TEATRO NO ENTRE-TEMPOS:
A COMPRA DO LATÃO, A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE
BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR1
Theatre in the in-between-times: Buying Brass,
Brecht’s theatrical experience in exile and a diffe-
rent theatre yet to come
Mariana Sapienza Bianchi
Universidade de São Paulo
Resumo: Este artigo apresenta brevemente o conjunto de textos
chamado “A Compra do Latão”, de Bertolt Brecht, explicitando
algumas de suas características e objetivos. A seguir, mostra-se
a intrínseca relação entre esse material, o objetivo de Brecht de
organizar sua teoria teatral e o contexto histórico no período de
produção de tais escritos, realizada majoritariamente durante o
exílio forçado.
Palavras-chave: Bertolt Brecht. A Compra do Latão. Teatro épi�-
co.
Abstract: This article briefly presents the set of texts called
“Buying Brass”, by Bertolt Brecht, highlighting some of its charac-
teristics and objectives. Next, it is shown the intrinsic relationship
between this material, Brecht’s aim in organising his theory and
the historical context during the production of such writings, mos-
tly carried out during forced exile.
Keywords: Bertolt Brecht. Buying Brass. Teatro Épico.
Recebido em: 05/04/2023
Aceito em: 12/04/2023
1 Este artigo é resultante da dissertação de mestrado da autora, realizada
no Instituto de Artes da UNESP (2021) e intitulada “Pelas trilhas do teatro
épico-dialético: coletando fragmentos sobre Bertolt Brecht e A Compra
do Latão”.
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Mariana Sapienza Bianchi
O dramaturgo, poeta e diretor alemão Bertolt Brecht de-
dicou sua vida a um trabalho teatral crítico, alegre e que tives-
se uma utilidade social prática e concreta. Encontramos, dentro
de sua produção textual, os mais diversos estilos literários, para
além das dramaturgias: poesias, canções, discursos, diários, ro-
mances, contos, reflexões sobre arte e política, diálogos, ano-
tações sobre o trabalho teatral, materiais radiofônicos etc. Mais
importante ainda é que, ao ler esses materiais, podemos verifi-
car que suas anotações sobre o teatro não encontram um ponto
fixo, para além da constante análise do contexto histórico e a
preocupação em construir um teatro que contribuísse com a luta
de classes, do ponto de vista da classe trabalhadora.
Brecht constantemente avaliava seus trabalhos e busca-
va, sobretudo, organizar o conceito de teatro épico ligado a seu
tempo histórico e que fosse além de uma simplificação formalista
baseada em algumas “regras” abstratas, como a narração direta
ao público, a utilização de cartazes e canções etc. – muito em-
bora a atitude do ator/atriz sustentada por Brecht seja a atitude
épica, a de quem narra. Um de seus trabalhos mais significativos
quanto à tentativa de organizar sua teoria teatral e de apresentar
um material que contribuísse para o desenvolvimento do teatro
épico é o conjunto de textos denominado “A Compra do Latão”
(“Messingkauf”, em alemão).
A primeira menção de Brecht ao conjunto de textos de “A
Compra do Latão” aparece numa anotação em seu “Diário de
Trabalho”, durante o exílio na Dinamarca, em fevereiro de 1939:
12.2.39
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A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
Um bocado de teoria em forma de diálogo em Der Mes-
singkauf (estimulado a usar essa forma pelos Diálogos de
Galileu). Quatro noites. O filósofo insiste no teatro do tipo-p
(tipo planetário, em vez do tipo-c, tipo-carrossel) simples-
mente para fins didáticos, movimentos de pessoas (tam-
bém mudança das emoções) organizados como meros
modelos para finalidades de estudo, para mostrar como
funcionam as relações sociais, a fim de que a sociedade
possa intervir. Os desejos dele se transformam em teatro,
já que podem ser executados no teatro. De uma crítica do
teatro surge um novo teatro. A coisa toda concebida de
modo a poder ser realizada, com experimentos e exercí-
cios. Centrada no efeito-d. (BRECHT, 2002, p. 24)
Dessa entrada no “Diário” de Brecht, podemos concluir
que “A Compra do Latão” foi uma tentativa de Brecht de elaborar
suas formulações teóricas, escolhendo, para isso, não escrever
nem um tratado, nem um manual, mas sim um diálogo. Utilizan-
do a forma dialógica como construção de conhecimento e exer-
cício de dialética, “A Compra do Latão” revela-se tanto teoria do
teatro quanto exercício de escrita experimental e, como expli-
ca o diretor alemão Manfred Wekwerth, “[...] além da vantajosa
possibilidade de exposição de um assunto, seu princípio básico
– ‘não é bem isso, mas sim aquilo’ – é útil para a representação
dos processos dialéticos” (WEKWERTH, 1986, p. 17-18).
Escrita entre os anos de 1939 e 1955, a obra, no entanto,
nunca foi finalizada pelo autor. Com diversas pausas ao longo
dos anos no trabalho em Messingkauf, e com pequenas varia-
ções nas propostas, ao percorrer os textos que hoje compõem
o conjunto de “A Compra do Latão”, deparamo-nos com conver-
sações dos mais variados tamanhos, de algumas linhas a várias
páginas, e muitas vezes sem sequência lógica aparente. Com-
põem a obra breves e longas reflexões, trechos sem início nem
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fim e de gênero e estilo variados. Além disso, convivem dentro
do mesmo material diferentes recursos de escrita (poemas, en-
saios, exercícios, discursos, relatos autobiográficos, além dos
próprios diálogos), sendo que grande parte está fragmentada e
inconclusa.
Ainda hoje, encontramos o conjunto de textos reunidos
sob este título guardado no Arquivo-Brecht, em Berlim, em dife-
rentes folhas e caixas, mas sem nenhuma pista de como a obra
poderia ter sido publicada pelo autor. Do material a que hoje
temos acesso, comenta o diretor Fernando Peixoto:
Restam fragmentos e diferentes planos da obra, cuja con-
cepção ele [Brecht] modificava à medida que trabalhava:
uma boa quantidade de diálogos mais definitivos, muitos
trechos incompletos, notas esparsas, ensaios que deve-
riam ser incluídos (provavelmente depois de reescritos
em forma de diálogo), cerca de trinta poemas que têm a
prática do teatro como tema central e ainda cinco cenas
completas, modelos de intervenção da dramaturgia no
processo de ensaios, intitulados “exercícios para atores”.
(PEIXOTO, 1981, p. 29)
Apesar da aparente confusão dada pela variedade de
materiais e temas, pela não-finalização da obra e pelas diferen-
tes versões publicadas em edições póstumas, o conjunto de tex-
tos traz os principais questionamentos do autor, onde se revela,
ainda segundo Peixoto (1981, p. 30), “[...] a complexidade do
pensamento estético de Brecht, exposto de forma não sistemáti-
ca”. Para o diretor brasileiro, apesar de as questões formuladas
por Brecht estarem presentes nos diversos escritos teóricos, nos
poemas, peças e romances, é em “A Compra do Latão” que en-
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A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
contramos uma espécie de “[...] síntese razoavelmente comple-
ta” (PEIXOTO, 1981, p. 30) do teatro brechtiano.
John Willett (1974, p. 169) vai ainda mais longe ao afir-
mar que esta poderia ter sido a obra mais importante de Brecht,
mas que ela acabou permanecendo como um problema. Para o
próprio dramaturgo alemão, cerca de um ano e meio após os pri-
meiros registros de trabalho em “A Compra do Latão”, esta teria
se convertido numa grande dificuldade: “Quando abro o Messin-
gkauf só pra variar um pouco, é como se recebesse uma rajada
de poeira na cara. Pode-se imaginar esse tipo de coisa vindo
sempre a significar qualquer coisa novamente? Essa não é uma
pergunta retórica” (BRECHT, 2002, p. 109), anota o dramaturgo
em seus Diários de Trabalho, em 19 de agosto de 1940.
Apesar de tais dificuldades, Brecht havia delineado um
projeto aparentemente simples para a obra: os diálogos apre-
sentam cinco personagens que se encontram num teatro por
quatro noites, para debater sobre o trabalho teatral. As persona-
gens Dramaturgo, Atriz e Ator estão reunidos no teatro, após a
apresentação de um espetáculo – uma das possibilidades apre-
sentadas no conjunto de Messingkauf é a apresentação de uma
peça de Shakespeare. “A Compra do Latão” tem início ao final
da sessão, com a entrada do Filósofo, durante a desmontagem
do cenário pelo Iluminador. Brecht dá os contornos da cena ini-
cial e da situação:
Um filósofo aparece num grande teatro, depois do espec-
táculo, para conversar com as pessoas do teatro. Foi con-
vidado por uma actriz. As pessoas do teatro estão des-
contentes. Participaram nos esforços por um teatro da era
científica. Mas a ciência ganhou pouco com isso, enquanto
que o teatro perdeu bastante. (BRECHT, 1999, p. 11)
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Logo de início, o autor anuncia que uma discussão sobre
o trabalho teatral irá ocorrer, situando o evento no palco de um
grande teatro. Enquanto isso, não se perderá de vista o próprio
palco, com o cenário, as luzes e todos os recursos cênicos que o
caracterizam, e que já estão sendo desmontados para uma pró-
xima encenação. Os temas a serem debatidos nas quatro noites
foram elencados por Brecht e seriam os seguintes:
Primeira noite
Boas-vindas ao filósofo no teatro / os negócios vão bem /
fuga da realidade e para o teatro / há o antigo e há o novo /
o cinema como concorrência / o cinema como um teste da
linguagem gestual / a literarização / a montagem / a reali-
dade / o capitalismo, pokerfaced man2 / a realidade no tea-
tro / as necessidades do filósofo / o apelo / o engagement
Segunda noite
A poética de Aristóteles / o racket das emoções3 / as novas
matérias / o heroi / o tipo C e o tipo P / teatralidade do fas-
cismo / a ciência / fundação do taetro4
Terceira noite
A cena de rua / o efeito V / o teatro de fumar / os exercícios
/ “terror e miséria” / as variantes Shakespeare
Quarta noite
2 Expressão em inglês, ligada ao jogador de pôquer, que durante o jogo
deve manter uma feição inexpressiva, a fim de não revelar se a situação
das cartas que possui na mão é boa ou ruim.
3 Expressão em inglês, conforme explicada por Werner Hecht e Inge Gel� -
lert nos comentários à “Messingkauf”, o racket das emoções é “[...] usada
no sentido de: método criminoso ou de chantagem, truque sujo. Brecht
previa para A compra do latão um poema sobre o papel das emoções no
teatro” (HECHT; GELLERT; 1999, p. 184).
4 “Taetro”, e não “teatro”, é um dos conceitos fundamentais em “A Compra
do Latão”. Este termo será explicado logo a seguir.
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A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
Reconversão em teatro / Chaplin / a comédia / a história
da feira / a arte de representar chinesa / a crítica alegre /
os professores
Ele não pode pagar
(BRECHT, 1999, p. 11-12)
A seguir, Brecht apresenta as personagens, oferecendo
os traços gerais de seus objetivos e das funções que terão no
debate, relacionadas às suas profissões e possíveis zonas de
intervenção no próprio processo teatral:
O filósofo deseja utilizar sem limitações o teatro para os
seus fins. Este deve fornecer imagens fiéis dos processos
entre os homens, e permitir uma tomada de posição dos
espectadores.
O actor deseja expressar-se. Quer ser admirado. É para
que lhe servem a fábula e os caracteres.
A actriz deseja um teatro com uma função social de caráter
educativo. Ela é politizada.
O dramaturgista5 põe-se à disposição do filósofo e pro-
põe-se por as suas capacidades e conhecimentos à dis-
posição para a conversão do teatro no taetro do filósofo.
Espera uma revivificação do teatro.
O maquinista do teatro6 representa o público novo. É ope-
rário e está descontente com o mundo (BRECHT, 1999,
p. 12).
5A
qui, mantivemos o termo “dramaturgista” pois este é assim traduzi�-
do pela edição portuguesa de A compra do latão (BRECHT, 1999). No
entanto, seguindo a proposta do diretor Fernando Peixoto (PEIXOTO,
1979, p. 31), optamos, nas nossas traduções e nos nossos comentários
sobre essa personagem, utilizar o termo “Dramaturgo”. Portanto, neste
artigo, “Dramaturgista” e “Dramaturgo” são diferentes traduções para um
mesmo termo, a partir do original em alemão, Dramaturg.
6V
ale destacar que a edição portuguesa de “A compra do latão” (BRECHT,
1999) opta por utilizar o termo “maquinista do teatro” para se referir a
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Utilizando-se da forma dialógica, Brecht projetava para a
obra que durante quatro noites um Filósofo iria a um teatro para
conversar com os trabalhadores daquele teatro. As finalidades
da visita do Filósofo não seriam, no entanto, ver ou fazer teatro,
pois essa figura não teria ido àquele lugar em busca do teatro,
mas sim de uma ferramenta que o ajudasse a cumprir seus ob-
jetivos, que se realizam fora da instituição teatral. Explica o Filó-
sofo à equipe do teatro:
[...] ando à procura destes acontecimentos entre os ho-
mens, acontecimentos que vocês imitam de alguma ma-
neira, embora com uma finalidade que não é de maneira
alguma a de me satisfazer. Falando claro: ando à procura
de um meio de obter imitações, para determinados fins, de
processos que se produzem entre os homens; oiço dizer
que vocês confeccionam tais imitações; e queria agora sa-
ber se este tipo de imitações me serve. (BRECHT, 1999,
p. 86)
O Filósofo está, portanto, à procura de imitações de acon-
tecimentos sociais. Ao utilizar o teatro para seus propósitos, será
transformado também o próprio teatro. Esse processo de trans-
formação, que se dá a partir da contraposição dos argumentos
entre o Filósofo e a equipe daquele teatro, é pautado não apenas
no embate de ideias, mas também na sua comprovação prática
no próprio palco, já que “a coisa toda [é] concebida de modo a
essa figura logo no início da obra – quando, no original em alemão, o
termo inicial proposto por Brecht é “Iluminador” (BRECHT, 1993, p. 696).
Essa confusão se dá pois, conforme Brecht foi trabalhando ao longo dos
anos em “Messingkauf”, alterava algumas vezes o nome dessa persona-
gem, sem definir qual deles seria o definitivo. Assim, ao longo do original
em alemão, podemos encontrar “Iluminador”, “Trabalhador” e “Técnico
de Palco”. Neste artigo, quando a tradução for nossa, utilizaremos “Ilu-
minador” ou, então, “Técnico de Palco”, quando assim estiver designado
no original em alemão.
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A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
poder ser realizada, com experimentos e exercícios” (BRECHT,
2002, p. 24).
A metáfora que dá nome ao conjunto de textos revela os
objetivos da figura e também aponta para o principal tema que
irá atravessar os debates durante as quatro noites de conversa,
no encontro com os trabalhadores da cena. O Filósofo detalha
ao coletivo do teatro os interesses que o motivaram a aceitar o
convite da Atriz:
FILÓSOFO–Sinto tão fortemente a singularidade deste
meu interesse que me comparo, digamos, a um comer-
ciante de latão que se dirige a uma banda de música
para comprar não o trompete, mas simplesmente latão. O
trompete do trompetista é feito de latão, mas este não vai
querer vendê-lo como latão, pelo valor do latão, a peso. É
assim que ando à procura destes acontecimentos entre os
homens, acontecimentos que vocês imitam de alguma ma-
neira, embora com uma finalidade que não é de maneira
alguma a de me satisfazer. Falando claro: ando à procura
de um meio de obter imitações, para determinados fins, de
processos que se produzem entre os homens; oiço dizer
que vocês confeccionam tais imitações; e queria agora sa-
ber se este tipo de imitações me serve. (BRECHT, 1999,
p. 86)
O que o Filósofo busca é, justamente, estudar a forma
como as pessoas se relacionam entre si, e não necessariamente
o teatro em si mesmo – embora essa procura afete diretamente
o fazer teatral. Os artistas, por sua vez, revelam que procuram
na figura do Filósofo alguém que, a partir de crítica e reflexões,
possa debater com eles novas possibilidades para o teatro que
eles têm feito, pois, apesar de terem participado “[...] nos esfor-
ços para um teatro da era científica [...] as pessoas do teatro
estão descontentes [...] [e o] teatro perdeu bastante” (BRECHT,
1999, p. 11).
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Assim, ainda que o Filósofo precise dos trabalhadores de
teatro para seus propósitos, ele assume, logo ao início da pri-
meira noite, que o teatro em si terá importância secundária em
relação às suas aspirações. O “latão” que o filósofo irá negociar
são as imitações de comportamentos sociais, tomadas como ob-
jetos de análise. Após causar certo desconforto no ambiente,
ao ser acusado de buscar algo que, talvez, não seja arte nem
teatro, o Filósofo desafia seus ouvintes a deixarem de fazer tea-
tro, para fazer “taetro”. Logo na primeira noite da sequência de
encontros noturnos naquele teatro, ele convida:
FILÓSOFO–Mas eu preciso de imitações de acontecimen-
tos da vida para as minhas finalidades. O que fazemos
então?
DRAMATURGISTA–Separadas da sua finalidade, as imi-
tações deixavam de ser teatro, sabes.
FILÓSOFO–Isso talvez não me incomodasse muito. Po-
deríamos dar àquilo que daí saísse um nome diferente, di�-
gamos: Taetro. Todos se riem. Então seria assim: eu con-
tratava-vos a vocês artistas, para uma tarefa não artística.
Não encontrando gente com capacidade de imitar homens
em ação noutro lado, contratava-vos a vocês para minhas
finalidades.
DRAMATURGISTA–Mas que finalidades misteriosas são
essas, então?
FILÓSOFO rindo–Oh, mal ouso dizê-lo. Vão parecer-vos
talvez bastante banais e prosaicas. Pensei utilizar as imita-
ções para finalidades bem práticas, simplesmente para se
descobrir a melhor maneira de se comportar. Compreen-
dem, poderia fazer-se delas qualquer coisa análoga à físi-
ca (que lida com objetos mecânicos), e a partir daí desen-
volver uma técnica.
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A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
DRAMATURGISTA–Portanto são objetivos científicos que
persegues! Realmente, isto não tem nada a ver com arte.
FILÓSOFO apressadamente–Evidentemente que não. E é
por isso que só lhe chamaria taetro
(BRECHT, 1999, p. 87).
O Filósofo revela que seus objetivos não são, a princí-
pio, propriamente artísticos. A seguir, expõe seus objetivos: o
de encontrar a melhor forma de se comportar em sociedade.
Ao apresentar tal argumento, critica aquele teatro que não nos
permite observar a realidade e nela penetrar. E para adentrar
a realidade, sugere que a analisemos de forma científica (por
isso, a analogia à física). Aquilo que o Filósofo denomina por “re-
produções da vida social” poderia ser tratado detalhadamente,
movimento por movimento, fala por fala e, ainda, seria possível
conceber outros possíveis comportamentos, ao mesmo tempo
em que assistimos à exposição de comportamentos e atitudes
sociais no palco.
“Messingkauf”, seguindo os planos de Brecht, trataria en-
tão da transformação do teatro que os artistas têm em mãos em
um outro teatro, ainda a ser conquistado através de debates e
experimentações práticas. Após a primeira noite de encontro na-
quele teatro, em que são estabelecidas as bases e os propósitos
do encontro, para a segunda e a terceira noites Brecht previa
analisar exercícios atorais e demonstrações das novas formas
de trabalho de ator e de atriz. Após as experimentações práticas
e os debates realizados durante os três encontros noturnos an-
teriores, seria na última noite que o “taetro” do Filósofo se con�-
verteria, finalmente, em teatro, porém já diferente do que era ao
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começo. Este seria, segundo Brecht, o “giro dialético” da peça,
conforme o autor aponta em seus Diários de Trabalho:
25.2.41
Os “sonhos” dos poetas são dirigidos exclusivamente a no-
vos espectadores cuja conexão com a realidade é diferen-
te da de espectadores precedentes, enquanto os próprios
poetas são homens desta época. Esta é a torção dialética
na quarta noite do Messingkauf. Aqui o plano do filósofo de
usar a arte para fins didáticos funde-se com o plano dos
artistas de investir na arte seu conhecimento, sua expe-
riência e sua curiosidade social. (BRECHT, 2002, p. 172)
O trabalho teatral representado pelo Ator, pela Atriz e pelo
Dramaturgo é, no início, recusado e colocado em confronto com
os propósitos e o taetro do Filósofo. Desse choque, colocado
em movimento a partir das discussões e das práticas, surgiria
um novo teatro, síntese das contradições anteriores. A obra mos-
traria, então, não apenas o processo de refuncionalização do
teatro, pois “[...] de uma crítica do teatro surge um novo teatro”
(BRECHT, 2002, p. 24), mas também o de transformação dos
sujeitos diretamente envolvidos no processo: os trabalhadores
teatrais.
Para desenvolver a situação ficcional proposta para o pro-
jeto de “A Compra do Latão” e o projeto de organizar sua teoria
teatral, Brecht retoma os principais temas que vinha abordando
nos últimos anos em seus escritos teóricos e dramatúrgicos, bem
como em seus apontamentos quanto à encenação e à atuação.
Em “Messingkauf”, o novo teatro que surgiria a partir das conver-
sas noturnas iria se apropriar do caráter didático da arte teatral,
para tratar dos comportamentos das pessoas e mostrá-los de tal
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A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
forma a poder transformar o mundo. Para isso, um novo tipo de
teatro seria necessário, que ensina e diverte ao mesmo tempo.
Brecht trabalhou por pelo menos 16 anos nesse material,
em sua maior parte durante o exílio, e teve que percorrer diver-
sos países, levando consigo esses escritos. O contexto histórico
em que “A Compra do Latão” foi planejada e seus esboços foram
escritos é, portanto, aquele em que o autor estava enfrentando o
contexto do fascismo e do stalinismo e o debate sobre o realis-
mo “programático”. O autor decide, então, organizar sua teoria
teatral em forma de diálogo (KRABIEL, 2003, p. 194) e, apesar
de já ter escrito outros textos breves em forma dialógica, utilizan-
do-se da “[...] troca de argumentos em discurso e contradiscur-
so” (KRABIEL, 2003, p. 195, tradução nossa) o projeto vai além,
segundo Krabiel (2003):
[...] na medida em que uma estética está surgindo aqui.
Com uma estrutura cénico-dialógica ao longo de quatro
noites – “Todo o conjunto pensado para ser estudado, com
experimentação e exercício” – a obra é concebida tan-
to como uma criação teórica quanto estética. (KRABIEL,
2003, p. 195, tradução nossa)
O que podemos ver com “A Compra do Latão” é que
Brecht começa a organizar de forma mais elaborada suas pro-
postas para um teatro épico, por motivos bastante concretos:
Não mais em condições de gerar experimentos teatrais
com vistas a mudar os meios de produção cultural, Brecht
focou sua atenção em questões de forma e função dramá-
ticas, tentando estabelecer um quadro teórico que fosse
sofisticado o suficiente para se opor ao método de Stanis-
lávski. (SILBERMAN, 2020, p. 123-124, tradução nossa)
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Exilado desde 1933, a perspectiva de um retorno rápido à
Alemanha parecia cada vez mais distante. Há anos na Dinamar-
ca, longe dos teatros de trabalhadores alemães ao qual estava
vinculado antes, Brecht procura fundamentar teoricamente sua
prática teatral épica, destinada a trabalhadores do teatro profis�
-
sionais e também amadores, ligados à militância política comu-
nista e antifascista. Ciente das acusações que vinham tanto da
esquerda como da direita, o dramaturgo projetou um trabalho
que respondesse a seu tempo.
No entanto, exilado e sem teatro, já com a guerra envol-
vendo os países europeus ocidentais, em vários momentos o
dramaturgo via dificuldade para seguir adiante com esse projeto
e, pouco mais de um ano após o início do trabalho em “A Com-
pra do Latão”, relata o quanto o seu isolamento prejudicava o
avanço do trabalho:
19.8.40
Atualmente, tudo que posso escrever são esses pequenos
epigramas, a princípio estrofes de oito versos, e agora só
de quatro versos. Estou deixando de lado o César, já que a
Alma boa não está terminada. Quando abro o Messingkauf
só pra variar um pouco, é como se recebesse uma rajada
de poeira na cara. Pode-se imaginar esse tipo de coisa
vindo sempre a significar qualquer coisa novamente? Essa
não é uma pergunta retórica. Eu seria capaz de imaginá-
-la. E não se trata das vitórias atuais de Hitler, mas pura e
simplesmente do meu isolamento no que diz respeito à
produção. Quando escuto as notícias no rádio pela ma-
nhã, ao mesmo tempo em que leio a Life of Johnson, de
Boswell, e lanço um olhar à paisagem de bétulas no meio
da névoa perto do rio, então o dia antinatural começa, não
sobre uma nota dissonante, mas sobre nota nenhuma.
Esse é o tempo nos intervalos. (BRECHT, 2002, p. 109,
grifos nossos)
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TEATRO NO ENTRE-TEMPOS: A COMPRA DO LATÃO,
A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
O dramaturgo reconhecia seu isolamento quanto à produ-
ção teatral e as limitações que essa situação imprimia em seu
trabalho. No entanto, denomina essa fase de “tempo nos inter-
valos”, ou, traduzindo de outra forma, num “entre-tempos” (“Inz-
wischenzeit”, em alemão), o que nos leva a pensar que, apesar
dos tempos sombrios, continuava seus projetos e seguia traba-
lhando para quando pudesse ter de volta um teatro em suas
mãos.
Apesar desse vislumbre de futuro, é possível ver sinais,
também, de certa impaciência e impotência em algumas notas
de Brecht. Quanto aos seus trabalhos com a dramaturgia no pe-
ríodo dos anos 1940, Brecht registra em seu Diário de trabalho o
quanto estar apartado dos teatros impede a verificação de seus
textos diretamente na cena, conforme ele resume:
30.6.40
É impossível terminar adequadamente uma peça sem um
palco. The proof of the pudding7… Como vou descobrir se,
digamos, a 6ª cena de A alma boa de Setsuan resiste ou
não à súbita compreensão por parte de Li Gung da base
social da maldade de seu amigo? Só o palco pode decidir
entre possíveis variantes. Fora Mãe e Cabeças redondas,
tudo o que escrevi desde Joana não foi testado. (BRECHT,
2002, p. 85)
7 Podemos encontrar em diversos textos de Brecht a expressão britânica
“the proof of pudding…”,. Por exemplo, em uma nota de Katzgraben, em
que o dramaturgo afirma: “No que diz respeito à teoria, confronto com a
lei de ferro (uma das minhas leis favoritas, aliás) de que a prova do pudim
está em comê-lo” (BRECHT, 2015, p. 251, tradução nossa). Segundo o
dicionário Merriam-Webster, a expressão é utilizada “[...] para dizer que
o verdadeiro valor, sucesso ou eficácia de algo só pode ser determina-
do colocando-o à prova, experimentando-o ou usando-o, aparências e
promessas à parte–assim como o melhor teste de um pudim é o ato de
comê-lo” [...] (cf. https://www.merriam-webster.com/words-at-play/origin� -
-of-the-proof-is-in-the-pudding-meaning).
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Mariana Sapienza Bianchi
Ao afirmar que havia passado os olhos por “A Compra do
Latão”, como se estivesse buscando inspiração ou frescor nos
processos de trabalho com as dramaturgias, mas que o que ad-
vém dali não é muito confortante, vemos em certos momentos
as dificuldades para avançar com os trabalhos e a preocupação
de como dar sentido à sua proposta para o material, de como
organizá-lo de forma apropriada, de como ser útil (ele mesmo e
também seu teatro) naquele momento histórico. Apesar disso,
Brecht escreve ensaios, poemas, modelos de exercícios e re-
flexões sobre o trabalho de atuação, buscando contribuir para
a formação de trabalhadores do teatro interessados no teatro
épico. Apesar de tais escritos sobre o trabalho de atuação e os
planos de atividades de ensino do teatro, Brecht continua sem a
possibilidade de experimentar no palco não apenas suas propos-
tas para os atores e atrizes no teatro épico, mas também suas
próprias dramaturgias.
Em certa medida, assim como Brecht estava isolado
quanto à produção teatral, como reconhece numa anotação
de agosto de 1940 durante sua estada na Finlândia (BRECHT,
2002, p. 109), as figuras de “A Compra do Latão” aparecem na
obra num tempo e local indefinidos (apenas sabemos que se
trata de um “grande teatro”), quase que isoladas dos aconteci-
mentos “lá fora” – exceto por um dado concreto, que percorre
todo o material e surge em certos trechos, justamente o motivo
que levou Brecht e tantos outros ao exílio: o nazismo e o “pintor
de paredes” (forma como o dramaturgo se referia a Hitler).
Para a pesquisadora alemã Lydia White (WHITE, 2019),
assim como Brecht se encontrava num “entre-tempos”, também
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TEATRO NO ENTRE-TEMPOS: A COMPRA DO LATÃO,
A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
os contornos propostos para “Messingkauf” apontam para uma
espécie de entre-tempos, quando algo já acabou, mas ainda an-
tes de algo novo começar. Segundo a autora, o isolamento em
que Brecht se encontrava gerou uma espécie de suspensão no
fluxo temporal: “[...] uma pausa em sua produção, uma paralisa-
ção dinâmica dos acontecimentos mundiais, uma espera pelo
retorno, um tempo em que nada é certo” (WHITE, 2019, p. 48,
tradução nossa).
Para o conjunto de textos de “A Compra do Latão”, Brecht
apresenta a situação ficcional para a estruturação da obra da
seguinte maneira:
Num palco, cuja decoração está sendo lentamente des-
montada por um Técnico de Palco, um Ator, um Drama-
turgo e um Filósofo estão sentados em cadeiras ou aces-
sórios. De uma pequena cesta colocada pelo Técnico
de Palco, o Dramaturgo tira garrafas e as desarrolha, e
o Ator serve o vinho em taças e as oferece aos amigos.
(BRECHT, 1993, p. 773, tradução nossa)
Em “Messingkauf”, os trabalhadores do teatro estão tam-
bém num entre-tempos: uma apresentação teatral acabou de ser
finalizada; vê-se, ainda, os vestígios dela, que aos poucos são
retirados, desmontados e levados do palco para, provavelmen-
te, um depósito ou um outro lugar para guardá-los. No momento
em que se encontram no teatro para as conversas noturnas, já
não há uma peça a ser apresentada e a equipe do teatro, junto
com um convidado que não pertence àquele lugar, vão conver� -
sar sobre – e também experimentar, na prática – os problemas
daquele teatro que estavam habituados a fazer e as possibilida-
des de sua transformação.
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Esse entre-tempos oferece à equipe do teatro em “A
Compra do Latão” a possibilidade de revirar coisas que estavam
“empoeiradas”. Esse “entre” que subsiste quando uma apresen-
tação é finalizada e uma próxima montagem é preparada con-
tém a possibilidade do novo teatro, que poderá surgir daqueles
encontros noturnos, como diz Lydia White (2019): “A retirada
dos objetos de cena da última apresentação e a desmontagem
do cenário apontam para um vazio, que pode tanto representar
uma falta quanto abrigar um potencial” (WHITE, 2019, p. 48, tra-
dução nossa).
Sobre a possibilidade transformadora desse momento
de suspensão, destacamos uma das primeiras intervenções do
Dramaturgo na “Primeira noite”, quando pede ao Trabalhador:
“Nós podemos também pedir ao nosso amigo que não desmonte
o cenário tão rapidamente, porque senão vai levantar muito pó”
(BRECHT, 1993, p. 773, tradução nossa). Com a brincadeira do
pó, podemos suspeitar que Brecht não apenas está comentando
sobre o cenário da peça apresentada pela equipe daquele teatro
em “A Compra do Latão” – mas também sobre o teatro no geral:
acumula pó aquilo que é deixado como está, que não é revirado
nem manuseado com frequência, e para o qual não se olha cri-
ticamente; ainda, o que acumula pó são velharias, artefatos an-
tigos, e, quando estas são reviradas, o pó aparece, levanta-se.
O Dramaturgo é uma das figuras insatisfeitas com o tea-
tro que vê e faz, e apresenta ao Filósofo a situação do teatro
que tem feito: “Nas últimas décadas, o teatro fez de tudo para se
colocar como um espelho da vida. Com a ambição de contribuir
para a solução das questões sociais, fez os maiores sacrifícios.
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TEATRO NO ENTRE-TEMPOS: A COMPRA DO LATÃO,
A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
[...] E pelos serviços prestados, pagou perdendo quase toda sua
poesia” (BRECHT, 1993, p. 774, tradução nossa). Segundo uma
breve indicação, naquela primeira noite de conversa a equipe
teria apresentado Rei Lear, de Shakespeare, como menciona o
Filósofo: “FILÓSOFO – Quando o seu Lear amaldiçoou as filhas
[...] ATRIZ – Ele já teve noites melhores!” (BRECHT, 1999, p. 23,
grifo nosso). Apesar de a equipe ter acabado a apresentação
logo antes da chegada do Filósofo, o que compôs a apresen-
tação está coberto de poeira, como se há algum tempo aquele
teatro não tivesse sido limpo – ou, em outros termos, avaliado,
examinado, criticado.
Vale notar, também, que muitas frases do Dramaturgo e
das outras figuras estão no tempo pretérito, o que indica algo
que ficou para trás. Assim diz o Dramaturgo:
Nossos retratos da vida real eram exemplares. O público
podia estudar os melhores humores da alma conosco. Os
interiores de nossa família eram meticulosamente execu-
tados. [...] Não, assim como nenhum receio era obstáculo,
também nenhum esforço foi poupado. (BRECHT, 1993, p.
775, tradução e grifos nossos)
A utilização dos verbos no tempo pretérito também nos
indica que aquilo que é comentado já não está sendo feito; o que
nos leva a imaginar que, de alguma maneira, aquele trabalho
foi interrompido. Além disso, neste trecho e também em outros,
as figuras de “Messingkauf” remetem-se a experiências anterio-
res, trazendo-as para as discussões, de modo a compreendê-
-las, analisá-las e, eventualmente, transformá-las. Nesses casos
em que os comentários sobre encenações e outros exemplos
mencionados estão no tempo pretérito, podemos concluir que
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Mariana Sapienza Bianchi
o momento em que as figuras se encontram no teatro para as
conversas noturnas não é contemporâneo aos momentos das
montagens comentadas. Essas experiências a que elas se refe-
rem ao longo de “A Compra do Latão” parecem ter ficado para
trás e não estar acontecendo naquele momento. Os comentários
aparecem, portanto, como lembranças de um tempo passado,
memórias de práticas teatrais que ocorreram em determinado
momento histórico e que, àquela altura, já não mais estariam
sendo praticadas.
Porém, não podemos concluir como exatamente Brecht
teria decidido amarrar todas essas ideias em uma eventual fi-
nalização de “Messingkauf”. Sabemos, contudo, que a suspen-
são do tempo que caracteriza a obra corresponde à tomada do
poder pelos nazistas. Levado ao exílio, a impossibilidade de
trabalho no teatro leva Brecht a escrever ainda mais sobre o
teatro (WHITE, 2019, p. 51, tradução nossa). Em “A Compra do
Latão”, o dramaturgo vai ainda mais longe, pois distante de um
teatro possível, não apenas escreve sobre o teatro, mas cria um
teatro ficcional, porém totalmente colado na realidade. A discus-
são, assim, toma corpo dentro do próprio espaço teatral, em um
teatro imaginado e visitado por diversas figuras que, através do
trabalho coletivo e colaborativo, projetam e experimentam um
teatro interessado na “[...] ‘vida em conjunto das pessoas’ e sua
imitação” (WHITE, 2019, p. 51, tradução nossa).
É interessante destacar que o “grande teatro” de
“Messingkauf” está vazio, pois o público e outros funcionários do
teatro já foram embora e restam apenas aquelas cinco figuras
no palco. Brecht apresenta “[...] uma desmontagem do teatro
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TEATRO NO ENTRE-TEMPOS: A COMPRA DO LATÃO,
A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
burguês existente diante de fileiras vazias” (MÜLLER-SCHOLL,
2014, p. 33, tradução nossa, grifos do autor), sem a presença
do público. Este, então, não interfere diretamente no desenrolar
dos debates de “A Compra do Latão”, ainda que seja levado em
conta desde o começo, conforme explicitado pelo Dramaturgo,
quando dá as boas-vindas aos colegas: “Espero que vocês se
sintam confortáveis aqui [no palco]. [...] Enquanto falamos sobre
o teatro, podemos ter a sensação de estarmos tendo essa con-
versa diante de um público, por tanto como se nós mesmos esti-
véssemos apresentando uma pequena peça” (BRECHT, 1993,
p. 773, tradução nossa).
É nesse palco imaginado, com um público também
apenas projetado, num momento de entre-tempos, que o teatro
aristotélico e o não-aristotélico são confrontados. O debate so-
bre um “[...] teatro que ainda está por vir” (MÜLLER-SCHOLL,
2014, p. 36) ecoa na metáfora de Brecht da desmontagem do
cenário, de uma peça que já não pode mais ser apresentada
como fora anteriormente. No entanto, ela continua necessária,
pois é a partir das experiências concretas daquela equipe que
se dará o debate e dele é que se poderá fazer algo novo. O novo
teatro épico é fruto do trabalho coletivo e do desmonte do pró� -
prio teatro que Brecht criticava, o teatro aristotélico:
Apenas onde algo foi construído é que algo pode ser des-
montado, cada uso possível do teatro, até mesmo sua des-
truição ou revirada, tem que ser baseada em um determi-
nado teatro e no seu desmantelamento–assim se poderia
descrever o insight de A compra de latão. É justamente a
compreensão da estrutura de um determinado teatro que
permite que ele seja desmontado. (MÜLLER-SCHOLL,
2014, p. 42, tradução nossa)
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Nesse sentido, o teatro épico de Brecht não é a negação
do teatro aristotélico, mas sua superação em termos dialéticos.
As experiências anteriores da equipe do teatro são colocadas
em questão pelo Filósofo, mas é também delas que se parte. Em
“A Compra do Latão”, Dramaturgo, Ator e Atriz são profissionais
no campo teatral, mas o repertório e conhecimento acumulados
ainda são vinculados ao teatro aristotélico e a uma imitação fo-
tográfica da realidade, ainda carregando “[...] o selo da veracida-
de” (BRECHT, 1993, p. 776, tradução nossa). Assim comenta o
Filósofo aos artistas:
As suas representações naturalistas estavam mal feitas.
Durante a representação, vocês optaram por um ponto de
vista que não permite nenhuma crítica verdadeira. As pes-
soas identificavam-se com vocês e se acomodavam com
o mundo. Vocês eram o que vocês eram, e o mundo con-
tinuava como estava. (BRECHT, 1993, p. 769, tradução
nossa)
Em suas peças, a equipe do teatro oferecia ao público
obras que buscavam uma completa identificação entre perso-
nagens e público, ofuscando as possibilidades de análise críti-
ca sobre os comportamentos sociais. Provocados pelo Filósofo,
que os convida a participarem de uma “[...] tarefa não artística
[...] para finalidades bem práticas” (BRECHT, 1999, p. 87), Dra-
maturgo, Ator e Atriz aceitam tomar parte do taetro do Filósofo,
um empreendimento científico, de onde poderiam tirar algo de
proveitoso (BRECHT, 1999, p. 87). O Filósofo, por sua vez, de-
clara que precisa dos conhecimentos da equipe para seus pro-
pósitos, pois eles, com sua arte e maquinarias, podem imitar
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TEATRO NO ENTRE-TEMPOS: A COMPRA DO LATÃO,
A EXPERIÊNCIA TEATRAL DE BRECHT NO EXÍLIO E UM OUTRO TEATRO POR VIR
processos que acontecem entre pessoas – material que o Filó-
sofo deseja analisar.
Ficam estabelecidas, então, as relações entre o grupo de
artistas e o visitante. Será uma necessidade social de ordem
prática, trazida de fora pelo Filósofo, que colocará o teatro aristo-
télico em análise. Aos poucos, a partir da argumentação entre os
participantes da conversa e de experimentos práticos, erguem-
-se das ruínas do teatro que busca a identificação as práticas
teatrais que pretendem historicizar – em outra palavra, distanciar
– os processos sociais apresentados no palco.
Ao final das quatro noites de conversa previstas no proje-
to de “A Compra do Latão”, o taetro do Filósofo seria novamente
convertido em teatro. Brecht escreve:
DRAMATURGO – Até agora, nós estudamos, com toda
nossa capacidade, as várias instruções segundo as quais
você pretendia tornar o teatro tão instrutivo como a ciência.
Você nos convidou para trabalhar no seu taetro, que deve-
ria ser um instituto científico. Fazer arte não deveria ser o
nosso objetivo. Mas na verdade, para cumprir os seus de-
sejos, tivemos que empregar toda nossa arte. Para falar a
verdade, representando como você quer e com as finalida-
des que você quer, ainda estamos fazendo arte. (BRECHT,
1993, p. 752, tradução nossa)
A “Quarta Noite” de “A Compra do Latão”, da qual faz
parte o trecho acima, encerra os encontros noturnos no palco
daquele “grande teatro”. Só assim poderia ter início um novo
teatro, síntese das práticas anteriores da equipe de artistas e do
taetro do Filósofo. Mais do que um final feliz, como proposto por
Fernando Peixoto (1981), parece-nos inexistir um desfecho pro-
priamente: as quatro noites de conversa noturna não resolvem
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um problema, mas apontam um caminho de trabalho, orientado
pela utilidade política e social. Então, caberia à equipe do teatro,
a partir dali, começar a investigar e a experimentar como poderia
seguir o trabalho. Isso iria pressupor, reiniciando os questiona-
mentos, outros conflitos, outras dificuldades e outras soluções
cênicas; afinal, o processo crítico-reflexivo de trabalho teatral
não encontra a solução inconteste, e cada novo material produ-
zido deve ser submetido à crítica e superado: assim era a forma
de trabalho de Brecht.
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