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Em Defesa da Excelência Feminina:
Quando as Mulheres Citam Mulheres – O
Caso de Lucrezia Marinella e de Dona
Gertudes Margarida de Jesus
L���� M������ A������
Universidade da Madeira/ CLEPUL
A controvérsia entre detratores e defensores das mulheres nos finais
do século XV, inícios de XVI, em Itália, tem como algumas das perso-
nalidades mais conhecidas Giuseppe Passi (1569-1620), por um lado, e
Lucrezia Marinella Vacca/Marinelli (1571-1653) que, em Veneza, – a ci-
dade que vira sair à estampa inúmeros textos da tradição das Malícias
das Mulheres, quer em forma de tratado, quer em forma de diálogo –, acu-
sam e defendem o género feminino, num diálogo feito de incompreensões.
Pela vasta produção e cultivo da temática da inferioridade da mulher ou
da sua superioridade, com diversas obras publicadas no ambiente floren-
tino, veneziano e romano, não será o mais indicado considerar a disputa
entre os autores como um mero episódio da Querelle des Dames, mas sim
no panorama de uma tradição compósita, que, como recorda Maria Luisa
Doglio1 , a partir de 1530, de Agrippa a Erasmo, de Baldassare Casti-
glione, com Il libro del Cortigiano (1528), de Sperone Speroni (Dialogo
d’amore e Della dignità delle donne, 1542) e a Alessandro Piccolomini,
se expande por uma miríade de escritos, diálogos e disputationes, sinal
de uma forte mobilidade no discurso sobre a mulher.
1
Maria Luisa Doglio, “Premessa” in Della eccellenza e dignità delle donne, Flavio
Galeazzo Capra, 2.a ed., a cura di Maria Luisa Doglio, Roma, Bulzoni Editore, 2001.
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296 Luísa Marinho Antunes
I Donneschi Defetti, ou Os Defeitos das Mulheres, tratado erudito
e teórico (e, por isso, marcado por uma recepção séria e obtendo entre
os leitores a autoridade que lhe advém do caráter científico com que
se apresenta) publicado por Passi em 1599, era herdeiro da tratadística
que desde a antiguidade refletia sobre um ser que se cria ser dominado
pela natureza, volúvel e débil perante a tentação e as influências do
mal. Para fazer vencer o argumento de que a mulher é não só inferior,
mas repositório de todos os defeitos, à semelhança dos artifícios retóricos
usados na maior parte dos tratados, o autor apoia as suas afirmações em
profusas citações de auctores de indubitável autoridade. Em 34 discursos,
Aristóteles e os quatro padres da Igreja, São Jerónimo, Santo Agostinho,
Santo Ambrósio e São João Crisóstomo, são alguns dos sábios que convoca
de forma mais frequente para justificar as suas teses: a imperfeição física,
moral e intelectual da mulher é a causa de todos os pecados; sendo a
mulher por natureza débil, é naturalmente propensa ao mal.
O tratado de Passi não é dos mais originais, já que repete, no fundo,
os tratados anteriores, mas é um dos mais violentos e radicais ataques à
mulher realizado na época, pela sua seriedade e apoio sólido em autores
consagrados. Além disso, há a considerar o evidente sucesso que teve no
público (em 1618, já ia na quarta edição), o que demonstra a popularidade
das teses defendidas. O papa Leão XI, preocupado com o alcance das
acusações ao ser feminino, adiciona a obra ao Index librorum prohibitorum
do papa Paulo IV, decretando a sua destruição, com a justificação de que
falava mal das mulheres e, por isso, era um livro imoral. Algumas cópias,
no entanto, salvaram-se da fogueira e a sua fama de obra erudita e bem
fundamentada também.
Lucrezia Marinella responde a Passi com o tratado polémico em prosa
La Nobilta et l’eccellenza delle donne, co’difetti et mancamenti degli uo-
mini, logo no ano seguinte, em 1600, que acrescentará em 1601, e de
que será publicada nova edição em 1621. A obra tem ampla recepção em
Portugal, como o prova o texto de Gertrudes Margarida de Jesus, Pri-
meira carta apologetica, em favor e defensa das mulheres, de 1761, no
qual defende a capacidade e inteligência do sexo feminino:
Lucrecia Marinella, Dama Veneziana, foy de hum incomparavel juizo,
de quem ha muitas, e admiraveis obras; e entre ellas hum tratado
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Em Defesa da Excelência Feminina: Quando as Mulheres Citam Mulheres – O
Caso de Lucrezia Marinella e de Dona Gertudes Margarida de Jesus 297
em que discretamente mostra o sexo femenino leva vantagem ao
do homem. Peço a V.C. o queira ver e, se o naõ tem, como me
persuado, eu lho remetterey, que o tenho em meu puder, e se ignora
o idioma Italiano, em que ella o escreveo, procure-me que eu lho
farey entender.2
Marinella não se limita a defender as mulheres, como é o caso de
Moderata Fonte, com Il Merito delle Donne (1600),mas ataca os defeitos
e vícios do homem, desmontando os argumentos de I Donneschi Diffetti,
criticando as fontes usadas pelo autor. Lê-se na capa:
Nella prima parte si manifesta la nobiltà delle Donne co’ forti ra-
gioni & infiniti essempi, & non solo si distrugge l’opinione del Boc-
caccio, d’ambedue i Tassi, dello Sperone, di Monsig. di Namur, &
del Passi, ma d’Aristotile il grande anchora. Nella seconda si con-
ferma co’uere ragioni, & co’varii essempi da innumerabili Historici
antichi, & moderni tratti, Che i diffetti degli huomini trapassano di
gran lunga que’delle Donne.3
O pai de Lucrezia Marinella, Giovanni Marinelli (Marinello), médico
de Modena, era uma personagem famosa na Veneza da época. Contrário
ao secretismo que encontrava na profissão médica, escreveu duas impor-
tantes obras dedicadas às mulheres com o propósito principal de serem
lidas pelas mulheres honestas e boas e pelas parteiras e amas, com im-
portante espaço para questões matrimoniais e de procriação, prestando
atenção aos distúrbios ligados à sexualidade e à impotência, quer fe-
minina, quer masculina (como em Le Medecine partenenti alle infermità
delle donne, 1563).
2
Gertrudes Margarida de Jesus, Primeira Carta Apologetica, em favor,?e defensa
das mulheres, escrita por Dona Gertrudes Margarida de Jesus,? ao Irmaõ Amador do
Dezengano, com a qual destroe toda a fabrica?do seu Espelho Critico, Lisboa, Officina
de Francisco Borges de Sousa, 1761, p. 9.
3
Lucrezia Marinella, La Nobilta et l’eccellenza delle donne, co’difetti et mancamenti
degli uomini, appresso Gio. Battisti Ciotti Sanese, Veneza, 1601. (trad: “Na primeira
parte atesta-se a nobreza das Mulheres com fortes razões e infinitos exemplos, & não só
se destrói a opinião de Boccaccio, dos dois Tassos, de Sperone, do Monsenhor de Namur,
& de Passi, mas de Aristóteles, a grande âncora. Na segunda confirma-se com verdadeiras
razões, & com vários exemplos de inumeráveis Historiadores antigos, & tratados modernos,
Que os defeitos dos homens ultrapassam longamente os das Mulheres”).
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298 Luísa Marinho Antunes
A paridade de diálogo com as suas leitoras, atribuindo à mulher ca-
pacidades e inteligência, caracteriza a sua obra. Não é de espantar, por
isso, que, num ambiente familiar em que o elemento feminino não é con-
siderado inferior, a sua filha tenha obtido uma educação vasta e se tenha
tornado numa das intelectuais mais famosas de Veneza e defensora das
mulheres contra os que as acusavam de usar a malícia do seu sangue
e corpo para obter autoridade sobre os homens, para os encantar e en-
venenar com a sua presença, levando-os à morte. Marinella, antes de
La Nobilta et l’eccellenza delle donne, já tinha publicado diversos livros
de poemas e rimas (La colomba sacra, poema eroico, Veneza, 1595; Vita
del serafico e glorioso S. Francesco, Veneza, 1597; Amore innamorato et
impazzato, poema in 8/a rima, Veneza, 1598), assumindo-se publicamente
como autora e tendo, assim, obtido reputação no campo da criação lite-
rária. Quando responde a Passi, Marinella tinha, por isso, prestígio e
reconhecimento, o que lhe permitia uma posição de alguma autoridade na
resposta ao autor.
O que define a originalidade do texto de Marinella em relação a outros
textos que defendiam a mulher é a postura intelectual e a argumentação
usada, que não se limita a repetir textos anteriores, mas que se apoia
diretamente nas fontes (a que Marinella tinha acesso em casa do pai) e
na reflexão crítica sobre os textos. A autora não só responde a Passi,
que considerava a mulher uma espécie diferente do homem, julgando-a
como incapaz de raciocínio e virtude, mas também analisa a condição da
mulher em termos do seu papel na sociedade, considerando-a um “animal
político” e refutando os motivos pelos quais a mulher era excluída da vida
pública, em aberta polémica com os filósofos, como Aristóteles, e autores,
como o Boccaccio de De Claris Mulieribus (1374).
Lucrezia Marinella domina não só os teóricos antigos, mas também os
autores mais recentes, ainda que a sua argumentação se baseie em grande
parte nos escritores da primeira metade do século XVI, como Henricus
Agrippa, com De nobilitate et praecellentia foeminei sexus (Da Nobreza
e Excelência do Sexo Feminino), no qual se inspira o título da sua obra, ou
Baldassare Castiglione, que oferece a refutação das teorias aristotelianas
sobre a imperfeição da mulher em Il Cortigiano, e Leone Ebreo (Dialoghi
d’Amore, 1535).
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Caso de Lucrezia Marinella e de Dona Gertudes Margarida de Jesus 299
uomini está dividida em duas partes: a primeira, na qual se demonstra
a excelência das mulheres, a segunda que identifica os defeitos e falhas
dos homens. A primeira parte do tratado liga-se à segunda na medida em
que fica demonstrado que se na primeira se conclui que as acusações dos
homens em relação às mulheres são apenas invenções dos homens sem
qualquer critério científico; na segunda fica demonstrado que os homens
acusam as mulheres dos defeitos que eles próprios possuem.
A argumentação de Marinella passa por alguns pontos importantes:
baseando-se em Aristóteles e nas Escrituras, interpreta-as para concluir
que homens e mulheres pertencem à mesma espécie, mas têm naturezas
diferentes (pertencendo à mesma espécie, a mulher é mais temperada e
não tão quente como o homem, o que faz com que tenha uma moral supe-
rior e melhores capacidades intelectuais; Aristóteles erra ao considerar
que a mulher sendo mais fria é inferior; quanto mais alta a temperatura,
maior a incapacidade do ser humano se regular moralmente; a fisiologia
temperada da mulher faz com que a sua alma seja melhor, o que se reflete
na beleza do próprio corpo); tendo as mulheres almas melhores, os seus
desejos são superiores e o seu comportamento mais moderado; a tempe-
ratura da mulher é responsável pela sua beleza moral e intelectual, mas
também física; a beleza física é superior à do homem porque elas parti-
cipam da Beleza em Si, estando mais próximas do Paraíso (se os homens
fossem superiores, a sua beleza seria também superior e as mulheres é
que desejariam os homens e não o contrário).
Marinella usa uma metodologia de estudo dos textos, composta por
crítica, hipótese e conclusão, com evidência de citações, que a distinguem
de muitos escritores defensores das mulheres. Não só questiona e critica
o raciocínio de autores como Aristóteles, como também os usa contra si
próprios, demonstrando através da base da sua teoria exatamente o con-
trário do que os autores afirmaram. Mina, assim, a autoridade das fontes
usadas pelos autores dos livros das malícias, considerando o seu pensa-
mento pouco fiável. Exemplo deste tipo de desconstrução argumentativa
é a forma como nega a ideia de que o homem é superior porque tem mais
força física, considerando que, se assim fosse, uma camponesa, mais forte,
deveria ser mais inteligente do que um homem letrado, mais fraco.
As críticas de Boccaccio são, igualmente, refutadas, já que para a
autora não é verdade que as mulheres tenham sido votadas a uma condição
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de servidão por parte de Deus, que devoram o património dos homens e
que falam na igreja. As mulheres não usurpam os bens do marido, mas
aumentam-nos com os seus dotes de casamento. E se as mulheres, na
missa, falam de assuntos díspares, como do governo e da ciência, como
escreve Boccaccio, é porque têm intelecto e boa memória.
Na Parte 2 do tratado, aponta os defeitos dos homens, respondendo
com 35 capítulos aos mesmos 35 capítulos de Passi sobre as mulheres: são
avaros, gulosos, bêbados e impetuosos, iracundos, bestiais, bizarros, ar-
rogantes e orgulhosos, negligentes e dorminhocos, tiranos e usurpadores,
ambiciosos e vaidosos, cruéis e injustos, fraudulentos, traidores e pérfi-
dos, ingratos e descorteses, inconstantes e volúveis, malignos, ladrões,
vis e cobardes, asneirentos, encantadores, magos e adivinhos, mentirosos,
ciumentos, chorões, hipócritas, ignorantes, aduladores, etc..
Em Itália e França, em determinados períodos de efervescência cultu-
ral, mulheres instruídas opõem resistência à visão da mulher como senhora
de enganos e malícias, mas tratava-se de mulheres da elite, pertencentes
a famílias poderosas e com instrução, caso da veneziana Lucrezia Ma-
rinella, ou próximas do poder e dos salões culturais, como as autoras
francesas que se envolveram na querelle des femmes. Também em Por-
tugal se encontram, principalmente em forma de folhetos, exemplos da
resposta e argumentação feminina, mas são poucos.
As respostas femininas portuguesas aos textos dos livros das malícias
e enganos, à semelhança da de Marinella a Passi, encontram-se, por
exemplo, nos textos de D. Gertrudes Margarida de Jesus, que responde ao
Irmão Amador do Desengano, Espelho Critico, no qual claramente se vem
alguns defeitos das mulheres, de 1715, com a Primeira carta apologetica,
em favor e defensa das mulheres e, logo a seguir, após algumas críticas do
autor, com a Segunda Carta Apologetica, em favor, e defensa das mulheres
ao Irmão Amador do Desengano com o propósito de destruir a “fábrica”
do seu Espelho Crítico4 e de outras autoras que também escreveram em
defesa da mulher.
Também Paula da Graça, assistente na corte, como aparece na capa,
4
Frei Amador do Desengano, Espelho Crítico no qual claramente se vem alguns
defeitos das Mulheres, fabricado na loja da verdade pelo Irmaõ Amador do Dezengano,
que pode servir de estimulo para a reforma dos mesmos defeitos, Lisboa, Officina de
Antonio Vicente da Silva, 1761.
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Caso de Lucrezia Marinella e de Dona Gertudes Margarida de Jesus 301
em 1715, em Bondade das Mulheres vendicada e malicia dos Homens
manifesta, texto que teve diversas impressões, declara no Prólogo às suas
leitoras que o objetivo principal do seu texto é a resposta e contradição
de Malícia das Mulheres, defendendo a “nossa notória inocência”:
Pareceo-me iniquidade, que se fossem multiplicando, à nossa re-
velia, contra nós, tantas sentenças, quantas são as aprovações que
aquelle famoso Libelo acha entre as pessoas do povo.5
Em 1759, e depois em 1805, em Lisboa, pela autora L.D.P.G., é pu-
blicada Bondade das Mulheres contra a Malicia dos Homens: Relaçaõ
Comica, e Historica, para divertimento de quem a comprar 6 . Serve-lhe
de interlocutor um anónimo M.D.M.C.D.M.A.E.C., também em 1759 e em
1805, na mesma Oficina – o que permite concluir que se tratariam de duas
obras “combinadas”, com dois autores a responder um ao outro de forma
jocosa (o texto da autora L.D.P.G. apresenta no título Parte Primeira e
o do seu interlocutor Parte Segunda, o que permite olhar para as duas
obras como um todo) –, que escreve Malicia dos Homens contra a Bon-
dade das Mulheres: Embargos, que os Homens põem á primeira parte.
Mostra-se os males de que são causa.
[A autora da I Parte empenhou-se] a cobrir o Sol com huma joeira:
lou- var as senhoras foi o seu intento, e o meu intento agora será
desfazer todos aquelles louvores, e mostrar os males que causaõ, e
os bens que naõ motivaõ. [...] Eva comeo sabendo, Adaõ induzido por
Eva. [...] Conversava Eva com huma Serpente. Pois que achou Eva
n’uma cobra de bem, para que com ella armasse palestra, e admitisse
pratica? [...] Huma cobra, que toda he tirania! Ahi veraõ a bondade
das mulheres, que quando naõ tem com quem falar, fallaraõ, naõ só
com as cobras, mas ainda com o mesmo demónio.7
5
Paula da Graça, Bondade das Mulheres vendicada e malicia?dos Homens manifesta
Papel métrico, e apologetico, em que se defende?a femenina innocencia, contra outro em
que injustamente se arguê?a sua maldade, com o titulo de Malicia das Mulheres, Lisboa,
Officina Pedro Ferreira, Impressor da Augustissima Rainha N.S., 1741.
6
L.D.P.G., Bondade das Mulheres contra a Malicia dos Homens: Relaçaõ Comica, e
Historica, para divertimento de quem a comprar,?I Parte, Lisboa, Officina Joaquim Thomaz
de Aquino Bulhões, 1805.
7
M.D.M.C.D.M.A.E.C., Malicia dos Homens contra a Bondade das Mulheres: Embar-
gos, que os Homens põem á primeira parte. Mostra-se os males de que são causa, Lisboa,
Officina Joaquim Thomaz de Aquino Bulhões, 1805.
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302 Luísa Marinho Antunes
Gertrudes Margarida de Jesus, de quem se conhece apenas este texto,
responde ao Irmão Amador do Desengano fazendo uso, como Marinella,
de apólogos, diversas fontes, exemplos e argumentação baseada nas teses
defendidas por diversos autores. Depreende-se das suas palavras que
a escritora veneziana era bem conhecida em Portugal (“se o nao tem,
como me persuado, eu lho remeterei”) e que ao Amador do Desengano se
poderia imputar a grave falha por não o ter lido.
A autora portuguesa baseia-se nas ideias de Marinella para defender
as mulheres e criticar os homens, apontando-lhe vários defeitos: os ho-
mens nem sempre falam apoiados na razão, porque a sua natureza assim o
dita, sendo impulsivos na sua maneira de ser (“arrebatao por força, o que
nao podem levar pela razão”); os homens criticam na mulher aquilo que
eles são (os que mais pintam os defeitos das mulheres são os que mais
defeitos têm e os que mais idolatram, em segredo, a mulher); as mulheres
têm demonstrado a sua inteligência, mesmo não lhes tendo sido possível
o acesso à educação de aulas e universidades. Como Marinella, a autora
portuguesa apoia as suas opiniões noutros autores e desconstrói as te-
ses dos que acusam as mulheres e são tidos como autoridade e citados
frequentemente, como é o caso de Eurípedes ou Bocaccio:
Eu tenho por evidente, que aquelles, que com mais frequência, e
fealdade pintaõ os defeitos das mulheres, saõ os que mais solici-
tos e cuidadosos, idolatraõ o mesmo que offendem. Veja Euripedes,
com quem V.C. nos argumenta: Foy este homem em summo maldi-
zente das mulheres em quantas tragedias fez; e segundo Atheneu,
era amantissimo dellas no particular, desorte que maldizia-as na
praça, e adorava-as em casa. Bocaccio foy extremosamente liviano,
ao mesmo passo que escreveo contra ellas a violenta satyra, que
intitulou: Labyrintho do Amor. E que será isto Carissimo Irmaõ?
[. . . ] Será, que ha homem taõ malévolo, que diz, que huma mulher
naõ he boa, só porque ela naõ quiz ser má: e assim desafoga sua
execranda paixaõ em atrozes vingancas, abominaveis impropérios, e
em injuriozos testimunhos?8
Respondendo ao Irmão Amador do Desengano, que dissera “em fal-
sete” ao receber a Primeira Carta Apologetica, em favor, e defensa das
8
Ibidem, p. 3.
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mulheres que Gertrudes Margarida de Jesus lhe enviara que, “vendo as
Heroinas, com que eu legalizava a minha defensa, não encontrava huma
só Portugueza”, na Segunda Carta Apologetica, em favor, e defensa das
mulheres, a autora defende a ideia de que o exemplo de uma mulher é
suficiente para provar a sua virtude, mas, mesmo assim, fornece diver-
sos exemplos de heroínas portuguesas. Porém, para que o interlocutor
saiba que há inúmeras portuguesas com admi- ráveis “prendas, sciencias,
e constancia, ou valor”, a autora acrescenta vários exemplos das virtudes
nacionais: D. Maria, Infanta de Portugal (“falava a língua Latina, com-
prehendeo a Grega, e naõ ignorava as Filozofias. Nas Mathe- maticas
foy muito douta; e na sciencia da Escritura Sagrada teve tal erudição, que
repetia de memoria os Oraculos”); Sor Magdalena; Sor Violante do Ceo;
D. Archangela Jozefa de Sousa (que escreveu dois tomos de fólio com a
vida de Santa Catarina de Siena e Regras para Conservar a Saude, para
além de ter traduzido Luiz de Gongora); D. Maria de Lancastre; D. Roza
Maria Clara de Lima; D. Sebastiana de Magalhaens; Thomazia Nunes
(que deixou escritos dois livros, Ideas Singularissimas e Nova Arte de
Bem Fallar); a poetisa Paula de Sá; Gervazia Antunes (que bateu num
ladrão, que andava vestido de fantasma); Quitéria Borges; e outras.
Gertrudes Margarida de Jesus na Segunda Carta Apologetica, em fa-
vor, e defensa das mulheres, defende a ideia, já avançada por Marinella,
de que não é a formosura das mulheres, como preconizado pelos discursos
masculinos, a impedir a sua santidade ou a sua heroicidade. De facto,
não é a beleza das mulheres que as torna más, mas os efeitos que al-
guns homens sentem ao contemplá-la, culpando as “miseráveis” pela sua
desgraça.
Naõ he a formosura damnosa, porque o seja; mas porque os homens
disseraõ, e quizeraõ que fosse má. E bastará isto (Amado Irmaõ)
para que se assente, e afirme que he má? Ora vá ouvindo V. C. e
notando: Perguntado hum sábio que cousa era a formosura; disse:
He hum resplandor do summo bem, que reluz naquelas cousas, que
se vem, e alcançaõ com o sentido, e com o entendimento, pelos
quaes as quer convertir a si.9
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Gertrudes Margaridade de Jesus, Segunda Carta Apologetica, em favor, e defensa
das mulheres, escrita por Dona Gertrudes Margarida de Jesus, ao Irmaõ Amador do
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304 Luísa Marinho Antunes
Além disso, o Irmão Amador só trata da formosura do corpo e não da
espiritual, ainda que se possa entender a beleza do corpo como sombra
das belas almas e do caráter visível da virtude, tal como defende a autora
italiana. Daí se conclui que não é a formosura feminina a autora de ruínas,
mas sim “a malícia dos homens, que abusando della fazem com que seja
má, o mesmo que em si he bom.”10
O recurso de Gertrudes a Marinella, apresentando o seu texto como
essencial ao debate masculino-feminino, é não só testemunho da circula-
ção de textos na Europa da época, mas também da existência de tradições
que se interseccionam no discurso das malícias/defeitos/virtudes femini-
nas e de uma solidariedade feminina além fronteiras (a autora portuguesa
afirma que não há mulheres portuguesas, francesas, italianas, só mulhe-
res). Tradição-tradições de aquisições recíprocas: a tradição em língua
portuguesa como parte particular de uma tradição europeia mais vasta, e
a tradição europeia como diálogo, por sua vez, com a tradição em língua
portuguesa.
No discurso das duas autoras abre-se um espaço de coexistência de
textos anteriores e recomeço de outros textos, numa polifonia que é usada
como exposição de representações – imagens, ideias e conceitos – liga-
das à figura feminina. De facto, se existia uma “inteligência universal”, um
“depósito” preservado e diversificado ao qual os autores recorriam quando
necessário, justificando-se assim a permanência de transmissão de temas
e motivos relativos aos enganos femininos, o contrário também se apli-
cava. Na verdade, existia igualmente uma “inteligência universal” sobre
a defesa das mulheres e de resposta às acusações masculinas. O reenvio
aos textos anteriores e o recurso à citação funciona, assim, como discurso
sapiental, na acepção de Paul Zumthor11 , através de exemplos, analogias
e afirmações, também é uma estratégia de releitura e de condensação,
uma “geologia de escritas”, como escreve Marc Angenot12 .
Dezengano, com a qual destroe toda a fabrica do seu Espelho Critico. E se responde
ao terceiro defeito, que nelle contemplou, Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa,
1761, p. 4.
10
Ibidem, p. 7.
11
Paul Zumthor, Semiologia e Poetica Medievale, Milano, Feltrinelli, 1973, pp. 355-
357.
12
Marc Angenot, Glossário da Crítica Contemporânea, trad. Miguel Tamen, prefácio
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Caso de Lucrezia Marinella e de Dona Gertudes Margarida de Jesus 305
Privilegia-se, assim, nas respostas femininas, o espelhamento, a exem-
plaridade, a autoridade e a memória, de forma a revelar o que as mulhe-
res consideravam como má fé dos homens ao esconderem as capacidades
femininas. De facto, como escrevem as autoras, é o deslumbramento-
estranhamento do homem em relação à mulher que provoca a acusação-
medo. E o poder é maior quando uma mulher cita outra mulher, porque
a citação, a atribuição de autoridade, é já em si exemplo de que o que
as mulheres escrevem fica na memória e é, de forma ativa, um repositório
de sapiência. A escrita da mulher elevada a fonte histórica e/ou cientí-
fica é a melhor forma de a mulher se afirmar como ser pensante – como
Gertrudes Margarida de Jesus faz com Lucrezia Marinella. É nesse per-
curso de radicação de tradições, através das quais pensamos, conhecemos
e reconhecemos, que se funda o discurso do futuro, um discurso que estas
autoras entendem como única via para o equilíbrio entre os sexos.
Ao Gianni, a defesa de mim
Maria Alzira Seixo, Lisboa, Editorial Comunicação, 1984, p. 132.
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