Fenomenologia do Tédio em Filosofia
Fenomenologia do Tédio em Filosofia
Possui Bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (2000), mestrado em Filosofia pela
Universidade Federal da Paraíba (2002), doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2008) e pós-doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2018). Atualmente é professor
associado da Universidade Federal da Paraíba. Desenvolve estudos com o pensamento de Nietzsche e Heidegger,
atuando nas áreas de metafísica, fenomenologia, hermenêutica e estética. Dentro dessas áreas, trabalha com os
seguintes temas: verdade, linguagem, arte, crítica à metafísica e à subjetividade moderna. É também coordenador do
grupo de pesquisa “Metafísica e Linguagem”. Foi Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
(Mestrado) da UFPB no ano de 2016 e atualmente exerce a função de Coordenador do Mestrado em Filosofia da
UFPB desde abril de 2020.
DOI: 10.25244/tf.v14i1.3534
Resumo: O artigo procura desenvolver uma fenomenologia do tédio a partir de Kierkegaard e Heidegger,
partindo, principalmente, de um exame das categorias de possibilidade e instante e procurando ver de que
forma essas duas categorias convergem no pensamento destes dois pensadores. Desse modo, o tédio será
visto como a perda da paixão da possibilidade e como o recusar-se do instante, visando, com isso,
estabelecer uma conexão fundamental entre o tédio, o esvaziamento de todo sentido e o tempo. O
Fenômeno do tédio não será examinado nem como uma vivência psicológica nem como algo fortuito ou
casual, mas como uma variação fundamental da angústia, segundo Kierkegaard, e como uma disposição de
humor fundamental (Grundstimmung) do Dasein, segundo Heidegger.
Palavras-chave: Kierkegaard. Heidegger. Tédio. Instante. Possibilidade.
Abstract: The article seeks to develop a phenomenology of boredom from Kierkegaard and Heidegger,
starting mainly from an examination of the categories of possibility and instant and trying to see how these
two categories converge in the thoughts of these two thinkers. In this way, boredom will be seen as the
loss of the passion of possibility and as the refusal of the instant, aiming, with this, to establish a
fundamental connection between boredom, the emptying of all meaning and time. The phenomenon of
boredom will be examined neither as a psychological experience nor as something fortuitous or casual, but
as a fundamental variation of anxiety, according to Kierkegaard, and as a fundamental mood disposition
(Grundstimmung) of Dasein, according to Heidegger.
Keywords: Kierkegaard. Heidegger. Boredom. Instant. Possibility.
Minha alma perdeu a possibilidade. Se tivesse que pedir algo para mim, não
pediria nem riquezas nem poder, senão a paixão da possibilidade, o olho que
aqui e ali, eternamente jovem, eternamente ardente, vê a possibilidade. O gozo
decepciona, a possibilidade não. E que outro vinho é tão espumoso, tão cheio
de perfume, tão embriagador! (Kierkegaard, Diapsalmata, p. 64)
O conceito de angústia não é tratado quase nunca na Psicologia, e, portanto,
tenho de chamar a atenção sobre sua total diferença em relação ao medo e
outros conceitos semelhantes que se referem a algo determinado, enquanto que
a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade.”
(Kierkegaard, O Conceito de Angústia, § 5, p. 45)
Desta feita, o tempo que bane o ser-aí anuncia-se enquanto tal no tédio, dá-se
simultaneamente a conhecer como o propriamente possibilitador. Mas isto que
o que bane enquanto tal, o tempo, dá a conhecer em verdade como justamente
recusado; o que ele justamente apresenta como algo quase desaparecido, como
um possível e apenas como tal... o que ele em última instância libera dando a
conhecer não é nada menos do que a liberdade do ser-aí enquanto tal. (Heidegger, Os
Conceitos Fundamentais da Metafísica, p. 176.)
paixão da possibilidade, de modo a assim se tornar indiferente a ela, ao ponto de poder dizer que
toda possibilidade é uma possibilidade qualquer. O tédio, a volúpia do aborrecimento humano,
conforme dizia Brás Cubas, faz o homem habitar precisamente nessa possibilidade que não tem
mais peso, na possibilidade tornada vazia. Assim compreendido por Kierkegaard, o tédio não é
uma disposição comum, uma náusea e um sentimento de vazio, de paralisia momentânea que
poderia ser atenuado por outras disposições. Antes, se configura como uma disposição
fundamental da existência, que Heidegger irá compreender como tédio profundo. Em uma
passagem famosa, diz Kierkegaard:
O tédio, no entanto, não se caracteriza por uma falta de vontade, conforme pode parecer
sugerido nessa passagem, pois atravessa o indivíduo entediado uma “vontade de qualquer coisa”,
que é uma “vontade de coisa nenhuma”. Isso parece indicar a presença de uma vontade de tudo
esvaziar, de tornar sem peso isso para o que se tende, ou seja, a possibilidade. O tédio aparece
também como um ocupar-se afanado, como aquilo que permite passar o tempo, distrair-se, como
uma espécie de fuga e temor do nada. O fazer repetidamente e mecanicamente algo como
distração. Mas o que significa distrair-se? E a distração é distração de que? A palavra distração
vem do latim distractio-onis, separação. No dicionário o sentido é de falta de atenção em relação ao
mundo exterior, irreflexão, e também de passatempo, divertimento.
Mas, por que então o sentimento de aborrecimento, de cansaço? Por que não se regozijar
com o esvaziamento de tudo e o peregrinar sem peso pelas mais diversificadas possibilidades,
com o poder tudo experimentar e poder trocar de trajes e máscaras ao seu bel-prazer? Por que
esse tipo de distração muitas vezes aborrece, em vez de distrair? Talvez possamos ver como
testemunho dessa distração aborrecida o homem erudito, conforme é descrito por Nietzsche,
cuja atividade é um modo de distrair-se que constitui a sua própria enfermidade, enquanto
excesso de consciência histórica, que o arrasta em seu enxurro pela diversidade de épocas e
costumes, dispersando-o completamente na torrente do devir e levando-o a não acreditar mais
em nada.
Parece ser esse também o caso de Stavróguin, do romance “Os Demônios” de
Dostoiévski, que afirmava não existir distinção entre o bem e o mal, sendo essa distinção,
segundo ele, somente fruto de um preconceito que aprisionava o homem nos padrões da
moralidade e que, sendo assim, para provar a sua liberdade, o homem precisaria experimentar
todo tipo de ignomínia, entregando-se às múltiplas possibilidades da devassidão, para mostrar que
nenhuma delas poderia ser reprovável e que, sendo assim, ao homem poderia ser permitido tudo
fazer. No entanto, ao proceder assim, conforme o seu próprio testemunho, já não era mais
possível suportar a sua própria liberdade, a sua entrega desenfreada à sua própria libertinagem, à
retirada de peso de todos os acontecimentos do seu existir, que se tornara então volátil, frouxo,
sem amarras. Tanto num caso como no outro, portanto, o que se verifica como resultado é o
sentimento de fastio, de aborrecimento, de declínio da vida. Mas, por quê? Que estranho
fenômeno se passa aí com a vontade, que se entedia ao querer tudo esvaziado de sentido e assim,
ao querer nada? E não poderíamos também dizer, pondo antes o que aqui aparece como efeito,
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que tal ação já é produto do tédio? O tédio, desse modo, não cresceria ainda mais, ao alimentar-se
de si mesmo?
Observamos, de início, que o querer tudo, enquanto querer demais, leva à paralisia do
querer. Mas como o querer pode estar paralisado se ele parece estar na maior atividade de tudo
querer? Esse querer que quer demais, na verdade, não quer a possibilidade, pois procura fazer
com que todo possível se perca na torrente do devir, escorra na vacuidade e se mostre como
aquilo que nunca pode fixar um destino e ser objeto de decisão. No tédio nada se decide, pois se
protela longamente todo fazer, tornando a vida um fazer que procura tudo desfazer, ao fazer sem
paixão. Atua aí, portanto, uma grande voracidade, uma fome que nunca se sacia, conforme
descreve Kierkegaard: “Se algo me falta é paciência para viver. Não sou capaz de ver a grama a
crescer e, não podendo fazê-lo, não me apetece em absoluto vê-la... costuma-se dizer que Nosso
Senhor sacia antes o estômago que os olhos; não consigo percebê-lo: meus olhos estão saciados e
fartos de tudo e, contudo, estou faminto.” (KIERKEGAARD, 2006, p. 50)
Nessa fome, nessa insaciedade, encontra-se, portanto, o problema da história, da ciência,
da ética, da metafísica, em suma, o problema do homem e de sua existência. Com o tédio nos
sobrevém o sentimento da totalidade vazia, esvaziada de sentido, o pathos do em vão, o
emsombrecimento do mundo, o desatrelamento da terra do seu sol, da existência do seu
elemento, ou seja, da possibilidade. A possibilidade está aí, mas, no entanto, a vida não gira mais
em torno dela, pois a possibilidade não mais entusiasma, não mais anima; antes a possibilidade
passa a girar em torno da vida, melhor dizendo, passa a girar em torno de uma vida esvaziada da
própria possibilidade da possibilidade. Por isso que toda possibilidade passa a ser qualquer uma,
ou seja, nenhuma. Aqui não vigora a realidade da liberdade enquanto possibilidade antes da
possibilidade, pois o homem não se encontra aqui livre para a possibilidade, para ir ao encontro
do que é apenas possível. O “apenas”, contudo, não é aqui deficiência e falta, mas, antes, fartura,
superabundância.
Por não encontrar-se o homem livre para a possibilidade, ela passa a entediá-lo, pois
sempre retorna como o que não entusiasma e não encanta, tornando-se longo, distendido, parado
o seu tempo. Mas como? Tudo agora não se confundiu ainda mais? Fala-se agora da possibilidade
e do seu tempo. A possibilidade possui um tempo? Possibilidade e tempo são coisas distintas?
Ou a possibilidade é o próprio tempo? Mas que tempo é esse tornado longo? Há um tempo que
não seja longo, mas curto? Esse tempo curto é o instante? E o que é instante? Há na percepção
do instante tédio ou angústia?
“A minha alma perdeu a possibilidade”, isto é, perdeu o interesse ou a esperança para a
possibilidade, perdeu a possibilidade para a possibilidade. “Inter-esse” ou “esperança” são
palavras para designar a vontade do possível. A ausência de possibilidade, enquanto ausência de
interesse em encontrar satisfação em algo, distende o tempo no parado do em-vão, tornando-o
longo. Langeweile, como o sentimento de que o tempo tornou-se longo, significa deter-se no
tempo sem o conteúdo da possibilidade para preenchê-lo, significa um ocupar-se consigo mesmo,
um estar a sós consigo, mas de modo esvaziado, uma recusa da liberdade, uma impaciência pela
espera do nada, que põe a nadificação de todas as coisas como ação do sujeito que quer
assenhorear-se de tudo, sendo, portanto, uma liberdade de não se dar liberdade, um nadificar que
foge do nada, que o teme. Decerto que há no tédio a presença da possibilidade, mas a
possibilidade não vivenciada enquanto tal, como aquilo que não preenche verdadeiramente a
existência e que assim seria para ela um destino.
E, nesse caso — ao não se vivenciar a possibilidade como o fazer ao qual se está entregue
e que, assim, não se sente passar, ou então, dito de outro modo, que se sente passar como um
“instante”, como o “destino” que ata a existência, como o que parece ter sido nada — resta a
vivência do ininterrupto passar vazio. Essa vivência é a experiência de um passar que nunca
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satisfaz e que por isso se torna aborrecido. É uma experiência de repetição, mas de repetição do
tempo em seu estar parado, conforme testemunha Kierkegaard: “O tempo passa, a vida é uma
corrente, diz a gente, etc. Eu não percebo isso: O tempo está parado e eu com ele”.
(KIERKEGAARD, 2006, p. 51) Mas não tínhamos dito acima que o tédio era a experiência de
dispersão no devir, oriunda da perdição no fluxo das possibilidades? Como falar agora do parado
do tempo? Não seria o contrário disso, a experiência do ininterrupto fluir do tempo? Sim, assim
parece, mas, no entanto, uma das experiências do tempo no tédio é a experiência de um alongar-
se, distender-ser, é a experiência de uma irresolução do tempo, que parece não querer andar, uma
experiência do tempo como recusa a ser o que propriamente deveria ser, ou seja, como o que
deveria passar, fluir, ser uma sucessão de “agoras”. Há também uma experiência do tédio como
experiência da paralisia do tempo, do seu alongar-se num único “agora” e não mais de uma
diversidade de “agoras” que se sucederiam continuamente, a experiência de um único “agora”
que se instala aí parado, conforme é pensado por Heidegger. E há também a experiência do tédio
profundo, a mais radical de todas, que estabelece outra relação com o tempo e que também é
objeto da reflexão de Heidegger.
Há no tédio a experiência do tempo em uma irresolução, que parece alongar-se e não
passar. Desse modo, o tempo torna-se longo, pois no tempo não se “sente” aquilo que o
“preenche”, isto é, a possibilidade; sente-se apenas o tempo passar sem nada preencher. Mas
como é possível “sentir” apenas o tempo, a pura percepção do tempo? Não resta dúvida de que
isso parece não ser possível e, para podermos sustentar essa afirmação, precisaríamos desdobrar
um pouco o que significa aqui “sentir” e “perceber”. Precisaríamos ainda perguntar o que seria o
tempo não “preenchido”, ou seja, sem conteúdo. Não haveria aí também um “conteúdo”, que
poderíamos entender como o próprio “instante” que se recusa, eclipsando-se? Mas o que é isto, o
eclipse do instante? Por enquanto ainda não temos elementos para o seu desenvolvimento, mas
podemos já adiantar, que o tédio, como o acontecimento de perda da paixão da possibilidade,
conforme mostra Kierkegaard, será entendido por Heidegger como o vigorar da tensão entre o
eclipse do instante e a amplitude temporal, indicando assim, juntamente com a amplitude
temporal, o aceno da brevidade que se recusa. A perda da paixão da possibilidade, portanto, é
para Heidegger, o eclipse do instante, levando à amplitude temporal, ao tornar-se longo do
tempo, isto é, ao tédio. Mas como se constitui a perda da paixão da possibilidade e o eclipse do
instante? Não seria isso uma determinada forma de sentir? Mas o que seria sentir?
Sentir, decerto, não é nada subjetivo, nenhuma vivência do sujeito. O que seria então?
Sem poder aqui desenvolver uma compreensão mais apropriada do que seria sentir, vamos
pressupor o sentir como um corresponder, como um co-sentir, como um modo de ser, de poder
ir ao encontro do que se dispõe, se oferece, se doa, no caso, o real mesmo como possibilidade.
Sentir seria então o inter-esse, o estar atravessado e perpassado por ser, pelo real mesmo
enquanto o possível. Sentir, assim, seria um modo da temporalização, de fazer-se presente da
possibilidade. O possível aqui é o maximamente real, que se temporaliza como instante. A
possibilidade, portanto, não é um ente que preencheria outro ente, o instante, dando-lhe
substância. Nenhum dos dois é ente, coisa nenhuma; são ambos o mesmo fenômeno, embora
representando cada um, momentos distinto do mesmo, que se separam por representarem
diferentes graus de aparição, sendo a possibilidade o que se doa, presenteia, o dom, a graça, e o
instante o momento da incisividade do agir e do decidir-se, o momento de acolhimento, que
Kierkegaard chamou de paixão da possibilidade. Quando ele, diz, portanto, que a alma perdeu a
paixão da possibilidade é como se estivesse dizendo: ela perdeu o instante, ou, no dizer
heideggeriano, o instante se lhe recusou, retirando-se, recuando, conforme veremos adiante,
deixando-a instalada no pathos da indiferença em relação a todas as coisas.
É nesse sentido que Heidegger, em “Que é Metafísica?”, diz que o “o profundo tédio, que
como névoa silenciosa desliza para cá e para lá nos abismos da existência, nivela todas as coisas,
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os homens e a gente mesmo com elas, numa estranha indiferença. Este tédio manifesta o ente em
sua totalidade.” (HEIDEGGER, 1979, p.38) Já em “Ser e Tempo”, § 40, ele diz: “Aquilo com
que a angústia se angustia é o ‘nada’ que não se revela ‘em parte alguma’.” (Id., 2002, p. 250). Em
ambas as disposições de humor, portanto, acontece a relação com o nada, mas de modo
radicalmente diverso. No tédio manifesta-se o ente em sua totalidade, que se apresenta como
uma totalidade vazia, ou seja, “tudo” aparece esvaziado de sentido, “tudo” o que é, é sem sentido,
indiferente, apático, de modo que “tudo” é “um”, uma só coisa, o que marca o caráter de
indiferença e a indistinção que caracterizam tudo aquilo que o tédio toca. O tédio, desse modo, é
uma disposição fundamental do Dasein, pois faz tudo aparecer sob um mesmo humor, sob uma
mesma insígnia, marcando todos os entes com um mesmo ferrete, como sendo todos membros
do mesmo rebanho, o que faz com que a multiplicidade e diversidade dos entes apareça como
sendo uma só coisa.
Desse modo, é preciso destacar que o ente em sua totalidade não é soma dos múltiplos e
diversificados entes, mas esse “mesmo”, esse “um”, que reúne todos eles. Na angústia,
diferentemente, o homem assume a sua liberdade, o estar livre para o vigorar do nada, que tudo
nadifica, tornando tudo “estranho”, esvaziado do caráter de ser ente, coisa. Assim, abre-se para
ele a possibilidade de admirar-se com o fato de que as coisas sejam assim como são, isto é, que
sejam como imediatamente se apresentam, passando a se questionar pelo seu ser, que é nada. Na
angústia há uma profunda responsabilidade com o destino, que é nada, pois é só o possível. No
tédio, paradoxalmente, o homem recusa a liberdade para o nada, ao esvaziar tudo, ou seja, ao
tornar tudo esvaziado do seu elemento, que é a possibilidade, podendo, decerto, sempre
argumentar que não é livre para não ser livre. Há, portanto, no tédio um querer, mas um querer
que, ao querer toda possibilidade, torna toda ela esvaziada, recusada como possibilidade própria.
O tédio, desse modo, procura tornar nulo o nada, como um fechar-se para o seu acontecer.
Abandonemos, no entanto, este parêntese, e voltemos à questão do tempo e da sua
paralisia, conforme estava sendo tratado acima, tentando conectar Kierkeggard e Heidegger.
Dizer que “o tempo está parado e eu com ele”, conforme mostrou Kierkegaard, aponta para a
paralisia diante do fluxo contínuo das possibilidades que atravessam o entediado. A paralisia diz
respeito ao não poder decidir nada, ao não poder ater-se a coisa nenhuma, por ater-se a tudo que
vem. Desse modo, podemos ver que o muito querer não é querer algum, propriamente falando.
Portanto, tanto no querer fazer muitas coisas sem apego a nada do que se faz, como no não
querer fazer nada, impera uma experiência de paralisia, que leva ao esvaziamento de todo fazer e
ao enfado com o seu retorno. Perpassa o tédio, portanto, indiferença, desinteresse e indecisão,
reduzindo tudo a uma totalidade vazia.
Mas, além disso, perpassa também o tédio o aborrecimento. E quando o homem se
aborrece, no tédio profundo, o aborrecimento passa a ser o próprio elemento que ocupa o viver,
que o preenche, que fornece conteúdo ao tempo, sendo agora o tornar-se longo do tempo o
repetido vir à tona do aborrecer-se com a vida. No tédio profundo, portanto, também o
aborrecimento é profundo. No entanto, não já tinha sido mostrado acima que aquilo que
entediava era o tempo sem conteúdo? Como entender agora que é o aborrecimento o conteúdo
que faz o tempo tornar-se longo? Mas, seria isto que está sendo aqui dito? Está sendo aqui dito
que o aborrecimento é a causa? Ao que parece não, pois o que mostramos acima foi “o tornar-se
longo do tempo como sendo o repetido vir à tona do aborrecer-se com a vida.” Parece, portanto,
que o tédio, ao se alastrar nas raízes do Dasein, é o fenômeno que une, liga, ata, o tornar-se longo
do tempo e o aborrecimento. Mas o tédio e o aborrecimento não seriam o mesmo, assim como o
tédio e o tornar-se longo do tempo? Ou podemos dizer que nos aborrecemos e que sentimos o
tempo alongar-se porque estamos entediados? Não estaríamos assim confundindo tudo?
Vejamos, procurando primeiro nos situar melhor nesses questionamentos. O que estamos
agora procurando mostrar é que o tempo, ao não ser preenchido pela possibilidade, o é pelo
aborrecimento. E não seria o aborrecimento também uma possibilidade de ser? A questão
fundamental, no entanto, parece não ser essa, mas sim entender o porquê do aborrecimento. Se
dissermos que o seu porque é devido ao tempo que se torna longo, teremos com isso que
perguntar o que se está pensando aí com a palavra tempo e com o ser longo do tempo. Do
mesmo modo, também poderíamos perguntar se o tempo não se torna longo devido ao
aborrecimento, invertendo assim o questionamento. E também perguntar: Por que o tempo que
se alonga entedia e não alegra? O tempo, enquanto o próprio irromper da possibilidade, enquanto
instante, deixaria assim de ser o que originariamente nos inquieta e angustia —, embora sequer
saibamos aí do que se trata e cheguemos a dizer que parece ter sido nada, conforme descreve
Heidegger em “Que é Metafísica?” —, para ser o que nos aborrece e entedia, como uma
totalidade vazia que não preenche nada na nossa existência, deixando-a arrastar-se no vazio? Se
assim for, o tédio, desse modo, caracteriza-se por ser uma forma de ocupação com uma coisa
muito própria, ou seja, com aquilo que aparece sempre como o que é “aborrecido”. Agora se está
diante de algo que se conhece, que se sabe o que é, como aquele aí diante que nunca agrada e
sempre aborrece. Mas com isso ainda ficamos sem saber por que aborrece. E também é preciso
ver que essa coisa muito própria e aborrecida não é nenhuma coisa determinada, particular, mas
sim uma totalidade que sempre já se deu, e que também não é nada abstrato, tipo um gênero
supremo ou um conceito universal. A totalidade vazia, desse modo, não é obtida pela soma de
coisas vazias particulares, que seriam acrescentadas uma a outra formando uma totalidade. De
modo diverso, a totalidade vazia sempre já se deu de um único golpe, de uma só tacada, como
decorrente de um poder de tornar manifesto o ente em sua totalidade, como totalidade marcada
pela indiferença, pelo aborrecimento e pelo alongar-se temporal. A disposição fundamental do
tédio é este poder.
Vamos procurar nos situar a partir daqui, portanto, conforme já deve ter sido percebido,
levando em consideração o que Heidegger pensou sobre o fenômeno do tédio em “Os Conceitos
Fundamentais da Metafísica”. Primeiramente seria preciso perguntar: qual o tempo que se torna
longo? Segundo Heidegger (Cf. 2003, § 33, p. 180), o tempo aí não é um tempo qualquer, mas o
tempo durante o qual o Dasein enquanto tal é, o tempo em que ele deve se ocupar com o ente e
assim com ele mesmo. O tempo do Dasein é esse tempo curto, que na maior parte das vezes está
para ele velado, aparecendo como aquilo que ele simplesmente gasta, com o que ele pode contar,
calculando-o para si como um negócio. Por isso muitas vezes se diz: “o tempo é ouro”, “o tempo
é precioso”, “não se pode desperdiçar o tempo”, querendo muitas vezes indicar com isso que o
tempo precisa estar ocupado pelo negócio, não pelo ócio. Originariamente falando, o tempo não
tem o sentido do tempo do relógio ou da cronologia, pois, conforme mostra Heidegger, “o ser-aí
do homem pode vir-a-ser essencialmente na brevidade do tempo objetivo e pode permanecer
inessencial mesmo se ele chegar aos 70 anos ou mais.” (HEIDEGGER, 2003. p. 180) O tempo,
portanto, não se refere nesse contexto à medida quantitativa da brevidade ou da extensão da
duração na qual o Dasein é.
O fato de o tempo tornar-se longo indica, para Heidegger, que o horizonte da
temporalização do Dasein é aberto em uma indeterminação que o oprime. A indeterminação diz
respeito ao tornar-se amplo do horizonte temporal, cuja amplidão, ao invés de libertar, torna-se
opressor. Essa amplitude temporal promove o eclipse da brevidade do tempo, fornecendo com
essa opressão uma indicação característica de sua brevidade (Cf. Id., Ibid., p. 181). Se o tempo
que se arrasta, como o que parece não querer passar, é o que nos oprime, isso parece indicar que
o nosso lugar próprio é o da brevidade do tempo, do instante, que está eclipsado. O eclipse da
brevidade, no entanto, não aponta para nada de quantitativo, mas para “o eclipse da incisividade e
do ápice de um instante sempre e a cada vez determinado da ação e do existir.” (Id., Ibid., p. 181)
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Com isso, no entanto, o instante não desaparece, mas antes a sua possibilidade, como o que é
“propriamente recusado no banimento do tempo.” (Id., Ibid., p. 181)
Nos instantes decisivos e fundamentais da vida, temos a sensação que tudo vem como
um raio, de modo fulminante e avassalador, não nos deixando escolha e, ao mesmo tempo, nos
arrebatando com o mais sublime sentimento de liberdade, que é o sentimento de ser livre na
coação, no jugo, na tarefa própria que se nos impõe sem titubeio, como se estivéssemos sob o
domínio da mais suprema lei. Aí, nesse instante, somos somente o que é possível ser, somos a
paixão da possibilidade, pois a possibilidade, nesse instante extraordinário, não é uma
possibilidade qualquer, mas a única que podemos e precisamos ser, sendo, portanto, o que nos é
mais real.
Já no tédio, para Heidegger, vigora a tensão entre o eclipse do instante e a amplitude
temporal, indicando assim, juntamente com a amplitude temporal, o aceno da brevidade que se
recusa. O tédio é o afeto que nos acena a recusa do instante, deixando-nos desolados no alongar-
se do tempo. A relação fundamental do tédio é com o tempo, com o seu alongar-se, e Heidegger
destaca isso principalmente ao examinar o tédio profundo. Mas o fenômeno do tédio tem
também outras formas, como o ser-entediado por alguma coisa e o entediar-se junto a algo. No
entanto, é o tédio profundo que fundamenta as demais nuances e formas do tédio, pois essa
forma de tédio não é uma forma qualquer e sim a mais essencial. Quando recorremos, por
exemplo, ao passatempo como um artifício para fazer “passar o tempo”, para “matar o tempo”, o
fazemos para que o tempo longo possa se transformar em instante. A relação fundamental,
portanto, é com o tempo e com o instante que é banido no alongar-se do próprio tempo.
Heidegger analisa com profundidade o fenômeno do tédio em “Os Conceitos Fundamentais da
Metafísica: Mundo, Finitude e Solidão”, em cerca de uma centena de páginas. Tocaremos aqui em
apenas alguns momentos de sua análise que consideramos mais decisivos para o nosso propósito.
Façamos então um breve percurso, para situarmos a problemática em relação à questão da recusa
da brevidade do tempo e ao passatempo.
O tédio é um afeto, uma afecção, uma disposição de humor fundamental (Grundstimmung)
que nos afina com a totalidade das coisas segundo o modo de uma indiferença. Mas o que nos
leva, questiona Heidegger, a nos entregarmos com tamanha indiferença às interpretações
filosófico-culturais correntes de nossa época, permitindo que elas nos forneçam o quadro de
nossa situação? Será que isso ocorre pelo fato de estarmos entediados e permitirmos que uma
“indiferença” boceje diante de todas as coisas? Será o tédio essa nuvem silenciosa que nos arrasta
nessa indiferença? (Id., Ibid., p. 92) Na verdade, o tédio enquanto a disposição que nos afina
desse modo é o que está sendo colocado em questão. Por isso, diz então Heidegger, que é preciso
perguntar como podemos constatar o tédio?, embora, na verdade, não se trate aí de procurar
obter nenhuma constatação, conforme ele próprio mostra, mas antes de se preparar para a
experiência de um despertar.
Do tédio, é certo, não queremos saber, mas antes nos evadir, pois, é certo, estamos o
tempo todo empenhados em passar o tempo, quer o saibamos ou não. Portanto, não queremos
deixar o tédio despertar. Ele, contudo, já está desperto e de olhos aberto, nos espreitando. Para
que então despertá-lo? De fato isto não é preciso, diz Heidegger, pois despertar é “deixá-lo estar
acordado, protegê-lo frente ao adormecimento.” (Id., Ibid., p. 95) Esta tarefa parece ser insana,
tendo em vista que aquilo que procuramos naturalmente é não deixar o tédio aparecer, embora
saibamos que ele sempre pode voltar a estar aí. A nossa experiência do tédio é a experiência com
aquilo de que continuamente procuramos fugir; é, portanto, uma experiência de fuga, um desejo
de manter distância.
Conforme já mostramos há uma relação profunda entre o tédio e o tempo, relação essa
expressa na própria palavra, que em alemão é Langeweile, que literalmente significa o tempo que se
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torna longo, parado, que se distende, se alonga. Mas o tempo deveria ser curto, pergunta
Heidegger? E continua: Não seria próprio do homem desejar um tempo longo, como por
exemplo, a longevidade? E o que significa o tédio como uma experiência do tempo? Teríamos
que, primeiro, adentrar o tempo, para assim determinarmos o tédio? Ou seria o contrário:
teríamos que adentrar o tédio para termos uma experiência do tempo como tempo longo? Ou
não seria nem uma coisa nem outra? Para Heidegger, as três perguntas fundamentais: o que é
mundo, finitude e singularização devem aflorar da disposição fundamental do tédio. De fato, uma
determinada compreensão de mundo, como totalidade sem sentido, advém do fenômeno do
tédio profundo.
E por que o tédio? Por que não a tristeza ou a alegria, ou mesmo a ira, que parecem nos
afinar mais frequentemente? É importante perceber que Heidegger destaca o tédio profundo
como a forma fundamental de tédio, que se difere do entediar-se por algo — quando isto ou
aquilo determinado parece nos entediar, como um livro, a estação de trem ou a região em volta
— e também do entediar-se junto a algo, embora esse “algo” não seja nenhuma coisa
especificamente determinada, como ocorre no encontrar-se entediado em uma reunião social,
sem que nada especificamente seja o motivo do tédio, mas sim o conjunto do próprio
passatempo, ou seja, a reunião, as conversas, o comportamento como um todo durante o
encontro. Essa segunda forma, que indica uma forma de tédio mais profunda que a primeira, não
é, contudo, o que provoca a terceira forma, em uma espécie de progressão do tédio. Isso porque,
enquanto disposição que nem anima nem desanima, e que nos afina como se não estivéssemos
afinados, a terceira forma, que é o tédio profundo, é justamente, por ser a mais originária, a forma
principal do tédio, que fundamenta as outras duas.
Ao deter-se no exame do tédio, Heidegger não visa submetê-lo, enquanto vivência
anímica, a um exame da consciência. Antes, procura partir da determinação essencial do que
entedia, de algo entediante, como, por exemplo, um livro, no que diz respeito à primeira forma
de tédio. O tédio, portanto, é entendido, desde o início da interpretação feita por Heidegger, não
como uma vivência anímica, mas como o que vem ao nosso encontro a partir das coisas mesmas.
Mas como? De que modo? As coisas mesmas são entediantes, o livro, a região, a montanha, as
pessoas, a situação, etc? Mas em que sentido o livro é entediante? É porque não é interessante, é
mal escrito, tem a própria encadernação como algo entediante? É necessário, contudo, questiona
Heidegger (Id., Ibid., p. 101), que nos entediemos com um livro entediante? Não poderíamos nos
entediar com um livro interessante?
Uma antiga e venerável forma de filosofar postula que as propriedades das coisas não
vêm à tona em si mesmas, mas são representações, idéias, que o sujeito transporta até elas. Desse
modo teríamos a seguinte estrutura: As coisas provocam em nós as disposições, que são em
seguida transportadas por nós até elas (cf. Id. Ibid., p. 103). Quando dizemos, por exemplo,
“livro entediante”, “paisagem melancólica”, “campo alegre”, “quarto sereno” ou “alegria dos
peixes”, isso só é possível porque estaríamos transportando para as coisas disposições afetivas de
nossa subjetividade, após termos sido tocados de algum modo por essas diferentes coisas? Como
é que sabemos, por exemplo, que os peixes estão alegres se nós não somos peixes, conforme
questiona Hui Tzu para Chuang Tzu? (cf. MERTON, 1984, p. 126). Há um enorme problema
por trás disso e que não temos aqui como desenvolver, que é o problema da alteridade. Mas o
decisivo é apontado por Chuang Tzu no final, quando diz que o questionamento de Hui Tzu já
pressupõe que há saber, apenas perguntando pelo seu “como”. Decerto que o homem já “sabe”,
ou “sente”, que “o livro é entediante”, “a paisagem é melancólica”, que “o campo está alegre”, “o
quarto é sereno” ou que “os peixes estão alegres”, porque alguma disposição de humor decerto já
o afinou, seja ela o tédio, a melancolia, a alegria ou a serenidade, reunindo ele com a paisagem, o
campo, o quarto ou os peixes, constituindo-o como um ser-no-mundo, já sempre unido e
integrado com as coisas desde as coisas mesmas, ou seja, desde elas mesmas enquanto afeto,
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disposição de humor, e não desde a lógica da subjetividade. Essas disposições, portanto, não são
afecções psicológicas do sujeito, que seriam posteriormente transportadas para as coisas,
constituindo o sentir como uma ação subjetiva.
Não seria preciso “sentir” algo junto às coisas, contudo, para que as pudéssemos
denominar de tediosas, melancólicas, alegres ou serenas? Mas, será que seria necessário, sempre
que sentimos algo, que postulemos esse “sentir” como uma espécie de operação de transporte,
como se as coisas transportassem para nós as sensações, como uma espécie de corpúsculos, que
ao nos atingirem seriam provocadas em nós? E nós, em seguida, transportaríamos de volta até as
coisas a sensação recebida? Mas, “se o que requisita a transposição já se encontra na própria
coisa, para que então a transposição?”, questiona Heidegger (HEIDEGGER, 2003, p. 103). Estes
questionamentos parecem indicar que o tédio não é uma representação ou idéia do sujeito, nada
psicológico ou intimista, mas antes uma disposição de humor, um afeto. Isto, no entanto, ainda
soa muito vago, pois seria preciso perguntar mais decisivamente: E o que é uma disposição de
humor? E que tipo de disposição de humor é essa, o tédio? Por que ela diria respeito, de maneira
tão fundamental, ao nosso Dasein atual?
Conforme estamos procurando mostrar, o tédio tem uma relação fundamental com o
tempo. Para tentar responder minimamente a essas questões ou para pelo menos lhes fornecer
algum aceno, vamos procurar retomar essa relação entre o tédio e o tempo, que já começamos a
desenvolver acima, procurando examinar alguns aspectos ainda não visualizados, sem, contudo,
pretender retirar a obscuridade que é própria dessa relação. O propósito é iluminar o obscuro
para procurar revelar os fundamentos da obscuridade. Vamos, portanto, retomar a questão já
colocada acima, ou seja, a questão do tédio como o alongar-se do tempo enquanto recusa da
brevidade do instante, procurando, para tanto, destacar a relação entre instante e possibilidade.
Segundo Heidegger, o que é designado em sua interpretação do tédio pela palavra “instante”
“aponta para o que Kierkegaard compreendeu realmente pela primeira vez na filosofia — uma
compreensão, com a qual começa a possibilidade de uma época completamente nova da filosofia
desde a antiguidade.” (Id., Ibid., p. 177) Decerto que o nosso texto abre aqui uma lacuna, pois
procuramos desenvolver nele uma compreensão de instante não a partir de Kierkegaard, mas sim
a partir do olhar dirigido por Heidegger à compreensão inaugural desenvolvida por ele. O que
significa então “instante” no contexto da análise feita por Heidegger sobre o tédio? Sem dúvida
aponta para uma relação fundamental entre o tédio e o tempo. Mas o que se está pensando aí
com a palavra “tempo”?
O tempo, segundo Heidegger, “é o que lança o ser-aí em banimento neste tédio.” (Id.,
Ibid., p. 176) O tempo, como o que bane o Dasein, ou seja, como o que o bane da experiência
originária do “instante”, ao recusar-lhe a entrega à paixão da possibilidade, é ele próprio o ápice
que possibilita ao ser-aí existir essencialmente. O “instante”, desse modo, dá-se a conhecer como
o recusado, como o que é recusado enquanto “um possível e apenas como tal” (Ibid., p. 176) A
possibilidade, desse modo, é vislumbrada como o que é recusado, mas, ao mesmo tempo, se
apresenta como o que pode possibilitar o ser próprio do ser-aí, devido à liberdade entrevista de
poder vir a ser esse possível recusado. Essa realidade da liberdade, como possibilidade para essa
possibilidade, é o que Kierkegaard chamou de angústia, conforme já mostramos acima.
Conforme diz Heidegger, “o banimento temporal só pode ser quebrado através do tempo
mesmo, através do que é a partir da própria essência do tempo e que, em ligação com
Kierkegaard, denominamos o instante.” (Id., Ibid., p. 178) Heidegger tentou no § 65 de “Ser e
Tempo” determinar a essência do instante através do seu enraizamento na temporalidade, mas,
segundo ele próprio, este problema não foi lá resolvido, embora tenha sido tocado em sua
dimensão embrionária. O que seria então o instante? O que estamos procurando não é
estabelecer uma definição, mas antes a possibilidade de sua experiência, pois o instante não é algo
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que possa ser escolhido, refletido ou sabido. A experiência do instante é a experiência do que
para nós é o propriamente possibilitador, ainda que só se mantenha pressentido enquanto o que é
banido para o interior do horizonte temporal e a partir dele (Cf. Id., Ibid., p. 179).
Qual é, portanto, o tempo que se torna longo? O tempo próprio do Dasein? Mas que
tempo é esse? É o instante? O instante é o tempo próprio? Mas o que significa tempo próprio?
Seria o tempo curto? O tempo longo, desse modo, seria o tempo impróprio? Mas o que se quer
dizer aqui com tempo curto e tempo longo? Seriam dimensões quantitativas da brevidade e da
extensão do tempo? Decerto que não! O que seriam então? Heidegger entende que o tornar-se
longo do tempo abre o tempo do Dasein em uma indeterminação, tornando-o preso, no sentido
de estar ligado a todas as possibilidades que se abrem enquanto possibilidades que não lhe dizem
respeito, tornando amplo o horizonte temporal e, de um modo tal, que não chega a trazer alívio,
mas, antes opressão. A opressão, paradoxalmente, é devido a não ter nada que oprima, obrigue,
vincule, deixando assim a sensação de vazio. O vazio mesmo é o vazio da possibilidade, que
enquanto possibilidade própria é vinculante, levando à resolução, à decisão, como o que pode
atar o homem a um destino. O eclipse, portanto, é o eclipse da possibilidade, no qual “o instante
ainda se impõe como o propriamente recusado no banimento do tempo.” (Id., Ibid., p. 181) O
propriamente recusado, portanto, não é o ente, mas o tempo de sua abertura, que é a sua
possibilidade. Aqui, nessa confluência de possibilidade e instante, encontram-se Kierkegaard e
Heidegger.
Qual é a relação, portanto, entre possibilidade e instante? O instante, para Heidegger,
“não é nada além da visualização do caráter de decisão, no qual se abre e se mantém aberta a
situação plena de um agir.” (Id., Ibid., p. 177) O tempo que provoca o banimento retém em si
algo capaz de provocar a liberação, ou seja, o instante. O tempo provoca tanto o banimento do
instante, com o alongar-se temporal, como também dá a conhecer o que é passível de provocar a
libertação, o possibilitador que o próprio tempo é e somente ele pode ser, isto é, o instante. O
instante, desse modo, é a possibilidade própria que o ser-aí é e da qual é banido através do tempo
que se torna longo. No tempo coexistem tanto o poder que bane Dasein do instante como
também o clamor pelo que é recusado. O tédio profundo é o palco desse acontecimento, a
trincheira dessa tensão do instante e do alongar-se do tempo, sendo, portanto, um sentimento de
vazio pelo instante recusado.
Com o alongar-se do tempo e através dele, o Dasein é deixado a sós com o sentimento de
encontrar-se banido. Isto revela que algo escapa, isto de que se está banido, de modo que ao
“sentimento” de ser banido pertence também um “sentimento” de pertencimento, mas como
uma espécie de pertencimento ao que está em fuga. E é preciso mais uma vez destacar que o
alongar-se do tempo não é nada quantitativo, mas um caráter da indeterminação a que o ser-aí se
vê entregue, por ver correr diante de si um longo desfilar-se de possibilidades que na verdade não
representam nenhuma possibilidade própria de existência. A brevidade do tempo, o instante, do
mesmo modo, também não é pensada quantitativamente. Indica, antes, o caráter de agudeza,
intensidade, resolução da ação e do existir, que emergem como um instante, de modo súbito,
vigoroso, definindo, sem permitir rodeios, o curso das decisões do homem.
O eclipse da brevidade do instante, portanto, é o eclipse dessa resolução e agudeza da
decisão. O que se eclipsa, desse modo, é a possibilidade de um instante próprio de ação, de um
agir no tempo certo da coisa, que é o tempo do seu surgir e brotar, do seu súbito aparecer, sem
porquê nem para quê. Mas com isso, no entanto, o instante não desaparece; antes se impõe como
o que é recusado no banimento do tempo. E no tédio o Dasein encontra-se em um “entre”, não
estando simplesmente abandonado à mercê do banimento, nem, tampouco, podendo
simplesmente agarrar o instante. No tédio profundo nós recebemos ambos ao mesmo tempo, ou
seja, o tempo que provoca o banimento, que afasta o instante e deixa-nos a sós com o tempo
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longo, e também o instante, como o que é dado a conhecer enquanto o que é recusado. O ritmar-
se nesse “entre” é o afinar, é o tédio enquanto disposição de humor afinadora.
Nesse modo de estar afinado o que parece ser recusado é o sentimento da diferença, pois
as coisas se mostram aí em uma perene identidade e semelhança, que lhes reúne como sendo uma
só coisa, uma enorme massa amorfa e sem sentido, estagnada na sua repetição. A tediosa
repetição de tudo, com a náusea da indiferença e do movimento repetido do sem sentido de
todas as coisas. Não há encanto com o revigorar-se criador do mundo, pois o que se repete no
tédio não é o diferenciar-se do mesmo, mas a vazia indiferença do repetir-se do igual, como o
movimento de um comboio em que todas as paisagens que são vistas são repetições de uma
mesma paisagem, que se observa de modo indiferente e apático. Vigora aí o desejo de não
desejar, de não-ser, enquanto perda da paixão pela possibilidade e recusa do instante, como um
modo especial de estar afinado do nosso ser-aí atual.
“Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma
mágoa, uma angústia de viver que só não me parece insuportável porque de facto a suporto”
(PESSOA, 2019, p. 201), diz Bernardo Soares no “Livro do Desassossego”. Este tédio é um
desassossego, um cansaço, que “não tem outra razão de ser senão o estar sendo”. (Id., Ibid., p.
201). Vigora no tédio um cansaço dos desejos, um desgosto com a vida e com todos os
sentimentos. Tudo é sem sentido, oco, vazio, tudo é inexpressivo, os rostos, as paisagens, os
gestos, “todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada.
Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo.”
(Id., Ibid., p. 125) No tédio o tempo é sentido com uma enorme dor, embora não se saiba o que
o tempo seja, qual a sua verdadeira medida. A do relógio decerto é falsa, porque divide o tempo
espacialmente e indiferentemente por fora. A medida das emoções também é falsa, pois embora
não divida o tempo como a medida do relógio, divide, contudo, a sensação dele (Cf. Id., Ibid., p.
207). Parece, portanto, que somos sempre enganados quando pensamos a seu respeito. É como
se nos encontrássemos aí como vítimas de uma arte da prestidigitação, onde, de algum modo,
soubéssemos que estamos sendo enganados, porém não fôssemos capazes de conceber qual a
técnica ou mecânica do engano (Cf. Id., Ibid., p. 207)
Estas e inúmeras outras passagens do “Livro do Desassossego” parecem nos mostrar de
modo fundamental, sob o olhar da arte, a experiência do tédio profundo, assemelhando-se, em
alguns aspectos decisivos, ao que apresentamos aqui a partir de Kierkegaard e Heidegger. Sem
dúvida que uma fenomenologia do tédio a partir de Fernando Pessoa seria um estudo dos mais
interessantes, mas não é nosso propósito aqui fazê-lo, tendo citado a sua obra como sendo uma
das obras de arte que serve para mostrar, exemplarmente, o que aqui procuramos descrever
fenomenologicamente. No entanto, podemos a partir dessas passagens ter um pequeno vislumbre
de que no tédio vigora um enorme cansaço, sentido temporalmente como a dor de uma ausência.
Essa dor, a partir do que procuramos mostrar em Kierkegaard e Heidegger, é a dor de uma
recusa, de uma perda, que Kierkegaard mostrou como a perda da paixão da possibilidade e
Heidegger como a recusa, no tempo que se torna longo, do tempo próprio, do instante. Esta dor
apareceu, portanto, sendo ainda mais incisivo, como a dor do recusar-se da decisão, da resolução.
Vimos também que o tempo, ao permitir o pressentir-se do ausente, se apresenta também como
o que possibilita a liberdade, ou seja, como o que possibilita a si mesmo como o instante que é
recusado, o que pode livrar o Dasein da fuga para o in-finito, que não é como o finito, i-mediato,
sem mediação, mas sim mediato, sendo a sua afirmação “mediada pela revolta, pela ingratidão.”
(FOGEL, 2012, p. 87)
Em “A Rotação dos Cultivos”, sétima parte de Ou-Ou, Kierkegaard fala da ilimitada
infinitude da mudança, que ele denomina de “infinitude perversa”, que seria a rotação de cultivo
vulgar, não artística, radicada em uma ilusão, caracterizada por um enorme cansaço, por um
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aborrecimento radical, que “consiste em ir alternando o terreno sem cessar”. Contudo, conforme
ele ainda destaca, não é assim que “os camponeses utilizam essa expressão” (KIERKEGAARD,
2006, p. 298). Apesar disso, ele vai utilizá-la para falar da incansável busca do homem por
mudança e da sua enorme extensão, tendo em vista que aquilo que procura aquele que se
aborrece é o sempre mudar. Ao falar de “rotação dos cultivos”, Kierkegaard está pensando em
alguém que, por exemplo, devido ao seu aborrecimento, sai do campo e viaja para a cidade, ou
então em alguém que, por estar farto de sua terra natal, viaja para o estrangeiro, ou em alguém
que está cansado da Europa e viaja para a América, e assim sucessivamente, alternando
continuamente os terrenos. No entanto, isto pode ter um sentido bem mais amplo e ser
compreendido como representando uma mudança não somente espacial, mas também, por
exemplo, uma alternância de um tipo de prato por outro, de uma mobília por outra, na troca de
roupas e trajes os mais diversos, na mudança de ação, comportamento e pensamento. Ele chega a
citar a ação de Nero, que teria incendiado Roma para contemplar a queima de Tróia. Mais
inteligente, segundo ele, teria sido Marco Aurélio, ao dizer: “Em tuas mãos está começar a vida
do princípio. Revisa as coisas que outrora fizestes. Começar a vida do zero é justamente isso.”
(Id., Ibid., p. 299)
Ele destaca isso para mostrar que, aquilo que está sendo proposto com a expressão
“rotação de cultivos”, não é a mudança de terreno, mas o método de exploração e a classe de
sementes, procurando assim destacar o método da limitação, ao dizer que quanto mais se limita
alguém, mais dotado se torna o seu poder inventivo. Desse modo, uma simples aranha, mosca ou
mesmo uma goteira poderia ser um grande entretenimento para um preso solitário. “Em que
esmerado observador ele se converte!”, diz, mostrando que, assim, nem “o mínimo ruído ou
movimento lhe escapa”. Eis aqui, continua, “em seu ponto extremo, o princípio que não busca
satisfação no extensivo, mas no intensivo.” (Id., Ibid., p. 299). Em conexão com isso Heidegger
diz, conforme já mostramos acima, que “o instante não é nada além da visualização do caráter de
decisão”, no qual se mantém aberta a possibilidade de intensidade e participação vital em um agir,
não sendo, portanto, nada cronológico, não correspondendo a nenhuma medida quantitativa do
tempo, enquanto tempo curto.
Absorvido no instante, o homem torna-se um “esmerado observador”, pois possibilidade
alguma lhe escapa, estando à espreita do que quer que venha a se insinuar, pronto para apanhar
num bote, tal qual o animal na caça, a possibilidade como a sua presa, por mais furtivamente que
ela possa “aparecer”, por mais que a sua pisada seja leve, sorrateira, silenciosa. O estado de
participação vital que acontece, por exemplo, na caça e, poderíamos também dizer, na pesca, não
é um estado de agitação nem, tampouco, de apatia. Há aí calma, serenidade, como uma prontidão
para a captura, para fisgar a presa, de modo que o que se consegue pegar é o que já se oferece,
ofertando-se em presença, o que brota em silenciosa oferta e fartura, embora se resguardando,
em seu pudor, de modo que a sua presença é também ausência, encobrimento, encontrando-se o
homem, nesse estado, em uma suprema tensão vital e escuta, em uma solitária ação de captura,
colheita e coleta, estando sempre no risco de que a presa-possibilidade lhe escape. Sem que atue
aí nada de ativo ou passivo, o que acontece nesse “instante” é a decisão, isto é, a intensificação de
um agir, que precisa ser sempre algo limitado, isto é finito, como tudo o que pode aqui e agora,
nesse “instante” de abertura, ser, como um modo de encontro, de reunião, de atamento, do
homem com a vida, com o tempo. Na “infinitude perversa”, contudo, conforme descreveu
Kierkegaard, o horizonte se amplia demasiadamente, sem contenção, se esparramando em um
sem número de alternativas que se sucedem, em um conjunto de “aventuras” criadas para a
distração, mas que, longe de agradar, provocam, antes, opressão e aborrecimento, o que nos
permite perceber que o tédio não é simplesmente afastado pelo trabalho ou por uma ação
qualquer, pois há um trabalho afanoso e tedioso na ilimitada infinitude da mudança. Tampouco
está o tédio simplesmente relacionado ao ócio, pois há um ócio divino, relacionado à atividade
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criadora que não é, de forma alguma, tediosa, embora, é certo, haja também uma forma de ócio
parasitária, que procura afanosamente e tediosamente nada fazer.
Atua no tédio um antagonismo fundamental, pois, ao ser deixado a sós com o sentimento
de encontrar-se banido, conforme mostramos acima, o ser-aí percebe que algo lhe escapa, isto de
que ele está banido, de modo que ao “sentimento” de ser banido pertence também um
“sentimento” de pertencimento, embora se trate de uma espécie de pertencimento ao que está
em fuga e que não se consegue agarrar. No tédio, o que está em fuga acena para um encontro,
mas ao mesmo tempo provoca o desejo de repulsa, enredando o ser-aí em uma indiferença. Ao
ser banido, portanto, abre-se para o ser-aí a possibilidade de visualizar o propriamente
possibilitador, o instante recusado. O tempo, portanto, é tanto o que bane como também o que
possibilita, conforme já destacamos acima. No tédio, o ser-aí está balançando num “entre”, está
em um estado de tensão, pois nem se encontra lançado no mero banimento, nem tampouco pode
agarrar o instante. O que Heidegger mostra é que recebemos ambos ao mesmo tempo, “o
instante recusado e dado a conhecer” (HEIDEGGER, 2003, p. 179). O balançar nesse “entre” é
o afinar, é o tédio enquanto disposição afinadora. E o instante, enquanto o propriamente
possibilitador, não é algo nem refletido, nem conhecido, nem sabido, mas somente pressentido
como o que é recusado na temporalização do tempo. O tempo que bane e o que possibilita, esses
dois, são na verdade um, que ao banir se deixa pressentir como algo quase desaparecido, como o
que é apenas um possível, como o que tem o poder de liberar e que não é outra coisa senão a
liberdade enquanto tal.
Enquanto disposição fundamental do Dasein, o tédio é o limiar entre recusa e
oferecimento. Nesse limiar ocorre tanto a possibilidade de perdição quanto de libertação, que é
sempre uma conquista e não um estado, algo a ser conquistado em uma confrontação com o
tédio, que está à espreita para se insinuar no coração do homem, que precisa desse modo sempre
superar o próprio tédio, pois, conforme diz Kierkegaard, “todos os homens são tediosos.”
(KIERKEGAAD, 2006, p. 296) No tédio triunfa a impotência de uma escuta, poderíamos
arriscar dizer, própria, afirmadora do instante, mas, entretanto, há um pressentimento do
banimento. Nesse caso, o pressentimento é uma escuta do banimento, mas não uma escuta do
que se presenteia, embora mantendo distância. Assim, parece que o instante pode ser “escutado”
tanto como pressentimento de sua recusa, no caso do tédio, como pressentimento de sua oferta,
no caso da angústia. E podemos também acrescentar que há no tédio algo mais profundo do que
no perceber comum, ordinário, dominado pelo ente, embora haja, ao mesmo tempo, a
impotência de pertencer a isto que é pressentido, pois dele se está banido pelo tempo. No
entanto, conforme já vimos, o próprio tempo possibilita a escuta. E como isso seria possível,
tendo em vista que ao tentar combater o tédio parece que somos nele cada vez mais enredados,
como se estivéssemos atolados em uma areia movediça? Para poder combatê-lo, enfrentar a sua
enorme força, que míngua toda força, todo ânimo, não seria preciso já possuir um ânimo
invencível, portanto, não estar mais sob o domínio do tédio? Como resolver esse enigma? E ele é
para ser resolvido? Sem dúvida que não, pois se o tempo que se recusa é o próprio possibilitador,
só ele pode possibilitar a liberdade, isto é, a paixão pela possibilidade, pelo instante, que, sendo o
que se recusa é, ao mesmo tempo, o que atrai.
REFERÊNCIAS
FOGEL, Gilvan. Sentir, ver, dizer: cismando coisas de arte e de filosofia. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2012.
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril
Cultural, 1979.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1995.