echo soot DAot-MaTURERA No Pisano GeogRMico: RELDLSEnsTNNABICAS
Javendo Cardoso Rodrigues ¢ london Cardoso Rodigues
RELAGAO SOCIEDADE-NATUREZA NO PENSAMENTO GEOGRAFICO: REFLEXOES.
EPISTEMOLOGICAS
Jovenildo Cardoso Rodrigues?
Jondison Cardoso Rodrigues”
Resumo: Este ensaio busca tecer consideracées epistemolégicas acerca do debate da relacdio
sociedade-natureza no pensamento geogréfico. Para tanto, retoma-se ds matrizes tedrico-
epistemolégicas classicas, a saber, as concep¢ées kantiana, hegeliana e marxista, bem como
a interlocugdo com perspectivas do pensamento geografico contempordneo de Quaini, Vitte
e Moreira, enquanto possibilidade analitica para se pensar o objeto de estudo da geografiae
a “natureza” como elemento processual de mediagdo, cuja potencialidade reflexiva vem
sendo redefinida continuamente, como resultado do movimento de transformagéo da
realidade. Dentro dessa perspectiva, no plano geral, a categoria natureza, enquanto
totalidade em totalizagdo, realiza-se a partir do engendramento da natureza como
concepsio e como produto da realizagéo humana ao longo do tempo e do espaco. As
particularidades imanentes ao movimento de transformacéo e ressignificagéo do termo
natureza em Geografia configura-se como resultado do “choque epistémico” entre antigas e
novas perspectivas de pensamento que buscam, de um lado, conceber “artificios
interpretativos” para aplicé-lo ao real, e de outro, analisar a diversidade do real em suas
miltiplas determinagées, estabelecidas ao longo do espaco-tempo e do movimento
relacional entre historicidade e praxis.
Palavras-chave: Epistemologia; Geografia; Relacdo Sociedade-Natureza.
Society nature relation in geographical thought: epistemological reflections
Abstract: This work makes epistemological considerations about the discussion of the
relationship between society and nature in geographic thought. For this purpose, it takes to
the theoretical-epistemological classical matrices, the Kantian, Hegelian and Marxist
concepts as well as the dialogue with prospects of contemporary geographic thought of
Quaini, Vitte and Moreira, while analytical ability to think object of study of geography and
"nature" as a mediation procedural element whose reflective capability is being continually
redefined as a result of the movement of reality transformation. Within this perspective, the
nature category, while aggregation in whole, will be held from the gendering of nature as a
concept and as a product of human achievement over time and space. The particularities
inherent in the movement of transformation and redefinition of the term nature in
Geography appears as a result of "epistemic shock" between old and new perspectives of
thought that seek, on the one hand, to conceive "interpretive devices" to apply it to the real
and also, to examine the diversity of the real in its multiple determinations established along
the space-time and relational motion between historicity and praxis.
Keywords: Epistemology; Geography; Nature-Society Relation.
onomiste pela Universidade 6a Amaia, Gadgrafo pala Universidade Federal do Pars, Mestre em Planejamento do Desenvovimento
pelo Nicieo de Altos Estudos AmazBnicos, Doutorando em Geografia pela Universidade fstadual Pauksta so de Mesqulta Filho. Dcente
2 Faculdade de Geogratiae Cartgraia da UFPA. E-mal:
[email protected] br
€ Leenciado em Cléneias Natu'ais- Habiltagio em Quimica pela UFPA, Espedaista em Fducagdo Ambiental @ Uso Sustentivel dos
fecursos Naturals, Mestre em Clncias Ambienais e Doutoranda em Deservolimento Socioambiental pelo Nicleo de Altos Estos
‘marBnics. Boss do Doutorado do CNPO. fm
[email protected] be
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INTRODUGAO
© pensamento geografico contempordneo esté profundamente associado a anélises da
relagdo sociedade-natureza, cujas matrizes de pensamento encontram-se assentadas em
diferentes concepgées tedrico-epistemolégicas do pensamento ocidental, principalmente do
grego (PORTO-GONCALVES, 2011). Tais perspectivas influenciaram, de maneira significativa,
a construgo do pensamento geogréfico de Humboldt, Ritter, Brunhes, Vidal, Ratzel, Tricart
e George (MOREIRA, 2011).
Do mundo grego antigo 20 mundo me fa & sociedade ocidental
jieval, do periodo ilumit
contemporanea, é possivel evidenciar diversas interpretagdes a respeito do termo
“natureza” e da “relago sociedade-natureza”, que vao desde a condigéo de categoria
ontolégica abstrata até reflexdes tedrico-metodolégicas cujas bases filoséficas remontam a
perspectivas que articulam historicidade e teoria-prética, e que hoje contribuem na
compreensao de algumas manifestacdes e contradicées da producao capitalista do espaco.
Considerando tal discussio, 0 objetivo do ensaio é tecer consideragdes epistemolégicas
acerca do debate da relagdo sociedade-natureza no pensamento geogréfico. Para tanto,
retomou-se as mati
es teérico-epistemoldgicas cldssicas, a saber, as concepsées kantiana,
hegeliana e marxista, bem como a interlocugo com algumas perspectivas do pensamento
geogréfico de Quiani, Vite e Moreira, a respeito da relagSo sociedade-natureza, enquanto
possibilidade analitica para se pensar o objeto de estudo da geografia.
Para a construgdo das referidas reflexdes epistemoldgicas, o artigo foi subdividido em cinco
momentos que se apresentam articulados, quais sejam: o primeiro caracteriza-se de forma
breve (en passant) a origem e os significados do termo “natureza” no mundo grego antigo e
na idade média; o segundo momento constitui-se retomada ao pensamento kantiano acerca
da natureza, atentando para as possibilidades e limites desta perspectiva; o terceiro
momento é marcado por uma abordagem de caracteristicas importantes da construgdo
Hegeliana acerca da categoria natureza; 0 quarto momento é marcado pela apreenséo da
nogdo de natureza no pensamento marxista; e finalmente, o quinto momento, constitui-se
na tentativa de se pensar a relacdo sociedade-natureza a partir de didlogo com as
abordagens de Quiani, Vite e Moreira.
Com efeito, os diferentes significados que 0 termo “natureza” assume no decorrer do
processo de formacao da sociedade ocidental requer uma reflexo acerca de como se
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configurava a natureza no pensamento grego antigo e nas relacdes sociais, naquelas
circunstancias histdrico-geograficas. A seguir sero delineadas algumas reflexdes a esse
respeito.
Origens e significados da natureza
‘A separacdo homem-natureza (cultura-natureza, histéria-natureza) é uma caracteristica
marcante e inerente ao pensamento da sociedade ocidental. Essa matriz filos6fica se
encontra principalmente na Grécia antiga, segundo a qual o universo (natureza) constituir-
se-ia como ser nico, imutavel, nao caético e imével (Tales, Perménides e Zeno) (RANGEL
JUNIOR, 2006).
Tales, Perménides e Zeno séo precursores da ideia de disjuncio entre homem e natureza
(RANGEL JUNIOR, 2006) e contribuidores do pensamento contemporSneo, sobretudo, do
és somos herdeiros
“mundo ocidental”, j que como enfatiza Morin (2008, p.79): “
deste pensamento dissociador [...]”; de diviséo, de separagio, e cuja natureza seria
compreendida enquanto materialidade objetiva, que supostamente se contrapde ao
Psiquico, ao animico, ao espiritual, da Physis (PORTO-GONGALVES, 2006a, 2006b; MORIN,
2003).
Para Bornheim (1985), a palavra physis indica aquilo que brota por si, num desabrochar que
se manifesta neste desdobramento, apresentando-se como realidade totalizante. Segundo
Porto-Goncalves (2011), é no século V a.C. que se tem a construgdo de uma perspectiva
geral da ideia de natureza. E notadamente com Plato e Aristételes, segundo Porto-
Gongalves, que se comeca a assistir a um desprezo e mudanga da nocdo de natureza
enquanto elemento natural, espiritual, psiquico, de caracteristica totalizante, cuja
perspectiva tendeu a ideia de separaco entre homem e natureza (OLIVEIRA, 2002;
VITTE; SPRINGER, 2010).
A interpretacao aristotélico-platénica sobre natureza basilara os “dogmas” do cristianismo
durante a idade média, pautada na separacdo entre espirito e matéria. Se por um lado
Plato estabelecia uma oposicao entre o plano da ideia, vista como perfeita e a realidade
mundana, evidenciada com inferior, de maneira similar o cristianismo operard a sua prépria
leitura, opondo a perfeigio de Deus & imperfeico do mundo material (PORTO-GONGALVES,
2011; 2006b)
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Todavia, é com Descartes que essa oposigao homem-natureza, mente e corpo, espirito-
matéria, sujeito-objeto tornar-se-é mais densa, constituindo-se como centro do pensamento
moderno e contemporaneo (MOREIRA, 2004, 2006; VITTE, 2007a). A esse respeito, dois
aspectos da filosofia cartesiana, aqui expressos, vio marcar a modernidade, quais sejam: 1)
© caréter pragmatico que o conhecimento adquire enquanto elemento util para a vida,
compreendendo a natureza como um recurso, um meio para se atingir um fim; e 2) 0
antropocentrismo, perspectiva em que o homem passa a ser visto como o centro do mundo,
sujeito em relaco ao objeto, & natureza (MOREIRA, 2003; 2006; 2011; PORTO-GONCALVES,
2011; SOUZA; SUERTEGARAY, 2007).
© século XIX constituird momento de triunfo desse pragmatismo, com a ciéncia e a técnica
adquirindo um significado central na vida dos homens (SANTOS, 1996; MOREIRA, 1992;
2011). Nesse sentido, a natureza torna-se cada vez mais um objeto a ser possuido,
dominado, subdividido e fragmentado (SANTOS, 1996). Qualquer tentativa de pensar o
homem e a natureza de uma forma organica e integrada torna-se cada vez mais dificil, uma
vez que tal divisio no se dé apenas no campo do pensamento, mas também na realidade
objetiva construida pelos homens.
Com efeito, retomar alguns elementos e momentos da construgéo social da ideia de
natureza faz-se fundamental, uma vez que, segundo Morin (1996) os fendmenos sociais nao
s%o/estdo isolados no tempo, eles estdo/sdo conexos e repletos de emergéncias complexas
e que implicam em dindmicas presentes e futuras, como, por exemplo, quando se pensa na
divisdo social e técnica do trabalho enquanto concreticidade da vida dos homens; e, no
fortalecimento do processo de fragmentaco, de dicotomizacao, enfim, de “separacdo” do
homem em relag3o & natureza tanto no campo académico, quanto no ambito do
pensamento geografico.
Kant: 0 método de conhecimento e a Natureza
Estamos, todavia, sob 0 signo do neo-kantismo e forte influéncia hegeménica do
positivismo. E & nestes termos que este “retorno aos fundadores” ento se dé. (MOREIRA,
2011).
‘Se queremos encontrar os fundadores filoséficos da ciéncia geogréfica no
momento de sua construcao entre o final do século passado eo inicio deste
século [século XX], temos de buscé-los em Descartes, Kant, Darwin, Comte
@ 0 positivistas, mas também em Hegel e em Marx. Isso para nos
limitarmos a uns poucos nomes (SANTOS, 2004, p.47-8) [sic].
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‘A compreensio do pensamento geografico contemporaneo enquanto ciéncia dotada de
concepgées analiticas pressupde revisitar alguns constructos tedricos, concepgdes de mundo
que exerceram influéncia significativa na construgao e na redefinicdo do sujeito e do objeto
da geografia. Sendo assim, torna-se inevitével um didlogo com os manuscritos filoséficos de
|. Kant, considerado um dos fundadores da moderna geografia, da géographie scientifique
[ou a science de la différenciation régionale de écorce terrestre (p.142), [...] une science des
relations spatiales une science spatiale (p.146)] (SANGUIN, 1994).
Essa géographie scientifique norteava 0 pensamento de Kant, sobretudo porque este
afirmava que a construc3o do conhecimento filoséfico deveria basear-se em um novo
método de transmissdo de conhecimento, através de um pensamento que consistia na
separacdo entre ciéncias empiricas (pautadas na experiéncia) e ciéncias racionais (pautadas
nas leis da natureza) (KANT, 1982).
‘Segundo Quaini (1979), Kant promoveu a instaurago, no ano de 1756, de um novo método
de transmissio do conhecimento, baseado num pensamento que tendeu a separar ciéncias,
empiricas das ciéncias racionais, e na perceptions humaines du monde (SANGUIN, 1994)
‘A geografia faz parte, segundo Kant, das ciéncias empiricas, isto é,
fundamentadas na experiéncia (distintas, portanto, das ciéncias racionais
fundamentadas na razo) tendo como finalidade “a erudigo real” (real
Porque os objetos da nossa experiéncia nos aparece no espaco, um ao
lado do outro, ou no tempo, um apés 0 outro}, 2 qual compreende em
parte a descrigéo dos objetos: a descrico do mundo; em parte, a narragéo,
de suas mudangas: a histéria do mundo (QUAINI, 1979, p.27)
© conhecimento apareceria, ento, fundamentalmente amparado, ou sobre aquilo que jé
existe, conforme as leis tidas como “necessérias”, segundo as quais consistiria o verdadeiro
conhecimento da natureza; ou sobre os seres que agem conforme as leis da liberdade, o que
pressupde pensar 0 “conhecimento do homem ou da antropologia”. Assim, por intermédio
de tais ciéncias (antropologia e geografia fisica) buscava-se antecipar a experiéncia futura.
Neste sentido, uma pergunta se faz importante, qual seja: que método Kant atribuiu &
geografia?
A esse respeito, Quaini (1979) afirma que o pensamento Kantiano ressalta dois elementos
importantes: 1) a descrigéo do mundo ou da terra, perspectiva que deveria referir-se a ideia
do todo, do conjunto e reportar-se sempre a geografia como conhecimento geral da terra,
como saber organico e sistemético; 2) este conjunto ou todo pode ser definido somente em
relacdo ao homem, a praxis humana. Tais elementos estariam assentados na compreensao
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21sRucho soot DADt-MATUREZA No Pisano GeoGRMico: RELEDLSEnSTNNACICAS
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de que a Geografia permiti
© acesso 8 ordenacio e categorizacdo do mundo. De fato,
“Kant distinguishes geography as the description of the whole world from topography as the
description of single places and chorography as that of regions” (ELDEN, 2009, p.17).
‘A geografia em Kant apresenta-se como geografia fisica, segundo a qual o homem constitui-
se enquanto efeito da natureza, de uma experiéncia sensivel determinada (VITTE, 2007b), ou
da reciprocidade intrinseca entre mente e natureza (LIVINGSTONE; HARRISON, 1981). Nao
obstante, a geografia fisica kantiana em nada tem a ver com a geografia fisica que se
compreende atualmente, posto que a abordagem kantiana comportava varios ramos que
transcendem a concepgio atual de geografia fisica, a saber: uma geografia moral; uma
geografia politica e comercial; e, mesmo, uma geografia teolégica. Dentro dessa perspectiva,
© nticleo da teoria de Kant, portanto, consiste na separacao entre ciéncias especulativas
ciéncias pragmaticas, entre razdo e experiéncia, entre geografia e antropologia, entre
histéria e natureza (KANT, 1999; QUAINI, 1979; SANGUIN, 1994; ELDEN, 2009).
N3o se pode deixar de considerar tais concepges como "deterministas" ou "mecanicistas",
no que diz respeito as relagdes homem-ambiente e providencialistas ou metafisicas, no que
diz respeito ao plano histérico (QUAINI, 1979; ELDEN, 2009; VITTE, 2007b; VITTE; SILVERIA,
2009), j& que para Saguin (1994, p.141) “la géographie kantienne est clairement définie
comme une science empirique mais il agit un empirisme régionalement appliqué”
Com efeito, apesar de Kant contribuir na compreenséo da inseparabilidade de seres
humanos do mundo, e esses em relacdo com a terra, a natureza e outros seres humanos
(ELDEN, 2009), a concepcao de natureza em Kant é transcendental (existéncia da natureza,
deve ser procurado para além da natureza natural, conforme Kant (2013)) e regulativa
(VITTE, 2006a; 2006b; ARENDT, 1992).
Para Kant (1997), a natureza seria representada como arte, particularmente as suas formas,
que conferem um status ao conceito de finalidade e que procuram unir 0 jufzo estético ao
teleolégico, além de resquicios metafisicos (KANT, 2000). Isso se refletiu na ideia de natureza
que € atravessada pela Geografia fisica, isto é, no estudo da natureza (na descrigdo da
natureza). Assim, a geografia nasce entre teologia da natureza e a estética (VITTE, 2006;
2007b; 2008), mediada pela contemplacdo (VITTE, 2006b). Tal perspectiva implica, de certa
forma, na prépria nogéo de espaco enquanto uma representaco a priori, fundamento dos
fendmenos externos, que é intuicio impura (SANTOS, 2004). Segundo Vitte (2008), a
natureza Kantiana é concebida como um mero ordenamento empirico de fenémenos e, 0
espago, como um, a priori, intuitivo e sem relaco com 0 empirico.
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‘Ainda para Vitte (2008), a partir da influéncia da estética kantiana, a Geografia nascerd como
sendo a representante de uma nova poiesis no mundo, “[...] uma ciéncia empirica da
natureza, muito embora procure trabalhar com o nivel de integragdo na visio do mundo
J” (VITTE, 2006, p.15), nascida a partir da relacao dialética entre a natureza e a arte, cujos
representantes so Goethe e Alexander Von Humboldt (VITTE, 2008).
kant promove abordagem relacional entre natureza e cultura, embasada numa perspectiva
que considera a natureza: a) como experiéncia sensivel; b) a histéria como uma
manifestag3o multipla e infinita da vida e da humanidade; e, c) uma natureza concebida
como coisa/objeto, substrato da historia dos homens, portanto estruturada como totalidade
universal (universalista), que unidimensionava a natureza
Kant apresenta alguns elementos “inconsistentes” para pensar a no¢do de natureza dentre
0s quais se pode destacar: suas elucubragées acerca da natureza concebida como
coisa/objeto, portanto, estruturada e ndo cadtica; a compreensdo da natureza enquanto
totalidade universal (universalista) de caréter ontolégico, transcendental e regulativa.
Convém ressaltar que essas perspectivas encontram-se entranhadas na derme de um
considerdvel numero de pesquisadores, estudantes e professores de geografia, conforme
Moreira (2006). Tais perspectivas tendem a contribuir para a construgo de uma visio
dogmatica e redu
nista, unidimensionando a natureza pensada enquanto um dado a priori
(MORIN, 2008). Com efeito, em que pese as potencialidades das reflexdes de natureza em
Kant, a abordagem kantiana, restringiu-se & construgio de uma perspectiva ontoldgica de
natureza que negligenciou a relacdo social entre humanos e no humanos, uma totalidade
complexa, uma amélgama ecossistémico da historia-social construfda.
A “natureza” na abordagem hegeliana
Hegel tenta désontologiser, isto é, fazer um esforgo para expor o processo que parece
congelado (QUENTIN, 2006), como a concepgao kantiana de natureza, em particular, a
separacao entre natureza e histdria, entre 0 homem como ser natural e o homem como
sujeito da histéria (QUAINI, 1979), entre natureza e espirito (MOREIRA, 2006). Hegel
“radicaliza esta reflexdo ao atribuir a natureza a ideia de que esta se alienou na matéria”
(MOREIRA, 2006, p.65), isto é, natureza é em sua esséncia “self-alienated Spirit” (FOSTER;
BURKETT, 2000). No entanto, essa compreensio esté imersa na autoproducgo do homem
como um processo, como resultado de seu préprio trabalho, entendido enquanto mediagSo
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do homem com a natureza ao longo do processo historico (HEGEL, 1961). A esséncia do
sentido de “trabalho” em Hegel é capturada de modo unilateral como “trabalho espiritual
abstrato” (HEGEL, 1992), isto é, como atividade do espirito de autoconsciéncia (MARX, 2004;
2010).
Ainda segundo Hegel (1961), a histéria universal é a realizag3o do espirito, da ideia do
espirito enquanto ele se mostra na realidade, como série de formagées exteriores. O espirito
do mundo realizar-se-
m nos diversos espiritos dos povos (povos césmico-histéricos), os
quais esto separados no espago e no tempo e sofrem a influéncia da situacdo natureza
(HEGEL, 1992), estabelecendo uma relacdo do espiritual com o natural (QUAINI, 1979). Hegel
compreende que a exterioridade das relacées humanas so ao mesmo tempo, definidas
como formagao histérica (ou espiritual), e como formagao natural (HEGEL, 1992; 2001).
Assim, Hegel recupera e utiliza 0 postulado da correspondéncia entre estrutura fisica do
ambiente e o “caréter do povo”.
Para Hegel, coexistem relagées inversas entre dependéncia frente a natureza e a civilizago,
ao longo da histéria, compreendida enquanto processo de libertago progressiva dos povos
is frente as codices dos prdprios ambientes naturais, que passam a ter um peso cada
vez maior (QUAINI, 1979; MARX, 201
; CHATELET, 1989). Hegel interpreta tal proceso de
libertaco do homem frente & natureza em termos de relacdo dialética (HEGEL, 1982).
De fato [..] a propésito das relagdes homem-natureza: todo progresso
evolutivo implica numa reflexao espiritual em si, contra a natureza; é um
particularizar-se do espiritual em si contra esta sua qualidade imediata, que
é justamente a natureza. Com este particularizar-se coincide 0 proprio
momento da naturalidade, justamente enquanto esta é uma
particularizacdo: nasce a antitese entre 0 espiritual e o exterior (QUAINI,
1979, p.32).
O nticleo do debate hegeliano consistiria numa abordagem da dialética do espaco enquanto
método para instituir as correlagées entre estruturas geograficas e modos de vida dos povos,
pois “pour Hegel, I'espace constitue le premier moment de la nature, mais ce n’en est qu’un
moment” (QUENTIN, 2006, p.544), cujas particularidades manifestam-se em uma dialética
que marca seu cardter fundamentalmente relacional (Op.cit). A esse respeito, Antunes
(2005, p.63) afirma que para Hegel: "A primeira condi¢do para que o homem se desenvolva
enquanto individuo é sua separacdo com relagéo & natureza. Ao opor-se a natureza, 0
homem se descobriria enquanto ser racional e no apenas enquanto imediatidade natural”.
© contexto natural ou o fundamento geogréfico da histéria universal (inserido na obra, A
RazSo na Historia: Introdugo a Filosofia da Historia Universal), concebido por Hegel enfatiza
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que: “Logo que o homem surge como homem, pde-se em oposigao & natureza, s6 assim se
torna homem” (HEGEL, 1995, p.180). A natureza para Hegel, portanto, segundo Pereira
(2006), seria uma objetivacdo do espirito, e o conhecimento geogréfico nesse contexto
assumiria um cardter secundério pela relevancia menor da realidade empirica.
A dialética enquanto unidade de opostos em Hegel demonstra um carater regressivo e
mistificador, uma vez que tal unidade constitui-se enquanto unidade do pensamento, ideia
dialética do trabalho humano (dialética do trabalho espiritual). A esse respeito, para
Chatelet (1989), a nocdo hegeliana de geografia estava associada, de maneira recorrente, as
\genuidades e banalidades” (CHATELET, 1989, p.45):
[1 [para] Hegel, @ geografia como tal pertence a histéria, isto &, a esta
odisseia, a este vir-a-ser dramético dos povos ao longo do qual cada um
dentre eles, encarnando, na sua civilizagso material, na sua legislagao, nas
suas estruturas espirituais, uma figura do espirito, constitui no seu tempo
uma etapa no percurso da humanidade, em busca de sua completa
realizaco. A geografia ndo ¢ uma ciéncia como 0 sdo a mecanica ou a
geologia; ela ¢ um elemento- 0 elemento de base, no sentido material do
termo, desta fenomenologia plenamente cumprida, totalmente racional,
que 6 a historia dos povos, das nagdes, dos Estados. Dizer que ela &
fenomenoldgica, significa que ela € descritiva, mas seria um grave erro de
leitura tomar este qualificativo de forma pejorativa. Esta descri¢ao dada a0,
nivel em que ela se situa, e total percepedo da esséncia. Em outras palavras,
ela é a apresentagio do que ha de essencial no habitat, a paisagem - no
sentido forte com que esta implica em técnicas, em relagdes
interindividuais, em imagindrio - onde nascem, se desenvolvem e morrem.
(ou adormecem) as culturas que balizaram, por sua atividade original, 0
impulso sangrento e glorioso do homer (CHATELET, 1989, p.47-8).
Com efeito, convém ressaltar que tanto a dialética do espirito quanto a geografia em Hegel
apresentam uma histéria nitidamente eurocéntrica (DUDLEY, 2009; LUTTER, 2009),
justificada a partir de uma base geogréfica e caracterizada por um proceso histérico
unidirecional em que as diversas fases histéricas ou formagées histérico-naturais so os
momentos necessdrios da progressiva realizagSo do espirito, que Hegel considera concluida
na sociedade germano crist& do século XIX.
O pensamento marxista e a natureza
A construcao do pensamento marxista sobre natureza embasou-se na abordagem hegeliana
(organic and inorganic nature) (FOSTER; BURKETT, 2000) como ponto de partida para
avangar rumo a uma perspectiva que pudesse analisar a natureza da producSo capitalista.
Partindo da concepgo hegeliana segundo a qual a atividade humana em sua rela¢o com a
evista do Departamento Ge Geografia USP, Volume 27 (UIA), p, 211 230,
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natureza, mediada pelo trabalho abstrato (mental) é sempre atividade de pensamento e
este se encontra diretamente interligado com a linguagem da vida real (LUTHER, 2009).
Marx propés a inversio da construcao do pensamento hegeliano, rumo a uma perspectiva
que considerasse a relagdo sociedade e natureza mediada pelo trabalho material,
compreendida enquanto constructo que resulta do movimento dialético entre historicidade
e praxis social (MARX, 2011).
Com essa afirmagdo, Marx ataca a concep¢ao ideol6gica da filosofia hegeliana, que disjunta
as ideias e doutrinas, sem referéncia & producao histérica das relages sociais de producao e
05 interesses econdmicos da sociedade (Ibid).
‘A natureza para Marx ndo pode ser concebida como algo exterior & sociedade, uma vez que
aquela constitui produto histérico, sobretudo na relacdo entre o trabalho assalariado e 0
capital (MARX, 2011). € dentro dessa perspectiva que Marx
[J instaura uma nova relagio entre natureza e homem [...J justamente
Porque evita cair no monismo espiritualista de Hegel e no monismo
nnaturalista do materialismo fisicalista ou do positivismo e determinismo,
que se seguiram, coloca-se num plano decididamente humanista €
integralmente historicista e, enquanto tal, no perde de vista nem a
historicidade da natureza nem a naturalidade da histéria (QUAINI, 1979,
p.43),
Marx, dentro de uma perspectiva geral, instaura um conjunto de reflexdes que consideram a
nova relacdo entre natureza e homem, ao conceber a relaco entre o corpo organico do ser
humano e 0 mundo inorgénico. Marx compreende 0 orgénico e 0 inorganico como
complementares e condicionados, pelas necessidades de subsisténcia dos seres humanos e
sua capacidade por meio de trabalho social para transformar as condigées "externas" da
natureza em meios de satisfazer essas necessidades (FOSTER; BURKETT, 2000).
‘Ao invés de postular uma ruptura ontolégica nitida entre os seres humanos e a natureza,
Marx descreve as interligacdes materiais e intercdmbios dialéticos, associados ao fato de
que a espécie humana, sendo similar as species-life em geral, encontra sua base objetiva na
base natural fora de si mesma, condicionada na natureza, objetivo de sua existéncia, Neste
sentido, 0 corpo organico da humanidade (como todas as espécies) inclui dentro de si as
condigdes inorganicas de sua existéncia, o que pode parecer, 8 primeira vista meras forcas
opostas, coisas "externas" (FOSTER; BURKETT, 2000). E nesse sentido que a critica a
abordagem marxista segundo a qual Marx compreenderia a “natureza” como sinénimo de
mercadoria, como fonte de riquezas e que deve ser 'conquistada', dominada e subjugada aos
interesses do "homem" é fragile inconsistente (FOLADORI, 1997; FOSTER, 1998).
evista do Departamento Ge Geografia USP, Volume 27 (UIA), p, 211 230,
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Jovendo Cardoso Rodrigues ¢Jondson Cardoso Rodnigues
Dessa maneira, a “segunda natureza” em Marx nada mais do que um artificio linguistico
que busca analisar as metamorfoses da natureza concebida enquanto totalidade em
movimento perpétuo, no qual a ago humana é parte integrante da natureza enquanto
produto e produtor dos meios de producdo e reproducao da natureza. A ago humana,
portanto, constituiria elemento capaz de reorganizar a sua relagdo com a natureza, em
condigées de liberdade humana, de desenvolvimento pleno das necessidades e
potencialidades humanas, e uma unity with nature (FOSTER,1998).
‘A natureza constitui ponto importante nas reflexdes marxistas, sobretudo porque este
compreendia que a estruturagéo do modo capitalista de produgio embasava-se
primordialmente no estabelecimento de algumas condigdes essenciais, sem as quais no
seria possivel a construgdo da dominacao capitalista, quais sejam: o estabelecimento da
propriedade privada dos meios de producdo (o que pressupde em primeira instancia pensar
a apropriago da natureza), 0 capital e o trabalho.
‘Ainda segundo Marx (2004), a histéria da natureza e da relacdo sociedade-natureza
corresponde a histéria dos miltiplos e incessantes processos de apropriaggo da natureza
natural pelo "homem", que ao redefinir usos, produziu expropriacdes da terra, concentrac3o
de capital, apropriaco da forca de trabalho humana, ao mesmo tempo em que reproduziu a
desigualdade na distribuico dos recursos. Portanto, a historia da natureza nada mais seria
do que a histéria da diviséo social e territorial do trabalho, construida no ambito das
relagdes humanas, ao longo do tempo histérico. Em outros termos, a produgao da relacdo
sociedade-natureza pressuporia pensar a um s6 tempo, o trabalho dos homens sobre a
natureza e o trabalho dos homens sobre e para usufruto de outros "homens" (MARX;
ENGELS, 2007).
Marx (2007) ressalta ainda que homem e natureza constituem elementos indissociéveis,
imanentes ao engendramento das relagdes humanas ao longo do modo capitalista de
produgio. Ainda para Marx, homem e sociedade séo a um sé tempo, “objeto sensivel” &
“atividade sensivel”, uma vez que o ser social enquanto produtor de ages transforma o real
a0 produzir relagdes entre si e com a natureza.
A abordagem marxista permite pensar, portanto, a natureza em seu cardter relacional e
complexo. No plano geral, a natureza enquanto totalidade ontoldgica e ao mesmo tempo
epistemolégica possibilita compreender processos, mediagdes e contradigées no Ambito das
relagdes de produc, Por sua vez, a natureza concebida em sua particularidade é pensada
como elemento inteligivel e constructo sociohistérico, inerente a uma determinada
evista do Departamento de Geografia~USP, Volume 27 (UIA), p, 211 230,
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formagao econémica e social, que contribuiria significativamente para anélises criticas
relacionadas 4s agées humanas, na producdo de processos de apropriacdo da natureza e
reprodugao de contradigées nas relacdes de producao capitalista.
A relagao sociedade-natureza e o pensamento geogrdfico contemporéneo
© marxismo exerceu influéncia significativa na construgéo do pensamento geogréfico
contempordneo, sobretudo a partir dos anos de 1970, quando a sociedade capitalista insere-
se num periodo marcado por crises sist8micas (crises politicas, sociais, econémicas e mesmo
ambientais) relacionadas ao sociometabolismo do capital. No plano do campo académico, as
perspectivas explicativas na geografia, pautadas em matrizes positivistas e historicistas n3o
apresentavam inteligibilidade para analisar as contradigdes, rupturas e transformagées
sociais, econdmicas, politicas que afloravam. & dentro desse contexto que os estudos
marxistas foram “retomados” enquanto nexos explicativos de base tedrico-epistemolégica
para andlise da realidade social. Ao seu modo, Harvey (1993) aduz que a “teoria marxista”
pode ser entendida dialeticamente como compreendedora da produc&o de espaco-tempo -
atributos fundamentais da "natureza””
Quaini (1979) retoma as reflexdes marxistas a respeito do método para investigar a
realidade, seja enquanto perspectiva tedrica seja enquanto contribuigéo critico-
epistemoldgica @ natureza da producdo capitalista, suas implicagées na produgéo da
natureza e na reproducio desigual do espao. Para Quaini (1979), o discurso acerca da
suposta “misao civilizadora do capital” contribuiu para a naturalizacao da légica capitalista
pautada no consumo e na criago de novos valores de uso e de troca. Dentro dessas
circunstncias de racionalidade instrumental capitalista, a natureza se torna uma coisa para
co homem, um objeto de utilidade e, a0 mesmo tempo, um meio de produgo.
‘A "revolucdo" permanente do capital é claramente contraposta as velhas relacdes entre o
homem e a natureza, aos antigos limites do desenvolvimento, bem como & reprodugao de
“velhos” modos de vida (QUAINI, 1979). Por sua vez, a produ¢do econdmica do espaco se
apresenta como finalidade do homem e a riqueza como finalidade da produgdo.
‘As manifestagdes e contradi¢des que agitam o capitalismo, de um ponto de vista ecoldgico,
dizem respeito ao descompasso entre a reproduco das forcas produtivas desenvolvidas ao
longo do processo de formac&o econémica e social de determinados territérios e a
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