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CAPITULO 4
O romance regional
Riacho, de Libindo Ferds.
Diferentemente dos outros tipos de romance roméntico, 0 romance regional,
por falta de referéncias no Romantismo europeu, foi obrigado a construir seus préprios
modelos. Como consequéncia, a literatura brasileira ganhou maior autonomia eo
Brasil passou a se conhecer melhor em suas enormes diversidades regionais.
Coube ao romance regionalista, mais do que aos romances indianista, histérico e urbano, a missao nacionalista
que 0 Romantismo se atribuiu de proporcionar ao pats uma visdo de si mesmo. Estendendo o olhar para os quatro
cantos do Brasil, o romance regional buscou compreender e valorizar as caracteristicas étnicas, lingulsticas, sociais
e culturais que marcam as regides do pais e diferenciam umas das outras.
Sem apoio em modelos europeus, 0 romance regionalista roméntico teve de abrir sozinho seus proprios
caminhos. Portanto, constituiu em nossa literatura uma experiéncia nova, que exigiu dos escritores pesquisa €
senso de observacao da realidade. jesultado desse empenho, os romances regionais roménticos deram um
passo decisivo no rumo da tao desejada autonomia cultural brasileira.
Os espacos nacionais
Os espacos nacionais que despertaram maior interesse entre os escritores roménticos foram o das capitais,
normalmente plo destaque para a entao capital do pais, o Rio de Janeiro, e 0 das regides
Sul, Nordeste e tais € descrito pelo romance urbano, enquanto os demais s80
retratados pelo romance re}
ituadas n
Centro-Oeste: Visconde de Taunay
Alfredo d'Escragnolle Taunay (1843-1899), 0 Visconde de Taunay, era carioca, fez carreira militar e, com
apenas 20 anos, chegou a participar da Guerra do Paraguai.
fais do que a guerra uzia na carreira de militar era a possibilidade de viajar e conhecer a
diversidade natural do Brasil. Apaixonado pela natureza brasileira, registrava em desenhos espécies da fauna e da
a contra a destriicaa das matas na cidade do Rio de Janeiro.
flora nacionais e, ja no século XIX, pec
171Em suas andancas por Mato Grosso, Taunay colheu experiéncias para compor suas
obras. Ressalta-se nelas a capacidade do escritor de reproduzir com preciso aspectos
visuais da paisagem sertaneja, especialmente da fauna e da flora da regio. Foi autor de
romances, como Inocéncia (1872), sua obra-prima, e de livros sobre a guerra € 0 sertao,
como Retirada da Laguna (1871).
j
5
I
;
Inocéncia: a busca do sert3o
Inocéncia & considerada a obra-prima nao s6 de Taunay, mas também do romance
tegionalista de nosso Romantismo, e sua qualidade resulta do equilibrio alcancado na
contraposigéo de varios aspectos: ficcdo e realidade, valores roménticos e valores da
realidade bruta do sertao, inguagem culta e linuagem regional. Trata-se de uma historia de To snay-o despertarda
amor impossivel, que envolve Cirino, pratico de farmadcia que se autopromovera a médica, consciéncia ecolégica.
e Inocéncia, uma jovem do sertao de Mato Grosso, filha de Pereira, pequeno proprietétio,
representante tipico da mentalidade vigente entre os habitantes daquela regido.
‘A realizacdo amorosa entre os jovens ¢ invidvel, porque Inocéncia fora prometida em casamento pelo pal a
Manecao Doca, um ristico vaqueiro da regido; e também porque Pereira exerce forte vigilancia sobre a filha, pois,
de acordo com seus valores, ele tem de garanti a virgindade de Inocéncia até o dia do casamento.
‘Ao lado dos acontecimentos que constituem a trama amorosa, ha também 0 choque de valores entre Pereira
Meyer, um naturalista alemao colecionador de borboletas que se hospedara na casa do pequeno proprietario. O
choque de valores entre os dois evidencia as diferencas entre 0 meio rural brasileiro e o meio urbano europeu
Leitura
Estava Cirino fazendo o inventério da sua roupa e jé comecava a
anoitecer, quando Pereira novamente a ele se chegou.
—Doutor, disseomineiro, podeagoramecéentrarparaverapequena. Esta
com @ pulso que nem um fio, mas nao tem febre de qualidade nenhuma.
— Assim é bem methor', respondeu Cirino.
E, arranjando precipitadamente o que havia tirado da canastra, fechou-a
e pés-se de pé.
Antes de sair da sala, deteve Pereira o hdspede com ar de quem precisava
tocar em assunto de gravidade e ao mesmo tempo de dificil explicacao.
final comecou meio hesitante:
— Sr. Cirino, eu c4 sou homem muito bom de génio, muito amigo de todos, muito acomodado e que
tenho o coragao perto da boca, como vosmecé deve ter visto.
— Por certo, concordou 0 outro.
— Pois bem, mas... tenho um grande defeito; sou muito desconfiado. Vai o doutor entrar no interior da
minha casa e... deve portar-se como...
— Oh, Sr. Pereira! atalhou Cirino com animagdo, mas sem grande estranheza, pois conhecia 0 zelo com
que os homens do sertéo guardam da vista dos profanos os seus aposentos domésticos, posso gabar-me de
ter sido recebido no seio de muita familia honesta e sei proceder como devo.
Expandiu-se um tanto 0 rosto do minciro.
— Vejo, disse ele com algum acanhamento, que o doutor nao é nenhum pé-rapado, mas nunca é bom
facilitar... E j4 que nao hé outro remédio, vou dizer-Ihe todos os meus segredos... N4o metem vergonha a
ninguém, com o favor de Deus; mas em neg6cios da minha casa nao gosto de bater lingua... Minha filha
Nocéncia fez. 18 anos pelo Natal, e é rapariga que pela feigo parece moca de cidade, muito ariscazinha de
modos, mas bonita e boa deveras... Coitada, foi criada sem mie, e aqui nestes fundées*. [...]
— Ora muito que bem, continuou Pereira caindo aos poucos na habitual garrulice, quando via menina
tomar corpo, tratei logo de casé-la.
— Ah! € casada? perguntou Cirino.
Fernanda Torres no papel principal
do filme Inocénca,
‘Note do proprio Taunay
Locucdo muito usual no interior.
2 sertoes,
172— Isto é, € nao é. A coisa est4 apalavrada. Por aqui costuma labutar no costeio do gado para Sao Paulo
um homem de mao-cheia, que talvez o Sr. conheca... 0 Manecao Doca.
Taunay: 0 desbocado — Esta obrigagao de casar as mulheres é 0 diabo!... Se
no tomam estado, ficam jururus e fanadinhas...; se casam
Taunay eriticava todo mundo. [..] Quanto podem cair nas maos de algum marido malvado... E depois,
08 esoritores brasiliros, nenhum deles podia as histérias!... Ih, meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de
ser considerado um mestre, segundo 0 olhar meter medo... S40 redomas de vidro que tudo pode quebrar...
critico do autor de /nocéncia. Ele fol aluno dé Enfim, minha filha, enquanto solteira, honrou o nome de meus
Joaquim Manuel de Macedo, a quem chama de pais... 0 Manecao que se aguente, quando a tiver por sua... |
Macedinho, mas nao tinha muito aprego por sua Com gente de saia ndo h que fiar... Cruz! botam familias
obra. Ao contra, trata duramente esse escritor—inteiras a perder, enquanto o demo esfrega um olho.
nas Memorias, vendo-o mais como um artista Esta opinido injuriosa sobre as mulheres é, em geral,
mediocre que perdeu a inspiragao. A suarelacéo —corrente nos nossos sertOes e traz como consequéncia imediata |
com Alencar @ sua obra ja @ diferente. Taunay —_@ pratica, além da rigorosa clausura em que sdo mantidas, n3o_
respeita Alencar, como politico ¢ escritor, ng 6 9 casamento convencionado entre parentes muito chegados
vendo nele um modelo a seguir ou imitar. para filhos de menor idade, mas sobretudo os numerosos
Geilo Medetos, em entvevste 20 jnal 0 Times cometidos, mal se suspeita possibilidade de qualquer
Estado de , Paulo, 27/3/2005) intriga amorosa entre pessoa da familia e algum estranho.
— Sr. Pereira, replicou Cirino com calma, jd Ihe disse e torno-Ihe a dizer que, como médico, estou
ha muito tempo acostumado a lidar com familias e a respeité-las. E este meu dever, e até hoje. gragas a
Deus, a minha fama ¢ boa... Quanto as mulheres, nao tenho as suas opinides, nem as acho razoaveis nem
de justiga. Entretanto, ¢ intitil discutirmos porque sei que isso sao prevengdes vindas de longe, e quem
torto nasce, tarde ou nunca se endireita... O Sr. falou-me com toda franqueza, e também com franqueza
Ihe quero responder. No meu parecer, as mulheres sdo tao boas como nds, se ndo melhores: nao h4, pois,
motivo para tanto desconfiar delas e ter os homens em tao boa conta... enfim, essas suas ideias podem
quadrar-Ihe 4 vontade, e € costume meu antigo a ninguém contrariar, para viver bem com todos e deles
merecer o tratamento que julgo ter direito a receber. Cuide cada qual de si, olhe Deus para todos nés, e
ninguém queira arvorar-se em palmatéria do mundo.
Tal profissao de f6, expedida em tom dogmatico e superior, pareceu impressionar agradavelmente a Pereira,
que fora aplaudindo com expressive movimento de cabeca a sensatez dos conceitos e a fluéncia da frase.
(Taunay. nocéncia. 6. ed. S30 Paulo: Aca, 1984. p. 29-32)
1. A linguagem literéria quase sempre faz uso da lingua padréo. Por essa razdo, um dos mais dificeis problemas en-
contrados pelos autores regionalistas é a adequaco da variedade linguistica regional a linguagem literdria. No texto
lido, observe as inguagens de Cirino e de Pereira, a linguagem do narrador e as notas de rodapé, feitas pelo proprio
autor. Em seguida, responda: De que modo Taunay resolve o problema da linguagem regional em /nocéncia?
2. No didlogo entre Pereira e Cirino, evidencia-se a opiniao do primeiro a respeito da mulher e do casamento. De
acordo com a visdo de Pereira expressa no texto:
a) O que representam as mocas em uma fama?
b) Que significado tem para um pai o casamento de sua filha?
3. Em certo momento do texto, o narrador interfere na narracao para expressar seu ponto de vista a respeito das
ideias de Pereira.
a) Identifique o pardgrafo em que isso ocorre.
b) Qual é o julgamento do narrador a respeito da opiniao expressa por Pereira? Que consequéncias ele men-
ciona como decorrentes dela?
4. No peniitimo pardgrato do texto, Cirino emite sua opiniao, depois de ter auvido a de Pereira,
a) Existem diferencas entre as ideias de Cirino e as de Pereira? Comente.
b) Identifique no texto uma frase por meio da qual se percebe que Cirino, apesar de discordar, aceita as regras
daquela sociedade.
173O regionalismo no livro, na telinha e na telona
‘A busca dos espagos nacionais como melo de definir a identidade cultural — in-
‘troduzida pelo Romantismo — acabou se tornando uma preocupacao permanente &
| ciclica na arte brasileira. No comego do século XX, por exemplo, o sertao baiano fo!
retratado em Os sertées, de Euciides da Cunha. Na década de 1930, varios escritores,
‘como Rachel de Queiroz, Graciiano Ramos e Jorge Amado, deram continuidade aos
temas regionais,
‘Atualmente, além de estar presente na Iteratura, 0 regionalism vem sendo ex.
plorado também nas novelas da tev @ no cinema. Novelas como Gabriela, Tieta, ©
salvador de patria, entre outras, marcaram a histdria da televisdo brasileira,
No cinema, bons filmes t8m dado continuidade & tradigao regionalista, como Abri
despadagado, de Walter Sales (2001), Cinema, aspirina e urubus, de Marcelo Gomes
(2005), © Arido movie, de Litio Ferreira (2005)
Sul: O gaticho, a alma pampa
A obra O gaucho, de José de Alencar, é a principal das realizagdes literérias do Romantismo que tomaram 0
Sul como tema. Nela so evidentes as preocupacdes do autor em compor o painel sociocultural do Rio Grande
do Sul no século pasado, ressaltando-lhe os valores e os costumes sociais, as peculiaridades linguisticas, as
cayacteristicas naturais e geogréficas © 0 passado hist6rico,
A aco narrada na obra se situa por volta de 1832, portanto 4s vésperas da Guerra dos Farrapos (1835), que
abalou a regido Sul do pats. Dela patticipam personagens histéricas do Brasil e do Uruguai, como Frutuoso Rivera
(primero presidente do Uruguai), Juan Lavalleja (principal adversario de Frutuoso Rivera) e 0 militar brasileiro
Bento Goncalves.
© protagonista da obra € Manuel Canho (sobrinho de Bento Goncalves), um tipico gaticho, com largo
conhecimento da regio e verdadeira paixao por seu cavalo, companheiro insepardvel. Ao lado dos acontecimentos
politicos que permeiam toda a obra, tem destaque o envolvimento sentimental de Canho com Catita filha do dono
de uma pousada.
Observe no seguinte fragmento de O gaticho como Alencar procura ressaltar a integracdo entre a natureza
eo homem
‘Quantos seres habitam as estepes americana, sejam homem, animal ou planta, inspiram nelas uma
alma pampa. Tem grandes virtudes essa alma. A coragem, a sobriedade, a rapidez sao indfgenas da savana.
Como a Arvore, s40 a ema, 0 touro, 0 corcel, todos os filhos bravios da savana. Nenhum ente, porém,
inspira mais energicamente a alma pampa do que o homem, o “gaticho”. De cada ser que povoa o deserto,
torna ele o melhor; tem a velocidade da ema ou de cor¢a, os brios do corcel € a veeméncia do touro.
coragao, fé-lo a natureza franco e descortinado como a vasta coxilha; a paixao que o agita lembra os
{mpetos do furacdo, o mesmo bramido, a mesma pujanga. A esse turbilhdo do sentimento era indispensavel
uma amplitude de coracdo, imensa como a savana.
Tal é 0 pampa.
Esta palavra originéria da lingua quichua significa simplesmente o plaino; mas sob a fria expressao |
do vocabulo esta viva e palpitante a ideia. Pronunciai 0 nome, como o povo que o inventou. Nao vedes
no som cheio da voz, que reboa e se vai propagando expirar no vago, a imagem fiel da savana a dilatar- |
se por horizontes infindos? Nao ouvis nessa majestosa onomatopeia repercutir a surdina profunda e
merencéria da vasta solidao?
Nas margens do Uruguai, onde a civilizacdo j4 babujou a virgindade primitiva dessas regides, perdeu
© pampa seu belo nome americano. O gaticho, habitante da savana, dé-lhe o nome de campanha.
(@.ed, sao Paulo: Aca, 1982.p.23-5) |
babujar: covompes sicer. cestepe ¢savana: vasa planes
bbramido: bero ou ur de uma fer: estrond, ‘merencério: melanciteo.
brio: agricade,nonvadex reboar: fazer 2, reports
coxilha: campina com pequenas eevandes aredondadas
174Nordeste: 0 protesto de Franklin Tavora
Franklin Tavora (1842-1888) nasceu no Ceard e estudou Direito no Rio de Janeiro. Foi um dos mais
polémicos e radicais escritores regionalistas. Rebelou-se, por exemplo, contra a “literatura do Sul’, especialmente
a de Alencar, seu conterrneo, alegando que ele se deixava levar pelos modelos estrangeiros (referéncia aos
romances urbanos) e que, quando se dedicava a romances regionalistas, desconhecia a regido retratada
(referencia a O gaticho).
No prefacio de O Cabeleira, sua obra célebre, Tavora chama a atenco para a necessidade e a capacidade do
Nordeste de criar sua propria literatura, construindo-a a partir do farto material constituido por um passado historico
cheio de heroismo, por costumes tipicos, pela poesia popular.
Em tom ressentido, provavelmente em razao do prestigio de que a regiao Sul gozava na época, em virtude do
plantio de café, o escritor afirma: “Proclamo uma verdade irrecusdvel. Norte e Sul sao irmaos, mas $30 dois. Cada
um hd de ter uma literatura sua, porque o génio de um ndo se confunde com o do outro"
Franklin Tavora, com © Cabeleira, inaugurou um dos veios mais férteis de nossa ficcdo regional. Trouxe 8 tona
problemas até entdo pouco conhecidos em outras regides do pais, introduzindo certos temas — como banditismo,
cangaco, seca, miséria, migrac6es — que foram, mais tarde, retomados e aprofundados por ficcionistas como
Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado.
O Cabeleira
O Cabeleira & uma crénica hist6rica na qual & personagem o famoso cangaceiro José Gomes, o Cabeleira,
que, junto com dois outros malfeitores, Joaquim Gomes, seu pai, e Teodésio, aterrorizou as populacdes das
cidades pernambucanas no século XVIll
A obra oscila entre ficco, relato historico e exposicao analitico-dissertativa.
O fragmento a seguir mostra 0 Cabeleira e seu pai invadindo um povoado e atemorizando a populacao.
Observe como essa cena prenuncia 0 tema do cangaco, que apareceu na literatura e no cinema décadas
depois.
— 0 Cabeleira! © Cabeleira! Grandes desgracas vamos ter, minha gente! — clamou o mal-avisado
roceiro.
Estas palavras cafram como raios mortiferos no meio da multidao que se entregava, incuidosa e con-
fiante, a0 regozijo oficial.
A confusao foi indescritivel. As expansdes da publica alegria sucederam as demonstrag6es do geral ter-
ror. Homens, mulheres, criangas atropelaram-se, correndo, fugindo, gritando, caindo como impelidos por in
fernal ciclone. A fama do Cabeleira tinha, nao sem razio, criado na imaginacao do povo um fantasma sangui-
ndrio que naquele momento se animou no espirito de todos e a todos ameacou com inevitével exterminio.
— Estas com medo, Z6 Gomes, deste poviléu? Parece-me ver-te
fraquear. Por minha béngao e maldigao te ordeno que me ajudes a
fazer 0 bonito enquanto 6 tempo. Nao sejas mole, Zé Gomes; sé va-
Ientao como é teu pai.
Tendo ouvido estas palavras, 0 Cabeleira, em cuja vontade exerci-
tava Joaquim irresistivel poder, fez-se firia descomunal e, atirando-
se no meio do concurso de gente, foi acutilando a quem encontrou
com diabélico desabrimento. Como dois raios exterminadores, de:
creviam pai e filho no seio da massa revolta desordenadas e vertigi-
nosas elipses.
(G20 Paulo: Atica, 1973. p. 23-4)
desabrimento: seve
regoxijo
ena do filme Baile perfumado,
de Paulo Caldas e Lirio Ferreira
175Uae Tat
CAPITULO 6
O romance urbano
Rua I¢de Marco, Sdo Paulo, em 1893,
Pelo fato de tratar das particularidades da vida cotidiana da burguesia, 0 romance
urbano conquistou enorme prestigio entre o priblico dessa classe tanto na Europa
quanto no Brasil. Esse éxito no apenas teve como consequéncia a consolidacao e 0
amadurecimento do romance como género, mas também preparou caminhos para
v00s literdirios mais altos, representados pelos romances urbanos de
Machado de Assis, que surgiram alguns anos depois.
O romance romantico, em vez de tratar de
dia ad
1as antigos, relacionados aos gregos e aos romans, ret
do leitor, pondo em discussao certos problemas e valores vividos pelo proprio puiblico nas cidades. Para
burguesia de entdo, ver o seu mundo retratado nos livros era uma novidade excepcional.
Por essa razao, 0 romance urbano, entre todos os tipos de ron
1no século XIX, € 0 mais lido desde o Romantismo até os dias de hoje.
No Brasil a literatura romantica contou com um numero consideravel de romances urb
sstacam A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, Mem
de Almeida, iciola e Senhora, de José de Alencar.
ce que
produziram na Europa e ni
Nos, entre os quais Se
m sargento de milfcias, de Manuel Antonio
184A Moreninha: a peripécia sentimental
O primeiro romance brasileiro propriamente dito, depois de algumas
tentativas malsucedidas no género, foi A Moreninha (1844), de Joaquim
Manuel de Macedo (1820-1882). Embora formado em Medicina, Macedo
dedicou-se ao jornalismo e a politica. Sua primeira obra, A Moreninha,
conferiu-the ampla popularidade, mantida com a publicacao de outros
romances.
Nessa obra, Macedo utilizou os ingredientes necessérios para sa-
tisfazer o gosto do leitor da época e repetiu-os a exaustao em seus de-
zessete romances posteriores. De modo geral, esses ingredientes sdo a
comicidade, 0 namoro dificil ou impossivel, a divida entre o dever e o
desejo, a revelacdo surpreendente de uma identidade, as brincadeiras de
estudantes e uma linguagem mais inclinada para o torn cologuial
ena do filme A Moreninha, adaptado do
obra de Jouquim Manuel de Macedo.
I,
Her6i romantico e heréi moderno
O enredo do romance A Moreninha se inicia com a
ida de um grupo de amigos — Augusto, Fabricio, Leopoldo
Filipe — a casa da avo de Filipe, numa ilha proxima ao Rio
de Janeiro, onde os rapazes vo passar 0 Dia de Sant’Ana.
Filipe aposta que os amigos iréo interessar-se por suas
primas ou por sua irma, Carolina, que Ia estardo. Augusto
aceita a aposta, € fica combinado que quem perder
escteverd a historia de sua derrota. Mais tarde se vern a
saber que essa historia é a propria obra A Moreninha.
De fato, Augusto apaixona-se pela moreninha
(© herbi romantica geraimente & um ser dotado de
idealismo, honra, forga e coragem. As vezes, poe a vida
em risco para atender aos apelos do coragao ou da just
ga. O indo Peri, de O guarani, é um dos melhores exern-
plos de herdi romantico em nossa literatura.
‘Apés o Romantismo, entretanto, surge 0 herdi pro-
blemético, uma pessoa comum, com limites e dificulda-
des, diferente em tudo de seu antecessor. Apesar dese
perfil do herdi moderno, 0 que vemos hoje nos quadri-
rnhos, nos desenhos e em filmes como Indiana Jones,
‘Senhor dos anéis e Matrix 6, em grande parte, a manu-
tengo do modelo roméntico,
Carolina, mas nao pode realizar seus sentimentos; sete
anos antes — aos treze anos — havia feito um juramento
de fidelidade a uma menina que conhecera na praia. Ele
e a menina haviam-se unido para auxiiar um moribundo,
(© qual, num gesto simbélico, casare-os e fizera com que
trocassem presentes — ele deu a ela um camafeu, €
ela deu a ele uma esmeralda —, além de juras de um
casamento verdadeiro no futuro.
Augusto, agora com vinte anos, confessa seu amor a
Carolina, que considera a atitude do rapaz uma prova de
sua infidelidade amorosa e Ihe pede que va embora, 20
encalgo daquela a quem jurara amor. Ele concorda. Em
seguida
D. Carolina deixou cair uma légrima, e falou ainda, mas jé com
— Sim, deve partir... v4... Talvez encontre aquela a quem jurou amor et
seja perjuro.
— Se eu a encontrassel. é
tao... que faria?
— Atirar-me-ia a seus pés, abragar-me-ia com eles e Ihe diria: “Perdoai-me, per
nao posso ser Vosso esposo! tomai a prenda que me destes.
E 0 infeliz amante arrancou debaixo da camisa um breve, que convulsivament
—O breve verde!... exclamou d. Carolina, 0 breve que contém a esmeraldal....lou Augusto: “recebei este breve que ja ndo devo conservar, porque eu amo outra
is bela e mais cruel do que vés!...” e
patética; ambos choravam e s6 passados alguns instantes, a inexplicdvel
er ao triste estudante.
> eu serei sua... esposa.
.. eu corro... Mas meu Deus, onde poderei achar essa moga a quem nao tornei a ver, nem
onde, meu Deus?... onde?
a deixar correr 0 pranto por um momento suspenso.
— Espere, tornou d. Carolina, escute, senhor. Houve um dia, quando minha mie era viva, em que eu
também socorri um velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a fome de sua famflia e cobri
a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimento também este velho me fez. um presente; deu-me uma
reliquia milagrosa, que asseverou-me ele, tem o poder uma vez, na vida de quem possui, de dar 0 que se
deseja. Eu cosi essa reliquia dentro de um breve; ainda ndo Ihe pedi coisa alguma, mas trago-a sempre
comigo; eu Iha cedo... tome o breve, descosa-a, tire a reliquia e 4 mercé dela talvez encontre sua antiga
amada. Obtenha o seu perdao e me teré por esposa.
— Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto, porém, dé-me, dé-me esse breve!
‘A menina, com efeito, entregou o breve ao estudante, que comegou a descosé-lo precipitadamente.
Aquela reliquia, que se dizia milagrosa, era sua ultima esperanga; e, semelhante ao ndufrago que no
derradeiro extremo se agarra A mais leve tabua, ele se abracava com ela. $6 faltava a derradeira capa do
breve... ei-la que cede e se descose... salta uma pedra... e Augusto, entusiasmado e como delirante, cai aos
‘pés de d. Carolina, exclamando:
—0 meu camafeu!... 0 meu camafeu!..
A senhora d. Ana e 0 pai de Augusto entraram nesse instante na gruta e encontraram o feliz ¢ fervoroso
amante de joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que também por sua parte chorava de prazer.
— Que loucura é esta? perguntou a senhora d. Ana. |
— Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher!... encontrei minha mulher!...
— Que quer dizer isto, Carolina?.
— Ah, minha boa avé!... respondeu a travessa Moreninha ingenuamente: nés éramos conhecidos
antigos.
(Gao Paulo: Atca, sp. 144-6)
breve: escapuério, santnho.
| Um dos tracos que marcam a linguagem romantica em geral, inclusive a prosa, ¢ 0 sentimentalismo exagerado.
Destaque do texto um fragmento em que tal traco se evidencie.
2 O amor impossivel e a mulher idealizada sao também elementos frequentes da prosa romantica, Para o im-
passe amoroso, costuma haver dois tipos de saida: o final feliz, em que o amor supera as barteiras sociais, ou
© final trégico, em que a morte se coloca como tinica saida, adiando para a vida eterna a realizacao amorosa.
Em A Moreninha:
a) Qual é a saida para o impedimento amoroso?
b) Pode-se afirmar que essa saida esté de acordo com as normas sociais ou & contréria a elas? Justifique com
elementos do texto
3. O romance romantico, principalmente o da fase inicial, costuma apresentar a técnica do flashback narrativo, isto
6 um retorno no tempo, para explicar, por meio do passado, certas atitudes das personagens no presente. As
vezes é no flashback que se situa a peripécia sentimental, isto é, 0 fato ou revelacdo capaz de mudar o rumo
da hist6ria.
a) Que fato da obra A Moreninha constitui um flashback?
b) E a peripécia sentimental?
©) Que efeito 0 narrador procura provocar no leitor por meio da peripécia sentimental?
186ee
A vida sexual das jovens no século XIX
(Os modos bem-comportados das personagens de A Moreninha do pouca ideia de como era a vida sexual dos jovens
no século XIX. Para as mocas, a virgindade era supervalorizada ¢ deveria ser mantida até 0 casamento, Para os rapazes,
entretanto, hava uma mentalidade diferente: 0 jover deveria “aproveitar a vida’, namorar varias mogas, frequentar prostibulos,
diverti-se, porque o casamento poderia tra-Ihe essa liberdade, Entretanto, o grande problema para os rapazes da época era
a possiblidade de contrairsiiis, doenga sexual muito comum.
4. Leia 0 boxe ao lado
e responda: As per- Tipos ¢ personagens planas ¢ esféricas
sonagens de A Mo- Nas obras ficcionais, hd dois tipos basioos de personagem: as planas e as esféricas. A per-
reninha sao planas —_ sonagem plana nés a conhecemos exteriormente, pelo que fala © faz. Como os comportamentos:
ou esféricas? esse tipo de personagem costumam ser regulares, nao é dificil prever o seu destino.
‘A personagem estérica, por sua vez, é explorada psicologicamente. Dela conhecemos os
pensamentos, confitos, medos, reflexes existenciais, etc., mas, apesar disso, ela sempre pode
‘Nos surpreender. Personagens roménticas estéricas sao encontradas apenas na fase de transigao
cdo Romantismo para o Realismo.
‘Além das personagens, existe também o tipo, uma personagem menor, espécie de este-
re6tipo ou caricatura lteréria, que age de acordo com a profissdo ou a classe a que pertence.
Seus comportamentos $40 inteiramente previsiveis. Exemplos de tipo so 0 motorista de taxi, 0
balconista, 0 barbeiro, etc.
Manuel Anténio de Almeida: a malandragem em cena
Manuel Anténio de Almeida (1831-1861) nasceu no Rio de Janeiro. De familia
simples, com muita dificuldade cursou Medicina em sua cidade natal; contudo, a profissao
que exerceu foi 0 joralismo.
Como escritor, Manuel Anténio de Almeida produziu uma Unica obra. O des-
compromisso com o sucesso e um grande senso de humor the permitiram criar uma das
obras mais originais do Romantismo brasileiro: Memérias de um sargento de milcias. :
Memérias de um sargento de milicias
Esse romance foi publicado sob a forma de folhetins anénimos, assinados com
© pseudénimo “Um Brasileiro", no Correio Mercantil, onde Manuel Anténio de Almeida
trabalhou como jornalista de 1852 a 1853. ‘Manuel Anténio de Almeida
Provavelmente 0 autor valeu-se da convivéncia com as camadas mais humildes da _ foijomalista do Correio Mer-
populagao carioca do século XIX para construir 0 universo social da obra. anil no fe dean,
Memeérias de um sargento de :
milicias difere da maioria dos roman- Alves iss eaeeesea reine:
ces roménticos, pois apresenta uma ‘Ao contrério do que acontece nos demais romances urbanos, que retratam
série de procedimentos que fogem 0 cotidiano da aristocracia, em Memerias de um sargento de milcias, de Manuel
ao padrao da prosa romantica. © Anténio de Almeida, ganham espaco figuras comuns da sociedade, como 0 bar-
protagonista nao & heréi nem vildo, Bei, a comadre,o delegado, 0 soldado, o vagabundo e outros. |
mas um malandro simpatico que Em nossa literatura predominam romances que retratam as camadas média |
leva uma vida de pessoa comum; @ alta da populagéo. Poucos foram os periodos e os autores que tomeram por
ndo hd idealizagdo da mulher, da ma. classe méca baixa, o operério ou o camponés. Alguns merevem ser lem=
natureza ou do amor, sendo reais b’ados: no século XIX, além de Memérias de um sargento de milicias, ha tamibém.
as situacdes retratadas; a linguagem cartco e Casa de pensdo, de Auisio Azevedo; no século XX, marcaram epoca
aproxima-se da jornalistca, deixando 8 ob"2s Triste fim de Polcarpo Quaresma, de Lima Barreto, Vidas sas, de
de lado a excessiva metaforizacdo Graciliano Ramos, O Quinze, de Rachel de Queiroz, Os corumbas, de Let
que caracteriza a prosa romantica Fontes, Quarto de despejo — Didrio de uma favelada, de Carolina M. de Jesus.
187Oenredo
Anarrativa é situada na época de D. Joao VI, no inicio do século XIX, quando se muda para 0 Brasil o meirinho
(ficial de justica) Leonardo Pataca — pei de Leonardo, o protagonista da historia
No navio, Leonardo Pataca conhece Maria das Hortalicas e a engravide. J8 no Brasil, apos o nascimento e 0
batizado de Leonardo Filho, Maria é flagrada pelo marido com outro homem e foge para Portugal. Com a separacao
do casal, Leonardo é criado pelo padrinho (um barbeiro), com ajuda da madrinha (uma parteira)
‘As travéssuras de Leonardo s8o 0 centro da narrativa e servem tanto para a concatena¢ao de outras
personagens e aces da obra quanto para a descricao de tipos, ambientes e costumes da sociedade carioca do
comego do século XIX.
A série de malandragens de Leonardo so tem fim quando, em virtude de sua ampla experiéncia no mundo
da vadiagem, ele é escolhido por Vidigal (chefe de policia) para ocupar o cargo que vagara na tropa de granadeiros
(soldados).
Alencar e a critica social
Além de ter se dedicado ao romance indianista e ao romance regional, José de Alencar foi também um de
nossos melhores romancistas urbanos. Suas obras, além de conter os ingredientes proprios do romance urbano
romantico—intrigas amorosas, chantagens, amores impossiveis, peripécias —, conseguem analisar com profundidade
certos temas delicados daquele contexto social. Em Senhora so abordados os temas do casamento por interesse,
da independéncia feminina e da ascensao social a qualquer preco. Em Luciola é discutida a prostituicao nas altas
camatias sociais e, como em Senhora, a oposicao entre o amor e o dinheiro, O romance Diva, ao lado de Senhora
€ Luciola, constitui a série “perfis femininos'.
Senhora
Publicada em 1875, Senhora € uma das ultimas obras escritas por Alencar. Ao tematizar
© casamento como forma de ascensao social, 0 autor deu inicio 4 discussao sobre certos
valores € comportamentos da sociedade carioca da segunda metade do século XIX.
Embora Senhora ainda esteja presa ao modelo narrativo roméantico, que considera 0
amor como 0 tinico meio de redimir todos os males, a obra apresenta alguns elementos
inovadores, que anunciam a grande renovacao realista. Entre tais elementos estdo a vigorosa
cittica & futiidade dos comportamentos e a fragilidade dos valores burgueses resultantes do
entdo emergente capitalismo brasileiro e, em certo grau, a introspeccao psicoldgica.
O enredo
Aurélia Camargo é uma moca pobre e 6rfa de pai, noiva de Femando
Seixas. Seixas € um bom rapaz, porém tem o desejo de ascender
rapidamente na escala social e, por isso, troca Aurélia por outra moca
de dote mais valioso. Aurélia passa a desprezar todos os homens, ¢ eis,
que, com a morte de um avé, tomna-se miliondria e, por isso, uma das
mulheres mais cortejadas das cortes do Rio de Janeiro. Como vinganca,
manda oferecer a Seixas um dote de cem contos, mas sem que fosse
revelado 0 nome da noiva, s6 conhecido no dia do casamento. Seixas
aceita e se casam; porém, na noite de nupcias, Aurélia revela-Ihe seu
desprezo. Seixas cai em si e percebe o quanto fora vil em sua ganancia
Vivem como estranhos na mesma casa durante onze meses, mas
socialmente formam o “casal perfeito’. Ao longo desse periodo, Seixas
trabalha arduamente até conseguir obter a quantia que recebera como
sinal pelo “acordo’. Devolve os cem mil-téis & esposa e se despede dela
Nesse momento, porém, Aurélia revela-the seu amor. Os dois, entao
igualados no amor e na honra, podem desfrutar o casamiento, que ainda
ndo havia se consumado,
‘Norma Blum no papel de Aurélia, na novela Senhora, de 1975,Leitura
A seguir voc’ lerd dois textos. © primeiro ¢ um fragmento de Memérias de um sargento de milcias;
segundo é extraido de Senhora e mostra dois episédios do romance: a cena do casamento entre Aurélia e Seixas
ea cena da noite de ntipcias do casal
fia
{[.)] Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada a borda do navio, o Leonardo fingiu que passava
distraido por junto dela, e com o ferrado sapatao assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A
Maria, como se jd esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-Ihe também
em ar de disfarce um tremendo beliscdo nas costas da mao esquerda. Era isto uma declaragdo em
forma, segundo os usos da terra: levaram v resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se
a mesma cena de pisadela e beliscdo, com a diferenga de serem desta vez um pouco mais fortes; €
no dia seguinte estavam os dois amantes tao extremosos ¢ familiares, que pareciam sé-lo de muitos
anos.
Quando saltaram em terra comecou a Maria a sentir certos enojos; foram os dois morar juntos; e
dai a um més manifestaram-se claramente 0s efeitos da pisadela e do beliscao; sete meses depois teve
a Maria um filho, formidavel menino de quase trés palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo,
esperneador e chorao; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar 0 peito.
Eeste nascimento é certamente de tudo 0 que temos dito o que mais nos interessa, porque 0 menino
de quem falamos é 0 herdi desta histéria.
Chegou o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o padrinho houve suas
dividas: 0 Leonardo queria que fosse o Sr. juiz; porém teve de ceder a instdncias da Maria e da
comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. J se sabe que houve
nesse dia fungao: os convidados do dono da casa, que eram todos dalém-mar, cantavam ao desafi
segundo seus costumes; 0s convidados da comadre, que eram todos da terra, dangavam 0 fado. O
‘compadre trouxe a rabeca, que 6, como se sabe, 0 instrumento favorito da gente do offciv. A prinespio,
0 Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocraticos, e propds que se dangasse o minuete da corte.
Foi aceita a ideia, ainda que houvesse
dificuldade em encontrarem-se pares. Afinal
Ievantaram-se uma gorda e baixa matrona, D. Pedro e Leonardo Pataca: entre
mulher de um convidado; uma companheira | real e o imaginario
desta, cuja figura era a mais completa Fundindo realidade e ficcdo, Ruy Castro, em Era nd tem-
antitese da sua; um colega do Leonardo, | po do rei (Editora Objetiva), aproxima a personagem de fioga0
miudinho, pequenino, e com fumagas de | |eonardo Pataca da figura historica de d. Pedro |, No livro, 0s
gaiato, e 0 sacristao da Sé, sujeito alto, magro | dois séo amigos insepardves, inseridos em um enredo cheio
e com pretensdes de elegante. © compadre | de aventuras, poitica e erotismo.
foi. quem 'tocou 6| miiuieie na. rabecas-e 7 Eis a explicagdo do autor sobre como surgi a dela de
afilhadinho, deitado no colo da Marla, | jeunir as duas figuras:
acompanhava cada arcada com um guincho
eum esperneio. Isto fez com que o compadre |
perdesse muitas vezes 0 compasso, e fosse
——$————_—$—$—$————
A mae do Leonardo 0 abandonou ¢ seu pai tam-
logo sumiu. No caso do d. Pedro I, nao se espe-
obrigado a recomecar outras tantas. rava que o rei ou a rainha ficassem verificando se 0 |)
filho estava estudando, conferindo
Depois do minuete foi desaparecendo a ofan, la fs deli card ort
ceriménia, ea brincadeira aferventou, comose tores. Entéo é um tipo de criagdo
dizia naquele tempo. Chegaram uns rapazes
parecida entre eles, tanto que se
de viola e machete: 0 Leonardo, instado pelas tentenderam imediatamente, na fie-
senhoras, decidiu-se a romper a parte lirica gio. E acho que interiormente eles
do divertimento. Sentou-se num tamborete, tinham muitas coisas em comum,
em um lugar isolado da sala, e tomou uma como a coragem, 0 senso de aven=
viola. Fazia um belo efeito comico, vé-lo, em tura, a curiosidade.
trajes do offcio, de casaca, cal¢ao e espadim,
acompanhando com um monétono zum-zum
(ola de S. Paulo, 7/11/2002)
_189fnas cordas do instrumento o garganteado de uma modinha patria. Foi nas saudades da terra natal que
ele achou inspiragao para o seu canto, e isto era natural a um bom portugués, que o era ele. [...]
© canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se a brincadeira, foi 0
adeus as ceriménias. Tudo daf em diante foi burburinho, que depressa passou a gritaria, e ainda mais
depressa a algazarra. [...]
(Manuel Antnio de Almeida. Memerias de um sorgerto de mils. S20 Paulo: Ac, 1976. p 9-11)
derradeiro: tina, instar: pedr,soictar, insist. rebate: sina, aninco.
tenojo: erjoo, ndusea, sminuete: aiiga danga francesa com rabeca: nome aniquado do voir.
fungS0: espeticuo, ‘mavrmentos deiosdos @equibracos. Tejo: ro de Portugal
190
Os convidados, que antes Ihe admiravam a graca peregrina, essa noite a achavam deslumbrante,
compreendiam que o amor tinha colorido com as tintas de sua palheta inimitavel, a ja tao feiticeira
beleza, envolvendo-a de irresistivel fascinagao.
— Como ela ¢ feliz! — diziam os homens.
— E tem razao! — acrescentaram as senhoras volvendo os olhos ao noivo.
‘Também a fisionomia de Seixas se iluminava com 0 sorriso da felicidade. © orgulho de ser 0
escolhido daquela encantadora mulher ainda mais Ihe ornava o aspecto jé de si nobre e gentil.
Efetivamente, no marido de Aurélia podia-se apreciar essa fina flor da suprema distingao, que
nao se anda assoalhando nos gestos pretensiosos e nos ademanes artisticos; mas reverte do intimo
com uma fragrancia que a modéstia busca recatar, e no obstante exala-se dos seios d’alma.
Depois da ceriménia comecaram os parabéns que é de estilo dirigir aos noivos e a seus parentes.
lJ
Para animar a reuniao as mo¢as improvisaram quadrilhas, no intervalo das quais um insigne
pianista, que fora mestre de Aurélia, executava os melhores trechos de éperas ento em voga.
Por volta das dez horas despediram-se as familias convidadas.
(1
Aurélia ergueu-se impetuosamente.
— Entdo enganei-me? — exclamou a moca com estranho arrebatamento. — O senhor ama-me
sinceramente e nao se casou comigo por interesse? ee
Seixas demorou um instante o olhar no sem-
blante da moga, que estava suspensa de seus lébios,
aratbeber the at slaves: O dilema moral vivido por Seixas em Senhora,
dividido entre 0 casamento por amor @ 0 casamen:
‘ode conveniéncia, ainda é um tema abordado nas
novelas de TV e no cinema da atualidade,
Amor e dinheiro no cinema
— Nao, senhora, nao enganou-se, disse afinal
com o mesmo tom frio e inflexfvel. Vendi-me; per-
tengo-lhe. A senhora teve o mau gosto de comprar um
marido aviltado; aqui o tem como desejou. Podia ter tema 6 explorado, por exemplo, em fimes
feito de um cardter, talvez gasto pela educagao, um 000 Proposta indecent, de Adrian Lyne, O amor
ccusta caro, de Joc! © Ethan Coen, ¢ Match Point
(Ponto final), de Woody Allen.
homem de bem, que se enobrecesse com sua afeica0;
preferiu um escravo branco; estava em seu direito,
pagava com seu dinheiro, e pagava generosamente.
Esse escravo aqui o tem; é seu marido, porém nada
mais do que seu marido!
(ose de Alencar. Senhora. Sao Paulo: Saraiva, 2007. p.75 € 127)
‘ademane: aceno, ret, qualquer gosta ou comportamentoaftado,
arrebatamento: exas¢io, aroubo, comportanento precintado,
aviltado: desonrado,rebabado, envied,
insigne: destacado, famoso, lustre.
‘Ao obstante: apesar disso, contudo. Cena do filme Match Point.en
Malandragem: serd esse o “jeitinho brasileiro”?
‘Segundo o esoritor Mério de Andrade, Leonardo Pataca é uma personagem se-
methante ao picaro espanhol, um tipo de malandro simpatico e brincalnéo que vive &
margem da sociedade, sem nenhum vinculo, sempre & procura de novas aventuras.
No século XX, 0 proprio Mério de Andrade daria continuidade a tradigao da
‘malandragem com sua personagem ireverente Macunaima, na opiniao dele oretrato
do brasilero. Em 1978, Chico Buarque de Hollanda resgatou essa tradicao com a
pega teatral Opera do malandro, que também foi levada ao cinema, sob diregao de
Ruy Guerra,
Sera que a malandragem é mesmo uma caract
i
8
i
ica do jeito brasileiro de ser?
Ensaio da peca Opera do Malandro.
I. Os dois textos apresentam em comum 0 ambiente urbano do Rio de Janeiro do século XIX € 0 relacionamento
entre homem e mulher.
a) Que classe social cada um dos textos retrata?
b) Que impo:
ncia ou significado tem 0 casamento para as personagens do texto | e para as do texto II?
2. Nas duas obras, as personagens — de um lado, Maria das Hortalicas e, de outro, Aurélia e Seixas — transgridem
as regras saciais ou as regras do amor romantico.
a) Qual a transgressao de Maria das Hortalicas?
b) Qual é a transgressao de Aurélia e Seixas?
Nos dois textos, ocorre uma festa que revela diferencas de comportamento das classes sociais retratadas. Com-
pare as festas e responda
a) Por que a sugesto de Leonardo de se dancar 0 minuete é inadequada ao seu grupo social?
b) Que diferencas hé entre as festas, considerando-se a participacao dos convidados?
4. Na segunda parte do texto II, Aurélia, na noite de nipcias, revela ao marido o desprezo que tem por ele. Inter.
prete e explique estas afirmacdes de Seixas:
a) "Podia ter feito de um cardter, talvez gasto pela educacao, um homem de bem, que se enobrecesse com
sua afeicao; preferiu um escravo branco”
b) “Esse escravo aqui o tem; é seu marido, porém nada mais do que seu marido!”
5. No texto II, Aurélia, considerando-se sua condicao de mulher e a pouca idade que tinha, apresenta um com-
portamento rato naquela sociedade.
a) Em que 0 comportamento de Aurélia difere do das demais mocas?
b) A que se deve essa diferenca?
. Senhora e Memérias de um sargento de milicias so obras consideradas precursoras do Realismo — movi-
mento literdrio que surgiu na segunda metade do século XIX e se caracteriza pela objetividade e pela critica
ostensiva & sociedade burguesa — em virtude do retrato mais direto, crtico e objetivo que fazem da realidade.
Contudo, as duas obras ainda estao presas a certas convencdes roménticas.
a) Qual dos dois romances foge mais as convengdes roménticas, tais como linguagem metaférica e idealizacdo
do amor e da mulher?
b) Qual dos dois romances aprofunda mais a critica & sociedade, ja apresentando elementos proprios da ciitica
realista? Justifique.
191CAPITULO 9
A prosa gotica
Cena do filme A noiva cadaver
Contrapondo-se aos valores racionalistas e materialistas da sociedade burguesa, certos escritores
do Romantismo criaram uma literatura fantasiosa, identificada com um universo de satanismo,
mistério, morte, sonho, loucura e degradagao. Trata-se da literatura de tradigao gética —
conhecida também como maldita —, que até hoje encontra adeptos na literatura,
na muisica, no cinema e no estilo de vida.
oberta do pals, floresceu entre nés
a sintonizada com a obra
laire. Trata-se da prosa
Jo e Bemardo Guimaraes.
Ao lado da rica producao do romance roméntico, que se voltou a d
um tipo de prosa que, apesar de ter tido pouca repercussao no Brasil da época, est
ie importantes escritores estrangeiros, como Edgar Allan Byron e Charles
ca, cujos principais representantes, no Brasil, foram Alvares de Aze
Apouca repercussao dessa literatura & época do Ro
he foi atribuida. Isso primeiramente porque se colocava a margem dos
intismo e, em segundo lugar, porque o mundo que retratava tar
se & qualificacao de “marginal” ou “maldita’
abelecidos pelo proprio
no
mantismo deve-
ituava a mr
argeme do materialismo da sociedade capitalista. © sonho, a loucura, 0 vicio, 0 sexo desenfreado, 0 macabro e formas
de transgressao variadas povoam o universo gético, que valoriza as zonas escuras e antilégicas do subconsciente,
onde se fundem instintos de vida e morte, libido e terror.
Mais tarde, outros escritores viriam se somar a essa tendéncia, como o dramaturgo Oscar Wilde, o poeta
francés Mallarmé e os poetas brasileitos Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e Augusto dos Anjos.
Liga-se a tradigao gotica lterdria uma longa producao de contos de mistério ou de terror e uma vasta producao
cinematografica, constituida principalmente de filmes dedicados ao vampirismo. Na miisica, varias tendéncias ou
subculturas, como 0 heavy metal, o punk e 0 gético propriamente dito, prestam reveréncia a essa literatura do
século XIX, da qual tomam emprestados temas macabros, satanismo e o mal-estar diante da civilizacéo burguesa.
0 gético na masica
Em 1979, jomaistas ingleses empregaram o termo gético para designar uma nova tendéncia musical, cujo icone
Raquele momento era a banda Bauhaus, que fazia sucesso com a misica “Bela Lugosi's dead”. Contudo, as origens da
tendéncia gética na misica situam-se bem antes, no inicio da década de 1970, com a musica
de The Velvet Underground & Nico, The Doors, David Bowie, Banshees, Stooges e T-Rex, entre
outros.
Nos anos 80 € 90, muitos outros grupos ligaram-se aos gétioos, como Siouxsie, The Cure,
Cinema Strange, London after Midnight
Na atualidade, varias bandas internacionais, como Bloody Dead and Sexy, The Chants of
Maldoror, Joy Disaster, A Covenant of Thoms, Hatesex, Scarlet Remains, prendem-se a essa
tradigao.
O Brasil também tem sua expresso gética, em grupos como Elegia, Tears of Blood, Peca-
ores, In Auroram, Plastique Noir, Z:gurate, Banda Invsivel, Enjoy, sma, Danga das Sombras
€ Orquideas Francesas, entre outros.
ain
Neal PrestonCorbi
Dovid Bowie.
Alvares de Azevedo: a prosa marginal
O gético manifestou-se tanto na poesia quanto na prosa de Alvares de Azevedo, mas foi principalmente na
prosa que ganhou maior expresso. A tendéncia aparece na face Caliban da poesia do autor, presente na obra de
contos Noite na taverna e na peca teatral Macdrio.
As situacées relatadas em Noite na taverna provavelmente nao tém nenhum vinculo direto com as experiéncias,
de vida do escritor, morto precocemente aos 21 anos. Sao fruto da imaginacao fantasiosa do quase adolescente
Alvares de Azevedo e da influéncia exercida sobre ele por Lord Byron e provavelmente pelo romance gotico
O castelo de Otranto, de Horace Walpole, e pelos contos fantasticos de E. A. Hoffmann e Edgar Allan Poe.
Noite na taverna: o relato do absurdo
Noite na taverna pode ser considerada uma obra de contos, apesar de haver um fio narrativo que une todas
as historias,
No primeiro capitulo da obra, um narrador em 3# pessoa faz a apresentacdo do ambiente: uma taverna,
povoada de bébados e loucos, na qual, a uma mesa, alguns homens conversam e bebem
Excitados pelo alcool, cada um deles conta um episédio de sua vida. Esses epis6dios constituem capitulo,
que levam o nome do narrador-personagem.
As historias narradas sdo todas fantasticas e envolvem
Géticos na Internet
acontecimentos tragicos, amor e morte, vicios e crimes, e Conhega mais sobre a subcultura gética hoje e bai-
todos os narradores demonstram um forte pessimismo xe textos de esoritores géticos nos sites:
diante da vida. © www.gothicstation.com.br
Os temas mais excéntricos ao gosto romantico predo- | www.geocties.com/loresdomal/
minante sao encontrados nessas narrativas: violéncia © flog.cickgratis.com.br/2yb856/dat-200802
sica e sexual, adultérios, assassinatos, incestos, necrofiia, « ty. geocitis.com/sivatext/teratural him
antropofagia, corrup¢ao. a
213Leitura
Capitulo tt |
pee eee al
6, Roma € a cidade do fanatismo e da perdigo: na
aleova do sacerdote dorme a gosto a amésia, no leito da vendida 0 gético nos quadrinhos
se pendura 0 crucifixo livido. E um requintar de gozo blasfemo,
que mescla o sacrilégio 4 convulsio do amor, 0 beijo lascivo a say maxima do gotico é a série Sandman,
embriaguez da crenga! de Neil Gaiman. Em Fébulas e reflexes, por
Era em Roma. [...] A noite ia bela. Eu passeava a sés pela exemplo, em mais uma de suas jomadas
ponte de... As luzes se apagaram uma por uma nos palécios, 28 palo infnita, o Sanhor des Sonhos nos leva
Tuas se faziam ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de a conhecer os sogredios de dterentes seres @
nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitéria e _personagens histo-
escura. Era uma forma branca. A face daquela mulher era como cos, numa mistura
de uma estétua palida a lua. Pelas faces dela, como gotas de uma | ge contos. maravi
taca caida, rolavam fios de lagrimas. thosos, fatos reais,
Eu me encostei a aresta de um paldcio. A visdo desapareceu no rritologia clssica €
escuro da janela... e daf um canto se derramava. Nao era sé uma | fantasia paga.
voz. melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi
ump como gemer de insania: aquela voz era sombria como a do
vento a noite nos cemitérios, cantando a nénia das flores murchas
da morte.
Nas historias em quadrinhos, a expres-
ce aver
Saray Toss
er reoronoe
9000
ease
Depois 0 canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Nao
viu ninguém: saiu, Eu segui-a.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas, enfim ela parou: estévamos num campo.
Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre 0 ervagal. Ela ajoclhou se. Parecia solugar: em |
toro dela passavam as aves da noite. |
Nao sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sds no cemitério. Contudo a criatura |
palida nao fora uma ilusdo: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz.
© frida rewtes-afoce lactis dovmaO Eva GhusaranFind ving febee: Novmet delitio pasaava e |
repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles solucos, e todo aquele devaneio se perdia num |
canto suavissimo... |
Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava; no sono da saciedade me |
vinha aquela visio.
Uma noite, e apés uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Barbora. Dei um tiltimo olhar
aquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascivia nos labios timidos, gemendo ainda nos |
sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saf. Nao sei se a noite era limpida ou negra; sei apenas que a. |
cabega me escaldava de embriaguez. As tacas tinham ficado vazias na mesa: aos labi |
eu bebera até a tiltima gota do vinho do deleite. |
Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre |
as vidracas de um templo. As luzes de quatro cirios batiam num caixao entreaberto. Abri-o: era o de uma |
moga. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez livida e embagada, 0 |
vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defuntal... e aqueles tragos todos me lembraram uma ideia |
perdida... Era 0 anjo do cemitério! Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei_ |
0 cadaver nos meus bracos para fora do caixao. Pesava como chumbo... (...] Tomei-a no colo. Preguei-lhe |
mil beijos nos lébios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudério, despi-lhe 0 véu e a capela como 0 noivo os |
despe a noiva. [...] 0 g0z0 foi fervoroso — cevei em perdi¢ao aquela vigilia. A madrugada passava jé frouxa |
nas janelas. Aquele calor de meu peito, a febre de meus labios, a convulsao de meu amor, a donzela pélida |
parecia reanimar-se, Subito abriu os olhos empanados [...] Nao era j4 a morte; era um desmaio. [...] f
Nunca ouvistes falar da catalepsia? E um pesadelo horrivel aquele que gira ao acordado que emparedam
num sepulero; sonho gelado em que se sentem os membros tolhidos, e as faces banhadas de lagrimas |
alheias, sem poder revelar a vida! }
s daquela criatura
214‘A moga revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos bracos
coberta com seu sudério como uma crianga. Ao aproximar-me da porta topei um corpo, abaixei-me, olhei
era algum coveiro do cemitério da igreja que af dormia de ébrio, esquecido de fechar a porta...
Caminhei. Estava cansado, Custava a carregar 0 meu fardo; e eu sentia que a moca ia despertar.
‘Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforgo...
Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que the saiu da boca foi um grito de medo...
Dois dias e duas noites levou ela de febre assim... Nao houve sanar-Ihe aquele delirio, nem o rir do
frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delirio.
A noite saf; fui ter com um estatudrio que trabalhava perfeitamente em cera, e paguei-Ihe uma estatua |
dessa virgem.
Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de marmore de meu quarto, e com as maos cavei af um timulo.
‘Tomei-a entao pela tiltima vez. nos bragos, apertei-a a meu peito muda e fria, beijei-a e cobri-a adormecida do
sono eterno com o lengol de seu leito. Fechei-a no seu ttimulo e estendi meu leito sobre ele.
Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam... Um dia o estatudrio me trouxe a sua
obra. Paguei-tha e paguei o segredo.
~ Nao te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entrevistes pelo véu do meu cortinado?
Nao te lembras que eu te respondi que era uma virgem que dormia?
— E quem era essa mulher, Solfieri?
— Quem era? Seu nome?
— Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho queima assaz os labios? Quem
pergunta o nome da prostituta com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos, quando nem hé dele mister
por escrever-lho na lousa?
Solfieri encheu uma taga e bebeu-a. la erguer-se da mesa quando um dos convivas tomou-o pelo
brago
— Solfieri, ndo é um conto isso tudo?
Pelo inferno que nao! Por meu pai que era conde e bandido, por minha mae que era a bela Messalina
das ruas, pela perdicdo que nao! Desde que eu proprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova
de terra, eu vo-lo juro! — guardei-the como amuleto a capela de defunta. Ei-la!
Abriu a camisa, e viram-Ihe ao pescogo uma grinalda de flores mirradas.
— Vede-a? Murcha e seca como o cranio dela!
(Avares de Azevedo, Noite na toverna, $30 Paulo: Martins, 1965. p.38)
Sie amacanee Oo nina
a oes E ampia a filmografia que deve tributos a tradigao gética. As
teste moi.
cicuta: tipo de planta, principais referéncias s€0 Nosferatu, uma sinfonia de horror (1922),
cio: crane va de cera de F. W. Mumau, e Drdcula (1931), de Tod Browning, com 0 ator
a ee ee Bela Lugosi, que abriram a tradigdio vampiresca para outros classi-
‘empanado: ofuscado, bapo. cos, como Nosferatu, o vampiro da noite,(1979),
frenesi: again ner, srabatanento, de Werner Herzog, ¢ Drdcula de Bram Stocker
ee (1992), de Francis F. Coppola, entre outros.
pr Opria de cadaveres. § Mas também se prendem a tradig¢ao gotica
nae fimes mais poéticos, como Blade Runner (1982),
ficledadecesado desatsigiodequem de Ridley Scott, Asas do desejo (1987), de Win
‘38 saciou. Wenders, Matrix 1 (1999), de Andy Wachowski
sudiio:moraneasonnieo cai 2 Lary Wechoweld, rite cotton,
No campo do desenho, destacam-se Es-
tranho mundo de Jack (1993), de Henry Selick,
A noiva cadtéver (2008), de Tim Burton Mike
Johnson,
Cena de Blade Runner.
2151. A narrativa se desenvolve numa atmosfera de expectativa € surpresas, criada tanto pelo ambiente em que se
desenrolam as acdes quanto pelo emprego de algumas técnicas de suspense.
a) Faca um levantamento dos ambientes em que se situam as acdes de Solfieri, do inicio ao fim do conto, €
indique as caracteristicas que, de modo geral, eles apresentam
b) Como 0 narrador cria suspense 20 relatar sua saida da capela?
2. 0 conto lido apresenta a técnica da narracao dupla, isto é, Solfieri narra aos amigos, na tavera, sua propria
historia. Terminada a narracao da personagem, um narrador desconhecido relata em 3% pessoa o que esta
acontecendo na taverna entre Solfieri seus amigos. Identifique 0 pardgrafo a partir do qual surge a segunda
narrativa.
O ideal de beleza feminina presente nos textos de inspiracao byroniana em geral difere bastante dos padres
atuais e nacionais de beleza. Releia o segundo paragrafo do texto e destaque as palavras e expressOes utilizadas
para caracterizar a mulher amada de Solfier.
Uma das caracteristicas desse tipo de narrativa — por sinal chocante e surpreendente — pode ser verificada no
episédio em que Solfieri adentra a capela do cemitério e encontra a mulher amada.
a) Que fato inusitado ocorre entre os dois?
b) De que modo a propria narrativa desfaz o impacto produzido por esse fato?
5S.
Em vez de uma visdo légica e coerente da realidade, a narrativa gotica prefere sondar as zonas obscuras do
subconsciente, beirando, portanto, os limites do sonho e da loucura. Identifique no comportamento de Solfieri
@ de sua amada atitudes que seiam exemplo dessa inclinacao para 0 inconsciente.
6. Os seguintes fragmentos do conto dizem respeito a Solfieri, o narrador-protagonista da historia:
© “Nos beijos das mulheres nada me saciava'
“Uma noite, e apés uma orgia”
© "sei apenas que a cabeca me escaldava de embriaguez”
© “Por meu pai que era conde e bandido, por minha mae que era a bela Messalina das ruas'
Que visao de mundo eles expressarn? Que perspectiva de vida Solfieri tem?
7. Os contos de Noite na taverna sao uma referéncia importante na cultu
cartunista Laerte cria humor a partir dessa referéncia:
brasileira. Veja, por exemplo, como 0
Que aspectos de Noite na taverna e da literatura gética em geral Laerte ironiza nessa tre
216AY
CAPITULO 3
480 e reflexao
Regéncia verbal e nominal
Eé Construindo 0 conceito
Leia esta tira, de Gilmar:
(Gilma: Barbosa, Para ler quando o chefe nao ester alhando, Sao Paulo: Devi, 2004. p18)
Na lingua portuguesa, hé verbos e nomes que exigem a presenca de outros termos para formar sentido.
1. Compare as frases a seguir:
J4 pensou em engavetar, Oscar?
J4 pensou em engavetar a preguica, Oscar?
4) Qual delas tem sentido mais preciso? ,
b) O verbo engavetar é transitivo direto. Em uma das frases acima, hé um termo que completa o seu sentido.
Qual é esse termo?
2. No 38 quadrinho da tira, hd uma locucao verbal, cujo verbo principal imaginar transitive direto. Indique o
termo exigido por ele.
Observando a postura corporal e a expressdo facial de todas as personagens, levante hipéteses: Por que a
secretéria comenta ‘Ia pensou em engavetar a preguica, Oscar?", com uma expresséo irtnica?
4. Para gerar humor, no 3* quadrinho, o autor surpreende o leitor com a incluso de uma nova personagem, ou
seja, esperava-se a vo7 da secretaria e n€o a de outra pessoa. Deduza: Considerando os paps sociais das tres
personagens e a linguagem no verbal, por que a mudanca de interlocutor mudou a sua rea¢ao?
Ee Conceituando
Ao responder aos exercicios anteriores, vocé deve ter observado que ha termos que exigem a presenga de
outro para formar sentido. O verbo engavetar, por exemplo, exigiu a presenca do termo a preguica; a locusso
verbal tente imaginar exigiu 0 tetmo um bom motivo,
S41,Quando um termo — verbo ou nome ~ exige a presenca de outro, ele se chama regente ou subordinante; os
que completam a sua significacao chamam-se regidos ou subordinados. Observe a regéncia nos dois exemplos:
Sejctarbémumadotadordeteto —Sepeahpe org br
‘Nem todo mundo acredita em disco voador",
vt or
termo regente _termo regido
‘Apoio a crianca com cancer”,
substantivo
termo regente —_termo regido
No primeiro caso, 0 termo regido em disco voador completa o sentido do verbo acreditar; no segundo caso,
a crianga com céncer completa o sentido do nome (substantivo) apoio.
Assim:
Quando o termo regente é um verbo, ocorre regéncia verbal
Quando o termo regente & um nome — substantivo, adjetivo ou advérbio
ocomre regéncia nominal
Regéncia verbal
HA verbos que admitem mais de uma regéncia. Geralmente a diversidade de regéncia corresponde a uma
diversidade de significados do verbo. Por exemplo, o verbo agradar, no sentido de “acariciar’, 6 transitivo cireto,
enquanto no sentido de “satisfazer, contentar" é transitivo indireto. Observe:
‘A mie, comovida, agradava 0 filho choroso.
vr op
Suas palavras agradaram ao pibli
vr oF
Certos verbos, no entanto, so emipregados ern acepgo semnelhante com mais de uma regéncia, Veja um exemplo
A voluntéria distribuia leite, ,3s criangas.
vir. = oD
A voluntaria distribuia leite, com as criancas.
VTD OD adj. adverbial
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