem ele, dona?


A mãe do menino doente, aborrecida com a
pergunta que ela julgava inoportuna, preparou-se
para responder. Como que gostou de explicar logo
a doença do filho, já que todos os olhos, de soslaio,
voltavam-se para ele, penalizados. Dizendo tudo
talvez ficasse tranquila, livre daquela curiosidade
que feria seu amor materno.
– O médico disse que é uma doença de nome
mongolismo. Não sei bem. Em pequeno era uma
criança linda. Tenho cinco filhos e este era o mais
bonito, gordo, corado de fazer gosto, parecia retrato
de revista. Depois que deu um ataque, nunca mais
teve saúde e ficou assim. Não fala, às vezes diz mamãe.
– Ele é quietinho, dona? insistiu dona Helena.
– Nada. Muito pintão. É preciso uma empre-
gada só para ele. E empregada cuidadosa. Agora a
senhora vê: empregada cuidadosa hoje em dia...
A fazendeira não suportou o desejo de falar
da Rose Marie. Destaramelou a língua:
– Agora mesmo vim ao médico porque a
Donata, minha empregada de menino, deixou Rose
no sereno e ela constipou.
– Ah! É assim mesmo, interveio a mãe
de Lúcia. Com essa daqui aconteceu o mesmo a
semana passada.
– Rose tem dois anos.
– A senhora ainda tem filhos de dois anos?
Meio ofendida com a pergunta, que punha
em dúvida a sua idade, dona Helena explicou:

| 90
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Tenho. Por quê? Pareço velha?


– Não... não senhora.
A mãe do menino doente consertou:
– Porque eu tenho uma vontade doida de ter
novamente um neném. É a idade de que mais gosto:
são engraçados, risonhos, sem maldade. Daí em
diante começam a ficar sabidos e teimosos.
– Pois bem, deixei a Rose em casa, e doente.
Ficou mesmo acamada.
– Como é filha única, o dengo é grande...
– Ah! Filha única, invejou a mãe do menino
doente.
– O médico está demorando, comentou a
mãe de Lúcia.
– Esses médicos são assim. Ainda outro
dia perdi uma tarde inteirinha para ser atendida.
Parece que o doutor está examinando uma senhora
grávida. Por isso a demora.
A mãe do menino doente, que estava um
pouco distante, aproveitou a saída da enfermeira
e, como se quisesse transformar os lábios em uma
trombeta para colocá-la nos ouvidos das compa-
nheiras, fuxicou:
– Dizem que ele é o maior nos abortos. Que
gente granfa procura. Ainda outro dia soube que
uma moça rica, da fina flor da sociedade, apanhou
barriga antes do tempo e só ele deu jeito. Cobrou
quarenta mil cruzeiros. O namorado quis protestar,
mas o doutor não abriu mão: o preço era aquele.
– Imagine a aflição, disse a mãe de Lúcia.

91 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Mas não faz mal. Essas moças de hoje têm


fogueira no corpo. Depois a educação... Entram
no automóvel do namorado, sem ao menos serem
noivas, e se largam para esses cantos. Dizem que
frequentam até castelo. Não sabem o caso do pai que
foi a uma pensão suspeita atrás de brotinhos? Lá che-
gando, encontrou a própria filha de dezesseis anos na
alcova, esperando... O velho deu uma síncope.
– Ih! – fez coro. B: Ih! Fez [s.t.]
– É o fim do mundo, acrescentou dona
Helena.
– Essa sociedade de hoje é assim. Não sabe
que aqui e nos grandes centros, esses casais grã- A: nos grandes
centros [s.v.]
-finos colocam os nomes das esposas em uma urna
e os dos maridos em outra? No auge da festa, cada
um vai tirando um nome. De tal modo que, se um A: tirar o
homem tirar o nome de mulher, mesmo não sendo nome de u’a
mulher,
a sua mesmo, fica com o direito de passar o resto da
noite com ela. O mesmo acontece com as senhoras
que sorteiam o nome do esposo da outra.
– É incrível, falou dona Helena. A: Isto é a so-
ciedade gran-
– A sociedade hoje é assim. Isto é, a socieda- fa. A alta roda
de granfa. A chamada alta-roda. chamada.
A enfermeira chamou a mãe de Lúcia.
Pela outra porta, que dava diretamente para o
corredor da saída, passou uma senhora nova, bonita, A: §
acompanhada de um rapaz beirando trinta anos.
Ela chorava desconsolada, desfeita, como se
uma angústia de chumbo a comprimisse.
A mãe do menino doente fez um gesto com A: Queria
os olhos para dona Helena. Queria dizer com o dizer com o

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

olhar, acostumado às futricas, que aquela mesma olhar com


devia ter ido ali para que o doutor José fizesse um aquele olhar
“anjo”. Preferiu, no entanto, deixar a sua observação de funcionário
da Prefeitura,
nos olhos espertos.
acostumado
Entraram duas crianças. Após elas, chegaram
duas senhoras grã-finas, de capa alva, sapato e bolsa
cor-de-rosa. Compraram as consultas. Pelo modo
como foram recebidas eram freguesas. Uma delas,
a mais moça, elegante, suculenta como manga,
encheu a saleta de perfume.
– Diga ao doutor José, por obséquio, que A: –Diga ao
madame Figueiredo está aqui, falou ela. dr. José
A mãe do menino doente, metida em saia
escura e blusa creme, sentiu-se diminuída, fez um A: blusa creme
muxoxo baixo, esgaravatou todos os plissados e en- [s.v.]
feites da recém-chegada. Parecia conformada com a
situação. Puxou a saia para encobrir as varizes roxas
e afagou a cabeça do filho.
Dona Helena envergou mais os dentes de
cutia, entreabriu os lábios e fechou-os rápidos
como se sentisse necessidade de fazer alguma coisa.
A senhora cheirosa informou à enfermeira:
– Meu filho só veio fazer o exame mensal.
Está sadio. Será rápido.
Empertigou-se mais, imprimindo agressi- A: Emperti
vidade ao busto sensual. Fez alguns trejeitos de gou-se mais,
mulher bonita. Como uma santa lançou os olhos imprimindo ao
busto sensual
para o menino doente. A mãe deste respondeu ao
agressivamente.
olhar com outro de ódio. Queria dizer precisamente:
– Que tem a senhora com isto? O seu pode
ficar assim também.

93 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

A mulher bonita compreendeu a hostilida-


de e voltou-se para a companhia com quem havia
chegado.
Que tristeza aquela criança, completando A: Que tristeza
baixinho: aquela criança
disse baixinho.
– Tem cada doença... antes Deus tirasse.
Dona Helena impacientava-se. Estava plena-
mente feliz em encontrar-se ali no meio das mães,
conversando com elas, trocando ideias, padecendo
e alegrando-se com os menores sentimentos, con- A: contando
tando coisas do filho. Até gostaria que o médico de- coisas dos
filhos
morasse mais para atendê-la. Quando a enfermeira
a chamou, ficou delicada:
B: –Pode ma-
– Pode deixar a madame entrar – e apontou dame entrar
para a mulher cheirosa. [c.v.]
Esta virou-se honrada com a deferência e:
– Não lhe empata, minha filha? A: –Não lhe
empata [s.v.]
– Não. A senhora parece que está com pressa,
quer ir a algum lugar.
– É... meu marido está nos esperando lá em-
baixo. Depois, meu caso é rápido.
Doutor José meteu a cara na porta. Fitou de- A: Doutor José
tidamente a mulher cheirosa. abriu

– Ah! madame. É a senhora?


– Aquela senhora ali me cedeu o lugar.
– Bem, entre, por obséquio. O médico afas-
tou-se, abrindo a porta respeitosamente.
– Trouxe o Marco Túlio?
– Sim senhor.

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Então, bichão? Veio fazer o exame mensal?!


– É...
– Bem...
O menino curioso olhava para os lados, vivo,
sadio como uma centelha.
O médico abriu os olhos da criança, auscul-
tou-o ligeiramente, fez três perguntas sobre fezes,
urina. E se estava se alimentando direito.
– Só não quer comer nada.
– Tudo bem. Todo menino que tem muito
o que comer em casa, geralmente não quer comer
nada...
A senhora cheirosa saiu pela lateral. Ao passar
defronte à saleta, agradeceu a dona Helena e beijou
a amiga.
A fazendeira comparava mentalmente a Rose
Marie com o menino sadio. Gostaria de ter um filho
assim.

XVII
Quando o dia clareou, os meninos estavam
pálidos, olheiras fundas. Tremiam. Os trapos foram
postos a secar no cipó imbé, preso no ângulo da A: no cipó,
parede, que servia de encosto ao fogão, à porta da preso
camarinha.
Dois pintos ficaram no lugar onde Bordada
passara a resto da noite. Estavam misturados com A: misturados
lama, e os pés voltados para cima. O sobrevivente com lama
[s.v.]
tossia, engolindo coisas inexistentes, pior do gogo.

95 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Não foi alegrar-se nas coiraneiras. Preferiu A: §


ficar ali mesmo, de asas caídas, encharcado.
Até os ossos de Sereia estavam mais magros. B: sereia
João foi olhar a cova do filho. Uma força
estranha arrastou-o até lá. Não sabia mesmo se era
saudade. Já andava tão gasto, batido por tanta fome,
tão acostumado a perder os meninos, que nem sabia
se ainda sentia falta de mais um que se fora, como
os outros. Suas preocupações andavam reduzidas A: Suas preo-
ao facão, à fome e ao trabalho. Até mesmo o rancho cupações esta-
em ruína não o amolava. Mas qualquer força o vam reduzidas
tangeu à sepultura. A terra apresentava-se mais
escura, roxa. A cruz havia caído e foi levantada.
Certamente as raízes reptantes já trituravam
as carnes do pagão. Os cacaueiros ficaram muito
contentes e produziriam frutos enormes, cheios de
caroços que doutor Jorge venderia. O dinheiro iria
para os bancos, parir juros ou comprar brilhantes,
de todas as cores. João fez o sinal da cruz, ajoelhou-
-se. Ficou triste. Quando voltou à casa, o búzio
ainda não havia tocado. Comeu qualquer coisa e foi
à roça, receoso que o gerente aparecesse. As roupas
continuavam úmidas. Foi o primeiro a chegar no
serviço.
Arrancou o chibute do quarto e começou
a trabalhar. Procurava fazer com o instrumento
gasto aquilo que os companheiros realizavam com A: §
os novos.
Temia que o feitor aparecesse. Oito agrega- A: § ; A: Mas
dos trabalhavam ao seu lado. Estavam esfarrapa- temia que o
feitor apare-
dos, vergados ao peso do cansaço de todos os dias.
cesse.

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TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

De quando em vez puxavam uma conversa, tiravam


um boi monótono. A labuta continuava. Somente
João continuava fechado, nu da cintura para cima,
mostrando a barriga lá dentro, cheia de rugas. Perto
do meio-dia, soaram pisadas de animal e ele sobres-
saltou-se: era o gerente. Certamente iria reclamar,
dar esporros.
– Senhor João, já não lhe disse que enquanto
não comprar o facão não tem serviço de roçagem.
– Mas, senhor Antônio, não ficou certo que
o senhor descontaria toda semana um pedaço de
dinheiro? Hoje, com a chuvarada, não adianta capi-
nar... Por isso estou aqui.
– Então você com este chibute tem que
ganhar menos, não é? Você não faz o que os outros
estão fazendo, faz?
– Mas senhor Antônio, estou me esforçando
o que posso.
– Bem, isso é mesmo, interveio um rapaz por
nome Sarará.
– E quando nós chegamos aqui, ele já estava
com boa ponta de eito tirado, afirmou outro.
– É... mas... em todo caso vou lhe pagar a
vinte, até você comprar o facão.
– Menos cinco cruzeiros por dia, senhor
Antônio?
– É o jeito.
– Eu tenho família e filhos...
– E é favor...
– Está certo... Está certo... Que vou fazer?...

97 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Senhor Antônio chamou a atenção para a


roçagem, que deveria ser bem feita, rente ao chão.
Que cuidassem para não cortar os cacaueiros novos.
E adiantar o serviço. Andar ligeiro. Esse negócio de
fazer cigarro não era possível. Quem quisesse beber
água que trouxesse sua garrafa. Reclamou o Sarará, A: Sarará, que
que decepou um cedro que servia de sombra. Saiu havia elimina-
apertando a mula nas esporas. do um cedro
que serviria
João engoliu o bolo com ódio. Sentiu que
tinha medo da chuva, de ir beber água quando tinha
sede, de fazer cigarro quando queria pitar, de ser
encontrado trabalhando com aquele facão quando
precisava trabalhar. Não é que fosse medroso. Mas
por todo canto havia um perigo, receios ocultos e
dissimulados. Sem falar no pavor que sentia de ser
posto para fora. Somente aqueles dois companhei-
ros foram amigos. Defenderam-no. Tudo o mais era
contra. Houve até quem dissera que ele tinha uma
filharada de dez bocas.
E ainda faltava pagar o dinheiro do funeral,
para depois comprar o facão. Dois meses de fome, de
barriga pregada no espinhaço. Carne desaparecen-
do na terça-feira. Farinha escassa para nove bocas.
Mas teria de comprar o ferro de qualquer jeito. Nem
se lembrava mais do filho morto. Ao camarada que
perguntara por ele, respondera secamente:
– Está debaixo da terra. Deus levou. Foi
em bom tempo. Não sei para que gente pobre
quer tanto filho. Ficar por aí penando, parecendo
cachorro sem dono.
– Lá em casa, meu irmão, não tem graça.
Menino morre a três por dois. Mesmo assim tem

| 98
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

seis bocas para comer; com a velha, sete; com um


neto, que a mãe morreu, e o pai desgraçado largou,
oito, e ainda tem um sobrinho, nove; comigo dez.
– Com o tempo de hoje, nem sei como a
gente arruma.
Sarará pulou do lado, brandiu o facão e
gritou:
– Opa jararacuçu viçoso!...
– Matou? perguntou alguém.
– Não, foi para o seu lado, nessa moita.
Todos os trabalhadores pararam o serviço.
Cercaram a moita indicada, com o facão em uma
mão e o gancho de roçagem na outra. O animal A: O ani-
acuado enroscou-se, armado. Daí a pouco Sarará mal acuado
deu uma paulada segura, o bicho contorceu-se, quis enroscara-se e
aquietaram
fugir mas outra pancada deixou-o bulindo somente
com a cauda.
– Já está errado...
– Olha o veneno, disse outro. Uma fera dessa
sentou o dente no Procópio da Cajazeira e saiu do
lugar para o corpo não cair em cima.
– É malha de sapo.
João também olhou a cobra. Gostaria que
uma bicha daquela lhe mordesse e fizesse descan-
sar da fome, das goteiras e do medo de ter muitos
filhos. A morte seria rápida. Para que viver sem
ter onde dormir, o que comer e assustado de tudo
como um criminoso fugido? Mas o jararacuçu
movimentava-se, nervoso, nos últimos estertores.
A cabeça fora esmagada, enfiada numa ponta de vara

99 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

e lançada, juntamente com o corpo moído, dentro


de um oco de sapucaia. Iria certamente alimentar
algum cacaueiro copudo existente ali.
Pouco tempo depois o búzio tocou.

XVIII
Seria aquela a vez de dona Helena. A enfer-
meira perguntou:
– Onde está a criança, minha senhora?
– Deixei em casa. É muito pequenina e pode-
ria apanhar um resfriado maior. Coitadinha.
Dona Helena já sofria, tal era o seu convenci-
mento da realidade de Rose.
– Mas o doutor somente dará a receita vendo.
– Bem, mas eu nem peço a ele que tenha
paciência.
Outras senhoras apareceram, trazendo
crianças doentes e sadias.
– A que está na frente, disse o médico, depois
de olhar toda a sala de espera.
– Pode entrar..., indicou a enfermeira.
Dona Helena entrou com as feições aflitas.
– Como vai? bem? A: Como vai a
senhora, bem?
– Bem, obrigada. Dona Margarida foi quem
me indicou o senhor.
– Ah! sim, a esposa do engenheiro Caldas.
– Sim, senhor.
– É a senhora que vai examinar-se?

| 100
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Não, senhor. É uma consulta para minha


filha. Mas não pude trazê-la. Está muito resfriada
e queria que o senhor passasse um remédio para
cortar a doença.
– Mas, minha senhora, só vendo a criança.
– Era sadia, forte, gordinha, nunca sentiu
nada. O senhor pode dar um remédio sem ver.
– Mas é difícil. Ainda mais em se tratando de
criança. Muito difícil, impossível mesmo.
– Só é isso, doutor. Resfriado.
– Que idade tem?
– Dois anos.
– Tosse seca?
– Não.
– Tem catarro?
– Não.
– Já deu algum remédio... a tosse é repetida?
– Não.
– Sufoca, vomita?
– Não.
– Eu disse ao senhor que não tinha dado re-
médio, mas agora é que me lembro, antes do meio
dia dei xarope de mel de abelha. A: dei um
xarope
– Minha senhora, só indo lá. A que horas a
senhora está em casa?
Dona Helena teve vontade de levar o médico.
Refletiu um pouco e insistiu.
– Doutor deve ser um resfriado ligeiro.
Ontem ela tomou chuvisco.

101 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

O médico apanhou o bloco de receitas e


inquiriu.
– O nome da menina?
– Rose Marie Cardoso da Silva.
Dona Helena recebeu a receita. Agradeceu.
Saiu satisfeita. Rose era mesmo uma criança.
– Adeus, minha filha. A: -Adeus [s.v.]
– Até, minha senhora, respondeu a enfermeira... A: – Até [s.v.]
minha senhora
Pela rua, a mãe andou exultante. Foi à pri-
meira farmácia. Faltava um remédio. Disse que
iria comprar toda a receita em uma só casa. Estava
como queria. Rose dava trabalho. Já com as luzes da
rua acesas, voltou para casa.
Saltou apressada. Foi ao quarto. Lá estava a
doente. Toda enrolada. Quieta, naquele róseo de
boneca rica.
– Minha filhinha, que você tem? Está melhor?
Os remédios foram desenrolados e cuidado- A: arrumados
samente arrumados na mesinha de cabeceira. na cabeceira
da cama.
Donata apanhou a colher para o xarope.
Durante a noite daquele dia, dona Helena
levantava-se de hora em hora. Apanhava o remédio,
levava uma colherzinha à boca da doente, dizia pa-
lavras de convencimento e lançava o líquido na pia.

XIX
Quando João chegou a casa ao meio-dia, não
encontrou Isabel:
– Menino, onde está tua mãe?

| 102
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Está na fonte, pai. Disse que volta já.


Os meninos brincavam no oitão de curral
de boi.
Um pequeno cercado de gravetos prendia
o gado de birros de cacau pecos e laranjas verdes.
João esperou um pouco. Como a mulher não apa-
recia, resolveu ir à fonte.
Encontrou-a de cócoras, nua, junto ao riacho.
Esperava que a roupa secasse para vesti-la.
– Que está fazendo?
– Aproveitei a aragem do sol e estou lavando A: Aproveitei a
o vestido. aragem de sol
e o vestido que
– Sem sabão? molhou e es-
– Passei folha-de-são-caetano e joá. Já estava tou lavando.
molhado... Pode ir andando que vou já.
– João passou os olhos no corpo nu da
mulher. Nenhuma beleza restava naqueles ossos.
Estava mesmo uma cazumba.
– É a fome. Disse para dentro de si.
Isabel daí a pouco enfiou os trapos e dirigiu-se
à choupana. João amolava o facão velho, prendendo
a pedra com o pé.
– Por que você está assim zangado, homem? A: está assim
O que Deus faz está bem feito. zangado,
homem, [c.v.]
– Nada disso. O menino foi em bom tempo.
Sina triste a minha, Isabel. Não sei como ainda não
morri de desgosto.
Isabel sofreu um pouco. Fora criada no
regime da penúria. Seu pai, agregado também,
falava que ela e os irmãos comiam tudo, não havia

103 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

o que chegasse. Foi crescendo, sempre tida como A: crescendo


peso morto, comendo o que podia servir para os [s.v.]
outros que prestavam serviço. Certa feita, o pai A: feita [s.v.];
chegou enfezado, barriga dura como pau e cresci- chegara
da. Abateu-se na tarimba e deu para contorcer-se.
A noite toda foi para velar o doente, que tinha sonhos
assustados, acordando aos gritos, assombrado com
alguma coisa. Houve quem dissesse que era fome.
O coitado não tivera o que mastigar. Outros afirma-
vam que se fosse fome aquela barriga não existia.
Deram chá de capim-santo, de erva-cidreira e
nada de melhorar. Por fim, ao amanhecer, um pur-
gante de óleo de rícino, com uma porção de raízes,
A: §
foi ingerido.
Passaram-se oito dias naquele sofrimento,
até que ele morreu empanzinado, a barriga como
um tambor, falando asneiras:
– Pedro, ó Pedro, não come mais, não. Isso
mata, Pedro. A fome não mata, Pedro. Joga fora.
Isso é para cavalo. Faz mal porque foi roubado.
E Pedro ao lado compreendera tudo. Não
explicou logo a todos porque ficou envergonhado. A: a todos
Realmente furtaram. Não tinham o direito de apa- porque tinha
nhar a ração do cavalo. Mas quando a viúva insistiu, vergonha.
ele esclareceu:
– Nós, dona Maria, não gosto nem de me
lembrar...
– O que foi Pedro? Conta, conta tudo.
– Nós tratamos dos cavalos de raça como a
senhora sabe. A fome é uma coisa traiçoeira. Parece A: engole a
gente, [c.v.],
uma cobra muito grande: engole a gente. Acontece
acontece que

| 104
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

que os cavalos comem uma ração de farelo; o de os cavalos


milho com outro trigo. Nós dávamos todo dia meio comem uma
saco de cada um. ração de trigo.
Nós dávamos
Os bichos lambiam tudo. E como a gente tem todo dia meio
fome, também misturava aquele farelo com água, saco de farelo
botava uma pitada de sal e comia também. Fazia tudo com um pou-
muito escondido, para que ninguém visse a gente co do outro.
apanhando a comida dos cavalos. Não era roubo,
não, dona Maria, era fome. A fome traiçoeira... A: §
– Ah! Por isso ele quase não comia por A: Ah!! por
último. E todo dia tinha barriga inchada. isso

– A gente comia sem sentir. Não era furto,


não. A senhora sabe que nem eu nem meu marido
somos disso. Via os bichos comendo com gosto,
como se comesse um pedaço de carne fresca. Dava
vontade. A fome por dentro, roendo...
– E tem muito tempo que vocês comiam isso?
– Um tempão.
– Mas foi pior, Pedro, você está vendo?
– Mas não tinha culpa, dona Maria.
– A culpa é da fome. Seja o que Deus quiser.
Isabel lembrava-se, agora, passados tantos
anos, dos cavalos gordos, roliços, lustrando ao sol,
abanando a cauda comprida em feixe. Os animais
nada faziam. Só engordavam. Comiam farelos gos-
tosos. Eram escovados. Tomavam banho com sabão
todos os dias. Raramente o dono da fazenda, tio do
doutor Jorge, aparecia. Era só o prazer de vê-los.
No dia seguinte à morte do pai, Isabel ainda
ouvira:

105 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Vocês comem tudo. Não deixam nada para


ninguém. Aí está o resultado. De tanta fome, comeu
porcaria, comida de cavalo. Empanzinou. Agora é
que vai ser fome mesmo.
E Isabel recordou-se que a fome apertou.
Foram tangidos da fazenda. Gente imprestável.
Só meninas magras, esqueléticas, cabelos de arapuá,
uns bichos que não deixam cacau verde. Foram ro-
lando de estrada em estrada até que apareceu João.
Houve aquele namoro rápido e ela se amigou.
Por tudo aquilo julgava que a tristeza de João
era por sua culpa. Os filhos nasciam por que ela os
paria. A fome existia porque eram muitos meninos.
O facão não prestava porque os meninos comiam
o dinheiro de comprar outro. Ela mesma não tra-
balhava. Comia como João, que saía sol escondido
e voltava sol posto. A culpa toda era dela, sim. Daí
aquele ressentimento que virou amargura.
Já não ouvia mais os lamentos que João dizia:
– A gente não pode nem sentir saudades,
Isabel. O nosso filho morreu e nós já esquecemos.
A gente só tem o direito a ter medo do senhor
Antônio, dos coriscos, da enxurrada levar tudo.
Para a gente, só tem medo.
Vago sentimento percorreu o agregado. É que
ele não queria demonstrar à mulher que temia outro
homem. Daí a explicação:
– Mas tem uma coisa: eu sou muito bom,
calmo, mas se me danar, não vejo feio nem bonito.
Mando tudo para o inferno. Vida desgraçada.
– Eu tenho culpa, João?

| 106
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Quem está dizendo que você tem culpa?


– Pensei...
– Ninguém tem culpa. Quem manda a gente
ser pobre?
– Você está triste por causa do menino, João?
– Nem sei. Não dormi de noite com as go-
teiras. Hoje, senhor Antônio me viu roçando e foi
aquela zoada. Depois baixou para vinte cruzeiros a
minha diária. Imagine você. Já temos muita fartura
em casa!... Não falta nada... Agora é que a tripa vai
berrar mesmo.
– Se conforma, homem. Eu agora posso
ajudar. Vou pegar uma empreitadazinha e faço as
horas.
– Quem disse que arranja? Senhor Antônio
está nos tocando como cachorros. Só falta bater
o pé no cão e dizer: puxa daqui!... puxa. Mas eu
compro o facão. Com fé em Deus.
– No dia em que você comprar o facão eu
acendo uma vela a São Roque.
– Acende a São João, Isabel, ele é o meu pro-
tetor. É um santo milagroso.
– São Roque é melhor.
– Ou então a Cosme e Damião. Fazem muito
milagre.
– Mas a Cosme e Damião tem de ser duas
velas.
– Por quê?
– Se não um fica zangado com o outro.
– Que nada...

107 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Não! Pois eu já vi acender a um só e foi um


Deus nos acuda. O dono da casa morreu. A vaca
que a família tinha, uma vaca bonita, vermelha, lei-
teira que fazia gosto, foi mordida de cobra. Chego a
me arrepiar... Só passou a confusão quando levaram
Cosme e Damião para a Igreja e acenderam duas
velas a cada um.
– Então vamos acender a São Roque, mesmo.
É uma vela...
– Você vai ver como ele é milagroso.
– E por que não acende logo a Deus?
– Onde já se viu acender vela a Deus, homem?
Primeiro ao Santo.
João aceitou a burocracia divina.
– Olha, Isabel, faz tua promessa. Eu compro
a vela com o primeiro dinheiro que o facão novo
ganhar.

XX
A doença de Rose foi agravando-se aos olhos
de dona Helena. Levou dias indo ao consultório
médico. Fazia questão de pagar novas consultas e o
esculápio insistia que levasse a criança, ou então a
A: uma doente
visita pessoal, para melhor fazer o diagnóstico. Após para psicote-
algum tempo, doutor José ficou sabendo quem era a rapia;
doente por intermédio da própria dona Margarida, A: muito tato
vizinha da suposta mãe. Achou o quadro curioso. e penetração.
Tratava-se de uma doente para psiquiatra. Ramo A: estudo so-
delicado, dependendo de muito tato e assistência. bre o assunto.
Certa feita, até fizera um estudo sobre o assunto, [c.p.]

| 108
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

e, eis que surge um caso concreto: uma paciente em


grau avançado, chegando ao delírio. E qual seria,
então, o tratamento? Apesar de ser pediatra e en-
tendido em doenças de senhoras, interessava-se por
tais assuntos e resolveu aproveitar a oportunidade.
Necessitara, antes de mais nada, acompanhar a
A: sentir todos
cliente, sentir todas as suas reações, os seus gestos. os seus gestos.;
E, a pretexto de cuidar da boneca, iria tratar a fa- A: sintomas
zendeira. Quando tivesse todos os sintomas conhe- conhecidos,
cidos procuraria o marido. Claro que a boneca seria [c.v.]; marido,
um meio, e a boa técnica mandava não contrariar e então, dir-
os desejos de dona Helena, alimentando a ideia de -lhe-ia o ocor-
que a Rose era uma menina de verdade. Primeiro rido.;
conseguir a confiança, dar cordas aos caprichos A: alimen-
dela, pô-la à vontade. tando, pois, a
idéia; A: Pri-
Assim agindo, estaria perfeitamente dentro meiro, [c.v.]
da ética. Ninguém aceitaria que ele fosse tratar a A: Assim fa-
boneca somente pelos bons honorários que a ricaça zendo estaria;
poderia pagar. Claro que somente por causa da A: Mas acima
boneca o assunto estaria encerrado. Mas, acima de de tudo estava
tudo, havia o dever profissional de não abandonar o dever;
um caso difícil, que poderia ser fatal no futuro. A: difícil [s.v.];
A boa praxe mandava que estudasse a solução. A boa moral
Intimamente o médico duvidava dos seus mandava;
propósitos. Dois pensamentos opostos cresciam
dentro dele: um, que mandava deixar a boneca me- A: dentro dele
diante uma desculpa; outro, que, prevendo uma boa um [s.v.];
renda, desculpava-se com o tratamento da mulher, A: outro que,
ficando assim em paz com o bolso e a consciência. [c.v.] prevendo
O doutor era presa de tais pensamentos
quando apareceu dona Helena:
– Então, minha senhora, a Rose melhorou?

109 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Nada doutor. No mesmo. Talvez pior.


– Só há um recurso: ver pessoalmente – B: pessoal-
arriscou o profissional. Nesta altura, dona Helena mente, [c.v.]
estava convencida de que Rose era realmente uma
criatura de carne e osso. De tanto repetir aquelas A: repetir
manias, já não admitia o contrário e até esquecia a aquelas ma-
noção do ridículo. Daí a resposta: nias treslou-
cadas
– Sim, senhor. Vamos logo. Se não vou perder
minha Rose.
– Um momento, minha senhora. Depois do
consultório.
– Não fica muito tarde?
– Irei a tempo.
E foi.
Dona Helena esperava-o aflita, esfregando as
mãos, dramática, os cabelos em voo, arrastando os A: arrastando
esses, como se representasse uma comédia na roça. os ss
– O médico, demonstrando preocupação,
deu boa tarde, pediu licença e foi entrando.
– Onde está a doente?
– Lá em cima, doutor.
As empregadas espichavam os olhos meio
assustadas, mas compreenderam do que se tratava.
Foram para dentro.
Rápido, o profissional abriu a pasta.
Cuidadosamente, auscultou toda a doente. Virou-a
de bruços, colocou o ouvido às costas, tomou o
pulso, olhando os ponteiros do relógio de ouro,
franziu a testa, mordeu o canto da boca e, por fim, A: boca e, por
diagnosticou: fim [s.v.]

| 110
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Pneumonia.
Dona Helena suspirou.
– Ah! doutor, não me fale.
– Precisa de muito repouso.

XXI
A: Depois do
Depois do almoço, Isabel ficou em casa com almoço [s.v.];
os meninos. Aprígio, criança opada, esverdeada com os me-
mesmo, modorrava no oitão, deitado na terra que ninos, [c.v.];
os aguaceiros da noite tinham umedecido. O pinto amarela feito
espichava o pescoço e tossia como se tivesse engas- mangueira,
gado. O gogo sufocava-o. Bordada, depois de chamá- esverdeada
-lo inutilmente, cantarolava, enfeitando-se para pôr. mesmo,; A: §
Já pressentia o desaparecimento do último buguelo.
Sereia dava aula de anatomia óssea, bambo-
leando os quartos chochos, como se o vento a em-
purrasse. Comia porcaria nas coiraneiras.
Quando Aprígio acordou, tinha a boca em
fel. Os olhos pesados. O corpo todo mole, espetado
nas dores cansadas. Levantou-se, estirou os braços
e ficou com preguiça de andar, olhando qualquer
coisa que não via. Antes de sair do lugar, botou as
mãos para trás, empinou a barriga que combinava
bem com o corpo inchado e ficou parecendo um
coronelzinho. Os olhos quase se fechavam. Perdera
a noite com as goteiras e ainda tremia de frio.
– Aprígio, cadê esse menino?
– Oi, mãe.
– Está comendo terra, cachorro. Você morre.
Terra mata.

111 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Não mãe... não...


– O que está fazendo aí no oitão?
– Estou aqui...
– Aqui nada, deixa vê essa boca...
Aprígio começou a chorar. Sempre que Isabel
olhava sua língua estava suja de terra. Era surra na
certa.
– Deixa vê...
– Oh! mãe, não me bate, não...
– Está comendo terra, não é?
– Não como mais, não como mais...
– Vem cá menino. Se eu for buscar é pior.
O menino quis até fugir, mas os pés tinham
uma tonelada de chumbo. O corpo queria repouso.
Não havia ânimo para nada. Como que o organis-
mo já estava morrendo lentamente.
Com a relutância de Aprígio, Isabel veio e
levou-o pela orelha.
– Abre a boca.
– Oh!...
– Abre... traz aí a sola que ele abre.
– Eu abro, mãe, eu abro, espera aí.
– Abre logo, vamos.
– Abro... e o coitado prosseguia em gritos,
sufocados, implorando.
Isabel largou-o. Não adiantava bater. Todos
apanhavam e ficavam no mesmo. Terminavam
morrendo. Comiam terra desde pequeninos. Iam
aniquilando, amarelando, a barriga inchada até

| 112
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

que desapareciam. Bater não resolvia. Depois


teria remorso. Não se lembrava de Paulo?
Menino já grande, servindo, deu para ficar mole,
triste, banzeiro, como se estivesse de olhado. Não
adiantaram as rezas. Apanhava de fazer dó. Certo
dia fora para a água de sal, botara sangue até pela
boca e pelas ventas. Rogava, ajoelhava, pedia por
São Roque...
– Oh!... mãe.
Mas Isabel queria que Paulo não comesse
terra. E surrou até cansar. Pouco demorou com
vida. A inchação cresceu, ficou mesmo que uma
pipa, papudo.
Aprígio saiu com a mão no rosto, soluçan-
do. Não podia resistir à terra. Queria comê-la.
Sempre era assim. Demorava duas ou três horas
naquela pasmaceira. Em seguida, olhava de sos-
laio para um lado, para outro e zás o torrãozinho
na boca. Corria, então, como se tivesse cometido
um crime, para um lugar escondido, uma moita
fechada. E saboreava a terra, calmamente, sali-
vando cada parte, devagarzinho, satisfazendo-se.
Limpava bem a língua e, assustado, procurava o
casebre, quando não adormecia à sombra das ár-
vores, amolecido, cansado do trabalho, da doença.
Às vezes, no esconderijo, estava Isabel, sola à mão,
pronta para apanhar o delinquente. Ele vinha,
como um bicho do mato, escutando qualquer
ruído, olhos atentos e estirava a mão, feito um rato
que surrupiasse um caroço de milho. Só estreme-
cia quando uma voz irritada: A: Estou
– Estou vendo, moleque! Vem cá, cachorro! vendo [s.v.]

113 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Aprígio, apanhado em flagrante, ficava esta- moleque! vem


telado, antes da sola cair impiedosa. Mas a taca não cá cachorro.
servia de remédio. Novamente, o torrãozinho iria [c.p.]
ser furtado, comido e saboreado.
A terra apressada levaria todos os meni-
nos para que as raízes gulosas salivassem com os
aguaceiros das noites escuras. A terra não tinha
paciência.
Por isso João comentava:
– Quando meu pai tinha um pedaço de
terra, tomaram à força. Agora, a sina triste dá A: terra, toma-
terra, mas pra menino comer, ficar opado, fazendo ram à pulso
assombração.
E Sarará completava:
– Da terra, pobre só tem direito de trabalhar
para os outros.
Se trabalha, labuta até morrer. Se come,
morre também. Deus só fez terra para os ricos.
Isabel estava certa. Não adiantava bater.
Fosse o que Deus quisesse.
– O Altíssimo não queria assim, assim fosse.
A mãe sabia que daí a pouco o filho iria
comer terra, encher a boca de torrão até ficar sa-
tisfeito. Mas o melhor era deixar assim mesmo.
Não havia jeito. Era vício. Tinha quem dissesse
que a escola consertaria. Mas onde há escola? A: Mas onde a
Se pelo menos aparecesse uma professora para escola?
descascar os meninos no bolo talvez melhoras-
sem. Contra a sina, tudo era debalde, julgava a
agregada.

| 114
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

XXII
À noite daquele mesmo dia, o médico voltou. À noite daque-
Decididamente estava interessado em fazer o trata- le mesmo dia
mento de dona Helena. Enquanto tomava o pulso da [s.v.]
boneca, olhava as reações que se passavam no rosto A: passavam
da fazendeira, bem como o significado de suas pa- no rosto dela,
lavras, entrecortadas de sentimento. Durante toda
aquela madrugada esteve atento aos cuidados dela, A: esteve
aos desvelos de mãe carinhosa. Ao amanhecer, com atento aos
os olhos de sono, continuava sentado à cabeceira da cuidados da
fazendeira,
cama: termômetro em punho, estetoscópio em me-
aos desvelos
dalha ao pescoço, mão no queixo. Debruçado sobre de mãe cari-
o cotovelo que se apoiava na perna, reproduzia o nhosa.
quadro clássico do médico preocupado em atender
e curar a criança semi-adormecida.
– O senhor vê, doutor, perdemos a noite
inteira.
– Parece que a febre cedeu. Passarei agora um
expectorante.
A mulher mostrava-se aflita, os dentes arquea-
dos como tábuas de barrica, os cabelos em desalinho
e as pálpebras inchadas, escondendo os olhos.
– A senhora está sentindo alguma coisa, A: alguma coi-
madame? sa, madame.
[c.p.]
– Um pouco de cansaço.
– Dor de cabeça, vexame?
– Não, senhor. A: – Não [s.v.]
– Desde quando a senhora possui Rose? A: (tivera até
(Tivera vontade de perguntar quando nascera a vontade de per-
guntar quando
Rose).
nascera a Rose,

115 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Essa menina, doutor, tem dois anos. mas temeu o


ridículo.)
– A senhora teve filhos?
A mulher abriu muito os olhos, como se fu-
A: afinal [s.v.]
gissem um pouco dali e, afinal, voltou:
– A Rose é filha única. E soltou um meio riso
de quem não estava muito segura do que dizia.
– Seu marido está viajando?
– Recebeu um chamado do Rio e lá se foi.
Certamente está comprando algum brilhante.
– Comprar brilhante?
– Sim, senhor. É um grande colecionador de
pedras.
– Se não me engano, ele foi meu contempo-
râneo no colégio.
– Ele estudou no Colégio de Padre.
– Nos Maristas?
– Parece que sim.
– É isso mesmo. Fomos colegas.
Antes que tivesse claro, o médico despediu-se
de dona Helena, passou uma receita muito compli-
cada, fez recomendações severas e saiu pela porta
do fundo.
Ao chegar em casa, disse que a doente estava A: Ao chegar à
melhor e queria dormir, perdera toda a noite. casa [s.v.];
A esposa perguntou de quem doente era filha.
O médico preferiu falar em pneumonia e compli- A: médico
cações. Não iria explicar altas questões de psiquia- preferiu falar
tria. Ademais, tendo na história uma mulher, cujo somente em
marido estava ausente, o melhor seria o silêncio.

| 116
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Doutor José recolheu-se ao quarto, mas não


pôde dormir. O raciocínio que justificava o trata-
mento da mulher estava fraco, vencido pelo outro
que lembrava a imoralidade que cometia. Não era
o mesmo que fazer aborto, fato já consagrado hoje
em dia, tendo hospitais e casas especializadas na
matéria. Mas, ao mesmo tempo que assim pensa- A: Mas [s.v.]
va, não reunia forças que dessem para abandonar ao mesmo
o caso. Precisava ganhar dinheiro. Na realidade, tempo
trabalhava, perdera a noite examinando a boneca e
estudando a neurose da fazendeira. Não seria bom
se descobrisse um processo para tratar dela, afastá-la
daquela mania idiota e ridícula? Sim, mas também
do que adiantaria? Ela tinha uma vida vazia e aquilo
servia de passatempo. Era bem melhor do que fre-
quentar casa de jogo, beber ou praticar coisas piores.
Mas tudo seria possível. Aquela boneca, portanto,
tinha sua utilidade.
No fundo da alma, no entanto, o médico A: No fundo
sentia qualquer manifestação que procurava es- da alma [s.v.]
conder-se medrosa de vir à tona, mas que estava
viva e comandava todos os seus atos. Lá no re-
cesso, jazia o raciocínio que o aconselhava a não
perder a cliente, fosse para tratar do celuloide ou
da mulher. Perder uma cliente daquela seria supre-
ma burrice. O importante era prestar serviço, exa-
minar, passar receitas, perder noites a fio. Como
todo indivíduo, o médico procurava justificativa
para o erro que cometia.
Nos dias seguintes, dona Helena foi diaria- A: Nos dias se-
mente ao consultório dar notícias da filha. Vez por guintes [s.v.]

117 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

outra o médico vinha à sua casa e chegou a perder


mais duas noites.
A doente piorava, tivera complicações gra-
víssimas para, afinal, ceder ao tratamento enérgico
e eficaz. Por fim, veio a convalescença.
Quem reparasse naquele jardim pintado de
flores e canteiros, veria uma mãe desvelada empur- A: feições
rando um carrinho para lá e para cá, feições despreo- preocupadas,
cupadas, alegre com o restabelecimento da filha. mas tendo
a se alegrar
O médico relutou em apresentar a conta. com restabe-
Prestara serviço e fizera tudo para descobrir a pos- lecimento da
sibilidade de tratar a mulher. E não podia perder filha.
horas de sono, aquelas madrugadas enormes que
viajavam montadas nas horas lerdas. Veio a conta
polpuda; dona Helena pagou, agradeceu e disse pa- A: conta pol-
lavras de elogio: puda, [c.v.]
– O senhor salvou a vida de minha filha.
Abaixo de Deus... não fosse o senhor...
O importante é que Rose Marie era uma
menina de verdade, julgava dona Helena. E prova
estava ali na conta médica.
O pediatra meteu os cobres no bolso, apa-
nhou o chapéu, a pasta e saiu meio encabulado.
Ria-se e envergonhava-se ao mesmo tempo. Levava
na carteira o produto do seu esforço.
Quando o doutor Jorge voltou da viagem,
nada soube. O gasto ficou no rol dos gerais e pouco
fazia falta aos dinheiros que engordavam, pregui-
çosos, nos bancos. Além de tudo, dona Helena
possuía sua economia particular, guardada para
aqueles momentos de extrema necessidade...

| 118
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

XXIII
Ao deixar o menino, Isabel lembrou-se do
filho morto. Soltou mais um grão de lágrima e foi
apanhar o cacumbu.
– Fiquem quietos, vou plantar uns trens...
Ao lado da choupana, existiam, no terreiro A: Ao lado
mesmo, uns cinco metros quadrados de terra que da choupana
os cacaueiros não conseguiam cobrir. Ali, Isabel fez [s.v.]
um cercado e plantou verduras: jiló, alfavaca grossa,
coentro, couve e quiabos. Gostaria de fazer uma
roça grande, com aipim, fruta-pão, bananeiras,
laranja-cravo, mas o gerente cortou a vontade:
– Não senhora. Aqui ninguém faz roça a não
ser para a fazenda. Proibição de cima. E o doutor
Jorge bem que tem suas razões. Vocês plantam dez B: tem sua
pés de mandioca, uma bananeira e quando querem razões.
sair pedem o preço de uma usina. Não senhora! A: Não se-
Já estamos cansados de pagar espojeiro por uma nhora. [c.p.];
fortuna. O ano passado mesmo pagamos quatro A: pagamos
uma roça de
mil cruzeiros por uma roça. Um absurdo! Não valia
cacau nova
nem dois. Vinte ou trinta pés de cacau em cima da por quatro mil
terra. Aqui ninguém faz roça. É ordem. cruzeiros.
A mulher lembrou-se que a roça de quatro mil
cruzeiros produziu só no primeiro corte, nove caixas, A: cruzeiros
o que representava mais de onze arrobas. Só naquela tinha produzi-
primeira colheita pagou o preço. E quem plantou foi do, só; A: na-
posto fora da fazenda porque era exigente, queria quela primeira
colheita havia
pelo seu trabalho o que não valia!
pago o preço
Isabel teve que se contentar com os metros da aquisição.
do oitão, dentro daquele cercadinho de nada. Assim

119 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

mesmo ninguém via, e os cacaueiros ainda não A: ninguém


tinham vindo com seus galhos usurários de espaço. via [s.v.]
– Tanta terra que a fazenda tem, hein João, A: a fazenda
tem [s.v.]
comentava às vezes. Mais de mil hectares. Terra que
nem ladrão acaba. Um mundo. E não dão nem uma
nesga de terra para plantar umas brugunças. Tanta
terra boa, tanta capoeira perdida.
Mesmo assim, ali estavam as folhas para as
sextas-feiras magras. Serviam para temperar rato
bandola.
Isabel limpava os matos com as próprias
mãos. Enfiava os dedos na terra fofa e arrancava o
que não era de comer. A hortazinha vivia escova-
da. Ah! se fosse maior. Então olhava além, e via as
terras vastas, subindo e descendo lombadas. Ah! se
pelo menos tivesse uma tarefa daquelas duas mil.
Plantar milho, feijão nas trovoadas, arroz na lua
nova de dezembro. Mandioca no crescente. Uns
pés de café para beber. Até, quem sabe, uns ca- A: Até, que
caueiros. Sim, cacau. Uma tarefa ali dava para uma sabe [s.v.]
família viver, comprar tudo, andar vestido, comer
todos os dias e não ter medo. Mas cacau dava azar.
Não se recordava daquele contrato que fizera depois A: depois que
que veio para a companhia de João? Derrubaram a viera
mata, ficaram morando numa palhoça pior do que
aquela, comiam caça e folhas. Labutavam todos
os dias. Não havia domingo nem dia santo. Nada.
Nem sabiam os dias. Até com a lua trabalhavam.
O cacau nasceu bonito, roxo, as folhas cresceram
logo. O milho abriu-se em espigas, a mandioca
ficou aquela grandeza. Criava galinha e até uma
patinha. Chegou a ter um capado: o Brinquedo.

| 120
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

O porco gostava que se lhe coçasse a barriga e quando


via os donos procurava deitar-se preguiçosamente,
esperando o agrado. Ainda lembrava que fora
aquele cacaueiro, junto à pedra grande, que botara
a primeira flor, com pouco mais de dois anos.
Terrenão! À noite se comentou a flor do cacauei-
ro. Fizeram-se planos. “Para o ano, na outra safra,
vamos melhorar de vida”.
Construir uma estufinha ali ao lado. E aí te- A: Fazer uma
remos roupa, remédios e carne fresca todos os sába- estufinha ali
dos. Um cavalo ou um jegue para levar carga. Uma do lado de
cima.
espingarda boa. João chegou a sonhar: uma flor
enorme, carregada de frutos maduros, vermelhos,
frutos cheios de dinheiro, de carne de boi. Nunca A: Nunca mais
mais passaria fome. Mas o sonho foi desaparecen- teria necessi-
dade de passar
do, a flor alva e bonita ficou preta, suja de lama e
fome.
desapareceu. Parece que João tinha adivinhado no
sonho. Logo o fazendeiro apareceu, correu a roça
com interesse, cresceu os olhos e começou a mal-
tratar. Deu para cobrar o dinheiro fornecido. Era
preciso receber, estava com muito capital esparra-
mado. João não podia trabalhar a dia porque a roça
ficava perdida. E se trabalhasse na roça somente,
não pagava a dívida feita com o facão, o macha-
do, duas enxadas que comprara, além de outras
pequenas coisas. O fazendeiro foi apertando. Toda
semana vinha ver a roça. Os cacaueiros foram cres-
cendo, abrindo os braços amigos como se procu-
rassem abraçar alguém. Aquela alegria de plantar,
acordar de madrugada, trabalhar com a lua até cair A: Houve um
de exausto, desapareceu. Houve até um dia em que dia em que
João caiu na roça mais morto que vivo. Ali mesmo João caira

121 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

adormeceu e passou a noite. Tudo era alegria. Veio,


então, o desânimo. Não via que a roça não era dele?
Que as plantações pertencem ao dono da terra?
E que a terra perseguia a todos: matava e comia
os meninos? Quando os cacaueiros, roxos de seiva,
brilhantes e sadios deram carga, João teve que en-
tregar tudo. Acertou as contas: tirou duzentos cru-
zeiros de saldo e deixou o trabalho de cinco anos,
dois filhos enterrados, como bichos, dando comida
aos cacaueiros. As lágrimas de quando perdiam os
meninos também ficaram. Isabel saiu esfarrapada,
com os braços cansados, envelhecida ligeiro. Tudo
havia ficado. Aquela alegria de plantar, ver cres-
cer e colher os primeiros frutos, ficara também.
A terra era boa porque estava adubada com lágri-
mas e tristezas. Restava, agora, a lembrança de que
a roça produzia duzentas arrobas de cacau. Folha A: cacau – Es-
batida, dando oitenta mil cruzeiros por ano. E o taria de folha
fazendeiro certamente depositava aquele dinheiro batida, dando
no banco. oitenta mil
cruzeiros por
Não. Cacau, Isabel não queria. Dava sofrimento. ano.; A: no
Até o sangue da gente o pesteado leva. Comia banco para
os filhos da gente. engordar.
Gostaria de plantar trem para distribuir com A: Cacau, não.
A: §
os de casa. Cacau, não.

XXIV
Doutor Jorge de há muito compreendera a
esposa. Era meio gira e mais nada. Acomodava-se
a ela como a um calo no pé. Fazia de conta que não
existia. Bom dia ou boa tarde. Até logo. Arrume

| 122
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

as malas. E pronto. De há muito, também, vivia


ao lado de sua Elisabete, loirinha, saltitante, fres-
quinha. Toda às avessas daquela leitoa sebosa,
dentuça e maniática. Elisabete possuía uma casa
funcional, de traços ligeiros e encantadores,
toda cercada de sedução que vinha do mar. Com A: com ela
ela vivia e ficava dias ausentes de dona Helena. vivia, [c.v.];
Às vezes, imaginava a esposa morta, o enterro, A: Às vezes
a pressa em deixá-la no cemitério e o alívio da [s.v.] imagi-
nava;
volta. Mas a bicha era uma pedra. A não ser a
doidice, possuía saúde de ferro. A: a não ser a
doidice [s.v.]
Só raramente frequentava com dona Helena
A: Se rara-
a alta sociedade, todo vergonha e enfadado. Gostava mente;
de ir aos clubes alegres com a amante, toda juventu- A: enfatado,
de, orgulhando-se do bisqui loiríssimo, oco, que lhe [c.v.] gostava
satisfazia os instintos. de ira aos
Quando dona Helena, vez por outra, clubes com a
amante
referia-se à ausência prolongada, doutor Jorge
desculpava-se polidamente, alegando coisas vãs A: desculpava-
-se palidamente
que a esposa engolia indiferente. Até achava natu-
ral aquela vida bígama. Se não tinha o seu amante,
a culpa era sua, daqueles dentes de cutia. Daquela
pança cevada e até daqueles fios de bigode.
Jorginho estava certo.
Que ele procurasse distrair-se com quem A: § ;
entendesse. A: § ; estava
na boneca.
Ela cuidava meigamente da Rose Marie. Sua
vida estava na filha.
A: Doutor
Doutor Jorge brincava com sua amante, co- Jorge, [c.v.];
lecionava seus brilhantes e pouco se incomodava então brincava
com as maluquices da esposa. com Elizabete,
colecionava

123 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

XXV
O resto da semana correu sem novidade. A: novdade.
Os dias amanheciam, o búzio tocava e os trabalha- Os dias ama-
dores seguiam em passadas longas para o serviço. nheciam, bú-
zio tocava
Aprígio é que estava cada vez pior. Na sexta-
A: Na sexta
-feira, saíra do oitão da casa, como se fizesse muito feira [s.v.]
esforço, olhou a mãe com os olhos culpados e chorou.
– Oh! mãe, não é culpa minha, não.
Isabel teve pena do filho. Certamente tinha
comido terra. Dentro dos seus olhos estava a
morte. Mansa como um cordeirinho. A mãe abra-
çou o filho, envolvendo-o. Faria tudo para que ele
não ficasse como o que morreu. Também Aprígio
já era maior, estava na casa dos doze anos. Idade,
propriamente, não sabia. Nem o dia do nascimen-
to. Mas já devia ter mais de onze anos. Nasceu
depois de Adão e antes de Hilda. E como fazer A: filho [s.v.];
para salvar o filho? Poderia ir à farmácia o quanto A: Poderia ir
antes, comprar remédio. O pior é que não tinha à farmácia o
quanto antes
dinheiro. O menino estava que não podia dar
e comprar o
duas passadas: cansava logo. E não tinha roupa. remédio.; A: § ;
Até aquela camisa de bulgariana andava em mu- E o menino
lambos. Só se ele não fosse. Diria ao doutor da A: farmácia
farmácia o que ele sentia. E se fosse ao médico do que sentia.;
posto? Outro dia ouviu falar que na cidade havia A: Cidade
um posto, que só atendia gente pobre e daria re- havia um pos-
médio de graça. to [s.v]; e dá
Tudo do governo. remédio
Assim é que Aprígio vestiu a camisinha de A: §
bulgariana, toda remendada, e acompanhou o pai A: camisinha
no dia de sábado. João saiu bem cedo, ainda turvo. bulgariana

| 124
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Não queria que os demais agregados arreliassem [s.v.] toda


do seu filho. Podiam até dizer que era falta de remendada
comida. Que era ruindade dele. Já chamavam o [s.v.]
que morreu de assombração e aquele andava no
mesmo caminho.
Quando o pai chegou ao Posto eram dez
horas e havia muita gente. Na sala de espera, en-
controu um homem com os pés secos como de
cadáver que não apodreceu, dedos finos, grelhados A: de cobra
pela doença, cor de chocolate. Fedia horrivelmente [s.v.] que de-
e ele mesmo dizia que tinha sido mordido de cobra, pois deu gran-
que depois deu gangrena. grena [sic].
João encostou-se a um canto. Tirou o chapéu A: João se
da cabeça, segurou bem a mão do filho como se encostou
ele fosse fugir e esperou confiante. O enfermeiro,
um homem roliço, estúpido, pés metidos num ta- A: pés metido
manco cheio de lama grudada, deixando ver a bar- [sic] num ta-
riga cabeluda e negra, aproximou-se: manco
– Seu nome?
– João Crispim dos Santos.
– Idade?
– Aí pelos quarenta ou cinquenta.
– Quarenta ou cinquenta?
– Quarenta e cinco.
– Onde mora?
– Fazenda Fartura.
O enfermeiro, que exalava cachaça curtida
desde a véspera, exclamou:
– Fazenda Fartura... do doutor Jorge?
– Sim senhor.

125 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Cacau é mato...
– É, sim senhor....
– E esse menino?
– Ele é que vai ao doutor.
– E por que não disse logo? A: – E por que
não disse logo.
– Eu não sabia. [c.p.]
– Tá certo. Fica na sua ficha mesmo. É seu
filho. Que tem ele?
– Deu pra comer terra, está inchado.
A: Chega a
– Que!... comer terra... é vício. Chega a taca taca que ele
nesse moleque que ele deixa. deixa.
– Já cansamos de bater. É mesmo que nada. A: Já cansado
– Bate mais... de bater é
mesmo que
– Tão dizendo que é lombriga. Bicha grande nada.
e que o doutor dá jeito.
Quando o funcionário foi se afastando, João
inquiriu:
– Que hora o doutor Jorge chega? A: – Que hora
o doutor
– Ah! não sei. Tem oito dias que ele não vem.
chega?
Foi caçar perdiz do lado de lá do rio.
– Será que vem hoje?
– Até agora não chegou. E não sei se vem.
– Ah!... Ah!... gemeu o agregado.
Um doente que estava a um canto lamentou:
– Oh! meu Deus, há dez dias espero. A pri- A: – Oh! Deus
meira vez o doutor disse que estava muito ocupa- [s.v.];
do. A segunda, tinha pressa. Depois nunca mais A: A segunda
apareceu. E já não aguento mais de dor. [s.v.]

| 126
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Parecia que o homem da gangrena estava A: o homem


conformado. Tinha metade da perna morta e tudo da grangrena;
seria lucro dali por diante: A: metade das
pernas
– É isso mesmo. Doutor foi feito pra se dis-
A: foi feito pra
trair. Se não fosse a inhaca que sinto, já tinha desis- distrair
tido de vir aqui. Mas... de noite não posso dormir...
Estou parecendo uma carniça. Só falto vomitar os
bofes.
– Também, vocês querem que o doutor seja A: – Também
empregado de vocês, defendeu o enfermeiro arras- [s.v.]
tando os tamancos, batendo a porta do consultório.
Chegou meio-dia e o médico não veio. João
deixou o filho esperando e:
– Fique sossegado. Não saia daí.
Aprígio teve receio de ficar só. Conformou- A: Confor-
se, afinal. E, como se escorregasse pela parede mou-se [s.v.]
onde se encontrava, foi descendo até que sentou. afinal.
Também ele estava enjoado com o fécio que saía do A: feco que
homem da gangrena. saia do ho-
mem da gran-
João foi à feira, comprou os trens, deu meia- grena.
-volta, despejou uma cachacinha na garganta, que
mais parecia areia estorricada, desembolou a língua,
cuspiu economizando a pinga, e voltou ao Posto.
Alguns doentes já tinham saído. O da gan- A: O da gran-
grena fora apanhado por duas pessoas e posto grena [s.v.];
A: um cavalo
sobre um cavalo pampa, que estava encangalhado
pampa [s.v.]
à porta.
Aprígio cochilava com os olhos semiabertos.
– Cadê o doutor, já veio? A: – Que dou-
– Que doutor, senhor. Já é mais de meio-dia. tor [s.v.]

127 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

De tarde não tem expediente. É semana in-


glesa. Precisamos descansar. Eu e o doutor.
– Ele já chegou?
– Já, mas mandou dizer que não vem hoje,
está muito estropiado. Certamente andou muito.
Só segunda-feira...
– Mas eu moro longe. Não posso vir aqui
segunda. Estou trabalhando e não posso perder dia.
– Azar o seu.
– Sendo assim...
João apanhou os bornais que deixara no
chão; pegou a mão de Aprígio e saiu.
– Quando acaba, sua mãe quer trazer a
doutor.
Doutor... Doutor... Doutor é dinheiro, nós
não temos. Fica assim mesmo até Deus mandar o
bom tempo.
O menino até gostou de não ser atendido.
Teria medo do médico. Do homem que cortava
gente, rasgava tumor e dava remédios amargos
para beber. A: §

XXVI
Dona Helena imaginava agora o aniversário
de Rose. Mandaria chamar o decorador. Mudaria as A: Mudaria as
cortinas, mobílias e lugares dos móveis. Certamente cortinas, mo-
ele daria a nota de tudo que precisasse. O automóvel bílias, [c.v.]
ficaria abaixo e acima dando e recebendo encomen-
das. Pediria os doces e frios na pastelaria. A: §

| 128
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Traria a madame Glória para arrumar a


mesa do aniversário. Esta seria linda! Um parque A: seria linda.
de diversões como certa feita vira no aniversário [c.p.]; cobertas
da filha do senhor Epaminondas. Barraquinhas co- de sapé [s.v.];
bertas de sapé, distribuídas em um gramado verde. os barquinhos
e aviõezinhos
No lado oposto, os barquinhos e aviõezinhos, cer-
[s.v.]
cando a roda gigante. Ligando as duas partes, colo-
A: um lago
caria uma ponte sob a qual adormecia um lago feito
feito espelho e
espelho, povoado de patos. Na grama ainda haveria [s.v.];
vaquinhas e carneirinhos. No centro, o bolo do
aniversário: um lindo castelo feudal. Lindo! Lindo
A: repetiu a
como os amores, repetiu a fazendeira, balançan-
fazendeira
do a cabeça, sentindo um estremecimento, como [s.v.] balançou
que nervosa. Um bolo enorme: com um metro a cabeça, sen-
de altura. Um metro, não, fica exagerado. Oitenta tindo; A: Um
centímetros. Marcou com a mão, para certificar-se metro, não,
realmente de tamanho. Bem no centro, todo alvo, ficaria exage-
seis torres. Seis ou sete? Como ficasse melhor, mas rado. Oitenta
sete era o número da sorte. Mentalmente dona centímetros e
marcou com a
Helena construiu o castelo, as torres pontiagudas,
mão [s.v.] para
os telhados, em bico, as portas pesadas, o fosso,
A: despenha-
a ponte levadiça e o despenhadeiro profundo,
deiro pro-
a fim de dar vida. Embaixo, bolo, o prado verde, fundo a fim
pontilhado de macieiras e parreiras e tudo que de dar vida
fosse bonito. Ao longe, um regato cercado de flores ao bolo. Em
silvestres. No horizonte, um sol de ocaso, deixan- baixo, o prado
do raios dourados. Mas neste caso carecia de uma verde;
mesa muito grande. Poderia eliminar o parque de A: horizonte,
diversões. Só o castelo. Altaneiro, alvo em glacês um sol mori-
flocosos. Contanto que fosse bonito. Dona Helena bundo,
teve outro estremecimento, como que voltando
à realidade. Mas castelo não combina bem com A: combinaria
bem com a

129 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

festa de criança. Melhor ficaria se fosse o parque festa da


de diversões. Tal motivo já estava batido. Vira na criança.;
casa do senhor Epaminondas. Queria um assunto A: Mas tal
novo, original. Bem que poderia consultar as do- motivo
ceiras, pedir-lhes opiniões. Daria preferência a um
assunto moderno, que chamasse atenção. Poderia
ser uma mesa funcional, decorada à moderna,
contanto que não tivesse maluquices, curvas tor-
cidas, por exemplo. Poderia armar um pombal no
centro, árvores em volta, revoada de pássaros pou-
sando nos galhos. Ficaria bonito, sim, mas pobre.
Pombal não dava certo. Uma praia: o coqueiral,
a areia como a de Piatã, o mar azul e as velas alvas.
Alegre, própria para aniversário de uma criança. A: Ficaria ale-
gre, próprio
Dona Helena entusiasmou-se, sentiu outro estre-
mecimento e soltou um risozinho de satisfação.
A solução estaria na praia. Mas ainda ia pensar.
Gostaria que houvesse riqueza no ambiente, flores,
originalidade. Encomendaria às melhores pastela-
rias. Convidaria muitas crianças. A Rose iria ficar
muito satisfeita. Faria um vestido novo, enfeitado
de florzinhas azuis. Seria uma festa e tanto. Mataria
perus. Pois não. Onde já se viu festa sem perus?...
Compraria lembranças para distribuir A: § ; Com-
praria lem-
aos convidados. Lembranças de valor, já se vê.
brança para;
E não aquelas bobagens que a filha do senhor
A: Se o motivo
Epaminondas ofereceu. Se o motivo fosse a praia,
fosse a praia
daria barquinhos. [s.v.]
Mas como? Puros? Cheio de bombons, bis-
coitos? Nada disso. Vulgaridade. Uma lembrança
valiosa. Carta feita os jornais noticiariam que em
determinado casamento de arquimilionários foram

| 130
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

distribuídos brilhantes. Que maravilha! Um bri- A: §


lhante a cada convidado! Assim faria o aniversário
da Rose. Poderia também mandar fazer barqui-
nhos de cristal, de puro cristal, do melhor. E então
seria originalíssimo. Ou pequenos jarros de cristal.
Contanto que não fosse aquela bobagem do senhor
Epaminondas.
E os convites? Deveriam ser impressos.
Grandes ou pequenos? Os grandes ficariam mais
elegantes. Em papel de linho puro, abertos em letras
douradas. Coisa fina. Convite para cem cruzeiros
cada, ou mais. Iriam ver o que é dar festa chique.
Que riqueza de ambiente! Quantas flores! E o ves-
tido da Rose? Nem sabia mesmo de que faria. Seria
bordado a ouro. E os sapatinhos? Encomendaria
em Paris.
Gostaria também de oferecer um almoço.
Dezenas de talheres. Caviar. Sim, por que não?
Encomendaria caviar. E faisão dourado? Também.
O pior é que o almoço não ficaria bem para o ani-
versário da Rose. Só se fizesse coincidir com outra
data festiva. O Natal, por exemplo. Mas no Natal
seria o batizado. Aí é que poderia fazer uma festa
completa.
Missa. Encomendaria missa. Ou duas
missas? Três missas: na Catedral, no São Francisco
e em São Bento. Missa era tão barata! Agora, queria
missa especial, só da Rose.
Dona Helena perdia-se nos devaneios.
Estava à janela, olhos voltados para as manguei-
ras. De quando em quando tinha um daqueles
estremecimentos de alegria e impaciência, como

131 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

que acordando, para, em seguida, voltar ao sonho.


Quem observasse de fora, a notaria etérea, fora do
mundo, envolvida na tênue atmosfera dos santos.
Suspirava, voltava a si e desaparecia em lucubrações.
Chamou Donata, pediu o catálogo do telefone.
Já com o livro na mão, procurou todos os
fones de pastelarias e doceiras afamadas. Ao termi-
nar, pediu o jornal. Não havia. Mandou comprar os
que encontrasse. Minutos depois estava com as ga- A: §
zetas sobre a mesa da copa, investigando anúncios.
Queria uma festa granfa, rica. Festa que a alta socie-
dade comentasse, que houvesse sereno. Mas sereno
não podia haver, logicou a fazendeira. E não podia,
porque tudo seria à tarde. Onde já se viu festa de
criança à noite?
Bem, mas gostaria que muita gente, mesmo
sem ser convidada, ficasse de fora, olhando, bisbi-
lhotando, às grades.
Rose Marie, deitada no berço, continuava in-
sensível aos projetos maternos. Só deu sinal de vida
ao dizer o fanhoso mamã quando dona Helena a
apanhou.
– Farei uma festa bonita, minha filha. Você
vai gostar, vai? Diga... vai? Vamos começar os pre-
parativos hoje mesmo.
A fazendeira tomou a resolução de iniciar as
arrumações no dia seguinte. Queria, antes, pagar a
promessa que fizera ao Senhor do Bonfim. Se bem
que uma coisa não impedia a outra. Neste caso,
resolveu ela, começarei a preparar a festa do aniver-
sário amanhã mesmo.

| 132
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

XXVII
Ao chegar a casa, tardinha, Isabel esperava A: Ao chegar à
confiante e alegre. Certamente, com a receita, o casa,
menino viria bom, médico é assim: basta bulir na A: bom. Médi-
gente para curar. Quando a mulher soube do ocor- co é assim.
rido ficou sem graça. Quis culpar o marido, mas A: ocorrido,
terminou conformada: [c.v.]
– Se esse troço não comesse terra, nem pre-
cisava doutor, dessa trabalheira toda... Mas um dia
eu ensino a ele.
Arrependeu-se das palavras pesadas que dis-
sera ao filho. Ela, outro dia, também comera torrão.
Queria saber o gosto, mas, por dentro, era vontade
de engolir a terra. E gostou. Comeu duas vezes.
Ninguém sabia.
Meio encabulada, como se João descobrisse
nos seus olhos o fato, tomou o bornal da feira e foi
para a cozinha.
– Só estou devendo vinte cruzeiros do
funeral, Isabel!... Agora vou fazer economia. Daqui
a oito semanas, estou de facão novo, comentou o
agregado.
– Pai, ó pai, disse Zilda, o pinto de Bordada
morreu.
– Foi?... cadê?
Hilda saiu e foi mostrar ao pai onde morrera
o buguelo. No oitão da casa, onde Aprígio dormia,
ele estava teso.
Algumas formiguinhas pretas já andavam
procurando o que comer. João empurrou o bicho

133 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

com o dedo grande do pé, apanhou-o pela unha e


atiçou aos cacaueiros.
Sereia veio bamba, com um resto de alegria
no rabo, olhou súplice o dono, disse alguma coisa.
João bateu o dedo, distraído, e:
– Essa cachorra tem é rabugem. Hoje espre-
mo a rabugem dela.
– Isabel, da cozinha, explicou:
É fome. Nem jaca a bicha acha para comer.
Anda comendo porcaria dos meninos, essa imunda.
Bordada cantarolava, pouco sentida com a
morte dos buguelos. Veio chegando para a cozinha.
Encostou-se a um canto, catou mundiça das penas
e deitou-se.
– Essa galinha só matando, sentenciou João.
– Por quê? perguntou Isabel.
– Não cria pinto.
– Ora, não cria... Você se esqueceu da ninha-
da, quando criou oito: três frangos e cinco frangas?
Com o dinheiro dos frangos eu comprei o vestido
novo e a dorme-bem...
– Mas agora, nem um.
– Está passando mal. Não acha o que comer.
Nem um caroço de milho. Farinha, não tem
quem dê. Da outra vez era tempo de jaca e ela
ficou pesada, gorda, criou tudo. Agora está uma
pena de leve. A: §
– Não sei como está se enfeitando pra pôr.
Aprígio esgueirou-se pela saída da frente,
passou a mão na parede, arrancou um torrãozinho.

| 134
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Rápido, atiçou-o à boca. Fugiu para o esconderijo


de calumbi e deitou-se. Apareceram logo aquelas
moscas de traseiras brancas, que se encontravam
umas com as outras no ar, e sentavam na pele,
fazendo cócega. Pelo menos se ficassem quietas, A: Mas saiam
tudo ia bem. Mas saíam curiosas à procura de curiosas a pro-
comida. Agora mesmo lá estavam duas no pescoço, cura de algo.
futucando. Depois, dobraram a orelha, passaram A: Depois
pelo queixo e vieram fazer coisa feia bem na boca. [s.v.]
O menino batia a mão e tinha medo dos insetos. A: Afinal [s.v.]
Um deles poderia botar morotó no seu ouvido pegou no
ou no nariz. Afinal, pegou no sono e as bichas sono; A: de
tomaram conta de quanto orifício encontraram. quando em
quando [s.v.];
De quando em quando, o adormecido mexia os
A: quietude do
lábios, assoava ou virava o corpo. Elas voavam já sono e [s.v.];
prevendo a quietude do sono e, novamente, volta- A: novamente
vam gulosas e imorais. [s.v.]

XXVIII
Doutor Jorge voltou de viagem e anunciou
que iria à fazenda. Precisava olhar as coisas, fisca-
lizar a safra que ia ao meio. Ademais, alimentava o A: Ademais
plano de reformar tudo, principalmente construir [s.v.]
casas para os trabalhadores.
– Aquela gente, disse ele como se pensasse alto
e não desse importância à mulher, não pode viver
naqueles casebres imundos. Precisamos dar-lhes me-
lhores condições para que produzam mais. Se possí-
vel, irei distribuir sapatos a todos. A: Se possível
[s.v.]
Dona Helena saiu do seu indiferentismo e
ponderou:

135 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Não adianta. Esse povo não agradece nada. A: ninguém


Se pudesse roubava tudo... Não viu o caso do estu- sabe; traba-
feiro, o ano passado: roubar uma arroba de cacau. lhadeira; roça
[s.v.]; Aquilo
Isso, o que sabemos. E o que se passa por lá que
[s.v.] sim [s.v.]
ninguém vê. Quando eu era menina, trabalhado- que era traba-
ra ia madrugada para a roça, só voltava de noite. lho, quando
Aquilo, sim, é que era trabalho, quando um dia um dia valia
valia dinheiro, mas hoje... dinheiro. [c.p.]
O fazendeiro que não estava para discussões Mas
e, intimamente, sabia por que pensava na reforma, A: sabia por-
calou-se. Experimentava o prazer de mostrar aos que estava
na reforma,
amigos a organização da fazenda. Pelo menos, teria
calou.
que reformar todas as casas do pasto, justamente
A: Pelo menos
as mais vistas. Quanto às das roças, poderiam ficar
[s.v.]; Quanto
como estavam. As da frente da fazenda é que preci- às das roças
sam ser rebocadas, caiadas e tijoladas. Talvez fizesse [s.v.]
um pequeno jardim em cada uma.
Quanto à escola, estudaria o local apropriado A: Quanto a
para o prédio. escola [s.v.]
Contrataria uma professora. Nada como A: Instalaria
alfabetizar! uma profes-
sora.
– É que o presidente do Instituto do Cacau
possivelmente vai por lá ver as condições do
terreno e as pragas dos cacaueiros. Não pode-
mos mostrar uma fazenda assim, maltratada.
Precisamos impressionar também. Depois estou
querendo ver se consigo um bom auxílio para
minha estrada de rodagem.
– Eu achava melhor empregar o dinhei-
ro em outras coisas. Se fosse eu botava mais um
roçado de cacau ou comprava um apartamento

| 136
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

para aluguel. Do que adianta gastar dinheiro com


aquele povo? Nada. Não rende nada. Continua no
mesmo ou pior.
Dona Helena estava presa de tal modo à Rose
Marie que não podia sustentar uma discussão longa
assim. Até o marido surpreendeu-se com aquelas A: aquelas
opiniões, concluindo: opiniões, e
concluiu:
– Vou pensar, se o presidente do Instituto
resolver não ir, deixo de fazer as obras. Preciso é de A: O que pre-
ciso é de estu-
estufas, sede e barcaças boas. Isso temos.
fas e barcaças
A fazendeira já não prestou atenção ao fim boas. Isso
da conversa do marido e subiu para o quarto. termos.
O sol da manhã engatinhava pelos tape-
tes. As trepadeiras em cachos balançavam-se
vaidosas como se assim pudessem desprender
mais perfumes. Lá embaixo, a cozinheira futuca-
va os alumínios e a vassoura da capoeira corria
cantos. O jardineiro assoviava uma bestagem
qualquer, regando os fetos que se dependuravam
das mangueiras. O chofer, de calção, lavava as
faixas brancas do automóvel particular da patroa.
Na varanda da frente, o canário-da-alemanha,
preso na gaiola de pé, esfalfava-se em trina-
dos nervosos. O mais, era aquele vazio de casa
enorme, com pouca gente.
Doutor Jorge ligou o carro e sumiu-se.
Naquele dia não voltaria à casa. A: a tomar sol
Rose Marie foi posta a tomar sol, sentada no [s.v.]
carrinho. B: – Fiquei;
A: Se não [s.v.]
– Fique aí, quietinha, viu? Se não, mamãe mamãe não
não quer bem. quer bem.

137 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Alguém chamou pela campainha. A copeira


abriu a porta e viu um moço conversando, lorde,
de maneiras afetadas:
– Bom dia, moça.
– Bom dia.
– A senhora do doutor está? Aqui não é a A: – A senho-
casa do doutor Jorge? ra do doutor
– Está, sim senhor, mas ocupada. está? aqui

– Eu espero um pouco.
– Como é o nome do senhor?
– Diga que sou o moço da Companhia de
Seguros, preciso falar com ela.
– Vou ver.
A copeira saiu e transmitiu o recado a Donata
que, ao pé da escada, passava sapóleo nos degraus
de mármore.
– Aí tem um rapaz chamando dona Helena.
– Por que você não chama?
– Vá você.
Donata subiu quatro degraus e gritou:
– Dona Helena!...
– Que é?
A: – Homem
– Tem um homem aqui procurando a senhora. o quê, senhora
– Homem o quê, senhora, isso é modo de [s.v.] isso é
tratar ninguém: senhor, moço... modo de tra-
tar ninguém:
– Vije!
senhor, moço.
– Você nunca toma jeito de gente, reclamou a [c.p.]
fazendeira que já se debruçava na escada. A: Você nunca

| 138
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Donata fez um muxoxo e desceu. Dona


Helena acrescentou:
– Pergunte o que quer. Agora estou ocupada,
cuidando do quarto de Rose.
– É um negócio de seguro.
– Diga que já vou.
Daí a pouco o agente da companhia
trabalhava:
– Olha, minha senhora, nada como o seguro.
Hoje tudo bem, a senhora com saúde, seu marido,
e depois... Depois tudo pode mudar. O futuro é in-
certo, nada mais duvidoso que os dias vindouros.
E o seguro é certo. É a melhor economia. A senhora
não está vendo assim... Tenho passado em todas
as casas e em todas eu faço seguro. Aqui mesmo, a
vizinha, fez uma apólice de duzentos mil cruzeiros
para o filhinho.
– Dona Aurora, foi?
– Sim... Aurora Soares de Magalhães.
O Agente remexeu a pasta e veio a apólice
assinada.
– Eis aqui. Beneficiando Maria das Dores
Magalhães.
E apontando com o dedo:
– Duzentos mil cruzeiros.
– É?... A: É... [sem
interrogação]
A fazendeira sentia certa inveja da vizinha
que possuía um filhinho de verdade. Mas a Rose
satisfazia plenamente. A prova é que até o agente de
seguros ali estava.

139 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– A senhora vai querer de quanto, madame?


– Espere aí.
– Quinhentos mil?... Seu filho pode estudar
no melhor colégio. Olhe bem que hoje uma apólice
de quinhentos mil é muita coisa e amanhã, quem
sabe? Os estudos de seu filho...
– É filha...
– Qual é o nome? insistiu persuasivo o agente.
Dona Helena relutou um pouco.
– Qual é a idade?
– Dois anos.
O agente maneiroso e rápido sacou a fórmula A: rápido,
da pasta e: [c.v.]

– A senhora não vai deixar de fazer o


seguro. Sei que se trata de gente fina, que sabe o A: gente fina,
que sabe o va-
seu valor. Pessoas como a senhora dispensam até
lor do seguro.
propaganda. Procuram-nos. Ainda outro dia uma
senhora, esposa de um comerciante forte, tocou
o telefone para o escritório e chamou um agente
para fazer um seguro para seu filho. A senhora
deve conhecer: Dona Conceição, casada com o
senhor Carvalho...
– Sim... sim.
Dona Helena não conhecia, mas também
não queria deixar transparecer que não se dava com
o grande comerciante.
– Pois bem. Fizemos um seguro grande
A: Quando
para três meninos e uma menina. Quando acabou, acabou [s.v.]
dona Conceição disse: agora estou tranquila, posso
morrer, meus filhos terão escola. E sabe a senhora?...

| 140
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

As mulheres são mais prudentes para isso. Os mari-


dos, preocupados com os altos negócios, não ligam
para tais coisas. Ganham dinheiro e assim pensam
que o futuro está garantido.
– O senhor tem razão. A: Depois [s.v]
– É muito bom mesmo. Depois, se viverem se viverem;
até os vinte anos, recebem o dinheiro com juros. Não vejo ne-
gócio melhor e
Faz de conta que estava depositado no banco. Não
mais positivo.
vejo negócio melhor e mais lucrativo.
– O nome?
– Assim sendo... A: – Deixe
consultar ao
– Deixe consultar meu marido.
meu marido.
– Mas minha senhora... a idade de sua filha
é idade ideal. Paga uma asneira. Aproveite a opor-
tunidade. Além disso a nossa Companhia oferece A: A senhora
todas as vantagens. A senhora quer ver a tabela? quer ver a
– Não precisa. tabela. [c.p.]
– Pois bem, então...
– Pago quanto?
– Não se preocupe.
– Para cinquenta mil cruzeiros.
– Só? Julguei que a senhora iria fazer um
seguro de quinhentos mil ou um milhão. Olhe bem,
madame, o futuro é incerto.
– Mas para começar. Depois faremos mais.
Além de tudo, a Rose é assegurada na
Previdência.
– Ora, madame, Previdência... Nenhuma dá
vantagens e segurança como a Sul América. Nenhuma.

141 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Então cem mil.


– Duzentos, madame. Sua filha merece muito
mais.
– Isto é...
– Então... nome?
– Rose Marie Cardoso da Silva.
– Idade? O próprio gerente respondeu:
– Dois anos.
E continuou:
– Nascida em...
– 28 de outubro de 1953.
Outros dados da vida de Rose foram
anotados.
Por fim, o gerente satisfeito, cheio de amabi- A: § ; Por fim
lidade de garçom, concluiu: [s.v.]
– Ótimo. A senhora pagará o prêmio daqui a
trinta dias. Pessoalmente trarei a apólice. Bagatela...
mais vale o futuro.
– Traga somente para mim. Não precisa
mostrar ao meu marido.
– Vamos ver.
O agente despediu-se. Flertiu-se exagerada-
mente em sinal de respeito e saiu.
Dona Helena foi ao quarto. Exultava de ale-
gria. A educação de Rose estava garantida.
A boneca ainda tomava sol. Seus cabelos de
milho eram mortos e nos olhos havia uma expres-
são de resina. Mesmo assim, a fazendeira a amava e A: Mesmo
até sentia calor nos cabelos louros da filha. assim [s.v.]

| 142
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

XXIX
João agora estava alegre. Ria por tudo. Botava
os meninos no colo. Chegou a trazer uns bombons
para casa. Sentia-se sadio. É que trabalhava de
enxada. Não havia perigo de faltar serviço. Dentro
em pouco tempo, compraria o facão. Tinha serviço A: Tinha tra-
para muito tempo. balho para
muito tempo.
Os agregados, um ao lado do outro, verga-
dos e arrastando as enxadas, capinavam o Roçado
Grande. Com este nome era conhecida a maior
roça nova da fazenda. Cem tarefas de cacaueiros
que cobriam lombadas, boqueirões e baixadas.
Os homens, cerca de vinte, formavam ligeiro círcu-
lo que avançava, limpando capebas e papuãs, dei-
xando os camaleões.
Naquele dia, o sol enxugara as chuvas e A: Naquele dia
despejava uma quentura de cobertor. As primei- [s.v.]; A: O or-
ras horas da manhã estavam frescas. Nos aceiros valho, pousa-
das roças, araquãs prediziam qualquer novidade. do nas folhas,
brincavam de
Mais longe, duas arapongas martelavam bigornas.
equilibristas;
O orvalho, encastoado nas folhas, brincava de
A: Aqui e ali
diamantes, mas caía no chão que o bebia sôfrego.
[s.v.] o ponto
As brilhantes folhas dos cacaueiros e os brotos roxos negro das
avermelhados mostravam a exuberância da terra. goivaras.;
Madeiras em carvão deitavam-se pelo solo. Aqui e A: Centenas
ali, o ponto negro das coivaras. Centenas de tocos de tocos mos-
lembravam a mata destruída: mucuris, virotes, paus travam a mata
d’alho, jequitibás e cedros. destruída:
A mandioca, que servia de sombra, estava A: A mandio-
ca [s.v.] que
serena. Sarará, ao lado de João, puxou conversa:
servia de som-
– Êta mandioca! Cada pé dá uma carga. bra [s.v.]

143 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Não é mentira, não.


– Dois anos e meio plantada. Se fosse fazer
farinha...
– Era farinha que nem ladrão acabava.
– Se lhe dessem, João, uma tarefa dessa roça, A: dessa roça
você queria? [s.v.]
– Ainda pergunta... Ia desmanchar em fari- A: Ainda per-
nha, beiju e crueira. Não me fale nisso, não. Ainda gunta. [c.p.];
mais agora que a farinha está por um absurdo. Ia desmanchar
em farinha
– O pau da mandioca dá pra fazer tábua, [s.v.] beiju e
de grossa. crueira.
– É mesmo.
– Parece que os pobres vão morrer de fome.
Nós vamos desaparecer. Como tudo vai, ninguém
resiste.
Sarará bateu o olho da enxada numa duas-
-cabeças, machucou bem as extremidades e ia
deixando-a, quando João aconselhou:
– Procura um toco, homem. A espinha disso A: – Procura
é pior que das outras. Dá isipra e em pouco tempo o um toco [s.v.]
ofendido está de canela esticada. É bicha traiçoeira. homem.
Não enxerga, mas, quando morde, só solta quando A: Não enxer-
ronca trovoada. ga, mas [s.v.]
quando morde
João deu numa raiz de mandioca. Cortou-a. [s.v.] só solta
Sentia-se até alegre com a exuberância da lavoura. A: Entusias-
Também ele plantara aquelas mandibas na lua nova mado [s.v.]
de março. Entusiasmado, falou ao companheiro: falou
– Olha como está isso. Eh! mandiocão do A: Não basta-
capeta! Ah! eu com uma tarefa dela. Não precisava va nem uma
nem uma tarefa. Só queria umas cargas para ver tarefa.; A: §

| 144
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

o resultado. Mas está vendo... está aguada, meio


podre. Esse aipinzão é assim. Dá muita sombra,
mas apodrece logo.
Em volta, os trabalhadores conversa-
vam, trocavam ideias. Ouviu-se ruído de avião.
Sarcasticamente alguém falou:
– Diabo! Mandei falar que não ia hoje e A: -Diabo!
aquele avião veio me buscar. Só botando aquele mandei falar;
chofer pra fora... chofre para
fora...
Como eram dois aparelhos, outro
acrescentou:
– Aquele é o meu.
Todos pararam, levantaram a cabeça e olha-
ram a máquina misteriosa.
O sol esquentava. Os homens começavam a
suar em bagas. Alguns, aferroados pela carne salga-
da que haviam comido pela manhã, procuravam o
carote d’água, engolindo grandes tragos. O da ponta
do eito pilheriou:
– Comeu sapo?
– Quem tem o que comer é assim. Você já viu
quem come jaca ter sede?
O mormaço começava a comprimir. Sarará
voltou à conversa, deixando o avião que desapare-
cia no azul.
– Sabe o que estão dizendo, João?
– Não.
– Que o patrão proibiu de arrancar essas
mandiocas. Diz que é para adubar a terra. Cacau
gosta de comida gorda.

145 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Num terrão desse não precisa de nada.


Antes desse esse mundo de mandioca pra gente A: mandioca
fazer farinha. Dava mais resultado. para a gente

– É mais fácil galinha nascer dentes e boi


voar.
– Por isso cacau não bota como antigamente.
Por aí estão botando estrume de boi na terra que
Deus fez. Daí o castigo.
– Pois é...
– Nasci os dentes vendo cacau. A roça de
meu pai era na banda de lá da fazenda. Dessa fa-
zenda onde estamos. Nem gosto de me lembrar.
A gente podia estar hoje bem, com sua roupa,
seu bom sapato, seu chapéu. Mas Deus não quis.
É assim mesmo.
– Depois da sorte não querer, João, é amarrar
por fora. E por que seu pai vendeu?
– Vendeu nada, homem, o pai do doutor
Jorge era muito sagaz. Tanto fez que terminou fi-
cando com a posse. Agora você vê: tinha mais de
quarenta tarefas de cacau botando os primeiros
cocos. É aquela Roça da Pedra, sabe?
– Que começa no brejo, onde mora Ramiro?
– Isso mesmo. Pois bem: de tanto meu pai
se encafifar com isso, perdeu o juízo. O certo é que
ficou abestalhado pelas estradas, até que apareceu
boiando no Poço Fundo.
– Se afogou?
– Quem sabe? Uns dizem que foi gente
grande que mandou matar.

| 146
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– O pai do doutor Jorge? O finado senhor


Jerônimo?
João não gostava de lembrar-se da ligação
entre o senhor Jerônimo e a morte do seu pai.
Preferia encobrir o passado. Se tivesse a certeza
de tudo, não ficaria naquela fazenda. Também,
para onde iria com tantos filhos? Pelo menos
ali estava agasalhado. E ninguém sabia do caso.
Se os companheiros descobrissem teriam até
nojo dele. Mas não possuía coragem de procu-
rar outro serviço. Nascera ali pertinho e se lem-
brava vagamente do que acontecera. Até, quem
sabe, o finado senhor Jerônimo podia estar certo.
Ouvira falar na Justiça e, ela mesma, em carne e
osso, estivera em sua casa. Recordava-se do dia
em que foi passada a escritura. De como seu pai
ficara aniquilado depois. Da choradeira. Do dia
da muda: sua mãe arrumando os breguessos,
chorando, pedindo paciência e os agregados do
senhor Jerônimo já com a bagagem dentro de
casa como se empurrassem. De tudo se lembrava.
No entanto não adiantava pensar naquilo. Senhor
Jerônimo podia não ter culpa. O povo conversa
muito.
Até disseram que o curador pusera “cinco
salomão” em cada canto da roça. Feitiço perigoso.
Mas tudo podia ser mentira.
– A gente hoje era para ser rico com aquele A: §
pedaço de terra.
– Mas quem nasce pra cachorro morre na
cinza, disse Sarará.

147 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– É a sina. Cada um traz a sua. Meus irmãos


andam por aí. Um foi para São Paulo, sentou praça
na polícia. Hoje é gente grande. Dizem que é cabo.
– Sim, senhor, cabo!
– Eu bem que podia pedir uma ajuda a ele,
mas... O ano... Três agora na fogueira... Eu recebi
carta dele, mandando me chamar.
– Por que você não foi?
– Estou velho, carregado de filhos. Que vou A: – Estou
fazer lá? velho [s.v.]
– Eu também tenho vontade de ir, mas não
tenho nenhum documento.
Sarará, curioso, aproveitou a ausência do
gerente, e o fato de encontrar-se no rego do cór-
rego, somente com João, longe dos demais, voltou
ao caso:
– Não sei... se afogassem meu pai...
– Às vezes não fazia nada...
– É... mas...
– Eu fiquei pequeno. Se fosse hoje a coisa não
ficava assim.
– E a roça não tem jeito de você pegar uma
questão?
– Sei lá...
Ambos se certificaram de que ninguém os
ouvia e continuaram:
– Nada, homem, você sabe como é a justiça...
– Depois não tem dinheiro para advogado
comer.

| 148
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– E quem já viu pobre ganhar questão com


rico?
– Dá vontade de tocar fogo numa boca de
verão dessa, não é, João? Chegar o tição na roça... B: dessa, não é
– Dá, mas que adianta? A gente tem mulher [s.v.]
e filhos. Quem tem essa obrigação não é mais
homem. Se fosse o meu tempo...
– Olha, João, como está essa mandioca! A: Olha [s.v.]
Bicho está comendo. Quase toda podre.
– Eu passo tantos dias sem um caroço de fa-
rinha em casa! – suspirou João. B: casa! [s.t.]

– E aqui é a terra que come tudo...


– Isso é fim de mundo.
– É mesmo.
– Se eu tivesse um pedaço dessa roça!
Bastava uma tira, um cantinho de nada. Bem que
eu comprava meu facão. Porque aí eu não precisava
comprar farinha na feira. Nem é bom pensar nisso.
– Estão dizendo por aí que o governo vai
mudar tudo: quem é pobre fica rico e quem é rico
fica pobre.
– Lá do Sul encontrei um sujeito que veio de
São Paulo. Conversa uma porção de ciência. Sabia
ler e escrever como um tabelião.
– E era alugado?
– Trabalhava no meio da gente. Reunia a
turma no terreiro e lá vai prosa. Dizia que os ricos
roubam o trabalho do pobre. Que, se nós enten-
dêssemos, poderíamos também apanhar cacau e
vender.

149 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Bem pensado... quem rouba de ladrão tem


cem anos de perdão.
– Que, se nosso serviço vale cinquenta cru- A: Que [s.v.]
zeiros, o patrão só paga vinte e cinco. Portanto se nosso ser-
o patrão roubou vinte e cinco. Portanto a gente viço; A: Por-
tanto, o patrão
podia apanhar esses vinte e cinco que o patrão
[c.v.]
nos roubou.
– É...
– Isso não é roubo. É defesa. Mário era o
nome dele. Ainda dizia que se o rico tem direito
de roubar da gente nós também podíamos fazer o
mesmo com ele.
– Nós precisamos é da ajuda do Governo.
Isso sim.
– Mas só teremos a ajuda quando o Governo
for da gente pobre, igual a nós. O rico é pelo rico.
Cada um puxa brasa para sua sardinha.
As enxadas corriam a terra negra. Como o A: – As enxa-
sol já subia a ladeira do meio-dia, o calor era de das
sufocar. Nuvens muito escuras, como blocos de
chumbo sujo, deslocavam-se circulando a boca do A: a boca do
chovedoiro. No canto do eito, Sarará batia o pé com chovedor;
força, livrando-se das formigas xixinam. A: No canto
do eito [s.v.]
João fazia as contas do saldo que possuía.
Bem verdade que só faltavam vinte cruzeiros.
Justamente agora estavam dizendo que facão tinha
subido muito. Ainda sábado fora à venda e pergun-
tara o preço. Realmente estavam querendo mais.
Se naquele dia tivesse o dinheiro todo, estaria agora
com o seu instrumento. Mas faria toda espécie de
economia. As roupas estavam em tiras...

| 150
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Já não aguentava mais remendos. Os meni-


nos andavam nus e Isabel nem podia sair da chou-
pana. Mas compraria o facão banda-lisa. Desse no
que desse. Seu língua de teiú era mesmo que um
punhal. Nem servia na roçagem. Senhor Antônio
tinha razão.

XXX
Doutor Jorge resolveu não viajar para a fa-
zenda. Certamente lá tudo corria bem. Já fora duas
vezes durante aquele ano. As entregas estavam
sendo feitas regularmente. Precisava descansar. A: Seria possí-
Seria possível, mal chagado do Rio, e já ia viajar vel [s.v.];
novamente? Necessitava de férias. Iria ao comércio A: mal che-
naquele dia. gando do Rio
[s.v.]
E foi.
Encontrou o coronel Duarte, deu-lhe bom
dia, perguntou pelas chuvas no interior, pelo preço
de cacau e fitou a pedra que estava no dedo do
fazendeiro.
– Quer fazer o favor?...
O coronel compreendeu. Orgulhoso, ofere-
ceu-lhe ao anular da mão esquerda.
Doutor Jorge torceu a joia, jeitosamente.
Tirou-a. Em seguida, olhou-a bem demoradamente e: A: Em seguida
– Bem bonita. [s.v.]
– Às ordens, doutor. A: Ás ordens
[s.v.]
– Está em boas mãos.
– Muito obrigado.

151 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– O coronel não vende?


– Não, essa ficará para o inventário.
– Nem um bom preço?
– Não há dinheiro.
Intimamente o doutor julgava estar aborre-
cendo o coronel. Talvez até ofendendo-o. Ele não
negociava com joias e mesmo não precisava vender
o anel. Mas a ambição era mais forte. Novamente
veio a insistência:
– Abra preço, coronel!
– Você não pode ver brilhante. Acha pouco a
coleção que tem?
Por dentro, o cacauicultor saboreava o A: Por dentro
[s.v.]
prazer de aumentar a ambição do grande colecio-
nador de pedras. Se ele estava encantado com a
joia, é que ela valia mesmo um dinheirão. Disso já
sabia. Mas gostava de ser admirado. Nada mais o A: Mas gosta-
agradava que mostrar aquela preciosidade de seis va imenso ser
admirado.
quilates, rosa, fogoso. Por mais de uma vez doutor
Jorge mandara intermediário, mas agora não se
continha, fazia a proposta.
O bacharel não tirava os olhos da garra.
Aquele brilhante era mais bonito que todos os seus.
Rosa, só possuía um pequeno, cinquenta pontos.
Aquele sim, teria mais de cinco quilates. A: – Qual o
– Quantos quilates, coronel? tamanho,
Coronel?;
– Quase seis. Nos bons tempos, há mais de A: –Quase seis
quinze anos, me custou duzentos contos. Quando quilates.;
dinheiro era dinheiro. Equivale a setecentos hoje. A: Equivale a
– O senhor quer oitocentos mil cruzeiros? vinte mil hoje.

| 152
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– É muito dinheiro, mas deixe o meu A: – É muito


brilhante. dinheiro [s.v.]
– Se quer ... assino o cheque.
– Como está isso... dinheiro é mato.
– Sempre se arranja uns tostões...
– Não. E mais: esse (e apostou a joia) não é A: não é do
do Brasil, não. Tenho em casa a história dele. Tem Brasil [s.v.]
pedigree. não.

– Assim... virou boi de raça.


O coronel não compreendeu a pilhéria, pois
não entendia bem o significado da palavra que aca-
bara de empregar, e continuou:
– Pertenceu ao Rei. Essa garra foi confeccio-
nada em Portugal. A lapidação é espanhola. Lá se
sabe onde está o nariz. Aqui é como o senhor sabe:
não se esmeram na obra.
– Se o senhor quiser os oitocentos mil cruzei-
ros, insistiu o bacharel.
– Depois lhe respondo.
Também o fazendeiro cresceu a usura no di- A: Também
nheirão. O farol do Banco. Aquele depósito assim fazendeiro
inesperado, quando dias atrás tinha depositado crescera
igual quantia. Seria agradável chegar no banco e
com voz imperiosa gritar:
– Um depositozinho aí, menino. A: – Um de-
positozinho aí
– Quanto, coronel? [s.v.]
– Besteira... oitocentos mil cruzeiros. A: Quanto
Os bancários levantariam a cabeça, olhariam [s.v.] coronel?
admirados. O gerente ouviria o som agradável e
viria cumprimentar o depositante. Que era bom,

153 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

era. Agradável. Faria bem ao coração. Baixaria a


pressão de 25 para 23.
Doutor Jorge, que já estava com o anel no A: Doutor
dedo, tirou-o e ia entregando ao seu dono, quando Jorge [s.v.];
ele disse: A: ao seu dono
[s.v.]
– Não... leve. Fique com ele hoje para tomar
A: Caso con-
gosto. Se fizermos negócio, bem. Caso contrário, trário [s.v.]
somos os mesmos amigos.
O colecionador já antevia o negócio realiza-
do. Teria sua ambição satisfeita.
Coronel Duarte lembrou-se, no entanto, de que A: Coronel
ia falar com um deputado e gostaria de levar a pedra Duarte lem-
no dedo, a fim de impressioná-lo. Precipitara-se, pois. brou-se [s.v.]
no entanto
Agora não ficava decente pedir o anel. Porém tinha
que ia falar a
um jeito: iria falar com o parlamentar no dia se- um deputado
guinte, depois que recebesse a joia.
Apressadamente, o bacharel despediu-se, A: Apressada-
entrou no automóvel e rumou para casa. Antes, mente [s.v.]
porém, foi encontrar-se com Elisabete. Mostrou-lhe
o anel e os olhos dela cresceram de cobiça. Como
uma cobra, parecia que se enroscava toda no amante, A: envolvê-lo
querendo envolvê-lo naquela quentura luxuriosa. naquela quen-
No entanto, o colecionador tinha assunto mais sério tura luxuriosa
e dirigiu-se ao palacete. Iria comparar as pedras. de amor.
Trancar-se-ia por dentro do gabinete, acenderia todas
as lâmpadas do lustre e espalharia a coleção de bri-
lhantes em cima da mesa. No meio deles, colocaria o A: No meio
rosa de seis quilates. Brincaria com eles. Mudaria as deles [s.v.]
posições para variar os reflexos e ficaria até enterneci- A: enterneci-
do, mais satisfeito que se estivesse nos alvos lençóis de do, tão satis-
praia, tomando uísque com sua lourinha. feito como se
estivéssemos

| 154
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Dona Helena passeava pelo jardim com a


Rose Marie, quando o marido entrou. Como ele A: com a Rose
não quisesse esperar que a porta da frente fosse Marie [s.v.]
aberta, rodeou pelo fundo para andar depressa.
Venceu os degraus de dois em dois e entrou no
gabinete. Estantes compactas de livros forravam as
paredes. Nos quatro cantos, delgadas estatuetas de
bronze combinavam bem com a madeira escura dos
móveis. No centro, a mesa ampla, muito arruma- A: muito ar-
da, quase vazia, não fosse uma coruja do tamanho rumada quase
natural que pousava com os olhos esbugalhados vazia [s.v.];
sobre dois livros, também de bronze. Tapetes fofos A: dois livros
com grandes flores vermelhas amaciavam o piso, [s.v.] também
de bronze;
envernizado à punça. Clareando o aposento, cinco
A: o piso [s.v.];
janelas abriam-se para os jardins. Comunicando-se A: cortina por
com o resto da casa, uma porta de vidro, cortina dentro, [c.v.]
por dentro. Igual às que vestiam as janelas.
O bacharel fechou a porta e, sobre o divã, A: sobre o divã
que estava ao lado, espalhou uma toalha alva. Tirou [s.v.]
o paletó, o sapato, a gravata, arregaçou as mangas
e começou a distribuir, em círculos, os brilhantes.
Nas curvas de fora estavam os mosquitos, em se-
guida vinham os maiores que os primeiros e assim
foi até o centro, onde colocou a pedra do coronel.
Deslumbrante! Valia bem os oitocentos mil. Depois,
mesmo que parecesse extravagância, não era. Tudo A: mesmo
estava valorizando dia para dia. Adquirindo hoje o que parecesse
extravagância
brilhante, daí a meses valia o duplo. Não era mesmo
[s.v.]; A: Não
mal emprego de capital. Quanto valeria sua coleção? era mesmo,
– Uma fortuna, balbuciou. [c.v.]
Logo não era desperdício nenhum. Seria um A: Logo não
negócio como outro qualquer. Depois, juntar-se-ia era esperdício

155 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

o útil ao agradável. Se fosse extravagância, bem. nenhum.; Se


Mas nada como se comprar e esperar a valorização. fosse extrava-
As joias arrumadas piscavam cores diferentes em gância [s.v.]
bem.;
penetrantes setas de luz.
A: cores dife-
– Uma fortuna! disse. Amanhã irei bem cedo rentes [s.v.]
comprar o anel. O senhor Duarte certamente ven-
A: Uma fortu-
derá. Ainda mais agora que ele está preocupado em na! pensou.
construir prédio de apartamentos.
A: Durante o
Durante o resto do dia, a lembrança da pedra resto do dia,
não deixou o doutor Jorge. A cada momento ele se [c.v.]
recordava da compra. Não foi mais à rua. Deitou-se A: Deitou-se
no gabinete, de pernas abertas, e, pela janela, ficou no gabinete,
olhando uma nesga de nuvem cinza que andava no pernas abertas
campo azul. Na realidade, de nada tomava conhe- [s.v.];
cimento. Por dentro enxergava o anel, a delícia de A: Na realida-
adquiri-lo, a alegria de satisfazer aquele desejo que de [s.v.]
cresceu de todo quando enxergou a joia no dedo
nodoso do coronel.
No dia imediato, acordou antes da hora A: No dia ime-
costumeira, barbeou-se, correu ao jardim olhando diato [s.v.]
o relógio a cada momento. Ainda era muito cedo.
Somente às nove horas o fazendeiro estaria na Ilha
dos Ratos. Deu ordens displicentes ao jardineiro: A: Já botei
remédio [s.v.]
– Cuidado com a formiga, olhe que ela está
cortando a mangueira. A: Quando
pediu o café
– Já botei remédio, doutor. Estão mortas... [s.v.]
Quando pediu o café, o relógio da sala deu A: Trans-
oito horas. Quanto mais o tempo passava mais au- bordava. No
mentava a agitação. Aquele desejo, crescido duran- entanto, havia
te alguns anos, já não se continha. Transbordava. necessidade
Precisava mostrar pouco interesse ou, pelo menos, de demonstrar
pouco; aquela

| 156
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

esconder a ânsia que saía com as palavras, pelos ânsia; que o


olhos, pela avidez com que se referia ao negócio. negócio.

XXXI
O serviço da enxada já ia bem adianta- A: novos esta-
vam submer-
do quando chegaram os aguaceiros de São José.
sos, amarele-
O riacho inchou e as baixas ficaram alagadas. cendo;
Cacaueiros novos estavam submersos, amarelando A: Possivel-
as folhas, embebedando-se. Possivelmente, quando mente [s.v.];
as águas baixassem, estariam amarrotados e mortos. A: as águas
Daí senhor Antônio ter saído de casa em casa: baixassem
[s.v.]
– Amanhã todo mundo no brejo. Precisamos
abrir valetões para escoar as águas.
A: ingiados de
Na segunda-feira lá foram os homens, nus da frio.
cintura para cima, calças em tiras, engelhados de frio. A: Os pés e as
João tinha o rosto contraído e a pele parecia de cadá- mãos encolhi-
ver. Os pés e as mãos encolhidos já estavam arroxea- das já estavam
das. Mesmo assim, batia a enxada no barro de telha. arroxeados.;
A: Mesmo
As chuvas não esbarravam e, quando em
assim [s.v.]
quando, surgia um olho de sol, quente como brasa,
gostoso, mas que fazia os homens arrepiarem-se.
Não raro, o gerente saía para tomar um trago
e avisava:
– Vou ali ver um serviço e volto já.
Às vezes demorava, mas o “volto já” era
chamando atenção para que os homens estivessem
atentos ao trabalho.
A ausência afrouxava um pouco a tensão
nervosa dos trabalhadores e a labuta diminuía de
intensidade. Soltavam a língua, então:

157 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Eh! diabo, aqui a gente leva o ouro, mas A: – Eh! diabo,


deixa o couro. aqui a gente
leva o ouro
O outro acrescentava: [s.v.]
– Nunca vi tanto espinho. Por aqui deve
haver todo espinho de cobra do Estado. O ano pas-
sado, na roçagem, a gente matava quarenta e tantas
cobras por dia.
Um mais medroso reclamou:
– Não fale no nome de bicho do chão, agora,
não, homem.
– Cuidado, Sarará, você todo dia topa cobra!
As enxadetas tiravam os bolos de barro com-
pacto, claro e meio azulado, espanando lama que
molhava mais ainda os agregados. Não fosse o es- A: poderia
forço físico já não poderiam mais se mexer, tal era mais se mexer
[s.v.]
o frio.
Das cajazeiras e mucuris caíam grossos
pingos de água que não deixavam a chuva ser
interrompida.
O Sarará sentenciou:
– Se a gente encontrasse uma pura, bem que A: uma pura
era bom. [s.v.]
– Não fale, não. Chega a me dar uma cosca
na língua. Um meio copo de cana agora valia mais
que um prato de feijão com toucinho.
João sentia as forças esgotarem-se.
Gradativamente, batia o ferro com menos intensi-
dade. Felizmente já tinha aberto uns cem metros de
valeta, e a água corria livre, barrenta, levando uns
mil detritos. Talvez no fim da semana já estivesse

| 158
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

terminado o trabalho. Se ao menos começasse mais


tarde e deixasse mais cedo, seria melhor. Mas o
horário continuava o mesmo. Cedo, mal a manhã
escapulia da escuridão, já o búzio tocava. Parece até
que, devido à pressa em salvar as plantações, o ser-
viço começava mais cedo. À tarde, somente quando
a noite vinha como pano negro ensopado, é que o
horário acabava. Os homens deixavam os pântanos
de braços cruzados, contraídos, cabeça enterrada
no pescoço como se procurassem um pouco de
quentura. Todos iam calados, passadas incertas,
em fila. Desprendiam aquele vapor de bicho suado.
Ao chegarem em casa, tiravam os trapos, punham-
-nos a secar e fechavam-se no quarto.
No dia seguinte, a roupa cheirava a fumaça
mas estava enxuta. Novamente enterravam o pé na
lama e seguiam para o brejo.
Na sexta-feira, as valetas já estavam cavadas
e outras menores, como nervuras, dirigiam-se para
elas. Alguns cacaueiros tinham resistido às águas,
mas estavam pardos, friorentos também. Outros,
mortos, com o talo triste, restavam ao pé da estaca de
âmago que indicava o lugar da cova para a replanta.
Até o meio-dia os homens trabalhavam como
antes. Depois, o próprio senhor Antônio notou
cansaço em todos e não podia encorajá-los com
simples esporros. O serviço já chegara ao fim. Bem
verdade que agora estavam na parte pior. Os agre-
gados teriam que trabalhar à margem do ribeirão
cheio, com água até a cintura. Os que apanhavam
baronesas e paus podres do leito estavam somente
com a cabeça e os braços do lado de fora. Por isso

159 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

os mais doentes tinham movimentos lerdos. Alguns


deixaram de ir ao trabalho. Batiam os dentes em A: Batiam os
casa, na tarimba, queimando de febre, tomando chá dentes em casa
de limão com escalda-pés de pitanga. [s.v.]
João bem que tivera vontade de não ir. Mas
como comprar o facão? Estava com o corpo quente,
a testa sovelando. Não perderia o dia. Haveria de
mostrar quem era ele. Não viam que seu facão era
gasto, língua de teiú, e que não ajudava?
À tarde, como que as carnes ficaram mur-
chas, duras como gelo. As chuvas continuavam in-
sistentes, agravadas com a lama e o serviço dentro
do charco. Os cacaueiros não podiam morrer.
Precisavam ser salvos, custasse o que custasse.
Onde já se viu agregado deixar de trabalhar por
causa de chuva? Ainda mais quando estava em jogo
grande parte da roça nova, de um ano, bonita de
fazer gosto, toda pegada!
Senhor Antônio verificou que seria em vão
ficar olhando os homens, já que eles não obede-
ciam aos próprios braços. Como que entorpecidos,
movimentavam-se com dificuldade. Até Joaquim,
preto, forte, moço, cheio de bolas nas carnes rígi-
das, andava se escorando, medroso de entrar na
água para apanhar os galhos de ingá.
Só havia um recurso, pois, pensou o gerente.
Daí ter ele ordenado:
– Você aí, seu novato, vá lá em casa e diga a
Teresa que mande cinco garrafas de cachaça.
Como que os corpos se animaram. Alguém
gritou:

| 160
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Olé... agora a coisa vai.


– É... aqui só com esquenta-peito. A coisa
está braba, disse outro.
A atonia transformou-se em alegria e, quando
a pinga chegou, cada um queria beber um copo
pela metade. O administrador foi regrando, até que
as garrafas terminaram sem satisfazer a todos. Seis
outras vieram e foram engolidas.
– Ó, lá em casa! Assim, assim. Aqui filho A: Ólá em
chora e mãe não ouve. casa! Assim,
sim.
João sentiu o álcool enxugando as entranhas,
tangendo o frio. Reanimou-se, brilhou os olhos,
alegrou-se e meteu a enxadeta com vontade. Os que
apanhavam as baronesas jogavam-se n’água como
se fossem tomar banho. Um tirou coco e todos,
num ruído profundo, cavernoso, responderam:
Ôlê... Ôlê... Ôlê bambu...
Fi de nego é urubu...
Já estavam no meio da tarde, quando nova- A: Já estavam
mente as forças faltaram, os homens ficaram mais no meio da
cansados que antes e tremiam como vara verde. tarde [s.v.]
quando
Novamente senhor Antônio trouxe bebida e distri-
buiu. Já agora a reação foi mais fraca.
João tinha as feições abatidas, qualquer coisa
de bruto e idiota saía de seus olhos parados, rasos
como uma poça. As roupas, molhadas, prendiam-se
ao corpo, esfriando-o mais. Não era possível fazer
um cigarro. A mortalha esfarelava e o fósforo não
riscava. No fim do dia, com as bebidas sucessivas,
à medida que os corpos fraquejavam, ele e os com-
panheiros estavam aniquilados, pareciam ter saído

161 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

de uma grande doença ou de um martírio atroz.


Mais magros, flácidos e indolentes. Arrastavam
os pés como sonâmbulos. O casebre esperava-os
cheios de sofrimento. Sendo sexta-feira, somente
os solteiros teriam um pouco de farinha.
Quando João chegou em casa parecia ter as
pernas quebradas. Logo no batente da porta, sen-
tou-se. A chuva continuava teimosa. Estiletes frios
caíam límpidos, penetrantes, como se fossem furar
a pele. Sobre o fogão, uma panela de barro fervia
qualquer coisa. Lá no fundo um ovo de Bordada
cozinhava. Toda a família iria comer um pedaço
dele. Depois engoliriam um chá amargo de folhas
de laranja. E a noite seria comprida, enorme, noite
que nunca mais acabava.
No íntimo, João estava satisfeito. A fome cor- A: No íntimo
tava-lhe por dentro, porém tinha ganho um pedaço [s.v]
do facão. Com toda aquela umidade que vinha no
chão, e parecia descer da cobertura de palha, e mais
o cansaço que esmagava os nervos, sentia qualquer
coisa de felicidade. Era como se fosse uma pequena
luz, morna e clara, na escuridão do seu ser.

XXXII
Logo após o café, o bacharel ligou o automó- A: Logo após
vel. Esquentou a máquina e partiu para a grande o café [s.v.];
missão. Aquele dia era de muita importância para automóvel, e
seu futuro. Decidiria a realização de um ideal. [c.v.]
A aquisição do brilhante rosa sempre fora um
sonho aparentemente irrealizável. Agora, no entan-
to, tudo fazia crer na possibilidade de comprá-lo.

| 162
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Daria até os novecentos mil cruzeiros. Por que não?


Para que aquele dinheiro embolarando nos bancos,
rendendo juros miúdos, se a pedra poderia valori-
zar-se mais? Depois, completaria a coleção. Seria o
centro dos círculos ou o ápice da pirâmide, quando A: ápice da
juntasse todas as joias sobre o veludo negro. Sim, pirâmide [s.v.]
porque, logo que o adquirisse, iria mandar fazer
uma mesa forrada com veludo negro a fim de ar-
rumar as preciosidades. Ninguém sabia a luta que
dava para adquiri-las. Certa feita, até fizera econo-
mia para ser dono de um brilhante azul. Muita luta,
pois. Trabalheira infernal. Viajou muito. Recebia
um telegrama do Mato Grosso, informando uma A: “Jogava-se
pedra. Jogava-se para Cuiabá. Chegou a tomar para Cuiabá,
dinheiro emprestado aos bancos. Fez penhor de a fim de com-
cacau. E obra tão meritória não era ajudada pelo pra-la; A: aos
governo. Quem teria uma coleção daquela? Não bancos. E obra
tão meritória
honraria, mesmo, qualquer país? Sim, trabalho
não
assim era digno de ajuda oficial. Certa feita quisera
A: Chegara a
organizar a “Sociedade dos Admiradores das Pedras copiar
Preciosas”. Chegou a copiar os estatutos de uma
A: E [s.v.] não
outra, modificando as partes especializadas. Mas fosse aquele
tudo em vão. Só conseguira um sócio. Espalhou Major da
circulares convidando, mostrando vantagens, esti- Aviação [s.v.];
mulando o bom gosto. E, não fosse aquele major da A: Pelo cami-
aviação, teria ficado sócio único. Pela falta de amor nho [s.v.] o
às coisas belas e edificantes é que a Sociedade não colecionador
foi adiante. Pelo caminho, o colecionador foi pen- vinha pen-
sando naquilo
sando naquilo tudo.
tudo.
A Ilha dos Ratos era um trecho de cem A: arborizada
metros da rua do comércio, ao pé de casarões an- mungubeiras
tigos, arborizada com mungubeiras, sob as quais [s.v.]

163 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

ficaram dezenas de carros para negócio: desde o


último modelo de luxo ao rabo quente mais fuçado. A: se compra-
Ali se comprava cacau, café, gado, casas, terrenos, vam; A: que se
pedras, automóveis e tudo o mais que se pode co- pode comprar
mercializar. Até mulher encomendava-se. e vender.
Os fazendeiros
Os fazendeiros ricos, que moravam em
ricos [s.v.];
Salvador, e não tinham o que fazer, iam para ali A: alfinete de
todos os dias. Vestiam-se com as melhores roupas, gravata impo-
chapéu caro, sapato espelhado, alfinetes de gravata luto
impolutos e o caroço de milho no dedo, que indicava
a hierarquia da fortuna. Agiam ali, principalmente,
os marreteiros. Indivíduos bem apresentados, boa
prosa, sabidos como padre velho, e que trocavam
tudo. De preferência joias e automóveis. Alguns
também negociavam com bebidas, perfumes,
roupas e o mais que vinha do cais, pertinho dali, A: inclusive
por baixo do pano. ao Brasil. Na
esquina próxi-
Defronte àquele lufa-lufa de feira, de palavras ma a Bolsa de
soltas saídas de carros em experiência, contrastan- Mercadorias.
do com os prédios descascados, estavam os andares A: Quase to-
das construções moderníssimas, em balanços arro- dos aqueles
jados, cujos térreos serviam aos bancos inclusive ao comerciantes
do Brasil. não escritório;
Marretavam.
Quase todos não tinham escritório. Nem
O certo é que
profissão definida. Marretavam. Eram encontrados eram encon-
todos os dias, sem exceção, e a toda hora, à sombra, trados todos,
às vezes, da mesma árvore ou tomando café no sem exceção, e
pequeno bar que dividia a Ilha dos Ratos em duas a toda hora;
partes. Aqui e ali, um fazendeiro espigado, posudo, A: mesma
olhar dominador. De quando em vez, era assediado árvore [c.v.];
por um marreteiro que lhe incensava os bolsos, ofe- A: De quando
recia um automóvel, uma pedra ou caixa de uísque. em vez [s.v.];

| 164
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Quando doutor Jorge chegou, viu o coronel A: Jorge che-


Duarte entrando no carro de Bidu. Pressuroso, deu gou [s.v];
com a mão. O negociante de automóvel parou. E como A: Pressuroso
se tivesse lembrado de alguma providência, saiu apres- [s.v.]
sado, arranjou alguns papéis no café e veio dizendo:
– Não quero sujar os tapetes. Isto é coisa fina.
Com muita cortesia levantou os pés do co-
ronel e depois os do doutor, que já se encontrava
no interior do carro, fazendo-os descansar sobre os
papéis. Tudo manha a fim de valorizar aquele auto-
móvel e mais ainda o que ia mostrar.
O coronel perguntou:
– O carro é esse, Bidu? A: O carro
é esse [s.v.]
– Ora, coronel, isso é carro para o senhor?!
Bidu?
O fazendeiro ficou satisfeito com a resposta
e insistiu:
– Mas este carro é do ano. A: Mas é desse
ano.
– Sim, mas não é superluxo. É carro de
viagem, de operário americano. O senhor sabe que
o Chevrolet não é linha. Agora o senhor vai ver o
que é beleza.
Dobraram a esquina. Doutor Jorge apertava o A: Dobraram
brilhante no bolsinho da calça. Não prestava muita uma esquina;
A: Coronel
atenção ao que diziam. O coronel, por treita, nada
[s.v.]
dissera sobre a pedra. Ambos queriam mostrar-se
desinteressados.
A poucos metros o automóvel parou atrás do
outro, cinzento, estirado em linhas modernas.
– Aqui está, coronel. Foi a coisa mais bonita
que já vi nesse mundo. Zero quilômetro. Oitenta

165 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

metros de rodado para dizer a verdade: do cais para


aqui. Um sonho.
O fazendeiro, por fora do vidro, olhou os
coxins claros, a direção e a quilometragem.
O vendedor elogiava:
– Está cheirando a novo. É um caso de polícia.
– Qual é o preço, Bidu?
– Ora, coronel, com o senhor se acerta tudo.
Gostou?... É só dizer.
– Bom... todo mundo gosta, disse ele com
risozinho de interesse.
– Então o carro é seu. As condições nós acer-
tamos. O senhor é quem ordena.
– Que negócio você faz pelo meu?
– Já disse que é o senhor quem fala. Isso é
carro para o senhor. Superluxo. Carro de brin- A: Crisler
quedo de Nova Iorque. Aqui não tem nenhum A: O fazendei-
igual. É o único. Chrysler... só o nome dispensa ro excitava-se
comentários. como a cadela
O fazendeiro excitava-se. Vistas gulosas aca- que vê pedaço
riciavam o automóvel. A vaidade enchia-lhe a alma. de carne san-
grenta ante
“Somente eu terei um carro desse aqui. Ninguém
seus olhos.
mais. Poderia tentar aquela garota do 98B”. Vistas
– É um caso... repetia o vendedor, atiçando A: – E um
a cobiça do ricaço. É um caso... já disse. Olhe aqui. caso... respeita
Não quero nem abrir a porta. o vendedor
– Também não precisa. Está vendo. [s.v.]
A: Proposita-
Propositadamente, o vendedor encostou-se
damente [s.v.]
a um lado, escondendo ligeiro arranhão que feria o vendedor
a pintura.

| 166
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Tenho visto muita coisa bonita... mas como


este carro...
– É... que negócio você faz?
– O carro do senhor é do ano passado, não é?
Com tais palavras Bidu começou a desvalori-
zar o automóvel do fazendeiro.
– Carro sem linha... Chevrolet é como o
senhor sabe... Não é isto? Olhem bem...
– Diz o tabaréu, Bidu, que pedir e oferecer
não cabe agravo.
– Pois é...
Doutor Jorge ao lado ouvia as entabulações.
Nada dizia. Impacientava-se com a demora.
– Eu volto duzentos mil cruzeiros.
– Oh! coronel, tenha pena do seu criado, res-
pondeu Bidu já considerando o negócio feito. Sabia
ele que o carro do fazendeiro estava novo. Mal saía
de casa para ir ao comércio e jamais fora ao interior.
No entanto, já que ele propusera duzentos mil, pe-
diria mais:
– Trezentos mil, coronel...
– Duzentos, agora... na bufunfa. A: – Duzentos,
quer, agora.
Mas a cobiça enchia os olhos do comprador.
A: Mas a
Por eles Bidu lia o que se passava no interior. cobiça enchia
– Menos de trezentos, coronel, nem um os olhos do
tostão. Duzentos e noventa e nove mil novecentos fazendeiro.
e noventa e nove cruzeiros, eu não faço. Tenha um
pouco de paciência. O senhor conhece automóvel
que eu sei.
– Eu?... fez modesto o fazendeiro.

167 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Conhece... e muito. Mais que muita gente


que vende carro por aí.
– Duzentos e cinquenta, vai?
– Olhe, coronel, por menos do que eu pedi, A: Olhe [s.v.]
nem um níquel. Ainda ontem achei oitocentos e Coronel, por
setenta mil cruzeiros, na ficha. Nem olhei. menos do que
eu pedi [s.v.]
– A volta também é a dinheiro.
– Eu sei. O senhor vai precisar me dever
ninharia?
– Se quer os duzentos e cinquenta de volta é
meu.
O senhor sabe, se eu pudesse. Custou a mim
oitocentos e oitenta mil cruzeiros. Estou dando
valor no carro do senhor em seiscentos mil, com
trezentos de volta, novecentos. Ganho, portanto,
vinte mil cruzeiros. Negócio com homem como o
senhor a gente fala às claras. Não é preciso esconder
nada. O senhor não vai dizer que devo ficar sem
ganhar.
– Não... de modo algum. Aranha come do
que tece.
– Não tenho cacau. Minha roça é aqui.
Doutor Jorge estava cada vez mais impacien-
te. O diabo daquele negócio vinha atrapalhar o seu.
Justamente o mais importante.
Vamos embora, coronel, o senhor pensa, A: Se ele fizer
se resolver me dê a resposta até o meio-dia. Vou a compra dei-
xo para dar a
mostrar o automóvel a um industrial de São
resposta defi-
Paulo que está aqui de passagem. Se ele oferecer nitiva depois
o valor, deixo para dar a resposta definitiva depois que o senhor

| 168
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

que ouvir o senhor. Assim o coronel ficava mais me responder.;


interessado, julgava Bidu, que olhando o relógio, A: olhando o
arrematou: relógio, disse;
A: marcou
– Dez horas. Ele marcou comigo agora comigo agora,
defronte ao Banco do Brasil. Até logo, coronel. [c.v.]
Dê licença.
– Então depois respondo.
– Certo. Só faço negócio depois de sua A: Só faço
resposta. negócio de-
pois que ouvir
– Muito obrigado pela atenção. o senhor.
Bidu saiu apressado, deixando o carro que o
havia levado, ali mesmo.
Doutor Jorge encostou-se a uma árvore e
comentou:
– Belo carro...
– Mas uma fortuna... Quem diria que um
carro ia dar esse preção.
– Preço de uma fazenda de cacau.
– Falar nisso, ontem eu lhe dei o anel, não foi?
– Foi, sim senhor. Está feito o negócio pelos
oitocentos mil?
– Ah doutor... O senhor conhece um brilhan-
te azeite-doce que o João Gouveia tem?
– Conheço, foi meu.
– Pois... menos que o meu, quilate e meio a
menos. Deve ter uns quatro quilates. Sabe quanto
ele pede?
– Não.
– Ontem é que pude ver o valor do meu.

169 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Eu vendi a ele por trezentos e vinte mil


cruzeiros porque tinha um igual em tamanho e cor,
e fiquei com o mais fogoso.
– O meu na vista do dele vale dez vezes mais,
não é?
– Bom... o do senhor é mais raro, mas o bri-
lhante dele é um espetáculo.
Intimamente doutor Jorge sentia a oportuni-
dade escapar. Antevia, por outro lado, a treita do
coronel. Se ele não quisesse vender teria dito que
não era para negócio. Aquele arrodeio todo signifi-
cava pedir um preço maior.
– Ademais...
Doutor Jorge não se conteve:
– Dou-lhe novecentos mil. Agora diga que
não vende.
– É dinheiro muito, doutor. Mas o senhor A: – É dinheiro
sabe, vou ficar sem o brilhante que enche as muito [s.v.]
medidas.
Como todo fazendeiro rico que vinha do A: citadinhos.
Deturpado já
interior, o coronel aprendia com muita facilidade
se vê.
o modo dos citadinos. Assim é que, logo ali, empre-
gou as expressões do vendedor de automóveis:
– Aquilo é brilhante para o senhor que sabe
o que é bom. Ninguém aqui na Bahia possui joia
igual. Nem aqui, nem no Brasil inteiro. É uma rari-
dade. Aquele brilhante é um caso.
– Sim, coronel, mas novecentos mil, são dois A: -Sim [s.v.]
casos, pilheriou o bacharel numa tirada de muito Coronel,
espírito.

| 170
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Esses advogados... Ô bicho danado. Só


vivem para derrubar a gente.
– Está feito o negócio, afirmou o doutor.
– Não... se fosse possível estava em suas
mãos.
– Mas, coronel...
– Olhe... para não ter conversa, porque é A: ... gente
para o senhor... gente nossa amiga. Porque é para nossa, [c.v.]
amiga.
o senhor...
– Diga...
– Um milhão e meio.
– Espere aí, coronel... estou fora. Vamos
tomar um cafezinho para distrair as ideias. Tome
aqui seu anel.
Foi com pesar que o doutor Jorge estendeu A: doutor
a mão, entregando a joia. Como que um pedaço Jorge estendeu
dele mesmo saía daquela pedra que fora sua, pelo a mão [s.v.]
menos, vinte e quatro horas.
No café, trocaram ideias, mas o brilhante
não foi vendido. O coronel falou de sua diabe-
te, por isso não podia tomar café com açúcar.
Chamou a atenção do doutor para a barriga que
estava crescendo, poderia ser o começo da doença.
Disse que era mais entendido naqueles assuntos
do que muito médico especialista. Que fazia, ele A: Que fazia
mesmo, os exames de urina e, pelo pulso, conhe- ele mesmo
cia o estado da tensão. O bacharel sentiu certo [s.v.]
ódio do fazendeiro e, ao despedir-se, monologou, A: e [s.v.]; ao
pouco adiante: despedir-se
[s.v.]
– Usurário!

171 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Por outro lado o coronel armava a esparrela.


Fazia, por meios diferentes, aquilo que Bidu fez.
Espicaçava o desejo.

XXXIII
João teve vontade de trabalhar na semana
santa. Mas temeu o castigo. Só ganhou dois dias. A: Mas temeu
Melhor do que ser castigado por Deus. Bem sabia o castigo. Por
que o vaqueiro do outro lado do rio teimara em isso só ganhou
tirar leite na sexta-feira maior e, ao puxar as tetas da A: Sexta-Feira
vaca, só saiu sangue. E dizia-se que era o sangue do Maior e [s.v.];
tetas, só saiu
Nosso Senhor Jesus Cristo. O melhor era guardar os
[c.v.]
dias do sofrimento do Senhor.
Naquela tarde de sábado de aleluia, a fa- A: sábado de
zenda estava quieta. A casa da sede, cercada de aleluia [s.v.]
peitoris, afundava-se no pomar. Percebiam-se,
somente, os retalhos de paredes caiadas, de telha-
dos escuros listrados de limo e de janelas e portas
pintadas de azul. O mais, as árvores encobriam.
Aqui e ali, uma primavera se envolvera nos esteios
de âmago lavrado, deixando manchas vermelhas
sobre o telhado.
De há muito estava desabitada. Fábio é que
A: Ele dormia
tomava conta. Ele dormia na varanda, sobre uma ali mesmo,
saca. Nas noites frias cobria-se com um capote velho na varanda,
e se enroscava feito um cão. Botava sentido à casa. sobre; A: se
Se ouvisse algum ruído, levantava-se, percorria os enroscava
alpendres, dava voltas no jardim, retornava a seu como um cão.;
canto. Nos olhos mortiços de velho, lágrimas visco- A: ruido [s.v.];
sas afogavam o olhar cansado. As peles bambas das jardim [s.v.];
e retornava
bochechas cobriam as gengivas vermelhas.
seu canto.

| 172
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Nem um dente. Os cabelos empastados ra-


reavam na careca suja. Os membros, afrouxados
como se fossem molas relaxadas. Aqueles pés A: §
enormes, ora no chão, ora enfiados na alpercata de
couro cru, rachados como cascos, não arredavam
dali. Toda redondeza conhecia o homem. Dia e
noite lá estava ele assuntando o jardim e a casa. A: A princípio
A princípio, aquele trabalho era desempenhado [s.v.]
por um canzarrão mestiço, lanhado de malhas
pretas no dorso roliço, chamado Tigre. Mas o
bicho não servia bem. Sempre que notava qualquer
faro de amor, largava a guarda e ia atrás da amante, A: de palmo.
afugentando os competidores de língua de palmo. Mais tarde veio
Deu para engordar, ficou mais quieto e, devido à o Zé-Capa-Tu-
indolência, deixou as vacas entrarem no jardim e do e fez o tra-
acabar com tudo. Bem que as via entrando, comen- balho no Tigre.
do as roseiras e bulgarins, mas a preguiça deixava-o Ele deu para
engordar, ficou
pregado à cama de sacos velhos, enquanto as pulgas
mais quieto e
faziam avenida. Senhor Antônio praguejou, dimi- [s.v.]; indolên-
nui-lhe a ração, para que perdesse as banhas, mas cia [s.v.];
tudo foi em vão. Logo depois, apareceu ladrão e A: diminuiu-
levou o relógio de parede que era do tempo dos -lhe a ração
afonsinhos. Tigre foi demitido e passado às armas [s.v]
sob a alegação de que estava com hidrofobia. Fábio A: Jerônimo,
que era velho trabalhador do senhor Jerônimo e [c.v.]; quatro
fora posto para fora quatro vezes, mas teimava em vezes [s.v.]
continuar na fazenda, substituiu. Também já não e teimava
continuar na
aguentava os trabalhos pesados de enxada ou facão
Fazenda, foi
e muito menos machado. Além de tudo, tinha o substituto
uma vantagem sobre o Tigre: limparia o jardim e legal; A: Além
cuidaria da casa-sede. Como a varanda era ampla de tudo [s.v.];
e em um canto a chuva de açoite não entrava, A: cuidaria da
casa da sede

173 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

acomodou-se ali. Aproveitou também uns sacos A: sacos ras-


rasgados, que não serviam para cacau, e fez um gados [s.v.];
colchão cheiroso a chocolate. Aos sábados, recebia A: para cacau
[s.v.]
a feira das mãos do gerente e se conformava com
a sorte de não saber quanto ganhava. Pensava até
que estava sendo muito bem tratado, pois só por
aquele servicinho de prestar atenção à casa, rece-
bia comida e pelo São João uma muda de roupa A: uma roupa
porta-de-loja, que seria substituída por outra no porta-de-
ano seguinte. No começo, dormia mesmo na sala, -loja[s.v.];
sobre o assoalho, mas senhor Antônio verificou A começo [s.v.]
que o ambiente ficou fedendo a doido. Indicou, A: o ambiente
então, a varanda para a dormida, ali mesmo, onde estava fedendo
a doido e indi-
fora do finado Tigre. No quintal, Fábio fazia sua
cou a varanda
comida: assava a carne na brasa, molhava a farinha para a
e trincava a cumarim ardente. Quando o jardim dormida,;
ficava sujo de mato, apanhava a enxada e ia arran- A: fiacva sujo
jando a terra, com muito esforço, descansando a de mato [s.v.];
cada minuto, chegando terra às roseiras. Se falta- A: chegando a
va gente no serviço das roças, ele dava uma mão, terra [s.v.]
mas logo voltava ao posto de guarda. Nos dias A: no servi-
ensolarados postava-se à frente da casa e tangia as ço das roças
inquietas andorinhas que procuravam a cumeeira [s.v.];
para fazer ninhos e porcaria, deixando mundiça. A: andorinhas
O mais era a sonolência, os braços cruzados, como que postavam-
estavam agora, as mãos metidas dentro das calças, -se
coçando-se.
De caju em caju, os donos apareciam, levavam A: De caju em
caju [s.v.]
dez dias e as portas da casa da sede fechavam-se
novamente, abrigando morcegos trapezistas e beija-
-flores que se amavam à sombra dos jardins, indo,
depois, dependurar os ninhos nos tetos das salas.

| 174
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Junto à casa sede, separada pelos jardins e A: § ; Junto à


pomar, estava a morada do gerente, disposta em casa da sede
chalé, pintada de amarelo, com duas janelas e uma
porta de frente, por detrás do tamarindeiro que A: por detrás
servia de moirão. Mais abaixo, as barcaças nume- de um tama-
rosas e alinhadas, sob as quais residiam os traba- rindeiro
lhadores solteiros. Junto a estas, as duas estufas
grandes, bem construídas, na solidez do cimento
armado. Distribuídas pelos oiteiros do pasto, casi-
nhas de telha, beira quase no chão, porta e janela
de frente, com a sala, dois quartos e cozinha, onde A: não se viam
moravam as famílias numerosas. Dali, pois, não as dezenas de
eram vistas as dezenas de choupanas de sopapo e choupanas de
sopapo
palha que se escondiam nas capoeiras e nas roças.
A não ser alguma zoada de menino traquinando na
casa do senhor Antônio, só se ouvia a carretilha de A: galo ver-
um sanhaço-coqueiro e os galanteios de um galo melho [s.v.];
A: arrastava as
vermelho, que arrastava asas à sua companheira
asas; A: casa
pedrês e muito coquete. Na varanda da casa sede, da sede,
beija-flores insistentes cuidavam dos filhos.
A: Trabalhara;
Somente João não pudera ir à feira. Trabalhou Guardara a
segunda e terça. Guardou a quarta e a quinta, além quarta feira e;
da Sexta-Feira Santa. Preferiu pedir a Júlio que Preferira;
trouxesse farinha e um pedaço de fato. A: um pedaço
de fato com os
Como a fome o impacientava, fora esperar vinte cruzeiros
à sombra da barcaça os que vinham da cidade. que lhe dera;
Ali ficara olhando os burros que roíam a grama, A: impacienta-
ruidosamente. va [s.v.];
Alecrim e Dourado estavam sob a jaqueira, A: que viam
da cidade.;
de olhos fechados, dormitando. Os cabelos brancos
A: que poda-
apareciam no pelo de rato e as dobras no couro da vam a grama
cabeça indicavam a idade avançada. De tão velhos, [s.v]; ruidosa.

175 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

já não trabalhavam mais. Há três anos que o doutor A: §


Jorge mandara soltá-los. Tinham-no ajudado A: De tão ve-
muito. Era mesmo uma tradição da família. Desde lhos [s.v.]
o tempo do senhor Jerônimo que os burros condu-
ziam cacau mole. Se houvesse necessidade, ainda A: Se houvesse
poderiam fazer serviço maneiro, mas haviam tra- necessidade
balhado muito. Certa feita, mesmo, João ouvira o [s.v.]; A: fazer
doutor Jorge dizer a um amigo que viera à fazenda: um serviço
mais maneiro,
– Aqueles dois burros estão aposentados.
Foram de meu pai. Não fazem mais nada. Questão
de humanidade. Os bichos também precisam des-
cansar... trabalharam a vida toda.
Realmente, podia-se botar um prato na anca A: Realmente
[s.v.];
de Alecrim. Estava roliço. A gordura acertara as tra-
seiras do animal. Ele só fazia tosar o bengo, espojar-
-se de um lado só, pois, certamente pela velhice, não A: certamente,
tinha mais mãe. Bebia, a longos tragos, a água fria [c.v];
do ribeirão. O mais, era aquele sossego. De quando A: O mais
[s.v.]; A: De
em vez, batia o pé tangendo as moscas. Alecrim era
quando em
doca e dava encontrão, vez por outra, na cerca ou vez [s.v.];
em outro animal. Não fosse o conhecimento de
A: teria sido
longo tempo daquele pasto, já teria se acidentado. acidentado.
Felizmente sabia o caminho que levava ao bebe-
douro, o buraco existente atrás da pedra grande
e o olfato, ainda vivo, lhe indicava a presença dos
jararacuçus.
João, de cá, invejava a sorte dos bichos. Depois
de velhos, já cansados, imprestáveis, tiveram a re-
compensa. Tinham água e comida fartas. Descanso
absoluto, tempo de sobra para ficar modorrando à
sombra das árvores. Intimamente olhou sua vida.
Pensou se por acaso ficasse doente, que não pudesse

| 176
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

mais andar. O que seria dele? E dos filhos? E quando


chegasse a velhice teria que ficar como o velho
Vicente, coitado, que aparecia contando histórias
de quando tudo aquilo fora mata e ele abrira com
seus braços. A lembrança trouxera-lhe certa amar-
gura. Somente os burros eram felizes. Podiam até
ser aleijados, docas, caducos.
Alecrim espichou-se todo, encompridando
o lombo, que vergou. Espremeu o mijadouro atro- A: Espremeu o
fiado de capão e murchou as orelhas como se fosse mijador;
escoicear o companheiro. Este gemeu, murchou
também as orelhas e só fez levantar uma perna.
Tudo brincadeira de velhos amigos. Em seguida, es- A: Em seguida
tavam corrote...corrote...corrote... coçando a tábua [s.v.];
do pescoço um do outro. A: amigo.
Mesmo assim
Ainda aí João pensou que, salvo o compadre
o compadre
Caboclo, não tinha um amigo. Se fosse Alecrim fôra posto fora
não estaria ali esperando um pedaço de bofe e um da fazenda e
punhado de farinha. Também não precisava guar- andava por
dar aqueles vinte cruzeiros para comprar o facão. esse mundo de
Nem tinha filhos nem mulher. meu Deus... Se
fosse Alecrim
Dourado saiu ceifando a grama-de-europa.
Em dado momento, ficou de cabeça em pé como A: Em dado
momento
se pressentisse alguma coisa, apertou a cauda entre
[s.v.]
as pernas, soltou quatro tiros pelas traseiras e saiu
A: dobrado a
em disparada, dando pulos, dobrando a cabeça, ora
cabeça [s.v.];
para um lado, ora para outro. Logo após, Alecrim lado [s.v.];
fazia o mesmo. Um bezerro pintado assustou-se Logo após
com a picula, levantou o rabo e desembalou atrás [s.v.]
da vaca que remoía mais embaixo. A: Pouco de-
Fábio mexeu-se, deu um espirro de tábua las- pois [s.v.];
cada e arrastou as alpercatas. Pouco depois, filhotes

177 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

de beija-flores chiavam pedindo socorro. João sabia


do que se tratava. Fábio não deixava um filho de
beija-flor. Mal os colibris começavam a piar, ele os A: começavam
tirava do ninho e esmigalhava-os sob os pés jogan- a piar [s.v.]
do fora a pasta sangrenta. Quando encontrava os A: sob os pés,
ovinhos alvos dava-lhe o mesmo fim. Certa feita [c.v.];
perguntaram por que ele fazia assim com os bichos. A: os bichos e
Veio a resposta seca: veio
– Estes diabos não deixam a gente dormir.
A: § ; vai cla-
Levo a noite toda botando sentido à casa.
reando, é hora
Quando o dia vai clareando e é hora de pegar [c.v.]; modor-
madorna, os infelizes começam xirrir... xirrir... na [s.v.]
xirrir...
Por isto lá estava ele futucando a pequena A: revoavam
cesta dependurada. Os pais dos perseguidos revoa- aflitos [s.v.];
vam aflitos, quase tocando a ponta da vara, até que A: e sentiu até
os buguelinhos lanzudos caíram e foram massacra- nojo do ho-
dos. João penalizou-se e sentiu nojo do homem. mem.
Os beija-flores-pais procuravam pousar nos ninhos
vazios e saíam espavoridos. Fábio voltou a meter A: a todos que
as mãos por dentro das calças, olhou ao longe lhes maltrata-
qualquer coisa. Não temia que depois de morto as vam
avezinhas bicassem-lhes os olhos como acontecia a A: Como se a
todos que as maltratavam. fome cortasse
por dentro
Como se a fome o cortasse por dentro, João [s.v.];
levantou-se, assoviou uma cantiga, a única que
A: no alto
sabia, e voltou para casa. No caminho, sentiu cheiro existia um fru-
de jaca. Dirigiu-se à jaqueira. Lá no alto dependu- to; A: Possuí-
rava-se um fruto que pela cor dos espinhos estava do de alegria
maduro. Possuído de alegria, marinhou na árvore [s.v.];
e bateu. Estava boa. Lascou o bagunço, e ia tirando A: bagunço
os bagos, quando se lembrou da ordem do gerente: [s.v.];

| 178
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Vamos ver se paramos de comer tanta jaca. A: bagos [s.v.]


Não se pode mais dar uma jaca aos porcos nem aos
animais. Vocês comem tudo.
Desde a semana passada que estava indo
contra as ordens da fazenda. Comera umas cabaças
de cacau. Sentia nos ouvidos as sílabas pesadas:
– Ladrão...
Mas se não fizesse assim, poupando a carne
e a farinha, como adquirir o facão? Bem que podia
comprar os quarenta cruzeiros de comida. Mas
fizera uma jura para deixar toda semana uma parte A: uma jura
do ganho para o instrumento. Passava fome, mas para deixar em
quando tivesse o ferro nas mãos ficaria satisfeito, toda semana
e a alegria compensaria todos os sofrimentos. A: Passava
A jaca cheirava como pedaço de toucinho na brasa. fome [s.v.]; A:
satisfeito [s.v.];
João foi tirando os bagos, cuspindo os caroços
A: sofrimen-
que caíam em cima das folhas do chão. Satisfeito, tos, [c.v.]
voltou à sede da fazenda. Encontrou dois rapazes
e perguntou:
– Vocês viram o Júlio?
– Já deixei de saída. Até ele me mostrou sua
feira, um feirão...
– Cada um bota o chapéu onde o braço A: §
alcança, companheiro, disse João.
Aquelas troças da sua miséria é que mais o
atormentavam. Todos não viam que ele era pobre,
carregado de filhos doentes, papa-terra. Que não
tinha facão. Que Hilda, menina grande, de cabe-
los assanhados e crespos, era espiona, ficava horas
e horas com os olhos enfincados na comida dos
outros trabalhadores? E por que Júlio arreliava dele,

179 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

mostrando a feira magra? Estava vendo por que não


podia considerá-lo amigo?
– Um feirão, mofou o rapaz.
– É isso mesmo, amigo. A: É isso mes-
mo [s.v.]
O rapaz que deu a notícia da vinda de Júlio
cortava pequenas tiras de carne do sertão, comen-
do-as com farinha. Em cada bocado, jogava uma A: Em cada
bocado [s.v.]
pimenta na boca e bebia água.
A: É servido
– É servido, seu João? [s.v.]
– Pode servir a seu gosto.
Bem tardinha, Júlio apareceu com os demais A: parecia
agregados. Fedia a cachaça e parecia alegre. Falava alegre, pois
como uma cigarra. João recebeu a feira. Rápido, foi palrava como
ao casebre. Desculpou-se: uma cigarra.;
A: recebeu sua
– Essa semana a coisa foi ruim. Os dias feira.
santos-de-guarda atrapalharam tudo. Nem um pei-
xinho tivemos. Mas quem vai trabalhar no dia do
padecimento do Senhor?...

XXXIV
Doutor Jorge ficou decepcionado. Já contava
com o rosa em cima do veludo negro, na pirâmide
de sua coleção. Tudo tinha ido por água abaixo. A: Mas tudo
tinha ido
Há muito tempo que não se aborrecia. Tinha
ao seu alcance o que desejava. Poderia satisfazer às
A: § A: Se sua
maiores e menores vontades. E aquele peste não
vida não era
vendia a pedra. Se sua vida não era tranquila de todo, tranquilo de
o motivo estava no ócio que criava certo mal-estar. tudo, o motivo
Também aquela falta de regime alimentar causava- seria o ócio
-lhe transtornos desagradáveis. No entanto, sabia que criava

| 180
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

aproveitar a existência entre o amor de Elisabete e o certo mal estar


prazer de colecionar as pedras. assim como
a máquina
Isso é uma infelicidade! Aquele usurário enferrujada
não me cede, mesmo. Sentiu-se ofendido. Quase por falta de
toda sua economia por um brilhante e o ganancio- funcionamen-
so não queria vender... Ou não tinha para negócio to. Também
e só queria saber o valor, ou estava querendo espe- aquela
cular. O velho agiota acostumado a emprestar di- A: Mas isso
nheiro a dez por cento... pensou o bacharel como é uma infeli-
se vingasse... cidade!; cede
[s.v.]; O dou-
Quando saiu da Ilha dos Ratos foi certinho à tor sentiu-se;
casa da amante. Pelo caminho, imaginava o meio de saber o valor
comprar a joia. Lutaria até o fim. Custasse o que cus- [s.v.]
tasse. Por várias vezes pusera intermediário e nada. A: Pelo cami-
O melhor era mostrar-se desinteressado. Como se nho [s.v.]
não quisesse mais adquiri-la. Apresentar dificulda-
des financeiras. Vingar-se-ia do coronel quando ele
puxasse doravante o assunto. Mentalmente cons-
truía a resposta.
– Não, coronel, agora não. Possivelmente vou A: Não [s.v.];
vender toda a coleção. Perdi o interesse. É só para agora, [c.v.];
se gastar dinheiro. O senhor não avalia a importân- toda coleção
cia que tenho empatado. Se tivesse rendendo juros,
mesmo a três por cento, seria outra coisa.
Talvez até acrescentasse que se desvalorizava. A: § ; não des-
se jeito [s.v.];
Se tal truque não desse jeito, esperaria com-
filhos estroi-
prar o anel quando o fazendeiro morresse. Ele tinha nas, farristas
dois filhos gastadores, farristas inveterados, que inveterados
venderiam o que fosse possível. [s.v.]
O automóvel engolia o asfalto. De lado, as A: De um
areias brancas como poças de leite: do outro, o mar, lado,

181 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

calmo, liso, esfregando-se na praia. Ao longe, velas A: o mar [s.v.]


barrigudas andavam à toa... Na volta do caminho,
entre os coqueiros, estava o seu ninho de amor,
como Elisabete chamava. Achava o nome românti-
co, igual àquele que vira na novela de rádio. Cactos
variados transformavam o jardim num pedaço de
trópico civilizado. A casa parecia um brinquedo, tal
era a arquitetura delicada, vaporosa em varandas A: arquitetura
quietas. A sala de estar ampla era servida por três leve, vaporosa.
sofás-camas multicoloridos. Num canto, o bar em Z A sala de estar
mostrava a variedade de bebidas finas, em pratelei- ampla, [c.v.]
ras de vidros grossos. A escada, que se desenvolvia A: bebidas
num canto, tinha os degraus presos somente em finas [s.v.];
uma extremidade e, tal era a leveza, que pareciam A: Num canto
vibrar. Quase não havia paredes. Largos vãos que se [s.v.];
abriam para os coqueiros, as areias e o mar ali perto, A: as areias
tangido pelo vento gostoso. No primeiro pavimento, alvas; A: tan-
gendo o vento
os quartos também muito abertos, grandes vidros
para evitar as ventanias e dar claridades. O mais
eram varandas e mais varandas, que as portas largas A: mais varan-
das [s.v.];
faziam confundir-se com os quartos. Tudo muito
rasgado, invadido de muito sol. Embaixo, além do A: muito ras-
gado [s.v.]
living, copa, cozinha, quarto de empregadas, duas
garagens e o playground. Havia a sala de música,
junto a um regato que vinha da terra, coleante, em
procura do mar. Às suas margens foram plantadas
narcisos importados e dois cisnes enobreciam as
águas trepidantes.
Elisabete ao ouvir a buzina do carro
conheceu-a e levantou-se. Pensou em agradar o
amante e deitou-se novamente no sofá, ao pé da
eletrola. Um bolero açucarado desprendia-se do

| 182
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

disco. A mulher fazia que não estava pressentindo


a chegada do doutor.
Quando ele entrou apressado, encontrou-a A: § ; Quando
encolhida, amorosa, envolvente como sempre: ele entrou
apressado, fa-
– Ah! meu bem... Estava pensando em você. rejando qual-
Nem ouvi a buzina. Olha o que toca. Você se lembra quer traição
daquela boate... Como isso é bom. E você essa noite encontrou-a;
não veio aqui... A: Nem ouvi a
– Ocupado, tenho andado muito ocupado. buzina, [c.v.]
– Comprou o anel?
– Nada, o peste está pedindo um absurdo.
Mas termino comprando.
– Mais vale um gosto...
– Que seis vinténs... manda servir um uísque A: Manda
para nós.
Elisabete levantou-se e foi ao bar. A: Elizabete se
levantou e foi
– Qual você quer?
ao bar.
– Old... Cavalo Branco... Ambassador...
– Qualquer um.
Doutor Jorge reparava a mulher, seus contor-
nos excitantes e aquele cheiro de instinto.
Ao meio-dia almoçaram peixada. Como A: Como sem-
sempre, o bacharel arrependeu-se do muito que pre [s.v.]
ingerira, ainda mais levado a bebidas fortes e vinho
branco. A cozinheira, mulata, dengosa, riso safado A: A cozinhei-
de quem compreende tudo, adiantou-se: ra, mulata [s.v.]
– Êta diabo... hoje vai ‘tê sarapaté’ de coruja...
Como eu preciso saí... vou arrumá a cozinha cedo e
deixar vocês sozinhos. Purcino também quer sair...

183 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Ótimo, disse Elisabete, virando-se para o


amante com aqueles enormes olhos claros.
– Posso sair?
– Pois não, confirmou a patroa.
– Êta diabo, hoje vai tê... Ah! meu tempo.
A mulata tinha muita intimidade com
Elisabete. Quando esta viera de Alagoas, ainda
inexperiente na vida, fora para casa de mulhe-
res da qual Cândida era empregada e, nos braços A: Cândida
desta, desmanchava-se em lágrimas, toda vez que [s.v.]
pensava na sorte que a tinha lançado à prostitui-
ção. Cândida, habituada àquelas cenas, acalentava
a menina, dando esperanças. Elisabete, por sua vez, A: afeiçoando
foi-se afeiçoando a ela. E como era muito nova e com ela.
carecia dos afagos maternos para acabar de criar-se, A: Assim a
procurava-a a cada momento. Assim a amizade foi amizade foi
aumentando até que um dia surgiu o doutor Jorge, crescendo;
convidando-a para morar com ele. Antes de aceitar, A: doutor
Jorge [s.v]
consultou Cândida e exigiu que ela fosse também
para sua companhia. A dona de casa de cômodos A: zangou-se
porque a mu-
zangou-se porque a mulher era o pé-de-boi, mas
lata era;
nada adiantou. Também a cozinheira sentia neces- A: Também
sidade de uma filha, ainda que emprestada. Assim esta sentia
tudo se arrumou. necessidade
Após o almoço o casal subiu. Iam tontos,
cheios, naquela moleza de quem muito comeu
e bebeu mais ainda. O doutor ao chegar à cama
jogou-se, como que extenuado, com roupa e tudo.
Daí a pouco, muito vermelho, pegando fogo,
roncava engasgado. A mulher também se deitou
extenuada.

| 184
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Pelas janelas o vento soprava, fresco como as


espumas do mar.
Ao acordar, já noitinha, doutor Jorge lem-
brou-se do brilhante. Ficou amuado. Em longos
arrotos ia gaseificando a moqueca.
Ao descer as escadas, parecia sentir um prego
no cérebro: a cabeça doía horrivelmente.
– Não posso mais beber. Nem comer muito.
Bem que sei disso. Para que como tanto? Mas a A: Para que
peixada estava uma delícia. E acompanhada da- comi tanto?
quele vinho!
– Quer um Melhoral?
– Prefiro um sal de frutas.
Parecia que a lembrança do anel é que
atrapalhava a digestão. Elisabete vendo o amante
assim, aborrecido, puxou-o para si, estendeu-se A: puxou-a
no sofá do living. para si

Lá fora, pelo jardim, a lua pincelava quadros


futuristas com tintas lúbricas. Mais adiante, uma
toalha muito alva enxugava as águas do mar, e as A: enxugava as
águas do mar
palmeiras brilhavam ao reflexo, movendo-se doce-
[s.v.]
mente, como se amassem.

XXXV
No dia seguinte, domingo, a fazenda acordou
em reboliço. Todo mundo já sabia que Inácio fora
pegado apanhando cacau. Senhor Antônio desco-
brira e só estava esperando a hora de mandá-lo ao
xilindró.
João foi à sede. Lá encontrou o movimento.

185 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Era o que se comentava. Até Fábio, com as A: § ; A: com


mãos enterradas dentro das calças, metia-se na as mãos meti-
conversa. O gerente chamara vários bodegueiros de das dentro das
ponta-de-rua, que compravam cacau e, todos, depois calças;
de muita relutância, confessaram que adquiriram o A: cacau,
produto em mãos de Inácio. Desculparam-se, afir- [c.v.]; A: e
[s.v.];
mando que assim procediam por julgarem que ele
A: Desculpa-
tivesse roça de contrato na fazenda.
ram-se [s.v.]
Somente o acusado não sabia de nada. Sua
casa era dentro do mangueiro, onde fiscalizava
melhor os animais da tropa que conduzia o cacau
mole para a estufa e, daí, seco, para os armazéns da A: Lá estava
cidade. Lá estava ele, inocente, gozando o domingo, ele, inocente
rodeado dos seus nove filhos pequenos, em esca- [s.v.];
dinha. Sua mulher, no terreiro, alimentava quatro A: pequenos
peruzinhos com pirão d’água. [s.v.]
Senhor Antônio foi chegando, entrou pela
casa a dentro, saiu no oitão, onde o homem descan-
sava, deitado na grama:
– Então, senhor Inácio, como vão as coisas?
– Tudo bem, disse ele levantando-se,
respeitosamente.
– É mesmo que um saco de cacau furou no
caminho e faltaram dois quilos?
– Foi, sim senhor. Não disse ao Senhor?
– Bem...
O tropeiro sentiu o sangue subir, embolou a
língua, atrapalhou-se, traindo-se.
– Você tem passado bem, hein?
– Que nada...

| 186
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Comendo fresco... pé-de-vaca no feijão...


nem eu...
– Um dia de domingo assim...
Inácio percebeu tudo. Bem que ouvira aquela A: Inácio per-
conversa sobre cacau entre ele e o dono da bodega. cebera tudo.;
Agora estava ali o resultado. O homem descobriu A: O homem
tudo. Logo que ele saiu ficou preocupado. Foi à descobrira
tudo.;
porta da frente e relembrou os quilos de cacau que
subtraíra. De início, foi somente um. Vendeu por A: De início
[s.v.] fora so-
vinte cruzeiros, para comprar um remédio para casa.
mente um.;
Depois, dois quilos para completar a feira. A: Vendera;
Em seguida, mais cinco quilos naquela sexta-feira. A: cruzeiros
À noite teve carne e farinha. Mais tarde quis comprar [s.v.]
um presente à mulher. Ela vira uma chita estampada A: § ; A: Mais
de florão e todo dia rogava para comprá-la. Mas o tarde quis
ganho não permitia. Aí tirou mais quatro quilos: um
em cada saco. Por fim, todos os quilos reunidos não
davam uma arroba. Ali estava o gerente sabendo
de tudo. Cresceu dentro do tropeiro uma vergonha
enorme. Seus companheiros saberiam que ele era
ladrão. Furtara cacau. Era caso de cadeia, de surra
que os inspetores dariam para ganhar cinquenta
A: cruzeiros.
cruzeiros. Ninguém mais o tomaria para trabalhar.
Mas a surra
Seria despedido. Ficaria pelas estradas, carregado não preocu-
de filhos, morrendo à míngua. Certamente todos o pava. Temia a
apontariam: fama de ladrão
– Lá vai o sujeito que furtou cacau na fazenda de cacau. Nin-
Fartura. É um rato. guém mais o
E pronto. Adeus emprego. Só se mudasse
para bem longe. Mas um dia a notícia haveria de
chegar.

187 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

E para que furtara o cacau? A primeira vez ia A: § ; chegar.


indo. Mesmo assim, que o menino doente morresse. E para que
Não devia ter tirado caroço. Não era dele. Pertencia tirar o cacau?;
ao doutor Jorge. A: Não deveria
ter tirado nem
Quando ouviu novamente as pisadas do ge- um caroço.
rente, estremeceu. A: – Então o
– Então o senhor anda comprando até vestido senhor anda
lorde?!... Com que dinheiro? Com seu ganho? comprando
até pé de vaca
Parece que imensa pedra caía sobre o
pra comer?!...
tropeiro. Com que di-
Quisera ele que a terra se abrisse e o tragasse. nheiro?
Seus olhos ficaram vermelhos de vergonha. A fisio-
nomia abateu-se de momento. E os vincos retalha- A: §
ram seu rosto. Do pé da carapinha gázea brotavam
caroços de suor que corriam até o queixo e caíam.
– Responda! Que devo fazer?
– É mentira, arriscou o homem.
– É mentira o quê?
– O que disseram ao senhor.
– Mentiroso é você, ladrão!
A palavra cravou-se nos ouvidos do tropeiro.
Tudo rodava em sua volta. Os filhos assusta-
dos estavam por ali espiando, curiosos, entendendo A: §
pouco. A mulher soluçava.
Em redor da casa reuniram-se todos os tra-
balhadores. João, muito aflito, começava a odiar A: João [s.v.];
o gerente. Outro dia ele tinha batido em seu filho A: aflito [s.v.];
A: filho doente
doente, e perseguido os outros.
[s.v.]
– Venham ver o ladrão!

| 188
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

O suor escorria. O tropeiro de cabeça baixa A: A vergonha


não se lembrava de coisa alguma. A vergonha aniquilava-o.
aniquilava-o como alicates grudados na carne. O arrepen-
dimento
E aquela palavra o atravessava de lado a lado. Sentia
triturava-o
tamanha vergonha que a cabeça estalava, os braços como alicates
estavam caídos, inertes. Nos seus ouvidos a alucina- guardados na
ção repetia-se: carne.
– La...drão!
Certamente os companheiros também es-
tavam com raiva dele. Ele é que não tinha razão.
Os quilos de cacau resolveram os problemas do
remédio, da comida e da alegria de sua mulher. B: §
Porém não tinha direito de fazer aquilo.
João recordava-se das cabaças de cacau que
lhe serviram de almoço. Também ele havia furtado.
Se bem que o crime mesmo era apanhar cacau seco.
Cabaça de cacau era outra coisa. Mesmo assim, A: Mesmo
o marido de Isabel olhou para os lados a fim de ve- assim [s.v.];
rificar se alguém o olhava. Tranquilizou-se. Depois A: pobre que
apanha de rico
Sarará diz que pobre que tira de rico está levando o
está tirando o
que é seu. que é seu.
O gerente, junto ao tropeiro, continuava:
– Se faz tudo com essa gente. Tudo. Casa
para morar, comida, trabalho e ainda fazem desta.
É muita ingratidão. Depois, quando o doutor Jorge A: Depois,
chegar, quero ver quem vai prestar contas. Já o ano quando dou-
passado foi o estufeiro. tor Jorge che-
gar [s.v.]
Inácio não saía do meio da sala. Culpava-se:
os outros não passavam fome, suas mulheres não
andavam quase despidas, andando com os mo-
lambos sobre a pele? Por que a sua era melhor que

189 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

as outras? Os filhos dos demais não ficavam nus,


morrendo à míngua? Sempre não faltavam carne
e farinha na sexta-feira, para todos os trabalha-
dores? O arrependimento roía-o, torturando-o.
Seus companheiros tinham razão para odiá-lo:
era um gatuno.
Todos saíram. O tropeiro ficou sozinho. João
quis ir até ele dizer qualquer coisa, mas temeu o ge-
rente. Ademais Inácio era ladrão mesmo. Preferiu
voltar ao casebre. Ao chegar narrou o acontecido:
– Tive pena do coitado, Isabel. Foi fraqueza
dele, é bem verdade, mas tive pena. Não sei como
vai se aguentar com tanto filho. Na certa, amanhã,
está na rua.
– Não me diga, homem, senhor Inácio?
– É o que lhe digo. Só queria ver Sarará...
– Por quê?
– Porque ele anda dizendo que todo traba-
lhador tem o direito de apanhar o que o patrão
nos rouba.
– Patrão roubar?!
– Sim. Diz ele que os ricos roubam mais
da metade do nosso trabalho. Que nosso dia vale
muito mais...
Mais tarde Inácio saiu trôpego pelo man-
gueiro. Nada disse à mulher. Como um sonâm-
bulo entrou na roça de cacau próxima, ganhou
aceiro e meteu-se na mata. A vergonha mandava-o
fugir. Levar fim. Desaparecer para nunca mais
voltar. Num momento, recordou-se dos filhos. A: § ; A: Num
O caçula já dizia o seu nome. O outro era tão momento;

| 190
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

parecido. Sucederam-se retalhos de lembranças. A: era tão


A mulher teria que criar os nove filhos. Nove parecido con-
bocas gulosas. Ele não poderia voltar à fazenda. sigo.
Tinha que fugir. A: Porem ele
não
Na segunda-feira chegou a polícia para levar
A: Antônio
o homem. Senhor Antônio, muito heroico, contava
[s.v.]; A: heroi-
o ocorrido aos dois praças. co [s.v.]
Narrava como descobrira o crime, dos truques A: §
que tivera que usar. Os soldados foram à casa do tro-
peiro e, secamente:
– Onde está o homem?
– Não sei, respondeu o soluço da mulher.
Saiu desde ontem, noitinha.
– Certamente fugiu, disse o gerente. Preci-
samos pegar. Custe o que custar. É caso de cadeia.
Só taca para consertar gente descarada. E você pode
ir arrumando as trouxas. Rua. Já e já. Daqui a pouco
vem gente morar aqui.
– Saiu por onde? perguntou o praça.
– Por aí. Entrou ali na porteira e não vi mais,
informou a mulher.
Pela batida que o tropeiro deixou no mato,
foram à sua procura. No entanto, quatro dias
depois, já na divisa da fazenda, foram encontrá-lo.
Pendido de uma árvore, enforcado com cipó,
estava Inácio.
– Serve de exemplo. Se todo ladrão se enfor-
casse... nunca mais rouba ninguém, disse senhor A: Nunca
Antônio.
Os soldados benzeram-se. Tiveram medo.

191 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Meio palmo de língua de fora, roxo, quase


preto, todo enteriçado, ficou o cadáver, até que
alguém viesse fazer o levantamento.
No outro dia chegou o médico. Os urubus A: A morrinha
já tinham arrancado os olhos do morto. A mor- espalhava-se
rinha espalhava-se, penetrante por toda parte. [s.v.]
O profissional ordenou que se fizesse um buraco
sob o cadáver. Quando cortaram o cipó a carniça
caiu já amolecida, como um mamão podre que se
desprende da árvore.
Todos os agregados sentiram um misto de
piedade e ódio.
Sarará comentou no terreiro da barcaça: A: §
– Um pobre pai de família fazer uma desgra- A, B: Dário;
ça dessa por causa de meia dúzia de quilos de cacau. A: nosso...
Tudo isso está errado. Mário é que tinha razão, Esses pestes
no dia que todo trabalhador se juntar não haverá roubam mes-
mo da gente.
mais dessas coisas. Nós vamos buscar o nosso...
Vendem uma
E nós que plantamos, colhemos e secamos recebe- arroba de
mos menos de cem cruzeiros. É ou não furto? cacau por qui-
– Pensando bem... ponderou o agregado nhentos cru-
novato. zeiros. E nós
– Furto... E se eles roubam da gente, nós
também temos o direito de tirar deles. E se todos nós A: de uma vez,
tirássemos, de uma só vez, eu queria ver feio nem
bonito. A fazenda é de um e nós somos muitos... A: João estava
João estava impressionado com o suicídio de profundamente
impressionado
Inácio. Além do medo que já tinha por tudo, come-
A: o tropeiro
çou a desesperar-se quando via o gerente. Por causa
se enforcara
dele o tropeiro se enforcara, deixando nove filhos, [s.v.]
os meninos fugiam para o mato e o doente apanhou

| 192
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

de taca. Precisava ver-se livre daquele pavor. Como


é que um homem tem medo de outro? Mas um dia
ele se vingaria. Por enquanto, era trabalhar para A: Por en-
quanto [s.v.]
adquirir o facão.

XXXVI
Os planos de dona Helena continuavam.
Gostaria ela de fazer também o batizado da Rose.
A menina já estava completando três anos e pre-
cisava lavar-se do pecado original. Poderia, então,
juntar as duas festas. Ficaria bonito: o batizado no
dia do aniversário. Além disso, esperaria o Natal e, A: esperaria o
em um dia só, daria a festa. Natal e [s.v.]
E se o doutor Jorge não viesse? Bom, aí
daria a festa sozinha. Convidaria muita gente.
No jardim, armaria uma grande árvore de Natal,
com uns quatro metros de altura e distribuiria,
como a vizinha o fizera no ano anterior, presen-
tes às criancinhas pobres. Roupinhas, brinquedos
e bombons.
Além disso, é claro, comemoraria o aniversário. A: §
E eis que uma linda ideia surgiu: Também o bolo seria
uma árvore de Natal, iluminada, carregada de frutos
de mil cores, solitária, no meio da neve. Somente duas A: mil cores,
casinhas alvas, cobertas de gelo, lá por detrás das solitária [s.v.];
montanhas brancas. Um urso. A: coberta de
gelo,
Não, urso é feroz. Não fica bem. Somente
a árvore carregada de várias cores, a neve e as ca-
sinhas. Original! Esses motivos nacionais já estão
batidos e o castelo, que fizera parte dos planos, não
combinava bem.

193 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Mas precisava, antes de tudo, levar a Rose A: Primeiro


para o exame mensal. Primeiro a obrigação, para a obrigação
depois a devoção, lembrava-se a fazendeira. [s.v.]

XXXVII
A: Até que em
João juntou o dinheiro.
fim João esta-
Todo esforço valia a satisfação que experi- va com o di-
mentava agora. nheiro junto.
Com os cento e vinte cruzeiros no bolso, Todo o esforço
além do dinheiro das despesas, dirigiu-se, naquele bem valia;
sábado, para a feira. Muito alegre e conversador. A: § ; A: diri-
giu-se [s.v.]
Ia aos pulos. Tinha um mundo dentro de si.
Afinal, poderia comprar o facão. À tarde já estaria A: Afinal [s.v.]
poderia com-
amolando-o, até fazer barba. Primeiro amansaria
prar facão
o bicho na pedra braba. Depois, naquela da estufa,
A: estaria amo-
para, em seguida, afiá-lo. E iriam ver quem era ele
lando-o [s.v.];
no serviço. Segunda-feira seria dia de roçagem. A: Depois
Veriam como se engole mato. E o nome do facão [s.v.]; A: para
seria este: Engole-Mato. [s.v.]; A: em
Antes mesmo de comprar os trens para seguida [s.v.]
dentro de casa, foi à casa de ferragens. Muito supe- A: foi à loja de
rior, inquiriu: ferragens.;
A: Muito su-
– Tem facão? perior [s.v.]
– Com bainha ou sem bainha? A: Ora [s.v.];
– Ora, com bainha. E “Corneta”. Banda-lisa bainha, [c.v.];
do melhor. A: e Corneta.
– Tem a escolher. A: como roe-
dor [s.v.];
O empregado, um sujeito gordo e esperto A: foi lá dentro
como roedor, foi lá dentro, voltando com um feixe [s.v.] e voltou
com um feixe

| 194
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

de facões amarrados, uns aos outros, pelas correias


das bainhas.
– Aqui estão, pode escolher à vontade.
João puxou o primeiro. Era grosso demais,
parecia um machado. Aquilo não afiava nunca. A: rachadura
O segundo tinha uma rachadura no cabo. Foi sepa- no cabo. Su-
rando até que achou um muito brando, leve, com cessivamente
foi separando;
bainha ao gosto. Abriu os lábios em concha, soprou
leve [s.v.]
a folha de aço e:
– Esse me quadrou. Vai ser o meu.
– Bom facão.
– Pode enrolar.
– Cento e cinquenta cruzeiros.
– Oh! não era cento e vinte até a semana
passada?
– Era. Mas ferragem subiu muito. Fizemos
um pedido e vai sair para nós, agora, a mais de cento A: vai sair para
e cinquenta. Isso não é fabricado aqui, não. Cabo de nós, agora
machado que é feito aqui tá subindo, quanto mais [s.v.]; A: feito
facão que vem do estrangeiro. aqui tá subindo
[s.v.]
– Então eu levo o facão e, sábado eu trago o
A: – Então eu
restante, tentou João.
levo o facão
– Você trabalha onde? e [s.v.] trago
– Na fazenda Fartura, do doutor Jorge. sábado o
restante,
– Bem, mas só se o gerente der ordem.
– Nesse caso o senhor separa aí esse facão.
Será o meu. Não venda a ninguém.
– Está certo.

195 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

O agregado saiu meio desapontado. Teria A: mais de


que passar mais uma semana juntando o dinheiro. uma semana
Nem adiantava procurar senhor Antônio. Ele A: § ; A: Só
se apertasse
não garantiria coisa alguma. Só apertando mais a
mais a feira.
feira. Não compraria sabão e nem rolinho. Somente Não comprara
um pedaço de carne e pouca farinha. Mais uma sabão, nem
semana de fome não mata ninguém. Boto uns laços rolinho [c.v.];
no mato e talvez pegue saruê ou um bandola. A: pegue sa-
– Mas em casa tá tudo desprevenido, objetou riguê
João.
Afinal ficou certo que trabalharia mais uma A: mais uma
semana e
semana e, ao invés de tirar vinte cruzeiros, juntaria
[s.v.]; A: vinte
logo trinta que faltavam. cruzeiros [s.v.]
Mas, como se impacientava e gostaria de ver
novamente o facão, voltou à venda.
– Moço, deixe ver o banda lisa.
– Trouxe o dinheiro?
– Não, mas pra semana eu trago.
– Não ficamos certos?
– Olhe lá, não vá vender a outro. Está A: Olhe lá
separado? [s.v.]

– Não já disse que...


– Então posso ficar descansado?
– Ora, meu Deus, vai embora, meu amigo, A: Ora [s.v.]
o facão é seu. meu Deus,
Ao passar pela sede da fazenda, perguntaram:
A: – Cadê
– Cadê o zinco, João? o zinco, seu
– Ah! moço já tão pedindo cento e cinquenta. João?
– O quê, homem? A: O que [s.v.]

| 196
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Já lhe disse...
– Cento e cinquenta?
– E com imposição.
– É verdade... quem já comprou facão por
cinco mil réis e destões a bainha. E facão mesmo...
não é essas porcarias de hoje. Facão que batia num
ticum e a gente via o bicho gemer, acrescentou o
velho Adão.
O Sarará concluiu:
– Pobre não pode mais viver. Vive de teimoso.
Só se todo pobre se juntasse pra acabar com isso...
João, muito envergonhado, pois havia dito
a todo mundo que naquele dia compraria o facão,
passou adiante. Em casa, contou o sucedido a Isabel A: Em casa
e falou dos seus propósitos. [s.v.]
– Tuzei assim... Quase diminuo a feira, mas a
gente está tão preciso de umas comidas...
– Precisa mesmo, já não aguento mais passar A: faltavam
me comer
mal. Esses meninos só faltam me comer viva.
viva.
João se doeu um pouco. Ofendia-se com
muita facilidade. Zangou-se. Todo ele era um ouriço.
A mulher tinha razão, mas não via a situação como A: ouriço de
estava? Que culpa ele tinha? complexos.
– Hoje quero lavar a roupa, Isabel. Logo
depois que descansar do almoço.
– Está fazendo um dia tão bonito. Eu até
gosto de lavar num dia desse.
– Ou é melhor ir agora?
– Vamos.

197 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Os meninos ficaram no casebre. O casal A: no casebre, o


dirigiu-se à fonte. À sombra dos cacaueiros, nascen- casal dirigiu-se
do sob rocha preta e limosa, corria um veio d’água à fonte.;
clara-azulada. Mais abaixo foi cavada uma barroca, A: barroca
onde a água crescia, transbordando adiante. Ao lado, [s.v.]; para
bater roupas;
uma outra pedra servia para bater os panos e, num
bravas, quara-
claro, mais atrás, coberto com bananeiras bravas, doiro.
o quaradouro. Birros e cabaças pendiam dos tron-
cos escuros, manchados de branco. Flores alvas com
pétalas roxas de veludo enfeitavam as árvores. João
tirou a roupa e entregou-a à mulher. Acocorou-se
dentro das bananeiras bravas e começou a futucar
o chão. Daí a pouco Isabel batia os trapos na pedra. A: os trapos na
Plof... plof... plof... pedra: plof...
– Não sei, João, quando você vai comprar uns A: Não sei
[s.v.]; A: Pra
panos... falou ela. Essa roupa já não vale mais nada.
semana nem à
Pra semana nem na feira você pode ir. Um rolim feira
inteiro num dá para remendar.
– É isso mesmo, enquanto não tiver o facão
não compro nada pra dentro de casa.
– Eu também estou com esse vestido na pele. A: encontrar
Tenho até vergonha de me encontrar com gente. com um ho-
Está fazendo vergonha. Os meninos, nem se fala. mem; meni-
nos [s.v.]
– Sei... não precisa dizer.
– Só estou dizendo, homem.
A: dizendo
– É melhor que acabe de lavar essas por- [s.v.]
carias para botar no sol. Os jatiuns tão querendo
me chupar o sangue todo. De quando em quando, A: De quando
o marido batia uma palma seca. Enormes jatiuns de em quando
pernas compridas, planadeiras, tocavam berimbau [s.v.]
em sua volta.

| 198
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Fuma um cigarro, homem que as muriço- A: – Fuma um


cas te deixam em paz. cigarro, ho-
mem, [c.v.]
– Deixei o fogo e o fumo em casa.
– Então o jeito que tem é esperar.
– Anda ligeiro.
– E não vai quarar um pouco?
– Para quê?
– Assim o sujo não sai.
– E eu vou ficar aqui esperando o tempo
todo?
– Mas não demora.
Isabel esfregava os trapos com sabão, folha A: O sumo
de mamoeiro e rama-de-são-caetano. O sumo verde [s.v.];
misturado
verde, misturado com a espuma, escorria grosso e
com espuma
sujo como se fosse lama. [s.v.]
– Tenho visto roupa suja, mas como essa.
Olha o lodo.
– Avia logo, mulher. A: Avia logo
– João passava minutos longe dali, pensando [s.v.]
no facão. Bem que podia ter tirado parte da feira,
mas a coisa estava andando tão dura!
– Se não fosse a morte do menino eu já tinha
comprado o zinco.
– Mas é isso mesmo.
– Sessenta cruzeiros. Eu tinha comprado o
facão pelos cento e vinte e ainda sobrava dinheiro.
– Agora não tem jeito.
A: Enquanto a
Enquanto a roupa quarava, a mulher chegou-se
roupa quarava
ao marido. Tinha as mãos encolhidas, finas, ossudas. [s.v.]

199 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

O vestido ralo mostrava as pernas esquálidas e as


canelas, de secas, pareciam ter somente um osso.
O rosto estava cavado, sem carne, terroso como barro
de telha. Assim mesmo João a olhou e recordou-se
de outros tempos:
– Hein, Isabel, antigamente, hein... você era A: Hein [s.v.]
cheia, carnuda... Isabel,

A mulher feriu-se na vaidade, mas se


conformou:
– É isso João. A gente não pode ficá nova a
vida toda. Depois a luta. Esses meninos. Todo ano
um. Parece castigo.
– Mesmo assim, ainda quero bem a você.
Você tem sido tão boa! Tem aguentado tanta
necessidade!
Isabel avermelhou os olhos, que ficaram
úmidos, mas nem uma lágrima saiu.
Como que o ambiente do mato amaciava
o casal. Aquelas sombras frescas que as folhas
desenhavam no chão amoleceram as palavras.
Quando a roupa foi posta a enxugar já o agregado
estava sem pressa. Há muito não dispunham de
um momento assim, calmo, sossegado. Até senti-
ram certa alegria.
Bem verdade que João não poderia comprar
o facão, mas daí a uma semana teria o dinheiro
contado.
E o instrumento estava até escolhido.
João vestiu a roupa úmida, cheirando a sabão A: Em casa
e sumo de São Caetano. Saiu atrás da companheira. [s.v.] os me-
Em casa, os meninos tinham tomado conta de tudo. ninos

| 200
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– Quando o gato sai, o rato passeia em cima A: Quando o


da mesa, disse a mãe. gato sai [s.v.]
o rato passeia
Todos correram assustados, deixando o por cima
saco de farinha, denotando que tinham bulido
A: Os meninos
nele. Um bom pedaço de carne foi devorado crua correram as-
mesmo. E o embrulho de açúcar estava rasgado. sustados, dei-
– Eu não fui, defendeu-se Aprígio. xando o saco
– Nem eu, afirmou Hilda. de farinha
[s.v.]; A: de-
– Traz aí a taca que sei... notando que
João intercedeu, defendendo os filhos: tinham bulido
nele.
– É isso mesmo, Isabel, estavam com fome.
É isso...
– Você é que bota esses meninos a perder.
Nunca pegou um para dar uma sova. Se Aprígio tives-
se tomado umas boas, dessas que botam o moleque na A: tomado
água de sal, ele não estava comendo mais terra. umas boas
[s.v.]
O agregado mastigou o angu com carne no
espeto. Engoliu a água do litro preto e saiu para armar
A: trazido o
laços. Se houvesse trazido o facão, iria amolá-lo. facão [s.v.]
Como nada tinha a fazer, queria aproveitar aquele
A: Como nada
resto de tarde para ver se fazia umas armadilhas. tinha a fazer
Os saruês andavam comendo na boca da mata. [s.v.]
João passou o resto da semana seguinte comen- A: § ; sariguês
do farinha com jaca. A armadilha não deu nada.

XXXVIII
Foi assim que dona Helena voltou ao consul-
tório, depois de uma ausência de trinta dias, e falou
à enfermeira:

201 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Bom dia, minha filha. Preciso falar com o A: – Bom dia


doutor José. Vim fazer a consulta mensal da Rose. [s.v.]; A: [Alte-
rou-se Preciso
E veio a resposta: falar como
– Minha senhora, hoje é impossível. O doutor doutor José.]
está muito ocupado. Já apareceram diversas clientes
e todas voltaram. Como se trata de consulta mensal, A: – Como se
a senhora poderá vir amanhã ou à tarde. trata de con-
Como que um sentimento de culpa ou de sulta mensal
[s.v.]
medo possuía a enfermeira. Ela tinha as feições
contraídas, o olhar mais triste e foi a voz trêmula
que concluiu:
– Já ia fechar a porta, quando a senhora A: Já ia fechar
chegou. Doutor José está fazendo um exame demo- a porta [s.v.]
rado. De muita responsabilidade. Hoje é impossível.
Do interior do consultório estrilou a campai- A: – Do inte-
nha. A enfermeira entrou apressada, esquecendo-se rior do consul-
de fechar a porta da sala de espera que dava para a tório
saída.
Dona Helena ficou esperando o exame muito
demorado.
Dentro do consultório estava uma senhora A: Realmente
dentro do con-
deitada, em posição ginecológica.
sultório estava
Doutor José de capa alva, touca e luvas, intro- uma senhora
duzia jeitosamente a mão nas entranhas da paciente, deitada [s.v.]
que fazia pequenos movimentos de quem estava fora A: entranhas
de si. O médico utilizava-se de ferros apropriados e, da paciente.
de quando em vez, tomava compressas que chupa- Esta fazia pe-
vam o sangue. Afinal, com esforço que custou suor quenos movi-
abundante e vincos profundos na testa, a criança foi mentos;
arrancada. Era um corpo já conformado, entumeci- A: chupava
do, untado com as substâncias viscosa que dificultava todo o sangue;

| 202
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

mais a nitidez dos traços. Já não dava sinal de vida. A: untado com
O pai, que acompanhava aflito todos os movimentos uma substância
do médico, teve um estremecimento de amor. Não
distinguia bem a satisfação de estar com o seu pro- A: destruição
blema resolvido ou certo arrependimento de haver do seu próprio
procurado a destruição do filho. A mulher, exausta, ser;
muito pálida, como morta, largada na mesa. Perdera A: pálida [s.v.];
sangue em profusão. E, como uma vagem verde de A: estava
feijão dá mais trabalho para descaroçar que a madura, como; A: E
o filho prematuro saíra com dificuldade. A muque. [s.v.];
O médico, satisfeito com o resultado do serviço, ainda A: médico
sentia dentro de si, naquele profundo do ser que todo [s.v.]; A: servi-
indivíduo tem de bom, o constrangimento. ço [s.v.];
A: profundo
As mãos sujas de sangue, o avental man-
ser; A: cons-
chado e poças vermelhas pelo chão. O pequeno trangimento
cadáver, lançado em uma bacia, estava envolto em moral que per-
uma pequena toalha que se misturava à placenta segue o mais
fragmentada. cruel celerado
A mulher, aos poucos, foi acordando, saindo A: § ; O pe-
de denso nevoeiro. Balbuciou palavras incom- queno cadáver
preensíveis e afinal: [s.v.], lançado
a uma bacia
– Meu filho! [s.v.]
Estava em pleno instinto, dona de todos os A: foi acor-
bons sentimentos, excluída da ligação que tinha dando [s.v.]
para com a sociedade. Era, naquele momento, A: Estava ela
o animal meigo, dócil. A ovelha mansa que, ao em pleno
terminar o estertor do parto doloroso, virava a instinto,;
cabeça e mugia, docemente... Queria ela, certamen- A: A ovelha
te, levantar-se, fazer um movimento de amor, que mansa que
estirasse ao seu rebento as tetas cheias, bojudas de [s.v.] ao termi-
alimentos, como que saudosa de deixar fora das en- nar a esterto-
ração do parto
tranhas o produto de sua carne.

203 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Ainda com os olhos fechados, meio incons- doloroso [s.v.]


ciente, a mulher repetia: vira a cabeça
e muge [s.v.]
– Meu filho. docemente...;
O pai amargurava-se. Bem que aquele filho A: fazia um
poderia nascer. O passeio à Europa ficaria adiado movimento de
para o outro ano. Sua mulher perderia as formas amor [s.v.]
de ângulos arredondados para adquirir a maciez A: adquirir
de mãe. maciez
Certo arrependimento percorreu-lhe o corpo. A: A enfer-
meira [s.v.];
O fazedor-de-anjos, meio contrafeito, tentou A: quando
gracejar. Mas era presa, igualmente, do sentimento fora advertida.
que ainda lhe castigava a consciência. A: § ; A: De
A enfermeira, ao lado, muito amarela, mor- fora Dona
dendo os lábios, como se quisesse castigar-se, só Helena só
ouvia ruídos
começou a arrumar os ferros e pôr as coisas em
abafados.
ordem quando foi advertida. Dona Helena só
A: E [s.v.]
ouvia ruídos abafados.
com o radar
E, com o radar feminino, desconfiava que feminino [s.v.]
o caso grave era um aborto. Recordava-se de desconfiava
que também fora ao médico, meses depois de casada, que o caso se-
e abortara. Lembrava-se das dores cruciantes, ria um aborto.
da fraqueza profunda em que caíra. Do estado de Recordava-se
vagamente de
meia imbecilidade que se seguiu. Do arrependimen-
que ao médico
to, depois. Dos longos anos à procura da concepção [s.v.] meses
que nunca mais chegou. Com o tempo, foi apare- depois de
cendo a tristeza, o vazio da casa e o arrependimento casada [s.v.] e
cresceu. Por que deixara que lhe fizessem o aborto? abortara.;
Tanto que gostaria de ter um filho de verda- A: imbecilida-
de que seguira.
de. E monologou:
Do arrepen-
– Doida... vai arrepender-se. dimento [s.v.]
depois.;

| 204
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Como que voltando a si, lembrou-se de Rose A: numa mais


Marie. O doutor devia estar muito ocupado mesmo. chegara;
Há duas horas que esperava. Já se levantara dezenas A: Com o
tempo [s.v.];
de vezes. Fora à janela e contara 56 carros azuis que
tinham passado embaixo, pela rua Chile. Nada do A: § ; A: Tanto
que
médico aparecer. Os ruídos do consultório foram
diminuindo até que sumiram de todo. A: –Doida...
vai se arrepen-
A Rose dava muito trabalho. O relógio der.
marcou dezoito horas e nenhuma solução. A: em baixo
Com horror, lembrou-se ainda do que teriam [s.v.]; tudo.
que fazer com a criança morta. A curiosidade impelia A: Rose estava
dona Helena para saber quem era a mulher. Que se dando muito
tratava de aborto não tinha mais dúvida. Começava trabalho mes-
a lembrar-se de uma senhora angustiada que vira mo; resolução
saindo do consultório. Certamente ela demoraria A: Com horror
muito para ir-se embora. Ficaria em repouso até [s.v.]
à noite. E naquele dia doutor José não atenderia A: Que era
mais ninguém. Dona Helena fechou a porta da caso de aborto;
sala de espera, que a enfermeira, na pressa, havia A: até come-
deixado aberta, e sentou-se. Não sabia mesmo por çava a con-
que fechara a porta nem por que esperava. Algum jecturar que
se tratava da
sentimento estranho andava-lhe na alma. Se tivesse
senhora;
coragem, iria olhar pela fechadura o que se passava A: vira certa
no consultório. Teve medo e vergonha. E por que feita saindo;
não ia embora? Ver-se livre daquela agonia, daque- A: ela se
la curiosidade que fazia esquecer até Rose Marie? demoraria;
Tomaria o carro e num instante estaria em casa. A: enfermeira
Ouviu trincar os ferros despejados em bacia. Tudo [s.v.];
se findara. A senhora descansaria na sala especial, A: pressa [s.v.];
pálida como uma defunta, até que pudesse levantar- A: Se tivesse
-se, trôpega, e tomar o carro que estaria esperando coragem [s.v.]
lá embaixo. Gostaria também de vê-la, olhar bem o A: Certamente

205 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

seu rosto e o do marido. Por que fizeram aquilo no tudo estava


consultório? Não poderiam, pelo menos, ter levado findo; A: fica-
a coitada para o hospital? ria descansan-
do na sala;
Dona Helena receou ser apanhada ali A: defunta
como espiona. Abriu a porta e ia saindo. No en- [s.v.]; A: levan-
tanto a vontade de ver alguma coisa de concreto, tar-se [s.v.];
que lhe tirasse a dúvida, ou pelo menos que pu- A: trôpega
desse ter a certeza de que se tratava da senhora [s.v.]; A: pode-
angustiada, arrastou-a para a sala. Se tivesse co- riam [s.v.];
ragem iria olhar pela fechadura. Mas não tinha. A: pelo menos
Se fosse apanhada assim? Não sabia bem o que [s.v.]; A: a
pobre coitada;
poderia acontecer. Mas seria mesmo um escân-
uma espiona
dalo. “Poderiam até me bater. Ou quem sabe, até
A: No entanto,
prender? Ora, não podiam fazer nada. Onde já se
[c.v.]
viu crime pelo fato de alguém olhar pelo buraco
A: pelo buraco
de fechadura? Mas que era feio, era, muito feio.
da fechadura?
Grande falta de educação”.
Dona Helena não resistiu. Seus olhos atra-
vessaram o orifício de ferro, por baixo da chave
introduzida pelo lado de dentro, e viram doutor
José apanhar a criança, pô-la sobre a banca e tomar A: Primeiro
[s.v.]
o bisturi. Teve vontade de gritar, pedir socorro.
Alguma coisa de muito grave estava para aconte-
cer. O médico foi tirando os membros. Primeiro,
os bracinhos, depois os dividiu em quatro. Fez o
mesmo com as pernas. Restava somente a cabeça A: §
pregada ao tórax. Uma bacia alva recebia as partes
já divididas.
Dona Helena daria tudo para não ver mais
nada. A: § ; A: fugir
dali, rápida.
Fechar os olhos, fugir dali, rápido. Não podia.
E não podia.;
E onde estariam a parturiente e o pai? Ainda não

| 206
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

tinha saído. Possivelmente foram postos na última A: última sala


sala, que se comunicava com a do consultório, pela [s.v.]; A: con-
porta que estava fechado a ferrolho. sultório [s.v.];
A: estava fe-
O médico, rápido, muito prático no serviço,
chada
passou o bisturi no pescocinho e tirou a cabeça.
A: O médico
Restava o tórax. Teve a mesma sorte. Ficou dividido
[s.v.]
em quatro partes. Acabada a operação, o conteúdo
A: Acabada a
da bacia foi despejado numa panela de pressão que
operação [s.v.]
já estava no fogareiro elétrico. A tampa rodou da
A: estava posta
direita para esquerda, fechando-se.
no fogareiro
Daí a pouco a fumaça saía pelo suspiro, elétrico.
cozinhando o sinistro ensopado. Dona Helena quis
fugir novamente, reuniu as últimas forças, mas
a curiosidade era mais enérgica. Minutos longos
se derramaram. Não sabia se trinta ou quarenta.
De uma coisa estava certa: já era noite fechada e a
parturiente não tinha saído ainda.
Os olhos assombrados continuavam na
fechadura e viram quando a panela fora retirada
do fogo.
O que iriam fazer agora? A enfermeira saiu
para um lado. Fechou a porta atrás de si. Ouviu-se
o gorgolejar de uma descarga de sentina...
Doutor José tomava o pulso da cliente.
Dona Helena abriu a porta devagarinho e
ganhou o corredor. Sentia-se mal, as vistas turvas. A: § ; A: ele-
vador [s.v.];
No elevador, esteve para dar uma síncope. notara; A: Ao
O ascensorista estava de costas e nada notou. chegar ao;
Ao chegar no automóvel o chofer percebeu o percebera
estado da patroa. A: § ;
Amparou-a. Puxou rápido para casa. A: e amparou-a

207 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

A fazendeira deitou-se, pediu uma xícara de


café bem quente. Adormeceu. Ao acordar, pergun- A: Ao acordar
tou pela Rose Marie. [s.v.]

Donata trouxe a boneca. A mãe alisou os


cabelos ruivos, suspendeu a filha e viu os olhos
que se movimentavam presos ao arame que, por A: presos ao
sua vez, era impulsionado por uma borracha. arame que
Entristeceu-se. Os cílios de Rose pareciam goma [s.v.]; A: por
arábica seca. Era fria. sua vez [s.v.]
Não havia amor naquela expressão de tinta
morta. A: §
Onde estavam os movimentos de braços,
a faceirice de Lúcia? Daquela menina que vira no
primeiro dia do consultório? Rose não tinha um
gesto de amor, faltava quentura nos olhos azuis.
Profunda tristeza abateu a fazendeira. Sua vida A: § ; A: Sua
tornou-se mais vazia. vida tornou-se
As salas ficaram maiores e os quartos mobi- mais ôca.
liados mais despovoados. As mangueiras enormes
morreriam de tristeza e o doutor Jorge fugiria mais de A: §
casa. Levaria até sua coleção de brilhantes para outro
lugar. Dona Helena temeu o silêncio, a tranquilida- A: a tranqüi-
de que seus dias teriam. Nada mais restava para ela. lidade vazia
Gostaria de criar um cachorro loly, mas certa feita que seus dias
tivera um, ainda no tempo de menina, e o carro de teriam.
boi passou por cima, esmigalhando a cabeça.
Só se criasse pássaros. Encheria a casa de A: § ; A: a casa
todos os que encontrasse nas feiras. Encomendaria de todos que
encontrasse
canários, sabiás, curiós e caboclinhos. Mandaria fazer
um viveiro enorme. Mas também não gostaria disso.
O canário-da-alemanha fora encontrado em penas.

| 208
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Um gato malvado arrancou-o da gaiola de


pé. Se ainda encontrasse um livro como Mercedes,
afundar-se-ia nos quatro volumes da obra e passa- A: §
ria o tempo. Mas até aquele romance fora perdido.
Emprestara a alguém e nunca mais o devolveram.
Poderia fazer uma viagem. Para onde? Cansar-se. A: Emprestara
Acordar cedo. Obedecer a horários. Também não a alguém e
servia. A Rose iria ficar atrás do guarda-roupa, em- nunca mais
poeirada, com os olhos parados, coberta de teias de vira.
aranha. Somente aquela quietude existia ali. Nem
um movimento. Donata descera e conversava com os A: Somente
outros empregados, lá no fundo. Doutor Jorge a estas aquela quietu-
horas viajava para Cuiabá atrás de um brilhante de de havia ali.;
três cores. O que ela precisava, sim, era zoada, muito A: emprega-
ruído, para afugentar a visão do médico cortando a dos [s.v.]
criança, despedaçando-a, ensopando as mãos nas
carnes moles.

XXXIX
Decorreram duas feiras do dia em que João
mandara separar o facão.
Seu maior receio era não encontrá-lo. Mesmo
assim, ia confiante, pisadas firmes, até que chegou à
venda. A: ia confiante
em pisadas
– Então, meu branco, hoje trouxe o dinheiro.
[s.v.] firmes
– Qual dinheiro, veio a resposta indiferente. até que chegou
– Não se lembra d’eu?... Que tive aqui a à varanda.
semana retrasada e mandei separar um facão?
– Ah! Bem... A: Ah! bem...
– Está separado, não é?

209 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– Parece...
– Mas falei com o sinhô...
– Sim, mas demorou muito. Pensei até que
não vinha mais.
– Mas separou... disse o agregado apreensivo.
– Se não venderam, está aí. A: –Se não
O caixeiro entrou e, de volta, trouxe o feixe venderam.
de facões. Deve está aí.
– Aí está.
– E o meu?
– Na certa meu colega vendeu a outra pessoa.
– Mas...
– Cansei de avisar. Não há quem possa... Não
tive culpa. Se fosse somente eu que trabalhasse aqui.
Tem quatro empregados, desculpou-se o caixeiro.
João pegou no molho de facões, olhou, tirou-os
da bainha, experimentou-os prendendo a unha do
polegar na lâmina, soltando-a em seguida, para saber
o timbre do aço. Por fim, vergou a folha em curva,
soltou-a e deu duas pranchadas em cima do balcão.
– Não é igual ao que eu escolhi...
A: caixeiro
O caixeiro, dando pouca atenção ao freguês,
[s.v.] dando
foi despachar outro. pouca atenção
João continuava escolhendo. Cortava o ar, ao freguês
verificando o peso do ferro, até que decidiu: [s.v.]
– Esse está melhorzinho. A: o peso do
ferro [s.v.]
O caixeiro voltou-se e:
– Mas tem uma coisa. Não posso fazer o
A: Não posso
preço daquele dia. fazer o preço

| 210
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

– O quê?!... daquele dia,


não.
– Nós tivemos um aviso da fábrica. Até nos
propuseram comprar os facões em estoque a du-
zentos cruzeiros.
– Mas mandei separar o meu.
– Bem, mas não marcou o prazo. Como já é
negócio velho posso lhe fazer duzentos e vinte.
– Mas moço, tenha dó. Só trouxe os cento e
cinquenta.
– Isso aqui não é meu, amigo. Pertence ao
seu Josias. Sou empregado.
Senhor Josias, que rabiscava contas na so-
breloja, saiu, verificou a insignificância do freguês
e sentenciou:
– Não perca tempo. Quer por duzentos e
vinte?... Se não quer, pronto. Desocupa. Só querem
pechinchar.
– Meu amo...
– Nada, vocês nunca estão satisfeitos...
Antigamente recebiam três cruzeiros por dia. Hoje
têm vinte e cinco cruzeiros... Nada... Quer ou não
quer?
– Se eu só tenho cento e cinquenta?
– Então pronto.
E para o caixeiro:
– Guarde os facões...
– Espere aí, homem.
A: Espere aí
– Se o senhor não pode comprar... Nem [s.v.] homem.
roupa tem para vestir.

211 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

– É... está certo...


Pela estrada da fazenda Fartura João veio
pensando. Não tinha jeito mesmo. Só restava ficar A: Só restava
ganhando os vinte cruzeiros, tomar esporro e tra- ele;
balhar com a língua de teiú. Quando juntasse os
duzentos e vinte cruzeiros, o facão estaria por mais.
Além de tudo, a fome já insuportável. Isabel nem A: Além de
podia sair de casa. Andava nua com as traseiras tudo [s.v.] a
de fora. Os meninos, como bichos, de cabelos fome já estava
enormes, sujos, piolhentos e esfarrapados, gru- insuportável.
nhiam nas noites de fome. Queriam um pedaço A: piolhentos
de carne e um pouco mais de farinha. Tudo fizera e esfarrapados
para mostrar quem era ele. Mas a sina era mesmo [s.v.]
triste, mais forte que suas forças. Precisava mandar
rezar de olhado a ele, à choupana e a todos da
casa. Tudo dava errado. Já completava oito vezes
que juntara dinheiro para comprar o facão. Se qui-
sesse ter os duzentos e vinte, teria que trabalhar A: os duzentos
mais três semanas. O pior é que os meninos não e vinte [s.v.];
aguentavam. A casa, desprevenida. Até Bordada A: A casa esta-
queixara de pôr, depois de dois ovos. Onde já se va despreveni-
viu galinha suspender a postura depois de botar da.; A: de pôr
dois ovos? Era a sina. O melhor seria deixar a [s.v.]
vida assim mesmo. Sentia vontade de morrer para A: Até sentia
descansar. Não temeria a senhor Antônio, nem vontade de
morrer;
precisaria de facão.
A: Antônio
Ao passar pela fazenda, os trabalhadores [s.v.]
ainda estavam na roça.
Fábio pitava um cigarrão de palha feito de
papel de embrulho.
Em casa, João encontrou Isabel no terrei-
ro. Com as asas de Bordada entre uma das mãos,

| 212
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

tentava, com o mindinho da outra, apalpar a gali- A: tentava


nha. Logo que esta sentiu o corpo estranho, reme- [s.v.];
xeu-se, gemeu dolorida e foi solta. A: remexeu-se
um pouco,
– Não quer pôr... disse a mulher baixinho.
Bordada sacudiu-se toda, beliscou os fundos
para certificar-se das novidades e ganhou as
coiraneiras.
– Já veio, João?
A: Já veio [s.v.]
– Já... João?
– Cadê o facão?
– Facão?... Duzentos e vinte cruzeiros agora.
Nem o diabo pode comprar.
– É isso, homem. Se conforme com a sina.
A: – É isso
O agregado deixou a mulher e veio para [s.v.]
o oitão da casa. Estava muito triste. Sua vontade
era morrer. Sumir-se. Tanto tempo para juntar o
dinheiro! Tanto esbregue engolido sem uma pala-
vra. E depois que julgava tudo certo, o pesteado do
comerciante impunha duzentos e vinte cruzeiros.
Logo não viam que ele não tinha tanto dinheiro!
Que seria preciso um tempo enorme para juntá-lo...
– Cambada de ratos! Ratos...
João desceu a ladeira pelo caminho que ia dar
na estrada real. Resolveu ir à roça da Pedra Preta que A: caminho
tinha sido tomada de seu pai. Passou por várias casas que ía dá na
estrada real.
de trabalhadores. Eles já tinham vindo do serviço e
A: que havia
descansavam à soleira da porta de entrada. Outros,
sido tomada
rachavam lenha no terreiro com machados cegos.
A: as roças da
Adiante deu com as roças da baixa pesadas de frutos,
baixa, [c.v]
certas, ensombradas como se já fosse noite.

213 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

Na sede, o movimento era grande. Dezenas A: Na sede


de burros estavam sendo desencangalhados depois [s.v.]
de terem posto cacau o dia todo. Um que outro
burro avexava-se, querendo saborear a grama, e era
reclamando:
– Quiô!... Quiô!... vorta Boneco, Tarugo! A: – Quiô!...
O novo tropeiro dava meia carreira, cercando Quiô!... volta
Tarugo!
o animal, e continuava o serviço.
A: dava meia
Caieiros de meninos pinotavam. Apesar de carreira [s.v.]
terem passado o dia todo juntando ou descaroçando cercando o
cacau, ainda encontravam forças para jogar bola feita animal [s.v.]
de lima murcha.
Senhor Antônio, muito avexado, falava alto, A: Senhor
aos berros: Antônio [s.v.]
– Cambada de preguiçosos! Preciso com- muito avexado
[s.v.]
pletar uma estufada e vocês (a cambada estava ali
presente) só quebram cem caixas.
João receou o estado de nervos do gerente e
se meteu na roça, por detrás das barcaças, dando
uma volta pelo fundo do pomar.
Fábio tossia forte e fiscalizava os telhados,
procurando ninhos.
No mangueiro, Alecrim e Dourado raspa- A: No man-
vam a grama, um ao lado do outro, calmos, felizes, gueiro [s.v.]
como se veraneassem. Batiam a cauda, tangendo o
espanador.
Na roça da Pedra Preta já a noite andava
fazendo cama. Blocos de escuridão se adensa-
vam pelos boqueirões como se separassem das
outras sombras mais claras. Os cacaueiros, entre
as pedras negras e limosas, estavam para lascar os

| 214
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

galhos. Flores como lêndeas, birros e cabaças já


lisas ou maduras.
Ali estava o lugar da casa de seu pai. Mais
além, as roças frutíferas plantadas por ele. Ainda
havia um esteio no meio da replanta que fizeram
para ligar as roças. Tudo hoje era cacau. Doutor Jorge
transformara a posse de Mucuri em uma roça só.
Para que desperdiçar aquele terreno tão bom
com mangueiro! Daí ter arrancado o capim, lavrado A: § ; Daí
mandioca e bananeiras para depois plantar o cacau. ter arranca-
Somente o esteio de pau-brasil restava da do o capim,
plantando
casa de Mucuri. Ao lado, ficava também o pé de
mandioca e
claraíba que hoje fazia sombra aos cacaueiros e bananeiras
naquele tempo servia de poleiro. O galo losna can- para depois
tava noite adentro e sabia amiudar as madrugadas. enterrar o
Ali a vaca Bonina comia ração todas as tardes, cacau.
enquanto o bezerrinho cheiroso ficava amarrado A: comia ra-
na puxada da casa. ção toda as
As sombras tristes comprimiam-lhe a alma. tardes [s.v.]

Nem temia as assombrações que certamen-


te viriam com a noite. As corujas já estariam fora
das moradas para agourar os vivos. Dizia-se que a A: §
alma de Mucuri vinha durante as noites para tratar
Bonina, capinar em volta da casa e colher cacau.
Depois cantava, cantava até o amanhecer.
Antes do dia chegar, desaparecia. A: § ; An-
João não temia seu pai. Que ele viesse e con- tes do dia
chegar[s.v.]
versasse. Poderia até lhe mostrar um jeito de arran-
jar o dinheiro para o facão. A: Mas João
não
Falava-se também que o senhor Jerônimo
não deixava se passar por suas roças: a usura não

215 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

dava paz a sua alma. Ele tinha virado assombra-


ção, uma coruja seca, que não comia, nem bebia. A: deixava de
Só fazia secar. E todas as noites corria as plantações. passar por;
A: que não
O próprio Fábio vira o antigo patrão beirando
comia [s.v.]
a casa-sede, arrastando os chinelões, fiscalizando
tudo. De repente, virara assombração e desaparecera.
A: casa da
João sentou-se em uma pedra, junto à antiga sede;
cozinha.
A: De repente
Ali sua mãe catava os meninos, debulhava [s.v.]
feijão-verde e ficava descansando nas horas de folga, A: João sen-
com a mutuca muito arrumada atrás da cabeça. tou-se a uma
Ali também dava papa aos pequenos. Trazia a pedra
panela de cozinha, botava-a no chão e, abrindo bem
o colo amplo, ia empurrando o mingau pela boca do
filho, atenta às galinhas que queriam bicar a papeira. A: § ;
Nas noites de São João, fazia-se o fogaréu
enorme, um ramo de pati enfeitado de frutas e
até requeijão. E a noite toda era milho, foguete e A: Nas noites
licor. Festão. Não havia tempo ruim para Mucuri de São João
deixar de matar um bom capado de quatro arrobas [s.v.];
e comer até cansar. Gostava de assar milho na brasa A: para Mucu-
da fogueira... ri não matar;
Mas tudo agora era cacau. O céu escuro A: Malaquias
soltava estrelas, e uma claridade, como se fosse de lua, gostava de
brotava por detrás das roças. João gostaria de ficar assar
ali para sempre. Quem sabe não veria dona Flora, a A: O céu es-
curo soltava
vaca Bonina e o galo losna? Não se dizia também que
algumas es-
Bonina aparecia nas noites de lua e ficava remoendo, trelas,
calmamente, naquela indolência de vaca leiteira?
Onde estariam os olhos mansos da vaca, aquelas
tetas gordas e compridas, inchadas de leite?

| 216
TEXTO CRÍTICO DE OS MAGROS

Por onde andaria o galo losna com aquelas


foices de ouro caindo ao pé da cauda? Tudo estava
desaparecido.
Nem a coruja seca surgia. E se o senhor
Jerônimo, arrependido do que fizera, lhe mostrasse a
panela de dinheiro que havia enterrado? E quem sabe
se o fazendeiro não a deixaria ali, ao pé do esteio? A: E o senhor
Jerônimo [s.v.]
João encostou-se à claraiba e olhou além.
Um facho aceso, como brasa, vinha do escuro.
Seria o ouro pagão do qual todo mundo
A: §
falava? Seu filho que morrera sem batismo não fora
A: §
para o céu, tinham pedido ao senhor Jerônimo que
lhe ajudasse. O fazendeiro estaria arrependido. Se
não fizesse alguém descobrir o dinheiro enterrado, A: morrera
jamais se salvaria. sem batismo
não pudera ir
Teria que penar anos a fio, metido naquele para céu [s.v.]
corujão sem carne, só de ossos e pele. Ouvira certa e tinha pedido
vez o caso do pai que pedira ao filho pagão para ao senhor; A:
comprar um tostão de chuva. o dinheiro en-
terrado [s.v.]
E foi água de arrasar o mundo. Pois bem
quem sabe se o menino não intercedera junto ao
senhor Jerônimo? A: água de
arrancar o
No mato distante crescia o facho de ouro mundo. Pois
pagão. Iluminaria a panela. Seria preciso uma luz. bem, [c.v.]
Quem já viu se arrancar dinheiro sem vela acesa A: Ele iria
para iluminar a alma de quem a enterrou? iluminar a
O ouro pagão vinha chegando, mostrando panela. Mas
onde estava o dinheiro. Uma réstia de claridade seria preciso
bateu no pé do esteio. Agora poderia comprar facões, uma luz.
comida, roupa, sapatos e até um pedaço de terra.
Nada diria à mulher. Quando voltasse da feira era

217 |
Maria da Conceição Reis Teixeira

com um cavalo encangalhado e os panacuns entu-


pidos de trem.
Três quilos de carne verde bem gorda. Uma
rabada de boi. E por que não procurava logo desen-
terrar a panela? Tudo dizia que ela estava ali. Até
houve quem andasse esgaravatando o chão. Nada
acharam porque não levaram vela na cara da noite.
Mas ele não. Ele, João Rodrigues dos Santos, filho
do finado Mucuri, enxergava a luz viva, dourada, A: quem an-
dasse esgrava-
que parecia cegar os olhos. Se não estivesse no pé
tando;
do esteio, iria procurar junto à pedra da cozinha. A: não leva-
João tirou o facão gasto e furou a terra. Ali ram a vela e
estaria o dinheiro de que precisava. O língua de teiú nem tinham
arrancava pequenos blocos de barro que as mãos visto o ouro
em pá iam limpando. Uma coruja tua-cova chegou pagão na cara
da noite. Mas
em voo tonto e pousou no esteio. João arrepiou-se
ele, [c.v.] não.
e notou que era bom agouro. Era a alma do senhor Ele, João Ro-
Jerônimo. Continuou cavando. Aos seus ouvidos drigues dos
chegavam mugidos de Bonina. O galo losna cantou Santos enxer-
três vezes e saltou do poleiro. O dinheiro estaria ali. gava a luz;
Tudo indicava. Só faltava a vela acesa. Mas o filho A: pé do esteio
que morrera pagão daria jeito a tudo. [s.v.]
Quando os galos amiudaram João continuava
cavando.

| 218
PARTE II
A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO
EM OS MAGROS: UMA RELAÇÃO DE
DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

Harlle Silva Costa

A enxada cortava a terra fofa. O cacaueiro novo, folhas


viçosas, estava indiferente ao cansaço do homem.
(EUCLIDES NETO, 1992, p. 12).

Os magros, de Euclides Neto (1925-2000), desperta o leitor para um


paradoxo que retrata a situação social e política da região cacaueira
na década de 1960, época em que a posse do fruto de ouro traduzia a
imponência e dominação dos “donos da terra”. Em vez de apresentar
apenas um dos aspectos sociais – o panorama “magro” como o título
sugere –, o autor utiliza a técnica do contraponto narrativo, a fim
de evidenciar de modo mais contundente o cenário de desigualda-
de social e econômica no sul da Bahia. Se é possível falar em “os
magros”, é porque eles se encontram em paralelo com outro dizer,
um outro lugar discursivo, o de “os gordos”. E, desse modo, o sujei-
to discursivo apresenta-se inconformado e engajado politicamente
com as questões sociais que se evidenciam na narrativa.
Sob o olhar de duas famílias, na verdade, duas vozes que se
contrapõem na construção discursiva – a de João e a de doutor Jorge
–, a narrativa desenvolve-se, principalmente, em dois ambientes:

221 |
Harlle Silva Costa

uma fazenda de cacau no município de Ipiaú, interior da Bahia, e a


casa de doutor Jorge, na capital do mesmo estado.
A narrativa é construída com base nos paradoxos que iden-
tificam João, a quem ninguém nunca se dirigia com algum tipo de
cerimônia, e doutor Jorge, cujo título lhe fora conferido pela for-
matura em Direito e o qual era sempre respeitado devido à fortuna,
que não fazia questão de esconder. O que há em comum entre esses
dois sujeitos é a relação com a terra, embora essa relação seja marca-
da pela divergência.
Diante disso, analisam-se, neste estudo, aspectos da constru-
ção discursiva que corroboram o sentido da narrativa, especialmente
na relação do homem com a terra e os efeitos de sentido que resultam
na adesão do interlocutor, os deslizamentos de sentidos do discurso,
os quais demarcam os posicionamentos ideológicos dos sujeitos dis-
cursivos em face do embate das formações discursivas.
Inicialmente, apresenta-se o contexto narrativo e discursivo
da obra, evidenciando os enunciados que se relacionam às forma-
ções discursivas de escassez e abundância, opressão e submissão
passiva, e, em seguida, analisam-se os deslizamentos de sentido nas
relações parafrásticas referentes ao discurso sobre a terra, a partir de
conceitos da Análise do Discurso (AD) de linha francesa.
Vale ressaltar que os excertos da obra citados ao longo do texto
serão referidos com as páginas correspondentes, a fim de possibilitar
a consulta, caso o leitor considere necessário.

“TUDO MAGRO”, O SUJEITO DISCURSIVO E OS EFEITOS DE


SENTIDO NO DISCURSO

Na perspectiva da AD, o sujeito não é o centro do seu dizer, mas


constitui-se marcado pela heterogeneidade discursiva, resultante de

| 222
A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO EM OS MAGROS:
UMA RELAÇÃO DE DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

uma interação entre ideologia e inconsciente, historicamente situa-


do. Desse modo, a enunciação possui diferentes vozes relacionadas
às formações discursivas e ideológicas a que se filiam os discursos.
A partir desse pressuposto, entende-se que os sentidos das pala-
vras não são fixos, mas se constroem na relação de diferentes sujeitos
em interlocução, inscritos em espaços socioideológicos específicos.
Com isso, todo dizer está relacionado a algo já dito em algum lugar
e sob determinada situação. E esse dizer submete-se a uma formação
discursiva, a qual se interliga a outras oriundas de diferentes momen-
tos na história e de lugares sociais distintos (FERNANDES, 2007).
Na descrição do personagem João, as escolhas lexicais cor-
roboram os lugares de conflito social, as diferentes posições do su-
jeito discursivo e o embate linguístico e ideológico que se relaciona
a determinadas formações discursivas em concorrência. Se há um
discurso de denúncia, de exploração trabalhista e de extrema sub-
serviência, há, em face disso, a posição do dominador, produzindo
nestes discursos diferentes efeitos de sentido no contexto das condi-
ções desse dizer.
No discurso da narrativa, João carrega a lembrança de dias
fartos em casa de seus pais, antigos proprietários das terras circun-
vizinhas, que, segundo ele, foram desapropriadas pelo genitor de
doutor Jorge. Enquanto João (sobre)vive na fazenda Fartura com
a mulher e seus oito filhos, em condições subumanas, doutor Jorge
reside na capital baiana, cercado das regalias que o lucro da fazen-
da lhe proporciona. Essa situação ilustra nitidamente a atitude das
famílias favorecidas economicamente no período áureo do cacau,
no sul da Bahia.
Com períodos curtos e linguagem simples, o sujeito discursi-
vo rememora, provavelmente, as diligências de Euclides Neto como
advogado dos pobres – assim conhecido por sua atuação em favor da
posse da terra para os menos favorecidos. O tom de indignação é acen-
tuado ao enunciar sobre o empregado da fazenda. A descrição é tão

223 |
Harlle Silva Costa

minuciosa que possibilita ao interlocutor igualmente indignar-se com


a situação da personagem, que, embora se assemelhasse a um bicho
não só na aparência, mas principalmente nas condições de vida, ousava
pensar numa sorte diferente e, por isso, persistia no trabalho.

João era agregado: magro, pálido, olhos afundados


nas órbitas cavadas. Barbicha rala de muito tempo,
o cabelo crescido, encobrindo as orelhas. O chapéu
de palha sem fundo. As roupas em molambos, en-
cerotadas, mostrando a carne flácida. Pés enormes,
o dedão torcido para um lado. Pés criados na lama,
furados de espinhos. Pés de bicho. Alguns dentes
quebrados. O cinturão de sola e o facão mostrando a
ponta pela bainha velha. Quase não pensava. Ouvia o
búzio que o chamava à roça. Ia tocado como um boi
no arrasto. Gostaria de comer carne fresca, sangrenta.
Uma rabada de novilha gorda. Mas somente no São
João pudera comprar meio quilo de ossos frescos.
Roera-os com sofreguidão. Quanto ao mais, a mesma
coisa: farinha com um taco de carne assada. Malagueta
ou cumarim. Um gole d’água e pronto. (EUCLIDES
NETO, 1992, p. 2-3).

A primeira característica apresentada para João é o qua-


lificativo magro, seguido de outros que o reforçam: “pálido, olhos
afundados nas órbitas cavadas”. Fisicamente, João era a magreza
personificada, mas este não era o pior problema que ele enfrentava.
Nas assertivas que se seguem, excertos da obra em estudo, o adjetivo
é reincidente, até mesmo na visão da personagem que lamenta sobre
sua própria sorte. “Vida dura, meu Deus. Vida de cachorro. Estou
mais magro. Parece que os meninos estão aniquilando. Tudo magro.”
(p. 4); “E a noite rolava pesada sobre os magros.” (p. 14); “Até os ossos
de sereia estavam mais magros.” (p. 61); “Mesmo assim, ali estavam
as folhas para as sextas-feiras magras [...]” (p. 85).

| 224
A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO EM OS MAGROS:
UMA RELAÇÃO DE DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

“Tudo magro” traduz a condição de sobrevivência de João e de


sua família. Apesar da fartura que existia na fazenda, eles viviam em
situação subumana: magro era o alimento escasso nas refeições, os
sonhos castrados, as esperanças esvaídas, o sono intranquilo, a vida
emagrecendo e tornando-se cada vez mais difícil de suportar.
Esse discurso é fortalecido quando em contraponto com
outro personagem da narrativa, doutor Jorge. Sobre ele, diz o
enunciador:

Doutor Jorge era filho do antigo fazendeiro senhor


Jerônimo. Alto, curvado como se os ombros estreitos
não combinassem bem na barriga volumosa. Seu todo
dava impressão de flacidez e ausência de trabalhos
físicos, os braços finos, muito longos, terminados em
mãos de seda. Os pulsos de menino doente denota-
vam inutilidade. Parece que existiam somente para
suportar o charuto fino que os dedos seguravam. [...]
Herdou a fortuna dos pais, que morreram, um após
o outro, dentro de seis meses. Aos vinte e oito anos
casou-se, viu-se diplomado e rico. Como se a sorte
fosse curta, casou-se com dona Helena, neta de arqui-
milionário, e as fazendas, vizinhas, cresceram a vinte
e cinco mil arrobas. Como nada tinha a fazer, cuidava
de sua coleção de brilhantes verdes, vermelhos, ama-
relos, azeite doce, alvos, que se guardava no cofre do
gabinete. (EUCLIDES NETO, 1992, p. 9).

Pelo exposto, é possível perceber a relação de dominação e


subserviência entre doutor Jorge e João. Fartura, nome da proprie-
dade, é uma ironia à situação não só de João, mas da maioria dos
agregados, com exceção do senhor Antônio, a quem doutor Jorge
outorgava alguns direitos. A fartura estava apenas para um dos lados,
o do empregador que se tornara obeso pela falta de labor. Enquanto
João era excessivamente magro pelo sofrimento patente, pela

225 |
Harlle Silva Costa

obediência servil, pela falta de comida, de roupas, de moralidade, de


dignidade e de coragem. Enfim, pela “faltura” de tudo.
Os contrastes não findam por aí: em oposição à casinha co-
berta com indaiá, cozinha, quarto e sala que abrigavam João e sua
família, na cidade de Salvador, o palacete de doutor Jorge com dois
pavimentos, salas amplas, dúzias de quartos e varandas ociosas
ostentavam o luxo da vida abastada e cercada de mordomias, que
estavam muito longe da realidade enfrentada na fazenda. Cristais,
comida em abundância, numerosos empregados, inclusive chofer
particular para dona Helena, sua esposa, que dispensava todo o seu
tempo para cuidar da boneca Rose Marie, como se esta fosse sua
própria filha, dentre outras futilidades para quebrar a monotonia.
A partir desse pressuposto, pode-se inferir que o sujeito
discursivo, ao enunciar “Tudo magro”, marca um posicionamento
ideológico de indignação contra a condição de miséria a que o traba-
lhador era obrigado a se submeter, a fim de lutar pela sobrevivência
e sustento de sua família. Além disso, possibilita distinguir duas for-
mações discursivas: a defesa dos direitos humanos fundamentais e a
desigualdade social – a condição de inércia do dominado e a posse
da terra como privilégio, poder e dominação.
O enunciado, apesar de relacionar-se a um discurso de es-
cassez, interdiscursivamente alude ao direito a saúde, moradia, ali-
mentação saudável, educação e trabalho digno. Quanto ao sentido
da palavra, esse entendimento corrobora a afirmativa de Pêcheux
(1997, p. 190):

O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma


proposição etc., não existe em “si mesmo” [...] mas,
ao contrário, é determinado pelas posições ideológi-
cas colocadas em jogo no processo sócio-histórico no
qual as palavras, expressões e proposições são produ-
zidas [...].

| 226
A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO EM OS MAGROS:
UMA RELAÇÃO DE DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

Desse modo, o sentido diz respeito ao efeito produzido entre


sujeitos em enunciação, e este fenômeno está relacionado à possibili-
dade de substituição entre elementos (palavras, expressões, proposi-
ções) no interior de uma formação discursiva. Ele se constitui dentro
da matriz de sentidos, nas relações parafrásticas entre sequências
discursivas, o que se denomina, portanto, efeito metafórico.
O efeito metafórico pode se manifestar por meio de relações
sinonímias contextuais entre dois grupos de termos ou expressões que
produzem o mesmo efeito em relação a um contexto, ou seja, uma
substituição contextual, provocando deslizamento de sentido. Esse
“deslizamento de sentido” entre x e y é constitutivo do “sentido” desig-
nado por x e y (PÊCHEUX, 1995), e não exterior a eles.

RELAÇÕES PARAFRÁSTICAS NO DISCURSO DA RELAÇÃO


HOMEM E TERRA

A relação do homem com a terra remonta aos tempos pri-


mórdios e sempre esteve relacionada às lutas por poder e suprema-
cia, mas também pelo sentimento de dependência e sobrevivência.
Em vários momentos da história, o dono da terra era também
quem estava em situação de domínio, não só da propriedade, mas
das tomadas de decisão política e dos ditames em relação ao outro,
desprovido de qualquer posse. Na sociedade feudal, por exemplo,
o direito sobre o território era concentrado nas mãos dos senhores
feudais, os quais decidiam para quem determinada terra poderia ser
distribuída. E, com isso, havia uma rígida divisão entre as classes e
extrema desigualdade social.
Na construção discursiva de Os magros, a relação homem e
terra emerge num confronto entre formações discursivas que estão
relacionadas às condições de produção desse discurso e às suas con-
dições socioideológicas. O autor, pioneiro da reforma agrária no

227 |
Harlle Silva Costa

Brasil, dá voz ao enunciador a partir de um posicionamento crítico


sobre a distribuição de terras no país e da desigualdade social re-
sultante desse desequilíbrio. Com isso, os efeitos de sentido produ-
zidos pelo discurso promovem a indignação do interlocutor diante
da sorte madrasta de muitos trabalhadores rurais, na região sul da
Bahia, em decorrência da exploração por parte dos cacauicultores.
Esses enunciados em oposição relacionam-se a duas forma-
ções discursivas em conflito: a primeira em defesa da terra para
todos, tendo como possibilidade a reforma agrária; a segunda filiada
à ideia de exploração, não apenas da terra, mas de tudo e de todos
que a ela estão diretamente relacionados.
Sendo assim, a palavra, ao ser utilizada por determinados
sujeitos, integra um discurso e não outro, tendo em vista a posição,
o lugar sócio-histórico-ideológico daqueles que a enunciam. Em Os
magros é possível analisar, a partir de seus enunciados, pelo menos
três sentidos produzidos pela palavra terra e seus correlatos.
O primeiro deles refere-se à própria condição do explo-
rado. Embora houvesse tanta terra disponível para o plantio,
a João e sua família restavam apenas as sobras. As condições
subumanas de existência não correspondiam aos benefícios que
a terra poderia proporcionar. A casa de taipa e chão batido era a
parte que lhes cabia: “Bem que as baratas saíram aos caieiros dos
buracos de taipa” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 51); “Relâmpagos
retalhavam o céu em lâminas de aço e esfaqueavam os buracos
de taipa.” (p. 53); “As folhas ressequidas abriam-se, deixando
cair goteiras no chão batido.” (p. 51), “A galinha choca arrastou
os buguelos e aninhou-se, ali, mesmo, no canto da sala, numa
barroca vazia.” (p. 23).
Os utensílios domésticos também são originados da própria
terra. Desde a panela para cozer o alimento ao penico para destinar
os dejetos: “O fogão era armado sobre quatro forquilhas de madeira,
com lastro de varas recobertas de barro...” (EUCLIDES NETO, 1992,

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A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO EM OS MAGROS:
UMA RELAÇÃO DE DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

p. 1); “Uma panela de barro, a chocolateira preta, o coador e três


pratos também de barro, sujos da véspera.” (p. 1); “Isabel apanhou
o saco de farinha, jogou um punhado na boca e colocou um pouco
na panelinha de barro.” (p. 22); “No fundo a lama escura esverdeada,
a pimenteira, o pé de jiló e o penico de barro encostado à parede.”
(p. 2); “[...] cada um foi para o seu canto com o caco de barro na
mão.” (p. 22).
O único conforto e segurança que poderia oferecer aos filhos
era também a terra, a terra molhada, a lama: “O caçula abriu o eco e
foi posto na terra molhada, encostado à parede.” (p. 2); “Pés criados
na lama, furados de espinhos.” (p. 3); “A mulher afastou a panela de
barro, forrou a terra morna com uns trapos. Botou o filho a quentar
[...]” (p. 24).
Há ainda as referências a covinhas e areia estorricada. A pri-
meira semanticamente se refere a buracos feitos na terra com o
objetivo de enterrar algo. Ao enunciar “[...] O céu estava todo cheio
de covinhas de anjo [...]” (p. 30), evoca a memória discursiva de
sepulturas cavadas na terra para acomodar cadáveres de crianças,
algo real e recorrente na vida da família.
Em “João foi à feira, comprou os trens, deu meia volta, despe-
jou uma cachacinha na garganta, que mais parecia areia estorricada.”
(p. 92), o sujeito aproxima a sensação da bebida em sua garganta com
a sensação de engolir areia estorricada, uma metáfora da situação
vivenciada pela personagem, que conhecia bem o solo em época de
sol escaldante. Assim, como não era fácil lidar com a terra, removê-la
com a enxada ou pisá-la com pés descalços, não seria fácil suportá-la
como alimento, ainda mais por saber que, muitas vezes, essa era a
alternativa encontrada por seus filhos, quando nada encontravam
para saciar a fome.
Para João, a sua triste condição era atribuída à própria terra,
que embora não fosse sua, fazia parte dele: “Quando meu pai tinha
um pedaço de terra, tomaram à força. Agora, a sina triste dá terra,

229 |
Harlle Silva Costa

mas pra menino comer, ficar opaco, fazendo assombração [...]”;


“Da terra, pobre só tem direito de trabalhar para os outros”; “Se tra-
balha, labuta até morrer. Se come, morre também. Deus só fez a terra
para os ricos.” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 78). A terra que produzia
alimento antagonicamente servira de sustento para os filhos do la-
vrador, deixando-os à própria sorte, como uma destruidora cruel.
Este segundo sentido refere-se à terra como uma ameaça à
vida e, de igual modo, denota a condição de subserviência e im-
potência de João. O filho estava à beira da morte, e ele pressentia:
“Os grilos cricravam nas vassouras do terreiro. Corujas tua-cova
agouravam nas capoeiras.” (p. 28); mais uma vez a terra sem dó
levaria mais um dos seus; “Do mato vinham as pancadas fofas da
enxada de Júlio, cavando a sepultura.” (p. 34); “Os meninos de pés
no chão, muito honrados com a oportunidade, pegaram o caixão e
saíram.” (p. 34); “A terra cobriu o menino [...]” (p. 34); “O cheiro de
vela, que se acendera ao anjo, estava por ali, misturado ao fartum
de terra urinada.” (p. 53).
João temia a terra na qual vivia e trabalhava: “A gente não pode
nem sentir saudades, Isabel. O nosso filho morreu e nós já esquece-
mos. A gente só tem direito a ter medo do Senhor Antônio, os coris-
cos, da enxurrada levar tudo. Para a gente, só tem o medo.” (p. 71);
“Uma tarefa ali dava para uma família viver, comprar de tudo, andar
vestido, comer todos os dias e não ter medo.” (p. 85). O trabalhador
temia o senhor da terra, representado por Antônio, gerente da fazen-
da: “Senhor Antônio chegou estabanado, riscou as quatro ferraduras
no terreiro estreito, deixando quatro vincos no barro [...]” (p. 41).
“Cá do terreiro, reparava-o caçando seus filhos como se eles fossem
porcos.” (p. 43, grifo nosso). João poderia correr, defender suas crias,
mas não conseguia. Era como se a terra o prendesse, o impedisse
de se rebelar, de resgatar os filhos que, sem alternativas, iam sendo
arrastados pelo chão, arrastados pela vida, insistindo em sobreviver,
a despeito das intempéries.

| 230
A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO EM OS MAGROS:
UMA RELAÇÃO DE DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

A terra se mostra impiedosa na relação de João com senhor


Antônio. Assim como a terra, o gerente era uma ameaça constante,
e em frente a ele João mais uma vez se via impotente, não podia
nem defender os filhos. O empregado mentira sobre a quantidade
de filhos a fim de assegurar o emprego e, por este motivo, os filhos
viviam se escondendo.
O encarregado não era temido apenas pelos meninos, mas
pelo próprio João, que dele recebia as constantes ordens e repreen-
sões: “Senhor Antônio chamou a atenção para a roçagem, que de-
veria ser bem feita, rente ao chão.” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 63).
Inconformado, dizia João: “Senhor Antônio está nos tocando como
cachorros. Só falta bater o pé no chão e dizer: puxa daqui!... puxa.
Mas eu compro o facão.” (p. 71). O encarregado exigia um trabalho
apurado, mas não oferecia condições para que João ao menos pudes-
se comprar um facão novo.
Enquanto a terra ameaçava os filhos vivos, nas elucubrações
de João, ela também, sem piedade, engolia os restos mortais do filho
sepultado. O narrador penetra no pensamento de João ao destacar
a terra como vilã que tranquilamente saboreia sua presa. Isso fica
evidente nos seguintes excertos da narrativa: “Ali perto, na roça,
dormia o menino morto, enterrado naquele dia [...]. A terra preta es-
taria mastigando o corpinho aniquilado.” (EUCLIDES NETO, 1992,
p. 52); “Lá fora as raízes dos cacaueiros coleavam feito cobras gulosas
em procura do menino morto.” (p. 53); “João foi olhar a cova do filho
[...] A terra apresentava-se mais escura, roxa.” (p. 61); “[...] certamen-
te as raízes reptantes já triunfavam as carnes do pagão. Os cacaueiros
ficaram muito contentes e produziriam frutos enormes, cheios de
caroços que Doutor Jorge venderia...” (p. 61).
Se chovia, a situação ficava ainda pior, dificultava o traba-
lho na lavoura e senhor Antônio geralmente fazia-o perder o dia.
A forte chuva ainda impossibilitava o sono, que já era conturbado:
“Ao deitarem-se, notaram as poças d’água e novamente levantaram-se.

231 |
Harlle Silva Costa

A enxurrada havia furado a parede, invadindo a sala em busca das


barrocas. [...] As folhas da cobertura deixaram a água cair, lavando
todo chão.” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 53).
Não bastasse a chuva, o ciclo da ceifa pela terra parecia con-
tinuar. Aprígio, caracterizado como “[...] criança opada, esverdeada
mesmo, modorrava no oitão, deitado na terra que os aguaceiros da
noite tinham umedecido.” (p. 76). E o que fazia Aprígio? Matava a
própria fome se alimentando de terra molhada, apesar da censura
do pai: “– Está comendo terra, cachorro. Você morre. Terra mata.”
(p. 76).
O enunciador reforça a sina da família, acrescentando as
digressões da mãe sobre os demais filhos: “Comiam terra desde
pequeninos. Iam aniquilando, amarelecendo, a barriga inchada até
que desapareciam.” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 77); “Não podia
resistir à terra. [Aprígio] Queria comê-la [...] E saboreava a terra,
calmamente, salivando cada parte, devagarinho, satisfazendo-se.”
(p. 77-78). E, enquanto isso, “A terra apressada levaria todos os me-
ninos para que as raízes gulosas salivassem com os aguaceiros das
noites escuras. A terra não tinha paciência.” (p. 78).
A partir desses enunciados, pode-se depreender que, nesta re-
lação de sentidos, a ideia de terra confunde-se com o sentido atribuí-
do ao seu proprietário, levando a um terceiro sentido. Assim como
a terra era indiferente às mazelas sofridas pelo trabalhador, também
era o próprio dono da terra. Não demonstrava tolerância nem pa-
ciência, preocupavam-no apenas os lucros obtidos pelos cacauais,
não importava a que custos. Isso também pode ser corroborado nas
seguintes reflexões do personagem João em resposta à indignação de
sua mulher: “Não via que as roças não eram dele? Que as plantações
pertencem ao dono da terra? E que a terra perseguia a todos: matava
e comia os meninos?” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 86).
No fragmento a seguir, o sujeito discursivo utiliza o termo
cacau com o mesmo sentido já atribuído à palavra terra: “Não.

| 232
A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO EM OS MAGROS:
UMA RELAÇÃO DE DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

Cacau, Isabel não queria. Dava sofrimento. [...] Até o sangue da gente
o pesteado leva. Comia os filhos da gente.” (EUCLIDES NETO, 1992,
p. 86). Tanto a terra como o cacau são apresentados como antropó-
fagos impiedosos: “Eu passo tantos dias sem um caroço de farinha
em casa! E aqui é a terra que come tudo...”; “Que o patrão proibiu de
arrancar essas mandiocas. Diz que é pra adubar a terra. Cacau gosta
de comida gorda.” (p. 107).
Enquanto os trabalhadores sofriam as mazelas da exploração
na fazenda, doutor Jorge passava os dias a imaginar de que modo
poderia aumentar a sua coleção de pedras preciosas.

O DISCURSO, A TERRA E DESLIZAMENTOS DE SENTIDO

Para a AD, o efeito de sentido é a relação de possibilidade


de substituição entre palavras, expressões e proposições no inte-
rior de uma formação discursiva (PÊCHEUX, 1995). O efeito se
constitui dentro da matriz de sentidos nas relações parafrásticas
entre sequências discursivas. Esse fenômeno semântico denomina-
-se efeito metafórico ou paráfrase e, por meio dele, pode-se dizer
a mesma coisa de forma diferente, sem alteração de significado.
Não quer dizer, portanto, mudança de sentido, mas diz respeito
a um mesmo sentido cristalizado que se perpetua nos diferentes
discursos produzidos e possibilita o deslizamento de sentido.
Segundo Orlandi (2007), esse efeito é característico das lín-
guas naturais por oposição aos códigos e às línguas artificiais. Sendo
assim, pode-se considerar que não há sentido sem a possibilidade de
deslize e sem interpretação, que seria constitutiva da própria língua.
Essas relações parafrásticas em Os magros corroboram os des-
lizamentos de sentido, principalmente por meio das inúmeras subs-
tituições das palavras e expressões do campo semântico do vocábulo
terra, como evidenciado na seção anterior. Desse modo, no desfecho

233 |
Harlle Silva Costa

da narrativa, o sujeito discursivo amplia o efeito ao mesmo tempo


em que provoca no discurso da personagem João um olhar mais po-
sitivo na relação homem e terra, aludindo quase que exclusivamente
ao vocábulo primitivo e seus cognatos.
Apesar do visível conformismo de João e sua família em
face da sua condição de vida e impotência diante das ameaças da
terra, há enunciados em que é possível perceber um lampejo de
indignação: “A terra era boa porque estava adubada com lágrimas e
tristezas.” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 86); “Ela [Isabel], outro dia,
também comera torrão. Queria saber o gosto, mas, por dentro, era
vontade de engolir a terra. E gostou. Comeu duas vezes. Ninguém
sabia.” (p. 97). Essa vontade de “engolir a terra” soa como forte
desejo de vingança, de rebelião. Se pudesse acabaria com a terra,
e com ela todo o sofrimento que os assolava. Nesses fragmentos,
estão em evidência não apenas o sofrimento, mas também a impor-
tante contribuição dos lavradores para o apogeu do cacau na Bahia.
Eram eles que adubavam o solo, mesmo com lágrimas e tristezas, e
se não fosse por eles, a terra, por si só, nada produziria.
Nas proposições que se seguem, pode-se inferir a terra como
solução para os problemas enfrentados. Este sentido contrapõe-se
às relações de sentido que predominam na narrativa, a saber, a terra
como ameaça à sobrevivência.
Num momento de fome exacerbada, João não controla seu
espírito de retidão e vê-se impulsionado a roubar o fruto proibido.
Mas conflitava em sua consciência: roubaria o fruto e ficaria impune?
E se alguém descobrisse, o que fazer para ocultar o seu delito?
É quando encontra na terra uma alternativa: comeria o fruto e depois
enterraria as cascas, lançaria folhas secas por cima da terra cavada e
pronto. A terra temida e ameaçadora seria a solução imediata para
seu problema.
Em outra situação, quando questionado por senhor Antônio
sobre a quantidade de filhos que tinha, “João calou. Num relance,

| 234
A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO EM OS MAGROS:
UMA RELAÇÃO DE DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

passou por sua cabeça a vontade de apanhar a língua de teiú e enter-


rar todinha no filé do miserável.” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 42).
Por um momento, pareceu indignar-se e utilizou o verbo enterrar
para uma ação que inspiraria a vingança tão almejada, mas o pensa-
mento logo se dissipou e o agregado foi acometido de certo temor.
Diante da miséria e da falta de opção, João e Isabel também
viam na posse e cultivo da terra uma alternativa para resolver seus
problemas. Imaginavam o que seria ter um pedaço para cultivar e
lamentavam o fato de não poderem plantar para o seu próprio sus-
tento: “Tanta terra que a fazenda tem, hein João [...] Terra que nem
ladrão acaba [...] E não dão nem uma nesga de terra para plantar
umas brugunças. Tanta terra boa, tanta capoeira perdida. [...] [Isabel]
Enfiava os dedos na terra fofa e arrancava o que não era de comer.
[...] Então olhava além, e via as terras vastas, subindo e descendo
lombadas. [...] Terrenão! À noite se comentou a flor do cacaueiro.
Fizeram-se planos. ‘Para o ano, na outra safra, vamos melhorar
de vida’”. (EUCLIDES NETO, 1992, p. 85, grifo do autor); “Se lhe
dessem, João, uma tarefa dessa roça, você queria? – Ainda pergun-
ta... Ia desmanchar em farinha, beiju e crueira. ” (p. 106); “A gente
hoje era para ser rico com aquele pedaço de terra.” (p. 108).
O discurso que destaca a terra como riqueza e solução para
os problemas enfrentados pela família apresenta o interdiscurso da
distribuição da terra para todos e traz a memória discursiva da re-
forma agrária, que consiste na compra ou desapropriação de terras
devolutas a fim de beneficiar àqueles que não têm condições para
comprá-las. Isso corrobora também o que reza o Estatuto da Terra,
segundo o qual o Estado tem o dever de garantir a posse para quem
nela vive e trabalha (BRASIL, 1964).
Quanto a essa questão do interdiscurso, Pêcheux (2012)
afirma que longe de ser efeito integrador da discursividade, ela
torna-se seu princípio de funcionamento. Os elementos da sequên-
cia textual, funcionando em uma formação discursiva, podem ser

235 |
Harlle Silva Costa

importados (metaforizados) de uma sequência pertencente a outra


formação que as referências discursivas podem se construir e se des-
locar historicamente.
Conforme Orlandi (2012, p. 173),

Não há dizer que para fazer sentido não se inscreva


na memória. Não há dizer que não se faça a partir
da repetição. No entanto, na repetição histórica,
há deslocamento, deriva, transferência, efeito metafó-
rico. E o efeito metafórico é retomada e esquecimento,
deslize para outro lugar de sentido, novo gesto de
interpretação.

É interessante observar que, nos capítulos destinados à narra-


ção da vida de doutor Jorge em Salvador, não há nenhuma ocorrência
da palavra terra e poucas referências à fazenda, considerando que
era o lucro das propriedades rurais que sustentava o luxo da vida na
capital. Após essas reflexões, questiona-se: qual o sentido da terra
do ponto de vista do “dono da terra”? O que poderia justificar esse
“esquecimento” do sujeito discursivo?
As questões podem ser respondidas a partir da ideia de
que para todo dito, há um não dito. Então, o sentido A está para
o sentido B e, nesta relação, temos a construção discursiva do
ponto de vista do explorador e do explorado conflitando entre
si. A terra era mais importante para quem nela habitava e com
ela se relacionava por meio do trabalho braçal. Para o dono, não
importava, necessariamente, a terra ou suas condições, mas as
receitas advindas dela.
Essa construção de sentido relaciona-se a formações discursi-
vas em oposição, as quais se referem a um posicionamento ideoló-
gico, aquilo que pode e deve ser dito numa determinada conjuntura
social, historicamente situado.

| 236
A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO EM OS MAGROS:
UMA RELAÇÃO DE DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

Em Os magros, o sujeito se inscreve em várias formações


discursivas na construção do discurso, porém, é predominante a
ideia de que a terra não pode ter donos, é preciso que seja com-
partilhada e dela todos possam retirar o seu sustento. Ao ressaltar
a relação da terra com o explorado, essa construção discursiva
denuncia “os gordos” exploradores e anuncia aos “Joões” que é
preciso resiliência.

João tirou o facão gasto e furou a terra. Ali estaria


o dinheiro de que precisava. O língua de teiú arran-
cava pequenos blocos de barro que as mãos em pá
iam limpando. Uma coruja tua-cova chegou em voo
tonto e pousou no esteio [...] Continuou cavando [...]
Quando os galos amiudavam João continuava cavan-
do. (EUCLIDES NETO, 1992, p. 164).

Parafraseando Euclides da Cunha (2004), João é, antes de tudo,


um forte. Em face de toda a desventura, mantinha a expectativa de
uma melhoria de vida, de encontrar na terra, além do seu sustento,
a dignidade que lhe fora roubada. E, apesar de toda adversidade,
envidava os esforços para continuar resistindo: continuava cavando.
Para a AD, todo discurso está relacionado a um outro discur-
so, a uma memória discursiva, a um já dito, ao interdiscurso, o qual
se origina do deslocamento do sentido de uma formação discursiva
para outra por meio da metáfora. A explicação desse novo sentido
ocorre por relações parafrásticas. Esses fenômenos dão ao sujeito a
ilusão de escolher as palavras no discurso, ao tempo em que marcam
o posicionamento ideológico e promovem os deslizamentos de sen-
tidos no discurso.
No discurso da relação homem-terra subjacente à obra em
estudo, evidenciou-se que a escolha de uma palavra por outra não
denota uma opção consciente do sujeito discursivo. Essa seleção
provoca o deslizamento de sentido, a mudança de posicionamento

237 |
Harlle Silva Costa

ideológico, de uma formação discursiva para outra. Além de sugerir


forte relação do homem com a terra, movida por sentimentos ora de
exploração, ora de temor, ora de sobrevivência. E é dessa relação que
a materialidade discursiva constrói os sentidos com os quais o leitor
se depara.
Nessa perspectiva, o interdiscurso aponta para a dicoto-
mia “tudo magro” e “tudo gordo”, como denúncia da desigualdade
social, e a distribuição de terra para todos como solução para essa
problemática.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964. Diário Oficial


da União: seção 1, Brasília, DF, suplemento, p. 49, 30 nov. 1964.
Disponível em https://bit.ly/2IzwVM6. Acesso em: 19 dez. 2018.
CUNHA, Euclides da. Os sertões. 7. ed. Rio de Janeiro: Record,
2004.
EUCLIDES NETO. Os magros. 2. ed. São Paulo: Guerra & Bussius,
1992.
FERNANDES, Claudemar Alves. Análise do discurso: reflexões
introdutórias. 2. ed. São Carlos: Claraluz, 2007.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e
procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2007.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em análise: sujeito, sentido,
ideologia. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 2012.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). In:
GADET, Françoise; HAK, Tony (org.). Por uma análise automática
do discurso: uma introdução à obra de Pêcheux. 3. ed., Campinas:
Editora da Unicamp, 1997.

| 238
A TERRA E O SUJEITO DISCURSIVO EM OS MAGROS:
UMA RELAÇÃO DE DESLIZAMENTO DE SENTIDOS

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação


do óbvio. Tradução de Eni P. Orlandi. Campinas: Editora da
Unicamp, 1995.
PÊCHEUX, Michel. Metáfora e interdiscurso. Tradução de Eni P.
Orlandi. In: Análise de discurso: Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas:
Pontes Editores, 2012.

239 |
A FARTURA DA LINGUAGEM

Tereza Cristina Damásio Cerqueira

O presente texto ocupa-se de analisar o romance Os magros,


de Euclides Neto, sob o viés discursivo-literário. O objetivo é,
a partir do vocábulo facão, estabelecer as implicações entre a língua
– enquanto moduladora do discurso – e a literatura – enquanto
o próprio discurso. Para realizar o estudo, tomou-se como aporte
teórico os princípios da análise do discurso de linha francesa, re-
correndo a duas vertentes paralelas, mas não opostas. De um lado,
tem-se a análise do discurso, cuja referência é Pêcheux (1990 apud
BENTES; MUSSALIM, 2003), de outro, a análise do discurso literá-
rio, na qual figura Maingueneau (1995), que oferece o lastro neces-
sário para essa realização.
O título deste texto apresenta, certamente, uma oposição ao
da narrativa de Os magros, a partir da ideia de “fartura”. Como supõe
o título do romance escrito em 1961, a história contada, predomi-
nantemente em terceira pessoa, versa sobre a vida de pobreza extre-
ma do trabalhador rural João, na condição de agregado na Fazenda
Fartura, e do rico fazendeiro doutor Jorge. Os agregados, como são
chamados os trabalhadores sem vínculo empregatício nas fazendas
de cacau, são desprovidos de direitos trabalhistas e de direitos huma-
nos. No caso da expressão “fartura”, que aparece no título deste capí-
tulo, faz referência ao fato de o romancista utilizar-se da linguagem
da gente das roças de cacau e selecionar algumas palavras simples, do
universo tão desprovido de importância para os fazendeiros, mas de

241 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

significação abundante para o pobre trabalhador. Então, a partir do


título deste estudo, dispara-se o problema: em que medida o uso da
linguagem corrente nos diálogos simples, “ingênuos”, dos trabalha-
dores rurais de Euclides Neto oferece elementos para construir uma
narrativa “farta” em denúncias sobre as precárias condições da classe
trabalhadora rural na região cacaueira do sul da Bahia?
Deste modo, entende-se que o título se justifica pela análise
do trabalho discursivo-literário realizado por Euclides Neto em Os
magros. Nota-se que, ao longo da narrativa, as palavras facão, língua
de teiú, banda-lisa, zinco, entre outras, tomadas em determinados
contextos de enunciação, revelam discrepâncias sociais entre fa-
zendeiros e empregados. Tais diferenças vão sendo apresentadas no
tecido literário, em cuja trama o que não está dito é (ou dá) o “nó” na
trama que compõe o tecido social.
Assim, realidade e ficção se misturam, “se tecem”. A partir disso,
fez-se necessário recorrer a um campo de estudo que tornasse possí-
vel a compreensão dessa mescla, a fim de compreender, no romance,
a conjuntura social, e, a partir da conjuntura social, o romance. Dito
isso, entende-se que a narrativa de Os magros apresenta um jogo de
oposições que denunciam modelos sociais explicitamente hierar-
quizados, bem como situações de dominação do rico fazendeiro e
de opressão da classe trabalhadora. Importa ressaltar que o facão
(e suas variantes) – instrumento de trabalho e objeto de desejo
de João – representa o evento discursivo que irrompe o projeto
político-literário.
A análise do discurso, sob perspectiva de Pêcheux (1990
apud BENTES; MUSSALIM, 2003), fundamenta a realizada a
partir de três conceitos que subjazem ao estudo apresentado:
discurso, formação ideológica e formação discursiva. No con-
texto da análise do discurso, importa considerar que (BENTES;
MUSSALIM, 2003, p. 123): (i) o sentido é historicamente cons-
truído; (ii) ao se falar em discurso, deve-se considerar o contexto

| 242
A FARTURA DA LINGUAGEM

histórico-social, ou seja, o contexto da enunciação; (iii) discurso


é entendido como “aparelho ideológico”, através do qual se dão os
embates entre posições diferenciadas.
A natureza ideológica do discurso se materializa na linguagem
(falada, escrita, gestual, imagética etc.) e põe em cena um elemento,
um aspecto das lutas e dos conflitos que podem ou não estar em
confronto. O elemento, que aparece como o gerador de lutas e confli-
tos, pode ser chamado de formação ideológica, interesse defendido
por pessoas e grupos sociais. Os discursos veiculam tais interesses
que nem sempre aparecem em situação de confronto; muitas vezes
surgem em relações de aliança ou de dominação. Neste sentido, é im-
portante entender que as formações ideológicas atuam como forças
que produzem a heterogeneidade intra e interdiscursivas.
Assim, de acordo com dada formação ideológica, o discur-
so de um texto literário ou não apresenta, de um lado, aspectos ou
elementos com interesses geradores dos conflitos internos; e, de
outro, elementos que representam interesses que podem estar em
conflito com outros elementos externos a esse texto, com os quais é
estabelecida uma relação dialógica. Não aleatoriamente, determina-
da formação ideológica define o lugar de onde discurso e ideologia
se articulam (BENTES; MUSSALIM, 2003, p. 125), ou seja, define a
formação discursiva.
Entendida desta forma, a formação discursiva retoma as di-
ferentes posições de Euclides Neto na sociedade cacaueira do sul da
Bahia, em especial na cidade de Ipiaú, para entender seu lugar de
escritor. É importante considerar que as relações que o autor estabe-
leceu com as demais posições ocupadas por ele (advogado, prefeito e
fazendeiro) vão, de algum modo, aparecer no seu processo criativo.
Isto acontece porque o autor, no seu engajamento social, sente-se
comprometido politicamente também na sua literatura. Como se
pode ver em Os magros, um discurso cuja ênfase está na voz traba-
lhadora e no seu instrumento de trabalho, o facão.

243 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

Note que, seguindo os conceitos (discurso, formação ideoló-


gica e formação discursiva) apresentados e relacionando-os ao refe-
rido romance, é possível tê-los como operadores de uma concepção
de língua que subjaz à obra como um sistema dialógico, como um
constructo social que, indubitavelmente, aponta para a não neutrali-
dade das palavras. Isto posto, deve-se compreender que, por questão
metodológica, a palavra facão e suas variantes (língua de teiú, zinco,
ferro, banda-lisa, chibute etc.) foram tomadas no recorte da análise.
Ressalta-se que, em todas as citações, foi levado em consideração o
romance como um conjunto discursivo e como suas condições de
produção e enunciação, como será visto na seção “A construção do
discurso em Os magros”.
Ainda assim, como um projeto político-literário de Euclides
Neto, considerou-se que sua posição de escritor é atravessada pelo
conjunto de relações que este lugar possibilita e pelas relações que os
demais papéis ocupados por ele lhe permitem evocar ou fazer uso.
A formação discursiva que está presente no discurso é permeada
pelas formações ideológicas que atravessam as demais instâncias que
ocupou até o momento da escrita da referida narrativa.
Acrescente-se que, por se tratar da análise de uma obra li-
terária e a fim de não desviar o foco da natureza primeira de Os
magros, recorreu-se ao pensamento de Maingueneau (1995), con-
siderando sua contribuição para a análise do discurso literário.
Entre as contribuições do pensador francês está o fato de demar-
car o lugar da literatura como discurso. A literatura materializa os
elementos que representam os interesses, isto é, é a materialização
de formação(ões) ideológica(s), conforme foi visto anteriormente.
Ao mesmo tempo, a literatura é discurso e é lugar onde este e os in-
teresses se conectam, se articulam. É o lugar de onde se pode enun-
ciar o discurso que denuncia as mazelas sociais, como faz Euclides
Neto, por exemplo. Literatura é discurso porque materializa dada
visão de mundo, que nem sempre se apresenta de modo concreto,

| 244
A FARTURA DA LINGUAGEM

mas é discursivamente representada. No caso da narrativa de Os


magros, o facão materializa um elemento que não está “presente”,
textualmente, no romance, mas que aparece tematizado sob a forma
de um problema social: as relações de trabalho nas roças de cacau.
Então, ao se falar em visão de mundo, obviamente, está se referindo
a um posicionamento discursivo para o qual existem outros discur-
sos a que se filiam ou que se opõem.
Desse modo, deve-se considerar que o discurso contempla
duas dimensões diferentes, a do intradiscurso e a do interdiscurso.
A dimensão intradiscursiva diz respeito ao percurso semântico das
formações ideológicas (ou seja, daqueles elementos que represen-
tam os interesses e são geradores de lutas e conflitos, por exemplo)
e, a partir do qual, subjazem outros temas; já a dimensão interdiscur-
siva diz respeito aos discursos que fazem aliança ou oposição.
Quanto ao interdiscurso, Maingueneau (1987) entende que
é constituído de três instâncias: universo discursivo, relacionado
ao conjunto de discursos sobre um dado tema; campo discursivo,
no qual se faz o recorte para a análise, no caso de Os magros, insere-se
nos campos político-social e literário; e o espaço discursivo, no qual
os discursos estabelecem relações de aliança ou oposição. O romance
situa-se no espaço discursivo em que os discursos que denunciam
a exploração dos agregados e, por isso, defendem os trabalhadores
rurais, se opõem aos discursos que mostram o descaso, a indiferen-
ça dos patrões para com eles. Assim, ao tema do trabalho, subja-
zem os temas da exploração da força produtiva, a fome e a miséria.
Ao discurso dos trabalhadores rurais como explorados por um sis-
tema capitalista se opõe o discurso que mostra o ócio e a ostentação
dos donos da fazenda.
Por fim, outro conceito importante, a partir do qual a análise
será operacionalizada, é o de interlíngua que, segundo Maingueneau
(1995), diz respeito à interação entre as variedades de uma mesma
língua ou dos registros acessíveis ao escritor tanto no tempo como

245 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

no espaço em dada conjuntura. Este conceito foi fundamental para


articular os conceitos de discurso, formação ideológica, formação
discursiva e o uso que Euclides Neto faz do vocábulo facão como
elemento desencadeador da leitura engajada de Os magros.

A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO EM OS MAGROS

Os magros (1961) é, segundo César (2003), o primeiro


dos quatro romances que compõem a tetralogia dos excluídos.
Pertencem a esse conjunto os romances: O patrão (1978),
Machombongo (1986) e A enxada e a mulher que venceu seu pró-
prio destino (1996). A narrativa apresenta 39 capítulos, nos quais
se alternam as cenas e histórias de João, o trabalhador rural, e do
proprietário da fazenda Fartura, o doutor Jorge.
Escrito sob a técnica do contraponto, Os magros apresenta
duas histórias paralelas: nos capítulos ímpares, é narrada a história
do agregado da fazenda, João; nos capítulos pares, as aventuras do
rico fazendeiro, doutor José. Conforme Seixas (1996, p. 7),

[...] a primeira, erigida à condição de eixo da obra,


é a dos magros trabalhadores de aluguel numa roça de
cacau. A outra, a dos gordos proprietários, entra como
contraponto, numa regularidade empobrecedora.

Consiste, assim, a construção desse romance num conjunto


de oposições, em que o leitor pode, inevitavelmente, visualizar a mi-
séria da vida do trabalhador rural e a abundância da vida do senhor
das terras.
Quanto à temática, Os magros situa-se no campo discursivo da
literatura do cacau, no qual se encontram também as obras dos ro-
mancistas Jorge Amado e Adonias Filho. Diferentemente dos outros
autores, Euclides Neto não apresenta, neste romance, “[...] a terra

| 246
A FARTURA DA LINGUAGEM

como uma ligação telúrica do coronel com o solo fértil da promis-


são. As terras servem para que o proprietário possa viver de rendas.”
(CÉSAR, 2014, p. 9). Ao trazer, para a cena do romance brasileiro, a
dor do trabalhador das roças de cacau, sua narrativa se desloca do
eixo fazendeiro-cacau e segue para o eixo trabalhador rural-fazendas
de cacau. Esta operação se torna significativa, pois é na vivência com
o homem da roça que o autor extrai o material linguístico com o
qual seu texto vai operar ideologicamente, conforme afirma Seixas
(1996, p. 7):

A narrativa de Euclides Neto é tributária direta das


fontes populares rurais, notadamente da região sul
da Bahia, marcada pela opulência e pela miséria das
roças de cacau. Esse singular escritor baiano nasceu
nos heroicos anos de bravatas e astúcias desbravado-
ras do modernismo brasileiro e morreu em abril do
último ano do século passado, sem viver as esperan-
ças do novo milênio. Escritor ilustrado nos bancos e
páginas da academia, com pleno domínio do registro
padrão da língua culta, Euclides Neto optou por um
projeto de incorporação das formas, substâncias,
conteúdos e expressões populares ao seleto clube da
literatura culta.

É do contato com o povo, com a vivência das roças de cacau


e seus arredores, que recolhe a matéria-prima para seu roman-
ce. Euclides Neto, carregado da experiência do trabalhador rural,
do linguajar das roças de cacau, do universo imaginário da gente com
cara de fome e dos coronéis, como também da própria ação política,
faz o leitor refletir sobre a memória discursiva da região marcada
pelo coronelismo. A posição ideológica está marcada pela partici-
pação política de Euclides Neto na cidade de Ipiaú, melhor dizendo,
na região sul baiana, denominada atualmente de Território Médio
Rio das Contas. A vivência política do escritor, ainda que breve,

247 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), prefeito


de Ipiaú (1963-1967) e idealizador da reforma agrária nessa região,
na qual realizou a tão bem-sucedida experiência com a Fazenda do
Povo, é fundamental para compreender a sua narrativa engajada.
A linguagem de Os magros adentra no campo do saber, do
nomear as coisas e se instala no campo do viver a vida como ela é,
mesmo podendo ser outra, como Euclides Neto gostaria que fosse a
vida do trabalhador rural. É daí que extrai matéria para a sua ficção.
Como se pode ver no excerto:

Pelo caminho da roça foi remoendo a lembrança.


Teria mesmo de comprar o facão. Teria, é verdade, que
passar várias semanas, ou talvez meses com a meia
ração. Mas era o jeito. Se não adquirisse o ferro, ficaria
sem trabalho. Contou nos dedos o tempo que faltava
para juntar o dinheiro: mais de um mês. Também
quando tivesse o banda-lisa iriam ver o bicho danado
no serviço. Satisfazia-se somente com a lembrança
de ter o instrumento à mão, amolando-o, passando
o polegar no corte afiado de fazer a barba. Quando
chegou ao trabalho, ainda experimentou a doce ilusão
de possuir o objeto. (EUCLIDES NETO, 2014, p. 23).1

O autor recolhe, na língua do povo, o principal elemento que


pode utilizar no seu discurso, a palavra, permitindo que a narrativa
ganhe forma. O significado de uma palavra se desenrola e se desdo-
bra nas variantes que aparecem na língua cotidiana. Então, a mais
simples, a mais banal das palavras ganha importância, como é o caso
do vocábulo facão, elemento que irrompe o acontecimento discursi-
vo no romance.

1
Por questão metodológica, o vocábulo facão aparece sublinhado simples quando for citação
de excerto do romance. As formas lexicais correspondentes e as pronominais referentes a
facão que são citadas, ao longo do texto, aparecem com sublinhado duplo.

| 248
A FARTURA DA LINGUAGEM

O instrumento de trabalho, ora língua de teiú, ora instrumen-


to, ora objeto, ora banda-lisa, como será visto na seção seguinte, re-
presenta a marca de uma relação de trabalho que tem, no agregado,
a imagem do oprimido, e, no patrão, a imagem do opressor. Relação
própria do regime capitalista. No modelo de sociedade no qual se
passa a narrativa, o facão vai alternando sua natureza dentro do dis-
curso, isto é, de instrumento de trabalho passa a objeto de desejo;
de objeto de desejo passa a instrumento de trabalho e daí a uma im-
possibilidade. Desta, o objeto de desejo passa a sonho.

O CORTE CERTEIRO DO FACÃO

A discussão ocupa-se, aqui, da atenção que Euclides Neto dis-


pensa à linguagem cotidiana da gente simples das roças de cacau, fa-
zendo uso de expressões que lhes são próprias e remetem à vivência
dos trabalhadores na “lida diária” com os cacaueiros, à vida farta dos
fazendeiros e às regras do coronelismo local. Optou-se por fazer um
recorte a partir da palavra facão e as demais formas lexicais, como
ferro, língua de teiú, zinco e outras que remetem ao instrumento
de trabalho dos agregados das roças de cacau. Na história contada
por Dotô Ocride,2 o facão é o motivo da incessante luta de João
para garantir sua sobrevivência e a de sua família. Ou, como dito
anteriormente, o facão é o elemento lexical disparador do percurso
semântico-discursivo da narrativa.
Uma leitura detalhada do romance possibilita ao leitor perce-
ber o uso de termos que são recorrentes entre as variedades linguís-
ticas utilizadas por trabalhadores das roças de cacau para nomear
um dos seus instrumentos de trabalho, o facão. A partir do uso das
dez formas lexicais encontradas ao longo da narrativa para nomear a
ferramenta, conforme será apresentado nos exemplos a, b, c, d, e, f, g,
2
Forma coloquial e afetiva como Euclides Neto era tratado pelo povo na região de Ipiaú.

249 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

h, i, j, observa-se que, talvez, aí esteja a principal oposição: a objeti-


vidade do facão cede, discursivamente, lugar à subjetividade de João.
Ambas se separam. Uma se une a outra e formam as duas instâncias
da narrativa, a da vida de João, o agregado da fazenda Fartura, e a de
doutor Jorge, o dono das terras.
Note o uso das lexias nos exemplos:
a) facão / facões

1. João era agregado: magro, pálido, olhos


afundados nas órbitas cavadas. Barbicha
rala de muito tempo, o cabelo crescido, en-
cobrindo as orelhas. O chapéu de palha
sem fundo. As roupas em molambos, ence-
rotadas, mostrando as carnes flácidas. Pés
enormes, chatos, o dedão torcido para um
lado. Pés criados na lama, furados de espi-
nhos. Pés de bicho. Alguns dentes quebrados.
O cinturão de sola e o facão mostrando a
ponta pela bainha velha [...]. (EUCLIDES
NETO, 2014, p. 18).

2. O salário de João mal dava para adquirir


aquelas mercadorias. Na semana em que
tinha trabalho todos os dias fazia cento e vinte
cruzeiros. Espremia aí dentro suas precisões.
Não fosse a necessidade de comprar um facão,
tudo se ia arrumando. [...] (EUCLIDES NETO,
2014, p. 21).

3. – João, hoje tem serviço de roçagem, mas


como seu facão é mesmo que nada, não há
serviço pra você. [...] (EUCLIDES NETO,
2014, p. 21).

| 250
A FARTURA DA LINGUAGEM

4. – Mas com esse facão você não faz nada, homem,


por que não compra outro? (EUCLIDES NETO,
2014, p. 21).

Nos três excertos, facão tem seu registro com valor semântico
de trabalho. No entanto, no excerto 1, em que aparece “o facão mos-
trando a ponta pela bainha velha”, o conjunto de informações oferece
ao leitor indícios de que o trabalho de João depende do instrumen-
to em melhores condições, apesar de o termo “velha” se referir à
bainha. Na verdade, o conjunto de informações sobre João, no início
do trecho, contribui para que o leitor tenha a visão da miséria da
personagem. E, portanto, estabeleça relações entre a imagem de João
e sua ferramenta de trabalho, como num processo de transferência
dos atributos do indivíduo para o objeto.
O excerto 2 apresenta as condições de trabalho como um
processo de exploração do agregado por seu patrão. O salário baixo,
as privações de alimento e a fome mostram que há alguém com muito
pouco para sobreviver. O discurso da exploração está construído e se
completa nos excertos 3 e 4, com desqualificação da ferramenta de
João como estratégia para desvalorizar o seu trabalho.
Em seguida, tem-se:
b) língua de teiú

5. João calou. Num relance passou pela sua cabeça


apanhar a língua de teiú e enfiar todinha no filé
do miserável. Até o cabo. (EUCLIDES NETO,
2014, p. 52).

6. Os meninos andavam nus. Isabel nem podia


sair da choupana. Mas compraria o facão
banda-lisa. Desse no que desse. Seu língua de
teiú era mesmo que um punhal. Nem servia

251 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

para a roçagem. Senhor Antônio tinha razão.


(EUCLIDES NETO, 2014, p. 110).

7. Pela estrada da fazenda Fartura João veio pen-


sando. Não tinha jeito mesmo. Só restava ficar
ganhando os vinte cruzeiros, tomar esporro e
trabalhar com a língua de teiú. (EUCLIDES
NETO, 2014, p. 111).

8. João tirou o facão gasto e furou a terra. Ali


estaria o dinheiro de que precisava. O língua
de teiú arrancava pequenos blocos de barro
que as mãos em pá iam limpando. (EUCLIDES
NETO, 2014, p. 121).

Observa-se que, das quatro ocorrências, a primeira tem uma


função de arma. Quem enuncia o discurso é o narrador, mas ele fala
conforme o que se passa na mente de João. No entanto, a língua de teiú
só tem essa função na mente do agregado, num momento de raiva.
Nos dois excertos que seguem, a ferramenta tem valor semântico de
facão, no entanto, o instrumento de trabalho é desqualificado, confor-
me enunciado na voz do narrador. Tal desqualificação reflete como é
visto o trabalho de João.
No último excerto em que registra a expressão língua de teiú,
assume a função de instrumento, mas não de trabalho. Funciona
como um “cavador de esperanças”, ao usar o facão para cavar a terra,
na esperança de encontrar o pote de ouro deixado enterrado. Nesta
passagem, João encontra-se no plano do sonho, da irrealidade, e a
ferramenta o ajuda a realizar este sonho.
A narrativa registra ainda facão com valor semântico de ins-
trumento de trabalho:
c) ferro

| 252
A FARTURA DA LINGUAGEM

9. Pelo caminho da roça foi remoendo a lem-


brança. Teria mesmo de comprar o facão.
Teria, é verdade, que passar várias semanas, ou
talvez meses com a meia ração. Mas era o jeito.
Se não adquirisse o ferro, ficaria sem trabalho.
(EUCLIDES NETO, 2014, p. 23).

10. O caixeiro dando pouca atenção ao fre-


guês, foi despachar outro. João continuava
escolhendo. Cortava o ar, verificando o peso
do ferro até que decidiu. (EUCLIDES NETO,
2014, p. 156).

Nos dois excertos, o valor semântico de ferro refere-se a


instrumento de trabalho. No primeiro caso, o ferro está no campo
semântico da necessidade. João precisa do ferro (facão). No segundo
caso, entra no campo semântico do objeto de desejo. João “conti-
nuava escolhendo”. Escolher foi possível depois de o agregado ter
pensado muitas vezes no objeto e decidido que compraria um da
melhor marca.
O excerto 10 expõe o manejo de João para sentir o peso do
facão (ferro). Neste caso, a matéria de que é feito o facão tem im-
portância não apenas para a composição do instrumento, mas para
formar a característica, o atributo (peso) do objeto de desejo do
agregado.
Nos excertos 11, 12 e 13, o facão também é representado pela
matéria de que é feito:
d) zinco

11. – Mas se Deus me der licença, eu compro o


zinco. (EUCLIDES NETO, 2014, p. 45).

12. – Cadê o zinco, João?

253 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

13. – Ah! moço, já tão pedindo cento e cinquenta.


(EUCLIDES NETO, 2014, p. 145).

14. – Se não fosse a morte do menino eu já tinha


comprado o zinco. (EUCLIDES NETO, 2014,
p. 145).

Apesar de zinco ser mais leve, menos qualificado que ferro,


ao analisar a lexia, no percurso do texto, vê-se que aparece sempre
depois de ferro, como num processo de aproximação e distancia-
mento do indivíduo com o objeto de trabalho. No 11, há o apelo
ao conteúdo místico cristão, que, aliás, é uma formação discursiva
recorrente no romance. No 12, zinco corresponde a facão, enquanto
no 13, o personagem reitera o discurso da impossibilidade.
Não sendo possível ter o facão, o instrumento passa à condi-
ção de objeto de desejo. Então, João deseja um facão banda-lisa, que
é um facão de melhor qualidade.
e) banda-lisa:

15. Pelo caminho da roça foi remoendo a lembran-


ça. Teria mesmo de comprar o facão. Teria, é
verdade, que passar várias semanas, ou talvez
meses com a meia ração. Mas era o jeito. Se não
adquirisse o ferro, ficaria sem trabalho. Contou
nos dedos o tempo que faltava para juntar o di-
nheiro: mais de um mês. Também quando ti-
vesse o banda-lisa iriam ver o bicho danado no
serviço. Satisfazia-se somente com a lembrança
de o instrumento à mão, amolando-o, passan-
do o polegar no corte afiado de fazer a barba.
Quando chegou ao trabalho, ainda experimen-
tou a doce ilusão de possuir o objeto. (EUCLI-
DES NETO, 2014, p. 23).

| 254
A FARTURA DA LINGUAGEM

16. Os meninos andavam nus. Isabel nem po-


dia sair da choupana. Mas compraria o facão
banda-lisa. Desse no que desse. Seu língua de
teiú era mesmo que um punhal. Nem servia
para a roçagem. Senhor Antônio tinha razão.
(EUCLIDES NETO, 2014, p. 110).

17. – Com bainha ou sem bainha?

18. – Ora, com bainha. E “Corneta”. Banda-lisa do


melhor.

19. – Tem a escolher.

20. O empregado, um sujeito gordo e esperto


como roedor, foi lá dentro, voltando com um
feixe de facões arrumados, uns aos outros, pe-
las correias das bainhas. (EUCLIDES NETO,
2014, p. 143).

21. Mas como se impacientava e gostaria de ver


novamente o facão, voltou à venda.

22. – Moço, deixe ver o banda-lisa. (EUCLIDES


NETO, 2014, p. 144).

A referência ao facão da marca Corneta, que tinha um lado da


folha sem ranhuras, reforça o sentido que a lexia assume no excerto
16. O facão banda-lisa é apresentado como objeto de desejo de João.
Ter um banda-lisa seria a condição para ele mostrar a sua habilidade
no serviço de roçagem. Assim, seria “um bicho danado no serviço”,
forma como se refere à importância que teria a sua pessoa a partir da
aquisição do objeto, no excerto 14.

255 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

No excerto 15, o enunciado “Mas compraria o banda-lisa. Desse


no que desse.”, reforça o uso do termo para expressar o objeto do desejo
e a associação do facão de qualidade à sua imagem de trabalhador quali-
ficado e produtivo. Na sequência, os excertos 16 e 17 apresentam banda-
-lisa com valor semântico também de objeto de desejo.
No entanto, em 16, o instrumento é motivo de orgulho pela
possibilidade, na qual se supõe que encontra, de conquistar o tão de-
sejado facão. Já no excerto 17, diante do fracasso de sua empreitada,
mas ainda munido de esperança, tocar no facão banda-lisa é condi-
ção para alimentar a esperança de tê-lo. João “namora” o “Corneta”.
O toque é a forma de concretizar o desejo. O banda-lisa ainda paira
no plano da abstração, da impossibilidade. Tocar é quase tê-lo.
É poder senti-lo como uma possibilidade quase concreta, como uma
realidade que se aproxima.
Essa relação de proximidade com o facão, seja enquanto
objeto do desejo, seja como instrumento de trabalho, também pode
ser vista nas ocorrências destacadas nas letras f e g.
f) lâmina:

23. João pegou o molho de facões, olhou, tirou-


-os da bainha, experimentou-os prendendo
a unha do polegar na lâmina, soltando-a em
seguida, para saber o timbre do aço. Por fim,
vergou a folha em curva, soltou-a e deu duas
pranchadas em cima do balcão. (EUCLIDES
NETO, 2014, p. 155).

g) aço / folha de ação:

24. João pegou o molho de facões, olhou, tirou-


-os da bainha, experimentou-os prendendo
a unha do polegar na lâmina, soltando-a em
seguida, para saber o timbre do aço. Por fim,

| 256
A FARTURA DA LINGUAGEM

vergou a folha em curva, soltou-a e deu duas


pranchadas em cima do balcão. (EUCLIDES
NETO, 2014, p. 155).

Os vocábulos lâmina, aço, folha de aço ocupam a semântica des-


critiva do facão. Assim, lâmina é a parte cortante, aço é a matéria de que
é feito (como ocorre com ferro e zinco) e folha de aço condensa as duas
ideias, parte e matéria, reiterando ambas e construindo a imagem do
objeto. No contexto em que as ocorrências f e g aparecem, contribuem
para a construção do sentido do facão como objeto de desejo, mas
com forte inclinação para o uso que João poderá fazer do instrumento.
Enquanto objeto do desejo, vê-se nas ocorrências, novamente, o toque
como condição de concretizá-lo. Como instrumento de trabalho, vê-se
que João demonstra habilidade em manuseá-lo. O agregado quer co-
nhecer o seu timbre, sua envergadura, sua força. Infere-se que o autor
produz um discurso no qual, por analogia, esses elementos represen-
tam, respectivamente, a altivez, a coragem e a força do agregado.
No caso de chibute, como no excerto h, número 25, tem-se
mais um caso em que a referida lexia aparece com valor semântico
de instrumento de trabalho. Como se pode notar:
h) chibute:

25. – Então você com este chibute tem que ganhar


menos, não é? Você não faz o que os outros estão
fazendo, faz? (EUCLIDES NETO, 2014, p. 68).

O uso da expressão chibute, que significa facão velho, marca


a objetividade com a qual o vocábulo é empregado na narrativa.
Cabe observar que, sendo um facão gasto, velho, faz o trabalho
render menos. Isso desqualifica a mão de obra de João, o que serve
de justificativa para ele ganhar menos que os outros agregados. Este
processo é interessante porque, por trás de uma objetividade, tem-se,
no instrumento velho, o critério que descaracteriza o personagem,

257 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

desestabiliza sua força de trabalho, sua crença como força produtiva.


Ou seja, ao discurso do facão como instrumento de pouca serventia
subjaz o discurso do indivíduo com pouco valor de mercado, como
mão de obra barata.
No entanto, ao observar o uso da palavra instrumento para
referir-se ao facão, foi possível notar que, embora o vocábulo tenha
carga semântica genérica, na narrativa de Os magros, o esvaziamento
de sentido que as generalidades acabam assumindo nos discursos
praticamente desaparece. Veja:
i) instrumento:

26. Pelo caminho da roça foi remoendo a lem-


brança. Teria mesmo de comprar o facão. Te-
ria, é verdade, que passar várias semanas, ou
talvez meses com a meia ração. Mas era o jeito.
Se não adquirisse o ferro, ficaria sem trabalho.
Contou nos dedos o tempo que faltava para
juntar o dinheiro: mais de um mês. Também
quando tivesse o banda-lisa iriam ver o bicho
danado no serviço. Satisfazia-se somente com
a lembrança de o instrumento à mão, amo-
lando-o, passando o polegar no corte afiado
de fazer a barba. Quando chegou ao trabalho,
ainda experimentou a doce ilusão de possuir o
objeto. (EUCLIDES NETO, 2014, p. 23).

27. Ganhara cento e vinte e cinco durante a sema-


na, mas a fração ficara para o instrumento de
trabalho. (EUCLIDES NETO, 2014, p. 31).

28. Mas se não fizesse assim poupando a carne e a


farinha como adquirir o facão? Bem que podia
comprar os quarenta cruzeiros de comida. Mas
fizera uma jura de deixar toda semana uma

| 258
A FARTURA DA LINGUAGEM

parte para o instrumento. Passaria fome, mas


quando tivesse o ferro nas mãos ficaria satisfei-
to e a alegria compensaria todos os sofrimen-
tos. (EUCLIDES NETO, 2014, p. 131).

29. Bem verdade que João não podia comprar o


facão mas daí a uma semana teria o dinheiro
contado.

30. E o instrumento estava até escolhido.


(EUCLIDES NETO, 2014, p. 146).

Note que, conforme aparece em 21, 23 e 24, a semântica do vocá-


bulo instrumento opera num movimento em que objetividade e subjeti-
vidade ocorrem como construções paralelas. João “satisfazia-se somente
com a lembrança de ter o instrumento à mão [...]”. Novamente, o toque
para concretizar aquilo que está na sua memória como possibilidade, mas
já um tanto remota. A chegada ao trabalho traz de volta João para a condi-
ção do agregado que necessita do facão para seu sustento e de sua família.
Observa-se, nessa passagem, que instrumento é um vocábulo carregado
de duplo sentido: é instrumento de trabalho e é objeto de desejo. No per-
curso semântico da narrativa, permite pensar que se tem de um lado a
objetividade, do outro, tem-se a subjetividade, servindo aos dois gumes
do objeto cortante.
No entanto, no excerto 22, quando se refere ao trabalho, o
instrumento é usado na sua mais potente objetividade, como ferra-
menta, objeto. Então o que dizer da expressão objeto para designar o
facão? No excerto apresentado na letra j, tem-se o exemplo da carga
semântica mais genérica de todos os termos usados.
j) objeto

31. Pelo caminho da roça foi remoendo a lem-


brança. Teria mesmo de comprar o facão.

259 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

Teria, é verdade, que passar várias semanas,


ou talvez meses com a meia ração. Mas era
o jeito. Se não adquirisse o ferro, ficaria sem
trabalho. Contou nos dedos o tempo que fal-
tava para juntar o dinheiro: mais de um mês.
Também quando tivesse o banda-lisa iriam
ver o bicho danado no serviço. Satisfazia-se
somente com a lembrança de o instrumento
à mão, amolando-o, passando o polegar no
corte afiado de fazer a barba. Quando chegou
ao trabalho, ainda experimentou a doce ilu-
são de possuir o objeto. (EUCLIDES NETO,
2014, p. 23).

Considerando-se o contexto da narrativa, a expressão objeto


expressa o grau máximo da impossibilidade de João adquirir o facão.
Quanto mais difícil se torna a aquisição da ferramenta, mais o nome
utilizado para designá-la ganha caráter genérico.
Tem-se, desse modo, facão, língua de teiú, banda-lisa, chibute,
ferro, zinco, lâmina, aço, folha de aço, instrumento e objeto. Ou seja, as
quatro primeiras lexias encontradas acima, são formas dicionarizadas
da palavra facão, relacionam-se diretamente com a imagem do objeto
e sua função como instrumento de trabalho. Depois, a ferramenta é
apresentada pela matéria de que é feita e por suas partes. Banda-lisa e
chibute trazem mais um traço semântico para a ferramenta, um traço
positivo e um traço negativo, respectivamente. Instrumento é ferra-
menta e objeto do desejo, enquanto o objeto é a representação de todo
o esforço de João diante de uma impossibilidade.
Euclides Neto torna o facão (instrumento de trabalho), subs-
tantivo concreto, em algo abstrato. Assim, há um processo de alter-
nância do sentido construído com o uso da palavra em destaque,
no qual o instrumento varia, semanticamente, de uma necessidade a
um objeto de desejo e, depois, de uma impossibilidade a um sonho
prestes a se realizar. Daí, a um delírio de fome, talvez.

| 260
A FARTURA DA LINGUAGEM

O uso da palavra facão e das variantes é feito como o corte cer-


teiro que Dotô Ocride faz na história. Com o facão, ele faz sangrar,
da narrativa, o discurso sobre a fome e a vida miserável dos magros.
Paulatinamente, a fome vai tomando forma, vai se afeiçoando aos
indivíduos que a sentem “beliscar o estômago”. Logo, o substantivo
abstrato se torna concreto, como uma realidade palpável, com cara
de gente que não tem o que comer e vira comida para a terra preta
que “[...] estava mastigando o corpinho aniquilado [...]” (EUCLIDES
NETO, 2014, p. 60). Tem cara de bicho, “[...] parece uma cobra muito
grande: engole a gente [...]” (p. 75). E chega a ter existência própria,
“uma coisa traiçoeira...” (p. 75).
Trabalho, fome e miséria se encontram na mais dura reali-
dade dos agregados das roças de cacau. São discursos que funcio-
nam como paralelos, representam as alianças no espaço discursivo
donde derivam outros discursos. Neles, está a denúncia dos modos
de exploração dos trabalhadores rurais pelos coronéis do cacau.
Dessa construção linguístico-discursiva, pode-se afirmar que não
são apenas contrastes que caracterizam a realidade de João e de
doutor Jorge, são severas oposições que limitam a vida dos magros
a mais completa miséria e os donos da fazenda Fartura a mais sig-
nificativa abundância.
Os conceitos de discurso e interlíngua orientaram o debate
sobre os posicionamentos discursivos do autor. Permitiram com-
preender que o uso de determinada variante levou em conta a
interação entre os discursos no interior de dado discurso, no qual
estão ancoradas as práticas discursivas, e, de forma particular, o
discurso literário.
A interação entre os discursos ou relação interdiscursiva,
conforme o dialogismo de Bakhtin (1998), produz o(s) sentido(s)
do texto literário. Assim, entende-se que, em relação aos “magros”,
existe um discurso concorrente que opera no interdito. Quando a
expressão “os magros” é enunciada, remete-se às ideias de pobreza,

261 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

escassez, às quais se opõem as ideias de fartura, opulência. Daí, ainda


que a intenção de Euclides Neto não fosse a de construir um dis-
curso concorrente, este estaria posto. Acrescenta-se a esta leitura a
importância da conjuntura histórica, pois à época de produção do
romance, 1961, o contexto socioeconômico da região era de intensa
produtividade na lavoura cacaueira.
Ao contrapor a abundância de cacau e outros frutos da fazen-
da à pobreza dos agregados, o autor coloca-se contra as práticas de
exploração do trabalhador das roças de cacau por seus patrões. Desta
forma, dar o nome de Fartura à fazenda, um dos cenários principais
da narrativa, é uma operação discursiva por meio da qual Euclides
Neto esboça sua formação ideológica: defende o trabalhador rural
como explorado pelo latifundiário. Significa dizer que, consideran-
do-se as condições de produção do discurso nas ocorrências, o texto
revela tanto a vida miserável quanto a falta de acesso às condições
básicas como saúde e educação, depois de já construída discursiva-
mente a miséria material e humana de João.
Tais observações tornam-se importantes porque sinalizam a
consistência teórica com a qual foi feita a leitura da linguagem utili-
zada pelo autor. Para isso, estabeleceu-se a relação entre o universo
discursivo, o campo discursivo e o espaço discursivo, para daí com-
preender os usos das variantes e registros como constituintes das
formações discursivas.
Da parte analítica, na qual se apresentam as variantes, será
possível, por exemplo, apresentar outras oposições que surgem entre
“magros” e “gordos” na narrativa. Pode-se falar da frustração de João
em não conseguir comprar o facão e do desolamento do doutor Jorge
em não conseguir o brilhante. Também, falar da futilidade de dona
Helena com a boneca Rose Marie, bem como da utilidade do brin-
quedo na vida da madame. Do casamento de aparências de doutor
Jorge e dona Helena em oposição ao companheirismo e cumplici-
dade de João e Isabel. Mas, é o facão, a lâmina afiada que corta a

| 262
A FARTURA DA LINGUAGEM

narrativa em duas, três... em várias micronarrativas. E, de todas, a


mais micro, a vida de João, o agregado da fazenda Fartura.
Assim, este romance inscreve-se no universo discursivo em
que autores modernistas, como Graciliano Ramos e Jorge Amado,
reivindicam os direitos das minorias políticas. O romancista de Os
magros elege a linguagem do homem da roça para denunciar, para
lutar (com a palavra) contra um sistema dominador e excludente.
Este é o seu confronto.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 4. ed.


Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec, 1988.
BENTES, Anna Cristina; MUSSALIM, Fernanda. Introdução à
Linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2003. v. 2.
CÉSAR, Elieser. Romance dos excluídos. Ilhéus: Editus, 2003.
CÉSAR, Elieser. Painel da opressão nas terras do cacau.
In: EUCLIDES NETO. Os Magros. 4. ed. Salvador: EDUFBA -
Littera, 2014. p 9-13.
EUCLIDES NETO. A enxada e a mulher que venceu seu próprio
destino. São Paulo: Littera, 1996.
EUCLIDES NETO. Machombongo. Itabuna: Letras, 1986.
EUCLIDES NETO. O patrão. Salvador, 1978.
EUCLIDES NETO. Os magros: romance. 4 ed. rev. Salvador:
EDUFBA; São Paulo: Littera, 2014.
EUCLIDES NETO. Os magros. 4. ed. Salvador: EDUFBA: Littera,
2014.

263 |
Tereza Cristina Damásio Cerqueira

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do


Discurso. Campinas: Pontes Editora, 1987.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária:
enunciação, escritor, sociedade. Tradução de Marina Appenzeller.
São Paulo: Martins Fontes, 1995.
SEIXAS, Cid. Euclides Neto: um narrador das roças de cacau e
dos roceiros. A Tarde, Salvador, p. 7, 11 mar. 1996. Disponível em:
https://bit.ly/3gQ4VRn. Acesso em: 10 nov. 2010.

| 264
“PELO BURACO DA FECHADURA”:
UMA LEITURA PSICANALÍTICA DE OS MAGROS

Liz Maria Teles de Sá Almeida

Da mesma forma que nos constituímos sujeitos, muitas respostas


lançadas pelo nosso inconsciente são formadas pelo que vemos e
ouvimos ao longo de nossa vida. Somos herdeiros de ouvido da tra-
dição familiar que nos circunda, dos nossos próprios gestos e da in-
teração que é produzida ao nosso redor. Assim, formamo-nos Griôts
ou Djidiu (em criolo da Guiné-Bissau), contadores de histórias cujos
capítulos, que são encenados pelo nosso corpo, podem narrar traje-
tórias vividas antes mesmo de sairmos da barriga da nossa mãe.
A ideia de ensaiar a aproximação entre a Literatura e Psicanálise
surgiu durante uma aula (da disciplina Literatura e Psicanálise,
no Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da
Universidade do Estado da Bahia (PPGEL/UNEB) em que nós
aprendíamos que a “fantasia” nasce a partir de experiências senso-
riais, como a audição, mas que somente são elaboradas posterior-
mente. Tudo que dela provém é verdadeiro (sentido de realidade,
para a psicanálise), ou melhor dito, são “[...] estruturas protetoras,
sublimação dos fatos, embelezamento deles e, ao mesmo tempo,
servem para o alívio pessoal.” (MASSON apud ABEL, 2011, p. 49).
Nesse contexto, não ocorreu outro pensamento se não a expe-
riência de dona Helena, protagonista de Os magros. Todavia, cabem

265 |
Liz Maria Teles de Sá Almeida

aqui algumas considerações acerca dessa abordagem interdisciplinar


que a literatura nos possibilita, pois

Se o sentido excede o texto, existe falta de consciência


em alguma parte. O fato literário só vive de receptar
em si uma parte de inconsciência ou de inconsciente.
A tarefa que desde sempre a crítica literária se atri-
bui, consiste em revelar esta falta ou este excesso.
Em suma, já que a literatura carrega nos seus flancos
o não consciente e já que a psicanálise traz uma teoria
daquela que escapa ao consciente, somos tentados
a aproximá-las ou até confundi-las. (BELLEMIN-
NOEL, 1978, p. 13).

Tratadas assim, como saberes de naturezas diferentes, litera-


tura e psicanálise – cada uma a seu modo – colaboraram para a re-
cepção do nosso objeto, o trabalho do escritor baiano Euclides Neto
e, mais especificamente, dona Helena, personagem de uma de suas
mais consideradas obras, Os magros (1961).
O que nos interessa não são as contribuições unilaterais que
essas duas epistemologias trazem. Neste momento, vale-nos mais
o modo como a Literatura contribui para elucidar conceitos em
Psicanálise, bem como esta responde a questões caras àquela. É bem
verdade que não se trata de uma relação necessária, embora frutífera.
Foi a reflexão em torno do entrelaçamento literatura-psicanálise a
responsável por iluminar uma série de inquietações da humanidade,
há algumas décadas.
Apesar de serem diversas as questões que emergem quando
nos dispomos a discutir a literatura pela óptica psicanalítica (e vice-
-versa), tentaremos focar num único aspecto desta obra euclidiana:
a fantasia, à luz dos estudos de Sigmund Freud, principalmente
do trabalho contido no volume IX, de 1907, intitulado Escritores
criativos e devaneios. Em cena, estará a personagem dona Helena,

| 266
“PELO BURACO DA FECHADURA”:
UMA LEITURA PSICANALÍTICA DE OS MAGROS

com seus conflitos oriundos da impossibilidade de realizar a mater-


nidade e o mecanismo de substituição utilizado por ela para preen-
cher essa lacuna em sua vida, a “fantasia”.
Lançaremos mão do pensamento de Freud para melhor
compreender nosso objeto de estudo. Outros autores também nos
servem de farol neste processo de escrita. São eles: Chalhub (1999),
Piglia (1998) e Rudge (2001). Embora a criatividade seja originada
no inconsciente, a temática de Os magros (e de outras obras eucli-
dianas) parece situar-se tão somente na realidade. A realidade mais
dura, concreta e observável é transformada em literatura, em ficção.
Foi o gênero trágico (no sentido de comovente) que Euclides Neto
escolheu, acreditando que com ele tocaria mais facilmente seus leito-
res, provocando nestes um clima de reflexão e tomada de atitude em
frente às injustiças vividas no interior da Bahia, na década de 1960.
Naquela época, a região do baixo sul e do sudoeste da Bahia
vivia sob o regime do coronelismo. Euclides situa, em Os magros,
um momento muito rentável para os grandes fazendeiros donos de
roças de cacau. Toda riqueza gerada na região cacaueira era investida
na capital baiana, Salvador, local escolhido pelos fazendeiros e suas
famílias para viverem. Neste cenário, reside uma das famílias da re-
ferida obra, a de dona Helena.
A narrativa euclidiana retrata a vida de duas famílias. A de
João, com sua esposa e mais oito filhos, que vivia em uma casa sim-
ples e apertada na propriedade em que trabalhava no sul da Bahia,
em Ipiaú. Era pobre. Apesar da árdua luta diária do patriarca nas
roças de cacau, a família mal tinha o que comer. João era agregado do
doutor Jorge. Todavia, pouco o encontrava, pois, a história que estão
inseridos se passa no momento em que os fazendeiros residiam em
Salvador e apenas administravam os lucros das roças de cacau que
ficavam sob os cuidados de um gerente (capataz). A segunda família
retratada por Euclides é a do doutor Jorge, advogado, proprietário

267 |
Liz Maria Teles de Sá Almeida

da fazenda Fartura, que mora com a mulher, dona Helena, e alguns


empregados em uma luxuosa residência na capital baiana.
Por meio da técnica do contraponto, Euclides nos apresenta
a história de duas famílias que mantinham uma relação de subor-
dinação necessária (João é agregado de Jorge e um dos responsáveis
pela sua riqueza). No entanto, viviam realidades adversas. São duas
histórias paralelas em uma mesma narrativa. Ao utilizar essa técnica
em duas histórias que se alternam e se completam, Euclides deixa
transparecer algo de sua ideologia: retira de sua formação marxista,
que o influenciou para além da literatura, a ideia de uma sociedade
dividida em classes. Esse efeito remete às maneiras de narrar inau-
guradas por James Joyce e relembradas por Piglia em conferência
realizada em 1997 e publicada em 1998.

Ele foi capaz de ler a psicanálise, assim como foi capaz


de ler outras coisas. Joyce foi um grande escritor
porque soube entender que havia outras maneiras de
fazer literatura fora da tradição literária; que podiam
ser encontradas maneiras de narrar no catecismo,
por exemplo; que a narração, as técnicas narrativas
não estão ligadas apenas às grandes tradições narra-
tivas, que é possível encontrar modos de narrar em
outras experiências contemporâneas. A psicanálise foi
uma delas. (PIGLIA, 1998, p. 110).

Enquanto os estudos literários preocupavam-se cada vez


mais com a construção e o desenrolar das personagens da narrativa,
Joyce percebia outras possibilidades de narrar que não pertenciam
apenas à tradição. Mais do que isso, os modos de narrar se dizem
reveladores não somente do que se escreve, mas de quem escreve
e para quem se escreve. Euclides buscou influências do seu modo
de narrar na corrente filosófica que defendia e bem definiu com
a técnica do contraponto, vislumbrando uma sociedade dividida
desigualmente em classes.

| 268
“PELO BURACO DA FECHADURA”:
UMA LEITURA PSICANALÍTICA DE OS MAGROS

No espaço de divisão social criado pelo escritor grapiúna,


doutor Jorge, de família rica, casa-se com dona Helena, que se descobre
grávida, mas o marido não aceita a gravidez e experimenta dos mais
variados métodos para interrompê-la. D. Helena torna-se uma mulher
infeliz. Alguns anos depois, após a fortuna que acumulou, doutor Jorge
percebe que é chegado o momento de ter um herdeiro; todavia, não é
mais possível junto à esposa obter o que queria – após diversas tentati-
vas, não consegue. dona Helena abate-se. Doutor Jorge transforma-se
em um homem cada vez mais distante da esposa e, envergonhado por
não conseguir um herdeiro para administrar suas riquezas, envolve-se
com uma amante, uma mulher loira e jovem, e passa a dividir com
sua atividade preferida, obsessiva: comprar brilhantes. Enquanto isso,
dona Helena se isola, cada vez mais frustrada com a não realização da
maternidade, e agrava-se seu estado psíquico.
Certo dia, em uma viagem ao Rio de Janeiro, dona Helena compra
uma boneca. Tempos depois, começa a visitar casas de alta costura e
encomenda vestidinhos de tecidos importados para a boneca e passa a
viver um profundo devaneio: acredita que a boneca é a filha (que não
conseguira ter). Batiza-a de Rose Marie, nome que considera chique e
que daria à sua filha se tivesse avançado com aquela gestação. A partir de
então, dona Helena começa a dissimular os cuidados, sempre realizados
no quarto de portas fechadas. Tão logo escancara seus cuidados e pro-
teção à “filha”, leva-a para passear, tomar banho de sol e fazer compras.
Dona Helena solicita à empregada que leve Rose Marie para
o banho de sol de rotina. A madame veste a “filha” com as melho-
res roupas e fica sempre no portão a observá-la. Na rua, as pessoas
zombam e riem da cena.
Da janela, a mãe contempla, embevecida, a boneca, enquanto
a empregada empurra o carrinho, ninando Rose Marie. Dona Helena
acredita que os deboches eram sinais de inveja dos outros que não
suportavam o fato de a “criança” ter boa saúde, ser corada e vestir as
melhores roupas, com os mais caros tecidos.

269 |
Liz Maria Teles de Sá Almeida

Eram horas devaneando com a boneca. Dona Helena passou a


viver a fantasia, criava desejos e dores, e percebia todos os sentimen-
tos vividos por Rose Marie. Construiu um delírio que influenciaria
todas as suas ações à medida que pensasse na boneca.
Talvez nem o próprio Euclides Neto imaginasse a força dos
traços psicológicos apresentados por suas personagens dotadas de
realidade. Ele, que chegou a declarar, em vida, que não gostava de
romances psicológicos, paradoxalmente, ofereceu-nos em sua narra-
tiva – dentre outras coisas – a possibilidade de discutirmos um tema
recorrente na psicanálise e, principalmente, em Freud: a fantasia.
“Revanche do destino”, como diria o professor Vitor Hugo Martins,
uma das filhas do romancista tornou-se psicóloga.
O termo fantasia surge nos escritos freudianos por volta de
1897, em anotações de seus “pensamentos esparsos”, como fez no
texto Rascunho L, nomeando as fantasias como “fachadas psíquicas”,
responsáveis por obstruir o caminho às lembranças da infância. Para
Freud (1976b), as fantasias formam-se a partir de fragmentos de
cenas visuais, somadas aos fragmentos das cenas auditivas.
É importante percebermos que a fantasia vivida por dona
Helena tem início após sua gravidez interrompida, como forma de
sublimação. Primeiro pela negação da maternidade ouvida pela boca
do seu marido; depois, pelos diversos métodos a que foi submetida
para a interrupção da gestação:

O certo é que Rose foi virando filha aos olhos de dona


Helena, até que chegou àquele ponto. Houve tempo
em que procurou dissimular os cuidados. Se zelava da
boneca era de portas fechadas, falando baixinho, escon-
dendo a metade dos objetos que comprava às ocultas.

E como a fazendeira já entrava nos 20 anos de casada,


tendo concebido somente uma vez, estava conformada.
Doutor Jorge evitava a concepção. Empregara todos os

| 270
“PELO BURACO DA FECHADURA”:
UMA LEITURA PSICANALÍTICA DE OS MAGROS

meios possíveis. Chegou mesmo a provocar um aborto.


(EUCLIDES NETO, 1992, p. 20).

Este fragmento serve-nos para ilustrar, também, os três


tempos da fantasia em Freud. Primeiro, “[...] o trabalho mental
vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no
presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do
sujeito.” (FREUD, 1976b, p. 82). Dona Helena e doutor Jorge perce-
beram ter chegado o momento de terem um herdeiro e começaram
a fazer tentativas, todas frustradas. Segundo, “[...] dali retrocede à
lembrança de uma experiência anterior.” (FREUD, 1976b, p. 82):
a primeira gravidez de dona Helena fora interrompida por decisão de
seu esposo, que programou um aborto. Terceiro, “[...] criando uma
situação referente ao futuro que representa a realização do desejo.”
(FREUD, 1976b, p. 82): Dona Helena vive a fantasia de que a boneca
Rose é sua filha legítima.
A fantasia parece exercer em dona Helena a mesma função que
exerce na criança, a de propor soluções para os diferentes enigmas que
virá a enfrentar. Sabemos da delicadeza com que os adultos tratam
suas fantasias, diferentemente das crianças, que não se envergonham
em realizá-las por meio do brincar. A fantasia criada por dona Helena
com a boneca Rose Marie nada mais é do que um sub-rogado, como
Freud confirma no volume IX, em Escritores criativos e devaneios.

[...] contudo, quem compreende a mente humana


sabe que nada é tão difícil para o homem quanto ab-
dicar de um prazer que experimentou. Na realidade,
nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma
coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na
verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado.
Da mesma forma, a criança em crescimento, quando
para de brincar, só abdica do elo com objetivos reais;
em vez de brincar, ele agora fantasia. (FREUD, 1976b,
p. 151, grifo do autor).

271 |
Liz Maria Teles de Sá Almeida

Ao revelar-se em sua fantasia, dona Helena causa grande


repulsa àqueles que observam e, principalmente, participam da-
quela relação:

Senhoras curiosas espiavam das janelas semicerradas.


Mastigavam certo riso de mofa. As meninas cercavam
a boneca. Perguntadeiras, investigavam tudo. Buliam
nos sapatinhos de pelica, fiscalizavam as roupas inter-
nas, pediam a Donata que deixasse empurrar o carro.
(EUCLIDES NETO, 1992, p. 25).

Quanto aos empregados da casa, encaravam a situação de um


modo sarcástico e, sem muita opção, entravam na fantasia da patroa
para agradá-la e se divertirem. Às escondidas, caçoavam dos deva-
neios de dona Helena e riam muito daquela situação:

Donata abriu um pouco os olhos. As outras emprega-


das vieram à porta, repararam o traje bonito da patroa
e bisbilhotaram:

– Neném está doente, D. Helena?

– Foi esta cabeça de vento que a deixou, coitadinha,


tomar sereno.

– Oh! Donata! Por que você fez isso? Acrescentou a


cozinheira.

Donata fez ar de riso contido e:

– Eu não pude, menina, quando menos esperei chu-


viscou. Eu estava lá no jardim e vim correndo.

Dona Helena saboreava cada expressão das emprega-


das. Elas gostavam muito de agradá-la daquele modo.
(EUCLIDES NETO, 1992, p. 36).

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“PELO BURACO DA FECHADURA”:
UMA LEITURA PSICANALÍTICA DE OS MAGROS

A ânsia de realizar um desejo faz dona Helena revelar sua


“lembrança encobridora”, por meio de fantasia. Assim, passa a ser
alvo de zombaria dos outros. Freud já anunciava as consequências
de tal revelação por parte do adulto:

O brincar da criança é determinado por desejos:


de fato, por um único desejo – que auxilia o seu
desenvolvimento –, o desejo de ser grande e adulto.
A criança está sempre brincando “de adulto”, imitan-
do em seus jogos aquilo que conhece da vida dos mais
velhos. Ela não tem motivos para ocultar esse desejo.
Já com o adulto o caso é diferente. Por um lado, sabe
que se espera que não continue a brincar ou fantasiar,
mas que atue no mundo real; por outro lado, alguns
dos desejos seus que provocam suas fantasias são de
tal gênero que é essencial ocultá-las. Assim, o adulto
envergonha-se de suas fantasias por serem infantis e
proibidas. (FREUD, 1976a, p. 81).

Por sua posição na hierarquia social, dona Helena não se inco-


modava em mostrar suas atividades maternas aos empregados; todavia,
no retorno do marido, escondia a filha e os cuidados eram disfarçados.
Até que a história foi revelada aos poucos, mas doutor Jorge, já insatis-
feito com o casamento, ignorava a situação da mulher e dizia apenas
que ela era uma criança grande que ainda gostava de brincar de boneca.
Certo tempo depois, a realidade da filha era um fato para dona
Helena, que chegou até a comprar seguro saúde e educação, pensando
no futuro de Rose Marie. Pagou um valor absurdo em um atendimen-
to médico, quando presumiu que sua filha estava doente logo após
uma resfriagem, no episódio em que Donata, a empregada, demorou
para retornar do passeio ao entardecer com Rose Marie. Ao tentar
descobrir a verdade sobre a “filha”, para quem dona Helena insistia em
querer medicação sem apresentá-la no consultório, o médico insistiu
até convenceu a mãe de fazer-lhe uma visita na qual pode constatar

273 |
Liz Maria Teles de Sá Almeida

sobre a “filha” o que todos já comentavam. De imediato, percebeu


que se tratava de uma paciente para a psiquiatria, mas, mesmo assim,
utilizou um suposto interesse em aprofundar seus conhecimentos na
área, para também extorquir dinheiro da mulher do fazendeiro. Após
diversas consultas intercaladas com vários questionamentos feitos
pelo médico sobre a vida da “criança” e de sua mãe e mais uma pilha
de remédios, Rose Marie foi “curada” da pneumonia.
Contudo, a fantasia de dona Helena durou até o momento em
que, em uma de suas visitas rotineiras ao médico de Rose Marie,
a esposa do doutor Jorge foi abordada pela atendente do consultório,
que logo a despachou dizendo que o médico não poderia atendê-
-la. Em seguida, a moça dirigiu-se à sala do médico para auxiliá-lo
em um aborto. Já imaginando o que estaria acontecendo, a mulher
do fazendeiro não conteve a curiosidade e observou pelo buraco
da fechadura. Dona Helena não esperava que, ao tentar saciar sua
curiosidade, faria vir à tona o “recalcado”; ao ver o médico cortan-
do em pequenas partes um feto, desesperou-se e voltou para casa.
A fechadura, metaforicamente, representa o curto espaço que se-
parava a fantasia da realidade, pondo, de um lado, uma construção
criada e sustentada por dona Helena, a “filha” Rose Marie; de outro,
o real, a criança morta, fazendo manifestar o que estava latente.
Tensa, ao chegar em casa, a mulher tomou um café quente e
adormeceu. Ao acordar, solicitou que a empregada trouxesse Rose
Marie. A partir de então, relembraria todo o sofrimento pelo qual
passou ao fazer um aborto no início do casamento. Olhou fixamente
a boneca e percebeu seu olhar parado e sem vida, sua frieza, diferen-
te das filhas das outras mulheres que encontrara no consultório.

Donata trouxe a boneca. A mãe alisou os cabelos


ruivos, suspendeu a filha e viu os olhos que se mo-
vimentavam presos ao arame que, por sua vez, era
impulsionado por uma borracha. Entristeceu-se.
Os cílios de Rose pareciam goma arábica seca. Era fria.

| 274
“PELO BURACO DA FECHADURA”:
UMA LEITURA PSICANALÍTICA DE OS MAGROS

Não havia amor naquela expressão de tinta morta.


Onde estavam os movimentos dos braços, a faceirice
de Lúcia? Daquela menina que vira no primeiro dia
de consultório? Rose não tinha um gesto de amor,
faltava quentura nos olhos azuis. Profunda tristeza
abateu a fazendeira. Sua vida tornou-se mais vazia.
(EUCLIDES NETO, 1992, p. 156-157).

Este seria, então, o fim de uma fantasia construída como alter-


nativa a um casamento frustrado e, principalmente, como reação à
impossibilidade de ter um filho. Talvez dona Helena necessitasse da-
quela fantasia para que sua vida tivesse sentido; para atuar no mundo
real, cheio de impossibilidades e interditos impostos a uma mulher
que nunca era ouvida e via o sentido de viver em um único desejo
(não realizado): ser mãe.
Imensas são as criações literárias utilizadas por importantes
psicanalistas, como Freud, Jung, Lacan, entre outros, para discutir
questões ligadas ao inconsciente e, embora muitos de seus exemplos
– poderíamos citar um em especial, o Complexo de Édipo, de Freud
– não tenham passado de literatura sobre literatura, é inegável a con-
tribuição da psicanálise para desvendar os mistérios do inconsciente.
Também é muito difícil pensarmos nessas contribuições sem a cola-
boração dos devaneios de escritores e poetas que sempre legaram a
humanidade as suas fantasias mais íntimas.
Assim, não nos propusemos nestas linhas apenas revisitar
aquela que é considerada a obra-prima de Euclides Neto, como
também, embora de modo breve e leve, convidar os leitores para
outras possibilidades de exercitar o olhar sobre Os magros, e ver,
como o fez dona Helena, pelo “vão da fechadura”, o latente.
Dentro da ideologia euclidiana, dona Helena não seria a
personagem mais importante da narrativa que estudamos aqui, até
porque ele preferia, como já dissemos linhas atrás, o de-fora ao de-
-dentro. No entanto, é inegável que o romancista de Os magros soube

275 |
Liz Maria Teles de Sá Almeida

ler psicanaliticamente as fantasias de dona Helena, e não só dela,


como também as do fetichista doutor Jorge e do agregado João. Mas
isto já é matéria para outro trabalho.

REFERÊNCIAS

ABEL, Marcos Chedid. Verdade e fantasia em Freud. Ágora, Rio de


Janeiro, v. 14, n. 1, p. 47-60, jan./jun. 2011. Disponível em: https://
bit.ly/3n6j1jE. Acesso em: 12 jul. 2020.
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Psicanálise e Literatura. Tradução de
Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1978.
CHALHUB, Samira. A animação da escrita. São Paulo: Hacker:
Cespuc: Fapesp, 1999.
EUCLIDES NETO. Os magros. 2. ed. São Paulo: GSB, 1992.
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios (1907).
In: “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1976a.
FREUD, Sigmund. Rascunho L (2 de maio de 1897). In: Publicações
pré-psicanalíticas e esboços inéditos: volume 6. Rio de Janeiro:
Imago, 1976b.
PIGLIA, Ricardo. O melodrama do inconsciente. Revista da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, v. III, n. 15,
p. 110-114, nov. 1998.
RUDGE, Ana M. As fantasias oníricas para que servem? Psychê,
São Paulo, ano v, n. 8, p. 241-247, 2001. Disponível em: https://bit.
ly/3oGm4zq. Acesso em: 12 jul. 2020.

| 276
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO
ACADÊMICA

Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

Os eruditos que pisem, virem e sequem esse cacau


mole, cheio de sibiras, gogas e sem fermento. E o
classifiquem de gude ou inferior, que superior não o
é. Como se vê, não pretendo obra de sustança e faro
de paqueira. Fico nos aceiros. (EUCLIDES NETO,
2013, p. 24).

No excerto em destaque, Euclides Neto avalia o Dicionareco das roças


do cacau e arredores (2013), como fez em relação a outras produ-
ções escritas suas, como A enxada e a mulher que venceu seu próprio
destino (1996), chamado por ele de “romancete” e “chamboque de
romance”. Entretanto, revendo o que “os eruditos” disseram (pisa-
ram, viram e secaram) sobre o romance Os magros (1961), que não
tem nada de “cacau mole”, podemos inferir que se trata da produção
romanesca mais lida e analisada do escritor, isto se considerarmos o
número de edições (1961, 1992, 2007, 2014), as críticas vinculadas
em periódicos, os ensaios publicados em livros e as pesquisas acadê-
micas no âmbito da pós-graduação.
Este texto, que retoma parte da pesquisa de mestrado de
Marcelo (2010), tem por objetivo apresentar a história de leitura

277 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

de Os magros a partir das críticas publicadas sobre o romance desde


1961, ano de sua publicação, até a década de 2000.
A crítica literária no Brasil percorreu um longo caminho,
iniciado pela crítica de rodapé, aquela não especializada, publica-
da em jornais, prática comum entre os anos 1930 a 1950, segundo
Souza (2007). Os críticos, embora não tivessem necessariamente
formação em Letras, eram geralmente pessoas cultas, amantes da
literatura e com certo prestígio no cenário da cultura e das artes,
desempenhando papel, à época, fundamental na formação do gosto
de um público leitor.
Segundo Souza (2007), a partir da década de 1970, a crítica
universitária toma impulso no Brasil com a implantação dos cursos de
pós-graduação. Preocupada com a dissecação do texto e primando pela
técnica, ela se afasta da crítica jornalística, distanciando-se também do
leitor. A produção da crítica universitária na década de 1970 – segundo
balanço realizado por ensaístas e escritores no IV Encontro Nacional
de Professores de Leitura, em 1977 (SOUZA, 2007) – “[...] convive de
forma contraditória com a excelência de sua produção e a dificuldade
de torná-la acessível à comunidade.” (SOUZA, 2007, p. 16).
Em relação aos possíveis hermetismos da crítica acadêmica,
a pesquisadora reconhece a existência, no final da década de 1990,
de uma “[...] gradativa diluição de marcos teóricos, causada pela ver-
tente pós-estruturalista e pelas inclinações pós-modernas da crítica.”
(SOUZA, 2007, p. 19). Ela chama atenção para a mudança de enfo-
que do discurso crítico contemporâneo, marcado pelo avanço dos
estudos culturais, visto por muitos como “[...] uma ameaça à crítica
literária abalada pela ausência de perfil e indefinição de fronteiras
[...]” (SOUZA, 2007, p. 20).
Tais constatações provocam o questionamento sobre a postu-
ra do leitor em frente à crítica literária veiculada nos jornais. Qual a
melhor maneira de se relacionar com ela? Coelho (2007), quando do
assunto, aponta uma alternativa viável à questão, que pode também

| 278
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

ser considerada em relação à crítica literária. Ele reconhece os erros


e acertos promovidos por aquela crítica, mas destaca ser mais im-
portante perceber que “[...] a crítica, acertando ou errando, serve
principalmente para outra coisa: prestar mais atenção naquilo que
estamos vendo [...]” (COELHO, 2007, p. 88). O público não deveria
acatar como verdade inquestionável tudo que é emitido ou omiti-
do pela crítica. É essencial seu contato com a obra para vivenciá-la,
permitindo-se identificar-se ou não:

O que a crítica estimula, na verdade, é um enriqueci-


mento dessa experiência do “gostar” ou “não gostar”
– uma crítica negativa pode ser injusta, pode ser que
não concordemos com ela, mas se for bem-feita,
tornará nossa experiência da obra “melhor” para nós
mesmos, mais matizada... O vírus da crítica já terá
sido inoculado em nós, poderemos a partir daí criti-
car o crítico, se quisermos, mas o processo já não para
mais, e é esse, afinal, o processo da vida intelectual,
da vida do espírito... (COELHO, 2007, p. 88).

O que Coelho faz é convidar o público leitor para participar


da elaboração do texto metalinguístico que é a crítica, como define
Barthes (2003), buscando diferenciá-lo do escrito por poetas e ro-
mancistas. Segundo Barthes (2003, p. 160),

[...] todo romancista, todo poeta, quaisquer que sejam


os rodeios que possa fazer a teoria literária, deve falar
de objetos e fenômenos mesmo que imaginários,
exteriores e anteriores à linguagem: o mundo existe
e o escritor fala, eis a literatura. O objeto da crítica
é muito diferente; não é “o mundo”, é um discurso,
o discurso de um outro: a crítica é discurso sobre um
discurso; é uma linguagem segunda ou metalingua-
gem (como diriam os lógicos), que se exerce sobre
uma linguagem primeira (ou linguagem-objeto) [...].

279 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

A partir da sugestão de “prestar mais atenção naquilo que es-


tamos vendo”, e das considerações de Barthes, voltamos às leituras
publicadas sobre Os magros. Retomamos sete delas, que representam
momentos distintos da recepção crítica do romance.
Em 1961, dois textos foram publicados em jornais de Ipiaú.
O primeiro tem como título “A Editôra [sic] Progresso Ltda. pu-
blicou Os magros de Euclides Neto”, assinado por Vafel – que,
por informação não confirmada, seria redator-chefe do jornal O
Carteiro – e publicado na 22a edição bimestral, julho/agosto, do
jornal O Carteiro, à página 3, na seção intitulada “Literatura-Arte-
Curiosidades”. Este texto pode ser considerado a primeira crítica
publicada sobre o romance.
É possível observar o impacto positivo do romance sobre o
autor da crítica na expressão “li de um só fôlego”, qualificando o
romance de “obra-prima”, ou ainda quando se refere à publicação
do livro como “uma hora feliz”, demonstrando claramente o entu-
siasmo. Nesse texto, são evidenciados tanto os aspectos extratextuais
quanto os intratextuais.
Os elementos extratextuais relacionam-se ao tema do roman-
ce, que, para o autor da crítica, é “o contraste entre os donos da terra
e os donos da miséria”, referindo-se ao proprietário e ao trabalhador
da fazenda de cacau, respectivamente. São evidenciados os contras-
tes sociais apresentados na narrativa, como as condições financeiras
de patrões e empregados. O romance é caracterizado como um “livro
de protesto e de combate”, “um grito de angústia do escritor, em favor
de humildes lavradores de terra, na terra dos patrões”. Acrescenta
que a obra é “um grito que vai ecoar para sempre”, numa alusão à
permanência do contexto histórico no qual o romance foi produzido
e ao seu valor histórico.
Alguns elementos intratextuais também são evidenciados,
como a precisão e a objetividade da linguagem, comparada à de
Graciliano Ramos em Vidas secas, publicado em 1938, chamado

| 280
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

de “livro irmão” por Vafel. Ele afirma que estes escritores “não usam
linguagem fantasiosa” e usam o verbo e o adjetivo apenas quando ne-
cessário. É importante salientar, nessa primeira crítica publicada em
jornal, que alguns elementos destacados são recorrentes em outros
estudos mais detalhados, como a denúncia dos contrastes sociais e a
comparação com Vidas secas, tanto no uso da linguagem quanto no
aspecto temático.1
O segundo texto sobre Os magros foi publicado em 24 de ou-
tubro de 1961, no jornal Rio Novo – nome da cidade de Ipiaú antes
de sua emancipação política na década de 1930. Escrito por Santos
(1961), o texto tem como título Os magros. Inicialmente, o autor
refere-se ao caráter ingrato da crítica literária, como a antecipar os
comentários negativos que fará ao romance, principalmente em re-
lação aos “erros” que evidencia. A seguir, acrescenta que leu a obra
com o carinho com que trata as coisas da terra.
Vários elementos são postos em destaque para se referir à
construção textual chamada pelo crítico de “temática fraca”. O autor
critica a caracterização “pálida” das personagens, com a exceção de
João; a falta de “homogeneidade”, referindo-se ao isolamento em ca-
pítulos diferentes dos acontecimentos ocorridos na zona rural e os
ocorridos na cidade. Além disso, lista os possíveis “erros à revisão”,
citando-os um a um. São “erros” de emprego vocabular e usos ver-
bais, entre outros.
Além desses “erros”, ele comenta possíveis falhas na cons-
trução de personagens e situações. Santos (1961) afirma não ter
gostado das características e ações do personagem Jorge e de sua
mulher “D. Elena” [sic], cuja dúvida, se criara ou não uma boneca,
pode ser sanada com a leitura da contracapa do livro, como ressalta,
culminando com a afirmação de que “aqui a arte não imita a vida”.
De fato, ter adiantado para o leitor do romance que Rose Marie é

1
Ver o ensaio “Angústia da influência”, nesta edição crítica.

281 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

uma boneca, tirando dele a possibilidade dessa descoberta durante o


ato de leitura, não foi uma boa estratégia do autor.
A alusão feita por Santos (1961) quanto aos aspectos internos
da obra reporta-nos à segunda tese de Jauss (1994), voltada para o
impacto que podem causar no leitor.2 Nesse caso, a opção de narrar
em capítulos diferentes a vida do trabalhador rural e a do proprietá-
rio das terras não foi avaliada como um bom recurso, pelo contrário,
foi vista como falta de homogeneidade. Além dessas observações, o
crítico aponta a inverossimilhança das ações das personagens Jorge
e Helena, além de evidenciar o uso de lugares-comuns ao retratar
os coronéis do cacau. Todos os elementos destacados levam a crer
que o romance não tenha correspondido às expectativas do autor da
crítica, principalmente quanto aos elementos intratextuais.
Em relação aos aspectos extratextuais, fica evidente o impacto
positivo do livro sobre Santos (1961). A “força” e a “pungência”, des-
tacadas por ele, são capazes de provocar no leitor tristeza e depres-
são, que considera uma virtude por “revolver-nos na nossa estrutura
íntima”. Na breve conclusão, é destacado o mérito da narrativa, que
traz a possibilidade de provocar a discussão sobre a justiça social,
de “sacudir” o leitor, abalando estruturas. Tal afirmativa entra em
contradição com o que ele disse anteriormente sobre a temática
do romance, avaliada como “fraca”. Fica a questão: como um tema
“fraco” é capaz de abalar as estruturas do leitor?
Apesar da contradição, Santos (1961) reconhece o mérito do
romance. Sua observação coincide com a sétima tese apresentada por
Jauss (1994). Nela, o teórico chama a atenção para a possibilidade
de a literatura “sacudir” o leitor, desestabilizando suas certezas, pro-
vocando reflexões sobre aspectos sociais até então não percebidos.

2
Na segunda tese, Jauss (1994) reconhece que o texto literário oferece ao leitor dados referen-
tes à sua estrutura, ao gênero e estilo, entre outros, que o predispõe a manter uma relação
com o texto, evocando horizontes de expectativas e conhecimento prévio, preparando-o
assim para a recepção.

| 282
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

A função social da literatura, para Jauss (1994), refere-se às marcas


da vida em sociedade que se evidenciam no texto, com as quais os
leitores interagem no ato de leitura. Essas marcas são capazes de
transformá-los pela emancipação, alterando a atuação social, sua
percepção das coisas ou conservando valores éticos e morais já esta-
belecidos. A emancipação ou a conservação de valores dependerá da
maior ou menor sensibilidade ao relacionar-se com o ficcional e da
maneira como o ficcional age sobre cada leitor.
A terceira crítica jornalística que nos reportamos é intitu-
lada Os magros – romance essencialmente grapiúna”, publicada
30 anos depois das duas primeiras. Pereira, escritor e membro
da Academia de Letras de Ilhéus, publicou o texto no Diário da
Tarde (Ilhéus), em 17 de janeiro de 1991. Inicialmente, Pereira
(1991) tece considerações sobre a intenção de Euclides Neto em
reeditar Os magros (segunda edição), avaliado, por ele, como um
“excelente livro”.
O confrade de Euclides Neto na Academia de Letras de Ilhéus
esclarece que o romance retrata “os grãos-senhores feudais” da
região cacaueira da Bahia e recorda sua infância quando conheceu
de perto “fatos semelhantes” aos narrados no romance, destacando
que, nessas terras, predominam “a lei do mais forte por repercutir
mais alto”. O escritor demonstra forte identificação com a temática
abordada na obra, diferentemente de Santos (1961), e comenta a
ligação entre ficção e realidade e a “maestria” com que Euclides se
serve de ambas, avaliadas por ele como antagônicas. Os dois últimos
parágrafos do texto (transcritos a seguir) constam na contracapa da
segunda edição de Os magros:

Os Magros do romancista Euclides Neto podem, com


altivez, figurar ao lado de Terras do sem fim, de Jorge
Amado e do Corpo vivo de Adonias Filho. Eis aí,
formada, e bem formada, a admirável quanto insupe-
rável trilogia dos romances e romancistas grapiúnas

283 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

a serviço da sociologia cacaueira. (PEREIRA apud


EUCLIDES NETO, 1992, contracapa).

Compor essa trilogia, segundo Pereira (1991), confere à Euclides


Neto o estatuto de escritor do mesmo nível de Jorge Amado e Adonias
Filho, autores baianos cuja produção literária já havia alcançado
êxito perante o público e parte da crítica. Assim, a crítica cumpre sua
função de “instância proclamadora da obra”, conferindo-lhe o estatu-
to de literariedade, como ressaltou Lajolo (2001). Este é o efeito que
possivelmente resulta do texto da contracapa do romance. Entretanto,
pode causar outro efeito, se for considerada a expressão “romancis-
tas grapiúnas” um possível rótulo imposto aos três escritores citados,
aproximando três produções literárias distintas. Outros críticos fize-
ram referência à Euclides Neto como autor grapiúna. Nesse sentido, é
oportuno reproduzir a opinião de duas pesquisadoras e depoimentos
dos escritores “grapiúnas” sobre esta questão.
Andrade (2000, p. 199) concebe a “[...] ficção amadiana como
um discurso possível de entender a reelaboração de espaços e fron-
teiras da/na Bahia [...]”, não numa “perspectiva fisiológica da região”,
mas a partir de uma perspectiva geográfica que “se inscreve no ima-
ginário”. Ela identifica três “recortes espaciais” e aponta os romances
que representam cada espaço ou eixo.
O primeiro eixo corresponde ao sul da Bahia, “eixo Ilhéus/
Itabuna, nas narrativas que compõem a saga do cacau, a luta pela terra,
a exploração dos trabalhadores e o evidente poder dos coronéis”, repre-
sentado pelo romance Terras do sem fim (2008), entre outros. O sertão
está “presente na literatura dos anos 1930, como espaço marcado pela
seca, pobreza, cangaço, miséria” e corresponde ao segundo eixo. O ter-
ceiro e último eixo, o das “bahias”, representa a cidade de Salvador e
estende-se, segundo Andrade (2000, p. 199), ao Recôncavo baiano.
Em relação à Adonias Filho, Romariz esclarece que, “nascido
no sul da Bahia, trouxe o cenário da infância para seus romances,

| 284
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

mas suplantou o local sem esquecê-lo, mediando suas possibilidades


com valores universais.” (ROMARIZ, 1999, p. 226). Avalia a produ-
ção de 1946 a 1983.

[...] como poetização de um diálogo intercultural de


que participam a tradição grega, a judaico-cristã e a
cultura brasileira, vista esta última por Adonias como
produto das contribuições africana e indígena, a que
se mesclam elementos populares. (ROMARIZ, 1999,
p. 17).

O estudo realizado pela pesquisadora possibilita um apro-


fundamento da obra do escritor baiano, não só dos textos ficcionais,
como também da crítica literária.
Tanto Terras do sem fim, de Jorge Amado quanto Corpo vivo,
de Adonias Filho, citados por Pereira (1991), reportam-se ao sul da
Bahia. Marcado pela exploração do solo com o cultivo do cacau e
pela exploração do trabalhador rural, o local ficou conhecido como
região grapiúna, principalmente o eixo Ilhéus/Itabuna. Talvez por isso
os autores dos romances que retratam a localidade são chamados por
Pereira de “grapiúnas”. Contudo, tanto Jorge Amado quanto Adonias
Filho têm uma produção romanesca que retrata outros espaços, além
da região cacaueira baiana. Euclides Neto também representou em sua
obra outros espaços, como Salvador, no romance Vida morta (1947),
e Jequié, cidade situada na transição entre o sertão baiano e a zona da
mata, em A enxada e a mulher que venceu seu próprio destino (1996).
Euclides Neto, na coletânea de contos selecionados e orga-
nizados por ele intitulada Novos contos da região cacaueira (1987),
assim se posiciona:

Esta antologia reúne, a partir de Adonias Filho,


os nomes mais expressivos na história curta sul-baia-
na. Todos eles com sua linguagem, visão de mundo
e temática própria, onde o cacau aparece, muitas

285 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

vezes, como referencial. (EUCLIDES NETO, 1987,


contracapa).

No prefácio dessa coletânea, Adonias Filho apresenta os escri-


tores que compõem a seleção de contos:

Aqui estamos nós, ficcionistas do sul da Bahia,


a comprovar que temos efetivamente um complexo
regional de civilização do cacau. À sombra de uma
saga comum, na variação de processos e estilos indivi-
duais, é todo um reino – humano, geográfico e social
– que se mostra através da reprojeção literária. [...]

Torna-se indispensável entender, porém, que um


agrupamento literário – no sentido de uma literatura
caracterizada e de uma ficção de tipicidade evidente
– apenas surge por imposição de componentes literá-
rios nascidos de um complexo cultural definido. [...]

[...] o agrupamento literário existe porque o com-


plexo cultural, que o provocou, é resultante de
uma forte personalidade regional. [...] sendo uma
personalidade regional, não se pode confundi-la com
regionalismo literário. E isso porque, mantendo-se
na região, fiéis ao complexo cultural, os contistas a
ultrapassam pela dimensão humana da vida que ela
própria oferece (ADONIAS FILHO apud EUCLIDES
NETO, 1987, p. 5-6, grifo nosso).

O posicionamento de Adonias Filho não contradiz os estudos


realizados sobre a sua produção e a de Jorge Amado apresentadas
anteriormente. Isto porque, como ressaltou, a região cacaueira serve
como “referencial” e a literatura produzida sobre ela não delimita um
regionalismo, visto que o espaço geográfico que a poderia restringir
oferece uma “dimensão humana” que possibilita ultrapassar limites.

| 286
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

Postas essas observações sobre os comentários de Pereira, retoma-


mos as publicações sobre Os magros.
Em 1996, Seixas publicou “Vozes sufocadas” – artigo publi-
cado originalmente no jornal A tarde, em 11 de março de 1996 –,
uma análise de Os magros. Nesse mesmo ano, ele reuniu no livro
Triste Bahia, Oh! Quão dessemelhante: notas sobre a literatura na
Bahia várias de suas publicações em periódicos, inclusive o texto
“Vozes sufocadas”. Nele, Seixas (1996) refere-se ao realismo social,
marco dos escritores regionalistas de 1930, aos quais, segundo
afirma, Euclides Neto busca dar continuidade, “pintando suas pai-
sagens e retratando o que viu e viveu”. Destaca o discurso engajado
do escritor, marcado pela ideologia humanista e pelo compromisso
em dar voz aos injustiçados trabalhadores da zona cacaueira da
Bahia. Assim como Pereira, Seixas inclui Euclides Neto entre os
“escritores grapiúnas”. Para Seixas, o romance Os magros possui
discurso “situado” na zona cacaueira da Bahia e “datado” na pri-
meira metade do século XX, nascendo desses dois aspectos as “vir-
tudes e defeitos” do romance.
Um dos possíveis defeitos destacados nessa crítica correspon-
de aos “ecos inúteis”, causados pelo nome da cadela “Sereia”, em Os
magros, remetendo à cadela “Baleia”, de Vidas secas, de Graciliano
Ramos. Segundo Seixas, essa proximidade sonora pode criar no “[...]
leitor preconceituoso a expectativa de um pastiche [...]” (SEIXAS,
1996, p. 159). O que ele afirma não ocorrer no livro, classificando-o
como obra autônoma e comprometida com sua gente e sua terra,
embora mantenha com Vidas secas um diálogo intertextual, buscan-
do ampliar suas conquistas, o que para ele “[...] confere atualidade e
interesse ao romance agora reeditado.” (SEIXAS, 1996, p. 159).
Outro possível “ponto crítico” de Os magros corresponde ao
uso de narrativas paralelas, através das quais o autor opõe a misé-
ria rural à riqueza urbana a partir da vida de João e Jorge. Segundo
Seixas, na tentativa de produzir um texto realista, o romancista

287 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

carrega na tinta e produz um “realismo ingênuo”. Para o crítico,


causaria melhor efeito no leitor se os contrastes evidenciados na
obra fossem mostrados mais discretamente, atenuando as marcas do
realismo socialista que “[...] tornam o livro demasiadamente datado
[...]” (SEIXAS, 1996, p. 162).
As observações revelam a preocupação com o impacto da
obra sobre o leitor, provocado por elementos estruturais da narrati-
va. Essa preocupação remete à terceira tese de Jauss (1994), princi-
palmente a que se refere aos elementos intratextuais da obra, como
sua estrutura, passíveis de evocar no leitor determinados horizontes
de expectativas, que podem ou não ser confirmados no contato com
o texto. Seixas (1996) não aprova o uso das narrativas paralelas,
pouco comum na literatura brasileira, pelo menos nos romances
já consagrados pela crítica. Santos (1961) também não aprovou o
uso dessa estrutura, afirmando, na época, que o romance “carece de
homogeneidade”.
Em relação aos aspectos positivos, Seixas (1996, p. 156) des-
taca o capítulo XIII, avaliado-o como “um dos momentos altos do
livro”. Esse capítulo corresponde à passagem em que o gerente da
fazenda, desrespeitando o luto de João e sua família, que acabara
de perder o “caçula”, persegue pela mata os outros filhos do agregado.
O gerente não queria trabalhadores na fazenda com muitos filhos
para não dar prejuízos nos cacaueiros. O capítulo supracitado revela
o pavor das crianças ao serem perseguidas no mato.
O crítico acrescenta, ainda, que o discurso engajado de Os
magros,

[...] desafiando o calendário, [...] continua abrindo


espaço nestes anos de fim de século, quando o esplen-
dor do ciclo do cacau foi inócuo para atenuar a pobreza
e a miséria de muitos que, com suas mãos, construíram
toda aquela riqueza. (SEIXAS, 1996, p. 158).

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LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

Com essa constatação, reconhece a atualidade da obra e sugere


que o romance seja lido e conhecido por “milhares de leitores”,
o que permitiria o “[...] livre soar destas vozes sufocadas que, ouvidas,
ajudariam as pessoas a passar muitas coisas a limpo [...]” (SEIXAS,
1996, p. 162). É a ficção agindo sobre o leitor, abalando suas bases e
provocando uma reordenação de valores, uma revisão de fatos his-
tóricos vivenciados ou conhecidos a partir do texto ficcional. Jauss
(1994) descreveu, na sétima tese, essa possível relação entre leitor e
texto, capaz de desencadear novos posicionamentos sociais.
Seixas (1996) ressalta, por fim, a necessidade de os cursos de
pós-graduação estudarem obras de autores “da comunidade na qual
está inserida”. Com isto, a crítica acadêmica escrita na Bahia tiraria
muitas do “esquecimento” a que foram submetidas, possibilitando
maior difusão de textos literários e, por conseguinte, a inserção de
novos autores no cenário cultural. Euclides Neto é um deles: suas
obras ficcionais e memorialistas oferecem elementos capazes de
motivar estudos em diversas áreas do conhecimento. Tais estudos
vêm se desenvolvendo, como é possível notar nos cursos de pós-
-graduação das universidades públicas da Bahia, cujo aumento no
número de pesquisas de obras literárias, que revisitam a história e
culturas baianas, é significativo.
Nas quatro produções supracitadas sobre Os magros, veicula-
das em jornais, foi mais recorrente a abordagem de aspectos extra-
textuais, aqueles referentes ao contexto de produção da obra: a região
cacaueira baiana na primeira metade do século XX, principalmente
os contrastes entre os trabalhadores rurais e patrões. Tanto as duas
críticas da década de 1960 quanto as duas da década de 1990 fazem
considerações sobre esta temática. Por representar os dramas da
região cacaueira, as duas críticas contemporâneas classificaram o
autor como grapiúna. A relação intertextual do romance com Vidas
secas, de Graciliano Ramos, apareceu em um texto de 1961 e em
outro de 1996, reaparecendo em alguns textos publicados a partir

289 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

de pesquisas acadêmicas no âmbito da pós-graduação. Sobre elas,


destacamos duas publicações.
A primeira é o livro O romance dos excluídos: terra e política
em Euclides Neto3. Nela, Cesar4 (2003) analisa quatro narrativas de
Euclides Neto que, reunidas, são denominadas de “tetralogia dos
excluídos”. A obra aborda a realidade histórica e social dos traba-
lhadores rurais da região cacaueira do sul da Bahia e evidencia a
desigualdade entre classes sociais. Segundo Cesar (2003), essa carac-
terística aproxima a produção literária de Euclides Neto do romance
nordestino de 1930. Os romances que compõem a “tetralogia dos
excluídos” são: Os magros (1961), O patrão (1978), Machombongo
(1986) e A enxada e a mulher que venceu seu próprio destino (1996).
(cf. OLIVEIRA, 2018)
A segunda publicação acadêmica é a obra Literatura do cacau:
ficção, ideologia e realidade em Adonias Filho, Euclides Neto, James
Amado e Jorge Amado, de João Batista Cardoso. Interessa-nos par-
ticularmente o segundo capítulo dedicado à leitura de Os magros,
“Os pólos da sociedade em Os magros” (CARDOSO, 2006, p. 85-115).
O capítulo é dividido em cinco sessões: “A dialética da reprodução e
o poder da alienação”, “A dialética da reprodução e o poder do con-
formismo”, “Um espírito de descoberta num mundo de contrastes”,
“A dialética do pessimismo e a ruptura da realidade” e, finalmente,
“A dialética do pessimismo e a superação”. O pesquisador ressalta
a desigualdade social abordada no romance, analisando a vertente
ideológica.
Tanto Cardoso (2006) quanto Cesar (2003) destacam a tensão
estabelecida entre a pobreza e a riqueza, a dominação e a submissão,
representadas pela família de João, trabalhador da fazenda Fartura,
3
Resultado da pesquisa desenvolvida no mestrado em Letras da Universidade Federal
da Bahia (UFBA) e publicada pela Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC), Editus.
4
Jornalista (1983) e Mestre em Letras e Linguística pela UFBA (2000). Professor das
Faculdades Jorge Amado e da Faculdade de Tecnologia e Ciências de Salvador.

| 290
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

e de Jorge, rico proprietário e que vive ociosamente da renda dessa


propriedade rural. Os contrastes sociais e econômicos são eviden-
ciados no romance pelo uso do contraponto, alternando os capítulos
para narrar as histórias de vida das duas famílias, separadamente.
Ao analisar a trajetória de vida das famílias, Cardoso (2006)
discute: o modo de produção capitalista que os cacauais representam
e a desigualdade estabelecida entre patrões e empregados; a perma-
nência da escravidão na região cacaueira, com a ruptura da humani-
zação causada pela fome e exploração da mão de obra; os processos
de animalização do homem, ou zoomorfização, e de humanização
dos animais - elementos destacados também por Cesar (2003) - o an-
ticlericalismo representado na obra pela crítica à Igreja Católica, que
nega o batismo aos trabalhadores rurais por falta de dinheiro, entre
outros aspectos. Para Cardoso (2006), os contrastes que o romance
apresenta revelam o tom irônico da obra, evidenciado o excesso de
filhos do trabalhador, que se contrapõe à falta de herdeiros do rico
proprietário rural.
A relação intertextual com outros romances é um elemento
ressaltado tanto por Cesar (2003) quanto por Cardoso (2006). Este
não destaca a relação com Cacau (1933), de Jorge Amado, e Vidas
secas (1938), de Graciliano Ramos, como o faz Cesar, mas estabe-
lece relação com Os sertões (2009), de Euclides da Cunha. Segundo
Cardoso (2006, p. 108), Euclides da Cunha e Euclides Neto são

[...] filiados à mesma tendência estética preocupada


em mostrar os contrastes descobertos no novo espí-
rito investigativo acerca da constituição mais íntima
do Brasil.

A morte dos sertanejos em decorrência da guerra em Canudos,


ou da fome na região cacaueira da Bahia, representa o extermínio
justificado por sua dificuldade “[...] de integração à história do país
em que viviam [...]” (CARDOSO, 2006, p. 108). Também, ressalta

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Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

que a “solução estética” que aproxima Os sertões de Os magros é


marcada justamente pelo contraste: “sertão versus litoral”, no primei-
ro, e “riqueza versus pobreza”, no segundo.
O diálogo intertextual do romance de Euclides Neto com
Cacau e Vidas secas é analisado por Cesar (2003). Em relação ao
primeiro, ganha destaque a denúncia do latifúndio e de suas con-
sequências sociais; além do tom irônico na escolha do nome da
fazenda onde os trabalhadores são explorados: em Cacau, fazenda
Fraternidade, em Os magros, fazenda Fartura. Ainda em relação aos
nomes, ressalta que, em Vidas secas, a cachorra chama-se Baleia, em
Os magros, Sereia, termos que fazem referência às águas, como foi
destacado em críticas anteriores.
Se em Vidas secas os filhos de Fabiano eram chamados de
“menino mais velho” e “menino mais novo”, em Os magros, o filho
caçula de João e Isabel, como ressalta Cesar (2003), também não tem
nome. Como nesses dois romances, em A enxada e a mulher que
venceu seu próprio destino, publicado por Euclides Neto em 1996, as
crianças menores também não possuem nomes próprios, sendo cha-
madas de “o caçula” e “o achado”, numa clara denúncia da condição
de inexistência para o Estado.
Em Os magros, os ricos adoecem por excesso de alimentação,
os pobres morrem de fome, trabalhando a terra, comendo e sendo
comidos por ela, como retratam as personificações: “A terra preta
estaria mastigando o corpinho aniquilado.”; “A terra apressada leva-
ria todos os meninos para que as raízes gulosas salivassem com os
aguaceiros das noites escuras.” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 52, 78).
Para Cardoso (2006, p. 110),

[...] quando a linguagem privilegia a ironia, o que se


percebe como elemento informador da ideologia é
o ceticismo do autor que sinaliza uma descrença na
possibilidade apresentada pelo contexto histórico

| 292
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

no sentido de superar as contradições (CARDOSO,


2006, P. 110).

Para o autor, esta constatação leva-o a classificar o enredo


como satírico. Os dois pesquisadores registram também o “fetichis-
mo” por alguns objetos: o facão, por João; a riqueza, personificada na
boneca Rose Marie, por Helena; e os diamantes, por Jorge.
Ganha destaque nessa análise, além da ironia e da personifi-
cação, as comparações e metonímias, que dão vida aos contrapontos
do romance, pela evidência das diferenças e não das semelhanças.
Outro aspecto destacado é a ausência de descrição psicológica dos
personagens, privilegiando os aspectos exteriores, para, por meio
deles e do aguçamento do olhar do leitor, revelar o interior degra-
dado, triste e desesperançado. A indigência física torna-se também
ideológica, visto que os magros trabalhadores não conseguem esbo-
çar reação nem percebem que estão inseridos numa estrutura social
maior de exploração e subjugação da classe trabalhadora.
Além dessas considerações, são destacados por Cardoso
(2006) fatores contraideológicos: o anticlericalismo, ressaltado no
episódio da negação do sacramento do batismo pela Igreja Católica
por falta de pagamento; e o antitelurismo, marcado pela revolta de
João com a terra, que é comida pelos filhos famintos, que depois de
mortos são comidos por ela. Ironicamente, João não consegue sair
dessa mesma terra, num apego telúrico e alienante, compondo mais
uma relação dialética destacada na análise.
Cesar (2003, p. 95) classifica Os magros como um romance
documental,5 o “legítimo herdeiro do romance nordestino de 30”. Por
outro lado, Cardoso (2006, p. 100) justifica não poder classificá-lo
como um romance realista socialista, porque
5
Segundo Lucas (1987, p. 17), o romance documental procura “acentuar uma realidade que
se julga injusta”, apelando para “situações concretas de aniquilamento do ser humano”, o que
enfatiza “os erros da sociedade”, seus “desajustamentos” e “frustrações”. Definição apropria-
da para Os magros.

293 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

[...] não privilegia a esperança e o otimismo que


marcam caracteristicamente os romances dessa esté-
tica, que como se sabe, antecipa, no nível do discurso,
uma nova realidade em que o sofrimento do homem
tenha deixado de existir. (CARDOSO, 2006, p. 100).

Ressalta ainda a ausência de superação, tanto dos pobres,


quanto dos ricos. Todos sofrem, ou pela miséria ou pelo mau uso
da riqueza. O autor destaca que no romance há a denúncia da ex-
ploração, mas não se vislumbra solução. João reflete, mas foge das
reflexões, não vê saída, culpa-se pelo excesso de filhos que amplia
a miséria. Em Cardoso (2006), a estética da pobreza, da fome e da
culpa são mostradas num quadro estático de contrastes, que se alter-
nam com os capítulos.
Além desses dois estudos, Araújo (2008),6 em Floração de
imaginários: o romance baiano no século 20, contempla “[...] no
plano estilístico e estrutural da formação romanesca na Bahia [...]”
a produção de mais de 70 escritores, entre eles, Euclides Neto. Dentre
os livros publicados por este escritor, Araújo elencou os oito roman-
ces: Birimbau [sic] (1946), Vida morta (1947), Os magros (1961),
O patrão (1978), Comercinho de Poço Fundo (1979), Os genros (1981),
Machombongo (1986) e A enxada e a mulher que venceu seu próprio
destino (1996).
A partir da análise de Comercinho de Poço Fundo, o pesquisa-
dor afirma:

O estilo raro é requintado de Euclides Neto – que de


tudo conhece na extensa geografia (física, humana,
ecológica, psicológica) do sul da Bahia – afirma paren-
tesco com a estilística narrativa de uns seus parceiros
malungos, percorrendo lembranças intrínseco-textuais
6
Doutor e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Professor titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). É ficcionis-
ta, poeta, dramaturgo, ensaísta e jornalista.

| 294
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

desde Graciliano Ramos e Guimarães Rosa a Mário


Palmério e José Cândido de Carvalho. (ARAÚJO,
2008, p. 167).

Evidencia ainda o uso da linguagem oral e de arcaísmos numa


forma textual “[...] despojada de arabescos ornamentais”. Dos ro-
mances que compõem o panorama da produção de Euclides Neto
organizado por Araújo, interessa-nos as considerações sobre Os
magros, em que enfatiza o “[...] rigor ostensivo de observação direta
do real”, organizado em capítulos contrastantes que dialogam entre
si, alternando o paralelismo campo-cidade, que representam o con-
flito de classes sociais, já evidenciado em Cardoso (2006) e César
(2003). A alusão ao romance Vidas secas também aparece nessa aná-
lise, em que são destacadas as semelhanças quanto à representação
da fome e da servidão do trabalhador rural.
Outros aspectos recorrentes são a referência ao universo so-
ciológico e psicológico dos trabalhadores rurais e a identificação de
Euclides Neto com o romance produzido a partir da década de 1930
no Brasil, como afirma Araújo (2008, p. 165) no trecho:

[...] pela riqueza temática e estética, repercussiva dos


melhores frutos da novelística brasileira pós 30, com
muita propriedade, Euclides Neto merece estar entre
os melhores narradores faulknerianos [...].

A crítica em torno de Os magros, como vimos, perpassa por


três décadas (1960, 1990 e 2000), que coincidem com as (re)edições
do romance. Ela possibilita relacionar passado e presente e observar
os elementos estéticos e históricos recorrentes nas análises. Para a
estética da recepção, a história de um texto não pode ser construída
sem a participação ativa do leitor. É a partir da leitura que a obra se
revela, tanto no horizonte histórico de sua origem, quanto na sua
função social e ação no tempo.

295 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

Dois elementos que compõem as análises com base na estética


da recepção foram evidenciados pelos leitores críticos de Os magros,
retomados aqui. O primeiro diz respeito a “implicação estética” e o
segundo “a implicação histórica”. Para Jauss (1994, p. 23),

[...] a implicação estética reside no fato de já a recep-


ção primária de uma obra pelo leitor encerrar uma
avaliação de seu caráter estético, pela comparação
com outras obras já lidas [...]. (JAUSS, 1994, p. 23).

A “implicação histórica”, por sua vez, realiza-se “numa cadeia


de recepções” enriquecida através das gerações de leitores que pos-
sibilitam vislumbrar “o significado histórico de uma obra”, como foi
visto nas análises sobre Os magros, considerando as observações
recorrentes em décadas distintas.
Um dos fatores mais ressaltados pela crítica foi a relação inter-
textual de Os magros com Vidas secas, de Graciliano Ramos, bem como
a relação acerca da construção textual, a semelhança na constituição
de personagens, os nomes atribuídos ou negados a eles e a linguagem
concisa. A relação estabelecida com aquele romance foi percebida nos
textos de Vafel (1961), Seixas (1996), Cesar (2003) e Araújo (2008).
A comparação com o romance de 1930 se deu principal-
mente pela denúncia da desigualdade social. Para Araújo (2008,
p. 165), ele representa um “[...] dos melhores frutos da novelística
brasileira pós 30 [...]”. César (2003), por sua vez, afirma tratar-se
de um romance documental, herdeiro do romance de 1930. Lafetá
(2000, p. 30) comenta alguns aspectos históricos que marcaram o
decênio de 1930:

A “politização” dos anos trinta descobre ângulos


diferentes: preocupa-se mais diretamente com os
problemas sociais e produz os ensaios históricos e
sociológicos, o romance de denúncia, a poesia mili-
tante e de combate. Não se trata mais, nesse instante,

| 296
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

de “ajustar” o quadro cultural do país a uma realidade


mais moderna; trata-se de reformular ou revolucio-
nar essa realidade, de modificá-la profundamente,
para além (ou para aquém...) da proposição burguesa:
os escritores e intelectuais esquerdistas mostram a
figura do proletariado (Jubiabá, por exemplo) e do
camponês (Vidas secas) instando contra as estruturas
que os mantêm em estado de sub-humanidade [...].

Analisado a partir dessas colocações, Os magros se configura


como um romance de denúncia, embora o trabalhador rural repre-
sentado nele não demonstre, ainda, uma consciência formada sobre
a luta de classe, nem busque saídas para a condição de explorado.
Como bem ressaltou Cardoso (2006), o romance, apesar de retratar
os modos de produção capitalistas, as condições de produção no
campo, a desigualdade social e a ruptura da humanização, não pri-
vilegia a esperança e o otimismo; não há superação das dificuldades;
os trabalhadores estão imersos em suas condições, características de
sua classe social, sem vislumbrarem alternativas.
As alternativas para sair da condição de explorado levariam
ao rompimento da estrutura capitalista e apontariam em direção ao
socialismo, forte corrente ideológica de influência em todo o mundo,
segundo Lafetá (2000). Entretanto, João não consegue ir além da
necessidade de matar a fome. Como ver além? Precisava possuir os
meios de produção (simbolizados pelo facão) para continuar viven-
do e enriquecendo o sistema capitalista. A consciência da situação
em que se insere não é apreendida por João, que evita os parcos mo-
mentos em que ela busca aflorar, centrando-se em suas necessidades
imediatas de comer, abrigar-se, vestir-se etc., possíveis de serem re-
solvidas, para ele, apenas com a compra de um facão.
Quanto ao impacto do romance sobre os leitores – escritores
das críticas e ensaios analisados –, arriscamos algumas inferências.
Nos textos de 1961, escritos por Vafel e Santos, expressões do tipo

297 |
Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

“li de um só fôlego”, “obra prima”, “força e pungência da narrativa,


capaz de revolver-nos na nossa estrutura íntima” revelam que o ro-
mance pode “sacudir” esses leitores, provocando reflexões sobre o
contexto histórico representado na narrativa. Araújo (2008, p. 165),
por sua vez, no texto de 2008, afirma que o romance “[...] possui
riqueza temática e estética [...]” e a narrativa é capaz de aproximá-
-lo dos personagens como se fossem “vizinhos”. E acrescenta que o
narrador “[...] rasga a cicatriz social, reacendendo a ferida [...]”. Jauss
(2002) ensina que a literatura é capaz de emancipar o homem, livrá-
-lo de suas “ataduras”, sejam elas religiosas ou sociais. O primeiro
passo nessa direção se dá no impacto vivenciado pelo leitor ao tomar
contato com o texto.
Um dos elementos intratextuais mais comentados foi a or-
ganização dos capítulos do romance em “narrativas paralelas”, nas
quais as histórias de patrão e empregado são tratadas em capítulos
distintos. Enquanto o uso desse recurso conferiu à obra falta de
“homogeneidade” para Santos (1961), Araújo (2008) ressaltou o “in-
terdialogismo” entre os “capítulos contrastantes”, e Cardoso (2006)
destacou o “quadro estático de contraste”, no qual se alternam a esté-
tica da pobreza, da fome e da culpa.
Por fim, avaliamos o uso desse recurso como forma de eviden-
ciar a distância entre as classes sociais representadas pelas histórias
de João e de Jorge (MARCELO, 2010). O proprietário dos meios de
produção capitalista e o trabalhador explorado por esse sistema não
poderiam dialogar, interagir, considerando o contexto histórico da
obra, o final da década de 1950 e início da de 1960. A interação sus-
cita o embate entre as classes. Entretanto, os trabalhadores rurais, re-
presentados por João, encontravam-se impossibilitados de perceber
algo além da fome que os devorava.
Euclides Neto traz essa impossibilidade para a estrutura da
narrativa, marcando a divisão de classes sociais através da separação
de capítulos para narrar a história do patrão e do empregado rural

| 298
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

(MARCELO, 2010). A distância entre as duas classes representadas


era tão gritante, no contexto rural de meados do século XX, que os
caminhos dos protagonistas não se cruzavam, a não ser como ex-
ploradores e explorados; papéis bem determinados e inconfundíveis.

REFERÊNCIAS

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Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo

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| 300
LEITORES E LEITURAS DE OS MAGROS:
DAS PÁGINAS DOS JORNAIS À PRODUÇÃO ACADÊMICA

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percurso de recepção das narrativas Os magros e A enxada e a
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em Estudo de Linguagens) – Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Caetité, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2010.
OLIVEIRA, Rita Lírio. Rasuras grapiúnas: linguagem, memória,
história e gênero na obra de Euclides Neto. 2018. Tese (Doutorado
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VAFEL. A editôra Progresso Ltda. publicou Os magros, de Euclides
Neto. O Carteiro, Ipiaú, p. 3, jul./ago. 1961.

301 |
ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA:
GRACILIANO RAMOS (VIDAS SECAS)
E EUCLIDES NETO (OS MAGROS)

Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)

Para o crítico norte-americano Harold Bloom (1930-2019), na obra


A angústia da influência (2002), as manifestações de influência numa
obra, causadoras de angústia nos escritores, devem ser entendidas
mais como consequência do que causa. Isso, a princípio, trata-se,
sim, de um bem; mas num segundo momento, de um mal. Neste
texto, cabe-nos discutir como e por que se dá esse bem/mal-estar,
esse fascínio/medo, valendo-nos de dois ficcionistas e duas obras
da literatura brasileira: Graciliano Ramos, com Vidas secas (1938),
e Euclides Neto, com Os magros (1961).
Ciência, arte e filosofia vêm se ocupando, cada uma a seu
modo, em conceituar a angústia há muito. A angústia da influência
acomete as pessoas (não só artistas) na medida em que elas tentam
fugir do modelo influenciador. Deste modo, o medo do plágio pode
ocasionar para o influenciado não um afastamento, mas justamente
o contrário. Isso em razão de aspectos tanto biográficos quanto bi-
bliográficos, tanto conteudísticos quanto formais. Sem dúvida, nossa
leitura se ocupará mais destes do que daqueles, mas não prescindi-
mos das notações biográficas como subsídios para lermos as obras,
já que nossa leitura se quer eclética. Os dois ficcionistas brasileiros

303 |
Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)

aqui focados, Graciliano Ramos e Euclides Neto e suas respectivas


obras, analisadas, neste texto, provam-no cabalmente.
Nosso texto está dividido em duas seções. Na primeira, por
meio de notas biográficas, apontamos semelhanças e dessemelhan-
ças nas histórias de vida dos dois escritores. Ambos nordestinos,
relacionados com a terra, a política e as letras; de ideologias muito
próximas, se elegeram prefeitos e faleceram do mesmo mal. As des-
semelhanças estão relacionadas ao cenário nordestino vivenciado, às
concepções de comunismo e postura perante a vida.
Na segunda seção, apontamos semelhanças e dessemelhanças
entre os romances Vidas secas e Os magros. O tópos está presente nas
duas narrativas telúricas, neorrealistas, logo, empenhadas; as perso-
nagens são zoomorfizadas, por meio de metáforas e símiles, à ma-
neira naturalista; e destacam-se por seus atores miseráveis. Também
convergem no que se refere à estrutura da narrativa, construídas com
blocos que podem ser lidos como peças autônomas; ambos utilizam
a terceira pessoa do singular, empregam discurso indireto livre.
Por outro lado, apesar da tendência em comum para a objetividade,
diferem na maneira como o fazem; o admirável aproveitamento da
língua oral mesclada a um registro mais culto, exercido por ambos,
apresenta dessemelhanças.
As convergências e divergências entre Vidas secas, de
Graciliano Ramos, e Os magros, de Euclides Neto, descobertas e in-
terpretadas por nós, à primeira visada, podem parecer uma mera e
excêntrica perseguição do estudo das fontes ou das influências de
um texto (autor) sobre outro texto (autor). Não visamos valorar as
obras e autores entre si, mas descobrir e interpretar semelhanças e
dessemelhanças. Talvez possamos falar, no nosso caso, em paráfrase,
um procedimento intertextual respeitoso. Porém, também podemos
nos referir, com toda certeza, à angústia da influência. Optamos pelo
método comparativista como meio, e não fim, para que visualize-
mos as matérias e maneiras (topoi, estruturas narrativas, discursivas,

| 304
ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA:
GRACILIANO RAMOS (VIDAS SECAS) E EUCLIDES NETO (OS MAGROS)

estilísticas) do já canônico Vidas secas, de Graciliano Ramos, e da


pequena obra-prima que é Os magros, de Euclides Neto,

Porque influenciar alguém é dar-lhe nossa própria


alma. Ele não pensa seus sentimentos naturais, nem
arde com suas paixões naturais. Suas virtudes não são
reais para ele. Seus pecados, se é que existem pecados,
são emprestados. Ele se torna um eco da música do
outro, ator de um papel que não foi escrito para ele.
(WILDE apud BLOOM, 2002, p. 56).

Para o sempre polêmico crítico norte-americano Bloom


(2002, p. 24, grifo do autor),

[...] O que os escritores podem sentir como angústia,


e o que suas obras são obrigadas a manifestar, são as
consequências da apropriação poética, mais que a sua
causa [...].

Assim, os poetas (mas não somente os poetas, senão todos os


que escrevem, sejam romancistas, contistas, dramaturgos e, acres-
centaríamos, por nossa conta, todos os artistas, pintores, músicos,
escultores e não artistas) padecem desse bem/mal: a influência.
Angústia pertence, a princípio e normalmente, ao campo se-
mântico da psicanálise e da filosofia. Haja vista, por exemplo, para
as teorias sobre as obsessões e fobias do pai da psicanálise, Freud
(1974), e para a obra do ficcionista, ensaísta e filósofo Sartre (2009
[1943]). Desta maneira, ciência, arte e filosofia vêm se ocupando,
cada uma delas a seu modo, em conceituar a angústia há muito.
Como já mencionado, a angústia da influência acomete as pes-
soas (e não só artistas, ressaltamos) na medida em que tentam fugir
do modelo influenciador, “[...] lendo errado textos anteriores. [...]”
(BLOOM, 2002, p. 20). Algo semelhante se deu com o parricida e
incestuoso Édipo: o pavor do oráculo fê-lo afastar-se o mais possível

305 |
Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)

de Tebas e, assim, de Laio e Jocasta, quando na verdade nada mais


fazia do que se aproximar deles e consumar o que lhe havia previsto
o oráculo. Deste modo, o medo do plágio pode ocasionar para o in-
fluenciado não um afastamento do influenciador, mas justamente o
contrário. Revanche do destino, talvez.
A influência é, assim, um mal/bem. Mal, se quem vier depois
tão somente ingerir o que veio antes; bem, se digerir adequadamente
o influenciador. Portanto, em conformidade com a lição já recebida
por nós do canibal modernista Oswald de Andrade (1896-1954), em
seu Manifesto antropófago, de 1928 (ANDRADE, 2002).
Quem ler a obra de Euclides José Teixeira Neto (1925-2000)
– a um tempo, um misto de homem do campo, da política e das letras –,
inevitavelmente se lembrará de Graciliano Ramos (1892-1953). Isto em
razão de aspectos tanto biográficos quanto bibliográficos, tanto con-
teudísticos quanto formais. Sem dúvida, nossa leitura se ocupará mais
destes do que daqueles. Até porque, hoje, na Academia, a crítica bio-
gráfica não goza de muito prestígio, muito embora, de nossa parte, não
prescindamos das notações biográficas como subsídios para lermos as
obras de determinados autores, mas não como camisa de força, obvia-
mente. Nosso tempo pós-modernista – não esqueçamos – pressupõe
uma política e, sobretudo, uma poética da inclusão, não da exclusão.
Neste sentido, seguimos a lição riobalda: “Bebo água de todo rio...”
(ROSA, 2002, p. 12). Enfim, queiramos ou não, a bio está a princípio
na grafia dos escritores, às vezes, latente, às vezes, patente.

SEMELHANÇAS/DESSEMELHANÇAS NA BIO: GRACILIANO


RAMOS E EUCLIDES NETO

Graciliano Ramos nasceu no município de Quebrângulo,


Alagoas, em 27 de outubro de 1892. Cedo, sua família mudou-se
para uma fazenda no sertão pernambucano. Já na adolescência,

| 306
ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA:
GRACILIANO RAMOS (VIDAS SECAS) E EUCLIDES NETO (OS MAGROS)

principiou a escrever. Trabalhou na imprensa como colaborador


em seu estado natal e como revisor no jornal Correio da Manhã,
do Rio de Janeiro, em 1914. Casou-se, em primeiras núpcias, em
1915, com Maria Augusta de Barros, que lhe deu quatro filhos.
Elegeu-se prefeito do município alagoano de Palmeira dos Índios,
em 1927, tomando posse no ano seguinte. Ainda neste ano, viúvo,
casou-se, em segundas núpcias, com Heloísa Leite de Medeiros, com
quem teve mais quatro filhos. Dois anos depois, renunciou ao cargo
de prefeito de Palmeira dos Índios. Em 1933, foi nomeado diretor
da Instrução Pública de Alagoas. Preso, foi levado para o presídio
da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, em 1936, sob a acusação de ser
comunista. Em liberdade, em 1937, passou a viver na então capital
federal, tornando-se inspetor federal de ensino secundário, em 1939.
Filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1945. Viajou à
União Soviética, à Tchecoslováquia, à França e a Portugal em 1952.
Faleceu, no Rio de Janeiro, em 20 de março de 1953.
Euclides José Teixeira Neto nasceu no município de Jenipapo,
hoje Ubaíra, Bahia, em 11 de novembro de 1925. Cedo, sua famí-
lia mudou-se para Ibirataia, município vizinho de Ipiaú, região
cacaueira, onde Euclides viveu grande parte de sua vida e casou-se
com Angélia Jaqueira Teixeira, com quem teve cinco filhos. Já na
adolescência, principiou a escrever. Fez os estudos secundários e
universitários em Salvador. Formou-se em Direito pela Universidade
Federal da Bahia, em 1949, tendo como colega de turma e inseparável
amigo Waldir Pires, mais tarde, governador da Bahia, eleito em 1986,
de quem se tornou secretário de reforma agrária. Elegeu-se prefeito
de Ipiaú pelo Partido Democrático Cristão (PDC), em 1963, reali-
zando neste município uma das primeiras e efetivas experiências
de reforma agrária no país, a qual denominou Fazenda do Povo.
Respondeu ao Inquérito Policial Militar (IPM), de 1964 a 1965, sob a
acusação de ser comunista, porém, foi excluído de qualquer respon-
sabilidade pelo encarregado do inquérito, major Emanoel Coutinho

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Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)

Lopes, conforme certidão da 6a Região Militar, de 6 de dezembro de


1965. Faleceu em Salvador, em 5 de abril de 2000.
Como vemos, por meio destas duas sumaríssimas notas bio-
gráficas, há muitas semelhanças na vida do alagoano e do baiano,
a começar, é claro, pelo fato de serem nordestinos. Depois, por man-
terem, desde cedo, uma relação íntima e intensa com a terra, com a
política e com as letras. Outro ponto os aproxima: a ideologia, tendo
ambos militado no PCB, o que lhes causou, sem dúvida, contrarieda-
des, constrangimentos e perseguições, como terem a liberdade presa,
e injustamente. Mais: ambos foram prefeitos, o primeiro de Palmeira
dos Índios, Alagoas, o segundo de Ipiaú, Bahia. Mais ainda: tanto um
quanto outro visitaram Moscou. Por fim, Graciliano Ramos e Euclides
Neto faleceram do mesmo mal, o câncer.
Visto por outro viés, porém, o das dessemelhanças, e ainda
no que concerne à vida de cada um, o homem Graciliano Ramos
se afasta do homem Euclides Neto. Vejamos: o cenário nordestino
vivenciado pelo autor de Vidas secas é o da escassez, da secura, o que
fez com que o pai, Sebastião Ramos, e a família fugissem da fazenda
Pintadinho, em Buíque (PE), para a cidade, tornando-se ele comer-
ciante; o do autor de Os magros, é o do excesso (ainda que para os
patrões, não para os trabalhadores, é certo) dos cacauais dourados
de Tesouras, Ibirataia e, depois, Ipiaú (BA). O alagoano era um co-
munista, marxista “à la lettre”; o baiano, um comunista no sentido
mais puro da palavra, vale dizer, um idealista, aquele que quer que
tudo seja comum a todos. Daí José (2010) – que privou com ele –
chamá-lo “marxista-gandhista”. Marxista-gandhista-cristão, diremos
nós, para nos referirmos aos seus três gurus. Graciliano Ramos tinha
uma concepção pessimista da natureza, do homem, da sociedade, da
vida; ao passo que Euclides Neto, uma concepção otimista, tolerante,
humanista, utópica. O prefeito de Palmeira dos Índios não comple-
tou seu mandato, renunciando a ele; o de Ipiaú cumpriu-o, integral
e indelevelmente. O cárcere para aquele foi longo e distante de sua

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ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA:
GRACILIANO RAMOS (VIDAS SECAS) E EUCLIDES NETO (OS MAGROS)

terra e de sua gente; o deste, breve, perto de sua casa e de sua família,
na prefeitura de Ipiaú, conforme nos informou sua viúva.
Graciliano Ramos e Euclides Neto chegaram mesmo a se co-
nhecer pessoalmente, no Rio de Janeiro, tendo o aprendiz, porém,
preferido voltar a Ipiaú a ficar na companhia de “Mestre Graciliano
Ramos”, na Cidade Maravilhosa: “[...] Foi melhor ter me fixado em
Ipiaú. Sempre gostei da terra, da advocacia e de escrever. Lá, talvez
só fosse escritor. Aqui, sempre estive com os mais necessitados.”
(EUCLIDES NETO, 1985). Euclides Neto, anos mais tarde, visi-
tou, com a esposa, a cidade natal do autor de Vidas secas, bem
como a casa onde este viveu.

SEMELHANÇAS/DESSEMELHANÇAS NA GRAFIA: VIDAS SECAS


E OS MAGROS

Entre a publicação do romance – ou novela, como querem


alguns estudiosos – Vidas secas, de Graciliano Ramos, e do Os
magros, de Euclides Neto, dista um largo tempo, precisamente 23
anos. A despeito disso, ali como aqui se trata da estética neorrealista.
Aquele (aquela) está neste, evidentemente. Seja em razão do conteú-
do, da estrutura e, de algum modo, do estilo. Porém, alertemos de
saída que não a consideramos pastiche ou coisa que o valha. Não.
Comprovemo-lo.
Em princípio, as temáticas de Vidas secas e de Os magros as-
semelham-se: referem-se a uma determinada região do país, a saber,
o Nordeste, sabidamente pouco favorecida pela natureza e pelos
homens ainda hoje. O tópos – no duplo sentido, o de lugar, espaço
físico e o de tema, motivo – está presente, portanto, nas duas obras.
Vale dizer: tem a ver com a terra e com a relação que os homens
estabelecem com ela. Assim, em tese, são duas narrativas telúricas,
neorrealistas, logo, empenhadas.

309 |
Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)

A começar pelos títulos, semanticamente afins. Isto não


impede, porém, que possamos encontrar nelas também outros temas,
por exemplo, a sondagem psicológica das personagens, quase sempre
desdenhada ou deixada em segundo plano pelo Neorrealismo. Haja
vista, neste sentido, a tibieza do retirante Fabiano em relação ao sol-
dado amarelo e a do “agregado” João para com o capataz da fazenda
Fartura; o inferno da incomunicabilidade de sinhá Vitória, o delírio
de dona Helena e o fetichismo de doutor Jorge. Esta sondagem, to-
davia, não estava nos planos dos ficcionistas, homens reconhecida-
mente voltados antes para o de-fora do que para o de-dentro dos
humanos. Por isso mesmo, e ainda quanto às personagens de Vidas
secas e Os magros, são elas representadas pelo corpo, zoomorfizadas,
por meio de metáforas e símiles, à maneira naturalista:

Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado.


O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam
dois arcos, os braços moviam-se desengonçados.
Parecia um macaco. (RAMOS, 2004, p. 19).

O agregado perdia-se em tais receios quando ouviu


o búzio tocar. Rapidamente levantou-se, inconsciente
quase, apanhou o fruto e abriu-o. Como um bicho,
devorou-o. Estava gostoso. (EUCLIDES NETO, 1992,
p. 13).

Em contrapartida, as personagens não humanas antropomor-


fizam-se: “Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada
e com sentimentos revolucionários.” (RAMOS, 2004, p. 40); “Sereia
ninava freneticamente os buguelos friorentos que, como os meninos,
choramingavam.” (EUCLIDES NETO, 1992, p. 52).
Ainda quanto às personagens, as duas obras em estudo des-
tacam-se por seus atores: os meninos famintos que pertencem ao
segmento baixo, muito provavelmente sublimação da infância dos
dois ficcionistas. Por um lado, o clã retirante de Fabiano; por outro,

| 310
ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA:
GRACILIANO RAMOS (VIDAS SECAS) E EUCLIDES NETO (OS MAGROS)

o do agregado João. Ambos miseráveis. Tais narrativas, bem ao jeito


neorrealista, prestam-se, pois, como libelo político-social, muito
embora possuam alta voltagem de literariedade que as afasta da vol-
tagem de literalidade que encontramos, às vezes, em alguns textos do
Neorrealismo. Assim, com Vidas secas e Os magros, estamos distan-
tes do programático e explícito engajamento de Amado (1912-2001)
e do neorrealista português Redol (1911-1969):

Tentei contar neste livro, com um mínimo de lite-


ratura para um máximo de honestidade, a vida dos
trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia.
(AMADO, 1956 [1933], p. 9).

Este romance não pretende ficar na literatura como


obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documen-
tário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será
o que os outros entenderem. (REDOL, 1993 [1939],
p. 32).

Vidas secas e Os magros convergem também no que se refere


à estrutura da narrativa, uma vez que se constroem por blocos nar-
rativos – são 13, justapostos no texto de Graciliano Ramos; e 39 al-
ternados, contrapontísticos, no de Euclides Neto –, que podem ser
lidos como peças autônomas, semelhando contos. Sob aspecto da
semiótica, visualizamos a iconicidade tanto em Vidas secas como em
Os magros. No que diz respeito ao primeiro, iconiza-se, sobretudo,
a incomunicabilidade do clã de Fabiano; no que toca ao segundo, o
distanciamento das classes sociais, os magros de um lado, os gordos
de outro. Aqueles 20, estes 19, abrindo e fechando o romance, o que
pode significar, latentemente, a bio na grafia.
A questão do narrador aproxima, uma vez mais, Vidas secas
de Os magros na medida em que se impõe nestes textos a narrativa
na terceira pessoa do singular, bem ao gosto dos realistas-natura-
listas do século XIX e dos neorrealistas do século XX; significar

311 |
Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)

demonstrando a neutralidade enunciativa, impassibilidade, como se


isto fosse inteiramente possível. Porém, importa, e muito, na leitura
das narrativas, atentarmos para o emprego do discurso indireto livre
e, em especial, ao dos não humanos:

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de


noite? A obrigação dela era levantar-se e conduzi-los ao
bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir
os meninos. Estranhou a ausência deles. (RAMOS,
2004, p. 90).

A cachorra modorrava nas cinzas do fogão.

Levantou a cabeça, ouviu o chamado, mas deitou-se


novamente. Ali estava tão bom! (EUCLIDES NETO,
1992, p. 56)

No que toca à linguagem, novamente, Graciliano Ramos e


Euclides Neto aproximam-se e se afastam. Ambos tendem para
a poética do menos, da objetividade e da concisão. Enfim, do “a
palo seco” cabralino. Daí a recorrência de frase curta, muitas vezes
quase nominal, com um único lexema: “Sinhá Vitória desejava
uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia
nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice.” (RAMOS,
2004, p. 23); “E a noite toda era milho, foguete e licor. Festão.”
(EUCLIDES NETO, 1992, p. 163). Neste sentido, os significantes
estariam, de novo, iconizando os significados. Vidas secas, lingua-
gens secas. Um cotejo, porém, da estilística do alagoano com a
do baiano nos mostrará quanto a linguagem daquele é mais seca
(“reduz tudo ao espinhaço”) do que a deste. A secura da lingua-
gem da prosa de ficção de Graciliano Ramos está para a poesia
de Melo Neto, que lhe dedicou um metapoema, Graciliano Ramos
(MELO NETO, 1995), no qual revela as afinidades estilísticas
entre seus textos e os do ficcionista de Vidas secas. Já para Euclides
Neto, ainda que lhe reconheça também a secura da linguagem,

| 312
ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA:
GRACILIANO RAMOS (VIDAS SECAS) E EUCLIDES NETO (OS MAGROS)

tal estilema não é tão essencial. Talvez isto se explique por certa
influência sofrida pelo Euclides baiano do Euclides fluminense,
um de seus autores preferidos.
Ainda no que concerne à linguagem, convém notarmos nestes
dois prosadores estudados o admirável aproveitamento da língua
oral mesclada a um registro mais culto, mais clássico. E, neste passo,
a oralidade apresentada por Euclides Neto – seu baianês – parece-
-nos mais viva que a de Graciliano Ramos. Razão pela qual o ficcio-
nista se transforma em dicionarista (cf. EUCLIDES NETO, 2002).
À maneira de uma epígrafe, o escritor baiano diz: “O dicionário é a
palavra – a alma do povo.” (EUCLIDES NETO, 2002, p. 7).
As convergências e divergências entre Vidas secas, de Graciliano
Ramos, e Os magros, de Euclides Neto, descobertas e interpretadas por
nós, à primeira visada podem parecer mera e excêntrica perseguição
do estudo das fontes ou das influências de um texto (autor) sobre outro
texto (autor). Porém, nada mais enganoso do que isto. Não foi nossa
intenção, também, sugerir, pelo confronto da bio/grafia do alagoano
com a do baiano, prevalência do primeiro sobre o segundo. Não visa-
mos valorar estas obras e autores entre si, mas descobrir e interpretar
semelhanças e dessemelhanças entre eles. Até porque “Cada um sabe a
dor e a delícia de ser o que é”, de acordo com excerto da letra da música
de um camaleônico compositor baiano (VELOSO, 1986).
Os estudos sobre a intertextualidade, hoje recorrentíssimos, são
imprescindíveis para a fatura/leitura de textos – não só verbais – do pós-
-modernismo. O auxílio deles, assim, permite-nos compreender, sem
equívocos, por exemplo, o procedimento intertextual chamado pastiche
e, em consequência, um romance pós-moderno como Em liberdade
(1994[1981]), de Santiago. Seguramente, não podemos falar em pasti-
che quando lemos Os magros e, em seguida, lembramo-nos de Vidas
secas. Tampouco em plágio, é claro, que denota logo fraude, furto.
Vimos quanto Graciliano Ramos e Euclides Neto se aproximam
e se afastam um do outro. Recorrendo ao exercício dialético, diremos

313 |
Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)

que, ao aproximarem-se um do outro, afastam-se. Afastando-se,


aproximam-se mais. Daí termos nos referido, no início deste texto,
ao rei-herói duplamente em desgraça de Sófocles. No nosso caso,
preferimos mencionar a paráfrase – ao contrário da paródia, é antes
ratificadora que retificadora, como observa Aguiar e Silva (1991) –,
e a angústia da influência. E, enfim, voltamos ao começo, a Wilde
(1998) e a Bloom (2002), o que nos incita ao método comparativista,
sempre como meio, e não fim. Meio, neste texto, para que visualize-
mos as matérias e maneiras (topoi, estruturas narrativas, discursivas,
estilísticas) do já canônico Vidas secas, de Graciliano Ramos, e desta
pequena obra-prima que é Os magros, de Euclides Neto, romance
regionalista, telúrico e político por excelência e que não prescinde
jamais da literariedade. Chegou a hora de nós o lermos, grapiúnas,
baianos, brasileiros!

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. 8. ed.


Coimbra: Almedina, 1991.
AMADO, Jorge. O país do carnaval / Cacau / Suor. 4. ed. São Paulo:
Martins, 1956[1933].
AMADO, Jorge. Tocaia Grande: a face obscura. Rio de Janeiro:
Record, 1984.
ANDRADE, Oswald de. “Manifesto antropófago”. In: TELLES,
Gilberto Mendonça. Vanguardas europeias e modernismo brasileiro.
17. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 353-360.
BLOOM, Harold. A angústia da influência. Tradução de Marcos
Santarrita. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
EUCLIDES NETO. A enxada e a mulher que venceu seu próprio
destino. São Paulo: Littera, 1996.

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ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA:
GRACILIANO RAMOS (VIDAS SECAS) E EUCLIDES NETO (OS MAGROS)

EUCLIDES NETO. Dicionareco das roças de cacau e arredores. 2. ed.


Ilhéus: Editus, 2002.
EUCLIDES NETO. Os magros. Salvador: Edição do Autor, 1961.
EUCLIDES NETO. Os magros. 2. ed. São Paulo: Guena & Bussius,
EUCLIDES NETO. O patrão. Salvador, 1978. 1992.
EUCLIDES NETO. Sessentão. [Crônica-carta, inédita]. Ipiaú,
11 set. 1985.
FREUD, Sigmund. “Inibições, sintomas e angústia”. In: FREUD,
Sigmund. Obras completas psicológicas. Rio de janeiro: Imago, 1974.
v. XXI, p. 95-201.
JOSÉ, Emiliano. Euclides Neto, imortal. Carta Capital, São Paulo,
11 ago. 2010.
MELO NETO, Joao Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguillar, 1995.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 94. ed. Rio de Janeiro; São Paulo:
Record, 2004[1938].
REDOL, Alves. Gaibéus. 18. ed. Lisboa: Caminho, 1993[1939].
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. Rio de Janeiro: Rocco,
1994[1981].
SARTRE, Jean-Paul O ser e o nada. Tradução de Paulo Perdigão.
Petrópolis: Vozes, 2009[1943].
VELOSO, Caetano. Dom de iludir. In: Totalmente demais. São
Paulo: Philips, 1986.
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Tradução de Marina
Guaspari. São Paulo: Publifolha, 1998.

315 |
EUCLIDES NETO: UM NARRADOR
DAS ROÇAS E DOS ROCEIROS1

Cid Seixas Fraga Filho

Quando o menino Euclides Neto começou a ler os primeiros livros,


o realismo social dos regionalistas de 1930 dava as contribuições
mais frutíferas à literatura brasileira, levando suas consequências até
Portugal, com o Neorrealismo.
De um lado, a densidade de alguns escritores, do outro, o ho-
nesto engajamento com o homem e sua realidade abriram novos ca-
minhos para a criação literária, onde a solidariedade e o humanismo
se confundiam com os projetos estéticos.
É dentro desse quadro que o cronista e ficcionista Euclides
Neto continua pintando suas paisagens e retratando o que viu e
viveu. É essa mesma solidariedade com implicações políticas ou re-
ligiosas que marca de modo indelével, aqui com implicações de uma
ideologia humanista, a escrita desse homem da terra.
Os magros é um romance da juventude do autor, agora ree-
ditado como forma de reafirmar a sua perfeita sintonia com a obra
da maturidade. O velho Euclides Neto, ex-prefeito de Ipiaú, onde
desenvolveu um modelo planejado de reforma agrária, ex-secretário
de Estado, onde queria fazer bem mais, continua sendo o mesmo

1
Texto original publicado sob título “Vozes sufocadas”, no jornal A Tarde, Salvador, em 1996.
Logo depois, foi inserido na coletânea de Cid Seixas, Triste Bahia, Oh! Quão dessemelhante:
notas sobre a literatura na Bahia (1996).

317 |
Cid Seixas Fraga Filho

escritor solidário ao homem, como nos tempos das auroras puras.


Seu texto tem um objetivo maior: dar voz a todos aqueles que foram
sufocados pelas injustiças sociais.
Mas não se trata apenas de um discurso bem intencionado.
Muitos existem. Trata-se de um discurso literário situado e datado.
Situado na zona cacaueira da Bahia. Datado da primeira metade do
século XX, quando a cultura do cacau atingiu o seu esplendor.
No entanto, desafiando o calendário, o discurso engajado de
Euclides Neto continua abrindo espaço nestes anos de fim de século,
abrindo espaço para refletir sobre o paradoxo de um momento his-
tórico, quando o esplendor do ciclo do cacau foi inócuo para atenuar
a pobreza e a miséria de muitos que, com suas mãos, construíram
toda aquela riqueza.
Contam que o poeta Manuel Bandeira perguntou uma vez a
Adonias Filho:
– O que o sul da Bahia produz, além do cacau?
– Produz escritores, respondeu Adonias.
O cacau foi destruído pela praga e a riqueza pela falta
de visão daqueles que pensavam que o ouro é um bem eterno.
Mas os escritores, estes, sim, ficaram e são hoje o patrimônio maior da
nação grapiúna. Sosígenes Costa, Jorge Amado, Florisvaldo Mattos,
Ildásio Tavares, Adonias Filho, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge
Medauar, Euclides Neto e tantos mais que convém não citar a todos,
porque muitos seriam esquecidos.
É do fato de ser situado e datado que nascem as virtudes e
os defeitos de Os magros. As conquistas formais de Graciliano
Ramos, o grande construtor e o surpreendente estilista de ma-
greza dessa geração, deixaram, sem dúvidas, marcas na escrita de
Euclides Neto. Algumas indesejáveis e desnecessárias, que ressoam
como ecos inúteis. A cadela dessa família de vidas magras do ro-
mance euclidiano não tem nome de peixe, mas se chama Sereia.

| 318
EUCLIDES NETO:
UM NARRADOR DAS ROÇAS E DOS ROCEIROS

A proximidade eufônica e marinha com Baleia cria no leitor precon-


ceituoso a expectativa de um pastiche. Mas Os magros não tem nada
de pastiche ou imitação simplória. É obra autônoma que testemunha
o engajamento da escrita de um homem comprometido com sua
terra e, principalmente, com a gente que vive nela.
É verdade que Euclides Neto constrói seu romance observando
alguns pontos de identidade com Vidas secas, dialogando com essa
obra, ampliando suas conquistas. E isso confere atualidade e interes-
se ao romance agora reeditado. A viagem intertextual de Os magros
sugere inúmeras abordagens e reclama a atenção da crítica acadêmi-
ca, universitária, para o texto euclidiano.
Aliás, já é tempo de as pesquisas de pós-graduação na Bahia,
com suas dissertações e teses, se voltarem para a produção da
comunidade na qual estão inseridas. Naturalmente, não se chega
longe trabalhando os autores mais jovens, cujas obras ainda não
percorreram a implacável circularidade imposta pelo tempo, mas
é preciso estudar aqueles que se inscreveram num momento da
história literária que já pode ser contemplado com o necessário
distanciamento crítico.
Ler este romance de Euclides Neto implica reler e compreen-
der a recepção do realismo social trazido pelo romance de 1930.
Já podemos observar quando a simples imitação se transforma em
diálogo intertextual destinado a levar adiante uma conquista, a re-
forçar um projeto ideológico ou estético.
Duas narrativas paralelas constroem a textura romanesca
de Os magros. A primeira, erigida à condição de eixo da obra, é a
dos magros trabalhadores de aluguel numa roça de cacau. A outra,
a dos gordos proprietários, entra como contraponto, numa regu-
laridade empobrecedora. Ao retomar o livro nessa nova edição, o
autor poderia ter revisto o caráter mecânico do contraponto. A nar-
rativa, de um capítulo para outro, alterna o cenário da magreza, de
rural, com a entediante fartura urbana dos donos de terras e gentes.

319 |
Cid Seixas Fraga Filho

A previsibilidade é um elemento empobrecedor. Mesmo quando tem


um pouco a dizer, o autor impõe uma pequena narrativa contrapon-
tística, criando uma monótona regularidade. Quebrar um pouco a
mecânica regular desse contraponto daria mais ritmo ao livro.
É esse contraponto que – ao contrário do que acontece em Vidas
secas, onde os contos em torno de uma mesma família se encadeiam
formando uma novela – propõe a estrutura do romance. No livro de
Euclides Neto, as duas narrativas distintas se escrevem como linhas
cruzadas, mas também, como na obra de Ramos, alguns capítulos
funcionam como contos autônomos. Há verdadeiros momentos de
elevada escrita, como o capítulo XIII, em que após a morte de um dos
filhos de João, o gerente da fazenda persegue os meninos pelo mato.
Página autônoma e antológica, um dos momentos altos do livro.
Voltando aos pontos críticos, a oposição entre a miséria dos
magros protagonistas e a opulência dos senhores da terra parece
demasiadamente esquemática, conservando aí uma ingenuidade
analógica à das primeiras obras de um Amado, por exemplo, que
nos romances da juventude via todos os pobres como bons e todos
os ricos como maus. Tanto que o autor revê essa forma de mani-
queísmo nos romances da maturidade, por isso talvez chamados de
romances burgueses pelos críticos, aos quais o velho Engels diria que
falta dialética.
Quando Euclides Neto opõe a miséria do casebre em que
vivem os nove familiares de João à fartura do “palacete” em que a
fazendeira mora praticamente sozinha, o impacto do contraste é
quebrado pelo excesso de tintas que pintam a riqueza com um rea-
lismo ingênuo. Isso ocorre no segundo capítulo do livro, no qual a
casa do doutor Jorge é chamada de palacete e suas excelências são
acintosamente decantadas. O efeito seria melhor se o contraste fosse
mais discretamente mostrado. Claro que isso agrada aos antigos co-
munistas de carteirinha, mas foi por isso mesmo que nos anos do
patrulhamento stalinista o bom texto se afastou do Partidão.

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EUCLIDES NETO:
UM NARRADOR DAS ROÇAS E DOS ROCEIROS

Essas marcas do realismo socialista tornam o livro demasiada-


mente datado, para alguns leitores, especialmente aqueles que apre-
ciam a capacidade de um escritor de rever as suas obras ano após
ano. É o que fazia, por exemplo, Miguel Torga, autor admirado por
Euclides Neto. Poucos dias antes de morrer, Torga revia a vigésima
edição de um dos seus livros de contos, apagando deles as marcas
demasiadamente circunstanciais.
Tal desprendimento faria de Os magros um livro bem mais
vivo e permanente, porque, não tenhamos dúvida, trata-se de uma
obra que deve ser lida e conhecida por milhares de leitores, permi-
tindo o livre soar dessas vozes sufocadas que, ouvidas, ajudariam as
pessoas a passarem muitas coisas “a limpo”.

AS FONTES POPULARES

A narrativa de Euclides Neto é tributária direta das fontes po-


pulares rurais, notadamente a região do sul da Bahia, marcada pela
opulência e pela miséria das roças de cacau. Este singular escritor
baiano nasceu nos heroicos anos de bravatas e astúcias desbravado-
ras do Modernismo brasileiro e morreu em abril do último ano do
século passado, sem viver as esperanças do novo milênio. Escritor
ilustrado dos bancos e páginas da academia, com pleno domínio do
registro padrão da língua culta, Euclides Neto optou por um projeto
de incorporação das formas, substâncias, conteúdos e expressões
populares ao seleto clube da literatura culta.
Recusando-se a utilizar as fontes populares como signos do exó-
tico e do pitoresco, mas se valendo de tal riqueza como ampliação dos
estreitos corredores da fabulação erudita, esse singular narrador conse-
guiu atingir o domínio pleno da arte da escrita inventiva no seu derra-
deiro livro: O tempo é chegado, publicado, postumamente, em 2001, pela
Universidade Estadual da Santa Cruz, em Ilhéus, com seu selo, Editus.

321 |
Cid Seixas Fraga Filho

O texto de Euclides Neto confere à narrativa o trânsito entre


dois espaços, primitivamente unidos e depois dissociados pelo dis-
curso acadêmico: os espaços da literatura e da história. Nesse lugar
de reunião ancestral, onde a arte de narrar mira mais os ouvidos do
que os olhos, a experiência cotidiana e o saber comunicável transi-
tam e se realimentam nos interstícios dos sujeitos do discurso, onde
quem ensina aprende e o aprendizado é uma ensinança.
Os narradores perdidos no interior do tempo-espaço, ou
guardados e defendidos, preservados, portanto, nas dobras e nos
lugares ocultados de cada cultura, destilam o sabor e o saber da nar-
rativa primordial. Euclides – Neto e avô de saberes narrados, não
obstante as leituras modernas e contemporâneas que o tornaram um
profissional cultivado nos moldes da academia – retornou à fonte
primitiva, perdida no interior da terra e do homem, para beber o
elixir da linguagem esquecida. Nessa fonte de eterna juventude dos
povos, o narrador apenas conta e transmite experiências, saberes ou
mesmo dissabores.
O narrador moderno e contemporâneo profana a história
contada, junta o mito à imagem de novos deuses da razão, isto é, casa
o conto, ou o astuciado, com a sua explicação. Já o narrador primor-
dial apenas narra – porque tudo é novo, misterioso e inexplicável.
A narrativa literária que a modernidade nos legou é marcada
pela sanção da lógica que a tudo explica. O escritor dos nossos dias
conta uma história que já contém em si mesma uma explicação dos
fatos narrados; ou, muitas vezes, a explicação dos fatos, que nos é
sugerida, constitui o desdobramento ou o desenlace da narração.
A explicação e a compreensão confundem-se e transmutam-se na
própria narrativa. Portanto, nada mais distante do mito do que
esse tipo de narrativa engendrado pela razão crítica. Daí o fato de
a tradição moderna destacar, desde o século XIX, um tipo de nar-
rativa como pertencente ao gênero fantástico. Opondo-se à ideia de
realismo literário, surgiu a noção de realismo-fantástico, porque o

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EUCLIDES NETO:
UM NARRADOR DAS ROÇAS E DOS ROCEIROS

fato narrado que não contém sua própria explicação ultrapassa os


umbrais da realidade narrativa.
Euclides Neto faz o narrador das suas histórias recuar ao
tempo do mito, onde o que se conta não precisa de outra legitimação
além do próprio contar. Onde história e literatura, hoje dois saberes
distintos, eram uma só narrativa. Os velhos cronistas foram os pais
dos novos historiógrafos, gerando tais filhos quando esposaram uma
virgem então inacessível: a compreensão do fato narrado.
No vórtice dessa viagem, unindo tempos antagônicos, Euclides
Neto constrói o poder de sedução da sua escrita, chegando ao magma,
à lava, ao cristal das histórias reunidas no livro O tempo é chegado.
Esta multitemporalidade, que pode se converter em atem-
poralidade, faz as narrativas de Euclides Neto resvalarem para o
estranhamento, para um espaço insólito ou uma terra de ninguém,
evocando em alguns contos do autor a reminiscência de algo que
está desaparecendo. Benjamin, no livro Magia e técnica, arte e po-
lítica, ao escutar as características do narrador na obra de Nikolai
Leskov, observa que as características orais da arte de narrar estão
em processo de extinção, porque a sabedoria – “o lado épico da
verdade” – não encontra espaço numa sociedade marcada pelo de-
saparecimento das relações interpessoais construídas no trabalho,
nas atividades e ofícios em que a troca de experiências constituía a
produtividade.

[...] esse processo, que expulsa gradualmente a nar-


rativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo
dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem
se desenvolvido concomitantemente com toda uma
evolução secular de forças produtivas. (BENJAMIN,
1987, p. 201).

Podem-se evocar algumas ideias de Benjamin, pensador da


escola de Frankfurt, a propósito da ficção de Euclides Neto e da sua

323 |
Cid Seixas Fraga Filho

busca de caminhos na esfera do romance, para achá-los, depois, na


prática do conto, quando realiza a maturidade da sua arte de narrar.
Benjamin observa que a tradição oral, que é a característica da
poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente diversa de tudo
aquilo que viria a definir o romance como forma literária. As formas
narrativas que aspiram romper com a tradição da cultura ágrafa se
afastam da tradição oral, dos contos de fada e das lendas, buscan-
do novos saberes na transmissão escrita da ciência. Por outro lado,
há formas narrativas menos preocupadas com a compreensão do
admirável mundo novo e mais comprometidas com a transmissão
da velha e renovada experiência adquirida no dia a dia das pessoas.
Aqui se fala, particularmente, do conto de Euclides Neto. O narrador
primordial retira da própria experiência ou da experiência relatada
por outras pessoas as coisas que são incorporadas à sua história.
No panorama do conto brasileiro do século XX, Euclides Neto
configura os traços do narrador benjaminiano; como alguém que
vem de longe e conta aos seus ouvintes a experiência e a sabedoria
trazidas de lugares mágicos, porque defendidos pelas brumas do
desconhecido. Essa distância configurada no saber no narrador é,
segundo Benjamin (p. 202), o longe espacial das terras estranhas e o
longe temporal contido na tradição.
Para o filósofo neohegeliano, somos pobres em histórias sur-
preendentes mesmo quando somos torpedeados por notícias de
todos os cantos do mundo, porque os fatos que constituem as no-
tícias já chegam acompanhados de explicações. Benjamin entende
que a maior parte do que é veiculado está a serviço da informação,
em detrimento da narração; e afirma textualmente: “Metade da arte
narrativa está em evitar explicações.” (BENJAMIN, 1987, p. 203).
É essa ausência de intervenção da lógica e do pensamen-
to explicativo que assegura a permanência, na memória do leitor,
tanto das antigas narrativas históricas, construídas pelos cronistas e

| 324
EUCLIDES NETO:
UM NARRADOR DAS ROÇAS E DOS ROCEIROS

escrivães reais, quanto do conto, de ontem ou de hoje, fundado em


tais bases estruturais.
Para elucidar o raciocínio aqui desenvolvido a propósito
dos contos de Euclides Neto e do seu lugar no quadro da literatura
brasileira do século XX, vejamos o que diz o pensador da escola de
Frankfurt:

Cada vez que se pretende estudar uma certa forma


épica é necessário investigar a relação entre essa
forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e
perguntar se a historiografia não representa uma
zona de indiferenciação criadora com relação a
todas as formas épicas. Nesse caso, a história escrita
se relacionaria com formas épicas com a luz branca
com as cores do espectro. Como quer que seja, entre
todas as formas épicas a crônica é aquela cuja inclu-
são na luz pura e incolor da história escrita é mais
incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas
as maneiras com que uma história pode ser narrada
se estratificam como se fossem variações da mesma
cor. O cronista é o narrador da história. Pense-se no
trecho de Hebel, citado acima, cujo tom é claramente
o da crônica, e notar-se-á facilmente a diferença entre
quem escreve a história, o historiador, e quem narra,
o cronista. O historiador é obrigado a explicar de uma
ou outra maneira os episódios com que lida, e não
pode absolutamente contentar-se em representá-los
como modelos da história do mundo. É exatamente
o que faz o cronista, especialmente através dos seus
representantes clássicos, os cronistas medievais, pre-
cursores da historiografia moderna. Na base de sua
historiografia está o plano da salvação, de origem
divina, indevassável em seus desígnios, e com isso
desde o início se libertaram do ônus da explicação
verificável. (BENJAMIN, 1987, p. 209).

325 |
Cid Seixas Fraga Filho

Herdeiro dessa forma narrativa, pela via da tradição oral que


também a alimentou, Euclides Neto substitui a explicação plausível
da lógica pela fábula, identificando a estrutura do seu texto com a do
texto do mito. A narrativa mítica não precisa explicar aquilo que narra,
pois ela mesma já é uma explicação para o que ainda não se explica.
Utilizo a expressão “espiral parabólica” no sentido de lugar
geométrico: plano de um ponto que se move com velocidade cons-
tante ao longo de uma reta; girando, por sua vez, com movimento
uniformemente acelerado em torno de um ponto fixo.
Simples e completa, ingênua e maliciosa, divertida e cisma-
da, dissoluta e contrita, ilusória e densa são adjetivos que escorrem,
numa cascata cambiante de oxímoros, a dialogar entre si no faz de
conta da prosa maneira de Euclides Neto.
Ora aceitando os desafios da escrita literária do seu tempo, ora
recuperando o pensamento silvestre que escorre num dedo de prosa
matuta, o texto narrativo de Euclides Neto contempla a reapropria-
ção do pensamento selvagem, no sentido proposto por Lévi-Strauss
(1976). O contista de O tempo é chegado transita com desembaraço
entre espaços marcados pela incompatibilidade, promovendo a al-
quimia da criação artística que transmuta a dureza dos metais na
ductilidade do difuso.
Os contos reunidos nesse livro de guardados, achados e perdi-
dos, chegam sorrateiros como o matuto que pede licença para entrar
nas casas da cidade, com gestos silenciosos e humildes. Mas sua en-
trada, não obstante a suavidade matreira, é acompanhada por uma
luminosa inquietação. O gosto e o saber estabelecidos são delicada-
mente postos em suspenso no curso de um astuciado que nos leva de
volta a lugares descolonizados pelo pensamento selvagem.
A ingênua simplicidade dos contos de fadas está a serviço de
uma dicção curta, ampliada pela experiência do homem e da mulher
que vivenciam uma outra cultura, subterrânea e subjacente como

| 326
EUCLIDES NETO:
UM NARRADOR DAS ROÇAS E DOS ROCEIROS

um lençol freático a dessedentar os exaustos caminhantes de uma


seara massificada e exaurida por um vendaval de informações.

EUCLIDES NETO E A DECADÊNCIA DO CICLO DO CACAU

O livro do escritor e jornalista Elieser Cesar, O romance dos


excluídos: terra e política em Euclides Neto (2003), nasce como um
estudo essencial para a compreensão de um segundo momento da
ficção grapiúna. Se Jorge Amado e Adonias Filho, para vislumbrar-
mos dois marcos de altitude relevante na literatura brasileira – um da
geração de 1930 e o outro da geração de 1945 –, constroem o inven-
tário épico da fundação de uma nova cultura de léguas prometidas
nas terras do sem fim, Euclides Neto fixa a sua obra no momento do
apogeu e prenúncio da decadência dessa mesma cultura do cacau.
Cesar observa que Euclides Neto retoma a saga da região do
cacau onde Amado parou: na consolidação da lavoura cacaueira e do
seu processo civilizatório. Embora o leitor polêmico possa discordar
dessa afirmativa, quando feita de modo peremptório, lembrando que
o próprio Amado já propõe o desdobramento da sua saga, focando
a substituição dos desbravadores pelos herdeiros, a afirmação de
Cesar não cai no vazio, pois é com Euclides Neto, contemporâneo
e protagonista desse segundo ciclo, que o foco se desloca dos mo-
mentos heroicos para os momentos da simples e pura exploração
do trabalho dos homens e mulheres de eito. Os novos “coronéis da
cidade” vivem exclusivamente do usufruto de uma terra por outros
lavrada. Na monumental síntese do chamado ciclo do cacau, por ele
mesmo construído, Amado não se limita em Tocaia Grande – a face
obscura a percorrer os velhos caminhos da sua ficção. Ele se reapro-
pria dos seus temas e tipos para anunciar o processo de degeneração
dos heróis trágicos da epopeia grapiúna em bufões de uma tragico-
média macabra. É o que ocorre claramente na construção de uma

327 |
Cid Seixas Fraga Filho

personagem caricata e metonímica como o bacharel Venturinha,


novo coronel de gabinete; em tudo antagônico à figura emblemática
do ex-jagunço Natário da Fonseca, investido das funções de capitão
descobridor e fundador de Tocaia Grande, uma nova Canudos nas-
cida do sonho dos excluídos.
Se o capitão Pedro Álvares Cabral funda, nas mesmas terras
do sul da Bahia, uma nação para uso e proveito del-Rei, o capitão
Natário da Fonseca intenta fazer ressuscitar uma outra Canudos,
uma cidadela também sitiada e exterminada, até mesmo no nome.
Entre Tocaia Grande, reduto de bravos, e Irisópolis, metonímia de
uma nação corrompida, se interpõe a face obscura.
Convém observar que esse livro da maturidade de Jorge
Amado, publicado nos anos oitenta, é posterior à verdade do traba-
lho de Euclides Neto, iniciada com Os magros, de 1961. Consideradas
as datas, podemos repetir a afirmação de Cesar, segundo a qual,
Euclides Neto retoma a saga onde Jorge Amado parou.

Em Euclides Neto não vemos mais a expansão e a


cristalização do poder dos coronéis. Em seus livros
não temos mais a ligação telúrica do proprietário com
o solo da promissão e do lucro. A fazenda é, em geral,
o meio pelo qual o proprietário vive de rendas.

Diríamos que esse escritor enceta a história da


decadência das terras do cacau, iniciada quando o
proprietário, herdeiro do antigo coronel, já não vive
na fazenda, mas em Salvador, numa luxuosa mansão
e entrega todos os cuidados da roça ao capataz,
aguardando apenas a remessa dos lucros para a conta
bancária. (CESAR, 2003, p. 12).

Para traçar a analogia a partir de fraturas entre o fulcro do


conjunto de obras de Jorge Amado sobre a região do cacau e o cerne
dos romances de Euclides Neto que constituem a “tetralogia dos

| 328
EUCLIDES NETO:
UM NARRADOR DAS ROÇAS E DOS ROCEIROS

excluídos”, o estudioso parte da identidade entre os dois de apro-


ximação; o livro está centrado nos romances Os magros, de 1961,
O patrão, de 1978, Machombongo, de 1986, e A Enxada e a Mulher
que Venceu Seu Próprio Destino, de 1996, enquanto integrantes do
painel caracterizado por Cesar como uma tetralogia dos excluídos.
Para a compreensão do texto de Euclides Neto enquanto reto-
mada dos modelos da literatura comprometida com o Realismo e a
raiz telúrica dos anos 1930, o autor recua ao romance social do século
XIX, traçando um painel sumário de um século: 1830-1930. Em se-
guida, como antecessor imediato da eclosão da tetralogia de Euclides
Neto, Cesar vai buscar os fundamentos e ensinamentos marxistas
postos em prática na coleção Romance do Povo, dirigida por Jorge
Amado e publicada pela Editorial Vitória, de 1953 a 1955, incluindo
20 obras tomadas como arquétipos do realismo socialista.

Impulsionada pelos protagonistas do regime soviéti-


co, em várias partes do mundo, a discussão sobre o
realismo socialista granjeou defensores fora da URSS,
conquistando a simpatia das democracias populares
e dos partidos comunistas dos países capitalistas.
A partir de 1948, inflamou também, os escritores
brasileiros, sobretudo aqueles ligados ao partido
Comunista Brasileiro. (CESAR, 2003, p. 43).

Autor de ensaios, crônicas e romances, Euclides Neto


se iniciou nas artesanias da escrita com a geração em-
blemática de 45, marcada pela fusão do veio telúrico
dos anos 30 com os tumultos e as exigências de um
mundo novo que refazia. (SEIXAS, 2002, p. 4).

Convém reafirmar, portanto, que Euclides Neto pertence,


cronologicamente, à geração literária de 1945: tendo nascido em
1925, publica dois livros da juventude que precedem Os magros,
Birimbau, em 1946, e Vida morta, em 1947. Deste modo, o homem e

329 |
Cid Seixas Fraga Filho

o escritor vivem as inquietações ideológicas comuns aos jovens de 40


e 50 anos, inquietações estas que irão refletir as preocupações de um
Brasil marcado por golpes, tentativas de golpes e governos instáveis,
dos anos 1930 aos anos 1960, quando ele inicia sua tetralogia, um
pouco antes de se abater sobre o país a longa ditadura militar em
1964. O tom inflamado que, às vezes, parece ecoar, ingenuamente,
as obras de Jorge Amado e de Graciliano Ramos, representa uma
tentativa de responder, nos anos 1960, aos mesmos problemas so-
ciais que atravessam incólumes a primeira metade do século.

Publicado em 1961, Os magros é, do ponto de vista es-


tilístico, o mais ousado livro de Euclides Neto. Escrito
com a técnica do contraponto, o romance é a história
de duas famílias opostas em tudo e diferenciadas pela
miséria e pela opulência. Novamente encontramos o
leimotiv da obra do escritor grapiúna: a luta de classes
nas terras do cacau na Bahia. Em Os magros, podemos
identificar um diálogo intertextual com dois outros
romances da literatura brasileira, ambos representan-
tes da temática social nordestina dos anos 30: Cacau,
de Jorge Amado, e Vidas secas, de Graciliano Ramos.
(CESAR, 2003, p. 81).

Se o romance Os magros é considerado por Cesar como o


livro de Euclides Neto mais ambicioso na sua estrutura literária,
Machombongo (1986) ocupa idêntico lugar no que diz respeito à con-
cepção política. Resgatando do esquecimento os anos de chumbo do
regime militar e a heroica resistência de alguns brasileiros mais ou-
sados, o romancista se vale de personagens reais, como o deputado
Haroldo Lima, e de personagens fictícios, como o coronel Rogaciano
Boca Rica, para fixar o painel das grandezas de poucos e das misérias
de muitos, sob as botas dos generais-presidentes.
Na fixação do contexto social em que surge o primeiro romance
da tetralogia dos excluídos, Elieser Cesar remete o leitor para o final

| 330
EUCLIDES NETO:
UM NARRADOR DAS ROÇAS E DOS ROCEIROS

dos anos 1950 e o início dos anos 1960, quando os ideais naciona-
listas e de esquerda entravam em choque, no plano continental, com
o imperialismo e as garras das águias norte-americanas e, no plano
nacional, com a fome no campo, gerada pelo latifúndio improdutivo.
Curiosa é a relação feita entre Os magros e um romance
publicado no ano anterior: Irmãos Joazeiro, de Francisco Julião
(1960). Pouca gente sabe que o conhecido deputado e líder das Ligas
Camponesas também se valeu da literatura como arma de comba-
te político e social. É possível que o romance de Julião não tenha
chegado ao conhecimento de Euclides Neto, mas as lutas dos tra-
balhadores rurais, bem como a criação da Sociedade Agrícola dos
Trabalhadores de Pernambuco, núcleo da organização camponesa
que precedeu os atuais movimentos pela reforma agrária, por certo
não escaparam ao olhar atento do escritor grapiúna.
No mesmo ano em que Euclides Neto publica Os magros,
ocorre sua eleição para prefeito de Ipiaú, culminando com a de-
sapropriação de terras improdutivas para a implantação de uma
propriedade coletiva destinada a possibilitar a agricultura de sobre-
vivência a centenas de trabalhadores rurais que alugavam a sua força
e seu suor às grandes propriedades dessa região de monocultura.
A concretização da utopia do prefeito-escritor passou a ser conheci-
da como a Fazenda do Povo e, com o golpe de 1964, Euclides Neto foi
arrancado do cargo para o qual foi eleito e sua mais importante obra
de caráter social foi destruída, por parecer aos militares e à lógica das
baionetas uma iniciativa comunista.
Em O romance dos excluídos: terra e política em Euclides
Neto, Cesar considera o autor de O patrão (1978) o nosso último
escritor militante de esquerda. Ao tempo em que empreende uma
abordagem crítica da importante tetralogia desse ficcionista baiano,
não descuida de possibilitar ao leitor uma contextualização indis-
pensável à compreensão dos romances estudados.

331 |
Cid Seixas Fraga Filho

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Tocaia Grande: a face obscura. Rio de Janeiro:


Record, 1984
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
CESAR, Elieser. O romance dos excluídos: terra e política em
Euclides Neto. Ilhéus: Editus, 2003.
EUCLIDES NETO. A enxada e a mulher que venceu seu próprio
destino. São Paulo: Littera, 1996.
EUCLIDES NETO. Birimbau. Salvador: Edição do Autor, 1946.
EUCLIDES NETO. Machombongo. Itabuna: Letras, 1986.
EUCLIDES NETO. O tempo é chegado: contos. Ilhéus: Editus, 2001.
EUCLIDES NETO. Os magros. Salvador: Edição do Autor, 1961.
EUCLIDES NETO. O patrão. Salvador, 1978.
EUCLIDES NETO. Os magros. 2. ed. São Paulo: Guerra & Bussius,
1992.
EUCLIDES NETO. Vida morta. Salvador: Edição do Autor, 1947.
JULIÃO, Francisco. Irmão Juazeiro: romance. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves, 1960.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo:
Nacional, 1976.
SEIXAS, Cid. Euclides Neto e as fontes populares. In: SIMPÓSIO
INTERNACIONAL TEMPO, II., 2002, Feira de Santana. Anais [...].
Feira de Santana: UEFS, 2002.

| 332
O PAI EUCLIDES NETO

Denise Teixeira

O Professor Vitor Hugo solicitou aos filhos um texto sobre Euclides


Neto, o pai. Coube-me escrevê-lo. Tarefa difícil, nossos vínculos
eram de profundo afeto e admiração.
Somos cinco irmãos. Unidos pelo amor do pai e da mãe. O pri-
meiro aprendizado: irmão é inseparável, para a vida toda. O afeto entre
nós nos equilibra e orienta no mundo. Solidários sempre que necessá-
rio, nada deve afetar essa união.
Faz vinte anos que o pai faleceu. As pessoas não se esquecem
dele, quem não o conheceu se aproxima do homem de maneira sur-
preendente por meio de sua obra.
A vida lhe exigiu crescimento precoce. Ainda jovem estudou
longe da família, trabalhou para continuar a formação, dividiu com
a mãe a tarefa de recuperar a terra endividada e encaminhar a edu-
cação dos irmãos. Formado, fixou-se em Ipiaú, onde desempenhou
brilhantemente o ofício de advogado, de cidadão. Homem incansá-
vel. Sempre atento à família, aos amigos, aos necessitados.
Sabia escutar, tratar com o outro. Não fazia distinção entre o
rico e o pobre. O homem era prioridade, respeitava virtudes e limita-
ções sem julgamento. Tinha um profundo sentimento de compaixão
pelas mazelas humanas.
As primeiras lembranças dele são de aconchego. Lembro com
saudades das horas tranquilas na rede do seu escritório, quando ele

333 |
Denise Teixeira

lia e eu permanecia quietinha ao seu lado, usufruindo da sua compa-


nhia. Ou quando íamos galopar juntos nos mangueiros da fazenda
Diamantina: ele, na sela da sua égua preferida; meu irmão caçula,
Marcelo, no cabeçote, abraçado; eu sentada, na traseira do animal,
segura a ele. Parávamos para ver um ninho de passarinho ou colher
uma tangerina silvestre. Se o sol apertava, tínhamos direito a uma
parada na beira do rio para refrescar o corpo.

Figura 1 – Euclides Neto, em 1991, fazenda Diamantina

Fonte: Acervo da família

O banho no rio do Peixe em sua companhia era infinitamente


mais aprazível; a presença dele garantia arriscar trechos mais profun-
dos quando a natação ainda era insuficiente. Um porto seguro.
Sua presença nos trazia uma sensação de completude e esperá-
vamos por esses momentos com inquietação. Surgiam os impasses, ele
tinha a resposta, respostas lúcidas, coerentes, as dúvidas se dissipavam.
Averiguava os dilemas, implicações, prioridades. Sem preconceito,

| 334
O PAI EUCLIDES NETO

analisava, dialogava acalmando e encaminhando. O que dizia tinha


eco. Um visionário. Sem misticismo ou dogmas, com conhecimento
de causa. A vida não era indiferente, aprendia com a literatura, com as
experiências do cotidiano.
Eu era menina quando ele decidiu preservar intacto o trecho
da mata da fazenda Diamantina; os netos deveriam conhecer a fauna
e flora originais da região. Tábuas de madeira penduradas nas árvo-
res avisavam: “Proibido caçar e pescar”. Restos de madeira queima-
dos eram transportados para a sede da fazenda e adaptados como
móveis. Eram os anos 1960, quando as questões ambientais ainda
não eram assunto.
Presenteador. Se alguém elogiava um objeto de casa e caía no
seu gosto, levava-o consigo. Os livros eram os presentes favoritos,
não faltando dedicatórias memoráveis.
Certa feita, tive como tarefa de casa escolher contos de escri-
tores brasileiros. Escrevi a Jorge Amado solicitando-lhe um texto, e
citei meu pai também como escritor. Corrigiu-me, sugeriu retirar a
informação, não se via escritor naquele momento.
Em outra ocasião, chegando à fazenda muito tarde, me trouxe
um coelhinho marrom, selvagem, recolhido da estrada. Eram gestos
de carinho, delicadezas. Cresci e ele continuou sempre muito pró-
ximo. Presente nos momentos importantes da vida: na primeira
prova do vestibular, proporcionando viagens mundo afora, fazendo
parceria para fotografar o deserto no Teerã, andar de camelo, mer-
gulhar numa baía repleta de golfinhos em Fernando de Noronha.
Não temia, a coragem era um traço definidor.
Apostava, acreditava na capacidade do novo. No último ano
de faculdade, inexperiente para projetar e construir, me entregou
um terreno e sugeriu: “Boa hora para praticar a arquitetura, elaborar
e erguer uma casa de praia para a família, a água do mar deveria
respingar na varanda”. A ideia era trabalhar dentro de um orçamento

335 |
Denise Teixeira

modesto, com materiais de qualidade, mas sem excessos ou luxo.


Assim foi feito. A madeira deveria ser de lei, as ferragens de latão
para suportar a maresia inclemente. Valorizava a solidez da mora-
dia, fundamental, a simplicidade. Um traço inconfundível. Projeto
pronto, mão de obra contratada, registro dos pedreiros e serventes,
material comprado, em seis meses a casa estava habitável.
O nascimento de cada neto era sempre carregado de emoção
e infinita alegria, se deslocava de onde estivesse para estar perto e
vivenciar o acontecimento.
Participava de longe da formação dos netos. Gostava de rece-
ber as produções escolares, tirava dúvidas de português, encantava-se
com as poesias e redações, emoldurando-as, expondo-as nas paredes
do seu escritório. Identificava e valorizava os pequenos. Quando
em férias, os pequenos transitavam no gabinete com liberdade,
desenhando em papéis reciclados, brincando com as figurinhas de
estimação recolhidas nas viagens. Era permitido rabiscar nos livros
que estavam sendo lidos.
Um pai presente, um “vô” carregado de ternura.

| 336
SOBRE OS AUTORES

Ana Sayonara Fagundes Britto Marcelo


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura
da Universidade Federal da Bahia (PPGLitCult/UFBA). Mestre
em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia
(UNEB). Especialista em Literatura Brasileira pela Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Professora assistente do
Departamento de Ciências Humanas e Letras (DCHL) da UESB.
Foi professora assistente da UNEB (2004-2013).
E-mail: [email protected]
Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/2124695641938329.

Cid Seixas Fraga Filho


Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo
(USP). Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Graduado em Letras Vernáculas pela Universidade
Católica do Salvador. É professor titular aposentado da UFBA.
Escritor e jornalista, publicou O espelho de Narciso (Civilização
Brasileira, 1981), Triste Bahia (Coleção Letras da Bahia, 1971),
O lugar da linguagem da teoria freudiana (Casa de Jorge Amado,
1998), O espelho infiel (Diadorim, 1996), O trovadorismo galaico-
-português (Editora da UEFS, 2000), Os riscos da cabra cega: recor-
tes de crítica ligeira (PPgLDC, 2003), dentre outros livros.

337 |
Vitor Hugo Fernandes Martins | Maria da Conceição Reis Teixeira |
Harlle Silva Costa (Organizadores)

E-mail: [email protected]
Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8261191501769406.

Denise Teixeira
Arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade Mackenzie com a dissertação intitulada Plano Diretor
do município de Ipiaú – BA: limitações e possibilidades, graduada pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordenou o projeto de
reedição da obra Euclides Neto: a literatura da região do cacau (Lei
Rouanet).
E-mail: [email protected]
Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/2761305438054198.

Liz Maria Teles de Sá Almeida


Doutoranda em Literatura pela Universidade de Évora (Portugal).
Mestre em Estudos de Linguagens pela Universidade do Estado
da Bahia (UNEB). Graduada em Letras Vernáculas pela UNEB,
Campus XXI). Professora de ensino básico, técnico e tecnológico
do Instituto Federal da Bahia (EBTT/IFBA, Campus Paulo Afonso).
Membro do Núcleo de Pesquisa em Humanidades, Educação e
Ciências (Nuphec). Membro do Centro de Estudos em Letras da
Universidade de Évora (CEL-UE).
E-mail: [email protected]
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2719131738289254.

Tereza Cristina Damásio Cerqueira


Doutoranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da
Bahia (PPGLitCult/UFBA). Mestre em Literatura e Diversidade
Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

| 338
SOBRE OS AUTORES

Professora assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB,


Campus XXI). Líder do grupo de pesquisa Literatura, Teatro e
Teatralidade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (Diretório Nacional/CNPQ).
E-mail: [email protected]
Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8442634745382619.

339 |
Formato: 150 x 210 mm
Fonte: Swiss 721 Cn BT 15, 12 e 11; Minion Pro, 11, 10 e 8
Miolo: papel Pólen Soft, 80 g/m2
Capa: papel Supremo, 300 g/m2
Impressão: junho 2021
Gráfica: ImpressãoBigraf
Vitor Hugo Fernandes Martins (in memoriam)
Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Atuou como Professor auxiliar II na Universidade Federal
de Rondônia. Foi professor na Universidade Estadual de Tocantins,
na Universidade Federal de Goiás, na Pontifícia Universidade
Católica de Goiás e no Instituto Superior de Educação Nossa Senhora
de Lourdes. Professor efetivo da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB, Campus XXI), no período de 2005 a 2018. Poeta, cronista e
contista, publicou vários livros. Integrou diversas coletâneas e cola-
borou com jornais e revistas do país. Currículo Lattes: http://lattes.
cnpq.br/9163422411143687.
Maria da Conceição Reis Teixeira
Doutora e mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Especialista em História da Cultura Afro-
Brasileira e em Marketing, Comunicação e Negócio. Licenciada
e Bacharel em Letras Vernáculas pela UFBA. Professora plena da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB, Campus XXI). Líder do
grupo de pesquisa Edição e Estudos de Textos (Diretório dos Grupos
de Pesquisa no Brasil/CNPq). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9718069524723302. E-mail: [email protected]
Harlle Silva Costa
Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade do Estado da
Bahia (UNEB). Especialista em Leitura e Produção Textual na Escola
pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), e em Mídias
na Educação, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB). Licenciada em Letras e Artes pela UESC. Professora assis-
tente da UNEB, Campus XXI. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/1522623850096029. E-mail: [email protected]

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