CONSI DERAÇÕES PRELIMINARES
Antes de discorrer sobre os gêneros literários que se desen
volveram na antiga Roma, faremos algumas observações so
bre os principais momentos que marcaram a história romana.
A compreensão das manifestações culturais de um povo
pressupõe o conhecimento das circunstâncias em que elas se
produziram. Tudo aquilo que as civilizações humanas criaram
é resultado da combinação de fatores de diversas ordens (polí
ticos, sociais, econômicos, éticos, religiosos, ideológicos, edu
cacionais, etc.), que compõem, em conjunto, o amplo con
texto que explica e justifica o produto. O estudo de uma lite
ratura, portanto, deve ser precedido de uma coleta de infor
mações sobre a época em que ela nasceu e floresceu.
Costuma-se considerar como marco inicial da literatura
latina a tradução da Odisseia, feita por Lívio Andronico nas
proximidades de 240 a.C.
Esse fato exige, evidentemente, uma explicação. Roma se
tornara uma comunidade humana organizada cerca de cinco
séculos antes. A tradição estabeleceu o ano de 753 a.C. como
X|A LITERATURA LATINA
o da fundação da cidade e preservou a memória de alguns fa
tos relacionados com essa fundação. Embora a data seja con
trovertida e na conhecida história de Rômulo e Remo, os su
postos fundadores da cidade, o aspecto lendário e mítico se
sobreponha ao histórico, sabe-se com certeza, graças à contri
buição da arqueologia, que Roma foi habitada, em meados do
século VIII a.C., por camponeses provenientes de Alba Lon
ga, a pátria dos ancestrais de Rômulo, conforme a lenda.
Mais tarde, sabinos e etruscos se associaram aos albanos.
Sobre os primeiros séculos da existência de Roma não se
têm muitas informações. Os documentos históricos, muito
posteriores, dão-nos uma visão até certo ponto confusa de um
período marcado por guerrilhas e guerras, vitórias e reveses,
que se estende de meados do século VIII a.C. ao início do
século III a.C.
Durante esse longo lapso temporal, Roma era apenas um
dos muitos pequenos núcleos urbanos que formavam a Liga
Latina, sabendo-se que, provavelmente no final do século VI
a.C., a primitiva organização política da cidade foi modifica
da, substituindo-se por uma república consular o governo en
tão exercido por reis. Até o início do século IV a.C. Roma en
frentou e desafiou sabinos, équos, volscos e veienses, ora ven
cendo, ora sendo vencida, ora fazendo alianças militares e po
líticas. A violenta invasão dos gauleses, ocorrida por volta de
390 a.C., teve como consequência imediata a reconstrução da
cidade, que fora incendiada e pilhada. Dando-se conta de sua
fragilidade e insegurança, os romanos procuraram fortalecer-
-se, preparando-se para futuras investidas. Foi esse o ponto de
partida para a marcha expansionista da cidade. As vitórias so
bre os samnitas (341, 326 e 304 a.C.), antigos aliados que
viviam na Itália meridional, permitiram a ampliação do terri
C O N SID E R A Ç Õ ES PRELIM INARES | XI
tório romano e o aumento de seu poderio. O triunfo sobre
Tarento (272 a.C.), importante centro cultural grego, locali
zado ao sul da Península Itálica, representou o início de uma
era de vitórias e novas conquistas que iriam estender-se pelos
séculos afora, determinando a constituição do imenso império
romano, cujos limites definitivos só se completaram na época
do imperador Trajano, no século II de nossa era.
Até as vitórias sobre os samnitas e a posterior conquista de
Tarento, Roma ainda não se diferenciava grandemente de nu
merosas outras cidades espalhadas pelo mundo mediterrâneo
e não desfrutava de maior importância política, militar ou cul
tural. Os romanos falavam o latim - língua de origem indo-
-europeia, relativamente pobre e rústica - e, embora conhe
cessem a escrita por terem adaptado o alfabeto etrusco, so
mente a utilizavam em inscrições (algumas muito antigas, da
tadas dos séculos VII ou VI a.C.) que têm apenas valor filoló
gico, linguístico e documental. A literatura se achava ainda
em fase embrionária, restringindo-se quase exclusivamente às
manifestações orais.
É a vitória sobre Tarento que propicia ao povo de Roma o
contato direto com a brilhante cultura grega. Começam a sur
gir, então, graças a esse contato, as primeiras obras de literatu
ra latina.
Durante a segunda metade do século III e o século II a.C.
essa literatura se desenvolve e se aperfeiçoa, chegando à ex
pressão mais alta no século I a.C. Roma, nessa época, havia
conquistado toda a Itália meridional (meados do século III
a.C.), tornando-se a grande potência do Mediterrâneo, ocu
para a Sardenha, a Sicília e a Ilíria (terceiro quartel do século
III a.C.), bem como o vale do Pó e a Gália Cisalpina (final do
século III a.C.), vencera a Mauritânia e aliara-se à Síria (início
XII | A LITERATURA LATINA
do século II a.C.), anexara a Macedônia (meados do século II
a.C.) e conseguira derrubar Cartago (146 a.C), tendo-se bati
do duramente com a antiga colônia fenícia durante as três
longas e tumultuadas guerras púnicas (264-241; 218-201 e
149-146 a.C.).
Marcados por novas conquistas, por guerras civis e pro
fundas modificações políticas, sociais e culturais, o final do
século II e o século I a.C. presenciaram, sucessivamente, a
luta de classes, a acirrada disputa pelo poder, a agonia do sis
tema republicano, o estabelecimento do regime imperial e o
grande desenvolvimento das artes, das letras e da vida inte
lectual.
O período dominado pelo gênio polivalente de Júlio Cé
sar (60-44 a.C.) é aquele em que a literatura latina se firma, a
língua literária se estabelece e as primeiras grandes figuras de
prosadores se projetam no cenário das letras. A chamada “Épo
ca de Augusto” (43 a.C.-14 d.C.) é o momento áureo da poe
sia: surgem escritores de talento indiscutível e a arte poética,
incentivada oficialmente, alcança seu brilho maior.
Após a morte do princeps (14 d.C.), o mundo romano co
meça, lentamente, a declinar. No período em que exerceram
o poder os príncipes júlio-claudianos, herdeiros de Augusto
(Tibério, Calígula, Cláudio e Nero - 14 a 68 d.C.), ainda não
se pode falar exatamente em decadência. Esta, contudo, já se
faz anunciar. O panorama cultural de Roma se modifica subs
tancialmente com a introdução de novos valores. O “orienta-
lismo” - e o cristianismo como sua maior forma - se estabele
ce no Império. Entre o final do século I de nossa era e o sécu
lo V caminha-se, pouco a pouco, para o desaparecimento do
“espírito de romanidade”, para os conflitos entre o Estado e a
Igreja, as novas guerras civis, a divisão do Império, as invasões
C O N SID E R A Ç Õ ES PRELIM INARES | XIII
dos povos bárbaros e, finalmente, o inevitável e completo es
facelamento da antiga unidade.
A literatura latina sofre, durante todo esse tempo, como
não poderia deixar de ser, o impacto das transformações. A pe
riodização a que usualmente a submetemos reflete, de alguma
forma, fatos históricos relevantes. Embora saibamos que a ten
tativa de classificar as manifestações literárias por períodos,
épocas ou escolas é arbitrária e convencional - as balizas tem
porais se ressentem, muitas vezes, da precariedade e do artifi
cialismo -, no caso especial da literatura latina as “fases” ou
“épocas” literárias, abaixo especificadas, correspondem a mo
mentos distintos de uma civilização, apresentando, portanto,
cada uma, características bem definidas:
1. Fase prim itiva: considerada como uma época ainda pré-
literária, estende-se do aparecimento das primeiras inscrições
(século VII a.C.) à produção dos primeiros textos propria
mente literários escritos em latim (imediações de 240 a.C.).
2. Fase helenística: corresponde ao momento em que os es
critores de Roma se exercitam na produção de textos poéti
cos, procurando imitar a literatura da Grécia; desenvolve-se a
poesia épica e a dramática, mas a língua literária ainda apre
senta traços arcaicos; estende-se de cerca de 240 a.C. a 81
a.C., data que marca o primeiro pronunciamento de Cícero
como orador.
3. Fase clássica: corresponde ao período de maior esplendor
literário, podendo ser subdividida em três épocas, diferencia
das em suas peculiaridades: a) a época de Cícero (de 81 a 43
a.C.) - dominada, principalmente, pela figura do grande ora
dor, o verdadeiro criador de uma língua clássica, em Roma; b)
a época de Augusto (de 43 a.C. a 14 d.C.) —é o momento em
XIV | A LITERATURA LATINA
que a poesia atinge seu apogeu, colocando-se, contudo, a ser
viço da política; c) a época dos imperadores júlio-claudianos
(de 14 a 68 d.C.) —a literatura ainda floresce, mas já se pres
sente a decadência.
4. Fase pós-clássica: estende-se da morte de Nero (68 d.C.)
à queda do Império Romano do Ocidente (século V) e cor
responde a duas épocas distintas: a) a época neoclássica (de 68
ao final do século II, abrangendo os governos dos imperadores
flavianos e antoninos), quando ainda se encontram figuras li
terárias importantes no campo da prosa científica, da retórica,
da história, da epistolografia e até mesmo da poesia; b) a época
cristã, que, iniciando-se no fim do século II, se estende até o
século V: a velha literatura pagã começa a empalidecer, ceden
do seu lugar à incipiente literatura cristã; a poesia assume no
vas dimensões e surgem os primeiros textos apologéticos que,
aos poucos, vão sendo substituídos pelas obras históricas, mo
rais e teológicas dos doutores da igreja.
No presente estudo trataremos separadamente de cada um
dos gêneros literários que se desenvolveram em Roma. Inicia
mos pela análise dos gêneros poéticos - autênticos gêneros li
terários - e reservamos espaço para a chamada “prosa literária”.
Apresentamos, de cada gênero, aquilo que foi considerado me
lhor. Como a extensão da matéria e as dimensões de nosso tra
balho não permitem o aprofundamento desejável, fornecemos
algumas indicações bibliográficas, no final do livro, sugerindo
ao leitor a consulta a textos complementares.