Casamento de Escravos no Brasil Colônia
Casamento de Escravos no Brasil Colônia
Charlotte de Castelnau-l’Estoile
∗
Tradução: Bruno Feitler e Evergton Sales Souza.
Agradeço a Bruno Feitler, Jacqueline Gréal, Benoît de l’Estoile, Giovanni Pizzorusso e Isabelle Poutrin
por sua ajuda preciosa na preparação deste estudo sobre o matrimônio dos escravos.
1
Stuart B. Schwartz, “The Manumisssion of Slaves in Colonial Brazil, 1684-1745”, The Hispanic
American Historical Review, vol. 54, n. 4, nov. 1974, p. 603-635, especialmente p. 608.
2
Jean Gaudemet, Le Mariage en Occident: Les Moeurs et le Droit, Paris, XXXX, 1987.
1
1 – O casamento dos escravos nas Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia
3
Para uma visão d’ensemble da questão dos escravos nas Constituições, ver Fernando Torres Londoño,
“Igreja e Escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia de 1707”, Revista Eclesiástica
Brasileira, v. 267, 2007,, p. 609-624.
4
Stuart B. Schwartz, Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial, São Paulo,
Companhia das Letras, 1988 [1985] p. 315. Ver também Maria Beatriz Nizza da Silva, Sistema de
Casamento no Brasil Colonial, São Paulo, Edusp, 1984, p. 139.
2
declaração piedosa sem efeitos práticos. Esse tipo de leitura “direta” pressupõe que o
objetivo de um texto como o das Constituições seria, principalmente, modificar a prática
dos senhores, e ele teria sido redigido para tentar ser eficaz. Isso implica crer que o
arcebispo da Bahia concebesse a Igreja como uma real força de oposição à sociedade
escravocrata.
Parece-me que esses parágrafos sobre o matrimônio podem ser lidos em outra
chave, buscando-se evidenciar aquilo que estava em jogo do ponto de vista da Igreja.
Inicialmente, deve-se sublinhar o fato desse texto não ser uma descrição “direta” das
práticas da sociedade escravista baiana, nem apenas uma resposta às práticas
consideradas como desviantes. Ele é, antes de tudo, um desenvolvimento sobre uma
questão clássica do direito canônico: “o matrimônio dos escravos”. O arcebispo da
Bahia não escreveu em seu nome; ele expôs a teoria da Igreja sobre o assunto,
multiplicando as autoridades e as referências.
O arcebispo dispõe, ademais, de um modelo preciso: as Constituições do
Arcebispado de Lisboa, de 1646, que vigoraram no Brasil até 1707. Sobre a questão do
casamento dos escravos, as Constituições da Bahia são uma cópia quase idêntica
daquelas5, que retomam um primeiro decreto do arcebispo de Lisboa datado de 30 de
maio de 15686. As disposições das Constituições da Bahia são esclarecidas pelo
conjunto dos textos evocados nas notas: as regras canônicas anteriores e as discussões
teológicas sobre o casamento dos escravos. A única diferença notável existente entre o
texto da Bahia e o de Lisboa sobre essa questão é a alusão a uma bula de Gregório XIII
sobre o casamento cristão dos africanos e dos índios escravos do Brasil que se haviam
anteriormente casado segundo seus costumes. Essa bula, promulgada em 1585, a pedido
dos jesuítas do Brasil, é a prova de que a questão dos casamentos era levantada havia
bastante tempo nessa porção do Império português e que já suscitara uma regra
canônica particular, emitida pelo papa em pessoa7. A leitura conjunta desses dois textos,
o de 1585 e o de 1707, ilumina a posição da instituição no que toca o casamento dos
escravos; mostra sua importância e o que estava realmente em jogo.
5
Rodrigo da Cunha, Constituiçõens Synodaes do Arcebispado de Lisboa…, Lisboa Oriental, Officina de
Filippe de Sousa Villela, 1737 [1646], liv. I, tít. XIII, § VIII “Dos Casamentos dos Escravos”.
6
Constituções Extravagantes do Arcebispado de Lisboa, tít. V, const. I, ff. 99v, apud Didier Lahon,
Esclavage et Confréries Noires au Portugal Durant l’Ancien Régime (1441-1830), Paris, École des
Hautes Études en Sciences Sociales, 2001, p. 144 (Tese de Doutorado).
7
Ver meu estudo sobre essa bula em Charlotte de Castelnau-L’Estoile, “Le Mariage des Infidèles au XVIe
Siècle: Doutes Missionnaires et Autorité Pontificale”, MEFRIM, 2009/1.
3
Esse desvio pelo direito canônico permite que repensemos as perguntas que o
historiador faz a um texto que deve ser lido como um texto normativo e não como um
texto descritivo. Não se trata apenas de perceber que essas Constituições aparentemente
contraditórias tiveram poucos efeitos práticos. Não é a realidade social, mas sim o
direito canônico que dá coerência ao texto. Parece-me que o olhar intencionalista deve
ser substituído por um olhar funcionalista: qual a função desses parágrafos sobre o
casamento dos escravos? Qual a importância, para o arcebispo da Bahia, em dizer que o
matrimônio é um direito dos escravos? Do ponto de vista da Igreja, essas prescrições
permitem desenhar o perfil de uma sociedade escravocrata cristã, quiçá amplamente
ideal em relação à realidade, mas que tem importância. Afirmar que os escravos podem
se casar equivale a dizer que uma sociedade cristã é possível, apesar da escravidão.
Essa leitura não encerra o texto numa abordagem puramente internalista da
Igreja. O direito canônico e a teologia, nessa sociedade de Antigo Regime, não eram
reservados à Igreja. Sabe-se que, no mundo ibérico, teologia e direito canônico são a
fonte do pensamento político dos soberanos e de seus conselheiros, influenciando assim
muitas de suas decisões8. Nessa sociedade, a Igreja não é a única a recorrer a essa
linguagem. Em 1708, um ano depois do fim do Sínodo diocesano, os escravos negros da
Bahia se dirigiram ao papa e pediram-lhe que decretasse a excomunhão dos senhores
que recusassem deixá-los se casar. Esse documento, excepcional sob muitos aspectos,
encontrado nos arquivos da Propaganda Fide, deve ser lido à luz das Constituições que,
em contrapartida, podem ser esclarecidas por ele. Como os escravos da Bahia de inícios
do século XVIII utilizam o “desvio canônico” e defendem seu direito a contrair
matrimônio legitimamente?
8
Sobre a importância da reflexão canônica e teológica nas sociedades ibéricas do século XVI, ver Isabelle
Poutrin, “La Conversion des Musulmans de Valence (1521-1525) et la Doctrine de l’Église Sur les
Baptêmes Forces”, Revue historique, 648, out. 2008, p. 819-855, e os trabalhos de Carlos A. M. Ribeiro
Zeron para o Brasil colonial.
4
Nas sociedades nascidas da tradição romano-cristã como a sociedade portuguesa
do Antigo Regime, o casamento é uma instituição jurídica que produz efeitos legais9. O
matrimônio, do modo que foi progressivamente definido ao longo dos séculos centrais
da Idade Média, é a união consensual de um homem e de uma mulher, uma união
monogâmica e indissolúvel, que implica uma comunidade de vida entre os esposos, que
lhes assegura uma descendência legítima. Essa definição do matrimônio é uma síntese
do direito romano e das exigências da moral cristã (a indissolubilidade).
Ora, no direito romano não existia o casamento de escravos10. Havia uniões
inferiores (contubernium) entre escravos, mas não um “verdadeiro matrimônio”
(legitimum matrimonium), isto é, um casamento conforme o direito, suscetível de
produzir efeitos legais e que unicamente os “sujeitos de direito” podiam contrair. O
escravo não era reconhecido como uma “pessoa” no sentido jurídico, ele não podia ter
uma vontade reconhecida pelo direito. O contubernium era uma união civil simples, não
reconhecida pelo direito. Os filhos produzidos por esse tipo de união não se ligavam ao
pai, mas seguiam a condição da mãe e eram propriedade do senhor desta. A lógica
jurídica do casamento segundo o direito romano e sua negação aos escravos mantiveram
uma influência nas sociedades da época moderna.
É claro que o casamento também tinha um forte significado religioso numa
sociedade católica de Antigo Regime como a do Brasil colônia. Era um dos sete
sacramentos da Igreja, um ato solene que conferia a graça divina e que tinha um papel
essencial na economia da salvação11. Pelo sacramento do matrimônio, a união carnal de Office 2004 Test Drive U…, 28/3/10 10:35
Commentaire: Falta completar dados da Editora.
um homem e de uma mulher tomava um sentido religioso, transformava-se numa
metáfora da união de Cristo e da Igreja. Como o batismo, ele devia ser acessível a todos,
livres e escravos pois, do ponto de vista da antropologia cristã, o escravo era uma
pessoa. Assim, a lógica sacramental do matrimônio entrava por definição em
contradição com a lógica jurídica do matrimônio.
A reticência dos senhores em aceitar o casamento dos escravos explicava-se
fundamentalmente pelo seu medo no tocante às suas consequências jurídicas. O pouco
caso que os senhores faziam da vida religiosa de seus escravos tampouco favorecia o
casamento dos escravos. No Brasil, muitas são as fontes que constatam essa reticência
9
Esta apresentação do casamento baseia-se na obra clássica de Jean Gaudemet, op. cit.
10
Idem, p. 30-31
11
Ver igualmente R. Naz, Dictionnaire de Droit Canonique, artigo de R Naz, “Mariage en Droit
Occidental”, vol. VI, Paris, XXXXXXX, 1957, p. 740-787. A. Vacant & E. Mangenot, Dictionnaire de
Théologie Catholique, artigo“Mariage”, t. IX-2, Paris, XXXXXX, 1927, p. 2044-2335.
5
dos senhores. Já em 1551, logo da sua chegada no Brasil, os jesuítas evocaram a recusa
dos senhores em aceitar que seus escravos se casassem porque os senhores criam que o
matrimônio pudesse conferir liberdade aos escravos. Os jesuítas esperavam que o bispo
desenganasse os senhores e confirmasse que casamento e servidão eram compatíveis12.
No ano seguinte, sem dúvida para confortar os senhores, Nóbrega pediu ao rei de
Portugal uma provisão especificando que uma vez casados, os escravos não são livres13.
Esses pedidos emanando da jovem Colônia lusa não são fatos isolados, já que na
Metrópole, onde a presença dos escravos era maciça, ao menos em Lisboa, a questão
também se colocava. Em 1568, o arcebispo de Lisboa estatuiu sobre o fato que os
escravos podem se casar apesar da oposição dos seus senhores.
O fato de não querer casar os escravos não é simplesmente o resultado de uma
incúria dos senhores com relação à vida religiosa dos seus escravos, mas um verdadeiro
medo das consequências legais do matrimônio. Contudo, opor-se ao casamento não
queria necessariamente dizer que os senhores recusassem aos seus escravos qualquer
vida familiar. Havia uma vida familiar para além dos moldes rígidos prescritos pela
Igreja. A questão do acesso dos escravos ao matrimônio consagrado pela Igreja toma
sentido no contexto muito mais geral da vida familiar dos escravos na sociedade
colonial. Trata-se de um vasto campo de estudos, renovado em profundidade. A
historiografia insistiu por muito tempo na ausência de qualquer vida familiar para os
escravos, mesmo fora dos moldes previstos pela Igreja e perante a baixa fecundidade da
população servil. Por razões econômicas e tendo em vista a grande oferta do tráfico
vindo da África, os senhores do Brasil não estavam atrás do crescimento natural da
população escrava e tampouco favoreciam as uniões estáveis entre escravos. O
desequilíbrio do coeficiente sexual da população escrava dos engenhos o prova
claramente.
12
Trata-se, na época, quase que exclusivamente de escravos índios, mas a questão era a mesma:
“Trabajamos por poner un custumbre en esta tierra de casar los esclavos con las esclavas en la haz de la
Santa Iglesia. Hanse casado muchos y casarse yan muchos más, si acabassen de creer sus señores, que no
quedan horros. Con la venida del señor Obispo esperamos que se hará en esto mucho provecho, y se
remediará todo lo demás, porque ay muchas haziendas que tienen muchos esclavos y esclavas”, Antonio
Serafim Leite (ed.), Monumenta Brasiliae, Roma, IHSI, 1956-68, vol. I, carta de Antonio Pires 2/8/1551,
p. XXXXX
13
Antonio Serafim Leite (ed.), Monumenta Brasiliae, op. cit., vol I, XXXX 37, Nobrega au roi du
Portugal § 7.
6
Nessa política geral de acesso restrito ao casamento, existem algumas exceções
como no caso dos beneditinos14. Em suas grandes propriedades rurais, os monges
favoreciam os casamentos de seus escravos. Compravam mulheres para formar casais e
justificavam essa política matrimonial, é claro que por razões religiosas, mas também
econômicas e políticas (com filhos, os escravos eram mais submissos e não fugiam).
Apesar dessa “boa gestão” das fazendas beneditinas, cuja lógica era reconhecida como
bem fundada pelos contemporâneos, ela não era seguida pelos outros senhores. Mesmo
os jesuítas, enquanto gerenciadores de propriedades de escravos, tinham um
comportamento mais consumista de sua mão de obra escrava15. Stuart Schwartz, que Office 2004 Test Drive U…, 28/3/10 10:47
Commentaire: Faltam dados da referência.
baseia seu estudo dos engenhos do Recôncavo da Bahia sobre muitas fontes jesuítas,
mostra que os gerentes dos engenhos de propriedade da Companhia de Jesus não
favoreciam o casamento sistematicamente. Duas citações dos anos 1730 mostram que os
senhores de escravos eclesiásticos estavam divididos entre imperativos da moral cristã e
os da rentabilidade econômica: “Não é melhor ter mais crianças? Haver menos
mancebias?”, pergunta-se o padre Jerônimo da Gago em 1733, e em 1731, um outro
havia escrito: “Têm nascido muitos crioulinhos mas também morrem muitos e custam
muito a criar”16.
Como sugere Moses Finley, analisando as características essenciais das
sociedades escravistas da antiguidade e da época moderna17, a evicção dos laços de
parentesco é – como o estatuto de propriedade e o caráter absoluto do poder que se
exerce sobre o escravo – um dos componentes da escravidão. O escravo é uma
propriedade dotada de alma, uma não pessoa, mas também, indubitavelmente, um ser
humano biológico. Assim, é lógico encontrar procedimentos institucionais visando
degradar sua humanidade para distingui-lo dos seres humanos que não são uma
propriedade. A tortura e os castigos corporais visam isso.
Outra manifestação do estatuto do escravo é a necessidade de estar disponível
sem reserva para as relações sexuais.
O casamento dos escravos na sociedade brasileira ilustra perfeitamente essas
considerações gerais sobre as sociedades escravistas. Os senhores consideram o
casamento como ameaça para a sua soberania doméstica, que é o direito privado que os
14
Stuart B. Schwartz, Segredos Internos..., op. cit., p. 293.
15
Em 1662, o padre jesuíta Belchior Pires louva a boa gestão dos engenhos beneditinos, XXXXX.
16
Stuart B. Schwartz, Segredos Internos..., op. cit., p. 292, para as referências arquivísticas, notas 41 e 42
do capítulo 13 (“A População Escrava na Bahia”).
17
Moses I. Finley, Esclavage Antique et Idéologie Moderne, Paris, Éditions de Minuit, 1979.
7
senhores possuem sobre seus escravos e que reivindicam como ilimitado. Esse poder
dos senhores, que implicava frequentemente que os escravos pudessem ser a coisa
sexual de seu senhor, opunha-se, é claro, ao respeito dos senhores às uniões estáveis dos
escravos e a fortiori à aceitação do princípio de matrimônio dos escravos.
Obter acesso à instituição do matrimônio aparecia por múltiplos aspectos como
uma reivindicação de humanidade para os escravos, o que constituía uma ameaça à
soberania doméstica dos senhores18. Não é de admirar que os castigos corporais fossem
sempre evocados para acentuar a recusa dos senhores de permitir o casamento de seus
escravos. O cânon 303 das Constituições denuncia os abusos de violência dos
senhores19. Pelo uso do castigo, os senhores denotam seu poder sobre seus escravos e
lembram-lhes que não são inteiramente homens, apesar das aparências e de suas
aspirações. A violência que o casamento dos escravos provoca toma, desse modo, um
significado geral: trata-se de lembrar ao escravo que ele é apenas um escravo,
submetido à vontade do senhor. O castigo físico de conotação sexual exercido pelo
senhor é, ao mesmo tempo, uma marca de identidade escrava e uma tomada de
possessão20. Do ponto de vista da instituição da escravidão, pode-se dizer que o
casamento dos escravos que repousa sobre um reconhecimento da humanidade e de
certa liberdade dos escravos suscita uma forte oposição dos senhores, que reagem, para
compensar o que eles consideram ameaça à sua soberania doméstica, castigando
fisicamente seus escravos, castigos que são o símbolo da onipotência de seu direito
sobre suas propriedades.
18
A noção de soberania doméstica foi posta em evidência no trabalho de Rafael de Bivar Marquese,
Feitores do Corpo, Missionários da Mente: Senhores, Letrados e o Controle dos Escravos nas Américas,
1660-1860, São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
19
Sobre o significado da violência no sistema escravista, ver Silvia Hunold Lara, Campos da Violência:
Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, e o
artigo de Carlos Alberto de M. R. Zeron “O Governo dos Escravos nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia e na Legislação Portuguesa: Separação e Complementaridade entre Pecado e
Delito”, p. [revisão completar].
20
O castigo físico de conotação sexual exercido pelo senhor é ao mesmo tempo uma marca da identidade
escrava e uma tomada de possessão. Os exemplos são múltiplos. Veja-se a narrativa do cativeiro de
Joana, escrava guarani, em São Paulo, em 1718, analisado por John Manuel Monteiro, Negros da Terra:
Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 187.
8
escravos. Esse caso surpreendente revela a lógica dos escravos e suas formas de
autonomia. Essas mulheres consideravam seus companheiros escravos como cônjuges
principais e temiam sua cólera21. As uniões consensuais, mesmo sem a sanção da Igreja,
eram consideradas verdadeiras uniões pelos escravos.
Em consonância com os trabalhos de Stuart Schwartz, os historiadores
começaram a insistir sobre o fato dos escravos terem conseguido construir, apesar da
dominação dos senhores, uma vida familiar e conjugal mesmo fora do casamento
consagrado pela Igreja, e tentam encontrar resquícios disso nos interstícios da
documentação. Essa vida familiar é mais fácil de ser provada, por causa das fontes, por
entre os escravos domésticos e urbanos do que entre aqueles dos engenhos. Também
parece ser necessário reavaliar o lugar do casamento na sociedade colonial brasileira22.
Durante muito tempo prevaleceu a ideia de que o casamento ali era muito raro,
reservado aos círculos da elite, para quem o matrimônio estava ligado a questões de
prestígio social e interesses econômicos. Atualmente, os historiadores estão de acordo
sobre a importância do matrimônio legítimo sancionado pela Igreja para as camadas
mais humildes da sociedade, seja como realidade ou aspiração. Nessa sociedade em que
há poucos casamentos, o matrimônio confere uma dignidade que pode ser buscada por
todas as categorias da população. O casamento cristão, com suas balizas particulares,
tinha implicações jurídicas, religiosas e sociais que podia fazer dele um modelo atrativo
para os escravos23.
21
Stuart B. Schwartz, Segredos Internos..., op. cit., p. 291 e nota 38 do capítulo 13.
22
M. B. Nizza da Silva (coord.). Sexualidade, Família e Religião na Colonização do Brasil, Lisboa,
Livros Horizonte, 2001.
23
Ronaldo Vainfas, Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989, especialmente a parte 2, cap. 3 (“Concubinato e matrimônio”).
9
seus escravos24. Segundo ele, os senhores, pelo menos em alguns casos, não se
opunham às uniões estáveis, mas sim aos casamentos.
Por um simulacro de casamento, o senhor de família oficializava ele próprio
esses concubinatos, que não eram casamentos. Os senhores não recorriam à Igreja para
formalizar as uniões dos escravos. Consideravam que os escravos deviam ficar
satisfeitos com uniões de tipo inferior (amancebamentos). Ao relatar a fórmula dos
senhores em estilo direto: “vais casar”, Andreoni sublinha o quanto essa prática se
distanciava das exigências do matrimônio cristão que afirma que são os próprios
esposos que trocam consentimentos em presença do pároco (in facie Ecclesiae) com a
fórmula “recebo-te como esposo”. Nas uniões descritas por Andreoni, a única vontade
que conta é a do senhor, e não o consentimento dos nubentes ou o rito previsto pela
Igreja que não intervêm nessas uniões.
A justificação dos senhores para não casar os escravos, dá-nos Andreoni: “e
dizem que os não casão porque temem que enfadando-se do casamento se matem logo
com peçonha ou com feitiços não faltando entre elles mestres insignes nesta arte”.
Segundo os senhores, seriam os próprios escravos que não suportariam o estado marital
cristão, monogâmico e indissolúvel. Os senhores, nesse caso, levam em conta a opinião
dos escravos. Essa opinião relatada por Antonil é interessante, pois ela mostra que, no
debate sobre o casamento dos escravos, a Igreja e os senhores utilizam de maneira
contraditória o argumento da vontade dos escravos. O historiador deve interpretar as
alusões à opinião dos escravos, sobretudo, como argumentos dos debatedores. O
matrimônio cristão, monogâmico e indissolúvel, era uma forma de união estável muito
constrangedora, e podemos pensar que nem todos os escravos reivindicavam o poder de
casar-se cristãmente.
Andreoni também denuncia o fato dos senhores não respeitarem os direitos de
seus escravos casados. Eles separam cônjuges apesar do matrimônio implicar uma união
de vida: “Outros depois de estarem casados os escravos, os apartão de tal sorte por
annos que ficão como se fossem solteiros, o que não podem fazer em consciencia”.
Vemos aqui como o matrimônio se opunha concretamente aos interesses do senhor que
deve poder vender, alugar, deslocar seus escravos segundo suas necessidades. A questão
24
Giovanni Antonio Andreoni (João André Antonil), Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e
Minas (1711), Paris, IHEAL., 1968. Andreoni, que escreveu sob o pseudônimo de Antonil uma obra de
descrição das riquezas do Brasil que foi censurada pela Coroa portuguesa, foi provincial da província
jesuíta do Brasil de 1706 a 1709.
10
da deslocação dos escravos toma sem dúvida uma acuidade particular na sociedade
baiana do começo do século XVIII. Com efeito, a descoberta de ouro na região das
Minas provocou uma alta sem precedentes do preço dos escravos, fazendo com que
fosse mais interessante mandar seus escravos para a região das Minas do que mantê-los
nas propriedades rurais do Recôncavo baiano.
Enfim, Andreoni denuncia a completa falta de interesse dos senhores pela
salvação e pela vida religiosa de seus escravos, que deixavam inclusive de batizar:
“Outros são tam pouco cuidadosos do que pertence a salvação dos seus escravos, que os
tem por muito tempo no cannaveal ou no engenho sem bautismo”. Sendo evidente para
o jesuíta, a ligação entre batismo e casamento é aqui implícita. O batismo é o
sacramento de entrada na Igreja, e no caso dos adultos, deve ser acompanhado pelo
matrimônio, caso contrário seria pôr os convertidos em pecado mortal. A falta de
escrúpulo religioso dos senhores com relação a seus escravos fez com que estes fossem
privados dos sacramentos da Igreja.
Sob a aparente neutralidade que convém ao seu tratado de economia doméstica,
o padre Andreoni denuncia o regime das uniões inferiores dos escravos. Na pena desse
jurista confirmado e reconhecido, formado em direito canônico e civil pela
Universidade de Peruggia e encarregado, alguns anos mais tarde, por Monteiro da Vide,
de reler as prescrições sinodais, essa descrição do rito e das práticas senhoriais em torno
das uniões dos escravos merece condenação. Para homens da Igreja como Andreoni, era
evidente que os senhores, que se opunham ao casamento dos escravos, e os escravos,
que preferiam as uniões “livres”, estavam em erro. Os homens da Igreja podiam
contrapô-los à doutrina da Igreja universal sobre o casamento dos escravos.
O texto das Constituições foi fixado entre 1702, data da chegada do arcebispo d.
Sebastião Monteiro da Vide ao Brasil, e junho de 1707, data da celebração do primeiro
Sínodo diocesano da arquidiocese da Bahia que confirmou as constituições do
arcebispo. Tratou-se de dotar a diocese de constituições que lhe fossem próprias. Essa
operação permitia relevar o prestígio desse arcebispado de além-mar e reafirmar a
importância do direito para corrigir práticas locais desviantes. Seu objetivo era
11
promover no Brasil a legislação canônica universal da Igreja, baseada na Escritura, os
padres da Igreja, os concílios e as coletâneas de direito canônico. O arcebispo não
pretendia inovar nem sublinhar as especificidades de seu novo arcebispado, ele
procurava, muito pelo contrário, fazer com que este último entrasse no seio da Igreja
universal do melhor modo possível. Sebastião Monteiro da Vide era um homem erudito,
formado pelos jesuítas do Colégio de Évora e depois em direito pela Universidade de
Coimbra. Era um especialista do direito matrimonial, pois foi juiz dos casamentos do
arcebispado de Lisboa entre 1682 e 1690. Os tribunais eclesiásticos julgavam todos os
litígios relacionados ao casamento: segundas núpcias, bigamia, matrimônio incerto,
anulação, falso casamento25. Por ter trabalhado muito com as constituições de Lisboa,
Monteiro da Vide conhece-as bem, copiando-as quase que integralmente nas
Constituições da Bahia no que toca o tema do matrimônio dos escravos.
25
Sobre a riqueza dos arquivos eclesiásticos para uma história do casamento nos países católicos, ver os
volumes dirigidos por S. Seidel Menchi & D. Quaglioni (dir.), I Processi Matrimoniali Degli Archivi
Ecclesiastici Italiani, 4 vols., Bolonha, s.e., 2000-2004 (4 vols).
12
fervor.)26 são os mais antigos compêndios de decretos canônicos, constituídos a partir
das decisões dos papas, dos concílios; são a base do Corpus Iuris Canonici, coletânea
oficial de direito da Igreja, no ensino e na prática judicial. Pedro Lombardo e os
comentários de são Tomás de Aquino (D. Thom. in 4. dist. 36. q. unic. art. 2. in
corpore.) representam a doutrina clássica do matrimônio tal qual se fixou nos séculos
XII e XIII. Sentenças de Lombardo era o livro fundamental que serviu de base para a
ciência teológica medieval, e seu comentário por são Tomás um século depois
representa uma forma de apogeu da doutrina teológica27. Thomas Sanchez (Sanch. de
Matrim. lib. 7. d. 21. à n 3.) é a contribuição da teologia do século XVI sobre o
casamento28. Sua obra é uma síntese da segunda escolástica, daqueles teólogos ibéricos
que tanto escreveram sobre a questão. Ele também leva em conta o aporte dos últimos
concílios: o de Florença, de 1434, onde o matrimônio tomou definitivamente lugar na
lista dos sete sacramentos e, é claro, o Concílio de Trento, que promulgou importantes
decisões sobre o casamento durante a sessão de 1563, sobretudo o decreto Tametsi, que
expõe o ritual a ser observado na celebração dos matrimônios de modo a evitar os
casamentos clandestinos29.
O texto de Monteiro da Vide está assim envolto por autoridades incontestáveis,
uma simples nota remete ao direito canônico, à teologia medieval e às contribuições do
século XVI. Esse infratexto é facilmente acessível a qualquer pessoa que tenha uma
biblioteca bem provida à sua disposição, coisa sem dúvida rara na Bahia do começo do
século XVIII, excetuando-se a biblioteca do Colégio dos Jesuítas. O objetivo do
arcebispo provavelmente não é o de convidar o leitor das Constituições a ler o conjunto
dos textos solicitados, mas apontar o estatuto de autoridade que o texto tem. A questão
do matrimônio dos escravos não é tratada nas Constituições como uma questão em
suspenso, é um problema que o arcebispo tenta diretamente resolver, mas como um
debate já encerrado pela Igreja. Pode-se igualmente notar que os cânones sobre o
matrimônio não citam a obra do jesuíta italiano Jorge Benci, Economia Cristã dos
Senhores de Engenhos, escrita em 1700 na Bahia e publicada em Roma, em 1705, que
26
Tít. IX, liv. IV. Eis o início desta decretal: “Um escravo apesar da oposição de seu senhor pode contrair
matrimônio; mas seu casamento não o libera dos serviços devidos a seu senhor”.
27
São Tomas de Aquino, Commento alle Sentenze di Pietro Lombardo, Bolonha, 2001.
28
Thomas Sanchez, De Sancto Matrimonio Sacramento Disputationum Tomi Tres, Lugduni, Sumptibus
Societatus Typographorum, 1621.
29
O decreto Tametsi foi publicado por G. Alberigo, Les Conciles Œcuméniques, Paris, s.e., 1994, t. II-2,
p. 1530.
13
é, porém, citada em outros lugares das Constituições30. A obra de Benci não é citada nos
cânones sobre o matrimônio porque não tem status de referência teológica e jurídica.
30
Jorge Benci, Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, São Paulo, Grijalbo, 1977
[1705]. Sobre a influência de Benci nas Constituições, ver Fernando Torres Londoño, “Igreja e
Escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia de 1707”, Revista Eclesiástica Brasileira, v. 267,
2007, pp. 609-624.
31
As páginas que se seguem baseiam-se, sobretudo, na obra de Jean Gaudemet, op. cit., na qual a questão
do casamento dos escravos é tratada separadamente para cada período (Antiguidade, alta Idade Média,
Idade Média central). Para o período clássico, ver p. 215.
14
notas; é por isso que utilizaremos a demonstração de são Tomás no seu Comentário às
Sentenças de Pedro Lombardo32 para explicitar o que ficou implícito nas Constituições.
A demonstração de são Tomás passa por duas etapas, ele prova em primeiro
lugar que o estado de escravidão é compatível com o casamento, e, em seguida, que o
consentimento dos senhores não é necessário para o casamento dos escravos. Para
provar que a escravidão é compatível com o matrimônio, a demonstração passa pela
distinção entre três tipos de direito: o direito divino (querido por Deus), o direito
humano ou natural (ligado à natureza humana segundo a vontade de Deus) e o direito
positivo inventado pelo homem. Ora, o matrimônio é uma instituição de direito divino e
humano que foi desejada por Deus para o homem e a mulher antes da queda de Adão e
Eva para a reprodução da espécie humana. A escravidão, a dominação do homem sobre
o homem, é por outro lado de direito positivo, uma consequência do pecado dos homens
e não desejada por Deus. A escravidão é contra a natureza e não pode impedir o
matrimônio que existe de acordo com a natureza. Segundo o direito natural, todos os
homens são iguais e a escravidão, que é de direito positivo, não pode impedir uma
instituição que é de direito natural. O casamento e a escravidão não têm o mesmo
registro legal. O direito positivo não pode entravar o que é de direito natural e divino. A
escravidão não é incompatível com o matrimônio.
O segundo ponto se debruça sobre a questão de se saber se um escravo pode
contrair matrimônio sem o consentimento de seu senhor. Segundo os usos da discussão
escolástica, os argumentos em favor do consentimento dos senhores são os primeiros
examinados. O primeiro lembra que ninguém pode ceder a um terceiro o que pertence a
outro sem sua permissão. Ora, o escravo pertence ao senhor. Consequentemente ele não
pode ceder à mulher o poder sobre seu próprio corpo contraindo matrimônio sem o aval
do seu senhor. O segundo argumento lembra que o escravo é obrigado a obedecer ao seu
senhor. Ora, se o senhor ordena que não se case, o escravo não pode contrair
matrimônio. O terceiro argumento trata da contradição que pode existir entre a dívida
conjugal devida pelo escravo ao seu cônjuge (o ato carnal) e o serviço que todo senhor
tem o direito de exigir do seu escravo. Se o senhor necessita de seu escravo durante o
ato carnal, o escravo não pode obedecer. O senhor ficaria então, sem ter cometido
nenhum erro, privado dos serviços do seu escravo. Esse ponto remete especificamente à
situação na qual um escravo vai de noite para a casa de seu cônjuge, deixando a casa de
32
São Tomás de Aquino, op. cit., distinção 36.
15
seu senhor. O quarto argumento lembra que o senhor tem o direito de vender o escravo
numa região distante, onde sua mulher não o poderia acompanhar. O último argumento
lembra que um escravo não pode entrar em ordens religiosas sem o consentimento de
seu senhor. Ora, sendo o serviço divino por natureza superior àquele devido ao cônjuge,
a autorização do senhor deveria ser necessária ao matrimônio.
Contudo, todos esses argumentos em favor da necessidade do consentimento do
senhor para o casamento dos escravos são varridos pela força dos argumentos
contrários, de ordem teológica e jurídica.
Mas, pelo contrário, lê-se em Gal. 3, 28: “Em Jesus Cristo não há mais escravo
ou livre, para contrair matrimônio na fé de Jesus Cristo, há uma mesma liberdade para
livres e escravos”.
A escravidão é ainda de direito positivo. O casamento, por outro lado, é de
direito natural e divino. O direito positivo não pode prejudicar o direito natural ou o
direito divino, para que assim o escravo possa contrair matrimônio sem o aval do
senhor33.
São Tomás desenvolve então os argumentos em favor de uma total liberdade do
escravo para se casar. Essa liberdade total do sacramento do matrimônio não quer dizer
que o casamento implique libertação da escravidão. O escravo, apesar de seu
casamento, permanece escravo e totalmente submetido ao senhor para seu serviço.
A apresentação dessas “disputas” é importante, pois ela mostra que os
argumentos contrários são levados em conta, deixando espaços abertos para a discussão.
Alguns canonistas não concordam totalmente com são Tomás, existindo defensores da
necessidade do consentimento do senhor, sobretudo Duns Scot, que, de acordo com a
doutrina secular, exige o consentimento do senhor caso o matrimônio arrisque
comprometer os lucros que o senhor obtém pelo seu servo. Contudo, apesar dessas
dissonâncias, foi a tese da liberdade do matrimônio que prevaleceu.
As Constituições apresentam, assim, o direito canônico e a teologia clássica
sobre o casamento dos escravos. A dimensão religiosa e sacramental do matrimônio se
sobrepõe no direito canônico a todas as outras lógicas. Pode-se aqui esboçar um paralelo
com a questão do consentimento das famílias para o casamento em geral. A Igreja
recusou aceitar a ideia de uma limitação, pelas famílias, do livre consentimento dos
nubentes apesar da pressão das elites da sociedade e do poder político. Finalmente, o
33
Idem, vol. 9, p. 58.
16
Concílio de Trento, ao expressar sua detestação dos matrimônios clandestinos
(concluídos às escondidas, sem a presença das famílias, frequentemente contrárias à
união) e ao impor regras estritas para a celebração dos casamentos, acabou por
reconhecer em parte o direito que as famílias tinham de limitar a livre escolha dos
nubentes. A questão do consentimento dos senhores de escravos deve ser assimilada
àquela do consentimento dos pais de família.
Esse radicalismo do direito canônico surge de modo bastante claro quando se
comparam as constituições de Lisboa ou da Bahia com o código negro redigido para as
colônias francesas em 1685. O código negro, exemplo de jurisdição civil, reconhece o
direito dos escravos ao casamento, mas com a necessidade absoluta do consentimento
dos senhores. “Artigo 11: Proibimos expressamente aos curas de realizar casamentos de
escravos sem que se constate o consentimento dos seus senhores. Também proibimos
aos mestres que constranjam seus escravos a se casar contra sua vontade.” Percebe-se a
distância entre o direito civil que proíbe o padre de casar sem o consentimento dos
senhores e o direito canônico que autoriza o casamento de escravos sem esse
consentimento. Contudo, o direito civil francês também proíbe o casamento forçado: o
consentimento dos escravos é fundamental. No caso ibérico, o direito secular respeita o
monopólio do direito canônico sobre a questão dos casamentos e não estatui sobre o
matrimônio dos escravos34.
34
Silvia Hunold Lara, “Legislação Sobre Escravos Africanos na América Portuguesa”, in: J. Andrés-
Gallego (org.), Tres Grandes Cuestiones de la Historia de Iberoamérica, Madri, Fundación Mapfre
Tavera/Fundación Ignacio Larramendí, 2005 (CD-ROM). Nas Ordenações Manuelinas e nas Ordenações
Filipinas, não se faz menção do casamento dos escravos.
17
\A bula de Gregório XIII a que as Constituições fazem uma discreta referência
que pode nos ajudar a entender o que estava realmente em jogo nessa defesa do
casamento cristão. Em 25 de janeiro de 1585, Gregório XIII pronunciou uma bula em
favor do casamento dos escravos do Brasil recentemente convertidos35. Ela é a prova da
importância e da antiguidade da questão do casamento dos escravos no Brasil. O papa já
havia intervindo em favor do matrimônio dos escravos do Brasil, num momento no qual
o papado ficava, em muitos aspectos, silencioso com relação à escravidão como
instituição.
Essa bula, que estudei em outro momento, inscrevia-se no debate em torno do
casamento dos índios convertidos, questão importante para a Igreja missionária36. Paulo
III, em 1537, em seguida Pio V, em 1571, também tinham pronunciado bulas para
facilitar os casamentos cristãos dos novos convertidos. Essas bulas eram de uma grande
audácia teológica, pois diziam que, excepcionalmente, podiam-se ignorar os casamentos
do tempo da infidelidade que, segundo a doutrina da Igreja, permaneciam válidos
mesmo após a conversão. O debate foi reavivado no Brasil a partir dos anos 1570, mas
dessa vez a reflexão se concentrava sobre a questão dos infiéis escravos. Tratava-se de
saber se era possível autorizar os escravos, separados de seus cônjuges infiéis por causa
da escravização, a se casar novamente uma vez convertidos. A questão foi apresentada
aos teólogos de Portugal e aos jesuítas do Brasil e de Angola. Responderam que a bula
de Pio V não resolvia satisfatoriamente o problema, e que se fazia necessário uma nova
declaração pontifícia. Propunham recorrer àquilo que os canonistas chamam de
“privilégio Paulino”37. São Paulo, que insistia bastante sobre a indissolubilidade do
casamento, mesmo infiel, havia aberto uma brecha nesse princípio. Quando um cônjuge
se converte e o outro permanece infiel e maltrata o cônjuge cristão, o convertido pode
considerar-se como livre e se casar outra vez (I Coríntios 7, 16). A escravidão que
levava à separação definitiva dos esposos infiéis e à conversão daquele que era levado
como escravo podia ser um caso onde o privilégio paulino funcionava. Os escravos
convertidos podiam, então, se casar novamente na nova sociedade onde viviam sem se
preocupar de seu cônjuge dos tempos de infidelidade, pois aparentemente eles não
35
J. Metzler, America Pontificia Primi Saeculi Evangelizationis 1493-1592, 3 vols., Città del Vaticano,
1991. Populis ac Nationibus, no vol.II, doc. 430, p. 1228-1230.
36
Charlotte de Castelnau-L’Estoile “Le Mariage des Infidèles au XVIe Siècle”, op. cit.
37
G. Oesterlé, Privilège Paulin, dans R. Naz (ed.), , op. cit., vol. VII, p. 230-280.
18
voltariam a se encontrar. A bula “Populis ac Nationibus” era destinada à população
escrava, de origem indígena ou africana, do Brasil:
É frequente que infiéis dos dois sexos, sobretudo machos, casados segundo os ritos de seus
povos e originários de Angola, Etiópia, Brasil e outras regiões das Índias onde foram
capturados por inimigos, sejam arrancados de suas pátrias e seus cônjuges para serem
deportados para longe. De modo que tanto os cativos quanto os que ficaram na pátria, se se
convertem mais adiante, não têm meios para dar conta disto aos seus cônjuges
permanecidos infiéis ao longe [caso queiram coabitar com eles sem ofender ao Criador].
Isto acontece porque o acesso às províncias hostis e bárbaras é proibidaomesmo aos
mensageiros, ou porque os cativos ignoram totalmente de onde foram transportados, ou
ainda porque a distância do caminho se torna uma dificuldade intransponível38.
O papa, comovido pelo destino dos escravos (“Nossa solicitude paterna comove-
se perante a fraqueza destes povos”), autorizava então os curas e os jesuítas a casar
esses escravos convertidos sem tomar conhecimento dos antigos matrimônios
contraídos quando ainda eram infiéis.
Esse texto é uma das raras bulas pontifícias destinadas aos escravos. Largamente
desconhecida da historiografia brasileira, teve importante posteridade, pois ela impôs-se
para todos os infiéis convertidos – e não só para os escravos índios ou africanos do
Brasil. Essa bula foi utilizada ao longo de toda a época moderna pelos missionários que
queriam casar pessoas recentemente convertidas sem se preocupar com os antigos
matrimônios do tempo da infidelidade; ela foi integrada ao código de direito canônico
de 1917 onde é citada in extenso, privilégio de apenas outros oito textos pontifícios39.
Seu sucesso se deve ao fato de o privilégio paulino ser melhor solução jurídica do que
as que os papas anteriores haviam proposto.
Ao recolocar a bula de Gregório XIII no contexto brasileiro, constata-se ser ela o
fruto de um intenso trabalho do lobby dos jesuítas do Brasil, que faziam questão de
obter uma bula sobre o casamento dos escravos, num momento em que a província
jesuíta do Brasil estava em vias de se engajar numa prática escravista. Obter um texto
do papa sobre a escravidão surge então como uma forma de legitimar a escravidão que
praticavam e um modo de fazer calar as críticas existentes mesmo no seio da província.
Um dos mais afoitos críticos da escravidão, o padre jesuíta Miguel Garcia, natural de
38
J. Metzler, op. cit., Populis ac Nationibus no vol.II, doc. 430, p. 1228-1230
39
Codex Iuris Canonici, Romae, 1918, doc VIII.
19
Toledo, especificou ao seu superior, o visitador Cristóvão de Gouveia, que mesmo uma
revelação divina ou uma declaração do santo pontífice em favor da escravidão não o
fariam mudar de opinião40. A formulação é interessante e revela o fato de que alguns
jesuítas, a contrario de Miguel Garcia, esperavam uma declaração pontifícia sobre o
tema para fazer calar qualquer crítica sobre o modo como praticavam a escravidão.
A bula de 1585 sobre o matrimônio era um reconhecimento de fato pelo papado
de que existia escravidão de índios e africanos no Brasil. O apelo ao papa e ao direito
canônico sobre o tema do casamento permitiu assim que os jesuítas do Brasil se
sentissem reconfortados em sua escolha de possuir, fazer trabalhar e vender escravos.
Num momento em que essa escolha da escravidão ainda era debatida no seio da
Companhia de Jesus, a questão do matrimônio dos escravos permitiu indiretamente que
se obtivesse uma autorização de fato para praticá-la. Compreende-se então que se tenha
celebrado uma missa de ação de graças na igreja dos jesuítas de Salvador quando a bula
chegou ao Brasil41.
Essa bula, ao dar mais facilidade aos escravos para se casarem, mostrava que a
sociedade escravista em construção no Brasil podia ser uma sociedade cristã. Deve-se
recordar aqui que o casamento é uma necessidade absoluta no contexto missionário.
Batizar adultos sem casá-los era, aos olhos dos missionários, arriscar colocá-los numa
situação de pecado mortal. Poder casar os convertidos era o mesmo que lhes dar uma
possibilidade de atingir a salvação. A bula de 1585 associava essas questões de
conversão de escravos e de casamento e permanecia em vigor em 1707, pois a
sociedade baiana se alimentava do tráfico e muitos africanos, recentemente convertidos,
continuavam a chegar.
Essa leitura funcionalista da bula de 1585 também pode ser aplicada ao texto das
Constituições. Estas, sobre o casamento dos escravos, não têm apenas como objetivo
permitir que se casem sem a autorização dos senhores, mas servem, sobretudo, como
modo da Igreja dizer que os escravos podem viver cristãmente, justificando de certo
modo a escravidão. As Constituições de 1707 associam o matrimônio e a cristianização
dos escravos. Para casar os escravos, a Igreja punha como condição que eles
40
ARSI, Lus 68, 337-340v, 25 de julho de 1583, da Baya, carta de Gouveia ao Général, §4 (337v): Esta
tan duro en este parecer, que dize que si no fuere revelacion de Dios, o determinacion del Summo
Pontifice, no lo a largara, aun que lo quemen bivo.
41
Sobre os debates em torno da escravidão na Companhia de Jesus no Brasil, ver Carlos A. M. Ribeiro
Zeron, Ligne de Foi, La Compagnie de Jésus et l’Esclavage dans le Processus de Formation de la Société
Coloniale en Amérique Portugaise (XVIe-XVIIe siècles), Paris, Honoré Champion, 2009.
20
conhecessem os princípios elementares da fé cristã (pai-nosso, ave-maria, credo,
mandamentos da lei divina e da Igreja) e as obrigações do casamento cristão,
essencialmente seu caráter indissolúvel. O casamento era assim uma ocasião de verificar
que os escravos conhecem a doutrina cristã que teoricamente recebem de seus senhores.
Encontramos então o mesmo ideal de sociedade escravista cristã que Jorge Benci,
jesuíta italiano que voltou a Roma depois de uma longa estadia no Brasil, publicou em
forma de sermão em 170542. Esta se entende como uma troca de obrigações recíprocas
entre o senhor e o escravo: a instrução religiosa era como o alimento e as roupas, um
direito do escravo que em troca fornece trabalho para o senhor. Na obra de Benci, o
casamento é explicitamente apresentado como o mais importante alimento espiritual,
com a doutrina, o batismo e o viático, devido ao escravo pelo seu senhor43.
Ao condenar com firmeza os senhores por não cristianizarem seus escravos e
não lhes dar a possibilidade de viver uma verdadeira vida de cristão, a Igreja colonial se
coloca como a guardiã de uma ordem escravista cristã. A escravidão é um mal, como
claramente o diz Tomás de Aquino, citado muitas vezes nesses parágrafos, mas, aos
olhos da Igreja, este mal pode ser compensado pela cristianização dos escravos. O
tráfico e a escravidão ganham sentido na construção de uma sociedade cristã cujo pivô é
o matrimônio cristão, sinal da conversão, da cristianização e da salvação dos escravos.
A Igreja que produziu as Constituições estava, portanto, perfeitamente adaptada à
sociedade escravista. Ela tenta cristianizá-la, e, ao fazê-lo, participa à justificação da
escravidão. A principal função desses textos canônicos de 1585 e de 1707 era então de
enunciar um ideal de sociedade escravista cristã.
Por fim, pode-se perguntar se as disposições da Igreja relativas ao casamento dos
escravos tiveram repercussões práticas na vida dos próprios escravos, se elas
modificaram as práticas dos senhores com relação ao casamento dos escravos e se elas
foram utilizadas pelos escravos para melhorar sua sorte.
42
Jorge Benci, op. cit.
43
Idem., p. 103, § 89-94. Para Benci, que apresenta uma espécie de ideal da sociedade escravista cristã, o
casamento dos escravos é importante pois permitiria também lutar contra as uniões sexuais entre senhores
e escravos.
21
A consideração da vontade dos escravos nas Constituições
Os escravos eram atores plenos de sua vida familiar nos limites da autonomia a
que lhes relegavam as relações de dominação. Construíam relações conjugais, parentais
e filiais no interior das amarras impostas pela escravidão. As Constituições levam essa
autonomia em consideração de dois modos, no caso do escravo querer casar-se perante a
Igreja, e no caso de querer ficar em concubinato.
Nos parágrafos consagrados ao matrimônio, as Constituições oferecem um
possível recurso aos escravos que queriam se casar apesar da oposição do seu senhor. O
arcebispo, após verificar o conhecimento da doutrina cristã, podia conceder uma licença
especial aos escravos, que se casariam apesar da oposição do seu senhor que era vã aos
olhos da Igreja. É legítimo nos perguntarmos se essa possibilidade foi ou não utilizada.
Em Lisboa, as Constituições previam esse mesmo recurso; existem vários processos de
casamentos de escravos concluídos sob a proteção do arcebispo, apesar da oposição dos
senhores44. No estado atual de nossos conhecimentos, ignoramos se essa possibilidade
foi utilizada pelos escravos do Brasil, mas isso é bem possível.
A autonomia dos escravos também é levada em conta, mas negativamente, no
parágrafo consagrado ao concubinato. As Constituições consideram que os escravos,
tanto quanto os senhores, podem ser punidos por delito de amancebamento. A punição
dos senhores era ser judicialmente admoestado, mas sem penas pecuniárias. Quanto ao
escravo, caso não renunciasse ao concubinato depois da admoestação, ele seria punido:
“se há de proceder contra os ditos escravos a prisão, e degredo, sem se atender à perda,
que os ditos senhores podem em lhe faltarem os ditos escravos para seu serviço; por que
o serem cativos os não isenta da pena que por seus crimes merecerem”. A
responsabilidade do escravo e a do senhor eram levadas em conta e ambos deviam ser
punidos. Contudo, a punição dos escravos era muito mais severa que a dos senhores: a
separação dos casais, tão temida pelos escravos da parte dos senhores, era aqui pensada
pela Igreja como uma punição para os casais amancebados. A punição dos senhores,
falaremos disso mais adiante, é mais comedida: advertência judicial sem multa, e perda
financeira “indireta” provocada pela pena prevista para os escravos: a separação dos
44
Didier Lahon, Esclavage et Confréries..., op. cit., p. 144-150. Centenas de processos de casamentos de
escravos se encontram conservados nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, no fundo Sumários
matrimoniais. Para o ano de 1690, Didier Lahon contou trinta processos de casamentos de escravos
concluídos sob a particular proteção do arcebispo.
22
casais. O parágrafo sobre o amancebamento mostra claramente que a Igreja não agia por
“humanidade”, mas de acordo com sua própria lógica: senhores e escravos cristãos
devem respeitar a obrigação do casamento religioso, com maior severidade para a
responsabilidade do escravo. Sem dúvida, essa resistência dos escravos ao casamento
consagrado pela Igreja não é apenas teórica, e sabemos que em todos os contextos
missionários, o casamento cristão é o mais das vezes percebido como um peso. Essa
recusa também remete a uma forma de autonomia dos escravos, dessa vez em relação às
normas da Igreja católica.
Pode-se, todavia, pensar que uma parte dos escravos da Bahia do início do
século XVIII fez do acesso ao casamento consagrado pela Igreja uma reivindicação
própria e que eles recorreram ao direito canônico para defender sua autonomia. Essa
hipótese se apoia sobre um documento excepcional que se encontra em Roma no
Arquivo da Propaganda Fide, congregação pontifical criada em 1622 e encarregada da
propagação da fé no mundo. Trata-se de um “Memorial” escrito em latim e dirigido ao
papa em nome dos escravos negros da Bahia:
23
documento enviado ao Brasil por Sua Santidade. Para que de agora em diante um senhor
não possa impedir um escravo de contrair legítimas núpcias adicionando uma excomunhão
reservada a Sua Santidade cuja fulminação é a única esperança para amedrontar os
senhores45.
45
APF, SC I (1649-1713) America Meridionale, doc 163, fl. 466r-470v.
24
Coroa portuguesa em 168646. A irmandade do Rosário dos Pretos está presente no início
do século XVIII em seis diferentes igrejas de Salvador, no interior das quais ela possui
altares. É uma irmandade “liberal” aberta aos homens e mulheres, aos negros e aos
mulatos, aos escravos e aos homens livres, aos africanos e aos crioulos. Há igualmente
brancos, mas cujo papel é limitado. Os membros da irmandade pagam uma taxa de
entrada e uma contribuição anual, e, em troca, recebem o direito a funerais cristãos e a
determinados auxílios e participam de uma vida religiosa comum – comunhão e
confissão uma vez por mês, celebração de orações aos sábados e domingos e grande
festa anual em outubro. A direção da irmandade é composta por um presidente, um
secretário e um tesoureiro. Para participar da Mesa da irmandade é necessário, por
razões de prestígio e financeiras, ser livre ou liberto. Parece que habitualmente os
cargos de secretário e tesoureiro eram exercidos por homens brancos. Esses detalhes são
importantes para compreender nosso documento e notadamente o papel de mediador do
padre Antonio de Brandolini, que deve ter dado forma à petição dos escravos e a
traduziu para o latim.
O recurso a Roma
delegado e procurador dos negros da Mesa dos Negros de Nossa Senhora do Rosário da
confraria de Nossa Senhora do Desterro; da Confraria da Nossa Senhora do Rosário da
46
Sobre as irmandades de homens negros no Brasil, ver Russel Wood, “Black and Mulatto Brotherhoods
in Colonial Brazil: A Study in Collective Behavior”, The Hispanic American Historical Review, vol. 54,
n. 4, nov. 1974, p. 567-602.
47
Arlindo Rubert, XXXX, ver a Apresentação, p. 307-308 e o documento no Apêndice D (“Memorial em
Defesa dos Escravos do Ano 1686”), p. 380-382.
25
Igreja de S. Pedro dos Pretos ; da Confraria da Nossa Senhora do Rosário da Igreja da
Nossa Senhora da Conceição; de duas confrarias que estão em Sam Benedito, da confraria
da Nossa Senhora do Rosário da Catedral.
48
Ver o artigo precursor de Richard Gray, “The Papacy and the Atlantic Slave Trade: Lourenço da Silva,
the Capuchins and the Decisions of the Holy Office”, Past and Present, n. 115, maio 1987, p. 52-68.
Dispõe-se hoje de edições críticas muito aprofundadas e documentadas de Miguel Anxo Pena Gonzalez
sobre as obras dos dois capuchinhos Francisco José de Jaca e Epiphane de Moirans. Francisco José de
Jaca, Resolucion Sobre la Liberdade de los Negros y Sus Originarios en Estado de Paganos y Despues
ya Cristianos: La Primera Condena de la Esclavitud en el Pensamiento Hispano, in: M. A. Pena
Gonzáles et. al. (eds.), Título da Obra, Madri, CSIC, 2002. Epiphane de Moirans, Servos Libres, Una
Propuesta Antiesclavista a Finales del Siglo XVII, in: M. A. Pena González et. al. (eds.), Título da Obra,
Madri, CSIC, 2007.
49
Richard Gray, “The Papacy and the Atlantic Slave Trade...”, op. cit.
26
dos outros escravos não são obrigados a impedir que vivam em concubinato. Suas
Eminências disseram que são obrigados”50.
Essa lista de onze proposições foi enviada no mesmo dia para ser examinada
pelo Santo Ofício, tribunal encarregado de condenar os desvios teológicos, mas como
era seu costume, a administração inquisitorial tardou em enviar uma resposta. Em
janeiro de 1686, sem dúvida desejosos de precipitar a decisão do Santo Ofício,
Lourenço da Silva interveio novamente na Congregação Geral da Propaganda Fide com
uma petição dos “negros e mulatos nascidos de pais cristãos tanto no Brasil como na
cidade de Lisboa”. Esses escravos denunciavam as vendas forçadas que os reduzia ao
estado de animais. Recusavam a escravidão perpétua e denunciavam pertencer a
criptojudeus, sendo eles próprios cristãos. No dia 20 de março de 1686, o Santo Ofício
deu seu veredicto, condenando as onze proposições que descreviam as práticas da
escravidão, sem contudo ir até a excomunhão pedida por Lourenço em 1684.
Essa denúncia, remetida a muitos bispos do mundo ibérico não deu resultados.
Até na Cúria, desde o começo dessa ofensiva contra a escravidão, algumas vozes se
elevaram em favor de um realismo político. Em um memorando anônimo de 1682, sem
dúvida originado na Secretaria de Estado, o ministério das relações exteriores da Cúria
lembra os interesses financeiros ligados à escravidão e critica as denúncias de crueldade
dos senhores como altamente exageradas51.
Para todos os que assim se dirigiam a Roma para denunciar os abusos do
escravismo, que fossem religiosos ou antigos escravos, tratava-se de usar o papado
como meio de pressão para assim influenciar as coroas ibéricas que reinavam absolutas
sobre a Igreja de ultramar, segundo os princípios do padroado. O recurso ao tribunal do
Santo Ofício também é estratégico, pois o tribunal da heresia não estava limitado pelas
fronteiras do padroado52. A Propaganda Fide tinha como claro objetivo supervisionar os Office 2004 Test Drive U…, 28/3/10 19:11
53 Commentaire: Falta completar referências no
poderes ibéricos suspeitos de não assumir corretamente a cristianização de suas terras . rodapé.
O Brasil, elo fraco do padroado ibérico, foi objeto de uma verdadeira espionagem da
50
“9- Domini nigrorum et aliorum mancipiorum non tenentur impedire, ne vivant in concubinatu.
Eminentissimi dixerunt teneri.” ACDF, S.O. Decreta 1686, ff 64r-v. Publicado em Francisco José de Jaca,
op. cit., p. 365
51
Richard Gray, “The Papacy and the Atlantic Slave Trade”, op. cit.
52
G. Pizzorusso, XXXXX.
53
M. Sanfilippo ¶ G. Pizzorusso, “L’America Iberica e Roma fra Cinque e Seicento: Notizie, Documenti,
Informatori, in: “Gli Archivi della Santa Sede e il Mondo Asburgico nella Prima Età Moderna, a cura di
M. Sanfilippo, A. Koller e G. Pizzorusso”, Atas do Seminário Internacional de Acquapendente, 11-12
ottobre 2002, Viterbo, 2004, p. 73-118.
27
parte da congregação que denunciava regularmente as “fraquezas espirituais”, e a coroa
portuguesa sabia disso. A Coroa portuguesa, ameaçada em seu direito de padroado
sobre seu Império pelas potências marítimas rivais, estava muito atenta às críticas que
podiam ser emitidas por Roma. A pressão pontifical sobre o rei de Portugal por via do
núncio em Lisboa esteve, sem dúvida, na origem da primeira legislação real de proteção
dos escravos54. Em 1688, d. Pedro II (1683-1706), influenciado pelo núncio, emitiu
várias leis proibindo a prática dos castigos abusivos e permitindo aos escravos servirem-
se da justiça régia em caso de abuso dos seus senhores55. As constituições de 1707
entendem-se melhor nesse contexto de controle pelo papado das terras sob padroado. A
Coroa, ao mandar para o Brasil um arcebispo legislador e competente como Sebastião
Monteiro da Vide promulgar constituições, mostra sua vontade de renovação. O tema da
cristianização dos escravos, em que o casamento tinha um papel central, constitui então
uma questão importante entre o papado e a Coroa. D. Pedro II escreveu ao arcebispo
duas cartas para ordenar-lhe que velasse pessoalmente pela cristianização dos escravos.
O rei aderia claramente à ideia de que o escravo cristão era mais submisso, mas tratava-
se também de dar garantias ao papado56.
O Memorial dos Escravos da Bahia sobre o casamento, que fala tanto dos abusos
da violência dos senhores como do desrespeito dos sacramentos cristãos, não foi um ato
isolado. Na verdade, inscreveu-se nessa ofensiva de religiosos e escravos nos anos 1680
contra o sistema escravista. Todavia, o fato de que o Memorial tenha sido enviado
precisamente em 1708 permite pensar que ele se inscreve num contexto mais preciso
ligado à adoção das Constituições baianas de 1707.
54
Essa hipótese também é levantada por Carlos A. M. Ribeiro Zeron em seu artigo publicado neste
volume, p. [revisão completar].
55
Essa vontade da Coroa também se compreende como um meio de evitar as fugas de escravos; o
problema do quilombo de Palmares, que as autoridades coloniais não conseguiam suprimir, era uma
preocupação central para a Coroa naqueles anos. Sílvia H. Lara mostrou o efeito dessa legislação sobre os
castigos no contexto brasileiro de fins do século XVII. Essas leis surgem como uma brecha no sistema
escravista, mas são finalmente esvaziadas de seu conteúdo por uma lei de 1698, subsequente à destruição
de Palmares por forças militares, que suprime a possibilidade de recurso pelos escravos à justiça régia
contra seus senhores.
56
ver B. Feitler e E. Sales Souza, “Estudo Introdutório”, in: Sebastião Monteiro da Vide, Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, São Paulo, Edusp, 2010 (no prelo).
28
O ano de 1708 não é o único indício que permite avançar a hipótese segundo a
qual o Memorial seria uma reação às Constituições, julgadas insuficientes sobre a
questão do casamento dos escravos. O próprio conteúdo do Memorial, bem como a
carta de Brandolini, nos apontam nessa direção. O jesuíta italiano precisa em sua carta
que ele procurou em vão convencer em confissão escravos concubinários a se casar.
Segundo ele, os escravos poder-se-iam casar se eles desejassem e caso se apresentassem
diante do pároco, mas a verdadeira dificuldade reside no fato de que eles não querem se
casar por causa do medo que têm dos maus-tratos a que serão submetidos pelos seus
senhores57.
A menção da possibilidade que têm os escravos de se casar diante do cura é, sem
dúvida, uma alusão às Constituições. Mas essa possibilidade é julgada insuficiente: o
medo dos suplícios aniquila a vontade de casamento dos escravos. Depois de ter
levantado o problema, o jesuíta italiano cala-se e deixa que o Memorial dos Escravos
apresente uma solução58. Esta aparece no último parágrafo do Memorial: trata-se de
obter uma bula de excomunhão apostólica para os senhores que recusassem o casamento
de seus escravos. A excomunhão é uma censura que declara que um pecador está
excluído da comunidade dos fiéis. O excomungado fica privado do direito de assistir aos
ofícios, dos sacramentos e de sepultura eclesiástica. A anulação da excomunhão
apostólica deve ser pública e está reservada ao papa59. A excomunhão é uma arma
poderosa e que vai bem além das penas previstas nas Constituições para os senhores
recalcitrantes ao casamento: os senhores que refutavam o casamento de seus escravos
eram simplesmente declarados em estado de pecado mortal (§ 303), e não punidos
judicialmente (§ 989). O pecado mortal é uma condenação grave, pois significa a morte
da alma e a privação da vida sobrenatural e o inferno na hora da morte. Mas é uma
condenação de foro interior, ligada ao poder que a Igreja tem de julgar a consciência de
cada indivíduo e feita em privado60. A qualificação de um ato como pecado mortal não
tem o mesmo peso que a excomunhão, que é pública e implica graves consequências
sociais. Podemos então pensar que foi uma forma de decepção perante as Constituições
57
APF, SC I (1649-1713) America Meridionale, doc. 163, f 466rv-470rv: “E la ragione si è, non perché di
quello [non] possano xxx di verità se si presentano o a vicarj o a curati gli xxx-sano, Ma perche nol [=
non lo] vogliano à ragion de supplizi che incorrano coi lor Padroni”.
58
Idem: “La dignita della causa mi fa xxx ardire in raccomandarla alla sua saggia condotta. La
confraternità sopradetta bramarebbe da S. S.tà un benigno rescritto al memoriale qui annesso. In quanto a
me bastami di aver rapresentato li mali a Va Sra [...]”.
59
R. Naz, op. cit., “Excommunication”, t. V, p. 615-617.
60
Idem, “Péché”, t. VI, p. 1284 e “For” t. V, p. 871-874.
29
– que não permitiam remediar realmente à tirania dos senhores, em face do problema do
casamento dos escravos – que levou o jesuíta italiano a enviar em 1708 ao papa,
Clemente XI (1700-1721), o memorial dos escravos.
O padre jesuíta italiano Antonio de Brandolini, chocado pela escravidão tal qual
era praticada em Salvador, e que desejava deixar o Brasil o quanto antes, fez o papel de
intermediário entre a cúria romana e os escravos da irmandade. Sua mediação consistiu
precisamente em dar a palavra aos escravos. O texto é apresentado como voz “dos
escravos africanos da Bahia dos dois sexos”. Os escravos expõem o problema em
termos equivalentes àqueles usados por Brandolini em sua carta, mas são eles que
propõem a solução. Sua reivindicação se expressa na linguagem eclesiástica. Esses
homens e mulheres se autodefiniam como seres que aspiram ao casamento e à
fidelidade. Rejeitaram o argumento dos senhores segundo o qual, para os escravos, a
fidelidade no casamento era impossível de suportar, denunciando o tema da
incontinência e da sexualidade desenfreada dos escravos como um topos. A visão do
casamento desenvolvida no Memorial é talvez aquela dos escravos, ela corresponde, por
outro lado, em todos os pontos à visão de Brandolini.
É possível perguntar: por que o jesuíta coloca em cena a palavra dos escravos?
Os escravos seriam totalmente instrumentalizados ou tocariam eles a sua própria
partitura nesse caso?
O recurso à palavra dos escravos, mesmo profundamente mediatizada e
solicitada, é importante para Brandolini por ser uma maneira de provar a vontade de se
casar dos escravos, homens e mulheres. A própria natureza do sacramento do
matrimônio consiste no consentimento que os esposos se conferem mutuamente na
presença da Igreja. Ora, o jesuíta notou que os escravos não queriam se casar. Por esse
Memorial os escravos provam que eles gostariam de se casar caso não tivessem que
temer os castigos dos senhores, que eles aderem à forma restrita do casamento cristão e
que eles não desejam uniões passageiras. Compreende-se melhor por que a petição
menciona também as mulheres: é porque no casamento o consentimento da mulher
importa tanto quanto o do homem.
30
Pode-se notar que no Memorial apenas um caso concreto de casamento é
evocado: o de um escravo com uma mulher. Ora, essa união é a única que libera da
escravidão, não os cônjuges, mas sua descendência, pois os filhos de um ventre livre são
livres. Desse modo, esse exemplo mostra que o texto dos escravos foi certamente
mediatizado pela instituição eclesiástica, mas que ele também enuncia um ponto de
vista próprio dos escravos: o casamento podia ser usado como uma estratégia de alforria
para a geração seguinte. Au début du XVIII siècle, em Salvador, o grande número de
libertas tornava a eventualidade desses casamentos mistos uma realidade61. Trata-se Office 2004 Test Drive U…, 28/3/10 19:38
Commentaire: As referências estão incompletas.
talvez de um argumento específico aos escravos que procuram utilizar o casamento
como estratégia de libertação para a geração seguinte. Sabe-se o quanto é forte a
reivindicação de liberdade dos escravos: no compromisso de 1686 da irmandade do
Rosário dos Pretos de Salvador está previsto que a irmandade possa fazer empréstimos
para ajudar seus membros a comprar sua alforria62. Office 2004 Test Drive U…, 28/3/10 19:39
Commentaire: Falta numeração de página da
É difícil no estado atual de nossos conhecimentos afirma à luz desse único texto citação.
escravos não exibia o nome de uma irmandade particular, não defendia seus privilégios,
mas reivindicava direitos para todos os escravos negros de ambos os sexos, não só da
Bahia mas de todo o Brasil. Essa irmandade sem nome se apresenta como a porta-voz
do conjunto da comunidade escrava para defender a liberdade do casamento. Essa
petição remete à imagem de um mundo escravo hierarquizado, que se apropriou
61
Na Bahia do início do século XVIII há mais mulheres do que homens libertos. Stuart B. Schwartz,
Manumission XXXX p. XXXXXX.
62
Russel Wood, “Black and Mulatto Brotherhoods...”, op. cit., p. XXXXXXXX.
63
Em 1658, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Luanda escreveu para Roma pedindo o
reconhecimento formal de seus privilégios, “já que no serviço de Deus, devemos ser todos iguais”. Em
1686, o liberto Paschoal Dias levou a Roma uma petição contra os maus-tratos. Nos anos 1690, a
irmandade do Rosário dos Pretos de Salvador enviou petições para a Coroa solicitando sepulturas
decentes para os membros da irmandade. Ver Russel Wood, “Black and Mulatto Brotherhoods...”, op.
cit., p. XXX.
31
plenamente dos valores cristãos e que tinha consciência da existência de uma
comunidade negra64.
O envio do memorial dos escravos ao papa não surtiu muitos efeitos. Apesar de
guardado nos arquivos da Propaganda Fide, ele não foi completamente esquecido. A
burocracia romana conservava seus dossiês e os trazia à luz no momento certo. Desse
modo, ele foi dado a ler a um cardeal da cúria em 1721, encarregado pela Propaganda
Fide de pensar em soluções para remediar as fraquezas espirituais do Brasil.
As Constituições de 1707 foram impressas em Lisboa em 1719, os parágrafos
sobre o matrimônio dos escravos demonstravam que a doutrina oficial da Igreja sobre a
liberdade do sacramento do matrimônio era válida para todos “os filhos de Deus, livres
e escravos”, mas ela não oferecia aos escravos da Bahia, “a este desgraçado pequeno
rebanho”, a arma da excomunhão para lutar contra a opressão de seus senhores.
64
Em seu artigo sobre as irmandades, Russel Wood levanta a questão da existência de uma consciência
dos negros no Brasil escravista.
65
Silvia Hunold Lara “Marronnage et Pouvoir Colonial: Palmares, Cucaú et les Frontières de la Liberté
au Pernambouc à la Fin du XVIIIe Siècle”, Annales HSS, 62º année/3, 2007, p. 639-662.
32
contrair matrimônio na fé de Jesus Cristo, há uma mesma liberdade para livres e
escravos”, a liberdade tinha um sentido preciso, aplicando-se à liberdade do sacramento;
essa liberdade se adaptava à escravidão. Para a Igreja, a liberdade parava no sacramento.
Tratava-se de defender a liberdade do sacramento, e não a dos escravos. Um pouco
como a legislação régia, que deu um passo atrás em relação à legislação contra os
castigos, a legislação canônica escolheu não entrar em conflito direto com a ordem
escravista. Ela tentava reafirmar os princípios de uma sociedade escravista cristã,
recusando ao mesmo tempo tudo o que pudesse se assemelhar a uma concessão grande
demais perante as reivindicações dos escravos. A Igreja na Bahia permaneceu fiel aos
princípios do direito canônico, mas limitava a condenação dos senhores recalcitrantes ao
casamento dos escravos a uma condenação moral e não a uma pena social. Essa batalha
perdida dos escravos para a excomunhão permite assim recolocar a Igreja do Brasil
colônia no seu verdadeiro lugar dentro do edifício da sociedade escravista.
No início do século XVIII, parece que foram sobretudo os jesuítas italianos do
Brasil que se engajaram, cada um a sua maneira, nessa batalha jurídica em nome dos
princípios do direito canônico. João Antônio Andreoni, sob a capa de uma simples
descrição das práticas dos senhores brasileiros, denuncia de fato seus simulacros de
casamento, Jorge Benci, em seus sermões aos proprietários de escravos, exorta-os com
vigor a casar os seus escravos, Antonio Brandolini suscita e transmite a Roma um
pedido de excomunhão de senhores. O padre Antonio Bonnuci, editando os sermões de
Benci em Roma, em 1705, dá a conhecer na cidade pontifícia as miseráveis práticas dos
senhores brasileiros. A cultura jurídica e teológica mais aprofundada desses religiosos
italianos, seu olhar de estrangeiro sobre uma sociedade escravista e colonial, suas redes
na cúria romana explicam sem dúvida esse engajamento66. Mesmo assim, a defesa da
liberdade do sacramento não significa luta contra a escravidão, ao menos da parte de
Andreoni e de Benci.
Para os senhores, a ideia de que a liberdade do sacramento do matrimônio devia
se aplicar a homens desprovidos de liberdade era subversiva e atentava contra o que eles
66
Cada um desses autores reivindica seu estatuto de estrangeiro. No Prefácio aos seus discursos, Benci se
apresenta como “um missionário estrangeiro”. Brandolini em sua carta diz que ele está de partida para a
Ásia. Quanto a Andreoni, embora muito bem integrado à província jesuítica, haja vista que nela ocupou
todos os cargos, inclusive o de provincial, assina sob o pseudônimo “André João Antonil” ou “O toscano
anônimo”. Estamos diante de um contexto no qual a identidade nacional é fonte de numerosos conflitos:
em 1698, a pedido dos padres luso-brasileiros, o geral dos jesuítas havia ordenado a expulsão de jesuítas
italianos do Brasil.
33
consideravam como sua soberania doméstica. Por intermédio das fontes que utilizamos,
oriundas sobretudo da Igreja, notamos que certos senhores haviam feito da recusa do
casamento um modo de afirmar seu poder sobre seus escravos. Os castigos e os
suplícios eram a resposta aos casamentos de seus escravos e uma maneira de relembrar
sua condição servil. Entretanto, é preciso manter a prudência quanto a essa interpretação
e buscar outras fontes que possam confirmá-la.
Quanto aos escravos, eles não aderiam necessariamente ao modelo de casamento
cristão e o apego ao concubinato, forma mais livre de vida familiar, é atestado pelas
fontes, mesmo as eclesiásticas. É essa ideia forte da liberdade do sacramento que
explica a adesão de parte dos escravos ao discurso da Igreja. Para os escravos, essa
liberdade do sacramento significava a possibilidade de viver segundo as exigências da
moral cristã e, sem dúvida, também maior autonomia no seio das amarras da escravidão.
O casamento podia colocá-los ao abrigo das tão temidas separações forçadas. Eles
podiam ver no casamento cristão um reconhecimento de sua dignidade de cristão e de
homem, configurando-se em uma etapa no caminho para a liberdade. O Memorial dos
Escravos de 1708, que emana mais provavelmente do jesuíta Brandolini do que de uma
irmandade de negros, representa, portanto, não uma adesão plena e completa dos
escravos ao modelo cristão do casamento, mas um encontro possível entre as
reivindicações dos escravos por mais autonomia e dignidade, comprovadas na Bahia do
início do século XVIII por outras fontes, e o discurso da Igreja sobre a liberdade do
sacramento.
34