RESUMO
RAÇA E RACISMO
O objetivo da coleção Feminismos Plurais é trazer para o grande público questões
importantes referentes aos mais diversos feminismos de forma didática e acessível.
Escolhemos começar com o feminismo negro para explicitar os principais conceitos e
definitivamente romper com a ideia de que não se está discutindo projetos.
Ao nomear as opressões de raça, classe e gênero, entende-se a necessidade de não
hierarquizar opressões, de não criar, como diz Angela Davis, em “As mulheres negras na
construção de uma nova utopia”, “primazia de uma opressão em relação a outras”.
Entendendo a linguagem como mecanismo de manutenção de poder, um dos objetivos da
coleção é o compromisso com uma linguagem didática, atenta a um léxico que dê conta de
pensar nossas produções e articulações políticas, de modo que seja acessível, como nos
ensinam muitas feministas negras.
Para o autor, advogado e estudioso da teoria social, “racismo é a manifestação normal de
uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de
anormalidade”. Trata-se, sobretudo, de um livro de teoria social. Neste sentido, há duas
teses a destacar: uma é a de que a sociedade contemporânea não pode ser compreendida
sem os conceitos de raça e de racismo. A outra tese é a deque o significado de raça e de
racismo, bem como suas terríveis consequências, exigem dos pesquisadores e
pesquisadoras um sólido conhecimento de teoria social.
Em suma, o que queremos explicitar é que o racismo é a manifestação normal de uma
sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade.
Raça não é um termo fixo, estático. Seu sentido está inevitavelmente atrelado às
circunstâncias históricas em que é utilizado. Por trás da raça sempre há contingência,
conflito, poder e decisão, de tal sorte que se trata de um conceito relacional e histórico.
Falar de como a ideia de raça ganha relevância social demanda a compreensão de como o
homem foi construído pela filosofia moderna. O racismo moderno é diferente, uma
concepção mais viciosamente sistemática de inferioridade intrínseca e natural, que surgiu
no final do século XVII ou início do século XVIII, e culminou no século XIX, quando
adquiriu o reforço pseudo-científico de teorias biológicas de raça, e continuou a servir
como apoio ideológico para opressão colonial mesmo depois da abolição da escravidão.
Desse modo, pode-se concluir que, por sua conformação histórica, a raça opera a partir de
dois registros básicos que se entrecruzam e complementam:
1. Como característica biológica, em que a identidade racial será atribuída por algum
traço físico, como a cor da pele, por exemplo;
2. Como característica étnico-cultural, em que a identidade será associada à origem
geográfica, à religião, à língua ou outros costumes, “a uma certa forma de existir”. À
configuração de processos discriminatórios a partir do registro étnico-cultural Frantz
Fanon denomina racismo cultural.
PRECONCEITO, RACISMO E DISCRIMINAÇÃO
Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça
como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes
que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial
ao qual pertençam. A discriminação racial, por sua vez, é a atribuição de tratamento
diferenciado a membros de grupos racialmente identificados. Ainda sobre a discriminação,
é importante dizer que é possível falar também em discriminação positiva, definida como a
possibilidade de atribuição de tratamento diferenciado a grupos historicamente
discriminados com o objetivo de corrigir desvantagens causadas pela discriminação
negativa – a que causa prejuízos e desvantagens.
TRÊS CONCEPÇÕES DE RACISMO:
Individualista: O racismo, segundo esta concepção, é concebido como uma espécie
de “patologia” ou anormalidade, É um fenômeno ético ou psicológico de caráter individual
ou coletivo, atribuído a grupos isolados, ou ainda, seria o racismo uma irracionalidade, O
racismo é uma imoralidade e também um crime, que exige que aqueles que o praticam
sejam devidamente responsabilizados, disso estamos convictos.
Institucional: A concepção institucional significou um importante avanço teórico no que
concerne ao estudo das relações raciais. O Estado brasileiro não é igual ao Estado francês,
embora ambos sejam formalmente Estados, Assim, as instituições moldam o
comportamento humano, tanto do ponto de vista das decisões e do cálculo racional, como
dos sentimentos e preferências. As sociedades não são homogêneas, visto que são marcadas
por conflitos, antagonismos e contradições que não são eliminados, mas absorvidos e
mantidos sob controle por meios institucionais, como é exemplo o funcionamento do
“sistema de justiça”. No caso do racismo institucional, o domínio se dá com o
estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a
hegemonia do grupo racial no poder.
Estrutural: O conceito de racismo institucional foi um enorme avanço no que se refere ao
estudo das relações raciais. Primeiro, ao demonstrar que o racismo transcende o âmbito da
ação individual, e, segundo, ao frisar a dimensão do poder como elemento constitutivo das
relações raciais, não somente o poder de um indivíduo de uma raça sobre outro, mas de um
grupo sobre outro, algo possível quando há o controle direto ou indireto de determinados
grupos sobre o aparato institucional. Assim como a instituição tem sua atuação
condicionada a uma estrutura social previamente existente – com todos os conflitos que lhe
são inerentes –, o racismo que essa instituição venha a expressar é também parte dessa
mesma estrutura. De tal modo que, se o racismo é inerente à ordem social, a única forma de
uma instituição combatê-lo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas.
Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo
“normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até
familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional.
O propósito desse olhar mais complexo é afastar análises superficiais ou reducionistas
sobre a questão racial que, além de não contribuírem para o entendimento do problema,
dificultam em muito o combate ao racismo. A mudança da sociedade não se faz apenas com
denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de
posturas e da adoção de práticas antirracistas. O racismo é uma ideologia, desde que se
considere que toda ideologia só pode subsistir se estiver ancorada em práticas sociais
concretas. Mulheres negras são consideradas pouco capazes porque existe todo um sistema
econômico, político e jurídico que perpetua essa condição de subalternidade, mantendo-as
com baixos salários, fora dos espaços de decisão, expostas a todo tipo de violência.
Pessoas negras, portanto, podem reproduzir em seus comportamentos individuais o racismo
de que são as maiores vítimas. Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a
desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas
contra a discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal. No contexto
brasileiro, o discurso da meritocracia é altamente racista, uma vez que promove a
conformação ideológica dos indivíduos à desigualdade racial.
RACISMO COMO PROCESSO POLÍTICO
O racismo é processo político. Político porque, como processo sistêmico de discriminação
que influencia a organização da sociedade, depende de poder político; caso contrário seria
inviável a discriminação sistemática de grupos sociais inteiros.
Por isso, é absolutamente sem sentido a ideia de racismo reverso.
Há um grande equívoco nessa ideia porque membros de grupos raciais minoritários podem
até ser preconceituosos ou praticar discriminação, mas não podem impor desvantagens
sociais a membros de outros grupos majoritários, seja direta, seja indiretamente. E nítida a
realidade cotidiana em que podemos ver claramente que Homens brancos não perdem
vagas de emprego pelo fato de serem brancos, pessoas brancas não são “suspeitas” de atos
criminosos por sua condição racial, tampouco têm sua inteligência ou sua capacidade
profissional questionada devido à cor da pele.
Racismo é algo “normal” contra minorias – negros, latinos, judeus, árabes, persas, ciganos
etc. – porém, fora destes grupos, é “atípico”, “reverso”. O que fica evidente é que a ideia de
racismo reverso serve tão somente para deslegitimar as demandas por igualdade racial. É
parte da dimensão política e do exercício do poder a incessante apresentação de um
imaginário social de unificação ideológica, cuja criação e recriação será papel do Estado,
das escolas e universidades, dos meios de comunicação de massa e, agora, também das
redes sociais e seus algoritmos.
RACISMO COMO PROCESSO HISTÓRICO
O racismo é também processo histórico. De tal sorte, quanto ao processo histórico podemos
dizer que o racismo se manifesta:
a) de forma circunstancial e específica;
b) em conexão com as transformações sociais.
Apesar da determinação formal de aspectos como a economia, o Estado e o direito (formas
sociais), cada sociedade possui uma trajetória singular que dará ao econômico, ao político e
ao jurídico particularidades que só podem ser apreendidas quando observadas as
respectivas experiências históricas (formações sociais).
O mesmo se passa com o racismo, porque as características biológicas ou culturais só são
significantes de raça ou gênero em determinadas circunstâncias históricas, portanto,
políticas e econômicas. Daí a importância de se compreender o peso das classificações
raciais, não apenas na moldura dos comportamentos individuais ou de grupos, mas na
definição de estratégias políticas estatais e não estatais
Os diferentes processos de formação nacional dos Estados contemporâneos não foram
produzidos apenas pelo acaso, mas por projetos políticos. Assim, as classificações raciais
tiveram papel importante para definir as hierarquias sociais, a legitimidade na condução do
poder estatal e as estratégias econômicas de desenvolvimento. Demonstra isso a existência
de distintos modos de classificação racial: no Brasil, além da aparência física de
ascendência africana, o pertencimento de classe explicitado na capacidade de consumo e na
circulação social. Assim, a possibilidade de “transitar” em direção a uma estética
relacionada à branquitude, e manter hábitos de consumo característicos da classe média,
pode tornar alguém racialmente “branco”.
Em um mundo em que a raça define a vida e a morte, não a tomar como elemento de
análise das grandes questões contemporâneas demonstra a falta de compromisso com a
ciência e com a resolução das grandes mazelas do mundo.
COMO NATURALIZAMOS O RACISMO
Essa segregação não oficial entre negros e brancos que vigora em certos espaços sociais
desafia as mais diversas explicações.
Nos ambientes acadêmicos e próprios ao exercício da advocacia percebemos que, na grande
maioria das vezes, uma são poucas pessoas negras, a condição de advogado e de professor.
Entretanto, nesses mesmos ambientes, observa-se os trabalhadores da segurança e da
limpeza: a maior parte negros e negras, todos uniformizados, provavelmente mal
remunerados, quase imperceptíveis aos que não foram “despertados” para as questões
raciais, destinando aos negros as atividades braçais e inferiores. Conceitos racistas
manifestam-se conforme descrito abaixo:
1. pessoas negras são menos aptas para a vida acadêmica e para a advocacia;
2. pessoas negras, como todas as outras pessoas, são afetadas por suas escolhas individuais,
e sua condição racial nada tem a ver com a situação socioeconômica;
3. pessoas negras, por fatores históricos, têm menos acesso à educação e, por isso, estão
alocadas em trabalhos menos qualificados, os quais, consequentemente, são mal
remunerados;
4. pessoas negras estão sob o domínio de uma supremacia branca politicamente construída
e que está presente em todos os espaços de poder e de prestígio social.
Essa aceitação nos leva a aceitar que Negos devem ocupar posições inferiores nas
organizações.
De fato, negros e negras são considerados o conjunto da população brasileira, apresentam
menor índice de escolaridade e, sim, o sistema político e econômico privilegia pessoas
consideradas brancas.
RACISMO, IDEOLOGIA ESTRUTURA RACIAL
A ideologia se conecta com a concepção individualista do racismo.
Pessoas racializadas são formadas por condições estruturais e institucionais. Nesse sentido,
podemos dizer que é o racismo que cria a raça e os sujeitos racializados. Os privilégios de
ser considerado branco não dependem do indivíduo socialmente branco reconhecer-se ou
assumir-se como branco, e muito menos de sua disposição em obter a vantagem que lhe é
atribuída por sua raça.
O racismo constitui todo um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado
pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional.
O racismo é uma ideologia, desde que se considere que toda ideologia só pode subsistir se
estiver ancorada em práticas sociais concretas. Mulheres negras são consideradas pouco
capazes porque existe todo um sistema econômico, político e jurídico que perpetua essa
condição de subalternidade, mantendo-as com baixos salários, fora dos espaços de decisão,
expostas a todo tipo de violência.
Mas é preciso tempo para se libertar das mentiras e seus efeitos destrutivos nas mentes
pretas. Leva tempo para rejeitar a mentira mais importante: que as pessoas pretas
inerentemente não podem fazer as mesmas coisas que as pessoas brancas podem fazer a
menos que as pessoas brancas as ajudem.
RACISMO, CIÊNCIA E CULTURA
No caso do Brasil, o racismo contou com a inestimável participação das faculdades de
medicina, das escolas de direito e dos museus de história natural, como nos conta Lilia
Schwarcz em seu livro O espetáculo das raças. Já no século XX, na esteira do Estado Novo,
o discurso socioantropológico da democracia racial brasileira seria parte relevante desse
quadro em que cultura popular e ciência fundem-se num sistema de ideias que fornece um
sentido amplo para práticas racistas já presentes na vida cotidiana. No fim das contas, ao
contrário do que se poderia pensar, a educação pode aprofundar o racismo na sociedade.
Sobre o racismo científico e a relação entre raça e biologia, o desenvolvimento do
capitalismo e os avanços tecnológicos da sociedade industrial fizeram emergir um
tratamento mais sutil, mais “fino”, da questão racial, como nos demonstra Fanon em
“Racismo e cultura”.
A substituição do racismo científico e do discurso da inferioridade das raças pelo
“relativismo cultural” e pelo “multiculturalismo” não se explica por uma “revolução
interior” ou por uma “evolução do espírito”, mas por mudanças na estrutura econômica e
política que exigem formas mais sofisticadas de dominação. O incremento das técnicas de
exploração econômica é acompanhado de uma evolução das técnicas de violência e
opressão, dentre as quais, o racismo brutal dos braços e pernas do homem. A perfeição dos
meios de produção provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do
homem, logo, das formas de racismo.
A permanência do racismo exige, em primeiro lugar, a criação e a recriação de um
imaginário social em que determinadas características biológicas ou práticas culturais sejam
associadas à raça e, em segundo lugar, que a desigualdade social seja naturalmente
atribuída à identidade racial dos indivíduos ou, de outro modo, que a sociedade se torne
indiferente ao modo com que determinados grupos raciais detêm privilégios.
BRANCO TEM RAÇA
O problema de considerar o racismo como obra da supremacia branca ocorre quando se
considera este termo fora de um contexto histórico. A supremacia branca é uma forma de
hegemonia, ou seja, uma forma de dominação que é exercida não apenas pelo exercício
bruto do poder, pela pura força, mas também pelo estabelecimento de mediações e pela
formação de consensos ideológicos. A dominação racial é exercida pelo poder, mas também
pelo complexo cultural em que as desigualdades, a violência e a discriminação racial são
absorvidas.
O silêncio, a omissão, a distorção do lugar do branco na situação das desigualdades raciais
no Brasil têm um forte componente narcísico, de autopreservação, porque vêm
acompanhados de um pesado investimento na colocação desse grupo
Assim como o privilégio faz de alguém branco, são as desvantagens sociais e as
circunstâncias histórico-culturais, e não somente a cor da pele ou o formato do rosto, que
fazem de alguém negro. Características físicas ou práticas culturais são apenas dispositivos
materiais de classificação racial que fazem incidir o mecanismo de distribuição de
privilégios e de desvantagens políticas, econômicas e afetivas como referência da condição
humana.
RACISMO E MERITOCRACIA
No Brasil, a negação do racismo e a ideologia da democracia racial sustentam-se pelo
discurso da meritocracia. Se não há racismo, a culpa pela própria condição é das pessoas
negras que, eventualmente, não fizeram tudo que estava a seu alcance. Em um país desigual
como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta
a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação racial, especialmente por
parte do poder estatal. No contexto brasileiro, o discurso da meritocracia é altamente
racista, uma vez que promove a conformação ideológica dos indivíduos à desigualdade
racial. A soma do racismo histórico e da meritocracia permite que a desigualdade racial
vivenciada na forma de pobreza, desemprego e privação material seja entendida como falta
de mérito dos indivíduos.
RACISMO E POLÍTICA
O racismo é, sobretudo, uma relação de poder que se manifesta em circunstâncias
históricas. Na perspectiva estrutural – que é nosso foco – se consideramos o racismo um
processo histórico e político, a implicação é que precisamos analisá-lo sob o prisma da
institucionalidade e do poder.
A política, devido a características específicas da sociedade contemporânea sobre as quais
falaremos adiante, passa pelo Estado, ainda que não se restrinja a ele. Um exemplo está na
ação de grupos e movimentos sociais. Grande parte de suas reivindicações – por mais
específicas que possam ser – é dirigida ao poder estatal na forma da “luta por direitos”,
como igualdade, liberdade, educação, moradia, trabalho, cultura etc.
ESTADO E RACISMO NAS TEORIAS LIBERAIS
Nas teorias liberais sobre o Estado há pouco, senão nenhum, espaço para o tratamento da
questão racial. O racismo é visto como uma irracionalidade em contraposição à
racionalidade do Estado, manifestada na impessoalidade do poder e na técnica jurídica.
Nesse sentido, raça e racismo se diluem no exercício da razão pública, na qual deve imperar
a igualdade de todos perante a lei.
Sob este prisma, a tarefa de uma sociedade democrática, mais do que combater o racismo, é
eliminar o peso da raça sobre a liberdade dos indivíduos, desmantelar os privilégios raciais
e instituir o “império da lei”. As teorias que analisam o Estado do ponto de vista da ética se
restringem a descrever aspectos institucionais ou jurídicos da organização política, ou não
conseguem fornecer explicações suficientes sobre a relação entre raça e política.
Portanto, a forma com que os indivíduos atuam na sociedade, seu reconhecimento enquanto
integrantes de determinados grupos e classes, bem como a constituição de suas identidades,
relacionam-se às estruturas que regem a sociabilidade capitalista.
“A particularidade do modo de socialização capitalista reside na separação e na simultânea
ligação entre ‘Estado’ e ‘sociedade’, ‘política’ e ‘economia’”.81 Sob as condições
econômicas da sociedade capitalista, o Estado dá forma a uma comunidade política cuja
socialização é feita de antagonismos e contradições expressas nos interesses individuais.
Daí resulta que o Estado não é apenas o garantidor das condições de sociabilidade do
capitalismo, mas é também o resultado dessas mesmas condições, o que faz dele mais do
que um mero árbitro ou um observador neutro da sociedade. Como a sociedade é dinâmica,
as condições econômicas e as relações de força alteram-se o tempo todo, e os conflitos
tendem a surgir. Esses conflitos pressupõem a capacidade do Estado de manter as estruturas
socioeconômicas fundamentais e a adaptação do Estado às transformações sociais sem
comprometer sua unidade relativa e sua capacidade de garantir a estabilidade política e
econômica.82 Portanto, a atuação do Estado, como a forma política da sociedade
capitalista, está histórica e logicamente conectada com a reprodução das outras formas
sociais do capitalismo: a forma-mercadoria (propriedade privada), a forma-dinheiro
(finanças) e a forma-jurídica (liberdade e igualdade).
Entretanto, dizer que o Estado é capitalista não é o mesmo que dizer que o Estado se move
única e exclusivamente pelos interesses dos detentores do capital. A ligação entre Estado e
capitalismo é muito mais complexa e estrutural, tendo em vista que o Estado
contemporâneo, marcado pela impessoalidade e pela pretensa separação com o mercado, só
pode ser vislumbrado no contexto do capitalismo.
Isso tudo significa que o Estado tem uma autonomia relativa sobre a economia, algo
importante para a preservação do próprio capitalismo. Todavia, a relação é constantemente
colocada em questão pelas lutas políticas que se desenvolvem no seio da sociedade. Sendo
a sociedade capitalista marcada por intensos conflitos, é comum que grupos isolados
queiram fazer prevalecer seus interesses específicos e, para isso, tentem dirigir o Estado e
seus aparelhos de força.
E quando a ideologia não for suficiente, a violência física fornecerá o remendo para uma
sociedade estruturalmente marcada por contradições, conflitos e antagonismos
insuperáveis, mas que devem ser metabolizados pelas instituições – o poder judiciário é o
maior exemplo dessa institucionalização dos conflitos. Esses fatores explicam a
importância da construção de um discurso ideológico calcado na meritocracia, no sucesso
individual e no racismo a fim de naturalizar a desigualdade.
ESTADO, PODER E CAPITALISMO
O texto define o Estado como “a condensação material das relações de forças sociais”
proposta por Joachim Hirsch. Esta definição enfatiza a natureza estrutural do Estado e vai
além das concepções do Estado como resultado de um contrato social ou como instrumento
de opressão da classe dominante.
O texto questiona por que esta relação de poder assume a forma de um poder centralizado e
impessoal, separado da sociedade. A resposta tem a ver com a formação dos Estados
contemporâneos e a ascensão das relações econômicas capitalistas. Nas sociedades pré-
capitalistas, o poder político estava disperso entre diferentes grupos, mas à medida que o
capitalismo se desenvolveu, a política assumiu uma forma mais centralizada, com o Estado
a desempenhar um papel crucial.
A sociedade capitalista é caracterizada pelo intercâmbio comercial e depende da liberdade
individual, da igualdade formal e da propriedade privada. O Estado tem a responsabilidade
de salvaguardar estes elementos e manter a ordem e a estabilidade política e econômica. A
acção do Estado é crucial para salvaguardar as estruturas socioeconômicas básicas do
capitalismo. No entanto, o Estado não é apenas uma ferramenta dos capitalistas. Mantém
relativa autonomia sobre a economia e a sua relação com o capitalismo é complexa e
estrutural. Os países também são afetados por conflitos sociais e políticos, o que pode levar
a intervenções e reformas para equilibrar os diferentes interesses da sociedade.
O texto também chama atenção sobre como não existem apenas conflitos de classe na
sociedade capitalista, mas também conflitos raciais, de gênero, religiosos, culturais e
regionais. Estes conflitos não se limitam às trocas de mercadorias e às relações de
produção, mas desempenham um papel importante na organização da sociedade e na forma
como o Estado intervém.
Por fim, o texto fala sobre às contribuições de Michel Foucault e Judith Butler para a
compreensão de como Estado, direito e identidade se relacionam. Foucault argumenta que a
formação da identidade está ligada às demandas do Estado liberal, que exige a afirmação de
direitos com base em uma identidade particular. Butler destaca como as instituições
jurídicas geram campos de possíveis sujeitos políticos que influenciam a formação de
identidades na sociedade.
RAÇA E NAÇÃO
O texto discute a formação dos Estados nacionais e como estes desencadearam uma
profunda reorganização da vida social, não só em termos políticos e econômicos, mas
também na construção da identidade. Para que surgisse um mundo baseado no contrato e na
troca comercial, foi necessário que surgissem novas formas de racionalidade e percepção do
tempo e do espaço, levando ao colapso das tradições pré-capitalistas.
A nacionalidade desempenhou um papel central neste processo, pois se tornou uma
narrativa que unificou culturas, territórios e governos sob uma identidade comum. O
nacionalismo desempenha um papel importante no estabelecimento de um discurso de
unidade nacional baseado na origem ou identidade comum. Esta construção da
nacionalidade não é um resultado acidental, mas o resultado de mecanismos institucionais e
práticas de poder restringidas por estruturas políticas e econômicas. O nacionalismo
mascara o conflito de classes e a violência inerentes ao sistema capitalista.
O texto também destaca a relação entre nacionalismo e racismo, sendo o nacionalismo não
apenas uma forma de ocultar a violência econômica, mas também uma construção histórica
baseada em divisões raciais e de gênero. Isto inclui o controle dos corpos das mulheres
como parte da reprodução da diferença racial e sexual.
A relação entre raça, racismo e nacionalidade adquiriu um novo significado em contextos
internacionais, incluindo a diáspora africana. A compreensão do mundo contemporâneo está
intimamente ligada à compreensão da diáspora. Além disso, o texto refere-se à categoria
“africanidade” para abordar a identidade de forma relacional e histórica, enfatizando como
o racismo se institucionalizou no Brasil e passou a fazer parte do imaginário nacional.
Finalmente, o texto observa como o nacionalismo em diferentes contextos contribuiu para o
colonialismo e o apartheid e desempenhou um papel na resistência anticolonial e nas lutas
pela independência política e econômica em todo o mundo.
REPRESENTATIVIDADE IMPORTA?
Este texto fala sobre a representatividade em meios políticos, mas dando destaque também
que a representatividade tem de ir além da presença de minorias em cargos de poder e
prestígio social. Representatividade, nesse contexto amplo, envolve a participação de
minorias em espaços de influência, incluindo os meios de comunicação e a academia.
No texto se é questionado se a presença de pessoas que fazem parte de minorias em
posições de destaque seria o suficiente para combater o racismo. Algumas pessoas
acreditam que isso demonstra meritocracia e que o racismo pode ser superado pelo esforço
individual, mas essa visão é criticada por naturalizar a desigualdade racial. A
representatividade é um passo importante contra luta ao racismo, por ser a partir dai que
podemos abrir espaço para a minoria fazer suas reivindicações e para se desmontar
narrativas que são discriminatórias e que as colocam em posições de submissão. O texto
também afirma que mesmo a representatividade sendo um grande passo, não é o suficiente
para de combater o racismo, já que o racismo é uma questão de poder real, não apenas de
visibilidade. A presença de representantes de minorias pode ser uma resposta institucional
para preservar o poder dominante, e não uma reconfiguração das relações de poder que
mantêm a desigualdade.
O texto também salienta que a representação pode ser problemática quando se espera que
os representantes dos grupos minoritários pensem e ajam uniformemente, dificultando
assim a crítica e o debate interno. Além disso, mesmo com compromisso político, os
representantes podem não ter o poder necessário para mudar as estruturas políticas e
econômicas que perpetuam as desigualdades raciais e de gênero.
Em resumo, o texto defende que a representação é importante, mas não é a única solução
para combater o racismo e a discriminação, uma vez que o racismo é uma questão estrutural
de poder que requer mudanças mais profundas nos sistemas e na sociedade como um todo.
DA BIOPOLÍTICA À NECROPOLÍTICA
Neste texto, Foucault argumentou que o racismo está intrinsecamente ligado à formação do
Estado desde o século XIX. Ele enfatiza que o discurso biológico da raça, com foco
particular na pureza racial, desempenha um papel fundamental na função do Estado como
protetor da integridade, superioridade e pureza racial. Esta é uma manifestação da face
contra-revolucionária e conservadora que o discurso político assumiu após a revolução
liberal do século XVIII. Foucault também enfatizou que o racismo não era apenas uma
ideologia, mas uma tecnologia de poder que tinha funções específicas no contexto nacional.
Com as mudanças socioeconômicas desde o século XIX, o conceito de soberania tornou-se
mais sobre o controlo e manutenção da vida do que sobre o poder de tomá-la. Isto é
conhecido como biopoder e envolve o Estado exercendo influência sobre aspectos como
saúde pública, segurança e bem-estar. Contudo, Foucault questiona como um Estado
centrado no biopoder pode exercer o poder de tirar a vida, ou seja, a função da morte. É
aqui que o racismo desempenha um papel central. O racismo tornou-se o mecanismo básico
do poder estatal, e quase todos os Estados modernos experimentarão o racismo no seu
funcionamento num momento específico e sob condições específicas.
O racismo tem duas funções no poder do Estado, de acordo com Foucault:
1. Fragmentação e divisão da espécie humana: O racismo estabelece hierarquias, distinções
e classificações de raças, criando divisões entre superiores e inferiores, entre os que
merecem viver e os que merecem morrer, entre os que têm uma vida prolongada e os que
são deixados para a morte.
2. Estabelecimento de uma relação positiva com a morte do outro: O racismo cria uma
relação biológica em que a morte do outro, considerado como pertencente a uma "raça
ruim" ou anormal, não é apenas uma garantia de segurança individual, mas também
fortalece o grupo ao qual se pertence.
Em suma, Foucault argumentou que o racismo é uma tecnologia de poder que permite ao
Estado exercer a soberania, especialmente numa sociedade centrada no biopoder. O racismo
permite ao Estado decidir quem deve viver e quem deve morrer, e é uma condição
fundamental para o exercício da soberania para levar a vida numa sociedade normalizada.
O racismo desempenha assim um papel fundamental no funcionamento do Estado moderno.
RACISMO E NECROPOLÍTICA
O texto analisa a relação entre poder político, racismo e morte em diferentes contextos
históricos e políticos, com base nas teorias de Michel Foucault e Achille Mbembe. Começa
por destacar que o Estado nazista representou uma fusão extrema entre política e morte,
mas argumenta que essa fusão já estava presente de maneira exemplar na experiência
colonial.
O autor menciona que Aimé Césaire alertou sobre a perplexidade da Europa diante do
nazismo, pois percebeu que o assassinato e a tortura como práticas políticas poderiam ser
aplicados em território europeu, não apenas nos territórios colonizados. Isso levanta a
questão de como o colonialismo serviu como modelo para a política de morte.
A análise de Mbembe introduz o conceito de "necropolítica" e "necropoder". Ele argumenta
que o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito
de matar. A necropolítica envolve a concatenação do biopoder, estado de exceção e estado
de sítio, com a raça desempenhando um papel crucial.
O texto destaca que a colonização foi o lugar onde a racionalidade ocidental se encontrou
com o "massacre e burocracia" pela primeira vez. O colonialismo testou práticas como a
seleção de raças, proibição de casamentos mistos e extermínio dos povos vencidos. O autor
também compara o terror nos Estados escravistas e nos regimes coloniais tardo-modernos.
O texto argumenta que, sob o neoliberalismo, o estado de exceção tornou-se a regra e a
justificação da morte em nome da economia e segurança é fundamental. Também ressalta
como o racismo permite a naturalização da morte e da violência em comunidades negras,
como o genocídio de jovens negros no Brasil. Além disso, o texto enfatiza que a ocupação
colonial não é restrita ao século XIX, mas continua em várias formas, inclusive nas
políticas de segurança pública, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de
Janeiro, que combinam militarização e mercantilização.
No geral, o texto examina como a política contemporânea está entrelaçada com a morte,
especialmente em contextos coloniais e pós-coloniais, com o racismo desempenhando um
papel significativo na perpetuação do poder de matar e controlar certas populações.
O QUE É DIREITO?
O texto começa introduzindo a necessidade de entender o conceito de direito antes de
explorar sua relação com a raça. Para isso, ele oferece um breve resumo das quatro
principais concepções de direito: direito como justiça, direito como norma, direito como
poder e direito como relação social. O texto esclarece que essas concepções têm várias
variações, mas o objetivo é fornecer uma visão geral de suas principais características e
como se relacionam com as teorias do racismo.
O DIREITO COMO JUSTIÇA
O texto aborda diferentes concepções do direito e sua relação com a justiça. Uma das
perspectivas apresentadas é a visão do direito como um valor, indo além das normas
jurídicas, onde a vida, a liberdade, a igualdade e a propriedade são considerados valores
fundamentais que devem ser protegidos mesmo quando não estão expressamente
legislados. Isso se relaciona com a ideia de direito natural, onde algumas regras são
consideradas preexistentes às normas estabelecidas pelo Estado.
O texto menciona que o jusnaturalismo desempenhou um papel importante nas discussões
sobre raça e escravidão, com algumas justificativas para a escravidão baseadas na ideia de
uma ordem natural que supostamente legitimava a subjugação de certos povos e a
superioridade de outros. No entanto, também havia argumentos contrários à escravidão,
apelando para a incompatibilidade desse regime com a razão natural ou as leis de Deus. O
advogado Luiz Gama é citado como um exemplo de defensor da abolição da escravidão
com base em argumentos de direito natural, argumentando que a escravidão não poderia ser
considerada justa sob nenhuma circunstância, mesmo que fosse legal.
O texto destaca que, hoje em dia, a maioria dos autores jurídicos é juspositivista,
concebendo o direito como o conjunto de normas impostas pelo Estado, em contraste com a
visão jusnaturalista que estava mais presente nas discussões do passado.
O DIREITO COMO NORMA
Segundo o texto, a concepção mais comum do direito é aquela que o define como o
conjunto de normas jurídicas, ou seja, as regras obrigatórias estabelecidas e garantidas pelo
Estado, como leis, códigos, decretos e resoluções. Essa perspectiva é chamada de
juspositivismo. No entanto, seus críticos argumentam que essa visão limita a compreensão
do direito, pois o direito é um fenômeno complexo que envolve aspectos éticos, políticos e
econômicos que nem sempre são contemplados pelas normas jurídicas. As críticas ao
juspositivismo são semelhantes às críticas às concepções individualistas do racismo, que
tratam o racismo como um problema jurídico de violação de normas, reduzindo-o a um
problema de ordem jurídica que pode ser resolvido por meio de regras. Ambas as
perspectivas, seja em relação ao direito ou ao racismo, tendem a ignorar o contexto
histórico e reduzir questões complexas a problemas psicológicos ou a tentativas de
aperfeiçoar racionalmente a ordem jurídica para eliminar as falhas e irracionalidades, como
o racismo e as injustiças.
O DIREITO COMO PODER
Segundo o texto, existe um conceito jurídico que o equipara ao poder. Esta visão sustenta
que embora o direito contenha normas jurídicas, estas são apenas parte do fenômeno
jurídico, e a essência do direito é o poder. O poder é considerado o principal fator que
confere realidade ao direito. Sem poder, as normas jurídicas são apenas conceitos abstratos
sem conteúdo substancial. Esta visão reconhece que a formulação e aplicação de normas
jurídicas dependem das decisões e ações da autoridade. Essa concepção amplia a
compreensão do direito para além do legalismo e do normativismo juspositivista. O direito,
segundo essa visão, é entendido como um "mecanismo de sujeição e dominação", conforme
Michel Foucault descreveu, e sua existência pode ser observada em relações de poder
concretas, muitas das quais estão intimamente ligadas ao racismo, como as abordagens
policiais discriminatórias, audiências de custódia e a realidade nas prisões. As concepções
institucionalistas também são compatíveis com essa visão do direito como manifestação do
poder. Se o direito é produzido pelas instituições, que surgem das lutas pelo poder na
sociedade, as leis são vistas como extensões do poder político do grupo que detém o poder
institucional. No entanto, a história demonstra que, geralmente, a relação entre direito e
poder teve o racismo como seu elemento de conexão, com o direito sendo usado para
promover discriminação, segregação racial e até mesmo genocídio, como nos exemplos dos
regimes colonial, nazista e sul-africano.
Contemporaneamente, a ascensão de grupos de extrema-direita em alguns países demonstra
como a legalidade pode ser usada como uma extensão do poder, inclusive do poder racista,
por meio de leis anti-imigração e restrições econômicas direcionadas a minorias. No
entanto, a crítica a essa concepção é que ela não fornece uma especificidade ao direito,
dificultando diferenciá-lo de outras manifestações de poder, como a política, sem as
devidas mediações estruturais.
A relação entre o direito e o poder político destaca que as leis são uma extensão do poder
político do grupo que detém o poder institucional. O direito é compreendido como uma
tecnologia de controle social utilizada para atingir metas políticas e corrigir o
funcionamento institucional. No entanto, a história evidencia que em diversas ocasiões o
direito esteve associado ao preconceito racial, sendo empregado para discriminação
sistemática e segregação étnica. Atualmente, o surgimento de facções de extrema-direita em
alguns países tem demonstrado como a legalidade pode ser empregada para perpetuar o
poder racista, por exemplo, por meio de leis anti-imigração voltadas para indivíduos não
brancos. Uma crítica a essa concepção é que ela não distingue o direito de outras formas de
poder, como a política. Em seguida, o texto explora uma outra visão do direito, que o
percebe não apenas nas normas ou nas relações de poder, mas de forma mais ampla, nas
relações sociais como um todo. No entanto, é ressaltado que nem todos os vínculos sociais
podem ser considerados jurídicos e definir o que é uma relação jurídica representa um
desafio.
O direito é definido por sua qualidade, não por sua quantidade. Alysson Leandro Mascaro
argumenta que não são os conteúdos ou objetos de uma relação que determinam se ela é
jurídica ou não, mas sim a forma da relação. Por exemplo, embora o casamento seja um
tema religioso, no direito ele é considerado um negócio jurídico, um contrato.
Há também relação entre a evolução das sociedades e a forma como o direito é concebido e
aplicado. Antes das sociedades capitalistas contemporâneas, o direito era muitas vezes
suplantado pelo poder bruto e pela violência. Nas sociedades escravagistas ou feudais, o
senhor de escravos ou o senhor feudal impunham sua vontade pela força, pois o direito
estava diretamente relacionado aos seus poderes pessoais. Com o advento da idade
moderna e o surgimento do liberalismo, o direito começou a se desvincular do poder
pessoal dos nobres. Essa mudança atingiu seu ápice na idade contemporânea, onde o
desenvolvimento do capitalismo e a troca mercantil substituíram o uso da força e da
violência na reprodução econômica da sociedade pelo trabalho assalariado baseado em
contratos.
Nesse novo contexto, o direito passou a ser fundamentado no contrato, ao invés da servidão
ou hierarquias naturais. O contrato pressupõe que as partes envolvidas sejam formalmente
livres e iguais. No entanto, essa liberdade e igualdade são formais e nem sempre se
materializam no cotidiano das pessoas. Por exemplo, embora sejam juridicamente livres,
muitos indivíduos não têm a escolha de decidir se querem trabalhar ou não. O direito se
materializa, então, em uma relação entre sujeitos de direito, ou seja, entre indivíduos
formalmente livres e iguais, cuja finalidade básica é a troca.
No mundo contemporâneo, a garantia da liberdade individual e da igualdade – valores
fundamentais do capitalismo – não pode ser garantida pelo poder pessoal (como o de um
rei). A coexistência de direitos pessoais e o discurso de que todos são livres e iguais e de
que todos são sujeitos de direito seria contraditório. Assim, o poder político contemporâneo
deixa de ser pessoal e passa a ser exercido por uma entidade impessoal considerada neutra e
desligada da sociedade: o Estado. O estado imporia a ordem social por meio de normas
legais. É através disso que o direito como relação social aponta para as dimensões
estruturais do racismo, que é indissociável do direito, embora nem todas as manifestações
de racismo sejam legítimas. As leis que criminalizam os corpos negros e pobres fornecem
um quadro caracterizado pela construção de comportamentos questionáveis. Se a lei é o
Estado, então os suspeitos “padrão” também são suspeitos do Estado.
Por outro lado, as mudanças sociais e económicas, além da pressão dos movimentos sociais
antirracistas e anticolonialistas, influenciou a opinião pública e o sistema jurídico, criando
mudanças significativas no tratamento de questões relacionadas à raça. Após a Segunda
Guerra Mundial em 1948, a declaração universal dos direitos humanos universais seguidos
por muitas importantes convenções e resoluções raciais destacar a Convenção 111 de 1958
da Organização Internacional Laboral (OIT), que trata da discriminação na vida
profissional e nas profissões, e a Convenção Internacional sobre a Abolição de Todas as
Formas Discriminação Racial, de 1965.
Nos EUA, foi promulgada a Lei dos Direitos Civis de 1964, seguindo a trajetória do
movimento dos direitos civis. Em 1964, foi promulgada a Lei dos Direitos Civis, que pôs
oficialmente fim à segregação racial nos Estados do Sul. Esta lei pôs oficialmente fim à
segregação racial nos Estados do Sul. Antes da promulgação pelo Supremo Tribunal dos
EUA, o movimento para dessegregar os Estados do Sul já tinha começado, como ilustrado
pelo famoso precedente do caso Brown v Board of Education.
O Tribunal também se pronunciou em 1978 no processo Regents of the University of
California v Bucke Principals. No processo Regents of the University of California v
Bakke, o Tribunal considerou que a ação afirmativa, ou seja, a política pública de
discriminação racial, era contrária à Constituição dos Estados Unidos.
A posição de que a ação afirmativa, ou seja, a política pública com uma inclinação racial, é
constitucional foi reafirmada em Grutter v. Bollinger em 2003.
No Brasil, a lei aborda as questões raciais há muitos anos: em 1951, a Lei Afonso Alinos
considerou crime a prática de discriminação racial. Esta disposição orientou a Lei 7716/89
sobre o crime de discriminação racial (também conhecida como a "Lei Cao", em
homenagem ao proponente do projeto de lei, o deputado Carlos Alberto de Oliveira),
proponente do projeto de lei.
A Constituição garante claramente o respeito pela diversidade - artigo 5º, parágrafos 6º, 7º e
8º -, a proteção das diferentes expressões culturais - artigo 215 - e o estabelecimento da
obrigação de proteger as terras indígenas e quilombolas - artigo 231 e artigo 68 do ADCT
da Constituição, respetivamente. Por fim, a Lei 9.459/1997 acrescentou o artigo 3º ao artigo
140 do Código Penal para incluir o crime de injúria racial ou qualificada.
RACISMO E ECONOMIA
Falar de raça e de economia é essencialmente falar de desigualdade. O que é certo, quer
para quem define a economia como uma ciência que lida com a escassez, quer para quem
pensa a economia como um conjunto de relações de produção, é que a economia tem de
responder a um conjunto de questões que vão muito para além dos cálculos matemáticos e
das folhas de cálculo.
Estas questões mostram, por um lado, que a ideia de desigualdade é e, em segundo lugar,
que a economia só pode tentar responder a estas questões recorrendo à ciência política, à
ética, à sociologia e à jurisprudência. A desigualdade pode ser representada por dados
estatísticos e quantificada matematicamente, mas a explicação está na compreensão da
sociedade e dos seus múltiplos conflitos.
Tomemos o exemplo dos salários. Os números podem ser utilizados para o explicar.
Algumas pessoas recebem a mesma formação, desempenham as mesmas funções e
trabalham as mesmas horas, mas recebem menos do que outras. Para explicar esta
diferença, não se pode negar a importância dos números. Nesse sentido, a explicação mais
comum é atribuir a desigualdade salarial ao mérito.
A desigualdade por mérito, por outras palavras, é a desigualdade devida ao desempenho de
cada trabalhador. Significaria que os trabalhadores que fazem o mesmo trabalho, nas
mesmas condições contratuais, mesmo que trabalhem menos horas, são mais eficientes e
justificam uma remuneração mais elevada em função da sua produtividade. Nesta
perspectiva, existe um fundamento moral e jurídico para a desigualdade encontrada nestes
números, uma vez que os benefícios expressos em termos de eficiência e produtividade
individual tornam natural a desigualdade.
Todo o problema é que a produtividade e a eficiência não podem ser utilizadas como
fatores explicativos da desigualdade salarial. E se as estatísticas mostrarem que pessoas de
determinados grupos sociais, como os negros e as mulheres, recebem menos,
independentemente da sua produtividade? Pessoas negras e mulheres são consideradas
inseguras. Como explicamos o facto de estarem predominantemente colocadas em
empregos de baixos salários? Como explicamos a elevada taxa de desemprego entre os
negros?
Ao longo dos anos, muitos estudos descobriram que mostramos que a raça é um indicador
decisivo da desigualdade econômica, e que os direitos sociais, as medidas universais de
combate à pobreza e as políticas de distribuição de renda que não levam em conta a raça ou
a cor não são totalmente eficazes. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial e dos seus
efeitos devastadores, alguns investigadores têm procurado concentrar-se nos fatores raciais
no campo econômico.
É o domínio, e não a exclusividade, do trabalho assalariado que é o indicador do
desenvolvimento das relações capitalistas numa determinada formação social. Isto significa
que as pré-condições estruturais do capitalismo são cumpridas quando o domínio do
trabalho assalariado é estabelecido. Nesta etapa, é preciso lembrar que a subjetividade
jurídica, condição essencial para a condução da troca, é externalizada no ponto de
circulação comercial e claramente determinada pela produção. Contudo, dependendo das
formações sociais, das circunstâncias e das ligações econômicas a nível nacional e
internacional, a produção capitalista e a sua exploração inerente podem recorrer ao trabalho
forçado e a estratégias violentas para controlar a produção.
O RACISMO E SUA ESPECIFICIDADE
Segundo Rafael Bivar Marquese, a “relações entre trabalho assalariado e trabalho escravo
sejam vistas não como externas umas às outras, mas como estrutural e dialeticamente
integradas”. E que “a escravidão deve ser apreendida por meio de sua relação, via mercado
mundial, com as outras formas de trabalho que o constituem, sejam assalariadas ou não”.
A compreensão material do racismo torna imperativo um olhar atento sobre as
circunstâncias específicas da formação social de cada Estado. Por isso é temerário dizer que
todos os nacionalismos sejam iguais e que o racismo se manifeste da mesma forma em
todos os lugares.
Todavia, o nacionalismo e o racismo tem duas características em comum, são elas: a
articulação com as estratégias de poder e dominação verificadas no interior dos Estados e o
vínculo de relativa autonomia com a reprodução capitalista.
No Brasil, nos Estados Unidos e na África do Sul, em decorrência das particularidades do
desenvolvimento capitalista e das especificidades da colonização em cada um destes países,
o racismo não toma como critério principal o fato de ser nacional ou imigrante, mas, sim, o
pertencimento a um grupo étnico ou minoria (ainda que demograficamente a maioria),
mesmo sendo os membros destes grupos institucionalmente reconhecidos como nacionais.
Logo, ao contrário de países como os Estados Unidos, nunca se instalara no Brasil uma
dinâmica de conflitos baseados na raça.
No Estado brasileiro o racismo é elemento constituinte da política e da economia sem o
qual não é possível compreender as suas estruturas. Nessa vereda, a ideologia da
democracia racial produz um discurso racista e legitimador da violência e da desigualdade
racial diante das especificidades do capitalismo brasileiro.
A institucionalização das diferenças raciais e de gênero garante que o trabalho seja
realmente submetido ao capital, uma vez que o racismo retirará do trabalhador qualquer
relevância enquanto indivíduo. No mundo racista, o negro não tem condição de reivindicar
um tratamento igualitário ou de exigir que suas diferenças sejam respeitadas; o tratamento
dispensado ao trabalhador e até mesmo as suas diferenças são dele ou do que venha a achar
de si mesmo.
O racismo enquanto dominação convive pacificamente com a subjetividade jurídica, as
normas estatais, a impessoalidade da técnica jurídica e a afirmação universal dos direitos do
homem, elementos diretamente ligados ao processo de abstração do trabalho.
SOBRE A HERANÇA DA ESCRAVIDÃO
Sobre a relação entre escravidão e racismo, há basicamente duas explicações. A primeira
parte da afirmação de que o racismo decorre das marcas deixadas pela escravidão e pelo
colonialismo. Conforme este raciocínio, as sociedades contemporâneas, mesmo após o fim
oficial dos regimes escravistas, permaneceriam presas a padrões mentais e institucionais
escravocratas, ou seja, racistas, autoritários e violentos. Dessa forma, o racismo seria uma
espécie de resquício da escravidão, uma contaminação essencial que, especialmente nos
países periféricos, impediria a modernização das economias e o aparecimento de regimes
democráticos. No caso dos países centrais, as marcas da escravidão poderiam ser vistas na
discriminação econômica e política a que são submetidas as minorias raciais, como é o caso
da população negra e latina nos Estados Unidos e dos imigrantes não brancos na Europa.
Outra corrente, apesar de não negar os impactos terríveis da escravidão na formação
econômica e social brasileira, dirá que as formas contemporâneas do racismo são produtos
do capitalismo avançado e da racionalidade moderna, e não resquícios de um passado não
superado. O racismo não é um resto da escravidão, até mesmo porque não há oposição
entre modernidade/capitalismo e escravidão. A escravidão e o racismo são elementos
constitutivos tanto da modernidade, quanto do capitalismo, de tal modo que não há como
desassociar um do outro.
O crescimento econômico pode ser considerado o aumento da produção e do lucro, o que
não necessariamente implica aumento de salário. Nesse contexto, o racismo pode ser uma
excelente tecnologia de controle social, porque “naturaliza” o pagamento de salários mais
baixos para trabalhadores e trabalhadoras pertencentes a grupos minoritários. Outro efeito
importante do racismo para o “crescimento” é servir de instrumento de dissuasão dos
trabalhadores brancos, que pensarão duas vezes antes de reivindicar aumento salarial em
uma situação em que poderiam ser substituídos a qualquer tempo por negros ou imigrantes,
geralmente mais baratos e, por serem mais suscetíveis ao desemprego, mais facilmente
disponíveis no mercado como “exército reserva de mão de obra”.
CLASSE OU RAÇA?
A história do racismo moderno se entrelaça com a história das crises estruturais do
capitalismo. A primeira grande crise, de 1873, resultou na alteração brutal das relações
capitalistas. Além de modificar toda a produção industrial do mundo, redefinir o equilíbrio
político e militar e alterar todo o sistema financeiro e monetário internacional, esta crise foi
o ponto de partida para o imperialismo e, mais tarde, para a Primeira Guerra Mundial.
Logo, o imperialismo marcou o início da dominação colonial e da transferência das
disputas capitalistas do plano interno para o plano internacional. Isso porque a crise de
superacumulação de capital obrigou o capitalismo a expandir-se além das fronteiras
nacionais. Essa é a explicação econômica do imperialismo, mas que também teve como
base um argumento ideológico preponderante: o racismo
Os povos da África, por exemplo, precisavam ser “salvos” pelo conquistador europeu de
seu atraso natural. Essa ideologia racista, somada ao discurso pseudocientífico do
darwinismo social que afirmava a superioridade natural do homem branco, foram o
elemento legitimador da pilhagem, dos assassinatos e da destruição promovidos pelos
europeus no continente africano. A “superioridade civilizacional”, produziu vítimas em
número maior que os holocaustos europeus do século XX.
Contudo, a bolsa de valores, o empreendimento colonial e o desenvolvimento do capital
financeiro são, ao fim e ao cabo, os fundamentos econômicos que permitiram a constituição
do racismo e do nacionalismo como a manifestação da ideologia do capitalismo após a
grande crise do século XIX.
A CRISE DE 1929, O WELFARE STATE E A NOVA FORMA DO RACISMO
Após a grande depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, o arranjo social
estabilizador resultou no regime fordista de acumulação e no Welfare State. Entretanto,
mesmo o Estado Social keynesiano, ou Welfare State, foi incapaz de lidar com os
problemas sociais que estruturam o capitalismo. A desigualdade é um dado permanente do
capitalismo, que pode ser, a depender de circunstâncias históricas e arranjos políticos
específicos, no máximo, maior ou menor.
Mesmo na “Era de ouro do capitalismo”, o acesso aos direitos sociais pelos trabalhadores
não foi simétrico e variava de acordo com a capacidade produtiva do país, o setor da
economia e o grupo social a que pertencia o trabalhador. Havia setores fordistas que se
serviam de bases não fordistas de contratação, o que significa que alguns trabalhadores
eram submetidos à superexploração ou mesmo ao trabalho compulsório, ainda que sob a
égide de um Estado social e democrático.
As limitações do Welfare State estão entre os setores “monopolista” e “competitivo” da
indústria. O setor monopolista caracteriza-se por alta demanda, em que os conflitos
encontravam lugar para converterem-se em “direitos”. Já o setor competitivo é de alto
risco, baixos salários e subcontratação, e é nele que mulheres, negros e imigrantes estão
alocados, longe da proteção de sindicatos fortes e da incidência de direitos sociais. É dessa
forma que racismo e sexismo colocam determinadas pessoas em seu devido lugar, ou seja,
nos setores menos protegidos e mais precarizados da economia.
Em uma sociedade que pregava a universalidade de direitos, mas na qual negros, mulheres
e imigrantes eram tratados como caso de polícia, gerou movimentos de contestação social
que colocaram em xeque a coerência ideológica e a estabilidade política do arranjo
socioeconômico do pós-guerra.
NEOLIBERALISMO E RACISMO
A crise do Estado de Bem-Estar Social e do modelo fordista de produção dá ao racismo
uma nova forma. O fim do consumo de massa como padrão produtivo predominante, o
enfraquecimento dos sindicatos, a produção baseada em alta tecnologia e a supressão dos
direitos sociais em nome da austeridade fiscal tornaram populações inteiras submetidas às
mais precárias condições ou simplesmente abandonadas à própria sorte, anunciando o que
muitos consideram o esgotamento do modelo expansivo do capital.
O esfacelamento da sociabilidade regida pelo trabalho abstrato e pela “valorização do
valor” resulta em terríveis tragédias sociais, haja visto que o movimento da economia e da
política não é mais de integração ao mercado, há que se lembrar que na lógica liberal o
“mercado” é a sociedade civil. Como não serão integrados ao mercado, seja como
consumidores ou como trabalhadores, jovens negros, pobres, moradores de periferia e
minorias sexuais serão vitimados por fome, epidemias ou pela eliminação física promovida
direta ou indiretamente pelo Estado.
Portanto, a superação do racismo passa pela reflexão sobre formas de sociabilidade que não
se alimentem de uma lógica de conflitos, contradições e antagonismos sociais que no
máximo podem ser mantidos sob controle, mas nunca resolvidos. Todavia, a busca por uma
nova economia e por formas alternativas de organização é tarefa impossível sem que o
racismo e outras formas de discriminação sejam compreendidas como parte essencial dos
processos de exploração e de opressão de uma sociedade que se quer transformar.