X
CAPÍTULO
O RITUAL DOS SACRIFÍCIOS
O altar é o lugar do sacrifício e o sacrifício é o ato principal do culto. Nós
procuraremos determinar qual era este o significado do sacrifício na religião
de Israel, mas essa conclusão só pode vir no termo de um estudo do ritual e de
sua evolução. Aceitaremos de partida uma definição provisória: o sacrifício é
toda oferenda, animal ou vegetal, que é destruída. no todo ou em parte, sobre
o altar em homenagem à divindade. O estudo é complicado pelo fato de que os
termos que designam os sacrifícios são bastante numerosos e seu sentido não
é sempre claramente distinguido: um mesmo termo pode designar muitos
tipos de sacrifícios e inversamente muitos termos podem se aplicar ao mesmo
sacrifício. O vocabulário reflete uma evolução histórica e a fusão de práticas
análogas, originárias de ambientes diferentes.
Nós partiremos do ritual mais completo e mais recente e procuraremos
em seguida retraçar a história dos sacrifícios remontando a sua origem. O códi
go sacrificial do segundo Templo está contido em Lv 1-7. Esta seção pertence
à última redação do Pentateuco; ela é de caráter legislativo e intenompe o
relato da instituição do culto no deserto que, após a fundação do santuário,
Ex 40, deveria continuar com a instalação dos sacerdotes, Lv 8-10.
1. O HOLOCAUSTO
A palavra "holocausto" foi emprestada da Vulgata, e por ela da Setenta,
sendo em grego uma tradução do hebraico 'o/ah, cuja raiz significa "subir": é
o sacrifício que se faz subir sobre o altar ou, mais provavelmente, do qual
sobe a fumaça para Deus quando é queimado. Sua característica é que a vítima
inteira é queimada e que nada sobra para o ofertante nem para o sacerdote
(salvo a pele). Isto justifica que o grego o tenha traduzido por "holocausto" e
que o termo 'o/ah seja substituído às vezes por /.:ali!, sacrifício "total", l Sm 7.9;
Dt 33.JO, em ligação com 'o/ah em SI 51.21.
Segundo o ritual de Lv l, a vítima é um animal macho, sem defeito, cf.já
o Código de Santidade, Lv 22.17-25, de gado grande ou pequeno, ou uma ave,
454 R. dt' Vtmx
mas somente rolinha ou pombo. A vítima é apresentada pelo ofertante que
deve estar em estado de pureza ritual. Ele põe sua mão sobre a cabeça da
vítima. Este não é um gesto mágico que estabelece um contato entre Deus e o
homem, não é tampouco o símbolo de uma substituição do ofertante pela víti
ma de quem ela tomaria os pecados para os expiar; sem dúvida, na cerimônia
do bode expiatório, Lv 16.21, 242 o animal é assim carregado com as faltas do
povo mas, precisamente por causa dessa transferência, ele se toma impuro e
indigno de ser sacrificado. A imposição das mãos pelo ofertante não é tampouco
uma simples ma111m1issio, um abandono da vítima a Deus, ela é a atestação
solene de que esta vítima vem dele, ofertante, que o sacrifício que vai ser
apresentado pelo sacerdote é oferecido em seu nome e que os frutos serão
dele.
A vítima é degolada pelo próprio ofertante fora do altar. A imolação só
era feita pelos sacerdotes e levitas quando dos sacrifícios públicos, 2 Cr 29.22,
24,34; Ez 44.11. A função própria do sacerdote só começa quando a vítima
entra em contato com o altar, e isto acontece por meio do sangue: este é espa
lhado pelo sacerdote ao redor do altar. O sangue contém de fato a vida, ele é a
própria vida segundo a concepção hebraica: "a vida de toda carne é seu san
gue", Lv 17.14; cf. Gn 9.4; Dt 12.23; Lv 7.26-27, e o sangue pertence a Deus
somente.
A vítima é em seguida esfolada e esquartejada, e suas partes são coloca
das pelos sacerdotes sobre o altar, onde queima um fogo perpétuo, Lv 6.5-6; a
indicação de Lv 1.7 sobre o acender do fogo só vale para o primeiro sacrifício,
que se considera ter acontecido após a promulgação da lei. Tudo é posto sobre
o altar, até a cabeça, as vísceras e as patas, previamente lavadas, e tudo é
queimado.
Quando a vítima é uma ave, o ritual é modificado em conformidade: não
há imposição de mãos nem degola, tudo é feito sobre o altar e, por essa razão,
é feito pelo próprio sacerdote. Vê-se por Lv 5.7; 12.8 que esses sacrifícios de
aves eram o equivalente para os pobres dos sacrifícios de gado que somente os
ricos podiam oferecer. Pelo mesmo motivo econômico, os sacrifícios de ove
lhas e de cordeiros eram mais freqüentes que os de gado maior.
No ritual recente, o holocausto é acompanhado de uma oferenda, 111i11l:wh,
de farinha amassada com azeite e uma libação de vinho, para a festa das Sema
nas segundo Lv 23.18, para os holocaustos cotidianos segundo Ex 29.38-42,
para todos os sacrifícios 'ola/, e ::.eba!J, segundo Nm 15.1-16. A farinha era queima
da, o vinho era derramado ao pé do altar, como o angue, cf. Eclo 50.15.
1•2 Cf. pp. 543s.
455
Esse primeiro capítulo de Levítico já nos põe em face da fluidez da lin
guagem sacrificial. O holocausto aí é chamado também de qorba11, Lv l.2,10,14,
o que se "aproxima" de Deus ou do altar: um termo que Levítico, Números e
Ezequiel aplicam a todos os sacrifícios, até às oferendas não sacrificiai s, como
os materiais destinados ao santuário, Nm 7 passim, e que tomará no judaísmo
posterior o sentido de "consagração". Neste mesmo capítulo, o holocausto é
chamado também 'i.S.Seh. Lv 1.9.13, 17. A etimologia é discutível mas, seja
como for. não há dúvida que os redatores bíblicos entendiam o termo como
tratando-se de toda oferenda totalmente ou parcialmente consumida pelo fogo,
·e� Freqüente nos escritos sacerdotais, retomado pelo Eclo hebraico 45.20;
50.13, o termo só aparece três vezes em outras passagens, Dt 18.I; Js 13.14
(hebr.); 1 Sm 2.28, logo, nos textos deuteronomistas e sempre a propósito do
direito dos sacerdotes sobre os sacrifícios. Freqüentemente no Pentateuco, o
termo é acompanhado da express:ío "cheiro agradável a Iahvé". Esse antro
pomorfismo significa que Deus se agradou do sacrifício, cf. Gn 8.21. onde ele
corresponde a uma expressão análoga, mas mais rude, da narrativa babilônica
do dilúvio. A fórmula, esvaziada de seu sentido materialista, ficou na lingua
gem cultuai.
2. O SACRIFÍCIO DE COMUNHÃO
Nós adotamos. na falta de uma melhor, esta designação para o sacrifício
que é chamado em hebraico zeba�i J'°' famim, ou simplesmente zeba}J,, ou só
t'la111i111, sempre no plural salvo uma vez. Selem, Am 5.22. A equivalência de
todos esses termos é provada pela alternância nas mesmas passagens ou nas
passagens paralelas e pela identidade dos motivos e dos ritos; zeba/J, s"'lamim
é o termo específico nos rituais sacerdotais que estudamos aqui e ele é raro em
outros lugares. A tradução "sacrifício pacífico" ou "sacrifício de salvação" se
inspira na versão grega, mas o ritual e a prática definem mais o sacrifício
como rendendo graças a Deus e procurando a união com ele.
O ritual especifica três tipos particulares do sacrifício de comunhão: o
sacrifício de louvor, roda II, Lv 7 .12-15; 22.29-30; o sacrifício espontâneo,
n'dabah. oferecido por devoção fora de toda prescrição ou de toda promessa,
Lv 7.16-17; 22.18-23; o sacrifício votivo, neder. ao qual o ofertante se obriga
por um voto, Lv 7.16-17; 22.18-23. A distinção entre os três tipos é imprecisa.
O ritual principal está contido em Lv 3. O traço característico é que a
vítima é repartida entre Deus, o sacerdote e o ofertante, que a come como uma
coisa santa. As vítimas são as mesmas do holocausto (mas não aves), só que
podem ser macho ou fêmea e defeitos menores são tolerados para as vítimas
456 R. d,· l'aur
do sacrifício 11'dabah segundo Lv 22.23. A imposição das mãos, a degola e o
�ito do sangue são feitos como para o holocausto.
A parte de Iahvé é queimada sobre o altar: é toda a gordura que cerca as
:ntranhas, os rins, o fígado, e a cauda gorda dos ovinos, e somente a gordura.
\ razão é que, como o sangue, a gordura é considerada como uma parte vital:
Toda gordura pertence a lahvé... Vós não comereis nem gordura nem san
;ue", Lv 3.16-17; cf. 7.22-24.
A pane do sacerdote é dupla: é o peito, que foi "balançado" diante de
1hvé, segundo a explicação comum da palavra r'1111pah, mas não é queimado
)bre o altar, e a coxa direita, que é uma "antecipação", r'r11111ah, devida ao
tcerdote, Lv 7.28-34; 10.14-15. Mas as duas palavras são empregadas indis
·1tamente em muitos casos, elas podem ter o sentido comum de "contribui
io'' e podem ter sido emprestadas da terminologia dos contratos babilônicos.
O ofertante fica com as sobras da carne. Ele a consome com sua família
odo convidado que esteja em estado de pureza ritual. A vítima do sacrifício
-!ah deve ser comida no mesmo dia. Lv 7.15, as dos sacrifícios 1l'dabah e
der podem ainda ser comidas no dia seguinte, mas deve-se queimar o que
:tar para o terceiro dia. Lv 7.16-17. O sacrifício todah é acompanhado de
ta oferenda, 111i11�iah, de bolos sem fermento e de pão fermentado. Um dos
los é uma ''antecipação" para Iahvé e vai para o sacerdote.
)S SACRIFÍCIOS EXPIATÓRIOS
Quase a metade do código sacrificial do segundo Templo tem por objeto
:acrifícios que chamamos expiatórios, mas para os quais o ritual não tem
termo comum: ele trata sucessivamente ou conjuntamente de duas espé
de sacrifícios que têm por fim restabelecer a aliança com Deus, rompida
s faltas do homem: o sacrifício pelo pecado, �iatta't, e o sacrifício de repa
o, 'atam. Apesar dos desenvolvimentos do texto, é difícil determinar a
ificação própria a um e a outro e a razão de sua distinção.
a) O sacrifício pelo pecado - A palavra hebraica fiatta 't significa ao
no tempo o pecado e o rito que o apaga, Lv 4.1-5.13; 6. l 7-23. A vítima
1 segundo a qualidade do delinqüente: oferece-se um touro pelo pecado
1mo sacerdote, o "sacerdote ungido'',2�J cuja culpabilidade mancha todo o
; um Louro também pelo pecado do povo, um bode pelo pecado do "prín
·, 11asi, chefe leigo da comunidade na perspectiva de Ezequiel; uma cabra
na ovelha pelo pecado de um indivíduo. Os pobres podem substituir
'). 436.
l:ss·, 1 ru1çôF.s oE ISRAEL :so ANTIGO TESTAME.vro 45·1
essas vítimas caras por duas rolinhas ou dois pombos, dos quais um serve para
o sacrifício �iatta't e o outro é oferecido em holocausto. Eles podem até fazer
uma oferta de farinha.
Nos ritos, esses sacrifícios se distinguem dos outros por dois traços: a
função do sangue e o uso da carne da vítima. Este é o sacrifício em que o
sangue exerce a função mais importante. Se o sacrifício é oferecido pelo sumo
sacerdote ou por todo o povo, há três ritos sucessivos: tendo recolhido o san
gue, o oficiante entra no Santo e faz uma sétupla aspersão diante do véu que
fecha o Santo dos Santos, depois ele esfrega com o sangue os chifres do altar
dos perfumes que fica diante do véu, enfim ele derrama o resto ao pé do altar
dos holocaustos. Estes são os únicos sacrifícios de animais onde alguma coisa
da vítima é levada para o interior do Templo. Para o pecado do chefe ou de um
particular, esfregam-se somente os chifres do altar dos holocaustos e se derra
ma o resto do sangue ao pé do altar; nesses dois sacrifícios nada da vítima
entra no Santo.
Esses ritos acentuam bastante o valor expiatório do sangue, que se liga à
função que lhe era reconhecida como suporte da vida: ''a vida da carne está no
sangue. Este sangue eu tenho dado a vós para fazer sobre o altar o rito de
expiação por vossas vidas; pois é o sangue que faz expiação por uma vida",
ou: "que expia pela vida que está nele", Lv 17.11, com o que se comparará
Hb 9.22: "Sem derramamento de sangue não há remissão."
Toda a gordura é queimada sobre o altar, como para o sacrifício de comu
nhão, mas o destino da carne é diferente: o ofertante, reconhecido culpado,
não tem parte nela e tudo vai para os sacerdotes. E quando o sacrifício �wtta't
é oferecido pelo pecado da comunidade ou do sumo sacerdote que representa
a comunidade, os próprios sacerdotes não podem comer nada da vítima; esta é
levada para fora do santuário, para o depósito de cinzas. O fato de que a gor
dura é queimada sobre o altar e que a carne dos sacrifícios pelos pecados dos
particulares seja comida pelos sacerdotes como "uma coisa santíssima", Lv 6.22,
contradiz a teoria segundo a qual a vítima seria carregada com o pecado do
ofertante, tornando-se ela mesma "pecado". Não, ela é uma vítima agradável a
Deus, que, em consideração dessa oferenda, tira o pecado. É evidentemente
nesse sentido ritual que a palavra é retomada por são Paulo: "O Cristo que não
conheceu o pecado, Deus o fez "pecado" (l).atta'r, vítima pelo pecado) a fim
de que nele nos tomemos justiça de Deus", 2 Co 5.21.
O ritual de Lv 1-7 para o sacrifício fiatta'r é diferente do de Nm 15.22-
29. Nesse último texto, não se trata mais do pecado do sumo sacerdote nem do
príncipe, só do pecado da comunidade ou de um indivíduo; as faltas por inadver
tência da comunidade são apagadas pelo holocausto de um touro e o sacrifício
458 R. d� Va11x
IJ,atta'r de um bode, os pecados por inadvertência de um indivíduo são apaga
dos pelo sacrifício fiatta ·, de um cabrito. O detalhe dos ritos não é dado. Se se
trata de um erro voluntário. o sacrifü:io é impotente e não há remissão possí
vel. Nm 15.30-31. É possível que essa lei seja ainda mais recente que a do
Levítico.
Esses sacrifícios assumem uma solenidade particular no Dia da Expia
ção, do que falaremos tratando das festas religiosas.�,1.1
b) O sacrifício de reparaçiío - A outra forma de sacrifício expiatório é o
'asam. A palavra significa "ofensa", depois o meio que repara essa ofensa, e por
fim o sacrifício da reparação. O código sacrificial se estende menos
sobre esse sacrifício, Lv 5.14-26; 7 .1-6, e diz que os ritos são os mesmos que os
do sacrifício pelo pecado, Lv 7.7. Porém, esse sacrifício só é previsto para indi
víduos e, por conseqüência, o sangue nunca é levado ao Santo, nem a vítima
queimada fora do santuário: por outro lado, a última vítima mencionada é o
cordeiro; enfim, esse sacrifício duplica-se com uma multa nos casos previstos
por Lv 5.14-16,21-26; Nm 5.5-8: se os direitos de Deus ou do próximo têm sido
lesados por um prejuízo que pode ser estimado pecuniariamente. o culpado.
além do cordeiro oferecido e reparação, deve restituir aos sacerdotes, represen
tantes de Iahvé, ou à pessoa lesada, o valor do prejuízo aumentado de um quin
to. Deve-se porém destacar que essa restituição não faz parte do sacrifício.
c) Distinçcio entre sacrifício pelo pecado e sacrifício de reparação -
É bem difícil determinar o que distingue esses dois tipos de sacrifício. Já os
antigos não estavam de acordo: Fílon, De Vicri111is, II, pensava que o l:,,a(ta ·,
era para as faltas involuntárias contra o próximo, o 'asam para as faltas
involuntárias contra Deus e todas as faltas voluntárias; segundo Josefo, Am.
Judaicas. II ix 3, a distinção seria entre os pecados cometidos sem testemunha
e os pecados cometidos diante de testemunhas, e os rabinos também tiveram
suas teorias. As opiniões dos modernos são geralmente mais bem fundamenta
das mas também são variadas.
Dos exemplos citados em Lv 4-5 tem-se a impressão que o }:,,afta 'r tem
um alcance mais amplo e que o 'asam visa sobretudo as faltas pelas quais se
lesou a Deus (ou seus sacerdotes) ou o próximo, o que dá a esse sacrifício seu
caráter de reparação. Mas, dentro desse mesmo código sacrificial, há incon
sistências: o h,atta 't é chamado também 'asam em Lv 5.6,7; o l:,,att(1 't é ofere
cido se se pecou por inadvertência contra qualquer um dos mandamentos de
lahvé, Lv 4.2, mas também o 'a$a111 é oferecido se se faz sem perceber uma
das coisas proibidas pelos mandamentos de lahvé. Lv 5.17; os dois sacrifícios
,�, Cf. pp. 54Js.
IN,11rv1ç01:.> Ué l�ttAEL "º A�TIGO Tcsr,\ME�,u 459
têm pois o mesmo alcance muito geral. Os dois sacrifícios são previstos para
casos de tipo muito semelhante: o }:iatta ·, para aquele que foge ao testemunho
que devia dar diante de um juiz ou que faz, sob juramento, uma declaração
irrefletida, Lv 5.1,4; o 'asam para aquele que presta um falso juramento, Lv
5.22,24. A confusão aumenta quando se comparam a esse código sacrificial
algumas leis particulares: a purificação do leproso exige um sacrifício 'a$am,
um sacrifício };iatta 'te um holocausto, Lv 14.10-32. Da mesma forma, o nazir
que é contaminado no contato com um morto deve oferecer duas rolinhas ou
pombos, um em sacrifício /:iatta't, outro em holocausto, e um cordeiro em sacri
fício 'a$am, Nm 6.9-12. Há a mesma incerteza sobre o aspecto oral do ato que
deve ser expiado por esses sacrifícios: o IJ,atta't e o 'asam são oferecidos
quando se pecou por inadvertência, isto é repetido em Lv 4.13,22,27; 5.15,17,
e cf. Nm 15.22-31. Mas exemplos são dados onde não pode se tratar de sim
ples inadvertência: por exemplo, para o 1:i,atta 't, a recusa de testemunho diante
de um juiz, Lv 5.1, e para o 'asam, a fraude a respeito de um depósito ou de
um objeto achado, Lv 5.21-22.
Certamente, essas confusões e incenezas podem ser parcialmente resol
vidas por uma crítica literária que as atribui a remanejamentos do texto. Per
manece o fato que os últimos redatores que estabeleceram essas regras confu
sas não sabiam claramente o que eram o sacrifício }:iatta 'te o sacrifício 'a$a111:
ou antes, quiseram distinguir termos que eram primitivamente sinônimos, ou
confundiram termos dos quais não conheciam mais o valor específico. Volta
remos a isso tratando da história dos sacrifícios, mas já é óbvio que esse ritual
não foi construído do nada para o segundo Templo: um ritual completamente
novo seria exposto mais claramente.
4. AS OFERTAS VEGETAIS
A oferta vegetal é chamada min/J,ali, que, segundo a etimologia mais pro
vável, significa "dom". O ritual de Lv 2 distingue muitos tipos de ofertas: há a
oferta não cozida de flor de farinha embebida em óleo e acompanhada de
incenso; um punhado dessa farinha e todo o incenso são queimados sobre o
altar, o resto vai para os sacerdotes. Lv 2.1-3; 6. 7-11; 7.1O. Há a oferenda da
mesma massa, cozida sobre uma chapa ou em uma panela; uma parte é quei
mada, o resto vai para os sacerdotes, Lv 2.4-10; 7.9. Essas oferendas devem
ser sem fermento e temperadas com sa), Lv 2.11-13. Enfim, Lv 2.14-16 assi
mila à min/J,ah a oferta das primícias. espigas tostadas ou pão assado, acompa
nhados de azeite e incenso: uma parte é queimada sobre o altar.
460
O que de todas essa oferendas é queimado se chama ·azkarah. O sentido
exato é discutível: ou um ·'memorial" que faz Deus se lembrar do ofertante, ou
ainda um "penhor", uma pequena parte que é dada a Deus fazendo-o pensar
no todo.
A 111i11h,ah era oferecida somente em casos especiais, como a oferta coti
diana do sumo sacerdote, que era inteiramente consumida, o sacerdote não
podendo dar e receber uma mesma oferta, Lv 6. 13-16. Independentes tam
bém eram a oferta que, para o pobre, tinha o lugar do sacrifício pelo pecado,
Lv 5.11-13, e a "oferta de ciúmes", Nm 5.15; em todos esses casos, suprimi
am-se o óleo e o incenso. Mas, muito freqüentemente, a minlJ,ah era o comple
mento de um sacrifício com sangue, holocausto ou sacrifício de comunhão, e
ela era acompanhada de uma libação de vinho, cf. Ex 29.40; Lv 23.13, sobre
tudo Nm 15.1-12.
5. OS PÃES DA OBLAÇÃO
É possível ligar às oferendas vegetais os pães da oblação, chamados leh,em
happa11i111, "pão da face ou da presença", ou {eh,em hamma'areket, ''pão da
fileira". Segundo Lv 24.5-9, eram doze bolos de flor de farinha, dispostos em
duas fileiras sobre uma mesa que ficava diante do Santo dos Santos; eles eram
renovados cada sábado. Eram um penhor da aliança das doze tribos com lahvé.
Esses pães eram comidos pelos sacerdotes e não íam para o altar, mas se colo
cava sobre cada fileira incenso que era queimado, evidentemente sobre o altar
dos perfumes como um 'azkarah, o que justifica que se os assimile a uma
oferenda sacrificial, e Ezequiel compara a um altar a mesa em que ficavam,
Ez 41.21-22; essa mesa é descrita entre a mobília da Tenda do deserto em
Ex 25.23-30.
S. AS OFERTAS DE INCENSO
Foi citado muitas vezes nesse capítulo o incenso acrescentado às ofertas
,egetais e, no capítulo precedente, 245 falou-se do altar dos perfumes. A palavra
1ebraica cftoret significa "o que vira fumaça'" e pode designar todo sacrifício
1ueimado sobre o altar, assim provavelmente l Sm 2.28; Is 1. 13; na lingua
;em propriamente cultuai, ela é aplicada às oferendas aromáticas. A expres
ão completa sendo cftoret sammim, freqüente nos textos sacerdotais. O incen
o, l'bonah, não constitui senão um elemento e Ex 30.34-38 dá a receita da
'Cf. p. 448.
461
fragrância reservada ao culto; ela era composta tle partes iguais de estoraque,
ônix (tirado de alguns moluscos), gálbano e incenso. Os tratados rabínicos
descrevem uma composição muito mais sofisticada onde entram dezesseis
ingredientes e que talvez tenha sido utilizada nos últimos séculos do Templo.
Tais misturas de aromas não devem surpreender: elas são mencionadas muitas
vezes nas inscrições sul-arábicas. Esses materiais eram estrangeiros na Pales
tina e seu uso no culto era um refinamento, aliás comum a todas as religiões
orientais, como veremos.
Para fazer a oferta de incenso, pegavam-se �rasas sobre o altar dos
holocaustos com uma pá ou urna colher, espalhava-se sobre a brasa o pó aro
mático e levava-se tudo para o altar dos perfumes, diante do Santo dos Santos.
Esta oferenda de perfumes devia acontecer de manhã e à tarde de cada dia,
Ex 30.7-8, e ela era uma função sacerdotal, cf. 2 Cr 26.16-18; Lc 1.9. Ela era
também um rito do Dia da Expiação onde, excepcionalmente, o incensário era
introduzido no Santo dos Santos, Lv 16.12-13. À parte esses casos, em que a
oferta de perfumes constituía um ato especial do culto, o ritual do segundo
Templo só conhece o uso do incenso, não misturado a outras substâncias,
como acompanhamento da oferta, 111i111),ah. ligado aos sacrifícios, e em rela
ção com os pães da oblação.
CAPÍTULO XI
HISTÓRIA DO SACRIFÍCIO ISRAELITA
O ritual dos sacrifícios descrito no capítulo precedente é o que foi segui
do no segundo Templo, após o Exílio. A última redação do Pentateuco supõe
que esta liturgia sempre foi observada desde sua instituição no deserto por
Moisés. Mas a crítica literária do Pentateuco, distinguindo muitos documen
tos e lhes atribuindo datas, reconstruiu uma história diferente do culto sacri
ficial. É a solidez dessa reconstrução que se trata agora de testar.
1. A TEORIA CRÍTICA
A vigorosa síntese de Wellhausen, que tanto influenciou e influencia ain
da a exegese, dividia a história do sacrifício israelita em três períodos:
Em um primeiro período, que vai até a reforma de Josias em 62 l a.e.,
preocupava-se muito pouco com ritos: cuidava-se menos em saber como se
oferecia um sacrifício do que saber a quem se oferecia. Era suficiente que o
sacrifício, qualquer que fosse seu rito, fosse oferecido a lahvé e a ele agradas
se. Havia então só dois tipos de sacrifício, o holocausto e o sacrifício de
comunhão, e este último era o mais freqüente. Tal seria a situação que apre
sentam as partes antigas dos livros históricos, os profetas dos séculos VIII e
VII e também as passagens javistas e elofstas do Pentateuco.
A reforma de Josias abre um segundo período. O ritual dos sacrifícios
não aparece af alterado, salvo em um ponto essencial: todos os sacrifícios
deviam ser oferecidos no Templo de Jerusalém; a unidade do santuário obri
gou à unificação do ritual. Este foi um passo decisivo na sistematização dos
diversos costumes que existiam anteriormente nos lugares altos e nos santuá
rios provinciais. Tal é o estado de coisas refletido no Deuteronômio.
A partir do Exílio, tendências novas se manifestaram e, entre elas, uma
grande preocupação com o ritual. Isto aparece primeiro em Ezequiel que des
creve os ritos que serão observados no culto restaurado, e que insiste na idéia
de expiação. Ele inlroduz dois sacrifícios desconhecidos dos textos antigos: o
sacrifício pelo pecado e o sacrifício de reparação. Essas tendências resultam.
INSTITlllC;◊ES l>E lsltAEL �o AN'TIGO TESTAMENTO -l63
em muitas etapas, na redação final do Código Sacerdotal, no qual se acham
todos os textos relativos ao culto sacrificial. Na época de Esdras, o ritual é
definitivamente constituído e será aplicado até a queda do Templo.
2. CONSIDERAÇÕES GERAIS
O rigor desta teoria é atenuada por certas reservas que já tinham sido
feitas por seu iniciador e que foram acentuadas por seus discípulos: admitia
se cada vez mais que há no ritual recente elementos antigos, mas se mantém
que eles têm sido integrados em um sistema novo. Essa mudança teria aconte
cido no momento do Exílio, entre o Deuteronômio de um lado e Ezequiel e o
Código Sacerdotal de outro. E é aí que reside a fraqueza profunda do esquema
evolutivo que nos é proposto. É verdade que a centralização do culto precipi
tou a unificação do ritual, mas o Deuteronômio não pode servir para reconstituir
o ritual do Templo após a reforma de Josias, pois ele não contém nenhuma lei
de sacrifícios. Ele só fala destes incidentalmente e só a propósito de dois
assuntos conexos que lhe são caros: a unidade de santu�io, Dt 12, e os direi
tos dos sacerdotes. Dt 18. Entre os termos cultuais estudados no capítulo pre
cedente, ele só cita zeba}:i, 'o/ah, 11'dabah e nedet; ele nunca menciona }J,affa 't
e 'a�am, o que é o argumento principal para fazer desses dois sacrifícios uma
invenção de Ezequiel; mas o Deuteronômio também não fala das oferendas,
dos perfumes, do incenso, dos pães da proposição, que sem dúvida faziam
parte do culto pré-exílico. O quadro está, pois, incompleto. Além disso, toda a
história da reforma indica que, no Templo elevado à condição de santuário
único, o ritual anterior se manteve já que os mesmos sacerdotes, e só eles,
cf. 2 Rs 23.9, continuaram em serviço. Antes que no Deuteronômio, a expres
são desse ritual do Templo pré-exílico deve ser procurada no Código de San
tidade de Lv 17-26, cujo fundo remonta, segundo uma opinião provável, aos
últimos tempos da monarquia. Ora, esse ritual tem contatos evidentes com o
pensamento de Ezequiel e ele estabelece uma ponte entre o profeta e a época
pré-exílica, lá onde a teoria crítica marcava precisamente a grande ruptura na
história do sacrifício. Não mais que o Deuteronômio, o Código de Santidade
não contém um verdadeiro código sacrificial, mas ele tem prescrições tocantes
ao holocausto, ao sacrifício de comunhão e seus diferentes tipos, Lv 17 .1-12;
19.5-8; 22.18-25,29-30, que concordam bastante com o código sacrificial do
segundo Templo. Sobre o ponto disputado dos sacrifícios expiatórios, é o Códi
go de Santidade que contém o texto mais explícito, Lv 17.11, e o sacrifício
'a$am aparece em Lv 19.20-22. Naturalmente concordamos que o Código de
Santidade sofreu uma nova redação durante o Exílio e que mesmo mais tarde
464 R. tle \'aux
tenha recebido adições, mas é, parece. um erro contra o método suprimir como
redacionais as passagens que acabam de ser citadas simplesmente porque elas
não têm seu equivalente no Deuteronômio e porque concordam com Ezequiel:
isso só pode ser feito em nome de um esquema preestabelecido, que precisa
primeiro ser justificado.
Mas, já que o testemunho do Código de Santidade é contestado e para
decidir o que se deve guardar da construção crítica, nós examinaremos duas
questões: nos perguntaremos primeiro em que medida as formas de sacrifício
do segundo Templo se acham nos livros históricos, nos profetas de antes do
Exílio e nas tradições reconhecidamente antigas do Pentateuco; este será o
objeto do presente capítulo. Pesquisaremos em seguida se se acham entre os
vizinhos de Israel, em uma época antiga, essas mesmas formas sacrificiais e,
estabelecido o fato, se houve um empréstimo por parte dos israelitas e em que
momento, ou antes, se as correspondências se explicam por uma mesma ori
gem étnica e uma história comum, o que será estudado no capítulo seguinte.
3. HOLOCAUSTO E SACRIFÍCIO DE COMUNHÃO
Esses dois tipos de sacrifícios são atestados de maneira contínua desde
os primeiros textos históricos até o Deuteronômio. Ficaremos aqui só com as
atestações mais antigas.
Sob os juízes, Gideão oferece um holocausto, 'o/ah, Jz 6.26,28. A segunda
tradição relativa ao sacrifício de Gideão, Jz 6.18-22, é menos clara mas a
explicação óbvia é que Gideão, não reconhecendo de início o Anjo de Iahvé,
quer lhe oferecer uma refeição de hospitalidade, que é transformada em holo
causto pelo fogo saído da rocha. Temos um relato análogo mas mais explícito
para o holocausto de Manoá, pai de Sansão, Jz 13.15-20. Depois, há o
holocausto oferecido quando a arca volta da Filistéia, 1 Sm 6.14, os holocaustos
de Samuel, 1 Sm 7.9; 10.8, de Saul, 1 Sm 13.9s. de Davi, 2 Sm 6.17s, e os de
Salomão antes e depois da construção do Templo, 1 Rs 3.4; 9.25, mais tarde,
fora de Jerusalém, o sacrifício de Elias sobre o Carmelo, l Rs 18.38. As víti
mas são, como em Levítico, animais domésticos, gado grande ou miúdo.
A característica é a mesma: tudo é queimado sobre o altar. Fora os sacrifícios
excepcionais de Gideão e de Manoá, não temos os detalhes do ritual que não
interessavam aos autores dos livros históricos. Parece, porém, que diferente
mente do Levítico se tenha antigamente imolado a vítima sobre o próprio
altar, cf. o sacrifício de Abraão, Gn 22.9-10, e o episódio da guerra contra os
filisteus, 1 Sm 14.33-34. Mas, no sacrifício do Carmelo, o touro é despedaça
do antes de ser posto sobre a madeira do altar. 1 Rs 18.23,33.
ls,nT1·1c;úES DE lsRAEL :,;o ANTIGO TE.STAMl;NTO 465
O sacrifício de comunhão é mencionado nos textos antigos mais freqüen
temente ainda que o holocausto. Ele é chamado simplesmente zeba!J, nas nume
rosas passagens dos livros históricos, Js 22.26s; 1 Sm 1.21; 2.13, 19; 3.14;
6.15 etc.; 2 Sm 15.12; 1 Rs 8.62; 12.27; 2 Rs 5.17; 10.24 etc., nos profetas, Is
1.11; 19.21; Jr 7.22; Os 3.4; 4.19; Am 4.4; Sf 1.7,8 etc., e também nos antigos
códigos do Pentateuco, Ex 23.18; 34.15,25. Muito freqüentemente também,
ele é chamado somente 5"lamim nos livros históricos, Jz 20.26; 21.4; 21.4;
L Sm 13.9; 2 Sm 6.17,18; 24.25; l Rs 3.15; 9.25; 2 Rs 16.13 etc., nas partes
antigas do Pentateuco, Ex 20.24; 32.6 etc., em Ezequiel, Ez 43.27; 45.15,17;
46.12. O singular selem só aparece em Am 5.22. Em compensação, a expres
são zeba/:i $'/amim, que é constante nos rituais sacerdotais, só raramente apa
rece em outros lugares e, em Ex 24.5; 1 Sm 11.15, cf. Js 22.27, tem-se z'ba�tim
$'/amim, as duas palavras estando em aposição, ou melhor, uma sendo uma
glosa explicativa da outra.
Essa dupla denominação é, pois, antiga e não parece corresponder a uma
diferença nos ritos. Um dos nomes designa o sacrifício por sua forma exterior,
é uma "imolação", zeba/:i, a outra o designa por sua intenção; aqui as opiniões
variam mas a mais provável é que $"/amim contenha a idéia de um tributo
oferecido a Deus para manter ou restabelecer boas relações entre ele e seu
fiel. cf. as palavras $illem e si//11m que significam "retribuição" e a palavra
ugarítica $/mm aplicada aos presentes enviados como garantias de paz.
Como o do Levítico, o antigo sacrifício de comunhão era um sacrifí
cio alegre do qual o sacerdote e o ofertante ou o povo comiam sua parte,
menos o sangue. que era derramado, e a gordura. que era queimada sobre o
altar, 1 Sm 2.15-16. Temos apenas raras informações sobre o ritual e elas
mostram que, no detalhe, este não foi sempre o mesmo senão depois do Exí
lio. Se a correção geralmente admitida de 1 Sm 9.24 é justificada, o que não é
garantido, a calda gorda das ovelhas iria para os fiéis, enquanto que ela será
oferecida a Deus em Lv 3.9; 7.3. O direito dos sacerdotes evoluiu: o antigo
costume, pelo menos em Siló, era que o sacerdote vinha pegar um pedaço ao
acaso com o garfo no pote onde fervia a carne, 1 Sm 2.13-14; segundo o
Deuteronômio, ele recebia a espádua, a queixada e o estômago, Dt 18.3, por
fim, o Levítico lhe atribuirá o peito e a coxa direita, ainda cruas, Lv 7.34.
Os relatos e as leis do Pentateuco pressupõem que os israelitas já ofere
ciam holocaustos e sacrifícios de comunhão desde antes de sua instalação
em Canaã, durante sua peregrinação no deserto. Isto parece ser contradito por
Am 5.25: ''Sacrifícios e oblações vocês me ofereceram no deserto durante
quarenta anos, ó casa de Israel? E por Jr 7 .22: "Eu nada disse nem prescrevi a
vossos pais. quando os tirei do Egito. concernente a holocausto e a sacrifício."
466 R. d,· Vaiu
Esses textos são formais, mas é exatamente sua expressão que impede que
sejam tomados ao pé da letra. Há, no Pentateuco, tradições antigas sobre os
sacrifícios oferecidos no deserto, assim Ex 3.18; 5.3,8,17; 10.25; 18.12; 32.6,8,
e essas tradições javistas ou eloístas eram certamente conhecidas de Amós e
de Jeremias e não eram repudiadas por eles. Eles conheciam também os códi
gos javista e eloísta da Aliança, que mencionam o sacrifício, Ex 20.24: 23.18;
34.25, e deviam atribuí-los à época mosaica. como faziam seus contemporâ
neos; Jeremias, por fim, conhecia Dt 12.6-14 como uma lei de Moisés. Ambos
aceitavam a Páscoa como uma instituição datando do Êxodo. Deve-se, pois,
procurar uma explicação. Essas palavras de Amós e de Jeremias não devem
ser separadas de seu contexto imediato: elas fazem parte de oráculos dirigidos
não contra o culto em si mesmo mas contra o culto exterior e material que era
praticado por seus contemporâneos. O que Deus exige primeiro é uma religião
interna, é que "se ouça sua voz", Jr 7.23, que se pratique "o direito e a justiça",
Am 5.24. É este ideal que, segundo os mesmos profetas, Jr 2.2; Am 2.1 O, tinha
sido realizado no deserto e é a que eles se referem aqui: então não se agia
como agora e, para tornar seu argumento mais chocante, eles o exprimem de
uma maneira absoluta: no deserto, Israel não ofereceu sacrifícios, Deus não
ordenou sacrifícios. Deviam ter acrescentado "sacrifícios como os que vocês
oferecem", mas eles pregam, não fazem, como nós, a história do sacrifício,
tampouco fazem, por seu lado, os autores sacerdotais quando projetam no
deserto a organização cultuai do Templo do tempo deles.
Isto é dito para explicar a posição de Amós e de Jeremias. Se agora nos
colocamos na perspectiva da crítica literária moderrya, se descartamos como
recentes todas as passagens de redação sacerdotal, se datamos os códigos j avista
e eloísta da Aliança na época da instalação em Canaã e o Deuteronômio no
fim da época monárquica, devemos reconhecer que quase não restam infor
mações sobre o culto sacrificial do deserto: entre os textos antigos citados
mais acima, Ex 1-10 fala de sacrifícios a oferecer e não sacrifícios oferecidos
e este é um pretexto fornecido ao faraó para obter permissão de partida para os
israelitas; em Ex 18.12, é Jetro, um estrangeiro, que sacrifica, como é ainda
um estrangeiro, Balaque, que sacrifica em Nm 22.40; 23.1s,14s,29s. Os sacri
fícios de Ex 32.6,8 são oferecidos ao bezerro de ouro e reprovados pela reda
ção atual do texto. Resta a Páscoa, mas este é um sacrifício de um tipo parti
cular em que tudo acontece fora do altar. Deve-se certamente manter que os
israelitas, seminômades, praticaram sacrifícios com sangue: é um costume de
pastores e esses sacrifícios são atestados muito antigamente na Arábia, mas
nunca saberemos exatamente quais ritos eram então praticados.
INSTITUIÇôES l>E ISRAEL NO ANTIGO TESTAMENTO 467
4. SACRIFÍCIOS EXPIATÓRIOS
A teoria crítica reconhecia pelo menos a existência de holocaustos e de
sacrifícios de comunhão a partir do estabelecimento em Canaã, mas ela nega
va que o sacrifício pelo pecado, l:J,atta't, e o sacrifício de reparação, 'a$am,
tivessem sido conhecidos antes do Exílio. Eles apareceriam só com Ezequiel,
que menciona muitas vezes um e outro, Ez 40.39; 42.13; 44.29; 46.20, e dá
alguns detalhes sobre o sacrifício IJ,atta 't, Ez 45.19-20,23.
Seria, porém, bastante estranho que novas formas sacrificiais tivessem
sido inteiramente inventadas durante o Exílio, onde não existia nenhum culto
exterior, e se notará que Ezequiel não explica o que são o J.iatta 'te o 'a$am, o
que supõe que os termos eram conhecidos. Por outro lado, as incertezas do
ritual levíüco relativamente a esses sacrifícios e a sua distinção são melhor
explicadas se o ritual retoma elementos antigos dos quais não se conhece mais
a significação exata.246 Enfim, se o Código de Santidade do levítico é, como
admitido acima, 247 anterior a Ezequiel, Lv 19.20-22 indicaria que pelo menos
o sacrifício 'a$am era conhecido no fim da monarquia. Pode-se invocar tam
bém dois testemunhos mais antigos, mas eles são contestáveis.
A propósito das ordenanças de Joás sobre o Templo, 2 Rs 12.17 diz que
"o dinheiro do 'a$am e o dinheiro do JJ,atta 't (no singular como no grego) não
era entregue no Templo de lahvé, ele ia para os sacerdotes". Hesita-se em
decidir se se trata de multas por faltas análogas às que eram suprimidas pelos
sacrifícios 'a$am e /J,atta 't, ou de taxas que acompanhavam esses sacrifícios,
ou de pagamentos que os dispensavam. Porém, é significativo que esse dinhei
ro vá para os sacerdotes como a carne das vítimas oferecidas para o sacrifício
do mesmo nome no ritual levítico, e esses são certamente aqui também termos
da linguagem cultuai. Ora, no desenvolvimento do culto, não é a multa mone
tária que é substituída por uma vítima sacrificada, o normal é a evolução con
trária. Esses sacrifícios seriam, pois, antigos. Trata-se de taxas que são acres
centadas a esses sacrifícios, como na legislação de Lv 5.14-16; Nm 5.8; elas
pressupõem evidentemente os próprios sacrifícios.
O texto de Os 4.8 é igualmente difícil: "Alimentam-se do pecado (/J,affa 't)
do meu povo e são ávidos de sua iniqtiidade ( 'avon)". Pode-se entender que os
sacerdotes se alimentavam do J:i,atta 't do povo porque eles recebiam de fato
toda a carne do sacrifício J:z,atta't. Contudo, o paralelismo com "iniquidade",
'avon, que não é um termo sacrificial, autoriza uma outra exegese: os sacerdotes
1•• Cf. p. 459.
1'1 Cf. pp. 176- l 77 e -163.
468 I<. de Vaux
e O povo praticam um culto que não é agradável a Deus, cf. o contexto imediato.
Os 4.4-7, 12-13, e todos os sacrifícios, dos quais os sacerdotes têm uma parte,
são um "pecado", uma "iniqüidade". Mas ainda é possível que 'avon, "iniqiii
dade ", só apareça aqui para fazer um paralelismo e que IJ,atta 't seja um termo
técnico, o sacrifício pelo pecado.
Há, pois, um certo número de argumentos convergentes que autorizam
admitir que os sacrifícios expiatórios existiam sob a monarquia. mas deve-se
reconhecer que eles eram menos freqüentes que o holocausto e o sacrifício de
comunhão.
S. OFERENDAS VEGETAIS E OFERENDAS DE INCENSO
Na linguagem cultuai de Ezequiel e do Pentateuco, a palavra min/J,ah
designa sempre a oferta de produtos vegetais em oposição aos sacrifícios san
grentos. Geralmente se diz que, nos textos anteriores ao Exílio, o termo é
aplicado indiferentemente a todos os sacrifícios, mesmo sangrentos. Isto não
parece exato: quando mi11/J,ah é mencionado ao lado de zebal), em l Sm 2.29;
3.14; Is 19.21, ao lado de 'o/ah em Jr 14.12; SI 20.4, ao lado de telem em
Am 5.22, a palavra deve ter já um sentido mais preciso: o de oferenda vegetal.
Outros textos não permitem decidir se se trata de uma oferta animal ou vege
tal. Outros, enfim, devem ser entendidos como tratando de um sacrifício de
animais, como I Sm 2.17; 26.19, mas isto porque a palavra min/J,afz é então
empregada em seu sentido geral de "dom" (ou de "tributo", cf. p. 68), que vale
para qualquer sacrifício.
Quanto aos pães de oblação, que temos assimilado às ofertas vegetais,
eles aparecem já no antigo relato de l Sm 21.3-7. Eles são opostos ao pão
"profano" e são chamados o pão "santo'' e o "pão da face"; são periodicamen
te substituídos diante de lahvé.
A palavra q'toret, "o que vira fumaça", podia também ser empregada
geralmente para todo sacrifício queimado sobre o altar: este é o sentido prová
vel em l Sm 2.28 e Is 1.13, e o verbo da mesma raiz significa explicitamente
"sacrificar animais" em 2 Rs 16.13, 15. O sentido especial de "oferta de perfu
mes", que é o dos rituais sacerdotais,248 q<toret ou a expressão plena q'toret
sammim, não aparece em textos de antes do Exílio e concluiu-se daí que a
prática não existia sob a monarquia.
Contudo, um rito equivalente é atestado pelos textos antigos: é a oferta
de incenso, /'bonah, Jr 6.20; 17.26 (autenticidade contestada); 41.5. Mostramos
'" Cf. p. 460.
[SSTITL"IÇ◊ES DE ISKAEL NU A� 1 lt.U TEST,\MENTO 469
mais acima que um altar utilizado para essas oferendas existia no Templo de
Salomão. 249 Em l Rs 3.3, o culto que o redator deuteronomista considera ile
gítimo, somente porque ele é praticado fora do Templo, é qualificado pelos
dois verbos "fazer fumegar" e "imolar"; é bem provável que o primeiro seja
relativo às ofertas de incenso, o segundo aos sacrifícios sangrentos, cf. 1 Rs 11.8.
Uma descoberta recente pode servir para confirmação: foi encontrado
em Betel um selo sul-arábico que pode ter servido para marcar os saquinhos
de incenso importados para os trabalhos do santuário. Por fim, os papiros de
Elefantina nos informam que, neste templo judeu construído antes de 525
a.C. 250 colocavam-se sobre o altar vítimas animais, oferendas vegetais e incen
so: essas pessoas seguem o costume do fim da monarquia.
As ofertas de incenso certamente são antigas em Israel, como entre os
povos vizinhos e particularmente no Egito, mas elas evoluíram. É possível
que tenham sido usados primeiro incensários portáteis, cuja lembrança apare
ceria em alguns relatos do deserto, Lv 10. ls; Nm 16.ls, e nos instrumentos, a
pá, mal:i,tali, e a colher, kap, com as quais se colocavam depois as brasas e o
perfume sobre o altar. Este altar aparece, como dissemos, no Templo de
Salomão, e altares da mesma época foram descobertos em escavações
palestinenses. 251 Parece que o perfume foi por muito tempo de incenso puro, e
este uso continuou no ritual da mi11l:i,alt, Lv 2. ls, das primícias, Lv 2.15, e dos
pães da oblação, Lv 24.7, que são usos antigos. Para as ofertas especiais de
incenso que foram instituídas depois do Exílio, utilizou-se a mistura prescrita
por Ex 30.34-38 e o rito tomou o nome de q•toret sammim, uma oferta de
"perfume de aromas", no plural.
6. CONCLUSÃO
Para essas oferendas de perfumes como para as de vegetais e para os
diferentes tipos de sacrifícios sangrentos, há, pois, uma real continuidade
entre o culto do período monárquico e o culto pós-exílico: as formas essen
ciais deste se acham antes do Exílio. Mas houve uma evolução: o holocausto
tomou mais importância que o sacrifício de comunhão que era primeiro o
mais freqüente, os sacrifícios especiais de expiação se desenvolveram e um
valor expiatório finalmente foi dado ao próprio holocausto, Lv 1 .4. as rela
ções entre as oferendas vegetais e os sacrifícios de comunhão foram estabele-
'' Cf. p. 448.
9
'1º Cf. p. 379.
''' Cf. p. 449.
470 R. de Vrwx
cidas, a oferta de perfumes recebeu uma nova mistura e um novo nome e seus
ritos evoluíram. Isto é normal e o espantoso seria o ritual não ter mudado
durante todos os séculos em que seguimos sua história. Mas essas mudanças
não devem fazer esquecer a antigüidade e a unidade fundamental do ritual dos
sacrifícios em Israel.