Cultura Portuguesa
Escrita de Viagens
O mundo atual é fortemente determinado pelos meios de comunicação social, e, por isso,
podemos cair na tentação de pensar que o mundo digital tem um grande impacto no ato
de viajar, na medida em que diminui a curiosidade de conhecer e percorrer o mundo com
os seus próprios olhos. No entanto, tal não aconteceu, pois a curiosidade é algo muito
presente ainda nos dias de hoje, contudo, é importante saber distinguir um turista de um
viajante.
Turista – Acabam apenas por fugir da rotina e do seu quotidiano, de forma a distraírem-se
dos horários de trabalho e vivenciarem uma outra realidade. Por norma, os turistas
limitam-se aos destinos turísticos, acompanhados por guias e roteiros.
Viajante – Não se limitam aos locais determinados por terceiros, têm o desejo de ter
liberdade de decidir aquilo que querem fazer. Não se desloca mera e simplesmente de
um lado para o outro, mas que se considera acima de tudo um observador e um agente e
mediador de cultura. Quem viaja está, normalmente, habituado a escrever, de forma a
perpetuar na memória de cada um as experiências que a viagem proporciona. Quer seja
através de livros, crónicas, diários, blogs ou vlogs, os viajantes utilizam a escrita com
intuito de exprimir os seus sentimentos e emoções, com o objetivo de estimular e motivar
os leitores/seguidores a refletir sobre a viagem.
A escrita de viagens é, então, uma escrita condicionada por um olhar pessoal.
Não tem necessariamente de ser uma história verdadeira, pode ser uma construção ou
invenção, um mito ou utopia. A escrita de viagens é o contar de uma história com a viagem
em plano de fundo, é a transmissão de emoções, fazendo com que os outros viajem
através do nosso olhar.
Características da escrita e literatura de viagens:
• O espanto, a surpresa e a novidade
• Deslumbramento e maravilhamento
• A descoberta de outros mundos – “Engana-se quem acha que o destino define a
viagem, o mais importante é a curiosidade do olhar, a procura. (…) É também
possível ir à cidade mais próxima, a outra rua, e viajar com todos os sentidos,
retirando o máximo dessa experiência.”
• A ânsia do conhecimento
• O intuito de ser memória para o próprio e para vindouros – Antigamente a escrita
de viagens relatava viagens que os viajantes faziam, sobretudo marítimas, que
tinham como objetivo permitir a terceiros recordar essa experiência, ter um
testemunho, bem como viajar através desses textos. Nada mudou nos dias de
hoje.
• Construção de uma identidade.
Identidade em viagem (portuguesa)
O tema da viagem encontra-se associado a Portugal, principalmente as viagens
marítimas, já que é o mar que melhor caracteriza a nossa cultura. As ligações marítimas
feitas outrora pelos portugueses são uma das peças fundamentais da formação de uma
identidade nacional.
O melhor exemplo de reflexão sobre o significado de viagem e da identidade de um povo
é “Os Lusíadas” de Luís de Camões, que ilustra perfeitamente esta profunda reflexão
pelos mares e terras. A viagem deixa de ser apenas física e torna-se também interior.
As relações interculturais de hoje em dia são fruto de um percurso realizado pelos nossos
antepassados, que ficou a ser conhecido através da escrita de viagens. É deveras
importante saber e perceber aquilo que foi o passado do nosso país, não para dar vida ao
passado, mas sim para dar significado ao presente.
A identidade é aquilo a que chamamos às diferentes formas de como somos
posicionados pelas narrativas do passado e como nos posicionamos dentro delas. O
objetivo da identidade em viagem é, então, cultivar a ligação que temos com o outro e
vice-versa.
Cultura Portuguesa em viagem
Viagem é a curiosidade do olhar, a procura, a experiência de todos os sentidos. É uma
forma de conhecimento, de diálogo e de mudança.
EXEMPLOS CONCRETOS:
• Afonso Reis Cabral
Numa viagem de 24 dias, pela estrada Nacional 2, a pé, o escritor testa ao máximo
as suas capacidades numa forma de conhecimento físico e espiritual,
demonstrando-nos na perfeição aquilo em que consiste uma viagem. Ao longo
destes dias, Afonso publica no Facebook a sua experiência, com o objetivo de
deixar memória para vindouros e para ele mesmo. Para além disto, acaba por
publicar um livro no final da sua viagem: “Leva-me Contigo”, que retrata ainda
melhor toda esta experiência única, transmitindo as suas emoções de tal forma
que os leitores acabam por viajar também com ele.
Afonso Reis Cabral retrata na perfeição o espanto, a novidade, a representação
dos espaços, cria uma memória e constrói uma identidade.
• José Luís Peixoto
É um dos exemplos mais concretos que temos nos dias de hoje na escrita de
viagens portuguesa, com livros como “Dentro do Segredo”, “Onde” e o seu
podcast “Tanto Mundo”.
- “Dentro do Segredo” – Uma viagem à Coreia do Norte que tinha como objetivo
principal observar o dia a dia das pessoas que vivem neste tipo de sociedades,
bem como encontrar um desafio que o estimulasse, por ser um país de difícil
acesso.
- “Onde” – O livro fala de locais portugueses não se limitando apenas ao relato da
viagem, mas também à interpretação da mesma, descrevendo o que vê e o que
sente, destacando a beleza destes locais de uma forma não tão óbvia.
• Fernão Mendes Pinto
- Peregrinação – FMP escreveu este livro motivado por três aspetos: dar a
conhecer aos filhos os seus trabalhos, encorajar os desesperados e os que veem
em dificuldades e ter quem o ajude a dar graças a Deus.
É uma sátira discreta pois utiliza um discurso que critica pessoas, entidades,
costumes, vícios, etc, num tom sarcástico. “Peregrinação” dá lições de civilização
a Portugal, ao mesmo tempo que vai falando do mundo ocidental, mais
particularmente na China.
• Lobo Antunes
É um dos maiores, mais lidos e discutidos escritores portugueses do mundo
contemporâneo nacional e internacional.
“Cartas de Guerra” é um livro composto por cartas escritas por um homem de 28
anos durante dois anos de guerra colonial em Angola, quando foi obrigado a deixar
a sua noiva e a sua filha recém-nascida, que não tinham como destino serem
publicadas.
Esta história foca-se um pouco mais na história amorosa, deixando os
acontecimentos de guerra para segundo plano. Ao contrário das restantes obras
que estudámos, esta viagem não foi desejada pelo autor e, por isso, os
sentimentos que o mesmo nos transmite ao longo da obra são de desespero pela
saudade e pela crueldade referente à guerra. A partir da leitura deste livro, somos
transportados para uma vivência de sofrimento, uma viagem diferente, sem
grande descoberta, espanto ou novidade, algo que nos faz pensar duas vezes na
nossa vida e nas nossas decisões.
• José Eduardo Agualusa
O tema da escrita de viagens está presente na maioria das obras de Agualusa,
entre elas “Um Estranho em Goa” e “Nação Crioula”, ambas estudadas em aula.
Nenhumas destas obras se insere no género turístico de mera diversão ou lazer,
mas sim na autodescoberta do verdadeiro eu do narrador. São, por isso, obras
onde se encontram presentes todas as características da escrita de viagens: o
espanto, a novidade, a descoberta, a criação de memórias e a construção de uma
identidade.