Coutos o Lendas Aito-brasilifírns
A Criação do Mundo
escrito por Reginaldo Prandi • ilustrado por Joana Lira
Neste livro, ficção e realidfade se
confundem. 0 cenário inicial é a viagem
de Adetutu, uma jovem mãe africana que
é aprisionada e transportada ao Brasil a
bordo de um navio negreiro. Em vez de
apenas lamentar a sua sina, Adetutu faz
da viagem um momento para sonhar com
a criação do mundo. Em seu sonho, os
orixás - deuses de seu povo - aparecem
descritos e transformam-se, eles próprios,
em coadjuvantes. Oxalá, Exu, Xangô,
lemanjá, todos participam dessa
aventura, narrada por meio de mitos
africanos, que aos poucos se tornam
também brasileiros. Enquanto o navio
busca a costa do Brasil, cada um dos
diferentes orixás cumpre seu papel na
tarefa da criação do mundo material, da
humanidade, da cultura e da sociedade.
Numa sacolinha de segredos que leva
pendurada no pescoço, Adetutu guarda
lembranças com que os orixás a
presenteiam. Esses mesmos segredos
serão recuperados por Adetutu trinta
anos depois, quando eles estarão
inseridos na própria cultura brasileira.
Adetutu é personagem de ficção,
mas somente ela. Os contos e lendas
mostrados em seus sonhos fazem parte
C ontos e L en d a s
A f r o - b r a s il e ir o s
A CRIAÇÃO DO MUNDO
^ s /o
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Prezado leitor, prezada leitora,
Este livro faz parte do acervo do Pro
grama Nacional Biblioteca da Escola —
PNBE/2009, composto por várias obras lite
rárias. Elas foram encaminhadas a sua escola
com o objetivo de garantir a vocês, alunos,
alunas, professores, professoras, e demais
profissionais da escola, o acesso à cultura, à
informação, estimulando a leitura.
Essas obras farão parte do acervo da bi
blioteca de sua escola. Assim, é responsa
bilidade de todos zelar por este livro para que
várias pessoas possam se beneficiar deste
bem cultural.
Boa leitura!
O u tro s títu lo s d a C o le ç ã o C o n to s e L en d as:
Contos e lendas afro-brasileiros — A criação do mundo, Reginaldo Prandi
Contos e lendas da Africa, Y ves Pinguilly
Contos e lendas dos cavaleiros da Távola Redonda, Jacqueline Mirande
Contos e lendas do Egito Antigo, Brigitte Evano
Contos e lendas da Europa medieval, G illes Massardier
Contos e lendas das mil e uma noites, Gudule
Contos e lendas da mitologia grega, Claude Pouzadoux
Contos e lendas do nascimento de Roma, François Sautereau
Contos e lendas dos Vikings, Lars Haraldson
Contos e lendas — Heróis e vilões da Roma Antiga, Jean-Pierre Andrevon
Contos e lendas — Os doze trabalhos de Hércules, Christian Grenier
R E G I N A L D O PRANDI
C ontos e L end as
A f r o - b r a sil e ir o s
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Il ust raç ões de Jo an a Lira
Ia reimpressão
C ia . D a s L e t r a s
9
Copyright do texto © 2007 by Reginaldo Prandi
Copyright das ilustrações © 2007 by Joana Lira
Capa
Eliana Kestenhaum
Fotos
Reginaldo P randi
Preparação
Denise Pessoa
Revisão
Elizete Mitestaines
Cláudia Cantarin
Andre.isa Bezerra da Silva
D ados internacionais de C atalogação na P ublicação (c ip )
(C âm ara B rasileira do J.ivro, sp . B rasil)
Prandi, R eginaldo
C ontos e lendas afro-brasileiros: a m a ç ã o do m undo •'
R eg in ald o P randi ; ilu straçõ e s d e J o an a l ira S ão P aulo
C om panhia das Letras, 2007.
is b n 978-85-359-1053-7
I. A fro -b ra s ile iro s C u ltu ra 2. C o n to s 3. C riaç ão
4. L endas 5. M itologia afro-brasileíra i. Lira, Joana. li. T itulo.
07-4459______________________________ CPP-398.23608996QKI
índices para catálogo sistem ático:
I C riação do m undo . M itologia afro-brasilcira:
Literatura folclórica 398.23608996081
2. M itologia afro-brasileira . C riação do m undo Literatura
* folclórica 398.23608996081
2009
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S u m á r io
Prólogo: N o n a v io n e g r e ir o ........................................................................................ 7
1. A T erra se e x p a n d e ...................................................................................................... 13
2 . T em in í c i o a m a io r c r ia ç ã o d a C r ia ç ã o .........................................................2 7
3. Fazendo c a b e ç a s pa r a q u e m vai n a s c e r ...................................................... 3 3
4 . O MAR SE MEXE E SE DEFENDE ...................................................................................4 5
5. U m r io c o r t a a m o n t a n h a ........................................................................................ 5 5
6. C h ega d e c o m id a c r u a ..............................................................................................6 3
7 . A S SEMENTES E A ENXADA ...........................................................................................7 3
8. M u it o i n h a m e p a r a p r e p a r a r ................................................................................81
9 . D o SOPRO, T EM PESTA D E.................................................................................................8 7
10. P o d e r e s para t o d o s ....................................................................................................9 9
11. A vez d a M orte ......................................................................................................... 113
12. C é u e T erra se s epa ram ..................................................................................... 131
E p íl o g o : N a c id a d e d o S a l v a d o r , B a h ia , B r a s il .................................. 139
A p ê n d i c e : O s d e u s e s d a m i t o l o g i a a f r o - b r a s i l e i r a ............................... 1 5 3
N o t a d o a u t o r .....................................................................................................................2 1 9
A g ra d e c im e n to s ............................................................................................................... 2 2 1
tj
PROLOGO
NO NAVIO NEGREIRO
F e c h o u os olhos tentando dormir. Não
conseguia. O balanço do navio negreiro a en
joava, o corpo doía, o corte no pé latejava.
Adetutu não tinha forças para nada, a não ser
chorar. Onde estariam seus pequenos Taió e
Caiandê? Talvez nunca mais os visse, nun
ca mais os abraçasse nem lhes desse o leite
que agora escorria dos seios inchados e dolo
ridos.
Adetutu sentiu nos lábios ressequidos o
sal de suas lágrimas; soluçava. No escuro
do porão apertado e fétido do navio negrei
ro, que se arrastava pelo oceano na noite
sem estrelas, a mulher deitada ao lado fez
um esforço para vencer o peso das correntes
que as uniam e apertou o braço de Adetutu
8
NO NAVIO NEGREIRO
num gesto de conforto. E de dor comparti
lhada pelo destino comum dos que haviam
sido caçados para ser escravos em terras es
trangeiras.
Adormeceu e sonhou com seu mundo e
sua gente, dos quais fora arrancada para sem
pre. Sonhou com os dias em que, no templo,
cuidava de seu deus Xangô, de quem era filha
e sacerdotisa devotada. O pensamento aflito
de que Xangô talvez a tivesse abandonado
se desvaneceu no sonho. Teve a impressão
de ouvir, através das paredes do navio, pa
lavras de encorajamento vindas de Xangô
no soar de um trovão.
O movimento das ondas, agora suave,
embalava seus sentimentos, numa calmaria
que lhe renovava as esperanças. Procurava
recuperar em suas lembranças as coisas
boas que ninguém nunca poderia lhe tirar.
Seus deuses, que sua gente chamava de ori
xás, eram grandese poderosos. Também
haviam sofrido e se desesperado, mas nunca
desistiram de ser felizes, realizados, eternos.
9
►r »
N O NAVIO NEGREIRO
Adetutu também não desistiria, prometeu a
si mesma. Afinal, não tinham lhe tirado tudo;
ela tinha suas memórias, sabia quem era, de
onde vinha. Tinha orgulho de sua origem no
bre, de seus deuses, de seus ancestrais, que
venerava com desvelo sincero. Seu nome,
,/
Adetutu, significava A-Coroa-E-Paciente,
ou A-Princesa-Sabe-Esperar. Ela resistiria.
No sonho embalado pelo sobe-e-desce das
ondas, Adetutu se agarrou aos orixás, que
reacendiam suas esperanças. Juntou-se a
eles no sonho, que não era mais um simples
sonho, e reviveu com fé as aventuras dos deu
ses na criação do mundo, o mundo de Ade
tutu e dos outros africanos que, como ela,
vinham sendo transportados para o Brasil
naquele e em incontáveis outros navios ne
greiros, o mundo de todos nós.
A caminho do cativeiro, Adetutu sonhou
com a criação do mundo.
11
I
I
I
i
I
I
I
1
A TERRA SE EXPANDE
I
A detutu se viu em meio ao nada, como
se coisa nenhuma existisse à sua volta. Es
tava completamente só, sem ninguém com
quem falar, sem nada para fazer. Imaginou
como teria sido a solidão de Olorum antes
da criação do mundo. Porque, antes do iní
cio dos tempos, Olorum, o Ser Supremo, já
habitava a eternidade. Ele vivia só, e tudo
à sua volta era igual, sem diversidade e sem
movimento. Acabou se cansando de tanto
nada, de tanta mesmice, e decidiu fazer um
mundo onde seu olhar pudesse pousar a ca
da instante numa coisa diferente. Queria
que tudo se movesse e se transformasse. Ima
ginou um mundo em que até mesmo a re
petição daria origem a novidades.
14
A T erra se ex pa n d e
Olorum criou os orixás e atribuiu a cada
um deles um de seus poderes, para que jun
tos governassem o mundo em seu nome.
Antes de mais nada, foi preciso criar a
Terra e o firmamento e o que neles deveria
existir. Oxalá, o filho mais velho de Olo
rum, recebeu esse encargo. Olorum entre
gou-lhe o sáco da Criação, que continha
toda a matéria necessária para a produção
■pretendida, e disse:
“Vá e crie.”
Antes de Oxalá partir, Olorum recomen
dou:
“Nada mais será como foi até agora. O
mundo começará a existir. Lembre-se de
que Exu, o mais novo de seus irmãos, re
cebeu de mim o poder da transformação.
Sem esse poder, nada se faz: não se cria e
não se destrói; não se faz crescer ou de
finhar nem mesmo o mais insignificante
dos seres. Faça uma oferenda a Exu, você
sabe do que ele gosta, e ele o ajudará na
criação do mundo.”
15
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Oxalá despediu-se e seguiu estrada afora,
levando o saco da Criação nas costas. O fardo
era pesado, a viagem, longa e cansativa. Ao
passar sob uma árvore de galhos longos e ro
liços, cortou uma vara e improvisou um caja
do para nele se apoiar ao longo da jornada.
Ele criaria o mundo, criaria o Sol e as estre
las , a Terra e a Lua. Povoaria a Terra de mares
e serras e rios e planícies e planaltos e ca
choeiras. Depois cobriria as superfícies de
terra firme com plantas de todos os tipos e
tamanhos. Criaria os animais. A cada pensa
mento que surgia na mente fértil de Oxalá,
a matéria se agitava no saco da Criação, que
parecia ter ganhado um pulsar lento mas re
gular, e ficava cada vez mais pesado. A vi
da já se manifestava no saco da Criação.
Adetutu seguia Oxalá, cuidando para não
ser vista. Já conhecia a história, que a avó
lhe contara muitas vezes, e queria compro
var com os próprios olhos se era mesmo
verdadeira.
De longe, Exu também acompanhava Oxa
16
A T erra se ex pa n d e
lá, na esperança de ser chamado para dar sua
contribuição à grande obre. Ao contrário de
Adetutu, Exu fazia questão de se mostrar.
Mas Oxalá, preocupado demais em elaborar
em sua cabeça o projeto do mundo, nem no
tava a presença de Exu.
A cada passo que avançava na viagem da
Criação, Oxalá ia se convencendo de que
não devia nada ao irmão caçula. Ele criaria
o mundo, essa era sua missão, tinha o poder
para isso. Ele seria grande, pensava, seria
o maior dos orixás, e sua obra, inigualável.
Não tinha por que se preocupar com Exu.
Talvez devesse lhe fazer um agradinho, lhe
dar uns inhames assados e meia cabaça de
aguardente, de que o irmãozinho tanto gos
tava. Mas se ele, Oxalá, estava destinado a
ser o Grande Orixá, por que razão deveria
se preocupar em fazer oferendas ao irmão
para que ele o ajudasse? Faria tudo sozinho,
tinha o saco da Criação! Em breve seria
aclamado por todos. O mundo, agradecido,
lhe renderia as devidas homenagens.
17
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Assim pensando, Oxalá esqueceu Exu
completamente. Não se lembrou de que sem
o controle sobre o movimento, poder que
pertencia a Exu, nenhuma empreitada po
deria dar certo. Nem uma coisinha qualquer,
imagine a criação do mundo! Mas Oxalá era
Oxalá. Já se imaginava o Criador.
Desgostoso com o descaso do irmão, Exu
tratou de lembrá-lo de que sem sua partici
pação nada de concreto resultaria da ima
ginação.
Naquele tempo Oxalá ainda não tinha esse
nome, que na língua dos orixás quer dizer
Grande Orixá. Era chamado de Obatalá, que
significa Senhor-do-Pano-Branco, nome que
ganhara por causa de seu gosto por tudo que
era branco e imaculado, a começar de suas
vestes.
Para mostrar a Oxalá que ele não era tão
auto-suficiente e poderoso como imagina
va, Exu lhe preparou três incidentes.
Primeiro fez Oxalá cair e sujar as vestes
na lama da estrada. Oxalá não suportava a
18
A T erra se ex pa n d e
sujeira, e teve que voltar para casa para se
trocar. Perdeu um tempão.
Adetutu lamentou a sorte de Oxalá e quis
avisá-lo para tomar cuidado com as vasilhas
cheias de azeite de dendê que encontraria
pela frente, mas ficou em dúvida se ele lhe
daria ouvidos. Concluiu que era melhor fi
car quieta.
Mais adiante Oxalá tropeçou numa ca
baça de azeite de dendê, e de novo sua roupa
teve que ser substituída.
Exu a tudo assistia e se divertia muito com
a caminhada acidentada do irmão mais velho.
Adetutu se mantinha escondida atrás do
tronco de uma árvore. Depois de algum tem
po, saiu do esconderijo, convencida de que
os orixás não se perturbariam com sua pre
sença. Foi quando teve a impressão de que
Exu havia piscado para ela, num sinal de
cumplicidade. Adetutu ficou com pena de
Oxalá, imaginando as armadilhas que Exu
ainda ia preparar para ele. Devia intervir,
avisar Oxalá? Desistiu. Sabia que de nada
19
A T erra se ex pa n d e
adiantaria. Oxalá era famoso pela teimosia.
E a história da Criação, afinal, era desse jei
to mesmo.
Na terceira vez, foi com carvão que Oxalá
se sujou. E lá foi ele de novo se trocar. Que
perda de tempo! Mesmo assim Oxalá não
se lembrou de pedir auxílio a Exu. Não lhe
deu nada de presente, não fez nenhuma ofe
renda.
Odudua, outro irmão de Oxalá, que acom
panhava tudo com muito interesse e certa
dose de inveja, resolveu tirar proveito da si
tuação. Uma vez que o desastrado irmão se
mostrava incapaz de cumprir logo sua tare
fa, por que não tomar para si a incumbência?
Afinal, o mundo não podia ficar esperando
Oxalá mudar de roupa indefinidamente. Odu
dua começou a sonhar que bem poderia ser
ele o Criador. Cada vez mais convencido
da incapacidade de Oxalá, Odudua foi se
aconselhar com seu irmão Ifá, um adivinho
que sabia tudo sobre o presente, o passado
e o futuro.
21
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Adetutu o seguiu. Queria ver como o orá
culo funcionava.
Ifá jogou seus dezesseis búzios mágicos
no chão, estudou o desenho que eles forma
ram e disse a Odudua que suas pretensões
poderiam se concretizar. Antes de mais na
da, deveria oferecer a Exu uma porção de
inhames, uma cabaça de aguardente, uma
de azeite de dendê e outra de água fresca,
além de dezesseis punhados de búzios. Ah!,
e uma boa porção de pimenta-da-costa. Ao
se dirigir para o lugar onde o mundo ia ser
criado, deveria levar uma galinha de cinco
dedos em cada pé, um camaleão e quarenta
e uma correntes de ferro, que alguns dizem
ter sido em número de quatrocentas mil e
uma. Mas antes tinha que se apropriar do
saco da Criação, evidentemente.
É claro que todas as coisas mencionadas
até aqui existiam apenas na mente dos deu
ses, pois o mundo de verdade, tal como o co
nhecemos, e tudo o que há nele, ainda não
fora criado.
22
A T erra se ex pa n d e
Odudua deixou o presente para Exu numa
encruzilhada, de onde ele vigiava quem ia
de um lugar a outro, e se pôs a caminho do
lugar da Criação.
Enquanto isso, Oxalá, prestes a cumprir
seu destino, se arrastava sob o sol quente,
levando às costas o saco da Criação, que a
cada passo ficava mais pesado. O calor era
abrasador, e uma sede tremenda lhe secava
a boca.
Oxalá parou sob um dendezeiro e com
seu cajado fez um furo no caule da palmeira.
Do buraco jorrou um vinho fresco e encor
pado. Oxalá bebeu do vinho-de-palma até
matar a sede, mas a bebida lhe deu muito
sono. Ali mesmo, na estrada, Oxalá ador
meceu, embriagado.
Adetutu só não aproveitou para tirar uma
soneca porque não queria perder nada.
Mais que depressa, Odudua, que de longe
acompanhava com o maior interesse os mo
vimentos do irmão, aproximou-se e sacudiu
Oxalá. Constatando que Oxalá não acordaria
23
A CRIAÇÃO DO MUNDO
tão cedo de seu sono entorpecido, Odudua
pegou o saco da Criação, pôs nas costas e
seguiu adiante, deixando Oxalá com seus
sonhos de Criador.
Chegando ao lugar da Criação, Odudua
pegou as quarenta e uma correntes de ferro
que trazia, uniu uma à outra para formar
uma só corrente e por ela desceu até a su
perfície das águas. Do saco da Criação ti
rou um punhado de terra que atirou sobre
as águas, e ali se formou úm montículo, uma
pequena ilhota. Em seguida soltou a galinha
de pés de cinco dedos, e ela se pôs a ciscar,
espalhando por todos os lados a terra do
montículo. Uma grande superfície sólida
foi se formando sob os pés da galinha. O
chão alastrou-se até onde os olhos de al
guém já não podiam enxergar.
Maravilhada, Adetutu, que se lembrava
bem dessa passagem, exclamou junto com
Odudua:
“Ilê Ifé.”
Na língua dos iorubás, o povo de Adetutu,
A T erra se ex pa n d e
Ilê Ifé quer dizer A Terra se Expande. Se
gundo suas tradições, a cidade de Ilê Ifé es-
»
taria localizada no lugar desse episódio da
Criação. Ilê Ifé, que hoje é uma cidade da
Nigéria, é considerada pelos iorubás tra
dicionais a origem do mundo, de onde o ho
mem se dispersou pela Terra. É a cidade sa
grada dos iorubás, o umbigo do universo.
Desejando verificar se o mundo estava
suficientemente sólido, Odudua fez descer
pela corrente o camaleão, que andou com
segurança pela Terra e voltou são e salvo
às suas mãos. Com outros punhados do pó
da Criação, foi acrescentando ao mundo tu
do o que nele deveria existir.
Pronto! O mundo estava criado. Satisfei
to, Odudua voltou para a casa do Pai para
lhe dar a boa-nova.
Adetutu foi transportada para o alto, e de
lá viu o mundo acabado de nascer. Avistou
de longe uma terra verdejante, cortada por
rios azuis, que seu coração dizia ser o lugar
onde no futuro ficaria seu país. Viu o lugar
25
A CRIAÇÃO DO MUNDO
onde, um dia, seus ancestrais fundariam a
aldeia em que ela nasceria. Ali seria criada,
casaria e teria filhos. Naquele lugar seria
feliz, até o dia em que os caçadores de escra
vos mudariam sua vida por completo.
Lá do alto, ela achou tudo tão bonito que
não se conteve e aplaudiu a Criação. Exu,
que lhe fazia companhia, se sentiu lisonjea
do pelo aplauso, que julgou ser dirigido ex
clusivamente a ele. Em retribuição, deu a
Adetutu um saquinho de pano com a boca
amarrada por um cordão'de palha-da-costa.
“É para guardar segredos”, ele disse.
Ela agradeceu e pendurou a sacolinha no
pescoço.
No chão do navio, Adetutu se virou. Dor
mia agora.
26
2
TEM INÍCIO A MAIOR
CRIAÇÃO DA CRIAÇÃO
A acordar, Oxalá não podia acreditar
no que seus olhos viam. Estava tudo muda
do. O mundo agora existia!
Onde antes não havia nada, viam-se cam
pos, rios, mares. Plantas de todas as formas
e tamanhos forravam o chão da Terra, peixes
enchiam os mares de formas e movimentos,
bandos de pássaros animavam os ares em
revoadas coloridas e sonoras. A luz estava
em todos os lugares. O Sol, no firmamento,
iluminava o dia. E depois do dia vinha a noi
te, e com ela o escuro, quebrado pelo cla
rão da Lua e pelo cintilar das estrelas. Oxalá
se comoveu com tanta beleza e se aqueceu
no calor do universo recém-nascido.
De repente se deu conta: quem era o
28
T e m in íc io a m a io r c r ia ç ã o d a C r ia ç ã o
responsável por aquilo tudo, se ele dormira
nas últimas horas? Procurou o saco da Cria
ção e não o achou. Mais que depressa, Oxa
lá tratou de voltar à casa de Olorum. No ca
minho, ao passar por uma encruzilhada, deu
de cara com Exu terminando sua refeição,
lambendo os beiços de prazer. Zombeteiro,
Exu disse:
“Os inhames que ganhei de Odudua esta
vam soberbos. E você, meu caro irmão mais
velho, apreciou o vinho-de-palma?”
Oxalá não precisou ouvir mais nada: fora
passado para trás. Enganado por seu próprio
orgulho e presunção.
Adetutu sentiu pena de Oxalá e resolveu
lhe fazer companhia no caminho para o pa
lácio de Olorum. Mas Oxalá não lhe deu aten
ção, estava deprimido demais. Ou será que
ele não percebia que ela estava ali, será que
ela ainda não existia?, pensou a menina.
Na casa de Olorum, Oxalá foi duramente
repreendido.
“Nunca mais beberá vinho-de-palma nem
29
T e m in íc io a m a io r c r ia ç ã o d a C r ia ç ã o
comerá nada que se extraia da palmeira de
dendê”, determinou o Ser Supremo, como
castigo. “Nem você, nem nenhum de seus
descendentes.”
Oxalá estava arrasado, evidentemente, e
não ousava olhar o Pai nos olhos. O Ser Su
premo então disse:
“Ainda falta o mais importante no mundo.
Eu pus na sua cabeça a semente de uma idéia
que não pus no saco da Criação. Apesar de
tudo, você é meu primogénito e há de ser
lembrado como Oxalá, o Grande Orixá.”
Oxalá sentiu que alguma coisa se mexia
em sua cabeça. Então o Pai lhe disse:
“Vá e crie.”
Oxalá partiu com destino ao mundo.
Olorum mandou chamar Exu e ordenou:
“Acompanhe seu irmão mais velho. Es
pero que desta vez ele não beba. E você, na
da de trapaças.”
Oxalá tratou de passar bem longe do den-
dezeiro. Compenetrado, sempre lembrando
que dessa vez devia tentar ser humilde, Oxalá
31
A CRIAÇÃO DO MUNDO
depositara na primeira encruzilhada, como
presente para Exu, um cabrito, quatro galos,
cebolas, azeite de dendê, sal, pimenta e noz-
de-cola, uma cabaça de aguardente, uma de
mel e outra de água fresca. Um verdadeiro
banquete dos deuses, que Exu adorou.
Adetutu sentia que suas pernas e braços,
seus pés e mãos, todas as partes de seu cor
po, enfim, eram apertadas por mãos vigoro
sas, como se alguém a estivesse modelan
do, ajustando aqui, dando forma ali. Depois
sentiu no rosto o calor "de um sopro e ouviu
palavras de ordem que a chamavam para a
vida.
Oxalá estava criando o ser humano.
32
3
FAZENDO CABEÇAS
PARA QUEM VAI NASCER
cV / o m as próprias mãos, Oxalá amas
sou o barro e com ele modelou os bonecos
aos quais deu a vida com o sopro de Olorum,
transformando-os em seres humanos. Mas
isso também não foi nada fácil. O Criador
fracassou várias vezes antes de chegar à ma-
téria-prima mais adequada para a miodela-
gem dos humanos.
Primeiro os fez de ar, mas eles se desvane
ciam, sem consistência. Com água também
não funcionou: as criaturas lhe escorriam
por entre os dedos, caíam num jorro e se in
filtravam no solo.
Oxalá achou que tinha que dar mais soli
dez ao ser humano e tentou fazê-lo de pau.
Agora sim, os novos seres se mantinham
34
Fazendo c a b e ç a s pa r a q u e m vai n a s c e r
firmes e não lhe escapavam das mãos. Só
que ficaram duros demais, quase nem po
diam se mexer.
E assim Oxalá foi experimentando tudo
quanto era material que lhe parecia apro
priado. De ferro, os modelos do ser humano
ficaram pesados demais. De massa de inha
me ficaram,leves, mas muito moles.
Adetutu ficou tentada a sugerir a Oxalá
que pedisse ajuda a Exu, mas decidiu não
se meter na Criação. Exu insistia em seu
ouvido:
“Diga a ele para me pedir ajuda, diga.”
Ela preferiu ficar quieta. Mas Oxalá, tal
vez ciente da conversa de Exu com Adetutu,
chamou o irmão e lhe deu de presente um
galo preto bem gordo para reforçar a ofe
renda anterior.
Passou-se algum tempo e nada aconteceu.
Frustrado e com medo do fracasso, Oxalá
se sentou às margens de um lago para des
cansar e refletir.
Nanã, que habitava o fundo daquelas águas,
35
A CRIAÇÃO DO MUNDO
veio em socorro de Oxalá. Quando Nanã
saiu do lago, a visão de seu corpo feito de la
ma iluminou a mente de Oxalá.
“Você, que é a mais antiga de nós, se move
tão bem com seu corpo de lama. E como é
bela!”, ele disse. “De lama poderia ser tam
bém o corpo dos humanos.”
Adetutu imaginou seu corpo feito de lama
e avaliou que não ficara nada mau.
Nanã disse:
“Pode usar a lama e fazer quantos huma
nos quiser. Mas se um dia não tiver mais
um bom uso para suas criaturas e decidir se
desfazer delas, terá que me devolver a ma-
téria-prima.”
“Feito”, concordou Oxalá, satisfeito com
o trato, achando que nunca teria de devolver
nada a Nanã.
Então, com uma porção de barro do fundo
do lago, Oxalá modelou sua criatura e lhe
deu vida. Fez corpo, cabeça e membros. Re
cheou com o coração, os pulmões, as tripas
e os demais componentes que preenchem
36
Fazendo c a b e ç a s pa r a q u e m vai n a s c e r
a barriga. Fez dois modelos quase iguais.
Num, pôs pênis e testículos; no outro, ová
rios, útero e vagina, e seios cheios de leite.
Para que a criatura dotada de pênis pene
trasse a criatura dotada de vagina, e suas
sementes se misturassem e produzissem ou
tras criaturas, sem mais trabalho para Oxalá,
que assim poderia descansar.
Caprichou o quanto pôde. Só esqueceu de
pôr alguma coisa dentro da cabeça.
Dotados de vida, os seres, que foram cha
mados homem e mulher, não pensavam, não
agiam, nem mesmo se interessavam um pe
lo outro. Bela reprodução!, pensou Oxalá,
desolado.
Foi consultar o adivinho Ifá para saber
onde errara.
Seguia acompanhado de Adetutu, que se
gurava sua mão e procurava encorajá-lo.
O resultado da consulta ao oráculo foi
bastante promissor. Disse Ifá:
“Está tudo certo, meu irmão. Você ape
nas esqueceu de dar a cada ser humano um
37
A CRIAÇÃO DO MUNDO
destino, as vontades e o raciocínio próprio.
Basta completar sua obra, e ela funcionará.”
“Ah, bom!”, reagiu Oxalá, aliviado.
Oxalá pagou a Ifá duas porções de azeite
e dezesseis fieiras de búzios pela adivinha
ção, despediu-se e, depois de deixar na en
cruzilhada mais um agradinho para Exu, foi
à casa de outro irmão, o oleiro Ajalá.
Combinaram que a partir de então, para
cada homem ou mulher, Ajalá forneceria o
recheio do crânio, que conteria o destino e
a personalidade de cada um.
Assim foi feito.
Bastou que as criaturas recebessem o que
está dentro da cabeça para saírem pelo mun
do como seres humanos prontos para a vida.
De seu palácio, Olorum sorriu para Oxalá,
agradecido, e se retirou para seus aposentos.
Oxalá estava cansado, muito cansado, mas
a obra, enfim, estava feita.
Antes de voltar para casa, deu a Adetutu
um caracol, que ela guardou na sua saco-
linha de segredos.
38
Fazendo c a b e ç a s pa r a q u e m vai n a sc e r
E desde então os homens se multiplicaram
e tomaram conta da Terra. Hoje são seus se
nhores. E Oxalá pôde descansar.
A labuta do oleiro Ajalá, entretanto, pros
segue até os dias de hoje: antes de nascer,
cada ser humano deve passar na olaria de
Ajalá e escolher uma cabeça para si. O tra
balho de Ajalá não cessa, sempre é preciso
fazer novas cabeças. Nunca pára de nascer
gente.
Ajalá faz as cabeças de barro e depois as
cozinha no forno. Nem sempre a tarefa é
bem-sucedida. Ajalá às vezes bebe demais
e erra o ponto, de modo que algumas ca
beças saem meio cruas, outras cozidas de
mais, quando não tortas, ocas, malforma-
das. Na pressa de nascer, os seres humanos
pegam qualquer cabeça. Pobre de quem nas
ce com uma cabeça daquelas...
Adetutu, ao se lembrar desse pormenor,
chacoalhou bem sua cabeça, querendo se
certificar de que era boa. “Louca eu não sou”,
ela concluiu, satisfeita.
A CRÍAÇÃO DO MUNDO
Teve pena de Ajalá. Tanta trabalheira, e
quase ninguém se lembrava dele, poucos lhe
faziam festa. Adetutu tinha aprendido que
Iemanjá cuidava das cabeças. Alguém lhe
dissera: “Ajalá faz, Iemanjá conserta”. En
tão ela se lembrou da história.
Houve um tempo em que Iemanjá foi ca
sada com Oxalá. Ela tinha uma missão
muito bem definida: tomar conta de Oxalá
e de sua casa. Devia cuidar para que nada
lhe faltasse, dando-lhe o carinho e as hon
ras merecidos por aquele que havia criado
a humanidade. Afinal, eram os homens que
alimentavam os deuses, e seu Criador me
recia um lugar muito importante entre os
orixás.
Iemanjá achava que a missão não lhe dava
o prestígio merecido. Cuidar de Oxalá era
40
Fazendo c a b e ç a s pa r a q u e m vai n a sc e r
um encargo honroso, mas para ela isso era
pouco, queria uma tarefa grandiosa, em que
pudesse usar de poderes que os demais in
vejassem. Oxalá era o pai de todos os seres
humanos, não era? Então, sendo casada com
ele, ela era a mãe. Queria honra maior? Ela
queria. Queria ser chamada de mãe, sim,
mas que fosse por seu próprio mérito, e não
por ser casada com o Criador.
Enquanto cozinhava para Oxalá, prepara
va seu banho, alvejava suas túnicas brancas,
Iemanjá falava sem parar. Queria tanto fazer
alguma coisa de grande, ter uma missão que
a tornasse indispensável, estar verdadeira
mente à altura de Oxalá, o Grande Orixá.
Tanto falou no ouvido de Oxalá, tanto re
clamou, que ele enlouqueceu.
E agora? Iemanjá se assustou. O que di
riam os outros? Em vez de cuidar de Oxalá,
ela o fizera adoecer. Certamente seria cas
tigada, nunca teria os poderes que almejava.
Iemanjá tratou de curar a cabeça de Oxalá.
Com a ajuda de Exu e Ossaim, que sabia tudo
41
5
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M
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rv.v.v.v.v.v.t
Fa zen d o c a b e ç a s pa ra q u e m vai n a sc e r
sobre o poder curativo das plantas, Iemanjá
preparou banhos e unguentos para a cabeça
de Oxalá, fez oferendas, cuidou para que ele
repousasse num ambiente todo branco, limpo
e silencioso, rezou. Em pouco tempo Oxalá
ficou bom da loucura, sarou.
Olorum gostou do resultado e ordenou que,
a partir de então, Iemanjá cuidasse da ca
beça de todos os homens e mulheres. De
monstrara ter talento para isso. Muitos ti
nham a cabeça malformada e precisavam
de ajuda.
Agora sim. Os humanos sabiam que Ie-
manjá tinha força para ajudar os loucos, os
deprimidos, os de mente fraca. E como de
louco todo mundo tem um pouco, não houve
quem deixasse de adorar Iemanjá. Presentes
e festas nunca lhe faltaram. Os humanos
dançavam para ela e a chamavam de Mãe
das Cabeças, Mãe da Humanidade.
Adetutu agradeceu a Iemanjá por manter
sua cabeça em bom estado. Apesar de todo
o sofrimento a que estava submetida desde
43
A CRIAÇÃO DO MUNDO
que os caçadores de escravos a tinham rap
tado , apesar de toda a incerteza que povoava
os seus dias, Adetutu se mantinha lúcida e
esperançosa. Iemanjá ficou feliz por ter si
do lembrada, e deu um peixinho de prata a
Adetutu, que o guardou na sacolinha. Pen
sou como eram tantas as histórias de Ieman-
já. E continuou a sonhar com a Criação.
44
O MAR SE MEXE E SE DEFENDE
( 3 sonho de Adetutu foi interrompido
por terríveis solavancos; o navio negreiro
enfrentava a fúria do mar. Na luta contra as
águas enraivecidas, o navio jogava sua car
ga humana de um lado para outro. Os negros
que atulhavam os porões do navio, acorren
tados uns aos outros, gritavam de medo e
de dor quando, num tranco mais forte, car
ne e ossos eram feridos pelos grilhões ata
dos a pulsos e tornozelos.
O mar, a força do mar, pensou Adetutu,
nenhum homem podia dominar. Um dia ela
contaria às crianças muitas histórias sobre
o mar, histórias de Iemanjá.
Contaria que, na criação do mundo, o
sopro de Olorum provocara uma grande
46
O M AR SE MEXE E SE DEFENDE
explosão, e a matéria-prima do saco da Cria
ção, liberada por Odudua, lançara no es
paço sem forma forças violentas que pro
vocaram uma tormenta de águas e gases.
Adetutu assistia agora ao desenrolar de
pormenores que não vira antes. A génese
do mundo estava sendo recontada.
As águas se debatiam contra rochas que
nasciam do nada e abriam no chão cavida
des profundas. A água encheu as fendas
imensas, formando os mares e oceanos,
cujas profundezas foram habitadas por
Olocum. Parida por Olocum no abismo es
curo do oceano, Iemanjá emergiu envolta
em prata e azul, coroada por Oxumarê, o
arco-íris.
Cercada de algas e estrelas-do-mar, pei
xes, corais, conchas de madrepérola, Ieman-
já se estabeleceu na superfície das águas
junto ao continente. Era a nova senhora do
mar, a filha dileta de Olocum.
Iemanjá casou-se com seu irmão Agan-
ju, e dessa união nasceu Orungã. Um dia,
47
A CRIAÇÃO DO MUNDO
aproveitando-se da ausência do pai, Orungã
raptou e violentou a mãe. Aflita e entregue
a total desespero, Iemanjá desprendeu-se dos
braços do filho incestuoso e fugiu. Orungã
a perseguiu. Quando ele estava prestes a al
cançá-la, ela caiu desfalecida. Então seus
seios cresceram desmedidamente, a barriga
inchou até ficar do tamanho do mundo e se
rompeu. Do ventre aberto nasceram os orixás
que ainda não haviam nascido.
A Criação prosseguia.
No fundo da Terra o fogo foi dominado
e entregue ao poder de Aganju, o mestre dos
vulcões, por onde o fogo aprisionado ainda
respira.
Chamas ardiam na superfície não aquosa
da Terra, tornando-a inabitável. Oxumarê
transportou água para cima, criou as nuvens
48
O M AR SE MEXE E SE DEFENDE
e delas a chuva, que lançou sobre as terras
em chamas. O fogo foi debelado, o solo, ume-
decido. Com as cinzas do incêndio primor
dial, Ocô, outro filho de Iemanjá, fertilizou
os campos. Estava tudo preparado para o
nascimento das ervas, frutos, árvores, bos
ques, florestas.
Nas terras baixas em que a água ficou es
tancada, nasceram os pântanos de Nanã, e
nos pântanos, a peste, cujo controle foi da
do a Omulu, filho de Nanã adotado por Ie-
manjá. Depois, penalizada com as marcas
de varíola no corpo de Omulu, Iemanjá lhe
deu também todas as pérolas do mar.
Nas águas dos rios, cascatas e lagoas foi
morar a bela Oxum, orixá das águas doces,
filha dourada de Iemanjá.
Quando tudo isso estava feito, Oxalá, res
pondendo diretamente às ordens de Olorum,
criou o ser humano. E o ser humano povoou
a Terra, e os orixás foram cultuados pelos
humanos. Depois vieram outros tempos, e
os orixás mais uma vez foram convocados
49
A CRIAÇÃO DO MUNDO
para mudar aqui e ali, aperfeiçoando a obra
da Criação.
No começo, por exemplo, o mar feito por
Odudua era calmo como um imenso espelho
imóvel a refletir sem cessar o firmamento.
Mas Iemanjá se desgostou com o modo co
mo seus filhos homens tratavam suas águas,
e mudou o mar.
O mar era bonito, mas tudo o que era lixo
os homens jogavam nele.
Até cuspiam em Iemanjá, quando não fa
ziam coisa muito pior, pensou Adetutu, en
vergonhada.
O reino de Iemanjá ficou imundo e feio.
Os peixes foram escasseando, as algas per
deram o esplendor, as conchinhas que co
briam as areias da praia rarearam. Baleias,
golfinhos, polvos, cavalos-marinhos, focas,
caramujos, lulas, siris, lagostas, ostras, ma
riscos, mexilhões e as aves maravilhosas
que vivem do mar, enfim, todas as criaturas
do reino de Iemanjá tiveram sua casa profa
nada pelo descaso dos humanos.
50
O M AR SE M EXE E SE DEFENDE
Iemanjá vivia suja, sua casa estava sem
pre cheia de porcarias. Assim seus filhos
peixes não conseguiriam sobreviver. Da
quele jeito não dava para continuar.
Olorum ouviu os reclamos de Iemanjá
e deu-lhe o dom de devolver à praia as
coisas ruins que humanos jogassem em suas
águas.
Desde então as ondas surgiram no mar
para revolver as águas e varrer as praias,
devolvendo à terra o que não é do mar. E
surgiram as marés para mostrar que Iemanjá
vive. A superfície do mar sobe e desce, num
movimento que jamais se estanca; o peito
de Iemanjá sobe e desce em seu perpétuo
respirar.
Agora, com ondas, vagas, vagalhões, res
sacas, Iemanjá defende seu reino. Protege
as criaturas marinhas e muitas vezes castiga
os humanos com dureza.
Ela afoga os humanos atrevidos e im
prudentes e lança seus corpos inertes à
praia. Dos homens mais bonitos e fortes
51
4V /A
A t
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O M AR SE MEXE E SE DEFENDE
que não voltam das águas, dizem que fo
ram levados por Iemanjá para o fundo de
seu ser.
Os pescadores que vão ao mar em busca
de sustento a temem. Sabem que dependem
da boa vontade de Iemanjá. Eles pedem li
cença para entrar em seu reino, fazem fes
tas nas praias, oferecem flores, perfumes
e pentes e tíido o mais que é bonito e faz
feliz o coração de uma mulher. As moças
que namoram os pescadores e as jovens
esposas, igualmente temerosas, pedem a
Iemanjá que não leve o amado para o fundo
do mar. Além disso lhe dão belos presentes,
de mulher para mulher, e dançam para ela.
Homens e mulheres adoram Iemanjá e a
chamam de mãe, e ela os aceita como fi
lhos. Eles a chamam de Iemanjá, que na
língua dos orixás quer dizer Mãe dos Pei
xes. Ela também é chamada de Odoiá, que
quer dizer Mãe do Rio, e de lá Mi, que é o
mesmo que dizer Minha Mãe, Nossa Mãe,
ou Nossa Senhora.
53
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Na solidão líquida do Atlântico, as ondas
aos poucos se acalmaram, e o navio negrei
ro retomou seu curso determinado em busca
da costa do Brasil, levando Adetutu e os
deuses africanos que a acompanhavam em
seu sonho.
UM RIO CORTA A MONTANHA
N o s primeiros tempos o mundo era
plano. Adetutu imaginou-se caminhando
naquela planura que não tinha fim. Nunca
se cansaria: nenhuma colina para subir, ne
nhumaladeiraparasuperar. Perdidaemseus
pensamentos, ela avistou ao longe umamu
lher que corria emsua direção. Adetutu fi
cou apreensiva. Como olhar ansioso, pro
curou umlugar para se esconder. Não deu
tempo; a mulherjá estava quase ali.
Amulher passou por ela tão espavorida
que nem notou sua presença. Era bonita,
corpocheio, seios grandes. Nacabeça, aco
roa de rainha. Seu rastro era de água. De
que estaria correndo?
LogoAdetututeve aresposta. Umhomem
56
U M RIO CORTA A MONTANHA
se aproximava em perseguição à mulher.
Era um rei, a coroa bem o demonstrava, cer
tamente o esposo da fugitiva. •»
Adetutu se lembrou: um velho adivinho,
ou babalaô, como se chamava o sacerdote
do oráculo de Ifá, lhe contara essa história,
a da fuga de Iemanjá perseguida por seu
marido Oquê.
Iemanjá, a filha de Olocum, se casara com
o rei Oquê sob certas condições. Iemanjá,
mulher bonita, cheia de predicados, tinha
seios muito grandes e proibiu o futuro ma
rido e todos os que vivessem em sua casa
de tocar nesse assunto. Era sua condição
para se casar. Que não se falasse de seus
seios, que haviam alimentado muitos filhos,
orixás e humanos, que nutriram a vida em
seu nascedouro, ela que era mãe dos deuses
e mãe da humanidade.
Ele concordou plenamente, mas também
impôs seus termos: Iemanjá não poderia fa
zer nenhuma referência aos seus testícu
los exuberantes. Também não falaria de sua
57
A CRIAÇÃO DO MUNDO
mania de beber demais, nem entraria nos
aposentos em que ele guardava suas tralhas
de caça.
O pacto foi feito. Esses eram seus tabus,
suas proibições. Casaram-se. Iemanjá dei
xou o reino aquoso de sua mãe e foi viver
no continente , no palácio de Oquê.
Um dia, Oquê voltou para casa embria
gado, tropeçou em Iemanjá e vomitou no
chão da sala. Iemanjá o reprimiu, chaman-
do-o de bêbado imprestável.
Oquê perdeu o domínio das palavras e
ofendeu Iemanjá com comentários gros
seiros sobre os imensos seios dela. Ieman-
já lembrou-o dos defeitos dele, de como
sua genitália era exagerada. Entrou no quar
to privativo dele e criticou a confusão que
lá reinava.
Não havia reconciliação possível. Todos
os tabus estavam quebrados. Oquê quis ba
ter em Iemanjá, e ela fugiu.
Iemanjá correu em direção ao mar, para
a casa de sua mãe. Oquê foi em seu encalço.
58
U m r io c o r t a a m o n t a n h a
Na fuga Iemanjá caiu. Oquê se aproxima
va cada vez mais.
Adetutu presenciou a queda. Aconteceu *
tão perto que ela se perguntou se não deveria
ajudar Iemanjá a se levantar. Não teve tempo.
Os seios de Iemanjá se avolumaram ainda
mais, e deles brotaram dois riachos, que se
juntaram e formaram um rio caudaloso. E
o rio tomou o rumo do mar. Era Iemanjá, o
rio, que corria para a casa da mãe.
Mas Oquê ultrapassou Iemanjá e ime
diatamente se interpôs no caminho do rio.
Bem onde ele se postou, a terra começou
a tremer e a se levantar. Uma montanha se
formou, impedindo o rio de seguir seu cur
so. Era Oquê, a montanha, que tentava de
sesperadamente impedir a fuga de Iemanjá
para o mar.
Iemanjá não se deu por vencida: gritou
pedindo ajuda a seu filho Xangô.
Xangô veio em meio a uma tempestade
socorrer a mãe. Anunciado pelo trovão, che
gou envolto em fogo. Trazia em cada mão
59
U m r io c o r t a a m o n t a n h a
um machado duplo, de duas lâminas, e com
os machados lançava raios sobre Oquê.
À chegada de Xangô, Adetutu se atirou
ao chão, se prosternando. Ele era seu orixá,
seu deus, o princípio de sua vida e a razão
de sua existência. Fora criada para ser sua
sacerdotisa, e privilégio maior que aque
le, estar ali junto a Xangô, não poderia exis
tir. Diante de seus olhos maravilhados,
Xangô, o orixá do trovão, vinha para pra
ticar sua justiça.
Então, sob os raios e trovões de Xangô,
a montanha se partiu em duas. Um desfila
deiro se formou entre as metades separadas,
e Iemanjá, o rio, passou por ele sem difi
culdade. Foi adiante e alcançou o mar. Com
a ajuda de Xangô, Iemanjá chegou à casa
de Olocum, sua mãe.
Mais tarde, muito mais tarde, Adetutu ou
viria contar que Iemanjá, a senhora do gran
de rio, herdara da mãe o mar e tudo o que
nele existe, e que agora era assim conheci
da: Rainha do Mar, Senhora do Oceano.
61
A ( UI M) 111) Ml MM)
A Terra nunca mais foi plana. Oquê pro
liferou por toda parte; as montanhas ajuda
ram a compor a geografia do mundo como
ele é hoje: cordilheiras, serras, desfiladeiros
profundos e vales acolhedores. Desde então
muitos rios correm pelas planícies, procu
ram passagens estreitas entre montanhas,
lançam-se finalmente ao mar, com o senti
mento de alívio de quem, cansado do per
curso, chega finalmente em casa.
62
CHEGA DE COMIDA CRUA
-fc/rn épocas remotas, havia um feiti
ceiro a quem Exu ensinara muitos segredos.
O feiticeiro poderia usá-los como bem en
tendesse. Com eles, poderia praticar o bem
e o mal, mas seria o único responsável por
seus atos. Exu não se comprometia.
Os segredos pertenciam, obviamente,
aos orixás, que exigiram do feiticeiro, co
mo compensação, uma grande festa. Mas
deveria ser uma festa com alguma novi
dade, com comidas diferentes daquelas a
que orixás e homens estavam habituados.
Eles estavam cansados de só comer frutas,
favas e sementes cruas, peixes tirados di-
retamente das águas, carnes ainda san
grando. Naquele tempo a cozinha não era
64
C h e g a d e c o m id a c r u a
conhecida, nada se cozinhava, comia-se
tudo cru. Nem fogo o homem sabia fazer.
E agora os deuses estavam enfarados des
sa comida e queriam coisa diferente. Mas
o quê? Nem eles sabiam.
Reconhecendo a própria incapacidade de
satisfazer a vontade dos orixás, o feiticeiro
foi até uma encruzilhada e pediu ajuda a
Exu, não sem antes depositar ali, em oferen
da, sete faisões, água fresca e aguardente.
Para si próprio havia caçado outros três
faisões, mas não querendo comê-los na
quele momento, escondeu-os, depenados
e estripados, entre umas pedras e os cobriu
com gravetos e folhas secas para evitar que
atraíssem algum animal faminto. E ficou
à espera de Exu.
Adetutu, que fora transportada ao lugar
onde isso acontecia, sentiu o estômago revi
rar de nojo só de pensar em comer aquelas
aves cruas. Temendo ser convidada para o
almoço do feiticeiro, tratou de se esconder
atrás de um arbusto.
65
C h e g a d e c o m id a c r u a
O feiticeiro esperou um tempão, e Exu
não dava sinal de vida. Será que rejeitara a
oferenda, pensou? Queria comida nova?
Instantes depois, o feiticeiro ouviu ruí
dos que vinham da copa das árvores. Elas
estavam rindo dele. Ele não gostou nada
da brincadeira; invocou Xangô, oferecen
do-lhe uma porção de noz-de-cola amar
ga, que sabia ser de sua predileção. Xan
gô atendeu ao chamado na hora. Lançou
sobre as árvores uma chuva de pedras-de-
raio, provocando um fogaréu que quei
mou a copa das árvores. As chamas aca
baram atingindo também as folhas secas
e os gravetos que cobriam a comida do fei
ticeiro.
Passado o incêndio, com fome, o feiticei
ro foi olhar o que restara dos faisões quei
mados e, muito admirado, se encantou com
o cheiro do que sobrara das aves. Provou e
gostou. Era comida excelente, de sabor ini
gualável.
Agora ele sabia o que preparar para o
67
A CRIAÇÃO IK) Ml NIK)
banquete dos orixás! Carnes, peixes e ve
getais transformados pelo poder do fogo.
Foi correndo para casa e contou tudo a
sua esposa, que, imediatamente, se dispôs
a ajudá-lo.
O feiticeiro explicou a sua mulher como
Xangô fizera fogo lançando pedras-de-raio,
e se propôs a imitá-lo. Imaginou que o fogo
morava dentro das pedras e concluiu que
teria de quebrá-las para libertar as chamas.
Batendo uma pedra contra outra, produziu
faíscas que acenderam o fogo num amon
toado de folhas secas, gravetos e lenha arru
mados entre umas pedras.
Assim que o fogo acendeu, a esposa do
feiticeiro começou a cozinhar. Um cheiro
delicioso se espalhou primeiro pela casa,
depois por toda a aldeia, atraindo passantes
famintos e curiosos.
“Aqui começa a interminável labuta da
mulher à beira de um fogão” , murmurou
Adetutu, que tudo acompanhava.
Exu e Xangô, que observavam, gulosos,
68
C h e g a d e c o m id a c r u a
a comida sendo preparada no fogo, lhe fi
zeram um sinal, concordando. Adetutu fez
uma reverência a Exu e tjeijou a mão de
Xangô, que lhe deu de lembrança uma pe-
dra-de-raio. Ela guardou a pedra na sa-
colinha de segredos pendurada em seu pes
coço.
Quase não acreditou quando foi convi
dada para provar o banquete dos deuses.
Na mesa posta para os orixás, podia esco
lher entre feijoada, caruru, vatapá, efó, tu
do servido em travessas fundas de barro.
Também havia tabuleiros repletos de aca
rajés, acaçás, bolas de inhame e abarás; ga
melas de amalá; tigelas de canjica com mel
e de milho cozido com fatias de coco, fei-
jão-fradinho com camarão seco e rodelas
de ovos cozidos. Alguidares continham
guisados de carnes de caça e de animais de
corte, preparados com rodelas de cebola,
azeite de dendê e pimenta-da-costa; xinxins
de galinha; patos e pombos assados com
pedaços de inhame; moquecas de peixe
69
A CRIAÇÃO DO MUNDO
com leite de coco e muito coentro. Cestos
ofereciam nozes-de-cola, os obis, e nozes-
de-cola amargas, chamadas orobôs, além
de outras sementes, favas e frutos. Para be
ber, cabaças de vinho-de-palma, aluá e
água fresca.
Muito diferente da comida do navio ne
greiro, onde os negros, sempre famintos,
comiam rações insuficientes de farinha de
mandioca com um pouco de feijão mofado
e nacos irrisórios de peixe salgado, carne
seca ou toucinho, e bebiam água, quente,
que lhes ofereciam em duas porções diárias
70
C h e g a d e c o m id a c r u a
tão pequenas que mal davam para umede-
cer a boca.
Adetutu imaginou que os dias e noites
passados no navio negreiro eram apenas
um sonho ruim, e tratou de encher a pança
com a comida preparada para os orixás.
Provou de tudo um pouco e se sentiu re
vigorada.
Os orixás c”omeram dessa comida e gos
taram muito. Satisfeitos, permitiram que
todos os humanos também comessem dela.
Mais do que nunca, a comida consolidou
os vínculos entre os humanos e as divin
dades. E assim deveria ser para sempre.
71
7
AS SEMENTES E A ENXADA
O navio negreiro avançava através do
oceano, mas Adetutu teve a sensação de que
retomava a sua aldeia, na Africa. Era criança
ainda e ajudava a avó a descascar inhames.
“Aprenda desde menina a agradecer a
Ogum por nos ter dado a faca” , ensinou-
lhe a avó.
Adetutu tocou o solo com a ponta dos de
dos , que em seguida levou à fronte, num gesto
de reverência, como fazem os do seu povo.
y>
“E uma história muito antiga que aprendi
com minha avó, que aprendeu com a avó
dela” , disse a avó de Adetutu. E lhe contou
as aventuras de Ogum e Ocô na criação da
agricultura e da metalurgia.
No começo, a humanidade vivia da caça, da
74
As SEMENTES E A ENXADA
pesca e da colheita de frutas, mel de abelha,
sementes, tubérculos e tudo o mais que se
encontrava nas matas e nos campos.
Mas o ser humano cresceu tanto em nú
mero que os alimentos escassearam.
Olorum encarregou Ocô de aumentar a
produção de alimentos. Que os homens pu
dessem dispor de uma quantidade muito
maior de inhame, pimenta, feijão e outras
coisas boas de comer. Era seu desejo.
Ocô gostou da missão, ficou todo orgu
lhoso, mas não tinha a menor idéia de como
executá-la. Mesmo assim, se pôs a caminho
da Terra, onde deveria cumprir a vontade
de Olorum.
Tendo lá chegado, parou para descansar
e, distraidamente, se pôs a observar o vôo
dos pássaros. Foi quando percebeu que as
aves, voando de uma árvore a outra em bus
ca de comida, deixavam cair no chão muitas
sementes. Certamente as sementes dariam
origem a outras plantas, concluiu, e se es
pantou com o alcance dessa idéia.
75
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Ele então espalharia sementes por toda
parte, e a comida que dali ia nascer haveria
de alimentar todos os homens e mulheres,
velhos e crianças.
Juntou um montão de sementes e as es
palhou no solo. Sentou-se para apreciar o
crescimento das plantas, mas, desgostoso,
viu que a maioria das sementes estava sendo
comida pelos pássaros e outros animais.
Oco retomou seu caminho. Adiante en
controu um rapaz que brincava na terra, ca
vando buracos. Ocô parou para observar o
garoto, que punha sementes na cova e as
cobria com terra.
“Para que isso, meu jovem?”, perguntou.
“Só para ver elas brotarem” , respondeu
o outro.
Era o que ele tinha de fazer: cavar para
plantar as sementes no seio da terra.
Para que tudo desse certo, ofereceu uma
lebre e umas favas de pimenta a Exu, que
aceitou a oferenda e prometeu ajudar. De
pois de comer, Exu disse:
76
A S SEM ENTES E A ENXADA
“Aquele rapaz que cava a terra sabe das
coisas. O nome dele é Ogum, e um dia será
famoso pelo que há de cri^r.”
Ocô chamou Ogum, e juntos começaram
a cavar a terra. Para não ferir os dedos, usa
vam um graveto, que logo se quebrou. Pas
saram a usar lascas de pedra que encontra
ram por ali.
O trabalho, entretanto, não rendia, e Ocô
saiu à procura de algo melhor para fazer o
trabalho. Mais tarde, quando Ocô voltou
sem solução, esfriara, e Ogum havia feito
fogo, protegendo-o do vento com lascas de
pedra. Quando da lenha sobravam só as bra
sas, Ogum punha novos pedaços de pau na
fogueira e soprava forte para reavivar as
chamas. Formavam-se enormes labaredas.
Viram então que a pedra se derretia no fogo
e escorria em filetes que se solidificavam
ao esfriar.
“Que ótimo instrumento para cavar!”, pro
clamou Ogum, segurando com mão firme
a lâmina endurecida.
77
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Ele pôde então usar o fogo e fazer lâminas
daquela pedra e modelar instrumentos cor
tantes e ferramentas pontiagudas.
Desse material, que os homens chamaram
de ferro, Ogum fez a enxada, a foice, a faca,
a espada e outros objetos metálicos que des
de então o homem usa para transformar a
natureza e sobreviver.
Com os instrumentos criados por Ogum,
Ocô revolveu a terra e plantou, e a colheita
trouxe a abundância desejada.
A humanidade aprendeu a plantar com
eles. Cada família fez sua plantação, e na
Terra não mais se padeceu de fome. Em re
conhecimento por terem superado a escas
sez de alimentos e derrotado a fome, Ogum
e Ocô foram homenageados como os pais
da agricultura.
Desde então Ocô ficou encarregado de
zelar pelas plantações, e Ogum tratou de
cuidar de sua forja. Em sua oficina, fundia
metais, construía instrumentos e ensinava
ao homem uma nova profissão, a de ferreiro.
78
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Somente no final da narrativa da avó Ade-
tutu percebeu que se encontrava na própria
oficina de Ogum.
Sem parar de bater vigorosamente com o
martelo numa lâmina em brasa, que segura
va com uma tenaz sobre a bigorna, Ogum
fez um gesto para Adetutu se aproximar.
Por um segundo deixou o martelo na ban
cada, enfiou a mão no fogo e tirou um pu
nhado de pequenos objetos, que estendeu
para Adetutu.
Os objetos estavam incandescentes, mas
não queimaram a mão da menina, que nada
temeu. Eram miniaturas das ferramentas
que Ogum criara para trabalhar a terra.
Ela agradeceu, guardou os brinquedos na
sacolinha e, não querendo atrapalhar, des
pediu-se e partiu.
80
8
MUITO INHAME PARA PREPARAR
À
Z v d e tu tu sonhava com a festa dos
inhames novos, que celebrava a colheita e
agradecia aos deuses a fartura que eles lhes
proporcionavam. Inhame, o alimento bási
co de seu povo, se comia pilado, e isso se
devia a Oxaguiã, que inventou o pilão e me
lhorou radicalmente as condições de vida
dos humanos.
De repente Adetutu não estava mais na
festa dos inhames novos, e sim na saída
de uma cidade chamada Ejibô, que dava
para um bosque de árvores de grande
porte.
Viu que do mato saía um jovem alto e
forte que carregava no ombro um pedaço
de tronco de árvore. Ele se aproximou da
82
M u it o in h a m e p a r a p r e p a r a r
cidade e passou compenetrado por Ade
tutu. Ela o seguiu.
Era o rei do lugar, e ela p reconheceu ao
presenciar o povo se prostrando nas ruas
quando ele passava. Guerreiro valente, so
berano justo e grande comilão, o rei era cha
mado por seus amigos de Oxaguiã, que na
língua do lugar significava algo como Papa-
Purê-de-Inhame. Porque ele adorava inha
me amassado e comia enormes quantida
des dessa massa.
Sempre pronto para partir para a guerra, o
rei se impacientava com a demora das mu
lheres em produzir sua comida preferida. Elas
assavam os inhames na brasa, retiravam a
casca e, com as mãos, trituravam o tubérculo
quente até que virasse uma pasta. Dava mui
to trabalho, queimava as mãos, demorava
muito. E o rei ia perdendo a paciência.
Adetutu já sabia o que Oxaguiã faria com
o toco que trouxera do mato, mas mesmo
assim acompanhou o rei com o máximo de
atenção.
83
M u it o in h a m e p a r a p r e p a r a r
Oxaguiã pôs o cilindro de madeira de pé
e depositou um punhado de brasas no cír
culo central da superfície voltada para cima.
Esperou que elas queimassem o toco até se
transformarem em cinzas e realimentou o
braseiro com brasas vivas. Fez isso seguidas
vezes, durante muitos dias, até as brasas co
merem quase todo o miolo do tronco, pro
duzindo um buraco profundo e largo. Com
uma lasca de pedra limpou e alisou a super
fície queimada. Depois, com um galho rijo,
Oxaguiã preparou uma haste.
O rei ordenou a suas esposas que puses
sem inhames no fogo, e quando ficaram
cozidos instruiu as mulheres a pôr os tu
bérculos no buraco do toco e socá-los com
a haste.
Adetutu se misturou às mulheres da corte
e conseguiu sua vez de pilar inhames. Não
ia perder essa oportunidade de jeito ne
nhum. Em poucos minutos, Oxaguiã pôde
comer seu precioso alimento. As mulheres
não se cansaram, não queimaram as mãos,
85
A CRIAÇÃO IX) M UNIK)
e a transformação do inhame em purê não
demorou nada.
Oxaguiã mandou juntar um pouco de mel
de abelhas à pasta e comeu até se fartar, não
sem antes ter servido uma porção a Exu.
Depois de ordenar que se desse um pouco
daquela comida para cada um dos presentes,
partiu para a guerra satisfeito e convencido
de que nunca mais chegaria atrasado ao
campo de batalha.
Adetutu também recebeu sua porção de
inhame pilado, que comeu com vontade e
prazer, lambendo as mãos no final. Esque
ceu completamente de deixar um pouqui
nho para guardar na sacolinha. Como não
queria ir dali sem uma lembrança de Oxa
guiã, recolheu um pouco do pó que, no chão,
desenhava as pegadas do rei. E o guardou
na sua sacola de segredos.
86
9
DO SOPRO, TEMPESTADE
A
iH Ldetutu caminhava pela estrada na
companhia da mãe e de outras mulheres e
crianças.
A mãe de Adetutu era uma vendedora de
mercado, e a cada dia da semana ela ia a
uma das diferentes aldeias e cidades em que
fazia suas vendas. Como outras mulheres
de seu povo, a mãe de Adetutu caminhava
diariamente muitos quilómetros carregando
a mercadoria na cabeça até a feira do dia.
Ela vendia noz-de-cola, que a família pro
duzia em suas roças. Desde pequena Ade
tutu acompanhava a mãe ao mercado. Tinha
de aprender a ser boa comerciante. Seria
seu trabalho, quando crescesse. Levavam
ao mercado cestos de noz-de-cola, que na
88
Do SO PRO , TEMPESTADE
sua língua se chama obi, alimento indispen
sável à dieta de deuses e humanos.* Na vol
ta, traziam outras mercadorias de que a fa
mília precisava. Logo que chegavam ao
mercado, um lugar aberto, onde cada ven
dedor expunha sua mercadoria, a mãe de
Adetutu depositava um obi no altar de Exu,
separava alguns para ela própria e a filhinha
comerem ao longo do dia e depois montava
sua banca de nozes.
De feira em feira, as mulheres andavam
em grupo pelas estradas para se proteger de
assaltantes. Às vezes atravessavam flores
tas e cruzavam rios de águas revoltas. Iam
pelos caminhos sempre muito animadas, con
versando, contando histórias. Muitas crian
ças acompanhavam as mães, que levavam
as menorzinhas amarradas às costas.
Nas encruzilhadas, as mulheres deixavam
pequenos presentes a Exu. Às margens dos
De consumo diário para muitos povos africanos, o obi ou noz-de-
cola (Cola acuminata) é o principal ingrediente, hoje mais usado
na forma sintética, da Coca-Cola e refrigerantes similares.
89
A CRIAÇÃO DO MUNDO
rios, faziam oferendas a Oxum. Mais adian
te, junto a uma fonte, não se esqueciam de
dar algum agrado a Euá. Bebiam da nascen
te para matar a sede e descansavam um pou
co sob as velhas árvores, mascando noz-de-
cola para recuperar as energias.
Naquele dia, na estrada, Adetutu guardou
na sacola de segredos sua porção de obis,
pensando que poderia ser de alguma utili
dade no momento oportuno. Depois do des
canso, a caravana seguiu alegre e disposta
na direção do mercado.
Mais adiante, em outra encruzilhada, a
mãe de Adetutu apontou para um dos cami
nhos e disse à menina:
“Por ali, depois de um longo percurso,
se chega a Irê, a cidade de Ogum. Mais adian
te, outro caminho leva a Ejibô, cidade de
Oxaguiã. Nelas, muito antes do tempo em
que viveram nossos antepassados, dois
amigos guerreiros disputaram o amor de
uma mulher. E tudo acabou numa grande
tempestade.”
90
Do SO PRO , TEMPESTADE
Outras crianças acompanhavam, atentas,
as palavras da mãe de Adetutu, que, sem in
terromper a caminhada, se pôs a contar a
história.
Na cidade de Ejibô, o rei Ajagunã tinha
duas manias: fazer a guerra e comer purê de
inhame, tanto que seu apelido era Oxaguiã,
que é o mesmo que Papa-Purê-de-Inhame.
Sem interromper a mãe, Adetutu disse a
si mesma que dessa parte da história ela era
testemunha ocular.
A mãe prosseguiu.
Na guerra um vencedor, Oxaguiã era um
grande amigo de Ogum, que se estabelecera
com sua oficina de metalurgia na cidade de
Irê. Lá Ogum era ferreiro e também era rei.
Dois reis, dois guerreiros, dois amigos e co
laboradores.
Da oficina de Ogum saíam as armas com
que Oxaguiã derrotava os inimigos em guer
ras sem fim. Naquele tempo, a fabricação
das armas era lenta, pois o ferro demorava
a derreter no fogo. E Oxaguiã tinha pressa
91
A CRIAÇÃO DO MUNDO
de acabar com a guerra. Era apressado no
campo de batalha e apressado à mesa, onde
devorava porções imensas de inhame so
cado no pilão que ele mesmo inventara. Mas
as coisas mudaram em Irê quando Ogum se
casou com Iansã, rainha da cidade de Irá.
De repente Adetutu percebeu que se dis
tanciara da mãe e seguia no caminho de Irê.
Apressou o passo e em pouco tempo estava
na cidade. Tratou logo de ir até o palácio
de Ogum. Sabia o que estava para acontecer
e não queria perder nada. Já se considerava
uma velha amiga dos dois orixás. Perguntou
onde ficava a casa do rei ferreiro e facil
mente chegou lá.
Ao entrar na ferraria de Ogum, Adetutu
comprovou que o trabalho agora assumi
ra um ritmo acelerado. Iansã, a esposa de
Ogum, soprava o fogo, produzindo labare
das extraordinárias na fornalha onde o fer
ro era derretido para ser modelado na bi
gorna. Ogum martelava o ferro fundido, e
de suas mãos surgiam espadas do tamanho
92
Do SO PRO , TEMPESTADE
de Adetutu. Com a ajuda de Iansã na forja,
ele as fabricava rapidamente.
Iansã soprava a forja de Ogum, Ogum fa-
»
zia armas para Oxaguiã, e Oxaguiã ganhava
a guerra.
Iansã era mulher bela e valente. Muitas
vezes acompanhava Ogum na guerra. Não
havia companheira melhor para um guer
reiro. Um dia Oxaguiã roubou Iansã de Ogum
e fez dela sua mulher.
Logo depois, Oxaguiã teve de partir para
uma nova guerra, e, como sempre, mandou
encomendar armas a Ogum.
Ogum enviou de volta o mensageiro com
a resposta:
“Sem Iansã, não tem forja incandescente.
Sem forja ardente, nada de armas para a guer
ra. Se quer armas para guerrear, devolva mi
nha mulher.”
Oxaguiã não quis devolver Iansã, mas pe
diu a ela que soprasse a forja de Ogum dali
mesmo. De Ejibô para Irê.
Iansã então mandava seu sopro ao reino
93
Do SO PR O , TEMPESTADE
de Ogum, e o sopro de Iansã cruzava os ares,
percorria territórios incontáveis até chegar
à forja, na outra cidade. No caminho, o so
pro arrancava folhas, refrescava o ar, desar
rumava o cabelo de quem encontrasse, le
vantava poeira.
O povo logo se acostumou com esse novo
fenómeno e o chamou de vento. Quando era
mais forte, ch°amava-o de ventania.
Adetutu, na estrada que levava a Ejibô,
foi surpreendida por uma dessas ventanias,
que quase arrancou de seu pescoço a saco-
linha de segredos. O risco da viagem valeu
a pena: ao chegar à casa de Oxaguiã, ela foi
recebida com festa por Iansã, que lhe deu
acarajés para comer, permitiu que ela so
prasse um pouquinho na direção da forja de
Ogum e ainda lhe deu de presente, para guar
dar na sacolinha, uma pulseira de latão.
Depois dessa pequena pausa, Iansã reto
mou a tarefa de soprar. Adetutu percebeu
que a visita estava terminada e tratou de
voltar para casa.
95
A CRIAÇÃO IX) MI NI »)
"Bem, quando a urgência da produção au
mentava, Iansa soprava mais forte ainda,
muito mais forte, e seu sopro corria os ares
com fúria e provocava muitos acidentes até
chegar à forja.
O sopro forte de Iansã muitas vezes der
rubava árvores, arrancava o teto de palha
das casas, levantava redemoinhos, provo
cava chuva e até destruía plantações. Com
a chuva chegavam os raios, anunciados pe
las trovoadas.
O povo teve muito medo desse novo fenó
meno e deu-lhe o nome de tempestade. Até
hoje, quando o céu escurece durante o dia,
e os trovões anunciam o fogo dos raios, ho
mens e mulheres pedem proteção a Iansã.
Ventava muito, e Adetutu quis voltar à es
trada e encontrar a mãe a caminho do mer
cado, decerto preocupada com a ausência
da menina. Ela tentou, mas a ventania au
mentava e lhe enchia os olhos de poeira, ce
gando-a. O temporal ficou mais forte, co
meçou a chover, e o vento arrastou Adetutu
96
Do SO PRO , TEMPESTADE
feito uma folha solta no ar. Sentia-se jogada
de um lugar a outro, e não via nada. Quan
do por fim conseguiu abrir os olhos, per
cebeu que estava de volta ao navio negreiro.
Iansã também estava por perto, e Adetutu
teve medo de sua força. Ouvia, ao longe, o
som abafado dos trovões e adivinhava, no
escuro, os raios fustigando a embarcação.
Iansã soprava a tempestade, e a tempestade
assolava o navio negreiro, jogando-o de um
lado para outro, como um brinquedo insig
nificante esquecido pelo destino no meio
do oceano. O movimento do navio escoi
ceava a carga humana, e os negros gritavam
de medo e de dor.
Adetutu tirou uma noz-de-cola da saco-
linha de segredos e a ofereceu a Iansã, pe
dindo-lhe que os livrasse da destruição dos
temporais. A tormenta cessou.
97
PODERES PARA TODOS
Adetutu estava para se casar. Haveria
uma festa a que todos certamente compa
receriamcom suas roupas mais luxuosas.
Seus pais se preparavam para entregá-la
comtodoorequintedocerimonial aonoivo,
que morava do outro lado da cidade. Era
umagricultor de muitas posses, muitas es
posas e muitos filhos, umhomem impor
tante. Adetutu não o conhecia pessoalmen
te, mas estava honrada com o casamento,
seriafeliz. Jáeraquasemulher-feitae, como
amãe, tinha sua banca de obis nos merca
dos da vizinhança. Queria ter muitos filhos
e viver empaz como futuro marido e sua
grandefamília. Xangô, seuorixá,paraquem
ela fora iniciada sacerdotisa, a protegeria
100
Poderes pa ra t o d o s
da inveja, das intrigas e da competição que
a chegada de uma esposa mais jovem e bela,
como era Adetutu, certamente despertaria
entre as esposas mais velhas.
Na casa do futuro esposo de Adetutu se
cultuava Iemanjá. Adetutu levaria para lá o
culto de Xangô, assim como as outras es
posas haviam levado o culto do orixá da fa
mília em que haviam nascido. Os filhos das
diversas esposas herdavam Iemanjá do pai
e um segundo orixá que recebiam da mãe.
Os diferentes orixás eram propiciados para
que a família pudesse viver bem.
Imaginando sua vida na casa do futuro
esposo, Adetutu pediu a Xangô que a ensi
nasse a ser justa, para que o convívio em
seu novo lar fosse bom para todos. Pediu a
Oxum que lhe desse filhos, e a Iemanjá que
fizesse dela uma boa mãe. Pediu a Nanã que
lhe transmitisse a sabedoria dos mais ve
lhos, e a Omulu que afastasse a peste da ca
sa que ela partilharia com tantos outros. A
Iansã pediu a força de que a mulher precisa
101
A CRIAÇÃO DO M UNDO
para suportar o poder do homem. Pediu pa
ciência a Oxalá e fartura a Oxóssi. Que Ogum
mantivesse abertos seus caminhos e os d e ,
seus filhos que haveriam de nascer. Ah!,
Exu, não podia se esquecer de seus poderes.
Pediu-lhe bons negócios no mercado, que
seu esposo pudesse lhe dar filhos, que seus
pedidos fossem levados aos orixás e que as
graças que eles lhe concedessem fossem
trazidas até ela.
Adetutu percorreu a longa lista dos deuses
de sua gente, lembrando seus poderes, in
vocando sua misericórdia. Lembrou-se dos
tempos de menina, quando a avó lhe falava
dos poderes dos orixás. De como as forças
que governam o mundo tinham sido distri
buídas por Olorum a seus filhos orixás.
A partilha dos poderes divinos acontecera
numa grande festa.
Um dia Olorum, o Ser Supremo, mandou
seus arautos avisarem: haveria uma assem-
bléia em seu palácio, e os orixás deviam com
parecer ricamente vestidos. Ele distribuiria
102
P oderes pa ra t o d o s
entre os filhos as riquezas do mundo, e de
pois haveria muita comida, música e dança.
Em toda parte os mensageiros gritaram es
sa ordem, e os convidados se prepararam com
esmero para o espetacular acontecimento.
Quando chegou o grande dia, cada orixá
dirigiu-se ao palácio na maior ostentação,
cada um mais belamente vestido que o ou
tro, pois era esse o desejo de Olorum.
Iemanjá chegou vestida com a espuma
do mar, os braços ornados de pulseiras de
algas marinhas, a cabeça cingida por um dia
dema de corais,peixes prateados e pérolas.
Tinha o pescoço emoldurado por uma cas
cata de madrepérola.
Oxóssi escolheu uma túnica de ramos
verdes e macios, enfeitada de peles e plu
mas raras. Para arrematar, um colar de den
tes de javali.
Ogum preferiu uma couraça de aço bri
lhante que ele mesmo fundira, enfeitada com
tenras folhas de palmeira desfiadas. Usava
na cabeça uma pequena coroa.
103
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Oxum escolheu cobrir-se de pó de ouro,
decorando os cabelos com as águas verdes
dos rios. Onde ela passava se escutava o
jorrar de cascatas e cachoeiras.
As roupas de Oxumarê exibiam todas as
cores. Nas mãos ele trazia pingos frescos
de chuva. Uma cobra se enrolava em seu
torso, provocando calafrios nos demais.
Iansã escolheu para vestir-se o vento si
bilante e adornou os cabelos com raios que
colheu da tempestade. Dezenas de pulseiras
de latão embelezavam- seus braços. Tinha
um espanta-moscas na mão.
Ossaim vestiu-se com um manto de folhas
perfumadas, caules e raízes. Pequenas ca
baças presas à cintura por um cordão de pa-
lha-da-costa traziam essências vegetais e
poções miraculosas.
Omulu compareceu coberto de palha-da-
costa da cabeça aos pés, mas sob a tosca
vestimenta usava um manto de pérolas.
Xangô não fez por menos e cobriu-se com
o toar do trovão e o vermelho do fogo. Trazia
104
P oderes pa r a t o d o s
no pescoço um colar de garras de leopardo
arrematado por um par de chifres de car
neiro. Era pura majestade.
Oxalá tinha o corpo envolto em fibras
alvíssimas de algodão. Atesta ostentava uma
pena vermelha de papagaio-da-costa. Dis
creto, perfeito.
E assim por diante.
Não houve quem não usasse toda a cria
tividade para apresentar-se ao Pai com a
roupa mais bonita. Nunca se vira antes tanta
exibição, tanta beleza, tanto luxo.
Cada orixá que chegava ao palácio de
Olorum provocava um clamor de admira
ção, que se ouvia por todas as terras exis
tentes. Os orixás encantaram o mundo com
suas vestes.
Quando todos os orixás haviam chegado,
Olorum mandou que fossem acomodados
confortavelmente, sentados em esteiras dis
postas ao redor do trono.
Ele disse então à divina assembléia que
todos eram bem-vindos. Que todos os filhos
105
A CRIAÇÃO DO MUNDO
haviam cumprido seu desejo e que estavam
tão bonitos, tão odaras, que ele não saberia
dizer qual era o mais belo e vistoso. Que ti
nha todas as riquezas do mundo para lhes
oferecer, e que eles haviam feito suas pró
prias escolhas.
Ele disse:
“O que cada um veste é propriedade sua”,
e tratou de explicar.
Ao optar pelo que achavam ser o melhor
da natureza, para com aquela riqueza se
apresentar perante o Paí, os orixás já haviam
feito a partilha do mundo.
Iemanjá ficou com o mar; Oxum com o
ouro e os rios.
A Oxóssi Olorum confirmou a posse das
matas e dos bichos que nelas vivem, mas
doou o poder curativo das folhas a Ossaim.
Deu a Iansã o raio e a Xangô o trovão.
Juntos comandariam a tempestade.
Fez Oxalá dono de tudo que é branco e
puro, de todas as coisas que são o princípio,
deu-lhe a criação do homem.
106
P oderes pa ra t o d o s
A Oxumarê destinou a chuva. Deu-lhe o
poder de exibir sua beleza no firmamento
na forma do arco-íris, e o de rastejar no so-
lo feito cobra.
A Ogum deu o ferro e tudo o que se faz
com ele, inclusive a guerra.
A Omulu, o poder sobre a peste.
E assim por diante.
Confirmou Exu no cargo de mensageiro
dos deuses, pois nenhum outro era capaz de
se movimentar como ele. Mas como Exu se
cobrira todo com búzios para a reunião, e
como búzio naquele tempo era dinheiro,
Olorum também deu a ele o patronato dos
mercados e o governo das trocas comer
ciais. E porque, no tempo antigo, era preciso
ter muitos braços trabalhando para a família
alcançar a riqueza, deu a Exu o poder de
fortalecer a sexualidade do homem para que
ele tivesse uma prole numerosa.
De todos os filhos de Olorum, apenas
Onilé não se mostrara. Onde estaria? Olo
rum mandou que a procurassem, e ela foi
107
A CRIAÇÃO DO MUNDO
áchada num buraco, enfiada na terra. De
terra estava vestida.
“Onilé é tudo” , disse Olorum, “porque
sobre seu corpo é que os demais se adornam,
e toda a beleza que os outros vestem sai da
roupa que ela usa.” E proclamou que o mun
do em que os homens vivem, a Terra, o Aiê,
tinha uma dona: Onilé, a Mãe Terra.
Olorum deu assim a cada orixá um pedaço
do mundo, uma parte da natureza, um go
verno particular. Dividiu de acordo com o
gosto de cada um.
E disse que a partir de então cada um seria
o dono e senhor daquele aspecto do mundo.
Assim, sempre que um humano tivesse al
guma necessidade relacionada com uma da
quelas divisões, deveria pagar uma prenda
ao orixá que a possuísse.
O homem pagaria em oferendas de comi
da, bebida ou outra coisa que fosse da pre-
dileção do orixá. Faria festas com música
e dança, organizaria os cultos e construiria
templos para os orixás.
108
P o d e r e s p a r a todos
Os orixás, que tudo tinham ouvido em si
lêncio, começaram a cantar e dançar em co
memoração.
Era grande o alarido rfa corte divina, a
festa chegava ao ponto mais alto. Naquele
momento os orixás estavam contentes de
mais para começar qualquer disputa pelo
poder do outro. Talvez por precaução, Olo
rum lhes ordenara que deixassem suas ar
mas fora do palácio. Era um dia de festa, e
todos deviam ficar contentes com o que ti
nham. O clima era realmente de alegria, mas
o mais feliz de todos era Olorum. Dali em
diante, os orixás cuidariam do mundo, e ele
não teria com que se preocupar. Podia se
retirar para o ócio de sua vida eterna, de
onde assistiria, preguiçosa e tranquilamen
te, sua obra prosseguir. De seu trono veria
se descortinarem as aventuras dos orixás,
na labuta pelo controle do mundo, e as aven
turas dos humanos, na luta pela sobrevi
vência.
E Adetutu, será que assistiu à festa dos
109
A CRIAÇÃO DO MUNDO
poderosos? Seu sonho no navio negreiro
não teria lhe dado esse poder?
Claro que sim. Ela viu tudo, tudo anotou
em sua memória: cada pormenor, cada pe
dacinho. Depois, quando os orixás dança
vam nos salões do Céu, Adetutu peram
bulava entre eles e ia catando pelo chão e
guardando em sua sacolinha tudo o que eles
deixavam cair. Colheu escamas e conchas
de Iemanjá, pedras-de-raio de Xangô, fo
lhas de Ossaim, uma pulseira de cobre de
Oxum e muito mais.
Quando se sentiu cansada, procurou junto
ao trono um lugar para se encostar. Olorum
já se retirara, deixando a festa para os filhos,
e Oxalá, decerto exaurido pela dança, se
aboletara num banquinho ao lado do trono,
completamente curvado sobre seu cajado.
Ele a viu e a fez recostar-se a seus pés e aca
riciou seus cabelos. Curioso, fez sinal para
que ela abrisse o saco de segredos e mos
trasse o que havia dentro. Ela soltou o cor
dão que fechava a sacolinha. Oxalá olhou
110
A CRIAÇÃO DO M UNDO
dentro do saco e soprou. Ela também olhou
e viu que a sacolinha continha o vento, a
chuva, as matas, o mar, tudo, tudo. O univer
so inteiro estava lá dentro, pulsante, lumi
noso. Adetutu sentiu medo. Rapidamente
puxou o cordão de palha-da-costa e fechou
o saco de segredos. O Grande Orixá lhe sor
riu, e ela, mais tranquila, cerrou os olhos.
Estaria sonhando?, se perguntou.
Quando abriu os olhos de novo, tudo es
tava imerso em grande escuridão, como a
noite sem lua e sem estrelas. Sentia, contu
do, que um balanço leve e ritmado emba
lava seu sono. Cada vez mais o navio ne
greiro levava Adetutu para longe de casa.
112
A VEZ DA MORTE
( g u a n d o o mundo foi criado, coube a
Oxalá fazer o homem. O homem se repro
duziu e povoou a Terra. Cada natureza da
Terra, cada mistério e segredo, tudo foi go
vernado pelos orixás. Oxalá sempre se con
siderou o responsável por sua criatura, que
o ama e venera e o chama de Grande Ori
xá, que é exatamente o significado de Oxa
lá na língua do povo de Adetutu, como já
sabemos.
No início, os homens não conheciam a
própria morte e, com atenção e oferendas
aos orixás, conquistavam o que queriam.
Mas começaram a se imaginar com os po
deres que pertenciam aos orixás e deixaram
de alimentar as divindades. Imortais que
114
A vez da M orte
eram, os homens se achavam deuses. Não
precisavam de outros deuses.
Cansado da falta de consideração dos hu
manos, Oxalá decidiu que os homens não
viveriam mais para sempre. Não seriam mais
imortais como os orixás. Seriam bem dife
rentes . Depois de algum tempo na Terra, eles
deveriam morrer. Cada um na sua hora, de
acordo conra vontade divina.
Então Oxalá criou a Morte. E a encar
regou de fazer morrerem todos os humanos.
A Morte apaga o sopro de Olorum, e o
ser humano deixa de viver. Seu corpo apo
drece e se transforma em pó. Essa matéria-
prima volta para Nanã. O espírito não mor
re, mas é exilado da Terra para o outro
mundo.
A compaixão de Oxalá, entretanto, é in
finita. Ele soube o quanto o espírito do ho
mem morto se entristecia no outro mun
do. Porque nada do que é bom e prazeroso
na Terra existe lá. No outro mundo não há
comida nem bebida. Não há música nem
115
A CRIAÇÃO DO MUNDO
dança, não há festa. Não há riquezas a con
quistar. Não há amor carnal nem a alegria
de fazer os filhos e vê-los crescer.
Oxalá se condoeu. E decidiu que, depois
de certo tempo no outro mundo, o espírito
do homem poderia renascer, viver de novo
na Terra, outra vez um ser humano vivente.
Mas para que nunca mais se imaginassem
deuses, Oxalá fez que os homens e mulheres
renascidos não pudessem se lembrar de suas
vidas passadas. Renasceriam com outra ca
beça, outro destino.
/
E assim que o povo de Adetutu concebe
a vida e a morte. E a reencamação, que junta
uma à outra, num círculo que transforma a
condição humana numa repetição eterna.
A Morte nunca falha, não perdoa ninguém.
Quando chega a hora, lá está ela, implacá
vel. Adetutu sabia disso e temia a Morte mais
que tudo. Na travessia, via companheiros de
navio morrerem todos os dias. Os navios ne
greiros eram chamados tumbeiros, porque
parte dos negros amontoados nos porões
116
A vez da M orte
morria durante a viagem. Eram embarcados
nos tumbeiros como quem é depositado nu
ma tumba. Em cada dez, de um a quatro não
chegavam vivos do outro lado do oceano.
Os africanos aprisionados morriam de
maus-tratos, de falta de higiene, de fome,
de sede, de escorbuto, varíola e disenteria, de
infecções as mais variadas. Até de falta de
ar se morria nos porões fechados dos tum
beiros, os corpos nus e esqueléticos amon
toados como trastes inúteis.
Os porões juntavam gente de toda parte,
uns não compreendiam a língua dos outros
e, no desespero, se desentendiam,brigavam
por um gole de água, por um pedaço de chão
para dormir. Se mordiam, se machucavam,
as feridas abertas infeccionavam e traziam
a febre, e a febre trazia a morte.
Morriam sobretudo de banzo, uma espé
cie de melancolia profunda causada pela
saudade de sua terra e de sua gente.
Adetutu teve muito medo de morrer no na
vio negreiro. Quando menina, ela ouvia a
117
A CRIAÇÃO DO M UNDO
avó dizer que todos têm sua hora de mor
rer. Teria chegado a dela? Às vezes, expli
cava a avó, fatos extraordinários podiam
provocar uma grande desordem no mundo,
e a Morte se aproveitava disso, levando mui
tas vidas antes da hora. A mortandade podia
ser desencadeada por uma catástrofe da
natureza, alguma má ação por parte de al
guém ou de um grupo, ou então um feitiço.
Eram as mortes mais choradas.
A avó também gostava de contar que a
Morte, apesar de seu poder, fora, uma vez,
vencida por duas crianças. Era a história pre
ferida de Adetutu. A menina fechou os olhos
e se concentrou no que a avó contava.'
Num tempo muito antigo, tudo transcor
ria normalmente na aldeia. Todos faziam seu
118
A vez da M orte
trabalho, as lavouras davam bons frutos,
os animais procriavam, crianças nasciam
fortes e sadias. Mas, de repente, tudo co
meçou a dar errado. As lavouras ficaram
inférteis, as fontes e correntes de água se
caram, tudo que era bicho de criação defi
nhou. Quase não havia mais o que comer
e beber. No desespero da difícil sobrevi
vência, as pessoas se agrediam umas às
outras, ninguém se entendia, qualquer coi
sa virava uma guerra.
As pessoas começaram a morrer aos mon
tes. Instalada no povoado, a Morte vivia
rondando todos, especialmente os mais fra
cos, velhos e doentes. Ela roubava essas
pessoas, tirava-lhes a vida e as levava para
longe da família e dos amigos.
Na aldeia, morria-se de todas as causas
possíveis: de doença, de velhice e até mes
mo ao nascer. Morria-se afogado, por cau
sa de acidentes, por maus-tratos e violên
c ia ^ também de fome e sede. Mas também
se morria de tristeza, de saudade e de amor.
119
A CRIAÇÃO DO MUNDO
A Morte fazia o seu grande banquete. Ha
via luto em todas as casas. Todas as famí
lias choravam.
O rei enviou muitos emissários para fa
larem com a Morte, que dava sempre a mes
ma resposta: não fazia acordos. Ela esta
va apenas cumprindo seu papel: destruir
um por um, sem piedade. Afinal, a culpa
não era dela; alguém desgovernara o mun
do. Se houvesse alguém forte o suficiente
para enfrentá-la, que tentasse, só que seu
fim seria ainda mais sofrido e penoso.
Mas como também gostava de jogar, a
Morte mandou dizer ao rei que daria uma
chance à aldeia. Foram estas as suas pa
lavras:
“Se alguém daqui me fizer agir contra mi
nha vontade, eu irei embora.”
Se a Morte fosse contrariada, o feitiço
seria quebrado, explicou a avó de Adetutu.
Parecia que a causa de tantas mortes era
mesmo obra de feitiçaria.
Aos mensageiros do rei, a Morte disse ain-
120
A vez da M orte
da que havia uma condição: quem desejasse
enfrentá-la teria de fazer isso sozinho.
Esse era um detalhe importante para o
desencantamento funcionar, acrescentou
a avó.
Mas quem se atreveria a enfrentar a Mor
te? Os mais bravos guerreiros estavam
mortos ou ardiam em febre em suas últimas
horas de vidoa. Os mais astutos diplomatas
havia muito tinham partido para o outro
mundo.
Foi então que dois meninos, os gémeos
Taió e Caiandê, resolveram pregar uma pe
ça na Morte e dar um basta aos seus ata
ques. Os Ibejis, nome iorubá que significa
gémeos, pegaram seus tambores mágicos,
que tocavam como ninguém, e saíram à
procura da Morte.
Não foi difícil achá-la numa estrada pró
xima, por onde ela perambulava em busca
de mais vítimas. Sua presença era anun
ciada, do alto, por um bando de urubus que
sobrevoavam sua sombra. E o cheiro, ah, o
121
A CRÍAÇÃO DO MUNDO
cheiro! A fedentina que a Morte produzia
ao redor faria até uma estatueta de madeira
vomitar. Os meninos se esconderam numa
moita e esperaram que ela se aproximasse.
Não tardou e a Morte foi chegando. Os
irmãos tremeram da cabeça aos pés. Ainda
escondidos na moita, só de olhar para ela
sentiam os pêlos dos braços arrepiarem. A
pele da Morte era branca, fria e escamosa.
O cabelo, sem cor, desgrenhado e quebra
diço. A boca sem dentes expelia uma baba
esbranquiçada e purulenta. O hálito era
puro fedor.
Adetutu tapou as narinas com os dedos e
desviou o olhar.
Mas Adetutu podia jurar que a Morte es
tava feliz e contente. Estava até cantando!
Pudera, tendo ceifado tantas vidas e tendo
tantas outras para extinguir. Mas o canto
da Morte era tão cavernoso e desafinado
que os passarinhos que ainda sobreviviam
silenciavam como se fossem mudos brin
quedos de pedra. O canto da Morte, se é
122
A vez da M orte
que se pode chamar aquele ruído de canto,
era tão desconfortável e medonho que os
cachorros esqueléticos uivavam feito lou
cos, e os gatos magros bufavam e se arre
piavam todos.
Percebendo que Adetutu estava com me
do, a avó a abraçou com força. A menina
se acalmou, e a mulher continuou a história
dos gémeos:
Numa curva do caminho, um dos irmãos
saltou do mato para a estrada a poucos pas
sos da Morte. Tocava o tambor mágico com
ritmo e graça como nunca tocara antes.
Com determinação e prazer, lá foi o menino
estrada afora com o tambor. O outro gêmeo
permaneceu escondido, seguindo o irmão
por dentro do mato.
A Morte se encantou com o ritmo, en
saiou com passos trôpegos uma dança de
sengonçada e foi atrás do tambor, dançan
do sem parar.
Mas que espetáculo grotesco, considerou
Adetutu.
123
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Passou-se uma hora, passou-se outra e mais
outra. O menino não fazia pausa, e a Mor
te começou a se cansar. O sol já ia alto, os
dois seguiam pela estrada, e o tambor ba
tucando sem cessar. O dia deu lugar à noi
te, e o tambor batucando sem cessar. E assim
ia a coisa, madrugada adentro. O menino
tocava, a Morte dançava. O menino na fren
te, ligeiro e folgazão, a Morte atrás, em sua
dança patética. Só que ela estava exausta,
não aguentava mais.
“Pare de tocar, menino, vamos descansar
um pouco”, ela pediu mais de uma vez.
Ele não parava.
“Pare essa porcaria de tambor, moleque,
ou vai me pagar com a vida agora mesmo”,
ela ameaçou mais de uma vez.
Ele não parava.
Adetutu e o gêmeo escondido no mato de
ram-se as mãos, torcendo pelo gêmeo na
estrada.
“Pare que eu não suporto mais”, implo
rou a Morte repetidas vezes.
124
A vez da M orte
O menino não parava.
Taió e Caiandê eram gémeos idênticos.
Ninguém sabia diferenciar um do outro,
muito menos a Morte, que sempre foi cega
e burra. Pois bem, o moleque que a Morte
via tocando na estrada sem parar não era
sempre o mesmo. Enquanto um irmão toca
va, o outro seguia por dentro do mato, sem
se deixar v’er. Passada uma hora, trocavam
de posição, se aproveitando de uma curva
da estrada, com cuidado para a Morte não
perceber nada. No mato, o irmão que descan
sava podia fazer suas necessidades, beber
a água depositada nas folhas dos arbustos
e enganar a fome comendo as frutinhas sil
vestres que restavam. Os gémeos se reve
zavam, e o tambor não parava um minuto
sequer. Mas a Morte, coitada, não tinha
substituto, não podia descansar, mal con
seguia respirar. Nem suspeitava do ardil
dos gémeos.
Parecia coisa tramada por Exu, pensou
Adetutu, que não se surpreendeu quando
125
A vez da M orte
ele se materializou bem ao seu lado e piscou
para ela. Ela tirou do saco de segredos uma
noz-de-cola e deu a ele.
“É pelos Ibejis”, disse Atletutu.
E a Morte, na estrada:
“Pare, pare, menino maldito.”
O menino não parava.
E assim foi, por dias e dias. Até os uru
bus já tinham deixado de acompanhar
a M orte, preferindo pousar nos galhos
secos das árvores, à espera do que pode
ria sobrar para eles. E o tambor batucan
do sem cessar, uma hora Taió, outra hora
Caiandê.
Por fim, não aguentando mais, a Morte
gritou:
“Pare com esse tambor maldito, e eu faço
qualquer coisa que me pedir.”
O menino virou para trás e disse:
“Pois então vá embora e deixe minha al
deia em paz.”
“Aceito” , ela berrou, e depois vomitou
na estrada.
127
A CRIAÇÃO DO MUNDO
O menino parou de tocar e ouviu a Morte
se lamentar:
“Ah! que fracasso, o meu. Vencida por um
pirralho. Eu me odeio. Eu me odeio.”
Oculta atrás da moita, Ade tutu quis
aplaudir, mas temeu ser descoberta pela
Morte.
Então a Morte se virou e foi embora para
longe do povoado. Só as moscas a acom
panharam, zunindo em volta de sua cabeça
descamada.
Tocando e dançando, os gémeos foram le
var a boa-nova à aldeia, onde foram rece
bidos com festas de agradecimento.
Muitas homenagens foram feitas àos va
lentes Ibejis. E em pouco tempo a vida nor
mal voltou a reinar no povoado, a saúde
retornou às casas, e a alegria reapareceu
nas ruas.
Mais tarde, quando chegou a hora de Taió
e Caiandê morrerem, a Morte não veio
buscá-los. E assim os gémeos, os Ibejis,
foram transformados em orixás, e desde
128
A vez da M orte
então as crianças têm no Céu alguém pa
ra zelar por elas.
Quando Adetutu não era mais uma me-
nina, e sua avó já havia partido, ela ainda
se lembrava da lenda dos Ibejis que enga
naram a Morte. Quando Adetutu se casou
e teve filhos gémeos, ela os chamou de Taió
e Caiandê.
Nas sombras do navio negreiro, o pé ma
chucado de Adetutu doía, e ela sentiu me
do de estar com febre, de ficar muito doen
te e morrer. Teve medo da Morte. Não era
só uma dor física. A falta de sua gente e a
saudade de Taió e Caiandê a faziam sofrer
demais, mas ela prometeu não se entregar
ao banzo. Sobreviveria à viagem no tum-
beiro e a tudo de ruim que viesse depois.
Se necessário, também enganaria a Morte.
Taió e Caiandê, seus Ibejis a ajudariam.
Adetutu precisava viver, tinha seus sonhos
para sonhar.
129
í
i
12
CÉU E TERRA SE SEPARAM
C ^ u a n d o a Morte foi criada, o mundo
dos humanos e o dos espíritos já estavam
separados um do outro. Mas não foi sempre
assim.
No começo os homens habitavam a Terra,
que eles chamavam de Aiê, e os orixás e os
espíritos habitavam o Céu, o outro mundo,
que eles chamavam de Orum. Mas a fron
teira entre os dois mundos era aberta, de
modo que homens e divindades iam e vi
nham, passando de um mundo a outro, com
partilhando vidas e aventuras.
Adetutu ouviu dizer muitas vezes que,
quando a passagem entre o Orum e o Aiê
era livre, os homens invadiam o espaço sa
grado dos deuses e, sem o menor respeito,
132
C éu e T e r r a se se p aram
sujavam tudo, tocavam as paredes dos pa
lácios com mãos imundas, pichavam os mu
ros com desenhos sem sentido, atiravam no
chão o lixo que eles mesmos produziam.
Oxalá foi reclamar a Olorum, o Senhor
do Céu, Deus Supremo, que, irado com a
sujeira, o desperdício e a displicência dos
mortais, lançou seu sopro divino e separou
para semprè o Céu da Terra.
Assim, o Orum foi isolado do mundo
dos homens,e nenhum humano podia mais
entrar ali com vida. E os orixás também
não podiam mais vir à Terra. Agora havia
o mundo dos homens e o dos orixás, se
parados .
Isoladas dos humanos habitantes do Aiê,
as divindades se entristeceram no Orum.
Os orixás tinham saudade de suas peripé
cias entre os humanos e andavam infelizes
e amuados. Sentiam falta das festas dos hu
manos, em que havia sempre comida, bebi
da, música e dança. Nada substituía a ale
gria dos mortais.
133
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Foram se queixar a Olorum, que acabou
consentindo que os orixás retornassem à
Terra vez por outra. Para isso, entretanto,
teriam de tomar o corpo material dos habi
tantes terrenos, porque o mundo agora es
tava dividido em dois: o do espírito e o da
matéria.
Oxum, que antes gostava de vir à Terra
brincar com as mulheres, dividindo com
elas sua formosura e vaidade, ensinando-
lhes feitiços de sedução e encantamento,
recebeu de Olorum um novo encargo: pre
parar os mortais para receberem em seus
corpos os orixás quando de sua visita à
Terra.
Oxum fez oferendas a Exu para ter su
cesso em sua missão. Dela dependia a ale
gria dos seus irmãos e amigos orixás.
Veio ao Aiê e juntou as mulheres à sua
volta, banhou seus corpos com ervas pre
ciosas, raspou seu cabelo e tatuou seus cor
pos. Pintou-as com pigmentos mágicos,
vestiu-as com belíssimos panos e fartos
134
C éu e T e r r a se sepa ra m
laços, enfeitou-as com jóias e coroas. No
alto da testa fixou uma pena vermelha de
papagaio-da-costa, como a que o próprio
Oxalá gostava de usar para se enfeitar.
Adetutu se viu em seus dias de iniciação.
Semanas recolhida na clausura do templo,
tomando banhos de purificação, aprenden
do as rezas, ensaiando os gestos apropria
dos. Cada vez mais a consciência de si mes
ma dava lugar a um novo ser, e ela sentia
que se aproximava a hora em que Xangô,
seu orixá, tomaria seu corpo. Sentia o mun
do se distanciar dela, como se estivesse se
preparando para morrer e nascer de novo.
Não estava sozinha, tinha suas companhei
ras de iniciação.
Oxum cuidava de todas com zelo, apron
tando cada uma para seu orixá. Com ansie
dade elas esperavam o dia da grande festa,
quando os deuses se mostrariam em meio
à comunidade dos humanos. Nas mãos,
Oxum as fez levar leques, espelhos, cetros,
e nos braços, dúzias de pulseiras de metal
135
C éu e T e r r a se se p a ra m
precioso. O colo, cobriu com voltas e vol
tas de coloridos colares de miçangas e múl
tiplas fieiras de búzios, corais e pequenas
peças de cerâmica.
Finalmente estavam preparadas. E esta
vam odaras. Eram as sacerdotisas mais bo
nitas que a vaidade de Oxum conseguia ima
ginar. Estavam prontas para os deuses.
A jovem Adetutu, quase uma menina ain
da, estava lá para emprestar seu corpo ao
orixá para que ele se manifestasse na Terra
e convivesse momentaneamente com os hu
manos. Assim sua gente cultuava seus deu
ses. Ela conhecera a emoção profunda que
significava para uma sacerdotisa emprestar
seu corpo à sua divindade num ritual de con
vivência dos deuses com os homens.
Graças às suas sacerdotisas, os orixás
agora podiam retornar ao Aiê, podiam se
mostrar no corpo das devotas e reviver, por
meio das danças, suas aventuras na Terra.
Mas ainda havia muito a fazer para a gran
de ocasião.
137
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Os animais mais viçosos foram abatidos
para o preparo dos pratos mais finos. Tem
peros inundavam de aromas raros a cozinha»
abarrotada de alimentos preparados com ca
pricho. Os humanos ofereciam essas igua
rias aos orixás e os convidavam à Terra, aos
corpos das sacerdotisas. Os orixás, por sua
vez, aceitavam o convite e se manifestavam
entre os humanos.
E enquanto os homens tocavam tambores,
vibravam batás e agogôs, soavam xequerês
e adjás, enquanto os devotos davam vivas
e aplaudiam, os orixás, no corpo das inicia
das, dançavam e dançavam e dançavam. Po
diam de novo conviver com os mortais. Os
orixás estavam felizes outra vez. O Céu fora
religado à Terra.
A isso, mais tarde, o homem chamaria
religião, a religação entre o mundo dos ho
mens e o mundo dos deuses.
138
EPÍLOGO
NA CIDADE DO SALVADOR, BAHIA, BRASIL
O navio negreiro chegou finalmente
ao Brasil, e sua carga humana foi desem
barcada na cidade do Salvador, capital da
província da Bahia. Transcorrera um mês e
alguns dias desde que o navio deixara o por
to na costa africana.
Os prisioneiros que sobreviveram à tra
vessia foram levados a um armazém de es
cravos, onde foram lavados e depois ali
mentados durante alguns dias para que
engordassem. Um trapo amarrado em tor
no dos quadris cobria-lhes o sexo. No mer
cado de escravos foram vendidos aos que
fizeram melhor oferta em dinheiro.
Para satisfação do leiloeiro que a vendeu,
a ferida no pé de Adetutu cicatrizara: uma
140
N a c id a d e d o S alvador, B a h ia ,B r a s il
escrava nova, forte, de muito boa aparência
e sem defeito físico nem enfermidade. Mas
a marca do ferimento ficaria ali para sem
pre, como lembrança de um dia trágico, que
já ia distante.
Adetutu voltava do mercado numa cida
de vizinha com suas companheiras. O ca
minho margeava a mata escura habitada
pelos maus espíritos. Mais alguns quiló
metros, e estariam em casa. Adetutu não
via a hora de chegar e amamentar Taió e
Caiandê, ainda pequenos demais para sair
com a mãe na estrada. Nunca chegaria. As
mulheres e crianças que seguiam pela es
trada foram surpreendidas por um grupo
de caçadores de escravos. Adetutu tentara
fugir, mas uma lança a ferira no pé, e ela
caíra. Foram levadas acorrentadas umas às
outras. Atadas ao libambo, cadeia de ferro
que as prendia por uma argola no pescoço,
marcharam muitos dias pelo interior, até
chegar ao litoral. No porto, foram entre
gues a traficantes brasileiros e, depois de
14J
A CRIAÇÃO DO M UNDO
alguns dias, embarcadas num navio negrei
ro, juntamente com outras mulheres, crian
ças e homens trazidos de diferentes luga
res. O tumbeiro estava abarrotado, eram
uns quinhentos prisioneiros. Depois veio
a travessia, em que muitos pereceram, e
finalmente o porto no Brasil.
No mercado de escravos, Adetutu alcan
çou bom preço pelo ótimo estado do corpo
e dos dentes, foi considerada uma boa pe
ça. Agora, era uma escrava de ganho. Traba
lharia para todos os que necessitassem de
seus serviços e produtos, e com isso ganha
ria dinheiro para seu proprietário. Moraria
com outros negros, uns africanos, outros já
nascidos no Brasil, num bairro negro no
centro da cidade. Era uma escrava desti
nada ao trabalho urbano, não trabalharia
nem nas roças nem nas minas, e não mora
ria em senzala. Ainda assim era uma escra
va, escrava de ganho, uma negra ganhadei-
ra. Trabalharia anos a fio como vendedora
de acarajés, lavadeira, passadeira, arruma-
142
N a c id a d e d o S alvador, B a h ia , B r a s ii
deira e em tudo o mais que rendesse algum
pagamento. O dinheiro ganho com seu tra
balho pertencia a seu dono, seu senhor, e
ela ficava com o que ganhava trabalhando
umas poucas horas semanais reservadas ao
escravo para o provimento do próprio sus
tento. Economizando tostões, Adetutu jun
tou um pecúlio e conseguiu, depois de
trinta anos, comprar sua alforria, isto é, a
liberdade. Com uma pequena sobra, mon
tou uma quitanda e prosperou. Poderia ago
ra realizar seu sonho maior, cumprir a mis
são a que se sentia destinada.
Antes do embarque no navio negreiro,
Adetutu fora batizada na religião católica
e marcada com ferro em brasa no lado di
reito do peito com um sinal de proprieda
de particular, a marca da escravidão. No la
do esquerdo, o ferro quente imprimira uma
cruz,a marca da cristandade. No Brasil,
aprendera rapidamente a língua portuguesa
e assimilara os hábitos locais. Seu nome de
batismo era Maria da Conceição. Deveria
143
A CRIAÇÃO DO MUNDO
frequentar uma igreja do bairro da Barro-
quinha, destinada especialmente a afri
canos e brasileiros negros originários da
mesma região da Africa da qual ela viera.
Adetutu, como qualquer outra alma vivente
em solo brasileiro naquela época, era ca
tólica, tinha de ser. Mas nunca renegou os
orixás, nunca deixou de amá-los com devo
ção. Nunca esqueceu seus mitos, lendas,
aventuras. Nunca deixou de sonhar.
Finalmente chegara a hora. Adetutu era
livre, estava bem de vida, conhecia muitos
negros que, como ela, permaneceram de
votados aos seus deuses, às suas raízes. E,
antes de qualquer coisa, era uma sacerdo
tisa de Xangô. Fora iniciada para o servi
ço religioso dos orixás. No fundo do quin
tal da igreja, onde os negros de sua origem
étnica costumavam fazer suas festas, Ade
tutu Maria da Conceição começou a orga
nizar um grupo de culto, recuperando a
memória de seus deuses, reavivando suas
tradições.
144
N a c id a d e d o S alvador, B a h ia ,B r a s il
Mais tarde, comprou um terreno nos ar
rabaldes de Salvador e, junto com seus com
panheiros de devoção, ali levantou um tem
plo, uma modesta construção de pau-a-pique
com telhado de sapé. Era a casa de Xangô,
onde todos os orixás seriam bem-vindos.
Cada negro que se juntava à casa de mãe
Conceição, como agora chamavam Adetutu,
lá encontrava o culto de seu orixá, fosse ele
Exu, Ogum, Oxóssi, Ossaim, Iroco, Ibejis,
Nanã, Omulu, Oxumarê, Euá, Xangô, Obá,
Iansã, Oxum, Logum Edé, Iemanjá, Ifá, O du-
dua, Oxaguiã, Oxalá. Cada um com seus mi
tos, seus ritos, seus objetos sagrados.
Adetutu Maria da Conceição fora iniciada
nos rigores da religião africana e tinha o po
der de iniciar outras sacerdotisas e sacer
dotes. Foi o que ela fez.
Preparou jovens negras para possibilitar
aos orixás, no transe ritual, tomar seus cor
pos e vir dançar entre os mortais, narrando
por meio de elaboradas coreografias passa
gens de suas aventuras míticas, refazendo
145
A CRIAÇÃO DO MUNDO
em cada passo os contos e lendas da criação
do mundo e de tudo que se seguiu depois.
Os homens foram iniciados para tocar os
atabaques sagrados, realizar os sacrifícios
e cuidar dos altares e da segurança do gru
po de culto.
Num pequeno quarto do novo templo,
mãe Conceição montou os altares dos ori
xás, onde eles receberiam as oferendas dos
devotos. Nos altares, representando os deu
ses, foram depositados os objetos da sacoli-
nha de segredos, as relfquias sagradas trazi
das dos sonhos de Adetutu na longa jornada
do navio negreiro através do Atlântico.
Dos segredos e mistérios da sacolinha má
gica, o maior era o de sua preservação. No
navio negreiro, os escravos eram mantidos
nus, acorrentados ao chão da embarcação.
Na chegada, foram banhados e mantidos nus
até o momento da venda, quando então eram
cobertos por uma pano irrisório que nada
escondia. O cabelo fora cortado rente. No
leilão, cada centímetro do corpo havia sido
146
N a c id a d e d o S alvador, B a h ia , B r a s il
examinado e apalpado por vendedores e
compradores. Como escrava, Adetutu nada
podia ter de seu, mas sempre conservara ata
da ao pescoço a pequena'sacola que um dia
Exu lhe dera em sonho. Esse detalhe nunca
foi notado por outros, nem mesmo pelos com
panheiros do tumbeiro aos quais Adetutu
estava agrilhoada. Ela não sabia explicar,
mas acreditava tratar-se de mais uma ma
ravilha dos orixás.
Talvez tudo o que fizesse no futuro em
prol dos orixás devesse ser tratado igual
mente: em segredo, escondido, longe da vis
ta dos não crentes. Por isso escolhera um
lugar tão distante para o templo, no meio
do mato, tanto quanto possível a salvo da
curiosidade e livre da sanha de perseguição
que por certo os orixás despertariam entre
os senhores brancos. Um dia, quem sabe,
quando o país aprendesse a amar os orixás
e aceitá-los, não haveria mais razão para man
ter escondidos tantos mistérios, tantos se
gredos guardados.
147
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Os tambores, finalmente, soaram no tem
plo de Xangô. Era a noite de 29 de junho
de 1830, ou de um ano próximo a esse, nin
guém sabe dizer ao certo. Adetutu passava
dos cinquenta anos, mas se sentia como a
menina que ganhara acarajés de Iansã. Uma
fogueira fora acesa no terreiro atrás da casa,
onde a cerimónia dançante tomou lugar. As
sacerdotisas recém-iniciadas, lideradas por
mãe Conceição, dançavam em roda, entoan
do os cânticos que contavam histórias dos
orixás. Os que não dançavam nem tocavam
juntavam-se para aplaudir e incentivar as
dançarinas. Da cozinha rústica vinha o chei
ro de acarajés sendo fritos no azeite de den-
dê e do guisado apimentado que a cozinhei
ra dos deuses preparava com as carnes dos
animais oferecidos em sacrifício. No início
da cerimónia já haviam ofertado a Exu uma
refeição de farofa, inhame, um frango co
zido em azeite de dendê com cebola e pi
menta, acompanhada de água fresca, mel,
aguardente e noz-de-cola. No encerramen
148
N a c id a d e d o S alvador, B a h ia ,B r a s il
to, todos comeriam do banquete dos orixás,
comida para alimentar o corpo e o espírito,
momento da comunhão dos humanos com
os orixás.
Agora, no terreiro, os tambores acelera
vam o ritmo, e as dançarinas se entregavam
com destemor ao arrebatamento de uma co
reografia que parecia conclamar a tempes
tade a se juntar a elas. O atabaque maior
repicava como o estrondo do trovão.
De repente, em extremo frenesi, o corpo
de mãe Conceição foi tomado de tremores
violentos, e pareceu que ela seria lançada
ao chão. Mais de uma vez teve que ser am
parada para não se ferir numa queda. Tre-
meliques lhe percorriam as espáduas e pa
recia que sua coluna se partiria em pedaços.
Então, com os braços esticados acima da
cabeça, as mãos espalmadas e as pernas
abertas, fincadas no chão, o corpo se imobi
lizou num átimo, e os presentes ouviram
sair de sua boca o som rouco e profundo
do trovão. Os participantes se prostemanim
149
N a c id a d e d o S alvador, B a h ia ,B r a s il
no chão nu do terreiro, saudando o grande
acontecimento.
Mãe Conceição, naquele instante, não exis
tia mais. Nem Adetutu. Quem estava pre
sente era Xangô.
Uma mulher correu para dentro e voltou
com um pano estreito e comprido com que
amarrou junto ao tórax os seios da sacer
dotisa. Outra trouxe uma coroa, com a qual
lhe cingiu a cabeça. Uma terceira veio com
dois machados duplos, que entregou ao
orixá.
Em meio à alegria reverente dos presen
tes, os tambores voltaram a soar, e Xangô,
pisando descalço o chão do Brasil, dançou
a noite toda sob as estrelas de sua nova
pátria.
Estava criado o candomblé, a religião dos
orixás em terras brasileiras.
151
APHND1CE
OS DEUSES DA MITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA
DA ÁFRICA PARA A AMÉRICA
O s orixás são os deuses de povos afri
canos denominados iorubás, que habitam
territórios que hoje se encontram principal
mente na Nigéria e no Benim. Os iorubás
são mais conhecidos no Brasil pelo nome
de nagôs, e em Cuba, por lucumis.
Os orixás chegaram ao nosso país com
os iorubás trazidos para o trabalho escravo,
que aqui plantaram muitas de suas tradi
ções, especialmente a religião. No século
xix, em diferentes partes do Brasil, a reli
gião dos orixás tomou uma forma especí
fica e recebeu nomes particulares: can
domblé na Bahia, xangô em Pernambuco,
tambor-de-mina nagô no Maranhão, batu
que no Rio Grande do Sul. No início do sé
culo xx, no Rio de Janeiro, do encontro do
candomblé com o espiritismo, originário
da França, nasceu a religião denominada
155
A CRIAÇÃO DO MUNDO
umbanda, rapidamente disseminada por to
do o país. E a partir de 1960, o candomblé
de origem baiana também se espalhou por
todo o Brasil.
São essas as chamadas religiões afro-
brasileiras.
Em outros países da América, como Cuba,
Haiti e Trinidad e Tobago, também surgiram
diferentes modalidades da religião dos orixás,
como a santeria cubana. Hoje em dia o culto
aos orixás pode ser igualmente encontrado
nos Estados Unidos, Argentina, Uruguai e al
guns países da Europa, levado por brasileiros
e cubanos.
O gum
156
POLITEÍSMO
Segundo acrençaiorubá, Olorum, oDeus
Supremo, criouos orixás e os encarregou de
criar e governar o mundo. Olorum, também
chamadoOlodumare, nãointerferenos acon
tecimentos do mundo habitado pelos huma
nos. Éumdeus distante e inacessível. Etudo
Oxóssi
158
O S DEUSES DA M ITOLOGIA A FRO-BRASÍLEÍRA
o que acontece no mundo depende dos deu
ses orixás, existindo uma divisão de tarefas
entre eles. Cada um é responsável por deter
minado aspecto físico d<5 universo e certa
dimensão da cultura e da sociedade.
As religiões em que se dá essa divisão do
trabalho divino são chamadas politeístas, isto
é, religiões de muitos deuses, mesmo quando
está presente um deus considerado superior
aos demais,um deus supremo. São desse tipo
as religiões clássicas do mundo grego e do
Império Romano, assim como a religião do
Egito antigo. Na América, eram politeístas
as religiões de povos pré-colombianos, como
os incas, os maias, os zapotecas e os astecas.
Também é o caso do hinduísmo e de outras
religiões antigas e contemporâneas.
Por outro lado, o judaísmo e as religiões
que dele se originaram — os diferentes cre
dos cristãos e o islã — são religiões mono-
teístas. Seus seguidores crêem em um só
Deus, embora acreditem também na exis
tência dos anjos, que consideram criações
159
A CRIAÇÃO DO MUNDO
divinas. Os católicos reverenciam os santos,
que foram homens e mulheres que tiveram
uma vida exemplar, segundo as normas pre
gadas pela Igreja, e que, no Céu, intercedem
junto a Deus em favor dos vivos. Há geral
mente uma espécie de divisão de trabalho
entre eles. Já os seguidores das igrejas pro
testantes, ou evangélicas, que também são
cristãos, não cultuam santos.
Nessas religiões ditas monoteístas, a Deus
se opõe o diabo, um anjo que se rebelou con
tra o Criador e que representa a encarnação
do mal. Deus é bom e fonte de todo o bem.
O diabo é o contrário. Nas religiões africanas
I n ic ia ç ã o
160
O S DEUSES DA M ITOLOGIA AFRO-BRASILEIRA
que chegaram ao Brasil, por sua vez, não há
originalmente separação entre o bem e o mal
em pólos opostos, pois tudo e todos têm seu
lado bom e seu lado maú. Como os orixás e
os seres humanos. Como a natureza, a so
ciedade, a vida. Nada nem ninguém é intei
ramente uma coisa ou outra. O bem e o mal
são faces da mesma moeda.
No Brasil os orixás se misturaram aos
santos católicos, dividindo com eles a tarefa
de atender aos pedidos dos homens. Além
disso, esse panteão afro brasileiro foi am
pliado com a presença ck* out ros deuses afri
canos também trazidos durante a escravi
dão: os voduns dos lons ou daomeanos,
povos denominados jejes no Brasil, e os in-
quices dos povos bantos. O mesmo aconte
ceu em outros países da diaspora africana,
como se chama a dispersão dos africanos
pelo mundo em consequência do tráfico de
escravos. No Brasil, orixás, voduns e inqui-
ces são cultuados em diferentes tipos de
candomblé.
161
162
NATUREZA, SOCIEDADE E CULTURA
O s orixás são, primeiro, forças da natu
reza. A maioria dos orixás femininos está as
sociada às águas, especialmente aos rios, co
mo Oxum, Euá, Iansã. Iemanjá, orixá de um
grande rio africano, na América também re
presenta o mar. Os masculinos aparecem
mais ligados à terra, compreendendo o solo
e o subsolo, como Ogum, Omulu e Iroco. O
fundo lamacento dos lagos e dos pântanos,
encontro de dois elementos, é de Nanã. O
ar que respiramos cabe a Oxalá e Oxaguiã,
orixás da Criação. Os fenómenos da atmos
fera pertencem a Xangô, Oxumarê, Iansã. A
vegetação e os animais estão relacionados
aos orixás caçadores, Ogum, Oxóssi, Os-
saim, Erinlé, Logum Edé, sendo esses dois
últimos também de rio. Alguns orixás estão
associados a mais de um aspecto da natureza.
Os antigos iorubás cultuavam também
163
A CRIAÇÃO DO MUNDO
seus antepassados humanos: os ancestrais
fundadores das linhagens familiares, reis e
outras personalidades importantes para o
grupo, cuja memória é preservada e louvada
por seus descendentes. Eles dão identidade
ao grupo, pois ensinam de quem ele se ori
ginou, lhe dão proteção e o ajudam a en
frentar as dificuldades da vida.
Num determinado momento, o culto das
forças da natureza fundiu-se com o culto
aos antepassados, formando-se uma única
religião. O orixá passòu a representar con-
juntamente a força da natureza e o antepas
sado do grupo, da família ou da pessoa. Os
orixás, antes vistos unicamente comó a for
ça do raio, do rio, do mar etc., foram antro-
pomorfizados, isto é, adquiriram forma hu
mana, e ganharam uma biografia mítica,
sendo responsabilizados também por aspec
tos socioculturais.
Tudo isso aconteceu na África, muito tem
po antes da chegada dos orixás ao Brasil.
Muito antes da diáspora negra.
164
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Numa época primeva, que chamamos de
tempo mítico, os orixás teriam habitado a
Terra, muitas vezes na forma de um rei, um
sacerdote, uma rainha ou outro persona
gem importante. As aventuras que aqui vi
veram passaram a ser narradas ao longo
dos séculos, compondo-se uma extensa mi
tologia, que é transmitida oralmente de ge
ração a geração. Os povos iorubás, até a
✓
chegada dos europeus na Africa, não co
nheciam a escrita.
Essa mitologia fala- dos orixás, de antigos
humanos, de animais e de tudo o mais que
existe neste e no outro mundo. É a fonte do
conhecimento iorubá, seu património ima
terial mais importante. A mitologia explica
o que aconteceu, acontece e acontecerá no
mundo, e serve como modelo de conduta
para os que vivem hoje. Corresponde ao co
nhecimento científico, filosófico e literário
das civilizações ocidentais, acumulado nos
livros, nas bibliotecas.
166
OS ORIXÁS
N a África os orixás são muito numero
sos. Deles, foram preservados no Brasil
cerca de vinte.
Xangô,rei mítico da cidade de Oió, é o ori
xá da justiça, do governo e da burocracia,
papel que acumulou à regência do trovào e
do fogo. Sua esposa lansa, orixá do rio Ní
ger, divide com ele o patronato das intem
péries, dominando o venlo, o raio, as tem
pestades. Responsável pela condução dos
mortos ao outro mundo, lansã comanda,
neste mundo, a sexualidade e o poder das
mulheres. Oxum, outra esposa de Xangô, cul
tuada inicialmente no rio que leva seu no
me, tem o domínio do amor, da vaidade, da
riqueza. Obá, a primeira esposa do orixá do
trovão e orixá do rio Obá, responde pelo co-
tidiano do domicílio.
Regente dos minérios de ferro, Ogum
167
A CRIAÇÃO DO MUNDO
ocupa-se de uma dimensão fundamental da
vida humana: o trabalho. Seu culto acom
panhou diferentes momentos da história da
sociedade iorubá. Inicialmente os antigos
iorubás formavam uma sociedade de co-
letores, e ainda nem eram denominados io
rubás, o que só veio a acontecer no século
xix. Nesse período, Ogum era considerado
orixá da caça. Por isso é apresentado na mi
tologia também como caçador. Depois, com
o desenvolvimento da agricultura, ganhou
a posição de orixá que rege essa atividade.
Mais tarde, com o ingresso da sociedade
iorubá na idade do ferro, Ogum passóu a ser
cultuado como o inventor da forja e criador
dos instrumentos metálicos que o homem
usa na agricultura e em outras atividades.
Tendo inventado igualmente as armas fei
tas de ferro, foi alçado à posição de regente
da guerra. É caçador, agricultor, ferreiro e
guerreiro. Também foi rei da cidade de Irê.
Hoje é o orixá da indústria e da tecnologia.
Ao longo de diferentes épocas, Ogum tem
168
O S DEUSES DA M ITOLOGIA A FRO-BRASILEIRA
sido cultuado como protetor dos caçadores,
agricultores, artesãos do ferro, operários in
dustriais, soldados, profissionais militares,
engenheiros, tecnólogos...
Acredita-se que qualquer inovação im
portante tem à frente um orixá. Dando for
ma às suas idéias, desejos e outros senti
mentos, os orixás introdu/em na cultura de
seu povo novos objetos e processos que afe-
/
tam o cotidiano. E o caso do pilao, um ins
trumento simples, mas que mudou os hábi
tos de preparo dos alimentos. Sua invenção
é creditada a Oxaguiã, que com isso ganhou
o lugar de orixá criador da cultura material.
A humanidade aprendeu a processar no pi
lão os alimentos fundamentais para a sobre
vivência humana, produ/indo massa de
inhame, batata, mandioca e outras raízes e
tubérculos. O gral de pau rijo, também cha
mado almofariz, morteiro ou simplesmen
te pilão, foi dos primeiros instrumentos efi
cazes usados para descascar e triturar arroz,
trigo, milho, café. Socando as sementes, se
A CRIAÇÃO DO MUNDO
produziram com facilidade as farinhas que
deram ao homem o pão, os bolos, as farofas.
É enorme a variedade de comidas, condi
mentos, bebidas e até remédios preparados
no pilão. A partir do pilão de pau a huma
nidade aprendeu a fazer pilões de pedra, de
metal, de todos os formatos e tamanhos. Sua
forma mais primitiva consiste numa pedra
com que se amassa o alimento sobre outra
pedra. Depois do pilão vieram inovações
como os monjolos, os moinhos de manivela,
os moinhos de vento e os de água corrente,
até se chegar às modernas usinas e refina
rias. Mas segundo o mito, tudo começou
com o pilão de Oxaguiã e seu desejo insa
ciável de comer purê de inhame.
Há quem diga que Oxaguiã é um orixá
filho de Oxalá. Outros afirmam que se trata
do próprio Grande Orixá quando jovem.
Ainda há os que defendem a idéia de que
Oxaguiã é um orixá que nada tem a ver
com Oxalá além do fato de ter recebido de
Olorum a missão de criar para o homem a
172
Ir o co
A CRIAÇÃO DO MUNDO
cultura material, avançando assim a criação
da humanidade.
Completando esse panteão complexo e
diversificado, resumido no Quadro 1, há os
orixás que cuidam da saúde, da família, das
viagens e das comunicações, do comércio,
da magia, do oráculo. Enfim, tudo o que o
homem faz e vive tem seu deus protetor, ca
da aspecto da sociedade tem seu orixá. A
cada dimensão da sociedade e da cultura se
junta algum aspecto importante da natureza:
são as duas faces do orixá, as duas faces do
mundo em que vivemos.
174
Q u a d r o 1 . S e x o e d o m ín io s d o s o r ix á s
NA NATUREZA, SOCIEDADE E CULTURA
O r ix á S exo* N atureza S o c ie d a d e e c u l t u r a
Exu M M O V IM E N T O , REPR O D U Ç Ã O C O M U N IC A Ç Ã O , CO M ER C IO
O gum M M IN É R IO D E FE R R O TECNO LO GIA, OPORTUNIDADES SO CIAIS, G U ER R A
O xó ssi M MATAS C A Ç A , FAR T U RA D E A U M E N T O S
L ogum Edíí 1) M A R G EN S DOS RIOS CA Ç A L P ESCA
O S S A IM M FOLHAS», LRVAS FAR M A C O LO G IA
O X U M A R ÍÍ H A RCO -ÍRIS, CHU VA R IQ U E Z A DAS C O LH EIT AS
O m u lu ou O ba lu a ê; M PI S T K DOFNÇ A M í DJCINA
O tô M H R I II ll)M )l 1)0 SOI O \< iR K 11 11 R \
lR O C O M \R \O K I S. l.( OL.O(jl \ , IR ADIÇÃO
C IRC { 1 \ ( V ) S W C .U IN I A
X angô M 1RO\ \ 0 , FOGO JU S T IÇ A , B U R O C R A C IA
O u F RIO T R A B A L H O DO M ÉSTICO
Ian sã o u O iá F R A IO , I t M P l S IA D I. S E X U A L ID A D E , CU ID AD O DOS M O R IO S
O xum 1- Ag u a s d o c e s , o u r o , A M O R , V A ID A D E, R IQ U E Z A
F E R T IL ID A D E DA M U LH E R
N anã F LA M A S A B E D O R IA , SE N IO R ID A D B
E uá F TONTFS M A G IA
I k m a n jA F A G U A S S A LG A D A S M A T ER N ID A D E, E Q U IL ÍB R IO EM O C IO N A L
I u ijis M G ÉM E O S IN FÂ N C IA
l i \ o u O r u n m il á M FE N Ó M EN O S C ÍC LIC O S O R Á C U LO , M EM Ó R IA C O LET JV A , M IT O LO G IA
O n il k F A TERRA A N C E ST R A L ! DA DB
O dudua M/F TERRA FU N D A Ç Ã O D E C ID A D ES
O X A G U IÃ M AR C U L T U R A M A T ER IA L
O x a lá o u O ba talá M/F AR P A T ERN ID AD E
* m = m a s c u lin o : v=f e m i n i n o ; b = b i s s i í x u a l ; h = h e r m a f r o d i t a .
OS SACRIFÍCIOS
Os homens agradamaos deuses ofere-
cendo-lhes umaparte do que produzempa
ra a própria sobrevivÍMicia, especialmente
acomida. Éassimnas religiões de culto aos
antepassados. Os mortos continuam a ser
considerados membros presentes da famí
lia e devemsertratados como tal. Recebem
tratamento semelhante ao tlispensado aos
vivos, sendo portanto alimentados. Quan
do os antepassados sao divinizados, con
tinuama merecer a mesma atenção, agora
por parte de uma comunidade de culto que
é muito ampla e que extravasa os limites
da família original. Chamamos essas reli
giões que oferecemaos deuses tributos ma
teriais na forma de comida, bebida e obje-
tos de uso pessoal de religiões sacrificiais.
Acame é umitemfundamental dadietahu
mana e, por conseguinte, da dieta divina.
177
Os DEUSES DA M ITOLOGIA A FRO-BRASILEIRA
Animais são abatidos em oferenda aos ori
xás, como acontecia nas religiões das ci
vilizações antigas e clássicas e até em
algumas religiões contemporâneas. Usual
mente, a maior e melhor parte da carne dos
animais sacrificados é consumida pelo gru
po de fiéis numa cerimónia de comunhão
dos homens com os deuses.
Cada orixá tem suas preferências alimen
tares. Para agradá-lo e, assim, contar com
sua proteção, é preciso saber de que tipo de
carne ele gosta mais, quais os seus pratos
prediletos, quais os temperos que devem ser
usados, que bebidas devem ser oferecidas.
Conta a mitologia que há alimentos in
terditos a cada orixá. Por exemplo, Oxalá
não bebe vinho-de-palma e não come nada
que seja preparado com azeite de dendê, is
so por ter um dia se deixado embebedar com
vinho extraído do dendezeiro, descuidando-
se das ordens que recebera de Olorum na
criação do mundo. Oxóssi não suporta mel
de abelhas, porque Oxum usou o mel para
179
A CRIAÇÃO DO MUNDO
se cobrir de folhas e seduzi-lo, fazendo-se
passar por entidade do mato, quando na ver
dade era do rio, que Oxóssi rejeitava. São
os tabus alimentares.
O Quadro 2 mostra as principais prefe
rências e proibições alimentares de cada
orixá. Para estar bem com os deuses, o bom
devoto dos orixás precisa conhecer bem o
gosto e os tabus de cada um.
I n ic ia ç ã o
180
Q u a d r o 2 . A l im e n t o s p r e f e r id o s e in t e r d it o s
O r ix á A l im e n t o s p r ^ e r id o s T a b u s a l im e n t a r e s
EXU B O D E , G A I C), \ AROl \, INH \MF C A R N E IR O , PO RCO , AZl l I I DOCI
OCUM C A B R IT O , CiM t), t M I\ M I . M IJO A D A C A R N E IR O , R À .C A JA
O xÓ SSl C A B R IIO . l U M I . m l I l I D . I \IS Á O , M ILH O P E IX E Db PHI 1% M l‘ l , H IJÂO -BR AN C O ,
JA C A
L o GUM E D É C A S A I Dl ( U I > Mil H o OS M ES M O S DE O x O S S I I' O X U M
F m j \ ( ) IK\I>IMI>>
O S S A IM CABRIIO <IHNM < < » M l! II < I P I IV-: ( I R IO S CARO ÇOS F SEM E N T E S
O XUM ARÊ C A S M Dl < \l‘i* r u I >11 m |h l‘l l\ l S K O , ( \ R M IRO , M A R A C U JA
BATAI A DO< I
O M U LU BO Dl , 1’ONI m <« \l o I II ( II » \ K W . l I I O. ( A R N t l R O , J A CA ,
H \ N \N \- P R A T \
iR O C O C A B K IIO | ,M “ I II II 1 *1- Ml ( M<l Kí C A R NE I RO , JACA
Xangô c a r m in o \ u \ ■" ; > *i m i \h< j C A B R IT O , FI IJÀO -BR AN C O
Obá < \n x \ i , u i ii i i •* O V E L H A , M A R ISC O S
I a n sã c m ik \ í .m i ii : 1 i ii O V E L H A ,C A G A D O ,A B Ó B O R A
Oxum c \ h k v <. u im i - r m i i , « O V E L H A , PklX H DF Pfíl.£, Q U IA B O
l i M V ) I U M * I M I " I I IM O /IDO S
N a NÃ C A B R A ,( \ I 'I \ M ^ «I M I S H V R A , M IN G AU O V E L H A , PIM EN T A
EuÁ cahr a , h i \ , i i n \ « ) i‘Ui u m a o G A L IN H A , B E B ID A A LC O Ó LIC A
lE M A N J Á C A B R A, O V I I l\\ : ( i M IM I \ , PAI A, P E IX E D E P E L E , C A R A C O L, Q U IA B O
P L IX I Dl I St \M \ S ; \KI<o/, C A N JIC A
ÍB E JIS A V I'S , ( A R I;K ( , f M N I S B E B ID A A L C O Ó LIC A
O x a g u iã caracoi , i n i i \m i h i \d o , c a n jic a A Z E IT E D E D EN D Ê , S A L , B E B ID A
A LC O Ó LIC A
O xa lá c abra . ( a h a í í )j . p o m b a , a r r o z , A Z E IT E D E D E N D Ê , S A L , B E B ID A
c a n jic a j n i i a m i p ii \D O , m f . l ã o A LC O Ó LIC A
TAREFAS E EMBLEMAS
C a d a orixá tem sua, digamos, profissão
e é o patrono dos humanos que exercem ati-
vidades semèlhantes àquela que ele teria
realizado durante sua vida na Terra, nos tem
pos míticos.
Exu desempenha um papel especial: é
o mensageiro dos deuses. É ele quem leva
aos orixás as mensagens e oferendas en
viadas pelos humanos. E traz de volta ao
mundo dos humanos os desígnios dos
deuses.
A mão dos orixás é vista em tudo o que
acontece, e sempre lá está Exu também, no
seu leva e traz ininterrupto e eterno. Nada
acontece, nada se move sem a participação
de Exu. Por isso ele é sempre o primeiro
a receber oferenda, pois nem mesmo o
orixá mais poderoso pode fazer nada sem
a ajuda de Exu.
182
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Relacionados às suas tarefas, cada orixá
tem seus emblemas, suas insígnias, além de
suas cores, como se vê no Quadro 3.
Branco é a cor dos orixás do ar; verme
lho, a cor dos orixás do fogo. Os orixás da
terra usam cores fortes e quentes, como os
azuis e verdes bem escuros; os da água, co
res suaves, como o verde-claro, o amarelo,
o azul-claro.
A cor branca de Oxalá, o Criador, sim
boliza o princípio de tudo, quando nada se
diferenciava. O cajado é seu emblema, re
presentando a autoridade do ancião, do pri
meiro orixá. Oxaguiã, outro orixá da Cria
ção, também usa branco, e seu emblema é
a mão de pilão.
Xangô se veste de vermelho e branco, e
seu símbolo é o machado de duas lâminas,
que em várias civilizações representa a jus
tiça. Vermelho e preto são as cores de Exu,
e sua insígnia é o porrete fálico, que repre
senta seu poder sobre a virilidade e a repro
dução humana.
184
Q u a d r o 3 . P a p e l s o c ia l , e m b l e m a e c o r e s d o s o r ix á s
O r ix á P a p e l s o c ia l E m b l e m a r it u a l * C ores
Exu M EN SA G E IR O , CO M ERC IANTI P O R R E T E (O G Ó ) V E R M E L H O h PRETO
O gum A G R IC U L T O R , G U E R R F IRO 1 \( \ (O B F ), IN ST R U M EN T O S AZU L-RfcAL,
Dl 1l RRO (A R Ó ) V ER D E-LSC U R O
O xóssi C A Ç AD O R \R ( O M l IC H A (O F Ã ) AZU I -T U R Q U ESA ,
V I R D M O l HA
L ogum E d(: C A Ç A D O R E PESCAD O R M ito l 11 1( II \ 1 \ B \ N O (O FÁ A B E B É ) A Z U L B DO URADO
O ssaim H E R B O R IS T A \ , \li(» |)| 11 U lií) (1 KIN 1 II ) V E R D E E BRANC O
OXUMARÊ ESC RA VO .1 |i!1 II : II lltl !‘K( IO I \ M \ R t I O
O m i i .u C U R A D O R , M ÉD IC O % V; «Ml I: • 1 = ^ \l VI KMf [ HO, PRETO
1 liR W C O
O cô A G R IC U LTO R | .. M ) t (< » i >) \ tR D I: E BR A N C O
Lr o c o A N TEPASSAD O 1i il i H II II \ (11*1 l \) BR A N C O , V E R D E E C IN ZA
X ancô R E I, JU IZ , G U I KKI ll«> M st II \I)U 1)1 1*1 O (O X Ê ) V E R M E L H O E BR A N C O
O bâ R A IN H A , E S P O S \ 1 i 1 1» 1 I \| \ lio ) V E R M E L H O b DOURADO
I an sã R A IN H A , C O N C L U IS \ 1 -1; \N 1 \ M OSCAS (E R U Q U E R È ) V ER M ELH O , M ARRO M ,
BR A N C O
O xum R A IN H A , A M A N i l 1 1<>n I S l’l I.HO ( A B E B É ) A M A R E L O , DO U RADO
Nanã AVÓ , M ES T R A ( I I K O I M I O R M A D E LA Ç O (iB I R l) P Ú R P U R A ,A Z U L E BRANCO
E l Á V IR G E M ( U IH U m o ) V E R M E L H O E A M A R ELO
lE M A N JÁ R A IN H A -M Â E ll^ l'M SP E LH O ( A B E B É ) A Z U L E BR A N C O ,
V ER D E-M A R
IllK JIS C R IA N Ç A S hONI COS (E R È S ) TO DAS A S C O R ES
IF Á A D IV IN H O Dl / I SS E IS B Ú Z IO S (E R IN D IL O G U M ) A M A R ELO E V ER D E
O X A G U IÃ R E I, G U E R R E IR O , IN V I N 10K M AO Dfc P IL Ã O (O M Ô O DÔ ) BR A N C O
O x a l á ** P A I, C RIAD O R ( M A DO (O PA XO R Ô ) BR A N C O
E ntre p arênteses, o nom e do em blem a ou lerr.im enta na língua ritual de origem iorubá.
v N as cerim ónias públicas, os orixás fem ininos , assim com o Logum Edé e O xalá, são geralm ente representados com o rosto coheitn
por um a co rtin a d e contas.
186
O S DEUSES DA M ITOLOGIA A FRO-BRASILEIRA
Oxum usa amarelo e dourado, cores da
riqueza, e leva na mão um espelho, símbolo
da beleza e da vaidade.
Iansã veste-se de vermelho, marrom e
branco. Com um esparita-moscas, símbolo
de realeza entre os iorubás, ela afasta o es
pírito dos mortos para o outro mundo.
O arco-e-flecha é o símbolo de Oxóssi e
de outros orixás caçadores. Ogum é o dono
da faca, seu emblema principal. Oxóssi usa
azul-turquesa ou verde-íolha; Ogum, azul-
real ou verde-escuro.
O símbolo de Omulu c uma vassoura es
tilizada, com a qual ele limpa os ambientes
da peste. Cobre-se de palha-da-costa, que
esconde as cicatrizes da varíola, e usa preto,
vermelho e branco.
As cores de Ieman já são as do mar: verde-
claro, branco, azul-claro. Leva na mão um
abano com espelho, símbolo de sua condi
ção feminina e de sua realeza.
187
SINCRETISMO AFRO-BRASILEIRO
A s chamadas religiões afro-brasileiras
formaram-se num período em que o catoli
cismo era a.religião oficial do Brasil. Nenhu
ma outra era tolerada. Todo brasileiro, fosse
branco, índio ou africano, devia ser católico.
Antes de serem embarcados nos navios ne
greiros, ainda na África, ou logo na chegada
ao Brasil, os escravos eram batizados e in
troduzidos nas práticas da Igreja católica.
Os negros que instituíram no Brasil o
candomblé e outras religiões de origem
africana eram, por força da sociedade da
época, também católicos. Acabaram por
estabelecer paralelos entre as duas reli
giões, identificando orixás com santos ca
tólicos, quando não com o próprio Filho
de Deus dos cristãos ou sua mãe, a Virgem
Maria. A isso se deu o nome de sincretis-
mo afro-brasileiro.
188
O S DEUSES DA M ITOLOGIA AFRO -BRA SILEIRA
Xangô, orixá do trovão, foi identificado
com São Jerônimo, o protetor católico con
tra as tempestades. Iansã e Santa Bárbara,
ambas associadas ao faio, passaram a ser
vistas como uma única santa. Oxalá, o pai
criador, fez-se Jesus Cristo; lemanjá, a gran
de mãe, foi sincretizada com Nossa Senho
ra. Na velha Nanã enxergou se Santana,
mãe de Maria.
Para cada orixá, um sanlo. Acabou-se
traduzindo a palavra oiixa pela palavra
santo. Olorum e Olodumarc passaram a
ser nomes iorubás para o Deus judaico-
cristão.
Para completar o smcielismo santo-ori-
xá, alguém deveria, evidentemente, assu
mir o lugar do diabo cristão. Certas carac
terísticas de Exu fizeram dele o candidato
ideal: astúcia, libidinagem, indiferença
moral. Como o carteiro moderno, que não
lê as cartas que entrega, Exu leva toda e
qualquer mensagem, independente do con
teúdo, seja do bem ou do mal. E assim o
189
A CRIAÇÃO DO MUNDO
brincalhão mensageiro africano foi con
fundido no Brasil com o diabo.
s
Os orixás já conviviam na Africa com qu-,
tros deuses. No Brasil, onde se juntaram es
cravos de origens étnicas diversas, esse con
vívio foi intensificado, especialmente com
os voduns dos povos jejes e os inquices dos
povos bantos. Correspondências estreitas
foram estabelecidas também entre esses
panteões. Assim, os orixás podem ser cha
mados também por nomes jejes e bantos,
além dos nomes de santos católicos, con
forme mostra o Quadro 4.
Outros tipos de influência entre essas reli
giões foram pouco a pouco dando uma for
ma bem brasileira às religiões africanas.
Mitos foram adaptados à nova realidade
social, rituais ganharam feições mais con
dizentes com o novo território. Os deuses
africanos tornaram-se, assim, deuses afro-
brasileiros.
190
Q u a d r o 4 . S in c r e t is m o
O r ix á V O D U M (F O N ) I n q u ic e (b a n t o ) S in c r e t is m o c a t ó l ic o
Exu E L I iG B A R A % e u v iã , B o m b o g ir a D ia b o , S ã o G a b r ie i A r c a n jo
O gum Gu, Doçu R o x im u c u m b k S a n t o A n t ó n io , S ã o J o r g e
O xó ssi A / . a c á , AgOê G o n g o b ir a , S ã o S e b a s t iã o , S ã o J o r g e
T a u a m in , M utac a l o m u o ,
LotiUM E dií Boço Jara T elec u m pen so S ã o M iG U k i, A r c a n j o
O s s a im A lo g u e, A gue C athndé S a n to O v o ir i
O x lM A K l " D a n g b è . B o s s í ( o . Hl SS! M X v .h ro S \ o B \ r to io m h
O m u lu A c ó s s i- S a p a t a , ( :M ! V , n ( \M v- l S M i K m jl I , S \ o I, \/ \ R ()
X a p a n ã , A ju n s u m
IK O C O Loco I I Ml:«< S \ o I R \ M ISC O
X angô Badé, X a d an i \ / \ I I t .,«» S ã o J e r o n im o , S ã o J o ã o ,
S ão P ed ro
O bá S anta J o a n a d ' A rc
I ansã SO BÔ M I Ml: -. h \M IU R U .l.M A S anta B á r b a r a
O xum N a v e o r u a l im . D i. i l M i \ . Q l ISS A M B O N. S r a . d a s , C a n d e i a s ,
N a v e z u a r i n a ,A / IK IM » I \ N . S r a . d a C o n c e í iç à o
N anã N anã / \MI« \M> \ S antana
E uá E uá M l , x , \ M , | . Q l ISS A M B E S a n t a L ú c ia , N. S r a . d o C arm o
IE M A N J Á A b ê , A z ir it o b ô s s i ( m S w i b \. C a l u n g a N . S r a . d a C o n c e iç ã o ,
N . S r a . dos N aveg an tes
I ISI .)1S T o s s á e T o sse \ isii S ã o C o s m e e S ã o D a m iã o
O dudua M avu
O X A G U IÃ L is s á I I MH\ M e n in o J e s u s
O xa lá A r r o n o v is s a v a l i M in J e s u s C r is t o
O lo r u m ou A v ie v o d u m / \ MBI D eus
O lo d um ake*
* D tllS SUPREMO.
DEUSES AFRO-BRASILEIROS, GREGOS,
ROMANOS, EGÍPCIOS...
Considerando-se a divisão do trabalho di
vino, é possível estabelecer paralelos entre
orixás, deuses gregos e romanos, e deuses do
antigo Egito.
Exu ocupa-se de tarefas similares às de
Hermes, dos gregos, e Mercúrio, dos roma
nos. São mensageiros dos deuses.
Xangô é o senhor da tempestade e da jus
tiça, como Zeus e Júpiter. Muitas caracte
rísticas de Amon, egípcio, o aproximam de
Zeus e Xangô, deuses que têm o carneiro co
mo animal-símbolo.
A Afrodite grega, a V ímuis romana e a Há-
tor dos antigos egípcios são divindades do
amor, como Oxum.
✓
Isis, uma das mais importantes divin
dades egípcias, mais tarde incorporada ao
panteão do Império Romano, corresponde
a Iemanjá por sua característica de grande
193
A CRIAÇÃO DO MUNDO
mãe. Em termos de seu domínio do mar,
contudo, Iemanjá está próxima a Posêidon,
grego, e Netuno, romano.
O cuidado com os mortos faz parte das ta
refas de Iansã, Hades e Osíris.
✓
No patronato da caça estão Oxóssi, Ar
temis e Diana.
Enquanto o oráculo iorubá é presidido
por Ifá, Apoio ocupa lugar proeminente
no oráculo grego, assim como Toth no do
Egito.
A criação da humanidade, que africanos
e afro-brasileiros atribuem a Oxalá, no an
tigo Egito era atribuição de Ptá.
O Quadro 5 dá um pequeno resumo com
parativo.
Embora as práticas culturais e as orga
nizações sociais variem de um povo a outro,
as necessidades mais fundamentais que de
vem ser superadas para a sobrevivência hu
mana se repetem no trabalho, na reprodução
humana, na administração dos bens comuns
e até na guerra. São eternos desafios que o
194
Q u a d r o 5 . C o r r e s p o n d ê n c ia c o m d e u s e s d e o u t r o s p a n t e õ e s
O r ix á D eus greg o D eus rom ano D e u s e g íp c io
Exu H erm es M e r c ú r io
O gum H e f e s t o (F O R JA ) V u l c a n o ( f o r ja ), B a s t e i (g u f r r a )
A r e s (g u e r r a ) M a r t e (g u e r r a )
O xó ssi Á r t e m is D ia n a
OSSA IM li ASCLÉPIO E s c u l á p io S ecm et
O m u lu
O cô D e MFTI R 0 ri s
X angô Z eus li m i ií A v io n
I a nsà H a d es ( m o r io s ) O s ir is ( m o r t o s )
O XUM A f r o d iii V i m s H a tor
IE M A N J Á POSÊIDON (M \U ) N i ii no (m \r ) Ís i s ( g r a n d e m ã e )
IB E JIS C á sto r i P o n \
O N II.É G a ia o r (ii \ 1I RR \
Ifá A p o i .o (O R\{ I I <11 T o th (o r á c u l o )
O xa lá
P t á ( C r ia ç ã o )
A CRIAÇÃO DO MUNDO
homem enfrenta, qualquer que seja sua cul
tura. Em cada uma dessas situações a vencer,
os deuses surgem como parceiros sobrena
turais da humanidade. Os deuses fazem no
mundo mitológico o que os homens precisam
fazer no mundo real.
196
I n ic ia ç ã o
OS HOMENS E AS MULHERES SE PARECEM
COM OS ORIXÁS DE QUE DESCENDEM
O s orixás são muito diferentes entre si,
mas cada um conserva atributos que são
próprios do elemento a que está associado
— ar, terra, água ou fogo.
Os orixás do ar, grupo ao qual pertencem
Oxalá e Oxaguiã, têm ccrta frieza, são cas
tos , pacíficos, tranqu ilos, equ iIibrados. Mas
nem sempre.
Os da terra, como Ogum e Oxóssi, são
V
quentes, agressivos, IVcundos. As vezes
hostis, são fortes e bravos.
Os orixás do fogo, como Xangô, têm a
paixão, a volubilidade e a turbulência. São
nervosos, majestosos, gulosos, lascivos e
amantes da justiça.
Os da água, grupo ao qual pertencem as di
vindades femininas Oxum, Iemanjá e Obá,
são sensíveis e emotivos, podendo ser trai
çoeiros como as corredeiras e imprevisíveis
199
A CRIAÇÃO DO MUNDO
como as fontes, mas de modo geral são tran
quilos e não agressivos, amorosos, férteis e
maternais.
Alguns orixás se enquadram em mais de
um elemento. Além das características ge
rais dos elementos, cada orixá tem as suas
próprias. Cada um com sua biografia mítica,
sua ocupação na divisão do trabalho, seu
lugar específico na família dos deuses. No
candomblé, acredita-se que homens e mu
lheres herdam as características dos orixás
dos quais descendem espiritualmente.
Na África, o orixá era uma herança em
linha paterna. Todos os filhos herdavam o
orixá do pai, que o recebera do avô, que,
por sua vez, herdara o do bisavô etc. Podia-
se traçar essa linha até o ancestral fundador
da família. Como o moderno sobrenome, o
nome de família. No Brasil, a escravidão
deixou para trás os laços de família dos afri
canos, dispersando seus membros e fazen
O r ix á s do que, isolados uns dos outros, perdessem
DANÇANDO a origem familiar. Novos nomes e novas
200
OS DEUSES DA M ITOLOGIA AFRO-BRASILE1RA
famílias, cristãos, eram impostos aos escra
vos. Desde então, no Brasil, para saber de
que orixá alguém descende, é preciso con
sultar o oráculo. Antes a origem era definida
pelo sangue; hoje, pela prática religiosa. O
sacerdote joga os búzios e diz qual é o orixá
daquela pessoa.
Quando se sabe qual c o orixá da pessoa,
pode-sé antever como ela se comportará
no dia-a-dia, pois se acredita que o ser hu
mano herda preferências, desejos, temores
e modos de agir próprios de seu orixá. Agem
de acordo com o que os mitos contam. Tal
pai, tal filho.
Os filhos de Xangô, por exemplo, tendem
a ser majestosos, voluptuosos, amantes do
poder, comilões.
Os de Oxum são amorosos, vaidosos, aman
tes da riqueza.
Filhos de Ogum são dotados para o tra
balho manual, determinados e corajosos.
Muitas vezes deixam extravasar a agres
sividade de guerreiros.
203
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Os descendentes de Oxalá são calmos,
pacientes, obstinados e um tanto frios, en
quanto os de Oxóssi juntam a curiosidade
à paciência.
E assim por diante.
Um exame cuidadoso dos mitos permite
uma composição bastante rica e complexa
do que seria o modelo de personalidade
dos filhos de cada orixá, como resume o
Quadro 6.
Os devotos do candomblé crêem, assim,
que os seres humanos são cópias pálidas e
toscas dos orixás. Não carregam, evidente
mente, nem sua grandeza nem sua-imorta
lidade. Homens e mulheres nada mais fazem
do que repetir, de modo grosseiro e imper
feito, as aventuras míticas dos orixás. As
sim, para os devotos do candomblé, cultuar
os orixás pode ensinar também a compreen
der melhor o ser humano.
204
Q u a d r o 6 . E l e m e n t o s e p e r s o n a l id a d e d o s o r ix á s e s e u s d e s c e n d e n t e s
O r ix á E lem ento A t r ib u t o s d e p e r s o n a l id a d e
Exu FOGO E T E R R A \ST U ( IA , E S P E R T E Z A , R A P ID E Z , PR O N T ID Ã O , L IB ID IN A G E M , G U LA
O gum TERRA D E T E R M IN A Ç Ã O , IN V E N T IV ID A D E , D EV O Ç Ã O AO T R A B A LH O
O xó ssi TERRA P A C IÊ N C IA , C U R IO S ID A D E , C U ID A D O DA FA M ÍLIA
Ijk .i M EnÉ Á G U A E TfcRR\ D U P L IC ID A D E, IN C O N S T Â N C IA , JO V IA L ID A D E
O S S A IM I (M ID I / , R FSFR V A. SA B E D O R IA
OXUM ARÊ 1M Mil D \ D I , Ml 1 W I O R I O S I
O m u ia i 1)1 PRI S SA O . I K I S Í I / V, SOI J Í ) \ R ( Í DADi
I koco P FRS f V f R -WC 4 . 7 F I M O S I A , F O RÇ A. TRADIC JONA LI SMO
X angô M A JE S T A D E . V O N T A D E D E PO D ER , GANÂNC1?\, VORACIDADE-,
V O LÚ P IA
O há S U B S E R V IÊ N C IA , IN G E N U ID A D E , PR O PEN SÃ O A V ID A D O M EST IC A
I a n sã A G U A , AR b FOGO C O R A G E M , IN D FP E N D ÉN C IA , ESPALH AFAT O , SEN SU ALIDAD fc
OXUM V A ID A D E, SED U Ç Ã O , A M O R O S ID A D E , (, AN \ \ C I \
N anã A G U A f I I RR \ S ABFDORI A, SI N K ) R ) D \ D I . I N I R O SP I c (, AO, RABUGICE
E uá P( DIÍ l( I V l>! S( ( > \l l \ H G O S I O PI LO MI ST FRI O
lE M A N J Á VI M I R M D N D I ( \R M 1 R S l P FR P R O T E T O R , IN D ISC R IÇ Ã O
O X A G U IÃ ( K IM IM D A IM , U T O N O M IA , L ID E R A N Ç A , O B ST IN A Ç Ã O
O xa lá I KII / \ . C \l M A , LE N T ID Ã O , PA C IÊ N C IA , T E IM O S IA ,
\ l I O - S I F!(.IÉNCJA
OS SACERDOTES DOS ORIXÁS
( 3 culto aos orixás, tal como se reali
za no candomblé, depende de uma com
plexa organização sacerdotal, com muitos
cargos e tarefas que são distribuídos entre
os adeptos.
A mãe-de-santo é a sacerdotisa-chefe do
templo, que no Brasil é chamado terreiro.
E considerada mãe espiritual dos demais
membros da comunidade de culto, denomi
nados filhos-de-santo. O nome mãe-de-san
to é a tradução de ialorixá, termo da língua
iorubá. Quando o chefe é masculino, diz-
se pai-de-santo, do iorubá babalorixá.
São secundados pela mãe-pequena ou pe
lo pai-pequeno.
Os filhos-de-santo iniciados para dançar
e permitir que os orixás se manifestem em
seu corpo, durante o transe ritual, são cha
mados iaôs. Podem ser mulheres ou homens.
206
OS DEUSES DA M ITOLOGIA A FR O -BRASILEIRA
As mulheres que não entram em transe e
que dançam com os orixás manifestados
nos iaôs são as equedes. São responsáveis
também pelo cuidado das roupas e orna
mentos sagrados.
Os alabês são os homens que tocam os
tambores e outros instrumentos. O axogum
é o responsável pelo sacrifício dos animais.
O encârregado da conservação dos altares
é o pejigã. Esses sacerdotes, todos homens
que não entram em transe, são genericamen
te chamados de ogãs. O título de ogã tam
bém é atribuído a homens que, por sua ele
vada posição na sociedade fora do terreiro,
podem oferecer ajuda, proteção e prestígio
social ao grupo de culto.
Depois de cumprir obrigações rituais du
rante sete anos, os iaôs recebem o título de
ebômi, que pode ser traduzido por minha
irmã mais velha ou meu irmão mais velho.
Podem então assumir tarefas especializadas
na divisão do trabalho sacerdotal e, depen
dendo de outras condições, tornar-se mãe
207
A CRIAÇÃO DO MUNDO
ou pai-de-santo e fundar seus próprios ter
reiros de candomblé.
A cozinheira dos deuses é a iabassê. A sa
cerdotisa encarregada de zelar pelos filhos-
de-santo que se encontram recolhidos para
os ritos iniciáticos é a ajibonã. Há ainda os
que cuidam das oferendas a Exu, os can
tores, os que ajudam a mãe-de-santo em cer
tas atividades dos ritos iniciáticos, os res
ponsáveis pela segurança.
✓
Na Africa, o babalaô é o sacerdote encar
regado de interpretar os desígnios dos ori
xás, diagnosticar doenças e identificar a
origem dos mais diferentes males. Ele con
sulta o oráculo e indica quais oferendas de
vem ser feitas aos orixás para que eles aju
dem os humanos a resolver seus problemas.
Cabe ao babalaô aprender de cor todo o con
junto de mitos que compõem o saber ioru
bá. Ele usa os mitos para decifrar o que se
passa na Terra, pois acredita-se que aquilo
que acontece agora aos humanos já aconte
ceu aos orixás num tempo remoto. Babalaô
208
OS DEUSES DA M ITOLOGIA A FRO-BRASILEIRA
significa pai do segredo, ou senhor do sa
ber. É o sacerdote do oráculo de Ifá. No
Brasil esse sacerdócio foi assumido pela
mãe-de-santo ou pelo pai-de-santo, que tem
A CRIAÇÃO DO M UNDO
a prerrogativa de fazer o jogo de búzios,
um oráculo de Ifá simplificado. Os mitos,
em versões resumidas, são mantidos pelo
conjunto dos religiosos e continuam a ser
transmitidos nos terreiros oralmente, de
geração a geração.
Outro sacerdote importante é o olossaim,
o encarregado de colher e sacralizar as fo
lhas usadas nos ritos.
Uma das bases da religião dos orixás é
a crença de que uma energia de origem di
vina move o mundo. Sem ela nada de bom
pode acontecer. Essa energia se encontra
sobretudo na natureza, nas folhas e no san
gue dos animais, e pode ser usada em be
nefício dos homens. É o axé, a força dos
orixás. O rito realizado pelo axogum, o sa
crificador, acessa o axé contido no mundo
animal; o rito do olossaim, o axé do mundo
vegetal.
À mãe-de-santo cabe, por meio dos ri
tos, acumular, fortalecer e distribuir o axé
dos orixás a seus filhos-de-santo e a quais-
210
O s DEUSES DA M ITOLOGIA A FR O -BRASILEIRA
quer outras pessoas que eventualmente
recorram aos orixás em busca de ajuda.
Para que sejam saudáveis, prósperos, fe
lizes e realizados, para que tenham vida
longa e possam viver em paz e em equi
líbrio com os orixás, isto é, com a natureza
e a sociedade.
S audação
211
212
O MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO
/\c re d ita -se que os orixás vieram da
Africa acompanhando seus filhos humanos
nos navios negreiros e que os seguirão por
toda parte, qualquer que seja o caminho to
mado pelos homens e pelo próprio mundo.
São deuses da diáspora negra, e seu destino
é se espalhar pelos mais distantes lugares,
assumindo feições condizentes com um
mundo em permanente transformação. Na
dispersão, foram adotados por filhos bran
cos, pardos, amarelos e mestiços das mais
diversas origens, transformando-se em deu
ses universais, ainda que africanos. Afinal,
como gostam de lembrar os seguidores do
candomblé, o homem teria surgido, segun
do descobertas recentes da paleontologia,
num local próximo a Ilê Ifé, na África, ali
onde os orixás, um dia, a mando de Olorum,
teriam criado o mundo.
213
214
O S DEUSES DA M ITOLOGIA AFRO -BRA SILEIRA
Os mitos falam de guerras e disputas que
os orixás mantêm entre si. Lutam sobretudo
para ampliar seu poder e alargar os limites
de seu patronato. Porque nem tudo que exis
te no mundo, em cada época, existia nos tem
po da Criação, e o mundo nunca parou de
ser criado.
Quando a cultura e a sociedade mudam,
originando novas necessidades e soluções,
os orixás acrescentam novas dimensões a
seus domínios. Não é de estranhar que Exu,
o mensageiro dos deuses, o correio entre
os mundos, o senhor da comunicação, seja
considerado hoje o orixá da internet. Nem
que Omulu, orixá da varíola, hoje domi
nada pela medicina, tenha assumido o lu
gar de protetor contra a aids. Nesse mes
mo movimento, orixás dos rios, das matas,
da terra passaram a ser invocados na defesa
da ecologia e do planeta. O pára-raios faz
hoje pelos homens o que se esperava de
santos e orixás: protege contra os raios.
Iansã, a senhora da tempestade, foi então
9
215
O S DEUSES DA M ITOLOGIA A FR O -BRASILEIRA
cuidar da luta das mulheres, transforman
do-se em emblema do feminismo. E assim
por diante.
Para os que crêem, aonde quer que o ho
mem vá, o que quer que ele enfrente, os
orixás estão sempre prontos para ajudá-lo
na nova luta. O mundo se transforma, os
/
deuses mudam, a religião se atualiza. E o
que conta a história da humanidade em sua
aventura na Terra. Os contos e lendas da
Criação, em suas múltiplas versões, narram
apenas um dos possíveis começos desta
longa jornada. A ciência moderna também
oferece sua versão, na qual não há espaço
para deuses e seus desígnios.
F esta no
T E R R E IR O
217
N ota d o au t or
Os contos e lendas deste livro foram ba
seados íios mitos contidos em M ito lo g ia d o s
o r ix á s , de minha autoria, publicado pela
Companhia das Letras (2000), onde o leitor
interessado pode encontrar mitos de todos
os orixás e sobre os mais diferentes aspectos
da vida. Para este livro, foram selecionados
apenas alguns, aqueles que tratam da Cria
ção. Ao redigir este livro, mantive os con
teúdos originais dos mitos, mas me permiti
grande dose de liberdade na forma de apre
sentar os orixás e suas aventuras.
Adetutu, ou Maria da Conceição, é per
sonagem fictícia, criada com o fim de esta
belecer uma ligação narrativa entre mitos O r ix á s
originalmente independentes uns dos outros SENTADOS
219
e introduzir informações mínimas sobre a
escravidão e a instituição do culto dos orixás
no Brasil.
O templo de candomblé supostamente
fundado por mãe Conceição pertence, como
ela, ao reino da ficção. Sabe-se que aquele
que seria o mais antigo terreiro brasileiro
de culto aos orixás teria sido inaugurado
por volta do ano de 1830, na cidade de Sal
vador, Bahia, no dia em que se celebrava,
nas igrejas, a festa de São Pedro, com quem
o orixá daquele primeiro templo é sincre-
tizado. Nesse dia também se realizava a fes
ta do imperador d. Pedro i. Mas há outras
versões.
O terreiro de que fala este livro e a data
de sua inauguração devem ser vistos pelos
leitores como uma alegoria.
220
A g r a d e c im e n t o s
Este livro foi escrito por iniciativa de Lilia
Moritz Schwarcz, que acompanhou sua rea
lização desde o primeiro esboço do proje-
to. Durante a redação, contei com a leitura
crítica e animada de Rosa Maria Bernardo,
e suas sugestões foram para mim de grande
valia. Denise Pessoa cuidou das diferentes
etapas da edição do texto. Joana Lira ofe
receu uma parceria que resultou em vivas
e belas ilustrações. A edição gráfica ficou
por conta de Helen Nakao, com a ajuda de
Geane Mantovani e Renan Botelho. O livro
não se concretizaria em papel sem o traba
lho de produção gráfica de Elisa Braga.
As fotografias foram possíveis graças à
colaboração sempre amiga e compreensiva
221
’ de Pai Armando Akintundê Vallado de Ogum,
babalorixá do Candomblé Casa das Aguas,
localizado em Itapevi; de Pai Pércio Ge
raldo da Silva de Xangô, babalorixá do ílê
Alaketu Axé Airá, de São Bernardo do Cam
po; de Pai Carlito Maciel de Oxumarê e
Mãe Carmen Corde de Oxum, dirigentes
do Ilê Olá Omin Axé Opô Araká, de São
Bernardo do Campo; e do falecido Pai Do-
da Braga de Ossaim, babalorixá do Ilê Axé
Ossaim Darê, de São Paulo. Seus filhos-de-
santo foram fotografados em momentos ri
tuais em que, em transe, incorporavam seus
orixás. Sinto-me muito honrado por ter me
recido sua confiança.
A todos, muito obrigado.
222
Meu nome é REGINALDO
PRANDI e nasci em Potiren-
daba, uma pequena cidade do
interior de São Paulo. Aos de
zoito anos, para estudar, mu
dei para a capital, onde moro
até hoje. Desde pequeno gos
tava de ler e, depois que me
formei e fui trabalhar como
professor na Universidade de
São Paulo, passei a escrever. Mas escrevia apenas livros
de sociologia e mitologia, por causa da minha profissão
de sociólògo. Em 2001 publiquei meu primeiro livro
infanto-juvenil, o Ifá, o A d ivin h o . Foi ótimo, pois ganhei
muitos novos leitores e alguns prémios. Depois vieram
O s p rín c ip e s d o destino; X a n ^ ô , o T rovão; O xu m a rê, o
Arco-Íris; C ontos e lendas afro brasileiros — A criação
d o m u n d o . Só sei que tomei gosto e não parei mais.
Escrevi também um livro baseado em histórias que ouvia
uma tia-avó contar. Pelo lílulo. M inha q u e rid a a sso m -
b ra ç ã o , dá para adivinhar que histórias eram essas. Quan
do tentei fazer a continuaçao desse livro, com os mesmos
personagens, acabei escrevendo um romance policial,
porque os personagens que eram crianças no primeiro
livro já tinham crescido e ficado adultos. E, sem querer,
foram envolvidos na investigação de um crime. Um des
ses livros logo, logo vai virar filme e passar nos cinemas.
Tente imaginar qual deles será...
Ao publicar meus livros infanto-juvenis, tive a par
ceria de artistas que os ilustraram e se tomaram grandes
amigos meus: Pedro Rafael, Paulo Monteiro, Rodrigo
Rosa e Joana Lira.
ESTA O B R A HOI COMPOSTA EM TIM ES E IMPRESSA PELA GEOGRÁFICA
EM OFSETE SO BRE PAPEL ALTA PRINT DA SUZANO PAPEL E CELU LO SE
PARA A EDITORA SCHWARCZ EM JA NEIRO DE 2009
do património mitológico iorubá que
o Brasil herdou da África e que aqui se
preservou ao longo de mais de um século,
contado de boca em boca, aprendido de
cor, transmitido de geração a geração.
E que hoje é parte constitutiva da
nossa cultura.
Reginaldo Prandi, paulista de
Potirendaba, é professor de sociologia
da Universidade de São Paulo e autor de
livros de sociologia da religião, mitologia
afro-brasileira, literatura infanto-juvenil
e ficção policial. Seus principais livros são
Mitologia dos orixás, Segredos guardados
e Morte nos búzios (Companhia das
Letras), Os príncipes do destino
(CosacNaify), e Ifá, o Adivinho, Xangô,
o Trovão, Oxumarê, o Arco-Íris e Minha
querida assombração (Companhia das
Letrinhas).
Joana Lira, artista plástica
pernambucana residente em São Paulo,
é também designer, ilustradora,
ceramista e cenógrafa do carnaval de
Recife. Ilustrou os livros O bruxinho tímido
e o lobisomem apaixonado (Caramelo),
Eu acho épouco (Escala Educacional)
e 0 palhaço e a bailarina (Edelbra).
Adetutu, uma jovem africana, é aprisionada
por caçadores de escravos e transportada ao Brasil
em um navio negreiro. Durante a terrível viagem,
ela sonha com a criação do mundo pelos orixás, deuses
de seu povo. Ela torce para Oxalá realizar sua missão
com sucesso, ganha a cumplicidade de Exu, vibra
com a atuação de Xangô, emociona-se com Iemanjá.
Trazidos pelos escravos, os orixás se ambientaram
no Brasil. Com suas crenças e costumes, os africanos
trouxeram também sua versão mítica da criação do
mundo, narrada em histórias repletas de aventuras,
comoventes e até mesmo engraçadas,
agora contadas neste livro.
ISBN 978-85-359-1053-7
9 788535 910537