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Texto 06 - Uma História Presente

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Helna Elayne
Direitos autorais
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Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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.

René Rémond
ORGANIZADOR

POR UMA HISTÓRIA POLÍTICA

2º edicão
,

Dora Rocha
TRADUÇÃO

'..r'"
FGV
EDITORA
ISBN - 85-225-0445-8

Copyright by © Édition du Seuil, 1988

Direitos desta edição reservados à


EDITORA FGV
Praia de Botafogo, 190- 14 9 andar
22250-900 - Rio de Janeiro, R] - Brasil
Tels.: 0800-21-7777- 0-XX-21-2559-5543
Fax: 0-XX-21-2559-5532
e-mail: editora@ fgv. br
web site: www.editora.fgv.br
Autores

Impresso no Brasil I Printed in Brazif

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, RenéRémond


no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei nº 5.988)

1ª edição - 1996
2ª edição - 2003
Jean-Pierre Azéma
Editoração eletrônica: BAW
Jean-Jacques Becker

Serge Berstein
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca
Mario Henrique Simonsen/FGV Aline Coutrot

Por uma história política I [Direção de] Renê Rémond; Jean-Noel Jeanneney
tradução Dora Rocha. - 2. ed. - Rio de Janeiro : Editora
FGV, 2003. Philippe Levillain
472 p.
Pierre Milza
Tradução de: Pour une histoire politique.
Inclui bibliografia e índice.
Antoine Prost
I. Cultura política - França - História - Séc. XX. 2. França
- Vida intelectual - Séc. XX. 3. França- Vida intelectual - Jean-Pierre Rioux
Séc. XX- Historiografia. 4. França - Política e governo -
Séc. XX. 5. França - Política e governo - Séc. XX - Jean-François Sirinelli
Historiografia. I. Rémond, Renê. II. Fundação Getulio Vargas.
Michel Winock
CDD - 944.083
! _________________
Uma História Presente
René Rérnond

A HISTÓRIA, cujo objeto precípuo é observar as mudanças que


afetam a sociedade, e que tem por missão propor explicações
para elas, não escapa ela própria à mudança. Existe portanto
uma história da história que carrega o rastro das transforma-
ções da sociedade e reflete as grandes oscilações do movi-
mento das idéias. É por isso que as gerações de historiadores
que se sucedem não se parecem: o historiador é sempre de
um tempo, aquele em que o acaso o fez nascer e -ctó qual ele
abraça, às vezes sem o saber, as curiosidades, as inclinações,
os pressupostos, em suma, a "ideologia dominante", e mesmo
quando se opõe, ele ainda se determina por referência aos
postulados de sua época. Existem portanto modas intelectuais
ou descobertas cuja sucessão desenha a história da disciplina
e a configuração de suas orientações: sob o impulso de uma
personalidade excepcional, ou pela irradiação de alguma obra-
mestra, ou ainda devido à convergência de vários fatores
contingentes, uma geração abre uma passagem em alguma
direção que descortina novas perspectivas e enriquece o co-
nhecimento global. Assim se deu com a demografia histórica,
na interseção da história geral com a demografia, cujos pro-
gressos e aquisições recentes conhecemos. Ou, um pouco mais
atrás, com toda uma geração que chegou à idade adulta no
pós-guerra, e que identificou a história com aquele de seus
ramos que tinha como especificidade observar os fatos eco-
nômicos e suas conseqüências sociais. I;:sses avanços se ope-
ram muitas vezes em detrimento de um outro ramo, como se
todo avanço devesse ser pago com algum abandono, duradou-
ro ou passageiro, e o espírito só pudesse progredir rejeitando
14 POR UMA HISTÓRIA POLíTICA UMA HISTÓRIA PRESENTE 15

a herança da geração anterior. Era pois provavelmente ine- Durante séculos, a chamada história política - a do Es-
vitável que o desenvolvimento da história econômica ou social tado, do poder e das disputas por sua conquista ou conser-
se fizesse às custas do declínio da história dos fatos políticos, vação, das instituições em que ele se concentrava, das revo-
daí em diante lançada num descrédito aparentemente defini- luções que o transformavam - desfrutou junto aos historia-
tivo. Ora, o movimento que leva a história, o mesmo que dores de um prestígio inigualado devido a uma convergência
acarretou o declínio da história do político, hoje traz de volta de fatores. Talvez eles a achassem mais fácil de reconstituir
essa história ao primeiro plano. Ao lado da história das por basear-se em fontes que tinham a dupla vantagem de ser
relações internacionais, profundamente renovada, da história regularmente constituídas - já que estabelecidas por uma
religiosa, também reformada e em pleno desenvolvimento, da administração cuja função era operar por meio de textos que
história cultural, a última a chegar e que desfruta de um en- deixavam um vestígio escrito - e estar classificadas e con-
tusiasmo comparável àquele de que se beneficiaram tempos servadas, e portanto acessíveis em um momento posterior.
atrás a história econômica e a história social, eis que a história Mas também se refletia nesse tipo de história o brilho que
política experimenta uma espantosa volta da fortuna, cuja emanava do Estado, realidade suprema e transcendente que
importância os historiadores nem sempre têm percebido. é uma expressão do sagrado em nossas sociedades seculari-
É a razão de ser deste livro registrar este fenônemo e tratá- zadas - o que mostra o quanto é verdade que o historiador
lo como objeto de história, escrutar-lhe as causas, medir-lhe de uma época distribui sua atenção entre os diversos objetos
o alcance, apreciar-lhe a significação. Isto será feito aplicando- que solicitam seu interesse na proporção do prestígio com que
se-lhe as interrogações e observando-se as regras próprias da a opinião pública envolve os componentes da realidade. No
história. Para começar, situaremos o fato numa perspectiva Antigo Regime, a história era naturalmente ordenada tendo
temporal, por meio de um resumo dos estados sucessivos da em vista a glória do soberano e a exaltação da monarquia.
história política e de uma síntese da evolução de suas relações As revoluções que derrubaram os regimes monárquicos não
com o conjunto da disciplina que caracterizará três momentos destronaram a história política de sua posição preeminente,
sucessivos. apenas mudaram seu objeto. Em vez de fixar-se na pessoa do
monarca, a história política voltou-se para o Estado e a nação,
Como sempre acontece em história, a explicação dessas
consagrando daí em diante suas obras à formação dos Estados
oscilações está na relação entre a realidade observada e o
nacionais, às lutas por sua unidade ou emancipação, às re-
olhar que a observa: cabe, pois, considerar alternadamente as
voluções políticas, ao advento da democracia, às lutas par-
mudanças que afetaram o político e as modificações ocorridas
no espírito dos historiadores que preferiram fazer dos fenô- tidárias, aos confrontos entre as ideologias políticas.
menos políticos o objeto principal de seu estudo. E isso tanto Foi contra esse estado de coisas, contra a hegemonia do
para ontem como para hoje, para os períodos prósperos da político, herança de um longo passado, que, em nome de uma
história política como para seus tempos de desgraça e retra- história total, uma geração se insurgiu,, e fez-se uma revolu-
imento. ção na distribuição do interesse. A renovação que há meio
século marcou tão profundamente na França a disciplina
histórica teve como alvo principal e primeira vítima a história
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POR UMA HISTÓRIA POLITICA UMA HISTÓRIA PRESENTE 17

política. Tudo a destinava a esse papel de inimigo sobre o no mau sentido - , que fica na superfície das coisas e esquece
qual concentrar o fogo das críticas de que toda nova escola de vincular os acontecimentos às suas causas profundas. Quanto
necessita. Suas características, que pareciam constitutivas do tempo perdido em estabelecer fatos menores, em precisar o
estudo do político, faziam dela uma espécie de suma de todos encadeamento das circunstâncias! Até afundar na anedota,
os defeitos que uma nova concepção denunciava na história superestimando o papel do acaso em detrimento da necessidade
tradicional, que a jovem geração aspirava a substituir por uma encarnada nos movimentos de longa duração. Ao privilegiar o
visão mais conforme à realidade profunda: pois havia, particular, o nacional, a história política privava-se, ao mesmo
subjacente ao requisitório contra a história política, uma tempo, da possibilidade de comparações no espaço e no tempo,
controvérsia fundamental sobre a natureza das verdadeiras e interditava-se as generalizações e sínteses que, apenas elas,
realidades sociais. dão ao trabalho do historiador sua dimensão científica.
Desejosa de ir ao fundo das coisas, de captar o âmago da Enquanto a vocação do historiador é interrogar-se sobre o
realidade, a nova história considerava as estruturas duráveis sentido dos fatos, enquanto sua especificidade reside, em con-
mais reais e determinantes que os acidentes de conjuntura. seqüência disso, numa atitude interrogativa, e seu papel é
; Seus pressupostos eram que os comportamentos coletivos formar hipóteses explicativas, a história política permanecia
tinham mais importância para o curso da história que as uniformemente narrativa, escrava do relato linear, e no me-
iniciativas individuais, que os fenômenos registrados numa lhor dos casos, só temperava a mediocridade de uma descri-
longa duração eram mais significativos e mais decisivos que ção submetida à cronologia pelo talento eventual do autor,
os movimentos de fraca amplitude, e que as realidades do que então fazia com que sua obra se aparentasse mais com
trabalho, da produção, das trocas, o estado das técnicas, as a literatura que com o conhecimento científico.
mudanças da tecnologia e as relações sociais daí resultantes
Como uma desgraça jamais vem sozinha, e como o acon-
tinham mais conseqüências, e portanto deviam reter maior
tecimento em geral tem a ver com a ação dos indivíduos, o
atenção dos observadores, que os regimes políticos ou as
biográfico era para essa história o complemento e o corolário
mudanças na identidade dos detentores de um poder cujas
do circunstancial. A história política não concentrou sempre
decisões, segundo se entendia, só faziam traduzir o estado da
sua atenção em alguns personagens de prestígio, que se
relação das forças sociais, ou refletir realidades anteriores às
escolhas políticas. ,, agitavam no proscênio e faziam esquecer as multidões labo-
riosas, combatentes, sofredoras? Luís XIV escondendo os 20
Ora, a história política apresentava uma configuração que milhões de camponeses que constituíam o povo da França.
era exatamente contrária a essa história ideal. Estudo das es- A única mudança após o desaparecimento da monarquia foi
truturas? Ela só tinha olhos para os acidentes e as circunstân- que os chefes de Estado eleitos tomaram o lugar dos sobe-
cias mais superficiais: esgotando-se na análise das crises mi- ranos hereditários, mas onde estava a diferença? A história
nisteriais e privilegiando as rupturas de continuidade, era a política continuava a dar uma atenção desmedida aos humo-
própria imagem e o exemplo perfeito da história dita factual, res, aos problemas de saúde dos dirigentes. Caía no psicologis-
ou événementielle - sendo o termo aí evidentemente usado mo e perdia-se em conjecturas sobre as suas verdadeiras inten-

...........................n._________________........
18 POR UMA HISTÓRIA POLfTICA UMA HISTÓRIA PRESENTE 19

ções, como se estas pudessem mudar o curso de uma história medida em que as novas orientações prevalecessem na pes-
que é essencialmente conduzida por movimentos impessoais quisa e no ensino.
e anônimos, cuja amplidão transcende às escolhas individuais.
Ao persistir em atribuir aos protagonistas, tão bem chamados
de figuras de proa, um papel que acreditavam determinante, Esse conflito de concepções não opunha apenas duas
os paladinos da história política tardaram em fazer sua revo- epistemologias: tinha raízes numa dissensão, mais fundamen-
lução: perpetuaram os reflexos adquiridos no Antigo Regime. tal, sobre a própria natureza da realidade, objeto do conheci-
Uma história elitista, aristocrática, condenada pelo ímpeto das mento histórico. Se a nova orientação lançava o anátema sobre
ma~as e o advento da democracia. a história política, não era porque os historiadores do político
tivessem uma visão estreita e incompleta da política, mas
Anedótica, individualista, essa história incorria ainda no
porque a política em si não passava, como disse Barres da
erro de cair no idealismo. Por desconhecer as forças profun-
inteligência, de uma pequena coisa na superfície do real: a
das e as causas ocultas, e ignorar as necessidades e os
verdadeira realidade não estava ali. ~Essa recusa da história
mecanismos, ela imaginava que as vontades pessoais dirigem
política implicava todo um conjunto de postulados sobre a
o curso das coisas, e às vezes levava mesmo a cegueira até
natureza do político e o sentido de suas relações com as outras
ao ponto de acreditar que as idéias conduzem o mundo.
séries de fenômenos sociais~ Inscrevia-se numa filosofia global
Quando as idéias nunca são mais que a expressão dos inte-
que participava do clima da época, e encontrava conivências
resses de grupos que se defrontam, e os atos políticos apenas
e pontos de apoio na "ideologia dominante". As novas orien-
revelam relações de forças definidas, medidas, reguladas pela
pressão dos conjuntos sócioeconômicos. tações da pesquisa histórica estavam em harmonia com o am-
biente intelectual e político. O advento da democracia política
Factual, subjetivista, psicologizante, idealista, a história e social, o impulso do movimento operário, a difusão do
política reunia assim todos os defeitos do gênero de história socialismo dirigiam o olhar para as massas'.· A compaixão pelos
do qual uma geração almejava encerrar o reinado e precipitar deserdados, a solidariedade com os pequenos, a simpatia pelos
a decadência. Se se imaginar ponto por ponto o contrário "esquecidos da história" inspiravam um vivo desejo de reparar
desse retrato cruel, ter-se-á o essencial do programa que a
a injustiça da história para com eles e restituir-lhes o lugar a
história regenerada se atribuía. Estava portanto escrito que a
que tinham direito: ao contrário da divisa da Ação Francesa,
história política arcaria com os custos da renovação da dis-
não foram os 40 reis que primeiro fizeram a França, mas
ciplina: história obsoleta, subjugada a uma concepção antiqua-
gerações de camponeses e algumas centenas de milhares de
da, que tinha tido o seu tempo. Havia chegado a hora de burgueses: a grandeza do reino fora edificada sobre o sofrimen-
passar da história dos tronos e das dominações para a dos to dos humildes, a solidez dos regimes apoiava-se na obedi-
povos e das sociedades. Quanto aos historiadores que tives- ência dos povos, e o crescimento das eco~omias no esforço de
sem a fraqueza de ainda se interessar pelo político, e praticar multidões trabalhadoras. Quem ganha as guerras? O gênio dos
essa história superada, fariam o papel de retardatários, uma capitães ou a resistência dos combatentes? Era já a lição re-
espécie em via de desaparecimento, condenada à extinção, na pisada por Tolstoi em Guerra e paz. A história política tradi-
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UMA HISTÓRIA PRESENTE
20 POR UMA HISTÓRIA POLÍTICA

estratégias dos grupos de pressão. Eis por que historiadores


cional, isolando arbitrariamente os protagonistas das multidões,
e sociólogos se desviaram da observação do Estado: Alain
travestia a realidade e enganava o leitor.
Touraine chegou a dizer com razão que há 30 anos se lançou
Marx e Freud, cada um à sua maneira e por vias diferentes, uma interdição na historiografia e nas ciências sociais ao
contribuíram igualmente para acabar com o prestígio da his- estudo do Estado.
tória política. Um, fazendo da luta de classes, ela mesma resul-
tante do processo econômico, o motor da história, desclassi-
A convergência desses diversos fatores explica razoavel-
ficou o político. O outro, pondo em plena luz o papel do
mente o descrédito em que a história política foi lançada pela
inconsciente e atribuindo à libido, às pulsões sexuais, grande
evolução das realidades e a revolução dos espíritos. Tudo
parte da responsabilidade pelos comportamentos individuais,
levava a crer que ela não tinha mais futuro. Ora, eis que, há
ocultou a ambição e o apetite de poder próprios do político.
duas ou três décadas, esboçaram-se os sinais anunciadores, e
Nas sociedades contemporâneas, a política organiza-se
depois multiplicaram-se as manifestações de um retorno com
em torno do Estado e estrutura-se em função dele: o poder
força total. Os trabalhos de história política pululam, nume-
do Estado representa o grau supremo da organização po- rosas teses lhe são consagradas. O ensino, após ter obedecido
lítica; é também o principal objeto das competições. Ora, a
à convicção de que se devia descartar a política em benefício
noção de Estado está há meio século exposta ao fogo de uma da economia e das relações sociais, tende hoje a reintroduzir
crítica que não se contentou, como a crítica liberal, em
a dimensão política dos fatos coletivos. Até mesmo os pro-
denunciar a ameaça que ele podia fazer pesar sobre as li- gramas dos concursos de recrutamento dos futuros professores
berdades essenciais, mas que lutou contra a sua própria - que registram com atraso as flutuações na bolsa das co-
realidade, contestando que ela existisse por si mesma. RÕrÍl-
tações historiográficas, e que contribuem em troca para atestar
pendo com a tradição herdada do direito romano, que erigia
o prestígio desse ou daquele tipo de história - inscrevem
o Estado em árbitro soberano acima dos interesses par- novamente os fatos propriamente políticos em seu cardápio.
ticulares, e contrariando o ensino da teologia, que o tratava
Pois um dos mais recentes não continha uma questão intitulada
como o defensor imparcial do bem comum, os críticos
"A vida política na França, na Alemanha Federal e na Grã-
modernos proclamam que ele não é nem soberano nem
Bretanha de 1945 a 1969"? Era sem dúvida uma das primeiras
imparcial: é sempre açambarcado e não tem nem existência
vezes que um recorte estritamente orientado para o político
própria nem independência efetiva. O Estado jamais passa
era elevado a tal dignidade pedagógica: uma homenagem de
de instrumento da classe dominante; as iniciativas dos po-
peso à volta às boas graças da história política, ao mesmo
deres públicos, as decisões dos governos são apenas a ex-
tempo que um reconhecimento do status científico dos es-
pressão da relação de forças. Ater-se ao estudo do Estado
tudos sobre um período que ainda não caiu num passado
como se ele encontrasse em si mesmo o seu princípio e a
sua razão de ser é portanto deter-se n~ aparência das coisas. encerrado.
Em vez de contemplar o reflexo, remontemos à fonte lumi- É dessa ressurreição da história política que as contribui-
nosa: ou seja, vamos de uma vez à raiz das decisões, às ções reunidas na presente obra irão detalhar os principais as-
22 POR UMA HISTÓRIA POLÍTICA UMA HISTÓRIA PRESENTE 23

pectos, explicitar os postulados, descrever os componentes e A história como realidade, tomada no sentido da seqüência
prolongamentos. Deixarei a elas o cuidado de demonstrar a dos acontecimentos, teve seu papel nessa volta às boas graças
realidade do fato e desenhar a amplitude do movimento. do político: a experiência das guerras, cujo desencadeamento
Limitarei minha ambição a registrar essa inversão de tendên- não pode ser explicado apenas pela referência aos dados da
cia e a propor uma explicação que permita medir seu alcance economia, a pressão cada vez mais perceptível das relações
provável e apreciar sua significação. Esta na verdade está internacionais na vida interna dos Estados lembraram que a
ligada à discriminação das causas do fenômeno. Será ele política tinha uma incidência sobre o destino dos povos e as
simples efeito mecânico da alternância das modas, a que não existências individuais; contribuíram para dar crédito à idéia
escapa a vida intelectual, ou fruto de um aprofundamento da de que o político tinha uma consistência própria e dispunha
reflexão sobre o objeto do conhecimento histórico? Conforme mesmo de uma certa autonomia em relação aos outros com-
se adote uma ou outra dessas interpretações, a significação do ponentes da realidade social. As crises que perturbaram o
fato muda completamente. No primeiro caso, não passa de funcionamento das trocas e desajustaram os mecanismos da
uma desforra passageira das tendências conservadoras da economia liberal, obrigando o Estado a intervir, também
deram à política a oportunidade de penetrar num setor dife-
historiografia: essa reação só poderia durar um tempo e não 1
rente\0 desenvolvimento das políticas públicas sugeriu que
pode~ia prevalecer de forma duradoura sobre as orie~tações
a rel~ão entre economia e política não era de mão única: se
que tem a seu favor corresponder à realidade e às aspirações.
nãó ___há dúvida de que a pressão dos interesses organizados
No caso contrário, não é uma restauração, mas antes uma
às vezes altera a condução dos negócios públicos, a recíproca
etapa nova no desenvolvimento da reflexão que a história faz
não é menos verdadeira: a decisão política pode modificar o
sobre si mesma, e o fenômeno tem então grandes chances de curso da economia para melhor e para pior. Uma escolha
sobreviver à geração que desencadeou o movimento. política que pode nada dever à análise econômica, e obedecer
Assim como, para explicar o declínio e o desaparecimento apenas a considerações ideológicas, como a decisão de na-
progressivos da história política, foi necessário considerar ao cionalizar grandes setores de produção ou de troca, terá sobre
mesmo tempo o movimento próprio da pesquisa histórica e a economia conseqüências incalculáveis.
o ambiente ideológico, também para compreender as razões Outra coisa atuou no mesmo sentido para reintegrar os
da sua volta com plena força é necessário escrutar alternada- fatos políticos ao campo de observação da história: a ampli-
mente os dados gerais que desenham o contexto e as inici- ação do domínio da ação política com o aumento das atri-
ativas que são obra apenas dos historiadores. A história de buições do Estado. As fronteiras que delimitam o campo do
fato não vive fora do tempo em que é escrita, ainda mais político não são eternas: seu traçado conheceu muitas vari-
quando se trata da história política: suas variações são resul- ações ao longo da história. Em nosso século, a evolução se
t~do tanto d~s mudanças que afetam o político como das que fez no sentido da extensão: pode-s~ dizer que também o
dizem respeito ao olhar que o historiador dirige ao político. universo político está em expansão/Sob a pressão das cir~
Realidade e percepção interferem. _-- cunstâncias que criavam situações Insólitas, de guerra total,
de crise de uma gravidade sem precedente, e também para
24 POR UMA HISTÓRIA POLÍTICA UMA HISTÓRIA PRESENTE 25

satisfazer às demandas de uma opinião pública que se voltava apenas a tradução de uma relação de força na extremidade
espontaneamente para os poderes públicos para responsabi- de uma cadeia causal, numa posição de completa dependên-
lizá-los por suas desgraças, ou exigir que as remediassem, sob cia, elas têm uma eficácia própria, e suas conseqüências de-
a influência enfim de teorias que sistematizavam e legitima- sequilibram e tumultuam as relações de forças. O tipo de
vam a intervenção do Estado, a política se apoderou de toda escrutínio tem efeitos poderosos sobre a estruturação da
espécie de problemas que não lhe diziam respeito inicialmente, opinião e os sistemas partidários. Se uma mudança de lei
e com os quais a história política jamais tivera antes, portanto, eleitoral tem o poder de modificar a expressão da opinião
de se preocupa~ À medida que os poderes públicos eram pública, como pretender que o político não tem interesse?
levados a legisfar, regulamentar, subvencionar, controlar a
A opinião pública não ficou indiferente a essa metamorfose
produção, a construção de moradias, a assistência social, a
do político e tirou dela as suas conseqüências. Nenhuma afir-
saúde pública, a difusão da cultura, esses setores passaram,
mação é tão contrária à evolução quanto a de que estaria su-
uns após os outros, para os domínios da história política. Com
postamente havendo uma despolitização: atesta-o o aumento
isso desabou a principal objeção a esse tipo de história: como
regular da participação nas consultas eleitorais. Que me seja
sustentar ainda que o político não se refere às verdadeiras
permitido, já que há um quarto de século tenho comentado na
realidades, quando ele tem por objeto geri-las? A prova disso mídia a maioria dos grandes acontecimentos políticos, e em
está na atração cada vez maior que a política e as relações
particular todas as consultas eleitorais, proclamar minha expe-
com o poder exercem sobre agrupamentos cuja finalidade
riência e atestar que em 25 anos percebi quase fisicamente a
primeira não era, contudo, política: associações de todos os
elevação progressiva do nível de compreensão, assim como das
tipos, organizações socioprofissionais, sindicatos e igrejas, que
exigências do público em matéria de informação política. O
não podem ignorar a política.
desenvolvimento de um jornalismo político próximo da ciência
- Análises de processos de decisão relativos a escolhas im- política, o surgimento de um gênero novo, o livro político, são
portantes demonstraram, contrariando uma afirmação que outras modalidades e outros indícios disso. Os cidadãos se
deve mais à referência a crenças que a uma observação sem sentem mais membros de um corpo político, e consentem mais
a priori, que as escolhas políticas não são o simples decalque que nunca em participar de decisões que afetam a coletividade.
das relações de forças entre categorias socioprofissionais.
Talvez até ocorra que esse interesse pela política às vezes
Estas, em primeiro lugar, são múltiplas e estão longe de se
passe da medida e não esteja livre de algum excesso. Algumas
entender; só o observador externo pode ter a ilusão de sua
pessoas passaram assim alegremente da constatação de que
homogeneidade. Sua diversidade, seus antagonismos propor- o político está em toda parte à idéia de que tudo é político.
cionam ao governo, aos políticos, ao aparelho administrativo
A contestação torna então a política responsável por tudo o
uma margem de independência, um espaço de liberdade e
que deixa a desejar numa sociedade, e ? utopia leva a crer
uma capacidade de arbitragem que eles usam geralmente em
que é também a política que detém a solução de todos os
função da idéia que fazem do interesse superior da coletivi-
problemas, inclusive os das vidas pessoais: bastaria modificar
dade nacional. Na França, a sucessão de experiências com-
o regime para que todas as dificuldade se resolvessem; mude-
provou que as instituições não eram neutras. Longe de ser
26 POR UMA HISTÓRIA POLITICA UMA HISTÓRIA PRESENTE 27

mos a maioria e a vida mudará. O movimento de 1968, através Aposto que o primeiro desses nomes surpreenderá, e não
de um uso extenso e um tanto abusivo do conceito de poder, é sem uma ponta de provocação que o adianto, pois ele
não contribuiu pouco para reconduzir o político ao primeiro continua associado, na memória coletiva da corporação dos
plano da reflexão. historiadores, à história acadêmica mais clássica, chegando
mesmo a simbolizar a forma de história que os inovadores
Para a compreensão das inversões de tendência em episte- não queriam: Charles Seignobos. Reputação em parte injusta,
mologia, os fatores exógenos não são suficientes: são precisas como muitas lendas. Ele foi um dos primeiros a se dar conta
também conivências internas. A virada da sorte da história de dois fatos importantes cuja constatação foi determinante
política não se teria efetuado se não tivesse havido também nas origens da sociologia eleitoral: a diversidade dos "tempe-
renovação. É a conjunção dos dois movimentos que explica ramentos" políticos regionais e a antiguidade de seu enraiza-
o fato de a história política ser hoje na França um dos ramos mento. Seignobos acentuou a constância, na superfície do
mais ativos e fecundos da historiografia. Na verdade, ela não território, da divisão direita-esquerda através das vicissitudes
é mais a mesma história política, e sua transformação é um políticas, mudanças de regime, flutuações aparentes da o~inião
bom exemplo da maneira como uma disciplina se renova sob pública. Por outro lado, seu livro, hoje caído no esquecimen-
a pressão externa e em função de uma reflexão crítica. to, sobre a história política da Europa, que misturava um
considerável volume de informações, era novo para a época
No caso, a renovação foi provocada, suscitada, pela
pelas possibilidades que oferecia de análises comparativas.
rediscussão dos conceitos clássicos e das práticas tradicio-
nais. E neste ponto, a contestação de que foi objeto a história Em compensação, ninguém se espantará ao me ver citar
política lhe foi muito salutar: o desafio fustigou a imaginação em seguida o nome de André Siegfried, que todos concordam
e estimulou a iniciativa. em considerar o pai da geografia eleitoral. Seu magistral
Tableau politique de la France de l'Ouest, publicado em 1913
Além do mais, a história política não tinha que se renegar:
e reeditado mais recentemente, é uma obra-prima sempre
encontrava em seu próprio passado alguns exemplos daquilo
admirada, mesmo que o desenvolvimento posterior das pes-
que devia se tornar. A geração que redescobriu a importância
quisas sobre os comportamentos eleitorais tenha levado a uma
da história política teve precursores, tanto é verdade que quase
percepção mais viva da complexidade das manifestações da
nunca existe um começo absoluto e que na ordem do conhe-
opinião e da insuficiência das explicações reducionistas. De
cimento as descobertas freqüentemente são redescobertas. Os
André Siegfried a François Goguel e Alain Lancelot há uma
contemporâneos nem sempre perceberam que esses pioneiros
linha contínua que indica um veio no qual o mundo inteiro
abriam os caminhos do futuro, mas, relendo hoje suas obras
vê uma especialidade da escola francesa de história política.
à luz dos avanços recentes, medimos a extensão de nossa
dívida para com eles. E tanto a justiça como a gratidão Sou tentado a aproximar de André Siegfried um outro nome
impõem que seus nomes sejam inscritos no frontispício deste não ligado à Universidade: Albert Thibaudet, crítico literário
livro, dedicado integralmente à ilustração de uma história da de profissão, mas também grande conhecedor da história e da
qual eles foram os anunciadores. geografia, e que degustava a política como se degustam os
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vinhos . .Aiguns dos livros que escreveu sobre o político, onde Esta reunião de nomes, por mais limitada que seja, tem
se unem cultura e sensibilidade, tiveram influência segura outro interesse: manifesta um traço característico que foi um
sobre a formação de vários historiadore~: Les princes lorrains, fator decisivo da renovação da história política- a diversida-
La Répuhlique des professeurs, Les idées politiques en France. de das procedências, a variedade das formações, numa palavra,
O nome seguinte nos traz de volta à história acadêmica: a pluridisciplinaridade. Dois historiadores da academia, dois
Georges Weill, hoje bastante esquecido. A nomenclatura dos professores de direito público e dois "amadores", um formado
assuntos que constituem sua bibliografia esboça antecipada- na escola da geografia e outro vindo da crítica de livros.
mente a configuração das principais direções que a ciência De fato, a renovação da história política foi grandemente
política tomaria mais tarde: não há praticamente temas pelo estimulada pelo contato com outras ciências sociais e pelas
quais ele não se interessou um terço de século antes de eles trocas com outras disciplinas. É uma verdade geral a utili-
se tornarem os títulos de capítulos da nova história política: dade, para todo ramo do saber, de abrir-se a outros e acolher
Partido Republicano, catolicismo liberal, movimento social, contribuições externas, mas o objeto da história política, sendo
pensamento leigo, ensino. A mesma observação vale para o por sua natureza interdisciplinar, torna isso uma necessidade
nome de Marcel Prélot, que chegou à história política vindo mais imperativa que em outros casos. É impossível para ã
do direito constitucional. Ele também deu atenção às idéias história política praticar o isolamento: ciência-encruzilhada,
políticas, sugeriu que se estudasse os partidos conjugando o a pluridisciplinaridade é para ela como o ar de que ela precisa __
estudo das instituições e o das forças políticas, escreveu sobre para respirar.
o liberalismo católico e a democracia cristã. Assim como a história religiosa se beneficiou muito das
Esta genealogia não pretende fazer justiça a um por um. contribuições da sociologia religiosa, a história política deve
Mas ficaria demasiado incompleta se nela não figurasse o bastante às trocas com outras disciplinas: sociologia, direito
nome de outro professor vindo também do direito público: público, psicologia social, e mesmo psicanálise, lingüística,
Jean-Jacques Chevallier, que contribuiu, antes de Jean matemática, informática, cartografia e outras de que esqueço.
Touchard, para o renascimento da história das idéias políticas Os empréstimos foram de importância muito desigual e na-
e soube fundir harmoniosamente o estudo das instituições, tureza bem diferente segundo as disciplinas. A umas, a his-
correntes de pensamento e personalidades. tória política pediu emprestadas técnicas de pesquisa ou de
Outros, cuja obra também abriu caminho para o renasci- tratamento, a outras, conceitos, um vocabulário, uma proble-
mento da história política e lançou um traço de união entre mática; às vezes pediu uma e outra coisa às mesmas disci-
a história de ontem e a de amanhã, teriam direito de constar plinas, já que os métodos e as técnicas estão geralmente
desta lista, mas o objetivo aqui foi apenas tornar visível uma ligados ao tipo de interrogação formulada e a uma forma de
certa continuidade: como está, este rol basta para fazer apa- abordagem intelectual. Assim, às matemáticas a história
recer a injustiça de uma certa crítica, mostrando a que ponto política deve procedimentos estatísticos que lhe permitiram
o retrato-robô que se fez da história política era simplificador. avançar na demonstração das correlações: análises multivaria-
das, análise fatorial, iluminaram relações de concomitância
30 POR UMA HISTÓRIA POlÍTICA UMA HISTÓRIA PRESENTE 31

entre diversas séries de fenômenos. O raciocínio matemático Devido a essa colaboração entre praticantes de disciplinas
teve seu papel na elaboração dos modelos. A lingüística diversas, a renovação da história política encontrou logica-
orientou a pesquisa para a análise do discurso, redobrou o ' mente um meio mais propício que as estruturas monodiscipli-
interesse tradicional que os historiadores tinham pela leitura nares das antigas faculdades, entre as quais os ramos do saber
dos textos que, supõe-se, exprimem intenções ou, ao contrá- tinham-se dispersado ao sabor da história, em instituições cuja
rio, as traem e visam a dissimular os projetos ou discordâncias; razão de ser era aproximar especialistas de diversas discipli-
também forneceu métodos de tratamento e interpretação. nas intelectuais, como a Fondation Nationale des Sciences
Quanto à psicologia social, trouxe o material precioso das Politiques. Com o recuo do tempo, pode-se ver claramente
pesquisas de opinião e a possibilidade de aproximações fe- que essa instituição, cujo caráter plural é acentuado pelo
cundas com as pesquisas sobre toda espécie de temas que próprio nome, representou um papel determinante na eclosão
permitem inscrever os comportamentos especificamente po- e posterior expansão da nova história do político, da mesma
líticos na perspectiva mais ampla da prática social. forma como a VI Seção da École Pratique des Hautes Études,
A outras ciências do homem em sociedade, a história po- antes de sua constituição em École des Hautes Études en
lítica tomou de empréstimo noções e interrogações. Foi em Sciences Sociales, havia tido, pelos mesmos motivos, uma
contato com o que se chama de ciência política que ela se participação decisiva no desenvolvimento da história econô-
interessou por fenômenos sociais que até então negligenciara, mica e social na França. Os dois exemplos ilustram o papel
como a abstenção, embora esta seja o inverso e o corolário da de instituições pioneiras no seio das quais se encontram e
participação. Mas mesmo as manifestações da participação não confraternizam especialistas de origens diversas, que trocam
tinham retido muito a atenção dos historiadores, exclusivamen- idéias e experiências. A diferença entre as duas instituições
te preocupados com a vida política na cúpula do Estado e num é que a Fondation Nationale des Sciences Politiques, não sendo
círculo estreito. A ciência política, conjugando seus efeitos com diretamente um estabelecimento de ensino, pôde dedicar-se
a sociologia, obrigou o historiador a formular perguntas que sobretudo a atividades de pesquisa, e não estando por isso
renovam as perspectivas: assim, as noções de representação ou objetivamente em situação de competição com as universida-
de consenso, cujo lugar é conheéido na reflexão política con- des, pôde manter relações de amistosa complementaridade com
temporânea, quando aplicadas a experiências antigas, lançam os departamentos de história das universidades e propor um
uma nOYfl luz sobre acontecimentos e fenômenos cujo segredo terreno de encontro, onde a pluridisciplinaridade pôde se
se julgava ter descoberto e cuja significação se acreditava ter desdobrar sem entraves nem empecilhos.
esgotado. Assim também o estudo dos partidos e dos grupos
de pressão, quando se transpõe os seus ensinamentos para O paralelo esboçado entre as duas instituições poderia, sem
períodos remotos, descobre analogias instrutivas com as fac- forçar a aproximação, estender-se dos organismos aos saberes
ções revolucionárias, os clubes ou as formações parlamentares e às práticas pois, por um atalho que só parecerá estranho a
da monarquia constitucional, mas também particularidades quem não está familiarizado com a complexidade muitas vezes
reveladoras da diferença dos tempos e situações que mostram desconcertante dos itinerários intelectuais e dos movimentos
a diversidade das modalidades imaginadas para funções perenes.
32 POR UMA HISTÓRIA POLÍTICA UMA HISTÓRIA PRESENTE 33

do conhecimento, ocorre que a nova história do político sucessão de recenseamentos da população há quase dois
corresponde hoje às principais aspirações que haviam susci- séculos. Mas por que não cotejar as duas documentações? A
tado a revolta justificada contra a história política tradicional. existência dessas duas grandes séries possibilita uma infinida-
Essa nova história aceitou tão bem o desafio que lhe fora de de aproximações das quais se pode esperar extrair algumas
lançado que tem hoje com o que satisfazer os desejos dos correlações entre os comportamentos políticos e todos os tipos
historiadores mais exigentes em matéria de história total. de pertencimentos sociais. Além disso, o quantitativo não se
Um dos atributos de que a história à nova maneira se reduz ao eleitoral: trata de outras modalidades da realidade
orgulha mais legitimamente, um de seus títulos para pretender política. Os partidos, por exemplo, recenseiam seus membros,
à cientificidade, é o de basear-se numa massa documental que alardeiam uns para os outros o número de seus efetivos;
ela trata estatisticamente: foi essa história quantitativa, explo- precisam alinhar grandes números, já que este é um argumento
rando imponentes séries de dados numéricos, que fundamen- de peso na avaliação da relação de forças. No que tange ao
tou a suposta superioridade da história dos fatos econômicos· quantitativo, a história política chega pois em primeiro lugar.
tinha-se prazer em opor seu rigor objetivo ao caráter subjetiv~ Durante muito tempo censurou-se a história política por só
e impressionista da história política. Ora, observa-se hoje que, se interessar pelas minorias privilegiadas e esquecer o povo,
no que diz respeito a números e grandezas aritméticas, a as multidões, as massas, o grande número. Talvez fosse uma
história política não está menos bem provida: também ela censura justificada na época em que os historiadores políticos
dispõe de uma grande abundância de dados numéricos. Desde se acantonavam na biografia dos notáveis - mas será que
que a eleição está no princípio da transferência do poder, a eles o fizeram algum dia? Não se aplica mais, certamente,
contagem dos sufrágios é uma operação essencial, um ato contra uma história que pretende integrar todos os atores -
decisivo da vida política. A democracia representativa inscre- mesmo os mais modestos - do jogo político, e que se atribui
veu a aritmética no centro do sistema político: o resultado das como objeto a sociedade global. Será que os que continuam
disputas eleitorais, a conclusão dos debates parlamentares a denunciar o carâter pretensamente individualista, elitista e
dependem da exatidão das somas, da precisão das subtrações. superficial da análise política refletiram bem sobre a natureza
Como a França foi o primeiro grande país europeu a adotar do ato eleitoral, para retomar o exemplo das consultas popu-
o sufrágio universal, que foi progressivamente estendido à lares? Avaliaram bem o seu alcance? Não existe em nossa
maioria dos procedimentos de designação, e desde então 0 sociedade ato social tão perto de ser unânime. Claro, há outros
tem praticado sem outra interrupção além das impostas pelas de caráter universal: o serviço militar para os homens, desde
duas guerras mundiais, os historiadores da vida política dis- a instituição do alistamento obrigatório, a declaração de renda
põem de uma série contínua de consultas populares que e o pagamento de impostos para o contribuinte, mas a ori-
compreende todos os tipos de eleições políticas, sem esquecer ginalidade da prática eleitoral é que ela continua inteiramente
as eleições sociais ou profissionais, com as quais as compa- livre - a abstenção não traz nenhuma sanção, a não ser o
rações podem ser muito ricas de ensinamentos. Alguém sentimento de culpa individual. Com isso, o ato eleitoral ganha-
conhece alguma outra fonte que possa sustentar a comparação uma significação que faz dele o mais sincero e significativo
com esse fabuloso banco de dados? Sim, eu sei de uma: a de todos os comportamentos coletivos. Não há história mais
34 POR UMA HISTÓRIA POLÍTICA UMA IIISTÓRIA PRESENTE 35

total que a da participação na vida política: mesmo a história mações políticas fica mais na duração média, em compensa-
do trabalho, outra grande realidade da existência social, in- ção a das. ideologias que as inspiram está ligada à longa
teressa a menos gente- a população ativa é mais restrita que duração. Não vivemos nós ainda, com algumas exceções, num
o corpo eleitoral, que parece ser a expressão mais aproximada universo ideológico cujos principais componentes surgiram,
da parte consciente do corpo social. e cuja configuração, no essencial, se desenhou antes da
Um terceira característica manteve durante muito tempo Revolução de 1848? O historiador da vida política não pode
a história política afastada, e como que banida de uma história deixar de levar em conta essa herança. Mais ainda: os tra-
que pretendia com razão que sua atenção fosse proporcional balhos de Paul Bois e de Maurice Agulhon demonstraram que
à importância do rastro que os fatos deixavam na duração. a divisão entre direita e esquerda ou as tendências dominantes
Comparada às histórias da população, da instituição familiar, em determinada região só podiam ser compreendidas remon-
do trabalho, dos costumes e crenças, que tinham todas por tando-se pelo menos até os pródromos da Revolução: só a
objeto os fenômenos cuja evolução estava ligada à longa história, e a mais longa, explica os comportamentos das
duração, a história dos fatos políticos aparecia como uma microssociedades que se fundem na sociedade global. Enfim,
história do efémero e do instante. A prova disso era que, a noção de cultura política, que está prestes a ocupar, na
enquanto as outras séries históricas se prestam mal a uma reflexão e explicação dos fenômenos políticos, um lugar
peridiozação, e sua cronologia dificilmente se deixa encerrar proporcional ao vazio que ela acaba de preencher, implica
dentro de datas precisas, a nomenclatura dos acontecimentos continuidade na longuíssima duração. Assim, no que diz
políticos cabe em dias: 18 brumário, 2 de dezembro, 4 de respeito ao tempo, a história política não o cede à história
setembro, 6 de fevereiro, 18 de junho ou 13 de maio. A de qualquer outro aspecto da realidade.
história política faz a felicidade dos calendários. O que acaba de ser dito responde de antemão a uma última
Essa oposição ignora a pluralidade dos ritmos que carac- pergunta, ou última crítica, relativa ao suposto caráter super-
terizam a história política. Esta se desenrola simultaneamente ficial do político, comparado à profundidade que se atribui
em registras desiguais: articula o contínuo e o descontínuo, a outros componentes, como comportamento familiar, estru-
combina o instantâneo e o extremamente lento. Há sem dúvida turas sociais, hahitus. A queixa teria fundamento se nos rren-
todo um conjunto de fatos que se sucedem num ritmo rápido, dêssemos a uma definição estreita do político, que o isolasse
e aos quais correspondem efetivamente datas precisas: golpes das outras dimensões da vida coletiva e dos outros aspectos
de Estado, dias de revolução, mudanças de regime, crises da existência individual. Mas a história política- e esta não
ministeriais, consultas eleitorais, decisões governamentais, é a menor das contribuições que ela extraiu da convivência
adoção de textos legislativos ... Outros se inscrevem numa com outras disciplinas - aprendeu que, se o político tem
duração média, cuja unidade é a década ou mais: longevidade características próprias que tornam inoperante toda análise
dos regimes, período de aplicação dos tipos de escrutínio, reducionista, ele também tem relações com os outros domí-
existência dos partidos políticos. Outros ainda têm por uni- nios: liga-se por mil vínculos, por toda espécie de laços, a
dade de tempo a duração mais longa; se a história das for- todos os outros aspectos da vida colctiva. O político não
constitui um setor separado: é uma modalidade da prática
36 POR UMA HISTÓRIA POLITICA

social. As pesquisas sobre o abstencionismo, os estudos sobre


a sociabilidade, os trabalhos sobre a socialização, as inves-
tigações sobre o fato associativo, as observações sobre as
correspondências entre prática religiosa e comportamento 2
eleitoral contribuem para ressaltar tanto a variedade quanto
a força das interações e interferências entre todos esses fe- As eleições
nôm"nos sociais. Se o político deve explicar-se antes de tudo René Rémond
pelo político, há também no político mais que o político. Em
conseqüência, a história política não poderia se fechar sobre
si mesma, nem se comprazer na contemplação exclusiva de SEMPRE HOUVE historiadores para estudar o fato eleitoral. Por
seu objeto próprio. Nem privilegiar um tipo de relação: não historiadores, entendo antes de tudo aqueles que, por seus
há, por exemplo, razão científica para estabelecer uma ligação estudos universitários, pelos diplomas que obtiveram, pelos
mais estreita do político com o econômico que com o ideoló- títulos ou funções que detêm, pertencem manifestamente à
gico, o cultural, ou qualquer outro termo de relação. O inventá- corporação dos historiadores: em relação a estes, a opinião
rio sumário, construído pela seqüência dos capítulos deste livro, dos outros corresponde ao sentimento que eles próprios têm
das principais direções que a história política vem seguindo da sua identidade. É preciso dar exemplos para ilustrar esta
há algumas décadas mostrará que praticamente não há hoje primeira definição? Quando um Charles Seignobos analisa as
muitas realidades da nossa sociedade que a história política eleições da Terceira República, 1 ou um Georges Dupeux dedi-
não tenha começado a explorar, desde as classes sociais até ca sua pequena tese às eleições de 1936, 2 ninguém duvida que
as crenças religiosas, passando pelos grandes meios de comu- se trata de historiadores. Mas seria dar demasiada importância
nicação ou as relações internacionais. a distinções corporativas, e nos deixar tolher pelas divisões
Abraçando os grandes números, trabalhando na duração, entre disciplinas, se restringíssemos a contribuição dita dos
apoderando-se dos fenômenos mais globais, procurando nas historiadores apenas aos trabalhos dos especialistas compro-
profundezas da memória coletiva, ou do inconsciente, as raízes vados. Incluirei pois também todo estudo que se refira aos
das convicções e as origens dos comportamentos, a história po- antecedentes da prática contemporânea: desde que uma pes-
lítica descreveu uma revolução completa. Como então acredi- quisa se inscreva na duração, ela me parece estar ligada ao
tar que seu renascimento possa ser apenas um veranico de maio? nosso objeto. Assim, o grande livro de François Goguel sobre
os partidos políticos na Terceira República 1 faz parte. de di-
reito, deste inventário, na medida em que trata, numa pers-
pectiva histórica, das consultas eleitorais e de suas incidências
na relação de forças entre os dois grandes blocos que distingue,
o da Ordem e o do Movimento. O objeto deste capítulo é
portanto avaliar a contribuição da dimensão histórica ao estu-
do das eleições e à compreensão dos comportamentos eleitorais.

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